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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Bicicleta Azul / Régine Deforges
A Bicicleta Azul / Régine Deforges

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Bicicleta Azul / Régine Deforges

 

Prólogo

Pierre Delmas era o primeiro a levantar-se. Tomava um mau café que a criada mantinha quente em cima do velho fogão.

Saía em seguida, chamando o cão com um assobio; no inverno, lá fora ainda era noite, ou uma madrugada que, tristonha, anunciava a alvorada, durante o verão. Gostava do cheiro da terra quando tudo ainda permanecia adormecido. O dia surpreendia-o com freqüência no terraço, o rosto voltado para a linha sombria de Landes, em direção ao mar. Na família comentavam que seu único desgosto era não ter sido marinheiro. Durante a infância decorrida em Bordeaux, passava horas esquecidas no cais de Chartrons, vendo os cargueiros entrarem e saírem do porto. Imaginava-se, então, comandando um desses navios, sulcando mares, desafiando tempestades, senhor absoluto a bordo depois de Deus. Certa vez, fora descoberto no porão de um cargueiro de carvão prestes a largar para a África. Nem ameaças nem carícias o levaram a revelar o modo como entrara a bordo ou por que motivo abandonava sem explicações a mãe, que adorava. Depois disso, porém, não mais rondara as docas atulhadas de mercadorias, com cheiro de aventura, de alcatrão e de baunilha.

Pierre Delmas, tal como o pai, tornou-se vinhateiro. Seria aquele amor frustrado pelo mar que o impelira a adquirir, ano após ano, cada vez mais hectares de pinheirais fustigados pelo vento oeste? Aos trinta e cinco anos, sentiu necessidade de casar; mas recusou-se a escolher uma esposa na sociedade de Bordeaux, a despeito dos bons partidos que ali havia.

Conheceu Isabelle de Montpleynet em Paris, em casa de um amigo negociante de vinhos.

Apaixonou-se à primeira vista. Isabelle acabara de completar dezenove anos, mas parecia mais velha devido aos belos e melancólicos olhos azuis e à cabeleira farta e pesada presa na nuca. Mostrara-se atenciosa e encantadora com Pierre, embora ela lhe parecesse, em certos momentos, triste e distante. Ele sentiu vontade de afastála de tal tristeza e mostrou-se divertido sem ser inconveniente. Tornou-se então o mais feliz dos homens, ao vê-la rir. Aprovou o fato de Isabelle não ter sacrificado sua esplêndida cabeleira, ao contrário do que fizera a maioria das mulheres respeitáveis da cidade, sucumbindo às exigências da moda.

Isabeile de Montpleynet era filha única de um rico proprietário da Martinica. Criada na ilha até os dez anos, conservara da sua infância insular a fala cantada e uma certa languidez de movimentos. Mas aquela aparente leveza ocultava um temperamento forte e altivo, que se acentuara com o decorrer dos anos. Pela morte da mulher, uma admirável crioula, o pai de Isabelle, desesperado, a confiara aos cuidados das duas irmãs, Albertine e Lisa de Montpleynet, velhas senhoras que viviam em Paris. Seis meses mais tarde morria também, deixando à filha vastíssimas plantações. Pouco tempo depois de conhecê-la, mas sem grandes esperanças, Pierre Delmas confessou a Isabeile o seu amor e o desejo de se casar. Para sua grande surpresa e alegria, a jovem aceitou. Um mês depois, casavam- se em São Tomás de Aquino, com grande pompa.

Após longa temporada na Martinica, instalaram-se em Montillac na companhia de Ruth, a velha governanta, de quem

Isabelle não quisera se separar.

Embora estranha naquela terra, bem depressa Isabelie foi aceita pelos vizinhos e pela família do marido. Recebera considerável dote com o casamento, que utilizou para embelezar a nova casa. Tendo levado vida de solteirão até aquela altura, Pierre Delmas utilizava apenas dois ou três aposentos, deixando ao abandono os restantes. Tudo se modificou em menos de um ano e, quando nasceu Françoise, a primeira filha do casal, a velha moradia já estava irreconhecível. Decorridos dois anos, vinha ao mundo Léa, seguida de Laure, três anos depois.

Pierre Delmas, proprietário do domínio de Montillac, era considerado o homem mais feliz da região. De La Réole a Bazas, de Langon a Cadillac, muita gente lhe invejava a felicidade tranqüila, passada junto da mulher e das três filhas.

O Castelo de Montillac era cercado por muitos hectares de terras férteis, matas e, sobretudo, vinhedos, onde se produzia um generoso vinho branco, semelhante ao consagrado Sauternes. O vinho de Montillac ganhara diversas medalhas de ouro.

Na propriedade cultivava-se também um vinho tinto de forte aroma. Mas "castelo" era uma palavra demasiado pomposa para designar a vasta moradia do início do século XIX, emoldurada pelas adegas e flanqueada pela fazenda e respectivas instalações agrícolas: celeiros, palheiros, cavalariças e cocheiras, O avô de Pierre mandara substituir o telhado da casa, as bonitas telhas redondas da região, de tonalidades que iam do cor-de-rosa ao bistre, trocando-as por ardósia fria, considerada mais elegante. Felizmente as adegas e as acomodações do pessoal conservavam a cobertura de origem. O telhado cinzento conferia ao edifício um ar de respeitabilidade e de certa tristeza, mais condizentes com o espírito burguês de seu antepassado.

Atingia-se a propriedade, magnificamente situada, subindo uma colina que dominava o Garona e o Langonês, entre Verdelais e

Saint-Macaire, percorrendo um longo caminho bordejado de plátanos, perto do qual se erguia um antigo pombal. Chegava-se deste modo às instalações da fazenda e, logo depois do primeiro celeiro, desembocava-se na "rua" - assim se designara, desde sempre, a passagem que separava a fazenda do castelo, onde se situava a enorme cozinha, que funcionava, de fato, como entrada principal da casa. Só os estranhos utilizavam o vestíbulo, de mobiliário heteródito e pavimento com lajes em forma de grandes quadrados pretos e brancos, sobre o qual assentava uma tapeçaria de cores vivas. Nas paredes pintadas de branco, alguns pratos antigos, graciosas aquarelas e um belíssimo espelho estilo diretório davam o toque alegre. Atravessando-se o vestíbulo acolhedor, saía-se para o pátio, onde, à sombra de duas enormes tílias, a família ficava a maior parte do tempo quando chegavam os dias bonitos. Seria difícil imaginar local mais tranqüilo; bordejado, em parte, por moitas de lilaseiros e sebes de alfeneiro, abria-se, por entre dois pilares de pedra, para um vasto gramado que descia até o terraço, de onde se dominava a paisagem. À direita, um pequeno bosque, um jardim cheio de flores e, logo depois, vinhedos e mais vinhedos até Bellevue, envolvendo o castelo por todos os lados.

Pierre Delmas aprendera a amar essa terra e adorava-a quase tanto como às filhas. Era um homem violento e sensível. O pai, falecido prematuramente, legara-lhe a administração de Montillac, propriedade rejeitada pelos outros filhos e filhas por ser demasiado distante de Bordeaux e pelo seu magro rendimento. Ao instalar-se no domínio, Pierre Delmas prometera a si próprio ser bem sucedido. Endividara-se para pagar aos irmãos a parte que lhes cabia por herança, pedindo dinheiro emprestado a um amigo, Raymond d'Argilat, rico proprietário das proximidades de Saint-Êmilion. E foi desse modo que, sem ter sido senhor absoluto depois de Deus a bordo de um cargueiro, Pierre Delmas se transformou em senhor absoluto de Montillac.

 

Capítulo 1

Agosto chegava ao fim. Léa, segunda filha de Pierre Delmas, que acabara de completar dezessete anos, estava sentada sobre a pedra ainda quente de sol da mureta do terraço de Montillac. De olhos semicerrados, voltava-se para a planície de onde, em certos dias, subia até ali o odor marinho dos pinheiros do litoral. Balançava as pernas nuas e bronzeadas, os pés calçados em sandálias listradas. De mãos apoiadas ao muro de um e de outro lado do corpo, entregava-se ao prazer voluptuoso de sentir a carne livre sob o leve vestido de algodão branco. Suspirou de bem-estar, estirando-se em lenta ondulação, tal como fazia Mona, a sua gata, ao despertar ao sol.

À semelhança do pai, Léa também amava essa propriedade, da qual conhecia os mínimos recantos. Em criança, brincara às escondidas atrás dos feixes de lenha ou das filas de tonéis, com primos e primas ou filhos e filhas dos vizinhos. O seu companheiro inseparável fora, então, Mathias Fayard, filho do encarregado das adegas, mais velho que ela três anos. De total dedicação, ele sucumbia ao menor dos seus sorrisos. Os cabelos encaracolados de Léa viviam em permanente desalinho, e os seus joelhos andavam sempre esfolados. O rosto desaparecia sob os enormes olhos violeta, sombreados por longas pestanas negras. O seu passatempo favorito era pôr Mathias à prova. No dia de seu décimo quarto aniversário, pedira-lhe:

- Ensine-me como se faz amor, Mathias.

Louco de alegria, o jovem tomou-a nos braços e beijou-lhe suavemente o rosto emoldurado pelo feno do palheiro. Semicerrados, os grandes olhos violeta observavam com atenção todos os gestos do companheiro. Quando este lhe desabotoou a blusa branca,

Léa soergueu-se para ajudá-lo. Depois, num gesto de pudor tardio, ocultou os seios que despontavam, sentindo subir em si um desejo desconhecido.

Em algum lugar nas instalações do pessoal, ouviu-se a voz de

Pierre Delmas. Mathias interrompeu as carícias.

- Continue - murmurou Léa, atraindo para si a cabeça do rapaz, de cabelos castanhos e ondulados.

- Mas.. . seu pai. .

- E então? Está com medo?

- Não. Mas, se nos descobrir, vou ficar envergonhado.

- Ora, envergonhado! Por quê? O que estamos fazendo de mau?

- Você sabe muito bem. Seus pais sempre se mostraram bons para mim e para a minha família.

- Mas você me ama.

Mathias olhou-a demoradamente. Como era bela assim, com os cabelos de ouro pontilhados de flores secas e de pedaços de palha, os olhos brilhantes, a boca entreaberta sobre pequenos dentes brancos e carnívoros, os seios jovens de mamilos eretos!

Mathias avançou a mão para logo suspender o gesto. E disse, como se falasse consigo:

- Não. Seria malfeito. Assim, não.

Depois acrescentou em tom decidido:

- Amo você, sim. E por isso mesmo não quero... Você é a menina do castelo e eu.

Afastou-se dela e desceu a escada.

- Mathias.

O rapaz não respondeu, e Léa ouviu a porta fechar-se.

- Que estúpido...

Abotoou então a blusa e adormeceu até tarde, despertando apenas com o segundo toque da sineta que chamava para o jantar.

Ao longe, no campanário de Langon ou no de Saint-Macaire, soaram cinco badaladas. Sultão, o cão da propriedade, ladrava alegremente, perseguindo dois jovens que desciam correndo pelo gramado. À frente de Jean Lefèvre, Raul, o irmão, alcançou a mureta onde Léa se empoleirava. Sem fôlego, ambos se encostaram à pedra, um de cada lado da jovem, que os olhou amuada.

- Já não era sem tempo! Julguei que preferissem a companhia dessa palerma da Noélle Villeneuve, que não sabe o que fazer para agradar vocês.

- Não é nenhuma palerma! - objetou Raul.

O irmão deu-lhe um pontapé.

- Demoramos por causa do pai dela. O sr. Villeneuve acha que a guerra começará dentro em breve.

- A guerra! A guerra! Não se fala de outra coisa. Estou farta! Esse assunto não me interessa - disse Léa bruscamente, passando as pernas por cima do muro.

Jean e Raul, com o mesmo gesto teatral, precipitaram-se a seus pés.

- Perdoe-nos, rainha das nossas noites, sol dos nossos dias. Abaixo a guerra, chocante para as moças e mortal para os rapazes!

A sua beleza fatal não deve descer a tão mesquinhos pormenores. Nós a amamos com um amor sem par. Qual de nós você prefere, ó rainha? Escolhe. Jean? Venturoso amado! Morro neste mesmo instante de desespero - declarou Raul, deixando-se cair no chão, com os braços em cruz.

Com os olhos cheios de malícia, Léa contornou o corpo estendido no chão, passou sobre ele com ares de desprezo e depois, parando, empurrou-o com o pé, proferindo no mesmo tom melodramático:

- Morto é ainda maior do que vivo.

Em seguida, dando o braço a Jean, que se esforçava por manter- se sério, arrastou-o consigo, dizendo:

- Abandonemos o cadáver malcheiroso. Venha me cortejar, meu amigo.

Afastaram-se sob o olhar falsamente desesperado de Raul, que erguia a cabeça para vê-los partir.

Raul e Jean Lefèvre tinham uma força muscular pouco comum. Com vinte e um e vinte anos, respectivamente, eram tão afeiçoados um ao outro como se fossem gêmeos. Se Raul fazia qualquer tolice, logo Jean se acusava. Se este recebia um presente, dava-o ao irmão imediatamente. Educados num colégio de Bordeaux, eram o desespero dos professores devido à indiferença que manifestavam por qualquer tipo de matéria escolar. Sempre em último lugar durante anos, só muito tarde conseguiram concluir o curso. E apenas para agradar à mãe, Amélie - segundo afirmavam. Mas sobretudo - tal como outras pessoas garantiam - para evitar os castigos com o chicote que aquela mulher impetuosa não hesitava em aplicar à sua numerosa e turbulenta prole. Tendo ficado viúva muito cedo e com seis filhos para criar - o caçula estava apenas com dois anos -, retomara firmemente a gerência da propriedade vinícola do marido, Verderais.

Não gostava muito de Léa, que considerava insuportável e mal- educada. Não era segredo para ninguém o fato de Raul e de Jean

Lefèvre estarem apaixonados pela jovem. isso era mesmo objeto de gracejos por parte dos outros rapazes e motivo de irritação para as moças.

- Léa é irresistível - diziam eles. - Quando nos fita de pálpebras semicerradas, morremos de desejo de abraçá-la.

- Ora, não passa de uma provocadora! - respondiam as moças. - Mal vê um homem interessar-se por outra mulher começa logo a lançar-lhe olhares.

- Talvez seja verdade. Mas acontece que podemos falar de todos os assuntos com ela: cavalos, pinheiros, vinhas e de muitas outras coisas.

- Ora, isso são gostos de camponesa! Léa comporta-se mais como um rapaz frustrado do que como uma menina de sociedade.

Ver vacas parir e cavalos copular, sozinha ou junto de homens e criados, ou levantar-se da cama para ir admirar a lua acompanhada do Sultão, será que isso é manter a compostura? A mãe desespera-se com ela. Foi expulsa do internato por indisciplina. Devia seguir o exemplo da irmã, Françoise. Uma moça direita.

- Mas tão chata!. . - Só pensa em música e em vestidos.

A ascendência de Léa sobre os homens era, de fato, absoluta. Nenhum conseguia resistir-lhe. Novo ou velho, rendeiro ou proprietário, a todos subjugava. Por um só sorriso dela muitos seriam capazes de cometer loucuras; o pai em primeiro lugar.

Quando fazia algum disparate, a filha ia procurá-lo no escritório e sentava-se em seu colo, aninhando-se em seus braços. Nesses instantes, Pierre Delmas sentia-se invadido por tamanha felicidade que fechava os olhos para melhor saboreá-la.

Raul ergueu-se de um salto- e alcançou Léa e o irmão.

- Estou aqui! Ressuscitei! De que falavam?

- Do garden parly que o sr. d'Argilat vai oferecer amanhã e do vestido que Léa usará na festa.

- Seja qual for, tenho a certeza de que será a mais bonita - afirmou Raul, abraçando a jovem pela cintura.

Léa esquivou-se, rindo.

- Pare com isso! Você me lisonjeia. Vai ser estupenda a festa dos vinte e quatro anos de Laurent. Ele será o herói do dia. Depois do piquenique haverá baile, seguido de ceia e de fogos de artifício. Nem mais nem menos!

- Laurent d'Argilat é duplamente o herói da festa - interveio Jean.

- Por quê? - inquiriu Léa, erguendo para ele o belo rosto pontilhado de algumas sardas.

- Não posso dizer. Por enquanto é segredo.

- Como?! Você tem segredos para mim? E você? - disse ela, dirigindo-se a Raul. - Sabe de alguma coisa?

- Sim. -. de certo modo.

- Julguei que fosse sua amiga e que vocês gostassem de mim o suficiente para não me ocultarem nada - observou Léa, deixando-se cair sobre o banco de pedra encostado à adega, em frente das vinhas, fingindo enxugar os olhos na borda do vestido.

Fungando, observava pelo canto do olho os dois irmãos, que se fitavam com ar de embaraço. Sentindo-os indecisos, aplicou-lhes o golpe de misericórdia: ergueu para eles os olhos marejados de lágrimas fingidas e ordenou:

- Desapareçam! Vocês me magoam muito. Não quero vê-los mais.

Raul decidiu-se, então:

- Pois bem, aí vai! O sr. d'Argilat vai anunciar amanhã o casamento do filho - O casamento do filho?! - interrompeu-o Léa.

Deixou imediatamente de gracejar e proferiu, em tom de extrema violência:

- Você está completamente louco! Laurent não tem nenhuma intenção de se casar, ele me falou.

- Com certeza não teve oportunidade. Mas você sabe muito Sem que desde criança está noivo da prima, Camilie d'Argilat prosseguiu Raul.

- De Camille d'Argilat! Mas ele não a ama! Aquilo não passou de uma brincadeira de criança para o divertimento dos pais.

- Você se engana. Amanhã será anunciado oficialmente o noivado entre os dois. E vão se casar dentro de pouco tempo, por causa da guerra.

Léa deixara de ouvi-lo. Da alegria de momentos atrás, transitava para o pânico, que a invadia aos poucos. Tinha frio e calor ao mesmo tempo, sentia-se tonta e enjoada. Laurent casado! Não era possível! Aquela Camilie a quem todos elogiavam não era mulher para ele; não passava de uma citadina, de uma intelectual sempre mergulhada em seus livros. "Laurent não pode casar com ela, pois me ama", gritava Léa no seu íntimo. "Vi muito bem no outro dia o modo como me pegou na mão e me olhou. Eu sei... sinto-o."

- Hitler bem que se importa com isso.

- Mas a Polônia...

Em plena discussão, os dois irmãos não notaram a mudança de atitude de Léa.

- Tenho de falar com ele - disse ela em voz alta.

- Que disse? - perguntou Jean.

- Nada. Disse que já é hora de voltar para casa.

- Já? Mas acabamos de chegar!

- Estou cansada e com dor de cabeça.

- Seja como for, amanhã, em Roches-Bianches, quero que você dance apenas com Raul e comigo.

- Está bem, está bem... - concordou Léa, erguendo-se, enfastiada.

- Hurra! - exclamaram os rapazes em uníssono.

- Cumprimente sua mãe.

- Farei isso. Até amanhã.

- E não se esqueça: todas as danças serão nossas.

Raul e Jean partiram correndo, atropelando-se como dois cachorrinhos.

"Que moleques!", pensou Léa, que, voltando resolutamente as costas para a casa, dirigiu-se para o calvário, local de refúgio de todos os seus desgostos infantis.

Em criança, quando brigava com as irmãs, quando Ruth a punia por negligência dos deveres ou, sobretudo, se a mãe ralhava com ela, refugiava-se numa das capelas do calvário, para acalmar o desgosto ou a cólera. Léa evitou a casa de Sidonie, a antiga cozinheira do castelo, a quem a doença, mais do que a idade, tinha forçado a interromper o trabalho. Como recompensa pelos bons serviços prestados, Pierre Delmas lhe dera aquela casa que dominava toda a paisagem. Léa vinha muitas vezes tagarelar com a velhota, que sempre fazia questão de lhe oferecer um cálice de licor de cássis, preparado por ela. Orgulhava-se da bebida e ficava à espera dos elogios que Léa não regateava, embora detestasse licor de cássis.

Nesse instante, porém, ouvir as conversas de Sidonie e ter de engolir o licor estavam muito além de suas forças.

Sem fôlego, Léa parou junto ao calvário e deixou-se cair no primeiro degrau, apoiando a cabeça nas mãos geladas. Trespassou-a uma dor terrível. As têmporas latejavam-lhe, os ouvidos zumbiam e um gosto de bile invadiu-lhe a boca. Ergueu-se e cuspiu.

- Não, não é possível! Não é verdade!

Os Lefèvre tinham dito aquilo por despeito. Onde já se viu alguém casar sob o pretexto de ter ficado noivo em criança? Além disso, Camille era muito feia para Laurent, com o seu ar sábio e melancólico, uma saúde que se dizia delicada e uns modos excessivamente suaves. Que tédio viver com uma mulher como aquela! Não, Laurent não podia amá-la! Amava a ela, Léa, e não àquela magricela que sequer conseguia se manter aprumada em cima de um cavalo ou dançar durante uma noite inteira. . . Ele a amava, tinha certeza. Percebera-o pela maneira como lhe retivera a mão, pelo olhar procurando o seu. Ainda ontem, na praia. .

Ela inclinara a cabeça para trás e sentira o desejo dele, ansiando por beijá-la. Mas não fizera a mínima tentativa nesse sentido, como é óbvio. Que exasperantes os rapazes da alta sociedade, tão bloqueados pela educação! Não, Laurent não podia amar Camille.

Tal certeza restituiu-lhe um pouco a coragem. Recompôs-se, resolvida a esclarecer o caso e a fazer os Lefèvre pagarem por tal gracejo. Ergueu o rosto para as três cruzes, murmurando:

- Ajude-me.

O pai fora nesse dia a Roches-Blanches e não tardaria a voltar. Decidiu ir ao seu encontro: saberia por ele o que se passava.

No caminho, surpreendeu-se por encontrá-lo já de volta.

- Você vinha correndo como se o Diabo a perseguisse - comentou Pierre Delmas. - Mais uma briga com suas irmãs? Está corada e despenteada.

Ao ver o pai, Léa procurou retomar uma expressão mais calma, tal como uma mulher que se empoasse às pressas vendo chegar um visitante imprevisto. Mas o resultado não era dos melhores. Esforçou-se por sorrir, deu o braço ao pai, apoiou a cabeça no ombro dele e disse no seu tom mais meigo:

- Que alegria ver você, paizinho! Ia justamente ao seu encontro. Está um dia maravilhoso, não é?

Um pouco surpreso com a jovialidade da filha, Pierre Delmas apertou-a contra si, contemplando as encostas revestidas de cepas cuja disposição regular transmitia uma sensação de ordem e de perfeita calma.

- Um belo dia, de fato. Um dia de paz, mas talvez o último

- disse ele com um suspiro.

Perplexa, Léa indagou:

- O último, como? O verão ainda não terminou. E em Montillac o outono é sempre a melhor estação.

Pierre Delmas afrouxou o abraço, proferindo em tom sonhador:

- Sim, é de fato a melhor estação. Mas surpreende-me a sua indiferença; à sua volta tudo prenuncia a guerra e você.

- A guerra! A guerra! interrompeu-o a filha com violência.

- Estou farta de ouvir falar em guerra. Hitier não é tão loucc que declare guerra à Polônia. E, depois, mesmo que isso aconteça naquele país, em que isso nos diz respeito? Os poloneses que se arranjem!

- Cale-se! Você não sabe o que diz! - gritou o pai, agarrando-a pelo braço. - Nunca mais fale assim, ouviu? Existe uma aliança entre os nossos dois países, e nem a Inglaterra nem a França poderão se esquivar.

- Mas os russos aliaram-se à Alemanha.

- Para grande vergonha deles. E, no futuro, Stálin vai saber que fez papel de bobo.

- Mas Chamberlain.

- Chamberlain fará o que a honra exigir, confirmando a Hitier o seu propósito de respeitar o tratado anglo-polonês.

- E então?

- Então haverá guerra.

Um silêncio povoado de imagens bélicas caiu entre pai e filha. Foi Léa quem o quebrou:

Mas Laurent d'Argilat é de opinião que não estamos preparados para a luta e que o nosso armamento data do conflito de 19141918, só prestando para figurar num museu de guerra. Afirma também que a aviação é inexistente, a artilharia pesada, uma lástima...

- Para quem não quer ouvir falar em guerra, vejo que você está bem mais a par do nosso poderio armado do que o seu velho pai. Mas não leva em conta a coragem dos nossos soldados.

- Laurent diz que os franceses não têm vontade de guerrear.

- Mas será necessário que o façam.

- E que se deixem matar por coisa nenhuma, por um conflito que não lhes diz respeito.

- Morrerão pela liberdade.

- Ora, a liberdade! Onde está a liberdade quando se está morto? Eu não quero morrer nem quero que Laurent morra.

Sua voz ficou embargada, e Léa virou o rosto para ocultar do pai as lágrimas.

Perturbado pelas palavras da filha, porém, ele não notou sua emoção.

- Se você fosse homem, Léa, eu a chamaria de covarde.

- Não sei, papai. Desculpe. Faço você sofrer, mas tenho tanto medo!

- Todos nós temos.

- Laurent não. Garante que cumprirá o dever, embora tenha a certeza da derrota.

- As mesmas idéias pessimistas que o pai exprimiu esta tarde.

- Ah. . . você esteve em Roches-Blanches?

- Estive.

Léa segurou a mão de Pierre Delmas e o puxou, endereçando- lhe seu melhor sorriso.

- Vem. Voltemos para casa. Se nos atrasarmos, mamãe ficará preocupada.

- Você tem razão - concordou o pai, correspondendo ao sorriso da jovem.

Pararam em Believue para cumprimentar Sidonie, que terminara a refeição da noite e tomava ar fresco sentada em frente de casa.

- Então, Sidonie, em forma?

- Podia ser melhor sr. Delmas. O sol aquecerá estes velhos ossos enquanto houver bom tempo. Além disso, aqui, neste lugar, como não ter alegria no coração?

Como um gesto amplo, Sidonie abarcava a magnífica paisagem. Daquele local - conforme Sidonie afirmava - avistavam-se os

Pireneus em dias de céu límpido. O pôr-do-sol arrancava reflexos do verde-esmeralda das vinhas, dourava os caminhos poeirentos e os telhados das adegas e projetava uma paz enganosa sobre tudo.

Entrem para tomar alguma coisa - convidou a velhota.

Nesse instante, chegou até eles o primeiro toque de sineta anunciando o jantar, o que lhes permitiu se esquivarem do licor de cássis.

Caminhando de braço dado com o pai, Léa perguntou:

- Além da guerra, de que mais falou o sr. d'Argilat? Conversaram sobre a festa de amanhã?

Querendo apagar do espírito da filha os ecos da conversa anterior, Pierre Delmas respondeu:

- Será uma bela festa, uma festa como há muito tempo não se vê. Vou lhe revelar um segredo, se você prometer nada dizer a suas irmãs, que são incapazes de controlar a língua.

Maquinalmente, Léa diminuiu o passo, sentindo as pernas subitamente pesadas.

- Um segredo?

- O sr. d'Argilat vai anunciar amanhã o casamento do filho.

Léa parou, sem voz.

- Não quer saber com quem?

- Com quem? - conseguiu articular.

- Com a prima, Camilie d'Argilat. Não é surpresa para ninguém. Mas, devido aos rumores que correm sobre a guerra, Camilie quer apressar a data do casamento. Mas. . . o que você tem?

Pierre Delmas amparou a filha, que parecia prestes a cair.

- Está muito pálida, minha querida. Que se passa? Sente-se doente? É por causa do casamento de Laurent? Você está apaixonada por ele?

- Sim. Amo-o e ele me ama. Espantado, Pierre Delmas encaminhou a filha para um banco à beira do caminho, obrigando-a a se sentar, e deixou-se cair a seu lado.

- O quê? Laurent nunca poderia lhe falar de amor, pois sempre soube que está destinado à prima. O que a faz acreditar que ele a ama?

- Eu sei, é tudo.

- É tudo...

Vou lhe dizer que o amo. Assim, não se casará com a idiota da prima.

Pierre Delmas olhou a filha com tristeza, depois com severidade.

- Em primeiro lugar, Camille d'Argilat não é nenhuma idiota. É uma moça encantadora, bem-educada e muito culta; exatamente o tipo de mulher que convém a Laurent.

- Tenho certeza de que não é.

- Laurent é um homem de princípios rígidos. Uma pessoa como você logo se aborreceria junto dele.

- Não importa. Amo-o tal com é e vou lhe dizer isso.

- Não vai lhe dizer coisa nenhuma. Não permito que minha filha se declare a um homem que ama outra mulher.

- Mas isso não é verdade! - exclamou Léa. - É de mim que ele gosta.

Diante do rosto alterado da filha, Pierre Delmas teve um instante de hesitação e depois asseverou:

- Laurent não a ama. Ele próprio me anunciou com alegria o casamento.

O grito que saiu da garganta de Léa atingiu o pai como uma pancada. Num passado ainda não muito distante, aquela filha era apenas uma criança de colo; ainda não havia muito ia ter com ele à cama, assustada com o lobo das histórias da boa Ruth. E agora transformara-se numa mulher apaixonada.

- Minha ruivinha, minha querida, minha ovelhinha, por favor...

- Oh, papai, papai!...

- Calma. . . calma. . . eu estou aqui. Enxugue as lágrimas. Sua mãe ficará doente se vir você nesse estado. Prometa que será razoável.

Você não deve se rebaixar confessando a Laurent que o ama. Tem de esquecê-lo.

Mas Léa deixara de ouvir o pai. Em seu espírito perturbado nascia aos poucos uma idéia que a serenava. Aceitou o lenço que

Pierre Delmas lhe estendia, assoou-se com ruído - "não como uma senhora da sociedade", conforme teria observado Françoise e ergueu o rosto pálido mas sorridente.

- Você tem razão, papai. Vou esquecê-lo.

Devia ser cômico o espanto surgido na face do pai, pois Léa rompeu em gargalhadas.

"Decididamente, não entendo nada de mulheres", pensou Pierre Delmas, aliviado de enorme peso.

O segundo toque da sineta os fez acelerar o passo.

Léa subiu correndo para o quarto, contente por escapar ao olhar vigilante de Ruth. Lavou o rosto com água fria e escovou os cabelos. Contemplou com indulgência a sua própria imagem refletida no espelho. "Os estragos não são grandes", pensou. Talvez apenas os olhos estivessem um pouco mais brilhantes que de hábito...

 

Capítulo 2

Pretextando enxaqueca - o que lhe valera a solicitude de Ruth e uma carícia inquieta por parte da mãe, concordando ambas que a sua testa parecia um pouco quente -, Léa não acompanhara a família ao passeio quase cotidiano depois do jantar. Refugiara-se no compartimento da casa a que se continuava a dar o nome de "quarto das crianças".

Tratava-se de uma sala enorme situada na ala mais antiga da moradia, onde se localizavam também os quartos dos criados e de despejo. O quarto das crianças era uma grande bagunça onde se empilhavam baús de vime cheios de roupas fora de moda, roupa essa que fizera as delícias das pequenas Delmas quando, em dias de mau tempo, brincavam de fantasiar-se; manequins de costureira de peito tão largo e de curvas tão exageradas que pareciam caricaturas de corpos femininos; caixotes transbordantes de livros valiosos, que haviam pertencido a Pierre Delmas ou aos irmãos. Fora nesses mesmos livros, muitos dos quais de conteúdo edificante, que Léa e as irmãs tinham aprendido a ler. A sala, de vigas enormes, iluminada por janelas altas e fora do alcance das crianças, com o pavimento de ladrilhos desbotados e desconjuntados, por vezes rachados, coberto de velhos tapetes de cores desbotadas, de paredes forradas com papel de desenhos meio apagados, representava outro refúgio para Léa. No meio dos velhos brinquedos de infância, encolhida em cima da alta cama de ferro onde dormira até os seis anos, a jovem lea, sonhava ou chorava, embalando a velha boneca preferida, ou adormecia enroscada, com os joelhos tocando o queixo, e encontrando nessa posição a serenidade do bonito bebê sorridente e calmo de antigamente. A derradeira claridade do dia iluminava levemente a peça, nela deixando recantos obscuros. Léa, sentada na cama com os braços envolvendo as pernas dobradas, de sobrancelhas franzidas, fixava sem ver o retrato de uma antepassada longínqua que se diluía nas sombras. Desde quando amava Laurent d'Argilat? Desde sempre? Não, não era verdade. No ano anterior, nem sequer dera ainda pela sua presença, tal como acontecera com ele em relação a ela, aliás. Tudo principiara durante aquele ano, nas últimas férias da Páscoa, quando Laurent ali estivera em visita ao pai doente.

 

Como sempre fazia em cada temporada, viera cumprimentar o casal Delmas.

Nesse dia, Léa encontrava-se sozinha na saleta da entrada, absorvida na leitura do último romance de François Mauriac, o vizinho mais próximo deles. Não ouvira a porta abrir-se. Estremeceu e ergueu a vista ao sentir a aragem fresca do início da primavera, aragem impregnada do forte odor de terra molhada. Surpresa, descobriu então um belo homem alto e loiro, em traje de montaria, segurando nas mãos enluvadas o chicote de cavaleiro. Fitava-a com tão intensa admiração que Léa experimentou um vivo prazer. Distraída, não o reconheceu de imediato, sentido o coração bater com mais força. O rapaz sorriu e Léa descobriu, finalmente, de quem se tratava. Erguendo-se de um salto, atirou-se-lhe ao pescoço num impulso infantil.

- Laurent!

- Léa?

- Sim, sou eu.

- Como é possível! A última vez que. . . que a vi, era ainda uma garota. Tinha o vestido rasgado, as pernas feridas, os cabelos despenteados. E agora... Descubro uma jovem encantadora e elegante - fê-la girar como que para melhor apreciá-la -, de cabelos arrumados.

Naquele dia, Léa abandonara-se às mãos de Ruth, que havia arrumado os caracóis em sensatas espirais, dando-lhe o aspecto de uma castelã da Idade Média.

- Então, você gosta?

Mais do que consigo dizer.

Os grandes olhos cor de violeta pestanejaram ingenuamente, como acontecia sempre que Léa procurava seduzir alguém. Quantas vezes lhe tinham dito que essa expressão era irresistível?

- Não me canso de admirá-la. Que idade você tem?

- Faço dezessete anos em agosto.

- A minha prima Camilie tem dois mais que você.

Por que motivo experimentara tão grande desagrado ao ouvir esse nome? A boa educação exigia que pedisse a Laurent notícias da família, que tão bem conhecia, mas era intolerável a idéia de pronunciar o nome de Camilie.

Laurent d'Argilat quis saber notícias dos pais e das irmãs. Sem ouvir as perguntas, Léa respondia "sim" ou "não" ao acaso, apenas atenta ao tom da voz que a fazia estremecer.

Surpreso, o rapaz calou-se, observando-a com mais atenção. E Léa teve certeza de que ele a teria abraçado se a mãe e as irmãs não entrassem na sala inopinadamente.

- Então Laurent está aqui e você não nos chama, Léa?

O jovem beijou a mão que Isabeile Delmas lhe estendia.

- Vejo agora de quem Léa herdou tão belos olhos - observou ele, endireitando-se.

- Cale-se! Não diga que ela é bonita. Léa sabe disso mais do que o necessário.

- E nós? - exclamaram Françoise e Laure em conjunto.

Laurent inclinou-se e ergueu a pequena Laure nos braços.

- É sabido que as mulheres de Montillac são as mais bonitas da região - asseverou ele.

A mãe convidou Laurent para jantar. E Léa permaneceu mergulhada num clima de encantamento, até mesmo quando ele aludiu pela primeira vez à eventualidade de uma guerra. Ao partir, despediu-se dela com um beijo na face, beijo mais demorado - tinha certeza - do que os dispensados às irmãs. Por breves instantes, ela cerrou as pálpebras de emoção. Ao reabri-las, viu Françoise olhando-a com maldosa incredulidade. Depois, na escada que conduzia aos quartos, ela lhe sussurrou:

- Ele não é para você.

Entregue à recordação feliz daquela noite, Léa não rebateu o dito da irmã, fato que, mais do que qualquer outra coisa, contribuiu para espantar Françoise.

Uma lágrima deslizou pelo rosto de Léa.

A noite caíra por completo. Na casa, até então mergulhada em silêncio, ressoaram as vozes dos seus moradores, que se recolhiam após o passeio. Léa adivinhou os gestos do pai ao acender o fogo na lareira da sala a fim de expulsar a umidade, ao sentar-se no sofá, apoiando os pés nas ferragens da chaminé, ao pegar o jornal e os óculos pousados na pequena mesa oval; a mãe trabalhando na tapeçaria, a face doce e bela iluminada pelo candeeiro de cúpula de seda cor-de-rosa; Ruth, um pouco afastada junto do candeeiro grande, dando os últimos retoques nas bainhas dos vestidos para a festa do dia seguinte; e Laure brincando com um quebra-cabeça ou com bonecas em miniatura de que tanto gostava. Subiram até ela os primeiros acordes de uma valsa de Chopin - Françoise tocava piano. Léa gostava de ouvi-la tocar; admirava-lhe o talento, apesar de nunca ter lhe dito isso, é claro. . . Nessa noite, no frio negrume do quarto das crianças, sentia falta desse mesmo calor familiar que por vezes tanto a exasperava. Desejou, sem que para isso tivesse de mexer-se, estar sentada aos pés da mãe, no tamborete que era reservado só para ela contemplar as chamas ou, então, de cabeça encostada nos joelhos maternos, pensando no amor e na glória ou, ainda, lendo um livro ou, melhor, folheando os velhos álbuns de fotografias de capas gastas que a mãe conservava como relíquias.

Desde o início do verão, Laurent visitava Montillac quase todos os dias. Acompanhava Léa nas galopadas através das vinhas ou levava-a a passear no seu carro novo, em visita aos arredores, cruzando as Landes a alta velocidade, por estradas de retas quase hipnotizantes. Léa, com a nuca apoiada no encosto do assento do conversível, não se cansava do desfile monótono dos cimos dos pinheiros que varavam o céu de um falso azul de cartão-postal. Eles raramente estavam sozinhos em tais excursões. Léa tinha certeza, porém, de que a presença dos outros se destinava apenas a salvaguardar as aparências. Também se sentia reconhecida a Laurent pelo fato de não demonstrar a desajeitada solicitude dos irmãos Lefèvre. Ele, pelo menos, sabia conversar sobre outros assuntos além de caça, vinhos, florestas e cavalos. Léa esquecia-se de como antigamente detestara os seus sutis comentários sobre romancistas ingleses e americanos. Para agradar-lhe, lera Conrad, Faulkner e Fitzgerald nos textos originais, o que para ela representava grande provação, pois lia mal em inglês. Em geral tão impaciente, Léa suportava até os acessos de melancolia de Laurent, acessos que sobre- vinham a cada vez que ele pensava na inevitabilidade da guerra.

- E saber que tantos homens serão sacrificados por causa de um aquarelista de segunda categoria! - comentava o rapaz com tristeza.

Léa aceitava nele tudo o que detestava nos outros, sentindo-se recompensada por um sorriso, por um olhar de ternura ou por um aperto de mão.

- Você está aí, Léa?

A porta abriu-se, projetando um retângulo de luz na sala mergulhada em trevas. Léa sobressaltou-se ao ouvir a voz da mãe.

Soergueu-se, fazendo ranger a cama.

- Estou, sim, mamãe.

- O que faz no escuro?

- Estou pensando.

A claridade da lâmpada nua atingiu brutalmente seus olhos e Léa ocultou o rosto com os braços.

- Apague a luz, por favor, mamãe.

Isabelle Delmas obedeceu e atravessou o quarto, passando por cima de uma pilha de livros que atrapalhava o caminho. Sentou-se junto à cama, num velho genuflexório estropiado, e passou a mão pelos cabelos desalinhados da filha.

- Qual é o problema, querida? Diga-me.

Léa sentiu os soluços subirem-lhe à garganta e um desejo urgente de desabafar. Sabendo da rigidez de princípios da mãe quanto a tais assuntos, resistiu à idéia de confessar o amor que dedicava a um homem prestes a casar-se com outra. Por nada deste mundo desejava magoar aquela mulher um pouco distante que tanto admirava, a mulher que venerava e a quem tanto queria se assemelhar.

- Fale comigo, minha menina. Não me olhe assim com esse ar de bicho preso numa armadilha.

Léa procurou sorrir, falar da festa do dia seguinte, do vestido novo, mas sua VOZ se estrangulou e, desfeita em lágrimas, lançou-se ao pescoço da mãe, soluçando.

- Tenho tanto medo da guerra!

 

Capítulo 3

Na manhã seguinte, ecoavam pela casa os gritos, o riso e as correrias das três irmãs. Ruth não sabia para onde se virar diante das exigências de suas três "pequenas". Procurava por toda parte bolsas, chapéus, sapatos, etc.

- Apressem-se! Seus tios e primos estão chegando.

De fato, três automóveis acabavam de parar junto ao terraço. Luc Delmas, irmão mais velho de Pierre, célebre advogado de

Bordeaux, partidário obstinado de Maurras, trouxera os três filhos mais novos, Philippe, Corinne e Pierre. Léa não gostava deles, achava-os afetados e fingidos, à exceção do último, a quem todos tratavam por Pierrot para distingui-lo do padrinho, de quem prometia ser bem diferente: aos doze anos, fora expulso, por insolência e crueldade, de todos os estabelecimentos de ensino religioso de Bordeaux, e estudava num liceu, para grande descontentamento dos pais.

Bernadette Bouchardeau, viúva de um coronel, transferia toda a necessidade de ternura para o filho único, Lucien, nascido pouco tempo antes da sua viuvez. Com dezoito anos, o rapaz já não conseguia suportar a solicitude materna e esperava a primeira oportunidade para afastar-se dela.

Adrien Delmas, dominicano, "a consciência da família", gostava de implicar com Pierre, o irmão. De todos os sobrinhos e sobrinhas, Léa era a única que não se deixava intimidar pelo padre, um colosso a quem o hábito branco tornava ainda mais impressionante. Orador notável, pregava pelo mundo inteiro e mantinha correspondência regular com personalidades religiosas de todas as confissões. Falava várias línguas e fazia freqüentes viagens ao estrangeiro.

Na alta-roda de Bordeaux, tal como no seio da família, o padre Adrien era tido como revolucionário. Na realidade, não concedera ele asilo a refugiados espanhóis violadores de freiras e de sepulturas, refugiados fugidos do seu país após a queda de

Barcelona? Não era amigo do escritor socialista inglês George Orwell, antigo tenente da 29.a Divisão, que, ferido e sob um calor tórrido, errara de cafés para estabelecimentos de banhos, dormindo à noite em casas arruinadas ou pelos matos, até conseguir passar para a França, onde

Adrien lhe oferecera hospitalidade? Era também o único dos irmãos a denunciar como injusto o acordo de Munique, predizendo que semelhante covardia não iria evitar a guerra. Apenas o sr. d'Argilat tinha a mesma opinião.

Raymond d'Argilat e Adrien Delmas eram amigos de longa data. Apreciavam Chamfort, Rousseau e Chateaubriand, mas tinham opiniões opostas quanto a Zola, Gide e Mariac, voltando a estar de acordo em relação a Stendhal e a Shakespeare. As discussões literárias entre eles prolongavam-se às vezes por horas seguidas. Quando o padre Delmas se deslocava em visita a RochesBlanches, os criados comentavam:

- Olha, lá vem o padre de novo com o seu Zola! Já era tempo de saber que o patrão não gosta desse escritor.

De todas as jovens presentes, Léa era a única a usar traje de cor escura, motivo para espanto nesse fim de manhã de verão.

Insistira com a mãe durante muito tempo até obter permissão para mandar fazer o vestido de seda preta e pesada, com minúsculas flores vermelhas. O modelo realçava-lhe a elegância do porte, a redondez dos seios e a curvatura das ancas. Nos pés sem meias usava sandálias de salto alto, em couro vermelho. Cobria-lhe a cabeça um chapéu de palha preta, enfeitado com um raminho de flores combinando com os sapatos, caído sobre um dos olhos num jeito arrogante. Na mão, trazia uma bolsa, também vermelha.

Como é óbvio, os irmãos Lefèvre foram os primeiros a precipitar-se para Léa. Lucien Bouchardeau também veio saudá-la.

- Muito bem torneada, a nossa priminha - cochichou ele ao ouvido de Jean.

Phillippe Delmas aproximou-se por seu turno e beijou a prima, corando. Léa abandonou-o de imediato, virando-se para Pierrot, que se lançou a seu pescoço, quase desequilibrando seu chapéu.

- Estou muito contente por vê-lo, Pierrot - disse ela, correspondendo aos beijos do rapaz.

Afastando o grupo dos admiradores, o dominicano de hábito branco conseguiu aproximar-se da sobrinha.

- Deixem-me passar. Quero dar um beijo em minha afilhada

- disse ele.

- Oh, tio Adrien, você também veio! Estou tão contente! Mas o que se passa? Parece preocupado.

- Nada, minha menina. Não é nada. Como você cresceu! Quando penso que a peguei no colo para levá-la à pia batismal! Temos de pensar em casá-la. Creio que pretendentes não faltam.

- Oh, tio! - exclamou Léa, dengosa, compondo o chapéu.

- Vamos, vamos!, senão chegaremos atrasados a Roches-Blanches. Todos para os carros! - gritou Pierre Delmas com uma jovialidade forçada.

Lentamente, todos se dirigiram para os abrigos onde os automóveis estavam estacionados. Léa fez questão de acompanhar o padrinho, para grande desapontamento dos irmãos Lefêvre, que tinham polido o velho Celtaquatre em sua homenagem.

- Vão à frente na sua charanga - ordenou ela. - Encontramo-nos em Roches-Blanches. Posso guiar, tio?

- Sabe guiar?

- Sei. Mas não diga a mamãe. Papai me deixa guiar de vez em quando e me ensina as regras de trânsito. É o mais difícil. Espero fazer exame daqui a pouco tempo.

- Mas você é tão nova ainda!

- Papai garantiu que se daria um jeito.

- Muito me admira! Mas, enquanto esperamos por isso, mostre-me o que você sabe fazer.

Lucien, Philippe e Pierrot também entraram no carro. Arrepanhando o hábito branco, o padre foi o último a entrar, depois de ter dado uma volta na manivela para dar a partida no motor.

- Maldito... - exclamou Adrien quando a sobrinha arrancou com certa brusquidão.

- Desculpe, tio, mas não estou habituada ao seu automóvel. Após alguns trancos que sacudiram os passageiros, Léa conseguiu dominar o veículo.

Foram os últimos a chegar a Roches-Bianches, a propriedade do sr. d'Argilat, perto de Saint-Emilion. Chegava-se ao castelo por uma longa alameda de carvalhos. A arquitetura elegante do edifício, do final do século XVIII, contrastava bastante com a dos castelos vizinhos, todos em estilo neogótico da segunda metade do século XIX. Laurent e o pai eram muito apegados à casa, que conservavam e embelezavam sempre que podiam.

Ao descer do automóvel, a saia sobreposta do vestido de Léa abriu-se até em cima, revelando um bom pedaço da perna. Sem se conterem, Raul e Jean Lefèvre assobiaram de admiração, logo se arrependendo, porém, perante os olhares ferozes das senhoras e das moças.

Um criado foi estacionar o automóvel num pátio por detrás da construção.

Nesse instante os convidados aglomeravam-se em frente ao castelo. Léa percorreu a multidão com os olhos, procurando apenas uma pessoa: Laurent. Não o viu, porém. O pequeno grupo encaminhou-se para o dono da casa.

- Ora, até que enfim você chegou, Léa! Nenhuma festa tem sucesso sem o seu sorriso e a sua beleza - disse Raymond d'Argilat, contemplando a moça com afeto.

- Bom dia, sr. d'Argilat. Laurent não está?

- Claro que sim. Só faltava essa! Está mostrando para Camille os melhoramentos feitos.

Léa estremeceu. Dir-se-ia que o sol havia desaparecido desse belo dia de setembro. Pierre Delmas notou a mudança de atitude da filha. Pegou-a pelo braço e afastou-se um pouco com ela.

- Por favor, nada de cenas, nada de lágrimas - disse ele. - Não quero que a minha filha sirva de espetáculo aos outros.

- Não é nada, papai - garantiu Léa, reprimindo os soluços.

- Apenas um pouco de cansaço. Isso passa depois de comer.

Tirando o chapéu, a jovem, de cabeça erguida, foi juntar-se aos admiradores instalados ao redor da mesa onde haviam sido colocadas as bebidas. Sorriu com os ditos deles, riu com os seus gracejos, enquanto saboreava um delicioso Château d'Yquem.

Mas, no seu cérebro, ecoava sempre a mesma frase: "Ele está com Camilie".

A festa anunciava-se magnífica. O sol brilhava no céu sem nuvens, o gramado, regado de manhã cedo, tinha uma cor verde intensa e dele se exalava o aroma da erva recentemente cortada; as roseiras, em tufos, embalsamavam a atmosfera.

Uma grande tenda branca e cinzenta abrigava o bufê servido com abundância. Atrás das mesas, alinhavam-se criados vestidos de branco. Aqui e acolá, dispunham-se mesas, cadeiras e bancos de jardim, à sombra de guarda-sóis. Os vestidos claros das senhoras, os seus movimentos e gargalhadas conferiam à reunião uma nota frívola que contrastava com as expressões sombrias de alguns homens. Até mesmo Laurent d'Argilat, em homenagem ao qual toda aquela gente se reunira ali, pareceu a Léa pálido e tenso quando surgiu, por fim, dando o braço a uma jovem de rosto doce e radiante de felicidade, envolta num vestido branco e singelo.

À sua chegada, todos os convidados aplaudiram, à exceção de Léa, que fingia arrumar os cabelos.

Raymond d'Argilat fez sinal de que queria falar.

- Meus amigos - principiou ele -, reunimo-nos aqui neste primeiro dia de setembro de 1939 para festejar o aniversário e o noivado de meu filho Laurent com sua prima Camilie.

Os aplausos redobraram.

- Obrigado, meus amigos - prosseguiu ele. - Obrigado por terem comparecido em tão grande número. É para mim enorme alegria tê-los hoje aqui em casa. .Bebamos, comamos e nos alegremos neste dia festivo.

D'Argilat foi obrigado a interromper-se, com a voz embargada pela emoção. O filho adiantou-se com um sorriso rasgado, exclamando:

- Que a festa comece!

Léa fora sentar-se um pouco à parte, acompanhada por seus admiradores. Como todos reivindicavam a honra de servi-la, em breve ela dispunha de comida suficiente para alimentar-se durante vários dias. Ria, conversava, distribuía sorrisos e olhadelas intencionais, sob os olhares despeitados das outras jovens a quem escasseavam galanteadores.

Nunca Léa se mostrara tão alegre. Mas o mais leve sorriso magoava-lhe os maxilares. As unhas enterravam-se de raiva nas palmas das mãos úmidas, atenuando, por meio de nova dor, o sofrimento que atormentava. Julgou morrer quando viu Laurent dirigir-se para o grupo, sempre de braço dado com a noiva, em quem a alegria era demasiado visível. Seguia-os o irmão dela.

- Bom dia, Léa. Ainda não tinha tido oportunidade de cumprimentá-la - disse Laurent, inclinando-se em frente das jovens.

- Lembra-se de Léa, Camille?

- Claro que me lembro! - respondeu ela, largando o braço do noivo. - Como poderia esquecê-la?

Léa erguera-se e observava a rival, que considerava indigna dela. Permaneceu hirta quando Camilie lhe depôs um beijo em cada face.

- Laurent falou-me muito de você. Gostaria que fôssemos amigas.

Não parecera notar o pouco empenho de Léa em corresponder aos seus beijos. Empurrou para diante dela o irmão, um jovem de ar tímido.

- Lembra-se do meu irmão Claude? Ele estava com muita vontade de vê-la de novo.

- Bom dia, Léa - cumprimentou o rapaz.

Como se parecia com a irmã!

- Venha, querida, não podemos esquecer os outros convidados - disse Laurent, arrastando consigo a noiva.

Léa ficou olhando para eles enquanto se afastavam, invadida por tamanho sentimento de abandono que só com dificuldade conseguiu reter as lágrimas.

- Posso juntar-me a vocês? - perguntou Claude.

- Dê-lhe o seu lugar - ordenou Léa com rudeza, empurrando Raul Lefèvre, instalado à sua direita.

Surpreso e penalizado, Raul levantou-se, aproximando-se do irmão.

- Não acha que Léa está hoje bastante esquisita? - perguntou o rapaz a Jean.

Este encolheu os ombros sem responder.

Léa ofereceu a Claude um prato cheio de carnes frias.

- Tome. Ainda não toquei nelas.

Claude sentou-se, pegou o prato e agradeceu, corando.

Léa.

- Vai ficar algum tempo em Roches-Blanches? - perguntou

- Muito me admiraria. Com o que vem por aí...

Mas Léa já deixara de ouvi-lo. Assaltara-a subitamente uma idéia: "Laurent nem sequer sabe que o amo".

A descoberta deu a seu rosto tamanha expressão de alívio, seguida de uma gargalhada tão alegre, que todos a fitaram com espanto. Ergueu-se e encaminhou-se para o local designado por "bosquezinho". Claude d'Argilat e Jean Lefévre precipitaram-se no seu encalço, mas foram repelidos sem a mínima cerimônia.

Amargurados, os dois rapazes regressaram à mesa, em redor da qual se aglomeravam os convidados.

- Acha que teremos de entrar na guerra? - perguntava Raul Lefèvre a Alain de Russay, que, um pouco mais velho, lhe parecia mais apto a fornecer respostas sérias.

- Sem dúvida - asseverou ele. - Não ouviram as notícias na rádio ontem à noite? Entrega imediata de Dantzig à Alemanha, o ultimato lançado à Polônia em seguida às propostas feitas por Hitler ao plenipotenciário polonês, válidas até 30 de agosto à noite. Estamos em 1 de setembro. A esta mesma hora, podem estar certos de que o gauleiler Forster já proclamou a ligação de

Dantzig ao Reich e de que a Alemanha invadiu a Polônia.

- É a guerra! - disse Jean Lefêvre com a voz subitamente envelhecida.

- Sim, é a guerra.

- Que bom, vamos guerrear! - brincou Lucien Bouchardeau.

- Vamos, sim, e venceremos - declarou Raul Lefèvre, com um fervor infantil.

- Estou menos certo disso do que você - respondeu Philippe Delmas em tom fatigado.

Léa atravessou correndo o vasto prado que conduzia ao bosquezinho. À sombra das árvores, via-se toda a propriedade dos

D'Argilat. Era uma boa terra, mais rica e melhor do que a de Montillac, produtora de vinho mais generoso. Léa sempre gostara de Roches-Bianches. Olhava aqueles campos, as vinhas, os bosques e o castelo com orgulho de proprietária.

Não, ninguém melhor que ela sabia amar e compreender aquela terra, com exceção do pai e do sr. d'Argilat. . . e de Laurent, claro,

Laurent! Ele amava-a, não tinha a mais leve dúvida. Mas não sabia que era correspondido. Considerava-a ainda uma criança. No entanto, ela era pouco mais nova do que Camilie. Que veria Laurent naquela magricela de peito chato, malvestida, desajeitada, que parecia recém-saída do convento? E o penteado dela?

Como podia alguém pentear-se assim naquela época? Uma coroa de tranças de um loiro deslavado! Só lhe faltava o nó alsaciano.

O penteado ideal para esse tempo de fúria patriótica. E a sua falsa gentileza? "Gostaria muito que fôssemos amigas Não, decididamente Laurent não amava aquela insípida. Num gesto cavalheiresco de bastante mau gosto, julgava-se obrigado a respeitar uma promessa feita no berço - apenas isso. Mas, quando soubesse que ela, Léa, o amava, romperia o noivado para fugirem os dois.

Na exaltação das suas fantasias, Léa não dera pela presença de um homem encostado a uma árvore, a observá-la com ar divertido.

Ufa, sentia-se melhor! Bastava um pouco de solidão e de reflexão para pôr as idéias no lugar. Estava agora mais tranqüila; tudo correria ao sabor dos seus desejos. Ergueu-se e bateu com o punho direito na palma da mão esquerda, gesto herdado do pai, habitual nele ao tomar qualquer decisão.

- Hei de tê-lo! - exclamou.

Sobressaltou-a uma gargalhada.

- Tenho a certeza de que sim - disse uma voz em tom falsa- mente respeitoso.

- Credo, assustou-me! Quem é você?

- Um amigo do sr. d'Argilat.

- Muito me admiraria. - . Oh, perdão!

O homem riu de novo. "Fica quase bonito quando ri", pensou Léa.

- Não se desculpe, pois não errou. De fato, pouco temos em comum, eu, este seu humilde servidor, e os respeitáveis senhores d'Argilat; apenas alguns interesses. Aliás, vou aborrecer-me na companhia deles.

- Como pode dizer semelhante coisa? São os homens mais corteses e cultos da região.

- Precisamente o que eu dizia.

- Oh!...

Léa olhou o interlocutor com curiosidade. Era a primeira vez que ouvia falar com tanta desenvoltura dos proprietários de RochesBlanches. O desconhecido era um homem alto, de cabelos castanhos penteados com cuidado, olhos azuis insolentes realçados pela tez queimada, de rosto um tanto feio e traços vincados, boca de lábios grossos que se abriam sobre belos dentes.

Mascava um charuto torcido, do qual se desprendia um cheiro medonho. O terno cinza- claro com finas listras brancas, de corte elegantíssimo, contrastava violentamente com a pele curtida e com o horroso charuto.

Léa fez um gesto com a mão, como para afastar aquele odor pestilento.

- O fumo a incomoda? É um mau hábito que adquiri na Espanha. Mas agora pertenço à alta sociedade bordelesa e terei de acostumar-me de novo aos havanas - explicou ele, jogando fora o charuto, que esmagou cuidadosamente com o pé. - A verdade, porém, é que, com a guerra, nos arriscamos a ficar sem eles.

- A guerra. . . a guerra. . . Vocês, homens, têm sempre na boca essa palavra. Por que haveríamos de entrar em guerra? Isso não me interessa.

O indivíduo olhou-a com um sorriso, tal como se olha uma criança caprichosa.

- Tem razão. Sou um bruto ao importunar deste modo uma jovem com assuntos de tão pouca importância. É preferível falarmos de você. Tem noivo? Não? Talvez um namorado. Nem mesmo isso? Não acredito. Vi-a há pouco rodeada por um grupo de rapazes amáveis que me pareceram bastante atraídos por você, exceto o feliz noivo, evidentemente.

Léa, que tornara a sentar-se, ergueu-se bruscamente.

- O senhor está me importunando. Vou encontrar meus amigos.

O homem inclinou-se numa vênia irônica, gesto que encolerizou a jovem.

- Não a retenho. Longe de mim o propósito de desagradar- lhe ou de disputá-la com aqueles que por você suspiram.

Léa passou diante dele, de cabeça erguida, sem se despedir.

O homem sentou-se no banco. Tirou um charuto da caixa de couro castanho, cortou-lhe a ponta com os dentes, cuspindo-a no chão, e acendeu-o. Sonhador, observou a silhueta elegante que se afastava, a silhueta daquela menina divertida que não queria ouvir falar de guerra.

Os músicos começaram a instalar os instrumentos no palco construído sob as árvores, diante do olhar interessado dos convidados mais jovens.

O regresso de Léa foi saudado por exclamações dos amigos.

- Onde esteve? Procuramos você por toda parte.

- Não é nada delicado nos abandonar assim.

- Ora - disse Corinne, a prima. - Léa prefere a companhia de homens maduros e um pouco suspeitos à de jovens de boa família.

As sobrancelhas de Léa mostraram o seu espanto diante daquela afirmação.

- A quem você se refere? - perguntou.

- Você quer que a gente acredite que não conhece François Tavernier, com quem estava arrulhando no bosquezinho?

Léa encolheu os ombros e encarou a jovem com uma expressão de piedade, replicando:

- De bom grado lhe cederia a companhia desse cavalheiro que vi pela primeira vez e de quem você me disse o nome. Mas o que você quer? Não tenho culpa de os homens me preferirem.

- Sobretudo aquele tipo de homem...

- Você me cansa! Mas, afinal de contas, ele não deve ser tão horrível como você dá a entender, visto que o sr. d'Argilat o recebe em sua casa.

- Léa tem razão. Se o sr. d'Argilat recebe o sr. Tavernier é porque ele merece ser recebido - interveio Jean Lefèvre em socorro da amiga.

- Diz-se por aí que é traficante de armas. Segundo parece, vendeu toneladas de armamento aos republicanos espanhóis murmurou Lucien Bourchardeau.

- Aos republicanos?! - admirou-se Corinne Delmas, esbugalhando os olhos de horror.

- E então? Que tem isso? Os republicanos também precisavam de armas para combater, não é assim? - disse Léa em tom agastado.

Nesse instante, os seus olhos encontraram-se com os do tio, o padre Adrien, que parecia fitá-la com um sorriso aprovativo.

- Como pode dizer tal coisa! - exclamou Corinne. - Monstros que violaram freiras, desenterraram cadáveres, que mataram e torturaram!

- E os outros? Não mataram nem torturaram? - contrapôs Léa.

- Mas trata-se de comunistas, de anticlericais.

- E que tem isso? Também tinham direito à vida.

- Como pode dizer semelhantes horrores, você, uma Delmas, quando toda a família rezou pela vitória de Franco!?

- Talvez não houvesse motivo para fazê-lo...

- Eis um assunto demasiado sério para cabecinhas tão bonitas

- comentou Adrien Delmas, aproximando-se do grupo. - Não acham melhor prepararem-se para o baile? A orquestra está pronta.

Como uma revoada de pombos, os quinze rapazes e moças que rodeavam Léa correram para o palco construído ao fundo do gramado, sob uma enorme tenda de bordas levantadas. Mas Léa não se mexeu.

- Quem é esse François Tavernier? - perguntou ao tio.

O dominicano pareceu surpreso e embaraçado.

- Não sei ao certo - retorquiu. - Pertence a uma família abastada de Lyon, com a qual cortou relações, aliás, por causa de uma mulher e por divergências políticas, segundo se diz.

- Será verdadeira essa história de tráfico de armas?

- Não sei. Tavernier é homem discreto. Mas, se o fez, salvou, em certa medida, a honra de França, que, no caso da guerra da

Espanha, não se portou lá muito bem.

- Como pode falar assim, tio, sendo padre? O papa não deu o seu apoio à França?

- Deu, deu... Mas o papa pode se enganar.

- Essa é demais, tio! - disse Léa com uma gargalhada. - Pensei que o papa fosse infalível.

Adrien Delmas riu por sua vez.

- Você é uma garota muito esperta. E eu pensando que todas essas histórias, como você diz, não lhe interessavam.

Léa deu o braço ao tio, e, caminhando sem pressa, arrastou-o para junto do recinto do baile de onde se irradiavam os acordes de um pasodoble endiabrado.

- Isso é conversa para os outros, tio. Se fôssemos dar-lhes ouvidos, só falariam disso. E, como falam de guerra a torto e a direito, prefiro que se abstenham. Mas a você posso confessar que o tema me interessa bastante. Leio às escondidas todos os jornais e ouço rádio, sobretudo a emissora de Londres.

- Você a ouviu esta manhã?

- Não. Com os preparativos para a festa, não tive tempo.

- Até que enfim chegou, Léa! Esqueceu a promessa de dançar comigo? - disse Raul Lefèvre.

- E comigo também - interveio o irmão.

A contragosto, Léa abandonou o braço do tio, deixando-se conduzir para o estrado. Adrien Delmas voltou-se. Perto dele, fumando seu charuto torcido, François Tavernier contemplava as evoluções de Léa na pista de dança.

Durante cerca de uma hora, Léa não parou uma única dança, e estava sempre procurando Laurent com os olhos. Onde estaria?

Viu surgir Camille sem ele, na companhia de François. Não podia perder tal oportunidade. Dançava nesse instante com Claude d'Argilat, que, a cada minuto, parecia mais apaixonado. No meio de um boston, o rapaz sentiu o corpo dela enfraquecer ligeiramente.

- Que se passa, Léa? - inquiriu.

- Nada. É só uma tontura. Estou um pouco cansada. Não quer me acompanhar a um lugar sossegado e trazer-me um copo com água?

Claude apressou-se em afastá-la da balbúrdia. Levou-a para a sombra de uma árvore, a meio caminho entre a casa e o recinto do baile. Com movimentos precisos e ternos, instalou-a o melhor que pôde sobre um tufo de relva.

- Não se mexa. Descanse um pouco. Volto já.

Quando Claude se afastou, Léa ergueu-se e correu para a casa. Entrou na estufa, o orgulho da propriedade. Em seu interior reinava uma atmosfera úmida que se colava à pele. Os ecos da orquestra chegavam ali apenas como um fundo sonoro distante. Pelo chão, alastravam-se as mais exóticas plantas, para depois subirem até a cobertura envidraçada. Uma trilha de pedras ziguezagueava por entre uma espessa vegetação terminando numa gruta artificial, em cujas paredes se agarravam cachos de orquídeas. Uma porta comunicava com o vestíbulo do castelo. Léa empurroua. Vindo do salão, chegou até ela o som das vozes do pai, do tio Adrien e do sr. d'Argilat. Escutou - Laurent parecia não estar com eles. Também não o encontrou na biblioteca nem na saleta. Regressou ao jardim de inverno. Flutuava no ar um perfume de tabaco claro, o perfume dos cigarros de Laurent. Um ponto vermelho cintilava na penumbra, junto de um vaso alto do qual pendiam longos caules pontilhados de flores brancas de aroma inebrante.

- Ah, é você, Léa! Que faz aqui?

- Andava à sua procura.

- Está assim tão farta dos seus apaixonados para abandonar a festa? - perguntou o rapaz, adiantando-se.

Como ele era bonito iluminado por aquela claridade esverdeada! Era impossível não amá-lo. Léa estendeu-lhe a mão.

- Laurent... murmurou.

O rapaz tocou-lhe os dedos nervosos sem parecer notar a perturbação da jovem.

- O que há?

Léa umedeceu com a língua os lábios ressequidos. Sua mão tremeu na de Laurent, e ela sentiu que a dele também estremecera.

Então sua garganta desanuviou-se. Percorreu-lhe o corpo um arrepio de volúpia ao murmurar, semicerrando os olhos tal como um animal à espreita da presa:

- Eu o amo, Laurent.

Uma vez pronunciada, a frase trouxe-lhe um alívio enorme. De pálpebras descidas, estendeu o rosto para o companheiro, esperando ser beijada. Mas nada aconteceu. Abriu então os olhos e recuou um passo.

No rosto de Laurent surgira uma expressão de espanto e de contrariedade, tal como acontecia antigamente com o pai diante de qualquer tolice sua. Mas que dissera ela de tão extravagante? Era natural que Laurent desconfiasse, já que a cortejava; e ela aceitara-o, amava-o. Por que não falava? Sorria apenas. "Um sorriso amarelo", pensou Léa.

- Nada me alegra tanto como a sua amizade, querida Léa - disse Laurent, por fim.

O quê? De que falava ele? De amizade?!

- Seus namorados vão ficar com ciúmes - prosseguiu Laurent.

Mas que conversa aquela! "Eu lhe digo que o amo e ele vem me falar de meus namorados.

- Laurent, pare de me arreliar! - exclamou Léa. - Eu o amo, você sabe, e você também me ama.

A mão de Laurent, onde perdurava o odor do tabaco, pousou de leve nos lábios da moça.

- Cale-se, Léa! Não diga coisas de que poderá se arrepender depois.

- Nunca! Nunca me arrependerei! - trovejou ela, repelindo a mão que a amordaçava. - Eu o amo e lhe quero. Desejo-o tanto quanto você me deseja. É capaz de negá-lo? É capaz de dizer que não me ama?

Léa nunca mais esqueceria o rosto perturbado de Laurent nesse momento: todo o universo pareceu nascer e soçobrar nele ao mesmo tempo, um misto de alegria e de receio disputaram a posse daquele espírito nascido para a tranqüilidade de um amor sem história.

A beleza de Léa tornara-se magnífica nesse momento, Os cabelos desalinhados pela cólera, as faces cheias de ardor, os olhos cintilantes, os lábios intumescidos, tudo nela era um convite.

- Você me ama, não é? Vamos, responda! - insistiu Léa.

- Sim, amo - disse ele num murmúrio.

A alegria iluminou Léa, tornando-a ainda mais bela.

E, de repente, os dois jovens acharam-se nos braços um do outro e seus lábios uniram-se com louca avidez. Depois, num gesto brusco, Laurent repeliu-a. Léa, de boca úmida e entreaberta, encarou-o com espanto e ternura.

- Somos doidos, Léa. Esqueçamos isto.

- Não! Amo-o e quero me casar com você.

- É meu dever casar com Camilie.

Os olhos cor de violeta fitaram-no perdidamente, tornando-se pouco a pouco mais escuros.

- Mas é a mim que você ama! - gritou Léa. - Se o casamento o assusta, então fujamos daqui. O meu único desejo é viver com você.

- Não é possível. Meu pai já anunciou o noivado com Camille. Quebrar tal compromisso significaria a morte de ambos.

- E eu? Não tem medo que eu morra? - perguntou Léa, batendo-lhe com o punho fechado.

A frase fez aparecer um ligeiro sorriso na face pálida de Laurent. Agarrou Léa pelos ombros e disse, sacudindo a cabeça:

- Não; você, não. É forte e nada consegue derrubá-la. Há dentro de você um instinto de vida que nem eu nem Camilie possuímos.

Pertencemos a uma estirpe demasiado envelhecida, de sangue e nervos já gastos. Necessitamos da calma das nossas bibliotecas. . .

Não, deixe-me prosseguir. Eu e Camilie somos muito semelhantes, temos os mesmos pensamentos, amamos o mesmo gênero de existência, estudiosa e severa.

- Eu também gosto de estudar.

- Claro - prosseguiu Laurent em tom fatigado. - Mas você logo se aborreceria junto de mim. Gosta de dançar, namorar, gosta do barulho, do mundo, de tudo o que eu detesto.

- E você não flertou comigo?

- Não, acho que não, O meu mal foi vê-la com demasiada freqüência, foi estar com você a sós vezes demais.

- E me fazer crer que me amava - interrompeu a jovem.

- Não desejei que tal coisa acontecesse. Tinha tanto prazer em vê-la viver, tão livre, tão orgulhosa, tão bela. . . Sentia-me tranqüilo, pois não imaginei que pudesse se interessar por alguém tão aborrecido como eu.

- Nunca me aborreceu.

- Estava grato por me escutar. . . Tudo em você exaltava a vida naquilo que ela tem de mais natural.

- Mas você me ama; você me disse.

- Fiz mal. Como não amá-la como se ama uma felicidade impossível?

- Nada é impossível. E preciso apenas um pouco de coragem.

Sonhador, Laurent olhava Léa como se não a visse.

- Um pouco de coragem, sem dúvida... A coragem que me

Léa sentia crescer aos poucos dentro de si um formigamento de cólera. De súbito, com uma expressão de dureza no rosto, exclamou:

- Você é um covarde, Laurent d'Argilat! Me ama, você disse, e deixa que eu me humilhe. E prefere uma sonsinha feia e malvestida, que lhe dará uma ninhada de filhos tímidos e aleijados.

- Cale-se, Léa! Não fale assim de Camilie.

- Ora, não vou fazer cerimônia. Que fez essa estúpida para lhe agradar? A menos que você aprecie maneiras afetadas, olhares de soslaio, expressões de amargura, cabelos opacos.

- Léa, por favor.

- Por que motivo me fez crer que me amava?

- Mas, Léa...

Entregue à cólera, Lé seria incapaz de reconhecer nesse momento que Laurent nunca ultrapassara os limites da amizade.

Dominava-a a vergonha de se sentir repelida. Precipitou-se sobre o rapaz e esbofeteou-o inconsideradamente.

- Eu o odeio! - gritou.

Uma mancha vermelha surgiu na face pálida de Laurent. A brutalidade do gesto contribuiu para acalmar a jovem, mas mergulhou-a em desespero. Escorregou para o chão e, com a fronte encostada nas pedras da gruta e oculta pelas mãos cruzadas, os cabelos em desalinho, rompeu em soluços.

Laurent observava-a com uma expressão de profunda tristeza. Aproximou-se do corpo sacudido pelo pranto, estendeu a mão e tocou-lhe os cabelos macios. Depois voltou-se e abandonou a estufa devagar. A porta fechou-se de mansinho.

O leve ruído do trinco na fechadura interrompeu os soluços de Léa. Tudo terminara! Estragara tudo. Nunca mais Laurent lhe perdoaria a cena ridícula, os insultos. Patife! Deixá-la humilhar-se como acabara de fazer! Enquanto vivesse nunca esqueceria tal vergonha.

Ergueu-se a custo, de rosto lívido, o corpo moído como após uma queda.

- Patife, patife, patife!

Com um pontapé, atirou um vaso onde crescia uma frágil orquídea, que foi estilhaçar-se contra as pedras.

- Ainda não acabou a encenação? - inquiriu uma voz saída da penumbra.

O coração de Léa parou de bater. Ela sentiu a garganta seca. Voltou-se de chofre.

François Tavernier avançava para ela lentamente.

Léa estremeceu, cruzando os braços sobre o peito.

- Quer que eu a aqueça ou vá buscar um conhaque?

O tom protetor e irônico com que François Tavernier pronunciou essa frase fustigou o amor-próprio da jovem.

- Não preciso de nada. Que faz aqui?

- Descansava enquanto espero para falar com o sr. d'Argilat. É proibido?

- Podia ter anunciado a sua presença.

- Você não me deu tempo de fazê-lo, minha cara amiga. Adormeci e só acordei ao ouvi-la declarar o seu amor ao filho do nosso anfitrião. Que arrebatamento! Que paixão! O filho do sr. d'Argilat não merece tanto.

- Proíbo-o de falar dele nesse tom.

- Peço desculpas. Não quero magoá-la, mas tem de concordar que esse encantador cavalheiro se porta como um tolo ao repelir propostas tão sedutoras e. . . concretas.

- O senhor não passa de um bruto.

- Talvez o seja. Mas, se você tivesse demonstrado o mínimo interesse por mim, eu teria.

- Não vejo que gênero de mulher possa experimentar o mínimo interesse por um indivíduo como você.

- Engana-se, menina. As mulheres, as verdadeiras mulheres, gostam de se sentir excitadas.

- As mulheres que freqüenta, sem dúvida. Mas não as jovens bem-educadas. Como você?

Léa sentiu seus pulsos aprisionados por uma grande mão que a puxava. Mantendo os braços atrás das costas, viu-se colada ao homem que testemunhara sua humilhação. O ódio que então a dominou fez com que cerrasse as pálpebras.

François Tavernier fitava-a como se pretendesse devassar-lhe os pensamentos, mas, nos seus olhos, esvaía-se pouco a pouco a centelha de zombaria.

- Deixe-me, Detesto-o.

- Fica-lhe bem a raiva, sua selvagem!

Os lábios dele roçaram docemente os da jovem imobilizada. Léa debatia-se com uma fúria silenciosa. A mão de François aumentou a pfessão, arrancando um grito de sua vítima. Com a outra, Tavernier agarrou-lhe os cabelos desgrenhados. Os lábios com sabor de tabaco e de álcool comprimiram-se com mais força contra os dela. Uma onda de raiva submergiu Léa. Mas, subitamente, percebeu que correspondia àquele serignóbil. Por que a súbita lassidão a invadir- lhe o corpo, a deliciosa pressão entre as coxas?

- Não! - protestou, libertando-se com um grito.

Que fazia? Estava louca! Deixar-se beijar, amando outro, por aquele homem que desprezava, que gostaria de ver morto! E ainda havia sentido prazer naqueles beijos asquerosos!

- Patife!

- Falta-lhe vocabulário. Ainda há pouco disse o mesmo ao outro.

- Detesto-o!

- Hoje, sim. Mas. - . amanhã?

- Nunca! Espero que a guerra rebente e você desapareça!

- Quanto à guerra, o seu desejo será ouvido, com certeza. Mas, quanto ao meu desaparecimento, não tenho intenção de deixar a pele num conflito antecipadamente perdido.

- Covarde! Como pode dizer tal coisa?

- Não vejo onde está a covardia em ser lúcido. Aliás, é esta a opinião do nosso querido Laurent d'Argilat.

- Não insulte uma pessoa de quem não pode compreender a grandeza de alma.

O riso estrondoso do homem trespassou Léa com muito mais agudeza do que suas palavras contundentes.

Você me dá nojo.

- Não foi essa a idéia que me deu há instantes.

Reunindo tudo quanto lhe restava de dignidade, Léa deixou o local batendo a porta.

No meio do grande hall pavimentado de mármore branco, junto da escadaria que levava aos quartos, Léa girou sobre si mesma como alguém que não sabe que rumo tomar.

Exclamações e gritos atravessaram as paredes do escritório do sr. d'Argilat, cuja porta se escancarou violentamente. Léa atirouse para a sombra da entrada da adega. Laurent d'Argilat e François Tavernier surgiram no vestíbulo.

- Que foi? - inquiriu o segundo.

- Estão transmitindo pelo rádio o apelo de Forster sobre a violação de Dantzig, assim como a notícia da anuência à anexação ao

Reich.

Era tão grande a palidez de Laurent d'Argilat que François Tavernier perguntou, com mais ironia do que a que tencionara imprimir à frase:

- Então ainda não sabia?

- Claro que sim. Mas, com a aprovação de meu pai, de Camilie, do padre Adrien, do sr. Delmas e de algumas outras pessoas, decidi não divulgar a notícia para não estragar a última festa dos tempos de paz.

- Ora! Acha que foi melhor assim? E a Polônia? Que disseram da Polônia?

- Desde as cinco horas e quarenta e cinco minutos que a batalha se trava em todas as frentes, e Varsóvia foi bombardeada.

Raul e Jean Lefèvre apareceram correndo.

- Vincent Leroy acaba de chegar de Langon. Foi decretada a mobilização geral.

Atrás deles, comprimiam-se os convidados, inquietos, tentando saber pormenores. Pelos rostos das mulheres corriam já algumas lágrimas.

O sr. d'Argilat saiu de seu gabinete de trabalho, acompanhado pelo padre Adrien e por Pierre Delmas.

- Meus amigos, meu amigos - murmurou ele, repentinamente curvado.

Através da porta aberta do escritório ouvia-se o crepitar do receptor de rádio, a que se seguiram vozes falando em alemão, em polonês e, depois, a voz mais forte de um tradutor. Alguém aumentou o volume do aparelho.

- "Homens e mulheres de Dantzig, chegou o momento pelo qual tanto ansiavam há vinte anos. A partir de hoje, Dantzig está incorporada ao Grande Reich alemão. O nosso /ührer, Adolf Hitier, libertou-nos. Pela primeira vez, a bandeira da cruz gamada, a bandeira do Reich alemão, tremula sobre os edifícios públicos de Dantzig. Irá tremular igualmente a partir de hoje sobre os antigos edifícios poloneses e por todo o porto."

O silêncio pesou sobre a pequena assembléia, enquanto o locutor comentava a aprovação de Hitler à reintegração de Dantzig no Reich, descrevendo os monumentos embandeirados e o regozijo popular.

- "Artigo 1: A Constituição da cidade livre é abolida com efeitos imediatos" - recitou Adrien Delmas, como se falasse consigo.

- "A Alemanha iniciou esta manhã as hostilidades contra a Polônia" - prosseguia, impávida, a voz no rádio.

- É a guerra - comentou Bernadette Bouchardeau em tom sumido, afundando-se num sofá.

- Oh, Laurent! - exclamou Camille, precipitando-se para os braços do noivo, com os olhos rasos d'água.

- Não chore, minha querida. Tudo terminará em breve.

Perto deles, Léa observava-os. Na confusão geral, ninguém lhe notara a palidez e os cabelos desalinhados. A jovem esquecera a cena no jardim de inverno, o seu amor repelido, para só pensar na possível morte de Laurent.

Julguei que o odiasse - sussurrou-lhe ao ouvido a voz quente de François Tavernier.

Léa corou, virou-se e, num sopro, respondeu ao interlocutor:

- É a você que odeio. O meu desejo é que você seja o primeiro morto desta guerra.

Lamento muito, minha querida amiga, mas, tal como já tive ocasião de lhe dizer, não sinto a mais leve vontade de proporcionar-lhe esse prazer. Peça-me tudo, jóias, peles, propriedades, e os deporei de bom grado a seus pés. A vida, porém, por muito mísera que seja, tenho empenho em conservá-la.

- Deve ser o único. Quanto a casar comigo...

- Quem falou em casamento? Aspiro apenas a ser seu amante.

- Pati...

- Sim, já sei; sou um patife.

- Cale-se, cale-se. Hitier está falando.

 

Capítulo 4

Isabelle Delmas insistira com os parentes do marido para que pernoitassem em Montillac. Abriram-se camas desdobráveis, que foram distribuídas pelos quartos das pessoas amigas, das três filhas e o das crianças. Por especial favor, Léa consentiu em ceder a sua "cama-refúgio" a Pierrot, que compreendeu a extensão desse gesto.

À noite, esquecidos da guerra, primos e primas auxiliaram Ruth e Rose, a criada de quarto, a transportar e fazer as camas.

Ecoavam pela casa risos, gritos e correrias, Concluídos os trabalhos, os jovens, sem fôlego, deixaram-se cair nas camas e nas almofadas ou mesmo no chão do quarto das crianças, preferindo esse quarto atulhado, onde ainda pairava o pó levantado pelas vassouradas enérgicas de Rose, ao salão onde os pais se reuniam.

Léa, sentada em sua cama na companhia de Pierrot, jogava com ele o crapaud, mas, distraída, perdia. Zangada, repeliu as cartas, encostando-se, sonhadora, nos ferros do leito.

- Em que está pensando? Não joga?

- Em François Tavernier - sugeriu Corinne.

- Ele só falou com ela - observou Laure.

- Estão enganados - contrariou Françoise. - Léa não está pensando em François Tavernier.

- Em quem, então? - inquiriu Corinne.

Léa, manipulando as cartas, esforçava-se para mostrar-se indiferente. Que iria dizer aquela impertinente? Desde criança,

Françoise lhe adivinhava os pensamentos antes de todos, as asneiras que praticava, os locais onde se escondia. Isso a enfurecia a tal ponto que chegava a surrá-la. Quantas vezes Ruth não fora obrigada a separar as briguentas! Françoise vigiava-a constantemente, contando à mãe as suas mais íntimas faltas. Mas a mãe não admitia a delação e castigava Françoise com severidade, o que acentuara o desentendimento entre as duas.

- Em quem? - repetiram as duas primas.

Françoise prolongava a expectativa, enquanto um sorriso de júbilo maldoso pairava-lhe nos lábios.

- Ela está pensando em Laurent d'Argilat - declarou, por fim.

- Mas Laurent está noivo de Camilie!

- Não é possível!

- Está louca!

- Tenho certeza de que você se engana.

As exclamações entrechocavam-se no cérebro de Léa, que via à sua frente, parecendo-lhe desproporcionalmente grande, o rosto interrogativo de Pierrot.

- É verdade, acreditem. Ela gosta de Laurent d'Argilat.

Léa saltou da cama com inquietante agilidade e, antes que Françoise conseguisse esboçar um só gesto, agarrou-a pelos cabelos.

Embora surpresa, a irmã reagiu prontamente e as suas unhas rasgaram a face da agressora. O sangue correu. Mais forte, porém,

Léa bem depressa a suplantou e, a cavalo sobre a adversária, forçou-a a bater com a cabeça no chão, mantendo-a segura pelas orelhas. Todos se precipitaram para separá-las. Quando o conseguiram, a infeliz Françoise permaneceu imóvel por instantes.

Os gritos e o ruído da briga chamaram a atenção dos pais.

- Você é insuportável, Léa - admoestou Isabelle Delmas em tom severo, surgindo no local da briga. - Por que bateu em sua irmã?

Parece impossível. . . na sua idade.

- Mas, mamãe.

- Vá já para o seu quarto. Ficará sem jantar.

A cólera de Léa desfez-se de repente. Gostaria de confessar à mãe o quanto se sentia infeliz, quanto necessitava do seu consolo, dos seus afagos. Mas a mãe a reprovava e a repelia. Teria chorado, se não surpreendesse o olhar de triunfo de Françoise.

Reprimiu as lágrimas e deixou o quarto de cabeça erguida, passando em frente de tios e tias, que a miravam com ares de censura.

Apenas tio Adrien esboçou um gesto de carinho acompanhado de um sorriso doce, que queria dizer: "Isso não é importante". A atitude dele quase abalou sua coragem e, por isso, Léa desapareceu correndo.

- Minha pobre Esabelle, você vai ter problema com essa menina - comentou Bernadette Bouchardeau, a cunhada.

Sem responder, Isabelle deixou o quarto das crianças.

Desobedecendo à mãe, Léa não se recolheu ao quarto. Precipitou-se para o jardim, atravessou o pátio e, sempre correndo, cortou pelos vinhedos na direção de Bellevue. Evitando a casa de Sidonie, saltou o muro de limite da propriedade, tomou a estrada poeirenta e depois a vereda que conduzia ao calvário. A meio caminho, porém, um aguaceiro tépido forçou-a a diminuir a marcha e depois a parar.

De braços cruzados sobre o peito como para comprimir as batidas do coração, Léa ficou contemplando, cada vez mais subjugada, o céu ameaçador acima da planície. A natureza contorcia-se a seu redor, curvada pelo vento devastador, gemendo e rebelandose, parecendo querer escapar à tempestade vinda do oceano. O céu escurecia pouco a pouco, revelando nuvens assustadoras.

Com os cabelos agitados pela ventania tal como as serpentes das górgonas, Léa, imóvel, contemplava os elementos cujo desencadear lhe aplacava a própria agitação interior. Sentia no corpo o frêmito da terra que, sob as primeiras gotas de chuva, liberava aromas penetrantes que lhe subiam à cabeça, produzindo uma embriaguez maior que a do vinho mais sutil. O vestido encharcado aderente ao corpo sublinhava-lhe as formas, deixando-a como nua, e o vento endurecia-lhe o bico dos seios. A natureza em fúria fazia-a sair de si própria. Um relâmpago azulado rasgou as nuvens, seguido quase de imediato pelo trovão que abalou o solo. Léa gritou. Iluminava-lhe o rosto um contentamento primitivo, rosto sobre o qual, como se fossem lágrimas, escorriam gotas de chuva. Assaltou-a um riso brutal e libertador, que fez coro com o ribombo do trovão. E seu riso logo se transformou em grito, um grito de triunfo e de pura alegria de viver. Deixou-se então cair na terra do caminho, transformado em lodaçal pela chuva. Os lábios tocaram a lama ainda tépida de sol e mergulharam na pasta amolecida. A língua lambeu o barro, cujo sabor dir-se-ia conter todos os eflúvios de Montillac. Nesse instante, Léa desejou que o chão se abrisse, tornando a fechar-se sobre o seu corpo, digerindo-o, absorvendo-o, fazendo sua carne reviver nas vinhas, nas flores, nas árvores da terra que amava. Depois roloú sobre si mesma, oferecendo o rosto manchado à torrente caída das alturas.

Quando despertou, de corpo moído, bastante tarde na manhã seguinte, procurou lembrar-se dos acontecimentos da véspera. A roupa enlameada, caída ao acaso em volta do leito, fê-la recordar a trovoada e tudo quanto a precedera. Invadiu-a então uma enorme tristeza. Pela primeira vez na vida, não conseguira obter o que desejava. Cobriu a cabeça com a roupa como que para abafar o desgosto. Um som de passos e de chamados atravessou a barreira do tecido e Léa afastou os cobertores para poder sentar-se.

Deus do céu! Que diria Ruth vendo a camisola e os lençóis sujos de lama? Soou na porta uma pancada seca.

- Levante-se, Léa, levante-se! Laurent e Claude d'Argilat vieram despedir-se.

Ela arrancou a camisola e precipitou-se para o banheiro. Abriu a torneira do chuveiro, fazendo desaparecer do rosto e do corpo os vestígios da lama. Escovou vigorosamente os cabelos, de tal forma emaranhados que os arrancava em tufos. Apanhou o primeiro vestido que estava ao alcance, um velho vestido de algodão corde-rosa; apreciava-o de modo especial, mas ficava-lhe agora muito curto e apertado. Calçou um velho par de alpercatas e precipitou-se pelas escadas abaixo.

Toda a família se juntara no salão, rodeando Laurent e Claude d'Argilat. Os rostos de ambos iluminaram-se ao aparecimento da amiga, de faces ainda vermelhas pela vigorosa esfregadela de há pouco, aureoladas pela flamejante cabeleira em desordem, o corpo cmgido pelo vestido de criança que crescera depressa demais.

Léa conteve o desejo de se lançar nos braços de Laurent. Procurou acalmar-se com um esforço que a fazia tremer e disse em voz suave;

- Já vai embora, Laurent?

Tenho de me reunir ao meu regimento.

- E eu ao meu, em Tours - acrescentou Claude.

Procurando iludir o pai, Françoise e Laurent, Léa deu o braço a Claude e afastou-se um pouco com ele.

- Prometa que não se arriscará - pediu ela.

Prometo, Pensará um pouco em mim quando eu estiver na frente de combate?

Não farei outra coisa - garantiu a jovem.

Claude não notou a ironia em suas palavras. Invadiu-o um sentimento de pura felicidade, que o fez gaguejar ao dizer:

Então.., então.., você gosta um pouco de mim. Nesse instante, Léa ouviu atrás de si a voz de Laurent:

- casaremos assim que vier de licença. Camille fez empenho nisso.

A dor obrigou-a a inclinar a cabeça e uma lágrima escorreu-lhe pela face. Claude iludiu-se de novo quanto a seu significado.

- Mas, Léa. . . você está chorando! Por minha causa? Gosta tanto assim de mim?

A jovem reprimiu um gesto de mau humor. Como podia Claude julgar que se interessasse por ele, tão apagado, tão parecido com a irmã? Ah, vingar-se! Castigar Laurent pela sua covardia! Punir Camille pelo seu amor e Claude pela sua estupidez! Ergueu os olhos e fitou com dureza o jovem apaixonado.

- Claro que amo - asseverou.

- Mas. . . então. . . casaria comigo?

Evidentemente.

- Quando?

- Durante a sua primeira licença.

- Vamos sair daqui - sugeriu Claude,

Com uma autoridade pouco condizente com seu temperamento, o rapaz pegou a mão da companheira e arrastou-a para fora da sala, até o jardim. Por detrás de um arbusto de hortênsias, atraiu-a para si e beijou.a. Prestes a repeli-lo, Léa conteve-se, dizendo para si mesma que era necessário aquele sacrifício. Mas como Claude era desajeitado, santo Deus! A lembrança do beijo de Laurent, logo rechaçada pela recordação dos lábios de François Tavernier, provocou-lhe um frêmito que o irmão de Camille, mais uma vez, interpretou erroneamente.

- Você me ama! - exclamou.

Léa teve de reprimir o riso.

- Está de acordo? - perguntou o companheiro.

- De acordo com o quê?

- Que peça sua mão a seu pai?

Léa sentiu que todo o seu futuro dependeria da resposta a dar. Seria um ato de maldade casar com aquele infeliz apenas para punir

Laurent? Não seria ela mesma a primeira a sofrer com isso?

Nesse instante, a silhueta de Françoise delineou-se por detrás do arvoredo.

- Está bem, querido - concordou Léa, abraçando Claude.

De regresso a casa, Claude d'Argilat pediu licença a Pierre Delmas para lhe falar em particular.

O rosto do pai de Léa mostrava-se sombrio ao sair do escritório, após a breve troca de palavras.

Sob o céu cinzento e nublado, grandes poças de água evaporavam aos poucos nas aléias do jardim. A atmosfera estava pesada.

Junto às estrebarias, zumbiam nuvens de moscas. Léa empurrou a porta de um dos palheiros, cujas paredes de tábua haviam adquirido uma tonalidade escura por causa da borrasca. Tal como nos tempos da infância, subiu pela comprida escada encostada ao feno e deixou- se cair sobre a palha cheirosa e áspera.

Pôs-se a pensar nos acontecimentos mais recentes. Laurent e Claude tinham partido e ela fugira rapidamente para evitar os olhos interrogativos e dolorosos do pai. Sentia na boca um gosto amargo a tal evocação. Não criara ainda coragem suficiente para discutir o assunto com ele. Fechou as pálpebras, tentando esquecer tudo com o sono. Desde criança recorria a essa forma de fuga se a mãe ralhava com ela ou se se sentia inexplicavelmente cansada de tudo e de si mesma. E sempre o sono benfasejo viera socorrê-la. Nesse instante, porém, tal não acontecia; revolvendo-se sem parar no meio do feno, Léa não estava muito longe de se sentir traída.

De repente um corpo saltou sobre o seu.

- O que deu em você, Mathias? - exclamou Léa.

O seu amigo de infância enlaçava-a e cobria-a de beijos, murmurando:

- Desavergonhada.., sua desavergonhada...

- Pare com isso! Está me machucando.

- Há pouco, você não disse isso quando Claude d'Argilat a beijou.

Léa deu uma gargalhada e o afastou.

- Ah, então é isso?

- O que quer dizer com "então é isso"? Não será suficiente?

- Não vejo em que isso lhe diz respeito. Sou livre para beijar quem quiser.

- Não vai me dizer que aquele pretensioso lhe agrada!

- E daí, se agradasse? Não sei o que você teria a me dizer a respeito disso.

Encolerizado, Mathias contemplou a amiga. Depois, aos poucos, seu olhar ficou doce.

- Bem sabe que a amo.

Pronunciou a frase com tamanha meiguice que Léa experimentou um prazer comovido. Passou a mão pela farta cabeleira do rapaz e, pondo nas palavras mais sentimento do que desejaria, disse:

- Eu também gosto de você, Mathias.

Com naturalidade, acharam-se nos braços um do outro.

O profundo desgosto de Léa encontrou consolo naquelas carícias. Pouco a pouco, esqueceu Claude e Laurent, esqueceu a tristeza, para apenas saborear o prazer dos beijos. Ter-se-ia abandonado por completo, provavelmente, se não chegasse até ela a voz do pai, abafada pela espessura do feno. Libertou-se dos braços de Mathias e, desprezando a escada, saltou para o chão de terra batida do palheiro. Fizera aquele mesmo gesto muitas vezes, pulando dos montes de palha com a agilidade de um gato. Mas foi menos feliz nesse momento, e um dos tornozelos cedeu. Gritou de dor, e quase instantaneamente Mathias estava junto dela.

- Ai, meu pé!

O pai também ouvira o grito, e a sua elevada estatura enquadrou-se no limiar da porta. Vendo a filha caída por terra, correu para ela, atropelando o rapaz.

- O que você tem?

- Não é nada, papai. Torci um pé.

- Deixe ver.

Pierre Delmas pegou a perna acidentada, arrancando novo grito da filha, O tornozelo apresentava já o dobro do volume normal.

Ergueu-a com cuidado.

- Peça a Ruth que chame o médico, Mathias.

Em breve Léa se achava estendida no canapé da sala de entrada, com as costas e os pés apoiados em almofadas. Chegou o dr.

Blanchard, que tranqüilizou os pais, depois de auscultar a paciente e de atar-lhe o tornozelo.

- Uma bela luxação - sentenciou ele. - Mas nada de grave. Repouso absoluto durante oito dias. Depois disso, poderá correr e pular novamente.

- Oito dias sem me mexer! Não conseguirei agüentar, doutor.

- Não se preocupe. Passam depressa.

- Bem se vê que não foi ao senhor que isso aconteceu - disse Léa com ar amuado.

A fim de facilitar o serviço, Isabeile Delmas decidiu que a filha dormiria no andar térreo, no divã do escritório do pai. Essa resolução trouxe de novo o sorriso aos lábios de Léa. Ela gostava muito daquela sala, das paredes revestidas de estantes cheias de livros. Através da ampla porta da sacada, chegava-se à agradável área do jardim, e dali avistavam-se os vinhedos e as matas.

Ao fim da tarde, os irmãos Lefèvre apareceram para se despedir. Léa mostrou-se tão doce, terna e sedutora com ambos que tanto um como o outro partiram convencidos de serem o eleito de seu coração.

- Não basta correr atrás de Laurent, comprometer-se com François Tavernier, namoriscar Claude e Mathias? Você ainda quer virar a cabeça dos idiotas dos Lefèvre? - comentou Françoise, que assistira à cena. - Não passa de uma.

- Vocês continuam a discutir, meninas - interveio a mãe com severidade, ao entrar na sala. - Sua irmã está doente, Françoise, e precisa de repouso. Deixe-a em paz.

Sentou-se na cadeira, junto de Léa.

- Ainda dói? - perguntou.

- Um pouco. Ainda sinto pontadas na perna.

- É natural. Lembre-me logo à noite de lhe dar um calmante.

- É bom estar doente e ser tratada por você, mamãe - afirmou Léa, pegando a mão da mãe e beijando-a. Depois exclamou:

- Gosto tanto de você, mamãe!

Comovida, Isabeile acariciou-lhe a mão. Mãe e filha permaneceram em silêncio durante um longo momento, unidas pela mesma ternura.

- É verdade o que seu pai me contou?

Léa recolheu a mão e fechou o rosto.

- Responda. É verdade que quer se casar com Claude d'Argilat? - insistiu Isabeile.

- Sim.

- Ama-o?

- Amo.

- Esse amor me parece muito repentino. Há mais de um ano que não o via. Aconteceu algo que eu não sabia?

Léa sentiu um repentino desejo de dizer tudo, de tudo confessar e de ser consolada. Lutou contra a emoção. Acima de tudo, não podia magoar a mãe, não podia desiludi-la. Tinha de tranqüilizá-la.

- Não, não aconteceu nada - disse Léa com firmeza. - Eu o amo.

 

Capítulo 5

Léa continuava estendida no divã atulhado de jornais, retirados da escrivaninha do pai. Através da porta aberta da sala, chegaram até ela as últimas palavras do discurso transmitido por Edouard

Daladier: ". - . Entramos em guerra porque esta nos foi imposta. Cada um de nós permanecerá no respectivo posto, no solo da

França, nesta terra de liberdade, onde o respeito pela dignidade humana encontrou um dos derradeiros refúgios. Congregareis todos os vossos esforços num profundo sentimento de união e de fraternidade, em prol da salvação da pátria. Viva a França!"

Claude d'Argilat instalara-se numa cadeira baixa, perto do divã, com o braço engessado suspenso pelo lenço atado ao pescoço.

- Se não tivesse acontecido isto ao meu maldito braço, mostraria a esses nojentos alemães do que é capaz um soldado francês.

- Foi você o culpado. Que necessidade tinha de obrigar a pobre da velha égua de seu tio a correr como louca?

- Tem razão - reconheceu Claude em tom lastimoso. - Mas estava tão contente por você gostar de mim e concordar em se casar!

Senti então desejo de fazer o animal galopar e de gritar ao vento a felicidade de ser amado por você.

- Pobre Claude! Fazemos um belo par de estropiados, não há dúvida!

- Você não vai concordar, certamente, mas sinto-me feliz com este acidente estúpido. Permite-me gozar da sua companhia, enquanto todos os outros apaixonados já se foram. Você voltou a falar com seus pais sobre o nosso casamento? Eu contei tudo a

Camille. Disse-me que está muito feliz em tê-la como irmã.

- Por que lhe contou? Queria que o assunto ficasse entre nós até papai dar o seu consentimento - disse Léa, encolerizada.

- Mas querida, Camille é minha irmã - objetou Claude. - Digo-lhe sempre tudo o que se passa comigo.

- Neste caso deveria ter-se calado.

- Como às vezes você fica com cara de má! E sabe ser tão meiga.

- Mas não sou. Não gosto que todo mundo esteja a par dos meus assuntos privados.

- Mas Camilie não é "todo mundo".

- Chega! Você me aborrece com sua Camilie. Vá embora. Deixe-me só.

- Mas, Léa.

- Vá. Estou cansada.

É verdade, me esqueci. Sou uro bruto. Até amanhã - disse Claude, pegando sua mão, que Léa lhe estendeu, contrafeita.

- Sim, sim, até amanhã.

Pouco tempo depois da partida de Claude, Pierre Delmas entrou no escritório.

- Como vai a acidentada? - inquiriu.

- Muito bem, papai. Mas gostaria de ver isto já terminado. Sinto uma comichão por todo o corpo.

- Seja paciente, gatinha. Lembre-se da frase de Kipling.

- A pressa excessiva causou a perda da serpente amarela que queria engolir o sol."

- Vejo que não esqueceu os conselhos de seu velho pai. Ponha-os em prática, minha filha, e verá até que ponto são corretos.

- Não duvido - suspirou Léa.

Pierre Delmas instalou-se à escrivavinha, pôs os óculos, remexeu em alguns papéis, folheou jornais, abriu uma gaveta, tornou a fechá-la e absorveu-se na contemplação do teto. Depois levantou-se, encaminhando-se para a porta.

- Os dias estão cada vez mais curtos - comentou, como que para si, ainda voltado para o jardim.

Léa observava com atenção a alta e maciça silhueta do pai. Pareceu-lhe que seus ombros largos estavam um tanto descaídos, que seus cabelos estavam mais cinzentos. De certo modo, aquele homem pareceu-lhe frágil; era uma sensação bastante estranha.

Sorriu diante de tal pensamento. Pierre Delmas frágil; ele, um homem capaz de erguer sozinho um barril ou de abater pinheiros de suas terras das Landes tão rapidamente quanto o mais exímio lenhador!

- Papai! - exclamou Léa num impulso de ternura.

- Diga, minha filha.

Eu o amo.

- Você me ama e quer me deixar - respondeu ele, voltando-se e encaminhando-se para a filha.

- Não é a mesma coisa.

Pierre Delmas suspirou e foi sentar-se na cadeira baixa, que rangeu sob o seu peso.

- Está bem certa de querer se casar com aquele pateta?

Léa não respondeu, baixando a cabeça num gesto de amuo.

- Não será por despeito? - insistiu Pierre Delmas.

Léa corou, sacudindo os cabelos desalinhados.

- O casamento é algo muito sério, minha filha. Um compromisso para toda a vida. Pensou bem?

Era necessário a todo custo que o pai acreditasse em sua paixão por Claude e julgasse definitivamente encerrado o caso com

Laurent; uma criancice já esquecida.

- Eu mal conhecia Claude, papai. Mas, quando o vi na festa, senti que o amava. Por meu primo não tive mais do que uma grande amizade. Confundi esse sentimento com amor.

Pierre Delmas observou a filha com uma expressão de dúvida.

