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O Céu e o Inferno / Allan Kardec
O Céu e o Inferno / Allan Kardec

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Céu e o Inferno

O porvir e o nada

1. - Vivemos, pensamos e operamos - eis o que é positivo. E que morremos, não é menos certo.

Mas, deixando a Terra, para onde vamos? Que seremos após a morte? Estaremos melhor ou pior? Existiremos ou não? Ser ou não ser, tal a alternativa. Para sempre ou para nunca mais; ou tudo ou nada: Viveremos eternamente, ou tudo se aniquilara de vez? É uma tese, essa, que se impõe.

Todo homem experimenta a necessidade de viver, de gozar, de amar e ser feliz. Dizei ao moribundo que ele viverá ainda; que a sua hora é retardada; dizei-lhe sobretudo que será mais feliz do que porventura o tenha sido, e o seu coração rejubilará.

Mas, de que serviriam essas aspirações de felicidade, se um leve sopro pudesse dissipá-las?

Haverá algo de mais desesperador do que esse pensamento da destruição absoluta? Afeições caras, inteligência, progresso, saber laboriosamente adquiridos, tudo despedaçado, tudo perdido! De nada nos serviria, portanto, qualquer esforço no sofreamento das paixões, de fadiga para nos ilustrarmos, de devotamento à causa do progresso, desde que de tudo isso nada aproveitássemos, predominando o pensamento de que amanhã mesmo, talvez, de nada nos serviria tudo isso. Se assim fora, a sorte do homem seria cem vezes pior que a do bruto, porque este vive inteiramente do presente na satisfação dos seus apetites materiais, sem aspiração para o futuro. Diz-nos uma secreta intuição, porém, que isso não é possível.

2. - Pela crença em o nada, o homem concentra todos os seus pensamentos, forçosamente, na vida presente.

Logicamente não se explicaria a preocupação de um futuro que se não espera.

Esta preocupação exclusiva do presente conduz o homem a pensar em si, de preferência a tudo: é, pois, o mais poderoso estimulo ao egoísmo, e o incrédulo é conseqüente quando chega à seguinte conclusão: Gozemos enquanto aqui estamos; gozemos o mais possível, pois que conosco tudo se acaba; gozemos depressa, porque não sabemos quanto tempo existiremos

Ainda conseqüente é esta outra conclusão, aliás mais grave para a sociedade: Gozemos apesar de tudo, gozemos de qualquer modo, cada qual por si: a felicidade neste mundo é do mais astuto.

E se o respeito humano contém a alguns seres, que freio haverá para os que nada temem?

Acreditam estes últimos que as leis humanas não atingem senão os ineptos e assim empregam todo o seu engenho no melhor meio de a elas se esquivarem.

Se há doutrina insensata e anti-social, é, seguramente, o niilismo que rompe os verdadeiros laços de solidariedade e fraternidade, em que se fundam as relações sociais.

3. - Suponhamos que, por uma circunstância qualquer, todo um povo adquire a certeza de que em oito dias, num mês, ou num ano será aniquilado; que nem um só indivíduo lhe sobreviverá, como de sua existência não sobreviverá nem um só traço: Que fará esse povo condenado, aguardando o extermínio?

Trabalhará pela causa do seu progresso, da sua instrução? Entregar-se-á ao trabalho para viver? Respeitará os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-se-á a qualquer lei ou autoridade por mais legitima que seja, mesmo a paterna?

Haverá para ele, nessa emergência, qualquer dever?

Certo que não. Pois bem! O que se não dá coletivamente, a doutrina do niilismo realiza todos os dias isoladamente, individualmente.

E se as conseqüências não são desastrosas tanto quanto poderiam ser, é, em primeiro lugar, porque na maioria dos incrédulos há mais jactância que verdadeira incredulidade, mais dúvida que convicção - possuindo eles mais medo do nada do que pretendem aparentar - o qualificativo de espíritos fortes lisonjeia-lhes a vaidade e o amor-próprio; em segundo lugar, porque os incrédulos absolutos se contam por ínfima minoria, e sentem a seu pesar os ascendentes da opinião contrária, mantidos por uma força material.

Torne-se, não obstante, absoluta a incredulidade da maioria, e a sociedade entrará em dissolução.

Eis ao que tende a propagação da doutrina niilista. (1)

Fossem, porém, quais fossem as suas conseqüências, uma vez que se impusesse como verdadeira, seria preciso aceitá-la, e nem sistemas contrários, nem a idéia dos males resultantes poderiam obstar-lhe a existência. Forçoso é dizer que, a despeito dos melhores esforços da religião, o cepticismo, a dúvida, a indiferença ganham terreno dia a dia.

Mas, se a religião se mostra impotente para sustar a incredulidade, é que lhe falta alguma coisa na luta. Se por outro lado a religião se condenasse à imobilidade, estaria, em dado tempo, dissolvida.

O que lhe falta neste século de positivismo, em que se procura compreender antes de crer, é, sem dúvida, a sanção de suas doutrinas por fatos positivos, assim como a concordância das mesmas com os dados positivos da Ciência. Dizendo ela ser branco o que os fatos dizem ser negro, é preciso optar entre a evidência e a fé cega.

(1) Um moço de dezoito anos, afetado de uma enfermidade do coração, foi declarado incurável. A Ciência havia dito: Pode morrer dentro de oito dias ou de dois anos, mas não irá além. Sabendo-o, o moço para logo abandonou os estudos e entregou-se a excessos de todo o gênero.

Quando se lhe ponderava o perigo de uma vida desregrada, respondia: Que me importa, se não tenho mais de dois anos de vida? De que me serviria fatigar o espírito? Gozo o pouco que me resta e quero divertir-me até ao fim. Eis a conseqüência lógica do niilismo.

Se este moço fora espírita, teria dito: A morte só destruirá o corpo, que deixarei como fato usado, mas o meu Espírito viverá. Serei na vida futura aquilo que eu próprio houver feito de mim nesta vida; do que nela puder adquirir em qualidades morais e intelectuais nada perderei, porque será outro tanto de ganho para o meu adiantamento; toda a imperfeição de que me livrar será um passo a mais para a felicidade. A minha felicidade ou infelicidade depende da utilidade ou inutilidade da presente existência. É portanto de meu interesse aproveitar o pouco tempo que me resta, e evitar tudo que possa diminuir-me as forças. Qual destas doutrinas é preferível?

4. - É nestas circunstâncias que o Espiritismo vem opor um dique à difusão da incredulidade, não somente pelo raciocínio, não somente pela perspectiva dos perigos que ela acarreta, mas pelos fatos materiais, tornando visíveis e tangíveis a alma e a vida futura.

Todos somos livres na escolha das nossas crenças; podemos crer em alguma coisa ou em nada crer, mas aqueles que procuram fazer prevalecer no espírito das massas, da juventude principalmente, a negação do futuro, apoiando-se na autoridade do seu saber e no ascendente da sua posição, semeiam na sociedade germens de perturbação e dissolução, incorrendo em grande responsabilidade.

5. - Há uma doutrina que se defende da pecha de materialista porque admite a existência de um princípio inteligente fora da matéria: é a da absorção no Todo Universal.

Segundo esta doutrina, cada indivíduo assimila ao nascer uma parcela desse princípio, que constitui sua alma, e dá-lhe vida, inteligência e sentimento.

Pela morte, esta alma volta ao foco comum e perde-se no infinito, qual gota dágua no oceano.

Incontestavelmente esta doutrina é um passo adiantado sobre o puro materialismo, visto como admite alguma coisa, quando este nada admite. As conseqüências, porém, são exatamente as mesmas.

Ser o homem imerso em o nada ou no reservatório comum, é para ele a mesma coisa; aniquilado ou perdendo a sua individualidade, é como se não existisse; as relações sociais nem por isso deixam de romper-se, e para sempre.

O que lhe é essencial é a conservação do seu eu; sem este, que lhe importa ou não subsistir?

O futuro afigura-se-lhe sempre nulo, e a vida presente é a única coisa que o interessa e preocupa.

Sob o ponto de vista das conseqüências morais, esta doutrina é, pois, tão insensata, tão desesperadora, tão subversiva como o materialismo propriamente dito.

6. - Pode-se, além disso, fazer esta objeção: todas as gotas d'água tomadas ao oceano se assemelham e possuem idênticas propriedades como partes de um mesmo todo; por que, pois, as almas tomadas ao grande oceano da inteligência universal tão pouco se assemelham? Por que o gênio e a estupidez, as mais sublimes virtudes e os vícios mais ignóbeis? Por que a bondade, a doçura, a mansuetude ao lado da maldade, da crueldade, da barbaria? Como podem ser tão diferentes entre si as partes de um mesmo todo homogêneo? Dir-se-á que é a educação que a modifica? Neste caso donde vêm as qualidades inatas, as inteligências precoces, os bons e maus instintos independentes de toda a educação e tantas vezes em desarmonia com o meio no qual se desenvolvem?

Não resta dúvida de que a educação modifica as qualidades intelectuais e morais da alma; mas aqui ocorre uma outra dificuldade: Quem dá a esta a educação para fazê-la progredir? Outras almas que por sua origem comum não devem ser mais adiantadas. Além disso, reentrando a alma no Todo Universal donde saiu, e havendo progredido durante a vida, leva-lhe um elemento mais perfeito. Dai se infere que esse Todo se encontraria, pela continuação, profundamente modificado e melhorado. Assim, como se explica saírem incessantemente desse Todo almas ignorantes e perversas?

7. - Nesta doutrina, a fonte universal de inteligência que abastece as almas humanas é independente da Divindade; não é precisamente o panteísmo.

O panteísmo propriamente dito considera o principio universal de vida e de inteligência como constituindo a Divindade. Deus é concomitantemente Espírito e matéria; todos os seres, todos os corpos da Natureza compõem a Divindade, da qual são as moléculas e os elementos constitutivos; Deus é o conjunto de todas as inteligências reunidas; cada indivíduo, sendo uma parte do todo, é Deus ele próprio; nenhum ser superior e independente rege o conjunto; o Universo é uma imensa república sem chefe, ou antes, onde cada qual é chefe com poder absoluto.

8. - A este sistema podem opor-se inumeráveis objeções, das quais são estas as principais: não se podendo conceber divindade sem infinita perfeição, pergunta-se como um todo perfeito pode ser formado de partes tão imperfeitas, tendo necessidade de progredir? Devendo cada parte ser submetida à lei do progresso, força é convir que o próprio Deus deve progredir; e se Ele progride constantemente, deveria ter sido, na origem dos tempos, muito imperfeito.

E como pôde um ser imperfeito, formado de idéias tão divergentes, conceber leis tão harmônicas, tão admiráveis de unidade, de sabedoria e previdência quais as que regem o Universo? Se todas as almas são porções da Divindade, todos concorreram para as leis da Natureza; como sucede, pois, que elas murmurem sem cessar contra essas leis que são obra sua? Uma teoria não pode ser aceita como verdadeira senão com a cláusula de satisfazer a razão e dar conta de todos os fatos que abrange; se um só fato lhe trouxer um desmentido, é que não contém a verdade absoluta.

9. - Sob o ponto de vista moral, as conseqüências são igualmente ilógicas. Em primeiro lugar é para as almas, tal como no sistema precedente, a absorção num todo e a perda da individualidade. Dado que se admita, consoante a opinião de alguns panteístas, que as almas conservem essa individualidade, Deus deixaria de ter vontade única para ser um composto de miríades de vontades divergentes.

Além disso, sendo cada alma parte integrante da Divindade, deixa de ser dominada por um poder superior; não incorre em responsabilidade por seus atos bons ou maus; soberana, não tendo interesse algum na prática do bem, ela pode praticar o mal impunemente.

10. - Demais, estes sistemas não satisfazem nem a razão nem a aspiração humanas; deles decorrem dificuldades insuperáveis, pois são impotentes para resolver todas as questões de fato que suscitam. O homem tem, pois, três alternativas: o nada, a absorção ou a individualidade da alma antes e depois da morte

É para esta última crença que a lógica nos impele irresistivelmente, crença que tem formado a base de todas as religiões desde que o mundo existe.

E se a lógica nos conduz à individualidade da alma, também nos aponta esta outra conseqüência: a sorte de cada alma deve depender das suas qualidades pessoais, pois seria irracional admitir que a alma atrasada do selvagem, como a do homem perverso, estivesse no nível da do sábio, do homem de bem. Segundo os princípios de justiça, as almas devem ter a responsabilidade dos seus atos, mas para haver essa responsabilidade, preciso é que elas sejam livres na escolha do bem e do mal; sem o livre-arbítrio há fatalidade, e com a fatalidade não coexistiria a responsabilidade.

11. - Todas as religiões admitiram igualmente o principio da felicidade ou infelicidade da alma após a morte, ou, por outra, as penas e gozos futuros, que se resumem na doutrina do céu e do inferno encontrada em toda parte.

No que elas diferem essencialmente, é quanto à natureza dessas penas e gozos, principalmente sobre as condições determinantes de umas e de outras.

Daí os pontos de fé contraditórios dando origem a cultos diferentes, e os deveres impostos por estes, consecutivamente, para honrar a Deus e alcançar por esse meio o céu, evitando o inferno.

12. - Todas as religiões houveram de ser em sua origem relativas ao grau de adiantamento moral e intelectual dos homens: estes, assaz materializados para compreenderem o mérito das coisas puramente espirituais, fizeram consistir a maior parte dos deveres religiosos no cumprimento de fórmulas exteriores.

Por muito tempo essas fórmulas lhes satisfizeram a razão; porém, mais tarde, porque se fizesse a luz em seu espírito, sentindo o vácuo dessas fórmulas, uma vez que a religião não o preenchia, abandonaram-na e tornaram-se filósofos.

13. - Se a religião, apropriada em começo aos conhecimentos limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o movimento progressivo do espírito humano, não haveria incrédulos, porque está na própria natureza do homem a necessidade de crer, e ele crerá desde que se lhe dê o pábulo espiritual de harmonia com as suas necessidades intelectuais.

O homem quer saber donde velo e para onde vai. Mostrando-se-lhe um fim que não corresponde às suas aspirações nem à idéia que ele faz de Deus, tampouco aos dados positivos que lhe fornece a Ciência; impondo-se-lhe, ademais, para atingir o seu desiderato, condições cuja utilidade sua razão contesta, ele tudo rejeita; o materialismo e o panteísmo parecem-lhe mais racionais, porque com eles ao menos se raciocina e se discute, falsamente embora. E há razão, porque antes raciocinar em falso do que não raciocinar absolutamente.

Apresente-se-lhe, porém, um futuro condicionalmente lógico, digno em tudo da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus, e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo vácuo sente em seu foro intimo, e que aceitará à falta de melhor crença.

O Espiritismo dá coisa melhor; eis por que é acolhido pressurosamente por todos os atormentados da dúvida, os que não encontram nem nas crenças nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lógica do raciocínio e a sanção dos fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido.

14. - Instintivamente tem o homem a crença no futuro, mas não possuindo até agora nenhuma base certa para defini-lo, a sua imaginação fantasiou os sistemas que originaram a diversidade de crenças. A Doutrina Espírita sobre o futuro - não sendo uma obra de imaginação mais ou menos arquitetada engenhosamente, porém o resultado da observação de fatos materiais que se desdobram hoje à nossa vista -congraçará, como já está acontecendo, as opiniões divergentes ou flutuantes e trará gradualmente, pela força das coisas, a unidade de crenças sobre esse ponto, não já baseada em simples hipótese, mas na certeza. A unificação feita relativamente à sorte futura das almas será o primeiro ponto de contacto dos diversos cultos, um passo imenso para a tolerância religiosa em primeiro lugar e, mais tarde, para a completa fusão.

Temor da morte

Causas do temor da morte

1 - O homem, seja qual for a escala de sua posição social, desde selvagem tem o sentimento inato do futuro; diz-lhe a intuição que a morte não é a última fase da existência e que aqueles cuja perda lamentamos não estão irremissivelmente perdidos. A crença da imortalidade é intuitiva e muito mais generalizada do que a do nada.

Entretanto, a maior parte dos que nele crêem apresentam-se-nos possuídos de grande amor às coisas terrenas e temerosos da morte! Por quê?

2. - Este temor é um efeito da sabedoria da Providência e uma conseqüência do instinto de conservação comum a todos os viventes. Ele é necessário enquanto não se está suficientemente esclarecido sobre as condições da vida futura, como contrapeso à tendência que, sem esse freio, nos levaria a deixar prematuramente a vida e a negligenciar o trabalho terreno que deve servir ao nosso próprio adiantamento.

Assim é que, nos povos primitivos, o futuro é uma vaga intuição, mais tarde tornada simples esperança e, finalmente, uma certeza apenas atenuada por secreto apego à vida corporal.

3 . - A proporção que o homem compreende melhor a vida futura, o temor da morte diminui; uma vez esclarecida a sua missão terrena, aguarda-lhe o fim calma, resignada e serenamente. A certeza da vida futura dá-lhe outro curso às idéias, outro fito ao trabalho; antes dela nada que se não prenda ao presente; depois dela tudo pelo futuro sem desprezo do presente, porque sabe que aquele depende da boa ou da má direção deste.

A certeza de reencontrar seus amigos depois da morte, de reatar as relações que tivera na Terra, de não perder um só fruto do seu trabalho, de engrandecer-se incessantemente em inteligência, perfeição, dá-lhe paciência para esperar e coragem para suportar as fadigas transitórias da vida terrestre. A solidariedade entre vivos e mortos faz-lhe compreender a que deve existir na Terra, onde a fraternidade e a caridade têm desde então um fim e uma razão de ser, no presente como no futuro.

4. - Para libertar-se do temor da morte é mister poder encará-la sob o seu verdadeiro ponto de vista, isto é, ter penetrado pelo pensamento no mundo espiritual, fazendo dele uma idéia tão exata quanto possível, o que denota da parte do Espírito encarnado um tal ou qual desenvolvimento e aptidão para desprender-se da matéria.

No Espírito atrasado a vida material prevalece sobre a espiritual. Apegando-se às aparências, o homem não distingue a vida além do corpo, esteja embora na alma a vida real; aniquilado aquele, tudo se lhe afigura perdido, desesperador.

Se, ao contrário, concentrarmos o pensamento, não no corpo, mas na alma, fonte da vida, ser real a tudo sobrevivente, lastimaremos menos a perda do corpo, antes fonte de misérias e dores. Para isso, porém, necessita o Espírito de uma força só adquirível na madureza.

O temor da morte decorre, portanto, da noção insuficiente da vida futura, embora denote também a necessidade de viver e o receio da destruição total; igualmente o estimula secreto anseio pela sobrevivência da alma, velado ainda pela incerteza.

Esse temor decresce, à proporção que a certeza aumenta, e desaparece quando esta é completa.

Eis aí o lado providencial da questão. Ao homem não suficientemente esclarecido, cuja razão mal pudesse suportar a perspectiva muito positiva e sedutora de um futuro melhor, prudente seria não o deslumbrar com tal idéia, desde que por ela pudesse negligenciar o presente, necessário ao seu adiantamento material e intelectual.

5. - Este estado de coisas é entretido e prolongado por causas puramente humanas, que o progresso fará desaparecer. A primeira é a feição com que se insinua a vida futura, feição que poderia contentar as inteligências pouco desenvolvidas, mas que não conseguiria satisfazer a razão esclarecida dos pensadores refletidos. Assim, dizem estes: "Desde que nos apresentam como verdades absolutas princípios contestados pela lógica e pelos dados positivos da Ciência, é que eles não são verdades." Daí, a incredulidade de uns e a crença dúbia de um grande número.

A vida futura é-lhes uma idéia vaga, antes uma probabilidade do que certeza absoluta; acreditam, desejariam que assim fosse, mas apesar disso exclamam: "Se todavia assim não for! O presente é positivo, ocupemo-nos dele primeiro, que o futuro por sua vez virá"

E depois, acrescentam, definitivamente que é a alma? Um ponto, um átomo, uma faísca, uma chama? Como se sente, vê ou percebe? E que a alma não lhes parece uma realidade efetiva, mas uma abstração.

Os entes que lhes são caros, reduzidos ao estado de átomos no seu modo de pensar, estão perdidos, e não têm mais a seus olhos as qualidades pelas quais se lhes fizeram amados; não podem compreender o amor de uma faísca nem o que a ela possamos ter. Quanto a si mesmos, ficam mediocremente satisfeitos com a perspectiva de se transformarem em mônadas. Justifica-se assim a preferência ao positivismo da vida terrestre, que algo possui de mais substancial.

É considerável o número dos dominados por este pensamento.

6. - Outra causa de apego às coisas terrenas, mesmo nos que mais firmemente crêem na vida futura, é a impressão do ensino que relativamente a ela se lhes há dado desde a infância. Convenhamos que o quadro pela religião esboçado, sobre o assunto, é nada sedutor e ainda menos consolatório.

De um lado, contorções de condenados a expiarem em torturas e chamas eternas os erros de uma vida efêmera e passageira. Os séculos sucedem-se aos séculos e não há para tais desgraçados sequer o lenitivo de uma esperança e, o que mais atroz é, não lhes aproveita o arrependimento. De outro lado, as almas combalidas e aflitas do purgatório aguardam a intercessão dos vivos que orarão ou farão orar por elas, sem nada fazerem de esforço próprio para progredirem.

Estas duas categorias compõem a maioria imensa da população de além-túmulo. Acima delas, paira a limitada classe dos eleitos, gozando, por toda a eternidade, da beatitude contemplativa. Esta inutilidade eterna, preferível sem dúvida ao nada, não deixa de ser de uma fastidiosa monotonia. É por isso que se vê, nas figuras que retratam os bem-aventurados, figuras angélicas onde mais transparece o tédio que a verdadeira felicidade.

Este estado não satisfaz nem as aspirações nem a instintiva idéia de progresso, única que se afigura compatível com a felicidade absoluta. Custa crer que, só por haver recebido o batismo, o selvagem ignorante - de senso moral obtuso -, esteja ao mesmo nível do homem que atingiu, após longos anos de trabalho, o mais alto grau de ciência e moralidade práticas. Menos concebível ainda é que a criança falecida em tenra idade, antes de ter consciência de seus atos, goze dos mesmos privilégios somente por força de uma cerimônia na qual a sua vontade não teve parte alguma. Estes raciocínios não deixam de preocupar os mais fervorosos crentes, por pouco que meditem.

7. - Não dependendo a felicidade futura do trabalho progressivo na Terra, a facilidade com que se acredita adquirir essa felicidade, por meio de algumas práticas exteriores, e a possibilidade até de a comprar a dinheiro, sem regeneração de caráter e costumes, dão aos gozos do mundo o melhor valor.

Mais de um crente considera, em seu foro íntimo, que assegurado o seu futuro pelo preenchimento de certas fórmulas ou por dádivas póstumas, que de nada o privam, seria supérfluo impor-se sacrifícios ou quaisquer incômodos por outrem, uma vez que se consegue a salvação trabalhando cada qual por si.

Seguramente, nem todos pensam assim, havendo mesmo muitas e honrosas exceções; mas não se poderia contestar que assim pensa o maior número, sobretudo das massas pouco esclarecidas, e que a idéia que fazem das condições de felicidade no outro mundo não entretenha o apego aos bens deste, acoroçoando o egoísmo.

8. - Acrescentemos ainda a circunstância de tudo nas usanças concorrer para lamentar a perda da vida terrestre e temer a passagem da Terra ao céu. A morte é rodeada de cerimônias lúgubres, mais próprias a infundirem terror do que a provocarem a esperança. Se descrevem a morte, é sempre com aspecto repelente e nunca como sono de transição; todos os seus emblemas lembram a destruição do corpo, mostrando-o hediondo e descarnado; nenhum simboliza a alma desembaraçando-se radiosa dos grilhões terrestres. A partida para esse mundo mais feliz só se faz acompanhar do lamento dos sobreviventes, como se imensa desgraça atingira os que partem; dizem-lhes eternos adeuses como se jamais devessem revê-los. Lastima-se por eles a perda dos gozos mundanos, como se não fossem encontrar maiores gozos no além-túmulo. Que desgraça, dizem, morrer tão jovem, rico e feliz, tendo a perspectiva de um futuro brilhante! A idéia de um futuro melhor apenas toca de leve o pensamento, porque não tem nele raízes. Tudo concorre, assim, para inspirar o terror da morte, em vez de infundir esperança.

Sem dúvida que muito tempo será preciso para o homem se desfazer desses preconceitos, o que não quer dizer que isto não suceda, à medida que a sua fé se for firmando, a ponto de conceber uma idéia mais sensata da vida espiritual.

9. - Demais, a crença vulgar coloca as almas em regiões apenas acessíveis ao pensamento, onde se tornam de alguma sorte estranhas aos vivos; a própria Igreja põe entre umas e outras uma barreira insuperável, declarando rotas todas as relações e impossível qualquer comunicação. Se as almas estão no inferno, perdida é toda a esperança de as rever, a menos que lá se vá ter também; se estão entre os eleitos, vivem completamente absortas em contemplativa beatitude. Tudo isso interpõe entre mortos e vivos uma distância tal que faz supor eterna a separação, e é por isso que muitos preferem ter junto de si, embora sofrendo, os entes caros, antes que vê-los partir, ainda mesmo que para o céu.

E a alma que estiver no céu será realmente feliz vendo, por exemplo, arder eternamente seu filho, seu pai, sua mãe ou seus amigos?

Por que os espíritas não temem a morte 10. - A Doutrina Espírita transforma completamente a perspectiva do futuro. A vida futura deixa de ser uma hipótese para ser realidade. O estado das almas depois da morte não é mais um sistema, porém o resultado da observação. Ergueu-se o véu; o mundo espiritual aparece-nos na plenitude de sua realidade prática; não foram os homens que o descobriram pelo esforço de uma concepção engenhosa, são os próprios habitantes desse mundo que nos vêm descrever a sua situação; aí os vemos em todos os graus da escala espiritual, em todas as rases da felicidade e da desgraça, assistindo, enfim, a todas as peripécias da vida de além-túmulo. Eis aí por que os espíritas encaram a morte calmamente e se revestem de serenidade nos seus últimos momentos sobre a Terra. Já não é só a esperança, mas a certeza que os conforta; sabem que a vida futura é a continuação da vida terrena em melhores condições e aguardam-na com a mesma confiança com que aguardariam o despontar do Sol após uma noite de tempestade. Os motivos dessa confiança decorrem, outrossim, dos fatos testemunhados e da concordância desses fatos com a lógica, com a justiça e bondade de Deus, correspondendo às íntimas aspirações da Humanidade.

Para os espíritas, a alma não é uma abstração; ela tem um corpo etéreo que a define ao pensamento, o que muito é para fixar as idéias sobre a sua individualidade, aptidões e percepções. A lembrança dos que nos são caros repousa sobre alguma coisa de real. Não se nos apresentam mais como chamas fugitivas que nada falam ao pensamento, porém sob uma forma concreta que antes no-los mostra como seres viventes. Além disso, em vez de perdidos nas profundezas do Espaço, estão ao redor de nós; o mundo corporal e o mundo espiritual identificam-se em perpétuas relações, assistindo-se mutuamente.

Não mais permissível sendo a dúvida sobre o futuro, desaparece o temor da morte; encara-se a sua aproximação a sangue-frio, como quem aguarda a libertação pela porta da vida e não do nada.

O Céu

1. - Em geral, a palavra céu designa o espaço indefinido que circunda a Terra, e mais particularmente a parte que está acima do nosso horizonte. Vem do latim coelum, formada do grego coiios, côncavo, porque o céu parece uma imensa concavidade.

Os antigos acreditavam na existência de muitos céus superpostos, de matéria sólida e transparente, formando esferas concêntricas e tendo a Terra por centro.

Girando essas esferas em torno da Terra, arrastavam consigo os astros que se achavam em seu circuito.

Essa idéia, provinda da deficiência de conhecimentos astronômicos, foi a de todas as teogonias, que fizeram dos céus, assim escalados, os diversos degraus da bem-aventurança: o último deles era abrigo da suprema felicidade.

Segundo a opinião mais comum, havia sete céus e daí a expressão - estar no sétimo céu - para exprimir perfeita felicidade. Os muçulmanos admitem nove céus, em cada um dos quais se aumenta a felicidade dos crentes.

O astrônomo Ptolomeu (1) contava onze e denominava ao último Empíreo (2) por causa da luz brilhante que nele reina.

É este ainda hoje o nome poético dado ao lugar da glória eterna. A teologia cristã reconhece três céus: o primeiro é o da região do ar e das nuvens; o segundo, o espaço em que giram os astros, e o terceiro, para além deste, é a morada do Altíssimo, a habitação dos que o contemplam face a face. É conforme a esta crença que se diz que S. Paulo foi alçado ao terceiro céu.

(1) Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no segundo século da era cristã. (2) Do grego, pur ou pyr, fogo.

2. - As diferentes doutrinas relativamente ao paraíso repousam todas no duplo erro de considerar a Terra centro do Universo, e limitada a região dos astros.

É além desse limite imaginário que todas têm colocado a residência afortunada e a morada do Todo-Poderoso.

Singular anomalia que coloca o Autor de todas as coisas, Aquele que as governa a todas, nos confins da criação, em vez de no centro, donde o seu pensamento poderia, irradiante, abranger tudo!

3. - A Ciência, com a lógica inexorável da observação e dos fatos, levou o seu archote às profundezas do Espaço e mostrou a nulidade de todas essas teorias.

A Terra não é mais o eixo do Universo, porém um dos menores astros que rolam na imensidade; o próprio Sol mais não é do que o centro de um turbilhão planetário; as estrelas são outros tantos e inumeráveis sóis, em torno dos quais circulam mundos sem conta, separados por distâncias apenas acessíveis ao pensamento, embora se nos afigure tocarem-se. Neste conjunto grandioso, regido por leis eternas -reveladoras da sabedoria e onipotência do Criador -, a Terra não é mais que um ponto imperceptível e um dos planetas menos favorecidos quanto à habitabilidade. E, assim sendo, é lícito perguntar por que Deus faria da Terra a única sede da vida e nela degredaria as suas criaturas prediletas? Mas, ao contrário, tudo anuncia a vida por toda parte e a Humanidade é infinita como o Universo.

Revelando-nos a Ciência mundos semelhantes ao nosso, Deus não podia tê-los criado sem intuito, antes deve tê-los povoado de seres capazes de os governar.

4. - As idéias do homem estão na razão do que ele sabe; como todas as descobertas importantes, a da constituição dos mundos deveria imprimir-lhes outro curso; sob a influência desses conhecimentos novos, as crenças se modificaram; o Céu foi deslocado e a região estelar, sendo ilimitada, não mais lhe pode servir. Onde está ele, pois? E ante esta questão emudecem todas as religiões.

O Espiritismo vem resolvê-las demonstrando o verdadeiro destino do homem. Tomando-se por base a natureza deste último e os atributos divinos, chega-se a uma conclusão; isto quer dizer que partindo do conhecido atinge-se o desconhecido por uma dedução lógica, sem falar das observações diretas que o Espiritismo faculta.

5. - O homem compõe-se de corpo e Espírito: o Espírito é o ser principal, racional, inteligente; o corpo é o invólucro material que reveste o Espírito temporariamente, para preenchimento da sua missão na Terra e execução do trabalho necessário ao seu adiantamento. O corpo, usado, destrói-se e o Espírito sobrevive à sua destruição. Privado do Espírito, o corpo é apenas matéria inerte, qual instrumento privado da mola real de função; sem o corpo, o Espírito é tudo: a vida, a inteligência. Em deixando o corpo, torna ao mundo espiritual, onde paira, para depois reencarnar.

Existem, portanto, dois mundos: o corporal, composto de Espíritos encarnados; e o espiritual, formado dos Espíritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, devido mesmo à materialidade do seu envoltório, estão ligados à Terra ou a qualquer globo; o mundo espiritual ostenta-se por toda parte, em redor de nós como no Espaço, sem limite algum designado. Em razão mesmo da natureza fluídica do seu envoltório, os seres que o compõem, em lugar de se locomoverem penosamente sobre o solo, transpõem as distâncias com a rapidez do pensamento. A morte do corpo não é mais que a ruptura dos laços que os retinham cativos.

6. - Os Espíritos são criados simples e ignorantes, mas dotados de aptidões para tudo conhecerem e para progredirem, em virtude do seu livre-arbítrio. Pelo progresso adquirem novos conhecimentos, novas faculdades, novas percepções e, conseguintemente, novos gozos desconhecidos dos Espíritos inferiores; eles vêem, ouvem, sentem e compreendem o que os Espíritos atrasados não podem ver, sentir, ouvir ou compreender.

A felicidade está na razão direta do progresso realizado, de sorte que, de dois Espíritos, um pode não ser tão feliz quanto outro, unicamente por não possuir o mesmo adiantamento intelectual e moral, sem que por isso precisem estar, cada qual, em lugar distinto. Ainda que juntos, pode um estar em trevas, enquanto que tudo resplandece para o outro, tal como um cego e um vidente que se dão as mãos: este percebe a luz da qual aquele não recebe a mínima impressão.

Sendo a felicidade dos Espíritos inerente às suas qualidades, haurem-na eles em toda parte em que se encontram, sela à superfície da Terra, no meio dos encarnados, ou no Espaço.

Uma comparação vulgar fará compreender melhor esta situação. Se se encontrarem em um concerto dois homens, um, bom músico, de ouvido educado, e outro, desconhecedor da música, de sentido auditivo pouco delicado, o primeiro experimentará sensação de felicidade, enquanto o segundo permanecerá insensível, porque um compreende e percebe o que nenhuma impressão produz no outro. Assim sucede quanto a todos os gozos dos Espíritos, que estão na razão da sua sensibilidade.

O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, harmonias e sensações que os Espíritos inferiores, submetidos à influência da matéria, não entrevêem se quer, e que somente são acessíveis aos Espíritos purificados.

7. - O progresso nos Espíritos é o fruto do próprio trabalho; mas, como são livres, trabalham no seu adiantamento com maior ou menor atividade, com mais ou menos negligência, segundo sua vontade, acelerando ou retardando o progresso e, por conseguinte, a própria felicidade.

Enquanto uns avançam rapidamente, entorpecem-se outros, quais poltrões, nas fileiras inferiores. São eles, pois, os próprios autores da sua situação, feliz ou desgraçada, conforme esta frase do Cristo: - A cada um segundo as suas obras.

