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A casa da Rua da Esperança / Danielle Steel
A casa da Rua da Esperança / Danielle Steel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A casa da Rua da Esperança

 

Capítulo 1

Eram dez horas da manhã, na véspera de Natal, quando Jack e Liz Sutherland receberam a visita de Amanda Parker. O Sol brilhava em Marin, a norte de São Francisco, e Amanda pareceu-lhes nervosa e aterrorizada. Baixa, loira e frágil, as mãos tremiam-lhe quase imperceptivelmente enquanto desfazia um lenço de papel. Jack e Liz tinham-se ocupado do seu divórcio há um ano, trabalhando em equipa no escritório aberto dezoito anos antes, logo após o seu casamento.

Gostavam de trabalhar juntos e tinham criado uma rotina agradável, exercendo a profissão de forma irrepreensível. Complementavam-se, embora com estilos totalmente diferentes, representando quase inconscientemente um número do bom e do mau polícia, que resultava tanto para eles como para os clientes. Era sempre Jack quem desempenhava no tribunal o papel mais agressivo, lutando por melhores condições e pensões, encurralando os opositores até que se viam obrigados a conceder-lhe o que queria para os clientes. Liz, mais calma e habilidosa, acarinhava-os, quando era preciso, e lutava pelos direitos dos filhos, quando os havia. Por vezes, essa diferença de estilos provocava discussões entre o casal, como acontecera no caso de Amanda Parker. Apesar dos esquemas do marido, das ameaças, dos constantes abusos verbais e ocasionais violências físicas, Liz achava a proposta de Jack demasiado dura.

- Estás doida? - perguntara ele, antes da chegada da cliente. - Olha para a merda que o tipo tem feito. Três mulheres por conta, traições durante dez anos, a infeliz sempre na mais completa ignorância quanto aos seus rendimentos. E, para mais, está-se nas tintas para os filhos e agora quer safar-se do casamento sem gastar um tostão. Que sugeres? Que lhe arranjemos uma pensão e lhe agradeçamos pelo incómodo?

Jack tinha a sua faceta irlandesa bem patente, enquanto Liz, apesar dos olhos verdes e flamejante cabelo ruivo, se mostrava bastante mais moderada. Jack, com o cabelo branco desde os trinta anos, olhava-a com uma expressão ameaçadora. Quem os conhecia, costumava dizer a brincar que pareciam a Katharine Hepburn e o Spencer Tracy, mas, apesar das ocasionais discussões acaloradas, toda a gente dentro e fora das salas dos tribunais sabia que eram doidos um pelo outro. Formavam um casal unido, com uma família invejável de cinco filhos muito amados, quatro dos quais ruivos como a mãe e o garoto mais novo com o cabelo escuro como o pai já tivera.

- Não disse que o Phillip Parker não merece ser entalado - explicou Liz pacientemente. - Estou só a tentar avisar-te de que ele se vinga nela, se o apertarmos demasiado.

- E eu digo-te que é disso que ele precisa, para não continuar a tratá-la mal. Temos de atingir este tipo onde lhe doa, a começar pela carteira. Não podemos deixar que se safe, tendo um procedimento destes, Liz, como sabes perfeitamente.

- Mas tu queres dar-lhe cabo do negócio!

O que ela dizia fazia sentido, mas a táctica dura de jack já produzira resultados para muitíssimos clientes, obtendo pensões que poucos outros advogados teriam conseguido.

A reputação dele era de dureza, mas também de habilidade em obter enormes quantias e era isso que ele pretendia para Amanda. Apesar dos vários milhões de dólares escondidos por Phillip Parker e duma florescente empresa de computadores, mantivera a mulher e os três filhos num nível muito próximo da miséria. E, desde a separação, ela mal conseguira sacar-lhe com que alimentar e calçar as crianças. Tudo isso era ridículo, tanto mais que gastava enormes quantias com as amantes e acabava de adquirir um Porsche, enquanto a mulher mal conseguira comprar um skate para dar ao filho no Natal.

- Acredita no que te digo, Liz. O tipo é um fanfarrão, e vai começar a guinchar que nem um porco na matança assim que apertarmos com ele no tribunal. Eu sei o que estou a fazer!

- Se apertas com ele, ela é que paga, Jack.

Aquele caso em particular assustava Liz desde que Amanda lhes relatara uma vida de dez anos debaixo duma tortura psicológica permanente, com duas violentas agressões físicas.

Após cada uma delas, deixara-o, mas ele conseguira atraí-la de volta com promessas, chantagem, ameaças e presentes. A única coisa que Liz dava como certa era que Amanda lhe tinha um medo de morte, com bons motivos.

- Se for preciso, conseguimos uma restrição judicial garantiu Jack, minutos antes de Amanda entrar no escritório.

Depois, descreveu-lhe o que iam fazer no tribunal nessa manhã. Essencialmente, congelar-lhe-iam todos os bens de que tinham conhecimento e exigiriam uma penhora à empresa até que ele lhes fornecesse os esclarecimentos financeiros que pretendiam. E os três estavam de acordo numa coisa: Phillip Parker não ia gostar. Amanda parecia aterrorizada ante a perspectiva.

- Não tenho a certeza se é boa ideia fazermos isso disse ela em voz baixa, olhando para Liz à espera de ajuda.

Jack sempre lhe metera um bocadinho de medo e Liz dirigiu-lhe um sorriso encorajador, apesar de não estar totalmente convencida de que o marido sabia o que estava a fazer naquele caso. Regra geral, tinha fé nele, mas daquela vez a dureza preocupava-a. No entanto, ninguém gostava mais duma luta ou duma vitória, sobretudo por um desfavorecido, do que Jack Sutherland, e ele queria obter um triunfo estrondoso para a sua cliente. Achava que ela o merecia, com o que a mulher estava de acordo, só que a esta não lhe parecia bem a maneira de o conseguir. Conhecendo Phillip Parker, era perigoso acossá-lo demasiado.

Jack continuou a explicar a estratégia a Amanda durante meia hora, e às onze da manhã entraram na sala do tribunal. Phillip Parker e o seu advogado já lá estavam, e o primeiro mal pareceu reparar em Amanda, mas, um minuto depois, quando pensou que ninguém notava, Liz viu-o olhá-la de uma forma que a deixou arrepiada. A atitude de Phillip Parker destinava-se a recordar à mulher quem controlava a situação. Só a maneira como a encarara era assustadora e humilhante. Depois, como se quisesse confundi-la, dirigiu-lhe um caloroso sorriso. Foi tudo feito com grande habilidade, transmitindo uma clara mensagem, que logo se desvaneceu, embora com o efeito desejado sobre Amanda, que pareceu ficar imediatamente mais nervosa e se debruçou para segredar ao ouvido de Liz, enquanto esperavam que a sessão começasse.

- Ele mata-me, se o juiz lhe penhora a empresa murmurou de modo que só a advogada a ouvisse.

- Fará mesmo isso? - perguntou Liz, também num murmúrio.

- Não... não... acho que não... mas vai ficar furioso. Amanhã é dia de sair com as crianças, e eu não sei o que hei-de dizer-lhe...

- Você não pode falar com ele sobre este assunto - declarou a advogada. - Não arranja alguém que lhe leve os garotos? - Como Amanda abanasse a cabeça em silêncio, Liz debruçou-se para dizer ao marido: - Não exageres.

Ele fez-lhe um aceno, enquanto remexia nos papéis, e dirigiu um ligeiro sorriso contrafeito primeiro à mulher e depois a Amanda, querendo dizer a ambas que sabia o que estava a fazer, que era um guerreiro prestes a enfrentar uma batalha que não tencionava perder. E, como habitualmente, não perdeu.

Depois de ouvir as tramóias de Phillip Parker e da sua equipa legal, o juiz concordou em mandar congelar-lhe os bens e manter a sua empresa sob vigilância durante trinta dias até à obtenção das informações necessárias para que os advogados da mulher pudessem exigir a pensão que lhe cabia. O advogado dele protestou com veemência, mas o juiz recusou-se a ouvi-lo e mandou-o sentar-se. Minutos depois, bateu na mesa, declarando encerrada a audiência e, com uma olhadela sinistra na direcção da quase ex-mulher, Phillip Parker abandonou a sala do tribunal. Jack, com um sorriso de orelha a orelha, enfiou os documentos na pasta e olhou para a mulher com uma expressão vitoriosa.

- Bom trabalho! - disse Liz calmamente.

Depois percebeu que Amanda estava em pânico, o que a fez olhá-la com compaixão.

- Vai ver que tudo corre bem, Amanda - disse ela. O Jack tem razão, é a única maneira de ele resolver o caso.

Técnica e estrategicamente, acreditava naquilo, mas dum ponto de vista humano sentia-se preocupada com a cliente e queria fazer tudo para a sossegar.

- Não arranja alguém para estar consigo quando ele for buscar as crianças, para não ter de o enfrentar sozinha?

- A minha irmã vai lá para casa com os filhos logo de manhã.

- Ele é um fanfarrão, Amanda - disse Jack - e não abre a boca, se estiver alguém consigo.

Teoricamente, aquilo era verdade, mas, daquela vez, tinham-no realmente encurralado. Amanda nunca concordara com essa estratégia, mas começara a tratar-se com um psicanalista e sentia-se agora mais afoita, decidida a não deixar que mais uma vez o marido a maltratasse verbal, física ou financeiramente. Era um grande passo para ela e esperava vir a sentir-se orgulhosa, assim que deixasse de tremer. Para mais, embora Jack por vezes lhe metesse medo, confiava plenamente nele e seguira à letra todos os seus conselhos, mesmo daquela vez. Além disso, tinha ficado admirada com a atitude do juiz, o que - segundo Jack - devia provar alguma coisa. O magistrado queria ajudá-la e protegê-la, congelando os bens de Phillip e obrigando-o a dar-lhe as informações que lhe pediam há meses.

- Eu sei que têm razão - disse Amanda com um suspiro, sorrindo para os dois advogados -, mas um frente-a-frente com ele assusta-me. Sei que é preciso, mas é uma fera, quando se zanga.

- Também eu! - declarou Jack sorrindo.

- Liz deu uma gargalhada, e ambos disseram adeus a Amanda, desejando-lhe feliz Natal.

- Vai ser um Natal muito melhor para o ano - garantiu Liz, esperando que assim fosse.

- Pretendiam conseguir-lhe uma pensão que lhe permitisse viver em paz e conforto com os filhos, igual, ou até melhor, do que aquele em que viviam as amantes de Phillip Parker, nos andares que lhes oferecera. A uma delas dera mesmo um chalé em Aspen, enquanto a mulher mal tinha dinheiro para levar os filhos ao cinema. Jack odiava tipos como ele, sobretudo quando eram as crianças a pagar pelo comportamento irresponsável do pai.

- Tem o número do nosso telefone de casa, não tem? - perguntou Liz, e Amanda acenou com a cabeça, parecendo mais relaxada. Pelo menos, de momento, o pior tinha passado, e sentia-se impressionada com a decisão do tribunal.

- Se precisar de nós, ligue. E, se ele aparecer esta noite ou telefonar e a ameaçar, ligue para a polícia e depois para mim - disse Liz, num tom talvez demasiado protector, mas achando que não fazia mal exagerar.

Amanda saiu logo a seguir, e Jack tirou o casaco e a gravata, sorrindo para a mulher.

- Adoro tramar aquele estupor. Vai pagá-las, assim que lhe apresentarmos a proposta de pensão, e não pode fugir.

- Não, mas pode assustar Amanda - recordou-lhe Liz, com uma expressão séria.

- Sim, mas pelo menos, vai ficar com uma pensão decente. Quanto mais não seja, as crianças merecem-no. A propósito, não achas que aquela coisa da polícia é um bocado exagerada? Vá lá, Liz, o tipo não é um tarado, por amor de Deus, é só um idiota!

- Exactamente. É suficientemente idiota para ir lá ou telefonar-lhe a tentar pregar-lhe um susto de morte, suficiente para a fazer recuar e querer ir ao tribunal para anular tudo.

- Não há hipótese, minha querida, não a deixo fazer isso. E tu é que a assustaste com essa da polícia.

- Só quis lembrar-lhe que não está sozinha e que pode pedir ajuda. Ela é uma mulher maltratada, Jack, não está com a cabeça no lugar e receia o ex-marido. É uma autêntica vítima, e tu sabes isso muito bem.

- E tu estás a ficar uma grande piegas, mas adoro-te! disse ele, avançando e envolvendo-a nos braços.

Era quase uma hora, e iam fechar o escritório entre o Natal e o dia de Ano Novo. Com cinco filhos em casa, nenhum deles tinha dúvidas de que estariam muito ocupados,

Liz principalmente, pois quando ficava com os filhos só pensava neles, coisa que o marido muito apreciava nela.

- Adoro-te, Jack Sutherland! - exclamou ela, com um sorriso, ao receber um beijo.

Geralmente, ele não se mostrava muito carinhoso durante as horas de trabalho, mas afinal estavam no Natal, e tinham despachado todo o expediente, incluindo o caso de Amanda Parker.

Liz arrumou o resto dos documentos, enquanto Jack metia alguns dentro da pasta, e meia hora depois saíam cada um no seu carro, Liz em direcção a casa, a fim de preparar a véspera de Natal, e Jack para tratar duns assuntos na baixa. Deixava sempre algumas compras para a última hora, ao contrário da mulher, que as fazia todas em Novembro.

Era muitíssimo organizada e meticulosa, a única maneira de combinar uma família numerosa e uma carreira, com a ajuda da maravilhosa governanta que os acompanhava há catorze anos, Carole. Liz tinha consciência de que, sem ela, estaria perdida. Começara a trabalhar para eles aos vinte e três anos, era mórmon e adorava quase tanto as crianças como os próprios pais, sobretudo Jamie, de nove anos.

Ao sair, Jack prometeu que chegaria a casa por volta das cinco ou cinco e meia. Ainda tinha de montar a bicicleta nova de Jamie, e Liz sabia que à meia-noite ele ainda estaria a embrulhar presentes para ela no escritório de casa. A véspera de Natal em casa deles era festejada a preceito, pois tinham-se habituado, ao longo dos anos, a respeitar as tradições natalícias, transformando-as numa grande e acolhedora reunião que as crianças adoravam.

Liz percorreu a curta distância até casa, em Tiburon, sorrindo intimamente ao estacionar na Rua da Esperança. As três filhas acabavam de voltar das compras, com Carole, e apeavam-se do carro carregadas de embrulhos. Megan, de catorze anos, era alta e delgada, Annie, de treze, mais forte, parecia-se muito com Liz e Rachel, de onze, era o retrato do pai, apesar do cabelo ruivo herdado da mãe. As três davam-se surpreendentemente bem e mostravam-se muito animadas, conversando com Carole.

Sorriram assim que viram a mãe.

- Que andaram a fazer? - perguntou Liz, passando os braços por cima dos ombros de Annie e de Rachel. Depois, franziu o sobrolho, olhando para Megan. - Essa não é a minha camisola preta, Meg? Nem preciso de perguntar, pois não? És maior do que eu e estás a alargá-la!

- Não tenho culpa de que a mãe tenha pouco peito respondeu Megan, com um sorriso contrafeito.

”Pediam” constantemente roupa emprestada umas às outras e à mãe, a maior parte das vezes sem o consentimento desta. Na realidade, era o único pomo de discórdia entre as raparigas, mas não chegava a ser um problema sério. Liz sentia-se afortunada só de olhar para elas, tinha umas filhas óptimas e adorava passar muito tempo com elas.

- Onde estão os rapazes? - perguntou Liz seguindo-as para dentro de casa e reparando, nessa altura, que Annie tinha calçado os seus sapatos preferidos.

Nada a fazer... Parecia que estavam destinadas a compartilhar o guarda-roupa, por mais coisas que lhes comprasse.

- O Peter saiu com a Jessica e o Jamie está em casa dum amigo - informou Carole. Jessica, a última namorada de Peter, morava perto, em Belvedere, e ele passava mais tempo lá do que na própria casa. - Tenho de ir buscar o Jamie daqui a meia hora - continuou Carole. - A não ser que queira ir.

Carole, que era uma bonita loirinha aos vinte e três anos, engordara bastante com o tempo, mas, apesar disso, aos trinta e sete continuava bonita, e tinha uma maneira afectuosa de lidar com as crianças. Pertencia realmente à família.

- Pensei fazer uns biscoitos esta tarde - disse Liz, pousando a carteira e despindo o casaco.

Deitou uma olhadela à correspondência, em cima da mesa da cozinha, mas nada viu de importante. Da janela, admirou então a paisagem, do outro lado da baía de São Francisco. Era uma linda vista, duma bela e confortável casa, um pouco acanhada para todos, mas adoravam-na.

- Alguém quer ajudar-me? - perguntou.

Mas estava a falar sozinha, as três raparigas tinham desaparecido nos respectivos quartos, muito provavelmente para falarem ao telefone. Os quatro mais velhos competiam constantemente pelas duas linhas existentes.

Liz estava ocupada a estender massa com o rolo e a cortá-la com os moldes quando, meia hora mais tarde, Carole desceu a escada para ir buscar Jamie. Liz ainda tinha muito que fazer, mas confiava que o filho quereria ajudá-la. O rapazinho gostava muito de estar na cozinha com ela. Dez minutos depois, quando voltou com Carole, deu um grito de alegria ao ver o que a mãe tinha entre mãos e roubou-lhe uma tirinha de massa, sorrindo enquanto a comia.

- Posso ajudar?

Era um garoto muito bonito, com cabelo forte e escuro, meigos olhos castanhos, e o seu sorriso derretia sempre o coração da mãe. Especialmente querido para ela, como para todos em casa, seria sempre o seu bebé.

- Claro, mas primeiro lava as mãos. Onde estavas?

- Em casa do Timmie - respondeu Jamie, voltando do lava-loiça com as mãos molhadas. Liz apontou para a toalha, para ele as secar.

- E que tal?

- Em casa dele não há Natal - respondeu o garoto em tom solene, ajudando a mãe a estender o resto da massa.

- Eu sei - respondeu a mãe, com um sorriso. - Eles são judeus.

- Têm velas e recebem presentes durante uma semana inteira. Porque não podemos ser judeus?

- Pouca sorte a nossa, acho eu, mas não podes queixar-te, mesmo com uma única noite de Natal! - e Liz sorriu de novo para o filho mais novo.

- Eu pedi uma bicicleta ao Pai Natal e disse-lhe que o Peter prometeu ensinar-me a andar - continuou Jamie, com uma expressão esperançada.

- Bem sei, querido.

Ajudara-o a escrever a carta e guardava todas as que os filhos tinham escrito ao Pai Natal no fundo duma gaveta, todas elas maravilhosas, especialmente as de Jamie.

O garoto encarou-a com um grande sorriso e os olhares dos dois cruzaram-se durante um longo momento.

Jamie era uma criança especial, uma dádiva na vida da mãe. Nascera mais de dois meses antes do tempo e sofrera lesões durante o parto e, depois, com o oxigénio que lhe haviam dado, podia até ter ficado cego, mas, em vez disso, tinha alguma dificuldade em aprender, não muita, mas o suficiente para ser um pouco mais lento do que deveria para a idade. Apesar disso, desembaraçava-se bem, frequentava uma escola especial e era responsável, activo e carinhoso. Mas nunca seria como o irmão e as irmãs, coisa que todos tinham aceitado há muito tempo. Ao princípio, fora um choque e um grande sofrimento, sobretudo para Liz, pois sentira-se responsável, devido a ter trabalhado de mais, três julgamentos seguidos, o que lhe provocara grande tensão. Depois de tanta sorte com os outros filhos, sem qualquer problema...

Mas as coisas haviam sido diferentes com Jamie desde o princípio, uma gravidez difícil, ela sempre exausta e enjoada do primeiro ao último dia, até que quase dois meses e meio antes do tempo, sem aviso, entrara em trabalho de parto e fora impossível travá-lo. Jamie nasceu dez minutos depois de Liz entrar no hospital, num parto fácil para a mãe, mas desastroso para ele. Chegou mesmo a supor-se que o caso era muito grave e durante semanas pensou-se que o bebé não sobreviveria. Quando finalmente o levaram para casa, após passar seis semanas numa incubadora, pareceu a todos que ocorrera um milagre. Jamie tinha um dom especial para amar e uma sabedoria muito particular, era o mais bondoso e meigo de toda a família, e possuía um maravilhoso sentido de humor, apesar das suas limitações. Há muito que tinham aprendido a apreciá-lo e às suas capacidades, em vez de lamentarem tudo o que nunca seria. Era uma criança tão bonita que as pessoas reparavam nele, e depois ficavam confusas perante a simplicidade com que falava e com a sua franqueza. Por vezes, levavam algum tempo a compreender que era diferente e, quando percebiam, tinham pena, o que aborrecia os pais e os irmãos. Sempre que alguém se mostrava penalizado, Liz respondia simplesmente:

- Não tenha pena, é um garoto fantástico, com um coração maior do que o mundo, e toda a gente o adora.

Além disso, estava quase sempre feliz, o que era um conforto para a mãe.

- Esqueceu-se das raspas de chocolate! - exclamou Jamie, e com razão, pois os biscoitos com raspas de chocolate eram os seus preferidos e a mãe fazia-os especialmente para ele.

- Pensei fazer biscoitos simples para o Natal, e enfeitá-los de verde e encarnado. Que achas?

Jamie pensou no assunto uma fracção de segundo e acenou com a cabeça.

- Devem ficar bonitos. Posso enfeitá-los?

- Claro!

Empurrou o tabuleiro, com os biscoitos do feitio de árvores de Natal, na direcção do filho e entregou-lhe o polvilhador com o açúcar colorido de encarnado. Jamie deitou mãos à obra e, quando se mostrou satisfeito, Liz estendeu-lhe outro tabuleiro. Trabalharam em equipa e finalmente os biscoitos foram para o forno. Nessa altura, reparou que o filho parecia preocupado.

- Que foi? - perguntou.

Era óbvio que o garoto estava inquieto e, quando uma ideia se lhe metia na cabeça, era difícil abandoná-la.

- E se ele não a traz?

- Quem?

Falavam um com o outro numa espécie de linguagem simplificada habitual e fácil para ambos.

- O Pai Natal - esclareceu Jamie, com um olhar triste.

- Estás a falar da bicicleta? - O garoto acenou com a cabeça. - Porque não há-de trazê-la? Portaste-te muito bem este ano, meu querido. Aposto que sim! - Liz não queria estragar a surpresa, mas precisava de o tranquilizar.

- Talvez ele pense que eu não sou capaz de andar nela.

- O Pai Natal é mais esperto do que isso. Claro que aprendes a andar. Além disso, disseste-lhe que o Peter te ajudaria.

- Acha que ele acreditou?

- Tenho a certeza. Olha, porque não vais brincar um bocadinho ou ver o que a Carole está a fazer, e eu chamo-te assim que os biscoitos estiverem prontos. Comes os primeiros!

Jamie sorriu e esqueceu-se do Pai Natal enquanto subia a escada para ir ter com Carole. Gostava muito de que ela lhe lesse histórias, porque ainda não aprendera a ler.

Liz foi ao armário onde tinha escondido alguns presentes e colocou-os junto à árvore de Natal. Quando os biscoitos ficaram prontos, chamou o filho, mas nessa altura ele estava satisfeito junto da governanta e não quis voltar para a cozinha. Dispôs os biscoitos em pratos, que deixou em cima da mesa, e subiu a escada para embrulhar os livros com encadernação de cabedal que comprara para o marido. As outras coisas que adquirira para ele estavam preparadas há semanas, mas descobrira os livros recentemente numa livraria onde entrara por acaso.

O resto da tarde passou num ápice, e Peter chegou a casa pouco tempo antes do pai, excitado e feliz. Engoliu uma mão-cheia de biscoitos e perguntou se podia voltar para casa de Jessica depois do jantar.

- Porque não vem ela cá, para variar? - perguntou Liz, contrariada.

Praticamente, não viam o filho, que estava sempre nas aulas, ou a praticar desporto, ou junto da namorada. Desde que tirara a carta de condução, parecia que só vinha a casa para dormir.

- Os pais não a deixam sair hoje à noite, por ser véspera de Natal.

- Cá em casa também é véspera de Natal - recordou-lhe a mãe.

Nesse momento, Jamie apareceu de novo na cozinha, tirou um biscoito e fitou o irmão com um olhar de adoração.

- Peter era o seu herói.

- Em casa do Timmie não, ele é judeu - disse o garoto com toda a naturalidade, enquanto Peter o despenteava e engolia mais uma mão-cheia de biscoitos. - Fui eu que os fiz - declarou Jamie, ao vê-los desaparecerem na boca do irmão.

- Uma delícia - elogiou Peter, com a boca cheia. Depois, voltou-se para Liz: - Ela hoje não pode sair, mãe. Porque não posso ir? Aqui é aborrecido.

- Obrigada. Tens de ficar e fazer alguma coisa cá em casa - declarou Liz com firmeza.

- Tens de me ajudar a levar os biscoitos e as cenouras para o Pai Natal e as renas - acrescentou Jamie solenemente.

Era uma coisa que os dois rapazes faziam juntos todos os anos, e ele teria ficado desapontado se assim não fosse, como Peter muito bem o sabia.

- Posso sair depois de ele se deitar? - pediu Peter, e Liz não conseguiu resistir-lhe, era um bom rapaz, um óptimo aluno, sendo difícil não o recompensar por isso.

- Está bem, mas tens de vir para casa cedo - disse ela por fim.

- Às onze, prometo.

Ainda estavam na cozinha quando Jack chegou, com aspecto cansado mas satisfeito. Acabara as compras de Natal e estava convencido de que encontrara o presente perfeito para a mulher.

- Olá a todos e feliz Natal! - exclamou, levantando Jamie do chão com um abraço bem apertado, o que o obrigou a rir. - Que fizeste hoje, meu rapaz? Estás pronto para o Pai Natal?

- A mãe e eu fizemos biscoitos para ele.

- Mmm! - exclamou Jack, pegando num e metendo-o na boca. Depois, aproximou-se da mulher e deu-lhe um beijo, com uma troca de olhares apreciativos. - E para o jantar?

- Fiambre assado.

Carole pusera-o no forno à tarde e Liz ia fazer o acompanhamento preferido de todos: ervilhas e batata-doce, e no dia de Natal comeriam peru com o recheio ”especial” de Jack. Liz serviu-lhe um copo de vinho, seguiu-o para a sala, com Jamie logo atrás, e Peter foi telefonar para dizer a Jessica que voltava depois do jantar. Na sala, ouviram os gritos de Megan, quando o irmão lhe tirou o telefone da mão e desligou a chamada dum dos seus admiradores.

- Calma, meninos! - gritou o pai lá para cima, instalando-se depois no sofá, junto da mulher, para gozar o espírito natalício.

A árvore estava iluminada e Carole pusera um disco de cânticos de Natal a tocar. Jamie sentou-se ao lado da mãe, contente e a cantarolar baixinho, enquanto os pais conversavam. Uns minutos mais tarde, levantou-se e foi à procura do irmão ou de Carole.

- Está preocupado com a bicicleta - segredou Liz ao marido, que sorriu, pois ambos sabiam como ele ia ficar contente com o presente. Há imenso tempo que queria ter uma e os pais tinham finalmente decidido que chegara a altura. Não tem falado noutra coisa e receia que o Pai Natal não lha traga.

- Montamo-la assim que ele adormecer - disse Jack baixinho, dando um beijo à mulher. - Há quanto tempo que não lhe digo como é bela, doutora?

- Pelo menos há dois dias - respondeu Liz, sorridente. Apesar dos muitos anos de casamento e das crianças constantemente em volta deles, existia ainda um bonito romance entre os dois. Jack estava sempre a levá-la a jantar a bons restaurantes, a sair para passarem uma noite romântica ou fins-de-semana fora, e até lhe mandava flores sem qualquer motivo aparente. Era uma arte manter o romance numa relação em que trabalhavam juntos e tinham razões suficientes para estarem em desacordo ou simplesmente aborrecerem-se um do outro. No entanto, isso nunca acontecera e Liz sentia-se grata pelos esforços do marido nesse sentido.

- Esta tarde pensei na Amanda Parker enquanto fazia os biscoitos com o Jamie - continuou ela. - Espero que aquele idiota não lhe arme alguma, depois da audiência de hoje. Não confio nele.

- Tens de aprender a deixar o trabalho no escritório disse Jack, troçando dela, e servindo-se de vinho. Fingia sempre ser melhor nisso do que Liz.

- Foi a tua pasta que eu vi no vestíbulo cheia de trabalho, ou seria imaginação minha? - brincou Liz, o que o fez sorrir.

- Só ando com papéis dum lado para outro. Não penso neles. Assim é melhor.

- É, aposto que sim.

Conhecia-o demasiado bem para acreditar. Conversaram ainda um pouco e depois ela foi para a cozinha acabar o jantar. Nessa noite, ficaram mais tempo à mesa, a conversar e a rir com os filhos. Recordaram pequenos episódios dos anos anteriores e Jamie aproveitou para lembrar a todos o ano em que a avó passara o Natal com eles e insistira em que fossem à missa do galo, para depois adormecer na igreja, o que lhes provocara um ataque de riso incontrolável, porque ressonava. Liz sentiu-se aliviada por a mãe ter ido passar o Natal em casa do irmão dela, naquele ano. Era complicado recebê-la nas férias, porque dava ordens a toda a gente, ela é que sabia tudo, era muito tradicionalista e preconceituosa, e criava situações incómodas por causa de Jamie. Ficara horrorizada quando ele nascera, dizendo que era uma tragédia, o que continuava a afirmar sempre que tinha uma oportunidade, felizmente longe dos ouvidos do garoto. Achava que deviam mandá-lo para uma escola especial interna, para os irmãos não serem ”sobrecarregados” com ele. Liz ficava furiosa cada vez que ouvia aquilo, mas Jack dizia-lhe que não fizesse caso, o que a velha senhora pensava sobre o assunto não devia afectá-los. Jamie era uma parte importante da família e nada no mundo os levaria a afastá-lo, até porque os irmãos ficariam indignados se isso acontecesse. Mas Liz continuava a sentir-se furiosa quando a mãe dizia coisas negativas acerca dele.

Peter ajudou o irmão a pôr os biscoitos e as cenouras lá fora para o Pai Natal e para as renas, como todos os anos, com um jarro de leite e uma tigela de sal, tudo acompanhado dum bilhete ditado por Jamie, lembrando a bicicleta e insistindo em que ele trouxesse também coisas fantásticas para todos os irmãos.

- Obrigado, Pai Natal - ditou Jamie finalmente, acenando, satisfeito, quando Peter lhe leu a carta. - Achas que lhe diga que não faz mal se não receber a bicicleta? - perguntou com ar preocupado. - Não quero que se sinta mal, se não a trouxer.

- Não, acho que assim está bem. Além disso, tens-te portado tão bem que aposto que a traz.

Todos sabiam que Jamie ia receber a bicicleta que tanto desejava, e mal podiam esperar para ver a cara dele quando a visse de manhã.

Liz conseguiu por fim que ele fosse para a cama. Megan estava ao telefone, como de costume, e Rachel e Annie riam baixinho no quarto, a experimentar roupa uma da outra. Peter saiu para ir ter com a namorada, depois de ajudar o pai a montar a bicicleta do irmão, e Liz foi arrumar a cozinha e preparar o jantar do dia de Natal.

Carole tinha ido a casa duma amiga levar uma prenda e ela dissera-lhe que tratava da cozinha. Era uma noite calma e feliz, cheia de espírito natalício, e Liz e Jack anteviam com agrado a perspectiva dum longo fim-de-semana. Trabalhavam muito, o que os fazia apreciarem o tempo que podiam passar junto dos filhos. Subiam lentamente a escada de mãos dadas, quando Amanda Parker ligou. Foi Megan quem atendeu, e Liz foi falar com ela. Assim que lhe ouviu a voz, percebeu que estava a chorar. Mal podia falar.

- Peço muita desculpa por telefonar na véspera de Natal... O Phil ligou para mim há bocadinho e... - os soluços redobraram, enquanto Liz tentava acalmá-la e perceber o que dizia.

- Que é que queria?

- Disse que, se eu não vos desse ordem para descongelarem tudo, me mata, que nunca me pagará qualquer pensão e que os pequenos e eu podemos morrer de fome que a ele tanto lhe faz.

- Isso não vai acontecer e você sabe-o perfeitamente. Ele tem de os sustentar, está só a tentar assustá-la.

E conseguira-o, como se via. Liz detestava casos como aquele, em que uma cliente de quem gostava tinha sido ou estava a ser maltratada. Alguns dos episódios que Amanda lhe contara anteriormente haviam-na perturbado. Aquele homem humilhara e aterrorizara a mulher a tal ponto que só ao fim de anos é que ela arranjara coragem para o deixar. E agora, era obrigada a aguentar enquanto ele a ameaçava, até obter a pensão que merecia. Mas Liz sabia que não ia ser fácil. Amanda era a vítima perfeita.

- Não atenda mais o telefone esta noite. Tranque as portas, fique em casa com os seus filhos e, se ouvir alguma coisa suspeita lá fora, chame a polícia. Está bem, Amanda? Ele só quer assustá-la. Lembre-se que não passa dum fanfarrão. Se ficar na sua, ele recua.

- Ele diz que me mata - murmurou Amanda, nada convencida de que Liz tivesse razão.

- Se tornar a ameaçá-la, obtemos uma restrição para a semana. E então, se se aproximar de si, vai preso.

- Obrigada - disse Amanda, parecendo ligeiramente aliviada, mas não o suficiente. - Peço muita desculpa por a incomodar na véspera de Natal.

- Não nos incomoda, é para isso que cá estamos. Telefone outra vez, se for preciso.

- Já estou melhor, fez-me bem falar consigo - disse Amanda, agradecida, o que comoveu Liz. Era uma maneira horrível de passar o Natal.

- Tenho tanta pena dela - disse Liz ao marido quando entrou no quarto, pois atendera o telefone no vestíbulo. Amanda não tem arcaboiço para lidar com aquele estupor.

- Por isso precisa de nós para a defendermos. - Tinha tirado os sapatos e andava pelo quarto silenciosamente, congratulando-se interiormente com o presente que comprara para a mulher, mas, ao ver a expressão dela, percebeu que estava realmente preocupada.

- Achas que o tipo é mesmo capaz de lhe fazer mal? perguntou Liz, pois Phillip Parker já agredira a mulher, mas isso acontecera há já bastante tempo.

- Não, acho que não. Parece-me que está só a tentar intimidá-la. Que quer ele agora? Que anulemos o que foi determinado hoje? - Liz acenou com a cabeça e era exactamente o que Jack esperara e que não surpreendia nenhum dos dois. - Bem pode espernear, que não haverá qualquer anulação, e ele sabe-o perfeitamente.

- Pobre Amanda, isto é muito difícil para ela.

- Terá de aguentar até ao fim. Nós vamos conseguir tudo aquilo de que ela precisa e ele acalma-se. Tem mais do que o suficiente para dar uma pensão decente à ex-mulher e aos filhos. Que despache uma das amantes, se precisar de fazer economias.

- Talvez seja disso que ele tem medo - comentou Liz, sorrindo e olhando para o marido com admiração.

Jack despia a camisa e, como sempre, parecia-lhe incrivelmente belo. Com quarenta e quatro anos, mantinha um corpo forte e atlético e aparentava muito menos idade, apesar do cabelo branco.

- Porque é esse sorriso? - perguntou ele, trocista, tirando as calças.

- Estava a pensar como és giro. Acho-te ainda mais bonito e excitante do que quando casámos.

- Começas a ficar míope, meu amor, mas agradeço-te muito. Tu também não estás mal de todo!

Com quarenta e um anos, ninguém diria que tivera cinco filhos. Jack atravessou o quarto, beijou-a e ambos puseram Amanda Parker e os seus problemas de lado. Por muito que gostassem dela e tivessem pena, fazia parte da sua vida de trabalho, coisa que naquele momento precisavam de esquecer, para poderem gozar o Natal um com o outro e com as crianças.

Sentaram-se na cama e viram televisão durante algum tempo, as filhas entraram para lhes dar as boas-noites antes de se deitarem, e Liz ouviu Peter entrar em casa quando soavam as onze horas. Cumpria sempre o horário imposto pelos pais. Depois do noticiário, apagaram a luz e meteram-se na cama, abraçados. Ela adorava ficar assim, mas quando ele lhe segredou umas palavras, deu uma gargalhadinha e foi pé ante pé fechar a porta à chave. Nunca se sabia se um dos filhos não apareceria por ali, sobretudo Jamie, que acordava muitas vezes de noite e lhe pedia que o ajudasse a ir beber água e que o tapasse depois. Mas, com a porta fechada à chave, o quarto era só deles, e Liz gemeu quando o marido lhe tirou a camisa de noite e a beijou. Era a maneira perfeita de passar a véspera de Natal.

 

Capítulo 2

No dia de Natal, Jamie meteu-se na cama dos pais às seis e meia da manhã. Liz vestira novamente a camisa e a porta havia sido destrancada antes de adormecerem. Jack continuava a dormir profundamente só com as calças do pijama. Jamie deitou-se encostado à mãe. Ela e Jack tinham passado a noite juntinhos, e todos os outros descansavam ainda quando Jamie perguntou se ainda não eram horas de ir para baixo.

- Ainda não, meu querido - murmurou Liz. - Deita-te aqui um bocadinho connosco. Ainda é noite.

- Quando posso ir lá para baixo? - perguntou ele num murmúrio.

- Daqui a umas duas horas.

Tinha esperança de conseguir travá-lo mais algum tempo, pelo menos até às oito, com sorte. Os outros já não tinham idade para querer sair da cama de madrugada, mas Jamie transbordava de excitação. Liz acabou por levá-lo de volta para o quarto, deu-lhe um beijo e um balde cheio de peças de Lego para brincar.

- Eu venho cá buscar-te quando forem horas - prometeu quando ele começou a fazer uma construção.

Então, voltou para o seu quarto e enroscou-se de novo junto ao marido por mais uma hora. Ele estava quente e era confortável, o que a fez sorrir de prazer. Passava já das oito quando Jack se mexeu pela primeira vez, e Jamie tornou a aparecer para dizer que já não tinha mais peças de Lego. Liz deu um beijo ao marido, sorridente, sorriso que ele retribuiu, lembrando-se dos prazeres da noite anterior, e mandou Jamie despertar os irmãos.

- Há quanto tempo estás acordada? - perguntou Jack, abraçando-a preguiçosamente e puxando-a para si.

- O Jamie apareceu às seis e meia. Tem sido muito paciente, mas não me parece que aguente mais.

Cinco minutos depois, o garoto aparecia, com os irmãos atrás. As raparigas vinham meio a dormir e Peter tinha um braço por cima dos ombros do irmão. Ajudara a armar a bicicleta na véspera e sorria, a pensar como o irmãozito ia ficar contente.

- Vá lá, pai, levante-se! - exclamou ele com um enorme sorriso, destapando Jack, que gemeu e se voltou para o outro lado, tentando tapar a cabeça com a almofada, o que despertou um diabinho dentro das raparigas.

Antes de poder defender-se, Annie e Rachel saltaram para cima dele e Megan desatou a fazer-lhe cócegas, enquanto Jamie guinchava, deliciado. Liz levantou-se e enfiou o roupão, a olhar para eles, para aquela confusão de braços e pernas. Estavam a portar-se como crianças, e o pai retaliava, com cócegas e puxando Jamie para dentro da cama. Pareciam um novelo de corpos às gargalhadas, até que Liz conseguiu libertar Jack e disse que eram horas de ir para baixo ver o que o Pai Natal lhes trouxera.

Jamie foi o primeiro a saltar da cama e a descer a escada, com os outros na peugada, ainda a rir, e os pais mais atrás. O garoto já ia a meio quando os irmãos saíram do quarto dos pais.

Dali ainda não via os presentes, precisava de descer mais uns degraus, mas de repente avistou-a, brilhante, encarnada e linda, e Liz sentiu os olhos encherem-se-lhe de lágrimas diante da expressão do garoto. Aquela era a magia do Natal na cara duma criança que via a sua bicicleta, e ficaram todos a olhar para ele com orgulho e prazer. Liz segurou na bicicleta para ele montar, e Peter puxou-a pelo guiador à volta da sala, tentando não atropelar os outros, mas Jamie estava tão excitado que não dizia coisa com coisa.

- Recebi-a! Recebi-a! O Pai Natal deu-me a bicicleta! - gritou ele.

O pai pôs um disco de cânticos de Natal e, de repente, toda a casa pareceu encher-se de espírito natalício. As raparigas instalaram-se para abrir os seus presentes, e Peter convenceu finalmente o irmão a largar a bicicleta uns instantes para poderem abrir os respectivos embrulhos. Jack já descobrira os volumes encadernados e um casaco de caxemira, outra oferta de Liz. Ela ficou encantada com a pulseira de ouro que o marido lhe comprara na véspera, era perfeita e adorou-a, como ele esperava.

Passaram meia hora a abrir presentes e a proferir exclamações, até que Jamie tornou a montar na bicicleta e Peter ajudou-o a equilibrar-se, enquanto Liz foi fazer o pequeno-almoço: panquecas, salsichas e toucinho fumado, a habitual ementa de Natal. Enquanto fazia as panquecas, cantarolando baixinho, Jack foi ter com ela e Liz disse-lhe, mais uma vez, que tinha adorado a pulseira.

- Amo-te, Liz - declarou ele, com um olhar carinhoso. - Não costumas pensar que temos muita sorte? - perguntou, deitando um olhar para a sala.

- Ora, mais ou menos cem vezes por dia e às vezes mais! Aproximou-se, abraçou-o e deu-lhe um beijo, que ele retribuiu.

- Obrigado por tudo o que és para mim... Não sei o que fiz para te merecer, mas seja como for sinto-me muito feliz por nos termos um ao outro - ele falou com grande meiguice, ainda abraçado à mulher.

- Eu também - respondeu ela, apressando-se depois a tirar as salsichas e o toucinho do lume.

Jack fez café e serviu o sumo de laranja, enquanto Liz tratava das panquecas, e sentaram-se todos à mesa, a falar acerca dos presentes, a rir e a meterem-se uns com os outros. Jamie pousara a bicicleta no chão ao pé de si. Se o deixassem, tinha comido o pequeno-almoço sentado nela.

- Que vão fazer hoje? - perguntou o pai, servindo-se de mais café e ouvindo os filhos comentarem que tinham comido de mais.

- Daqui a pouco tenho de começar a tratar do peru disse Liz, olhando para o relógio.

Era enorme, demoraria quase todo o dia a cozinhar e Jack tinha de fazer o seu famoso recheio.

As garotas disseram que queriam experimentar os presentes e telefonar às amigas e Peter disse que ia mais uma vez a casa da namorada, mas o irmão fê-lo prometer que não se demorava, para o ajudar a andar na bicicleta. Quanto a Jack, decidiu que ia passar pelo escritório.

- No dia de Natal? - perguntou Liz, admirada.

- Só uns minutos - e o marido explicou-lhe que se esquecera dum processo em que queria trabalhar durante o fim-de-semana.

- Porque não esqueces isso até amanhã? Não precisas de ir buscá-lo hoje - insistiu Liz. - Estás a exagerar, afinal, hoje é dia de Natal.

- Sinto-me melhor sabendo que o tenho aqui. Assim, amanhã levanto-me e posso começar a trabalhar - explicou Jack, com um olhar culpado.

- Que foi que me disseste sobre deixar o trabalho no escritório? Faça o que diz, doutor!

- Não me demoro mais do que cinco minutos, e depois venho fazer o recheio. Vais ver que nem dás pela minha falta. - Sorriu-lhe, deu-lhe um beijo e, depois de os filhos saírem, ajudou-a a levantar a mesa.

Liz dirigiu-se à cozinha para começar a tratar do peru e, meia hora depois, Jack desceu a escada, com umas calças caqui e uma camisola encarnada, barbeado de fresco.

- Precisas de alguma coisa? - perguntou ele, e Liz sorriu e abanou a cabeça.

- Só de ti. Ao contrário de certas pessoas que eu conheço, não estou a pensar trabalhar este fim-de-semana. Durante as festas, fico de folga.

Continuava de roupão, tinha o cabelo ruivo liso caído até abaixo dos ombros e olhava o marido com uma expressão amorosa nos olhos verdes. Para ela, era como se não tivessem passado tantos anos desde o dia do casamento.

- Adoro-te, Liz - replicou ele meigamente, dando-lhe mais um beijo.

Abriu a porta e saiu, com um sorriso estampado no rosto. Pensou nela durante todo o caminho até ao escritório, e estacionou o carro no lugar habitual junto ao edifício.

Abriu a porta com as suas chaves e deixou-a aberta atrás de si. Desligou o alarme e entrou no escritório. Sabia exactamente onde estava o processo e que levaria menos de um minuto a pegar nele. E vinha já de volta para ligar de novo o alarme, quando ouviu passos no vestíbulo. Sabia que o prédio estava vazio e chegou a pensar que talvez Liz tivesse vindo ter com ele, mas isso não fazia sentido, de maneira que espreitou pela porta para ver quem teria entrado depois dele.