- No entanto, no outro dia, em seu refúgio, estava com um ar bem mais apaixonado do que agora.

O coração da jovem se contraiu. Receou não ter a energia necessária para continuar a farsa.

- No outro dia, no refúgio, sentia-me cansada, enervada e furiosa pelo fato de o próprio Laurent não ter me participado o seu casamento. Julgava-o apaixonado por mim, e divertia-me o meu papel de sedutora. Para mim é indiferente que se case ou não.

Aliás, Laurent é tão aborrecido que me pergunto como Camilie pode suportá-lo.

- É essa também a minha opinião. Acho que, para uma moça como você, seria bem mais adequado um dos irmãos Lefèvre.

- Mas eles são apenas meus amigos, papai!

- Amigos?! Você não sabe nada dos homens, minha filha. Estão ambos loucos por você, e não são os únicos. Agora, vá dormir.

Boa noite, gatinha.

Feliz em obedecer-lhe, Léa adormeceu rapidamente, pensando em como era bom ser chamada de "gatinha" por um pai de quem gostava com tanta ternura.

Léa se restabeleceu depressa e pôde retomar os passeios pelos campos, a maioria das vezes acompanhada por Claude.

Aproximavam- se as vindimas e, tal como acontecia todos os anos, Montillac fervilhava de atividade. Tendo os rapazes partido nesse outono, foram substituídos pelas mulheres. E, durante alguns dias, a guerra foi relegada para segundo plano - as uvas não podiam esperar.

As trovoadas rondavam. Todos faziam o que podiam para terminar o trabalho antes que chegassem. Ninguém interrompeu o trabalho às quatro horas, como era costume, a fim de acabar a colheita antes do mau tempo. Às cinco horas, porém, os vinhateiros foram forçados a suspender a tarefa com a chegada das primeiras gotas de chuva, logo transformadas em verdadeira tromba-d'água. Os carros puxados por bois, transportando as tinas cheias de cachos, foram rapidamente postos a salvo debaixo dos alpendres espaçosos.

Num dos palheiros, estavam dispostas compridas mesas cobertas por toalhas de um branco imaculado. Exibiam grande variedade de pastéis, carnes, aves, queijos, terrinas fumegantes e jarros de vinho. Antes de comer, os vinhateiros lavavam as mãos na grande tina cheia de água, junto à porta. Em seguida, instalavam-se nos bancos em volta das mesas.

Pierre Delmas presidia à refeição. A mulher servia os pratos, protegida por um avental branco sobre o vestido de verão, ajudada por Françoise, Laure e Ruth. Léa, cujas bolhas nas mãos atestavam o empenho no trabalho, sentava-se ao lado do pai. Adorava esses banquetes no palheiro, na época das vindimas. Todos os anos a festa se prolongava por vários dias. Era o encontro da juventude da região e só se ouviam risos, cantos e danças. Nesse ano, porém. perdera-se o entusiasmo. A maioria dos presentes compunha-se de mulheres, e os poucos homens eram velhos. Todos pensavam nos ausentes e na alegria das vindimas anteriores, pois a refeição começou em silêncio. Sensível à tristeza que acabrunhava os seus convidados, Pierre Delmas levantou-se do banco e ergueu a taça, dizendo:

- Bebamos à saúde dos nossos soldados e cumpramos de bom humor a tarefa que eles não puderem desempenhar.

- À saúde dos nossos soldados! - gritaram.

Léa pousou a mão no joelho do pai, que ergueu de novo o corpo em homenagem exclusiva à filha:

- Bebo à sua felicidade, minha querida - acrescentou em voz baixa.

 

Capítulo 6

- Estou tão contente que você se case com meu irmão, Léa! Enquanto não alugam uma casa, podem ir morar conosco na Rue de

Rennes - ofereceu Camilie.

- Mas eu não quero viver em Paris - objetou Léa.

- É preciso, minha querida. Caso a guerra termine, Claude terá de concluir os estudos.

E eu? Que farei durante esse tempo?

Camilie deixou escapar uma gargalhada.

- Vou lhe mostrar todos os recantos de Paris. Tenho certeza de que gostará da cidade mais bela do mundo. Podemos ir a exposições, visitar museus, ir a concertos, à ópera, à Comédie Française.

Tudo isso é muito bonito, mas prefiro Montillac.

- Tem razão. Montillac é maravilhosa, tal como Roches-BIanches. Porém, nada pode substituir Paris.

- Nunca pensei que fosse tão fútil.

- Como pode dizer tal coisa? - respondeu Camille, franzindo o sobrolho. Não se é fútil quando se ama uma cidade onde há lugar para tudo quanto demonstre inteligência. Laurent é como eu: acha que se trabalha melhor em Paris, pois a cidade tem tudo o que é necessário. As bibliotecas.

- Não gosto de bibliotecas. Parecem cemitérios de livros.

- Oh!...

Léa exagerava um pouco, sabia-o. Mas Camille, com a sua Paris e a sua sede de cultura, irritava-a.

Esgotados os argumentos, Pierre Delmas cedera às instâncias da filha, consentindo no casamento. Claude d'Argilat agradeceralhe efusivamente a decisão. Diante disso, Pierre Delmas pensou que, apesar de tudo, talvez Léa fosse feliz com o rapaz. Quanto a Isabelie, limitou-se a apertar fortemente a filha nos braços.

Na falta de coisa melhor, contentamo-nos com o que temos

- sentenciara Françoise.

Apenas Ruth e Laure estavam sinceramente satisfeitas com o casamento de Léa; Laure por gostar de festas desse gênero e Ruth por considerar que o matrimônio "assentaria o juízo daquela desmiolada".

Pouco depois do anúncio oficial do noivado, chegou uma notícia que abalou as duas famílias, e Léa quase se traiu: o tenente

Laurent d'Argilat fora ferido ao socorrer um dos seus homens, caído num campo minado.

Pierre Delmas e a filha encontravam-se em Roches-Bianches quando o carteiro trouxe a carta. Camilie, descobrindo a palidez do futuro sogro, adivinhou que algo acontecera ao noivo. Ergueu-se e tremendo, aproximou-se do tio.

- Laurent? - perguntou ela.

Pierre Delmas levantara-se.

- Responda, peço-lhe. Que aconteceu a Laurent? - suplicou Camille.

- Nada de grave, minha filha - conseguiu articular o sr. d'Argilat. - Apenas um ferimento no braço.

Surgiu nesse instante um criado trazendo um telegrama. O sr. d'Argilat estendeu-o ao amigo.

- Abra-o, Pierre. Não me sinto com coragem para tanto.

Pierre Delmas obedeceu e inteirou-se do conteúdo da mensagem. Um sorriso iluminou-lhe o rosto.

- É de Laurent - comunicou ele. - Está em perfeita saúde e chega amanhã.

- Amanhã!

- Sim, amanhã. Veja.

Camilie apoderou-se do papel que Pierre Delmas estendia ao pai, incrédulo.

- Oh, meu tio! De fato, é verdade. Laurent chega amanhã

- disse a jovem, desfazendo-se em pranto.

Léa mantivera-se à parte durante toda a cena, dominando a vontade de gritar e de, em seguida, chorar de felicidade. Laurent estava vivo! Regressava, e ela ia ter oportunidade de vê-lo. Fechou os olhos. A voz de Camilie arrancou-a do sonho feliz.

- Vamos aproveitar a ocasião para antecipar a data do casamento, tio. Tenho certeza de que é o maior desejo de Laurent.

- Como quiser, Camille. Tudo o que fizer estará bem feito.

- Por que não se casa em Saint-Macaire, tal como eu, Léa? Seria tão bom casarmos no mesmo dia!

Que estúpida ela era! Que lhe importava o local da cerimônia, se não era para casar com Laurent? Por nada no mundo ouviria o homem amado dizer o "sim" a outra mulher. Cortou logo o assunto.

- Faço questão de me casar em Verdelais. Vamos embora, papai. Mamãe nos aguarda.

Durante o longo caminho de volta, Léa fez um enorme esforço para reter as lágrimas. Sentia o olhar inquieto do pai pousado nela; habitualmente tão tagarela, a filha respondia às suas perguntas apenas com monossílabos. Pierre Delmas acabou por se calar.

Chegando a Montillac, Léa, sem coragem para ouvir as observações de Françoise, refugiou-se no quarto das crianças. Aí ficou até a hora do jantar, enroscada em sua cama, de olhos secos e doloridos.

Acordada desde o amanhecer, Léa não se sentia bem em nenhum lugar. Na véspera, Claude prometera telefonar-lhe logo que

Laurent chegasse. Não parava de andar de um lado para outro da casa. Isabelle, incomodada pela atitude da filha, mandou-a a

Believue, em busca de notícias de Sidonie.

- O ar livre vai lhe fazer bem - comentou.

Furiosa, Léa partiu, correndo para Believue, torcendo os pés no caminho sulcado pelas últimas chuvas e pela passagem das carroças. Sem fôlego, sentou-se por momentos em frente da casa para descansar. O velho cão de Sidonie festejou latindo e pulando à sua volta. Essas manifestações de alegria chamaram a atenção da moradora, que abriu a porta.

- Ah, é você menina! Por que não entra? Está encharcada de suor. Entre logo, senão vai adoecer.

Não era possível resistir a Sidonie. Léa obedeceu e entrou, depois de beijar a velhota.

- Aconteceu algo de grave no castelo para que tenha corrido assim até aqui?

- Não, não. Mamãe manda perguntar se precisa de alguma coisa.

- Como é boa a sua mãe! Diga-lhe que vou tão bem quanto a velhice me permite. Ser velha, minha querida, é o pior que pode acontecer.

- Ora, Sidonie, é preferível ser velho que estar morto.

- É o que se diz quando se é novo, quando se tem sangue ainda bem vermelho circulando nas veias, quando se sobe numa escada sem medo de cair, quando se pode ser útil. Olhe para mim. Para que sirvo eu agora? Sou apenas um encargo para seu pai e uma preocupação para sua mãe.

Não fale assim, Sidonie. Todos em Montillac gostam de você, sabe disso.

Claro que sei. Mas isso não me impede de me sentir um estorvo. Sobretudo agora, com esta maldita guerra. Nem sequer posso tricotar. As minhas pobres mãos deformadas deixam cair os pontos e as agulhas. Eu, que tanto gostaria de fazer meias para os nossos soldados! Passaram tanto frio, os infelizes, durante a outra guerra!

Uma lágrima deslizou-lhe pelas faces enrugadas. Léa, de coração oprimido, viu-a descer e perder-se nas comissuras dos lábios da velhota. Uma piedade enternecida fê-la ajoelhar-se aos pés de Sidonie, tal como na infância, quando mergulhava o rosto no avental que cheirava a trigo e a barrela para ser consolada de algum desgosto.

E também, tal como antigamente, a mão estragada pelo rude trabalho da terra, pelos trabalhos servis, começou a acariciar-lhe os cabelos dourados.

- Não fique triste, minha menina bonita. Sou uma velha tonta que só diz disparates e se lastima a toda hora. Não faça caso. É a trovoada que me renova as dores no corpo e me faz ver tudo negro. Vamos, olhe para mim. Veja em que estado está, minha menina. Quem diria que é uma moça crescida e casadoura? Que cara faria o seu noivo se a visse de nariz e olhos vermelhos como os coelhos brancos? Lembra-se deles? Era uma trabalheira quando queríamos matá-los. Você se opunha e ficava em frente das coelheiras de braços estendidos, gritando; "Não, estes não! São princesas que as fadas más transformaram em coelhos". Seu pai e eu tínhamos de recorrer a muitas manhas. Esperávamos pela noite e púnhamos nas gaiolas tantos laçarotes quantos eram os coelhos, de modo a que, no dia seguinte, você se convencesse de que os animais, transformados em princesas, tinham esquecido as fitas ao partir.

A recordação daquela história infantil fez aflorar um sorriso aos lábios de Léa.

- Era uma tola nessa época - afirmou a jovem. - Acreditava ainda em contos de fadas.

- E já não acredita? Isso é mau. Quem é que a fez tão bonita, diga-me? Existe o bom Deus do céu, é certo, mas também as fadas têm algo a dizer.

Léa riu, exclamando:

Pare com isso, Donie! Já não sou nenhuma criança.

- Para mim, será sempre a minha menininha, a filha que não tive - disse a velha, forçando Léa a erguer-se e apertando-a ciosamente contra o peito.

As duas mulheres permaneceram enlaçadas durante muito tempo. Depois, Sidonie interrompeu o abraço. Tirou do bolso do avental um lenço xadrez, limpou os olhos e assoou-se com estrondo.

- Não é bom a gente comover-se. Diga à sua mãe que não se preocupe. Não preciso de nada. Agradeça à menina Ruth a visita que me fez ontem. Ai, a minha cabeça! Não vá embora antes de beber um pouco de licor de cássis

- Muito obrigada, Sidonie, não se incomode.

- Ora essa! Não me incomodo, não me incomodo.

 

Capítulo 7

- Laurent d'Argilat, aceita tomar por esposa Camilie d'Argilat, aqui presente?

- Sim.

A palavra, pronunciada com firmeza, ecoou pela abóbada gótica, atingindo Léa em pleno peito. Sentiu o corpo transformar-se em estátua e o sangue gelar-lhe nas veias; era como se seu coração fosse parar, enquanto um frio mortal a envolvia.

Como peças de caleidoscópio, os vitrais coloridos, iluminados pelo sol, começaram a mover-se, irisando o altar onde o sacerdote oficiava, aureolando Camille, envolta em seu vestido branco, e transformando o uniforme de Laurent num traje de arlequim.

"Parece Jonas, o meu velho fantoche", pensou Léa. As peças do jogo mágico invadiram então a igreja, velando aos poucos a assistência. Da massa imóvel e colorida, em breve se destacou apenas uma estátua fria e cinzenta. Léa experimentou enorme alívio ao sentir-se senhora absoluta das cores sob as pálpebras descidas. Tal como um jato de sangue, um zumbido projetou os vermelhos para a abóbada por um instante reaparecida. Um som mais agudo dispersou os azuis, enquanto os verdes se desdobravam numa tapeçaria escura, sob a qual, como pétalas de flor, caíam os amarelos, os rosas e os violetas. Depois, ao mesmo tempo que o estrondo se ampliava obedecendo às ordens de um maestro invisível, as cores reuniram-se para formar figuras monstruosas, circunscritas por traços negros e espessos, que lhes sublinhavam o horror. Um vulto avermelhado e diabólico, ainda mais pavoroso do que os anteriores, ergueu-se de súbito diante de Léa. Foi tão grande o seu terror que deixou escapar um grito.

De onde provinha aquele calor insuportável? Quem teria rechaçado os monstros? Onde estavam as cores vivas e dançantes? Por que tudo se tornara tão sombrio? E aquela música a lhe esmagar o coração, a martelar em suas têmporas.

- Quer fazer a coleta, senhorita?

Que pretenderia dela aquele gigante vestido de vermelho? Por que razão lhe dirigia a palavra o homem em trajes tão grotescos e chapéu emplumado? De onde provinha a pressão iiuportável sentida no braço?

- Léa!

- Senhorita!

Voltou-se para a esquerda e, por entre uma espécie de bruma, distinguiu o rosto inquieto do noivo. Viu então que este lhe apertava o braço com força. Soltou-se num gesto brusco. Com que direito se atrevia a tocá-la? E o outro, o homem de vermelho, que queria ele estendendo lhe um cestinho forrado de cetim branco? Que fizesse a coleta? E que mais? Não percebia que lhe era intolerável a idéia de passar por entre as filas da assistência segurando numa mão o vestido de organdi rosa-pálido e na outra o cesto das esmolas?

O guarda suíço insistiu:

- Quer fazer a coleta, senhorita?

- Não, muito obrigada - recusou Léa em tom seco.

O indivíduo encarou-a com surpresa; em geral, todas as jovens gostavam de desempenhar tal cargo, que lhes proporcionava a oportunidade de exibirem os vestidos. Desiludido, dirigiu-se a Françoise, que se apressou a aceitar o convite com um sorriso de desafio.

A missa terminou, enfim. Os recém-casados recebiam as felicitações dos pais e dos amigos em frente do altar enfeitado com grandes ramos de flores brancas.

Quando chegou a vez de Léa - uma Léa que se sustinha de pé apenas por uma questão de orgulho -, Camille, rosada e quase bela, estendeu-lhe os braços, estreitando-a contra si.

- Bem depressa chegará a sua vez, Léa - disse ela. - Desejo que seja tão feliz quanto sou neste momento.

Distante, Léa deixou-se beijar pela noiva. No seu espírito perturbado turbilhonavam as palavras às quais se agarrava como náufraga: "Não é verdade. apenas um sonho, um pesadelo. Não é verdade".

Empurrada por Claude, achou-se perante Laurent e fitou-o, imóvel.

- Vamos, dê-lhe um beijo - incitou-a Claude.

A música ruidosa do órgão acompanhava o cortejo. Camille caminhava plena de felicidade, encantadora no seu véu de tule ligeiramente amarelado, usado por gerações e gerações de noivas da família d'Argilat, enquanto o vestido comprido, de cetim creme, brilhava à luz do sol. Pousava a mão com suavidade na manga do casaco preto do marido, que, cortês, ritmava as passadas pelas dela. Logo atrás, seguiam as oito damas de honra vestidas de organdi cor-de-rosa, com os rostos frescos emoldurados por chapéus de abas largas. Léa detestava o organdi e o cor-de-rosa.

No adro da igreja, um numeroso grupo de curiosos aguardava o cortejo, e o novo casal foi saudado com "bravos" e gritos.

Um fotógrafo de cabelos compridos e usando no pescoço um lenço com um grande nó, dispôs os convidados junto do portal do templo para tirar as tradicionais fotografias. Numa delas, Léa mexeu-se e o rosto ficou tremido e quase irreconhecível; noutra, baixou de tal modo a cabeça, que apenas se distinguia a copa de seu chapéu.

Quando se preparava para deixar SaintMacaire no automóvel do tio Adrien, em companhia de Claude, Lucien e Laure, Léa sentiu um mal-estar que a obrigou a precipitar-se, encurvada, para a beira da estrada.

- Essa menina está com febre! - exclamou o dominicano, com a mão em sua testa.

Terminadas as náuseas, Léa deixou-se cair, com o rosto pálido manchado de vermelho.

Adrien a pôs em pé e amparou-a, conduzindo-a ao carro.

- Estou com frio - queixou-se Léa.

Lucien tirou do porta-malas uma manta de viagem e cobriu-a.

Chamaram o dr. Blanchard. Ele diagnosticou um ataque de sarampo e prescreveu uma dieta rigorosa, bem como repouso absoluto.

O casamento de Léa, marcado para o início de novembro, foi adiado. Claude, em desespero, viu-se obrigado a partir para o regimento sem voltar a ver a noiva, ainda prostrada pela febre.

Velada dia e noite pelo pai, pela mãe e por Ruth, Léa convalescia da doença muito lentamente. Em quarenta anos de prática, nunca o dr. Blanchard vira sarampo tão rebelde, a ponto que receou tratar-se de prenúncio de uma epidemia. Isso não aconteceu, porém, e a enfermidade de Léa não passou de um caso isolado.

As cartas - longas cartas - de Claude d'Argilat chegavam quase diariamente a Montillac e iam-se acumulando, fechadas, numa das mesas-de-cabeceira do quarto da jovem. Todas as semanas Isabelie Delmas informava o infeliz militar do estado de saúde da noiva. Ao fim da terceira semana, Léa pôde acrescentar uma pequena frase de seu próprio punho à carta escrita pela mãe.

Mas Claude d'Argilat nunca chegou a lê-la. Acabava de morrer, atingido pela explosão de uma granada, durante um exercício, quando a missiva foi entregue no quartel.

Durante vários dias ninguém transmitiu a notícia à convalescente, considerada demasiado fraca para suportar o choque.

Numa tarde bonita e tépida de dezembro, Léa ensaiou alguns passos no terraço, apoiada ao braço de Ruth. Sentia o corpo renascer e suspirava de bem-estar.

- Temos de ir para dentro. Como primeiro passeio, já chega, por hoje - disse a governanta.

- Vamos ficar mais um pouco, Ruth. Sinto-me tão bem!

- Não, minha filha - disse a governanta com firmeza.

Em certas circunstâncias, ninguém conseguia resistir à vontade de Ruth. Léa sabia disso e não insistiu.

Mas quem seria aquela esguia silhueta negra que se aproximava? Por quê? Por que o véu de luto? Imóvel, com um crescente sentimento de horror a apoderar-se dela, Léa via avançar a mulher vestida com traje de viúva.

Laurent! - exclamou Léa.

O nome tão querido e odiado escapou-lhe da garganta num grito que assustou os pássaros pousados nas árvores. Ruth fitou-a sem entender.

A mulher vestida de preto, de rosto oculto pelo véu, encontrava-se agora bastante próxima delas.

- Laurent. . . - gemeu Léa, aconchegando-se à capa de lã.

A mulher ergueu o véu e, por detrás dele, surgiu o rosto desfeito de Camille. Estendeu os braços para a convalescente que, hirta, se deixou beijar.

- Minha querida, minha pobre querida!

- Laurent?.

- Como és generosa pensando nos outros! - disse Camille.

- Não. Laurent está bem. Encarregou-me de lhe dar um grande beijo e de lhe dizer que a nossa casa é sua.

Léa não compreendia. Depois da enorme angústia sentida, invadiu-a um louco contentamento. Beijou Camille com um sorriso radioso.

- Que susto me pregou! Então, por que o traje de luto? Por quê? Por quem?

- Mas, Léa. . . então não sabe?

- Mas o que eu deveria saber?

Camilie deixou-se cair no chão, escondendo o rosto nas mãos.

- Mas, afinal, o que há? O que você tem? Por que ficou nesse estado? Por que motivo Camille está de luto? - perguntou Léa, dirigindo-se a Ruth.

- O irmão dela morreu.

- O irmão! Mas que irmão? Oh! Você quer dizer...

Ruth afirmou com a cabeça.

- Claude?

"Assim não serei obrigada a dizer-lhe que não quero mais ouvir falar em casamento", pensou Léa instantaneamente, corando, confusa, ao tomar consciência de semelhante pensamento. A vergonha encheu-lhe os olhos de lágrimas, cuja natureza iludiu Camille.

Ah, minha pobre querida! - lastimou ela.

Léa restabeleceu-se a olhos vistos. Apesar do frio intenso que lhe corava as faces e o nariz, retomou, na companhia do pai, as cavalgadas pelas vinhas e pelos prados. A guerra parecia algo muito longínquo. A cor preta ficava-lhe bastante bem.

Para distrair a filha, Pierre Delmas convidou-a a acompanhá-lo a Paris, onde os negócios exigiam sua presença. Ficariam alojados em casa das tias de Isabelle, Lisa e Albertine de Montpleynet. Léa, entusiasmada, aceitou a proposta; em Paris, tornaria a ver Laurent, que acabava de ser transferido para o Ministério da Guerra.

 

Capítulo 8

Pai e filha chegaram a Paris no trem noturno, desembarcando numa plataforma tão pouco iluminada que mal se distinguiam os objetos. Fora da estação, a noite era escura. Os raros lampiões, de luz muito fraca, não conseguiam varar a escuridão. Depois de uma espera que lhes pareceu bastante longa, arranjaram um táxi de faróis também fracos, que os conduziu lentamente ao longo das plataformas.

Léa tinha a sensação de circular através de uma cidade fantasma, tão raros eram os veículos e os transeuntes. Algumas luzes azuladas acentuavam a irrealidade dos lugares.

- Olhe, Léa. . . Notre-Dame - indicou Pierre Delmas.

Mas Léa viu apenas um vulto um pouco mais sombrio do que o céu.

- A Place Saint-Michel - tornou o pai.

Era então esse o famoso Quartier Latin, tão alegre, tão animado! Viam-se somente alguns vultos de aspecto friorento, que pareciam evitar-se uns aos outros, caminhando a passo estudado. Como em resposta a seu pensamento, Pierre Delmas comentou:

- Como é triste tudo isto! Antigamente, a esta mesma hora. todos os cafés da praça e da avenida estavam abertos.

Perdidos em cogitações melancólicas, atingiram a Rue de l'Université sem trocarem mais palavras.

O acolhimento de Lisa e de Albertine contribuiu para restituir-lhes o sorriso. Esperava-os uma mesa bem-posta. A sala de jantar parecia ainda mais espaçosa devido ao papel panorâmico que cobria as paredes, representando uma cena de embarque para as ilhas. Quando pequena, sempre que visitava as tias, Léa fazia daquele aposento o seu universo. Corria para lá mal encontrava aberta a porta e esgueirava-se por sob a cobertura da mesa enorme. Desse abrigo, ficava contemplando os barcos, as grandes flores de tons violeta e o mar de um azul intenso. Quantas viagens não fizera na caravela mágica representada pela mesa e sua toalha de tecido verde-escuro, pesada e de longas franjas! As paredes falavam de uma vida aventurosa e colorida, a vida das lendas contadas pela mãe quando as filhas lhe pediam para falar da pátria longínqua, que desconheciam.

- Que bom, tia Albertine! Aqui nada mudou.

- E por que razão haveria de mudar, minha querida? Não basta que nós próprios nos modifiquemos?

- Mas, tia Albertine, a senhora não mudou! Sempre a conheci com o mesmo aspecto.

- O que significa que sempre me conheceu velha.

- Ah, não, tia Albertine! Nunca serão velhas, nem a tia Lisa nem a senhora.

Albertine beijou a sobrinha e fê-la sentar-se em seu lugar. Pierre Delmas instalou-se em frente à filha.

- Vocês devem estar com fome. Estelle preparou vitela recheada com cogumelos, como gosta, Pierre - esclareceu Albertine.

- Foi ela quem se lembrou de que você é um grande apreciador desse prato - interveio Lisa afetadamente.

- Sinto que aqui vou engordar. Depois, sua sobrinha vai me repreender.

- Ele não mudou. Sempre brincalhão! - exclamaram, rindo, as velhas senhoras.

Léa regalou-se com a refeição. Vendo-a comer com tamanho apetite, o pai não pôde impedir-se de evocar o infeliz Claude, noivo tão facilmente esquecido.

No quarto - o antigo quarto da mãe - Léa encontrou um magnífico ramo de rosas-chá acompanhado de um cartão. Maravilhada pela beleza das flores, apossou-se do retângulo de papel e leu: "Para a nova parisiense, com a ternura de Camilie e de Laurent".

A frase roubou-lhe o contentamento sentido momentos antes. Que tinha ela a ver com a ternura de Camille? Quanto à de

Laurent, associada à da mulher, bem podia ficar com ela! Rasgou o papel e deitou-se, mal-humorada.

No dia seguinte, Léa foi despertada por um aroma de chocolate e por um sol cintilante que a obrigou a esconder-se debaixo dos cobertores.

- Feche as cortinas!

- Fora da cama, sua preguiçosa! Ficar deitada num dia como este! Sabe que horas são?

Léa arriscou a ponta do nariz fora das cobertas.

- Não.

- São quase onze horas. Seu pai saiu há muito e Camille d'Argilat já telefonou duas vezes - disse Albertine, colocando a bandeja do café da manhã perto da cama.

- Mas que chata! - exclamou Léa, sentando-se para receber a bandeja que a tia lhe estendia.

- Por que você diz isso? É muita amabilidade da parte dela querer saber notícias suas.

Léa preferiu não responder e instalou-se confortavelmente.

- Como é boa, minha tia! Tudo de que eu gosto! - disse a jovem, enterrando os dentes num bolinho dourado e ainda morno.

- Aproveite agora, querida. Já anunciaram toda uma série de restrições. Hoje há bolos mas não haverá carne. Amanhã estarão fechadas as confeitarias e abertos os açougues. Teremos de nos habituar.

- Até que enfim acordada! - disse Lisa, enfiando a cabeça pela fresta da porta entreaberta. - Dormiu bem?

- Bom dia, tia. Dormi como uma pedra. O quarto está tão cheio da presença de mamãe que tenho a sensação de ela nunca ter saído daqui.

Depois de beijá-la, as duas senhoras deixaram a sobrinha.

Léa devorou ainda mais dois bolinhos e engoliu duas xícaras de chocolate. Saciada, afastou a bandeja e esticou-se de mãos cruzadas na nuca.

Através de uma das janelas entreabertas, penetrava no quarto a brisa que fazia oscilar suavemente as cortinas de tule. O sol primaveril parecia conferir vida às personagens da tela de Jouy e aos azuis desbotados das paredes do quarto.

Sem esforço, Léa fantasiou a mãe vivendo ali naquele quarto, um quarto doce e tranqüilo, bem à sua imagem. Em que pensaria a jovem Isabelie nas manhãs de primavera? Em amor, em casamento? Sentiria também ela a ânsia enorme de agarrar a vida com ambas as mãos, de apertar contra si um corpo apaixonado, de ser acariciada, de ser beijada? Não, não era possível. Tudo nela parecia tão distante disso!

Na casa, ao longe, soou a campainha do telefone. Segundos depois, houve uma ligeira pancada na porta.

- Entre - ordenou Léa.

A porta abriu-se e entrou no quarto uma mulher forte, de cerca de cinqüenta anos, vestindo uma bata de tom cinzento-pálido, coberta por um avental de brancura imaculada.

- Esteile! - exclamou Léa. - Que alegria em vê-la! Como vai?

- Vou bem, menina.

- Não faça tanta cerimônia, Esteile. Venha dar-me um beijo.

A cozinheira e criada de quarto das senhoras Montpleynet não se fez de rogada e depôs dois beijos nas faces daquela que tantas vezes segurara nos braços quando pequena.

- Minha pobre criança! Que infelicidade! O seu noivo.

- Cale-se! Não quero que se fale nele.

- Sim, claro. . . Perdoe-me, minha querida, sou tão desastrada!

- Não é, não.

- Ah, ia me esquecendo. . . a srta.. . . a sra. d'Argilat está ao telefone e quer falar-lhe. Já é a terceira vez que telefona.

- Eu sei - disse Léa em tom de aborrecimento. - O telefone ainda está na saleta? - prosseguiu, enquanto vestia o roupão de veludo grená, presente da mãe no Natal.

- Está, sim, menina.

Descalça, Léa percorreu o comprido corredor dos quartos e entrou na saleta, o lugar preferido das irmãs Montpleynet. Notou que haviam substituído o papel de parede. "Fizeram bem", observou. "Este é mais alegre."

Aproximou-se do aparador onde estava o fone, fora do gancho.

- Alô? Camilie?

- É você, Léa?

- Sim. Desculpe tê-la feito esperar.

- Não tem importância. minha querida. Fiquei tão contente com a sua vinda a Paris! Hoje está um dia tão bonito! Quer passear esta tarde?

- Se você quiser...

- Passo para pegá-la às duas horas. Pode ser?

- Muito bem.

- Então, até logo. Se soubesse como estou satisfeita por tornar a vê-la!

Léa desligou sem responder.

Sentadas num banco do jardim das Tuileries, as duas jovens de luto saboreavam a volta do sol após um inverno que cobrira o território francês com espessas camadas de neve durante semanas. A primavera chegara enfim, tudo a denunciava: a suavidade do ar, a luz mais leve cobrindo de um rosa desmaiado os edifícios da Rue de Rivoli e a fachada do Palácio do Louvre, os jardineiros que plantavam as primeiras tulipas nos canteiros margeados com buxo, o olhar dos homens para as pernas das mulheres, uma certa languidez de gestos, os gritos mais estridentes das crianças perseguindo-se à volta do lago e, sobretudo, o odor indefinível que pairava sobre a cidade naquela época do ano, capaz de perturbar até os mais sensatos.

Tal como Léa, também Camilie se entregava àquele bem-estar voluptuoso que lhe afastava do espírito o desgosto causado pela morte do irmão e o receio do prosseguimento da guerra, capaz de arrebatar-lhe o marido.

Uma bola saltou até junto dela, arrancando-a aos seus devaneios.

- Desculpe, minha senhora.

Camille sorriu para a criança loura postada à sua frente, apanhou a bola e estendeu-a.

- Muito obrigado, minha senhora.

Vendo-o afastar-se, ela suspirou com uma expressão enternecida. Como é engraçado! - comentou. - Olhe para ele, Léa.

Tem cabelos do mesmo tom dos de Laurent.

- Não acho - respondeu Léa secamente.

- Gostaria tanto de ter um filho como esse menino!

- Que idéia absurda! Arranjar um filho numa altura dessas! É preciso ser louco ou inconsciente.

A aspereza do tom fez crer a Camilie tê-la magoado ao evocar a ventura da maternidade perante quem acabara de perder o noivo.

- Desculpe. Sou de um egoísmo! Até parece que esqueci o pobre Claude. - embora... - embora sinta tanta saudade dele - disse Camille aos soluços, escondendo o rosto nas mãos.

Duas mulheres que passavam diminuíram o andar, fitando com piedade a silhueta delgada e vestida de negro, sacudida pelo pranto. As suas expressões elevaram ao auge a cólera de Léa.

- Pare de dar espetáculo! - exclamou.

Camilie pegou o lenço que a companheira lhe estendia.

- Desculpe, mas não tenho a sua coragem nem a sua dignidade.

Léa absteve-se de explicar que o seu comportamento nada tinha a ver com esses dois predicados. Para que transformar em inimiga a mulher daquele que amava e voltaria a ver nessa mesma noite?

Pois Camille a convidara para jantar.

- Venha, vamos embora. E se fôssemos tomar um chá? Conhece algum lugar não muito longe daqui?

- Boa idéia. O Ritz fica bem perto.

- Vamos - concordou Léa.

Deixaram as Tuileries, dirigindo-se à Place Vendôme.

- Será que não enxerga? - gritou Léa.

Teria sido derrubada por um indivíduo que saía correndo do famoso hotel, se duas mãos vigorosas não a sustivessem no último instante.

- Desculpe-me, minha senhora. Mas. . . não é a encantadora Léa Delmas? Apesar do disfarce, minha cara, tê-la-ia reconhecido entre mil. Conservo de você uma lembrança inesquecível.

- Importa-se de me largar? Está me machucando.

- Perdão. Não passo de um bruto - disse o homem, sorrindo.

Tirando o chapéu, François Tavernier inclinou-se perante Camilie.

- Bom dia, sra. d'Argilat. Lembra-se de mim?

- Bom dia, sr. Tavernier. Não esqueci nenhuma das pessoas presentes na festa do meu noivado.

- Sei que seu marido se encontra em Paris atualmente. Se não sou indiscreto, posso perguntar por quem é o luto?

- Por meu irmão.

- Sinto muito, sra. d'Argilat.

- E a mim, não me pergunta? - interveio Léa, furiosa por se ver excluída do diálogo.

- A você?! - respondeu François Tavernier em tom de brincadeira. - Suponho que se vestiu de preto apenas por coquetismo.

Talvez um dos seus apaixonados tenha dito que lhe ficava bem, realçando-lhe o tom da pele e dos cabelos.

- Ah, não fale assim, sr. Tavernier! - exclamou Camille.

- Meu irmão Claude estava noivo dela.

Se fosse mais observadora e estivesse menos encolerizada, Léa teria distinguido as sucessivas expressões que se estamparam no rosto de Tavernier: espanto, piedade, dúvida e, por fim, ironia.

- Peço perdão de joelhos, srta. Delmas. Desconhecia que se tivesse apaixonado pelo sr. d'Argilat e fossem casar-se. Apresentolhe os meus sentidos pêsames.

- A minha vida particular não lhe diz respeito. E não quero saber dos seus pêsames.

Camille interveio:

- Não a leve a mal, sr. Tavernier. Léa não sabe o que diz. A morte de meu irmão chocou-a muito. Gostavam demais um do outro.

- Não duvido - respondeu François Tavernier com uma piscadela de olho a Léa.

Era evidente que aquele grosseirão, aquele patife não esquecera a cena ocorrida em Roches-Blanches e tinha ainda o desplante de lhe dar a entender isso! Léa puxou Camille pelo braço.

- Estou cansada, Camille. Vamos voltar - disse.

- Não. Ainda não. Venha tomar um chá. Vai lhe fazer bem.

- A sra. d'Argilat tem razão. Recomendo-lhes o chá do Ritz. Os bolos são uma delícia - disse François Tavernier em tom de tal modo afetado e tão contrastante com o seu caráter, que Léa, apesar da raiva, quase desatou a rir. Não pôde impedir, no entanto que um breve sorriso lhe iluminasse a fisionomia carregada.

- Ah, assim é melhor! - exclamou ele. - Por um sorriso seu, infelizmente fugidio - precisou Tavernier perante o rosto de novo sombrio -, eu seria capaz de entregar a alma ao Diabo.

Nesse instante, aproximou-se do grupo um indivíduo em uniforme cinzento e boné na mão, que desde o início da conversa se mantivera a pequena distância, junto de um grande automóvel preto.

- Peço desculpa, sr. Tavernier, mas já está atrasado. O ministro o espera.

- Obrigado, Germain. Mas que pode um ministro contra uma mulher bonita? Que espere! Sou forçado a despedir-me, minhas senhoras. Permite-me que vá apresentar-lhe cumprimentos um dia desses, sra. d'Argilat?

- Terei muito gosto nisso, sr. Tavernier. Ficaremos encantados, meu marido e eu.

- Terei a felicidade de vê-la novamente, srta. Delmas?

- Muito me admiraria se isso acontecesse. Estarei poucos dias em Paris e bastante ocupada visitando amigos.

- Nesse caso, havemos de encontrar-nos, pois sinto muita amizade pela senhorita.

Cumprimentando-as uma vez mais, François Tavernier entrou no automóvel. O motorista fechou a porta, instalou-se ao volante e arrancou devagar.

- Vamos então tomar esse chá?

- Julguei que quisesse voltar para casa - admirou-se Camille d'Argilat.

- Mudei de idéia.

- Como você quiser, querida.

Na sua encantadora casa do Boulevard Raspail, onde belos móveis estilo Luís XV, misturados a peças de mobiliário modernas, conferiam ao conjunto um luxo refinado, Camille acabava de dispor flores no centro da mesa. Entregue ao tranqüilo prazer daqueles preparativos aos quais as recém-casadas costumam dedicar-se com orgulho de proprietárias, a jovem não deu pela entrada do marido. O beijo que ele lhe depôs no pescoço, acima do decote de renda preta do vestido de luto, arrancou-lhe um pequeno grito.

- Você me assustou - disse Camilie com ternura, virando-se para Laurent ainda com um ramalhete de prímulas na mão.

- Como foi a tarde na companhia de Léa?

- Foi boa. A pobrezinha ainda está sob o efeito do choque da morte de Claude. Tanto se mostra triste como alegre, abatida e enérgica, meiga e agressiva. Não sei o que fazer para agradar-lhe.

- Devia tê-la levado a lugares movimentados.

- Foi o que fiz. Tomamos chá no Ritz, onde encontramos François Tavernier.

- Não é de estranhar, ele mora no hotel.

- Mostrou-se encantador e muito humano comigo. Mas sua atitude com Léa foi bastante esquisita.

- Esquisita, como?

- Dir.se-ia ter procurado arreliá-la durante todo o tempo, fazê-la ficar fora de si, no que se saiu muito bem, aliás. Você, que o conhece um pouco, pode me dizer que tipo de homem ele é?

Laurent pensou antes de responder:

- É um tanto difícil de explicar. No ministério, certas pessoas acham-no um canalha sem escrúpulos, capaz de tudo para obter dinheiro; outras consideram-no o indivíduo que melhor sabe avaliar a situação. Ninguém duvida de sua coragem, atestada pelos ferimentos recebidos na Espanha, nem de sua inteligência e conhecimentos. Dizem também que tem inúmeras amantes e alguns amigos fiéis.

- Um retrato não muito convincente nem sedutor. E você, o que pensa dele?

- Na verdade, não tenho opinião formada. Simpatizo e antipatizo com ele ao mesmo tempo. Estamos de acordo em muitos pontos, sobretudo quanto à fraqueza do comando militar e quanto à imbecilidade desta situação de espera que vai degradando o moral das tropas. Também aprovo a terrível análise que Tavernier elaborou acerca da guerra russo-finlandesa, não obstante suas idéias cínicas. Mas mantenho certas reservas a seu respeito. Ele me seduz e logo depois me revolta. Parece não ter o mínimo senso ético ou, então, o esconde muito bem. Que mais posso dizer? Trata-se de uma personalidade complexa demais para ser analisada em poucas palavras.

- É a primeira vez que o vejo perplexo perante alguém.

- É verdade. Tavernier dispõe de um tipo de inteligência que não compreendo; algo me escapa. Temos a mesma educação, freqüentamos as mesmas escolas, somos do mesmo meio social, a nossa cultura e as nossas preferências literárias e musicais são idênticas. Viajamos, estudamos e refletimos juntos. Em mim, tudo isso resultou em indulgência pela humanidade, no desejo de combater pela preservação da liberdade; nele, transformou-se em dureza e em indiferença quanto ao futuro do mundo.

- Não creio que Tavernier seja duro ou indiferente.

Laurent encarou a mulher com ternura.

- Você é tão boa que não consegue ver o mal em ninguém.

Nesse instante, ouviu-se um toque de campainha.

- São os nossos convidados - observou Camille. - Recebaos. Vou à cozinha ver se tudo está em ordem.

"Que tédio, este jantar!", dizia Léa para si mesma. Nunca em toda a sua vida se aborrecera tanto! Como era possível suportar, por mais de cinco minutos, as tagarelices de Camilie e das senhoras de Montpleynet? A conversa delas resumia-se às dificuldades de abastecimento dos parisienses, à defesa passiva e à criadagem. Por felicidade, não havia crianças. Do contrário, seria um nunce mais acabar de considerações comparativas dos méritos do leite materno, concentrado ou em pó ou uma arenga infindável quanto às diversas maneiras de se enfaixar os bebês. Não muito a par desse gênero de assuntos, até mesmo o pai dera a sua opinião.

Quanto a Laurent, para ele o casamento não se mostrara generoso. Engordara, como é óbvio, perdera cabelo, os dentes pareciam mais escuros, o olhar estava apagado. Com um "extintor" como aquela mulher, não era de admirar! Apesar dessa imagem deteriorada, toda a vida se interrompera em Léa no instante de transpor o limiar da porta. Como Laurent era belo, delgado e naturalmente elegante! De olhos brilhantes, contemplava-a com uma admiração impossível de dissimular. E quando a tomara nos braços, apertando-a por mais tempo do que mandavam as regras, os lábios sobre os seus cabelos, sobre as faces. . . Que dissera ele então? Que era sua irmã. . . Onde arranjara tão ridícula noção? Irmã dele! E que mais lhe murmurara ao ouvido? Claude teria gostado que assim fosse. Que saberia Laurent dos desejos de um morto? E ela? Não teria também uma palavra a dizer?

"Esta casa é sua." Fora grande amabilidade da parte de Laurent dizer-lhe aquilo; mas que não insistisse, senão poderia tomar suas palavras ao pé da letra. A única coisa que desejava dele era sentir os seus lábios nos dela. Mas se contentara em responder;

- Obrigada, Laurent.

Imaginara aquele reencontro como um momento de felicidade; mas tudo se transformou em aborrecimento, um aborrecimento que a tornava injusta para com o rapaz.

Duas semanas decorreram, durante as quais Léa viu Laurent quase todos os dias. Nunca a sós, porém, infelizmente. Suportara a presença de Camille por aqueles escassos instantes junto dele, de uma Camilie cuja afabilidade a tornava cada vez mais odiosa.

Nos raros momentos de lucidez e de bom humor, Léa concordava em que Camille era menos entediante que a maioria das mulheres, sabendo dissertar sobre todos os assuntos sem mostrar-se pedante, e fazendo o impossível para distraí-la. Tão impregnada de convencionalismos, não concordara em acompanhá-la ao cinema e ao teatro, apesar do luto? Léa revia Camilie retirando do chapéu o véu de luto e dobrando-o com uma lentidão que, melhor do que palavras, lhe traía o desgosto sentido.

Fizera-o apenas para agradá-la quando havia declarado peremptoriamente estar farta de sair com uma viúva, fato que a deprimia e deixava doente.

Certa manhã, Pierre Delmas entrou no quarto da filha quando ela tomava o café na cama.

- Bom dia, querida. Está contente com a temporada em Paris?

- Sim, papai, embora ainda não tenha me divertido.

- O que você entende por divertimento? Saiu todos os dias, visitou museus, lojas, andou de barco no Bois de Boulogne... O que mais quer?

- Queria dançar, ir a cabarés, ao Folies-Bergêre. . . Divertir-me, enfim.

- Tem idéia do que diz? O seu noivo morreu há quatro meses apenas e você só pensa em dançar! Será que não tem coração?

- criticou-a o pai.

- Não sou culpada por ele ter morrido.

- Você está passando dos limites, Léa. Nunca acreditei que estivesse apaixonada pelo pobre Claude, mas, assim mesmo, você me decepciona muito.

O tom de desprezo de Pierre Delmas atingiu Léa como uma bofetada. Sentiu-se de súbito tão infeliz, incompreendida e devassada que começou a chorar.

O pai conseguia suportar tudo, menos as lágrimas da filha preferida.

- Não é nada, minha querida, nada de grave - consolou-a.

- Eu compreendo, é duro privá-la dos prazeres próprios da sua idade. Vamos voltar para casa, encontrar sua mãe, retomar os nossos passeios.

- Não quero voltar para Montillac!

- Mas por quê? Por quê, se você se aborrece em Paris?

Léa não respondeu.

- Vamos, responda, querida - insistiu Pierre Delmas.

Léa ergueu para o pai o rosto banhado em lágrimas, sabendo perfeitamente que, ao vê-la assim, ele acabaria por concordar com os seus desejos.

- Gostaria de matricular-me na Sorbonne, no curso de literatura - disse ela num murmúrio.

Pierre Delmas fitou-a com espanto.

- Que idéia absurda! - exclamou. - Em outra época, não digo que não. Esqueceu que estamos em guerra?

- Não é uma idéia absurda, papai - discordou Léa. - Camilie e várias amigas dela freqüentam a universidade. Quanto à guerra, ainda não chegou aqui. Diga que sim, paizinho, eu lhe imploro!

- Terei de falar no assunto com sua mãe e perguntar às suas tias se estão de acordo em alojá-la - disse Pierre Delmas, procurando afastar a filha, que o sufocava com beijos.

- Telefone a mamãe. Eu me encarrego das tias - sugeriu a jovem, pulando da cama. - Aliás - acrescentou -, Camilie convidou-me para ficar em sua casa se surgissem problemas quanto ao alojamento.

- Já vejo que estou diante de um verdadeiro complô - gracejou o pai. - Aonde vai hoje?

- Ainda não sei. Camille ficou de telefonar. E você, o que vai fazer?

- Tenho um encontro e um almoço de negócios.

- Não esqueça que à noite jantaremos em casa de Laurent

- recomendou Léa. - Ele quer apresentar-nos alguns dos seus amigos.

- Não esquecerei. Então, até logo à noite.

- Até logo, papai. E não se esqueça também de telefonar para mamãe.

Quando a porta se fechou, Léa pôs-se a dançar pelo quarto, segura de conseguir do pai o que queria. Passaria ao ataque nesse mesmo dia. Na véspera, dissera a Camille que iria dar algumas voltas sozinha e comunicara às tias que almoçaria com Camilie.

Como era bom ser livre, ter um dia por sua conta! E que sorte, a manhã estava tão bonita! Estrearia o tailleur comprado às escondidas numa loja do Faubourg Saint-Horioré. Comprara também chapéu, carteira, sapatos e luvas, tendo gastado todo o seu dinheiro. Cantarolando, dirigiu-se ao banheiro. Quando saiu, envolta no amplo roupão branco cheirando a Après l'Ondée,

Albertine, ao passar pela sobrinha, perguntou-lhe se entornara o frasco de perfume.

Eram quase onze horas. Teria de se apressar caso quisesse chegar ao meio-dia ao Ministério da Guerra. Vestiu-se rapidamente.

Estremeceu, excitada, ao sentir no corpo o contato da blusa cor-de- rosa pálida, que lhe conferia um tom mais luminoso ao rosto. Ficava-lhe muitíssimo bem a saia de crepe preto e pesado e o casaco realçava-lhe a silhueta esguia. Sobre os cabelos erguidos prendeu um desses charmosos chapéus que só se encontram em Paris, com o formato de um pandeirinho de palha negra, discretamente enfeitado por um véu e pequenas flores. Sandálias de saltos altos, luvas da mais fina pelica e bolsa combinando com o chapéu completavam o conjunto um pouco severo, severidade que não a envelhecia, porém, não obstante o seu desejo de parecer mais mulher. Deu uma última olhadela ao espelho, verificando o alinhamento da costura das meias e o aspecto geral. A imagem agradou-lhe de tal modo, que sorriu de contentamento.

Agora, deveria sair sem que as tias e Estelle a vissem; não deixariam de se espantar perante uma noiva de luto que usava peças de vestuário cor-de-rosa e flores no chapéu.

O portão fechou-se atrás de Léa, que se encontrou no passeio da Rue de l'Université. Deixou escapar um suspiro de alívio.

Arrepiada dirigiu-se para Saint-Germain, em busca de um táxi. Que frio! Surgira apenas uma nesga de sol e logo o inverno regressara. Felizmente o governo autorizara que os aquecimentos funcionassem até 15 de abril.

Seguida pelos olhares de admiração dos homens e, por vezes, pelas olhadelas invejosas das mulheres, Léa viu-se obrigada a caminhar até Saint-Germain-des-Prés para obter condução. Na praça de táxis, os motoristas aqueciam-se ao sol, encostados aos carros, fumando e batendo com os pés gelados no chão. Léa entrou no primeiro automóvel da fila. Um homem ainda novo, com um incrível boné xadrez, veio instalar-se ao volante.

- Aonde quer que a leve, bela primavera negra? - perguntou o motorista.

- Ao Ministério da Guerra, por favor.

- Muito bem. Para o Ministério da Guerra!

Léa avizinhou-se da sentinela.

- Gostaria de falar com o tenente d'Argilat - disse a moça.

- Tem encontro marcado?

- Sim - gaguejou Léa, impressionada pelo ambiente; tal como acontecia nos átrios das estações de trem, também ali se verificava grande movimento de soldados e de oficiais de todas as armas.

- O que faz aqui, Léa?

- Esta menina diz que tem encontro marcado com o senhor.

Laurent ergueu as sobrancelhas, mas, perante o ar contrito de Léa, asseverou:

- É verdade. Mas o que houve? Algo de grave?

- Não. Tive vontade de ver você, só isso - respondeu a jovem, lançando-lhe um olhar de soslaio. - E também de almoçar com você - acrescentou rapidamente.

- Excelente idéia! Por acaso, estou livre. Venha ao meu gabinente. Telefonarei a Camille, convidando-a para juntar-se a nós.

- Ah, não! - gritou Léa.

Perante a expressão surpresa de Laurent, a moça prosseguiu em tom mais brando:

- Camille não poderá vir almoçar hoje. Tem de fazer compras para logo à noite.

- Ah, é verdade! Tinha-me esquecido das visitas. Onde quer comer?

- Em qualquer lugar elegante.

- Está bem - anuiu Laurent, rindo. - O que me diz do Maxim's?

- Magnífico!

Um motorista do ministério deixou-os na Rue Royalle. Albert, o rnaitre, acolheu-os com a habitual cortesia.

- A mesa do sr. d'Argilat!

Diversas cabeças se ergueram à entrada de Léa, cujo coração batia com força sob a blusa cor-de-rosa. Já instalada à mesa, a jovem olhou em volta sem procurar disfarçar a curiosidade e o prazer de almoçar no mais famoso restaurante do mundo.

Pareceu-lhe que nunca mais esqueceria o ambiente: as flores dispostas em vasos de prata, as porcelanas e os cristais, o serviço silencioso e rápido dos garçons, os espelhos refletindo até o infinito a claridade rosada dos abajures, as jóias e os chapéus das mulheres, a renda das cortinas, o vermelho do veludo sobre as madeiras escuras. . . Tudo ali recendia luxo. A guerra ficava bem distante.

- Aquele ali parece Maurice Chevalier - disse Léa ao ouvido de Laurent.

- Parece e é. E além, ao fundo, está Sacha Guitry. Na mesa ao lado, a bela Mary Marquet.

Um dos garçons trouxe os cardápios.

- Que quer comer?

- Tanto faz. Estou certa de que todos os pratos são bons. Escolha por mim.

Feito o pedido, veio o garçom encarregado das bebidas.

- Que deseja beber, senhor?

- Champanha! - exclamou Léa.

- Ouviu? A senhora deseja champanha.

Logo chegou o vinho.

- Brindemos a nós mesmos - sugeriu Léa, erguendo a taça.

- A nós e àqueles que amamos - emendou Laurent.

Fitando-se, beberam em silêncio.

Léa desabrochava sob o olhar do homem amado. O picotado do véu conferia uma ponta de mistério às faces frescas e tornava mais sensuais os lábios úmidos. Como uma carícia, a jovem sentia pousados em si os olhos do companheiro. Mostrando-se deliberada- mente coquete, ergueu o véu devagar.

- Como você é bonita! - exclamou Laurent.

À frase comovida, Léa respondeu com um riso gutural. O rapaz crispou as mãos na toalha branca, e Léa estremeceu, como se os dedos dele tivessem penetrado em sua carne. Teve então um gesto que remontava à infância mas que, na atual circunstância, parecia uma provocação inconcebível: com o polegar e o indicador, torceu o lábio inferior.

- Não faça isso! - censurou Laurent.

Ela interrompeu o gesto e esboçou um trejeito fingido de espanto. Laurent evitou as explicações com a chegada dos pratos, sobre os quais a moça se lançou, gulosa e faminta. Com algumas garfadas, fez desaparecer o salmão defumado.

Delicioso! - comentou.

Depois, imediatamente prosseguiu:

- Acha que logo haverá o recrudescimento da guerra?

Laurent esperava tão pouco semelhante pergunta que quase derrubou o copo.

- Acho que sim. Vou reunir-me ao meu regimento.

De olhos subitamente dilatados, as batidas do coração suspensas, Léa inquiriu:

- Quando?

- Depois de amanhã.

- E onde?

- Perto do Sedan.

- Há quanto tempo sabe disso?

- Há três dias.

- Disse a Camilie?

Ainda não tive coragem.

Léa mal tocou no prato seguinte, mas bebeu diversas taças de champanha. E a imagem de Laurent morto ou ferido foi-se distanciando pouco a pouco. Coloria-lhe as idéias a euforia nascida do álcool.

- Falemos de outras coisas, está bem? - propôs, pousando a mão na do companheiro.

- Tem razão. Para que entristecer os últimos instantes de felicidade e de paz? Guardarei de você, mesmo nos piores momentos, a imagem de uma bela dama de negro e cor-de-rosa.

Com o queixo apoiado à palma da mão, pálpebras semicerradas, Léa inclinou-se para Laurent, dizendo:

- Como vê, você me ama.

Duas rosetas juvenis inflamaram o rosto do rapaz.

- Eu sinto que é assim, não negue - prosseguiu ela. - Não, cale-se. Deixe-me falar. Você só diria tolices. Amo-o, Laurent. Amo-o ainda mais do que naquele dia em que lhe disse isso. Fiquei noiva de Claude apenas para vingar-me, para lhe causar desgosto.

Felizmente ele está. . . não, não é isso que queria dizer. Queria dizer que continuo livre.

- Está se esquecendo de que eu não.

- E verdade. Mas me ama assim mesmo.

- Não é verdade. Mas, mesmo que fosse, acha-me assim tão covarde a ponto de abandonar Camille? Sobretudo...

- Sobretudo?

- Ah, mas é o d'Argilat!

- Olá, Tavernier! Como vai?

"De uma elegância insuportável. Um verdadeiro novo rico", disse Léa para si mesma com a maior má fé, perante aquela figura alta e muito distinta num terno cinza-escuro de corte impecável.

- Infelizmente, não tão bem quanto você - replicou Tavernier. - Encantado por tornar a vê-la, srta. Delmas.

Léa inclinou a cabeça num aceno agastado que fez o importuno sorrir.

- Vejo que não se passa o mesmo com você. Permita-me que me retire. Falaremos com mais tempo logo à noite.

Tavernier afastou-se fazendo um gesto de despedida e cumprimentando duas ou três pessoas aqui e acolá, antes de deixar a sala.

- Não é possível que nos encontremos logo à noite. Devo ter ouvido mal. Não o convidou, não?

- Convidei, sim. Por diversas vezes ele manifestou o desejo de cumprimentar Camille.

- Então ela vai ficar bastante satisfeita esta noite.

- Você é injusta, Léa. Tavernier sabe ser bastante divertido e encantador.

- Muito me admiraria. Não passa de um grosseirão. Já estou farta de estar aqui. Vamos embora.

Na rua, o tempo se modificara. O sol desaparecera, dando lugar a um dia desagradável.

- Acho que vai nevar - observou Laurent, encaminhando-se para o automóvel do ministério, que acabara de parar junto ao passeio.

- Vamos voltar. Estou com frio - disse Léa.

- Não me surpreende. Você não está suficientemente agasalhada. Entre logo no carro.

Uma vez instalado, Laurent cobriu-a com o seu impermeável e rodeou-lhe os ombros com o braço. Rodaram durante algum tempo sem dizer nada.

- Para a Rue de l'Université - ordenou o rapaz ao motorista.

- Aperte-me contra você. Fico mais quentinha - disse Léa, apoiando a cabeça no ombro de Laurent.

De olhos fechados, a jovem sentia a perturbação do companheiro, uma perturbação idêntica à sua. Ao fim de um instante, não se conteve mais.

- Beije-me, Laurent - pediu.

O rapaz tentou ignorar os lábios que se lhe ofereciam. Mas, lenta e firmemente, Léa o atraiu para si e ele deixou de resistir.

Esquecido de Camille e da presença do motorista, colou a boca à dela e o tempo parou. Quando conseguiu libertar-se, o veículo rodava devagar pela Rue de l'Université.

- Em que número deverei parar, tenente? - inquiriu o motorista em voz baixa e embaraçada.

- Aqui. Pare aqui.

- Muito bem, tenente.

Léa fitava-o em silêncio com expressão de triunfo. "Parece um animal", pensou Laurent, tentando assumir uma atitude indiferente e alisando o cabelo com os dedos. O automóvel parou. Sem aguardar que o motorista lhe abrisse a porta, Léa saiu do carro de chapéu na mão. Laurent acompanhou-a à porta.

Desculpe o que se passou há momentos - disse ele.

- Por que pedir desculpa? Não foi bom? Não faça essa cara. Não é nenhuma catástrofe estar apaixonado. Até logo à noite, meu amor.

O tenente d'Argilat permaneceu por instantes imóvel em frente à porta que acabava de se fechar.

Embora o pai insistisse com Léa para que se aprontasse a tempo, chegaram com vinte minutos de atraso à recepção oferecida em sua homenagem por Laurent e Camille. Léa estreou nessa noite um vestido comprido de cetim preto, comprado no início da estada em Paris. Quando Pierre Delmas viu a filha assim trajada, com o corpo como que moldado por uma dupla pele brilhante, os ombros e os braços parecendo mais nus ainda ao emergirem do negro tecido que lhe realçava a brancura, exclamou:

Mas você não pode sair com essa roupa!

- Ora, papai, é a moda! Todas as mulheres usam.

- Talvez sim. Mas não é próprio para uma garota. Vá tirá-lo.

O olhar de Léa tornou-se sombrio, os lábios descaíram.

- Não tenho outro vestido, papai - afirmou. - Vou com este ou então não vou.

Conhecedor do gênio da filha, Pierre Delmas sabia que nada a demoveria de tal propósito.

- Ponha ao menos um xale - disse ele, capitulando.

- Tenho algo melhor do que isso. Olhe o que a tia Albertine me emprestou: a capa de raposa preta.

Um par de brincos compridos de diamante, pedidos emprestados a Lisa, completavam o traje de Léa, dando-lhe uma aparência ainda mais frágil com os cabelos presos no alto da cabeça.

Uma camareira encaminhou-os para o vestiário, já atulhado de agasalhos. Sob o olhar sombrio do pai, a filha desvencilhou-se da pele de raposa preta. Todos os rostos voltaram-se para Léa, quando, pelo braço de Pierre Delmas, entrou na sala com passos desenvoltos, segurando a bolsa bordada de pérolas brancas e pretas.

- Como está bonita, Léa! - exclamou Camille, que usava um comprido e singelo vestido de luto de saia franzida, meia manga e um recatado corpete branco, fechado por um camafeu. - Tenho uma surpresa para você. Veja quem está ali!

- Raul! Jean!

Léa, de novo criança, precipitou-se para os braços dos irmãos Lefèvre, ambos uniformizados.

- Que alegria! Que fazem vocês em Paris?

- Estamos de licença - esclareceu Raul.

- Temos de voltar para a frente de combate - precisou Jean.

- Mas, como o trem só parte amanhã de manhã, viemos ver Laurent e Camilie, que nos convidaram para esta noite.

- Preparávamo-nos para visitá-la, quando Camilie contou que você também viria e que gostaria de lhe fazer uma surpresa.

- Que idéia excelente! - exclamou Léa com um sorriso radiante dirigido a Camille.

- Venha. Deixe-me apresentá-la aos nossos amigos.

Léa cumprimentou um general, um coronel, um professor, um escritor famoso, um pintor também conhecido, uma mulher bonita, duas senhoras e. . . François Tavernier.

- O senhor outra vez!

- Que amável acolhida de sua parte! Reconheço nela seu temperamento encantador.

Léa voltou-lhe as costas malcriadamente

- O traseiro combina com a frente.

A moça virou-se de repente, exclamando:

- Pare com as suas grosserias!

- Quando uma mulher usa determinado gênero de vestidos, minha querida, é porque deseja que os homens notem algo além da cor do tecido. Não acha? Pergunte ao nosso querido Laurent d'Argilat.

- O que queriam perguntar-me? - interrogou Laurent, parando junto deles.

- A srta. Delmas está indecisa, não sabe se o vestido lhe fica bem e se lhe agrada.

- Agrada... agrada muito - gaguejou Laurent. - Desculpem, mas creio que Camilie precisa de mim - acrescentou ele, afastando-se.

- Seu pulha! - disse Léa, dirigindo-se a Tavernier, que desatou a rir.

Aproximou-se de ambos um general.

- Então, Tavernier, conseguiu? - perguntou o recém chegado.

- Ainda não, meu general.

Léa encaminhou-se para o bufê, onde Raul e Jean Lafèvre discutiam acaloradamente com Pierre Delmas.

- Falávamos da terrinha - elucidou Raul. - Quando regressam?

- Acho que ficarei por aqui mais algum tempo. Tenciono seguir um curso na Sorbonne. Telefonou para mamãe, papai?

- Telefonei.

- E ela concordou?

- Quanto à Sorbonne, acha que o ano escolar já está muito adiantado. No entanto, você poderá ficar mais uns quinze dias, se as suas tias estiverem de acordo.

- Claro que estarão! Obrigada, papai. Você também fica?

- Não posso. Volto dentro de dois dias.

Raul ofereceu uma taça de champanha à amiga e afastou-se um pouco com ela.

- Não deveria ficar - aconselhou. - Pode tornar-se perigoso com o prosseguimento da guerra.

- Então imagina os alemães em Paris? Você?! Os franceses irão detê-los. Não são em maior número?

- Isso nada significa. Os alemães estão mais bem preparados, têm armamento mais adequado e a força aérea deles também é superior.

- Talvez sim. Mas vocês são mais corajosos.

- Ora, o que pode a coragem face aos carros de combate?

- contrapôs o jovem, abanando a cabeça.

- Estou tão contente por vê-lo, Raul! Não me estrague a noite, está bem?

- Tem razão. Brindemos à vitória e a você, que é tão bonita!

Léa e os dois irmãos encaminharam-se para a pequena sala separada do salão por uma porta de batente duplo onde se encontravam os convidados. As paredes estavam repletas de livros. O fogo crepitava na lareira de mármore branco. No friso da chaminé, um bronze magnífico representava um cavalo e seu respectivo cavaleiro atacados por lobos. Léa foi ocupar um dos dois sofás colocados em frente da lareira e os dois rapazes instalaram-se a seus pés.

Em silêncio, os três jovens fitavam as chamas sem as ver, deliciosamente entorpecidos pelo calor e embalados pelos estalidos da lenha. Apoiado na porta, François Tavernier, com uma taça de champanha na mão, observava-os há já algum tempo. Sentia pelos dois irmãos uma instintiva simpatia. Eram evidentes neles, de maneira bem natural, as qualidades de coração e de coragem.

Divertia-o o fato de vê-los tão apaixonados pela amiga, e perguntava-se o que aconteceria se, por capricho, ela desse a sua preferência amorosa a um deles em detrimento do outro.

Léa agitou-se no assento e estirou-se com uma espécie de gemido de contentamento. Seus braços, ombros e rosto, sob a luz das chamas, cercavam-se de uma claridade dourada. Sobre a fonte luminosa, recortava-se a linha pura do perfil, deixando o rosto na sombra. Depois, a jovem inclinou a cabeça, deixando ver a nuca feita para ser beijada e mordida.

Françoes Tavernier levou a taça de champanha aos lábios com tanta precipitação que entornou um pouco do líquido sobre o snzoking impecável. Queria aquela jovem. Não se recordava de alguma vez ter desejado uma mulher com tanta violência. Que teria ela mais que as outras? Era bonita, é certo, muito bonita mesmo, mas não passava de uma criança, de uma menina. E ele detestava mocinhas, sempre tão estupidamente sentimentais, choramingando infalivelmente a perda da própria virgindade.

Aquela, no entanto, adivinhava-a de têmpera diferente. Tinha ainda nos ouvidos o tom em que Léa declarara o seu amor ao idiota do D'Argilat. Se tal declaração fosse feita a ele, tê-la-ia derrubado num canapé ou arrastado para um celeiro. E ela gostaria, estava certo disso, O feno áspero na sua pele de ruiva. . - Sentiu certa excitação. Léa iria lhe pertencer um dia!

Virando-se para a porta nesse instante, a jovem surpreendeu o olhar ardente pousado nela e não se iludiu quanto à sua natureza.

Gostava de sentir os olhares dos homens, olhares iguais àquele, presos nela violentamente e sem ambigüidade. Embora detestasse o indivíduo que a contemplava, experimentou um súbito arrepio de prazer, que a obrigou a apertar as pernas. O breve movimento não escapou à observação de François Tavernier, que sorriu com uma satisfação de macho. Aquele sorriso irritou

Léa; desconhecia que ocultava uma emoção mais profunda.

- Que faz plantado aí? - inquiriu.

- Estou olhando para você.

A intensidade posta na resposta contribuiu para agastar Léa ainda mais. Ergueu-se com estudada lentidão.

- Vêem? - perguntou aos irmãos Lefèvre. - Nem mesmo aqui se pode ficar em paz.

Sem esperar por eles, encaminhou-se para o salão. Ao passar junto de Tavernier, este a deteve, segurando-a pelo braço, e proferiu em voz tensa:

- Não gosto que me tratem desse modo.

- Terá de se acostumar se acaso, por infelicidade, nos virmos de novo. Largue-me!

- Antes de ir-me embora, deixe que lhe dê um conselho... sim, eu sei, não está interessada nos meus conselhos. Não fique em

Paris. Vai tornar-se perigoso.

- Engana-se. Por certo não há perigo, já que o senhor está aqui e não na frente de combate, onde estão todos os homens dignos desse nome.

François Tavernier empalideceu sob o insulto, suas rugas se acentuaram e no olhar apareceu um brilho maldoso.

- Se você não fosse apenas uma criança, metia-lhe a mão na cara.

- Claro que as mulheres são os únicos adversários à sua altura! Deixe-me! Está me machucando.

Sem motivo aparente, Tavernier soltou uma gargalhada estrondosa que dominou o ruído das conversas. Depois largou o braço onde os dedos haviam deixado marcas vermelhas.

- Tem razão. Só as mulheres são adversários à minha altura, e devo reconhecer que nem sempre ganho.

Admiro-me de que alguma vez isso tenha acontecido.

- Um dia verá.

- Já vi tudo, sr. Tavernier.

Afastando-se, Léa foi reunir-se a Camille, que tagarelava com uma mulher bonita.

- Tenho a impressão de que a nossa jovem amiga teve de ajustar algumas contas com François Tavernier - observou a desconhecida.

Léa fitou-a com o olhar altivo que dirigia às pessoas, por vezes, quando estas se mostravam indiscretas, hábito que a mãe, em vão, procurara fazê-la perder.

- Não sei a que se refere - disse Léa.

- A sra. Mulstein, que o conhece bem, falava do sr. Tavernier nos termos mais elogiosos - interveio Camille precipitadamente.

Léa não r espondeu, aguardando o prosseguimento da conversa com uma indiferença onde se notavam apenas ligeiros vislumbres de delicadeza.

- Meu pai e meu marido estimam-no muito. É a única pessoa que me tem ajudado a obter as autorizações para deixarem a

Alemanha.

- Mas por que motivo querem eles sair da Alemanha? - perguntou Léa, intrigada, quase sem querer.

- Porque são judeus.

- Mas que tem isso?

Sarah Mulstein observou aquela moça ao mesmo tempo provocante e infantil, metida no seu vestido de cetim preto, colado ao corpo, e reviu-se, alguns anos atrás, entrando num cabaré elegante de Berlim pelo braço do pai e do jovem marido.

Também estreava um vestido de cetim, mas de cor branca. O gerente precipitou-se para eles ao reconhecer o pai, Israel Lazare, maestro mundialmente conhecido, oferecendo-lhes a melhor mesa da sala. Seguiam atrás dele quando um homem alto e loiro, de rosto congestionado, em uniforme das ss, lhes barrou a passagem, com um copo de conhaque na mão, interpelando o pai:

É Israel Lazare?

O pai parou, sorrindo, e inclinou-se num cumprimento. O outro gritou, porém:

- Você é um judeu!

Na ampla sala onde predominavam os vermelhos e os negros, suspenderam-se as conversas; apenas o piano continuava a tocar, sublinhando a pausa carregada de tensão, O gerente tentou interpor-se, mas o oficial repeliu-o tão violentamente com as costas da mão que ele caiu, chocando-se com um garçom. Algumas mulheres gritaram. O alemão agarrou então Israel Lazare pelas abas do smoking, atirando-lhe à cara o seu ódio aos judeus. O marido de Sarah interveio, mas foi derrubado com um soco.

- Não sabem que neste país não gostamos de judeus? Que eles são considerados menos que cães? E que um judeu só é bom quando está morto?

O piano silenciou. Tudo girou ao redor de Sarah. Admirou-se por experimentar mais surpresa do que medo e por notar alguns pormenores absolutamente alheios ao que se passava: o vestido que ficava tão bem na mulher alta e loura, o colar de pérolas da senhora de cabelos grisalhos, as dançarinas aglomeradas junto da cortina vermelha, mulheres de belas pernas.

- Papai! -. ouviu-se gritar.

Depois, foi rodeada pelos soldados da escolta do oficial. "Para uma judia, não é nada má", comentavam. Um dos homens estendeu a mão para o vestido branco. Como num pesadelo, ela ouviu o tecido rasgar-se. Recobrando os sentidos, o marido precipitou-se para ela, mas uma garrafa o deteve, esmigalhando-lhe o crânio. Tombou no chão devagar, com o rosto subitamente coberto de sangue.

Gotas vermelhas surgiram no vestido branco. Incrédula, Sarah inclinou-se sem procurar esconder os seios descobertos e maculados. Olhou as mãos numa atitude estranha. Depois, deixou escapar um grito.

- Cale a boca, judia nojenta!

O conteúdo do copo de conhaque interrompeu-lhe o grito, queimando-lhe os olhos e as narinas. O cheiro do álcool provocoulhe náuseas. Dobrou-se sobre si mesma e vomitou em profundos espasmos. Não percebeu o golpe que ia receber; a ponta da bota atingiu-a em pleno ventre, projetando-a contra uma das colunas.

- Essa porca, vomitando em cima de mim!

Tudo se tornou confuso a partir desse instante: o marido estendido no meio do sangue, ela no próprio vômito, o pai sendo arrastado pelos cabelos compridos e brancos que se tingiam de vermelho, os gritos, os apitos, as sirenes. E, depois, as últimas palavras que ouviu quando as portas da ambulância se fechavam sobre ela:

- Não é nada. São judeus.

- Que tem isso? - repetiu Léa.

- Tem que os atiram em campos de concentração, torturam- nos e matam-nos - replicou Sarah Muistein em voz suave.

Léa fitou-a, incrédula. Os olhos sombrios da interlocutora falavam a verdade.

- Perdoe-me. Não sabia.

 

Capítulo 9

No dia seguinte, Léa foi despertada pelo telefonema de Laurent, convidando-a para almoçar no Closerie des Luas. Não duvidou que antes de o dia terminar ele seria seu amante. Vestiu-se com esmero, escolhendo uma roupa íntima de cor salmão, enfeitada com renda creme. Como estava frio, pôs um vestido solto de lã preta, debruado de piquê branco no decote, o que lhe conferia um ar de colegial. Escovou os cabelos, deixando-os soltos e caídos sobre os ombros, e achou que a auréola dourada da cabeleira contrastava harmoniosamente com o traje severo. Vestiu o casaco de tecido preto confeccionado pela costureira de Langon;

depois de várias tentativas, decidiu não usar chapéu.

Como tinha tempo, subiu a pé o Boulevard Saint-Michel. A caminhada deu-lhe ao rosto maior beleza, e, de faces cintilantes, ela entrou no Closerie des LUas.

O local agradou-lhe de imediato, com o seu sóbrio madeiramento, os bancos forrados de veludo e o empregado do bar agitando com classe um misturador brilhante. Deixou o casaco aos cuidados da encarregada do vestiário. Laurent esperava-a no bar, lendo o Le Figa,-o com ar preocupado. Não deu pela presença de Léa quando esta se sentou à sua frente.

- As notícias não são boas?

- Ah, desculpe, Léa! - disse Laurent, fazendo menção de erguer-se.

- Não se levante. Bom dia. Que alegria em vê-lo!

- Bom dia. Quer beber alguma coisa?

- O mesmo que você.

- Um vinho do Porto, por favor - encomendou o rapaz. Léa o fitava com olhar ardente, antecipadamente submissa aos seus desejos.

- A mesa está pronta, sr. d'Argilat - comunicou o maítre, que se aproximara. - Desejam sentar-se?

- Sim. Estaremos mais à vontade do que aqui. Levem a bebida da senhora.

Mal se instalaram, surgiu um criado com o vinho encomendado e o maítre apresentou-lhes o cardápio.

- Hoje não temos carne nem massas - comunicou ele com ar tão contrito que Léa quase rompeu em gargalhadas. - Mas os peixes estão excelentes.

- Perfeito. Quer ostras para começar? - sugeriu Laurent.

- São as últimas, e aqui estão sempre ótimas.

- Está bem - anuiu Léa, levando aos lábios o copo de vinho do Porto.

Por sugestão do encarregado das bebidas, Laurent optou por um Meursault com uma indiferença pouco comum para um vinicultor.

"Ele está com um aspecto tão cansado e inquieto!", disse Léa para si. Depois perguntou:

- Qual é o problema?

Laurent fitou-a como se pretendesse imprimir na memória os menores traços de seu rosto, que irradiava beleza perante os seus olhos perscrutadores.

- Você é linda.., e também muito forte - murmurou. As sobrancelhas de Léa ergueram-se numa expressão interrogativa.

- Sim, forte - prosseguiu ele. - Vai até onde os seus desejos a impelem sem questionar. É como um bicho, sem o mínimo senso moral, sem preocupação com as conseqüências, nem para você nem para os outros.

Aonde ele queria chegar? Era preferível dizer-lhe que a amava em vez de perder-se em especulações filosóficas.

- Mas eu não sou como você - retomou Laurent. - Convidei-a para lhe dizer três coisas e fazer um pedido.

Chegaram o vinho e as ostras. O amor não fazia Léa perder o apetite, e ela atacou o marisco com gulodice. De olhar enternecido, Laurent calara-se e contemplava-a, esquecido de comer.

- Você tinha razão - disse Léa. - Estão uma delícia. Não vai comer?

Na verdade, não tenho apetite. Você as quer?

- Posso? - perguntou Léa com uma concupiscência que trouxe um sorriso ao rosto tenso do parceiro.

O que você queria me dizer?

- Parto esta noite.

- Esta noite?

- À meia-noite. Vou reunir-me ao regimento em Ardennes.

Léa afastou o prato de ostras, com os olhos subitamente cheios de ansiedade.

Espera-se uma ofensiva alemã - esclareceu-lhe o rapaz.

- Será repelida pelos nossos militares.

- Bem que gostaria de ter a sua certeza.

- Parece François Tavernier falando.

- Tavernier talvez seja o homem mais bem informado acerca dos acontecimentos atuais. Por desgraça, o estado-maior do general Gamelin não ouve os seus conselhos.

- O que não me admira. Quem poderá confiar nele? Que mais queria me dizer?

Sem olhá-la, Laurent disse de um só fôlego:

- Camilie está esperando um filho.