Todo Espírito que se atrasa não pode queixar-se senão de si mesmo, assim como o que se adianta tem o mérito exclusivo do seu esforço, dando por isso maior apreço à felicidade conquistada.

A suprema felicidade só é compartilhada pelos Espíritos perfeitos, ou, por outra, pelos puros Espíritos, que não a conseguem senão depois de haverem progredido em inteligência e moralidade.

O progresso intelectual e o progresso moral raramente marcham juntos, mas o que o Espírito não consegue em dado tempo, alcança em outro, de modo que os dois progressos acabam por atingir o mesmo nível.

Eis por que se vêem muitas vezes homens inteligentes e instruídos pouco adiantados moralmente, e vice-versa.

8. - A encarnação é necessária ao duplo progresso moral e intelectual do Espírito: ao progresso intelectual pela atividade obrigatória do trabalho; ao progresso moral pela necessidade recíproca dos homens entre si. A vida social é a pedra de toque das boas ou más qualidades.

A bondade, a maldade, a doçura, a violência, a benevolência, a caridade, o egoísmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a má-fé, a hipocrisia, em uma palavra, tudo o que constitui o homem de bem ou o perverso tem por móvel, por alvo e por estímulo as relações do homem com os seus semelhantes.

Para o homem que vivesse insulado não haveria vícios nem virtudes; preservando-se do mal pelo insulamento, o bem de si mesmo se anularia.

9. - Uma só existência corporal é manifestamente insuficiente para o Espírito adquirir todo o bem que lhe falta e eliminar o mal que lhe sobra.

Como poderia o selvagem, por exemplo, em uma só encarnação nivelar-se moral e intelectualmente ao mais adiantado europeu? É materialmente impossível. Deve ele, pois, ficar eternamente na ignorância e barbaria, privado dos gozos que só o desenvolvimento das faculdades pode proporcionar-lhe?

O simples bom-senso repele tal suposição, que seria não somente a negação da justiça e bondade divinas, mas das próprias leis evolutivas e progressivas da Natureza. Mas Deus, que é soberanamente justo e bom, concede ao Espírito tantas encarnações quantas as necessárias para atingir seu objetivo a perfeição.

Para cada nova existência de permeio à matéria, entra o Espírito com o cabedal adquirido nas anteriores, em aptidões, conhecimentos intuitivos, inteligência e moralidade. Cada existência é assim um passo avante no caminho do progresso. (1)

A encarnação é inerente à inferioridade dos Espíritos, deixando de ser necessária desde que estes, transpondo-lhe os limites, ficam aptos para progredir no estado espiritual, ou nas existências corporais de mundos superiores, que nada têm da materialidade terrestre. Da parte destes a encarnação é voluntária, tendo por fim exercer sobre os encarnados uma ação mais direta e tendente ao cumprimento da missão que lhes compete junto dos mesmos. Desse modo aceitam abnegadamente as vicissitudes e sofrimentos da encarnação.

(1) Vede 1ª. Parte, cap. I, n° 3, nota 1.

10. - No intervalo das existências corporais o Espírito torna a entrar no mundo espiritual, onde é feliz ou desgraçado segundo o bem ou o mal que fez.

Uma vez que o estado espiritual é o estado definitivo do Espírito e o corpo espiritual não morre, deve ser esse também o seu estado normal. O estado corporal é transitório e passageiro. É no estado espiritual sobretudo que o Espírito colhe os frutos do progresso realizado pelo trabalho da encarnação; é também nesse estado que se prepara para novas lutas e toma as resoluções que há de pôr em prática na sua volta à Humanidade.

O Espírito progride igualmente na erraticidade, adquirindo conhecimentos especiais que não poderia obter na Terra, e modificando as suas idéias. O estado corporal e o espiritual constituem a fonte de dois gêneros de progresso, pelos quais o Espírito tem de passar alternadamente, nas existências peculiares a cada um dos dois mundos.

11. - A reencarnação pode dar-se na Terra ou em outros mundos. Há entre os mundos alguns mais adiantados onde a existência se exerce em condições menos penosas que na Terra, física e moralmente, mas onde também só são admitidos Espíritos chegados a um grau de perfeição relativo ao estado desses mundos.

A vida nos mundos superiores já é uma recompensa, visto nos acharmos isentos, aí, dos males e vicissitudes terrenos. Onde os corpos, menos materiais, quase fluídicos, não mais são sujeitos às moléstias, às enfermidades, e tampouco têm as mesmas necessidades. Excluídos os Espíritos maus, gozam os homens de plena paz, sem outra preocupação além da do adiantamento pelo trabalho intelectual.

Reina lá a verdadeira fraternidade, porque não há egoísmo; a verdadeira igualdade, porque não há orgulho, e a verdadeira liberdade por não haver desordens a reprimir, nem ambiciosos que procurem oprimir o fraco.

Comparados à Terra, esses mundos são verdadeiros paraísos, quais pousos ao longo do caminho do progresso conducente ao estado definitivo. Sendo a Terra um mundo inferior destinado à purificação dos Espíritos imperfeitos, está nisso a razão do mal que aí predomina, até que praza a Deus fazer dela morada de Espíritos mais adiantados. Assim é que o Espírito, progredindo gradualmente à medida que se desenvolve, chega ao apogeu da felicidade; porém, antes de ter atingido a culminância da perfeição, goza de uma felicidade relativa ao seu progresso. A criança também frui os prazeres da infância, mais tarde os da mocidade, e finalmente os mais sólidos, da madureza.

12. - A felicidade dos Espíritos bem-aventurados não consiste na ociosidade contemplativa, que seria, como temos dito multas vezes, uma eterna e fastidiosa inutilidade.

A vida espiritual em todos os seus graus é, ao contrário, uma constante atividade, mas atividade isenta de fadigas.

A suprema felicidade consiste no gozo de todos os esplendores da Criação, que nenhuma linguagem humana jamais poderia descrever, que a imaginação mais fecunda não poderia conceber. Consiste também na penetração de todas as coisas, na ausência de sofrimentos físicos e morais, numa satisfação intima, numa serenidade dalma imperturbável, no amor que envolve todos os seres, por causa da ausência de atrito pelo contacto dos maus, e, acima de tudo, na contemplação de Deus e na compreensão dos seus mistérios revelados aos mais dignos. A felicidade também existe nas tarefas cujo encargo nos faz felizes. Os puros Espíritos são os Messias ou mensageiros de Deus pela transmissão e execução das suas vontades. Preenchem as grandes missões, presidem à formação dos mundos e à harmonia geral do Universo, tarefa gloriosa a que se não chega senão pela perfeição. Os da ordem mais elevada são os únicos a possuírem os segredos de Deus, inspirando-se no seu pensamento, de que são diretos representantes.

13. - As atribuições dos Espíritos são proporcionadas ao seu progresso, às luzes que possuem, às suas capacidades, experiência e grau de confiança inspirada ao Senhor soberano.

Nem favores, nem privilégios que não sejam o prêmio ao mérito; tudo é medido e pesado na balança da estrita justiça.

As missões mais importantes são confiadas somente àqueles que Deus julga capazes de as cumprir e incapazes de desfalecimento ou comprometimento. E enquanto que os mais dignos compõem o supremo conselho, sob as vistas de Deus, a chefes superiores é cometida a direção de turbilhões planetários, ê a outros conferida a de mundos especiais. Vêm, depois, pela ordem de adiantamento e subordinação hierárquica, as atribuições mais restritas dos prepostos ao progresso dos povos, à proteção das famílias e indivíduos, ao impulso de cada ramo de progresso, às diversas operações da Natureza até aos mais ínfimos pormenores da Criação. Neste vasto e harmônico conjunto há ocupações para todas as capacidades, aptidões e esforços; ocupações aceitas com júbilo, solicitadas com ardor, por serem um meio de adianta-mento para os Espíritos que ao progresso aspiram.

14. - Ao lado das grandes missões confiadas aos Espíritos superiores, há outras de importância relativa em todos os graus, concedidas a Espíritos de todas as categorias, podendo afirmar-se que cada encarnado tem a sua, isto é, deveres a preencher a bem dos seus semelhantes, desde o chefe de família, a quem incumbe o progresso dos filhos, até o homem de gênio que lança às sociedades novos germens de progresso. É nessas missões secundárias que se verificam desfalecimentos, prevaricações e renúncias que prejudicam o indivíduo sem afetar o todo.

15. - Todas as inteligências concorrem, pois, para a obra geral, qualquer que seja o grau atingido, e cada uma na medida das suas forças, seja no estado de encarnação ou no espiritual. Por toda parte a atividade, desde a base ao ápice da escala, instruindo-se, coadjuvando-se em mútuo apoio, dando-se as mãos para alcançarem o zênite.

Assim se estabelece a solidariedade entre o mundo espiritual e o corporal, ou, em outros termos, entre os homens e os Espíritos, entre os Espíritos libertos e os cativos. Assim se perpetuam e consolidam, pela purificação e continuidade de relações, as verdadeiras simpatias e nobres afeições.

Por toda parte, a vida e o movimento: nenhum canto do infinito despovoado, nenhuma região que não seja incessantemente percorrida por legiões inumeráveis de Espíritos radiantes, invisíveis aos sentidos grosseiros dos encarnados, mas cuja vista deslumbra de alegria e admiração as almas libertas da matéria. Por toda parte, enfim, há uma felicidade relativa a todos os progressos, a todos os deveres cumpridos, trazendo cada um consigo os elementos de sua felicidade, decorrente da categoria em que se coloca pelo seu adiantamento.

Das qualidades do indivíduo depende-lhe a felicidade, e não do estado material do meio em que se encontra, podendo a felicidade, portanto, existir em qualquer parte onde haja Espíritos capazes de a gozar. Nenhum lugar lhe é circunscrito e assinalado no Universo.

Onde quer que se encontrem, os Espíritos podem contemplar a majestade divina, porque Deus está em toda parte.

16. - Entretanto, a felicidade não é pessoal: Se a possuíssemos somente em nós mesmos, sem poder reparti-la com outrem, ela seria tristemente egoísta. Também a encontramos na comunhão de idéias que une os seres simpáticos. Os Espíritos felizes, atraindo-se pela similitude de gestos e sentimentos, formam vastos agrupamentos ou famílias homogêneas, no selo das quais cada individualidade irradia as qualidades próprias e satura-se dos eflúvios serenos e benéficos emanados do conjunto.

Os membros deste, ora se dispersam para se darem à sua missão, ora se reúnem em dado ponto do Espaço a fim de se prestarem contas do trabalho realizado, ora se congregam em torno dum Espírito mais elevado para receberem instruções e conselhos.

17. - Posto que os Espíritos estejam por toda parte, os mundos são de preferência os seus centros de atração, em virtude da analogia existente entre eles e os que os habitam. Em torno dos mundos adiantados abundam Espíritos superiores, como em torno dos atrasados pululam Espíritos inferiores. Cada globo tem, de alguma sorte, sua população própria de Espíritos encarnados e desencarnados, alimentada em sua maioria pela encarnação e desencarnação dos mesmos. Esta população é mais estável nos mundos inferiores, pelo apego deles à matéria, e mais flutuante nos superiores.

Destes últimos, porém, verdadeiros focos de luz e felicidade, Espíritos se destacam para mundos inferiores a fim de neles semearem os germens do progresso, levar-lhes consolação e esperança, levantar os ânimos abatidos pelas provações da vida. Por vezes também se encarnam para cumprir com mais eficácia a sua missão.

18. - Nessa imensidade ilimitada, onde está o Céu? Em toda parte. Nenhum contorno lhe traça limites. Os mundos adiantados são as últimas estações do seu caminho, que as virtudes franqueiam e os vícios interditam. Ante este quadro grandioso que povoa o Universo, que dá a todas as coisas da Criação um fim e uma razão de ser, quanto é pequena e mesquinha a doutrina que circunscreve a Humanidade a um ponto imperceptível do Espaço, que no-la mostra começando em dado instante para acabar igualmente com o mundo que a contém, não abrangendo mais que um minuto na Eternidade!

Como é triste, fria, glacial essa doutrina quando nos mostra o resto do Universo, durante e depois da Humanidade terrestre, sem vida, nem movimento, qual vastíssimo deserto imerso em profundo silêncio! Como é desesperadora a perspectiva dos eleitos votados à contemplação perpétua, enquanto a maioria das criaturas padece tormentos sem-fim! Como lacera os corações sensíveis a idéia dessa barreira entre mortos e vivos! As almas ditosas, dizem, só pensam na sua felicidade, como as desgraçadas, nas suas dores. Admira que o egoísmo reine sobre a Terra quando no-lo mostram no Céu?

Oh! quão mesquinha se nos afigura essa idéia da grandeza, do poder e da bondade de Deus! Quanto é sublime a idéia que dEle fazemos pelo Espiritismo! Quanto a sua doutrina engrandece as idéias e amplia o pensamento! Mas, quem diz que ela é verdadeira? A Razão primeiro, a Revelação depois, e, finalmente, a sua concordância com os progressos da Ciência. Entre duas doutrinas, das quais uma amesquinha e a outra exalta os atributos de Deus; das quais uma só está em desacordo e a outra em harmonia com o progresso; das quais uma se deixa ficar na retaguarda enquanto a outra caminha, o bom-senso diz de que lado está a verdade. Que, confrontando-as, consulte cada qual a consciência, e uma voz íntima lhe falará por ela. Pois bem, essas aspirações íntimas são a voz de Deus, que não pode enganar os homens. Mas, dir-se-á, por que Deus não lhes revelou de princípio toda a verdade? Pela mesma razão por que senão ensina à infância o que se ensina aos de idade madura.

A revelação limitada foi suficiente a certo período da Humanidade, e Deus a proporciona gradativamente ao progresso e às forças do Espírito.

Os que recebem hoje uma revelação mais completa são os mesmos Espíritos que tiveram dela uma partícula em outros tempos e que de então por diante se engrandeceram em inteligência.

Antes de a Ciência ter revelado aos homens as forças vivas da Natureza, a constituição dos astros, o verdadeiro papel da Terra e sua formação, poderiam eles compreender a imensidade do Espaço e a pluralidade dos mundos? Antes de a Geologia comprovar a formação da Terra, poderiam os homens tirar-lhe o inferno das entranhas e compreender o sentido alegórico dos seis dias da Criação? Antes de a Astronomia descobrir as leis que regem o Universo, poderiam compreender que não há alto nem baixo no Espaço, que o céu não está acima das nuvens nem limitado pelas estrelas? Poderiam identificar-se com a vida espiritual antes dos progressos da ciência psicológica? conceber depois da morte uma vida feliz ou desgraçada, a não ser em lugar circunscrito e sob uma forma material? Não; compreendendo mais pelos sentidos que pelo pensamento, o Universo era muito vasto para a sua concepção; era preciso restringi-lo ao seu ponto de vista para alargá-lo mais tarde. Uma revelação parcial tinha sua utilidade, e, embora sábia até então, não satisfaria hoje. O absurdo provém dos que pretendem poder governar os homens de pensamento, sem se darem conta do progresso das idéias, quais se fossem crianças. (Vede O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.)

O Inferno

Intuição das penas futuras

1. - Desde todas as épocas o homem acreditou, por intuição, que a vida futura seria feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal praticado neste mundo. A idéia que ele faz, porém, dessa vida está em relação com o seu desenvolvimento, senso moral e noções mais ou menos justas do bem e do mal.

As penas e recompensas são o reflexo dos instintos predominantes. Os povos guerreiros fazem consistir a suprema felicidade nas honras conferidas à bravura; os caçadores, na abundância da caça; os sensuais, nas delícias da voluptuosidade. Dominado pela matéria, o homem não pode compreender senão imperfeitamente a espiritualidade, imaginando para as penas e gozos futuros um quadro mais material que espiritual; afigura-se-lhe que deve comer e beber no outro mundo, porém melhor que na Terra. (1)

Mais tarde já se encontra nas crenças sobre a vida futura um misto de espiritualismo e materialismo: a beatitude contemplativa concorrendo com o inferno das torturas físicas.

(1) Um pequeno saboiano, a quem o seu cura fazia a descrição da vida futura, perguntou-lhe se todo o mundo lá comia pão branco, como em Paris

2. - Não podendo compreender senão o que vê, o homem primitivo naturalmente moldou o seu futuro pelo presente; para compreender outros tipos, além dos que tinha à vista, ser-lhe-ia preciso um desenvolvimento intelectual que só o tempo deveria completar. Também o quadro por ele ideado sobre as penas futuras não é senão o reflexo dos males da Humanidade, em mais vasta proporção, reunindo-lhe todas as torturas, suplícios e aflições que achou na Terra. Nos climas abrasadores imaginou um inferno de fogo, e nas regiões boreais um inferno de gelo. Não estando ainda desenvolvido o sentido que mais tarde o levaria a compreender o mundo espiritual, não podia conceber senão penas materiais; e assim, com pequenas diferenças de forma, os infernos de todas as religiões se assemelham.

O inferno cristão imitado do inferno pagão 3. - O inferno pagão, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o modelo mais grandioso do gênero, e perpetuou-se no seio dos cristãos, onde, por sua vez, houve poetas e cantores. Comparando-os, encontram-se neles - salvo os nomes e variantes de detalhe - numerosas analogias; ambos têm o fogo material por base de tormentos, como símbolo dos sofrimentos mais atrozes. Mas, coisa singular! os cristãos exageraram em muitos pontos o inferno dos pagãos. Se estes tinham o tonel das Danaides, a roda de Íxion, o rochedo de Sísifo, eram estes suplícios individuais; os cristãos, ao contrário, têm para todos, sem distinção, as caldeiras ferventes cujos tampos os anjos levantam para ver as contorções dos supliciados (1); e Deus, sem piedade, ouve-lhes os gemidos por toda a eternidade. Jamais os pagãos descreveram os habitantes dos Campos Elíseos deleitando a vista nos suplícios do Tártaro. (2)

(1) Sermão pregado em Montpellier em 1860.

(2) "Os bem-aventurados, sem deixarem o lugar que ocupam, poderão afastar-se de certo modo em razão do seu dom de inteligência e da vista distinta, a fim de considerarem as torturas dos condenados, e, vendo-os, não somente serão insensíveis à dor, mas até ficarão repletos de alegria e renderão graças a Deus por sua própria felicidade, assistindo à inefável calamidade dos ímpios." (S. Tomás de Aquino.)

4. - Os cristãos têm, como os pagãos, o seu rei dos infernos - Satã - com a diferença, porém, de que Plutão se limitava a governar o sombrio império, que lhe coubera em partilha, sem ser mau; retinha em seus domínios os que haviam praticado o mal, porque essa era a sua missão, mas não induzia os homens ao pecado para desfrutar, tripudiar dos seus sofrimentos. Satã, no entanto, recruta vítimas por toda parte e regozija-se ao atormentá-las com uma legião de demônios armados de forcados a revolvê-las no fogo.

Já se tem discutido seriamente sobre a natureza desse fogo que queima mas não consome as vítimas. Tem-se mesmo perguntado se seria um fogo de betume. (2)

O inferno cristão nada cede, pois, ao inferno pagão.

(2) Sermão pregado em Paris em 1861.

5. - As mesmas considerações que, entre os antigos, tinham feito localizar o reino da felicidade, fizeram circunscrever igualmente o lugar dos suplícios. Tendo-se colocado o primeiro nas regiões superiores, era natural reservar ao segundo os lugares inferiores, isto é, o centro da Terra, para onde se acreditava servirem de entradas certas cavidades sombrias, de aspecto terrível. Os cristãos também colocaram ali, por muito tempo, a habitação dos condenados.

A este respeito, frisemos ainda outra analogia: - O inferno dos pagãos continha de um lado os Campos Elíseos e do outro o Tártaro; o Olimpo, moradia dos deuses e dos homens divinizados, ficava nas regiões superiores. Segundo a letra do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, isto é, aos lugares baixos para deles tirar as almas dos justos que lhe aguardavam a vinda.

Os infernos não eram, portanto, um lugar unicamente de suplício: estavam, tal como para os pagãos, nos lugares baixos.

A morada dos anjos, assim como o Olimpo, era nos lugares elevados. Colocaram-na para além do céu estelar, que se reputava limitado.

6. - Esta mistura de idéias cristãs e pagãs nada tem de surpreendente. Jesus não podia de um só golpe destruir inveteradas crenças, faltando aos homens conhecimentos necessários para conceber a infinidade do Espaço e o número infinito dos mundos; a Terra para eles era o centro do Universo; não lhe conheciam a forma nem a estrutura internas; tudo se limitava ao seu ponto de vista: as noções do futuro não podiam ir além dos seus conhecimentos. Jesus encontrava-se, pois, na impossibilidade de os iniciar no verdadeiro estado das coisas; mas não querendo, por outro lado, com sua autoridade, sancionar prejuízos aceitos, absteve-se de os retificar, deixando ao tempo essa missão. Ele limitou-se a falar vagamente da vida bem-aventurada, dos castigos reservados aos culpados, sem referir-se jamais nos seus ensinos a castigos e suplícios corporais, que constituíram para os cristãos um artigo de fé. Eis aí como as idéias do inferno pagão se perpetuaram até aos nossos dias. E foi preciso a difusão das modernas luzes, o desenvolvimento geral da inteligência humana para se lhe fazer justiça. Como, porém, nada de positivo houvesse substituído as idéias recebidas, ao longo período de uma crença cega sucedeu, transitoriamente, o período de incredulidade a que vem pôr termo a Nova Revelação. Era preciso demolir para reconstruir, visto como é mais fácil insinuar idéias justas aos que em nada crêem, sentindo que algo lhes falta, do que fazê-lo aos que possuem uma idéia robusta, ainda que absurda.

7. - Localizados o céu e o inferno, as seitas cristãs foram levadas a não admitir para as almas senão duas situações extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatório é apenas uma posição intermediária e passageira, ao sair da qual as almas passam, sem transição, à mansão dos justos.

Outra não pode ser a hipótese, dada a crença na sorte definitiva da alma após a morte. Se não há mais de duas habitações, a dos eleitos e a dos condenados, não se podem admitir muitos graus em cada uma sem admitir a possibilidade de os franquear e, conseguintemente, o progresso. Ora, se há progresso, não há sorte definitiva, e se há sorte definitiva, não há progresso. Jesus resolveu a questão quando disse: - "Há muitas moradas na casa de meu Pai." (1)

(1) O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.

Os limbos 8. - É verdade que a Igreja admite uma posição especial em casos particulares.

As crianças falecidas em tenra idade, sem fazer mal algum, não podem ser condenadas ao fogo eterno. Mas, também, não tendo feito bem, não lhes assiste direito à felicidade suprema. Ficam nos limbos, diz-nos a Igreja, nessa situação jamais definida, na qual, se não sofrem, também não gozam da bem-aventurança. Esta, sendo tal sorte irrevogavelmente fixada, fica-lhes defesa para sempre. Tal privação importa, assim, um suplício eterno e tanto mais imerecido, quanto é certo não ter dependido dessas almas que as coisas assim sucedessem. O mesmo se dá quanto ao selvagem que, não tendo recebido a graça do batismo e as luzes da religião, peca por ignorância, entregue aos instintos naturais. Certo, este não tem a responsabilidade e o mérito cabíveis ao que procede com conhecimento de causa. A simples lógica repele uma tal doutrina em nome da justiça de Deus, que se contém integralmente nestas palavras do Cristo: "A cada um,segundo as suas obras." Obras, sim, boas ou más, porém praticadas voluntária e livremente, únicas que comportam responsabilidade. Neste caso não podem estar a criança, o selvagem e tampouco aquele que não foi esclarecido.

Quadro do inferno pagão 9. - O conhecimento do inferno pagão nos é fornecido quase exclusivamente pela narrativa dos poetas. Homero e Vergílio dele deram a mais completa descrição, devendo, contudo, levar-se em conta as necessidades poéticas impostas à forma. A descrição de Fénelon, no Telêmaco, posto que haurida na mesma fonte quanto às crenças fundamentais, tem a simplicidade mais concisa da prosa.

Descrevendo o aspecto lúgubre dos lugares, preocupa-se, principalmente, em realçar o gênero de sofrimento dos culpados, estendendo-se sobre a sorte dos maus reis com vista à instrução do seu régio discípulo. Por muito popular que seja esta obra, nem todos têm presente à memória a sua descrição, ou não meditaram sobre ela de modo a estabelecer comparação, e assim acreditamos de utilidade reproduzir os tópicos que mais diretamente interessam ao nosso assunto, Isto é, os que se referem especialmente às penas individuais.

10. - "Ao entrar, Telêmaco ouve gemidos de uma sombra inconsolável. Qual é, perguntava-lhe, a vossa desgraça? Quem fostes na Terra? Nabofarzan, responde a sombra, rei da soberba Babilônia. Ao ouvir meu nome tremiam todos os povos do Oriente; fazia-me adorar pelos babilônios num templo todo de mármore, representado por uma estátua de ouro, a cujos pés se queimavam noite e dia os preciosos perfumes da Etiópia; jamais alguém ousou contradizer-me sem de pronto ser punido; inventavam-se dia a dia prazeres novos para tornar-me a vida mais e mais deliciosa.

"Moço e robusto, quantos, oh! quantos prazeres me restavam ainda por usufruir no trono! Mas certa mulher, que eu amava e que me não correspondia, fez-me sentir claramente que eu não era um deus: - envenenou-me, e... nada mais sou. As minhas cinzas foram ontem encerradas com pompa em urna de ouro: choraram, arrancaram cabelos, pretenderam fingidamente atirar-se às chamas da minha fogueira, a fim de morrerem comigo, vão ainda gemer junto do túmulo das minhas cinzas, mas ninguém me deplora; a minha memória horroriza a própria família, enquanto aqui em baixo sofro já horríveis suplícios.

Telêmaco, compungido ante esse espetáculo, diz-lhe: Éreis vós verdadeiramente feliz durante o vosso reinado? Sentíeis porventura essa paz suave sem a qual o coração se conserva opresso e abatido em meio das delícias? - Não, respondeu o babilônio; - não sei mesmo o que quereis dizer. Os sábios exaltam essa paz como bem único; quanto à raiva, nunca a senti, meu coração agitava-se continuamente por novos desejos de temor e de esperança. Procurava aturdir-me com o abalo das próprias paixões, tendo o cuidado de entreter essa embriaguez para torná-la permanente, continua; o menor intervalo de razão, de calma, ser-me-ia muito amargo. Eis a paz que frui; qualquer outra parece-me antes uma fábula, um sonho. São esses os bens que choro.

"Assim falando, o babilônio chorava qual homem pusilânime, enervado pelas prosperidades, desabituado de suportar resignadamente uma desgraça. Havia junto dele alguns escravos mortos em homenagem honrosa aos seus funerais. Mercúrio os entregara a Caronte com o seu rei, outorgando-lhes poder absoluto sobre esse rei, a quem tinham servido na Terra. Essas sombras de escravos não temiam a sombra de Nabofarzan, que retinham encadeada, infligindo-lhe as mais cruéis afrontas. Dizia-lhe uma: "Não éramos nós homens iguais a ti? Insensato que eras, julgavas-te um deus, a ponto de esqueceres a tua origem comum a todos os homens." "Outra, para insultá-lo, dizia: - Tinhas razão em não querer que por homem te houvessem, porque na verdade eras um monstro desumano. Ainda outra: - Então?! onde estão agora os teus aduladores? nada mais tens a dar, desgraçado! nem mesmo o mal podes fazer mais: eis-te reduzido a escravo dos teus escravos. A justiça dos deuses tarda, mas não falha.

A estas frases duras Nabofarzan se rojava por terra, arrancando os cabelos em acesso de raiva e desespero. Mas Caronte instigava os escravos: Arrastem-no pela corrente, levantem-no contra a vontade. Não possa ele consolar-se escondendo a sua vergonha: preciso é que todas as sombras do Estige a testemunhem como justificativa aos deuses, que por tanto tempo toleraram o reinado terreno deste ímpio.

E ele avista logo, bem perto de si, o negro Tártaro evolando escuro e espesso fumo, cujo cheiro mefítico daria a morte se se espalhasse pela morada dos vivos. Esse fumo envolvia um rio de fogo, um turbilhão de chamas, cujo ruído, semelhante às torrentes mais caudalosas quando se despenham de altos rochedos em profundos abismos, concorria para que nada se ouvisse nesses lugares tenebrosos. Telêmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem medo nesse báratro. Viu primeiramente um grande número de homens que tinham vivido nas mais humildes condições, punidos por haverem procurado riquezas por meio de fraudes, traições e crueldade. Aí notou muitos ímpios hipócritas que, simulando amar a religião, dela se tinham servido como de um belo pretexto para satisfazerem ambições e zombarem dos crédulos: os que haviam abusado até da própria Virtude, o maior dom dos deuses, eram punidos como os mais celerados de todos os homens. Os filhos que haviam degolado seus pais; as esposas que mancharam as mãos no sangue dos maridos; os traidores que venderam a pátria, violando todos os juramentos, sofriam, apesar de tudo, penas menores que aqueles hipócritas.

"Os três juizes infernais assim o queriam, por esta razão: os hipócritas não se contentam com ser maus como os demais ímpios, porém querem passar por bons e concorrem por sua falsa virtude para a descrença e corrupção da verdade. Os deuses, por eles zombados e desprezados perante os homens, empregam com prazer todo o seu poderio para se vingarem de tais insultos.

"Perto destes, outros homens aparecem, que vulgarmente se julgam isentos de culpa, mas que os deuses perseguem desapiedadamente: são os ingratos, os mentirosos, os aduladores que louvaram o vício, os críticos perversos que procuraram enodoar a mais pura virtude; enfim aqueles que, julgando temerariamente das coisas, sem as conhecer a fundo, prejudicaram por isso a reputação dos inocentes.

"Telêmaco, vendo os três juizes sentados a condenarem um homem, ousou perguntar-lhes quais os seus crimes. O condenado, tomando a palavra, de pronto ex-clamava: Nunca fiz mal algum; todo o meu prazer era praticar o bem: fui sempre generoso, justo, liberal e compassivo; que se pode, pois, exprobrar-me?

"Minos então lhe disse: Nenhuma acusação se te faz quanto aos homens, porém a estes menos não devias que aos deuses? Que justiça, pois, é essa de que te vanglorias? Para com os homens, que nada são, não faltaste jamais a qualquer dever; foste virtuoso, é certo, mas só atribuíste essa virtude a ti próprio, esquecendo os deuses que ta deram, tudo porque querias gozar do fruto da tua virtude encerrado em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses, que tudo fizeram, e o fizeram para si, não podem renunciar aos seus direitos; e, pois que quiseste pertencer-te e não a eles, entregar-te-ão a ti mesmo, esquecidos de ti como deles te esqueceste. Procura agora, se podes, o consolo em teu próprio coração. Eis-te agora para sempre separado dos homens, aos quais querias agradar; eis-te só contigo, tu que eras o teu ídolo: fica sabendo que não há verdadeira virtude sem respeito e amor aos deuses, a quem tudo é devido. A tua falsa virtude, que por muitos anos deslumbrou os ingênuos, vai ser confundida. Não julgando os homens o vício e a virtude senão pelo que lhes agrada ou os incomoda, são cegos quanto ao bem e quanto ao mal. Aqui, uma luz divina derroga seus julgamentos artificiais, condenando muita vez o que eles admiram, e outras vezes justificando o que condenam.

"A estas palavras, o filósofo, como que ferido por um raio, mal podia suster-se. O deleite que tivera outrora em rever a sua moderação, a coragem, as inclinações generosas, transformavam-se em desespero. A visão do próprio coração inimigo dos deuses promove-lhe suplícios; vê, e não pode deixar de se ver; vê a vaidade dos preconceitos humanos, aos quais buscava lisonjear em todas as suas ações. Opera-se uma revolução radical em todo o seu íntimo, como se lhe revolvessem todas as entranhas; reconhece-se outro; não encontra apoio no coração; a consciência, cujo testemunho tão agradável lhe fora, revolta-se contra ele, incriminando-lhe amargamente o desvario, a ilusão de todas as suas virtudes, que não tiveram por princípio e por fim o culto da Divindade, e ei-lo perturbado, consternado, preso da vergonha, do remorso, do desespero. As Fúrias não o atormentam, bastando-lhes o terem-na entregado a si próprio, para que expie pelo coração a vingança dos deuses desprezados.

"Procurando a treva não pode encontrá-la, porquanto inoportuna luz o segue por toda parte; de todos os lados os raios penetrantes da verdade vingam a verdade que ele desdenhou seguir. Tudo que amava se lhe torna odioso como fonte dos seus males infindáveis. Murmura consigo: Õ insensato! não conheci, pois, nem os deuses, nem os homens, nem a mim mesmo, porque jamais amei o verdadeiro e único bem; todos os meus passos foram tresloucados; a minha sabedoria não passava de loucura; a minha virtude mais não era que o orgulho impiedoso e cego: - eu era enfim o meu ídolo!

"Finalmente reconheceu Telêmaco os reis condenados por abuso de poder. De um lado, vingadora Fúria apresentava-lhes um espelho a refletir a monstruosidade dos seus vícios: aí viam, sem poder desviar os olhos, a vaidade grosseira e ávida de ridículos louvores; a crueldade para com aqueles a quem deveriam ter feito felizes; o temor da verdade, a insensibilidade para com as virtudes, a predileção pelos cobardes e aduladores, a falta de aplicação, a inércia, a indolência; a desconfiança ilimitada; o fausto e a magnificência excessivos calcados sobre a ruína dos povos; a ambição de glórias vás à custa do sangue dos concidadãos; a fereza, enfim, que procura a cada dia novas delícias nas lágrimas e no desespero de tantos infelizes. Esses reis reviam-se constantemente nesse espelho, achando-se mais monstruosos e horrendos que a própria Quimera vencida por Belerofonte, que a Hidra de Lerna abatida por Hércules e que Cérbero vomitando por suas três goelas um sangue negro e venenoso, capaz de empestar todas as raças de mortais que vivem sobre a Terra.

"De outro lado, outra Fúria lhes repetia injuriosamente todos os louvores que os lisonjeiros lhes dispensavam em vida e mostrava-lhes ainda outro espelho em que se viam tais como a lisonja os pintara. Da antítese dos dois quadros brotava o suplício do amor-próprio. Era para notar que os piores dentre esses reis, foram os que tiveram maiores e mais fulgentes louvores durante a vida, por isso que os maus são mais temidos que os bons e exigem impudicamente as vis adulações dos poetas e oradores do seu tempo.

