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Remissão de Pecados / Joaquim Manuel de Macedo
Remissão de Pecados / Joaquim Manuel de Macedo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Remissão de Pecados

 

TEATRO S. LUIS

Anda atualmente em cena neste teatro uma comédia em 5 atos do sr. dr. Joaquim Manuel de Macedo, a Remissão de pecados. Apesar da designação de comédia, segundo a idéia que geralmente se liga à palavra, não é esta uma composição ligeira principalmente destinada a recrear e divertir, ocupando-se ao mesmo tempo mais ou menos com a reforma dos costumes. A ação é toda dramática, envolvendo paixões fortes e situações violentas.

Remissão de Pecados escreveu o autor no alto da sua comédia, e com efeito encontramos aqui diversos pecados e pecadores remitidos ou perdoados uns pelos outros. Adriano consome no jogo a fortuna que lhe trouxera sua mulher, e quase esquece esta, que é um anjo de virtude e candura, pela louca paixão que lhe inspira uma criatura indigna. Destes dois feíssimos pecados e seus estragos é ele não sabemos se remitido ou remido pelas exortações e dinheiro de Clarimundo. Esta mesma remissão dá ocasião a que Clarimundo, oculto pai de Adriano, reconheça o filho e case com Úrsula, de quem o houvera, oferecendo-nos o quadro de mais dois pecadores perdoados. Apenas se poderia dizer que a remissão de tão grandes pecados é um tanto facilmente obtida.

Escrita no estilo brilhante e muitas vezes sarcástico do sr. dr. Macedo, a comédia abunda em bons ditos. Tem vários lances que impressionam fortemente, e delineadas por mão experimentada, as cenas sucedem-se naturalmente, mantendo vivo o interesse do espectador.

O primeiro ato passa-se numa casa de jogo, cujos tenebrosos mistérios são desvendados em toda a sua hediondez. É um belo quadro de costumes, em que se patenteiam muitas chagas sociais, entre as quais principiamos a perceber o fio da ação do drama, Fábio, no intuito de seduzir Helena, esposa de Adriano, já precipitara este na voragem do jogo, e agora forma um pacto infame com o dono da espelunca, Bráulio, que deve fazer com que Dionísia, uma rapariga perdida, que ele faz passar por sua sobrinha, induza Adriano, já apaixonado por ela, a raptá-la, a fim de que o escândalo dado pelo marido aplane o caminho ao sedutor da esposa.

O segundo ato passa-se no salão do Teatro Lírico, cena excelentemente pintada, e que não pode dar senão a melhor idéia do novo pintor do teatro, o sr. Rocha. A vista foi muito aplaudida, e com razão; a perspectiva é de uma ilusão perfeita, e se em alguma coisa peca é por excesso, sendo talvez demasiado o fundo. Aqui Clarimundo, que fora o tutor de Helena, começa a perceber, apesar dos protestos desta, que no casal nem tudo é felicidade. A pobre esposa, resignada e calada, sofre muito, e a vista de Dionísia vem aumentar-lhe o martírio.

Passamos para a casa de Adriano, onde temos uma bela cena entre ele e Helena, que não se queixa de ver esbanjados todos os seus haveres, mas só lamenta ter perdido o amor do esposo. Clarimundo obriga Adriano a prometer-lhe que se regenerará, refazendo pelo trabalho a sua fortuna, e restaurando a felicidade doméstica pelo esquecimento de Dionísia. Não se fiando, porém, muito nas promessas do pecador, ele exige de Cincinato, caráter estouvado, mas franco e leal, que faça desaparecer a rapariga levando-a consigo para qualquer parte.

Para execução deste plano voltamos no 4º ato à casa de jogo, onde o venal Bráulio e a não menos venal Dionísia aceitam sem dificuldade a proposta de Cincinato, que oferece maior quantia do que Fábio prometera. No momento da fuga ainda 2 Cincinato consegue fazer-se substituir por um amigo condescendente, livrando-se assim de um trambolho, e pregando uma peça a Bráulio, que perde o direito ao prêmio, visto quem devera pagar-lho dar-se por traído.

O fim, porém, está alcançado, e removida a serpente, Adriano no 5º ato volta aos braços da esposa. Clarimundo paga-lhe as dívidas, reconhece-o por filho, casa com Úrsula, como dissemos, e desce o pano, deixando todos felizes e contentes.

Expondo assim rápida e sucintamente o entrecho, é claro que não podíamos reproduzir todas as belezas do drama, derramadas pelo diálogo e pelo encadeamento das cenas. O mesmo desenlace assim exposto poderia talvez não parecer inteiramente satisfatório, mas para bem julgar um drama é mister vê-lo representar, quando é para isso que foi escrito. A representação pode dar-lhe um brilho e um encanto, de que somente com a própria vista se faz idéia. A indiferença do público é o maior inimigo com que lutam as letras; um drama firmado por um nome conhecido deveria despertar em todos a curiosidade de vê-lo ao menos uma vez; ficando então ao gosto de cada um voltar ou não, conforme a composição lhe houvesse agradado.

Cuidadosamente ensaiada e posta em cena com esmero e capricho, a Remissão de pecados foi representada de modo que não pode merecer senão elogios, traduzidos por nós em palavras como o foram pelo público em palmas à cena.

O sr. Furtado Coelho no papel de Cincinato criou um tipo delicioso, mistura feliz de estouvamento com as mais nobres qualidades do coração. Os srs. Amoedo (Adriano), Guilherme (Clarimundo), Paiva (Fábio), Gusmão (Bráulio), e as sras. Leolinda (Helena), Rosinha (Úrsula), e Virgínia (Dionísia) sustentaram bem as suas partes, formando um conjunto que agradou a todos. O sr. Graça no papel de usurário apenas estaria uns cinco minutos em cena, mas foi quanto bastou para arrancar aplausos gerais, tornando notável uma das personagens mais insignificantes do drama.

O autor, assistindo à segunda representação, foi vitoriado pelo público e agradeceu do seu camarote estas demonstrações não só de simpatia, mas também de merecida homenagem ao talento.

 

PERSONAGENS

 

HELENA............................................................................................Ismênia

ÚRSULA...........................................................................................Rosinha

DIONÍSIA..........................................................................................Virgínia

GERTRUDES....................................................................................

ADRIANO.........................................................................................Amoedo

CLARIMUNDO............................................................................Guilherme

CINCINATO.......................................................................................Furtado

FÁBIO....................................................................................................Paiva

BRÁULIO..........................................................................................Gusmão

DEMÉTRIO.......................................................................................Pinheiro

VENCESLAU........................................................................................Graça

DR.GONÇALVES..............................................................................Lima

LOURENÇO.....................................................................................Caminha

SILVEIRA..............................................................................................Costa

D.DONALDO....................................................................................Timóteo

José........................................................................................................Torres

Criados da casa de jogo – Jogadores – Senhoras e Cavalheiros.

 

A ação se passa na cidade do Rio de Janeiro.

Época a atualidade.

 

ATO I

Sala muito modesta; mesa com candeeiro a querosene; sofá; porta à esquerda, abrindo para aposentos interiores; outra à direita, comunicando com a sala de jogo; portas ao fundo, que abrem para a sala principal que, apenas se vê e onde há piano no qual se ouve tocar e cantar.

CENA I

BRÁULIO, vindo da direita, FÁBIO, entrando pelo fundo.

FÁBIO (Para a sala do fundo.) – Cante muito; a sua voz dá-me felicidade (A Bráulio.) Como vai a sessão?... (Conversam ambos à meia voz.)

BRÁULIO – Ameaçando tempestade: as cartas arranjaram-se e d. Donaldo na primeira tripa fez maravilhas: a segunda tripa começou agora.

FÁBIO – As cartas falhas são pois quatro, seis e o rei...

BRÁULIO – E nos baralhos novos, se os pedirem, passam a ser três, dama, e, principalmente, sete e às.

FÁBIO – Sei: e além de mim e do capitão há mais feitos?...

BRÁULIO – Nenhum: não convém estender a confiança mesmo entre os cavalheiros honrados, alguns têm o defeito de dar à língua por gabolice.

FÁBIO – Creio que me demorei bastante para excluir qualquer idéia de conluio; antes, porém, de ir jogar, urge dizer-lhe duas palavras: Adriano...

BRÁULIO – Não chegou até agora...

FÁBIO – Pouco importa: não é mais o jogo, é sua sobrinha que o deve escravizar, e a ocasião para a última cartada é agora; amanhã, ou ao mais tardar depois de amanhã, Dionísia se fará levar daqui por Adriano; depois de amanhã ou nunca.

BRÁULIO – O prazo é muito curto... mas...

FÁBIO – Basta que Dionísia queira e exija: Adriano já não se governa; o senhor sabe o que tem a ganhar; depois de amanhã ou nunca... disponha sua sobrinha... se quiser logo conversaremos; agora tenho pressa. (Vai-se pela direita.)

CENA II

BRÁULIO e logo GERTRUDES BRÁULIO – Gertrudes! (Entra Gertrudes.) é preciso que Dionísia hoje mesmo obrigue Adriano a estar pronto para levá-la consigo depois de amanhã à noite... e veremos até lá.

GERTRUDES – É coisa feita: o pobre rapaz está pelo beiço... então o senhor Fábio...

BRÁULIO – Acaba de dar-me as suas ordens em tom de meu amo... digo-te que me aborrece muito o ar que ele toma comigo; mas o diabo paga bem.

GERTRUDES – Arranjemos a nossa vida: durma eu quente e ria-se a gente.

BRÁULIO – Rir?... outros talvez podem rir: ele não; confesso... o nosso 4 procedimento... não é bonito; mas o de Fábio é mil vezes pior.

GERTRUDES – E para um homem limpo... de boa sociedade...

BRÁULIO – É de arrepiar os cabelos! arrastou o outro para o jogo, preparou-lhe arteiramente a paixão por Dionísia; fê-lo estragar a fortuna, agora vai manchá-lo com um escândalo público, e apanhando a mísera esposa um abandono, conseguirá talvez seduzi-la!... e é um homem destes que me fala com tanta altivez!

GERTRUDES – Mas se ele paga bem...

BRÁULIO – Ele? com o dinheiro da irmã... e que me importa?... o certo é que paga; eis o essencial; o mundo é assim... o sr. Fábio faz dessas, e ainda mais, está lá dentro passando a perna a uma dúzia de jogadores paios, e ganhando de sociedade comigo, que arranjei as cartas, e amanhã há de chamar-me miserável e mesmo canalha, e meia capital do Império o festejará como homem de bem e nobre cavalheiro!... o mundo é assim: arranjemos pois a nossa vida; viva o dinheiro, venha ele como vier; anda, vai pôr Dionísia de sobreaviso... ainda...

GERTRUDES – E já, que aí chega o maldito Quebra-louça: parece que perdeu no jogo... bem feito! ( Vai-se pelo fundo.)

CENA III

BRÁULIO e CINCINATO, que sai da direita, assoviando.

BRÁULIO – Deu o basta, sr. Cincinato?...

CINCINATO – Questão duvidosa; mas com certeza fico para ceia: faça de conta que é pausa de suspensão; palpite de refrescar; em honra, porém, de meu nome romano, quando deponho a ditadura, pego logo na charrua: acabei de depor o lasquenet, quero uma garrafa de cerveja.

BRÁULIO – Vou fazê-lo servir... (Indo-se e volta à voz de Cincinato.)

CINCINATO – Um momento: sou inimigo das falsificações de nacionalidades; temos tantas latas de sardinhas de Nantes de Jurujuba, tantas caixas de charutos de Havana da Bahia, tantas maravilhas de fora arranjadas cá dentro, como garrafas de cerveja Bass de Liverpool da Rua do Riachuelo, e de Munich mesmo da Baviera da Guarda-Velha; ora, em matéria de cerveja suspendi as garantias do meu patriotismo. Quero uma garrafa de cerveja de Liverpool da Inglaterra.

BRÁULIO – Legítima! na nossa casa não há contrafações.

CINCINATO – Olhe que também não ataco a indústria dos letreiros que é a arte de vender gato por lebre: qual é mesmo o letreiro da sua casa?... “Casa de penhores de objetos de prata, ouro e brilhantes” e aqui há contrafações: atesto na fé do meu título; Cincinato Quebra-louça, assinado por cima de estampilha. Venha a cerveja.

BRÁULIO – Já podia estar servido. (Indo-se.) sr. Demétrio! como passou?...(Cumprimenta e vai-se pela esquerda.)

CENA IV

CINCINATO e DEMÉTRIO, que entra pelo fundo

DEMÉTRIO (Cumprimenta.) – Amável Cincinato...

CINCINATO – Adeus, prodígio.

DEMÉTRIO – Que é isso de prodígio? ... (Senta-se à esquerda.)

CINCINATO – Vocês não me chamam Quebra-louça?... pela mesma regra eu te chamarei prodígio, e o és, palavra de honra: figurino de Paris no vestir; muçulmano no amor das ninfas mais caras; gastrônomo a romano da decadência; pagodista e jogador, como herdeiro do conde de Monte-Cristo, ofício, benefício, ou fonte de rendimentos 5 não constam do Almanaque de Laemmert: és prodígio ou não és?... (Entra um criado trazendo cerveja.)

DEMÉTRIO – Sou um dardo que te atravesse. (O criado abre a garrafa.)

CINCINATO – O pior é que os teus parentes prodígios vão abundando muito na capital! como se arranjam vocês?... despesas a abarrotar, receita conhecida zero, déficit jamais!... (Ao criado.) Não faz espuma, diabo! (A Demétrio.) Demétrio, tu deves ser ministro da fazenda...

DEMÉTRIO – Não jogas hoje? ...

CINCINATO – Infandum, regina, jubes renovare dolores! ...

DEMÉTRIO – Perdeste?...

UMA VOZ (Dentro.) – Levante!

CINCINATO – Aquele grito é de algum caído.

OUTRA VOZ (Dentro.) – Eu sou sete...

FÁBIO (Dentro.) – Eu sou dama.

CINCINATO – Milagre do lasquenet: o Fábio tornou-se dama.

DEMÉTRIO – Joga por fora. Quem ganha?...

CINCINATO – Prodígio, toma o meu conselho; não joga esta noite. Queres cerveja?... (Bebe e faz uma careta.) nem por isso.

DEMÉTRIO – Por que? ...

CINCINATO – É que chocou, passando a linha: traficâncias do equador...

DEMÉTRIO – Que me importa o equador?... porque aconselhas a não jogar?

CINCINATO – Ainda caso de astronomia; descobri no horizonte a cauda de um cometa: do tamanho da língua dos lambedores da alfândega.

DEMÉTRIO – Quem é?

CINCINATO – O adventício da penúltima sessão: d. Donaldo Cabalero Salzedo Cuencas da Silva Escalona de los Montes e Pincaros de Hermosa e de las Torres de Calatrava Bivanco de la Mancha Mançanares Barbuda e Rui de Aragão e Castella...

DEMÉTRIO – Basta... o espanhol?... e então?...

CINCINATO – Na primeira tripa lambeu-me trezentos mil réis que fui parando para experimentar... desconfiei da experiência e vim tomar cerveja por consolação...

DEMÉTRIO – E não pensas em desforra?...

CINCINATO – Nada: a desforra é rapariga muito provocadora, mas de ordinário quem vai atrás dela perde-se no caminho...

DEMÉTRIO – Pois eu te mostro como se faz frente ao espanhol (Vai-se)

CINCINATO (Seguindo-o até a porta.) – Avante, prodígio! eu fico na retaguarda, que é a guarda reta dos generais prudentes. (Deita-se no sofá.)

CENA V

CINCINATO, que fuma e bebe cerveja, depois BRÁULIO DIONÍSIA (Cantando dentro.) – Casta diva qu’inargente Queste sacra, etc.

CINCINATO (Acompanhando com a mesma música.) – Bela moça qu’enfeitiças Esta casa do barato, Vem, consola o pobre paio Que pagou bem caro o pato.

DIONÍSIA (Dentro.) – Ah, bello à me ritorna Del fido, etc.

CINCINATO (Acompanhando.) – Ai, triste, o meu dinheiro Não volta ao bolso meu; Consola-me, Dionísia, 6 Dá-me um beijinho teu.

UMA VOZ (Dentro.) – Levante!

OUTRA VOZ (Dentro.) – É o quinto rei à direita!... faz desconfiar! (Sussurro.)

BRÁULIO (Entrando.) – Aqueles senhores fazem muita bulha por pouca coisa!

CINCINATO – São republicanos que querem por força o rei à esquerda: é preciso denunciá-los à polícia.

BRÁULIO – E o senhor quer dormir em vez de jogar?...

CINCINATO – Efeitos da harmonia: sua sobrinha por excesso de afinação desafinou-me; ouvindo-a cantar a Casta diva, caí no sofá desafinado, isto é, desafinado no sofá.

BRÁULIO – É lisonja de cavalheiro amável... porém.... o senhor não joga mais hoje? ...

CINCINATO – Tranqüiliza-se; já concorri bastante para o barato: agora tenho outros cuidados... cerimônias à parte e segredo entre nós... ela é deveras sua sobrinha?...

BRÁULIO – Que pergunta! que supõe então o senhor?...

CINCINATO – Em fato de suposições o infinito é direito dos maliciosos; mas, na hipótese do parentesco, leve o diabo quem se arrepender... o sr. Bráulio quer-me para sobrinho honorário em casamento provisório com a terça parte do barato por dote temporário?...

BRÁULIO – O senhor abusa... e me obrigará talvez a pedir-lhe o favor...

