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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Divórcio Sangrento / Erle Stanley Gardner
Divórcio Sangrento / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Divórcio Sangrento

 

CAPÍTULO I

            Ao entrar no escritório, fiquei parado à porta, com o chapéu na mão. Seis outros homens Tinham-se-me antecipado. O anúncio mencionava “entre vinte e cinco e trinta anos”. Se as aparências querem dizer qualquer coisa, alguns deles eram optimistas mentirosos. O nosso grupo tinha manifesta falta de apresentação. Por detrás da sua secretária, uma empregada loura matraqueava na máquina de escrever. Olhou-me. O seu rosto era tão acolhedor como a porta de uma penitenciária.

- Que deseja? -perguntou-me.

- Quero falar com Mr. Cool.

- Sobre que assunto?

            Com um gesto, designei a meia dúzia de indivíduos que me olhava de revés.

- Venho responder ao anúncio.

- Era o que eu pensava. Sente-se.

- Não vejo nenhuma  cadeira livre - observei.

- Dentro  de  minutos,  haverá  uma.  Pode esperar uns instantes de pé ou voltar mais tarde.

- Está bem, espero.

            A empregada continuou a dactilografar. Soou uma campainha. Ela pegou no telefone, escutou um instante e disse:

- Está bem - e voltou-se para uma porta, onde se lia: B. L. Coll, Particular. A porta abriu-se. Com ar de alguém que se precipita de um ambiente abafado para readquirir a normalidade da respiração, um homem atravessou a sala como uma flecha.

- Pode entrar, Mr. Smith - declarou, secamente, a loura.

            Um jovem de ombros largos e cintura estreita ergueu-se, compôs o casaco, ajustou a gravata, arvorou um sorriso dúbio, abriu a porta do gabinete “Particular” e entrou.

- Como  se  chama? - perguntou-me  a  loura.

- Donald Lam.

- L-a-m-b?

- Não, Lam.

Ela escreveu o meu nome; depois, com os olhos fitos em mim, principiou a tomar apontamentos em estenografia. Compreendi que estava a catalogar o meu aspecto pessoal.

- Não é preciso mais nada? -perguntei depois de ela me ter olhado de pés à cabeça e de ter acabado de desenhar sinais cabalísticos sobre o seu bloco.

- Não. Sente-se nessa cadeira e espere.

Sentei-me e esperei. Smith não tardou a reaparecer. A entrevista não durara mais de dois minutos. A seguinte foi ainda mais curta. O candidato nada mais fez do que entrar e sair. O que se apresentou a seguir demorou-se aproximadamente dez minutos e voltou estupefacto. A porta do gabinete exterior abriu-se; apareceram mais três candidatos. A secretária loura apontou os seus nomes, examinou-os de alto a baixo e tomou apontamentos. Depois que estes se sentaram, pegou no receptor do telefone e declarou laconicamente:

- Ainda há mais quatro.

Escutou uns instantes, desligou o telefone e dirigiu-se para o gabinete da direcção. Demorou-se cerca de cinco minutos. Quando voltou, fez-me um sinal.

- Pode entrar,  Mr.  Lam.

Os homens que estavam há mais tempo do que eu lançaram-nos, aos dois, um olhar irritado, sem dizer palavra. Aparentemente, a empregada ligou a mesma importância que eu a estes olhares irritados, isto é, nenhuma. Abri a porta e penetrei numa grande sala, guarnecida por diversos arquivos, duas cadeiras confortáveis e uma enorme  secretária.

Esbocei o meu melhor sorriso e declarei:

- Mr. Cool, eu...

Bruscamente, calei-me. A pessoa que estava por detrás da secretária não era um “Mister”. Tinha sessenta anos, cabelos grisalhos, olhos cinzentos e uma expressão falsamente benigna no rosto. Devia pesar, pelo menos, cem quilos.

- Sente-se, Mr. Lam - disse-me ela. -Não, nessa cadeira, não. Venha para aqui para onde eu o possa ver. Está bem. Aqui está bem. E agora, atenção: não me venha para cá com mentiras!

Fez girar a cadeira e examinou-me. Eu tinha o aspecto de ser o seu neto preferido que fora convidado a vir lanchar com ela.

- Onde vive? -perguntou-me.

- Não tenho endereço permanente. Neste momento, habito numa pensão, em West Pico.

- O que é que tem feito?

- Nada que se possa considerar de utilidade. Recebi uma educação que se destinava a permitir-me apreciar as artes, a literatura e a vida. Nada tinha que ver com as preocupações de ganhar dinheiro. Ora, descobri que é impossível apreciar as artes, a literatura e a vida, sem dinheiro.

- Que idade tem?

- Vinte e oito anos.

- Ainda tem pais?

- Não.

- É casado?

- Não.

- O senhor parece-me um bocado franzino. Tenho a impressãode que não pesa mais de sessenta quilos?

- Sessenta e três.

- É capaz de se bater?

- Não... bati-me algumas vezes; mas, apanhei grandes sovas.

- Este emprego necessita de um homem.

- E eu sou um homem - respondi, com calor.

- Mas, excessivamente pequeno. Ninguém o deve tomar a sério.

- Quando estive na Universidade, alguns dos meus camaradas também tinham essa opinião. Depressa a modificaram.  Não gosto que façam troça de mim. Há muitas maneiras de combater. Eu tenho a minha e tem-me dado resultado.

- Leu o nosso anúncio com atenção?

- Julgo que sim.

- Considera-se  habilitado?

- Não tenho quem me prenda neste mundo. Julgo ser corajoso, activo e, espero, inteligente. Se assim não for, alguém atiroumuito dinheiro pela janela fora, para me dar educação.

- Quem?

- O  meu  pai.

- Quando morreu?

- Há dois anos.

- O que tem feito desde então?

-Tudo o que aparece.

O seu rosto não mudou de expressão.

- O senhor é um terrível mentiroso.

Empurrei a cadeira para trás.

- Como a senhora é uma mulher, pode dizer-me isso. Mas,eu sou um homem e nada me obriga a ouvi-la.

Dirigi-me para a porta.

- Espere um instante - disse ela. -Creio que começa a ter probabilidades de ficar com o emprego.

- Já não o quero.

- Não seja parvo. Chegue aqui e olhe bem para mim. Não é verdade que me estava a mentir?

Para o diabo a velha! - pensei para comigo. De qualquer maneira, o emprego já estava perdido. Fiz meia volta e vim colocar-me diante dela.

- Sim, estava a mentir. É um dos meus hábitos predilectos. No entanto, por muito estranho que lhe pareça, prefiro que me chamem a atenção para as minhas inexactidões com mais  tacto.

- Esteve alguma vez preso?

- Não.

- Então, sente-se outra vez.

Eis o que as consequências de andar a bater com a cabeça pelas paredes fazem da nossa moral: voltei a sentar-me. Tinha exactamente dez cêntimos no bolso e há dois dias que não comia. As agências de colocações não podiam ou não queriam fazer nada por mim. Tinha acabado por me decidir a responder às ofertas de empregos que me pareciam um pouco suspeitas. Era o último recurso.

- Desta vez, diga-me a verdade.

- Tenho vinte e nove anos. Os meus pais já morreram. Frequentei a universidade. Sou razoavelmente inteligente e estou disposto a fazer quase seja o que for.  Preciso de dinheiro. Se me der trabalho, procurarei dar o melhor do meu esforço.

- É tudo quanto tem a dizer-me?

- É tudo.

- Como se chama?

Sorri,  sem responder.

- Então, sempre é verdade que Lam não é o seu verdadeiro nome?

- Disse-lhe a verdade. Mas, posso continuar a contar-lhe outras histórias, se quiser. Sou muito bom nesse capítulo.

- Não tenho dúvidas a esse respeito. Conte-me lá então o que estudou, de facto, na universidade.

- Para que interessa isso?

- Não sei, mas interessa-me. Foi por causa da maneira como me falou dos seus estudos que percebi que estava a mentir. Nunca frequentou universidade nenhuma, pois não?

- Frequentei.

- Mas, não se formou?

- Formei-me.

- Caçaram-lhe a carta de curso.

- Não.

Ela mordeu o lábio.

- Tem conhecimentos de anatomia?

- Alguns.

- O que estudou nessa universidade ?

- Quer que improvise?

- Não, agora, não. Ou antes, sim. Para este trabalho, necessito de um mentiroso, de alguém que fale com convicção. Não gostei da sua primeira mentira. Não era convincente.

- Agora, estou a dizer-lhe a verdade. - observei.

- Nesse caso, renuncie um instante. Minta um pouco.

- A propósito de quê?

- Não importa o que seja. A única coisa que exijo é que seja convincente. Vamos a isso. Pode iniciar a teia. O que estudou na universidade?

- A vida amorosa dos micróbios - respondi. - Até agora os sábios nunca tinham estudado a propagação dos micróbios senão em função das suas pesquisas. Nunca ninguém a tinha considerado pelo ponto de vista do micróbio. Evidentemente, desde que se fale da vida amorosa de” um micróbio, há tendência para a apreciar segundo a nossa própria concepção...

- Não tenho... - interrompeu ela.

- ...de vida - continuei tranquilamente, sem prestar atenção à interrupção. - Ora, com temperatura constante e alimentação adequada, os micróbios tornam-se extremamente ardentes. Com efeito, a...

A minha interlocutora estendeu o braço com a mão levantada como se quisesse fazer reentrar as palavras na minha boca.

- Basta, basta. Você tem, de facto, estilo; mas, a mentira não presta, porque ninguém acredita nisso. Agora, diga-me a verdade. Percebe alguma coisa de micróbios?

- Não - declarei.

Os seus olhos reluziram.

- Como é que fez com que deixassem de fazer troça de si na universidade?

- Prefiro não dizer.

- Quero saber a verdade.

- Servi-me do que tinha na cabeça. Tratavam-me, às vezes, como se eu fosse um fraco. Todos nos devemos proteger na vida. Quando se tem um ponto fraco, a natureza dá-nos força noutros. Estudei a situação com a maior clareza. Agi sempre assim. Se alguém pretende fazer troça de mim, descubro o meio de o impedir e,  quando  menos  espera, já ele está arrependido. Não hesito em utilizar golpes baixos, quando é preciso. Sou até muito forte nesse jogo por causa da maneira como sempre me atacaram. Um anão tem, por vezes, tendência a agir com certa mesquinhez. Agora, se já acabou de se divertir à minha custa, vou-me embora. Detesto que se riam de mim. Há-de verificar, um dia, que esse joguinho custa muito caro. Hei-de imaginar um plano para me vingar!

Ela suspirou, não num suspiro asmático de mulher gorda fatigada; mas, sim como alguém que se sente aliviada de certa preocupação. Pegou no telefone, encostou o receptor ao ouvido e declarou:

-Elsie, Donald Lam fica. Ponha essa canalha toda fora do escritório. Pendure um letreiro na porta a dizer que o lugar já está preenchido. Por hoje, já vimos bastantes inúteis.

Ela desligou O telefone brutalmente, abriu uma gaveta e tirou diversas folhas de papel que se pôs a ler. Passados instantes, ouvi um rumor de cadeiras e de passos. Os candidatos  que ainda esperavam, retiravam-se.

Fiquei imóvel, mudo de surpresa.

- Tem algum dinheiro? - perguntou-me, abruptamente.

- Tenho.

Passados instantes, acrescentei:

- Algum.

- Quanto ?

- O bastante para me aguentar ainda algum tempo.

Ela olhou-me por cima dos seus óculos bifocais e declarou:

- Outra mentira de perfeito amador. É ainda pior do que a dos micróbios. Essa camisa está num estado tristíssimo. Pode ir comprar uma por oitenta e cinco cêntimos. Deite fora essa gravata. Compre uma mais bonita por vinte e cinco ou trinta cêntimos. Mande engraxar os sapatos. Corte também o cabelo. Calculo que as peúgas estão cheias de buracos. Tem fome?

- Estou perfeitamente bem.

- Por amor de Deus, não me venha com essas conversas! Olhe ali para o espelho. Parece mesmo um cão escanzelado. Tem o rosto encovado e umas olheiras enormes. Aposto que não come há uma semana. Vá comer um bom primeiro almoço. Calculemos vinte cêntimos para isso. Também precisa de comprar um fato completo; mas, não pode ser agora. Já está a trabalhar para mim e não quero que se convença que pode  andar a fazer compras nas horas de serviço. Poderá ir comprar o fato esta tarde, depois das cinco horas. Vou dar-lhe um adiantamento sobre o seu ordenado; mas, livre-se de me pregar uma partida. Tome, aqui tem vinte dólares.

Peguei no dinheiro.

- Bom - disse ela - esteja de volta às onze horas. Toca a andar.

Quando cheguei à porta, ela gritou:

- Escute bem, Donald, não atire esse dinheiro pela janela fora! O máximo que pode gastar no seu pequeno almoço é vinte e cinco cêntimos; nem mais um cêntimo, estamos entendidos?

 

CAPÍTULO II

A empregada continuava a martelar na máquina de escrever quando abri a porta do escritório onde se lia: B. L. Cool - Investigações Confidenciais.

- Olá! - disse  eu.

Ela respondeu-me com um movimento de cabeça.

- A... está... tratam-na por Miss ou Mrs.?

- Mrs.

- Ela está?

- Não.

- A propósito, como é que você se chama?

- Miss Brand.

- Muito prazer em conhecê-la, Miss Brand. Eu chamo-me Donald Lam. Mrs.  Cool confiou-me o cargo mencionado no anúncio.

A minha interlocutora continuou a escrever à máquina.

- Como vou trabalhar neste escritório – prossegui – calculo que vamos ter muitas ocasiões de nos falarmos. Você não gostou de mim e parece-me que também não vou gostar de si. Se achar bem, podemos deixar ficar por aqui as nossas relações.

Ela interrompeu o trabalho para virar uma das páginas do seu bloco, olhou-me e replicou:

- Está bem. Em seguida, os seus dedos movimentaram-se de novo sobre o teclado da máquina.

Dei meia dúzia de passos e sentei-me.

- Posso fazer mais  alguma coisa,  além  de  esperar? - perguntei, passados minutos.

Ela sacudiu a cabeça.

- Mrs. Cool disse-me que voltasse às onze horas.

- E você voltou... - respondeu ela, sem levantar a cabeça.

Tirei um maço de cigarros do bolso. Há uma semana que não fumava, não porque quisesse; mas, porque não tinha outro remédio.

A porta do gabinete exterior abriu-se. Mrs. Cool entrou; seguida por uma jovem bem vestida e de cabelos castanhos. Examinei a minha nova patroa que atravessava a sala e atribuí-lhe, pelo menos, mais dez quilos do que calculara na nossa primeira entrevista. Segundo tudo indicava, ela não apreciava vestidos apertados. Tremia e balouçava dentro dos vestidos largos, como um pudim de geleia. Mas, não parecia nada pesada e avançava sem esforço. O seu caminhar era untuoso, e imperceptivelmente ritmado. Não parecia caminhar; mas, sim deslizar, como uma corrente de água. Quase nos esquecíamos de que ela tinha pernas.

Olhei para a jovem que a acompanhava e a jovem também me examinou. Era elegante, magra e parecia, moral e fisicamente, andar na ponta dos pés, como quem está assustada. Tinha a impressão de que se tivesse exclamado: úú!, com toda a força, ela teria saído a correr pela porta fora. Tinha olhos castanhos e profundos, a pele dourada pelo sol - ou pelo pó de arroz e os vestidos cortados para valorizar a sua linha. Na verdade, os vestidos valorizavam-na e tinha-se prazer em observá-la.

Elsie Brand não parou um instante de escrever à máquina.

Mrs. Cool abriu a porta do seu gabinete particular.

- Entre,Miss Huntér - disse ela.

Depois, sem me olhar, numa voz igual, e como se prosseguisse a mesma frase, acrescentou:

-Vou precisar de si dentro de cinco minutos. Faça favor, de esperar.

A porta fechou-se. Instalei-me o mais confortavelmente possível e esperei. Decorridos alguns momentos, o telefone que se encontrava em cima da secretária de Elsie fez ouvir a campainha. Esta parou de escrever à máquina, pegou no receptor e disse:

- Muito bem - desligou e fez-me um sinal.

- Pode entrar.

Ainda não tinha levantado a cadeira, já Elsie fazia, de novo, crepitar as pontas dos dedos sobre o teclado.

A gordura de Mrs. Cool excedia a grande cadeira giratória, onde estava sentada, com os cotovelos, pousados sobre a secretária. Ao entrar, ouvi-a dizer:

- ...não, minha querida, não me importo nada que esteja a mentir. Nós descobrimos sempre a verdade, mais tarde ou mais cedo, e quanto mais tempo levarmos a descobrir a verdade, mais recebemos. Aqui está Donald Lam. Mr. Lam, Miss Hunter. Mr. Lam trabalha comigo há muito pouco tempo; mas, é um homem perfeitamente habilitado para os nossos serviços. É ele quem vai ocupar-se do seu caso. Eu supervisarei o que ele fizer.

Fiz uma vénia diante da jovem. Ela sorriu-me com expressão preocupada. Parecia hesitar antes de tomar uma decisão importante.

Mrs. Cool, perfeitamente à vontade, continuava com os cotovelos apoiados na secretária. Tinha a mesma imobilidade absoluta dos obesos. As pessoas magras fazem constantemente gestos sacudidos para diminuir a tenção nervosa que os aflige. Mrs. Cool não manifestava o mínimo nervosismo. Quando estava sentada, parecia inamovível. Tinha a majestade de uma montanha coberta de neve e a segurança de um cilindro.

- Sente-se, Donald - disse.

Sentei-me, estudando com um interesse profissional o perfil de Miss Hunter, o seu nariz longo e direito, o seu queixo fino, a sua fronte delicada, desenhada e enquadrada por caracóis castanhos. Tinha o espírito ocupado por pensamentos que a impediam de dar atenção ao que se passava à sua volta.

Mrs. Cool voltou-se para mim.

- Tem lido os jornais, Donald?

Acenei afirmativamente

- Leu as reportagens a respeito de Morgan Birks?

- Mais ou menos - respondi, fascinado pelo ar ausente de Miss Hunter. - Não foi a ele que o Grande Júri acusou no escândalo das máquinas automáticas de jogo?

- Não chegou a haver escândalo  - respondeu Mrs. Cool, em tom que não admitia discussão. - Ele tinha uma porção de máquinas automáticas ilegais em sítios escolhidos e mais compensadores, e naturalmente, a polícia recebia a sua parte dos lucros. Morgan pagou como lhe competia. O Grande Júri não o acusou nem tinha provas suficientes para o condenar. Mas, citaram-no como testemunha e Morgan não compareceu. Continuam a procurá-lo. Passaram contra ele uma espécie de mandato de captura. Foi tudo. Se o apanham, podem iniciar uma investigação sobre a questão dos pagamentos feitos à polícia. No caso contrário, é impossível. Porque será que toda à gente se diverte a chamar a isto um escândalo? Não percebo. Trata-se pura e simplesmente de um caso vulgar.

- Limitei-me a referir ao que os jornais dizem.

- Nunca faça isso, Donald. É um mau costume.

- Que temos nós a ver com Morgan Birks? - perguntei, ao mesmo tempo que observava que Miss Hunter continuava mergulhada nos seus pensamentos.

- Morgan Birks  é casado - respondeu  Mrs.  Cool. –Ela chama-se... chama-se... dê cá os papéis, minha querida - acrescentou voltando-se para Miss Hunter.

Foi preciso pedir-lhe os documentos, duas vezes, para Miss Hunter, prestar atenção, abrir a mala e retirar uns papéis com aspecto jurídico, dobrados em dois. Mrs. Cool pegou nos papéis e prosseguiu a conversa no ponto em que a tinha interrompido.

- ...Sandra Birks. Sandra Birks quer divorciar-se. Há já algum tempo que ela deseja separar-se do marido. O momento foi bem escolhido, Morgan entregou-se-lhe de pés e mãos com a história das máquinas automáticas. Só há um inconveniente. Ela não sabe onde o descobrir para lhe entregar a intimação.

- Consideram-no fugido à justiça?

- Não sei se anda fugido à justiça. De facto, ele foge de qualquer coisa, porque é impossível encontrá-lo.

- Que tenho que fazer, então?

- Encontrá-lo - disse ela, estendendo-me os documentos por cima da secretária.

Examinei-os. Havia uma intimação original do processo Birks contra Birks e uma cópia desta intimação à qual estava apensa uma cópia das conclusões da queixosa.

- Não é preciso ser-se funcionário oficial para se entregar uma intimação - explicou-me Mrs. Cool. - Qualquer cidadão dos Estados Unidos, maior de vinte e um anos e não interessado no processo pode fazer esse serviço. Descubra Birks, dê-lhe uma cópia da intimação e das conclusões da demanda. Mostre-lhe o original da intimação, depois volte aqui para fazer a sua declaração de entrega.

- E o que é que hei-de fazer para o encontrar ?

Miss Hunter declarou bruscamente:

- Creio que o posso ajudar.

- E quando o encontrar - perguntei a Mrs. Cool – ele não ficará tão furioso que...

Miss Hunter interrompeu rapidamente.

- Ah, isso fica! É o que eu receio. Mr. Lam pode ser agredido. Morgan é...

Mrs. Cool interpôs-se com voz firme.

- Que diabo, Donald, isso é consigo! Com franqueza, o que é que quer que eu faça ? Acha que devo acompanhá-lo para você se poder esconder atrás das minhas saias depois de entregar a intimação?

Convenci-me que Mrs. Cool me despediria mais tarde ou mais cedo. Tanto fazia que fosse já.

- Fiz a pergunta apenas para minha informação.

- Pois aí tem para a sua informação.

- Não sou da mesma opinião e se isso lhe interessa para alguma coisa, não gosto nada da maneira como foi dada.

Mrs. Cool nem se deu ao trabalho de olhar para mim.

- Quero lá saber! - disse ela, abrindo a cigarreira que tinha sobre a secretária. - Quer fumar, Miss Hunter... qual é o seu primeiro nome, minha amiga? Não gosto nada de tratar as pessoas pelos apelidos.

- Alma.

- Quer um cigarro, Alma?

- Não, muito obrigada. Agora, não.

Mrs. Cool pegou num fósforo, riscou-o furiosamente contra a aba inferior da secretária, aproximou a chama do cigarro e declarou:

- Como eu ia a dizer, Donald, você vai procurar Birks e entregar-lhe a intimação. Alma ajudá-lo-á a descobri-lo... Ah, é verdade, naturalmente quer saber qual é o papel de Alma neste negócio. É amiga da mulher... a menos que seja parente, minha amiga?

- Não, simplesmente amiga.  Sandra e eu vivemos no mesmo apartamento, antes dela se casar.

- Há quanto tempo foi isso ?

- Dois anos.

- Onde é que mora agora?

- Em casa de Sandra desde que o marido a deixou. Ela tem dois quartos de dormir no seu apartamento. E o irmão de Sandra vem viver connosco agora. Vivia no Leste. Mas, entretanto, sou eu quem se ocupa de Sandra. Compreende, Morgan fez as malas e desapareceu...

- Conhece Birks, evidentemente? - perguntou Mrs. Cool.

- Não - respondeu Alma Hunter, um pouco precipitadamente. – Nunca aprovei esta... digamos, decisão. Por Sandra, soube muitas coisas a respeito dele... mas, prefiro não falar nisso, se não se importam.

- Não nos importamos nada. Se se trata de acontecimentos que nada têm que ver com o caso, não temos nada com isso. Se dizem respeito, prefiro mil vezes descobri-los pelos meus próprios meios, a tanto por dia, do que sabê-los por seu intermédio. Faça você mesmo as contas, minha querida. Quanto mais tempo levar o assunto a resolver, mais caro lhe custará. É tudo.

Vi a sombra de um sorriso nos olhos de Miss Hunter.

- E não fique escandalizada quando me ouvir falar Calão - continuou Mrs. Cool. - Gosto essencialmente de estar à vontade, tanto com a minha maneira de vestir, como com a minha linguagem. Tenho necessidade de conforto. A Natureza quis que eu fosse gorda. Levei dez anos a comer saladas, a beber leite desnatado e a trincar torradas. Usei espartilhos que me estrangulavam a cintura, soutiens que me sufocavam e passava a maior parte do tempo a tomar banhos de vapor. E tudo isto para quê? Para arranjar marido!

- E arranjou? -perguntou Alma Hunter, com vivo interesse.

-Arranjei.

Miss Hunter guardou um silêncio discreto. Este silêncio feriu Mrs. Cool.

- Mas, garanto-lhe que não foi graças a isso.  E acho que este não é o momento apropriado para fazer uma dissertação sobre a minha vida privada.

- Peço muita desculpa - disse Miss Hunter. – Palavra que não tinha intenção de me meter onde não sou chamada. Sem dúvida, interessei-me imenso pelo que estava a dizer. Eu... eu também tenho os meus problemas a resolver. Não gosto das pessoas que falam do casamento com cinismo. Parece-me que se uma mulher decide, sinceramente, ter uma vida conjugal feliz, pode tornar o seu lar tão agradável que o marido terá por único desejo lá passar a maior parte do tempo.

- E porque diabo deve uma mulher fazer tudo isso por um homem? - interrompeu Bertha Cool. - Os homens não são os senhores do mundo.

- Mas, é esse o papel da mulher na vida! - protestou Alma Hunter. - Faz parte da sua natureza biológica.

Bertha Cool fitou-a por cima dos óculos.

- Se deseja falar a respeito de reacções biológicas, converse com Donald. Ele conhece muito bem a vida amorosa dos micróbios.

- Os homens não são micróbios - voltou a protestar Alma.

Bertha Cool soltou um suspiro que fez estremecer as suas carnes ondulantes.

- Há apenas um assunto no mundo pelo qual sou susceptível, é o meu casamento. Um destes dias, Donald ouvirá contar, por uma pessoa qualquer, o género de mulher que fui e como tratava o meu marido. Talvez seja eu própria quem lhe conte isso tudo; mas, procurarei fazê-lo fora das horas de serviço... a menos que ocupe o seu tempo, minha querida. Mas, por amor de Deus, não se case com intenção de colocar o seu marido sobre um pedestal, enquanto você se deixa ficar de joelhos a esfregar o chão. Um belo dia, verá uma pequena engraçada olhar para o seu marido, com uns grandes olhos azuis, e verificará que você estará colocada no lugar que arranjou para si própria, a de mulher a dias com as mãos vermelhas, cheia de rugas e calos nos joelhos. Bem sei o que está a pensar. Está a dizer para consigo que o seu marido não será assim; mas; a verdade é que todos são.

- Mas, Mrs. Cool...

- Bem, já que quer entrar em pormenores, vou dizer-lhe o que se passou comigo. Ouça também, Donald; será bom para si.

- Isso não me interessa. No que me diz respeito, a senhora podia ter tido...

- Cale-se! - gritou Bertha Cool. - Sou a sua patroa. Não me interrompa, quando falo.

Voltou-se para Alma Hunter.

- Será bom que tire da cabeça as ideias que tem a respeito de maridos, senão quer ser infeliz toda a vida. O meu era o espécimen de marido-padrão, o que não quer dizer grande coisa. Continuei a fazer dieta até ao dia em que, passados os primeiros entusiasmos do amor, comecei a olhar os acontecimentos pelo outro lado da mesa e a perguntar a mim própria o que recebia em troca daquilo que sacrificava.  Ao pequeno almoço, ele comia compotas, um grande prato de flocos de aveia com manteiga, presunto com ovos, café com leite bem açucarado e o seu peso não aumentava nunca. Comia tudo isto à minha frente, enquanto o meu estômago me pedia de joelhos apenas uma colher de flocos de aveia e eu me contentava a tasquinhar uma torrada em pedacinhos muito pequeninos, para que a fatia durasse todo o tempo que o meu querido marido levava a comer. Um belo dia, ele disse-me que tinha de partir para Chicago em viagem de negócios. Fiquei desconfiada e mandei-o seguir por um detective. O meu marido levou consigo a secretária e ficou-se em Atlantic City. Fizeram-me o relatório da viagem pelo telefone na segunda-feira de manhã, quando estávamos sentados à mesa para o primeiro almoço.

Os olhos de Alma Hunter brilharam.

- Divorciou-se? - inquiriu.

- Porque havia de me divorciar? O meu marido era o meu ganha-pão. Apenas disse para comigo: “O diabo que te carregue, Henry Cool, se estás disposto a ir passar os fins de semana a Atlantic City com a tua boneca oxigenada, está muito bem; mas, eu vou passar a comer o que me apetecer e aquilo que me der na realíssima gana, quer gostes quer não”. E nesse mesmo dia comi uma grande pratada de flocos de aveia nos quais pus muita manteiga, muito creme e muito açúcar, e por fim rapei o prato mesmo diante do meu marido antes que este tivesse coragem para me dizer fosse o que fosse...

- E depois o que aconteceu? - perguntou Alma.

- Ora, ele continuou a pregar-me mentiras e eu continuei a comer à minha vontade. Chegámos assim a um acordo muito satisfatório. Ele mantinha-me e eu comia. Ele divertia-se com a sua secretária oxigenada até ao dia em que esta pretendeu fazer chantagem. Evidentemente, não pude suportar isto. Intervim no caso, mostrei a essa parva o que pensava do assunto e mandei-a bugiar. Depois, eu própria lhe escolhi outra secretária.

- Uma que não corresse o risco de induzir o seu marido em tentação, suponho - disse Alma Hunter, com um sorriso.

- Nada disso. Nessa altura, já eu estava bastante gorda e achei que Henry tinha necessidade de se distrair. Escolhi-lhe uma rapariga bastante bonita que conhecia há três anos. Sabia o suficiente a seu respeito para não recear que ela exercesse chantagem. E posso garantir-lhe, minha querida, que ainda hoje não sei quais as relações que Henry teve com ela... mas, com certeza, entenderam-se. Sei que ela gostava de se divertir e que Henry era incapaz de ter uma mulher junto de si sem lhe tocar. No entanto, era uma excelente secretária e Henry parecia feliz. Quanto a mim, comia o que me apetecia. Foi uma situação maravilhosa... até que Henry morreu.

Os seus olhos pestanejaram e não sei dizer se foi simples comédia ou se realmente havia lágrimas nos cantos das suas pálpebras. Bruscamente, Mrs. Cool voltou aos negócios.

- Você quer que se entregue uma intimação. Assim se fará.Que mais háa tratar?

- Mais nada - respondeu Alma Hunter - a não ser a questão dos honorários.

- Essa tal Sandra Birks tem dinheiro?

- Não é rica; mas, tem...

- Passe-me um cheque de cento e cinquenta dólares - interrompeu Mrs. Cool. - Passe-o em nome de Bertha Cool. Mandá-lo-ei ao meu banco. Se o descontarem, descobriremos Morgan Birks. Quando o encontrarmos, entregar-lhe-emos a intimação. Se o descobrirmos amanhã, custar-lhe-á cento e cinquenta dólares. Se demorar mais de sete dias, pediremos vinte dólares por cada dia suplementar. Para ser franca, devo dizer que se não o encontrarmos no prazo de sete dias, penso que nunca mais o encontraremos. Será inútil deitar dinheiro fora. Prefiro dizer-lhe já o que penso.

- Mas é preciso que o encontre - protestou Alma. - É... , é indispensável.

- Ouça, minha querida. A polícia anda toda à procura dele. Não estou a dizer que não me seja possível. Aconselho-a apenas a fazer economias.

- Mas, a polícia não tem Sandra a ajudá-la.  Sandra pode...

- Quer dizer que Sandra sabe onde ele está?

- Não, mas o irmão dela sabe.

- Quem é esse irmão?

- Chama-se Thoms B. Lee Thoms. Está disposto a ajudar Sandra. Agora mesmo foi ela buscá-lo à estação. Como conhece a amante de Morgan, deve ser-lhe possível localizá-lo por intermédio da amante.

- Muito bem - disse Bertha Cool. - Desde que você tenha dinheiro, iniciaremos imediatamente as pesquisas.

Alma Hunter pegou na mala.

- Posso pagar já.

- Como é que se lembrou de vir falar comigo?

- O advogado de Sandra contou-nos que a senhora obtinha resultados milagrosos e que se encarregava de casos que as outras agências de detectives não aceitavam... processos de divórcio e outras coisas no género.

- Quem será esse pássaro? - exclamou Bertha Cool. - Esqueci-me de lhe ver o nome. Donald, dê-me cá os papéis... não, pouco importa. Leia simplesmente o nome do advogado.

Examinei a pasta.

- “Sydney Coltas”. Tem escritório em Temple Building.

- Não conheço. Mas ele parece conhecer-me. Claro que me encarrego de tudo: divórcios, assuntos de política, seja o que for. O meu conceito de moral, nesta profissão, é de quem paga, é servido.

- A senhora trabalhou uma vez para um amigo dele. - Afirmou Alma.

- Não faça confusões a meu respeito, minha querida. Não sou eu quem vai entregar a sua intimação. Não sou eu quem corre montes e vales com os papéis na mão. Contracto outras pessoas para me servirem de pernas. Donald Lam é uma das minhas pernas.

O telefone tocou. Mrs. Cool franziu as sobrancelhas e comentou: - Muito gostava que alguém inventasse um açaimo para o telefone de modo que este maldito aparelho não tocasse no meio das minhas frases. Está lá? Quem fala? Sim, o que é que quer, Elsie?... Está bem, ligue para aqui.

Mrs. Cool empurrou o telefone para a esquina da secretária:

- É para si, Alma. Uma senhora deseja falar-lhe. Diz que é urgente.

Alma Hunter deu rapidamente a volta à secretária, pegou no receptor e engoliu em seco. Ouviam-se sons roucos vindos do receptor. O rosto de Alma crispou-se.

- Valha-nos Deus! - exclamou.

Depois, escutou mais longamente e perguntou:

- Onde é que estás agora?...  Bom...  E daí vais para casa?... Encontramo-nos lá. Vou, imediatamente, o mais depressa que puder... Sim, elaencarregou um detective de se ocupar do nosso assunto... Não, não, ela não... ela não trabalha no exterior. É... um pouco... como dizer...

Bertha Cool interveio.

- Não tenha medo. Diga-lhe que sou muito gorda.

- Sim, ela é... é muito gorda. Não, não é isso. Gorda, g-o-r-d-a... Sim, isso... Não, é um rapaz. Está bem, levo-o comigo. Quando? Um instante, não desligues.

Voltou-se para mim e perguntou-me:

- Pode vir já comigo? Quero dizer, Mrs. Cool autoriza que o senhor comece já a trabalhar para nós?

Foi Bertha Cool quem respondeu.

- Pode fazer com ele o que quiser, minha querida.

Ponha-lhe uma coleira e leve-o com uma trela, para mim é igual. Alugou-o, portanto, é seu.

- Bom, levo-o comigo - disse Alma Hunter ao telefone e desligou.

Com voz ligeiramente trémula, anunciou, olhando para Bertha:

- Era Sandra. Foi buscar o irmão à estação e, na volta, um carro chocou com o dela. O irmão foi projectado contra o pára-brisas. Estão agora no hospital. Sandra disse que o irmão sabe tudo o que é preciso a respeito da amante de Morgan; mas que, não sei porque razão, não lhe quer contar. Acha que será preciso exercer certa pressão sobre ele.

- Não se preocupe - replicou Bertha Cool. – Donald saberá o que fazer. Ele encarrega-se disso. Tratem de tudo como entenderem. Mas, lembre-se que se encontrarmos Morgan amanhã, isso custar-lhe-á, à mesma, cento e cinquenta dólares.

- Está compreendido. E se quiser pago já - disse Miss Hunter.

- Claro que quero - exclamou Bertha Cool.

Alma Hunter abriu a mala, tirou um maço de notas e começou a contar. Entretanto, eu dava uma vista de olhos pelas alegações da demanda de divórcio. No fim de contas, estas coisas são, sobretudo, uma questão de fórmula: alegações respeitantes ao domicílio, ao casamento, às indicações estatísticas necessárias, aos motivos da demanda e à atribuição dos bens.

Passei rapidamente por cima das partes não-essenciais para concentrar a minha atenção no parágrafo que dizia respeito às causas do divórcio. Era a crueldade. O marido tinha-a agredido e esbofeteado, tinha-a até, certa ocasião, empurrado para fora do automóvel, porque demorara um pouco a descer, chamara-lhe “cadela” e “prostituta” diante de testemunhas, factos que lhe tinham causado graves e profundos sofrimentos morais e grandes angústias físicas.

Ergui a cabeça e vi que Bertha Cool me observava com os seus olhos cinzentos, cujas pupilas estavam tão contraídas que pareciam duas cabeças de alfinete. As notas de banco estavam sobre o mata-borrão diante dela.

- Não conta? - perguntou Alma Hunter.

- Não - disse Mrs. Cool, guardando-as numa gaveta.

Em seguida pegou no telefone e deu ordens a Elsie Brand:

- Quando Alma Hunter sair, passe-lhe um recibo em nome de Sandra Birks no valor de cento e cinquenta dólares.

Alma levantou-se, voltou-se para mim e saímos juntos do gabinete. Elsie Brand já tinha preparado o recibo. Entregou-o a Alma e continuou a escrever à máquina.

Alma olhou-me de revés, quando caminhávamos pelo corredor. Dirigimo-nos para o ascensor. Aí, parámos.

- Quero falar consigo - disse, bruscamente.

Inclinei-me numa vénia.

- Por favor, procure compreender-me. Calculo o que deve sentir. Depois do que Mrs. Cool disse, de o ter alugado a mim, o senhor deve ter a impressão de ser um gigolô eu um caniche...

- Muito obrigado.

- Sandra informou-me que o médico devia levar uma hora, pelo menos, a tratar o irmão e que nós não devíamos aparecer antes.

- E a senhora resolveu matar essa hora a conversar comigo? - perguntei.

- Exactamente.

A lâmpada colocada por cima da porta do ascensor mudou para vermelho.

- Acha que é muito cedo para almoçar? - perguntou ela.

Pensei no meu pequeno almoço de vinte e cinco cêntimossegui-a para dentro da cabine do elevador.

- Acho que não - respondi.

 

CAPÍTULO III

Fomos instalar-nos num pequeno restaurante sossegado, dirigido por uma corpulenta alemã, ao fim de uma rua secundária. Nunca ali tinha entrado. Alma Hunter explicou-me que Sandra frequentava aquele restaurante há cinco ou seis meses. A cozinha era excelente.

- Diga-me, há quanto tempo trabalha lá?

- Refere-se à agência de detectives?

- Pois.

- Há aproximadamente três horas.

- Bem me queria parecer. E há muito tempo que não tinha trabalho?

- É verdade.

- Como é que um homem como você se decidiu a tornar-se... quer dizer... o que é que lhe aconteceu para...? Ou talvez não devesse fazer esta pergunta?

- De facto, não devia.

Ela permaneceu silenciosa, durante alguns instantes, e, por fim, declarou, bruscamente:

- Vou dar-lhe algum dinheiro para pagar a conta do almoço. Faremos sempre assim, quando comermos juntos. Não quero colocá-lo na situação de o deixar de parte, enquanto pago as contas. Em relação a si, como homem, seria muito desagradável.

- Não se preocupe comigo - trocei. - Já perdi todo o meu orgulho. Viu isso com os seus próprios olhos.

- Não seja assim - protestou, com ar magoado.

- Nunca andou pelas ruas, cheia de fome, sem lhe ser possível falar a ninguém, porque as pessoas, que nos conhecem, não nos responderiam e aqueles, que não nos conhecem, não acreditariam que precisássemos de auxílio? Alguma vez sentiu a impressão que toda a gente a rechaçava e não depositava confiança em si?

- Não, nunca passei por isso.

- Pois, experimente. É óptimo para o orgulho.

- Não se deixe abater por esse motivo.

- Não, não me deixo abater.

- Agora, deu-lhe para o sarcasmo. Não me parece, Mr. ...vou passar a tratá-lo por Donald. Você pode tratar-me por Alma. Quando participamos num género de jogo como este em que estamos envolvidos, é absurdo ser-se formal.

- Fale-me a respeito do tal jogo em que estamos envolvidos.

Li uma estranha expressão no seu olhar; uma prece, talvez, ou um ar de tristeza, e pareceu-me distinguir, simultaneamente, um raio de terror.

- Diga-me, Donald, fale-me francamente. Você não tinha experiência nenhuma destes trabalhos de detective, pois não?

Despejei na minha chávena as últimas gotas de café que restava na cafeteira e suspirei:

- Está um dia muito bonito, hoje, não acha?

- Era o que eu julgava.

- O quê?

Ela sorriu.

- Que estava um lindo dia.

- Então, estamos de acordo.

- Não pretendia magoá-lo.

- Pode estar descansada. Não estou magoado.

Ela inclinou-se para mim por cima da mesa.

- Quero que me ajude, Donald.

- Não ouviu o que Mrs. Cool disse? Que podia pôr-me uma coleira e trazer-me à trela, se quisesse?

- Oh, Donald, por favor, não seja assim. Compreendo que esteja ressentido. Mas não me atribua as culpas.

- E não estou. Procuro apenas explicar-lhe que tudo isto se trata de assuntos comerciais e não sentimentais.

- Mas eu gostaria que as nossas relações tivessem qualquer coisa... qualquer coisa de mais pessoal. Você foi contratado para entregar uma intimação a Morgan Birks; mas, há uma quantidade de coisas que é preciso compreender... e gostaria bastante que me ajudasse um pouco.

- Vamos a isso. Foi por esse motivo que me trouxe.

Alma suspirou profundamente e lançou-se numa longa explicação.

- Morgan estava enterrado até às orelhas nesse negócio das máquinas automáticas. É uma história sórdida, cheia de escroquerias, chantagens e corrupções. Por cada uma das máquinas, tinha de dar enormes comissões. Era inevitável, Morgan tinha de se acautelar com a polícia. Portanto, as máquinas tinham de garantir receitas consideráveis.

- Em tudo isso, não há nada de especial.

- Não sei. É a primeira vez que estou envolvida em questões deste género. O que se passava, causou-me uma impressão estranha... Sandra modificou-se muito.

- Desde quando?

- Nestes últimos dois anos.

- Quer dizer, depois do casamento?

- Sim.

- Conheceu Morgan Birks antes de se casar?

- Não, nunca o vi. Ele não gostava de mim.

- Porquê?

- Julgo que servia de bode expiatório de Sandra. Esta escreveu-me longas cartas depois de se casar. Tomou esta decisão durante as férias. Em três anos, tinha feito economias para ir passar as férias a Honolulu. Conheceu Morgan no barco. Casaram-se em Honolulu e mandou-me um telegrama a dizer que não voltava a trabalhar.

- E como é que você lhe servia de bode expiatório?

- Por muitas coisas - respondeu em tom evasivo.

- Tais como? O que é que ela fazia que não estava certo?

- Ora, histórias de homens. Morgan deve ser um pouco antiquado e terrivelmente ciumento. Acusa Sandra de ser uma... uma exibicionista.

- É verdade?

- Não, evidentemente que não. Sandra é franca, moderna e... sem falso pudor no que diz respeito ao seu corpo.

- Morgan Birks não reparou nisso antes de casar?

Alma sorriu.

- Os homens gostam que as mulheres se mostrem... livres com eles. É quando elas são livres com outros homens que isso lhes desagrada.

- E Sandra fingia que a culpa era sua?

- Não, mas Morgan pensava que alguém tinha influenciado Sandra neste género de coisas; e, como anteriormente, tinha vivido comigo, atribuía-me a responsabilidade.

- E em que sentiu a modificação de Sandra?

- Não sei. Tornou-se dura, áspera, interesseira. Quando nos olha, tem-se a impressão de que dissimula qualquer coisa.

- Quando notou isso?

- Depois que voltei a conviver com ela.

- Quando foi isso?

- Há cerca de uma semana, quando esta história se divulgou. Ela escreveu-me a pedir para ir viver com ela durante algum tempo.

- Você trabalha?

- Não, agora não. Despedi-me para ir viver em casa de Sandra.

- Parece-lhe sensata essa decisão?

- Ela tinha-me dito que podia arranjar outro emprego aqui.

- Então onde é que estava?

- Em Kansas City.

- Foi lá que conheceu Sandra? E onde viveram juntas?

- Não, foi em Salt Lake City. Sandra conheceu Morgan na viagem para Honolulu e nem sequer voltou a vir buscar as suas coisas. Mandei-lhas para Kansas City. Passado algum tempo, Morgan veio cá instalar-se. Eu, eu fui para o Leste e arranjei trabalho em Kansas City; mas, não estive lá ao mesmo tempo, ou pelo menos, não dei por isso. Nessa altura, não mantinha contacto com Sandra. Morgan passava uns dias numa cidade, depois noutra e assim sucessivamente. Os lugares aqueciam depressa para ele... Como aconteceu aqui; mas, desta vez, o caso é mais sério.

A dona da casa veio, cheia de amabilidades, perguntar-nos se queríamos mais café. Alma recusou; mas, eu aceitei e ela levou a cafeteira.

- Estou a falar quase tanto como você. Se tem alguma coisa a dizer-me, porque não fala de uma vez?

- O que é que pretende saber?

- Tudo.

- Adorava Sandra. Ainda gosto muito dela, mas o casamento modificou-a. Possivelmente, o casamento e o género de vida que fez com Morgan Birks.

Teve uma gargalhada nervosa.

- Deve achar graça a isto tudo: Morgan a culpar-me do que lhe desagrada em Sandra e eu a culpar Morgan da modificação que se produziu em Sandra. Eu...

- Por amor de Deus, diga-me a verdade. Que se passa realmente? Ela engana-o?

- Se assim fosse, não era de estranhar - replicou calorosamente Alma. -  Morgan nunca lhe foi fiel. Alguns meses depois do casamento, ela soube que ele tinha uma amante. Tem-na tido sempre, desde então.

- Sempre a mesma?

- Não. Ele nem sequer pode ser fiel à amante.

- Bom, segundo as suas teorias, a culpada é Sandra que não conseguiu tornar o lar tão atraente que...

- Oh, Donald, não faça troça de mim!

A gorda alemã trouxe mais café.

- Bom, bom, vou mudar de disco. Mas, note que o que parece negro para um, lhe parece branco para o outro.

- Morgan introduziu Sandra no seio de um bando de viciosos. Está associado com jogadores e gente deste género. Avistava-se, por vezes, com individualidades políticas e queria que Sandra lhes agradasse.  Passava o  tempo a dizer-lhe: “Por favor, não sejas tão esquisita. Usa um pouco de sex-appeal nesse tipo. Tenho necessidade que lhe agrades. Pode ser-nos útil”. Insistia, constantemente, com Sandra para que desempenhasse papéis de pin-up!

- Bom, bom. Ela é sua amiga e você não quer dizer nada contra ela. Não vale a pena perdermos mais tempo com esse assunto. Vamos ao resto.

- Qual resto?

- Àquilo que a preocupa.

- Estou convencida que é ela quem tem uma parte do dinheiro que pertence a Morgan Birks.

- Onde é que o arranjou?

- Nas receitas das máquinas automáticas. Creio que ele alugou alguns cofres-fortes em nome dela ou talvez num nome falso. Morgan deu-lhe o dinheiro para depositar. Creio que essas quantias se destinavam a pagar subornos e não sei que mais. Seja como for, Sandra nunca tencionou devolver-lhe esse dinheiro.

- Ah, se bem compreendo, quando ela joga é sempre para ganhar.

- Não a podemos condenar por esse facto.

- Ainda não sei.

- O que procuro explicar-lhe, é que tenho medo.

- De quê?

- De tudo.

- De Morgan Birks?

- Sim.

- Sandra também tem medo dele?

- Não. E é isso mesmo que me inquieta.

- Leu o pedido de divórcio?

- Li.

- Reparou que ela procura apoderar-se do mais que pode? Pretende receber o seguro de vida, um procurador para administrar temporariamente todos os bens, receber uma pensão alimentar temporária ou um capital que lhe permita pagar os honorários dos advogados e exige que lhe seja atribuída uma parte dos bens comuns.

- Isso é o que o advogado reclama para ela. Todos os advogados fazem o mesmo.

- Foi Sandra quem lhe disse isso?

- Foi.

- E o que quer que eu faça?

- Já compreendeu perfeitamente o temperamento de Sandra. Quando ela luta, luta mesmo. Sempre agiu desta maneira. Certa vez, que saiu com um rapaz amigo e este ao trazê-la a casa se tornou grosseiro, Sandra esteve a ponto de o agredir com um taco de golfe.

- Quem a impediu?

- Eu.

- E o que aconteceu ao rapaz?

- Já estava cheio de medo. Aconselhei-o a ir para casa. Não era pessoa amiga, era um simples conhecimento.

- Bom, continue.

- Tenho a impressão que Sandra me esconde qualquer coisa. Creio que ela pretende aproveitar-se da situação em que Morgan se encontra. Queria que descobrisse o que era e fizesse os possíveis para a tornar... digamos, mais razoável.

- Só isso?

- Sim.

- E você? Não quer que faça nada por si?

Alma fitou-me por instantes, depois lentamente sacudiu a cabeça.

- Não.

Acabei de tomar o meu café.

- Seja franca! - disse-lhe. - Aposto que está a pensar que sou um bebé que treme de medo quando o deixam sozinho, às escuras! Se lhe tivesse dito que era detective há dois ou três anos, teria provavelmente contado o que de facto a preocupa; mas, em face desta situação, parece-lhe que não pode ter confiança em mim.

Alma principiou a dizer qualquer coisa; mas, logo se calou.

- Vamos – aconselhei - pague a conta e vamos lá a ver o que é que esse tal irmão de Sandra tem para nos dizer.

- Não diz a ninguém o que lhe contei?

- Você não me contou nada. Como se chama o irmão de Sandra?

- Thoms.

- Qual é o primeiro nome?

- Creio que nunca o ouvi. Ele assina B. Lee Thoms; mas, Sandra chama-lhe Bleatie. Nunca a ouvi tratá-lo de outra maneira.

Fiz sinal à alemã gorda para nos trazer a conta e levantei-me:

- Vamos lá, então, falar com Bleatie!

 

CAPÍTULO IV

Se Alma Hunter tinha a chave do apartamento, não se serviu dela. Parou diante da porta e apoiou o dedo enluvado sobre a campainha. A jovem senhora, que veio abrir-nos a porta, devia ter pouco mais ou menos vinte e sete anos. Era fina de cintura; mas, o seu corpo tinha curvas que o vestido sublinhava. Os cabelos eram negros, os olhos sombrios e expressivos, as faces salientes e os lábios bem marcados, de um vermelho escaldante. O seu olhar passou de Alma Hunter para mim e estudou-me como se eu fosse um cavalo novo que tivessem levado à feira.

- Sandra - disse Alma - aqui está Donald Lam. Trabalha para a Agência Bertha Cool. É ele quem está encarregado de descobrir Morgan Birks e de lhe entregar a intimação. Conta-me lá como se deu o acidente. Foi coisa grave?

Sandra Birks olhou-me com um ar de surpresa.

- O senhor não tem aspecto de detective - disse-me, estendendo a mão.

Porém, não me estendeu a mão na verdadeira acepção da palavra, entregou-ma como se me desse uma parte do seu corpo.

- Faço o possível por aparentar um ar inocente - expliquei.

- Estou muito contente por ter vindo, Mr. Lam - replicou, rindo nervosamente. - É indispensável encontrar Morgan imediatamente. Compreende, porquê?... Mas, entre, por favor.

Afastei-me para o lado para deixar passar Alma e penetrei numa sala espaçosa com o tecto em traves, pesados reposteiros nas janelas e espessos tapetes no chão. Espalhadas pelo aposento, havia diversas cadeiras de braços com caixas de cigarros e cinzeiros aos lados. Tinha-se a impressão, ao entrar na sala, que ela convidava a uma existência doce, cálida e sensual.

- Archie ainda cá está - prosseguiu Sandra Birks. –Tive oportunidade de o apanhar. Creio que conheces Archie, Alma?

- Archie? - perguntou Alma, com voz admirada.

- Archie Holoman. Bem sabes de quem falo, do dr. Holoman. Formou-se, quando me casei. Trabalha num hospital e não está autorizado a fazer consultas; mas, para Bleatie, é diferente. É quase da família.

Pela maneira como Alma sacudia a cabeça e sorria, compreendi logo que nunca ouvira falar no tal Archie e adivinhei que Sandra devia ter o hábito de apresentar os seus amigos íntimos tal como um prestidigitador faz sair coelhos de um chapéu alto.

- Queira fazer o favor de se sentar - continuou Sandra Birks. - Vou ver se Bleatie os pode receber. O acidente foi verdadeiramente terrível. O outro carro veio de encontro ao meu com tal velocidade que nem tive tempo de fazer coisa nenhuma. Bleatie jura que o condutor o fez de propósito. Era um carro enorme antigo que desapareceu após o desastre. Bleatie foi projectado contra o pára-brisas. O médico diz que ele tem o nariz fracturado. Ainda não sabia, quando te telefonei, Alma... Sente-se, Mr. Lam. Instale-se num bom sofá e fume um cigarro. Preciso falar um momento com Alma.

Deixei-me cair sobre uma cadeira, pousei os pés sobre uma otomana, acendi um cigarro e soprei anéis de fumo para o tecto. Bertha Cool recebia vinte dólares por dia pelo tempo que eu consagrava àquele caso e eu estava com a barriga cheia...

Num quarto ao lado, ouvia o som de passos, uma voz masculina e depois o ruído de rasgar tiras de adesivo. Tornei a ouvir uma voz masculina murmurar qualquer coisa, a que se seguiu Sandra Birks a falar com precipitação, num tom igual e monótono. De quando em quando, Alma interrompia para fazer uma pergunta. Passados instantes, vieram buscar-me.

- Bleatie quer falar-lhe - declarou Mrs. Birks.

Esmaguei o cigarro no cinzeiro e acompanhei-as ao quarto. Um jovem de rosto triangular, fronte larga e queixo pontiagudo, aplicava ligaduras, com gestos profissionais, a um homem estendido na cama e que praguejava em voz baixa. O seu nariz desaparecia por debaixo dos pensos, cataplasmas e adesivos. Tinha cabelos negros compridos, separados ao meio por uma risca, e que caíam para ambos os lados da cabeça. No alto do crânio, via-se-lhe o couro cabeludo desnudado, como por uma pequena tonsura. O adesivo, irradiando do penso, deixava apenas aparecer os olhos, como que através de uma grande teia de aranha.

O corpo de Bleatie parecia mais corpulento do que aparentava ao ver-se-lhe o rosto. O casaco estava repuxado por um estômago proeminente; mas, as mãos eram pequenas e finas. Atribuí-lhe mais cinco ou seis anos do que à irmã.

Sandra fez as apresentações.

- Aqui está a pessoa que vai entregar a intimação a Morgan, Bleatie.

Ele examinou-me com os seus olhos verdes de gato por detrás das ligaduras.

- Por Deus! - exclamou. Passados momentos, perguntou: - Como se chama?

Por causa dos pensos, a sua voz chegava até nós como a de um homem atacado por violento catarro.

- Donald Lam.

- Preciso de falar consigo.

- Oxalá que te despaches - observou Sandra. - Bem sabes que o tempo é precioso. Morgan pode abandonar o país de um momento para o outro.

- Ele não sairá do país sem que eu seja informado - respondeu Bleatie. - Então, doutor, já acabou?

O jovem médico inclinou a cabeça como um escultor que examina uma obra-prima recém-terminada.

- Vai tudo correr bem. Mas, atenção, nada de imprudências, nada que possa activar a circulação do sangue e provocar uma hemorragia. Durante três ou quatro dias, tome um laxante ligeiro. E tome nota da temperatura. Se tiver um pouco de febre, chame-me imediatamente.

- Bom, bom - grunhiu Bleatie. - Ponham-se todos lá fora. Tenho que falar com Lam. Sai, Sandra, e você também, Alma. Vão beber qualquer coisa. Rua!

Saíram todos como um bando de galinhas enxotadas de uma horta. Diante de uma personalidade tão violenta e dominadora, o médico perdeu todas as suas maneiras paternais e desapareceu com os outros. Quando a porta se fechou, os olhos verdes pousaram-se mais uma vez sobre a minha pessoa.

- Trabalha em algum escritório de advogados? - perguntou-me.

A princípio, tive dificuldade em compreender o que ele dizia. Falava como se tivesse uma pinça a apertar-lhe o nariz.

- Não - respondi, por fim - trabalho num escritório de investigações.

- Conhece Sandra bem?

O seu olhar tinha um ar de desconfiado e, no momento, não compreendi porquê. 

- Conheci-a há cinco minutos.

- O que sabe a respeito dela?

- Nada, a não ser o que Miss Hunter me contou.

- E o que lhe contou ela.

- Nada.

- Sandra é minha irmã e eu devia tomar o seu partido neste caso; mas, só Deus sabe os pecados que ela tem, o que é extraordinariamente importante em toda esta história. A bem dizer, Sandra proporcionou ao marido uma vida infernal. Quando vê um homem à frente, perde a cabeça. Nunca se sente feliz senão quando tem a seus pés cinco ou seis imbecis prontos a sacrificarem-se por ela. Casou-se, mas o casamento não lhe fez parar estas andanças. Só faz o que lhe apetece.

- Hoje em dia, são todas assim - observei, com tom amável.

- Parece-me que o senhor acorre depressa demais em defesa de Sandra... para quem acabou de a conhecer há cinco minutos.

Fiquei silencioso.

- Tem a certeza de não me ter mentido?

- Não estou habituado a mentir seja a quem for e não gosto que pessoas, com o nariz fracturado me acusem de mentiroso.

Ele riu-se. Vi-lhe os músculos da cara distenderem-se e os olhos estreitarem-se.

- Acha que é aproveitarem-se deslealmente da situação, não?

- Exacto. Não se pode partir a cara a um indivíduo que já a tem partida.

- Não sei porquê? Eu não hesitava.

Observei-o pensativo.

- É muito possível.

- Se um homem tem o nariz fracturado, torna-se muito mais vulnerável. Quando luto, não é a brincar. Combato para esmagar o meu adversário e quanto mais o estropear, melhor. Mas você parece-me excessivamente fraquinho para essas disposições tão belicosas.

Tive vontade de lhe responder; mas, abstive-me.

- Com que então, Sandra quer divorciar-se! – comentou passado tempo.

- Pelo menos, é o que depreendo.

- Pois olhe que a favor de Morgan há muitos mais argumentos do que pode pensar.

- Só tenho que lhe entregar a intimação. Esses argumentos poderá ele expô-los no tribunal.

- Não tenho dúvida que o fará - exclamou Bleatie, com impaciência. - Mas, como há-de ele fazer-se representar nesse maldito tribunal? Não sabe que a Justiça o persegue? Se o descobrem, abrem-no de alto a baixo. Para quê, portanto, tomar ele a iniciativa? Sandra podia mandar publicar a intimação nos jornais?

- Isso levava muito tempo. E não era a publicação que daria a Sandra uma pensão alimentar.

- Ah! Ela quer uma pensão?

Bruscamente, exclamou:

- Tinha a impressão que me dissera não ser advogado!

- Creio que deve interrogá-la a ela, ou ao seu advogado, sobre esse assunto da pensão. De qualquer modo, fui apenas contratado para entregar uma intimação.

- Tem aí os documentos?

- Tenho.

- Mostre-mos cá.

Passei-lhe os documentos para as mãos. Tentou erguer-se na cama sem conseguir. Por fim, pediu-me:

- Ponha uma das suas mãos por detrás dos meus ombros e levante-me. Assim, está bem... Você deve pensar que sou um mau irmão; mas, não somos uma família muito convencional. E além disso, estou-me nas tintas para o que você pensa.

- Não me pagam para pensar - respondi. - Pagam-me para entregar documentos. E quanto a mim, estou-me nas tintas para o que você pensa.

- Então, está tudo certo. Gosto da sua maneira de falar. Ora, sente-se e não me interrompa durante um minuto.

Pegou nos papéis, correu os olhos pela intimação e leu, de uma ponta à outra, o pedido de divórcio, com a aplicação laboriosa do leigo que não está acostumado aos documentos oficiais e que fica admirado perante o “atendendo que”, aos “considerando que”, etc. Quando acabou, dobrou os papéis e entregou-mos. A sua testa encheu-se de rugas.

- Deste modo, ela pretende um mandato que lhe confie o conteúdo de todos os cofres-fortes. Não é verdade?

- Tudo quanto sei é o que está escrito nesses documentos. Acabou de os ler, sabe tanto como eu.

- Você não é da qualidade de comprometer ninguém.

- Já lhe disse que me pagam para entregar papéis. Porque não se dirige a sua irmã, se quer saber o que ela tem em mente?

- Não se preocupe, é o que vou fazer.

- Sabe onde pára o marido?

- Conheço a amante de Morgan - respondeu, tranquilamente. - É uma boa rapariga.

- Mrs. Birks podia implicá-la no processo, se quisesse - observei. - Não o fez.

Ele desatou a rir e o seu riso era desagradável.

- Arranjava um lindo sarilho, se começasse a envolver mais gente no processo. Por Deus, você não conhece as mulheres, se não as sabe distinguir à primeira vista.

Como falava da irmã, nada respondi.

- Se estivesse com ela dez minutos sozinho num quarto, ela faria tudo para o atrair... Oh, não fique tão chocado!

- Não estou nada chocado.

- Já o tinha prevenido, somos uma família pouco convencional. Não é que ache mal a sua conduta. Sandra faz a sua vida, eu faço a minha. Mas, Sandra é ávida, egoísta e viciosa. Além disso, tem uma moral de gata, e é atraente como o diabo. Dotada de um espírito vivo, serve-se dele constantemente para conseguir dos outros o que lhe apetece... Meu Deus! Temos que acabar com isto! Diga-lhe para chegar aqui.

Dirigi-me para a porta e gritei:

- Mrs. Birks, o seu irmão quer falar-lhe.

E voltando-me para Bleatie, acrescentei:

- Quer que eu saia?

- Por nada desta vida.

Instalei-me ao lado da cama. Sandra Birks entrou e perguntou com voz ansiosa:

- O que é, Bleatie? Como te sentes? O médico deixou este sedativo para te dar no caso de te enervares...

- Por favor, não me venhas com os teus santos remédios. Apareces sempre com esses ares cheios de solicitude quando queres alguma coisa. Por Deus Todo Poderoso, sou teu irmão e conheço-te como as minhas mãos. Sei o que queres. Queres que te diga o nome da amiga de Morgan. Queres que a intimação seja entregue a Morgan. Queres conseguir o divórcio. Queres libertar-te para te casares com o teu último querido. Quem é? É o médico? Estou cá desconfiado...

- Bleatie, cala-te! - gritou ela, olhando inquieta para mim. - Não deves falar dessa maneira. Tiveste um choque nervoso que te...

- ...que me desorientou! Pois é, todas as vezes que um homem não te faz as tuas quatro vontades, é porque teve um choque ou porque não está bom da cabeça... Não te condeno. Mas agora, escuta, Sandra. Vamos fazer, os dois, jogo franco. És minha irmã. Julgo, portanto, que devo vir em teu auxílio. Mas, acontece que também sou amigo de Morgan Birks. Lá por ele estar envolvido em grandes complicações, não deves saltar em cima dele a pés juntos.

- Quem fala em saltar para cima dele a pés juntos? - perguntou, com olhos brilhantes. - Dei-lhe mil e uma oportunidades neste pedido de divórcio. Meu Deus, quando penso no que podia ter dito a respeito dele...

- Não ganhavas nada com isso - troçou Bleatie. – Pensa antes em tudo o que Morgan podia contar a teu respeito. Olha bem para ti! Nunca podes esquecer o teu sexo. Apostava o meu nariz em como escolheste para me tratar um dos teus apaixonados... ou pelo menos, um desses pequenos que anda atrás de ti. O médico que cá trouxeste ainda cheira a cueiros...

- Basta, Bleatie! Archie Holoman é um rapaz muito simpático. Morgan conhece-o. É um amigo da família. Não há absolutamente nada entre nós.

Bleatie riu cinicamente.

- Então, Morgan conhece-o? É um amigo da família? Não há nada entre vocês? Basta que venha a esta casa, aperte a mão ao teu marido e fume os seus charutos para ser um amigo da família, não? E se falássemos um pouco dos momentos em que tu o vês sem ser na presença de Morgan?

- Bleatie, se continuas, serei eu quem fala - disse ela. - Também não és nenhuma perfeição e estás a irritar-me com esses ares de santo. Se queres atirar pedras aos meus telhados de vidro, também posso fazer o mesmo, melhor do que tu.

- Não gastes tanta saliva, meu amor. Vou fazer-te uma proposta.

- Pois bem, diz lá.

- Vou ajudar-te a descobrir Morgan. Poderás mandar-lhe entregar os papéis e prosseguir a acção do divórcio. Porém, exijo que o trates com justiça.

- O que é que queres?

- Que suprimas todo o parágrafo sobre a atribuição dos bens matrimoniais. Ganhavas a tua vida quando o conheceste. Depois, fizeste o teu pecúlio. Só Deus sabe quanto terás guardado para ti; mas, deve ter sido bastante... Arranjaste um belo apartamento aqui. Calculo que o aluguel está pago por algum tempo. Tens um guarda-roupa bastante sumptuoso. Com os vestidos que tens, a tua figura e a tua arte de dominar os homens, farás uma bela viagem à Europa e acabarás por casar com dois ou três duques.

- Você mostrou-lhe os documentos? - gritou ela para mim. - Você deixou-o ler o meu pedido de divórcio?

- Deixei. A senhora não me mandou cá para falar com ele?

- Por uma idiotice! - começou a dizer em tom furioso.

Mas, não acabou a frase e, voltando-se para o irmão, disse:

- Nunca mais quero ouvir falar em homens!

Bleatie riu sarcástico; os olhos de Sandra Birks pareciam lançar chispas. No entanto, prosseguiu, com voz calma:

- Onde queres chegar, Bleatie? Isso tudo não nos leva a parte nenhuma.

- Quero que vás falar outra vez com o teu advogado e faças um novo pedido de divórcio. Não quero que este seja feito à base dos bens. Obténs o teu divórcio. Vais para um lado e Morgan para o outro. Assim é que está certo.

- Que entendes tu por bens?

- Essa história dos cofres-fortes. Tu...

Sandra voltou-se para mim como se um escorpião a tivesse mordido.

- O senhor é o responsável por isto. O que é que o fez supor que lhe devia mostrar estes documentos?

- Fui eu quem lhos pediu - disse Bleatie. - Tem calma, minha linda. Não penses que ia deixar-me comer por parvo neste assunto. Qualquer dia destes, Morgan aparecerá recomposto de todas as suas complicações. Nesse dia, poderei continuar a olhá-lo de frente. Morgan não é imbecil. Logo que te disser o nome da amiga, ele saberá por quem o descobriste. Lembra-te bem disto: Morgan não é imbecil.

- Não tenho tempo de ir falar com os meus advogados e fazer novo pedido de divórcio. Este já seguiu os seus trâmites e a intimação está pronta.

- Mas podes alterar qualquer coisa, não?

- Não penso nisso.

- Senta-te nessa mesa. Vais escrever uma carta em que declaras que, pensando bem, não pretendes receber nenhuma pensão. Quando o processo subir ao tribunal, o teu advogado informará o juiz que não exiges pensão alimentar, que te contentas em conservar o apartamento até expirar o prazo que está pago e a ficar com as roupas e o dinheiro que tens em teu poder; mas, que o resto continua a pertencer a Morgan.

- Que vais fazer com essa carta?

- Será para mim uma garantia de que tratarás Morgan como deve ser.

Com os lábios cerrados, os olhos a transbordar de ira, Sandra avançou para o leito. Bleatie susteve o seu olhar, com a segurança tranquila de um indivíduo tão acostumado a ver os outros cederem diante de si que nem sonha com a possibilidade de ser desobedecido. Decorridos um ou dois segundos, Sandra dirigiu-se para a mesa, abriu a gaveta como se a fosse arrancar, tirou uma folha de papel e começou a escrever.

- Pergunto a mim mesmo qual o sabor que terá um cigarro? - murmurou Bleatie. - Seja como for, vou fumar um. Dê-me um cigarro.

Acenei afirmativamente.

- Meta-mo na boca, se faz favor. Com isto tudo na cara, sou capaz de me queimar à procura da ponta do cigarro.

Dei-lhe o cigarro e acendi-o. Ele aspirou algumas fumaças e comentou:

- Tem um sabor esquisito.

Depois, fumou em silêncio. Sentada à mesa, Sandra fazia o aparo raspar o papel. Bleatie ainda não acabara o cigarro, quando ela pousou a caneta, releu o que tinha escrito e estendeu-lhe a folha.

- Pronto - disse. - Deves estar satisfeito. Depenaste a tua irmã até à última, para favoreceres esse crápula do Morgan.

Bleatie leu o papel duas vezes e declarou:

- Está bem. - Dobrou-o, procurou laboriosamente o bolso das calças e guardou-o. Depois, virou-se para mim:

- Pronto, camarada. Cumpra o seu dever. A rapariga chama-se Sally Durke. Mora nos Apartamentos Milestone. Vá falar com ela e saberá o resto. É preciso mostrar-se duro. Meta-lhe medo. Diga-lhe que se esconde Morgan, a manda prender por cumplicidade ou por outro motivo qualquer. Diga-lhe que Sandra exige o divórcio, que vai obrigá-la a comparecer no tribunal, que procura apoderar-se de todos os bens de Morgan. Mas, não lhe diga nada a respeito da carta que Sandra acaba de me entregar. Faça de conta que é um polícia... não, isso não dava resultado; mas, seja duro.

- E depois?

- Depois, siga-a. Ela o conduzirá junto de Morgan.

- Morgan não irá vê-la?

- Com certeza que não. É demasiado inteligente para isso. Mantém-se em contacto com ela; mas, não é tão maluco que vá entregar-se de cabeça baixa, quando sabe que a polícia o  procura.

Voltei-me para Sandra Birks.

- Tem algumas fotografias boas do seu marido?

- Tenho.

- Há fotografias dele nos jornais - observou Bleatie.

- Bem sei. Mas, os retratos dos jornais são maus. Já os examinei.

- Tenho alguns instantâneos - anunciou Sandra - e um bom retrato.

- Prefiro os instantâneos.

- Então, venha comigo.

 Fiz um gesto de despedida para Bleatie.

- Boa sorte, Lam - respondeu ele, voltando-se na cama.

Fez um esforço para sorrir sem poder.

- Quando estiveres despachada, Sandra, dá-me esse sedativo. Tenho a impressão de que, não tarda nada, o nariz vai doer-me como os diabos... Resultados de não saberes guiar!

- Só faltava mais essa! Ainda há bocado dizias que eras de opinião que o outro automóvel tinha chocado contra o nosso deliberadamente. Se ao menos soubesses o que querias...

- Paz, minha santa. Lam não está nada interessado nas questões de amor fraternal da família Thoms.

Os seus olhos trespassaram-no como adagas.

- Levaste tempo a chegar a essa conclusão - respondeu, saindo do quarto.

Segui-a e fechei a porta atrás de mim. Alma Hunter mostrou-se inquieta.

- Conseguiste tomar nota do nome e do endereço da rapariga?

- Claro! - troçou Sandra Birks. - E o que vou fazer a essa pequena não vai ter graça nenhuma.

Atravessou a sala e empurrou a porta de um quarto de dormir.

- Chegue aqui, Mr. Lam.

Era um quarto com duas camas, uma mobília luxuosa, quadros nas paredes e enormes espelhos.

- Tenho um álbum de fotografias na gaveta da minha cómoda. Sente-se ali na cama, porque quero sentar-me a seu lado. Veremos as fotografias ao mesmo tempo e escolherá as que lhe agradarem mais.

Sentei-me no leito. Procurou o álbum e veio instalar-se a meu lado.

- O que é que meu irmão lhe disse a meu respeito?

- Pouca coisa.

- Não acredito. Ele tem um espírito detestável. Não me importo nada de o dizer, apesar de ser meu irmão.

- Vínhamos procurar fotografias de seu marido, lembra-se?

Sandra fez cara de amuada e franziu o nariz.

- Não se esqueça de para quem trabalha!

- Ainda não esqueci.

- Então?

Fitei-a com expressão surpreendida.

- Espero que me diga o que Bleatie lhe contou a meu respeito.

- Pouca coisa.

- Disse-lhe que eu era egoísta?

- Já não me lembro bem do que ele disse.

- Acusou-me de ser lasciva?

- Não.

- Nesse caso, está a fazer progressos - declarou, amargamente. - Quase sempre, é essa a ideia que faz de mim. Meu Deus, ainda estou pasmada por ele ter dito que o dr. Holoman era meu amante.

Como não lhe respondesse nada, lançou-me uma olhadela com as pálpebras semi-cerradas.

- Então, disse ou não?

- É isso que pretende saber?

- Evidentemente, que quero saber!

- Com exactidão?

- O que julga Bleatie? Acusa-me ser amiga do dr. Holoman?

- Não me lembro.

- A sua memória não é grande coisa, pois não?

- Não.

- Talvez nem você seja grande coisa como detective?

- Talvez.

- É para mim que trabalha, não se esqueça.

- Eu trabalho para uma senhora que se chama Bertha L. Cool. É a ela directamente que faço os meus relatórios. Segundo o que concluí, encarregaram-me de entregar certos documentos a seu marido e eu julgava que me tinha feito vir aqui para me mostrar retratos dele.

- Está a tornar-se impertinente.

- Sinto muito.

- Ora, não sei porque estou a insistir tanto por uma resposta. Já a sei. Claro que ele disse o pior possível de mim. Nunca nos tratámos um ao outro como é hábito entre irmãos. Mas nunca pensei que ele envolvesse o dr. Holoman em tudo isto.

- Preferia instantâneos em que ele estivesse com rosto expressivo.

Sandra quase que me atirou o álbum para cima dos joelhos. Depois começou a voltar as páginas. A primeira fotografia mostrava Sandra Birks sentada num banco rústico, com uma queda de água em segundo plano, pinheiros e um rio. Um homem rodeava-lhe os ombros com um braço e olhava-a  de frente.

- Este é Morgan?

- Não - respondeu, voltando a página.

Virou mais algumas páginas rapidamente.

- Não sei bem onde estão. Arrumei as fotografias ao calhar.

Virou mais duas páginas e exclamou:

- Aqui está.

Era uma fotografia muito nítida de um homem alto e magro, de feições bem vincadas, cabelos lisos penteados para trás sobre uma testa alta.

- É exactamente o que preciso - observei. - Está perfeitamente nítido. Tem mais?

Introduziu a ponta da unha envernizada de vermelho por debaixo da fotografia e fê-la saltar do álbum.

- Talvez.

Virou mais duas ou três páginas repletas de fotografias vulgares, de gente em automóveis, sentada às portas, rindo abertamente para a máquina. De súbito, afirmou:

- As páginas seguintes foram consagradas a fotografias de férias. Raparigas minhas amigas e eu, em fato de banho. Não as deve ver.

Passou várias páginas ao mesmo tempo, gargalhou para consigo e mostrou-me um retrato do marido.

- Não é tão bom como o outro; mas, dar-lhe-á uma imagem de perfil.

Tirei-a do álbum e comparei-a com a outra.

- É óptima. Obrigado.

- São só estas que precisa?

- São.

Sandra deixou-se ficar alguns momentos sentada na cama, os olhos perdidos no vácuo, como se seguisse um pensamento íntimo. Bruscamente, declarou:

- Desculpe-me. Tenho de fazer uma pergunta a Alma.

Ergueu-se e dirigiu-se para o aposento ao lado, deixando-me só com o álbum das fotografias. Atirei-o para a cabeceira da cama.

Fez-me esperar dois minutos e voltou acompanhada por Alma.

- Calculei que lhe interessasse ter uma das fotos publicadas na Imprensa. Aqui tem.

Cortara de um jornal uma fotografia sob a qual se lia:

Morgan Birks, presumível subornador do Sindicato das Máquinas Automáticas, cuja presença é exigida pelo  Grande Júri.

Comparei este retrato aos dois instantâneos. Não estava muito nítido; mas, representava incontestavelmente o mesmo indivíduo.

Sandra soltou um gritinho e pegou no álbum.

- Oh, esqueci-me...

Alma fitou-a com ar interrogador.

- Esqueci-me das fotos em fato de banho que aqui tenho - explicou rindo. - Deixei-as entregues a Mr. Lam, sem chaperon...

- Esteja descansada que nem paraelas olhei – respondi tranquilamente. - Levo estes instantâneos; tenho de apresentar o meu relatório a Mrs. Cool e ir falar com Sally Durke. Era bom que me dessem o vosso número do telefone para lhes falar, quando houver qualquer novidade.

- Não se esqueça, Mr. Lam, de me dizer exactamente quando tenciona entregar esses documentos.

- Apresentarei o meu relatório a Mrs. Cool logo que tenha cumprido a minha missão.

- Não é isso que quero. Quero que me previna, com uma hora de antecedência, o momento em que entregará os documentos.

- Porquê?

- Tenho as minhas razões.

- Quais razões?

- Tenho receio que Bleatie me atraiçoe.

- Só recebo ordens de Mrs. Cool. Fale com ela primeiro.

- Faça favor de esperar.

- Tenho que passar pelo escritório de Mrs. Cool para lhe comunicar o que soube.

- Muito bem. Tome nota do meu número do telefone e tu, Alma, pega no carro e vai com ele. Poupará tempo. Para caçarmos a tal pequena vai ter necessidade de um automóvel, Mr. Lam. Eu tenho outro. Sabe conduzir?

Olhei para Alma.

- Prefiro que alguém me conduza.

- Encarregas-te disso, não é verdade, Alma?

- Faço tudo o que quiseres, bem sabes, Sandra.

Alma dirigiu-se para o penteador, escovou os cabelos, pôs pó de arroz no nariz e na cara, e inclinou a cabeça para trás para passar o “baton” pelos lábios. A gola do vestido abriu-se e entrevi uma parte do pescoço maculada por manchas escuras. A princípio, julguei tratar-se de um efeito de luz; mas, depois apercebi-me que se tratava de nódoas negras. Sandra Birks observou bruscamente:

- Venha, deixemos Alma vestir-se.

- Não tenho que me vestir - respondeu Alma.

- Quero oferecer-lhe uma bebida, Mr. Lam – propôs Sandra.

- Não, muito obrigado. Não bebo, enquanto trabalho.

- Aqui está um rapaz virtuoso - exclamou, com voz trocista. - Não tem nenhum vício?

-Trabalho por sua conta - observei. -Lembre-se que lhe custo dinheiro.

-Tem razão. Tenho de o felicitar.

Porém, o seu tom não tinha convicção.

- O seu irmão está à espera do sedativo que o médico lhe receitou - lembrei.

- Oh, ele pode esperar, o pobrezinho! Diga-me antes o que é que ele lhe contou a meu respeito. - Inquiriu com gestos de Roquette.

Estava absolutamente consciente da sua sedução feminina.

- O que é que ele disse a respeito de Archie?

Alma voltou-se e olhou-me como se quisesse pôr-me de sobreaviso.

- Disse considerar o dr. Holoman um excelente médico. Que a senhora era impulsiva e obstinada; boa como ouro, que nem sempre concordava consigo nas pequenas coisas; mas, que nas coisas importantes se entendiam perfeitamente. Que a senhora podia sempre contar com ele, quando tivesse dificuldades.

- Ele disse isso tudo?

- Foi o que me ficou da nossa conversa.

Sandra olhava-me de frente. Não sabia como classificar a expressão do seu rosto. Por instantes, pensei que ela tivesse, talvez, medo.

- Oh! - fez ela.

Alma Hunter fez-me um sinal com a cabeça:

- Vamos embora.

 

CAPÍTULO V

Era meio-dia menos cinco quando cheguei ao escritório. Dependurado na porta, um letreiro comunicava que não se recebiam mais candidatos para o lugar mencionado no anúncio. Ainda havia quem viesse responder. Dois deles estavam em frente da porta a ler o letreiro quando me aproximei. Afastaram-se depois de passar a meu lado com o passo firme e mecânico dos soldados que retiram depois de perdida a batalha.

Elsie Brand parara de escrever à máquina. Estava sentada à secretária, cuja gaveta do lado esquerdo se encontrava aberta. Quando me viu entrar, fechou a gaveta.

- Que se passa? - perguntei-lhe. - Não tem autorização para ler uma revista nos momentos em que não tem nada que fazer?

Ela olhou-me de alto a baixo, tornou a abrir a gaveta e recomeçou a ler. Do sítio onde me encontrava, vi que se tratava de uma revista de cinema.

- Não acha melhor avisar a patroa de que o agente n.º 13 está aqui para apresentar um relatório?

Elsie levantou o nariz da revista.

- Mrs. Cool foi almoçar.

- A que horas volta?

- Ao meio-dia.

Inclinei-me sobre a secretária.

- Nessas condições, tenho de esperar cinco minutos. Prefere conversar comigo ou ler o seu jornal?

- Tem alguma conversa em mente?

Fitei-a nos olhos e respondi:

- Não.

Por instantes, vi brilhar nos seus olhos uma expressão divertida.

- Tenho horror a conversas “escolhidas” - declarou.

- O que tenho na minha gaveta, é uma revista de cinema. Nunca li A Cidadela, nem Tudo o Vento Levou, nem nenhum outro livro de “Selecção”. Nem tenho intenção de ler. Agora, diga lá sobre que é que quer falar.

- Se falássemos um pouco a respeito de Mrs. Cool… A que horas almoça ela?

- Às onze horas.

- E volta ao meio-dia. Nesse caso, você sai ao meio-dia e volta à uma hora?

- Exacto.

Calculei que Elsie era um pouco mais velha do que eu pensara à primeira vista. Atribuíra-lhe menos de trinta anos; mas, agora, dava-lhe quase trinta e cinco. Embora se tratasse com muito cuidado, distingui-lhe rugas nos cantos dos olhos e no queixo.

- Alma Hunter está à minha espera num automóvel, à esquina da rua - informei. - Se Mrs. Cool costuma vir atrasada, era aconselhável ir preveni-la.

- Ela chegará à hora marcada. Quanto muito, virá três minutos depois do meio-dia. É uma das qualidades de Bertha Cool. Pensa que uma mulher tem o direito de se alimentar e nunca me faria esperar à hora do meu almoço.

- Parece ser boa pessoa - arrisquei.

- E é.

- Como lhe deu na cabeça dirigir uma agência de investigações?

- Foi por causa da morte do marido.

- Há muitas outras maneiras de uma mulher ganhar a vida - disse eu estupidamente.

- Qual, por exemplo?

- Sei lá. Podia ter montado uma casa de modas. Há quanto tempo trabalha com ela?

- Desde que a agência abriu.

- E isso foi?

- Há três anos.

- Já a conhecia antes da morte do marido?

- Eu era a secretária do marido. Foi Bertha quem me contratou. Ela...

A porta abriu-se e Bertha Cool entrou majestosamente na sala.

- Pronto, Elsie Já pode sair. Que faz aqui,  Donald?

- Venho apresentar o meu relatório.

- Entre.

Bertha Cool passou ao gabinete da direcção, muito direita, com os ombros puxados para trás, o peito e as ancas a baloiçar molemente dentro do seu vestido leve. Na rua, fazia muito calor; mas, ela parecia não o sentir.

- Sente-se, já o encontrou ?

- O marido, não. Mas, falei com o irmão.

- Bem, despache-se e descubra o marido.

- É o que tenciono fazer.

- Pois claro. É forte em aritmética?

- De que problema se trata?

- Recebi honorários adiantados. Se você trabalhar sete dias neste caso, ganho cento e cinquenta dólares. Se o liquidar hoje, disponho seis dias do seu trabalho que posso vender a outro cliente. Pense nisto e dê-me a resposta. Acaso vai entregar a intimação, se estiver sempre aqui neste escritório ? Despache-se e entregue os documentos a quem de direito.

- Vim apresentar um relatório.

- Não quero relatórios. Quero a acção.

- Vou ter necessidade de alguém para me ajudar.

- Porquê?

- Tenho de seguir uma mulher. Já sei o endereço da amiga de Morgan. Tenho de ir contar-lhe qualquer coisa que a faça precipitar-se para junto de Morgan e eu a poder seguir.

- E depois? Porque não faz isso?

- Já arranjei um automóvel. Miss Hunter conduzir-me-á.

- Perfeito. Ela que conduza. Ah! Logo que souber onde se encontra Morgan, previna Sandra.

- Isso pode complicar a situação no momento da entrega dos documentos.

- Não se preocupe com isso. A questão financeira foi regulada como convém.

- Arrisco-me a cair no meio de grande balbúrdia. Aquela família é muito complicada. O irmão de Sandra é de opinião que há mais argumentos a favor de Birks do que a favor da irmã.

- Não nos pagam para tomar partidos neste negócio; pagam-nos para entregar os tais documentos.

- Já sei. Mas pode haver complicação. Não será melhor dar-me uma credencial em como trabalho para a agência?

Ela olhou-me durante alguns momentos, abriu uma gaveta, tirou uma folha de papel impressa, onde inscreveu o meu nome, a minha morada e a minha descrição. Depois, assinou e entregou-me o papel.

- E se me desse um revólver?

- Não.

- Posso vir a cair em alguma trapalhada violenta.

- Não.

- Mas, suponha que sim.

- Arranje maneira de se raspar.

- Podia raspar-me muito mais facilmente com uma arma na mão.

- Demasiado facilmente. Tem andado a ler romances policiais?

- Bom, quem manda é a senhora - disse eu, dirigindo-me para a porta.

- Espere um minuto. Chegue aqui. Já que cá veio quero dizer-lhe uma coisa.

Voltei atrás.

- Já sei quem você é, Donald. Você denunciou-se quando examinou esta manhã os documentos que lhe entreguei.

Apercebi-me logo que você tinha educação jurídica. É novo. Teve os seus aborrecimentos. Foi por isso que não procurou trabalho num escritório de advogados. Quando lhe perguntei qual a educação que tinha recebido, não se atreveu a falar-me dos seus estudos de Direito.

Procurei não trair qualquer emoção no rosto.

- Donald - continuou ela. - Já sei o seu verdadeiro nome. Sei perfeitamente o que lhe aconteceu. Você fez serviço nos tribunais e foi irradiado por ter violado a ética da profissão.

- Não fui irradiado dos tribunais nem violei a ética da profissão.

- O conselho da Ordem dos Advogados não é da mesma opinião.

- O conselho da Ordem é composto por um bando de palermas. Falei demais, foi tudo.

- A propósito de quê, Donald?

- Estava a trabalhar para um cliente. Calhou conversarmos a respeito de Leis. Disse-lhe que qualquer pessoa podia transgredir a Lei sem receio, se soubesse fazer as coisas.

- Isso não é nada. Toda a gente sabe.

- O pior é que não fiquei por aqui - confessei. - Já lhe disse que tenho a mania dos planos. Sou de opinião que os nossos conhecimentos não nos servem para nada se não os aplicarmos. Estudei uma quantidade enorme de truques legais e sei servir-me deles.

- Continue. O que aconteceu? - perguntou, com ar interessado.

- Disse a esse tal homem que era possível cometer um crime de morte, sem que pessoa alguma pudesse fazer nada contra o assassino. Respondeu-me que era impossível. Perdi a cabeça e apostei quinhentos dólares em como tinha razão e o podia demonstrar; mandei-o voltar no dia seguinte. Nessa noite, ele foi preso. Era um gangster sem categoria nenhuma. Contou tudo à polícia. Entre outras coisas, disse que eu tinha ficado de lhe ensinar a maneira de assassinar qualquer pessoa sem receio da Justiça. Que eu receberia quinhentos dólares pela informação e que ele tencionava eliminar um gangster rival, se o plano fosse bom.

- Que sucedeu depois?

- O conselho da Ordem caiu em cima de mim. Cancelaram a minha licença de advogado durante um ano. Julgaram que eu era um advogado venal. Expliquei-lhes que se tratava de uma discussão e de uma aposta. Em face das circunstâncias, não me acreditaram. E naturalmente, indignaram-se por eu afirmar que uma pessoa podia cometer um crime sem risco de ser castigado.

- É possível?

- É.

- E você sabe como?

- Sei. Conforme lhe disse, a minha mania é precisamente inventar planos legais.

- E encerrado no seu cérebro há um plano pelo qual eu posso matar qualquer pessoa sem que a Lei consiga prender-me ?

- Há.

- Quer dizer, se eu for suficientemente esperta para não me deixar apanhar?

- Não quero dizer nada disso. Teria de colocar-se nas minhas mãos e fazer, precisamente, o que lhe ordenasse.

- Com certeza que não se trata da velha história de fazer desaparecer o cadáver sem deixar rasto?

- Não. Trata-se de uma falha na própria Lei que permite um indivíduo cometer um crime impunemente.

- Conte-me  como  é,  Donald.

Desatei a  rir.

- Recordo-lhe que já cometi o erro de falar de mais, uma vez.

- Quando é que termina esse ano de suspensão?

- Já terminou. Terminou há dois meses.

- Porque não voltou a exercer a profissão de advogado?

- É preciso dinheiro para montar um escritório, com mobília, livros de Direito e para esperar os clientes.

- Não se podia ter feito contratar por qualquer empresa jurídica?

- Impossível. Não confiam em mim por ter sido suspenso.

- Que tenciona, então, fazer com a sua formação jurídica?

- Continuar a entregar documentos - respondi, girando sobre os calcanhares.

Saí do escritório. Elsie Brand tinha ido almoçar. Alma Hunter esperava-me no automóvel.

- Tive de me utilizar dos meus encantos femininos com um polícia de trânsito - disse-me ela.

- Você é uma rapariga encantadora. Agora, vamos aos Apartamentos Milestone para eu desempenhar o meu papel junto de Sally Durke.

Alma voltou-se para ver se a rua estava livre, pela janela da retaguarda do carro. A gola de blusa de seda entreabriu-se e, mais uma vez, vi as equimoses sombrias e sinistras, as impressões de um polegar e de outros dedos, que lhe tinham apertado a garganta.

Não disse nada. Já tinha demasiadas preocupações pessoais. Ela conduziu habilmente o veículo para o meio do trânsito e dirigiu-se aos Apartamentos Milestone.

- Bem - murmurei - cá estamos.

- Boa sorte! - disse ela, com um sorriso.

- Muito obrigado.

Atravessei a rua, examinei a lista dos nomes que se encontravam ao lado da porta e carreguei no botão que tinha a inscrição: S. L. Durke, 314.

Perguntei a mim mesmo o que faria um detective experimentado no caso de Miss Durke não estar em casa. Mas, antes que descobrisse uma resposta, a porta abriu-se ao mesmo tempo que soava uma campainha, o que significava que Miss Durke estava em casa e disposta a receber visitas sem que estas tivessem necessidade de declinar os seus nomes, títulos e qualidades, pelo tubo acústico.

Penetrei no vestíbulo, atravessei um corredor mal cheiroso, e tomei o ascensor até ao terceiro andar. Quando me preparava para bater à porta 314, uma jovem em pijama de seda azul escuro, abriu-a.

- O que deseja?

Era loura e, sem dúvida, oxigenada. Não devia ter mais de trinta anos e o pijama desenhava-lhe as formas. Repetiu com impaciência:

- Então, o que deseja?

- Entrar.

- Porquê?

- Quero falar consigo.

- Bem, entre.

Verifiquei que antes de chegar, ela estava ocupada a polir as unhas. O polidor estava sobre uma mesa baixa ao lado de um divã. Foi instalar-se confortavelmente no divã, pegou no polidor e pôs-se a examinar as unhas, com ar crítico.

- Então? - disse, sem olhar.

- Sou detective.

Ela ergueu bruscamente os olhos para mim. Durante um instante, examinou-me, em silêncio; depois, desatou a rir. Deixou de rir ao ver a expressão do meu rosto.

- Isso é verdade?

Acenei a cabeça afirmativamente.

- Pois olhe que não parece - observou procurando dominar o riso. - Você tem o ar de um rapazinho gentil com muitos ideais e uma mãe rica. Oxalá não tenha ficado zangado por eu rir...

- Não, não tenho esse costume.

- Muito bem. O senhor é detective. O que pretende?

- Estou ao serviço de Sandra Birks. Isto diz-lhe alguma coisa?

Continuou tranquilamente a polir as unhas, com toda a atenção, aparentemente, concentrada, nesta delicada operação.

- Porque me fala em Sandra Birks?

- Mais sabe você.

- Não conheço essa senhora.

- É a mulher de Morgan Birks.

- Quem é Morgan Birks?

- O quê? Não costuma ler os jornais?

- O que tem isso? Em que é que me diz respeito?

- Mrs. Birks podia-a fazer ver todas as cores do arco-íris, se quisesse.

- Palavra?

- Sabe muito bem o que pretendo dizer.

- Como hei-de saber?

- Deixe falar a sua consciência.

Ela desatou a rir.

- É coisa que não tenho. Há muito que me despojei da consciência.

- Mrs. Birks podia levá-la ao tribunal.

- Porque motivo?

- Alegando que você tem relações íntimas com o marido.

- Não está a levar muito a sério aquilo que ouve dizer?

- Não sei. Que lhe parece?

- Fale, estou a ouvi-lo... pelo menos, por ora.

- Bem, estou apenas a fazer aquilo que me mandaram.

- O que foi?

- Entregar documentos a Morgan Birks.

- Que documentos?

- Um pedido de divórcio.

- Porque veio aqui?

- Calculo que me saiba dizer onde ele se encontra.

- Calculou mal.

- Se me pudesse ajudar, talvez fosse possível receber uma compensação.

- Quanto? - perguntou com os olhos brilhantes.

- Uma boa quantia, talvez. Depende.

- Depende, de quê?

- Do que Mrs. Birks receber também.

- Não, muito obrigada. Não me interessa. Não acredito que essa chantagista consiga obter um cêntimo.

- O pedido de divórcio não faz supor isso.

- Não basta pedir o divórcio para se conseguir ganhos materiais. É o tribunal que decide. Mrs. Birks é uma dessas cegonhas de rosto de anjo, que se escondem por detrás da máscara da respeitabilidade. Enganou Morgan desde os primeiros dias de casada. Se Morgan quiser dizer metade do que sabe... Bom, deixa-me calar. Quem fala é o senhor. Eu estou a ouvi-lo.

- Está bem; mas, Mrs. Birks vai conseguir o divórcio.

- Ah, sim?

- Bem sabe que sim. E se ela quiser, pode levá-la a si ao tribunal. Tem bastantes provas em seu poder. A atitude de Sandra Birks a seu respeito dependerá da sua.

- Ah, ele é isso? - perguntou, pousando o polidor.

- É.

Suspirou.

- E tinha você cara de tão bom rapaz!  Quer tomar alguma coisa?

- Não, obrigado. Nunca bebo, quando trabalho.

- Está a trabalhar, neste momento?

- Estou.

- Lamento por si.

- Não há que lamentar.

- Do que é que ela me ameaça?

- Ameaçar?

- Sim.

- De nada. Estou a explicar-lhe simplesmente a situação.

- Como amigo, naturalmente - disse, em tom sarcástico.

- Como amigo.

- Bem, o que pretende de mim?

- Que procure Morgan para que eu lhe entregue a intimação ou que me arranje maneira de o encontrar. De qualquer modo, é do seu interesse que o divórcio seja pronunciado, não é?

- Não sei; mas, muito gostaria de saber - respondeu, com ar preocupado.

Fiquei calado.

- Como quer que lhe arranje maneira de se encontrar com Morgan?

- Marque um encontro com ele. Depois, telefone a B. L. Cool, para o número Maine 6-9321. Eu aparecerei e entregar-lhe-ei os papéis.

- E quando é que recebo a minha gratificação?

- Não recebe nada.

Ela inclinou-se para trás e começou a rir. Parecia estar, de facto, muito divertida.

- Bravo, meu amor. Perguntava a mim mesmo onde é que queria chegar. Já sei agora. Ponha-se a andar daqui para fora e pode dizer a Mrs. Birks que se vá deitar a afogar. Se quiser mencionar o meu nome no tribunal, peça-lhe notícias do seu amiguinho, Archie Holoman. Acaso, ela imagina que o marido é parvo?

As suas gargalhadas perseguiram-me até ao corredor.

Voltei para o automóvel, onde Alma Hunter me esperava.

- Avistou-se com ela?

- Sim...

- Como é ? - perguntou, com curiosidade.

- Oxigenada. Agradável de ver e desagradável de ouvir.

- O que disse?

- Mandou-me passear.

- Não era o que pretendia?

- Até certo ponto, era.

- Julgava que era exactamente o que queria. Estava convencida de que pretendia que ela se zangasse, o pusesse fora e depois o conduzisse até junto de Morgan.

- Sim, era esse o plano estabelecido.

- O que foi que ela lhe disse que lhe desagradou?

- Não é nada agradável ser-se tratado por parvo. Mas, parece-me que para se ser detective, é obrigatório ser-se também pateta. Pelo menos, é o que ela parece pensar.

Durante um longo momento, Alma manteve-se em silêncio. Passados instantes, propus:

- Era melhor irmos colocar-nos naquela rua, lá em baixo. Poderemos ao mesmo tempo observar a casa e não daremos tanto nas vistas.

Ela apoiou o pé no acelerador e conduziu o carro para o beco que eu tinha indicado.

- Você não é nada parvo. Eu, por mim, acho-o bastante simpático.

- Muito obrigado pela sua opinião. Mas, é preciso outra coisa além de palavras para me fazer esquecer essa impressão.

- Como imaginava esta profissão?

- Não sei.

- Não foi o gosto pela aventura que o atraiu?

- O que me atraiu foi a possibilidade de comer duas vezes por dia e saber onde dormir à noite. Nem sequer sabia de que género de trabalho se tratava quando respondi ao anúncio; nem pretendia saber...

Alma pousou a mão sobre o meu braço.

- Não esteja aborrecido, Don. No final de contas, o caso não é tão grave como parece. Essa Sally é a mulher mais venal que há. Não se interessa nada por Morgan. Entra no jogo para ver o que consegue ganhar com a situação.

- Bem sei, mas nunca supus ter que passar por pateta.Não é que eu queira fazer um drama do assunto: desagrada-me, é tudo.

- Porém, conseguiu o que pretendia?

- Estou até convencido que me saí muitíssimo bem.

Alma começou a rir, um pouco forçadamente.

- Diz cada coisa mais inesperada, Donald. Penso que isso provém da sua maneira de encarar a vida. Diga-me, o que lhe aconteceu para se sentir tão abatido?

- Meu Deus, é essa a impressão que dou?

- Um pouco.

- Vou esforçar-me por remediar isso.

- Mas, não é verdade?

- Passei maus bocados. Quando se trabalhou durante anos para se criar uma situação, que se venceu toda a espécie de dificuldades e que finalmente se obteve o que se pretendia, se alguém nos faz bruscamente voltar ao zero, tem-se muita dificuldade na readaptação.

- Foi por causa de alguma mulher, Don?

- Não.

- Quer fazer-me confidências?

- Não.

Ela olhou com ar sonhador através do pára-brisas. Os seus dedos brincavam com a manga do casaco.

- Ficou desapontada ao verificar que eu não era um detective experimentado.

- Parece-lhe?

- Parece, porquê?

- Não tinha dado por isso.

Desloquei-me um pouco de maneira a ver-lhe o perfil.

- Foi porque houve alguém que a tentou estrangular que você contava com um homem que a pudesse proteger?

Vi o seu rosto crispar-se e a mão deslocou-se involuntáriamente para o pescoço como se tivesse intenção de evitar o meu olhar.

- Quem é que a tentou estrangular, Alma?

Os seus lábios tremiam, os olhos encheram-se de lágrimas. Senti os dedos crisparem-se no meu braço. Envolvi-a com um braço e puxei-a para mim. Ela apoiou a cabeça contra o meu ombro e começou a chorar, com grandes soluços que me diziam como os seus nervos estavam torturados. Deslizei a minha mão esquerda sob o queixo, e fiz subir a mão direita ao longo da blusa. Ela agarrou o pulso com as duas mãos.

- Não, não -soluçou, voltando para mim o seu rosto assustado e os olhos rasos de lágrimas.

Mergulhei os meus olhos nos de Alma. Os seus lábios estavam ligeiramente entreabertos. Antes mesmo de me dar conta que me inclinava para a beijar, percebi que os meus lábios se juntavam aos seus e senti o gosto salgado das lágrimas. Ela largou-me o pulso, semi-voltou o corpo num movimento rápido e colou-se contra mim. Passados momentos, os nossos lábios afastaram-se. Pus-me a brincar com os cordões  que fechavam a gola da blusa e abri-a ligeiramente. Abandonara-se nos meus braços e não me oferecia nenhuma resistência. Os seus soluços aquietavam-se.

- Quando aconteceu isto, Alma?

- Na noite passada.

- Como aconteceu? Quem foi?

Ela agarrou-se a mim e senti-a tremer.

- Pobre pequena! - murmurei, beijando-a outra vez.

Estávamos sentados no carro com os lábios unidos, o seu corpo quente e palpitante contra o meu. Toda a amargura e tensão se esvaíram do meu íntimo. Não se tratava de paixão, não era dessa espécie de beijos; nunca trocara beijos iguais àqueles. Aquele momento fazia-me sentir... o que nunca tinha sentido.

Alma já não chorava. Deixando de me beijar, soltou um suspiro entrecortado, abriu nervosamente a mala, tirou um lenço e enxugou os olhos.

- Estou com uma cara horrível - disse, vendo-se ao espelho. - Sally Durke já saiu?

Esta pergunta chamou-me, bruscamente, à realidade. Olhei através do pára-brisas para a entrada dos Apartamentos Milestone. A porta continuava obstinadamente fechada. Uma dezena de Sally Durkes tinha tido. tempo de sair e entrar, sem que eu me apercebesse.

- Ela não saiu, pois não ?

- Não sei. Espero que não.

Alma teve um riso um pouco rouco.

- Não sei - repetiu. -Ainda bem que me beijou. Donald.

Procurei dizer qualquer coisa; mas, em vão. Era como se até àquele momento nunca a tivesse visto ou ouvido. Pela primeira vez, descobria certas inflexões na sua voz, certas expressões no seu rosto. Era preciso que tivesse estado cego para não as ter notado até então. Alma estava junto de mim há quatro horas e era a primeira vez que a via verdadeiramente. Agora, só a sua presença importava. Sentia o calor do seu corpo através do vestido, a doce pressão da sua perna contra a minha.

Ela parecia ter readquirido o perfeito controle de si própria, ao arranjar o rosto e ao aplicar o “baton” com a ponta de um dos dedos.

De novo, procurei dizer qualquer coisa, sem conseguir. Era como se quisesse cantar e tivesse perdido a voz. Recomecei a observar a casa de Sally esforçando-me por concentrar a minha atenção sobre a porta da entrada. Desejava descobrir um meio de me assegurar que ela ainda estava em casa. Pensei em voltar aos Apartamentos Milestone e tocar à campainha. Mas, não sabia o que lhe havia de dizer se ela estivesse. Perceberia, com certeza, que eu estava a vigiá-la ou que, pelo menos, pairava pelos arredores.

Alma tornou a fechar a gola da blusa.

- Não me quer contar agora o que lhe aconteceu?

- Quero - respondeu ela.

Passados instantes, acrescentou:

-Tenho medo, Donald, confesso que estou cheia de medo.

- Porquê, Alma?

- Não sei.

- Não lhe parece que a presença do irmão de Sandra vai resolver as coisas?

- Não... mas, não devia dizer isto. Não sei nada.

- Que sabe a respeito dele?

- Pouca coisa. Cada vez que Sandra fala dele, afirma que não se dão bem.

- Em que termos fala?

- Diz apenas que o irmão é muito esquisito e muito independente. O facto dela ser sua irmã não significa nada aos seus olhos.

- No entanto, foi a ele que recorreu quando teve necessidade de auxílio.

- Não sei. Creio que foi ele que quis vir. Parece-me que telefonou primeiro. Porém, é apenas uma impressão. Acredita, Donald, que ele possa estar associado com Morgan?

- Que quer dizer com isso? Associado no negócio das máquinas automáticas?

- Sim.

- O que a leva a pensar desse modo?

- Não sei. A sua maneira de agir e um comentário de Sandra. E enquanto você falava com ele no quarto de dormir, ouvi parte da vossa conversa, não toda, claro está; mas, algumas palavras que me permitiram fazer uma ideia.

- Morgan é o marido - respondi. - É réu numa acção de divórcio. Tenho de lhe entregar esta intimação. Depois, ou ele se apresenta no tribunal ou não comparece e deixa de ser marido de Sandra. Por isso, não vejo motivos para nos preocuparmos.

- Não me parece que o assunto se resolva tão facilmente. Ele é perigoso.

- Ora aí está. Chegámos ao ponto que me interessa.

- Qual?

- As equimoses no seu pescoço.

- Nada tem que ver uma coisa com a outra.

- Vá, conte-me o que aconteceu. Quem foi?

- Um g-g-gatuno.

- Onde?

- Alguém que assaltou o apartamento.

- Quando?

- Ontem à noite.

- Estavam as duas sozinhas, Sandra e você?

- Estávamos.

- E  Sandra?

- Dormia no quarto ao lado.

- E você estava deitada no quarto que tem as duas camas?

- Estava.

- Sandra estava a dormir no quarto que Bleatie ocupa agora?

- Sim.

- E o que se passou?

- Não sei... Não devo falar-lhe nesse assunto. Prometi a Sandra que não dizia nada a ninguém.

- Porquê tanto mistério?

- Porque ela já tem bastantes aborrecimentos com a polícia. Procuram localizar Morgan e aparecem a qualquer hora do dia ou da noite. É bastante aborrecido.

- Não duvido. Mas isso não é razão para que a deixe assassinar por estrangulamento.

- Obriguei-o a fugir.

- Conte como o caso se passou.

- Estava muito calor. Eu dormia quase descoberta. Bruscamente, acordei. Um homem inclinava-se sobre a minha cama. Desatei a gritar. Ele agarrou-me pela garganta. Dei-lhe meia dúzia de pontapés no estômago; com os joelhos, apoiados nos seus ombros, empurrei-o com quanta força tinha. Se não tivesse acordado naquela altura, ele teria tido tempo de se aproximar mais e ter-me-ia estrangulado.

- O que aconteceu depois?

- Ele fugiu.

- Para onde?

- Para o quarto vizinho.

- E depois?

- Depois, chamei Sandra. Acendemos todos os candeeiros e rebuscamos o apartamento, casa por casa. Estava tudo em perfeita ordem.

- Descobriram como é que o assaltante conseguiu entrar?

- Deve ter-se servido da escada de incêndio porque a porta estava fechada à chave.

- O assaltante estava vestido?

- Não sei, não vi, estava muito escuro.

- Mas podia ter sentido, não?

- Até certo ponto.

- E nunca chegou a vê-lo ? Não seria capaz de o reconhecer?

- Estava escuro como breu.

- Escute, Alma  - disse eu. - Você está nervosa e eu sei porquê. Esconde-me qualquer coisa. Porque não quer que eu a ajude?

- Não, não posso... isto é, nada mais tenho a dizer... já contei tudo.

Recostei-me para trás e fumei um cigarro em silêncio. Passados instantes, prosseguiu:

- Você é um detective a sério? Quer dizer, legalmente?

- Sou.

- E tem direito a andar armado?

- Penso que sim.

- Poderia... poderia arranjar-me um revólver, se lhe desse dinheiro para o comprar...

- Para quê?

- Para me proteger.

- Porquê um revólver?

- Porque não? Valha-o Deus, se você acordasse a meio da noite e visse alguém debruçado sobre si e sentisse as mãos do desconhecido a apertar-lhe a garganta...

- Nesse caso, está convencida de que o facto vai repetir-se?

- Não sei nada; mas, não quero abandonar Sandra e penso que ela está em perigo.

- Porquê?

- Não sei. Parece-me que alguém pretende matá-la.

- Porque há-de ser Sandra?

- Eu estava a dormir na cama dela.

- Talvez fosse o marido?

- Não creio, mas... É muito possível, afinal de contas.

- Saia de lá! -aconselhei. - Arranje um quarto para si em qualquer parte.

- Não, não posso fazer isso. Sou amiga dela. Tenho de a vigiar. Noutras ocasiões, foi ela que me vigiou a mim.

- Palavra?

- Sim.

- Compreendi, pelo que me disse o irmão, que ela era bastante egoísta, o género de mulher que...

- Não é egoísta. Que sabe o irmão? Nunca se ralou com ela. Creio mesmo que não lhe escreveu uma única vez, em quatro anos.

- Aparenta conhecê-la bem.

- É o que me faz pensar que é um comparsa de Morgan. Repete o que lhe ouviu dizer. Morgan fala da mulher em termos odiosos, diz que é lúbrica, que muda de homem como quem muda de camisa e outras coisas que nenhum homem devia dizer a respeito de uma mulher, principalmente quando é a sua.

- Imagino que a vida conjugal não era muito feliz.

- Certamente que não. Mas, isso não é razão para que um homem calunie a mulher que jurou amar e proteger! Os homens, às vezes, enojam-me.

- Falemos então, para que me explique, da razão porque a aventura conjugal de Mrs. Cool lhe interessou tanto.

- Porque era interessante.

- Sobretudo para aquelas que pretendem casar-se.

- Ou para aquelas que fogem do casamento.

- É isso que você tem feito?

Alma sacudiu a cabeça.

- Não quer falar-me a esse respeito?

Ela hesitou um pouco.

- Não, Donald, prefiro não falar... pelo menos hoje.

- Trata-se de alguém de Kansas City?

- Sim, um desses homens meio loucos, estupidamente ciumentos, que procuram sempre uma desculpa para se embriagar e partir coisas.

- Não perca o seu tempo com ele. Conheço a cantiga. São todos iguais. Desejam possuir uma mulher de corpo e alma. Naturalmente procurou convencê-la que o seu ciúme é apenas porque não tem realmente o direito legal de a amar, que se você fosse mulher dele, tudo seria diferente, que faria diferença do dia da noite. E cada vez que você se lhe recusava, ia embebedar-se, e quando voltava fazia uma cena e partia a louça...

- Até parece que o conhece.

- Não o conheço, em carne e osso; mas, conheço o género.

- E aconselha-me a abandoná-lo?

- Absolutamente. Quando um homem não tem a força de carácter suficiente para vencer os seus defeitos e procura fazer-se valer, partindo a louça e a mobília, deve-se largá-lo da mão.

- Ele tem sobretudo a mania de partir copos nos bares.

- Tencionava casar com ele?

- Não.

- Ainda está em Kansas City?

- Está... pelo menos, estava quando parti. Se descobrisse onde eu estava, apareceria logo.

- E o que aconteceria?

- Provavelmente, partiria mais uns copos.

- Esse género de homens é odioso. Servem-se de todos os meios para se fazer valer.

- É verdade. Todos os dias os jornais contam casos desses. Homens que perseguem as mulheres que os abandonaram, as assassinam e se suicidam em seguida... para acabarem a vida num gesto melodramático. Detesto isso; mas, tenho medo.

Olhei-a com insistência.

- E é por isso que pretende o revólver?

Ela procurou o meu olhar.

- É - respondeu.

- Quer comprar um?

- Quero.

- Tem dinheiro?

- Tenho.

- Isso vai custar-lhe, pelo menos, vinte e cinco dólares.

Alma abriu a mala, tirou duas notas de dez dólares e uma de cinco, e entregou-mas.

- Não posso ir comprar já. Preciso de esperar que Sally Durke saia. A propósito, pergunto a mim mesmo, porque é que Bleatie tinha tanto a certeza que ela sairia para ir ter com Morgan Birks. Era natural que lhe telefonasse.

- Sem dúvida, a polícia vigia a linha telefónica?

- Não, a polícia não sabe que ela é amante de Morgan; se não mantinham-na sob observação.

- Nesse caso, é ele que não tem possibilidade de atender o telefone; ou então, foi ele que lhe deu ordem... Aí vem ela!

Sally Durke saía de casa, com uma mala de mão, vestida com um saia-casaco azul, cuja saia curta deixava ver as pernas, aliás, muito dignas de atrair o olhar dos homens. Levava um chapéu igualmente azul, puxado sobre uma das orelhas e ornamentado com um pequeno laçarote azul esverdeado. Os seus  cabelos dourados brilhavam em torno do rosto.

- O que é que lhe faz pensar que os cabelos dela são oxigenados? - perguntou Alma, pondo o motor do carro a funcionar.

- Sei lá, talvez qualquer coisa na cor...

- Daqui, parecem de louro natural. É bonita...

- Longe de mim discutir a beleza feminina com um perito - declarei. - Atenção, não a siga muito de perto. Ela dirige-se para a avenida.  Deixe-a tomar avanço para que não nos veja se se voltar. Desconfiaria...

- Pensei em avançar alguns metros e parar a ver o que ela fazia.

- Está bem, minha linda. Quer que eu conduza?

- Se não se importa, quero. Sinto-me um pouco nervosa.

- Bom, passe-me o volante e deslize para o meu lugar.

Ao sentar-me ao volante, meti a “prise”, desembraiei e encostei o carro ao passeio.

Ao chegar à esquina da rua, Sally Durke mandou parar um táxi. Acelerei e pus-me a seguir o táxi a uns vinte metros de distância. Gradualmente aproximei-me, esperando a todo o momento que ela se voltasse para trás. Não o fez.

- Creio que tudo corre bem - afirmei,  aproximando-me ainda mais do táxi.

Continuámos a rodar tranquilamente, um carro atrás do outro, até ao Perkins Hotel, em 16th. Street. Não havia local para estacionar.

- É agora que vou precisar de si - disse eu a Alma.

- Tome conta do volante e continue a andar em volta do quarteirão. Quero entrar no hotel quando ela se registar para ver quais os quartos que ocupa. Vou só dar-lhe tempo de sair do vestíbulo e mais nada.

- Escute, Donald - protestou. Alma - quero participar pessoalmente neste assunto.

- Já está a participar.

- Não, não é assim. Quero participar em todas as fases. O que vai fazer?

- Descobrir o número do quarto e ficar, se for possível, com o da frente.

- Quero ir consigo.

- Não pode ser - respondi. - Num hotel desta categoria, um homem desconsidera-se se receber mulheres no seu quarto. Os paquetes chegam a fazer chantagem e...

- Ora, deixe-se de complicações. Inscreva-nos como marido e mulher. Sob que nome é que vai assinar o registo?

- Donald Helforth.

- Muito bem. Eu serei a Mrs. Helforth. Vou ter consigo daqui a bocadinho. Até já.

Entrei no hotel e olhei à minha volta. Sally Durke tinha desaparecido. Pedi ao porteiro que chamasse o paquete a quem chamei de parte.

- Há dois minutos entrou aqui uma loura vestida de azul - disse-lhe eu. -  Quero saber sob que nome se inscreveu. E qual é o quarto livre mais próximo do seu.

- Para quê? - perguntou.

Tirei uma nota de cinco dólares do bolso, dobrei-a, enrolei-a em volta dos dedos e respondi:

- Faço parte de uma comissão, composta por uma só pessoa, ao serviço do Governo, que procura fazer passar os paquetes, que o merecem, para outra categoria de grandes assalariados, a fim de que se possa aumentar os impostos.

-Estou sempre disposto a cooperar com o Governo - declarou, com expressão prazenteira. - Um minuto.

Esperei no vestíbulo que me trouxesse a informação. Tratava-se de uma tal Mrs. B. F. Morgan, que tinha ocupado o Quarto 618. O marido devia estar a chegar de um momento para o outro. O único quarto vago nessa parte do hotel era o Quarto 620, porque Mrs. Morgan tinha telefonado alguns dias antes a reservar o 618, acrescentando que era possível ter igualmente necessidade do 620 e perguntando se lho podiam guardar. Porém, no momento de se inscrever, tinha declarado, que mudara de opinião e que ficaria só com o 618.

- Chamo-me Donald Helforth - afirmei. - A minha mulher, que tem cerca de vinte e cinco anos, cabelos e olhos castanhos, virá ter comigo dentro de cinco ou dez minutos. Quando a vir chegar, conduza-a ao meu quarto, por favor.

- Sua mulher?

- Sim.

- Está bem.

- Mais uma coisa. Preciso de um revólver.

O seu olhar perdeu toda a amabilidade.

- De que género?

- Um revólver pequeno que caiba no bolso, de preferência automático. E quero uma caixa de balas de calibre correspondente.

- Para se usar revólver, é preciso autorização da polícia.

- Com essa autorização, basta entrar numa loja e comprar um por quinze dólares. Porque diabo julga que estou disposto a pagar-lhe vinte e cinco?

- Ah, o senhor paga vinte e cinco dólares?

- Foi o que acabei de dizer.

- Vou ver o que se pode fazer.

Não lhe dei tempo a ir contar quaisquer histórias ao empregado da recepção. Aproximei-me vivamente do balcão, peguei num livro que me estendiam, e escrevi: “Donald Helforth e esposa”, e dei um endereço falso.

- Quer um quarto de sete dólares por dia, Mr. Helforth? - perguntou o empregado.

- O que é que tem no sexto andar? Não quero um quarto muito alto; mas, quero um suficientemente alto para não sentir o ruído do trânsito.

O empregado examinou o registo.

- Pode ser o 675?

- Para que lado fica?

- Em direcção a Leste.

- Não tem nada virado a Oeste?

- Posso dar-lhe o 605 ou o 620.

- Como é esse 620?

- Tem duas camas e casa de banho. Quanto ao preço é sete dólares e meio por pessoa.

- Não podiam ser só sete dólares?

O empregado examinou-me com a vista e consentiu em fazer um favor especial.

- Bom - disse-lhe eu. - A minha mulher está a chegar com a mala; mas, quero pagar imediatamente.

Estendi-lhe o dinheiro, peguei no recibo e subi ao meu quarto, acompanhado pelo paquete.

- Não se consegue arranjar um revólver novo por vinte e cinco dólares - informou-me.

- Quem lhe disse que eu pretendia uma arma nova? Pode arranjar um qualquer, em segunda mão, onde lhe apetecer. Não pago mais nada. Nem tente conseguir maior lucro. Pode comprar um que valha, pelo menos, quinze dólares.

- Está compreendido; mas, isso é ilegal.

- Não.

- Como, não?

Tirei do bolso a credencial que Mrs. Cool me tinha dado.

- Sou detective particular.

Ele examinou a carta e pareceu ficar satisfeito.

- Está bem, patrão. Vou ver o que posso fazer.

- Despache-se depressa. Mas, não saia antes da chegada da minha mulher. Quero que a conduza aqui, sem demora.

- Está  bem - respondeu e afastou-se.

Pus-me a examinar o quarto; era igual a todos os quartos de hotel. Entrei na casa de banho. Esta fora instalada de maneira a poder ser utilizada, indiferentemente, pelos hóspedes dos quartos 618 e 620. Suavemente, prudentemente, apoiei-me sobre a maçaneta da porta de comunicação. Estava fechada à chave. Pondo-me à escuta, podia ouvir ruídos no quarto vizinho. Aproximei-me do telefone e pedi ligação para o apartamento de Sandra Birks.

- Está  tudo  a  correr  bem - informei. -  Segui-a  até  ao Hotel Perkins. Ocupou o Quarto 618 e inscreveu-se sob o nome de Morgan, dizendo na recepção que o marido estava a chegar. Nós tomámos o Quarto 620; Alma e eu inscrevemo-nos como sendo Mr. e Mrs. Helforth.

- Mr. e Mrs.? - exclamou Sandra.

- Sim. Alma queria estar presente.

- Presente, a quê?

- No momento da entrega dos documentos.

- Ah, sim, pois eu também quero estar presente. Tenho muita pena de ir perturbar a vossa lua de mel; mas, vou para aí, com Bleatie.

- Escute – gritei - se Morgan Birks aparece no momento em que a senhora chegar ao hotel, está tudo perdido. Ficamos sem qualquer possibilidade de lhe entregar a intimação.

- Já sei disso. Tomarei cuidado.

- É impossível. Você não pode prever se o encontra no átrio, no ascensor ou no corredor. Está prestes a chegar ao hotel e isso pode acontecer de um momento para o outro...

- O senhor não devia ter deixado Alma partilhar o seu quarto - respondeu, em tom cheio de dignidade. - Mais que não seja, Mr. Lam, arriscamo-nos a que o assunto seja falado no tribunal!

- Ora, não faço mais nada senão entregar os documentos.

- Receio que não tenha compreendido bem - teimou. - Não podemos de modo nenhum expor Alma à contingência de ter o nome publicado nos jornais. Vamos para aí imediatamente,  Bleatie e eu. Até já.

Sandra desligou.

Depois de despir o casaco, fui lavar a cara e as mãos, instalei-me num sofá e acendi um cigarro. Bateram à porta. Mal tivera tempo de me erguer, já o paquete tinha aberto a porta.

- É aqui, Mrs. Helforth.

Alma entrou e disse numa voz que se esforçava por tornar natural:

- Olá, querido, preferi estacionar o carro antes de subir. As bagagens já vêm.

Aproximei-me do paquete, que não se dava ao trabalho de esconder como o divertiam as tentativas de Alma se mostrar boa esposa.

- Vão chegar mais pessoas. Provavelmente, dentro de dez minutos. Preciso desse revólver antes de chegarem.

- Tenho necessidade de dinheiro porque...

Dei-lhe os vinte e cinco dólares.

- Despache-se e não se esqueça das balas. Embrulhe tudo num papel e não entregue o embrulho a mais ninguém senão a mim. Vá, toca a andar.

- Vou a correr - disse, precipitando-se para fora do quarto.

- Que revólver vem a ser esse? O que lhe pedi para comprar?

- Sim. Sandra e Bleatie estão a chegar. A sua amiga Sandra parece pensar que arruinei irrevogavelmente a sua reputação deixando-a vir para este hotel comigo. Ela chama a isto “partilhar o meu quarto”.

Alma pôs-se a rir.

- Pobre Sandra, tão ciosa de velar pela minha reputação, enquanto ela...

- Enquanto ela, faz o quê?  - insisti ao ouvir a sua voz apagar-se como um aparelho de rádio que se desliga repentinamente.

- Nada.

- Vá, diga.

- Não, não tenho nada a dizer.

- Gostava bastante de saber o que Sandra faz.

- Não tem importância.

- Ela não tarda aí. Gostava de ver o seu pescoço antes dela chegar.

- Porquê?

- Quero examinar essas equimoses - disse eu fazendo deslizar o meu braço em torno dos seus ombros e procurando entreabrir-lhe a blusa.

- Não, por favor - exclamou ela, procurando afastar-me; mas, mantive-a contra mim e desabotoei-lhe a gola. Ela deslocou a cabeça para trás e os nossos lábios reencontraram-se. A sua mão deslizou sobre o meu ombro e eu apertei-a nos meus braços. Os lábios de Alma estavam quentes e frementes. Desta vez, não estavam molhados por lágrimas. De súbito, ela afastou-se de mim e disse:

- Oh, Donald, que vai pensar de mim?

- Penso que você é uma pequena extraordinária.

- Normalmente, não sou assim. Mas, sentia-me tão só, tão abandonada, e desde que o vi...

Tornei a abraçá-la. Depois, abri suavemente a gola da blusa para examinar os ferimentos na garganta. Ela não se mexeu. Sentia a sua respiração calma e regular e via palpitar uma pequena veia no pescoço.

- Como era esse homem?

- Não sei. Já lhe disse que era de noite.

- Era alto e forte ou baixo e magro?

- Não era muito forte.

- Devia ter as mãos pequenas.

- Palavra, não sei nada.

- Repare, tem uns arranhões na pele e marcas de unhas. Tem a certeza de que não era uma mulher?

Alma repetiu com ar estupefacto:

- Arranhões?

- Sim, arranhões. A pessoa que a quis estrangular devia ter unhas compridas e pontiagudas. Não se trataria antes de uma mulher em vez de um homem?

- Não me parece... Não, creio que era  um homem.

- Mas, você não viu nada?

- Não.

- Não estava escuro como breu?

- Estava.

- E o agressor, homem ou mulher, não proferiu nenhuma palavra?

- Não.

- Pretendeu simplesmente estrangulá-la e você desembaraçou-se dele?

- Sim, empurrei-o.

- E não sabe, de modo nenhum, quem podia ser?

- Não.

- Nem a mais pequena indicação que nos possa ajudar?

- Não.

Bati ao de leve no seu ombro.

- Está bem, minha pequena. Eu apenas queria saber tudo.

- Eu... eu quero ir sentar-me - disse ela. -  Fico enervada cada vez que falo neste assunto.

Aproximou-se do sofá e deixou-se cair.

- Achava bem que me falasse no seu amigo.

- Está em Kansas City.

- Mas não lhe parece que ele fique por lá muito tempo?

- Se descobrir onde estou, talvez venha cá ter.

- Não lhe parece que já terá vindo?

- Impossível.

- No entanto, no íntimo, você pensa que talvez...

- Por favor, Donald - interrompeu. -Não posso mais.

- Está bem. Fiquemos por aqui. Abotoe a blusa. Sandra e Bleatie estão a chegar de um momento para o outro.

Vi os seus dedos a tremer, enquanto apertava a gola.

O sol da tarde iluminava o quarto e tornava-o quente e confortável. Não se sentia um sopro de vento, as janelas grandes, abertas, pareciam não existir senão para receber o ar quente, que irradiava das paredes do prédio vizinho.

O paquete bateu à porta e entregou-me um embrulho.

- Ouça, camarada - disse-me - não se meta em sarilhos com este objecto. É bom; mas, tive que mentir como os diabos para que o velho Mose o vendesse.

- Obrigado - respondi, tornando a fechar a porta, com um pontapé.

Abri o embrulho e encontrei um pequeno revólver (1) em aço azul de 32 mm. Nalguns pontos, a cor azul tinha desaparecido; mas, o cano estava em perfeito estado. Abri a caixinha das munições, enchi completamente o carregador e perguntei a Alma:

- Sabe servir-se deste engenho?

- Não.

- Aqui, tem uma mola de segurança, que você levanta com o polegar - expliquei. - Ali, há outra que se solta automaticamente quando se aperta o punho com a mão. Tudo o que tem a fazer é segurar o revólver com a mão direita, baixar esta pequena alavanca com o polegar e puxar o gatilho. Compreendido?

- Creio que sim.

- Vamos a ver.

Retirei o carregador, puxei a culatra para trás e depois para a frente, coloquei a mola de segurança em posição e estendi a arma a Alma, dizendo:

- Dispare contra mim.

Ela pegou no revólver.

- Donald - protestou ela - não diga isso.

- Aponte para mim e dispare. Vá, Alma, despache-se. Demonstre-me o que é capaz de fazer com esta arma.

Ela apontou o revólver e tentou puxar o gatilho. A pele embranqueceu em torno dos nós dos dedos e nada sucedeu.

- A mola de segurança! - gritei.

Ela baixou o polegar, ouvi o clique do percutor contra a câmara dos cartuchos e ela deixou-se cair sobre a cama como se os joelhos tivessem perdido toda a força. A arma escapou-lhe dos dedos e caiu sobre o tapete. Peguei no revólver, tornei a colocar o carregador, meti uma bala na câmara, observei se a mola de segurança estava levantada, retirei o carregador, e introduzi-lhe mais uma bala para substituir a que colocara na câmara. Depois, guardei a arma na mala de Alma. Ela olhava-me com olhos assustados, fascinada. Embrulhei a caixa de munições no papel e guardei-a na gaveta da cómoda. Em seguida, sentei-me na cama ao lado de Alma.

- Cuidado, Alma, o revólver está carregado. Não o dispare a não ser que seja obrigada a isso. Mas, se alguém tentar estrangulá-la outra vez, ao menos faça barulho com aquele objecto. Não necessita atingir ninguém. Descarregue simplesmente o revólver, disparando para o tecto. Isso bastará para assustar  qualquer  pessoa.

Ela estendeu-se sobre a cama e envolveu-me com o seu corpo, como um gato que quer brincar. Os seus braços apertaram-se em volta do meu pescoço, puxou-me para si e senti a ponta da sua língua procurar os meus lábios.

Cerca de uma hora depois, uma série de pancadas, precipitadas, contra a porta, anunciou a chegada de Sandra Birks e do irmão.

Abri a porta.

- Onde está Alma? - perguntou Sandra.

- Na casa de banho. Está a lavar a cara. Um pouco enervada,  chorou.

- E presumo - disse Sandra, olhando para a cama desmanchada - que você a esteve a consolar...

Bleatie lançou uma olhadela à almofada.

- São todas iguais! - resmungou.

- Cala-te, Bleatie - gritou Sandra. - Pensas tudo pelo pior. Para ti, não existe uma única mulher honesta.

- E tu, o que é que estavas a pensar?

- Viram Morgan Birks? - interrompi.

- Não - respondeu Sandra, satisfeita por mudar de conversa.

- Entramos pela porta de serviço e subornamos o porteiro para que nos trouxesse no monta-cargas.

Alma saiu da casa de banho.

- Ela não chorou nada! - observou Bleatie.

Sandra ignorou o comentário.

- O que se passa no quarto vizinho? - perguntou ela.

- Miss Sally Durke passou a ser Mrs. B. F. Morgan - respondi. - Espera Mr. Morgan que deve estar prestes a chegar. Virá, com certeza, antes da hora de jantar. É possível que mandem servir a refeição no quarto.

- Podíamos abrir a nossa porta e escutar - propôs Sandra.

- Parece-me que a senhora não tem uma ideia muito lisonjeira sobre a inteligência do seu marido - observei.

- Porquê?

- Descobriria que a nossa porta está aberta mal chegasse a meio do corredor. Não, teremos de estabelecer turnos para escutar na casa de banho.

- Tenho um plano muito melhor - interveio Bleatie.

Tirou do bolso uma pequena broca, entrou na casa de banho em bicos de pés e disse em voz baixa:

- Vou fazer um buraco na porta num canto da almofada.

- Esteja quieto com isso - respondi. - Vai fazer cair serradura no quarto  vizinho e despertar as suspeitas de Sally Durke.

- Tem coisa melhor a propor? -perguntou, secamente.

- Claro que sim. Vamos escutar na casa de banho, por turnos. Quando ouvirmos entrar alguém no quarto 618, irei lá. Se for Morgan Birks, entrego-lhe os documentos.

- É capaz de o reconhecer pelas fotografias? –perguntou Sandra.

- Sou. Examinei-as atentamente.

- E o que fará para entrar? - resmungou Bleatie.

-Telefono para o quarto, como se fosse da recepção a dizer que chegou um telegrama para Mr. B. F. Morgan e que um paquete o vai entregar.

- Isso é um truque velho como o mundo. Vão desconfiar e dirão para meter o telegrama por debaixo da porta.

- Não faz mal. Levarei com o telegrama um livro de registos demasiadamente grosso para poder passar por debaixo da porta. Farei tentativas sem conseguir. O telegrama será um telegrama a sério.

- Ora, eles abrem a porta meia dúzia de centímetros e quando o virem, fecham-lhe a porta na cara.

- Se me virem, não a fecham. Vou sair para procurar os acessórios necessários. Fiquem aqui e tomem as vossas posições. Não percam a cabeça, se Morgan chegar. Dentro de meia hora estou de volta. Ele não deve voltar a sair tão cedo.

- Não gosto da sua ideia. Parece-me muito crua...

- Tudo parece muito cru, em conversa. Repare nos truques dos gangsters que se lêem constantemente nos jornais. São tão grosseiros que parece impossível como as pessoas se deixam enganar. No entanto, todos caiem. É tudo questão de aparato...

- Não obstante, continuo a não gostar da ideia...

Achei inútil continuar a discutir com ele. Saí do quarto, deixando-o à vontade para explicar aos outros até que ponto o meu projecto era mau...

 

CAPÍTULO VI

Tinha decorrido uma hora quando voltei com um uniforme de paquete, alugado a um guarda-roupa, um telegrama que eu enviara a mim mesmo em nome de B. F. Morgan e um livro de registo com páginas quadriculadas, no qual enchera cinco ou seis páginas, com assinaturas falsas.

Bati devagarinho à porta do meu quarto. Alma Hunter veio abrir.

Sentada no sofá que ela enchia com risco de o fazer estalar, Bertha Cool saboreava um whisky. A seu lado, sobre a mesa, havia uma garrafa de Scotch um balde de gelo e um sifão. Sandra Birks caminhou para mim.

- Grande idiota! - exclamou. - Com as suas fantasias, estragou tudo.

- Para quê, tantas flores? - perguntei, lançando um olhar ansioso à directora da Agência Cool.

- Por Deus, fechem essa porta - disse Bertha Cool a Sandra. - Se querem questionar, podem fazê-lo à vontade; mas, não de maneira a pôr o hotel em estado de sítio. Entre, Donald.

Alma Hunter fechou a porta. Bleatie não se encontrava no quarto. Ouvi vozes na casa de banho, cuja porta estava fechada.

- O que é que houve, afinal? - perguntei.

- Foi-se embora sem dizer onde ia - gritou Sandra Birks.

- Levou consigo o original da intimação e as cópias, e Morgan já cá está há mais de uma hora. Chegou poucos minutos depois de você sair. Pode-se dizer que...

Apressei-me a interromper:

- Onde é que ele está?

- Espero que ainda cá esteja.

- E o seu irmão?

- Teve outra hemorragia violenta e tive de telefonar ao médico. Estão na casa de banho.

- Mrs. Birks telefonou-me a perguntar onde você estava, Donald - disse Bertha Cool. - Porque não manteve contacto com o escritório?

- Porque a senhora me disse que não me contratara para fazer relatórios; mas, sim para entregar papéis. Se me deixarem em paz, podem estar certos de que entregarei os documentos. Lamento que a tenham incomodado. É o resultado que dá mostrar-me delicado e ter prevenido Mrs. Birks. Pessoalmente, não tinha interesse nenhum em que ela cá viesse com o irmão.

- Está a fazer troça de nós - declarou Sandra Birks, em tom glacial. - Procura descartar-se da sua responsabilidade, acusando-nos.

- Não acuso ninguém.  Como o seu irmão escolheu a casa de banho para ter uma hemorragia, vou vestir este uniforme de paquete ao pé do guarda-fato. Acho aconselhável que se voltem todos de costas.

- Os documentos! - pediu Sandra. - Temos necessidade desses documentos. Depois de você sair, nada mais fizemos do que telefonar para todos os lados...

- Tenha calma. Já disse que entregaria os documentos e vou entregá-los. Têm a certeza de que é Morgan quem está no quarto ao lado?

- Temos. Ouve-se-lhe a voz através da porta da casa de banho.

Voltei-me para Bertha Cool.

- Há quanto tempo está aqui?

- Dez minutos, pouco mais ou menos. Dir-se-ia que o hotel estava a arder ao ouvi-los falar ao telefone! Mas, se Morgan Birks lhe escapa por entre os dedos, Donald, você  terá  de ouvir-me.

Não respondi nada. Abri o guarda-fato e como este não tinha luz, deixei a porta entreaberta, enquanto vestia o meu uniforme de paquete. Entretanto, ia ouvindo tudo o que diziam no quarto.

- Acho que és injusta, Sandra - protestava Alma. -Ele faz o que pode.

- O que pode não chega, na minha opinião – respondeu Sandra.

 Ouvi o glu-glu do whisky num copo, o barulho do sifão e a voz de Bertha Cool que dizia:

- Seja como for, Mrs. Birks, foi graças a Donald que a senhora veio cá parar. Se ele não lhe tivesse telefonado, não saberia de nada. Pagam-nos para entregar os documentos e não para lhe fazer mil e uma vontades. Se Morgan Birks se for embora e Donald não puder cumprir as suas funções, o caso é comigo. Se Morgan Birks ainda cá estiver e Donald entregar os papéis, obrigá-la-ei a pagar um suplemento por me ter forçado a vir até aqui a galope pondo de parte todas as outras minhas coisas. Até hei de incluir o preço do táxi.

- Pois olhe, se quer saber a verdade, acho que o meu advogado cometeu um grande erro ao recomendar-me a senhora. Lamento ter-me dirigido à sua agência.

- Sério? - respondeu ironicamente Bertha Cool no tom de voz de quem está a tomar chá e a discutir um romance recentemente publicado. -É lamentável, não é, minha querida?

Saí do guarda-fato a abotoar a gola do uniforme, peguei no registo e no envelope amarelo que continha o telegrama, e levantei o auscultador do telefone.

- Ligue-me para o Quarto 618 - disse à telefonista.

Passados instantes, ouviu-se outra voz feminina e declarei:

- Chegou um telegrama para Mrs. B. F. Morgan.

- Não estou à espera de nenhum telegrama – respondeu ela. - Ninguém sabe que estou aqui.

- Está bem, Mrs. Morgan, mas este telegrama trás um endereço muito esquisito: “Para entregar a Mrs. B. F. Morgan, Perkins Hotel, ou a Sally Durke.” Ora, nós não temos nos nossos registos nenhuma hóspede com o nome de Durke.

- Não sei do que se trata - respondeu; mas, sentia-se-lhe um tom menos seguro na voz.

- Vou enviar-lho e a senhora verá do que se trata. Abra-o se desejar e veja se o conteúdo lhe é destinado. Tem esse direito! Paquete, eh, paquete. Telegrama para o 618.

Desliguei. Bertha Cool deitou mais gelo no copo.

- Era bom que não perdesse tempo, Donald. Ela é capaz de telefonar para a recepção a confirmar o telefonema.

Meti o livro de registos debaixo do braço, abri a porta e passei para o corredor. As três mulheres olhavam-me, sem dizer palavra. Aproximei-me da porta 618 e bati. Uma voz feminina falava ao telefone. Gritei: “Telegrama!” A voz calou-se. Depois, ouvi dizer do outro lado da porta:

- Meta por debaixo da porta.

Introduzi parte do livro de registos por debaixo da porta de maneira a permitir entrever o canto do envelope amarelo que tinha colocado entre as páginas.

- Não posso - disse eu. - É preciso assinar, e o livro de registos não passa.

- Um instante, vou abrir a porta.

Deram a volta à chave, entreabriram a porta ligeiramente e examinaram-me com ar suspeito.

Mantive-me de cabeça baixa. Quando ela viu o meu uniforme, o telegrama e o livro, decidiu-se a abrir mais.

- Onde é que assino? - perguntou.

- Aqui! - respondi, estendendo-lhe um lápis.

Ela trazia um robe de quarto, cor-de-rosa transparente e estava pouco vestida. Lancei uma olhadela pela fresta da porta e como não via nada, empurrei e entrei. Ela não me reconheceu imediatamente. Mas, ao ver o meu rosto em plena luz, gritou, de repente:

- Morgan, olha. É o detective!

Morgan Birks, com um fato cinzento aos quadrados, estava estendido em cima da cama a fumar um cigarro. Avancei para ele.

- Aqui tem uma intimação respeitante ao processo Sandra Birks contra Morgan Birks.

Ele soprou tranquilamente várias fumaças para o tecto.

- Que grande patife, você é! - afirmou sarcástico.

Sally Durke precipitou-se na minha direcção com o robe a flutuar atrás dela. Abrira o envelope amarelo de onde tirara um impresso em branco. Atirou violentamente o livro de registos para o sobrado, rasgou o telegrama em dois e lançou-me os bocados à cara.

- Seu malandro, enganou-me bem.

- Que mais há? - perguntou Morgan Birks.

- Mais nada.

- Não há mandato de captura?

- Não. Trata-se de uma questão civil.

- Está bem, pequeno. Boa sorte.

- Muito obrigado. Mas, o melhor é chamar o seu cão de guarda. Não gosto de o ouvir ladrar! - declarei, designando Sally.

No momento em que ia a sair a porta, esta abriu-se toda para trás, diante de Sandra que se precipitou no quarto. Alma Hunter procurava segurá-la; mas, em vão. Atrás, vi aparecer a forma imponente de Bertha Cool.

- Estão cá todos! - disse Morgan Birks, sem se mexer da cama.

- Crápula! Apanhei-te desta vez! Aqui está a tipa a quem dás o dinheiro que devias levar para casa. É assim que respeitas os laços do matrimónio.

Birks retirou o cigarro da boca, bocejou e respondeu:

- Sim, minha querida, apresento-te Sally Durke. Lamento que não te agrade. Porque não trouxeste o teu amigo médico?

A reunião ficaria mais completa.

- Eu... eu... eu... - balbuciou Sandra.

Birks apoiou-se sobre um cotovelo. Observei os seus traços angulares, o seu corpo comprido e magro, os seus dedos afilados, os cabelos negros e brilhantes penteados para trás.

- É inútil queimares mais fogo de artifício, Sandra. Queres o divórcio; mas, não o podes desejar mais do que eu. Portanto, vai para o diabo que te carregue!

Sandra Birks voltou-se para Bertha Cool.

- Só queria que visse o género de marido que tenho. Observe-o bem, com a sua amiguinha a andar, à volta, quase nua.

Procurou puxar o robe que a outra tinha vestido. Sally Durke envolveu-se nele; mas, Sandra levantara-o o suficiente para lhe descobrir as pernas nuas. Sally desatou a chamar-lhe nomes e atirou-lhe um soco.

Com gesto autoritário, Bertha Cool segurou Sandra por um braço e empurrou a loura furiosa.

- Muito obrigada - gargalhou Morgan Birks. - Isso evita que tenha de me levantar. Valha-nos Deus, Sandra, farias melhor se te dominasses. Também, já me enganaste duas vezes, mesmo nas minhas barbas.

- É mentira! - gritou, lutando contra o braço de Bertha Cool.

Alma Hunter aproximou-se.

- Bem, Sandra. Não discutas. Os documentos já estão entregues.

Morgan Birks esmagou o cigarro num cinzeiro que estava ao lado da cama e disse para Sally Durke.

- Lamento que minha mulher seja desta força, meu amor; mas, é assim mesmo, não consegue dominar-se.

- Já entreguei os documentos - disse eu a Bertha Cool - estou pronto a redigir o atestado conforme. É a única coisa que me falta fazer.

Bertha Cool empurrou Sandra Birks para o corredor e a porta bateu atrás de nós. Voltámos para o quarto 620.

- A senhora não me tinha prevenido que vinha disposta a fazer uma cena - observei a Sandra.

- Não pude conter-me. Queria apanhá-lo em flagrante delito.

A porta da casa de banho abriu-se e o dr. Holoman saiu sem casaco, de mangas arregaçadas e a camisa salpicada de água e de sangue.

- Que barulho foi aquele? - perguntou. - Não ouvi falar num médico?

- Ouviu sim, e de que maneira! - respondeu Bertha Cool.

- Devo dizer que o advogado de Mrs. Birks não deve ficar especialmente satisfeito quando souber que o senhor esteve aqui.

- Teve de vir por causa de Bleatie - protestou Sandra. - Como está ele, Archie?

- Daqui a bocado está bem. Mas, vi-me atrapalhado para estancar aquela hemorragia. Ele estava muito enervado. Vai precisar de, pelo menos, três dias de calma absoluta.

Voltou para a casa de banho e fechou a porta.

- Que animal, este Morgan! - declarou Sandra. – Sempre a fazer as mesmas insinuações. Tenho-lhe sido absolutamente fiel. Nunca olhei para outro homem depois que casei. Chegou ao ponto de, até, voltar o meu irmão contra mim.

Entrei no guarda-fato para despir o uniforme e vestir o meu fato.

Sandra aproximou-se da casa de banho e gritou:

- Está tudo resolvido, Bleatie. Já lhe entregaram os documentos.

Ouvi a voz de Bleatie do outro lado da porta resmungar:

- Cala-te... ele pode ouvir.

De súbito, longínqua; mas, perfeitamente audível, soou a voz de Morgan Birks vinda do quarto vizinho.

- Olá, Bleatie, com que então é a ti que tenho a agradecer isto tudo. Já devia calcular.

Bleatie principiou a desfazer-se em protestos.

- Estás doido, Morgan - gritou, com voz febril. – Tenho estado sempre do teu lado. Tenho aqui no bolso uma coisa para te dar. Abre a porta. - Fez-se um silêncio de alguns minutos. De súbito, Bleatie precipitou-se no quarto. Estava coberto de sangue, com a camisa e o casaco todos manchados.

- Minha estúpida! - gritou para a irmã, através das ligaduras. - Quem te mandou gritar daquela maneira? Não sabias que ele podia ouvir?

- Lamento muito, Bleatie.

- Vai para o inferno com os teus lamentos. Nunca fizeste nada na vida de que te lamentasses, a não ser que ficasses prejudicada. Agora que os documentos estão entregues, não te ralas nada comigo. Mas, está descansada, farei todos os possíveis para que não possas enrolar Morgan.

Correu para o corredor na direcção da porta do Quarto 618. Bateu com insistência. Como ninguém respondesse, disse, em tom suplicante.

- Morgan, abre. É Bleatie, quero falar contigo.

Bertha Cool esvaziou o seu copo e sorriu com ar satisfeito.

- Venha, Donald. Vamos para o escritório.

Olhei para Alma, que me fez sinal de que compreendia a situação.

- Tenho que ir jantar com uma pessoa. Assuntos a tratar... eu...

Bertha Cool não me deixou terminar a frase.

- Você vai, mas é jantar comigo, Donald - declarou em tom de quem não admitia réplica. - Temos um caso para examinar. É para mim que você trabalha. Se Alma Hunter tem precisão da minha agência para outro assunto, está muito bem; mas, eu cobrarei o tempo que ela o ocupar. Este está pronto. Venha!

Tirei um cartão do bolso, rabisquei o número do telefone da minha pensão e estendi-o a Alma.

- A minha patroa é que manda - murmurei. -Mas se precisar de mim, telefone para este número.

Antes de sair,  Bertha  Cool declarou a  Sandra Birks:

- O  whisky faz parte das despesas. Vou comunicar à gerência do hotel que lhe apresente a factura. Venha, Donald.

No corredor, o dr. Holoman procurava acalmar Bleatie.

- A hemorragia vai recomeçar, se continua com isso. É preciso repousar.

Bleatie empurrou-o brutalmente.

- Abre, Morgan - repetia. - Não sejas idiota. Tenho em meu poder um papel que te pode ser útil. Durante toda esta história, nada mais tenho feito do que  defender os teus interesses.

O dr. Holoman afastou-se rapidamente. Bertha Cool quase chocou com ele ao dirigir-se para o ascensor. Ele segurou-a por um braço com ar desesperado.

- Não quer ajudar-me a trazê-lo para o quarto? Não tarda que esteja com outra hemorragia - gemeu.

- Não! - respondeu Bertha.

E voltando-se para mim:

- Vamos, venha Donald.

Quando chegámos ao passeio, perguntei-lhe:

- É preciso começar a ocupar-me do novo caso esta tarde?

- Qual novo caso?

- Esse de que me quer falar ao jantar.

- Ora, não há nenhum caso novo, nem sequer jantar.

Quando viu a expressão do meu olhar, prosseguiu:

- Vi que estava a simpatizar demais por essa tal Alma. Não gosto disso. Ela estava envolvida num caso que já terminámos. A nossa missão está cumprida. Esqueça-a. E já que está aqui, Donald, chame-me um táxi. Arranje maneira de o fazer parar junto ao passeio, porque não tenho físico para chegar ao meio da rua e subir para um carro.

Fiz sinal a um táxi. O motorista olhou para Bertha Cool com olhar desconfiado e não pareceu mais disposto do que esta a esperá-la no meio da rua. Encostou o carro ao passeio. Abri a porta e tirei o chapéu.

- Então, você não vem, Donald? -perguntou, espantada.

- Não, tenho que fazer.

- O quê?

- Tenho que perguntar a Alma Hunter quando é que quer jantar comigo.

Sustive o seu olhar.

- Tanto pior para si, Donald, se não liga importância aos bons conselhos que lhe dão - disse, no tom de mãe de família que repreende um dos seus filhos.

- Talvez - respondi.

Bertha Cool recostou-se para trás.

- Baixe esse banquinho, Donald. Quero estender as pernas. E não leve as coisas para o lado trágico. Boa noite.

Levantei o chapéu, pelo menos, a dez centímetros da cabeça, enquanto o táxi se afastava. Depois, dirigi-me para o hotel e choquei com um indivíduo que se colocara precisamente na minha frente.

- Desculpe - disse-lhe.

- Onde vai com tanta pressa? - perguntou-me.

- Que tem com isso? - respondi, procurando abrir caminho.

Mas, um outro indivíduo que se encontrava a dois passos surgiu de súbito e plantou-se também diante de mim.

- Calma, Meio-Quartilho.

- Que vem a ser isto?

- O Chefe quer falar consigo.

- Quero que o Chefe tenha muita saúde.

O primeiro dos desconhecidos era alto e magro, com um nariz agressivo e olhos duros. O outro tinha ombros largos, cintura estreita e um pescoço de touro. O seu nariz parecia esborrachado sobre a cara e as orelhas faziam lembrar uma couve-flor. Tinha prosápias a falar e, segundo tudo indicava, gostava de ouvir a sua própria voz.

- Oh! Oh! - fez ele. - O nosso amigo gosta de armar em forte. Quer que o Chefe tenha muita saúde? Vamos lá a saber, será preciso ir dizer ao Chefe que não lhe dás a honra de lhe ir falar ou queres colaborar connosco?

- Colaborar, em quê?

- Responder às perguntas que ele fizer.

- A propósito de quê?

- De Morgan Birks.

Observei-os um instante e voltei-me sub-repticiamente de maneira a observar a saída do hotel. Sandra Birks e o irmão podiam aparecer de um momento para o outro. Podiam convencer-se que lhes tinha preparado uma armadilha ou os tinha traído. Fiz um sorriso pálido e anunciei:

- Está bem, vamos lá.

- Assim é melhor! - resmungou o homem do nariz esborrachado, lançando um olhar inquiridor pela rua fora.

Uma enorme conduite saiu do meio do trânsito e os dois homens pegaram-me cada um pelo seu braço e fizeram-me caminhar para o carro que reduziu a velocidade sem parar. Abriram uma porta, empurraram-me para dentro e instalaram-se a meu lado.

- Pronto, John, toca a andar - disse o mais alto para o motorista.

Só quando começámos a chegar aos bairros residenciais é que principiei a desconfiar.

- Onde me levam? - perguntei.

- Escuta, Meio-Quartilho - respondeu o desconhecido, que se chamava Fred. - Vamos pôr-te uma venda nos olhos. Será melhor para que não vejas demasiado. Isso faz mal à saúde!

Atirei-me a ele. Recebeu o meu soco no queixo como se não tivesse sentido nada. Do bolso, tirou um lenço que me colocou sobre os olhos e atou à volta da cabeça. Debatia-me o mais violentamente possível. Mãos agarraram as minhas e senti o aço de um par de algemas em volta dos meus pulsos.

O automóvel principiou a dar voltas, sem dúvida, para me fazer perder o sentido de orientação. Passados momentos, senti que o carro rodava sobre terreno mais macio que uma avenida particular. Ouvi abrir-se uma porta, que depois se fechou e retiraram-me a venda.

Estava numa garagem. Fizeram-me subir uma escadinha, atravessar uma cozinha, depois uma casa de jantar e introduziram-me numa sala.

Resolvi fazer o jogo deles.

- Onde estamos? - perguntei. - Julgava que me iam conduzir ao Posto Central.

- Qual Posto Central?

- Para ver o Chefe.

- Vais vê-lo.

- Aqui?

- Sim, mora nesta casa.

- Vocês não são da polícia?

Olharam-me estupefactos.

- Polícias? Vejamos, meu pequeno, de onde te vem essa ideia? Nunca dissemos semelhante coisa. Apenas declarámos que o Chefe te queria falar. O Chefe é a sua alcunha porque ele é um grande “magnate”.

Compreendi ser inútil continuar a fingir que não percebia nada. Mantive-me em silêncio.

- Senta-te - propôs o mais corpulento. - O Chefe está a chegar. Ele fará as perguntas que pretende e depois voltamos a levar-te à cidade, como se nada tivesse acontecido.

Sentei-me numa cadeira e esperei. No corredor, ouviram-se passos rápidos e nervosos, e vi entrar, com a testa a luzir de transpiração, um indivíduo pequeno e gordo, que avançava com o ventre projectado para a frente, mas com a agilidade e a rapidez de um bailarino profissional.

- O Chefe - anunciou um dos meus guardas.

O Chefe sorriu e inclinou a cabeça.

- Quem é este, Fred?

O homem do nariz esborrachado apresentou-me:

- É o tipo que trabalha com a mulher que dirige uma agência de detectives. Cool chama-se ela. Foram contratados para entregar a intimação da acção de divórcio a Morgan Birks. Andava a vaguear pelas proximidades do Perkins Hotel.

- Ah, sim, já me lembro - disse o gorducho, com um sorriso amável. - Desculpe não o ter reconhecido. Como se chama?

- Lam, Donald Lam.

- Muito prazer, Mr. Lam. Foi muito amável em ter vindo, muito amável. Ora, diga-me, Mr. Lam, o senhor trabalha para... Como se chama ela, Fred?

- Cool. Agência Bertha Cool.

- Ah, sim. Há quanto tempo?

- Não há muito.

- Esse serviço agrada-lhe?

- Por enquanto...

- Sim, sim. Concordo que é uma boa oportunidade para um jovem que pretende dar provas de inteligência, iniciativa e decisão. Demonstrou bastante discernimento nesta conjuntura; sim, de facto, muito discernimento em escolher esta profissão. O senhor tem um ar vivo e inteligente.

- Muito obrigado.

A cabeça do meu interlocutor baloiçou para a direita e para a esquerda sobre a nuca espessa, onde os seus cabelos crespos oscilavam como os pêlos de uma escova flexível.

- Quando viu, pela última vez, Morgan Birks?

- Costumo apresentar os meus relatórios a Mrs. Cool - respondi.

- Está bem, está bem. Tem toda a razão. Queira desculpar-me.

A porta abriu-se e entrou uma mulher excepcionalmente alta. Não era gorda, mas sim grande e forte, ombros largos, ancas bem marcadas, braços muito musculosos.

- Oh, aí vem a minha mulherzinha - disse o gorducho.

- Que simpática é em vir ter connosco. Madge, Mr. Lam estava a falar-nos de Morgan Birks. Meu amorzinho, deixa-me apresentar-te Donald Lam. É detective da agência... Como se chama a agência, Fred?

- Agência de Investigações Cool.

- É isso mesmo. Trabalha na Agência de Investigações Cool - repetiu o gorducho. - E a directora, como se chama, Fred?

- Bertha Cool.

- É isso, é isso mesmo, Bertha Cool. Senta-te, meu amor, e vejamos a tua opinião. Mr. Lam, apresento-lhe a minha mulher.

Eu sabia que estava metido num grande sarilho. No entanto, era de opinião que um homem não perde nada, às vezes, em ser delicado. Levantei-me e fiz uma vénia.

- Muito prazer em conhecê-la - declarei, esforçando-me por parecer sincero.

Ela nada respondeu.

- Sente-se Lam, sente-se  - convidou o gorducho. – Deve ter tido um dia fatigante. Vocês, os detectives, têm muito que andar. Vejamos, onde íamos? Ah, sim, encarregaram-no de entregar certos documentos a Morgan Birks, não foi?

- Era melhor o senhor falar com Mrs. Cool para saber essas coisas.

- Cool... Cool? Ah, sim, a senhora que dirige a Agência. Excelente ideia, Lam; mas, desculpe-nos, temos um bocado de pressa e não sabemos onde encontrá-la. Já que aqui está, você pode com certeza dar-nos esta informação.

Não respondi nada.

- Escute, Mr. Lam - disse o gorducho. - Espero que não se mostre obstinado. Ficaria profundamente desolado.

Permaneci em silêncio. O homem do nariz esborrachado deu um passo em frente.

- Um momento, Fred - disse o Chefe. - Não sejas impulsivo. Não o interrompas, nem lhe dê pressa. Dá-lhe o tempo que ele quiser. Comecemos pelo princípio, Mr. Lam.

Em tom amável, perguntei:

- Podia dizer-me exactamente o que deseja saber e porque deseja saber?

- Ah, parece que nos começamos a entender – declarou o Chefe com um largo sorriso. - Responderemos a todas as suas perguntas, se responder às nossas. Bem vê, Mr. Lam, somos comerciantes. Estamos associados com Morgan Birks e Morgan Birks tem certas... digamos, certas obrigações para conosco. Não queremos que ele as esqueça, e queremos recordar-lhas. O senhor esteve encarregado de lhe entregar certos documentos. Bem entendido, não queremos interferir nos seus assuntos, não é verdade, John? Não é verdade, Fred? Não, por nada desta vida. Os rapazes concordam comigo. Mas, uma vez terminado o seu trabalho, queremos saber onde se encontra Morgan Birks.

- Bom, não sei porque não hei de ajudá-los... se Mrs. Cool autorizar. É ela a minha patroa, compreendem; nada posso fazer sem a sua autorização.

- Deixe o Fred amolecê-lo um pouco, chefe – observou John. - Pelo que vejo, isto está a aquecer. Estavam todos lá, Sandra Birks, o irmão que veio do Leste e que fracturou o nariz num acidente de automóvel, um pássaro que disse na recepção do hotel que era médico e que se chamava Holoman, Alma Hunter, Bertha Cool e este tipo. Ia a entrar, de novo, no hotel, quando o agarrámos.

O Chefe suspirou:

- Era melhor responder, Mr. Lam. É verdadeiramente muito importante para nós. E os meus rapazes, às vezes, são impulsivos... Ninguém o deplora mais do que eu; mas, bem sabe como estas coisas são.

-Penso que Mrs. Cool teria muito prazer em cooperar convosco, se se lhe dirigissem - respondi. -Calculo que ela tenha informações que lhes interessem. A sua profissão é recolher informações para as vender aos clientes.

- Talvez tenha razão, é uma ideia - disse o gordo. – Preciso examinar o assunto com a minha mulherzinha. Que te parece, meu amor? - A dona da casa permaneceu perfeitamente impassível. Observou-me com os seus olhos duros e glaciais como se eu fosse um espécimen sob um microscópio.

