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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SENHORA DA MAGIA / Marion Zimmer Bradley
A SENHORA DA MAGIA / Marion Zimmer Bradley

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS BRUMAS DE AVALON

 

Livro 1

A senhora da magia

 

Prólogo

MORGANA FALA...

Em vida, chamaram-me de muitas coisas: irmã, amante, sacerdotisa, maga, rainha. Na verdade, cheguei agora a ser maga, e poderá vir um tempo em que tais coisas devam ser conhecidas. Verdadeiramente, porém, creio que os cristãos dirão a última palavra. O mundo das fadas afasta-se cada vez mais daquele em que Cristo predomina. Nada tenho contra o Cristo, apenas contra os seus sacerdotes, que chamam a Grande Deusa de Demônio e negam o seu poder no mundo. Alegam que, no máximo, esse seu poder foi o de Satã. Ou vestem-na com o manto azul da Senhora de Nazaré - realmente poderosa, ao seu modo -, que, dizem, foi sempre virgem. Mas o que pode uma virgem saber das mágoas e labutas da humanidade?

E agora que o mundo está mudado e Artur - meu irmão, meu amante, rei que foi e rei que será - está morto (o povo diz que ele dorme) na ilha sagrada de Avalon, é preciso contar as coisas antes que os sacerdotes do Cristo Branco espalhem por toda parte os seus santos e suas lendas.

Pois, como disse, o próprio mundo mudou. Houve um tempo em que um viajante, se tivesse disposição e conhecesse apenas uns poucos segredos, poderia levar sua barca para fora, penetrar o mar do Verão e chegar não ao Glastonbury dos monges, mas à ilha sagrada de Avalon; isso porque, em tal época, os portões entre os mundos vagavam com as brumas e estavam abertos, um após o outro, ao capricho e ao desejo do viajante. Esse é o grande segredo, conhecido de todos os homens cultos de nossa época: pelo pensamento criamos o mundo que nos cerca, novo a cada dia.

E agora os padres, acreditando que isso interfere no poder do seu deus, que criou o mundo para ser de finitivamente imutável, fecharam os portões (que nunca foram portões, exceto na mente dos homens), e os caminhos só levam à ilha dos padres, que eles protegeram com o som dos sinos de suas igrejas, afastando todos os pensamentos de um outro mundo que vive nas trevas. Na verdade, dizem eles, se aquele mundo realmente existe, é propriedade de Satã e a porta do inferno, se não o próprio inferno.

Não sei o que o deus dele pode ter criado ou não. Apesar das histórias contadas, nunca soube muito sobre seus padres e jamais usei o negro de uma de suas monjas-escravas. Se os cortesãos de Artur em Camelot fizeram de mim este juízo, quando lá fui (pois sempre usei as roupas negras da Grande Mãe em seu disfarce de maga), não os desiludi. E na verdade, ao final do reinado de Artur, teria sido perigoso agir assim, e inclinei a cabeça à conveniência como nunca teria feito a minha grande senhora, Viviane Senhora do Lago, que depois de mim foi a maior amiga de Artur, para se transformar mais tarde em sua maior inimiga, também depois de mim.

A luta, porém, terminou. Pude finalmente saudar Artur, em sua agonia, não como meu inimigo e o inimigo de minha Deusa, mas apenas como meu irmão e como um homem que ia morrer e precisava da ajuda da Mãe, para a qual todos os homens finalmente se voltam. Até mesmo os sacerdotes sabem disso, com sua Maria sempre-virgem em seu manto azul, pois ela, na hora da morte, também se transforma na Mãe do Mundo.

E assim, Artur jazia enfim com a cabeça em meu colo, vendo-me não como irmã, amante ou inimiga, mas apenas como maga, sacerdotisa, Senhora do Lago; descansou, portanto, no peito da Grande Mãe, de onde nasceu, e para quem, como todos os homens, tem de finalmente voltar. E talvez - enquanto eu guiava a barca que o levava, desta vez não para a ilha dos padres, mas para a verdadeira ilha sagrada no mundo das trevas, que fica além do nosso, para a ilha de Avalon, aonde agora poucos, além de mim, poderiam ir - ele estivesse arrependido da inimizade surgida entre nós.

Ao contar esta história, falarei por vezes de coisas que ocorreram quando eu ainda era demasiado jovem para compreendê-las ou quando não estava presente. Meu leitor fará uma pausa e dirá, talvez: "Esta é a sua magia". Mas eu tive sempre o dom da Visão, de ver o interior da mente dos homens e mulheres; e, durante todo esse tempo, estive perto de todos. Assim, por vezes, tudo o que pensavam era do meu conhecimento, de uma forma ou de outra. Por isso, contarei esta história.

Um dia também os padres a contarão, tal como a conhecem. Talvez entre as duas se possam perceber alguns lampejos de verdade.

O que os sacerdotes não sabem, com o seu Deus Uno e sua Verdade Única, é que não existe história totalmente verdadeira. A verdade tem muitas faces e assemelha-se à velha estrada que conduz a Avalon; o lugar para onde o caminho nos levará depende da nossa própria vontade e de nossos pensamentos, e talvez, no fim, cheguemos ou à sagrada ilha da eternidade, ou aos padres, com seus sinos, sua morte, seu Satã e o inferno e danação... Mas talvez eu seja injusta com eles. Até mesmo a Senhora do Lago, que odiava a batina do padre tanto quanto teria odiado a serpente venenosa, e com boas razões, censurou-me certa vez por falar mal do deus deles.

Todos os deuses são um só Deus, disse ela, então, como já dissera muitas vezes antes, e como eu repeti para minhas noviças inúmeras vezes, e como toda sacerdotisa, depois de mim, há de dizer novamente, "e todas as deusas são uma só Deusa, e há apenas um iniciador. E a cada homem a sua verdade, e Deus com ela."

Assim, talvez a verdade se situe em algum ponto entre o caminho para Glastonbury, a ilha dos padres, e o caminho de Avalon, perdido para sempre nas brumas do mar do Verão.

Mas esta é a minha verdade; eu, que sou Morgana, conto-vos estas coisas, Morgana, que em tempos mais recentes foi chamada Morgana, a Fada.

 

Capítulo 1

Mesmo em pleno verão, Tintagel era um lugar assombrado. Do promontório onde estava, Igraine, esposa do duque Gorlois, olhou para o mar. Enquanto contemplava a cerração e a névoa, pensava em como poderia saber quando a noite e o dia teriam a mesma extensão, para poder celebrar a festa do ano-novo. Naquele ano, as tempestades de primavera haviam sido excepcionalmente violentas; noite e dia o rumor das ondas ressoara pelo castelo, impedindo seus habitantes de dormir, e até os cães uivavam dolorosamente.

Tintagel... ainda havia quem acreditasse que o castelo fora levantado, na rocha escarpada no extremo final do longo promontório que se projetava mar adentro, pela magia do antigo povo de Ys. O duque Gorlois ria-se disso e dizia que, se tivesse esse poder, tê-lo-ia usado para impedir que o mar avançasse, ano a ano, sobre a terra. Nos quatro anos em que estava ali, desde que chegara como noiva de Gorlois, Igraine vira a terra, boa terra, desmanchar-se ao atrito do mar da Cornualha. Longos braços de rocha negra, áspera e alcantilada, estendiam-se pelo oceano, a partir da costa. Quando o sol brilhava, a paisagem podia ser dourada e brilhante, o céu e a água luziam como o monte de jóias que Gorlois lhe dera no dia em que anunciara estar grávida do seu primeiro filho. Igraine, porém, jamais gostara de usá-las. A jóia que pendia agora de seu pescoço lhe fora dada em Avalon: uma pedra-da-lua que por vezes refletia o brilho do céu e do mar; mas hoje, no nevoeiro, até mesmo a jóia parecia opaca.

Na cerração, os sons percorreram caminhos longos. Pareceu a Igraine, ali de pé no promontório, que, ao voltar o olhar para terra, podia ouvir o bater dos cascos de cavalos e mulas e o som de vozes - vozes humanas, ali no isolado Tintagel, onde só viviam cabras e ovelhas, mais os pastores e seus cães, além das mulheres do castelo com algumas criadas e uns poucos homens, já idosos, para protegê-las.

Igraine voltou-se lentamente e retornou ao castelo. Como sempre, de pé à sua sombra, sentia-se pequenina ante a imponência daquelas velhas pedras, ao fim do longo promontório que se estendia pelo mar. Os pastores acreditavam que o castelo fora construído pelos Antigos, das terras perdidas de Lyonesse e Ys; e os pescadores contavam que, em dias claros, os velhos castelos podiam ser vistos muito ao longe, sob a água. Mas para Igraine eles pareciam torres de rocha, velhas montanhas e morros engolidos pelo mar, que avançava sempre, que ainda agora corroía a rocha sob o castelo. Ali, naquele fim de mundo, onde o mar comia incessantemente a terra, era fácil acreditar em áreas submersas, no oeste. E falavam ainda de uma grande montanha de fogo que explodira, muito mais para o sul, carregando todo um grande país que ali existia. Igraine não sabia se acreditava ou não nessas histórias.

Sim, certamente podia ouvir vozes na cerração. Não seriam atacantes selvagens vindo do mar ou do litoral selvagem de Erin. Há muito havia passado a época em que ela se sobressaltava a um som ou uma sombra estranhos. Não era seu marido, o duque: ele estava muito longe, no norte, lutando contra os saxões, ao lado de Ambrósio Aureliano, o Grande Rei da Bretanha, e teria avisado se pretendesse voltar.

Não precisava ter medo. Se os cavaleiros fossem hostis, os guardas e soldados do forte situado no ponto em que o promontório se ligava à terra, ali colocados pelo duque Gorlois para proteger sua mulher e filha, os teriam detido. Seria preciso um exército para passar por eles. E quem mandaria um exército contra Tintagel?

Houve uma época - Igraine lembrava-se sem amargura, caminhando lentamente para o pátio do castelo - em que ela teria sabido quem se aproximava. Essa lembrança não lhe provocava maior tristeza, agora. Desde o nascimento de Morgana, não chorava mais de saudades de casa. E Gorlois era bondoso com ela. Tranquilizara-a quando tivera medo e ódio a princípio, dera-lhe jóias e coisas belas, troféus de guerra, cercara-a de mulheres que a serviam, e tratava-a sempre como a um igual, a não ser nos conselhos de guerra. Não podia ter desejado mais, exceto se tivesse desposado um homem das tribos. Quanto a isso, não tivera escolha.. Uma filha da ilha sagrada deve fazer o que é melhor para seu povo, quer isso signifique caminhar para a morte em sacrifício, entregar sua virgindade no Casamento Sagrado, ou casar-se, quando isso puder cimentar alianças. Era o que Igraine havia feito, desposando um duque da Cornualha romanizado, cidadão que vivia ao modo romano, embora Roma tivesse deixado toda a Bretanha.

Tirou o manto dos ombros, com um gesto; lá dentro do pátio estava mais quente, fora do alcance do vento cortante. E ali, quando a cerração rodopiou e esgarçou-se, pairou à sua frente, por um momento, uma figura vinda da bruma e da névoa: sua meia irmã, Viviane, a Senhora do Lago, a Senhora da Ilha Sagrada.

- Irmã! - As palavras tremeram, e Igraine sabia que não as havia gritado, mas apenas murmurado, com as mãos apertadas contra o peito. - É você, realmente, que eu vejo aqui?

O rosto tinha um ar de censura, e as palavras pareciam desaparecer no som do vento, além das muralhas.

- Você abandonou a Visão, Igraine? Por sua livre vontade?

Magoada pela injustiça dessas palavras, Igraine respondeu:

- Foi você quem determinou que eu devia desposar Gorlois... - mas a forma de sua irmã desaparecera nas brumas, não estava ali, jamais estivera. Igraine pestanejou: a rápida aparição se fora. Envolveu-se no manto, pois sentiu frio, muito frio; sabia que a visão tirava a sua força do calor e da vida de seu próprio corpo. Pensou: Não sabia que eu ainda podia ver dessa maneira, tinha certeza de que não podia mais... e estremeceu, sabendo que o padre Columba consideraria isso obra do Diabo, e que deveria confessar-se com ele. É certo que ali, no fim do mundo, os padres eram tolerantes, mas uma visão não declarada em confissão seria, sem dúvida, tratada como heresia.

Franziu as sobrancelhas: por que deveria tratar uma visita de sua irmã como obra do Diabo? Padre Columba podia dizer o que quisesse, mas talvez o seu deus fosse mais sábio do que ele. Isso não seria muito difícil, pensou Igraine, reprimindo uma risada. Talvez o padre Columba tivesse se tornado um sacerdote do Cristo porque nenhum colégio de druidas aceitaria um homem tão estúpido. O Deus do Cristo parecia não se importar com a inteligência de um padre, desde que este pudesse engrolar a missa e ler e escrever um pouco. Ela, Igraine, tinha mais instrução do que o padre Columba e falava melhor o latim, quando queria. Não se considerava, porém, instruída: não tivera força suficiente para estudar a sabedoria mais profunda da Velha Religião, ou de penetrar nos Mistérios além do que era absolutamente necessário a uma filha da Ilha Sagrada. Mas embora fosse ignorante em qualquer Templo dos Mistérios, podia passar, entre os bárbaros romanizados, por uma mulher culta.

Na pequena sala junto do pátio, onde havia sol nos dias limpos, sua irmã mais nova, Morgause, de treze anos e florescente, trajando um amplo vestido de casa, de lã sem tingir, e um velho e desgrenhado manto por sobre os ombros, fiava descuidadamente com um fuso simples, enrolando o fio desigual num carretel. No chão, junto à lareira, Morgana fazia rolar um carretel velho, como se fosse uma bola, observando as trajetórias caprichosas do cilindro assimétrico pelo chão, empurrando-o para um ou outro lado, com os dedos gorduchos.

- Será que já não fiei bastante? - queixou-se Morgause. - Meus dedos estão doendo! Por que tenho de fiar, fiar, fiar sempre, como se fosse uma criada?

- Toda dama tem de aprender a fiar - respondeu Igraine, como sabia que devia fazer -, e seu fio é muito malfeito, ora grosso, ora fino... Seus dedos perderão o cansaço, quando se habituarem ao trabalho. Dedos doloridos são indício de que você tem sido preguiçosa, já que não se acostumaram às suas tarefas.

Tomou de Morgause o carretel e o fuso, girando-os rapidamente com grande facilidade. O fio desigual, em suas mãos experientes, adquiriu uma espessura perfeita.

- Veja, pode-se tecer com este fio sem deixar falhas na lançadeira... - e de repente cansou-se de proceder como devia. - Mas agora pode deixar de lado o fuso. Antes do fim da tarde, teremos hóspedes.

Morgause olhou para ela.

- Não ouvi nada - disse. - Nem chegou cavaleiro algum trazendo mensagem!

- Isso não me surpreende - respondeu Igraine -, pois não veio nenhum cavaleiro. Foi uma Visão. Viviane está a caminho, e Merlim vem com ela.

Só teve intuição deste último detalhe no momento em que falou nele.

- Pode, portanto, levar Morgana para a ama, e vista o seu vestido dos domingos, o tingido de açafrão.

Morgause abandonou o fuso com alegria, mas fez uma pausa para olhar para Igraine:

- O vestido de açafrão? Para minha irmã?

Igraine corrigiu-a, secamente:

- Não para nossa irmã, Morgause, mas para a Senhora da Ilha Sagrada, e para o Mensageiro dos Deuses.

Morgause olhou para baixo, para o chão decorado. Era uma jovem alta, forte, que começava a transformar-se em mulher; tinha cabelos abundantes e avermelhados como os de Igraine e sardas na pele, embora ela colocasse cuidadosamente leite batido sobre as manchas e implorasse à mulher que cuidava das ervas que lhe recomendasse banhos e plantas medicinais para tratá-las. Aos treze anos, já era tão alta quanto Igraine, e seria mais alta ainda. Com um gesto sem elegância pegou Morgana e levou-a consigo. Igraine gritou-lhe, já à saída:

- Diga à ama para vestir a menina com uma roupa de festa, e depois você pode trazê-la aqui para baixo; Viviane ainda não a conhece.

Morgause resmungou qualquer coisa sobre a sua impossibilidade de compreender por que uma grã-sacerdotisa haveria de querer ver uma criancinha, mas falou baixo, e Igraine não a ouviu.

Lá em cima, depois das escadas estreitas, seu quarto estava frio. As lareiras não eram acesas, a não ser no auge do inverno. Quando Gorlois não estava, Igraine partilhava seu leito com a criada, Gwenis, e a prolongada ausência do marido dava-lhe uma desculpa para ter Morgana em sua cama, à noite. Por vezes, Morgause também dormia ali, dividindo com elas as mantas de pele que as protegiam contra o frio intenso. O enorme leito matrimonial, coberto por um dossel e protegido por cortinas contra as correntes de ar, era mais do que suficiente para as três mulheres e a criança.

Gwen, que era velha, cochilava num canto. Igraine não quis acordá-la e despiu sua roupa cotidiana de trabalho, de lã sem tingir, trocando-a por um belo vestido enfeitado no pescoço com uma fita de seda, lembrança que Gorlois lhe trouxera de Londinium. Colocou nos dedos uns anéis de prata que tinha desde menina, que agora só entravam nos seus dedos mínimos, e no pescoço um colar de âmbar que Gorlois lhe dera. O vestido era cor de ferrugem e tinha uma sobretúnica verde. Encontrou o pente de chifre talhado e, sentada num banco, começou a passá-lo nos cabelos, desembaraçando-os pacientemente. De um outro aposento, ouviam-se gritos, e ela deduziu que a ama estava penteando Morgana, coisa de que ela não gostava. Os gritos cessaram de repente, e ela concluiu que a menina fora silenciada por um tapa, ou talvez, como por vezes acontecia quando estava de bom humor, Morgause a estivesse penteando com os seus dedos inteligentes e pacientes. Por isso, Igraine sabia que a irmã menor era capaz de fiar muito bem, quando desejava. Tinha mãos ágeis para tudo o mais: pentear, cardar, fazer tortas de Natal.

Igraine trançou o cabelo, prendeu-o no alto da cabeça com uma presilha de ouro e colocou o broche, também de ouro, na gola do manto. Olhou-se no espelho de bronze, presente de casamento dado por Viviane, e vindo, pelo que disseram, de Roma. Sabia, ao amarrar o vestido, que seus seios haviam voltado ao que eram antes: Morgana fora desmamada havia um ano, e eles estavam apenas um pouco mais flácidos e pesados. Sua esbelteza antiga retornara, pois se havia casado com aquele vestido, e os laços não estavam nada apertados.

Quando voltasse, Gorlois havia de querer levá-la novamente para a cama. Da última vez que a vira, Morgana estava ainda mamando, e o duque aquiescera ao pedido de Igraine, para que a deixasse continuar a alimentar a menina durante o verão, quando tantas crianças pequenas morrem. Sabia que ele estava descontente porque ela não lhe dera o filho tão desejado - os romanos estabeleciam a linhagem pelo ramo masculino, e não pelo feminino, o que seria mais sensato. Era tolice, pois como poderia um homem ter absoluta certeza de quem era o pai de qualquer criança? É claro que eles se preocupavam muito com quem se deitavam as mulheres, e fechavam-nas e espionavam-nas. Não que Igraine precisasse ser vigiada: um homem já era ruim, por que haveria de querer outros, que poderiam ser piores?

Embora estivesse ansioso por um filho, Gorlois fora indulgente, deixando que Igraine ficasse com a menina na cama e continuasse a amamentá-la, e até mesmo se abstivera de procurá-la, passando as noites com a criada Ettarr, para que ela não voltasse a engravidar e com isso perdesse o leite. Também ele sabia quantas crianças morriam, ao serem desmamadas antes que pudessem mastigar a carne e o pão. Crianças alimentadas com água de farinha eram enfermiças e com frequência não havia leite de cabra no verão, quando estavam em condições de tomá-lo. As que tomavam leite de vaca ou de égua tinham vômitos e morriam muito amiúde, ou tinham disenteria e não resistiam. Por isso, ele deixara Morgana mamar no peito, adiando assim a chegada do filho que desejava por mais um ano e meio, no mínimo. Igraine tinha pelo menos essa razão para lhe ser grata, e não reclamaria, mesmo que ele a fizesse logo engravidar de novo.

Ettarr ficara grávida então e parecia envaidecer-se: seria ela quem teria um filho do duque da Cornualha? Igraine não tomara conhecimento da moça; Gorlois tinha outros filhos bastardos, um dos quais o acompanhava agora, no campo do duque de guerra, Uther. Mas Ettarr adoecera e abortara, e Igraine fora suficientemente discreta para não perguntar a Gwen por que ela parecia tão alegre com isso. A velha conhecia demais as ervas, para que Igraine pudesse ficar tranqüila. Algum dia, resolveu ela, farei com que me diga exatamente o que colocou na cerveja de Ettarr.

Dirigiu-se à cozinha, e a saia comprida arrastou-se pelos degraus de pedra. Morgause estava lá, com o seu melhor vestido, e Morgana, com roupas de festa, cor de açafrão, parecia tão morena quanto um picto. Igraine segurou-a, com prazer. Pequena, morena, delicada, tinha ossos tão miúdos que era como segurar um passarinho macio. De onde viria a aparência daquela criança? Ela, Igraine, e Morgause, eram altas e tinham cabelos vermelhos, cor de terra, como todas as mulheres das tribos, e Gorlois, embora moreno, era romano, alto, esguio e aquilino, endurecido pelos anos de luta contra os saxões, demasiado cônscio de sua dignidade romana para demonstrar muita ternura para com uma jovem esposa e totalmente indiferente à filha, nascida em lugar do menino que ele queria.

Mas, Igraine lembrou-se, os romanos arvoravam-se o direito divino de vida e morte sobre os filhos. Havia muitos deles, cristãos ou não, que teriam exigido da esposa que não criasse a menina, a fim de lhes dar logo um filho. Gorlois fora bom para ela, deixara-a criar Morgana. Embora Igraine não lhe desse muito crédito à imaginação, talvez ele houvesse compreendido como se sentia em relação à filha, sendo uma mulher das tribos.

Enquanto dava ordens para a recepção dos hóspedes, para que se trouxesse vinho da adega e se preparasse um assado - não coelho, mas um bom carneiro do último abate -, ouviu o cacarejar e o ruflar de asas das galinhas assustadas no pátio, e ficou sabendo que os cavaleiros haviam percorrido todo o promontório. Os criados pareciam assustados, mas, em sua maioria, já se haviam resignado, sabendo que a sua senhora tinha a Visão. Fingia tê-la, com algumas suposições inteligentes e uns poucos truques - era bom que eles continuassem a temê-la. E agora, pensou: Talvez Viviane esteja certa e eu ainda a tenha. Talvez durante todos aqueles meses, antes do nascimento de Morgana, eu me sentisse muito fraca e impotente. Agora voltei a ser eu mesma. Minha mãe foi uma grande sacerdotisa até o dia de sua morte, embora tivesse vários filhos.

Mas sua mente respondeu-lhe que a mãe tivera aqueles filhos em liberdade, como uma mulher das tribos deveria tê-los, de pais que ela mesma escolhera, não como escrava de um romano, cujos costumes lhe davam poder sobre as mulheres e crianças. Afastou com impaciência tais pensamentos; que importava se tinha a Visão, ou se apenas parecia tê-la desde que isso mantivesse os criados em seu devido lugar?

Dirigiu-se lentamente ao pátio, que Gorlois ainda chamava de átrio, embora não se parecesse em nada com a vila onde vivera até Ambrósio fazer dele duque da Cornualha. Os cavaleiros já haviam desmontado, e seus olhos dirigiram-se imediatamente para a única mulher entre eles, uma figura menor do que ela e que já não era jovem, vestida com uma túnica masculina e culotes de lã, enrolada em mantos e xales. Os olhos de ambas encontraram-se, numa saudação, mas Igraine curvou-se respeitosamente ante o velho alto e magro que desmontava de uma mula esquálida. Ele vestia as roupas azuis do bardo, e tinha uma harpa pendurada ao ombro.

- Dou-lhe as boas-vindas a Tintagel, senhor mensageiro. Sua presença é uma bênção e uma honra para o nosso teto.

- Agradeço-lhe, Igraine - disse uma voz ressoante, e Taliesin, Merlim da Bretanha, Druida, Bardo, juntou as mãos na frente do rosto e estendeu-as para ela, numa bênção.

Cumpridos os seus deveres do momento, Igraine voltou-se para a irmã, e fez um gesto de que ia inclinar-se para receber também a sua bênção, mas Viviane curvou-se e impediu-a.

- Não, não, criança, esta é uma visita familiar. Há muito tempo para fazer-me as honras, se assim quiser... - abraçou e beijou a irmã. - E o bebê, é este? É fácil ver que ela tem o sangue dos Antigos: parece-se com nossa mãe, Igraine.

Viviane, Senhora do Lago e da Ilha Sagrada, estava então com trinta e alguns anos; filha mais velha da antiga sacerdotisa do Lago, substituíra a mãe no sagrado cargo.

Tomou Morgana nos braços, acalentando-a com as mãos experientes de mulher acostumada com crianças.

- Ela se parece com você - disse Igraine, surpresa, ao compreender que devia ter percebido isso antes. Mas há quatro anos não via Viviane, desde o seu casamento. Tanta coisa acontecera, mudara tanto, desde que, ainda uma jovem de quinze anos, fora entregue a um homem com mais do dobro de sua idade...

- Mas entrem para o saguão, senhor Merlim, irmã, entrem. Vamos sair do frio.

Livre de seus mantos e xales, Viviane, Senhora de Avalon, era uma mulher surpreendentemente pequena; tinha a estatura de uma menina de oito ou dez anos. Em sua túnica larga, apertada por um cinto, uma faca embainhada na cintura e pesados culotes de lã, as pernas envoltas em espessas perneiras, parecia uma frágil criança com roupas de adulto. Tinha o rosto pequeno, enrugado e triangular, a testa baixa sob um cabelo tão escuro quanto as sombras ao pé dos rochedos. Os olhos também eram negros e grandes para o rosto diminuto. Igraine nunca percebera o quanto a irmã era pequena.

Uma criada trouxe a taça dos hóspedes: vinho quente, misturado com as últimas especiarias que Gorlois mandara dos mercados de Londinium. Viviane foi servida, e Igraine observou-a: com o gesto de pegar a taça, a irmã tornara-se de repente alta e imponente; poderia estar segurando o sagrado cálice das Santas Insígnias. Ajeitando-a nas mãos, levou-a lentamente aos lábios, murmurando uma bênção. Provou o vinho e passou a taça para Merlim, que a recebeu com grave reverência, levando-a aos lábios. Igraine, que mal conhecia os Mistérios, sentiu que de alguma forma também era parte daquela bela solenidade ritual, ao tomar a taça da mão dos hóspedes, prová-la e dizer as palavras formais de boas-vindas.

Logo após, a sensação de solenidade desapareceu; Viviane era apenas uma mulher pequena e de aparência cansada, e Merlim, nada mais do que um velho encurvado. Igraine conduziu-os rapidamente para junto da lareira.

- Nesta época, é longa a viagem das praias do mar do Verão até aqui - começou, lembrando-se de quando viajara, recém-casada, atemorizada, odiando em silêncio, na comitiva do marido desconhecido, que ainda era apenas uma voz e um terror na noite. - O que a traz aqui, em meio às tempestades de primavera, minha irmã e senhora?

E por que não veio antes, por que me deixou só, a aprender a ser esposa e a parir uma criança, sozinha, cheia de medo e de saudade? E se não pôde vir antes, por que então veio agora, quando é tarde demais e estou finalmente resignada à sujeição?

- A distância é realmente longa - respondeu Viviane suavemente, e Igraine sabia que a sacerdotisa ouvira, como sempre ouvia, as palavras que não haviam sido ditas, bem comoas proferidas. - E estamos em épocas perigosas, filha. Mas você se transformou numa mulher, nestes anos, embora tenham sido solitários, tão solitários quanto os anos de isolamento para o preparo de um bardo, ou - acrescentou, com um leve sorriso de recordação - de uma sacerdotisa. Se você tivesse escolhido esse caminho, veria que é igualmente solitário, minha Igraine. Sim, claro, você pode subir no meu colo, pequenina - continuou, inclinando-se, com um ar de doçura no rosto. Colocou Morgana no colo, enquanto Igraine as olhava com surpresa, pois a menina era, em geral, tão esquiva quanto um coelho. Um pouco ressentida, e um pouco sob o velho encanto que vinha da irmã, viu a criança aninhar-se em seus braços. Viviane parecia muito pequena para poder segurá-la bem. E, na verdade, talvez Morgana fosse muito parecida com ela.

- E Morgause, que cresceu desde que, há um ano, eu a mandei para sua companhia? - perguntou Viviane, olhando para Morgause, que, em seu vestido cor de açafrão, ocultava-se, ressentida, entre as sombras do fogo. - Venha dar-me um beijo, irmãzinha. Ah, você será alta como Igraine - sorriu, levantando os braços para abraçar a moça, que saiu a contragosto das sombras, como um animalzinho ainda não bem domesticado. - Sim, sente-se aqui, junto de meus joelhos, se quiser, filha.

Morgause sentou-se no chão, apoiando a cabeça nos joelhos de Viviane, e Igraine notou que seus olhos tristes estavam cheios de lágrimas.

"Ela nos tem a todos na sua mão. Como pode exercer esse poder sobre nós? Ou será por ter sido a única mãe que Morgause conheceu? Era mulher feita quando Morgause nasceu, sempre foi mãe e irmã, para nós duas." A mãe, que realmente era muito idosa para ter mais filhos, morrera ao dar à luz Morgause. Viviane tivera um filho, em princípios daquele ano, mas a criança morrera, e ela se encarregara então de Morgause.

Morgana instalara-se bem aconchegada no colo de Viviane; Morgause pousava a cabeça sedosa e vermelha nos seus joelhos. A sacerdotisa segurava a menina com um braço, e com a mão livre afagava o longo e macio cabelo da outra.

- Eu teria vindo visitá-la quando Morgana nasceu - explicou Viviane -, mas também estava grávida. Tive um filho, naquele ano. Dei-o a uma outra mulher para criar, e ela talvez o mande para os monges. Ela é cristã.

- Você não se importa que ele seja criado como cristão? - perguntou Morgause. - Ele é bonito? Qual o seu nome?

Viviane riu.

- Dei-lhe o nome de Balam, e sua mãe adotiva deu ao filho, que teve na mesma ocasião, o nome de Balim. Há entre eles uma diferença de apenas dez dias, por isso serão criados como gêmeos, sem dúvida. Não, não me importo que seja criado como cristão; o pai dele também o era, e Priscila é uma boa mulher. Você disse que a viagem até aqui era longa; acredite-me, filha, não é mais longa do que quando você se casou com Gorlois. Não é mais longa, talvez, do que da ilha dos padres, onde está plantado o Sagrado Espinho deles, mas muito mais distante, muito mais, de Avalon...

- E foi por isso que viemos - disse Merlim, de repente, e sua voz foi como o tanger de um grande sino, fazendo Morgana sentar-se subitamente, choramingando de medo.

- Não compreendo - interrompeu Igraine, sentindose subitamente pouco à vontade. - Sem dúvida, esses dois lugares estão próximos...

- Os dois são um só - respondeu Merlim, sentando-se muito ereto -, mas os seguidores de Cristo preferem dizer, não que eles não terão outros deuses perante o seu Deus, mas que não há nenhum outro deus que não seja o deles. Que só Ele fez o mundo, que o governa sozinho, que foi Ele quem fez as estrelas e toda a criação.

Igraine fez rapidamente o sinal sagrado contra a blasfêmia.

- Mas isso não é possível - insistiu ela. - Nenhum deus pode, sozinho, governar todas as coisas... e a Deusa? O que fazer com a Mãe...?

- Eles acreditam - contou Viviane com sua voz aveludada e baixa - que não há Deusa, pois o princípio da mulher, dizem eles, é o princípio do mal. Por meio da mulher, na opinião deles, o mal entrou neste mundo. Há uma fantástica história judaica sobre uma maçã e uma serpente.

- A Deusa os castigará - murmurou Igraine, abalada. - E mesmo assim, você me fez casar com um deles?

- Não sabíamos que a blasfêmia deles era tão ampla - disse Merlim -, pois tem havido seguidores de outros deuses, em nossa época. Mas respeitavam os deuses dos outros.

- Mas o que tem isso a ver com a extensão do caminho de Avalon? - perguntou Igraine.

- Chegamos com isso à razão de nossa visita - respondeu Merlim -, pois, como os druidas sabem, é aquilo em que a humanidade acredita que modela o mundo e toda a realidade. Há muito tempo, quando os seguidores de Cristo chegaram à nossa ilha, eu sabia que se iniciava um momento de grande importância, um momento de transformação do mundo.

Morgause olhava para o velho com os olhos arregalados de medo.

- É tão velho assim, Venerável?

Merlim sorriu para a moça e disse:

- Não no meu próprio corpo. Mas li muita coisa na grande sala que não está neste mundo, onde está registrada a História de Todas as Coisas. E também, eu já estava vivendo, naquela ocasião. Os Senhores deste mundo permitiram-me voltar, mas num outro corpo.

- Essas questões são muito complicadas para uma moça, venerável pai - interrompeu Viviane, censurando-o gentilmente. - Ela não é sacerdotisa. O que Merlim quer dizer, minha filha, é que ele já estava vivendo quando os primeiros cristãos chegaram aqui e que preferiu, e teve permissão para isso, reencarnar imediatamente, para continuar seu trabalho. São os Mistérios, que você não precisa tentar compreender. Continue, pai.

- Eu sabia que se tratava de um daqueles momentos em que a história da humanidade é modificada - continuou Merlim. - Os cristãos procuraram acabar com toda a sabedoria que não fosse a sua, e na luta para conseguir isso, estão banindo do mundo todas as formas de mistério, exceto as que se harmonizam com a sua fé religiosa. Consideraram heresia pensar que os homens têm mais de uma vida, o que qualquer camponês sabe ser verdade.

- Mas sem acreditar em mais de uma vida, como evitar o desespero? - protestou Igraine. - Que deus justo criaria homens desgraçados, ao lado de outros felizes e prósperos, se todos tivessem apenas uma vida?

- Não sei - respondeu Merlim. - Talvez queiram que os homens se desesperem com a dureza do destino, para que procurem de joelhos o Cristo, que os levará ao céu. Não sei no que acreditam os seguidores do Cristo, ou o que esperam.

Seus olhos fecharam-se por um momento, os traços de seu rosto tornaram-se mais amargos.

- Mas quaisquer que sejam as suas convicções, elas estão mudando este mundo. Não só em espírito, mas também no plano material. Como negam o mundo do espírito, e o reino de Avalon, esses reinos deixam de existir para eles. Ainda existem, é claro, mas não no mesmo mundo dos seguidores de Cristo. Avalon, a ilha sagrada, já não é a mesma ilha que Glastonbury, onde nós, da Fé Antiga, permitimos, certa vez, que os monges construíssem sua capela e seu mosteiro. Pois a nossa sabedoria, e a sabedoria deles...

- Mas o que você sabe sobre a filosofia natural, Igraine?

- Muito pouco - admitiu ela, abalada, olhando para a sacerdotisa e o grande druida. - Nunca me ensinaram isso.

- É pena - lamentou Merlim -, pois você precisa compreender, Igraine. Vou tentar explicar-lhe simplesmente.

- Veja - disse ele, e tirou o colar de ouro do pescoço, depois a adaga. - Poderei colocar este bronze e este ouro no mesmo lugar, ao mesmo tempo?

Ela piscou e olhou fixamente, sem compreender.

- Não, claro que não. Podem ficar lado a lado, mas não no mesmo lugar, a menos que primeiro afastemos um deles.

- A mesma coisa aconteceu com a Ilha Sagrada - continuou Merlim. - Os padres nos fizeram um juramento, há quatrocentos anos, antes mesmo que os romanos chegassem e tentassem conquistar-nos, de que nunca se levantariam contra nós ou nos expulsariam com armas, pois estávamos aqui antes deles, que eram os suplicantes e fracos. Cumpriram o juramento, sou obrigado a reconhecer. Mas, em espírito, nas suas orações, nunca cessaram de lutar contra nós, para que seu deus expulsasse os nossos deuses, sua sabedoria predominasse sobre a nossa. Em nosso mundo, Igraine, há espaço suficiente para muitos deuses e muitas deusas. Mas no universo dos cristãos - como dizer isso? - não há lugar para a nossa visão e a nossa sabedoria. No mundo deles, há apenas um deus; não só esse deus deve conquistar todos os outros, mas também deve fazer como se não houvesse outros deuses, como se não tivesse havido nunca outros deuses e sim falsos ídolos, obra do Diabo. E isso para que, acreditando nesse deus único, todos os homens possam ser salvos desta única vida. É assim que pensam. E o mundo é a projeção daquilo em que os homens acreditam. Portanto os mundos que antes eram um só estão se separando.

- Há agora duas Bretanhas, Igraine: o mundo deles, sob o Deus Único e o Cristo; e ao lado dele e atrás dele, o mundo onde a Grande Mãe ainda governa, o mundo onde os Antigos escolheram viver e adorar seus deuses. Isso já acontecen antes. Houve uma época em que o povo das fadas, o povo brilhante, afastou-se de nosso mundo, penetrando cada vez mais nas névoas, de modo que só um andarilho ocasional pode hoje passar uma noite nos abrigos dos duendes, e, se o fizer, o tempo passa sem ele, que pode sair depois de uma única noite e constatar que seus parentes estão todos mortos e que uma dúzia de anos transcorreu. E agora eu lhe digo, Igraine, isso está acontecendo outra vez. Nosso mundo - governado pela Deusa e pelo Cornudo, seu esposo, o mundo que você conhece, o mundo de muitas verdades - está sendo expulso pelo curso principal do tempo. Ainda agora, Igraine, se um viajante parte sem um guia para a ilha de Avalon, a menos que conheça muito bem o caminho, não conseguirá chegar e encontrará apenas a ilha dos padres. Para a maioria dos homens, nosso mundo está agora perdido nas brumas do mar do Verão. Antes mesmo que os romanos partissem, isso estava começando a acontecer; agora, quando as igrejas cobrem toda a Bretanha, nosso mundo torna-se cada vez mais distante. Foi por esse motivo que precisamos de tanto tempo para chegar aqui; um número cada vez menor de cidades e caminhos dos Antigos ainda resta para nos guiar. Os mundos ainda estão em contato, ainda estão um ao lado do outro, próximos como amantes, mas estão se separando, e se esse processo não for sustado chegará o dia em que haverá dois mundos, e ninguém poderá ir e vir entre os dois...

- Que se separem! - interrompeu Viviane com raiva. - Continuo achando que deveríamos deixar que se separem! Não quero viver num mundo de cristãos que negam a Mãe...

- Mas e os outros, aqueles que viverão no desespero? - A voz de Merlim soava novamente como um grande sino aveludado. - Não, é preciso manter um caminho, ainda que secreto. Partes do mundo ainda são uma só coisa. Os saxões andam pelos dois mundos, mas um número cada vez maior de nossos guerreiros são seguidores do Cristo. Os saxões...

- Os saxões são bárbaros e cruéis - interrompeu Viviane. - As tribos sozinhas não podem expulsá-los de nossas praias, e Merlim e eu sabemos que Ambrósio não permanecerá muito tempo neste mundo, e o que o seu duque de guerra, o Pendragon - é Uther o nome que lhe dão? -, o substituirá. Mas são muitos neste país os que não seguirão o Pendragon. Qualquer que seja a sina de nosso mundo no espírito, nenhum de nossos mundos pode sobreviver ao fogo e à espada dos saxões. Antes de podermos travar a batalha espiritual que impedirá que os mundos se distanciem ainda mais, devemos salvar o coração da Bretanha, que está sendo destruído pelos incêndios dos saxões. Não só eles, mas também os jutos, os escotos, todos os selvagens que descem do norte. Todos os lugares, até a própria Roma, estão sendo subjugados, eles são muitos. Seu marido vem lutando durante toda a sua vida. Ambrósio, o duque da Bretanha, é um bom homem, mas só pode contar com a lealdade daqueles que outrora seguiram Roma. Seu pai usou a púrpura, e Ambrósio também tinha ambições de ser imperador. Mas precísamos de um líder que empolgue todo o povo da Bretanha.

- Mas... Roma continua - protestou Igraine. - Gorlois disse-me que quando Roma tiver superado seus problemas na Grande Cidade, as legiões voltarão! Não poderemos esperar ajuda de Roma contra os selvagens do norte? Os romanos foram os maiores lutadores do mundo, construíram a grande muralha no norte, para conter as incursões selvagens...

A voz de Merlim adquiriu o som cavo parecido com o tanger de um grande sino.

- Eu vi no poço sagrado - disse ele. - A Águia voou e não voltará nunca mais à Bretanha.

- Roma nada pode fazer - disse Viviane. - Precisamos ter nosso próprio líder, que possa comandar toda a Bretanha. Sem ele, quando se juntarem contra nós, toda a Bretanha cairá, e, por centenas e centenas de anos viveremos em ruínas sob os bárbaros saxônicos. Os mundos separar-se-ão irrevogavelmente, e a lembrança de Avalon não restará nem mesmo na lenda, para dar esperanças à humanidade.

Não, devemos ter um líder que possa contar com a lealdade de todo o povo das duas Bretanhas - a dos padres, e a do mundo das brumas, governado de Avalon. Unidos por esse Grande Rei - a voz dela adquiriu o tom claro e místico da profecia -, "os mundos voltarão a se juntar, um mundo com lugar para a Deusa e para o Cristo, para o caldeirão e a cruz. E esse líder nos unificará".

- Mas onde encontraremos esse rei? - perguntou Igraine. - Quem nos dará esse líder?

E então, de repente, teve medo, sentiu um frio gelado descer-lhe pelas costas, enquanto Merlim e a sacerdotisa voltavam-se para ela, com olhos que pareciam mantê-la imóvel como um pequeno pássaro sob a sombra de um grande gavião, e compreendeu por que o profeta-mensageiro dos druidas era chamado de Merlim.

Mas quando Viviane falou, sua voz era muito suave. Disse:

- Você, Igraine. Você nos dará esse Grande Rei.

 

Capítulo 2

Houve um silêncio na sala, quebrado apenas pelo leve crepitar do fogo. Por fim, Igraine respirou profundamente, como se acabasse de acordar.

- O que estão me dizendo? Quer dizer que Gorlois será o pai desse Grande Rei?

Ouviu as palavras ecoando em sua mente e ressoando ali, e perguntou a si mesma por que nunca presumira que um destino tão grande estava reservado ao marido. Viu a irmã e Merlim trocarem um olhar e percebeu também o pequeno gesto com que a sacerdotisa silenciou o velho.

- Não, Merlim, isso deve ser dito de mulher para mulher... Igraine, Gorlois é romano. As tribos não seguirão qualquer homem nascido de um filho de Roma. O Grande Rei a quem seguirão deve ser filho da Ilha Sagrada, um verdadeiro filho da Deusa. Seu filho, Igraine, sim. Mas não são apenas as tribos que lutarão contra os saxões e outros selvagens vindos do norte. Precisamos do apoio dos romanos, dos celtas e dos cambrianos, e eles só seguirão o seu próprio duque de guerra, o seu Pendragon, filho daquele que considerem capaz de liderá-los e comandá-los. E os Antigos, também, que buscam o filho de uma linhagem materna real. Seu filho, Igraine, cujo pai será Uther Pendragon.

Igraine olhou-os fixamente, compreendendo, até que, aos poucos, a raiva rompeu o torpor. Respondeu-lhes então, incisiva:

- Não! Eu tenho um marido, a quem dei uma filha! Não consentirei que continuem brincando com a minha vida! Casei-me como me mandaram, e vocês jamais saberão... - As palavras morreram-me na garganta. Jamais seria possível descrever-lhes aquele primeiro ano; nem mesmo Viviane seria capaz de imaginá-lo. Poderia dizer "Eu estava com medo", ou "Eu estava aterrorizada", ou "O estupro teria sido melhor, porque eu poderia ter corrido, depois, para ir morrer", mas seriam meras palavras, transmitindo apenas um mínimo do que ela sentira.

E ainda que Viviane tivesse sabido de tudo, penetrando sua mente e conhecendo o que ela não podia dizer, têla-ia olhado com compaixão e até mesmo com um pouco de piedade, mas não teria mudado de idéia, nem amenizado as exigências que lhe faria. Ouvira-a dizer, com muita frequência, quando a irmã ainda acreditava que ela, Igraine, seria uma sacerdotisa dos Mistérios: Quem procura evitar seu destino ou retardar o seu frimento apenas se condena a sofrer duplamente, em outra vida.

Por isso, preferiu calar; somente olhou para Viviane com o ressentimento sufocado daqueles últimos quatro anos, em que cumprira o seu dever corajosamente e sozinha, sujeitando-se ao destino, sem protestar mais do que seria permitido a uma mulher. Mas, outra vez? Nunca, disse Igraine a si mesma, nunca. E sacudiu a cabeça, teimosamente.

- Ouça, Igraine - começou Merlim. - Eu sou seu pai, embora isso não me dê nenhum direito. É o sangue da Senhora que confere realeza, e você tem o mais antigo sangue real, transmitido de filha a filha da Ilha Sagrada. Está escrito nas estrelas que só um rei vindo de duas linhagens reais - uma, das tribos que seguem a Deusa, e outra, dos que se voltam para Roma - conseguirá livrar nossa terra de toda essa luta. A paz virá quando essas duas terras puderem viver lado a lado, uma paz suficientemente longa para que a cruz e o caldeirão também se entendam. Se houver um reino como esse, Igraine, até mesmo os seguidores da Cruz terão o conhecimento dos Mistérios para reconfortá-los em suas existências sombrias de sofrimento e pecado, e em sua crença de que só têm uma curta vida para escolherem entre o Inferno e o Céu, por toda a eternidade. Sem isso, nosso mundo desaparecerá nas brumas, e centenas de anos, milhares talvez, transcorrerão, durante os quais a Deusa e os Sagrados Mistérios serão esquecidos por toda a humanidade, exceto pelos poucos que puderem ir e vir entre os dois mundos. Deixaria você a Deusa e sua obra desaparecerem, Igraine, você, que nasceu da Senhora da Ilha Sagrada, e do Merlim da Bretanha?

Igraine inclinou a cabeça, protegendo a mente contra a ternura da voz do velho. Sempre soubera, sem que isso lhe tivesse sido dito, que Taliesin, Merlim da Bretanha, se associara à sua mãe para criar a sua centelha de vida, mas uma filha da Ilha Sagrada não fala dessas coisas. Uma filha da Senhora só pertence à Deusa e ao homem a quem confia o cuidado da criança - em geral, seu irmão, muito raramente aquele que a gerou. Havia uma razão para isso: nenhum homem piedoso podia pretender ter sido o pai de um filho da Deusa, e todos os filhos nascidos da Senhora eram assim considerados. O fato de Taliesin usar esse argumento, naquele instante, surpreendeu-a profundamente, e também a comoveu.

Mas Igraine insistiu, recusando-se a olhar para ele:

- Gorlois podia ter sido escolhido Pendragon. Certamente que esse Uther não pode ser tão superior assim a todos os outros homens. Se vocês precisam ter esse rei, não poderiam ter usado sua magia para que meu marido fosse aclamado o duque de guerra da Bretanha, e Grande Dragão? Então, quando nosso filho nascesse, vocês teriam o seu Grande Rei...

Merlim sacudiu a cabeça, mas ainda desta vez foi Viviane quem falou, e esse acordo silencioso aumentou a irritação de Igraine. Por que agiam desse modo contra ela? Viviane disse suavemente:

- Você não terá nenhum filho de Gorlois, Igraine.

- Será você, então, a Deusa, para distribuir filhos às mulheres, em nome dela? - perguntou Igraine agressivamente, sabendo que suas palavras eram infantis. - Gorlois teve filhos com outras mulheres, por que não poderia ter um filho, fruto do nosso matrimônio, tal como deseja?

Viviane não respondeu. Olhou com firmeza para Igraine e perguntou, com uma voz muito doce:

- Você ama Gorlois, Igraine?

Igraine voltou os olhos para o chão.

- Isso não tem nenhuma relação com o que discutimos. É uma questão de honra. Ele foi bom para mim... - interrompeu-se, mas seus pensamentos continuaram a fluir livremente: - Bom para mim, quando eu não tinha a quem recorrer, quando estava só e esquecida, e até mesmo você me abandonara à minha sorte. O que é o amor, comparado a isso?

- É uma questão de honra - repetiu. - Devo-lhe isso. Ele me deixou conservar Morgana, que era tudo o que eu tinha em minha solidão. Tem sido bom e paciente, e para um homem de sua idade, isso não deve ser fácil. Ele quer um filho, acredita que é a coisa mais importante para sua vida e sua honra, e eu não lhe negarei isso. Se eu tiver um filho, será o filho do duque Gorlois, e de nenhum outro homem vivo. E isso eu juro, pelo fogo e...

- Silêncio! - a voz de Viviane, como o som estrondoso de um grande sino, calou-lhe as palavras. - Ordeno-lhe, Igraine, não fazer qualquer juramento, pois de contrário será para sempre perjura!

- E por que você acha que eu não seria fiel ao meu juramento? - retrucou, com raiva. - Fui criada na verdade! Também eu sou filha da Ilha Sagrada, Viviane! Você pode ser minha irmã mais velha, minha sacerdotisa e a Senhora de Avalon, mas não me tratará como se eu fosse uma criança balbuciante como Morgana, que não pode compreender nada do que lhe é dito, nem conhece a significação de um juramento.

Ouvindo seu nome, Morgana sentou-se ereta no colo da Senhora do Lago. Esta sorriu e alisou-lhe o cabelo escuro.

- Não pense que esta menina não compreende. As crianças sabem mais do que imaginamos; elas não podem dizer o que pensam, por isso acreditamos que não pensam. Quanto a esta menina... bem, isso é parte do futuro e não falarei dele na frente de Morgana. Mas quem sabe, talvez um dia também ela venha a ser uma grã-sacerdotisa...

- Nunca! Nem que tenha de me transformar em cristã para impedir isso - protestou Igraine. - Você pensa que deixarei que brinque com a vida de minha filha como brincou com a minha?

- Paz, Igraine - interrompeu Merlim. - Você é livre, como são livres todos os filhos de Deus. Viemos pedir, e não ordenar. Não, Viviane... - disse ele, erguendo a mão quando a Senhora fez um gesto para interrompê-lo. - Igraine não é um joguete impotente do destino. Não obstante, creio que, quando ela souber de tudo, fará a escolha acertada.

Morgana começava a inquietar-se no colo da Senhora.

Viviane cantarolou suavemente, afagando-lhe os cabelos, e a menina tranquilizou-se, mas Igraine ergueu-se e tomou-a nos braços, irritada e com ciúmes do poder quase mágico que Viviane tinha de acalmá-la. Morgana pareceu-lhe estranha, diferente, como se os momentos passados no colo de Viviane a tivessem modificado, transformado, tornando-a menos sua. Igraine sentiu que as lágrimas lhe queimavam os olhos. Morgana era tudo o que tinha, e agora também estava sendo tomada dela; a filha, como todos, estava sendo vítima do encanto de Viviane, aquele encanto que transformava as pessoas em joguetes impotentes da sua vontade.

Ordenou asperamente a Morgause, que ainda tinha a cabeça no colo de Viviane:

Levante-se logo, Morgause, e vá para seu quarto. Você já é quase uma mulher, não deve comportar-se como uma criança mimada!

Morgause levantou a cabeça, afastando do belo rosto a cortina de cabelos vermelhos, e perguntou:

- Por que você escolheu Igraine para seus planos, Viviane? Ela não quer saber deles. Mas eu sou mulher, e também sou filha da Ilha Sagrada. Por que você não escolheu a mim para Uther, o Pendragon? Por que não posso ser a mãe do Grande Rei?

Merlim sorriu.

- Por que você se oferece tão precipitadamente ao destino, Morgause?

- Por que escolher Igraine, e não a mim? Não tenho marido...

- Há um rei no seu futuro, e muitos filhos, mas você deve contentar-se com isso. Nenhum homem ou mulher pode viver o destino de outro. O seu destino, e o de seus filhos, depende desse Grande Rei. Mais do que isso não posso dizer - concluiu Merlim. - Basta, Morgause.

De pé, com Morgana nos braços, Igraine sentiu-se mais senhora da situação, e disse numa voz calma:

- Estou sendo relapsa em minha hospitalidade, irmã e senhor Merlim. Os criados os levarão aos aposentos preparados para vocês, levarão vinho e água para suas abluções; ao entardecer será servida uma refeição.

Viviane levantou-se. Sua voz soou formal e correta, e Igraine sentiu-se, por um momento, aliviada: voltava a ser a dona de seu castelo, não mais uma criança passiva, mas a esposa de Gorlois, duque da Cornualha.

- Até o entardecer, então, minha irmã.

Igraine viu o olhar trocado entre Viviane e Merlim, e pôde lê-lo tão claramente como se estivesse escrito em palavras: Deixemos isso por agora, eu conseguirei dobrá-la, como sempre fiz.

E Igraine sentiu que seu rosto se enrijecia como o ferro. "Isso foi o que ela sempre fez, realmente. Eu lhe satisfiz a vontade, outrora, quando era ainda uma criança e nada sabia. Mas agora cresci, sou uma mulher que não pode ser levada tão facilmente quanto a criança que ela deu a Gorlois em casamento. Agora, farei a minha vontade e não a da Senhora do Lago."

Os criados acompanharam os hóspedes; Igraine em seu quarto, colocou Morgana na cama e pôs-se a cuidar de pequenas coisas à volta dela, com o pensamento concentrado em tudo o que ouvira.

Uther Pendragon. Nunca o tinha visto, mas Gorlois contava muitas histórias sobre a sua coragem. Era parente próximo de Ambrósio Aureliano, Grande Rei da Bretanha, filho de sua irmã -, mas, ao contrário deste, era um bretão de bretões, sem qualquer sangue romano, de tal modo que os cambrianos e as tribos não hesitaram em segui-lo.

Não havia maiores dúvidas de que, um dia, Uther seria escolhido o Grande Rei. Ambrósio não era jovem, e esse dia não podia estar muito distante.

"E eu seria rainha... Em que estou pensando? Seria capaz de trair Gorlois e minha própria honra?"

Ao pegar novamente oespelho de bronze, Igraine viu sua irmã parada junto à porta. Viviane retirara os culotes que usava para montar e vestira uma roupa ampla, de lã não tingida e o cabelo caía-lhe macio e escuro como a lã de uma ovelha negra. Parecia pequena, frágil e envelhecida e seus olhos eram os da sacerdotisa na caverna da iniciação, muitos anos antes e em outro mundo... Igraine afastou o pensamento, com impaciência.

Viviane aproximou-se, estendendo o braço para tocar-lhe a nuca.

- Pequena Igraine. Não tão pequena assim, agora - disse ternamente. - Sabe, minha pequena, fui eu quem escolheu seu nome: Grainné, segundo a Deusa dos fogos de Beltane... Há quanto tempo você não presta homenagem à Deusa de Beltane, irmã?

A boca de Igraine distendeu-se um pouco, e seu sorriso não foi além disso.

- Gorlois é um romano, e um cristão. Você acredita realmente que em sua casa se cumprem os ritos de Beltane?

- Não, creio que não - admitiu Viviane, divertida -, embora, se eu fosse você não juraria que seus criados não saiam furtivamente, no solstício do verão, para acenderem fogueiras e deitarem-se sob a lua cheia. Mas o senhor e a senhora de uma família cristã não podem fazer o mesmo, não à vista de seus padres e de seu deus rigoroso e pouco amante...

Igraine respondeu secamente:

- Você não deve se referir assim ao deus de meu marido, que é um deus do amor.

- É você quem o diz. E, apesar disso, ele travou a guerra contra todos os outros deuses, matando aqueles que não o adoraram - argumentou Viviane. - Seria melhor que fôssemos poupados do amor desse deus. Eu poderia lhe exigir, em nome dos votos feitos outrora, que fizesse aquilo que lhe pedi em nome da Deusa e da Ilha Sagrada...

- Essa é boa - sorriu Igraine com sarcasmo. - Agora minha Deusa exige que eu me comporte como uma prostituta, e Merlim da Bretanha e a Senhora do Lago me servirão de alcoviteiros!

Com os olhos faiscando, sua irmã deu um passo à frente, e por um instante Igraiae acreditou que a sacerdotisa iria esbofeteá-la.

- Como ousa? - interrompeu Viviane imediatamente, e embora sua voz fosse baixa, parecia ecoar por todo o aposento; Morgana, semi-adormecida sob a manta de lã, sentou-se e gritou, tomada de súbito medo.

- Veja, você acordou minha filha - protestou Igraine, sentando-se na beira da cama, acalentando a criança. Aos poucos, a ira desapareceu do rosto de Viviane. Sentou-se ao lado da irmã e disse-lhe:

- Você não me compreendeu, Grainné. Você acredita que Gorlois seja imortal? Digo-lhe, minha filha, que procurei ler nas estrelas os destinos daqueles que são importantes para a unidade da Bretanha, nos últimos anos, e o nome de Gorlois não está escrito ali.

Igraine sentiu seus joelhos tremerem e todo o corpo afrouxar-se nas juntas.

- Uther vai matá-lo?

- Juro que Uther nada terá a ver com a morte dele, e quando Gorlois morrer, Uther estará muito longe. Mas pense, filha: Tintagel é um grande castelo. Você acha que se Gorlois não o pudesse defender, Uther Pendragon hesitaria em dizer a um de seus duques guerreiros "Tome o castelo e a mulher que nele está"? Melhor Uther que um de seus homens.

- Morgana, o que será de minha filha, e de Morgause, minha irmãzinha? Sem dúvida, a mulher que pertence a um homem tem de rezar para que ele viva e a proteja. Eu não poderia voltar para a Ilha Sagrada e viver em Avalon como sacerdotisa?

- Não é esse o seu destino - respondeu Viviane, com uma voz de novo terna. - Você não pode se furtar à sua sorte. Foi-lhe dado um papel na salvação deste país, mas o caminho de Avalon está fechado para você, para sempre. Caminhará para o seu destino, ou os deuses terão de arrastá-la contra a sua vontade?

Não esperou a resposta de Igraine:

- Não tardará muito. Ambrósio Aureliano está morrendo; ele chefiou os bretões por muitos anos, e agora seus duques se reunirão para escolher o Grande Rei. E ninguém melhor do que Uther, em quem todos podem confiar. Assim, ele terá de ser duque de guerra e Grande Rei, ao mesmo tempo. E precisará de um filho.

Igraine sentiu que uma armadilha fechava-se à sua volta.

- Se você atribuiu tanta importância a isso, por que não desempenha pessoalmente tal papel? Se está em jogo um poder tão grande quanto o de ser mulher do duque de guerra e Grande Rei da Bretanha, por que não tenta atrair Uther com os seus encantos, e dar você mesma à luz esse rei predestinado?

Para surpresa de Igraine, Viviane hesitou muito antes de responder:

- E você crê que não pensei nisso? Mas esqueceu-se da minha idade? Sou mais velha do que Uther, que não é muito jovem para um guerreiro. Eu tinha vinte e seis anos, quando Morgause nasceu. Tenho agora trinta e nove, Igraine, e passei da idade de ter filhos.

No espelho de bronze, que ainda tinha nas mãos, Igraine viu-lhe o reflexo da imagem, deformada, inconstante como a água, um momento clara e o outro enevoada, desaparecendo. Disse, então:

- Você acha? Pois eu lhe digo que terá um outro filho.

- Espero que não. Sou mais velha do que era nossa mãe, quando morreu ao trazer Morgause à luz, e eu não poderia ter esperanças de escapar ao mesmo destino. Este é o último ano em que participarei dos ritos de Beltane; depois disso, entregarei o cargo a uma mulher mais jovem, e serei apenas maga, como o Velho. Tinha esperanças de que algum dia pudesse entregar o posto de Deusa a Morgause...

- Então, por que não ficou com ela em Avalon, preparando-a para ser sacerdotisa, depois de você?

- Ela não serve - explicou-lhe Viviane, com um ar muito triste. - Só vê, sob o manto de Deusa, o poder, e não o sacrifício e o sofrimento intermináveis. Portanto, esse não é um caminho para ela.

- Não me parece que você tenha sofrido - arriscou Igraine.

- Você nada sabe. Você tampouco escolheu esse caminho. Eu, que a ele dediquei toda a minha vida, ainda digo que seria mais simples viver como uma camponesa, besta de carga e égua parideira. Você me vê vestida e coroada de Deusa, triunfante ao lado do seu caldeirão, mas não vê a escuridão da caverna e as profundezas do grande mar... Você não é chamada a vê-los, minha querida, e deve agradecer à Deusa que seu destino esteja em outro lugar.

Igraine disse, silenciosamente: "Você acredita que não conheço nada do sofrimento e da tolerância no silêncio, depois de todos esses quatro anos?", mas não pronunciou as palavras em voz alta. Viviane curvara-se sobre Morgana, tendo no rosto uma expressão terna enquanto acariciava os cabelos sedosos e negros da menina.

- Ah, Igraine, você não imagina como a invejo. Toda a minha vida desejei ter uma filha. Morgause era como se fosse minha, a Deusa o sabe, mas foi sempre tão distante como se tivesse nascido de uma estranha, não de minha própria mãe... Desejei uma filha em cujas mãos eu pudesse depositar meu cargo. - Deu um suspiro. - Mas só tive uma filha, que morreu, e meus filhos se separaram de mim. - Sacudiu os ombros. - Bem, meu destino é esse, e tentarei cumpri-lo, como você cumpre o seu. Só lhe peço isso, Igraine, e deixo o resto a cargo dela, que é a Senhora de todos nós. Quando Gorlois voltar novamente, irá a Londinium para a escolha do Grande Rei. Faça com que ele a leve.

Igraine deu uma gargalhada.

- Só me pede isso, que é exatamente o mais difícil! Você acredita que Gorlois sobrecarregará seus homens com a tarefa de escoltar uma jovem esposa até Londinium? Na realidade, eu gostaria de ir, mas Gorlois dificilmente me levaria.

- De qualquer jeito, você deve ir e procurar conhecer Uther Pendragon.

Igraine riu novamente.

- E você me dará um encantamento que o levará a apaixonar-se por mim, irresistivelmente?

Viviane acariciou-lhe o cabelo vermelho e anelado:

- Você é jovem, Igraine, e não sabe o quanto é bela. Não creio que Uther vá precisar de nenhum dos meus encantamentos.

Igraine sentiu o corpo contrair-se num curioso espasmo de medo:

- Talvez seja melhor que eu tenha um encantamento, para não sentir aversão por ele!

Viviane suspirou. Segurou a pedra-da-lua que pendia do pescoço de Igraine e disse:

- Isso não foi presente de Gorlois...

- Não, foi você quem me deu, no dia de meu casamento, lembra-se? Disse que tinha sido de minha mãe.

- Dê-me a pedra.

Procurou, sob o cabelo cacheado da nuca de Igraine, o fecho do cordão e abriu-o.

- Quando esta pedra voltar de novo às suas mãos, Igraine, lembre-se do que eu disse, e faça o que a Deusa quer.

Igraine olhou para a jóia nas mãos da sacerdotisa. Suspirou, mas não protestou. "Nada lhe prometi", disse para si mesma com energia, "nada".

- Você irá a Londinium para a escolha desse Grande Rei, Viviane?

A sacerdotisa sacudiu a cabeça:

- Vou ao país de outro rei, que ainda não sabe que deverá lutar ao lado de Uther. Ban de Armórica, na Bretanha Menor, está sendo feito Grande Rei de sua terra, e como penhor, seus druidas disseram-lhe que ele terá de cumprir comigo o Grande Ritual. Devo oficiar o Sagrado Matrimônio.

- Pensei que a Bretanha fosse uma terra cristã.

- Ora, é sim - continuou Viviane com indiferença -, e os seus padres tocarão os sinos, e o ungirão com seus óleos sacros, e lhe dirão que seu deus fez o sacrifício para ele. Mas o povo não aceitará um rei que não tenha feito votos ao Grande Sacrifício.

Igraine deu um suspiro.

- Conheço tão pouco...

- Antigamente, Igraine - comentou Viviane -, o Grande Rei estava ligado à sorte da terra, e jurava, como todo Merlim da Bretanha, que, se a terra sofresse um desastre ou atravessasse tempos perigosos, ele morreria para que ela se salvasse. E se recusasse o sacrifício, o país pereceria. Eu... eu não devia falar disso, é um Mistério, mas você, Igraine, está, a seu modo, oferecendo a vida para a salvação desta terra. Nenhuma mulher, ao dar à luz, sabe se sua vida não será exigida pela Deusa. Também eu me vi nessa situação, atada e impotente, com a faca no pescoço, sabendo que, se a morte me levasse, meu sangue redimiria a terra...

Sua voz tremeu, e fez-se silêncio. Também Igraine ficou em silêncio, num respeito temeroso.

- Uma parte da Bretanha Menor também se perdeu nas névoas, e o Grande Santuário de Pedras já não pode ser encontrado. O caminho que leva ao santuário é pedra oca, se não conhecermos o Caminho de Karnak - continuou -, mas o rei Ban comprometeu-se a impedir que os mundos se separem, e a manter abertos os portões dos Mistérios. Portanto ele fará o Sagrado Casamento com a terra, como penhor de que, se necessário for, seu sangue será derramado para alimentar as colheitas. É conveniente que meu último serviço prestado à Mãe, antes que me retire para a companhia das magas, seja ligar a sua terra a Avalon, e portanto serei para ele a Deusa neste mistério.

Calou-se, mas para Igraine o quarto ressoava com o eco de sua voz. Viviane inclinou-se e tomou nos braços a pequena Morgana, já adormecida, segurando-a com grande ternura.

- Ela ainda não é uma moça, e eu ainda não sou maga - disse -, mas nós somos as três, Igraine. Juntas, formamos a Deusa, e ela está presente aqui entre nós.

Igraine perguntou-se por que ela não teria mencionado Morgause, e as duas irmãs se conheciam tanto que Viviane ouviu as palavras como se tivessem sido proferidas. Comentou, num murmúrio, e Igraine viu que tremia:

- A Deusa tem uma quarta face, que é secreta, e você deve rezar como eu... como eu rezo, Igraine, para que Morgause jamais seja essa face.

 

Capítulo 3

Parecia a Igraine que cavalgava eternamente sob a chuva. A viagem para Londinium era como uma viagem ao fim do mundo. Pouco viajara antes, tendo ido apenas de Avalon para Tintagel. Comparava a criança amedrontada e desesperada daquela primeira viagem ao que era agora. Hoje, estava ao lado de Gorlois, que procurava dar-lhe informações sobre as terras que atravessavam, enquanto ela ria e brincava; à noite, na tenda, ia voluntariamente para a cama do marido. Às vezes, sentia falta de Morgana, pensando em como estaria a filha - choraria à noite, comeria quando Morgause mandasse? Mas era agradável estar novamente livre, cavalgando naquele grande grupo de homens, consciente dos seus olhares afetuosos e da sua deferência - nenhum deles ousara aproximar-se da mulher de Gorlois, apenas lançavam-lhe um rápido olhar de admiração. Era novamente uma menina, mas não uma criatura medrosa fugindo do homem que era seu marido e a quem devia, de alguma forma, agradar. Voltava a ser uma criança, mas sem a inabilidade infantil de sua meninice, e gostava disso. Nem mesmo se importava com a chuva incessante que tornava invisíveis os morros distantes, obrigando-os a viajar dentro de um pequeno círculo de névoa.

"Poderíamos perder-nos nesta bruma, indo parar no reino das fadas, e não voltar nunca mais a este mundo, onde o agonizante Ambrósio e o ambicioso Uther planejam a salvação da Bretanha contra os selvagens. A Bretanha poderia afundar como Roma, sob os bárbaros, e nunca saberíamos, nem isso teria qualquer importância para nós..."

- Está cansada, Igraine?

A voz de Gorlois era suave e preocupada. Realmente, ele não era o ogro que lhe havia parecido naqueles primeiros dias aterrorizantes, há quatro anos! Agora, era apenas um homem que começava a envelhecer, com cabelos e barba grisalhos (embora se barbeasse cuidadosamente, ao estilo romano), marcado por anos de lutas e comovedoramente empenhado em lhe ser agradável. Se ela não estivesse tão amedrontada e rebelde naqueles dias, talvez tivesse compreendido que já então Gorlois queria agradar-lhe. Não havia sido cruel com ela, como lhe parecera, apenas parecia saber pouco dos corpos femininos e de como usá-los. Agora, entendia que ele era apenas inábil e não cruel; e se Igraine lhe dizia que ele a machucava, suas carícias tornavam-se mais gentis. A Igraine jovem havia considerado inevitável a dor e o terror. Agora, porém, sabia mais.

Sorriu-lhe alegremente, e disse:

- Não; creio que poderia cavalgar para sempre! Mas com toda essa névoa, como pode estar certo de que não perderemos o caminho e que conseguiremos chegar a Londinium?

- Não precisa ter medo de que isso aconteça - respondeu ele, com gravidade. - Meus guias são muito bons, conhecem cada palmo de estrada. E antes do anoitecer estaremos naquela velha estrada romana que conduz ao coração da cidade. Dormiremos esta noite sob um teto e numa cama de verdade.

- Gostaria de dormir novamente numa cama de verdade - desejou Igraine com modéstia, e notou, como o adivinhara, a súbita chama brilhar no rosto e nos olhos dele. Mas Gorlois afastou o rosto: era quase como se tivesse medo dela, e Igraine, tendo acabado de descobrir esse poder, comprazia-se com isso.

Viajava ao lado dele, refletindo sobre a súbita ternura que sentia por Gorlois, à qual se misturava a piedade, como se só agora ele lhe fosse caro, quando sabia que iria perdê-lo. De uma forma ou de outra, estava certa de que seus dias ao lado dele estavam contados, e lembrava-se das circunstâncias em que soubera disso.

Havia chegado um mensageiro comunicando o retorno do marido; Gorlois mandara um de seus homens, com olhos suspeitosos que vasculhavam tudo, dizendo silenciosamente a Igraine que, se fosse casado com uma mulher jovem, teria chegado sem advertência, esperando surpreender alguma coisa errada ou estranha. Igraine, sabendo que nada tinha a temer, que o administrador era competente e que sua cozinha estava em ordem, não tomou conhecimento dos olhares inquisitivos e o recebeu bem. Que interrogasse os criados, se o desejasse, pois saberia que, com exceção da irmã e de Merlim, não recebera hóspedes em Tintagel.

Quando o mensageiro partiu, Igraine, voltando-se para atravessar o pátio, parou como se uma sombra houvesse caído sobre ela em plena luz do sol, tomada de um medo sem causa. E naquele momento viu Gorlois, e imaginou onde estariam seu cavalo e seu séquito. Ele parecia mais magro e mais velho, e por um momento quase não o reconheceu.

Tinha o rosto abatido e cansado. Havia em sua face um corte de espada de que ela não se lembrava.

- Meu marido! - exclamou. - Gorlois... - E então espantada com o sofrimento indizível no rosto dele, esqueceu o seu medo e os anos de ressentimento, correu ao seu encontro e disse-lhe, como se ele fosse sua filha: - Oh Querido, o que lhe aconteceu? O que o trouxe aqui, assim sozinho, desarmado... Está doente? Está... - E parou, com a voz morrendo entre os ecos. Ali não havia ninguém, apenas a luz das nuvens, o mar e as sombras, e o eco de sua própria voz.

Tentou, durante o resto do dia, tranquilizar-se, pensando que era apenas um Aviso, como o que recebera à chegada de Viviane. Mas sabia que não: Gorlois não tinha a Visão, não a teria usado, nem teria acreditado nela, se a tivesse. O que ela vira - e, embora nunca lhe houvesse acontecido nada assim antes sabia que era assim - fora o duplo de seu marido, sua sombra e a precursora de sua morte.

E quando, finalmente, ele chegou são e salvo, Igraine tentou afastar essa lembrança, dizendo-se que fora apenas um efeito da luz que a fizera ver, atrás dele, a sombra com o corte da espada na face e o sofrimento indizível no olhar.

Pois Gorlois não estava ferido nem desanimado, pelo contrário, seu humor era excelente, e trazia-lhe presentes, até mesmo um colar de pequenas contas de coral para Morgana.

Procurara nos sacos de seu butim saxônico, e dera a Morgause um manto vermelho.

- Sem dúvida pertenceu a alguma meretriz saxônica, dessas que seguem os soldados, ou mesmo a uma das barulhentas guerreiras que lutam ao lado de seus homens, semi-nuas, no campo de batalha - comentou, rindo e segurando o queixo dela -, de modo que será conveniente o seu uso por uma moça bretã decente. A cor lhe vai bem, irmãzinha. Quando você crescer um pouco mais, será tão bonita quanto minha mulher.

Morgause sorriu com afetação, deu risinhos, e inclinou a cabeça para o lado, posando com o novo manto; mais tarde, Gorlois disse, quando ele e Igraine se preparavam para dormir (Morgana, berrando, fora banida para o quarto de Morgause):

- Devemos casar essa menina tão logo seja possível. Ela é uma cadelinha, com olhos ansiosos para tudo o que tenha jeito de homem. Viu como lançava olhares não só para mim, mas também para meus soldados mais jovens? Não quero que ela desgrace minha família, nem influencie minha filha!

Igraine deu-lhe uma resposta calma. Não podia esquecer que vira a morte de Gorlois, e não discutiria com um homem condenado. E também ela se aborrecera com o comportamento de Morgause.

"Então, Gorlois vai morrer. Bem, não é necessário muita profecia para prever que um homem de quarenta e cinco anos, que passou a maior parte da vida lutando contra os saxões, não chegue a ver os filhos crescidos. Mas não deixarei que isso me leve a acreditar em todo o resto dos absurdos que Viviane me contou, nem terei esperanças de que Gorlois me leve a Londinium."

No dia seguinte, porém, enquanto tomava calmamente a primeira refeição da manhã e ela costurava um grande rasgão na melhor túnica de Gorlois, ele lhe disse sem rodeios:

- Você não quer saber o que me trouxe aqui tão subitamente, Igraine?

Depois da noite passada, ela sentia-se bastante confiante para sorrir na frente dele.

- Devo eu interrogar a boa sorte que me trouxe o marido de volta, depois de um ano de ausência? Espero que isso signifique que o litoral saxônico foi libertado e voltou às mãos dos bretões.

Ele balançou a cabeça com um ar distraído e sorriu. Depois, o sorriso desapareceu.

- Ambrósio Aureliano está agonizando. A velha águia desaparecerá brevemente, e não há herdeiro para voar em seu lugar. É como se voltássemos ao tempo das legiões. Ele é rei desde que me entendo por gente, e um bom rei para os que, como eu, ainda esperavam a volta de Roma, algum dia. Agora, sei que tal dia não virá. Os reis da Bretanha, de perto ou de longe, foram convocados para se reunirem em Londinium e escolherem seu Grande Rei e chefe guerreiro, e eu também devo ir. Era uma longa viagem até aqui, para ficar tão pouco tempo, pois tenho de partir dentro de três dias. Mas eu não passaria por perto daqui, sem ver você e a criança. Será uma grande reunião, Igraine, e muitos duques e reis levarão as esposas. Você quer ir comigo?

- A Londinium?

- Sim, se você quiser viajar até lá, e se conseguir separar-se da menina. Não vejo razão pela qual não deva ir. Morgana está muito bem de saúde e aqui há mulheres em número suficiente para cuidar de uma dúzia de crianças, se for necessário. E mesmo que eu lhe tenha feito agora um outro filho... - e olhou-a nos olhos com um sorriso que Igraine dificilmente teria imaginado -, isso ainda não impedirá que você monte. - Havia em sua voz uma ternura insuspeitada, quando ele acrescentou: - Eu preferia não me separar de você por algum tempo, pelo menos. Você virá, esposa minha?

"De alguma forma você deve ir a Londinium com ele", dissera-lhe Viviane. E agora, Gorlois tornava desnecessário até mesmo que lhe pedisse isso. Igraine sentiu um pânico súbito - como se montasse um cavalo em disparada. Pegou um copo de cerveja e provou-a, para disfarçar a confusão.

- Claro que irei, se você quiser.

Dois dias depois, viajavam para leste, rumo a Londinium, onde estavam o acampamento de Uther Pendragon e o agonizante Ambrósio, para a escolha do Grande Rei...

Lá pelo meio da tarde, chegaram à estrada romana e puderam seguir mais depressa; ao final do dia, viram a periferia de Londinium e sentiram o cheiro do rio que banhava a cidade. Igraine nunca imaginara que tantas casas pudessem ser reunidas num mesmo lugar e teve a impressão, por um momento, depois dos descampados das charnecas do sul, que não lhe seria possível respirar, que as casas a sufocavam. Cavalgava como se estivesse em transe, sentindo que as ruas de pedras e as paredes lhe tiravam o ar, a luz e a própria vida... Como era possível viver atrás de paredes, dessa maneira?

- Dormiremos esta noite na casa de um de meus soldados, que mora na cidade - disse Gorlois -, e amanhã nos apresentaremos na corte de Ambrósio.

Naquela noite, sentados em frente à lareira (que luxo, pensou, uma lareira acesa assim tão próximo do solstício do verão!), Igraine perguntou-lhe:

- Quem, na sua opinião, será o próximo Grande Rei?

- Que importância tem, para uma mulher, quem governa o país?

Ela lhe deu um meio sorriso; havia desfeito o cabelo para dormir e percebeu que ele se animava ante o sorriso.

- Embora eu seja mulher, Gorlois, devo viver nesta terra, e gostaria de saber que homem meu marido deve seguir, na paz e na guerra.

- Paz! Não haverá paz, pelo menos durante minha vida - disse Gorlois. - Não com esses selvagens atacando o nosso rico litoral. Devemos reunir todas as nossas forças para nos defendermos. E são muitos os que gostariam de usar o manto de Ambrósio e nos chefiar na guerra. Lot de Orkney, por exemplo. Um homem duro, mas de fé, um líder forte, bom na estratégia da batalha, mas ainda solteiro, sem dinastia. É jovem para ser Grande Rei, mas ambicioso, nunca vi um homem dessa idade tão ambicioso! E Uriens, de Gales do Norte. Com esse não há problemas de dinastia, já tem filhos, mas não é dotado de imaginação: quer fazer tudo o que já foi feito. Diz que funcionou uma vez e funcionará novamente. E desconfio que não é um bom cristão.

- Qual seria a sua escolha?

- Ninguém - respondeu ele com um suspiro. - Acompanhei Ambrósio toda a minha vida e seguirei o homem que for por ele escolhido; é uma questão de honra, e Uther é o homem de Ambrósio. É isso, simplesmente. Não que eu goste de Uther. É um lascivo, com dezenas de filhos bastardos, nenhuma mulher está a salvo junto dele. Vai à missa porque o exército vai, e porque é o que tem de fazer. Seria melhor que fosse um pagão sincero do que cristão pelas vantagens que isso lhe dá.

- Não obstante, você o apoia...

- Ah, claro. Ele tem, como soldado, qualidades suficientes para um César, os homens o acompanharão até o inferno, se for preciso. Ele não poupa esforços para ser popular com o exército - você sabe como é, andar pelo acampamento, provar a comida para ver se está boa, perdendo um dia que poderia ser de folga para conseguir a dispensa de um velho veterano sem dentes, dormindo nos acampamentos com os soldados antes de uma batalha. Os homens morreriam por ele - e morrem. E Uther tem inteligência e imaginação. Conseguiu fazer a paz com as tropas do tratado e trazê-las para lutar ao nosso lado, no outono passado. Para mim, porém, ele pensa um pouco demais como saxão, sabe como funciona a cabeça deles. Sim, eu o apoiarei, o que não quer dizer que goste dele.

Igraine, ouvindo-o, admitiu que Gorlois revelara mais sobre si mesmo do que sobre os outros candidatos a Grande Rei. Finalmente, disse:

- Você nunca pensou... Você é duque da Cornualha, e Ambrósio lhe dá valor; não poderia ser escolhido rei?

- Acredite, Igraine, eu não desejo a coroa. Você tem vontade de ser raínha?

- Não me recusaria - respondeu, lembrando-se da profecia de Merlim.

- Você diz isso porque é muito jovem para saber o que isso signifíca - sorriu Gorlois. - Gostaria realmente de governar um reino, como deve governar os seus servos em Tintagel, tendo todos à disposição? Houve uma época, quando eu era mais jovem... mas não quero passar o resto de minha vida na guerra. Ambrósio deu-me Tintagel há muitos anos, Igraine, e até quatro anos atrás eu não havia passado ali tempo suficiente para levar uma esposa para lá! Defenderei estas praias com uma espada enquanto puder, mas quero um filho para brincar com minha filha e algum tempo para viver em paz, pescando nas rochas, caçando e sentando-me ao sol para ver os camponeses trazerem suas colheitas; e quero tempo, talvez, para acertar minhas contas com Deus, para que ele me perdoe tudo o que tive de fazer na vida, como soldado. Mas, mesmo quando houver paz neste país, o Grande Rei não terá tranquilidade, pois quando os inimigos deixarem nosso litoral, aí, então, seus amigos começarão a brigar, ainda que seja apenas pela sua preferência. Não, não haverá coroa para mim, e quando você tiver a minha idade, alegrar-se-á com isso.

Igraine sentiu os olhos arderem enquanto Gorlois falava. Então esse soldado duro, o homem sombrío que ela havia temido, agora se sentia bastante à vontade com ela para revelar alguns de seus desejos. De todo o coração, desejou que ele pudesse ter seus últimos anos ao sol, como queria, com os filhos brincando à sua volta. Mas mesmo ali, à luz oscilante do fogo, podia ver a sombra pressaga do destino que o seguia.

"Pode ser a minha imaginação, deixei que as palavras de Merlim me fizessem imaginar tolices", pensou ela, e quando Gorlois bocejou e espreguiçou-se, dizendo estar cansado da viagem, ela ajudou-o a tirar as roupas.

Dormiu mal na cama estranha, dando voltas e agitando-se, enquanto ouvia a respiração tranquila do marido. De vez em quando, ele estendia a mão à procura dela, no sono, e Igraine acalmava-o, acalentando-o ao peito, como teria feito com sua filha. Talvez, pensou ela, Merlim e a Senhora estivessem atemorizados pelas suas próprias sombras, talvez Gorlois tenha tempo ainda de envelhecer ao sol. Talvez, antes de dormir, ele tivesse realmente plantado em seu ventre a semente do filho que eles disseram que nunca teria.

Quase ao amanhecer, Igraine mergulhou num sono inquieto, sonhando com um mundo na bruma, enquanto a costa da Ilha Sagrada se afastava cada vez mais entre as névoas. Parecia-lhe estar remando numa barca, grávida e cansada, buscando a ilha de Avalon, onde a Deusa, com o rosto de Viviane, estava à sua espera para perguntar como se saíra da missão que lhe fora confiada. E embora o litoral lhe fosse familiar, com bosques de macieiras que haviam crescido junto das praias, quando ela vinha ao templo, um crucifixo fora colocado no templo do sonho, e um coro de monjas vestidas de negro, de monjas cristãs, cantava um de seus hinos lamentosos, e quando ela começou a correr, procurando a irmã por toda parte, o som dos sinos de igreja lhe abafava os gritos. Acordou com um gemido, o grito de quem dorme, e sentou-se, ouvindo sinos de igreja por toda tarde.

Gorlois sentou-se na cama ao lado dela:

- É a igreja em que Ambrósio vai à missa. Vista-se depressa, Igraine, e iremos juntos.

Quando enrolava um cinto de seda por cima da roupa de linho, um criado estranho bateu à porta, pedindo para falar com a senhora Igraine, esposa do duque da Cornualha.

Igraine dirigiu-se à porta e pareceu-lhe reconhecer o homem, que lhe fez uma reverência. Recordou-se então de que o vira, há muitos anos, remando a barca de Viviane. Isso lhe trouxe à memória o sonho, e sentiu um frio por dentro.

- Sua irmã manda-lhe isso, da parte de Merlim, e pede-lhe que o use e lembre-se apenas de sua promessa. - E entregou-lhe um pequeno objeto envolto em seda.

- O que é isso, Igraine? - perguntou Gorlois, aproximando-se, de cenho carregado. - Quem está lhe mandando presentes? Você conhece o mensageiro?

- É um dos homens de minha irmã, da ilha de Avalon - respondeu Igraine, desembrulhando o objeto. Mas Gorlois disse secamente:

- Minha mulher não recebe presentes de mensageiros que me são desconhecidos - e o arrancou das mãos dela.

Igraine abriu a boca, indignada, e toda a sua ternura por Gorlois desapareceu de um só golpe: como ousava ele?

- Ora, é a pedra azul que você usava quando nos casamos - disse ele, de testa franzida. - Será isso uma promessa? Como sua irmã, se foi realmente ela quem mandou, tinha a pedra consigo?

Recuperando rapidamente a presença de espírito, Igraine mentiu-lhe deliberadamente, pela primeira vez.

- Quando minha irmã me visítou, dei-lhe a pedra e a corrente, para consertar o fecho. Ela conhece um ourives em Avalon que é melhor do que qualquer ourives da Cornualha. E a promessa de que ela falava é a de que cuide melhor de minhas jóias, já que sou agora mulher feita e não uma criança descuidada que não sabe zelar pelas coisas preciosas. Posso ficar com meu colar, marido meu?

Ele entregou-lhe a pedra-da-lua, ainda com o cenho carregado.

- Tenho a meu serviço um ourives que o teria consertado sem lhe fazer o sermão a que sua irmã não tem mais o direito. Viviane é muito pretensiosa; ela pode ter ocupado o lugar de sua mãe, mas agora você já não está sob os seus cuidados. Deve esforçar-se para ser mais senhora de si e menos dependente de sua antiga casa.

- Ora, agora recebi dois sermões - amuou-se Igraine, colocando o colar no pescoço. - Um de minha irmã, outro de meu marido, como se eu fosse realmente uma criança mal-educada.

Sobre a cabeça de Gorlois, ela parecia poder ver ainda a sombra da morte, o duplo temido dos que vão morrer. Sentiu então o súbito lampejo de uma esperança apaixonada de que ele não a tivesse engravidado, de que não trouxesse em si o filho de um homem condenado... Sentiu um frio de gelo.

- Vamos, Igraine - apressou ele, estendendo a mão para afagar-lhe os cabelos. - Não fique aborrecida. Procurarei lembrar que você é uma mulher feita, de dezenove anos, e não apenas uma criança de quinze! Vamos, devemos estar preparados para ír à missa do rei, e os padres não gostam que se entre e saia, depois de iniciada a cerimônia.

A igreja era pequena, feita de taipa, e as lâmpadas no seu interior brilhavam contra uma umidade fria. Igraine sentiu-se satisfeita com seu grosso manto de lã. Gorlois murmurou-lhe que o padre de cabelos brancos, venerável como um druida, era o sacerdote de Ambrósio, que acompanhava o exército, e que a missa era em ação de graças pela volta do rei.

- E o rei está aqui?

- Ele está entrando na igreja, dirige-se para aquele lugar ali, em frente ao altar.

Igraine reconheceu-o imediatamente pelo manto vermelho-escuro, sobre uma túnica preta pesadamente bordada, e o cinto enfeitado de jóias que lhe prendia a espada à cintura. Ambrósio Aureliano deve ter cerca de sessenta anos, pensou ela; alto, magro, barbeado à maneira romana, mas curvado, caminhando com um passo cuidadoso, como se tivesse algum ferimento interno. Outrora, talvez tivesse sido belo; agora, seu rosto estava enrugado e amarelo, o bigode, quase todo grisalho, e o cabelo encanecido. Ao seu lado estavam dois ou três conselheiros, ou outros reis; ela queria saber quem eram, mas o padre, vendo o rei entrar, começou a ler o seu grande livro, e Igraine mordeu o lábio e ficou calada, ouvindo o serviço que ainda agora, depois de quatro anos de instrução pelo padre Columba, não compreendia perfeitamente, nem se interessava por compreender. Sabia ser indelicado olhar à volta na igreja, como um menino camponês, mas, sob o capuz de seu manto, procurou ver alguns dos homens que cercavam o rei: um deles parecia ser Uriens, de Gales do Norte, e um homem ricamente vestido, esbelto e belo, cabelos curtos cortados ao estilo romano, à altura do queixo. Ficou imaginando se seria Uther, o companheiro e herdeiro presuntivo de Ambrósio. Ele ficou atento ao lado do rei, durante todo o prolongado serviço, e quando o idoso monarca tropeçou, o homem moreno e esbelto ofereceu-lhe o braço. Olhava atentamente para o padre, mas Igraine, que era capaz de ler o pensamento dos outros em seus rostos, sabia que não estava realmente ouvindo o padre nem a missa, mas que seus pensamentos voltavam-se para outras coisas. Ele levantou a cabeça uma vez e olhou diretamente para Gorlois, e seu olhar cruzou rapidamente com o de Igraine. Tinha olhos escuros, sob sobrancelhas também negras e espessas, e Igraine sentiu imediatamente um arrepio de repulsa. Se aquele homem era Uther, decidiu, nada queria com ele: viver ao seu lado seria um preço demasiado caro a pagar pela coroa. Devia ser mais velho do que aparentava, pois certamente não teria mais do que vinte e cinco anos.

O serviço ia ao meio, quando houve um certo movimento junto à porta, e um homem alto, de porte marcial e ombros largos, mas magro, num pesado manto de lã como os usados pelos homens do norte, seguido de quatro ou cinco soldados, entrou na igreja. O padre continuou imperturbável, mas o díácono, que estava ao seu lado, levantou a cabeça do livro do Evangelho e franziu a testa. O homem alto descobriu-se, mostrando um cabelo louro que começava a ficar ralo, deixando calvo o alto da cabeça. Avançou em meio aos fiéis que estavam de pé, o padre disse "Oremos" e, ao ajoelhar-se, Igraine notou que haviam se instalado bem perto, os soldados em volta dos homens de Gorlois, e ele, ao seu lado. Quando se ajoelhou, olhou rapidamente à volta para ver onde seus homens estavam colocados, depois baixou a cabeça piedosamente, para ouvir as orações.

Durante todo o demorado serviço não levantou a cabeça, não se movendo nem mesmo quando os fiéis começaram a aproximar-se do altar para o pão consagrado e o vinho: Gorlois tocou o ombro de Igraine, e ela o acompanhou - os cristãos acreditavam que a mulher tinha de seguir a religião do marido, e que seu deus poderia culpar Gorlois, se ela fosse despreparada para a comunhão. O padre Columba falara-lhe por longo tempo sobre as orações adequadas e a preparação, e Igraine sempre concluía que não estava bem preparada. Gorlois, porém, ficaria irritado, se ela não fosse, e não podería interromper o silêncio do serviço para discutir com ele, nem mesmo num murmúrio.

Ao voltar ao seu lugar, com os dentes embotados pelo pão grosseiro e a acidez do vinho no estômago vazio, viu o homem alto levantar a cabeça. O duque da Cornualha fez-lhe um rápido cumprimento e passou adiante. O homem olhou para Igraine, e pareceu-lhe por um momento que ria para ela e Gorlois. Igraine sorriu, mas, sob o olhar repressivo do marido, seguiu-o e ajoelhou-se humildemente ao seu lado. Pôde ver, porém, que o homem louro a observava. Pelo seu manto do norte, concluiu que talvez fosse Lot de Orkney, a quem Gorlois considerava jovem e ambicioso. Alguns dos setentrionais eram louros como os saxões.

O salmo final começou; ela o ouviu sem prestar-lhe muita atenção.

"Ele mandou a redenção entre seu povo, de acordo com sua lei eterna... Seu nome é sagrado e terrível; o medo do Senhor é o início da sabedoria."

Gorlois baixou a cabeça para a bênção. Igraine estava aprendendo muita coisa sobre seu marido, naqueles poucos dias. Sabia que era cristão quando se casara com ele; na verdade, naquela época, a maioria das pessoas eram cristãs, ou, se não eram, nada diziam, exceto nas proximidades da Ilha Sagrada, onde a Fé Antiga reinava, ou entre os bárbaros do norte, ou os saxões. Não sabia, porém, que ele fosse sinceramente devoto.

A bênção terminou; o padre e seus diáconos afastaram-se, levando a grande cruz e o Livro Sagrado. Igraine olhou para o rei. Parecia pálido e cansado e, ao voltar-se para deixar a igreja, apoiou-se fortemente no braço do jovem moreno que estava ao seu lado e lhe dera assistência durante todo o serviço.

- Lot de Orkney não perde tempo, não lhe parece, meu senhor da Cornualha? - comentou o homem alto e louro que usava o manto do norte. - Está sempre ao lado de Ambrósio, agora, oferecendo-lhe seus préstimos!

"Então", pensou Igraine, "ele não é o duque de Orkney, como pensei".

O duque resmungou um assentimento.

- Sua esposa, Gorlois?

Relutando, e com uma certa secura, o marido apresentou-os:

- Igraine, minha querida, este é o nosso duque de guerra, Uther, a quem as tribos chamam de Pendragon, devido ao seu estandarte.

Ela lhe fez uma reverência, surpresa. Uther Pendragon, esse homem desajeitado, louro como um saxão? Era esse o cortesão que deveria substituir Ambrósio - esse homem pretensioso que barulhentamente perturbara a santa missa? Uther olhava fixamente - não, como Igraine compreendeu, para seu rosto, mas para um ponto um pouco mais abaixo e, imaginando se não teria derramado o vinho da comunhão em sua roupa, Igraine percebeu que ele olhava para a pedra-da-lua que trazia sobre o manto, e ficou imaginando se seria a primeira vez que via tal pedra.

Gorlois também percebeu-lhe a direção do olhar. Disse:

- Quero apresentar minha mulher ao rei; muito bom dia para o senhor, meu duque.

E partiu sem esperar a despedida de Uther. Quando se afastaram, avisou:

- Não gostei da maneira como ele olhou para você, Igraine. Uther não é homem que qualquer mulher decente deva conhecer. Evite-o.

- Ele não estava olhando para mim, senhor meu marido, mas para a jóia que uso. Tê-la-ia cobiçado?

- Ele cobiça tudo - atalhou Gorlois secamente. Caminhavam tão depressa que os finos sapatos de Igraine tropeçavam nas pedras da rua, e alcançaram o grupo real.

Cercado de padres e conselheiros, Ambrósio parecia-se com qualquer velho doente que fora em jejum à missa e que desejava, então, a sua primeira refeição e um lugar para sentar-se. Caminhava com uma das mãos ao lado do corpo, como se sentisse alguma dor. Mas sorriu para o duque com cordialidade sincera, e Igraine compreendeu por que toda a Bretanha suspendera suas dissensões para servir aquele homem, e expulsar os saxões de sua terra.

- Senhor, voltou tão depressa da Cornualha? Não esperava vê-lo aqui antes do conselho, ou mesmo ainda uma vez neste mundo - exclamou o rei. Sua voz era frágil, ofegante, mas ele estendeu os braços para Gorlois, que o abraçou cuidadosamente e disse:

- Senhor, estais enfermo, deveríeis ter ficado na cama!

Ambrósio respondeu com um leve sorriso:

- Ficarei na cama dentro em breve, e por muito tempo, receio. O bispo disse a mesma coisa, e teria levado as coisas sagradas até meu leito, se eu quisesse, mas desejava estar novamente entre vocês. Venha tomar o desjejum comigo, Gorlois, e dizer-me como vão as coisas na sua terra tranquila.

Os dois homens continuaram andando, e Igraine caminhava atrás do marido. Do outro lado do rei, estava o homem magro e moreno, envolto num manto vermelho: Lot de Orkney, lembrou-se ela. Quando chegaram à casa do rei e Ambrósio foi instalado numa confortável cadeira, ele chamou Igraine com um gesto.

- Bem-vinda à minha corte, Igraine. Seu marido me disse que você é filha da Ilha Sagrada.

- Assim é, meu senhor - respondeu Igraine, timidamente.

- Tenho entre meus conselheiros, na corte, gente do seu povo. Meus padres não gostam que os seus druidas sejam colocados em condições de igualdade com eles, mas digo-lhes que ambos servem aos Grandes que estão acima de nós, qualquer que seja o nome que lhes dêem. E a sabedoria é a sabedoria, qualquer que seja a forma pela qual se manifesta. Por vezes, creio que os seus deuses escolhem para servi-los homens mais inteligentes do que nosso Deus - disse Ambrósio, sorrindo para ela. - Gorlois, venha sentar-se ao meu lado na mesa.

Ao sentar-se no banco almofadado, Igraine teve a impressão de que Lot de Orkney se mantinha nas proximidades, como um cachorro que leva um pontapé mas quer aproximar-se novamente de seu amo. Se Ambrósio tinha à sua volta homens que o amavam, muito bem. Mas gostaria Lot realmente do rei, ou só desejava ficar perto do trono para que seu poder se refletisse sobre ele? Observou que Ambrósio, embora insistisse cortesmente com seus convidados para que se servissem do fino pão de trigo e do mel e peixe fresco postos à sua mesa, comeu apenas pedaços de pão molhados no leite. Notou também as leves manchas amarelas no branco de seus olhos. Gorlois dissera que "Ambrósio estava agonizante". Igraine vira muitos homens próximos da morte, e sabia serem verdadeiras as palavras do marido, e as frases de Ambrósio mostravam que tinha consciência dísso.

- Recebi informações de que os saxões celebraram um tratado, mataram um cavalo e juraram sobre seu sangue, ou qualquer coisa igualmente tola, com os nortistas - contou o rei -, e a luta pode estender-se à Cornualha, desta vez. Uriens, você talvez tenha de comandar nossos exércitos no oeste; você e Uther, que conhece os montes galeses como conhece o punho de sua espada. A guerra pode chegar até a sua pacífica região, Gorlois.

- Mas você está protegido, como nós no norte, pela costa e pelos rochedos abaixo de suas terras - opinou Lot de Orkney, com voz macia. - Não acredito que um bando de selvagens possa chegar a Tintagel, a menos que conheçam as rochas e enseadas. E mesmo do lado terrestre, Tintagel pode ser defendido, com aquele longo promontório.

- É certo - disse Gorlois -, mas há enseadas e praias aonde um barco pode chegar, e mesmo que não pudessem alcançar o castelo, há as fazendas e as ricas terras e colheitas. Posso defender o castelo, mas e o resto? Eu sou o seu duque porque posso defender meu povo.

- Parece-me que um duque, ou um rei, devia ser alguma coisa mais do que isso - interrompeu Ambrósio -, mas não sei o quê. Nunca tive paz para poder descobrir. Talvez nossos filhos venham a saber. É possível que isso aconteça ainda no seu tempo, Lot; você é o mais novo entre nós.

Houve uma súbita agitação na ante-sala, e Uther, alto e louro, entrou. Trazia dois cães atrelados, e como as correias se haviam embaraçado, os cães latiam e rosnavam. Ele parou à porta, desmanchando pacientemente o nó, depois entregou as trelas ao criado e entrou na sala.

- Você está nos perturbando a todos esta manhã, Uther - disse Lot maldosamente. - Primeiro, ao padre, durante a santa missa; agora, ao rei, em seu desjejum.

- Perturbei-vos, senhor? Peço-vos perdão - sorriu Uther, e o rei estendeu-lhe a mão, também sorrindo ao seu favorito.

- Está perdoado, Uther, mas mande embora os cães, peço-lhe. E venha sentar-se aqui, meu caro - convidou Ambrósio, levantando-se com insegurança, e Uther abraçou-o. Igraine viu que o fazia com carinho e deferência. Pensou: "Ora, Uther ama o rei, não se trata apenas da ambição do cortesão em busca de favores".

Gorlois quis levantar-se de seu lugar junto ao rei, mas Ambrósio o conteve com um gesto. Uther estendeu a comprida perna por cima do banco e instalou-se num lugar ao lado de Igraine, que puxou as saias, sentindo-se constrangida, enquanto ele se sentava. "Como é desajeitado. Como um cão novo, e manso, mas grande!" Uther teve de apoiar-se na mão, para não cair em cima da moça.

- Perdoe minha falta de jeito, senhora! - pediu ele, sorrindo. - Sou grande demais para sentar no seu colo!

Contra a própria vontade, Igraine sorriu-lhe:

- Até seus cães são muito grandes para isso, meu senhor Uther!

Serviu-se de pão e peixe, oferecendo-lhe o mel, enquanto o retirava da jarra, com uma colher. Igraine recusou, delicadamente.

- Não gosto de coisas doces.

- Não precisa delas, senhora - respondeu Uther, e Igraine notou que ele voltava a olhar para seu peito. Não teria visto nunca uma pedra-da-lua? Ou estaria observando a curva do seu seio? Teve de repente a consciência aguda de que seus seios já não eram tão altos e firmes como antes de ter amamentado Morgana. Igraine sentiu um calor subir-lhe ao rosto, e tomou rapidamente um gole do leite fresco e frio.

Uther era alto e louro, tinha a pele firme e sem rugas. Igraine sentia o cheiro de seu suor, limpo e fresco como o de uma criança. Não obstante, não era muito jovem, o cabelo já começava a faltar no alto da cabeça, queimada do sol. Sentia um constrangimento curioso, alguma coisa que nunca experimentara antes. A perna de Uther estava ao lado da sua, no banco, e Igraine a sentia como se fosse uma parte de seu próprio corpo. Baixou os olhos e mordeu um pedaço de pão com manteiga, ouvindo Gorlois e Lot conversarem sobre o que aconteceria se a guerra chegasse à região ocidental.

- Os saxões são guerreiros, sim - começou Uther, entrando na conversa -, mas travam uma guerra mais ou menos civilizada. Os nortistas, os escotos, os selvagens das terras que ficam além - estes são loucos, correm nus e gritando para a batalha, e o importante é treinar os soldados para resistirem a eles e para não fugirem com medo ante o seu ataque.

- É nisso que as legiões levavam vantagem sobre os nossos homens - disse Gorlois -, pois eram formadas de soldados por opção, disciplinados, treinados para a luta, e não agricultores e camponeses chamados a lutar sem conhecimento, e que retornam às suas casas, quando o perigo passa. O que precisamos é de legiões para a Bretanha. Talvez se fizéssemos um novo apelo ao imperador...

- O imperador - disse Ambrósio com um leve sorriso - tem muitos problemas. Precisamos de cavalaria, mas se quisermos legiões para a Bretanha, Uther, teremos de treiná-las nós mesmos.

- Impossível - atalhou Lot com convicção -, pois nossos homens lutarão em defesa de seus lares, por fidelidade aos chefes de seus clãs, mas não para um Grande Rei ou imperador. E por que lutam, senão para poder voltar para casa e desfrutar o prazer de viver nela em paz e conforto? Os homens que me seguem seguem a mim - e não a algum ideal de liberdade. Tenho dificuldades em fazer com que cheguem até esta distância, no sul, pois dizem, com certa razão, que se não há saxões onde estamos, por que então devem lutar longe de casa, aqui? Dizem que quando os saxões chegarem às suas terras terão tempo suficiente para combatê-los e defender-se, e que o pessoal do sul deveria lutar por suas próprias terras.

- Não compreendem que, se contiverem os saxões aqui, eles talvez nunca cheguem às suas terras - começou Uther com animação, e Lot ergueu a mão fina, rindo.

- Calma, Uther! Eu sei disso, são os meus homens que não sabem! Você não conseguirá legiões para a Bretanha, nem um exército permanente, com os homens que estão ao norte da grande muralha.

- Talvez César estivesse certo, então - opinou Gorlois com voz rouca. - Talvez devêssemos guarnecer novamente a muralha. Não como ele fez, para afastar os nortistas das cidades, mas para impedir que os saxões chegassem às suas terras, Lot.

- Não temos soldados suficientes para isso - interrompeu Uther com impaciência. - Não podemos nos privar de quaisquer soldados treinados! Talvez tenhamos que deixar o povo do tratado defender o litoral saxônico e nos fortificarmos no oeste, contra os escotos e nortistas. Acho que deveríamos tomar posição príncipalmente no País do Verão, e então, no inverno, eles não poderiam descer para saquear nossos acampamentos, como fizeram há três anos, uma vez que não conhecem as ilhas.

Igraine ouvia com atenção, pois nascera no País do Verão e sabia como, no inverno, os mares invadiam a terra, ínundando-a. O que no verão era terreno atravessável, embora pantanoso, no inverno transformava-se em extensos mares interiores. Até mesmo um exército invasor teria dificuldade em penetrar naquelas áreas, exceto no auge do verão.

- Foi o que Merlim me disse - disse Ambrósio -, ao oferecer-nos lugar para que ínstalássemos um campo para nossos exércitos no País do Verão.

Uriens disse numa voz rouca:

- Não me agrada abandonar o litoral saxônico aos soldados do tratado. Um saxão é um saxão, e só respeitará seu juramento enquanto isso lhe for conveniente. Creio que o nosso grande erro foi Constantino ter celebrado um pacto com Vortigern...

- Não - discordou Ambrósio -, um cão que tem parte com lobo lutará melhor contra outros lobos do que os cães normais. Constantino deu aos saxões de Vortigern a terra deles mesmos, e eles lutaram para defendê-la. É isso o que um saxão quer: terra. São agricultores e lutarão até a morte para tornar segura a que lhes pertence. As tropas do tratado combateram valentemente contra os saxões que vieram invadir nossas costas...

- Mas agora há muitos deles - disse Uriens -, e já estão exigindo a ampliação das terras que lhes foram dadas pelo tratado, e ameaçaram que, se não lhes dermos mais, virão tomá-las. Assim, agora, como se não bastasse lutar contra os saxões que vêm de além-mar, temos de combater também os que Constantino trouxe para cá...

- Basta - pediu Ambrósio, levantando a mão magra, e Igraine achou que ele parecia muito doente. - Não posso remediar erros, se é que foram erros, cometidos por homens mortos antes que eu nascesse. Já tenho muito o que fazer para reparar os meus próprios erros, e não viverei o suficiente para vê-los todos reparados. Mas farei o que estiver ao meu alcance, enquanto viver.

- Creio que a primeira coisa a fazer, e a melhor - disse Lot -, seria expulsar os saxões de nossos próprios reinos e em seguida nos fortalecermos para evitar o seu retorno.

- Não acredito que possamos fazer isso - esclareceu Ambrósio. - Eles vivem aqui desde a época de seus pais e de seus avós e de seus bisavós, e, a menos que estivéssemos dispostos a matá-los todos, não deixariam a terra que têm o direito de considerar sua; também não violaremos o tratado. Se lutarmos entre nós aqui, dentro da Bretanha, como teremos força e armas para lutar quando formos invadidos de fora? E também alguns dos saxões nas costas do tratado são cristãos e lutarão conosco contra os selvagens e seus deuses ímpios.

- Creio - e Lot sorriu como se achasse divertidas as suas próprias palavras - que os bispos da Bretanha foram sinceros quando se recusaram a mandar missionários para salvar as almas dos saxões que habitam nossas costas, dizendo que, se estes fossem admitidos ao céu, eles não quereriam saber dele! Já temos problemas suficientes com os saxões nesta terra, e teremos de enfrentar seu comportamento grosseiro também no céu?

- Parece-me que o senhor se engana quanto à natureza do céu - interrompeu uma voz familiar, e Igraine experimentou uma estranha sensação, de vazio dentro do peito. Olhou para a extremidade da mesa, para o homem que falara e que usava um manto cinzento simples, como o de um monge. Não teria reconhecido Merlim nesses trajes, mas sua voz seria identificada em qualquer lugar. - O senhor acha que as brigas e imperfeíções da humanidade serão transferidas para o céu, Lot?

- Ora, quanto a isso, jamais conversei com alguém que tivesse visitado o céu - respondeu Lot -, nem o senhor, creio, Merlim. Mas fala com a sabedoria de um padre. Tomou as ordens sacras, em sua velhice, meu senhor?

Merlim sorriu, e continuou:

- Eu tenho uma coisa em comum com os seus padres. Passei muito tempo tentando separar as coisas do homem daquelas que pertencem ao Divino, e quando o consegui, constatei que não havia muita diferença. Aqui na Terra, não podemos ver isso, mas quando tivermos deixado este corpo, saberemos mais, e saberemos que nossas discordâncias não fazem diferença nenhuma para Deus.

- Então, por que estamos lutando? - perguntou Uther, e forçou um sorriso, como para agradar ao velho. - Se todas as nossas diferenças serão resolvidas no céu, por que não baixamos as armas e abraçamos os saxões como irmãos?

Merlim sorriu novamente e respondeu, com suavidade:

- Quando formos todos perfeitos, acontecerá exatamente isso, senhor Uther, mas eles ainda não sabem disso, tal como não o sabemos nós, e enquanto o destino humano provocar os homens à luta, teremos de fazer o nosso papel, participando do jogo desta vida mortal. Mas precisamos de paz nesta terra, para que os homens possam pensar no céu, em lugar de batalhas e guerra.

- Não tenho muito gosto em ficar sentado pensando no céu, meu velho - riu Uther. - Deixo isso para o senhor e os outros sacerdotes. Sou um homem de luta, sempre o fui, e quero passar minha vida na guerra, como compete a um homem e não a um monge!

- Tenha cuidado com o que deseja - advertiu Merlim, olhando fixamente para Uther -, pois os deuses certamente satisfarão seus desejos.

- Não quero ficar velho, pensando no céu e na paz - disse Uther -, pois essas coisas me parecem muito monótonas. Quero a guerra, o saque, as mulheres, ah, sim, as mulheres, e os padres não aprovam essas coisas.

- Ora, então você não é muito melhor do que os saxões, não é assim, Uther? - perguntou Gorlois.

- São os seus padres mesmo que dizem que devemos amar os nossos inimigos, Gorlois - riu-se ele, inclinando-se por cima de Igraine para bater cordialmente nas costas de Gorlois -, e eu amo o saxão, pois ele me dá o que quero da vida! E vocês também deviam amá-lo, pois quando temos paz por pouco tempo, podemos desfrutar de festas e mulheres, e em seguida voltar à luta, como convém a homens de verdade! Você acredita que as mulheres se interessam por homens que querem ficar sentados junto à lareira ou cultivando suas terras? Você acha que sua bela esposa aqui seria feliz com um agricultor, como é feliz com um duque e líder de homens?

- Você é ainda muito jovem para dizer isso, Uther. Quando tiver minha idade, também estará cansado da guerra - disse Gorlois com moderação.

Uther deu um riso e indagou:

- Estais cansado da guerra, meu senhor Ambrósio?

Ambrósio sorriu, mas parecia cansado:

- Não teria importância se eu estivesse cansado da guerra, Uther, pois Deus escolheu, em sua sabedoria, mandar-me a guerra durante toda a minha vida, e portanto assim será, de acordo com a sua vontade. Talvez que no seu tempo, ou nos dias de nossos filhos, tenhamos paz suficiente para nos perguntarmos por que estamos lutando.

Lot de Orkney interrompeu, com sua voz suave e equívoca:

- Ora, somos todos filósofos aqui, meu senhor Merlim, meu rei, e até mesmo você, Uther, tornou-se filósofo. Mas nada disso nos diz o que devemos fazer contra os selvagens que nos atacam do leste e do oeste e os saxões de nossas próprias costas. Creio que todos sabemos que não teremos ajuda de Roma; se quisermos legiões, teremos de formá-las, e creio que precisaremos também de um César nosso, pois assim como os soldados precisam de capitães e de um rei, assim também os reis desta ilha precisam de alguém que os governe, acima deles.

- Por que precisamos chamar de César nosso Grande Rei? Ou considerá-lo como tal? - perguntou um homem que Igraine ouvira ser chamado de Ectório. - Os Césares governaram a Bretanha muito bem no passado, mas podemos ver hoje a falha fatal de um império assim: quando há problemas em sua cidade imperial, eles retiram as suas legiões e nos deixam entregues aos bárbaros! Até mesmo Magno Máximo...

- Ele não era imperador - e Ambrósio sorriu. - Magno Máximo quis ser imperador, quando comandava as legiões aqui, é uma ambição comum num duque de guerra. - Igraine viu o sorriso rápido que ele deu a Uther. - Por isso, ele levou suas legiões e marchou sobre Roma, desejando ser proclamado imperador. Não teria sido o primeiro, nem o último a agir assim, com o apoio do exército. Mas nunca chegou a Roma, e todas as suas ambições deram em nada, com exceção de algumas belas histórias: em seus montes galeses, Uther, eles ainda falam de Magno, o Grande, que virá com sua espada gigantesca, à frente de suas legiões, para libertá-los de todos os invasores.

- E mais - disse Uther, rindo -, eles o fizeram personagem da lenda imemorial sobre o rei que era e o rei que virá novamente para salvar seu povo, quando houver grande necessidade. Ora, se pudesse encontrar uma espada assim, eu mesmo iria aos montes de minha terra e formaria quantas legiões quisesse.

- Talvez seja disso que precisamos - concordou Ectório sombriamente -, de um rei saído da lenda. Se o rei vier, não será difícil encontrar a espada.

- Seu padre diria - observou Merlim em voz tranquila - que o único rei que houve e haverá é o Cristo no céu, e que, seguindo a sua causa santa, não precisarão de nenhuma outra.

Ectório riu, um riso breve e áspero.

- Cristo não pode nos comandar na batalha. Não, e não pretendo blasfemar, senhor meu rei, nem os soldados seguiriam um estandarte do Príncipe da Paz!

- Talvez devêssemos encontrar um rei que lhes desperte a lembrança das lendas - disse Uther, e o silêncio caiu sobre a sala. Igraine, que nunca assistira antes a conselhos de homens, ainda podia ler pensamentos o suficiente para saber o que todos eles diziam em silêncio: que o Grande Rei que estava sentado agora à sua frente não veria outro verão. Quem, entre eles, estaria sentado em seu trono, dentro de um ano, nesta mesma época?

Ambrósio apoiou a cabeça no encosto da cadeira, e isso foi o sinal para Lot dizer, numa voz preocupada e zelosa:

- Estais fatigado, senhor. Nós vos cansamos. Permiti-me chamar o camarista.

Ambrósio sorriu-lhe docemente:

- Dentro em pouco descansarei bastante, primo, e por muito tempo...

Mas até mesmo o esforço de falar foi demais para ele, e deu um suspiro - um som lento, prolongado -, e Lot ajudou-o a levantar-se da mesa. Atrás dele, os homens dividiram-se em grupos conversando e discutindo em voz baixa.

O que se chamava Ectório aproximou-se de Gorlois.

- O senhor de Orkney não perde oportunidade de defender seu interesse, e o disfarça em preocupação com o rei. Agora, nós somos os maus que cansamos Ambrósio e lhe abreviamos a existência.

- Lot não se preocupa com quem será indicado Grande Rei - disse Gorlois -, desde que Ambrósio não tenha oportunidade para declarar sua preferência, que representaria para muitos de nós, inclusive para mim, um compromisso, e acredito que para você também, Ectório.

- Como não? - respondeu Ectório. - Ambrósio não tem filhos e não pode indicar um herdeiro, mas seu desejo deveria guiar-nos, e ele sabe disso. Uther me parece muito desejoso da púrpura de um César, e não gosto disso. De qualquer modo, porém, ele é melhor do que Lot, e portanto, se fosse o caso de escolher o menos ruim ..

Gorlois concordou com um lento gesto de cabeça.

- Nossos homens seguirão Uther. Mas as tribos, Bendigeid Vran e aquela gente, não seguirão um homem tão romano quanto ele. E precisamos das tribos. Elas seguiriam Orkney...

- Lot não tem o estofo de que são feitos os reis - afirmou Ectório. - Melhor perdermos o apoio das tribos do que o de todo o interior. O método de Lot é dividir-nos em grupos antagônicos, para que só ele tenha a confiança de todos! Puf! - Ectório cuspiu. - Esse homem é uma cobra, e nada mais do que isso.

- Mesmo asim, ele é persuasivo - disse Gorlois. - Tem inteligência, coragem, imaginação...

- Uther também. E mesmo que Ambrósio não tenha oportunidade de dizê-lo, Uther é o homem que ele quer.

Gorlois cerrou os dentes, com desgosto, e disse:

- É certo, é certo. Por uma questão de honra, tenho de respeitar a vontade de Ambrósio. Mas preferia que sua escolha recaísse num homem cujo caráter correspondesse à sua coragem e liderança. Não confio em Uther, e não obstante... - Balançou a cabeça e olhou para Igraine. - Minha querida, isso não deve lhe interessar. Mandarei meu escudeiro acompanhá-la de volta à casa onde ficamos na noite passada.

Mandada embora como uma menininha, Igraine foi para casa sem protestar. Tinha muito em que pensar. Então os homens também, até mesmo Gorlois, estavam obrigados, por questões de honra, a fazer o que não queriam. Nunca havia pensado nisso.

E os olhos de Uther, fixos nela, perseguiam-lhe as idéias. Como ele havia olhado - não, não para ela, mas para a pedra-da-lua. Teria Merlim feito algum encantamento para que Uther fosse atraído pela mulher que a usasse?

- Devo fazer a vontade de Merlim e de Viviane, deverei ser dada a Uther sem resistência, tal como fui dada a Gorlois?

A idéia desagradava-lhe. Ainda assim... Lembrava-se ainda do contato de Uther com a sua mão, a intensidade do seu olhar encontrando o dela.

- Bem pode ser que Merlim tenha enfeitiçado a pedra, para que meu pensamento se volte para Uther! Chegando em casa, Igraine entrou e tirou a pedra-da-lua, guardando-a na bolsa atada à sua cintura. Que tolice, pensou, não acredito naqueles velhos contos de talismãs e feitiços de amor. Era mulher feita, dezenove anos, e não uma criança passiva. Tinha um marido, poderia até mesmo levar no ventre, naquele momento, a semente que se transformaria no filho que ele desejava. E se sua imaginação se voltasse para algum outro homem que não o seu marido, se ela desejasse ser desonesta, então certamente haveria outros homens mais atraentes do que aquele rústico, com os cabelos desalinhados como os de um saxão e as maneiras de um nortista, perturbando a missa, interrompendo o desjejum do Grande Rei. Ora, ela poderia até escolher o escudeiro de Gorlois, que pelo menos era jovem, de pele clara e belo, para levar para a cama. Não que ela, uma esposa virtuosa, tivesse qualquer interesse por alguém mais que não fosse o seu esposo.

- Se o fizesse, não seria com Uther. Ora, ele seria pior do que Gorlois, um grande e desajeitado simplório, ainda que seus olhos fossem cinzentos como o mar e suas mãos, fortes e sem rugas...

Igraine praguejou em voz baixa, apanhou a roca entre suas coisas, e sentou-se para fiar. O que estava fazendo, devaneando sobre Uther, como se estivesse levando a sério o que Viviane lhe pedira? Seria Uther realmente o próximo Grande Rei?

Bem sentira a maneira como ele a olhava. Mas Gorlois contara-lhe que era um libertino; olharia da mesma forma para qualquer mulher? Se tinha de perder-se em devaneios, seria melhor pensar em alguma coisa sensata, em Morgana, como estaria passando sem a mãe, e se a governanta estava vigiando bem Morgause, para que não andasse a lançar olhares para os soldados que guardavam o castelo. Morgause poderia, agora, meter-se em aventuras e perder a virgindade com qualquer homem bem-parecido, sem pensar em honra e conveniências. Esperava que o padre Columba lhe fizesse um bom sermão.

"A minha mãe escolheu os amantes que quis para pais de seus filhos, e era uma grande sacerdotisa da Ilha Sagrada. Viviane fez o mesmo." Igraine deixou que o fuso caísse em seu colo, franzindo um pouco a testa, pensando na profecia da irmã: que seu filho com Uther seria o grande rei que uniria o país, impondo a paz aos povos guerreiros. O que ouvira esta manhã, na mesa do rei, convenceu-a de que seria difícil encontrar tal homem.

Retomou o fuso, exasperada. Precisavam desse rei agora, não para quando uma criança ainda não gerada se transformasse em homem. Merlim estava obeecado por lendas sobre reis. O que dissera um dos reis - fora Ectório? - sobre Magno, o Grande, o líder guerreiro que abandonara a Bretanha em busca da coroa de imperador? Absurdo, pensar que um filho de Uther pudesse ser esse Magno redivivo.

 

Mais tarde, naquele mesmo dia, os sinos começaram a tocar, e pouco depois Gorlois entrava em casa, triste e desanimado.

- Ambrósio morreu há alguns minutos - anunciou ele. - Os sinos dobram pelo seu falecimento.

Igraine viu a dor em seu rosto, e disse, dirigindo-se a ele:

- Era velho e muito amado. Só o conheci hoje, mas pude ver que era o tipo de homem amado e seguido por todos os que o cercavam.

Gorlois suspirou profundamente.

- É verdade. E não temos ninguém assim para substituí-lo. Ele desaparece e nos deixa sem liderança. Eu o amava, Igraine, e detestava vê-lo sofrer. Se houvesse um sucessor digno desse nome, eu me regozijaria pelo seu descanso. Mas, agora, o que será de nós?

Um pouco depois, ele pediu-lhe que separasse suas melhores roupas.

- Ao entardecer, será celebrada uma missa de réquiem para ele, e devo comparecer. Você também, Igraine. Pode vestir-se sem ajuda, ou quer que eu peça ao nosso anfitrião que lhe arranje uma criada?

- Posso vestir-me sozinha.

Igraine começou a vestir seu outro vestido, bem tecido, de lã, com bordados nas bordas e nas mangas, e atou uma fita de seda nos cabelos. Comeu um pouco de pão com queijo; mas Gorlois recusou a alimentação, porque, com seu rei ante o trono de Deus, onde sua alma seria julgada, preferia jejuar e rezar até que ele fosse enterrado.

Igraine, que aprendera na Ilha Sagrada que a morte era apenas uma porta para uma nova vida, não compreendia isso: como podia um cristão ter tanto medo de ir ao encontro de sua paz eterna? Lembrou-se do padre Columba, cantando alguns de seus salmos doloridos. Sim, o Deus deles era um deus do medo e do castigo, também. Ela podia compreender que um rei, para o bem de seu povo, tivesse de praticar atos que pesassem fortemente em sua consciência. Mesmo compreendendo e perdoando isso, como poderia um deus misericordioso ser mais fanático e vingativo do que o menor de seus mortais? Talvez esse fosse um dos mistérios cristãos.

Pensava ainda no assunto enquanto caminhava ao lado de Gorlois para a missa e ouvia o padre cantar melancolicamente algo sobre o juízo de Deus e os dias do castigo, em que a alma podia enfrentar a danação eterna. O cântico ia pelo meio, quando viu Uther Pendragon ajoelhado numa das extremidades da igreja, com o rosto branco no alto de sua túnica clara velado pelas mãos para esconder os soluços. Pouco depois, levantou-se e deixou a igreja.

Percebeu que o marido olhava-a atentamente e tornou a baixar os olhos, para ouvir contrita os intermináveis cantos.

Quando a missa acabou, porém, os homens reuniram-se do lado de fora da igreja, e Gorlois apresentou-lhe a esposa do rei Uriens, de Gales do Norte, matrona gorducha e solene, e a esposa de Ectório, que se chamava Flavila, mulher sorridente, não muito mais velha do que Igraine. Conversou com ambas por alguns momentos, mas todas se detinham no que significaria a morte de Ambrósio para os soldados e para seus maridos e o pensamento de Igraine afastou-se; pouco interesse tinha para ela a conversa das mulheres, e suas maneiras contritas a cansavam. Flavila estava no sexto mês de gravidez, a barriga começava a aparecer sob a túnica de estilo romano, e depois de algum tempo a conversa centrou-se em suas famílias. Flavila já tivera duas filhas, mortas de disenteria no verão anterior, e alimentava esperanças de que, desta vez, teria um filho. A mulher de Uriens, Gwyneth, tinha um filho mais ou menos da idade de Morgana. Fizeram perguntas sobre a filha de Igraine e discutiram sobre a eficiência dos amuletos de bronze contra as febres de inverno e sobre a simpatia de se colocar o livro de missa de um padre no berço, contra o raquitismo.

- É a má alimentação que causa o raquitismo - esclareceu Igraine. - Minha irmã, que é sacerdotisa-curandeira, sabe que nenhuma criança que tenha mamado durante dois anos completos, num peito sadio, sofrerá de fraqueza, e que isso só acontece se ela for entregue a uma ama-de-leite desnutrida, ou se for desmamada cedo demais e alimentada com água de farinha.

- Acho isso uma superstição tola - opinou Gwyneth. - O livro de missa é sagrado e eficiente contra todas as enfermidades, sobretudo contra as doenças de crianças pequenas, que são batizadas contra os pecados dos pais e não cometeram por si mesmas nenhum pecado.

Igraine sacudiu os ombros com impaciência, sem querer discutir esse absurdo. As duas continuaram conversando sobre simpatias para doenças infantis, enquanto ela olhava para um lado e outro, esperando uma oportunidade para deixá-las. Depois de algum tempo, outra mulher juntou-se a elas. Igraine não sabia seu nome. Também estava pesada de uma gravidez adiantada, e ambas imediatamente a incluíram em sua conversa, deixando Igraine de lado. Deixou passar alguns momentos, afastou-se discretamente e, dizendo (sem ser ouvida) que ia procurar Gorlois, caminhou de volta à igreja.

Havia ali um pequeno cemitério, e atrás dele um pomar de macieiras, com os galhos cheios de flores brancas, pálidas ao anoitecer. O cheiro das macieiras era fresco e agradável para Igraine, que detestava os odores da cidade: cães, e homens também, aliviavam-se nas pedras das ruas. Atrás de cada porta, além dos restos de cozinha malcheirosos, havia desde montes de lixo cheirando a urina e carne podre, até o conteúdo dos urinóis. Em Tintagel também havia lixo e urinóis sujos, mas eram enterrados a cada semana, e o cheiro limpo do mar varria tudo.

Caminhou lentamente pelo pomar. Algumas das árvores eram muito antigas, com galhos que pendiam muito baixos. Ouviu, então, um leve ruído, e notou que um homem estava sentado num dos galhos baixos. Não viu Igraine; estava com a cabeça inclinada e o rosto coberto com as mãos. Ela, porém, percebeu, pelos cabelos claros, que era Uther Pendragon. Ia retirar-se e sair discretamente, sabendo que ele não desejaria ser visto assim, mas seus passos leves foram ouvidos, e Uther ergueu a cabeça.

- Minha senhora da Cornualha! - Seu rosto estava contraído e marcado. - Agora, poderá dizer ao bravo Gorlois que o duque de guerra da Bretanha escondeu-se para chorar como uma mulher!

Caminhou rapidamente para ele, perturbada pelo seu rosto irado, defensivo, e disse:

- Pensa que Gorlois também não chora, meu senhor?

É preciso ser frio e insensível para não chorar por um rei que se amou durante toda a vida. Se eu fosse homem, não quereria seguir na guerra nenhum líder que não chorasse pelos mortos que amou, pelos camaradas caídos e até mesmo pelos inimigos valentes.

Uther deu um suspiro profundo, limpando o rosto com a manga bordada da túnica, e concordou:

- Sim, é verdade. Quando eu era jovem, matei em combate o chefe saxão Horsa, depois de muitas batalhas em que me havia desafiado e depois escapado, mas chorei sua morte, pois era um homem valente. Embora fosse um saxão, lamentei que tivéssemos de ser inimigos, e não irmãos e amigos. Entretanto, nos anos que decorreram desde então, passei a considerar-me muito velho para chorar pelo que não tem remédio. Não obstante, quando ouvi o padre falar de julgamento e danação eterna ante o trono de Deus, lembrei-me de como Ambrósio era bom e religioso, como amava e temia a Deus, e era sempre generoso em atos de bondade e honradez - esse Deus deles me parece por vezes demasiado exigente e quase desejo poder ouvir, sem riscos de danação, os sábios druidas que não falam de julgamento, mas sim daquilo que o homem atrai para si mesmo, por sua maneira de viver. Se o bispo fala a verdade, Ambrósio está agora nas chamas do inferno, de onde só será redimido no fim dos tempos. Eu pouco sei do céu, mas gostaria de poder pensar que é lá que meu rei descansa.

Igraine estendeu a mão para ele:

- Não me parece que os sacerdotes do Cristo saibam mais sobre o que acontece após a morte do que qualquer outro mortal. Só os Deuses sabem. Eles nos dizem, na Ilha Sagrada, onde fui criada, que a morte é sempre a porta para uma nova vida e uma sabedoria maior, e embora eu não conhecesse bem Ambrósio, prefiro pensar que agora ele está aos pés de Deus, aprendendo a verdadeira sabedoria. Que deus sábio condenaria um homem ao inferno por sua ignorância, em lugar de esclarecê-lo melhor, após a vida?

Sentiu a mão de Uther tocar a sua, e ele disse, em meio à escuridão:

- Sim, deve ser assim. Tal como disse o Apóstolo deles... "Agora vejo como num vidro, obscuramente, mas, depois, eu verei face a face." Talvez não saibamos, e nem mesmo os padres, o que acontecerá depois da morte. Se Deus é onisciente, por que devemos imaginar que seja menos misericordioso do que os homens? Pelo que dizem, Cristo nos foi enviado para mostrar o amor de Deus, e não o seu julgamento.

Ficaram em silêncio, sentados, por algum tempo. Depois, Uther perguntou-lhe:

- Onde aprendeu essa sabedoria, Igraine? Temos mulheres santas em nossa igreja, mas não são casadas, nem se misturam conosco, pecadores.

- Nasci na ilha de Avalon, onde minha mãe era sacerdotisa no Grande Templo.

- Avalon... - disse ele. - Fica no mar do Verão, não é? Você estava no conselho, esta manhã, e sabe que teremos de ir para lá. Merlim prometeu levar-me ao rei Leodegranz e apresentar-me à sua corte, mas se Lot de Orkney impuser sua vontade, Uriens e eu voltaremos para Gales como cães uivando, com o rabo entre as pernas; ou lutaremos ao seu lado e lhe prestaremos homenagem, o que eu só farei quando o sol nascer nas costas ocidentais da Irlanda.

- Gorlois acredita que o senhor será o próximo Grande Rei - e Igraine deu-se conta de repente, surpresa, de que estava sentada num galho de árvore com o próximo Grande Rei da Bretanha, falando sobre religião e questões de Estado. Uther também teve a mesma sensação, ela pôde senti-lo pelo tom de sua voz, quando disse:

- Nunca pensei que viria a falar desses assuntos com a esposa do duque da Cornualha.

- O senhor realmente acredita que as mulheres nada saibam sobre questões de Estado? Minha irmã Viviane, como minha mãe, antes dela, é a Senhora de Avalon. O rei Leodegranz e outros reis consultam-na com freqüência sobre o destino da Bretanha...

- Talvez eu deva consultá-la sobre a maneira de estabelecer amizade com Leodegranz e com Ban da Bretanha Menor - sorriu ele. - Se eles ouvem os conselhos de sua irmã, então tudo o que tenho a fazer é conquistar-lhe a confiança. Diga-me, ela é casada, e é bonita?

- Ela é sacerdotisa, e as sacerdotisas da Grande Mãe não podem se casar, nem celebrar aliança com nenhum homem mortal - respondeu Igraine, rindo. - Elas pertencem apenas aos Deuses.

Lembrou-se então do que Viviane lhe dissera, e que esse homem sentado no galho de árvore ao seu lado fazia parte da profecia. Contraiu-se, temerosa do que fizera - estaria caminhando voluntariamente para a armadilha que Viviane e Merlim lhe haviam preparado?

- O que foi, Igraine? Está com frio? Tem medo da guerra? - perguntou Uther.

Igraine respondeu com a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

- Estive conversando com as esposas de Uriens e Ectório, e elas não parecem interessar-se muito por assuntos de Estado. Creio que talvez seja por isso que Gorlois não acredita que eu possa conhecê-los também.

Uther riu:

- Conheço as damas Flavila e Gwyneth, que, realmente, deixam tudo a cargo dos maridos, exceto fiar, tecer, ter filhos e outras atividades próprias das mulheres. Você não tem interesse por essas coisas, ou é tão jovem quanto aparenta, quase jovem demais para ser casada, quanto mais para ter filhos com os quais se preocupar?

- Sou casada há quatro anos e tenho uma filha de três.

- Invejo Gorlois por isso. Todo homem quer ter herdeiros. Se Ambrósio tivesse um filho, não estaríamos agora nesta agitação. Ora - continuou Uther com um riso -, não gosto de pensar no que acontecerá com a Bretanha se aquele sapo do Orkney for escolhido o Grande Rei, ou Uriens ue acha possível resolver tudo mandando um mensageiro a Roma. - Interrompeu-se, num soluço - Dizem que tenho ambição de ser o Grande Rei, mas abandonaria todas as ambições para que Ambrósio estivesse sentado neste galho de árvore conosco, ou mesmo um filho dele, para ser coroado naquela igreja, esta noite! Ambrósio receava o que poderia acontecer, depois de sua morte. No inverno passado, ele quase morreu, mas quis continuar vivo, na esperança de nos fazer chegar a um acordo sobre quem deveria suceder-lhe.

- Como aconteceu de ele não ter filhos?

- Teve filhos, dois rapazes. Um foi morto por um saxão: chamava-se Constantino, como o rei que converteu esta ilha. O outro morreu de uma febre devastadora, quando tinha apenas doze anos. Ambrósio afirmou muitas vezes que eu me havia transformado no filho que ele queria ter. - Enterrou novamente o rosto nas mãos, chorando. - Ele me teria feito também seu herdeiro, mas os outros reis não deixaram. Seguiam-me como duque de guerra, mas tinham ciúme de minha influência: Lot, que o diabo o leve, era o pior. Não por ambição, Igraine, juro, mas para terminar o que Ambrósio deixou inacabado!

- Creio que todos sabem disso - disse ela, afagando-lhe a mão. Sentia-se imobilizada pelo sofrimento de Uther.

- Não creio que Ambrósio possa ser feliz, nem mesmo no céu, se olhar para baixo e vir a dor e a confusão aqui, com os reis já conspirando, cada qual querendo para si o poder! Pergunto-me se teria sido desejo dele que eu eliminasse Lot para tomar o poder. Certa vez ele nos obrigou a fazer o juramento de irmãos de sangue, e eu não quebraria essa jura.

O rosto de Uther estava molhado de lágrimas. Igraine, como teria feito com sua filha, tirou o fino véu que envolvia seu rosto e secou-as.

- Estou certa de que fará o que deve fazer, segundo sua honra. Um homem em quem Ambrósio confiava tanto não poderia agir de outro modo.

O brilho de uma tocha clareou de repente o rosto de ambos, e Igraine sentiu-se congelar, ali sentada no ramo de árvore, com o véu ainda no rosto de Uther. Gorlois disse secamente:

- É meu senhor Pendragon que está aí? Terá visto... ah, Igraine, você aqui?

Igraine, sentindo-se envergonhada e subitamente culpada ante a aspereza da voz do marido, desceu do galho de árvore. A saia agarrou-se numa ponta, levantou-a acima do joelho, deixando à mostra as anáguas de linho; puxou-a apressadamente e ouviu o tecido rasgar-se.

- Pensei que estivesse perdida... não estava em casa - disse Gorlois com dureza. - O que faz aqui, em nome dos céus?

Uther também se pôs de pé. O homem que Igraine vira até aquele instante chorando pelo seu rei e pai adotivo, desalentado com o peso que era colocado em seus ombros, desapareceu num segundo, e sua voz tornou-se alta e vigorosa:

- Ora, Gorlois, impacientei-me com a conversa do padre, saí em busca de ar puro, longe dos resmungos carolas; e sua senhora, que também não achou as conversas das boas damas muito do seu agrado, encontrou-me aqui. Senhora, agradeço-lhe - e, com uma curvatura distante, afastou-se. Igraine percebeu que ele tivera o cuidado de manter o rosto fora da luz da tocha.

Sozinho com ela, Gorlois encarou-a com suspeita raivosa e fez-lhe um gesto para que caminhasse à sua frente:

- Você devia ter mais cuidado em evitar falatórios; eu lhe avisei para afastar-se de Uther. Sua reputação não recomenda que uma dama casta seja vista em conversa a sós com ele.

Igraine voltou-se e defendeu-se, indignada:

- É isso o que pensa de mim, que sou o tipo de mulher capaz de sair furtivamente para acasalar-se com um homem estranho, como se fora um animal? Você acha que eu estava deitada com ele naquele galho, como um pássaro nos ramos? Quer examinar meu vestido para ver se está amarrotado de ter deitado com ele no chão?

Ele levantou a mão e deu-lhe um tapa, não muito forte, na boca:

- Não admito que me responda! Eu lhe disse para evitar aquele homem, obedeça-me! Creio que é honesta e casta, mas não a confiaria a ele, e nem quero que se torne o alvo da língua das mulheres!

- Sem dúvida, não há mente mais daninha do que a de uma boa mulher, exceto talvez a de um padre - disse Igraine, com ódio. Esfregou a boca onde o tapa de Gorlois machucara os lábios de encontro aos dentes. - Como ousa levantar a mão contra mim? Quando eu o trair, você pode até me arrancar as carnes do corpo, mas não serei espancada por estar conversando! Você acha, em nome de todos os Deuses, que estávamos falando de amor?

- E de que falava com aquele homem, a esta hora, em nome de Deus?

- Falávamos de muitas coisas, principalmente de Ambrósio no céu e... sim, do céu e daquilo que pode existir além desta vida.

Gorlois olhou-a com um brilho cético nos olhos.

- Isso me parece improvável, pois ele nem ao menos demonstrou respeito pelo morto, esperando que a missa acabasse.

- Estava revoltado, como eu, com todos aqueles salmos lúgubres, como se estivessem lamentando o pior dos homens, e não o melhor dos reis!

- Perante Deus, todos os homens são pecadores miseráveis, Igraine, e aos olhos do Cristo um rei não é melhor do que os outros mortais.

- Sim, sim - respondeu ela com impaciência -, ouvi os padres dizerem isso. Eles também gastam muito tempo e trabalho para nos dizerem que Deus é amor e é nosso pai celestial no céu. Não obstante, vejo que eles têm muito cuidado de não lhe cair nas mãos, e choram pelos que vão para a paz eterna, exatamente como pelos que são sacrificados no altar de sangue do Grande Corvo. Uther e eu falávamos sobre o que os padres sabem dos céus, e não me parece ser muita coisa!

- Se você e Uther falavam de religião, foi sem dúvida a primeira vez que aquele homem sanguinário o fez! - resmungou.

Igraine disse, e ainda com raiva:

- Ele estava chorando, Gorlois; chorando pelo rei que havia sido um pai para ele. E se ficar sentado ouvindo o palavreado de um padre é demonstrar respeito pelo morto, então, que esse respeito nunca me seja demonstrado! Tive inveja de Uther, por ser homem e poder ir e vir à vontade, pois, sem dúvida, se eu fosse homem, jamais teria ficado sentada tranquilamente, ouvindo aquelas tolices na igreja. Mas eu não tinha liberdade de movimento, e fui arrastada para lá por ordem de um homem que dá mais valor a padres e salmos do que aos mortos!

Haviam chegado à porta da casa em que estavam alojados; Gorlois, com o rosto obscurecido pelo ciúme, empurrou-a com irritação para o interior:

- Você não voltará a usar esse tom de voz comigo, ou lhe darei uma surra de verdade.

Igraine compreendeu que havia mostrado os dentes como um gato selvagem, e foi com voz sibilante que respondeu:

- Você se arriscará se o fizer, Gorlois, pois eu lhe mostrarei que uma filha da Ilha Sagrada não é escrava nem serva de homem algum!

O duque abriu a boca para uma resposta violenta, e por um momento Igraine pensou que ele ia lhe bater novamente. Em vez disso, ele fez um esforço para controlar a raiva e afastou-se dela.

- Não é conveniente que eu fique aqui discutindo quando meu rei e senhor ainda não foi enterrado. Você pode dormir aqui esta noite, se não tiver medo de ficar sozinha; senão mandarei levá-la à casa de Ectório, para dormir com Flavila. Meus homens e eu jejuaremos e rezaremos até o amanhecer, quando Ambrósio será enterrado para o descanso eterno.

Igraine olhou-o surpresa, com um desprezo curioso e crescente. Assim, com medo da sombra do morto - embora lhe desse outro nome e pensasse nisso como sendo respeito - ele não comeria, não beberia, nem dormiria com uma mulher, até que seu rei fosse enterrado. Os cristãos diziam-se livres das superstições dos druidas, mas tinham as suas, e Igraine as achava ainda mais deprimentes, por serem estranhas à natureza. Sentiu-se de repente muito satisfeita por não ter de dormir com Gorlois.

- Não, eu não tenho medo de ficar sozinha - disse.

 

Capítulo 4

Ambrósio foi enterrado ao amanhecer. Igraine, ao lado de um Gorlois ainda irritado e calado, acompanhou as cerimônias com estranha indiferença. Durante quatro anos esforçara-se por aceitar a religião seguida pelo marido. Agora, sabia que, embora lhe demonstrasse um respeito cortês, para não irritá-lo - pois, na verdade, desde cedo aprendera que todos os Deuses eram um só, e que jamais devia zombar do nome pelo qual os outros os adoravam -, não tentaria mais ser devota como ele. A esposa devia seguir os deuses do marido, e ela manteria todas as aparências nesse sentido, mas jamais voltaria a temer que o Deus dele, que tudo vê e tudo vinga, tivesse poder sobre ela.

Viu Uther durante as cerimônias: parecia abatido, cansado, de olhos vermelhos, como se também tivesse jejuado e ficado sem dormir. Sem saber por quê, comoveu-se com isso. Pobre homem, sem ninguém que se preocupasse com ele, caso jejuasse, que lhe dissesse que aquilo era um absurdo, que os mortos não permanecem junto aos vivos para ver como se comportam, e não têm inveja do que bebem e comem. Apostaria que o rei Uriens não praticara essa tolice: parecia bem alimentado e descansado, e de repente Igraine desejou ser velha e prudente como sua mulher, que podia falar com ele e dizer-lhe o que devia fazer quanto a tais questões.

Depois do enterro, Gorlois levou Igraine de volta para a casa onde estavam hospedados e, ali, tomou em sua companhia uma refeição, mas como ainda estava calado e de mau humor, logo depois pediu licença para sair:

- Devo comparecer ao conselho - informou. - Lot e Uther estarão em guerra, e de certo modo devo ajudá-los a se lembrar do que desejava Ambrósio. Sinto deixá-la sozinha aqui, mas mandarei alguém para acompanhá-la num passeio pela cidade, se quiser.

Deu-lhe uma moeda e recomendou-lhe que comprasse um presente para ela no mercado, se assim desejasse, e disse-lhe ainda que o homem que lhe faria companhia carregaria uma bolsa, para o caso de desejar especiarias e outras coisas para a casa da Cornualha.

- Não há razão para vir tão longe, sem levarmos algumas coisas de que você precisa. Não sou pobre, e você, sem me consultar, pode comprar o que precisa para manter a casa. Lembre-se de que confio em você, Igraine - recomendou ele, tomando-lhe o rosto nas mãos e beijando-a. Embora Gorlois nada dissesse, Igraine sabia ser essa a sua maneira desajeitada de desculpar-se de suas suspeitas e do tapa irritado. Seu coração encheu-se de ternura, e ela retribuiu-lhe o beijo com um sentimento sincero.

Era emocionante caminhar pelo grande mercado de Londinium; por mais suja e malcheirosa que a cidade fosse, ele parecia-se com quatro ou cinco feiras da época da colheita reunidas numa só. O estandarte de Gorlois, carregado por seu escudeiro, evitava que Igraine levasse muitos empurrões e encontrões. Ainda assim, era um pouco atemorizador caminhar pela enorme praça do mercado, onde centenas de vendedores apregoavam suas mercadorias. Tudo o que via parecia-lhe novo e bonito, havia algumas coisas que ela queria adquirir, mas resolveu percorrer todo o mercado antes de iniciar suas compras. Mais tarde, comprou especiarias, um corte de lã fina das ilhas, muito mais fina que a das ovelhas da Cornualha - Gorlois precisava de um manto novo; começaria a tecê-lo tão logo retornassem a Tintagel. Comprou também pequenos novelos de seda de cor; seria um prazer tecer com cores tão brilhantes, e um repouso para os dedos, depois da aspereza da lã e do linho. E ensinaria também a Morgause. E já era tempo de, no próximo ano, Morgana começar a fiar; se tivesse de dar a Gorlois um outro filho, nessa época, estaria pesada e deselegante, e poderia ficar sentada para ensinar à filha. Quatro anos era certamente uma idade boa para começar a aprender como manejar o tear e torcer o fio, embora o produto não servisse para muita coisa além de amarrar as trouxas de pano a ser tingido.

Comprou ainda fitas coloridas, que ficariam bonitas nas roupas de festa de Morgana, e que depois, quando ela crescesse, poderiam ser retiradas das roupas que não lhe servissem e costuradas na gola e nas mangas de outras, novas. Agora que ela já era bastante grande para não sujar as vestes, devia trajar-se como convinha à filha do duque da Cornualha.

O mercado fazia excelentes negócios; viu, de longe, a mulher do rei Uriens, e outras damas bem-vestidas, e imaginou que, naquela manhã, todos os homens casados do conselho tinham mandado suas mulheres fazer compras no mercado de Londinium, enquanto discutiam animadamente. Igraine comprou fivelas de prata para seus sapatos - embora tivesse certeza de que poderia tê-las comprado, da mesma qualidade, na Cornualha -, simplesmente porque parecia bonito usar fivelas vindas de Londinium. Quando, porém, o homem quis vender-lhe um broche de prata trabalhada em volta de uma pedra de âmbar, ela recusou, espantada com o preço pedido. Estava com muita sede, e embora o espetáculo de homens vendendo sidra e tortas quentes fosse tentador, parecia-lhe inconveniente sentar-se e comer no mercado aberto, como um cão. Comunicou ao escudeiro que desejava voltar para casa, e lá chegando, então, tomaria um pouco de cerveja com queijo. Como o homem parecia triste, deu-lhe uma das moedinhas que haviam restado de suas compras, dizendo-lhe que comprasse um jarro de sidra ou cerveja, se quisesse.

Ao chegar em casa, estava cansada e sentou-se, distraída, olhando as compras. Gostaria de começar a tecer logo o manto, mas preferiu esperar até estar de volta ao seu pequeno tear. Poderia fiar, mas a tarefa lhe pareceu demasiado monótona, por isso ficou sentada, examinando tudo, até que Gorlois chegou, parecendo cansado.

Ele procurou interessar-se pelo que Igraine comprara, elogiando sua economia, mas era patente que seu pensamento estava voltado para outras coisas, embora admirasse as fitas para as roupas de Morgana e concordasse plenamente com a compra das fivelas de prata.

- Você também precisa de um pente de prata, e talvez de um espelho novo; seu velho espelho de bronze está arranhado. Pode dá-lo para Morgause, que já está crescida. Amanhã, escolherá um, se quiser.

- Haverá outra reunião do conselho?

- Receio que sim, e provavelmente outra e mais outra, até que possamos convencer Lot e todos a fazer a vontade de Ambrósio, e aceitarem Uther como Grande Rei - resmungou Gorlois. - Burros teimosos, todos eles! Seria melhor que Ambrósio tivesse deixado um filho, a quem pudéssemos, agora, jurar fidelidade como Grande Rei, e escolher um duque para comandar a guerra. Não haveria hesitação, nesse caso: seria Uther, e até mesmo Lot sabe disso.

Mas Lot tem a ambição desmesurada de ser o Grande Rei, e só compreende que seria bom usar uma coroa e contar com o juramento de nós todos. E há homens no norte que preferem um nortista, e por isso apóiam Lot - e na verdade, creio que, se Uther afinal for o escolhido, todos os reis do norte, com exceção talvez de Uriens, voltarão para suas terras sem prestar qualquer juramento. Mas nem mesmo para conservar o apoio dos reis do norte eu juraria fidelidade a Lot. Confio tanto nele que poderia dar-lhe um pontapé no traseiro num dia de chuva!... - E encolheu os ombros. - São palavras grosseiras para ouvidos femininos, Igraine. Dê-me um pouco de pão e carne fria, por favor. Não dormi a noite passada, estou cansado como se tivesse passado todos esses dias em campanha. Discutir é trabalho exaustivo.

Igraine ia dizer-lhe que achava a discussão interessante, mas deu de ombros, e deixou o assunto de lado. Não se rebaixaria a tentar arrancar-lhe informações, como se fosse uma criança implorando que lhe contassem histórias na hora de dormir. Se tivesse de tomar conhecimento do que acontecia pelas conversas dos homens no mercado, que assim fosse. Naquela noite, ele estaria cansado, desejando apenas dormir.

Ficou deitada ao seu lado, acordada até muito tarde, e surpreendeu-se pensando em Uther. Como se sentiria, sabendo-se o escolhido de Ambrósio para Grande Rei, e tendo a certeza de que teria de fazer respeitar essa escolha, ainda que fosse à ponta de espada? Agitou-se, impaciente, pensando se Merlim não a teria realmente enfeitiçado, para que não pudesse deixar de pensar em Uther. Por fim adormeceu, e no sono viu-se de pé no pomar onde conversara com ele, onde ela lhe secara as lágrimas com o véu. No sonho, ele segurava a ponta do véu, e, puxando-a para junto de si, beijava-a na boca. Havia no beijo uma doçura que não sentira nunca em todos os anos com Gorlois, e, deixando-se dominar por esse beijo, todo o seu corpo amoleceu. Olhou os olhos azuis de Uther e pensou, no sonho: Sempre fui uma criança, e só neste momento é que sei o que é ser mulher. Revelou, então: "Eu não sabia o que era o amor". Uther puxou-a mais para si, deitou-se sobre ela, e Igraine, sentindo aquele calor e doçura espalharem-se por todo o seu corpo, voltou novamente para ele os lábios e acordou, com um estremecimento de surpresa, para constatar que Gorlois, dormindo, a tomara nos braços. A sensação do sonho estava ainda em todo o seu corpo, por isso ela colocou os braços em volta do pescoço do marido, numa aceitação sonolenta, mas logo se impacientou, esperando que ele terminasse e recaísse num sono profundo e marcado de leves gemidos. Ficou acordada, tremendo, até o amanhecer, a se perguntar o que estava acontecendo com ela.

O conselho esteve reunido durante toda a semana, e todas as noites Gorlois voltava pálido e irritado, cansado de falar. Certa noite, explodiu:

- Ficamos sentados, aqui, falando, enquanto em nossas praias os saxões podem estar se preparando para nos fazer a guerra! Não compreendem esses idiotas que nossa segurança depende da manutenção, pelas tropas do tratado, do litoral saxônico, e que elas só seguirão Uther, ou um dos seus próprios homens? Terá Lot tanta raiva de Uther que prefere seguir um chefe pintado que serve ao Deus Cavalo?

Até mesmo os prazeres do mercado haviam diminuído; durante parte da semana choveu, e Igraine, que na segunda visita comprara algumas agulhas, ficou consertando as roupas de Gorlois e as suas, desejando ter o seu tear, para fazer tecidos bonitos. Tomou parte dos panos que comprara e começou a aprontar algumas toalhas, costurando-lhes a bainha e desfiando-as, para, depois, colocar-lhes uma barra com fios coloridos. Na segunda semana suas regras vieram, e ela sentiu-se desanimada e traída: afinal de contas, Gorlois não lhe fizera o filho que desejava. Ainda não tinha vinte anos, não podia ter ficado estéril! Lembrou-se de uma velha história que lera, sobre uma mulher casada com um marido idoso, que não teve filhos até que, uma noite, saiu furtivamente e deitou-se com um pastor no campo; no final, o velho ficou muito satisfeito com o belo menino sadio. Se estava estéril, pensou Igraine, ressentida, era muito mais provável que a culpa fosse de Gorlois! Ele é que era velho, o sangue enfraquecido por anos de guerras e campanhas. Pensou então no sonho, sentindo-se entre culpada e espantada. Merlim e Viviane haviam previsto: teria um filho do Grande Rei, que unificaria o país, acabando com a luta. O próprio Gorlois comentava que se Ambrósio tivesse deixado um filho não seria necessária toda essa discussão. Se Uther fosse escolhido o Grande Reí, precisaria, realmente, ter um filho, sem demora.

"E eu sou jovem e sadia; se fosse sua rainha, poderia dar-lhe um filho..." Ao voltar novamente a esse ponto, chorou com um súbito desespero, sentindo-se encurralada. "Estou casada com um velho, e minha vida acabou aos dezenove anos. Seria melhor que eu já fosse uma anciã, muito velha, sem me preocupar mais em estar viva ou morta, que só servisse para ficar sentada junto ao fogo, pensando no céu!" Foi então para a cama e disse a Gorlois que estava doente.

Um dia, naquela semana, Merlim foi visitá-la enquanto Gorlois estava no conselho. Teve vontade de gritar-lhe sua raiva e infelicidade - ele começara tudo aquilo, ela vivia contente e resignada com sua sorte, até que Merlim a fora despertar e arrancar de sua tranquilidade! Mas era impossível falar com aspereza com Merlim da Bretanha, pai ou não.

- Gorlois me disse que você está doente, Igraine; posso fazer alguma coisa, com minhas artes curativas?

Olhou para ele, em desespero.

- Só se me puder tornar jovem. Sinto-me tão velha, Pai, tão velha!

Ele acariciou seus brilhantes cachos cor de cobre.

- Não vejo fios brancos em sua cabeça, nem rugas em seu rosto, minha filha.

- Mas minha vida acabou, sou uma velha, esposa de um velho...

- Calma, calma - tranquilizou-a ele. - Você está cansada e doente, vai melhorar quando a lua mudar, sem dúvida. É melhor assim, Igraine - continuou, olhando-a fixamente, e ela de súbito sentiu que seus pensamentos haviam sido lidos: era como se ele tivesse falado direto à sua mente, repetindo o que lhe dissera em Tintagel: Você não terá nenhum filho de Gorlois.

- Sinto-me... encurralada - queixou-se Igraine, que baixou a cabeça para chorar, calando-se.

Merlim afagou-lhe os cabelos despenteados.

- O sono é o melhor remédio para a sua doença, agora, Igraine. E os sonhos são o verdadeiro remédio para aquilo que a faz adoecer. Eu, que sou senhor dos sonhos, vou mandar-lhe um que a curará.

Estendeu as mãos sobre ela, numa bênção, e saiu.

Igraine conjeturou se alguma coisa havia sido feita, ou se havia em tudo aquilo a magia de Viviane - talvez, afinal de contas, ela tivesse concebido o filho de Gorlois e o tivesse perdido: tais coisas aconteciam. Não podia conceber Merlim mandando colocar ervas ou plantas medicinais em sua cerveja, mas talvez, com o poder que tinha, isso fosse possível através de magia e encantamento. Em seguida, pensou também que talvez fosse melhor assim. Gorlois era velho, ela havia visto a sombra de sua morte; haveria de querer criar sozinha um filho dele? Quando Gorlois voltou para casa, naquela noite, ela teve a impressão de vislumbrar, mais uma vez, atrás dele, a sombra do duplo temido, a morte que espreitava, o corte de espada sobre o olho, a expressão de dor e desespero. E afastou dele o rosto, sentindo, quando Gorlois a tocou, que era abraçada por um homem morto, por um cadáver.

- Vamos, minha querida, não deve ficar tão desanimada - disse-lhe o marido, procurando tranquilizá-la, sentado na cama ao seu lado. - Sei que está doente e amargurada, deve estar com saudade de sua casa e de sua filha, mas falta pouco tempo, agora. Tenho notícias, ouça o que vou lhe dizer.

- O conselho está mais próximo de uma decisão?

- Talvez - respondeu Gorlois. - Você notou uma agitação nas ruas, esta tarde? Bem, Lot de Orkney e os reis do norte partiram; já compreenderam que não escolheremos Lot para ser o Grande Rei enquanto o sol e a lua não nascerem juntos no Ocidente, de modo que se foram, deixando que nós outros façamos o que sabemos que Ambrósio desejava. Se eu fosse Uther - e disse-lhe isso -, não andaria sozinho à noite; Lot partiu com o ar de um cachorro a quem cortaram o rabo, e não o julgo incapaz de curar seu orgulho ferido, mandando alguém com um punhal atrás de Uther.

- Você acha realmente que Lot tentará matar Uther? - murmurou ela.

- Bem, ele não poderia enfrentar Uther numa luta pessoal. Um punhal pelas costas seria mais ao estilo de Lot. Sinto-me satisfeito por ele não ser um dos nossos, embora me sentisse mais tranquilo se Lot tivesse jurado manter a paz. Ele não ousaria faltar a um juramento feito sobre alguma relíquia sagrada, mas, mesmo assim, eu o vigiaria.

Quando se deitaram, ele quis enlaçá-la, mas Igraine sacudiu a cabeça e empurrou-o.

- Um dia, ainda - pediu, enquanto Gorlois, suspirando, afastou-se e adormeceu quase imediatamente. Igraine ficou pensando que não lhe seria possível mantê-lo à distância por muito tempo mais; não obstante, estava dominada pelo mesmo horror, agora que vira novamente a morte pairando sobre ele. Disse a si mesma que, não importando o que acontecesse, devia continuar sendo uma esposa cumpridora de seus deveres, pois ele era um homem honrado e bom. E isso lhe trouxe à lembrança o aposento onde Viviane e Merlim haviam destruído sua paz e segurança. As lágrimas brotaram em seus olhos, e ela tentou sufocar os soluços, para não despertar Gorlois.

Merlim prometera-lhe um sonho para curar-lhe o sofrimento, e no entanto tudo tinha começado com um sonho. Tinha medo de dormir, pois outro sonho poderia demolir a pouca paz que conseguira. Sabia que, se consentisse, isso acabaria com sua vida, reduzindo a ruínas a palavra empenhada. E embora não fosse cristã, ouvira bastante de suas pregações para saber que, no entender deles, cometera um pecado grave.

"Se Gorlois estivesse morto..." Igraine susteve a respiração, num espasmo de terror: pela primeira vez, havia permitido que tal pensamento tomasse forma. Como podia desejar a morte dele - seu marido, o pai de sua filha? Como podia saber se, mesmo sem Gorlois entre eles, Uther haveria de querê-la? Como podia deitar-se ao lado de um homem, desejando outro?

"Viviane falou como se tais coisas acontecessem com frequência..." Seria simplesmente infantil e ingênua, por não saber?

"Não dormirei para não sonhar..."

Se continuasse a mexer-se daquela maneira, pensou Igraine, Gorlois acordaria. Se chorasse, ele haveria de querer saber porquê. E o que poderia dizer-lhe? Silenciosamente, levantou-se, enrolou o longo manto sobre o corpo nu, e foi sentar-se junto ao fogo agonizante. Por que, ficou pensando, haveria Merlim da Bretanha, sacerdote druida, conselheiro de reis, Mensageiro dos Deuses, de intrometer-se desse modo na vida de uma jovem mulher? E o que estava um sacerdote druida fazendo como conselheiro do rei numa corte supostamente cristã?

"E se considero Merlim tão sábio, por que não me disponho a fazer sua vontade?"

Depois de muito tempo, sentiu os olhos cansados de contemplar o fogo que morria, e ficou na dúvida se devia voltar para a cama e deitar-se ao lado de Gorlois, ou levantar-se e caminhar, para não dormir e não correr o risco de ter o sonho prometido por Merlim.

Levantou-se e caminhou silenciosamente até a porta da casa. Em seu estado de espírito, não se surpreendeu muito ao constatar que seu corpo ainda continuava sentado, envolto no manto, frente ao fogo, e nem se deu ao trabalho de desaferrolhar a porta do quarto ou a grande porta de entrada da casa, atravessando-as como um fantasma.

Lá fora, o pátio da casa do amigo de Gorlois desaparecera. Havia ali uma grande planície, com um anel de pedras formando um grande círculo, que a luz do amanhecer mal clareava. Não... Aquela luz não era a do sol, era de um grande incêndio no oeste, que deixava todo o céu em fogo.

A oeste, onde ficavam as terras perdidas de Lyonesse e Ys, mais a grande ilha de Atlas-Alamésios, a Atlântida, o esquecido reino do mar. Ali, realmente, ocorrera o grande incêndio, em que a montanha explodira e, numa única noite, cem mil homens, mulheres e crianças haviam perecido.

- Mas os sacerdotes sabiam - disse uma voz ao seu lado. - Nos últimos cem anos, eles vêm construindo o templo da estrela aqui nas planícies, para não perderem a conta da passagem das estações, ou dos eclipses da lua e do sol. O povo daqui ignora essas coisas, mas sabe que somos sábios, sacerdotes e sacerdotisas de além-mar, e construirão para nós, como fizeram antes...

Igraine olhou, sem surpresa, para a figura vestida de azul ao seu lado, e embora seu rosto fosse muito diferente, e ele usasse um toucado estranho, coroado de serpentes, e tivesse serpentes douradas nos braços - como braceletes -, seus olhos eram os de Uther Pendragon.

O vento tornou-se mais frio sobre o altiplano, onde o anel de pedras esperava o sol, que surgia sobre a pedrabase. Com os olhos de seu corpo vivo, Igraine jamais contemplara o Templo do Sol em Salisbury, pois os druidas não se aproximavam dele. Quem, indagavam, poderia adorar os Grandes Deuses que estão por trás dos deuses de um templo construído por mãos humanas? Por isso, realizavam seus ritos nos bosques plantados pelas mãos dos Deuses. Quando menina, porém, Viviane falara-lhe sobre o templo, calculado de maneira precisa por artes hoje desaparecidas, de modo que, mesmo sem se saber os segredos dos sacerdotes, podia-se dizer quando ocorreriam os eclipses e traçar os movimentos das estrelas e estações.

Igraine sabia que Uther, ao seu lado - seria realmente Uther aquele homem alto, vestido com os paramentos de um sacerdócio desaparecido há séculos, numa terra hoje lendária? -, estava olhando para oeste, para o céu em chamas.

- Então finalmente aconteceu como nos disseram - continuou ele, envolvendo seus ombros com o braço. - Eu nunca acreditei realmente, até este momento, Morgan.

Por um momento, Igraine, esposa de Gorlois, perguntou-se por que esse homem a chamaria pelo nome de sua filha mas no mesmo instante em que a pergunta se formou em seu pensamento, soube que Morgan não era um nome, mas o título de uma sacerdotisa, significando apenas "mulher vinda do mar", numa religião que até mesmo Merlim da Bretanha teria considerado lenda e a sombra de uma lenda.

Ouviu-se dizer, sem vontade:

- Também eu julguei impossível que Lyonesse, Ahtarrah e Ruta caíssem e desaparecessem como se jamais tivessem existido. Acredita ser verdade que os Deuses estão castigando a terra da Atlântida pelos seus pecados?

- Não acredito ser assim que os Deuses agem - respondeu o homem ao seu lado. - A terra treme no grande oceano além do oceano que conhecemos, e embora o povo da Atlântida falasse de terras perdidas de Mu e Hy-Brasil, ainda assim sei que no oceano maior, além do sol poente, a terra treme, e ilhas aparecem e desaparecem, mesmo onde o povo nada sabia do pecado ou do mal, mas vivia como os inocentes, antes que os Deuses nos dessem o conhecimento para escolher entre o bem e o mal. E se os Deuses da terra lançam a vingança contra os inocentes e os pecadores, sem distinção, então essa destruição não pode ser castigo dos pecados, mas algo da própria natureza. Não sei se há uma finalidade nessa destruição, ou se a terra ainda não se consolidou em sua forma final, assim como nós, homens e mulheres, ainda não somos perfeitos. Talvez a terra também lute para elevar sua alma e aperfeiçoar-se. Não sei, Morgan. Tais coisas são assuntos para os mais altos Iniciados. Sei apenas que violamos os segredos dos templos, o que tínhamos jurado não fazer, e portanto somos perjuros.

- Mas os sacerdotes pediram-nos que o fizéssemos - argumentou ela, tremendo.

- Nenhum sacerdote pode absolver-nos por quebrar essa jura, pois a palavra dada aos Deuses ressoa através dos tempos. E sofreremos com isso. Não era correto que todo o conhecimento de nossos templos se perdesse sob o mar, por isso fomos mandados para salvá-lo, sabendo perfeitamente que sofreríamos, vida por vida, pela quebra do juramento. Tinha de ser, minha irmã.

- Por que sermos punidos além desta vida pelo que nos mandaram fazer? - perguntou ela, ressentida. - Os sacerdotes concordaram que sofrêssemos por obedecer-lhes?

- Não - tornou o homem -, mas lembre-se do juramento que fizemos... - e sua voz interrompeu-se de repente. - Jurámos num templo, hoje perdido sob o mar, onde o grande Orion não governará mais. Jurámos partilhar da sorte daquele que roubou o fogo do céu, para que o homem não vivesse nas trevas. Foi grande o bem que adveio desse dom do fogo, mas também grande foi o mal, pois o homem aprendeu a usá-lo indevidamente, com perversidade... e assim, aquele que roubou o fogo, embora seu nome seja reverenciado em todos os templos por trazer a luz à humanidade, sofre tormentos sem fim onde está acorrentado, com um abutre a roer-lhe eternamente o coração... Essas coisas são mistérios: que o homem possa obedecer cegamente aos sacerdotes e às leis que fazem, e viver em ignorância, ou possa desobedecer intencionalmente, seguindo o portador da Luz, e suportar os sofrimentos da Roda do Renascimento. E veja...

Apontou para o alto, onde a figura do Maior-que-os Deuses pairava, tendo na cintura as três estrelas da pureza, da retidão e da escolha.

- Ele ainda permanece lá, embora seu templo tenha desaparecido. E veja, ali a Roda gira através de seu caminho agitado, embora a terra lá embaixo possa contorcer-se em tormentos e lançar as cidades, os templos e a humanidade na morte pelo fogo. E construímos aqui um novo templo, para que a sua sabedoria nunca tenha de morrer.