CINCINATO – De não voltar à gaiola onde gorjeia o rouxinol?... veja o que diz, tio Bráulio... é isso?... veja o que diz...

BRÁULIO – Pois é isso.

CINCINATO (Bebe cerveja e levanta-se) – Ali defronte há um sobrado de dois andares com escritos: amanhã alugo-o e estabeleço ao primeiro andar não uma, porém três sobrinhas, e no segundo lasquenet na frente, e bacarat, vulgo pacão, nos fundos; concorrência dupla no andar de baixo e no andar de cima; condições de supremacia: em baixo as sobrinhas sem tio, em cima o lasquenet e o pacão sem barato; no primeiro andar vulcões número três, no segundo sorvetes grátis e à vontade para refrigerar. Tio Bráulio, concedo-lhe duas horas para merecer o meu perdão. E tenho dito. Cincinato Quebra-louça assinado por cima de estampilha. ( Vai-se pela direita.)

CENA VI

BRÁULIO, e logo DIONÍSIA e GERTRUDES

BRÁULIO (À porta do fundo.) – Vocês não têm peso nem medida: em toda parte mostram o que são.

DIONÍSIA – Não perco nada, mostrando o que sou, porque ainda ninguém me achou feia.

GERTRUDES – Mas que alvoroço é este?...

BRÁULIO – Como é que dás confianças ao Quebra-louça quando estamos quase a ganhar a demanda com Adriano?

DIONÍSIA – É falso: eu a nenhum dou confianças; mas não sei como é que todos as tomam! quanto ao Quebra-louça, além de feio, é rio sem peixe; não me apanha corda.

BRÁULIO – E o atrevimento com que fala de ti?... propôs-me que o tomasse por sobrinho honorário, dando-te a ele em casamento provisório com a terça parte do barato por dote temporário:já se viu zombaria mais insolente?!!

DIONÍSIA (Desatando a rir.) – Ah! ah! ah! ah!

GERTRUDES – Por isso o descarado, quando passa por mim, sempre me trata de mamãe Gertrudes!

DIONÍSIA (Rindo.) – Ah! ah! ah! ah!

BRÁULIO – E ris ainda!

DIONÍSIA – Achei-lhe graça: é pena que o demônio seja tão feio.

UMA VOZ (Dentro.) – E escandaloso! há trapaça evidente!... (Sussurro.)

LOURENÇO (Dentro.) – Não perdi, roubaram o meu dinheiro!... (Rindo.)

BRÁULIO (A Gertrudes.) – Vai tocar! (Vai-se Gertrudes e logo toca.)

CENA VII

BRÁULIO, DIONÍSIA, LOURENÇO e depois GERTRUDES

BRÁULIO – Sr. Lourenço... ainda infeliz esta noite...

LOURENÇO – Infeliz não, roubado! nunca fui jogador! mas... (olhando Dionísia.) a traição, fingindo-se amor, quis que eu tomasse o jogo por pretexto, e em breve o pretexto se tornou vício e a falsidade depôs a máscara; na sua casa tudo é infame! deixo neste golfão a fortuna que há um ano herdei de meu honrado pai... minha ruína é justo castigo; porque eu recebi a educação da honestidade, e menti a ela vindo aqui manchar-me com duas corrupções!... (Vai-se arrebatado.)

BRÁULIO (Friamente.) – Amanhã à noite ele volta para jogar.

GERTRUDES (Entrando.) – Que furioso! fugi de medo...

D. DONALDO (Dentro.) – Trezentos mil réis!

UMA VOZ (Dentro.) – Levante.

FÁBIO (Dentro.) – Eu sou rei.

OUTRA VOZ (Dentro.) – Eu sou quatro.

GERTRUDES – Olha que em alguma noite o barato há de te sair caro.

BRÁULIO – Eu não obrigo a jogar.

VOZES (Dentro.) – O rei... quinze sortes!...

OUTRAS VOZES (Dentro.) – Há maço! há maço! venham baralhos novos! (Rindo.)

CENA VIII

BRÁULIO, DIONÍSIA, GERTRUDES, um CRIADO e logo SILVEIRA

CRIADO (Correndo.) – Cartas novas...

BRÁULIO – Leva as que estão sobre a mesa do meu quarto. ( Vai-se o criado à esquerda.)

SILVEIRA – Sr. Bráulio... uma palavra (A um lado.): perdi quanto trazia... filho família não ouso expor-me a alguma negativa, querendo jogar sob palavra... empresteme só duzentos mil réis... juro-lhe que em três dias...

BRÁULIO – Filho-família... estamos na mesma; porém... o seu relógio de ouro e o alfinete de brilhantes... note que é somente pelo desejo de servi-lo...

SILVEIRA – Oh! mas amanhã... amanhã... .meu pai...

BRÁULIO – E quem lhe diz que não se desforrará esta noite?... (Ao criado que passa.) Que levas aí?...

CRIADO – Baralhos novos. (Vai-se pela direita.)

BRÁULIO – Vê? ... cartas novas... a fortuna deve mudar...

SILVEIRA (Tremendo e rápido.) – Aí os tem.... (Dá o relógio e o alfinete)

BRÁULIO – Em um instante... (Vai-se pela esquerda.)

VOZES (Dentro.) – Vejamos agora!

DEMÉTRIO (Dentro.) – Cincinato! à desforra!

CINCINATO (Dentro.) – Não pegam as bixas: quero ver primeiro como corre a tripa.

DIONÍSIA (A Silveira tornando-lhe a mão.) – Para que joga?...

SILVEIRA (Confuso e rindo à força.) – Para apostar pelas damas.

GERTRUDES – Que te importa que o senhor jogue ou não?

DIONÍSIA – Tão mocinho e tão bonito devia só amar. (Com doçura a Silveira.) Não jogue.

BRÁULIO (Voltando e dando a Silveira dinheiro e um papel) – O dinheiro e a cautela: há de ver que nos juros houve fineza de amigo.

SILVEIRA (Recebendo) – Obrigado... obrigado... (Vai-se pela direita.)

DIONÍSIA – Nem se quer me disse adeus... pois que se perca...

BRÁULIO – Deixa o menino, perversa: tratemos de Adriano; Gertrudes já te preveniu do que há?...

DIONÍSIA – Estou ciente: favas contadas... Adriano é minha propriedade; já lhe pus feitiço; depois de amanhã fujo com ele... e, adeus, titio... por três meses pelo menos...

BRÁULIO – Estás bem certa de obrigá-lo a esse extremo?

DIONÍSIA – Certíssima; mas da sua parte não se deixe lograr pelo Fábio que é bisca; olhe: dói-me servir ao trama de semelhante homem... cuidado com ele...

DEMÉTRIO (Dentro.) – O sr. d. Donaldo tem olhos nas unhas!... (Rindo.)

D. DONALDO (Dentro.) – Que quer dizer? é uma injúria!...

VOZES (Dentro.) – Não! não! sim! sim! (Alarido.)

BRÁULIO (A Gertrudes e Dionísia.) – Vai tocar! vai cantar! e fortíssimo! fortíssimo!... (Vai-se Gertrudes; Bráulio detém Dionísia pelo braço, vendo Adriano; Gertrudes toca forte e depois suave ao serenar o ruído.)

CENA IX

BRÁULIO, que logo se retira, DIONÍSIA, ADRIANO e SILVEIRA

BRÁULIO – Senhor Adriano...

ADRIANO – Minha senhora... sr. Bráulio... chego hoje muito tarde...

BRÁULIO – E vem achar a sessão tumultuosa... porque, não sei...

UMA VOZ (Dentro.) – Ainda!... isto não é verossímil... as cartas foram preparadas... (Alarido.)

SILVEIRA – Sou uma das vítimas... perdi o que não podia perder; mas é infame quem abusa da boa fé da gente honesta! (Grande alarido; Silveira atravessa a cena precipitado e vai-se.)

ADRIANO – Que desordem!...

BRÁULIO – Perdão... vou seguir este moço para impedir algum ato de desespero. (Vai-se)

DIONÍSIA – Onde esteve até agora? ...

ADRIANO (Aproximando-se) – Foi-me impossível vir mais cedo.

DIONÍSIA (Afastando-se.) – Atraiçoa ao mesmo tempo a esposa e a mim; a ela não me importa; porém a mim!... onde esteve?...

ADRIANO (Querendo tomar-lhe a mão.) – Dionísia.

DIONÍSIA – Não me toque! o senhor me trata indignamente: sinto o seu desprezo na liberdade em que me deixa...

ADRIANO – Ingrata!

DIONÍSIA – Confessei-lhe as misérias da minha vida: porque não se contentou com o meu aviltamento?... para que me falou de amor, e me inspirou amor?... para que me fez chorar arrependida do meu passado!... para que me levou a sonhar com o impossível?...

ADRIANO – Mas eu te adoro, Dionísia!

DIONÍSIA – Que amor é o seu? ... amor baixo e vil que me abandona e me condena a ser escrava de outro homem!... isso é amor?... que amor é o seu?

ADRIANO – Queres sabê-lo? é o amor violento e fatal, o amor crime, a paixão raiva! oh! é a pesar meu que te amo... adúltero possesso, eu me prendo a teus pés, demônio de fascinação!... maldigo de ti e te adoro, maldigo deste amor e sou teu escravo!...

DIONÍSIA – Que paixão!... eu porém toda do meu amor quis ser, pedi, peço ainda para ser só tua... só tua... e tu... e o senhor me obriga à mais vil infidelidade; porque me deixa em poder de um falso tio... amante que hoje abomino, e que...

ADRIANO – Ah!... tens razão... é para enlouquecer... mas, Dionísia,eu sou casado...e o dever... as conveniências...

DIONÍSIA – Portanto a minha infâmia e a sua hipocrisia!... não me sujeito a tal abjeção... depois que amei... oh! não me sujeito mais: não me queixo... sou o que sou pelo que fui; é irremediável... mas... sua e de Bráulio... oh!...não! esqueça-me...farei por esquecê-lo...

ADRIANO – Esquecer-te?... eu?... Dionísia, tu me atordoas, me exasperas e sempre me dominas: eu te peço... dá-me algum tempo...

DIONÍSIA – Algum tempo?... para quem o pede?... para Bráulio... ou para si?...sr. Adriano, não acha que isto é indigno e vil?...

ADRIANO – Em oito dias te livrarei deste inferno... serás minha só...

DIONÍSIA – Oito dias?... que pressa! amada por Bráulio, posso esperar um ano...

ADRIANO – Dionísia!

DIONÍSIA (Voltando-lhe as costas.) – Boa noite.

ADRIANO – Pois bem será como quiseres... quando quiseres... amanhã à hora da sesta de Bráulio receber-me-ás e marcaremos o dia...

DIONÍSIA – Amanhã?... sim...venha; mas com a condição de levar-me depois de amanhã para o teto mais humilde, onde caibamos nós dois... e onde eu seja tua só... depois de amanhã... veja bem... tua só, meu Adriano... sim?...

ADRIANO – Oh!... perdição!...

DIONÍSIA (Abrindo os braços.) – Sim, meu Adriano?... sim?... tua só?...

ADRIANO – Sim!... sim!... (Abraça-a.) tu és como Dejanira e me arrojas ao vulcão! (Curva-se, beija-lhe a mão, Dionísia afaga-lhe os cabelos.)

DIONÍSIA – Fica assim!...como és belo! como te amo! como serei feliz!...

ADRIANO – Feiticeira! fazes-me esquecer tudo! eis os pendentes que ontem me pediste (Tira do bolso uma caixinha e dá-a.) São do teu gosto?...

DIONÍSIA (Abrindo a caixa.) – Magníficos! para que tão ricos?... não quero que te arruínes por mim: lindíssimos!... mas, jura que depois de amanhã...

ADRIANO – Juro-o...

DIONÍSIA (Sorrindo.) – Vem, pois, amanhã à tarde... vem, formoso e feliz ladrão da sesta!... e agora, pobre ladrão da noite, queres beijar-me os olhos que dizes ser tão bonitos? ...

ADRIANO – Oh! minha Dionísia!... (Abraça-a e beija-lhe os olhos.)

CENA X

DIONÍSIA, que vai-se logo, ADRIANO E CINCINATO

CINCINATO – Eu sou míope: podem continuar que não vejo coisa que me espante.

DIONÍSIA – Ah! (Vai-se correndo e rindo.)

ADRIANO – Importuno!

CINCINATO – Ainda em cima do serviço que te prestei?... é caso em que água fria na fervura livra de pelação infalível. Esta Dionísia é uma espécie de polvo...

ADRIANO – É uma mulher alucinadora, e irresistível... Cincinato, meu amigo, meu irmão... é a fatalidade!... tem sido e são inúteis os teus conselhos... estou perdido...

CINCINATO – Ainda é tempo.

ADRIANO – É muito tarde... a miséria pelo jogo... o frenesi, a loucura pela paixão criminosa... oh! eu sou um desgraçado... eu reconheço o mal que faço e me arrasto para o abismo.

CINCINATO – Não dou um bilhete das barcas Ferry pelo teu juízo... eu quebro louça, porém, assim não.

ADRIANO (Pensando,) – E depois de amanhã... (Súbito.) vou jogar. (Indo-se.)

CINCINATO – Hoje não jogas: há mouros na costa; o espanhol apurou a ladroeira: Demétrio e outros já estão a toda isca. Adriano! sê homem! foge desta espelunca... e volta para o lado de tua bela e nobre esposa...

ADRIANO – Para que a lembras?... sou algoz... eu sei... mas bem vês que desatino...

CINCINATO – Lá o ninho do amor puro... lá beleza, paciência, suavidade, virtudes... aqui... pior! vou caindo na sensibilidade e saio do meu elemento... Adriano! sabes onde estamos?...

ADRIANO – Em uma casa de jogo, cujo empresário é um miserável.

CINCINATO – Sim... casa de jogo magistral. Quadro primeiro: sala da frente iluminada a gás; mobília de mogno e piano de jacarandá; personagens, uma velha que toca, e uma moça que canta; a velha representa o papel de bumbo, pratos e campainhas para não se ouvir da rua a balbúrdia do fundo da casa; a moça namorando de dia e cantando de noite representa o papel de alçapão e isca para apanhar passarinhos.

ADRIANO – Impacientas-me... (Ruído dentro: soa o piano)

CINCINATO – Em? lá está a velha no ofício. Quadro segundo: esta sala, escarpa do precipício, caminho do inferno, passagem do desespero, gabinete que medeia entre o frontispício da hipocrisia, e o interior da furna do vício, e uma vez por outra em cada noite, gaiola de passarinhos, a quem a moça, que canta, dá abraços e beijos por engodo, e os deixa com água no bico depois de depená-los muito à sua vontade.

Exemplo: certo episódio que vi ainda há pouco.

ADRIANO – Cincinato... pensas que algum outro homem...

CINCINATO – Não respondo: porque me perguntas no singular. Quadro terceiro: sala resplendente de luzes e carregada de sombras negras; mesa grande e cercada de jogadores risonhos poucos, turvos muitos, sinistros alguns, desconfiados todos; se não estão ao pau, estende-se a tripa: é o mesmo; voltam-se as cartas... há pulmões que não respiram... o estrabismo da suspeita entorta todos os olhos... a atmosfera é pesada... ouvem-se juras, insultos, rugidos... rola o dinheiro e evaporam-se fortunas, e na mesa horrível sem que o vejam, sem que o sintam, prepara-se o roubo do amo pelo caixeiro, a perversão do filho-família, que furtará as jóias de sua mãe e a firma de seu pai, a miséria da família pela ruína do seu chefe, a prevaricação do empregado público, a falência inexplicável do negociante, a desonra, a chave da prisão, o punhal ou o revólver do suicida... (Um jogador atravessa a cena em desespero e vai-se.) Vês aquele que furioso se retira? Adriano! é talvez esposo da mais honesta senhora, a quem reduz à miséria pelo jogo, e a desesperado abandono pela paixão adúltera e vergonhosa...

ADRIANO – Cincinato! (Sussurro dentro.)

CINCINATO – Escorreguei para o romantismo sentimental, mas volto ao meu elemento no quadro quatro que é o melhor. Quadro quarto: palácio do sono perpétuo na solidão da indolência; na sala do desmazelo há um leito de papoulas, e dorme nele per omnia secula seculorum... adivinha quem... (Sussurro.)

ADRIANO – Quem? (Aumenta o sussurro.)

CINCINATO – A polícia. (Forte ruído.)

ADRIANO – E tu!... como estás aqui!...

CINCINATO – Eu quebro louça em toda parte. (Grande ruído.) Oh, lá! gritem sem receio que a polícia dorme sempre como o animal condenado por Maomé! (Voltando da direita.) O Demétrio já tem um dos olhos vermelho-brasa e o outro azul, como sangue de fidalgo puro. (Estrepitoso ruído.)

ADRIANO – Que tempestade... vou ver...

CINCINATO (Segurando-o.) – Não hás de ir...

CENA XI

ADRIANO, CINCINATO e BRÁULIO; canto e piano, alarido e movimento até o fim do ato.

BRÁULIO – Que é isto? (Vai à direita, volta à porta do fundo.) Fortíssimo! fortíssimo!... (A Adriano e Cincinato.) Que homens loucos! (Ao fundo.) Fortíssimo!...

CINCINATO – Não tenha medo, a polícia não desperta.

BRÁULIO (Ao fundo.) – Fortíssimo! (Corre à direita e quase o lançam por terra os que saem em tumulto.)