- Olá?! - exclamou, mas não obteve qualquer resposta. No entanto, ouviu um ruído e depois um estranho som metálico. Avançou pelo corredor e, ao dar a curva, deparou-se-lhe Phillip Parker, o marido de Amanda, com uma expressão sinistra, a roupa em desordem e visivelmente embriagado. Reparou também que ele lhe apontava uma arma, mas ficou estranhamente calmo.

- Não precisa disso aqui, Phil, baixe a arma - disse Jack.

- Não me dê ordens, seu filho da mãe. Pensava que podia lixar-me, não era? Que podia assustar-me? Pois não assusta, só me chateia. Conseguiu dar-lhe a volta, para ela fazer tudo o que você queria, julga que lhe prestou um grande favor, pois olhe, quer saber o que lhe aconteceu?

Jack viu que o homem começara a chorar e reparou que tinha uma grande mancha de sangue numa manga. Além disso, estava com ar de tresloucado, parecia até drogado, tal o seu aspecto era tão estranho. Phillip Parker continuou, completamente histérico:

- Eu disse-lhe que a matava, se você não recuasse... Não vou deixá-lo fazer-me uma coisa dessas... não pode congelar tudo o que eu tenho, lixar-me dessa maneira... Eu disse-lhe que o fazia... disse-lhe... ela não tem o direito... você não tem o direito...

- É só durante um mês, Phil, até nos dar a informação que lhe pedimos. Podemos resolver o assunto em qualquer altura. Na segunda-feira, se quiser. Mas tenha calma

- Jack falou com uma voz serena e profunda, tentando acalmá-lo, mas sentia o coração acelerado.

- Tenha calma você. Não me diga o que devo fazer. Seja como for, é tarde de mais. Agora já não tem importância. Você estragou tudo, obrigou-me a isto.

- Isto quê, Phil?

Mas Jack sabia instintivamente do que ele falava, mesmo antes de o ouvir. Liz estava certa, tinham-no forçado. De repente, ao olhá-lo, sentiu medo por Amanda. Que teria Parker feito à mulher e aos filhos?

- Matei-a - declarou ele, rompendo em lágrimas e a culpa é sua. Teve de ser. Ela queria tirar-me tudo o que eu tenho... queria tudo, não era? A desavergonhada... você não tinha o direito... que havia eu de fazer enquanto me congelavam tudo? Passar fome?

Jack percebeu que não valia a pena responder. Só lhe restava esperar que o que Phillip Parker dizia não fosse verdade.

- Como sabia que eu estava aqui, Phil? - perguntou.

- Segui-o. Passei toda a manhã à porta da sua casa.

- Onde está a Amanda?

- Já lhe disse... morreu... - limpou o nariz à manga e o sangue espalhou-se-lhe pela cara.

- Onde estão as crianças?

- Com ela, deixei-as lá - disse ele, a chorar baixinho.

- Também as matou?

Parker abanou a cabeça e apontou a arma ao advogado.

- Fechei-as no quarto com ela, e agora tenho de o matar a si, é mais do que justo. Isto é tudo por sua culpa, você é que a fez proceder assim. Ela era boa rapariga, até você aparecer. E tudo culpa sua, seu estupor.

- Eu sei que é - concordou Jack, sentindo o estômago às voltas pensando nas crianças. - A Amanda não tem culpa. Agora, baixe essa arma e vamos conversar.

- Seu filho da mãe, não me diga o que tenho de fazer ou eu mato-o também!

Passou do sofrimento à fúria numa fracção de segundo, e os seus olhos pareciam emitir raios laser, furando os de Jack e fazendo-o compreender que o homem falava a sério e era capaz de cumprir o que dizia.

- Largue a arma, Phil, largue a arma - insistiu o advogado sempre com a voz calma e forte, dando um passo lento na direcção de Parker.

- Vá-se lixar, seu estupor! - gritou este, mas baixando a arma, e Jack percebeu que começava a ganhar.

Phillip Parker hesitava e, daí a um minuto, podia deitar a mão à arma. Sem tirar os olhos dele, continuou a avançar com lentidão, mas depois, quando estava prestes a alcançá-lo, ouviu-se um tiro. Jack ficou a olhar para o outro, espantado. A arma estava apontada para o seu peito e, ao princípio, não teve qualquer sensação.

Tinha a certeza de que a bala não lhe acertara, mas tal não acontecera. Ficou ali parado, a olhar, incapaz de se mover ou de levantar os braços, enquanto Phil Parker metia o cano na boca e rebentava a própria cabeça, espalhando sangue e cérebro pela parede atrás dele. Só nesse momento é que sentiu uma dor terrível e caiu de joelhos, tentando perceber o que se passava. Fora tudo tão rápido que só sabia que precisava de chamar alguém antes de perder a consciência. Viu o telefone em cima da secretária, quando caiu lentamente de encontro a ela. Mal conseguiu deitar-lhe a mão, puxando-o para si e marcou o cento e doze. Ouviu a voz no momento em que caía para a frente, mas quase não podia respirar.

- Emergência.

- Apanhei um tiro... - conseguiu dizer, e viu o sangue a escorrer da camisola para a alcatifa onde estava estendido.

Repetiram o número do telefone e a morada, e Jack murmurou a confirmação e disse que a porta estava aberta.

- Digam à minha mulher - balbuciou ainda, com esforço, e depois deu-lhes o número do telefone de casa e sentiu os olhos fecharem-se-lhe.

- A ambulância vai a caminho e chega aí em menos de três minutos - disse a voz, mas Jack teve dificuldade em compreender.

Uma ambulância? Para quê? Não se lembrava. A única coisa que queria era Liz. Fechou os olhos e ficou estendido na alcatifa, molhado e com frio, ouvindo uma sirene ao longe. Seria Liz? E porque faria ela tanto barulho? De repente, ouviu vozes à sua volta, e sentiu que lhe mexiam. Puseram-lhe qualquer coisa na cara, e puxaram e rasgaram, e as vozes gritavam. Não se lembrava do que acontecera nem percebia o que faziam ali. E onde estava Liz? Sentiu-se deslizar para a escuridão, mas alguém insistia em chamá-lo, e ele só queria a mulher, não aquela gente que gritava com ele. Quem seriam todas aquelas pessoas? E onde se encontravam a esposa e os filhos?

Liz continuava na cozinha, de roupão, quando lhe telefonaram, pouco tempo depois de o marido sair, uns dez minutos, e teve o estranho pressentimento de que talvez fosse Amanda, mas ficou admirada quando ouviu uma voz desconhecida. O homem disse que era da polícia e que tinham motivos para acreditar que o marido dela havia sido ferido no escritório e lhes pedira que lhe ligassem. Uma ambulância fora enviada para o local.

- O meu marido? - perguntou Liz, pensando se não seria uma brincadeira de mau gosto, pois aquilo não fazia sentido, ele saíra de casa minutos antes. - Teve um desastre no caminho? Mas porque não me ligou ele mesmo? Aquilo era um disparate.

- A pessoa que telefonou disse que tinha sido ferido a tiro - explicou delicadamente o homem.

- A tiro? O Jack? Tem a certeza?

- Ainda não chegaram lá, mas a pessoa que ligou pediu-nos que lhe telefonássemos e deu-nos este número. Talvez a senhora queira ir já para lá.

Enquanto ouvia o que lhe diziam, Liz pensou em ir ao quarto vestir-se, mas depois pôs a ideia de lado. Se aquilo era verdade e o marido estava ferido, precisava de ir ter imediatamente com ele. Agradeceu à voz no telefone e dirigiu-se para a escada, gritando lá para cima que ia sair e dizendo ao filho mais velho que tomasse conta do irmão.

- Eu volto já! - gritou ainda, quando Peter lhe respondeu, e foi-se embora sem mais explicações.

Pegou na chave do carro, que estava em cima da bancada da cozinha, e correu para a porta em roupão. Assim que se meteu no carro e começou a fazer marcha atrás em direcção à rua deu consigo a rezar... que ele esteja bem... por favor, meu Deus... que ele esteja bem... por favor... As palavras ao telefone não lhe saíam da cabeça... o homem a dizer que ele fora ferido a tiro... a tiro... a tiro... mas como podia ter acontecido aquilo a Jack? Era tudo um disparate, logo no dia de Natal, e ele ainda tinha de fazer o recheio. Só conseguia recordar o sorriso do marido ao sair da cozinha com as calças caqui e a camisola encarnada... A pessoa que ligou foi ferida a tiro...

Conduziu até ao parque de estacionamento do edifício do escritório a uma velocidade louca, viu dois carros da polícia, e uma ambulância com as luzes acesas, e entrou no prédio à pressa, para ver o que se passava. Subiu a escada a correr, a murmurar o nome do marido... Jack... Jack... como que a chamá-lo... a dizer-lhe que ia a caminho, mas não o viu quando entrou no escritório, mas apenas um grupo de polícias e paramédicos à sua volta. Estes tratavam dele e, por trás, Liz viu a parede suja de sangue junto da qual Phil Parker se suicidara, sentindo-se imediatamente atordoada. O corpo dele jazia coberto por um oleado. Então, sem pensar, empurrou um dos polícias para o lado e ficou a olhar o marido no chão, com a cara da cor do cimento e os olhos fechados. Liz tapou a boca com a mão e caiu de joelhos ao lado dele, ofegante. Então, como se soubesse que ela estava ali, Jack abriu os olhos. Tinham-lhe posto soro e faziam qualquer coisa no ferimento do peito. Havia sangue por todos os lados, nele, nas pessoas à sua volta e na alcatifa. Quando Liz se debruçou sobre ele, também ela ficou coberta de sangue, mas Jack sorriu-lhe.

- Que aconteceu? - perguntou Liz, demasiado assustada para apreender o que se passava.

- O Parker - respondeu Jack num murmúrio, tornando a fechar os olhos, enquanto os paramédicos o colocavam numa maca o mais suavemente possível. Depois, abriu-os e franziu a testa, determinado a dizer-lhe qualquer coisa: Adoro-te... está tudo bem, Liz... - e tentou estender-lhe a mão, mas não teve forças para isso.

Liz correu ao lado da maca, percebeu que ele desmaiara e, de repente, foi invadida por um pânico terrível. Não conseguiam parar a hemorragia e a pressão sanguínea baixava incontrolavelmente. Sentiu que a agarravam por um braço e a puxavam para dentro da ambulância, que a porta se fechava com estrondo e que arrancavam velozmente, com dois paramédicos, frenéticos, de volta de Jack, enquanto trocavam breves palavras. Mas ele não voltou a abrir os olhos ou a falar e Liz ficou sentada no chão a olhar para o que acontecia, sem poder acreditar no que via ou ouvia. Depois, de repente, um dos paramédicos carregou no peito de Jack e o sangue jorrou para todos os lados, a ambulância pareceu ficar inundada e ouviu o outro paramédico a repetir continuamente... sem pulso... sem pressão... sem pulsações... e Liz olhava para aquilo tudo, horrorizada. Quando chegaram ao hospital, voltaram-se para ela e o que estivera a comprimir o peito de Jack abanou a cabeça com uma expressão penalizada.

- Lamento muito.

- Façam qualquer coisa... têm de fazer alguma coisa... não parem... por favor, não parem... - pediu Liz, a soluçar.

- Por favor, não...

- Acabou... Lamento muito...

- Não acabou, não... não acabou... - soluçou ela, debruçando-se e abraçando Jack.

Tinha o roupão ensopado de sangue, sentiu-o sem vida encostado a si e ouviu o assobio da máscara de oxigénio. Então, afastaram-na e conduziram-na para o interior do hospital, fazendo-a sentar-se. Embrulharam-na num cobertor e Liz ficou rodeada de vozes desconhecidas. Depois, trouxeram a maca, com o marido coberto com outro cobertor incluindo a cara. Queria destapar-lha, mas a maca não se deteve. Não sabia para onde o transportavam e não conseguia mover-se, nem pensar, nem falar. Nada podia fazer e ignorava para onde lhe levavam o marido.

- Senhora Sutherland? - Uma enfermeira parou diante dela, finalmente alguém lhe dirigia a palavra. - Lamento muito o que aconteceu ao seu marido. Há alguém que possa vir buscá-la?

- Não sei... eu... onde está ele?

- Levámo-lo lá para baixo. Sabe para onde quer que o levem depois?

Tudo aquilo lhe soava estranhamente.

- O levem? - perguntou, sem compreender, como se ouvisse uma língua estrangeira.

- Vai ter de tomar providências.

- Providências?

A única coisa que conseguia fazer era repetir as palavras da mulher. Sentia-se incapaz de pensar ou de falar como uma pessoa normal. Que teriam feito com o marido?

E que se passara? Ele tinha apanhado um tiro. Onde estava?

- Quer que chame alguém?

Liz nem sequer àquilo sabia responder. Quem poderia ela chamar? E que deveria fazer? Como acontecera uma coisa daquelas? Jack saíra de casa apenas para ir ao escritório buscar um processo, e ainda tinha de fazer o recheio. Enquanto tentava encontrar o sentido daquilo, um dos polícias aproximou-se.

- Nós levamo-la a casa, assim que estiver pronta. - Liz olhou para ele sem expressão, e viu-o trocar um olhar com a enfermeira. - Está alguém lá em casa, quando a senhora chegar?

- Os meus filhos - respondeu ela em voz rouca, tentando levantar-se, mas com as pernas a tremer, incapazes de suportarem o seu peso. O polícia ajudou-a e perguntou:

- Quer que ligue para outra pessoa?

- Não sei.

Para quem se telefona quando nos matam o marido a tiro? Para a secretária, Jean? Carole? A mãe dela, no Connecticut? Sem pensar, deu os números dos telefones de Jean e Carole.

- Nós dizemos-lhes que vão ter com a senhora a sua casa.

Liz acenou com a cabeça e viu outro polícia afastar-se para fazer os telefonemas. A enfermeira estendeu-lhe um roupão limpo para ir para casa, ajudando-a a tirar o dela, manchado com o sangue de Jack. Também tinha a camisa de noite ensopada, mas não a tirou. Sabia que tinha amigos que podia chamar, mas de momento não se conseguia lembrar quem eram. A única coisa em que pensava era no marido, deitado numa maca, a segredar-lhe que a adorava. Agradeceu o roupão à enfermeira, prometeu devolvê-lo e, atravessando descalça o átrio do hospital, dirigiu-se ao carro da polícia, que a aguardava lá fora. A funcionária da recepção pediu-lhe que ligasse assim que tivesse tomado providências - até a palavra lhe soava feia.

Não emitiu sequer um som ao entrar para o banco traseiro do carro da polícia e nem sequer sabia que chorava, apesar de as lágrimas lhe rolarem pela cara, limitando-se a olhar sem ver para as nucas dos polícias que a levavam a casa. Quando chegaram, abriram-lhe a porta e ajudaram-na a apear-se. Ofereceram-se para a acompanhar, mas Liz abanou a cabeça e começou a soluçar quando viu Carole aproximar-se e Jean chegar de carro, no mesmo instante. De repente, ambas a abraçavam, soluçando as três. Era inacreditável, aquilo não podia ter acontecido, não podia. Era demasiado horrível para ser verdade, não passava dum pesadelo. Era impossível Jack ter deixado de existir, aquelas coisas não aconteciam na vida real.

- Ele também matou a Amanda - disse Jean por entre lágrimas, pois o polícia que lhe telefonara dera-lhe os pormenores. - As crianças estão bem, pelo menos vivas, mas assistiram a tudo, embora ele não as tenha ferido.

Phillip Parker tinha assassinado a mulher e Jack, suicidando-se em seguida, numa onda de destruição que os atingira a todos. As crianças Parker estavam órfãs, mas Liz só conseguia pensar no que ia dizer aos próprios filhos, e sabia que assim que lhe pusessem os olhos em cima percebiam que alguma coisa horrível acontecera.

Com o cabelo cheio de sangue, a camisa de noite ensopada, que manchara já o roupão de algodão do hospital, ela própria parecia ter sofrido um acidente, assemelhava-se a uma louca, ali parada a olhar para as outras duas.

- Estou com muito mau aspecto? - perguntou a Carole, assoando-se e tentando recompor-se por causa dos filhos.

- Como a Jackie Kennedy em Dallas - respondeu Carole, o que a fez encolher-se involuntariamente.

Baixou os olhos para o roupão de algodão cinzento cheio de manchas de sangue.

- Vá buscar um roupão limpo, se faz favor, que eu espero na garagem... e um pente...

Depois, ficou a chorar nos braços de Jean enquanto esperava, tentando encontrar algum sentido para aquilo tudo, controlar-se e pensar no que ia contar aos filhos.

A única coisa que podia dizer-lhes era a verdade, mas sabia que, fossem quais fossem as palavras e a maneira como as proferisse, eles ficariam afectados para o resto da vida. Era um peso tremendo. E continuava a soluçar quando Carole voltou com o pente e um roupão de turco cor-de-rosa. Enfiou-o por cima do cinzento e penteou-se o melhor que pôde.

- Como estou agora? - perguntou, porque não queria aterrorizar os filhos mesmo antes de abrir a boca.

- A sério? Péssima, mas não é isso que vai assustá-los. Quer que vamos consigo?

Liz acenou com a cabeça, e elas seguiram-na para o interior da casa, directamente da garagem para a cozinha. Ouviram as vozes das crianças na sala, pelo menos de algumas, e ela pediu às duas amigas que esperassem na cozinha. Achava que devia ficar sozinha com os filhos, mas não sabia bem como havia de proceder.

Peter e Jamie fingiam que lutavam, entre risadas, no sofá. Jamie viu-a primeiro e ficou completamente imóvel.

- Onde está o paizinho? - perguntou, como se soubesse, ele por vezes via coisas em que as outras pessoas não reparavam.

- Não está aqui - respondeu a mãe honestamente, lutando para se controlar. - As vossas irmãs?

- Estão lá em cima - disse Peter, com uma expressão preocupada. - Que aconteceu, mãe?

- Vai buscá-las, querido, se fazes favor - Peter era agora o chefe da família, embora ainda o não soubesse.

Sem uma palavra, o rapaz subiu a escada a correr e, segundos depois, voltou com as irmãs, todos muito sérios, como se pressentissem que as suas vidas estavam prestes a mudar para sempre. Pararam a olhar a mãe, que continuava sentada no sofá e parecia alheada e chorosa.

- Sentem-se aqui - pediu Liz, com toda a meiguice possível naquele momento, e os filhos assim fizeram encostando-se a ela. A mãe estendeu os braços e tocou-lhes, sem conseguir conter as lágrimas, olhando para cada um, e puxando Jamie para si. - Tenho uma coisa terrível para vos dizer... uma coisa horrível que aconteceu...

- Que foi? - perguntou Megan, com pânico na voz e começando a chorar antes dos outros. - Que foi?

- Foi o vosso pai, levou um tiro do marido duma cliente nossa - disse Liz simplesmente.

- Onde está ele? - perguntou Annie, começando também a chorar.

Peter e os outros olhavam a mãe com os olhos muito abertos e uma expressão de total incredulidade, como que incapazes de imaginar o sucedido. E como haviam de imaginá-lo, se a própria Liz ainda não acreditava?

- Está no hospital - começou ela, mas não queria enganar os filhos.

Sabia que, por mais terrível que fosse, tinha de lhes contar o que acontecera, algo que nunca iriam esquecer. Daí em diante, teriam de viver com aquele momento, de o reviver um milhão de vezes em pensamento... para sempre...

- Está no hospital, mas morreu há meia hora... e ele amava-os muito a todos - e apertou-os contra si, ouvindo-os gritar de angústia. - Tenho tanta pena... tanta pena... conseguiu articular, por entre os seus próprios soluços.

- Não! - gritavam as garotas em uníssono, com Peter a soluçar destroçado, enquanto Jamie, sempre a olhar para a mãe, libertou-se do abraço e recuou lentamente.

- Não acredito, isso não é verdade - disse e depois fugiu escada acima, com a mãe a tentar apanhá-lo.

Foi encontrá-lo encolhido a um canto do quarto, numa bola, a chorar, com a cabeça no meio dos braços, como se quisesse proteger-se das palavras da mãe e do horror que lhes acontecera. Com dificuldade, Liz conseguiu levantá-lo e sentar-se na cama abraçada a ele, ambos lavados em lágrimas.

- O papá adorava-te, Jamie... Tenho tanta pena que isto tenha acontecido.

- Eu quero que ele venha para casa - balbuciou o garoto por entre soluços, com a mãe a embalá-lo.

- Também eu - disse Liz, num sofrimento desconhecido até então, sem ter ideia de como confortar os filhos.

- E ele vem?

- Não, meu amor, não vem. Não pode voltar para casa. Ele partiu.

- Para sempre?

Liz acenou com a cabeça, incapaz de repetir a palavra. Continuou abraçada ao filho uns minutos mais, e depois soltou-o e levantou-se, pegando-lhe na mão.

- Vamos ter com os manos.

Jamie fez que sim com a cabeça e desceram a escada. Peter e as irmãs continuavam abraçados uns aos outros, a chorar, acompanhados por Carole e Jean. Era uma sala cheia de lágrimas e sofrimento, com a árvore de Natal e os presentes abertos perfeitamente incongruentes. Parecia incrível que, duas horas antes, todos tivessem arrancado laços e papéis e tomado o pequeno-almoço juntos, e agora Jack estivesse ausente, e para sempre. Era impensável, insuportável. Como agiam as pessoas numa situação como aquela? Liz não fazia ideia, mas, centímetro a centímetro, peça por peça, teria de fazer o que era preciso e sentia consciência disso.

Conduziu todos para a cozinha, mas começou a soluçar de novo ao ver a chávena de café e o guardanapo do marido. Carole fê-los desaparecer discretamente e deu um copo de água a cada um. Ficaram ali sentados, a chorar, durante o que pareceu serem horas, e, finalmente, Carole levou as crianças para cima, deixando que Liz e Jean tomassem as providências necessárias. Era preciso fazer telefonemas, comunicar aos pais dele, que viviam em Chicago, e quereriam por certo vir, ao irmão dele, em Washington, à mãe dela, no Connecticut, e ao irmão, em Nova Jérsia. Avisar os amigos, o jornal, contactar uma agência funerária. Liz tinha de decidir o que queria.

Devia também telefonar a colegas e anteriores associados e clientes. Jean tomava notas, enquanto falavam. Liz tinha de escolher o tipo de celebração. Jack quereria ser cremado ou enterrado? Nunca tinham discutido o assunto, e ela sentia-se doente só de falar nisso. Tanto em que pensar e que fazer, penosos pormenores a resolver.

Redigir o obituário, avisar o padre, escolher o caixão, tudo tão sinistro, tão inacreditável, tão assustador.

Ouviu o que Jean dizia e, de repente, sentiu-se invadir por uma onda de pânico e apeteceu-lhe gritar com aquela mulher que trabalhara com eles seis anos. Era impossível aquilo estar a acontecer-lhes. Onde estava ele? E como poderia viver sem ele? Que ia ser dela e das crianças?

Baixou a cabeça e soluçou, como se só agora sentisse o verdadeiro impacto do golpe. O marido tinha sido alvejado e morto a tiro por um lunático. Jack desaparecera, e ela e os filhos estavam agora sós.

 

Capítulo 3

Durante o resto do dia, Liz sentiu-se como se se movesse debaixo de água. Os telefonemas foram feitos, pessoas iam e vinham, chegavam flores. Tinha consciência duma dor tão grande, que era como se fosse física, e as ondas de pânico engolfavam-na com tanta força que tinha a certeza de soçobrar. A única realidade era a constante preocupação com os filhos. Que ia ser deles? Como podiam aguentar aquilo? O sofrimento que transparecia nos seus rostos era o reflexo do dela. Aquilo não podia ser verdade, mas era, e ela nada podia fazer para inverter ou suavizar a situação. A sua sensação de incapacidade era total e avassaladora. Uma força poderosa impelia-a, como se a levasse de encontro a um muro, e não podia impedi-lo, mas o muro já fora atingido na manhã em que Phillip Parker disparara contra Jack.

Os vizinhos apareceram com comida, e Jean telefonara a todas as pessoas de que se lembrara, incluindo Victoria Waterman, a maior amiga de Liz, que vivia em São Francisco.

Também era advogada, embora tivesse abandonado a carreira há cinco anos, para ficar em casa com os três filhos. Após anos de tentativas, fora mãe de três gémeos por inseminação artificial e decidira aproveitar bem a maternidade. A cara de Victoria era a única em que Liz conseguia concentrar-se e mesmo recordar, todas as outras lhe pareciam vagas e, hora após hora, esquecia quem tinha estado lá em casa e com quem falara. Victoria chegou discretamente com uma maleta, o marido ficara a tomar conta dos filhos e ela ia acompanhar Liz durante o tempo que fosse preciso. Assim que esta a viu à porta do quarto, rompeu em lágrimas, e Victoria sentou-se junto dela, abraçou-a e ficaram assim as duas longo tempo, a chorar.

Não havia palavras que remediassem uma situação irremediável, de maneira que Victoria nem sequer tentou. Limitaram-se a ficar sentadas, abraçadas. Liz tentou explicar o sucedido, quanto mais não fosse para tentar ela própria compreender, mas nada fazia sentido, por mais que recordasse aquela manhã. Ainda com o roupão manchado de sangue quando a amiga chegou, foi ela quem, daí a pouco, a ajudou a despir-se e a meter-se no duche. Mas nada mudava, nada ajudava, comesse ou bebesse, chorasse ou falasse. O resultado era sempre o mesmo, por mais que recordasse os acontecimentos. Repetia-os para ver se encontrava alguma diferença, mas não, era sempre igual.

Liz só queria saber como estavam os filhos. Carole ficara junto de Jamie e das garotas, Peter tinha ido a casa da namorada e Jean não largava o telefone. Victoria tentou convencer a amiga a deitar-se, sem êxito, até que, à tarde, Jean declarou secamente que era preciso ”tomar providências”. Liz começava a odiar a expressão e não queria voltar a ouvi-la, já que parecia encerrar todo o horror do que acabava de lhes acontecer, significava escolher uma agência funerária, um caixão, um fato para Jack e um sítio para as pessoas poderem ”vê-lo”, como um objecto ou um quadro, em vez dum pai e marido.

Liz já decidira que queria o caixão fechado, porque não gostaria que alguém o recordasse assim, mas como o homem que fora, risonho e falador, a brincar com os filhos e a pavonear-se pelas salas dos tribunais. Não queria que vissem no que se transformara, uma forma sem vida, destruída pela bala disparada por Phillip Parker. E sabia que, algures, a família de Amanda Parker lidava com o mesmo horror e que os filhos dela também estavam devastados. Eram pequenos e já lhe tinham dito que uma tia materna ia tomar conta deles, mas, de momento, Liz não conseguia pensar nos outros, apenas nos seus. Pedira a Jean que mandasse flores no dia seguinte e havia de telefonar à avó das crianças daí a uns dias, mas estava demasiado perturbada para fazer mais do que chorar por elas à distância.

O irmão de Jack chegou de Washington nessa noite, assim como os pais, de Chicago, e foram todos à agência funerária com Liz, na manhã seguinte, para tratar do enterro.

Victoria acompanhou-os, dando a mão a Liz enquanto escolhiam o caixão, de mogno, escuro e de aspecto digno, com pegas de latão e forro de veludo branco. Os funcionários da agência pareciam encarar a escolha como se se tratasse dum carro, mencionando as várias alternativas e apontando os pormenores.

Era tudo tão horrível que Liz sentiu vontade de desatar a rir histericamente, mas, assim que começou, o riso transformou-se num soluçar incontrolável. Era como se não fosse capaz de se dominar, de suster a constante onda de emoções que a avassalava. O destino colocara-a na crista duma enorme onda, e era impossível voltar para terra firme. Pensou se alguma vez se sentiria segura ou normal, ou até no seu pleno juízo, ou capaz de rir, ou sorrir, ou ler uma revista ou fazer qualquer das coisas corriqueiras do dia-a-dia. A árvore de Natal, dentro de casa, parecia uma acusação, uma má recordação, o fantasma de Natais anteriores, de cada vez que passava junto dela.

Nessa noite, reuniu-se uma dúzia de pessoas à volta da mesa do jantar. Victoria, Carole, Jean, James, o irmão de Jack, de quem Jamie tinha o nome, os pais dele, o irmão dela, John, com quem nunca se dera especialmente bem, a namorada de Peter, Jessica, um amigo de Los Angeles, com quem Jack andara na escola, e as crianças.

Outras caras entraram e saíram, a campainha tocou e chegaram flores e comida. De repente, parecia que toda a gente sabia, e Jean conseguia manter os repórteres à distância. O caso era a manchete dos jornais da noite, e as crianças tinham começado a assistir à reportagem na televisão, mas Liz obrigou-as a desligar o aparelho logo que percebeu o que se passava.

E quando discutiam os pormenores do enterro, depois de as crianças terem ido para cima, a campainha soou de novo e Carole foi abrir. Era Helen, a mãe de Liz, acabada de chegar do Connecticut e que desatou a chorar assim que viu a filha.

- Ai, meu Deus, Liz... estás com um aspecto terrível...

- Eu sei, mãe, desculpe... eu...

Não sabia o que dizer, porque o relacionamento entre ambas nunca fora especialmente íntimo ou confortável para Liz. Era sempre mais fácil lidar com ela à distância, e Jack fora uma espécie de pára-choques quando a mãe desaprovava alguma coisa. Liz nunca lhe perdoara a falta de apoio e de compaixão para com o neto mais novo.

Fosse como fosse, a mãe dela achara uma loucura terem um quinto filho. Quatro já lhe pareciam um exagero, e cinco era ”ridículo e excessivo”, segundo Helen.

Carole perguntou-lhe se queria jantar, mas ela disse que tinha comido no avião, e sentou-se à mesa da cozinha com os outros, aceitando um café que Jean lhe serviu.

- Meu Deus, Liz, e agora, o que vais fazer? - perguntou Helen, atirando-se ao essencial da questão, antes mesmo do primeiro gole de café.

Os outros tinham andado todo o dia a rodear o problema, aproximando-se dele centímetro a centímetro, minuto a minuto, tentando não considerar mais do que a hora seguinte nem colocar perguntas importunas, mas a mãe de Liz nunca media as palavras ou hesitava em avançar por onde não devia.

- Vais ter de abandonar a casa, sabes. Sozinha não consegues mantê-la... e tens de fechar o escritório. Sem ele, não podes continuar a exercer.

Era exactamente o que Liz sentia e receava. Como sempre, a mãe fora direita ao centro do seu terror e atirara-lho à cara, enfiara-lho pela boca e pelo nariz até que ela mal podia respirar só de pensar naquilo. Parecia o eco do que ouvira nove anos antes... não vais ficar com esse filho em casa, pois não? Meu Deus, Liz, uma criança como essa vai destruir as outras. Helen conseguia sempre dar voz aos maiores terrores de toda a gente. Jack costumava chamar-lhe ”a voz do Juízo Final”, embora a rir. ”Ela não pode obrigar-te a fazer uma coisa que tu não queiras”, lembrava-lhe sempre o marido. Mas onde estava ele agora? E se a mãe tivesse razão?...

E se fosse obrigada a deixar a casa e a fechar o escritório? Como podia trabalhar sem ele?

- Por agora, temos de pensar apenas em ultrapassar segunda-feira - interrompeu firmemente Victoria, pois tinham decidido fazer o velório na capela da agência funerária durante o fim-de-semana e o enterro na segunda-feira, no cemitério de Saint Hilary. - O resto logo se resolve.

O enterro na segunda-feira era o objectivo, aquilo em que Liz tinha de concentrar-se, depois, todos a ajudariam a recuperar, tal como a acompanhavam naquele momento, e todos sabiam que ela ainda não precisava de se preocupar com a situação em geral. O presente era suficientemente mau, e Liz sentia o pensamento voltar-se a todo o momento para o Natal. Era um pesadelo que viveria com eles para sempre. As crianças nunca mais enfeitariam uma árvore de Natal ou ouviriam um cântico ou abririam um presente sem recordar o que acontecera ao pai na manhã dum dia de Natal, e como tudo se transformara para cada uma delas. Liz olhou em volta da mesa, com uma expressão destroçada.

- Vá, porque não vamos lá para cima, para tu descansares um bocadinho? - propôs Victoria em voz baixa.

Era uma mulher pequena, de olhos e cabelo escuros, com uma voz firme que não admitia discordâncias, precisamente o tipo de força de que Liz necessitava. Quando ainda praticava advocacia, Liz costumava meter-se com ela, chamando-lhe o terror dos tribunais. A sua especialidade era danos pessoais e ganhara casos com indemnizações extraordinárias para os seus clientes, mas pensar naquilo recordou-lhe novamente o marido e Amanda e tudo o que sucedera. Ao subir lentamente a escada, com Victoria logo atrás, Liz chorava de novo.

Disse à amiga que pusesse Peter a dormir no quarto de Jamie e a mãe no de Peter. O irmão de Jack ficaria no sofá do escritório, ao lado do quarto dela, e o seu irmão na sala. A casa estava a abarrotar, Jean dormiria na segunda cama do quarto de Carole e Victoria na enorme cama de casal, a seu lado. Estavam todos ali como um exército caridoso, prontos a ajudá-la a enfrentar o sofrimento, e parecia haver gente em todos os cantos da casa. Peter e Jessica conversavam num dos quartos das garotas, quando passaram, e Jamie estava sentado ao colo de Megan. Pareciam calmos e naquele momento não choravam, de maneira que deixou Victoria levá-la para o quarto. Deitou-se em cima da cama, a olhar para o tecto, sentindo-se como se tivesse apanhado uma tareia.

- E se a minha mãe tem razão, Vic? Se eu for obrigada a vender a casa e a desistir do escritório?

- E se a China nos declarar guerra e nos bombardear? Queres fazer as malas já ou esperar para depois? Se for já, a roupa é capaz de ficar bastante amarrotada, mas, se esperares, talvez fique pior quando a bomba atingir a casa... Que achas, agora ou depois? - Falara meio a sorrir, e Liz deu uma gargalhada pela primeira vez nesse dia. - Acho que a tua mãe está a criar problemas com os quais não precisas de te preocupar de momento e provavelmente nunca. Que está ela a dizer, que és uma porcaria duma advogada e que não consegues funcionar sem o Jack? Tem dó! Ele dizia que eras muito melhor do que ele - e Victoria acreditava nisso, pois Liz tinha um conhecimento extraordinário das leis, e o que lhe faltava em ousadia era compensado por habilidade e precisão.

- Ele só dizia isso para ser simpático - replicou Liz com as lágrimas a encherem-lhe de novo os olhos...

Era de tal maneira impossível pensar que Jack já não se encontrava ali... Onde estava? Queria-o de volta. Ainda na véspera tinham dormido os dois naquela cama e feito amor. As lágrimas correram-lhe pela cara, ao recordar. Nunca mais estaria com ele, nunca mais amaria. Parecia-lhe que a sua vida tinha acabado, tal como a dele.

- És melhor na tua especialidade do que qualquer outro advogado que eu conheça - declarou Victoria, tentando distrair a amiga com o presente imediato. Quase conseguia ver todos os horrores em que ela pensava, até os que não mencionava. - O Jack era um exibicionista no tribunal, tal como eu, dois especialistas da intimidação. - Era difícil não falar dele como se ainda estivesse com elas.

- Pois, e olha onde isso o levou. Ainda ontem lhe disse que o Parker matava a mulher se lhe mexêssemos na empresa e no dinheiro. Só não sabia que o matava a ele também.

Desfez-se uma vez mais em lágrimas e Victoria sentou-se na cama a seu lado, abraçando-a até ela acalmar. Nessa altura a mãe de Liz assomou à porta do quarto.

- Como está ela! - perguntou, olhando directamente para Victoria, como se a filha estivesse inconsciente e não pudesse ouvir, o que, até certo ponto, era verdade.

Liz sentia-se como se estivesse a passar por uma experiência de fora do corpo, a ver o que se passava dum ponto algures no tecto.

- Estou bem, mãe.

Era uma parvoíce, mas que outra coisa podia dizer? Era como se tivesse de provar à mãe que conseguia resistir. Ou então, era esta quem tinha razão e perdia a casa e o escritório.

- Não pareces - declarou Helen, em tom sombrio. Amanhã, devias lavar a cabeça e pintares-te.

Amanhã, preferia estar morta para não ter de passar pelo que a esperava, queria Liz dizer-lhe, mas não foi capaz. Não valia a pena discutir numa altura daquelas.

Tinham bastante com que se preocupar sem lhe acrescentar as disputas familiares. No caso de Jack, também nunca se dera muito bem com o irmão, mas pelo menos este estava presente e era bom para as crianças vê-lo e aos avós paternos, bem como a mãe e o irmão dela.

Nessa noite, Victoria e Liz conversaram até tarde, falando de Jack e do que acontecera. Era um pesadelo que nenhuma delas ia esquecer e do qual provavelmente nunca recuperariam totalmente. Liz falara ao telefone com diversas pessoas, que lhe haviam garantido que nunca se recomporia, sobretudo de uma morte traumática como aquela, e duas outras garantiam-lhe que a melhor coisa a fazer era retomar as suas actividades o mais depressa possível, e que até podia estar casada de novo daí a seis meses, não se sabia, podia ter sorte. Sorte? Como tinham coragem para lhe dizer o que devia fazer? Vender a casa, mudar-se para longe, para a cidade, arranjar um sócio para o escritório, desistir, o que dizer aos filhos, o que não dizer, comprar um cão, cremar o marido, atirar as cinzas da ponte, não deixar as crianças ir ao enterro, deixá-las ver o pai antes de fecharem o caixão, não permitir isso, para não se lembrarem dele assim. Toda a gente tinha um conselho de graça para dar e um sem-fim de opiniões. Estava exausta de ouvir aquilo tudo, mas, afinal, a realidade era que Jack tinha partido e ela agora estava sozinha.

Só adormeceu às cinco da manhã, e Victoria manteve-se acordada, deixando-a falar. Às seis, Jamie apareceu e meteu-se na cama com elas.

- Onde está o paizinho? - perguntou, encostado à mãe.

Ela sentiu um estremeção no corpo todo. Seria possível que ele não se lembrasse? Talvez a realidade fosse tão traumática que o rapazinho a rejeitasse.

- Ele morreu, querido, um homem mau deu-lhe um tiro.

- Eu sei - respondeu a criança, olhando directamente para a mãe, para a cama onde o pai dormira ainda um dia antes. - Mas quero saber onde está ele agora.

Jamie olhava-a como se a achasse pateta por julgar que ele se tinha esquecido, o que lhe provocou um sorriso triste.

- Está na casa mortuária, na capela, e vamos lá hoje. Mas encontra-se realmente no céu, ao pé de Deus.

Pelo menos, esperava que fosse verdade e que tudo em que sempre acreditara fosse o que realmente acontecia. Esperava que ele se sentisse feliz e em paz, como sempre lhe haviam dito, mas, no fundo do coração, ainda não tinha a certeza. Continuava a desejar demasiado tê-lo de volta para poder acreditar totalmente.

- Como pode o pai estar em dois sítios?

- O espírito, a alma, tudo o que nós conhecemos e amámos, foi para o céu, mas permanece também aqui connosco, nos nossos corações. O corpo está na casa mortuária, como se ele tivesse adormecido.

As lágrimas saltaram-lhe, ao dizer aquilo, mas Jamie acenou com a cabeça, satisfeito com a resposta da mãe.

- Quando é que o vejo outra vez?

- Quando formos para o céu para ficar ao pé dele. Mas só quando fores muito, muito velhinho.

- Porque é que o homem mau lhe deu um tiro?

- Porque estava muito zangado e era louco. Deu também um tiro noutra pessoa, e depois matou-se, já não pode vir cá fazer-nos mal.

Pensou que fosse isso que o preocupava, e quis afastar-lhe os receios.

- O paizinho fez-lhe algum mal?

- Fez uma coisa que o deixou muito zangado, porque o homem era mau para a mulher e os filhos. O paizinho pediu ao juiz que lhe tirasse dinheiro.

- E ele deu-lhe o tiro para ficar com o dinheiro?

- Mais ou menos.

- E deu um tiro também ao juiz?

- Não, não deu.

Jamie tornou a acenar com a cabeça, a pensar no que a mãe dissera, encostado a ela. Victoria levantou-se e foi tomar duche. Ia ser um longo dia para todos, e queria estar pronta para ajudar a amiga em tudo o que pudesse, naquela situação incrivelmente dolorosa para Liz e para as crianças.

E acabou por ser ainda pior do que qualquer delas tinha esperado. A família inteira foi para a casa mortuária, e começaram todos a soluçar assim que viram o caixão, rodeado de flores dos lados e por cima. Liz tinha pedido rosas brancas, e o cheiro era intenso quando entraram. Durante muito tempo, ouviu-se apenas o som dos soluços, até que Victoria e James levaram as crianças lá para fora, com a avó materna, e Liz ficou sozinha com o caixão que escolhera e com o homem que amara durante quase vinte anos.

- Como pôde isto acontecer? - murmurou, ajoelhando-se junto dele. - E que vou eu fazer sem ti?

As lágrimas caíam-lhe, ajoelhada na alcatifa gasta e com uma mão apoiada na madeira lisa. Era tudo tão inconcebível, tão insuportável, muito mais do que alguma vez pensara poder suportar... Mas agora, não tinha escolha, eram as cartas que a vida lhe dera e tinha de jogar com elas, quanto mais não fosse por causa dos filhos.

Victoria foi buscá-la daí a um bocado, para irem comer alguma coisa, mas Liz não foi capaz. As crianças já falavam umas com as outras e Peter tentava distrair as irmãs, vigiando ao mesmo tempo a mãe, sentado ao lado de Jamie e incitando-o a comer o hambúrguer. Todos tinham crescido no espaço duma noite. Peter parecia que entendera que não podia continuar a ser um adolescente, transformara-se num homem, e até as garotas dir-se-iam mais adultas e Jamie menos bebé. E faziam o que podiam para se mostrar fortes e apoiarem-se uns aos outros e à mãe.

Carole levou-os para casa de carro quando acabaram de comer e os outros voltaram para a casa mortuária, com Liz. Durante toda a tarde, foram chegando pessoas para lhe dar os pêsames, chorar, confortá-la e conversar umas com as outras lá fora. Era uma espécie de infindável beberete, sem comida e com lágrimas, com Jack no caixão ao fundo da sala. Liz estava sempre à espera de que ele saísse de lá e lhes dissesse que tudo não passara duma terrível partida e que nada daquilo tinha acontecido.

Mas tinha e nada podia alterar a situação.

Passaram mais um dia na casa mortuária, com Liz alternadamente entorpecida e histérica, embora se mostrasse extraordinariamente serena, tanto que houve quem pensasse que estaria medicada. Mas não, ligara simplesmente o ”piloto automático” e fazia o que era preciso.

A segunda-feira amanheceu com um sol radioso, e ela voltou à casa mortuária antes do enterro, para ficar sozinha com o marido. Resolvera não o ver, mas a decisão fazia-a sofrer. Sentia que talvez devesse olhá-lo pela última vez, mas sabia que não era capaz, não queria recordá-lo assim. A última vez que o vira fora no chão do escritório e depois na ambulância, momentos antes de morrer, e isso era sofrimento bastante como recordação, não era preciso aumentá-lo. Mais do que tudo, tinha medo de perder por completo a cabeça. Meteu-se no carro e encontrou os filhos à espera na sala, com os tios e os avós. A mãe dela estava de preto e as garotas com uns vestidos azul-escuros que lhes comprara. Peter usara o seu primeiro fato azul-escuro, comprado pelo pai um mês antes, e Jamie tinha um casaco e umas calças cinzentas.

Liz decidira-se por um velho vestido preto de que o marido gostava e um casaco que Jean pedira emprestado na véspera. Era um grupo sombrio e respeitável. Enquanto percorriam a igreja para se instalar à frente, Liz ouviu gente a chorar e a assoar-se.

A missa foi bonita e breve, a igreja estava cheia, com flores por todo o lado, mas depois tudo se transformou numa mancha indefinida para ela. Jean e Carole haviam organizado a comida em casa, e mais de cem pessoas apareceram para comer e beber e dizer-lhe que tinham muita pena, mas Liz só conseguia pensar que o deixara no cemitério. Colocara uma única rosa encarnada em cima do caixão, beijara a madeira e afastara-se, com Jamie pela mão e um braço de Peter por cima dos ombros. Fora um momento de dor tão terrível que sabia que nunca na vida iria esquecê-lo.

Moveu-se como um robô todo o dia e, duas horas depois de toda a gente se ter ido embora, o cunhado apanhou um voo para Washington, o irmão para Nova Iorque, os pais de Jack para Chicago e Victoria foi para casa, mas prometeu voltar no dia seguinte com os filhos. Jean também voltou para casa nessa noite, Helen iria de manhã e então Liz ficaria sozinha com os filhos e teria o resto da vida para viver sem o marido.

Quando as crianças se deitaram, ela e a mãe sentaram-se na sala. A árvore de Natal ainda lá estava, com um aspecto tão lamentável como o dela, e Helen tinha lágrimas nos olhos e dava-lhe palmadinhas na mão.

- Tenho muita pena que isto te acontecesse.

Ela própria perdera o marido dez anos antes, mas o pai de Liz, na altura, já estava com setenta e um anos e muito doente, o que lhe dera tempo para se preparar.