O homem que interiormente ela sabia ser Uther abraçou-a, e Igraine sentiu que chorava. Ele levantou-lhe o rosto e beijou-a, e ela sentiu nos lábios o sal das lágrimas dele. O homem disse:

- Não posso lamentá-lo. Eles nos dizem, no templo, que a verdadeira alegria só é encontrada na liberdade em relação à Roda, que é a morte e o renascimento, que devemos desprezar as alegrias e sofrimentos terrenos, e ansiar apenas pela paz da presença do eterno. Mas eu amo esta vida na Terra, Morgan, e amo você com um amor mais forte do que a morte, e se o pecado é o preço de nossa união, vida após vida através das cidades, então pecarei alegremente e sem lamentar, pois isso me leva de volta a você, minha amada!

Nunca, em toda a sua vida, Igraine conhecera um beijo assim, apaixonado, e ao mesmo tempo parecia-lhe que alguma essência além do simples desejo os mantinha unidos um ao outro. Naquele momento, as lembranças do lugar onde conhecera aquele homem a inundaram - dos imensos pilares de mármore e das escadas douradas do grande Templo de Orion, e da Cidade da Serpente abaixo, com a avenida das esfinges, animais com corpo de leão e rosto de mulher, que levavam à grande estrada para o Templo... ali estavam, numa planície deserta com um anel de pedras rústicas e um incêndio no oeste, que era a luz moribunda da terra de seu naseimento, onde haviam sido unidos no fogo sagrado, para não se separarem enquanto vivessem. E agora haviam feito aquilo que os uniria para além da morte também...

- Amo esta terra - disse ele com violência, outra vez. - Aqui estamos, onde os templos são feitos da pedra bruta, e não de prata e ouro e oricalco, mas amo esta terra, e voluntariamente dou minha vida para mantê-la segura, esta terra fria onde o sol jamais brilha... - e ela estremeceu sob o manto dele; Igraine, porém, fez com que o homem se voltasse, dando as costas às chamas agonizantes da Atlântida.

- Olhe para o leste - sugeriu ela -, pois sempre que a luz morre no oeste, há promessa de renascimento no leste.

E ficaram abraçados, enquanto o sol resplendia, surgindo de trás do olho da grande pedra.

- Esse é realmente o grande ciclo da vida e da morte... - continuou o homem, e enquanto falava apertava-a contra seu corpo. - Virá um dia em que as pessoas esquecerão, e isso será apenas um círculo de pedras. Mas eu lembrarei e voltarei para você, amada, juro.

Nesse momento, ela ouviu a voz de Merlim, dizendo sombriamente:

- Cuidado com aquilo que deseja, pois certamente lhe será concedido.

E silêncio. Igraine viu-se nua, enrolada apenas em seu manto, encolhida ante as últimas cinzas frias do fogo, em seu quarto, na casa onde estava hospedada, enquanto Gorlois ressonava suavemente na cama.

Tremendo, embrulhou-se cuidadosamente e arrastou-se, enregelada até os ossos, de volta para a cama, em busca do que sobrara nela de calor. Morgan. Morgana. Teria dado à sua filha aquele nome por ser realmente um nome seu, de outros tempos? Teria sido apenas um sonho estranho, mandado por Merlim, para convencê-la de que outrora conhecera Uther Pendragon, em alguma vida anterior?

Mas aquilo não fora um sonho - os sonhos são estranhos, confusos, um mundo onde tudo é tolice e ilusão. Sabia que, de alguma forma, estivera na Terra da Verdade, para onde a alma vai quando o corpo está em outro lugar, e de certo modo trouxera de volta não um sonho, mas uma recordação.

Uma coisa, pelo menos, tornava-se clara. Se ela e Uther se haviam conhecido e amado no passado, estava explicado o motivo da tremenda sensação de familiaridade com ele, porque não lhe parecia um estranho, porque nem mesmo suas maneiras desajeitadas lhe pareciam ofensivas, mas simplesmente parte da pessoa que ele era e sempre fora. Lembrou-se da ternura com que lhe secara as lágrimas com o véu, sabendo agora que havia pensado: sim, ele foi sempre assim. Impulsivo, juvenil, correndo ao encontro do que desejava, sem pesar as consequências.

Teriam eles realmente trazido para esta terra os segredos de uma sabedoria perdida, gerações antes, quando as terras desaparecidas haviam submergido recentemente no mar ocidental, e incorrido juntos nos castigos pela quebra de um juramento? Castigos? E então, sem saber por quê, ela se lembrou de que o próprio nascimento - a vida humana - é que constituía o castigo, a vida num corpo humano em lugar da paz eterna. Seus lábios abriram-se num sorriso, ao pensar "É castigo ou recompensa viver neste corpo?", pois, ao recordar o súbito despertar de seu corpo nos braços do homem que era, ou seria, ou fora outrora, Uther Pendragon, sabia, como nunca soubera antes, que, apesar do que diziam os padres, a vida, quer fosse nascimento ou renascimento, nesse corpo, era uma recompensa.

Enterrou-se na cama e ficou deitada, sem sono agora, olhando para a escuridão, sorrindo. Talvez Viviane e Merlim não ignorassem o que lhe estava destinado saber: que estava presa a Uther por um laço que tornava sua ligação com Gorlois meramente superficial e momentânea. Faria o que eles queriam: era parte de seu destino. Ela e o homem que era agora Uther se haviam ligado há muitas vidas ao destino desta terra, para onde vieram quando o Velho Templo foi sepultado. Agora, quando mais uma vez os Mistérios estavam em perigo, desta vez ameaçados pelas hordas de bárbaros e selvagens do norte, eles voltavam a estar juntos. Fora-lhe concedido dar à luz um dos grandes heróis, que, ao que se dizia, voltavam à vida quando eram necessários, o rei que era, que é, e que voltará outra vez para a salvação de seu povo... Até mesmo os cristãos tinham uma versão dessa história, dizendo que quando Jesus nasceu sua mãe teve anunciações e profecias de que daria à luz um rei. Sorriu no escuro, pensando no destino que a reunia ao homem que amara muitos séculos antes. Gorlois? O que tinha ele a ver com o seu destino, a não ser prepará-la para isso? Sem ele, poderia ser muito jovem para compreender o que devia lhe acontecer.

"Nesta vida, não sou uma sacerdotisa. Mesmo assim, sei que ainda sou a filha obediente de minha sorte, como todos os homens e mulheres têm de ser.

E para sacerdotes e sacerdotisas não há laços de matrimônio. Eles se dão como devem se dar, segundo a vontade dos Deuses, para gerar aqueles que terão importância primordial para os destinos da humanidade." Pensou na grande constelação setentrional chamada A Roda. Os camponeses davam-lhe o nome de Carro, ou Ursa Maior, girando e girando sempre no ponto mais ao norte das estrelas. Igraine sabia também que ela simbolizava, em suas idas e vindas, a Roda do Nascimento, Morte e Renascimento. E o Gigante que andava pelo céu, com a espada pendente do cinto... por um momento Igraine teve a impressão de ver o herói que viria, com uma grande espada na mão, a espada do conquistador. Os sacerdotes da Ilha Sagrada fariam certamente com que ele tivesse uma espada, uma arma vinda das lendas.

Ao seu lado, Gorlois mexeu-se e estendeu a mão para ela, que cumpriu o dever de entregar-se aos seus braços.

Sua repulsa transformara-se em ternura e pena, e não teve mais receios de que ele lhe fizesse um filho indesejado. Não era esse o seu destino. Pobre homem condenado, que não tinha nenhuma participação naquele mistério. Era um dos que só nasciam uma vez; ou mesmo que assim não fosse, ele não se lembraria de suas outras vidas, e Igraine alegrou-se por ele ter o conforto de sua fé simples. Mais tarde, quando se levantaram, ela ouviu-se cantar, e Gorlois observou-a com curiosidade.

- Você parece estar se sentindo bem, novamente - disse ele, e Igraine sorriu.

- Estou, sim. Nunca me senti melhor.

- Então o remédio de Merlim foi bom - comentou Gorlois, e ela sorriu sem responder.

 

Capítulo 5

Foi como se a cidade não tivesse outro assunto, por vários dias, que não fosse o abandono das reuniões do conselho por Lot de Orkney e sua partida para o norte. Temia-se que isso retardasse a escolha final, mas apenas três dias haviam transcorrido, quando Gorlois voltou para casa, onde Igraine dava os últimos pontos num vestido novo, feito com os tecidos de lã que encontrara no mercado, contando que o Conselho de Ambrósio fizera aquilo que sempre soubera ser o desejo do rei, e escolhera Uther Pendragon para governar toda a Bretanha como o Grande Rei entre os reis da terra.

- Mas, e o norte? - perguntou ela.

- Uther encontrará um modo de fazer Lot aceitar, ou então lutará contra ele - respondeu Gorlois. - Não gosto de Uther, mas é o melhor soldado que temos. Não tenho medo de Lot, e tenho certeza de que Uther também não tem.

Igraine sentiu a velha intuição da Visão, sabendo que Lot teria um papel importante nos próximos anos, mas ficou calada. Gorlois deixara claro que não gostava de ouvi-la falar sobre determinados assuntos, e ela preferia não brigar com um homem condenado, durante o pouco tempo de vida que ainda lhe restava.

- Vejo que seu vestido está terminado. Poderá usá-lo, se quiser, quando Uther for feito Grande Rei na igreja e coroado, depois do que ele dará uma festa para todos os seus homens e as esposas, indo em seguida para as terras do oeste, para sua coroação, ali. Ele tem o título de Pendragon, ou Dragão Maior, de acordo com o estandarte que carrega, e no norte há um ritual supersticioso sobre dragões e reis...

- O dragão é o mesmo que a serpente - explicou Igraine. - Um símbolo de sabedoria, um símbolo druida.

Gorlois, pouco satisfeito, franziu o cenho e disse que não tinha paciência com esses símbolos num país cristão:

- A sagração, por um bispo, deveria ser suficiente para eles.

- Mas nem todos estão preparados para os Mistérios superiores - replicou Igraine. Aprendera isso quando criada na Ilha Sagrada, e desde o sonho com a Atlântida parecia-lhe que todos os ensinamentos antigos sobre os Mistérios, que julgava esquecidos, haviam adquirido um significado e profundidade novos em seu espírito. - Os homens sábios reconhecem que os símbolos não são necessários, mas o povo dos campos precisa de seus dragões alados para um rei, tal como necessitam das fogueiras de Beltane e do Grande Casamento, quando o rei é casado com a terra...

- Tais coisas são proibidas a um cristão - protestou Gorlois austeramente. - O Apóstolo disse que há apenas um nome sob os céus pelo qual podemos ser salvos, e todos esses signos e símbolos são maléficos. Não me surpreenderia saber que Uther, aquele devasso, tem parte com esses ritos lascivos do paganismo, que cultivam a loucura dos homens ignorantes. Espero ver ainda, algum dia, um Grande Rei na Bretanha que siga apenas os ritos cristãos.

Igraine sorriu, e disse:

- Não creio que nenhum de nós chegará a ver esse dia, meu marido. Até mesmo o Apóstolo escreveu, em seus livros sagrados, que há leite para criancinhas e carne para homens fortes, e o povo, os que nasceram uma vez, tem necessidade de seus Poços Sagrados, das grinaldas de primavera e das danças rituais. Seria um dia triste para a Bretanha, se não fossem acesas fogueiras de Natal e se não fossem lançadas coroas nos Poços Sagrados.

- Até mesmo os demônios podem citar indevidamente as palavras sagradas - respondeu-lhe Gorlois, mas sem irritação. - Talvez tenha sido isso o que o Apóstolo quis dizer, ao afirmar que as mulheres deviam manter silêncio nas igrejas, pois são suscetíveis de cometer tais erros. Quando você for mais velha e mais prudente, Igraine, verá que assim é. Enquanto isso, pode preparar-se para os serviços na igreja e para a festa.

Igraine vestiu seu vestido novo e escovou os cabelos até deixá-los brilhantes como o fino cobre; e quando se olhou no espelho de prata - Gorlois mandara comprá-lo no mercado e trazê-lo para ela - duvidou, numa súbita crise de desespero, que Uther a notasse. Era bonita, sim, mas havia outras mulheres, tão belas quanto ela, e mais jovens, solteiras, sem filhos - por que haveria ele de querê-la, velha e gasta como estava?

Durante toda a longa cerimônia na igreja, ela observou com atenção o juramento e a sagração de Uther pelo bispo. Pelo menos agora os salmos não eram os melancólicos hinos da ira e do castigo de Deus, mas canções alegres, louvando e dando graças, e os sinos tocavam com alegria, e não lugubremente. Depois disso, na casa que fora de Ambrósio, houve comidas finas e vinho e nova cerimônia quando, um por um, os chefes militares de Ambrósio juraram fidelidade a Uther.

Muito antes de terminar a solenidade, Igraine sentiu-se cansada. Mas finalmente acabou, e enquanto os chefes e suas esposas se reuniam em volta do vinho e da comida, ela afastou-se um pouco, observando a brilhante festa. E ali, por fim, como no fundo sempre achara que aconteceria, Uther a encontrou.

- Senhora da Cornualha...

Ela fez uma reverência profunda.

- Não há necessidade dessas formalidades entre nós, agora - disse ele bruscamente, segurando-a pelos ombros, como havia feito no sonho. Igraine assustou-se, quase esperando ver nos braços dele os braceletes de ouro em forma de serpente. Mas Uther disse apenas:

- Não está usando a pedra-da-lua. É tão estranha, aquela pedra! Quando a vi pela primeira vez, trazia-a ao pescoço, e foi como um sonho que tive... Fui atacado de febre, na última primavera, e Merlim me tratou; tive então um sonho estranho, e sei agora que foi nesse sonho que a vi pela primeira vez, muito antes de ter visto seu rosto. Devo tê-la fitado, naquela ocasião, como um rústico, Igraine, pois tentava recordar o sonho e que papel tinha nele, assim como a pedra-da-lua em seu pescoço.

- Disseram-me que uma das virtudes daquela jóia, a pedra-da-lua, é despertar as lembranças verdadeiras da alma. Também eu sonhei...

Ele pousou a mão suave no braço dela.

- Não consigo me lembrar. Por que me parece que a vejo usar alguma coisa de ouro nos pulsos, Igraine? Tem um bracelete de ouro na forma de... um dragão, talvez?

Ela sacudiu a cabeça:

- Atualmente, não - respondeu, paralisada pela consciência de que, de alguma forma e sem que ela tivesse conhecimento disso, Uther partilhava da estranha lembrança e do sonho.

- Há de me julgar um rústico, incapaz de toda cortesia, minha senhora da Cornualha. Posso oferecer-lhe vinho?

Em silêncio, fez um gesto negativo com a cabeça. Sabia que se tentasse segurar uma copa na mão, tremeria e derramaria todo o líquido.

- Não sei o que está acontecendo comigo - disse Uther com veemência. - Tudo o que se passou nestes dias, a morte de meu pai e rei, a luta de todos esses reis, a escolha da minha pessoa para Grande Rei, tudo isso parece irreal, e você, Igraine, ainda mais irreal! Esteve no oeste, onde fica o grande anel de pedras numa planície? Dizem que nos tempos antigos foi um templo druida, mas Merlim afirma que não, que foi construído muito antes da chegada dos druidas a esta terra. Já esteve lá?

- Não nesta vida, senhor.

- Gostaria de poder mostrá-lo a você, pois certa vez sonhei que lá estava em sua companhia. Ah, não me julgue louco, Igraine, falando sempre de sonhos e profecias - pediu ele com um súbito sorriso juvenil. - Falemos calmamente de coisas comuns. Sou um pobre chefe do norte que se vê subitamente Grande Rei da Bretanha, e talvez o peso da responsabilidade me tenha deixado um pouco perturbado!

- Ficarei calma e tranquila - concordou Igraine com um sorriso. - E se o senhor fosse casado, eu lhe perguntaria como está sua esposa, e se seu filho mais velho teve problemas com... ah, qual será a coisa mais comum que eu posso perguntar... se os dentes lhe nasceram antes da chegada do verão ou se teve brotoejas com as fraldas.

Uther riu.

- Você deve estar pensando que sou velho para não ser casado. Tive muitas mulheres, Deus sabe. Talvez não devesse dizer isso à esposa do mais cristão de meus chefes. Padre Jerônimo diria que eu tive mulheres demais, para a salvação de minha alma. Nunca, porém, conheci uma por quem me interessasse depois de levantarmos da cama, e sempre tive medo de que, se desposasse uma mulher antes de deitar-me com ela, o resultado seria o mesmo. Parece-me realmente que deve haver um laço mais forte do que esse, entre homem e mulher, embora os cristãos pareçam pensar que isso basta - como dizem?... é melhor casar do que arder? Bem, eu não ardi, pois abrandei o fogo, e quando o consumi, quando o fogo se apagou, ainda assim senti que podia haver uma chama que não se dissiparia tão depressa, e que com a mulher que me despertasse essa chama eu me casaria.

E perguntou abruptamente:

- Você ama Gorlois?

Viviane fizera-lhe a mesma pergunta, e ela havia respondido que isso não tinha importância. Não sabia, então, o que estava dizendo. Agora, respondeu tranquilamente:

- Não. Fui dada a ele quando era muito jovem para me importar com o homem que desposava.

Uther voltou-se e deu alguns passos, irritado, e finalmente disse:

- E posso ver que você não é nenhuma prostituta que eu possa levar para a cama; por que, em nome de Deus, eu me enfeiticei por uma mulher casada com um de meus mais leais capitães...

Então Merlim fizera funcionar sua poderosa magia sobre Uther também. Agora Igraine não se irritava por isso. Era o destino de ambos, qualquer que fosse. Mas não acreditava ser destino seu trair Gorlois tão grosseiramente, ali, daquela forma. Era como uma parte de seu sonho sobre a grande planície, e quase podia ver a sombra do grande anel de pedras, quando Uther colocou a mão sobre seu ombro. Mas estava confusa. Não, aquilo era um outro mundo, uma outra vida. Parecia-lhe que toda a sua alma e todo o seu corpo gritavam dentro dela que o beijo no sonho fora real. Colocou as mãos no rosto e chorou. Ele a olhou, espantado e desnorteado, recuando um pouco.

- Igraine - murmurou -, que podemos fazer?

- Não sei - respondeu soluçando. - Não sei.

Sua certeza transformava-se numa terrível confusão. Teria o sonho sido mandado apenas para enfeitiçá-la, pela magia, levando-a a trair Gorlois, sua própria honra e a palavra jurada?

Sentiu no ombro um contato pesado e desaprovador. Gorlois olhava-a, com raiva e suspeita.

- Que estranha situação é essa, minha senhora? O que lhe dissestes, meu rei, para que ela pareça tão desesperada? Sei que sois um homem de costumes devassos e pouca religião, mas, mesmo assim, senhor, a decência comum devia impedir-vos de abordar a esposa de um vassalo, no dia de vossa própria coroação!

Igraine voltou-lhe o rosto, exasperada:

- Gorlois, não mereço isso de você! O que lhe terei feito para que você me lance tal acusação em público?

Realmente, os olhares voltavam-se agora para eles, ao som das palavras iradas.

- Então, senhora, por que chora, se ele nada lhe disse de inconveniente? - A mão de Gorlois apertava-lhe o pulso como se o quisesse esmagar.

- Quanto a isso - disse Uther -, deve perguntar à senhora por que chora, pois nada sei. Mas solte-lhe o braço, ou farei com que o solte. Marido ou não, ninguém tratará uma mulher com brutalidade, em minha casa.

Gorlois soltou o braço de Igraine, que pôde ver as marcas dos dedos que já se avermelhavam, transformando-se em manchas escuras. Esfregou-as, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelas faces. Sentiu-se apavorada frente aos muitos rostos voltados para eles, como se tivesse sido humilhada. Cobriu-se com o véu e chorou mais intensamente do que antes. Gorlois empurrou-a para diante dele. Não ouviu o que ele disse a Uther, e só quando saíram à rua ela o olhou, espantada.

- Não a acusarei perante os homens, Igraine - gritou com raiva -, mas Deus é testemunha de que estaria justificado se o fizesse. Uther olhou-a ainda agora como para uma mulher que tivesse conhecido, e como nenhum cristão tem o direito de olhar para a mulher de outro homem.

Igraine, sentindo o coração bater forte, sabia que era verdade; estava confusa e desesperada. Apesar de ter visto Uther apenas quatro vezes, e ter sonhado com ele duas vezes, sabia que haviam se olhado e falado como se fossem amantes há muitos anos, conhecendo tudo, e mais do que tudo, sobre o outro, corpo, mente e coração. Lembrou-se do seu sonho, onde lhe parecera que haviam estado ligados durante muitos anos por um laço que, se não era o casamento, bem poderia ter sido. Amantes, companheiros, sacerdote e sacerdotisa - qualquer que fosse o nome. Como poderia dizer a Gorlois que havia conhecido Uther apenas num sonho, mas que começava a pensar nele como o homem que amara há muito tempo, antes mesmo de haver nascido, quando era apenas uma sombra; que a essência em seu interior era a mesma da mulher que havia amado aquele estranho homem que trazia nos braços serpentes de ouro... Como poderia dizer isso a Gorlois, que nada sabia, nem queria saber, dos Mistérios?

Ele empurrava-a na direção da casa onde estavam hospedados.

Estava disposto, ela o sabia, à violência, se falasse. Mas o silêncio de Igraine deixava-o ainda mais frustrado.

- Você nada tem a dizer? - gritou, e agarrou-lhe o braço já machucado com tanta força que ela gritou de dor. - Pensa que não vi como olhava para seu amante?

Igraine soltou o braço da mão de Gorlois, sentindo que ele seria capaz de arrancá-lo.

- Se viu isso, então viu também que me afastei dele, quando lhe teria bastado apenas um beijo! E não o ouviu dizer para mim que você era o seu mais leal partidário e que não tomaria a mulher de um amigo...

- Se alguma vez fui seu amigo, agora já não o sou! - exclamou Gorlois, com o rosto obscurecido pelo ódio. - Acredita realmente que possa apoiar um homem que me tomaria a mulher, num lugar público, envergonhando-me na frente de todos os seus chefes reunidos?

- Ele nada fez - gritou Igraine, chorando. - Nunca lhe toquei sequer os lábios!

Suas palavras soavam-lhe falsas, porque ela realmente havia desejado Uther, mas mantivera-se escrupulosamente distante dele. "Por que, se vou ser acusada quando estou inocente de qualquer culpa, mesmo do que ele possa considerar como culpa, por que não deveria então ter feito o que Uther queria?"

- Eu vi como você o olhava! E você vem me rejeitando, desde que deitou os olhos em Uther, sua meretriz infiel!

- Como ousa! - gritou ela, ofegante, irada, e apanhou o espelho de prata, presente de Gorlois, e atirou-o na cabeça dele. - Retire essa palavra, ou me jogarei no rio, para que nunca mais me toque! Você mente, e sabe que mente!

Gorlois desviou a cabeça, e o espelho bateu na parede. Igraine arrancou o colar de âmbar - outro presente do marído - e atirou-o para junto do espelho. Com dedos nervosos, rasgou o belo vestido novo e o lançou sobre Gorlois.

- Como ousa chamar-me de tais nomes, você, que me encheu de presentes como se eu fosse uma dessas mulheres baratas que seguem os soldados? Se acha que sou uma prostituta, onde estão os presentes que recebi de meus amantes? Todos os presentes que tenho foram recebidos de meu marido, o filho da puta indigno e boca-suja que tenta comprar minha tolerância para com a sua luxúria, porque os padres fizeram dele um semi-eunuco! De agora em diante, usarei as coisas que eu mesmo tecer com meus dedos, não os seus revoltantes presentes, e você pode cortejar aquelas cujas bocas e mentes são tão sujas quanto os seus imundos beijos.

- Cale-se, megera maligna! - berrou Gorlois, batendo-lhe com tanta força que ela caiu no chão. - Levante-se, e cubra-se como uma mulher cristã decente, em lugar de arrancar as roupas para me provocar, ao vê-la desse jeito! Foi assim que atraiu aos seus braços o meu rei?

Igraine levantou-se cambaleando, e com um pontapé lançou o mais longe possível os restos do vestido, e avançou sobre ele, golpeando-o várias vezes no rosto. Gorlois agarrou-a, procurando imobilizá-la, e esmagou-a com os braços. Igraine era forte, mas ele era um homem vigoroso, um guerreiro, e em poucos momentos ela deixou de lutar, sabendo ser inútil.

- Eu lhe ensino a não olhar daquela maneira para nenhum homem que não seja seu marido! - sussurrou ele, arrastando-a para a cama.

Igraine levantou a cabeça com desprezo:

- Você acha que eu voltaria a olhá-lo algum dia, senão com a aversão que sinto por uma cobra? Pode levar-me para a cama e sujeitar-me à sua vontade, a sua piedade cristã permite que você violente sua própria mulher. Não me importo com o que você diga, Gorlois, porque sei, no fundo do meu coração, que estou inocente! Até este momento, eu tinha medo que alguma feitiçaria ou encantamento me fizesse amar Uther. Agora, desejaria ter feito o que ele queria de mim, já que você está tão pronto a acreditar em mentiras sobre a minha culpa quanto na verdade sobre minha inocência e embora eu me preocupasse com a minha honra e a sua, está pronto a acreditar que eu as lançaria aos ventos!

O desprezo que havia em sua voz fez com que Gorlois afastasse os braços e a olhasse fixamente:

- Você está dizendo a verdade, Igraine? É realmente inocente de qualquer culpa? - perguntou, numa voz abafada.

- Você acha que eu me rebaixaria a mentir para você. Para você?

- Igraine, Igraine - disse ele com humildade. - Sei que sou muito velho, que você me foi dada sem amor e sem vontade, mas achei que com o tempo você gostaria um pouco de mim, e quando a vi chorando na frente de Uther... - A voz faltou-lhe. - Não pude suportar que você olhasse daquela maneira para um homem sensual e devasso, quando para mim só tem um olhar de dever e resignação... Perdoe-me, imploro-lhe, se fui injusto...

- Você foi injusto, e faz bem em pedir meu perdão, que só terá quando os infernos subirem, e a Terra baixar sob o oceano ocidental! - afirmou com uma voz fria como o gelo. - É melhor que vá fazer as pazes com Uther, ou acredita que pode se opor à ira do Grande Rei da Bretanha? Ou acabará comprando os favores dele como procurou comprar os meus?

- Cale-se! - ordenou Gorlois com ódio, de rosto vermelho. Humilhara-se ante ela, e Igraine sabia que ele jamais lhe perdoaria isso. - Cubra-se!

Igraine percebeu que continuava nua até a cintura. Dirigiu-se à cama, em cima da qual estava o vestido velho, e o enfiou lentamente pela cabeça, atando os laços. Gorlois apanhou no chão o colar de âmbar, o espelho de prata e estendeu-os para ela, mas Igraine desviou o olhar sem tomar conhecimento deles. Os objetos foram deixados sobre a cama, onde ficaram sem que ela os olhasse.

Gorlois contemplou-a por um momento, depois abriu a porta e saiu.

Sozinha, Igraine começou a guardar suas coisas nos alforjes. Não sabia o que pretendia fazer; talvez fosse procurar Merlim e contar-lhe tudo. Fora ele quem dera início àquela série de acontecimentos que acabara colocando-a contra Gorlois, tornando impossível viver com satisfação sob o seu teto. Sentiu uma dor no coração: eram casados pela lei de Roma, segundo a qual ele tinha poderes absolutos sobre a filha, Morgana. Tinha, de alguma forma, de ocultar seus sentimentos até conseguir levar Morgana para um lugar seguro! Talvez pudesse mandá-la para Viviane, na Ilha Sagrada, onde ficaria sob sua proteção.

Deixou sobre a cama as jóias que Gorlois lhe dera, arrumando em seus alforjes apenas as roupas que havia tecido com as próprias mãos em Tintagel. De jóias, guardou apenas a pedra-da-lua, presente de Viviane. Mais tarde, compreendeu que aquele momento de demora lhe custou a fuga, pois enquanto arrumava sobre a cama os presentes do marido, separando-os de suas coisas, ele voltou ao quarto. Lançou uma rápida olhadela sobre os alforjes cheios, e disse secamente:

- Bom, você já está se preparando. Partiremos antes do anoitecer.

- Como assim, Gorlois?

- Lancei de volta ao rosto de Uther o juramento que lhe havia feito, e disse-lhe o que devia ter dito logo. A partir de agora, somos inimigos. Vou organizar a defesa do oeste contra os saxões e os irlandeses, caso nos ataquem ali. E disse-lhe que, se ele tentar levar seus exércitos à minha terra, eu o enforcarei na árvore mais próxima, como o canalha que realmente é.

Igraine olhou para ele e por fim disse:

- Você está louco. Os homens da Cornualha não podem defender sozinhos as terras do oeste, se os saxões atacarem com todas as forças. Ambrósio sabia disso; Merlim sabe disso; e eu, que Deus me ajude, sei disso, e sou apenas uma mulher, dona-de-casa! Você deitará a perder, num momento de loucura, tudo por que Ambrósio viveu, e pelo que passou os últimos anos de vida lutando, apenas por uma briga insensata com Uther, provocada pelo seu ciúme injustificado?

- Você se preocupa muito com Uther!

- Eu me apressaria a ter pena do próprio chefe saxão se perdesse seus melhores partidários numa briga insensata! Em nome de Deus, Gorlois, pela nossa vida e pela vida do povo que tem confiança e depende de você, se os saxões vierem, peço-lhe que faça as pazes com Uther, e não acabe com a alíança dessa maneira! Lot já se foi; se você também partir, ficarão apenas as tropas do tratado e alguns reis menores, para segui-lo em defesa da Bretanha!

Sacudiu a cabeça, desesperada.

- Seria melhor que eu tivesse me jogado dos rochedos de Tintagel, antes de vir para Londinium! Farei qualquer juramento que você quiser, que nunca sequer toquei os lábios de Uther Pendragon! Você romperá a aliança pela qual Ambrósio morreu, por causa de uma mulher?

Gorlois olhou-a com ar sombrio e disse:

- Mesmo que Uther jamais tivesse posto os olhos em você, eu não poderia, em sã consciência, seguir um homem devasso, tão mau cristão. Não confio em Lot, mas agora sei que devo confiar ainda menos em Uther. Eu deveria ter ouvido, desde o começo, a voz de minha consciência, e jamais ter concordado em lhe dar meu apoio. Coloque minhas roupas no outro alforje. Mandei buscar os cavalos e os nossos soldados.

Igraine olhou para o implacável rosto de Gorlois, e sabía que, se protestasse, ele a espancaria novamente. Obedeceu em silêncio, com um ódio penetrante. Agora estava aprisionada, não poderia escapar, nem mesmo para a Ilha Sagrada, para a proteção da irmã, enquanto Gorlois tivesse sua filha em Tintagel.

Ainda estava guardando camisas e túnicas dobradas nos alforjes, quando ouviu sinos de alarme tocarem.

- Fique aqui! - ordenou Gorlois secamente, e correu para a rua.

Com raiva, Igraine seguiu-o, mas foi impedida por um dos seus vigorosos soldados, a quem nunca vira antes, que atravessou a lança diagonalmente à porta, impossibilitando-a de passar. Falava com um sotaque da Cornualha tão forte que ela mal compreendia suas palavras, mas percebeu que o duque dera ordens para que a senhora ficasse dentro de casa em segurança, e ele estava ali para não deixar que ela saísse.

Estaria abaixo de sua dignidade lutar com aquele homem, e tinha certeza de que, se tentasse, ele simplesmente a empurraria como um saco de farinha para dentro de casa. Suspirou e voltou ao quarto, terminando de guardar as coisas. Percebeu gritos e ruídos na rua, barulho de homens correndo, sinos batendo na igreja mais próxima, embora não fosse hora do serviço. Ouviu o ruído de espadas em choque e ficou pensando se os saxões estariam na cidade - seria realmente um bom momento para atacar, quando os capitães de Ambrósío disputavam entre si! Bem, isso resolveria um de seus problemas, mas o que seria de Morgana, sozinha em Tintagel?

O dia arrastou-se e, ao aproximar-se a noite, Igraine começou a ter medo. Estariam os saxões às portas da cidade, teriam Uther e Gorlois brigado novamente, estaria um deles morto? Quando, por fim, Gorlois abriu a porta do quarto, sentiu-se quase alegre ao vê-lo. Seu rosto estava fechado e distante, os maxilares apertados como se estivesse sofrendo grande dor, mas suas palavras a Igraine foram rápidas e nada tevelaram:

- Partiremos ao anoitecer. Você sabe galopar, ou quer que um dos meus homens a carregue? Não teremos tempo a perder com uma marcha mais lenta.

Ela queria fazer mil perguntas, mas não lhe daria a satisfação de vê-la preocupada:

- Por onde for, meu senhor, saberei manter-me na minha sela.

- Espero que sim, pois não faremos nenhuma parada para que você tenha tempo de mudar de idéia. Use seu manto mais grosso: será uma viagem no frio da noite, e a cerração do mar está chegando.

Igraine atou os cabelos num coque e colocou o manto por cima da túnica e dos culotes que sempre usava para montar. Gorlois levantou-a nos braços para colocá-la em cima do cavalo. A rua estava cheia de sombras escuras de soldados, com suas longas lanças. Gorlois falou em voz baixa com um dos capitães, depois montou; havia uns doze soldados cavalgando à frente e atrás deles. Gorlois segurou as rédeas do cavalo de Igraine e disse, com um irritado movimento de cabeça:

- Vamos.

Ela não conhecia o caminho, e seguiu em silêncio por onde o marido a levava, em plena noite, que se fazia cada vez mais escura. Havia no céu um reflexo de chamas, mas Igraine não sabia se eram fogos de guarda dos soldados, ou uma casa incendiada, ou simplesmente as fogueiras que os mascates, acampados no mercado, faziam para cozinhar. Não aprendera o caminho até o rio, em meio às casas amontoadas e as ruas, mas a cerração começou a acumular-se no caminho, levando-a a supor que estavam se aproximando das margens, e depois de algum tempo ouviu o ranger do sarilho que controlava as pesadas pranchas de ligação entre os dois extremos.

Um dos homens de Gorlois, desmontando, levou o cavalo dela até a prancha; o marido cavalgava a seu lado. A1guns dos homens obrigavam seus cavalos a nadar. Compreendeu que devia ser muito tarde - naquela época do ano, a luz custava a desaparecer, e era muito raro que se fizesse viagens à noite. Ouviu, então, um grito na margem.

- Estão partindo, estão partindo. Primeiro Lot, e agora o duque da Cornualha, e ficamos desprotegidos.

- Todos os soldados estão deixando a cidade. O que faremos, quando os saxões desembarcarem no sul?

- Covardes! - gritou alguém da margem para a prancha, que com muitos rangidos começou a afastar-se. - Covardes, fugindo com os campos em chamas.

Uma pedra passou zunindo, vinda das trevas, e atingiu no peito um dos soldados protegido por uma couraça. O homem praguejou, mas Gorlois silenciou-o com um grito ríspido. Outros insultos e pedras foram lançados da margem, mas a barcaça afastou-se rapidamente, ficando fora de alcance. Quando seus olhos se habituaram com a escuridão, Igraine pôde perceber que Gorlois tinha o rosto pálido e rígido como uma estátua de mármore. Não lhe dirigiu a palavra durante toda a noite, embora tivessem cavalgado até a madrugada; quando esta surgiu, vermelha e orvalhada, atrás deles, transformando o mundo numa névoa vermelha, pararam um pouco para que os cavalos e homens descansassem. Gorlois estendeu um manto para que Igraine se deitasse um pouco, e levou-lhe pão duro, queijo e um copo de vinho, rações de soldado, mas sem falar. Estava cansada e doída da cavalgada, e desorientada; sabia que Gorlois brigara com Uther e retirara seus homens, nada mais. Uther o teria deixado partir sem protestos? Bem, Lot partira.

Depois de um curto descanso, Gorlois trouxe novamente os cavalos, e a teria colocado nurn deles, se Igraine não tivesse se rebelado:

- Não monto mais, até que você me diga para onde vamos, e por quê! - Falou baixo, não querendo envergonhar Gorlois na frente de seus homens, mas encarou-o sem medo. - Por que saímos de Londinium como ladrões no meio da noite? Você vai me dizer o que está acontecendo, senão terá de amarrar-me às costas de um cavalo e levar-me gritando até a Cornualha!

- E você pensa que eu não faria isso, se precisasse? - perguntou Gorlois. - Não venha me aborrecer, você, por quem abandonei uma vida de honra e fidelidade a juramentos, e desrespeitei a memória do meu rei!

- Como pode culpar-me por isso? - lançou-lhe Igraine. - Você agiu assim não por minha causa, mas devido ao ciúme insensato! Sou inocente de quaisquer pecados que sua mente maldosa possa acreditar que eu tenha cometido...

- Silêncio, mulher! Uther também jurou que você era inocente. Mas você é mulher, e deve tê-lo enfeitiçado de alguma forma, ao que me parece. Procurei-o, pretendendo fazer as pazes, e sabe o que aquele homem libidinoso e maligno me exigiu? Que me divorciasse de você e a entregasse a ele!

Igraine olhou-o de olhos arregalados:

- Se você pensa tantas coisas más a meu respeito, que sou uma adúltera, feiticeira, tudo isso, por que então não se alegrou com a possibilidade de livrar-se de mim de uma forma tão simples?

Em seu coração surgiu um outro ressentimento, o de que Uther também pensasse que ela era uma mulher que podia ser cedida sem sua anuência, que ele tivesse se dirigido ao marido, exigindo que lhe desse a mulher indesejada, tal como fora pedida por Gorlois à Senhora de Avalon! Seria ela um cavalo para ser vendido numa feira de primavera, então? Uma parte dela, porém, tremia com um prazer secreto:

Uther a queria, queria-a o bastante para romper com Gorlois e afastar seus aliados, em razão da disputa de uma mulher. A outra enchia-a de raiva. Por que ele não se dirigira a ela, a ela própria, para que se afastasse do marido e fosse para ele de livre vontade?

Mas o duque respondia seriamente à sua pergunta:

- Você jurou-me que não era adúltera, e nenhum homem cristão pode rejeitar a esposa, exceto por adultério.

Entre a impaciência e uma súbita pena, Igraine conseguiu manter a calma. Não podia ser grata a Gorlois, mas pelo menos ele ouvira sua pergunta. Ocorreu-lhe, porém, que era principalmente o orgulho dele que estava em causa; mesmo que acreditasse ter sido traído, não queria que seus soldados pensassem que sua jovem esposa preferira outro homem. Talvez até mesmo tolerasse o pecado do adultério, para que não o considerassem incapaz de manter a fidelidade de uma jovem esposa.

- Gorlois... - começou, mas foi silenciada com um gesto.

- Basta. Não tenho paciência para trocar muitas palavras com você. Quando estivermos em Tintagel, você terá tempo de esquecer essa loucura. Quanto ao Pendragon, terá muito o que fazer na guerra no litoral saxônico. Se você ficou encantada com ele, bem, você é jovem e mulher, conhece pouco o mundo dos homens. Não lhe farei novas censuras. Dentro de um ou dois anos, teremos um filho, para afastar seu pensamento desse homem que lhe falou à imaginação.

Em silêncio, Igraine deixou que a colocasse no cavalo. Ele teria de ficar com seus pensamentos, pois nada do que dissesse penetraria naquela superfície de ferro. Não obstante, sua mente voltava-se obstinadamente para o que Viviane e Merlim tinham previsto: o seu destino estava ligado ao de Uther. Depois do sonho, ela acreditou, ela sabia por que se haviam reaproximado. Começava a aceitar ser essa a vontade dos Deuses. Ali estava ela, porém, afastando-se de Londinium com Gorlois, a aliança em ruínas, o marido disposto a impedir que Uther voltasse a vê-la. Certamente, com a guerra no litoral saxônico, ele não teria tempo para viajar até o fim de mundo que era Tintagel, e mesmo que pudesse, não conseguiria entrar no castelo, que podia ser defendido por uns poucos homens durante um tempo ilimitado. Gorlois poderia deixá-la ali, e ali ficaria até envelhecer, fechada atrás de muralhas e dos grandes abismos rochosos. Igraine cobriu o rosto com o manto, e chorou.

Jamais voltaria a ver Uther. Todos os planos de Merlim estavam desfeitos e arruinados. Estava presa a um velho que detestava - sabia agora que o odiava, o que antes não se permitira saber -, e o homem que amava não teve idéia melhor do que tentar forçar o orgulhoso Gorlois a abrir mão, voluntariamente, de sua esposa! Mais tarde, lembrou que chorara durante toda a longa viagem, todos os dias e noites que passaram percorrendo as charnecas e descendo os vales da Cornualha.

Na segunda noite, acamparam e armaram tendas para repousar devidamente. Ela recebeu bem a alimentação quente e a oportunidade de dormir dentro de uma tenda, embora soubesse que já não poderia evitar a cama de Gorlois. Não poderia lutar e gritar, quando dormiam numa tenda armada em meio aos soldados. Havia quatro anos era sua mulher, e ninguém acreditaria que ele a estivesse violentando. Não teria forças para lutar com ele, nem queria perder sua dignidade numa luta sórdida. Apertou os dentes e resolveu deixar que o duque agisse à vontade, embora desejando ter alguns dos encantamentos que, segundo se dizia, protegiam as servas da Deusa. Quando elas se deitavam com os homens nas fogueiras de Beltane, só concebiam se o desejassem. Parecia-lhe demasiado amargo conceber o filho que ele queria, quando fora tão humilhada, tão espezinhada.

Merlim lhe dissera: "Você não terá um filho de Gorlois." Já não confiava, porém, na profecia de Merlim, agora que via a ruína de todos os seus planos. Velho cruel e maquinador! Usara-a como os homens sempre usavam suas filhas, desde que os romanos haviam chegado, como títeres que deviam se casar com os escolhidos por seus pais, como se fossem bens móveis, como um cavalo ou uma cabra de leite! Encontrara certa tranquilidade com Gorlois, e essa paz fora perturbada, cruelmente, para nada! Chorou silenciosamente ao preparar-se para deitar, resignada, sem esperanças, sem confiança em sua capacidade de afastá-lo com palavras de ódio - podia ver, pela atitude dele, que estava pronto a provar a si mesmo a posse dela, afastar as lembranças de qualquer outro homem, obrigando-a a cumprir suas ordens da única maneira que lhe podia impor.

As conhecidas mãos em seu corpo, o rosto dele sobre o seu no escuro foram como os de um estranho. E não obstante, quando Gorlois a puxou para si, foi incapaz, deficiente, impotente; e embora se agarrasse a ela e a acariciasse, tentando desesperadamente despertar as próprias forças, nada conseguiu, abandonando-a por fim com uma furiosa praga murmurada.

- Maldita cadela, você fez algum feitiço contra a minha virilidade?

- Não, mas se conhecesse tais feitiços teria prazer em usá-los, meu galante e forte marido. Espera que eu chore porque não pode me possuir pela força? Tente, e ficarei aqui deitada, rindo na sua cara!

Ele ergueu-se por um momento, fechando o punho.

- Sim - disse ela. - Bata. Não será a primeira vez. E talvez isso o faça sentir-se bastante homem para que sua lança se levante para a ação!

Com uma imprecação furiosa, ele voltou-lhe as costas e deitou-se outra vez, enquanto Igraine ficou acordada, tremendo, sabendo que tivera sua vingança. E na verdade, durante toda a viagem para a Cornualha, por mais que tentasse, Gorlois viu-se impotente para possuí-la, até que, por fim, Igraine começou a pensar que talvez, sem que tivesse consciência disso, sua ira justificada houvesse realmente lançado algum encantamento na virilidade do marido. E sentiu, com a intuição penetrante de quem fora preparada para o sacerdócio, que ele nunca mais voltaria a ser homem com ela.

 

Capítulo 6

Mais do que nunca a Cornualha parecia ser o fim do mundo. Naqueles primeiros dias, depois que Gorlois a deixou ali, sob guarda - friamente silencioso, agora, e sem lhe dirigir uma palavra, boa ou má -, Igraine viu-se pensando se Tintagel realmente existia num mundo real ou se, como Avalon, existia apenas num reino de brumas, o reino das fadas, sem qualquer relação com o mundo que visitara em sua breve excursão fora dele.

Mesmo durante sua ausência, Morgana parecia ter crescido, passando de bebê a menininha, séria, tranquila, questionando incessantemente tudo o que via. Também Morgause crescera, o corpo adquirira mais curvas, o rosto infantil se definia, com as maçãs salientes e os longos cílios sob sobrancelhas castanhas. Ela parecia bela a Igraine, que não se dava conta de ser a irmã exatamente como ela fora aos catorze anos. Morgause ficou entusiasmada com os presentes de Igraine, e andava à sua volta e de Gorlois como um cachorrinho brincalhão. Conversava animadamente com ele, lançava-lhe olhares oblíquos e tentava sentar-se em seu colo, como se fosse uma criança da idade de Morgana. Igraine viu que Gorlois não ria, mas a afastava como um animalzinho, afagando-lhe os longos cabelos vermelhos, sorrindo e beliscando-lhe o rosto.

- Você está muito grande para essas tolices - repreendeu Igraine. - Agradeça ao duque de Cornualha e leve os presentes para seu quarto. E deixe de lado as sedas, pois não as usará enquanto não for crescida. Não pense em brincar de senhora aqui, ainda!

Morgause juntou as belas coisas e foi chorando para o quarto: Igraine notou que Gorlois a seguia com os olhos. Pensou, apavorada, Morgause só tem catorze anos, e lembrou-se, então, com medo, de que tinha apenas um ano a mais quando lhe fora dada como sua noiva.

Mais tarde, viu-os juntos no salão, Morgause apoiava a cabeça, confiante, nos ombros dele, e reparou que os olhos do marido brilhavam. Teve raiva, não tanto da menina, mas de Gorlois. Percebeu que se afastaram sem jeito, quando entrou, e depois que ele se foi olhou-a duramente, com um olhar impiedoso, até que Morgause deu um risinho constrangido e baixou os olhos para o chão.

- Por que está me olhando desse jeito, Igraine? Tem medo que Gorlois me prefira a você?

- Gorlois era muito velho para mim, não será igualmente velho para você? Com você, ele pensa que me terá de volta tal como eu era, demasiado jovem para dizer-lhe não ou olhar para outro homem. Já não sou a criança dócil, mas uma mulher com vontade própria, e talvez ele pense que você seria alguém mais fácil de dominar.

- Talvez, então - respondeu Morgause, agora com um ar insolente -, você devesse procurar manter seu marido satisfeito, em lugar de queixar-se de que alguma outra mulher pode fazer por ele o que você não faz.

Igraine levantou a mão para dar-lhe um tapa, mas conteve-se, a grande custo. Reunindo todo o controle, disse:

- Você acha que me importo com quem Gorlois vai para a cama? Tenho a certeza de que ele teve sua cota de prostitutas, mas preferia que minha irmã não fosse incluída entre elas. Não desejo os carinhos dele, e se a odiasse, eu a entregaria a ele, espontaneamente. Mas você é muito jovem, tal como eu era. E Gorlois é cristão; se você deitar com ele e ficar grávida, ele se apressará a casá-la com qualquer soldado que aceite uma mulher usada. Os romanos não são como o nosso povo, Morgause. Gorlois pode engraçar-se com você, mas ele não me mandará embora para tomá-la como esposa, acredite. Entre nosso povo a virgindade não tem grande importância; uma mulher de fertilidade comprovada, o ventre cheio com um filho saudável, é a esposa mais desejável. Mas com os cristãos não é assim. Eles irão tratá-la como mulher desonrada, e o homem que Gorlois convencer a desposá-la fará com que sofra durante toda a sua vida pelo fato de não ser o pai da criança que você carrega. É isso o que você quer, Morgause, quando poderia casar-se com um rei, se o desejasse? Prefere jogar-se fora, irmã, apenas para me provocar?

Morgause empalideceu:

- Eu não fazia idéia... - murmurou. - Não, eu não quero ser desonrada... Igraine, perdoe-me.

Igraine beijou-a, deu-lhe o espelho de prata e o colar de âmbar, e Morgause olhou-a com espanto.

- Mas são presentes de Gorlois...

- Jurei que jamais voltaria a usar os seus presentes. São seus, para aquele rei que Merlim viu no seu futuro, irmã. Mas deve manter-se casta até que ele chegue.

- Não tenha medo - e Morgause sorriu novamente. Igraine ficou satisfeita pelo fato de sua advertência ter falado às ambições da menina. Morgause era fria e calculista, jamais seria levada pelos impulsos ou emoções. Vendo-a, Igraine desejava ter nascido também sem sua capacidade de amar.

"Gostaria, se pudesse, de contentar-me com Gorlois, ou, se fosse possível, de procurar livrar-me friamente dele e ser a rainha de Uther, como Morgause certamente faria."

Gorlois permaneceu apenas quatro dias em Tintagel, e Igraine ficou satisfeita ao vê-lo partir.

- Você e a criança estarão bem protegidas aqui - disse secamente. - Vou reunir os homens da Cornualha contra os invasores irlandeses ou os homens do norte... ou contra Uther, se ele tentar tomar o que não lhe pertence, mulher ou castelo.

- Acho que Uther tem muito o que fazer em sua própria terra, para isso - respondeu Igraine, apertando os lábios em desespero.

- Deus queira, pois já temos muitos inimigos sem ele. Mas gostaria de poder desejar que viesse, para mostrar-lhe que a Cornualha não é dele, pois pensa que pode querer tudo!

Igraine não respondeu. Gorlois partiu com seus homens, e ela ficou entregue à tarefa de colocar a casa em ordem, reaproximar-se da filha e estreitar amizade com a irmã Morgause.

A lembrança de Uther, porém, estava sempre presente, por mais que se ocupasse das tarefas domésticas. Não era nem mesmo o Uther real que a perseguia, o homem que vira no pomar, na corte e na igreja, impulsivo e um pouco juvenil, mesmo um tanto rústico e desajeitado. Aquele Uther, o Pendragon, o Grande Rei, atemorizava-a um pouco: talvez até tivesse um pouco de medo dele, como tivera de Gorlois, no passado. Quando pensava em Uther, o homem, pensava nos beijos e abraços, e tudo o mais que pudesse desejar dela, e por vezes experimentava aquela doçura que havia sentido no sonho; em outros momentos, porém, era tomada de um terror pânico, como a criança brutalizada que se levantara na manhã seguinte ao matrimônio, gelada de medo. A idéia do ato do casamento ainda lhe parecia aterrorizante, e até mesmo grotesca, tal como lhe parecera na época.

O que lhe voltava à memória repetidamente no silêncio da noite, com Morgana dormindo ao seu lado ou sentada no terraço, guiando as mãos da filha nas primeiras e inábeis tentativas de fiar, era o outro Uther, o Uther que conhecera no anel de pedras, fora do tempo e do espaço comuns; o sacerdote da Atlântida, com quem partilhara os Mistérios. Aquele Uther ela conhecia e amava tanto quanto a sua própria vida, jamais poderia temê-lo, e o que acontecesse entre eles seria uma doçura, uma alegria superior a tudo o que conhecia. Ao aproximar-se dele, sentiu apenas que redescobrira uma parte perdida de si mesma; com a qual recobrava a sua unidade. Não importava o que pudesse acontecer entre eles como homem e mulher comuns; atrás disso, havia alguma coisa que nunca morreria, nem perderia intensidade. Partilhavam de um destino, e teriam de realizá-lo juntos, de certa forma... Com frequência, quando seus pensamentos chegavam a esse ponto, ela parava e, dando acordo de si, não acreditava no que lhe ocorria. Estaria louca, com suas fantasias de destino partilhado e de outra metade da alma? Sem dúvida, a realidade era mais simples e menos bonita. Ela, uma mulher casada, matrona decente e mãe de uma filha, simplesmente se deixara atrair por um homem mais jovem e mais bonito do que seu marido legítimo, e fora levada a um devaneio com ele, e a desentender-se com o homem honrado e bom a quem fora entregue. Ficava, então, sentada, e fiava, cerrando os dentes com um sentimento de grande culpa, imaginando se toda a sua vida teria de ser passada na expiação de um pecado cometido em estado de semi-inconsciência.

A primavera transformou-se em verão, os fogos de Beltane passaram: O calor espalhou-se pela terra e o mar ficou tão azul e tão claro que, longe, nas nuvens, Igraine podia ver em certos dias as cidades esquecidas de Lyonesse e Atlântida. Quando os dias começaram a ficar mais curtos, e por vezes voltava a cair geada durante a noite, Igraine ouviu os primeiros rumores distantes da guerra - os soldados traziam, do mercado, notícias sobre invasores irlandeses no litoral, que haviam incendiado uma aldeia e uma igreja, levando uma ou duas mulheres, e que exércitos, não comandados por Gorlois, marchavam para oeste, na direção do País do Verão, e para o norte, para Gales.

- Que exércitos? - perguntou Igraine ao homem, e ele respondeu:

- Não sei, senhora, pois não os vi; os que viram disseram que levavam águias, como as antigas legiões romanas, o que é impossível. Mas disseram também que levavam um dragão vermelho em suas bandeiras.

"Uther!", pensou, assustada. "Uther está perto e nem saberá onde estou!" Só então pediu notícias de Gorlois, e o homem disse-lhe que também seu marido estava no País do Verão, onde os exércitos celebravam uma espécie de conselho.

Olhou demoradamente para seu espelho de bronze, naquela noite, desejando que fosse o espelho miraculoso de uma sacerdotisa, no qual pudesse ver o que estava acontecendo a grande distância.

Ansiava por aconselhar-se com Viviane ou com Merlim. Eles é que haviam provocado todos esses problemas - e tê-la-iam abandonado, agora? Por que não vinham constatar como seus planos estavam em ruínas? Teriam encontrado alguma outra mulher de linhagem adequada para lançar no caminho de Uther, para conceber esse rei que algum dia unificaria todo o país e seus povos em guerra?

Mas nenhuma palavra ou mensagem vinha de Avalon, e Igraine não tinha autorização para ir sequer à cidade do mercado; Gorlois, diziam os homens respeitosamente, proibira as saídas, devido ao estado de guerra. Certa vez, olhando de uma janela alta, notou que um cavaleiro se aproximava e que, na entrada do promontório, se detinha para falar com o chefe dos guardas. O cavaleiro parecia irritado, e Igraine teve a impressão de que, antes de dar as costas e afastar-se, olhara frustrado para o alto das muralhas, e ela imaginou se não teria sido um mensageiro à sua procura, a quem os guardas haviam negado acesso.

Era, portanto, uma prisioneira no castelo do marido. Este poderia dizer, e até mesmo acreditar, que a colocara ali para sua proteção, mas a verdade era outra: o ciúme levara-o a deixá-la cativa no castelo. Alguns dias depois, chamando o chefe dos guardas, confirmou suas suspeitas.

- Quero mandar uma mensagem para minha irmã, pedindo que venha visitar-me - disse ela. - Pode mandá-la por um homem a Avalon?

Teve a impressão de que ele evitava seus olhos.

- Bem, senhora, não sei se posso fazer isso. Meu senhor da Cornualha ordenou muito claramente que todos nós deveríamos ficar aqui e proteger Tintagel, em caso de sítio.

- Não pode contratar um mensageiro na aldeia, então, para fazer a viagem, se eu pagar bem a esse homem?

- Meu senhor não gostaria, sinto muito.

- Está bem - anuiu ela, despedindo o homem. Ainda não estava tão desesperada a ponto de tentar subornar um dos soldados. Quanto mais pensava nisso, porém, mais irritada ficava. Como Gorlois ousava prendê-la ali, ela, irmã da Senhora de Avalon? Era esposa dele, não sua escrava ou serva! Decidiu-se, por fim, a uma medida desesperada.

Não havia sido treinada para a Visão; utilizara-a um pouco, espontaneamente, quando menina, mas, com exceção do vislumbre de Viviane, não se servira dela depois de adulta; a imagem que percebera, de Gorlois condenado à morte, fechara-se firmemente a qualquer outra manifestação. Aquela últíma visão, os deuses sabiam, não se confirmara, pois seu marido continuava vivo. Pensou, porém, que talvez lhe fosse possível ver, de alguma forma, o que deveria acontecer. Era uma decisão perigosa - fora criada ouvindo histórias do que acontecia a pessoas que brincavam com artes nas quais não estavam iniciadas, e a princípio tentou uma solução intermediária. Quando as primeiras folhas começaram a amarelar, mandou chamar novamente o comandante da guarda.

- Não posso ficar aqui para sempre, presa como um rato numa ratoeira. Tenho de ir ao mercado. Precisamos comprar tintas, e há necessidade de uma nova cabra leiteira, de agulhas e alfinetes, de muitas coisas para o inverno que se aproxima.

- Senhora, não tenho ordens para deixá-la sair - explicou o homem, evitando seu olhar. - Recebo ordens do meu senhor, e nenhuma instrução recebi.

- Então ficarei aqui e mandarei uma de minhas criadas. Ettarr ou Isotta irão, e, com elas, a senhora Morgause; isso basta?

Ele pareceu aliviado, pois, assim, não desobedeceria ao seu senhor; era realmente necessário que alguém da família visitasse uma feira antes do inverno, e o homem sabia disso tão bem quanto Igraine. Era constrangedor impedir que a senhora do castelo cumprisse o que, afinal, era o seu dever.

Morgause ficou contentíssima quando foi informada de que iria ao mercado. Não é de surpreender, pensou Igraine, nenhuma de nós saiu dagui todo este verão. Até mesmo os pastores são mais livres do que nós, pois, pelo menos, levam os rebanhos a pastar! Viu com inveja Morgause colocar o manto vermelho que Gorlois lhe dera e, acompanhada de dois escudeiros, Ettarr, Isotta e mais duas servas da cozinha para carregar os fardos, partir em seu pônei. Ficou olhando do promontório, segurando a mão de Morgana, até que desaparecessem de vista, e sentiu que não suportaria entrar novamente no castelo que se transformara numa prisão.

- Mamãe - perguntou Morgana -, por que não podemos ir ao mercado com a titia?

- Porque seu pai não quer, minha boneca.

- E por que ele não quer? Ele acha que nós vamos fazer artes?

Igraine riu e disse:

- Realmente, acho que ele pensa assim, filhinha.

Morgana ficou calada - uma pequena criatura, calada, dona de si, com os cabelos negros bastante compridos presos numa trança que lhe chegava até as espáduas, mas tão fino e liso que se desprendia em mechas em volta dos ombros. Tinha olhos escuros e sérios, sobrancelhas retas e alinhadas, já tão carregadas que constituíam o detalhe mais marcante de seu rosto. Uma pequena fada, pensou Igraine, que não é humana; um duende. Não era maior do que a filha do pastor, que ainda não tinha dois anos, embora Morgana estivesse se aproximando dos quatro e falasse com a clareza e a ponderação de uma menina de oito ou nove anos. A mãe pegou-a nos braços e acariciou-a.

- Minha pequena fada!

Morgana aceitou suas carícias e até retribuiu-as com um beijo, o que surpreendeu Igraine, já que não era uma criança afetuosa. Logo depois, porém, começou a mexer-se nervosamente, pois não gostava de ficar muito tempo no colo - queria fazer tudo sozinha. Sabia até vestir-se e prender as fivelas dos sapatos. Igraine colocou-a no chão, e Morgana caminhou tranquilamente ao seu lado, de volta ao castelo.

Igraine sentou-se ao tear, e pediu à filha que trouxesse seu fuso e se sentasse também ao seu lado. A menina obedeceu, e a mãe, movimentando o tear, parou em seguida, para contemplá-la. Tinha mãos hábeis e precisas; o fio que usava era grosseiro, mas ela manejava o fuso com habilidade, como se fosse um brinquedo, fazendo-o mover-se com os pequenos dedos. Se suas mãos fossem maiores, faria aquilo tão bem quanto Morgause. Depois de algum tempo, Morgana indagou:

- Não me lembro de meu pai, mamãe. Onde está ele?

- Está longe, com seus soldados, no País do Verão, minha filha.

- Quando voltará para casa?

- Não sei, Morgana. Você quer que ele volte?

Ela pensou um momento:

- Não - respondeu -, porque, quando ele estava aqui, lembro-me bem, eu tinha de dormir no quarto da titia, e como lá era escuro, tive medo, a princípio. Eu era muito pequena, então - disse solenemente, e Igraine disfarçou um sorriso. Depois de um minuto, a menina continuou:

- E não quero que ele volte, porque ele fez você chorar.

Bem, Viviane já dissera que as mulheres não acreditam que as crianças compreendam o que se passa à volta delas.

- Por que você não tem outro filho, mamãe? Outras mulheres têm um filho logo que o mais velho é desmamado, e eu já tenho quatro anos. Ouvi Isotta dizer que você devia ter-me dado um irmãozinho. Gostaria de ter um irmãozinho, ou mesmo uma irmãzinha para brincar comigo.

Igraine ia dizer "Porque Gorlois, seu pai...", mas conteve-se. Por mais ponderada que Morgana parecesse, tinha apenas quatro anos, e ela não podia contar-lhe tais coisas.

- Porque a Mãe Deusa não julgou conveniente mandar-me outro filho, querida.

O padre Columba apareceu no terraço e disse austeramente:

- A senhora não deve falar de deusas e superstições à criança. Gorlois impõe que ela seja criada como boa cristã. Morgana, sua mãe não teve outro filho porque seu pai estava aborrecido com ela, e Deus negou-lhe um filho para puni-la pelo seu desejo pecaminoso.

Não foi a primeira vez que Igraine teve vontade de atirar o fuso naquele negro corvo agourento. Teria Gorlois se confessado com esse homem, saberia o padre tudo o que se passara entre eles? Muitas vezes se fizera essa indagação, em luas passadas, mas nunca tivera uma desculpa para perguntar, e sabia que ele não lhe diria, se o fizesse. De repente Morgana levantou-se e fez uma careta para o padre.

- Vá embora, velho - disse claramente. - Não gosto de você, pois fez minha mãe chorar. Ela sabe mais do que você, e se diz que foi a Deusa que não lhe mandou um filho, acredito nela e não em você, porque minha mãe não diz mentiras!

O padre Columba observou irritadamente:

- Vê agora o resultado de sua teimosia, minha senhora? A criança deve ser castigada. Entregue-me a menina e a castigarei pela sua falta de respeito!

Isso fez toda a raiva e rebeldia de Igraine explodirem. O padre Columba avançou para Morgana, que permaneceu firme, sem pestanejar. Igraine interpôs-se.

- Se levantar a mão para minha filha, padre, eu o matarei aqui mesmo. Meu marido trouxe-o para cá, não posso mandá-lo embora, mas se voltar novamente à minha presença, cuspo-lhe. Desapareça!

O padre não se rnoveu.

- O senhor Gorlois confiou-me o bem-estar espiritual de toda a família, minha senhora, e eu não sou orgulhoso; portanto perdôo-lhe o que disse.

- Importa-me tanto o seu perdão quanto o daquele bode! Saia da minha presença, ou eu chamarei minhas criadas para o expulsarem. Se não quiser ser arrastado, saia daqui e não se atreva a voltar à minha presença sem ser chamado, o que só acontecerá quando o sol se levantar do lado ocidental da Irlanda! Saia!

O padre viu os olhos flamejantes de Igraine, a mão levantada, e saiu rapidamente.

Esse ato de franca rebeldia deixou-a paralisada por sua temeridade. Mas pelo menos livrara-as do padre. Não permitiria que sua filha fosse criada para ter vergonha de sua condição de mulher.

Morgause voltou bem tarde, à noite, depois de cuidadosa escolha das compras - Igraine sabia que nem ela mesma teria escolhido melhor -, trazendo açúcar-cande para Morgana chupar, comprado com o seu próprio dinheiro, e muitas notícias ouvidas na praça do mercado. Ficaram até meianoite no quarto de Igraine, conversando, muito depois de Morgana ter adormecido com o rosto e as mãos lambuzados. Igraine tirou-lhe o doce, embrulhou-o e voltou a pedir mais notícias a Morgause.

- É vergonhoso eu ter de saber, pelas notícias do mercado, o que meu marido anda fazendo!

- Há uma grande reunião no País de Verão - contou Morgause. - Dizem que Merlim conseguiu estabelecer a paz entre Lot e Uther. Dizem também que Ban da Bretanha Menor aliou-se a eles e está mandando cavalos trazidos da Espanha - gaguejou um pouco ao pronunciar esse nome. - Onde fica isso, Igraine? Em Roma?

- Não, mas fica muito para o sul, muitas léguas mais perto de nós do que de Roma.

- Houve uma batalha com os saxões, e Uther estava presente com o estandarte do dragão - continuou Morgause. - Ouvi um tocador de harpa contar, como numa balada, que o duque da Cornualha prendeu sua mulher em Tintagel.

No escuro, Igraine pôde perceber que os olhos da irmã estavam arregalados, e os lábios, entreabertos.

- Diga-me, Igraine, é certo que Uther foi seu amante?

- Não foi, mas Gorlois acha que sim, e por isso brigou com ele. Não acreditou em mim quando lhe contei tudo. - Sentiu a garganta sufocada pelos soluços. - Agora, gostaria que tivesse sido verdade.

- Dizem que o rei Lot é mais bonito do que Uther, e que ele está procurando uma esposa; comenta-se ainda que, se tivesse certeza da vitória, ele questionaria o direito de Uther a ser Grande Rei. Lot é realmente mais bonito do que Uther? E esse é tão parecido com um deus como dizem, Igraine?

- Não sei, Morgause - respondeu, sacudindo a cabeça.

- Ora, dizem que ele foi seu amante...

- Não me importo com o que dizem - interrompeu Igraine -, mas, pelos padrões habituais, ambos são homens bonitos, sendo Lot moreno e Uther louro, como um homem do norte. Mas não foi por ser mais bonito de rosto que Uther me pareceu melhor.

- Por que foi, então? - perguntou Morgause, animada e curiosa, e Igraine suspirou, sabendo que ela não compreenderia. Mas a vontade de falar, pelo menos um pouco, do que sentia e jamais poderia comentar com alguém, levou-a a responder:

- Ah, não sei direito... Era como se eu o conhecesse desde o começo do mundo, como se ele nunca pudesse ser um estranho para mim, não importa o que faça ou o que se interponha entre nós.

- Mas ele nem sequer a beijou...

- Não importa - murmurou Igraine, cansada. E por fim, chorando, confessou o que sabia há muito tempo, embora não quisesse reconhecer. - Mesmo que eu não volte a vê-lo nesta vida, estou ligada a ele, estarei até morrer. E não acredito que a Deusa tivesse alterado tanto minha vida, se fosse para eu nunca voltar a vê-lo.

Na penumbra, notou que Morgause a olhava com respeito e inveja, como se, aos seus olhos, Igraine tivesse, de repente, se transformado na heroína de uma velha história romântica. Quis explicar-lhe que não era isso, que não se tratava de nenhuma história romântica, simplesmente acontecera, mas sabia que seria impossível, pois a Morgause faltava experiência para distinguir a fantasia da realidade. Que acredite que é um romance, então, se isso lhe dá prazer, pensou, compreendendo então que esse tipo de realidade jamais ocorreria com Morgause, que vivia num mundo diferente.

Igraine afastara o padre, que era um homem de Gorlois, e confessara a Morgause que amava Uther. Viviane falara em mundos que se separavam, e pareceu-lhe que começava a viver num outro, à parte do mundo normal, onde Gorlois talvez tivesse o direito de esperar que ela, sua esposa, fosse uma escrava fiel. Só Morgana a unia a esse mundo, agora. Olhou para a criança adormecida, ainda de mãos lambuzadas, com o cabelo negro espalhado à sua volta, voltou-se para a irmã, de olhos arregalados, e ficou pensando se a força do que havia acontecido a levaria a abandonar esses últimos reféns que a prendiam ao mundo real.

Esse pensamento a fez sofrer, mas em seu íntimo murmurou: "Sim. Até mesmo isso".

Assim, o próximo passo a ser dado, e que Igraine havia receado tanto, tornou-se simples.

Ficou acordada aquela noite entre Morgause e a filha, tentando decidir o que fazer. Deveria fugir, e confiar na parte da visão segundo a qual Uther a encontraria? Rejeitou tal idéia quase imediatamente. Deveria mandar Morgause, com instruções secretas, fugir para Avalon com a mensagem de que ela estava prisioneira? Não; se já soubesse - uma balada cantada no mercado - que estava prisioneira, a irmã teria vindo ao seu encontro, se acreditasse que isso poderia ajudá-la. E seu coração continuava corroído pela dúvida e o desespero. Sua visão fora falsa... ou talvez, quando ela não abandonou tudo para ficar com Uther, tivessem esquecido o plano, encontrado outra mulher para ele e para a salvação da Bretanha, tal como arranjariam outra para desempenhar seu papel, se a grã-sacerdotisa ficasse enferma na época da Celebração.

Ao amanhecer, quando o céu já clareava, caiu num sono muito leve. E nele, quando já havia perdido a esperança, encontrou a orientação desejada. Ao despertar, foi como se uma voz em seu interior dissesse "Livre-se, por hoje, da menina e da moça, e saberá o que fazer."

O dia amanheceu límpido e brilhante, e ao tomarem sua primeira refeição, de queijo de cabra e pão fresco, Morgause olhou para o mar e disse:

- Estou cansada de ficar dentro de casa. Só ontem, no mercado, me dei conta disso!

- Leve Morgana, então, e passe o dia fora, com as pastoras - sugeriu Igraine. - Creio que a menina também gostará de passear.

Preparou fatias de carne e pão para elas. Para Morgana, foi uma festa. Igraine viu-as partir, esperando então fugir de algum modo à vigilância do padre Columba, que, embora tivesse cumprido sua ordem de não procurá-la, seguia-a por toda parte com o olhar. A manhã ia pelo meio, e Igraine tecia, quando ele se apresentou.

- Minha senhora...

- Mandei que ficasse longe de mim, padre - disse ela sem levantar os olhos. - Queixe-se a Gorlois, quando ele voltar, se quiser, mas não me dirija a palavra.

- Um dos homens de Gorlois caiu dos rochedos. Seus camaradas acreditam que ele está morrendo, e pediram-me que fosse vê-lo. A senhora não precisa ter medo, pois ficará devidamente guardada.

Sabia disso. Nunca lhe ocorrera, porém, que, se fosse possível livrar-se do padre, também poderia escapar. De qualquer modo, para onde ir? Estavam em terras de Gorlois, e, temendo sua ira, ninguém teria coragem de dar-lhe abrigo se acaso fugisse. Fugir, apenas por fugir, não era a sua intenção.

- Vá, que o diabo o leve, e não volte à minha presença.

- Se pretende me amaldiçoar, mulher...

- Por que perderia meu tempo em amaldiçoá-lo? Antes desejaria que fosse para o céu, e que o seu Deus tivesse mais prazer do que eu com a sua companhia.

Depois que ele se foi, apressando seu burro pelo promontório, Igraine sabia por que tinha de livrar-se do padre. A seu modo, o padre Columba era também um iniciado nos Mistérios, embora não fossem os Mistérios dela, perceberia logo o que Igraine pretendia fazer e logicamente se oporia a seus intentos. Foi ao quarto de Morgause e apanhou o espelho de prata. Depois, desceu à cozinha e mandou as criadas acenderem a lareira em seu aposento. Elas se espantaram, pois o dia não estava frio, mas Igraine repetiu a ordem como se fosse a coisa mais normal do mundo e recolheu outras coisas na cozinha: sal, um pouco de óleo e um pequeno jarro de vinho - que, sem dúvida, as mulheres julgaram destinar-se à sua refeição do meio-dia -, levando também um pouco de queijo para disfarçar suas intenções, lançando-o mais tarde às gaivotas.

Lá fora, no jardim, encontrou flores de lavanda e algumas bagas de rosas silvestres. Cortou ramos de juníperos com sua faquinha, um punhado apenas simbólico e um pedaço de aveleira. Ao voltar ao seu quarto, aferrolhou a porta e despiu-se, ficando nua e trêmula ante o fogo. Nunca fizera isso, e sabia que Viviane não aprovaria, pois quem não conhece as artes da magia pode envolver-se em complicações, ao usá-las. Mas, com as coisas que trouxera, não ignorava que podia conjurar a Visão, ainda que não estivesse preparada para isso.

Lançou o junípero ao fogo e, quando a fumaça subiu, amarrou o ramo de aveleira à testa. Colocou o fruto e as flores ante o fogo, levou o sal e o óleo ao peito, comeu um pedaço do pão, tomou um gole do vinho; em seguída, tremendo, colocou o espelho de prata de modo a refletir a luz do fogo e, tomando a bacia destinada à lavagem dos cabelos, derramou água da chuva, pura, na superfície do espelho, murmurando:

- Pelas coisas comuns e incomuns, pela água e fogo, sal, óleo e vinho, pelo fruto e pelas flores juntos, imploro-vos, Deusa, fazei-me ver minha irmã Viviane.

Lentamente, a superfície da água agitou-se. Igraine tremeu, como se um súbito vento gelado a tivesse açoitado, receando, por um momento, que a magia falhasse e que sua feitiçaria também fosse uma blasfêmia. A imagem apagada que se formou a princípio no espelho era a sua, mas lentamente foi se modificando e transformou-se no rosto impressionante da Deusa, com sorvas atadas à testa. E então, quando clareou e firmou-se, Igraine viu: não, como havia esperado e desejado, um rosto vivo, que falasse, mas um quarto que conhecia. Era o antigo quarto de sua mãe em Avalon, e nele estavam mulheres com as vestes negras das sacerdotisas; a princípio, procurou inutilmente pela irmã, pois as mulheres iam e vinham, de um lado para outro, e era grande a confusão no aposento. Viu-a, então: parecia cansada e doente, caminhava de um lado para outro, apoiada no braço de uma das sacerdotisas, e Igraine compreendeu, horrorizada, o que ocorria. Viviane, em seu vestido claro de lã sem tingir, estava grávida, com a barriga enorme, o rosto marcado pelo sofrimento, e andava como as parteiras - Igraine lembrou-se - haviam-na feito andar, na ocasião do parto de Morgana...

- Não, não! Oh, Mãe Ceridwen, abençoada Deusa, não... Nossa mãe morreu assim. Viviane tinha tanta certeza de que passara da idade de ter filhos... e agora ela vai morrer; ela não pode ter um filho com essa idade e viver... Por que, então, ao saber que havia concebido, não tomou alguma poção que a livrasse da criança? Isso é o naufrágio de todos os seus planos, é o fim... Também eu arruznez minha vida com um sonho...

Então Igraine teve vergonha de si mesma, por estar pensando em sua sorte, quando Viviane enfrentava um parto ao qual dificilmente sobreviveria. Horrorizada, chorando de medo, não conseguia nem mesmo afastar-se do espelho; foi então que Viviane ergueu a cabeça, e em seus olhos fundos, apagados pela angústia, surgiu o reconhecimento e a ternura.

Igraine não podia ouvir, mas foi como se Viviane falasse diretamente ao seu pensamento.

- Minha menina... irmãzinha... Grainné...

Igraine quis gritar para ser ouvida, com sua dor, seu sofrimento e medo, mas agora não podia lançar sobre Viviane suas mágoas. Colocou todo o coração num único grito.

- Eu a ouço, minha mãe, minha irmã, minha sacerdotisa e minha deusa...

- Igraine, digo-lhe, até mesmo nesta hora, não perca a esperança, não desespere! Há um sentido em todos os nossos sofrimentos, eu o vi... não desespere...

E, por um instante, com um arrepio, Igraine sentiu no rosto um leve toque, como o mais leve dos beijos. Viviane murmurou: "Irmãzinha...", sua face contorceu-se de dor, e ela caiu desmaiada nos braços da sacerdotisa. A água sobre o espelho tremulou como que agitada pelo vento, e Igraine voltou a ver o próprio rosto, imprecisamente, através das lágrimas.

Estremecendo, envolveu-se numa roupa qualquer para aquecer-se, e lançou o espelho feiticeiro ao fogo. Depois, jogou-se na cama e chorou.

"Viviane disse-me para não desesperar. Mas como, se ela está morrendo?"

Ficou ali, chorando, num estado de entorpecimento.

Por fim, quando os olhos secaram, ergueu-se cansada e lavou o rosto em água fria. Viviane estava morrendo, talvez até já estivesse morta. Mas, em suas últimas palavras, havia insistido para que Igraine não perdesse as esperanças. Vestiu-se e colocou a pedra-da-lua que a irmã lhe dera. E então, com um leve movimento no ar à sua volta, viu Uther.

Sabia que era uma aparição e não a realidade. Ninguém, e certamente não Uther Pendragon, poderia ter penetrado em seu quarto guardado, sem ser visto e detido antes. Ele usava uma capa pesada, mas em seus braços - e por isso Igraine sabia que não era sonho - trazia as serpentes que vira no sonho sobre sua vida na Atlântida. Agora, porém, não eram braceletes de ouro, mas serpentes vivas, que erguiam a cabeça, sibilando. Não teve medo.

- Minha amada - disse ele, e embora ouvisse claramente a voz, o quarto continuava silencioso à luz incerta do fogo que crepitava com a queima do junípero. - Virei buscá-la em meados do inverno, e nada me impedirá. Prepare-se para vir comigo em meados do inverno...

E, de repente, Igraine ficou outra vez sozinha, tendo apenas o sol no quarto, o reflexo do mar lá fora. No pátio, lá embaixo, ouviam-se as vozes risonhas de Morgause e de sua filha.

Igraine respirou profundamente, e bebeu com calma o resto do vinho. Caindo no estômago vazio, a bebida subiu-lhe logo à cabeça, dando-lhe uma sensação agradável. Depois, desceu silenciosamente as escadas para esperar as notícias que, sabia, haveriam de chegar.

 

Capítulo 7

A primeira coisa que se seguiu foi o retorno de Gorlois.

Ainda agitada com a exaltação daquela visão momentânea - e, atemorizada, pois nunca pensara realmente que Viviane pudesse morrer, apesar das palavras de esperança, era-lhe impossível imaginar que a irmã sobreviveria. Igraine havia esperado que alguma outra coisa acontecesse, uma notícia mágica de Uther, ou que Gorlois estivesse morto, e ela tivesse recuperado a liberdade. A presença do marido, coberto de pó, faminto e rabugento, parecia calculada para levá-la a pensar que sua visão fora uma alucinação provocada, ou um engano do Maligno.

"Bem, se assim for, nenhuma importância terá esse engano, pois significa também que minha irmã está viva, e que a visão foi uma fantasia provocada pelos meus próprios receios." Por isso, recebeu o duque calmamente, com comida, banho, roupas limpas e secas, dirigindo-lhe apenas palavras agradáveis. Não se importava que ele pensasse que estava arrependida de sua dureza e tentando reconquistar seus favores. Já não lhe interessava o que Gorlois imaginasse ou fizesse. Já não o odiava, nem se ressentia pelos primeiros anos de sofrimento e desespero que a haviam preparado para o que aconteceria depois. Serviu-lhe comida e bebida, verificou o alojamento dos soldados e não lhe fez perguntas.

Morgana veio, por um momento, lavada, penteada e bonita, saudar o pai, e logo depois Isotta a levou para a cama.

Gorlois suspirou, afastando o prato.

- Ela está crescendo, e ficando bonita, mas assemelha-se a uma fadinha, uma personagem da terra dos gnomos. De onde lhe teria vindo esse sangue? Não existe, entre a minha gente.

- Minha mãe pertencia ao povo antigo - disse Igraine -, e Viviane também. Creio que o pai dela deve ter sido daquela terra.

Gorlois estremeceu e disse:

- E você nem mesmo sabe quem é o pai de sua irmã... Uma coisa acertada que os romanos fizeram foi acabar com essa gente. Não tenho medo de um homem armado, a quem posso matar, mas temo esse povo subterrâneo do mundo das fadas, com seus círculos encantados e sua comida que faz uma pessoa passar cem anos encantada, com seus relâmpagos desfechados por duendes que surgem da escuridão e derrubam um homem, mandando-o aos infernos... O Diabo os inventou para a morte dos cristãos, e creio que Deus faz bem em matá-los!

Igraine pensou nas ervas e nas plantas medicinais que as mulheres das terras encantadas davam até mesmo aos invasores, para que se curassem; nas flechas envenenadas que podiam derrubar até caça que não se conseguia abater com armas comuns; em sua mãe, nascida entre esse povo, e no pai desconhecido de Viviane. E Gorlois, como os romanos, queria o fim desse povo simples, em nome do seu Deus?

- Bem - respondeu -, deve ser a vontade de Deus, creio.

- Morgana talvez deva ser criada num convento de mulheres santas, para que o grande mal herdado do sangue materno não venha a manchá-la nunca - disse Gorlois. - Quando ela tiver idade, pensaremos nisso. Um homem santo me disse, certa vez, que as mulheres herdam o sangue das mães, e que é assim desde os dias de Eva, que é isso o que está no corpo delas, cheio de pecado, e não pode ser superado por uma menina. Mas os filhos herdam o sangue do pai, como Cristo foi feito à imagem de Deus, seu pai. Portanto, se tivermos um filho, Igraine, não precisaremos ter medo de que ele traga em si o sangue do antigo povo maligno dos montes.

Uma onda de raiva dominou Igraine, que, apesar disso, se manteve firme no propósito de não contrariá-lo.

- Também isso deve ser como quer o seu Deus. - Ela sabia, embora Gorlois tivesse esquecido, que o marido jamais voltaria a tocá-la da maneira como um homem busca uma mulher. Não importava agora o que ele dissesse ou fizesse. - Diga-me o que o trouxe de volta para casa tão inesperadamente, senhor meu marido.

- Uther, é claro. Houve uma grande coroação real na ilha do Dragão, próxima de Glastonbury dos padres - e não sei por que estes permitem a sua existência, pois é um lugar pagão, onde homenagearam o Galhudo das florestas, invocaram serpentes e outras tolices que não deviam ser praticadas numa terra cristã. O rei Leodegranz, do País do Verão, é da minha opinião, e recusou-se a compactuar com Uther. Leodegranz gosta tanto de Uther quanto eu, mas não o combaterá, agora; não deve haver guerra entre nós, quando os saxões estão se reunindo no leste. Se os escotos vierem este verão, seremos colhidos entre o martelo e a bigorna. E agora Uther fez-me um ultimato: devo colocar meus homens sob seu comando, ou ele virá e me obrigará a tal. Por isso, aqui estou. Podemos defender Tintagel para sempre, se necessário. Mas adverti Uther de que, se colocar o pé na Cornualha, lutarei contra ele. Leodegranz fez uma trégua com Uther até que os saxões sejam expulsos do país, mas eu não farei.

- Em nome de Deus, isso é loucura, e Leodegranz está certo. Os saxões não poderão resistir, se todos os homens da Bretanha se unirem. Se vocês brigarem entre si, os saxões poderão atacá-los, um reino de cada vez, e, dentro em pouco, a Bretanha servirá aos Deuses do Cavalo!

- As mulheres não entendem nada de honra, Igraine - finalizou Gorlois, empurrando os pratos para o lado. - Vamos para a cama.

Igraine havia pensado que não se importaria com o que Gorlois lhe fizesse, pois já não a atingiria mais; não estava, porém, preparada para a luta desesperada de seu orgulho. Finalmente, ele voltou a espancá-la, gritando:

- Bruxa maldita, você enfeitiçou minha virilidade!