CENA XII

ADRIANO, CINCINATO, BRÁULIO, D. DONALDO, DEMÉTRIO, FÁBIO, JOGADORES: confusão, grita e música até o fim

D. DONALDO – Caramba!... hei ganhado honestamente.

VOZES – Não! sim! ladrão! é falso! silêncio! (Vozes encontradas.)

DEMÉTRIO – Silêncio! ouçam-me! quero falar! (Silêncio). Este homem roubounos e deve restituir-nos o nosso dinheiro... aqui está a tripa, onde há cartas falhas... podem examinar... houve além disso feitos e olheiros... e todos viram há pouco a empalmação do... (Mostrando as cartas.)

D. DONALDO – O senhor mente!...

DEMÉTRIO – Larápio!... (Atira com o monte de cartas sobre d. Donaldo, os jogadores seguram e separam os dois: confusão.)

D. DONALDO – Perro! encomenda a tua alma, que eu hei de te matar dez vezes!...

BRÁULIO – A ceia! a ceia está na mesa! a ceia! a ceia! (Confusão.)

CINCINATO (Na frente.) – A ceia!... o governo da casa contém os furores da maioria, falando-lhe à barriga! está em regra: a ceia! a ceia!

FIM DO PRIMEIRO ATO

 

ATO II

Salão da frente do Teatro Provisório: portas ao fundo comunicando com o corredor dos camarotes da segunda ordem.

CENA I

FÁBIO E ÚRSULA, que entram

FÁBIO – Que é isto, Úrsula?... deixaste arrebatada o camarote, como se fugisses ao bote de uma serpente.

ÚRSULA – Sim... eu vi, não uma serpente, mas um homem que eu supunha bem longe daqui: é ele... eu o reconheci no fundo do camarote de Adriano.

FÁBIO – Quem? ...

ÚRSULA – Clarimundo... o antigo tutor de Helena...

FÁBIO – Clarimundo! então chegou hoje no paquete do Rio da Prata: mas... que comoção, Úrsula! estás convulsa... (Chega uma cadeira.)

ÚRSULA (Sentando-se.) – A surpresa... eu não esperava... oh!... esse homem...

FÁBIO – Tão profunda sensação!...(Úrsula estremece.) ah! já compreendo: receias que ele venha destruir a minha obra...

ÚRSULA – É isso mesmo... adivinhaste.

FÁBIO – Ora!... enriqueceu muito, negociando no Rio da Prata; mas por último arruinou-se em uma grande e desastrosa especulação: li há poucos dias cartas, em que ele se lastimava do seu infortúnio: pobre como chega não pode salvar Adriano, e por pouco que me auxilies, Helena abandonada pelo marido...

ÚRSULA (Em pé.) – Escuta aqui mesmo e já. (Olhando em torno.) Meu único irmão, meu único amor na terra, tenho-te amado com fraqueza de mãe... pobre e ocioso, jogador e libertino tens achado alimento para teus vícios na riqueza que herdei de meu marido...

FÁBIO – É melhor deixar esse sermão velho lá para casa.

ÚRSULA – Além do esbanjamento da minha fortuna, um dia me impuseste cruel sacrifício: pretextando intimidade de relações com Adriano, obrigaste-me a procurar a amizade de sua esposa; jurei-te que em outros tempos um abismo de ódio me separara da mãe de Helena: resisti, chorei; porém tu venceste.

FÁBIO – E daí?

ÚRSULA – Oh! pérfido amigo de Adriano, tu me querias para vil instrumento da sedução de sua esposa; colocaste-me na mais triste posição, porque todas as aparências me condenam como tua cúmplice.

FÁBIO – E daí?

ÚRSULA – E a minha consciência também me acusa, porque com o meu ouro pagas a perversão de Adriano, e eu, ainda imprudente, preveni Helena de paixão criminosa de seu marido.

FÁBIO (Rindo.) – E por último propuseste-lhe vir esta noite ao Teatro Provisório, no que Helena conveio logo, porque uma cartinha anônima levada pelo correio urbano já lhe havia anunciado em que camarote poderia ver a rival feliz.

ÚRSULA – Oh! Fábio... tu és mau e me sacrificas sem piedade; agora porém não me submeto mais: eu te peço... por quanto amor me deves, deixa em paz Helena, abafa essa paixão insensata e condenável; liberta-me de um remorso que me punge...

FÁBIO – Estás fora de ti... isso é nervoso, minha irmã...

ÚRSULA – Ingrato que me ridicularizas! vê bem: eu romperei o véu desta intriga... Helena saberá tudo, e ainda mais... eu me compadeço de Adriano, e posso vingar-me de ti, estendendo-lhe mão amiga, e desvendando-lhe os olhos...

FÁBIO – Que revolução!... o simples encontro inesperado de Clarimundo!...

ÚRSULA – Sim... é isso mesmo; Clarimundo conhece as razões da inimizade que houve entre mim e a mãe de Helena, e na fraqueza imperdoável de tua irmã ele veria somente a perversidade do ódio velho... do ódio de além túmulo... do ódio da mulher demônio...

FÁBIO – Tens medo desse homem... (Aparece Bráulio à porta do fundo.)

ÚRSULA – Medo!... oh!... seja medo... supõe o que te parecer... imagina embora que eu me confundo nos turvos segredos dessa sociedade brilhante, onde às vezes se escondem traições e vergonhas nas dobras dos ricos vestidos de seda; mas, eu to disse já, não abusarás mais de mim...

FÁBIO – Isso passa... são recordações da mocidade... pecados veniais do outro tempo...

ÚRSULA – Fábio! tu me insultas!...

FÁBIO – Estamos entendidos: Clarimundo é um inimigo demais, e tu uma aliada de menos; ele, porém, é homem sem dinheiro, baluarte sem pólvora, fortaleza sem soldados, e tu uma alma ingrata que me embaraças a felicidade com os teus casos de consciência. Zombo do inimigo e dispenso a aliada. Agora só preciso de um auxiliar, é Bráulio.

CENA II

ÚRSULA, que logo se retira, FÁBIO e BRÁULIO

BRÁULIO (A Úrsula.) – O último dos criados de v.ex.! (A Fábio.) Às ordens de v.s.

FÁBIO (Apresentando) – O sr. Bráulio...

ÚRSULA (Saudando com desdém.) – Ah...

FÁBIO – Estava então aí... de perto?...

BRÁULIO – Passava por acaso, quando ouvi pronunciar o meu nome; mas de perto, ou de longe sou como o diabo, acudo logo à primeira evocação.

ÚRSULA (A Fábio.) – Voltemos ao camarote.

FÁBIO (A Bráulio.) – Espere-me aqui um instante (A Úrsula.) Vamos, Úrsula.

ÚRSULA – Posso ir só. Fique. (Vai-se.)

FÁBIO – O senhor escutava-nos... confesse.

BRÁULIO – É claro que ainda que estivesse escutando, não faria a confissão; mas eu não disputo o direito da suspeita: V.S. pode pensar o que quiser.

FÁBIO – Não se ofenda: nós somos bons amigos e a sua chegada foi muito oportuna; ontem à noite naquela desordem em que acabou o jogo, não pude informarme do que sua sobrinha conseguiu de Adriano, e agora é ainda mais urgente...

BRÁULIO – Amanhã à meia noite Adriano me roubará Dionísia.

FÁBIO (Apertando a mão a Bráulio.) – Ah! ainda bem! com tanto que ele não se arrependa.

BRÁULIO – Ele?... está acorrentado pelo coração; mas outra pessoa... talvez...

FÁBIO – Outra pessoa?... quem então poderia arrepender-se?...

BRÁULIO – Eu, por exemplo. Sejamos francos: v. s. tem tudo a ganhar e eu muito a arriscar. É certo que já recebi seiscentos mil réis, e que outro tanto me está garantido e sem dúvida receberei logo que se realizar a hipótese.

FÁBIO – Foi o que ajustamos, e nem eu fiz questão da quantia...

BRÁULIO – É verdade: tenho, porém, calculado que Dionísia vale mais. Dionísia é a minha sereia.

FÁBIO – E voltará ao seu mar, quando ela o quiser.

BRÁULIO – Sr. Fábio; jogo franco e cartas sobre a mesa: eu vou sofrer na reputação da casa... haverá baixa no barato; além disso, o coração da gente é de carne... hei de por força sentir saudades; e, enfim, quem me assegura que Dionísia não se tomará de paixão pelo novo amante?... em caso de dúvida não arrisco por tão pouco a fazenda.

FÁBIO – Como?... e a sua palavra?...

BRÁULIO – Mais um conto de réis e negócio feito. É evidente que preciso de justas compensações.

FÁBIO – É evidente que na hora suprema o senhor põe-me uma faca aos peitos: isto é escandalosamente imoral!.

BRÁULIO – Convenho: não me diz nada de novo; ambos nós porém rolamos juntos na imoralidade, razão maior para jogo limpo e cartas sobre a mesa.

FÁBIO – É uma extorsão!.

BRÁULIO – Meu senhor, não se comem trutas a bragas enxutas; além disso, eu não o obrigo a dar-me o dinheiro que peço; pelo contrário, estou pronto a restituir a quantia que já recebi e rompemos a negociação.

FÁBIO – Mas a sua palavra?... a sua palavra?...

BRÁULIO – Ora, sr. Fábio! pois um homem que se presta a entrar em negócio desta ordem pode ter escrúpulo de faltar ao ajustado?...

FÁBIO – Que franqueza repugnante!

BRÁULIO – Perdão... neste assunto nenhum de nós injuriaria o outro sem injuriar-se... e note bem: eu quero lucrar sem intenção de fazer mal, e V. S. paga para atingir a fins sinistros...

FÁBIO – Sr. Bráulio!... (Aplausos dentro.)

BRÁULIO – Faz-lhe conta o que propus? é resolver até amanhã.

VOZES (Dentro.) – À cena! à cena!...

FÁBIO – Repito... é uma extorsão... e há de arrepender-se da sua má fé...(Aplausos dentro.)

CENA III

FÁBIO, BRÁULIO e CINCINATO

BRÁULIO – Que é isto?... Vem o teatro abaixo?... (Aplausos.)

CINCINATO – Não vem abaixo, porque é Provisório, se fosse permanente já tinha caído: o Brasil é o Império das inconseqüências; prova: a permanência do Provisório na Praça da Aclamação.

BRÁULIO – Mas que trunfo é esse?

CINCINATO – Apoteose das pernas postiças de duas dançarinas do Alcazar; é de direito: o can-can saiu extraordinariamente da Rua da Vala para aristocratizar-se no campo, e o respeitável quebra as mãos, aplaudindo os pontapés atirados à lua por dois cometas velocípedes do sexo feminino que vão rir pelos calcanhares de tanto entusiasmo por pernas que não são delas.

BRÁULIO – E o senhor fugiu à apoteose?

CINCINATO – Arrepios de inocência e confusões de pudor... as duas ninfas começavam a acalcanhar-me o coração e tive medo de apaixonar-me pelos seus dedos mindinhos.

BRÁULIO – Medo de se apaixonar pelos dedos?

CINCINATO – Sim; mas o medo não era realmente dos dedos... era das unhas.

BRÁULIO – Pois eu vou pedir mais completa informação da apoteose... até logo.

FÁBIO (Baixo a Bráulio.) – Amanhã à hora aprazada receberá o conto de réis.(Assentimento de Bráulio.)

CINCINATO (Pelo outro lado.) – Cada qual tem os seus segredos... (A Bráulio.) tio Bráulio! lembranças à prima. ( Vão -se Bráulio e Fábio.)

CENA IV

CINCINATO, CLARIMUNDO e HELENA

CINCINATO – Oh! oh!... sr. Clarimundo!...

CLARIMUNDO (Abrindo os braços.) (Abraço apertado.) Cincinato!...

CINCINATO – Perdão, minha senhora! (Aperta a mão a Helena.) Mas o sr. Clarimundo aqui...

CLARIMUNDO – Meu Cincinato! perpétuo Quebra-louça! sempre o mesmo alegrão!... (Abraça-o outra vez.)

CINCINATO – E sempre quebrando louça, até que a morte me quebre este boião vazio que trago em cima do pescoço e que por costume chamam cabeça, sr. Clarimundo...

CLARIMUNDO – Haverá três horas que cheguei, e apenas desembarcado, corri imediatamente à tua casa.

CINCINATO – E não me achou... é claro! como sou encontrado em toda parte, era preciso que houvesse um ponto de exceção, onde ninguém me encontrasse: escolhi a minha casa para lugar de ausência; é cômodo e econômico por causa dos amigos: mas o senhor volta remoçado... vendendo saúde.

CLARIMUNDO – E, já o sabes, com a bolsa vazia depois de a ter tido abarrotada! não importa... nunca desanimei; torno ao seio da pátria com esperança de ainda ser feliz; poderei sê-lo?... ardia por falar-te... (Dominando-se mal.) sobre... sobre aquele meu negócio... aqui é impossível... eu o vejo... mas... uma palavra só... chego a tempo?...

CINCINATO – Antes tarde que nunca... todavia... a fazenda está muito avariada.

CLARIMUNDO – Cincinato – Há caso de contrabando... obrigações não cumpridas... agravação do comércio ilícito, de que o informei... precisamos conversar amanhã...

HELENA – Sem cerimônia... eu esperarei à janela...

CINCINATO – Oh, não, minha senhora; aqui não posso explicar-me com o sr. Clarimundo; trata-se de negócios comerciais complicados... jogo na praça... baixas de câmbio... contratos secretos... falência eminente... empresa anônima com letra aberta no banco da pouca... quero dizer da nenhuma vergonha... perdão minha senhora...

CLARIMUNDO – Basta... eu devia ter vindo mais cedo... prenderam-me compromissos... mas... amanhã... amanhã... (Outro tom.) este desastrado está sempre a doidejar... é o seu costume... (Aflito.)

HELENA – Nem sempre: colaço de Adriano, tem sido para mim o irmão mais delicado, e o amigo mais respeitoso...

CINCINATO – É que só me apresento a falar-lhe, quando me sinto em horas lúcidas.

CLARIMUNDO – Estarias sempre lúcido, se não fossem as más companhias... oh! as más companhias!... (Outro tom.) quem são os dois figurões que saíram daqui, quando entrávamos?... vi-os no corredor e pareceu-me reconhecê-los.

CINCINATO – A um sem dúvida conhece: é o mais feliz dos capitalistas; porque sem fonte de renda tem inesgotáveis fundos de reserva nos cofres da fraternidade: é Fábio o irmão de dª. Úrsula.

CLARIMUNDO – Fábio!... e o outro?

CINCINATO – O outro lhe é desconhecido: chama-se Bráulio, venerando tio de uma sobrinha de quem não é tio... perdão minha senhora; é o rei do barato; em reino de casa de jogo o barato significa sangria, e o reino é de sanguessugas; porque, além do barato, que é veia aberta, há ali a sobrinha do tio de quem não é sobrinha, e tornando-se prima mesmo de quem não for seu primo... perdão, minha senhora.

HELENA – Como se chama ela?...

CINCINATO – Dionísia (Movimento de Helena.) uma carta de jogo que anda fora do baralho e que às vezes embaralha de modo... não sei como o diga... perdão minha senhora, eu me vejo muito embaralhado para poder explicar... mas ela é na verdade mazela.

HELENA – E formosa, pelo menos bonita?...

CINCINATO – Hoje em dia a beleza tornou-se equívoca... perdão, minha senhora, nem sempre; em regra, porém, misericórdia! pastas de pó de arroz no rosto, no colo, nas espáduas, o diabo em dez tintas enganadoras, e além da caiação e da tinturaria postiços a desnaturar a natureza: a três passos de distância há velhas que arrebatam pelo fulgor da primavera.

CLARIMUNDO – Má língua!

CINCINATO – Acresce que atualmente o belo é o arco-íris combinado com o aleijão: para o aleijão tacões enormes de botinas a empurrar o corpo para diante e anquinhas deformes a puxá-lo para trás; arco-íris em vestido com duas saias, uma azul e outra cor-de-rosa, com apanhados amarelos, enfeites pretos e corpinho cor de agapanto com fitas verdes e rendas brancas, afora os laços monstros e...

HELENA – Mas essa moça... Dionísia...

CINCINATO – Beleza equivoquíssima; em perpétuo toilette de carnaval destemperado: tez pálida... rosada... clara... morena a capricho da variedade, cabelos negros... castanhos... cinzentos... louros conforme os dias da semana; é bela? é ponto controverso entre os dias da semana.

CLARIMUNDO – Já tagarelaste demais, e estás estorvando o meu passeio com Helena; vai almoçar comigo amanhã às nove horas precisas... hotel Provenceaux segundo andar.

CINCINATO – Hotel Provenceaux... segundo andar... sem falta. seremos três a almoçar; porque eu sou dois à mesa dos amigos. Minha senhora... (Aperta a mão de Helena.) Sr. Clarimundo, até amanhã. (Aperta a mão de Clarimundo.)

CLARIMUNDO – Às nove horas... ou antes... ( Vai-se Cincinato.)

CENA V

CLARIMUNDO e HELENA

CLARIMUNDO – Excelente mancebo! tipo de lealdade e honra; é pena que desame o trabalho e tão estouvado às vezes se mostre.

HELENA – Vive na abastança com o que possui; não tem ambições e o seu estouvamento a ninguém prejudica; comigo, embora colaço de meu marido, leva o respeito a condições de cerimônia, e é um amigo de fidelidade exemplar.

CLARIMUNDO – É, posso dizê-lo; mas... como se acha?...