Além disso, os filhos já eram crescidos e tinham saído de casa. Fora doloroso, mas nada que se comparasse com o efeito que a morte de Jack provocara em Liz, e ela sabia-o.

- Tenho muita pena - repetiu Helen, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara, tal como a filha.

Nada mais havia a dizer, ficaram ali sentadas, abraçadas uma à outra durante bastante tempo, e pela primeira vez desde o nascimento de Jamie Liz lembrou-se de que gostava muito dela, perdoando-lhe as palavras proferidas então. Era horrível, mas aquela terrível perda tinha-lhes trazido uma espécie de paliativo, que Liz agradeceu.

- Obrigada, mãe. Quer uma chávena de chá? - perguntou por fim.

Foram até à cozinha e enquanto tomavam o chá, sentadas à mesa, Helen voltou a perguntar à filha se ia vender a casa. Liz sorriu, já não se importou com a pergunta, era apenas a forma de a mãe lhe dizer que se preocupava e queria saber se ela ficava bem.

- Ainda não sei o que vou fazer, mas vai tudo correr bem.

Tinham poupado dinheiro durante todos aqueles anos e Jack fizera um bom seguro de vida. E, claro, havia o escritório de advocacia para se manterem. O dinheiro não era problema, mas sim aprender a viver sem Jack.

- Não quero fazer grandes mudanças, por causa das crianças - acrescentou Liz.

- Achas que voltas a casar?

Era uma pergunta idiota, mas Liz sorriu de novo, pensando no que Victoria lhe tinha dito: ”Se a China nos declarar guerra...”

- Não me parece, é uma coisa que não consigo imaginar mãe. - Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas mais uma vez - Não sei como vou viver sem ele.

- Tens de reagir, principalmente pelas crianças, que vão agora precisar de ti mais do que nunca. Talvez fosse bom afastares-te um bocado do trabalho, fechares o escritório uns tempos.

Mas isso era impossível, e Liz sabia-o. Os processos em curso caíam-lhe agora em cima, excepto o de Amanda Parker. Só pensar nela fê-la lamentar as crianças, órfãs de mãe e pai, e no que deviam ter sofrido. Já ligara para lá e falara com a irmã de Amanda, nessa mesma tarde, para lhe dizer quanto lamentava, e a família Parker mandara flores.

- Não posso fechar o escritório, mãe. Tenho responsabilidades para com os clientes.

- É uma carga demasiado pesada para ti, Liz - disse a mãe, a chorar.

Tinha coração, afinal, a ligação com a boca é que era muitas vezes deficiente e disparatada, mas Liz compreendeu de repente mais qualquer coisa sobre ela. Tinha boas intenções, mas não sabia como expressá-las.

- Eu consigo.

- Queres que fique cá?

Liz abanou a cabeça. Se lá ficasse, teria de cuidar dela e precisava de toda a sua energia para os filhos.

- Eu telefono-lhe, se precisar de si, prometo. Deram as mãos por cima da mesa da cozinha durante um momento e depois foram-se deitar. Victoria ligou um pouco mais tarde para saber como Liz se sentia, e ela respondeu que bem, mas nem uma nem outra acreditaram. Depois, ela ficou deitada, acordadíssima, e chorou durante quase toda a noite até às seis da manhã.

A mãe partiu à hora prevista e Liz ficou sozinha com os filhos, a andar dum lado para outro na casa, sem qualquer propósito. Carole levou as crianças a passear e até Peter foi, mesmo sem a namorada. Liz ficou, para passar revista aos documentos do marido. Estava tudo meticulosamente organizado: encontrou logo o testamento e a apólice de seguro, tudo em ordem na secretária dele. Não precisou de vasculhar, não teve más surpresas, nada que a preocupasse, a não ser o facto de ele ter partido e de ela ter ficado sozinha para o resto da vida. Pensando nisso, sentiu a já familiar onda de pânico e uma saudade maior do que julgava humanamente possível.

Chorou toda a tarde e, quando os filhos voltaram, parecia exausta.

Carole fez o jantar, hambúrgueres e batatas fritas. Tinham deitado fora o peru sem lhe tocar, na noite de Natal, ninguém queria olhá-lo e muito menos comê-lo, e às nove já estavam nos respectivos quartos, as garotas a ver um vídeo. Jamie acordou a meio da noite e meteu-se na cama da mãe, o que foi um conforto - o corpinho quente encostado a ela. A vida estendia-se diante dos olhos de Liz como uma estrada vazia e sem fim, apenas com responsabilidades e cargas, coisas que teria de fazer sozinha.

A semana decorreu lentamente, com as crianças ainda de férias. No domingo, foram à missa e nessa altura já tinham passado dez dias desde a morte de Jack, dez dias feitos de horas e momentos, tudo aquilo continuava a parecer um pesadelo. Na segunda-feira, Liz levantou-se e fez o pequeno-almoço, Peter meteu-se no carro e foi para as aulas, ela levou as filhas ao colégio e depois Jamie à sua escola especial. O garoto hesitou durante um bom bocado antes de sair do carro. Por fim, olhou para a mãe, agarrado à lancheira nova, oferecida por Rachel nesse Natal e com figuras d’A Guerra das Estrelas.

- Tenho de dizer na escola que o paizinho morreu? perguntou, cabisbaixo.

- As professoras sabem, querido. Eu telefonei e contei-lhes. Além disso, acho que devem ter lido no jornal. Diz só que não queres falar nisso, se achares melhor.

- Elas sabem que um homem mau lhe deu um tiro?

- Acho que sim. Se precisares da mãe, diz à professora e ela deixa-te ligar para o escritório.

Dissera à directora que lhe telefonassem, ou a Carole, se ele ficasse aflito, mas, tal como os irmãos, parecia aguentar-se melhor do que ela pensara.

- Posso voltar para casa, se quiser? - perguntou Jamie com ar preocupado.

- Claro, mas podes sentir-te muito só. Se calhar, é mais divertido na escola, com os teus amigos. Espera, para veres como te sentes.

O garoto acenou com a cabeça e abriu a porta do carro, hesitando novamente e voltando-se mais uma vez para a mãe.

- E se alguém lhe dá um tiro no escritório, mãezinha? - fez a pergunta com os olhos cheios de lágrimas, e Liz abanou a cabeça, também com os olhos marejados.

- Isso não acontece, prometo.

Estendeu a mão e tocou no garoto, mas como podia fazer uma promessa dessas? Como podia garantir-lhe que qualquer deles estava a salvo daí em diante? Se uma coisa horrível acontecera ao pai, o mesmo podia suceder a qualquer deles, mesmo a Jamie. Já não havia a garantia de uma longa vida ou de segurança.

- Eu fico bem e tu também. Até logo, meu queridinho. Jamie acenou com a cabeça e saiu do carro, dirigindo-se para a escola, com um ar desolado que Liz observou com o coração pesado. Perguntou a si própria se todos eles se sentiriam assim para o resto da vida ou, pelo menos, durante muito tempo.

Era difícil imaginar que fossem de novo capazes de rir, ou de fazerem barulho ou de experimentarem uma sensação de alegria. Tudo aquilo parecia um peso que teriam de suportar para sempre, pelo menos ela. Superariam a perda ou habituar-se-iam a ela, mas nunca teriam outro pai e ela nunca recuperaria o marido. Era uma perda irreparável, mesmo que os corações recuperassem, e o vazio lá estaria para sempre. Dirigiu-se ao escritório, tão cega pelas lágrimas e preocupada que passou dois sinais vermelhos e foi mandada parar pela polícia.

- Não viu o sinal? - berrou-lhe o agente, quando ela abriu a janela.

Liz pediu desculpa por entre as lágrimas. O homem olhou-a durante um momento, pegou na carta de condução e começou a afastar-se, mas depois voltou. Reconheceu o nome, por ter lido a notícia no jornal, encarou-a preocupado, e entregou-lhe a carta.

- A senhora não devia conduzir. Onde vai? - perguntou.

- Para o trabalho.

- Lamento muito o que aconteceu ao seu marido. Porque não vem atrás de mim? Qual é a morada?

Liz deu-lha, e o homem meteu-se no carro, ligou o pisca-pisca e arrancou diante dela, conduzindo-a até ao escritório. Quase era pior quando as pessoas mostravam pena, mas o agente foi incrivelmente simpático, até saiu do carro e lhe deu um aperto de mão.

- É capaz de ser melhor não conduzir durante uns tempos, ou o menos possível. Pode ter um acidente e magoar-se a si ou a alguém. Deixe passar uns dias. Deu uma palmadinha no braço de Liz, que continuava a chorar enquanto lhe agradecia, e viu-a afastar-se e entrar no edifício do escritório, com a pasta de Jack na mão.

Não ia ali desde a morte do marido e sentia-se apavorada com a ideia, mas sabia que Jean já lá estivera na semana anterior e, como de costume, tinha feito milagres.

A alcatifa manchada de sangue fora substituída e a parede contra a qual Phillip Parker se suicidara, pintada. Não havia vestígios da tragédia e Jean sorriu e ofereceu-lhe um café.

- O que eu vi lá fora era um carro da polícia? - perguntou Jean, preocupada, enquanto Liz se assoava e lhe sorria.

Liz queria agradecer-lhe por tudo o que ela tinha feito, mas não conseguia traduzir os sentimentos em palavras. No entanto, Jean compreendeu sem as ouvir e entregou-lhe uma caneca de café a ferver.

- Passei por dois sinais vermelhos. O polícia foi muito simpático e veio comigo até aqui. Disse-me que era melhor não conduzir.

- Não é má ideia - concordou Jean, preocupada.

- E qual é a sua sugestão, que alugue uma limusine? Eu tenho de vir trabalhar!

- Venha de táxi - sugeriu Jean.

- Isso é uma despesa inútil.

- Não é inútil se evitar que mate ou fira alguém, ou a si própria. Seria muito pior.

- Eu estou bem - garantiu Liz, sem a convencer. Jean cancelara todas as consultas e audiências que fora possível, excepto duas, mas essas eram só para o fim da semana.

Liz precisava de tempo para estudar todos os processos e respectivas estratégias. Nessa tarde, ditou uma carta a Jean, explicando as circunstâncias da morte do marido a todos os clientes, embora fosse difícil pensar que não as conhecessem. Tudo o que era comunicação social tinha falado do assunto durante o fim-de-semana do Natal, mas, apesar disso, algumas pessoas podiam ter passado fora a época festiva. Explicou que trabalharia sozinha e que compreendia que quisessem contratar outros advogados para os substituir. Se não, continuaria a ocupar-se dos casos, dando o seu melhor. Agradeceu a todos os que lhe haviam enviado cartas e flores, com palavras directas e concisas, e tanto ela como Jean acreditavam que a maioria dos clientes se manteria fiel. Mas esse voto de confiança também seria um peso enorme, pois, apesar do que dissera à mãe na semana anterior, começava a perguntar a si própria se conseguiria dar conta do recado. Sozinha, era difícil, da noite para o dia a tarefa duplicara, já que tinha de se ocupar do trabalho do marido e do seu, além de ter perdido o apoio moral e a centelha de energia que ele sempre lhe transmitira.

- Acha que consigo? - perguntou a Jean no fim da tarde, com uma expressão deprimida e ansiosa, pois tudo lhe parecia exigir um esforço dez vezes maior e sentia-se exausta.

- Claro que sim.

Jean sabia que Liz era tão boa advogada como Jack. Ele tinha sido o mais forte e agressivo, quando era preciso, mas a sociedade deles fora sempre exactamente isso, uma sociedade.

Naquele momento, sem o marido, Liz sentia-se menos do que metade da equipa, era como se ele tivesse levado consigo toda a sua confiança e coragem, sensação que comunicou à secretária.

- Vai ver que consegue - repetiu Jean. - E eu vou fazer tudo o que puder para a ajudar.

- Eu sei, já está a fazer... - respondeu Liz, olhando para a alcatifa nova, com os olhos cheios de lágrimas e recordando o aspecto da sala na manhã de Natal. - Obrigada disse baixinho.

Depois, dirigiu-se ao gabinete do marido, para continuar a ver os processos dele, até que, às cinco e meia, teve de fazer um esforço para se levantar e ir para casa.

Não queria chegar demasiado tarde, por causa dos filhos, embora soubesse que, nem que ficasse todos os dias no escritório até à meia-noite durante um mês, conseguiria fazer tudo o que queria. Levou a pasta de Jack para casa, cheia de processos que devia ler até de manhã, e ainda precisava de se preparar para duas sessões no tribunal.

A casa estava silenciosa quando entrou, invulgarmente silenciosa. Primeiro, pensou que os filhos tinham saído, mas depois viu Jamie na cozinha com Carole. Esta acabara de fazer biscoitos de chocolate, e a criança, sentada à mesa, comia-os sem falar. Assim continuou, sem mesmo reagir à mãe quando ela lhe sorriu.

- Como passaste o dia, meu querido?

- Mal - respondeu Jamie tristemente. - A minha professora chorou e disse que tinha pena do paizinho.

Liz acenou com a cabeça. Sabia perfeitamente a sensação que aquilo provocara. O rapaz que lhe levara uma sanduíche para o almoço e o empregado da farmácia onde fora aviar uma receita, assim como duas pessoas que encontrara na rua, toda a gente a fizera chorar. Bastava dizerem que tinham muita pena, para ela perder o controlo, seria mais fácil lidar com um pontapé nas canelas. E a avalanche de cartões de pêsames chegados ao escritório partia-lhe o coração. Em cima da bancada da cozinha, viu nesse instante outra pilha. As pessoas eram bem-intencionadas, mas a sua eloquência e expressões de simpatia eram muito difíceis de enfrentar.

- Como estão os outros? - perguntou Liz a Carole, pousando a pasta de Jack.

- Porque anda com a pasta do paizinho? - perguntou Jamie, metendo outro biscoito na boca.

- Porque preciso de ler uns papéis dele.

Jamie acenou com a cabeça, satisfeito, e informou-a de que Rachel estivera a chorar no quarto, mas Megan e Annie pareciam bem e Peter ainda não chegara.

- Ele afinal não me ensinou a andar de bicicleta - disse o garoto, triste, a prenda tão desejada ficara praticamente esquecida.

- Talvez possa ensinar-te hoje à noite - consolou-o Liz, mas Jamie abanou a cabeça e poisou o biscoito meio comido. Como a mãe e os irmãos, tinha pouco apetite.

- Agora não quero andar de bicicleta.

- Está bem - concordou Liz baixinho, fazendo-lhe uma festa na cabeça e inclinando-se para lhe dar um beijo.

Nesse momento, Peter entrou na cozinha com uma expressão desolada.

- Olá, Peter - exclamou ela, sem se atrever a perguntar-lhe como passara o dia.

Via-se que fora igual ao de todos eles e parecia ter envelhecido cinco anos na última semana. Era uma sensação familiar, embora no caso dela fossem mais de cem anos.

Quase não comera ou dormira desde a véspera de Natal, e mostrava-o na cara.

- Tenho uma coisa para lhe dizer, mãe.

- Porque será que tenho a sensação de que não é uma boa notícia? - interrogou-se Liz, com um suspiro, sentando-se e pegando no resto do biscoito de Jamie. O sanduíche ficara intacto no escritório.

- Tive um acidente quando vinha para casa.

- Feriste alguém? - perguntou Liz, aparentando calma, mas sentindo-se atordoada.

A sua perspectiva alterara-se naquela última semana, tudo o que fosse menos do que a morte era admissível.

- Não, mas dei cabo do pára-choques porque bati num carro estacionado.

- Deixaste um bilhete para o dono?

- Deixei. O outro carro não ficou amachucado, mas achei que era melhor. Desculpe, mãe.

- Não faz mal, querido. Esta manhã, quando ia para o escritório, passei dois sinais vermelhos, se é que isso te faz sentir melhor. E o polícia que me mandou parar disse que eu não devia conduzir. Se calhar, tu também não, durante algum tempo.

- Mas, sem o carro, como me arranjo?

- Eu sei, Peter, é como eu. Precisamos de ter muito cuidado.

Peter conduzia uma carrinha Volvo, já com alguns anos, que o pai lhe comprara há pouco tempo, por ser sólida e segura, o que Liz agradeceu mentalmente. Ela conduzia um modelo mais novo da mesma marca e Carole tinha carro próprio, um velho Ford com dez anos, muitíssimo bem conservado. Dava-lhe para o que precisava, e era nele que ia buscar as crianças à escola. Agora, dispunham ainda do carro de Jack, um Lexus novo, comprado nesse ano, mas Liz não tinha coragem para lhe pegar ou para o vender. Se calhar, guardavam-no. Não queria desfazer-se das coisas do marido, passara até várias noites agarrada à roupa dele, sentindo o familiar cheiro da loção da barba. Não fazia tenções de dar fosse o que fosse, precisava de ter tudo perto de si. Várias pessoas lhe tinham dito que se livrasse de tudo o mais depressa possível, e ela agradecera o conselho, mas sem a mais pequena intenção de o seguir.

As garotas vieram para baixo pouco tempo depois, completando o grupo sombrio reunido em volta da mesa da cozinha. Pelo menos durante metade da refeição, ninguém falou. Pareciam e sentiam-se como sobreviventes do Titanic. Só aguentar a passagem dos dias era penoso, sobretudo retomadas as aulas e com Liz de novo no escritório.

- Posso perguntar-lhes como foi o vosso primeiro dia de aulas?

O silêncio foi interrompido por Liz, perante a comida deixada nos pratos de todos. Só Peter fizera um esforço para comer alguma coisa, mas nem ele conseguira aproximar-se do normal. Costumava repetir tudo e não dispensava gelado ou qualquer outra sobremesa doce. Assim, todos pareceram ficar aliviados com a pergunta da mãe.

- Uma grande chatice - exclamou primeiro Rachel, com Annie a confirmar.

- Todos perguntavam como tudo aconteceu e se eu o vi depois e se chorámos no enterro. Foi doentio - acrescentou Megan, ao som dos suspiros de concordância dos irmãos.

- Provavelmente, foi com boas intenções - comentou Liz, resolvendo dar o benefício da dúvida. - Mas sentem-se curiosos e não sabem bem o que nos hão-de dizer. Temos de andar para a frente e aguentar.

- Eu não quero voltar para a escola - declarou Jamie, com firmeza.

Liz pensou primeiro em obrigá-lo a ir, mas decidiu não o contrariar. Se ele precisava de passar algum tempo em casa para recuperar, pouca diferença faria, sobretudo no seu caso.

- Talvez possas ficar com Carole durante uns dias disse Liz calmamente, o que fez Rachel perguntar de imediato:

- Também posso ficar em casa?

- E eu? - perguntou Annie.

- Acho que vocês têm de tentar aguentar, e o Jamie experimenta outra vez para a semana.

Peter não contou que faltara às duas últimas aulas para ficar sozinho no ginásio, por não aguentar mais aquilo que as irmãs haviam descrito. O professor de Educação física descobrira-o e sentara-se a conversar com ele durante muito tempo. Tinha perdido o pai com a mesma idade de Peter e trocaram impressões sobre a sensação que uma coisa daquelas provocava. A conversa ajudara-o, mas não o libertara do sofrimento.

- Ninguém disse que isto ia ser fácil - insistiu a mãe, com um suspiro -, mas foi o que a vida nos destinou neste momento e temos de tentar lidar com a situação.

Talvez possamos pensar no paizinho e no que ele desejaria para nós. E, um dia, vamos ficar melhor.

- Quando? - perguntou Annie, desolada. - Durante quanto tempo nos sentiremos assim? O resto da vida?

- Agora parece que sim, mas não sei. Quanto tempo dura um sofrimento? Muito, às vezes, não sempre - respondeu Liz, desejando acreditar.

Então, foram todos para cima ao mesmo tempo. A casa nunca estivera tão silenciosa, metiam-se nos quartos, com as portas fechadas, não se ouvia música lá dentro e o telefone quase não tocava. Liz deu um beijo a cada um, incluindo Peter, e ficaram os dois abraçados um grande bocado, sem falar. Nada mais havia a dizer, a única coisa que podiam tentar era sobreviver. E Jamie tornou a dormir com Liz nessa noite, ela não o encorajou a voltar para a cama dele, porque lhe sabia muito bem tê-lo junto de si e não ser obrigada a dormir sozinha. Mas quando apagou a luz e se deitou ao lado do filho adormecido, só pensava nas saudades que tinha do marido, e perguntava a si própria, e a ele, se pudesse vê-la donde estava, como podia suportar uma coisa daquelas. Por enquanto, não encontrava respostas. Não havia alegria na vida de qualquer deles, mãe e filhos, apenas a insuportável agonia da perda e o enorme vazio deixado por Jack, onde só cabia a dor dessa perda. Continuava a ser uma dor física para todos, especialmente para ela, ali deitada mais uma vez, acordada toda a noite a chorar por ele, abraçada a Jamie. Apertava o filho nos braços e sentia-se afundar.

 

Capítulo 4

No Dia de São Valentim, Jack já partira há sete semanas e as crianças começavam a sentir-se melhor. Liz tinha falado com a psicóloga do colégio das filhas, que lhe garantira que isso aconteceria por volta das seis ou oito semanas. Iam adaptar-se, dissera a especialista, mas ela sentir-se-ia pior durante algum tempo, quando a realidade a atingisse.

Nesse dia, ao entrar no escritório, Liz acreditou finalmente nela. Jack sempre dera muita importância aos feriados. No Dia de São Valentim, oferecia-lhe rosas e um presente, mas nesse ano tudo era diferente. Tinha de ir ao tribunal, o que cada vez lhe custava mais. A animosidade dos clientes nos casos de divórcio parecia-lhe desnecessariamente venenosa, assim como os argumentos cruéis e escabrosos que utilizavam e queriam que ela utilizasse. Começara a odiar o escritório de advocacia e a perguntar a si própria por que motivo teria deixado o marido convencê-la a tratar daqueles casos.

Falara no assunto a Victoria na última vez em que puderam ver-se. Os filhos dela prendiam-na muito, porque eram pequenos, e era difícil estarem juntas com frequência, mas iam conversando pelo telefone, à noite.

- Então, de que casos gostavas de tratar? - perguntara a amiga. - Sempre me disseste que detestavas danos pessoais quando eu o fazia, e não estou a ver-te no criminal.

- Há outras especialidades, não sei, talvez alguma coisa ligada a crianças. Os meus clientes estão tão ocupados em tramar-se mutuamente que nem pensam nos filhos.

Era uma especialidade que sempre a atraíra, mas Jack dizia que não dava dinheiro. Não que fosse ganancioso, era apenas uma pessoa prática, pois tinham cinco filhos para sustentar e educar. Ganhavam bem com o que faziam, o que era difícil de ignorar.

Naquela tarde de São Valentim, Liz sentiu uma vez mais que odiava o que fazia, ao sair da sala do tribunal depois de ganhar um caso sem importância. A cliente convencera-a a apresentar queixa contra o ex-marido, mais para o aborrecer do que por qualquer motivo geral, o que lhe valera uma admoestação do juiz que, no entanto, decidiu a seu favor. Como resultado, era uma vitória fútil, que a fazia sentir-se estúpida.

- Perdeu? - perguntou Jean, assim que ela entrou no escritório com ar cansado e irritado.

- Não, ganhei, mas o juiz disse que a petição era frívola, e teve razão - respondeu Liz, pegando na correspondência e encaminhando-se para o seu gabinete. - Ela só queria aborrecer o marido. O Jack tinha-se recusado, de certeza.

Contudo, ele já não estava ali para discutirem os casos, protegê-la, fazê-la rir e pôr os clientes na linha. Sempre tornara as coisas divertidas, mantendo o trabalho excitante. Agora, era tudo uma estopada, e ela já não achava que estivesse a ajudar os clientes da melhor maneira.

- Talvez a minha mãe tivesse razão há dois meses e eu devesse fechar o escritório - concluiu.

- Não acho, a não ser que seja essa a sua vontade - replicou Jean calmamente.

Sabia que a companhia de seguros já entregara o dinheiro na semana anterior e que Liz podia perfeitamente fechar o escritório durante uns tempos, até decidir o que queria fazer, mas pensava que se sentiria muito mal sentada em casa com demasiado tempo livre. Estava tão habituada a trabalhar e fazia-o tão bem que não podia largar tudo.

- Dê um tempo e talvez volte a gostar, Liz. Ou talvez possa impor-se aos clientes e ser mais selectiva quanto aos casos de que se encarrega.

- Sim, talvez.

Saiu cedo e não disse onde ia, mas havia algo que queria fazer sozinha. Parou, comprou uma dúzia de rosas e dirigiu-se ao cemitério. Depois, ficou de pé junto à campa do marido durante muito tempo. Ainda não tinha lápide, e Liz colocou as rosas na relva. Então soluçou durante uma hora.

- Adoro-te - murmurou por fim, afastando-se de cabeça baixa e mãos enterradas nos bolsos, contra um vento gelado.

Meteu-se no carro e estava quase a chegar a casa quando ignorou uma passagem de peões precisamente quando uma jovem atravessava a rua à pressa. O Volvo e a anca esquerda da rapariga colidiram instantaneamente e ela caiu com uma expressão espantada, enquanto Liz travava com toda a força e saía do carro para a socorrer. Ainda com a cara banhada em lágrimas, ajudou-a a levantar-se. À volta delas, três carros buzinavam e os condutores gritavam.

- Tá doida ou bêbeda? Olhe que eu vi!

- Você atropelou-a! Sou testemunha... Está bem? perguntou outro, dirigindo-se à vítima.

Ficaram as duas a tremer diante do carro de Liz, que não conseguia parar de chorar.

- Lamento muito, eu... eu não sei o que me aconteceu, vinha distraída - disse ela à rapariga, embora sabendo perfeitamente o que sucedera.

Fora ao cemitério e vinha tão perturbada que atropelara a rapariga, que tinha prioridade para atravessar a rua. A culpa era só sua.

- Eu estou bem... não se preocupe... Quase não me tocou - garantiu a rapariga.

- Podia tê-la matado - exclamou Liz, horrorizada. Ficaram agarradas uma à outra, e a jovem acabou por perceber que ela estava transtornada.

- Sente-se bem?

Liz acenou com a cabeça, sem conseguir falar, profundamente penalizada pelo que acontecera e apavorada ante a possibilidade de ter sido muito pior.

- Peço muita desculpa... o meu marido morreu há pouco tempo... e eu estive agora no cemitério... Não devia ter vindo a guiar...

- Vamos sentar-nos as duas... - sugeriu a rapariga. Entraram no carro de Liz, que propôs levá-la ao hospital, mas a jovem garantiu que se sentia bem e disse que lamentava o que sucedera ao marido dela. Liz estava em pior estado do que a atropelada.

- Tem a certeza de que não quer ser vista por um médico? - perguntou Liz de novo, mas a outra sorriu, contente por não ter sido mais grave.

- Eu estou bem, no máximo, fico com uma nódoa negra. Tivemos sorte... ou eu, pelo menos.

Conversaram uns minutos, trocando nomes e números de telefone, até que a rapariga saiu do carro e seguiu o seu caminho, enquanto Liz se dirigia a casa, ainda a tremer.

Ligou do carro para Victoria e contou-lhe o que tinha acontecido, já que os danos pessoais eram a especialidade dela. A amiga assobiou entre dentes.

- Se ela é tão simpática como tu dizes, do que eu duvido por experiência, tens uma sorte dos diabos, mas o melhor é deixares de guiar durante uns tempos, antes que mates alguém.

- Tem corrido bem... mas hoje... Fui ao cemitério... é Dia de São Valentim... - desatou a chorar e não pôde continuar.

- Eu sei, tenho muita pena. Sei como é difícil para ti.

Mas não sabia, ninguém podia saber, compreendia Liz finalmente, a não ser que tivesse passado pelo mesmo. Percebeu que, todas as vezes que dissera a alguém como lamentava a sua perda, nem sequer sonhara o que isso significava e o que a pessoa sentia.

Contou aos filhos o que sucedera e eles ficaram assustados e preocupados com ela. Depois, telefonou à rapariga para saber como estava, mas ela garantiu que corria tudo bem, e na manhã seguinte mandou flores a Liz, para o escritório, o que a deixou espantada. O cartão dizia: ”Não se preocupe, que havemos de ficar bem as duas.”

Liz telefonou a Victoria assim que as recebeu.

- Deves ter atropelado um anjo - disse a amiga, sem poder acreditar. - Qualquer dos meus clientes te metia no tribunal por danos emocionais, lesões cerebrais e espinais e eu obtinha-lhes uma indemnização de dez milhões.

- Ainda bem que te reformaste! - e Liz soltou uma gargalhada pela primeira vez desde a morte de Jack, não eram tempos para risos.

- Tens toda a razão, e uma sorte dos diabos. Agora, vais parar de conduzir uns tempos? - estava realmente preocupada.

- Não posso, tenho imenso que fazer.

- Bom, mas é melhor teres cautela. Pensa no que te aconteceu ontem como num aviso.

- Está descansada.

Passou a ter muito cuidado, compreendendo que estava perturbada e alheada. Durante um mês, esforçou-se também por mostrar melhor cara aos filhos. Levou-os ao cinema aos fins-de-semana, foram jogar boliche e disse-lhes que convidassem amigos, de vez em quando, para jantar e passar a noite. No Dia de São Patrício, outro dos feriados favoritos de Jack, não se sentiam muito animados, mas estavam melhor, já tinham passado quase três meses e, pelo menos as crianças, pareciam mais felizes, até Jamie.

Ouviam-se, por vezes, gargalhadas à mesa do jantar, punham a música a tocar alto, como antes, e Liz compreendeu que, apesar das suas expressões normalmente sérias, tinham ultrapassado o pior. Quanto a ela, continuava com as suas noites longas, escuras e solitárias e os dias cheios de tensões no escritório.

No fim-de-semana da Páscoa, fez uma surpresa aos filhos. Não conseguia suportar mais umas férias desoladas, cheias de recordações de Jack, vagueando pela casa e tentando aguentar o sofrimento. Levou-os a esquiar no lago Tahoe, e eles adoraram. Pareciam aliviados por ver a mãe partilhar algo com eles, a esquiar e a rir, seguindo atrás de Megan ou chocando com Jamie. Adoraram e era exactamente daquilo que estavam a precisar. Durante a viagem de volta para casa, falaram sobre o Verão.

- Ainda faltam muitos meses, mãe - queixou-se Annie. Tinha um fraquinho por um vizinho e nem queria pensar em afastar-se de casa durante o Verão. Peter já arranjara emprego para as férias grandes, numa clínica veterinária, trabalho que nada tinha a ver com a sua carreira, mas que o manteria ocupado. Portanto, só lhe restava organizar as férias das filhas e de Jamie.

- Este ano, só posso sair daqui uma semana, tenho imenso que fazer, agora que estou sozinha. Que tal irem as três para um campo de férias durante um mês? O Jamie pode ficar em casa comigo e ir todos os dias a um campo para externos.

- Posso levar o almoço de casa? - perguntou o garoto, preocupado, e Liz sorriu-lhe.

Detestara a comida no último campo de férias que frequentara, embora adorando as actividades e dando-se bem com as outras crianças. Era uma boa solução, já que não podia ir para um campo interno, como as irmãs.

- Claro que podes levar o almoço - prometeu a mãe, e ele sorriu de orelha a orelha.

- Então quero ir.

E vão dois, pensou Liz. As outras três discutiram o assunto e acabaram por decidir que o campo de férias, em Julho, era realmente boa ideia, e a mãe prometeu que os levava de novo a Tahoe uma semana, em Agosto. Depois, podiam passar o resto das férias em casa e tomar banho na piscina com os amigos.

- Vamos fazer o nosso piquenique do 4 de julho este ano?

Era uma tradição, organizada por Jack, que se ocupava sempre do grelhador e do bar, e não tinha mãos a medir. Só de pensar naquilo, Liz sentiu-se deprimida. Fez-se um longo silêncio e ela abanou a cabeça. Ninguém discutiu e, quando olhou para Jamie, viu duas lágrimas a escorrerem-lhe pela carita.

- Tens pena do piquenique? - perguntou-lhe baixinho, mas ele abanou a cabeça, era outra coisa, e muito mais importante.

- Lembrei-me de que já não posso entrar nos Jogos Olímpicos Especiais.

Era um acontecimento que ele adorava e em que participara com a ajuda do pai. ”Treinavam” durante meses, e Jamie chegava geralmente em último lugar, ou muito perto, em todas as corridas, mas ganhava sempre uma medalha e toda a família ia assistir.

- Porque não? - perguntou a mãe, recusando-se a aceitar o facto como consumado, pois sabia como Jack se empenhara naquilo e o que significava para Jamie. - Talvez o Peter possa treinar-te.

- Não, mãe, não posso - lamentou Peter. - Vou trabalhar das oito da manhã às oito da noite, na clínica, e até alguns fins-de-semana. Não tenho tempo - ia ganhar bastante dinheiro e por isso concordara com o horário.

O silêncio voltou a reinar, as lágrimas de Jamie a rolarem-lhe pela cara, e Liz sentiu um aperto no coração.

- Pronto, Jamie, então só restamos nós dois. Temos de trabalhar juntos. Primeiro, escolhemos as corridas em que queres entrar e, depois, damos tudo por tudo. Este ano, acho que devemos começar a pensar numa medalha de ouro declarou ela calmamente, lutando contra as lágrimas e vendo os olhos do filho muito abertos, à medida que falava.

- Sem o paizinho?

Jamie parecia espantado, tentando perceber se a mãe falava a sério ou se estava a brincar com ele, mas ela não seria capaz disso.

- Comigo. Que tal? Vamos ser positivos!

- Não pode ser, a mãe não sabe como é.

- Aprendemos juntos. Tu mostras-me o que o paizinho costumava fazer e vamos ganhar qualquer coisa, prometo!

Liz viu um sorriso despontar na carita de Jamie, que estendeu a mão para ela sem dizer palavra. Tinham resolvido o problema e o Verão estava organizado. Só precisava de inscrever as filhas no campo de férias, o Jamie no campo para externos e nos Jogos Olímpicos Especiais e de alugar uma casa para todos, em Tahoe, por uma semana, em Agosto. Nada daquilo era fácil, pensar em tudo, ir sozinha ao encontro das necessidades dos filhos, realizar-lhes os desejos e tentar compensá-los pelo que haviam perdido, mas fazia o que podia e, de momento, sobreviviam.

Iam bem nos estudos, sorriam bastante ultimamente, tinham-se divertido a esquiar, e só restava a Liz mantê-los assim até crescerem, aguentar o trabalho duplicado no escritório e aprender a levar Jamie aos Jogos Olímpicos Especiais e, se possível, conseguir que ele ganhasse uma medalha. Sentia-se como um malabarista no circo, enquanto conduzia a família para casa. Megan pôs o rádio do carro a tocar aos berros, como de costume. Jack ficava sempre zangado e mandava-a baixar o som, mas ela não abriu a boca. Sabia que era bom sinal e precisava de todos os bons sinais que fossem aparecendo. Nos últimos três meses e meio, Deus sabia que tinham sido muito poucos, mas as coisas melhoravam lentamente. Estendeu a mão, aumentou ainda o som e Megan largou a rir, acompanhada por Liz.

- Boa, mãe, assim é que é!!! - começaram todos a rir e a gritar, depois cantaram em coro com a música, era ensurdecedor, mas exactamente aquilo de que precisavam.

- Adoro-vos, meus queridos! - gritou Liz de maneira a fazer-se ouvir.

Os filhos gritaram em coro para aquela mulher que os conduzira por entre os escolhos até estarem a salvo, o que reconheciam.

- E nós a si, mãe!!!

Quando chegaram a casa, ainda tinham os ouvidos a tinir, mas sorriam, enquanto pegavam na bagagem e se encaminhavam para a porta, com a mãe atrás deles também a sorrir.

Carole esperava-os.

- Que tal foi o passeio? - perguntou ela, referindo-se ao esqui e também à longa viagem de regresso, e Liz respondeu-lhe com um sorriso e uma expressão de paz que ela não vislumbrava há muito tempo.

- Fantástico - respondeu Liz calmamente, subindo as escadas em direcção ao quarto.

 

Capítulo 5

As aulas acabaram na segunda semana de Junho e, quinze dias depois, Liz e Carole fizeram as malas das três raparigas, que iam para o campo de férias. Estavam genuinamente excitadas, porque várias amigas iam também, e era bom vê-las tão felizes. O campo ficava perto de Monterey, e Liz levou-as lá de carro. Jamie também foi, para lhe fazer companhia.

No automóvel, o ambiente era de férias. Ouviram música, sempre alto, do género que lhes agradava, mas menos à mãe, embora Liz não se importasse. Durante o último mês, gostara realmente de estar com os filhos. Prometera a Jamie começar a treiná-lo assim que as irmãs fossem para o campo de férias. Ainda tinham cinco semanas antes dos Jogos Olímpicos Especiais, altura em que elas estariam de volta. Era costume irem todos assistir e incitar o garoto, tradição iniciada por Jack três anos antes e muito importante para toda a família, mas Jamie estava com medo de que a mãe não fosse capaz de o ajudar.

Largaram as irmãs no campo, entre Monterey e Carmel, e Liz ajudou-as a transportar os sacos de dormir, as raquetas de ténis, uma guitarra, dois baús e uma montanha de sacos até às camaratas, parecia tralha suficiente para um exército invasor. A excitação era tanta que as garotas mal se despediram da mãe e do irmão, e afastaram-se a correr para conhecer as monitoras e procurar as amigas.

- Talvez um dia também vás para um campo destes disse Liz, quando arrancaram.

- Não quero. Gosto de estar em casa consigo - respondeu Jamie, com o ar mais natural do mundo.

Olhou para a mãe e ela sorriu-lhe. Levaram três horas a chegar a Tiburon, e Peter já voltara do trabalho. Começara na semana anterior e estava a gostar imenso, apesar de o horário ser pesado. Era exactamente o que queria, e havia outros estudantes lá empregados nesse Verão, entre eles uma rapariga muito bonita, de Mill Valley, e uma jovem estudante de veterinária, de Davis.

- Que tal foi o trabalho hoje? - perguntou Liz, quando entrou na cozinha com Jamie.

- Muito - respondeu Peter, sorridente.

- Vamos jantar?

Voltara a cozinhar para os filhos. Primeiro, Carole substituíra-a, mas a partir da Páscoa Liz sentira como se tivesse restabelecido a ligação com eles. A mãe ainda lhe telefonava regularmente para saber como estava, mas até as suas previsões fatalísticas já não lhe soavam tão sinistras. Parecia que iam conseguir, afinal. O trabalho ia andando, apesar de ser muito, terminara todos os casos pendentes de Jack e aceitara alguns para si. Os filhos estavam em boa forma e o Verão começava

bem. Continuava, obviamente, a sentir a falta do marido, mas ia aguentando os dias e até as noites. Não dormia tão bem como dantes, mas adormecia às duas em vez de às cinco, e durante a maior parte do tempo sentia-se razoavelmente bem. Por vezes, parecia-lhe que caía num buraco e tinha uns dias de grande depressão, mas, pelo menos, eram mais os bons do que os maus.

Fez um prato de massa, salada e, para sobremesa, gelado. Jamie ajudou-a. Foi até ele quem enfeitou o gelado com natas batidas e cerejas cristalizadas.

- Tal e qual como no restaurante - anunciou o garoto, todo orgulhoso, colocando-o na mesa.

- Tu e a mãe já começaram a treinar para os Jogos? perguntou Peter, interessado, enquanto comia o gelado.

- Começamos amanhã - respondeu Liz.

- Em que modalidades entras este ano?

Peter falava com o irmãozito mais como um pai do que como um irmão mais velho. Tinha recuperado nos estudos, na medida do possível, e até acabara o ano com notas muito razoáveis, apesar de tudo o que acontecera. No Outono, estaria no último ano e a mãe planeava visitar algumas faculdades com ele em Setembro, principalmente na costa ocidental. Peter não queria afastar-se de casa e, embora tivesse falado de Princeton, Yale e Harvard antes de o pai morrer, agora pensava na UCLA, Berkeley e Stanford.

- O salto em comprimento e os cem metros... e a corrida de sacos - declarou Jamie com orgulho. - Tinha pensado no lançamento do ovo outra vez, mas a mãe diz que já sou muito crescido.

- Parece-me bem e aposto que ganhas outra fita - encorajou-o Peter com um sorriso caloroso, sob o olhar satisfeito da mãe.

Eram ambos bons rapazinhos e Liz estava contente por tê-los em casa. Apreciava a companhia dos filhos e podia concentrar-se neles, agora sem as raparigas.

- A mãe acha que eu vou ganhar o primeiro prémio, desta vez - insistiu Jamie, embora não muito convencido, pois continuava sem saber se ela seria boa treinadora e estava habituado a fazer aquilo com o pai.

- Aposto que sim - concordou Peter, servindo-se de mais gelado e dando um bocado ao irmão.

- Não me importo de ficar em último lugar desde que ganhe uma fita - continuou Jamie, com o ar mais natural deste mundo.

- Obrigadinha pela confiança na treinadora! - exclamou Liz, sorrindo e começando a levantar a mesa.

Depois, mandou-o para a cama, porque no dia seguinte começava a ir todos os dias para o campo de férias. De manhã, foi levá-lo, a caminho do escritório. Estava orgulhosa dele e inclinou-se para lhe dar um beijo.

- Adoro-te, miúdo. Diverte-te! Estou em casa às seis, e vamos começar o nosso treino para os jogos.

Jamie acenou com a cabeça e atirou-lhe um beijo enquanto saía do carro. Liz dirigiu-se ao escritório. Estava um dia quente e soalheiro em Marin, embora se avistasse nevoeiro sobre a ponte, mas era provável que a temperatura em São Francisco não fosse tão amena... De repente, pensou em Jack, como uma facada no coração. Ainda as sentia de vez em quando, sempre que pensava nele ou via alguma coisa de que ambos gostassem ou tivessem feito juntos, mas recuperou e estava melhor ao chegar ao escritório. No entanto, fizesse o que fizesse, ou por mais ocupada que se encontrasse, continuava a ter muitas saudades dele.

- Algum recado? - perguntou a Jean, e esta entregou-lhe sete folhinhas do bloco das mensagens, com os telefonemas: dois de novos clientes que conhecera na semana anterior, dois de colegas a quem enviara casos, dois de desconhecidos e um da mãe.

Ligou para todos os que se relacionavam com assuntos profissionais e, por fim, para a mãe.

- As pequenas foram para o campo de férias?

- Claro. Fui lá levá-las ontem. O Jamie começou hoje no campo diário e o Peter está a trabalhar.

- E tu, Liz? Que vais fazer para continuar com a tua vida?

- A minha vida é isto, mãe. Tomo conta dos meus filhos e trabalho. - Que esperava que eu fizesse mais?

- Isso não chega para uma mulher da tua idade. Tens quarenta e um anos, ainda és nova, mas não suficientemente para perder tempo. Devias sair com homens.

Por amor de Deus! Era a última coisa em que pensava. Ainda usava a aliança e, sempre que alguma amiga lhe dizia a mesma coisa, dava uma resposta torta. Não tinha o mínimo interesse em sair com alguém. Intimamente, ainda se sentia casada com Jack e parecia-lhe que assim iria ser sempre.

- Só passaram seis meses, mãe! Além disso, tenho muito que fazer.

- Há quem volte a casar passado esse tempo. Já foi há seis meses, é muito.

- E dezenove anos também. E a mãe, tem saído com algum homem?

- Eu já não tenho idade para isso - respondeu ela rispidamente, embora soubessem ambas que não era verdade.

- Percebes muito bem o que quero dizer.

Na realidade, percebia. Vende a casa, fecha o escritório, arranja um marido. A mãe tinha muitos e bons conselhos para ela, ou assim pensava, tal como todas as pessoas que Liz conhecia, mas não estava interessada neles.

- Quando tiras umas férias? - insistiu a mãe.

- Em Agosto. Vou levar os miúdos para Tahoe.

- Óptimo. Estás a precisar.

- Obrigada. Olhe, preciso de trabalhar. Tenho imenso que fazer esta manhã.

Queria desligar, antes que a mãe continuasse a seringá-la, havia sempre mais qualquer coisa.

- Já arrumaste as coisas do Jack? Deus! Era incrível.

- Não, ainda não. O espaço não me faz falta.

- Mas precisas de recuperar, Liz, e tu bem sabes.

- Então, por que motivo os fatos do paizinho ainda estão no seu roupeiro do rés-do-chão?

- Isso é diferente, não tenho onde os guardar. Guardá-los para quem? Ambas sabiam que não era diferente.

- Ainda não me apetece arrumá-las, mãe - e talvez nunca me apeteça, reconheceu Liz para consigo.

Não o queria fora da sua vida ou do seu coração, nem sequer dos seus roupeiros, ainda não estava pronta para se despedir.

- Eu estou melhor, muito melhor. Olhe, agora tenho de desligar.

- Não queres ouvir, mas sabes que eu tenho razão.

Porque lhe diziam que tinha de guardar as coisas dele fora da vista? Sentiu de novo a familiar punhalada. A mãe não estava a ajudar.

- Eu telefono-lhe no fim-de-semana - prometeu Liz.

- Não te esforces de mais, Liz. Continuo a achar que devias fechar o escritório.

- Talvez seja obrigada a isso, se a mãe não me deixar trabalhar.

- Está bem, está bem. Falamos no domingo. Quando desligou, Liz ficou a olhar pela janela, a pensar no marido e no que a mãe tinha dito, mas era demasiado doloroso fazer o que ela queria. Era reconfortante ver a roupa dele no roupeiro. Às vezes, tocava numa manga ou cheirava a água-de-colónia que ainda permanecia nas golas.

Guardara as coisas da barba e a escova dos dentes, mas não conseguia fazer mais do que isso. O resto ainda estava tudo à vista, e sentia-se bem assim. Um dia, trataria do assunto. Mas esperava que fosse daí a muito tempo, não estava preparada, e sabia-o.

- Sente-se bem? - perguntou Jean, entrando no gabinete e vendo-a a olhar lá para fora com uma expressão entristecida.

Mas Liz recuperou rapidamente assim que a ouviu, e olhou para ela com um sorriso melancólico.

- Foi a minha mãe. Tem sempre um conselhozito para mim.

- As mães são assim. Tem tribunal esta tarde. Calculo que se lembre.

- Lembro, sim, embora não possa dizer que me agrade.

Mantivera o trabalho tal como anteriormente. Continuava a aceitar os casos que Jack aprovaria e gostaria de ganhar e entregava a colegas os que ele não apreciaria.

Fazia-o pelo marido, respeitando as mesmas regras, embora houvesse ocasiões em que questionava o seu procedimento. Havia tanta coisa nas leis acerca da família de que não gostava, tantas lutas que lhe pareciam sem importância... E começava a sentir-se deprimida por lidar com pessoas que se odiavam umas às outras e estavam sempre prontas a prejudicar-se e a aplicar golpes baixos. Não lutava como em vida de Jack. Tinham formado uma excelente equipa, mas ela sozinha não possuía o mesmo ela. Só o admitia intimamente, mas a verdade era que a constante obrigação de lidar com divórcios começava a cansá-la.

Mas ninguém diria, quando entrou na sala do tribunal nessa tarde. Como sempre, ia bem preparada, organizada e disposta a vencer, o que conseguiu facilmente. Era uma questão trivial, mas ela tratou-a na perfeição, e o juiz agradeceu-lhe pela rapidez, enquanto o colega da outra parte parecera disposto a transformá-la num grande problema.

Eram quase cinco horas quando voltou para o escritório. Retribuiu mais umas chamadas, pegou nas suas coisas e preparou-se para sair.

- Vai-se já embora? - perguntou Jean, entrando com um molho de papéis acabados de chegar do escritório dum colega. Diziam respeito a um novo caso de divórcio e vinham duma firma famosa.

- Tenho de ir para casa treinar o Jamie. Ele vai entrar outra vez nos Jogos Olímpicos Especiais este ano.

- Isso é bom - respondeu a secretária, sorridente. Via que Liz mantinha as tradições da família e assim como os seus altos padrões para os clientes, ela própria e os filhos.

Era evidente que não queria mudanças. Cada coisa conservava-se ainda exactamente onde estivera antes de o perder. Nem sequer se sentava à secretária que fora do marido ou utilizava o seu gabinete, apesar de gostar mais dele. Fechara simplesmente a porta e raramente lá entrava. Era como se estivesse à espera de que Jack voltasse um dia e fosse lá sentar-se. Ao princípio, Jean tinha pensado que aquilo era sinistro, mas acabara por se habituar. Só lá iam de vez em quando buscar algum documento, mas a maior parte dos processos activos estava agora no gabinete de Liz.

- Até amanhã - despediu-se a advogada, saindo apressada.

Quando chegou a casa, Jamie já esperava. Entrou a correr, tirou a roupa, enfiou umas calças de ganga e uma camisola de mangas compridas, calçou umas sapatilhas e, cinco minutos depois, estava de novo cá fora, a treinar o salto em comprimento com o filho. A primeira tentativa foi bastante pobre, e o rapazito teve consciência disso.

- Não sou capaz - disse ele, parecendo derrotado logo de início, como se quisesse desistir, mas Liz não permitiria.

- Consegues, sim. Olha para mim! - exclamou, tentando fazer os movimentos lentamente, para ele poder ver. Era uma criança mais visual do que auditiva e, à segunda vez, fez melhor. - Tenta de novo - encorajou a mãe.

Daí a pouco, apareceu Carole com um copo de sumo de laranja e um prato de biscoitos acabados de sair do forno.

- Que tal vai isso? - perguntou ela, em tom alegre, mas Jamie abanou a cabeça, com ar infeliz.

- Mal. Este ano não ganho uma fita.

- Ganhas, sim - replicou a mãe com firmeza.

Queria que o filho vencesse porque sabia o que isso significava para ele, visto que sempre conseguira uma quando treinava com o pai.

Jamie comeu dois biscoitos e bebeu metade do sumo, e Liz pediu-lhe que tentasse de novo. Dessa vez, foi melhor. Então, ela recordou-lhe o lema dos Jogos Especiais: espero ganhar, mas, se não conseguir, vou ser corajoso na tentativa.

Continuaram a treinar e depois Liz fê-lo correr pelo pátio e cronometrou-o. Saiu-se melhor do que no salto em comprimento, como sempre. Correr era o seu forte. Mais rápido do que a maioria dos garotos com quem competia, mostrava-se melhor na concentração. Apesar dos seus limites, possuía um bom espírito de luta e até conseguira finalmente aprender a ler nesse Inverno, do que muito se orgulhava. Lia tudo o que apanhava: o que vinha escrito nas caixas de cereais, rótulos de garrafas, folhetos que lhes enfiavam debaixo dos limpa-vidros do carro, livros de histórias e até cartas que a mãe às vezes deixava em cima da mesa da cozinha. Com dez anos, apreciava o facto de conseguir ler.

Às sete da tarde, Liz sugeriu que acabassem, mas ele quis continuar a treinar mais um pouco. Por fim, logrou convencê-lo a parar às sete e meia.

- Ainda temos um mês para treinar, querido. Não é preciso fazermos tudo numa tarde.

- O paizinho costumava dizer que eu tinha de continuar até não me aguentar de pé - respondeu Jamie, o que fez Liz sorrir.

- Mas acho que por hoje chega. Paramos antes que caias para o lado e amanhã continuamos.

- Está bem - concordou o garoto finalmente. Trabalhara muito e estava exausto. Tomaram duche e, quando entraram na cozinha, Carole tinha o jantar pronto. Era frango assado com puré de batata e cenouras cozidas, uma das refeições preferidas de Jamie. Para sobremesa, havia uma tarte de maçã acabadinha de sair do forno.

- Mmm! - fez ele, deliciado.

Comeu tudo o que lhe puseram no prato, sempre a falar sobre os Jogos Especiais, entusiasmado com a perspectiva de participar mais uma vez.

Foi para a cama assim que acabou de comer, porque no dia seguinte tinha de se levantar cedo para ir para o campo de férias. Além disso, Liz trouxera que fazer. Levou a pasta para cima, deu um beijo ao filho e entrou no quarto. Pousou-a e abriu a porta do enorme roupeiro que Jack construíra. Um lado era dela e o outro dele. Lembrou-se do que a mãe dissera de manhã ao telefone e olhou para as roupas de Jack com mais saudades do que nos últimos tempos. Parecia que toda a gente estava a tentar privá-la daquilo, e ela ainda não estava pronta para o esquecer.

Passou as mãos pelos casacos e encostou um à cara, cheirando-o. Ainda tinha o odor dele. Pensou se toda aquela roupa ficaria assim para sempre. Não suportava pensar nisso, e sentiu os olhos encherem-se-lhe de lágrimas, enterrando a cara num dos casacos. Não ouviu Peter entrar, e deu um salto quando sentiu uma mão num ombro.

Voltou-se e viu-o.

- Não devia fazer isso, mãe - comentou ele baixinho, a olhar para ela também com os olhos cheios de lágrimas.

- Porque não? - perguntou Liz, a chorar. Peter abraçou-a, não só como filho mas também como amigo. Com dezassete anos, passara instantaneamente para a maturidade ao perder o pai. - Ainda sinto tanto a falta dele - confessou ela.

- Eu sei, mas o que está a fazer não muda as coisas e não ajuda. Só torna tudo pior. Eu também costumava vir aqui olhar para as coisas do pai, mas ficava tão triste que acabei com isso. Talvez fosse boa ideia guardar tudo. Se quiser, eu ajudo-a - propôs Peter.

- A avó também diz que eu devia... mas não quero respondeu Liz, triste.

- Então não faça, deixe para quando se sentir preparada.

- E se isso nunca acontecer?

- Acontece e, nessa altura, percebe.

Continuou abraçado a ela durante um bom bocado, até que a mãe se afastou e lhe sorriu. O momento de terrível sofrimento tinha passado, e ela sentia-se melhor. Peter era uma jóia de rapaz e ela adorava-o, como a todos os seus filhos.

- Eu gosto muito de si, mãezinha.

- E eu de ti, meu querido. Obrigada por me ajudares e aos teus irmãos. - Peter acenou com a cabeça, e fecharam ambos o roupeiro. Liz olhou para a pasta, mas não lhe apetecia trabalhar. Sempre que fazia aquilo, tentar agarrar-se ao marido através da sua roupa e do cheiro da sua água-de-colónia, ficava pior. O aspecto positivo não durava mais do que uns segundos, e sentia ainda mais saudades depois. Peter, pelos vistos, já descobrira isso e decidira acabar com o tormento.

- Porque não descansa esta noite e vai ao cinema ou qualquer coisa assim?

- Tenho que fazer.

- Tem sempre! Os processos podem esperar. Se o pai estivesse aqui, levava-a a algum lado. Ele não trabalhava todas as noites, como a mãe faz agora.

- Não, mas também trabalhava muito em casa. Mais do que eu.

- A mãe não pode ser duas pessoas ao mesmo tempo, só pode ser uma. É demasiado desempenhar os dois papéis.

- Desde quando ficaste tão sensato? - perguntou Liz, sorrindo para o filho, parado à porta do quarto.

Ambos sabiam a resposta àquela pergunta. Ele amadurecera seis meses antes, na manhã de Natal, e tivera de o fazer muito depressa, para ajudar a mãe e os irmãos, não havia outra opção. Até às garotas sucedera o mesmo. Megan, apesar de atravessar uma idade ingrata, estava sempre a oferecer-se para ajudar a mãe. Liz sabia que ia sentir-lhes a falta enquanto durasse o campo de férias, mas elas mereciam afastar-se e divertir-se. Todos mereciam.

Peter foi para o quarto e ela sentou-se na cama, espalhando os documentos diante de si. Muito tempo depois de o filho se ter ido deitar, ainda estava a trabalhar, como acontecia quase sempre. Custava-lhe muito a adormecer, as noites eram muito mais difíceis do que os dias, e assim fora desde o princípio.

Às duas da manhã adormeceu finalmente e às sete estava a pé. Deixou Jamie no campo de férias, foi para o escritório, deu uma vista de olhos aos processos, ditou cartas a Jean, fez uma dúzia de telefonemas e, às cinco e meia, estava de volta ao pátio a cronometrar a corrida de Jamie. No fundo, não era desagradável: filhos, trabalho, filhos, trabalho, dormir, sempre a mesma rotina. De momento, era tudo o que tinha e tudo o que queria.

Quando as garotas voltaram do campo de férias, Jamie aumentara bastante a velocidade, melhorara no salto em comprimento e até tinham treinado a corrida de sacos, com uma saca de batatas que ela arranjara. Estava a ganhar confiança, para além da velocidade, e compensava com esforço e boa vontade o que lhe faltava em coordenação.

Mas Jamie estava ainda mais excitado com a chegada das irmãs do que com os Jogos Olímpicos Especiais, e elas também ficaram encantadas com a reunião, pois Jamie era especial para todos eles. Na véspera da saída das irmãs do campo, Liz tinha-o levado ao Oceanário com um amiguinho. Os garotos adoraram ser molhados pelos golfinhos e pelas focas e ela teve de os embrulhar numa manta que trazia no carro, para não se resfriarem até chegarem a casa.

Os Jogos Especiais estavam marcados para o fim-de-semana seguinte. Liz treinou todas as tardes com ele, bem como toda a manhã da véspera, e as irmãs assistiram e aplaudiram-no. Nunca estivera em melhor forma e na última noite teve dificuldade em adormecer, tal era a excitação. Dormiu na cama da mãe, como acontecia com frequência e ela nunca tentava dissuadi-lo, porque, egoisticamente, adorava tê-lo ali e o conforto era mútuo.

O dia dos Jogos amanheceu quente e com um sol radioso. Liz e Jamie saíram de casa antes dos outros. Peter ia lá ter uma hora depois, com Carole e as irmãs. Liz levava a câmara de vídeo de Jack e a sua máquina fotográfica. Na entrada, deram a Jamie um número. Por todo o lado se viam crianças como ele, muitas com deficiências bem mais graves e inúmeras em cadeiras de rodas. Era um espectáculo familiar para Liz, que ficava sempre comovida com a felicidade e a excitação espelhadas naquelas caritas. Jamie mal conseguia esperar pela primeira prova, mas, quando chegou o momento de alinhar para os cem metros, voltou-se para a mãe com uma expressão de pânico.

- Não posso, não posso, mãe - disse ele, meio sufocado.

- Podes, sim - replicou Liz calmamente, pegando-lhe na mão. - Sabes que és capaz, Jamie. E não interessa ganhar, é só para te divertires, querido, é para isso que estamos todos aqui, vamos passar um bom bocado. Tenta descontrair-te e diverte-te.

- Não consigo sem o paizinho!

Liz não estava preparada para uma cena daquelas e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

- O paizinho quereria que te divertisses. Isto é muito importante para ti, como também era para ele. Vais ver que te sentes melhor se ganhares uma fita.

Falou com a voz a tremer, tentando conter as lágrimas mas o garoto nem deu por elas.

- Não quero correr sem ele! - e Jamie desatou a chorar, enterrando a cara no peito da mãe.

Por instantes, Liz ficou sem saber o que fazer: deixá-lo desistir ou encorajá-lo a correr. Era, como tudo o que lhe acontecera ultimamente, um problema difícil de resolver, mas, depois de ultrapassado, ficaria com uma sensação de vitória.

- Porque não tentas disputar uma prova e, se não gostares, vamos ver da bancada ou voltamos para casa, se quiseres. Só esta - pediu Liz, abraçada ao filho e a fazer-lhe festas na cabeça.

Jamie hesitou um bocado, enquanto chamavam os participantes para a linha de partida, mas depois olhou-a e acenou com a cabeça. A mãe foi com ele até lá e Jamie acabou por alinhar com os outros garotos. Liz atirou-lhe um beijo, coisa que Jack nunca teria feito, o pai tratava-o sempre como um homem e dizia-lhe que ela devia fazer o mesmo. Mas era o seu bebé e, por mais adulto ou mais capaz que se tornasse, sê-lo-ia toda a vida.

Ficou a assistir, com os olhos cheios de lágrimas, dando gritos de incitamento como todos os outros pais, mas daquela vez queria que ele ganhasse por si próprio, por Jack e para provar que as coisas corriam bem e que podia viver sem o pai. Naquele ano, Jamie precisava duma vitória mais do que qualquer outra criança, e possivelmente também ela. Susteve a respiração, vendo-o aproximar-se da meta. Parecia que ia chegar em terceiro ou quarto lugar, e, então, num esforço súbito, passou para a frente.

Sem olhar para trás ou para os lados, como alguns faziam, correu o mais depressa que pôde até que Liz, atónita e com as lágrimas a correrem-lhe pela cara, percebeu que chegara em primeiro. A fita rompeu-se no peito dele, e Jamie arfava, olhando em volta à procura dela, enquanto o ”felicitador” oficial lhe dava os parabéns.

Havia sempre voluntários para o fazerem. Liz correu o mais depressa que pôde e Jamie agarrou-se a ela.

- Ganhei! Ganhei! Fui o primeiro!... Ganhei, mãe! Nunca consegui, com o paizinho!

Jack teria ficado tão contente e tão orgulhoso, que lhe parecia vê-lo todo sorridente. Apertou o filho de encontro a si agradecendo a Deus e a Jack, e deu-lhe um beijo no alto da cabeça, dizendo-lhe que estava muito satisfeita. Então, Jamie olhou-a e viu que ela chorava.

- Não está contente, mãe? - parecia confuso, o que a fez rir.

- Claro que estou! Foste fantástico! - acenaram os dois a Peter e às irmãs, na bancada, com gestos de vitória.

Eles levantaram-se e aplaudiram quando foi anunciado, pelos altifalantes, o vencedor da corrida, e Jamie recebeu a sua medalha de oiro. Acontecesse o que acontecesse nesse dia, Jamie era o vencedor.

Ficou em segundo lugar no salto em comprimento, ganhou a medalha de prata, e em primeiro ex aequo na corrida de sacos. No fim do dia, tinha duas medalhas de oiro e uma de prata e nunca se sentira tão feliz. No carro, a caminho de casa, com as três ao pescoço, era a verdadeira imagem de felicidade. Fora um dia maravilhoso, cheio de excitação, vitórias, momentos de ternura, e Liz levou-os a jantar fora para comemorar algo que iriam recordar para sempre com orgulho.

- Nunca consegui ganhar com o paizinho - disse Jamie mais uma vez durante o jantar. - A mãe é boa treinadora. Não pensei que fosse, sabe?

- Nem eu - confessou Megan, olhando a mãe com orgulho.

Rachel e Annie meteram-se com ele, chamando-lhe grande atleta, e Liz disse que ia emoldurar as medalhas.

- Fez um belo trabalho, mãe - reconheceu Annie.

- O Jamie é que fez o mais difícil, eu só o cronometrei no pátio, e isso foi bastante fácil.

Mas treinara-o todos os dias, durante cinco semanas seguidas, e valera a pena. Nunca vira o filho tão feliz ou tão orgulhoso. No restaurante, mostrou as medalhas às pessoas das mesas vizinhas e, quando a mãe se despediu dele, já na cama, agradeceu-lhe, deitou-lhe os braços ao pescoço e puxou-a para baixo.

- Adoro-a, mãezinha. Sinto muito a falta do paizinho, mas adoro-a mesmo!

- E tu és um rapaz fantástico e eu também te adoro, Jamie. Sinto igualmente muitas saudades do paizinho, mas acho que ele esteve a ver-te hoje e ficou muito orgulhoso.

- Também acho - concordou o garoto com um bocejo. Voltou-se de lado e a mãe coçou-lhe as costas. Adormeceu antes de ela sair do quarto, e Liz ainda sorria ao entrar no seu. Peter tinha levado Megan ao cinema, Rachel e Annie estavam a ver um vídeo e ela deitou-se silenciosamente, a pensar no marido.

- Conseguimos - murmurou no quarto às escuras. Olhou em volta, quase sentindo a presença dele, uma presença e uma força, um amor difícil de esquecer. – Obrigada - disse baixinho, acendendo a luz, mas já sem estar à espera de o ver ou de que ele voltasse, pois o que ele lhe deixara era infinitamente precioso.

 

Capítulo 6

Partiram para Tahoe três dias depois dos Jogos Olímpicos Especiais, com Jamie ainda muito animado, aliás, como todos. Um velho amigo de Jack emprestara-lhes a casa, em Homewood, onde já tinham estado. A mulher dele não gostava de Tahoe, os filhos eram crescidos e raramente a usavam, mas era perfeita para Liz e as crianças. Tinha um alpendre largo, via-se o lago de quase todos os quartos e, à volta, havia um grande terreno com belas árvores. À chegada, a disposição geral era excelente.

Peter e as irmãs ajudaram a mãe a tirar tudo do carro, e Jamie levou os mantimentos para dentro e ajudou-a a arrumá-los na cozinha. Carole fora passar essa semana a casa da irmã, em Santa Bárbara.

- Que tal uma banhoca? - sugeriu Peter assim que chegaram. Meia hora mais tarde, estavam todos a mergulhar na água fria, o que fazia parte do divertimento, e a mãe organizara uma sessão de esqui aquático para o dia seguinte.

Fez-lhes o jantar nessa noite, com Peter a ajudá-la no grelhador do pátio, o pai ensinara-o a trabalhar com ele. Depois, sentaram-se diante da lareira, a contar histórias. Annie contou uma, divertida, sobre o pai, e Liz sorriu, lembrando-se doutra ocasião e doutra peripécia. Contou-a e todos riram, e então Rachel recordou a vez em que o pai ficara fechado numa cabina que haviam alugado e fora obrigado a sair pela janela. De repente, parecia que estavam num concurso, a ver quem se lembrava das histórias mais divertidas e malucas, como se quisessem trazê-lo para junto deles duma forma que já eram capazes de suportar. Aqueles meses tinham abrandado o sofrimento, deixando-os não só com as lágrimas, mas também com as gargalhadas.

Quando finalmente foram para a cama, Liz concluiu que nunca se sentira tão bem durante todos aqueles meses. Continuava com imensas saudades, mas não tão triste,

e todos estavam felizes por ter ido para Tahoe. Eram umas férias de que muito precisavam e ainda bem que Peter conseguira a semana de folga na clínica veterinária, graças ao seu excelente trabalho.

No dia seguinte, foram todos fazer esqui aquático, Peter levou Rachel e Jamie à pesca, no rio atrás da casa, e apanharam um peixe. No outro dia, meteram-se no barquito que estava amarrado ao pequeno cais, afastaram-se um pouco e os rapazes e Megan pescaram muitos, um até bem grande. Depois, apanharam camarões de água doce perto do cais, e Liz cozeu-os para o jantar. Foram uns dias calmos e felizes, e uma noite dormiram no alpendre, dentro dos sacos-camas, quase sob as estrelas. Tiveram umas férias perfeitas.

Quando arrumaram as coisas para voltar para casa, sentiram realmente pena de partir e obrigaram a mãe a prometer que repetiam a dose ainda nesse Verão. Ela pensava que talvez pudessem pedir a casa emprestada no Dia do Trabalho, como maneira de evitar a festa que costumavam dar. Tal como o piquenique do 4 de Julho, que tinham decidido não organizar nesse ano, a festa do Dia do Trabalho era uma tradição da família, mas ir para o lago Tahoe seria a contrapartida ideal.

Estavam todos descontraídos e felizes quando pararam em Auburn para comer hambúrgueres e tomar uns batidos.

- Não me apetece voltar ao trabalho - confessou Liz ao filho mais velho, quando acabaram de comer. - Isto foi tão divertido que gostava de poder preguiçar durante todo o Verão.

- Então porque não tira mais umas férias, mãe? - sugeriu ele, mas Liz abanou a cabeça.

Estava a imaginar o que a esperava no escritório, com tribunal durante todo aquele mês e um julgamento no princípio de Setembro, que precisava de preparar.

- Estou cheia de trabalho.

- Trabalha de mais, mãe. Porque não arranja outro advogado para trabalhar consigo? - perguntou Peter, consciente de que a mãe tinha sobre os ombros os casos dela e os do pai.

- Já pensei nisso, mas acho que o teu pai não devia gostar.

- Como não devia gostar que a mãe se matasse a trabalhar - disse o rapaz.

Jack sempre soubera divertir-se e, embora obcecado com o trabalho, ninguém apreciava mais umas férias do que ele. Teria adorado a semana que acabavam de passar no lago Tahoe.

- Vou pensar nisso. Talvez daqui a uns meses convide um colega para trabalhar comigo, mas, por enquanto, estou bem sozinha.

Isto era verdade, desde que não fizesse um intervalo para ler um livro ou mesmo uma revista, ou para almoçar com uma amiga ou ir ao cabeleireiro. Se continuasse a trabalhar sem parar em todos os minutos que não passava com os filhos, as coisas corriam bem, mas não era grande vida e tinha consciência disso, assim como eles.

- Não espere eternamente, mãe - recomendou Peter.

Depois, foi buscar os irmãos, que tinham ido comprar rebuçados, pois sempre que paravam ali voltavam para casa com sacos cheios de goluseimas.

Carole estava à espera quando chegaram. Liz sabia que as semanas seguintes iam ser duras para ela, até os garotos retomarem as aulas. Peter ia continuar a trabalhar na clínica veterinária durante mais uma semana ou duas, mas os outros passariam a maior parte do tempo na piscina, convidando amigos todos os dias. Carole ia fazer almoço para meia dúzia deles e, às vezes, jantar para o dobro, mas Liz gostava de saber onde estavam e preferia que os amigos fossem lá a casa.

Carole preparara um jantar delicioso e, quando foram para a cama nessa noite, sentiam-se felizes por estarem em casa e contaram-lhe muitas histórias sobre as férias.

Quanto a Liz, ainda tinha um ar muito descansado quando saiu para trabalhar na manhã seguinte, mas ao fim de dez minutos perdera-o. As pilhas de papéis em cima da secretária haviam-se multiplicado dramaticamente durante a sua ausência, e nunca recebera tantos recados como nesse dia. Resolvia os seus casos demasiado bem, e os colegas enviavam-lhe constantemente novos clientes. Lembrou-se das palavras de Peter quanto a convidar outro advogado para trabalhar com ela.

Falou nisso com Jean nessa tarde, enquanto deitavam mãos ao trabalho e lhe ditava umas cartas.

- Já tem alguém? - perguntou ela, interessada, pois há bastante tempo que ela própria pensava no assunto, e aplaudiu a sugestão de Peter.

- Ainda não - admitiu Liz. - Nem sequer sei se quero fazer isso.

- Devia pensar melhor. Olhe que o seu filho tem razão. Não pode fazer tudo sozinha. Já era demais para duas pessoas, antes da morte do seu marido, e o trabalho aumentou nos últimos seis meses. Não sei se reparou, mas eu sim. Está a encarregar-se quase do dobro dos casos que os dois tinham.

- Como aconteceu isso? - perguntou Liz, admirada, embora reconhecendo o que a secretária dizia.

- Pela sua competência - respondeu Jean com um sorriso.

- Mas o Jack também era supercompetente, e eu sempre pensei que ele era melhor advogado do que eu - retorquiu Liz, saltando imediatamente em sua defesa.

- Tanto não diria, mas ele rejeitava mais casos. Quando não lhe agradavam, despachava-os para algum colega, o que agora não acontece... - respondeu Jean honestamente.

- Talvez eu devesse fazer isso...

- Não me parece que tenha coragem.

Jean conhecia-a bem, Liz era incrivelmente escrupulosa.

- Nem eu - concordou Liz, com uma gargalhada, retomando o trabalho, pois precisava de enviar várias cartas a colegas e juizes sobre os casos que tinha entre mãos.

Chegou a casa tarde, quase às oito, mas era o resultado das férias. Encontrou os filhos ainda na piscina e Carole a servir piza.

- Olá, malta! - exclamou Liz com um sorriso, contente por também ver Peter, mas menos quando dois amigos dele mergulharam e foram um bocadinho brutos para os mais novos. Pediu-lhes moderação e disse ao filho que não queria violências para não se magoarem.

Carole concordou com ela e contou-lhe que passara toda a tarde a dizer a mesma coisa aos amigos de Megan. Liz ficou preocupada sobretudo com Jamie, que não era exímio nadador. À noite, depois de os rapazes e raparigas se terem ido embora, tornou a falar no assunto:

- Não quero acidentes aqui... nem nenhum processo!

- Ora, a mãe preocupa-se demasiado - comentou Annie sem parecer dar importância às palavras de Liz, mas esta repetiu-as e disse-lhe que estava a falar muito a sério.

No dia seguinte, quando saiu, lembrou-lhes o que se passara e, quando voltou, as coisas pareciam um pouco mais calmas. Mas na quinta-feira, ao chegar a casa, viu meia dúzia de amigos de Peter a mergulharem na piscina demasiado depressa, sem esperar que os mais novos se afastassem. Então, disse ao filho, com toda a firmeza, que os amigos dele não tornavam a pôr ali os pés se não cumprissem as regras básicas de segurança e respeitassem os mais novos.

- Não quero ter de falar nisto outra vez - disse ela, calmamente.

- Está com ar cansado, mãe - observou Peter.

- E estou, mas isso não vem ao caso. Não quero uma desgraça aqui. Vocês não podem ser brutos na piscina!

- Está bem, mãe, eu ouvi.

Tinha amadurecido muito nesse ano, mas não completamente. Era novo e alguns dos seus amigos pareciam disparatados e inconscientes, o que a preocupava. Um acidente na piscina era uma dor de cabeça que não lhe fazia falta. Haviam sofrido o suficiente nos últimos tempos, e não tinha medo de o dizer ao filho ou aos outros.

Nessa noite, foi mais uma vez para o quarto trabalhar, pois precisava de preparar uma audiência. Sentia-se cansada e enervada, a precisar duma boa noite de sono.

No dia seguinte, justamente ao sair da audiência que preparara na véspera, o telemóvel tocou. Era Carole, com uma voz precisa e calma:

- Tem de vir já para casa - disse ela claramente, e Liz ficou logo tensa. Carole só falava assim quando algum dos garotos se magoava ou havia um problema sério.

- Que foi que aconteceu? Alguém se magoou? - mas sabia, mesmo antes de ouvir a resposta.

- É o Peter. Teve folga e vieram cá uns amigos dele...

- Que foi que aconteceu? - interrompeu Liz, num tom de voz agudo, que soou estranho a ela própria, mas os seus nervos já não eram como dantes.

- Ainda não sabemos. Mergulhou e bateu com a cabeça, acho eu. A ambulância já chegou.

- Está a deitar sangue?

Só conseguia pensar no marido estendido no chão do escritório a sangrar por todos os lados. Para ela, sangue significava tragédia.

- Não, mas está inconsciente - respondeu Carole, com uma calma que não sentia. Detestava ter de lhe contar aquilo, mas sabia que era preciso, e só não arranjou coragem para dizer que talvez Peter tivesse partido o pescoço. Ainda não havia a certeza. - Vão levá-lo para o hospital de Marin. Pode ir lá ter. Lamento muito.

- E os outros, estão todos bem? - perguntou Liz, já a correr para o carro.

- Mais ninguém se magoou. Só o Peter.

- E ele vai ficar bom?

Ninguém sabia realmente. Havia paramédicos por todo o lado e Liz conseguiu ouvir a sirene a tocar quando arrancaram.

- Acho que sim. Não sei grande coisa. Eu estava a vê-los... e disse-lhes.

Carole não conseguiu continuar. Começou a chorar e Liz acabou a conversa, pôs o carro a trabalhar e arrancou, rezando para que o filho estivesse bem. Não podiam viver com outro desastre, que Deus não permitisse outra perda. Não aguentava. Foi para o hospital o mais depressa possível, sem passar sinais vermelhos ou atropelar algum peão, e chegou pouco tempo depois de terem levado o filho para as Urgências. Fora directamente para o Serviço de Traumatologia, e Liz seguiu para lá.

Correu pelos corredores, à procura, até que chegou ao serviço e o viu. Estava pálido, ainda molhado, a receber oxigénio e com o pessoal em volta dele. Demasiado ocupados para lhe prestarem muita atenção, uma enfermeira explicou-lhe rapidamente o que se passava. Peter sofrera um grave traumatismo craniano com possível fractura de várias vértebras e concussão cerebral. Ia ser radiografado assim que fosse possível, e estavam a pô-lo a soro e a colocar-lhe monitores.

- Ele vai ficar bom? - perguntou Liz, sem tirar os olhos do filho, submersa por uma onda de pânico, pois Peter parecia estar a morrer, e ela não tinha a certeza se assim não era.

- Ainda não sabemos - respondeu a enfermeira com honestidade. - O médico fala com a senhora assim que tiver todos os dados.

Liz queria tocar-lhe e falar-lhe, mas nem sequer podia aproximar-se. A única coisa a fazer era ficar ali parada a lutar contra o pânico. Trouxeram um aparelho de raios X para junto da marquesa onde ele jazia nu, depois de lhe terem cortado o fato de banho.

Radiografaram-lhe a cabeça e o pescoço, e pareciam examinar-lhe cada parte do corpo, enquanto a mãe assistia, lavada em lágrimas. Pareceu-lhe uma eternidade até que um médico de bata verde se lhe dirigiu. Trazia o estetoscópio ao pescoço e falou-lhe com uma expressão grave. Era alto, com olhos escuros sombrios, mas o cinzento nas fontes fê-la querer acreditar que sabia o que estava a fazer.

- Como está ele? - perguntou Liz, desesperada.

- Não muito bem, de momento. Ainda não temos a certeza da gravidade da concussão cerebral ou das implicações. Há muitas possibilidades numa situação como esta. Tem um edema considerável. Vamos fazer-lhe um encefalograma e uma tomografia daqui a uns minutos, mas tudo depende do tempo que ele levar a sair do estado em que se encontra. Penso que talvez tenha tido sorte. Quando o trouxeram, pensei que o pescoço estava partido, mas agora acho que não. As radiografias não demoram.

Ocorriam muitos casos de tetraplegia resultantes de acidentes em piscinas, principalmente com rapazes da idade de Peter, no fim da adolescência, que mergulhavam de qualquer maneira. Mas aquele parecia menos grave, não lhe encontrara paralisia nos membros, e tinha boa mobilidade, tanto quanto podia dizer de momento. Quanto muito, rachara a quarta vértebra cervical, mas sem lesão da espinal-medula. Precisava de se concentrar na concussão.

Por um instante, antes de o levarem, Liz pôde estender a mão e tocar-lhe. A única coisa que conseguiu dizer foi:

- Adoro-te... - mas o filho continuava inconsciente, sem poder ouvi-la.

Só voltou quase uma hora depois, ainda muito pálido. O médico veio falar com ela de novo, e não parecia satisfeito.

Liz soubera entretanto que ele era o chefe do serviço e se chamava Bill Webster.

- O seu filho tem uma forte concussão, senhora Sutherland, e um enorme edema. Por enquanto, a única coisa a fazer é esperar e, se o edema aumentar, vamos ter de abrir para o aliviar.

- Está a falar de cirurgia cerebral? - perguntou Liz, horrorizada. - E ele vai ficar... ele está... - nem conseguia formular as palavras, tal era o pânico.

- Não sabemos ainda. Há muitas variáveis nesta situação. Vamos mantê-lo tranquilo, por enquanto, e esperar.

- Posso ficar ao pé dele?

- Desde que não nos atrapalhe e não lhe mexa. Precisamos de o manter imobilizado.

Falou-lhe como se ela fosse o inimigo, e Liz sentiu-se isso mesmo. Havia uma dureza naquele homem, uma falta de sensibilidade, que odiou instantaneamente. Mas ele só estava interessado em salvar-lhe o filho, o que o redimia ligeiramente.

- Eu não os atrapalho - prometeu baixinho.

O médico disse-lhe onde podia sentar-se, e ela puxou um banco para junto da marquesa, pegando-lhe suavemente na mão. Peter tinha um monitor de oxigénio num dedo e outros por todo o lado, para vigiar o coração e o cérebro. Pelo menos, de momento, parecia estável.

- Onde se encontrava a senhora quando isto aconteceu? - perguntou o médico num tom acusador.

- No tribunal, sou advogada. A minha governanta estava ao pé deles na piscina, mas acho que não conseguiu controlar a situação.

- Tudo o indica - comentou ele secamente, afastando-se para falar com outro médico. Voltou uns minutos depois e disse: - Vamos esperar mais uma ou duas horas, e então levamo-lo para o bloco operatório.

Liz acenou com a cabeça, ainda sentada junto do filho, de mão dada com ele.

- Ele ouve-me, se eu lhe falar?

- É pouco provável - disse o médico, com a testa franzida. Liz estava tão pálida como Peter, apesar de ser ruiva e ter a pele muito clara. - Sente-se bem? Não temos tempo para tratar de si, se desmaiar. Se não aguenta, pode ir para a sala de espera e nós chamamo-la, se acontecer alguma coisa.

- Eu não saio daqui - respondeu Liz firmemente. Aguentara o que acontecera ao marido oito meses antes sem desmaiar. Detestava os modos daquele homem, mas uma das enfermeiras dissera-lhe que ele era o melhor, e acreditava nela, apesar da maneira como o médico agia. Era evidente que estava habituado a lidar com situações de vida ou morte, com a salvação de vidas, e não tinha tempo para os parentes. A última coisa que ele queria era preocupar-se com qualquer coisa sem ser o seu doente.

Afastou-se de novo à pressa, para chamar um neurocirurgião, e uma enfermeira aproximou-se e perguntou a Liz se queria café.

- Não, obrigada, eu estou bem - respondeu baixinho, embora fosse óbvio que não era verdade. Parecia completamente desesperada, tal como acontecera quando do marido.

Só sabia que, daquela vez, não podia perder. Nem conseguia pensar nessa hipótese e, logo que isso acontecia, inclinava-se e incitava o filho:

- Vá lá, Peter... acorda... fala comigo... é a mãe... abre os olhos... fala comigo... é a mãezinha, meu querido... eu adoro-te... Acorda... - repetia as palavras, como se se tratasse duma mantra, rezando para que ele a ouvisse, onde quer que estivesse, nos confins da inconsciência.

Das duas e meia às quatro da tarde, nada se modificou, e o médico voltou para falar com ela. Iam dar mais uma hora a Peter para recuperar a consciência. Depois, fariam novo exame. Liz ia dizendo que sim com a cabeça. Peter não se movera desde o momento em que chegara ao hospital, mas tanto ela como o médico achavam que tinha melhor cor. Nesse momento, o médico reparou que Liz, ao contrário, continuava extremamente pálida, com muito mau aspecto, o que o fez falar com um pouco mais de suavidade, embora não muito. Perguntou apenas se chamara o pai do rapaz, e Liz abanou a cabeça, sem lhe dar qualquer explicação.

- Talvez fosse boa ideia - observou o médico cautelosamente, vendo qualquer coisa nos olhos dela que o fez hesitar. Talvez houvesse ali um mau divórcio ou qualquer situação desagradável. - Ele ainda não está fora de perigo.

- O pai dele morreu há oito meses, não tenho outra pessoa a quem chamar - explicou Liz finalmente.

Já telefonara para casa, dizendo que Peter estava vivo e que não voltaria a ligar até ter mais notícias sobre o estado dele. Falara com uma calma aparente, que evidentemente não sentia. A única coisa que podia fazer era rezar para que ele não fosse para junto do pai e para que o salvassem.

- Lamento - disse o médico, desaparecendo de novo. Embora preferisse morrer a confessá-lo, Liz sentia-se mal, com a sala a rodopiar lentamente à sua volta. Aquilo era demasiado para ela, demasiado terrível, demasiado aterrador. Não podia perdê-lo, não podia. Não ia deixar que se fosse embora. Baixou a cabeça o máximo que pôde e sentiu-se melhor. Continuou a falar com o filho em voz baixa. Então, como se tivesse ouvido as preces da mãe, ele moveu-se levemente e tentou virar a cabeça, mas haviam-na imobilizado. Os olhos mantinham-se fechados. Liz começou a falar mais alto, incitando-o a abri-los e a falar com ela, ou a piscá-los, se estivesse a ouvi-la, a apertar-lhe a mão, a mexer os dedos dos pés, qualquer coisa! Contudo, não houve sinal, até que soltou um leve gemido. No entanto, era impossível saber se o fizera inconscientemente ou em resposta ao que ela dizia. Uma enfermeira apareceu a correr para verificar os sinais vitais, olhou para os monitores e afastou-se a toda a pressa para ir chamar o médico. Liz não sabia se aquilo era bom ou mau sinal, mas continuou a falar com ele, a implorar-lhe que a ouvisse. Precisamente quando o médico apareceu, Peter voltou a gemer, mas dessa vez abriu os olhos, com a mãe de pé a olhar para ele, com um misto de esperança e terror.

- Mmmmmmmmaaaaeeeeee... - balbuciou Peter, num longo e doloroso som, mas ela percebeu, e Bill Webster também.

Tinha dito ”mãe”, embora com um esforço terrível, e as lágrimas corriam pelas faces de Liz, que se debruçou e repetiu que o adorava. Quando deitou uma olhadela ao médico, viu com espanto que ele estava a sorrir.

- Estamos a chegar lá, continue a falar com ele. Preciso de lhe fazer mais uns exames.

Peter fechara outra vez os olhos, mas abriu-os ao ouvir a mãe, soltando um terrível gemido e apertando-lhe a mão ao de leve. Estava a recuperar a consciência, avançando milímetro a milímetro.

-Aaaaiiiii... - fez ele, olhando para a mãe com a testa franzida. - Aaaiii... - repetiu, e Liz deu um passo para o médico.

- Ele tem dores - disse ela baixinho, e Bill Webster acenou com a cabeça.

- Claro que tem. Deve ter uma bela dor de cabeça declarou, injectando um medicamento na solução intravenosa de Peter, enquanto um técnico recolhia mais sangue. Uns minutos depois, apareceu o neurocirurgião e Webster disse-lhe: - Estamos a conseguir.

Disseram ambos a Liz que não iam operar já e, com sorte, talvez nem fosse preciso. Eram seis da tarde, e Liz não abandonara o filho por um instante sequer.

- Se quiser ir beber um café, nós tomamos conta dele - propôs o médico, mas ela recusou.

Não fazia tenções de abandonar o filho até ele estar melhor, por muito tempo que isso demorasse. Não comia desde aquela manhã, mas também não seria capaz de engolir.

Só daí a uma hora é que Peter emitiu outro som, mas dessa vez pronunciou ”mãe” com bastante mais clareza. E depois acrescentou ”dói”,numa voz que pouco mais era do que um grasnido, mas levantou a mão e apertou a da mãe. Tinha a força e a energia dum bebé, e os médicos não queriam dar-lhe qualquer coisa para as dores e arriscar-se a vê-lo de novo em coma. ”Casa”, disse ele finalmente.

- Queres ir para casa? - perguntou Bill Webster, e Peter moveu levemente a cabeça em sinal afirmativo. - Muito bem. Nós também queremos que vás, mas tens de falar mais comigo antes de te deixarmos sair daqui. Como te sentes, Peter? - insistiu, com muito mais delicadeza do que a que utilizara para com a mãe do seu doente, mas ela estava-lhe grata pelo que faziam por ele.

- Horrível, dói - respondeu Peter,

- Onde te dói mais?

- Cabeça.

- E o pescoço? E noutros sítios?

- Não... mãezinha...

- Estou aqui, queridinho. Eu não saio daqui.

- Desculpe... - disse Peter olhando-a. - Fui estúpido. Liz abanou a cabeça, naquele momento não tinha de que pedir desculpa.

- Sim, muito! - exclamou o médico, respondendo por ela. - Tens muita sorte em não ficares tetraplégico, com uma gracinha dessas!

Depois, pediu-lhe que mexesse as pernas e os braços, os pés e as mãos, o que Peter fez, embora mal conseguisse apertar os dedos do médico. Apesar disso, os dois clínicos ficaram satisfeitos com as melhoras e, às nove horas, disseram a Liz que iam levá-lo para os Cuidados Intensivos de Traumatologia a fim de continuarem a vigiá-lo.

- Acho que pode ir para casa descansar um pouco e voltar de manhã - sugeriu Bill Webster a Liz.

- Não posso dormir aqui?

- Se quiser realmente... Ele vai acabar por adormecer, talvez até com uma ajuda, se melhorar um pouco mais. E a senhora também precisa de descansar. Passou aqui um dia difícil. - Apesar de tudo, tinha pena dela, embora, como regra, tentasse não se envolver demasiado com os doentes, mas Liz parecia desfeita. - Tem mais filhos em casa? - perguntou, e ela acenou com a cabeça. - Talvez seja melhor ir para o pé deles. Devem estar preocupados. Peter vinha em muito mau estado. Eles viram o que aconteceu?

- Acho que sim. Vou telefonar e digo-lhes que o irmão está melhor - até àquele momento, não houvera melhoras a relatar.

- Porque não vai a casa um bocado? Eu chamo-a, se acontecer alguma coisa - alvitrou Webster, em tom firme.

- Fica aqui?

Não gostava dele, mas começava a confiar nas suas qualidades de médico.

- Toda a noite e até ao meio-dia de amanhã. Prometo. Sorriu-lhe e Liz ficou admirada ao constatar que até era bem-parecido quando não a tratava sem consideração ou olhava para os monitores com expressão carrancuda.

- Detesto a ideia de o deixar - disse ela francamente.

- Mas vai fazer-lhe bem. Daqui a pouco temos de o transferir e a senhora só atrapalha - dizia as coisas duma maneira que fez Lis sorrir.

Então disse ao filho que voltava daí a pouco e que ia um bocado para junto dos irmãos.

- Eu volto o mais depressa possível, prometo.

Peter olhou-a com um ligeiro sorriso nos lábios e disse:

- Desculpe, mãe. Fui mesmo estúpido.

- Tiveste sorte, Peter! E eu adoro-te. Por isso, põe-te bom depressa.

- Diga ao Jamie que estou bem - pediu ele com grande esforço, mas evidenciando nítidas melhoras. Era a frase mais comprida que proferia desde que acordara.

- Digo, sim. Até já.

- Estou bem.

Estava a tentar sossegá-la, o que era bom sinal. Via-se que sabia onde se encontrava e também que compreendia as consequências do que acontecera. Liz nem conseguia pensar no que teria sido ele não acordar do coma, ou pior, não ter sobrevivido. Era impossível pensar nisso.

- Quando voltar, espero ver-te a correr pelos corredores, está bem? - Ele riu-se, Liz deu-lhe um beijo e saiu, acompanhada pelo médico.