Léa cerrou as pálpebras sob o efeito do choque. Agarrou o tampo da mesa com violência. Desesperado com o sofrimento que provocara, inquieto com a palidez e com os dedos crispados de Léa, Laurent tocou-lhe as mãos geladas.

Olhe para mim, Léa - pediu.

Laurent não mais esqueceria aquele olhar magoado. Foi-lhe insuportável a dor muda que descobriu nele; isso e a lágrima solitária a escorrer pela face meiga, lágrima logo perdida na comissura dos lábios e, depois, transbordando, deslizando ao longo do queixo, cuja curva seguiu antes de deixar um traço úmido no pescoço.

- Não chore, meu amor. Queria dizer também que te amo.

Que dissera ele? Que a amava! Mas, então. . . nem tudo estava perdido! Por que chorar? Camille esperava um filho; que boa coisa!

Ficaria feia durante meses, enquanto ela. . . Não era o momento para se enfeiar também com lágrimas. Laurent amava-a, acabava de lhe confessar. A vida era maravilhosa.

No mesmo instante, Léa riu, limpando os olhos com o guardanapo.

- Já que me ama, o resto não tem a mínima importância.

Laurent fitou-a com um sorriso cansado, diante da dificuldade É-me indiferente que Camilie esteja grávida. É a você que quero.

de fazê-la entender que, para ele, o sentimento existente entre os dois não tinha nenhum futuro. Censurava-se agora por aquilo que considerava uma traição à mulher.

- Diga outra vez que me ama - pediu Léa.

- Amando-a ou não, isso em nada altera as nossas relações. Sou marido de Camilie.

- Não quero saber. Só sei que o amo e você me ama. É casado, e daí? Não será isso que nos impedirá de fazer amor.

Como Léa se tornava desagradável proferindo palavras cujo sentido por certo ignorava! O que lhe propunha, porém, provava ser ele o ingênuo.

- Podíamos ir a um hotel. Há muitos em Montparnasse.

Sem querer acreditar no que ouvia, Laurent corou, levando algum tempo para responder:

- Nem pense nisso.

- Mas por quê? - disse Léa, arregalando os olhos com espanto. - Se eu mesma o estou propondo!

- É preferível esquecer o que acabo de ouvir.

- Você não sabe o que quer. Deseja-me, mas não tem coragem de o reconhecer. É digno de lástima.

Acabrunhado, Laurent fitou-a com tristeza. Em frente deles, o peixe esfriava, intocado.

- Não gostou da comida, senhorita? - perguntou o garçom.

- Deseja outra coisa?

- Não, pode deixar. Traga a conta - interrompeu-o Laurent.

- Muito bem, senhor.

- Quero beber - pediu Léa.

Aparentemente menos tensa, embora cheia de desespero, a jovem ingeriu a bebida devagar.

- O que queria me pedir?

Para que dizer-lhe? Sei que não vai aceitar.

- Só eu posso decidir - volveu Léa. - O que é?

Suspirando, Laurent respondeu:

- Queria lhe pedir que cuidasse de Camille. O médico teme uma gravidez difícil. Recomendou-lhe que ficasse na cama até o nascimento do filho.

- É uma grande amabilidade a sua ter pensado em mim - retorquiu Léa em tom irônico. - Mas Camille não tem ninguém que se ocupe dela?

- Não. Tinha apenas Claude. Agora só tem a mim e a meu pai.

- Então por que não a manda para Roches-Blanches?

- O médico receia o cansaço da viagem.

- E você não tem medo de deixar a sua querida mulherzinha grávida nas mãos da rival? Isso sem contar com os alemães que dentro em breve estarão em Paris, segundo você e seu amigo Tavernier.

Laurent escondeu o rosto nas mãos. Aquele gesto de desalento comoveu Léa, mas não a impediu de sorrir diante da atitude do homem amado.

- Está bem - disse ela. - Cuidarei da sua família.

Incrédulo, Laurent ergueu a cabeça, com os olhos úmidos.

- Então aceita?!

- Já disse que sim. Mas não acredite que vai escapar tão facilmente. Amo-o e farei tudo para que esqueça Camilie.

 

Capítulo 10

Oito dias após a partida de Laurent, Léa ainda continuava sem compreender a que impulso obedecera. O acolhimento de Camille foi-lhe particularmente odioso quando a visitou, cedendo a seus insistentes telefonemas.

A jovem achava-se no quarto, deitada. Quis levantar-se à entrada de Léa mas não conseguiu, tomada de súbito mal-estar.

Estendeu os braços, agora mais magros, para a visitante.

- Estou tão contente em vê-la, minha querida! - exclamou.

Léa sentou-se na beira da cama. Não teve outro remédio senão corresponder-lhe aos beijos, embora sentisse repulsa. Com maligna alegria, constatou as olheiras e o abatimento da futura mãe.

- Laurent lhe falou do filho? - perguntou, corando e prendendo entre os dedos febris a mão que se abandonava às suas com reticência.

Léa aquiesceu em silêncio.

- Ele me disse que você concordou em cuidar de mim. Como poderei agradecer tal coisa? É tão boa! Sinto-me tão só desde que

Laurent partiu! Quando não penso nele, o pensamento vai para o meu irmão morto tão estupidamente. Temo pelo filho que trago em mim. É vergonhoso dizê-lo, mas a você posso dizer tudo, não é verdade? Tenho medo. . . um medo terrível de sofrer e de morrer.

- Não seja boba. Não se morre por dar à luz uma criança.

- O médico diz a mesma coisa. Mas sinto-me tão fraca! Você não pode entender, pois vende saúde e energia.

- Não é com lamúrias desse gênero que vai se sentir melhor

- atalhou Léa, mal-humorada.

- Tem razão. Desculpe-me.

- Teve notícias de Laurent?

- Sim. Ele vai bem. Tudo está calmo na frente de batalha. Não sabe em que ocupar os homens; eles se aborrecem e passam o tempo jogando cartas e bebendo. A única alegria dele é ter reencontrado os cavalos. Na última carta, faz uma descrição pormenorizada da Fauvette, do Gamin, do Wazidou e do Mystérieux.

Bateram à porta. A camareira anunciou a chegada do médico. Léa aproveitou para despedir-se, prometendo voltar no dia seguinte.

Nesse dia, fiel à promessa feita, ela foi de novo visitar Camille. O tempo estava magnífico. Todos os parisienses pareciam ter saído de casa, enchendo as esplanadas dos cafés no Faubourg SaintGermain. Na esquina da Bac com a Saint-Germain havia um engarrafamento enorme. Os automóveis buzinavam, mais pelo prazer de fazer barulho do que para manifestar o nervosismo pela demora. Naquele belo dia de maio, todo mundo parecia calmo e alegre. Sem a presença dos sempre numerosos soldados e oficiais, ninguém diria que o país se encontrava em guerra.

Ao passar pela Livraria Gallimard, no Boulevard Raspail, Léa entrou a fim de comprar um livro para Camille. Desconhecendo suas preferências literárias, observava, indecisa, as inúmeras obras expostas

- Posso ajudá-la em alguma coisa, senhorita?

Dirigia-lhe a palavra um indivíduo elegantemente vestido num terno de cor clara. Era alto, de rosto largo ligeiramente cheio, olhos azuis sombreados por longas e abundantes pestanas que lhe efeminavam o olhar. A boca, de lábios vermelhos, era finamente desenhada. Num gesto maquinal, reajustava o nó da gravata-borboleta amarela com bolinhas verdes. Léa, tomando-o pelo livreiro, replicou:

- Sim, por favor. Procuro qualquer coisa para distrair uma amiga doente. Mas não sei os gêneros que aprecia.

- Leve isto. Por certo lhe agradará.

- Escola de cadáveres. . . - leu a jovem. - De Louis-Ferdinand Céline... Acha mesmo? Parece meio macabro.

- É óbvio - comentou o desconhecido, reprimindo a custo um sorriso irônico. - Céline é exatamente o autor que convém a pessoas deprimidas. A leitura é fácil, o estilo, inimitável e as idéias, ao mesmo tempo cômicas e elevadas, colocam-no no primeiro plano dos autores da atualidade.

- Muito obrigada. Levarei, então, o livro. Quanto devo?

- Não sei. A funcionária do caixa lhe dirá. Desculpe, mas tenho de ir.

Apanhou de cima da mesa o chapéu cinzento com o qual cumprimentou Léa, inclinando-se antes de sair.

- Deseja levar o livro, senhorita? - inquiriu uma das vendedoras, aproximando-se.

- Levo, sim. Foi-me recomendado pelo cavalheiro que acaba de sair. Acha que é bom?

- Se o sr. Raphaël Mahl recomendou, só pode ser bom afirmou a funcionária, com um sorriso amplo.

- Ele é o gerente da livraria?

- Oh, não! O sr. Mahl é um dos nossos mais fiéis clientes. Homem muito culto. Conhece a literatura contemporânea melhor do que ninguém.

- E que faz ele?

- Não se sabe ao certo. Às vezes tem muito dinheiro, outras, tem de pedir emprestado. Trabalha com quadros, obras de arte, acho eu, e ainda com livros antigos. É escritor, também. Publicou duas obras bastante notáveis na NRF.

Léa pagou o livro e deixou a loja, estranhamente impressionada pelo encontro. Subiu o Boulevard Raspail com o embrulho na mão. Ao chegar ao prédio de Camille, viu um homem que logo reconheceu ser Tavernier.

- Que faz aqui? - perguntou.

- Vim visitar a sra. d'Argilat - respondeu François Tavernier, tirando o chapéu.

- Não me parece que isso lhe agrade.

- Engana-se, minha cara. Camille aprecia muito a minha companhia. Acha-me uma pessoa divertida.

Da parte dela, isso não me admira. Engana-se sempre a respeito das pessoas.

- Mas não a respeito de todas; apenas de algumas. Tal como de você - respondeu ele, fitando-a com ar sonhador.

- Que quer dizer?

- Que não a vê tal como é, pois gosta de você.

Léa encolheu os ombros, parecendo querer dizer: "Que importa?"

- De fato - prosseguiu Tavernier. - Camilie gosta de uma mulher que jurou tirar-lhe o marido. É ou não é isso que meteu em sua bela cabecinha?

Léa corou, mas conseguiu dominar a raiva. Respondeu em voz suave, com um sorriso inocente:

- Como pode dizer semelhante barbaridade? Há muito esqueci tal coisa. Laurent é para mim apenas um amigo que me confiou a mulher no momento de partir.

Tenho a impressão de que a incumbência não a diverte. Léa riu, um riso jovem e franco.

- Nisso você tem razão - conveio. Camilie só se interessa por coisas entediantes.

- Enquanto você...

- Tenho desejo de ver tudo, de conhecer tudo. Se minhas tias não vigiassem as saídas e sem esta guerra que mobiliza os rapazes, iria jantar todas as noites em grandes restaurantes, dançar em cabarés e passar horas nos bares.

- Eis um bom programa! Que acha se viesse buscá-la às sete horas? Tomaríamos alguma coisa, iríamos em seguida ao music-hall e depois poderíamos jantar em algum lugar da moda. E, para terminar, dançar num cabaré ou ouvir canções russas.

Os olhos de Léa arregalavam-se diante da lista de prazeres, como os de uma criança em sua primeira noite de Natal. François Taverflher foi obrigado a um esforço sobre-humano para não a apertar OS braços, tão apetitosa lhe parecia com aquela índole determinada, o apetite de viver e a sensualidade à flor da pele.

- Seria maravilhoso, pois ando muito aborrecida.

A confissão em tom tão lamentável, proferida por aquela linda boca, quase deitou por terra os bons propósitos de Tavernier.

Mascarou a perturbação com uma gargalhada.

"Parece um lobo", pensou Léa. "É como os outros. Farei dele o que quiser."

- Então está combinado. Irei buscá-la às sete. Entretanto, telefonarei para suas tias, pedindo autorização.

- E se recusarem?

- Pode estar certa, minha boa amiga, de que nunca mulher nenhuma recusou um pedido meu - garantiu Tavernier com uma ironia que Léa tomou por convencimento.

- Verei o que minhas tias dirão, quando voltar para casa.

Até logo.

Esta súbita mudança de atitude não escapou à perspicácia de François Tavernier, que deixou Léa se perguntando se a moça tinha ou não senso de humor.

Ao entrar no amplo quarto de Camilie, pintado de branco e bege, Léa descobriu-a junto à janela, com a testa apoiada na vidraça.

Envergava um vestido caseiro em cetim creme e o seu vulto confundia-se com o tom das paredes e do tapete. Virou-se ao ouvir a porta fechar-se.

- Mas o que está fazendo de pé? - gritou Léa. - Devia estar deitada.

- Não ralhe comigo. Sinto-me muito melhor. O sr. Tavernier veio hoje visitar-me e isso me fez bem.

- Eu sei. Encontrei-o na saída.

- Está preocupado por nossa causa. Acha aconselhável deixarmos Paris. Garanti-lhe que se inquietava sem motivo, que tudo está calmo na frente; tão tranqüilo, na verdade, que o general Huntzinger convidou a alta sociedade de Paris para assistir a um espetáculo teatral no quartel-general.

- Como soube?

- Laurent me disse na carta que recebi hoje.

- Como está ele?

- Muito bem. incumbiu-me de lhe dar um beijo e de dizer que gostaria de receber algumas linhas suas. Teve notícias de seus pais?

- Sim. Mamãe quer que eu volte para casa.

- Ah... - gemeu Camilie, deixando-se cair no sofá.

- Não se preocupe. Escrevi dizendo-lhe que é impossível deixá-la agora, porque está sozinha e precisa de mim.

- E é bem verdade. Ainda há pouco falei nisso ao sr. Tavernier. Disse-lhe que a sua presença me tranqüiliza, que você me dá energía e coragem.

Sem responder, Léa tocou a campainha chamando a camareira. Ajude a sra. d'Argilat a deitar-se. Agora, você deve descansar,

Camille. Ah, já ia me esquecendo. Trouxe-lhe um livro.

- Obrigada por ter pensado em mim, querida. Quem é o autor?

- Um tal Céline. Garantiram-me ser um grande escritor.

- Céline. . . você já leu algum livro dele?

- Não. E você?

- Tentei fazê-lo, mas seu texto é tão duro, tão terrível! Deve estar se confundindo. Trata-se de uma literatura própria para distrair, segundo me informou um certo Raphaël Mahl.

- Que nome falou?

- Raphaél Mahl.

- Já estou vendo, deve ter se divertido à sua custa. É um indivíduo imundo que emporcalha tudo aquilo em que toca. O seu maior prazer é praticar o mal, sobretudo em relação aos amigos.

A veemência de Camille surpreendeu Léa; nunca a ouvira expressar-se em termos tão severos acerca de alguém.

Que lhe fez ele?

- A mim pessoalmente nada. Mas traiu, levou ao desespero e roubou uma pessoa a quem eu e Laurent muito amamos.

- E eu conheço essa pessoa?

- Não, não conhece,

Quando Léa voltou à Rue de l'Université, um portador acabara de entregar na casa três enormes buquês de rosas, diante dos quais

Lisa e Albertine se extasiavam, cheias de exclamações:

- Que maravilha!

- Este sr. Tavernier é um verdadeiro homem de sociedade, desses que já não existem hoje.

Léa achava deliciosas aquelas duas solteironas que não só haviam passado juntas toda a vida como também não tinham se separado um único dia das suas existências. De modo natural, Albertine, a mais velha, apenas com cinco anos de diferença da irmã, transformara-se na chefe de família, gerindo o patrimônio deixado pelos pais, governando a criadagem com mão firme, decidindo sobre viagens ou sobre tarefas a realizar. Era aquilo a que se chama uma mulher de pulso.

Lisa vivia num terror permanente desde o início da guerra. Dormia com dificuldade e acordava ao mais leve ruído, sempre de máscara antigâs ao alcance da mão. Nunca saía de casa sem levá-la consigo, pendurada no ombro, nem mesmo para ir à missa dominical na Igreja de São Tomás de Aquino ou em visita a uma amiga que morava no outro lado da rua. Lia todos os jornais e escutava todos os noticiários transmitidos pelo rádio, passando da Rádio Paris à Rádio 37, do posto parisiense à Rádio Ile-deFrance. Aprontara a bagagem desde a invasão da Polônia. Insistira com a irmã no sentido de venderem o antigo e magnífico

Renault, desenhado por Arthur Boulogne, e adquirirem um Vivastella Grarid Sport, mais rápido e mais espaçoso, veículo do tipo familiar. Após alguns passeios pelos arredores de Paris, para que Albertine - a única que sabia guiar - se familiarizasse com o novo automóvel, ele fora recolhido numa garagem de Saint-Germain, cujo garagista se comprometera a mantê-lo sempre em ordem.

Se acaso o homem se esquecia de cumprir a tarefa, a visita semanal de Lisa, com sua máscara antigás a tiracolo, para verificar se tudo estava em ordem, o fazia recordar-se.

- Léa, minha filha, o sr. Tavernier foi muito amável em convidá-la para assistir a um concerto em prol dos órfãos de guerra.

- E disseram que sim? - inquiriu Léa, reprimindo a custo o riso diante da mentira de Tavernier.

- Pois claro! Você pode aparecer em sociedade apesar do luto, visto tratar-se de uma obra beneficente - afirmou Albertíne.

- Mas será conveniente? - disse Léa em tom hipócrita, sentindo cada vez mais dificuldade em conter o riso.

- É claro que sim. O sr. Tavernier é uma pessoa bem situada, amigo de ministros e do presidente da República. Além disso, sua amiga Camille o recebe, o que diz tudo - interveio Lisa.

- Se é esse o caso, então poderei sair com ele sem problemas.

- Veja a delicadeza deste cor-de-rosa! - exclamou Lisa, exibindo o seu ramalhete à sobrinha.

- Não viu as suas? - disse Albertine, dobrando cuidadosamente o papel de invólucro do buquê que lhe coubera, de um tom amarelo carregado.

Léa rasgou a embalagem, descobrindo soberbas rosas brancas debruadas de vermelho. Havia um envelope no meio dos caules.

Apoderou-se dele num gesto rápido, escondendo-o no bolso do casaco.

- As flores da srta. Léa são as mais bonitas – observou Esteile, que acabara de entrar na saleta, transportando uma jarra de cristal cheia de água.

- Empreste-me a sua raposa, tia? - pediu Léa.

- Claro que sim, minha querida! Esteile vai levá-la ao seu quarto.

Léa acabara de se preparar quando a campainha da porta a sobressaltou. "Já?", pensou ela. O espelho do guarda-roupa refletiu sua imagem, à qual a jovem sorriu com agrado. Tavernier tinha razão: aquele vestido ficava-lhe muito bem, valorizando-lhe a cor da pele e a silhueta. No entanto, sentiu-se mal consigo mesma por ter acedido ao pedido dele, expresso no bilhete que acompanhava as flores: "Ponha o vestido que usou no outro dia. Fica linda com ele". Fosse como fosse, não tinha escolha possível, pois era o seu único traje longo.

Antes de sair do quarto, vestiu o casaco de raposa preta, a fim de ocultar das tias os ombros nus. Quando se juntou a eles na saleta, as duas velhas senhoras riam muito dos ditos de François Tavernier, que, em seu smoking preto, conversava com elas apoiado na pedra da lareira.

- Boa noite, Léa. Vamos depressa. Não podemos chegar depois do presidente.

- Apressem-se - disse Albertine, impressionada.

François Tavernier abriu a porta do magnífico Bugatti vermelho e negro, estacionado em frente do edifício. Era muito agradável o cheiro do couro dos estofados do automóvel de luxo. O veículo arrancou com um surdo ronronar.

- Que lindo carro! - exclamou a jovem.

- Tinha a certeza de que lhe agradaria. É preciso aproveitar, pois não se fabricarão mais 'puros-sangues" como este.

Por quê? As pessoas andarão de automóvel cada vez mais.

- Tem razão. Mas este modelo representa uma arte de viver que desaparecerá com a guerra.

- Ah, não! Nem uma palavra sobre a guerra esta noite ou desço imediatamente.

- Peço desculpa - disse Tavernier, pegando a mão de Léa e beijando-a.

- Aonde está me levando?

- Não se assuste. Não vou levá-la a nenhum concerto de caridade, ao contrário do que disse a suas tias. No entanto, esteja descansada que amanhã poderá ler no Le Figaro ou no Le Temps:

"O sr. François Tavernier, conselheiro do ministro do Interior, esteve presente ao concerto de caridade da Opera, em companhia da encantadora e elegante srta. Léa Delmas".

- Como será isso possível?

- Tenho alguns amigos entre os jornalistas, que não se importarão de prestar-me esse insignificante serviço. Que diz de tomarmos alguma coisa no Coupole antes de ouvir Joséphine Baker e Maurice Chevalier no Cassino de Paris? O empregado do bar prepara excelentes coquéteis.

Léa achou Joséphine Baker magnífica, mas não gostou de Maurice Chevalier.

- Você está errada - comentou François Tavernier. - Chevalier representa atualmente o espírito francês.

- Nesse caso, não aprecio esse espírito feito de malícia, de autosuficiência, de atrevimento complacente e de enorme vulgaridade.

- Que estranha garota é você, frívola e ao mesmo tempo profunda! Em que tipo de mulher irá se transformar? Bem que gostaria de poder observar o seu crescimento.

No enorme átrio do Cassino de Paris, a multidão acotovelava-se à saída, comentando o espetáculo; era visível que agradara.

- Estou com fome - confessou Léa, apoiada ao braço do companheiro.

- Aí vamos nós! - exclamou Tavernier. - Gostaria de levála ao Monseigneur, mas não havia uma única mesa disponível, nem mesmo para mim. Assim, reservei uma no Shéhérazade. onde está Léo Marjane. A orquestra russa é uma das melhores de Paris.

Acho que você vai gostar.

Fosse por efeito do caviar, da vodca, do champanha ou dos violinos, o certo é que Léa se sentia inundada de uma alegria de viver que a fazia rir muito e reclinar a cabeça no ombro do companheiro. Divertido, este observava a jovem desabrochando sob o domínio do prazer. Léa pedira à orquestra que executasse uma valsa lenta e, sem cerimônia, convidou o parceiro para dançar.

Era dotada de tamanha leveza e graciosidade sensual que, dentro de pouco tempo, toda a assistência só tinha olhos para o par que deslizava lentamente.

François Tavernier sentia a jovem vibrar em seus braços. Estreitou o abraço e logo pareceram um só corpo deslizando na pista.

Esquecidos do mundo, continuaram dançando mesmo depois de a orquestra parar. Os risos e os aplausos chamaram-nos, então, à realidade.

Sem se importar com o público. Tavernier manteve Léa Contra si.

- Dança muito bem - afirmou ela em tom Convicto.

- Você também - disse Tavernier com admiração, escoltando-a ao lugar.

- Como é bela a vida! Gostaria de vivê-la sempre como neste momento: beber e dançar! - exclamou Léa, estendendo ao companheiro o copo vazio.

Já bebeu o suficiente, menina - advertiu Tavernier.

- Não: Quero mais.

François Tavernier fez um aceno ao maitre e nova garrafa de champanha surgiu quase de imediato. Beberam em silêncio, embalados pelos acordes da música Olhos negros.

- Beije-me - pediu Léa. - Tenho desejo de ser beijada. Até mesmo por mim? -. disse o companheiro, inclinando-se para Léa.

- Sim, até mesmo por você.

Junto deles, um pigarrear insistente obrigou-os a afastarem os lábios. Um jovem de rosto muito pálido e de chapéu na mão parara diante da mesa.

Ah, Loriot! Que deseja?

Posso falar-lhe, sr. Tavernier? é muito importante.

- Desculpe, Léa. Só um momento.

Tavernier seguiu Loriot e pararam no bar. Depois de breve e actlorado colóquio, Tavernier regressou à mesa, de rosto fechado.

- Venha. Vamos embora.

Já? Que horas são?

Quatro da madrugada. Suas tias devem estar inquietas.

- Claro que não! Sabem que estou com você. Acham-no uma pessoa da máxima respeitabilidade - objetou Léa, estourando de rir.

- Chega! Temos de ir.

Mas por quê?

Sem responder, Tavernier atirou algumas notas sobre a mesa e agarrou Léa por um braço, forçando-a a erguer-se.

- O casaco da senhora - pediu ele no vestiário.

Largue-me! Quer explicar-me, afinal, o que está acontecendo?

- Acontece, minha cara amiga - disse ele em voz surda -, que, neste preciso instante, os alemães estão borbardeando Calais, Bolonha e Dunquerque, e invadindo o espaço aéreo da Holanda e da Bélgica.

- Oh, não, meu Deus! Laurent!

De tenso que estava, o rosto de François Tavernier tornou-se violentamente mau. Por instantes, ambos se mediram com o olhar.

A chapeleira interrompeu-lhes o confronto silencioso, para ajudar Léa a vestir o casaco de pele de raposa.

Nenhum deles disse nada durante o caminho de volta. Quando chegaram diante do prédio da Rue de l'Université, Tavernier acompanhou Léa à porta. No momento em que ela introduzia a chave na fechadura, ele obrigou-a a virar-se, segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou seus lábios com fúria. Em atitude passiva, Léa deixou que a beijasse- Gostei mais de você há pouco.

A jovem não deu resposta. Num gesto calmo, rodou a chave na fechadura e entrou, fechando lentamente a porta.

No silêncio da noite de maio, Léa permaneceu uns segundos a escutar as batidas de seu coração, confundidas com o ruído do motor do automóvel que se afastava.

No quarto, despiu-se, atirando a roupa ao acaso. Vestiu a camisola que estava estendida sobre a cama já preparada e deslizou para dentro dos lençóis, puxando o cobertor sobre a cabeça. Não se comparava à sua caminha infantil do quarto das crianças de

Montillac, mas, mesmo assim, era um refúgio.

Adormeceu chamando por Laurent.

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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