HELENA – Estou muito melhor... (Passeiam.)

CLARIMUNDO – Vim encontrá-la um pouco abatida... evidentemente padece; quando há três anos fui para o Rio da Prata, deixei-a mais alegre e gozando melhor saúde: não é feliz?...

HELENA – Muito feliz, Adriano... é tão bom para mim!...

CLARIMUNDO – Sabe como estimo seu marido: é um perfeito cavalheiro; mas às vezes entre jovens casados basta a sombra de uma suspeita para anuviar a felicidade.

HELENA (Trêmula.) – Eu confio no amor de meu marido: Adriano me trata com a mais extremosa delicadeza.

CLARIMUNDO – Pareceu-me que se perturbou... eu tenho o direito...

HELENA – Oh! enganou-se, não posso queixar-me de Adriano: sou feliz.

CLARIMUNDO – Seu marido é muito moço e a mocidade é sujeita a imprudentes desvios: mas... eu respondo pelo coração do homem a quem confiei o seu futuro... a sua vida; (comovido.) se o ímpeto de idade... um erro... alguns dias de desvario... não sei... mas se por acaso Adriano mentiu ao seu dever, a virtude da esposa o regeneraria com o perdão.

HELENA – Por que me diz isto?... eu não deixei ainda transpirar leve desconfiança da lealdade de meu marido... amo e sou amada... que mais posso desejar?...

CLARIMUNDO – Mas responde-me a tremer, e está a ponto de chorar: o leviano sou eu... a ocasião é a mais imprópria...

HELENA – É que estou incomodada... sofro...

CLARIMUNDO – Para que então veio ao teatro?

HELENA – Não devia ter vindo... não devia... tem razão; eu, porém, havia prometido vir à melhor das minhas amigas.

CLARIMUNDO – E quem é a melhor das suas amigas. minha filha?...

HELENA – Dª. Úrsula, a senhora viúva, de quem se falou há pouco.

CLARIMUNDO – Ah! conheço-a: podia ser sua mãe; para a melhor das suas amigas é bem desigual em anos: desde quando se relacionou com ela?

HELENA – Há poucos meses. Que pensa de dª. Úrsula?...

CLARIMUNDO – Eu?... nem bem, nem mal: apenas a conheci nas sociedades do meu tempo.

HELENA – Ela tem falado de vossa mercê com elogio e estima...

CLARIMUNDO – Santa criatura!... pensei que nem se lembrasse de mim. E... de Adriano... que diz dª. Úrsula?...

HELENA (Estremecendo.) – De Adriano!... que poderia ela dizer-me de meu marido?...

CLARIMUNDO – Perguntei por perguntar: e Fábio?...o irmão de dª. Úrsula?...

HELENA – Não faço bom juízo dele: tenho-o por fátuo e vaidoso; e, embora Adriano o considere seu amigo, não admito a sua intimidade... apenas o encontro por acaso.

CLARIMUNDO – Penso que procede com acerto, mas nesse proceder quem a inspira?... o instinto da antipatia, o conselho da reflexão, ou... diga a verdade, ou o justo ressentimento da suspeita de uma afronta?...

HELENA – Senhor...

CLARIMUNDO – Muito bem, minha filha: quer voltar ao camarote?...

HELENA – Ainda não; o ar aqui é mais leve, e me reanima: não me acha melhor?... passemos pelo corredor dos camarotes... vamos por este lado...

CLARIMUNDO – O ar ali menos puro... talvez lhe seja nocivo...

HELENA – Não... vamos por ali... quero distrair-me: desejo ver a moça de quem o sr. Cincinato falou-nos, dizem que é bonita.

CLARIMUNDO – Como sabe que ela está no teatro?...

HELENA (Confundida.) – Como sei?... mas... o sr. Cincinato nomeou-nos o tio... não se lembra!...

CLARIMUNDO – O tio podia ter vindo só ao teatro: como sabe que o camarote é na segunda ordem e daquele lado?...

HELENA (Mais perturbada.) – Como sei... ora....era fácil sabê-lo... olhavam...(Quase a chorar) todos olhavam... todos... adivinhei...

CLARIMUNDO – Minha filha!... minha filha!...

HELENA (Chorando e apoiando o rosto no ombro de Clarimundo.) – Perdão!...

CLARIMUNDO – Perdão... ah! sim! perdão! é perdão que eu te peço!... perdão para ele!...

HELENA – Meu bom pai!... sou muito desgraçada!...

CLARIMUNDO – Adriano chega, dissimula a aflição e conta comigo.

CENA VI

CLARIMUNDO, HELENA e ADRIANO

ADRIANO – Ah! passeiam... (Cuidadoso a Helena.) Que tens, Helena?...

HELENA – Ligeiro incômodo... uma vertigem que passou... dá-me uma cadeira... (Adriano vai buscar a cadeira.) veja o corredor donde ele vem!... (A Clarimundo.)

ADRIANO (A Helena que se senta.) – Estás melhor?... dize... estás melhor?...(Helena encara-o trêmula.) Que tem ela?... (A olhar)

HELENA – Estou boa.

CLARIMUNDO – Foi má idéia trazê-la hoje ao teatro... sua mulher estava sofrendo.

ADRIANO – Ela o quis... exigiu... pela primeira vez resistiu aos meus conselhos... eu não queria...

HELENA – Oh! sem a menor dúvida....... ele não queria que eu viesse hoje ao teatro... não queria... (Rir nervoso.) ele não queria!...

CLARIMUNDO – Helena! (A Adriano.) E prudente levá-la para casa.

ADRIANO – Por certo... (A Helena.) Helena... vamos?... convém que nos retiremos... precisas descansar...

HELENA – Pensas?

CLARIMUNDO – Oh, senhor! mande chegar o carro... (Em tom um pouco severo.) Helena!...

HELENA – Vamos... manda chegar o carro... (Adriano dirige-se para o lado do camarote de Bráulio.) Oh! não! (Em pé.) estou boa... quero ficar...

ADRIANO – É impossível...eu vejo que me escondes talvez padecimento sério... procuras poupar-me... e atormentas-me... sr. Clarimundo, Helena está mais doente do que diz...

CLARIMUNDO – Também o creio; mas é preciso acabar com esta cena que seria ridícula, se não fosse dolorosa... esta sala é de todos... muitos estão passando por aquele corredor... alguns podem entrar aqui, e... seria triste que suspeitassem de uma disputa entre marido e mulher.

ADRIANO – Não há porém disputa...

HELENA – Nem pode haver... nunca... nunca... disputa não... (A Clarimundo com intenção.) disputa... Não! (A Adriano.) Adriano, estou muito melhor, eu te peço; consente que eu me demore... é tão bonita a ópera... Orphée aux enfers... consente...

ADRIANO (A Clarimundo.) – Que hei de fazer?...

CLARIMUNDO – Ficar. Helena se apraz de demorar-se nos infernos... faça-lhe o gosto: ela quer ver, contemplar, admirar, e neliar o diabo... pois bem, é capricho de mulher... dá-lhe o gozo envenenado do diabo, e peça a Deus que também o livre da tentação...

ADRIANO – Chegam dª. Úrsula e Fábio...

CLARIMUNDO – Quando eu falava no diabo!... pois não me lembrava estes.

CENA VII

CLARIMUNDO, HELENA, ADRIANO, ÚRSULA e FÁBIO

ÚRSULA – Dª. Helena! oh! Sr. Clarimundo! que surpresa feliz! FÁBIO – Sr. Clarimundo! que fortuna!

CLARIMUNDO – Minha senhora, um velho pajem que volta ao serviço de v. ex.! Sr. Fábio... (Aceitando-lhe a mão.)

ÚRSULA – Abençôo pois duas vezes a minha vinda ao teatro esta noite. (Dá a mão a Clarimundo, que a beija curvando-se.)

ADRIANO (A Helena.) – Como estás, Helena?...

HELENA (A Adriano.) – Boa... perfeitamente boa.

CLARIMUNDO – Além da imensa graça de beijar-lhe segunda vez a mão, terei a honra de ir em breve pedir a v. ex. um favor especial.

ÚRSULA – Um favor? se quiser, eu tomarei o anúncio prévio do pedido por dívida sagrada contraída por mim.

CLARIMUNDO – É o segredo precioso para se ter sempre vinte anos de idade.

ÚRSULA (A Helena.) – Já viu que lisonjeiro?...

CLARIMUNDO – É vaidade de velho que conserva a vista perfeita.

ÚRSULA – Não zombe: ao menos ainda não me envelheceu o coração; pergunte à dª. Helena como a amo.

HELENA – Já lho disse, e também...

CLARIMUNDO – Que V. Ex. tem a memória igualmente jovem... lembra-se muito do passado!... nem se esqueceu de mim...

HELENA – E talvez que isso contribuísse não pouco para a amizade que devo a dª. Úrsula...

CLARIMUNDO – Talvez... sim... (Olhando para Úrsula.)

ÚRSULA – Ah, não! Dª. Helena merece tudo por si... o passado e o senhor... nada tem com a amizade que lhe voto...

ADRIANO – Creio que subiu o pano: vamos?...

FÁBIO (Voltando do fundo.) – Não: o pano já tinha subido e acaba de descer: parece que houve novidade... penso que algumas famílias já se estão retirando.

(Movimento.)

CENA VIII

CLARIMUNDO, HELENA, ADRIANO, ÚRSULA, FÁBIO, CINCINATO; algumas famílias passam, retirando-se pelo corredor, outras entram no salão; senhoras tomam seus mantos, etc.

CINCINATO – Era o caso de se chamar o médico do inferno...

ADRIANO – Que houve?

CINCINATO – Um ataque de cabeça em Orfeu por ciúme de Júpiter... faniquitos de Eurídice em conseqüência... e suspensão do espetáculo até outra noite infernal... mas onde está o médico do inferno? é indispensável recorrer a Plutão e Proserpina que o devem conhecer... Plutão e Proserpina... oh! parece que chegam.

CENA IX

CLARIMUNDO, HELENA, ADRIANO, ÚRSULA, FÁBIO, CINCINATO, BRÁULIO e DIONÍSIA; movimento de famílias que se retiram e que entram no salão.

BRÁULIO – Que contratempo!... que infelicidade!...

DIONÍSIA – Titio, Eurídice está em perigo de vida?...

CINCINATO – Não se assuste, minha senhora, as Eurídices são imorríveis.

(Helena avança um passo e chega-se a Úrsula.)

ADRIANO (A Helena.) – Vamos... vamos... (Helena tem os olhos em Dionísia.) vamos, Helena... (Dionísia olha para Helena.)

HELENA (Trêmula.) – Vamos... (Imóvel e apertando a mão de Úrsula) Dª. Úrsula... vamos... (Imóvel)

CLARIMUNDO (A Helena) – O meu braço, minha filha... (Clarimundo toma o braço de Helena, e leva-a; saem logo Adriano, Úrsula e Fábio.)

DIONÍSIA – Que olhar me deitou aquela moça! (Movimento de repulsão das famílias que se afastam.)

FIM DO SEGUNDO ATO

 

ATO III

Sala decentemente ornada na casa de Adriano: ao lado esquerdo, janelas com sacadas de grades de ferro; ao fundo, porta de entrada e porta para o interior da casa; ao lado direito, porta que abre para um gabinete.

CENA I

ADRIANO, e HELENA, reclinada em uma otomana.

ADRIANO – O sr. Clarimundo mandou-me dizer que vem imediatamente.

HELENA – Para que o incomodaste?

ADRIANO – Ele te ama tanto! E... deixa-me dizer-te, preciso de quem possa ajudar-me contra ti, que fora do teu costume estás teimosa. Vejo que o sono te fez bem, e que te achas muito melhor...

HELENA – Oh! sim... muito melhor... podes sair...

ADRIANO – Quem te fala em sair, minha Helena?... eu queria dizer, que, ainda assim, preciso tranqüilizar-me, ouvindo um médico, e tu rebelde, e obstinada...

HELENA – Mas, se não há necessidade de médico!

ADRIANO – Há, passaste uma noite cruel: ansiedade... vômitos, e uma síncope, embora ligeira... isto pode ser grave...

HELENA (Rindo triste.) – Foi contágio... Eurídice desmaiou no teatro e eu em casa: desmaios de comédia.

ADRIANO – Não me fales nesse tom de ironia... não me olhes desse modo tão triste... pareces uma vítima... que serei eu então?...

HELENA – Tu?... eu juro que nunca te ouvi uma palavra acerba, e que advinhas os meus desejos para realizá-los.

ADRIANO – Só isso Helena?...

HELENA – Oh! e muito amor e imensa felicidade te mereci, Adriano!

ADRIANO – Mereceste!... como se não merecesses ainda!... queres fingir-te má?...

HELENA – Por que me fazes falar?... eu não me queixo: se às vezes vês-me triste, é a pesar meu: tem paciência... as senhoras são assim... exigentes demais. Entretanto, diante de estranhos, no teatro, no baile, recebendo visitas... eu me rio... eu me ostento feliz... oh!... (Com voz alterada.) não basta o véu? ...

ADRIANO – O véu!!! Mas... não fales... não te exaltes: sossega.

HELENA (Serena.) Perdoa-me: poucos casados têm, como tivemos, dois anos de bem aventurança na terra. Vivi dois anos no céu! olha: não vês todos os dias nos espetáculos públicos, nas sociedades tantas senhoras casadas alegres... radiantes... festivas?... fingimento, Adriano! não vês tantos maridos cercando de cuidados e de expansões de amor às esposas? (Em pé e forte.) falsidade!... o paraíso não passa do respeito devido às conveniências sociais; mas, no segredo do lar, está o tormento de lutas desabridas, às vezes indecorosas, ou, Adriano... o inferno da resignação e do martírio profundo... mundo... horrível!... (Com fogo.)... – E o meu?... (Fria.) desculpa, isto é moléstia: estou nervosa... eu falava das outras... de que posso queixar-me? amaste-me; amas-me... e se me não amasses mais, seria pior querer obrigar, o que não se obriga. Tu és bom para mim.. . e má sou eu... Adriano, estou muito melhor: porque não sais?...

ADRIANO – Tens razão... confesso: no desatino da fatal paixão do jogo eu te esqueço longas noites e frenético esbanjo a fortuna que me trouxeste.

HELENA – E que me importa o jogo?

ADRIANO – Perdão, Helena! arrastei-te à pobreza; mas, eu te juro. não jogarei mais... vou trabalhar...

HELENA – Já maldisse do jogo: hoje, que me importa? rio-me da miséria! queres jogar? falta-te o dinheiro?... dou-te as jóias; dou-te os brilhantes que ainda me restam, vende-os e joga...joga... joga...

ADRIANO – Helena!

HELENA – Joga! que me importa o jogo?... oh!... há só uma penúria que a esposa que ama seu marido não pode suportar... é a penúria do amor... e eu te amo, Adriano! eu te amo! e tu, e tu... (Avançando em desespero.) e tu... e tu...

ADRIANO – Helena!...

HELENA (Terrível e com voz surda.) – Tu amas outra mulher!... amas Dionísia!...

ADRIANO (Leva Helena para a otomana.) – Oh! pobre mártir!... eu te amo!... Helena, minha Helena... (Em aflição.) porque não morro! (Abraçando-a) sossega! eu te adoro sempre! és o meu anjo!...

CLARIMUNDO (Dentro...) – Vou subindo e entrando sem cerimônia.

ADRIANO – Helena!

HELENA (Em pé e enxugando as lágrimas.) – Podes sair.

CENA II

ADRIANO, HELENA e CLARIMUNDO

CLARIMUNDO – Vim a correr: adeus Adriano (Avança e observa) menina! evidentemente ela passou mal...

ADRIANO – Sofreu muito durante a noite, sofre ainda e teima em não consentir que se chame o médico.

HELENA – É que não vale a pena: tudo passou...

CLARIMUNDO – Não vale a pena? (Silêncio.) ainda bem: vá descansar um pouco.

HELENA – Dormi três horas... descansei bastante e acho-me forte.

CLARIMUNDO – Então mande-me preparar o almoço, contando com o Cincinato, a quem no hotel deixei recado para vir encontrar-me aqui.

HELENA – Almoçaremos juntos... agradeço-lhe este prazer.

CLARIMUNDO – Quero mais: enquanto se prepara o almoço, vá para o seu toucador: peço-lhe um toilette simples, mas elegante, e no penteado aqueles anéis de cabelos soltos, de que eu tanto gostava; talvez não seja moda; é, porém, capricho meu... vá... e muito bonita ao almoço... ande... vá....

HELENA (Rindo.) – Vou já... há de ver que faceirice! (A Adriano.) Não te constranjas por mim... bem vês que podes sair... adeus! (Vai-se.)

CENA III

ADRIANO e CLARIMUNDO

ADRIANO – Obrigado! o senhor é o melhor dos médicos para Helena.

CLARIMUNDO – É que ela tem confiança em mim: e o senhor? e tu, Adriano?...

ADRIANO – Precisa perguntá-lo?...

CLARIMUNDO – É claro que afastei Helena, para que ficássemos a sós.

ADRIANO – Ah! e então?...

CLARIMUNDO – Conversemos um pouco. Eu te conheci menino em casa dos pais de Cincinato, a cuja porta foras enjeitado; achaste ali amor e educação, e cresceste bom, honesto e laborioso; apreciando o teu caráter, dei-te há três anos por esposa uma bela jovem, de quem era tutor, Helena, minha filha adotiva, a filha do melhor amigo que tive.

ADRIANO – Entendo... e agora...