- Ele teve muita sorte - observou Webster, parecendo impressionado com ela, por não ter fraquejado um momento sequer. - De início, pensei que não passava sem a operação, mas recuperou mais depressa do que eu julguei. É novo, saudável e quem sabe se não o ajudou com a sua conversa?

- Fosse o que fosse, graças a Deus que acordou - disse Liz, sentindo as pernas fraquejarem.

- Vai ficar aqui umas duas semanas, calculo eu, por isso não se esgote duma vez. Volte de manhã e encontra-o muito melhor.

- Prefiro dormir aqui, mas vou a casa ver como estão os outros e regresso daqui a duas horas.

- Quantos filhos tem? - perguntou o médico, curioso.

Não sabia quem ela era, mas uma coisa lhe parecia evidente - era uma mãe maravilhosa e amava profundamente o filho.

- Cinco. Ele é o mais velho.

- Deixe o seu número de telefone na recepção. Eu ligo para si, se acontecer alguma coisa. E, se resolver ficar em casa, não se sinta culpada. Os seus outros filhos devem estar bastante perturbados, sobretudo se assistiram. O mais novo que idade tem?

- Dez. Dez, onze, treze e catorze.

- Tem com que se entreter.

- São bonzinhos - disse Liz.

Webster teve vontade de dizer que tinham uma boa mãe, mas calou-se. Em vez disso, voltou para junto de Peter, e ela foi-se embora.

Passava das nove quando chegou a casa e encontrou os filhos todos ainda a pé. As raparigas estavam sentadas à mesa da cozinha, a chorar, e Jamie ao colo de Carole, pálido e com um ar exausto. Pareciam órfãos duma zona de guerra e levantaram-se dum salto assim que ouviram a chave na porta, tentando ler o rosto da mãe, mas ela vinha a sorrir, apesar de cansada e despenteada.

- Ele vai ficar bom. Tem um forte traumatismo craniano e uma racha numa vértebra do pescoço, mas ficará bom. Teve muita sorte.

- Podemos ir vê-lo? - perguntaram todos em coro.

- Ainda não - respondeu a mãe, enquanto Carole punha diante dela um prato com o resto do rolo de carne do jantar, mas Liz não conseguia comer.

- Quando volta para casa? - perguntou Megan, ansiosa.

- Só daqui a umas duas semanas, talvez mais. Depende da recuperação.

Todos queriam saber tudo, mas Liz poupou-os aos horrores daquela tarde, só precisavam de saber que o irmão estava vivo. Ficaram a conversar durante uma hora e, quando se foram deitar, Carole disse-lhe como lamentava o sucedido e que se sentia totalmente responsável.

- Não seja tonta - exclamou Liz, demasiado cansada para falar com ela, quanto mais mitigar-lhe a culpa, embora sentisse que devia acalmá-la. - Você não pode controlar tudo, Carole. É evidente que disparataram, e ele teve imensa sorte em não ter morrido ou ficado paralisado.

- Ai, meu Deus! E vai mesmo ficar bom? - perguntou Carole, com as lágrimas a rolarem-lhe pela cara e assoando-se.

- Os médicos acham que sim. Só recuperou a consciência há cerca de duas horas, mas agora já fala. Durante um bocado, cheguei a pensar... - Não conseguia dizer as palavras, mas Carole acenou com os olhos cheios de lágrimas. Tinha pensado o mesmo e, como Liz demorara a telefonar para casa, começara a achar que ia acontecer o pior. E tinham estado lá perto. - Eu vou voltar para lá - continuou Liz. Meto umas coisas num saco e fico ao pé dele.

- Porque não dorme aqui? Está com um ar exausto. Era melhor descansar, e ir vê-lo amanhã.

- O médico disse a mesma coisa, mas quero ficar com ele esta noite. Mesmo com dezassete anos, o hospital deve ser assustador, e tem imensas dores por causa da concussão.

- Pobre pequeno! Que maneira tão triste de acabar o Verão! Acha que ele poderá ir para as aulas em Setembro?

- Ainda não se sabe.

As aulas eram o menos. Toda aquela tarde havia sido um autêntico pesadelo e Liz sentia-se como se um comboio rápido tivesse passado por cima dela.

Subiu a escada lentamente e foi dar um beijo de boas-noites a Jamie, mas ele já dormia profundamente. As filhas também se tinham deitado e a casa parecia estranhamente silenciosa sem Peter quando ela entrou no quarto e se sentou em cima da cama. Queria meter umas coisas num saco, mas de repente foi incapaz de se mexer. Só conseguia pensar no que quase acontecera e chorar de alívio. Já passava das onze quando finalmente arranjou o saco, e da meia-noite quando chegou ao hospital para ver o filho.

Telefonara à mãe, que ficara horrorizada com o acidente do neto.

- Meu Deus, e ele vai ficar bom? - perguntara Helen com a voz entrecortada.

Liz acalmou-a e prometeu que voltava a ligar para que o próprio Peter lhe falasse assim que se sentisse melhor.

Ele estava acordado quando Liz chegou e continuava a progredir satisfatoriamente. Falava quase normalmente quando ela entrou nos Cuidados Intensivos.

- Olá, mãe. Como está o Jamie? - perguntou, assim que a viu.

- Está óptimo, e todos queriam vir ver-te. Mandaram-te beijinhos, mas tive de lhes dizer que não podem, por enquanto.

A enfermeira tinha-lhe preparado uma cama num canto da sala de espera, e Liz estendeu-se com um cobertor, com a promessa de a acordarem se o filho precisasse dela ou piorasse, embora os médicos não previssem qualquer problema. Os sinais vitais eram bons e falava pelos cotovelos.

Estava prestes a adormecer quando viu o Dr. Webster entrar. Sentou-se de um salto, em pânico, com o coração acelerado. O médico trocara a roupa verde do bloco operatório por outra semelhante, mas cinzenta, nada atraente.

- Que foi que aconteceu?

- Nada. Ele está óptimo. Não queria assustá-la. Vim só ver se precisava de alguma coisa... alguma coisa para dormir... - pareceu hesitar, e Liz percebeu que ele se preocupava realmente, sentindo-se grata pelo que estava a fazer e já tinha feito pelo filho.

- Eu estou bem, obrigada - garantiu ela, descontraindo-se lentamente. - Agradeço-lhe muito tudo o que fez. Acho que consigo dormir - mas parecia cansadíssima, o que não o espantava, devido à intensa tarde.

- Estou contente por ele estar tão bem - disse o médico, com ar sincero.

- Também eu! Não tenho a certeza de que fosse capaz de aguentar, se alguma coisa corresse mal.

- O seu marido esteve doente muito tempo? - perguntou Webster, que, por qualquer motivo, parecia pensar que Jack tinha morrido de cancro.

Liz abanou a cabeça.

- Foi morto a tiro pelo marido duma cliente na manhã do dia de Natal - respondeu.

- Lamento. Lembro-me de ver isso nos noticiários acrescentou o médico, acenando, sem saber muito bem o que dizer e calculando o que ela passara.

Apagou a luz e saiu da sala. Era difícil não a admirar. Mantinha-se móvel, coerente, tomava conta dos filhos e trabalhava, depois daquilo. Foi ver Peter de novo.

Sorriu, ao olhá-lo, pensando que fora uma autêntica dádiva para a mãe nessa noite, e que ela a merecia. Certamente muito mais do que ele próprio conseguia imaginar, mas o que sabia era suficiente. O rapaz estava bem. Continua a sorrir, dirigindo-se ao seu gabinete. Gostava de dias como aquele, em que ganhava em vez de perder, e que compensavam o que fazia. Naquele caso, a sorte sorrira ao seu doente. Sentou-se e fechou os olhos por um instante. Depois, abriu-os e tratou da papelada que estava sobre a secretária. Ainda tinha uma longa noite pela frente, mas não se importava. Tudo correra bem e sentia-se satisfeito.

 

Capítulo 7

Liz dormiu um sono agitado durante algumas horas, na sala onde Bill Webster a deixara, e voltou para junto do filho antes de ele acordar. Quando despertou, queixou-se duma grande dor de cabeça, do incómodo causado pelo colarinho e também de dores na nuca.

O médico foi vê-lo às seis da manhã, como fizera durante a noite, de hora a hora. Pareceu-lhe estar tudo bem. Daí a pouco, apareceu o neurocirurgião, que também ficou satisfeito com o que encontrou e disse a Liz que o filho era um rapaz com muita sorte.

Liz ajudou as enfermeiras a darem-lhe banho, viu como o passavam para uma dieta líquida e, ao princípio da tarde, foi a casa. Os outros continuavam ansiosos e as raparigas tinham mil perguntas, mas assim que entrou deu pela falta do filho mais novo. Perguntou a Carole se sabia onde ele estava, e a governanta disse que não o via desde o pequeno-almoço. Acabou por encontrá-lo no quarto.

- Olá, querido, que estás a fazer aqui sozinho? - perguntou Liz, preocupada, mais ainda quando o garoto se voltou e ela lhe viu o rosto choroso e os olhos vermelhos.

Sentiu um baque no coração. Sentou-se no chão, ao lado dele, e pegou-lhe na mão. - O Peter manda-te saudades. Ele vai tentar vir para casa o mais depressa possível!

- Mas Jamie abanou a cabeça e duas lágrimas correram-lhe pela carita.

- Não vem, não. Ele desapareceu, como o paizinho. Eu sonhei com ele esta noite.

- Olha para mim - pediu Liz, voltando-lhe a cara e fitando directamente o filho nos olhos. - Eu não estou a mentir, Jamie. O Peter vai ficar bom. Magoou o pescoço e tem um colarinho para o aguentar e uma grande, grande dor de cabeça, mas prometo-te que volta para casa.

Fez-se um longo silêncio entre os dois, com a criança a olhar fixamente a mãe.

- Posso ir vê-lo?

Peter ainda apresentava um aspecto bastante assustador, com tubos por todo o lado e monitores a apitarem, mas Liz perguntou a si própria se não seria melhor para Jamie ver o irmão e ter a certeza de que estava vivo.

- Se queres mesmo, podes. Há muitas máquinas à volta dele a fazer uns barulhos esquisitos, e tem tubos nos braços.

- Que género de tubos? - perguntou Jamie, curioso e menos assustado.

- Uma espécie de palhinhas. Bom, mais ou menos...

- E eles deixam-me vê-lo?

Não era permitida a entrada de crianças nos Cuidados Intensivos, mas Liz decidiu pedir autorização ao Dr. Webster, explicando-lhe a situação. Ele dissera-lhe que estava novamente de serviço nessa noite e ela prometera a Peter dormir lá.

- Eu pergunto - prometeu Liz, puxando o filho para si com meiguice. - Adoro-te, Jamie. Vai correr tudo bem.

- Jura que ele não se vai embora, como o paizinho? - Juro - respondeu a mãe, tentando não chorar, pois aquilo ainda era muito difícil para todos, não apenas para ela. - Jura mesmo? - insistiu o garoto.

- Sim, Jamie. Assim que vir o médico, logo à noite, pergunto-lhe se te deixa ver o Peter. Olha, e que tal se telefonássemos para lá agora mesmo e tu falasses com ele?

- Com o Peter? Posso? - e os olhitos do garoto iluminaram-se instantaneamente.

- Claro - concordou Liz, percebendo que seria um alívio também para as filhas.

Foram para baixo, chamou-as e marcou o número do hospital, pedindo que ligassem para os Cuidados Intensivos de Traumatologia.

Depois, levaram um telefone a Peter, e ouviu-se a voz dele, rouca e fraca, mas relativamente normal, apesar de tudo, a prometer voltar para casa assim que pudesse e a dizer às irmãs que fossem corajosas. Depois, pediu a Jamie que tivesse muito cuidado na piscina e confessou que fora estúpido.

- Tenho saudades de vocês, malta - disse ele. - Eu volto o mais depressa possível! - Liz ”ouviu” lágrimas na voz do filho mais velho, enquanto escutava na extensão.

- A mãe diz que vai perguntar se eu posso ir aí ver-te - disse Jamie, todo orgulhoso, e Peter pareceu ficar contente.

Liz falou nesse momento e disse que ia voltar para o hospital daí a umas horas, se ele se sentisse bem, porque queria jantar com os irmãos.

- Claro que sim, mãe. Pode trazer-me alguma coisa para comer?

- Que queres?

Ainda estava a líquidos, e ouvira as enfermeiras falarem em dar-lhe gelatina nessa tarde, o que não lhe agradava por aí além.

- Um hambúrguer!

A mãe deu uma gargalhada.

- Deves sentir-te muito melhor! - Estava longe o dia anterior, com ela a pedir-lhe que abrisse os olhos e lhe respondesse. - Acho que é melhor esperares uns dias para isso, meu querido.

- Já calculava que ia ser essa a sua resposta - lamentou-se Peter.

- Até logo!

Foi para junto dos outros filhos e Jamie sentou-se-lhe ao colo, embora parecendo menos preocupado. Falar com o irmão tinha ajudado. Daí a pouco, foi brincar para o jardim e Liz aproveitou para telefonar para o escritório. Segundo Jean, nada de excitante havia a assinalar. Conseguira adiar uma ida ao tribunal e transferira várias consultas para a semana seguinte. No entanto, a conversa recordou a Liz que tudo lhe caía sobre os ombros. Não tinha quem a substituísse, tudo dependia dela.

Os filhos, o trabalho, a catástrofe que quase atingira Peter e destruíra toda a família. Era uma sobrecarga tremenda. Nessa noite, ao dirigir-se ao hospital para ficar junto de Peter, pensou no assunto.

O Dr. Webster já lá estava e sorriu quando a viu, apesar de parecer muito ocupado e se limitar a fazer-lhe um aceno com a mão, afastando-se apressadamente. Apareceu quase uma hora depois, para ver Peter e falar com ela.

- Então como está o nosso doente especial?

- Pediu-me um hambúrguer, o que me parece bom sinal, não acha? - informou-o Liz, afastando uma madeixa de cabelo ruivo dos olhos. Tinha estado a massagear suavemente os ombros do filho, que continuava a queixar-se da dor de cabeça. Mas as enfermeiras haviam-lhe dado um medicamento para as dores, o que o aliviara um pouco.

- Na verdade, é um óptimo sinal! Que tal amanhã, Peter?

- A sério? - perguntou o rapaz, encantado.

- Acho que sim. Vamos começar a fisioterapia para esse pescoço daqui a uns dias, e o melhor é ganhares forças, se o estômago não protestar.

Eram boas notícias para Peter, que detestava gelatina e se recusava a comê-la, bem como o caldo desenxabido.

O médico verificou algumas coisas na ficha de Peter, observou atentamente os monitores, tomou umas notas antes de abandonar os Cuidados Intensivos, e Liz foi atrás dele. Queria perguntar-lhe se podia trazer Jamie, no dia seguinte, para ver o irmão.

- Tenho um favor a pedir-lhe - começou ela cautelosamente. A roupa do médico nesse dia era azul e o cabelo parecia não ter visto pente. Estivera ocupado com as vítimas dum choque frontal de veículos, três crianças e cinco adultos. Duas das crianças haviam morrido nessa noite. Sentia-se deprimido e fora um alívio para ele ver os progressos de Peter. - Eu sei que não é permitida a entrada de crianças aqui... mas temos todos passado por momentos muito difíceis este ano, desde que o meu marido morreu, e o mais novo está muito perturbado por causa do irmão.

O médico ouviu-a, acenando com a cabeça e com uma expressão levemente impaciente. Na opinião dele, havia bons motivos para não se permitir a entrada de crianças nos Cuidados Intensivos. Principalmente, porque eram autênticas fábricas de germes, e os doentes não estavam em estado de lutar contra infecções. Mas Liz olhava para ele com uma expressão séria.

- Que idade tem ele?

- Dez - Liz hesitou, sem saber se devia contar-lhe tudo, mas depois decidiu confiar nele. Afinal, aquele homem salvara a vida de Peter. - Jamie tem dificuldades de aprendizagem. Foi prematuro e o oxigénio que lhe deram à nascença causou alguns estragos. Isto para ele é muito difícil. Viu o que aconteceu na piscina e acha que o irmão talvez não volte para casa, como o pai. Ajudava muito se ele pudesse vê-lo o mais depressa possível.

Fez-se um longo silêncio, com Bill Webster a olhar para ela. Depois, acenou com a cabeça. Aquela mulher tinha atravessado um período muito complicado, tal como os filhos, aliás.

- Que posso fazer para a ajudar? Tem um fardo pesado às costas, não é? - perguntou ele, num tom de voz que fez as lágrimas assomarem aos olhos de Liz.

Ela voltou-se de modo a compor-se antes de responder. Era tal e qual como depois da morte de Jack, quando as pessoas eram simpáticas: quebravam-lhe as defesas e faziam-na chorar.

- Deixe-o ver o irmão - pediu baixinho.

- Quando quiser. E os outros? Como se sentem?

Era evidente que a família tinha sido profundamente atingida pela morte do pai, e ele queria fazer alguma coisa para a ajudar. Começava a perceber o que Peter significava para os irmãos e para a mãe, e entendia melhor o que vira entre Liz e o filho, na véspera.

- Acho que as pequenas compreendem, embora também ficassem mais tranquilas se o vissem. Só não queria abusar. Para o Jamie é que é crucial.

- Traga-o amanhã logo de manhã.

- Obrigada - murmurou Liz, comovida pelas palavras dele e sem saber como agradecer-lhe.

Voltou para junto de Peter e ficou até que ele adormeceu. Então, deitou-se outra vez na sala de espera. Estava escuro, mas ainda não adormecera quando o médico abriu a porta e espreitou. Não conseguia ver se ela estava ou não a dormir e não queria incomodá-la. Aproximou-se silenciosamente e ficou a observá-la durante um bocado, antes de falar.

- Liz? - era a primeira vez que a tratava pelo nome próprio, e ela sentou-se, novamente preocupada com o filho.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou, pousando os pés no chão e desfazendo-se do cobertor.

- Não, não, está tudo bem. Desculpe, não queria assustá-la. Só vim ver se estava bem... Pensei que talvez quisesse uma chávena de chá ou outra coisa qualquer.  

No meio da noite, café não lhe parecia uma sugestão apropriada. Ele estava a trabalhar, mas ela devia querer dormir. - Acordei-a? perguntou ele no escuro, sentindo-se culpado, embora quisesse falar com ela.

- Não, estava acordada. Os meus hábitos de sono já não são o que eram... - Não precisou de explicar. - Talvez uma chávena de chá ajude, ou uma sopa, ou uma coisa assim.

Havia uma máquina no corredor, ao lado do gabinete dele. Já a usara para tirar sopa e chá, mas quando chegaram lá o médico ofereceu-lhe chá dum bule que tinha no gabinete.

Liz sentou-se, sentindo-se mal arranjada, mas isso não parecia incomodar o seu anfitrião, que tinha um aspecto ainda pior do que o dela, após uma noite de trabalho.

- Trabalha nalguma especialidade? - perguntou Webster, bebendo um golinho de café duma caneca.

- Questões familiares... divórcio...

- Tenho alguma experiência disso, mas já foi há muito tempo - comentou ele, acenando com a cabeça e com um sorrizinho gelado, como se a recordação não fosse muito agradável.

- É divorciado? - perguntou Liz, e ele tornou a acenar com a cabeça. - Tem filhos?

- Não, não houve tempo. Estava a fazer o internato quando casámos. Há quem consiga ter filhos nessas circunstâncias, mas, a mim, sempre me pareceu um disparate.

Não os quis antes de poder passar mais tempo com eles, percebe? Para aí aos oitenta!

Sorriu, ao dizer as últimas palavras. Tinha um bonito sorriso, e uma expressão bondosa no olhar, que ela não julgara possível quando o conhecera. Não gostara dele, ao princípio, por o achar brusco e desinteressado, mas acabara por compreender que o médico tinha coisas mais importantes em que pensar, tal como salvar vidas. E, claro, isto implicava obter informações dos parentes dos doentes o mais depressa possível. Ainda na véspera lhe parecera rude ao passo que, naquele momento, se mostrava atencioso.

- Divorciei-me há dez anos - disse ele, dando mais explicações do que ela esperava.

Mas aquilo acontecia constantemente, os clientes também lhe contavam sempre mais do que ela precisava de saber, o que por vezes ajudava. Quanto ao médico, percebeu que queria saber ainda mais.

- Sem vontade de voltar a casar? - perguntou, interessada.

- Muito pouca. E sem tempo. Acho que uma vez foi bastante para mim. O divórcio foi muito desagradável. A minha mulher teve um caso com o chefe dos médicos residentes, o que não me agradou, como deve calcular. Toda a gente cá dentro soube antes e teve pena de mim. Quanto a eles, acabaram por casar e têm três filhos. Ela abandonou a medicina, que encarava apenas como passatempo. Éramos muito diferentes. Para dizer o mínimo...

- O meu marido e eu trabalhámos juntos durante dezoito anos, e dávamo-nos muito bem. É agradável ter a mesma profissão - declarou Liz calmamente, tentando não pensar muito nele. Estava cansada e sabia que choraria com facilidade, se o médico lhe fizesse certas perguntas sobre Jack. - Para falar francamente, ele apreciava mais este tipo de trabalho do que eu. Sempre preferi casos filantrópicos e causas desesperadas, está a ver? A luta pelos direitos dos mais fracos. Mas Jack tinha uma boa percepção donde se ganha dinheiro, e com razão, já que tínhamos cinco filhos em quem pensar.

- E agora, continua a tratar de divórcios? Porquê? Pode fazer qualquer outra coisa que lhe interesse.

- Não exactamente. Continuo a ter cinco filhos, agora com os pés maiores e a precisarem de sapatos mais caros. E depois há a educação deles, qualquer dia estão quatro na faculdade. Jack tinha razão, os divórcios são lucrativos, embora me deprimam de vez em quando. Vejo as pessoas no seu pior, e as mais simpáticas transformam-se em monstros quando têm razões de queixa dos cônjuges. Mas acho que devo ao meu marido manter o escritório a funcionar. Ele trabalhou muito de início e não posso abandonar tudo agora.

O escritório, a casa, os filhos, as responsabilidades, tudo isso lhe pertencia, e o médico compreendeu.

Nunca pensa em tratar de outros casos, então?

Bill Webster estava intrigado com ela. Parecia-lhe uma mulher inteligente, simpática e muito bonita, com uma suavidade que o atraía e um amor pelo filho que o comovia.

- Às vezes penso, mas não com muita frequência. E você? - perguntou Liz, enquanto ele deitava mais café na caneca que tinha na mão e abanava a cabeça.

- Nunca. Gosto imenso do meu trabalho. Estou sempre sujeito a grande pressão e sou obrigado a tomar decisões rápidas e que têm de ser as certas. A parada é alta e não há lugar para erros, o que me obriga a fazer o melhor que sei a cada momento. E gosto.

- É uma espécie de escalada diária do Evereste, e às vezes deve ser penosa - concordou Liz, pensando no que acontecera na véspera com o filho e em como teria sido fácil perdê-lo. E nas duas crianças falecidas nessa noite.

- É penosa com demasiada frequência - concordou o médico. - E eu detesto perder.

- Também o Jack - observou Liz, sorrindo. - Eu também não gosto, mas no caso dele era uma afronta pessoal perder um único caso. Tinha de ganhar sempre e foi isso provavelmente que lhe custou a vida. Foi demasiado duro com um homem e ele endoideceu. Era uma coisa que eu receava... e avisei-o... mas ele não acreditou. Bom, ninguém podia imaginar que aquilo ia acontecer, foi uma autêntica loucura o que o marido da nossa cliente fez. Endoideceu, pura e simplesmente. Matou a mulher, depois o meu marido, e, por fim, suicidou-se no nosso escritório.

Só falar no assunto recordava-lhe a cena sangrenta, e teve de fechar os olhos um momento, com o médico a encará-la.

- Deve ter sido um pesadelo para si e para as crianças comentou ele, penalizado.

- E ainda continua a ser, às vezes. Vamos precisar de muito tempo para ultrapassar isto, mas já nos sentimos melhor. Estive casada dezanove anos, o que não se esquece em meia dúzia de meses. Tivemos um casamento muito feliz.

- Sorte a sua - disse o médico baixinho.

Nunca sentira algo semelhante por alguém, nem sequer pela mulher com quem casara ou pelas duas com quem vivera depois dela. E, nos anos seguintes, desistira de encontrar a mulher perfeita. Elas entravam e saíam da sua vida uma vez por outra, sem que ele se lhes prendesse. Parecia-lhe mais seguro assim e muito mais simples. Não sentia necessidade nem desejo doutra coisa.

- Tivemos muita sorte, sim - confirmou Liz, levantando-se e agradecendo-lhe o chá. - Acho melhor tentar dormir um bocado antes que o Peter acorde. Estava a pensar em ir para o escritório de manhã e voltar cá à tarde com o Jamie.

- Cá estarei - respondeu Webster, sorridente, lembrando-lhe que queria conhecer o garoto.

Liz voltou-se para ele, à porta do gabinete, com uma expressão triste. Tal como lhe dissera, o pesadelo de perder o marido ainda não terminara.

- Obrigada por me ter deixado falar. Às vezes ajuda.

- Quando quiser, Liz.

Mas não havia sido só por ela. Gostava de a ouvir, gostava do rapaz e lamentava que tivessem sofrido tanto.

Liz voltou para a cama, na sala de espera, onde ficou acordada durante muito tempo, a pensar no médico e na vida exigente e solitária que levava. Não lhe parecia muito boa, mas a dela também não era melhor, excepto no que respeitava ao trabalho e aos filhos. Acabou por adormecer e sonhou com o marido, que parecia querer dizer-lhe qualquer coisa. Apontava e queria avisá-la e, quando ela se voltou, viu Peter mergulhar duma prancha de saltos directamente para o cimento. Acordou com uma sensação de pânico misturada à tristeza já familiar. Havia sempre aquele terrível momento do acordar, em que se lembrava de que lhe acontecera uma coisa horrível, em que se recordava de que o marido morrera. Continuava a detestar as manhãs e era isso que tornava tão difícil adormecer, sabendo o que a esperava ao despertar.

Penteou-se e lavou a cara e os dentes, mas sentiu-se desmazelada. Peter estava acordado e a queixar-se de que tinha fome e de que ninguém lhe dava de comer. Por fim, trouxeram-lhe uma tigela de papa de aveia, que lhe provocou caretas.

- Isto é nojento! - exclamou ele, parecendo ter cinco anos em vez de dezassete.

- Sê bonzinho e come, que te faz bem - ralhou a mãe, mas ele fechou a boca, ela foi obrigada a pousar a colher e desatou a rir. - Que te apetece?

- Panquecas - respondeu, referindo-se às que a mãe costumava fazer até à manhã em que Jack morrera. Agora não era capaz, os filhos compreendiam e, apesar de todos as apreciarem, nunca lhe tinham pedido que voltasse a fazê-las. Mas, dessa vez, Peter esquecera-se. - E toucinho fumado - acrescentou. - Detesto papa de aveia.

- Eu sei. Talvez comecem a dar-te comida a sério hoje. Eu falo com o Dr. Webster.

- Acho que ele gosta de si - disse Peter, sorrindo para a mãe.

- Eu também gosto dele. Salvou-te a vida. Foi uma boa maneira de me impressionar favoravelmente!

- Não, acho que ele gosta mesmo de si. Reparei como olhava para si ontem.

- Acho que estás com alucinações, mas és um amorzinho, apesar de não comeres o pequeno-almoço.

- E se ele a convidar para sair? Aceita? - perguntou Peter com um sorriso de orelha a orelha.

- Não sejas ridículo. Ele é o teu médico e não um Romeu liceal. Acho que a pancada na cabeça te abalou o cérebro. - Estava divertida, mas não particularmente interessada no que o filho dizia. Bill Webster era um homem simpático e haviam mantido uma conversa agradável, mas nada daquilo tinha qualquer significado para ambos.

- Aceita, mãe? - insistiu Peter, mas Liz limitou-se a dar uma gargalhada, recusando-se a levar a questão a sério, o que ele dizia era absurdo.

- Não, não aceito. Não estou interessada em sair seja com quem for e ele não está interessado em sair comigo, por isso pára de armares em casamenteiro e concentra-te em ficares bom.

Ajudou as enfermeiras a lavá-lo e depois saiu para ir ao escritório. Jean resolvera o que pudera e, felizmente, não havia tanto trabalho como isso. Estava-se no meio de Agosto e a maioria das pessoas gozava ainda as férias de Verão.

À tarde, foi a casa para ver os filhos e jantar com eles. Falou com Peter várias vezes, e ficou contente por ele estar bem-disposto. Alguns amigos tinham ido visitá-lo, e até lhe levaram comida. Acabara a relação com Jessica em Junho e estava sem namorada para o mimar, mas a visita dos amigos agradara-lhe muito. Finalmente, Liz fez duas chamadas, uma para Victoria e outra para a mãe. Avisara ambas do acidente, logo que este ocorrera, e era agradável poder agora sossegá-las. Como sempre, a mãe fez previsões sombrias sobre consequências letais, e Victoria perguntou que podia fazer para ajudar. Nada, de momento, embora fosse bom ouvir a voz da amiga e trocar meia dúzia de palavras com ela. Trabalhou um bocado, tomou duche, mudou de roupa e disse a Jamie que calçasse os sapatos, porque ia levá-lo a ver o irmão depois do jantar. Tinham comido cedo, e Liz pedira às filhas que esperassem mais um dia, porque sabia que a conversa, o riso e as perguntas delas iam esgotá-lo, para já não falar nos bem-intencionados cuidados que iam querer dispensar-lhe. Contudo, a visita de Jamie era importante para ambos, talvez mesmo mais para o garoto que continuava a precisar de ver que Peter estava bem.

Foi calado até ao hospital, embora a mãe o achasse ligeiramente ansioso. Finalmente, quando ela parou o carro, perguntou:

- Vou ficar assustado, mãezinha? - Era uma pergunta directa, que a comoveu, e foi também directa com ele.

- Talvez um bocadinho. Os hospitais são sempre um pouco assustadores. Há muita gente, muitos aparelhos e sons estranhos. Mas o Peter não tem um aspecto assustador.

Puseram-lhe uma espécie de colarinho esquisito no pescoço e está numa grande cama que anda para cima e para baixo quando se carrega num botão - e tinha algumas nódoas negras, mas nada de importante.

- E ele vai voltar para casa depressa?

- Claro, querido, daqui a poucos dias. Antes de começarem as aulas.

- E isso é daqui a quanto tempo? - não era muito bom a fazer estes cálculos e sabia-o.

- Daqui a umas duas semanas - explicou a mãe. Talvez até antes disso. Há aqui um médico muito simpático que quer conhecer-te, Jamie. Chama-se Bill.

- E vai dar-me uma injecção? - perguntou o garoto, em pânico.

Para ele, aquilo não era uma aventura, mas sim uma provação que estava disposto a suportar, como seria capaz de atravessar um deserto para ver o irmão.

- Não, não vai - garantiu a mãe suavemente.

- Ainda bem. Detesto injecções. Ele deu uma ao Peter? - estava preocupado com o irmão.

- Muitas, mas o Peter é crescido e não se importa - só detestava gelatina e papa de aveia, mas os amigos tinham-lhe levado uma piza nessa tarde, segundo ele lhe dissera, todo satisfeito. - Vamos entrar? - Jamie acenou com a cabeça e deu-lhe a mão quando entraram no hospital.

Liz sentiu-lhe a palma húmida enquanto subiam no elevador e depois viu-o hesitar diante duma pessoa deitada numa maca, no corredor.

- Está morto? - perguntou ele num murmúrio horrorizado, chegando-se bem para a mãe, pois o homem tinha os olhos fechados e uma enfermeira ao lado.

- Está só a dormir, Jamie, está tudo bem. Não tenhas medo.

Conduziu-o rapidamente pelo corredor e viram Peter assim que entraram no serviço. Estava sentado na cama e deu um grito de alegria assim que avistou o irmão. Jamie, por sua vez, sorriu de orelha a orelha.

- Olá, calmeirão, anda cá dar-me um beijo! - gritou Peter. Jamie começou a correr, mas parou assim que viu a parafernália de aparelhos e monitores, com medo de se aproximar. - Anda! Só mais um passo e eu apanho-te - encorajou-o Peter, e o garoto avançou como quem passa por cima dum rio cheio de cobras, mas o irmão agarrou-o assim que pôde e puxou-o para si, com um abraço e um beijo. Que saudades que eu tinha! - e Liz viu a carita radiante de Jamie.

- Eu também tive saudades. Pensei que tinhas morrido, mas a mãe disse que não. Ao princípio, não acreditei nela. Por isso é que me trouxe cá - explicou o garoto com toda a simplicidade.

- Claro que não morri, mas foi uma grande burrice saltar para a piscina daquela maneira. É melhor nunca fazeres uma coisa tão estúpida como aquela, se não queres arranjar um sarilho comigo, pazinho! Como vão as coisas lá por casa?

- Chatas. As raparigas passam a vida a contar a toda a gente o que te aconteceu e fartaram-se de chorar quando te trouxeram na ambulância. Eu também - acrescentou Jamie, olhando para o irmão com ar aliviado. - Posso pôr a tua cama a andar para cima e para baixo? - perguntou, olhando em volta. Havia mais doentes no serviço, mas, com as cortinas corridas à sua volta, não os via.

- Claro.

Peter mostrou-lhe onde estavam os botões e como funcionavam, mas depois encolheu-se quando o irmão fez subir e descer a parte superior da cama, deixando-o finalmente na posição de sentado.

- Doeu-te? - perguntou o garoto, fascinado.

- Um bocadinho - admitiu Peter.

- Queres antes ficar deitado?

- Está bem, mas tens de parar quando eu disser.

Peter estava sempre disposto a satisfazer o irmão e quando Jamie, muito concentrado, acabara de colocar a cama de novo a direito, o Dr. Webster entrou, ficando a observar a cena com interesse. Deitou uma olhadela a Liz e depois voltou-se para os dois irmãos. Peter disse que a cama estava finalmente bem, e Jamie achou que tinha feito um bom trabalho, tanto que quis repetir as manobras, mas o irmão pediu-lhe que não, porque ainda tinha mais dores do que estava pronto a admitir.

- Olá, doutor! - exclamou Peter, e Jamie deitou um olhar desconfiado ao médico.

- Vai-se deitar? - perguntou delicadamente, olhando para a roupa verde.

- Não, eu uso isto para trabalhar. Assim, posso ir dormir a qualquer hora. - Estava a brincar com ele, mas Jamie encarou-o com os grandes olhos castanhos muito sérios.

Apesar do cabelo escuro do pequeno e da cabeleira ruiva do mais velho, a semelhança entre eles era flagrante. - Apresenta-me ao teu irmão - pediu o médico, e Peter assim fez.

- Não quero uma injecção - declarou Jamie, para que não houvesse qualquer mal-entendido logo de início.

- Nem eu - declarou o médico, mantendo uma distância respeitosa, para não o assustar, pois sabia, pela mãe, das suas limitações.

- Prometo que não te dou uma, se tu também não me deres nenhuma.

- Prometo - respondeu solenemente Jamie, mas depois deu uma gargalhada. Então, aparentemente sem propósito, resolveu dar uma informação a seu respeito, como se pensasse que isso fazia parte da conversa: - Este ano ganhei três medalhas nos Jogos Olímpicos Especiais. Foi a mãe que me treinou.

- Em que modalidades? - perguntou Bill Webster, parecendo profundamente interessado.

- Salto em comprimento, cem metros e corrida de sacos - enunciou o garoto com orgulho, e Liz não pôde deixar de sorrir.

- A tua mãe deve ser uma treinadora muito boa, para ganhares isso tudo.

- Pois é. Com o meu pai só fiquei em quarto lugar. Ele gritava muito mais do que a mãe, mas ela obrigou-me a trabalhar mais e os treinos foram mais compridos.

- A persistência é que ganha prémios - comentou o médico, mais para a mãe do que para o filho, recebendo em troca um sorriso ligeiramente embaraçado perante os elogios de Jamie. - Deve ter sido fantástico.

- Pois foi - confirmou o garoto, sorridente. Depois, voltou-se de novo para o irmão e perguntou se podia pôr a cama a andar para cima e para baixo. Embora a ideia não lhe agradasse por aí além, Peter disse que sim, e Webster e a mãe afastaram-se para conversar.

- Que tal está ele? - perguntou Liz, pois o filho ainda lhe parecia muito cansado e percebia que tinha dores na cabeça e no pescoço.

- Está bem - garantiu o médico. - É o meu doente especial. E o seu mais novo é um miúdo fantástico. Deve ter muito orgulho nele, acrescentou, olhando para o garoto pela divisória de vidro do serviço.

- E tenho. Obrigada por me deixar trazê-lo. Ele estava em pânico por causa do irmão e isto tranquilizou-o. Há dois dias que não o via tão contente.

- Pode vir a qualquer hora, desde que não me dê uma injecção - declarou Webster, sorridente, e ela soltou uma gargalhada. Entraram de novo no serviço, e Liz salvou Peter do irmão, que pintava a manta com o mecanismo da cama.

- Acho que são horas de irmos para casa. O Peter precisa de descansar, e tu também. O senhor doutor diz que podes voltar - disse ela solenemente a Jamie.

- Para a próxima, traz uma pizza! - pediu Peter, dando um beijo ao irmão.

Jamie começou a afastar-se, mas voltou-se para trás, ao chegar à porta e acenou, antes de se encaminhar para o elevador com a mãe. Estavam à espera, quando o médico se aproximou e lhe agradeceu a visita.

- Eu gostei, foi fixe. Pensava que ia ter medo - confessou Jamie honestamente, o que era parte do seu encanto, dizia sempre o que tinha na mente. - A ambulância fez imenso barulho quando foi buscar o Peter - informou ele, e o médico anuiu com um aceno de cabeça.

- As ambulâncias são assim, mas aqui está tudo geralmente bastante calmo. Vem visitar-nos outra vez - sorriu-lhe, e Jamie fez que sim.

- As minhas irmãs vêm amanhã. Elas falam muito e, se calhar, vão cansar o Peter.

O médico deu uma gargalhada, mas não se atreveu a comentar que as mulheres às vezes eram assim. Não conhecia Liz o suficiente para isso e ainda não estava seguro do seu sentido de humor, mas o comentário do garoto divertiu-o.

- Eu tomo conta para elas não o cansarem. Obrigado por me teres avisado.

O elevador chegou nesse momento e Jamie acenou-lhe antes de as portas se fecharem. O médico tinha perguntado a Liz se voltava nessa noite, mas ela decidira dormir em casa com os filhos e regressar de manhã para ver Peter. E agradecera-lhe ter permitido a visita de Jamie, que estava radiante.

- Gosto muito da cama do Peter e do doutor. É simpático e também detesta injecções. E acho que o meu irmão também gosta dele - declarou a caminho de casa.

- Gostamos todos - concordou a mãe. - Ele salvou a vida de Peter.

- Então, gosto muito dele.

Quando chegaram, fez um relato completo às irmãs, com os pormenores da cama que andava para cima e para baixo e do médico que detestava injecções e salvara a vida de Peter. Tinha sido uma grande aventura para ele. Dormiu na cama da mãe nessa noite, mas sossegado e sem pesadelos. Ao contrário dela, que sonhou incessantemente com o marido, com o acidente do filho, com o médico e com Jamie e as filhas. Foi uma noite cheia de ansiedades, acidentes e pessoas e, quando acordou, sentia-se como se tivesse entrado num rodeo.

- Está cansada, mãezinha? - perguntou Jamie, acordando-a às seis da manhã.

- Muito - gemeu Liz.

Os últimos dias tinham deixado marcas. O terror de quase perder o filho dera cabo dela. Era como uma repetição do que passara com a morte do marido, mas, pelo menos, daquela vez o final fora feliz.

Fez o pequeno-almoço para os filhos, saiu para o escritório, esteve no tribunal e voltou ao hospital, onde combinara encontrar-se com Carole e as filhas. Tinham deixado Jamie com uma vizinha, porque não queria que ele exagerasse. Além disso, era a vez das garotas. Riram, falaram e choraram, verificaram tudo, deram notícias ao irmão, contaram-lhe pormenores dos seus romances e disseram-lhe que estavam muito contentes por o ver melhor. Mas Jamie tivera razão, percebeu a mãe. Peter ficou exausto quando elas se foram embora, uma hora depois, e precisou duma injecção para as dores. Depois de ele ter adormecido finalmente, Liz e o médico conversaram na sala de espera.

- O Jamie tinha razão. As raparigas deram cabo dele lamentou ela.

- Pois é, as raparigas são assim - concordou ele, a sorrir. - Mas acho que lhe fez bem um contactozinho com a vida real para contrabalançar o efeito dos Cuidados Intensivos. Estava a precisar.

Depois, conversaram sobre a provável data da ida de Peter para casa, e o médico falou em duas semanas ou até um pouco menos. Em qualquer dos casos, só quando o inchaço no cérebro desaparecesse por completo, para não haver complicações, o que pareceu sensato a Liz. Então, lembrou-se duma coisa que queria discutir com os filhos: a festa anual do Dia do Trabalho. Não estavam a planear fazê-la naquele ano, mas, depois do que acontecera e da tragédia a que tinham sido poupados, achava que deviam mudar de opinião. E o lago Tahoe estava totalmente fora de causa, já que Peter não viajaria tão cedo.

- Ele poderá ir às aulas, assim que começarem? - perguntou Liz, com ar preocupado.

- Praticamente, talvez com uma semana de atraso, o que não é importante. Mas não pode conduzir nem andar muito de carro, aliás.

Liz tinha planeado uma visita a várias universidades com ele em Setembro, mas isso, portanto, teria de esperar.

Falaram sobre pormenores da recuperação de Peter, e o médico convidou-a para tomar um café no seu gabinete, onde ela se deixou cair numa cadeira, exausta.

- Dia comprido, não foi? - perguntou ele, condoído. Via que ela tinha enormes responsabilidades e sentia-se impressionado com o modo como lidava com elas, como se mostrava calma e era carinhosa com os filhos.

- Não foi maior do que o seu, com certeza - respondeu ela, compreensiva.

- Mas eu não tenho cinco filhos, um dos quais no hospital! Nem uma criança com dificuldades de aprendizagem, que obviamente necessita de mais cuidados do que as outras, para não falar em três filhas adolescentes a exigirem constantemente a sua atenção. Quando penso nisso, não percebo como consegue.

- Às vezes nem eu. Faz-se o que é preciso.

- E você? Quem trata de você, Liz? - perguntou ele baixinho, olhando para ela por cima da caneca de café que segurava na mão.

- Eu e umas vezes o Peter, além da minha secretária, a minha governanta, os meus amigos. Tenho muita sorte.

Era uma maneira estranha de encarar as coisas, da perspectiva dele. Depois de perder o marido, com quem contara durante vinte anos, tentava resolver tudo sozinha.

Webster admirava-a imenso pelo que ela fazia, ainda por cima bem.

- Quando olho para si, sinto-me culpado por assumir tão poucas responsabilidades. Nem sequer sou dono de um peixinho encarnado. Só eu. Acho que sou um bocado egoísta.

Comparado com aquela mulher, o médico admitia que tinha realmente muito poucos problemas.

- Não, é apenas diferente, e tem necessidades diferentes, Bill. Você conhece-as e age de acordo com elas.

O médico tinha idade suficiente para saber o que estava a fazer. Uns dias antes, dissera-lhe que já completara quarenta e cinco anos, e era evidente que levava o tipo de vida que lhe convinha. Como ela, que se sentiria perdida sem os filhos.

- Eu compreendo o que a motiva: a sua família, que é fantástica, o que não acontece por acaso. Você esforça-se bastante, e isso dá resultado.

Estava a lembrar-se do que Jamie dissera sobre o treino para os Jogos Olímpicos Especiais, e não entendia como ela arranjava tempo para tudo.

- Eles merecem e fazem-me feliz. Por falar nisso, o melhor é ir para casa, antes que me repudiem - comentou Liz, pousando a caneca e levantando-se. - Até amanhã.

- Amanhã não. Vou estar fora uns dias, mas o Peter fica em boas mãos.

Deu-lhe o nome do colega que ia substitui-lo, e disse-lhe quando estaria de volta, ia até Mendocino.

- Divirta-se, bem merece - disse ela sorrindo. Nessa noite, quando chegou a casa, falou aos filhos na festa do Dia do Trabalho, e ficou admirada com a diferença de ideias que encontrou. Megan e Jamie acharam que era uma grande ideia, mas Rachel e Annie encararam a hipótese como uma traição ao pai. Fora a festa preferida dele, para além do dia 4 de Julho.

- Quem trata do grelhador? - perguntou Rachel, com um queixume na voz.

- Nós - respondeu a mãe calmamente, e o Peter pode ajudar. Eu acho que devemos celebrar o facto de ele estar bem e connosco.

Postas as coisas daquela maneira, acabaram por aceitar. No fim da semana, já estavam mesmo excitadíssimas. Iam convidar amigos, e a mãe também. Fizeram uma lista com cerca de sessenta nomes, e Liz começou a ficar igualmente excitada. Era a primeira vez que recebia desde a morte do marido, mas já tinham passado oito meses e parecia-lhe aceitável. Quanto a Peter, ficou encantado com a ideia.