Quando, exausto, ele mergulhou no sono, Igraine ficou acordada ao seu lado, enquanto as lágrimas desciam silenciosamente pelo rosto machucado e latejante. Então era essa a recompensa pela sua docilidade, a mesma que fora dada às suas palavras duras? Agora, realmente, ela tinha razão para odiá-lo, e estava aliviada por não sentir culpa. Foi tomada por um súbito e violento desejo de que Uther o matasse.

Gorlois partiu na manhã seguinte, ao alvorecer, levando todos os homens, exceto uns poucos que ficaram para proteger Tintagel. Pelas conversas que ouviu no salão antes da partida, Igraine ficou sabendo que esperavam emboscar o exército invasor de Uther, quando ele descesse das charnecas para o vale. E tudo isso pelo que ele chamava de honra: estava disposto a privar a Bretanha do seu Grande Rei, deixar a terra nua como uma mulher para ser violentada pelas hordas saxônicas - tudo isso porque não era bastante homem para sua esposa e temia que Uther o fosse.

Depois que ele partiu, os dias arrastaram-se, chuvosos e silenciosos. Vieram, então, as primeiras geadas, a neve varreu a charneca, e até esta deixou de ser visível, a não ser nos dias muito claros. Igraine ansiava por notícias; sentia-se como um texugo preso em sua toca de inverno.

O inverno. Uther dissera-lhe que viria buscá-la em meados do inverno - mas agora ela começava a pensar que tudo não passava de um sonho. Os dias de outono arrastavam-se, sombrios e frios, e ela começou a duvidar de sua visão, sabendo que qualquer tentativa de repeti-la, de tranquilizar-se, seria inútil. Aprendera, ainda criança, que depender das artes mágicas era um erro. Podia-se buscar um vislumbre da luz, quando em meio às trevas, e era o que tinha feito; a magia, porém, não podia ser usada como um amparo para a criança que aprende a andar, pois isso a tornaria incapaz de um único passo sem orientação espiritual.

"Eu nunca fui capaz de confiar totalmente em mim mesma", pensou amargamente. Em criança, buscara orientação em Viviane; e logo que se fizera mulher casaram-na com Gorlois, e ele achava que ela devia recorrer a ele para tudo e, em sua ausência, ao padre Columba, para uma ajuda constante.

Agora, sabendo que era o momento de pensar sozinha, voltou-se para si mesma. Completou o aprendizado de Morgana na fiação, e começou a ensinar Morgause a tecer em cores; armazenou alimentos para o inverno, que ameaçava ser mais frio e prolongado do que habitualmente; e ouvia com grande interesse os fragmentos de notícias que os pastores traziam quando voltavam do mercado, ou qualquer viajante - estes, porém, eram poucos, pois o inverno envolvia Tintagel.

Já havia passado o Samhain, Dia de Todos os Santos, quando uma mulher mascate apareceu no castelo, envolta em trapos e xales rasgados, cansada e com os pés machucados enrolados em molambos. A mulher não estava muito limpa, mas Igraine fez com que entrasse e deu-lhe um lugar junto à lareira e um prato de ensopado de carne de carneiro, com pão seco, que teria sido a sua refeição. Quando notou que a pobre mancava devido a um ferimento de pedra, pediu à cozinheira que esquentasse água e, com um pedaço de pano limpo, enrolou a ferida. Comprou duas agulhas da mulher - eram malfeitas, e Igraine dispunha de melhores, mas serviriam para ensinar os primeiros pontos a Morgana - e depois, sentindo que já tinha direito a isso, perguntou-lhe se tinha notícias do norte.

- Soldados, minha senhora - respondeu ela, suspirando. - E saxões, reunindo-se também nas estradas do norte, e uma batalha... E Uther com seu estandarte do dragão, saxões do norte contra ele e, ao que dizem, o duque da Cornualha também, ao sul... Batalhas por toda parte, até mesmo na Ilha Sagrada.

- Você vem da Ilha Sagrada?

- Sim, minha senhora. Lá, fui surpreendida pela noite nos lagos, e perdi-me na névoa. Os padres deram-me pão, convidaram-me para a missa e para confessar-me, mas que pecados tem uma velha como eu? Meus pecados já acabaram todos, foram esquecidos e perdoados e não são mais nem mesmo motivo de arrependimento - disse, com um riso fino. Igraine teve a impressão de que o juízo da velha não era muito perfeito, e o pouco que lhe restava fora desgastado pelas durezas da vida e pela solidão das longas caminhadas. - E na verdade não há muita oportunidade para que os velhos e pobres pequem, a não ser ao duvidar da bondade divina, e se Deus não puder compreender por que duvidamos, então ele não é tão sábio quanto seus padres dizem, eh, eh, eh... Mas eu não tinha vontade de ouvir a missa, e estava mais frio dentro da igreja deles do que fora, e por isso saí andando pela névoa e cerração, e então vi um barco, e sem saber como, cheguei à Ilha Sagrada, e ali as mulheres da Senhora deram-me comida, e fogo, como a senhora... eh, eh, eh.

- Você viu a Senhora? - perguntou Igraine, inclinando-se para a frente, e olhando firmemente para o rosto da velha. - Dê-me notícias dela, é minha irmã.

- Ah, ela me contou que a irmã era mulher do duque da Cornualha, se é que o duque ainda está vivo, o que ela não sabia, eh, eh, eh... Ah, sim, ela mandou-lhe um recado e foi por isso que vim para cá através das charnecas e rochas onde meus pobres pés foram machucados por todas essas pedras, eh, eh, eh... e agora, o que foi que ela me disse, pobre de mim, não consigo me lembrar; creio que perdi a mensagem no meio da névoa que cercava a Ilha Sagrada. Os padres, a senhora sabe, disseram que não existia nenhuma ilha sagrada, nem agora nem nunca, que Deus havia afundado a ilha no mar, e que se eu achava que havia estado ali, era porque se tratava de bruxaria e de alucinações do Diabo...

A mulher fez uma pausa, curvada e resmungando.

Igraine esperou, e finalmente pediu:

- Fale-me da Senhora de Avalon. Você a viu?

- Ah, sim, vi. Ela não é como a senhora, parece mais uma fada, pequena e morena... - Os olhos da mulher brilharam e em seguida tornaram-se claros. - Agora me lembro da mensagem. Suas palavras foram: "Diga à minha irmã Igraine que deve lembrar-se de seus sonhos e não perder as esperanças", e eu ri com isso, eh, eh, eh... De que servem os sonhos, exceto para as senhoras de grandes casas, como esta? Não servem muito para aqueles que, como nós, andamos pelas estradas na cerração... Ah, sim, e disse mais: que teve um belo menino na época da colheita, que está bem, muito melhor do que se podia esperar, e que o filho recebeu o nome de Galahad.

Igraine deu um grande suspiro de alívio. Então Viviane, contrariando realmente todas as expectativas, sobrevivera ao parto.

A mascate continuou:

- Ela explicou também que ele era o filho de um rei, e que o filho de um rei devia servir a outro... Isso tem algum sentido para a senhora? A mim, parecem-me mais sonhos e coisas obscuras, eh, eh, eh... - E a mulher caiu na risada, encolhida nos seus trapos, estendendo as mãos para o calor do fogo.

Sim, Igraine conhecia o significado da mensagem. O filho de um rei devia servir a outro. Então Viviane tivera realmente um filho com o rei Ban da Bretanha Menor, depois do ritual do Grande Casamento. E se, na profecia feita por ela e por Merlim, Igraine tivesse um filho de Uther, Grande Rei da Bretanha, então um deles deveria servir ao outro. Por um momento, sentiu-se tremer como se fosse dar a mesma risada histérica da velha demente. A noiva ainda não foi levada para a cama, e aqui estamos, organizando a vida dos filhos!

Em seu estado de excitação, Igraine viu esses meninos, o nascido e o que estava para nascer, à sua volta, como sombras. Seria o filho de Viviane, Galahad, o gêmeo rival, a desgraça do filho que ainda teria com Uther? Igraine teve a impressão de que podia vê-los à luz vacilante do fogo: um menino moreno, esbelto, com os olhos de Viviane; um adolescente de cabelo fulgurante, como um homem do norte, e em seguida, sempre brilhando à luz do fogo, vislumbrou as Sagradas Insígnias dos druidas, guardadas em Avalon, desde que os romanos haviam incendiado os bosques sagrados - o prato, a copa, a espada e a lança, brilhando e lampejando aos quatro elementos: o prato de terra, a copa de água, a espada de fogo e a lança de ar... Pensou, sonolenta, espreguiçando-se, enquanto o fogo brilhava e tremia, que havia uma insígnia para cada um deles. Era uma sorte.

Teve um estremecimento violento e levantou-se. O fogo apagara-se, transformando-se em carvões; a velha mascate, com os pés enrolados nos xales e trapos, dormia o mais próximo possível das brasas. A sala estava quase vazia. Uma criada cochilava num banco, bem enrolada em sua manta; a outra fora para a cama. Teria dormido ali metade da noite e sonhado tudo aquilo? Despertou a criada, que se foi, resmungando, para o quarto. Deixando a velha mascate junto à lareira, Igraine dirigiu-se, tremendo, para seu quarto e aninhou-se ao lado de Morgana, apertando a menina nos braços, como se quisesse afastar as fantasias e o medo.

O inverno chegou logo, apressado. Não havia muita lenha para combustível, apenas uma espécie de rocha que queimava, mas fazia muita fumaça e enegrecia portas e tetos.

Às vezes, tinham de queimar algas marinhas secas, o que espalhava por todo o castelo um cheiro de peixe morto, como na maré vazante. E, por fim, os boatos começaram a falar da aproximação dos exércitos de Uther, que se preparavam para atravessar as grandes charnecas na direção de Tintagel.

Em condições normais, os homens de Uther poderiam dominar os de Gorlois. Mas, se forem emboscados? Uther não conhece a região! Ele se sentiria bastante ameaçado pelo terreno rochoso e pouco familiar, sabendo que o exército de Gorlois estaria concentrado nas proximidades de Tintagel. Uther não esperaria uma emboscada longe do castelo.

Igraine não podia senão aguardar. O destino da mulher era ficar sentada em casa, no castelo ou na cabana - havia sido assim desde a chegada dos romanos. Antes disso, as tribos celtas seguiam os conselhos de suas mulheres, e mais ao norte existia uma ilha de mulheres guerreiras que faziam armas e ensinavam os chefes a usá-las...

Igraine ficou acordada noite após noite, pensando no marido e no amante, se é que podia chamá-lo assim, mesmo sem ter trocado com ele um único beijo. Uther jurara chegar no meio do inverno, mas como poderia atravessar as charnecas e evitar as armadilhas que Gorlois lhe preparava?

Se, pelo menos, fosse uma feiticeira ou sacerdotisa completa, como Viviane... Ouvira, quando criança, muitas histórias do mal que há em se usar a magia para impor a nossa vontade aos Deuses. Seria bom, então, deixar Uther ser enganado e seus homens, assassinados? Convenceu-se de que Uther devia ter espiões e batedores, e não precisaria da ajuda de uma mulher. Desconsolada, acreditava que devia fazer alguma coisa e não apenas ficar sentada, esperando.

Poucos dias antes da véspera do solstício do inverno, houve uma tempestade que durou dois dias, tão violenta que Igraine estava certa de que, para o norte, nas charnecas, nada que não estivesse bem enterrado como um coelho na toca poderia ter sobrevivido. Mesmo a salvo dentro do castelo, as pessoas aninhavam-se junto às poucas lareiras acesas e ouviam, a tremer, o vento uivando. Durante o dia, ficou tão escuro, com a neve e o granizo, que não era possível nem mesmo fiar. O estoque de velas era muito limitado, ela não ousava consumir mais, pois ainda havia uma longa parte do inverno a enfrentar, por isso ficavam a maior parte do tempo sentados no escuro, e Igraine procurava recordar-se de velhas histórias de Avalon, para divertir Morgana e evitar que Morgause se irritasse com o tédio.

Quando, finalmente, a menina e a moça adormeciam, Igraine ficava sentada, envolta em seu manto, diante das pequenas chamas, demasiado tensa para dormir, sabendo que, se fosse deitar-se, ficaria acordada, procurando penetrar a escuridão com os olhos cansados, tentando transmitir seu pensamento por sobre as léguas que a separavam... de quê? De Gorlois, para saber aonde o levaria a sua traição? Pois se tratava de traição: ele jurara fidelidade a Uther como seu Grande Rei, e, em seguida, devido ao ciúme e à desconfiança, faltara ao juramento.

Ou de Uther, tentando acampar naquelas charnecas desconhecidas, batido pela tempestade, perdido, cego?

Como poderia chegar até ele? Procurava reavivar as lembranças dos seus poucos conhecimentos de magia, aprendidos quando criança, em Avalon. Corpo e alma, haviam-lhe ensinado, não estavam inseparavelmente unidos; ao dormir, a alma deixava o corpo e ia para o país dos sonhos, onde tudo era ilusão e loucura, e, por vezes, para os que tinham a formação dos druidas, para a Terra da Verdade, aonde Merlim a levara naquele outro sonho.

... Certa vez, durante o parto de Morgana, quando as dores pareciam eternizar-se, ela havia deixado por momentos o próprio corpo, vendo-se deitada lá embaixo, uma pobre coisa manipulada pelas parteiras e confortada pelas suas amas, enquanto a alma flutuava, livre da dor, acima de todos; alguém se inclinara sobre ela, insistindo em que devia esforçar-se ainda mais, pois podiam ver o alto da cabeça da criança, e ela voltara para a renovada dor e o esforço tremendo, e havia esquecido. Mas se lhe fora possível fazer isso, naquela ocasião, então poderia fazê-lo também agora. Tremendo dentro do manto, Igraine olhava para o fogo e desejava estar em algum outro lugar...

Conseguiu-o. Parecia estar de pé à frente de seu próprio corpo, com perfeita consciência disso. A principal modificação era a de não ouvir mais o uivo selvagem da tempestade fora das muralhas do castelo. Não olhou para trás - tinham-lhe dito que quando se deixa o corpo nunca se deve olhar para trás, pois ele atrai de volta a alma - e, mesmo sem olhos, ela podia ver tudo à sua volta, e sabia que o corpo estava sentado imóvel ante o fogo agonizante. Agora que o havia conseguido, sentiu medo, pensando "Eu devia ter cuidado do fogo antes" - mas sabia que, se voltasse, jamais teria a coragem de tentar novamente.

Pensou em Morgana, o laço vivo entre ela e Gorlois, embora o marido agora a rejeitasse, referindo-se com indiferença à criança; o laço existia, e ela podia encontrar Gorlois, se o buscasse. Mas no mesmo instante em que teve esse pensamento, viu-se... em outro lugar.

...Onde estava? Havia o clarão incerto de uma pequena lanterna, à luz da qual viu Gorlois, cercado de várias cabeças: homens reunidos numa das pequenas casas de pedras das charnecas.

Gorlois dizia:

- Combati durante muitos anos ao lado de Uther, sob Ambrósio, e se bem o conheço, ele contará com a coragem e a surpresa. Sua gente não conhece o clima da Cornualha, e não sabe que, quando anoitece com tempestade forte, esta amainará pela meia-noite; portanto, eles não se moverão enquanto o dia não clarear, mas tão logo isso aconteça ele entrará em ação, esperando cair sobre nós ainda cedo. Se, no entanto, pudermos cercar seu campo nas horas entre o momento em que a tempestade passar e o sol nascer, então, quando levantarem acampamento, poderemos surpreendê-los. Estarão preparados para uma marcha e não para uma batalha. Com um pouco de sorte, poderemos dominá-los antes que tirem as espadas das bainhas! Uma vez destruído seu exército, se Uther não for morto, pelo menos nos voltará as costas e deixará a Cornualha para nunca mais voltar. - À luz precária da lâmpada, Igraine viu Gorlois mostrar os dentes, como um animal. - E se ele morrer, seus exércitos debandarão como uma colméia, quando alguém mata a rainha!

Igraine sentiu-se recuar: mesmo sem corpo, apenas um espírito, parecia-lhe que o duque adivinhava sua presença. E, na verdade, ele levantou a cabeça e franziu a testa, passando a mão no rosto.

- Sinto um vento gelado; está frio aqui - murmurou.

- E tinha mesmo que estar, com a neve caindo desse jeito - disse um de seus homens, mas antes mesmo que ele terminasse a frase, Igraine já estava longe, pairando num limbo incorpóreo, resistindo à forte atração de voltar a Tintagel. Ansiava pela sensação da carne, do fogo, e não pelas andanças entre mundos, como o espectro esvoaçante de um morto...

Como chegar até Uther, para alertá-lo? Não havia qualquer laço entre eles; nunca haviam trocado sequer um beijo de paixão, que teria ligado seus corpos de carne, e, com isso, atado o espírito imaterial que ela era agora. Gorlois a acusara de adultério; desesperada, Igraine desejou então que assim tivesse sido. Estava cega no escuro, etérea, pairando no ar. Sabia que um pensamento, por menor que fosse, a levaria de volta a seu quarto em Tintagel, onde seu corpo, dolorido e enregelado, estava enroscado frente ao fogo morto. Lutou para continuar naquela negra e mortal escuridão, esforçando-se, rezando sem palavras, "Fazei com que eu encontre Uther", embora sabendo que as curiosas leis do mundo em que estava agora tornavam isso impossível. Nesse corpo, ela não tinha nenhum laço com Uther.

"Mas meu laço com Uther é mais forte do que o da carne, pois durou mais de uma vida", argumentou ela com alguma coisa impalpável, como se apelasse para um julgamento superior àquilo que determinava as leis dessa vida. A escuridão parecia fechar-se agora sobre ela, sentia que não podia respirar, que, em algum lugar lá embaixo, o corpo que havia deixado estava gelado, com a respiração falhando. Alguma coisa nela gritava "Volte, volte, Uther é um homem feito, não precisa que você se preocupe com ele", e ela mesma respondia, lutando para ficar onde estava: "Ele é apenas um homem, não está a salvo das traições!"

Agora, na escuridão que a cercava havia uma outra ainda mais profunda, e Igraine sabia que não olhava para seu próprio eu invisível, mas sim para um Outro. Gelada, tremendo torturada, ela não ouvia com os ouvidos do corpo, mas sentia, em cada nervo de todo o seu ser, a ordem: "Volte. Você deve voltar. Você não tem o direito de estar aqui. As leis estão feitas e são fixas: você não pode ficar aqui sem sofrer um castigo".

Ouviu-se dizer para aquela escuridão estranha: "Se for necessário, pagarei o custo exigido".

- Por que procura ir aonde é proibido ir?

- Tenho de avisá-lo - gritou desesperada, e de repente, como a mariposa que estende as asas sobre o casulo, alguma coisa em Igraine, que era maior do que ela mesma, abriu-se e estendeu as asas, e a escuridão à sua volta desapareceu, a forma atemorizante que lhe fazia advertência passou a ser apenas uma forma velada, uma mulher igual a ela mesma, uma sacerdotisa, certamente não uma deusa, nem a velha imagem da morte. Igraine disse com firmeza:

- Estamos ligados e jurados, vida com vida e além da vida; você não tem o direito de proibir.

De repente, Igraine viu que, à volta de seus braços, estavam as serpentes de ouro que usara em seu estranho sonho das pedras circulares. Levantou-os e gritou uma palavra numa língua estranha. Jamais conseguiu lembrar, depois de tudo passado, mais do que uma meia sílaba, que começava com "Aahh..." e que tinha poderes mágicos; nem soube como tal palavra lhe ocorreu naquela situação extrema, a ela, que não era sequer uma sacerdotisa nesta vida. A forma proibidora à sua frente desapareceu, e Igraine viu a luz, a luz como o sol nascente...

Não, era a mais débil das luzes de lanternas, uma vela grosseiramente protegida com um pedaço de chifre, dentro de uma caixa de madeira, apenas um bruxuleio nas sombras geladas de uma pequena cabana de pedras, semiderrubada e apressadamente reparada com feixes de juncos. Graças, porém, a uma curiosa luz inexistente - ou poderia ela, espírito incorpóreo, enxergar sem olhos? -, pôde perceber algumas faces no escuro, faces que já vira em volta de Uther, em Londinium: reis, chefes e soldados. Esgotados e enregelados, eles se acocoravam em volta da pequena luz, como se seu débil fogo pudesse aquecê-los, de alguma forma. E Uther estava entre eles, magro e exausto, com as mãos sangrando de frieiras, o manto de lã cuidadosamente fechado sobre a cabeça e em volta do queixo. Não era o orgulhoso e majestoso sacerdote-amante da primeira visão, nem mesmo o homem desajeitado e rústico que entrara na igreja perturbando a todos. Mas esse homem de ar cansado e desalentado, cabelos úmidos caídos em volta do nariz, avermelhado pelo frio, parecia a Igraine mais real, mais belo do que antes. Com o coração doendo de pena, ansiando por tomá-lo nos braços e aquecê-lo, sentiu como se tivesse gritado Uther!

Soube que ele ouviu, pois levantou a cabeça e olhou à volta, estremecendo como se o abrigo gelado tivesse sido varrido por um vento ainda mais frio; e então ela percebeu, através dos mantos e do capuz que envolviam o corpo, as serpentes enroladas em seus braços. Não eram reais; mexiam-se como serpentes vivas, pois nenhuma cobra deixaria sua toca naquele tempo. Mas ela as percebeu, e, de alguma forma, Uther a viu e abriu a boca para falar. Com um gesto imperativo, porém, fez com que ele se calasse.

- Você tem de levantar acampamento e preparar-se para marchar, ou estará condenado. - A mensagem não se formou em palavras na sua mente, mas sabia que se transferia diretamente para ele. - A neve cessará pouco depois da meianoite. Gorlois e seus soldados sabem que você está preso aqui e cairão sobre o acampamento sem piedade! Você deve estar preparado para enfrentar o ataque.

As palavras silenciosas chegaram a ele, com o últirno impulso de força que ainda existia em Igraine. No mesmo momento em que as palavras se formavam, ela sabia que a força de vontade que a levara até ali, através de abismos, contra as leis deste mundo, desaparecia. Não estava habituada a tal coisa, e lutava, sem querer partir antes de fazer sua advertência. Acreditariam nela, estariam prontos para enfrentar Gorlois? Ou permaneceriam ali, imóveis no escuro, depois da tempestade, onde Gorlois os encontraria como a raposa encontra as galinhas amontoadas no poleiro? Não podia fazer mais nada. Um frio mortal, o desmaio provocado pela exaustão total penetraram nela; sentiu que perdia a consciência e mergulhava num frio gelado e na escuridão, como se a tempestade tivesse envolvido ferozmente todo o seu corpo.

... Estava deitada no chão de pedra, diante das cinzas frias do fogo. Um vento gélido soprava, como se a tempestade que a seguira por toda a visão também tivesse desabado dentro de seu corpo... Não, não era isso. As venezianas de madeira do quarto tinham sido abertas pela força do vento: batiam de um lado a outro, e rajadas de chuva gelada sopravam para dentro do aposento. Estava gelada, tão fria que tinha a impressão de que jamais poderia voltar a movimentar-se, de que ficaria ali deitada e congelaria, e que o frio de seu corpo se transformaria aos poucos no sono da morte. Naquele momento, não se importava.

"Deve haver uma punição por violar um tabu; essa é a lei. Fiz o que era proibido, e não posso sair incólume dessa aventura. Se Uther for salvo, aceito isso, mesmo que meu castigo seja a morte..." e na verdade Igraine, aconchegando-se e tentando cobrir-se com o calor insuficiente de seu manto, considerou que a morte seria uma bênção. Pelo menos, não sentiria o frio...

Mas Morgana dormia na cama junto da janela, e se esta não fosse fechada, ela poderia resfriar-se e talvez mesmo ser atacada pela febre dos pulmões... Igraine não teria se mexido, se não houvesse uma razão mais forte do que ela mesma. Mas pela filha e pela irmã inocentes, forçou um movimento doloroso; e procurou mexer os pés e mãos adormecidos. Incerta, movendo-se como se estivesse embriagada, dirigiu-se aos tropeções até a janela e, com mãos inábeis e congeladas pelo frio, procurou fechá-la. O vento arrancou-a duas vezes de seus dedos, e ouviu-se soluçar, enquanto lutava com ela. Não conseguia ter tato, mas sabia que perdera uma unha nessa luta com a veneziana, que parecia uma coisa viva. Finalmente, conseguindo segurar o trinco com as mãos, fechou a janela, usando toda a força, apertando um dedo nesse movimento.

Continuava frio no quarto, um frio de gelo, e ela sabia que, sem o fogo, Morgana e Morgause ficariam doentes...

O que mais desejava no momento era meter-se na cama, entre elas, ainda enrolada na manta, e aquecer-se entre seus corpos jovens e quentes, mas transcorreriam horas ainda até o amanhecer, e fora ela quem deixara o fogo apagar-se. Tremendo e embrulhando-se bem no manto, apanhou um braseiro que estava na lareira e arrastou-se escadas abaixo, sentindo os pés gelados magoarem-se ao tropeçar na pedra.

Na cozinha, três servas enrolavam-se como cães diante do fogo brando; estava quente, ali, e um caldeirão fumegava pendurado em um fio longo sobre o fogão - a sopa de aveia para a refeição da manhã, sem dúvida. Bem, era a sua cozinha e a sua sopa - mergulhou uma concha no caldeirão e bebeu o caldo quente e ainda sem sal, mas nem isso a aqueceu. Encheu o braseiro com brasas vivas, cobriu-o, e, segurando-o com uma dobra da saia, subiu novamente as escadas. Estava fraca e trêmula e, apesar da sopa quente, tremia tanto que teve medo de cair. "Não posso cair, pois se cair não me levantarei novamente, e o braseiro ateará fogo em alguma coisa..."

Ajoelhou-se frente à lareira fria em seu quarto, com o corpo sacudido por grandes espasmos e uma dor violenta no peito; mas agora não tinha frio, sentia o calor por todo o corpo. Alimentou as brasas, pacientemente, com pedacinhos de madeira, e depois com pequenos ramos. Por fim, a lenha pegou fogo e a chama subiu em direção ao teto. Igraine sentia agora tanto calor que tirou o manto, arrastando-se para a cama; pegou Morgana e deitou-se com a criança nos braços, mas não tinha consciência se dormia ou se morria.

 

Não, não estava morta. A morte não provocaria essa dolorosa e súbita alternância de frio e calor... Sabia que estava deitada havia muito tempo, envolta em panos fumegantes que esfriavam e eram renovados; sabia que a forçavam a tomar coisas quentes, quase sempre feitas com ervas nauseantes, contra a febre, e por vezes bebidas fortes misturadas com água quente. Dias, semanas, anos, séculos passaram sobre ela, enquanto estava deitada e consumia-se de calor ou tiritava de frio, sendo obrigada a engolir as coisas horríveis que lhe derramavam pela garganta, quando estava fraca demais para sequer vomitar. Certo dia, Morgause apareceu e perguntou-lhe, irritada:

- Se você estava doente, Igraine, por que não me acordou e me mandou acender o fogo?

A forma negra que lhe barrara o caminho estava de pé num canto do quarto, e agora Igraine podia ver-lhe a face: era a morte, que guarda as portas do proibido, e que agora poderia castigá-la... Morgana veio vê-la, e seu rosto miúdo estava sombrio, atemorizado; quis tranquilizar a filha, mas estava demasiado fraca para falar em voz alta. E Uther também apareceu, mas sabia que ninguém o poderia ver, e não seria conveniente dizer o nome de nenhum outro homem que não fosse o de seu legítimo esposo... Ninguém pensaria mal dela se chamasse por Gorlois. Mas, mesmo que estivesse morrendo, não queria chamá-lo, nada mais desejava dele, na vida ou na morte.

Teria sido uma traição ao marido a sua feitiçaria proibida? Ou teria sido apenas um sonho, tão real quanto sua tentativa de avisar Uther? Teria conseguido salvá-lo? Parecia-lhe estar vagando novamente pelos espaços gelados, tentando forçar cegamente seu caminho em meio à tempestade, para dar-lhe o alerta; num certo dia, o padre Columba também apareceu e resmungou frases em latim, deixando-a desesperada. Que direito tinha de vir perturbá-la com os últimos sacramentos, quando não podia se defender? Ela se envolvera com feitiçarias; pelos padrões do padre era uma mulher má, e seria condenada por ter traído Gorlois - ele teria vindo para vingar o seu senhor. A tempestade voltara, devastando-a. Igraine vagava interminavelmente em meio a ela, tentando encontrar Morgana, que se perdera, pois apenas Morgause estava ali, usando uma coroa, a coroa dos Grandes Reis da Bretanha. Depois, Morgana estava de pé na proa da barca que atravessava o mar do Verão, rumo a Avalon, usando as roupas de sacerdotisa, aquelas que Viviane vestia... e, depois, tudo era silêncio e escuridão.

De súbito, o quarto iluminou-se com a luz do sol, Igraine mexeu-se e sentiu que não podia sentar-se na cama.

- Fique deitada, senhora - recomendou Isotta. - Vou trazer-lhe seu remédio.

Igraine sorriu, e foi com surpresa que ouviu seu próprio murmúrio:

- Se eu resisti às suas beberagens, então provavelmente resistirei a esta também. Em que dia estamos?

- Dentro de dez dias apenas será o solstício de inverno, senhora. Quanto ao que aconteceu, sabemos que a lareira em seu quarto deve ter-se apagado durante a noite, e a janela foi aberta pelo vento. A senhora Morgause disse que acordou e a viu fechando as venezianas, que saiu depois e voltou com um braseiro. Mas a senhora não falou, acendeu o fogo, e por isso ela só ficou sabendo que estava doente pela manhã, quando notou que estava queimando de febre, não a reconhecendo nem à menina.

Essa era a explicação simples. Só Igraine sabia que sua enfermidade era mais que isso, era um castigo por tentar feitiçarias muito superiores às suas forças, a tal ponto que corpo e espírito se esgotaram de maneira quase fatal.

- E o... - começou Igraine a perguntar, mas não podia falar em Uther. - E há notícias do duque, meu senhor?

- Nenhuma. Sabemos que houve uma batalha, mas não chegarão notícias enquanto as estradas não forem desobstruídas, depois da grande tempestade - contou a criada. - Mas a senhora não pode falar mais; deve tomar seu caldo quente, ficar deitada e dormir.

Pacientemente, Igraine tomou o caldo quente que lhe trouxeram e dormiu. As notícias chegariam, quando fosse o momento.

 

Capítulo 8

A véspera do solstício de inverno o tempo voltou a mudar e a melhorar. A neve derreteu-se durante todo o dia e ficou pingando, as estradas transformaram-se em lamaçais, e a cerração depositou-se mansamente no mar e no pátio do castelo, de modo que as vozes e os sussurros pareciam ecoar interminavelmente, quando alguém falava. Durante algum tempo, no princípio da tarde, o sol aparecia, e Igraine saiu ao pátio pela primeira vez, desde que adoecera. Sentia-se recuperada, agora, mas estava ansiosa, como todos, pelas notícias.

Uther havia jurado que chegaria na noite do Dia de Todos os Santos. Como seria isso possível, com o exército de Gorlois a barrar-lhe o caminho? Passou o dia calada e distraída, e foi até mesmo rude com Morgana, que corria como um animalzinho selvagem, alegre com a liberdade, depois do frio e da prisão imposta pelo inverno.

"Não devo ser áspera com minha filha porque meu pensamento está voltado para meu amante!", pensou Igraine, e irritada consigo mesma, chamou Morgana e deu-lhe um beijo. Sentiu, porém, um calafrio ao pousar os lábios no rosto macio; sua feitiçaria proibida, alertando Uther sobre a emboscada de Gorlois, poderia ter condenado à morte o pai daquela criança...

Mas não. Gorlois traíra o Grande Rei; nada que Igraine fizesse, ou deixasse de fazer, teria importância: Gorlois era um homem marcado para morrer, e devido à sua traição merecia isso. A menos que agravasse a traição, matando o homem encarregado por Ambrósio, o rei a quem Gorlois jurara fidelidade, da defesa de toda a Bretanha.

O padre Columba procurou-a, insistindo em que ela proibisse os criados de fazerem as fogueiras de solstício de inverno.

- E a senhora deveria dar o bom exemplo, indo à missa hoje à noite - sugeriu ele. - Faz muito tempo, minha senhora, que recebeu os sacramentos.

- Estive doente - respondeu ela com indiferença -, e quanto aos sacramentos, creio lembrar-me de que o senhor me deu a extrema-unção, quando eu estava doente. Talvez isso tenha sido um sonho, pois sonhei muitas coisas.

- Muitas, realmente - disse o padre. - Coisas que nenhuma mulher cristã deveria sonhar. Foi em respeito ao seu senhor que lhe ministrei a extrema-unção, mesmo sem ter se confessado para recebê-la de maneira condigna.

- Sim, eu sei que não foi por mim que o fez - murmurou Igraine, com uma leve contração dos lábios.

- Não tenho a pretensão de fixar limites à misericórdia divina - continuou o padre, e Igraine entendeu a parte não formulada da frase: ele preferia errar, se necessário, por excesso de misericórdia, porque Gorlois se preocupava com essa mulher, e deixar a Deus a tarefa de castigá-la, como sem dúvida seria feito...

Por fim, Igraine concordou em ir à missa. Por menos que gostasse da nova religião, Ambrósio era cristão, o cristianismo era a religião das pessoas civilizadas da Bretanha, e inevitavelmente o seria cada vez mais. Uther o adotaria publicamente, quaisquer que fossem as suas opiniões pessoais. Na realidade, ela não as conhecia - não tivera oportunidade de saber o que pensava sobre as questões de consciência. E chegaria algum dia a saber? Ele jurou que viria no solstício de inverno. E Igraine baixou os olhos, procurando prestar atenção à missa.

A noite chegou, e Igraine estava na cozinha falando com as servas, quando ouviu uma agitação no extremo do promontório, o som de cavaleiros e, depois, um grito no pátio. Jogou o manto sobre os ombros e correu para fora, com Morgause atrás dela. No portão do pátio do castelo, estavam homens com mantos romanos, como Gorlois usava, mas os guardas barravam-lhes o caminho com suas longas lanças.

- Meu senhor, o duque de Gorlois, deixou ordens: ninguém pode entrar no castelo em sua ausência.

Um dos homens, no centro do grupo de recém-chegados, ficou ereto, imensamente alto.

- Sou o Merlim da Bretanha - disse, e sua voz poderosa ressoava em meio à escuridão e à cerração. - Abram caminho, homens. Ousam negar-me passagem?

Os guardas recuaram, numa deferência instintiva, mas o padre Columba deu um passo à frente, num gesto imperativo de recusa.

- Eu lhe nego passagem. Meu senhor, o duque da Cornualha, disse especificamente que você, velho feiticeiro, não pode entrar aqui em momento algum.

Os soldados espantaram-se, e Igraine, apesar de indignada - padre estúpido e intrometido! -, admirou-lhe a coragem. Não era fácil desafiar o Merlim de toda a Bretanha.

O padre Columba segurou a grande cruz de madeira que lhe pendia da cintura.

- Em nome do Cristo, ordeno-lhe que se vá. Em nome de Deus, volte para o reino das trevas de onde veio!

A risada clara de Merlim ecoou pelas paredes.

- Bom irmão em Cristo - disse ele -, seu Deus e o meu Deus são a mesma coisa. Você realmente acha que eu desapareceria com o seu exorcismo? Ou acha que sou algum maléfico espírito das trevas? Não, a menos que você considere a caída da noite de Deus como o advento das trevas. Não venho de nenhum reino mais sombrio do que o País do Verão e, veja, estes homens comigo trazem o anel de Sua Graça, o duque da Cornualha. Veja.

A luz da tocha faiscou, quando um dos homens encapuzados estendeu a mão nua. No dedo indicador brilhava o anel de Gorlois.

- Agora deixe-nos entrar, padre, pois não somos espíritos malignos, e sim mortais cansados e com frio que percorreram um longo caminho. Ou teremos de fazer o sinal-da-cruz e uma oração para provar-lhe isso?

Igraine deu um passo à frente, umedecendo os lábios com a língua, devido ao nervosismo. O que estava acontecendo? Como poderiam ter o anel de Gorlois, a menos que fossem mensageiros dele? Certamente, algum dos homens teria se dirigido a ela. Não viu ninguém que conhecesse, nem Gorlois teria escolhido Merlim para seu mensageiro. Estaria ele morto, então, e era a notícia de sua morte que assim lhe traziam? Falou abruptamente, numa voz áspera:

- Deixe-me ver o anel. É verdadeiro, ou trata-se de uma falsificação?

- É realmente o seu anel, senhora - disse uma voz conhecida, e Igraine, inclinando-se para ver o anel à luz da tocha, viu também mãos familiares, grandes, largas e calejadas; e acima dela, aquilo que só vira na visão. Em torno dos braços peludos de Uther, tatuadas em azul, enroscavam-se duas serpentes, uma em cada pulso. Teve a sensação de que seus joelhos iam dobrar-se e que ela cairia nas pedras do pátio.

Uther jurara: Irei no solstício do inverno. E viera, usando o anel de Gorlois!

- Meu senhor e duque! - disse o padre Columba impulsivamente, dando um passo à frente, mas Merlim levantou a mão, silenciando-o.

- Silêncio! O mensageiro é secreto. Fique calado. - E o padre recuou, intrigado mas obediente, julgando que o homem envolto pela capa fosse Gorlois.

Igraine fez uma reverência, ainda lutando contra a descrença e o espanto:

- Senhor, entre.

Uther, ainda escondendo o rosto no manto, estendeu a mão que trazia o anel e agarrou seus dedos. Estavam gelados, mas a mão dele era quente e segura, e deu-lhe firmeza, enquanto entravam no saguão. Igraine procurou tranquilizar-se, falando coisas banais:

- Deseja que mande vir vinho, ou comida?

- Em nome de Deus, Igraine, dê um jeito de ficarmos a sós. O padre tem olhos vivos, mesmo no escuro, e quero realmente que se pense que é Gorlois quem está aqui - murmurou junto de seu ouvido.

- Tragam comida e cerveja para os soldados e o senhor Merlim. Tragam-lhes também água para se lavarem, e tudo de que precisarem. Falarei com meu senhor em nossos aposentos. Mandem levar vinho e comida para lá, imediatamente.

Os criados correram em todas as direções para cumprirem suas ordens. Merlim entregou o manto a um deles e colocou com cuidado sua harpa em um dos bancos. Morgause chegou até a porta, olhando ousadamente para os soldados. Seus olhos caíram sobre o vulto alto de Uther, e ela fez uma reverência.

- Meu senhor Gorlois! Bem-vindo, irmão querido! - disse aproximando-se dele. Uther fez um leve gesto, contendo-a, e Igraine colocou-se rapidamente à frente dele. Pensou, preocupada: Isso é absurdo, mesmo envolto pelo manto, Uther se parece tanto com Gorlois como eu!

- O senhor Gorlois está cansado, Morgause, e não se sente com disposíção para conversas infantis. Leve Morgana para seu quarto, e fiquem lá. Ela dormirá com você, esta noite.

Franzindo as sobrancelhas, aborrecida, Morgause apanhou Morgana e ambas subiram as escadas. Acompanhando-as a uma boa distância, Igraine tomou a mão de Uther e segurou-a, enquanto subiam. O que estaria acontecendo, qual a razão de tudo aquilo? Seu coração batia tão forte que pensou que ia desmaiar, quando entrou no quarto que ela compartilhava com Gorlois e fechou a porta.

Os braços de Uther estenderam-se para envolvê-la; retirou o capuz e ficou ali de pé, com o cabelo e a barba úmidos da cerração e os braços estendidos para ela. Igraine não se aproximou.

- Senhor, meu rei! O que é isto? Por que pensam que sois Gorlois?

- Uma pequena mágica de Merlim - disse Uther. - Sobretudo uma questão de capa e anel, mas um pouco de encantamento, também. Mas nada que não se descobrisse, se me vissem à luz do dia, ou sem manto. Sei, porém, que você não foi enganada, eu não esperava isso. É uma aparência, não uma visão. Eu jurei que viria no solstício de inverno, Igraine, e cumpri minha palavra. E não ganho nem um beijo por todo o meu esforço?

Ela aproximou-se, tirou o manto de Uther, mas não se deixou tocar.

- Senhor, meu rei, como o anel de Gorlois veio parar em vossa mão?

O rosto dele endureceu-se:

- Isto? Eu o cortei da mão dele, em combate, mas o perjuro voltou-me as costas e fugiu. Não me entenda mal, Igraine, venho porque tenho o direito, e não como um ladrão em meio à noite; essas aparências são apenas para poupar sua reputação aos olhos do mundo. Eu não gostaria que minha esposa prometida fosse chamada de adúltera. Mas venho porque tenho o direito; a vida de Gorlois me pertence. Ele tinha Tintagel como vassalo jurado de Ambrósio Aureliano; esse juramento me foi renovado, e seu marido não o cumpriu. Sem dúvida, você compreende isso, não é, Igraine? Nenhum rei pode tolerar que seus homens, que lhe juraram fidelidade, faltem a esse juramento impunemente e empunhem armas contra ele.

Ela inclinou a cabeça, reconhecendo-lhe a razão.

- Ele já me custou o trabalho de um ano contra os saxões. Quando partiu de Londinium com seus homens, não pude me opor, tive de fugir e deixar que pilhassem a cidade. Meu povo, a quem jurei defender! - Seu rosto estava duro. - Posso perdoar Lot, que se recusou a prestar juramento.

Tenho contas a acertar corn ele, na verdade, e se não fizer a paz comigo, derrubá-lo-ei do trono e o enforcarei. Mas não é perjuro nem traidor. Eu confiava em Gorlois; ele prestou juramento e foí perjuro, deixando em ruínas a obra que Ambrósio passou a vida construindo, e com tudo a refazer. Gorlois custou-me tudo isso, e venho tomar Tintagel de suas mãos. E tomarei também sua vida, ele bem sabe disso.

Tinha o rosto duro como pedra. Igraine engoliu em seco.

- E tomará também sua mulher, por conquista de direito, como toma Tintagel?

- Ah, Igraine - murmurou, puxando-a para si com ambas as mãos. - Eu sei bem a escolha que você fez naquela noite de grande tempestade. Se não me tivesse avisado, eu teria perdido meus melhores homens e, sem dúvida, também minha vida. Graças a você, quando Gorlois me atacou, eu estava preparado. Foi então que lhe tomei o anel, e ter-lhe-ia tomado a mão e a cabeça também, mas ele fugiu.

- Bem sei que não restava nada mais a fazer senão isso, senhor meu rei - disse Igraine, e naquele momento bateram à porta. Uma das criadas trazia uma bandeja com comida e um jarro de vinho, e cumprimentou-o com um "Meu senhor", fazendo uma reverência. Mecanicamente, Igraine libertou-se das mãos de Uther, tomou a comida e o vinho e fechou a porta atrás da criada. Pegou o manto de Uther, que afinal de contas não era muito diferente do usado por Gorlois, e pendurou-o na guarda da cama para secar. Depois, abaixou-se e ajudou-o a tirar as botas; pegou a cinta da espada, "Como uma senhora cumpridora de seus deveres", disse uma voz em seu íntimo, mas sabia que fizera a escolha. Era como Uther dissera: Tintagel partencia ao Grande Rei da Bretanha, e a castelã também, mas de sua livre e espontânea vontade. Dera a sua fidelidade à própria pessoa do rei.

A criada trouxera carne com lentilhas, um pedaço de pão fresco, requeijão e vinho. Uther comeu como um faminto, dizendo:

- Tenho andado em campanha nestas duas últimas luas, graças àquele traidor que você chama de marido; essa é a primeira refeição que faço sob um teto, desde o Samhain, que o padre lá embaixo me lembraria sem dúvida de chamar de Dia de Todos os Santos.

- É apenas o que estava sendo preparado para a ceia dos criados e a minha, senhor meu rei, e não está à altura...

- Parece-me bastante à altura de uma ceia de Natal, depois do que andei comendo no frio - respondeu, mastigando barulhentamente, rasgando o pão com dedos fortes e cortando um pedaço de requeijão com sua faca. - E será que não ouvirei de você outras palavras que não sejam "senhor, meu rei"? Sonhei tanto com este momento, Igraine - disse ele, pondo de lado a comida e olhando-a fixamente. Passou-lhe o braço pela cintura e puxou-a para junto de sua cadeira. - Não tem uma expressão de amor para mim? Será que ainda é fiel a Gorlois?

Igraine deixou-se estreitar junto dele e disse:

- Minha escolha já foi feita.

- Esperei tanto tempo - murmurou ele, puxando-a para baixo, de modo que Igraine quase se ajoelhou em seu colo, e acompanhando com a mão as linhas de seu rosto. - Comecei a temer que esse dia não chegaria nunca, e agora você não tem uma palavra de amor ou um olhar de bondade para mim.. Igraine, Igraine, será que sonhei, afinal de contas, que você me amava, me queria? Será que deveria ter deixado você em paz?

Ela sentia frio, tremia dos pés à cabeça.

- Não, porque se foi um sonho, também eu sonhei.

Levantou os olhos para ele, sem saber o que dizer. Não tinha medo de Uther, ao contrário do que acontecia com Gorlois, mas agora, que era chegado o momento, ficou pensando, num pânico súbito, como conseguira ir tão longe. Ele continuava a prendê-la com a curva do braço. Fez com que se sentasse em seu joelho e pousasse a cabeça em seu peito.

Uther, segurando com sua mão grande o fino pulso de Igraine, disse-lhe:

- Eu não havia percebido o quanto você é frágil. Poderia quebrá-la com minhas mãos, pois seus ossos são como os de um passarinho... - Fechou os dedos em volta dos punhos dela. - E é tão jovem...

- Não sou tão jovem assim - respondeu, rindo. - Estou casada há cinco anos e tenho uma filha.

- Parece muito jovem para tudo isso. Sua filha é a menina que eu vi lá embaixo?

- Sim, minha filha Morgana. - E, de repente, Igraine percebeu que ele também não se sentia à vontade, retardando o momento. Compreendeu que, apesar de seus trinta e tantos anos, Uther só conhecera mulheres fáceis, e que uma mulher casta e de seu nível era novidade para ele. Sorrindo-lhe ternamente, não sabia o que fazer ou o que dizer.

Acariciou as serpentes tatuadas que se enroscavam em seus pulsos:

- Eu não as tinha visto antes...

- Elas foram feitas quando fui coroado na ilha do Dragão. Gostaria que estivesse lá comigo, minha rainha - murmurou, e, tomando-lhe o rosto entre as mãos, inclinou-o para beijá-la na boca. - Não quero fazer-lhe medo, mas sonhei tanto com esse momento...

Trêmula, ela deixou-se beijar, sentindo que esse beijo despertava-lhe uma grande emoção. Nunca havia sido assim com o marido... e de repente, teve medo outra vez. Pareceu-lhe que, com Gorlois, sempre fora usada; alheia, não participava do ato, que observava com indiferença. Ela pairava acima de tudo. Agora, com o contato dos lábios de Uther, sabia que não podia manter-se distante, que nunca seria a mesma. Esse pensamento aterrorizou-a. Ao mesmo tempo, a força do desejo de Uther percorria suas veias. A mão de Igraine fechou-se em torno das duas serpentes azuis:

- Eu as vi, num sonho... pensei que fosse apenas um sonho.

Ele acenou com a cabeça.

- Sonhei com elas, antes mesmo que fossem feitas. E sempre imaginei que também você tivesse algo parecido, em volta de seus braços... - Pegou novamente o pulso fino de Igraine e o examinou. - Mas eram de ouro.

Ela teve um estremecimento. Realmente, não fora um sonho, mas uma visão da Terra da Verdade.

- Não consigo lembrar-me de todo o sonho - continuou Uther, olhando por sobre os ombros de Igraine. - Apenas que estávamos juntos numa grande planície, e que havía alguma coisa semelhante a um círculo de pedras... O que significa isso, minha querida? Que compartilhamos dos nossos sonhos?

Ela respondeu, com a voz embargada, como se fosse chorar:

- Talvez signifique apenas que estamos destinados um ao outro, meu rei, meu senhor... e meu amor.

- Minha rainha, meu amor... - Seus olhos se encontraram de repente, num demorado olhar e numa longa pergunta.

- Sem dúvida, o momento dos sonhos passou, Igraine.

Enfiou a mão pelos cabelos dela, retirou-lhe os grampos, e, deixando-os cair sobre a gola bordada e sobre o rosto, alisou seus longos anéis com mãos trêmulas. Levantou-se, sustentando-a em seus braços. Nunca itnaginara a força das mãos de Uther. Atravessando o quarto, ele deitou-a na cama. Ajoelhando-se ao seu lado, inclinou-se e beijou-a novamente.

- Minha rainha, gostaria que pudesse ter sido coroada ao meu lado, na ilha do Dragão... Foram celebrados ritos que os cristãos desconhecem, e, sem eles, os Antigos, que estavam aqui muito antes da chegada dos romanos às ilhas, não me reconheceriam como rei. Foi um longo caminho que percorri para chegar até lá, e parte dele, tenho a certeza, não foi pelo mundo que conheço.

Isso lembrou a Igraine o que Viviane lhe dissera sobre os mundos que se separavam, distanciando-se na bruma. E, ao pensar nela, recordou-se também do que a irmã lhe pedira e de como relutara em concordar.

- Eu não sabia. Eu era uma criança inexperiente e ignorava que todo o meu ser podia dissolver-se, rasgar-se, deixar-se arrastar...

- Pediram-lhe que fizesse o Grande Casamento com a terra, como antigamente? Sei que tal pedido foi feito ao rei Ban de Benwick, da Bretanha Menor... - e sentiu uma súbita pontada de violento ciúme, ao pensar que alguma sacerdotisa poderia ter simbolizado para ele a terra que jurara defender.

- Não, e não estou certo de que o teria aceitado... Merlim disse também que ele, como todo Merlim da Bretanha, é quem jura morrer, se necessário, em sacrifício pelo seu povo. - Uther interrompeu-se. - Mas isso não pode significar muita coisa para você.

- Você se esquece de que fui criada em Avalon, onde minha mãe era sacerdotisa e hoje minha irmã mais velha é a Senhora do Lago.

- Você também é sacerdotisa, Igraine?

Ela sacudiu a cabeça para dizer apenas "não", mas disse em lugar disso:

- Não nesta vida.

- Fico pensando... - E ele traçou novamente a linha das serpentes imaginárias, tocando-lhe o pulso com a outra mão. - Sempre soube que tive outras vidas, pois parece-me que a vida é algo demasiado grande para ser vivido apenas uma vez e ser logo apagado como uma lâmpada, quando o vento sopra. E por que, então, quando a vi pela primeira vez, senti que já a conhecia antes mesmo de o mundo ser feito? Essas coisas são mistérios, e creio que talvez as conheça melhor do que eu. Você disse que não é sacerdotisa, e, não obstante, usou encantamentos suficientes para me procurar, na noite da grande tempestade, e me avisar... Talvez eu não deva perguntar mais, para não ter de ouvir o que nenhum cristão deve saber. Quanto a isso - e tocou novamente as serpentes com a ponta do dedo -, se as usei antes desta vida, talvez tenha sido o motivo por que o velho, quando as tatuou em meus pulsos, na noite de minha coroação, tenha declarado que eram minhas por direito. Ouvi dizer que os padres cristãos expulsaram todas essas serpentes de nossas ilhas... Como não tenho medo dos dragões, eu os uso no meu estandarte para simbolizar que estenderei minha proteção sobre esta terra, como as asas de um dragão.

- Nesse caso - murmurou ela -, certamente sereis o maior dos reis, senhor meu.

- Não me chame assim! - interrompeu Uther, energicamente, inclinando-se sobre ela e cobrindo-lhe a boca com a sua.

- Uther - suspirou Igraine, como num sonho.

As mãos dele desceram pelo seu pescoço, ele beijou-a no ombro nu, e começou a tirar-lhe o vestido. Igraine encolheu-se e hesitou. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela não pôde falar, mas Uther, segurando-a pelos ombros, olhou-a nos olhos e perguntou suavemente:

- Terá sido você tão maltratada assim, meu amor? Deus me castigue, se tiver de temer qualquer coisa de mim, agora e sempre. Desejo, de todo o coração, que nunca tivesse sido mulher de Gorlois. Se eu a tivesse conhecido primeiro... Mas, enfim, o que está feito é imutável. Juro-lhe, minha rainha: nunca terá o que temer de mim. - À luz bruxuleante da lâmpada, seus olhos pareciam escuros, embora ela soubesse que eram azuis. - Igraine, eu tinha certeza, porque de alguma forma acreditava que você devia saber o que sinto. Conheço pouco as mulheres como você, que é o meu amor, minha esposa, minha rainha. Juro-lhe, pela minha coroa e pela minha virilidade, que será minha rainha e que jamais terei outra mulher ou a deixarei. Pensou, acaso, que eu a estivesse tratando como uma mulher fácil? - A voz de Uther tremia, e Igraine adivinhava que ele tinha medo, medo de perdê-la. Ao saber que, sentindo medo, também ele era vulnerável, seus receios desapareceram. Abraçou-o e disse claramente:

- Você é o meu amor, meu senhor e meu rei, e amá-lo-ei enquanto viver, e muito depois disso, segundo a vontade de Deus.

Desta vez, deixou que ele lhe tirasse a roupa e, nua, entregou-se docilmente aos seus braços. Nunca, nunca havia suposto que podia ser assim. Até aquele momento, apesar de cinco anos de casamento e do nascimento de uma filha, havia sido inocente, virgem, sem experiência. Agora, corpo, mente e coração fundiam-se, fazendo dela e de Uther uma só pessoa, como jamais acontecera com Gorlois. Nem mesmo uma criança no ventre materno podia estar tão próxima...

Ele deitou-se cansado sobre o ombro de Igraine, com os cabelos louros e grossos arranhando-lhe o seio, e murmurou:

- Eu a amo, Igraine. Não importa o que venha a acontecer, eu a amo. E se Gorlois vier até aqui, eu o matarei antes que ele possa tocá-la novamente.

Igraine não queria pensar em Gorlois. Acariciando-lhe os cabelos, disse baixinho:

- Durma, meu amor. Durma.

Ela, porém, não queria dormir. Mesmo depois que a respiração dele se tornou pesada e lenta, ela ficou acordada, tocando-o gentilmente, para não despertá-lo. O peito de Uther era quase tão liso quanto o seu, com uma leve penugem loura, e ela pensara que todos os homens eram pesados e cabeludos. O cheiro de seu corpo era doce, apesar do suor e das secreções do amor. Não se cansaria nunca de acariciá-lo. E, ansiando que ele acordasse e a tomasse mais uma vez nos braços, vigiava ciosamente o seu sono cansado. Agora não sentia medo nem vergonha; o que com Gorlois fora dever e submissão tornara-se, com ele, um prazer quase ínsuportável, como se tivessem sido reunidas as partes ocultas de seu corpo e sua alma.

Por fim, adormeceu um pouco, aconchegada à curva do corpo de Uther. Havia dormido talvez uma hora, quando subitamente foi acordada por uma agitação no pátio. Sentou-se, jogando para trás o longo cabelo. Uther, sonolento, puxou-a para a cama.

- Deite-se, meu amor, o amanhecer está longe ainda...

- Não - disse ela com uma intuição segura. - Não podemos ficar deitados, agora.

Enfiou apressadamente um vestido e um manto leve, atando o cabelo no alto com mãos trêmulas. A lâmpada apagara-se, e ela não conseguia, no escuro, encontrar os grampos.

Por fim, colocou um véu sobre os cabelos, enfiou os pés nos sapatos e desceu correndo as escadas. Estava ainda muito escuro para ver claramente. Na grande sala, só havia uma pequena luz do fogo permanente. E sentindo um leve movimento no ar, ficou imóvel.

Gorlois estava ali, de pé, com um grande corte de espada no rosto, olhando para ela, com um sofrimento indizível, um ar acusador e desesperado. Era a mesma visão que tivera antes, o duplo, a sombra do homem condenado a morrer. Ele levantou a mão, e Igraine notou que três dedos haviam sido cortados com o anel. Gorlois tinha o rosto muito pálido, havia sofrimento e amor em seus olhos; seus lábios mexeram-se, e ela adivinhou que estava dizendo seu nome, embora não ouvisse nada no silêncio gelado à volta deles. Naquele momento, sentiu que também o marido a havia amado, a seu modo áspero, e tudo o que fizera para feri-la fora feito por amor. Sim, por amor a ela rompera com Uther, abrindo mão da honra e de seu ducado. E ela retribuíra esse amor apenas com ódio e impaciência; só então pôde compreender que seus sentimentos por Uther eram iguais aos de Gorlois por ela. Igraine sentiu a garganta apertar-se com angústia, e quase gritou o nome dele, quando o ar agitou-se e a sombra desapareceu - nunca estivera ali, na realidade. Naquele momento, o silêncio gelado à sua volta foi quebrado pelos gritos dos homens no pátio.

- Abram caminho! - gritavam. - Abram caminho! Luzes! Luzes, aqui!

O padre Columba entrou na sala e encostou uma tocha no fogo permanente, acendendo-a. Apressou-se a abrir a porta.

- Que barulho é esse?

- O duque está morto, homens da Cornualha - gritou alguém. - Trazemos o corpo do duque! Abram caminho! Gorlois da Cornualha está morto, e trazemos seu corpo para ser enterrado!

Igraine sentiu o braço de Uther sustentá-la por trás, e sem ele teria caído. O padre Columba protestava aos gritos:

- Não! Impossível! O duque chegou ontem à noite com alguns homens, e está dormindo lá em cima, no quarto de sua senhora...

- Não.

Era a voz de Merlim, tranqüila, mas que ecoava por todo o pátio. Agarrou uma tocha apagada, acendeu-a na que o padre Columba segurava e entregou-a a um dos soldados.

- O duque perjuro nunca veio a Tintagel como um homem vivo. Vossa senhora está aqui, com vosso senhor e vosso Grande Rei, Uther Pendragon. E você, padre, vai casá-los hoje.

Houve gritos e murmúrios entre os homens, e os servos que haviam acorrido observavam espantados enquanto o caixão grosseiro, com as peles de animais costuradas para servirem de liteira, era levado para a sala. Igraine recuou ante o rosto e o corpo cobertos. O padre Columba inclinou-se sobre o caixão, descobriu rapidamente o rosto, fez o sinal-da-cruz e afastou-se novamente. Estava triste e irritado.

- É feitiçaria, é bruxaria - disse e cuspiu, mostrando a todos a cruz. - Essa ilusão maligna é obra sua, velho bruxo!

- Não fale assim com meu pai, padre! - gritou Igraine.

Merlim levantou a mão:

- Não preciso da proteção de ninguém, meu senhor. Não foi feitiçaria. Você viu o que quis ver - seu senhor voltando para casa. Só que seu senhor não era o perjuro Gorlois, que perdeu o direito a Tintagel, mas o verdadeiro Grande Rei e senhor, que veio tomar o que lhe pertence. Fique no seu sacerdócio, padre. Há necessidade de um funeral, e, depois que ele tiver sido realizado, de uma missa nupcial para seu rei e para a senhora a quem ele escolheu para rainha.

Igraine estava protegida pelo braço de Uther. Encarou o olhar de desprezo e ressentimento do padre Columba, sabendo que só o medo de Uther impedia que ele a chamasse de meretriz e bruxa. O padre afastou-se e foi ajoelhar-se junto do corpo de Gorlois, para rezar. Logo depois, Uther o imitou, o cabelo louro brilhando à luz da tocha. Igraine foi ajoelhar-se ao seu lado. Pobre Gorlois, estava morto. Tivera a morte de um traidor e fizera por merecê-la; ele a amara e estava morto.

Sentiu no ombro a mão de alguém que a impediu de ajoelhar-se. Merlim olhou-a nos olhos por um momento e disse suavemente:

- Aconteceu, Grainné. Seu destino, tal como foi previsto. Que você o enfrente com a coragem que tem.

Junto de Gorlois, ela rezou - por ele e, depois, chorando, por si mesma; pelo destino desconhecido que estava agora à sua frente. Teria sido realmente ordenado desde o início do mundo, ou provocado pela feitiçaria de Merlim, e de Avalon, e pela sua própria feitiçaria? Agora Gorlois estava morto, e, ao olhar para o rosto de Uther, já amado e caro, sabia que dentro em pouco outros chegariam, ele assumiria as tarefas do seu reino e jamais voltaria a ser totalmente dela, como havia sido nesta noite. Ajoelhada ali entre o marido morto e o homem a quem amaria durante toda a vida, resistiu à tentação de jogar com o amor que ele lhe tinha, de afastá-lo, como sabia que seria possível, das preocupações do reino e do Estado, para que só pensasse nela. Mas Merlim não os havia aproximado para lhe dar prazer. Sabia que, se tentasse agir assim, estaria se rebelando contra o próprio destino que os havia aproximado, e com isso o destruiria. Quando o padre Columba mandou os soldados levarem o corpo para a capela, Igraine tocou-lhe o braço. Ele voltou-se, impaciente:

- Senhora?

- Tenho muito a confessar, padre, antes que meu senhor duque seja enterrado... e antes que eu me case. O senhor pode ouvir-me, em confissão?

Ele a olhou, de sobrancelhas franzidas, surpreso. Por fim, disse:

- Ao amanhecer, senhora - e afastou-se.

Merlim seguiu-a com o olhar, e quando ela se aproximou novamente dele, olhou-o no rosto, e disse:

- Seja testemunha, meu pai, de que a partir deste momento nunca mais praticarei feitiçarias. Que seja feita a vontade de Deus.

Merlim voltou-se com ternura para o rosto marcado da moça. Sua voz foi mais suave do que nunca.

- Você acha que nossa feitiçaria pode fazer coisas além da vontade de Deus, minha filha?

Reunindo o pouco autocontrole que ainda lhe restava - pois, se não o fizesse, estava certa de que choraria como uma criança na frente de todos aqueles homens -, Igraine murmurou:

- Vou subir e vestir-me, meu pai, para tornar-me apresentável.

- Você deve saudar o dia da maneira que convém a uma rainha, filha.

Rainha. A palavra provocou-lhe um estremecimento. Fora para isso que havia feito tudo aquilo, fora para isso que nascera. Subiu as escadas lentamente. Tinha de acordar Morgana e comunicar-lhe que seu pai estava morto; felizmente, ela era pequena demais para lembrar-se dele e sofrer.

E enquanto chamava as criadas e ordenava que lhe trouxessem suas melhores roupas e jóias e a penteassem, colocou as mãos, pensativamente, sobre o ventre. De alguma forma, com um último toque de magia, antes que a ela renunciasse para sempre, sabia que, naquela noite, quando haviam sido apenas amantes, e não rei e rainha, concebera o filho de Uther. E ficou imaginando se Merlim saberia disso.

 

MORGANA FALA...

Creio que minhas primeiras recordações vêm do casamento de minha mãe com Uther Pendragon. Pouco me lembro de meu pai. Quando era menina e me sentia infeliz, parecia recordar-me dele, um homem corpulento com barba e cabelos escuros. Lembro-me de que eu brincava com uma corrente que ele trazia ao pescoço. Recordo-me de que, já adolescente, quando me sentia triste, ao ser censurada por minha mãe ou meus mestres, ou quando Uther - raramente - tomava conhecimento de minha existência para algum comentário negativo, costumava consolar-me pensando que, se meu pai estivesse vivo, ele me amaria e me faria sentar em seus joelhos, dando-me coisas bonitas. Hoje, que sou mais velha e compreendo que tipo de homem era, creio que mais provavelmente teria me colocado num convento, tão logo eu tivesse um irmão, e nunca mais pensaria em mim.

Uther sempre foi gentil comigo, mas simplesmente não se interessava por uma filha. Minha mãe era a dona de seu coração, tal como ele era do dela, e eu me ressentia disso do fato de ter perdido minha mãe para esse homem grande, louro e desajeitado. Quando Uther estava fora, em guerras - e houve guerras durante quase todo o tempo em que fui jovem -, minha mãe voltava suas atenções para mim e me mimava, ensinando-me a fiar com suas próprias mãos e a tecer em cores. Mas quando os homens de Uther eram avistados, eu era reconduzida aos meus aposentos e esquecida, até que ele partisse novamente. Não é de surpreender que eu o odiasse e tivesse grande aversão pelo estandarte do dragão conduzido por qualquer cavaleiro que se aproximasse de Tintagel.

Quando meu irmão nasceu, a situação agravou-se. Ali estava aquela coisinha chorona, cor-de-rosa e branca, no seio de minha mãe; e o que era pior, ela esperava que eu dedicasse a ele um amor igual ao seu. "É seu irmãozinho", dizia, cuide bem dele, Morgana, e ame-o." Amá-lo? Eu o odiava de todo o coração, pois agora, quando me aproximava dela, Igraine afastava-me, dizendo que eu já estava muito crescida para ficar sentada em seu colo, grande demais para levar minhas fitas para que ela as atasse, grande demais para deitar a cabeça em seus joelhos e ser consolada. Eu lhe teria dado beliscões, se não soubesse que isso provocaria a ira de minha mãe e, de qualquer modo, às vezes eu concluía que ela me detestava. Uther dava grande importância ao meu irmão. Creio, porém, que ele sempre acalentou o desejo de ter um outro filho. Nunca me disseram, mas eu sabia - talvez tenha ouvido as mulheres conversarem, talvez já tivesse, naquela época, o dom da Visão em proporções muito maiores do que eu mesma percebia - que Uther deitara-se pela primeira vez com minha mãe quando ela ainda estava casada com meu pai, e muita gente desconfiava que esse menino não era filho dele, mas do duque da Cornualha.

Como podiam pensar isso é coisa que não compreendo, pais Gorlois, pelo que diziam, era moreno e aquilino, e meu irmão tinha, como Uther, cabelos louros e olhos cinzentos.

Mesmo enquanto viveu meu irmão, que foi caroado rei com o nome de Artur, ouvi todas as espécies de histórias sobre esse nome, até mesmo que vinha de Arth-Uther, o ursa de Uther, mas isso não é verdade. Quando ainda bebê, era chamado Gwydion - o brilhante - devido ao seu cabelo louro, o mesmo nome que seu filho usou mais tarde - mas essa é uma outra história. Os fatos são simples: quando Gwydion tinha seis anos, mandaram-no para ser criado por Ectório, um dos vassalos de Uther no norte, próximo de Ebóraco, e ele concluiu que o menino devia ser batizado como cristão. Por isso, recebeu o nome de Artur.

Desde seu nascimento até os seis anos, estava sempre atrás de mim; tão logo foi desmamado, minha mãe colocou-o sob os meus cuidados, recomendando: "É seu irmãozinho, e você deve amá-lo e cuidar dele". Eu teria matado aquela coisa chorona, atirando-a ao mar, do alto dos rochedos, e corrido para minha mãe, pedindo-lhe que fosse totalmente minha outra vez, se não soubesse que ela se preocupava muito com o que acontecia à criança.

Certa vez, quando Uther chegou e ela envergou seu melhor vestido, como sempre fazia, e enfeitou-se com seus calares de âmbar e pedra-da-lua, deu-me um beijo indiferente e outro em meu irmão, pronta para descer correndo ao encontro do marido, olhei suas faces avermelhadas, a cor acentuada pela pintura, notei a respiração apressada com o prazer da chegada de seu homem, e tive ódio dela, de Uther e de meu irmão. E enquanto eu ficava chorando no alto da escada, esperando que a ama viesse buscar-nos, Artur arrastou-se atrás dela, gritando "Mamãe" - mal sabia falar, então -, e caiu, cortando o queixo na escada. Gritei por Igraine, mas ela já ia ao encontro do rei; e de longe gritou-me, com raiva: "Morgana, eu lhe recomendei que cuidasse do menino", e saiu correndo.

Ele berrava, e eu, pegando-o no colo, limpei-lhe o queixo com meu véu. Cortara o lábio nos dentes - creio que tinha, então, uns oito ou dez - e continuou gritando e chamando minha mãe, que não veio. Sentei-me no degrau, aninhando-o, e Artur, envolvendo-me o pescoço com os bracinhos, enterrou a cabeça em meu peito e soluçou até dormir. Ele me pesava no colo, seu cabelo era macio e úmido, estava úmido também em outro lugar, mas não me importei muito. Pela maneira como se agarrava a mim compreendi que, em seu sonho, havia esquecido que não estava nos braços da mãe. Pensei: "Igraine esqueceu-se de nós dois, abandonando-o como me abandanou. Agora, creio que tenho de ser sua mãe."

Por isso embalei-o um pouco, e quando acordou segurou-se ao meu pescoço para ser levado, e o pendurei no quadril, como havia visto a ama fazer.

- Não chore - disse-lhe. - Vou levar você para a ama.

- Mamãe - choramingou ele.

- A mamãe não está; ela foi receber o rei, mas vou tamar conta de você, irmãozinho. - E segurando sua pequenina mão, compreendi o que Igraine queria dizer: eu era uma menina muito grande para chamar pela mãe, agora, porque tinha uma criança para cuidar.

Eu devia ter, então, uns sete anos de idade.

 

Quando a irmã de minha mãe, Morgause, se casou com o rei Lot de Orkney, só tomei conhecimento do fato porque ganhei meu primeiro vestido de mocinha e um colar de âmbar com prata. Eu gostava de Morgause, pois tinha tempo para mim, quando minha mãe estava ocupada com outras coisas, e contava-me histórias sobre meu pai - depois da morte dele, creio que Igraine jamais voltou a mencionar-lhe o nome. Mas, embora a amasse, tinha também um pouco de medo dela, porque às vezes me beliscava e puxava-me o cabelo, chamando-me de menina enjoada; foi quem primeiro me fez a zombaria que, então, me provocou um pranto doloroso, embora hoje me orgulhe de ser chamada assim: "Você vem do povo das fadas. Por que não pinta o rosto de azul e usa peles, Morgana das Fadas?"

Eu sabia pouco sobre as razões do casamento, ou por que Morgause devia casar-se ainda tão jovem. Sabia que minha mãe estava satis feita porque ela se casava e ia embora, pois imaginava que Morgause andava deitando olhares para Uther - talvez não soubesse que a irmã olhava com desejo para qualquer homem que se aproximasse dela. Era uma cadela no cio, embora eu acredite que procedia assim porque ninguém lhe dava importância. No casamento, com meu vestido novo, ouvi louvarem a sorte de Uther, de fazer as pazes com Lot de Orkney e até mesmo dar-lhe a cunhada em casamento. Lot pareceu-me encantador, e creio que só Uther era imune a esse encanto. Morgause parecia amá-lo - ou talvez tenha achado, apenas, que era conveniente agir como se o amasse.

Foi nessa ocasião, creio, que tive o primeiro encontro com a Senhara de Avalon. Como Morgause, ela era minha tia, irmã de minha mãe, e descendia também do povo antigo - pequena, morena e brilhante, com fitas vermelhas atadas no cabelo negro. Não era jovem, mesmo então, mas pareceu-me bela, como sempre me pareceria, e sua voz era cheia e suave. O que mais me agradava nela era o fato de me falar sempre como se eu fosse da sua idade, e não da maneira falsa como a maioria dos adultos se dirige às crianças.

Cheguei ao salão um pouco atrasada, pois a ama não tinha conseguido atar as fitas em meu cabelo e, por fim, tive eu mesma de fazê-lo. Sempre fui habilidosa e capaz de executar bem e rapidamente coisas que os adultos só a custo conseguiam. Eu já sabia fiar tão bem quanto minha mãe, e melhor do que Morgause. Estava muito orgulhosa em meu vestido de açafrão com a barra enfeitada de fitas e ouro, e com um colar de âmbar, em lugar dos corais, que já não eram próprios para a minha idade. Mas não havia um lugar na mesa, e contornei-a decepeionada, sabendo que, a qualquer momento, minha mãe ou me mandaria para uma das mesas menores, ou chamaria a ama para levar-me, ou chamaria a atenção para mim, mandando que um criado trouxesse uma cadeira. E embora na Cornualha eu fosse uma princesa, na corte de Uther, em Caerleon, eu era apenas a filha da rainha com um homem que traíra o Grande Rei.

Foi então que vi uma mulher pequena, morena - tão pequena, na verdade, que a princípio pensei ser uma menina um pouco mais velha do que eu -, sentada num banco com uma almofada bordada. Ela estendeu os braços e chamou-me:

- Venha cá, Morgana. Você se lembra de mim?

Não me lembrava, mas olhei para o rosto moreno e brilhante, e senti como se a conhecesse desde o início dos tempos.

Fiquei indecisa, pois tinha medo que ela me convidasse a sentar em seu colo, como se eu fosse uma criancinha. Mas, em lugar disso, ela sorriu e afastou-se para um dos lados do banco. Percebi imediatamente que não era uma menina, mas uma senhora.

- Nós não somos muito grandes - disse. - Creio que este banco dá para nós duas, pois foi feito para gente maior.

Gostei dela desde aquele momento, a ponto de experimentar por vezes um sentimento de culpa, uma vez que o padre Columba, confessor de minha mãe, recomendou que eu devia honrar minha mãe e meu pai acima de todos os outros.

Sentei-me, portanto, ao lado de Viviane durante o banquete de casamento, e fiquei sabendo que ela havia sido como mãe para minha tia - a mãe delas morrera ao dar à luz Morgause, e Viviane amamentou-a como se fosse sua própria filha. Isso me deixou fascinada, porque eu me irritara quando Igraine não permitiu que meu irmão fosse amamentado por uma ama. Uther achava que isso não era compatível com uma rainha, e eu concordei com ele. Não gostava de ver Gwydion no peito de Igraine. Creio que, na verdade, sentia ciúmes, embora tivesse vergonha de admiti-lo.

- Então sua mãe, e de Igraine, era uma rainha? - foi a pergunta que fiz, pois Viviane estava tão ricamente vestida quanto Igraine, ou qualquer das rainhas do norte.

- Não, Morgana, ela não era rainha, mas uma grande sacerdotisa, a Senhora do Lago; e eu sou a Senhora de Avalon, substituindo-a. Algum dia você talvez venha a ser também uma sacerdatisa, pois tem o velho sangue, e talvez seja dotada com o dom da Visão.

- O que é a Visão?

Ela franziu a testa:

- Igraine não lhe disse? Diga-me uma coisa, Morgana, você, às vezes, vê coisas que as outras pessoas não podem ver?

- Constantemente - respondi, compreendendo que aquela mulher percebia tudo a meu respeito. - Mas o padre Columba diz que isso é obra do Diabo. E mamãe afirma que eu devia ficar calada e não falar disso com ninguém, nem mesmo com ela, porque tais coisas não são adequadas a uma corte cristã e que, se Uther souber, me mandará para um convento. Não quero ir para um convento, vestir roupas pretas e nunca mais rir.

Viviane pronunciou uma palavra pela qual a ama me lavara a boca com sabão grosseiro da cozinha, usado para esfregar o chão.

- Ouça, Morgana. Sua mãe tem razão, você não deve falar nunca dessas coisas com o padre Columba...

- Mas Deus se zangará, se eu mentir ao padre.

Ela repetiu a palavra feia.

- Ouça, minha querida, o padre ficará aborrecido se você mentir para ele, e lhe dirá que é Deus quem está zangado. Mas o Grande Criador tem mais o que fazer do que aborrecer-se com as crianças, e isso é uma questão que diz respeito a sua própria consciência. Acredite em mim, Morgana: não diga ao padre Columba mais do que for preciso, mas sempre acredite no que a Visão lhe disser, pois ela lhe vem diretamente da Deusa.

- A Deusa é a mesma coisa que a Virgem Maria, Mãe de Deus?

Ela franziu a testa:

- Todos os Deuses são um só, e todas as Deusas também são uma só Deusa. A Grande Deusa não ficará zangada se você a chamar pelo nome de Maria, que foi boa e amou a humanidade. Ouça, minha querida, isso não é conversa para uma festa. Mas juro-lhe que você nunca irá para um convento, enquanto eu for viva, não importa o que Uther disser. Agora que eu sei que você tem a Visão, moverei céus e terra, se necessário, para levá-la para Avalon. Isso fica sendo um segredo entre nós, está bem, Morgana? Promete?

- Prometo, sim - respondi, e ela beijou-me o rosto. - Ouça, as harpistas já estão começando a tocar para as danças. Não acha que Morgause está bonita, com seu vestido azul?

 

Capítulo 9

Num dia de primavera do sétimo ano do reinado de Uther Pendragon em Caerleon, Viviane, sacerdotisa de Avalon e Senhora do Lago, saiu, ao amanhecer, para olhar seu espelho mágico.

Embora a tradição pela qual a Senhora era sacerdotisa fosse mais antiga do que a dos druidas, ela aceitava um dos grandes princípios de sua fé: que as grandes forças que criaram o Universo não podiam ser adoradas numa casa feita por mãos humanas, nem o Infinito, contido em qualquer coisa construída pela mão do homem. Portanto o espelho da Senhora não era de bronze, e nem mesmo de prata.

Atrás dela, erguiam-se as paredes de pedra cinzenta do velho Templo do Sol, construído pelos seres brilhantes que ali haviam chegado da Atlântida, séculos antes. À sua frente, estava o grande lago, cercado pelos juncos altos e oscilantes e envolto na cerração, que, até mesmo em dias claros, agora cercava a terra de Avalon. Mas, além do lago, ficavam as ilhas e mais lagos, por toda a área conhecida como o País do Verão. Ficavam principalmente sob a água, sob os pântanos, mas, no auge do verão, os lagos, e alguns dos lagos e lagoas salobras, secavam com o sol, e as terras ficavam à mostra, férteis para os pastos e exuberantes de grama e mato.

Ali, na verdade, o mar interior estava recuando, ano a ano, dando lugar à terra seca; algum dia, tudo aquilo seria uma rica área agrícola... mas não em Avalon, agora eternamente cercada pelas brumas, oculta de todos, exceto dos fiéis. Quando os homens iam e vinham em peregrinação ao mosteiro que os monges cristãos chamavam de Cidade de Vidro, o Templo do Sol lhes era invisível, pois se situava em algum estranho mundo sobrenatural; Viviane podia ver, quando dirigia sua Visão para lá, a igreja que fora construída.

Estava lá havia muito tempo, ela o sabia, embora nunca houvesse pisado ali. Há séculos - assim lhe dissera o Merlim, e acreditava nele -, um pequeno grupo de padres viera do sul, trazendo com eles seu profeta Nazareno, para ser instruído; e a história dizia que o próprio Jesus estudara ali, no local de residência dos druidas, onde outrora se levantava o Templo do Sol, e assimilara toda a sua sabedoria. E anos depois, quando - dizia a história - seu Cristo foi levado ao sacrifício, repetindo com sua vida o velho Mistério do Deus Sacrificado, mais antigo do que a própria Bretanha, um dos seus parentes voltou para lá e fincou seu cajado no Monte Sagrado; o cajado floresceu, transformando-se no espinheiro que dá flores, não só, como os outros, em pleno verão, mas também no auge da neve de inverno. E os druidas, em memória do gentil profeta a quem também haviam conhecido e amado, consentiram que José de Arimatéia construísse, nas próprias terras da Ilha Sagrada, uma capela e um mosteiro para seu Deus, uma vez que todos os Deuses são um só.

Mas isso aconteceu há muito tempo. Durante um período, cristãos e druidas viveram lado a lado, adorando o Uno; mas depois vieram os romanos para a ilha, e, embora tivessem a reputação de ser tolerantes com as divindades locais, foram impiedosos com os druidas, derrubando e queimando seus bosques sagrados, espalhando mentiras segundo as quais eles cometiam sacrifícios humanos. Seu verdadeiro crime havia sido, é claro, o de estimular o povo a não aceitar as leis e a paz romanas. E, então, num grande ato de magia druida, para proteger o derradeiro refúgio precioso de sua escola, fizeram a última grande mudança no mundo, retirando a ilha de Avalon do âmbito humano. Agora, ela estava escondida na bruma, exceto para os iniciados que ali haviam estudado ou os que haviam aprendido seus caminhos secretos pelo lago. Os homens das tribos sabiam onde ela se situava, e ali realizavam seus cultos. Os romanos, cristãos desde os dias de Constantino, e que haviam convertido em massa suas legiões devido a uma visão que ele tivera durante uma batalha, acreditavam que os druidas tinham sido vencidos pelo seu Cristo, sem saber que os poucos druidas remanescentes viviam e transmitiam sua sabedoria na ilha oculta.

Viviane podia ver, se quisesse, com Visão dupla, pois era grã-sacerdotisa de Avalon. Se desejasse, poderia ver a torre que haviam construído no alto do próprio Tor, sobre o Monte Sagrado da Iniciação, torre dedicada a Miguel, um dos anjos judeus cuja antiga função era conter os demônios do mundo inferior. Isso parecia a Viviane uma blasfêmia, ainda agora, mas consolava-se pensando que a torre não ficava no seu mundo; se os cristãos, de mentalidade acanhada, quisessem considerar os grandes Deuses antigos como demônios, estariam se privando de muita coisa. A Deusa vivia, não importando o que os cristãos pensassem dela. Viviane voltou seus pensamentos para o que pretendia fazer no momento, que era olhar no seu espelho mágico, enquanto a lua nova ainda pairava no céu.

Embora ainda estivesse suficientemente claro para se ver bem, a Senhora levava consigo uma pequena lâmpada com a minúscula chama oscilante. Voltou as costas para os juncos e os pântanos de água salgada, e caminhou para o interior, seguindo uma trilha, subindo lentamente a encosta cheia de juncos, passando pelas ruínas das casas dos velhos moradores, que as haviam construído às margens do Lago, em tempos há muito passados.

A pequena lâmpada luzia, tornando-se cada vez mais visível na escuridão e, acima das árvores, o crescente puro e fino da lua virgem, pouco visível, brilhava como a gargantilha de prata em volta do pescoço de Viviane. Ela seguiu pelo antigo caminho processional, subindo lentamente - pois embora ainda fosse forte e ágil, já não era jovem - até chegar à pequena lagoa que lhe servia de espelho, com suas águas límpidas entre pedras de enorme antiguidade.

A água clara refletia a lua e, quando Viviane se inclinou sobre a superfície, também sua pequena lâmpada. Mergulhou a mão na água e bebeu - ali, era proibido colocar qualquer objeto feito pelo homem, embora mais adiante, onde a água borbulhava numa fonte, os peregrinos pudessem chegar com garrafas e jarros e levar o quanto quisessem. Provou a água, clara e de gosto metálico, e, como sempre, sentiu um estremecimento de medo: aquela fonte existia desde o começo do mundo, e manaria para sempre, generosa e mágica, à disposição de todos. Era uma oferenda da Grande Deusa, e Viviane ajoelhou-se ao beber, erguendo o rosto para o fino crescente no céu.

Mas depois daquela renovação momentânea do medo, que sentira desde a primeira vez que estivera ali, como noviça na Casa das Moças, voltou ao objetivo que a levara àquele lugar. Colocou a lâmpada sobre a pedra chata, um pouco acima do espelho d'água, de modo que sua luz se refletisse nele, tal como a lua crescente. Agora estavam presentes os quatro elementos: o fogo de sua lâmpada; a água, de cuja fonte ela havia bebido; a terra, onde tinha os pés; e, ao invocar os poderes do ar, Viviane viu, como sempre ocorria, uma leve brisa arrepiar a superfície da água.

Ficou sentada por um momento, meditando. E, por fim, formulou para si mesma a pergunta que a levara a consultar o espelho mágico:

- Como vão as coisas na Bretanha? Como vão minha irmã e sua filha, que nasceu para sacerdotisa, e como vai o filho, que é a esperança da Bretanha?

Por um momento, enquanto o vento agitava a superfície da água, viu apenas imagens confusas, fluindo - estariam em sua mente, ou na face instável do lago? Percebeu cenas de batalha, imprecisas na agitação da água; viu o estandarte do dragão usado por Uther e os homens da tribo lutando ao lado dele. Viu Igraine coroada, tal como a vira na realidade. E, em seguida, num rápido momento que fez seu coração bater mais depressa, viu Morgana chorando; e, num segundo e mais terrível relâmpago da Visão, percebeu uma criança loura que jazia imóvel - morta ou viva?

A lua se escondeu na cerração, e a visão desapareceu; por mais que tentasse, Viviane não pôde fazê-la voltar, exceto alguns lampejos irónicos: Morgause segurando seu segundo filho, Lot e Uther andando num grande salão e trocando palavras iradas, e a lembrança confusa de uma criança ferida e agonizante. Mas essas coisas haviam acontecido, ou eram apenas uma advertência das coisas que viriam a ocorrer?

Mordendo o lábio, Viviane inclinou-se e apanhou seu espelho. Lançou as últimas gotas de óleo puro na superfície - o óleo queimado para a Visão nunca devia ser usado para outra finalidade - e dirigiu-se rapidamente, em meio às trevas que caíam, pelo caminho processional e até a residência das sacerdotisas.

Uma vez ali, chamou sua criada.

- Faça todos os preparativos para partirmos às primeiras luzes da aurora - ordenou -, e que minha noviça se prepare para um serviço à lua cheia, pois antes que transcorra um outro dia, eu devo estar em Caerleon. Mande avisar ao Merlim.

 

Capítulo 10

Viajavam principalmente nas primeiras horas da manhã, escondendo-se ao meio-dia, e retomando a viagem ao escurecer. A região estava, no momento, tranquila - a guerra deslocara-se para o leste. Mas quadrilhas perdidas de homens do norte ou de saxões, de assaltantes, haviam atacado aldeias ou casas isoladas, no campo. E os viajantes, se não estivessem protegidos por homens armados, também eram obrigados a ter cautela, e não confiavam em ninguém.

Viviane esperava encontrar, talvez, a corte de Uther vazia, entregue às mulheres e crianças, e aos incapazes de lutar, mas à distância viu o estandarte do dragão tremulando, o que indicava a presença do rei. Seus lábios contraíram-se, Uther não gostava dos druidas da Ilha Sagrada e não confiava neles. Não obstante, ela colocara no trono esse homem de quem não gostava, por ser o melhor dos líderes surgidos na ilha, e agora, de alguma forma, teria de colaborar com ele. Pelo menos, não era um cristão fanático que viesse a exigir a eliminação das outras religiões. "Melhor ter um homem pouco religioso como Grande Rei do que um fanático", pensou.

Desde a última visita que fizera à corte de Uther, a muralha fortificada fora levantada ainda mais, e havia sentinelas postadas ali, que interpelaram o seu grupo. Dera instruções a seus homens para não usarem nenhum de seus títulos, mas declararem apenas que a irmã da rainha havia chegado. Não era o momento de exigir que lhe dispensassem a consideração devida à Senhora de Avalon - sua missão era muito urgente para isso.

Atravessaram um gramado, de onde se podia ouvir todo o rumor de um forte fechado. Viviane percebeu, em algum lugar, o barulho de um armeiro ou ferreiro batendo em sua bigorna. Alguns pastores, com roupas grosseiras de peles, conduziam rebanhos para o interior da área murada do castelo, a fim de passarem a noite. Reconhecendo em todo esse movimento os preparativos para um sítio, ela arregalou os olhos.

Uns poucos anos antes, Igraine havia corrido ao seu encontro no pátio de Tintagel. Agora, um camareiro solene, ricamente vestido, e tendo apenas um braço - sem dúvida um veterano de Uther - saudou-a com uma reverência e levou-a a um aposento no andar superior.

- Sinto muito, senhora - explicou ele -, estamos com falta de espaço, aqui. A senhora terá de partilhar este quarto com duas damas da rainha.

- Sinto-me honrada - respondeu, gravemente.

- Vou mandar-lhe uma criada. Poderá pedir-lhe tudo o que lhe for necessário.

- Preciso apenas de um pouco de água para lavar-me, e gostaria de saber quando posso ver minha irmã.

- Senhora, tenho certeza de que a rainha a receberá no momento adequado...

- Então Uther mantém aqui um cerimonial como o dos Césares? Ouça, rapaz, sou a Senhora de Avalon, e não estou habituada a ficar esperando. Mas, se Igraine está assim tão importante, peço-lhe então que me mande a senhora Morgana o mais depressa possível!

O veterano de um braço só recuou um pouco, e quando voltou a falar sua voz era menos formal e mais humana:

- Senhora, tenho certeza de que a rainha a receberia imediatamente, mas estamos num momento de perturbação e perigo. O jovem príncipe Gwydion caiu esta manhã de um cavalo que não lhe deviam ter permitido montar, e a rainha não deixará a sua cabeceira nem por um instante.

- Pela Deusa! Cheguei tarde, então! - murmurou Viviane para si mesma. E em voz alta: - Leve-me a eles, imediatamente. Sou especialista nas artes de curar, e tenho certeza de que Igraine me mandaria chamar, se soubesse que estou aqui.

O homem fez uma curvatura:

- Por aqui, senhora.

Acompanhando-o, Viviane percebeu que não tivera tempo nem mesmo de retirar o manto ou os culotes masculinos que usava para montar, quando havia pretendido apresentarse com toda a dignidade adequada a Avalon. Bem, a questão agora era mais importante.

Junto da porta, o camareiro parou:

- Minha cabeça correrá risco, se eu perturbar a rainha.

Ela não permite nem mesmo que suas aias lhe tragam comida ou bebida...

Viviane empurrou a pesada porta e entrou no quarto. Silêncio mortal; estava sombrio como uma câmara mortuária. Igraine, pálida e abatida, com o pano de cabeça amassado, estava ajoelhada como uma figura de pedra ao lado da cama. Um padre, vestido de negro, imóvel, murmurava orações a meia voz. Embora Viviane se movimentasse de leve, Igraine ouviu-a.

- Como ousa... - começou, num sussurro furioso, e interrompeu-se. - Viviane! Foi Deus quem mandou você!

- Tive uma intuição de que poderia precisar de mim - disse Viviane. Não era o momento para falar de visões mágicas. - Não, Igraine, de nada adianta chorar. Deixe-me vê-lo para saber a gravidade de seu estado.

- O médico do rei...

- É provavelmente um velho idiota que só conhece poções de estrume de bode - comentou Viviane com calma. - Eu já curava ferimentos desse tipo quando você ainda usava fraldas, Igraine. Deixe-me ver o menino.

Ela só vira o filho de Uther uma vez, rapidamente, quando ele tinha três anos: parecia-se com qualquer outra criança loura e de olhos azuis. Agora, estava bastante desenvolvido para a idade - magro, mas de pernas e braços musculosos, muito marcados de arranhões e quedas, como os de qualquer menino ativo. Afastou as cobertas e viu grandes manchas roxas pelo seu corpo.

- Ele chegou a escarrar sangue?

- Não. O sangue que havia em sua boca era de um dente que foi arrancado, mas que já estava mole, de qualquer maneira.

Viviane realmente viu o lábio ferido e a falha nos dentes do menino. Mais séria era a contusão na têmpora, e ela sentiu um medo verdadeiro. Teriam todos os planos terminado assim?

Passou os dedos pequenos pela cabeça da criança, que estremeceu, quando ela tocou o ponto ferido, e esse era o melhor sinal possível. Se houvesse hemorragia craniana interna, àquela altura, ele estaria num estado de coma tão profundo que nenhuma dor poderia atingi-lo. Estendeu o braço e beliscou-lhe a coxa, e ele gemeu no sono. Igraine protestou:

- Você o está machucando!

- Não - disse Viviane. - Estou procurando saber se ele vai viver ou morrer. Acredite em mim, ele viverá. - Deu-lhe um tapa delicado no rosto, e a criança abriu os olhos por um momento.

- Tragam uma vela - pediu Viviane, e movimentou-a lentamente de um lado para outro, diante dos olhos do menino. Ele acompanhou-a com o olhar, antes de fechar novamente os olhos, com um gemido de dor.

Viviane ergueu-se.

- Faça com que ele fique em repouso e dê-lhe apenas água ou sopa, nada sólido, durante um ou dois dias. E não molhe seu pão no vinho, mas só na sopa ou no leite. Ele estará brincando dentro de três dias.

- Como sabe? - perguntou o padre.

- Porque conheço as artes da cura. O que achou que fosse?

- Não será uma feiticeira da Ilha das Bruxas?

Viviane deu uma risada abafada.

- De modo algum, padre. Sou uma mulher que, como o senhor, passou a vida no estudo de coisas sagradas, e Deus houve por bem dar-me a habilidade de tratar dos outros.

Viviane refletiu que podia usar contra eles seu próprio jargão, pois sabia, embora o padre o ignorasse, que o Deus adorado por ambos era muito maior e menos fanático do que qualquer padre.

- Igraine, preciso falar com você. Venha.

- Tenho de ficar aqui; quando ele acordar novamente vai desejar me ver...

- Tolice. Mande a ama ficar com ele. O que tenho a dizer-lhe é importante!

Igraine olhou-a com espanto.

- Mande Isotta ficar com ele - ordenou a uma das mulheres, com olhar irritado, e acompanhou Viviane até a sala.

- Igraine, como aconteceu isso?

- Não tenho certeza... parece que ele montou o cavalo do pai... não sei ao certo. Sei apenas que o trouxeram como morto...

- E foi apenas por sorte que ele não morreu - disse Viviane secamente. - É assim que Uther protege a vida de seu único filho?

- Viviane, não me censure... Tentei dar-lhe ordens - explicou Igraine com voz trêmula. - Mas creio que estou sendo castigada pelo meu adultério, pois não consigo dar a Uther outro filho...

- Você enlouqueceu, Igraine? - explodiu Viviane, mas conteve-se. Não seria justo censurar a irmã, desesperada com o acidente do filho. - Vim porque previ algum perigo para você ou o menino. Mas podemos falar nisso mais tarde. Chame suas criadas, ponha roupas limpas; quando você comeu pela última vez?

- Creio que comi um pouco de pão com vinho, a noite passada...

- Então chame já as criadas e coma alguma coisa - tornou Viviane, impaciente. - Estou ainda empoeirada da viagem. Vou lavar-me e vestir-me como convém a uma senhora num castelo, e depois conversaremos.

- Está zangada comigo, Viviane?

Viviane colocou a mão em seu ombro:

- Estou irritada, se é que é irrítação, apenas com a maneira como as coisas acontecem, e isso é tolice minha. Vá se vestir, Igraine, e comer alguma coisa. A criança nada sofrerá, desta vez.

Em seu aposento, o fogo fora aceso, e num banco em frente à lareira estava sentada uma mulher miúda, vestida numa roupa tão negra e simples que, por um momento, julgou ser uma das servas. Mas percebeu, então, que o vestido simples era do melhor tecido, o pano que lhe envolvia os cabelos era de linho bordado, e reconheceu a filha de Igraine.

- Morgana - disse, beijando-a. A menina estava quase tão alta quanto a própria Viviane. - Ora, eu me lembro de você como uma criança, mas já é quase uma mulher...

- Ouvi dizer que tinha chegado, titia, e vim cumprimentá-la, mas disseram-me que estava com meu irmão. Como vai ele, senhora?

- Está bem machucado, mas ficará bom sem qualquer tratamento, apenas com repouso. Quando ele acordar, tenho de convencer Igraine e Uther a manter longe o médico, com as suas estúpidas poções; se o fizerem vomitar, ele vai piorar. Sua mãe só sabe chorar e gritar. Você pode me dizer como isso aconteceu? Não há aqui quem possa cuidar direito de uma criança?

Morgana torceu os pequenos dedos.

- Não sei exatamente como aconteceu. Meu irmão é corajoso e quer sempre montar cavalos que são demasiado rápidos e fortes para ele, por isso Uther deu ordens para que só monte acompanhado de um cavalariço. Seu pônei estava manco, naquele dia, e ele pediu outro cavalo, mas o que se ignora é como foi que montou o garanhão de Uther. Os moços da cavalariça sabem que ele não deve nem chegar perto de Trovão, e todos negam tê-lo visto. Uther jurou que vai mandar enforcar o responsável por isso, mas a esta altura ele já deve estar muito longe, imagino. Ainda assim, disseram que Gwydion estava firme nas costas de Trovão, até que alguém soltou uma égua no cio, perto do cavalo, e tampouco se conseguiu encontrar quem fez isso. É claro que o garanhão deu um salto atrás da égua, e meu irmão por sua vez saltou da sela. - O rosto pequeno e moreno da menina estremeceu. - Ele realmente vai viver?

- Sim, ele vai viver.

- Alguém mandou avisar Uther? Mamãe e o padre disseram que ele nada poderá fazer no quarto do doente...

- Sem dúvida, Igraine se ocupará disso.

- Sem dúvida - repetiu Morgana, e Viviane surpreendeu um sorriso irônico em seus lábios. Evidentemente, a menina não gostava de Uther, e não pensava de outro modo com relação ao amor da mãe pelo marido. Mas, ainda assim, fora bastante conscienciosa para lembrar que Uther tinha de ser avisado sobre o risco que a vida de seu filho corria. Não era uma menina comum.

- Quantos anos você tem, Morgana? O tempo passa muito depressa, e, devido a minha idade avançada, já não me recordo.

- Farei onze anos no verão.

"Idade suficiente para ser treinada como sacerdotisa", pensou Viviane. Olhou para baixo, e percebeu que continuava vestindo as roupas de viagem.

- Morgana, você pode mandar a criada trazer-me um pouco de água para lavar-me, e enviar alguém que me ajude a vestir-me de maneira decente para que possa comparecer diante do rei e da rainha?

- Já mandei buscar a água, está ali no caldeirão junto ao fogo - disse Morgana, e depois de hesitar um pouco, acrescentou, timidamente: - Eu me sentiria honrada em ajudá-la, senhora. Se quiser.

Viviane deixou Morgana ajudá-la a tirar as roupas de viagem e a lavar-se. Seus alforjes tinham sido mandados para o quarto, e ela escolheu um vestido verde; Morgana apalpou o tecido com admiração.

- É um belo tom de verde. Nossas criadas não sabem fazer um verde assim. Diga-me, titia, o que usa para consegui-lo?

- Anil, apenas.

- Achei que só servia para tintas azuis.

- Não, esta é preparada de maneira diferente, fervida e fixada... falaremos de tintas depois, se você estíver interessada em ervas. Agora temos outros assuntos a tratar. Diga-me, seu irmão é dado a travessuras como esta?

- Não, realmente. Ele é forte e ousado, mas em geral bastante obediente. Certa vez, alguém zombou dele por montar um pônei tão pequeno, e ele respondeu que seria um guerreiro, e que o primeiro dever de um soldado é obedecer às ordens, e que o pai o proibira de montar um cavalo que não pudesse dominar. Por isso, não posso imaginar como ele montou Trovão. E ainda assim ele não teria se machucado se...

- Gostaria de saber quem soltou a égua - tornou Viviane com um aceno de cabeça. - E também por quê.

Os olhos de Morgana arregalaram-se, ao perceber as implicações dessas palavras. Observando-a, Viviane perguntou:

- Pense. Houve outras ocasiões em que ele escapou por pouco da morte?

Morgana respondeu, hesitando:

- Ele teve a febre do verão... mas todas as crianças a tiveram, no ano passado. Uther disse que não deviam ter deixado que ele brincasse com os filhos dos pastores. Foi deles que apanhou a febre, acho, pois quatro morreram. Mas houve também a ocasião em que foi envenenado...

- Envenenado?

- Isotta, a quem eu confiaria minha própria vida, jura ter colocado apenas ervas boas em sua sopa. Não obstante, ele passou muito mal, como se um cogumelo venenoso tivesse sido posto em seu caldo. E como isso poderia ter acontecido? Isotta conhece bem todos os cogumelos, e ainda não é velha, enxerga bem. - Os olhos de Morgana voltaram a arregalar-se: - Senhora Viviane, acha que alguém está querendo matar meu irmão?

Viviane fez a menina sentar-se ao seu lado.

- Vim porque tive um aviso. Ainda não indaguei de onde vem o perigo, não houve tempo. Você ainda tem a Visão, Morgana? Da última vez que estivemos juntas, disse-me...

A menina corou e olhou para baixo:

- A senhora me recomendou que nada comentasse a esse respeito. E Igraine acha que devo afastar meus pensamentos disso, voltando-os para coisas reais e não para devaneios, por isso tentei...

- Igraine tem razão quanto a uma coisa: você não deve falar disso com os que só nascem uma vez - observou Viviane. - Mas comigo pode sempre falar livremente, prometo-lhe. Minha Visão só pode me mostrar coisas ligadas à segurança da Ilha Sagrada e à continuação de Avalon, mas o filho de Uther é filho de sua mãe, e através desse laço a Visão o encontrará e poderá dizer quem está tentando provocar sua morte. Uther tem muitos inimigos, como os Deuses sabem.

- Mas não sei como usar a Visão.

- Eu lhe mostrarei, se você quiser - ofereceu-se Viviane.

A menina olhou para ela, com o rosto marcado pelo medo:

- Uther proibiu feitiçarias em sua corte.

- Uther não é meu senhor - disse Viviane lentamente -, e ninguém pode mandar na consciência dos outros. Não obstante... Você acredita que é uma ofensa a Deus tentar descobrír se alguém está tramando contra a vida de seu irmão, ou se é apenas falta de sorte?

Morgana respondeu, sem muita firmeza:

- Não, não acredito que seja errado. - Parou, engoliu em seco e, finalmente, acrescentou: - E não creio que você me levaria a fazer alguma coisa errada, titia.

Viviane sentiu uma súbita pontada no coração. O que fizera para merecer toda essa confíança? Desejava sinceramente que essa menina pequena e séria fosse sua filha, a filha que devia à Ilha Sagrada e nunca fora capaz de ter. Embora tivesse corrido o risco de um parto tardio, do qual quase morrera, tivera apenas filhos. E ali estava, ao que tudo indicava, a sucessora que a Deusa lhe havia mandado, uma parenta com a Visão, e a garota votava-lhe confiança total. Por um momento, não conseguiu falar.

"Serei capaz de ser dura com esta menina também? Poderei prepará-la, sem poupá-la, ou meu amor me fará menos rigorosa do que devo ser para formar uma grã-sacerdotisa? Poderei usar o amor que ela tem por mim, e que nada fiz para merecer, para levá-la aos pés da Deusa?"

Mas, com a disciplina de anos, esperou até que a voz estivesse firme e perfeitamente controlada:

- Que assim seja, então. Traga uma bacia de prata ou bronze, perfeitamente limpa e areada, cheia com água fresca de chuva, e não água tirada do poço. Não fale com ninguém, homem ou mulher, depois de tê-la enchido.

Esperou tranquila junto do fogo, até que por fim Morgana voltou.

- Eu mesma tive de areá-la - disse ela, mas a bacia que mostrou estava brilhando, cheia até a borda com água clara.

- Agora, Morgana, desate o cabelo.

A menina olhou para ela com curiosidade, mas Viviane disse em voz baixa e firme:

- Não, nada de perguntas.

Morgana tirou o grampo de osso, e seus longos cabelos, negros, pesados e perfeitamente lisos, cascatearam em volta de seus ombros.

- Agora, se você traz qualquer jóia, tire-a e coloque-a ali, para que não fique perto da bacia.

Morgana retirou do dedo dois pequenos anéis dourados e desatou o broche que lhe segurava o vestido, que, sem ele, deslizou-lhe pelos ombros. Em silêncio, Viviane ajudou-a a tirá-lo, de modo que a menina ficou apenas com as roupas de baixo. Em seguida, Viviane abriu um pequeno saco que trazia pendurado ao pescoço e dele retirou um pouco de ervas esmagadas, que espalharam um cheiro adocicado e bolorento pelo quarto. Lançou apenas alguns grãos na água da bacia, antes de dizer, em voz baixa e neutra:

- Olhe para a água, Morgana. Fique com a mente completamente parada e diga o que vê.

Morgana ajoelhou-se ante a bacia com água, olhando fixamente para a sua superfície. O quarto estava em silêncio, tão tranquilo que Viviane pôde ouvir o ruído de um inseto, lá fora. E então Morgana disse, numa voz incerta e estranha:

- Vejo um bote. Está coberto de negro e há quatro mulheres nele... Quatro rainhas, pois usam coroas... e uma delas é você... ou serei eu?

- É a barca de Avalon - esclareceu Viviane, com voz velada. - Sei o que você está vendo.

Passou a mão levemente por cima da água e viu a superfície agitar-se.

- Olhe outra vez, Morgana. E diga-me o que vê.

Desta vez, o silêncio foi mais longo. Finalmente, a menina relatou, no mesmo tom estranho:

- Vejo gamos - uma grande manada de gamos e um homem entre eles, com o corpo pintado... colocam-lhe os galhos de gamo... oh, ele é derrubado, vão matá-lo...

Sua voz tremeu, e novamente Viviane passou a mão sobre a superfície da água, que se turvou.

- Basta - ordenou. - Agora, veja seu irmão.

Fez-se silêncio, novamente, um silêncio que se estendeu e se arrastou. Viviane sentiu o corpo doer devido à tensão da imobilidade, mas não se mexeu, graças à longa disciplina de seu treinamento. Por fim, Morgana murmurou:

- Como ele está quieto... mas está respirando, dentro em pouco despertará. Vejo minha mãe... Não, não é ela, é minha tia Morgause, e todos os seus filhos estão com ela... São quatro... Que estranho, todos estão usando coroas... E há um outro, está segurando uma adaga... Por que é tão jovem? É filho dela? Oh, ele vai matá-lo, vai matá-lo... Ah, não! - Sua voz transformou-se quase num grito. Viviane tocou-lhe o ombro.

- Basta. Desperte, Morgana.

A menina sacudiu a cabeça como um cachorrinho que se espreguiça depois do sono:

- Eu vi alguma coisa? - perguntou.

- Algum dia você aprenderá a ver e a lembrar-se do que viu - explicou Viviane, com um aceno de cabeça. - Por ora, foi o bastante.

Estava preparada para enfrentar Uther e Igraine. Lot de Orkney era, pelo que sabía, um homem honrado, e jurara apoiar Uther. Mas se este morresse sem um herdeiro... Morgause já tinha dois filhos, e provavelmente teria outros - Morgana vira quatro, e era impossível que o pequeno reino de Orkney chegasse para quatro príncipes. Os irmãos, quando crescessem, provavelmente o disputariam. E Morgause... Suspirando, Viviane lembrou-se das ambições da irmã. Se Uther morresse sem um herdeiro, então Lot, casado com a irmã da rainha, seria a escolha lógica para o trono. E a sucessão se faria com ele como Grande Rei, cabendo a seus filhos reinos menores.

Chegaria Morgause ao ponto de tramar contra a vida de uma criança?

Viviane não queria fazer tal juízo da menina que amamentara. Mas Morgause e Lot juntos, com as suas ambições!

Talvez fosse relativamente fácil subornar um cavalariço ou infiltrar um de seus homens na corte de Uther, com ordens de criar situações perigosas para o menino, sempre que possível. Havia, é claro, o problema de contornar a vigilância de uma ama de confiança, que era a própria camareira da mãe; ela poderia, porém, ser drogada, ou ser-lhe ministrada uma beberagem mais forte do que a habitual, para confundi-la, de modo que algo mortal lhe passasse despercebido. E por melhor que uma criança monte, seria necessária uma força muito maior do que a de um menino de seis anos para controlar um garanhão que sente o cheiro de uma égua no cio.

"Todos os nossos planos poderiam ter sido arruinados num momento..."

No jantar, Viviane encontrou Uther sentado à mesa alta, enquanto os vassalos e criados comiam pão e presunto numa mesa mais baixa, no salão. Ele levantou-se e cumprimentou-a cortesmente.

- Igraine continua ao lado do filho, cunhada. Pedi-lhe que fosse dormir, mas respondeu que só o faria depois que o menino acordasse e a reconhecesse.

- Já conversei com Igraine, Uther.

- Sim, ela me contou. Você deu sua palavra de que ele viverá. Terá sido prudente? Se, depois disso, ele morrer...

O rosto de Uther estava tenso e preocupado. Não parecia mais velho do que ao casar-se com Igraine. Tinha o cabelo tão louro, pensou Vivíane, que não se podia ver se estava grisalho ou não. Estava ricamente vestido ao estilo romano, e também barbeado, como um romano. Não usava coroa, mas em torno de seus antebraços ostentava dois braceletes de puro ouro e no pescoço um rico colar, também de ouro.

- Ele não morrerá, desta vez. Tenho certa experiência de ferimentos na cabeça. E os do corpo não atingiram os pulmões. O menino estará brincando dentro de um ou dois dias.

O rosto de Uther relaxou-se um pouco.

- Se eu descobrir quem soltou aquela égua... Eu devia dar-lhe uma surra, por ter montado o Trovão!

- Isso não teria nenhum sentido. Ele já pagou por sua imprevidência, e tenho certeza de que teve uma lição mais do que suficiente. Você devia cuidar melhor de seu filho.

- Não posso vigiá-lo dia e noite. - O rosto de Uther estava pálido. - Estou sempre ausente, em campanhas, e não posso manter um menino tão crescido amarrado ao avental de sua ama! E já quase o perdemos, antes disso...

- Morgana me disse.

- Má sorte, má sorte. O homem que só tem um filho está à mercê de qualquer golpe de azar. Mas estou sendo indelicado, cunhada. Sente-se aqui, ao meu lado, coma comigo, se quiser. Eu sabia que Igraine estava ansiosa por vê-la, e dei-lhe permissão de mandar um mensageiro, mas você veio mais depressa do que qualquer um de nós esperava. É certo, então, que as feiticeiras da Ilha Sagrada podem voar?

Viviane deu uma risada.

- Eu voaria, se pudesse! Não teria estragado dois pares de bons sapatos na lama! Infelizmente, o povo de Avalon e o próprio Merlim devem andar a pé ou a cavalo, como os pobres mortais. - Pegou um pedaço de pão de trigo e serviu-se do creme de um pequeno recipiente de madeira. - Você, que usa serpentes em volta dos pulsos, devia saber melhor dessas coisas e não dar crédito a velhas fábulas! Há, porém, um laço de sangue entre nós. Igraine é filha de minha mãe, e eu sei quando ela precisa de mim.

Uther apertou os lábios:

- Chega de sonhos e de feitiçarias. Não quero mais saber disso em minha vida.

Como Uther pretendia, essa observação fez Viviane calar-se. Um dos criados serviu-lhe carneiro salgado e ofereceu-lhe cortesmente ervas frescas e cozidas, as primeiras do ano. Viviane comeu pouco, pousou a faca no prato e disse:

- Qualquer que seja a forma pela qual cheguei até aqui, Uther, foi boa sorte, e um sinal, para mim, de que seu filho é protegido pelos deuses, porque é necessário.

- Não sei se aguentarei mais essa boa sorte - respondeu Uther, com a voz tensa. - Se você realmente é feiticeira, cunhada, peço-lhe que dê a Igraine um encantamento contra a esterilidade. Quando nos casamos pensei que ela me daria muitos filhos, pois já tinha uma filha com Gorlois. Mas só tivemos até agora um filho, que já tem seis anos.

"Está escrito nas estrelas que você não terá outro filho." Viviane, porém, não quis dizer isso ao homem que estava à sua frente:

- Falarei com Igraine, e verei se não é alguma doença o que a impede de conceber.

- Ah, ela concebe, sim, mas não consegue conservar a criança por mais de uma ou duas luas, e a que chegou a nascer sangrou até a morte, quando o cordão umbilical foi cortado - comentou Uther, tristemente. - Além disso, tinha uma deformidade, e talvez tenha sido melhor que não sobrevivesse. Mas se você puder fazer-lhe algum encantamento para ter um filho sadio... Não sei se acredito nessas coisas, mas estou pronto a recorrer a tudo!

- Não disponho de tais poderes - disse Viviane com franqueza, mas ficou sinceramente penalizada. - Não sou a Grande Deusa, que dá ou nega filhos aos homens, e não o faria, se pudesse. Não posso interferir no que foi determinado pelo destino. O seu padre não diz a mesma coisa?

- Ah, sim, o padre Columba diz que devo me conformar com a vontade de Deus. Mas o padre não tem um reino para governar, que se transformará num caos, se eu morrer sem herdeiro. Não posso acreditar que seja essa a vontade de Deus!

- Nenhum de nós sabe o que Deus quer - respondeu Viviane. - Nem você, nem eu, nem mesmo o padre Columba. Mas uma coisa me parece certa: não é preciso feitiçaria para ver que lhe é imperativo proteger a vida desse menino, já que ele deve subir ao trono.

A boca de Uther contraiu-se.

- Que Deus não permita sua morte. Eu sofreria por Igraine, se o filho dela morresse, e por mim também - é um menino excelente e promete muito -, mas não pode ser herdeiro do Grande Rei da Bretanha. Não há um homem em toda a extensão deste reino que não saiba ter sido ele concebido quando Igraine era ainda mulher de Gorlois, e ele nasceu uma lua antes do previsto, para ser meu filho. É certo que era pequeno e franzino, e é comum as crianças nascerem antes do tempo, mas eu não posso sair por aí, dizendo isso a todos no reino que estavam contando nos dedos. Ele será duque da Cornualha quando crescer, mas não posso ter esperanças de fazer dele Grande Rei, depois de mim. Mesmo que viva e cresça, o que, com a sua sorte, parece improvável.

- Ele é parecido com você - replicou Viviane. - Acredita que todos na corte sejam cegos?

- E todos os outros que nunca vieram à corte? Não, eu preciso de um herdeiro sobre cujo nascimento não pairem dúvidas. Igraine tem de me dar um filho.

- Bem, que Deus o permita, mas você também não pode impor sua vontade a Deus, nem permitir que a vida de Gwydion seja ameaçada. Por que não o manda para ser criado em Tintagel? É um lugar tão distante, que se você colocá-lo aos cuidados do vassalo de sua maior confiança isso convenceria a todos de que é realmente filho de Gorlois e que você não pretende fazer dele Grande Rei. Talvez, então, desistam de conspirar contra a sua vida.

Uther franziu a testa:

- A vida dele só estará segura quando Igraine tiver outro filho meu, mesmo que eu o mande para um lugar tão longe quanto Roma ou o país dos godos!

- E com os perigos das viagens, isso não é prático - concordou Viviane. - Tenho então uma outra sugestão. Mande-o para mim, para ser criado em Avalon. Ninguém chega até lá, exceto os fiéis que servem à Ilha Sagrada. Meu filho mais novo já tem sete anos, mas dentro em pouco será mandado ao rei Ban, na Bretanha Menor, para ser criado como convém ao filho de um nobre. Ban tem outros filhos, e Galahad não é seu herdeiro, mas ele o reconhece, deu-lhe terras e propriedades e o manterá na corte, como pajem e como soldado, quando crescer. Em Avalon, seu filho aprenderá tudo o que precisa saber sobre a história de sua terra, e sobre o seu destino e o destino da Bretanha. Uther, nenhum dos seus inimigos sabe onde fica Avalon, e nenhum perigo poderia cercá-lo.

- Ele estaria a salvo. Por motivos práticos, porém, isso é impossível. Meu filho tem de ser criado como cristão, a Igreja é poderosa. Jamais aceitariam um rei...

- Pensei que você tinha dito que ele não poderia suceder-lhe - respondeu Viviane, secamente.

- Bem, sempre há uma possibilidade - argumentou Uther, em desespero -, se Igraine não tiver outro filho. Se for criado entre os druidas e sua magia, os padres considerariam isso algo maligno.

- Eu lhe pareço maligna, Uther? Ou Merlim? - Olhou diretamente para os olhos dele, e o cunhado desviou o olhar.

- Não, claro que não.

- Então, por que não confiar o filho de Igraine à sabedoria dele e à minha, Uther?

- Porque também eu desconfio da magia de Avalon - admitiu Uther por fim. Com um gesto nervoso, tocou as serpentes tatuadas nos braços. - Vi naquela ilha coisas que fariam empalidecer qualquer bom cristão, e quando meu filho estiver grande, esta ilha será toda cristã. O rei não terá necessidade de imiscuir-se em tais coisas.

Viviane começou a ficar com raiva. "Idiota, fomos Merlim e eu que colocamos você no trono, e não os seus padres e bispos cristãos." Mas não lucraria nada discutindo com ele.

- Você deve agir de acordo com sua consciência, Uther. Peço-lhe, porém, que o mande a algum lugar, para ser criado, e que isso seja sigiloso. Divulgue a notícia de que o está enviando para que cresça na obscuridade, longe das lisonjas a que está sujeito um príncipe na corte - isso é muito comum -, e deixe pensarem que ele vai para a Bretanha Menor, onde tem primos na corte de Ban. E mande-o, na realidade, para algum de seus vassalos mais pobres, um dos velhos cortesãos de Ambrósio, talvez Uriens ou Ectório, alguém obscuro e digno de confiança.

Uther aquiesceu lentamente:

- Será doloroso para Igraine afastar-se do menino, mas um príncipe tem de ser criado como convém ao seu destino futuro, e deve aprender as artes militares. Não direi nem mesmo a você, cunhada, para onde ele irá.

Viviane sorriu, pensando: "Você acha realmente que pode me impedir de saber, se eu quiser?", mas era muito diplomata para dizê-lo em voz alta.

- Tenho outro favor a pedir-lhe, cunhado. Que deixe Morgana ser criada em Avalon.

Uther olhou-a por um momento, depois sacudiu a cabeça:

- Impossível.

- O que é impossível para um Grande Rei, Pendragon?

- Só há dois destinos possíveis para Morgana. Ela deve casar-se com um homem que me seja indiscutivelmente leal, em quem eu confie. Ou, se eu não puder encontrar um aliado tão forte para dá-la em casamento, deverá ir para um convento. Ela não conseguirá nenhum partido da Cornualha, neste reino.

- Ela não me parece bastante religiosa para ser freira.

Uther sacudiu os ombros.

- Pelo dote que posso lhe dar, qualquer convento a receberá de braços abertos.

De súbito, Viviane ficou exasperada. Olhou Uther com firmeza:

- E você acha que pode manter esse reino por muito tempo sem a boa vontade das tribos, Uther? Elas pouco se importam com o seu Cristo ou a sua religião. Elas se voltam para Avalon, e quando isso - colocou o dedo sobre os pulsos de Uther - foi tatuado em seus braços, elas juraram obedecer a Pendragon. Se Avalon retirar o apoio que lhe deu, Uther, assim como o colocamos muito alto, também podemos derrubá-lo.

- Belas palavras, senhora, mas poderá cumprir suas ameaças? Faria isso por uma menina, e além do mais, filha da Cornualha?

- Obrigue-me a isso, e eu o farei. - O olhar de Viviane foi firme, e desta vez Uther não desviou o seu: estava bastante irritado para enfrentá-la, e ela pensou: "Deusa! Se eu fosse dez anos mais moça, como eu e este homem poderíamos ter governado!" Em toda a sua vida, conhecera apenas um ou dois homens que lhe eram iguais em força, mas Uther era um antagonista digno dela. E precisava ser, para manter o reino unido até que o rei predestinado se tornasse homem. E nem mesmo em favor de Morgana ela poderia criar algum risco para esse destino. Viviane achou, porém, que poderia convencer Uther.

- Uther, ouça-me. A menina tem a Visão, nasceu com isso. Não há como escapar ao Invisível, será seguida por ele aonde quer que vá, e, se brincar com tais coisas, será desprezada como feiticeira. É isso o que você deseja para uma princesa, em sua corte?

- Você põe em dúvida a capacidade de Igraine criar a filha como convém a uma mulher cristã? Na pior das hipóteses, ela não poderia fazer nenhum mal atrás das paredes de um convento...

- Não! - Viviane falou tão alto que algumas pessoas no salão inferior levantaram a cabeça e olharam para ela. - Uther, a menina nasceu para sacerdotisa. Se for colocada atrás dos muros de um convento, sofrerá como uma gaivota engaiolada. Você mandaria a filha de Igraine para a morte, ou para uma existência de sofrimentos? Eu acredito sinceramente, e conversei com ela, que Morgana se mataria num convento.

Percebeu que sua argumentação surtira efeito, e insistiu:

- Ela nasceu para isso. Deixe que seja devidamente treinada nos dons que tem. Uther, estará ela tão feliz aqui, ou será um ornamento tão importante em sua corte, que você lamentaria vê-la partir?

Ele sacudiu lentamente a cabeça:

- Tentei gostar dela, para agradar a Igraine. Mas é... tão estranha! Morgause costuma brincar, e dizer que ela era uma fada, e se eu não conhecesse seus pais, bem que acreditaria nisso.

O sorriso de Viviane foi tenso.

- É verdade. Ela se parece comigo, e com nossa mãe. Não se destina ao convento, nem aos sinos de igreja.

- Mas como vou afastar de Igraine seus dois filhos ao mesmo tempo? - perguntou Uther, desesperado. Isso atingiu Viviane como um golpe doloroso, quase que de culpa, mas ela sacudiu a cabeça.

- Igraine também nasceu sacerdotisa. Ela aceitará o que lhe ordena o destino, como você, Uther, aceita o seu. E se você tem medo da ira do seu padre - acrescentou, seguindo espertamente uma intuição, e pelo olhar dele, viu que acertava o alvo -, então, não precisa dizer a ninguém para onde ela vai. Diga, se quiser, que a mandou estudar num convento. Ela é muito prudente e moderada para os costumes de uma corte, para os pequenos namoros e os mexericos das mulheres. E Igraine, se souber que os filhos estão protegidos e felizes, sendo preparados para os seus destinos, ficará satisfeita com você.

Uther baixou a cabeça:

- Que assim seja - disse. - O menino será criado com o meu vassalo mais obscuro e mais leal. Mas como poderei mandá-lo para lá, sem que o saibam? O perigo não irá atrás dele?

- Ele pode ser mandado por meios ocultos e sob um encantamento, da mesma maneira que você chegou a Tintagel. Você não confia em mim, mas confiará em Merlim?

- Seria capaz de confiar-lhe minha própria vida - confessou Uther. - Que Merlim o leve. E Morgana também, que vá para Avalon. - Apoiou a cabeça nas mãos, como se o peso a suportar fosse demasiado grande. - Você é uma mulher sábia - disse, e levantou a cabeça, olhando-a com um ódio invencível. - Gostaria que fosse uma idiota a quem eu pudesse desprezar, maldita seja!

- Se seu padre estiver certo - comentou Viviane calmamente -, já estou irremediavelmente amaldiçoada; portanto, não precisa se preocupar.

 

Capítulo 11

O sol se punha, quando chegaram ao lago. Viviane voltou-se sobre o pônei a fim de olhar para Morgana, que vinha um pouco atrás dela. A menina tinha o rosto abatido pelo cansaço e pela fome, mas não havia se queixado, e Viviane, que imprimira à viagem um ritmo deliberadamente rápido para colocar à prova a sua resistência, ficou satisfeita. A vida de uma sacerdotisa de Avalon não era fácil, precisava conhecer a capacidade de Morgana para suportar a fadiga e as adversidades. Diminuiu a marcha do pônei e deixou que ela passasse à sua frente.

- Lá está o lago. Dentro em pouco estaremos em casa, e teremos fogo, alimento e bebida.

- Eu ficarei contente com todos os três - disse Morgana.

- Está cansada?

- Um pouco - admitiu, com indiferença. - Mas sinto que a viagem termine. Gosto de ver coisas novas e nunca tinha viajado antes.

Pararam os cavalos à beira da água, e Viviane tentou ver a cena familiar tal como seria vista por um estranho - as águas cinzentas e opacas, os juncos altos, as nuvens silenciosas e baixas, e tufos de algas na água. Era uma paisagem tranquila, e Viviane podia ouvir os pensamentos da menina: É solitário aqui, e sombrio, e triste.

- Como vamos chegar a Avalon? Não há ponte. Não teremos de fazer os cavalos nadar, não? - perguntou Morgana, e a tia, lembrando que tiveram de fazer exatamente isso, num riacho que crescera com as chuvas da primavera, tranquilizou-a.

- Não. Chamarei o barco.

Levantou as duas mãos, cobrindo o rosto, fechou-se às visões e sons indesejados, e lançou o chamado silencioso. Poucos momentos depois, na superfície acinzentada do lago, surgiu um barco baixo. Revestido num dos extremos de preto e prateado, deslizava tão silenciosamente que parecia pairar acima da água, como um pássaro aquático - não havia barulho de remos, mas o barco aproximou-se, e viram os remadores, silenciosos, manejando os remos sem respingar água nem fazer qualquer ruído. Eram homens pequenos, seminus, tinham a pele tatuada de azul, desenhos mágicos, e Viviane notou que os olhos de Morgana se arregalaram, embora a menina nada dissesse.

- Ela aceita tudo isso com demasiada calma, pensou Viviane. É muito criança para compreender o mistério do que fazemos; tenho de despertar-lhe a consciência para isso.

Os homens pequenos e silenciosos prenderam o barco à terra com uma corda curiosamente trançada de juncos. Viviane fez sinal para que Morgana desmontasse, e os cavalos foram colocados no barco. Um dos homens tatuados estendeu-lhe a mão para ajudá-la a embarcar, e ela esperava que seu contato fosse etéreo, uma visão como o barco, mas, em vez disso, a mão do homenzinho era calejada, dura como um chifre. Por fim, Viviane tomou seu lugar à proa, e rumaram lenta e silenciosamente para o lago.

À frente, ficava a ilha e o Tor, com sua alta torre de São Miguel; sobre a água tranquila, os sinos da igreja fizeram soar o Ângelus. O hábito levou Morgana a fazer o sinal-da-cruz, mas o olhar que um dos homenzinhos lhe dirigiu fez com que baixasse a mão. O barco deslizava sobre a água, serpeando por entre os juncos altos, e a menina viu os muros da igreja e do mosteiro. Viviane sentiu o medo súbito que se apossava dela: iriam, afinal de contas, para a ilha dos Padres, onde as paredes de um convento se fechariam sobre ela, para sempre?

- Vamos para a igreja da ilha, titia?

- Não vamos para a igreja - respondeu Viviane tranquilamente -, embora seja certo que um viajante comum, ou você mesma, se saísse sozinho pelo lago, jamais chegaria a Avalon. Espere para ver e não faça perguntas. Essa será sua atitude enquanto estiver sendo preparada.

Morgana ficou calada. Com os olhos ainda arregalados de medo, disse, em voz baixa:

- É como a história da barca das fadas, que parte das ilhas para a Terra da Juventude...

Viviane não prestou atenção. Estava na proa, respirando profundamente, reunindo suas forças para o ato mágico que teria de realizar. Por um momento, duvidou se ainda teria forças para isso. "Estou velha", pensou num pânico momentâneo, mas devo viver até que Morgana e seu irmão cresçam. A paz de toda esta terra depende do que eu possa fazer para protegê-los!

Afastou tais pensamentos, pois a dúvida era fatal. Lembrou-se de que fazia isso quase todos os dias de sua vida adulta, e já era um ato tão natural que poderia ser praticado dormindo, ou mesmo se estivesse morrendo. Ficou de pé, rígida, encerrada na tensão da magia, depois estendeu os braços totalmente, levantando-os bem acima da cabeça, com as palmas voltadas para o céu. E com uma respiração exalada rapidamente, baixou-os - e com eles fez descer a névoa, a imagem da igreja desapareceu, com as margens da ilha dos Padres, inclusive o Tor. A barca mergulhou na cerração densa e impenetrável, escura como a noite à volta delas, e, nas trevas, ela ouvia a respiração ofegante de Morgana, como a de um animalzinho assustado. Começou a falar, para tranquilizá-la de que nada havia a temer, mas conteve-se deliberadamente. Morgana estava agora recebendo seu preparo como sacerdotisa, e tinha de aprender a dominar o medo, tal como sobrepujara a fadiga, as dificuldades e a fome.

O barco começou a cortar a névoa. Com rapidez e segurança, pois não havia outros barcos naquele lago, atravessou a umidade espessa e envolvente; Viviane sentia-a nos cabelos e sobrancelhas, atravessando seu xale de lã. Morgana tremia com um súbito frio.

Depois, como se uma cortina estivesse sendo descerrada, a bruma desapareceu, e à frente delas surgiu uma faixa de água iluminada pelo sol e sua margem verde. Lá estava o Tor, e Viviane ouviu a menina conter a respiração, com surpresa e espanto. No alto do Tor, havia um círculo de pedras que brilhavam à luz do sol. Para lá se dirigia o grande caminho processional, em curvas ascendentes, como uma espiral em torno do morro enorme. Ao pé do Tor, estavam os edifícios onde se alojavam os sacerdotes, e nas encostas ela podia ver o Poço Sagrado e o brilho prateado da lagoaespelho, abaixo dele. Ao longo da margem, havia bosques de macieiras e, depois deles, grandes carvalhos, com os brotos dourados do visgo apegando-se aos seus ramos, em pleno ar.

Morgana murmurou:

- É belo... - e Viviane percebeu o respeito em sua voz. - Senhora, isto é real?

- Mais real do que qualquer outro lugar que você tenha visto - respondeu -, e logo você o conhecerá.

O barco aproximou-se da margem e arranhou pesadamente o fundo arenoso do lago. Os remadores silenciosos amarraram-no a uma corda, e ajudaram a Senhora a desembarcar. Depois, conduziram os cavalos para terra, e Morgana teve de descer sozinha.

Jamais esqueceria a primeira vez que viu Avalon, ao entardecer. Relvados verdes desciam até a beirada dos juncos, ao longo do lago, e cisnes deslizavam, silenciosos como o barco, sobre as águas. Nos bosques de carvalhos e macieiras, havia uma construção baixa de pedra cinzenta, e a menina divisou formas vestidas de branco caminhando lentamente, ao longo de um caminho cercado de colunas. Podia ouvir também, muito suave, o som de uma harpa. A luz baixa, inclinada - seria o mesmo sol que conhecia? - inundava a terra de ouro e silêncio, e ela sentiu um aperto na garganta. Pensou, sem saber por quê: "Estou chegando em casa", embora tivesse passado toda a sua vida em Tintagel e Caerleon e nunca houvesse visto antes aquela terra encantada.

Viviane deu as últimas instruções sobre os cavalos e voltou-se novamente para Morgana. Viu a expressão de espanto e respeito no rosto da sobrinha e ficou calada, até que ela deu um suspiro profundo, como se acordasse. Mulheres vestidas de roupas pretas, com sobretúnicas de couro de gamo, algumas delas com uma lua crescente tatuada em azul entre as sobrancelhas, desceram o caminho em direção a elas. Eram, em sua maioria, parecidas com Morgana e Viviane, pequenas e morenas, do povo dos pictos, mas outras havia, altas e esguias, de cabelos louros ou avermelhados, e duas ou três com a marca inequívoca da descendência romana. Curvaram-se ante Viviane, em manifestação silenciosa de respeito, e ela ergueu a mão numa bênção.

- Esta menina é minha parenta - disse Viviane. - Seu nome é Morgana. Ela será uma de vocês. Levem-na... - Olhou então para a sobrinha, que tremia, pois o sol se punha e a escuridão, descendo, apagava as cores fantásticas da paisagem. A menina estava cansada e atemorizada. Teria à sua frente provas e dificuldades suficientes: não seria necessário começar naquele momento.

- Amanhã você irá para a Casa das Moças. O fato de ser minha parenta e uma princesa, lá, não fará nenhuma diferença; você não terá nome nem receberá favores, exceto os que puder conquistar por si mesma. Mas, apenas por esta noite, fique comigo; tivemos pouco tempo para conversar, durante a viagem.

Morgana sentiu os joelhos tremerem de um súbito alívio. As mulheres que tinha à sua frente, todas estranhas e com roupas incomuns, com as marcas azuis na testa, atemorizavam-na mais do que toda a corte de Uther reunida. Viu Viviane liberá-las com um pequeno gesto, e as sacerdotisas - pois supôs que o fossem - voltaram-se e afastaram-se. Viviane estendeu a mão, que Morgana pegou, sentindo os dedos tranquilizadoramente frios e sólidos.

Mais uma vez, Viviane era a tia que conhecia e, ao mesmo tempo, a figura atemorizante que fizera descer as brumas. Mais uma vez, Morgana sentiu o impulso de benzer-se, e pensou se toda aquela paisagem desapareceria, tal como o padre Columba disse que aconteceria com todas as obras demoníacas e as feitiçarias, ao sinal-da-cruz.

Mas não se benzeu. Teve, de repente, a consciência de que jamais voltaria a fazê-lo. Aquele mundo ficara para trás, para sempre.

Na orla do bosque de macieiras, entre duas árvores que começavam a florir, estava uma pequena casa de taipa. Lá dentro, havia um fogo, e uma mulher jovem - como as outras que viu, vestida de roupas pretas e túnica de couro - saudou-as curvando-se silenciosamente.

- Não fale com ela - recomendou Viviane. -Está, no momento, sob voto de silêncio. É uma sacerdotisa no quarto ano, e chama-se Raven.

Em silêncio, Raven retirou as roupas externas de Viviane, e seus sapatos sujos de lama e gastos pela viagem; a um sinal da Senhora, fez o mesmo com Morgana. Trouxe-lhes água para se lavarem e, mais tarde, alimentos: pão de cevada e carne defumada. Para beber, havia apenas água fria, mas era fresca e deliciosa, diferente de qualquer outra água que Morgana já provara.

- É água do Poço Sagrado - explicou Viviane. - É a única coisa que bebemos aqui: ela favorece a Visão e clareia a vista. E o mel é das nossas próprias colméias. Coma a carne com gosto, porque você não voltará a prová-la durante anos: as sacerdotisas não comem carne até concluírem sua preparação.

- Por quê, senhora? - perguntou Morgana, que não conseguia mais dizer "titia", pois entre ela e os nomes familiares estava a lembrança da figura parecida com uma Deusa, fazendo baixar as brumas. - É errado comer carne?

- Claro que não, e dia virá em que você poderá comer qualquer coisa. Mas a dieta isenta de carne produz um alto nível de consciência, e você precisará disso enquanto estiver aprendendo a usar a Visão e a controlar seus poderes mágicos, em lugar de se deixar controlar por eles. Como os druidas nos primeiros anos de seu treinamento, as sacerdotisas só podem comer pão e frutas, por vezes um pouco de peixe do lago, e só bebem água do poço.

Morgana disse, timidamente:

- A senhora bebeu vinho em Caerleon.

- Certamente, e você também poderá fazê-lo, quando souber quais os momentos adequados para beber e comer, e quais os momentos de abstinência - respondeu secamente.

Isso silenciou Morgana, que ficou sentada, comendo seu pão com mel. Embora tivesse fome, aquilo parecia agarrar-se à sua garganta.

- Comeu o bastante? - perguntou Viviane. - Bem, deixe então Raven levar os pratos. Você precisa dormir, filha. Mas sente-se aqui ao meu lado, diante do fogo, e conversemos um pouco, pois amanhã Raven a levará para a Casa das Moças, e você não me verá mais, a não ser na ocasião dos ritos, até estar em condições de igualdade com as sacerdotisas mais antigas, quando poderá dormir em minha casa e assistir-me como criada. E nessa ocasião você também provavelmente terá feito um voto de silêncio, não falará nem responderá ao que lhe perguntarem. Mas esta noite, você é apenas minha sobrinha, que ainda não foi dedicada ao serviço da Deusa, e pode perguntar o que quiser.

Estendeu a mão, e Morgana sentou-se ao seu lado no banco, em frente ao fogo. Viviane voltou-se e pediu:

- Quer tirar o grampo do meu cabelo, Morgana? Raven foi descansar, e não quero perturbá-la novamente.

Morgana tirou o grampo de osso entalhado do cabelo da Senhora, que despencou como uma onda, longo e escuro, com uma mecha branca numa das têmporas. Viviane suspirou, estendendo os pés nus para o fogo.

- É bom estar novamente em casa. Tenho sido obrigada a viajar muito nos últimos anos, e já não sou bastante forte para ter prazer nisso.

- A senhora permitiu que eu lhe fizesse perguntas - começou Morgana timidamente. - Por que algumas das mulheres têm marcas azuis na testa e outras, não?

O crescente azul é um sinal de que se dedicaram ao serviço da Deusa e que estão preparadas para morrer ou viver, segundo a vontade dela. As que estão aqui apenas para receber alguma instrução sobre a Visão não fazem esse voto.

- Terei de fazer votos?

- Isso você própria decidirá. A Deusa dirá se quer colocar sua mão sobre você. Só os cristãos usam o claustro como um quarto de despejo para as filhas e viúvas indesejadas.

- Mas como saberei que a Deusa me quer?

Viviane sorriu no escuro.

- Ela a chamará com uma voz que não pode deixar de ser compreendida. Se você tiver ouvido esse chamado, não haverá lugar algum no mundo onde possa se esconder dele.

Morgana ficou pensando, mas era muito tímida para perguntar, se a tia fizera tal voto. Decerto! Ela é a Grã-Sacerdotisa, a Senhora de Avalon...

- Eu fiz o voto - contou Viviane tranquilamente, com o jeito que tinha de responder a perguntas não formuladas -, mas a marca desapareceu com o tempo. Se você olhar bem, creio que ainda pode ver um vestígio dela, onde o cabelo começa.

- Sim, um pouco... O que significa ser dedicada à Deusa? Quem é a Deusa? Perguntei certa vez ao padre Columba se Deus tinha algum outro nome, e ele respondeu que não, que havia apenas um Nome pelo qual podíamos ser salvos, e esse nome era o de Jesus Cristo, mas... - Parou, envergonhada. - Sou muito ignorante nessas coisas.

- Ter consciência da ignorância é o início da sabedoria. Mas quando você começar a aprender, não precisará esquecer todas as coisas que pensa conhecer. Deus é chamado por muitos nomes, mas é o mesmo em toda parte; assim, quando você reza a Maria, mãe de Jesus, reza sem o saber, para a Mãe do Mundo em uma de suas muitas formas. O deus dos padres e o Grande Uno dos druidas são o mesmo, e é por isso que, por vezes, Merlim ocupa um lugar entre os conselheiros cristãos do Grande Rei. Ele sabe, embora eles o ignorem, que Deus é Um só.

- Sua mãe foi sacerdotisa aqui, antes da senhora, minha mãe disse...

- É verdade, mas não é apenas uma questão de sangue. Será antes pelo fato de eu ter herdado a Visão e me dedicado à Deusa por minha livre vontade. A Deusa não chamou sua mãe, nem Morgause. Por isso, enviei Igraine para casar-se com seu pai e depois com Uther, e Morgause para ser desposada de acordo com a vontade do rei. O casamento de Igraine serviu à Deusa; sobre Morgause, ela não tinha poder nem mando.

- As sacerdotisas chamadas pela Deusa não devem se casar, então?

- Habitualmente, não. Elas não se entregam a nenhum homem, exceto no Grande Casamento, quando sacerdote e sacerdotisa se unem num símbolo de Deus e Deusa, e os filhos que resultam dessa união não são filhos de nenhum mortal, mas da Deusa. Isso é um Mistério, e você aprenderá no devido tempo. Eu nasci assim, e não tenho um pai humano...

Morgana olhou para ela e murmurou:

- Quer dizer que... que sua mãe se deitou com um deus?

- Não, claro que não. Apenas um sacerdote, obscurecido pelo poder de Deus, provavelmente um sacerdote cujo nome ela nunca soube, porque naquele momento Deus entrou nele e o possuiu, de modo que o homem foi esquecido e ignorado.

Seu rosto estava distante, recordando coisas estranhas. Morgana podia vê-las passar pelos seus olhos. O fogo parecia fazer desenhos na sala, uma grande figura de um Cornudo... Estremeceu subitamente e embrulhou-se melhor no manto.

- Está cansada, filha? Você devia ir dormir...

Mas a curiosidade de Morgana voltou:

- A senhora nasceu em Avalon?

- Sim, embora tenha sido criada na Ilha Sagrada, muito mais ao norte, nas ilhas. E quando cresci, a Deusa escolheu-me: o verdadeiro sangue das sacerdotisas natas corre nas minhas veias, como acho que corre também nas suas, minha filha. - Sua voz estava distante; levantou-se e ficou olhando para o fogo.

- Estou procurando lembrar-me há quantos anos vim para cá, com a velha... A lua estava mais para o sul, então, pois era época da colheita, e os dias escuros do Samhain aproximavam-se, ao final do ano. Foi um inverno rigoroso, mesmo em Avalon; à noite, ouvíamos os lobos, a neve acumulou-se muito, e passamos fome, pois era impossível atravessar com as tempestades; algumas das crianças que mamavam morreram, quando lhes faltou leite... E então o lago congelou, e trouxeram-nos alimentos em trenós. Eu era muito nova, meus seios ainda não haviam crescido; agora sou velha, uma mulher velha... tantos anos, filha.

Morgana sentiu que a mão dela tremia na sua. E Viviane passou-lhe o braço pela cintura.

- Tantas luas, tantos solstícios... e agora parece que o Samhain vem logo depois da véspera de Beltane, mais depressa do que a lua passava de nova a cheia, quando eu era jovem. E você também ficará aqui, diante do fogo, e envelhecerá como envelheci, a menos que a Mãe lhe reserve outras tarefas... ah, Morgana, Morgana, minha pequena, eu deveria tê-la deixado na casa de sua mãe...

Morgana abraçou-a impetuosamente:

- Eu não podia ficar lá! Preferia ter morrido...

- Eu sabia disso - suspirou Viviane. - Acho que também foi escolhida pela Mãe. Mas você vem de uma vida de conforto para uma existência de agruras e dificuldades, Morgana, e eu talvez tenha para você tarefas tão amargas quanto as que me foram destinadas pela Grande Mãe. Neste momento, você só pensa em aprender a usar a Visão, e em viver na velha terra de Avalon, mas não é fácil servir ao desejo de Ceridwen, minha filha. Ela não só é a Grande Mãe do Amor e do Nascimento, mas também a Senhora das Trevas e da Morte. - Suspirando, Viviane afagou os cabelos da menina. - É também a Morigán, a mensageira da luta, o Grande Corvo... ah, Morgana, que bom se você fosse minha filha, mas mesmo assim, eu não poderia poupá-la, terei de usá-la com as finalidades para as quais eu mesma fui usada... - Inclinou a cabeça, pousando-a por um momento no ombro da menina. - Morgana, eu a quero muito, mas haverá um momento em que você me terá tanto ódio quanto me tem amor, agora.

Morgana caiu impulsivamente de joelhos:

- Jamais - murmurou. - Estou nas mãos da Deusa... e nas suas.

- Permita ela que você nunca se arrependa dessas palavras. - Viviane estendeu as mãos para o fogo, suas pequenas mãos fortes, um pouco inchadas devido à idade. - Com estas mãos, fiz o parto de muitas crianças, e vi o sangue vital de um homem fluir delas. Certa vez, traí um homem, provocando sua morte, um homem que jazia em meus braços e a quem havia jurado amar. Destruí a paz de sua mãe, e agora tomei-lhe a filha. Você não me odeia e me teme, Morgana?

- Sim, tenho medo da senhora - respondeu, ajoelhando-se aos pés de Viviane, enquanto a luz do fogo refletia-se em seu rosto moreno e sério -, mas jamais poderia odiá-la.

Viviane deu um profundo suspiro, afastando a premonição e o medo.

- E não é a mim que você teme, criança, mas a ela. Estamos ambas em suas mãos. Sua virgindade é sagrada para a Deusa. Conserve-a, até que a Mãe torne conhecida sua vontade.

Morgana colocou sua pequena mão sobre a de Viviane:

- Que assim seja - murmurou. - Eu juro.

 

MORGANA FALA..

Como escrever sobre o preparo de uma sacerdotisa? O que não é óbvio é secreto. Aqueles que trilharam o caminho saberão, e os que não o trilharam ignorarão, embora eu descreva todas as coisas proibidas. Sete vezes veio e passou a véspera de Beltane; sete vezes os invernos nos fizeram tremer de frio. A Visão veio com facilidade, Viviane dizia que eu nasci sacerdotisa. Não era tão fácil fazê-la vir quando eu queria e só quando eu queria, e fechar-lhe as portas quando não era conveniente que eu visse.

As pequenas magias é que eram mais difíceis, forçando a mente a caminhar pela primeira vez por trilhas desconhecidas. Invocar o fogo e provocá-lo à vontade, fazer baixar as brumas e cair a chuva - tudo isso era simples, mas saber quando fazer chover ou provocar a bruma e quando deixar tudo nas mãos de Deus, não era tão simples. Havia outras lições que meu conhecimento da Visão não tornava mais fáceis: as ervas, a arte de curar, as longas canções das quais não se podia nunca escrever sequer uma palavra, pois como pode o conhecimento dos Grandes ficar registrado por alguma coisa feita por mãos humanas? Algumas das lições eram uma grande alegria, pois eu podia aprender a tocar harpa e criar meu próprio instrumento com madeira sagrada e usando as tripas de um animal morto no ritual. E algumas lições eram de terror. A mais difícil de todas talvez fosse a lição de olhar para dentro de mim mesma, sob o encanto das drogas que separavam a mente do corpo, doente e nauseado, enquanto a mente voava livre, superando os limites do tempo e do espaço, e ler nas páginas do passado e do futuro. Mas sobre isso nada posso dizer. Por fim, chegou o dia em que fui lançada fora de Avalon, vestindo apenas uma camisola e tendo como única arma a pequena adaga de sacerdotisa, para voltar - se pudesse. Sei que se não o conseguisse, seria lamentada como morta, mas as portas jamais se abririam para mim novamente, a menos que eu pudesse fazê-las abrir-se por minha própria vontade e comando. E quando a cerração se fechou à minha volta, perambulei pelas margens do estranho lago, ouvindo apenas os sinos e o canto melancólico dos monges. E por fim rompi a névoa, e chamei-a com os pés na terra e a cabeça entre as estrelas, estendendo-me de horizonte a horizonte, gritando em voz alta a grande palavra do Poder...

E as brumas dissiparam-se, e vi à minha frente a margem iluminadu pelo sol onde a Senhora me trouxera sete anos antes, e coloquei o pé na terra firme do meu lar, e chorei como o fizera quando ali cheguei como uma criança assustada. E então a marca da lua crescente foi posta em minha testa pela mão da própria Deusa... mas trata-se de um Mistério do qual é proibido falar. Os que sentiram a sua fronte queimada pelo beijo de Ceridwen saberão do que falo.

Foi na segunda primavera depois disso, quando fui liberada do voto de silêncio, que Galahad, já um hábil guerreiro contra os saxões, sob o comando de seu próprio pai, o rei Ban da Bretanha Menor, voltou a Avalon.

 

Capítulo 12

As sacerdotisas de grau superior revezavam-se no serviço da Senhora do Lago, e na época em que ela estava muito ocupada com os preparativos para o próximo festival do solstício de verão, uma delas dormia na pequena casa de taipa, para que a Senhora sempre tivesse alguém à sua disposição, dia e noite. Era cedo que o sol ainda se escondia na cerração, na linha do horizonte, quando Viviane entrou no quarto contíguo ao seu, onde dormia sua atendente, e fez um sinal para despertá-la.

A mulher sentou-se na cama, enfiando a túnica de pele sobre a roupa.

- Diga aos barqueiros que se aprontem. E que minha sobrinha Morgana venha falar comigo.

Poucos minutos depois, Morgana parava respeitosamente à porta do aposento, onde Viviane, de joelhos, acendia o fogo. Não fez nenhum rumor; depois de nove anos de treinamento nas artes sacerdotais, movimentava-se tão silenciosamente que nenhum som de passos, e nem mesmo um sopro de ar, marcava sua passagem. Mas após esses anos, também os costumes das sacerdotisas lhe eram tão familiares que não se surpreendeu quando Viviane se voltou, no momento em que chegou à porta, e disse:

- Entre, Morgana.

Contrariando seu costume, porém, não a convidou a sentar-se, deixando-a de pé ali e olhando-a calmamente por um momento.

Morgana não era alta, jamais o seria, e naqueles anos em Avalon chegara a sua altura máxima, uns poucos centímetros a mais do que a Senhora. Seu cabelo negro estava puxado para trás, trançado na nuca, e envolto numa tira de couro de veado; trajava a roupa azul-escura com a sobretúnica de pele usadas pelas sacerdotisas, e o crescente azul brilhava sombriamente entre suas sobrancelhas. Embora se mantivesse discreta e anônima, havia um brilho em seus olhos que respondia ao olhar frio de Viviane, e a Senhora do Lago sabia por experiência que, por mais frágil e delicada que fosse, quando desejava, sabia criar um encanto à sua volta que a fazia parecer não só alta mas majestosa. Já começava a aparentar uma idade indefinida, e Viviane sabia que Morgana se conservaria assim, mesmo quando os fios brancos surgissem em sua cabeleira negra.

Pensou, com um sentimento de alívio, "Não, ela não é bonita", e depois imaginou que importância isso poderia ter. Sem dúvida, como todas as moças, mesmo uma sacerdotisa dedicada ao serviço perpétuo da Deusa preferiria ser bela, e sentia-se muito infeliz porque ela não o era. Pensou, com ligeira contração do lábio: "Quando você tiver a minha idade, ser bonita ou não deixará de ter importância, pois todos os que a conhecerem acreditarão que você possui grande beleza, sempre que assim o desejar; e, se não o desejar, poderá ficar discretamente em segundo plano, fingindo ser uma simples velha, para quem tais coisas já passaram." Travara sua batalha havia mais de vinte anos, quando viu Igraine se transformando em mulher, com a beleza morena pela qual Viviane, ainda jovem, teria trocado de bom grado toda a sua alma e todo o seu poder. Por vezes, nos momentos de dúvida, ela cogitava se teria dado Igraine em casamento a Gorlois para não ter sempre à sua frente a beleza da mulher mais jovem zombando de sua seriedade sombria. "Mas proporcionei-lhe o amor do homem que lhe foi destinado antes que as pedras do circulo da planície de Salisbury tivessem sido colocadas, uma após outra", pensou.

Percebeu que Morgana continuava de pé, silenciosamente, esperando sua palavra, e sorriu.

- Realmente, estou ficando velha. Fiquei perdida, por um momento, em recordações. Você não é mais a criança que chegou aqui há muitos anos; mas há momentos em que me esqueço disso, minha Morgana.

Morgana sorriu, e o sorriso transformou-lhe o rosto, que, em repouso, era bastante sisudo. Como Morgause, pensou Viviane, embora, sob outros aspectos, em nada se pareçam. É o sangue de Taliesin.

- Creio que não se esquece de nada, tia.

- Talvez não. Já tomou sua primeira refeição, filha?

- Não. Mas não tenho fome.

- Muito bem. Quero que você vá na barca.

Morgana, que se habituara ao silêncio, respondeu apenas com um gesto de respeito e assentimento.

Não era, na verdade, um pedido excepcional - a barca de Avalon tinha de ser sempre guiada por uma sacerdotisa que conhecesse o caminho secreto, em meio à névoa.

- É uma missão de família - disse Viviane -, pois meu filho está se aproximando da ilha, e achei conveniente mandar-lhe uma parenta recebê-lo.

Morgana sorriu:

- Balan? Seu irmão de criação Balin não teme pela alma dele, se se afastar do som dos sinos das igrejas?

Um brilho divertido iluminou os olhos de Viviane, que observou:

- Ambos são homens orgulhosos e guerreiros dedicados, e levam existências impecáveis, mesmo pelos padrões dos druidas, sem fazer mal a ninguém, sem oprimir pessoa alguma e até procurando reparar as injustiças, quando as encontram. Não tenho dúvidas de que os saxões os consideram quatro vezes mais perigosos, quando lutam lado a lado. Na verdade, nada temem, a não ser a magia da feiticeira malvada que é mãe de um deles... - disse, rindo como uma menina, e Morgana riu com ela.

Depois, moderando-se, continuou:

- Bem, não lamento ter mandado Balan para ser criado no mundo exterior. Ele não tinha vocação para druida, e teria sido um mau sacerdote; embora esteja perdido para a Deusa, sem dúvida ela olhará por ele, a seu modo, mesmo que Balan lhe faça orações com um rosário e lhe dê o nome de Virgem Maria. Não, ele está longe, no litoral, lutando contra os saxões ao lado de Uther, e estou satisfeita de que assim seja. É de meu filho mais novo que falo.

- Pensei que Galahad ainda estivesse na Bretanha gaulesa.

- Eu também, mas na noite passada tive uma Visão com ele. Está aqui. Quando o vi pela última vez, tinha apenas doze anos. Cresceu muito, parece-me; deve estar com dezesseis anos ou mais, e pronto a pegar em armas, mas não tenho certeza de que seja isso o que ele quer.

Morgana sorriu, e Viviane lembrou-se de que, quando a moça chegou, era uma criança solitária, e por vezes recebia autorização para passar o tempo com a outra única criança de Avalon, Galahad.

- Ban de Benwick deve estar velho, agora - comentou Morgana.

- Velho, sim; e com muitos filhos, e o meu filho, entre eles, é apenas mais um dos bastardos do rei, digno de pouca consideração. Mas seus meios irmãos têm medo dele e preferem vê-lo longe: um filho do Grande Casamento não pode ser tratado como qualquer outro bastardo - explicou Viviane, respondendo a uma pergunta não formulada. - O pai queria dar-lhe terras e propriedades na Bretanha gaulesa, mas antes que o menino tivesse seis anos, fiz com que seu coração ficasse preso aqui, no lago.

Notou o brilho nos olhos de Morgana e respondeu novamente à pergunta que ela não fizera:

- Crueldade, deixá-lo sempre descontente? Talvez. Não fui eu a cruel, mas a Deusa. O destino dele está em Avalon e eu o vi, na Visão, ajoelhado diante do Santo Cálice...

Novamente, com uma inflexão irônica, Morgana fez o pequeno gesto de assentimento com o qual uma sacerdotisa, sob voto de silêncio, teria concordado com uma ordem.

De súbito, Viviane irritou-se consigo mesma. "Eu fico aqui, justificando-me para uma criança pelo que fiz da minha vida e da vida de meus filhos! Não lhe devo explicações!" Disse então, numa voz que se tornara subitamente fria e distante:

- Vá com a barca, Morgana, e traga-o para mim.

Morgana fez pela terceira vez o gesto de assentimento e voltou-se para sair.

- Um momento - chamou Viviane. - Você tomará sua primeira refeição aqui conosco, quando voltarem. Ele é seu primo e parente, também.

Quando Morgana sorriu novamente, Viviane compreendeu que estivera tentando fazer a garota sorrir, e ficou surpresa consigo mesma.

Morgana caminhou pela trilha até a margem do lago. O coração batia-lhe mais depressa do que o habitual; muitas vezes, naqueles dias, ao falar com a Senhora, o ódio e a afeição misturavam-se nela, e a nenhum dos dois podia dar expressão, o que provocava reações estranhas em sua mente. Indagava-se o motivo, pois aprendera a controlar as emoções, tal como controlava as palavras e até mesmo o pensamento.

Lembrava-se de Galahad, dos primeiros anos em Avalon - um menino magro, moreno, sério. Não gostava muito dele, mas como o coração estava cheio de saudades de seu irmãozinho, fez companhia ao menino solitário. Depois, ele foi mandado para longe, e só o vira uma vez, quando ele tinha doze anos, um rapaz de olhos, dentes e ossos grandes, com roupas que eram pequenas para ele. Manifestava um grande desprezo por tudo o que se relacionava com as mulheres, e ela estava ocupada com a parte mais difícil de seu treinamento, razão por que não lhe dedicou muita atenção.

Os homens pequenos e morenos que remavam a barca inclinaram-se diante de Morgana, no respeito reverente à Deusa, cuja forma as sacerdotisas superiores representavam; ela fez-lhes um sinal e tomou seu lugar na proa.

Rápida e silenciosamente a barca deslizou em meio à névoa. Morgana sentiu a umidade penetrar-lhe a fronte e os cabelos; estava com fome, gelada até os ossos, mas haviam aprendido a não tomar conhecimento disso, também. Quando saíram da cerração, o sol já despontara na margem distante, e ela viu um cavalo e um cavaleiro esperando. A barca continuou a avançar com lentas remadas, e Morgana, num raro momento de enleio, distraiu-se olhando para o cavaleiro ao longe.

Era de compleição franzina, de rosto aquilino e beleza morena, destacando-se pelo chapéu vermelho com uma pena de águia e o amplo manto vermelho, que caía graciosamente à sua volta. Quando desmontou, a graça natural com que se movimentava, a graça de um dançarino, surpreendeu Morgana. Como fora capaz de desejar ser loura e mais gorda, quando uma pessoa morena e esbelta podia exibir tal beleza? Os olhos do rapaz eram escuros também, brilhando com um toque de malícia - a única indicação que ela encontrou da sua identidade, pois nenhum outro traço restava do menino magricela de pernas ossudas e pés enormes.

- Galahad - disse então, mantendo baixa a voz para que não tremesse, um recurso usado pelas sacerdotisas. - Eu não o teria reconhecido.

Ele curvou-se gentilmente, enquanto a capa girava com o movimento, e Morgana perguntou-se se já teria desprezado aquele gesto, como um truque de acrobata. Nele, parecia vir do próprio corpo.

- Senhora.

"Ele não me reconheceu. Não direi quem sou."

Por que, naquele momento, se recordou das palavras de Viviane? "Sua virgindade é sagrada para a Deusa. Conserve-a, até que a Mãe torne conhecida a sua vontade." Surpresa, reconheceu que, pela primeira vez na vida, olhava para um homem com desejo. Sabendo que tais coisas não lhe eram destinadas, que teria de viver cumprindo as determinações da Deusa, encarava os homens com desprezo, como a presa natural da Deusa, sob a forma de suas sacerdotisas, para ser tomada ou rejeitada, conforme a conveniência do momento. Viviane determinara que, naquele ano, ela não precisaria participar do ritual do fogo de Beltane, do qual algumas de suas colegas sacerdotisas saíam grávidas por vontade da Deusa, e tais crianças nasciam ou eram abortadas pelo efeito de ervas, cujo conhecimento lhe fora transmitido - um processo desagradável que, se não fosse seguido, dava origem ao processo ainda mais desagradável e perigoso do parto, com o aparecimento de crianças enfadonhas, que eram criadas ali ou enviadas para lares adotivos, segundo as determinações da Senhora. Morgana ficara satisfeita por escapar disso, pois sabia que Viviane tinha outros planos para ela.

Fez um gesto ao cavaleiro para que embarcasse. Nunca coloque as mãos num estranho - as palavras da velha sacerdotisa que fora sua mestra -, uma sacerdotisa de Avalon deve ser tão distante quanto um visitante do outro mundo. Ficou pensando por que motivo sua mão se levantara instintivamente para tocar o pulso do jovem. Sabia, com uma certeza que lhe fazia o sangue bater forte nas têmporas, que sob a pele macia havia músculos rijos, pulsando com vida, e ansiava por encontrar novamente os seus olhos. Voltou-se, tentando dominar-se.

Com uma voz profunda e musical, ele disse:

- Ora, agora que você mexeu com as mãos, eu a reconheci. Tudo o mais, em você, mudou. Sacerdotisa, você não foi outrora minha prima, chamada Morgana? - Os olhos negros brilharam. - Nada mais é a mesma coisa, desde o tempo em que eu costumava chamá-la de Morgana das Fadas...

- Eu era, e ainda sou. Mas os anos passam - respondeu, afastando-se e ordenando com um gesto aos remadores silenciosos que partissem.

- Mas a magia de Avalon nunca muda - murmurou ele, e Morgana sabia que não falava com ela. - A bruma, os juncos e o grito dos pássaros aquáticos... e depois a barca, como mágica, deslizando a partir da margem silente... Sei que não há, aqui, nada para mim, e ainda assim, por alguma razão, sempre volto...

A barca avançava silenciosamente pelo lago. Mesmo agora, depois de saber durante anos que não se tratava de magia, mas de um treinamento intensivo em remar sem fazer ruído, Morgana ainda se impressionava com o silêncio místico em que se moviam. Voltou-se para chamar as brumas, e teve consciência do moço atrás dela. Estava de pé, equilibrando-se sem esforço ao lado do cavalo, com um braço apoiado na sela e sustentando o peso facilmente, sem mexer-se com a oscilação do barco. Morgana podia fazer isso devido ao longo treinamento, mas ele parecia que o conseguia pela sua própria graça natural.

Morgana sentia-lhe os olhos escuros como um calor palpável nas costas, ao dirigir-se à proa e levantar os braços, fazendo as mangas compridas se arrastarem. Respirou profundamente, preparando-se para o ato mágico, sabendo que tinha de reunir todas as forças, irritada consigo mesma pela consciência de estar sendo observada.

"Que ele veja, então! Que tenha medo de mim e me conheça como uma projeção da Deusa!" Mas um lado rebelde seu, há muito sufocado, gritava: "Não, quero que ele veja a mulher, não a Deusa, nem mesmo a sacerdotisa", mas com outra respiração profunda, até mesmo a lembrança desse desejo desapareceu.

Seus braços elevaram-se para o arco do céu e desceram, trazendo as brumas com o ondular das mangas que pendiam. Cerração e silêncio pairavam, sombrios, à volta deles. Morgana estava imóvel, sentindo o calor do corpo do homem muito próximo dela. Mexendo-se, mesmo um pouco, tocar-lhe-ia a mão e sabia que a sentiria quente contra a sua. Afastou-se, ajeitando a roupa, e envolveu-se em distância como se ela fosse um véu. Durante todo o tempo, surpreendeu-se consigo mesma, dizendo interiormente que era apenas seu primo, o filho de Viviane, que costumava sentar-se no seu colo quando era pequeno e solitário! Deliberadamente, procurou lembrar-se da imagem daquele menino desajeitado, todo coberto de arranhões, mas quando saíram da cerração os olhos escuros sorriam para ela, e Morgana sentiu-se tonta.

"É claro que estou tonta, pois não comi nada ainda", pensou, e observou a fome nos olhos de Galahad, ao olhar para Avalon. Viu-o fazer o sinal-da-cruz. Viviane teria ficado com raiva, se também visse.

- É realmente a terra dos contos de fadas - comentou em voz baixa -, e você é a Morgana das Fadas, como sempre... Mas você é uma mulher, agora, e bonita, prima.

Ela pensou, com impaciência: "Não sou bonita, o que ele vê é o encantamento de Avalon." E algo rebelde nela fê-la desejar: "Quero que me ache bonita - a mim, e não ao encantamento!" Apertou fortemente os lábios e sabia que parecia rígida, distante, sacerdotisa de alto a baixo, novamente.

- Por aqui - indicou secamente, quando o fundo da barca arranhou a margem arenosa, fazendo um sinal aos barqueiros para que cuidassem do cavalo.

- Com sua licença, senhora - disse o homem -, eu mesmo cuidarei dele. Esta não é uma sela comum.

- Como quiser - respondeu Morgana, e ficou olhando enquanto ele desarreava o cavalo. Ela sentia, além do mais, uma curiosidade intensa em relação a tudo o que vinha de Galahad, curiosidade forte demais para que ficasse calada.

- É realmente uma sela estranha... O que são essas compridas correias de couro?

- Os citas as usam, chamam-se estribos. Meu pai adotivo levou-me numa peregrinação, e eu os vi na terra deles. Nem mesmo as legiões romanas tinham uma cavalaria igual, pois os citas podem, com isso, controlar e parar seus cavalos em meia carga e, desse modo, combater montados. Mesmo com a armadura leve dos cavaleiros, um soldado a cavalo é invencível em luta com um soldado a pé. - Sorriu; o rosto moreno e sério tornou-se mais alegre. - Os saxões chamam-me de Alfgar, a flecha duende que vem da escuridão e atinge sem ser vista. Na corte de Ban, aproveitaram o nome e passaram a chamar-me de Lancelote, que é o mais próximo que podem chegar daquela palavra. Dia virá em que terei uma legião de cavalos equipados dessa maneira, e então os saxões que se guardem!

- Sua mãe me contou que você era um guerreiro - disse Morgana, esquecendo-se de manter baixa a voz, e ele voltou a sorrir-lhe.

- E agora reconheço sua voz, Morgana das Fadas... como ousa me receber como sacerdotisa, prima? Bem, deve ser a vontade da Senhora. Mas prefiro você assim, e não solene como uma Deusa. - Ele sorriu com uma malícia familiar, como se tivessem se separado no dia anterior.

Recompondo os fragmentos de sua dignidade, Morgana atalhou:

- A senhora nos espera, e não devemos fazê-la esperar.

- Ah, sim - zombou ele -, devemos sempre nos apressar a fazer sua vontade. Suponho que você seja daquelas que correm para levar e trazer-lhe coisas, e ficam à espera de cada palavra sua.

Morgana não encontrou outra resposta senão:

- Por aqui.

- Lembro-me do caminho - disse, caminhando tranqüilamente ao lado dela, em lugar de segui-la, com o devido respeito. - Também eu costumava correr para ela e atender sua vontade, e tremia quando me fechava a cara, até descobrir que não era apenas minha mãe, mas que também se considerava superior a qualquer rainha.

- E realmente é - retrucou Morgana secamente.

- Sem dúvida, mas eu vivi num mundo em que os homens não costumam obedecer às ordens de uma mulher. - Morgana notou-lhe o queixo firme, e percebeu que a malícia desaparecera de seus olhos. - Eu preferia que minha mãe fosse uma terna mulher, e não a Deusa rigorosa que exige que os homens vivam e morram segundo sua vontade.

Morgana não soube o que responder-lhe. Caminhou apressadamente, e ele teve de correr para acompanhá-la.

Raven, ainda calada - fizera voto de silêncio perpétuo, exceto quando falava em transe, como profetisa -, mandou que entrassem, com uma inclinação de cabeça. Quando seus olhos se ajustaram à obscuridade, Morgana viu Viviane sentada junto ao fogo; havia preferido receber o filho não nas roupas comuns de uma sacerdotisa, escuras e com a túnica de couro, mas com um vestido vermelho. Enfeitara também os cabelos com jóias cintilantes. Até mesmo Morgana, que conhecia os recursos do encantamento, surpreendeu-se com sua magnificência: parecia uma Deusa recebendo um pedinte em seu santuário.

Morgana percebeu que o queixo de Galahad estava firme e que os nós dos dedos se destacavam, brancos, em contraste com os punhos morenos. Ouviu-lhe a respiração e adivinhou o esforço com que dominou a voz, ao erguer-se após fazer uma reverência.

- Minha senhora e minha mãe, apresento-lhe minhas saudações.

- Galahad! Venha sentar-se ao meu lado.

Ele, porém, preferiu sentar-se à sua frente. Morgana ficou à porta, e Viviane fez-lhe um gesto para que fosse sentar-se também.

- Esperei para tomar o desjejum com vocês dois. Venha juntar-se a nós.

Havia peixe do lago, temperado com ervas e manteiga, pão ainda quente e frutas frescas, comidas que Morgana raramente via na austera residência das sacerdotisas. Ela e Viviane comeram pouco, mas Galahad provou de tudo, com o apetite saudável de um jovem ainda em crescimento.

- Ora, você preparou uma refeição digna de um rei, mãe.

- Como vai seu pai e como vai a Bretanha?

- Bastante bem, embora não tenha ficado muito tempo por lá, no último ano. Ele me ordenou uma grande viagem, para aprender a nova cavalaria dos citas. Creio que nem mesmo os soldados de Roma têm cavaleiros assim. Tivemos muitos cavalos da Espanha... Mas creio que você não está interessada em criação de cavalos. Venho trazer notícias para o Pendragon sobre uma nova concentração de exércitos saxões. Não tenho dúvidas de que atacarão com toda a força, antes do solstício de verão. Gostaria de ter tempo e ouro suficientes para treinar uma legião desses cavaleiros!

- Você gosta de cavalos - observou Viviane, surpresa.

- Isso lhe causa surpresa, senhora? Com os animais, sempre se sabe exatamente o que pensam, pois não podem mentir, fingir ser aquilo que não são.

- A natureza estará sempre aberta para você, quando voltar a Avalon, para a vida de druida.

- Sempre a mesma história, senhora? Pensei que já lhe tinha dado a minha resposta, quando a vi pela última vez.

- Galahad, você então tinha doze anos. Era muito criança para saber o que é melhor na vida.

Ele fez um gesto de impaciência:

- Agora, ninguém me chama de Galahad, a não ser você, e o druida que me deu esse nome. Na Bretanha gaulesa e nos campos de luta, eu sou Lancelote.

Viviane sorriu e disse:

- Você acha que me importo com o que dizem os soldados?

- Então você quer que eu fique em Avalon, tocando harpa, enquanto lá fora, no mundo real, há uma luta de vida e morte, minha senhora?

Ela pareceu irritar-se:

- Está querendo dizer que este mundo não é real, meu filho?

- É real, sim - respondeu Lancelote, com novo gesto de impaciência. - Mas real de uma forma diferente, isolado da luta lá fora. País encantado, paz eterna... sim, é para mim a minha casa, você se encarregou disso. Mas até o sol parece brilhar de maneira diferente. E não é aqui que estão se travando as verdadeiras lutas pela vida. Até Merlim sabe disso.

- Merlim chegou a ser o que é devido aos anos que passou aprendendo a distinguir o real do irreal. Você deve fazer o mesmo. Já há guerreiros demais no mundo, meu filho. Sua tarefa é ver mais longe do que todos e talvez dirigir as idas e vindas dos guerreiros.

Ele sacudiu a cabeça:

- Não! Senhora, não diga mais nada, esse caminho não é o meu.

- Você ainda não é bastante adulto para saber o que quer - disse Viviane com franqueza. - Você nos dará sete anos, como deu ao seu pai, para saber se é esse o seu caminho na vida?

- Em sete anos - respondeu Lancelote sorrindo -, espero ver os saxões expulsos de nossas terras e participar dessa campanha. Não tenho tempo para as magias e mistérios dos druidas, senhora, e deles não participaria, mesmo que pudesse. Não, minha mãe, peço que me dê sua bênção e me deixe partir de Avalon, pois, para dizer a verdade, partirei com ou sem ela. Tenho vivido num mundo em que os homens não esperam pela autorização de uma mulher para agir.

Morgana encolheu-se, ao ver a sombra da raiva passar pelo rosto de Viviane. A sacerdotisa levantou-se, uma mulher pequena, a quem a fúria dava altura e majestade.

- Você desafia a Senhora de Avalon, Galahad do Lago?

Ele não se atemorizou. Morgana, vendo-o empalidecer, compreendeu que, por baixo de sua suavidade e graça, havia um esteio de aço capaz de enfrentar a força da própria Senhora. O moço respondeu tranquilamente:

- Se tivesse me pedido isso quando eu ainda ansiava pelo seu amor e aprovação, senhora, sem dúvida teria feito o que pedia. Mas não sou uma criança, minha senhora e mãe, e quanto mais cedo compreender isso, mais depressa estaremos em harmonia e deixaremos de brigar. A vida de druida não é para mim.

- Você se tornou cristão? - perguntou ela, sibilando de raiva.

Ele suspirou e sacudiu a cabeça.

- Na verdade, não. Até mesmo esse conforto me é negado, embora na corte de Ban eu pudesse ser considerado como tal, quando o desejava. Não tenho fé em outro Deus que não seja este. - E colocou a mão na espada.

A Senhora do Lago deixou-se cair no banco e suspirou.

Respirou profundamente, depois sorriu.

- Pois bem, você é um homem, e não há como obrigá-lo. Mas eu gostaria que discutisse isso com Merlim.

Morgana, observando sem ser observada, notou o relaxamento da tensão nas mãos do jovem. Pensou: "Ele acredita que a Senhora cedeu; não a conhece hastante bem para perceber que está com mais raiva ainda." Lancelote era ainda bastante jovem, e deixou que o alívio transparecesse em sua voz.

- Fico-lhe grato por ter compreendido, senhora. E procurarei de boa vontade o conselho de Merlim, se isso lhe agrada. Mas até mesmo os padres cristãos sabem que a vocação para o serviço de Deus é um dom divino e não alguma coisa que ocorra porque é desejada ou não. Deus, ou os Deuses, se quiser, não me chamou, e nem mesmo me deu qualquer prova de que existe.

Morgana lembrou-se das palavras ditas por Viviane muitos anos antes: "É um fardo pesado demais, e só pode ser carregado de livre vontade." Mas, pela primeira vez, teve dúvidas. "O que teria Viviane fezto realmente se, em determinado momento, em alguns desses anos, eu a tivesse procurado e dito que queria ir embora? A Senhora tem certeza demais de que conhece a vontade da Deusa." Esses pensamentos indignos perturbaram-na, e ela afastou-os rapidamente, voltando outra vez os olhos para Lancelote. A princípio, ficara apenas inebriada pela sua beleza morena, pela graça de seu corpo. Agora, via detalhes: a sombra da barba que começava a despontar no queixo - ele não tivera tempo, ou não quisera barbear-se à maneira romana; as mãos longas, bem-feitas, destinadas às cordas da harpa ou às armas, calejadas nas palmas e na parte interna dos dedos, mais na direita do que na esquerda. Havia uma pequena cicatriz num antebraço, um fio esbranquiçado que parecia estar ali há muitos anos, e uma outra, em forma de crescente, na face esquerda. Seus cílios eram longos como os de uma moça.

Não tinha, porém, o ar andrógino de menino-menina de muitos rapazes antes da puberdade: era como um garanhão novo. Parecia a Morgana jamais ter visto uma criatura tão masculina. Segundo a tendência em que sua mente fora treinada, ela pensou: Não há nele nada da suavidade da formação feminina que o torne dócil ante qualquer mulher. Negou o toque da Deusa que existe nele; algum dia, terá problemas com ela... E sua mente voltou a saltar, pensando no dia em que desempenharia o papel de Deusa numa das grandes festas, e, sentindo um calor agradável no corpo, pensou ainda: Seria bom que ele fosse o deus... Perdida em seus devaneios, não ouviu o que Lancelote e a Senhora diziam, até ser despertada pelo seu nome, pronunciado por Viviane. Voltou, como se tivesse estado vagando por algum lugar fora do mundo.

- Morgana? - repetiu a Senhora. - Meu filho está há muito tempo fora de Avalon. Mostre-lhe a ilha, e passe o dia na praia; se quiser, está liberada por hoje de suas obrigações. Quando vocês eram crianças, lembro-me de que gostavam de caminhar pelas margens do lago. Esta noite, Galahad, você ceará com Merlim, e ficará alojado entre os jovens sacerdotes que não fizeram voto de silêncio. E amanhã, se ainda o desejar, partirá com minha bênção.

Ele inclinou-se profundamente, e saíram.

O sol estava alto, e Morgana constatou que perdera a saudação ao astro; bem, havia recebido autorização da Senhora para ausentar-se, e, de qualquer modo, já não era uma das sacerdotisas mais jovens, para as quais o não-comparecimento a tais serviços era passível de punições e provocava sentimento de culpa. Pretendia supervisionar, naquele dia, algumas das mulheres mais jovens no preparo de tintas para os trajes rituais - mas isso poderia esperar mais um ou vários dias.

- Vou providenciar um pouco de pão para levarmos. Poderemos caçar aves aquáticas, se quiser... Você gosta de caça?

Ele fez um gesto de assentimento com a cabeça e sorriu:

- Talvez, se eu levar uma ave aquática de presente à minha mãe, ela fique menos irritada comigo. Gostaria de fazer as pazes com ela - disse, quase rindo. - Quando fica com raiva, ainda é assustadora. Antigamente, eu pensava que, quando não estava comigo, ela se despia da sua mortalidade e se transformava na própria Deusa. Mas eu não devia falar assim - vejo que você lhe é muito afeiçoada.

- Viviane tem sido dedicada a mim como se fosse minha mãe adotiva - respondeu Morgana lentamente.

- E por que não seria? Ela é sua parenta, não? Sua mãe, se me lembro, era a mulher de Gorlois da Cornualha, e é hoje a esposa do Pendragon, não?

Morgana assentiu com um gesto. Tanto tempo havia passado que só se lembrava vagamente de Igraine, e por vezes tinha a impressão de ser órfã. Aprendera a viver sem a necessidade de ter outra mãe que não fosse a Deusa, e tinha muitas irmãs entre as sacerdotisas, de modo que a mãe carnal não lhe fazia falta.

- Há muitos anos que não a vejo.

- Vi a rainha de Uther apenas uma vez, mas à distância. Ela é muito bonita, mas também parece fria e distante. - Lancelote riu, pouco à vontade. - Na corte de meu pai, habituei-me a mulheres que só se interessavam pelas roupas bonitas, jóias e os filhos, e, se não fossem casadas, também por encontrar um marido. Não conheço muito bem as mulheres, mas sei que você não é como as outras. Parece diferente de todas as que conheci.

Morgana sentiu-se corar. Disse em voz baixa, lembrando o fato a Lancelote:

- Sou uma sacerdotisa, como sua mãe...

- Sim, mas é tão diferente dela quanto a noite, do dia. Ela é grande, terrível e bela, e só se pode amá-la, adorá-la e temê-la, mas você me parece ser de carne e osso e ainda real, apesar de todos esses mistérios que a cercam. Veste-se como uma sacerdotisa, parece uma delas, mas quando olho nos seus olhos, vejo uma mulher real, a quem poderia tocar. - Ria, mas falava a sério; Morgana deu-lhe a mão e sorriu.

- Ah, sim, eu sou real, tão real quanto o chão em que piso ou os pássaros naquela árvore...

Caminharam juntos até a beira do lago; Morgana levou-o por um caminho que evitava cuidadosamente a trilha processional.

- Trata-se de um lugar sagrado? - perguntou ele. - Será proibido subir o Tor a quem não for sacerdotisa ou druida?

- Só por ocasião dos grandes festivais é proibido subir, e você pode vir comigo sem receio. Posso andar por onde quiser. Não há ninguém no Tor, agora, exceto as ovelhas que pastam. Gostaria de subir?

- Sim. Lembro-me de que em criança subi uma vez. Pensei que fosse proibido, por isso tive o cuidado de não deixar ninguém saber, para não ser castigado. Lembro-me da vista lá do alto. Será tão formidável quanto me pareceu, quando era pequeno?

- Podemos subir pelo caminho da procissão, se quiser. Não é muito íngreme, porque vai dando voltas ao morro, embora seja mais longo.

- Não. Eu gostaria de subir em linha reta, mas... - hesitou - será demasiado longo e íngreme para uma moça. Em minhas caçadas, já subi a lugares mais íngremes, mas você conseguirá, com suas saias compridas?

Ela riu e disse-lhe que já subira muitas vezes.

- E quanto às saias, estou acostumada com elas, mas, se me atrapalharem, não hesitarei em prendê-las acima dos joelhos.

Ele deu um sorriso, demorado e satisfeito.

- A maioria das mulheres que conheço teriam muito pudor de mostrar as pernas nuas.

Morgana corou.

- Nunca me ocorreu que a pudicícia tenha muito a ver com pernas nuas para subir morros. Os homens devem saber sem dúvida, que as mulheres têm pernas parecidas com as suas. Não deve ser ofensa muito grande ao pudor ver aquilo que são capazes de imaginar. Sei que alguns dos padres cristãos dizem isso, mas geralmente eles parecem pensar que o corpo humano é obra de algum demônio e não de Deus, e que ninguém pode ver um corpo de mulher sem ser tomado pelo desejo furioso de possuí-lo.

Lancelote afastou os olhos dela, e Morgana compreendeu que sob a sua aparência desenvolta, era ainda tímido, o que lhe agradou. Juntos, começaram a subida, e a moça, que era forte e estava habituada a correr e a andar, impôs um ritmo de marcha que o surpreendeu e que, depois dos primeiros momentos, teve dificuldade em acompanhar. Mais ou menos na metade da subida, Morgana parou, e foi uma grande satisfação vê-lo ofegante, enquanto ela continuava a respirar facilmente. Atou as pregas da saia em torno da cintura, deixando apenas uma anágua leve sobre os joelhos, e continuou a subir a parte mais íngreme e rochosa da encosta. Nunca, antes, tivera a menor hesitação em desnudar as pernas, mas agora, sabendo que ele as olhava, não podia deixar de lembrar-se de que eram bem-feitas e fortes, e tampouco conseguia deixar de pensar se, afinal de contas, ele realmente não a consideraria impúdica. Alcançou o topo do morro e sentou-se à sombra das pedras que formavam um anel. Um minuto ou dois depois, ele apareceu e atirou-se ao chão, mal podendo respirar.

Quando conseguiu falar novamente, admitiu:

- Acho que ando demais a cavalo, e pouco tenho caminhado e subido morros! Você nem mesmo está arfando.

- Bem, estou acostumada a subir aqui, e nem sempre venho pelo caminho da procissão.

- E na ilha dos Padres não há nem mesmo a sombra das pedras do círculo - comentou ele, apontando.

- Não. No mundo deles há apenas a igreja e a torre. Se quíséssemos usar os ouvidos do espírito, poderíamos ouvir os sinos da igreja... Aqui, eles são sombras, e lá, seríamos nós as sombras. Por vezes pergunto se será por isso que evitam a igreja e fazem grandes jejuns e vigílias em nossos dias santos - porque seria muito estranho sentirem à sua volta a sombra das pedras do círculo e, talvez mesmo, para os que ainda tenham qualquer vislumbre da Visão, sentir à sua volta as idas e vindas dos druidas e ouvir os murmúrios de seus hinos.

Lancelote teve um estremecimento, e pareceu que uma nuvem cobria o sol por um momento.

- E você tem a Visão? Você pode ver além do véu que separa os dois mundos?

- Todos têm, mas eu fui treinada para ver mais do que a maioria das mulheres. Você gostaria de ver, Galahad?

Ele estremeceu novamente:

- Peço-lhe, minha prima, não me chame por esse nome.

Ela riu.

- Então, embora viva entre cristãos, você tem a velha crença do povo encantado, de que quem conhece nosso verdadeiro nome pode controlar-nos o espírito, se quiser? Você conhece o meu nome, primo. Como quer que o chame, então?, de Lance?

- O que quiser, exceto pelo nome que me foi dado por minha mãe. Ainda tenho medo da voz dela, quando o pronuncia com um certo tom. Parece que suguei esse medo de seus seios...

Ela estendeu a mão e colocou a ponta dos dedos entre as sobrancelhas do moço, que era sensível à Visão. Soprou levemente sobre ele e ouviu sua exclamação de espanto, pois o círculo de pedras acima deles pareceu dissolver-se nas sombras. À sua frente estava agora todo o alto do Tor, com uma pequena igreja de taipa sob uma baixa torre de pedra, com a pintura tosca de um anjo.

Lancelote benzeu-se rapidamente, enquanto uma fila de formas vestidas de cinzento parecia aproximar-se deles.

- Eles não podem nos ver, Morgana? - Sua voz era um sussurro rouco.

- Alguns deles talvez nos vejam como sombras. Outros podem pensar que somos gente deles, ou que seus olhos estão ofuscados pelo sol, e vêem o que não existe - explicou, com certo receio, pois o que dizia era um Mistério, sobre o qual realmente não deveria ter feito referência a uma pessoa não iniciada. Mas nunca, em toda a sua vida, sentira-se tão perto de alguém; era-lhe impossível guardar-lhe segredos e fez-lhe essa revelação, dizendo para si mesma que a Senhora o queria para Avalon. Que Merlim ele daria!

Morgana podia ouvir o suave som do cântico: "Oh, tu, cordeiro de Deus, que nos livraste de todo o mal deste mundo, Senhor Jesus Cristo, mostra-nos tua misericórdia..."

Lancelote cantava suavemente, enquanto a igreja desaparecia e o círculo de pedras voltava a surgir acima deles.

Ela disse tranquilamente:

- Por favor... É uma ofensa à Grande Deusa cantar isso, aqui. O mundo que ela fez não é mau, e nenhuma sacerdotisa sua permitirá que digam tal coisa.

- Como queira. - Ficou calado, e novamente a sombra de uma nuvem passou pelo seu rosto. Sua voz era musical, tão doce que, quando parou de cantar, ela desejou ouvi-la novamente.

- Você toca harpa, Lance? Sua voz é tão bonita que você poderia ser um bardo.

- Aprendi, quando criança. Depois disso, tive apenas a instrução condigna do filho de um nobre. Aprendi a amar a música a tal ponto que não me satisfaziam os sons que eu próprio fazia.

- É assim? O druida tem de ser um bardo antes de ser um sacerdote, pois a música é uma das chaves para as leis do universo.

Lancelote suspirou.

- Isso é uma tentação, uma das poucas razões para abraçar a vocação. Minha mãe, porém, quer que eu fique parado em Avalon, enquanto o mundo desaba à nossa volta, e os saxões e os selvagens do norte incendeiam, saqueiam e destroem - já viu uma aldeia saqueada pelos saxões, Morgana? - E ele próprio respondeu à pergunta. - Não, você não viu; está protegida aqui em Avalon, fora do mundo onde tais coisas estão acontecendo, mas eu tenho de pensar nelas. Sou soldado, e parece-me que, neste momento, a defesa desta bela terra contra incêndios e saques é a única ocupação digna de um homem.

- Se a guerra é tão má, por que não se abrigar dela aqui? Muitos dos velhos druidas morreram naquela última das grandes mágicas que protegeram este lugar sagrado contra a profanação, e não temos filhos suficientes para substituí-los.

- Avalon é bela - Lancelote suspirou -, e se eu pudesse tornar todos os reinos tão pacíficos quanto este, ficaria aqui para sempre, com prazer, e passaria os dias tocando harpa, fazendo música e conversando com os espíritos das grandes árvores... Mas não me parece tarefa de homem ficar aqui em segurança quando outros, lá fora, devam sofrer. Morgana, não falemos disso agora. Hoje, deixe-me esquecer, peço-lhe. O mundo lá fora é de lutas, e vim passar aqui um ou dois dias de paz. Você me negaria essa paz?

Sua voz musical e profunda tremeu um pouco, e o sofrimento que evidenciou feriu Morgana tão profundamente que ela pensou que ia chorar. Segurou-lhe a mão e apertou-a.

- Venha - disse ela. - Você queria saber se a vista continua tal como antes.

Afastaram-se das pedras, e olharam para o lago. A água brilhante, levemente encrespada à luz do sol, estendia-se em volta de toda a ilha. Lá embaixo, parecendo apenas um peixe que saltasse da água, um pequeno barco cruzava a superfície. Outras ilhas, indistintas em meio à névoa, eram sombras imprecisas, apagadas pela distância e pelo véu mágico que separava Avalon do mundo.

- Não muito longe daqui - contou ele -, há um velho forte encantado no alto de um morro, e a vista de sua muralha é tal que, trepando-se nela, pode-se ver o Tor, e o lago, e existe uma ilha que tem a forma de um dragão enroscado... - E fez um gesto com a bonita mão.

- Conheço o lugar. É uma das antigas linhas de poder que cruzam a terra; fui levada lá, em certa ocasião, para sentir os poderes terrestres. O povo encantado conhecia essas coisas. Sou capaz de senti-las um pouco, assim como a pulsação da terra e do ar. Você não? Você também tem o sanque dos Antigos, pois é filho de Viviane.

- É fácil sentir a terra e o ar pulsando de energia, aqui nesta ilha mágica - respondeu em voz baixa. E afastando-se da vista, acrescentou, enquanto bocejava e se espreguiçava: - Essa subida cansou-me mais do que eu pensava, e viajei durante boa parte da noite. Estou pronto a sentar-me ao sol e comer um pouco do pão que você trouxe.

Morgana levou-o bem ao centro do círculo de pedras. Se ele fosse sensível, pensou, teria consciência do imenso poder que havia ali.

- Deite-se na terra e ela lhe transmitirá sua força - aconselhou ela, entregando-lhe um pedaço de pão, que untara generosamente com manteiga e mel. Comeram devagar, lambuzando os dedos de mel. Lancelote segurou-lhe a mão e, brincando, lambeu-lhe o mel dos dedos.

- Como você é doce, prima! - comentou rindo, mas ela sentiu todo o corpo vibrar com o contato. Tomando a mão do rapaz, repetiu o gesto, e largou-a de repente, como se a queimasse. Para ele, talvez fosse apenas uma brincadeira, mas para Morgana nunca seria apenas isso. Afastou-se, escondendo o rosto escaldante na grama. A força da terra parecia fluir através dela, enchendo-a da energia da própria Deusa.

- Você é filho da Deusa - disse, por fím. - Não sabe nada dos seus Mistérios?

- Muito pouco, embora meu pai tenha me contado como fui gerado. Sou filho do Grande Casamento entre o rei e a terra. Por isso, creío, ele achou que eu devia ser fiel à terra da Bretanha gaulesa, que é pai e mãe para mim... Estive no grande centro dos velhos Mistérios, a grande Avenida das Pedras, em Carnac, onde estava outrora o antigo Templo; é um lugar de poder, como este. Posso sentir o poder, aqui. - Voltou-se e olhou-a no rosto. - Você é como a Deusa deste lugar - continuou devagar, cismando. - No culto antigo, sei que os homens e mulheres juntavam-se sob seu poder, embora os padres quisessem proibi-lo, como também sei que gostariam de derrubar todas as pedras antigas como esta acima de nós, e as outras, as grandes, de Carnac. Já derrubaram parte delas, mas a tarefa é muito árdua.

- A Deusa não deixará - protestou Morgana simplesmente.

- Talvez - respondeu o moço, estendendo a mão para tocar o crescente azul na testa de Morgana. - Foi aqui que você me tocou quando me fez ver o outro mundo. Isso tem alguma relação com a Visão, Morgana, ou é outro dos seus Mistérios, dos quais não se pode falar? Bem, então não farei perguntas. Mas sinto como se tivesse sido levado a um dos velhos fortes encantados, onde, segundo dizem, cem anos podem transcorrer numa noite.

- Nem tanto assim - riu Morgana -, embora seja verdade que o tempo corre ali de uma forma diferente. Mas alguns dos bardos, segundo ouvi, ainda podem ir e vir do país dos duendes... Ele perdeu-se nas brumas, ainda mais além de Avalon, eis tudo. - E, ao falar, estremeceu.

- Talvez, quando eu voltar para o mundo real, os saxões tenham sido vencidos... e desaparecido.

- E você se lamentará por não haver mais razão para sua vida?

Ele riu e sacudiu a cabeça, segurando-lhe a mão. Depois de um minuto, perguntou num sussurro:

- Você, então, tem ido às fogueiras de Beltane, para servir à Deusa?

- Não. Sou virgem, enquanto a Deusa assim quiser. Provavelmente, serei preservada para o Grande Casamento... Viviane ainda não me revelou seu desejo, ou o desejo da Deusa. - Inclinou a cabeça e deixou os cabelos caírem-lhe no rosto, sentindo-se envergonhada diante dele, como se o primo pudesse ler seus pensamentos e conhecer o desejo que a consumia como uma súbita chama. Entregaria sua virgindade, se Lancelote a pedisse? Nunca, até então, a proibição lhe parecera um sacrifício; agora, era como se uma espada de fogo tivesse sido colocada entre eles. Houve um longo silêncio, enquanto sombras passavam sobre o sol, não se ouvindo nenhum som, a não ser o ruído de pequenos insetos na grama. Por fim, Lancelote estendeu a mão e a fez deitar-se, depositando um beijo suave, que queimou como fogo, sobre o crescente em sua testa. E lamentou com voz doce e profunda:

- Todos os Deuses proíbem que eu invada os limites que a Deusa reservou para ela, em você, minha querida prima. Considero-a sagrada como a própria Deusa.

Abraçou-a fortemente. Morgana sentiu que ele tremia, e foi tomada de uma felicidade tão intensa que chegou a doer.

Nunca, desde que era criança e despreocupada, Morgana conhecera a felicidade, algo de que se recordava vagamente, anterior à época em que a mãe a encarregara de cuidar do irmãozinho. E ali na ilha, em que a vida se elevava aos espaços livres do espírito, ela conheceu a exaltação e as delícias do poder, bem como o sofrimento e a luta da dor e as provações. Nunca, porém, a felicidade pura que experimentava agora. O sol parecia mais brilhante, as nuvens pareciam mover-se pelo céu como grandes asas no ar estonteante e vibrante, cada trevo que brotava na grama reluzia com sua luz interior própria, luz que parecia vir também dela. Viu-se refletida nos olhos de Lancelote, e soube que era bela, que ele a desejava, e que o amor e o respeito que sentia eram tão grandes que ele conteria seu desejo. Sentiu-se explodir de alegria.

O tempo parou. Ela flutuava de satisfação. O rapaz apenas acariciou-lhe o rosto com as mais leves carícias, e nenhum dos dois desejou mais do que isso. Morgana brincou com as mãos de Lancelote, tateando-lhe os calos nas palmas.

Depois de um longo tempo, ele puxou-a para si e estendeu sobre ela as pontas de sua capa. Ficaram deitados lado a lado, quase sem se tocarem, deixando que a força do sol, da terra e do ar atravessasse seus corpos em harmonia; Morgana caiu num leve sono sem sonhos, sentindo as mãos de ambos, entrelaçadas. Parecia-lhe que uma vez, há muito tempo, haviam-se deitado assim, satisfeitos, sem se importarem com o tempo, numa paz alegre e interminável, como se fossem parte das pedras que sempre haviam estado ali; como se ela experimentasse e recordasse, ao mesmo tempo, que estivera naquele lugar com Lancelote. Depois, acordou e o viu dormindo, e ficou gravando na memória todas as linhas de seu rosto, com apaixonada ternura.

O sol já havia ultrapassado a metade do céu, quando ele acordou, sorrindo-lhe e espreguiçando-se como um gato. Ainda envolta em alegria, Morgana ouviu-o dizer:

- Vamos descer e caçar aves aquáticas. Gostaria de fazer as pazes com minha mãe. Sinto-me tão feliz que não posso tolerar a idéia de contrariar qualquer coisa viva, hoje, mas talvez os espíritos da natureza nos mandem alguma ave aquática destinada a nos servir de refeição...

Ela riu, segurando-lhe a mão:

- Vou levá-lo aonde essas aves costumam ficar, e se for a vontade da Deusa, nada apanharemos. Portanto não precisamos sentir-nos culpados por perturbar o destino delas. Mas há muita lama, e você deve tirar essas botas de montar, e eu terei de levantar novamente as saias. Você costuma lançar pedaços de pau, como os pictos, flechas venenosas, ou as apanha numa armadilha e torce-lhes o pescoço?

- Acho que sofrem menos, quando são rapidamente apanhadas numa rede e se lhes torce logo o pescoço - respondeu Lancelote, pensativo, e Morgana concordou.

- Vou levar uma rede e uma armadilha...

Não encontraram ninguém na descida, e em poucos minutos percorreram o caminho que antes lhes custara mais de uma hora para subir. Morgana foi à cabana onde eram guardadas as redes e armadilhas e voltou com duas. Caminharam silenciosamente pela margem e encontraram os juncos no extremo da ilha. Descalços, entraram na água, escondendo-se na vegetação e estendendo suas redes. Estavam à sombra grande do Tor, e o ar era frio. As aves começavam a descer em grande número, para se alimentarem. Pouco depois, uma delas começou a lutar e bater asas, com os pés presos na armadilha de Morgana, que logo a agarrou e quebrou-lhe o pescoço. Em seguida, Lancelote pegou outra, e ainda uma terceira. Atou-as pelo pescoço com juncos.

- Basta - disse. - É um bom esporte, mas num dia como este prefiro não matar nada desnecessariamente, e temos uma para minha mãe e duas para Merlim. Você quer uma?

Ela sacudiu negativamente a cabeça:

- Não como carne.

- Você é tão pequena! Creio que precisa de pouca comida. Eu sou grande, e fico logo com fome.

- Está com fome, agora? Ainda é cedo para frutas, mas talvez encontremos alguns pilritos que sobraram do inverno...

- Não, agora não, realmente. Meu jantar será ainda melhor se eu tiver alguma fome. - Chegaram à margem molhados. Morgana retirou a sobretúnica de couro para secá-la numa moita, para que não ficasse dura, e tirou também a saia, torcendo-a para tirar a água, ficando despreocupadamente em suas roupas interiores, de linho cru. Encontraram seus sapatos, mas não os calçaram; sentaram-se apenas na grama, de mãos dadas, silenciosamente, olhando as aves que nadavam e mergulhavam subitamente para pegar um peixe pequeno.

- Como é calmo! - comentou Lancelote. - É como se fôssemos as únicas pessoas vivas no mundo, hoje, fora do tempo e do espaço, e de todas as preocupações e cuidados, das guerras, batalhas, reinos e lutas...

- Gostaria que este dia durasse para sempre! - sussurrou Morgana, com voz trêmula, como se lhe houvesse ocorrido o pensamento de que aquele momento feliz teria de terminar.

- Morgana, você está chorando? - perguntou ele, de repente, solícito.

- Não - respondeu Morgana com ênfase, sacudindo dos cílios uma única lágrima rebelde, e vendo o mundo decompor-se nas cores do prisma. Jamais conseguira chorar; nunca derramara uma lágrima de medo ou de dor, em todos aqueles anos de ordálio para transformar-se numa sacerdotisa.

- Minha querida prima Morgana - disse, abraçando-a e acariciando-lhe a face. Ela retribuiu o abraço, enterrando o rosto em seu peito. Lancelote sentiu seu calor, e ela, a batida ritmada do coração do rapaz. Depois, ele segurou-a pelo queixo, levantando-lhe o rosto, e seus lábios encontraram-se.

- Gostaria que você não estivesse prometida à Deusa - murmurou ele.

- Eu também - concordou Morgana, suavemente.

- Deixe-me abraçá-la assim... Jurei que não ultrapassaria os limites...

Ela fechou os olhos; já não se importava. Seu juramento parecia estar a mil léguas e mil anos de distância, e nem mesmo a lembrança da raiva de Viviane poderia detê-la. Anos depois, ela costumava pensar no que teria acontecido se tivessem ficado assim por mais alguns minutos. Sem dúvida, a Deusa, em cujas mãos estavam, teria imposto sua vontade. E mesmo quando seus lábios novamente se uniram, Lancelote teve um súbito movimento de tensão, como se ouvisse alguma coisa muito de leve.

Morgana afastou-se e sentou-se.

- Morgana, o que é isso?

- Não ouço nada - e tentou ouvir além do som das pequenas ondas do lago, o vento perpassando pelos juncos, o barulho ocasional do salto de um peixe. E então o som voltou, como um suspiro leve... como alguém chorando.

- Alguém está chorando - disse Lancelote, levantando-se. - Ali... alguém está ferido, ou perdido, parece uma menina...

Morgana seguiu-o rapidamente, descalça, deixando a saia e a túnica na moita. Talvez uma das sacerdotisas mais jovens tivesse se perdido ali, embora elas não devessem deixar a área fechada em torno da Casa das Moças. Mas as jovens eram assim mesmo, e não se podia esperar que não infringissem as regras; certa vez uma das velhas sacerdotisas comentara que a Casa das Moças destinava-se a meninas cuja única obrigação na vida consistia em derramar coisas, esquecer coisas, inclusive as regras da vida diária, até que tivessem derramado, quebrado e esquecido tudo o que pudessem, abrindo com isso um espaço em suas vidas para um pouco de sabedoria. Agora que Morgana era uma sacerdotisa completa e começara a ensinar às mais novas, por vezes lhe parecia que a velha sacerdotisa tinha razão: certamente ela nunca havia sido tão tola e vazia como as noviças que estavam agora na Casa das Moças.

Seguiram o som. Era impreciso e desaparecia por minutos, para depois voltar claramente. A névoa começava a vir do lago, em camadas espessas, e Morgana não estava muito certa se se tratava da cerração comum resultante da umidade e do crepúsculo que se aproximava, ou se era o véu de névoa exterior que cercava o reino mágico.

- Ali - apontou Lancelote, mergulhando de repente na bruma. Morgana acompanhou-o e viu veladamente, indo da sombra para a realidade e novamente para a sombra, a figura de uma moça de pé, com água pelos tornozelos, chorando.

- Sim, pensou Morgana, lá está ela, realmente. Não, não é uma sacerdotisa. - Era muito jovem e de grande beleza: parecia toda branca e dourada, tinha a pele clara como marfim e levemente rosada, os olhos de um azul muito claro, e o cabelo longo e claro brilhava através da névoa como ouro vivo. Vestia uma roupa branca, que tentava, sem êxito, manter acima da água. E as lágrimas pareciam cair de seus olhos sem provocar qualquer deformação no rosto, de modo que, chorando, parecia ainda mais bonita.

- O que aconteceu, filha? Você está perdida? - perguntou Morgana.

A moça olhou-os fixamente, enquanto se aproximava, e murmurou:

- Quem são vocês? Não pensei que alguém pudesse me ouvir aqui. Chamei as irmãs, mas nenhuma delas me escutou, e então a terra começou a mover-se, e o que era sólido se transformou de súbito, e eu me vi aqui, de pé na água, com os juncos todos à minha volta, e tive medo... Que lugar é este? Nunca o vi antes, e já estou no convento há quase um ano... - E fez o sinal-da-cruz.

Morgana compreendeu logo o que acontecera. O véu esgarçara-se, como ocorria ocasionalmente nos lugares onde se concentrava grande poder, e, de certa forma, a moça tinha sensibilidade suficiente para notá-lo. Isso acontecia, por vezes, como uma visão momentânea, de modo que alguém podia ver o outro mundo como uma sombra, ou uma rápida visão; penetrar nele era raro.

A moça deu um passo em sua direção, mas sob seus pés a superfície pantanosa cedeu, e ela parou, em pânico.

- Fique parada - aconselhou Morgana. - O terreno é um pouco incerto, aqui. Eu conheço os caminhos e vou ajudá-la.

Mas antes mesmo que ela avançasse com a mão estendida, Lancelote adiantou-se e agarrou-a, levando-a para a terra seca.

- Seus sapatos estão molhados. Tire-os, para se secarem.

- Você é muito forte. Nem mesmo meu pai é tão forte assim. E tenho a impressão de que já o conheço de algum lugar, não?

- Não sei - respondeu Lancelote. - Quem é você. Quem é seu pai?

- Meu pai é o rei Leodegrans, mas estou na escola do convento. - A voz começou a tremer, novamente. - Onde está ele? Não posso nem mesmo ver o edifício, nem a igreja, em parte alguma...

- Não chore - pediu Morgana, adiantando-se, e a moça recuou um pouco.

- Você é do povo encantado? Tem a marca azul na testa... - Levantou a mão e fez novamente o sinal-da-cruz. - Não - duvidou -, você não pode ser um demônio, pois não desapareceu quando fiz o sinal-da-cruz, tal como as irmãs dizem que acontece. Mas você é pequena e feia como a gente encantada...

Lancelote foi firme:

- Não, é claro que nenhum de nós é um diabo, e creio que podemos encontrar o caminho para você voltar ao convento.

Morgana, com o coração batendo, notou que ele olhava agora para a estranha como a havia olhado apenas alguns minutos antes, com amor, desejo, quase adoração. Quando se voltou para ela, disse precipitadamente:

- Podemos ajudá-la, não?

Morgana viu-se como devia parecer a Lancelote e à estranha donzela loura: pequena, morena, com o sinal azul bárbaro na testa, a roupa enlameada até os joelhos, os braços imodestamente desnudos, os pés imundos e o cabelo despenteado. Pequena e feia como a gente encantada. Morgana das Fadas. Assim a haviam chamado, desde a infância. Sentiu uma onda de raiva contra si mesma, de desprezo pelo seu corpo pequeno e moreno, seus membros seminus, a túnica enlameada. Arrancou a saia de cima da moita e vestiu-a, subitamente consciente de que estava com as pernas à mostra, e colocou sobre ela a túnica suja. Por um momento, quando Lancelote a olhou, pensou que também ele devia considerá-la feia, bárbara, estranha. Aquela criatura delicada e dourada pertencia ao verdadeiro mundo dele.

Lancelote tomou delicadamente a mão da estranha, com reverência respeitosa.

- Venha, podemos mostrar-lhe o caminho de volta.

- Sim, eu lhe mostrarei o caminho. Siga-me, e fique perto, porque o terreno é traiçoeiro, e você pode afundar e levar muito tempo para sair. - Por um furioso momento, desejou levá-los para o pântano que não podia ser atravessado - podia fazê-lo, conhecia o caminho -, levá-los e deixá-los ali, para que se afogassem ou perambulassem para sempre entre a névoa.

- Qual é o seu nome? - perguntou Lancelote.

- Meu nome é Gwenhwyfar - respondeu, e Morgana ouviu-o murmurar:

- Que belo nome, combina com a dona dele.

Morgana sentiu uma onda de raiva tão imensa que julgou que fosse desmaiar. Sentiu que guardaria esse ódio até a morte, e, naquele momento de agitação, desejou não estar viva. Todo o colorido do dia desapareceu na névoa, no pantanal e nos juncos tristes, e toda a sua felicidade se foi com ele.

- Venha - repetiu numa voz dura -, eu lhe mostrarei o caminho.

Ao voltar-se, ouviu-os rir juntos atrás dela, e ficou imaginando, em meio à onda sombria de raiva, se estariam rindo dela. Ouviu a voz infantil de Gwenhwyfar dizer:

- Mas você não pertence a este lugar horrível, não? Você não se parece com o povo das fadas; não é pequeno nem feio.

Não, pensou Morgana, ele era belo, e ela, pequena e feia. As palavras penetraram, queimando, seu coração; esqueceu-se de que se parecia com Viviane e que, para ela, Viviane era bela. Ouviu Lancelote responder:

- Não, não, eu gostaria muito de voltar com você, gostaria mesmo, mas prometi jantar esta noite com um parente, e minha mãe já está bastante aborrecida comigo. Não quero deixar meu velho parente aborrecido também. Mas não, não pertenço a Avalon... - E um minuto depois: - Não, ela é... bem, uma prima de minha mãe, ou algo parecido, conhecemo-nos desde crianças, isso é tudo.

Agora Morgana sabia que ele estava falando dela. Então, tudo o que se passara entre ambos fora logo reduzido a uma distante ligação familiar. Lutando bravamente contra as lágrimas, o que lhe fez doer a garganta, porque, se chorasse, ficaria ainda mais feia do que já era aos olhos deles, ela pisou em terra firme.

- Lá está o seu convento, Gwenhwyfar. Cuidado ao seguir a trilha, para não se perder novamente entre a névoa.

Viu que a menina estava segurando a mão de Lancelote, e pareceu-lhe que, só a custo, este a largou. A menina agradeceu:

- Obrigada, muito obrigada!

- É a Morgana que você deve agradecer -lembrou-lhe Lancelote. - É ela quem conhece os caminhos para se entrar e sair de Avalon.

A jovem deu-lhe um olhar tímido e furtivo. Fez uma pequena reverência:

- Agradeço-lhe, senhora Morgana.

Morgana respirou profundamente, envolvendo-se outra vez no manto de sacerdotisa, e no encanto que podia ter, quando queria. Apesar de suas roupas sujas e rasgadas, apesar de seus pés descalços e do cabelo despenteado e molhado em volta dos ombros, sabia que, de repente, parecia alta e imponente. Fez um vago gesto de bênção e voltou-se, calada, chamando Lancelote com outro gesto. Sabia, embora não visse, que o respeito e o medo haviam voltado aos olhos da jovem, mas afastou-se silenciosamente, com o deslizar leve de uma sacerdotisa de Avalon, enquanto os passos de Lancelote seguiam com relutâncía os seus.

Um momento depois, olhou para trás, mas a névoa se fechara e a jovem desaparecera com ela. Lancelote, abalado, perguntou:

- Como você fez isso, Morgana?

- Como fiz o quê?

- De repente, ficou tão... tão... parecida com minha mãe! Alta, distante, e pouco real. Como um demônio feminino. Você provocou medo na pobre moça, e não devia ter feito isso!

Morgana mordeu a língua, subitamente indignada. Respondeu com voz distante e enigmática:

- Meu primo, eu sou o que sou - e voltou-se para a frente, apressando-se pelo caminho. Estava com frio, cansada e doente, de uma doença interior; ansiava pela solidão da Casa das Moças. Lancelote parecia estar muito distante, atrás dela, mas já não lhe importava. Ele podia encontrar sozinho seu caminho, a partir dali.

 

Capítulo 13

Na primavera daquele ano, em meio a uma torrencial tempestade, dessas que costumam ocorrer no fim do inverno, Merlim chegou certa noite, já tarde, a Avalon. Quando a Senhora foi avisada, arregalou os olhos, espantada.

- Numa noite como esta, em que até os sapos morrem afogados! O que o traz, num tempo desses?

- Não sei, senhora - respondeu o jovem aprendiz de druida, que lhe fora dar a notícia. - Ele nem mesmo pediu a barca; veio sozinho pelos caminhos ocultos, e disse que precisa vê-la esta noite ainda. Mandei buscar roupas secas para ele, as suas estavam no estado que a senhora pode imaginar. E ter-lhe-ia dado também comida e vinho, mas ele mandou perguntar se podia cear com a senhora.

- Diga-lhe que será um prazer - respondeu Viviane, mantendo uma expressão cuidadosamente neutra, pois aprendera muito bem a arte de disfarçar os pensamentos; mas quando o rapaz saiu, seu rosto manifestou espanto, e a testa franziu-se.

Chamou a criada e mandou que ela não trouxesse sua refeição habitual, mas comida e vinho para Merlim, e que aumentasse o fogo da lareira.

Depois de algum tempo, ouviu seus passos do lado de fora, e quando ele entrou dirigiu-se imediatamente ao fogo. Taliesin andava agora um pouco curvado, seu cabelo e barba estavam completamente brancos, e parecia um tanto estranho na roupa verde de bardo noviço, muito curta para ele, deixando à mostra os tornozelos ossudos. Viviane instalou-o junto ao fogo - ele ainda tremia - e colocou junto dele um prato de comida e um copo de vinho, do bom vinho de maçã feito em Avalon mesmo, num vaso de prata trabalhada.

Depois, sentou-se num pequeno banco próximo e provou o pão e as frutas secas, enquanto o observava comer.

Quando ele terminou e ficou bebericando o vinho, ela pediu:

- Agora, conte-me o que há, Pai.

O velho sorriu-lhe:

- Nunca esperei que você me chamasse assim, Viviane. Ou acha que resolvi tomar as ordens sacras na Igreja, em minha idade provecta?

- Não - disse ela, sacudindo a cabeça -, mas você foi amante de minha mãe, que foi Senhora aqui, antes de mim, e é pai de duas das minhas irmãs. Juntos, servimos à Deusa e a Avalon por mais anos do que posso contar, e talvez esta noite eu deseje o conforto de uma voz paternal... Não sei, sinto-me muito idosa, hoje, Pa... Taliesin. Será que me considera velha demais para ser sua filha?

O velho druida sorriu.

- Nunca, Viviane. Você não tem idade. Sei quantos anos tem, poderia contá-los, se quisesse, mas ainda me parece uma menina. Ainda agora, você poderia ter quantos amantes desejasse.

Ela fez um gesto de indiferença:

- Tenha certeza de que jamais conheci um homem que significasse para mim outra coisa que não a necessidade, ou o dever, ou uma noite de prazer. Apenas uma vez, creio, outro homem que não você conseguiu realmente aproximar-se de mim... - Riu. - E se eu tivesse dez anos menos... teria sido digna do trono como rainha do Grande Rei, e meu filho ocuparia esse trono.

- Não me parece que Galahad, como é mesmo que ele quer ser chamado agora?, Lancelote?, seja da matéria de que se fazem os reis. É um visionário, um junco arrastado pelo vento.

- Mas se ele fosse filho de Uther Pendragon...

Taliesin balançou a cabeça:

- Ele é um seguidor, Viviane, não um líder.

- Mesmo assim. Sua atitude resulta de ele ter sido criado na corte de Ban, como um bastardo. Se tivesse crescido como filho de rei...

- E quem teria governado Avalon durante todos esses anos, se você tivesse preferido uma coroa nas terras cristãs, lá fora?

- Se eu as tivesse governado ao lado de Uther, não seriam cristãs. Acreditei que Igraine teria influência sobre ele, e que a usaria em favor de Avalon...

- São águas passadas, Viviane. É sobre Uther que venho falar. Ele está morrendo - disse Merlim.

Viviane levantou a cabeça e olhou-o:

- Então já aconteceu. - Seu coração disparou. - Ele é muito jovem para morrer.

- Uther comanda pessoalmente os homens nas batalhas, quando outro, de sua idade e maior prudência, deixaria tal missão aos generais. Foi ferido, e começou a ter febre. Ofereci meus serviços como curandeiro, mas Igraine e os padres o proibiram. De qualquer modo, eu nada poderia ter feito, sua vez é chegada. Eu o vi nos seus olhos.

- E como vai Igraine, como rainha?

- Como seria de esperar. É bonita, tem dignidade, é religiosa, anda sempre de luto pelos filhos que perdeu. Teve outro, no Dia de Todos os Santos: viveu quatro dias apenas. E seu padre confessor convenceu-a de que isso é um castigo pelos seus pecados. Não houve qualquer escândalo desde que se casou com Uther, exceto o nascimento do primeiro filho, muito cedo. Mas isso bastou. Perguntei-lhe o que seria dela depois da morte de Uther, e quando tivesse terminado seu luto, e respondeu-me que iria para um convento. Ofereci-lhe abrigo em Avalon, onde poderia estar perto da filha, mas Igraine pensa que não seria adequado a uma rainha cristã.

O sorriso de Viviane endureceu um pouco:

- Nunca esperei ouvir isso de Igraine.

- Viviane, você não deve culpá-la, nem mesmo em pensamento, por aquilo que você mesma tramou. Avalon mandou-a embora, quando ela mais precisava de Avalon. Você censurará a menina por ter encontrado consolo numa fé mais simples do que a nossa?

- Disso não tenho dúvidas: você é o único homem na Bretanha que poderia falar da rainha como se fosse uma menina!

- Para mim, Viviane, até mesmo você é uma menina, por vezes, a mesma menina que costumava subir nos meus joelhos e tocar as cordas de minha harpa.

- E agora, quase nem sei mais tocar. Meus dedos perdem a leveza com os anos.

- Ah, não, minha querida - disse ele, mostrando a própria mão, enrugada. - Ao lado destas, suas mãos são jovens, e mesmo assim todos os dias converso com minha harpa por meio destes dedos, e você poderia fazer o mesmo. Suas mãos, porém, escolheram o poder, não a música.

- E o que teria acontecido à Bretanha, se eu não tivesse feito essa escolha? - respondeu Viviane, prontamente.

- Viviane - disse ele, e sua voz era terna -, não a estou censurando. Apenas falei a verdade.

Ela suspirou e apoiou o queixo nas mãos.

- Eu estava certa, quando disse que esta noite precisava de um pai. Então, já aconteceu aquilo que temíamos e que vem se preparando durante todos esses anos. E o filho de Uther, meu pai? Está pronto?

- Ele tem de estar - disse Merlim. - Uther não viverá até o solstício de verão. E os corvos já estão se reunindo, como fizeram quando Ambrósio estava morrendo. Quanto ao menino, você não o tem visto?

- De vez em quando, no espelho mágico. Parece saudável e forte, mas isso não me diz nada, exceto que ele pode desempenhar o papel de rei, se for necessário. Você o visitou, não?

- Por ordem de Uther, fui algumas vezes ver como estava. Notei que tinha os mesmos livros em latim e grego que ensinaram ao seu filho tanta coisa de estratégia e guerra. Ectório é romano até o âmago, e as conquistas de César e os feitos de Alexandre são parte de seu próprio ser. É um homem instruído, e preparou seus dois filhos para a guerra. O jovem Caio teve o seu batismo de sangue no ano passado; Artur irritou-se por não poder ir, mas obedeceu a Ectório e fez o que lhe mandavam.

- Se Artur é assim tão romano, estará disposto a submeter-se a Avalon? Pois ele tem de governar também as tribos e os píctos, lembre-se.

- Eu me encarreguei disso - disse Merlim. - Fiz com que conhecesse alguns homens do povo pequeno, dizendo que eram aliados dos soldados de Uther nesta guerra, para defenderem nossa ilha. Com eles, aprendeu a lançar os dados dos duendes, a movimentar-se silenciosamente no meio de urzes e charnecas e... - Merlim hesitou e disse significativamente: - Ele pode caçar o gamo, e não tem medo de andar entre eles.

Viviane fechou os olhos por um momento:

- Ele é tão jovem...

- A Deusa sempre escolhe os mais jovens e mais fortes para liderar os guerreiros - insistiu Taliesin.

- Que assim seja - concordou Viviane, inclinando a cabeça. - Ele será posto à prova. Traga-o aqui, se puder, antes que Uther morra.

- Aqui? - Merlim sacudiu a cabeça. - Não, enquanto a prova não tiver sido feita. Só então poderemos mostrar-lhe o caminho de Avalon e os dois reinos sobre os quais ele terá de reinar.

Viviane balançou outra vez a cabeça:

- Para a ilha do Dragão, então.

- Será o desafio antigo? Não puseram Uther à prova desse modo, quando foi feito rei...

- Uther era um guerreiro, isso bastava para fazê-lo senhor do dragão. Este menino é jovem, e ainda não teve seu batismo de sangue. Deve ser posto à prova.

- E se falhar...

- Ele não falhará! - exclamou Viviane, cerrando os dentes.

Taliesin esperou até que ela o olhasse novamente nos olhos e repetiu:

- Se ele falhar...

- Sem dúvida, Lot estará pronto, se isso acontecer - respondeu ela com um suspiro.

- Você devia ter ficado com um dos filhos de Morgause, criando-o aqui em Avalon. Gawaine seria bom. Cabeça quente, brigão, um touro, enquanto o filho de Uther é um cavalo. Gawaine tem o estofo de um rei, creio, e ele também é filho da Deusa; Morgause é filha de sua mãe, e seus filhos têm o sangue real.

- Não confio em Lot - cortou a Senhora, com veemência -, e confio ainda menos em Morgause!

- Mas Lot controla os clãs do norte, e creio que as tribos o aceitariam.

- Mas não os que se voltam para Roma, e haveria, então, dois reinos na Bretanha, sempre em guerra, e nenhum deles bastante forte para conter os saxões e os selvagens homens do norte. Não, tem de ser o filho de Uther, ele não pode falhar!

- Tudo será como prouver à Deusa - respondeu Merlim com decisão. - Não confunda seus desejos com os dela, Viviane.

Ela cobriu o rosto com as mãos:

- Se ele falhar... se ele falhar, tudo terá sido inútil - disse, desesperada -... tudo o que fiz a todos os que amo. Pai, o senhor previu que ele falharia?

O velho sacudiu a cabeça, e sua voz foi consoladora.

- A Deusa não me revela sua vontade, e foi você quem previu que esse menino teria poderes para liderar toda a Bretanha. Faço-lhe uma advertência contra o orgulho, Viviane - você pensa que sabe o que é melhor para todo homem e toda mulher vivos. Você governou bem em Avalon...

- Mas estou velha - atalhou ela, levantando o rosto e vendo a piedade nos olhos de Merlim -, e qualquer dia destes...

Merlim baixou a cabeça; também ele vivia segundo aquela lei:

- Quando chegar esse dia, você saberá; não é para já, Viviane.

- Não - murmurou, lutando contra um desespero súbito, como acontecera nos últimos tempos, um calor pelo corpo, um tormento na mente -, quando eu não puder mais ver o futuro, saberei então que é chegado o momento de passar a outra o governo de Avalon. Morgana ainda é jovem, e Raven, de quem gosto muito, dedicou-se ao silêncio e à voz da Deusa. Ainda não aconteceu, mas se acontecer cedo demais...

- Quando acontecer, Viviane, será o momento certo. - Levantou-se, alto e inseguro, e ela viu que ele se apoiava fortemente em sua bengala. - Levarei o menino à ilha do Dragão, no degelo da primavera, e veremos se ele está pronto para ser rei. E então você lhe dará a espada e a copa, como símbolo do laço eterno entre Avalon e o mundo exterior. .

- A espada, pelo menos. A copa, eu não sei.

Merlim baixou a cabeça:

- Deixo isso à sua sabedoria. Você, e não eu, é a voz da Deusa. Não obstante, não será a Deusa para ele...

- Ele encontrará a Mãe quando triunfar - disse Viviane sacudindo a cabeça -, e receberá da mão dela a espada da vitória. Mas terá primeiro de provar seu valor e de encontrar-se com a Donzela Caçadora... - A sombra de um sorriso passou-lhe pelo rosto. - E não importa o que acontecer depois disso; não correremos os riscos que enfrentamos com Uther e Igraine. Teremos certeza do sangue real, não importa o que acontecer depois.

 

Quando Merlim saiu, Viviane ficou sentada por muito tempo, olhando as imagens do fogo, vendo apenas o passado, sem procurar vislumbrar entre a bruma do tempo, em direção ao futuro.

Também ela, havia anos, tantos que não podia se lembrar agora do número exato, entregara sua virgindade ao Galhudo, o Grande Caçador, o Senhor da dança espiral viva. Quase nem pensou na virgem que tomaria parte na celebração do rei que deveria ocorrer, mas deixou o pensamento perder-se no passado, nos tempos em que ela desempenhara o papel da Deusa, no Grande Casamento...

... não havia sido mais do que um dever, por vezes agradável, por vezes não, mas sempre ordenado e controlado pela Grande Mãe, que governava sua vida desde que chegara ali. De repente, teve inveja de Igraine, e uma parte distante de sua mente perguntou por que invejava a mulher que perdera todos os filhos para a morte, ou mandando-os para longe, e que teria, agora, de enfrentar a viuvez e acabar seus dias atrás das paredes de um convento.

- O que invejo nela é o amor que conheceu... Não tenho filhas, meus filhos são estranhos para mim... Nunca amei, pensou. Nem sei o que é ser amada. Medo, respeito, reverência... isso me foi dado. Amor, nunca. E há momentos em que penso que daria tudo por um olhar humano como o que Uther lançou sobre Igraine em seu casamento.

Respirou tristemente, repetindo em voz alta o que Merlim dissera. "Bem, são águas passadas." Levantou a cabeça, quando sua criada entrou sem ruído.

- Senhora...?

- Traga-me... não - interrompeu-se, mudando subitamente de idéia. Que a moça fosse dormir. "Não é verdade que eu nunca tenha amado nem sido amada. Amo Morgana acima de tudo, e ela me ama."

Agora, também isso poderia terminar. Mas tudo tinha de ser de acordo com a vontade da Deusa.

 

Capítulo 14

Uma pálida lua nova pairava a oeste de Avalon. Morgana subia lentamente, descalça, o caminho em espiral, tão silenciosa e pálida quanto a lua virgem. Seu cabelo estava solto, a roupa era simples e larga, sem cinto. Sabia que guardas e sacerdotisas observaram-na, silenciosos, para que nenhuma pessoa não autorizada perturbasse o silêncio com uma palavra não-consagrada. Atrás da cortina escura de seu cabelo, as pálpebras estavam fechadas. Ela movimentava-se com segurança, sem precisar ver. Raven caminhava silenciosamente atrás dela, descalça como Morgana, de roupa larga também, e o cabelo solto escondia-lhe o rosto.

Continuavam subindo, na penumbra que se transformava em escuridão, com umas poucas e pálidas estrelas na cúpula azul acima delas. As pedras em círculo estavam cinzentas e sombreadas, com uma débil luz em seu interior - não fogo, mas fogo-fátuo, uma chama de feitiçaria que brilhava de dentro do círculo mágico.

À última luz da lua que se escondia, refletida por um momento no lago brilhante, lá embaixo, uma silenciosa sacerdotisa donzela dirigiu-se a elas, vestida em roupa de lã sem tingir, de cabelo cortado bem rente. Ofereceu a Morgana uma copa, que esta aceitou e da qual bebeu em silêncio, passando-a depois a Raven, que acabou de esvaziá-la. Prata e ouro brilhavam aos últimos raios de luz. Morgana recebeu, de mãos invisíveis, a grande espada com punho em cruz, arfando um pouco ao seu peso inesperado. Descalça, acompanhou o círculo sob as pedras. Atrás dela, Raven tomou a grande lança, enfiou-a no coração do fogo mágico. A mecha que estava na ponta inflamou-se, e ela a levou, sempre atrás de Morgana, enquanto, à volta de todo o círculo, uma tênue linha de fogo mágico nascia em volta da escuridão. Voltando ao centro viram, à pálida luz que as iluminava, o rosto de Viviane, sem idade, acima do tempo, flutuando no ar desmaterializado - o rosto da Deusa, brilhando.

Embora Morgana soubesse que o efeito era produzido por uma substância luminosa espalhada no rosto, em contraposição à luminosidade do círculo e das roupas escuras, isso sempre a fazia perder a respiração.

Mãos brilhantes, desligadas de um corpo, colocaram alguma coisa nas mãos de Morgana, depois nas de Raven. Morgana mordeu a madeira de acentuado gosto amargo, forçou-se a engolir, superando o enjôo. O silêncio desceu. Olhos brilhavam no escuro, mas não se podiam ver rostos. Ela sentia-se como se estivesse em meio a multidões, até o alto do Tor, mas não podia ver uma única face. Até mesmo o rosto sem corpo de Viviane desapareceu no escuro. Podia sentir o calor do corpo de Raven próximo do seu, embora não se tocassem. Tentou manter a mente imóvel, em meditação, mergulhando no silêncio para o qual havia sido treinada, sem ter certeza das razões que a haviam levado até ali.

Passou o tempo, as estrelas voltaram a brilhar no céu que se tornava cada vez mais escuro. O tempo, pensou Morgana, o tempo corre de maneira diferente em Avalon, ou talvez não exista. Muitas noites durante os longos anos, ela trilhara o caminho em espiral do Tor, sondando o mistério do tempo e do espaço dentro do círculo das pedras. Não obstante, aquela noite parecia estranha, mais escura, de alguma forma mais pesada de mistério. Nunca, antes, fora escolhida entre as outras sacerdotisas para desempenhar o papel mais importante do ritual. Sabia que lhe tinham dado uma erva que fortalecia a visão, na festividade mágica, mas isso não lhe diminuía o poder ou a magia.

Depois de algum tempo na escuridão, começou a ver imagens mentais, pequenos quadros coloridos, como se estivessem a grande distância. Viu um rebanho de gamos correndo. Viu novamente as grandes trevas que haviam descido sobre a terra quando o sol desapareceu, e um vento frio soprou, e teve medo de que o mundo estivesse acabando, mas as velhas sacerdotisas explicaram-lhe, ao se reunirem no pátio, que a Deusa Lua estava apagando o brilho da Deusa, e correu em companhia delas, alegremente, para fazer coro com os gritos com que as mulheres procuravam afastá-la. Explicaram-lhe mais tarde como o sol e a lua se moviam e por que, de quando em vez, um deles se colocava na frente do outro. Eram coisas da natureza, e a crença do povo comum sobre a face dos Deuses consistia em símbolos de que tais pessoas, no estado atual de sua evolução, precisavam para visualizar as grandes verdades. Um dia, todos os homens e mulheres conheceriam as verdades interiores, mas agora não precisavam delas.

Observou a Visão interior, tal como havia feito na vida, enquanto os ciclos do ano giravam em torno das grandes pedras circulares; viu o nascimento, a fecundidade e, por fim, a morte do Deus; viu as grandes procissões dando voltas pelo caminho espiral até o bosque de carvalhos, antes que as pedras em círculo tivessem sido colocadas ali... O tempo era transparente, deixava de ter significado, enquanto o povo pequeno e pintado chegava, amadurecia e era destruído, e, em seguida, as tribos, e depois delas os romanos, e os altos estrangeiros do litoral da Gália, e depois deles... O tempo desaparecia, e ela só via o movimento dos povos e o crescimento do mundo, o gelo vindo, recuando e tornando a vir, viu os grandes templos da Atlântida agora imersos para sempre entre os oceanos que os cobriam, viu novos mundos surgirem e se consolidarem... E o silêncio, e, além da noite, as grandes estrelas girando e rodando...

Ouviu atrás de si um fantasmagórico grito de dor, e sua pele gelou. Raven gritava, Raven, cuja voz nunca tinha ouvido; Raven, que certa vez, quando serviam juntas no Templo, segurou um lampião que ia explodir e, terrivelmente queimada com o óleo fervente, abafou os gritos com as duas mãos, enquanto as queimaduras eram tratadas, a fim de não quebrar o voto de dar sua voz à Deusa. As cicatrizes lhe ficaram para sempre; um dia, olhando-a, Morgana pensou: O voto que fiz era algo insignificante comparado a isso, e não obstante eu quase o quebrei, por um homem moreno e de voz macia.

Agora Raven, na noite sem lua, gritava alto, um grito sobrenatural, como o de uma mulher no parto. Três vezes esse grito tremeu sobre o Tor, e Morgana estremeceu novamente, sabendo que até mesmo os padres, na outra ilha que correspondia à sua, deveriam estar acordados em suas celas solitárias, benzendo-se, ao ouvir aquele grito assombrado que ecoou entre os dois mundos.

Depois do grito, fez-se um silêncio que parecia a Morgana estar cheio da respiração igual dos iniciados invisíveis que então cercavam a terrível solidão apenas habitada pelas três sacerdotisas imóveis. E então, sufocando, como se sua voz tivesse sido há muito inutilizada pelo silêncio, Raven gritou:

- Ah, sete vezes a Roda, a Roda com treze raios, deu a volta aos céus... sete vezes a Mãe deu à luz seu filho escuro...

Outra vez houve silêncio, aprofundando-se em contraste, exceto pela respiração conturbada da profetisa em transe. Ela gritou:

- Ah... ah... sinto-me queimar... sinto-me queimar... é tempo, é tempo... - e mergulhou outra vez no silêncio coagulado, prenhe de terror. - Eles correm! Correm no cio da primavera, eles correm... Lutam, escolhem seu rei... ah, o sangue, o sangue... e o maior de todos, ele corre, e há sangue nos galhos de seu orgulho...

De novo o silêncio prolongou-se, e Morgana, enxergando por trás das pálpebras a Corrida do gamo na escuridão, viu novamente aquilo que vira num relâmpago semi-esquecido na bacia de prata: um homem entre os gamos, lutando, lutando...

- É o filho da Deusa, ele corre, ele corre... O Galhudo tem de morrer... e o Galhudo deve ser coroado... A Donzela Caçadora deve chamar o rei, deve entregar sua virgindade ao Deus... ah, o velho sacrifício, o velho sacrifício... Sinto-me queimar, queimar...

As palavras começaram a atropelar-se e a morrer, num longo grito soluçante. Atrás dela, com os olhos fechados, Morgana viu Raven cair no chão, sem sentidos, e ali ficar, ofegante, sendo a sua respiração o único som no silêncio cada vez mais profundo.

Em algum lugar, uma coruja piou, uma, duas, três vezes.

Da escuridão saíram sacerdotisas, silenciosas e escuras, com brilhos azuis na testa. Levantaram Raven ternamente e levaram-na. Levantaram Morgana também, e ela sentiu que a cabeça, que rodopiava, era aconchegada com cuidado ao seio de uma mulher, enquanto a levavam. Depois, perdeu a consciência.

 

Três dias depois, quando já havia recuperado um pouco de sua força, Viviane mandou chamá-la.

Morgana levantou-se e tentou vestir-se, mas estava ainda fraca, e aceitou a ajuda de uma das jovens sacerdotisas, satisfeita por estar sob o voto de silêncio. O longo jejum, a terrível enfermidade provocada pelas ervas rituais, a tensão do ritual em si ainda lhe debilitavam o corpo. Havia tomado um pouco de sopa na noite anterior, e um pouco de leite com pão, naquela manhã, mas ainda se sentia doente e vazia, depois do prolongado esforço; sua cabeça latejava, e sua menstruação chegara com uma violência nunca vista; sabia que também isso devia ser consequência das ervas sagradas. Sentindo náuseas, desinteressada, desejou que Viviane a tivesse deixado recuperar-se em paz, mas atendeu à vontade da Senhora, como se fosse a da Deusa, como se esta tivesse baixado do céu e manifestado um desejo em voz alta. Depois de vestida e penteada, prendeu o cabelo com uma faixa de couro de gamo, pintou o crescente azul em sua testa com tinta fresca e dirigiu-se à casa onde a grã-sacerdotisa morava.

Como era agora privilégio seu, entrou sem bater ou sem anunciar sua presença. De alguma forma, sempre imaginava Viviane naquela casa à sua espera, sentada na cadeira semelhante a um trono, como se fosse a Deusa em seu trono escuro. Hoje, porém, Viviane movimentava-se no fundo da sala, e a lareira não estava acesa, mas escura e fria. Viviane vestia uma roupa simples de lã não tingida, com um capuz sobre os cabelos, e, pela primeira vez, Morgana percebeu claramente que Viviane era uma sacerdotisa, não da Mãe ou da Virgem, agora, mas da antiga feiticeira - que era também o duplo da morte. Seu rosto estava marcado e cansado, e Morgana pensou: É claro, se os ritos fizeram Raven adoecer, e a mim, que somos ambas jovens e fortes, o que devem ter feito a Viviane, que envelheceu no mesmo serviço divino?

Viviane voltou-se e sorriu para ela, um sorriso de carinho, e Morgana sentiu novamente o velho impulso de amor e ternura. Mas como cabia a uma sacerdotisa mais jovem em presença da Senhora, esperou que esta falasse primeiro. Viviane fez-lhe um gesto para que se sentasse.

- Você já se recuperou, filha?

Morgana deixou-se cair no banco, e sentiu que até mesmo aquela pequená caminhada a deixara exausta. Sacudiu a cabeça.

- Eu sei - disse Viviane. - Por vezes, quando não sabem como você reagirá, eles nos dão coisas demais. Da próxima vez, não tome tudo o que lhe derem. Calcule o que você pode tomar, o suficiente para dar-lhe a Visão, mas não para deixá-la tão doente. Você tem esse direito, agora; chegou a uma fase em que a obediência pode ser temperada com seu próprio juízo.

Por algum motivo, essas palavras ficaram ecoando na mente de Morgana: "temperada com seu próprio juízo, temperada com seu próprio juízo". Pensou: "Ainda estou doente das drogas que me deram", e sacudiu a cabeça impaciente, para afastar o som daquela frase e ouvir Viviane.

- O que você entendeu na profecia de Raven?

- Muito pouco - confessou Morgana. - Foi misteriosa para mim. Não tenho sequer muita certeza das razões pelas quais eu estava ali.

- Em parte para emprestar sua força a ela; Raven não é forte. Está de cama ainda, e fiquei preocupada com ela. Sabe o quanto deve tomar da erva, e até mesmo essa pequena dose pareceu ser demais: ela vomitou sangue, e está evacuando sangue também. Mas não morrerá.

Morgana estendeu a mão para firmar-se, pois se sentia vazia, e uma súbita onda de enjôo dominou-a, deixando-a pálida e tonta. Sem pedir licença, levantou-se, tropeçou na corrida para a porta, e vomitou lá fora o leite e o pão que havia comido pela manhã. Ouviu Viviane pronunciar seu nome, e quando terminou e ficou apoiada ao portal, uma das jovens sacerdotisas veio limpar-lhe o rosto, com um pano úmido, que cheirava levemente a ervas doces. Viviane estendeu-lhe a mão quando ela entrou novamente e deu-lhe também um pequeno copo.

- Tome devagar - disse.

O líquido queimou-lhe a língua, e por um longo momento a sensação de enjôo intensificou-se - era uma bebida forte, destilada pelas tribos do norte, que a chamavam de água-da-vida. Só a provara uma ou duas vezes, antes. Mas quando a bebida desceu, um forte calor espalhou-se a partir do estômago vazio, e, em poucos rninutos sentiu-se melhor, mais firme, quase eufórica.

- Um pouco mais - sugeriu Viviane. - Isso lhe fortificará o coração. Sente-se melhor, agora?

Morgana fez um gesto de assentimento corn a cabeça:

- Obrigada.

- Esta noite você conseguirá comer.

No estado estranho em que Morgana se encontrava, isso lhe pareceu uma ordem, como se Viviane pudesse dar ao seu estômago ordens para que se comportasse.

- Muito bem. Falemos da profecia de Raven. Nos velhos tempos, muito antes que a sabedoria e a religião dos druidas chegassem até nós, oriundas dos templos afundados no continente ocidental, o povo encantado - do qual eu e você fazemos parte - vivia aqui às margens do mar interior, e antes de aprender a plantar a cevada e colhê-la, vivia de coletar os frutos da terra e da caça ao gamo. Naqueles dias, não havia rei entre eles, apenas uma rainha, que era sua mãe, embora ainda não tivessem aprendido a considerá-la Deusa. E como viviam da caça, sua rainha e sacerdotisa aprendeu a chamar os gamos e a pedir aos seus espíritos que se sacrificassem e morressem pela vida da tribo. Mas o sacrifício deve ser retríbuído com sacrifício - os gamos morriam pela tribo, e um dos homens da tribo tinha, por sua vez, de morrer pelo gamo, ou pelo menos correr o risco de que o gamo lhe tirasse a vida em troca da sua, se assim o desejasse. Dessa maneira, mantinha-se o equilíbrio. Você está compreendendo, minha querida?

Morgana ouviu aquela expressão incomum de afeto, e ficou imaginando vagamente, em seu estado de enjôo e embriaguez: "Estará ela querendo me dizer que serei sacrificada? Terá minha vida sido escolhida para a tribo? Não importa. Já fui dedicada à Deusa, para a vida e para a morte."

- Compreendo, Mãe. Pelo menos, creio que compreendo.

- Assim, a Mãe da tribo escolhia, todos os anos, seu esposo. E como este concordara em dar sua vida pela tribo, ela a entregava. Mesmo que crianças pequenas passassem fome, ele sempre tinha tudo em abundância, e todas as mulheres da tribo estavam à sua disposição, a fim de que ele, o mais forte e o melhor, lhes fizesse filhos. Além disso, como a Mãe da tribo era muito velha para conceber, ele podia escolher também as jovens donzelas, e nenhum homem da tribo interferia nos seus desejos. E então, quando o ano passava - todos os anos, naqueles tempos -, ele colocava os galhos dos gamos, usava uma roupa de pele de gamo não curtida, de modo que os animais pensassem que era um deles, e se juntava à manada, quando a Mãe Caçadora lhes fazia o encantamento para que corressem. Mas já então a manada teria escolhído o seu rei, e por vezes este sentia o cheiro de um estranho entre eles. E então, o Galhudo morria.

Morgana sentiu novamente descer pela espinha o calafrio gelado que sentira quando, no Tor, esse ritual havia sido representado ante seus olhos. O rei do ano tem de morrer para dar vida a seu povo. Estaria a droga ainda agindo sobre seu cérebro, para que ela pudesse ver tudo tão claramente?

- Bem, os tempos mudaram, Morgana - disse Viviane com calma -, e agora esses velhos ritos já não são mais necessários, pois a cevada cresce e o sacrifício é exangue. Só em momentos de grande perigo a tribo exige um líder assim. E Raven previu que advirá tal perigo. Portanto, mais uma vez haverá uma prova para aquele que corre o risco de morrer pelo seu povo escolhido, de modo que este o seguirá até a morte. Você já me ouviu falar do Grande Casamento, não?

Morgana assentiu com um gesto de cabeça; Lancelote era fruto de um desses casamentos.

- As tribos do povo encantado, e todas as tribos do norte, ganharam um grande líder, que será posto à prova segundo o rito antigo. E se ele sobreviver a ela - o que, de certa maneira, depende da força com que a Donzela Caçadora puder encantar o gamo -, ele se tornará o Galhudo, o Gamo-Rei, consorte da Donzela Caçadora, coroado com os galhos do Deus. Morgana, eu lhe disse há vários anos que sua virgindade pertence à Deusa. Ela a pede, agora, em sacrifício ao Galhudo. Você será a Donzela Caçadora e a noiva do Galhudo. Você foi a escolhida.

Havia grande silêncio na sala, como se estivessem outra vez no centro das pedras circulares, no ritual. Morgana não ousava romper tal quietude. Finalmente, sabendo que Viviane esperava que dissesse alguma palavra de concordância - quais haviam sido as palavras dela, há tanto tempo? É um peso demasiado grande para não ser carregado espontaneamente -, ela inclinou a cabeça.

- Meu corpo e minha alma pertencem a Ela, para fazer deles o que desejar - disse baixinho. - E sua vontade é a vontade Dela. Que assim seja.

 

Capítulo 15

Desde que fora para Avalon, Morgana só deixara a ilha duas ou três vezes, e apenas em curtas viagens ao interior, nas costas do mar do Verão, para conhecer os lugares próximos que, apesar do desuso, conservavam seu antigo poder.

Tempo e lugar não eram assuntos com os quais tivesse de se preocupar. Foi levada da ilha ao amanhecer, em silêncio, envolta em mantos e véus de tal modo que nenhum olhar profano pudesse ver a consagrada, numa liteira fechada, de maneira que nem mesmo o sol poderia brilhar em seu rosto. Em menos de um dia de viagem, desde a Ilha Sagrada, ela já não tinha qualquer noção de tempo, espaço e direção, perdida em meditação, vagamente consciente do começo do transe mágico. Houve ocasiões em que lutara contta o início do êxtase, mas agora recebia-o de braços abertos, entregando a mente à Deusa, implorando interiormente que esta penetrasse nela, que era seu instrumento, e a possuísse, corpo e alma, a fim de que pudesse agír em tudo como a própria Deusa.

Caía a noite. Uma lua quase cheia apareceu, imprecisa, entre as cortinas da liteira. Quando os carregadores pararam, ela viu-se banhada numa luz fria, como o beijo da Deusa, e sentiu-se fraca com o ínício do êxtase. Não sabia onde estava, nem isso tinha importância. Ia para onde a levavam, passiva, cega, em transe, sabendo apenas que ia ao encontro de seu destino.

No interior de uma casa, foi entregue a uma mulher estranha, que lhe trouxe pão e mel, que Morgana não tocou - não interromperia o jejum, a não ser com a refeição ritual -, e água, que bebeu com vontade. Havia uma cama, colocada numa posição em que a luz da lua incidia sobre ela; a mulher estranha ia fechar as janelas, mas Morgana fez-lhe que não, com um gesto imperioso. Passou grande parte da noite em transe, sentindo o luar como um toque sensível. Por fim, adormeceu, mas várias vezes foi interrompida no sono, como um viajante inseguro que vai e vem, enquanto imagens estranhas passavam-lhe pela mente - sua mãe, inclinando-se sobre o cabelo louro do intruso Gwydion, com os seios brancos e o cabelo cor de cobre que a repeliam, ao invés de acolhê-la; Viviane, que, sem saber como, estava transformada no animal do sacrifício e era levada pela Senhora de Avalon a algum lugar, atada a uma corda, dizendo irritada, "Não é preciso puxar, eu vou"; Raven, soltando um grito silencioso. Uma grande figura cheia de chifres, metade homem, metade animal, abrindo de repente a cortina e entrando em seu quarto; - despertou e sentou-se na cama, mas não havia ninguém, apenas o luar e a mulher estranha dormindo tranquilamente ao seu lado. Deitou-se outra vez e dormiu, desta vez sem sonhos, profundamente.

Cerca de uma hora antes do amanhecer, foi despertada. Agora, em contraste com a inconsciência do transe do dia anterior, estava perfeitamente lúcida, e tinha plena consciência de tudo - o ar fresco e frio, a névoa impregnada de uma cor rosa que anunciava o aparecimento iminente do sol, o cheiro forte das mulheres morenas e pequenas, com suas roupas de peles mal curtidas. Tudo era preciso e de cores brilhantes, como se tivesse acabado de sair das mãos da Deusa. As mulheres morenas cochichavam entre si, evitando perturbar a sacerdotisa estranha; Morgana as ouvia, mas só conhecia algumas palavras de seu dialeto.

Depois de algum tempo, a mais velha delas - que a recebera e levara para dentro da casa na noite anterior, e de cuja cama havia partilhado - aproximou-se e trouxe-lhe água fresca. Morgana inclinou-se para agradecer-lhe, para fazer a saudação de sacerdotisa a sacerdotisa, e em seguida se perguntou por que o fazia. A mulher era velha; seu cabelo, longo e embaraçado, preso com uma travessa de osso, era quase todo branco, a pele morena tinha apagadas marcas azuis. A roupa era do mesmo couro tratado de maneira imperfeita que as outras usavam, mas sobre ela ostentava uma manta de pele de gamo, com pêlos, pintada com símbolos mágicos. E de seu pescoço pendiam dois colares, um, de belas contas de âmbar - nem a própria Viviane usava coisa mais bonita -, e outro, de pedaços de chifres alternados com pequenas barras de ouro trabalhadas com arte. Tinha a autoridade da própria Viviane, e Morgana sabia que era a Mãe tribal e sacerdotisa do povo.

Com suas próprias mãos, a mulher começou a prepará-la para o ritual. Tirou-lhe toda a roupa, deixando-a nua, e pintou-lhe as solas dos pés e as palmas das mãos com tinta azul, retocando, ainda, o crescente em sua testa; no peito e na barriga, traçou uma lua cheia, e logo acima da mancha negra dos pêlos púbicos de Morgana, pintou a lua-nova. Rapidamente, e como se cumprisse apenas uma obrigação, abriu as pernas da moça e a examinou: Morgana, indiferente, sabia o que procurava. Para esse rito, a sacerdotisa tinha de ser virgem. Mas a sacerdotisa tribal não encontrou nada de errado; Morgana estava intacta, mas sentiu um ligeiro medo, embora misturado a um certo prazer, e no mesmo instante teve consciência de que estava com muita fome. Bem, habituara-se a não dar importância a isso, e depois de algum tempo a sensação desapareceu.

O sol começava a surgir, quando a fizeram sair, envolta num manto como o da velha, com os sinais mágicos pintados - a lua, os galhos do gamo. Tinha consciência de que seu corpo estava rígido e pegajoso por causa das tintas, e uma parte de sua mente, muito distante, olhava com espanto e um vago desprezo aqueles símbolos de um mistério muito mais antigo do que a sabedoria druida em que fora tão ciosamente educada. Foi uma sensação momentânea que desapareceu imediatamente; a crença de gerações tão antigas que nem se sabia ao certo quanto dera a esse rito de seu próprio poder e santidade. Morgana viu a casa redonda, de pedra, atrás dela; em frente havia outra, da qual saía, também acompanhado, um jovem. Não o pôde ver claramente; o sol nascente batia-lhe nos olhos, e ela só percebeu que era alto, de cabelos louros e forte. Não é alguém deste povo, então? Não lhe cabia, porém, questionar. Os homens da tribo - sobretudo um velho, musculoso como um ferreiro, escuro como sua própria forja - pintavam o corpo do moço, de alto a baixo, com a tinta azul, cobrindo-o com um manto de peles não curtidas e espalhando pelo seu corpo gordura de gamo. Em sua cabeça, fixaram os galhos; a uma ordem em voz baixa, ele sacudiu a cabeça, para que se certificassem de que estariam firmes, por mais que se mexesse. Morgana viu o jeito orgulhoso da cabeça do moço, e de repente sentiu algo que lhe percorreu todo o corpo, fazendo-lhe doer as pernas e penetrando as partes secretas.

"Ele é o Galhudo, é o Deus, é o consorte da Donzela Caçadora..."

Colocaram em sua cabeça uma grinalda de bagos vermelhos e coroaram-na com as primeiras flores da primavera. O precioso colar de ouro e osso foi reverentemente retirado do pescoço da Mãe da tribo e colocado nela; sentiu seu peso como o peso da própria magia. Seus olhos estavam ofuscados pelo sol nascente. Puseram alguma coisa em sua mão - um tambor, uma pele retesada sobre uma estrutura de arcos. E como se viesse de longe, ouviu o tambor soar, batido pela sua própria mão.

Estavam num morro, a cavaleiro de um vale coberto por floresta espessa, vazio e silencioso, mas Morgana pôde sentir a vida que palpitava lá dentro - os gamos movendo-se com pés silenciosos e leves, os animaís subindo nas árvores, os pássaros nos ninhos, alçando vôo, movimentando-se, o pulsar da vida do início da fase da primeira lua cheia da primavera. Voltou-se por um instante, olhando para trás, para a encosta do morro. Acima deles, traçada num branco calcário, uma figura monstruosa, se de homem ou animal ela não pôde dizer, pois seus olhos estavam enevoados; era um gamo que corria, um homem de pé, um falo ereto e também pulsando com a onda da primavera?

Não podia ver o jovem ao seu lado, apenas a vida que pulsava nele. Houve um solene silêncio de expectatíva por toda a encosta do morro. O tempo cessava, voltava a ser transparente, algo no qual ela se movia, banhava, entrava livremente. O tambor voltara às mãos do velho, mas não se lembrava de tê-lo devolvido. Seus olhos estavam ofuscados pelo sol, ao sentir as mãos do Deus entre as suas, abençoando-o. Alguma coisa, naquele rosto... Sim, antes que esses morros surgissem, ela havia conhecido esse rosto, esse homem, seu esposo, desde o começo do mundo... Não ouviu as palavras rituais que ela mesma pronunciou, apenas a força que havia nelas. "Vai e conquista... corre com os gamos, rápido e ligeiro como as ondas da primavera... para sempre abençoados sejam os pés que te trouxeram aqui..." Não tinha consciência do discurso, apenas do poder, de suas mãos, abençoando, da força que emanava de seu corpo, atravessando-o como se fora a força do próprio sol que, por meio dela, se transmitia ao homem que estava à sua frente. "Agora o poder do inverno foi quebrado, e a nova vida da primavera irá contigo e te levará à vitória... A vida da Deusa, a vida do mundo, sangue da terra nossa Mãe, derramado pelo seu povo..."

Levantou as mãos, abençoando a floresta, a terra, sentindo as emanações da força percorrerem suas mãos como uma luz visível. O corpo do jovem brilhava como o dela, à luz solar; ninguém ousava falar, até que, ao retirar as mãos, Morgana sentiu ondas de força estenderem-se a todos, liberando o canto, que cresceu à volta deles. Não podia ouvír as palavras, apenas o pulsar da força nelas.

"A vida surge na primavera, os gamos correm na floresta, e nossa vicla corre com eles. O Gamo-Rei do mundo os derrubará, o Gamo-Rei, o Galhudo, abençoado pela Mãe, triunfará..."

Sentiu-se levada ao ponto máximo de tensão, como um arco retesado e pleno da flecha de poder que deve ser liberada. Ela tocou o Galhudo, liberando o poder, e quando este os percorreu a ambos, eles partiram, correndo como o vento morro abaixo, correndo como se as próprias ondas da primavera os levassem. Atrás deles, sentindo o poder deixá-la, Morgana caiu e permaneceu silenciosa, deitada sobre a terra, euja umidade fria penetrou-lhe o corpo. Mas não tinha consciência, estava no transe da Visão.

Ficou ali deitada, como se estivesse sem vida, mas uma parte sua corria com eles, morro abaixo, corria com os homens da tribo, atrás do Galhudo. Latidos, como de cães de caça, soavam atrás deles, e uma parte dela adivinhou que eram as mulheres que davam esses gritos, estimulando a corrida.

O sol elevou-se mais no céu, a grande Roda da Vida girava no firmamento, correndo inutilmente atrás de seu divino consorte, o Filho Negro...

A vida da terra, os fluxos da primavera, inundaram e fizeram vibrar os corações dos homens que corriam. Depois, tal como a onda segue o fluxo da maré, partindo das encostas iluminadas pelo sol, a escuridão da floresta fechou-se sobre eles, engoliu-os, e da corrida passaram aos movimentos rápidos com pés silenciosos, imitando o passo delicado do gamo; eles eram os gamos, seguindo os galhos de seu Galhudo, usando os mantos que mantinham enfeitiçados os gamos, os colares que significavam a vida como uma cadeia interminável, viver, comer e procriar e morrer, e ser por sua vez comido para alimentar os filhos que vinham da Mãe.

"... contém as crianças, Mãe, teu Filho Gamo tem de morrer para manter a vida do seu Filho Negro..."

A escuridão, a vida interior da floresta fechando-se à volta deles; silêncio, o silêncio dos gamos... Morgana, agora consciente da floresta, como a vida, e dos gamos, como o coração da floresta, lançou seu poder e sua bênção por toda a mata. Uma parte dela estava na encosta iluminada pelo sol, em transe, esgotada, deixando a vida do sol fluir através dela, corpo, sangue e ser interior, e outra parte corria com os gamos e os homens, até que ambas eram uma só... fundindo-se numa só... as ondas da vida que eram os gamos tranquilos em sua mata, os pequenos veados, suaves e esguios, a vida correndo neles como corria no corpo dela, as ondas de vida que eram os homens, penetrando silenciosa e atentamente em meio às sombras...

Em algum ponto da floresta, sentiu o Gamo-Rei levantar a cabeça, aspirar o vento, consciente do cheiro de um inimigo, um dos seus, um da tribo estrangeira da vida... ela não sabia se era o Gamo-Rei de quatro patas, ou o de duas pernas que abençoara, eram uma só coisa na vida da Terra-Mãe, e a sorte deles estava nas mãos da Deusa. Galhos respondiam à provocação dos galhos, enquanto a respiração ofegante adquiria o fogo da floresta, buscando um estranho, uma presa, um predador, um rival, onde não podia haver nenhum.

Ah, Deusa... tinham começado, chocando-se em meio à vegetação mais rasteira, a corrida dos homens atrás deles apenas mais silenciosa, correndo, correndo... até que as pancadas do coração parecem explodir no peito, correr até que a vida do corpo esmague todo conhecimento e todo pensamento, correr, buscando e sendo buscado, correr com o gamo que foge, e com os homens que perseguem, correr com a vida pulsante do grande sol e as emanações da primavera, correr com o fluxo da vida...

Imóvel, com o rosto comprimido na terra e o sol queimando-lhe as costas, o tempo arrastando-se e correndo, sucessivamente, Morgana começou a ver - e de muito longe parecia ter visto isso antes, numa visão, alguma vez, em algum lugar, há muito tempo - o jovem alto e forte segurando sua faca, caindo, caindo entre os gamos, entre os cascos dilacerantes - sabia que gritara bem alto, e ao mesmo tempo sabia que seu grito correra por toda parte, de modo que até mesmo o Gamo-Rei estacou em meio à carga, apavorado, ouvindo-o. Houve um momento em que tudo parou, e, naquele silêncio terrível, viu que ele se punha de pé, ofegante, atacando com a cabeça baixa, sacudindo os galhos, chocando-se frontalmente com o gamo e entrelaçando seus galhos com os dele, oscilando e lutando, com as suas mãos fortes e o corpo jovem... Uma faca faiscou num movimento ascendente; o sangue derramou-se sobre a terra, e também ele, o Galhudo, sangrava, tinha sangue nas mãos, de um longo corte lateral, o sangue corria sobre a terra, o sacrifício feito à Mãe para que a vida se alimentasse do sangue dela... E então o sangue do Gamo-Rei jorrou sobre ele num jato, quando sua lâmina encontrou o coração, e os homens à volta dele correram com suas lanças...

Viu que o traziam de volta, coberto com o sangue de seu gêmeo e rival, o Gamo-Rei. Ao seu redor, os homens pequenos e morenos retalhavam a carne e colocavam o couro cru, quente, sobre seus ombros. Voltaram em triunfo, fogueiras acenderam-se na escuridão que se acentuava, e quando as mulheres levantaram Morgana, ela viu sem surpresa que o sol se punha, e tropeçou, como se também ela tivesse corrido durante todo o dia com a caçada e os gamos.

Coroaram-na novamente com o vermelho do triunfo. O Galhudo foi trazido para junto dela, sangrando, e ela o abençoou e marcou sua testa com o sangue do gamo. De sua cabeça foram tirados os galhos que derrubariam o próximo Gamo-Rei; os galhos que o Galhudo usara naquele dia, quebrados e fragmentados, foram lançados ao fogo. Espalhou-se pelo ar, logo depois, um cheiro de carne queimada, e ela se perguntou se seria carne de homem ou de gamo...

Sentaram-nos lado a lado e trouxeram-lhes as primeiras carnes, ainda pingando sangue, assim como as gorduras. Morgana sentiu a cabeça girando, o gosto forte da carne dominando-a, depois de seu prolongado jejum. Teve medo, por um momento, que o enjôo voltasse. Ao seu lado, ele comia vorazmente, e ela observou, à luz da fogueira, que suas mãos eram belas e fortes... e piscou, vendo num estranho momento de dupla visão que serpentes se enroscavam naquelas mãos, e depois desapareciam novamente. A volta deles, os homens e mulheres da tribo participavam do banquete ritual, cantando o hino do triunfo na velha linguagem que Morgana mal compreendia:

 

"Ele triunfou, ele matou...

...o sangue de nossa Mãe jorrou sobre a terra...

... o sangue do Deus foi derramado sobre a terra...

... e ele se levantará e reinará para sempre...

... ele triunfou e triunfará para sempre até o fim do mundo..."

 

A velha sacerdotisa que a pintara e arrumara pela manhã levou uma copa de prata aos lábios de Morgana, que sentiu a bebida forte arder-lhe na garganta e descer queimando. Fogo, com um forte gosto de mel. Ela já estava bêbada com o sangue da carne - nos últimos sete anos, poucas vezes provara carne. Sua cabeça rodava quando a levaram, desnudaram e enfeitaram sua nudez com novas pinturas e grinaldas, marcando os bicos dos seios e a testa com o sangue do gamo abatido.

"A Deusa recebe seu consorte, e ela o matará novamente ao fim dos tempos, ela dará à luz seu Filho Negro, que derrubará o Gamo-Rei..."

Uma menina, pintada de azul dos pés à cabeça e carregando um prato grande, correu pelos campos arados, espalhou gotas negras ao correr, e Morgana ouviu os grandes gritos que a seguiram.

"Os campos estão abençoados; dá-nos o alimento, oh, nossa Mãe!"

E naquele instante, uma parte de seu ser, zonza, embriagada e mais ou menos desligada de seu corpo, observou friamente que devia estar louca; ela, uma mulher civilizada e educada, princesa e sacerdotisa, da linha real de Avalon, instruída pelos druidas, ali pintada como uma selvagem, e cheirando a sangue fresco, submetendo-se àquela pantomima bárbara...

... e então tudo desapareceu novamente, quando a lua cheia, serena e orgulhosa, levantou-se por sobre as nuvens que a tinham ocultado. Banhando-se nua ao luar, Morgana sentiu a luz da Deusa espalhando-se sobre ela e através dela... ela não era mais Morgana, não tinha nome, era sacerdotisa e donzela e mãe... penduraram uma grinalda de bagos vermelhos em torno de suas virilhas; o simbolismo grosseiro provocou-lhe um súbito medo, e ela sentiu todo o peso da virgindade palpitando e inundando-a como uma onda de primavera. Uma tocha brilhou diante de seus olhos, e levaram-na para a escuridão, ecoando silêncios acima e além dela, uma caverna. À sua volta, nas paredes, pôde ver os símbolos sagrados, pintados desde o princípio do tempo, o gamo, os galhos, o homem com os galhos na testa, a barriga crescida e o peito intumescido, Ela Que Dá a Vida...

A sacerdotisa deitou Morgana num leito de peles de gamo. Por um momento, ela sentiu frio e medo, e tremeu, o que fez a testa da velha franzir-se de compaixão. Tomou Morgana nos braços e beijou-a nos lábios, e ela agarrou-se por um momento à mulher, num súbito terror, como se seus braços acolhedores fossem os de sua mãe... E então ela sorriu e beijou-a novamente e, tocando-lhe os seios numa bênção, afastou-se.

Ficou deitada, sentindo a vida da terra à sua volta; ela parecia expandir-se, encher toda a caverna, os pequenos desenhos pintados em seus seios e barriga, e, acima dela, a grande figura desenhada em calcário, homem ou gamo, com o falo ereto... A lua invisível fora da caverna inundava seu corpo de luz, como se a Deusa surgisse dentro dela, alma e corpo. Estendeu os braços, e à sua ordem sabia que lá fora da caverna, à luz dos fogos fecundantes, homem e mulher, atraídos um para o outro pelos impulsos pulsantes da vida, se juntavam. A menina pintada de azul que levara o sangue fertilizante foí atraída para os braços de um velho e musculoso caçador, e Morgana viu sua rápida luta, seu grito, enquanto ela desapareceria sob o corpo do homem, com as pernas abrindo-se pela força irresistível da natureza. Via sem ver, com os olhos fechados para proteger-se do brilho da tocha, ouvindo os gritos.

Ele chegou à porta da caverna, já sem galhos na cabeça, com o cabelo louro espalhado, o corpo untado de azul e manchado de sangue, a pele branca com o desenho branco do corpo da enorme figura no alto da caverna... O Galhudo, o consorte. Ele aproximou-se também tonto, nu, trazendo apenas uma grinalda como a dela, em torno das virilhas, e Morgana pôde ver a vida, ereta, surgindo nele como na figura desenhada no alto da caverna. Ajoelhou-se ao seu lado, e, à luz da tocha, tonta, pôde notar que não era mais do que um rapaz, não era do povo pequeno, mas alto e louro... Por que escolheram um rei que não pertencia a seu povo? O pensamento atravessou-lhe a mente como um raio de lua e desapareceu; já não pensava em nada.

- Agora é o momento em que a Deusa recebe o Galhudo - ele se ajoelhou junto do leito de peles de gamo, balançando-se, piscando à luz da tocha. Ela estendeu-lhe os braços, agarrou suas mãos, puxou-o, sentindo o calor macio e o peso de seu corpo. Teve de guiá-lo. "Eu sou a Grande Mãe que conhece todas as coisas, que é donzela e mãe sábia, guiando a virgem e seu consorte..." Ofuscada, aterrorizada, semiconsciente apenas, sentiu a força da vida tomar posse de ambos, movendo seu corpo sem vontade, movendo-o também, guiando-o vigorosamente para dentro dela, até que ambos começaram a se mexer, sem saber que força os dominava. Ela ouviu-se gritar, como se estivesse distante, ouviu a voz dele, alta e trêmula no silêncio, sem saber o que ambos haviam gritado naquele momento. A tocha bruxuleou e apagou-se na escuridão, como se toda a energia feroz de sua jovem vida tivesse explodido e jorrado no ventre dela.

Ele deu um gemido e caiu sobre ela, inerte, apenas arfando. Ela afastou-o suavemente, aninhando-o nos braços, segurando-o com um calor cansado. Sentiu que ele lhe beijava o seio nu. E então, lenta e fatigada, a respiração dele tranquilizou-se até se normalizar, e depois de um momento notou que ele dormira em seus braços. Beijou os cabelos louros e o rosto macio com uma ternura selvagem, e também adormeceu.

 

Quando acordou, a noite ia alta; o luar penetrava a caverna. Estava totalmente esgotada, todo o corpo doía e, tateando entre as pernas, sentiu que sangrava. Jogou para trás o cabelo úmido, olhando, à luz do luar, o corpo pálido e estendido, que ainda dormia o sono do cansaço ao seu lado. Era alto, forte e belo, embora, ao luar, não pudesse ver claramente suas feições, e a Visão mágica a tivesse abandonado. Agora, era apenas a luz e o brilho da lua, não mais a face irresistível da Deusa. Voltava a ser Morgana, não mais a sombra da Grande Mãe; era ela mesma outra vez, e sua mente entendia com clareza o que se passara.

Pensou um instante em Lancelote, a quem havia amado, e a quem desejara fazer dom de sua virgindade, que fora agora entregue não a um amante, mas a um estranho sem rosto. Não, não podia pensar assim. Não era uma mulher, era uma sacerdotisa, e dera a força da Virgem ao Galhudo, como havia sido determinado ao seu destino antes que as muralhas do mundo fossem construídas. Aceitara seu destino como sacerdotisa de Avalon, e sentia que alguma coisa de muito importante acontecera ali, na noite passada.

Sentiu frio e deitou-se, cobrindo-se com a pele de gamo. Seu nariz torceu-se um pouco com o cheiro; haviam espalhado ervas doces, de modo que, pelo menos, não havia pulgas. Experiente em calcular o tempo, adivinhou que faltava uma hora para o nascer do sol. Ao seu lado, o rapaz, percebendo que ela se mexia, sentou-se, sonolento.

- Onde estamos? Ah, sim, lembro-me, na caverna. Ora, já está amanhecendo. - Sorriu, e estendeu-lhe a mão. Morgana deixou que a puxasse para si e a beijasse, envolvendo-a com seus braços fortes.

- A noite passada você era a Deusa, mas acordo e vejo que é uma mulher.

Ela riu suavemente:

- E você não é o Deus, mas um homem?

- Acho que já chega de ser Deus, e, além disso, parece-me um tanto presunçoso isso, para um homem de carne e osso - disse, apertando-a contra o corpo. - Estou satisfeito por não ser mais do que um homem.

- Talvez haja um momento para ser Deusa e Deus, e um momento para ser apenas carne e osso - murmurou.

- Eu tive medo de você, a noite passada - confessou ele. - Pensei que fosse a Deusa, tão majestosa estava... e você é tão pequena! - De repente ele pestanejou: - Ora, você fala a minha língua, eu nem havia percebido isso... Então, não é desta tribo?

- Sou uma sacerdotisa da Ilha Sagrada.

- E a sacerdotisa é uma mulher. - Suas mãos continuaram explorando delicadamente os seios de Morgana, que se eriçaram com súbita vida e ânsia, ao seu toque. - Você acha que a Deusa ficará zangada comigo se eu preferir a mulher?

Ela riu, e respondeu:

- A Deusa conhece o comportamento dos homens.

- E sua sacerdotísa?

De repente, ela sentiu-se tímida:

- Não... Eu não havia conhecido homem, antes. E não fui eu, e sim a Deusa. .

- Como o Deus e a Deusa conheceram o prazer - propôs ele na obscuridade, puxando-a ainda mais para si -, não deveríam o homem e a mulher experimentá-lo também?

As mãos tornavam-se mais ousadas, e ela puxou-o para cima de seu corpo.

- Acho que sim - respondeu.

Desta vez, em plena consciência, pôde saborear bem o prazer, a doçura e a dureza, as fortes mãos jovens e a surpreendente delicadeza atrás de sua atitude ousada. Ela riu com satisfação pelo prazer inesperado, abrindo-se totalmente para ele, sentindo também o prazer que lhe proporcionava.

Nunca havia sido tão feliz em sua vida. Cansados, ficaram deitados, enlaçados, acariciando-se numa fadiga agradável.

Por fim, ante a luz que aumentava, ele suspirou.

- Dentro em pouco, virão à minha procura, e ainda há muitas outras coisas a fazer, parecidas com isso. Serei levado a algum lugar, e receberei uma espada, e outras coisas. - Sentou-se e sorriu para ela. - E gostaria de lavar-me, de ter roupas adequadas a um homem civilizado, e livrar-me de todo esse sangue e essa tinta azul... Como tudo passa! Ontem à noite, não senti que estava todo besuntado de sangue.

E veja, você tarnbém está coberta com o sangue do gamo, onde me deitei sobre seu corpo...

- Creio que quando vierem me procurar, vão banharme e vestir-me com roupas limpas - disse ela - e o levarão também para lavar-se no rio.

Ele suspirou com melancolia suave e juveníl. A voz ainda estava mudando, e soou como a de um barítono incerto. Como podia ser tão jovem, esse gigante que combatera contra o Gamo-Rei e o matara com uma faca dura de pederneira?

- Não creio que voltarei a encontrá-la - disse ele -, pois você é uma sacerdotisa, dedicada à Deusa. Mas quero dizer-lhe que... - e inclinou-se para beijá-la entre os seios. - Você foi a primeira. Não importa quantas mulheres eu venha a ter, durante toda a minha vida, sempre me lembrarei de você, e a amarei e a abençoarei. Prometo-lhe isso.

Havia lágrimas em seu rosto. Morgana apanhou a roupa, e secou-as ternamente, embalando a cabeça do rapaz em seu peito.

Com esse gesto, ele pareceu parar de respirar.

- Sua voz - murmurou - e o que você acaba de fazer... Por que tenho a impressão de que a conheço? Será porque você é a Deusa, e nela todas as mulheres são apenas uma? Não... - Ergueu-se, e tomou-lhe o rosto entre as mãos. À luz que cada vez se tornava mais clara, ela viu as feições juvenis se endurecerem nos traços de um homem. Ainda apenas semiconsciente da razão pela qual parecia conhecê-lo, ouviu seu grito áspero: - Morgana! Você é Morgana! Morgana, minha irmã! Ah, meu Deus, Virgem Maria, o que fizemos?

Ela levou lentamente as mãos aos olhos.

- Meu irmão - murmurou. - Ah, Deusa! Irmão! Gwydion...

- Artur - corrigiu ele.

Apertou-o nos braços, e depois de alguns instantes ele soluçou, ainda agarrado a ela.

- Era por isso que eu tinha a impressão de que a conhecia antes mesmo da criação do mundo - chorou ele. - Sempre a amei, e agora... ah, meu Deus, o que fizemos...

- Não chore - consolou-o ela, com desalento -, não chore. Estamos nas mãos Dela, que nos trouxe aqui. Não tem importância. Não somos irmão e irmã aqui, apenas homem e mulher ante a Deusa.

E eu não te reconheci. Meu irmão, meu menino, aquele que dormiu no meu colo como uma criancinha. "Morgana, Morgana, eu lhe disse para cuidar do menino", enquanto ela se afastava e nos deixava, e ele chorou até dormir nos meus braços. E eu não sabia.

- Está tudo bem - repetiu, embalando-o. - Não chore, meu irmão, meu amado, meu pequenino, não chore, está tudo bem.

Mas, rnesmo ao acalentá-lo, o desespero tomava conta dela.

"Por que nos fizeste isso, Grande Mãe, Senhora, por quê?"

E não sabia se estava falando com Viviane ou com a Deusa.

 

Capítulo 16

Durante todo o caminho até Avalon, Morgana ficou deitada em sua liteira, com a cabeça latejando e uma pergunta repetindo-se sempre em sua mente: por quê? Estava esgotada depois dos três dias de jejum e do longo ritual. Sabia, vagamente, que o banquete e os momentos de amor da noite visavam à liberação daquela força e a teriam feito voltar à condição normal, não fosse o choque da manhã.

Morgana conhecia-se bastante bem para saber que quando o choque e o cansaço passassem, seriam seguidos por uma explosão de raiva, e queria encontrar-se com Viviane antes que isso ocorresse, quando ainda pudesse manter uma certa aparência de calma.

Tomaram, daquela vez, a rota do lago, e a seu próprio e insistente pedido deíxaram-na andar uma parte do caminho. Já não era a Donzela da cerimônia, ritualmente protegida dos olhares, mas apenas uma das sacerdotisas atendentes da Senhora do Lago. Ao fazer a travessia de barca, teve de convocar as brumas para a entrada em Avalon, e levantou-se para fazê-lo quase como quem cumpre uma obrigação, de tal modo já considerava esse Místério como parte de sua vida.

Não obstante, ao levantar os braços para o gesto mágico, teve um súbito e paralisador momento de dúvida. Sentia-se tão mudada que já não estava certa de que teria ainda poder para abrir a passagem. Sua revolta era tanta que, por um momento, hesitou, e os homens da barca olharam-na com uma preocupação discreta. Sentíu-se atravessada pelos seus olhos e por um momento de intensa vergonha, como se tudo o que lhe acontecera na noite anterior estivesse, de algum modo, impresso em seu rosto, na linguagem da luxúria. O som dos sinos da igreja ecoou tranquilamente sobre o lago, e de repente Morgana retornou à infância, ouvindo o padre Columba discorrer com ênfase sobre a castidade, a maior aproximação com a santidade de Maria, Mãe de Deus, que, por milagre, tivera seu Filho sem mancha, sequer momentânea, do pecado do mundo. Já naquela época Morgana havia pensado: Que absurdo, isso, como poderia uma mulher ter um filho sem conhecer um homem? Mas ao som dos sinos sagrados, alguma coisa dentro dela pareceu desmoronar e perder-se, e lágrimas rolaram-lhe subitamente pelo rosto.

- Senhora, sente-se mal?

Sacudiu a cabeça, dizendo com firmeza:

- Não, tive uma tontura por um momento. - Respirou profundamente. Artur não estava na barca - não, era claro que não, fora levado por Merlim pelo Caminho Oculto. A Deusa é Una - Maria, a Virgem, a Grande Mãe, a Caçadora... e eu participo de Sua grandeza. Fez um gesto como se quisesse afastar alguma coisa, e levantou os braços outra vez, fazendo baixar rapidamente a cortina de névoa através da qual chegariam a Avalon.

A noite caía, mas embora Morgana estivesse com fome e cansada, dirigiu-se imediatamente para a casa da Senhora. Na porta, uma sacerdotisa interceptou sua entrada.

- A Senhora não pode ver ninguém, no momento.

- Absurdo - disse Morgana, indignada, apesar do torpor que a amortecia, e esperando conter-se até enfrentar Viviane. - Sou parenta dela, pergunte-lhe se posso vê-la.

A sacerdotisa saiu e voltou logo, com um recado:

- A Senhora mandou dizer-lhe que vá imediatamente para a Casa das Moças e que irá recebê-la em ocasião oportuna.

Por um momento, sua raiva foi tanta que quase empurrou a mulher, afastando-a do caminho, e entrou à força na casa de Viviane. Ignorava o castigo para a sacerdotisa que desobedecesse ao juramento feito, e, apesar de indignada, uma pequena voz, fria e racional, aconselhou-a a não continuar agindo daquela maneira. Respirou fundo, compondo o rosto na expressão adequada a uma sacerdotisa, curvou-se obedientemente e afastou-se. As lágrimas que fora obrigada a conter, ao ouvir os sinos da igreja no lago, estavam começando a inundar-lhe os olhos e, por um momento, desejou, cansada, que pudesse deixá-las correr. Finalmente, a sós na Casa das Moças, em seu quarto tranquilo, poderia chorar se sentisse necessidade. Mas as lágrimas não vinham, sentia apenas espanto, dor e ira, que não tinha como expressar. Era como se o corpo e a alma estivessem atados num grande nó de angústia.

Passaram-se dez dias, até que Viviane a mandou chamar.

A lua cheia que brilhara no triunfo do Galhudo encolhera-se e transformara-se num fragmento enfermiço e agonizante. Quando uma das jovens sacerdotisas trouxe a mensagem de que Viviane queria falar-lhe, o ódio de Morgana transformara-se numa raiva latente.

"Ela me usou como se usa um instrumento, como eu tocaria uma harpa." As palavras soaram de tal modo em sua mente que a princípio, quando ouvíu a música de uma harpa na casa de Viviane, acreditou que era o eco de seus amargos pensamentos. Depois, julgou que Viviane estivesse tocando. Mas em todos os anos passados em Avalon aprendera bastante sobre música, e conhecia o som da harpa da Senhora: sabia que ela era, na melhor das hipóteses, uma harpista medíocre.

Ficou ouvindo, contra a própria vontade, e perguntou quem estaria tocando. Taliesin? Antes de ser o Merlim, ele fora o maior dos bardos, renomado por toda a Bretanha. Ouvira-o tocar frequentemente nos grandes dias de festa e nos rituais mais solenes. Mas, agora, suas mãos haviam envelhecido. Não perdera a habilidade, mas não conseguia mais produzir sons como os que estava ouvindo - tratava-se de um novo harpista, que nunca ouvira antes. E sabia, mesmo sem vê-lo, que tocava uma harpa maior do que as de Taliesin, e que os dedos do músico falavam às cordas como se as tivesse encantado.

Viviane contara-lhe, certa vez, uma velha história de um país distante, a história de um bardo cujos acordes haviam feito as pedras dançarem e as árvores perderem as folhas de tristeza, e que quando ele desceu à região dos mortos, seus rigorosos juízes se comoveram e deixaram sua amada voltar com ele. Morgana ficou imóvel do lado de fora da porta, enquanto toda a irritação desaparecia com a música. De repente, sentiu que o pranto contido nos dez últimos dias poderia retornar, que, se ela o permitisse, sua raiva poderia dissolver-se em lágrimas que a lavariam totalmente, deixando-a tão fraca quanto qualquer menina. Abriu a porta de súbito e entrou sem cerimônias.

Taliesin, o Merlim, estava presente, mas não tocava; num gesto de atenção, suas mãos estavam juntas no colo, e ele, inclinado para a frente, ouvia. Viviane, também, em vestes simples de casa, estava sentada no lugar habitual, mas distante do fogo; cedera o lugar de honra ao estranho que tocava.

Era um homem vestido com a roupa verde dos bardos; barbeado à maneira romana, tinha cabelos encaracolados mais escuros do que o ferro enferrujado. Os olhos eram fundos sob uma testa que parecia quase grande demais para ele, e embora por alguma razão Morgana esperasse que fossem escuros, eram de um azul inesperadamente penetrante. Ele franziu a testa com a interrupção, e suas mãos pararam em meio a um acorde.

Também a Viviane a interrupção pareceu desagradar, mas ela fingiu não notar a descortesia.

- Entre, Morgana, e sente-se ao meu lado. Sei que você gosta de música, e achei que teria prazer em ouvir Kevin, o Bardo.

- Eu estava ouvindo lá fora.

Merlim sorriu:

- Sente-se, então. Ele é novo em Avalon, mas creio que talvez tenha muita coisa a nos ensinar.

Morgana sentou-se ao lado de Viviane, que disse:

- Minha sobrinha Morgana, também da linhagem real de Avalon. Você tem à sua frente, Kevin, aquela que será a Senhora, aqui, dentro de alguns anos.

Morgana fez um movimento de surpresa: ignorava os planos de Viviane. Mas a raiva afagou seu sentimento de gratidão. Ela pensa que basta dizer uma palavra bondosa ou lisonjeira, e eu correrei a lamber-lhe os pés como um cachorrinho!

- Que esse dia esteja distante, Senhora de Avalon, e que sua sabedoria continue a guiar-nos por muito tempo ainda! - desejou Kevin suavemente. Falava o idioma deles impecavelmente - quase não se percebia que não era sua língua materna: apenas uma pequena hesitação antes das palavras, embora a pronúncia fosse perfeita. Bem, afinal, ele tinha ouvido de músico. Morgana calculou que devia ter cerca de trinta anos, talvez um pouco mais. Mas não dispensou-lhe maior atenção, depois daquela primeira surpresa com o azul de seus olhos, e concentrou-se na grande harpa pousada nos joelhos do moço.

Como imaginara, era um pouco maior até mesmo do que a harpa que Taliesin tocava nos grandes festivais. Era feita de madeira brilhante, avermelhada e escura, totalmente diversa da madeira clara de salgueiro de que eram feitas as harpas em Avalon, e ela concluiu ser essa a razão de emitir um som tão sedoso. O instrumento tinha uma curva graciosa como a de uma nuvem, suas cavilhas eram feitas de um curioso osso pálido, e estava pintado e enfeitado de letras rúnicas estranhas a Morgana, que havia aprendido, como qualquer mulher instruída, a ler e escrever em letras gregas. Kevin acompanhou-lhe o olhar insistente, e pareceu um pouco menos aborrecido, ao dizer:

- Você está admirando minha amada. - Passou a mão, numa carícia, pela madeira escura. - Dei-lhe esse nome quando foi feita para mim, presente de um rei. É a única mulher, moça ou velha, cujas carícias nunca me cansam, e de cuja voz não enjôo nunca.

Viviane sorriu para o harpista:

- Poucos homens podem orgulhar-se de uma namorada tão fiel!

O sorriso dele foi um esgar cínico:

- Ah, como todas as mulheres, ela reagirá a qualquer mão que a acaricie, mas creio que sabe que vibrará mais com meu toque, e, sendo lúbrica como todas as mulheres, tenho a certeza de que gosta mais de mim.

- Parece-me que você não faz bom juízo das mulheres de carne e osso - sorriu Viviane.

- Ora, realmente não faço, senhora. Exceto em relação à Deusa. - Essas palavras foram ditas com uma leve ironia, que não chegava a ser zombeteira. - E estou satisfeito por não ter outra namorada a não ser esta aqui, que nunca me censura se a esqueço, mas que é sempre a mesma terna amante.

- Talvez - comentou Morgana, erguendo os olhos - você a trate melhor do que trata uma mulher de carne e osso, e ela o recompense do mesmo modo.

Viviane franziu a testa, e Morgana admitiu ter passado dos limites, com essas palavras ousadas. Kevin levantou subitamente a cabeça, que estava inclinada sobre a harpa, e seu olhar encontrou o de Morgana. Por um momento Kevin sustentou esse olhar, e ela ficou surpresa com sua hostilidade; por isso, sentiu que ele compreendia alguma coisa de suas emoções, que conhecia a raiva e a combatera.

Pareceu que ele ia falar, mas Taliesin fez-lhe um gesto com a cabeça, e o moço voltou a inclinar-se sobre o instrumento. Morgana notou então que sua execução era diferente da maioria dos harpistas, que seguravam o instrumento perpendicularmente ao corpo, tocando-o com a mão esquerda. Kevin colocava a harpa entre os joelhos e inclinava-se para a frente, na direção dela. Isso a surpreendeu, mas quando a música começou a encher a sala, como um luar que viesse das cordas, ela esqueceu a estranheza da posição, viu o rosto do músico modificar-se e tornar-se calmo e distante, sem a ironia de suas palavras. Concluiu que gostava mais dele quando tocava do que quando falava.

Não havia nenhum outro som na sala, como se a harpa a houvesse enchido totalmente e os ouvintes tivessem contido até mesmo a respiração. A música fazia desaparecer tudo o mais, e Morgana, baixando o véu sobre o rosto, deixou as lágrimas correrem. Parecia-lhe que naquele som ela podia ouvir o pulsar das ondas da primavera, a doce consciência que lhe enchera o corpo quando estava deitada, naquela noite, ao luar, esperando o amanhecer. Viviane estendeu-Ihe a mão, como fizera quando Morgana era apenas uma criança, acariciando-lhe suavemente os dedos, um após outro.

As lágrimas continuavam a rolar, e ela não conseguia contê-las. Levou a mão de Viviane aos lábios e beijou-a. Pensou, com esmagadora sensação de perda: "Ora, ela é velha, envelheceu desde que cheguei aqui..." Sempre, antes daquele momento Viviane lhe havia. parecido sem idade, imutável, como a própria Deusa. "Ah, mas eu também mudei, já não sou uma criança... certa vez, quando cheguei, ela me disse que algum dia teria por ela tanto ódio quanto tive amor, e não pude acreditar nisso, então..." Lutou contra o pranto, temendo fazer algum ruído revelador e, o que seria pior, interromper a música. Pensou: "Não, não posso odiar Viviane", e todo o seu ressentimento dissolveu-se numa dor tão grande que por instantes ela pensou que fosse explodir no mais intenso choro. Um choro que seria por ela mesma, pelas modificações que sofrera, por Viviane, que havia sido tão bela, o rosto da própria Deusa, e estava agora mais próxima da sombra da morte, e por saber que também ela, como Viviane, com o passar implacável dos anos, estaria sob a sombra da morte; um pranto que seria pelo dia em que subira o Tor com Lancelote, com quem se deitara ao sol, desejando ser tocada por ele, sem compreender claramente aquela ânsia; e por alguma coisa que perdera, de maneira irrecuperável.

Não apenas a virgindade, mas uma confiança e uma crença que jamais voltaria a conhecer. E Morgana estava certa de que, ao lado dela, Viviane também chorava silenciosamente, lá por trás de seu véu.

Levantou o olhar. Kevin estava imóvel, apenas seus dedos moviam-se sobre as cordas. Quando a suspirante loucura da música tremeu no silêncio, ele levantou a cabeça, e seus dedos varreram as cordas, tocando-as alegremente em melodia viva, cantada pelos semeadores de cevada nos campos, com um ritmo de dança e palavras que estavam longe de ser modestas. E desta vez, ele cantou. Tinha a voz forte, clara, e Morgana, sob o disfarce da música de dança, observou-lhe as mãos, puxou o véu para um lado e conseguiu limpar as lágrimas traiçoeiras.

E notou então que, apesar de toda a sua habilidade, havia algo de estranho com suas mãos: pareciam malformadas, e, observando-as, percebeu que a um ou dois dedos faltava a segunda falange, e ele tocava habilmente com o que restava, e, ainda, que à mão esquerda faltava totalmente o dedo mínimo. E pelas mãos, por mais belas e elásticas que parecessem, havia manchas mais claras, estranhas. Quando ele pousou a harpa, inclinando-se para firmá-la, a manga descobriu o pulso e ela viu ali horríveis manchas brancas, como as cicatrizes de queimaduras ou de feridas mutiladoras. Agora que o examinava de perto, constatou que seu rosto tinha uma fina rede de cicatrizes, ao longo do queixo e da linha do maxilar. O rapaz notou o olhar de Morgana e levantou a cabeça, enfrentando-o agressivamente. Morgana desviou os olhos, corando; depois da música que lhe tocara a alma, não desejava ferir seus sentimentos.

- Bem - disse Kevin subitamente -, minha namorada e eu temos sempre prazer em cantar para os que gostam da voz dela, mas suponho que a Senhora e o senhor, Merlim, não me chamaram apenas para mostrar-lhes a minha música.

- Não foi só para isso - admitiu Viviane em sua voz grave e cheia -, mas você nos proporcionou um prazer de que me lembrarei durante muitos anos.

- E eu também - disse Morgana. Sentia-se agora tímida diante dele, tal como antes havia sido ousada. Não obstante, aproximou-se para ver mais de perto a grande harpa: - Nunca tinha visto uma harpa desse tipo.

- Acredito que não - respondeu Kevin -, pois mandei fazê-la especialmente. O harpista que me ensinou minha arte ficou horrorizado, como se eu tivesse blasfemado contra seus Deuses, e jurou que ela produziria um barulho horrível, que serviria apenas para assustar os inimigos. Como as grandes harpas de guerra, que tinham duas vezes o tamanho de um homem e eram carregadas em carroças pelos montes da Gália, e ali deixadas ao vento, para que fizessem barulhos desagradáveis, a ponto de assustarem até mesmo as legiões romanas. Bem, toquei numa dessas harpas, e um rei agradecido deu-me autorização para mandar fazer um instrumento do jeito que eu quisesse.

Taliesin interrompeu-o:

- Ele diz a verdade, embora eu não tivesse acreditado quando ouvi a história pela primeira vez. Que homem, e mortal, poderia tocar num daqueles monstros?

- Eu toquei - afirmou Kevin -, por isso o rei mandou que fizessem minha amada para mim. Tenho uma harpa menor, do mesmo desenho, mas não tão boa.

- Realmente, ela é bela - comentou Morgana. - De que são as cavilhas? De osso de foca?

- São feitas, ao que me informaram, dos dentes de um grande animal que vive nos países quentes, bem mais ao sul - explicou, sacudindo a cabeça. - Sei apenas que é um material liso e bonito, e, ao mesmo tempo, duro e resistente. É mais caro do que o ouro, embora menos vistoso.

- Você não a segura como sempre vi a harpa ser tocada...

- Não - disse Kevin com seu sorriso torto -, tenho pouca força nos braços, e tive de estudar a posição em que poderia tocar melhor. Notei que você olhava minhas mãos. Quando eu tinha seis anos, a casa em que vivia foi incendiada pelos saxões, e só fui retirado tarde demais. Ninguém acreditou que eu viveria, mas surpreendi a todos, e como não podia andar nem lutar, colocaram-me num canto e decidiram que, com minhas mãos defeituosas - e mostrou-as tranquilamente -, talvez pudesse aprender a fiar e tecer, com as mulheres, mas não mostrei muita disposição para isso. Um dia, um velho harpista apareceu, e, em troca de um prato de sopa, pôs-se a divertir um aleijado. Quando ele me mostrou as cordas, tentei tocar. Consegui produzir alguma coisa parecida com música, e, assim, ele teve assegurado seu sustento, naquele inverno e no seguinte, ensinando-me a tocar e a cantar, garantindo que poderia preparar-me para ganhar a vida com a músíca. Por isso, durante dez anos não fiz outra coisa senão ficar sentado no canto e tocar, até que minhas pernas finalmente se tornaram bastante fortes e pude aprender outra vez a andar.

Fez um movimento de ombros, tirou um pano que estava atrás de si, e enrolou com ele a harpa, colocando-a numa caixa de couro, adornada de signos.

- Eis como me tornei harpista da aldeia, e acabei harpista do rei. Quando o velho rei morreu, seu filho não gostava de música, e achei melhor deixar o reino, antes que ele começasse a cobiçar o ouro da minha harpa. Cheguei, então, à ilha druida, e ali estudei a arte dos bardos, sendo finalmente mandado a Avalon - e aqui estou - acrescentou, com um novo movimento de ombros -, aguardando a razão por que me mandaram chamar.

- Porque - disse Merlim - sou velho; e os acontecimentos a que demos início esta noite só poderão ter resultados plenos dentro de mais uma geração. E quando isso acontecer, eu não estarei mais aqui.

Viviane inclinou-se para a frente e perguntou:

- Você teve algum aviso, Pai?

- Não, minha querida. Eu não desperdiçaria a Visão com um assunto destes. Não consultamos os deuses para saber se haverá neve no próximo inverno. E, assim como você trouxe Morgana para cá, eu trouxe Kevin, o Bardo, a fim de que haja alguém mais jovem para acompanhar os acontecimentos depois que eu tiver desaparecido. Ouça, portanto, o que tenho a dizer: Uther Pendragon está agonizando em Caerleon, e onde o leão cai juntam-se os corvos. Tivemos informação de que um grande exército está sendo organizado nos países a oeste do rio Medway, onde os povos do tratado decidiram ser chegado o momento de levantar-se e tomar-nos o resto da Bretanha. Mandaram chamar mercenários do continente, do norte da Gália, para unirem-se a eles na derrubada de nosso povo, e para desfazerem o que Uther construiu. Chegou o momento em que todo o nosso povo deve lutar pela bandeira que trabalhamos tantos anos para levantar. Não temos muito tempo: o povo deve ter seu rei, e precisa dele agora. Não podemos perder uma outra lua, ou os inimigos nos atacarão. Lot quer o trono, mas os sulistas não o seguirão. Há outros: o duque Marcos, da Cornualha, Uriens em Gales do Norte, mas nenhum deles tem apoio fora de suas próprias terras, e corremos o perigo de ficar como o burro que morreu de fome entre dois sacos de forragem, sem saber qual comer primeiro... Precisamos do filho de Pendragon, por mais jovem que seja.

- Nunca ouvi dizer que Pendragon tivesse um filho - observou Kevin. - Ou terá ele reconhecido o que sua mulher teve com o duque da Cornualha, logo depois que eles se casaram? Uther devia estar com uma pressa imoral de se casar, se não pôde nem mesmo esperar que ela tivesse a criança, antes de levá-la para a sua cama...

Viviane ergueu a mão:

- O jovem príncipe é filho de Uther, ninguém pode duvidar disso, nem duvidará, ao ver o rapaz.

- É mesmo? Então Uther fez bem em escondê-lo - tornou Kevin -, pois seu filho com a mulher de um outro...

Viviane silenciou-o com um gesto:

- Igraine é minha irmã, e é da linhagem real de Avalon. Este filho de Uther e Igraine teve seu nascimento previsto, como o rei que era e que seria. Ele já tomou os galhos e foi coroado pelas tribos.

- Que rei, na Bretanha, aceitará um rapaz de dezessete anos para ser Grande Rei? - perguntou Kevin com ceticismo. - Ele pode ser tão corajoso quanto o lendário Cuchulain, e eles ainda desejariam um guerreiro de maior competência.

- Quanto a isso, ele aprendeu as artes da guerra e o que cabe ao filho de um rei - disse Taliesin -, embora ignore que tem sangue real. Mas creio que a lua cheia que acaba de passar deu-lhe uma noção de seu destino. Uther teve um prestígio como nenhum rei antes dele; esse rapaz, Artur, terá um prestígio ainda maior. Já o vi no trono. A questão não é ser ele aceito ou não, mas o que podemos fazer para colocá-lo no trono com toda a majestade do Grande Rei, de modo que todos os reis em guerra se dêem as mãos contra os saxões, em lugar de lutarem entre si!

- Eu descobri como conseguir isso - disse Viviane -, e o que for necessário será feito na lua-nova. Tenho uma espada para ele, uma espada lendária, que nunca foi manejada por um herói vivo. - Fez uma pausa, e depois continuou lentamente: - Em troca dessa espada, exijo uma promessa. Quero que ele jure fidelidade a Avalon, não importa o que os cristãos façam. E então talvez a situação se inverta e Avalon possa sair das névoas, e sejam os monges e seu Deus Morto que tenham de esconder-se nas sombras e na cerração, enquanto Avalon brilhar novamente à luz do mundo exterior.

- Um plano ambicioso - comentou Kevin -, mas se o Grande Rei da Bretanha jurasse fidelidade a Avalon...

- Isso foi planejado antes do nascimento dele.

Taliesin expôs lentamente:

- O menino foi educado como cristão. Será que aceita esse juramento?

- Que valor têm as conversas sobre Deuses para um rapaz, em comparação com uma espada lendária, com a qual poderá liderar seu povo, e a fama dos grandes feitos? - perguntou Viviane. - Qualquer que seja o resultado, já fomos demasiado longe para pararmos, agora. Estamos todos comprometidos. Dentro de três dias, a lua voltará a ser nova, e nessa ocasião auspiciosa, ele terá a espada.

 

Não havia muita coisa mais a dizer. Morgana ficou sentada ouvindo, ao mesmo tempo emocionada e aterrorizada. Estava em Avalon havia muito tempo, pensou, escondida entre as sacerdotisas, com o pensamento voltado para as coisas sagradas e a sabedoria secreta. Esquecera a existência de um mundo lá fora. Nunca havia, de certa forma, tomado realmente consciência de que Uther Pendragon, o marido de sua mãe, era o Grande Rei da Bretanha, e que seu irmão também o seria, um dia. Mesmo, pensou com um toque daquele novo sarcasmo, com a mancha da dúvida quanto ao seu nascimento. Talvez os reis rivais recebessem até mesmo bem um candidato que não tivesse ligações com nenhum grupo ou facção, um filho de Pendragon, belo e modesto, que pudesse servir como um símbolo em torno do qual todos se congregassem. Além disso, um candidato a Grande Rei já havia sido aceito pelas tribos e pelos pictos, e por Avalon... E então Morgana tremeu, recordando-se do papel que lhe coubera naquilo, e sua revolta cresceu. Quando Taliesin e Kevin se levantaram para partir, lembrou-se por que desejara, dez dias antes, encolerizada, enfrentar Viviane.

A harpa de Kevin, em sua caixa ornamentada, era difícil de carregar, sendo muito maior do que os instrumentos comuns. Sob seu peso, o rapaz parecia desajeitado, de joelhos duros e pés que se arrastavam. Feio, pensou Morgana, um homem feio e grotesco, mas quando toca, quem pensaria nisso? Há nesse homem alguma coisa mais que qualquer um de nós desconhece. Lembrou-se então do que Taliesin dissera, de que estava olhando para o próximo Merlim da Bretanha, tal como Viviane revelara que seria a próxima Senhora do Lago. Isso não lhe provocou nenhum entusiasmo, mas se Viviane o tivesse declarado antes daquela viagem, ela teria ficado orgulhosa e excitada. Agora, a perspectiva parecia-lhe obscurecida pelos acontecímentos.

"Com meu irmão, meu irmão. Não tinha importância quando éramos sacerdote e sacerdotisa, Deus e Deusa juntando-se sob a força do ritual. Mas, pela manhã, quando despertamos, e éramos homem e mulher juntos... Aquilo foi real, foi pecaminoso..."

Viviane estava de pé junto à porta, vendo-os afastarem-se.

- Para um homem com suas deficiências, ele movimenta-se bem. É uma felicidade para o mundo que ele tenha sobrevivido aos seus ferimentos, e que não tenha se transformado num mendigo de rua, ou em tecelão de tapetes no mercado. Um talento como o seu não deve ficar escondido na obscuridade ou mesmo na corte de um rei. Uma voz e mãos como aquelas pertencem aos deuses.

- Ele é muito talentoso, sem dúvida - disse Morgana -, mas pergunto se será prudente. O Merlim da Bretanha deve ser não só culto e talentoso, mas também prudente. E... virtuoso.

- Deixo isso a Taliesin - concluiu Viviane. - O que tem de ser será. Não cabe a mim ordená-lo.

De repente, Morgana extravasou seu ressentimento:

- Estará realmente admitindo que existe alguma coisa na face da terra que não lhe compete ordenar, senhora? Pensei que acreditava ser sua vontade a vontade da Deusa, e que todos nós fôssemos títeres a seu serviço!

- Você não deve falar assim, filha - disse Viviane, olhando-a com surpresa. - Você não pode estar querendo ser insolente comigo.

Se Viviane tivesse respondido às suas palavras com arrogância, a raiva de Morgana teria crescido e explodido, mas sua suavidade desorientou-a. Indagou, somente:

- Viviane, por quê?

E sentiu, envergonhada, que as lágrimas voltavam a sufocá-la. Então, a voz de Viviane foi dura:

- Será que a deixei muito tempo entre os cristãos, afinal de contas, ouvindo suas conversas sobre o pecado? Pense, filha. Você é da linhagem real de Avalon, e ele também. Poderia eu tê-la entregue a um plebeu? Ou poderia o Grande Rei receber uma plebéia?

- E eu acreditei em você, quando disse... Acreditei que era obra da Deusa...

- Claro que era - respondeu Viviane com suavidade, mas sem compreensão. - Mesmo assim, eu não poderia dá-la a alguém que não fosse digno de você, minha Morgana. - Tinha a voz terna. - Ele era tão criança quando se separaram... Pensei que jamais a reconheceria. Lamento que você o tenha reconhecido, mas afinal de contas teria de saber, mais cedo ou mais tarde. E ele não precisa saber por muito tempo.

Morgana disse, enrijecendo o corpo para conter a indignação:

- Ele já sabe. Ele sabe. E ficou mais horrorizado do que eu.

Viviane suspirou:

- Bem, nada podemos fazer, agora. O que está feito está feito. E neste momento, a esperança da Bretanha é mais importante do que seus sentimentos.

Morgana voltou-se e não esperou para ouvir mais.

 

Capítulo 17

A lua estava escura no céu. Nessas ocasiões, ao que se dizia às sacerdotisas da Casa das Moças, a Deusa esconde o rosto da humanidade, aconselhando-se com os céus e os Deuses que ficam atrás dos Deuses que conhecemos. Viviane também se recolhia durante a obscuridade da lua, enquanto sua solidão era protegida por duas jovens sacerdotisas.

Passou a maior parte do dia na cama, deitada de olhos fechados e pensando se, afinal de contas, realmente Morgana teria razão - se, embriagada pelo poder, acreditava que todas as coisas estavam às suas ordens, para com elas jogar como lhe parecesse melhor.

"O que fiz", pensou, "foi feito para salvar esta terra e seu povo da rapina e da destruição, do retorno à barbárie, de um saque maior que o de Roma nas mãos dos godos."

Tinha vontade de mandar chamar a moça, ansiosa que estava por sua antiga proximidade. Se realmente ela passasse a odiá-la, seria o maior preço que teria pago por qualquez de suas decisões. Morgana, o único ser humano que amara integralmente. "Ela é a filha que eu devia à Deusa. Mas o que está feito não pode ser des feito. A linhagem real de Avalon não deve ser contaminada pelo sangue plebeu." Pensou em Morgana com a dolorosa esperança de que, algum dia, a jovem compreenderia; mas quer compreendesse ou não, Viviane sabia ter feito apenas o que era preciso fazer.

Dormiu pouco, naquela noite, com sonhos caóticos e visões, pensando nos filhos que haviam se distanciado do mundo lá fora, no qual o jovem Artur viajava agora com Merlim; chegaria a tempo de ver o pai ainda vivo? Fazia seis semanas que Uther Pendragon jazia enfermo em Caerleon, piorando e melhorando, por turnos, mas parecia improvável que pudesse resistir por muito mais tempo.

Quando a alvorada se aproximou, Viviane levantou-se e vestiu-se tão silenciosamente que nenhuma das sacerdotisas a seu serviço percebeu. Estaria Morgana dormindo, na Casa das Moças, teria também ela passado a noite com o coração pesado, ou teria chorado? Morgana nunca chorara na frente dela, até aquele dia em que a harpa de Kevin a comoveu, e, mesmo então, escondeu suas lágrimas.

"O que está feito está feito! Não posso poupá-lo. Mas desejo de todo o coração que tivesse havido alguma outra forma..."

Saiu silenciosamente para o jardim que ficava atrás de sua casa. Os pássaros estavam começando a despertar; flores de maçã, suaves e perfumadas, caíam das árvores que tinham dado a Avalon esse nome.

"Elas darão fruto no devido tempo, tal como aquilo que faço agora também frutificará na época certa. Mas eu não florirei, nem darei mais frutos." O peso dos anos era grande em sua mente. "Estou velha. Mesmo agora, por vezes a Visão me falha, a Visão que tenho para guiar esta terra."

Nem sua mãe atingira aquela idade. Chegaria o momento - na realidade, estava quase chegando - em que teria de abandonar o fardo e seu cargo sagrado, entregar o governo real de Avalon à Senhora que viria, colocando-se atrás dela, nas sombras, como sábia - ou como a velha sombra da própria morte.

"Morgana não está preparada. Ela ainda vive de acordo cam o tempo do mundo, e pode tremer e chorar pelo que não é possivel evitar." Passou em revista as sacerdotisas existentes em Avalon, moças e velhas. Não havia nenhuma a quem pudesse confiar o governo daquela terra. Morgana chegaria algum dia a ter a estrutura necessária, mas ainda não estava pronta. Raven talvez tivesse a força para isso, mas entregara sua voz aos Deuses; Raven destinava-se à loucura divina dos mundos além, e não ao conselho e ao juízo sóbrios deste mundo. O que aconteceria à Bretanha, se ela morresse antes que Morgana chegasse à plenitude de seus poderes?

O céu continuava escuro, embora a leste a névoa já se dissolvesse com o alvorecer. A luz cresceu enquanto Viviane o observava; as nuvens vermelhas formaram-se lentamente, assumindo a forma de dragões vermelhos, retorcendo-se por todo o horizonte. E, então, uma grande estrela cadente flamejou por todo o céu, quase apagando os dragões vermelhos; seu brilho cegou Viviane por um momento; quando voltou a enxergar, o dragão vermelho desaparecera e as nuvens instáveis haviam-se tornado brancas com o sol nascente.

Viviane sentiu calafrios na espinha. Um presságio assim não era visto duas vezes na mesma existência. Toda a Bretanha devia tê-lo visto. "Então Uther se vai", pensou. "Adeus ao dragão que abriu suas asas sobre nossas praias. Agora, os saxões lançar-se-ão sobre nós."

Suspirou, e, então, sem qualquer indício prévío, houve uma agitação no ar, e um homem surgiu à sua frente, no jardim. Viviane tremeu, não com o medo que uma mulher simples poderia sentir ante um intruso - não temia nenhum homem vivo -, mas porque havia muito tempo não recebia uma mensagem verdadeira, desse tipo. Uma visão que se lhe impunha, sem ter sido convocada, devia ser de grande força.

"A força de uma estrela cadente, um presságio como nunca vi..."

Por um momento, não reconheceu o homem à sua frente; a doença embranquecera-lhe o cabelo louro, encurvara-lhe os ombros fortes e dobrara-lhe a espinha. A pele estava amarela, e os olhos, fundos de dor. Mesmo assim, Uther Pendragon parecia, como sempre, maior do que a maioria dos homens. E embora o jardim fechado estivesse praticamente em silêncio e ela ouvisse o pio dos pássaros pela voz de Uther - sim, e visse as árvores em flor através de seu corpo -, quando ele falou essa voz pareceu-lhe, como sempre, áspera e sem calor.

- Então, Viviane, encontramo-nos pela última vez. Há entre nós um laço que eu não teria desejado; não fomos amigos, cunhada. Mas confio na sua visão, pois o que você disse sempre se confirmou. E você é a única que pode fazer com que o próximo Grande Rei da Bretanha tome o que é legitimamente seu.

Viu, então, no peito dele a marca de uma grande ferida. Como era possível que Uther Pendragon, que jazia enfermo em Caerleon, tivesse morrido de um ferimento e não de sua prolongada enfermidade?

- Morri como um soldado deve morrer; as tropas do tratado romperam seu juramento de fidelidade, e meus exércitos não puderam resistir-lhes enquanto não me fiz carregar até o campo de batalha, para mostrar-me a meus soldados. Então eles encorajaram-se novamente, mas Aesc, o chefe dos saxões - não darei àquele selvagem o nome de rei -, rompeu nossas linhas, matou três dos meus guardas; e eu o matei antes que seu guarda-costas pudesse me matar. Mas ganhamos aquela batalha. A batalha seguinte será para meu filho, se ele subir ao trono.

Viviane ouviu-se dizer, em voz alta, em pleno silêncio:

- Artur é rei pela velha linhagem real de Avalon. Ele não precisa do sangue do Pendragon para assumir o lugar que lhe é devido como Grande Rei.

Mas isso, que teria feito o Uther vivo explodir de raiva, apenas provocou um sorriso cansado, e pela última vez ela lhe ouviu a voz.

- Não tenho dúvidas de que seria necessário mais do que a sua magia, cunhada, para fazer com que os reis menores da Bretanha aceitassem isso. Você pode ver com desprezo o sangue do Pendragon, mas é dele que Merlim tem de se valer para colocar Artur no meu trono.

E então, ante seus olhos, a forma de Uther Pendragon desapareceu, e à frente dele surgiu outro homem, a quem Viviane só vira em sonhos. E num momento de revelação, compreendeu por que nenhum homem nunca havia sido para ela mais do que um dever, ou um caminho para chegar ao poder, ou uma noite de prazer; por um momento, ela estava numa terra submersa antes que as pedras circulares do Tor tivessem sido levantadas, e em volta dos braços tinha serpentes douradas que se enroscavam... O crescente apagado queimava como uma grande lua de cornos entre suas sobrancelhas, e ela o conheceu, com um conhecimento que ia além do tempo ou do espaço... Deu um grito, um grande grito de lamento por tudo o que jamaís conhecera nesta vida, e a agonia de uma privação não imaginada até aquele momento. E então o jardim ficou vazio, e os pássaros chilreavam despreocupados no silêncio úmido das névoas que ocultavam o sol nascente.

E muito longe, em Caerleon, Igraine, sabendo-se viúva, sofre pelo seu amor... cabe-lhe agora chorar por ele... Viviane buscou o apoio do tronco orvalhado da grande árvore, e nele se encostou, torcendo-se numa dor inesperada. Ele nunca a havia conhecido. Ele sentira aversão por ela, jamais confiara nela até o momento de sua morte, quando o disfarce mortal de uma vida apenas desaparece. Deusa, tem misericórdia... Toda uma vida passada sem que eu o conhecesse... Foi-se, foi-se novamente, e poderei conhecê-lo quando nos encontrarmos outra vez, ou caminharemos novamente cegos, passando um pelo outro, como estranhos? Mas não houve resposta, apenas silêncio, e Viviane não podia sequer chorar.

- Igraine chorará por ele... Eu não posso...

Recompôs-se rapidamente. Não era o momento de ficar chorando por um amor, como um sonho dentro de um sonho; era, novamente, tempo de agir, e ela recordou a visão com algum desalento. Não encontrava agora, em seu coração, nenhuma dor pelo morto, apenas se exasperava: devia ter sabido que ele iria morrer no momento menos conveniente possível, antes que tivesse tempo de proclamar seu filho diante dos pequenos reis rivais, todos disputando a coroa do Grande Rei. Por que não ficara em Caerleon, por que cedera ao orgulho que o levava a mostrar-se, mais uma vez, no campo de batalha? Teria ao menos visto o filho? Teria Merlim chegado a tempo?

A Visão desaparecera, e não era possível chamá-la de volta; não havia como tentar obrigá-la a voltar para fazer perguntas superficiais. Uther tinha realmente vindo a ela no momento de sua morte - era melhor que Igraine nunca soubesse disso -, mas desaparecera.

Viviane olhou para o céu. Não havia, ainda, nenhum sinal da lua crescente; talvez ainda pudesse ver alguma coisa em seu espelho. Devia chamar Raven? Não, não havia tempo para isso, e Raven talvez não consentisse em romper seu silêncio para uma visão relacionada com os negócios do mundo exterior. Morgana? Não, não desejava enfrentar os olhos dela.

"Viverá ela toda a sua vida como eu vivi, com um coração morto dentro do corpo?"

Respirou profundamente e tremeu, voltando-se para deixar o jardim. Ainda eram grandes a umidade e o frio; a luz do sol estava escondida pela bruma. Não havia ninguém para vê-la caminhar rapidamente pela trilha secreta na direção do Poço Sagrado, onde se inclinou para beber, lançando o cabelo para trás, formando uma concha com as mãos a fim de apanhar a água. Depois, dirigiu-se à pequena lagoa que servia de espelho. Durante tantos anos servira ao santuário, que já aceitava, sem pensar, a sua capacidade de ter visões; mas agora, ao contrário do que sempre fazia, rezou.

"Deusa, não me tires esse poder, ainda não, deixa-o por algum tempo ainda. Mãe, tu sabes que não o peço para mim, apenas para que esta terra esteja protegida, até que possa colocá-la nas mãos que preparei para isso."

Por um momento, viu apenas as ondas na água da lagoa, e apertou as mãos, como se assim pudesse forçar a visão. Depois, lentamente, as imagens começaram a formarse: viu Merlim andando de um lado para outro, percorrendo toda a extensão da terra, com seu jeito secreto, ora como um druida e bardo, como convinha ao Mensageiro dos Deuses, ora como um velho mendigo ou mascate, ou como um símples harpista. O rosto começou a modificar-se, e ela viu Kevin, o Bardo, ora com as roupas brancas do mensageiro de Avalon, ora com as vestes de nobre, enfrentando os padres cristãos... e havia uma sombra por trás de sua cabeça, ele estava envolto em sombras, a sombra do bosque de carvalhos, a sombra da cruz; viu-o com o sagrado vaso das insígnias dos druidas... viu o jovem Artur, com a testa ainda manchada do sangue do gamo contra o qual havia lutado e que matara, e Morgana rindo, coroada de flores, o rosto marcado de sangue.... Não queria ver e tentou com todas as forças afastar os olhos, mas não ousava romper o fluxo das visões. Viu uma vila romana, e Artur entre dois meninos - um era o seu próprio filho Lancelote, e imaginou que o outro fosse o irmão de criação de Artur, Cai, filho de Ectório... Viu Morgause cercada por seus filhos, que se ajoelhavam, um após o outro, aos pés de Artur. Viu, depois, a barca de Avalon, envolta em negro como um pálio, e Morgana na proa, mas uma Morgana mais velha, mais velha e chorando.

Viviane passou a mão, impaciente, sobre a superfície da água. Não era o momento de estar ali buscando orientação em visões que pareciam não ter significado, naquele momento. Desceu rapidamente o morro na direção de sua casa e chamou as sacerdotisas que a serviam.

- Vistam-me - ordenou secamente - e mandem chamar Merlim; ele deve ir a Caerleon e trazer o jovem Artur até aqui, antes que a lua fique mais de um dia no céu. Não há tempo a perder.

 

Capítulo 18

Mas Artur não chegou a Avalon com a lua nova.

Morgana, na Casa das Moças, viu a lua nova nascer, porém não interrompeu o jejum observado durante o período em que ela permanecia na obscuridade. Sentia-se fraca e sabia que, se comesse, teria apenas náuseas. Bem, talvez isso fosse de esperar. Costumava sentir-se assim quando a menstruação estava para começar; mais tarde se sentiria melhor. E realmente mais tarde nesse dia estava melhor, tomou um pouco de leite e comeu um pouco de pão. Naquela tarde, Viviane mandou chamá-la.

- Uther está morto, em Caerleon. Se você achar que deve ir para junto de sua mãe...

Durante um curto momento, Morgana examinou essa possibilidade, mas acabou meneando a cabeça numa negativa.

- Eu não gostava de Uther, e Igraine sabe muito bem disso. Que a Deusa permita que alguns de seus padres conselheiros a consolem melhor do que eu.

Viviane suspirou. Parecia cansada e esgotada, e Morgana pensou se também ela estaria doente, em consequência do período de obscuridade da lua.

- Lamento ter de dizer isso, mas sei que você tem razão. Eu lhe teria dado permissão para ir, se necessário. Haveria tempo para que voltasse a Avalon, antes que... - Interrompeu-se, para dizer: - Você sabe que Uther, em vida, manteve os saxões sob controle, embora em luta constante; não tivemos, em momento algum, mais do que umas poucas luas de paz. Agora, receio que tudo piore e eles cheguem até mesmo às portas de Avalon. Morgana, você é uma sacerdotisa plena, viu as armas sagradas...

Morgana respondeu com um sinal, e Viviane continuou:

- Poderá vir o dia em que aquela espada tenha de ser levantada em defesa de Avalon e de toda a Bretanha, também.

Morgana pensou: "Por que dizer-me isso? Sou sacerdotisa, não guerreira; não posso tomar a espada em defesa de Avalon."

- Você se lembra da espada.

Descalça, com frio, traçando o círculo com o peso da espada na mão, ouvindo Raven, a silenciosa, gritar aterrorizada...

- Lembro-me.

- Então, tenho uma tarefa para você. Quando aquela espada for levada em combate, deve estar envolta em toda a magia que temos. Você deve preparar uma bainha para ela, colocando todos os encantamentos que conhece, para que seu portador não perca sangue em combate. Pode fazer isso?

"Eu havia me esquecido, pensou Morgana, de que poderia haver uma tarefa para a sacerdotisa, bem como para o guerreiro." E Viviane, com sua capacidade de ler os pensarnentos, respondeu:

- Assim, também você participará da batalha para defender nosso país.

- Que assim seja - concordou, perguntando-se por que Viviane, que era a grã-sacerdotisa de Avalon, não realizava essa tarefa pessoalmente. Ela não lhe deu resposta, limitando-se a dizer:

- Para isso, você deve trabalhar com a espada à sua frente. Venha, e Raven a assistirá, dentro do silêncio da magia.

Embora procurasse recordar-se de que era apenas um veículo do poder, e não o poder em si, que este vinha da Deusa, Morgana ainda era bastante jovem para sentir-se exaltada quando a levaram em silêncio ao local secreto onde esses trabalhos eram feitos, e cercada por sacerdotisas que deviam prever todas as suas necessidades, a fim de que não rompesse o silêncio imprescindível para reunir a força necessária à conjuração dos encantamentos. A espada foi colocada sobre um pano de linho, à sua frente; ao lado dela, o cálice de bordas finas, feito de prata, com um fio de ouro na borda. Estava cheio de água do Poço Sagrado, não para ser bebida - havia comida e água reservadas para ela -, mas para que pudesse olhar dentro do cálice e ver ali as coisas úteis à obra que devia realizar.

Cortou, no primeiro dia, usando a própria espada, um forro de fina pele de gamo. Era a primeira vez que tinha bons instrumentos para trabalhar, e ficou contente com a agulha especial de ferro que lhe deram para costurar a bainha; teve orgulho, que sabia infantil, quando, ao espetar uma ou duas vezes o dedo, não soltou o grito habitual. Não se privou de uma sensação de puro prazer quando lhe foi mostrado o veludo do mais escuro vermelho, de valor incalculável, e submetido a tintas cuja onça, segundo lhe haviam contado certa vez, custava dinheiro mais do que suficiente para se comprar uma vila e se contratar homens para trabalhar em suas terras durante um ano. O veludo cobriria o couro de gamo, e sobre ele tinha de trabalhar com os fios dourados e prateados que lhe haviam dado, bordando os encantamentos mágicos e seus símbolos.

Passou o primeiro dia dando forma à bainha, usando o couro de gamo e o veludo que a cobriria; e antes de adormecer, mergulhada numa meditação profunda sobre o que devia fazer, quase em transe, ela fez um pequeno corte no braço, deixando seu sangue cair sobre o couro do gamo.

- Deusa! Grande Corvo! O sangue foi derramado sobre esta bainha para que nenhum outro tenha de escorrer sobre ela, quando for posta em combate.

Dormiu bem, sonhando que estava sentada no alto de um morro que dominava toda a Bretanha e costurava encantamentos, tecendo-os como uma luz visível na estrutura da própria terra. Abaixo dela o Gamo-Rei corria, e um homem subiu o morro, andou em sua direção e tirou-lhe a espada da mão...

Acordou com um sobressalto, pensando: "Artur! É Artur que levará a espada, ele é o filho do Pendragon..." e, deitada em meio às trevas, pensou que teria sido essa a razão de sua escolha para fazer a bainha mágica da espada que ele levaria, como símbolo de todo o seu povo. Fora Artur que derramara o sangue de sua virgindade, e era ela, também da linhagem sagrada de Avalon, que deveria fazer a bainha encantada para sua segurança, a fim de proteger o sangue real.

Durante todo aquele dia, em silêncio, ela trabalhou, olhando o cálice, deixando as imagens surgirem, parando de quando em vez para esperar a inspiração que lhe vinha da meditação. Bordou uma lua de cornos, de modo que a Deusa sempre vigiasse a espada e protegesse o sangue sagrado de Avalon. Estava tão envolvida pelo silêncio mágico, que todos os objetos sobre os quais seus olhos pousavam, todos os movimentos de suas mãos consagradas, transformaram-se em poder para o encantamento. Por vezes, era como se uma luz visível seguisse seus dedos, enquanto bordava uma lua de cornos depois de uma lua cheia, e depois a lua minguante, pois todas as coisas deviam ter sequência como nas estações. Assim, como sabia que um Grande Rei da Bretanha teria de governar numa terra cristã, e que quando os primeiros seguidores do Cristo chegaram à Bretanha haviam procurado os druidas, elaborou um símbolo da amizade entre os cristãos e os druidas, a cruz dentro do círculo com três asas. Colocou no veludo vermelho os signos dos elementos mágicos - terra, ar, água e fogo - e depois a imagem da copa de bordas baixas que estava à sua frente, na qual as visões se moviam e entrelaçavam, surgindo e desaparecendo do meio das trevas: o bastão e a escudela de terra, a serpente curativa, as asas da sabedoria e a flamejante espada do poder... Houve momentos em que parecia que a agulha e o fio movimentavam-se em meio à sua própria carne, à carne da terra, furando terra e céu e seu próprio sangue e corpo... signo sobre signo e símbolo sobre símbolo, cada qual marcado com seu sangue e com a água do Poço Sagrado. Trabalhou durante três dias, dormindo pouco, comendo apenas um pouco de frutas secas, bebendo somente água do Poço Sagrado. Houve momentos nos quais, de uma grande distância em sua própria mente, pareceu ver seus dedos trabalhando sem nenhuma vontade consciente, com os encantamentos tomando forma sozinhos, carne e osso da terra, sangue de sua virgindade, força do Gamo-Rei que havia morrido e dado seu sangue para que o campeão não morresse...

Terminou ao anoitecer do terceiro dia, e cada centímetro da bainha estava coberto com símbolos entrelaçados, alguns dos quais nem ela mesma reconhecia; tinham vindo, sem dúvida, diretamente da mão da Deusa por intermédio de suas mãos. Ergueu-a, colocou nela a espada; sopesou-a nas mãos, e depois disse em voz alta, rompendo o silêncio ritual:

- Está feita.

Agora que a longa tensão terminara, tinha consciência de que estava exausta, abalada e doente. O uso ritual e prolongado da Visão podia causar isso; interrompera também sua menstruação, sem dúvida, que vinha habitualmente durante a lua nova. Dizia-se que isso trazia sorte, e as sacerdotisas separavam-se nessa ocasião para partilhar seu poder; era a mesma coisa que o isolamento ritual da lua nova, quando a própria Deusa isolava-se para proteger a fonte do poder.

Viviane veio e pegou a bainha. Não pôde conter um pequeno grito de surpresa ao examiná-la, e na verdade ela até mesmo se parecia com Morgana, que sabia que suas próprias mãos a haviam feito, uma coisa acima da capacidade do trabalho humano, impregnada de magia. Viviane tocou-a levemente, antes de embrulhá-la num longo pedaço de seda branca.

- Você trabalhou bem - disse, e Morgana pensou, com a mente em plena atividade: "Como pode ela pretender julgar-me? Também eu sou sacerdotisa, fui além do que ela me ensinou..." e ficou espantada com seus pensamentos.

Viviane tocou-lhe gentilmente o rosto:

- Vá dormír, minha querida, você se esgotou neste grande trabalho.

Morgana dormiu profundamente por muito tempo, sem sonhos; mas depois da meia-noite, de repente, acordou com um grande clamor de sinos de alarme, sinos de alarme e sinos de igreja, um terror vindo da infância: Os saxões estão nos atacando! Levantem-se e armem-se!

Acordou com um sobressalto, não estava na Casa das Moças, mas numa igreja, e sobre a pedra do altar estava um jogo de armas; ao lado, sobre uma armação, jazia um homem numa armadura, coberto com um manto. Acima de sua cabeça, os sinos continuavam dobrando e clamando, num barulho capaz de acordar os mortos... não, pois o cavaleiro morto não se mexeu e, com uma súbita prece, pedindo perdão, ela agarrou a espada... e acordou de todo, agora, com a luz no seu quarto, e o silêncio. Nem mesmo os sinos da igreja da ilha do mundo exterior penetravam a quietude de seu quarto de paredes de pedra. Sonhara com os sinos, o cavaleiro morto, a capela com as velas acesas, as armas sobre o altar, a espada, tudo. "Como cheguei a ver isso? A Visão nunca me vem sem ser chamada... Terá sido apenas um sonho, então?"

Mais tarde, naquele mesmo dia, foi convocada; consciente, lembrou-se de algumas das visões que apenas entrevira ao fazer a bainha com a espada à sua frente. A queda de uma estrela cadente, um trovão, um grande relâmpago; arrastada, ainda fumegando, para ser forjada pelos pequenos ferreiros morenos que haviam morado na terra gredosa antes que as pedras em círculo fossem levantadas; uma arma poderosa, uma arma para um rei, fundida e reforjada, desta vez na forma de folha, trabalhada e temperada em sangue e fogo, endurecida... uma espada três vezes forjada, nunca arrancada do ventre da terra, e por isso duas vezes sagrada...

Disseram-lhe o nome dessa espada: Excalibur, o que significa aço cortado. Espadas feitas do ferro de meteoritos eram raras e preciosas; esta bem poderia ter o preço de um reino.

Viviane pediu-lhe que se cobrisse com o véu e a acompanhasse. Enquanto desciam lentamente o morro, ela percebeu a figura alta de Taliesin, o Merlim, tendo ao lado Kevin, o Bardo, com seu caminhar hesitante e grotesco. Parecia mais desajeitado e feio do que nunca, tão deslocado quanto uma vela de sebo num castiçal de prata bem trabalhado. E ao lado deles - Morgana sentiu-se gelar -, reconheceu o esguio corpo musculoso e o brilhante cabelo entre dourado e prateado.

Artur. Mas decerto ela sabia que a espada lhe era destinada. O que seria mais natural, portanto, do que ele vir recebê-la?

"Ele é um guerreiro, um rei. O pequeno irmãozinho que eu segurei no colo." Parecia irreal. Mas através daquele Artur, e do rapaz de rosto sério que caminhava agora entre os dois druidas, ela viu alguns traços do jovem que usara os chifres do Galhudo, tranquilo e grave, viu o sacudir dos chifres, a luta mortalmente desesperada e como havia chegado até ela todo manchado do sangue do gamo - não uma criança, mas um homem, um guerreiro, um rei.

A um sussurro de Merlim, ele ajoelhou-se diante da Senhora do Lago. Seu rosto era reverente. Não, é claro, pensou Morgana, ele não viu Viviane antes, apenas a mim, e eu estava nas trevas.

Mas Artur viu-a em seguida, e Morgana percebeu o reconhecimento em suas feições instáveis. Ele fez uma reverência também para ela - e Morgana teve um pensamento irrelevante: pelo menos, onde foi criado ensinaram-lhe maneiras dignas do filho de um rei - e murmurou:

- Morgana.

Ela inclinou a cabeça. Reconhecera-a apesar do véu. Talvez devesse ajoelhar-se ante o rei, mas uma Senhora de Avalon não dobra os joelhos diante de nenhum poder humano. Merlim se ajoelharia, e também Kevin, se lhe pedissem; Viviane, nunca, pois era não só a sacerdotisa da Deusa, mas também recebia a Deusa em si mesma, de uma forma que os sacerdotes dos deuses masculinos jamais poderiam conhecer, ou compreender. E Morgana também jamais se ajoelharia novamente.

A Senhora do Lago estendeu-lhe a mão, para que se levantasse.

- Fizestes uma longa viagem e estais cansado. Morgana, leve-o para minha casa e dê-lhe alguma coisa para comer, antes da decisão.

Ele sorriu, não um rei em perspectiva, não um Escolhido, mas apenas um rapaz que tinha fome.

- Muito obrigado, senhora.

Na residência de Viviane, agradeceu às sacerdotisas que lhe trouxeram alimentos e comeu com voracidade. Saciada a fome, perguntou a Morgana:

- Você também mora aqui?

- A senhora vive só, mas tem a seu serviço as sacerdotisas que a atendem por turnos. Eu morei aqui com ela, quando me tocou servi-la.

- Você, filha de uma rainha! Você, servir?

- Devemos servir, antes de mandar - respondeu austeramente. - A própria Senhora serviu em sua juventude, e na pessoa dela eu sirvo à Deusa.

Ele refletiu um pouco.

- Não conheço essa Grande Deusa - disse, por fim. - O Merlim disse-me que a Senhora era sua... nossa... parenta.

- Ela é irmã de Igraine, nossa mãe.

- Ora, então ela é minha tia - retrucou Artur, experimentando as palavras como se elas não fossem muito adequadas. - Tudo isso é muito estranho para mim. Sempre pensei que Ectório fosse meu pai e Flavila, minha mãe. É claro que eu sabia haver algum segredo, e como Ectório não me falava sobre ele, pensei que devia ser algo vergonhoso, que eu fosse um bastardo, ou pior. Não me lembro de Uther, meu pai. Nada. Nem de minha mãe, realmente, embora por momentos, quando Flavila me castigava, eu costumasse sonhar que tinha vivido num outro lugar com uma mulher que me mimava, e depois me afastava. Igraine, nossa mãe, é parecida com você?

- Não. Ela é alta e tem cabelo vermelho.

- Então não me lembro mesmo dela - afirmou Artur com um suspiro. - Pois nos meus sonhos eu via alguém como você, era você.

Interrompeu-se, sua voz tremia. "Terreno perigoso", pensou Morgana, "não ousamos falar sobre isso." E disse calmamente:

- Coma outra maçã, elas são daqui mesmo da ilha.

- Obrigado. - Pegou uma e mordeu-a. - É tudo tão novo e estranho... Tantas coisas me aconteceram desde que... que... - A voz titubeou. - Penso sempre em você, não posso deixar de pensar. O que eu disse é verdade, Morgana, durante toda a minha vida hei de lembrar-me de você, porque foi a primeira, em quem sempre pensarei e a quem sempre amarei...

Morgana sabia que devia dizer alguma coisa dura e cortante. Em lugar disso, suas palavras foram bondosas, mas distantes:

- Você não deve se lembrar de mim dessa maneira. Para você, eu não sou uma mulher, mas a representante da Deusa que se apresentou a você. É uma blasfêmia pensar em mim como se eu fosse apenas uma mulher mortal. Esqueça-me, e recorde-se da Deusa.

- Tentei... - Ele interrompeu-se, fechando os punhos, e continuou, muito sério: - Você tem razão. É assim que devo encarar isso, como apenas mais uma das coisas estranhas que me aconteceram, desde que me mandaram buscar na casa de Ectório. Coisas misteriosas, mágicas. Como a batalha com os saxões... - Estendeu o braço, suspendendo a túnica para mostrar uma atadura fortemente impregnada de resina de pinho já escurecida. - Fui ferido aqui. Mas era como um sonho, minha primeira batalha. O rei Uther... - olhou para baixo e engoliu em seco. - Cheguei muito tarde. Não o conheci. Ele estava sendo velado na igreja, e eu o vi morto, com as armas sobre o altar. Disseram-me que, segundo o costume, quando um cavaleiro corajoso morre, suas armas devem permanecer com ele durante o velório. E então, ainda quando o padre estava cantando o Nunc Dimittis, todos os sinos tocaram o alarme, houve um ataque dos saxões. Os vigias correram até a igreja, arrancaram as cordas dos sinos das mãos do monge que estava dobrando finados, para tocarem o alarme, e então todos os homens do rei apanharam suas armas e se precipitaram para fora. Eu não tinha espada, apenas minha adaga, e arranquei uma lança de um dos soldados. Minha primeira batalha, pensei, mas então Cai... , meu irmão de criação, Cai, filho de Ectório, contou-me que havia deixado a espada em casa, e corri para buscá-la. Eu sabia que era um pretexto dele para afastar-me da batalha. Cai e meu pai adotivo diziam que eu ainda não estava preparado para o batismo de sangue. Assim, em lugar de correr de volta para casa, fui à igreja, apanhei a espada do rei que estava sobre a pedra do altar... Bem... - continuou, procurando justificar-se - ele lutou contra os saxões durante vinte anos com aquela espada, e certamente gostaria de vê-la novamente em ação, em lugar de estar ali, inútil, sobre uma velha pedra! Corri, e ia entregá-la a Cai quando estávamos nos organizando contra o ataque; mas vi Merlim, e ele disse na voz mais sonora que já ouvi: "Onde você arranjou essa espada, menino?" Fiqueí furioso porque ele me chamou de menino, depois do que eu fizera na ilha do Dragão, e respondi-lhe que era uma espada para lutar contra os saxões, e não para ficar em címa de velhas pedras. Ectório chegou, viu-me com a espada na mão, e ele e Cai ajoelharam-se à minha frente, veja só! Tive uma sensação estranha, e perguntei: "Pai, por que se ajoelha, por que faz meu irmão ajoelhar-se desse modo? Levantem-se, é horrível". Foi quando o Merlim disse, naquela voz impressionante: "Ele é o rei, está certo que fique com a espada". Nesse momento, os saxões chegaram à muralha ouvimos suas trombetas, e não houve tempo de dizer mais nada. Cai agarrou a lança, e eu segurei firme a espada, e fomos. Não me recordo de muita coisa sobre a batalha, suponho que isso acontece. Cai foi ferido, seriamente ferido na perna. Depois, enquanto Merlim fazia um curativo em meu braço, disse-me quem eu realmente era, isto é, quem havia sido meu pai. Em seguida, Ectório veio e ajoelhou-se, dizendo que seria um bom cavaleiro para mim, como havia sido para meu pai e para Ambrósio. Fiquei tão constrangido... A única coisa que me pediu foi que fizesse de Cai meu camarista, quando tivesse uma corte. E é claro que respondi afirmativamente, dizendo que ficaria feliz com isso, pois afinal de contas ele é meu irmão, sempre pensei nele como num irmão. Houve muito murmúrio sobre a espada, mas Merlim disse a todos os reis que o destino me fizera apanhá-la, e eles o ouviram com respeito.

Sorriu, e Morgana, com muita ternura, ficou penalizada com a confusão. Os sinos que a haviam despertado... Ela vira, mas não soubera o que havia visto. Abaixou os olhos. Haveria sempre um elo entre eles, agora. E qualquer golpe que o atingisse seria sempre assim, como uma espada em seu próprio coração?

- E, agora, parece que vou ganhar uma outra espada comentou Artur. - Não tinha nenhuma, e de repente tenho duas, especiais! - Suspirou e exclamou, quase como numa queixa: - Não compreendo o que tudo, isso tem a ver com o fato de ser rei...

Por mais que já tivesse visto Viviane nos trajes de grã-sacerdotisa de Avalon, Morgana nunca se acostumara a eles. Viu agora Artur olhar de uma para outra, e registrar a semelhança entre elas. Estava calado, com um respeito temeroso, mais uma vez. "Pelo menos", pensou Morgana, sentindo novamente um mal-estar, "não o obrigaram ao jejum mágico". Talvez ela devesse ter comido com ele, mas a idéia de comer dava-lhe náuseas. Um trabalho prolongado de magia pode provocar isso, não sendo, portanto, de admirar que Viviane estivesse tão envelhecida.

- Vinde - chamou Viviane, liderando o grupo: a Senhora de Avalon, em sua ilha, tinha precedência até mesmo sobre um rei. Saiu caminhando da casa, passando pelas praias do lago, até o edifício onde se alojavam os sacerdotes. Artur seguia calado ao lado de Morgana, e por um instante ela quase esperou que ele estendesse a mão, como fazia quando era pequeno, segurando-se a ela... Mas agora aquela pequena mão que segurara era a mão de um guerreiro, maior que a sua, calejada com a longa prática da espada e de outras armas. Atrás de Artur e de Morgana vinha Merlim e, ao lado deste, Kevin.