CLARIMUNDO – Não vim ralhar; mas é natural que eu te peça contas da fortuna e da felicidade de Helena. Quero poupar-te a confissões penosas. Cheguei ontem, e hoje sei já tudo. Tens perdido em uma casa de jogo quanto possuías; e tudo quanto possuías, Adriano, era o dote ou a fortuna de tua mulher.

ADRIANO – Tem razão, sr. Clarimundo; é verdade o que diz.

CLARIMUNDO – Não te confundas: somos dois amigos a conversar com expansão. Eu também fui moço: quebrei a cabeça algumas vezes; mas tu eras um moço velho: como, de repente, enlouqueceste a ponto de te tornares jogador?...

ADRIANO – Ah! foi uma hora de infernal felicidade que me perdeu! eu estava no baile e entrei por curiosidade na sala do jogo... Fábio jogava, e me provocou a imitálo.

CLARIMUNDO – Ah! Fábio...

ADRIANO – Sim: desde algumas semanas ele se relacionara comigo...

CLARIMUNDO – E freqüentava a tua casa?

ADRIANO – A princípio; mas Helena, aliás já amiga de dª. Úrsula, não o recebia com agrado, e o afugentou.

CLARIMUNDO – Por que? Helena é tão afável...

ADRIANO – Capricho de senhora; antipatiza com ele.

CLARIMUNDO – Ah! então Fábio te provocou a jogar.

ADRIANO – E outros com ele... zombaram da minha resistência...e enfim eu tive como vexame de parecer mesquinho: joguei... tomei as cartas... ganhei... oh!... senti as emoções do jogo... ganhei muito, e levantei-me inebriado... febricitante.

CLARIMUNDO – E depois? ...

ADRIANO – Ouvi Fábio e alguns outros emprazarem-se para a noite seguinte em uma casa de jogo... pedi explicações, e exaltei-me ouvindo a descrição desse abismo... oh!... sr. Clarimundo... eu estava envenenado pelo favor da fortuna... fui jogar e ganhei ainda na primeira noite... depois... depois... eu reduzi minha mulher à miséria e minha reputação de probidade à... à.... desgraçado!...

CLARIMUNDO – Pelo trabalho o homem regenera a riqueza perdida: se és 23 capaz de não tornar a jogar... se ainda tens honra no coração, eia! reanima-te. Eu estou pobre: mas tenho amigos... pedirei para mim... e faremos maravilhas; mas... Adriano! és capaz de não jogar?...

ADRIANO – Oh!... sim! eu não jogarei mais; porém, salvar-me... é impossível! caí no fundo do precipício!

CLARIMUNDO – Tem coragem, e tornemos à Helena: tu a olvidaste muito, quando em noite de frenesi queimaste ao jogo a fortuna que ela herdara de seus pais; estou certo, porém, que a amas em dobro, empobrecida por ti.

ADRIANO – Helena... criatura angélica... uma santa...

CLARIMUNDO – Eu estava seguro dos teus sentimentos; o contrário seria horrível... imagina: um mancebo tomar por esposa uma donzela rica, formosa, tesouro de virtudes e de amor, não ter dela a mais leve queixa, a menor dúvida de sua dedicação, e do seu recato... – tens de Helena?

ADRIANO – Meu Deus! não... não... é um anjo...

CLARIMUNDO – E depois de levá-la até perto da fome pelo completo desbarato da sua riqueza na paixão vergonhosa do jogo, amesquinhar suas virtudes, ultrajar sua beleza, assassinar o seu amor, atraiçoando-a pelo adultério, aviltando-a pela preferência ou pela competência de uma rival qualquer... talvez mulher indigna... ah! não... não... eu sabia que desse atentado... desse crime tu eras incapaz.

ADRIANO – Basta! basta! (Correndo à porta e, observando, volta. ) eu sinto que me castiga... não me defendo... sou infame algoz... e nos remorsos de uma paixão que me desonra não preciso de juiz que me condene, porque já tenho o meu patíbulo na consciência.

CLARIMUNDO – Desgraçado! e a razão, de que te serve?...

ADRIANO – Os loucos não a têm. Eu não lhe encubro nenhum dos meus ignóbeis erros... insulte-me, despreze-me... está no seu direito: sou um infeliz pervertido...

CLARIMUNDO – Miséria humana! a paixão desvaira o homem: Adriano, eu te desculpo, mas a loucura há de passar e Helena te perdoará. Aproveita a lição da experiência para também seres fácil em perdoar aos outros, desatinos iguais.

ADRIANO – Sim... eu não posso mais ser severo... não há vontade que domine a violência da paixão.

CLARIMUNDO – Bem, meu amigo, o ensejo é o mais oportuno para te confiar o verdadeiro motivo da minha vinda a esta capital. Vamos deixá-la quanto antes: estás enganado sobre a causa da tristeza de Helena.

ADRIANO – Que quer dizer?

CLARIMUNDO – Ânimo e prudência: um amor irresistível... fatal...

ADRIANO – Minha mulher!...

CLARIMUNDO – A infeliz esqueceu o dever... e desassisada... perdão!...

ADRIANO (Lançando-se para a porta.) – Infâmia!...

CLARIMUNDO (Contendo-o e friamente.) – E a paixão que desculpa o adultério?... há pois duas leis diversas para a fidelidade dos esposos?...(Silêncio.) ADRIANO – Oh!...o senhor foi cruel!... meu Deus!... como Helena deve ter sofrido!...

CLARIMUNDO – E é mulher, e a mulher vive só de amor, Adriano!... vê como estás matando Helena!...

ADRIANO – A minha Helena! meu pai! eu vou ser digno dela!... obrigado... o senhor me regenera... obrigado, meu pai!... (Abraça-o.)

CLARIMUNDO – Teu pai!... pois bem... chama-me assim... Adriano... chamame teu pai... mas... corrige-te... trabalha... volta a Helena... ouviste... sê bom, meu filho!... eu quero chamar-te meu filho!. (Profunda comoção: novo abraço.)

CINCINATO (Dentro e batendo palmas.) – Removido do hotel Provenceaux para a casa de Adriano, prevenção: fome de quinze dias.

CENA IV

ADRIANO, CLARIMUNDO e CINCINATO

CLARIMUNDO – Entra.

CINCINATO (Entrando.) – Perdão, minha senhora... ah! não está presente?...(Aos dois.) Cincinato Quebra-louça assinado por cima de estampilha.

ADRIANO (Triste.) – Adeus, Cincinato...

CINCINATO – Cara de lua nova em noite de chuva... não gosto: sr. Clarimundo... salvo o respeito devido, cara de eclipse visível.

CLARIMUNDO – Compensação: Adriano vai devorar o almoço que nos estava preparado no hotel, enquanto Cincinato almoçará aqui comigo e Helena. Vai, Adriano, deixa-nos.

ADRIANO – Empurram-me para fora de minha casa?...

CINCINATO – Ocasião de ir fazer impunemente travessuras nas casas dos outros. (Olhando para dentro.) Perdão, minha senhora; ele é incapaz disso... mas vai... hotel Provenceaux, segundo andar... vai, demônio! ADRIANO – O sr. Clarimundo quer conversar com Cincinato... eu os deixo... até logo... (Vai-se.)

CINCINATO (Seguindo-o.) – Isso e o que tu querias era a mesma coisa. (Volta.) Pobre Adriano!...

CENA V

CLARIMUNDO e CINCINATO

CINCINATO – Como passou a noite?

CLARIMUNDO – Mal:levei a refletir até o amanhecer.

CINCINATO – Eu lho predisse, mas o senhor teimou em aproveitar a noite que a interrupção do espetáculo nos deixara livre... eis como a aproveitou.

CLARIMUNDO – Não perdi de todo o meu tempo: creio que tenho meios de saldar as dívidas de Adriano, se o teu cálculo é exato...

CINCINATO – Certamente; mas se veio com essa intenção para que chegou, chorando pobreza?

CLARIMUNDO – Porque o jogo é um sorvedouro sem fundo, e eu não darei um real, se ele persistir em jogar; mas ainda tenho confiança no seu coração... Adriano se corrigirá...

CINCINATO – E Dionísia?...

CLARIMUNDO – Esse é o perigo que me assusta: uma mulher dissoluta, quando chega a inspirar paixão, é o demônio a fascinar: o homem se corrompe no foco da corrupção... há veneno e embriaguez na taça do vício infrene; refleti toda a noite.

CINCINATO – E então?

CLARIMUNDO – Essas mulheres não amam. Supões que Dionísia ame Adriano?...

CINCINATO – É natural que goste de um rapaz bonito; há de porém dizer-lhe adeus, logo que farejar bolsa vazia.

CLARIMUNDO – E elas têm faro! ainda bem: Dionísia terá sentido a ruína de Adriano. Mudemos de assunto: este me aflige. Ainda não me informei de ti. Como vais de fortuna?

CINCINATO – Idem, sempre idem: quatro moradas de boas casas e cinqüenta apólices; setecentos e oitenta mil réis de renda mensal; podia ser mais, se dois amigos não me ajudassem a comer o aluguel das casas.

CLARIMUNDO – Quem são!

CINCINATO – O seguro, e o tesouro público: quanto ao meu sistema financeiro, dez por cento em fundo de reserva, e o mais para a folgança.

CLARIMUNDO – E vida em folia constante...

CINCINATO – Quebra louça imutável sem ir além da receita faço caretas à morte, desfrutando a vida.

CLARIMUNDO – E ainda como dantes fazes estraladas divertidas, tendo em pouco o reparo público?...

CINCINATO – Não está em mim: achando ocasião, quebro-louça.

CLARIMUNDO – Cincinato, podes salvar Adriano, quebrando louça.

CINCINATO – Dois proveitos em um saco? está salvo. Como é a história?...

CLARIMUNDO – É ao teu zelo e às tuas cartas, que devo achar-me hoje aqui...

CINCINATO – Detesto os prefácios, vamos ao essencial.

CLARIMUNDO – Se empalmasses Dionísia... se a roubasses a Adriano?

CINCINATO – Esta só lembra ao diabo; mas tem seu lugar... era de fazer rir às pedras!... mas qual! Ela não cai.

CLARIMUNDO – E o encanto do dinheiro?... de muito dinheiro?...

CINCINATO – Estou pronto a queimar os meus navios: quanto às casas não posso por causa do seguro.

CLARIMUNDO – Não te ofendas... carta branca... despende o que for preciso.

CINCINATO – Mas... o recurso é de inspiração, palavra de honra! o sr. Clarimundo aproveitou a noite! o caso é de quebrar louça... a Dionísia não é feia... deixo o Adriano de boca aberta, e bato a linda plumagem com a rapariga.

CLARIMUNDO – Salvas teu irmão...

CINCINATO – E no fim de quinze dias faço-me viúvo! é de arrebatar e de encher a cidade com a minha fama; sr. Clarimundo, ganhei ultimamente ao lasquenet três contos de réis, que tenho de reserva; se precisar mais, bater-lhe-ei à porta. Vou praticar uma boa ação executada em andamento de maroteira. Esta noite Dionísia fugirá comigo: fica resolvido. Cincinato Quebra-louça assinado por cima de estampilha.

CLARIMUNDO – Serás a nossa providência (Batem palmas.) pior!

CINCINATO – Pior sem dúvida; porque urge entrar em campanha, e sem almoço não dou contas de mim.

CENA VI

CLARIMUNDO, CINCINATO e JOSÉ, que vai à porta.

CLARIMUNDO – É sem dúvida alguém que procura Adriano, e como ele não está em casa...

CINCINATO – Que seja assim ou protesto: estou rebentando de fome.

CLARIMUNDO (A José que volta.) – Quem é?...

JOSÉ – O sr. Fábio que, não encontrando meu senhor em casa, insta por falar já à minha senhora.

CLARIMUNDO – Fábio?... insta...

JOSÉ – Diz que é negócio grave...

CLARIMUNDO – Fábio! (A José.) dize à senhora que eu e Cincinato saímos, e que voltaremos daqui a uma hora para almoçar. (Vai-se José.)

CINCINATO – Daqui a uma hora? pela minha parte almoço no caminho.

CLARIMUNDO – Silêncio, entra comigo neste gabinete; a ação é má; as circunstâncias, porém, a desculpam. (Indo.)

CINCINATO (Seguindo-o.) – Ah!... o senhor também quebra louça!... (Entram no gabinete.)

CENA VII

JOSÉ, que logo se retira, FÁBIO e logo HELENA

JOSÉ (À porta.) – Minha senhora não tarda: queira entrar e sentar-se.

FÁBIO – Assegura-lhe que eu sinto incomodá-la; mas o caso é urgente. (Vai José.) Minha senhora... (Vendo Helena.)

HELENA – Sr. Fábio... tenha a bondade de sentar-se. Procurava meu marido?

FÁBIO – Não o encontrei no seu escritório, e sendo indispensável que eu lhe fale quanto antes... se v. ex. pudesse indicar-me...

HELENA – Infelizmente não posso...

FÁBIO – V. ex. não compreende como é lamentável, como pode ser funesta qualquer demora... perdão... sei que v. ex. não se apraz da minha presença e só um caso extraordinário me obrigaria..

HELENA – Meu marido não está em casa, e ignoro onde o possa encontrar fora do seu escritório.

FÁBIO – Oh! não é por embaraços da minha vida, é por seu próprio marido, que vim sujeitar-me a importunar a v. ex... é preciso que ele me fale quanto antes... ocorre um infortúnio... uma contrariedade gravíssima.

HELENA – Em relação a Adriano? ...

FÁBIO – A situação é tal que... em desespero talvez v. ex. ache um recurso em suas amizades... eu devo falar...

HELENA – De que se trata?

FÁBIO – Achando-se em grandes apuros, o sr. Adriano assinou um depósito de seis contos de réis, que deve restituir amanhã... Tínhamos a promessa de um mês de espera; mas o malvado usurário faltou a ela, e exige o seu dinheiro.

HELENA – E então?...

FÁBIO – O sr. Adriano... não tem em si aquela quantia... e se não achar quem lha empreste...

HELENA – As conseqüências?

FÁBIO – Um depósito... oh! é ao sr. Adriano que me cumpre falar... (Como para sair) minha senhora... minha senhora...

HELENA – Mas... se isto é verdade, eu quero saber tudo...

FÁBIO – Não... não, minha senhora; talvez ainda seja possível...

HELENA – Veio então só para amargurar-me?...eu quero saber...

FÁBIO – Tem razão... e v. ex. conta prestimosos amigos... e só quem pode impedir a maior desgraça; porque amanhã... a prisão... a desonra...

HELENA – Oh! a prisão de Adriano!...

FÁBIO – Cumpre-me prevenir à v. ex. que os recursos do sr. Adriano estão esgotados e que ele não achará quem lhe empreste...

HELENA – Oh! se o sr. Clarimundo não estivesse em pobreza... os meus brilhantes... mas valem tão pouco... meu Deus!... isso é verdade, senhor...

FÁBIO – Minha senhora, se não tem entre os seus amigos um, que para poupá-la a maior dom, honre a firma de seu marido, habilitando-o para restituir o depósito. Resigne-se: o sr. Adriano deve ocultar-se, fugir hoje mesmo.

HELENA – Fugir?... e a desonra?...

FÁBIO – E a prisão amanhã?

HELENA – Meu marido!... oh!... isto é horrível...

FÁBIO – Confesso: eu não vim procurar o sr. Adriano; vim prevenir a v. ex. de que é indispensável obrigá-lo a fugir esta noite...

HELENA – Fugir não!

FÁBIO – Conta pois com algum amigo?... veja bem...

HELENA – Oh! Adriano! meu marido!.. . (Cai sentada chorando.)

FÁBIO – Não se consterne... não posso vê-la assim... atenda... minha irmã é rica... muito sua amiga... e basta uma palavra de v. ex. para que nem mesmo lhe seja preciso passar pelo vexame do pedido... (Com ternura.)

HELENA (Levantando-se e fugindo.) – Oh!...

FÁBIO – Uma palavra, uma ordem sua, e eu...

HELENA (Levanta a cabeça e em silêncio vai até a mesa e toca a campainha.)

FÁBIO – Dª. Helena!

CENA VIII

FÁBIO, HELENA e JOSÉ

HELENA – Entrega a este senhor o seu chapéu. (José obedece.)

FÁBIO – Minha senhora...

HELENA (Sem olhar estende o braço e aponta com o dedo a porta.) – José! convida este senhor a sair. (Fábio toma o chapéu e sai arrebatado.)

CENA IX

HELENA, CLARIMUNDO e CINCINATO

CLARIMUNDO – Filha abençoada!... exulta!...

HELENA (Rompendo em soluços.) – E Adriano!... e meu marido!... (Nos braços de Clarimundo.)

CLARIMUNDO – Eu o salvarei.

CINCINATO (De joelhos toma e beija a mão de Helena.) – Perdão, minha senhora! beijo-lhe o santo dedinho indicador que mostrou a porta da rua ao diabo.

FIM DO TERCEIRO ATO

 

ATO IV

A mesma decoração do primeiro ato.

CENA I

BRÁULIO e GERTRUDES

BRÁULIO – Assim é que é: sessão cheia! pensei que o espanhol me tivesse desacreditado a casa, e hoje acudiu ainda mais gente! eu tinha chegado a calcular com a necessidade de mudar de acampamento.

GERTRUDES – Ora... a polícia aqui é tão boa!

BRÁULIO – Em sinal de gratidão não falemos nela.

GERTRUDES – E Dionísia? em que ficamos?...