- Amoleçam-no - ordenou  ela.

Fred estendeu o braço e pegou-me pelo nó da gravata que principiou a torcer entre os dedos até me estrangular. Puxou a gravata, ergueu-me da cadeira como se eu não pesasse nada e, com a palma da mão direita, esborrachou-me o nariz como uma prensa. Os meus olhos encheram-se de lágrimas.

- Senta-te - grunhiu.

Sob a pressão da sua mão, caí sobre a cadeira como um saco.

- Levanta-te - disse - e a mão que puxava a gravata tornou a levantar-me. Com as duas mãos, procurei proteger o nariz magoado. Virou-se ligeiramente e desferiu o punho contra a minha cara. Tive a impressão de que a cabeça estalava.

- Senta-te!

- Levanta-te!

- Senta-te!

- Levanta-te!

- Senta-te!

- Levanta-te!

Recuou um passo e largou-me.

- Vá, fala. E não te demores.

O seu rosto mantinha-se perfeitamente inexpressivo. Parecia aborrecer-se extraordinariamente por ter de ”amolecer qualquer pessoa”. No entanto, desempenhava o seu papel conscienciosamente.

- Tens razão - opinou o gordo, com um sorriso amável.

- Fred tem sempre razão, Mr. Lam. Quando ele diz levanta-te, é preciso uma pessoa pôr-se de pé, quando ele diz senta-te, é necessário sentar; agora, que o aconselha a falar, tem de falar.

Peguei no meu lenço. O sangue escorria abundantemente do meu nariz.

- Isso não é nada - disse o chefe - qualquer pequeno vaso sanguíneo que rebentou. Logo que tenha falado, conduzi-lo-emos à casa de banho. Fred ajudará a fazer o tratamento. Agora, diga-nos quando viu Morgan Birks, pela última vez.

Sub-repticiamente, apoiei a perna contra o pé da cadeira.

- Vá para o diabo - retorqui.

O Chefe reteve um gesto de Fred.

- Um minuto, Fred. Não te mostres muito impulsivo. Vejamos o que diz a minha mulherzinha. Então, meu amor, que te parece?

- Continua, Fred - disse ela.

Fred estendeu a mão na direcção do nó da minha gravata. Saltei da cadeira furiosamente e, com toda a minha energia, procurei atingi-lo no estômago. Girei sobre as ancas a fim de pôr em acção todos os músculos do meu corpo ao desferir um directo. O meu punho descreveu uma linha recta, com a força de um pistão. Mas, qualquer coisa aconteceu ao meu braço direito. Tornou-se subitamente inerte. Tinha recebido um “uppercut” na ponta do queixo. Senti-me elevado e projectado no ar. Luzes brilhavam diante dos meus olhos, tinha vontade de vomitar. Procurei continuar a ver com clareza; mas, a única coisa que vi foi um punho que avançava para mim. Antes que pudesse fazer o mínimo movimento, embatia-me contra a cara. Ouvi uma voz feminina que parecia muito distante a dizer:

- É melhor dar-lhe nos flancos, Fred.

Um objecto sólido, sem dúvida a biqueira de um sapato, enfiou-se-me no estômago, dobrou-me em dois e apercebi-me que a coisa dura contra a qual a minha cabeça acabava de embater era o sobrado.

O gorducho, cujas palavras mal percebia sob a perturbação que me enchia a cabeça, interveio:

- Não exageres, Fred. Basta, por agora. Não te esqueças que queremos que ele fale.

John debruçou-se sobre mim.

- Estamos a perder o nosso tempo. Ele tem os documentos e estava tudo preparado para os entregar.

- Onde estão esses documentos? - perguntou a mulher.

- Na algibeira de dentro do casaco.

- Procurem-nos.

Fred pegou-me pelo colarinho e ergueu-me do chão tão bruscamente que o meu pescoço dorido descaiu para trás e julguei que a cabeça se me despegava do corpo. Senti mãos a vasculharem-me as algibeiras do casaco, uma por uma.

- Ele tem a intimação original. As cópias desapareceram.

- Cambada de idiotas!  - exclamou a mulher encolhendo os ombros. - É que já as entregou.

- Impossível! - respondeu Fred.

- Porquê?

- Sei que as tinha no Perkins Hotel. Alma Hunter veio juntar-se-lhe cinco minutos depois. A seguir, chegaram Sandra Birks e o irmão. Mais tarde, quando o vi sair, ele tirou os documentos do bolso para verificar se estavam em ordem e guardou-os no bolso de dentro do casaco. Foi ao correio mandar um telegrama. Não conseguimos saber a quem, as empregadas do telégrafo recusaram-se a dizer-nos. Não se mostraram interessadas por dinheiro. Ameaçaram chamar a polícia. Seguimo-lo depois a um guarda-roupa, onde alugou um uniforme de paquete, após o que tornou a entrar no hotel. Demorou-se cerca de vinte minutos e saiu acompanhado pela tal Bertha Cool.

- Quando é que Bertha Cool chegou ao hotel?

-Não a vimos chegar. Jerry estava de serviço no hotel. Disse-nos que ela entrara dez minutos antes deste franganote voltar com o fato de paquete.

Lamentavelmente, estirado no chão, tinha a impressão de flutuar num oceano de dores. Cheio de náuseas, tinha vontade de vomitar, mas em vão. Sentia escorrer qualquer coisa quente pelo rosto; era sangue, sabia-o, mas não tinha força para reagir.

-Telefonem a Jerry - ordenou a mulher. - digam-lhe para passar o hotel a pente fino. Morgan Birks está lá.

- Morgan Birks não pode lá estar - insistiu Fred. –Estivemos a vigiar o hotel. Jerry está a trabalhar lá há uma semana. Birks não apareceu por ali ainda... No entanto, é lá que Morgan se vai encontrar com a amiga.

- Vocês seguiram este rapaz ou caçaram-no no Perkins? - perguntou ela.

- No Perkins.

- E estiveram sempre a vigiar minuciosamente o hotel?

- Estivemos.

- Então, foi lá que ele entregou os documentos.

Alguém se debruçou para mim e segurou-me o nariz entre dois dedos. Quase que me convenci que o meu apêndice lhe ficaria na mão.

Com o seu ar aborrecido, Fred ordenou:

- Fala!

- Deixa-o em paz! - disse a mulher.

Recebi uma pancada debaixo da nuca que me fez latejar ainda mais o crânio.

- Vá, confessa - disse Fred - que entregaste os papéis.

O telefone tocou.

- Está lá - disse uma voz - quem fala?... Jerry?... Sim. Escuta, Jerry, estamos convencidos de que ele está no hotel... Garanto-te que ele... Evidentemente, está aí sob qualquer nome falso... Anda escondido... Passa revista a todos os quartos... Vá, procura bem.

Desligou.

- Sandra Birks e o irmão saíram há bocado acompanhados por Alma Hunter e pelo tipo que diz que é médico. Parece que o irmão teve uma hemorragia e que chamaram o médico de urgência para o tratar. É tudo o que consegui saber.

Voltei lentamente a mim. Ouvi a mulher a dizer:

- Bem, já sabem o que aconteceu: ele apresentou os documentos, entregou as cópias e guardou o original para redigir o atestado.

O Chefe inclinou-se para mim.

- Não lhe interessa ganhar algum dinheiro, Mr. Lam?

Mantive-me em silêncio. Era mais simples do que responder às perguntas.

- Se estivesse disposto a ganhar uns cobres, digamos quinhentos dólares, ou mesmo seiscentos, bastava arranjar maneira de podermos convidar Mr. Birks a vir-nos visitar aqui a casa, qualquer dia destes.

- Não te canses - interrompeu a mulher, com voz tranquila. – Não se consegue nada desse diabo.

- Ouviram o que disse a minha mulherzinha - disse o gordo. -Ela deve ter razão. Isso não vai lá muito bem, Lam, pois não?

De facto, não me sentia nada bem. Quanto mais me recompunha, mais mal me sentia. O primeiro “uppercut” tinha-me deixado semi-inconsciente. Agora, estava a voltar a mim e sentia todos os golpes que recebera.

O telefone voltou a tocar.

- Responde, Fred - disse o chefe.

- Está lá, diga...

Escutou durante mais de dois minutos. Depois, exclamou:

- É o diabo em pessoa! Não desligues.

Voltou à sala.

- Tenho notícias. É melhor sairmos, preciso de dizer-lhe duas palavras.

- Vigia-o, John - ordenou o chefe.

Ouvi ruído de passos e permaneci imóvel, absorvido por todos os meus males. Passados instantes, Fred voltou ao telefone e declarou:

- Está bem, eu próprio tratarei disso. Adeus.

Aproximaram-se de mim.

- Leva-o à casa de banho, Fred - disse o chefe. - E lava-o.

Fred transportou-me como se eu fosse uma criança.

- Tens mau aspecto, Meio-Quartilho - disse-me ele.

- Mas não deves ter nada de grave a não ser o nariz fracturado. Isso apenas dói durante algum tempo e mais nada. Vamos lá lavá-lo com um pouco de água.

Sentou-me desajeitadamente sobre o banco da casa de banho, encheu de água a bacia do lavatório, despiu-me o casaco e passou-me algumas toalhas molhadas pela cara.

O meu cérebro começou a funcionar mais claramente. Deixei de ver a dobrar.

- Esta gravata está uma porcaria - declarou. - O chefe vai dar-te uma das dele. E esta camisa. Está absolutamente inutilizada. Temos de arranjar outra. Quanto ao casaco, basta um pouco de água para o limpar. Senta-te aqui sossegado. Não te mexas.

Tirou-me a camisa e passou-me uma esponja molhada em água fria pelo corpo. Principiei a sentir-me melhor.

A mulher entrou na casa de banho, dizendo:

- Calculo que esta camisa lhe sirva.

- Também é precisa uma gravata - disse Fred.

- Vou buscar.

- E também os sais e um frasco de álcool. Dentro de cinco minutos, está como novo.

A mulher voltou com os sais, o álcool, toalhas e uma gravata. Fred tratava de mim como o assistente de um pugilista entre os assaltos de um combate. Enquanto trabalhava, ia falando:

- O espantoso é que não há nenhum ferimento. Durante algum tempo terás o nariz vermelho e dorido. Não lhe toques nem tentes assoar-te. Agora, um pouco de álcool na nuca. Pronto, bravo. Vamos dar umas massagens nesse peito. Faz-te doer? Meu velho, tem paciência. Não há nada partido, só tens contusões. Não devias ter tentado bater-me, Lam. Quando quiseres dar um directo com a direita, não prepares um “crochet”. E não recues a mão antes de enviar o punho para a frente. É pena estares tão magoado, porque assim não ligas importância nenhuma à minha lição. Mas, posso mostrar-te como se dá um directo e qual o caminho que o punho deve seguir, e, em dez minutos, ficarias oitenta por cento mais habilitado a bateres-te. Tens o que é preciso: coragem, mas és muito leve para encaixar directos. Devias aprender a evitá-los. Para isso, é preciso usar as pernas. Um pouco mais de álcool, aqui. Já não sangra. Não há nada melhor do que a água fria. Ficas com o cabelo molhado durante algum tempo; mas, isso não tem importância. Agora, vamos à camisa, já está. E a gravata. O desenho é um bocado garrido demais para este fato; mas, não faz mal.

- Dá-lhe um copo de whisky, Fred - disse a mulher.

- É melhor brandy. Vai ver como o brandy o põe de pé num instante. Traga-lhe um copo dessa garrafa que tem setenta e cinco anos. Não tenha receio de exagerar a dose. Ele está um pouco combalido e é preciso qualquer coisa para o reanimar.  É pequeno demais para aguentar golpes tão violentos. Aquele directo que lhe apontei ao queixo, foi uma obra prima. Como vai isso, camarada? Esses dentes? Estão todos inteiros? Naturalmente a boca está dorida. Isso também são uns dias.

Madge voltou com um copo cheio.

- É do que o Chefe prefere - disse-me Fred. - Gosta de beber pequenos goles depois das refeições. Mas, tu vais bebê-lo todo de uma vez; O chefe diz que é um sacrilégio fazer-se isto; mas, é o que tu precisas. Vamos, camarada.

Bebi o brandy. Era untuoso como um xarope. Deixou um rastro escaldante desde a boca até ao estômago e provocou um calor irradiante que me chicoteou os nervos.

- Pronto, a pé - disse Fred. - Veste o casaco. Vamos para o carro. Onde queres que te leve, camarada?

Estava fraco e tonto. Indiquei-lhe o endereço da minha casa.

- Onde é que isso fica?

- É uma pensão.

- Está bem. Vão levar-te lá.

Vi-o trocar olhares com a mulher. Ajudou-me a levantar e entrei no quarto contíguo. O chefe caminhou para mim com o rosto iluminado por um sorriso radioso:

- Ora, muito bem. Está com muito melhor aspecto. E essa gravata fica-lhe muito bem. Sim, senhor, em si fica-lhe às mil maravilhas. Foi a minha mulher que ma ofereceu no Natal do ano passado.

Atirou a cabeça para trás, desatou a rir, depois calou-se e pegou-me na mão.

- Você foi maravilhoso! - disse-me, sacudindo-me a mão. - Magnífico! Tem coragem para dar e vender, meu rapaz! Tem estofo. Gostava de ter colaboradores como você. Não está disposto a dizer nada, pois não?

- Não.

- Não o censuro, meu rapaz, não o censuro nada.

Continuava a sacudir-me o braço.

- Levem-no onde ele quiser, Fred, e com cuidado, não vão muito depressa. Lembrem-se que ele está magoado. Adeus, meu caro Lam, talvez nos encontremos de novo. Nunca se sabe. Não me fica com rancor? Vá, diga-me que não me fica com rancor.

- Não fico não. Mandou-me espancar à sua vontade e o diabo me leve se deixar passar uma única ocasião em que lhe possa fazer o mesmo.

Durante alguns segundos os olhos do chefe endureceram. Depois, começou a rir efusivamente:

-Bravo, Lam. Assim mesmo é que é. Apesar do sangue na cara, o espírito mantém-se indomável. Que pena ele não ter um pouco mais de carne em cima dos ossos, ter-te-ia dado dores de cabeça, Fred. Viste como ele saltou daquela cadeira? Parecia disparado por um canhão.

- Ora, foi bastante desajeitado. Nunca poderia fazer mal a uma mosca. Mas, tem coragem.

- Bom, leva-o para a cidade. Certifica-te apenas que ele não possa localizar a nossa casa. Compreende, Lam, a sua visita deu-nos muito prazer, e não queremos parecer pouco hospitaleiros, mas se você cá voltar, preferimos que seja conosco do que com qualquer outra pessoa.

Riu-se, às gargalhadas, com a gracinha.

- Vem daí, camarada - disse-me Fred. - Põe este lenço por cima dos olhos.

Atou o lenço por detrás da minha cabeça e Fred de um lado e o chefe do outro conduziram-me através do vestíbulo, da escada e da garagem até ao automóvel. Ouvi a porta abrir-se e o carro partir. O ar fresco era agradável no meu rosto tumefacto. Cinco minutos depois, Fred tirou-me a venda dos olhos dizendo:

- Instala-te à vontade no banco, Lam. Vou seguir devagar.

Fred era um condutor hábil, que soube atravessar rapidamente o trânsito até à minha pensão. Vi-o examinar as imediações. Estacionou o carro, abriu a porta e ajudou-me a subir as escadas. Mrs. Smith veio atender ao toque da campainha. Observou-me com espanto. O seu olhar era eloquente. Um hóspede que não pagava a renda há mais de cinco semanas chegava-lhe a casa embriagado, que escândalo!

- Não fique com esse ar, minha boa senhora  - disse-lhe Fred. - O rapaz está bem. Ficou um bocado abalado em consequência de um desastre de automóvel e mais nada. Precisa de descansar.

Ela aproximou-se e cheirou o meu hálito.

- Que lindo desastre de automóvel! Deve ter chocado com algum caminhão de whisky.

- É brandy, minha senhora. Um brandy que tem setenta e cinco anos. Um copo da reserva particular do Chefe, que lhe deram para se restabelecer.

- Arranjei trabalho esta manhã - disse eu.

- E a renda? - perguntou ela, com os olhos brilhantes.

- Para a semana, quando receber.

Com um fungar ostensivo, replicou:

- Trabalho! Naturalmente, andou a festejar.

Meti a mão no bolso e retirei o certificado de investigador particular que Bertha Cool me tinha dado. Ela examinou-o.

- Detective?

- Exactamente.

- Não era eu que o contratava para esse serviço.

- Não diga isso - interveio Fred. - O rapaz é corajoso que se farta. Tem estofo de sobra! Bom, boa noite, Lam. Qualquer dia destes venho cá visitá-lo.

Fez meia volta e desceu as escadas.

- Depressa - disse eu a Mrs. Smith - vá ver o número do automóvel dele.

Ela hesitou.

- Deve-me dinheiro. Se me disser o número do carro, poderei pagar-lhe mais depressa.

Este encorajamento teve efeito imediato. Precipitou-se logo para o limiar da porta.

- Não tenho a certeza - disse-me, ao voltar. - Ou é 5N1525 ou 5M1525.

Só descansei ao encontrar um lápis. Rabisquei os dois números numa folha de papel e subi o melhor que pude os três andares para chegar ao meu Quarto. Mrs. Smith ficou a olhar-me pelas costas.

- Não se esqueça que o dinheiro que me deve me faz muita falta!

- Não esqueço, não. Creio que nunca esquecerei.

 

CAPÍTULO VII

Pancadas regulares, insistentes contra a minha porta, fizeram-me passar da inconsciência do sono ao embrutecimento da semi-inconsciência. Ouvi a voz da minha hospedeira repetir:

- Mr. Lam! Mr. Lam! Levante-se!

A tactear, procurei o interruptor da luz eléctrica. Tinha a impressão de que o meu corpo se partia em dois. Consegui enfim iluminar a minha mansarda e abri a porta. O roupão bastante desbotado de Mrs. Smith fazia-a parecer um saco de batatas. A franja branca da sua camisa de dormir de flanela ultrapassava dez centímetros. Com voz cheia de indignação, gritou:

- Não sei que raio é o seu novo trabalho; mas, garanto-lhe que já estou farta. Deve-me cinco semanas de renda e agora...

- Que aconteceu? - interrompi.

Não consegui pronunciar estas primeiras palavras senão dolorosamente. Os lábios e o nariz tumefactos davam-me a impressão de ter uma cara de pau.

- Está uma mulherzinha ao telefone que diz ter de lhe falar à força; está farta de me gritar aos ouvidos que se trata de um caso de vida ou de morte! O telefone está a tocar à meia hora. Ninguém consegue dormir na pensão. Tive que trepar os três andares e bater-lhe à porta até...

- Muito obrigado, Mrs. Smith.

- Obrigado? É preciso que seja qualquer coisa de muito extraordinário para acordar toda a gente...

Forcei o meu corpo torturado a mexer-se, peguei no roupão que estava em cima da cama, atirei-o para cima dos ombros e enfiei as pantufas. A distância até ao vestíbulo pareceu-me interminável. Não podia pensar senão em Alma. No entanto, calculava que fosse Bertha Cool que quisesse entregar-me novo serviço. Sabia-a capaz de o fazer, mas... o auscultador estava suspenso no cordão.

- Está lá? - exclamei e ouvi a voz de Alma.

- Donald, como estou contente de o ouvir! Acaba de acontecer qualquer coisa de horrível.

- O quê?

- Não posso dizer pelo telefone. É preciso que venha cá.

- Onde está?

- Na cabine telefónica, no rés-do-chão da casa de Sandra.

- Onde a procuro?

- Aqui.

- Em casa de Sandra, quer você dizer?

- Não, na cabina. Aconteceu uma coisa terrível. Venha depressa.

- Não me demoro nada.

Desliguei, subi os três andares o mais depressa que os meus membros doridos me permitiam, cruzei-me com Mrs. Smith que descia as escadas com ar escandalizado e que me disse em tom agreste:

- Não se esqueça, Mr. Lam, que há mais gente na casa e que eles querem dormir.

Entrei no meu quarto, despi o roupão e o pijama, enverguei à pressa o fato e desci a escada a dar o nó à gravata. Abotoei a camisa e o casaco na rua. Pareceu-me terem decorrido séculos até me aparecer um táxi nas proximidades.

Chamei-o e indiquei-lhe o endereço. Uma vez instalado no banco, perguntei ao motorista:

- Que horas são, meu amigo?

 - Duas e meia.

O meu relógio de pulso nem sequer servia para empenhar; mas, acertando-o todos os dias, podia calcular aproximadamente as horas. Porém, deixara-o ficar na gaveta da minha mesa de cabeceira. Rebusquei as algibeiras para me certificar que trazia o meu atestado de detective particular, ao mesmo tempo que contava o dinheiro que trazia comigo, ao reparar, com olhos ansiosos, nos números que se sucediam no taxímetro.

Quando o táxi parou na morada indicada, a minha fortuna não era muito superior ao montante indicado no quadrante luminoso.

- Muitíssimo obrigado, meu velho - disse eu, ao motorista metendo-lhe na mão um punhado de moedas e precipitando-me para a porta.

Quase ia partindo um braço. Estava fechada à chave; mas, dei-lhe fortes pontapés, na esperança de que Alma ouvisse. Este barulho acabou, por fim, por atrair a atenção da minha amiga. Saiu da cabine, e veio até à porta que abriu.

Olhei-a estupefacto. Não trazia mais do que uma espécie de roupão transparente por cima do pijama de seda.

- Alma, que aconteceu?

- Fiz fogo contra alguém - murmurou, com voz rouca.

- Contra quem?

- Não sei.

- Matou-o?

- Não.

- Já chamou a polícia?

- Não.

- Então, não perca tempo. É preciso avisá-la imediatamente.

- Tenho a certeza que Sandra não quer que o faça.

E Bleatie pretende...

- Quero que Sandra e Bleatie vão para o diabo! Entre para aí e telefone para a polícia.

Empurrei-a para a cabina.

- Donald, não lhe parece que devia contar o que...

- Se fez fogo contra alguém, é à polícia que deve contar tudo o que se passou.

Voltou-se para mim.

- Pode dar-me cinco cêntimos?

Vasculhei desesperadamente as algibeiras, uma a uma. Nada. Tinha dado o dinheiro todo ao motorista do táxi. Manipulei o telefone. Impossível fazê-lo funcionar sem meter uma moeda.

- Como é que conseguiu telefonar-me? - perguntei.

- Foi um homem que entrou. Estava embriagado. Disse-lhe que me tinha esquecido das chaves, que precisava avisar o meu marido. Ele deu-me cinco cêntimos.

- Está bem. Vamos para o seu apartamento.

- Impossível. De facto, não tenho chaves. A porta está fechada.

- Vamos acordar a porteira. Então, diga-me: Que se passou?

- Eu estava a dormir. De repente, acordei e vi que estava alguém dentro do meu quarto. Estava debruçado sobre mim, com a mão direita sobre o meu nariz, prestes a cortar-me a respiração. Ao recordar a terrível aventura da noite anterior, fiquei quase paralisada pelo terror. Mas, você aconselhara-me tão bem sobre o que devia fazer (lembra-se, disse-me que pouco importava que acertasse ou não) que tirei o revólver de debaixo da almofada e puxei o gatilho. Tinha aberto o fecho de segurança ao deitar-me. Nunca tive tanto medo na vida. Ouvi um ruído tão espantoso que julguei que os meus tímpanos rebentavam. Deixei cair o revólver e gritei.

- E depois?

- Peguei no roupão. Não me lembro; mas, devo tê-lo feito, porque o tinha no braço quando entrei no outro quarto.

- Correu para o outro quarto?

- Sim, e depois para o corredor.

- É lá que o homem deve estar agora, a não ser que tenha conseguido fugir pela janela. Não há uma probabilidade em dez de o ter atingido.

- Sim, atingi-o. Ouvi um baque tremendo, como o barulho que deve fazer uma bala que atravessa um corpo... e alguém cair.

- Como sabe?

- Porque ouvi.

- E depois, continuou a ouvi-lo mexer?

- Sim, creio que sim. Mas, estava completamente desnorteada. Saí a correr o mais depressa possível e lancei-me para o ascensor. A porta do apartamento fechou-se atrás de mim, fiquei um minuto no ascensor sem me atrever a mexer, depois dei-me conta da terrível situação em que me encontrava. Repare, nem sequer trouxe os sapatos de quarto.

Vi-lhe os artelhos com as unhas pintadas.

- É absolutamente indispensável chamar a porteira - disse eu. - Não tenha medo, Alma. Sem dúvida é algum gatuno, alguém que procura os registos de Morgan Birks ou alguém que estava convencido que ele tinha dinheiro guardado. Onde estava Sandra, entretanto?

- Tinha saído.

- E Bleatie?

- Não sei. Na cama, segundo julgo, no quarto ao lado.

- E ele não ouviu o tiro da pistola?

- Não sei nada.

- Escute-me, Alma. Acredita que fosse talvez Bleatie que...?

- Que ia ele fazer ao meu quarto?

Não encontrei resposta que pudesse traduzir em palavras.

- Vamos lá chamar a porteira e vejamos se...

Interrompi-me e puxei Alma para dentro da cabine. Diante da porta parara um imponente automóvel.

- Vem aí alguém. Oxalá consiga pedir-lhe cinco cêntimos emprestados para telefonar à polícia. Prefiro isso a ter de meter a porteira nos nossos assuntos.

- Se eu conseguisse abrir a porta do apartamento - respondeu Alma - tenho dinheiro na minha mala.

- Vamos ver quem chega.

Vagamente, distinguia a silhueta de um homem ao volante do carro. Entre ele e eu, encontrava-se uma mulher que quase o esmagava a despedir-se. Ele não desceu do carro para lhe abrir a porta ou para a acompanhar ao limiar. Pelo contrário, logo que ela o largou e saiu, ele embraiou e desapareceu na noite.

Avancei na direcção da porta envidraçada e parei imediatamente. A mulher que subia os degraus ao mesmo tempo que tirava as chaves da mala era Sandra Birks. Corri para a cabine.

- Aí está Sandra. Pode entrar com ela. Mas, diga-me, Alma, como é que ninguém ouviu o tiro?

- Não sei.

- Não acredita que ninguém tivesse ouvido?

- Não. De qualquer maneira ninguém se mexeu.

Sandra Birks avançava em passo rápido e decidido. Tinha as faces rosadas e os olhos brilhantes. Parecia caminhar sem pousar os pés no chão. Teve um sobressalto ao ver-me.

- Um instante! - disse eu.

Sandra fitou-me e depois reparou em Alma com o seu pijama e o seu roupão transparente.

- Que aconteceu? - perguntou.

- Se tiver cinco cêntimos, chamaremos a polícia – disse eu. - Alma disparou um tiro contra não sei quem, no seu apartamento.

- Contra quem?

- Um gatuno - respondeu Alma rapidamente.

- O mesmo que...?

Sandra interrompeu-se para olhar a garganta da amiga. Alma fez um sinal afirmativo.

- Sim, creio que sim.

- Onde arranjaste o revólver?

- Fui eu que lhe... - comecei.

Mas, Alma acrescentou logo:

- Era uma pistola que eu tinha há muito tempo. Trouxe-a do Kansas no fundo da mala.

- Era melhor irmos ver o que se passou antes de...

Cortei a palavra a Sandra:

- Não, nada disso. É preciso chamar a polícia. Já demorámos tempo demais.

- Porque demoraram demais? Não tinha dinheiro?

Fitei-a nos olhos.

- Não.

Sandra abriu a mala e deu-me uma moeda. Dirigi-me para a cabine. As duas mulheres ficaram a conversar em voz baixa ao pé do elevador. Neste mesmo instante, ouvi a sirene de um carro da polícia, que gemia a curta distância. Estava a levantar o auscultador quando o carro parou diante da porta. Um agente da polícia subiu os degraus, procurou abrir a porta e começou a bater com o punho. Compus números de telefone ao acaso no marcador, na esperança de passar desapercebido. Sandra foi abrir. Pela porta da cabine, ouvi o agente declarar:

- Houve alguém que nos comunicou ter ouvido um tiro no n.º 419. O que sabem a este respeito?

- Foi no meu apartamento.

- Ah, sim?

- Sim.

- Dispararam um  tiro?

- Acabo de chegar agora mesmo.

- Quem é esta mulher?

- Vive em minha casa. O tal tiro de pistola... creio...

- Vamos para cima.

O agente dirigiu Sandra e Alma para o elevador e entrou com elas. A porta fechou-se e o ascensor subiu. Ao telefone, ouvi responder do número que eu ligara; uma voz de homem, ensonado, disse:

- Está lá? - desliguei.

Segundo tudo parecia indicar, ninguém falara a meu respeito. Observei o quadro luminoso: o elevador detivera-se no quarto andar. Esperei durante um ou dois minutos pensando que voltaria a descer, depois comecei a premir o botão para o chamar. Não se mexeu. Com certeza, a porta ficara aberta. Àquela hora tardia da noite, só funcionava um elevador e era o automático.

Foram-me precisos uns bons dois minutos para subir os quatro andares e seguir pelo corredor até ao apartamento 419. A porta estava aberta. Ouvi vozes no quarto de cama, à direita. Todas as salas estavam iluminadas. Entrei no apartamento e espreitei pela porta do quarto cama. As duas jovens estavam de pé diante do agente. Alma Hunter, com os lábios muito brancos, olhava-o com ar de desafio. Sandra Birks estava impassível. Estendido no sobrado, com os braços em cruz, o rosto voltado para o tecto, os olhos vidrados a reflectir as lâmpadas do tecto, jazia Morgan Birks.

O polícia perguntava a Alma:

- Onde arranjou esta pistola?

- Tinha-a há muito tempo.

- Onde a comprou?

- Não a comprei.

- Quem lha deu.

- Um amigo.

- Onde? Quando?

- Em Kansas City, evidentemente.  Foi já há bastante tempo. Não me lembro quando.

O olhar de Sandra Birks desviou-se do agente e pousou-se sobre mim. Enrugou as sobrancelhas. Levou uma das mãos aos lábios e fez-me sinal para desaparecer. O polícia viu o seu gesto ou compreendeu o sentido do seu olhar. Fosse como fosse, deu meia volta e viu-me de pé, por detrás.

- Quem é este? - inquiriu.

- Que se passou? - perguntei.

Com voz tranquila, Sandra Birks declarou:

- Deve ser um dos hóspedes da casa.

O agente precipitou-se na minha direcção.

- Saia daqui. Houve um crime de morte. Não queremos ninguém por aqui a vaguear. - A propósito, quem é o senhor? Como...

- Porque não pôs um letreiro na porta? Estava aberta e...

- Bom – interrompeu - ponha-se a andar e já a fechamos.

- Ora, é inútil estar com essas coisas. Tinha todo o direito de olhar visto a porta estar aberta. Não sou...

- Vamos, toca a andar.

Pegou-me pela gola do casaco e empurrou-me com tanta violência que por um pouco batia com a cabeça contra a parede no outro lado do corredor. Por detrás de mim a porta bateu. Ouvi ainda a chave girar na fechadura.

A polícia é assim mesmo. Se eu tivesse mostrado vontade de me afastar, o agente ter-me-ia feito entrar e detido. Como eu tomara grandes ares e insistira em ficar, tinham-me posto na rua, sem me fazer quaisquer perguntas. O polícia demonstrara  que era alguém e estabelecera a sua superioridade sobre o infeliz cidadão, que paga impostos.

Não sabia ao certo o que se passara. Mas, o gesto de Sandra fora suficiente. Não precisava que me fizessem mais sinais. Tomei o ascensor e saí da casa.

O carro da polícia estava estacionado junto ao passeio. O segundo agente ouvia telefonia, tomando apontamentos. Observou-me com insistência; mas, como a rádio vociferava a descrição de um homem, que era procurado pela polícia, deixou-me passar.

Procurei caminhar com ar despreocupado até à esquina da rua, indo de vez em quando até à beira do passeio como uma pessoa que procura um táxi. Continuava a Ouvir a telefonia: “..perto de trinta e sete anos, talvez trinta e oito, um metro e sessenta e quatro, chapéu de feltro cinzento... camisa aos quadrados... gravata vermelha mosqueada... visto pela última vez ao fugir do local do crime.”

À esquina da rua, vi um táxi. Fiz-lhe sinal.

- Onde vamos? - perguntou o motorista.

- Sempre em frente. Já lhe digo onde deve parar.

Só depois de ter percorrido quinhentos ou seiscentos metros é que me lembrei bruscamente que não tinha um cêntimo no bolso. Calculei que gastasse cerca de setenta e cinco cêntimos para chegar a casa de Bertha Cool. Dei-lhe o seu endereço pessoal e recostei-me.

- Espere por mim - disse ao motorista quando o carro parou diante da casa de Bertha Cool. Ao lado da porta, havia uma lista dos inquilinos. Apoiei o dedo na campainha que correspondia ao seu nome. Para comigo, pensava que teria de passar um mau quarto de hora com o motorista, se ela não estivesse em casa.

Com grande surpresa minha, a porta abriu-se sem grande demora. Procurei o interruptor às apalpadelas, tomei o ascensor e subi até ao quinto andar. Não tive dificuldade nenhuma em encontrar o apartamento de Bertha Cool. Veio abrir-me a porta com os cabelos despenteados e rosto ensonado. Mas, os seus olhos frios e duros brilhavam como dois diamantes. Vestira um roupão de seda que deixava entrever a garganta opulenta.

- Com que lindo aspecto está! Quem o pôs nesse estado?

Mandou-me entrar para o seu pequeno apartamento, constituído por duas salas e uma cozinha. A porta do quarto de dormir estava aberta. Próximo da cama, cujas cobertas estavam atiradas para baixo, havia uma mesinha, com um aparelho telefónico, e um par de meias repousava sobre as costas de uma cadeira, onde havia também vestidos. Na sala, sentia-se um cheiro a tabaco queimado. Bertha Cool atravessou a sala, abriu as janelas de par em par e veio colocar-se na minha frente.

- Então, o que foi? Passou-lhe por cima algum caminhão?

- Fui espancado por uma quadrilha de bandidos e empurrado pela  polícia.

- Mais nada?

- Só isso!

- Bravo! Já me conta tudo quando eu encontrar os meus cigarros. Onde os teria posto? Não tinha senão um maço quando me deitei.

- Estão sobre esse banquinho, ao lado da cama.

Olhou-me com admiração.

- Você deve ser observador - disse, deixando-se cair sobre um grande sofá. -  Vá buscá-los depressa e não procure falar-me, enquanto eu não tiver tirado umas boas fumaças.

Entreguei-lhe os cigarros, uma caixa de fósforos e como ela apontasse para uma otomana, empurrei-a para perto. Bertha Cool ergueu as pernas, desembaraçou-se das pantufas, acomodou-se no sofá até ficar confortavelmente instalada e declarou:

- Sou toda ouvidos.

Contei-lhe tudo o que se passara.

- Devia ter-me telefonado antes de se deitar. Era preciso informar-me, sem demora.

- Mas, ele ainda não tinha morrido quando me deitei.

- Ora, a morte! Quero lá saber da morte - disse, encolhendo os ombros. - A polícia se encarregará disso. Mas, a quadrilha, que o raptou para saber onde se encontrava Morgan Birks, era dinheiro contado para mim. Você...

O telefone tocou e ela suspirou.

- Donald, vá buscar aquele telefone. O fio é muito comprido. Despache-se antes que desliguem, querido.

Corri para o quarto de dormir, trouxe o aparelho estendi o auscultador a Mrs. Cool.

- Daqui fala Bertha Cool.

Ouvi vibrar a membrana do receptor, enquanto as palavras entravam pelo ouvido de Bertha Cool. Pelo brilho dos seus olhos via que estava a gostar da conversa.

- Que pretende de mim? - perguntou ela, por fim.

O receptor tornou-se barulhento e depois Bertha Cool declarou:

- Quero quinhentos dólares em dinheiro. Depois disso, é provável que queira mais... Não posso garantir nada... Os seus cofres não representam nada para mim. Vão ser selados, pode ter a certeza. Bem, minha querida... Digamos cinquenta dólares até amanhã... Entendido. Mas não aparecerei senão há uma hora ou uma e meia. Não quero encontrar-me com a polícia. Espere por mim. A menos que a levem para a esquadra. Mas não me parece.

Desligou com um sorriso nos lábios.

- Sandra Birks – disse. - Quer que investigue a morte do marido?

- Pretende que tome conta de Alma Hunter. A polícia está prestes a prendê-la.

- Ela estava cheia de razão. Morgan Birks quis estrangulá-la e...

- Não confie tanto. Morgan Birks recebeu a bala pelas costas.

- Pelas costas! - exclamei.

- Exactamente. É evidente que procurava sair do quarto quando foi morto. A bala atravessou-o e cravou-se na porta. Reconstituindo a cena pela posição da ferida, a polícia afirma que devia estar com a mão na maçaneta da porta, quando dispararam o tiro.

- E porque se teria ele introduzido no quarto dela? Que procurava?

- Naturalmente, um copo de água. Porém, a polícia não gosta de raparigas que fazem fogo contra as costas de um homem e, depois, fingem que dispararam em legítima defesa.

- Estava escuro, no quarto.

- Ele ia a sair.

- Mas, ele tentou estrangulá-la, na noite antecedente.

- Foi ele?

- Foi.

- Conte-me lá isso.

Disse-lhe tudo o que Alma me tinha contado.

- Como é que isso demonstra que foi Morgan Birks que tentou estrangulá-la?

- É lógico.

- É preciso mais alguma coisa para convencer a polícia. Meu caro Donald, seja bom rapaz. Ligue-me para o serviço matrículas de trânsito e diga que fala da Agência de Investigações Cool. Pergunte quem são os proprietários, dos carros 5N1525 e 5M1525. Entretanto, vou vestir-me.

Tirou mais algumas fumaças voluptuosas, soprou nuvens de fumo para o tecto, ergueu-se do sofá e dirigiu-se para o quarto de cama. Não se deu ao trabalho de fechar a porta e ouvi-a andar de um lado para o outro, enquanto escutava o meu telefonema. Descobri que o carro 5N1525 pertencia a um tal George Salisbery, 938 Main Street, Centerville, e que o 5M1525 estava em nome de William D. Cunweather, 907 Willoughby Drive.

Desliguei o telefone depois de ter tomado apontamento dos nomes e dos endereços. Mrs. Cool chamou-me do quarto.

- Esse Salisbery não me diz nada - gritou Bertha. - Mas, o seu pássaro pode muito bem estar aninhado em Willoughby Drive. Que lhe parece, Donald?

- É possível. A casa deve ficar nessa direcção.

- Chame um táxi.

- Tenho um à espera lá em baixo.

- É seu costume andar de táxi? Ou pensa meter essas despesas nas contas da agência?

Resolvi enfrentá-la atrevidamente.

- Penso meter essas despesas nas contas da agência.

Bertha Cool manteve-se em silêncio durante alguns segundos. Esperei, perguntando a mim próprio se ela aceitaria esta declaração ou me despediria.

- Está bem - disse, por fim, com voz maternal. – Vamos descer e tomar esse táxi, meu caro Donald. Tomarei nota do que o taxímetro marcar e descontarei essa quantia no seu ordenado. Vamos embora.

 

CAPÍTULO VIII

Quando o táxi chegou ao n.º 800 de Wiiloughby Drive, Mrs. Cool gritou para o motorista:

- Siga até ao 907; mas, não pare. Passe lentamente diante da casa para podermos observar.

O condutor não fez nenhuma observação. Quando os fregueses tomam um táxi àquela hora da noite, podem bem ter exigências especiais e, para assegurar as boas gorjetas, os motoristas devem guardar para si as suas reflexões, até ao momento de voltar a casa.

- Observe bem, Donald - disse-me Bertha, quando o motorista indicou uma casa à esquina da rua.

Uma álea conduzia até uma garagem. Examinei a disposição da casa e declarei:

- Pode muito bem ser esta.

- Não tem a certeza?

- Não.

- Ora, podemos arriscar-nos.  Senhor motorista, pare à esquina da rua em frente da casa.

- Quer que espere ? -perguntou.

- Pois sim - suspirou ela.

Segurei a porta. As molas da almofada pareceram respirar aliviadas quando desceu do carro, recusando o meu auxílio. O motorista viu-nos aproximar da casa obscurecida e silenciosa. Tacteei a parede para encontrar a campainha e carreguei no botão com força. Ouvi um carrilhão no interior da casa.

- Quem é que vai falar, a senhora ou eu? - perguntei.

- Se  estivermos  em casa dos seus assaltantes, faça-me sinal. Eu encarrego-me do resto.

- Muito bem. Mas se aparecer alguém que nunca tenha visto a abrir-nos a porta, será preciso entrar na casa para se descobrir se são eles.

- Basta dizer-lhe que me sinto indisposta e pedir autorização para telefonar a um médico. Acaso viu em que aposento estava o telefone?

- Pelo menos, um dos telefones.

- Está bem. É o que é preciso... Não toque a campainha com tanta  insistência, Donald. Calma. Toque outra vez passados um ou dois minutos.

Ouviram-se passos no andar superior. Abriu-se uma janela e uma voz masculina perguntou:

- Quem é?

- Parece a voz do Chefe - murmurei.

Bertha Cool gritou com voz rouca:

- Trago um recado muito importante.

- Meta-o por debaixo da porta.

- Não se trata de recado desse género.

- Quem é a senhora?

- Dir-lhe-ei o meu nome, quando vier cá a baixo.

O homem pareceu hesitar um instante; depois, bruscamente, fechou a janela. Passados alguns segundos, ouvi-o descer a escada.

- Chegue-se para o lado, Donald - ordenou Bertha - deixe-me falar com ele.

Uma lâmpada eléctrica acendeu-se por cima das nossas cabeças e tive a impressão que alguém nos observava através do ralo. Depois, a porta entreabriu-se e o homem perguntou:

- De que se trata?

Dei um passo ao lado para ver quem falava. Era o Chefe, em pijama de seda e de pantufas.

- Olá, Chefe! - disse-lhe.

Ficou imóvel durante alguns instantes com expressão crispada. Depois, a sua boca distendeu-se num largo sorriso.

- Olha quem ele é! Lam! Não esperava vê-lo tão depressa, Lam, nem pensava que descobrisse a localização da casa tão facilmente. Quem o acompanha?

- Bertha Cool, a directora da Agência de Detectives Cool.

- Ah, sim? - exclamou o chefe, a desfazer-se em sorrisos. - Tenho imenso prazer em conhecê-la e devo felicitá-la... Miss ou Mrs.?

- Mrs. - respondeu Bertha.

- Muito prazer - inclinou-se. - Felicito-a por ter um homem tão inteligente e corajoso ao seu serviço. É um belo rapaz! Extraordinariamente observador e também já tive, pessoalmente, ocasião de testemunhar a sua coragem. Entre, se faz favor.

Afastou-se para o lado para nos deixar passar. Hesitei; mas, Mrs. Cool já tinha avançado para o vestíbulo. Segui-a. O Chefe fechou a porta e correu o fecho.

- Com que então, tornou a encontrar a casa, Lam?

Acenei a cabeça afirmativamente.

- Tenho de dizer meia dúzia de palavras a Fred. Não é nada bonito da sua parte ter deixado descobrir a nossa morada. Quer ter a amabilidade de me informar como a descobriu, Mr. Lam?

Bertha Cool respondeu por mim.

- Não tem dúvidas nenhumas.

- Não vai guardar-me rancor! Venham sentar-se; lamento não poder oferecer-lhes uma bebida.

Acendeu a luz da sala, ao mesmo tempo que uma voz de mulher, do cimo da escada, perguntava:

- Quem é, querido?

- Desce, meu amor. Veste qualquer coisa e desce. Temos dois visitantes. Já conheces um e estou bastante interessado que conheças o outro.

Endereçou um grande sorriso a Bertha Cool e disse-lhe:

- Gosto muito que a minha mulher tome parte das minhas conversas. Compreende o meu ponto de vista. Considero o casamento uma sociedade e sou de opinião de que duas cabeças valem mais do que uma. Todas as vezes que a situação se torna delicada, peço auxílio à minha mulherzinha.

Ouvi uma porta bater e os degraus começaram a estalar. Decorrido pouco tempo, a mulher entrou silenciosamente, sem me prestar a mais pequena atenção, com olhar fixo em Bertha Cool.

Levantei-me. O chefe ficou imóvel. Preparei-me para fazer as apresentações:

- Mrs. Cunweather, se não me engano...

- É um nome como outro qualquer, meu caro Lam - apressou-se a declarar o Chefe. - Afinal de contas, o que é um nome? Está bem, digamos Mrs. Cunweather, minha mulher; Mrs. Cool.

A mulher alta estendeu a mão à gorda.

- Muito prazer - disse Mrs. Cunweather.

- ...prazer - retorquiu Bertha. - Espero que não seja muito cerimoniosa. Não é o meu género.

Mrs. Cunweather sentou-se. O seu olhar era desconfiado e atento.

- Que pretende exactamente, Mrs. Cool? – perguntou o Chefe.

- dinheiro! - respondeu Bertha Cool.

- Ele multiplicou os sorrisos.

- Bravo, Mrs. Cool. Eis o que se chama ir direita ao fim. De mulheres assim, é que eu gosto. Sempre disse que gostava das pessoas que falam francamente, não é verdade, meu amor?

Voltou-se para a mulher; mas, manifestamente, não esperava qualquer resposta.

- Faríamos bem se falássemos em números – observou Bertha.

- Mais devagar, é preciso entendermo-nos, primeiro - exclamou o gorducho. -Não sei o que Mr. Lam lhe foi contar; mas, se insinuou que não foi tratado da maneira mais cortês, ele...

- Deixemo-nos de cumprimentos - interrompeu Bertha Cool. - Não costumo perder o meu tempo com bagatelas. O senhor mandou-o espancar como entendeu, ainda bem, isso fortifica. Pregue-lhe outra sova se quiser, a única coisa que exijo, é que fique em condições de recomeçar a trabalhar às oito e meia da manhã. Quanto ao resto, não quero saber como passa as noites.

O chefe desatou a rir.

- Ainda por cima a senhora é uma mulher original… se me permite exprimir assim! Que franqueza deliciosa! Agora explique-me o que deseja.

- O senhor interessa-se por Morgan Birks. Eu posso dar-lhe algumas informações a respeito dele.

- É muito amável, Mrs. Cool. Ficamos-lhe muito reconhecidos, minha mulher e eu. Foi muito amável mesmo em vir aqui a esta hora da noite. De qualquer modo, no comércio, os segundos são, às vezes, preciosos. Vejamos o que tem a propor-nos, Mrs. Cool?

- Entregámos a intimação a Morgan Birks.

- Ah, sim?

- Claro que entregámos.

- Foi o que nós sempre pensámos, a minha mulherzinha e eu. Que o tinham feito enquanto ele esteve no hotel, não é verdade?

- Não responda, Donald.

- Não tenho a mínima intenção - respondi.

O Chefe voltou-se para a mulher.

- Estás a ver, meu amor. Eis o que resulta de ter negócios com gente que sabe tirar partido de uma situação. Bem, bem, Mrs. Cool. Não sei que mais lhe dizer. Julga que pretendemos Morgan Birks. Não é bem isso; mas, evidentemente, uma pessoa que dirige uma agência de detectives, vê as coisas assim. Digamos, para simplificar a discussão, que desejamos trocar meia dúzia de palavras com Morgan Birks. E depois?

- Quanto vale isso?

- Aí está uma pergunta bastante fora do habitual.

- Em circunstâncias bastante fora do habitual – observou Bertha Cool.

- Sim, sim, tem razão. Não consigo compreender como é que Donald descobriu a casa tão rapidamente. Estava convencido que tinham sido tomadas todas as precauções necessárias.

- Sei onde se encontra Morgan Birks; mas, você não pode falar com ele. A informação interessa-lhe?

O sorriso do Chefe desapareceu-lhe do rosto.

- Quer dizer que está preso?

- Quero dizer que não pode falar com ele.

- Recomeçou a beber?

- Posso dizer-lhe onde está.

- Quanto quer?

- O máximo que a informação valer.

- Porque não lhe posso falar?

- Não quero enganá-lo - respondeu Bertha, com dignidade.

- Quer dizer que está morto?

- Já lhe disse que posso informá-lo onde ele está.

O Chefe olhou para a mulher. Esta sacudiu a cabeça imperceptivelmente. Ele voltou-se para Bertha Cool. Parecia, de novo, muito calmo.

- Não, não me interessa. Lamento muito, Mrs. Cool, considero-a uma pessoa muito competente. E tenho um fraco por Lam. Talvez um dia me dirija à sua agência quando tiver necessidade de qualquer informação.

Cunweather inclinou-se para a mulher.

- Qual é a tua opinião, meu amor? Não achas que Mr. Lam é um jovem muito inteligente ?

Com voz calma, Mrs. Cunweather respondeu:

- Fred levou Lam a casa no automóvel. Lam tomou nota do número.

Cunweather fez um gesto enfático com a cabeça.

- Não, meu amor, não acredito. Quando disse a Fred que levasse o carro, fiz-lhe recomendações especiais. Ordenei-lhe que apagasse os faróis ao parar, que levasse Mr. Lam até ao quarto e não voltasse a acender os faróis do carro sem ter a certeza que Lam não o podia ver.

- Lam descobriu a casa por meio do número do automóvel – repetiu Mrs. Cunwerather, em tom peremptório.

O Chefe mordeu os lábios.

- Oxalá Fred não tenha sido negligente - disse. -Sim, sinceramente, oxalá. Ficaria desolado de ter de separar-me dele. Era um grande aborrecimento, com um homem de tão grande força física. Ele não dá o devido valor àqueles que não são tão fortes como ele. Tenho a impressão de que Fred avalia por baixo a inteligência dos outros, que te parece, meu amor?

- Falaremos de Fred mais tarde - respondeu ela. – Neste instante, trata-se de saber se contratamos, ou não, os serviços de Mrs. Cool e de Mr. Lam.

- Não tenho nada com isso - comentei.

- Não se preocupem com Donald - confirmou Bertha Cool. - Está ao meu serviço. Sou eu quem dá ordens. O que propõem?

- Parece-me que não temos nada a propor-lhe – respondeu Cunweather.

Não tinha ar muito convencido. Bertha Cool achou que aquela não era a sua última palavra e deixou-se ficar sentada no sofá, como alguém que espera.

- Vou ser franco consigo, Mrs. Cool - disse, por fim. - Estamos numa situação em que cada minuto pode ser decisivo. Temos necessidade de certas informações e creio que a senhora dispõe de algumas. Podíamos conversar um bocado.

- Fale, fale que eu escuto.

- Não. Não é só isso que quero. Podemos trocar algumas informações.

- Não tenho necessidade de nenhumas informações suas - respondeu Bertha. - Se quer as minhas, custar-lhe-ão dinheiro.

- Está bem, está bem, já compreendi - disse Cunweather. - Mas, para eu poder determinar o interesse das suas informações e o que valem para nós, seria preciso conversarmos um pouco.

- Pois fale - convidou Bertha Cool, instalando-se mais confortavelmente no sofá.

- De momento, não queremos Morgan Birks. Queremos algumas informações sobre a amante. Os meus homens falharam nesse capítulo, falharam em cheio. Já sabia que ia passar-se qualquer coisa no Perkins Hotel. Sabia que Morgan tinha intenção de se encontrar aí com alguém; mas, não sabia com quem. Parece que ela se registou sob o nome de Mrs. B. F. Morgan. Porém, os meus homens estavam muito ocupados com a chegada de Morgan Birks e não ligaram importância à mulher. Ela escapou-se-nos.

Cunweather calou-se para dar ocasião a que Mrs. Cool falasse. Esta não disse nada.

- Gostávamos muito de saber mais coisas a respeito de Mrs. B. F. Morgan - continuou.

- O que quer saber e quanto vale isso?

- Queríamos saber onde a podíamos encontrar.

- Posso ajudá-lo.

- Será possível tornar a encontrá-la?

- É.

De novo, Cunwather lançou um olhar à mulher. Esta continuava impassível. Como não recebesse nenhum sinal de encorajamento, prosseguiu:

- Bem entendido, isso ser-nos-ia útil. Vou ser franco consigo, Mrs. Cool, o que nos faz hesitar em contratar ajuda externa, é que às vezes nos pregam partidas. Mr. Lam deve ter-lhe dito que não é agradável enganar-nos.

- É inútil tentar intimidar-me - ripostou Bertha Cool. - Tenho muito boa saúde. Tenho mesmo uma constituição de cavalo.

- Há, há, há! - fez Cunweather. - Magnífico! Uma constituição de cavalo. Ainda bem, Mrs. Cool. Gosto da sua maneira de ser. Creio que vou poder contratá-la.

- Quando sair daqui irei falar com Sandra Birks. Se quiser que trabalhe para si e me oferecer bastante dinheiro, trabalharei para si. Se Sandra Birks quiser que trabalhe para ela e compense, trabalharei para ela. Escolherei o que pagar mais.

- Quer dizer que tenho de fazer uma proposta?

- Exactamente.

- E depois irá falar com Mrs. Birks para ver o que ela resolve?

- Isso mesmo.

- E aceitará a proposta melhor?

- Exacto.

- Não gosto muito desse sistema. Estou até convencido de que isso me desagrada. Não é muito moral.

- Espero que o meu amoralismo não lhe cause insónias. Ponho as cartas na mesa.

- Estou a ver. Vai contar a Sandra a nossa conversa?

- Isso depende.

- De quê?

- Do que  Sandra me perguntar e do que ela quiser pagar.

- Seria desagradável que contasse ter estado aqui. Seria para nós uma espécie de abuso de confiança.

- Para mim, não - respondeu Bertha Cool. - Não me convidaram para cá vir. Fui eu que os desencantei.

- Não se pode dizer que a senhora queira facilitar as coisas.

- Tanta conversa para não se chegar a conclusão nenhuma - suspirou Bertha.

Com voz conciliadora, Cunweather acrescentou:

- Escute, Mrs. Cool, a sua proposta interessa-me; mas, tenho necessidade de me esclarecer antes de fixar o preço. Não posso ir às cegas.

- Que quer saber?

- Quero ter a certeza de poder realmente descobrir a amiga de Morgan, quero saber se encontraram, de facto, Morgan Birks e se não foram enrolados por um mistificador.

- Que quer dizer com isso?

- Sandra Birks quer divorciar-se. Era-lhe necessário entregar a intimação a Morgan Birks. Como não sabia onde descobri-lo, pode ter achado maneira de o substituir por qualquer outra pessoa. Os senhores estão convencidos que Morgan Birks esteve no Perkins Hotel, nós estamos certos de que não.

Mrs. Cool abriu a mala, tirou um cigarro e disse:

- Conte o que se passou, Donald.

- O quê? - perguntei.

- Conte o que fez para entregar os documentos a Morgan Birks. Fale até eu o interromper.

- Sandra Birks contratou-nos. Fui a casa dela e arranjei várias fotografias de Morgan Birks... Instantâneos... Eram muito nítidos e examinei-os de perto para me assegurar que ela não tinha colocado fotografias falsas no álbum.

- Sim, tem razão - confirmou Cunweather - esses instantâneos encontravam-se no seu bolso, juntamente com o original da intimação.

- O irmão de Sandra, B. L. Thoms, a quem tratam por Bleatie, veio de Kansas City e...

- donde? - interrompeu Mrs. Cunweather.

- de Kansas City.

O chefe lançou uma olhadela à mulher.

- Continue, Lam - disse.

- Bleatie veio ajudar a irmã. Conhece Morgan Birks muito bem. Creio até que é mais amigo de Morgan do que da própria irmã. Prometeu ajudar-nos a deitar a mão a Morgan Birks desde que Sandra lhe garantisse não trair Morgan. Não parecia ter grande opinião da moral e da honestidade da irmã.

Os olhos do homem gordo testemunhavam um interesse cada vez mais vivo. Mrs. Cool interrompeu-me:

- Basta, Donald. Se quiserem saber mais que paguem.

- Que entende a senhora por pagar?

- Qualquer coisa que nos compense estarmos levantados a estas horas da madrugada. Dirijo uma agência de detectives. Tenho que pagar uma renda, os ordenados dos meus empregados, imposto federal, imposto municipal e ainda tenho de pagar imposto do que sobra de todos estes pagamentos. Cada vez que compro um vestido, ainda me cobram outro imposto e...

- Bom, bom - interrompeu Cunweather sorrindo e oscilando a cabeça com regularidade mecânica – compreendo perfeitamente, também tenho os meus problemas, Mrs. Cool.

- Pois é; mas, eu tenho um negócio de conseguir informações e de as transformar em dinheiro. Tenho qualquer coisa que os senhores pretendem. Vocês pregaram uma sova ao meu empregado. Não gosto nada de atitudes dessas.

- Fomos um bocado brutos, na verdade – reconheceu o Chefe.

- Para conseguir informações, gasto dinheiro. Não tenho intenção de as confiar por esmola.

- O que se passou no Perkins Hotel interessa-me bastante - disse o  Chefe.

Voltou-se para a mulher:

- Acreditas, meu amor, que tivesse havido qualquer traição?

- Há, pelo menos, qualquer coisa que não está certa - respondeu ela.

- Podemos oferecer cem dólares a Mrs. Cool?

A mulherzinha aprovou com um aceno de cabeça.

- Cem dólares - disse o Chefe.

- Duzentos - replicou Bertha Cool.

- Cento e cinquenta - interveio Mrs. Cunweather. - E se ela não quiser, deixa.

- Está bem - concordou Bertha - cento e cinquenta.

-Tens aí, meu amor? - perguntou o gorducho.

- Não.

- Deixei a carteira lá em cima, queres ir buscá-la?

- Tira do cinto.

Ele humedeceu os lábios.

- Escute, Mrs. Cool, pode falar com absoluta confiança, garanto-lhe os seus cento e cinquenta dólares. Estão prometidos.

- Vá buscá-los.

Cunweather soltou um suspiro de resignação, ergueu-se, abriu o casaco do pijama e exibiu um enorme cinto que continha uma bolsa de pele de camelo, descorada pelo suor. Tirou duas notas de cem dólares.

- Não tem mais pequeno?

- Não.

- Vou ficar sem trocos nenhuns.

Inspeccionou cuidadosamente a mala e lançou-me um olhar cheio de esperanças.

- Tem algum dinheiro, Donald?

- Nem um níquel.

Bertha pôs-se a contar o dinheiro.

- Tenho de ficar com cinco para o táxi. Não tenho mais do que quarenta. Posso-lhe dar trinta e cinco. Se não lhe convier, é melhor ir buscar a sua carteira.

- Está bem - disse ele - não estou para me incomodar por causa de quinze dólares.

Entregou-lhe os duzentos dólares e passou o troco à mulher.

- Guarda isso em qualquer sítio, não quero desse dinheiro no meu cinto - declarou, tornando a abotoar o pijama. – É Lam quem vai falar?

- Sim, é Lam quem vai falar - respondeu Bertha Cool.

- Sandra deu a Morgan Birks... - comecei.

- Deixe isso, Donald - disse ela. - Seria trair os interesses de um cliente. Conte apenas como descobrimos Morgan e como lhe entregámos os documentos. Mas, não lhe diga nem o nome nem o endereço da amante.

- Bleatie - prossegui - informou-me do nome da amiga de Morgan. Fui falar-lhe, disse-lhe que a iam fazer comparecer neste caso de divórcio, depois esperei-a à porta e segui-a. Ela conduziu-me ao Perkins Hotel, onde se registou sob o nome de B. F. Morgan...

- Sim, sim - interrompeu Cunweather - sabemos isso tudo. Sabemos tudo o que fez a partir do momento em que chegou ao Perkins Hotel.

- Então, sabe como consegui entregar a intimação a Morgan Birks.

- Você não a entregou a Morgan Birks; mas, sim a qualquer outra pessoa.

- Está enganado! - exclamou Bertha Cool. - Era Morgan Birks.

- Onde é que ele estava?

- No quarto da amiga: o n.º 618.

Cunweather e a mulher entreolharam-se.

- Devem estar enganados - afirmou ele.

- Não.

- Sabemos de certeza absoluta que Morgan Birks não entrou no quarto 618.

- Não teimem. Ele estava lá, vi-o com os meus próprios olhos.

- Que te parece, meu amor? Achas que...

- Deixa Donald acabar o seu relato.

- Continue, Donald  - disse-me o Chefe.

- Arranjei um quarto. Acompanhavam-me diversas pessoas: Sandra Birks, Bleatie, Alma Hunter. Depois, saí para alugar um uniforme de paquete e enviar um telegrama a Morgan Birks, aos bons cuidados da Western Union. Esperei até o telegrama chegar, assinei e acrescentei no envelope: “entregar no Perkins Hotel”. Apresentei-me no Quarto 618 vestido de paquete, pedindo para assinarem o livro de registros.  Este não podia ser metido por debaixo da porta. Deixaram-se enganar e entrei. Morgan Birks estava estendido sobre a cama. Quando lhe estava a entregar a intimação, Sandra entrou com uma fúria. Começaram a discutir. Não há dúvida nenhuma, era Morgan Birks.

O gorducho voltou-se para Bertha Cool, como para obter confirmação.

- Foi assim exactamente - disse ela - entrei ao mesmo tempo que Sandra Birks e reconheci-o perfeitamente. Os jornais têm andado cheios de fotografias dele.

Cunweather pôs-se a baloiçar violentamente na sua cadeira. Bertha Cool declarou:

- Para a outra vez que precise de uma informação, não procure obtê-la batendo nos meus empregados. Consegue-a muito mais facilmente dirigindo-se à minha agência.

- Nunca pensámos que Mr. Lam se mostrasse tão intratável.

- Todos os meus empregados são duros como aço – afirmou negligentemente Mrs. Cool. - Sei escolhê-los.

- Dá licença que diga duas palavrinhas à minha mulher, Mrs. Cool? – disse Cunweather. - Creio que poderíamos fazer-lhe uma proposta. Que te parece, meu amor? Queres acompanhar-me ao aposento do lado?

- É inútil, podes falar - respondeu Mrs. Cunweather.

O Chefe inclinou-se para Bertha Cool.

- Queremos dirigir-nos à sua agência para que nos ponha em contacto com a amante de Morgan Birks. Queríamos saber quantos cofres estão alugados sob o seu nome e onde se encontram. Pretendíamos esta pequena informação o mais depressa possível.

- Quanto é que vale?

- Que lhe parece duzentos e cinquenta dólares por cada cofre que descubra?

- Quantos são eles?

- Não sei, Mrs. Cool, seja razoável. A senhora sabe onde está a rapariga. Isso não a fará perder um minuto sequer. Morgan Birks está escondido e bem escondido. Até consegue ludibriar a polícia, esse pequeno. Pediu à amante para lhe alugar alguns cofres. Tanto podem ser cinco como dois.

- Ou talvez nenhum - respondeu Bertha Cool.

- Lá estamos nós outra vez - riu-se Cunweather. - A sua personalidade é tão forte que vem sempre à superfície. É delicioso; mas, assim, não chegaremos a parte nenhuma e os minutos correm. Felizmente, temos Lam. É um rapaz inteligente. Pode ir falar com a pequena e fornecer-nos a informação num abrir e fechar de olhos.

- Não contem comigo - respondi.

- Vejamos, Lam - insistiu Cunweather. - Você é bom rapaz, não seja rancoroso. No fim de contas, o que se passou ontem à noite não tem nada de pessoal. Negócios são negócios.

- Esqueça-se de Donald - recomendou Mrs. Cool. – É comigo que tem de tratar esses assuntos. Donald fará o que eu lhe disser para fazer.

- Poderíamos ir até trezentos dólares por cofre – suspirou Cunweather.

- Não.

- É a nossa última palavra.

Bertha fez menção de se levantar.

- Telefono-lhe depois a dizer, quando falar com Sandra Birks.

- Queremos uma resposta imediata.

- Já a têm.

Cunweather recomeçou a baloiçar na cadeira.

- Pergunta-lhe onde está Morgan Birks neste momento - disse Mrs. Cunweather.

- Vá, Mrs. Cool, diga lá. Dei-lhe cento e sessenta e cinco dólares em dinheiro, parece-me que não é muito pedir mais esta informação.

Ela comprimiu os lábios pensativa.

- Essa informação talvez não lhe sirva de grande coisa. E depois vale dinheiro. Não dou nada sem receber algo em troca.

O telefone tocou. Cunweather levantou-se com ar despreocupado, pegou no aparelho e disse com voz prudente:

- Quem fala?

Permaneceu silencioso alguns instantes.

- Tens a certeza? - exclamou, de súbito. - Bom, vem cá, para receber instruções. Isso altera tudo.

Desligou sem se despedir e aproximou-se de Bertha, sorridente.

- Compreendo, perfeitamente, agora, pelo que deve ter passado. Morgan Birks está morto, meu amor - acrescentou, voltando-se para a mulher. - Uma jovem chamada Alma Hunter abateu-o a tiro, esta madrugada, no apartamento de Sandra Birks. Acertou-lhe nas costas no momento em que ele saía do quarto.

- Ora aí está uma notícia que modifica tudo – respondeu Mrs. Cunweather.

Mrs. Cool fechou a mala com um ruído seco, segurou-se ao braço do sofá, fez violento esforço e pôs-se de pé. Dirigimo-nos para a porta, deixando Cunweather e a mulher a conversar em voz baixa. No momento em que íamos a sair Cunweather chamou:

- Uma última pergunta, Mrs. Cool. Sabe se Morgan Birks esteve sempre no Quarto 618? Por outras palavras, encontrava-se lá quando a amante chegou ao hotel?

- Não sei. Que lhe parece, Donald?

- Impossível - respondi. - A menos que estivesse combinado com um dos paquetes e este tivesse conduzido Morgan Birks até lá. O quarto foi-lhe alugado como se estivesse livre. Ela tinha telefonado a guardar dois, o 618 e o 620, com casa de banho comum. Quando se registou, ficou apenas com o 618, dizendo que os seus amigos não tinham podido...

Calei-me bruscamente. Uma ideia atravessara-me o espírito.

- Não tinham podido, o quê? - insistiu Cunweather, interessado.

- Vir. O paquete conduziu-a ao 618. E fui eu quem alugou o 620.

- Quem tinha a casa de banho?

- Eu.

- Então o 618 não tinha?

- Julgo que não. A não ser que houvesse outra entre o 618 e o 616.

Mrs. Cunweather chamou o marido:

- Deixa-os ir embora, William. Já temos informações suficientes para tratarmos o assunto por nossa conta.

- Está bem, Mrs. Cool - disse o Chefe. - A sua visita deu-nos muito prazer. Volte a visitar-nos qualquer dia destes. Não me esquecerei de si, pode ter a certeza. E não fique com má impressão a meu respeito, Lam. Você foi admirável e o seu nariz não está com muito mau aspecto. Vejo, pela sua maneira de andar, que lhe doem um bocado as costas; mas, isso passará dentro de vinte e quatro horas. Você...

Abriu a porta e segurou-a para nos deixar passar.

- Então, Lam, apertemos as mãos.

- Aperte-lhe a mão, Donald - ordenou Bertha.

Tivera impressão de ter apertado uma esponja pegajosa. Olhou-me nos olhos.

- Ainda está zangado? -perguntou-me.

Entrou em casa e bateu a porta atrás de si.

- É um cliente, Donald - disse Bertha Cool, em tom reprovador. - Não podemos ficar zangados com os clientes.

Não respondi nada.

 

CAPÍTULO IX

O táxi esperava-nos.

- Vamos aos Apartamentos Stillwater - disse Bertha Cool, ao motorista.

- Não quer ir falar com Sandra? - perguntei.

- Ainda não.

O automóvel pôs-se em marcha.

- Tive uma ideia extravagante - disse eu.

- Diga-a sempre.

- Esta história parece tão complicada... Tenho a impressão de que Cunweather está envolvido no negócio das máquinas automáticas. Provavelmente, é ele o chefe da quadrilha. Morgan Birks devia servir de intermediário. Encarregavam Morgan de pagar “as luvas” e agora que o escândalo estalou e que se fez uma investigação, verificou-se que Morgan estava a governar-se. Por outras palavras, cada vez que ele dizia à quadrilha que tinha pago cem dólares, não pagara, na realidade, senão cinquenta. Cinquenta para a polícia, cinquenta para ele.

- Não vejo nada de extravagante, nessa ideia - disse ela, acendendo um cigarro - e nada de original. Está visto que era assim. Você tem razão.

- Espere um minuto. Ainda não lhe disse onde queria chegar.

Puxou uma fumaça do cigarro e disse, com impaciência:

- Então, despache-se.

- Ao princípio da noite, Cunweather estava absolutamente certo que Morgan Birks não tinha entrado no Perkins Hotel. Parecia saber, minuto a minuto o que eu tinha feito lá dentro. Dei uma boa gorjeta ao chefe dos paquetes para obter determinadas informações. Este devia estar ao serviço da quadrilha.

- É muito possível.

- Então ele devia para lá ter entrado antes da minha chegada.

- De acordo.

- Para organizar esse serviço, era-lhes preciso dinheiro e alguns dias de preparação.

- Com certeza.

- Ora, o Perkins Hotel só passou a desempenhar determinado papel, neste assunto, a partir do momento em que Sally Durke para lá entrou. Cheguei ao mesmo tempo. Mas, o chefe dos paquetes já lá estava há mais tempo.

- O que quer dizer que eles tinham um serviço de informações bem montado.

- Significa mais do que isso. Quem podia saber que Sally Durke ia instalar-se naquele hotel? Ela não tinha nenhum motivo para se encontrar com Morgan Birks antes de eu lhe falar. Foi a minha intervenção que a fez precipitar-se para junto de Morgan.

- Continue, Donald. Está a interessar-me.

- Cunweather sabia que Birks se servia deste hotel para se avistar com a amiga. Não a conhecia. Mas, sabia que mais tarde ou mais cedo, Morgan faria a sua aparição no hotel. Cunweather é um cidadão influente. Aposto que vigiava o hotel para que Birks não pudesse nem entrar nem sair. E no entanto, Birks entrou e saiu.

- A que conclusão é que pretende chegar, Donald? - exclamou Bertha. - Você disse que ele não podia entrar nem sair e que, no entanto, o fizera. Parece que não está bom da cabeça.

- Escute - prossegui, sem me deixar comover – examinemos o assunto por outro prisma. Não se esqueça que nos deram o quarto 620. Procurei instalar-me no quarto em frente ao 618 para poder vigiar a porta. Era o que qualquer detective faria. Impossível. Todos os quartos estavam ocupados. Teria havido complicação se Sally Durke não tivesse mandado reservar para mim, o 620.

- Para si, Donald?

- Pois!

- O que é que o leva a supor?

- Ela tinha telefonado a reservar dois quartos contíguos, separados por uma casa de banho. Só ocupou um, deixando-me a casa de banho. É o que se pode considerar uma grande delicadeza!

- Mas, porque pensa que ela o deixou para si?

- Por que desejava que eu utilizasse a casa de banho.

- Mas, você não o fez. Foi Bleatie quem se serviu.

- Justamente. Está tudo visto. Destinavam a casa de banho a Bleatie. Ele não é irmão de Sandra Birks, é o marido. Bleatie é Morgan Birks.

Bertha Cool lançou-me um olhar duro e glacial.

- Não diga asneiras, Donald.

- Tudo indica que tenho razão - respondi. - Fomos uns idiotas em não nos termos apercebido disso há mais tempo.

- Acredita  que  Sandra não seja capaz  de reconhecer o seu próprio irmão?

- Sim, se ela tiver algum irmão. Mas, ela estava no segredo. Era por isso que Bleatie defendia Morgan com tanto afinco, foi por isso que obrigou Sandra a renunciar a todas as suas pretensões sobre o dinheiro existente nos cofres. Tudo se torna claro. Sandra Birks queria divorciar-se. Morgan Birks estava disposto a concordar. Possivelmente, até o desejava tanto como a mulher. Mas, era preciso entregar-lhe a intimação. Ele andava fugido à Justiça. Alguém tinha de encarregar-se de lha entregar, alguém que pudesse jurar perante o tribunal que o fizera. Foi, nessa altura, que entrámos  nós.

- Mas, Sandra foi buscar Bleatie ao comboio, e teve um desastre de automóvel e...

- Falemos desse desastre de automóvel. É aí que começa a aldrabice. Chamaram o médico para aplicar uma ligadura sobre a cara do homem e arranjaram maneira de o desfigurar completamente. Com os olhos quase tapados e a boca torcida, estava irreconhecível. É a única explicação que se pode arranjar para os factos. Cunweather mandara vigiar o hotel e, quando ele diz que Morgan Birks não entrou, estava certo disso. Birks não lhe escapou, enrolou-o. E nós também fomos levados. Bem me parecia que essa tal Sally me dera muito pouco trabalho a segui-la. Conduziu-me directamente ao Perkins Hotel sem olhar para trás uma única vez. Quando telefonei a Sandra Birks a dizer-lhe onde me encontrava, esta quis, contra a minha vontade, vir acompanhada por Bleatie. O resto não foi mais do que uma brincadeira de crianças. Bleatie simulou uma pequena hemorragia. O dr. Holoman levou-o para a casa de banho. Nada mais tinha a fazer do que fechar a porta que dava para o meu quarto e abrir a do quarto de Sally Durke. Bleatie transformou-se, tirou todas as ligaduras, readquiriu a sua verdadeira fisionomia e estendeu-se em cima da cama. Bleatie tinha os cabelos pretos separados por uma risca e penteados para o lado, o que deixava visível uma “coroa” no alto da cabeça. Nenhum indivíduo mundano se pentearia assim a não ser que tivesse espessa cabeleira no resto da cabeça. Morgan Birks tinha cabelos negros e um princípio de calvície. Penteava os cabelos para trás o que tapava a calva.

Bertha Cool enrugou as sobrancelhas.

- Aí está porque eles estavam tão preocupados pelo facto de você se demorar. Tinham receio de prolongar a comédia da casa de banho. Mas, então, como é que conseguiam ter tantas toalhas manchadas de sangue, além da roupa?

- Não era sangue; mas, sim mercurocromo ou qualquer outro medicamento que o médico tinha preparado para imitar sangue. Meu Deus, não posso saber todos os pormenores! Estou a dar-lhe o caso em linhas gerais. Mas, as coisas não se podem ter passado de outra maneira. Bleatie passou para a casa de banho, tirou as ligaduras e transformou-se em Morgan Birks. Logo que lhe entregámos os documentos, saltou da cama, voltou para a casa de banho, enfiou a camisa manchada de sangue, penteou os cabelos para o lado e repôs a sua máscara de ligaduras. Transformou-se outra vez em Bleatie. Enquanto estava na casa de banho, pôde fingir estar a falar com Morgan Birks, através da porta de comunicação. A voz de Bleatie parecia diferente da de Morgan porque falava à maneira de alguém que tinha o nariz tapado. E como as ligaduras o tornavam irreconhecível, foi-lhe possível entrar no hotel nas barbas da quadrilha que o esperava. Foi também assim que enrolou a polícia. Vivia tranquilamente no sítio onde ninguém pensava em ir procurá-lo, no seu apartamento com a esposa. Esta escondeu-o para conseguir o divórcio. Era, por isto, que Bleatie odiava tanto Holoman: Sandra enganava-o debaixo do nariz e nas suas barbas, e ele nada podia fazer, senão protestar.

- Ter ódio a Holoman não liga muito bem... – observou Bertha Cool. - O médico deve ser um comparsa. Está envolvido no negócio também.

- Evidentemente. Mas, não como a senhora julga. Não foi Birks quem o meteu em cena, foi Sandra. Morgan reconheceu que tinha uma amante e Sandra admitiu que Holoman era seu amante. Entenderam-se sobre as cláusulas do divórcio. E como precisavam de um médico para desempenhar esta comediazinha, Sandra recorreu ao amante.

O táxi deteve-se diante dos Apartamentos Stillwater.

- Quanto marca o taxímetro, Donald?

- Quatro dólares e quinze cêntimos.

Bertha entregou ao motorista uma nota de cinco dólares.

- Dê-me setenta e cinco cêntimos - disse. - Pode guardar o resto.

Voltou-se para mim.

- Donald, você é um amor, um verdadeiro tesouro. Tem qualquer coisa dentro do crânio, não há dúvida nenhuma. Agora que esclareceu tudo, Bertha Cool vai entrar em acção. Mas, não se esqueça de que me deve noventa e cinco cêntimos deste táxi, meu rapaz. Descontá-los-ei no seu ordenado.

Desceu do carro, aceitou os setenta e cinco cêntimos que o motorista lhe estendia de má vontade, tirou um livrinho de apontamentos do bolso e inscreveu na coluna das suas despesas: Três dólares e trinta cêntimos. Depois voltou a folha e anotou: D. L., a receber: noventa e cinco cêntimos, adiantados para um táxi. Fechou o livrinho, guardou-o na bolsa, sorriu para o motorista, pegou-me no braço e, quando o táxi se afastou, declarou-me:

- E agora, Donald querido, vamos a isto. É preciso tirar a prova real.

- Onde vamos? A casa de Sandra?

- Não, não, vamos procurar o dr. Holoman.

 

CAPÍTULO X

Estava quase a amanhecer. Ao longe, por detrás da linha de edifícios sombrios, manchas róseas embelezavam o céu. Uma luz cinzenta filtrava-se nas ruas, as casas pareciam brumosas, irreais e perdiam-se no céu, por cima das nossas cabeças.

Andámos a pé alguns minutos até encontrar um táxi. Enquanto Bertha Cool se instalava, eu disse ao motorista:

- Leve-nos ao telefone mais próximo.

Ele quis conduzir-nos até à estação dos correios; mas, Bertha Cool avistou um restaurante nocturno e exclamou:

- Abra esse vidro, Donald, quero dizer duas palavrinhas a esse saloio.

Abri o vidro.

- Onde diabo pensa levar-nos? - gritou ela. - Dê meia volta e pare diante daquele restaurante. Quando digo ”o telefone mais próximo” não me refiro ao que está no outro extremo da cidade.

O motorista resmungou qualquer coisa e voltou para trás.

- Veja no anuário, Donald - ordenou Bertha. - descubra-me um Holoman que seja médico. E não se esqueça que quanto mais tempo se demorar mais caro me custa este táxi. Despache-se.

- Calculo que ele ainda não tenha consultório. Vai ser preciso telefonar para os hospitais. Preciso de moedas.

Ela suspirou, tirou quatro moedas de níquel do bolso e gemeu:

- Por amor de Deus, Donald, veja se toma decisões. Não posso facturar estas comunicações a Sandra Birks. Tenho de me arriscar com o meu dinheiro.

Do segundo hospital para onde eu liguei, a telefonista disse-me que havia um Archie Holoman entre os internos.

O Shelley Foundation Hospital não era muito longe; o táxi depressa nos conduziu lá.

- Provavelmente não está nesta altura - disse Mrs. Cool. - Pergunte a morada... a menos que habite no hospital. Espero-o aqui.

Subi a correr a escadaria de mármore. Cada vez estava mais claro. A frescura do ar tornava mais irrespirável ainda esta atmosfera de doença e de morte. Uma enfermeira de olhos pisados, sentada por detrás de uma secretária, ergueu a cabeça. A luz do dia que se misturava com a luz eléctrica dava-lhe um aspecto acinzentado e pastoso.

- O dr. Archie Holoman não é interno neste hospital?

- É.

- Precisava de lhe falar, se faz favor.

- Está de serviço. Espere um minuto, julgo poder chamá-lo ao telefone. Como se chama?

- Lam, Donald Lam.

- Ele conhece-o?

- Conhece.

A enfermeira ergueu-se, aproximou-se da telefonista do P. B. X., e disse-lhe algumas palavras. Demorou pouco e perguntou:

- Prefere falar na cabine ou servir-se do telefone do meu gabinete? O dr. Holoman já está a atender.

Escolhi a cabine. Tratava-se de não cometer nenhum erro. Não queria que ele imaginasse que eu estava a fazer troça. Pareceu-me preferível dar-lhe a entender desde logo que tinha descoberto o jogo.

- Daqui, fala Donald Lam. Ouça, doutor, gostaria que me dissesse o que se passou exactamente esta tarde quando entreguei os documentos. E pretendia que precisasse o seu diagnóstico sobre o tal nariz fracturado. Maça-o muito descer um instante? Mrs. Cool está aqui num táxi.

- Como é que o senhor se chama?

- Lam, Donald Lam. Bem sabe, o detective.

- Não estou a localizá-lo muito bem, Mr. Lam.

- No entanto, lembra-se bem do apartamento de Sandra - disse eu, com paciência.

- Estou convencido de que há aí um engano. Deve estar a confundir-me com qualquer outra pessoa. Ainda não dou consultas.

Então, era isso. Tinha medo que percebessem, no hospital, que dava consultas por sua conta e risco.

- Desculpe-me. Parece-me que de facto estou a cometer um erro. Não obstante, doutor, queria falar-lhe um instante. É-lhe possível descer? Não falaremos  aqui,  apressei-me a acrescentar, percebendo que ele hesitava. Mrs. Cool está lá fora no táxi. Iremos para o pé dela.

- Vou descer para tentar compreender que diabo pretende - disse bruscamente.

Demorei alguns minutos a ver o nascer do dia pela janela. A porta do ascensor abriu-se. Voltei-me para cumprimentar o dr. Holoman. Não era o mesmo. Um jovem moreno dirigia-se a passos rápidos para a secretária da recepção. Recomecei a olhar para a janela. Passados instantes, o jovem atravessou o átrio e aproximou-se de mim.

- Pretende falar-me ? - perguntou-me.

- Não. Estou à espera do dr. Holoman.

- O dr. Holoman sou eu.

- Deve ter razão, sr. dr. - disse-lhe eu. - Há um engano. Desejo falar com o dr. Archie Holoman.

- Sou eu o dr. Archie Holoman.

Examinei-o. Era um rapaz de trinta e poucos anos, de expressão pálida e honesta.

- Importa-se de me acompanhar ao táxi? Queria que explicasse a Mrs. Cool que o senhor não é o dr. Holoman que ela procura.

Olhou-me com ar desconfiado, mediu-me dos pés à cabeça e manifestamente persuadido que podia dominar-me em caso de necessidade, disse rapidamente:

- Está bem, está bem - e seguiu-me até ao táxi.

- Mrs. Cool – declarei - aqui tem o dr. Holoman; o dr. Archie Holoman.

Ela examinou-o e inquiriu:

- Quem é este pássaro?

Ele inclinou-se e disse com ar de pouco entusiasmo:

- Muito prazer em a conhecer, Mrs. Cool. Posso ser-lhe útil em alguma coisa?

- Em absolutamente nada. Vamos embora, Donald, suba.

- Agradeço-lhe imenso, sr. dr.  - disse-lhe eu.

Ele olhou-me com o ar cada vez mais convicto de que estava perante dois doidos. Sentei-me ao lado de Bertha, que gritou o endereço de Sandra Birks ao motorista e o automóvel pôs-se em marcha.

- Bom, a coisa complica-se - exclamei.

- Cada vez está pior, este inferno. O molho tem muita pimenta. Tem a certeza que aquele era o dr. Holoman?

Rebuscou a mala e suspirou:

- Donald, já não tenho cigarros.

Restavam-me alguns. Passei-lhe o maço, tirei um e aproveitámos o mesmo fósforo.

- São muito espertos, não lhe parece, Donald? Era-lhes preciso edificar o cenário sobre qualquer coisa autêntica. Se tivéssemos querido verificar a identidade do dr. Holoman, teríamos descoberto a sua data de nascimento, os seus diplomas universitários e as suas funções, sem nenhuma dificuldade. Não havia a mínima probabilidade de irmos ao hospital para o ver.

- Pergunto a mim mesmo quem poderá ser o tipo que se faz passar pelo dr. Holoman.

- O amante de Sandra, provavelmente. Nunca há fumo sem fogo.

Seguimos um instante em silêncio. Bruscamente, Bertha disse:

- Escute, Donald, não seja idiota.

- Que quer dizer?

- Você já está semi-apaixonado por essa tal Alma Hunter.

- Pode dizer mesmo dois terços – respondi - se gosta de fazer cálculos por fracções.

- Está bem, digamos dois terços. De resto, não me interessa. Cem por cento, se quiser.  Ela está envolvida num grande sarilho. Você vai tentar salvá-la. Mas não se excite. Não perca as estribeiras e examine a situação calmamente. Ela mentiu a respeito do tiro.

- Não tenho bem a certeza.

- Claro que não tem - disse Mrs. Cool secamente.

Fez-se novo silêncio.

-Tem algum plano? - perguntei.

- Tenho.

- Qual é?

- Vamos atribuir o crime a Bleatie.

- Mais devagar. Acabámos de verificar que Bleatie não existe.

- E isso é maravilhoso. Proporciona à polícia uma amêndoa que a polícia nunca poderá partir. De momento, somos os únicos a saber que Morgan Birks e Bleatie são uma e a mesma pessoa. Morgan morreu, portanto Bleatie também. Mas ninguém o sabe, ninguém o pode provar, porque ninguém encontrará o seu corpo. Basta, portanto, lançar-lhe o crime para cima das costas... Se ela pagar o suficiente. Você não tem mais nada a fazer do que ir até lá, perguntar com insistência onde está Bleatie e vai ver como um desses espertalhões da polícia não tardará a suspeitar que Bleatie é o assassino.

- Como é que essa ideia pode entrar na cabeça de um polícia quando Alma Hunter confessou ter pegado na arma e puxado o gatilho?

- É aí que temos de demonstrar um pouco de engenho. Se Sandra quiser livrar Alma da acusação e creio ser essa a sua intenção e estar pronta a pagar o que for preciso para esse efeito, pelo menos calculo, afirmaremos que foi Bleatie quem disparou,  que Alma estava excitada, histérica, que não se apercebeu do que se tinha passado. Ouviu um tiro e imaginou ter sido ela quem disparou, porque tinha um revólver na mão. Ora, nada disso. O tiro tinha sido disparado por Bleatie que se encontrava no quarto.

- Que estava lá a fazer?

- Estava a ver os quadros dependurados na parede.

- E Alma não sabia que ele estava lá?

- Não.

- E então Alma não fez fogo?

- Não, evidentemente que não.

- Mas suponha que é a arma dela que encontraram no sobrado?

- Não, não é a arma dela. Ela gritou, largou a arma e fugiu. Bleatie largou o seu revólver no quarto, pegou no de Alma e desapareceu na noite.

- A senhora arranja tudo à sua vontade.

- A história é absolutamente plausível.

- Não gosto muito. E o que é mais grave, duvido que a polícia acredite. Decididamente, prefiro a minha versão.

- Os polícias tem mãos, orelhas, olhos, pernas e nariz como todos. Eles podem coordenar os factos e tirar conclusões tão bem como nós. Só temos de provar que a rapariga está inocente. Compete à polícia demonstrar que ela é culpada. Se pudermos dar uma explicação aos factos, desde que não haja nenhuma lacuna, é o que é preciso para o júri. A lei é assim.

- A letra da lei não é bem essa, mas anda lá perto.

- Quer libertar Alma Hunter ou não?

- Quero.

- Muito bem. Então, cale a boca e deixe falar a tia Bertha.

O automóvel parou diante da casa de Sandra. Um agente da polícia estava à porta. Os raros transeuntes da madrugada nem sonhavam o que acabara de acontecer naquela casa. Do lado de fora, nada indicava ter havido um crime.

- Um momento - disse o polícia. - Mora aqui?

- Não.

- Onde vai?

- A casa de Sandra Birks.

- Como se chama?

- Bertha Cool, directora da agência de investigações Cool. Trago um dos meus empregados comigo.

- Que pretende?

- Falar com Sandra Birks.

- A propósito de quê?

- Não sei. Ela deseja falar-me. Que se passa? Prenderam-na?

- Não.

- Ela habita aqui, não é verdade?

- Está bem, suba - disse ele.

- Obrigada, era isso mesmo que eu pretendia.

Quis mostrar-me delicado e abrir a porta, mas ela já me tinha ultrapassado e feito voar a pesada porta como se fosse feita de papelão. Precipitei-me atrás dela para o ascensor e subimos até ao quarto andar. Logo que batemos, Sandra veio abrir.

- Tanto tempo para cá chegarem.

- Não queríamos chocar com a polícia - respondeu Bertha Cool.

- Está um lá em baixo.

- Já sei.

- Tentou impedir-lhes a passagem?

- Tentou.

- Que fizeram?

- Entrei.

- Disse-lhe que era detective?

- Disse.

- Acha que ele deixava passar outra pessoa que não fosse detective ?

- Como quer que saiba, minha querida amiga? É um polícia. Nunca se sabe o que se passa dentro da cabeça de um polícia.

Sandra mordeu os lábios e enrugou as sobrancelhas.

- Estou à espera de uma pessoa, um amigo nosso. Pergunto a mim mesma se não o terão levado para o comissariado.

- Era bem melhor telefonar-lhe para o prevenir - propus.

- Julgo que vigiam a linha.

- Devem ter-me deixado aqui como isca da ratoeira.

- Que género de ratoeira?

- Não sei.

- Mostre-me o quarto de dormir - disse Bertha Cool - depois conversaremos.

Sandra empurrou a porta do quarto onde Alma tinha dormido. Sobre o tapete, uma linha traçada a giz indicava o sítio onde o corpo fora encontrado. Na porta, tinha sido serrado um pequeno quadrado.

- O que foi isto? - perguntou Bertha Cool. -Foi onde a Bala se cravou?

- Foi.

- Têm a certeza de que a bala foi disparada por este revólver?

- É o que eles estão a examinar.

- Onde é que ela arranjou o revólver?

- É o que eu não consigo compreender. Tenho a certeza absoluta de que não o tinha ontem de manhã.

Bertha Cool olhou-me com ar desconfiado e reprovador.

- Onde está o seu irmão? - perguntou a Sandra.

Os olhos de Sandra esbugalharam-se.

- Não sei absolutamente nada.

- Onde é que ele estava no momento em que o tiro foi disparado?

- No quarto, penso. Pelo menos, era onde devia estar.

- Onde está agora?

- Não sei.

- A cama está desfeita?

- Não. Manifestamente, ainda não se deitou.

- É bastante tarde, neste momento, já devia ter-se deitado.

- Não sei  - disse Sandra, agreste. - Eu própria não estava em casa. Evidentemente, se soubesse que iam matar o meu marido, teria organizado uma noite diferente. Mas, ninguém me avisou. Também não andei atrás do meu irmão para ver a que horas se deitava ou quais eram os seus planos.

- Mais alguma coisa?

- Que quer dizer?

- Se há mais alguma coisa que me queira dizer?

- Porquê?

- Porque - respondeu tranquilamente Bertha Cool – falar comigo custa dinheiro. Se pretende gastar dinheiro a colocar-se entre o seu irmão e as consequências dos seus actos, não tenho nada com isso. Ouvi-la-ei todo o tempo que quiser falar.

Sandra pareceu bruscamente descontrolada.

- Que quer dizer com: “colocar-me entre o meu irmão e as consequências dos seus actos?”

- Sabe muito bem o que quero dizer, minha querida. O seu irmão matou o seu marido.

Como Sandra se preparava para lhe responder, Bertha voltou-lhe as costas e acrescentou:

- Venha, Donald, vamos ver o resto do apartamento. A polícia com certeza que remexeu isto tudo, mas talvez ainda se encontre qualquer coisa de interessante.

Sandra Birks deixou-se ficar no meio do aposento a olhar para o sobrado.

- Você falou com Bleatie no outro quarto de dormir, não foi, Donald?

- Foi.

- Indique-mo.

Conduzi-a lá. Bertha fechou a porta atrás de si.

- Tem razão, Donald, não me interessa nada o que possa haver neste quarto, mas quero dar-lhe tempo de reflectir nas possibilidades da situação.

- Acredita que ela queira proteger Alma Hunter?

- Evidentemente. Se assim não fosse, para que nos teria mandado chamar?

- Talvez já tivesse dito demais. Devem tê-la interrogado a respeito do irmão.

- Oxalá não tenha dito nada de muito comprometedor. Ela não tem nada o aspecto de ser muito sincera. Pergunte-lhe o tempo que faz e vê-la-emos responder evitando com muito tacto dizer se chove ou se faz bom tempo, se está frio ou calor. Mas, vejamos sempre o que há neste aposento.

Aproximou-se da cómoda, abriu todas as gavetas e exclamou de súbito:

- Que vem a ser isto, Donald?

Estendia-me um objecto volumoso.

- Parece um cinto de salvamento... Ah, já sei. Bleatie tinha uma silhueta curiosa, um ventre em forma de melão. Morgan Birks, pelo contrário, era magro, tinha o estômago metido para dentro. Temos aqui o engenho de que Morgan Birks colocava sobre o ventre para se transformar em Bleatie.

Examinei o objecto. Ela tinha razão, sem dúvida nenhuma.

- Embrulhe isso em qualquer coisa, Donald. É inútil que seja visto pelo juiz encarregado da instrução do processo.

Saí a procurar jornais e encontrei-me com Sandra.

- Onde está Mrs. Coo!? - perguntou.

Apontei para o quarto de cama. No vestíbulo, encontrei um jornal que estava sobre uma mesa. Esperei um ou dois minutos antes de voltar ao quarto.

- Eu trato disso - declarei ao entrar.

Bertha Cool e Sandra Birks estavam diante uma da outra e Bertha afirmou:

- Não diga nada, minha querida, enquanto não reflectir. Neste momento, deve estar muito nervosa.  Espere até ter examinado bem o assunto, depois falaremos de finanças.

- Já reflecti - disse Sandra.

Bertha Cool entregou-me o cinto de borracha.

- Faça um embrulho disto, Donald, e leve-o consigo.

Fiz conscienciosamente um embrulho bem atado. Encontrei um rolo de fio numa das gavetas da cozinha e apliquei-me a fazer diversos nós. Mal tinha acabado, bateram à porta com violência.

- Abra - ordenou uma voz.

Coloquei o embrulho sobre a mesa, cobri-o com o meu chapéu e gritei para Sandra Birks:

- Estão a bater à porta.

Ela saiu do quarto de Bleatie. Antes que tivesse tempo de abrir, ouviu-se uma nova série de socos contra a porta. Logo a seguir, dois agentes enfiaram pela casa dentro.

- Vamos, boneca, acabou a comédia.

- Que querem dizer?

- O revólver que matou Morgan Birks é o mesmo que matou Johnny Meyer e Johnny Meyer, no caso de não o saber, era o inspector de Kansas City que andava a fazer uma investigação sobre a quadrilha das máquinas automáticas. Estava encarregado de revelar o assunto perante o Grande Júri. Nunca mais tornou a aparecer. A última vez que o viram, foi na companhia de uma boneca muito engraçada. Na manhã seguinte, encontraram-no com três balas no peito. A polícia de Kansas City difundiu as micro-fotografias das balas que o mataram e deram ordem a todas as organizações policiais que procurassem o revólver que as tinha disparado. Vamos, minha linda, será bom que fales o mais depressa possível.

Sandra Birks ficou imóvel, branca como um lençol.

Nesse momento, Bertha Cool saiu do quarto de Bleatie e o segundo agente perguntou a Sandra:

- Quem é esta gente?

- Somos detectives - respondeu Bertha Cool.

- São, o quê?

- Detectives.

O homem desatou a rir.

- Perfeitamente - respondeu Bertha, com furor – detectives particulares. Estamos a investigar este assunto por incumbência de Mrs. Birks.

- Saiam - ordenou o agente.

Bertha instalou-se confortavelmente num sofá.

- Ponham-me na rua -propôs.

Lancei um olhar significativo ao meu chapéu e ao embrulho que estavam em cima da mesa.

- Eu vou-me embora - disse eu.

- Estou no meu direito - declarou Bertha Cool. – Se querem prender Mrs. Birks, se querem falar-lhe, não se preocupem comigo. Mas, ficarei aqui, ninguém me obriga a ir embora.

- Isso é o que a senhora imagina - resmungou o polícia aproximando-se dela com ar agressivo.

Sandra Birks abriu-me silenciosamente a porta. Enquanto os dois agentes se dirigiam para Bertha Cool, deslizei para o corredor. Não me atrevi a esperar pelo ascensor e precipitei-me pelas escadas, que desci a correr. Ao chegar ao último  andar, diminui o andamento, atravessei o vestíbulo com o ar tranquilo de um homem que vai entregar um embrulho de roupa suja à lavandaria e caminhei pelo passeio. O carro da polícia estava estacionado diante da casa. Um empregado começara a retirar automóveis do interior da garagem vizinha e a arrumá-los junto ao passeio. Atirei o meu embrulho para dentro de uma limousine sumptuosa convencido de que o proprietário devia dormir até tarde, entrei e sentei-me, colocando o embrulho ao meu lado.

Bertha Cool saiu majestosamente da casa, olhou à direita e à esquerda e dirigiu-se para a esquina da rua. Passou ao lado do carro sem me ver. Não me mexi. Depois de ela dar cinquenta passos, pus-me a examiná-la pelo espelho retrovisor. Parecia não compreender a minha desaparição. Parou duas vezes antes de chegar à esquina e olhou em volta com insistência. À esquina da rua, virou à esquerda. Talvez quisesse simplesmente dirigir-se para ruas mais frequentadas, ou descobrir um táxi, ou talvez continuasse a procurar-me. Não me atrevia a olhar para trás. Mantive-me no meu lugar olhando de vez em quando pelo retrovisor, mas toda a minha atenção continuava concentrada na entrada da casa.

Daí a pouco, os dois agentes à paisana saíram. Sandra Birks não os acompanhava. Pararam um instante a discutir; depois, subiram para o carro da polícia que partiu. Peguei no meu embrulho, desci do automóvel e aproximei-me rapidamente da entrada da casa. A porteira colocara um enorme caixote do lixo à porta. Levantei a tampa e atirei para dentro o meu embrulho. Rapidamente subi até ao apartamento de Sandra Birks. Ela só abriu a porta depois de eu bater duas vezes. Não tinha chorado, mas estava com olheiras e as faces encovadas.

- Você? - disse ela.

Entrei, fechei a porta atrás de mim e empurrei o ferrolho.

- O embrulho – perguntou - que lhe fez, conseguiu desfazer-se dele?

Fiz-lhe sinal afirmativo.

-Não devia ter cá voltado.

- Precisava  falar-lhe.

Levou a mão ao meu ombro.

-Estou cheia de medo. Não sei o que hei - de fazer. Acredita que Morgan... que Alma...

Envolvi-lhe a cintura com um braço.

- Calma, Sandra.

Foi como se o meu gesto traduzisse para ela um sinal. Moldou o seu corpo contra o meu, mergulhou o seu olhar no meu e murmurou:

- Donald, preciso que me ajude.

Depois, beijou-me.

Devia ter em mente preocupações de outro género, mas o beijo não sofreu nada com isso. Decididamente, nada tinha de fraternal nem de platónico. Passados momentos, atirou a cabeça para trás e olhou-me nos olhos.

- Donald - disse ela.  - dependo de si.

Em seguida, antes mesmo que eu tivesse podido responder fosse o que fosse, exclamou:

- Oh, Donald, você é um amor. Sinto um tal reconforto por poder contar consigo.

- Não lhe parece melhor aplicar os valores do meu espírito ao nosso problema?

- Você vai ajudar-me, não vai?

- Porque pensa que voltei aqui?

Ela acariciou-me os cabelos com as pontas dos dedos.

- Já me sinto muito melhor. Sinto que posso ter confiança, Donald. Senti desde o princípio. Estou disposta a fazer tudo por si. Você é tão...

- Quero dinheiro.

Ela calou-se espantada.

- Quer, o quê?

- Dinheiro.

- Que quer dizer com isso de dinheiro?

- Moedas, papel e o máximo possível.

- Mas, Donald, já dei a Mrs. Cool um adiantamento.

- Infelizmente Mrs. Cool não pertence a nenhuma organização colectivista e não o partilha comigo. Pelo menos, por ora.

- Mas você trabalha para ela, não?

- Julgava que queria que trabalhasse para si.Enganei-me?

- Você trabalha para ela e ela trabalha para mim.

- Está bem, como quiser.

Afastou-se suavemente de mim e deixei de sentir o calor do seu corpo.

- Donald, não compreendo.

- Tanto pior. Julgava que compreendesse. Tenho de concluir que me enganei. Vou procurar Bertha Cool.

- Quanto dinheiro pretende?

- Bastante.

- Quanto?

- Quando lhe disser, vai cair das nuvens.

- Mas porque o reclama?

- Para cobrir as minhas despesas.

- Que conta fazer?

- Vou assumir todas as responsabilidades.

- Que quer dizer, Donald?

- Bertha Cool tem ideias disparatadas. Imagina que pode servir-se de Bleatie como bode expiatório, simplesmente porque não é possível descobri-lo. Podia seguir-se essa ideia desde que se tratasse de um simples crime de alcova. Porém, na maneira que as coisas estão presentemente, é impossível. Mataram um inspector de Kansas City. Bem sabe como a polícia reage quando lhe assassinam um dos seus elementos. Não gosta nada disso.

- Mas que pretende dizer ao afirmar que vai assumir todas as responsabilidades? - perguntou, fixando em mim um olhar penetrante e calculador.

- Vou confessar que cometi o crime e livrá-las as duas. Direi que fui eu quem disparou a arma, mas é preciso fazê-lo à minha maneira.

- Mas, assim você será condenado.

- Não, não me condenarão.

- Donald, é impossível. Você não aceita, não pode aceitar...

- Não percamos tempo com discussões,  é preciso agir. Se a polícia não a prendeu, é porque não tinha provas suficientes contra si e porque um advogado inteligente a poria em liberdade. Pensaram, portanto, em dar-lhe bastante guita, para ver o que você fazia. Querem também ver naturalmente se conseguem pescar na sua rede mais algum peixe. Logo que cheguem ao comissariado, mandarão vigiar este apartamento tão cuidadosamente que nem mesmo uma barata poderá sair daqui sem que seja vista. Quer esperar que isto aconteça?

- Evidentemente que não.

- Eu também não. Quero raspar-me antes que isso suceda. Isto é, imediatamente.

Dirigi-me para a porta.

- Quanto quer, Donald?

- Três mil dólares.

- Três, quê? - exclamou.

- Mil. Três das grandes. Quero-as imediatamente.

- Donald, você está a falar como se tivesse enlouquecido.

- E você está a agir como se já estivesse. É a única maneira de se livrar. Ofereço-lha, quer, sim ou não?

- Como é que sei se posso confiar em si?

Limpei os lábios sujos de “baton” e respondi:

- De maneira nenhuma.

- Já fui traída muitas vezes por homens em quem confiei.

- Quanto é que Morgan deixou nos cofres fortes?

- Não tinha nenhuns.

- Estavam em seu nome. A polícia não tardará a descobrir.

Ela desatou a rir.

- Acha-me com cara de ter nascido ontem?

- Suponho que já foi limpar todos esses cofres muito convencida de ter sido esperta. Quando o juiz souber disso, terá descoberto um lindo móbil para o crime.

Sandra exibiu um olhar aterrorizado.

- E se ele descobre a seguir que você tem esse dinheiro em seu poder, está pronta, porque vão vigiar-lhe todos os movimentos a partir de agora. Mais tarde ou mais cedo, a polícia conduzi-la-á à prisão e uma corpulenta matrona despir-lhe-á todos os seus belos vestidos e examinará o seu lindo corpinho. Entretanto, agentes virão espiolhar o seu apartamento. Que tal lhe parece?

- Oh, Donald, eles não farão isso.

- Fazem, fazem.

- Trago o dinheiro todo comigo, num cinto.

- Quanto?

- Bastante.

- Não quero tirar-lho todo, Sandra. É melhor deixar aí uns cem ou duzentos dólares no cinto para eles não perceberem que foram enganados. Quanto ao resto, tem duas possibilidades: ou confiar-mo, sabendo que posso desaparecer, ou dividi-lo em diversos sobrescritos que enviará em seu nome para a posta restante. Porém, qualquer das coisas é preciso fazer depressa.

Sandra levou cerca de cinco segundos a decidir-se. Manteve-se a olhar para mim, com a cabeça ligeiramente descaída para um dos lados. Sustentei o seu olhar. Bruscamente, desabotoou a saia, deixou-a escorregar e entregou-se ao trabalho de abrir os fechos. Não era exactamente um cinto, mas sim uma cinta. Entregou-ma. Não podia colocá-la em mim. Desapertei o meu cinto e empurrei-a para trás das minhas costas.

- Só Deus sabe porque faço isto - suspirou ela. - Entrego-me absolutamente nas suas mãos. Fico sem nada.

- Só mais uma coisa... seja correcta com Alma, e sê-lo-ei consigo. Faço tudo isto por ela.

- Não é por mim? - perguntou, um pouco amuada.

- Não, é por Alma.

- Oh, Donald, julgava que era porque...

- Pois bem, mude de ideias  - disse eu saindo e batendo com a porta atrás de mim.

Encontrava-me ainda no cimo das escadas quando ela reabriu a porta e gritou:

- Donald, venha cá.

Desci as escadas a correr. Ouvi-a gritar e correr atrás de mim. Cheguei ao vestíbulo apenas alguns segundos antes dela. Precipitei-me para a rua. Diante da porta estava estacionado um automóvel dentro do qual se encontravam dois homens. Pela maneira como me olharam, compreendi quem eles eram.

Fiz de conta que não os vira, aproximei-me de um carro, subi, carreguei na mise en marche e inclinei-me para a frente de modo que a minha cabeça ficasse quase escondida pela porta.

Sandra irrompeu pela rua, olhou para a direita e para a esquerda e pareceu estupefacta de não me ver. Correu na direcção da esquina da rua. Os dois agentes à paisana trocaram um olhar. Um deles desceu do carro com ar despreocupado.

- Procura alguma coisa? - perguntou.

Ela voltou-se... e compreendeu.

- Pareceu-me ter ouvido alguém gritar que havia fogo - disse ela. - Há algum incêndio?

- Está a sonhar, minha linda - replicou o agente.

Com grande surpresa minha, o motor de arranque do carro não estava fechado.  O carro principiou a trabalhar. Endireitei-me. Sandra viu-me nessa altura e manteve-se imóvel sob o olhar severo do inspector incapaz de fazer um gesto.

Ela jogava a última cartada que a podia salvar. Os seus lábios tremeram e balbuciou:

- Eu... eu estou muito ner... muito nervosa, esta manhã. O meu marido acaba de ser ass... ass... assassinado...

Vi o rosto do agente distender-se.

- Oh, que grande desgraça  - disse em tom de compaixão.

- Quer que a acompanhe a casa?

Afastei-me no automóvel.

 

CAPÍTULO XI

Registei-me no Perkins Hotel sob o nome de Rinton C. Watson, de Klamath Falls, Oregon. Ocupei um quarto com casa de banho e pedi ao paquete que fosse chamar o seu chefe. Este depressa apareceu com um sorriso de falsa deferência que caracteriza as pessoas que vivem de gorjetas. Calculei que ele soubesse o que eu desejava antes mesmo de eu abrir a boca.

- Não é consigo que eu quero falar - disse eu.

- Posso fazer o que me pedir tão bem como qualquer outro.

- Não, não é isso. Quero falar com um velho amigo.

- Como se chama?

- Creio que mudou de nome.

Desatou a rir.

- Diga-me como ele se chamava, talvez eu o conheça.

- Evidentemente, se eu lhe disser - observei, olhando-o com ar desconfiado.

Deixou de rir.

- Somos três, neste serviço.

- Mora aqui no hotel?

- Sim, senhor. Tenho um quarto no rés–do-chão. Os outros moram fora.

- O homem de quem lhe falo deve ter uns vinte e cinco anos. Os cabelos são  negros e espessos e descem bastante baixo até ao meio da testa, nariz curto e esborrachado e olhos cinzentos escuros.

- Onde o conheceu? - perguntou.

Hesitei um instante ao responder:

- Em Kansas City.

Estas palavras produziram efeito imediato.

- É Jerry Wegley. Começa o seu turno às quatro horas da tarde e trabalha até à meia-noite.

- Wegley - murmurei, com ar pensativo.

- Era esse o nome pelo qual o conhecia? - perguntou o chefe dos paquetes, com curiosidade.

Hesitei um pouco antes de responder.

- Era.

- Está bem.

- Onde é que lhe posso falar?

- Aqui, depois das quatro horas.

- Eu queria dizer agora mesmo.

- Posso ir saber o seu endereço. Talvez prefira telefonar-lhe.

- Preciso falar-lhe pessoalmente. Eu usava outro nome quando ele me conheceu.

- Vou ver o que posso fazer.

- Isso mesmo - disse eu e fechei a porta à chave depois dele sair. Retirei a cinta que colocara entre a camisa e o corpo e comecei a contar as notas de cem e cinquenta dólares. Tinha ali oito mil quatrocentos e cinquenta dólares ao todo. Fiz quatro maços de notas, meti-os nos bolsos das calças e enrolei a cinta num só embrulho o mais compacto possível.

O paquete reapareceu.

- Mora em Brinmore Rooms - disse. - Se Jerry não tiver satisfação em vê-lo, não lhe diga que fui eu quem lhe deu a informação.

Dei-lhe uma nota de cinquenta dólares.

- Podia trazer-me quarenta e cinco dólares de troco?

O seu rosto abriu-se num largo sorriso.

- Pode ter a certeza que voltarei aqui dentro de cinco minutos com os quarenta e cinco dólares.

- Traga-me um jornal também.

Quando ele me trouxe os dólares e o jornal, embrulhei a cinta e saí do hotel. Dirigi-me à estação dos correios, sentei-me num banco durante alguns minutos, depois levantei-me deixando ficar o embrulho.

Num dos “guichets”, comprei um envelope com selo, enderecei-o com a indicação de “expresso” a Jerry Wegley, Brinmore Rooms, enchi-o com recortes do jornal, fechei-o e tomei um táxi para Brinmore Rooms.

Toquei à campainha. Como ninguém respondesse, toquei de novo. Passados dez segundos, uma mulher de rosto cansado, a boca guarnecida de dentes de ouro, veio saber o que eu desejava.

- Uma carta - expresso para Jerry Wegley. Quer entregar-lha?

- Não. Está no dezoito, ao fundo do corredor - disse ela secamente.

Fui bater à porta n.º 18, em vão. Tentei introduzir uma lâmina de canivete no sítio da fechadura e cheguei à conclusão, passados cinco minutos, que não tinha jeito nenhum para gatuno. Silenciosamente, pois o tapete eliminava o ruído dos passos, voltei à sala da recepção, abri a porta de mola do balcão e pus-me a observar o que me rodeava. Vi alguns embrulhos de roupa, três ou quatro ilustrações e uma caixa de cartão. Continuei a procurar e acabei por descobrir o que pretendia, uma argola larga de onde pendia uma chave, ligada a uma corrente. Ao pegar-lhe tive o cuidado de não fazer barulho; com a chave, dirigi-me de novo para o fundo do corredor. A chave de passe abriu a porta do dezoito, sem a menor dificuldade.

Mas, o pássaro tinha voado!

Havia roupa suja no chão, uma peúga com um buraco no sítio do dedo grande, uma lâmina de barbear ferrugenta e um bocado de lápis. Nas gavetas da cómoda, não encontrei senão uma gravata que começava a desfiar-se no meio, uma garrafa de “gin” vazia, um maço de cigarros amarrotado.

Ninguém dormira na cama depois que fora feita, mas os lençóis e as fronhas estavam manchados de suor.

O quarto era sórdido, mal cheiroso, triste e abandonado. O espelho, colocado por cima de uma feia cómoda, reflectiu uma imagem desmaiada e deformada.

Abri o guarda-fato e examinei a roupa à procura de marcas da lavandaria. Descobri um número meio apagado: X-B 391. Encontrei este mesmo número escrito mais recentemente e em letra diferente sobre uns calções. Tomei nota do número, saí do quarto, fechei a porta e detive-me diante do balcão o tempo suficiente para largar a chave no sobrado como se tivesse caído do prego.

Jerry Wegley pregara-me uma boa partida. Eu dera-lhe vinte e cinco dólares por uma arma que era mais traiçoeira do que Judas. Ordinariamente, Wegley trabalhava das quatro horas à meia-noite. Devia deitar-se por volta das duas ou três da manhã. Desta vez, não dormira na sua cama. Teria sido por saber para que servira o seu revólver?

Não sabia nada e de momento não tinha maneira de o descobrir.

Esperei na rua que passasse um táxi e fiz-me conduzir ao aeroporto. Um piloto que tinha por especialidade alugar o seu aparelho a recém-casados, prestou-se a conduzir-me a Yuma, no Arizona, muito admirado por me ver fazer a viagem sozinho.

Uma vez chegado a Yuma, segui a par e passo um plano de acção que tinha repetido muitas vezes a mim próprio e que me fazia parecer estar a desempenhar um papel numa peça de teatro.

Dirigi-me ao First National Bank, aproximei-me da secção de “contas novas” e disse:

- Chamo-me Peter B. Smith. Queria fazer um empate de capital.

- Com que género de depósito, Mr. Smith?

- Isso não importa, desde que possa ter rápidos benefícios.

O empregado sorriu.

- É exactamente isso que quase toda a gente procura, Mr. Smith.

- Eu sei. Não lhe peço para me ajudar a descobrir; mas, gostaria que me desse a sua opinião, se eu encontrar qualquer coisa.

- Quer abrir conta?

- Quero.

Tirei dois mil dólares do bolso.

- Onde mora, Mr. Smith?

- Ainda não sei.

- Vem do Leste?

- Não, da Califórnia.

- E acaba de chegar?

- Sim.

- Era comerciante na Califórnia?

- Mais ou menos. Mas estou convencido de que a Califórnia já atingiu o seu desenvolvimento máximo. O Arizona oferece maiores perspectivas para o futuro.

Não tinha mais nenhumas recomendações suplementares. Ele preencheu-me um boletim de depósito, pediu-me para assinar o registo de assinaturas, contou os dois mil dólares e inscreveu a quantia no livro de depósito.

- Que género de cheques deseja?

- Uma caderneta de bolso.

Introduziu um bloco de cheques em branco numa capa a imitar cabedal que tinha estampado o selo do banco, e entregou-mo. Apertei-lhe a mão e saí.

Caminhei na direcção do Banco do Comércio, procurei a secção de contas novas, apresentei-me igualmente sob o nome de Peter Smith, apertei a mão ao empregado, contei-lhe a mesma história e depositei dois mil dólares. Depois, aluguei um cofre forte, onde depositei a quase totalidade do que restava do dinheiro de Sandra Birks. Só durante a tarde é que aluguei um quarto. Paguei um mês adiantado e expliquei à senhoria que as bagagens chegavam mais tarde.

Dei um passeio pela cidade a visitar as agências automobilísticas. Entrei na que me pareceu mais importante e pedi para ver uma conduite interior ligeira, para entrega imediata. Disse ao vendedor que me convinha mais um carro de demonstração do que em rodagem. Dispunham de um e prometeram entregar-mo meia hora depois. Perguntou-me se desejava pagar por contrato, mas declarei-lhe que queria pagar em dinheiro, tirei o meu livro de cheques e assinei um de mil seiscentos e setenta e dois dólares.

- Cheguei hoje a Yuma - disse eu. - Tenho intenção de fazer negócios. Não me podia indicar um bom empate de capital?

- De que género?

- Qualquer coisa que permita tirar lucro rápido sem correr riscos.

O homem devia ser muito ingénuo, porque franziu as sobrancelhas, reflectiu um instante e depois sacudiu lentamente a cabeça.

- Não, de momento não sei nada, mas vou pensar, Mr. Smith. Onde vai instalar-se?

Fingi que procurava lembrar-me de uma morada e suspirei:

- Às vezes, tenho má memória.

Depois, tirei o recibo da renda da carteira e fiz de propósito para que ele pudesse ver o nome da casa onde me hospedara.

- Ah, sim - disse ele - conheço a casa. Entrarei em contacto consigo, quando for preciso, Mr. Smith.

- Está bem. Dentro de meia hora estarei de volta. Quero poder sair com o carro imediatamente.

Fui a um restaurante, eencomendei o maior bife da ementa. Depois, voltei à agência de automóveis e reclamei o carro. Tinham pregado o meu cheque num espigão sobre um monte de papéis.

- Tem de assinar aqui duas ou três vezes  - disse o vendedor.

Notei que alguém escrevera a lápis de tinta no canto do meu cheque: “Okay”, e inscrito as iniciais “G E S”. Assinei o nome de Peter B. Smith duas ou três vezes, apertei a mão a todos os presentes, subi para o automóvel e afastei-me.

Fui direito ao First National Bank. Faltava um quarto de hora para fechar. Fiz uma letra de cinco mil seiscentos e noventa e dois dólares e cinquenta cêntimos, pagável à vista a H. C. Helmingford, e depois um cheque de mil e oitocentos dólares que apresentei na caixa.

- Chamo-me Peter Smith - disse eu - abri hoje uma conta aqui no banco. Procurei um negócio para empatar capital e descobri um para o qual é preciso pagar em dinheiro. Tenho aqui uma letra sobre H. C. Helmingford e quero que lhe seja apresentada pelo Security National Bank de Los Angeles. Será paga imediatamente no momento em que for apresentada. É urgente.

O empregado pegou na letra e disse:

- Um momento, Mr. Smith.

- É inútil – protestei - não lhe peço para me abrir um crédito sobre esta transacção.  Meta-a em carteira e peça uma resposta telegráfica. Recomende ao seu correspondente em Los Angeles que responda telegraficamente que eu pago as despesas.

Entregaram-me um recibo da letra.

- Deseja  dinheiro?

- Desejo, sim - respondi estendendo-lhe o cheque de mil e oitocentos dólares.

Pareceu espantado.

- Como é que quer?

- Em notas de cem.

Guardei o dinheiro e dirigi-me ao Banco do Comércio para juntar os mil e oitocentos dólares ao dinheiro que se encontrava já no meu cofre. Depois, saí da cidade e, atravessando a ponte do Colorado, tornei a entrar na Califórnia. Estacionei o meu carro e demorei meia hora a fumar e a digerir o meu jantar. Em seguida, pus-me em marcha e dirigi-me para o posto de inspecção californiano, à direita da estrada. Sob pretexto de proteger a agricultura, as autoridades californianas mandam parar todos os automóveis, inspeccionam-nos, abrem as bagagens, desinfectam as capotas, fazem perguntas e complicam a vida aos automobilistas o mais  possível.

Passei diante do posto de inspecção. Um agente aproximou-se do carro. Gritei-lhe qualquer coisa ao mesmo tempo que apoiava o pé no acelerador fazendo grande ruído com o motor para que ele não pudesse compreender nada. Fez-me sinal para que parasse sobre a plataforma de descarga, mas eu lancei o meu carro a toda a velocidade e escapei-lhe antes que ele pudesse fazer ou dizer mais qualquer coisa. Passados duzentos ou trezentos metros, vi no meu retrovisor que um polícia montava na sua moto e lançava-se na minha perseguição. Ouvi a sirene tocar atrás de mim. Só quando chegámos ao meio das dunas de areia movediça é que o polícia puxou do revólver. Quando o vi prestes a fazer fogo, detive-me junto à berma da estrada.

O agente parecia resolvido a não correr quaisquer riscos. Aproximou-se com o revólver engatilhado.

- Mãos ao ar!

Ergui-as.

- Que diabo de ideia veio a ser essa?

- Qual ideia?

- Não me venha com espertezas.

- Bom - suspirei. - Caçou-me. Este carro é novo. Acabei de o comprar em Yuma. Estava interessado em ver a velocidade que conseguia atingir. Isso vai-me custar quanto? Um dólar por milha acima da velocidade legal?

- Porque não parou no posto?

- Eu ia parar. O tipo que lá estava fez-me sinal para seguir.

- Essa é boa! Ele fez sinal foi para parar.

- Percebi mal.

- Comprou este carro em Yuma? Onde?

Dei-lhe o nome da agência.

- Quando?

Disse-lhe a hora a que o tinha comprado.

- Dê a volta. Vamos voltar para trás.

- Para trás, para onde?

- Para o posto de inspecção.

- Nunca, na vida. Tenho assuntos a tratar em El Centro.

- Nesse caso, está preso.

- Está bem, conduza-me ao magistrado mais próximo.

- Como pagou este carro?

- Com um cheque.

- Nunca ouviu falar no que acontece às pessoas que pagam com cheques sem cobertura?

- Não.

- Pois bem, meu velho, Você vai tornar a atravessar a ponte para voltar a Yuma. O homem que lhe vendeu este automóvel deseja fazer-lhe algumas perguntas sobre o cheque. Julgou-se muito esperto, mas deu o golpe cedo demais. Tiveram tempo de enviar o cheque ao banco antes de fechar.

- E depois?

Encolheu os ombros.

- Explicam-lhe isso tudo, quando voltarmos.

- Onde?

- Em Yuma.

- Porquê?

- Porque o senhor assinou um cheque sem cobertura, roubou um automóvel e já cometeu outros pecadilhos deste género, sem dúvida.

- Não volto para Yuma - disse eu.

- Acho que sim, que vai.

Estendi o braço e dei a volta à chave da ignição.

- Sei o que estou a fazer - disse eu. - Encontro-me na Califórnia. Não me pode levar para o Arizona sem mandato de extradição.

- Ah, sim? Ele é isso?

- Você é que está a levar as coisas para esse caminho.

O polícia acenou a cabeça.

- Está bem. Quer ir a El Centro. Vamos. Mas não ultrapasse a velocidade regulamentar. Irei atrás de si. Pode seguir a quarenta e cinco milhas à hora, permito-lhe que chegue às cinquenta. Se chegar às cinquenta e uma, faço fogo contra os pneumáticos. Compreendeu?

- Não me pode prender sem ordem.

- Isso é o que você julga. Saia. Quero revistá-lo.

Deixei-me ficar agarrado ao volante. O polícia subiu para o estribo, pegou-me pelo colarinho e apontou-me o revólver com ar ameaçador.

- Saia! - gritou.

Obedeci.

Tacteou-me para se assegurar que eu não estava armado e depois examinou o carro.

- Não se esqueça: as duas mãos sobre o volante. Nada de disparates. Já que quer ser extraditado, sê-lo-á.

- Protesto contra a maneira como estou a ser tratado...

- Toca a andar - interrompeu ele.

Segui com o carro até El Centro, onde fui conduzido ao gabinete do xerife. Deixaram-me sob a vigilância de um guarda, enquanto o polícia falava com o xerife. Ouvi-os telefonar. Vieram-me buscar para me meter numa cela.

- Escute, Smith - disse o xerife - você tem ar de bom rapaz. Não ganha nada em estar com essas coisas todas. Porque não volta a Yuma para explicar o que se passou? Talvez se pudesse harmonizar tudo.

- Não tenho nada a responder.

- Está bem, se quer brincar... - avisou.

- Quero brincar.

Fecharam-me com mais quatro ou cinco presos. Não disse palavra e recusei-me a tocar no jantar. Ao anoitecer, o xerife veio perguntar-me se renunciava à extradição. Mandei-o para o diabo.

Estive dois dias naquela cela. Comia pouco. O rancho não era mau. Estava um calor terrível. Não tinha jornais e ignorava tudo o que se passava no mundo.

No terceiro dia, um homem gordo, com um grande chapéu preto, entrou com o xerife.

- Peter B. Smith, é você? - perguntou.

- Sou.

- Venho de Yuma. Venho buscá-lo.

- Não sem ordem de extradição.

- Eu tenho-a.

- Não me interessa. Quero ficar aqui.

O desconhecido sorriu. Agarrei-me à beira da tarimba e gritei.

- Quero ficar aqui.

O homem soltou um profundo suspiro.

- Está muito calor para termos de fazer exercícios violentos. Por amor de Deus, venha, suba para o carro.

Gritei:

- Quero ficar aqui!

Ele agarrou-me. O agente do Arizona colocou-me algemas nos pulsos. Sem dizer palavra, deixei-me arrastar para o automóvel; o homem mais forte passou-me uma corrente à perna.

- Você provocou isto tudo - disse enxugando a testa coberta de suor. - Porque não quis ser razoável? Não tinha percebido que estava calor?

- Há de arrepender-se disto toda a vida - ameacei. - Não fiz nada, não me podem acusar de nenhum crime e...

- Cale-se - interrompeu. - Tenho de o transportar através do deserto, onde o calor é escaldante e não tenho interesse nenhum em ouvir a sua voz.

- Pois não ouvirá - disse eu, recostando-me nas almofadas.

Atravessámos o deserto sob um calor, de facto, escaldante. O horizonte parecia dançar sob os raios de um sol que queimava. O ar estava tão quente que os meus olhos coziam dentro das órbitas como um ovo em água a ferver. Os pneus colavam-se à estrada.

- Escolheu uma linda hora - resmunguei.

- Cale-se.

Calei-me. Chegados a Yuma, conduziu-me ao Palácio da Justiça. O comissário declarou-me:

- Você causou bastantes aborrecimentos a esta gente, Smith. Para que serviu isto?

- Ainda os aborrecimentos não acabaram, vai ver.

- Que mais há?

- Vou processá-los por falsas acusações, prisão ilegal e difamação.

O outro bocejou.

- Deixe-se de brincadeiras. Se o carro fosse novo, a situação seria diferente. Como era um carro de demonstração, já rodado, não o desvalorizou fazendo mais uns quilómetros. Mas, você obrigou-os a pagar as despesas da sua extradição. Isso vai custar caro.

- Porque não descontaram o cheque que lhes dei?

O homem pôs-se a rir:

- Porque estava passado sobre o banco de onde você retirou todo o dinheiro.

- Então, era para o outro banco.

- Qual outro banco?

- Sabem-no muito bem.

- Com efeito, sabemo-lo muito bem. É o velho truque. Tinha tudo previsto. Começou por depositar dois mil dólares num banco. Entregou-lhes o cheque sabendo perfeitamente que verificariam se o cheque era bom, mas que não lhe tocariam enquanto você não tivesse assinado os necessários documentos e  levantado o carro. Preparou tudo para ir buscar o automóvel poucos minutos antes do encerramento do banco, para onde se precipitou para retirar todo o dinheiro com  excepção de duzentos dólares. Calculava dispor de dezoito horas até se descobrir que o cheque não tinha cobertura, mas não viu que você mesmo se antecipou aos seus planos, e o gerente da agência automobilística, que deposita, todas as tardes, o seu dinheiro no mesmo banco antes deste fechar, descobriu a artimanha cinco minutos depois de você ter saído.

Fitei-o de sobrancelhas franzidas e boca aberta.

- Valha-o Deus, quer dizer que quiseram descontar o cheque no First National Bank?

- Evidentemente. O cheque era desse banco.

- Nada disso. Era sobre o Banco do Comércio.

O comissário mostrou-me o meu cheque sobre o qual estava escrito a tinta vermelha “sem cobertura”.

- Bom, então foi do Banco do Comércio que retirei os mil e oitocentos dólares.

- Porque fala tanto no Banco do Comércio?

- Porque tenho lá conta.

- Ah, sim?

- Sim, senhor.

- Não tem nada para provar.

- Como ia fazer uma longa viagem nocturna, não quis levar comigo os livros de cheques. Coloquei-os num envelope que enderecei em meu nome para a Posta Restante. Podem verificar.

O inspector e o comissário trocaram um olhar.

- Então, não era blague?

- Certamente que não. Reconheço que passei uma letra sobre H. C. Helmingford. Não existe nenhuma pessoa com esse nome. Queria chegar a Los Angeles a tempo de pagar essa letra como se fosse Helmingford. Porém, não defraudei ninguém. Disse simplesmente que a pusessem em carteira.

- Qual era o seu objectivo?

- Fazer crer no banco que tinha grandes negócios. Não há nenhuma lei que me impeça de o fazer.

- No entanto, o senhor passou um cheque sobre um banco e depois foi lá retirar quase tudo quanto tinha.

- Nada disso. Foi ao outro banco. Ou pelo menos, pensava que fosse.

O comissário telefonou para o Banco do Comércio.

- Há algum Mr. Peter B. Smith com conta nesse banco? Bem, volto a telefonar daqui a pouco.

Desligou.

- Escreva o seu nome - disse ele.

Escrevi: Peter B. Smith.

- Agora, escreva uma carta à estação dos correios a pedir-lhes para lhe remeterem o correio que lhe estiver dirigido para a Posta Restante.

Fiz o que me pediram. Ele saiu e esperei cerca de uma hora no escritório. Quando voltou, vinha acompanhado pelo vendedor do automóvel.

- Olá, Smith - disse.

-Olá.

- Você deu-nos um trabalhão.

- Você é que arranjou um bico de obra para si próprio. Por Deus, devia ter visto logo que se tratava de um engano. Porque não entrou em contacto comigo? Se eu fosse um burlão, julga que deixava duzentos dólares no banco?

- O que havíamos nós de pensar em face das circunstâncias?

- Ninguém me perguntou o que é que o senhor podia pensar.

- Escute. O senhor pretende aquele carro. Foi um bom negócio. Nós queremos o dinheiro que ele vale.

- O que lhe vai, é estalar a castanha na boca. Vou processá-lo por prisão ilegal e difamação.

- Basta - disse o comissário. - É possível que tenha havido engano, mas a culpa é sua.

- Enganei-me - admiti.

- Bom - disse o vendedor - a extradição custou-nos dinheiro. Eis o que proponho. Vai assinar-nos um cheque de mil seiscentos e setenta e dois dólares sobre o Banco do Comércio, apertamos as mãos como amigos e esquecemos o resto. Que lhe parece?

- Vou passar esse cheque porque pago sempre as minhas dívidas. Mas não tinham o direito de tirar conclusões apressadas e de meter a polícia no assunto. Isso vai-lhes custar dinheiro.

O comissário encolheu os ombros.

- Não ganha nada com um processo desse género, Smith. Acabe com isso.

Voltou-se para o vendedor:

- Mas você, não faça nada sem ele ter assinado uma renúncia por escrito.

- Bom – suspirei - vamos então a isso... mas, passem-me um cigarro.

O comissário mandou dactilografar a declaração de renúncia. Deixavam de haver quaisquer queixas contra mim. Eu comprometia-me a não tomar quaisquer medidas contra a agência automobilística.

- Quero que o senhor e o xerife assinem este documento - disse eu.

- Porquê?

- Porque não quero ser incomodado mais tarde. Seja como for, se os senhores não assinarem, eu também não assino.

Toda a gente assinou. Passei um cheque sobre o Banco do Comércio apertámos as mãos e o vendedor saiu. Levantei-me e comecei a passear com ar preocupado. O xerife olhou-me espantado:

- Que se passa, Smith?

- Tenho um peso na consciência.

Fez-se silêncio.

- Talvez eu possa ajudá-lo - disse o xerife.

- Matei um homem.

Não se ouvia voar uma mosca.

- O que é que você fez, Smith? - perguntou por fim o comissário.

- Matei um homem. O meu nome não é Smith, mas sim Lam, Donald Lam.

- Decididamente - declarou o xerife - você é uma caixa de surpresas.

- Não estou a contar histórias. Vim para aqui na disposição de começar vida nova sob o nome de Smith. Queria recomeçar do princípio, mas creio que isso é impossível, pelo menos quando se tem a morte de um homem na consciência.

- Quem foi que matou?

- Um indivíduo de nome Morgan Birks. Devem conhecer o caso pelos jornais. Fui eu quem o matou.

O xerife e o comissário trocaram olhares de entendimento. O xerife assumiu tom paternal.

- Acho que se sentiria muito melhor se nos contasse tudo, Lam. Como foi isso?

- Arranjei emprego como detective de uma agência dirigida por uma senhora chamada Bertha Cool. Ela encarregou-me de entregar uma intimação a Morgan Birks cuja mulher, Sandra, tinha na sua companhia uma amiga, Alma Hunter, uma pequena impecável. Comecei a interessar-me por ela e quando nos encontrávamos dentro do seu automóvel, fiz-lhe namoro. Nessa ocasião, soube que alguém tentara estrangulá-la. Contou-me que um desconhecido lhe entrara no quarto na noite anterior, agarrara-a pela garganta e que acordara precisamente a tempo de se desembaraçar do assaltante e que o agressor fugira. Não quis que ficasse sozinha na noite seguinte. Mas, por causa de Sandra, Alma também não quis que eu ficasse lá em casa. Insisti e escondi-me no guarda-fato. Trazia comigo um revólver. Tentei ficar acordado, mas devo ter passado pelo sono. De repente, ouvi Alma soltar um grito. Acendi a minha lâmpada de bolso, e apontei-a para fora do armário. Um homem estava debruçado sobre Alma. Ao ver a luz, procurou fugir. Perdi a cabeça e disparei. Ele caiu como uma massa. Atirei o revólver para o chão e precipitei-me para fora do aposento, seguido por Alma que me disse que combinaria com Sandra a maneira de me fazer sair de lá. Ela acusou-se em meu lugar. Pensei que ela ficasse livre de responsabilidades, sob o fundamento de legítima defesa; mas, depois, as coisas complicaram-se.

- Sente-se,  Lam - disse o xerife. - Sente-se e acalme-se. Quando acabar de contar tudo, sentir-se-á melhor. Como é que arranjou o revólver?

- Isso, é outra história.

- Já sei, Donald, mas é melhor contar tudo. Dormirá descansadamente esta noite.

- Foi Bill Cunweather quem me deu esse revólver.

- Quem é esse Bill Cunweather?

- Um tipo que conheci no Leste.

- Onde?

- Em Kansas City.

O comissário reteve a respiração.

- Onde o viu pela última vez?

- Mora em Willoughby Dríve.

- Em que número?

- 907, creio. Tem lá a quadrilha toda.

- Quem faz parte da quadrilha?

- Uma porção de gente. Fred e não sei quem mais.

- E foi ele quem lhe deu o revólver?

- Foi, quando decidi passar a noite no quarto de Alma. Eu sabia não ter força suficiente para a defender com os punhos.

- Onde é que Cunweather arranjou esse revólver?

- Ele... mas parece-me que faço melhor se não falar mais em Cunweather. Que lhes interessa saber como arranjei a arma?

- Conheceu Cunweather em Kansas City?

- Conheci.

- Que fazia ele lá?

- Já lhes disse que não quero dizer mais nada a respeito de Cunweather. Trata-se de mim e de Morgan Birks.

- Esse revólver interessa-nos muito. Quando é que o arranjou?

- Na tarde que precedeu a morte.

- Como?

- Um indivíduo chamado Jerry Wegley deu-mo no Perkins Hotel onde era paquete. Devia pertencer ao bando de Cunweather.

- Era bom que pudesse prová-lo, Donald.

- Porquê?

- Esse revólver já serviu para assassinar outra pessoa em Kansas City.

- Em Kansas City?

- Sim.

- Quando?

- Há dois meses.

- Meu Deus!

- Pode demonstrar que foi Jerry Wegley que lhe deu esse revólver?

- Com certeza. De qualquer modo, posso provar que não estava em Kansas City há dois meses. Quando Wegley me entregou a arma, deu-me uma caixa de balas. Enchi o carregador e guardei a caixa e as balas que restavam no fundo de uma gaveta do quarto 620 do Perkins Hotel. Se forem passar busca ao quarto, encontram-na lá.

- E você não tinha dado esse revólver a Alma Hunter?

- Claro que não. Era eu que precisava dele. Ela só tinha uma coisa a fazer: dormir. Eu estava lá para a vigiar.

- Bom, Donald - disse o xerife - não tenho outra coisa a fazer senão metê-lo na cadeia e avisar a polícia da Califórnia.

- Será preciso que eu volte à Califórnia?

- Evidentemente.

- Não tenho empenho em atravessar o deserto outra vez com este calor.

- Acho que tem razão. Talvez faça a viagem de noite.

- E se eu arranjasse um advogado?

- Para que serviria isso?

- Não sei. Podia aconselhar-me.

- Vou dar-lhe um conselho, Donald. Assine uma renúncia à sua extradição, volte para a Califórnia e enfrente a situação. É o que pode fazer de melhor.

Sacudi a cabeça.

- Não assino nada.

- Muito bem, Donald. Quem perde é você. Tenho que prendê-lo. O caso é grave, bem sabe.

 

CAPÍTULO XII

A cama da minha cela era dura. O enxergão detestavelmente pouco espesso. À medida que a noite avançava, o frio tornava-se cada vez mais intenso como acontece, às vezes, no deserto no princípio da Primavera. Passei a noite na expectativa, a tremer de frio.

Algures, um bêbedo falava sozinho, solilóquio pastoso que não terminava nunca, monótono e incompreensível. Na cela ao lado, um ladrão de automóveis ressonava pacificamente. Devia ser cerca de meia-noite. Tentei recordar o calor tórrido que reinava no deserto quando o atravessara, mas este pensamento não era suficiente para me aquecer. Então, comecei a pensar em Alma...

Ouvi mexer na fechadura da porta. O carcereiro entrou:

- Acorde, Lam, precisam de si lá em baixo.

- Quero dormir.

- Tanto pior. É preciso ir lá a baixo.

Saltei da minha cama. Não me tinha despido, o frio era muito.

- Vamos, não se faça esperar. Mexa as pernas.

Segui-o ao gabinete. O procurador distrital, o xerife, o comissário, uma estenógrafa e dois polícias de Los Angeles aguardavam-me. Tinham colocado para mim uma cadeira diante de uma lâmpada tão forte que cegava.

- Sente-se naquela cadeira, Donald - disse o xerife.

- A luz incomoda-me os olhos.

- Já se habitua. Queremos vê-lo bem.

- Isso não é razão para me cegarem.

- Se renunciar a mentir - disse o xerife baixando a lâmpada - não teremos necessidade de estudar de perto as expressões do seu rosto. Estes senhores vieram de Los Angeles. Atravessaram o deserto para ouvir a sua história. Eles já sabem o suficiente para compreenderem que você nos mentiu; mas, que uma parte das suas declarações é exacta. Queremos toda a verdade.

- Não sei mais nada.

A luz cegou-me.

- O que é que encontram de falso na minha história? - perguntei.

- Tudo. Em primeiro lugar, você não matou Morgan Birks. Foi a pequena que o matou com o revólver que você lhe arranjou. Depois, ela foi chamá-lo à cabine telefónica da casa, no rés-do-chão, com uma moeda que lhe deu um hóspede. A sua senhoria teve de o obrigar a saltar da cama. E agora, Donald, queremos a verdade.

- Está bem. Apaguem essa maldita luz, e direi tudo.

O procurador distrital voltou-se para a secretária.

- Tome nota das declarações.

- Atenção, Donald - disse o xerife, retirando a lâmpada dos meus olhos torturados - Este caso é grave. Aconselho-o a não fazer troça de nós.

- Fui eu quem o matou; mas, Alma Hunter não sabe de nada. Não o fiz para a proteger; mas, sim porque recebera ordem nesse sentido.

- De quem?

- De Bill Cunweather.

- Que vem a ser essa outra história? - exclamou o xerife.

- Travei conhecimento com a quadrilha de Cunweather em Kansas City. Não lhes digo quem sou na realidade, porque meu pai e minha mãe ainda estão vivos e não quero martirizá-los com isto. Porém, não tive nada que ver com o crime de Kansas City. Posso prová-lo. Encontrava-me na Califórnia, quando este foi cometido. Mas, estava em contacto com Cunweather, que era o chefe da quadrilha das máquinas automáticas. Este tinha encarregado Morgan Birks de untar as mãos à polícia. Quando o escândalo rebentou, Cunweather descobriu que Morgan Birks, no qual tinha toda a confiança, guardava para si metade das “luvas” que atribuía à polícia. Birks escondeu-se. Julgava-se que era por receio da polícia. Mas não, escondia-se porque tinha medo de aparecer na presença de Cunweather. Guardara o dinheiro nos cofres em nome da mulher. Esta escolheu esse momento para pedir o divórcio. Isto transformou a vida de Birks num inferno. Não podia ir ao tribunal responder à acção de divórcio. Não se atrevia a aparecer com receio do Chefe. Por outro lado, Sandra Birks não podia conseguir a sentença de divórcio sem que o marido tivesse  recebido  antecipadamente  a  intimação. O Chefe descobriu que ela encarregara a Agência Cool de lhe mandar entregar os documentos do processo. Cunweather ordenou-me que me contratasse como detective e me encarregasse do assunto. Foi o que aconteceu. Cheguei, entretanto, à conclusão que era a própria Sandra que escondia Morgan no seu apartamento, fazendo-o passar por seu irmão.

- O que o levou a acreditar que era irmão dela, se você o conhecia?

- Fingiu ter tido um desastre de automóvel e mandou-lhe ligar o rosto, o que o tornava irreconhecível. Além disso, trazia um cinto de borracha sobre o estômago para lhe aumentar o volume do ventre. Quando saí de lá, fiz um embrulho de todas essas coisas e deitei-as num caixote de lixo, diante da casa. Podem verificar.

- Continue  - disse o xerife.

- O chefe tinha mandado chamar um tipo, uma espécie de gorila chamado Fred e de que nunca soube o apelido, para conduzir Morgan ao bom caminho. Todavia, Sandra já se apossara de todo o dinheiro existente nos cofres fortes e Morgan, que se comprometera a entregá-lo a Cunweather para salvar a pele, precisava em absoluto de o recuperar. Entrou em plena noite no quarto da mulher para tentar estrangulá-la. Mas Sandra, que andava a divertir-se com um apaixonado, tinha pedido a Alma Hunter que se deitasse na sua cama. Alma gritou e Morgan fugiu. Eu comecei a interessar-me sinceramente por Alma. Quando soube que a tinham querido estrangular, entreguei-lhe o meu revólver, aconselhando-a a proteger-se no caso da cena se repetir. O Chefe tinha-me encarregado de trazer o dinheiro, custasse o que custasse. Morgan veio explicar-me que Sandra o trazia consigo, numa cinta por cima da pele. Pediu-me que o ajudasse a apoderar-se do dinheiro, durante a noite, enquanto ela dormia, dando-lhe uma pancada na cabeça. Era o que eu queria. Na noite seguinte, ele conduziu-me na mais completa obscuridade até à cama da mulher, jurando que ela se encontrava sozinha em casa. Ele sabia muito bem que era Alma quem estava a dormir. No momento em que eu ia vibrar o golpe, um tiro de revólver explodiu à minha frente e Alma Hunter precipitou-se para fora do quarto aos gritos. Reconheci perfeitamente a sua voz. Entretanto, ela deixara cair o revólver. Acendi a minha lâmpada de algibeira. “- Cretino! - disse-me Morgan -estragaste tudo”. “- Bandido! - respondi eu - sabias perfeitamente que quem estava aqui era Alma. Quiseste-me enganar, fazendo-me crer que era Sandra”. Ele deve ter percebido nos meus olhos o que ia acontecer. Voltou-me as costas e desatou a correr para a porta. Disparei antes que ele tivesse tempo de a abrir. Depois, escapei-me pela escada de serviço. Tomei um táxi e fiz-me conduzir a casa.

- Ainda dormiu?

- Estava a deitar-me quando Alma Hunter me chamou ao telefone. Fiz a fita de deixar a senhoria chamar-me duas ou três vezes.

- Que diabo, creio que ele disse a verdade! - exclamou o xerife.

- Um momento - interrompeu o procurador distrital - Então, foram disparados dois tiros com esse revólver. Ora, o carregador continha sete balas e sobravam seis.

- Sim, fui eu que o carreguei. Meti sete balas no carregador e passei uma para o cano. Depois, tornei a tirar o carregador e meti uma nova bala. Vão buscar a caixa de munições que está na gaveta do Perkins Hotel e verão que faltam oito balas.

Os dois  agentes  da  Califórnia ergueram-se.

- Está bem, Donald, você vai acompanhar-me - disse um deles - prepare as suas coisas, vamos partir imediatamente.

- Não quero sair daqui agora e não me podem obrigar.

- Que quer dizer?

- Que não gosto da Califórnia e que me sinto muito bem no Arizona. Gosto desta prisão, cumprirei a minha pena aqui.

- Vejamos, Donald, você não vai obrigar-nos a pedir a sua extradição.

- Daqui, não saio.

Um dos polícias avançou para mim com ar furioso:

- Seu bandalho!

O xerife segurou-o por um braço.

- Não, aqui não! - disse, em tom autoritário.

Voltou-se para o carcereiro:

- Levem-no para a cela.

- Quero papel e tinta - declarei.

O xerife teve uma troca de olhares com os polícias.

- O carcereiro já lhe dá.

Voltei para a minha cela.

Estava tanto frio que os joelhos batiam-me um no outro. Mesmo assim, pus-me a escrever. Passado uma hora, vieram buscar-me.

- Vamos ler-lhe a confissão que nos fez  - disse o xerife. - Depois, terá que a assinar.

- Está bem. Mas quero que lhe juntem este documento.

- O que é isso? - perguntou ele, olhando para as folhas que lhe estendia.

- Um pedido de habeas corpus em nome de Donald Lam, que também usa o nome de Peter B. Smith. Quero ser julgado no prazo de vinte e quatro horas.

- Perdeu a cabeça, Donald - exclamou o xerife. – Você tem que responder por crime de homicídio, crime de homicídio deliberado e premeditado.

- É verdade, matei um crápula. Mas, se não juntam este pedido de habeas corpus ao processo, recuso-me a assinar a confissão.

- Está bem, juntar-se-á - disse, encolhendo os ombros.

- Estava convencido que você era apenas um fabricante de histórias um bocado desaparafusado. Sou levado a concluir que é completamente louco.

 

CAPÍTULO XIII

Uma lufada de suor enchia a sala das audiências. Na rua, o sol fazia fundir o asfalto. O ar estava irrespirável. O juiz Raymond C. Oliphant entrou e sentou-se. Olhou-me com ar curioso, mas amável.

- Vamos examinar o pedido de habeas corpus apresentado por Donald Lam, também conhecido sob o nome de Peter B. Smith. Está preparado, Mr. Lam?

- Sim, sr. Dr. Juiz.

- Tem advogado?

- Não.

- Pretende contratar algum?

- Não.

- Tem meios para isso?

- Tenho.

- E não quer?

- Não.

O juiz voltou-se para o procurador distrital.

- Não há qualquer dúvida quanto à identidade do Réu?

- Não, sr. Dr. Juiz.

- Muito bem. Apresente o seu caso.

O procurador distrital pediu ao xerife que expusesse as circunstâncias da minha prisão e depois fez ler as minhas declarações. O juiz olhou-me com certa simpatia.

- O senhor confessou um crime, Mr. Lam. A questão de saber se foi premeditado ou não e se pode beneficiar de circunstâncias atenuantes será tratado pelos tribunais da Califórnia. Por consequência...

- Com licença, sr. Dr. Juiz, há um outro assunto que deve ser apreciado por este tribunal, É saber-se se me podem ou não extraditar deste estado. Gostaria que ouvisse o depoimento do polícia que me trouxe para Yuma.

O agente avançou.

- Foi o senhor que me trouxe para Yuma, não é verdade?

- Fui.

- De onde?

- De El Centro.

- Saí de El Centro voluntariamente?

O polícia riu.

- De modo nenhum. Tive de o trazer quase de rastos da prisão até ao automóvel com a ajuda do xerife de El Centro e não foi nada fácil.

- Baseado em que autoridade é que agiu dessa maneira?

- Tinha um mandato de extradição e uma ordem de prisão contra o senhor por abuso de confiança e burla.

- Que fez comigo?

- Trouxe-o para o Arizona até à prisão de Yuma.

- Acompanhei-o voluntariamente?

Sorriu.

- Não.

- Muito obrigado. Não quero mais nada.

O juiz perguntou-me em tom glacial:

- Tem outras testemunhas, Mr. Lam?

- Mais nenhumas, sr. Dr. Juiz.

- Muito bem. Nesse caso, tenho de proferir sentença sobre o caso.

- Não é permitido explicar-me?

- Não sei que mais possa acrescentar.

- Ah, tenho muitas coisas a dizer, sr. Dr. Juiz. O Estado da Califórnia pretende o meu regresso. Ora, há algumas horas, o Estado da Califórnia não me queria dentro das suas fronteiras e fez-me conduzir ao Estado do Arizona contra a minha vontade. É indiscutível que me trouxeram para o Arizona à força. Não me podem, portanto, extraditar para a Califórnia. A extradição não é legal senão quando se trata de um indivíduo que fugiu do país onde devia ser julgado. Eu não fugi da Califórnia. Fui trazido à força para o Estado do Arizona. A Califórnia não pode reclamar a minha extradição  depois de ter feito cumprir a extradição requerida pelo Arizona. A lei é formal. Melhores juristas do que eu já apreciaram este caso.

O juiz olhou-me aturdido. O procurador distrital ergueu-se.

- É impossível que a lei determine semelhante coisa, sr. Dr. Juiz. Nesse caso, qualquer pessoa podia cometer um crime e nunca ser castigado.

O juiz respondeu lentamente:

- E aparentemente foi isso mesmo que o acusado fez no presente caso. Se a lei é assim, este homem cometeu um crime perfeito. O réu possui um sentido jurídico muito desenvolvido que não é, infelizmente, completado por uma moral jurídica correspondente. Com efeito, parece-me que ele cometeu a sangue frio um crime premeditado e sabe jogar com as leis dos dois Estados de tal maneira que coloca as autoridades na impossibilidade de o punir. É uma situação espantosa. O tribunal vai retirar para deliberar.

Levaram-me para o gabinete do xerife. O procurador distrital entrou e examinou-me como se eu pertencesse a uma raça diferente da humana. Decorrida meia hora, o xerife conduziu-me à sala das audiências. O juiz tossiu e, em seguida, declarou:

- O Tribunal não pode tomar outra decisão. Os Tribunais da Califórnia interpretam a lei exactamente como este homem disse. Não pode ser extraditado. O réu vai ser posto em liberdade, por muito que nos custe ter de pronunciar semelhante sentença.

Do auditório, ergueu-se um murmúrio. Nada tinha de hostil. Se eu tivesse sido defendido por um advogado, provavelmente ter-me-iam linchado. Mas, eu tinha-me apresentado sozinho e, sem qualquer auxílio, no banco dos réus e obrigara o juiz a aceitar a minha interpretação da lei.

Alguém aplaudiu, outras pessoas riram. O juiz deu ordem para evacuar a sala e encerrou a audiência.

 

CAPÍTULO XIV

- Mrs. Cool acaba de chegar da Califórnia por via aérea. Fez uma péssima viagem e deu ordem para que não a incomodassem sob nenhum pretexto - disse-me o empregado do Phoenix Hotel.

Mostrei-lhe o telegrama que ela me enviara.

- Mrs. Cool veio cá para falar comigo.

O empregado hesitou e depois fez sinal à telefonista.

- Ligue para o Quarto 519.

Passados instantes, a telefonista disse-me sorridente:

- Pode subir, Mr. Lam.

Tomei o ascensor e bati à porta do 519. Bertha Cool gritou de dentro:

- Entre, com mil diabos! Não fique aí fora a fazer barulho.

Empurrei a porta. Mrs. Cool estava estendida sobre a cama com uma toalha húmida sobre a testa, sem maquilagem e com uma expressão lamentável.

- Donald, já alguma vez viajou de avião? - gemeu.

- Já.

- Enjoou?

- Não.

- Eu, enjoei. Cheguei a convencer-me que o maldito aparelho nunca mais cá chegava. Donald, meu amor, que diabo tem você andado a fazer?

- Imensas coisas.

- Isso não há dúvida. Arranjou uma magnífica publicidade para a agência.

Puxei uma cadeira e deixei-me cair.

- Não, aí não, Donald. Faz-me doer a cabeça ter de a voltar. Sente-se aos pés da minha cama... assim é melhor. Está de facto apaixonado pela rapariga?

- Estou.

- Fez isto tudo pelos seus lindos olhos?

- Em parte. Mas também porque não pude resistir à tentação de derrubar certas teorias legais defendidas pelo Conselho da Ordem dos Advogados que me suspendeu quando afirmei ser possível cometer um crime de homicídio dentro da legalidade.

- Tem mais algumas habilidades desse género na sua bagagem?

- Montes.

- Donald, meu cordeirinho, acenda-me um cigarro.

Obedeci e introduzi-o entre os seus lábios grossos. Ela puxou uma fumaça profunda e declarou:

- Os dois juntos podemos ir longe. Você tem miolos, mas deixe de ser tão impulsivo e tão ridiculamente cavalheiresco. Por Deus, Donald, com a sua idade você ainda vai apaixonar-se uma dúzia de vezes antes de se prender a qualquer mulher definitivamente. Repare bem no que lhe digo, Donald. Eu sei. Você é um tesouro. Como diabo descobriu o que se tinha passado?

- Não me pareceu nada difícil, depois de reflectir. Alguém, da casa, ouvira um tiro e prevenira a polícia. Quando os agentes chegaram, Alma Hunter saíra do apartamento há muito tempo. O carregador do revólver não continha mais do que seis balas. Concluí que a pessoa que prevenira a polícia não devia ter ouvido o primeiro tiro, mas sim o segundo. A bala de Alma feriu alguém. Mas, Morgan Birks deve ter sido abatido, tal como a polícia afirma, quando tentava sair pela porta. A morte foi instantânea. Portanto, deve ter caído em tal posição que era impossível chegar à porta para a abrir sem mover o corpo. Alma Hunter não mexeu em corpo nenhum. Abriu a porta e fugiu. Cunweather estava interessado em descobrir Morgan Birks. Cunweather tinha uma organização. Morgan andava realmente fugido a esta organização. Sandra tinha o dinheiro guardado nos cofres. Tanto Morgan como Sandra procuravam que isto não se soubesse. Alma dormia na cama de Sandra e alguém tentou estrangulá-la, alguém com unhas compridas. Reparei que Bleatie tinha mãos finas com unhas tão tratadas como as de uma mulher. Se Sandra morresse, não haveria divórcio. Morgan conseguira enganar Cunweather com a história de Bleatie, mas Cunweather acabou por ver claro. Quando me mandou espancar, estava disposto a pagar fosse o que fosse. No momento em que a senhora o foi visitar, estava completamente modificado, não queria pagar nada. Isto queria dizer que já andava na pegada de Morgan Birks. Qual dos homens de Cunweather é que foi ferido?

- Foi Fred - disse Bertha. - Alma atingiu-o no braço esquerdo. Valha-me Deus, Donald, você sabe tudo?

- Não. Mas, disse-lhe, quando me contratou, que eu nunca fora um rapaz muito forte. Não podia lutar, por isso a minha imaginação desenvolveu-se...

- Você podia ter resolvido este assunto sem se meter nele. Donald, pense no risco que correu... e na publicidade que me fez. Foi maravilhoso, meu querido.

- Era impossível agir de outra maneira. O revólver era comprometedor e era a mim que o tinham dado. Se eu fosse contar à polícia o que se passara na realidade, ter-se-me-iam rido na cara. Podia ter explicado tudo o que quisesse que eles nem sequer me ouviriam. De modo nenhum depois do que Alma lhes contara. Quando Cunweather me fez espancar por Fred, preveni-os que me pagariam. A dívida está saldada.

- Não há dúvida que conseguiu o seu objectivo – concordou Bertha, sorridente. - Se estivesse na Califórnia, teria ficado contente. Depois de você confessar, a polícia começou a trabalhar Cunweather. Creio que lhe pregaram uma sova com um cacetete de borracha. Por fim, abriu-se como uma amêijoa ao fogo. Se conseguir escapar à responsabilidade do crime cometido contra Morgan Birks agarram-no pelo de Kansas City. Foi um belo trabalho, meu caro, vá lá abaixo depressa buscar uma garrafa de whisky.

- Preciso de algum dinheiro.

- O que fez ao que a Sandra lhe deu?

- Está bem guardado.

- Quanto é?

- Não lhe posso dizer ao certo.

- Pouco mais ou menos?

- Não sei.

- São dez mil dólares?

- De verdade, não lhe posso dizer.

- Onde o escondeu, meu querido Donald?

- Em local seguro.

Olhou-me de revés.

- Não se esqueça, Donald, meu tesouro, que é para mim que você trabalha.

- Sim, eu sei. No que diz respeito às nossascontas, creio que lhe devo o dinheiro de uma corrida de táxi.

- Exactamente - confirmou, impassível - noventa e cinco cêntimos. Hei de descontá-los no seu primeiro ordenado. Não se preocupe com isso, Donald, porque eu também não me preocupo. Está debitado no seu salário.

- A propósito - perguntei - quem era o dr. Holoman? Era na verdade o amante de Sandra?

- Era. Tinham Morgan atado de pés e mãos. Sabia que se abrisse a boca, Cunweather tratava-lhe da saúde... foi o que aconteceu.

- Sandra tem todo o aspecto de uma oportunista.

- É o que ela é. Então esse whisky, Donald?

- E o dinheiro?

Estendeu o braço na direcção da mala.

- Veio sozinha? - perguntei, enquanto ela contava as notas.

- Claro que não. Quando Bertha Cool viaja, faz-se acompanhar por alguém que lhe pague as despesas... a menos que lhe tenham dado um bom adiantamento. Não, Donald, trouxe a minha cliente. Está no quarto ao lado. Ela não sabe que você já chegou. Não fez outra coisa senão falar de si durante toda a viagem. Pensar eu que estava tão doente e ela a falar de si sem descanso.

- Quem, Sandra?

- Por Deus, não - exclamou, fazendo um gesto com a cabeça na direcção da porta de comunicação. - Sandra só se poderá interessar por si, enquanto você estiver presente; mas, esquece-o logo que você voltar costas.

Atravessei o quarto e abri a porta. Alma Hunter estava sentada ao pé da janela. Quando me viu, ergueu-se de um salto e fitou-me com olhos luminosos e lábios trémulos.

- Tome lá o dinheiro para o whisky, Donald – gritou Bertha Cool. - Deixe-se de palermices, seu pateta. Só Deus sabe que você não tem um cêntimo para pensar em casar-se e que me deve noventa e cinco cêntimos do táxi!

Entrei no quarto de Alma e fechei a porta de comunicação com um pontapé.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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