Desceram um estreito lance de escadas e foram envoltos pelo cheiro de umidade do subterrâneo. Morgana não viu ninguém acender sequer um archote, mas de súbito surgiu um leve brilho na escuridão, e eles foram banhados por uma luz pálida. Viviane parou, tão de repente que esbarraram nela, e, por um momento, Morgana ficou surpresa por ser ela tão macia e pequena, um corpo comum de mulher, e não uma imagem remota da Deusa. A Senhora estendeu o braço e tomou o pulso de Artur em sua mão pequena e morena, que não chegava nem mesmo à metade daquela mão de guerreiro.

- Artur, filho de Igraine de Avalon e do Pendragon, rei por direito de toda a Bretanha, contemplai as coisas mais sagradas do vosso reino.

A luz brilhava no ouro e nas jóias do cálice e da escudela, a longa lança, os fios vermelhos, dourados e prateados da bainha. Viviane retirou dela a comprida e escura lâmina. Sombrias pedras brilhavam em seu punho.

- A espada das insígnias sagradas dos druidas - explicou calmamente. - Jurai-me agora, Artur Pendragon, rei da Bretanha, que quando usardes a coroa, tratareis com justiça tanto os druidas como os cristãos, e que sereis guiado pela magia sagrada dos que vos colocaram nesse trono.

Artur estendeu a mão para a espada, com olhos arregalados, nos quais Morgana notou que ele percebera o valor da espada. Viviane teve um gesto rápido, evitando que ele a tocasse.

- É mortal tocar coisas sagradas sem estar preparado - disse. - Artur, jurai. Com esta espada em vossa mão, não haverá chefe ou rei, pagão ou cristão, que se vos oponha. Mas esta espada não se destina a um rei que ouça apenas os padres cristãos. Se não jurardes, podeis partir agora, levando as armas que vos deram os vossos seguidores cristãos, e o povo que se volta para Avalon buscando sua orientação só vos seguirá se assim ordenarmos. Ou preferis jurar e ter a fidelidade desse povo por meio das armas sagradas de Avalon? Escolhei, Artur.

Ele olhou-a fixamente, franzindo um pouco a testa, com a luz pálida brilhando em seus cabelos, que pareciam quase brancos. E disse:

- Só pode haver um governante nesta terra. Eu não devo ser governado por Avalon.

- Nem deveis ser governado pelos padres que fariam de vós um peão de seu Deus morto - redarguiu Viviane ainda com tranquilidade. - Mas não vos pressionaremos. Escolhei se ficareis ou não com esta espada, ou recusai-a e governai em vosso próprio nome, desprezando a ajuda dos velhos deuses.

Morgana sentiu que essas palavras haviam produzido efeito, provocando a lembrança do dia em que ele correra entre os gamos e os velhos deuses lhe deram a vitória, sendo aclamado por aqueles povos, os primeiros a fazê-lo. Disse imediatamente:

- Que Deus me proíba de desprezar... - e parou, engolindo em seco. - O que devo jurar, senhora?

- Apenas isto: tratar com justiça todos os homens, quer sigam ou não o Deus dos cristãos, e reverenciar sempre os Deuses de Avalon. Pois não importa o que os cristãos digam, Artur Pendragon, e qualquer que seja o nome dado ao seu Deus, todos os Deuses são um Deus, e todas as Deusas são apenas uma Deusa. Jurai apenas ser fiel a essa verdade, e não preferir um e desprezar o outro.

- Vistes - disse o Merlim com sua voz profunda ressoando no silêncio - que eu reverencio sinceramente o Cristo, e que me ajoelhei ao altar e participei de sua refeição sagrada.

Perturbado, Artur concordou:

- Sim, isso é verdade. E você é, creio eu, o conselheiro em quem confiarei mais do que em qualquer outro. Aconselha-me a jurar, então?

- Meu senhor e rei - disse Taliesin -, sois ainda jovem para esse governo, e talvez vossos padres e bispos pretendessem controlar a consciência até mesmo de um rei. Mas eu não sou padre, sou druida. E digo apenas que a sabedoria e a verdade não são propriedade de nenhum padre. Consultai vossa própria consciência, Artur, se seria errado jurar tratar com justiça todos os homens, qualquer que seja o Deus que adorem, em lugar de jurar fidelidade a um Deus apenas.

Artur disse com tranquilidade:

- Então eu juro, e levo a espada.

- Ajoelhai-vos - pediu Viviane -, para mostrar que o rei é apenas um homem, e uma sacerdotisa, até mesmo uma grã-sacerdotisa, é apenas uma mulher, mas que os deuses estão todos acima de nós.

Artur ajoelhou-se. A luz em seu cabelo claro, pensou Morgana, semelhava-se a uma coroa. Viviane colocou a espada na mão dele, que se fechou sobre o punho. Ele respirou profundamente.

- Levai a espada, meu rei, e usai-a para a justiça. Essa espada não foi feita de ferro arrancado do corpo da terra, nossa mãe; ela é sagrada, forjada do metal que caiu dos céus, há tanto tempo que nem mesmo a tradição dos druidas tem uma noção exata de sua idade, pois foi forjada antes que houvesse druidas nestas terras.

Artur levantou-se, empunhando a espada.

- Do que gostais mais, da espada ou da bainha? - perguntou Viviane.

Artur olhou com admiração a bainha ricamente trabalhada, mas respondeu:

- Sou um guerreiro, minha senhora. A bainha é bela, mas gosto mais da espada.

- Mesmo assim, tende sempre a bainha junto de vós; foi feita com a magia de Avalon. Enquanto tiverdes a bainha, mesmo se fordes ferido, não sangrareis a ponto de vossa vida correr risco. Ela foi feita com encantamentos de sangue. É algo raro, precioso e mágico.

Ele sorriu e comentou, quase rindo, com o fim da prolongada tensão:

- Eu deveria tê-la comigo quando recebi esta ferida contra os saxões, pois sangrei como um carneiro no matadouro!

- Não éreis ainda rei, senhor. Mas agora a bainha mágica vos protegerá.

- Mesmo assim, meu rei - sugeriu a voz melodiosa de Kevin, o Bardo, atrás da sombra de Merlim -, por mais que confieis na bainha, aconselho-vos a contratar mestres de armas, e nunca deixar de praticar com as armas!

Artur deu um riso satisfeito, enquanto colocava a espada e a bainha na cintura:

- Disso não tenham dúvida. Meu pai adotivo fez-me aprender a ler, com um velho padre que lia para mim os Evangelhos, como o Diabo tentou o Senhor Jesus, dizendo-lhe que Deus lhe dera os anjos para o protegerem; e Jesus respondeu que não se devia tentar a Deus. E um rei é apenas de carne e osso. Lembrem-se de que tomei minha primeira espada do lugar onde Uther estava sendo velado. Não creio que tentarei a Deus sob esse aspecto, senhor druida.

De certa maneira, com a espada das insígnias sagradas atada à cintura, Artur parecia mais alto, mais majestoso. Morgana pôde imaginá-lo coroado e vestido como rei, sentado em seu alto trono... e, por um momento, em torno dele, foi como se o pequeno recinto estivesse cheio de outros homens, nas sombras, armados, vestidos ricamente, nobres, todos à sua volta, seus companheiros... depois desapareceram, e ele voltou a ser apenas um rapaz, sorrindo de modo inseguro, ainda sem dominar sua alta posição.

Voltaram-se e deixaram a capela subterrânea. Antes, porém, de deixarem a sala, Artur deteve-se um momento para admirar as outras insígnias, as que estavam nas sombras. Sua insegurança podia ser percebida em seu semblante, com a pergunta quase visível: "Terei agido hem, estarei blasfemando contra o Deus que aprendi a adorar como sendo o Único?"

A voz de Merlim soou grave e gentil:

- Sabeis qual o meu mais caro desejo, meu senhor e rei?

- Qual, senhor Merlim?

- Que um dia, não agora, pois a terra ainda não está preparada para isso, nem o estão os que seguem o Cristo, mas que um dia druidas e padres orem juntos; que dentro de sua grande igreja, a sua Eucaristia sagrada seja celebrada com aquele cálice e prato lá embaixo, para guardar o pão e o vinho, como símbolo de que todos os Deuses são um só.

Artur fez o sinal-da-cruz e sussurrou:

- Amém, senhor Merlim, e que o Santo Jesus torne isso possível algum dia, nestas ilhas.

Morgana sentiu uma comichão subir e descer por seus antebraços e ouviu-se dizer, sem saber que falava, até que a Visão expressou-se através dela:

- Esse dia virá, Artur, mas não como pensais. Tende cautela quanto à maneira pela qual fareis esse dia acontecer, pois pode ser um sinal de que a vossa obra está concluída.

Artur respondeu, numa voz rouca:

- Se tal dia vier a acontecer, senhora, então realmente será para mim um sinal de que concluí a tarefa para a qual subi ao trono, e estarei satisfeito que assim seja.

- Cuidado com o que dizeis - advertiu Merlim muito suavemente -, pois, na verdade, as palavras que proferimos lançam as sombras do que virá, e dizendo-as fazemos com que se tornem realidade, senhor meu rei.

Morgana pestanejou quando saíram à luz do sol. Oscilou, e Kevin estendeu a mão para ampará-la.

- Está doente, senhora?

Ela sacudiu a cabeça com impaciência, desejando que a névoa em seus olhos desaparecesse. Artur olhou-a, perturbado. Mas estavam então todos à luz do sol, e sua mente voltou aos assuntos imediatos.

- Devo ser coroado em Glastonbury, na ilha dos Padres. Se lhe for possível deixar Avalon, senhora, estará presente?

Viviane sorriu-lhe, e respondeu:

- Creio que não. Mas Merlim irá convosco. E Morgana verá vossa coroação, se assim o desejar, e creio que deseja - acrescentou. A moça ficou pensando por que a Senhora dizia isso, e por que sorria. - Morgana, minha filha, você os acompanhará na barca?

Morgana inclinou a cabeça. Ficou na proa, quando a barca partiu na direção da costa, levando apenas Artur e Merlim, e ao se aproximarem da praia viu vários homens armados à espera dele. Percebeu o medo em seus olhos quando o barco coberto de Avalon apareceu de súbito em meio à bruma, e ela reconheceu um dos cavaleiros: Lancelote não mudara desde aquele dia, há dois anos; apenas estava mais alto, mais belo, ricamente vestido de vermelho-escuro, levando espada e escudo.

Ele também a reconheceu, e fez uma reverência.

- Minha prima.

- Você conhece minha irmã, a senhora Morgana, duquesa da Cornualha, sacerdotisa de Avalon? Morgana, este é o meu mais caro amigo, nosso primo.

- Já nos conhecemos. - Lancelote curvou-se sobre a mão dela, e, em meio ao mal-estar que experimentou, Morgana sentiu um súbito retorno daquele anseio que nunca a abandonaria, realmente.

"Ele e eu fomos feitos um para o outro; eu devia ter tido a coragem, naquele dia, embora isso significasse o rompimento de um voto..." E podia notar, pelo olhar dele, que também Lancelote se lembrava, pela ternura com quelhe tocou a mão.

E então suspirou, levantou os olhos e foí apresentada aos outros.

- Meu irmão de criação, Cai. - Era um rapaz alto, moreno, romano até a medula, e Morgana adivinhou, quando ele falava com Artur, com deferência e afeição, que ali o novo rei tinha realmente dois chefes competentes para comandar seus exércitos. Os outros cavaleiros foram apresentados como Bedwyr, Lucam e Balim, e este último nome fez Morgana e Merlim levantarem os olhos com surpresa: era o irmão de criação do filho mais velho de Viviane, Balam. Ele tinha os cabelos louros, ombros largos, e vestia-se mal, mas movia-se tão graciosamente quanto o seu meio irmão, Lancelote. Sua roupa era pobre, mas suas armas e armadura estavam brilhantes e conservadas, e pareciam bastante usadas.

Morgana sentiu-se contente de deixar Artur entre seus cavaleiros; antes, porém, ele tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios, cerimoniosamente:

- Venha à minha coroação, se puder, minha irmã.

 

Capítulo 19

Poucos dias depois, Morgana partiu, em companhia de várias pessoas de Avalon, para a coroação de Artur. Nunca, em todos os anos passados na ilha, exceto os poucos momentos em que abrira a névoa para permitir que Gwenhwyfar encontrasse novamente seu convento, havia posto os pés na ilha dos Padres, Ynis Witrin, a ilha de Vidro. Parecia-lhe que o sol brilhava ali com uma intensidade peculiar, ao contrário da luz suave e enevoada de Avalon. Mas teve de recordar que para quase todo o povo da Bretanha esse era o mundo real, e a terra de Avalon, apenas um sonho encantado, como se fosse o próprio reino das fadas. Para ela, Avalon era a única realidade, e esta, apenas um sonho grosseíro do qual, por algum motivo, não despertava agora.

Todo o espaço à frente da igreja parecia ter sido tomado por uma florescência de tendas e pavilhões coloridos, como estranhos cogumelos. Para Morgana, era como se os sinos das igrejas tocassem noite e dia, hora após hora, um som desagradável que a oprimia. Artur saudou-a, e pela primeira vez ela encontrou-se com Ectório, o bom cavaleiro e guerreiro que havia criado seu irmão, e a mulher dele, Flavila.

Para essa incursão no mundo lá fora, Morgana, a conselho de Viviane, deixara de lado as roupas azuis de sacerdotisa de Avalon, e a sobretúnica de pele de gamo, e colocara um vestido simples de lã negra, com anáguas de linho branco e um véu branco sobre o cabelo trançado. Percebeu logo que isso lhe dava o ar de uma matrona; entre as mulheres bretãs, as jovens usavam os cabelos soltos e roupas de cores vistosas. Todas a tomaram por uma das mulheres de um dos conventos de Ynis Witrin, próximos da igreja, onde as irmãs usavam roupas sombrias. Morgana nada disse para reparar o equívoco, e Artur, embora sorrisse para ela com olhos muito vivos, também silenciou.

Para Flavila, ele disse:

- Minha mãe adotiva, muitas coisas devem ser feitas, os padres desejam falar-lhe de minha alma, e o rei de Orkney e o rei da Gália do Norte querem uma audiência comigo. Poderia levar minha irmã até nossa mãe?

"Até nossa mãe", pensou Morgana, "mas essa mãe tornou-se uma estranha para nós dois." Buscou, em seu íntimo, alguma alegria com esse encontro, e não encontrou nenhuma.

Igraine ficara contente com a partida dos dois filhos, a filha de seu primeiro e triste casamento e o filho do amor do segundo. Que tipo de mulher poderia, então, ser? Morgana sentiu que estava se protegendo, de coração e mente, contra esse encontro com Igraine. Pensou: "Eu nem mesmo me recordo de suas feições."

Não obstante, ao ver Igraine, compreendeu que a teria reconhecido em qualquer lugar.

- Morgana! - Esquecera-se, ou apenas se recordava em sonhos, de como sua voz era cheia e calorosa. - Minha querida filha! Mas você já está uma mulher feita! Eu sempre a vejo em meu coração como uma menina. Mas você parece que está cansada e precisando dormir. Você se cansou com toda esta cerimônia?

Morgana beijou a mãe, sentindo mais uma vez que as lágrimas lhe apertavam a garganta. Igraine era bela, e ela - novamente as palavras de uma semimemória vieram ao seu pensamento -, "pequena e feia como a gente do povo encantado". Será que Igraine também a achava feia?

- Mas o que é isto? - As mãos de Igraine tocaram o crescente em sua testa. - Pintada como uma fada... Você acha que é conveniente, Morgana ?

- Sou uma sacerdotisa de Avalon, e uso a marca da Deusa com orgulho - respondeu numa voz seca.

- Esconda-a com o véu, então, minha filha, ou você ofenderá a abadessa. Terá de hospedar-se comigo no convento.

Morgana cerrou os lábios, fortemente. "Se fosse a Avalon, a abadessa esconderia sua cruz, para não me ofender, ou não o fender a Senhora?"

- Não quero ofendê-la, mãe, mas não seria adequado para mim hospedar-me num convento. A abadessa não gostaria, nem a Senhora, sob cujas ordens estou, e sob cujas leis vivo.

A idéia de passar mesmo que fossem as três noites da coroação dentro daquelas paredes, ouvindo o toque incessante, noite e dia, dos irritantes sinos, esfriava-lhe o sangue. Igraine pareceu perturbar-se:

- Bem, seja como você quiser. Talvez fíque com minha irmã, a rainha de Orkney. Lembra-se de Morgause?

- Ficarei feliz em hospedar minha sobrinha Morgana - disse uma voz suave, e Morgana olhou para cima, para ver a própria imagem da mãe, tal como dela se recordava em sua infância: imponente, ricamente vestida com sedas brilhantes, com jóias e o cabelo trançado numa brilhante coroa sobre a testa. - Ora, você era uma menina tão pequena, e agora já é mulher, e sacerdotisa! - Morgana foi envolvida por um abraço cálido e perfumado. - Bem-vinda, sobrinha, sente-se, aqui ao meu lado. Como vai nossa irmã Viviane? Ouvimos coisas muito importantes sobre ela, que é a força motora de todos os grandes acontecimentos que levaram o filho de Igraine ao trono. Nem mesmo Lot poderia se opor a alguém apoiado pelo Merlim, pelo povo encantado e por todas as tribos e todos os romanos. E assim seu irmãozinho vai ser rei! Você virá para a corte, Morgana, servir de conselheira, como Uther deveria ter feito com a Senhora de Avalon?

Morgana riu, sentindo-se relaxar ao abraço de Morgause:

- O rei fará o que lhe parecer conveniente, e essa é a primcira lição que devem aprender todos os que se aproximam dele. Acho que Artur é bastante parecido com Uther para aprender isso sem precisar de muitas lições.

- Ah, não há mais dúvidas sobre quem foi seu pai, agora, apesar de tudo o que se disse sobre o assunto - comentou Morgause, respírando compungida. - Não, Igraine, você não deve chorar novamente; deve ser motivo de alegria para você, e não de sofrimento, o fato de seu filho se parecer tanto com o pai, e ser aceito por todos na Bretanha, pois ele se comprometeu a governar todas as terras e todos os povos.

Igraine pestanejou. "Andara chorando muito nos últimos dias", pensou Morgana. E disse:

- Sinto-me feliz por Artur... - mas sua voz tremeu, e ela não pôde continuar. Morgana afagou o braço da mãe, mas sentia-se impaciente. Sempre, sempre, desde que se recordava, a mãe não tinha qualquer pensamento para os filhos, mas apenas para Uther... Mesmo agora, depois de ele morto e enterrado, ela colocaria Morgana e Artur de lado, em troca da memória do homem a quem amara tanto, que a fizera esquecer todo o resto. Com alívio, voltou-se novamente para Morgause.

- Viviane contou-me que você teve filhos...

- É verdade, embora a maioria deles ainda seja bastante jovem para poder ficar aqui entre as mulheres. O mais velho, porém, está ali, para jurar lealdade a seu rei. Se Artur morrer em combate - e nem mesmo Uther estava imune a essa sorte -, meu Gawaine é seu parente mais próximo, a menos que você já tenha um filho, Morgana - não? As sacerdotisas de Avalon terão abraçado a castidade como as monjas, então, para que na sua idade você ainda não tenha dado à Deusa um filho ou uma filha? Ou teve o mesmo destino de sua mãe, e perdeu os filhos ao nascerem? Perdoe-me, Igraine, não tive a intenção de recordar-lhe...

Igraine pestanejou, lacrimejando.

- Eu não devia chorar contra a vontade de Deus; tenho mais filhos do que muitas mulheres. Tenho uma filha que serve à Deusa, para a qual fui criada, e um filho que amanhã receberá a coroa que pertenceu a seu pai. Meus outros filhos estão no seio do Cristo.

"Em nome da Deusa", pensou Morgana, "que maneira de pensar em Deus, com todas as gerações de mortos apegadas a ele!" Sabia que era apenas uma forma de falar, um consolo para a mãe que sofria, mas ainda assim a blasfêmia dessa idéia a perturbou. Lembrou-se de que Morgause lhe havia feito uma pergunta, e sacudiu negativamente a cabeça.

- Não, não tive filhos, Morgause. Até este ano, em Beltane, eu me mantive virgem para a Deusa.

Parou de repente; não devia dizer mais nada. Igraine, que era mais cristã do que Morgana poderia ter acreditado, teria ficado horrorizada com a idéia do rito no qual ela desempenhara o papel da Deusa para seu próprio irmão.

E então, um segundo horror tomou conta dela, pior do que o primeiro, a tal ponto que sentiu uma onda de enjôo. Tudo aquilo se passara em plena lua cheia, e embora a lua tivesse minguado e crescido novamente, suas regras não tinham vindo, nem mostravam qualquer indício de que estavam para vir. Sentira-se aliviada por não ter esse incômodo durante a coroação, e julgara tratar-se de uma reação à grande magia; nenhuma outra explicação lhe ocorrera, até aquele momento.

Um rito para a renovação da fertilidade das colbeitas e da terra, e dos ventres das mulberes da tribo. Sabia disso. Não obstante, sua cegueira e seu orgulho eram tão grandes que achara que talvez ela, a sacerdotisa, a Deusa, estivesse isenta dos propósitos desse ritual. Ela mesma, porém, tinha visto outras jovens sacerdotisas empalidecerem e ficarem enjoadas depois desses ritos, até que começavam a florescer com o seu fruto que amadurecia; ela mesma vira as crianças nascerem, tinha ajudado muitas delas a vir ao mundo com suas mãos experientes de sacerdotisa. E nem assim, sequer por um momento, em sua cegueira estúpida, ocorrera-lhe que também ela poderia sair do ritual com o ventre carregado.

Viu os olhos de Morgause fixarem-se atentamente nela, e deliberadamente respirou fundo e bocejou, para disfarçar o silêncio.

- Viajei desde o amanhecer - disse -, ainda não tomei o desjejum e estou com fome.

Igraine desculpou-se e mandou que suas criadas trouxessem pão e cerveja de cevada, que Morgana se forçou a comer, embora a comida lhe provocasse um leve enjôo, e agora ela sabia por quê.

"Deusa! Deusa Mãe! Viviane sabia que isso poderia acontecer, e nem assim me poupou!" Sabia o que devia ser feito, e o mais rapidamente possível; mas não poderia ser durante os três dias da coroação de Artur, pois não tinha acesso às raízes e ervas que encontraria em Avalon, e além disso, não ousaria ficar doente, agora. Sentiu-se encolher ante a violência e a náusea que isso representava, e não obstante, seria necessário que tomasse providências, e sem tardança, ou em meados do inverno teria um filho do filho de sua própria mãe. Além disso, Igraine de nada devia saber - tal idéia representaria um golpe superior a qualquer coisa que se pudesse imaginar. Morgana forçou-se a comer, e a conversar sobre banalidades, como qualquer mulher.

Mas sua mente não descansou enquanto falava. Sim, o belo linho que usava fora tecido em Avalon, não havia linho como aquele em lugar algum, talvez porque as plantas do lago, que eram maís fortes, tivessem fibras mais longas e mais brancas do que em qualquer outro lugar. Mas em seu coração, ela pensava, "Artur nunca deve saber, ele tem muitas coisas a lhe pesarem no peito, no momento da coroação. Se eu puder suportar esse peso e manter silêncio para deixar mais livre o seu coração, eu o farei." Sim, ela aprendera a tocar a harpa, ora, que tolice, mãe, pensar que era errado uma mulher fazer música. Mesmo que uma das Escrituras dissesse que as mulheres deviam guardar silêncio na igreja, era chocante pensar que os ouvidos de Deus pudessem se ofender com a voz de uma mulher lhe cantando louvores; não havia a própria mãe de Deus entoado cantos de louvor ao saber que teria um filho do Espírito Santo? Então, quando Morgana pegou a harpa e tocou para sua mãe, sob o refrão estava o desespero, pois sabia tão bem quanto Viviane que ela seria a próxima Senhora de Avalon, e devia à Deusa pelo menos uma filha. Era uma impiedade deitar fora uma criança concebida no Grande Casamento. Mas como não fazer isso? A Mãe do Deus cristão rejubilara-se por Deus ter-lhe dado um filho, mas Morgana só podza revoltar-se, em amargo silêncio, contra o Deus que havia tomado a forma de seu irmão desconhecido... Estava habituada a levar sua vida em dois níveis ao mesmo tempo, mas mesmo assim o esforço refletia-se em seus lábios pálidos e na voz, tensa, e ficou feliz quando Morgause a interrompeu.

- Morgana, sua voz é adorável, e espero ouvi-la em minha corte. E Igraine, eu gostaria de ver você muitas vezes, antes que a festa da coroação termine, mas devo voltar para ver como está o meu bebê. Não gosto muito de sinos de convento nem de muita reza, e Morgana parece cansada da viagem. Vou levá-la para minha tenda e fazê-la repousar, para que esteja recuperada pela manhã, a fim de ver a coroação de Artur.

Igraine não se deu ao trabalho de disfarçar o alívio que sentiu.

- Sim, estarei no ofício do meio-dia - dísse. - Vocês duas sabem que depois da coroação de Artur irei viver num mosteiro em Tintagel, na Cornualha. Artur pediu-me que ficasse com ele, mas, dentro em pouco, espero, ele terá uma rainha e não precisará de mim.

Sim, insistiriam com Artur para que se casasse, e logo.

Morgana imaginou qual desses pequenos reis conseguiria a honra de ser sogro do Grande Rei. "E meu filho poderia ter sido herdeiro de uma coroa... Não, não, não quero nem mesmo pensar nisso."

E mais uma vez a raiva a dominou, sufocando-a - por que, por que Viviane lhe fizera isso? Dispor tudo de tal forma que eles dois, Artur e Morgana, pudessem desempenhar uma pantomima de Deuses e Deusas... seria apenas isso?

Igraine beijou e abraçou as duas, prometendo vê-las novamente, mais tarde. Ao caminharem em direção à brilhante coleção de pavilhões, Morgause comentou:

- Igraine está tão mudada que eu não a teria reconhecido.

Quem poderia imaginar que ela se tornaria tão religiosa? Sem dúvida, terminará seus dias com o terror de toda uma irmandade de freiras e, embora eu sinta ter de admiti-lo, devo regozijar-me por não ser uma delas. Não tenho vocação para o convento.

Morgana forçou-se a sorrir e a dizer:

- Não, acho que não. O casamento e a maternidade parecem ter-lhe feito bem. Está florescente como uma rosa silvestre, tia.

Morgause sorriu com preguiça.

- Meu marido é bom para mim, e gosto de ser rainha. Ele é do norte, e portanto não é como esses idiotas romanos, que acham errado conversar com uma mulher. Espero que Artur não tenha sido estragado, criado como foi por uma família romana - pode ter aprendido as artes da guerra, mas se desprezar as tribos, não poderá governar. Até mesmo Uther foi bastante inteligente para saber disso, e fazer-se coroar na ilha do Dragão.

- Artur também foi coroado lá - foi tudo o que Morgana conseguiu dizer.

- Sim, ouvi alguma coisa a esse respeito, e creio que ele foi prudente. Quanto a mim, sou ambiciosa; Lot ouve minha opinião, e tudo vai bem em nossa terra. Os padres não gostam de mim e dizem que não me mantenho no meu lugar, como compete a umà mulher - sem dúvida, pensam que sou uma espécie de feiticeira ou bruxa maligna, porque não fico o tempo todo sentada modestamente, fiando e tecendo. Mas Lot não dá muita importância aos padres, embora sua gente seja bastante cristã... Para dizer a verdade, a maioria do seu povo não se importa se o Deus desta terra é o Cristo branco, ou a Deusa, ou o Galhudo, ou o Deus Cavalo dos saxões, desde que suas colheitas sejam boas e suas barrigas estejam cheias. E eu acho isso muito bom - um país governado por sacerdotes é um país cheio de tiranos na terra e no céu. Uther inclinou-se um pouco demais nessa direção, nos últimos anos, é o que penso. Que a Deusa dê mais sensatez a Artur.

- Ele jurou tratar com justiça os Deuses de Avalon, antes de Viviane dar-lhe a espada dos druidas.

- Ah, ela lhe deu... - admirou-se Morgause. - De onde lhe terá vindo essa idéia? Mas chega de deuses e reis e tudo isso. Morgana, o que você tem?

E como Morgana não respondesse, ela insistiu:

- Você pensa que não sei que uma mulher está grávida, quando vejo uma? Igraine não percebeu, mas agora ela só tem olhos para o seu sofrimento.

Morgana forçou-se a dizer, aparentando despreocupação:

- Bem, pode ser que sim. Eu estive nos ritos de Beltane.

Morgause deu um sorriso:

- Se foi a primeira vez, você talvez não tenha a certeza por uma ou duas luas, mas desejo-lhe boa sorte. Você já passou da melhor época para dar à luz - na sua idade, eu já era mãe de três filhos. Eu não a aconselharia a dizer a Igraine, ela é demasiado cristã agora para aceitar um filho da Deusa. Bem, acho que toda mulher acaba envelhecendo. Viviane, agora, também deve estar bem avançada em anos. Não a vejo desde o nascimento de Gawaine.

- Para mim, ela parece a mesma de sempre - disse Morgana.

- E ela não veio à coroação de Artur... Bem, podemos passar sem ela. Mas não me parece que ela se contentará em ficar muito tempo em segundo plano. Qualquer dia, tenho certeza, terá vontade de ver o caldeirão da Deusa, e não o cálice comum do amor cristão, em nosso altar na corte, e eu tampouco chorarei quando esse dia chegar.

Morgana sentiu um estremecimento profético quando viu, mentalmente, um sacerdote vestido de preto erguendo o cálice dos Mistérios ante o altar de Cristo. E viu claramente, ante seus olhos, Lancelote, ajoelhado, com o rosto banhado por uma luz como nunca vira... Sacudiu a cabeça para afastar a Visão indesejada.

 

O dia da coroação de Artur amanheceu claro e ensolarado. Havia chegado gente durante toda a noite, de todas as regiões da Bretanha, para ver o Grande Rei coroado ali, na ilha dos Padres. Havia multidões do povo pequeno e moreno; homens das tribos, vestidos de peles e roupas quadriculadas, e adornados com as pedras de cores opacas do norte, de cabelos vermelhos, altos e barbudos; e mais do que quaisquer outros, os romanos das terras civilizadas. E havia homens louros e altos, de ombros largos, anglos e saxões das tropas do tratado, que se haviam instalado ao sul, em Kent, e vinham renovar o juramento de fidelidade quebrado. As encostas estavam todas tomadas; nem mesmo nas festas de Beltane Morgana vira tanta gente reunida, e teve medo.

Tinha um lugar privilegiado, com Igraine, Lot, Morgause e seus filhos, mais a família de Ectório. O rei Lot, esbelto, moreno e encantador, inclinou-se sobre sua mão, abraçou-a e fez muita questão de chamá-la de "parenta", e "sobrinha", mas Morgana, vendo além do sorriso superficial, percebeu a amargura em seus olhos. Ele conspirara e intrigara para evitar esse dia. Agora, seu filho Gawaine seria proclamado o herdeiro mais próximo de Artur. Bastaria isso para suas ambições, ou continuaria ele a trabalhar para solapar a autoridade do Grande Rei? Morgana observou-o bem e descobriu que não gostava dele.

Nesse momento, os sinos da igreja tocaram, e um grito ecoou por todas as encostas que dominavam o terreno plano da igreja, de onde saiu um jovem esbelto, em cujos cabelos dourados se refletia o sol. Artur, pensou Morgana. O jovem rei, como um herói da lenda, com aquela grande espada na mão. Embora não pudesse ouvir as palavras de onde estava, viu o padre colocar em sua cabeça a estreita coroa de ouro de Uther.

Artur levantou a espada na mão e disse alguma coisa que ela não pôde ouvir, mas que foi repetido de boca em boca. Quando entendeu, Morgana sentiu a mesma emoção que experimentara ao vê-lo sair vencedor e coroado por ocasião da vitória sobre o Gamo-Rei.

- Para todos os povos da Bretanha - disse ele - minha espada para vossa proteção, e minha mão para a justiça.

E, então, Merlim adiantou-se, em suas roupas brancas de cerimônia. Ao lado do venerável bíspo de Glastonbury, ele parecia suave e delicado. Artur inclinou brevemente a cabeça ante os dois, tomando cada um deles pela mão. "A Deusa deu-lhe a intuição de fazer isso", pensou Morgana - e na mesma hora ouviu Lot dizer a mesma coisa.

- Muito esperto, isso, de colocar Merlim e o bispo lado a lado, num gesto simbólico de que será aconselhado por ambos!

Morgause disse:

- Não sei com quem ele estudou, mas creia-me, o filho de Uther não é tolo.

- É nossa vez - disse Lot, erguendo-se e estendendo a mão para Morgause. - Vamos, senhora; não se preocupe com aquele bando de velhos e de padres. Eu não me envergonho de demonstrar que você participa comigo de tudo, em igualdade de condições. Pena que Uther não fizesse o mesmo com sua irmã.

Morgause teve um sorriso pérfido:

- Talvez seja sorte nossa que Igraine não tivesse a força de vontade para insistir nisso.

Morgana levantou-se, tomada de um súbito impulso, e avançou com eles. Lot e Morgause, cortesmente, fizeram-lhe um gesto para que fosse à sua frente. Embora não se ajoelhasse, ela curvou a cabeça levemente:

- Trago-vos a homenagem de Avalon, meu senhor Artur, e daqueles que servem à Deusa.

Atrás dela, ouviu os padres murmurando, e viu Igraine entre as irmãs de roupas negras do convento. Ela ouviu Igraine, como se as palavras tivessem sido pronunciadas: "Ousada, impaciente, já era teimosa, desde criança." Obrigou-se a não ouvir. Era uma sacerdotisa de Avalon, e não uma dessas galinhas domésticas de Deus!

- Eu a saúdo, por você e por Avalon, Morgana.

Artur tomou-a pela mão, e colocou-a junto do lugar onde estava.

- Presto-lhe todas as honras como a única filha de minha mãe, e duquesa da Cornualha, por direito próprio, querida irmã.

Soltou-lhe a mão, e Morgana inclinou a cabeça para não desmaiar, porque seus olhos haviam se turvado e a cabeça girava. Por que tenho de sentir isso, agora? Culpa de Artur. Não, não dele, mas da Deusa. É a vontade dela, e não a nossa.

Lot deu um passo à frente, ajoelhando-se ante Artur, que o ergueu.

- Bem-vindo, querido tio.

"Esse mesmo querido tio", pensou Morgana, "se não me engano, teria visto com satisfação a sua morte, quando criança."

- Lot de Orkney, você defenderá suas praias contra os nortistas, e virá em minha ajuda se o litoral da Bretanha for ameaçado?

- Sim, parente, eu o juro.

- Ordeno-lhe, então, que mantenha o trono de Orkney e Lothian em paz, e nunca o reivindicarei, nem lutarei contra você, por eles - declarou Artur, inclinando-se ligeiramente para beijar Orkney no rosto. - Que você e sua esposa reinem bem e por muito tempo no norte, tio.

Lot, levantando-se, disse:

- Peço-vos permissão para apresentar-vos um cavaleiro para vossa companhia, solicitando-vos que façais dele um de vossos homens, senhor Artur. Meu filho Gawaine.

Gawaine era alto, corpulento, e parecia uma versão masculina de Igraine e da própria Morgause. Cachos vermelhos coroavam-lhe a cabeça e, embora não fosse muito mais velho do que Artur - na verdade, pensou Morgana, devia até mesmo ser um pouco mais novo, pois Morgause só se casara depois do nascimento de Artur -, já era um jovem gigante de um metro e oitenta. Ajoelhou-se diante de Artur, que o ergueu e abraçou.

- Bem-vindo, primo. Terei prazer em fazer de você o primeiro de meus companheiros; espero que se junte aos meus amigos e seja recebido por eles - disse, e fez um aceno de cabeça para os três jovens que estavam de pé ao lado. - Lancelote, Gawaine é nosso primo. Este é Cai, e este, Bedwyr. São meu irmãos de criação. Agora eu tenho Companheiros, como os tinha aquele Alexandre dos gregos.

Morgana passou o dia vendo como os reis de toda a Bretanha vinham jurar lealdade ao trono do Grande Rei e unir-se a ele na guerra para defender o seu litoral. O louro rei Pellinore, senhor do País do Lago, dobrou o joelho à frente de Artur e pediu permissão para partir, antes mesmo do fim das comemorações.

- O quê, Pellinore? - perguntou Artur, rindo. - Você, que julguei fosse o meu mais dedicado amigo aqui, já quer me abandonar tão cedo?

- Recebi notícias de minha terra, senhor, de que um dragão está atacando ali. E jurei persegui-lo até a morte.

Artur abraçou-o e entregou-lhe um anel de ouro:

- Não impedirei que um rei volte para junto de seu povo, quando este precisa dele. Vá, vença o dragão e traga-me sua cabeça, depois de matá-lo.

Já se aproximava a noite, quando finalmente todos os reis e nobres terminaram de jurar fidelidade ao seu Grande Rei. Artur era apenas um rapaz, mas demonstrou, durante a longa tarde, uma cortesia inabalável, falando a toda pessoa que chegava como se fosse a primeira. Só Morgana, treinada em Avalon na leitura do rosto, notou sinais de cansaço em seu semblante. Mas finalmente terminou, e os servos começaram a servir o banquete.

Morgana esperava que Artur se sentasse para comer em meio ao círculo de jovens que nomeara seus Companheiros; o dia fora longo, ele era jovem e cumprira seu dever com uma atenção concentrada. Mas, em lugar disso, ele tomou lugar entre os bispos e reis mais velhos do Conselho de seu pai - e Morgana teve o prazer de ver Merlim entre eles. Afinal de contas, Taliesin era seu avô, embora ela não estivesse certa de que Artur soubesse dísso. Quando acabou de comer (e o fez como um rapaz faminto ainda em crescimento), levantou-se e abriu caminho entre os convidados.

Em sua túnica branca simples, adornada apenas com a fina coroa de ouro, ele se destacava entre os reis e nobres vestidos com brilho, como um gamo branco na floresta escura. Seus Companheiros colocaram-se ao seu lado, o enorme e jovem Gawaine e Cai, moreno, de feições romanas semelhantes à águia e um sorriso sardônico - quando se aproximou de Morgana, ela notou que o rapaz tinha uma cicatriz no canto da boca, ainda vermelha e feia, que repuxava seu rosto para cima, num esgar desagradável. Era uma pena, pois provavelmente teria sido belo, antes disso. Lancelote, ao lado dele, parecia bonito como uma moça - não, havia nele algo forte, masculino e belo, talvez um gato selvagem. Morgause olhou-o com um olhar guloso.

- Morgana, quem é aquele belo rapaz ao lado de Cai e Gawaine, vestido de vermelho?

Morgana riu.

- Seu sobrinho, tia. É Galahad, o filho de Vivíane. Mas os saxões lhe deram o nome de Flecha dos Duendes, e ele é, geralmente, chamado de Lancelote.

- Quem poderia pensar que Viviane, tão feia, tivesse um filho tão bonito! Seu filho mais velho, Balam - esse não é bonito. Áspero, forte e bondoso, digno de confiança como um velho cão, mas é como Viviane. Ninguém poderia dizer que é linda!

Essas palavras atingiram o coração de Morgana. Dizem que sou parecida com Viviane; então, todos me acham feia? Aquela moça disse, "pequena e feia como os do povo encantado". E respondeu friamente:

- Eu acho Viviane muito bonita.

- Bem se vê que você foi criada em Avalon, que é ainda mais isolada do que a maioria dos conventos. Creio que você não sabe o que os homens apreciam, como beleza, numa mulher.

- Ora, vamos - disse Igraine, apaziguadora -, há outras virtudes além da beleza. Esse Lancelote tem os olhos da mãe, e ninguém jamais negou que os olhos de Viviane são bonitos. Viviane tem tanto encanto que ninguém sabe se ela é ou não bonita, nem se importa com isso. Ela agrada a todos com seus belos olhos e sua voz suave. A beleza não está apenas no porte majestoso e nas feições harmoniosas ou nos cabelos dourados, Morgause.

- Ah, você também não conhece o mundo, Igraine - respondeu Morgause. - Você é uma rainha, e todos consideram uma rainha bonita. E casou-se com o homem que amava. A maioria das mulheres não tem essa sorte, e é um consolo saber que outros homens admiram a nossa beleza. Se você tivesse vivido toda a sua vida com o velho Gorlois, também teria satisfação com seu rosto belo e o seu cabelo brilhante, e se empenharia em ofuscar as mulheres que têm apenas encanto, belos olhos e voz doce. Os homens são como crianças - vêem apenas a primeira coisa que querem, um seio cheio...

- Irmã! - exclamou Igraine, e Morgause ajuntou, com um sorriso malicioso:

- Ah, sim, foi fácil para você ser virtuosa, irmã, já que o homem amado era um rei. Em geral, não se tem tanta sorte.

- E você não sente amor por Lot, depois de todos esses anos, Morgause2

Morgause deu de ombros.

- O amor é uma diversão para a alcova e o inverno. Lot quer a minha opinião em tudo, e, em tempos de guerra, deixa o governo de sua casa em minhas mãos. E sempre que ele tem um butim de ouro, jóias ou belas roupas, eu sou a primeira a escolher. Sou-lhe grata por isso, e ele nunca teve a menor sombra de razão para pensar que cria o filho de outro homem. Mas isso não significa que eu deva ser cega, quando um jovem tem belas feições e os ombros de um touro novo, ou quando ele vê com interesse sua rainha.

"Não tenho dúvidas de que, para Morgause, isto parece ser uma grande virtude, e ela se vê como uma rainha virtuosa", pensou Morgana. Pela primeira vez em muitos anos, sentiu-se confusa, sabendo que a virtude não podia ser definida com tanta simplicidade. Os cristãos valorizavam a castidade acima de tudo, enquanto, em Avalon, a virtude mais alta era entregar o corpo ao Deus ou Deusa, em união com todo o fluxo da natureza. Para cada um dos dois lados, a virtude do outro constituía o mais grave pecado e manifestação de ingratidão para com o seu Deus. Se um deles estava certo, o outro era necessariamente um mal. Parecia-lhe que os cristãos estavam rejeitando a mais sagrada das coisas sob o céu, e, para eles, ela não seria muito mais do que uma prostituta. Se falasse das fogueiras de Beltane como de um dever sagrado para com a Deusa, até mesmo Igraine, criada em Avalon, olharia com espanto e pensaria que algum diabo falava por seu intermédio.

Voltou o olhar para os jovens que se aproximavam: Artur, louro e de olhos cinzentos; Lancelote, esbelto, gracioso; e o enorme Gawaine de cabelos vermelhos, mais alto do que os outros, como um touro junto de dois belos cavalos espanhóis. Artur fez uma reverência para sua mãe.

- Minha senhora. - Mas corrigiu-se: - Minha mãe, o dia lhe foi cansativo?

- Tanto quanto para você, meu filho. Senta-se conosco?

- Por um momento, sim.

Artur, ao sentar-se, embora tivesse comido bem, apanhou distraidamente um punhado dos doces que Morgana havia tirado do prato. Isso lhe lembrou outra vez como Artur era jovem. Ainda mastigando uma pasta de amêndoas, ele perguntou:

- Mãe, você quer casar-se novamente? Se quiser, arranjo-lhe o mais rico, o mais bondoso dos reis, para desposá-la. O rei Uriens, de Gales do Norte, está viúvo. Não tenho dúvidas de que se sentirá feliz em ter uma boa esposa.

Igraine sorriu:

- Muito obrigada, querido filho. Mas, depois de ter sido esposa do Grande Rei, não quero casar-me com um homem de posição inferior. E eu amava seu pai, não desejo substituí-lo.

- Bem, mãe, como você quiser. Eu apenas tinha medo de que você se sentisse sozinha.

- É difícil sentir-se sozinha num convento, meu filho, com outras mulheres. E Deus está ali.

Morgause comentou:

- Preferia viver num eremitério na floresta do que numa casa cheia de mulheres faladeiras! Se Deus estiver ali, deve ser difícil para ele conseguir dizer uma palavra!

Por um momento, Morgana reviu a jovial mãe de sua infância, quando Igraine respondeu:

- Imagino que, como ocorre com todo marido cheio de mulheres, ele passe a maior parte do tempo antes ouvindo suas esposas do que falando com elas. Mas se nos esforçarmos para ouvir a voz de Deus, ela não estará muito distante.

- E terá você alguma vez ficado calada por tempo suficiente para escutá-lo e ouvi-lo, Morgause?

Rindo, Morgause fez um gesto, como o lutador que admite ter sofrido um golpe.

- E você, Lancelote - perguntou, sorrindo convidativamente -, já está noivo, ou mesmo casado?

Ele riu e sacudiu a cabeça:

- Ah, não, minha tia. Sem dúvida, meu pai, o rei Ban, me encontrará uma esposa. Mas agora desejo seguir meu rei e servir a ele.

Artur, sorrindo para o amigo, colocou a mão em seu ombro:

- Com meus dois fortes primos, aqui, estou tão bem protegido quanto qualquer um dos próprios Césares!

Igraine disse suavemente:

- Artur, creio que Cai está com ciúmes. Diga-lhe uma palavra amável.

Morgana, ouvindo isso, olhou para Cai, para sua aparência triste, com a cicatriz. Realmente, deveria ser difícil para ele, depois de muitos anos pensando que Artur era o desprezado bastardo de seu pai, ser agora suplantado pelo irmão mais novo - um irmão mais novo transformado em rei -, e ver esse irmão cercado de dois novos amigos, aos quais dera seu coração.

Artur disse:

- Quando esta terra estiver em paz, encontraremos esposas e castelos para todos vocês, sem dúvida. Mas você, Cai, ficará comigo como meu camarista.

- Estou satisfeito com isso, irmão... Perdoe-me, eu deveria dizer meu senhor e rei...

- Não - insistiu Artur, voltando-se para abraçá-lo. - Deus me castigue se alguma vez lhe pedir, irmão, que me chame de outra coisa!

Igraine engoliu em seco.

- Artur, quando você fala, por vezes tenho a impressão de estar ouvindo a voz de seu pai.

- Gostaria, para meu próprio bem, senhora, de tê-lo conhecido melhor. Mas sei também que um rei nem sempre pode fazer o que quer, como não o pode também uma rainha.

Pegou a mão de Igraine e beijou-a. "Bem, então ele já começou a aprender o ofício de rei", pensou Morgana.

- Suponho - disse Igraine - que já tenham começado a dizer-lhe que precisa casar-se.

- Ah, creio que sim - respondeu Artur com um gesto de indiferença. - Todo rei, ao que parece, tem uma filha que gostaria de casar com o Grande Rei. Acho que vou perguntar a Merlim qual delas devo desposar. - Os olhos dele buscaram os de Morgana, e por um momento pareceu que eles se tornavam terrivelmente vulneráveis. - Afinal de contas, não sei muito sobre as mulheres.

Lancelote disse, alegremente:

- Ora, então devemos conseguir-vos a mais bela do reino, e de mais alta linhagem.

- Não - discordou Cai. - Como Artur diz, com muita sensatez, que todas as mulheres lhe são iguais, o melhor é procurar a que tenha o maior dote.

Artur riu.

- Então, deixo isso a seu cargo, Cai, e não tenho dúvidas de que estarei tão bem casado quanto coroado. Sugiro que você se aconselhe com Merlim, e, sem dúvida, Sua Excelência Reverendíssima o arcebispo quererá opinar sobre o assunto. E você, Morgana? Devo procurar-lhe um marido, ou prefere ser uma das aias de minha rainha? Quem podería estar mais alto, no reino, do que a filha de minha mãe?

Morgana recuperou a custo a voz:

- Meu senhor e rei, estou satisfeita em Avalon. Não vos preocupeis em procurar-me um marido.

"Nem mesmo que eu esteja grávida!", pensou ela, desafiadoramente.

- Como quiser, minha irmã, e disso não tenho dúvidas. Sua Excelência Reverendíssima terá alguma coisa a dizer sobre isso - ele acredita que as mulheres de Avalon são feiticeiras ou bruxas ímpias, todas elas.

Morgana não respondeu, e Artur voltou-se novamente, com uma expressão quase culpada, para os outros reis e conselheiros. Merlim olhava para ele, e o rei escusou-se:

- Vejo que já passei todo o tempo de que dispunha com minha mãe, minha irmã e meus Companheíros. Devo voltar, agora, a ser novamente rei. Senhora.

Inclinou-se diante de Igraine, e mais formalmente para Morgause, mas, ao aproximar-se de Morgana, beijou-a no rosto. Ela contraiu-se.

"Mãe, Deusa, que confusão arranjamos! Ele diz que sempre me amará e desejará, e é exatamente isso o que não devemos fazer! Se Lancelote também pensasse assim..." Suspirou, e Igraine veio segurar-lhe a mão.

- Você está cansada, minha filha. Aquela longa permanência de pé, sob o sol, esta manhã, parece tê-la fatigado. Não quer voltar comigo para o convento, onde é tão tranquilo? Não? Bem, então, Morgause, leve-a de volta para sua tenda.

- Sim, querida irmã, vá descansar.

Ficou olhando os jovens afastarem-se, enquanto Artur acompanhava, com muito tato, os passos hesitantes de Cai.

 

Morgana voltou com Morgause para sua tenda. Estava cansada, mas tinha de permanecer alerta e cortês, enquanto Lot falava de um plano que Artur mencionara: combater a cavalo, com táticas de ataque que poderiam derrubar os grupos de invasores saxões armados e de soldados a pé, a maioria dos quais não estava treinada para lutar contra soldados montados.

- O rapaz é um mestre na estratégia - comentou Lot. - Seu plano pode dar certo; afinal de contas foram os bandos de pictos e saxões e as tribos que, lutando emboscados, conseguiram desmoralizar as legiões, pelo que contam. Os romanos estavam habituados apenas à luta bem-ordenada, segundo as regras, e a inimigos que se apresentavam ao combate. Os soldados montados têm sempre uma vantagem sobre os soldados a pé. As unidades de cavalaria romana, segundo me consta, foram as que sempre tiveram maiores vitórias.

Morgana lembrou-se de Lancelote falando apaixonadamente de suas teorias de combate. Se Artur partilhasse desse entusiasmo e estivesse disposto a ajudá-lo a formar unidades de cavalaria, então poderiam, talvez, conseguir expulsar todas as hordas saxônicas. Haveria paz, uma paz maior do que os lendários duzentos anos da Pax Romana. E se Artur tivesse consigo a espada de Avalon e as insígnias druidas, então, na verdade, o período que se seguira podia ser um reinado maravilhoso... Certa vez, Viviane referira-se a Artur como um rei vindo da lenda, com uma espada lendária. E a Deusa poderia voltar a imperar nesta terra, e não o Deus morto dos cristãos, com seu sofrimento e morte... Mergulhou num devaneio, só despertando para a realidade quando Morgause sacudiu-a levemente pelo ombro.

- Ora, minha querida, você está semi-adormecida; é melhor deitar-se na cama. Não faça cerimônias. - E mandou sua criada ajudar Morgana a despir-se, lavar-lhe os pés e trançar-lhe o cabelo.

Dormiu longa e profundamente, pois o cansaço de muitos dias desceu de repente sobre ela. Mas, ao despertar, não tinha consciência de onde estava ou o que havia acontecido; sabia apenas que sentia um enjôo terrível, e teve de sair às pressas da tenda para vomitar. Quando se recuperou e endireitou a cabeça, viu Morgause ao seu lado, com mão firme e gentil para levá-la de volta. Era assim que Morgana se recordava dela, em sua remota infância: Morgause sucessivamente bondosa e rigorosa. Agora, ela limpava o suor da testa da sobrinha com uma toalha úmida, e, sentando-se ao seu lado, mandou que a criada lhe trouxesse um copo de vinho.

- Não, não quero. Ficarei enjoada novamente...

- Beba-o - insistiu Morgause com rigor. - E tente comer este pedaço de pão duro, que não provocará enjôo... Você precisa de alguma coisa na barriga, nessas ocasiões. - E riu. - Na verdade, é alguma coisa na barriga que está provocando tudo isso.

Humilhada, Morgana desviou o olhar.

A voz de Morgause voltou a ser bondosa:

- Vamos, moça, nós todas passamos por isso. Então você está grávida - o que tem isso? Não será a primeira, nem a última. Quem é o pai, ou não devo perguntar? Vi você olhando para o bonito filho de Viviane, será ele o felizardo? Quem poderia culpá-la? Não é? Um filho dos fogos de Beltane, então? Foi o que pensei. E por que não?

Morgana fechou as mãos, irritada com as brincadeiras bem-intencionadas de Morgause.

- Não vou ter esse filho. Quando voltar para Avalon, sei o que farei.

Morgause olhou-a, perturbada:

- Ah, minha querida, você vai mesmo fazer isso? Em Avalon, receberiam bem um filho do Deus, e você é da linhagem real de Avalon. Não digo que eu não tenha feito o mesmo... Já lhe contei que tive muito cuidado de não ter um filho que não fosse de Lot, o que não significa que tenha dormido sozinha sempre que ele estava longe, nas suas guerras. Bem, por que haveria de dormir? Não creio que ele sempre se deite sozinho! Mas uma velha parteira disse-me, certa vez, e ela conhecia bem o seu ofício, que uma mulher não deve tentar nunca deitar fora o primeiro filho que concebe, pois isso poderia prejudicar-lhe o ventre, impedindo-a de ter outro.

- Sou uma sacerdotisa, e Viviane está ficando velha. Não quero que isso interfira em meus deveres no templo.

Mesmo ao falar, Morgana sabia que estava escondendo a verdade; havia mulheres em Avalon que continuavam com o seu trabalho até os últimos meses de gravidez, e as outras mulheres dividiam prazerosamente suas tarefas, para que elas pudessem descansar antes do parto. E depois deste, tínham tempo até mesmo para cuidar dos bebês, antes que eles fossem enviados para fora para serem criados. Na verdade, algumas de suas filhas eram criadas pelas sacerdotisas, como fora o caso de Igraine. A própria Morgause fora criada até os dez anos, em Avalon, como filha adotiva de Viviane.

Morgause lançou-lhe um olhar arguto:

- Sim, acho que toda mulher sente isso da primeira vez que concebe. Sente-se colhída numa armadilha, irritada, é alguma coisa que não pode mudar e quelhe faz medo. Sei que foi assim com Igraine, foi assim comigo. Creio que acontece com todas. - Abraçou Morgana e beijou-a. - Mas, minha querida, a Deusa é bondosa. Quando a criança começar a crescer em seu ventre, a Deusa fará você amá-la, mesmo que não dê importância alguma ao homem que a colocou ali. Criança, casei-me aos quinze anos com um homem muito mais velho, e no dia em que soube estar grávida, tive vontade de me jogar ao mar, parecia o fim de minha juventude, o fim de minha vida. Ah, não chore - acrescentou, afagando o cabelo macio da sobrinha. - Você vai se sentir melhor dentro em pouco. Não gosto de andar por aí com uma barrigona e urinando como uma criancinha de fraldas durante todo o dia, mas o tempo passa, e um bebê no seio nos dá tanto prazer quanto o parto nos é doloroso. Eu tive quatro, e teria outro de boa vontade... Desejei com frequência que um dos meus filhos fosse menina. Se você não quiser criar seu filho em Avalon, eu o criarei para você... O que acha disso?

Morgana respirou profundamente, entre soluços, levantando a cabeça do ombro de Morgause.

- Desculpe-me... Molhei todo o seu belo vestido.

Morgause fez um gesto de indiferença.

- Se não lhe acontecer nada pior, tudo está bem. Vê? O enjôo passa, e durante o resto do dia você se sentirá ótima. Você acredita que Viviane pode liberá-la para fazer-me uma visita? Você poderia voltar para Lothian conosco, se quiser... Você não conhece Orkney, e uma mudança de paisagem lhe faria bem.

Morgana agradeceu-lhe, mas contou que precisava voltar para Avalon, e que antes de partir devia despedir-se de Igraine.

- Não me parece conveniente que você lhe faça confidências - lembrou Morgause. - Ela se tornou tão religiosa que ficará chocada, ou achará que deve ficar.

Morgana sorriu debilmente. Não tinha intenção de contar nada a Igraine, nem a qualquer outra pessoa. Antes que Vivíane pudesse saber, já não haveria nada para saber. Ficou grata ao conselho de Morgause, à sua boa vontade e orientação, mas não pretendia seguir seus conselhos. Pensou, energicamente, que tinha o direito de escolha: era uma sacerdotisa, e qualquer coisa que fizesse devia ser baseada em seu próprio julgamento.

Durante a despedida de Igraine, que foi cansativa - e interrompida mais de uma vez pelos malditos sinos chamando as freiras aos seus deveres -, ela pensava que Morgause era mais sua mãe do que a própria Igraine. Esta envelhecera, tornara-se indiferente e carola, e Morgana teve a impressão de que lhe disse adeus com alívio. Ao voltar a Avalon, sabia estar voltando para casa. Agora, não tinha nenhum outro lar no mundo.

E se Avalon deixasse de ser um lar para ela?

 

Capítulo 20

Era cedo ainda, quando Morgana deixou silenciosamente a Casa das Moças, dirigindo-se para o pântano solitário atrás do lago. Contornou o Tor e saiu numa faixa de floresta; com sorte, poderia encontrar ali o que desejava, sem ter de penetrar na bruma.

Sabia do que precisava: de uma única raiz, da casca de um arbusto e de mais duas ervas. Tudo isso era encontrado em Avalon. Poderia tê-las apanhado na despensa na Casa das Moças, mas teria de explicar por quê, e não desejava isso. Não queria nem a simpatia nem as brincadeiras das outras mulheres. Era melhor, portanto, ir ela mesma procurá-las. Conhecia alguma coisa das ervas e um pouco do ofício de parteira. Não precisava colocar-se na dependência de outra pessoa, para isso.

Uma das ervas necessárias crescia no jardim de Avalon, e conseguiu colhê-la sem ser vista. Para as outras, tinha de ir mais longe, e percorreu uma distância considerável antes de perceber que ainda não penetrara na bruma. Olhando à sua volta, viu que estava numa parte de Avalon que não conhecia - o que era absurdo. Tinha vivido ali durante dez anos ou mais, conhecia todos os detalhes, todas as trilhas, e quase todas as árvores. Era impossível perder-se em Avalon, e, não obstante, estava perdida. Penetrara numa parte mais densa da floresta, onde as árvores eram mais velhas e estavam mais próximas entre si do que em qualquer outra área, e havia arbustos, árvores e ervas que nunca tinha visto antes.

Seria possível que tivesse se desviado entre as brumas, sem saber, e estivesse agora na terra que cercava o lago e a ilha? Não; reconstituiu mentalmente seus passos. Não havia cerração. De qualquer modo, Avalon era quase uma ilha, e se ela tivesse saído de suas fronteiras, teria encontrado apenas a água do lago. Havia também o caminho secreto, quase seco, por onde passavam os cavalos, mas não estava perto dele.

Até mesmo no dia em que ela e Lancelote encontraram Gwenhwyfar entre a névoa, estavam cercados pelos charcos, e não pela floresta. Não, não estava na ilha dos Padres, e a menos que tivesse desenvolvido a capacidade mágica de caminhar sobre o lago sem nadar, também não estava fora da ilha. Tampouco estava em Avalon. Olhou para o alto, procurando situar-se pela posição do sol, e não o viu em parte alguma. Era dia pleno, mas a luz assemelhava-se a uma radiação difusa no céu, vinda de todos os lugares ao mesmo tempo.

Morgana começou a sentir o frio do medo. Não estava em parte alguma do mundo conhecido. Seria possível que na magia druida que retirara Avalon do próprio mundo, houvesse um outro país desconhecido, um mundo em torno de Avalon, ou além dela? Olhando para as grossas árvores, os velhos carvalhos, aveleiras, fetos e salgueiros, sabia que não estava em nenhum lugar conhecido. Havia um carvalho nodoso e isolado, de idade incalculável, que não poderia ter-lhe passado despercebido. Certamente, uma árvore tão antiga e venerável teria sido considerada santa pelos druidas. "Pela Deusa! Onde estou?"

Onde quer que fosse, simplesmente não podia ficar ali. Ou voltava a uma parte do mundo que lhe era familiar, encontrando algum ponto de referência para retornar ao lugar pretendido, ou ia para uma parte onde começassem as névoas e pudesse voltar, através delas, para Avalon.

Movimentava-se lentamente na floresta cada vez mais densa. Parecia haver uma clareira à frente, e para lá se dirigiu. Estava cercada de aveleiras, e Morgana percebeu instintivamente que nenhuma delas tinha sido tocada, nem mesmo pelo metal de uma faca druida, ou podada dos bastões de adivinhação que podiam encontrar água, tesouros ocultos ou coisas venenosas. Havia um bosque de aveleiras em Avalon, mas aquelas árvores eram bem conhecidas: ali havia cortado sua própria vara de adivinhação, há anos, quando começou seu aprendizado. Não era esse o lugar. No começo do bosque, existia uma pequena faixa com uma das ervas que desejava. Bem, era melhor apanhá-la agora, pelo menos teria algum proveito em haver-se perdido por ali. Ajoelhou-se junto dela, dobrando as saias a fim de fazer um descanso para os joelhos enquanto trabalhasse, e começou a cavar para arrancar a raiz.

Por duas vezes, ao se abaixar sobre a terra, teve a sensação de estar sendo observada, aquela comichão nas costas que sentem todos os que viveram entre coisas agrestes. Mas, ao levantar os olhos, embora houvesse um leve movimento entre as árvores, não viu ninguém.

Da terceira vez demorou muito a levantar a cabeça, dizendo a si mesma que não haveria ninguém. Arrancou a erva da terra e começou a limpar a raiz, murmurando o encantamento adequado ao uso pretendido - uma prece à Deusa para que restaurasse a vida do arbusto, para que, embora ela estivesse levando aquela raiz, outras pudessem sempre nascer em seu lugar. Mas a sensação de estar sendo observada tornou-se ainda mais forte, e por fim Morgana ergueu os olhos. Quase invisível no ponto em que as árvores começavam, de pé na sombra, uma mulher a observava.

Não era nenhuma das sacerdotisas, nem alguém que Morgana tivesse visto antes. Usava um vestido verde-acinzentado, a cor das folhas do salgueiro quando envelhecem e fícam empoeiradas no final do verão, e uma espécie de manto escuro. Havia um leve brilho de ouro em seu pescoço. À primeira vista, Morgana pensou tratar-se de uma mulher do povo pequeno e moreno com quem havia esperado a morte do Gamo-Rei. Mas o porte da mulher tornava-a diferente daquela gente pequena: parecia uma sacerdotisa, ou rainha. Morgana não tinha idéia de sua idade, mas os olhos fundos e as linhas em volta deles mostravam que não era nova.

- O que está fazendo, Morgana das Fadas?

Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Como a mulher sabia seu nome? Mas escondendo o medo com a habilidade de uma sacerdotisa, respondeu:

- Se sabe o meu nome, senhora, certamente pode ver o que estou fazendo.

Desviou o olhar dos olhos escuros que a observavam e voltou a descascar a raiz. Depois, olhou outra vez para cima, esperando que a estranha mulher tivesse desaparecido com a mesma rapidez com que aparecera, mas ela continuava lá, acompanhando desinteressadamente o trabalho de Morgana. E disse, olhando agora as suas mãos sujas:

- Sim, posso ver o que você está fazendo e o que pretende fazer. Por quê?

- O que tem a ver com isso?

- A vida é preciosa para o meu povo, embora não possamos conceber ou morrer tão facilmente quanto a sua gente. Mas é uma surpresa para mim, Morgana, que você, que é da linhagem real dos Antigos, e por isso minha parenta distante, procure deitar fora o único filho que terá.

Morgana engoliu em seco. Levantou-se rapidamente, consciente de suas mãos sujas e cobertas de terra, segurando a raiz semidesbastada, as saias amarrotadas por ter-se ajoelhado na terra úmida e lamacenta - como uma guardadora de gansos frente a uma grã-sacerdotisa. Disse, desafiadoramente:

- Por que diz isso? Ainda sou jovem. Por que acredita que, se eu rejeitar esta criança, não terei muitas outras?

- Eu me esqueci de que quando o sangue de fada é diluído, a Visão só se manifesta de maneíra deformada e incompleta - respondeu a estranha. - Basta dizer que eu vi. Pense duas vezes, Morgana, antes de rejeitar o que a Deusa lhe mandou, vindo do Gamo-Rei.

De repente, Morgana começou a chorar novamente. Disse, gaguejando:

- Eu não quero! Eu não queria! Por que a Deusa me mandou isso? Se você vem da parte dela, poderá responder a essa pergunta?

A estranha olhou para ela com tristeza:

- Não sou a Deusa, Morgana, e nem mesmo uma emissária. Minha gente não conhece deuses nem deusas, mas apenas o seio de nossa mãe que está sob os nossos pés, e acima de nossas cabeças, de quem viemos e para quem voltaremos, quando nosso tempo terminar. Portanto, amamos a vida e lamentamos vê-la desperdiçada.

Deu um passo à frente e arrancou a raiz da mão de Morgana.

- Você não precisa disso - e atirou a raiz no chão.

- Qual o seu nome? - exclamou Morgana. - Que lugar é este?

- Você não poderia dizer meu nome em sua língua - respondeu a mulher, e de repente Morgana perguntou-se em que língua estavam falando. - Quanto a este lugar, é o bosque de aveleiros, e é o que é. Leva até minha morada, e aquela trilha ali - apontou - conduzi-la-á à sua casa, em Avalon.

Morgana olhou para onde o dedo apontava. Sim, havia uma trilha ali, mas poderia jurar que não existia quando chegou.

A mulher continuava de pé perto dela. Tinha um cheiro estranho, não o odor forte de corpo que não se lava, como acontecera com a velha sacerdotisa tribal, mas uma fragrância curiosa, indefinível, como de uma erva ou folha conhecida, um cheiro estranho, fresco, quase amargo. Como as ervas rituais para a Visão, provocou em Morgana a sensação de que havia um encantamento em seus olhos, que viam mais do que normalmente, como se tudo fosse limpo e claro, e não as coisas comuns do cotidiano.

Numa voz baixa e encantadora, a mulher disse:

- Pode ficar aqui comigo, se quiser; você adormecerá e terá a criança sem dores. Eu ficarei com ela, pela vigorosa vida que tem, e ela viverá mais tempo do que viveria com sua gente. Pois vejo um destino para ela, em seu mundo - tentará fazer o bem, como a maioria do seu povo, mas só fará mal. Mas se ficar aqui com minha gente, viverá por muito, muito tempo - quase eternamente, como você diria, talvez como um mágico ou encantador entre nós, vivendo entre árvores e coisas selvagens que nunca são domesticadas pelo homem. Fique aqui, pequena. Dê-me o filho que você não quer ter, depois volte para os seus, sabendo que ele é feliz e nada sofrerá.

Morgana sentiu um súbito estremecimento gelado. Sabia que aquela mulher à sua frente não era totalmente humana; ela própría tinha um pouco desse velho sangue de duendes - Morgana das Fadas, o nome que Lancelote lhe dera. Afastou-se da mão da mulher e correu para o caminho que ela havia mostrado, correu velozmente como se fosse perseguida por um demônio. Atrás dela ouviu a mulher chamar:

- Deite fora, então, o seu filho, ou estrangule-o ao nascer, Morgana das Fadas, pois o seu povo tem um destino traçado. E o que acontecerá ao filho do Gamo-Rei? O rei tem de morrer e ser derrubado, por sua vez...

- Mas a voz foi desaparecendo, à medida que Morgana penetrava na névoa, correndo, tropeçando, prendendo-se nas sarças que a derrubavam enquanto fugia em pânico, até que rompeu através do nevoeiro e chegou ao sol brilhante e ao silêncio, e sentiu que voltara ao terreno familiar de Avalon.

 

Era lua nova, outra vez. Avalon estava coberta de névoa e cerração do verão, mas Viviane havia sido sacerdotisa por tantos anos que conhecia as fases da lua como se elas estivessem em seu próprio sangue. Caminhou silenciosamente pela casa, e depois de algum ternpo disse à sacerdotisa que a atendia:

- Traga minha harpa.

Mas ao sentar-se com o instrumento de salgueiro claro sobre o joelho, apenas tocou as cordas, distraída, sem vontade ou ânimo de fazer música.

Quando a escuridão da noite começou a diminuir para o amanhecer, ela levantou-se e pegou uma pequena lâmpada. A sacerdotisa atendente acorreu de um aposento interno, onde dormia, mas Viviane sacudiu a cabeça sem falar, e mandou que voltasse para a cama, com um gesto. Saiu, silenciosa como um fantasma, descendo até a trilha que levava à Casa das Moças, e entrou, mais silenciosa do que um gato.

No quarto de Morgana, ela dirigiu-se à cama e olhou para o rosto adormecido, tão semelhante ao seu. Morgana, no sono, tinha a face da menina que chegara a Avalon havia muitos anos e penetrara no mais fundo do coração de Viviane. Sob as pestanas negras, havia manchas roxas como equimoses, e as bordas das pálpebras estavam vermelhas, como se tivesse chorado antes de adormecer.

Levantando a lâmpada, ela olhou ao longo do corpo de Morgana. Amava-a como não havia amado nunca Igraine, ou Morgause, a quem amamentara no próprio seio; e como nunca amara nenhum dos homens que partilhavam sua cama por uma noite, ou uma temporada. Nem mesmo a Raven, a quem instruíra nas artes de sacerdotisa desde os sete anos de idade, amava como a Morgana. Só uma outra vez sentiu esse amor profundo, essa dor interior como se cada respiração do ser amado fosse uma agonia - pela filha que dera à luz no primeiro ano de sacerdotisa jurada, que vivera seis meses e que Viviane enterrara chorando pela última vez, antes de completar quinze anos. Desde o momento em que havia segurado a filha em seus braços, até que a respiração da frágil criança cessasse, Viviane sentira-se envolvida por uma mistura de amor e sofrimento, como se a criança amada fosse parte de seu próprio corpo, como se os seus movimentos de satisfação ou sofrimento fossem dela mesma. Isso havia sido há muito tempo, e Viviane sabia que a melhor parte dela fora enterrada no bosque de aveleiras, em Avalon. A mulher que se afastou, sem chorar, daquela pequena cova era outra pessoa totalmente diversa, mantendo-se longe de todas as emoções humanas. Bondosa, sim; contente, até mesmo feliz, por vezes; mas não a mesma mulher. Amou os filhos, mas desde seu nascimento resignou-se à idéia de entregá-los a mães adotivas.

Permitiu-se amar um pouco Raven... Mas havia momentos em que Viviane sentia, nas profundezas do coração, que sua filha lhe fora restituída pela Deusa, na forma da filha de Igraine.

"Agora ela chora, e é como se cada lágrima queimasse meu coração. Deusa, deste-me esta criança para amar, e eu tenho de entregá-la a este tormento... Toda a humanidade sofre, a própria Terra grita sob os tormentos que lhe são infligidos por seus filhos. Em nossos sofrimentos, Mãe Ceridwen, nos aproximamos de ti..." Viviane levou as mãos rapidamente aos olhos, sacudindo a cabeça para que aquela solitária lágrima desaparecesse sem deixar traço. "Também ela está fadada ao que tem de ser; o sofrimento que atravessará ainda não começou."

Morgana moveu-se e virou de lado. Viviane, receando que ela despertasse e que tivesse de enfrentar novamente a acusação daquele olhar, saiu depressa do quarto e voltou silenciosamente à sua morada.

Deitou-se e procurou dormir, mas não fechou os olhos. Ao amanhecer, viu uma sombra mover-se na parede, e, na obscuridade, percebeu um rosto - era o duplo da morte, esperando por ela, na forma de uma velha em farrapos, envolta em sombras.

- Mãe, vieste buscar-me?

- Ainda não, minha filha e meu outro eu, estou aqui para que te lembres que espero, como espero todos os mortais...

Viviane piscou, e quando abriu os olhos novamente, o canto do quarto estava escuro e vazio. "Certamente não preciso que ela me lembre, agora, de que está à minha espera..."

Ficou deitada em silêncio, como havia aprendido a esperar, até que a madrugada penetrasse no quarto. E mesmo então, esperou até vestir-se, embora não fosse romper o jejum da lua nova enquanto o crescente não fosse visto nos céus daquela noite. Depois, chamando a atendente, ordenou:

- Vá buscar a senhora Morgana e traga-a aqui.

Ao chegar, Morgana notou que ela vestira os trajes de uma sacerdotisa do mais alto grau, com o cabelo trançado alto, a pequena faca em forma de foice pendurada em seu cordão negro. Os lábios de Viviane agitaram-se num sorriso seco, e depois de se cumprimentarem e de Morgana sentar-se a seu lado, disse:

- Já se passaram duas luas novas. Diga-me, Morgana, o Galhudo do bosque deixou uma semente em seu ventre?

Morgana olhou-a imediatamente, com o olhar de um pequeno animal atemorizado colhido por uma armadilha. E a mulher mais jovem disse, com raiva e num desafio:

- Você mesma me aconselhou a usar meu próprio critério. Eu o deitei fora.

- Não, você não o fez - disse Viviane, dando à voz um tom de total indiferença. - Por que mente para mim? Você não fará o que disse.

- Farei!

Viviane sentíu a força da jovem. Por um momento, quando Morgana levantou-se rapidamente do banco, pareceu-lhe que ela se tornara de repente alta e imponente. Mas era um recurso usado pelas sacerdotisas, e que Viviane também conhecia.

"Ela libertou-se, não a posso dominar mais." Não obstante, disse, reunindo toda a sua autoridade:

- Você não o fará. O sangue real de Avalon não pode ser desperdiçado.

Morgana caiu subitamente ao chão, e por um instante Viviane temeu que a moça mergulhasse num pranto descontrolado.

- Por que você fez isso, Viviane? Pensei que me amasse! - Tinha o rosto contorcido, embora não chorasse.

- A Deusa sabe, filha, que eu a amo como nunca amei outro ser humano - confessou Viviane com firmeza, com uma funda dor no coração. - Mas quando a trouxe para cá, eu lhe avisei: chegaria o momento em que você poderia me odiar tanto quanto me amava então. Eu sou a Senhora de Avalon; não dou explicações sobre o que faço. E faço aquilo que devo, nem mais nem menos, e assim fará você também, quando chegar o seu dia.

- Esse dia nunca chegará! - gritou Morgana. - Pois aqui e agora eu lhe digo que você me usou e brincou comigo como um boneco pela última vez! Nunca mais! Nunca!

Viviane manteve inalterada a voz, a voz de uma sacerdotisa treinada que permanece calma, mesmo que os céus desabem sobre ela.

- Tenha cuidado com as maldições que lançar sobre mim, Morgana. As palavras ditas na raiva têm uma forma maligna de voltar, quando menos as queremos.

- Amaldiçoá-la... Não pensei nisso – interrompeu Morgana rapidamente. - Mas nunca mais serei um joguete, um brinquedo seu. Quanto a esse filho que você moveu céus e terra para gerar, eu não o terei em Avalon para que você se delicie com o que fez.

- Morgana... - Viviane estendeu a mão para a jovem, que recuou e disse para o silêncio:

- Que a Deusa a trate como você me tratou, senhora.

Sem dizer mais nada, voltou-se e deixou a sala, sem esperar autorização. Viviane ficou sentada, imóvel, como se as últimas palavras de Morgana fossem, realmente, uma maldíção.

Quando, por fim, conseguiu pensar claramente, chamou uma das sacerdotisas; o dia já ia avançando, e a lua, um fino crescente, era visível, como um fio de prata, no ocidente.

- Diga à minha sobrinha Morgana que venha me atender. Não lhe dei permissão para retirar-se.

A sacerdotisa saiu, mas demorou muito a voltar. Já estava escuro, e Viviane já chamara a outra atendente para que lhe trouxesse comida, a fim de quebrar o prolongado jejum, quando a primeira delas voltou.

- Senhora - balbuciou, fazendo uma reverência. Seu rosto estava pálido.

Viviane sentiu um aperto na garganta, e, por algum motivo, lembrou-se de que, há muito tempo, uma sacerdotisa, num profundo desespero, depois de dar à luz o filho indesejado, enforcara-se numa das árvores do bosque de carvalhos. Morgana! Terá sido disso que o duplo da morte veio me prevenir? Daria fim à própria vida? E, com os lábios secos:

- Mandei que trouxesse a senhora Morgana.

- Senhora, não posso.

Viviane levantou-se, e seu rosto estava terrível. A jovem sacerdotisa recuou tão rapidamente que quase tropeçou na sala e caiu.

- O que aconteceu com a senhora Morgana?

- Senhora, ela não está em seu quarto... - revelou, gaguejando - e perguntei por toda parte. Lá, eu encontrei... encontrei isto.

Estendeu o véu e a túnica de pele de gamo, o crescente de prata e a pequena faca em feitio de foice que Morgana recebera quando de sua iniciação.

- E me contaram na margem que ela chamou a barca e partiu para o outro lado. Eles pensaram que estivesse cumprindo ordens.

Viviane respirou fundo, apanhou a adaga e o crescente das mãos da sacerdotisa. Olhou para a comida sobre a mesa e foi tomada de uma forte sensação de fraqueza. Sentou-se e comeu rapidamente um pouco de pão e tomou um copo de água do poço sagrado. Depois, disse:

- Não é culpa sua, sinto muito ter falado asperamente com você.

Manteve a mão sobre a pequena faca de Morgana, e pela primeira vez na vida, ao olhar para a sua própria mão, viu o pulsar da veia ali, e pensou como seria fácil cortá-la, e ver a vida jorrar. "E então o duplo da morte teria vindo por mim, e não por Morgana. Se ela precisa de sangue, que seja o meu." Mas Morgana havia deixado a faca. Sem dúvida, fora em busca da mãe, para consolar-se e aconselhar-se. Voltaria algum dia, e, se não voltasse, estava nas mãos da Deusa.

Quando ficou novamente sozinha, saiu de casa e, ao brilho pálido da lua nova, subiu o caminho em direção ao seu espelho.

"Artur foi coroado e é rei", pensou. "Tudo o que eu predisse nos últimos vinte anos aconteceu. Mas aqui estou, sozinha e sem nada. Seja o que a Deusa quiser de mim, mas que ela me permita ver novamente o rosto de minha filha, minha única filha, antes que eu morra. Deixe-me ver que tudo está bem com ela. Mãe, em teu nome."

Mas a face do espelho mostrou apenas silêncio e sombras, e atrás das sombras e através delas, uma espada nas mãos de seu filho, Balam.

 

MORGANA FALA...

Os pequenos remadores morenos não olharam duas vezes para mim; estavam habituados a ver Viviane ir e vir com qualquer roupa, e a seus olhos, tudo o que uma sacerdotisa fizesse estava bem feito. Nenhum deles ousaria falar comigo, e quanto a mim, mantive o rosto voltado para o mundo exterior.

Eu poderia ter saído de Avalon pelo caminho secreto. Mas desta maneira, tomando a barca, Viviane, sem dúvida, saberia que parti... Mas, até mesmo para mim, eu receava admitir o medo que me afastava do caminho oculto, o medo de que meus passos não me levassem para o outro lado, mas para o país desconhecido onde estranhas flores e árvores crescem sem serem tocadas pela humanidade, e o sol nunca brilha, e os olhos zombeteiros da mulher-fada viam claramente dentro de minha própria alma. Eu ainda levava as ervas, atadas num pequeno saco na minha cintura, mas quando o barco se moveu com remos silenciosos para as névoas do lago, desatei o saco e deixei-o cair na água. Pareceu-me que alguma coisa brilhou ali sob a superfície, como uma sombra... um brilho de ouro, talvez de jóias. Mas desviei o olhar, sabendo que os remadores esperavam por mim, para fazer descer a cerração.

Avalon estava atrás de mim, a ela havia renunciado. A ilha era bela ao sol nascente, mas não me voltei para um último olhar para o Tor ou as pedras em círculo.

Eu não seria um peão de Viviane, dando um filho ao meu irmão por alguma razão secreta da Senhora do Lago. Eu não havia duvidado nunca de que seria um filho. Se tivesse acreditado que seria uma menina, teria ficado em Avalon, dando à Deusa a filha que eu devia a seu santuário. Nunca, em todos os anos decorridos desde então, deixei de lamentar que a Deusa tivesse me dado um filho, e não uma filha para servi-la no templo e no bosque.

E ali pronunciei as palavras mágicas pela última vez, como então me parecia, e as névoas recuaram, e chegamos às margens do lago. Parecia-me acordar de um longo sono. Perguntei, olhando pela primeira vez para Avalon, ao chegar: "Será real?", e lembrei-me de que Viviane me respondeu: " mais real do que qualquer outro lugar". Mas já não era real. Olhei para os tristes juncos e pensei: Isto é real, apenas isto, e os anos passados em Avalon não são mais do que um sonho que desaparecerá quando eu acordar.

Chovia. As gotas caiam frias no lago. Cobri a cabeça com meu pesado manto e desembarquei na margem real, olhando por um momento o barco a fastar-se outra vez em meio à névoa, e depois voltei-me resolutamente.

Não tinha dúvidas quanto ao meu destino. Não para a Cornualha, embora toda a minha alma ansiasse pelo pais de minha infância, os longos braços da rocha estendendo-se pelo mar escuro, e os vales pro fundos e cheios de sombras entre os rochedos escarpados, a amada e guase esquecida filha do litoral de Tintagel. Igraine teria me recebido bem ali. Mas ela estava entre as paredes de um convento, e era mais conveniente que entre elas permanecesse, sem ser perturbada.

Tampouco pensei em procurar Artur, embora não tivesse dúvidas de que teria se apiedado de mim, e me abrigado.

A Deusa nos impusera sua vontade. Senti um pouco de remorso pelo que acontecera naquela distante manhã - o que havíamos feito como Deus e Deusa fora ordenado pelo ritual, mas o que aconteceu ao amanhecer, aguilo fora jeito por nós mesmos. Mas também isso era a vontade da Deusa. A humanidade é que estabelece essas distinções entre o tempo marcado pelo sangue e pelo parentesco; os animais não têm noção dessas coisas, e, afinal de contas, homem e mulher também são animais. Mas para não ferir Artur, que fora criado como cristão, ele nunca deveria saber que me havia feito um filho, cometendo, ao mesmo tempo, um pecado que seria chamado de mortal. Quanto a mim, não me preocupava com o que diziam os padres. A criança no meu ventre - decidi com firmeza não fora gerada por um mortal. Ela me fora dada pelo Gamo-Rei, o Galhudo, como era legitimo ao primeiro filho de uma sacerdotisa jurada.

Por isso, voltei meus passos para o norte, sem medo da longa jornada pelas charnecas, pelos montes pedregosos, que me levaria finalmente ao reino de Orkney e à minha parenta Morgause.

 

                                                                                            Marion Zimmer Bradley

 

 

 

Carlos Cunha  Produção Visual

 

 

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