BRÁULIO – É uma entrosga difícil! quem diria que o Quebra-louça em um abrir e fechar de olhos nos poria em revolução!... três contos de réis!... é um homem de bem: por mim estou resolvido a faltar a palavra ao Fábio, que é um impostor, e tanto mais que se arranja o negócio de modo que me deixam com cara de logrado, o que me serve para desculpar-me com ele.

GERTRUDES – Eu desconfio do Cincinato: é um estróina que se diverte a debicar-me.

BRÁULIO – Ele nos pagará: basta entregá-lo a Dionísia.

GERTRUDES – O pior é que Dionísia tem sua queda para Adriano.

BRÁULIO – Razão demais: isso indica ponta de capricho e ameaça de ligação demorada que não nos convém. O Quebra-louça há de desesperá-la em três dias, e não será capaz de sofrê-la três semanas: antes de um mês recolheremos Dionísia.

GERTRUDES – Então vou ralhar com ela, e convencê-la de que deve preferir o Cincinato. (Vai a sair)

BRÁULIO – Ao contrário: vai dizer-lhe cobras e lagartos do Quebra-louça, e sustentar a candidatura de Adriano; mas fala sempre na riqueza do outro: verás que ela muda de parecer: vocês todas são uns demônios de contradição...

GERTRUDES – Ora o Cincinato! quando mal se esperava...

BRÁULIO – É um homem de ouro! paga à vista e ao portador: conquista como César, (Sussurro dentro.) começam...

UMA VOZ (Dentro.) – Basta, Cincinato?

CINCINATO (Dentro.) – Jogo por fora para ter direito aos eclipses: faço um entre-parêntesis para avaliar o que ganhei na tripa.

OUTRA VOZ (Dentro.) – Vai, malvado!

BRÁULIO – Ele chega... deves ir tocar; daqui a pouco faze Dionísia cantar algum lundu provocador.

CENA II

BRÁULIO, CINCINATO e GERTRUDES, que se vai.

CINCINATO – Adeus, mamãe Gertrudes! (Ao encontrá-la.)

GERTRUDES – Que diabo de homem! (Vai-se.)

BRÁULIO – Aborreceu-se de jogo?

CINCINATO – Venho triste: feliz no jogo, infeliz no amor; não apostei que não ganhasse... vou perder com a bela Dionísia... não é?...

BRÁULIO – Tenha mais confiança em si: merece muito e sabe querer as coisas; é pena que não procure recomendar-se melhor a Dionísia.

CINCINATO – Eu tomei por caminho a linha reta: procurei chegar ao coração da sobrinha, fazendo escorregar a mão pela bolsa do tio; sou da escola realista: falei claro.

BRÁULIO – E eu lhe respondi que talvez arranjássemos tudo a contento.

CINCINATO – Talvez é o vago e o escuro: talvez é o animal que tem a cabeça escondida no sim, e a cauda enrolada no não. Eu fui mais positivo... no que falei, apresento... olhe... é só para mostrar... (Abre a carteira e mostra.) seis notas de quinhentos...

BRÁULIO – Novas e bonitas... vejo bem; mas podem se fazer as coisas decentemente... o senhor é escabroso... exprime-se de modo...

CINCINATO – Nítido e transparente: resolva a questão.

BRÁULIO – Dê as suas ordens para que esteja pronto e à nossa porta o carro à meia-noite. Hei de convencer Dionísia.

CINCINATO – Convença-a; porque o carro chegará às onze horas; tenho o 29 costume de preparar a couve antes da carne; mas pelo que me disse haverá em tal caso à sua porta dois carros para o mesmo fim, o de Adriano, e o meu: e se, por engano, a bela Dionísia... olhe, sr. Bráulio, tudo pode acontecer, menos somente uma coisa...

BRÁULIO – O quê?

CINCINATO – Ficar o senhor com o meu dinheiro, e eu sem a rapariga: declaração formal. Cincinato Quebra-louça assinado por cima de estampilha.

BRÁULIO – Pode estar tranqüilo: o senhor trata com um homem de bem.

CINCINATO – Isso está fora de questão; mas, em todo caso, há de ser como lhe disse: três contos de réis à portinhola do carro, estando o passarinho dentro.

BRÁULIO – De acordo; mas... o senhor nem respeita as conveniências...

CINCINATO – Quais? as suas?... e esta! quando lhe vou dar três contos de réis!...

BRÁULIO – Não é isso: é que o senhor nunca namorou seriamente Dionísia... nem mesmo hoje...

CINCINATO – Como é que se namora sério?... o namoro sempre me pareceu passatempo ridículo... eu gosto do positivo.

BRÁULIO – Ajude-me: faça a corte à Dionísia sentimentalmente; ataque-lhe o coração.

CINCINATO – Sentimentalmente, e atacando-lhe o coração?... vá feito: protesto que hei de tocar-lhe na tecla.

BRÁULIO – Sobretudo não comprometa o negócio, fazendo alguma das suas costumadas estúrdias: é o seu único defeito (Soa o piano em prelúdio.) ouça... creio que ela vai cantar, deixo-lhe o campo livre. (Vai-se.)

CENA III

CINCINATO e, depois do canto, DIONÍSIA

DIONÍSIA (Cantando dentro: lundu) – Bonita e marotinha. Eu sou como andorinha Que, só, não faz verão. Voando a sós no espaço, Cair quero no laço Que prende o coração.

CINCINATO (Canta.) – Caído e enrabichado Sou peixe, teu pescado, Com o anzol no coração. Não fiques mais sozinha, Vem cá, minha andorinha, Vamos fazer verão.

DIONÍSIA (Rindo-se dentro.) – Ah! ah! ah! ah! (Canta.) O amor de uma andorinha Na sombra se amesquinha, Quer lúcido esplendor. Voando a sós no espaço, Só cairei em laço De enleio encantador.

CINCINATO (Canta.) – Meu laço é um tesouro, Jóias, brilhante, ouro, Súcia, teatro, ceia, Sedas, e até veludo, Coques, anquinhas, tudo, E a bolsa sempre cheia.

DIONÍSIA (Canta dentro.) – Sou terna e já me inflama Aquela viva flama. Que abrasa o coração: Pressinto que a andorinha Não fica mais sozinha. E vai fazer verão...

CINCINATO (Canta.) – Por mim estou em brasas... Se queres, bate as asas, Me deixa ser ladrão; Vamos tecer um ninho, Voa, meu passarinho, Vamos fazer verão.

DIONÍSIA (Dentro.) – Ah! ah! ah! ah! (Rindo-se.) mamãe, já viu moço mais engraçado! (Cincinato vai para a frente, mas observa.)

GERTRUDES (Dentro.) – Que te importa o moço?... tens às vezes modos que não parecem de uma menina recatada! (Cincinato põe a mão na boca para conter o riso e vendo que Dionísia vem, tira a carteira e põe-se a contar o dinheiro.)

DIONÍSIA (Chegando.) – Ah! era o sr. Cincinato! que bela voz!

CINCINATO – Minha linda senhora... a sua voz é que é estupenda mesmo quando não canta; mas devo confessar que neste momento me atrapalhou!

DIONÍSIA – Como?...

CINCINATO – Fez-me errar a conta... eu dava balanço no capital e nos lucros desta noite e já não sei, se estava em cinco ou em sete contos... é claro que com a senhora a meu lado não me é possível somar... e ainda menos poderei multiplicar o dinheiro... diminuir há de ser fácil, não acha?... (Guarda o dinheiro que Dionísia olhava.)

DIONÍSIA – O senhor é original.

CINCINATO – Dizem isso: mas eu não creio. Que formosa moça!... (Toma-lhe a mão.) Que mãozinha de cetim! (Beija-a.)

DIONÍSIA – Deveras o senhor ama-me? ...

CINCINATO – Com furiosa paixão; eu, porém, sou franco e nítido: não sei alambicar finezas como o feliz Adriano... vou logo direito ao coração, e ao sentimento... encantadora Dionísia! queres ajudar-me a devorar em poucas semanas o miolo desta carteira, e mais três dúzias de contos de réis que tenho depositados no tesouro?... é logo sim ou não para poupar emoções... sim ou não, andorinha?...

DIONÍSIA – O senhor ou brilha pela franqueza, ou perde pela zombaria. Falemos seriamente: que pensa de mim, e como é o seu amor?...

CINCINATO – Penso que tens enganado a cinqüenta, e que contas comigo para enganar a cinqüenta e um. Eu te adoro apesar disso; mas não respondo pela constância do meu amor... fica a teu cuidado perpetuá-la.

DIONÍSIA – Mas o senhor fala ainda melhor do que canta!

CINCINATO – É que conheço as claves, e canto conforme a letra, e o espírito da música. Proponho-te um acordo filosófico e sentimental: tu amar-me-ás apaixonadamente enquanto eu tiver dinheiro para gastar, ou não te der o vento para outro lado; eu te adorarei, enquanto não me esfriar esta paixão eterna: em caso de arrependimento de qualquer dos dois... bons dias ou boas noites, e viva a liberdade!

DIONÍSIA (Pondo-lhe a mão no ombro.) – És um anjo, meu Cincinato!...

UMA VOZ (Dentro.) – Isto é escandaloso!... (Sussurro.)

CINCINATO – Aquilo não é conosco; podes tranqüilizar-te.

OUTRA VOZ (Dentro.) – Eu jogo franco e liso... cem mil réis!

CINCINATO – Aquilo sim, é comigo; franco e liso.

OUTRA VOZ (Dentro.) – Aceito!

CINCINATO – E tu aceitas, ladrão?

DIONÍSIA – À meia-noite batemos as asas!

CINCINATO – E saudades a Adriano!

DIONÍSIA – Ora!... que bata a outra porta... é um tolo. Adeus! até meia-noite... devo tomar algumas disposições... estou doida por ti. Meu Quebra-louça; conta comigo. (Dá a mão a Cincinato e vai-se.)

CENA IV

CINCINATO, que acompanha DIONÍSIA até a porta, e volta coçando a cabeça, como contrariado, e DEMÉTRIO.

DEMÉTRIO – Esta casa é um covil de larápios! depenaram-me.

CINCINATO – E estão para me depenar: consola-te.

DEMÉTRIO – Acho-me em singular e doloroso embaraço...

CINCINATO – E eu!... nem fazes idéia... estou com uma corda ao pescoço...

DEMÉTRIO – Perdi quatrocentos mil réis...

CINCINATO – E eu daria oitocentos para livrar-me de ganhar certa partida...

DEMÉTRIO – Sofri indigna afronta...

CINCINATO – E eu acho-me dez mil vezes mais afrontado... tenho um pesadelo horrível...

DEMÉTRIO – Quis jogar sob palavra e torceram-me o nariz! foi um insulto!... e quando eu tinha a certeza de ir ganhar!... e quando eu tinha a certeza de ir ganhar!... Cincinato... empresta-me duzentos mil réis? antes da ceia tos restituo.

CINCINATO – Prodígio, não me fales em dinheiro: é coisa que me irrita os nervos; olha, na primeira todos caem; na segunda, só os tolos; na terceira, só os doidos: jurei não passar contigo do segundo grau.

DEMÉTRIO – Por causa de alguns miseráveis centos de mil réis maltratas um amigo que por ti se tem comprometido em não sei quantas alhadas perigosas...

CINCINATO – Tu por mim nunca meteste prego sem estopa... tu... mas... ora esta!... que boa idéia!..

DEMÉTRIO – Empresta-me duzentos mil réis e me acharás pronto sempre a todos os sacrifícios da amizade; empresta-mos...

CINCINATO – Pois bem escuta, Prodígio: és capaz de quebrar louça hoje comigo?...

DEMÉTRIO – Sou: é experimentar.

CINCINATO – Não te empresto, dou-te já duzentos mil réis, e com eles ganha ou perde que pouco me importa; mas dez minutos antes da meia-noite a um sinal meu deixarás o jogo, receberás mais trezentos mil réis, e irás com uma bonita rapariga patuscar alguns dias fora da cidade, tendo para o resto desta noite hotel pago, e ceia a espera. Queres?

DEMÉTRIO – Que patifaria é essa?

CINCINATO – A rapariga é de pouco mais ou menos; não há receio de intervenção policial. Os duzentos mil réis já sob compromisso de honra; (Contando o dinheiro.) os trezentos mil réis na hora aprazada... queres?...

DEMÉTRIO – Mas... se não há risco de bulha com a polícia, dinheiro e moça bonita é ouro sobre azul... eu quero...

CINCINATO – E ainda mais uma rapariga de truz e por quem andas de queixo caído...

DEMÉTRIO – Aceito sem restrições: moça e dinheiro aceito.

CINCINATO – Toma, Prodígio; (Dá-lhe o dinheiro.) verás que a estralada é ainda melhor do que imaginas... a rapariga é Dionísia... segredo!

DEMÉTRIO – Oh!.. . será possível!...

CINCINATO – Facílimo: eu te explicarei tudo, e te darei as necessárias instruções... agora vamos jogar... (Indo-se.)

DEMÉTRIO – É sublime!...mas explica-me...

CINCINATO – Temos tempo: vamos jogar? (Vão-se.)

CENA V

FÁBIO e ADRIANO, que entram.

FÁBIO – Aposto que se eu não chegasse, não deixavas Dionísia?...

ADRIANO – Hoje mesmo jurei não tornar a vê-la, e vim arrebatado cair a seus pés... esta mulher é a minha perdição... ah! se a visses e a ouvisses há pouco... é irresistível.

FÁBIO – Mas pareces aflito...

ADRIANO – Toca a hora de uma ação indigna, que repugna a minha consciência, e a que me arrasta o delírio da paixão; vou insultar publicamente minha mulher, dando a Dionísia casa e tratamento! É uma revolta contra a sociedade e contra Deus.

FÁBIO – Que puerilidade! até ontem exagerei as proporções e conseqüências do erro que vais cometer: porque era dever de amigo procurar impedi-lo; mas agora... digote a verdade; não praticas uma boa ação; o teu pecado porém é o mais comum dos pecados.

ADRIANO – E Helena?...

FÁBIO – Fará como tantas outras no seu caso: a princípio, lágrimas e desespero, logo depois, consolação nos teatros e bailes.

ADRIANO – Não! eu sinto que a minha traição será fatal a Helena! eu o sinto... e ainda assim... Oh! basta o primeiro passo na ladeira escorregadia das paixões!... imprudente, o homem conta demais consigo... cedendo a capricho insensato, ousa uma vez levar aos lábios a taça do vício... e a embriaguez lhe anula a vontade... deprava-lhe os sentidos... e o escravo do demônio, embalde o clamor da consciência, vai de rojo caminho de opróbrio e de condenação!

FÁBIO – Eu conheço mais de cinqüenta maridos que rir-se-iam muito da tua ingenuidade!

ADRIANO – Fábio!

FÁBIO – Tua paixão por Dionísia é talvez um favor da Providência, porque te arrancará ao frenesi do jogo que te arruinou. Trabalharás, e, com o concurso da minha amizade, hás de reerguer o teu crédito abalado no comércio. Não torna a jogar: tens muito que despender com Dionísia...

ADRIANO – Tens razão; mas jogarei esta noite pela última vez, Meu Deus!... se eu ganhasse muito hoje!

FÁBIO – Adriano, cuidado! (Sussurro dentro.)

ADRIANO – Pesa-me sobre o coração o depósito de seis contos de réis que amanhã não poderei restituir.

FÁBIO – Pela terceira vez te asseguro que o usurário me prometeu a espera de um mês... é negócio concluído...

ADRIANO – Meu amigo, tu me salvas... e nem pensas do que me salvas.

FÁBIO – Vou jogar... se absolutamente queres também fazê-lo, vem.

ADRIANO – Vamos... até a meia-noite... ah! se eu ganhasse muito!... (Vão-se.)

UMA VOZ (Dentro.) – Eu jogo com as cartas viradas... cem mil réis na dama!

CINCINATO (Dentro.) – O dote é provocador; mas eu prefiro ficar solteiro.

CENA VI

DIONÍSIA e GERTRUDES

DIONÍSIA – Coitado! adora-me, como um cãozinho à sua dona! se o outro fosse bonito assim!... o Cincinato é feio que espanta; mas tem a carteira tão cheia que faz gosto ver!

GERTRUDES – E além da carteira tem quarenta casas de sobrado de dois andares para cima...

DIONÍSIA – Diabo do feio! Hei de ser um incêndio que lhe queimará em quarenta dias os quarenta sobrados. Há de me pagar caro o sacrifício do belo Adriano.

GERTRUDES – Esse é que é bom rapaz; já é porém um crivo de dívidas, é uma esteira velha de pobreza.

DIONÍSIA – Pois olhe mamãe, por mim não foi, comigo pouco despendeu: cinco vestidos de seda, um colar de pérolas e outro de brilhantes, dois pares de brincos, e uma flor das mesmas pedras, duas pulseiras, este relógio de ouro, um toilette completo de veludo carmesim, um leque de madrepérola, e este pince-nez... creio que não passou daí... eu o amo tanto que trago de memória os seus presentes...

UMA VOZ (Dentro.) – Cinqüenta mil réis.

CINCINATO (Dentro.) – Agora sim; eu sou dez.

OUTRA VOZ (Dentro.) – Cincinato joga por fora para pescar de caniço.

CINCINATO (Dentro.) – O pior é que muitas vezes vocês me comem a isca.

GERTRUDES – Cuidado com o Quebra-louça, Dionísia. Vê como ele é ladino...