"Na profundeza dessas trevas, onde só insultos e escárnios padecem, ouvem-se- lhes os gemidos agoniados. Nada os cerca que os não repila, contradiga e confunda em contraste ao que supunham na vida, zombando dos homens, convictos de que tudo era feito para servi-los. No Tártaro, entregues a todos os caprichos de certos escravos, estes lhes fazem provar por sua vez a mais cruel servidão; humilhados dolorosamente, não lhes resta esperança alguma de modificar ou abrandar o cativeiro. Qual bigorna sob as marteladas dos Ciclopes, quando Vulcano os acoroçoa nas fornalhas incandescentes do Monte Etna, assim permanecem, mercê das pancadas desses escravos transformados em verdugos.

"Aí viu Telêmaco pálidos semblantes, hediondos e consternados. Negra tristeza essa que consome estes criminosos, horrorizados de si próprios, sem poderem dela despojar-se como da própria natureza; não têm outro castigo às suas faltas que não as mesmas faltas; vêem-se incessantemente na plenitude da sua enormidade, apresentando-se-lhes sob a forma de espectros horríveis que os perseguem. Procurando eximir-se a essa perseguição, buscam morte mais potente do que a que os separou do corpo. Desesperados, invocam uma morte capaz de extinguir-lhes a consciência: pedem aos abismos que os absorvam, a fim de se furtarem aos raios vingadores da verdade que os atormenta, mas continuam votados à vingança que sobre eles destila gota a gota e que jamais estancará. A verdade que temem ver constitui-se em suplício; vêem-na, contudo, e só têm olhos para vê-la erguer-se contra eles, ferindo-os, despedaçando-os, arrancando-os de si mesmos, como o raio, sem nada destruir-lhes exteriormente, a penetrar-lhes o âmago das entranhas.

"Entre os seres que lhe eriçavam os cabelos, viu Telêmaco vários e antigos reis da Lídia punidos por haverem preferido ao trabalho as delícias de uma vida inativa, quando aquele deve ser o consolo dos povos e, como tal, inseparável da realeza.

"Estes reis lastimavam-se reciprocamente a cegueira. Dizia um a outro, que fora seu filho: Não vos tinha eu recomendado tantas vezes durante a vida e ainda antes da morte que reparásseis os males ocorridos por negligência minha? - Ah! desgraçado pai! - dizia o filho -, fostes vós que me perdestes! foi o vosso exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a voluptuosidade e a crueldade para com os homens! Vendo-vos governar com tanta incúria, cercado de aduladores infames, habituei-me a prezar a lisonja e os prazeres.

"Acreditei que os homens eram para os reis o que os cavalos e outros animais de carga são para aqueles, isto é, animais que só se consideram enquanto proporcionam serviços e comodidades.

"Acreditei-o, e fostes vós que mo fizestes crer... sofrendo agora tantos males por vos haver imitado. A estas recriminações aliavam as mais acerbas blasfêmias, como que possuídos de raiva bastante para se despedaçarem mutuamente. Quais notívagos mochos, em torno desses reis corvejavam as suspeitas cruéis, os vãos receios e desconfianças. que vingam os povos da fereza de seus reis, a ganância insaciável das riquezas, a falsa glória sempre tirânica e a moleza displicente que duplica os sofrimentos sem a compensação de sólidos prazeres. Viam-se muitos desses reis severamente punidos, não por males que tivessem feito, mas por terem negligenciado o bem que poderiam e deveriam fazer. Todos os crimes dos povos, provenientes da desídia na observância das leis, eram imputados aos reis, que não devem reinar senão para que as leis exerçam seu ministério. Imputavam-se-lhes também todas as desordens decorrentes do fausto, do luxo e dos demais excessos que impelem os homens à violência, instigando-os à aquisição de bens com o desprezo das leis. Sobretudo recaia o rigor sobre os reis que, ao invés de serem bons e vigilantes pastores dos povos, só cuidavam de devastar o rebanho, quais lobos devoradores.

"O que mais entristeceu Telêmaco, porém, foi ver nesse abismo de trevas e males um grande número de reis que, tendo passado na Terra pelos melhores, condenaram-se às penas do Tártaro por se terem deixado guiar por homens ardilosos e maus. Tal punição correspondia aos males que tinham deixado praticar em nome da sua autoridade. Demais, a maior parte desses reis não foram nem bons nem maus, tal a sua fraqueza; não os atemorizava a ignorância da verdade, e assim como nunca experimentaram o prazer da virtude, jamais poderiam fazê-lo consistir na prática do bem."

Esboço do inferno cristão 11. - A opinião dos teólogos sobre o inferno resume-se nas seguintes citações (1). Esta descrição, sendo tomada dos autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto melhor ser considerada como expressão da fé ortodoxa na matéria, quanto é ela reproduzida a cada instante, com pequenas variantes, nos sermões do púlpito evangélico e nas instruções pastorais.

(1) Estas citações são tiradas da obra intitulada O Inferno, de Augusto Callet.

12. "Os demônios são puros Espíritos, e os condenados, presentemente no inferno, podem ser considerados puros Espíritos, uma vez que só a alma aí desce, e os restos entregues à terra se transformam em ervas, em plantas, em minerais e líquidos, sofrendo inconscientemente as metamorfoses constantes da matéria. Os condenados, porém, como os santos, devem ressuscitar no dia do juízo final, retomando, para não mais deixá-los, os mesmos corpos carnais que os revestiam na vida. Os eleitos ressuscitarão, contudo, em corpos purificados e resplendentes, e os condenados em corpos maculados e desfigurados pelo pecado. Isso os distinguirá, não havendo mais no inferno puros Espíritos, porém homens como nós. Conseguintemente, o inferno é um lugar físico, geográfico, material, uma vez que tem de ser povoado por criaturas terrestres, dotadas de pés, mãos, boca, língua, dentes, ouvidos, olhos semelhantes aos nossos, sangue nas veias e nervos sensíveis.

Onde estará esse inferno? Alguns doutores o têm colocado nas entranhas mesmas do nosso globo; outros não sabemos em que planeta, sem que o problema se haja resolvido por qualquer concílio. Estamos, pois, quanto a este ponto, reduzidos a conjeturas; a única coisa afirmada é que esse inferno, onde quer que exista, é um mundo composto de elementos materiais, conquanto sem Sol, sem estrelas, sem Lua, mais triste e inóspito, desprovido de todo gérmen e das aparências benéficas que porventura se encontram ainda nas regiões mais áridas deste mundo em que pecamos.

Os teólogos mais circunspectos não se atrevem, à semelhança dos egípcios, dos hindus e dos gregos, a descrever os horrores dessa morada, limitando-se a no-la mostrar como premissas no pouco que dela fala a Escritura, o lago de fogo e enxofre do Apocalipse e os vermes de Isaías, esses vermes que formigam eternamente sobre os cadáveres do Tofel, e os demônios atormentando os homens aos quais eles perderam, e os homens a chorarem, rangendo os dentes, segundo a expressão dos evangelistas.

"Santo Agostinho não concorda que esses sofrimentos físicos sejam apenas reflexos de sofrimentos morais e vê, num verdadeiro lago de enxofre, vermes e verdadeiras serpentes saciando-se nos corpos, casando suas picadas às do fogo. Ele pretende mais, segundo um versículo de S. Marcos, que esse fogo estranho, posto que material como o nosso e atuando sobre corpos materiais, os conservará como o sal conserva o corpo das vítimas. Os condenados, vitimas sempre sacrificadas e sempre vivas, sentirão a tortura desse fogo que queima sem destruir, penetrando-lhes a pele; serão dele embebidos e saturados em todos os seus membros, na medula dos ossos, na pupila dos olhos, nas mais recônditas e sensíveis fibras do seu ser. A cratera de um vulcão, se aí pudessem submergir, ser-lhes-ia lugar de refrigério e repouso.

Assim falam com toda a segurança os teólogos mais tímidos, discretos e comedidos; não negam que haja no inferno outros suplícios corporais, mas dizem que para afirmá-lo lhes falta suficiente conhecimento, pelo menos tão positivo como o que lhes foi dado sobre o suplício horrível do fogo e dos vermes. Há, contudo, teólogos mais ousados ou mais esclarecidos que dão do inferno descrições mais minuciosas, variadas e completas. E conquanto se não saiba em que lugar do Espaço está situado esse inferno, há santos que o viram. Eles não foram lá ter com a lira na mão, como Orfeu; de espada em punho, como Ulisses, mas transportados em espírito.

"Desse número é Santa Teresa. Dir-se-ia, pela narrativa da santa, que há uma cidade no inferno: - ela aí viu, pelo menos, uma espécie de viela comprida e estreita como essas que abundam em velhas cidades, e percorreu-a horrorizada, caminhando sobre lodoso e fétido terreno, no qual pululavam monstruosos reptis. Foi, porém, detida em sua marcha por uma muralha que interceptava a viela, em cuja muralha havia um nicho onde se abrigou, aliás sem poder explicar a ocorrência. Era, diz ela, o lugar que lhe destinavam se abusasse, em vida, das graças concedidas por Deus em sua cela de Ávila.

"Apesar da facilidade maravilhosa que tivera em penetrar esse nicho, não podia sentar-se, ou deitar-se, nem manter-se de pé. Tampouco podia sair. Essas paredes horríveis, abaixando-se sobre ela, envolviam-na, apertavam-na como se fossem animadas de movimento próprio. Parecia-lhe que a afogavam, estrangulando-a, ao mesmo tempo que a esfolavam e retalhavam em pedaços. Ao sentir queimar-se, experimentou, igualmente, toda a sorte de angústias.

"Sem esperança de socorro, tudo era trevas em torno de si, posto que através dessas trevas percebesse, não sem pavor, a hedionda viela em que se achava, com a sua imunda vizinhança. Este espetáculo era-lhe tão intolerável quanto os apertos mesmos da prisão. (1)

(1) Nesta visão se reconhecem todos os caracteres dos pesadelos, sendo provável que fosse deste gênero de fenômenos o acontecido a Santa Teresa.

"Esse não era, sem dúvida, mais que um pequeno recanto do inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos, pois viram grandes cidades no inferno, quais enormes braseiros: Babilônia e Nínive, a própria Roma, com seus palácios e templos abrasados, acorrentados todos os habitantes.

"Traficantes em seus balcões, sacerdotes reunidos a cortesãos em salas de festim, chumbados às cadeiras ululantes, levando aos lábios rubras taças chamejantes. Criados genuflexos em ferventes cloacas, braços distendidos, e príncipes de cujas mãos escorria em lava devoradora o ouro derretido. Outros viram no inferno planícies sem-fim, cultivadas por camponeses famintos, que, nada colhendo desses campos fumegantes, dessas sementes estéreis, se entredevoravam, dispersando-se em seguida, tão numerosos como dantes, magros, vorazes e em bando, indo procurar ao longe, em vão, terras mais felizes. Outras colônias errantes de condenados os substituíam imediatamente. Ainda outros relatam que viram no inferno montanhas inçadas de precipícios, florestas gemebundas, poços secos, fontes alimentadas de lágrimas, ribeiros de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas tripuladas por desesperados, singrando mares sem praia. Viram, em uma palavra, tudo o que viam os pagãos: um lúgubre revérbero da Terra com os respectivos sofrimentos naturais eternizados, e até calabouços, patíbulos e instrumentos de tortura forjados por nossas próprias mãos.

Há, com efeito, demônios que, para melhor atormentarem os homens em seus corpos, tomam corpos. Uns têm asas de morcegos, cornos, couraças de escama, patas armadas de garras, dentes agudos, apresentando-se-nos armados de espadas, tenazes, pinças, serras, grelhas, foles, tudo ardente, não exercendo outro ofício por toda a eternidade, em relação à carne humana, que não o de carniceiros e cozinheiros; outros, transformados em leões ou víboras enormes, arrastam suas presas para cavernas solitárias; estes se transformam em corvos para arrancar os olhos a certos culpados, e aqueles em dragões volantes, prontos a se lançarem sobre o dorso das vítimas, arrebatando-as assustadiças, ensangüentadas, aos gritos, através de espaços tenebrosos, para arremessá-las alfim em tanques de enxofre. Aqui, nuvens de gafanhotos, de escorpiões gigantescos, cuja vista produz náuseas e calafrios, e o contacto, convulsões; além, monstros policéfalos, escancarando goelas vorazes, a sacudirem sobre as disformes cabeças as suas crinas de áspides, a triturarem condenados com sangrentas mandíbulas para vomitá-los mastigados, porém vivos, porque são imortais.

"Estes demônios de formas sensíveis, que lembram tão visivelmente os deuses do Amenti e do Tártaro, bem como os ídolos adorados pelos fenícios, moabitas e outros gentios vizinhos da Judéia, esses demônios não obram ao acaso, tendo cada um a sua função. O mal que praticam no inferno está em relação ao mal que inspiraram e fizeram cometer na Terra (1). Os condenados são punidos em todos os seus órgãos e sentidos, porque também a Deus ofenderam por todos os órgãos e sentidos. Os delinqüentes de gula são castigados pelos demônios da glutonaria, os preguiçosos pelos da preguiça, os luxuriosos pelos da devassidão, e assim por diante, numa variedade tão grande como a dos pecados. Terão frio, queimando-se, e calor, enregelados, ávidos igualmente de movimento e de repouso; sedentos e famintos; mil vezes mais fatigados que escravo ao fim do dia, mais doentes que os moribundos, mais alquebrados e chaguentos que os mártires, e isso para sempre.

1) Singular punição, na verdade, esta de poder continuar em maior escala a pratica de mal menor feito na Terra. Mais racional seria o sofrerem os próprios malfeitores as conseqüências desse mal, em lugar de se darem ao prazer de proporcioná-lo a outrem. .

"Demônio algum se furta, nem se furtará jamais ao desempenho sinistro da sua tarefa, perfeitamente disciplinados e fiéis, quanto à execução das vingativas ordens que receberam. Aliás, sem isso que seria o inferno? Repousariam os pacientes se os algozes altercassem ou se enfadassem. Mas, nada de repouso nem disputas para quaisquer deles, pois apesar de maus e inumeráveis que são, estendendo-se de um a outro extremo do abismo, nunca se viu sobre a Terra súditos mais dóceis a seus príncipes, exércitos mais obedientes aos chefes ou comunidades monásticas mais humildes e submissas aos seus superiores. (1)

(1) Esses mesmos demônios rebeldes a Deus quanto ao bem, são de uma docilidade exemplar quanto à pratica do mal. Nenhum se esquiva ou afrouxa durante a eternidade. Que singular metamorfose em quem fora criado puro e perfeito como os anjos! Não é de pasmar vê-los dar exemplos de harmonia, de concórdia inalterável quando os homens sequer não sabem viver em paz na Terra, antes se laceram mutuamente? Vendo-se o requinte dos castigos reservados aos condenados e comparando sua situação à dos demônios, é caso de perguntar quais os mais dignos de lástima - se as vítimas ou os algozes.

"Quase nada se conhece da ralé demoníaca, desses vis Espíritos que compõem as legiões de vampiros, sapos, escorpiões, corvos, hidras, salamandras e outros animais sem-nome; conhecem-se, porem, os nomes de muitos dos príncipes que comandam tais legiões, entre os quais Belfegor, o demônio da luxúria; Abadon ou Apolion, do homicídio; Belzebu, dos desejos impuros, ou senhor das moscas que engendram a corrupção; Mamon, da avareza; Moloc, Belial, Baalgad, Astarot e muitos outros, sem falar do seu chefe supremo, o sombrio arcanjo que no céu se chamava Lúcifer e no inferno se chama Satanás.

"Eis aí resumida a idéia que nos dão do inferno, sob o ponto de vista da sua natureza física e também das penas físicas que aí sofrem. Compulsai os escritos dos padres e dos antigos doutores; interrogai as pias legendas; observai as esculturas e painéis das nossas igrejas; atentai no que dizem dos púlpitos e sabereis ainda mais."

13. O Autor acompanha esse quadro das seguintes reflexões, cujo alcance procuraremos cada qual compreender:

"A ressurreição dos corpos é um milagre, mas Deus faz ainda um segundo milagre, dando a esses corpos mortais - já uma vez usados pelas passageiras provas da vida, já uma vez aniquilados - a virtude de subsistirem sem se dissolverem numa fornalha, onde se volatilizariam os próprios metais. Que se diga que a alma é o seu próprio algoz, que Deus não a persegue e apenas a abandona no estado infeliz por ela escolhido (conquanto esse abandono eterno de um ser desgraçado e sofredor pareça incompatível com a bondade divina), vá; mas o que se diz da alma e das penas espirituais, não se pode de modo algum dizer dos corpos e das respectivas penas, para perpetuação das quais já não basta que Deus se conserve impassível, mas, ao contrário, que intervenha e atue, sem o que sucumbiriam os corpos.

"Os teólogos supõem, portanto, que Deus opera, efetivamente, após a ressurreição dos corpos, esse segundo milagre de que falamos. Que em primeiro lugar tira dos sepulcros, que os devoravam, os nossos corpos de barro; retira-os tais como aí baixaram com suas enfermidades originais e degradações sucessivas da idade; restitui-nos a esse estado, decrépitos, friorentos, gotosos, cheios de necessidades, sensíveis a uma picada de abelha, assinalados dos estragos da vida e da morte, e está feito o primeiro milagre; depois, a esses corpos raquíticos, prontos a voltarem ao pó donde saíram, outorga propriedades que nunca tiveram - a imortalidade, esse dom que, em sua cólera (dizei antes em sua misericórdia), retirara a Adão ao sair do Éden - e eis completo o segundo milagre. Adão, quando imortal, era invulnerável, e deixando de ser invulnerável tornou-se mortal; a morte seguia de perto a dor. A ressurreição não nos restabelece, pois, nem nas condições físicas do homem inocente, nem nas do culpado, sendo antes uma ressurreição das nossas misérias somente, mas com um acréscimo de misérias novas, infinitamente mais horríveis.

"É, de alguma sorte, uma verdadeira criação, e a mais maliciosa que a imaginação tenha, porventura, ousado conceber. Deus muda de parecer, e, para ajuntar aos tormentos espirituais dos pecadores tormentos carnais que possam durar eternamente, transforma de súbito, por efeito do seu poder, as leis e propriedades por Ele mesmo estabelecidas de princípio aos compostos materiais, ressuscita carnes enfermas e corrompidas e, reunindo por um nó indestrutível esses elementos que tendem por si mesmos a separar-se, mantém e perpetua, contra a ordem natural, essa podridão viva, lançando-a ao fogo, não para purificá-la, mas para conservá-la tal qual é, sensível, sofredora, ardente, horrível e como a quer - imortal. Por este milagre se arvora Deus num dos algozes infernais, pois se os condenados só a si podem atribuir seus males espirituais, em compensação só a Deus poderão imputar os outros.

"Era pouco aparentemente o abandono, depois da morte, à tristeza, ao arrependimento, às angústias de uma alma que sente perdido o bem supremo. Segundo os teólogos, Deus irá buscá-las nessa noite, ao fundo desse abismo, chamando-as momentaneamente à vida, não para as consolar, mas para as revestir de um corpo horrendo, chamejante, imperecível, mais empestado que a túnica de Dejanira, abandonando-as então para sempre.

"Ainda assim Ele não as abandonará para sempre, em absoluto, visto como Céu e Terra não subsistem senão por ato permanente da sua vontade sempre ativa. Deus terá, portanto, sem cessar, esses condenados à mão, para impedir que o fogo se extinga em seus corpos, consumindo-os, e querendo que contribuam perenemente por seus perenes suplícios para edificação dos escolhidos."

14. - Dissemos, e com razão, que o inferno dos cristãos excedera o dos pagãos. Efetivamente, no Tártaro vêem-se culpados torturados pelo remorso, ante suas vítimas e seus crimes, acabrunhados por aqueles que espezinharam na vida terrestre; vemo-los fugirem à luz que os penetra, procurando em vão esconderem-se aos olhares que os perseguem; aí o orgulho é abatido e humilhado, trazendo todos o estigma do seu passado, punidos pelas próprias faltas, a ponto tal que, para alguns, basta entregá-los a si mesmos sem ser preciso aumentar-lhes os castigos. Contudo, são sombras, isto é, almas com corpos fluídicos, imagens da sua vida terrestre; lá não se vê os homens retomarem o corpo carnal para sofrer materialmente, com fogo a penetrar-lhes a pele, saturando-os até à medula dos ossos. Tampouco se vê o requinte das torturas que constituem o fundo do inferno cristão. Juizes inflexíveis, porém justos, proferem a sentença proporcional ao delito, ao passo que no império de Satã são todos confundidos nas mesmas torturas, com a materialidade por base, e banida toda e qualquer equidade.

Incontestavelmente, há hoje, no selo da Igreja mesma, muitos homens sensatos que não admitem essas coisas à risca, vendo nelas antes simples alegorias cujo sentido convém interpretar. Estas opiniões, no entanto, são individuais e não fazem lei, continuando a crença no inferno material, com suas conseqüências, a constituir um artigo de fé.

15. - Poderíamos perguntar como há homens que têm conseguido ver essas coisas em êxtase, se elas de fato não existem. Não cabe aqui explicar a origem das imagens fantásticas, tantas vezes reproduzidas com visos de realidade. Diremos apenas ser preciso considerar, em principio, que o êxtase é a mais incerta de todas as revelações (1), porquanto o estado de sobreexcitação nem sempre importa um desprendimento dalma tão completo que se imponha à crença absoluta, denotando muitas vezes o reflexo de preocupações da véspera. As idéias com que o Espírito se nutre e das quais o cérebro, ou antes o invólucro perispiritual correspondente a este, conserva a forma ou a estampa, se reproduzem amplificadas como em uma miragem, sob formas vaporosas que se cruzam, se confundem e compõem um todo extravagante. Os extáticos de todos os cultos sempre viram coisas em relação com a fé de que se presumem penetrados, não sendo, pois, extraordinário que Santa Teresa e outros, tal qual ela saturados de idéias infernais pelas descrições, verbais ou escritas, hajam tido visões, que não são, propriamente falando, mais que reproduções por efeito de um pesadelo. Um pagão fanático teria antes visto o Tártaro e as Fúrias, ou Júpiter, no Olimpo, empunhando o raio.

(1) O Livro dos Espíritos, nºs 443 e 444

O Purgatório

1. - O Evangelho não faz menção alguma do purgatório, que só foi admitido pela Igreja no ano de 593. É incontestavelmente um dogma mais racional e mais conforme com a justiça de Deus que o inferno, porque estabelece penas menos rigorosas e resgatáveis para as faltas de gravidade mediana.

O princípio do purgatório é, pois, fundado na eqüidade, porque, comparado à justiça humana, é a detenção temporária a par da condenação perpétua. Que julgar de um país que só tivesse a pena de morte para os crimes e os simples delitos?

Sem o purgatório, só há para as almas duas alternativas extremas: a suprema felicidade ou o eterno suplício. E nessa hipótese, que seria das almas somente culpadas de ligeiras faltas? Ou compartilhariam da felicidade dos eleitos, ainda quando imperfeitas, ou sofreriam o castigo dos maiores criminosos, ainda quando não houvessem feito muito mal, o que não seria nem justo, nem racional.

2. - Mas, necessariamente, a noção do purgatório deveria ser incompleta, porque apenas conhecendo a penalidade do fogo fizeram dele um inferno menos tenebroso, visto que as almas aí também ardem, embora em fogo mais brando. Sendo o dogma das penas eternas incompatível com o progresso, as almas do purgatório não se livram dele por efeito do seu adiantamento, mas em virtude das preces que se dizem ou que se mandam dizer em sua intenção. E se foi bom o primeiro pensamento, outro tanto não acontece quanto às conseqüências dele decorrentes, pelos abusos que originaram. As preces pagas transformaram o purgatório em mina mais rendosa que o inferno. (1)

(1) O purgatório originou o comércio escandaloso das indulgências, por intermédio das quais se vende a entrada no céu. Este abuso foi a causa primaria da Reforma, levando Lutero a rejeitar o purgatório.

3. Jamais foram determinados e definidos claramente o lugar do purgatório e a natureza das penas aí sofridas. A Nova Revelação estava reservado o preenchimento dessa lacuna, explicando-nos a causa das terrenas misérias da vida, das quais só a pluralidade das existências poderia mostrar-nos a justiça.

Essas misérias decorrem necessariamente das imperfeições da alma, pois se esta fosse perfeita não cometeria faltas nem teria de sofrer-lhe as conseqüências. O homem que na Terra fosse em absoluto sóbrio e moderado, por exemplo, não padeceria enfermidades oriundas de excessos.

O mais das vezes ele é desgraçado por sua própria culpa, porém, se é imperfeito, é porque já o era antes de vir à Terra, expiando não somente faltas atuais, mas faltas anteriores não resgatadas. Repara em uma vida de provações o que a outrem fez sofrer em anterior existência. As vicissitudes que experimenta são, por sua vez, uma correção temporária e uma advertência quanto às imperfeições que lhe cumpre eliminar de si, a fim de evitar males e progredir para o bem. São para a alma lições da experiência, rudes às vezes, mas tanto mais proveitosas para o futuro, quanto profundas as impressões que deixam. Essas vicissitudes ocasionam incessantes lutas que lhe desenvolvem as forças e as faculdades intelectivas e morais. Por essas lutas a alma se retempera no bem, triunfando sempre que tiver denodo para mantê-las até ao fim.

O prêmio da vitória está na vida espiritual, onde a alma entra radiante e triunfadora como soldado que se destaca da refrega para receber a palma gloriosa.

4. - Em cada existência, uma ocasião se depara à alma para dar um passo avante; de sua vontade depende a maior ou menor extensão desse passo: franquear muitos degraus ou ficar no mesmo ponto. Neste último caso, e porque cedo ou tarde se impõe sempre o pagamento de suas dívidas, terá de recomeçar nova existência em condições ainda mais penosas, porque a uma nódoa não apagada ajunta outra nódoa.

É, pois, nas sucessivas encarnações que a alma se despoja das suas imperfeições, que se purga, em uma palavra, até que esteja bastante pura para deixar os mundos de expiação como a Terra, onde os homens expiam o passado e o presente, em proveito do futuro. Contrariamente, porém, à idéia que deles se faz, depende de cada um prolongar ou abreviar a sua permanência, segundo o grau de adiantamento e pureza atingido pelo próprio esforço sobre si mesmo. O livramento se dá, não por conclusão de tempo nem por alheios méritos, mas pelo próprio mérito de cada um, consoante estas palavras do Cristo: - A cada um, segundo as suas obras, palavras que resumem integralmente a justiça de Deus.

5. - Aquele, pois, que sofre nesta vida pode dizer-se que é porque não se purificou suficientemente em sua existência anterior, devendo, se o não fizer nesta, sofrer ainda na seguinte. Isto é ao mesmo tempo eqüitativo e lógico. Sendo o sofrimento inerente à imperfeição, tanto mais tempo se sofre quanto mais imperfeito se for, da mesma forma por que tanto mais tempo persistirá uma enfermidade quanto maior a demora em tratá-la. Assim é que, enquanto o homem for orgulhoso, sofrerá as conseqüências do orgulho; enquanto egoísta, as do egoísmo.

6. - Devido às suas imperfeições, o Espírito culpado sofre primeiro na vida espiritual, sendo-lhe depois facultada a vida corporal como meio de reparação. É por isso que ele se acha nessa nova existência, quer com as pessoas a quem ofendeu, quer em meios análogos àqueles em que praticou o mal, quer ainda em situações opostas à sua vida precedente, como, por exemplo, na miséria, se foi mau rico, ou humilhado, se orgulhoso.

A expiação no mundo dos Espíritos e na Terra não constitui duplo castigo para eles, porém um complemento, um desdobramento do trabalho efetivo a facilitar o progresso. Do Espírito depende aproveitá-lo. E não lhe será preferível voltar à Terra, com probabilidades de alcançar o céu, a ser condenado sem remissão, deixando-a definitivamente? A concessão dessa liberdade é uma prova da sabedoria, da bondade e da justiça de Deus, que quer que o homem tudo deva aos seus esforços e seja o obreiro do seu futuro; que, infeliz por mais ou menos tempo, não se queixe senão de si mesmo, pois que a rota do progresso lhe está sempre franca.

7. - Considerando-se quão grande é o sofrimento de certos Espíritos culpados no mundo invisível, quanto é terrível a situação de outros, tanto mais penosa pela impotência de preverem o termo desses sofrimentos, poder-se-ia dizer que se acham no inferno, se tal vocábulo não implicasse a idéia de um castigo eterno e material.

Mercê, porém, da revelação dos Espíritos e dos exemplos que nos oferecem, sabemos que o prazo da expiação esta subordinado ao melhoramento do culpado.

8. - O Espiritismo não nega, pois, antes confirma, a penalidade futura. O que ele destrói é o inferno localizado com suas fornalhas e penas irremissíveis. Não nega, outrossim, o purgatório, pois prova que nele nos achamos, e definindo-o precisamente, e explicando a causa das misérias terrestres, conduz à crença aqueles mesmos que o negam. Repele as preces pelos mortos? Ao contrário, visto que os Espíritos sofredores as solicitam; eleva-as a um dever de caridade e demonstra a sua eficácia para os conduzir ao bem e, por esse meio, abreviar-lhes os tormentos (1). Falando à inteligência, tem levado a fé a muito incrédulo, incutindo a prece no ânimo dos que a escarneciam. O que o Espiritismo afirma é que o valor da prece está no pensamento e não nas palavras, que as melhores preces são as do coração e não dos lábios, e, finalmente, as que cada qual murmura de si mesmo e não as que se mandam dizer por dinheiro. Quem, pois, ousaria censurá-lo?

(1) Vede O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XXVII - "Ação da prece"

9. - Seja qual for a duração do castigo, na vida espiritual ou na Terra, onde quer que se verifique, tem sempre um termo, próximo ou remoto. Na realidade não há para o Espírito mais que duas alternativas, a saber: - punição temporária e proporcional à culpa, e recompensa graduada segundo o mérito. Repele o Espiritismo a terceira alternativa, da eterna condenação. O inferno reduz-se a figura simbólica dos maiores sofrimentos cujo termo é desconhecido. O purgatório, sim, é a realidade.

A palavra purgatório sugere a idéia de um lugar circunscrito: eis por que mais naturalmente se aplica à Terra do que ao Espaço infinito onde erram os Espíritos sofredores, e tanto mais quanto a natureza da expiação terrena tem os caracteres da verdadeira expiação.

Melhorados os homens, não fornecerão ao mundo invisível senão bons Espíritos; e estes, encarnando-se, por sua vez só fornecerão à Humanidade corporal elementos aperfeiçoados. A Terra deixará, então, de ser um mundo expiatório e os homens não sofrerão mais as misérias decorrentes das suas imperfeições.

Aliás, por esta transformação, que neste momento se opera, a Terra se elevará na hierarquia dos mundos. (2)

(2) Idem, cap. III - "Progressão dos mundos".

10. - Mas, por que não teria o Cristo falado do purgatório? É que, não existindo a idéia, não havia palavra que a representasse.

O Cristo serviu-se da palavra inferno, a única usada, como termo genérico, para designar as penas futuras, sem distinção. Colocasse ele, ao lado da palavra inferno, uma equivalente a purgatório e não poderia precisar-lhe o verdadeiro sentido sem ferir uma questão reservada ao futuro; teria, enfim, de consagrar a existência de dois lugares especiais de castigo. O inferno em sua concepção genérica, revelando a idéia de punição, encerrava, implicitamente, a do purgatório, que não é senão um modo de penalidade.

Reservado ao futuro o esclarecimento sobre a natureza das penas, competia-lhe igualmente reduzir o inferno ao seu justo valor. Uma vez que a Igreja, após seis séculos, houve por bem suprir o silêncio de Jesus quanto ao purgatório, decretando-lhe a existência, é porque ela julgou que ele não havia dito tudo. E por que não havia de dar-se sobre outros pontos o que com este se deu?

Doutrina das penas eternas

Origem da doutrina das penas eternas

1. - A crença na eternidade das penas perde terreno dia a dia, de modo que, sem ser profeta, pode prever-se-lhe o fim próximo.

Tais e de tal ordem poderosos e peremptórios têm sido os argumentos a ela opostos, que nos parece quase supérfluo ocuparmo-nos de tal doutrina de ora em diante, deixando que por si mesma se extinga.

Mas não se pode contestar que, apesar de caduca, ainda constitui a tecla dos adversários das idéias novas, o ponto que defendem com mais obstinação, convictos aliás da vulnerabilidade que ela apresenta, e não menos convictos das conseqüências dessa queda.

Por este lado, a questão merece sério exame.

2. - A doutrina das penas eternas teve sua razão de ser, como a do inferno material, enquanto o temor podia constituir um freio para os homens pouco adiantados intelectual e moralmente.

Na impossibilidade de apreenderem as nuanças tantas vezes delicadas do bem e do mal, bem como o valor relativo das atenuantes e agravantes, os homens não se impressionariam, então, a não ser pouco ou mesmo nada com a idéia das penas morais.

Tampouco compreenderiam a temporalidade dessas penas e a justiça decorrente das suas gradações e proporções.

3. - Quanto mais próximo do estado primitivo, mais material é o homem.

O senso moral é o que de mais tardio nele se desenvolve, razão pela qual também não pode fazer de Deus, dos seus atributos e da vida futura, senão uma idéia muito imperfeita e vaga.

Assimilando-o à sua própria natureza, Deus não passa para ele de um soberano absoluto, tanto mais terrível quanto invisível, como um rei despótico que, fechado no seu palácio, jamais se mostrasse aos súditos. Sem compreenderem o seu poder moral, só o aceitam pela força material. Não o vêem senão armado com o raio, ou no meio de coriscos e tempestades, semeando de passagem a destruição, a ruína, semelhantemente aos guerreiros invencíveis.

Um Deus de mansuetude e cordura não seria um Deus, porém um ser fraco e sem meios de se fazer obedecer. A vingança implacável, os castigos terríveis, eternos, nada tinham de incompatível com a idéia que se fazia de Deus, não lhes repugnavam à razão. Implacável também ele, homem, nos seus ressentimentos, cruel para os inimigos e inexorável para os vencidos, Deus, que lhe era superior, deveria ser ainda mais terrível.

Para tais homens eram precisas crenças religiosas assimiladas à sua natureza rústica. Uma religião toda espiritual, toda amor e caridade não podia aliar-se à brutalidade dos costumes e das paixões.

Não censuremos, pois, a Moisés sua legislação draconiana, apenas bastante para conter o povo indócil, nem o haver feito de Deus um Deus vingativo. A época assim o exigia, essa época em que a doutrina de Jesus não encontraria eco e até se anularia.

4. - À medida que o Espírito se desenvolvia, o véu material ia-se-lhe dissipando pouco a pouco, e os homens habilitavam-se a compreender as coisas espirituais. Mas isso não aconteceu senão lenta e gradualmente. Por ocasião de sua vinda, já Jesus pôde proclamar um Deus clemente, falando do seu reino, não deste mundo, e acrescentando: - Amai-vos uns aos outros e fazei bem aos que vos odeiam, ao passo que os antigos diziam: olho por olho, dente por dente.

Ora, quais eram os homens que viviam no tempo de Jesus?

Seriam almas novamente criadas e encarnadas? Mas se assim fosse, Deus teria criado para o tempo de Jesus almas mais adiantadas que para o tempo de Moisés? E daí o que teria decorrido para estas últimas? Consumir-se-iam por toda a eternidade no embrutecimento? O mais comezinho bom-senso repele essa suposição. Não; essas almas eram as mesmas que viviam sob o império das leis mosaicas e que tinham adquirido, em várias existências, o desenvolvimento suficiente à compreensão de uma doutrina mais elevada, assim como hoje mais adiantadas se encontram para receber um ensino ainda mais completo.

5. - O Cristo não pôde, no entanto, revelar aos seus contemporâneos todos os mistérios do futuro. Ele próprio o disse: Muitas outras coisas vos diria se estivésseis em estado de as compreender, e eis por que vos falo em parábolas. Sobretudo no que diz respeito à moral, isto é, aos deveres do homem, foi o Cristo muito explícito porque, tocando na corda sensível da vida material, sabia fazer-se compreender; quanto a outros pontos, limitou-se a semear sob a forma alegórica os germens que deveriam ser desenvolvidos mais tarde.

A doutrina das penas e recompensas futuras pertence a esta última ordem de idéias. Sobretudo, em relação às penas, ele não poderia romper bruscamente com as idéias preconcebidas. Vindo traçar aos homens novos deveres, substituir o ódio e a vingança pelo amor do próximo e pela caridade, o egoísmo pela abnegação, era já muito; além disso, não podia racionalmente enfraquecer o temor do castigo reservado aos prevaricadores, sem enfraquecer ao mesmo tempo a idéia do dever.

Se ele prometia o reino dos céus aos bons, esse reino estaria interdito aos maus, e para onde iriam eles? Demais, seria necessária a inversão da Natureza para que inteligências ainda muito rudimentares pudessem ser impressionadas de feição a identificarem-se com a vida espiritual, levando-se em conta a circunstância de Jesus se dirigir ao povo, à parte menos esclarecida da sociedade, que não podia prescindir de imagens de alguma sorte palpáveis, e não de idéias sutis.

Eis a razão por que Jesus não entrou em minúcias supérfluas a este respeito; nessa época não era preciso mais do que opor uma punição à recompensa.

6. - Se Jesus ameaçou os culpados com o fogo eterno, também os ameaçou de serem lançados na Geena. Ora, que vem a ser a Geena? Nada mais nada menos que um lugar nos arredores de Jerusalém, um monturo onde se despejavam as imundícies da cidade.

Dever-se-ia interpretar isso também ao pé da letra? Entretanto era uma dessas figuras enérgicas de que ele se servia para impressionar as massas. O mesmo se dá com o fogo eterno. E se tal não fora o seu pensar, ele estaria em contradição, exaltando a demência e misericórdia de Deus, pois demência e inexorabilidade são sentimentos antagônicos que se anulam. Desconhecer-se-ia, pois, o sentido das palavras de Jesus, atribuindo-lhes a sanção do dogma das penas eternas, quando todo o seu ensino proclamou a mansidão do Criador, a sua benignidade

No Pai Nosso Jesus nos ensina a dizer: - Perdoai-nos, Senhor, as nossas faltas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. Pois se o culpado não devesse esperar algum perdão, inútil seria pedi-lo.

Esse perdão é, porém, incondicional? É uma remissão pura e simples da pena em que se incorre? Não; a medida desse perdão subordina-se ao modo pelo qual se haja perdoado, o que equivale dizer que não seremos perdoados desde que não perdoemos. Deus, fazendo do esquecimento das ofensas uma condição absoluta, não podia exigir do homem fraco o que Ele, onipotente, não fizesse.

O Pai Nosso é um protesto cotidiano contra a eterna vingança de Deus.

7. - Para homens que só possuíam da espiritualidade da alma uma idéia confusa, o fogo material nada tinha de improcedente, mesmo porque já participava da crença pagã, quase universalmente propagada. Igualmente a eternidade das penas nada tinha que pudesse repugnar a homens desde muitos séculos submetidos à legislação do terrível Jeová. No pensamento de Jesus o fogo eterno não podia passar, portanto, de simples figura, pouco lhe importando fosse essa figura interpretada à letra, desde que ela servisse de freio às paixões humanas. Sabia ele ao demais que o tempo e o progresso se incumbiriam de explicar o sentido alegórico, mesmo porque, segundo a sua predição, o Espírito de Verdade viria esclarecer aos homens todas as coisas. O caráter essencial das penas irrevogáveis é a ineficácia do arrependimento, e Jesus nunca disse que o arrependimento não mereceria a graça do Pai.

Ao contrário, sempre que se lhe deparou ensejo, ele falou de um Deus clemente, misericordioso, solícito em receber o filho pródigo que voltasse ao lar paterno; inflexível, sim, para o pecador obstinado, porém, pronto sempre a trocar o castigo pelo perdão do culpado sinceramente arrependido. Este não é, por certo, o traço de um Deus sem piedade. Também convém assinalar que Jesus nunca pronunciou contra quem quer que fosse, mesmo contra os maiores culpados, a condenação irremissível.

8. - Todas as religiões primitivas, revestindo o caráter dos povos, tiveram deuses guerreiros que combatiam à frente dos exércitos.

O Jeová dos hebreus facultava-lhes mil modos de exterminar os inimigos; recompensava-os com a vitória ou punia-os com a derrota. Tal idéia a respeito de Deus levava a honrá-lo ou apaziguá-lo com sangue de animais ou de homens, e daí os sacrifícios sangrentos que representavam papel tão saliente em todas as religiões da antigüidade. Os judeus tinham abolido os sacrifícios humanos; os cristãos, apesar dos ensinamentos do Cristo, por muito tempo julgaram honrar o Criador votando, aos milhares, às chamas e às torturas, os que denominavam hereges, o que constituía sob outra forma verdadeiros sacrifícios humanos, pois que os promoviam para maior glória de Deus, e com acompanhamento de cerimônias religiosas. Hoje, ainda invocam o Deus dos exércitos antes do combate, glorificam-no após a vitória, e quantas vezes por causas injustas e anticristãs.

9. - Quão tardo é o homem em desfazer-se dos seus hábitos, prejuízos e primitivas idéias! Quarenta séculos nos separam de Moisés, e a nossa geração cristã ainda vê traços de antigos usos bárbaros, senão consagrados, ao menos aprovados pela religião atual! Foi preciso a poderosa opinião dos não-ortodoxos para acabar com as fogueiras e fazer compreender a verdadeira grandeza de Deus. Mas, à falta de fogueiras, prevalecem ainda as perseguições materiais e morais, tão radicada está no homem a idéia da crueldade divina. Nutrido por sentimentos inculcados desde a infância, poderá o homem estranhar que o Deus que lhe apresentam, lisonjeado por atos bárbaros, condene a eternas torturas e veja sem piedade o sofrimento dos culpados? Sim, são filósofos, ímpios como querem alguns, que se hão escandalizado vendo o nome de Deus profanado por atos indignos dele. São eles que o mostram aos homens na plenitude da sua grandeza, despojando-o de paixões e baixezas atribuídas por uma crença menos esclarecida.

Neste ponto a religião tem ganho em dignidade o que tem perdido em prestígio exterior, porque se homens há devotados à forma, maior é o número dos sinceramente religiosos pelo sentimento, pelo coração.

Mas, ao lado destes, quantos não têm sido levados, sem mais reflexão, a negarem toda a Providência! O modo por que a religião tem estacionado, em antagonismo com os progressos da razão humana, sem saber conciliá-los com as crenças, degenerou em deísmo para uns, em cepticismo absoluto para outros, sem esquecermos o panteísmo, isto é, o homem fazendo-se deus ele próprio, à falta de um mais perfeito.

Argumentos a favor das penas eternas 10. - Voltemos ao dogma das penas eternas. Eis o principal argumento invocado em seu favor: "É doutrina sancionada entre os homens que a gravidade da ofensa é proporcionada à qualidade do ofendido. O crime de lesa-majestade, por exemplo, o atentado à pessoa de um soberano, sendo considerado mais grave do que o fora em relação a qualquer súdito, é, por isso mesmo, mais severamente punido. E sendo Deus muito mais que um soberano, pois é infinito, deve ser infinita a ofensa a Ele, como infinito o respectivo castigo, isto é, eterno."

Refutação: Toda refutação é um raciocínio que deve ter seu ponto de partida, uma base sobre a qual se apóie, premissas, enfim. Tomemos essas premissas aos próprios atributos de Deus; - único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições.

É impossível conceber Deus de outra maneira, visto como, sem a infinita perfeição, poder-se-ia conceber outro ser que lhe fosse superior. Para que seja único acima de todos os seres, faz-se mister que ninguém possa excedê-lo ou sequer igualá-lo em qualquer coisa, Logo, é necessário que seja de todo infinito.

É porque são infinitos, os atributos divinos não sofrem aumento nem diminuição, sem o que não seriam infinitos e Deus perfeito tampouco. Se se tirasse a menor parcela de um só dos seus atributos, não haveria mais Deus, por isso que poderia coexistir um ser mais perfeito. O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de outra qualidade contrária que pudesse diminuí-la ou anulá-la. Um ser infinitamente bom não pode ter a menor parcela de maldade, nem o ser infinitamente mau pode ter a menor parcela de bondade. Assim também um objeto não seria de um negro absoluto com a mais leve nuança de branco, e vice-versa. Estabelecido este ponto de partida, oporemos aos argumentos supra os seguintes:

11. - Só um ser infinito pode fazer algo de infinito. O homem, finito nas virtudes, nos conhecimentos, no poderio, nas aptidões e na existência terrestre, não pode produzir senão coisas limitadas.

Se o homem pudesse ser infinito no mal que faz, sê-lo-ia igualmente no bem, igualando-se, então, a Deus. Mas se o homem fosse infinito no bem não praticaria o mal, pois o bem absoluto é a exclusão de todo o mal.

Admitindo-se que uma ofensa temporária à Divindade pudesse ser infinita, Deus, vingando-se por um castigo infinito, seria logo infinitamente vingativo; e sendo Deus infinitamente vingativo não pode ser infinitamente bom e misericordioso, visto como um destes atributos exclui o outro. Se não for infinitamente bom não é perfeito; e não sendo perfeito deixa de ser Deus.

Se Deus é inexorável para o culpado que se arrepende, não é misericordioso; e se não é misericordioso, deixa de ser infinitamente bom. E por que daria Deus aos homens uma lei de perdão, se Ele próprio não perdoasse? Resultaria dai que o homem que perdoa aos seus inimigos e lhes retribui o mal com o bem, seria melhor que Deus, surdo ao arrependimento dos que o ofendem, negando-lhes por todo o sempre o mais ligeiro carinho.

Achando-se em toda parte e tudo vendo, Deus deve ver também as torturas dos condenados; e se Ele se conserva insensível aos gemidos por toda a eternidade, será eternamente impiedoso; ora, sem piedade, não há bondade infinita.

12. - A isto se responde que o pecador arrependido, antes da morte, tem a misericórdia de Deus, e que mesmo o maior culpado pode receber essa graça. Quanto a isto não há dúvida, e compreende-se que Deus só perdoe ao arrependido, mantendo-se inflexível para com os obstinados; mas se Ele é todo misericordioso para a alma arrependida antes da morte, por que deixará de o ser para quem se arrepende depois dela? Por que a eficácia do arrependimento só durante a vida, um breve instante, e não na eternidade que não tem fim? Circunscritas a um dado tempo, a bondade e misericórdia divinas teriam limites, e Deus não seria infinitamente bom.

13. - Deus é soberanamente justo. A soberana justiça não é inexorável absolutamente, nem leva a complacência ao ponto de deixar impunes todas as faltas; ao contrário, pondera rigorosamente o bem e o mal, recompensando um e punindo outro eqüitativa e proporcionalmente, sem se enganar jamais na aplicação.

Se por uma falta passageira, resultante sempre da natureza imperfeita do homem e muitas vezes do meio em que vive, a alma pode ser castigada eternamente sem esperança de clemência ou de perdão, não há proporção entre a falta e o castigo -não há justiça. Reconciliando-se com Deus, arrependendo-se, e pedindo para reparar o mal praticado, o culpado deve subsistir para o bem, para os bons sentimentos. Mas, se o castigo é irrevogável, esta subsistência para o bem não frutifica, e um bem não considerado significa injustiça. Entre os homens, o condenado que se corrige tem por comutada e às vezes mesmo perdoada a sua pena; e, assim, haveria mais equidade na justiça humana que na divina.

Se a pena é irrevogável, inútil será o arrependimento, e o culpado, nada tendo a esperar de sua correção, persiste no mal, de modo que Deus não só o condena a sofrer perpetuamente, mas ainda a permanecer no mal por toda a eternidade. Nisso não há nem bondade nem Justiça.

14. Sendo em tudo infinito, Deus deve abranger o passado e o futuro; deve saber, ao criar uma alma, se ela virá a falir, assaz gravemente, para ser eternamente condenada. Se o não souber, a sua sabedoria deixará de ser infinita, e Ele deixará de ser Deus. Sabendo-o, cria voluntariamente uma alma desde logo votada ao eterno suplício, e, nesse caso, deixa de ser bom.

Uma vez que Deus pode conferir a graça ao pecador arrependido, tirando-o do inferno, deixam de existir penas eternas, e o juízo dos homens está revogado.

15. Conseguintemente, a doutrina das penas eternas absolutas conduz à negação, ou, pelo menos, ao enfraquecimento de alguns atributos de Deus, sendo incompatível com a perfeição absoluta, donde resulta este dilema: Ou Deus é perfeito, e não há penas eternas, ou há penas eternas, e Deus não é perfeito.

16. - Também se invoca a favor do dogma da eternidade das penas o seguinte argumento:

"A recompensa conferida aos bons, sendo eterna, deve ter por corolário a eterna punição. Justo é proporcionar a punição à recompensa."

Refutação: Deus criou as almas para fazê-las felizes ou desgraçadas?

Evidentemente a felicidade da criatura deve ser o fito do Criador, ou Ele não seria bom. Ela atinge a felicidade pelo próprio mérito, que, adquirido, não mais o perde. O contrário seria a sua degeneração. A felicidade eterna é, pois, a conseqüência da sua imortalidade.

Antes, porém, de chegar à perfeição, tem lutas a sustentar, combates a travar com as más paixões. Não tendo sido criada perfeita, mas suscetível de o ser, a fim de que tenha o mérito de suas obras, a alma pode cair em faltas, que são conseqüentes à sua natural fraqueza. E se por esta fraqueza fora eternamente punida, era caso de perguntar por que não a criou Deus mais forte?

A punição é antes uma advertência do mal já praticado, devendo ter por fim reconduzi-la ao bom caminho. Se a pena fosse irremissível, o desejo de melhorar seria supérfluo; nem o fim da criação seria alcançado, porquanto haveria seres 'predestinados à felicidade ou à desgraça. Se uma alma se arrepende, pode regenerar-se, e podendo regenerar-se pode aspirar à felicidade.

E Deus seria justo se lhe recusasse os respectivos meios?

Sendo o bem o fim supremo da Criação, a felicidade, que é o seu prêmio, deve ser eterna; e o castigo, como meio de alcançá-la, temporário. A noção mais comezinha da justiça humana prescreve que se não pode castigar perpetuamente quem se mostra desejoso de praticar o bem.

17. - Um último argumento a favor das penas eternas é este:

"O temor das penas eternas é um freio; anulado este, o homem, por nada temer, entregar-se-ia a todos os excessos."

Refutação: Esse raciocínio procederia se a temporalidade das penas importasse, de fato, na supressão de toda sanção penal.

A felicidade ou infelicidade futura é conseqüência rigorosa da justiça de Deus, pois a identidade de condições para o bom e para o mau seria a negação dessa justiça.

Mas, em não ser eterno, nem por isso o castigo deixa de ser temeroso, e tanto maior será o temor quanto maior a convicção.

Esta, por sua vez, tanto mais profunda será, quanto mais racional a procedência do castigo. Uma penalidade, em que se não crê, não pode ser um freio, e a eternidade das penas está nesse caso.

A crença nessa penalidade, já o afirmamos, teve a sua utilidade, a sua razão de ser em dada época; hoje, não somente deixa de impressionar os ânimos, mas até produz descrentes.

Antes de a preconizar como necessidade, fora mister demonstrar a sua realidade. Seria preciso, além disso, observar a sua eficácia junto àqueles que a preconizam e se esforçam por demonstrá-la.

E, desgraçadamente, entre esses, muitos provam pelos atos que nada temem das penas eternas.

Assim, impotente para reprimir os próprios profitentes, que império poderá exercer sobre os descrentes e refratários?

Impossibilidade material das penas eternas 18. - Até aqui, só temos combatido o dogma das penas eternas com o raciocínio. Demonstremo-lo agora em contradição com os fatos positivos que observamos, provando-lhe a impossibilidade.

Por este dogma a sorte das almas, irrevogavelmente fixada depois da morte, é, como tal, um travão definitivo aplicado ao progresso.

Ora, a alma progride ou não? Eis a questão: - Se progride, a eternidade das penas é impossível.

E poder-se-á duvidar desse progresso, vendo a variedade enorme de aptidões morais e intelectuais existentes sobre a Terra, desde o selvagem ao homem civilizado, aferindo a diferença apresentada por um povo de um a outro século? Se se admite não ser das mesmas almas, é força admitir que Deus criou almas em todos os graus de adiantamento, segundo os tempos e lugares, favorecendo umas e destinando outras a perpétua inferioridade o que seria incompatível com a justiça, que, aliás, deve ser igual para todas as criaturas.

19. - É incontestável que a alma atrasada moral e intelectualmente, como a dos povos bárbaros, não pode ter os mesmos elementos de felicidade, as mesmas aptidões para gozar dos esplendores do infinito, como a alma cujas faculdades estão largamente desenvolvidas. Se, portanto, estas almas não progredirem, não podem em condições mais favoráveis gozar na eternidade senão de uma felicidade, por assim dizer, negativa.

Para estar de acordo com a rigorosa justiça, chegaremos, pois, à conclusão de que as almas mais adiantadas são as atrasadas de outro tempo, com progressos posteriormente realizados. Mas, aqui atingimos a questão magna da pluralidade das existências como meio único e racional de resolver a dificuldade. Façamos abstração, porém, dessa questão e consideremos a alma sob o ponto de vista de uma única existência.

20. - Figuremos um rapaz de 20 anos, desses que comumente se encontram, ignorante, viciado por índole, céptico, negando sua alma e a Deus, entregue à desordem e cometendo toda sorte de malvadeza. Esse rapaz encontra-se, depois, num meio favorável, melhor; trabalha, instrui-se, corrige-se gradualmente e acaba por tornar-se crente e piedoso. Eis aí um exemplo palpável do progresso da alma durante a vida, exemplo que se reproduz todos os dias. Esse homem morre em avançada idade, como um santo, e naturalmente certa se lhe torna a salvação. Mas qual seria a sua sorte se um acidente lhe pusesse termo à existência, trinta ou quarenta anos mais cedo? Ele estava nas condições exigidas para ser condenado, e, se o fosse, todo o progresso se lhe tornaria impossível.

E assim, segundo a doutrina das penas eternas, teremos um homem salvo somente pela circunstância de viver mais tempo, circunstância, aliás, fragilíssima, uma vez que um acidente qualquer poderia tê-la anulado fortuitamente. Desde que sua alma pôde progredir em um tempo dado, por que razão não mais poderia progredir depois da morte, se uma causa alheia à sua vontade a tivesse impedido de fazê-lo durante a vida? Por que lhe recusaria Deus os meios de regenerar-se na outra vida, concedendo-lhos nesta? Neste caso, o arrependimento veio, posto que tardio; mas se desde o momento da morte se impusesse irrevogável condenação, esse arrependimento seria infrutífero por todo o sempre, como destruídas seriam as aptidões dessa alma para o progresso, para o bem.

21. - O dogma da eternidade absoluta das penas é, portanto, incompatível com o progresso das almas, ao qual opõe uma barreira insuperável. Esses dois princípios destroem-se, e a condição indeclinável da existência de um é o aniquilamento do outro. Qual dos dois existe de fato? A lei do progresso é evidente: não é uma teoria, é um fato corroborado pela experiência: é uma lei da Natureza, divina, imprescritível. E, pois, que esta lei existe inconciliável com a outra, é porque a outra não existe. Se o dogma das penas eternas existisse verdadeiramente, Santo Agostinho, S. Paulo e tantos outros jamais teriam visto o céu, caso morressem antes de realizar o progresso que lhes trouxe a conversão.

A esta última asserção respondem que a conversão dessas santas personagens não é um resultado do progresso da alma, porém, da graça que lhes foi concedida e de que foram tocadas.

Porém, isto é simples jogo de palavras. Se esses santos praticaram o mal e depois o bem, é que melhoraram; logo, progrediram. E por que lhes teria Deus concedido como especial favor a graça de se corrigirem? Sim, por que a eles e não a outros? Sempre, sempre a doutrina dos privilégios, incompatível com a justiça de Deus e com seu igual amor por todas as criaturas.

Segundo a Doutrina Espírita, de acordo mesmo com as palavras do Evangelho, com a lógica e com a mais rigorosa justiça, o homem é o filho de suas obras, durante esta vida e depois da morte, nada devendo ao favoritismo: Deus o recompensa pelos esforços e pune pela negligência, isto por tanto tempo quanto nela persistir.

A doutrina das penas eternas fez sua época 22. - A crença na eternidade das penas prevaleceu salutarmente enquanto os homens não tiveram ao seu alcance a compreensão do poder moral. É o que sucede com as crianças durante certo tempo contidas pela ameaça de seres quiméricos com os quais são intimidadas: -chegadas ao período do raciocínio, repelem por si mesmas essas quimeras da infância, tornando-se absurdo o querer governá-las por tais meios. Se os que as dirigem pretendessem incutir-lhes ainda a veracidade de tais fábulas, certo decairiam da sua confiança. É isso que se dá hoje com a Humanidade, saindo da infância e abandonando, por assim dizer, os cueiros. O homem não é mais passivo instrumento vergado à força material, nem o ente crédulo de outrora que tudo aceitava de olhos fechados.

23. - A crença é um ato de entendimento que, por isso mesmo, não pode ser imposta. Se, durante certo período da Humanidade, o dogma da eternidade das penas se manteve inofensivo e benéfico mesmo, chegou o momento de tornar-se perigoso. Imposto como verdade absoluta, quando a razão o repele, ou o homem quer acreditar e procura uma crença mais racional, afastando-se dos que o professam, ou, então, descrê absolutamente de tudo. Quem quer que estude o assunto, calmamente, verá que, em nossos dias, o dogma da eternidade das penas tem feito mais ateus e materialistas do que todos os filósofos.

As idéias seguem um curso incessantemente progressivo, e absurdo é querer governar os homens desviando-os desse curso; pretender contê-los, retroceder ou simplesmente parar enquanto ele avança, é condenar-se, é perder-se. Seguir ou deixar de seguir essa evolução é uma questão de vida ou de morte para as religiões como para os governos.

Este fatalismo é um bem ou um mal? Para os que vivem do passado, vendo-o aniquilar-se, será um mal; mas para os que vivem pelo futuro é uma lei do progresso, de Deus em suma.

E contra uma lei de Deus é inútil toda revolta, impossível a luta. Para que, pois, sustentar a todo o transe uma crença que se dissolve em desuso fazendo mais danos que benefícios à religião? Ah! contrista dizê-lo, mas uma questão material domina aqui a questão religiosa.

Esta crença tem sido grandemente explorada pela idéia de que com dinheiro se abrem as portas do céu, livrando das do inferno. As quantias por estes meios arrecadadas, outrora e ainda hoje, são incalculáveis, e verdadeiramente fabuloso o imposto prévio pago ao temor da eternidade. E sendo facultativo tal imposto, a renda é sempre proporcional à crença; extinta esta, improdutivo será aquele.

De bom grado cede a criança o bolo a quem lhe promete afugentar o lobisomem, mas se a criança já não acreditar em lobisomens, guardará o bolo.

24. - A Nova Revelação, dando noções mais sensatas da vida futura e provando que podemos, cada um de nós, promover a felicidade pelas próprias obras, deve encontrar tremenda oposição, tanto mais viva por estancar uma das mais rendosas fontes de receita. E assim tem sido, sempre que uma nova descoberta ou invento abala costumes inveterados e preestabelecidos.

Quem vive de velhos e custosos processos jamais deixa de preconizar-lhes a superioridade e excelência e de desacreditar os novos, mais econômicos.

Acreditar-se-á, por exemplo, que a imprensa, apesar dos benefícios prestados à sociedade, tenha sido aclamada pela classe dos copistas?

Não, certamente eles deveriam profligá-la. O mesmo se tem dado em relação a maquinismos, caminho de ferro e centenares de outras descobertas e aplicações.

Aos olhos dos incrédulos o dogma da eternidade das penas afigura-se futilidade da qual se riem; para o filósofo esse dogma tem uma gravidade social pelos abusos que acoroçoa, ao passo que o homem verdadeiramente religioso tem a dignidade da religião interessada na destruição dos abusos que tal dogma origina, e da sua causa, enfim.

Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original 25. - A quem pretenda encontrar na Bíblia a justificação da eternidade das penas, pode-se opor os textos contrários que a tal respeito não comportam ambigüidades. As seguintes palavras de Ezequiel são a mais explícita negação, não somente das penas irremissíveis, mas da responsabilidade que o pecado do pai do gênero humano acarretasse à sua raça:

1. O Senhor novamente me falou e disse: - 2. Donde vem o uso desta parábola entre vós e consagrada proverbialmente em Israel: Os pais, dizeis, comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos ficaram estragados? - 3. Por mim juro, disse o Senhor Deus, que essa parábola não passará mais entre vós, como provérbio em Israel: - 4. Pois todas as almas me pertencem; a do filho está comigo como a do pai; a alma que tiver pecado morrerá ela própria.

5. Se um homem for justo, se proceder segundo a eqüidade e a justiça; - 7. Se não magoar nem oprimir ninguém; se entregar ao seu devedor o penhor que este lhe houver dado; se não tomar nada do bem de outrem por violência; se dá o seu pão a quem tem fome; se veste os que estão nus; - 8. Se não se presta à usura e não percebe mais do que tem dado; se desvia sua mão da iniqüidade e promove um juízo conciliatório entre dois que contendem; - 9. Se caminha segundo a pauta dos meus preceitos e observa as minhas ordens para obrar conforme a verdade, esse homem é justo e viverá mui certamente, disse o Senhor Deus.

10. Se esse homem tem um filho que dê em ladrão, e derrame sangue, ou que cometa algumas destas faltas; - 13. Esse filho morrerá mui certamente, pois tem praticado todas essas ações detestáveis, e seu sangue permanecerá sobre a terra.

14. Se esse homem tem um filho que, vendo todos os crimes por seu pai cometidos, se aterrorize e evite imitação; - 17. Este não morrerá por causa da iniqüidade de seu pai, mas viverá mui certamente. - 18. Seu pai, que tinha oprimido os outros por calúnias e que tinha praticado ações criminosas no meio do seu povo, morreu por causa da sua própria iniqüidade.

19. Se dizes: Por que o filho não tem suportado a iniqüidade de seu pai? É porque o filho tem obrado segundo a eqüidade e a justiça; tem guardado todos os meus preceitos; e porque os tem praticado viverá mui certamente.

20. A alma que tem pecado morrerá ela mesma: o filho não sofrerá pela iniqüidade do pai e o pai não sofrerá pelo iniqüidade do filho; a justiça do justo verterá sobre ele mesmo, a impiedade do ímpio verterá sobre ele.

21. Se o ímpio fez penitencia de todos os pecados que tem cometido, se observou todos os meus preceitos, se obra segundo a eqüidade e a justiça, ele viverá certamente e não morrerá. - 22. Eu não me lembrei mais de todas as iniqüidades que ele tenha cometido; viverá nas obras de justiça que houver praticado.

23. É que eu quero a morte do ímpio? disse o Senhor Deus, e não quero antes que se converta e desgarre do mau caminho que trilha? (Ezequiel, cap. XVIII.)

Dizei-lhes estas palavras: Eu juro por mim mesmo que não quero a morte do ímpio, mas que o ímpio se converta, que abandone o mau caminho e que viva. (Ezequiel, cap. XXXIII, v. 11.)

As penas futuras segundo o Espiritismo

A carne é fraca

Há tendências viciosas que são evidentemente próprias do Espírito, porque se apegam mais ao moral do que ao físico; outras, parecem antes dependentes do organismo, e, por esse motivo, menos responsáveis são julgados os que as possuem: consideram-se como tais as disposições à cólera, à preguiça, à sensualidade, etc.

Hoje, está plenamente reconhecido pelos filósofos espiritualistas que os órgãos cerebrais correspondentes a diversas aptidões devem o seu desenvolvimento à atividade do Espírito. Assim, esse desenvolvimento é um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tenha a bossa da música, mas possui essa tendência porque o seu Espírito é musical. Se a atividade do Espírito reage sobre o cérebro, deve também reagir sobre as outras partes do organismo.

O Espírito é, deste modo, o artista do próprio corpo, por ele talhado, por assim dizer, à feição das suas necessidades e à manifestação das suas tendências.

Desta forma a perfeição corporal das raças adiantadas deixa de ser produto de criações distintas para ser o resultado do trabalho espiritual, que aperfeiçoa o invólucro material à medida que as faculdades aumentam.

Por uma conseqüência natural deste principio, as disposições morais do Espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe maior ou menor atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de bílis ou de quaisquer outros fluidos. É assim, por exemplo, que ao glutão enche-se-lhe a boca de saliva diante dum prato apetitoso.

Certo é que a iguaria não pode excitar o órgão do paladar, uma vez que com ele não tem contacto; é, pois, o Espírito, cuja sensibilidade é despertada, que atua sobre aquele órgão pelo pensamento, enquanto que outra pessoa permanecerá indiferente à vista do mesmo acepipe. É ainda por este motivo que a pessoa sensível facilmente verte lágrimas. Não é, porém, a abundância destas que dá sensibilidade ao Espírito, mas precisamente a sensibilidade deste que provoca a secreção abundante das lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo condiciona-se (1) à disposição normal do Espírito, do mesmo modo por que se condiciona à disposição do Espírito glutão.

(1) O autor escreveu s'est approprié (p. 93, 4ª edição, Paris, 1869), à falta, na época, de verbo mais específico à perfeita tradução da idéia. Nota da Editora (FEB), em 1973.

Seguindo esta ordem de idéias, compreende-se que um Espírito irascível deve encaminhar-se para estimular um temperamento bilioso, do que resulta não ser um homem colérico por bilioso, mas bilioso por colérico. O mesmo se dá em relação a todas as outras disposições instintivas: um Espírito indolente e fraco deixará o organismo em estado de atonia relativo ao seu caráter, ao passo que, ativo e enérgico, dará ao sangue como aos nervos qualidades perfeitamente opostas. A ação do Espírito sobre o físico é tão evidente que não raro vemos graves desordens orgânicas sobrevirem a violentas comoções morais.

A expressão vulgar: - A emoção transtornou-lhe o sangue - não é tão destituída de sentido quanto se poderia supor. Ora, que poderia transtornar o sangue senão as disposições morais do Espírito?

Pode admitir-se por conseguinte, ao menos em parte, que o temperamento é determinado pela natureza do Espírito, que é causa e não efeito.

E nós dizemos em parte, porque há casos em que o físico influi evidentemente sobre o moral, tais como quando um estado mórbido ou anormal é determinado por causa externa, acidental, independente do Espírito, como sejam a temperatura, o clima, os defeitos físicos congênitos, uma doença passageira, etc.

O moral do Espírito pode, nesses casos, ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que a sua natureza intrínseca seja modificada. Escusar-se de seus erros por fraqueza da carne não passa de sofisma para escapar a responsabilidades.

A carne só é fraca porque o Espírito é fraco, o que inverte a questão deixando àquele a responsabilidade de todos os seus atos. A carne, destituída de pensamento e vontade, não pode prevalecer jamais sobre o Espírito, que é o ser pensante e de vontade própria.

O Espírito é quem dá à carne as qualidades correspondentes ao seu instinto, tal como o artista que imprime à obra material o cunho do seu gênio. Libertado dos instintos da bestialidade, elabora um corpo que não é mais um tirano de sua aspiração, para espiritualidade do seu ser, e é quando o homem passa a comer para viver e não mais vive para comer.

A responsabilidade moral dos atos da vida fica, portanto, intacta; mas a razão nos diz que as conseqüências dessa responsabilidade devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito. Assim, quanto mais esclarecido for este, menos desculpável se torna, uma vez que com a inteligência e o senso moral nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto.

Esta lei explica o insucesso da Medicina em certos casos. Desde que o temperamento é um efeito e não uma causa, todo o esforço para modificá-lo se nulifica ante disposições morais do Espírito, opondo-lhe uma resistência inconsciente que neutraliza a ação terapêutica. Por conseguinte, sobre a causa primordial é que se deve atuar.

Dai, se puderdes, coragem ao poltrão, e vereis para logo cessados os efeitos fisiológicos do medo. Isto prova ainda uma vez a necessidade, para a arte de curar, de levar em conta a influência espiritual sobre os organismos. (Revue Spirite, março de 1869, pág. 65.)

Princípios da Doutrina Espírita sobre as penas futuras

A Doutrina Espírita, no que respeita às penas futuras, não se baseia numa teoria preconcebida; não é um sistema substituindo outro sistema: em tudo ela se apóia nas observações, e são estas que lhe dão plena autoridade. Ninguém jamais imaginou que as almas, depois da morte, se encontrariam em tais ou quais condições; são elas, essas mesmas almas, partidas da Terra, que nos vêm hoje iniciar nos mistérios da vida futura, descrever-nos sua situação feliz ou desgraçada, as impressões, a transformação pela morte do corpo, completando, em uma palavra, os ensinamentos do Cristo sobre este ponto.

Preciso é afirmar que se não trata neste caso das revelações de um só Espírito, o qual poderia ver as coisas do seu ponto de vista, sob um só aspecto, ainda dominado por terrenos prejuízos. Tampouco se trata de uma revelação feita exclusivamente a um indivíduo que pudesse deixar-se levar pelas aparências, ou de uma visão extática suscetível de ilusões, e não passando muitas vezes de reflexo de uma imaginação exaltada. (1) T

rata-se, sim, de inúmeros exemplos fornecidos por Espíritos de todas as categorias, desde os mais elevados aos mais inferiores da escala, por intermédio de outros tantos auxiliares (médiuns) disseminados pelo mundo, de sorte que a revelação deixa de ser privilégio de alguém, pois todos podem prová-la, observando-a, sem obrigar-se à crença pela crença de outrem.

(1) Vede cap. VI, nº 7, e O Livro dos Espíritos nºs 443 e 444.

Código penal da vida futura

O Espiritismo não vem, pois, com sua autoridade privada, formular um código de fantasia; a sua lei, no que respeita ao futuro da alma, deduzida das observações do fato, pode resumir-se nos seguintes pontos:

1º - A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as conseqüências de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza.

2º A completa felicidade prende-se à perfeição, isto é, à purificação completa do Espírito. Toda imperfeição é, por sua vez, causa de sofrimento e de privação de gozo, do mesmo modo que toda perfeição adquirida é fonte de gozo e atenuante de sofrimentos.

3º - Não há uma única imperfeição da alma que não importe funestas e inevitáveis conseqüências, como não há uma só qualidade boa que não seja fonte de um gozo.

A soma das penas é, assim, proporcionada à soma das imperfeições, como a dos gozos à das qualidades.

A alma que tem dez imperfeições, por exemplo, sofre mais do que a que tem três ou quatro; e quando dessas dez imperfeições não lhe restar mais que metade ou um quarto, menos sofrerá.

De todo extintas, então a alma será perfeitamente feliz. Também na Terra, quem tem muitas moléstias, sofre mais do que quem tenha apenas uma ou nenhuma. Pela mesma razão, a alma que possui dez perfeições, tem mais gozos do que outra menos rica de boas qualidades.

4º - Em virtude da lei do progresso que dá a toda alma a possibilidade de adquirir o bem que lhe falta, como de despojar-se do que tem de mau, conforme o esforço e vontade próprios, temos que o futuro é aberto a todas as criaturas. Deus não repudia nenhum de seus filhos, antes recebe-os em seu seio à medida que atingem a perfeição, deixando a cada qual o mérito das suas obras.

5º - Dependendo o sofrimento da imperfeição, como o gozo da perfeição, a alma traz consigo o próprio castigo ou prêmio, onde quer que se encontre, sem necessidade de lugar circunscrito.

O inferno está por toda parte em que haja almas sofredoras, e o céu igualmente onde houver almas felizes.

6º - O bem e o mal que fazemos decorrem das qualidades que possuímos. Não fazer o bem quando podemos e, portanto, o resultado de uma imperfeição. Se toda imperfeição é fonte de sofrimento, o Espírito deve sofrer não somente pelo mal que fez como pelo bem que deixou de fazer na vida terrestre.

7º - O Espírito sofre pelo mal que fez, de maneira que, sendo a sua atenção constantemente dirigida para as conseqüências desse mal, melhor compreende os seus inconvenientes e trata de corrigir-se.

8º - Sendo infinita a justiça de Deus, o bem e o mal são rigorosamente considerados, não havendo uma só ação, um só pensamento mau que não tenha conseqüências fatais, como não na uma única ação meritória. um só bom movimento da alma que se perca, mesmo para os mais perversos, por isso que constituem tais ações um começo de progresso.

9º - Toda falta cometida, todo mal realizado é uma dívida contraída que deverá ser paga; se o não for em urna existência, sê-lo-á na seguinte ou seguintes, porque todas as existências são solidárias entre si. Aquele que se quita numa existência não terá necessidade de pagar segunda vez.

10º - O Espírito sofre, quer no mundo corporal, quer no espiritual, a conseqüência das suas imperfeições. As misérias, as vicissitudes padecidas na vida corpórea, são oriundas das nossas imperfeições, são expiações de faltas cometidas na presente ou em precedentes existências.

Pela natureza dos sofrimentos e vicissitudes da vida corpórea, pode julgar-se a natureza das faltas cometidas em anterior existência, e das imperfeições que as originaram.

11º - A expiação varia segundo a natureza e gravidade da falta, podendo, portanto, a mesma falta determinar expiações diversas, conforme as circunstâncias, atenuantes ou agravantes, em que for cometida.

12º - Não há regra absoluta nem uniforme quanto à natureza e duração do castigo: - a única lei geral é que toda falta terá punição, e terá recompensa todo ato meritório, segundo o seu valor.

13º - A duração do castigo depende da melhoria do Espírito culpado.

Nenhuma condenação por tempo determinado lhe é prescrita. O que Deus exige por termo de sofrimentos é um melhoramento sério, efetivo, sincero, de volta ao bem.

Deste modo o Espírito é sempre o árbitro da própria sorte, podendo prolongar os sofrimentos pela pertinácia no mal, ou suavizá-los e anulá-los pela prática do bem.

Uma condenação por tempo predeterminado teria o duplo inconveniente de continuar o martírio do Espírito renegado, ou de libertá-lo do sofrimento quando ainda permanecesse no mal. Ora, Deus, que é justo, só pune o mal enquanto existe, e deixa de o punir quando não existe mais (1); por outra, o mal moral, sendo por si mesmo causa de sofrimento, fará este durar enquanto subsistir aquele, ou diminuirá de intensidade à medida que ele decresça.

(1) Vede cap. VI, nº 25, citação de Ezequiel.

14º - Dependendo da melhoria do Espírito a duração do castigo, o culpado que jamais melhorasse sofreria sempre, e, para ele, a pena seria eterna.

15º - Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é não lobrigarem o termo da provação, acreditando-a eterna, como eterno lhes parece deva ser um tal castigo. (2)

(2) Perpétuo é sinônimo de eterno. Diz-se o limite das neves perpétuas; o eterno gelo dos pólos; também se diz o secretário perpétuo da Academia, o que não significa que o seja ad perpetuam, mas unicamente por tempo ilimitado. Eterno e perpétuo se empregam, pois, no sentido de indeterminado. Nesta acepção pode dizer-se que as penas são eternas, para exprimir que não têm duração limitada; eternas, portanto, para o Espírito que lhes não vê o termo.

16º - O arrependimento, conquanto seja o primeiro passo para a regeneração, não basta por si só; são precisas a expiação e a reparação.

Arrependimento, expiação e reparação constituem, portanto, as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas conseqüências. O arrependimento suaviza os travos da expiação, abrindo pela esperança o caminho da reabilitação; só a reparação, contudo, pode anular o efeito destruindo-lhe a causa. Do contrário, o perdão seria uma graça, não uma anulação.

17º - O arrependimento pode dar-se por toda parte e em qualquer tempo; se for tarde, porém, o culpado sofre por mais tempo.

Até que os últimos vestígios da falta desapareçam, a expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais que lhe são conseqüentes, seja na vida atual, seja na vida espiritual após a morte, ou ainda em nova existência corporal.

A reparação consiste em fazer o bem àqueles a quem se havia feito o mal. Quem não repara os seus erros numa existência, por fraqueza ou má-vontade, achar-se-á numa existência ulterior em contacto com as mesmas pessoas que de si tiverem queixas, e em condições voluntariamente escolhidas, de modo a demonstrar-lhes reconhecimento e fazer-lhes tanto bem quanto mal lhes tenha feito. Nem todas as faltas acarretam prejuízo direto e efetivo; em tais casos a reparação se opera, fazendo-se o que se deveria fazer e foi descurado; cumprindo os deveres desprezados, as missões não preenchidas; praticando o bem em compensação ao mal praticado, isto é, tornando-se humilde se se tem sido orgulhoso, amável se se foi austero, caridoso se se tem sido egoísta, benigno se se tem sido perverso, laborioso se se tem sido ocioso, útil se se tem sido inútil, frugal se se tem sido intemperante, trocando em suma por bons os maus exemplos perpetrados. E desse modo progride o Espírito, aproveitando-se do próprio passado. (1)

(1) A necessidade da reparação é um princípio de rigorosa justiça. que se pode considerar verdadeira lei de reabilitação morai dos Espíritos. Entretanto, essa doutrina religião alguma ainda a proclamou. Algumas pessoas repelem-na porque acham mais cômodo o poder quitarem-se das más ações por um simples arrependimento, que não custa mais que palavras, por meio de algumas fórmulas; contudo, crendo-se, assim, quites, verão mais tarde se isso lhes bastava. Nós poderíamos perguntar se esse principio não é consagrado pela lei humana, e se a justiça divina pode ser inferior à dos homens? E mais, se essas leis se dariam por desafrontadas desde que o indivíduo que as transgredisse, por abuso de confiança, se limitasse a dizer que as respeita infinitamente.

Por que hão de vacilar tais pessoas perante uma obrigação que todo homem honesto se impõe como dever, segundo o grau de suas forças?

Quando esta perspectiva de reparação for inculcada na crença das massas, será um outro freio aos seus desmandos, e bem mais poderoso que o inferno e respectivas penas eternas, visto como interessa a vida em sua plena atualidade, podendo o homem compreender a procedência das circunstâncias que a tornam penosa, ou a sua verdadeira situação.

18º - Os Espíritos imperfeitos são excluídos dos mundos felizes, cuja harmonia perturbariam. Ficam nos mundos inferiores a expiarem as suas faltas pelas tribulações da vida, e purificando-se das suas imperfeições até que mereçam a encarnação em mundos mais elevados, mais adiantados moral e fisicamente. Se se pode conceber um lugar circunscrito de castigo, tal lugar é, sem dúvida, nesses mundos de expiação, em torno dos quais pululam Espíritos imperfeitos, desencarnados à espera de novas existências que lhes permitam reparar o mal, auxiliando-os no progresso.

19º - Como o Espírito tem sempre o livre-arbítrio, o progresso por vezes se lhe torna lento, e tenaz a sua obstinação no mal. Nesse estado pode persistir anos e séculos, vindo por fim um momento em que a sua contumácia se modifica pelo sofrimento, e, a despeito da sua jactância, reconhece o poder superior que o domina.

Então, desde que se manifestam os primeiros vislumbres de arrependimento, Deus lhe faz entrever a esperança. Nem há Espírito incapaz de nunca progredir, votado a eterna inferioridade, o que seria a negação da lei de progresso, que providencialmente rege todas as criaturas.

20º - Quaisquer que sejam a inferioridade e perversidade dos Espíritos, Deus jamais os abandona. Todos têm seu anjo de guarda (guia) que por eles vela, na persuasão de suscitar-lhes bons pensamentos, desejos de progredir e, bem assim, de espreitar-lhes os movimentos da alma, com o que se esforçam por reparar em uma nova existência o mal que praticaram. Contudo, essa interferência do guia faz-se quase sempre ocultamente e de modo a não haver pressão, pois que o Espírito deve progredir por impulso da própria vontade, nunca por qualquer sujeição.

O bem e o mal são praticados em virtude do livre-arbítrio, e, conseguintemente, sem que o Espírito seja fatalmente impelido para um ou outro sentido.

Persistindo no mal, sofrerá as conseqüências por tanto tempo quanto durar a persistência, do mesmo modo que, dando um passo para o bem, sente imediatamente benéficos efeitos.

OBSERVAÇÃO - Erro seria supor que, por efeito da lei de progresso, a certeza de atingir cedo ou tarde a perfeição e a felicidade pode estimular a perseverança no mal, sob a condição do ulterior arrependimento: primeiro porque o Espírito inferior não se apercebe do termo da sua situação; e segundo porque, sendo ele o autor da própria infelicidade, acaba por compreender que de si depende o fazê-la cessar; que por tanto tempo quanto perseverar no mal será infeliz; finalmente, que o sofrimento será intérmino se ele próprio não lhe der fim. Seria, pois, um cálculo negativo, cujas conseqüências o Espírito seria o primeiro a reconhecer. Com o dogma das penas irremissíveis é que se verifica, precisamente, tal hipótese, visto como é para sempre interdita qualquer idéia de esperança, não tendo pois o homem interesse em converter-se ao bem, para ele sem proveito.

Diante dessa lei, cai também a objeção extraída da presciência divina, pois Deus, criando uma alma, sabe efetivamente se, em virtude do seu livre-arbítrio, ela tomará a boa ou a má estrada; sabe que ela será punida se fizer o mal; mas sabe também que tal castigo temporário é um meio de fazê-la compreender o erro, cedo ou tarde entrando no bom caminho. Pela doutrina das penas eternas conclui-se que Deus sabe que essa alma falirá e, portanto, que está previamente condenada a torturas infinitas.

21º - A responsabilidade das faltas é toda pessoal, ninguém sofre por erros alheios, salvo se a eles deu origem, quer provocando-os pelo exemplo, quer não os impedindo quando poderia fazê-lo.

Assim, o suicida é sempre punido; mas aquele que por maldade impele outro a cometê-lo, esse sofre ainda maior pena.

22º - Conquanto infinita a diversidade de punições, algumas há inerentes à inferioridade dos Espíritos, e cujas conseqüências, salvo pormenores, são pouco mais ou menos idênticas.

A punição mais imediata, sobretudo entre os que se acham ligados à vida material em detrimento do progresso espiritual, faz-se sentir pela lentidão do desprendimento da alma; nas angústias que acompanham a morte e o despertar na outra vida, na conseqüente perturbação que pode dilatar-se por meses e anos.

Naqueles que, ao contrário, têm pura a consciência e na vida material já se acham identificados com a vida espiritual, o trespasse é rápido, sem abalos, quase nula a turbação de um pacífico despertar.

23º - Um fenômeno mui freqüente entre os Espíritos de certa inferioridade moral é o acreditarem-se ainda vivos, podendo esta ilusão prolongar-se por muitos anos, durante os quais eles experimentarão todas as necessidades, todos os tormentos e perplexidades da vida.

24º - Para o criminoso, a presença incessante das vitimas e das circunstâncias do crime é um suplício cruel.

25º - Espíritos há mergulhados em densa treva; outros se encontram em absoluto insulamento no Espaço, atormentados pela ignorância da própria posição, como da sorte que os aguarda. Os mais culpados padecem torturas muito mais pungentes por não lhes entreverem um termo.

Alguns são privados de ver os seres queridos, e todos, geralmente, passam com intensidade relativa pelos males, pelas dores e privações que a outrem ocasionaram. Esta situação perdura até que o desejo de reparação pelo arrependimento lhes traga a calma para entrever a possibilidade de, por eles mesmos, pôr um termo à sua situação.

26º - Para o orgulhoso relegado às classes inferiores. é suplício ver acima dele colocados, cheios de glória e bem-estar, os que na Terra desprezara. O hipócrita vê desvendados, penetrados e lidos por todo o mundo os seus mais secretos pensamentos, sem que os possa ocultar ou dissimular; o sátiro, na impotência de os saciar, tem na exaltação dos bestiais desejos o mais atroz tormento; vê o avaro o esbanjamento inevitável do seu tesouro, enquanto que o egoísta, desamparado de todos, sofre as conseqüências da sua atitude terrena; nem a sede nem a fome lhe serão mitigadas, nem amigas mãos se lhe estenderão às suas mãos súplices; e pois que em vida só de si cuidara, ninguém dele se compadecerá na morte.

27º - O único meio de evitar ou atenuar as conseqüências futuras de uma falta, está no repará-la, desfazendo-a no presente. Quanto mais nos demorarmos na reparação de uma falta, tanto mais penosas e rigorosas serão, no futuro, as suas conseqüências.

28º - A situação do Espírito, no mundo espiritual, não é outra senão a por si mesmo preparada na vida corpórea.

Mais tarde, outra encarnação se lhe faculta para novas provas de expiação e reparação, com maior ou menor proveito, dependentes do seu livre-arbítrio; e se ele não se corrige, terá sempre uma missão a recomeçar, sempre e sempre mais acerba, de sorte que pode dizer-se que aquele que muito sofre na Terra, muito tinha a expiar; e os que gozam uma felicidade aparente, em que pesem aos seus vícios e inutilidades, paga-la-ão mui caro em ulterior existência. Nesse sentido foi que Jesus disse: - "Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados," (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V.)

29º - Certo, a misericórdia de Deus é infinita, mas não é cega. O culpado que ela atinge não fica exonerado, e, enquanto não houver satisfeito à justiça, sofre a conseqüência dos seus erros. Por infinita misericórdia, devemos ter que Deus não é inexorável, deixando sempre viável o caminho da redenção.

30º - Subordinadas ao arrependimento e reparação dependentes da vontade humana, as penas, por temporárias, constituem concomitantemente castigos e remédios auxiliares à cura do mal. Os Espíritos, em prova, não são, pois, quais galés por certo tempo condenados, mas como doentes de hospital sofrendo de moléstias resultantes da própria incúria, a compadecerem-se com meios curativos mais ou menos dolorosos que a moléstia reclama, esperando alta tanto mais pronta quanto mais estritamente observadas as prescrições do solícito médico assistente. Se os doentes, pelo próprio descuido de si mesmos, prolongam a enfermidade, o médico nada tem que ver com isso.

31º - As penas que o Espírito experimenta na vida espiritual ajuntam-se as da vida corpórea, que são conseqüentes às imperfeições do homem, às suas paixões, ao mau uso das suas faculdades e à expiação de presentes e passadas faltas. z na vida corpórea que o Espírito repara o mal de anteriores existências, pondo em prática resoluções tomadas na vida espiritual. Assim se explicam as misérias e vicissitudes mundanas que, à primeira vista, parecem não ter razão de ser. Justas são elas, no entanto, como espólio do passado - herança que serve à nossa romagem para a perfectibilidade. (1)

(1) Vede 1ª' Parte, cap. V, "O purgatório", nº 3 e seguintes; e, após, 2ª Parte, cap. VIII, "Expiações terrestres". Vede, também, O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, "Bem-aventurados os aflitos".

32º - Deus, diz-se, não daria prova maior de amor às suas criaturas, criando-as infalíveis e, por conseguinte, isentas dos vícios inerentes à imperfeição? Para tanto fora preciso que Ele criasse seres perfeitos, nada mais tendo a adquirir, quer em conhecimentos, quer em moralidade. Certo, porém, Deus poderia fazê-lo, e se o não fez é que em sua sabedoria quis que o progresso constituísse lei geral. Os homens são imperfeitos, e, como tais, sujeitos a vicissitudes mais ou menos penosas. E pois que o fato existe, devemos aceitá-lo.

Inferir dele que Deus não é bom nem justo, fora insensata revolta contra a lei.

injustiça haveria, sim, na criação de seres privilegiados, mais ou menos favorecidos, fruindo gozos que outros porventura não atingem senão pelo trabalho, ou que jamais pudessem atingir. Ao contrário, a justiça divina patenteia-se na igualdade absoluta que preside à criação dos Espíritos; todos têm o mesmo ponto de partida e nenhum se distingue em sua formação por melhor aquinhoado; nenhum cuja marcha progressiva se facilite por exceção: os que chegam ao fim, têm passado, como quaisquer outros, pelas fases de inferioridade e respectivas provas.

Isto posto, nada mais justo que a liberdade de ação a cada qual concedida. O caminho da felicidade a todos se abre amplo, como a todos as mesmas condições para atingi-la. A lei, gravada em todas as consciências, a todos é ensinada. Deus fez da felicidade o prêmio do trabalho e não do favoritismo, para que cada qual tivesse seu mérito.

Todos somos livres no trabalho do próprio progresso, e o que muito e depressa trabalha, mais cedo recebe a recompensa. O romeiro que se desgarra, ou em caminho perde tempo, retarda a marcha e não pode queixar-se senão de si mesmo.

O bem como o mal são voluntários e facultativos: livre, o homem não é fatalmente impelido para um nem para outro.

33º - Em que pese à diversidade de gêneros e graus de sofrimentos dos Espíritos imperfeitos, o código penal da vida futura pode resumir-se nestes três princípios:

1º - O sofrimento é inerente à imperfeição.

2º - Toda imperfeição, assim como toda falta dela promanada, traz consigo o próprio castigo nas conseqüências naturais e inevitáveis: assim, a moléstia pune os excessos e da ociosidade nasce o tédio, sem que haja mister de uma condenação especial para cada falta ou indivíduo.

3º - Podendo todo homem libertar-se das imperfeições por efeito da vontade, pode igualmente anular os males consecutivos e assegurar a futura felicidade.

A cada um segundo as suas obras, no Céu como na Terra: - tal é a lei da Justiça Divina.

Os anjos

Os anjos segundo a Igreja

1. - Todas as religiões têm tido anjos sob vários nomes, isto é, seres superiores à Humanidade, intermediários entre Deus e os homens.

Negando toda a existência espiritual fora da vida orgânica, o materialismo naturalmente classificou os anjos entre as ficções e alegorias. A crença nos anjos é parte essencial dos dogmas da Igreja, que assim os define (1):

(1) Extraímos este resumo da pastoral do Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a quaresma de 1864. Por ele podemos, pois, considerar os anjos, assim como os demônios, cujo resumo tiramos da mesma origem e citamos no capítulo seguinte, como última expressão do dogma da Igreja neste sentido.

2. - "Acreditamos firmemente, diz um concílio geral e ecumênico (2), que só há um Deus verdadeiro, eterno e infinito, que no começo dos tempos tirou conjuntamente do nada as duas criaturas - espiritual e corpórea, angélica e mundana - tendo formado depois, como elo entre as duas, a natureza humana, composta de corpo e Espírito."

(2) Concílio de Latrão.

"Tal é, segundo a fé, o plano divino na obra da criação, plano majestoso e completo como convinha à eterna sabedoria. Assim concebido, ele oferece aos nossos pensamentos o ser em todos os seus graus e condições."

"Na esfera mais elevada aparecem a existência e a vida puramente espirituais; na última ordem, uma e outra puramente materiais e, intermediariamente, uma união maravilhosa das duas substâncias, uma vida ao mesmo tempo comum ao Espírito inteligente e ao corpo organizado."

"Nossa alma é de natureza simples e indivisível, porém limitada em suas faculdades. A idéia que temos da perfeição faz-nos compreender que pode haver outros seres simples quanto ela, e superiores por suas qualidades e privilégios."

"A alma é grande e nobre, porém, está associada à matéria, servida por órgãos frágeis e limitada no poder e na ação. Por que não haver outras ainda mais pobres, libertas dessa escravidão, dessas peias e dotadas de uma força e atividade maiores e incomparáveis? Antes que Deus houvesse colocado o homem na Terra, para conhecê-lo, servi-lo, e amá-lo, não teria já chamado outras criaturas, a fim de compor-lhe a corteceleste e adorá-lo no auge da glória? Deus, enfim, recebe das mãos do homem os tributos de honra e homenagem deste universo: é, portanto, de admirar que receba das mãos dos anjos o incenso e as orações do homem? Se, pois, os anjos não existissem, a grande obra do Criador não patentearia o acabamento e a perfeição que lhe são peculiares; este mundo, que atesta a sua onipotência, não fora mais a obra-prima da sabedoria; nesse caso a nossa razão, posto que fraca, poderia conceber um Deus mais consumado. Em cada página dos sagrados livros, do Velho como do Novo Testamentos, se fez menção dessas inteligências sublimes, já em piedosas invocações, já em referências históricas. A sua intervenção aparece manifestamente na vida dos patriarcas e dos profetas. Serve-se Deus de tal ministério, ora para transmitir a sua vontade, ora para anunciar futuros acontecimentos, e os anjos são também quase sempre órgãos de sua justiça e misericórdia. A sua presença ressalta das circunstâncias que acompanham o nascimento, a vida e a paixão do Salvador; a sua lembrança é inseparável da dos grandes homens, como dos fatos mais grandiosos da antigüidade religiosa. A crença nos anjos existe no seio mesmo do politeísmo e nas fábulas da mitologia, porque essa crença é tão universal e antiga quanto o mundo. O culto que os pagãos prestavam aos bons e maus gênios não era mais que falsa aplicação da verdade, um resto degenerado do primitivo dogma. As palavras do santo concílio de Latrão contêm fundamental distinção entre os anjos e os homens: - ensinam-nos que os primeiros são puros Espíritos, enquanto que os segundos se compõem de um corpo e de uma alma, isto é, que a natureza angélica subsiste por si mesma não só sem mistura como dissociada da matéria, por mais vaporosa e sutil que se suponha, ao passo que a nossa alma, igualmente espiritual, associa-se ao corpo de modo a formar com ele uma só pessoa, sendo tal e essencialmente o seu destino."

"Enquanto perdura tão íntima ligação de alma e corpo, as duas substâncias têm vida comum e se exercem recíproca influência; daí o não poder a alma libertar-se completamente das imperfeições de tal condição: as idéias chegam-lhe pelos sentidos na comparação dos objetos externos e sempre debaixo de imagens mais ou menos aparentes. Eis por que a alma não pode contemplar-se a si mesma, nem conceber Deus e os anjos sem atribuir-lhes forma visível e palpável. O mesmo se dá quanto aos anjos, que para se manifestarem aos santos e profetas hão de revestir formas tangíveis e palpáveis. Essas formas no entanto não passavam de corpos aéreos que faziam mover-se e identificar-se com eles, ou de atributos simbólicos de acordo com a missão a seu cargo."

"Seu ser e movimentos não são localizados nem circunscritos a limitado e fixo ponto do Espaço. Desligados integralmente do corpo, não ocupam qualquer espaço no vácuo; mas assim como a nossa alma existe integral no corpo e em cada uma de suas partes, assim também os anjos estão, e quase que simultaneamente, em todos os pontos e partes do mundo. Mais rápidos que o pensa-mento, podem agir em toda parte num dado momento, operando por si mesmos sem outros obstáculos, senão os da vontade do Criador e os da liberdade humana. Enquanto somos condenados a ver lenta e limitadamente as coisas externas; enquanto as verdades sobrenaturais se nos afiguram enigmas num espelho, na frase de S. Paulo, eles, os anjos, vêem sem esforço o que lhes importa saber, e estão sempre em relação imediata com o objeto de seus pensamentos. Os seus conhecimentos são resultantes não da indução e do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que abrange de uma só vez o gênero e as espécies deles derivadas, os princípios e as conseqüências que deles decorrem. A distância das épocas, a diferença de lugares, como a multiplicidade de objetos, confusão alguma podem produzir em seus espíritos."

"Infinita, a essência divina é incompreensível; tem mistérios e profundezas que se não podem penetrar; mas em lhes serem defesos os desígnios particulares da Providência, ela lhos desvenda quando em certas circunstâncias são encarregados de os anunciarem aos homens. As comunicações de Deus com os anjos e destes entre si, não se fazem como entre nós por meio de sons articulados e de sinais sensíveis. As puras inteligências não têm necessidade nem de olhos para ver, nem de ouvidos para ouvir; tampouco possuem órgão vocal para manifestar seus pensamentos. Este instrumento usual de nossas relações é-lhes desnecessário, pois comunicam seus sentimentos de modo só a eles peculiar, isto é, todo espiritual. Basta-lhes querer para se compreenderem. Unicamente Deus conhece o número dos anjos. Este número não é, sem dúvida, infinito, nem pudera sê-lo; porém, segundo os autores sagrados e os santos doutores, é assaz considerável, verdadeiramente prodigioso. Se se pode proporcionar o número de habitantes de uma cidade à sua grandeza e extensão, e sendo a Terra apenas um átomo comparada ao firmamento e às imensas regiões do Espaço, força é concluir que o número dos habitantes do ar e do céu é muito superior ao dos homens.E se a majestade dos reis se ostenta pelo brilhantismo e número dos vassalos, dos oficiais e dos súditos, que haverá de mais próprio a dar-nos idéia da majestade do Rei dos reis do que essa multidão inumerável de anjos que povoam céus e Terra, mar e abismos, a dignidade dos que permanecem continuamente prostrados ou de pé ante seu trono?"

"Os padres da Igreja e os teólogos ensinam geralmente que os anjos se dividem em três grandes hierarquias ou principados, e cada hierarquia em três companhias ou coros."

"Os da primeira e mais alta hierarquia designam-se conformemente às funções que exercem no céu: - Os Serafins são assim designados por serem como que abrasadosperante Deus pelos ardores da caridade; outros, os Querubins, por isso que refletem luminosamente a divina sabedoria; e finalmente Tronos os que proclamam a grandeza do Criador, cujo brilho fazem resplandecer."

"Os anjos da segunda hierarquia recebem nomes consentâneos com as operações que se lhes atribui no governo geral do Universo, e são: - as Dominações, que determinam aos anjos de classes inferiores suas missões e deveres; as Virtudes, que promovem os prodígios reclamados pelos grandes interesses da Igreja e do gênero humano; e as Potências, que protegem por sua força e vigilância as leis que regem o mundo físico e moral."

"Os da terceira hierarquia têm por missão a direção das sociedades e das pessoas, e são: os Principados, encarregados de reinos, províncias e dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens de alta importância, e os Anjos de guarda, que acompanham as criaturas a fim de velarem pela sua segurança e santificação."

Refutação 3. - O princípio geral resultante dessa doutrina é que os anjos são seres puramente espirituais, anteriores e superiores à Humanidade, criaturas privilegiadas e votadas ã felicidade suprema e eterna desde a sua formação, dotadas, por sua própria natureza, de todas as virtudes e conhecimentos, nada tendo feito, aliás, para adquiri-los. Estão, por assim dizer, no primeiro plano da Criação, contrastando com o último onde a vida é puramente material; e, entre os dois, medianamente existe a Humanidade, isto é, as almas, seres inferiores aos anjos e ligados a corpos materiais.

De tal sistema decorrem várias dificuldades capitais: - Em primeiro lugar, que vida é essa puramente material? Será a da matéria bruta? Mas a matéria bruta é inanimada e não tem vida por si mesma. Acaso referir-se-á aos animais e às plantas?

Neste suposto seria uma quarta ordem na Criação, pois não se pode negar que no animal inteligente algo há de mais que numa planta, e nesta, que numa simples pedra.

Quanto à alma humana, que estabelece a transição, essa fica diretamente unida a um corpo, matéria bruta, aliás; porque sem alma o corpo tem tanta vida como qualquer bloco de terra.

Evidentemente, esta divisão é obscura e não se compadece com a observação; assemelha-se à teoria dos quatro elementos, anulada pelos progressos da Ciência. Admitamos, entretanto, estes três termos: - a criatura espiritual, a humana e a corpórea, pois que tal é, dizem, o plano divino, majestoso e completo como convém à Eterna Sabedoria. Notemos antes de tudo que não há ligação alguma necessária entre esses três termos, e que são três criações distintas e formadas sucessivamente, ao passo que em a Natureza tudo se encadeia, mostrando-nos uma lei de unidade admirável, cujos elementos, não passando de transformações entre si, têm, contudo, seus laços de união.

Mas essa teoria, incompleta embora, é, até certo ponto, verdadeira, quanto à existência dos três termos; faltam-lhe os pontos de contacto desses termos, como é fácil demonstrar.

4. - Diz a Igreja que esses três pontos culminantes da Criação são necessários à harmonia do conjunto. Desde que lhe falte um só que seja, a obra incompleta não mais se compadece com a Sabedoria Eterna. Entretanto, um dos dogmas fundamentais diz que a Terra, os animais, as plantas, o Sol e as estrelas e até a luz foram criados do nada, há seis mil anos. Antes dessa época não havia, portanto, criatura humana nem corpórea - o que importa dizer que no decurso da eternidade a obra divina jazia imperfeita. É artigo de fé capital a criação do Universo, há seis mil anos, tanto que há pouco ainda era a Ciência anatematizada por destruir a cronologia bíblica, provando maior ancianidade da Terra e de seus habitantes.

Apesar disso, o concílio de Latrão, concílio ecumênico que faz lei em matéria ortodoxa, diz: "Acreditamos firmemente num Deus único e verdadeiro, eterno e infinito, que no começo dos tempos tirou conjuntamente do nada as duas criaturas - espiritual e corpórea." Por começo dos tempos só podemos inferir a eternidade transcorrida, visto ser o tempo infinito como o Espaço, sem começo nem fim. Esta expressão, começo dos tempos, é antes uma figura que implica a idéia de uma anterioridade ilimitada. O concílio de Latrão acredita, pois, firmemente, que as criaturas espirituais como as corpóreas foram simultaneamente formadas e tiradas em conjunto do nada, numa época indeterminada, no passado. A que fica reduzido, assim, o texto bíblico que data a Criação de seis mil dos nossos anos? E, ainda que se admita seja tal o começo do Universo visível, esse não é seguramente o começo dos tempos. Em qual crer: - no concílio ou na Bíblia?

5. - O concílio formula, além disso, uma estranha proposição: "Nossa alma, diz, igualmente espiritual, é associada ao corpo de maneira a não formar com ele mais que uma pessoa, e tal é, essencialmente, o seu destino." Ora, se o destino essencial da alma é estar unida ao corpo, esta união constitui o estado normal, o desígnio, o fim, por isso que é o seu destino. Entretanto, a alma é imortal e o corpo não; a união daquela com este só se realiza uma vez, segundo a Igreja, e ainda que durasse um século, nada seria em relação à eternidade. E sendo apenas de algumas horas para muitos, que utilidade teria para a alma união tão efêmera? Mas, que se prolongue essa união tanto quanto se pode prolongar uma existência terrena e, ainda assim, poder-se-á afirmar que o seu destino é estar essencialmente integrada? Não, essa união mais não é na realidade do que um incidente, um estádio da alma, nunca o seu estado essencial.

Se o destino essencial da alma é estar ligada ao corpo humano; se por sua natureza e segundo o fim providencial da Criação, essa união é necessária às manifestações das suas faculdades, forçoso é concluir que, sem corpo, a alma humana é um ser incompleto. Ora, para que a alma preencha os seus desígnios, deixando um corpo preciso se faz que tome um outro - o que nos conduz à pluralidade forçada das existências, ou, por outra, à reencarnação, à perpetuidade.

É verdadeiramente estranhável que um concílio, havido por uma das luzes da Igreja, tenha a tal ponto identificado os seres espiritual e material, de modo a não subsistirem por si mesmos, pois que a condição essencial da sua criação é estarem unidos.

6. - O quadro hierárquico dos anjos nos mostra que várias ordens têm, nas suas atribuições, o governo do mundo físico e da Humanidade, para cujo fim foram criados. Mas, segundo a Gênese, o mundo físico e a Humanidade não existem senão há seis mil anos; e o que faziam, pois, tais anjos, anteriormente a essa era, durante a eternidade, quando não existia o objetivo das suas ocupações? E teriam eles sido criados de toda a eternidade? Assim deve ser, uma vez que servem à glorificação do Todo-Poderoso. Mas, criando-os numa época qualquer determinada, Deus ficaria até então, isto é, durante uma eternidade, sem adoradores.

7 - Diz ainda o concílio: "Enquanto dura esta união tão intima da alma com o corpo." Há, por conseguinte, um momento em que a união se desfaz? Esta proposição contradita a que sustenta a essencialidade dessa união. E diz mais o concílio: "As idéias lhes chegam pelos sentidos, na comparação dos objetos exteriores." Eis aí uma doutrina filosófica em parte verdadeira, que não em sentido absoluto.

Receber as idéias pelos sentidos é, segundo o eminente teólogo, uma condição inerente à natureza humana; mas ele esquece as idéias inatas, as faculdades por vezes tão transcendentes, a intuição das coisas que a criança traz do berço, não devidas a quaisquer ensinos. Por meio de quais sentidos, jovens pastores, naturais calculistas, admiração dos sábios, adquirem idéias necessárias à resolução quase instantânea dos mais complicados problemas? Outro tanto pode dizer-se de músicos, pintores e filólogos precoces.

"Os conhecimentos dos anjos não resultam da indução e do raciocínio"; têm-nos porque são anjos, sem necessidade de aprendê-los, pois tais foram por Deus criados: quanto à alma, essa deve aprender. Mas se a alma só recebe as idéias por meio dos órgãos corporais, que idéias pode ter a alma de uma criança morta ao fim de alguns dias, se admitirmos com a Igreja que essa alma não renasce?

8. Aqui reponta uma questão vital, qual a de saber-se se a alma pode adquirir conhecimentos após a morte do corpo. Se uma vez liberta do corpo não pode adquirir novos conhecimentos, a alma da criança, do selvagem, do imbecil, do idiota ou do ignorante permanecera tal qual era no momento da morte, condenada à nulidade por todo o sempre. Mas se, ao contrário, ela adquire novos conhecimentos depois da vida atual, então, é que pode progredir.

Sem progresso ulterior para a alma, chega-se a conclusões absurdas, tanto quanto admitindo-o se conclui pela negação de todos os dogmas fundados sobre o estacionamento, a sorte irrevogável, as penas eternas, etc. Progredindo a alma, qual o limite do progresso? Não há razão para não atingir por ele ao grau dos anjos, ou puros Espíritos. Ora, com tal possibilidade não se justificaria a criação de seres especiais e privilegiados, isentos de qualquer labor, gozando incondicionalmente de eterna felicidade, ao passo que outros seres menos favorecidos só obtêm essa felicidade a troco de longos, de cruéis sofrimentos e rudes provas. Sem dúvida que Deus poderia ter assim determinado, mas, admitindo-lhe o infinito de perfeição sem a qual não fora Deus, força é admitir que coisa alguma criaria inutilmente, desmentindo a sua justiça e bondade soberanas.

9. - "E se a majestade dos reis ostenta o seu brilhantismo pelo número dos vassalos, oficiais e súditos, que haverá de mais próprio a dar-nos idéia da majestade do Rei dos reis do que essa inumerável multidão de anjos que povoam céu e terra, mar e abismos, a dignidade dos que permanecem continuamente prostrados ou de pé ante seu trono?"

E não será rebaixar a Divindade confrontá-la com o fausto dos soberanos da Terra? Essa idéia, inculcada no espírito das massas ignorantes, falseia a opinião de sua verdadeira grandeza. Sempre Deus reduzido às mesquinhas proporções da Humanidade! Atribuir-lhe, como necessidade, milhões de adoradores, perenemente genuflexos, é emprestar-lhe vaidade e fraqueza próprias dos orgulhosos déspotas do Oriente! E que é que engrandece os soberanos verdadeiramente grandes? É o número e brilho dos cortesãos? não; é a bondade, é a justiça, é o título merecido de pais do seu povo. perguntareis se haverá algo de mais próprio a dar-nos a idéia da grandeza e majestade de Deus do que a multidão de anjos que lhe compõem a corte... Mas, certamente que há, e essa coisa melhor é apresentar-se Deus às suas criaturas soberanamente bom, justo e misericordioso, que não colérico, invejoso, vingativo, exterminador e parcial, criando para sua própria glória esses seres privilegiados, cumulados de todos os dons e nascidos para a felicidade eterna, enquanto a outros impõe condições penosas na aquisição de bens, punindo erros momentâneos com eternos suplícios...

10. - A respeito da união da alma com o corpo, o Espiritismo professa uma doutrina infinitamente mais espiritualista, para não dizer menos materialista, tendo ao demais a seu favor a conformidade com a observação e o destino da alma. Ele ensina-nos que a alma é independente do corpo, não passando este de temporário invólucro: a espiritualidade é-lhe a essência, e a sua vida normal é a vida espiritual. O corpo é apenas instrumento da alma para exercício das suas faculdades nas relações com o mundo material; separada desse corpo, goza dessas faculdades mais livre e altamente.

11. - A união da alma com o corpo, em ser necessária aos seus primeiros progressos, só se opera no período que poderemos classificar como da sua infância e adolescência; atingido, porém, que seja, um certo grau de perfeição e desmaterialização, essa união é prescindível, o progresso faz-se na sua vida de Espírito. Demais, por numerosas que sejam as existências corpóreas, elas são limitadas à existência do corpo, e a sua soma total não compreende, em todos os casos, senão uma parte imperceptível da vida espiritual, que é ilimitada.

Os anjos segundo o Espiritismo 12. - Que haja seres dotados de todas as qualidades atribuídas aos anjos, não restam dúvidas. A revelação espírita neste ponto confirma a crença de todos os povos, fazendo-nos conhecer ao mesmo tempo a origem e natureza de tais seres.

As almas ou Espíritos são criados simples e ignorantes, isto é, sem conhecimentos nem consciência do bem e do mal, porém, aptos para adquirir o que lhes falta. O trabalho é o meio de aquisição, e o fim - que é a perfeição - é para todos o mesmo. Conseguem-no mais ou menos prontamente em virtude do livre-arbítrio e na razão direta dos seus esforços; todos têm os mesmos degraus a franquear, o mesmo trabalho a concluir. Deus não aquinhoa melhor a uns do que a outros, porquanto é justo, e, visto serem todos seus filhos, não tem predileções. Ele lhes diz: Eis a lei que deve constituir a vossa norma de conduta; ela só pode levar-vos ao fim; tudo que lhe for conforme é o bem; tudo que lhe for contrário é o mal. Tendes inteira liberdade de observar ou infringir esta lei, e assim sereis os árbitros da vossa própria sorte.

Conseguintemente, Deus não criou o mal; todas as suas leis são para o bem, e foi o homem que criou esse mal, divorciando-se dessas leis; se ele as observasse escrupulosamente, jamais se desviaria do bom caminho.

13. - Entretanto, a alma, qual criança, é inexperiente nas primeiras fases da existência, e daí o ser falível. Não lhe dá Deus essa experiência, mas dá-lhe meios de adquiri-la. Assim, um passo em falso na senda do mal é um atraso para a alma, que, sofrendo-lhe as conseqüências, aprende à sua custa o que importa evitar. Deste modo, pouco a pouco, se desenvolve, aperfeiçoa e adianta na hierarquia espiritual até ao estado de puro Espírito ou anjo. Os anjos são, pois, as almas dos homens chegados ao grau de perfeição que a criatura comporta, fruindo em sua plenitude a prometida felicidade. Antes, porém, de atingir o grau supremo, gozam de felicidade relativa ao seu adiantamento, felicidade que consiste, não na ociosidade, mas nas funções que a Deus apraz confiar-lhes, e por cujo desempenho se sentem ditosas, tendo ainda nele um meio de progresso. (Vede 1ª Parte, cap. III, "O céu".)

14. A Humanidade não se limita à Terra; habita inúmeros mundos que no Espaço circulam; já habitou os desaparecidos, e habitará os que se formarem. Tendo-a criado de toda a eternidade, Deus jamais cessa de criá-la. Muito antes que a Terra existisse e por mais remota que a suponhamos, outros mundos havia, nos quais Espíritos encarnados percorreram as mesmas fases que ora percorrem os de mais recente formação, atingindo seu fim antes mesmo que houvéramos saído das mãos do Criador.

De toda a eternidade tem havido, pois, puros Espíritos ou anjos; mas, como a sua existência humana se passou num infinito passado, eis que os supomos como se tivessem sido sempre anjos de todos os tempos.

15. Realiza-se assim a grande lei de unidade da Criação; Deus nunca esteve inativo e sempre teve puros Espíritos, experimentados e esclarecidos, para transmissão de suas ordens e direção do Universo, desde o governo dos mundos até os mais ínfimos detalhes. Tampouco teve Deus necessidade de criar seres privilegiados, isentos de obrigações; todos, antigos e novos, adquiriram suas posições na luta e por mérito próprio; todos, enfim, são filhos de suas obras.

E, desse modo, completa-se com igualdade a soberana justiça do Criador.

Os Demônios

Origem da crença nos demônios

1. - Em todos os tempos os demônios representaram papel saliente nas diversas teogonias, e, posto que consideravelmente decaídos no conceito geral, a importância que se lhes atribui, ainda hoje, dá à questão uma tal ou qual gravidade, por tocar o fundo mesmo das crenças religiosas. Eis por que útil se torna examiná-la, com os desenvolvimentos que comporta.

A crença num poder superior é instintiva no homem. Encontramo-la, sob diferentes formas, em todas as idades do mundo. Mas, se hoje, dado o grau de cultura atingido, ainda se discute sobre a natureza e atributos desse poder, calcule-se que noções teria o homem a respeito, na infância da Humanidade.

2. - Como prova da sua inocência, o quadro dos homens primitivos extasiados ante a Natureza e admirando nela a bondade do Criador é, sem dúvida, muito poético, mas pouco real. De fato, quanto mais se aproxima do primitivo estado, mais o homem se escraviza ao instinto, como se verifica ainda hoje nos povos bárbaros e selvagens contemporâneos; o que mais o preocupa, ou, antes, o que exclusivamente o preocupa é a satisfação das necessidades materiais, mesmo porque não tem outras.

O único sentido que pode torná-lo acessível aos gozos puramente morais não se desenvolve senão gradual e morosamente; a alma tem também a sua infância, a sua adolescência e virilidade como o corpo humano; mas para compreender o abstrato, quantas evoluções não tem ela de experimentar na Humanidade! Por quantas existências não deve ela passar!

Sem nos remontarmos aos tempos primitivos, olhemos em torno a gente do campo e perscrutemos os sentimentos de admiração que nela despertam o esplendor do Sol nascente, do firmamento a estrelada abóbada, o trino dos pássaros, o murmúrio das ondas claras, o vergel florido dos prados. Para essa gente o Sol nasce por hábito, e uma vez que desprende o necessário calor para sazonar as searas, não tanto que as creste, está realizado tudo o que ela almejava; olha o céu para saber se bom ou mau tempo sobrevirá; que cantem ou não as aves, tanto se lhe dá, desde que não desbastem da seara os grãos; prefere às melodias do rouxinol, o cacarejar da galinhada e o grunhido dos porcos; o que deseja dos regatos cristalinos, ou lodosos, é que não sequem nem inundem; dos prados, que produzam boa erva, com ou sem flores.

Eis aí tudo o que essa gente almeja, ou, o que é mais, tudo o que da Natureza apreende, conquanto muito distanciada já dos primitivos homens.

3. - Se nos remontarmos a estes últimos, então, surpreendê-los-emos mais exclusivamente preocupados com a satisfação de necessidades materiais, resumindo o bem e o mal neste mundo somente no que concerne à satisfação ou prejuízo dessas necessidades.

Acreditando num poder extra-humano e porque o prejuízo material é sempre o que mais de perto lhes importa, atribuem-no a esse poder, do qual fazem, aliás, uma idéia muito vaga. E por nada conceberem fora do mundo visível e tangível, tal poder se lhes afigura identificado nos seres e coisas que os prejudicam.

Os animais nocivos não passam para eles de representantes naturais e diretosdesse poder. Pela mesma razão, vêem nas coisas úteis a personificação do bem: dai, o culto votado a certas plantas e mesmo a objetos inanimados.

Mas o homem é comumente mais sensível ao mal que ao bem; este lhe parece temor suplanta o reconhecimento.

Durante muito tempo o homem não compreendeu senão o bem e o mal físicos; os sentimentos morais só mais tarde marcaram o progresso da inteligência humana, fazendo-lhe entrever na espiritualidade um poder extra-humano fora do mundo visível e das coisas materiais. Esta obra foi, seguramente, realizada por inteligências de escol, mas que não puderam exceder certos limites.

4. - Provada e patente a luta entre o bem e o mal, triunfante este muitas vezes sobre aquele, e não se podendo racionalmente admitir que o mal derivasse de um benéfico poder, concluiu-se pela existência de dois poderes rivais no governo do mundo. Daí nasceu a doutrina dos dois princípios, aliás lógica numa época em que o homem se encontrava incapaz de, raciocinando, penetrar a essência do Ser Supremo.

Como compreenderia, então, que o mal não passa de estado transitório do qual pode emanar o bem, conduzindo-o à felicidade pelo sofrimento e auxiliando-lhe o progresso? Os limites do seu horizonte moral, nada lhe permitindo ver para além do seu presente, no passado como no futuro, também não lhe permitia compreender que já houvesse progredido, que progrediria ainda individualmente, e muito menos que as vicissitudes da vida resultavam das imperfeições do ser espiritual nele residente, o qual preexiste e sobrevive ao corpo, na dependência de uma série de existências purificadoras até atingir a perfeição.

Para compreender como do mal pode resultar o bem é preciso considerar não uma, porém, muitas existências; é necessário apreender o conjunto do qual - e só do qual - resultam nítidas as causas e respectivos efeitos.

5. - O duplo princípio do bem e do mal foi, durante muitos séculos, e sob vários nomes, a base de todas as crenças religiosas. Vemo-lo assim sintetizado em Oromase e Arimane entre os persas, em Jeová e Satã entre os hebreus. Todavia, como todo soberano deve ter ministros, as religiões geralmente admitiram potências secundárias, ou bons e maus gênios. Os pagãos fizeram deles individualidades com a denominação genérica de deuses e deram-lhes atribuições especiais para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes. Os cristãos e os muçulmanos herdaram dos hebreus os anjos e os demônios.

6. - A doutrina dos demônios tem, por conseguinte, origem na antiga crença dos dois princípios. Compete-nos examiná-la aqui tão-somente no ponto de vista cristão para ver se está de acordo com as noções mais exatas que possuímos hoje, dos atributos da Divindade.

Esses atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas religiosas; os dogmas, o culto, as cerimônias, os usos e a moral, tudo é relativo à idéia mais ou menos justa, mais ou menos elevada que se forma de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo. Se a essência de Deus continua a ser um mistério para as nossas inteligências, compreendemo-la no entanto melhor que nunca, mercê dos ensinamentos do Cristo. O Cristianismo racionalmente ensina-nos que: Deus é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições.

Foi por isso que algures dissemos - (1ª Parte cap. VI, "Doutrina das penas eternas") "Se se tirasse a menor parcela de um só dos seus atributos, não haveria mais Deus, por isso que poderia coexistir um ser mais perfeito." Estes atributos, na sua plenitude absoluta, são, pois, o critério de todas as religiões, estalão da verdade de cada um dos princípios que ensinam. E para que qualquer desses princípios seja verdadeiro, preciso é que não encerre um atentado às divinas perfeições. Vejamos se assim é, de fato, na doutrina vulgar dos demônios.

Os demônios segundo a Igreja

7 . Satanás, o chefe ou o rei dos demônios, não é, segundo a Igreja, uma personificação alegórica do mal, mas uma entidade real, praticando exclusivamente o mal, enquanto que Deus pratica exclusivamente o bem.

Tomemo-lo, pois, tal qual no-lo representam. Satanás existe de toda a eternidade, como Deus, ou ser-lhe-á posterior? Existindo de toda a eternidade é incriado, e, por conseqüência, igual a Deus. Este Deus, por sua vez, deixará de ser único, pois haverá um deus do mal. Mas se lhe for posterior? Neste caso passa a ser uma criatura de Deus. Como tal, só praticando o mal por incapaz de fazer o bem e tampouco de arrepender-se, Deus teria criado um ser votado exclusiva e eternamente ao mal. Não sendo o mal obra de Deus, seria contudo de uma das suas criaturas, e nem por isso deixava Deus de ser o autor, deixando igualmente de ser profundamente bom. O mesmo se dá, exatamente, em relação aos seres maus chamados demônios.

8. - Tal foi, por muito tempo, a crença neste sentido. Hoje dizem (1): "Deus, que é a bondade e santidade por excelência, não os havia criado perversos e maus. A mão paternal que se apraz imprimir em todas as suas obras o cunho de infinitas perfeições, cumulara-os de magníficos predicados. As qualidades eminentíssimas de sua natureza, juntara as liberalidades da sua graça; em tudo os fizera iguais aos Espíritos sublimes de glória e felicidade; subdivididos por todas as suas ordens e adstritos a todas as classes, eles tinham o mesmo fim e idênticos destinos. Foi seu chefe o mais belo dos arcanjos. Eles poderiam até ter alcançado a confirmação de justos para todo o sempre, e serem admitidos ao gozo da bem-aventurança dos céus. Este último favor, que deverá ser o complemento de todos os outros, constituía o prêmio da sua docilidade, mas dele desmereceram por insensata e audaciosa revolta."

(1) As citações seguintes são extraídas da pastoral de Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a quaresma de 1865. Atentos ao mérito pessoal e à posição do autor, podemos considerá-las a última expressão da Igreja sobre a doutrina dos demônios.

"Qual foi o escolho da sua perseverança? Que verdade desconheceram? Que ato de adoração, de fé, recusaram a Deus? A Igreja e os anais das santas escrituras não no-lo dizem positivamente, mas certo parece que não aquiesceram à mediação do Filho de Deus, nem à exaltação da natureza humana em Jesus-Cristo."

"O Verbo Divino, criador de todas as coisas, é também o mediador e salvador único, na Terra como no Céu. O fim sobrenatural não foi dado aos anjos e aos homens senão na previsão de sua encarnação e méritos, pois não há proporção alguma entre a obra dos Espíritos eminentes e a recompensa, que é o próprio Deus. Nenhuma criatura poderia alcançar tal fim, sem esta maravilhosa e sublime intervenção da caridade. Ora, para preencher a distância infinita que separa a sua essência das suas obras, preciso fora reunisse à sua pessoa os dois extremos, associando à divindade as naturezas ou do anjo, ou do homem: e preferiu então a natureza humana. Esse plano, concebido de toda eternidade, foi manifestado aos anjos muito antes da sua execução: o Homem-Deus foi-lhes mostrado como Aquele que deveria confirmá-los na graça e guiá-los à glória, sob a condição de o adorarem durante a missão terrestre, e para todo o sempre no céu. Revelação inesperada, arrebatadora visão para corações generosos e gratos, mas - mistério profundo - humilhante para espíritos soberbos! Esse fim sobrenatural, essa glória imensa que lhes propunham não seria unicamente a recompensa de seus méritos pessoais. Nunca poderiam atribuir a si próprios os títulos dessa glória! Uni mediador entre Deus e eles! Que injúria à sua dignidade! E a preferência espontânea pela natureza humana? Que injustiça! que afronta aos seus direitos!"

"E chegarão eles a ver esta Humanidade, que lhes é tão inferior, deificada pela união com o Verbo, sentada à mão direita de Deus em trono resplandecente? Consentirão enfim que ela ofereça a Deus, eternamente, a homenagem da sua adoração?"

"Lúcifer e a terça parte dos anjos sucumbiram a tais pensamentos de inveja e de orgulho. S. Miguel e com ele muitos exclamaram: "Quem é semelhante a Deus? Ele é o dono de seus dons, o soberano Senhor de todas as coisas. Glória a Deus e ao Cordeiro, que tem de ser imolado à salvação do mundo." O chefe dos rebeldes, porém, esquecido de que a Deus devia a sua nobreza e prerrogativas, raiando pela temeridade, disse: "Sou eu quem ao céu subirá; fixarei residência acima dos astros; sentar-me-ei sobre o monte da aliança, nos flancos do Aquilão, dominarei as nuvens mais elevadas e serei semelhante ao Altíssimo." Os que de tais sentimentos partilharam, acolheram essas palavras com murmúrios de aprovação, e partidários houve em todas as hierarquias. A sua multidão, contudo, não os preserva do castigo."

9. - Está doutrina suscita várias objeções:

1ª - Se Satã e os demônios eram anjos, eles eram perfeitos; como, sendo perfeitos, puderam falir a ponto de desconhecer a autoridade desse Deus, em cuja presença se encontravam? Ainda se tivessem logrado uma tal eminência gradualmente, depois de haver percorrido a escala da perfeição, poderíamos conceber um triste retrocesso; não, porém, do modo por que no-los apresentam, isto é, perfeitos de origem.

A conclusão é esta: - Deus quis criar seres perfeitos, porquanto os favorecera com todos os dons, mas enganou-se: logo, segundo a Igreja, Deus não é infalível! (1)

(1) Esta doutrina monstruosa é corroborada por Moisés, quando diz (Gênese, cap. VI, vv. 6 e 7): "Ele se arrependeu de haver criado o homem na Terra e, penetrado da mais intima dor, disse: Exterminarei a criação da face da Terra; exterminarei tudo, desde o homem aos animais, desde os que rastejam sobre a terra até os pássaros do céu, porque me arrependo de os ter criado." Ora, um Deus que se arrepende do que fez não é perfeito nem infalível; portanto, não é Deus. E são estas as palavras que a Igreja proclama! Tampouco se percebe o que poderia haver de comum entre os animais e a perversidade dos homens, para que merecessem tal extermínio.

2ª - Pois que nem a Igreja e nem os sagrados anais explicam a causa da rebelião dos anjos para com Deus e apenas dão como problemática (quase certa) a relutância no reconhecimento da futura missão do Cristo, que valor - perguntamos -que valor pode ter o quadro tão preciso e detalhado da cena então ocorrente? A que fonte recorreram, para inferir se de fato foram pronunciadas palavras tão claras e até simples colóquios? De duas uma: ou a cena é verdadeira ou não é. No primeiro caso, não havendo dúvida alguma, por que a Igreja não resolve a questão? Mas se a Igreja e a História se calam se a coisa apenas parece certa, claro, não passa de hipótese, e acena descritiva é mero fruto da imaginação. (2)

(2) Encontra-se em Isaías, cap. XIV, Vv. 11 e seguintes: "Teu orgulho foi precipitado nos infernos; teu corpo morto baqueou par terra; tua cama verterá podridão, e vermes tua vestimenta. Como caíste do Céu, Lúcifer, tu que parecias tão brilhante ao romper do dia? Como foste arrojado sobre a Terra, tu que ferias as nações com teus golpes; que dizias de coração: Subirei aos céus, estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei acima das nuvens mais altas e serei igual ao Altíssimo! E todavia foste precipitado dessa glória no inferno, até o mais fundo dos abismos. Os que te virem, aproximando-se, encarar-te-ão, dizendo: "Será este o homem que turbou a Terra, que aterrou seus remos, que fez do mundo um deserto, que destruiu cidades e reteve acorrentados os que se lhe entregaram prisioneiros?" Estas palavras do profeta não se relerem à revolta dos anjos,' são, sim, uma alusão ao orgulho e à queda do rei de Babilônia, que retinha os judeus em cativeiro, como atestam os últimos versículos. O rei de Babilônia é alegoricamente designado por Lúcifer, mas não se faz aí qualquer menção da cena supra descrita. Essas palavras são do rei que as tinha no coração e se colocava por orgulho acima de Deus, cujo povo escravizara. A profecia da libertação do povo judeu, da rainha de Babilônia e do destroço dos assírios é, ao demais, o assunto exclusivo desse capítulo.

3ª- As palavras atribuídas a Lúcifer revelam uma ignorância admirável num arcanjo que, por sua natureza e grau atingido, não deve participar, quanto à organização do Universo, dos erros e dos prejuízos que os homens têm professado, até serem pela Ciência esclarecidos. Como poderia, então, dizer que fixaria residência acima dos astros, dominando as mais elevadas nuvens?!

É sempre a velha crença da Terra como centro do Universo, do céu como que formado de nuvens estendendo-se às estrelas, e da limitada região destas, que a Astronomia nos mostra disseminadas ao infinito no infinito espaço! Sabendo-se, como hoje se sabe, que as nuvens não se elevam a mais de duas léguas da superfície terráquea, e falando-se em dominá-las por mais alto, referindo-se a montanhas, preciso fora que a observação partisse da Terra, sendo ela, de fato, a morada dos anjos. Dado, porém, ser esta em região superior, inútil fora alçar-se acima das nuvens. Emprestar aos anjos uma linguagem tisnada de ignorância, é confessar que os homens contemporâneos são mais sábios que os anjos. A Igreja tem caminhado sempre erradamente, não levando em conta os progressos da Ciência.

10. - A resposta à primeira objeção acha-se na seguinte passagem:

"A escritura e a tradição denominam céu o lugar no qual se haviam colocado os anjos, no momento da sua criação. Mas esse não era o céu dos céus, o céu da visão beatifica, onde Deus se mostra de face aos seus eleitos, que o contemplam claramente e sem esforço, porque aí não há mais possibilidade nem perigo de pecado; a tentação e a dúvida são aí desconhecidas; a justiça, a paz e a alegria reinam imutáveis, a santidade e a glória imperecíveis. Era, portanto, outra região celeste, uma esfera luminosa e afortunada, essa em que permaneciam tão nobres criaturas favorecidas pelas divinas comunicações, que deveriam receber com fé e humildade até serem admitidas no conhecimento da sua realidade essência do próprio Deus."

Do que precede se infere que os anjos decaídos pertenciam a uma categoria menos elevada e perfeita, não tendo atingido ainda o lugar supremo em que o erro é impossível. Pois seja: mas, então, há manifesta contradição nesta afirmativa: - Deus em tudo os tinha criado semelhantes aos espíritos sublimes que, subdivididos em todas as ordens e adstritos a todas as classes, tinham o mesmo fim e idênticos destinos, e que seu chefe era o mais belo dos arcanjos. Ora, em tudo semelhantes aos outros, não lhes seriam inferiores em natureza; idênticos em categorias, não podiam permanecer em um lugar especial. Intacta subsiste, portanto, a objeção.

11. - E ainda há uma outra que é, certamente, a mais séria e a mais grave.

Dizem: - "Este plano (a intervenção do Cristo), concebido desde toda a eternidade, foi manifestado aos anjos muito antes da sua execução." Deus sabia, portanto, e de toda a eternidade, que os anjos, tanto quanto os homens, teriam necessidade dessa intervenção. Ainda mais: - o Deus onisciente sabia que alguns dentre esses anjos viriam a falir, arcando com a eterna condenação e arrastando a igual sorte uma parte da Humanidade. E assim, de caso pensado, previamente condenava o gênero humano, a sua própria criação. Deste raciocínio não há fugir, porquanto de outro modo teríamos que admitir a inconsciência divina, apregoando a não presciência de Deus. Para nós é impossível identificar uma tal criação com a soberana bondade. Em ambos os casos vemos a negação de atributos, sem a plenitude absoluta dos quais Deus não seria Deus.

12. - Admitindo a falibilidade dos anjos como a dos homens, a punição é conseqüência, aliás justa e natural, da falta; mas se admitirmos concomitantemente a possibilidade do resgate, a regeneração, a graça, após o arrependimento e a expiação, tudo se esclarece e se conforma com a bondade de Deus. Ele sabia que errariam, que seriam punidos, mas sabia igualmente que tal castigo temporário seria um meio de lhes fazer compreender o erro, revertendo alfim em benefício deles. Eis como se explicam as palavras do profeta Ezequiel: - "Deus não quer a morte, porém a salvação do pecador." (1)

(1) Vede 1ª' Parte, cap. VI, nº 25, citação de Ezequiel.

A inutilidade do arrependimento e a impossibilidade de regeneração, isso sim,importaria a negação da divina bondade. Admitida tal hipótese, poder-se-ia mesmo dizer, rigorosa e exatamente, que estes anjos desde a sua criação, visto Deus não poder ignorá-lo, foram votados à perpetuidade do mal, e predestinados a demônios para arrastarem os homens ao mal.

13. - Vejamos agora qual a sorte desses tais anjos e o que fazem:

"Mal apenas se manifestou a revolta na linguagem dos Espíritos, isto é, no arrojo dos seus pensamentos, foram eles banidos da celestial mansão e precipitados no abismo. Por estas palavras entendemos que foram arremessados a um lugar de suplícios no qual sofrem a pena de fogo, conforme o texto do Evangelho, que é a palavra mesma do Salvador. Ide, malditos, ao fogo eterno preparado pelo demônio e seus anjos. S. Pedro expressamente diz: que Deus os prendeu às cadeias e torturas infernais, sem que lá estejam, contudo, perpetuamente, visto como só no fim do mundo serão para sempre enclausurados com os réprobos. Presentemente, Deus ainda permite que ocupem lugar nesta criação, à qual pertencem, na ordem de coisas idênticas à sua existência, nas relações enfim que deviam ter com os homens, e das quais fazem o mais pernicioso abuso. Enquanto uns ficam na tenebrosa morada, servindo de instrumento da justiça divina contra as almas infelizes que seduziram, outros, em número infinito, formam legiões e residem nas camadas inferiores da atmosfera, percorrendo todo o globo. Envolvem-se em tudo que aqui se passa, tomando mesmo parte muito ativa nos acontecimentos terrenos."

Quanto ao que diz respeito às palavras do Cristo sobre o suplício do fogo eterno, já nos explanamos no cap. IV, "O Inferno".

14. - Por esta doutrina, apenas uma parte dos demônios está no inferno; a outra vaga em liberdade, envolvendo-se em tudo que aqui se passa, dando-se ao prazer de praticar o mal e isso até o fim do mundo, cuja época indeterminada não chegará tão cedo, provavelmente. Mas, por que uma tal distinção? Serão estes menos culpados? Certo que não, a menos que se não revezem, como se pode inferir destas palavras: "Enquanto uns ficam na tenebrosa morada, servindo de instrumento da justiça divina contra as almas infelizes que seduziram."

Suas ocupações consistem, pois, em martirizar as almas que seduziram. Assim, não se encarregam de punir faltas livre e voluntariamente cometidas, porém as que eles próprios provocaram. São ao mesmo tempo a causa do erro e o instrumento do castigo; e, coisa singular, que a justiça humana por imperfeita não admitiria - a vitima que sucumbe por fraqueza, em contingências alheias e porventura superiores à sua vontade, é tanto ou mais severamente punida do que o agente provocador que emprega astúcia e artifício, visto como essa vitima, deixando a Terra, vai para o inferno sofrer sem tréguas, nem favor, eternamente, enquanto que o causador da sua primeira falta, o agente provocador, goza de uma tal ou qual dilação e liberdade até o fim do mundo.

Como pode a justiça de Deus ser menos perfeita que a dos homens?

15. - Mas, ainda não é tudo: "Deus permite que ocupem lugar nesta criação, nas relações que com o homem deviam ter e das quais abusam perniciosamente." Deus podia ignorar, no entanto, o abuso que fariam de uma liberdade por ele mesmo concedida? Então, por que a concedeu? Mas nesse caso é com conhecimento de causa que Deus abandona suas criaturas à mercê delas mesmas, sabendo, pela sua onisciência, que vão sucumbir, tendo a sorte dos demônios. Não serão elas de si mesmas bastante fracas para falirem, sem a provocação de um inimigo tanto mais perigoso quanto invisível? Ainda se o castigo fora temporário e o culpado pudesse remir-se pela reparação!... Mas não: a condenação é irrevogável, eterna! Arrependimento, regeneração, lamentos, tudo supérfluo!

Os demônios não passam portanto de agentes provocadores e de antemão destinados a recrutar almas para o inferno, isto com a permissão de Deus, que antevia, ao criar estas almas, a sorte que as aguardava. Que se diria na Terra de um juiz que recorresse a tal expediente para abarrotar prisões? Estranha idéia que nos dão da Divindade, de um Deus cujos atributos essenciais são: - justiça e bondade soberanas!

E dizer-se que é em nome de Jesus, dAquele que só pregou amor, perdão e caridade, que tais doutrinas são ensinadas! Houve um tempo em que tais anomalias passavam despercebidas, porque não eram compreendidas nem sentidas; o homem, curvado ao jugo do despotismo, submetia-se à fé cega, abdicava da razão. Hoje, porém, que a hora da emancipação soou, esse homem compreende a justiça, e, desejando-a tanto na vida quanto na morte, exclama: - Não é, não pode ser tal, ou Deus não fora Deus.

16. - "O castigo segue por toda a parte os seres decaídos: o inferno está neles e com eles: nem paz nem repouso, transformadas em amargores as doçuras da esperança, que se lhes torna odiosa. A mão de Deus desferiu-lhes o castigo no ato mesmo de pecarem, e sua vontade galvanizou-se no mal.

"Tornados perversos, obstinam-se em o ser e sê-lo-ão para sempre.

"São, depois do pecado, o que é o homem depois da morte. A reabilitação dos que caíram torna-se também impossível; a sua perda é, desde então, irreparável, mantendo-se eles no seu orgulho perante Deus, no seu ódio contra o Cristo, na sua inveja contra a Humanidade.

"Não tendo podido apropriar-se da glória celeste pelo desmesurado da sua ambição, esforçam-se por implantar seu império na Terra, banindo dela o reino de Deus. O Verbo encarnado cumpriu, apesar disso, os seus desígnios para salvação e glória da Humanidade. Também por isso procuram por todos os meios promover a perda das almas pelo Cristo resgatadas: o artifício e a importunação, a mentira e a sedução, tudo põem em jogo para arrastá-las ao mal e consumar-lhes a perda.

"E como são infatigáveis e poderosos, a vida do homem com inimigos tais não pode deixar de ser uma luta sem tréguas, do berço ao túmulo.

"Efetivamente esses inimigos são os mesmos que, depois de terem introduzido o mal no mundo, chegaram a cobri-lo com as espessas trevas do erro e do vício; os mesmos que, por longos séculos, se fizeram adorar como deuses e que reinaram em absoluto sobre os povos da antigüidade; os mesmos, enfim, que ainda hoje exercem tirânica influência nas regiões idólatras, fomentando a desordem e o escândalo até no seio das sociedades cristãs. Para compreender todos os recursos de que dispõem ao serviço da malvadez, basta notar que nada perderam das prodigiosas faculdades que são o apanágio da natureza angélica. Certo, o futuro e sobretudo a ordem natural têm mistérios que Deus se reservou e que eles não podem penetrar; mas a sua inteligência é bem superior à nossa, porque percebem de um jacto os efeitos nas causas e vice-versa. Esta percepção permite-lhes predizer acontecimentos futuros que escapam às nossas conjeturas. A distância e variedade dos lugares desaparecem ante a sua agilidade. Mais prontos que o raio, mais rápidos que o pensamento, acham-se quase instantaneamente sobre diversos pontos do globo e podem descrever, a distância, os acontecimentos na mesma hora em que ocorrem.

"As leis pelas quais Deus rege o Universo não lhes são acessíveis, razão por que não podem derrogá-las, e, por conseguinte, predizer ou operar verdadeiros milagres; possuem no entanto a arte de imitar e falsificar, dentro de certos limites, as divinas obras; sabem quais os fenômenos resultantes da combinação dos elementos, predizem com maior ou menor êxito os que sobrevêm naturalmente, assim como os que por si mesmos podem produzir. Daí os numerosos oráculos, os extraordinários vaticínios que sagrados e profanos livros recolheram, baseando e acoroçoando tantas e tantas superstições.

"A sua substância simples e imaterial subtrai-os às nossas vistas; permanecem ao nosso lado sem que os vejamos, interessam-nos a alma sem que nos firam o ouvido. Acreditando obedecer aos nossos pensamentos, estamos no entanto, e muitas vezes, debaixo da sua funesta influência. As nossas disposições, ao contrário, são deles conhecidas pelas impressões que delas transparecem em nós, e atacam-nos ordinariamente pelo lado mais fraco. Para nos seduzirem com mais segurança, costumam servir-se de sugestões e engodos conformes com as nossas inclinações. Modificam a ação segundo as circunstâncias e os traços característicos de cada temperamento. Contudo, suas armas favoritas são a hipocrisia e a mentira."

17. - Afirmam que o castigo os segue por toda parte; que não sabem o que seja paz nem repouso. Esta asserção de modo algum destrói a observação que fizemos quanto ao privilégio dos que estão fora do inferno, e que reputamos tanto menos justificado por isso que podem fazer, e fazem, maior mal. É de crer que esses demônios extra-infernais não sejam tão felizes como os bons anjos, mas não se deverá ter em conta a sua relativa liberdade? Eles não possuirão a felicidade moral que a virtude defere, mas são incontestavelmente mais felizes que os seus comparsas do inferno flamífero. Depois, para o mau, sempre há um certo gozo na prática do mal, de mais a mais livremente. Perguntai ao criminoso o que prefere: se ficar na prisão, ou percorrer livremente os campos, agindo à vontade? Pois o caso é exatamente o mesmo.

Afirmam, outrossim, que o remorso os persegue sem tréguas nem misericórdia, esquecidos de que o remorso é o precursor imediato do arrependimento, quando não é o próprio arrependimento. "Tornados perversos, obstinam-se em o ser, e sê-lo-ão para sempre." Mas desde que se obstinam em ser perversos, é que não têm remorsos; do contrário, ao menor sentimento de pesar, renunciariam ao mal e pediriam perdão. Logo, o remorso não é para eles um castigo.

18. - "São, depois do pecado, o que é o homem depois da morte. A reabilitação dos que caíram torna-se, portanto, impossível."

Donde provém essa impossibilidade? Não se compreende que ela seja a conseqüência de sua similitude com o homem depois da morte, proposição que, ao demais, é muito ambígua.

Acaso provirá da própria vontade dos demônios? Porventura da vontade divina? No primeiro caso a pertinácia denota uma extrema perversidade, um endurecimento absoluto no mal, e nem mesmo se compreende que seres tão profundamente perversos pudessem jamais ter sido anjos de virtude, conservando por tempo indefinido, na convivência destes, todos os traços da sua péssima índole e natureza.

No segundo caso, ainda menos se compreende que Deus inflija como castigo a impossibilidade da reparação, após uma primeira falta. O Evangelho nada diz que com isso se pareça.

19. - "A sua perda é desde então irreparável, mantendo-se eles no seu orgulho perante Deus." E de que lhes serviria não manterem tal orgulho, uma vez que é inútil todo o arrependimento? O bem só poderia interessá-los se eles tivessem uma esperança de reabilitação, fosse qual fosse o seu preço. Assim não acontece, no entanto, e pois se perseveram no mal é porque lhes trancaram a porta da esperança. Mas por que lhes trancaria Deus essa porta? Para se vingar da ofensa decorrente da sua insubmissão. E, assim, para saciar o seu ressentimento contra alguns culpados, Deus prefere não somente vê-los sofrer, mas agravar o mal com mal maior; impelir à perdição eterna toda a Humanidade, quando por um simples ato de demência podia evitar tão grande desastre, aliás previsto de toda a eternidade!

Trata-se, no caso vertente, de um ato de demência, de uma graça pura e simples que pudesse transformar-se em estimulo do mal? Não, trata-se de um perdão condicional, subordinado a uma regeneração sincera e completa. Mas, ao invés de uma palavra de esperança e misericórdia, é como se Deus dissera: "Pereça toda a raça humana antes que minha vingança." E com semelhante doutrina ainda muita gente se admira de que haja incrédulos e ateus! E é assim que Jesus nos representa seu Pai? Ele que nos deu a lei expressa do esquecimento e do perdão das ofensas, que nos manda pagar o mal com o bem, que prescreve o amor dos nossos inimigos como a primeira das virtudes que nos conduzem ao céu, quereria desse modo que os homens fossem melhores, mais justos, mais indulgentes que o próprio Deus?

Os demônios segundo o Espiritismo 20. Segundo o Espiritismo, nem anjos nem demônios são entidades distintas, por isso que a criação de seres inteligentes é uma só. Unidos a corpos materiais, esses seres constituem a Humanidade que povoa a Terra e as outras esferas habitadas; uma vez libertos do corpo material, constituem o mundo espiritual ou dos Espíritos, que povoam os Espaços. Deus criou-os perfectíveis e deu-lhes por escopo a perfeição, com a felicidade que dela decorre. Não lhes deu, contudo, a perfeição, pois quis que a obtivessem por seu próprio esforço, a fim de que também e realmente lhes pertencesse o mérito. Desde o momento da sua criação que os seres progridem, quer encarnados, quer no estado espiritual. Atingido o apogeu, tornam-se puros espíritos ou anjos segundo a expressão vulgar, de sorte que, a partir do embrião do ser inteligente até ao anjo, há uma cadeia na qual cada um dos elos assinala um grau de progresso.

Do expresso resulta que há Espíritos em todos os graus de adiantamento, moral e intelectual, conforme a posição em que se acham, na imensa escala do progresso.

Em todos os graus existe, portanto, ignorância e saber, bondade e maldade. Nas classes inferiores destacam-se Espíritos ainda profundamente propensos ao mal e comprazendo-se com o mal. A estes pode-se denominar demônios, pois são capazes de todos os malefícios aos ditos atribuídos. O Espiritismo não lhes dá tal nome por se prender ele à idéia de uma criação distinta do gênero humano, como seres de natureza essencialmente perversa, votados ao mal eternamente e incapazes de qualquer progresso para o bem.

21. - Segundo a doutrina da Igreja os demônios foram criados bons e tornaram-se maus por sua desobediência: são anjos colocados primitivamente por Deus no ápice da escala, tendo dela decaído. Segundo o Espiritismo os demônios são Espíritos imperfeitos, suscetíveis de regeneração e que, colocados na base da escala, hão de nela graduar-se. Os que por apatia, negligência, obstinação ou má-vontade persistem em ficar, por mais tempo, nas classes inferiores, sofrem as conseqüências dessa atitude, e o hábito do mal dificulta-lhes a regeneração. Chega-lhes, porém, um dia a fadiga dessa vida penosa e das suas respectivas conseqüências; eles comparam a sua situação à dos bons Espíritos e compreendem que o seu interesse está no bem, procurando então melhorarem-se, mas por ato de espontânea vontade, sem que haja nisso o mínimo constrangimento. "Submetidos à lei geral do progresso, em virtude da sua aptidão para o mesmo, não progridem, ainda assim, contra a vontade." Deus fornece-lhes constantemente os meios, porém, com a faculdade de aceitá-los ou recusá-los. Se o progresso fosse obrigatório não haveria mérito, e Deus quer que todos tenhamos o mérito de nossas obras. Ninguém é colocado em primeiro lugar por privilégio; mas o primeiro lugar a todos é franqueado à custa do esforço próprio.

Os anjos mais elevados conquistaram a sua graduação, passando, como os demais, pela rota comum.

22. - Chegados a certo grau de pureza, os Espíritos têm missões adequadas ao seu progresso; preenchem assim todas as funções atribuídas aos anjos de diferentes categorias.

E como Deus criou de toda a eternidade, segue-se que de toda a eternidade houve número suficiente para satisfazer às necessidades do governo universal. Deste modo uma só espécie de seres inteligentes, submetida à lei de progresso, satisfaz todos os fins da Criação.

Por fim, a unidade da Criação, aliada à idéia de uma origem comum, tendo o mesmo ponto de partida e trajetória, elevando-se pelo próprio mérito, corresponde melhor à justiça de Deus do que a criação de espécies diferentes, mais ou menos favorecidas de dotes naturais, que seriam outros tantos privilégios.

23. - A doutrina vulgar sobre a natureza dos anjos, dos demônios e das almas, não admitindo a lei do progresso, mas vendo todavia seres de diversos graus, concluiu que seriam produto de outras tantas criações especiais. E assim foi que chegou a fazer de Deus um pai parcial, tudo concedendo a alguns de seus filhos, e a outros impondo o mais rude trabalho. Não admira que por muito tempo os homens achassem justificação para tais preferências, quando eles próprios delas usavam em relação aos filhos, estabelecendo direitos de primogenitura e outros privilégios de nascimento. Podiam tais homens acreditar que andavam mais errados que Deus?

Hoje, porém, alargou-se o circulo das idéias: o homem vê mais claro e tem noções mais precisas de justiça; desejando-a para si e nem sempre encontrando-a na Terra, ele quer pelo menos encontrá-la mais perfeita no Céu.

E aqui está por que lhe repugna à razão toda e qualquer doutrina, na qual não resplenda a Justiça Divina na plenitude integral da sua pureza.

Intervenção dos demônios nas modernas manifestações

1. - Os modernos fenômenos do Espiritismo têm atraído a atenção sobre fatos análogos de todos os tempos, e nunca a História foi tão compulsada neste sentido como ultimamente. Pela semelhança dos efeitos, inferiu-se a unidade da causa. Como sempre acontece relativamente a fatos extraordinários que o senso comum desconhece, o vulgo viu nos fenômenos espíritas uma causa sobrenatural, e a superstição completou o erro ajuntando-lhes absurdas crendices. Provém dai uma multidão de lendas que, pela maior parte, são um amálgama de poucas verdades e muitas mentiras.

2. - As doutrinas sobre o demônio, prevalecendo por tanto tempo, haviam de tal maneira exagerado o seu poder, que fizeram, por assim dizer, esquecer Deus; por toda parte surgia o dedo de Satanás, bastando para tanto que o fato observado ultrapassasse os limites do poder humano. Até as coisas melhores, as descobertas mais úteis, sobretudo as que podiam abalar a ignorância e alargar o circulo das idéias -foram tidas muita vez por obras diabólicas. Os fenômenos espíritas de nossos dias, mais generalizados e mais bem observados à luz da razão e com o auxilio da Ciência, confirmaram, é certo, a intervenção de inteligências ocultas, porém agindo dentro de leis naturais e revelando por sua ação uma nova força e leis até então desconhecidas.

A questão reduz-se, portanto, a saber de que ordem são essas inteligências.

Enquanto se não possuía do mundo espiritual noções mais que incertas e sistemáticas, a verdade podia ser desviada; mas hoje que observações rigorosas e estudos experimentais esclareceram a natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como o seu modo de ação e papel no Universo - hoje, dizemos, a questão se resolve por fatos. Sabemos, agora, que essas inteligências ocultas são as almas dos que viveram na Terra. Sabemos também que as diversas categorias de bons e maus Espíritos não são seres de espécies diferentes, porém que apenas representam graus diversos de adiantamento. Segundo a posição que ocupam em virtude do desenvolvimento intelectual e moral, os seres que se manifestam apresentam os mais fundos contrastes, sem que por isso possamos supor não tenham saído todos da grande família humana, do mesmo modo que o selvagem, o bárbaro e o homem civilizado.

3. - Sobre este ponto, como sobre muitos outros, a Igreja mantém as velhas crenças a respeito dos demônios. Diz ela: "Há princípios que não variam há dezoito séculos, porque são imutáveis." O seu erro é precisamente esse de não levar em conta o progresso das idéias; é supor Deus insuficientemente sábio para não proporcionar a revelação ao desenvolvimento das inteligências; é, em suma, falar aos contemporâneos a mesma linguagem do passado. Ora, progredindo a Humanidade enquanto a Igreja se abroquela em velhos erros sistematicamente, tanto em matéria espiritual como na científica, cedo virá a incredulidade, avassalando a própria Igreja.

4. - Eis como esta explica a intervenção exclusiva dos demônios nas manifestações espíritas: (1)

(1) As citações deste capítulo são extraídas da mesma pastoral indicada no precedente, e da qual são corolários. É a mesma fonte e, por conseguinte, a mesma autoridade.

"Nas suas intervenções exteriores os demônios procuram dissimular a sua presença, a fim de afastar suspeitas. Sempre astutos e pérfidos, seduzem o homem com ciladas antes de algemá-lo na opressão e no servilismo.

"Aqui lhe aguçam a curiosidade com fenômenos e partidas pueris; além, despertam-lhe a admiração e subjugam-no pelo encanto do maravilhoso.

"Se o sobrenatural aparece e os desmascara, então, acalmam-se, extinguem quaisquer apreensões, solicitam confiança e provocam familiaridade.

"Ora se apresentam como divindades e bons gênios, ora assimilam nomes e mesmo traços de memorados mortos. Com o auxílio de tais fraudes dignas da antiga serpente, falam e são ouvidos; dogmatizam e são acreditados; misturam com suas mentiras algumas verdades e inculcam o erro debaixo de todas as formas. Eis o que significam as pretensas revelações de além-túmulo. E é para tal resultado que a madeira e a pedra, as florestas e as fontes, o santuário dos ídolos e os pés das mesas e as mãos das crianças se tornam oráculos: é por isso que a pitonisa profetiza em delírio; que o ignorante se torna cientista num sono misterioso. Enganar e perverter, tal é, em toda parte e de todos os tempos, o supremo objetivo dessas manifestações.

"Os resultados surpreendentes dessas práticas ou atos ordinariamente fantásticos e ridículos, não podendo provir da sua virtude intrínseca, nem da ordem estabelecida por Deus, só podem ser atribuídos ao concurso das potências ocultas. Tais são, notadamente, os fenômenos extraordinários obtidos em nossos dias pelos processos aparentemente inofensivos do magnetismo, como os das mesas falantes. Por meio das operações da moderna magia, vemos reproduzirem-se no presente as evocações, as consultas, as curas e sortilégios que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das sibilas. Como outrora, interroga-se a madeira e esta responde; manda-se e ela obedece; isto em todas as línguas e sobre todos os assuntos; acha-se a gente em presença de seres invisíveis a usurparem nomes de mortos, e cujas pretensas revelações têm o cunho da contradição e da mentira; formas inconsistentes e leves aparecem rápidas e repentinas, patenteando-se dotadas de força sobre-humana.

"Quais são os agentes secretos desses fenômenos, os verdadeiros atores dessas cenas inexplicáveis? Os anjos, esses não aceitariam tais papéis indignos, como também não se prestariam a todos os caprichos da curiosidade.

"As almas dos mortos, que Deus proíbe evocar, essas demoram no lugar que lhes designa a sua justiça, e não podem, sem sua permissão, colocar-se às ordens dos vivos. Assim, os seres misteriosos que acodem ao primeiro apelo do herege, do ímpio ou do crente - o que importa dizer da inocência ou do crime - não são nem enviados de Deus, nem apóstolos da verdade e da salvação, porém fatores do erro e agentes do inferno. Apesar do cuidado com que se ocultam sob os mais veneráveis nomes, eles traem-se pela nulidade das suas doutrinas, pela baixeza dos atos e incoerência das palavras.

"Procuram apagar do símbolo religioso os dogmas do pecado original, da ressurreição do corpo, da eternidade das penas, como de toda a revelação divina, para subtrair às leis a sua verdadeira sanção e abrir ao vício todas as barreiras. Se as suas sugestões pudessem prevalecer, acabariam por formar uma religião cômoda para uso do socialismo e de todos a quem importuna a noção do dever e da consciência.

"A incredulidade do nosso século facilitou-lhes o caminho. Assim possam as sociedades cristãs, por uma sincera dedicação à fé católica, escapar ao perigo desta nova e terrível invasão!"

5. - Toda esta teoria deriva do princípio de que os anjos e os demônios são seres distintos das almas humanas, sendo estas antes o produto de uma criação especial, aliás inferiores aos demônios em inteligência, em conhecimento e em toda espécie de faculdade. E é assim que opina pela exclusiva intervenção dos maus anjos, nas antigas como nas modernas manifestações dos Espíritos.

A possibilidade da comunicação dos mortos é uma questão de fato, é o resultado de observações e experiências que não vêm ao caso discutir aqui. Admitamos, porém, como hipótese, a doutrina acima citada, e vejamos se ela se não destrói por si mesma com os seus próprios argumentos.

6. - Das três categorias de anjos segundo a Igreja, a primeira ocupa-se exclusivamente do céu; a segunda do governo do Universo, e a terceira, da Terra. É nesta última que se encontram os anjos de guarda encarregados da proteção de cada indivíduo. Somente uma parte dos anjos, desta última categoria, é que compartilhou da revolta e foi transformada em demônios. Ora, desde que Deus lhes permitira com tanta liberdade, já por sugestões ocultas, já por ostensivas manifestações, induzir os homens em erro, e porque esse Deus é soberanamente justo e bom, devia ao menos, para atenuar os males de tão odiosa concessão, permitir também a manifestação dos bons anjos. Ao menos, assim, os homens teriam a liberdade e o recurso da escolha. Dar, porém, aos anjos maus o monopólio da tentação, com poderes amplos de simular o bem para melhor seduzir; e vedando ao mesmo tempo toda e qualquer intervenção dos bons, é atribuir a Deus o intuito inconcebível de agravar a fraqueza, a inexperiência e a boa-fé dos homens.

É mais ainda: é supor da parte de Deus um abuso de confiança, pela fé que nos merece. A razão recusa admitir tanta parcialidade em proveito do mal. Vejamos os fatos.

7. - Aos demônios concedem-se faculdades transcendentes: nada perderam da natureza angélica; possuem o saber, a perspicácia, a previdência e a penetração dos anjos, tendo ainda, a mais, astúcia, ardil e artifício, tudo em grau mais elevado. O objetivo que os move é desviar os homens do bem, afastá-los de Deus e arrastá-los ao inferno, do qual são provedores e recrutadores. Assim, compreende-se que se dirijam de preferência aos que estão no bom caminho e nele persistem; compreende-se o emprego das seduções e simulacros do bem para atraí-los e perdê-los; mas o que se não compreende é que se dirijam aos que já lhes pertencem de corpo e alma, procurando reconduzi-los a Deus e ao bem.

Quem mais estará nas garras do demônio do que aquele que de Deus blasfema, atido ao vício e à desordem das paixões? Esse não estará no caminho do inferno? Mas então como compreender que a uma tal presa esse demônio exorte a rogar a Deus, a submeter-se à sua vontade, a renunciar ao mal?

Como se compreende que exalte aos seus olhos a vida deliciosa dos bons Espíritos e lhe pinte a horrorosa posição dos maus? Jamais se viu negociante realçar aos seus fregueses a mercadoria do vizinho em detrimento da sua, aconselhando-os a ir à casa dele. Nunca se viu um arrebanhador de soldados depreciar a vida militar, decantando o repouso da vida doméstica! Poderá ele dizer aos recrutas que terão vida de trabalhos e privações com dez probabilidades contra uma de morrerem ou, pelo menos, de ficarem sem braços nem pernas? É este, no entanto, o papel estúpido do demônio, pois é notório - e é um fato - que as instruções emanadas do mundo invisível têm regenerado incrédulos e ateus, insuflando-lhes n'alma fervor e crenças nunca havidos.

Ainda por influência dessas manifestações têm-se visto - e vêem-se diariamente - regenerarem-se viciosos contumazes, procurando melhorarem-se a si mesmos. Ora, atribuir ao demônio tão benéfica propaganda e salutar resultado, é conferir-lhe diploma de tolo.

E como não se trata de simples suposição, mas de fato experimental contra o qual não há argumento, havemos de concluir, ou que o demônio é um desazado de primeira ordem, ou que não é tão astuto e mau como se pretende, e, conseguintemente, tão temível quanto dizem; ou, então, que todas as manifestações não partem dele.

8. - "Eles inculcam o erro sob todas as formas, e é para obter esse resultado que a madeira, a pedra, as florestas, as fontes, os santuários dos ídolos, os pés das mesas e as mãos dos meninos se tornam oráculos."

Mas, se assim é, qual o sentido e valor destas palavras do Evangelho: - "Eu repartirei meu Espírito por toda a carne: - vossos filhos e filhas profetizarão; os jovens terão visões e os velhos terão sonhos. Nesses dias repartirei meu Espírito por todos os meus servidores e servidoras, e eles profetizarão." (Atos dos Apóstolos, cap. II, vv. 17 e 18.)

Não estará nessas palavras a predição tácita da mediunidade dos nossos dias a todos concedida, mesmo às crianças? E essa faculdade foi anatematizada pelos apóstolos? Não; eles a apregoam como graça divina e não como obra do demônio.

Terão os teólogos de hoje mais autoridade que os apóstolos? Por que não ver antes o dedo de Deus na realização daquelas palavras?

9. - "Por meio das operações da moderna magia vemos reproduzirem-se no presente as evocações, as consultas, as curas e os sortilégios que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das sibilas."

Nós perguntamos: que há de comum entre as operações da magia e as evocações espíritas?

Houve tempo em que tais operações faziam fé e acreditava-se na sua eficácia, mas hoje são simplesmente ridículas. Ninguém as toma a sério, e o Espiritismo condena-as. Na época em que florescera a magia, era imperfeita a noção sobre a natureza dos Espíritos, geralmente havidos por seres dotados de poder sobre-humano.

A troco da própria alma, ninguém os evocava que não fosse para obter favores da sorte e da fortuna, achar tesouros, revelar o futuro ou obter filtros. A magia com seus sinais, fórmulas e práticas cabalísticas era increpada de fornecer segredos para operar prodígios, constranger Espíritos a ficarem às ordens dos homens e satisfazerem-lhes os desejos. Hoje sabemos que os Espíritos são as almas dos mortos e não os evocamos senão para receber conselhos dos bons, moralizar os maus e continuar relações com seres que nos são caros. Eis o que diz o Espiritismo a tal respeito:

10. Não podereis obrigar nunca a presença de um Espírito vosso igual ou superior em moralidade, por vos faltar autoridade sobre ele; mas, do vosso inferior, e sendo para seu beneficio, consegui-lo-eis, visto como outros Espíritos vos secundam. ( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

- A mais essencial de todas as disposições para evocar é o recolhimento, quando desejarmos tratar com Espíritos sérios. Com a fé e o desejo do bem, mais aptos nos tornamos para evocar Espíritos superiores. Elevando nossa alma por alguns instantes de concentração no momento de evocá-los, identificamo-nos com os bons Espíritos, predispondo a sua vinda. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

- Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir Espíritos, pois a matéria ação alguma exerce sobre eles. Nunca um bom Espírito aconselha tais absurdos. A virtude dos talismãs só pode existir na imaginação de pessoas simplórias. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

- Não há fórmulas sacramentais para evocar Espíritos. Quem quer que pretendesse estabelecer uma fórmula, poderia ser tachado de usar de charlatanismo, visto que para os Espíritos puros a fórmula nada vale. A evocação deve, porém, ser feita sempre em nome de Deus. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XVII.)

- Os Espíritos que prefixam entrevistas em lugares lúgubres, e a horas indevidas, são os que se divertem a custa de quem os ouve. É sempre inútil e muitas vezes perigoso ceder a tais sugestões; inútil, porque nada se ganha além de uma mistificação, e perigoso, não pelo mal que possam fazer os Espíritos, mas pela influência que tais fatos podem exercer sobre cérebros fracos. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

- Não há dias nem horas mais especialmente propícios às evocações: isso, como tudo que é material, é completamente indiferente aos Espíritos, além de ser supers ticiosa a crença em tais influências. Os momentos mais favoráveis são aqueles em que o evocador pode abstrair-se melhor das suas preocupações habituais, calmo de corpo e de espírito. ( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

- A crítica malévola apraz-se em representar as comunicações espíritas revestidas das práticas ridículas e supersticiosas da magia e da nigromancia. Entretanto, se os que falam do Espiritismo, sem conhecê-lo, procurassem estudá-lo, poupariam trabalhos de imaginação e alegações que só servem para demonstrar a sua ignorância e má-vontade.

Para conhecimento das pessoas estranhas à ciência, diremos que não há horas mais propícias, umas que outras, como não há dias nem lugares, para comunicar com os Espíritos. Diremos mais: que não há fórmulas nem palavras sacramentais ou cabalísticas para evocá-los; que não há necessidade alguma de preparo ou iniciação; que é nulo o emprego de quaisquer sinais ou objetos materiais para atraí-los ou repeli-los, bastando para tanto o pensamento; e, finalmente, que os médiuns recebem deles as comunicações sem sair do estado normal, tão simples e naturalmente como se tais comunicações fossem ditadas por uma pessoa vivente. Só o charlatanismo poderia emprestar às comunicações formas excêntricas, enxertando-lhes ridículos acessórios. ( O que é o Espiritismo, cap. II, nº 49.)

- O futuro é vedado ao homem por princípio, e só em casos raríssimos e excepcionais é que Deus faculta a sua revelação. Se o homem conhecesse o futuro, por certo que negligenciaria o presente e não agiria com a mesma liberdade. Absorvidos pela idéia da fatalidade de um acontecimento, ou procuramos conjurá-lo ou não nos preocupamos dele. Deus não permitiu que assim fosse, a fim de que cada qual concorresse para a realização dos acontecimentos mesmos, que porventura desejaria evitar. Ele permite, no entanto, a revelação do futuro, quando o conhecimento prévio de uma coisa não estorva, mas facilita a sua realização, induzindo a procedimento diverso do que se teria sem tal circunstância. ( O Livro dos Espíritos, Parte 3ª, cap. X.)

- Os Espíritos não podem guiar descobertas nem investigações científicas. A Ciência é obra do gênio e só deve ser adquirida pelo trabalho, pois é por este que o homem progride. Que mérito teríamos nós se, para tudo saber, apenas bastasse interrogar os Espíritos? Por esse preço, todo imbecil poderia tornar-se sábio. O mesmo se dá relativamente aos inventos e descobertas da indústria. Chegado que seja o tempo de uma descoberta, os Espíritos encarregados da sua marcha procuram o homem capaz de levá-la a bom termo e inspiram-lhe as idéias necessárias, isto de molde a não lhe tirar o respectivo mérito, que está na elaboração e execução dessas idéias. Assim tem sido com todos os grandes trabalhos da inteligência humana. Os Espíritos deixam cada indivíduo na sua esfera: do homem apenas apto para lavrar a terra não fazem depositários dos segredos de Deus, mas sabem arrancar da obscuridade aquele que se mostra capaz de secundar-lhes os desígnios. Não vos deixeis, por conseguinte, dominar pela ambição e pela curiosidade, em terreno alheio ao do Espiritismo, que tais fitos não tem, pois com eles só conseguireis as mais ridículas mistificações. ( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVI.)

- Os Espíritos não podem concorrer para a descoberta de tesouros ocultos. Os superiores não se ocupam de tais coisas e só os zombeteiros podem entreter-se com elas, já indicando tesouros que o mais das vezes não existem, já apontando sítios diametralmente opostos àqueles em que realmente existem. Esta circunstância tem, contudo, uma utilidade, qual a de mostrar que a verdadeira fortuna reside no trabalho. Quando a Providência tem destinado a alguém quaisquer riquezas ocultas, esse alguém as encontrará naturalmente; do contrário não, nunca. (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXVI.)

- Esclarecendo-nos sobre as propriedades dos fluidos - agentes e meios de ação do mundo invisível constituindo uma das forças e potências da Natureza - o Espiritismo nos dá a chave de inúmeros fatos e coisas inexplicadas e inexplicáveis de outro modo, fatos e coisas que passaram por prodígios, em outras eras. Do mesmo modo que o magnetismo, ele nos revela uma lei, senão desconhecida, pelo menos incompreendida, ou então, para melhor dizer, efeitos de todos os tempos conhecidos, pois que de todos os tempos se produziram, mas cuja lei se ignorava e de cuja ignorância brotava a superstição. Conhecida essa lei, desaparece o maravilhoso e os fenômenos entram para a ordem das coisas naturais. Eis por que os Espíritos não produzem milagres, fazendo girar as mesas ou escrever os mortos, como milagre não faz o médico em restituir à vida o moribundo, e o físico provocando a queda do raio. Quem pretendesse fazer milagres pelo Espiritismo não passaria de ignorante, ou então de mero prestidigitador. ( O Livro dos Médiuns, 1ª Parte, cap. II.)

Pessoas há que fazem das evocações uma idéia muito falsa: há mesmo quem acredite que os mortos evocados se apresentam com todo o aparelho lúgubre do túmulo. Tais suposições podem ser atribuídas ao que vemos nos teatros ou lemos nos romances e contos fantásticos, onde os mortos aparecem amortalhados com o chocalhar dos ossos.

O Espiritismo, que nunca fez milagres, também não faz esse, pois que jamais fez reviver um corpo morto. O Espírito, fluídico, inteligente, esse não baixa à campa com o grosseiro invólucro, que lá fica definitivamente. Separa-se dele no momento da morte, e nada mais têm de comum entre si. ( O que é o Espiritismo, cap. II, n.º 48.)

11 - Ampliamos estas citações para mostrar que os princípios do Espiritismo não têm relação alguma com os da magia. Assim, nem Espíritos às ordens dos homens; nem meios de os constranger; nem sinais ou fórmulas cabalísticas; nem descobertas de tesouros; nem processos para enriquecer, e tampouco milagres ou prodígios, adivinhações e aparições fantásticas: nada, enfim, do que constitui o fim e os elementos essenciais da magia. O Espiritismo não só reprova tais coisas como demonstra a impossibilidade e ineficácia delas. Não há, afirmamo-lo ainda uma vez, analogia alguma entre os processos e fins da magia e os do Espiritismo; só a ignorância e a má-fé poderão confundi-los. Dessa forma, tal erro não pode prevalecer, uma vez que os princípios espíritas não se furtam ao exame, e aí estão formulados inequívoca e claramente para todos.

Quanto às curas, reconhecidas como reais na pastoral precitada, o exemplo está mal selecionado como meio de evitar relações com os Espíritos. Efetivamente, essas curas são outros tantos benefícios que levam à gratidão e que todos podem experimentar. Pouca gente estará disposta a renunciar a elas, mormente depois de haver esgotado outros recursos antes de recorrer ao diabo. Depois, se o diabo cura, força é confessar que faz uma boa e meritória ação. (1)

(1) Querendo persuadir as pessoas curadas pelo Espiritismo que o foram pelo diabo, grande numero delas se há separado da Igreja, sem que jamais pensassem fazê-lo.

12. - "Quais são os agentes secretos de tais fenômenos, os verdadeiros autores dessas cenas inexplicáveis? Os anjos, esses não aceitariam papéis indignos, como também não se prestariam aos caprichos todos da curiosidade."

O autor quer falar das manifestações físicas dos Espíritos, no número das quais algumas há evidentemente pouco dignas de Espíritos superiores. Nós lhe pediremos, contudo, que substitua o vocábulo anjo pelo de espíritos puros ou espíritos superiores, pois que assim teremos exatamente o que diz o Espiritismo. Indignas, porém, dos bons Espíritos, não se pode considerar uma multidão de comunicações dadas pela escrita, pela palavra, pela audição, etc., pois que tais comunicações seriam e são dignas dos homens mais eminentes da Terra. O mesmo poderemos dizer quanto às curas, aparições e um sem-número de fatos que os livros santos citam em profusão como obra de anjos ou de santos. Se, pois, os anjos e os santos produziram outrora fenômenos semelhantes, por que não os produzirão hoje? Por que serem idênticos fatos julgados bruxaria nas mãos de uns, enquanto nas mãos de outros se reputam santos milagres?

Sustentar semelhante tese é abdicar toda a lógica.

O autor da Pastoral labora em erro quando afirma que tais fenômenos são inexplicáveis. O que se dá é justamente o contrário, isto é, hoje esses fenômenos são perfeitamente explicados, tanto que se não consideram mais como maravilhosos e sobrenaturais. Dado, porém, de barato que assim não fora, tão lógico seria atribuí-los ao diabo, quanto era lógico noutros tempos dar a este as honras de todos os fenômenos naturais, cuja causa então se desconhecia.

Por papéis indignos devemos entender os que visam o mal e o ridículo, a menos que queiramos qualificar de tal a obra salutar dos bons Espíritos, que promovem o bem, encaminhando os homens para Deus, pela virtude.

Ora, o Espiritismo diz expressamente que os papéis indignos não cabem aos Espíritos superiores, como se infere dos seguintes preceitos:

13. - A categoria do Espírito se reconhece por sua linguagem: os verdadeiramente bons e superiores têm-na sempre digna, nobre, lógica, imune de qualquer contradição; ressumbra sabedoria, modéstia, benevolência e a mais pura moral.

Além disso é concisa, clara, sem redundâncias inúteis. Os Espíritos inferiores, ignorantes ou orgulhosos, é que suprem a vacuidade das idéias com abundância de frases. Todo pensamento implicitamente falso, toda máxima contrária à sã moral, todo conselho ridículo, toda expressão grosseira, trivial ou simplesmente frívola, qualquer sinal de malevolência, de presunção ou de arrogância, são indícios incontestáveis da inferioridade de um Espírito.

- Os Espíritos superiores só se ocupam de comunicações inteligentes, visando instruir-nos.

As manifestações físicas ou puramente materiais competem mais comumente aos Espíritos inferiores, vulgarmente designados por Espíritos batedores, pela mesma razão por que entre nós os torneios de força e agilidade são próprios de saltimbancos e não de sábios. Absurdo seria supor que um Espírito, por pouco elevado que sela, goste do alarde e do reclamo. ( O que é o Espiritismo, cap. II, ns. 37, 38, 39, 40 e 60. Vede também O Livro dos Espíritos, Parte 2ª, cap. I - Diferentes ordens de Espíritos; Escala espírita, e O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXIV - Identidade dos Espíritos; Distinção dos bons e maus Espíritos.)

Qual é o homem de boa-fé que pode lobrigar nestes preceitos atribuições incompatíveis com Espíritos elevados? Não, o Espiritismo não confunde os Espíritos, antes, pelo contrário, distingue-os. A Igreja, sim, atribui aos demônios uma inteligência igual à dos anjos, ao passo que o Espiritismo afirma e confirma, baseado na observação dos fatos, que os Espíritos inferiores são mais ou menos ignorantes, tendo muito limitados o seu horizonte moral e perspicácia, de feição a terem das coisas uma idéia muita vez falsa e incompleta, incapazes de resolver certas questões e, conseguintemente, de fazer tudo quanto se atribui aos demônios.

14. - "As almas dos mortos, que Deus proíbe evocar, essas demoram no lugar que lhes designa a sua justiça, e não podem, sem sua permissão, colocar-se à disposição dos vivos."

O Espiritismo vai além, é mais rigoroso: não admite manifestação de quaisquer Espíritos, bons ou maus, sem a permissão de Deus, ao passo que a Igreja de tal não cogita relativamente aos demônios, os quais, segundo a sua teoria, se dispensam de tal permissão.

O Espiritismo diz mais que, mediante tal permissão e correspondendo ao apelo dos vivos, os Espíritos não se põem à disposição destes.

O Espírito evocado vem voluntariamente, ou é constrangido a manifestar-se?

Obedecendo à vontade de Deus, isto é, à lei que rege o Universo, ele julga da utilidade ou inutilidade da sua manifestação, o que constitui uma prerrogativa do seu livre-arbítrio.

O Espírito superior não deixa de vir sempre que é evocado para um fim útil, só se recusando a responder quando em reunião de pessoas pouco sérias que levem a coisa em ar de gracejo. ( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

- Pode o Espírito evocado recusar-se a vir pela evocação que lhe fazem? Perfeitamente, visto como tem o seu livre-arbítrio. Podeis acaso acreditar que todos os seres do Universo estejam à vossa disposição? E vós mesmos vos julgais obrigados a responder a todos quantos pronunciam o vosso nome? Mas quando digo que o Espírito pode recusar-se, subordino essa negativa ao pedido do evocador, por isso que um Espírito inferior pode ser constrangido por um superior a manifestar-se. ( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XXV.)

Tanto os espíritas estão convencidos de que nada podem sobre os Espíritos diretamente, sem a permissão de Deus, que dizem, quando evocam: "Rogamos a Deus todo-poderoso permitir que um bom Espírito se comunique conosco, bem como aos nossos anjos de guarda assistir-nos e afastarem os maus Espíritos." E em se tratando de evocação de um Espírito determinado: - "Rogamos a Deus todo-poderoso permitir que tal Espírito se comunique conosco", etc. ( O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, cap. XVII, n° 203.)

15. - As acusações formuladas pela Igreja, contra as evocações, não atingem, portanto, o Espiritismo, porém as práticas da magia, com a qual este nada tem de comum. O Espiritismo condena tanto quanto a Igreja as referidas práticas, ao mesmo tempo que não confere aos Espíritos superiores um papel indigno deles, nem algo pergunta ou pretende obter sem a permissão de Deus.

Certo, pode haver quem abuse das evocações, quem delas faça um jogo, quem lhes desnature o caráter providencial em proveito de interesses pessoais, ou ainda quem por ignorância, leviandade, orgulho ou ambição se afaste dos verdadeiros princípios da Doutrina; o verdadeiro Espiritismo, o Espiritismo sério os condena porém, tanto quanto a verdadeira religião condena os crentes hipócritas e os fanáticos. Portanto, não é lógico nem razoável imputar ao Espiritismo abusos que ele é o primeiro a condenar, e os erros daqueles que o não compreendem. Antes de formular qualquer acusação, convém saber se é justa. Assim, diremos: A censura da Igreja recai nos charlatães, nos especuladores, nos praticantes de magia e sortilégio, e com razão. Quando a crítica religiosa ou céptica, dissecando abusos, profliga o charlatanismo, não faz mais que realçar a pureza da sã doutrina, auxiliando-a no expurgo de maus elementos e facilitando-nos a tarefa. O erro da critica está no confundir o bom e o mau, o que muitas vezes sucede pela má-fé de alguns e pela ignorância do maior número. Mas a distinção que uma tal crítica não faz, outros a fazem. Finalmente, a censura aplicada ao mal e à qual todo espírita sincero e reto se associa, essa nem prejudica nem afeta a Doutrina.

16. - "Assim, os seres misteriosos que acodem ao primeiro apelo do herege, do ímpio ou do crente - o que importa dizer: - da inocência ou do crime - não são nem enviados de Deus, nem apóstolos da verdade e da salvação, mas fatores do erro e agentes do inferno."

Estas palavras persuadem que Deus não permite a manifestação de bons Espíritos que possam esclarecer e salvar da eterna perdição o herege, o ímpio e o criminoso! Somente os prepostos do inferno se lhes envia, para mais mergulhá-los no lodaçal. Pesa dizê-lo, mas, segundo a Igreja, Deus não envia à Inocência senão seres perversos para seduzi-la!

Essa Igreja não admite entre os anjos, entre as criaturas privilegiadas de Deus, um ser bastante compassivo que venha em socorro das almas transviadas! Para que servem, pois, as brilhantes qualidades que exornam tais seres? Acaso e tão-somente para seu gozo pessoal? E serão eles realmente bons, quando, extasiados pelas delícias da contemplação, vêem tantas almas no caminho do inferno sem que procurem desviá-las? Mas isso é precisamente a imagem do egoísmo desses potentados que, impiedosos na farta opulência, deixam morrer à fome o mendigo que lhes bate à porta!

É mais ainda: É o próprio egoísmo arvorado em virtude e colocado aos pés do Criador!

Mas vós vos admirais que bons Espíritos venham ao herege e ao ímpio, certamente porque vos esquecestes desta parábola do Cristo: - "Não é o homem são que precisa de médico." Então não tendes um ponto de vista mais elevado que o dos fariseus daquele tempo? E vós mesmos, vós vos recusareis mostrar o bom caminho ao descrente que vos chamasse? Pois bem: os bons Espíritos fazem o que faríeis; dirigem-se ao ímpio para dar-lhe bons conselhos. Oh! em lugar de anatematizardes as comunicações de além-túmulo, melhor fora bendissésseis os decretos do Senhor, admirando-lhe a onipotência e bondade infinitas.

17. - Dizem que há anjos de guarda; mas quando não podem insinuar-se pela voz misteriosa da consciência ou da inspiração, por que não empregarem meios de ação mais diretos e materiais de modo a chocar os sentidos, uma vez que tais meios existem? E pois que tudo provém de Deus e nada ocorre sem a sua permissão, podemos admitir que Ele faculte tais meios aos maus Espíritos e os recuse aos bons?

Nesse caso é preciso confessar que Deus facilita mais poderes ao demônio, para perder aos homens, do que aos anjos de guarda para salvá-los! Pois bem! o que os anjos de guarda, segundo a Igreja, não podem fazer, fazem por si os demônios: servindo-se de tais comunicações, ditas infernais, reconduzem a Deus os que o renegavam e ao bem os escravizados ao mal. Esses demônios fazem mais: dão-nos o espetáculo de milhões de homens acreditando em Deus por intercessão da sua potência diabólica, ao passo que a Igreja era impotente para convertê-los. Homens que jamais oraram, fazem-no hoje com fervor, graças às instruções desses demônios! Quantos orgulhosos, egoístas e devassos se tornaram humildes, caridosos e re-catados?! E tudo por obra do diabo! Ah! mas se assim for, claro é que a toda essa gente o demônio tem prestado melhor serviço e guarda que os próprios anjos. É necessário, porém, formar uma triste opinião do senso humano dos nossos tempos. para crer que os homens aceitem cegamente tais idéias. Uma religião, porém, que faz pedra angular de tal doutrina, uma religião que se destrói pela base, em se lhe tirando os seus demônios, o seu inferno, as suas penas eternas e o seu deus impiedoso; uma religião tal, dizemos, é uma religião que se suicida.

18. - Dizem que Deus enviou o Cristo, seu filho, para salvar os homens, provando-lhes com isso o seu amor. Como se explica, entretanto, que os deixasse depois em abandono?

Não há dúvida de que Jesus é o mensageiro divino enviado aos homens para ensinar-lhes a verdade, e, por ela, o caminho da salvação; mas contai - e somente após a sua vinda - quantos não puderam ouvir-lhe a palavra da verdade, quantos morreram e morrerão sem conhecê-la, quantos, finalmente, dos que a conhecem, a põem em prática. Então, por que não lhes enviar Deus, sempre solícito na salvação de suas criaturas, outros mensageiros, que, baixando a todas as terras, entre grandes e pequenos, ignorantes e sábios, crédulos e cépticos, venham ensinar a verdade aos que a desconhecem, torná-la compreensível aos que não a compreendem, e suprir, enfim, pelo seu ensino direto e múltiplo, a insuficiência na propagação do Evangelho, abreviando o evento do reinado divino? Mas eis que chegam esses mensageiros em hostes inumeráveis, abrindo os olhos aos cegos, convertendo os ímpios, curando os enfermos, consolando os aflitos, a exemplo de Jesus! Que fazeis vós, e como os recebeis vós? Ah! vós os repudiais, repelis o bem que fazem e clamais: são demônios!

Outra não era a linguagem dos fariseus relativamente ao Cristo, que, diziam, fazia o bem por artes do diabo! E o Nazareno respondeu-lhes: "Reconhecei a árvore por seu fruto: a má árvore não pode dar bons frutos."

Para os fariseus eram maus os frutos de Jesus, porque ele vinha destruir o abuso e proclamar a liberdade que lhes arruinaria a autoridade. Se ao invés disso Jesus tivesse vindo lisonjear-lhes o orgulho, sancionar os seus erros e sustentar-lhes o poder, então, sim, ele seria o esperado Messias dos judeus. Mas o Cristo era só, pobre e fraco: decretaram-lhe a morte julgando extinguir-lhe a palavra, e a palavra sobreviveu-lhe porque era divina. Importa contudo dizer que essa palavra só lentamente se Propagou, e, após dezoito séculos, apenas é conhecida de uma décima parte do gênero humano. Além disso, em que pese a tais razões, numerosos cismas rebentaram já do seio da cristandade. Pois bem: agora, Deus, em sua misericórdia, envia os Espíritos a confirmá-la, a completá-la, a difundi-la por todos e em toda a Terra - a santa palavra de Jesus. E o grande caso é que os Espíritos não estão encarnados num só homem cuja voz fora limitada: eles são inumeráveis, andam por toda parte e não podem ser tolhidos. Também por isso, o seu ensino se amplia com a rapidez do raio; e porque falam ao coração e à razão, são pelos humildes mais compreendidos.

19. - Não é indigno de celestes mensageiros - dizeis - o transmitirem suas instruções por meio tão vulgar qual o das mesas? Não será ultrajá-los o supor que se divertem com frivolidades deixando a sua mansão de luz para se porem à disposição do primeiro curioso?

Jesus também deixou a mansão do Pai para nascer num estábulo. E quem vos disse que o Espiritismo atribui frioleiras aos Espíritos superiores? Não; o Espiritismo afirma positivamente o contrário, isto é, que as coisas vulgares são próprias de Espíritos vulgares. Não obstante, dessas vulgaridades resulta um benefício, qual o de abalar muitas imaginações, provando a existência do mundo espiritual e demonstrando à saciedade que esse mundo não é tal, porém muito diferente do que se julgava. Essas manifestações iniciais eram porventura simples como tudo que começa, mas nem por germinar de minúscula semente a árvore deixa um dia de estender virente e copada a sua ramagem.

Quem acreditaria que da misérrima manjedoura de Belém pudesse sair a palavra que havia de transformar o mundo?

Sim! O Cristo é bem o Messias divino. A sua palavra é bem a palavra da verdade, fundada na qual a religião se torna inabalável, mas sob condição de praticar os sublimes ensinamentos que ela contém, e não de fazer do Deus justo e bom, que nela reconhecemos, um Deus faccioso, vingativo e cruel.

Da proibição de evocar os mortos

1. - A Igreja de modo algum nega a realidade das manifestações. Ao contrário, como vimos nas citações precedentes, admite-as totalmente, atribuindo-as à exclusiva intervenção dos demônios. É debalde invocar os Evangelhos como fazem alguns para justificar a sua interdição, visto que os Evangelhos nada dizem a esse respeito. O supremo argumento que prevalece é a proibição de Moisés. A seguir damos os termos nos quais se refere ao assunto a mesma pastoral que citamos nos capítulos precedentes:

"Não é permitido entreter relações com eles (os Espíritos), seja imediatamente, seja por intermédio dos que os evocam e interrogam. A lei mosaica punia os gentios. Não procureis os mágicos, diz o Levítico, nem procureis saber coisa alguma dos adivinhos, de maneira a vos contaminardes por meio deles. (Cap. XIX, v. 31.) Morra de morte o homem ou a mulher em quem houver Espírito pitônico; sejam apedrejados e sobre eles recaia seu sangue. (Cap. XX, v. 27.) O Deuteronômio diz: Nunca exista entre vós quem consulte adivinhos, quem observe sonhos e agouros, quem use de malefícios, sortilégios, encantamentos, ou consultem os que têm o Espírito pitônico e se dão a práticas de adivinhação interrogando os mortos. O Senhor abomina todas essas coisas e destruirá, à vossa entrada, as nações que cometem tais crimes." (Cap. XVIII, vv. 10, 11 e 12.)

2. - É útil, para melhor compreensão do verdadeiro sentido das palavras de Moisés, reproduzir por completo o texto um tanto abreviado na citação antecedente. Ei-lo:

"Não vos desvieis do vosso Deus para procurar mágicos; não consulteis os adivinhos, e receai que vos contamineis dirigindo-vos a eles. Eu sou o Senhor vosso Deus." (Levítico, cap. XIX, v. 31.) O homem ou a mulher que tiver Espírito pitônico, ou de adivinho, morra de morte. Serão apedrejados, e o seu sangue recairá sobre eles." (Idem, cap. XX, v. 27.) Quando houverdes entrado na terra que o Senhor vosso Deus vos há de dar, guardai-vos; tomai cuidado em não imitar as abominações de tais povos; - e entre vós ninguém haja que pretenda purificar filho ou filha passando-os pelo fogo; que use de malefícios, sortilégios e encantamentos: que consulte os que têm o Espírito de Píton e se propõem adivinhar, interrogando os mortos para saber a verdade. O Senhor abomina todas essas coisas e exterminará todos esses povos, à vossa entrada, por causa dos crimes que têm cometido. ( Deuteronômio, cap. XVIII, vv. 9, 10, 11 e 12.)

3. - Se a lei de Moisés deve ser tão rigorosamente observada neste ponto, força é que o seja igualmente em todos os outros. Por que seria ela boa no tocante às evocações e má em outras de suas partes? É preciso ser conseqüente. Desde que se reconhece que a lei mosaica não está mais de acordo com a nossa época e costumes em dados casos, a mesma razão procede para a proibição de que tratamos.

Demais, é preciso expender os motivos que justificavam essa proibição e que hoje se anularam completamente. O legislador hebreu queria que 'o seu povo abandonasse todos os costumes adquiridos no Egito, onde as evocações estavam em uso e facilitavam abusos, como se infere destas palavras de Isaías: "O Espírito do Egito se aniquilará de si mesmo e eu precipitarei seu conselho; eles consultarão seus ídolos, seus adivinhos, seus pítons e seus mágicos." (Cap. XIX, v. 3.)

Os israelitas não deviam contratar alianças com as nações estrangeiras, e sabido era que naquelas nações que iam combater encontrariam as mesmas práticas. Moisés devia pois, por política, inspirar aos hebreus aversão a todos os costumes que pudessem ter semelhanças e pontos de contacto com o inimigo. Para justificar essa aversão, preciso era que apresentasse tais práticas como reprovadas pelo próprio Deus, e dai estas palavras: - "O Senhor abomina todas essas coisas e destruirá, à vossa chegada, as nações que cometem tais crimes."

4. - A proibição de Moisés era assaz justa, porque a evocação dos mortos não se originava nos sentimentos de respeito, afeição ou piedade para com eles, sendo antes um recurso para adivinhações, tal como nos augúrios e presságios explorados pelo charlatanismo e pela superstição. Essas práticas, ao que parece, também eram objeto de negócio, e Moisés, por mais que fizesse, não conseguiu desentranhá-las dos costumes populares.

As seguintes palavras do profeta justificam o asserto: - "Quando vos disserem: Consultai os mágicos e adivinhos que balbuciam encantamentos, respondei: - Não consulta cada povo ao seu Deus? E aos mortos se fala do que compete aos vivos?" (Isaías, cap. VIII, v. 19.) "Sou eu quem aponta a falsidade dos prodígios mágicos; quem enlouquece os que se propõem adivinhar, quem transtorna o espírito dos sábios e confunde a sua ciência vã." (Cap. XLIV, v. 25.)

"Que esses adivinhos, que estudam o céu, contemplam os astros e contam os meses para fazer predições, dizendo revelar-vos o futuro, venham agora salvar-vos. -Eles tornaram-se como a palha, e o fogo os devorou; não poderão livrar suas almas do fogo ardente; não restarão das chamas que despedirem, nem carvões que possam aquecer, nem fogo ao qual se possam sentar. - Eis ao que ficarão reduzidas todas essas coisas das quais vos tendes ocupado com tanto afinco: os traficantes que convosco traficam desde a infância foram-se, cada qual para seu lado, sem que um só deles se encontre que vos tire os vossos males." (Cap. XLVII, vv. 13, 14 e 15.)

Neste capítulo Isaías dirige-se aos babilônios sob a figura alegórica "da virgem filha de Babilônia, filha de caldeus". (v. 1.) Diz ele que os adivinhos não impedirão a ruína da monarquia. No seguinte capítulo dirige-se diretamente aos israelitas.

"Vinde aqui vós outros, filhos de uma agoureira, raça dum homem adúltero e de uma mulher prostituída. - De quem vos rides vós? Contra quem abristes a boca e mostrastes ferinas línguas? Não sois vós filhos perversos de bastarda raça - vós que procurais conforto em vossos deuses debaixo de todas as frontes, sacrificando-lhes os tenros filhinhos nas torrentes, sob os rochedos sobranceiros? Depositastes a vossa confiança nas pedras da torrente, espalhastes e bebestes licores em sua honra, oferecestes sacrifícios. Depois disso como não se acender a minha indignação?" (Cap. LVII, vv. 3, 4, 5 e 6.)

Estas palavras são inequívocas e provam claramente que nesse tempo as evocações tinham por fim a adivinhação, ao mesmo tempo que constituíam comércio, associadas às práticas da magia e do sortilégio, acompanhadas até de sacrifícios humanos. Moisés tinha razão, portanto, proibindo tais coisas e afirmando que Deus as abominava.

Essas práticas supersticiosas perpetuaram-se até à Idade Média, mas hoje a razão predomina, ao mesmo tempo que o Espiritismo veio mostrar o fim exclusivamente moral, consolador e religioso das relações de além-túmulo.

Uma vez, porém, que os espíritas não sacrificam criancinhas nem fazem libações para honrar deuses; uma vez que não interrogam astros, mortos e augures para adivinhar a verdade sabiamente velada aos homens; uma vez que repudiam traficar com a faculdade de comunicar com os Espíritos; uma vez que os não move a curiosidade nem a cupidez, mas um sentimento de piedade, um desejo de instruir-se e melhorar-se, aliviando as almas sofredoras; uma vez que assim é, porque o é - a proibição de Moisés não lhes pode ser extensiva.

Se os que clamam injustamente contra os espíritas se aprofundassem mais no sentido das palavras bíblicas, reconheceriam que nada existe de análogo, nos princípios do Espiritismo, com o que se passava entre os hebreus. A verdade é que o Espiritismo condena tudo que motivou a interdição de Moisés; mas os seus adversários, no afã de encontrar argumentos com que rebatam as novas idéias, nem se apercebem que tais argumentos são negativos, por serem completamente falsos.

A lei civil contemporânea pune todos os abusos que Moisés tinha em vista reprimir.

Contudo, se ele pronunciou a pena última contra os delinqüentes, é porque lhe faleciam meios brandos para governar um povo tão indisciplinado. Esta pena, ao demais, era muito prodigalizada na legislação mosaica, pois não havia muito onde escolher nos meios de repressão. Sem prisões nem casas de correção no deserto, Moisés não podia graduar a penalidade como se faz em nossos dias, além de que o seu povo não era de natureza a atemorizar-se com penas puramente disciplinares. Carecem portanto de razão os que se apóiam na severidade do castigo para provar o grau de culpabilidade da evocação dos mortos. Conviria, por consideração à lei de Moisés, manter a pena capital em todos os casos nos quais ele a prescrevia? Por que, então, reviver com tanta insistência este artigo, silenciando ao mesmo tempo o principio do capítulo que proíbe aos sacerdotes a posse de bens terrenos e partilhar de qualquer herança, porque o Senhor é a sua própria herança? (Deuteronômio, cap. XXVIII, vv. 1 e 2.)

5. - Há duas partes distintas na lei de Moisés: a lei de Deus propriamente dita, promulgada sobre o Sinal, e a lei civil ou disciplinar, apropriada aos costumes e caráter do povo. Uma dessas leis é invariável, ao passo que a outra se modifica com o tempo, e a ninguém ocorre que possamos ser governados pelos mesmos meios por que o eram os judeus no deserto e tampouco que os capitulares de Carlos Magno se moldem à França do século XIX. Quem pensaria hoje, por exemplo, em reviver este artigo da lei mosaica: "Se um boi escornar um homem ou mulher, que disso morram, seja o boi apedrejado e ninguém coma de sua carne; mas o dono do boi será julgado inocente"? ( Êxodo, cap. XXI, vv. 28 e seguintes.)

Este artigo, que nos parece tão absurdo, não tinha, no entanto, outro objetivo que o de punir o boi e inocentar o dono, equivalendo simplesmente à confiscação do animal, causa do acidente, para obrigar o proprietário a maior vigilância. A perda do boi era a punição que devia ser bem sensível para um povo de pastores, a ponto de dispensar outra qualquer; entretanto, essa perda a ninguém aproveitava, por ser proibido comer a carne. Outros artigos prescrevem o caso em que o proprietário é responsável.

Tudo tinha sua razão de ser na legislação de Moisés, uma vez que tudo ela prevê em seus mínimos detalhes, mas a forma, bem como o fundo, adaptavam-se às circunstâncias ocasionais Se Moisés voltasse em nossos dias para legislar sobre uma nação civilizada, decerto não lhe daria um código igual ao dos hebreus.

6. - A esta objeção opõem a afirmativa de que todas as leis de Moisés foram ditadas em nome de Deus, assim como as do Sinal. Mas julgando-as todas de fonte divina, por que ao decálogo limitam os mandamentos? Qual a razão de ser da diferença? Pois não é certo que se todas essas leis emanam de Deus devem todas ser igualmente obrigatórias? E por que não conservaram a circuncisão, à qual Jesus se submeteu e não aboliu? Ah! esquecem que, para dar autoridade às suas leis, todos os legisladores antigos lhes atribuíam uma origem divina. Pois bem: Moisés, mais que nenhum outro, tinha necessidade desse recurso, atento o caráter do seu povo; e se, a despeito disso, ele teve dificuldade em se fazer obedecer, que não sucederia se as leis fossem promulgadas em seu próprio nome!

Não veio Jesus modificar a lei mosaica, fazendo da sua lei o código dos cristãos?

Não disse ele: - "Vós sabeis o que foi dito aos antigos, tal e tal coisa, e eu vos digo tal outra coisa?" Entretanto Jesus não proscreveu, antes sancionou a lei do Sinai, da qual toda a sua doutrina moral é um desdobramento. Ora, Jesus nunca aludiu em parte alguma à proibição de evocar os mortos, quando este era um assunto bastante grave para ser omitido nas suas prédicas, mormente tendo ele tratado de outros assuntos secundários.

7. - Finalmente convém saber se a Igreja coloca a lei mosaica acima da evangélica, ou por outra, se é mais judia que cristã. Convém também notar que, de todas as religiões, precisamente a judia é que faz menos oposição ao Espiritismo, porquanto não invoca a lei de Moisés contrária às relações com os mortos, como fazem as seitas cristãs.

8. - Mas temos ainda outra contradição: - Se Moisés proibiu evocar os mortos, é que estes podiam vir, pois do contrário inútil fora a proibição. Ora, se os mortos podiam vir naqueles tempos, também o podem hoje; e se são Espíritos de mortos os que vêm, não são exclusivamente demônios. Demais, Moisés de modo algum fala nesses últimos.

É duplo, portanto, o motivo pelo qual não se pode aceitar logicamente a autoridade de Moisés na espécie, a saber: - primeiro, porque a sua lei não rege o Cristianismo; e, segundo, porque é imprópria aos costumes da nossa época. Mas, suponhamos que essa lei tem a plenitude da autoridade por alguns outorgada, e ainda assim ela não poderá, como vimos, aplicar-se ao Espiritismo. É verdade que a proibição de Moisés abrange a interrogação dos mortos, porém de modo secundário, como acessória às práticas da feitiçaria..

O próprio vocábulo interrogação, junto aos de adivinho e agoureiro, prova que entre os hebreus as evocações eram um meio de adivinhar; entretanto, os espíritas só evocam mortos para receber sábios conselhos e obter alivio em favor dos que sofrem, nunca para conseguir revelações ilícitas. Certo, se os hebreus usassem das comunicações como fazem os espíritas, longe de as proibir, Moisés acoroçoá-las-ia, porque o seu povo só teria que lucrar.

9. - É certo que alguns críticos jucundos ou mal-intencionados têm descrito as reuniões espíritas como assembléias de negromantes ou feiticeiros, e os médiuns como astrólogos e ciganos, isto porque talvez quaisquer charlatães tenham afeiçoado tais nomes às suas práticas, que o Espiritismo não pode, aliás, aprovar.

Em compensação, há também muita gente que faz justiça e testemunha o caráter essencialmente moral e grave das reuniões sérias. Além disso, a Doutrina, em livros ao alcance de todo o mundo, protesta bem alto contra os abusos, para que a calúnia recaia sobre quem merece.

10. - A evocação, dizem, é uma falta de consideração para com os mortos, cujas cinzas devem ser respeitadas. Mas quem é que diz tal? São os antagonistas de dois campos opostos, isto é, os incrédulos que nas almas não crêem, e os crédulos que pretendem que só os demônios, e não as almas, podem vir.

Quando a evocação é feita com recolhimento e religiosamente; quando os Espíritos são chamados, não por curiosidade, mas por um sentimento de afeição e simpatia, com desejo sincero de instrução e progresso, não vemos nada de irreverente em apelar-se para as pessoas mortas, como se fizera com os vivos. Há, contudo, uma outra resposta peremptória a essa objeção, e é que os Espíritos se apresentam espontaneamente, sem constrangimento, muitas vezes mesmo sem que sejam chamados. Eles também dão testemunho da satisfação que experimentam por comunicar-se com os homens, e queixam-se às vezes do esquecimento em que os deixam. Se os Espíritos se perturbassem ou se agastassem com os nossos chamados, certo o diriam e não retornariam; porém, nessas evocações, livres como são, se se manifestam, é porque lhes convém.

11. - Ainda uma outra razão é alegada: - As almas permanecem na morada que a justiça divina lhes designa - o que equivale dizer no céu ou no inferno. Assim, as que estão no inferno, de lá não podem sair, posto que para tanto a mais ampla liberdade seja outorgada aos demônios. As do céu, inteiramente entregues à sua beatitude, estão muito superiores aos mortais para deles se ocuparem, e são bastantemente felizes para não voltarem a esta terra de misérias, no interesse de parentes e amigos que aqui deixassem. Então essas almas podem ser comparadas aos nababos que dos pobres desviam a vista com receio de perturbar a digestão? Mas se assim fora essas almas se mostrariam pouco dignas da suprema bem-aventurança, transformando-se em padrão de egoísmo!

Restam ainda as almas do purgatório, porém, estas, sofredoras como devem ser, antes que doutra coisa, devem cuidar da sua salvação. Deste modo, não podendo nem umas nem outras almas corresponder ao nosso apelo, somente o demônio se apresenta em seu lugar.

Então é o caso de dizer: se as almas não podem vir, não há de que recear pela perturbação do seu repouso.

12. - Mas aqui reponta uma outra dificuldade. Se as almas bem-aventuradas não podem deixar a mansão gloriosa para socorrer os mortais, por que invoca a Igreja a assistência dos santos que devem fruir ainda maior soma de beatitude? Por que aconselha invocá-los em casos de moléstia, de aflição, de flagelos? Por que razão e segundo essa mesma Igreja os santos e a própria Virgem aparecem aos homens e fazem milagres? Estes deixam o céu para baixar à Terra; entretanto os que estão menos elevados não o podem fazer!

13. - Que os cépticos neguem a manifestação das almas, vá, visto que nelas não acreditam; mas o que se torna estranhável é ver encarniçar-se contra os meios de provar a sua existência, esforçando-se por demonstrar a impossibilidade desses meios, aqueles mesmos cujas crenças repousam na existência e no futuro das almas! Parece que seria mais natural acolherem como benefício da Providência os meios de confundir os cépticos com provas irrecusáveis, pois que são os negadores da própria religião. Os que têm interesse na existência da alma deploram constantemente a avalancha da incredulidade que invade, dizimando-o, o rebanho de fiéis: entretanto, quando se lhes apresenta o meio mais poderoso de combatê-la, recusam-no com tanta ou mais obstinação que os próprios incrédulos. Depois, quando as provas avultam de modo a não deixar dúvidas, eis que procuram como recurso de supremo argumento a interdição do assunto, buscando, para justificá-la, um artigo da lei mosaica do qual ninguém cogitara, emprestando-lhe, à força, um sentido e aplicação inexistentes. E tão felizes se julgam com a descoberta, que não percebem que esse artigo é ainda uma justificativa da Doutrina Espírita.

14. - Todas as razões alegadas para condenar as relações com os Espíritos não resistem a um exame sério. Pelo ardor com que se combate nesse sentido é fácil deduzir o grande interesse ligado ao assunto. Daí a insistência. Em vendo esta cruzada de todos os cultos contra as manifestações, dir-se-ia que delas se atemorizam.

O verdadeiro motivo poderia bem ser o receio de que os Espíritos muito esclarecidos viessem instruir os homens sobre pontos que se pretende obscurecer, dando-lhes conhecimento, ao mesmo tempo, da certeza de um outro mundo, a par das verdadeiras condições para nele serem felizes ou desgraçados. A razão deve ser a mesma por que se diz à criança: - "Não vá lá, que há lobisomens." Ao homem dizem: -" Não chameis os Espíritos: - São o diabo." - Não importa, porém: - impedem os homens de os evocar, mas não poderão impedi-los de vir aos homens para levantar a lâmpada de sob o alqueire.

O culto que estiver com a verdade absoluta nada terá que temer da luz, pois a luz faz brilhar a verdade e o demônio nada pode contra esta.

15. - Repelir as comunicações de além-túmulo é repudiar o meio mais poderoso de instruir-se, já pela iniciação nos conhecimentos da vida futura, já pelos exemplos que tais comunicações nos fornecem. A experiência nos ensina, além disso, o bem que podemos fazer, desviando do mal os Espíritos imperfeitos, ajudando os que sofrem a desprenderem-se da matéria e a se aperfeiçoarem. Interdizer as comunicações é, portanto, privar as almas sofredoras da assistência que lhes podemos e devemos dispensar.

As seguintes palavras de um Espírito resumem admiravelmente as conseqüências da evocação, quando praticada com fim caritativo:

"Todo Espírito sofredor e desolado vos contará a causa da sua queda, os desvarios que o perderam. Esperanças, combates e terrores; remorsos, desesperos e dores, tudo vos dirá, mostrando Deus justamente irritado a punir o culpado com toda a severidade. Ao ouvi-lo, dois sentimentos vos acometerão: o da compaixão e o do temor! compaixão por ele, temor por vós mesmos. E se o seguirdes nos seus queixumes, vereis então que Deus jamais o perde de vista, esperando o pecador arrependido e estendendo-lhe os braços logo que procure regenerar-se. Do culpado vereis, enfim, os progressos benéficos para os quais tereis a felicidade e a glória de contribuir, com a solicitude e o carinho do cirurgião acompanhando a cicatrização da ferida que pensa diariamente." (Bordéus, 1861.)

 

                                                                                            Allan Kardec

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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