Quando pôde finalmente deixar o hospital, quatro dias antes da festa do Dia do Trabalho, mais de cinquenta pessoas já tinham aceitado o convite. Liz conferiu o tratamento do filho com Bill Webster, e lembrou-se de o convidar também.

- É uma espécie de celebração por causa do Peter explicou. - Era óptimo que pudesse ir. É uma coisa muito informal, calças de ganga e camisola.

- Posso levar a roupa do hospital? Não me parece que tenha outra coisa. Nunca vou a festas - mas parecia satisfeito e afirmou que, se não tivesse uma urgência, lá estaria.

- Gostávamos muito que fosse.

Tinham tanto que lhe agradecer, e era uma maneira simpática de o fazer. Já lhe enviara uma caixa de garrafas de vinho, que ele aceitara satisfeito, mas, de repente, parecia-lhe bem que estivesse presente na celebração do regresso a casa de Peter. Sem ele, talvez o filho nunca voltasse, o que era um pensamento intolerável.

O principal conselho de Bill Webster foi que não deixasse Peter exagerar. Era muito novo e ia certamente querer fazer tudo ao mesmo tempo assim que se visse em casa.

Contudo, achava que o rapaz ia ficar bom, sem sequelas do acidente, assim que terminasse a fisioterapia, o que devia acontecer por volta do Natal.

- Mantenha as rédeas curtas durante uns tempos - recomendou, e ela acenou com a cabeça.

- Esteja descansado, nós cá nos arranjaremos.

Liz sabia que ele não poderia conduzir durante um mês ou dois, até tirar o colarinho, e que isso ia ser difícil para os dois, porque teria de fazer de motorista, apesar da falta de tempo, pois a maior parte do dia de Carole estava reservada a Jamie e às pequenas.

- Vá dizendo qualquer coisa e, já sabe, telefone imediatamente, se surgir algum problema.

Na manhã em que Peter saiu do hospital, o médico veio despedir-se e apertou a mão de Liz com uma expressão calorosa.

Era evidente que ia sentir-lhe a falta. Liz passara algum tempo no gabinete dele, a tomar café e a conversar, e sentiam-se bem um com o outro. Ela recordou-lhe a festa e ele respondeu que faria o possível por ir.

- Ele vai, mãe - garantiu Peter, quando se afastaram no carro.

- Não, se tiver de trabalhar - respondeu ela num tom de voz normal, mas pensando que tinha pena se nunca mais o visse.

Depois do que haviam passado, considerava-o mais um amigo, a quem estaria sempre agradecida.

- Ele vai - repetiu Peter, com ar entendido. - Já lhe disse que gosta de si.

- Não te armes em chico-esperto! - exclamou Liz, a rir e sem ligar muito ao que o filho dizia, era apenas o médico dele.

- Aposto consigo dez dólares em como ele aparece! insistiu Peter, reajustando o colarinho.

- Não tens dinheiro - comentou a mãe, conduzindo suavemente.

E, quer Bill Webster aparecesse ou não na festa do Dia do Trabalho, isso não tinha qualquer importância. Pelo menos, estava convencida de que não, embora Peter, sorridente, pensasse o contrário.

 

Capítulo 8

A festa do Dia do Trabalho foi um grande êxito. Todos os amigos das crianças apareceram, bem como a maior parte dos pais e algumas pessoas que Liz não via desde a morte de Jack, como Victoria, que trouxe o marido e os trigémeos. Liz e Peter trataram dos grelhados, e ele trabalhou bem, apesar do colarinho. Annie, Rachel e Megan circulavam por entre os convidados e toda a gente parecia divertida. Bill Webster chegou com meia hora de atraso e ficou semiperdido até ver Jamie.

- Olá, lembras-te de mim? O médico estava de calças de ganga, camisa aos quadrados, de mangas compridas, e o cabelo penteado. Jamie sorriu, assim que o viu.

- Lembro, pois. Também não gosta de injecções - e dirigiu-lhe um enorme sorriso.

- Exactamente. Que tal está o Peter?

- Bem, excepto quando grita comigo para não saltar para cima dele.

- Olha que tem razão. Não quanto aos gritos, mas tens de ter cuidado porque o pescoço dele ainda está magoado.

- Eu sei. Por isso é que anda com aquele colar tão grande.

- É, acho que podes chamar-lhe isso. Onde está a tua mãe? - perguntou o médico, risonho.

- Daquele lado - respondeu Jamie, apontando para o grelhador, e Webster acenou com a cabeça, vendo-a fazer hambúrgueres. Tinha um grande avental por cima das calças de ganga e o cabelo ruivo sobressaía na multidão, tal como o de Peter. Apesar de não parar de trabalhar, sorria e estava muito bonita. O cabelo crescera-lhe durante o Verão e trazia-o caído sobre os ombros. Como se pressentisse a chegada do médico, ergueu os olhos, acenou-lhe com uma espátula, e ele aproximou-se lentamente, seguido por Jamie. Quando chegou ao grelhador, descobriu Peter, com o que o garoto chamava o seu ”colar”.

- Que tal vai isso? - perguntou ele ao seu doente.

Peter sorriu e segredou a Liz, estendendo a mão:

- Deve-me dez dólares, mãe!

- Ele veio ver-te a ti - replicou ela no mesmo tom. Depois, voltou-se para cumprimentar o médico e oferecer-lhe um copo de vinho, mas Bill Webster preferiu uma Coca-Cola, porque estava de prevenção. O ambiente em volta deles era descontraído e festivo.

- Está com um ar muito profissional aí no grelhador comentou o médico, bebericando a Coca-Cola.

- Aprendi com um especialista.

- O Peter parece muito bem - disse ele, deitando uma olhadela para o seu doente, que ria com os amigos e fazia saltar os hambúrgueres, apesar do incómodo colarinho.

- Quer ir para as aulas já para a semana - informou Liz, com uma expressão, por instantes, preocupada.

- Se lhe parece que está capaz, deixe-o ir. Confio na sua opinião.

- Obrigada.

Entregou os grelhados a Carole, e um dos vizinhos prontificou-se a ajudar, de maneira que pôde afastar-se dali com Bill Webster durante um bocado. Instalaram-se em duas cadeiras e ela abriu também uma Coca-Cola. Não era grande bebedora.

- Como vão as coisas no hospital? - quis ela saber. Parecia estranho tê-lo ali, longe das preocupações que haviam compartilhado em relação a Peter. Assim, eram duas pessoas vulgares, e Liz sentiu-se subitamente pouco à vontade.

- As coisas no hospital vão demasiado movimentadas. E por certo vão piorar, em vez de melhorar, neste fim-de-semana. Sempre que há uma ponte, a mortandade aumenta.

Desastres de carro, ferimentos de bala, tentativas de suicídio... É espantoso o que as pessoas arranjam quando não têm de trabalhar durante uns dias, sobretudo se se apanham com um volante nas mãos.

- Foi simpático ter conseguido uma folgazita para aparecer.

- Não estou de folga, mas de prevenção. Podem chamar-me a qualquer momento, mas achei que podiam passar sem mim um bocadito. O meu chefe dos residentes ficou a tomar conta daquilo. É competente, e só me chama se for mesmo preciso. E você, Liz? Como têm sido estes dias para si? Não podem ser fáceis.

- Hoje foi melhor do que eu esperava. A primeira vez que tenho de passar por uma data com algum significado para nós é sempre complicado. O Dia de São Valentim, a Páscoa, os aniversários dos pequenos, o 4 de Julho... mas hoje foi diferente, e pensei que ia ser divertido para eles.

Toda a gente parecia estar a gostar, principalmente os filhos, e era a primeira vez que recebiam desde o Natal.

- Eu costumava adorar os feriados, quando era miúdo, mas agora não passam de dias de trabalho.

A vida dele devia ser muito solitária, mas parecia agradar-lhe. Liz tinha reparado que estivera quase sempre no hospital enquanto Peter ficara internado, o que ainda tornava mais simpático o facto de ele ter aparecido na festa.

- E você, que faz com o seu tempo livre, quando não está a trabalhar ou a correr atrás dos filhos? - perguntou Webster, fazendo-a soltar uma gargalhada.

- Que mais há? Você quer dizer que existe qualquer coisa para além do trabalho e dos miúdos? Olhe que acho que não me lembro disso.

- Talvez precise de que alguém lho lembre - respondeu ele em tom casual. - Quando foi a última vez que foi ao cinema?

- Mmm, deixe-me ver... - Pensou no assunto e abanou a cabeça, custava a acreditar que tivesse passado tanto tempo. Deixara e fora buscar os filhos algumas vezes à porta do cinema, em Mill Valley, mas não via um filme havia meses. - Acho que a última vez foi no Dia de Acção de Graças - com o marido, claro. Tinham ido depois do jantar, como faziam habitualmente. Era uma tradição.

- Talvez pudéssemos ir ao cinema um dia destes - sugeriu Webster, mas logo se ouviu um toquezinho.

Baixou os olhos para o cinto onde prendera o pequeno aparelho, viu que era uma emergência e tirou o telefone do bolso para ligar para o hospital. Ouviu cuidadosamente, disse o que deviam fazer, e voltou-se para Liz com uma expressão desapontada.

- Têm lá um bico-de-obra, Liz. Dois garotos numa colisão frontal. É melhor eu voltar. Esperava comer um hambúrguer e conversar mais um bocado, mas tem de ficar para outra vez.

- Porque não leva um consigo? - perguntou Liz, acompanhando-o até ao portão das traseiras, junto do qual estava instalado o grelhador.

Pediu ao filho que embrulhasse um em papel de alumínio, entregou-o ao médico e levou-o até ao carro, um Mercedes com dez anos. Ele tinha certo estilo, embora fosse difícil dar por isso no hospital, vendo-o sempre com a roupa do bloco operatório e tamancos, mas ali, com calças de ganga impecáveis, sapatos bem engraxados e o cabelo penteado, parecia totalmente diferente.

- Obrigado pelo hambúrguer - agradeceu Bill, com um sorriso. - Eu telefono-lhe para o tal filme. Talvez para a semana?

- Gostava muito - aceitou Liz, sentindo-se de novo acanhada e, de repente, muito nova, ao receber um convite daquele género. Mas, que diabo, era agradável, Bill era simpático e respeitável e tinha razão, ela precisava de sair. Victoria comentou a breve aparição do médico, quando Liz parou para falar com ela depois de ele se ter ido embora.

- É giro e gosta de ti - comentou ela, com um sorriso malicioso.

- Isso é o que o Peter diz - replicou Liz, também sorridente. - Ele é fantástico no trabalho.

- Convidou-te para sair? - perguntou a amiga, esperançada.

- Não sejas tola, Vic, somos apenas amigos.

Mas a verdade era que tinha, embora Liz percebesse com surpresa que não queria que Victoria soubesse. Não tinha qualquer significado, era só um filme, e talvez até nunca viesse a acontecer. Disse para consigo que não valia a pena comentar com a amiga, e afastou-se para conversar com os outros convidados.

A reunião prolongou-se por bastante tempo e já passava das onze quando os últimos convidados se foram embora. A comida tinha sido boa, o vinho abundante e as pessoas agradáveis, alegres. Tinham-se divertido e estava contente com a festa. Os filhos ajudaram-na a levar a loiça para dentro e estava, com Carole, a metê-la na máquina quando o telefone tocou. Olhou para o relógio, sem compreender quem poderia ligar lá para casa depois da meia-noite.

Atendeu, pensando que talvez alguém se tivesse esquecido de alguma coisa, e ficou admirada ao ouvir uma voz conhecida. Era Bill Webster, para lhe agradecer.

- Pensei que ainda devia estar a pé. Já se foram todos embora?

- Há uns minutos. Calculou bem. E a emergência, como correu?

O médico suspirou antes de responder, não gostava de falar no assunto, umas situações eram melhores do que as outras...

- Perdemos um dos garotos, mas o outro está a recuperar. Acontece, sabe? - mas parecia sofrer directamente, de cada vez que não salvava um doente.

- Não sei como consegue - disse ela baixinho.

- É o meu trabalho - e era evidente que gostava muito dele, particularmente quando obtinha resultados positivos, como acontecia na maioria dos casos. - Então quando vamos ao cinema? Que tal amanhã? - perguntou sem lhe dar tempo a reconsiderar ou a responder. - Não trabalho à noite, nem sequer estou de prevenção, o que é uma raridade, acredite. O melhor é aproveitarmos enquanto podemos. Que tal pizza e cinema?

- Foi a melhor oferta que tive em toda a noite... em todo o ano - respondeu Liz, sorridente. - Parece-me boa ideia.

- A mim também. Vou buscá-la às sete.

- Até amanhã, então, Bill, e obrigada. Desejo-lhe uma noite calma, aí no hospital.

- Para si também - respondeu ele suavemente, lembrando-se da dificuldade que ela tinha em adormecer.

Liz continuava a sorrir enquanto pousava o auscultador. Nesse momento, Peter entrou na cozinha, olhou-a e levantou uma sobrancelha.

- Quem era?

- Ninguém importante - respondeu Liz vagamente, mas o filho fitava-a com uma expressão concentrada. Não acreditou e depois, de repente, percebeu e começou a meter-se com ela:

- Era o Bill Webster, não era, mãe? Diga a verdade. Era, não era?

- Talvez - respondeu a mãe, enfiada.

- Eu não lhe disse que ele gostava de si? Fantástico!

- O que é fantástico? - perguntou Megan, entrando na cozinha. Carole acabara de meter a loiça na máquina e os mais novos tinham ido para a cama poucos minutos depois de os últimos convidados saírem.

- O meu médico gosta da mãe - declarou Peter, com um prazer evidente.

- Qual médico? - perguntou Megan, admirada.

- O que me salvou a vida, palerma. Qual havia de ser?

- Que pretendes insinuar com ”ele gosta da mãe”? Que quer isso dizer?

- Que lhe telefonou agora mesmo.

- E convidou-a para sair? - parecia horrorizada, olhando alternadamente o irmão e a mãe.

- Não sei. É verdade, mãe? - perguntou imediatamente o rapaz, divertidíssimo, ao contrário da irmã.

- Mais ou menos - admitiu Liz, o que fez a filha ficar indignada. - Vamos ao cinema amanhã.

Não valia a pena esconder aquilo dos filhos, porque vê-la-iam chegar, além de que nada havia a esconder, era um homem simpático e médico do filho. Eram apenas dois amigos e tinha a certeza de que Bill não alimentava segundas intenções ao convidá-la para comer uma piza e ir ao cinema com ele.

- Não é um acontecimento especial, e pensei que podia ser divertido - continuou, desculpando-se, perante o olhar indignado de Megan.

- Isso é repugnante. Então e o paizinho?

- Que tem o paizinho a ver com o caso? Ele infelizmente morreu e a mãe não, e não pode ficar aqui metida a tratar de nós para sempre.

- Porque não? - Megan não entendia bem o que ele dizia, e o que realmente lhe parecia não lhe agradava, na opinião dela, Liz não devia sair com homens. - A mãe não precisa, tem-nos a nós! - declarou para ambos.

- A questão é exactamente essa, ela necessita de mais do que isso. Afinal, tinha o paizinho - replicou Peter com firmeza.

- Isso é diferente - continuou Megan teimosamente.

- Não, não é - insistiu Peter, com a mãe a ficar de fora, mas fascinada com aquele conflito de opiniões.

Megan intransigente em que ela não devia sair com homens e Peter claramente afirmando que precisava de mais na sua vida do que trabalho e filhos, precisamente o motivo do convite de Bill Webster, as palavras dele tinham sido quase iguais às do filho. Contudo, era óbvio que Megan se sentia ameaçada pela ideia de outro homem na vida da mãe.

- Que acha que o paizinho diria de a mãe sair? - perguntou Megan directamente a Liz.

- Acho que concordaria que é mais do que tempo meteu-se Peter. - Já passaram quase nove meses, e ela tem todo o direito. Bolas, quando a mãe do Andy Martin morreu, no ano passado, o pai voltou a casar passados só cinco meses! E a mãe nem sequer olhou para outro homem desde que o pai morreu - continuou ele, mas a irmã parecia ficar ainda mais preocupada.

- Vai casar com o médico?

- Não, Megan, não vou casar com quem quer que seja. Vou comer uma pizza e ver um filme - respondeu Liz calmamente. - Tudo perfeitamente inofensivo.

Contudo, era interessante ver a reacção dos filhos, tanto a favor como contra, o que a fez pensar no assunto enquanto subia lentamente a escada. Estava errado? Era loucura ou impróprio? Era demasiado cedo para começar a ”sair”? Mas ela não ia ”sair” com Bill Webster, iam só ao cinema e comer uma piza, e era evidente que não queria casar fosse com quem fosse, como Megan parecia pensar. Não conseguia imaginar-se a viver com outro homem depois de Jack. Ele fora o marido perfeito para ela, e qualquer outra pessoa ficaria aquém, tinha a certeza, Bill era apenas um amigo. Mas Megan ainda estava em pé de guerra quando o médico chegou às sete em ponto da tarde seguinte. Abriu a porta, olhou-o duramente e retirou-se de imediato para o seu quarto. Não lhe disse uma palavra nem se apresentou, e Liz pediu desculpa pela indelicadeza, mas Jamie compensou a situação aparecendo com um sorriso rasgado e cumprimentando-o. Estava contente por vê-lo, e Bill conversou com ele até sair com Liz.

- Divertiste-te ontem na festa? - perguntou-lhe o médico, passando-lhe a mão na cabeça.

- Diverti. Comi demasiados cachorros quentes e fiquei com dores de estômago. Mas foi giro, antes disso - respondeu o garoto.

- Também achei - confirmou o médico, que depois se fingiu preocupado. - Não vais dar-me uma injecção, pois não, Jamie? O pequeno riu da piada, e então Bill perguntou-lhe se alguma vez brincara com papagaios de papel, e ele admitiu que não.

- Então, tens de vir lançar o meu um dia destes! É fantástico, apesar de antigo. Fui eu que o fiz e voa muito bem. Podemos levá-lo até à praia e pô-lo a voar lá.

- Gostava muito! - exclamou Jamie, com os olhos muito abertos e um ar interessado.

Rachel e Annie desceram para cumprimentar o médico, mas Megan não tornou a aparecer. Ficou amuada no quarto e furiosa com a mãe. Peter saíra com amigos que tinham ido buscá-lo por não poder guiar, e o médico deixou-lhe um recado, que Jamie prometeu transmitir-lhe logo que o irmão chegasse.

- São umas crianças fantásticas - comentou Webster com admiração. - Não sei como você consegue.

- É fácil. Basta gostar muito delas - declarou Liz, entrando no confortável Mercedes do médico.

- Quem a ouvir achará que é assim tão simples. Eu não estou a ver-me no seu papel - comentou ele, como quem pensa num transplante de fígado, numa cirurgia de coração aberto, ou noutra operação dolorosa e difícil. Ser pai sempre fora um mistério para ele.

- Em qual papel? - perguntou Liz, enquanto ele punha o carro a trabalhar e arrancava.

- Ser casado e ter filhos. Você faz isso parecer linear, mas eu sei perfeitamente que não é. A pessoa tem de ser boa nisso. É uma arte, e é muito mais difícil do que praticar medicina, tanto quanto sei.

- Aprende-se pelo caminho. As crianças ensinam-nos.

- Não, Liz, não é tão simples como isso e você sabe-o muito bem. A maior parte dos miúdos age como delinquentes juvenis e acaba na droga ou lá perto. Tem uma sorte dos diabos em ter cinco como os seus.

Incluía Jamie no elogio, pois era uma criança incrível e, apesar dos seus condicionamentos, só precisava dum bocadinho mais de cuidado e de atenção do que as outras.

Liz tinha de o vigiar para evitar que se magoasse, fizesse alguma coisa perigosa ou se perdesse.

- Acho que você tem umas ideias muito esquisitas sobre as crianças. Nem todas são pequenos malandros, sabe? - replicou ela.

- Não, nem todas, mas muitas, e as mães às vezes ainda são piores - garantiu ele, o que a fez dar uma gargalhada.

- Não será melhor eu sair do carro antes de você descobrir a verdade a meu respeito? Ou posso jantar?

- Sabe muito bem o que quero dizer - insistiu ele. Quantos casamentos conhece que tenham resultado, resultado mesmo? - perguntou frontalmente, no tom dum autêntico cínico ou dum solteirão empedernido.

- O meu resultou - disse ela simplesmente. - Fomos muito felizes durante muito tempo.

- Bom, mas a maioria das pessoas não é, e você sabe-o perfeitamente objectou ele, tentando convencê-la.

- Está bem, tem razão, a maior parte das pessoas não é tão feliz, mas algumas são.

- Pouquíssimas - insistiu ele.

Entretanto, chegaram ao restaurante e, lá dentro, Liz olhou para ele cautelosamente enquanto se sentavam.

- Como arranjou essas ideias terríveis sobre o casamento, Bill? O seu foi assim tão mau?

- Péssimo, quando acabou, detestávamo-nos. Nunca mais a vi nem a quero ver. E ela provavelmente desligava-me o telefone na cara, se eu lhe ligasse. Foi tão mau como isso. E não me parece que tenhamos sido uma excepção - era evidente que acreditava no que dizia, mas Liz não.

- Pois eu acho que foram - afirmou ela calmamente.

- Se tivéssemos sido, você estava sem trabalho.

Ela deu uma gargalhada e encomendaram uma piza com chouriço e cogumelos. Acharam-na deliciosa e foram comendo, mas era demasiado e deixaram quase metade. Depois tomaram café.

Falaram sobre muitas coisas, medicina, advocacia, os anos que ele passara em Nova Iorque, durante o internato, e como apreciara esse tempo, e Liz contou-lhe a viagem à Europa com Jack, que adorara, sobretudo Veneza. Tocaram numa variedade de assuntos, mas ela continuava intrigada com o que ele dissera sobre o casamento e os filhos.

Era óbvio que tinha uma opinião feita sobre isso, o que lhe fazia pena. Afinal, ele privara-se de coisas que ela adorava - seria incapaz de prescindir dos anos de casamento e nunca dos filhos. Sem eles, a sua vida ficaria vazia, como suspeitava que era a dele. Só parecia interessar-se pelo trabalho e pelas pessoas de quem tratava ou com quem lidava. Era muito, mas não o suficiente, na opinião dela, para preencher uma vida. No entanto, não voltaram a tocar no assunto, em vez disso, falaram de cinema.

Ele tinha um gosto muito ecléctico, gostava de filmes estrangeiros, de filmes ”intelectuais” e ainda de algumas grandes películas comerciais. Liz admitiu que apreciava o género de filmes que via com os filhos, todos comerciais, e, no caso de Peter, de acção. E adorava ir com eles ao cinema, o que lhe recordou que fizera muito poucas coisas com os filhos, fora de casa, desde a morte do pai. Dedicava-se-lhes totalmente, mas era raro sair com eles, e prometeu a si própria que as coisas iam mudar.

Bill Webster dera-lhe o empurrão de que precisava e, depois de saírem do cinema, disse para consigo que voltaria lá com os filhos em breve. Chegara a altura de retomarem as actividades anteriores em conjunto.

Convidou-o a entrar para tomar qualquer coisa quando pararam à porta de casa, mas Bill disse que tinha de se levantar cedo no dia seguinte, para estar no hospital às seis da manhã, e Liz ficou comovida por ele ter passado o serão com ela. Eram já onze horas e ser-lhe-ia difícil levantar-se tão cedo. Pediu desculpa, e ele sorriu.

- Acho que você vale isso.

Ficou surpreendida com aquelas palavras, mas ao mesmo tempo satisfeita, tinha gostado de sair com ele. Agradeceu-lhe, Bill prometeu que telefonava, e Liz entrou enquanto ele se afastava no carro. Peter e Megan ainda estavam a pé, e percebeu, quase antes de fechar a porta da rua, que ia ser alvo dum interrogatório.

- Ele deu-lhe um beijo? - perguntou Megan, com um misto de acusação, censura e repulsa.

- Claro que não. Mal o conheço.

- Isso não era fixe na primeira vez em que saem - declarou Peter, com ar entendido, e a mãe soltou uma gargalhada.

- Lamento desapontá-los, mas somos apenas amigos. Acho que ele tem muito cuidado em não se envolver, está mais interessado no seu trabalho e eu em vocês. Não precisas de te preocupar, Megan - disse ela com firmeza.

- Aposto dez dólares em como ele lhe dá um beijo da próxima vez! - exclamou Peter, divertido.

- Essa não ganhas. Além disso, quem te diz que há uma próxima vez? Talvez ele se tenha chateado que nem um peru e nunca mais me telefone.

- Duvido - disse Megan, sombria, pensando no desastre pronto a cair sobre eles sob a forma de Bill Webster.

- Obrigada pelo voto de confiança, Meg, mas não vale a pena perderes tempo com isso. Além de que tenho um julgamento para a semana e muito que fazer entretanto.

- Boa! Pode ficar em casa connosco. Não precisa dum homem, mãe.

- Enquanto te tiver a ti, não é, Megan?

Contudo, tinha de admitir que fora agradável sair com Bill Webster, falar sobre assuntos de adultos e começar a conhecê-lo. Sentira que existia uma admiração e simpatia mútuas. Nada queriam um do outro, tinham-se limitado a passar um serão muito agradável. Mesmo que ele nunca mais desse notícias, disse para consigo que fora bom estar com ele, no seu papel de mulher e não apenas de mãe. Era agradável a companhia de alguém que queria que ela se divertisse e estava interessado em conversar e em ouvir o que ela tinha para dizer.

Mandou os filhos para a cama e foi deitar-se também. Jamie já estava na cama dela, à espera. Continuava a dormir ali às vezes, e Liz gostava de o sentir junto de si. Ao adormecer ao lado do filho, perguntou a si própria se Megan teria razão ao dizer que ela não precisava realmente dum homem. Mas já não se sentia tão convencida.

Ao fim de quase nove meses sem o marido junto de si, sem fazer amor, parecia-lhe ter passado uma eternidade. Contudo, de momento pelo menos, não sentia desejo de modificar a situação, no seu espírito essa parte da vida acabara para sempre.

Quanto a Bill Webster, pensava nela ao adormecer nessa noite e em como se divertira. Não sabia o que dali viria, mas não tinha dúvidas de que gostava dela.

 

Capítulo 9

Bill Webster telefonou-lhe no fim da semana e convidou-a para ir ao teatro. Foram de carro até ao centro e jantaram antes do espectáculo. Depois, entrou, bebeu um copo de vinho e falaram durante um bocado sobre a peça e sobre livros. Liz contou-lhe um caso difícil em que estava a trabalhar e que envolvia a custódia duma criança que desconfiara estar a ser maltratada. Tinha denunciado os pais e descobrira-se que era verdade. De certo modo, o caso apresentava-lhe um dilema moral, e desejava poder representar a criança e não os pais.

- E não pode? - perguntou ele naturalmente. Parecia-lhe simples, mas para ela não era.

- É um bocadinho mais complicado do que isso. Tinha de ser nomeada pelo tribunal para representar a criança, e não fui. Sou considerada suspeita por ter representado o pai. E têm razão. Seria um conflito de interesses, apesar de eu preferir mil vezes estar do lado da criança.

- Uma vez aconteceu-me uma coisa parecida, sabe? Uma garota que diziam ter sido espancada por um vizinho. Quiseram apresentar queixa dele e contaram uma história muito convincente. Fiquei perfeitamente indignado. Afinal, descobriu-se que o pai é que agredia a criança e ela já tinha lesões cerebrais quando chegou às minhas mãos. As autoridades tiraram-lhes a garota quando pôde deixar o hospital, mas ela implorou que a deixassem voltar para casa. Fiquei com medo de que o pai acabasse por matá-la. O juiz mandou-a para um lar de acolhimento durante uns meses, mas a criança depois regressou para junto da família.

- E que aconteceu? - perguntou Liz, interessada.

- Não sei. Perdi-lhes o rasto, o que parece mal, mas o meu trabalho é tão imediato e rigoroso que assim que as pessoas ficam melhores as perco. É o que acontece nos serviços de traumatologia e nas urgências. Faz-se o que se pode no momento, e depois desaparecem das nossas vidas.

- Não sente a falta dum relacionamento mais prolongado com os seus doentes?

- Nem por isso. Acho até que é em parte por isso que gosto do que faço. Não preciso de me preocupar em resolver problemas que não me dizem respeito. Assim é muito mais simples.

Era claramente uma pessoa que não queria relacionamentos a longo prazo de espécie alguma, mas Liz gostava dele, apesar de tudo. E, de vez em quando, ouvia-o dizer coisas como aquela e sentia pena dele. A vida de Bill Webster, as suas filosofias, eram contrárias às dela. Tudo o que dizia respeito à sua vida tinha a ver com o longo prazo e com um profundo envolvimento, clientes havia que se mantinham em contacto com ela durante anos após o divórcio. Era apenas uma diferença de estilo, e eram realmente muito diferentes, mas também era evidente que gostavam um do outro.

Era tarde quando ele se despediu, quase uma da manhã, e Bill teve pena de não poder ficar a conversar mais com ela, mas ambos tinham de se levantar cedo, Liz para ir ao tribunal e ele para o Serviço de Traumatologia.

Peter tinha uma expressão maliciosa nos olhos quando perguntou à mãe, ao pequeno-almoço, se ganhara a aposta.

- Não, desta vez perdeste - respondeu ela com uma gargalhada.

- Quer dizer que ele não lhe deu um beijo?

Peter parecia desapontado, e Megan fez uma careta indignada.

- És nojento - acusou-o ela. - De que lado estás, afinal?

- Do da mãe - respondeu claramente. Depois voltou-se para Liz: - Promete que diz a verdade se ele lhe der um beijo, ou mente só para ganhar a massa? - adorava implicar com ela e fazê-la rir.

- Que insulto, Peter! Como se eu fosse capaz de mentir à minha própria família para ganhar uma aposta! - indignou-se Liz, entregando-lhe um prato com panquecas e deitando-lhes doce por cima.

- Pois eu acho que está a mentir! - insistiu Peter.

- Não estou. Já disse que somos só amigos, e é assim que eu gosto das coisas.

- Deixe-as ficar assim, mãe - disse Rachel, dando também opinião.

Liz olhou para a filha mais nova e perguntou:

- Desde quando te interessas por isto?

- O Peter diz que ele gosta de si e a Meg garante que vai casar com ele.

Em muitas coisas, era sofisticada para os seus onze anos, bom, quase doze. Acabava de fazer os onze quando o pai morreu e, como todos, tinha amadurecido muito nesse ano, tal como a própria mãe.

- Garanto-lhes que dois jantares não constituem um noivado - explicou Liz com um sorriso rasgado, enquanto acabavam de tomar o pequeno-almoço.

- É demasiado cedo para sair com homens - declarou Annie, olhando severamente a mãe.

- E quando achas que seria apropriado? -perguntou Liz, interessada.

- Nunca - respondeu Megan em vez da irmã mais nova.

- São todas umas parvas - considerou Peter, levantando-se da mesa. - A mãe pode fazer o que quiser, e até o pai acharia bem. Ele já sairia com mulheres, de certeza, se aquilo tivesse acontecido à mãe.

Liz pensou que, de facto, tudo podia ter sucedido de forma inversa e achou o comentário do filho interessante, pelo que foi a pensar nele até ao escritório. O marido já sairia com mulheres se ela tivesse morrido? Nunca pensara no assunto, mas desconfiava de que a resposta era afirmativa. Jack sempre tivera uma atitude saudável para com a vida e demasiada alegria de viver para se fechar num quarto a chorar a esposa. Peter tinha razão. Provavelmente já procuraria companhias femininas, o que a fez sentir-se melhor a respeito de Bill Webster.

Ele telefonou-lhe para o escritório nesse dia e convidou-a para ir ao cinema outra vez no fim-de-semana seguinte. De repente, viam-se com frequência, mas não se importava. Gostava de estar com ele.

Dessa vez, quando foi buscá-la, foi Jamie quem lhe abriu a porta e pô-lo ao corrente da situação.

- As minhas irmãs acham que não devia sair com a mãe, mas o Peter pensa que está certo e eu também. Os rapazes gostam de si e as raparigas não.

O resumo foi feito duma maneira simpática, Bill soltou uma gargalhada e depois contou a Liz o que o garoto dissera, quando iam a caminho dum pequeno restaurante francês, em Sausalito.

- Elas estão mesmo perturbadas por sairmos juntos? perguntou o médico.

- E saímos? Pensei que éramos dois amigos que se viam de vez em quando - respondeu Liz, descontraída.

- É isso que quer, Liz? - perguntou ele em tom suave. Tinham chegado ao restaurante e ele acabava de parar o carro. Voltou-se para ela, ansioso por ouvir a resposta.

- Não tenho bem a certeza do que pretendo - respondeu ela honestamente. - Gosto de estar consigo, aconteceu assim.

Ele sentia a mesma coisa, mas também começava a pensar nela duma forma diferente. Ao princípio, julgava que lhe bastaria serem amigos, mas já não tinha tanta certeza, parecia-lhe que desejava algo mais. Contudo, não insistiram no assunto, entraram e falaram de outras coisas durante o resto da noite.

Quando a levou a casa, Peter ganharia a aposta, se ainda estivesse em vigor. Mesmo antes de Liz entrar, Bill puxou-a delicadamente para si e, com uma expressão terna no olhar, beijou-a finalmente. Ela ficou um pouco espantada, primeiro, mas depois descontraiu-se e retribuiu o beijo. Quando se separaram, parecia triste e ele ficou preocupado.

- Sente-se bem, Liz? - perguntou, num murmúrio.

- Acho que sim - respondeu ela baixinho.

Por um segundo, o beijo fizera-a pensar em Jack e quase lhe parecera que o traíra. Não estava esfomeada por homem, nem procurava sexo, mas o médico entrara na sua vida e agora teria de lidar com os seus sentimentos por ele e pelo falecido marido. Assim, limitou-se a acrescentar:

- Não estava à espera disto.

- Nem eu, aconteceu. Você é uma mulher espantosa.

- Não, não sou - contrariou-o Liz, sorrindo.

Era agradável estar ali ao ar livre, fora do alcance dos ouvidos dos filhos. Sentir-se-ia pouco à vontade se eles tivessem visto e ouvido o que acabava de se passar.

Como para reforçar o que ambos sentiam, Bill tornou a beijá-la e, dessa vez ela retribuiu o beijo com fervor. Quando se separaram, estava ofegante e um bocadinho preocupada.

- Que estamos a fazer? - perguntou, sob as estrelas daquela noite de Setembro, e ele sorriu-lhe.

- Acho que a beijar-nos - respondeu com toda a simplicidade.

Mas era muito mais do que isso, não se tratava de mera curiosidade nem de fome de dois corpos solitários. Era a nítida atracção que surge por vezes entre um homem e uma mulher, um encontro de mentes além de lábios. Ambos gostavam de muitas das qualidades que viam no outro, embora concordando que eram diferentes. Ele apreciava relações fugazes de todos os géneros, enquanto tudo na vida de Liz se apoiava na permanência - casamento, filhos, carreira, e até as suas duas empregadas trabalhavam para ela há anos. Nada existia de temporário na vida dela e Bíll sabia-o, para ele era quase um desafio ser diferente. Contudo, já não tinha a certeza, naquele momento, se desejava ou não ter com Liz uma relação duradoura. Era uma nova experiência para ele, e ela não era o género de mulher por quem normalmente se sentia atraído.

- Vamos levar as coisas com calma, sem pensar muito. Veremos o que acontece - propôs ele.

Liz acenou com a cabeça, sem saber bem como responder nem se aconteceria mais alguma coisa. Já dentro de casa, depois de ele se ir embora, sentiu-se consumida pela culpa, como se tivesse traído o marido. Mas ele morreu, disse para consigo, e não vai voltar. Então, porque se sentiria tão estranha por ter beijado Bill Webster, tão culpada e, ao mesmo tempo, tão excitada? Quanto mais pensava, mais enervada ficava e manteve-se acordada durante muito tempo nessa noite, a pensar nele e em Jack, sem saber no que estava a meter-se.

De manhã, quando acordou, cansada duma noite de insónia, disse para consigo que tinham de voltar à anterior amizade, sem complicações e, tomada a decisão, começou a sentir-se melhor, até que ele ligou por volta das dez da manhã.

- Pensei toda a noite em si e quero saber como está disse ele meigamente.

- Lamento muito a noite passada - disse Liz simplesmente.

- Porquê? Eu só lamento não termos dado mais beijos. Foi muito bom, pelo menos no que me diz respeito - confessou ele, numa voz estranhamente calma e mais do que feliz.

- Era isso que eu receava. Eu não estou pronta, Bill...

- E eu compreendo, ninguém está a empurrá-la. Isto não é uma corrida, não temos de ”chegar” a algum sítio. Só estamos presentes um para o outro. - Era uma maneira bonita de pôr as coisas, e Liz ficou agradecida por ele não a pressionar, mas sentiu-se, ao mesmo tempo, idiota por se preocupar tanto. - Que tal se eu for aí fazer o jantar para todos no sábado? Estou de folga e sou um cozinheiro bastante razoável. Que tal?

Sabia que devia recusar, mas ficou admirada ao descobrir que não era capaz de tomar essa atitude. E que mal havia em deixá-lo ir lá fazer-lhes o jantar?

- Está bem. Eu ajudo.

- Eu levo o que é preciso. Há alguma coisa especial de que eles gostem?

- Comem tudo, frango, peixe, bife, piza, esparguete. Têm boa boca.

- Vou pensar em qualquer coisa.

- O Jamie vai ficar encantado - disse Liz.

E as garotas furiosas, mas não o disse. Era uma boa oportunidade para as animar a descontraírem-se acerca dele. Podiam ver como era inofensivo... seria? Teriam elas razão, afinal, ao dizerem que se tratava duma situação potencialmente perigosa? Detestava a ideia. Queria ser amiga dele e gostava de o beijar, mas teria de ir além disso? Não percebia porquê. Talvez pudessem ficar-se pelos beijos. Ela não deixaria que fossem mais além, por sua causa e não por causa dos filhos.

Webster chegou às seis horas de sábado, conforme prometido, com três sacos de compras. Disse que ia fazer frango frito à moda do Sul, milho na maçaroca e batatas assadas. Trouxera também gelado. E começou a andar na cozinha dum lado para outro, sem a deixar ajudar.

- Você descansa - ordenou ele.

Estendeu-lhe um copo de vinho, serviu outro para ele, e tratou de cozinhar um jantar excelente. Até as raparigas se mostraram admiradas e satisfeitas quando comeram, apesar de Megan continuar a recusar falar-lhe. Mas Jamie não se calou durante toda a refeição, bem como Peter, e até mesmo Annie e Rachel se juntaram à conversa com o médico. Falaram de estudos e de universidades para Peter, que marcara uma data para visitar algumas, com a mãe, em Outubro. Bill deu a sua opinião. Embora lhe parecesse que Berkeley talvez fosse divertida, Stanford e a UCLA pareciam-lhe mais indicadas para ele, por diversos motivos. E, no fim do jantar, ainda estavam a discutir o assunto quando Rachel, Annie, Jamie e a mãe levantaram a mesa. Peter continuou embrenhado na conversa com o médico, e Megan aproveitou para se escapar para o quarto sem agradecer o jantar, o que deixou Liz furiosa, mas Bill disse-lhe que não a pressionasse.

- Ela há-de habituar-se a mim, dê-lhe tempo. Não há pressa.

Estava sempre a dizer coisas daquele género, o que a deixava ligeiramente nervosa. Porque tinham de fazer isso?

Com certeza que Bill não ia ficar por ali tempo suficiente para que a atitude dela tivesse importância, mas ele não parecia pensar assim.

Tornou a beijá-la nessa noite, depois de os garotos terem ido todos para a cama, e Liz ficou também enervada por ser na sua própria casa. As coisas estavam a ficar muito confortáveis e demasiado familiares, e ele tinha sido amoroso com as crianças. Tudo aquilo indicava um verdadeiro romance. Jack partira havia nove meses e ela começava a sentir-se como quem avança por um campo minado, sujeita a uma explosão a qualquer momento. Megan estava em pé de guerra, as irmãs inseguras e, mais do que tudo, ela própria tinha emoções contraditórias: Bill Webster e a sua propensão para ligações temporárias, segundo ele mesmo admitia, e o seu sentido de lealdade para com Jack, que começava a ser ameaçado pelo que sentia pelo médico.

Esses sentimentos mantiveram-se durante todo o mês de Setembro e continuaram em Outubro, pelo que a projectada volta pelas universidades, com Peter, foi um alívio.

Apesar disso, Bill telefonava todos os dias, até mesmo para o hotel onde ficaram, em Los Angeles. Foi uma surpresa ouvir-lhe a voz, mas sorria ao desligar e, dessa vez, o filho não fez comentários. Não queria prejudicar o romance, sobretudo por gostar do médico e por querer que resultasse. E sabia, por pequenas coisas que a mãe dizia, que ela se sentia ambivalente, dividida, indecisa.

Quando voltaram, Liz esperou uns dias para ver Bill, e encontraram-se apenas para um hambúrguer rápido no refeitório do hospital, numa noite em que ele estava de serviço. E isso porque ele se mostrara ansioso por vê-la. As enfermeiras reconheceram-na e algumas aproximaram-se para lhe falar, bem como o chefe dos médicos residentes, e todos mandaram saudades para Peter.

- Toda a gente gosta de si, Liz - observou Bill.

Ela causara uma excelente impressão pela sua devoção pelo filho, pois nem todos os pais se comportavam assim: de facto, muito poucos. E era atenciosa também para Bill, sempre a fazer-lhe perguntas sobre o trabalho e preocupada com ele por causa das tensões e desafios diários que uma profissão daquelas implicava. Quando estava com ela, Webster sentia-se consciente do interesse que Liz lhe votava, por vezes mesmo mais do que ela, que tinha dificuldade em admiti-lo, pois as implicações ainda eram demasiadas.

Contudo, não foi por acaso que, na semana seguinte a terem regressado de Los Angeles, Liz ficou parada diante do roupeiro de Jack no sábado de manhã. Olhou para os casacos ainda ali pendurados e pareceram-lhe tristes e sem vida, deprimentes. Já não os encostava a si nem os acariciava como ao princípio, e já passara bastante tempo desde a última vez que cheirara as lapelas dos casacos. Olhando-os naquele momento, percebeu o que tinha de fazer, para seu bem, embora nada tivesse a ver com Bill Webster, disse Liz para consigo - os dez meses decorridos desde a morte de Jack bastavam. Então, um por um, tirou-os dos cabides e dobrou-os numa pilha.

Podia dá-los ao filho, se este não fosse demasiado alto e novo para os usar, mas era mais fácil desfazer-se deles do que ver outra pessoa com eles vestidos.

Precisou de duas horas para esvaziar a parte dos cabides e as gavetas. Acabara, quando Megan entrou e viu o que a mãe estava a fazer. Desatou imediatamente a chorar e, por um instante, Liz teve a sensação de ter matado o marido. A filha ficou ali a olhar fixamente para as pilhas de roupa do pai, a soluçar, até que Liz não conseguiu conter-se e chorou também, pelos filhos, por ele, por si própria. Mas, por mais que se agarrassem a objectos, tinham-no perdido, ele não voltaria e já não precisava daquelas roupas. Era melhor dá-las, pensava, mas, ao ver o desgosto da filha, ficou indecisa.

- Porque está a fazer isto agora? É por causa dele, não é? Ambas sabiam que se referia a Bill, e Liz abanou a cabeça, continuando as duas a chorar.

- Já é tempo, Meg... teve de ser... Custa-me muito ver esta roupa... - justificou-se Liz, lavada em lágrimas e tentando abraçá-la, mas a rapariga afastou-se, saiu a correr para o seu quarto e bateu com a porta. Uns minutos depois, a mãe foi atrás dela, mas a filha não lhe quis falar. Então, voltou para o quarto e começou a arrumar a roupa do marido em caixas. Peter passou então no corredor e viu o que a mãe estava a fazer. Parou, olhou-a e perguntou baixinho se queria ajuda.

- Eu faço isso mãe. Não precisa de tratar dessas coisas.

- Mas quero - respondeu Liz, triste.

Era o que restava, o que Jack deixara para trás, para além de taças, fotografias, algumas recordações e, claro, os filhos de ambos.

Peter ajudou-a a levar as caixas para o carro e, como se sentissem que haviam chegado a uma encruzilhada, os outros foram aparecendo um a um e ficaram a olhar. Todos tinham uma expressão de perda nos olhos. A última foi Megan, que olhou para a mãe e acabou por perceber que aquilo também não era fácil para ela. Então, como num movimento silencioso de apoio, cada um pegou em qualquer coisa - uma caixa, um saco, um casaco - e transportou-a para o carro. Foi, além do mais, o derradeiro gesto de despedida do pai. Megan levou a última braçada de roupa.

- Desculpe, mãe - murmurou ela por entre lágrimas, e Liz voltou-se e abraçou-a, grata pela compreensão.

- Eu adoro-te, Meg.

Mãe e filha ficaram abraçadas, a chorar e, quando acabaram de carregar o carro, os outros choravam também.

- Eu também a adoro, mãe - retribuiu Megan baixinho, e os irmãos aproximaram-se e abraçaram-nas.

Liz ia levar a roupa para um ponto de recolha duma instituição de caridade, e Peter ofereceu-se para conduzir o carro.

- Eu estou bem. Posso ir sozinha - garantiu Liz.

Ele ainda usava colarinho, embora mais pequeno, e começara há pouco a guiar de novo. Insistiu, porque via que a mãe estava demasiado perturbada, e ela acabou por aceitar, admitindo que o filho tinha razão. Juntos, afastaram-se de casa com o carro cheio com a roupa de Jack.

Voltaram meia hora depois, Liz com um ar desolado. Nessa tarde, quando viu o roupeiro do marido vazio, sentiu um baque no coração, mas também uma sensação de liberdade.

Precisara de muito tempo, mas percebeu que fizera bem em esperar até estar pronta, apesar do nunca acabar de conselhos sobre o momento adequado para se desfazer da roupa de Jack.

Ficou um bocado sentada no quarto, a olhar lá para fora e a pensar nele. Quando Bill telefonou, mais tarde, percebeu pela voz dela que alguma coisa se passara.

- Está bem? - perguntou, preocupado.

- Mais ou menos.

Contou-lhe o que tinha feito nesse dia e como lhe custara, e ele acompanhou a dor de Liz. Nos últimos dois meses, aprendera a gostar profundamente dela.

- Tenho muita pena, Liz. Posso fazer alguma coisa? Sabia que aquilo era um sinal qualquer, uma prova de que ela estava lentamente a libertar-se do passado, a dizer um último adeus ao marido: ele seria sempre lembrado e os filhos eram o seu legado, mas Liz começava finalmente a abrir mão da sua realidade e presença diária.

- Não - respondeu ela, triste, no fundo, ambos sabiam que era um sofrimento íntimo e um momento solitário.

- Ia perguntar se queria sair esta noite, mas talvez não seja boa ideia...

Liz concordou e ele disse que telefonava na manhã seguinte, mas ligou ainda nessa noite, só para saber como ela estava. Continuava triste, embora ligeiramente melhor.

Tinha passado o serão tranquilamente com os filhos, todos mais calmos depois do desgosto dessa manhã, e só Liz ficara com as suas recordações e o seu sentimento de perda - os outros pareciam aceitar a realidade antes dela.

No dia seguinte, quando Bill telefonou, atendeu-o com uma disposição mais normal, e ele ficou contente quando ela concordou em encontrarem-se à noite. Parecia mais calada do que habitualmente, mas falaram um bocadinho e o médico conseguiu mesmo fazê-la rir.

À noite, deram um longo passeio silencioso, de mãos dadas e, quando ele a beijou, perceberam os dois que alguma coisa tinha mudado. Ela estava pronta a enfrentar o futuro, a largar o passado e a caminhar em frente.

- Amo-te, Liz - disse ele, apertando-a nos braços. Ela sentiu o cheiro já familiar da loção da barba. Era tão diferente de Jack em tantas coisas... e gostava dele,

mas ainda não era capaz de pronunciar aquelas palavras, ainda não, e talvez nunca.

- Eu sei - limitou-se a responder, e Bill não esperava mais, mas, de momento, era suficiente para os dois serem ditas por ele.

 

Capítulo 10

Por altura da Noite das Bruxas, ambos sabiam que o caso era sério. Nenhum deles se habituara ainda à ideia ou percebera o que significava para o futuro, mas era evidente que Bill estava apaixonado por Liz e, embora ela ainda não o admitisse, era evidente que também o amava. Contudo, caíra num dilema, porque não sabia o que havia de fazer nem o que dizer aos filhos. Tinha falado com Victoria sobre o assunto mais do que uma vez, e o único conselho da amiga fora que não se apressasse e deixasse as coisas ”correrem”, o que lhe parecera sensato - a seu tempo, ambos saberiam como se sentiam e como agir.

Bill foi buscá-la e levaram Rachel e Jamie para a ronda habitual naquele dia, mas Annie e Megan declararam que eram ”demasiado crescidas” para isso e ficaram em casa com Carole. Quanto a Peter, estava de visita à nova namorada.

E nessa noite, com os filhos já deitados, Liz ouviu Bill perguntar-lhe se queria passar o fim-de-semana com ele. Hesitou durante muito tempo, e o médico ficou com medo de ter estragado tudo, mas andavam juntos há dois meses e a paixão aumentara ao ponto de ser quase impossível contê-la. Bill sabia que não interpretara mal a situação e os sentimentos de ambos eram evidentes, pelo menos para ele. Quando Liz respondeu calmamente que sim, que ia com ele para Napa Valley, sentiu-se como um garoto. Concordaram em não informar os pequenos, e ele disse que marcava alojamento. Queria levá-la para o Auberge du Soleil, o sítio mais romântico de que se lembrava para o primeiro fim-de-semana a dois.

Foi buscá-la na sexta-feira à tarde. Trabalhara desde a noite anterior, mas estava tão feliz e excitado que nem se sentia cansado. Liz fizera planos para manter os filhos ocupados nesse fim-de-semana e dissera-lhes que ia para casa duma colega de curso, e Bill passaria a buscá-la numa altura em que não estivessem em casa, só Carole sabia para onde ela ia realmente. Bill ficou algo surpreendido com a estratégia dela, mas percebeu que era mais simples para ambos. Não havia necessidade de aborrecer as crianças. Embora Peter e Jamie talvez ficassem contentes, as raparigas de certeza que não. Havia ainda bastante resistência entre elas, gerada por Megan, que se mostrava educada com ele, mas pouco mais, e seria melhor não a antagonizar mais ainda.

A paisagem era muito bela ao longo do caminho, com as folhas das árvores de vários tons acobreados e a erva ainda verde. Era uma estranha combinação do Leste com o Oeste, as cores outonais da Nova Inglaterra combinadas com os verdes da Califórnia. Conversaram todo o caminho até Santa Helena, com alguns silêncios de Liz, que ele preferiu não indagar a que se deviam. Sabia que estar com ele era ainda complicado para ela - confessara-lhe mais do que uma vez que, de tempos a tempos, ainda lhe parecia que atraiçoava o marido. Percebia que o fim-de-semana, em alguns aspectos, não ia ser fácil para Liz, que, a certa altura, olhou até de soslaio para a aliança que continuava a usar.

Registaram-se perto da hora do jantar, e ela ficou radiante com a elegância das instalações. Ele tinha-se esforçado realmente para a fazer feliz. A imagem do vale, que se estendia a perder de vista, deixou-a sem respiração. Foi para a casa de banho mudar de roupa e apareceu com um vestido preto novo, para irem jantar.

Comeram na sala de jantar do hotel e depois instalaram-se diante da lareira do bar, onde uma mulher cantava ao piano. Sentiam-se ambos confortáveis e descontraídos quando voltaram lentamente para o quarto. Assim que entraram, Bill beijou-a, um beijo que lhe revelou o que significava para ele, e daí a minutos envolviam-se na paixão que sentiam um pelo outro. A lareira estava acesa, as luzes baixas, e Bill acendeu as velas em cima da mesinha. Sentaram-se no sofá abraçados e, lentamente, ele tirou-lhe o vestido preto e ela desabotoou-lhe a camisa. Era maravilhoso estarem sozinhos e terem a liberdade de fazer o que quisessem. Depois, meigamente, ele conduziu-a até à cama, onde acabou de a despir lenta e sensualmente, estenderam-se nos lençóis e ficaram deitados, nus, durante um longo minuto, abraçados.

- Amo-te tanto, Liz...

- E eu a ti... - murmurou ela.

Era a primeira vez que lho dizia, mas daquela vez as palavras surgiram com toda a naturalidade, tal como o que aconteceu a seguir, quando se beijaram e deram finalmente largas à paixão. Liz sentiu-se arrebatada por ele e, de repente, o desgosto, a solidão e o medo desapareceram, como um casulo em que se tivesse envolvido e do qual já não necessitasse. Não precisava de protecção nem de se esconder, e entregou-se totalmente. Depois, ofegante e saciada, sorriu-lhe, embora com uma expressão nostálgica no olhar, e Bill percebeu que o passado e as recordações ainda lhe tocavam o coração. Aliás, nem outra coisa seria de esperar, e ambos tinham consciência disso.

- Sentes-te bem? - perguntou Bill meigamente, preocupado com ela e com pena de a ver ainda tão triste, mas, apesar do que lhe via nos olhos, ela sorria-lhe.

- Eu estou bem... melhor do que bem... fazes-me muito feliz.

Era quase verdade, tão verdade quanto possível naquele momento e Bill viu-lhe lágrimas nos olhos. Era difícil não pensar em Jack numa altura daquelas em que se entregava a outra pessoa. Era mais um passo importante para longe dele, um passo que adiara durante muito tempo e que agora queria dar, como se atravessasse uma ponte duma vida para outra. Além disso, sentia-se segura com Bill e podia dizer-lhe tudo, ele não se sentia ferido ou aborrecido por ela admitir que aquilo não era fácil.

Ficaram deitados lado a lado durante bastante tempo, a conversar, e ele acabou por admitir que nunca amara assim uma mulher. E Liz sentiu-se bem junto dele, tentando não pensar em Jack, mas era difícil, embora Bill fosse sensível aos seus sentimentos.

À medida que o fim-de-semana decorria, Liz foi-se sentindo cada vez menos consciente de Jack e cada vez mais perto de Bill e de tudo o que partilhava com ele. Deram longos passeios e falaram sobre muitos assuntos, do trabalho, dos filhos dela, dos sonhos de ambos. Evitaram o mais possível abordar o passado e, inevitavelmente, no domingo de manhã, sentados na varanda do quarto a olhar para Napa Valley, a conversa dirigiu-se lentamente para o futuro.

Bill vestia calças de ganga e camisola e ela tinha um quente roupão de lã, na fresca manhã de Novembro. O dia estava bonito e era agradável ficarem ali fora, ao sol, lendo o jornal a meias. Quando Liz levantou os olhos e lhe entregou a secção desportiva, viu que ele lhe sorria.

- Porque aparenta esse ar tão alegre, Dr. Webster? - perguntou, sorrindo-lhe também.

- Por tua causa, por isto - respondeu Bill, com um gesto em direcção ao vale.

Durante aquele fim-de-semana, tivera a sensação de estarem em lua-de-mel. Em alguns dos aspectos mais importantes, ela agora pertencia-lhe, e Jack ia desaparecendo lentamente no nevoeiro. E, embora parte dela ainda quisesse agarrar-se-lhe, como sempre aconteceria, Liz sabia que tinha de andar para a frente, e Bill era um companheiro maravilhoso.

- Que vamos fazer depois disto? - perguntou então ele, suavemente.

- Que queres dizer com isso? - Liz pareceu preocupada com o teor da pergunta dele.

Eram palavras que ainda não estava pronta para ouvir e ele sabia-o, mas não foi capaz de ficar calado, trazia aquela ideia em mente desde o princípio.

- Não temos de fazer seja o que for - respondeu ela, nervosa.

- Mas talvez fosse agradável. Achas demasiado cedo para falar no assunto, Liz?

Tinham feito amor de novo no dia anterior, à noite, em frente da lareira, e nessa mesma manhã. Eram incrivelmente compatíveis e custava a crer que tivessem esperado tanto tempo, quando parecia que era realmente o que ambos queriam, nem valera a pena fingir.

- Nunca pensei que chegaria a dizer-te isto, mas acho que devíamos casar - continuou Bill, sentindo-se de repente novo e desajeitado, mas tão apaixonado que não queria perdê-la. Contudo, ela ficou chocada, nunca esperara ouvi-lo dizer uma coisa daquelas, completamente estranha à sua maneira de ser.

- Pensei que não acreditavas no casamento - observou Liz, assustada com o que ele acabava de dizer.

- E não acreditava antes de te conhecer. Acho que, algures no meu coração, sempre esperei que isto acontecesse um dia e não queria gastar o bilhete com alguém que não resultasse, como a minha primeira mulher. Quase nos aniquilámos um ao outro.

Aquilo, pelo menos aos olhos dele, era perfeito e ela conseguia imaginar uma ligação duradoura, talvez para sempre, mas ainda não estava pronta para o dizer. Era demasiado cedo e as recordações de Jack demasiado frescas. Ainda não passara um ano, embora pouco faltasse.

- Eu não quero estragar as coisas por falar já nisto, Liz, mas queria que soubesses que estou a avançar nessa direcção.

Ela não era mulher para ser encarada com displicência, e havia os filhos a considerar. Bill pensara muito neles e sabia que podia vir a amá-los. Já gostava muito de Jamie e tinha uma forte ligação com Peter. Quanto às garotas, pensava que acabariam por aceitá-lo. Nunca tivera problemas em conquistar mulheres e crianças, quando lhe interessava, e naquele caso interessava-lhe mesmo.

- Não sei que dizer. Jack morreu há onze meses, não é muito tempo, e eu preciso de mais algum para me reajustar e retomar a minha vida. E as crianças também.

Tinha amigas que saíam com homens durante anos sem que eles as tomassem a sério ou as pedissem em casamento, e a ela isso acontecia logo no primeiro fim-de-semana passado com Bill.

- Eu sei, e não tenho pressa. Sei como este ano é importante para ti. - Liz falava muito nisso, era uma data que obviamente respeitava, tal como os filhos, e ele devia respeitá-la igualmente. - Tinha esperança de que pudéssemos falar nisto outra vez em Janeiro, depois das férias, para ver como reages. Pensei no Dia de São Valentim...

Liz sentiu um baque no coração. O Dia de São Valentim tinha significado tanto para ela e para Jack! Mas muitas outras coisas eram também importantes e haviam desaparecido, excepto os filhos.

- Isso é já daqui a três meses - replicou ela, com uma expressão de pânico, embora fosse muito agradável ouvi-lo falar assim.

- Nessa altura já nos conhecemos há seis meses. É rápido, mas aceitável. Muita gente priva durante muito menos tempo e tem casamentos muito felizes.

Liz sabia que era verdade, mas ela e Jack tinham ”namorado” muito tempo e não estava preparada para o que Bill lhe dizia. Não que fosse contrária à ideia, mas precisava de tempo para pensar. Nesse momento, o médico olhou para ela com tudo o que sentia no olhar e declarou:

- Eu faço o que tu quiseres, Liz. Só quero que saibas como te amo.

- Eu também te amo, e sinto que fui muito afortunada. Há pessoas que nem uma vez têm sorte e eu fui abençoada duas, mas continuo a precisar de tempo para assimilar o que está a acontecer.

- Eu sei, e não estou a apressar-te. Queria era saber se, na altura própria, pretendes o mesmo futuro que eu.

- Acho que sim - respondeu ela com um sorriso tímido. Depois, respirou fundo e deixou-se comandar pelas emoções durante um momento. - Só preciso de tempo para chegar lá. Falamos no assunto depois do Natal - queria respeitar essa data, por causa de Jack, por si própria e pelos filhos.

- Era tudo o que eu precisava saber - disse ele suavemente, pegando-lhe na mão. - Adoro-te e não tenho pressa, temos todo o tempo do mundo para resolver isto. Desde que ambos queiramos o mesmo, está tudo certo.

Era razoável, bom e compassivo. Ela não podia exigir mais dum homem, e nem sequer tinha a certeza se Jack seria tão compreensivo. O marido mostrara-se muito mais impaciente e teimoso, muito menos disposto a aceitar a vontade dela. A maior parte das vezes, era ele quem determinava o andamento e a direcção na vida de ambos.

Em certos aspectos, existia mais participação com Bill, o que agradava a Liz.

Voltaram para Tiburon lentamente nessa tarde, e as crianças estavam todas em casa quando chegaram. Ela viu Megan erguer uma sobrancelha quando ia a sair do carro de Bill, mas ninguém disse palavra até à noite, já os mais novos estavam na cama e Peter trabalhava no quarto.

- Porque veio no carro do Bill? - perguntou Megan, enfrentando finalmente a mãe. - Passou o fim-de-semana com ele?

Liz hesitou um instante, mas depois acenou com a cabeça. Se ia acabar por casar com ele, e tudo indicava que sim, queria ser honesta com a filha.

- Passei, sim. Estivemos em Napa Valley.

- Oh, mãe! Isso é nojento! - exclamou Megan.

- Porquê? Ele gosta muito de mim e eu dele. Que tem isso de errado, Meg? Não fazemos mal a terceiros e acho que nos amamos - mas a dose era pesada de mais para a filha engolir.

- E o paizinho? - perguntou a jovem, com lágrimas nos olhos.

- O paizinho já não está connosco, Meg. Amei-o com todo o meu coração e sempre o hei-de amar, mas isto não é a mesma coisa, é diferente, para mim e para todos nós, e não vou ficar sozinha para o resto da vida. Tenho direito a ter alguém ao meu lado.

- Isso é doentio! - gritou Megan, indignada. - Ainda nem passou um ano desde que o paizinho morreu. Nunca pensei que a mãe fosse uma galdéria!

Os olhos dela faiscavam e Liz levantou-se, furiosa. Nunca batera na filha, nem tencionava fazê-lo naquela altura, mas não podia consentir em tal comportamento.

- Não fales comigo dessa maneira. Vai para o teu quarto imediatamente e fica lá até aprenderes a ser bem-educada. Se queres falar neste assunto comigo, tudo bem, mas não podes faltar-me ao respeito.

- Não tenho motivos para a respeitar - declarou Megan, com ar importante, já perto da porta, que fechou com força.

Correu então para o quarto de Peter, a fim de lhe contar, mas, em vez de concordar com ela, o irmão chamou-lhe megera e disse-lhe que tinha de pedir desculpa à mãe.

- De que lado estás tu, afinal? - perguntou-lhe Megan.

- Do dela - respondeu Peter firmemente - porque tem feito tudo por nós e gostava tanto do pai como nós. Mas está sozinha, sem ninguém que a ajude ou cuide dela, trabalha como uma escrava por todos nós e para manter o escritório do pai a funcionar. Além disso, o Bill é um tipo porreiro e eu gosto dele. Podia ser bem pior, por isso, se queres saber de que lado estou, estou do deles, e não me peças aprovação quando fazes merda com a mãe.

- És um parvalhão! - gritou Megan, com os olhos cheios de lágrimas. - Ela tem-nos a nós, não precisa dum tipo qualquer para dormir!

- A mãe não pode dormir com o Jamie o resto da vida. Que vai acontecer quando formos todos para a faculdade? Eu vou para o ano e tu daqui a dois. E depois? Ela tem de ficar aqui sentada à espera de que voltemos para casa para ter outra vez uma vida? A mãe não a tem sem o pai, Meg. Olha para ela! A única coisa que faz é trabalhar... até de motorista. Merece melhor, e tu sabes perfeitamente.

- Não tão cedo - respondeu a irmã, arrasada pelas palavras de Peter. Deitou-se na cama dele e desatou a chorar. - É muito cedo. Não posso aceitar ainda. - O irmão sentou-se ao lado dela e abraçou-a, amadurecera imenso durante aquele ano e mais ainda desde o acidente na piscina, e ambos tinham consciência disso. - Sinto a falta do paizinho... soluçou Megan, parecendo Jamie.

- Também eu, mas com Bill ou sem Bill, nada muda, e temos de aceitar o que aconteceu - respondeu Peter, lutando contra as lágrimas, pois, por muito que tivesse amadurecido ou por mais sensato que fosse, também sentia a falta do pai.

- Não quero!... - soluçou ela, sujando-lhe a camisola com a pintura dos olhos. - Quero que ele volte...!

Peter não arranjou palavras para lhe responder, por isso limitou-se a abraçá-la, deixando-a chorar, ambos com o pensamento no pai. Por fim, falou com ela um bocado, quando a viu mais calma, e Megan foi pedir desculpa à mãe. Parou à porta do quarto e abriu-a sem bater.

- Eu não gosto dele, mas peço desculpa pelo que disse a seu respeito - era o melhor que podia fazer, e a mãe aceitou a desculpa com expressão séria.

- Tenho muita pena que te sintas tão infeliz, Meg. Eu sei que isto não é fácil.

- Mas não sabe como é para nós. Agora tem-no, a ele - replicou a jovem, acusando-a mais uma vez, e Liz suspirou.

- Estar com o Bill não me faz ter menos saudades do paizinho, às vezes ainda sinto mais. Isto não é fácil para vocês nem para mim, e sei perfeitamente o que significa.

- Ia melhorando para todos, mas muito lentamente.

- Gosta mesmo dele, mãe? - perguntou Megan, ainda horrorizada com o que a mãe dissera e desejando nunca ter ouvido tais palavras.

- Acho que sim - respondeu Liz com sinceridade -, mas preciso de tempo para perceber bem. Ele é um amor de pessoa, é tudo quanto sei por enquanto, e ainda tenho uma série de coisas a resolver comigo mesma acerca do paizinho.

- Parece que quer esquecê-lo - disse Megan tristemente.

- Eu nunca vou esquecê-lo, Megan. Faça o que fizer, vá para onde vá... Amei-o durante metade da minha vida e tivemo-los, a vocês todos... Depois aconteceu aquilo.

Não foi justo, para qualquer de nós, mas temos de enfrentar a realidade o melhor possível e andar para a frente, como ele havia de querer.

- Está a dizer isso só para se sentir melhor.

- Não, é porque acredito que é assim mesmo. Megan limitou-se a abanar a cabeça e foi para o quarto.

A mãe tinha-lhe dado muito em que pensar, e ela nem sequer queria partilhá-lo com as irmãs.

Quando a filha a deixou sozinha, Liz abriu a caixa das jóias, que guardava no roupeiro, e tirou a aliança que Jack um dia lhe colocara no dedo, sentindo que arrancava, ao mesmo tempo, o coração, mas sabia que chegara a altura. Peter reparou nisso logo de manhã, mas não comentou com a mãe ou com os irmãos, embora até ele ficasse triste.

Nas duas semanas seguintes, sempre que Bill ia buscar a mãe, Megan mostrou-se ligeiramente mais respeitosa. Não lhe disse grande coisa, mas também não foi malcriada, e Liz sentiu-se grata, pois era o máximo que, de momento, podia esperar. De todos, Jamie e Peter continuavam os apoiantes mais entusiastas do médico.

Liz e Bill passavam muito tempo juntos, a maior parte das vezes em casa dele, e faziam amor sempre que o médico tinha tempo e não estava de serviço. Por vezes, passavam a noite juntos quando ele ficava de prevenção, o que, com frequência, o obrigava a saltar da cama e a atender o telefone, mas Liz nunca protestou. Respeitava profundamente o trabalho dele, mais do que o dela própria, ultimamente, repetindo com frequência que o tipo de advocacia que praticava a deprimia e já não parecia gostar do que fazia. Fora divertido com o marido, mas já não era, parecia-lhe frívolo e argumentativo e, sobretudo, sem sentido. A única coisa de que gostava nos últimos tempos era de estruturar bons termos de tutela para os filhos dos clientes.

- Se calhar, estou a perder o jeito, já nem gosto de ir ao tribunal - comentou Liz um dia, quando se encontraram no refeitório do hospital.

Acabava de vir de lá e estava furiosa com um cliente que se portara como uma besta com a mulher diante do juiz. Sentira-se até tentada a abandonar o caso, mas não o fizera.

- Talvez estejas a precisar de férias - observou Bill. Só tirara duas semanas no ano anterior e trabalhara fins-de-semana e noites, dando conta das tarefas de dois.

- Talvez devesse matricular-me num curso de esteticista e depois arranjar emprego num salão de beleza. Quem sabe se não era mais útil?

- Não sejas tão dura contigo - replicou Bill, sorrindo, mas Liz continuou desmotivada.

- O Jack adorava este tipo de trabalho, era muito mais o género dele. Eu só me especializei neste ramo para o acompanhar, mas agora não sei...

Era uma das melhores advogadas de divórcios na região, e custava a crer que não gostasse do que fazia. Os clientes teriam ficado boquiabertos com o que Liz estava a dizer, pois parecia sempre enérgica, cheia de ideias brilhantes e sugestões criativas! Contudo, ultimamente sentia-se como um boneco com as pilhas fracas. Já não gostava do seu trabalho e não se sentia feliz, embora achasse que tinha de continuar, pelo marido.

Perguntou a Bill o que pensava fazer no Dia de Acção de Graças. Já tinham falado nisso uma vez, mas ele, na altura, ainda não sabia se estava de serviço. No entanto, poucos dias depois verificou que não, nem sequer ficaria de prevenção, podendo portanto fazer o que quisesse.

- Porque não o passas connosco? - perguntou Liz com naturalidade.

Os filhos estavam a habituar-se a ele, e talvez fosse uma boa maneira de se habituarem ainda mais. Todos adoravam aquele dia, ou, pelo menos, tinham adorado, quando o pai era vivo. Liz sabia que ia ser diferente naquele ano, tanto para as crianças como para ela, e, tentando diminuir a tensão, convencera a mãe a não vir passar o dia com eles.

Apesar de tudo, não previa a reacção dos filhos quando lhes disse que Bill estaria presente. Megan teve um ataque, Rachel e Annie disseram que ele não era da família e que não fazia sentido que estivesse com eles, e até Jamie pareceu ficar ligeiramente surpreendido. Discutiu com Peter a hipótese de pedir a Bill que não viesse, mas ele achou que isso não era correcto e que talvez fosse agradável recebê-lo. Liz acabou por não lhe contar a reacção dos filhos, esperando que eles se habituassem à ideia e se portassem bem, mas, quando o dia chegou, depressa percebeu que tal esperança fora infundada, pois as três raparigas ainda estavam muito zangadas com ela.

Bill entrou, com calças cinzentas, casaco de tweed e gravata encarnada. Liz vestira calças e casaco de veludo castanho. Os filhos também estavam impecáveis, Peter com o fato usado no enterro do pai e Jamie de calças cinzentas e blazer. Formavam um belo grupo e, enquanto serviu vinho a Bill, Liz sentiu-se de repente satisfeita por ele estar ali. Percebeu que a mesa lhes pareceria vazia sem Jack e que a celebração teria sido mais uma lembrança enlutada. A presença de Bill obrigava-os a fazer cara alegre e a falar com ele e entre si.

Sentaram-se à mesa às cinco da tarde, como sempre, e ela agradeceu a Deus as muitas bênçãos compartilhadas, as pessoas sentadas àquela mesa e os ausentes, especialmente Jack. De cabeça baixa e em silêncio, ouviram as palavras dela. Apenas Megan olhou incisivamente para Bill Webster. Então, Liz disse ”ámen” e levantou-se para ir à cozinha, com Peter, para trazer o peru.

O rapaz sentara-se à cabeceira da mesa, o que recordou a todos que as coisas tinham mudado, e a cara nova ao lado de Liz acentuava-o.

A ave era magnífica e Liz cozinhara-a na perfeição. Carole estava fora naquele fim-de-semana, e as filhas tinham-na ajudado a fazer o recheio. Rachel, em particular, gostava de culinária e Jamie também ajudara, mas, ao tentar trinchar o peru, Peter provou ser totalmente incapaz, e Liz nunca dominara essa arte. Bill levantou-se e aproximou-se da cabeceira da mesa com um sorriso.

- Eu ajudo-te, filho - disse ele amistosamente. Estava a adorar a cena familiar em volta da mesa. Há anos que não celebrava o Dia de Acção de Graças, estava sempre a trabalhar, mas a sua frase atingiu o coração de Megan como uma espada e ela falou, tão baixo que mal se ouviu, mas suficientemente alto para Bill.

- Ele não é seu filho - disse ela, num tom venenoso, e o médico, surpreendido, deitou primeiro uma olhadela a Liz e depois voltou-se para a rapariga.

- Desculpa, Megan, não quis ofender.

Fez-se um profundo silêncio enquanto ele trinchava o peru, o que conseguiu com toda a perícia. Liz distribuiu os pratos e desatou a falar um pouco de mais e demasiado alto, para compensar o momento desagradável. Porém, quando Bill voltou a sentar-se, os ânimos pareciam ter serenado.

Foi uma refeição mais sossegada do que habitualmente. Era o primeiro Dia de Acção de Graças que passavam sem o pai, e todos estavam conscientes do sofrimento que ia ser o Natal que se avizinhava.

Bill perguntou se já tinham feito as compras habituais, e todos ficaram com uma expressão tristonha. Não era um grupo fácil, mas Jamie acabou por conseguir fazê-los rir com qualquer coisa que disse, e Annie lembrou o ano em que o pai deixara cair o peru no chão da cozinha enquanto o trinchava e ninguém contara à mãe. Ela nunca soubera que o bicho andara a patinar antes de o servir.

Bill riu com eles, e Liz encheu-lhe o copo de novo, e, então, quando Rachel a ajudou a levar os pratos vazios para a cozinha, disse em voz alta que o médico bebia de mais, e Bill ouviu.

- Não faz mal, Rachel, hoje não tenho de trabalhar replicou ele com um sorriso bem-disposto.

Ela não reagiu e Bill continuou a conversar com Jamie. Era evidente que não estava embriagado, mas bebera três copos de vinho e parecia confortável e contente, a falar de futebol com o garoto.

- O pai detestava futebol - declarou Megan malcriadamente, para o provocar, e todos tiveram consciência disso.

- Que pena, Megan! É um grande desporto. Eu jogava, na faculdade.

- O pai dizia que só os brutos e os imbecis é que jogam futebol - insistiu ela, passando das marcas, e Liz interveio rapidamente.

- Já chega, Megan!

- Pois chega, mãe! - gritou ela, atirando com o guardanapo e levantando-se, com os olhos cheios de lágrimas. Porque tem ele de estar aqui connosco? Não é nosso pai, é só seu namorado!

Os irmãos ficaram chocados e Liz tremia quando lhe respondeu:

- O Bill é um amigo e hoje é Dia de Acção de Graças. E isso significa precisamente amigos em volta duma mesa, agradecer a Deus e darmos as mãos com amizade.

- É só isso que faz com ele? ”Dão as mãos”? Aposto que é muito mais e que o paizinho a odeia! - insistiu Megan, que subiu depois a escada a correr e se enfiou no quarto, atirando com a porta.

Peter pediu desculpa por ela, mas Rachel e Annie abandonaram também a mesa. Jamie aproveitou então para se servir de tarte de maçã, enquanto ninguém via - parecia demasiado boa para não ser comida e os outros, aparentemente, não faziam tenções disso.

- Ora bolas para os feriados em família... - lamentou-se Bill, com uma expressão amarga, perante o olhar desolado de Liz.

Ela percebia que tinha sido demasiado ambiciosa ao convidá-lo e incluí-lo na família. Não ia ser tão fácil como esperara, na realidade, compreendia perfeitamente que seria um pesadelo.

- Eu vou lá falar com ela - disse Peter, envergonhado por todos, e, depois, dirigiu-se a Bill: - Peço desculpa pelas minhas irmãs.

- Não te preocupes, eu compreendo - mas a verdade era que não compreendia e olhou para Liz, tenso e amargo, vendo-a limpar os olhos com o guardanapo.

- Acho que é mais duro para elas do que eu pensava reconheceu ela.

- Para mim também não foi exactamente um piquenique, Liz - respondeu Bill francamente. - O papel de intruso não me serve, acho eu. Estão a reagir como se eu fosse um assassino ou como se tivesse culpa da morte do pai.

Sentia o ego ferido e os seus sentimentos haviam sido severamente atingidos pelas filhas dela. Além disso, não tinha em quem se desforrar além dela.

- Deves compreender como é difícil para elas. É o primeiro Dia de Acção de Graças sem o pai - disse Liz.

Toda a gente parecia culpá-la, Bill e três dos filhos, só Jamie continuava a comer, como se nada fosse com ele, e não havia outra pessoa à mesa.

- Eu sei, Liz, mas não é por culpa minha! - protestou ele, levantando a voz, o que fez Jamie olhá-lo, consternado.

- Ninguém disse que era, mas tu estás aqui e ele não. É tudo por minha culpa. Não devia ter-te dito que viesses autocriticou-se Liz, ainda a chorar, e Jamie observou-os em silêncio.

- E para o ano? Está descansada que eu arranjo maneira de trabalhar setenta e duas horas seguidas no hospital por altura do Dia de Acção de Graças. É evidente que não vou ser bem-vindo aqui, pelo menos até as tuas filhas saírem de casa - estava dominado pela ira.

- Vem cá no Dia de Acção de Graças do próximo ano? - perguntou Jamie, interessado.

- Pensava vir, mas agora já não sei - respondeu Bill bruscamente, mas depois odiou-se por responder torto à criança, estendeu a mão e tocou na de Jamie. Num tom de voz normal, para não o assustar, disse: - Desculpa... Eu estou só aborrecido.

- A Megan foi malcriada para a mãe - observou Jamie com toda a naturalidade. - E a Annie também. Elas não gostam de si?

Parecia com pena do amigo, e Liz viu Bill contrair os maxilares antes de responder.

- Acho que não e o problema é esse, não é? - A pergunta era dirigida a Liz, que desejou desesperadamente poder tranquilizá-lo. - Percebo que não sou persona grata nesta casa, e estou a tentar enganar-me a mim próprio ao pensar que alguma vez será diferente. Como Megan disse tão sucintamente no princípio da refeição, eu não sou o pai delas e nunca o serei.

- Mas ninguém espera que sejas - retorquiu Liz, no tom mais calmo que conseguiu arranjar. - Só tens de ser amigo. Ninguém espera que ocupes o lugar do Jack - continuou, lutando contra as lágrimas, diante do olhar irado dele.

- Talvez eu esperasse e seja esse o problema. Talvez eu estivesse a iludir-me pensando que podia ser importante para ti e para eles, em vez dum intruso sempre em segundo lugar em relação a ele. Que foi que a Megan disse, ”um bruto e um imbecil”?

- Ela estava a provocar-te...

A sua lealdade era para com os filhos, mas também lha devia a ele, era uma situação muito difícil para ela.

- E conseguiu-o na perfeição. Olha, sabes que mais? Acho que vou dar-lhes a todos um alívio e a mim também. Chegou a hora de voltar para o trabalho - declarou ele, pousando o guardanapo em cima da mesa e levantando-se.

- Julgava que não trabalhavas hoje - replicou Liz, confusa e aborrecida, pois Bill tinha-lhe dito que estava de folga, e fora assim que tudo começara.

- Seja como for, vou para o hospital, pelo menos lá sei o que faço. Parece-me que os ambientes familiares, sobretudo nestes dias especiais, não são o meu forte.

Na verdade, comportara-se perfeitamente, mas as cartas estavam contra ele, e Bill sabia-o, fora uma situação impossível desde o início. Olhou para Liz e nenhum dos dois se moveu, mas ela não ignorava que ia acontecer uma coisa terrível e que ambos tinham receio de a traduzir por palavras.

- Obrigado pelo jantar, Liz. Eu depois telefono-te e, sem mais, saiu porta fora e fechou-a com força, deixando-a de olhos postos nela.

Jamie levantou a carita para a mãe, com o prato vazio, e comentou a situação à sua maneira:

- Ele esqueceu-se de me dizer adeus. Está zangado comigo?

- Não, querido, é comigo. As tuas irmãs foram muito malcriadas com ele.

- Vai bater-lhes? - perguntou Jamie, o que provocou um sorriso em Liz.

Nunca lhes tocara e não fazia tenções de começar na idade delas, mas a sugestão era tentadora.

- Não, mas bem precisavam.

- O Pai Natal vai pôr carvão nas meias delas - declarou Jamie em tom solene, o que provocou novo sorriso da mãe.

Contudo, pensar no Natal fazia-a tremer, era o aniversário da morte de Jack, e percebeu que em circunstância alguma podia incluir Bill no que fizessem. O Dia de Acção de Graças por que acabavam de passar ensinara-lhe uma dolorosa lição.

Levantou a mesa com a ajuda de Jamie e depois subiu, para falar com as filhas. Peter estava com elas e era evidente que Megan estivera a chorar.

- Eu detesto-o! - exclamou ela imediatamente para a mãe, mas Liz conseguiu manter-se calma, apesar dos estragos feitos pela filha, porque percebia o que estava por detrás daquilo.

- Não me parece, Meg. Que tem ele para o detestares? É um homem bom, apesar de ter jogado futebol na faculdade. O que tu detestas é o facto de o teu pai ter desaparecido, e eu também, mas nada podemos fazer a esse respeito e a culpa não é do Bill. Não devia tê-lo convidado hoje, é apenas isso.

Peter tocou-lhe no braço, com um sorriso meigo. Admirava-a muito. Era sempre honesta com eles e o rapaz sabia que os adorava e, no seu caso pessoal, a dedicação de Liz redobrara desde o acidente na piscina. Lamentava, por ela, que o jantar tivesse sido um desastre tão grande e que Bill fosse o bode expiatório de Megan. Tal como a mãe, percebia perfeitamente o que acontecera, melhor até do que Bill. Na sua opinião, o médico tinha reagido mal, e disse isso mesmo a Liz, acompanhando-a até à porta do quarto.

- Não sei se posso censurá-lo, elas foram muito duras, e Bill não está habituado. Nunca teve filhos e há muito tempo que não é casado... Acho que ficou ofendido e pensa que não consegue chegar aos calcanhares do teu pai.

- Dê-lhe tempo. Elas acabam por se habituar a ele e sorriu, esperançado.

- Espero que sim.

Ficou deitada em cima da cama muito tempo, às escuras, sem se despir, a pensar em Jack, em Bill e nos filhos. Era uma situação complicada, e ela tinha o seu próprio desgosto e os seus sentimentos, apesar de raramente ter tempo para eles, demasiado ocupada que estava com os das outras pessoas. Começou a chorar, ao pensar no marido e nas saudades que tinha dele. Jack deixara um enorme vazio e, por vezes, parecia que não havia maneira de o preencher. Amava Bill, mas não do modo como adorara Jack, pelo menos, não de momento, embora pensasse que talvez um dia... Mas seria sempre diferente, porque eram pessoas diferentes.

O telefone tocou, e Liz estendeu a mão, sem acender a luz. Era Bill, muito tenso. Não parecia melhor do que ao sair lá de casa e, na realidade, parecia até pior, mas disse que precisava de falar com ela.

- Que é? - perguntou Liz, de olhos fechados, ainda com saudades do marido e sentindo-se mal com o que acontecera. Parecia-lhe ter a escalada do Evereste pela frente, apesar de ter começado a trepar onze meses antes.

- Lamento, Liz, mas não sou capaz. Estive a pensar e não sei o que me aconteceu. Acho que endoideci temporariamente. Conheci-te e apaixonei-me, e a tua família parece tão saudável do exterior, e tu tão vulnerável, que caí na ratoeira. Mas não é para mim e quero sair dela.

- Que estás a dizer? - perguntou ela, com os olhos muito abertos, a olhar para a escuridão, mas sabia, ele fora bem claro, ela é que não queria ouvir.

- Estou a dizer que cometi um erro e que acabou. Eu amo-te e os teus filhos são fantásticos, mas não sou capaz. A Megan fez-nos um grande favor, podíamos ter levado meses ou até anos a ver isto com nitidez. Tudo ficou claríssimo assim que saí daí. Fui correr e tudo se esclareceu no meu espírito. Endoideci temporariamente, mas agora estou lúcido... Liz... lamento... mas acabou.

Não encontrou palavras para lhe responder, ficou ali deitada, sentindo-se como se alguém a tivesse atingido no peito, deixando-a sem respiração. Incapaz de falar, só conseguia lembrar-se das ondas de pânico que a tinham avassalado na altura da morte do marido. E agora ia perder Bill, antes de ter tempo para se habituar a ele, para o deixar entrar melhor no coração, já lá estava mas queria sair. Tudo acabado. Dum golpe cruel, tinha-o perdido. Obrigada, Megan.

- Não queres pensar um pouco no assunto? Entraste em pânico e sentes-te magoado, mas elas acabam por se habituar a ti, tenho a certeza. Só precisam de tempo - insistiu Liz, tentando convencê-lo, como faria com um dos filhos.

- Não vale a pena, Liz. Isto não é o que eu quero, vejo-o agora com toda a clareza, e acho que devemos ambos dar graças a Deus. - Mas ela não se sentia grata, pelo contrário, estava devastada. - Eu ligo daqui a uns dias para saber de ti. Lamento, de verdade, mas tem de ser assim. Eu sei.

Como sabia? E que sabia? Duas das filhas dela haviam sido malcriadas para ele, mas não passavam de miúdas com saudades do pai.

- Porque não te acalmas e falamos disto depois?

- Não há mais nada para falar - insistiu ele, parecendo realmente em pânico. - Estou fora, Liz, já te disse que acabou. Tens de entender.

Porquê? Porque tinha ela de aceitar o mau comportamento de toda a gente? Porque precisava de arranjar desculpas para os filhos e para ele? Os filhos perdiam, mas ela perdia também, e muito mais.

- Eu amo-te - disse, com clareza, antes que as lágrimas a sufocassem.

- Isso passa-te, e a mim também. Não quero outro divórcio e tu não arranjas mais dores de cabeça. Já tens suficientes sem mim. Podes dizer às pequenas que descansem porque o imbecil está fora das vidas delas. Podem começar a festejar - falou com amargura, como se fosse uma criança petulante, e Liz sentiu-o totalmente inacessível.

- O Jamie adora-te e o Peter também. Que vou dizer-lhes?

- Que nos enganámos e percebemos o erro antes que fosse demasiado tarde. Vai ser um alívio para eles e para nós também. Agora vou terminar, Liz. Nada mais tenho para dizer. Adeus.

Despediu-se com uma determinação que a deixou ofegante, e desligou antes de ela poder abrir a boca.

Continuou deitada, às escuras, com o auscultador na mão e, quando o pousou, chorava. Não podia acreditar no que acabava de acontecer. De repente, Bill ficara ”lúcido” e estava tudo acabado. Sentiu vontade de lhe dar umas boas sacudidelas, mas nem sequer se sentia zangada com ele, apenas devastada. E, dessa vez, chorou até adormecer, mas não pelo marido, antes por Bill Webster.

 

Capítulo 11

Liz arrastou-se durante os dias que se seguiram ao fiasco do Dia de Acção de Graças, sem contar que Bill a deixara, nem mesmo a Victoria, quando falaram ao telefone, e muito menos à mãe, que faria certamente uns quantos comentários desagradáveis. Ela dissera-lhe que achava um disparate convidá-lo nessa ocasião, e Liz pensara que fora por ciúmes por ter sido preterida, embora tivessem falado na sua vinda no Natal.

Depois do feriado, o aspecto de Liz era pior do que nos últimos meses. Estava triste, cansada e irritada com os filhos. Ao princípio, tanto Carole como Jean pensaram que era por causa do período festivo que se aproximava e das recordações a ele ligadas, mas foi a secretária quem compreendeu finalmente o que acontecera. Bill deixara de telefonar.

- Vocês dois discutiram? - perguntou ela a custo, quando a advogada voltou do tribunal na semana a seguir ao Dia de Acção de Graças.

Liz olhou-a com uma expressão sombria, acentuada pelas olheiras fundas. Tinha perdido peso e dormia ainda menos do que anteriormente.

- Deixou-me. As miúdas trataram-no abaixo de cão no jantar do Dia de Acção de Graças, pelo menos a Megan e a Annie, e foi de mais para ele. Foram realmente muitíssimo malcriadas, mas aparentemente Bill só precisava disso para se convencer de que era tudo um erro terrível e de que o nosso romance não passava de uma loucura temporária.

Há duas semanas, pediu-me que casasse com ele no Dia de São Valentim, mas nem chegámos ao Natal.

- Talvez tenha entrado em pânico - disse Jean cautelosamente.

Não via Liz tão mal há meses, o que a preocupava. Parecia desesperadamente infeliz e a sessão no tribunal não lhe correra bem nesse dia. Tinha perdido o caso, o que parecia ter-lhe aumentado a depressão, mas a verdadeira questão era Bill.

- Ele volta, Liz, deixe-o acalmar uns dias - concluiu a secretária.

- Não me parece. Acho que estava a falar a sério.

E ficou com a certeza absoluta, quando lhe telefonou no fim-de-semana e ele não retribuiu a chamada. Detestando-se pelo que estava a fazer, pediu que o chamassem e, daí a umas horas, Bill ligou finalmente e disse que estivera ocupado com uma urgência, mas o seu tom de voz era distante e gelado.

- Só queria saber se estavas bem - disse Liz, tentando falar com desenvoltura, mas era evidente que ele não parecia interessado em falar-lhe.

- Estou óptimo, Liz. Obrigado por teres telefonado. Olha, desculpa, mas tenho que fazer.

- Vê se me ligas - pediu ela, sentindo que estava a ser patética, mas ele foi directo, como sempre:

- Não me parece que seja boa ideia, por agora. Ambos precisamos de curar as feridas e de recuperar do que aconteceu.

- E que aconteceu realmente? - perguntou ela, insistente, percebendo imediatamente que ele não gostara da sugestão.

- Tu sabes o que foi. Recuperei o bom senso. Não encaixo na tua família, Liz, e nem sequer quero tentar. És uma grande mulher e eu amo-te, mas a nossa ligação nunca daria resultado. Pelo menos, para mim. Tu precisas de encontrar outra pessoa quando tu e os teus filhos recuperarem da perda do Jack, e isso pode levar um tempo.

Contudo, não era em Jack que ela pensava nem pensara durante a última semana, era nele. Pela primeira vez em onze meses, o marido parecia esfumar-se na distância, e o sofrimento que Bill lhe infligira ao deixá-la era muito mais agudo e desolador.

- Se nos amamos realmente, podemos resolver a situação. Porque não tentamos?

- Por uma excelente razão: não quero. Não desejo casar nem ter filhos, sobretudo de outra pessoa e que não me toleram. Elas tornaram-no suficientemente claro e eu recebi o recado.

- Acabariam por te aceitar.

Estava praticamente a implorar, desejando não o fazer. Era humilhante, mas não se importava, sabia agora como o amava, só que parecia ser demasiado tarde. Ele nem sequer lhe dava uma oportunidade para tentarem remediar o problema.

- Talvez, mas não a mim. Além de que não quero. Arranja outro tipo - foi uma frase dura, mas que a fez entender a mensagem.

- Eu amo-te a ti. Não estamos a falar de genéricos, doutor.

- Não posso ajudar-te - insistiu ele com frieza - e preciso de voltar para o serviço. Tenho uma criança de cinco anos com uma traqueotomia à minha espera. Feliz Natal, Liz.

Estava a ser bruto, e Liz quis odiá-lo, mas não conseguiu, não tinha energia suficiente para isso. Sentia-se como se alguém a tivesse desligado da corrente desde o jantar do Dia de Acção de Graças e, de facto, alguém o fizera - ele.

Nessa tarde, foi para casa, triste e exausta, e ficou pior quando Jamie levantou os olhos dos biscoitos de Natal que estava a fazer com Carole e lhe perguntou por Bill. Era uma pergunta interessante e não sabia como responder. Foi-se embora? Acabou? Já não gosta de nós? Era difícil encontrar as palavras certas para ele.

- Ele... tem muito que fazer, Jamie. Não arranja tempo para nós neste momento.

- Ele morreu? - insistiu o garoto, com uma expressão preocupada.

No seu espírito, as pessoas que desapareciam, como o pai, estavam provavelmente mortas.

- Não, não morreu. Mas não quer ver-nos durante uns tempos.

- Está zangado comigo?

- Não, meu querido, não está.

- Ele prometeu que ia comigo lançar um papagaio de papel e nunca fomos, é um que fez quando era pequeno.

- Talvez seja melhor pedir um ao Pai Natal este ano sugeriu Liz, esgotada.

Não havia muito mais que pudesse dizer ao filho. Bill Webster saíra da vida deles, e ela nada podia fazer em contrário, nem implorar o traria de volta, sabia-o.

Nem pedidos nem lisonjas, nem argumentos, nem carinho. Tentara tudo ao telefone e a única coisa que ficara bem clara era que ele não a queria. E contra factos não havia argumentos, Bill tinha todo o direito de tomar essa decisão.

- Não é a mesma coisa se o Pai Natal me trouxer um - observou Jamie, triste. - O do Bill é especial porque foi ele quem o fez.

- Talvez possamos também arranjar um - alvitrou Liz, lutando contra as lágrimas.

Se conseguira treiná-lo para o salto em comprimento, talvez pudesse ensiná-lo a construir um papagaio de papel. E que mais teria de fazer pelos filhos? Quantas pessoas precisaria de ser para todos porque um louco matara Jack e Bill Webster decidira abandoná-la com um ataque de pânico? E por que motivo era sempre ela a apanhar os cacos? Era algo que não lhe saía da mente.

Carole foi buscar as garotas uns minutos depois, e Jamie deu-lhes a notícia assim que entraram em casa:

- O Bill nunca mais quer ver-nos.

- Ainda bem - respondeu Megan, parecendo depois ligeiramente arrependida ao ver a cara infeliz da mãe.

- Isso que estás a dizer não é muito bonito, Meg - replicou Liz baixinho, e parecia tão triste que a filha lhe pediu desculpa.

- Não gosto dele, pronto - acrescentou.

- Tu mal o conheces - disse Liz, e Megan acenou com a cabeça.

Depois, foi para cima com as irmãs, a fim de fazerem os trabalhos de casa. Só tinham mais três semanas até às férias de Natal, mas o espírito natalício estava ausente lá de casa, e Liz sentiu-se desolada quando foi buscar as decorações.

Decidiu não colocar as luzes exteriores naquele ano como Jack costumava fazer. Enfeitaram apenas a casa por dentro e duas semanas antes do Natal foi com os filhos comprar uma árvore, mas ninguém se mostrou entusiasmado.

Nunca mais ouvira uma palavra de Bill e desconfiava de que as coisas iam continuar assim. Ele tomara uma decisão, tencionava mantê-la e Liz admitira-o finalmente a Victoria, que ficou desolada e se ofereceu para a levar a almoçar fora, mas Liz nem sequer quis vê-la.

À medida que o Natal se aproximava, parecia que a casa ficava sob um peso e que todos mergulhavam numa depressão. Ia fazer um ano que Jack morrera e, de repente, parecia que tinha sido na véspera. Os filhos falavam constantemente nele, e Liz sentia-se num ricochete entre o sofrimento pela perda de Bill e as recordações do marido. Passava a maior parte do tempo fechada no quarto e não receberam amigos. Recusou todos os convites para festas de Natal e decidiu mesmo que a mãe não viesse, disse-lhe que queria estar sozinha com os filhos. Ela afirmou que compreendia, embora parecesse magoada, e que passaria o Natal com uma amiga, viúva como ela.

As únicas coisas que Liz e os filhos fizeram foi enfeitar a árvore e meter no forno vários tabuleiros de biscoitos de Natal, enquanto ela rezava para que as férias acabassem depressa. Ainda pensou em levá-los a esquiar entre o Natal e o Ano Novo, mas ninguém estava com disposição e decidiram ficar em casa mergulhados nas recordações dolorosas.

Estava sentada à secretária, na semana antes do Natal, quando recebeu uma chamada duma cliente que parecia ofegante e lhe perguntou se podia ser recebida. Liz tinha tempo livre nessa tarde e disse-lhe que sim, e o que ouviu quando a mulher chegou não lhe agradou. O ex-marido punha em perigo a vida do filho de ambos, de seis anos, levando-o atrás de si na moto, sem capacete, e andando a toda a velocidade em auto-estradas, além de o deixar ir para a escola de bicicleta pelo meio do trânsito, mais uma vez sem capacete. A cliente queria que Liz lhe retirasse o direito de visita e, para marcar bem a sua posição, pretendia exigir-lhe parte da empresa. Aquilo soou familiar a Liz, que imediatamente abanou a cabeça com firmeza.

- Isso não - replicou sem hesitar. - Vou pedir mediação, e estabelecer uma lista de coisas que ele não pode fazer com o vosso filho, mas não vamos para tribunal nem lhe atacamos a empresa.

Falou com tanta veemência que a cliente olhou para ela desconfiada.

- Porque não? - por instantes, pensou que o marido a tinha contratado primeiro.

- Porque o preço é demasiado elevado - respondeu Liz simplesmente.

Perdera quase cinco quilos nas últimas três semanas e estava pálida e com ar cansado, mas parecia tão decidida que a mulher a escutou.

- Tive um caso como esse uma vez, embora não envolvesse crianças, mas a única maneira de obter a atenção do homem foi congelar-lhe os bens.

- E deu resultado? - perguntou a mulher, esperançada, pois aquilo soava-lhe bem, mas a Liz não.

- Não, não deu. Ele matou a mulher e suicidou-se, mas primeiro matou o meu marido, no Natal do ano passado. Se a senhora atacar o seu ex-marido com demasiada força, ele pode vingar-se em si ou no seu filho. E eu não alinho nisso.

Fez-se um longo silêncio, até que a mulher acenou com a cabeça.

- Lamento muito.

- Obrigada. Também eu. Portanto, o que vamos fazer é o que eu disse.

Definiram uma lista de actividades perigosas que não seriam permitidas, e Liz ligou, diante da cliente, para a mediadora nomeada pelo tribunal, mas esta encontrava-se cheia de trabalho e só podia ocupar-se do caso no princípio de Janeiro. Faltavam ainda duas semanas e meia, e Liz concordou em escrever uma carta de aviso, para ajudar.

- Não vai ter qualquer efeito - declarou a cliente. Se não lhe der com um martelo na cabeça, ele não entende.

- E, se dermos, talvez a senhora e o seu filho venham a sofrer, e eu sei que não é isso que quer.

Era uma ameaça que fez a mulher abandonar o escritório sentindo-se desamparada, mas, pelo menos, Liz pensou que não pusera em risco a cliente ou a criança. Nessa tarde, quando chegou a casa, encontrou os filhos com melhor disposição.

Tinha sido o último dia de aulas e Carole prometera levar os quatro mais novos a patinar. Peter ia jantar fora e ao cinema com a nova namorada e Liz preparava-se para aproveitar um serão calmo quando o telefone tocou, às nove e meia. A voz do outro lado estava histérica e precisou de um minuto para a reconhecer: era a cliente que recebera nessa tarde, para quem marcara a mediação. Para lhe dar uma sensação de segurança, dissera-lhe o número de casa. A mulher chamava-se Helene e parecia quase incoerente.

- Acalme-se, Helene, e tente contar-me o que aconteceu.

Contudo, precisou de mais de cinco minutos para compreender. O ex-marido, Scott, levara o filho Justin para andar de moto nas colinas de São Francisco. Não sabia ao certo se estava bêbedo, mas era possível, e a criança não tinha capacete quando foram abalroados por um camião. Justin tinha as duas pernas partidas e sofrera um traumatismo craniano, embora por milagre tivesse caído na relva, diante duma casa. Estava nos Cuidados Intensivos do Hospital Infantil de São Francisco, e o pai em estado crítico e em coma. A polícia tinha ido lá a casa dizer-lhe. O único conforto para Liz era que, mesmo que tivesse concordado em levar o estupor a tribunal, o caso não teria ainda sido julgado, não se evitando, portanto, o que acabava de acontecer. Não fora por culpa dela, mas, fosse ou não, o garotinho de Helene encontrava-se em perigo.

- Onde está agora? - perguntou Liz, levantando-se e pegando na carteira.

- Nos Cuidados Intensivos, no hospital.

- Tem alguém consigo?

- Não, estou sozinha - disse a mulher, a soluçar. Era de Nova Iorque, e queria voltar para lá, assim que o problema com o ex-marido estivesse resolvido.

- Estou aí em vinte minutos - disse Liz, desligando sem esperar resposta.

Agarrou no casaco e saiu, satisfeita por não ter ido patinar com os filhos. Sentira-se culpada por não os acompanhar, mas estava cansada e deprimida e preferira ficar em casa.

Dezoito minutos depois, arrumava o carro junto ao hospital e, quando chegou aos Cuidados Intensivos, viu Helene a soluçar nos braços duma enfermeira. Tinham acabado de levar Justin para lhe colocar parafusos nas duas pernas, mas a enfermeira contou que ele estava consciente e que a cabeça apresentava apenas uma leve concussão.

A criança tivera muita sorte. Mas ali sentada no hospital, enquanto esperavam, Liz pensou em Bill e no que o médico estaria a fazer. Sabia que já não valia a pena pensar nele e que, ao fim de três semanas, ele já não telefonaria mais. Tomara uma decisão e mantinha-a. Bill era desse género e os problemas personificados por ela e pelos filhos eram demasiado complicados para ele.

Justin voltou do bloco operatório pouco depois da meia-noite, ainda sedado, com as pernas ligadas até às ancas e o aspecto dum boneco de trapos, mas o médico garantiu que o garoto ficava como novo e que daí a seis meses ou um ano lhe tirava os parafusos.

Helene chorou enquanto o médico falava, mas estava mais calma do que quando Liz chegara. As duas tinham conversado durante horas sobre o que iam fazer, e ela acabara por convencer Liz a meter o ex-marido em tribunal, aplicando-lhe todas as restrições possíveis, mas a advogada queria que ela voltasse para Nova Iorque. Helene era nova, tinha lá família e até um antigo namorado, que ainda lhe telefonava e falava em casar com ela. Liz queria-a dali para fora e o mais longe possível do ex-marido.

- E depois... - interrompeu-se, olhou para Helene com um sorriso triste, enquanto a mãe da criança a acompanhava até ao elevador e lhe agradecia ter-lhe feito companhia toda a noite, e declarou: - E depois, reformo-me!

Disse aquilo com um suspiro de alívio. Era o que mais desejava. Estava absolutamente farta daquele tipo de advocacia, e pensava no assunto há meses. Aquela tinha sido a última gota de água. Pensara novamente no assunto a caminho do hospital e teve a certeza.

- E que vai fazer?

- Plantar rosas e ver televisão! Não, a sério, é uma coisa que me agrada realmente e já penso nisso há muito tempo: defender os direitos das crianças. Fecho o escritório que partilhava com o meu marido e passo a trabalhar em casa. Durante o último ano, aguentei-o sozinha, mas não é o que quero fazer.

Ao dizer aquelas palavras, tinha melhor aspecto do que ultimamente, e Helene agradeceu-lhe mais uma vez quando se despediram.

- Eu telefono-lhe assim que souber a data da audiência - disse Liz, já dentro do elevador, com um sorriso para a cliente.

Dirigindo-se ao carro, avançou com um passo mais ligeiro, segura de ter tomado a decisão certa. Pensou se Bill sentiria a mesma coisa ao dizer-lhe que estava tudo acabado. Talvez, talvez ela fosse uma carga demasiado pesada para ele, tal como o escritório que partilhara com o marido se tornara para ela. Portanto, tinha de respeitar a decisão de Bill, mas Liz tomara a sua finalmente, naquela noite, de mãos dadas com Helene, que até parecia capaz de matar o ex-marido pelo que ele fizera ao filho, por pura irresponsabilidade. O homem ainda estava em coma quando Liz saiu do hospital, e havia possibilidade de ter lesões cerebrais, mas pelo menos a criança ia ficar boa, e para ela isso era o mais importante.

Chegou a casa pouco depois da uma da manhã e encontrou todos deitados, excepto Peter, que acabava de entrar e ficou admirado por ver a mãe. Ela ultimamente só saía de casa para ir ao escritório ou ao tribunal, nunca à noite, desde que Bill desaparecera.

- Onde foi, mãe?

- Estive no hospital com uma cliente. É uma longa história.

Trocaram algumas palavras e foi-se deitar. Estava exausta, mas satisfeita com a sua decisão. Não tinha dúvidas de que era a certa.

Na manhã seguinte, assim que chegou ao escritório, ligou para o tribunal e marcou a data da audiência. Depois, telefonou a Helene para a informar. Justin estava bem e ia para casa daí a dias, mas quando Liz lhe falou na audiência, ela respondeu baixinho que não era precisa.

- Não está a sentir-se culpada por metê-lo em tribunal, pois não? Nenhum juiz dará razão a um homem que leva um filho de seis anos na moto sem capacete. Agora pode servir-se disso.

- Não preciso.

- Porque não? - perguntou Liz, sem perceber, pois tinha já em mente o que ia dizer na audiência, marcada para a semana entre o Natal e o Ano Novo.

- O Scott morreu duma hemorragia cerebral ontem à noite - disse Helene calmamente, embora parecendo triste, afinal, fora seu marido e era pai do seu filho.

- Ah... lamento - acabou por dizer Liz.

- Também eu... Odiei-o durante os últimos dois anos, mas sempre era pai do Justin. Ainda não lhe disse.

Aquelas palavras fizeram Liz fechar os olhos com força e recordaram-lhe o que lhe acontecera.

- Tenho muita pena. Se eu puder ajudar em alguma coisa, ligue - disse ela, pensando que o garoto ficaria desolado, mesmo que a mãe não estivesse.

- Acho que deve saber o que isso representa... para as crianças, quero dizer.

- Pois sei. Vai ser duro durante muito tempo. Nós ainda não recuperámos,

- Vou voltar para Nova Iorque assim que o Justin puder viajar e fico em casa dos meus pais.

- Parece-me muito boa ideia.

Desligaram e Liz continuava pensativa quando Jean entrou no seu gabinete.

- Que foi que aconteceu? - perguntou.

Ouvira Liz dizer à cliente que lamentava, e sabia que ela estivera a fazer-lhe companhia no hospital quase toda a noite. Ficou chocada quando soube do ocorrido.

- É incrível o que as pessoas fazem com os próprios filhos! - comentou a secretária.

- Tenho de dar-lhe uma má notícia - começou Liz, sentindo-se culpada, mas estivera toda a manhã a ganhar coragem para informar Jean da sua decisão. O que era bom para ela ia ser mau para a outra, e a própria Liz tinha pena de se separar dela. - Não sei como hei-de dizer isto, a não ser directamente - que, aliás, era como dizia tudo, qualidade que Jean muito apreciava nela. - Vou fechar o escritório.

- Vai reformar-se? - perguntou Jean, espantada, embora sabendo que não tinha motivo para isso.

Liz aguentava uma incrível carga de trabalho desde a morte do marido, e a secretária calculava que seria apenas uma questão de tempo até ela decidir que não podia mais. A verdade era que podia, mas não queria, sem jack, e não desejava arranjar outro sócio.

- Vou trabalhar a tempo parcial, em casa, e dedicar-me aos direitos das crianças. Era a única coisa de que eu gostava de verdade no nosso trabalho, detestava todas as lutas e truques, todas as ameaças e disparates. Isso era mais o estilo do Jack do que o meu. Preocupo-me com as crianças, e é o que quero fazer agora.

Jean sorriu e foi até junto dela para a abraçar.

- Faz muito bem! Este escritório estava a dar cabo de si. Vai ser fantástica com os direitos das crianças.

- Espero bem que sim - disse Liz, que depois se mostrou preocupada e perguntou: - E a Jean, que vai fazer? Tenho estado a pensar nisso toda a manhã.

- Também chegou a altura de eu amadurecer. Pode parecer loucura com a minha idade - tinha quarenta e três anos -, mas quero estudar Direito.

Liz soltou uma gargalhada, era a solução perfeita.

- Olhe, não vá para o direito da família, que detesta com certeza!

- Quero especializar-me em direito criminal e depois trabalhar no gabinete do promotor público.

- Bravo! - exclamou Liz.

Calculava que precisasse de três meses para se libertar dos processos que tinha entre mãos, e depois queria descansar uns tempos e contar a toda a gente o que ia fazer. Merecia um intervalo, e queria passá-lo com os filhos. Eles tinham sido pacientes durante o último ano, enquanto a mãe mantinha uma dúzia de bolas no ar, num malabarismo de longas horas e dias de trabalho. Sentia que lhes devia esse interregno.

- Se me matricular já, começo as aulas em Junho, o que me dá também uns meses de descanso. Vai ver que nos faz bem, às duas - comentou Jean, satisfeita. Sentiam-se como se tivessem envelhecido um século naquele ano, embora ninguém o dissesse, pelo aspecto de ambas.

Liz continuava a conversar com Jean quando Carole ligou e a secretária pensou perceber-lhe uma nota de pânico na voz, mas limitou-se a dizer quem era. Calculou que tivesse imaginado, e que a governanta estivesse apenas cheia de trabalho, com as crianças todas em casa, de férias.

- Olá! Que se passa? - perguntou Liz, expansiva e descontraída, depois de ter tomado a sua importante decisão.

- Jamie - a maneira como ela disse aquilo recordou a Liz o Verão anterior, Carole estava a falar em estenografia.

- Que aconteceu? - perguntou Liz, invadida por uma onda de pânico.

- Estava a tentar pendurar um anjo de papel, que fizemos. Foi buscar o escadote enquanto eu estava com a Meg, e caiu. Acho que tem um braço partido.

- Merda! - faltavam cinco dias para o Natal, e ouviu-o chorar. - É grave?

- Tem o braço numa posição muito estranha.

- Vou já ter com vocês ao hospital.

Pelo menos, não era tão dramático como o que acontecera a Peter ou ao pequeno Justin, na noite anterior, mas era a primeira vez que Jamie partia alguma coisa, e ela sabia que o garoto devia estar assustadíssimo. Agarrou no casaco e na carteira e saiu a correr, com Jean a perguntar-lhe o que acontecera.

- Braço partido! - gritou Liz, correndo pela escada. Parecia-lhe que nunca tinha um minuto para se sentar e gozar a vida. Mas, afinal, o que havia para gozar ultimamente?

O Natal avizinhava-se como um pedregulho prestes a cair-lhes em cima. Jack tinha partido, e agora Bill também. Que feliz Natal!

 

Capítulo 12

Liz foi a toda a velocidade até ao hospital, como fizera na véspera por Helene, mas daquela vez no papel de mãe ansiosa e não de confortadora profissional, era ligeiramente diferente. Jamie continuava cheio de dores quando ela chegou e gritava de cada vez que uma enfermeira tentava tocar-lhe. Liz sentiu-se agoniada ao ver o ângulo do braço dele. Não restavam dúvidas de que estava partido, a única questão era saber com que gravidade.

Procuravam convencê-lo quando Liz se aproximou, mas já haviam chegado à conclusão de que teriam de o adormecer antes de o levar para a cirurgia. O ortopedista fora chamado e Carole parecia desvairada e culpada.

- Tenho tanta pena, Liz... Tirei os olhos dele por cinco minutos...

- Não se culpe, podia ter acontecido comigo em casa. Jamie por vezes fazia coisas assim, como todas as crianças, e, por motivos óbvios, era um bocadinho menos sensato

e seguro do que a maioria dos garotos da sua idade. Liz tentou acalmá-lo, sem resultado, pois ele gritava tão alto que nem a ouvia. Tinha muitas dores e encolhia-se

em cima da maca, sem deixar que lhe tocassem. Era uma cena desoladora. Tentou novamente falar com ele, esgotada e enervada, e então ouviu uma voz conhecida atrás

de si:

- Que se passa aqui?

Voltou-se instintivamente e deparou-se-lhe Bill Webster. Ouvira a algazarra, vira de longe o cabelo ruivo e não conseguira manter-se indiferente.

- Que aconteceu? - perguntou ele directamente a Liz, sem a cumprimentar sequer.

- Caiu dum escadote e partiu o braço - respondeu ela simplesmente, enquanto Bill avançava para Jamie, parando diante dele até ter a certeza de que o garoto o via.

Por um momento, os gritos diminuíram, transformando-se em soluços. Jamie olhou para o médico, com os ombrozinhos sacudidos pelo choro.

- Que sucedeu, campeão? Estavas outra vez a treinar para os Jogos Olímpicos? Ainda não é altura, não sabias?

Estendeu suavemente a mão para o braço magoado e, embora Jamie se encolhesse, não gritou nem saltou da maca, e deixou Bill tocar-lhe.

- Eu cccaíííí... duuum... escadoooote...

- Estavas a pendurar alguma coisa na árvore de Natal?

- Jamie fez que sim com a cabeça. - Sabes o que vamos fazer? Vamos pôr-te aí um belo aparelho de gesso, mas tens de me prometer uma coisa. Prometes?

- Qqqquaaall é a pppprommmesssa?

Jamie tremia dos pés à cabeça por causa dos soluços, mas Bill, sem parar de falar para o distrair, ia-lhe apalpando o braço, e Jamie não protestou.

- Quero ser o primeiro a assinar o gesso. Combinado? Não o segundo ou o terceiro... Tenho de ser o primeiro. Está bem?

- Está.

Jamie acenou com a cabeça. Nesse momento, chegou o ortopedista e os dois médicos trocaram impressões. Depois, Bill olhou para Liz. Achava-a muito magra e, naquele momento, preocupada com o filho, por isso tinha feito uma sugestão ao colega.

- Sabes o que vamos fazer? - perguntou a Jamie, como se tivesse uma surpresa fantástica para ele. - Vamos lá para cima e pomos-te o aparelho agora. E eu vou contigo, para ter a certeza de que ninguém o assina antes de mim. Que te parece? Dormes uns minutos e, quando acordares, sem dares por isso, tens o aparelho e eu assino-o!

- E posso pôr a cama a andar para cima e para baixo? perguntou, lembrando-se da do irmão naquele mesmo hospital.

- Arranjamos-te uma que podes pôr a andar para todos os lados, mas primeiro temos de tratar do aparelho de gesso.

Deitou uma olhadela a Liz para a sossegar, e ela acenou com a cabeça. Percebeu nessa altura o que ele tinha feito. Pedira ao colega que o deixasse ficar com Jamie na sala de operações, e esse gesto comoveu-a. Quis agradecer-lhe, mas Bill já se afastava a empurrar a maca de Jamie em direcção ao elevador, com o ortopedista atrás deles. Não quis chamar o filho, com medo de que ele se lembrasse de que a mãe não podia acompanhá-lo, por isso, sentou-se numa cadeira, encolhida e infeliz, preocupada com o garoto e a pensar no médico. Fora um choque vê-lo, mas com tudo aquilo à volta deles, nem tinham podido falar um com o outro, o que fora provavelmente melhor.

Nada mais havia a dizer, afinal. Passara um mês desde a última vez que o vira, e continuava a chorar até adormecer todas as noites por sua causa, mas ele não sabia disso.

Demoraram mais duma hora e, quando voltaram, Jamie ainda vinha meio a dormir e Bill continuava junto dele. O ortopedista fora tratar doutro caso, e Bill disse-lhe muito profissionalmente que tudo correra bem. Era uma fractura simples, podiam tirar-lhe o aparelho daí a seis semanas e tinham-lhe posto um que lhe permitia tomar duche.

- Ele vai acordar daqui a uns minutos. Portou-se muito bem. Adormecemo-lo tão depressa que nem percebeu o que se passava.

Liz lembrou-se dos modos bruscos com que ele se lhe dirigira da primeira vez, e reparou como agora estava a ser meigo com Jamie. Era um homem de mil facetas, e o facto de Megan lhe ter chamado ”bruto” fê-la encolher-se intimamente. Havia sido imperdoável.

- Queres um café enquanto ele não acorda? Talvez ainda demore uns vinte minutos - ofereceu o médico.

- Tens tempo? - perguntou ela.

Não queria abusar, sabia como ele estava sempre ocupado, e já passara quase duas horas com Jamie.

- Tenho - respondeu Bill, conduzindo-a pelo corredor até uma sala onde os médicos das urgências descansavam entre casos, a qual estava vazia. Estendeu-lhe uma chávena de café a ferver e disse: - Ele vai ficar bom, Liz. Não te preocupes.

- Obrigada por teres sido tão simpático para com Jamie. Agradeço-te muito. Ele estava apavorado quando eu cheguei.

- Fez uma gritaria que ia deitando a casa abaixo. Por isso é que vim ver o que se passava. Grandes pulmões, os do menino Jamie! - gracejou ele, sorrindo, enquanto se servia de café.

Liz sorriu também e os olhos de ambos cruzaram-se, mas nenhum deles quis falar doutra coisa, pois era evidente que se sentiam embaraçados. Ele parecia ter igualmente perdido peso e estava pálido e com ar cansado, mas a época do Natal era sempre complicada no hospital. Havia muitos condutores embriagados e muitos desastres, que provocavam traumas que ela nem conseguia imaginar, como o que acontecera ao pequeno Justin e depois a Jamie, muito embora Bill só se ocupasse dos casos mais graves, como o acidente de Peter.

- Estás com bom aspecto - observou ele por fim, e Liz acenou com a cabeça, sem saber como reagir. Não podia dizer-lhe que pensava nele noite e dia e que chegara à conclusão de que o amava profundamente, era um bocadinho tarde para isso.

- Deves ter muito que fazer nesta época festiva - disse ela apenas para continuar a conversa.

Tudo o mais que pudesse dizer ia soar argumentativo ou patético, e não valia a pena tentar vender-lhe uma coisa que Bill não queria comprar. O silêncio dele era a mensagem final, e ela ouvia-a perfeitamente.

- Tenho bastante, sim. Como está o Peter? - mantinha a conversa sobre tópicos neutros, como um ex-doente.

- Como novo e completamente apaixonado - respondeu ela, sorrindo.

- Ainda bem. Diz-lhe que perguntei por ele. - Olhou para o relógio e sugeriu que voltassem para junto de Jamie. Já deve ter acordado - informou.

Tinha, e estava a perguntar pela mãe e por Bill, e assim que os viu exibiu um grande sorriso.

- Não te esqueceste da promessa, pois não, campeão? - perguntou o médico.

Jamie abanou a cabeça e Bill tirou um marcador do bolso. Escreveu um pequeno poema, desenhou um cãozito e assinou, deixando o garoto extasiado.

- Foi o primeiro, Bill, como eu prometi!

- Claro que sim.

Bill deu-lhe um abraço e Liz sentiu uma dor no coração. Era aquilo que perdera no dia em que ele saíra da sua vida, mas sabia-o perfeitamente, assim como não ignorava que nada podia fazer para o remediar. Ele tomara a sua decisão.

- Nunca deitou o seu papagaio comigo - disse então Jamie, e Bill pareceu surpreendido e depois atrapalhado.

- Tens razão, não deitei. Um dia destes, telefono à tua mãe e vamos a isso. Talvez depois de tirares o gesso. Que achas?

- Está bem.

Acenou com a cabeça, satisfeito, e Bill tirou-o da maca e pô-lo cuidadosamente de pé.

- Fazes favor de não tocares no escadote, sim? E nada de trepares à árvore de Natal!

Jamie tornou a dizer que sim com a cabeça, olhando para ele com admiração, Bill Webster era o seu herói.

- A mãe não me deixa.

- Ora ainda bem. Agora, não te esqueças de dizer olá ao Peter e às tuas irmãs. Até breve, Jamie. E feliz Natal.

- O meu pai morreu no Natal - disse Jamie, e Liz sentiu um baque no coração, era uma coisa que não precisava que lhe recordassem.

- Eu sei. Tenho muita pena, Jamie - disse Bill respeitosamente.

- Também eu. Foi um Natal muito mau.

- Com certeza, para a família toda. Espero que este seja melhor.

- Eu pedi ao Pai Natal um papagaio de papel como o seu, mas a mãe diz que ele não me traz um, e que temos de ser nós a comprá-lo.

- A construí-lo - corrigiu Bill. - E que mais pediste ao Pai Natal?

- Um cãozinho, mas a mãe diz que também não pode ser, porque a Carole é alérgica, tem asma. E pedi jogos e uma metralhadora.

- Aposto que recebes isso tudo.

Jamie agradeceu-lhe o gesso e a assinatura, e então Bill encarou Liz. Sentia o olhar dela sobre eles, mas viu-lhe uma expressão tão triste que sentiu como uma espada de fogo dentro do peito.

- Espero que o Natal seja bom para todos. Sei que a primeira vez não deve ser fácil - disse ele, dirigindo-se-lhe.

- Tem de ser melhor do que o último. - Liz sorriu, com a boca, mas não com os olhos, e Bill sentiu vontade de lhe afastar o cabelo caído para a testa, embora achasse que não devia. - Obrigada por seres tão bom para o Jamie. Fico muito agradecida.

- Fiz o que devia, apesar de ser bruto - disse aquilo com um grande sorriso, e ela ficou embaraçada. - Já recuperei, embora admita que me doeu durante uns tempos.

As raparigas têm truques sujos - acrescentou ele, com uma gargalhada, acompanhando-os até à porta.

- Nem todas - replicou Liz, baixinho. - Tudo de bom, Bill, e feliz Natal.

Disse-lhe adeus com a mão enquanto se afastava com o filho. Carole tinha ido para casa para ficar com os outros. Bill ficou a vê-los meterem-se no carro e depois voltou para dentro, com as mãos nos bolsos e a cabeça baixa.

 

Capítulo 13

Quando Jamie chegou a casa, contou a todos que tinha visto Bill e disse ao irmão que o médico lhe mandara um ”olá”, e depois mostrou-lhes o gesso e o sítio onde ele o assinara. Quis que os irmãos assinassem também, assim como a mãe e Carole. Liz observava-o, com a sensação de ter estado toda a tarde presa num remoinho, com as emoções num torvelinho à sua volta. Fora difícil ver Bill, mas bom ao mesmo tempo. Sentira uma enorme vontade de estender a mão e tocar-lhe ou, pior ainda, de lhe dizer que o amava, mas sabia que seria uma loucura e que ele estava tão fora da sua vida como Jack.

No dia seguinte, foi ao cemitério pôr flores na campa do marido. Ficou lá um grande bocado, a pensar nos anos compartilhados e nos tempos felizes que tinham passado.

Tudo isso parecia agora desperdiçado, apenas por causa dum terrível momento. Parecia tão injusto! Chorou pelo que haviam perdido e pelo que Jack estava a perder.

Nunca veria os filhos crescerem, nunca conheceria os netos e não envelheceria ao lado dela. Tudo parara, e eles agora eram obrigados a seguir em frente sozinhos.

E era muito duro.

Contudo, o pior sofrimento chegou na véspera e no dia de Natal. Embora esperasse que fosse difícil, Liz não estava preparada para tão grande choque, foi como se uma forte pancada a atingisse no peito. Sentiu saudades das alegrias que tinham compartilhado, dos Natais quando os filhos eram pequenos, do riso, das promessas, das tradições. E então, cambaleando sob o peso das recordações, reviveu o horror da última manhã de Natal, vendo-o morrer no chão do escritório, sem conseguir parar o pesadelo. Andou todo o dia como que envolta em nevoeiro, a chorar incontrolavelmente, e as crianças não estavam melhores. Era um dos piores momentos da sua vida desde a morte de Jack. A mãe mostrou-se preocupada, quando falou com ela pelo telefone e mais ainda quando lhe dissse que ia fechar o escritório.

- Eu sabia que terias de o deixar - disse a mãe assim que ouviu a notícia. - Perdeste os clientes todos?

Nada mudara, afinal, no último ano, desde as sinistras previsões dela depois do enterro.

- Não, mãe, até tenho demasiados, mas não consigo aguentar, e estou farta. Não quero continuar com aquele tipo de advocacia. Vou passar a representar crianças.

- E quem vai pagar?

Liz sorriu àquela pergunta.

- O tribunal ou os pais ou instituições que me contratarem. Não se preocupe, que sei o que estou a fazer.

Então, a mãe falou com os netos todos e depois disse-lhe que os achava deprimidos, o que não admirava, era um Natal muito difícil para todos.

Victoria telefonou de Aspen e surpreendeu Liz com a novidade de que ia retomar a advocacia, a meio tempo, e fê-la prometer que, apesar disso, se veriam com mais  frequência. A amiga sentia-se inquieta por causa dela e das crianças, sabia que o Natal estava a ser brutal para eles e lamentava não poder fazer-lhes companhia.

Durante o resto do dia, o telefone manteve-se silencioso. Então, Liz levou-os ao cinema, mostravam-se tão tristes como ela e precisavam duma distracção. Foram ver uma comédia e os pequenos riram, mas ela não, sentia que nada restava na sua vida que a fizesse rir. Era tudo tragédia e perda, pessoas a morrerem ou a desaparecerem.

Quando chegaram a casa, meteu-se na banheira durante um bom bocado, pensando em como aquele ano passara depressa e nas muitas coisas que tinham acontecido - o que logicamente a levou a recordar-se de Bill e a imaginar onde ele estaria naquele momento. Provavelmente, a trabalhar, pois costumava dizer que odiava feriados, que estes eram para pessoas com família, e ele escolhera não ter uma depois da amostra no Dia de Acção de Graças. Liz não podia censurá-lo, mas achava que ele podia ter-lhe dado mais uma hipótese, se fosse suficientemente forte, o que não acontecia. Por isso, tinha de enfrentar o facto de ele não querer, Bill gostava da vida que levava e era bom no que fazia. Liz ficou dentro de água a pensar na meiguice dele para com Jamie. Era um excelente médico e um bom homem.

Nessa noite, deitou-se sozinha pouco depois da meia-noite. Janiie estava na cama dele, com o aparelho de gesso só tinha dormido na da mãe uma noite, mas ao voltar-se batera-lhe num ombro, fazendo-lhe uma nódoa negra. Depois disso, tinham concordado que era preferível cada um ficar na sua cama até ele ficar bom.

- Está bem, mãe? - perguntou Peter, metendo a cabeça na porta, quando subiu, e ela respondeu afirmativamente e agradeceu-lhe o cuidado.

Tinham ficado perto uns dos outros todo o dia, como náufragos agarrados a um único salva-vidas. Fora um Natal de que iam lembrar-se para sempre, não tão mau como o anterior, mas quase tão doloroso. Como habitualmente, não conseguia adormecer e ficou na cama a pensar em Jack, em Bill e nos filhos. Por fim, cerca das quatro da manhã, fechou os olhos e pensou que estava a sonhar quando ouviu o telefone tocar. Deitou a mão ao auscultador, ensonada, e levou algum tempo a encontrá-lo, mas nenhum dos filhos atendeu primeiro.

- Estou...

Falou com dificuldade e quem ligara hesitou uns momentos. Liz ia desistir, quando do outro lado se decidiram finalmente. Ao princípio, não reconheceu a voz, mas depois percebeu que era Bill e ela não fazia ideia do motivo daquele telefonema, provavelmente encontrava-se ainda no hospital. Estava escuro lá fora e tentou ver as horas: seis e meia.

- Olá! - ele parecia estranhamente alegre, e Liz sentia-se como se tivesse andado a cavalo todo o dia, depois do sofrimento da véspera, estava exausta. - Pensei em telefonar para te desejar feliz Natal.

- Feliz Natal? Mas isso não foi ontem?

Estaria a sonhar ou agora era Natal todos os dias? Esse seria o seu pior pesadelo.

- Pois é. Devo ter-me enganado. Tive muito que fazer. Como vai o Jamie?

- Óptimo, acho eu, está a dormir. - Espreguiçou-se e fez um esforço para acordar, sem perceber o motivo daquele telefonema. Bill parecia com muita vontade de conversar, às seis e meia da manhã. - Foste muito simpático para ele no hospital. Obrigada.

- É um bom rapazinho e eu gosto dele. - Fez-se um longo silêncio e ela começou a dormitar, mas logo acordou em sobressalto, a pensar se teria dito alguma estupidez.

Contudo, não perdera muito, Bill parecia estar a reflectir até que lhe perguntou: - Como foi o Natal? - embora fosse capaz de o imaginar.

Tinha pensado em Liz o dia todo, preocupado com ela e com os filhos, e acabara por telefonar, por isso e por outras razões, umas mais claras do que as outras.

- Pior do que esperava - respondeu ela francamente. - Como ser operada ao coração sem anestesia.

- Lamento, Liz. Calculei que fosse assim. Pelo menos, já acabou.

- Até ao próximo ano - comentou ela com amargura. Estava por fim acordada e a lembrança do dia anterior ainda a fazia encolher-se.

- Talvez o próximo seja melhor.

- Não estou com pressa de descobrir. Vou precisar dum ano inteiro para recuperar deste. E tu? Que fizeste?

- Estive a trabalhar.

- Foi o que eu pensei. Deves ter tido muito que fazer.

- Bastante, mas também pensei muito em ti. - Liz hesitou, deitada no escuro, e Bill continuou: - Sim, é verdade. Lamento que as coisas se tenham complicado tanto.

Acho que não estava preparado, as pequenas foram horríveis e entrei em pânico - admitiu ele. - Não me mostrei muito maduro.

- Não sei se eu teria sido mais, nas mesmas circunstâncias - respondeu ela conciliadoramente, mas sabendo que tentaria resolver o assunto, e ele não o tinha feito, mas isso não lhe disse.

- Sinto saudades tuas.

Bill parecia triste, havia sido difícil voltar a vê-la quando Jamie partira o braço, e a imagem dela acompanhara-o desde esse dia.

- Também eu. Foi um mês muito comprido.

- Demasiado comprido - admitiu ele. - Temos de ir almoçar um dia destes.

- Eu gostava - concordou Liz, pensando se isso aconteceria realmente.

Talvez ele se sentisse apenas só e cansado ou um doente lhe tivesse morrido ou o Natal o deixasse nostálgico. Não lhe parecia que quisesse voltar para fugir outra vez. Afinal de contas, era um solitário e sentia-se mais feliz assim.

- Porque não almoçamos hoje? - perguntou ele.

- Hoje? Claro, eu... - Estava espantada, mas depois lembrou-se de que prometera aos filhos levá-los a patinar. Combinei ir patinar com os pequenos. Porque não tomamos um café depois?

- Estava a pensar mesmo no almoço - insistiu ele, desapontado.

- E se fosse amanhã?

- Estou a trabalhar - disse ele com firmeza, enquanto Liz sorria, percebendo que estavam a negociar um encontro às seis e quarenta e cinco da manhã. - Então e se for agora? - perguntou ele, com naturalidade.

- Agora? Neste instante?

- Claro. Tenho um farnel aqui no carro e podemos partilhá-lo.

- Onde estás? - perguntou Liz, desconfiando de que ele tivesse bebido, pois parecia meio maluco.

- Na realidade, mesmo em frente da tua casa - esclareceu Bill.

Liz saltou da cama com o telefone na mão e espreitou lá para fora. O velho Mercedes estava parado diante da porta, às escuras.

- Que fazes aí? - perguntou ela, e ele levantou os olhos e acenou-lhe com a mão, provocando-lhe um ataque de riso. - Isto é de malucos.

- Pensei vir até aqui ver se querias almoçar ou qualquer coisa. Não sabia se tinhas que fazer ou... bom, como eu fui um idiota durante um mês, não sabia se precisava de tempo para te convencer - falou com a voz carregada de emoção, quase inaudível, ela a observá-lo lá de cima e ele de olhos levantados, agarrado ao telefone. -

Eu amo-te - e Liz, viu, pelo mexer dos lábios, que Bill pronunciara estas palavras.

- Eu também te amo - disse baixinho. - Porque não entras?

- Eu levo o almoço.

- Basta vires tu, eu abro-te a porta, não toques. Desligou e desceu a escada a correr para lhe abrir a porta.

Viu-o sair do carro e tirar qualquer coisa grande e pesada do banco traseiro. Depois, avançou para ela e Liz percebeu o que era: o papagaio de papel que o médico construíra quando era rapaz.

- Que andas a fazer com isso?

Aquilo era tudo um disparate: o telefonema, o convite para almoçar, a visita, o papagaio, mas ela amava-o, teve a certeza ao olhá-lo, sabia-o havia meses, só não estava pronta antes.

- É para o Jamie - disse Bill com simplicidade, pousando o papagaio no vestíbulo e olhando-a com tudo o que sentia espelhado nos olhos. Nem era preciso falar, mas falou: - Eu amo-te, Liz, e Megan tinha razão. Fui um bruto e um imbecil. Devia ter voltado no dia seguinte, mas tinha medo.

- Também eu. Só acho que descobri a verdade primeiro que tu e passei um mês horrível sem ti.

- Precisava de ter a certeza da falta que me fazes, sabes? Mas agora estou de volta. Se ainda me quiseres.

- Quero, sim - murmurou ela, mas depois pareceu preocupada. - E as crianças? És capaz de as aguentar?

- Umas com mais facilidade do que outras, mas hei-de habituar-me a elas. Se a Megan me chatear muito, ponho-lhe um aparelho na boca, deve dar resultado.

Liz soltou uma gargalhada e ele, puxando-a para si, envolveu-a nos braços e beijou-a. E deram os dois um salto quando uma voz perguntou alto atrás dela:

- Que é aquilo? - era Jamie, que apontava para o papagaio de papel que Bill trouxera.

- É o teu papagaio. Achei que devias ter mais tempo do que eu para o lançar. Eu mostro-te como se faz.

- Ena, pá! - exclamou Jamie, saltando para o colo de Bill e quase atirando a mãe ao chão. - Ena! Posso mesmo ficar com ele?

- Claro que podes.

Então, o garoto olhou-o desconfiado.

- Que está a fazer cá em casa? Julguei que se zangara com a mãe e com a Megan.

- Sim, mas já estou melhor.

- Também estava zangado comigo? - perguntou Jamie, interessado, pegando no papagaio pela armação. Parecia um quadro de Norman Rockwell.

- Nunca, nunca estive zangado contigo. E agora também já não estou com elas.

- Ainda bem. Podemos tomar o pequeno-almoço? perguntou ele, dirigindo-se à mãe.

- Daqui a um instante. - Nesse momento, ouviram vozes lá em cima e Megan perguntou:

- Quem está aí?

- Eu - respondeu Liz. - E o Bill e o Jamie.

- Bill, o médico? - perguntou ela, parecendo admirada, e Liz ouviu as vozes dos outros, Peter, Rachel e Annie. Toda a gente já tinha acordado.

- Bill, o bruto e o imbecil - emendou Bill, e Megan desceu a escada com um sorriso envergonhado.

- Desculpe - disse ela, olhando-o directamente.

- Eu também peço desculpa - respondeu ele, sorrindo-lhe.

- Vamos tomar o pequeno-almoço - insistiu Jamie.

- Eu faço panquecas - declarou Liz, calando-se para olhar Bill. Trocaram um sorriso, e ele beijou-a de novo.

- Diriges uma casa muito movimentada - comentou, seguindo-a até à cozinha.

- Só às vezes. Podes vir almoçar quando quiseres acrescentou Liz, tirando a frigideira das panquecas do armário.

Estava a pensar em ficar - segredou-lhe Bill.

- A ideia agrada-me - concordou ela baixinho, virando-se para o médico.

- A mim também - concluiu ele, pegando em Jamie e pondo-o às cavalitas. - Agrada-me mesmo muito! - acrescentou.

Nessa altura, voltou-se lentamente para a porta e viu Megan a sorrir-lhe.

 

                                                                                            Danielle Steel

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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