DIONÍSIA – Está destinado a viver num inferno... começarei por obrigá-lo a convidar Adriano para cear conosco três ou quatro vezes por semana...

CENA VII

DIONÍSIA, GERTRUDES e BRÁULIO

BRÁULIO – A hora se aproxima... os dois carros já estão à porta. Dionísia, não nos deixes por mais de um mês... eu irei fazer as pazes contigo... tu voltarás.

DIONÍSIA – Desta vez com toda a certeza; porque vou-me com um homem tão feio, que é mesmo de obrigação reduzi-lo em pouco tempo a cambista de teatro.

BRÁULIO – Sangue frio e rapidez na execução da fuga: Fábio não nos atrapalha, porque conta com o negócio, mas Adriano está com os olhos no relógio...

DIONÍSIA – Coitadinho!

BRÁULIO – Dois minutos antes da meia-noite foge; acharás à porta da rua dois carros, sobe para aquele que é puxado por cavalos... olha, não te enganes.

DIONÍSIA – Bem: e depois?

BRÁULIO – O Cincinato, levando o rosto coberto com um lenço branco que é o sinal ajustado, subirá a assentar-se a teu lado... o carro partirá, e... adeus pombinhos! feliz viagem, e boa noite.

DIONÍSIA – Com o diabo do feio!...

BRÁULIO – Que parvoíce! vai cantar, se quiseres: aposto! vamos.

GERTRUDES – Anda, afortunada rapariga! (Vai-se Bráulio para a esquerda.)

DIONÍSIA (Indo-se e cantando.) Batendo a linda plumagem O amante passarinho Exala ternos queixumes Com saudades do seu ninho. (Vão-se pelo fundo.)

CENA VIII

CINCINATO e DEMÉTRIO – CINCINATO olha em torno cuidadoso.

DEMÉTRIO – Ora! quando o vento me soprava!... ganhei só trezentos e vinte mil réis.

CINCINATO – Tens, pois, quinhentos e vinte, e dou-te mais trezentos mil réis; levas dinheiro para oito dias de pagode rasgado: esta noite hotel ainda à minha custa, e amanhã sem falta segue com Dionísia para Petrópolis.

DEMÉTRIO – E se ela não quiser? ...

CINCINATO – Mostra-lhe a carteira e verás como ela aplaude o caso. Vai: espera na rua... o lenço branco no rosto... salta para dentro do carro, logo que Dionísia embarcar, e o mais o cocheiro sabe.

DEMÉTRIO – Esta é mesmo de Quebra-louça.

CINCINATO – Vai, feliz substituto! dou-te dinheiro e amor.

DEMÉTRIO – Hás de ver o desempenho!... adeus. (Vai-se pelo fundo.)

CENA IX

CINCINATO e BRÁULIO

BRÁULIO – O Demétrio se retira cedo... parece que perdeu.

CINCINATO – Qual! ganhou: não faz idéia que perverso é ele! esta noite incomodou-me muito... digo-lhe que Demétrio e Dionísia se namoram... creio que os apanhei em segredinhos... e com certeza riram-se um para o outro com ar de inteligência!...

BRÁULIO – Dionísia é vaidosa e o senhor é ciumento: não faça caso disso. Ela está perdida pelo senhor; mas... é quase meia-noite: ultimemos a nossa transação particular.

CINCINATO – Os três contos de réis?... conte com eles à porta da rua, e quando Dionísia estiver dentro do carro. Sem o pássaro na gaiola não caio.

BRÁULIO – O senhor duvida da minha probidade? (Dá meia-noite.) Meianoite!

CINCINATO – Um minuto para Dionísia descer a escada... e corro...

BRÁULIO – E o meu dinheiro?...

CINCINATO – À porta da rua... venha comigo...

CENA X

CINCINATO, BRÁULIO e GERTRUDES

GERTRUDES – Dionísia foi-se...

CINCINATO – A pontualidade me enternece... vamos...

BRÁULIO – E o meu dinheiro?

CINCINATO – À porta da rua, (Roda um carro.) um carro que parte... oh! vamos!... (Vão-se Cincinato e Bráulio correndo.)

CENA XI

GERTRUDES e ADRIANO

ADRIANO – Dionísia!...

GERTRUDES – Já desceu: sem dúvida o espera; mas...

ADRIANO – Oh! (Quer correr e Gertrudes o impede.)

GERTRUDES – Olhe que meu irmão correu a persegui-la... não se deite a perder.

ADRIANO – Deixe-me! ela me espera... (Partindo).

CENA XII

GERTRUDES, ADRIANO, CINCINATO e BRÁULIO

BRÁULIO – É uma infâmia!...

CINCINATO – Patifaria descomunal!... Dionísia fugiu com Demétrio! e o senhor... o senhor... (Em simulado furor.)

ADRIANO – Dionísia! oh! Dionísia!... (Vai-se, correndo.)

CENA XIII

GERTRUDES, CINCINATO e BRÁULIO

GERTRUDES – Minha filha!... não entendo...

BRÁULIO – Entende! você é abelha mestra! você entrou nesta pouca vergonha!... (Gertrudes fica espantada) entrou!...

CINCINATO – E eu!... atraiçoado... ameaçado no meu dinheiro... ferido no coração... o golpe foi profundo... ingrata Dionísia!... fica declarado que ela... e os senhores... firma industrial, Dionísia & Cia me assassinam... fica declarado... Cincinato Quebra-louça assinado por cima de estampilha. (Cai, fingindo desmaiar) ah!...

BRÁULIO – E ainda em cima a zombaria!... foi uma conjuração... o senhor me há de pagar!... é um estelionato!...

CENA XIV

CINCINATO, GERTRUDES, BRÁULIO, CRIADO apressado.

CRIADO – Com urgência... com urgência... (Dá uma carta a Bráulio.)

BRÁULIO (A um lado e Gertrudes lendo pelo ombro de Bráulio.) – “Por amor da bela Dionísia: dentro de meia hora a polícia cercará a sua casa; há denúncia de que aí está jogando um caixeiro que falsificou a firma do amo em letras que descontou na praça. Previna-se: queime este bilhete.” Inda mais esta!... a polícia!... (Corre para a direita.)

GERTRUDES – Misericórdia!...

CINCINATO (Levantando-se.) – Dionísia foi presa?...

GERTRUDES – Não... não... é a polícia que vem cercar-nos a casa!...

CINCINATO – A polícia?... em casa de jogo?... a velha dormente?... oh! enquanto ela pinta os cabelos, põe as anquinhas, e calça as botinas, eu toco a retirada em passo ordinário sem receio de encontro perseguidor. (Vai-se: ansiedade de Gertrudes.)

CENA XV

GERTRUDES, BRÁULIO, FÁBIO E JOGADORES todos em susto e desordem, falando precipitados e quase a um tempo.

VOZES – A polícia! a polícia!...

GERTRUDES – A casa já está cercada!

VOZES – Tranque-se a porta! (Trancam-se as portas.)

VOZES – O asilo do cidadão é inviolável.

GERTRUDES – Ouço passos na escada.

UM VELHO – Sou oficial da Ordem da Rosa e tenho honras de coronel... hão de respeitá-las...

UM JOVEM – É meu pai! é meu pai!...

UMA VOZ – Oh! que desgraça!...

VOZES – Que foi? ...

A MESMA VOZ – Um moço atirou-se da janela abaixo!...

VOZES – Infeliz!... é o caixeiro!...

OUTRAS VOZES – Fujamos pelos fundos da casa!...

BRÁULIO – Senhores!... a casa ainda não está cercada...

GRITO GERAL – Fujamos!... (Corrida geral.)

FIM DO QUARTO ATO

 

ATO V

A mesma decoração do terceiro ato.

CENA I

CLARIMUNDO, JOSÉ que entra, e logo CINCINATO

CLARIMUNDO (Vendo José.) – Enfim!

JOSÉ – O sr. Doutor já não estava em casa: deixei a carta.

CLARIMUNDO (Impaciente.) E Helena poderá esperar?...

CINCINATO (Entrando.) – Boletim da batalha de ontem...

CLARIMUNDO (A José.) – Vai-te. (A Cincinato.) Tu aqui?... e essa maldita mulher.

CINCINATO – Estamos livres dela: pensou que fugia comigo e achou-se em caminho com um substituto que arranjei do pé para a mão.

CLARIMUNDO – E Adriano?

CINCINATO – Ainda não voltou?...

CLARIMUNDO – Desde ontem de manhã... o ingrato!... enquanto a esposa ameaçada talvez da morte.

CINCINATO – Dª. Helena!

CLARIMUNDO – Passou horrível a noite: o médico deixou-a adormecida ao amanhecer; ela, porém, despertou uma hora depois em novo ataque nervoso, e esperem lá o doutor!... agora dormiu outra vez... embora... eu quero um médico à sua cabeceira.

CINCINATO – Em dez minutos está servido... (Tomando o chapéu.) 

CLARIMUNDO – Merece confiança? (Para um carro.)

CINCINATO – É moço; mas vale um velho sábio... um carro... e talvez o médico...

CLARIMUNDO – Que seja... vai buscar o outro... um há de ficar aqui.

CINCINATO – Vou como se fosse em velocípede. (Vai-se.)

CENA II

CLARIMUNDO, que acompanha Cincinato até a porta – ÚRSULA

CLARIMUNDO (Ao ver Úrsula.) – Ah! minha senhora...

ÚRSULA (Entrando.) – Sr. Clarimundo. (Dá-lhe a mão) dª. Helena?... o seu médico, que também é o meu, acaba de dar-me notícias que me afligiram... e corri...

CLARIMUNDO – Que pensa ele?...

ÚRSULA – Por ora nada de positivo; porque, pelo que diz, nem pode fazer perfeito exame da doente no estado em que ela se achava..

CLARIMUNDO – É verdade... terríveis fenômenos nervosos...

ÚRSULA – E agora? como está dª. Helena?

CLARIMUNDO – Dorme sossegada.

ÚRSULA – Se o permite, esperarei que ela acorde.

CLARIMUNDO – Oh! eu agradeço muito a v. ex. o interesse que toma por Helena... o dia vai ser talvez de amargurado pranto... v. ex. também há de chorar... pois que é sensível... quer ver... minha filha no horror dos seus tormentos... Adriano sobe a escada... venha... entre...

ÚRSULA – Sr. Clarimundo...

CLARIMUNDO – Por quem é... (Oferece-lhe a mão.) Desejo ficar só com Adriano.

CENA III

CLARIMUNDO, que conduz Úrsula até à porta e volta severo de braços cruzados – ADRIANO pálido e desfigurado.

ADRIANO – Sr. Clarimundo... (Silêncio de Clarimundo.) foi-me de martírios a noite... (Silêncio.) tenho sofrido muito... (Silêncio.) porque me olha assim?... poupeme... (Silêncio.) ah sr. Clarimundo... (Clarimundo vai fechar e tira a chave da porta do interior) Por que fecha essa porta?...

CLARIMUNDO – Ontem um homem que eu supunha honrado, e a quem ofereci o perdão de vergonhosos desatinos, prometeu-me solenemente não tornar a jogar, e ser digno de sua esposa; e ontem mesmo ele jogou, e mentiu à fidelidade conjugal, à honestidade, e ao brio: como é que devo hoje qualificar esse homem?...

ADRIANO – Sr. Clarimundo! v. s. me insulta!...

CLARIMUNDO – Fale baixo...

ADRIANO – Abusa do respeito talvez excessivo...

CLARIMUNDO – Desgraçado! Helena está em perigo de morte, e aos gritos do algoz.

ADRIANO (Correndo à porta.) – Helena!... (Volta.) a chave daquela porta!... a chave!...

CLARIMUNDO – Jogador desenfreado e vicioso, deixa que morra em paz a tua vítima antes de sentir a fome e o horror da miséria a que a reduziste! amante da mundanaria: adúltero ostentoso, o teu lugar não é mais ao lado da honestíssima esposa que ultrajaste, é no lodo do lupanar e nas orgias da devassidão!...

ADRIANO – Oh!... é muito!... é muito!... mas... a chave daquela porta! eu quero ver Helena...

CLARIMUNDO – De joelhos, réprobo da sociedade e de Deus! de joelhos! e verte lágrimas que te queimem tanto as faces, e rompe em gemidos, que te rasguem tanto o peito, que possam merecer o perdão da tua ignomínia!...

ADRIANO – Sr. Clarimundo! é demais!... quaisquer que sejam os meus erros... as minhas loucuras, só meu pai poderia impunemente injuriar-me assim... proíbo-lhe que me fale desse modo!

CLARIMUNDO – Teu pai!... teu pai se envergonharia de tal filho... teu pai te amaldi... talvez te amaldiçoasse... se eu fosse teu pai...

ADRIANO – Não! não!... meu pai não me falaria tão cruelmente!... meu pai se arrependeria de me haver deixado vinte e seis anos no deserto do desprezo e sem a sua bênção!... meu pai encontrando-me envilecido, culpado, se faria meu juiz; mas só para absolver-me num grito do coração!...

CLARIMUNDO – Desgraçado!... e tu... (Em crescente comoção.)

ADRIANO – Não! não!... meu pai não seria execrador implacável; meu pai sentiria no seu seio os tormentos que dilaceram o seio de seu filho!... meu pai, revoltado contra mim, no ímpeto de cólera justíssima levantaria a mão para amaldiçoar-me; mas a sua mão descendo sobre a minha cabeça, faria o sinal de bênção...

CLARIMUNDO – Adriano!... ( Vivíssima comoção.)

ADRIANO – Não! não! meu pai... ah! para que falou de pai ao enjeitado... ao proscrito da família, ao inocente condenado no ventre materno?... se eu tivesse meu pai! Oh!... meu pai não enjeitaria segunda vez o infeliz que não tem culpa de ter nascido!...

CLARIMUNDO – Adriano!... Adriano!...

ADRIANO – Não! não! não! meu pai, vendo-me na maior desgraça, na aflição mais despedaçadora, meu pai... oh!... meu pai não me amaldiçoaria, meu pai me estenderia os braços, me diria perdão!... choraria comigo... meu pai, que sem dúvida amou minha mãe, não me negaria a chave daquela porta... (Chorando.) meu pai...

CLARIMUNDO (Chorando também.) – Mas... eu sou teu pai!... meu filho!... eu te perdôo!...meu filho!

ADRIANO – Oh!... oh!... meu pai!... (Cai de joelhos: abraçam-se.)

CLARIMUNDO – Adriano!... meu filho!... meu filho!...

CINCINATO (Dentro.) – Eu e o meu doutor... (Clarimundo e Adriano enxugam as lágrimas, etc.)

CENA IV

CLARIMUNDO, ADRIANO, CINCINATO e o DR. GONÇALVES

CINCINATO – O dr. Gonçalves...

CLARIMUNDO e ADRIANO – Sr. doutor...

GONÇALVES – Meus senhores... estou às ordens...

CLARIMUNDO – A nossa doente dorme depois de longo sofrer: teve esta noite vômitos, síncopes, delírio, e ataques nervosos que nos alvoroçaram; o sr. doutor verá o que receitou e lhe fez aplicar o seu colega assistente; nós, porém, queremos um médico, que vele ao pé da nossa querida Helena.

GONÇALVES – Esperarei junto dela pelo meu colega. O sono, sendo tranqüilo e reparador, é de bom agouro; mas também é em certos casos muito conveniente observar o sono.

CLARIMUNDO – Venha, sr. doutor; conte-nos seus raciocínios com a mais forte emoção moral... tenha a bondade de entrar... (A Adriano que se adianta.) Fica, 39 Adriano, eu to peço. (Vai-se com Gonçalves.)

CENA V

ADRIANO e CINCINATO

ADRIANO – Vês?... eu sou um miserável condenado!... minha mulher está mal e me fecham a porta do seu quarto... isto quer dizer que eu fui o miasma da infecção... que eu sou o assassino de Helena!.

CINCINATO – Tem paciência e espera: nas senhoras os nervos são revolucionários que fazem muito fumo com pouco fogo; cá por mim não te proibia a entrada na câmara de Helena; pelo contrário, para ressuscitar a moribunda receitava um abraço e um beijo do marido.

ADRIANO – Cincinato! (Vai a porta e volta com aflição.)

CINCINATO – Falo sério; desde que se falou em fenômenos nervosos, fiquei mais esperançoso. Deus nos conservará dª. Helena... e com tanto que te cures também da...

ADRIANO – Basta...

CENA VI

ADRIANO, CINCINATO e CLARIMUNDO

CLARIMUNDO – Helena continua a dormir tranqüilamente; o doutor ficou à sua cabeceira, e exige que esperes o seu chamado para te mostrares a tua mulher.

ADRIANO – E que julga ele?

CLARIMUNDO – Parece animado: observando o sono, a respiração e a fisionomia de Helena, mostrou-se contente...

ADRIANO – Oh! que ela viva!... é de sobra para meu castigo o que estou sofrendo; porque é castigo, é punição que Deus me inflige... (Batem palmas.) pode entrar.

CENA VII

ADRIANO,CINCINATO, CLARIMUNDO e VENCESLAU.

ADRIANO – Ah!

VENCESLAU – Criado muito humilde de v. ex.

CLARIMUNDO (A Cincinato.) – Quem é este maltrapilho?

CINCINATO (A Clarimundo.) – Um ratazana... usurário petrificado...

VENCESLAU (A Adriano.) – Criado muito humilde que vem receber as ordens de v.ex. ... como não o encontrei no escritório...

ADRIANO – Desculpe; o meu amigo Fábio assegurou-me que se tinha entendido com o senhor sobre o nosso negócio...

VENCESLAU – O sr. Fábio nem me falou, nem me apareceu, e com a devida vênia, não havia de que falar; porque o prazo é fatal.

ADRIANO (Perturbado.) – Fábio!... é impossível!...

VENCESLAU – É tão possível, como é certo que o prazo fatal... chegou... e...

ADRIANO – Senhor... eu pensava... (Agitadíssimo.) tenha a bondade de acompanhar-me... (Indo.)

VENCESLAU – Pois não! eu sou o mais humilde criado de v. ex.... (Indo.)

CLARIMUNDO – Para que segredos inúteis? ... (A Venceslau.) senhor...

senhor...

VENCESLAU – Venceslau Inocêncio da Caridade para servir a v. ex.

CLARIMUNDO – Sr. Venceslau, o sr. Adriano não pode atender hoje a negócio algum... tem a esposa entre a vida e a morte!...

VENCESLAU – Que desgraça! juro que sinto minto... mas o prazo é fatal.

CLARIMUNDO – E quem lhe pede que sinta ou não sinta? (Consulta o relógio.) Ao meio-dia em ponto pode ir no escritório do sr. Adriano levantar o seu depósito de seis contos de réis. (Confusão de Adriano.)

VENCESLAU – Humilde criado de v. ex.... como o prazo era fatal... ah! ah! ah! (Rindo.) eu não desconfiava... mas nos casos em que o prazo é fatal... humilde criado de v. ex.... (Vai-se.)

CLARIMUNDO – Esperem-me ambos. (Entra no gabinete.)

CENA VIII

ADRIANO e CINCINATO

CINCINATO – Coragem! o maior perigo vai passar...

ADRIANO – Oh!... e como!... este depósito... eu não tenho dinheiro...

CINCINATO – Tinha-o eu... não para o jogo, nem para Dionísia... tinha-o eu, e te esquecias de mim; mas o sr. Clarimundo não está pobre... é rico, e isso é muito melhor para nós ambos...

ADRIANO – Rico!... e salva-me!... (Silêncio.) mas... se não fosse ele... Cincinato! há seis meses eu era o mais feliz dos esposos e o meu crédito igualava à minha probidade; vida serena em casa, estima geral no público, fortuna próspera abençoavam a minha honra, o meu amor e o meu trabalho: oh!... porque não morri há seis meses!...

CINCINATO – Para dª. Helena não ficar viúva... em toda esta meada eu sinto a mão de Deus sobre a cabeça do anjo.

ADRIANO – O jogo e uma mulher perdida, destruíram em breves semanas, como dois incêndios, a minha fortuna, a minha honra e mancharam o meu amor... e pelo jogo, que é vício aviltante, e por essa mulher, que todos podem comprar, hoje um usurário me faria recolher à prisão e marcar na minha fronte o selo da maior ignomínia; porque hoje ele poderia ter-me chamado... estelionatário... ladrão... Oh!... eu começo a pressentir que estou salvo; mas a vergonha e o opróbrio estão aqui! (Aponta o coração.) na consciência algoz.

CENA IX

ADRIANO, CINCINATO e CLARIMUNDO

CLARIMUNDO (Dando um papel a Adriano.) – Entrega esta carta de ordem à casa comercial a que é dirigida, e que a espera desde ontem: em meia hora no teu escritório, em uma aqui. Se tens a desgraça de dever a Fábio, manda imediatamente pagar-lhe: Cincinato, acompanha-o e volta com ele. Vai... apresenta-te... (A Adriano.) então?... vai! (Adriano ajoelha-se.) Que é isto? ...

ADRIANO (Trêmulo e comovido.) – Helena... que eu não vi... (Soluçando.)

CINCINATO – Ele tem razão!... (Enternecido.)

CLARIMUNDO (Comovido.) – Vem... um instante só... da porta do quarto...(Leva-o pela mão; e logo depois volta, trazendo-lhe um pouco à força.)

CINCINATO (Comovido.) – Querem atirar-me no sentimental... eu protesto.

CLARIMUNDO (Abraçando Adriano.) – Vai com Deus!... (Cincinato vai-se, levando Adriano.)

CENA X

CLARIMUNDO e logo JOSÉ

CLARIMUNDO (Acompanha os dois até à porta; enxuga as lágrimas; senta-se, parece sofrer; levanta-se, vai à porta do interior e chama com voz abafada.) – José! (Entra José.) Dize à sra. d. Úrsula que eu lhe peço o favor de dar-me uma palavra. (Vaise José; Clarimundo vai trancar a porta de entrada e senta-se até que Úrsula entra.)

CENA XI

CLARIMUNDO e ÚRSULA

ÚRSULA – Aqui estou.

CLARIMUNDO – E Helena dorme ainda?...

ÚRSULA – Dorme: deixei a criada no quarto para que ela, no caso de despertar, não se assuste, vendo-se a sós com o doutor que lhe é desconhecido. (Clarimundo vai trancar a porta do interior) Porque tranca a porta?...

CLARIMUNDO – Para que ninguém perturbe a nossa conversação. v. ex. fazme a graça de sentar-se? (Aproximando sua cadeira.)

ÚRSULA (Sentando-se.) – E o senhor?

CLARIMUNDO – Ficarei de pé.

ÚRSULA – O senhor me confunde...

CLARIMUNDO – Confundi-la-ei talvez. O que me trouxe do Rio da Prata, minha senhora, foi o cuidado da sorte de Helena e de Adriano; a este vim achar arruinado pelo jogo e pela ligação com uma mulher corrupta; àquela encontrei resistindo nobremente a um plano infame de sedução e martirizada pelo conhecimento da infidelidade do marido. É v. ex. quem me pode explicar completamente estes fatos.

ÚRSULA – É uma inquirição! com que direito?...

CLARIMUNDO – Com o direito do passado que a acusa nas circunstâncias do presente! v. ex. não há de matar impune uma virtuosa esposa.

ÚRSULA – Senhor!... (Levantando-se).

CLARIMUNDO – Há vinte e seis anos v. ex., que então contava com dezessete, casou (Com abalo.) com um velho... miserável milionário... de quem enviuvou dois anos depois, herdando-lhe toda a fortuna...

ÚRSULA – Meus pais pobríssimos me impuseram esse sacrifício... sabe-o!...

CLARIMUNDO – Não me importa isso! mas v. ex, viúva, bela e rica, apaixonou-se pelo mais nobre e distinto cavalheiro, por Maurício de Araújo, que teria sido seu marido, se não fosse eu, que o arredei desse enlace, e que o fiz desposar a linda, a fiel e honestíssima Helena...

ÚRSULA – Sr. Clarimundo!

CLARIMUNDO – Daí dois ódios... a mim, ódio à rival preferida! v. ex. não o pode negar, perseguiu Helena com a intriga, com o aleive, procurou nodoá-la, atentou contra a mais pura amizade e chegou ao ponto de denunciar-me a Maurício como o amante de sua mulher...

ÚRSULA – Oh!... eu o acreditei e tinha raiva, porque eu me supunha duas vezes ofendida... duas vezes... e era demais para uma mulher que havia sido amada!

CLARIMUNDO – E agora?... eu fui desde vinte anos o tutor de Helena, filha da pobre Helena que morreu como seu nobilíssimo esposo há vinte anos; e agora? que explica esse ódio de além túmulo?... por que agora é v. ex. que se finge amiga de Helena, e é seu irmão que perverte Adriano, e que se empenha em seduzir-lhe a esposa?... por que agora é v. ex. que excita aos ciúmes da infeliz filha da sua antiga rival, e é o seu dinheiro, minha senhora que paga as traições de Fábio, e o envenenamento moral de Adriano?... Úrsula! és tu, Úrsula, que estás assassinando Helena!...

ÚRSULA – Não! por Deus, eu juro que não! odiei Helena, a mãe, eu amo Helena, a filha... sr. Clarimundo, é verdade: Fábio me arrastou a esta casa... me comprometeu... me expôs a injustíssimas suspeitas... oh! tudo mais é falso... dou dinheiro a meu irmão, porque é ele só o único amor que me deixaram no mundo! mas eu não atraiçoei Helena! é falso!...

CLARIMUNDO – E Adriano... o pervertido...

ÚRSULA – Não sei... não sei... mas... Adriano... Adriano...

CLARIMUNDO – Verdade, Úrsula!...

ÚRSULA – É seu protegido... talvez seu filho... eu queria detestá-lo...e não posso!

CLARIMUNDO – Úrsula!... tu foste má... tu és... tu mentes, e Deus te castiga, Úrsula! antes do teu casamento nós nos amamos.

ÚRSULA – Clarimundo! eu quero sair... abre-me a porta...

CLARIMUNDO – Houve em nosso amor uma hora de delírio...

ÚRSULA – Oh! eu quero sair.. . abra-me a porta, ou grito!

CLARIMUNDO – O fruto do amor criminoso que se escondeu ao mundo, me foi confiado... depois a traição do casamento com a riqueza do velho milionário fulminou o meu amor... o que eu senti então foi ódio e raiva... Úrsula! eu te supus mãe desnaturada, e vinguei-me!... recebeste o anúncio da morte de nosso filho... mas...

ÚRSULA – E... então?... (Ansiosa.)

CLARIMUNDO – Meu filho... não... não... tu foste má... tu és má... (Indo abrir a porta.) podes sair...

ÚRSULA – Oh! não!... fala!... não quero sair... acaba!

CLARIMUNDO – Pois bem... eu menti... nosso filho vive!...

ÚRSULA – Meu filho!...

CLARIMUNDO – Castigo de Deus! tu lhe cavaste a perdição... procuraste perverter-lhe a esposa... armaste contra ele com o teu dinheiro a perversidade de teu irmão...

ÚRSULA – Adriano!... meu filho!...

CLARIMUNDO – Castigo de Deus! é completa a ruína de nosso filho, e hoje, atraiçoado por Fábio, perseguido pelos credores, já suspeito de um crime... a prisão... a desonra.

ÚRSULA – Oh! é falso! é impossível! inda há pouco ele estava aqui...

CLARIMUNDO – Sim e foi escapar à perseguição que o ameaçava aqui mesmo...

ÚRSULA – E tu que és seu pai... e tu?...

CLARIMUNDO – Não te disseram que estou pobre? ...

ÚRSULA – Oh! tanto melhor! eu ainda sou rica... eu somente o salvarei! onde está meu filho?... onde está?...

CLARIMUNDO – Úrsula! os compromissos são enormes...

ÚRSULA – Não excederão ao que possuo... e Adriano é meu filho... é... eu o sinto no coração... e tu não sabes talvez... mas tenho um sinal para reconhecê-lo... onde está ele?... depressa... eu quero ter a dita de salvar meu filho!...

CLARIMUNDO – Úrsula!... serás capaz de tão grande sacrifício?...

ÚRSULA – Tudo... tudo... tudo... e não é sacrifício... é glória... depressa...

CLARIMUNDO – Deus negou-te essa consolação: sou mais rico do que tu, Adriano está salvo.

ÚRSULA – Ah!... embora!... abençoado sejas!... abençoado em nome de meu filho...

ADRIANO (Batendo devagar) – José... abre, José!

ÚRSULA (Querendo correr.) – Meu...

CLARIMUNDO (Detendo-a.) – Contenha-se: Adriano sabe já que sou seu pai, mas deve ignorar quem é sua mãe, até que Helena esteja livre de perigo. (Em meia voz.)

ÚRSULA (Abatendo-se.) – Ah!

ADRIANO (Batendo devagar) – José... José...

CLARIMUNDO – É preciso mesmo que ele a não encontre ao lado de Helena: profundamente ressentido da mais vil perfídia de Fábio, volta sem dúvida suspeitoso... desabrido... e seria cruel para todos nós... e sobretudo para ti... Úrsula.

ÚRSULA – Meu Deus!... meu filho me aborrece...

ADRIANO (Dentro.) – Quem fala aí?... José! abre.

CLARIMUNDO – Confia em mim, Úrsula: entra neste gabinete e espera-me.

ÚRSULA – Tenha compaixão da mãe de seu filho. (Entra no gabinete.)

CENA XII

CLARIMUNDO, que abre a porta, e ADRIANO

ADRIANO – Meu pai! e Helena?

CLARIMUNDO – Não há novidade.

ADRIANO – Ah!... (Respirando.) mas quando cheguei à porta do quarto antes de sair, estava lá dª. Úrsula... já se retirou?...

CLARIMUNDO (Afastando-o do gabinete.) – Fala baixo: porque o perguntas?...

ADRIANO – Eu não quero a irmã de Fábio junto de minha mulher.

CLARIMUNDO – Mais baixo: que sabes de dª. Úrsula?

ADRIANO – Acabo de abrir os olhos... fui indignamente comprometido e atraiçoado por Fábio; não creio que essa mulher seja alheia...

CLARIMUNDO – Simples desconfiança... eu também desconfiei; mas reconheci que fui injusto. Dª. Úrsula está inocente; deves respeitá-la.

ADRIANO – É irmã de Fábio: rogar-lhe-ei o favor...

CLARIMUNDO – Adriano... quero que ames e veneres essa senhora...

ADRIANO – Oh! mas é impossível!... meu pai... ela deve sair da minha casa.

CLARIMUNDO – Silêncio! És capaz de dominar-te para obedecer-me?...

ADRIANO – Meu pai...

CLARIMUNDO – Tu não podes fechar a porta de tua casa a dª. Úrsula... deves respeitá-la e amá-la, porque... silêncio... domina-te... ela é tua mãe... (Em voz muito baixa.)

ADRIANO – Oh!... minha... (Grande comoção.)

CLARIMUNDO – Silêncio! Há vinte e seis anos que eu a fiz acreditar na tua morte... agora escuta: as emoções do reconhecimento da mãe e do filho poderiam ser fatais a Helena; tu, Adriano, domina-te: filho do amor misterioso, não podes ser o primeiro a romper o segredo do teu nascimento, envergonhando tua mãe e abatendo-a na sociedade. Espera que Úrsula fale... é o seu dever de mãe, e o seu direito de senhora....

ADRIANO (Com esforço.) – Obedecerei... ela porém... (Com doçura.) minha mãe já sabe... que eu sou seu filho?...

CLARIMUNDO (Pronto.) – Não... e portanto bem vês que não podes... oh! sinto rumor lá dentro...

ADRIANO – Eu vou..CLARIMUNDO – Espera a ordem do médico: o rumor não é de aflição... foi Helena que despertou... eu volto para levar-te. (Vai-se.)

ADRIANO – Meu Deus...

CENA XIII

ADRIANO e logo ÚRSULA

ADRIANO (Aflito segue Clarimundo até à porta e volta a um sinal deste, passeia agitado; Úrsula sai, hesitando, do gabinete; silêncio de ambos... luta íntima... Úrsula quer ir-se e volta... olham-se, tremem, ânsia de ambos: não podem mais conterse, atiram-se um ao outro.)

ÚRSULA (Grito abafado.) – Meu filho!...

ADRIANO (O mesmo.) – Minha mãe!... (Abraçam-se.)

ÚRSULA (Abre a camisa de Adriano e examina o peito esquerdo.) – Oh!... é meu filho! é meu filho!... (Abraçam-se: pranto de ambos.)

CENA XIV

ADRIANO, ÚRSULA e CLARIMUNDO

CLARIMUNDO – Helena despertou... o doutor está rindo-se... ah! e os senhores aqui fora faltavam-me ambos à palavra!...

ADRIANO – Que felicidade meu pai!

ÚRSULA – Que seja completa! oh Clarimundo! dá-me o pai de meu filho para que eu o apresente a todos!

CENA XV

ADRIANO, ÚRSULA, CLARIMUNDO, DR. GONÇALVES e logo HELENA, pálida, cabelos soltos e vestida de branco.

GONÇALVES – Parabéns! a moléstia revelou doce glória! a doente é uma esposa abençoada por Deus; e o marido, se foi leviano como dizem, tem o perdão pela dita, e vai em breves meses ser preso por mais um laço!...

ADRIANO (Correndo.) – Oh, minha Helena!... minha Helena!...

HELENA (Aparecendo à porta e abrindo os braços.) – Adriano!... meu marido!...

ADRIANO (De joelhos.) – Anjo de amor! de perdão! anjo de bem-aventurança na terra!

CENA XVI

ADRIANO, ÚRSULA, CLARIMUNDO, DR. GONÇALVES, HELENA e CINCINATO

CINCINATO – Tudo feito! perdão, minhas senhoras... mas eu que por aqui arranjaram-se as coisas ainda melhor, do que eu as arranjei lá fora!...

CLARIMUNDO – O doutor fica sendo um amigo da família; Cincinato já o é; saibam pois o que em breve saberá a sociedade: Minha Helena! abraça o pai e a mãe de teu marido!...

HELENA – Ah! como sou feliz!... (Abraçam-se os quatro.)

CINCINATO – Por esta não esperava eu!... mas eis aí como pode ter sua poesia um casamento de velhos... que disse eu?... perdão minha senhora, isto é só com o noivo!

ÚRSULA (Apresentando Helena e Adriano.) – Meu filho! adora-a!... Helena é santa... (Adriano abraça Helena.)

CINCINATO – Se o é!... (Comovido.) Este milagre Deus fez só por ela!...(Soluçando.) Estou fora do meu elemento... declaro-me enternecido e fica declarado: Cincinato Quebra-louça... assinado... por cima de estampilha.

FIM DO QUINTO ATO E DA COMÉDIA

 

 

                                                                                            Joaquim Manuel de Macedo

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa