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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Caixa Vermelha / Rex Stout
A Caixa Vermelha / Rex Stout

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Caixa Vermelha

 

Capitulo 1

Wolfe olhou para o visitante com olhos esbugalhados — um sinal que, nele, significava indiferença ou irritação - Neste caso, era evidente que ele estava irritado.

— Repito, Sr. Frost, que é inútil — disse. — Jamais saio de casa a negócios. A pertinácia de homem algum poderá coagir-me. Disse-lhe isto há cinco dias. Bom dia, senhor.

Llewellyn Frost pestanejou, mas nenhum sinal deu de re­conhecer o gesto de despedida. Ao contrário, reclinou-se na cadeira.

E inclinou a cabeça pacientemente.

— Eu sei. Cedi na quarta-feira última, Sr. Wolfe, porque havia outra possibilidade, que me pareceu valer uma tentativa. Mas não deu resultado. Agora, não me resta outra alternativa. O senhor tem de ir até lá. Pode esquecer sua personalidade de gênio excêntrico, pelo menos por uma vez... E de qualquer maneira, será bom uma exceção. A jaca que destaca a per­feição. O gaguejar que acentua a eloqüência. Deus meu, são apenas vinte quarteirões. Cinqüenta e dois, entre a Quinta Ave­nida e Madison. Um táxi nos levará lá em oito minutos.

— Realmente! — Wolfe mexeu-se na cadeira, furioso. — Que idade tem, Sr. Frost?

— Eu? Vinte e nove.

— Dificilmente jovem bastante para que isso justifique seu infantil descaramento. O senhor fala de minha persona­lidade artificial! E quer fazer-me disparar numa corrida fre­nética através do vórtice do tráfego da cidade... e num táxi! Senhor, eu não entraria num táxi nem que tivesse oportuni­dade de desvendar o mais insondável enigma da Esfinge, tendo toda a carga do Nilo como prêmio! — e a voz dele desceu para um murmúrio ultrajado. — Meu Deus, um táxi!

Aplaudi com um sorriso, girando o lápis entre os dedos, na minha escrivaninha, que fica a uns dois metros e meio da dele. Tendo trabalhado para Nero Wolfe durante nove anos, havia alguns pontos sobre os quais não me restavam mais dúvidas. Por exemplo, que ele era o melhor detetive particular ao norte do Pólo Sul. Que estava convencido de que o ar externo provavelmente lhe congestionaria os pulmões. Que havia um curto-circuito nos seus nervos quando era sacudido e empurrado de um lado para outro. Que teria morrido de inanição se algo acontecesse a Fritz Brenner em virtude de sua firme convicção de que a comida de pessoa alguma, salvo a de Fritz, poderia ser ingerida. Havia outros pontos ainda de tipos diferentes, mas vou omiti-los porque Nero Wolfe provavel­mente lera este relato.

O jovem Sr. Frost encarou-o tranqüilamente.

— O senhor está-se divertindo um bocado, não, Sr. Wolfe? — Frost inclinou a cabeça. — Claro que está. Uma moça foi assassinada. Outra — talvez mais de uma — está em perigo. O senhor se apresenta como um especialista nesses assuntos, não? Essa parte está perfeita. Não há dúvida de que o senhor é um especialista. Mas uma moça foi assassinada, outras correm grande e iminente perigo, e o senhor delira como Booth e Barrett a respeito de um táxi num vórtice. Eu entendo uma boa representação. Devo entender, porque estou também no teatro. Mas, no seu caso, eu pensaria que há ocasiões em que um respeito decente pelos sofrimentos e infelicidades humanos deveria levá-lo a retirar a maquilagem. E, se o senhor está realmente representando com convicção, isto apenas piora as coisas. Se, em vez de suportar um pequeno incômodo pessoal.

— Não adianta, Sr. Frost — Wolfe sacudiu lentamente a cabeça. — O senhor espera por acaso forçar-me a fazer uma defesa de minha conduta? Tolice. Se uma moça foi assassi­nada, existe para isso a Polícia. Outras correm perigo? Elas têm a minha simpatia, mas não têm direito de opção aos meus serviços profissionais. Não posso, de qualquer maneira, afastar perigos com um gesto, e não tomarei um táxi. Não ando em coisa alguma, mesmo no meu carro particular, dirigido pelo Sr. Goodwin, exceto para resolver meus casos pessoais. Observe o meu volume. Não sou estacionário, mas a minha carne tem uma relutância constitucional a deslocamento súbito, violento ou demorado. O senhor falou de "respeito decente". Que tal um respeito decente pelo caráter privado de minha residência? Uso esta sala como escritório, mas esta casa é também o meu lar. Bom dia, senhor.

O jovem corou, mas não se moveu.

— Então o senhor não irá? — indagou ele. — Não.

— Vinte quarteirões, oito minutos, no seu próprio carro.

— Diabos o levem, não.

Frost olhou-o, carrancudo. Murmurou para si mesmo: "Mais teimoso" que esse nunca vi". Meteu a mão no bolso interno do paletó, tirou alguns papéis, selecionou um deles, desdobrou-o, olhou-o rapidamente e guardou os outros. Levan­tou a vista para Wolfe.

— Passei quase dois dias inteiros fazendo com que isto fosse assinado. Não, espere um minuto, contenha-se um pouco. Quando Molly Lauck foi envenenada, faz uma semana hoje, a coisa toda pareceu suspeita desde o início. Na quarta-feira, dois dias depois, ficou claro que os policiais estavam andando como baratas tontas. Por isso vim procurá-lo. Sei quem é o senhor. Sei que o senhor é o único. Como o senhor sabe, tentei fazer com que McNair e os outros viessem aqui a seu gabi­nete, e eles se recusaram. Tentei levá-lo até lá, e o senhor não quis ir. E eu o mandei para o inferno. Isso aconteceu há cinco dias. Paguei ao outro detetive trezentos dólares por um bocado de coisas inúteis. Quanto aos policiais, do Inspetor para baixo, eles são bons como seria Fanny Brice no papel de Julieta. De qualquer maneira, é um caso difícil, e duvido que qualquer pessoa pudesse resolvê-lo, salvo o senhor. Resolvi isso no sábado e no fim-de-semana trabalhei um bocado — ele empurrou o papel na direção de Wolfe. — Que é que o senhor diria disto?

Wolfe apanhou o papel e leu-o. Observei-lhe os olhos per­correr lentamente, semicerrados, o conteúdo do papel e tive cer­teza de que, o que quer que fosse, exerceu efeito considerável sobre sua irritação. Olhou-o de relance novamente, fitou Llewellyn através de olhos apertados em frestas e, em seguida, empurrou o documento na minha direção. Levantei-me para apanhá-lo. Estava escrito a máquina em uma folha de papel comum, de boa qualidade, com data de 28 de março de 1936, Cidade Nova York:

 

AO SR. NERO WOLFE:

Atendendo a uma solicitação de Llewellyn Frost, nós, abaixo assinados, imploramos-lhe que investigue a morte de Molly Lauck, envenenada no dia 23 de março nos escritórios da Boyden McNair Incorporated, situados na Rua 52, na cidade de Nova York. Suplicamos-lhe que visite os escritórios da McNair com esse objetivo.

Respeitosamente, lembramos a V. Sa. que, uma vez por ano, V. Sa. deixa seu lar a fim de comparecer à Exposição Metropolitana de Orquídeas e permitimo-nos sugerir que a atual emergência, conquanto não tão importante para o senhor pessoal­mente, parece-nos justificar um igual sacrifício de seu con­forto e conveniência.

Com os respeitos de,

WINOLD GRUECKNERR

CUYLER DITSON

T.M. D'GORMAN

RAYMOND PLEHN

CHÁS E. SHANKS

CHRISTOPHER BAMFORD

 

Devolvi o documento a ele, sentei-me e enderecei-lhe um sorriso. Wolfe dobrou-o e enfiou-o sob o bloco de madeira petrificada que lhe serve de peso de papéis. Frost tomou a palavra:

— Isto foi a melhor coisa em que pude pensar para con­seguir seus serviços. Eu teria de contratá-lo. Essa coisa tem de ser esclarecida. Pus Del Pritichard no trabalho e ele ficou desorientado. Eu precisava contratar o senhor de alguma ma­neira. Virá, agora?

O dedo indicador de Wolfe fazia agora um pequeno círculo sobre o braço da cadeira.

— Por que, demônios — indagou — eles assinaram esse papel?

— Porque lhes pedi. Expliquei-lhes. Disse-lhes que nin­guém, salvo o senhor, poderia solucionar o caso e que o senhor precisava ser convencido. Disse-lhes que além do dinheiro e comida, a única coisa que o interessa são orquídeas e que não havia ninguém que pudesse exercer a mínima influência sobre o senhor, salvo eles, os melhores plantadores de orquídeas da América. Consegui cartas de apresentação a eles. Fiz as coisas corretamente. O senhor notará que restringi a minha lista aos melhores. Virá, agora? Wolfe suspirou.

— Alec Martin possui quarenta mil pés em Rutherford. Ele não quis assinar, não?

— Teria assinado se eu o tivesse procurado, Glueckner disse-me que o senhor considera Martins um criador inferior e que recorre a truques. Virá?

— Um artifício — e Wolfe suspirou novamente. — Uma imposição infernal — sacudiu um dedo na direção do jovem. — Ouça aqui. Aparentemente, o senhor está disposto a não permitir que coisa alguma o detenha. O senhor interrompe esses dignos e valiosos especialistas em seus trabalhos e obri­ga-os a assinar esse papel idiota. O senhor me irrita com seus pedidos. Por quê?

— Porque quero que o senhor solucione esse caso.

— Por que eu?

— Porque ninguém mais pode fazê-lo. Espere até ver...

— Sim. Muito obrigado. Mas qual o motivo do seu ex­traordinário interesse pelo caso? A moça assassinada... Que é que ela significava para o senhor?

— Nada — Frost hesitou e continuou: — Ela nada era para mim. Era... uma conhecida. Mas o perigo... diabos o leve... deixe que eu lhe conte. O modo como aconteceu...

— Por favor, Sr. Frost — disse Wolfe secamente — Permita-me. Se a moça nada lhe significava, que posição terá um investigador contratado pelo senhor? Se o senhor não con­seguiu persuadir o Sr. McNair e os demais a virem até aqui, seria inútil a minha ida até lá.

— Não, não seria. Eu expliquei que...

— Muito bem. Outro ponto. Eu cobrarei altos honorários.

O jovem corou.

— Sei que cobra — ele se inclinou para a frente. — Ouça, Sr. Wolfe, eu joguei pela janela um bocado do dinheiro de meu pai desde que comecei a usar calças compridas. E grande fatia •do dinheiro, nos dois últimos anos, produzindo espetáculos tea­trais, todos uns fracassos. Mas agora consegui um sucesso de bilheteria. A peça abriu há duas semanas e terá platéia pelo me­nos durante mais dez. Bullets for Breakfast. Terei dinheiro suficiente para pagar-lhe os honorários. Se o senhor apenas pu­desse descobrir de onde veio aquele maldito veneno... e me ajudasse a encontrar uma maneira... Deteve-se. Wolfe acicatou-o:

— Sim? uma maneira...

Frost contraiu as sobrancelhas e respondeu:

— Uma maneira de conseguir livrar minha prima daquele buraco letal. Minha ortoprima, filha do irmão de meu pai.

— Realmente — Wolfe inspecionou-o com os olhos. — O senhor é antropologista?

— Não — e Frost corou novamente. — Como lhe disse, estou no teatro. Posso pagar-lhe os honorários dentro de limi­tes... ou mesmo sem limites. Mas precisamos entender-nos a esse respeito. Naturalmente, quanto ao volume dos honorários, cabe-lhe decidir, mas a minha idéia era dividi-lo, metade para descobrir de onde veio aquele bombom, e a outra metade para afastar minha prima Helen daquele lugar. Ela é tão obstinada como o senhor e o senhor provavelmente terá de ganhar a pri­meira metade dos honorários antes de ganhar a segunda. Mas não me importo se não o fizer. Se conseguir tirá-la sem escla­recer a morte de Molly Lauck, o senhor ganhará de qualquer maneira os honorários. Mas Helen não se deixa amedrontar, isto não dará resultado, e ela tem alguma espécie de idéia im­becil sobre a lealdade que deve àquele McNair, Boyden McNair, Tio Boyd, como ela o chama. Ela o conheceu durante toda vida. Ele é um velho amigo de Tia Callie, a mãe de Helen. Há também aquele viciado em drogas, Gebert... mas é melhor que eu comece de princípio e lhe dê uma ligeira idéia... Hei! O senhor vai agora?

Wolfe empurrara a cadeira para trás e erguera-se. Deu a volta até a extremidade da escrivaninha com sua costumeira deliberação, segura e não desgraciosa.

— Continue sentado, Sr. Frost. São quatro horas e nesse período eu passo duas horas com as minhas plantas lá em cima. O Sr. Goodwin tomará notas dos detalhes do envenenamento da Srta. Molly Lauck... e das suas complicações familiares, se elas parecerem pertinentes. Pela quarta vez, acho que é bom dia, cavalheiro — e dirigiu-se para a porta.

Frost levantou-se com um salto da cadeira e disse numa saraivada:

— Então o senhor vai...

Wolfe parou e voltou-se pesadamente:

— Diabos o levem. O senhor sabe perfeitamente que eu vou! Vou! Mas, digo-lhe uma coisa. Se a assinatura de Alec Martin estivesse naquele grotesco papel, eu o teria lançado na cesta. Ele corta bulbos pela metade. Pela metade! Archie! En­contraremos o Sr. Frost no escritório de McNair amanhã pela manhã, às onze e dez.

Voltou-se e saiu, ignorando os protestos do cliente diante da demora. Através da porta aberto do gabinete, ouvi no sa­guão o gemido do elevador quando ele entrou e a porta bateu.

Llewellyn Frost voltou-se para mim. A cor do seu rosto poderia ter origem na satisfação diante do êxito obtido ou na indignação com o adiamento. Observei-o como cliente — o ca­belo castanho-claro ondulado, penteado para trás, os olhos tam­bém castanhos bem abertos que deixavam em dúvida a ques­tão de inteligência, o grande nariz e a maciça mandíbula, que lhe tornaram o rosto pesado mesmo para o seu metro e oiten­ta e três.

— De qualquer modo, eu lhe estou muito grato, Sr. Go­odwin — voltou a sentar-se. — O senhor foi também inteligente a respeito do papel, evitando que eu incluísse Martin. Fez-me um grande favor e asseguro-lhe de que não esquecerei...

— Número errado — respondi, interrompendo-o com um aceno. — Eu lhe disse, na ocasião, que eu mesmo farei todos os favores a mim mesmo. Sugeri aquilo apenas como um artifício para provocar o aparecimento de alguns negócios e como expe­rimento científico para descobrir quantos ergs seriam necessá­rios para sacudi-lo deste lugar. Não tivemos caso que valesse coisa alguma nos últimos três meses — apanhei a caderneta de notas, um lápis, virei-me na cadeira e puxei a tábua-lingüeta da escrivaninha. — E por falar nisso, Sr. Frost, não se esqueça de que o senhor pensou também naquele artifício. Ninguém espera que eu pense coisa alguma.

— Claro — disse ele, com uma inclinação da cabeça. — Es­tritamente confidencial. Jamais direi coisa alguma a esse respeito.

— Muito bem — abri a caderneta e folheei-a até a página branca seguinte. — Bem, agora a respeito desse homicídio, no qual o senhor quer comprar uma parte. Abra a matraca.

 

Capitulo 2

Na manhã seguinte, forcei Nero Wolfe a enfrentar os ele­mentos — o principal dos quais naquele dia era um quente e brilhante sol de março. Disse que o obriguei porque concebera o artifício que o levava a ignorar todos os precedentes. O que o arrancara da porta, furioso e sombrio, de sobretudo, cachecol, luvas, bengala, algo que ele chamava de piugas e um chapéu de pirata tamanho 8 enterrado até as orelhas, era o nome de Winnold Glueckner encabeçando as assinaturas da carta — Glueckner, que recebera recentemente de um agente em Sarawak quatro bulbos de uma Coelogyne pandurata rosada, ja­mais vista antes, e que recusara com desdém a oferta de Wolfe de três mil dólares por dois deles. Sabendo que velho alemão teimoso Glueckner era, eu tinha minhas dúvidas se ele abriria mão daqueles bulbos, não importa quantos assassinatos Wolfe solucionasse a seu pedido. Mas, de qualquer maneira, eu acen­dera o rastilho.

Guiando o carro a partir da Rua 5, nas proximidades do Rio Hudson — onde Wolfe vivia há mais de vinte anos e onde eu morara com ele durante quase a metade desse período — até o endereço na Rua 52, dirigi o seda de modo a mantê-lo tão macio como os dedos de um batedor de carteiras. Exceto por um buraco, ao qual não pude resistir. Na Quinta Avenida, nas proximidades da 43, havia um pequeno buraco ideal, de mais ou menos sessenta centímetros de largura, onde, acho, alguém andara cavando em busca dos vinte e seis dólares que foram pagos aos índios pela ilha de Manhattan. Manobrei para atingi-lo diretamente a uma boa velocidade. Relanceei o olho pelo retrovisor para um vislumbre de Wolfe no assento traseiro e notei que ele parecia amargurado e enfurecido.

— Sinto muito, senhor — disse estão abrindo as ruas. Ele não se dignou a responder.

Pelo que Llewellyn Frost dissera-me no dia anterior a res­peito das instalações da Bojden McNair Incorporated — cujo re­lato completo eu transcrevera na caderneta e lera para Nero Wolfe na noite de segunda-feira — eu não compreendera a extensão das aspirações do proprietário no que tocava à classe social. Encontramos Llewellyn Frost no térreo, imediatamente do lado de dentro da entrada. Uma das primeiras coisas que notei e ouvi, enquanto Frost conduzia-nos ao elevador que nos levaria ao segundo andar, onde se situavam os escritórios e as salas particulares de exposição, foi uma vendedora que parecia um cruzamento entre uma condessa e uma herdeira de petróleo do Texas dizendo a uma freguesa que, a despeito do fato de a es­cassa roupa esporte azul usada pelo modelo ter sido tecida a mão num tear Hign Meadow e criada pelo próprio Sr. McNair, poderia ser vendida por uns irrisórios trezentos dólares. Pensei no marido, senti um calafrio, fiz figa com os dedos e entrei no elevador, observando para mim mesmo: "Lugarzinho sinistro".

O andar acima era igualmente elegante, embora mais tran­qüilo. Não havia à vista mercadorias, vendedores ou fregueses. Percorremos um largo corredor ladeado de portas, a intervalos, todas elas com desenhos e cenas de caçadas aqui e ali no apainelamento. No salão onde entramos ao sair do elevador notei ca­deiras forradas a seda, cinzeiros dourados altos e tapetes grossos de cores profundas. Observei tudo aquilo de relance e, em se­guida, focalizei a atenção na parte da sala oposta ao corredor, onde duas deusas sentavam-se sobre um diva. Uma delas, uma loura de olhos azuis-escuro, era tão bela que tive de abrir bem os olhos para não pestanejar; a outra, mais esguia e amorenada, conquanto não tão notável, ganharia disparada um concurso para Miss Rua Cinqüenta e Dois.

A loura inclinou a cabeça em nossa direção. A mais ma­gra disse:

— Alô, Lew.

Llewellyn Frost inclinou também a cabeça num gesto de assentimento e respondeu.

— Alô, Helen. Vê-la-ei mais tarde. Descendo o corredor, eu disse a Wolfe:

— Viu aquilo? Quero dizer, elas? Você deve circular mais. Que é que são as orquídeas em comparação com um par de bo­tões daqueles?

Ele simplesmente resmungou.

Frost bateu na última porta à direita, abriu-a, e afastou-se para que entrássemos A sala era grande, bastante estreita mas comprida, e havia apenas suficiente folga na elegância para com­portar as necessidades de um escritório. Os tapetes eram tão grossos como na frente e a mobília teria feito as delícias de um decorador. Pesadas cortinas de seda amarela cobriam as jane­las, descendo em pregas até o chão. A luz provinha de candela­bros de vidro do tamanho de barris.

— Sr. Nero Wolfe, Sr. Goodwin, Sr. McNair — disse Frost.

O homem de pernas esqueléticas sentado à escrivaninha levantou-se e estendeu uma pata sem muito entusiasmo.

— Prazer em conhecê-los, cavalheiros. Sentem-se, por fa­vor. Outra cadeira, Lew?

Wolfe pareceu mal-humorado. Olhei em volta para as ca­deiras e resolvi que teria de agir rapidamente, pois sabia que Wolfe era absolutamente capaz de fugir de nós por menos do que aquilo. E tendo-o trazido a essa distância toda, ia agarrá-lo, se possível. Dei a volta em torno da escrivaninha e coloquei a mão na cadeira de Boyden McNair. Ele continuava de pé.

— Se o senhor não se importar. O Sr. Wolfe prefere um assento espaçoso. É apenas um dos caprichos dele. As outras cadeiras são estreitas demais. O senhor se importaria?

Por essa altura, eu empurrara a cadeira até um ponto onde Wolfe podia ocupá-la. McNair esbugalhou os olhos. Puxei uma das delícias dos decoradores para ele, atirei-lhe um sorriso, dei a volta e sentei-me ao lado de Llewellyn Frost.

— Bem, Lew — disse McNair a Frost — você sabe que estou ocupado. Disse a esses cavalheiros que eu concordei em conceder-lhes quinze minutos?

Frost relanceou os olhos para Wolfe e voltou a fitar Mc­Nair. Observei-lhe as mãos, com os dedos entrelaçados, pou­sados sobre a coxa. Os dedos estavam muito apertados.

— Eu disse a eles — respondeu Frost — que o havia con­vencido a recebê-los. Não acho que quinze minutos sejam...

— Serão suficientes. Estou ocupado. Estamos na estação de grande movimento — McNair falava em voz aguda e tensa, e mexia-se continuamente na cadeira — isto é, na sua cadeira temporária. — De qualquer modo — continuou ele — qual é a utilidade de tudo isto? Que é que eu posso fazer? — esten­deu as mãos, consultou o relógio de pulso e olhou para Wolfe.

.— Prometi a Lew quinze minutos. Estou a sua disposição até 11:20.

Wolfe sacudiu negativamente a cabeça.

— A julgar pela história do Sr. Frost, eu precisarei de mais. Duas horas ou mais, diria.

— Impossível — respondeu secamente McNair. — Estou ocupado. Quinze minutos, apenas.

— Isto é absurdo — Wolfe segurou-se nos braços da ca­deira emprestada e levantou-se. Interrompeu a exclamação de Frost com a palma da mão, olhou McNair de cima para baixo e disse tranqüilamente. — Eu não precisava vir aqui para vê-lo, cavalheiro. Fi-lo" em atenção a um gesto idiota, mas cativante, concedido e executado pelo Sr. Frost. Sei que o Sr. Cramer, da Polícia, teve diversas conversações com o senhor e que ele está profundamente insatisfeito com a falta de progresso da in­vestigação que fez do assassinato de uma de suas empregadas. O Sr. Cramer tem alta opinião de minha capacidade. Telefona­rei a ele dentro de uma hora e sugerirei que o traga — e outras pessoas — ao meu escritório — Wolfe sacudiu um dedo. — Por tempo muito maior do que quinze minutos.

Começou a andar. Levantei-me. Frost correu atrás dele.

— Espere — gritou McNair. — Espere um minuto, o se­nhor não compreende! — Wolfe voltou-se e encarou-o. — Em primeiro lugar, por que quer-me intimidar? Isso é ridículo. Cra­mer não me levaria a seu gabinete, ou a qualquer lugar se eu não quisesse ir, o senhor sabe disso. Naturalmente, Molly... naturalmente o assassinato foi uma coisa horrível. Deus meu, então não sei? E, naturalmente, farei tudo que puder para aju­dar a esclarecê-lo. Mas o que é que adianta? Eu disse a Cramer tudo o que sei. Repassamos os fatos uma dezena de vezes. Sente-se — puxou um lenço do bolso, enxugou a testa e o nariz, começou a colocá-lo no bolso, mudou de idéia e lançou-o sobre a mesa. — Vou ter um colapso. Sente-se. Trabalhei quinze horas por dia preparando a Coleção de Primavera, tempo sufi­ciente para matar um homem, e acontece-me ainda isto. O se­nhor foi atraído para isto por Lew Frost? Que diabo é que ele sabe a respeito de tudo isto? — Olhou furioso para Frost. — Contei e repeti o caso tantas vezes à Polícia que estou enojado de tudo. Dez minutos são, de qualquer maneira, tudo de que o senhor precisará para saber o que sei. E isto é o que piora as coisas, como disse a Cramer, porque ninguém sabe de coisa alguma. E Lew Frost sabe ainda menos — olhou novamente, irritado, para o jovem. — Você sabe muito bem que está usan­do o crime apenas como uma alavanca para tirar Helen daqui — e transferindo o olhar zangado para Wolfe. — O senhor es­pera de mim algo mais do que o mínimo de cortesia? E por que deveria eu mostrar mais?

Wolfe voltara à cadeira, sentara-se sem tirar os olhos do rosto de McNair. Frost começou a falar, mas calei-o com um meneio de cabeça. McNair apanhou o lenço, passou-o pelo rosto novamente e atirou-o mais uma vez sobre a mesa. Abriu a gaveta superior, olhou para dentro, murmurando; "Onde diabo se meteu aquela aspirina?" tentou a gaveta da esquerda, enfiou a mão, tirou um pequeno vidro, do qual sacudiu duas pílulas na palma da mão, verteu um copo de água tirada de uma garra­fa térmica, lançou as pílulas na boca e tomou-as com um gole.

Voltou os olhos para Wolfe e queixou-se, ressentido:

— Estou com uma maldita dor de cabeça há duas semanas. Tomei uma tonelada de aspirinas e não deu resultado algum. Vou ter um colapso nervoso. Essa é a verdade...

Com uma batida, a porta abriu-se. A intrusa era uma mu­lher alta e bonita, em um vestido preto decorado com fileiras de botões brancos. Ela continuou a aproximar-se, olhou em volta, e disse numa voz tresandando à cultura:

— Desculpem-me, por favor — olhou para McNair: — Aquele modelo esporte 1241 o de cashmere de padrão de gato listrado com a faixa oxford de tamanho médio... poderá ser feito em dois tons de lã shetland natural, com motivos de cesto em vez de gato?

McNair contraiu as sobrancelhas para ela e indagou:

— O quê?

Ela tomou uma respiração e recomeçou:

— Aquele modelo esporte 1241...

— Oh. Eu ouvi. Não pode. A linha destaca, Sra. Lamont. A senhora sabe disso.

— Eu sei. Mas a Sra. Frost quer assim. McNair endireitou-se na cadeira.

— Sra. Frost? Ela está aqui?

A mulher inclinou a cabeça afirmativamente.

— Ela está comprando. Disse a ela que o senhor estava ocupado. Ela está levando dois dos conjuntos Portsmouth.

— Oh, aposto que sim — McNair subitamente deixou de mexer-se na cadeira e a sua voz, embora ainda aguda, pareceu mais controlada. — Preciso vê-la. Pergunte-lhe se ela pode esperar até que eu tenha terminado aqui.

— E o 1241 em dois tons de lã shetland...

— Sim. Naturalmente. Aumente cinqüenta dólares.

A mulher inclinou a cabeça, desculpou-se novamente e saiu. McNair olhou para o relógio, lançou uma mirada maligna para o jovem Frost e fitou Wolfe.

— O senhor ainda pode dispor daqueles dez minutos. Wolfe sacudiu a cabeça.

— Não preciso deles. O senhor está nervoso. Sr. McNair O senhor está perturbado.

— O quê?-Não precisa deles?

— Não. O senhor provavelmente leva uma vida excessiva­mente ativa, correndo para vestir mulheres — Wolfe estreme­ceu. — Horripilante. Eu gostaria de perguntar-lhe duas coisas. A primeira a respeito da morte de Molly Lauck. Tem alguma coisa a acrescentar ao que disse ao Sr. Cramer e ao Sr. Frost? Sei perfeitamente bem o que foi. Alguma coisa de novo?

— Não — McNair fez uma carranca. Levantou o lenço e enxugou a testa. — Não. Nada, absolutamente.

— Muito bem. Neste caso, seria inútil tomar mais do seu tempo. A segunda pergunta: posso ser levado a uma sala onde algumas de suas empregadas possam ser chamadas para conver­sar comigo? Tornarei as conversas tão curtas quanto possível. Especialmente as Srtas. Helen Frost e Thelma Mitchell, e a Sra. Lamont. Acho que o Sr. Perren Gebert não está, por acaso?

McNair respondeu secamente:

— Gebert? Por que, demônios, deveria estar?

— Não sei — Wolfe encolheu os «ombros um centímetro e deixou-os cair. — Estou apenas perguntando. Sei que ele esteve aqui há uma semana, a contar de ontem, o dia em que o Srta. Lauck morreu, quando o senhor fazia o desfile. Acre­dito que é chamado de desfile, não?

— Sim, fiz um desfile, Gebert apareceu por acaso. Ha­via dezenas de pessoas aqui. Quanto a falar com as moças e a Sra. Lamont... se for breve, pode fazer isso aqui. Tenho de descer até o salão.

— Eu preferiria algo menor... mais humilde. Por favor.

— Faça o que quiser — McNair levantou-se. — Leve-os a um dos cubículos, Lew. Direi a Sra. Lamont. Quer conver­sar com ela em primeiro lugar?

— Eu gostaria de conversar inicialmente com a Srta. Frost e a Srta. Mitchell. Juntas.

— O senhor poderá ser interrompido, caso elas sejam ne­cessárias em algum lugar.

— Serei paciente.

— Muito bem. Quer dizer-lhes, Lew?

Ele olhou em volta, agarrou o lenço em cima da mesa) en­fiou-o embolado no bolso e saiu apressadamente.

Llewellyn Frost, levantando-se, começou a protestar:

— Não compreendo por que o senhor não... Wolfe interrompeu-o:

— Sr. Frost. Suporto apenas até o meu limite. Obvia­mente, o Sr. McNair está doente, mas ninguém pode tornar isso uma reivindicação à tolerância. Não se esqueça de que o senhor é responsável por esta grotesca expedição. Onde fica o tal cubículo?

— Bem, estou pagando.

— Não o suficiente. O senhor não poderia. Vamos, cava­lheiro !

Frost tomou a frente, descemos o corredor, ele abriu a porta na extremidade à esquerda, acendeu as luzes, disse que voltaria logo e desapareceu. Passei os olhos em volta. Era uma pequena sala apainelada com uma mesa, um cinzeiro de pé, es­pelho de corpo inteiro e três elegantes cadeiras forradas de seda. De pé, Wolfe olhou para a confusão e contraiu os lábios.

— Revoltante — disse. — Eu não... eu não... Sorri para ele.

— Você sabe perfeitamente que não e, pelo menos por uma vez na vida, não o censuro. Vou buscá-la.

Saí, desci o corredor até o escritório de McNair, entrei, pus a cadeira dele nos ombros e voltei para o cubículo. Frost e as duas deusas entravam no momento em que eu cheguei. Frost saiu para buscar outra cadeira, enquanto eu depositava a minha presa no chão, atrás da escrivaninha, e olhava para Wolfe.

— Se gostar dela, levá-la-ei para casa quando formos embora — Frost voltou com a sua contribuição e eu lhe disse: — Vá buscar três garrafas de cerveja leve, frescas, um copo e um abridor. Precisamos mantê-lo vivo.

Ele ergueu as sobrancelhas e disse:

— Você está maluco.

— Estive maluco quando sugeri aquela carta dos planta­dores de orquídeas? — perguntei num murmúrio. — Vá buscar a cerveja.

Ele foi. Sentei-me tendo de um lado a deusa loura e de outro a sílfide. Wolfe fungava cheirando o ar. Subitamente, indagou:

— Todos estes cubículos são perfumados assim?

— São — a loura sorriu-lhe. — Não somos nós.

— Não. Estava aqui antes que vocês entrassem. Pfui! En­tão, vocês, moças, trabalham aqui. Vocês são o que chamam de manequins?

— É exatamente isso o que nos chamam. Sou Thelma Mi­tchell — a loura  fez um aceno com a mão ágil e graciosa. — Esta é Helen Frost.

Wolfe inclinou a cabeça e voltou-se para a sílfide:

— Por que trabalha aqui, Srta. Frost? A senhorita não precisa. Por quê?

Helen Frost olhou-o calmamente, com uma pequena ruga entre os olhos. Respondeu tranqüilamente:

— Meu primo disse-nos que o senhor gostaria de fazer-nos perguntas... a respeito de Molly Lauck.

— Realmente — Wolfe reclinou-se cautelosamente para ver se a cadeira suportava. Nenhum estalo. Ele se acomodou. — Compreenda isto, Srta. Frost: eu sou um detetive. Por isso mesmo, conquanto possa ser acusado de incompetência ou estu­pidez, não poderei ser acusado de impertinência. Por mais absur­das ou irrelevantes minhas perguntas lhe pareçam, elas podem estar repletas da maior significação e das mais sinistras impli­cações. Tal é a tradição de minha profissão. Para dizer a ver­dade, eu estava simplesmente fazendo um esforço para conhecê-la melhor.

Os olhos dela permaneceram calmos.

— Estou fazendo isto como um favor a meu primo Lew. Ele não me pediu que eu me desse a conhecer melhor — ela engoliu em seco. Ele me pediu para responder a perguntas a respeito da última segunda-feira.

Wolfe inclinou-se para a frente e disse secamente:

— Apenas como favor a seu primo? Molly Lauck não era sua amiga? Não foi assassinada? Não está interessada em contribuir para a solução do caso?

Ela não ficou lá muito abalada. Engoliu novamente, mas permaneceu calma:

— Interessada... sim. Naturalmente. Mas eu disse à Polícia... e não compreendo por que Lew... não entendo por que o senhor — ela parou, levantou a cabeça com um repelão e indagou: — Já não lhe disse que responderei às suas per­guntas? Foi terrível... foi uma coisa terrível...

— Foi mesmo — Wolfe voltou-se abruptamente para a loura. — Srta. Mitchell, pelo que sei, às quatro e vinte da tarde da última segunda-feira, uma semana a contar de ontem, a senhorita e a Srta. Frost tomaram juntas o elevador, para baixo, e desceram neste andar. Certo?

Ela inclinou a cabeça, assentindo.

— E não havia ninguém aqui, isto é, a senhorita não viu ninguém. A senhorita desceu o corredor até a quinta porta à esquerda, em frente do gabinete do Sr. McNair, e entrou na­quela sala, que é um apartamento usado como sala de repouso pelos quatro manequins que trabalham aqui. Molly Lauck es­tava lá dentro. Certo?

Ela inclinou novamente a cabeça.

— Conte-me então o que aconteceu — pediu Wolfe. A loura tomou uma respiração e começou:

— Bem. Começamos a falar do desfile, dos fregueses e assim por diante. Nada de especial.- Conversamos durante mais ou menos três minutos assim, quando, subitamente, Molly disse que havia esquecido alguma coisa, enfiou a mão sob um casaco e tirou uma caixa...

— Desculpe-me. Quais foram as palavras da Srta. Lauck?

— Disse simplesmente que esquecera, que tinha algumas...

— Não. Por favor. Que é que ela disse? As palavras exatas.

A moça olhou-o fixamente.

— Bem, se eu puder. Ela disse, vamos ver: "Oh, esqueci, meninas, tenho aqui uma moamba. Consegui surripiá-la sem que ninguém visse." Enquanto ela dizia isso, puxava a caixa de debaixo do casaco...

— Onde estava o casaco?

— Era o casaco dela, sobre a mesa.

— E onde estava a senhorita?

— Eu? Lá, de pé. Ela estava sentada sobre a mesa.

— E onde estava a Srta. Frost?

— Ela estava... ela estava do outro lado, junto do espe­lho, ajeitando o cabelo. Não estava, Helen?

A sílfide meramente inclinou a cabeça. Wolfe continuou:

— E, então? Exatamente. Palavras exatas.

— Bem, ela me entregou a caixa, segurei-a, abri e disse...

— A caixa fora aberta antes?

— Não sei. Não estava embrulhada, nem tinha fita, nada. Abri e disse: "Puxa, um quilo e ninguém tocou neles ainda. Onde os conseguiu, Molly?" Ela respondeu: "Como lhe disse, surripiei-a. Presta?" Ela disse a Helen para experimentar alguns...

— As palavras dela.

A Srta. Mitchell contraiu as sobrancelhas e respondeu:

— Não sei. Apenas "tire um, Helen", ou "entre na dança, Helen"... ou alguma coisa assim. De qualquer modo, Helen não tirou nenhum...

— Que é que ela disse?

— Não sei. Que é que você disse, Helen? A Srta. Frost falou sem engolir:

— Não me lembro. Eu acabara de tomar coquetéis e não queria nenhum.

A loura inclinou a cabeça, concordando.

— Alguma coisa assim. Em seguida, Molly tirou um e eu outro...

— Por favor — Wolfe sacudiu um dedo na direção da moça. — A senhorita tinha a caixa nas mãos?

— Tinha. Molly a havia entregue a mim.

— A Srta. Frost então não a teve nas mãos absolutamente? — Não, como lhe contei, ela disse que não queria nenhum.

Ela nem mesmo olhou para eles.

— E a Srta. Lauck e a senhorita cada uma tiraram um...

— Tirei. Escolhi um com recheio de abacaxi. Era uma mistura: chocolates, bombons, castanhas, frutas cristalizadas, tudo. Comi. Molly colocou o dela na boca, todo ele, e depois de mordê-lo disse... disse que havia algo estranho...

— Palavras, por favor.

— Bem, ela disse, deixe-me ver: "Meu Deus, é álcool de 200 graus, mas não tão ruim assim. Acho que agüento."  fez uma careta mas mastigou-o e engoliu-o. Em seguida... bem... o senhor não acreditaria tão rápido foi...

— Tentarei. Conte-me.

— Não mais de meio minuto. Tenho certeza de que não passou disso. Tirei outro e o estava comendo, enquanto Molly olhava para a caixa, dizendo alguma coisa sobre tirar aquele gosto da boca...

Ela parou porque as portas abriram-se bruscamente. Llewellyn Frost apareceu, trazendo uma cesta de papel. Levantei-me, tirei-a de suas mãos, extraí um abridor, um copo, as garra­fas e coloquei-as em frente de Wolfe. Wolfe apanhou o abri­dor e experimentou as garrafas.

— Hummm. Schereirer's. Gelada demais. Sentei-me novamente.

— Fará espuma. Experimente — ele se serviu enquanto Helen Frost dizia ao primo:

— Então foi isso o que você foi arranjar. O seu detetive quer saber exatamente o que eu disse, minhas palavras exatas, e pergunta a Thelma se eu segurei a caixa de balas...

Frost bateu-lhe levemente no ombro.

— Ora, Helen. Acalme-se. Ele sabe o que está fazendo... Uma garrafa e um copo vazios. Frost sentou-se. Wolfe

enxugou os lábios.

— A senhorita dizia que a Srta. Lauck falou em tirar o gosto da boca.

A loura inclinou a cabeça.

— Exato. Então... bem... subitamente, ela se espigou, emitiu um som. Não gritou, foi apenas um som, um som horrí­vel. Desceu da mesa e, em seguida, inclinou-se para trás contra ela, com o rosto todo contraído... contorcido. Ela me olhou com olhos esbugalhados, abriu e fechou a boca, mas nada pôde dizer. Subitamente, tremeu toda, estendeu as mãos para mim, agarrou-me os cabelos... e... e...

— Sim, Srta. Mitchell? A loura engoliu em seco.

— Bem, quando ela caiu, arrastou-me também, porque es­tava segura nos meus cabelos. E, naturalmente, fiquei com medo. Soltei-me com força. Mais tarde, quando o médico... quando vieram outras pessoas, ela tinha um molho de cabelos meus agarrados na mão.

Wolfe voltou os olhos para ela e disse:

— Tem bons nervos, Srta. Mitchell.

— Não sou molenga. Chorei um bocado depois que che­guei em casa naquela noite, chorei até não mais poder. Mas não chorei na ocasião. Helen, de pé contra a parede, estava tremendo, olhava, mas não podia mexer-se. Ela mesma lhe dirá isso. Corri para o elevador e gritei pedindo ajuda. Depois corri para lá novamente, pus a tampa na caixa de balas e se­gurei-a até que o Sr. McNair chegou e eu a entreguei a ele.

Molly estava morta, podia-se ver isso. Estava toda enrodilhada. Ela caiu já morta — Ela engoliu em seco novamente. — Talvez o senhor possa dizer-me. O médico disse que era algum tipo de ácido e o jornal falou em cianeto de potássio. Lew Frost interrompeu:

— Hidrocianeto. Diz a Polícia... que é a mesma coisa. Eu lhe contei isso, não?

Wolfe sacudiu um dedo na direção dele.

— Por favor, Sr. Frost- Sou eu quem está ganhando os honorários e o senhor pagando. Então, Srta. Mitchell, a senho­rita nada sentiu com os seus dois bombons e a Srta. Lauck comeu apenas um.

— Isto é tudo — a loura arrepiou-se. — É terrível pensar que há algo que pode matar uma pessoa tão rapidamente. Ela não pôde nem mesmo falar. Podia-se ver a coisa atravessando-a enquanto ela tremia daquele jeito. Segurei a caixa, mas livrei-me dela logo que vi o Sr. McNair.

— Então, segundo sei, a senhorita correndo. Ela inclinou a cabeça.

— Corri para o banheiro — ela  fez uma careta. — Tive de vomitar. Eu havia comido dois deles.

— Realmente. Extremamente eficiente — Wolfe abriu outra garrafa e começou a servir-se. — Voltando atrás um pouco. A senhorita não viu a caixa de balas antes que a Srta. Lauck a tirasse de debaixo do casaco?

— Não. Não vi.

— Que é que julga ela pensava quando disse que a havia surrupiado?

— Ora... ela quis dizer... que a viu em alguma parte e apanhou-a.

Wolfe voltou-se na cadeira.

— Srta. Frost. Que é que pensa que a Srta. Lauck tinha em mente quando disse isso?

— Acho que ela tinha em mente exatamente o que disse, que a surrupiou. Robou-a.

— Era costume dela fazer isso? Era ladra?

— Claro que não. Ela tirou apenas uma caixa de choco­lates.  fez isso de brincadeira, acho. Ela gostava de pregar peças... de fazer justamente coisas assim.

— Viu por acaso a caixa antes que ela a mostrasse naque­la sala?

— Não.

Wolfe esvaziou o copo em cinco goles, o que se empare­lhava com a sua melhor marca, e limpou os lábios. Tinha os olhos semicerrados pousados na loura.

— Acho que foi almoçar naquele dia com a Srta. Lauck. Conte-nos algo a respeito.

— Bem... Molly e eu saímos juntas mais ou menos à uma hora. Estávamos famintas porque havíamos trabalhado muito — o desfile estava em andamento desde onze horas — mas fomos apenas até a uma lanchonete na esquina porque tí­nhamos de voltar em vinte minutos para dar uma oportunidade a Helen e às extras. O horário do desfile era de onze às duas, mas sabíamos que pessoas continuariam a aparecer. Comemos sanduíches e um manjar e voltamos diretamente para aqui.

— Observou por acaso a Srta. Lauck surripiar a caixa de balas na lanchonete?

— Claro que não. Ela não faria isso.

— A senhorita por acaso comprou-a pessoalmente na lan­chonete e trouxe-a consigo?

A Srta. Mitchell olhou-o fixamente e, em seguida, disse, enojada:

— Por Deus, não.

— Tem certeza de que a Srta. Lauck não a conseguiu em alguma parte quando saiu para almoçar?

— Naturalmente que tenho. Fiquei com ela durante todo o tempo.

— Ela não teria saído por acaso novamente durante a tar­de?

— Não. Trabalhamos juntas até às três e meia, quando houve uma pausa e ela desceu. Pouco depois, Helen e eu subi­mos e a encontramos aqui. Na sala de descanso.

— E ela comeu um bombom, morreu, e a senhorita comeu dois e nada lhe aconteceu — Wolfe suspirou. — Há, natural­mente, a possibilidade de que ela tenha trazido a caixa quando veio trabalhar naquela manhã.

A loura sacudiu negativamente a cabeça.

— Pensei nisso. Todos nós falamos a esse respeito. Ela não trouxe pacote algum. De qualquer maneira, onde poderia ter o pacote estado durante toda a manhã? Não estava na sala de descanso e não havia qualquer outro lugar...

Wolfe inclinou a cabeça, concordando.

— Aí é que está o problema. É uma história gravada. A senhorita não está realmente me contando suas recordações frescas e diretas do que aconteceu na última segunda-feira. Está simplesmente repetindo a conversação em que ela se transfor­mou. Por favor, não se ofenda. O senhor não pode auxiliar em coisa alguma. Eu devia ter estado aqui na tarde da última segunda-feira... Ou melhor, eu não devia ter estado aqui, abso­lutamente. Eu não devia estar aqui agora — ele olhou irritado para Llewellyn Frost, recordou-se em seguida da cerveja, en­cheu o copo e bebeu.

Olhando em seguida de uma moça para a outra, recomeçou:

— Vocês sabem, naturalmente, em que consiste o proble­ma. Na última segunda-feira havia mais de cem pessoas aqui, principalmente mulheres, mas também alguns homens, para assis­tirem ao desfile. Fazia frio, dia de março e todos usavam casacos. Quem trouxe a caixa de bombons? A Polícia interro­gou todo mundo ligado ao estabelecimento. Não descobriu pessoa alguma que tivessem visto a caixa ou admitisse qualquer conhecimento da mesma. Ninguém que tivesse visto a Srta. Lauck com ela ou que tivesse a mínima idéia sobre onde ela o conseguira. Uma situação insuportável.

Ele sacudiu um dedo em direção a Frost.

— Eu lhe disse, cavalheiro, que este caso não se enquadra na minha esfera. Eu posso usar um dardo ou um florete, mas não posso colocar armadilhas por todo o território do distrito metropolitano. Quem trouxe o veneno para aqui? Para quem se destinava? Somente Deus sabe, mas eu não estou disposto a visitá-lo, não importa quantos criadores de orquídeas sejam coagidos a assinar cartas idiotas. Duvido mesmo que valha a pena tentar a segunda metade dos honorários que o senhor vai pagar-me, desde que sua prima — a sua ortoprima — recusa-se a dar-se a conhecer a mim. Quanto à primeira metade, o escla­recimento da morte de Srta. Lauck, eu poderia tentar isso apenas mediante entrevistas com todas as pessoas que estiveram aqui na última segunda-feira. E duvido que pudesse convencer até mesmo os inocentes a comparecerem ao meu gabinete.

— O trabalho é seu — murmurou Lew Frost. — O senhor aceitou-o. Se não está à altura...

— Tolice. Pensa que um engenheiro de pontes dá-se ao trabalho de abrir valas? — Wolfe abriu a terceira garrafa. — Acho que não lhe agradeci pela cerveja. Muito obrigado. Asse­guro-lhe, cavalheiro, que este problema está dentro de minha capacidade tanto quanto me for possível aplicá-la. Até agora... por exemplo, tomemos o exemplo da Srta. Mitchell aqui. Es-

tara ela dizendo a verdade. Teria ela assassinado Molly Lauck? Vejamos — Voltou-se e perguntou secamente: — Srta. Mitchell. A senhorita habitualmente come muito bombons?

— O senhor está sendo muito vivo — disse ela.

— Estou-lhe pedindo que tenha paciência. Não doerá muito, com nervos como os seus. A senhorita habitualmente come muitos bombons?

Ela encolheu os ombros e, em seguida, relaxou-os.

— Uma vez ou outra. Sou obrigada a ter cuidado. Eu sou um manequim e tenho de cuidar da aparência.

— Qual é o seu tipo favorito?

— Frutas cristalizadas. Gosto também de nozes.

— A senhorita tirou a tampa daquela caixa na segunda-feira. Qual era a cor dela?

— Marrom. Um tipo de marrom dourado-

— Qual o tipo? Que estava escrito na tampa?

— Estava escrito... estava escrito, Medley. Algum tipo de bombons sortidos.

Wolfe interrompeu-a bruscamente:

— Algum tipo de sortidos? Quer dizer que não se lembra do nome impresso na tampa?

Ela o olhou, carrancuda.

— Não... Não me lembro. Isto é engraçado. Eu teria pensado...

— Eu também. A senhorita olhou para a caixa, tirou-lhe a tampa, mais tarde colocou-a no lugar, segurou-a, sabendo que nela havia um veneno mortal e nem mesmo ficou curiosa a respeito..

— Ei, esperei aí. O senhor não é tão sabido assim. Molly estava caída no chão, morta, a sala se enchia, e eu procurava o Sr. McNair para entregar-lhe a caixa. Eu não queria aquela maldita coisa comigo e certamente não estava pensando em coisas que me pudessem despertar a atenção — ela contraiu novamente as sobrancelhas. — Por falar nisso, é estranho que eu não visse realmente o nome.

Wolfe inclinou a cabeça. Voltou-se abruptamente para Lew Frost:

— O senhor vê, cavalheiro, como são as coisas. Que se poderia deduzir do desempenho da Srta. Mitchell? Estará ela mentindo inteligentemente ao dizer que não sabe o que havia escrito na tampa ou é crível que ela realmente não tenha notado? Estou meramente fazendo uma demonstração. Para dar outro exemplo, tome sua prima — voltou para ela os olhos e dis­parou a pergunta! — A senhorita come muitos bombons? Ela voltou os olhos para o primo.

— Isto é necessário, Lew?

Frost corou. Abriu a boca para falar, mas Wolfe ante­cipou-se:

— A Srta. Mitchell não procurou evitar a pergunta. Claro, ela tem bons nervos.

A sílfide olhou-o tranqüilamente nos olhos.

— Nada há de errado com os meus nervos. Mas este tipo barato... oh, bem, como bombons. Prefiro muito mais caramelos e, desde que trabalho como manequim e tenho de ter cuidado também, limito-me a eles.

— Caramelos de chocolate? Caramelos de nozes?

— Qualquer tipo. Caramelos. Gosto de mastigá-los.

— Com que freqüência os come?

— Talvez uma vez por semana.

— Compra-os pessoalmente?

— Não. Não tenho oportunidade de fazê-lo. Meu primo conhece minhas preferências e envia-me caixas do Carlatti's. Sou obrigada a dar a maior parte.

— Gosta muito deles?

Ela inclinou a cabeça, concordando.

— Muito.

— Acha difícil resistir quando são oferecidos? Às vezes, sim.

— Na tarde de segunda-feira a senhorita trabalhou muito? Estava cansada? Teve um almoço curto e insatisfatório?

Ela, continuando tolerante, respondeu:

— Sim.

— Então, quando a Srta. Lauck ofereceu-lhe caramelos, por que não os aceitou?

— Ela não me ofereceu caramelos. Não havia caramelo algum naquela... — ela parou. Relanceou os olhos para o lado, para o primo, e, em seguida, pousou-os em Wolfe. — Isto é, não pensei...

— Não pensou? — a voz de Wolfe abrandara-se subita­mente. — A Srta. Mitchell não podia recordar-se do que havia escrito na tampa da caixa. A senhorita pode?

— Não. Não sei.

— A Srta. Mitchell disse que a senhorita não segurou a caixa. A senhorita estava ao espelho, arrumando o cabelo. Nem mesmo olhou-a. Certo?

Ela o olhava fixamente.

— Certo — respondeu.

— A Srta. Mitchell disse também que recolocou a tampa da caixa e manteve-a sob o braço até entregá-la ao Sr. McNair. Está correto?

— Não sei. Eu... eu não notei.

— Não. Naturalmente, nas circunstâncias. Mas, depois de a caixa ter sido entregue ao Sr. McNair, daquele momento até que ele a entregou à Polícia, viu-a alguma vez? Teve opor­tunidade de examiná-la?

— Não a vi. Não.

— Apenas mais uma pergunta, Srta. Frost... para ter­minar esta demonstração! Tem certeza de que não sabe o que havia escrito na tampa? Não seria uma marca que conhece'

Ela sacudiu a cabeça.

— Não tenho a mínima idéia?

Wolfe reclinou-se na poltrona e suspirou. Apanhou a ter­ceira garrafa, encheu o copo e ficou observando a formação da espuma. Ninguém falou. Simplesmente o olhamos enquanto ele bebia. Depositando o copo na mesa, ele enxugou os lábios e abriu os olhos para o cliente.

— Como vê o senhor — disse, tranqüilamente — mesmo numa demonstração curta, onde não são esperados resultados, algo é virado de pernas para o ar. Pelo que ela mesmo diz, sua prima jamais viu o conteúdo da caixa depois que a Srta. Lauck surrupiou-a. Não sabia que marca era e, por isso, não podia conhecer-lhe o conteúdo. Apesar disso, ela sabia, com absoluta certeza, que nela não havia caramelos. Ela, por con­seguinte, viu o conteúdo da caixa, em alguma parte, em alguma ocasião, antes que a Srta. Lauck a surrupiasse. Isto, cava­lheiro, chama-se de dedução. Era a isso que eu me referia quando mencionei entrevistas com todas as pessoas que esti­veram neste lugar na última segunda-feira.

Lew Frost, olhando-o furioso, disse impetuosamente:

— Então o senhor chama a isso... que diabo é que o chama? Minha prima...

— Eu lhe disse: dedução.

Sentada, pálida, a sílfide olhava-o fixamente. Abriu a boca umas duas vezes, mas fechou-a sem falar. Thelma Mitchell interveio atabalhoadamente:

— Ela não disse que tinha certeza de que não havia cara­melos na caixa. Ela disse apenas...

Wolfe calou-a com a palma da mão erguida.

— Está sendo leal, Sra. Mitchell? Que vergonha! A primeira lealdade aqui deve ser para com os mortos. O Sr. Frost arrastou-me até aqui porque Molly Lauck morreu. Con­tratou-me para descobrir como e por quê. Bem, cavalheiro? Não foi isso?

Frost respondeu apressadamente:

— Não o contratei para fazer truques idiotas com duas moças nervosas. Ouça aqui, seu maldito gorducho imbecil! Eu já conheço mais a respeito deste negócio do que o senhor jamais descobrirá em cem anos! Se pensa que lhe estou pa­gando. .. o que, hei? Aonde vai? Qual é o jogo agora? Volte àquela cadeira, estou-lhe dizendo...

Wolfe levantara-se, sem pressa, dera a volta à mesa, pas­sando ao lado dos pés de Thelma Mitchell. Frost levantou-se com um salto e iniciou movimentos para detê-lo, estendendo um braço rígido na direção de Wolfe.

Levantei-me e dei um passo na direção dele.

— Não empurre, moço — eu preferia ter-lhe dado um soco, mas ele teria caído sobre uma senhora. — Acalme-se, por favor. Vamos, para trás.

Ele me olhou de má cara, mas contentou-se com isso. Wolfe desviara-se e encaminhava-se para a porta quando ouvi­mos uma batida. A porta abriu-se e a bela mulher de vestido preto e fileiras de botões brancos  fez o seu aparecimento. Entrou.

— Desculpem-me, por favor — ela olhou em volta, calma, e pôs os olhos em mim. — Pode dispensar a Srta. Frost? Precisamos dela lá embaixo. E o Sr. McNair disse-me que o senhor quer falar comigo. Posso dispor de alguns minutos agora.

Olhei para Wolfe. Ele fizera um cumprimento à mulher, inclinando a cabeça umas duas polegadas.

— Muito obrigado, Sra. Lamont. Não será necessário. Fizemos excelente progresso. Mais do que se poderia razoa­velmente esperar. Archie, você pagou a cerveja? Dê um dólar ao Sr. Frost. Deve ser o suficiente.

Tirei a carteira, extraí dela um dólar e coloquei a nota sobre a mesa. Com um olhar rápido em volta, notei que Helen Frost parecia pálida, Thelma Mitchell dava a impressão de inte­ressada e Llewellyn tinha ares de quem queria cometer um homicídio. Wolfe saíra do aposento. Fiz o mesmo e juntei-me a ele do lado de fora, onde ele já premia o botão do elevador.

— Aquela cerveja não poderia ter custado mais do que 25 centavos, setenta e cinco pelas três — disse-lhe eu.

Wolfe concordou com um meneio da cabeça e disse:

— Ponha a diferença na conta.

No andar térreo, passamos sem parar por toda aquela atividade. Num dos lados, vimos McNair conversando com uma mulher de estatura média, espigada, de boca orgulhosa. Virei a cabeça para um segundo exame, suspeitando de que se tratava da mãe de Helen Frost. Uma deusa que eu não vira antes desfilava em uni casaco marrom em frente de uma mulher com um cão. Havia mais três ou quatro pessoas por ali. Pouco antes de chegarmos à porta, esta abriu-se e entrou um homem, um tipo de ombros largos, com uma cicatriz no rosto. Eu conhecia tudo a respeito daquela cicatriz. Cumpri­mentei-o com um gesto da cabeça.

— Ei, Purley.

O homem parou e olhou fixamente, não para mim, mas para Wolfe.

— Deus do céu! Conseguiu dispará-lo de lá com um canhão?

Sorri e continuei meu caminho.

De volta a casa, fiz algumas tentativas de conversação cor­dial sobre o ombro, mas sem êxito algum. Tentei:

— Aqueles manequins são umas lindas criaturas, não? O freguês não estava interessado. Tentei novamente:

— Reconheceu o cavalheiro que encontramos na saída? O nosso velho amigo Purley Stebbins, da Delegacia de Homi­cídios, um dos mercenários de Cramer?

Nenhuma reação. Comecei a olhar em frente procurando um buraco conveniente.

 

Capitulo 3

Llewellyn Frost chamou ao telefone pela primeira vez por volta de uma e meia, no momento em que Wolfe e eu fazíamos o que se devia fazer com algumas salsichas, condimentadas com dez tipos diferentes de temperos, que ele obtinha várias vezes todas as primaveras de um suíço que morava nas proximidades de Chappaqua e que a preparava pessoalmente com a carne de porcos criados em casa. Fritz Brenner, o chef e orgulho da casa, recebeu instruções para dizer a Llewellyn que o Sr. Wolfe estava almoçando e que não podia ser perturbado. Eu gostaria de ter ido atender ao telefone, mas Wolfe pregou-me na mesa com um dedo. A segunda chamada foi feita pouco depois das duas, enquanto Wolfe bebericava preguiçosamente o café. Fui ao escritório recebê-la.

Frost deu-me a impressão de preocupado e ressentido. Queria saber se poderia visitar Wolfe às duas e meia. Res­pondi que sim, que ele provavelmente estaria disponível daí em diante. Depois que desligou, ocupei-me na minha escriva­ninha com alguns trabalhos. Minutos depois Wolfe entrou, tranqüilo e benevolente, mas pronto para repelir qualquer ten­tativa de alguém de causar agitação, como sempre depois de uma refeição apropriada e sem pressa.

Sentou-se à escrivaninha, exalou um suspiro de felicidade e olhou em torno para as paredes — as estantes, mapas, Holbeins, mais estantes, a gravura de Brilliat-Savarin. Após um momento, abriu a gaveta do meio e começou a tirar chapinhas de cerveja e empilhá-las sobre a escrivaninha.

— Um pouco menos de estragão e uma pitada mais de cerefólio — observou ele. — Fritz poderá tentar isso na pró­xima vez. Preciso sugerir-lhe isso.

— Certo — concordei, não desejando discutir o assunto. Ele sabia muito bem que eu gostava de estragão. — Mas se quer contar essas chapinhas é melhor começar logo- O nosso cliente está a caminho.

— Realmente! — ele começou a separar as chapinhas em pilhas de cinco. — Diabo, descontando aquelas três cervejas na rua, penso que já estou com quatro à frente esta semana.

— Bem, isso é normal — disse eu, girando na cadeira. — Ouça aqui, esclareça-me antes que Frost chegue. Que é que o levou a fazer aquilo com a moça Frost?

Ele levantou os ombros cerca de meio centímetro e deixou-os cair novamente.

— Ira. Aquilo que você ouviu foram os guichos de um rato encurralado. Lá estava eu, esgrimido contra a parede naquele insuportável buraco perfumado, forçado a participar de um caso em que nada havia como ponto de partida. Ou melhor, havia demais. Além disso, não suporto homicídio por inadvertência. Quem quer que tenha envenenado aquele bom-bom é um jumento estúpido. Eu simplesmente comecei a guinchar — ele contraiu as sobrancelhas diante das pilhas de chapinhas. — Vinte e cinco, trinta, trinta e três. Mas o resultado foi notável. E bastante conclusivo. Seria irônico que ganhássemos apenas a segunda metade dos nossos honorários se a Srta. Frost fosse metida na prisão. Não que eu considere isso como possível. Espero, Archie que não se importe por eu falar assim como uma criança.

— Não, é perfeitamente natural após uma refeição. Con­tinue. De qualquer modo, júri algum acharia a Srta. Frost culpada de coisa alguma.

— Acho que não. Por que deveria? Até mesmo a um jurado deve-se permitir que pague seu tributo à beleza. Mas se a Srta. — Frost tem alguma provação à espera, acho que não será isso. Notou o grande brilhante que ela levava no dedo? E o outro no estojo de maquilagem?

Inclinei a cabeça.

— Que é que tem isso? Ela está noiva?

— Não sei. Mencionei os brilhantes porque eles não com­binam com ela. Você já me ouviu dizer que eu tenho uma certa sensibilidade para fenômenos psíquicos. Com a perso­nalidade e a reserva dela — mesmo descontando as circunstân­cias excepcionais — não é natural que a Srta. Frost use bri­lhantes. E havia também a selvagem hostilidade do Sr. McNair, por certo tão antinatural como desagradável, por mais que ele odeie o Sr. Llewellyn Frost. E por que o odeia? Mais clara é a razão da familiaridade do Sr. Frost com uma expressão tão estranha como ortoprimo, uma palavra estritamente usada por antropologistas, embora ela abra oportunidade a várias es­peculações. Os ortoprimos são aqueles cujos pais são do mesmo sexo — os filhos de dois irmãos ou duas irmãs, enquanto primos carnais são aqueles cujos pais são irmão e irmã. Em algumas tribos os primos carnais podem casar, mas não os ortoprimos. Evidentemente, o Sr. Frost examinou exaustivamente a ques­tão... É certamente possível que nenhuma dessas coisas estra­nhas tenha relação alguma com a morte de Molly Lauck, mas devem ser notadas, juntamente com numerosas outras. Espero que não o esteja entediando, Archie. Como você sabe, esta é a rotina do meu gênio, embora habitualmente eu não a vocalize. Sentei-me nesta cadeira certa noite durante cinco horas, pen­sando nos fenômenos de Paul Chapin, sua esposa e os membros daquela incrível Liga de Expiação. Falo principalmente porque se não o fizer, você começará a mexer nos papéis para aborre­cer-me e não estou com vontade de irritar-me. Aquela salsi­cha... A campainha está tocando. O nosso cliente. Ah! Ainda nosso cliente, embora talvez não julgue tal.

Ouvimos passos que se aproximavam vindos do saguão e, logo depois, voltando. A porta do escritório abriu-se e Fritz apareceu. Anunciou o Sr. Frost, Wolfe inclinou a cabeça e pediu uma cerveja. Fritz foi buscar.

Llewellyn entrou agitado. Entrou agitado, mas se podia ver pelos seus olhos que se tratava de um caso de dupla perso­nalidade. Por trás dos olhos, ele estava gelado de medo. Foi aos pulos até a escrivaninha de Wolfe e começou a falar como um homem que já está atrasado para nove encontros.

— Eu poderia ter-lhe dito ao telefone, Sr. Wolfe, mas gosto de fazer as coisas face a face. Gosto de ver a pessoa e deixar que ela me veja. Especialmente num caso como este. Devo-lhe uma desculpa. Perdi a calma e fiz um papel de idiota. Quero desculpar-me — estendeu a mão. Wolfe olhou-a e, em seguida, levantou os olhos para o rosto do visitante. Ele retirou a mão, corou e continuou! — O senhor não deve ficar magoado comigo. Simplesmente perdi a calma. E, de qualquer maneira, é preciso que o' senhor compreenda isto, preciso insistir nisto, que aquilo não teve importância. Helen... minha prima, ficou simplesmente nervosa. Eu conversei com ela. Aquilo não teve significação alguma. Mas, naturalmente, ela é muito sensível — sempre foi, de qualquer maneira — e nós discutimos o assunto, e concordo com ela que não tenho direito algum de andar-me intrometendo neste caso .Talvez eu não devesse ter-me intrometido absolutamente, mas pensei... bem... não importa o que pensei. Assim, reconheço o que o senhor  fez, e foi muito gentil de sua parte ir até lá, quando isto é contrário a seus hábitos. . . Assim, vamos justamente considerar a coisa como um fracasso e se o senhor apenas disser-me quanto lhe devo...

Ele parou, sorrindo de Wolfe para mim e de volta, como um empregado de armarinho tentando vender um velho tecido com uma grande mancha em cima.

Wolfe examinou-o e disse:

— Sente-se, Sr. Frost.

— Bem... apenas para encher um cheque... — ele recuou para uma cadeira puxando o talão de cheque de um bolso e a caneta-tinteiro de outro. — Quanto?

— Dez mil dólares.

Ele inalou violentamente e levantou os olhos.

— O quê?

Wolfe inclinou a cabeça.

— Dez mil. Isto seria mais ou menos o bastante para completar a missão de que me encarregou: metade para escla­recer o assassinato de Molly Lauck e metade para tirar sua prima daquele buraco infernal.

— Mas meu bom homem, o senhor não  fez nem uma nem outra coisa. O senhor está louco — ele apertou os olhos. — Não pense que vai assaltar-me. Não pense...

Wolfe interrompeu-o secamente:

— Dez mil dólares. E o senhor esperará aqui até veri­ficarmos se o cheque tem fundos.

— O senhor está louco — recomeçou Frost em alta velo­cidade. — Eu não tenho dez mil dólares. Meu espetáculo está indo bem, mas eu tinha um bocado de dívidas e ainda tenho. E, mesmo que eu os tivesse... Qual é a idéia? Chantagem? Se o senhor é do tipo...

— Por favor, Sr. Frost. Peço-lhe. Posso falar? Llewellyn olhou-o, furioso.

Wolfe reclinou-se na cadeira.

— Há três coisas que me agradam no senhor, cavalheiro, mas o senhor tem diversos maus hábitos. Um deles, a suposição de que palavras são tijolos a serem lançados contra as pessoas num esforço para desnorteá-las. O senhor precisa apren­der a acabar com isso. Outro, a sua disposição infantil de pre­cipitar-se à ação sem parar para pensar nas conseqüências. Antes de ter-me contratado definitivamente para empreender uma investigação, deveria ter analisado as possibilidades. Mas o fato é que o senhor contratou-me. E, deixe-me dizer-lhe o seguinte: o senhor queimou todas suas pontes quando me forçou a iniciar aquela surtida maluca até a Rua Cinqüenta e Dois. Por isso, o senhor terá de pagar. O senhor e eu estamos ligados por um contrato. Estou obrigado a efetuar certas inda­gações e o senhor está obrigado a pagar-me um honorário razoável e comensurável com o esforço. E quando, por motivos pessoais e peculiares, o senhor começa a antipatizar com o contrato, o que é que faz? Vem ao meu escritório e tenta derrubar-me da cadeira com palavras violentas como chanta­gem! Pfui! Insolência de uma criança mimada.

Serviu-se de cerveja e bebeu. Llewellyn Frost observava-o. Eu, depois de anotar o fato na caderneta, inclinei a cabeça na direção dele, em encorajadora aprovação de um dos seus me­lhores trabalhos.

O cliente finalmente falou:

— Mas, ouça aqui, Sr. Wolfe. Não concordei em deixar que o senhor fosse lá e... isto é... Eu não tinha idéia alguma que o senhor ia... — ele parou, e desistiu. — Não estou denunciando o contrato. Não vim aqui para começar a atirar tijolos. Perguntei-lhe apenas, se o terminássemos agora, quanto eu lhe deveria.

— E eu lhe respondi.

— Mas eu não tenho dez mil dólares, não neste minuto. Acho que poderia levantá-los dentro de uma semana. Mas, mesmo que eu o fizesse, meu Deus, apenas por umas duas horas de trabalho.

— Não é o trabalho — disse Wolfe, sacudindo um dedo na direção dele. — É simplesmente que não permitirei que minha vaidade seja ferida pelo tipo de tratamento que o senhor está tentando dar-lhe agora. É verdade que alugo minhas habi­lidades por dinheiro, mas asseguro-lhe de que não admito ser considerado como mero mascate de bugigangas e ou de truques. Sou um artista, ou não sou coisa alguma. O senhor por acaso encomendaria um quadro a Matisse e logo que ele tivesse garatujado o seu primeiro esboço arrancá-lo-ia das mãos dele, amassá-lo-ia e lhe diria: "Isto é suficiente. Quanto lhe devo?" Não, o senhor não faria uma coisa dessas. O senhor pensa que a comparação é imaginosa? Não penso que seja. Todos os artis­tas têm a sua própria vaidade. Tenho a minha. Sei que o senhor é moço e que sua educação lhe deixou um bocado de lacunas no cérebro. O senhor não compreende como foi grosseiro.

— Pelo amor de Deus — disse o cliente e sentou-se. — Bem — voltou os olhos em minha direção como se eu pudesse sugerir alguma coisa e, novamente, para Wolfe. Estendeu as mãos, com as palmas para cima. — Muito bem, o senhor é um artista. O senhor é. Disse-lhe que não tenho dez mil dólares. Que tal um cheque pós-datado, uma semana a partir de agora?

Wolfe sacudiu negativamente a cabeça:

— O senhor poderia sustar o pagamento. Eu não confio no senhor. O senhor está excitado; queimam-no as chamas do medo e do ressentimento. Além disso, o senhor deve obter mais pelo seu dinheiro e eu devo fazer mais para merecê-lo. O único curso sensato...

Foi interrompido pela campainha. Girei na cadeira e atendi ao telefone, colocado em minha mesa. Admiti minha identidade a uma mal-humorada indagação masculina, esperei um minuto e ouvi os tons familiares de outra voz masculina. O que ela disse induziu-me a um sorriso. Voltei-me para Wolfe:

— O Inspetor Cramer diz que um dos auxiliares dele viu-o na loja de McNair esta manhã e que quase morreu de choque. O mesmo lhe aconteceu quando ele o ouviu contar o caso. Ele diz que seria um prazer discutir o caso com você durante alguns momentos ao telefone.

— Prazer, mas não para mim. Estou ocupado-Retornei ao fio e conversei um pouco mais. Cramer mos­trava-se tão amigável como um sujeito que nos pára numa colina solitária porque ficou sem gasolina. Voltei-me nova­mente para Wolfe:

— Ele gostaria de vir aqui às seis horas para fumar um charuto. Diz ele que para comparar notas. Isto quer dizer: "S.O.S."

Wolfe inclinou a cabeça, concordando. Eu disse a Cramer que, claro, viesse e desliguei. O cliente levantara-se. Olhava de Wolfe para mim e vice-versa. Finalmente, disse sem beligerância alguma:

— Quem era? O Inspetor Cramer? Ele... vem aqui?

— Vem. Um pouco mais tarde — respondi porque Wolfe reclinara-se na cadeira e fechara os olhos. — Ele freqüente­mente aparece para dois dedos de prosa quando tem um caso tão fácil que fica incomodado com isso.

— Mas ele... Eu... — Llewellyn estava tonto. Espigou-se e disse: — Ouça aqui, diabos o levem. Eu quero falar ao telefone.

— À vontade. Tome minha cadeira.

Levantei-me e ele sentou-se. Começou a discar sem pre­cisar olhar o número. Estava nervoso, mas parecia saber o que estava fazendo'. De pé ao lado, escutei.

— Alô, alô! É você, Styce? Aqui, Lew Frost. Meu pai ainda está aí? Tente o escritório do Sr. McNair. Sim, por favor... Alô, papai? Lew... Não... Não, espere um minuto. Tia Callie ainda está aí? Esperando por mim? Sim, eu sei... Não, escute, estou falando do gabinete de Nero Wolfe, número 918, na Rua 35 Oeste. Eu gostaria de que o senhor e tia Callie viessem aqui imediatamente... Eu não posso explicar... Bem, traga-a, de qualquer maneira... Ora, papai, estou fazendo o melhor que posso... Certo. Você pode chegar aqui em dez minutos... Não, é uma casa particular.

Wolfe continuava de olhos cerrados.

 

Capitulo 4

Aquele encontro foi notável. Em diversas ocasiões folheei as páginas da caderneta de notas, onde o transcrevi, apenas para me divertir. Dudley Frost foi uma das pouquíssimas pes­soas a se sentarem naquele escritório e a reduzirem Nero Wolfe a frangalhos. Naturalmente, fê-lo mais em volume do que em vigor, mas conseguiu-o.

Soavam três horas quando chegaram. Fritz introduziu-os na sala. Calida Frost, mãe de Helen, a tia Callie de Lew — embora eu ache que teria sido mais delicado apresentá-la como Sra. Edwin Frost desde que jamais cheguei a ser muito íntimo dela — entrou em primeiro lugar e, não havia dúvida, ela era a mulher de estatura mediana, espigada e de boca orgulhosa. Era bonita e bem feita, com olhos profundos mas francos, de uma cor esquisita, algo parecido com o pardo avermelhado de cerveja escura. Ninguém teria pensado que ela era bastante idosa para ser a mãe de uma deusa crescida. Dudley Frost, pai de Lew, pesava noventa quilos, mais de altura do que de (gordura. Tinha cabelos brancos e bigode branco aparado. Alguma violenta colisão havia-lhe empurrado o nariz ligeira­mente para o lado, mas somente um observador atento como eu teria notado isso. Usava um belo terno cinza de listras e uma flor vermelha na lapela.

Llewellyn foi até a porta do gabinete, trouxe-os e apre­sentou-os. Dudley Frost trovejou em direção a Wolfe: "Muito prazer em conhecê-lo". Trovejou também em minha direção, "Muito prazer de conhecê-lo", enquanto eu me ocupava em colocar cadeiras sob eles. Ele se voltou para o nosso cliente e perguntou:

— Que é que quer dizer tudo isto? Qual é o problema, filho? Cuidado, Calida, sua bolsa vai cair. Que é que está havendo aqui, Sr. Wolfe? Eu estava com a esperança de jogar um pouco de bridge esta tarde. Qual é a dificuldade? Meu filho explicou-me — e a Sra. Frost — minha cunhada — e nós pensamos que seria melhor para ele vir diretamente até aqui...

Llewellyn falou impetuosamente:

— O Sr. Wolfe quer dez mil dólares.

— Deus me abençoe, eu também quero — cacarejou ele. — embora eu tenha vivido em épocas... mas isto são coisas passadas. — olhou pasmo para Wolfe e, numa mudança de ritmo, enrolou todas as palavras: — Para que o senhor quer dez mil dólares, Sr. Wolfe?

Wolfe parecia sombrio, antevendo o que o esperava. Res­pondeu num dos seus tons mais profundos:

— Para depositar na minha conta bancária.

— Ah! Ótima resposta e eu mesmo a provoquei. Rigoro­samente falando, essa era a única resposta apropriada à per­gunta. Eu devia ter dito, deixe-me ver, por que motivo _ o senhor espera receber dez mil dólares de alguém e de quem os espera? Espero que não de mim, porque não os tenho. Meu filho explicou-nos que num ataque de tolice contratou-o provisoriamente para certo tipo de trabalho. Meu filho é um jumento, mas o senhor certamente não espera que ele lhe dê dez mil dólares simplesmente porque é um jumento? Espero que não, porque ele tampouco tem o dinheiro. Nem também minha cunhada tem. Que é que você acha, Calida? Devo con­tinuar com isto? Acha que estou conseguindo alguma coisa?

A Sra. Edwin Frost fitava Wolfe, sem se dar ao tra­balho de voltar-se para o cunhado. Disse em voz bem baixa e agradável:

— Acho que o mais importante é explicar ao Sr. Wolfe que ele chegou a uma conclusão apressada a respeito do que Helen disse — sorriu para Wolfe. — Minha filha, Helen. Mas, em primeiro lugar, desde que Lew julgou necessário nossa vinda até aqui, talvez seja melhor ouvir o que o Sr. Wolfe tem a dizer, não?

Wolfe voltou para ela os olhos semicerrados.

— Muito pouco, senhora. O seu sobrinho contratou-me para fazer uma investigação e convenceu-me a dar um passo sem precedentes e altamente desagradável para mim. E mal

começava a dá-lo quando ele me informa que as coisas foram por águas abaixo e pergunta-me quanto me deve. Disse-lhe e, em virtude das circunstâncias excepcionais, pedi pagamento imediato em dinheiro. Em pânico, ele telefonou ao pai.

— O senhor pediu dez mil dólares? — perguntou ela com a testa franzida.

Wolfe inclinou a cabeça e ergueu-a novamente.

— Mas, Sr. Wolfe — ela hesitou — naturalmente eu não conheço o seu negócio — ela lhe sorriu — ou será uma profissão liberal? Mas, sem dúvida alguma, é uma soma espan­tosa. É essa a taxa que o senhor cobra habitualmente?

— Agora, ouça aqui — Dudley Frost estivera contorcendo-se no assento da cadeira — afinal de contas, isto é muito simples. Há apenas alguns pontos. Em primeiro lugar, a coisa foi puramente provisória. Deve ter sido provisória, porque de que modo poderia o Sr. Wolfe dizer se poderia ou não escla­recer o crime até ter ido lá e examinado o local? Em segundo lugar, calculemos o tempo do Sr. Wolfe a vinte dólares por hora. Neste caso, Lew deve-lhe quarenta dólares. Eu paguei a bons advogados menos do que isso. Em terceiro, não faz sentido falar em dez mil dólares porque não os possuímos — inclinou-se para a frente e pôs uma pata na mesa. Estou sendo franco com o senhor. Minha cunhada não tem um centavo e ninguém sabe disso melhor do que eu. A filha dela — minha sobrinha — possui tudo que sobrou da fortuna de meu pai. Nós somos uma família de pobretões, exceto Helen. Meu filho aqui parece pensar que começou alguma coisa, mas pensou a mesma coisa antes. Duvido que o senhor pudesse receber, mas a única maneira de solucionar a questão seria através de um processo. O processo se arrastaria e, finalmente, o senhor entraria num acordo...

O nosso cliente dissera diversas vezes, "Papai", "Papai", num esforço para calá-lo, mas sem resultado. Llewellyn final­mente estendeu o braço e segurou o joelho do pai.

— Escute-me por um minuto, sim? Se o senhor apenas me desse a oportunidade... O Sr. Wolfe não está deixando que o caso se arraste! O Inspetor Cramer virá aqui às seis horas para comparar notas com ele. A respeito deste caso.

— E então? Você não precisa esmagar-me a perna. Quem é esse tal Inspetor Cramer?

— O senhor sabe perfeitamente quem ele é. Titular da Delegacia de Homicídios.

— Oh, aquele tipo. Como é que você sabe que ele vem aqui? Quem foi que disse que ele vinha?

— Ele telefonou. Pouco antes de eu telefonar-lhe. Foi por isso que pedi que o senhor e tia Callie viessem aqui.

Vi o brilho no olho de Dudley, rápido embora, e pergun­tei-me se Wolfe o percebera também. Desapareceu com a mesma rapidez com que surgira.

— Quem foi que falou com o Inspetor Cramer? Você? Interrompi, bruscamente:

— Não. Eu.

— Ah — Dudley Frost sorriu-me largamente, cheio de compreensão. Em seguida, transferiu o sorriso para Wolfe e novamente o recolocou em mim. — Parece que vocês tiveram um bocado de trabalho por aqui. Claro que percebo que era a melhor maneira de dar credibilidade à ameaça, combinar um telefonema com ele, na presença do meu filho. Mas o ponto é...

Wolfe disse secamente:

— Ponha-o para fora, Archie.

Depositei o lápis e a caderneta sobre a escrivaninha e le­vantei-me. Llewellyn levantou-se também e empertigou-se como um pombo. Notei que a tia simplesmente levantou um pouco a sobrancelha.

Dudley Frost riu.

— Ora, Sr. Wolfe. Sentem-se, rapazes — esbugalhou os olhos para Wolfe. — Deus sabe que não o censuro em querer causar uma impressão. — É inteiramente natural que...

— Sr. Frost — disse Wolfe, erguendo um dedo na di­reção dele — a sua sugestão de que eu preciso engendrar uma chamada telefônica para impressionar seu filho é altamente insultuosa. Retire-a, ou saia.

Frost riu novamente.

— Bem, digamos que a  fez para impressionar-me.

— Isto, cavalheiro, é pior ainda.

— Então a minha cunhada. Está impressionada, Calida? Devo admitir que eu estou. É pelo menos o que parece. O Sr. Wolfe quer dez mil dólares. Se não os conseguir, tenciona conversar com o Inspetor Cramer — onde e quando não importa — e dizer-lhe que Helen disse que viu a caixa de bombons antes de Molly. Claro que Helen não lhe disse isso, mas isso não impedirá a Polícia de atormentá-la, e possivelmente todos nós, e pode mesmo sair nos jornais. Na minha situação de curador da propriedade de Helen, a minha responsabilidade é tão grande quanto a sua, Calida, embora ela seja sua filha — voltou-se e esbugalhou os olhos para o filho. — A culpa é sua, Lew. Toda sua. Você deu a oportunidade a esse homem. Não teve você, vez sobre vez a...

Wolfe inclinou-se bem para frente na cadeira até que a ponta de seu dedo pairou delicadamente a uns dois centímetros do tweed marrom do casaco da Sra. Frost.  fez-lhe um apelo:

— Por favor. Faça-o calar a boca.

Ela encolheu os ombros. O cunhado continuava ininter­ruptamente. Abruptamente, porém, ela se levantou, deu a volta por trás dos demais e aproximou-se de mim. Chegou-se sufi­cientemente perto para perguntar tranqüilamente:

— O senhor tem por acaso algum bom uísque irlandês?

— Claro — respondi. — É isso? Ela inclinou a cabeça.

— Puro. Duplo. E um copo com água do pote.

Fui até o armário e tirei a garrafa de Old Corcoran. Servi um duplo bastante generoso, arranjei um copo dágua, coloquei-os num porta-bandeja, aproximei-me e depositei-os ao lado do orador. Ele os olhou e, em seguida, para mim.

— Que diabo é isto? O quê? Onde é que está a garrafa?

— levantou o copo até o nariz ligeiramente fora de prumo e fungou. — Oh! Ótimo — com os olhos, abarcou o grupo. — Ninguém quer fazer-me companhia? Calida? Lew? Saúde! — ele nem o bebericou nem o engoliu de um trago. Bebeu-o como quem bebe leite. Ergueu o copo dágua, bebericou-o elegante­mente, mais ou menos meia colher de chá, devolveu o copo à mesa, reclinou-se na cadeira e alisou pensativamente o bigode com a ponta dos dedos. Wolfe observava-o como um falcão.

A Sra. Frost indagou calmamente:

— Que história é essa a respeito do Inspetor Cramer? Wolfe voltou a atenção para ela:

— Nada, madama, além do que o seu sobrinho lhe contou.

— Ele virá aqui para consultar-se com o senhor?

— Assim disse.

— A respeito... da morte da Srta. Lauck?

— Assim disse ele.

— Isto não será... — ela hesitou — um tanto incomum para o senhor conferenciar com a Polícia a respeito dos assuntos do seu cliente?

— É comum no meu caso conferenciar com qualquer pessoa que possa possuir informações úteis. — Wolfe relanceou a vista para o relógio de parede. — Vejamos se podemos ganhar tempo, Sra. Frost. São dez para as quatro. Eu não permito que coisa alguma interfira no meu costume de passar das quatro às seis com as minhas plantas no andar superior. Como seu cunhado disse com espantosa coerência, este caso é simples. Eu não estou apresentando um ultimato ao Sr. Llewellyn Frost. Ofereço-lhe meramente uma alternativa. Ou ele me paga ime­diatamente a soma que eu lhe teria cobrado para concluir minha missão — ele sabia antes de vir aqui que cobro caro pelos meus serviços — e me dispensa, ou pode esperar que eu leve a investigação até o fim e lhe envie uma conta. Naturalmente, será muito mais difícil para mim se a sua própria família tentar obstruir...

A Sra. Frost sacudiu negativamente a cabeça.

— Não temos desejo algum de obstruir — disse delicada­mente. — Mas é evidente que o senhor interpretou mal uma observação que a minha filha Helen  fez enquanto o senhor a interrogou... e nós, naturalmente, estamos preocupados com isso. E, neste caso... se o senhor vai entender-se com a Po­lícia, seria desejável que compreendesse...

— Compreendo, Sra. Frost — respondeu Wolfe, olhando novamente para o relógio. — A senhora gostaria de ter minha garantia de que não informarei ao Inspetor Cramer de minha má interpretação da observação feita por sua filha. Sinto muito, mas não posso comprometer-me a esse respeito, a menos que eu seja dispensado do caso com pagamento total, ou receber a garantia do Sr. Llewellyn Frost — e, nas circunstâncias, da senhora e de seu cunhado — de que devo continuar a inves­tigação para a qual fui contratado. Devo acrescentar que os senhores estão alarmados sem motivo razoável, o que devia ser esperado, aliás, de pessoas que ocupam seus lugares na socie­dade. É altamente improvável que sua filha tenha qualquer ligação culposa com o assassinato da Srta. Lauck. Se, por acaso, ela possui uma importante informação que a discrição a obriga a ocultar, quanto mais cedo ela a revelar, melhor, ante* que a Polícia, de alguma maneira, seja informada a respeito.

A Sra. Frost tinha as sobrancelhas contraídas.

— Minha filha não possui informação alguma.

— Sem querer ofendê-la... eu precisaria perguntar-lhe isso pessoalmente.

— E o senhor... deseja permissão para continuar. Se não a tiver, tenciona dizer ao Inspetor Cramer...

— Eu não disse quais eram minhas intenções.

— Mas o senhor deseja continuar. Wolfe inclinou a cabeça e disse:

— Ou isso ou os meus honorários, agora.

— Ouça, Calida. Estive aqui sentado, pensando — era Dudley Frost qum falava. Espigou-se. Notei que Wolfe pôs as mãos nos braços da cadeira. Frost continuou: — Por que não trazermos Helen aqui? Este homem Wolfe está blefando. Se não tivermos cuidado, quando menos esperarmos estaremos vomitando dez mil dólares do dinheiro de Helen, e desde que sou responsável por isso, cabe-me impedi-lo. Lew diz que o terá na próxima semana, mas ouvi essa história antes. Um curador está sob a obrigação a mais sagrada de zelar pela herança sob seu cuidado e a soma não poderia ser paga da renda extraordinária porque você não deixa renda excedente alguma. A única maneira de pagar para ver o blefe desse moço...

Eu estava prestes a ir até o armário buscar mais uísque irlandês, desde que a dose anterior fora aparentemente assi­milada, mas notei que não seria necessário. Wolfe empurrou para trás a cadeira, levantou-se, deu a volta à escrivaninha, parou em frente de Llewellyn e falou em voz suficientemente alta para penetrar por entre o ruído que Dudley Frost fazia:

— Tenho de sair. Graças a Deus. Pode dizer ao Sr. Goodwin a que decisão chegaram — começou a dirigir-se para a porta e não parou quando Dudley Frost chamou-o:

— Olhe aqui! O senhor não pode fugir assim! Muito bem, cavalheiro! — desaparecido o alvo, ele se voltou para a cunhada. — Não lhe disse, Calida, que pagaria para ver? Viu aquilo? Tudo que se precisa fazer num caso destes...

A Sra. Frost não se dera ao trabalho de virar-se na ca­deira para observar a partida de Wolfe. Llewellyn estendera a mão para apertar novamente o joelho do pai e repreendia-o:

— Ora, Papai, cale a boca... escute um minuto... Levantei-me e disse:

— Se vocês querem discutir o assunto em particular, sai­rei por um momento.

A Sra. Frost sacudiu negativamente a cabeça.

,__ Muito obrigada. Não acho que seja necessário — vol­tou-se para o sobrinho e falou em voz seca: — Lew, você começou tudo isso. Parece que vai ter de levá-lo até o fim.

Llewellyn respondeu, o pai interveio, mas não prestei aten­ção. Voltei à escrivaninha e enfiei uma folha de papel na má­quina de escrever. Datei-a na parte superior e escrevi:

A NERO WOLFE:

Por favor continue, até ordens em contrário, a investi­gação do assassinato de Molly Lauck para a qual contratei-o em data de ontem. Segunda-feira, 30 de março de 1936.

Arranquei-a da máquina, coloquei-a num canto da mesa de Wolfe, entreguei a minha caneta a Llewellyn. Ele se curvou sobre o papel para lê-lo. O pai saltou da cadeira e puxou-o.

— Não assine isso! Que é? Não assinei coisa alguma, absolutamente.

Llewellyn entregou-lhe o papel, que ele leu duas vezes, com as sobrancelhas contraídas. A Sra. Frost estendeu a mão para recebê-lo, leu-o de relance e olhou para mim.

— Não acho que meu sobrinho tenha de assinar coisa alguma...

— Acho que ele assinará — eu estava tão cheio como Wolfe. — Há uma coisa que vocês parecem não compreender. Isto é, se o Sr. Wolfe considerar-se dispensado da obrigação para com o cliente e disser ao Inspetor Cramer o que pensa daquelas palavras da Srta. Frost, não haverá discussão alguma a respeito do assunto. Quando Cramer trabalha num homi­cídio que está dando o que falar durante uma semana sem con­seguir resultado algum, ele fica tão violento que engole cha­rutos inteiros. Claro que não vai usar um pedaço de mangueira de borracha na Srta. Frost, mas mandará levá-la até a delegacia e rosnará para ela a noite inteira. Os senhores não quereriam...

— Muito bem — disse Dudley Frost, com a carranca virada na minha direção. — Meu filho deseja que o Sr. Wolfe continue. Sempre pensei que esta é a melhor maneira de levar a coisa. Mas ele não assinará esse papel. Ele não assinará coisa alguma...

— Assinará sim — tomei o papel da mão de Calida Frost e coloquei-o novamente sobre a escrivaninha. — Que é que vocês acham? — levantei as mãos em desespero. — Deus meu. Vocês são três e eu sou um só. Isto não serve, em caso de más recordações. Que é que há no papel afinal de contas? Diz "até ordens em contrário". O Sr. Wolfe disse que poderiam dizer-me a decisão a que chegaram. Eu preciso fazer um re­gistro disso, ou, garanto-lhes, falarei pessoalmente com o Ins­petor Cramer.

Lew Frost olhou para a tia, o pai e, em seguida, para mim.

— É certamente uma bela confusão — disse, numa careta de desgosto. — Se eu tivesse dez mil dólares agora, juro por Deus...

— Cuidado — disse-lhe eu — a pena pinga às vezes. Vamos, assine.

Enquanto os outros o olhavam, ele se curvou carrancudo sobre o papel e garatujou uma assinatura.

 

Capitulo 5

— Eu tive idéia de mandar chamar um escrivão e tomar por termo as declarações de Stebbins — disse o Inspetor Cramer, mastigando um pouco mais o charuto. — Nero Wolfe a quilô­metro e meio de casa, era plena luz do dia, e sem estar maluco? Neste caso, devia ter havido um assalto ao Tesouro dos Esta­dos Unidos e teríamos de convocar o Exército e declarar a lei marcial.

Às seis e meia, Wolfe estava de volta ao escritório, bas­tante tranqüilo após duas horas em companhia de Horstmann entre as plantas. Tomava a segunda garrafa de cerveja. Eu me sentara confortàvelmente, com os pés sobre a borda da gaveta inferior da escrivaninha, com a caderneta de notas na mão.

Wolfe, reclinando-se na cadeira com os dedos cruzados so­bre a parte mais alta da sua parte média, inclinou sombriamente a cabeça.

— Não me surpreende, cavalheiro. Algum dia, dar-lhe-ei uma explicação. Neste momento, a recordação está vivida demais. Preferia não discutir aquele passeio.

— Okay. O que eu pensei é que o senhor talvez não seja mais excêntrico.

— Claro que sou excêntrico. Quem é que não é?

— Deus sabe que eu, não — Cramer tirou o charuto da boca, examinou-o e recolocou-o no lugar. — Sou estúpido demais para ser excêntrico. Veja esse caso de Molly Lauck, por exemplo. Em oito dias de trabalho insano, que é que o senhor pensa que descobri? Pergunte-me — ele se inclinou para a frente. — Descobri que Molly Lauck morreu! Nenhuma

dúvida a esse respeito! Consegui arrancar essa informação do legista — reclinou-se novamente e  fez uma cara de repugnância para nós dois. — Deus, estou furioso. Agora que esvaziei o saco para vocês, que é que dizem de fazer o mesmo comigo? Neste caso, você receberá seus honorários, que é o que quer, e eu terei uma desculpa para conservar meu emprego, que é o de que preciso.

Wolfe sacudiu negativamente a cabeça.

— Nada, Sr. Cramer. Eu nem mesmo sei que a Srta. Lauck morreu, salvo por ouvir dizer. Não conversei com o legista.

— Oh, vamos — disse Cramer tirando o charuto da boca. — Quem o contratou?

— O Sr. Llewellyn Frost.

— Ele, hem? — resmungou Cramer. — Para proteger alguém?

— Não. Para esclarecer o assassinato.

— Não diga. Quanto tempo lhe levou?

Wolfe inclinou-se para servir-se de cerveja e bebeu-a. Cramer continuou:

— Que é que levou Lew Frost a ficar tão nervoso com esse crime? Não entendo. Não era atrás dele que a Lauck andava. Era do francês, Perren Gebert. Por que é que Lew Frost está tão ansioso em gastar bom dinheiro para que se descubra a verdade e se faça justiça?

— Não tenho a mínima idéia — respondeu Wolfe, lim­pando os lábios. — Para dizer a verdade, nada há que eu lhe possa dizer. Não tenho a mínima idéia...

— Quer dizer então que deixou a Rua 52 apenas para fazer exercício?

— Não. Deus me livre. Mas não tenho nenhuma infor­mação ou suposição que lhe possa comunicar a respeito da morte da Srta. Lauck.

— Muito bem — disse Cramer esfregando as mãos nos joelhos — naturalmente eu sei que o fato de o senhor nada ter para mim não prova que nada tenha para o senhor mesmo. Vai continuar?

— Vou.

— Não se comprometeu por acaso com Lew Frost a abrir buracos para os outros caírem?

— Se entendo o que o senhor insinua... e penso que entendo... não.

Cramer observou durante trinta segundos o charuto meio consumido, estendeu a mão, colocou-o no cinzeiro e tateou os bolsos à procura de outro. Mordeu-lhe a ponta, cuspiu os pe­daços, enfiou-o entre os dentes e acendeu-o. Soltou uma espessa baforada, ajeitou o charuto entre os dentes novamente e recli­nou-se, dizendo:

— Presunçoso como seja, Wolfe, o senhor me disse certa vez que eu tenho melhores condições para lidar com nove homicídios em dez do que o senhor.

— Eu disse isso?

— Disse. Assim, andei contando e este caso Lauck é o décimo desde o tara do elástico de prender dinheiro, o velho Perry. É a sua vez, portanto, e estou satisfeito pelo fato de o senhor estar na dança sem que eu tenha de empurrá-lo. Sei que não gosta de dizer coisas às pessoas, nem mesmo a Goodwin. Mas desde que esteve lá, talvez queira admitir que sabe como o fato aconteceu. Sei que conversou com McNair e dom as duas moças que a viram comer bombom.

Wolfe concordou com um aceno de cabeça.

— Ouvi os detalhes óbvios.

— Okay. O óbvio está certo, eu repisei os detalhes dez vezes dom aquelas duas. Interroguei todo mundo que trabalha no lugar. Botei vinte homens atrás de todas as pessoas que estiveram presentes ao desfile e eu mesmo andei entrevistando pessoalmente cerca de uma dúzia. Mandei metade da força apu­rar em toda cidade as vendas de caixas de um quilo do Bailey's Royal Medley no mês passado e a outra metade para descobrir vestígios de compra de cianeto de potássio. Enviei dois homens a Darby, Ohio, onde moram os pais de Molly Lauck. Mandei acampanar umas dez ou doze pessoas em todos os casos em que parecia haver oportunidade de uma ligação.

— Como vê — murmurou Wolfe — eu disse que o senhor está mais bem equipado do que eu.

— Vá para o inferno. Eu uso o que tenho e o senhor sabe muito bem que sou um bom tira. Mas, após esses oito dias, não sei ainda com certeza se Molly Lauck foi morta por veneno destinado a outra pessoa. O que diria o senhor se a moça Frost e a Mitchell tivessem cometido o crime juntas? Não se poderia imaginar combinação melhor e talvez elas sejam inteligentes assim. Sabendo que Molly Lauck gostava de pregar peças, talvez tivessem colocado a caixa num lugar onde ela a pudesse surrupiar, ou talvez simplesmente deram-na de presente a ela e, em seguida, contaram aquela história. Mas por quê? Temos aí outra incógnita. Não consigo encontrar ninguém absoluta­mente que pudesse ter desejado matá-la. Parece que ela estava vidrada nesse Perren Gebert, ele não lhe queria dar atenção, mas não há prova de que ela o estivesse enchendo.

— Vidrada onde? — murmurou Wolfe.

— Okay, chefe — disse eu interrompendo. — Apaixonada. Botando olhos lânguidos em cima dele.

— Gebert esteve lá também naquele dia — continuou Cramer — mas não consigo passar disso. Não houve qualquer ligeira indicação sobre motivo, se o veneno se destinava a Molly Lauck. Na minha opinião, não. Parece que ela realmente surrupiou a caixa. E no minuto que se aceita essa teoria, que é que resta? Havia mais de cem pessoas lá naquele dia e a caixa podia ter sido destinada a qualquer uma delas e qualquer uma delas poderia tê-la trazido. Descobrimos mais de trezentas vendas do Bailey's Royal Medley e entre aquele grupo que compareceu ao desfile descobrimos um número suficiente de malquerenças, ciumeiras, ódio e amargura para explicar vinte homicídios. E o que é que fazemos com essa informação? Arquivamos.

Parou e mastigou selvagemente o charuto. Sorri para ele e disse:

— O senhor veio aqui para inspecionar nosso sistema de arquivamento, Inspetor? É uma maravilha.

Ele rosnou para mim:

— Quem é que lhe perguntou alguma coisa? Vim aqui porque estou liquidado. Que é que você acha disso? Ouviu-me dizer isso antes? Não, e ninguém — ele se voltou para Wolfe: — Quando soube que o senhor foi hoje lá, naturalmente eu não sabia atrás de quem ou do quê, mas, pensei comigo, agora as coisas vão andar. Depois pensei em vir aqui pessoalmente e que o senhor me pudesse dar alguma informação como lem­brança. Aceitarei qualquer coisa. Este é um daqueles casos que não podem esfriar porque os malditos jornais mantêm a pressão indefinidamente. E não me refiro apenas aos tablóides. Molly Lauck era jovem e bela. Metade das madamas que estiveram no desfile naquele dia são freqüentadoras assíduas das colu­nas sociais. H.R. Cragg esteve lá pessoalmente com a esposa, e assim por diante. As duas moças que a viram morrer são também jovens e bonitas. Os jornais não deixam a coisa esfriar e toda vez que vou ao gabinete do Comissário ele dá socos no

braço da cadeira. O senhor mesmo o viu fazer isso aqui mesmo no seu gabinete.

Wolfe inclinou a cabeça.

— O Sr. Hombert produz ruído desagradável. Sinto nada ter para dizer-lhe, Sr. Cramer. Sinto, realmente.

— Oh, eu também. Mas pelo menos o senhor pode fazer uma coisa: dar-me um empurrão. Mesmo que seja na direção errada e saiba que é errada.

— Bem... vejamos — Wolfe reclinou-se na cadeira com os olhos semicerrados. — O senhor está bloqueado no tocante a motivo. Não encontra nenhum no caso da Srta. Lauck e um número excessivo, em outras direções. Não pôde descobrir a compra dos bombons ou do veneno. Na verdade, não levantou pista nem descobriu coisa alguma, não tem um ponto de par­tida . Mas o senhor realmente o tem. Já o usou?

Cramer olhou-o fixamente.

— Usei o quê?

— A única coisa que está indubitavelmente ligada ao assas­sinato. A caixa de bombons. Que  fez dela?

— Mandei analisá-la, naturalmente.

— Conte-me tudo a respeito. Cramer bateu a cinza no cinzeiro.

— Não há muita coisa a dizer. É uma caixa de um quilo que se vende muito bem em toda a cidade, em lanchonetes, farmácias e armazéns de cadeias de lojas, fabricada pela Bailey, de Philadelphia, a um dólar e sessenta. Chamam-na de Royal Medley e consiste de uma mistura de frutas, nozes, chocolates e assim por diante. Antes de entregá-la ao químico, falei com a Bailey pelo telefone e perguntei se todas as caixas de Royal Medley eram uniformes. Responderam que sim, embaladas rigo­rosamente de acordo com uma lista, que leram para mim. Okay. Fazendo o mesmo com a caixa de onde Molly tirou o bombom, descobri que faltavam três: um abacaxi cristalizado, uma ameixa cristalizada e uma amêndoa da Jordânia. Esse detalhe concorda com a história da moça Mitchell.

Wolfe assentiu com um movimento da cabeça.

— Frutas, amêndoas, chocolate... Havia caramelos?

— Caramelos? — Cramer olhou fixamente. — Por que

caramelos?

— Nenhuma razão em especial. Eu costumava gostar deles.

Cramer resmungou:

— Não tente fazer troça comigo. De qualquer modo, não há caramelos num Bailey's Royal Medley. É uma pena, hem?

— Talvez. Certamente reduz o interesse do produto para mim. Por falar nisso, esses detalhes a respeito dos bombons foram publicados? Alguém sabe disso?

— Não. Estou-lhe contando agora. Espero que saiba guardar segredo. É a única coisa que conseguimos até agora.

— Excelente. E o químico?

— Certo, excelente, mas aonde é que me levou? O químico descobriu que nada havia de errado com qualquer dos bombons que sobraram na caixa, exceto quatro amêndoas da Jordânia, na camada superior. A camada superior de um Royal Medley tem cinco amêndoas da Jordânia e Molly Lauck comeu uma delas. Todas as quatro tinham mais de seis grãos de cianeto de potássio cada.

— Não diga. Apenas as amêndoas foram envenenadas?

— Exato, e é fácil ver por que foram escolhidas. O cianeto de potássio tem o gosto e o cheiro de amêndoas, apenas mais pronunciados. O químico disse que teriam gosto forte, mas não o suficiente para amedrontar se a pessoa gostasse delas. Conhece as amêndoas da Jordânia? São cobertas de açúcar duro, de cores diferentes. Foram furados ou brocados orifícios nelas, enchidos com cianeto, cobertos novamente de modo que mal se notaria a menos que se procurassem os buracos — Cramer levantou os ombros e deixou-os cair novamente. — O senhor acha que a caixa de bombons seria um ponto de partida?! Bem, parti dela, e onde é que cheguei? Estou sentado aqui no seu gabinete dizendo-lhe que esstou derrotado, com esse maldito cachorrinho Goodwin aí rindo para mim.

— Não se importe com o Sr. Goodwin. Archie, não o irrite! Mas, Sr. Cramer, o senhor não começou.  fez simples­mente os preparativos para o começo. Talvez não seja tarde demais. Se por acaso...

Inclinando-se para a frente, Wolfe fechou os olhos. Observando-o, notei os movimentos quase imperceptíveis dos seus lábios — para fora e para dentro, uma pausa, e novamente para fora e para dentro. Em seguida, mais uma vez...

Cramer olhou-me com as sobrancelhas erguidas. Inclinei a cabeça e disse-lhe:

— Claro, vai ser um milagre. Espere e verá.

— Cale a boca, Archie — murmurou Wolfe.

Cramer olhou-me furioso e eu respondi com uma piscadela. Depois disso, ficamos simplesmente sentados. Se tivesse demo­rado muito eu teria de deixar a sala para uma briga, pois Cramer era um sujeito estranho. Sentou-se enrodilhado, temeroso de fazer um movimento para não perturbar o trabalho do gênio de Wolfe. Nem mesmo sacudiu a cinza do charuto. Eu diria que ele estava liquidado. Ele continuava a olhar-me ferozmente, como para mostrar que fazia alguma coisa.

Finalmente, Wolfe abriu os olhos e falou:

— Sr. Cramer. Isto não é apenas um convite da sorte. Pode encontrar-se com o Sr. Goodwin às nove horas de amanhã na loja do Sr. McNair e levar cinco caixas de Royal Medley?

— Claro. E então?

— Então... tente isto. A sua caderneta, Archie? Com o dedo, virei uma nova página.

Três horas depois, após o jantar, às dez da noite, fui à Broadway procurar uma caixa de Bailey's Royal Medley e sentei-me no gabinete até meia-noite com a escrivaninha coberta de bombons decorando um código.

 

Capitulo 6

As três para as nove da manhã seguinte, quarta-feira, pa­rando a barata na Rua 52 em uma excelente vaga, evidente­mente conservada desocupada por ordens especiais da Polícia, senti um pouco de pena de Nero Wolfe. Ele gostava de armar uma boa cena e manter a platéia tensa na borda das poltronas. E aqui estava uma cena, sua própria criação, ocorrendo a uns bons dois quilômetros de suas estufas e cadeiras de. tamanho extra. Ao descer para a calçada em frente de Boyden McNair Incorporated, porém, meramente encolhi os ombros e pensei comigo: "Agüente, seu gorducho filho da... não se pode ser uma pessoa caseira e conhecer também o mundo."

Encaminhei-me até a entrada, onde o porteiro uniformi­zado do McNair se postava ao lado de um cara parrudo de rosto vermelho e chapéu pequeno demais empurrado para trás. Ao dirigir-me para a porta, este último deu um passo para deter-me.

Estendeu um braço.

— Desculpe-me, cavalheiro. Foi convidado a vir aqui? Seu nome, por favor? — e puxou uma lista datilografada.

Olhei-o por cima do nariz.

— Ouça aqui, meu bom homem. Fui eu quem  fez os convites.

Ele apertou os olhos em minha direção.

— Mesmo? Certo. O Inspetor diz que não há por aqui coisa alguma para vocês. Caia fora.

Naturalmente, eu teria ficado magoado de qualquer manei­ra em ser tomado por um repórter, mas o que doía mais era que tivera o cuidado de vestir meu terno marrom claro, com desmaiadas listras marrom, uma camisa marrom ainda mais clara, de tecido misto de algodão e raiom, e usava meu chapéu verde-escuro de aba mole. Respondi:

— Você é cego de um olho e não pode ver pelo outro. Nunca ouviu falar de Archie Goodwin, do gabinete de Nero Wolfe? — tirei um cartão e entreguei-o.

Ele examinou o cartão.

— Okay. O senhor está sendo esperado lá em cima.

Do lado de dentro encontrei outro policial, junto ao ele­vador. Ninguém mais em volta. Esse eu conhecia: Slim Foltz. Trocamos cumprimentos cordiais, entrei no elevador e subi.

Cramer trabalhara muito bem. Cadeiras haviam sido tra­zidas de outros lugares e cerca de cinqüenta pessoas, a maioria mulheres, embora houvesse alguns homens, sentavam-se no grande salão da frente. Ouvi o murmúrio de conversações aba­fadas e palestras em voz mais alta. Quatro ou cinco policiais, da Força Municipal, formavam um grupo num canto onde co­meçavam os cubículos. Do outro lado do salão, vi o Inspetor Cramer conversando com Boyden McNair. Dirigi-me para eles.

Cramer inclinou a cabeça.

— Apenas um minuto, Goodwin — continuou a conversar com McNair e logo depois voltou-se para mim. — Arranjarmos uma bela multidão, hem? Sessenta e dois prometeram vir e há quarenta e um aqui. Razoável.

— Todos os empregados aqui?

— Todos, menos o porteiro. Vamos precisar dele?

— Sim, vamos fazer a coisa unânime. Que cubículo?

— Terceiro à esquerda. Conhece o Capitão Dixon? Es­colhi-o para isso.

— Eu conhecia — respondi e desci o corredor, contando até três. Abri a porta e entrei. A sala era um pouco mais am­pla do que a que usáramos no dia anterior. Sentado por trás da mesa vi um homenzinho calvo, grandes orelhas e olhos que pareciam de uma águia. Ele arrumara cuidadosamente blocos de papel e lápis a sua frente. Em um dos lados, notei uma pi­lha de cinco caixas de Bailey's Royal Medley. Disse-lhe que ele era o Capitão Dixon e que eu era Archie Goodwin, e que fazia uma bela manhã. Examinou-me movendo os olhos, sem virar a cabeça como se estivesse conservando energias e emitiu um ruído que era uma mistura do piar de uma coruja e o coaxar de um sapo-boi. Deixei-o e voltei para o salão da frente.

McNair dera a volta por trás da multidão e sentara-se. Cramer veio a meu encontro e disse:

— Não acho que seja preciso esperar por mais alguém. Eles já estão ficando agitados da forma como estão indo as coisas.

— Okay. Comece — fui para o outro lado e encostei-me na parede, de frente para a platéia. O grupo era constituído de gente de todas as alturas, idades e formas, e nele se encon­trava mais ou menos o que se esperaria. São poucas as mu­lheres que podem pagar 300 dólares por um vestido de prima­vera. E por que teriam elas de ser do tipo que se poderia muito bem embrulhar num velho pedaço de saco no que tocava a efeito? Quase sempre. Entre as exceções presentes naquela manhã, havia a Sra. Edwin Frost, sentada espigada na primeira fila, ladeada pelas duas deusas. Llewellyn Frost e o pai esta­vam imediatamente atrás delas. Notei também uma ruiva de pele leitosa e olhos como estrelas, e soube mais tarde, durante o teste, que ela se chamava Condessa von Rantz-Deichen, de Praga, de modo que jamais tentei seguir essa pista.

Cramer, de frente para a multidão, dizia:

— ... Em primeiro lugar, quero agradecer ao Sr. Mc­Nair por ter fechado a loja esta manhã e permitido que fosse usada para esta finalidade. Agradecemos-lhe a cooperação e compreendemos que ele está tão ansioso como nós para chegar até o fundo deste... triste caso. Em seguida, quero agradecer a todos os presentes por terem vindo. Constitui um autêntico prazer e um estímulo saber que existem tantos bons cidadãos dispostos a compartilhar em um... no esclarecimento deste triste caso. Nenhum dos presentes estava obrigado a vir, natu­ralmente. Os senhores estão meramente cumprindo o seu de­ver. .. isto é, auxiliaram logo que surgiu a necessidade. Agra­deço-lhes em nome do Comissário da Polícia, Sr. Hombert, e do Promotor Público, Sr. Skinner.

Tive vontade de dizer-lhe: "Não pare aí. Que tal o Pre­feito, os diretores das regiões administrativas, a Câmara dos Vereadores, o Departamento de Obras e Estruturas..."

Mas ele continuou:

— Alimento a esperança de que nenhum dos presentes se sinta ofendido ou irritado com um experimento simples que va­mos tentar. Não me foi possível explicar a cada pessoa ao te­lefone e desejo dar agora uma explicação geral. Sei que alguns dos senhores vão julgar isto um absurdo e, no caso da maioria, e possivelmente de todos, será realmente, mas espero que o aceitem e fiquem nisso. Em seguida, poderão dizer a seus amigos que a Polícia é estúpida. Mas asseguro-lhes que não estamos fazendo isso para nos divertir nem para irritar alguém, mas como parte importante do trabalho para chegar até o fun­do deste triste caso.

— Bem, o experimento é o seguinte: vou pedir aos se­nhores que se dirijam, um de cada vez, por aquele corredor até a terceira porta à esquerda. Organizei as coisas de modo que o experimento leve tão pouco tempo quanto possível. Foi por isso que lhes pedi que escrevessem os nomes duas vezes, em dois pedaços diferentes de papel, quando aqui chegaram. O Capitão DixOn e o Sr. Goodwin estarão naquele cubículo, e eu também. Nós lhes faremos uma pergunta, e isto é tudo. Ao sair. são solicitados a deixarem o edifício, ou podem ficar aqui no corredor se quiserem esperar por alguém, mas sem falar com aqueles que não foram ainda até o cubículo. Alguns dos presentes, os que forem chamados por último, terão de ser pa­cientes. Quero agradecer-lhes novamente pela cooperação... neste triste caso.

Cramer puxou um suspiro de alívio, deu a volta e gritou em voz alta para o bloco dos policiais:

— Muito bem, Rowcliff, podemos muito bem começar pela primeira fila.

— Sr. Inspetor! — Cramer voltou-se novamente. Uma mulher dotada de uma grande cabeça e carência de ombros le­vantara-se no meio da platéia e projetara o queixo no ar:

— Eu gostaria de dizer, Sr. Inspetor, que não temos obri­gação de responder a qualquer pergunta que o senhor resolva nos fazer. Sou sócia da Liga dos Bons Cidadãos e vital aqui para certificar-me de que...

Cramer levantou uma mão.

— Okay, madama. Nenhuma obrigação, absolutamente...

— Muito bem. É preciso compreender que a cidadania tem seus privilégios, bem como seus deveres...

Duas ou três pessoas deram risadinhas. Cramer atirou-me um olhar. Aproximei-me e segui-o corredor abaixo até o cubí­culo, onde entramos. O Capitão Dixon não se deu ao trabalho nem mesmo de mexer os olhos desta vez, tendo provavelmente o bastante de nós em sua linha de visão para formar um bom palpite sobre nossa identidade. Cramer resmungou e sentou-se em uma das cadeiras forradas de seda colocadas contra a divi­são.

— Agora que estamos prontos para começar — rosnou ele — penso que é uma besteira.

O Capitão Dixon emitiu um som entre um pombo e uma porca com cria. Para ver melhor as coisas, retirei quatro caixas da parte superior da pilha de Royal Medleys e coloquei-as sob a mesa, fora da vista, e apanhei a seguinte.

— Como combinado? — perguntei a Cramer. — Sou eu quem fala?

Ele inclinou a cabeça. Abriu-se a porta e um dos policiais introduziu uma mulher de meia-idade sob um chapéu aerodi­nâmico, inclinado sobre um dos lados, com lábios e unhas da cor da primeira mão de tinta que se passa numa ponta de ferro. Estendi a mão para ela.

— Os papéis, por favor.

Ela entregou-me os pedaços de papel. Dei um ao Capi­tão Dixon e conservei o outro.

— Agora, Sra. Ballin, por favor, faça o que eu pedir na­turalmente, como faria em circunstâncias comuns, sem hesita­ção ou nervosismo...

Ela me sorriu:

— Não sou nervosa.

— Ótimo — tirei a tampa e estendi-lhe a caixa.

— Tire um bombom.

Ela ergueu os ombros elegantemente e disse:

— Eu raramente como bombons.

— Não queremos que o coma. Apenas tire-o. Por favor. Ela estendeu a mão sem olhar, pescou um de chocolate com

creme, segurou-o entre os dedos e olhou-me.

— Muito bem — disse-lhe eu. — Ponha-o na caixa, por favor. Isto é tudo. Muito obrigado. Bom dia, Sra. Ballin.

Ela olhou em volta para nós e disse "Meu Deus", num tom de espanto manso e cordial, e saiu.

Curvei-me sobre a mesa e marquei um X num canto do papel que ela me entregara e o número 6 sob o nome. Cramer rosnou:

— Wolfe disse três bombons.

— Exato. Ele disse também para usarmos nossa capaci­dade de julgamento. Na minha opinião, se aquela madama es­teve envolvida em qualquer coisa, nem mesmo Nero Wolfe des­cobriria. Que é que acha dela, Capitão?

Dixon emitiu um som entre o de um veado e uma pre­guiça de três dedos. Abriu-se a porta novamente e entrou uma mulher alta e esbelta em vestido preto colado e uma pele de raposa prateada que devia ter sofrido de gigantismo. Ela mantinha os lábios apertados e olhava-nos com profunda concentra­ção. Recolhi os pedaços de papel e dei um deles a Dixon.

— Muito bem, Srta. Claymore, por favor faça o que eu lhe pedir naturalmente, como o faria em circunstâncias comuns, sem hesitação ou nervosismo. Sim?

Ela recuou um pouco, mas concordou. Estendi-lhe a caixa.

— Tire um bombom.

— Oh! — disse ela abrindo a boca, espantada. Dirigiu os olhos esbugalhados para o bombom. — Essa é a caixa... — tremeu, recuou, pôs o punho fechado contra a boca e emitiu um guincho bastante alto.

— Muito obrigado à senhora. Bom dia, madama. Muito bem, guarda.

O guarda tocou-lhe no braço e encaminhou-a para a porta. Curvando-me, fiz uma observação no pedaço de papel: "O gri­to foi simplesmente profissional. Beth Claymore é tão falsa no palco como fora dele. Teve oportunidade de vê-la em The Price of Folly?"

— Isto é uma piada imbecil — disse Cramer calmamente. Dixon emitiu outro som. A porta abriu-se e outra mulher en­trou.

Continuamos e a operação durou quase duas horas. Os empregados foram deixados para o fim. Entre uma coisa e outra, alguns dos clientes retiraram três bombons, alguns dois ou um, ao passo que, alguns, nenhum absolutamente. Logo que a primeira caixa começou a dar sinais de uso, substituí-a por outra da reserva. Dixon produziu mais alguns ruídos, mas li­mitou-se principalmente a fazer anotações nos seus pedaços de papel enquanto eu continuava com os meus.

Houve alguns atritos, mas nada de sério. Helen Frost entrou pálida, permaneceu pálida e não quis bombom algum. Thelma Mitchell olhou zangada a caixa e tirou três de frutas cristalizadas, mordendo com os dentes o lábio inferior. Dudley Frost disse que era um absurdo, começou a discutir com Cramer e foi preciso que um guarda lhe mostrasse a saída. Llewellyn nada disse e  fez três escolhas diferentes. A mãe de Helen escolheu um chocolate fininho, uma amêndoa da Jordânia e um drop de chiclete e limpou delicadamente as mãos com o lenço depois de repô-los na caixa. Um dos clientes interessou-me porque ouvira falar algumas coisas a seu respeito. Era um tipo em trajo de passeio e ombros acolchoados. Parecia ter mais ou menos quarenta anos, mas poderia ser um pouco mais velho. Possuía nariz estreito, cabelo lustroso e olhos escuros que não paravam um momento. No pedaço de papel estava escrito Perren Gebert. Ele hesitou um segundo, sorriu para mostrar-nos que não se importava em nos fazer a vontade e escolheu ao acaso.

Os empregados vieram por último. Boyden McNair en­cerrou a lista. Quando terminei com ele, o Inspetor Cramer levantou-se.

— Muito obrigado, Sr. McNair. O senhor nos  fez um grande favor. Sairemos dentro de dois minutos e o senhor pode abrir a loja.

— Os senhores... conseguiram alguma coisa? — pergun­tou McNair enxugando o rosto com o lenço. — Não sei o efei­to que tudo isto vai ter sobre o meu negócio. É horrível — enfiou a mão no bolso e puxou-a para fora novamente. — Es­tou com dor de cabeça. Vou para o meu escritório procurar uma aspirina. Eu devia ir para casa ou para um hospital. Os senhores... que truque foi esse que usaram?

— Este aqui? — Cramer puxou um charuto. — Oh, foi apenas psicologia. Eu lhe direi se conseguirmos algum resul­tado.

— Muito bem. Agora tenho de sair e conversar com aque­las mulheres... bem, deixe-me ver — voltou-se e saiu.

Saí com Cramer, levando a reboque o Capitão Dixon. En­quanto deixávamos o estabelecimento, ficando seus auxiliares para reunir os clientes perdidos e dar uma ajuda geral, ele se manteve calmo e sereno, mas logo que chegamos à calçada, descontraiu-se e descarregou a fúria em cima de mim. Fiquei surpreso ao vê-lo tão irritado e, à medida que ele se tornava ainda mais violento, compreendi que estava simplesmente mos­trando que alta opinião tinha de Nero Wolfe. Logo que me deu oportunidade, disse-lhe:

— Besteira, Inspetor. O senhor pensou que Wolfe era um mágico, e justamente porque ele nos disse para fazer isso o senhor pensou que alguém ia cair de joelhos, agarrá-lo pelas calças e confessar. Tenha paciência. Vou para casa e contarei tudo a Wolfe, enquanto o senhor conversa com o Capitão Di­xon. .. isto é, se ele sabe falar...

— Eu devia ter tido mais juízo — resmungou Cramer. — Se aquele rinoceronte gordo está brincando comigo, eu o farei comer a licença e ele não trabalhará mais.

— Ele não está brincando com o senhor — respondi su­bindo na barata. — Espere e veja os resultados — engrenei o carro e deixei o lugar.

Pouco podia eu suspeitar do que me aguardava na Rua 35, Oeste. Cheguei lá mais ou menos às onze e meia, pensando que Wolfe teria descido já há meia hora das estufas e que, por isso mesmo, eu -o encontraria de bom humor com a terceira garrafa de cerveja, o que seria ótimo, desde que eu não era exatamente portador de boas notícias. Depois de estacionar em frente à porta e colocar o chapéu no saguão, fui ao escritório e descobri, surpreso, que estava vazio. Procurei no banheiro, mas estava vazio também. Tomei a direção da cozinha para perguntar a Fritz, mas, logo que cruzei a soleira, parei e o coração desceu-me até os pés. Continuei, porém.

Encontrei-o sentado à mesa da cozinha com um lápis na mão e folhas de papel espalhadas por todos os lados. À sua frente, Fritz, com aquele brilho nos olhos que eu conhecia tão bem. Nenhum dos dois prestou a mínima atenção ao ruído que eu fiz ao entrar. Wolfe dizia:

— ... mas não podemos conseguir um bom pavão. Archie poderia tentar aquele lugar em Long Island, mas será prova­velmente inútil. A carne do peito de pavão não será adocicada, macia e devidamente desenvolvida a menos que a ave seja pro­tegida contra todos os sustos, especialmente contra os do ar, a fim de combater o nervosismo. E Long Island vive cheia de aeroplanos. O ganso para hoje à noite, com o recheio combi­nado, será inteiramente satisfatório. O cabrito será ideal para amanhã. Pode telefonar imediatamente ao Sr. Salzenback para abater um deles. Archie pode ir de automóvel a Garfield pela manhã para buscá-lo. Você pode continuar com os prelimi­nares do molho. Sexta-feira é que é o problema. Se tentarmos o pavão, estaremos meramente cortejando um desastre. Os pombos servirão como tira-gosto, mas a principal dificuldade continua de pé. Fritz, ouça aqui. Vamos tentar uma solução inteiramente nova. Sabe o que é shish-kabob? Eu o experi­mentei na Turquia. Fatias finas marinadas de cordeiro macio conservadas durante diversas horas em vinho tinto e especiarias.

Voudar a lista: tomilho, noz-moscada, grãos de pimenta, alho...

Ali em pé, analisei a situação. Parecia irremediável. Não havia dúvida, era o início de uma grande recaída. Ele nada so­frerá durante longo tempo e talvez a crise durasse uma semana ou mais e, enquanto ele estivesse sob os efeitos do feitiço, me­lhor seria falar de negócios com um poste de rua do que com Nero Wolfe. Justamente por esse motivo, quando estávamos trabalhando num caso, eu jamais gostava de deixá-lo a sós com Fritz. Se eu apenas tivesse chegado em casa uma hora mais cedo! Parecia que o acesso fora longe demais para poder ser combatido. E esta era uma das vezes em que parecia fácil ima­ginar o que o provocara: ele não esperara realmente coisa algu­ma da confusão que organizara para Cramer e para mim e por isso disfarçava.

Cerrei os dentes e dirigi-me para a mesa. Wolfe continuou a falar. Fritz nem me olhou.

— Que é isso? Vai abrir um restaurante? — perguntei. Nenhuma resposta. Continuei: — Tenho um relatório a fazer. Quarenta e cinco pessoas comeram bombons daquelas caixas e todas morreram atrozmente. Cramer está morto. H.R. Cragg, morto também. As deusas estão mortas. Estou com vontade de vomitar.

— Cale a boca, Archie. O carro está em frente? Fritz vai precisar imediatamente de algumas coisas.

Eu sabia que logo que começasse a entrega dos suprimen­tos não haveria mais oportunidade alguma. Sabia também que suplicar ou ser grosseiro não adiantaria. Desesperado, passei em revista mentalmente as fraquezas de Wolfe e escolhi uma.

Interrompi:

— Escute. Este festim maluco que você está organizan­do... sei que não posso detê-lo. Tentei antes. Okay...

Wolfe falava com Fritz:

— Mas não a pimenta. Se você puder encontrar uma da­quelas pimentas amarelas anguino na Rua Sullivan...

Não ousei tocá-lo, mas inclinei-me para bem perto dele e berrei-lhe:

— E o que é que eu devo dizer à Srta. Frost quando ela vier aqui às duas horas? Eu tenho poderes para marcar um encontro, não tenho? Ela é uma senhora, não? Claro, se a cortesia comum vai pela borda também...

Wolfe controlou-se, contraiu os lábios e virou a cabeça. Olhou-me nos olhos. Após um momento, perguntou tranqüila­mente :

_ Quem? Que Srta. Frost?

__ Srta. Helen Frost? Filha da Sra. Edwin Frost, prima

de nosso cliente, Sr. Llewellyn Frost, sobrinha do Sr. Dudley Frost. Lembra-se?

— Não acredito. Isso é um truque. Um engodo.

— Claro — respondi, espigando-me. — Isto chega quase ao limite. Muito bem. Quando ela chegar, eu lhe direi que abusei de minha autoridade ao marcar o encontro. Não vou almoçar hoje aqui, Fritz — dei a volta e saí a caminho do es­critório, sentei-me à escrivaninha, puxei os pedaços de papel do bolso, perguntando-me se o estratagema daria certo e ten­tando decidir o que fazer, se desse. Mexi nos papéis fingindo que os arrumava, respirando com cuidado para ouvir melhor.

Passaram-se pelo menos dois minutos antes que eu ouvisse alguma coisa na cozinha e, logo depois, o som de Wolfe em­purrando a cadeira para trás. Em seguida, ouvi-lhe os passos, aproximando-se. Continuei ocupado com os papéis e, portanto, não o vi realmente quando ele entrou no escritório, atravessou-o até a escrivaninha e arriou-se no assento. Continuei a trabalhar.

Finalmente ele falou num tom suave que me deu ganas de dar-lhe um pontapé:

— Então devo mudar todos meus planos em virtude dos caprichos de uma jovem que, para começar, é uma mentirosa. Ou, pelo menos, adiá-los — subitamente, explodiu num acesso de ferocidade: — Sr. Goodwin! O senhor não tem consciên­cia?

Sem levantar os olhos, respondi:

— Não.

Silêncio. Após algum tempo, ouvi-o suspirar:

— Muito bem, Archie — ele se controlara e voltara ao tom normal. — Conte-me como foi.

Era a minha vez agora. Pela primeira vez conseguira de­ter uma recaída depois de ter chegado à fase do menu, mas parecia que talvez isso tivesse como resultado acabar com uma dor de cabeça cortando a própria cabeça. Eu teria de conti­nuar e a única maneira que me ocorreu foi aproveitar um fio esguio que pairara a minha frente na loja de McNair naquela manhã e tentar vendê-lo a Wolfe como se fosse um cabo de aço.

— Bem — respondi. — Fomos lá e fizemos a coisa. — Continue.

Ele pousara os olhos semicerrados em mim. Eu sabia que ele suspeitava de mim e não ficaria surpreso se meu momento tivesse chegado. Mas ele não estava de volta à cozinha.

— Foi praticamente um fracasso — levantei os pedaços de papel. — Cramer está tão dolorido como uma espinha no nariz. Claro que ele não sabia que eu estava tomando nota do tipo de balas que as pessoas tiravam. Ele pensou que estávamos sim­plesmente procurando um gesto revelador nos atos de cada um e isto foi naturalmente um fracasso. Um terço estava com medo, metade nervosa, alguns furiosos e apenas alguns indiferentes. Isso foi tudo, no particular. De acordo com as instruções, observei-lhes os dedos enquanto Cramer e Dixon olhavam-lhes os rostos, e anotei os símbolos das escolhas — dedilhei os peda­ços de papel. — Sete deles escolheram amêndoas da Jordânia. Um deles tirou duas.

"Wolfe tocou a campainha e pediu cerveja.

— E então?

— Assim, anotei a coisa dessa maneira. Digo-lhe uma coisa. Não sou bastante esperto para esse tipo de coisa. Você sabe disso e eu também. Quem é que é? É uma perda de tempo dizer que você é, em virtude da inércia. Não obstante, sou mais escorregado do que cola. No caso de seis das pessoas que escolheram amêndoas da Jordânia, em virtude de suas ex­pressões, de que são e do modo como o fizeram... não acho que signifique coisa alguma. Mas no caso da sétima... bem, não sei. É verdade que ele vai ter um colapso nervoso. Ele mesmo lhe disse isso. Ficou surpreso com o pedido de tirar uma bala, exatamente como todos os outros. Cramer conduzia as coisas corretamente; pôs homens por lá para que ninguém soubesse o que acontecia antes de entrar na sala. E o Sr. Boyden McNair agiu de maneira estranha. Quando lhe estendi a caixa e pedi-lhe que tirasse um bombom, ele recuou um pouco, mas muitos outros fizeram a mesma coisa. Em seguida, espi­gou-se, estendeu a mão para apanhar a caixa, olhou para dentro, seus dedos dirigiram-se imediatamente para uma amêndoa jordaniana, afastaram-se com um movimento brusco e ele tirou um chocolate. Pedi-lhe rapidamente para tirar outro sem dar-lhe tempo de chegar a uma decisão e, desta vez, ele tocou em dois outros tipos da primeira vez e, em seguida, escolheu uma amêndoa jordaniana, uma branca. Na terceira vez procurou ime­diatamente um drop e tirou-o.

Fritz entrou com uma cerveja para Wolfe e uma carranca para mim. Enquanto abria a garrafa e se servia, Wolfe mur­murou :

— Foi você quem viu, Archie. Qual a sua conclusão?

Lancei os pedaços de papel sobre a escrivaninha:

— Minha conclusão é que McNair tem quase uma fixação nas amêndoas da Jordânia. Você sabe, da mesma maneira que um operário como eu é consciente de classe um enxugador como você é consciente de cerveja. Admito que a coisa é vaga, mas você me enviou até lá para ver se alguém daquele grupo su­geria a idéia de que amêndoas da Jordânia são diferentes de todos os outros tipos de bombons. E ou Boyden McNair  fez exatamente isso ou eu tenho a alma de um estenógrafo. E nem mesmo uso todos os dedos.

— O Sr. McNair. Realmente — disse Wolfe esvaziando o copo e reclinando-se na cadeira. — A Srta. Helen Frost, se­gundo o primo, nosso cliente, chama-o de Tio Boyd. Você sa­bia que eu também sou tio, Archie?

Ele sabia perfeitamente que eu sabia, desde que eu datilo­grafava as cartas que ele enviava mensalmente a Belgrado, mas, naturalmente, ele não esperava resposta. Fechou os olhos e permaneceu imóvel. A sua mente podia ter estado trabalhando, mas o mesmo acontecia com a minha. Eu tinha de descobrir uma maneira plausível de dar o fora, pular na barata, correr até a Rua 52 e seqüestrar Helen Frost. Não me preocupava a coisa a respeito de McNair. Era a única isca que eu conseguira na cidade e eu realmente pensava que com ela houvesse uma boa oportunidade de fisgar um peixe. Além disso, eu a forne­cera diretamente a Wolfe e cabia-lhe agora fazer o que qui­sesse com ela. Mas o encontro às duas horas que eu mencionara, Deus me valesse..."

Tive uma idéia. Sabia que quando Wolfe fechava os olhos para que seu gênio trabalhasse, ele ficava amiúde além do alcan­ce dos estímulos externos. Diversas vezes eu derrubara a cesta de papéis sem lhe provocar a mínima reação. Sentei-me, obser­vei-o durante um momento, vi-o respirando, isto era tudo, e finalmente decidi arriscar-me. Puxei os pés para baixo do corpo e levantei-me da cadeira sem provocar um estalo. Mantive os olhos em Wolfe. Três passos curtos sobre a passadeira de borracha e cheguei ao primeiro tapete. Naquele silêncio era uma sopa. Andei na ponta dos pés, prendendo a respiração, acelerando gradualmente à medida que me aproximava da por­ta. Cheguei à soleira... um passo no corredor... outro...

O trovão rolou vindo do gabinete às minhas costas:

— Sr. Goodwin!

Tive idéia de sair correndo, agarrar o chapéu em pleno vôo, mas um momento de reflexão mostrou-me que isto teria sido desastroso. Ele teria uma recaída novamente durante minha ausência, e isto por pura maldade. Dei a volta e re­gressei.

— Aonde é que você estava indo? — rugiu ele. Tentei rir para ele.

— A parte alguma. Ia descer apenas durante alguns mi­nutos.

— E por que esses passos furtivos?

— Eu... porque... bem, diabos o levem, eu não queria perturbá-lo, senhor.

— Realmente! Então me manda para o inferno? — ele se endireitou na cadeira. — Não me perturbar? Ah! Que outra coisa  fez você nestes últimos oito anos? Quem é que violenta­mente perturba quaisquer planos privados que eu, em raras oca­siões, pretendo realizar? — ele sacudiu a mão inteira em mi­nha direção. — Você não ia ao andar térreo. Você ia sair sorrateiramente desta casa, correr frenèticamente pelas ruas da cidade numa tentativa desesperada de esconder a chicana que praticou contra mim. Ia tentar agarrar Helen Frost e trazê-la aqui. Pensa que não percebi sua mentira lá embaixo na cozinha? Eu já não lhe disse que os seus poderes de dissimulação são simplesmente inexistentes? Muito bem. Digo-lhe três coisas. A primeira é um lembrete: vamos ter fritada de arroz com geléia de groselha preta e chicória com estragão para o almoço. O segundo é uma informação: você não terá tempo de almoçar aqui. A terceira é uma instrução: vá até a loja de McNair, agarre a Srta. Frost e traga-a a este escritório às duas horas. Sem dúvida você encontrará oportunidade de comer algum san­duíche gorduroso em algum lugar. Quando chegar aqui com a Srta. Frost, eu terei terminado a fritada e a chicória.

— Okay — respondi. — Ouvi cada palavra. Aquela moça é teimosa. Tenho carta branca? Posso estrangulá-la? Amarrá-la?

— Mas, Sr. Goodwin — disse ele num tom que raramente usava e que eu chamaria de um relincho sarcástico —, ela tem um encontro marcado aqui às duas horas. Certamente não ha­verá dificuldade. Se apenas a cortesia comum...

Saí correndo para o corredor em busca do meu chapéu.

 

Capitulo 7

A caminho da cidade na barata refleti que uma pressão óbvia podia ser aplicada sobre Helen Frost para levá-la na di­reção onde eu a queria. Sou o máximo quando se trata do óbvio, pois isso economiza um bocado de tempo e poupa-nos andar como barata tonta de um lado para outro. Resolvi usá-la.

Consegui encontrar vaga a apenas um quarteirão de distân­cia. De lá, fui a pé até a loja de McNair. O porteiro fardado sorria para uma mulher que do outro lado da rua tentava ali­mentar com açúcar o cavalo de um policial montado. Apro­ximei-me dele e disse:

— Lembra-se de mim? Estive aqui esta manhã.

Tendo sido abordado por um cavalheiro, ele começou a es­pigar-se para mostrar-se fino. Lembrou-se, porém, que eu es­tava ligado à Polícia e começou a relaxar-se.

— Claro que me lembro. O senhor é o homem que distri­buiu os bombons.

— Exato. Atenção, por favor. Quero falar em particular com a Srta. Helen Frost e não desejo criar nenhuma comoção lá dentro. Ela já saiu para o almoço?

— Não. Só sai à uma hora.

— Ela está lá dentro?

— Claro — ele consultou o relógio do pulso. — Vai de­morar uma meia hora.

— Okay — disse eu, agradecendo-lhe com uma inclinação de cabeça e afastando-me. Veio-me a idéia de procurar um pou­co de aveia para comer, mas achei que era melhor ficar por ali. Acendi um cigarro e caminhei até a esquina da Quinta Aveni­da, atravessei a rua e voltei pelo Madison. Aparentemente, o

público interessava-se ainda pelo lugar onde o belo manequim fora envenenado, pois notei que pessoas diminuíam a marcha e olhavam para a entrada da loja. Às vezes, uma ou outra pa­rava. O guarda montado continuava nas imediações. Caminhei preguiçosamente pelas vizinhanças, não me afastando muito.

Às cinco para uma ela saiu, sozinha, e tomou a direção leste. Acompanhei-a a distância, cruzei a rua e postei-me atrás dela. Pouco antes de ela chegar a Madison, disse-lhe viva­mente :

— Srta. Frost!

Ela girou sobre o lugar onde se encontrava. Tirei o cha­péu.

— Lembra-se de mim? Meu nome é Archie Goodwin. Eu gostaria de dizer-lhe algumas palavras...

— Isto é demais! — ela se voltou e afastou-se.

Ela era algo digno de ser visto. Tão independente como um tronco sobre um bloco de gelo. Dei um salto, outro e mais outro, e plantei-me diretamente em frente a ela.

— Ouça aqui. A senhorita é ainda mais infantil do que seu primo Lew. Eu simplesmente preciso, no cumprimento do dever, fazer-lhe uma ou duas perguntas. A senhorita vai almo­çar. Também estou com fome e tenho de comer mais cedo ou mais tarde. Não posso convidá-la a almoçar porque não pode­ria incluir a despesa na conta, mas posso sentar-me a uma mesa com a senhorita durante quatro minutos e, depois, ir almoçar em outro lugar, se assim quiser. Sou um homem que se  fez por si mesmo, e um tanto rude, mas não sou um desordeiro. Terminei o curso secundário aos dezessete e há apenas alguns meses dei dois dólares para a Cruz Vermelha.

Em virtude de meu tom firme e talvez agressivo algumas pessoas nos olhavam e ela notou isso.

— Almoço no Moreland's — disse ela — na esquina de Madison. O senhor pode fazer suas perguntas lá.

Um truque no papo. Moreland's era um desses lugares que servem rosbife da grossura de uma folha de papel e especiali­zam-se em pratos de verduras. Deixei que Helen Frost esco­lhesse a mesa, segui-a e abanquei-me numa cadeira em frente logo que ela se sentou.

Ela me olhou e perguntou:

— Então?

— A garçonete está por perto — respondi. — Peça seu almoço.

— Posso pedir mais tarde. Que é que o senhor quer? Um espetáculo, sem dúvida. Continuei agradável, porém.

— Eu gostaria de levá-la à Rua 35, Oeste, número 218, para uma conversa com Nero Wolfe.

Ela me olhou fixamente.

— Isso é ridículo — disse. — Para quê? Usei um tom de voz bem humilde:

— Temos de estar lá às duas e por isso não temos muito tempo. Realmente, Srta. Frost, seria muito mais humano se comesse alguma coisa e me deixasse fazer o mesmo, enquanto explico. Não sou tão revoltante como um cantor de rádio ou um agente da Liga da Liberdade.

— Eu... eu não estou com fome. Vejo que o senhor é engraçado. Há um mês eu o acharia hilariante.

Inclinei a cabeça, concordando.

— Sou um número — fiz um gesto para uma garçonete, consultei o cardápio e perguntei:

— Que é que vai querer, Srta. Frost?

Ela pediu um doce e chá. Preferi porco e feijão, acompa­nhados por um copo de leite.

Afastando-se a garçonete, comecei:

— Havia um bocado de maneiras de fazer isso. Poderia amedrontá-la. Não pense que eu não podia. Ou podia tentar convencê-la, desde que seu primo é nosso cliente e, como Nero Wolfe é tão honesto com um cliente como a senhorita seria com sua irmã gêmea, que seria do seu próprio interesse ir vê-lo. Mas há uma razão melhor para ir do que qualquer uma outra. Pura decência. Não importa se Wolfe teve razão ou não a res­peito do que a senhorita disse ontem na McNair's. O ponto importante é que não contamos a ninguém. A senhorita viu esta manhã em que termos estamos com a Polícia. Eles deixa­ram que eu conduzisse o teste. Mas eles a estão por acaso ator­mentando sobre o que disse ontem? Não, não estão. Por outro lado, a senhorita terá de discutir isso com alguém... mais cedo ou mais tarde. A senhorita é um amorzinho e ninguém pode deixar de reconhecer isso. Com quem quer discutir o assunto? Se quer meu conselho, Nero Wolfe, e quanto mais cedo, me­lhor. Não se esqueça de que a Srta. Mitchell ouviu-a dizer aquilo também, e embora ela possa ser sua grande amiga...

— Por favor, não diga mais coisa alguma — ela olhava para o garfo, que empurrava para a frente e para trás sobre a toalha da mesa. Notei que os dedos que o seguravam estavam brancos com o esforço. Reclinei-me para trás e olhei para outro lado.

A garçonete voltou e começou a depositar a comida a nossa frente. Helen Frost esperou até que ela acabasse e fosse embora e, em seguida, disse mais para si mesma do que para mim:

— Não posso comer.

— Devia — disse eu, mas não apanhei os talheres. — Deve-se sempre tentar fazê-lo. Tente, de qualquer maneira. Eu já almocei. Eu estava apenas fazendo-lhe companhia — tirei alguns níqueis do bolso e coloquei-os sobre a mesa. — Meu carro está estacionado na Rua 52, a meio caminho da Park Avenue, na mão que dá para o centro. Espero-a ali a um quar­to para as duas.

Ela não respondeu. Caí fora, localizei a garçonete, pedi-lhe a conta, paguei à, saída e deixei o restaurante. Do outro lado da rua e um pouco mais adiante, sentei-me ao balcão de uma lanchonete, comi dois sanduíches de presunto com dois copos de leite. Perguntei-me o que fariam com os feijões, se o colocariam de volta na panela, e pensei que seria um crime desperdiçá-los. Não me preocupei muito com Helen Frost, por­que me pareceu que o assunto estava resolvido. Não lhe res­tava alternativa.

Não restava mesmo. Ela chegou às dez para as duas, encontrando-me na calçada, junto à barata. Abri a porta, ela entrou, subi e pisei no arranco.

Quando nos afastávamos, perguntei-lhe:

— Comeu alguma coisa? Ela inclinou a cabeça.

— Um pouco. Telefonei à Sra. Lamont, disse-lhe aonde ia e que voltaria às três horas.

— Hum, hum! É possível que o consiga.

Dirigi o carro arrogantemente pois me sentia arrogante. Ela estava a caminho, os dois sanduíches não tinham sido gor­durosos e não eram ainda duas horas. E mesmo esfomeado e com círculos em volta dos olhos, ela era o tipo de companheira de viagem que me dava a vontade compreensível de baixar a capota para que o público visse o que eu levava. Sendo amante da beleza, permitia-me uma ou outra olhadela ao seu perfil.

Observei que o queixo era ainda mais bonito daquele ângulo do que de frente. Evidentemente, havia uma possibilidade remota de que ela fosse uma assassina, mas não se pode ter de tudo neste mundo.

Chegamos às duas e dez. Ao introduzi-la no gabinete, não vi pessoa alguma. Deixei-a numa cadeira, temendo o pior. Mas não houve problemas. Wolfe estava na sala de jantar com uma xícara vazia de café, com aquele olhar contente para o espaço que lhe vem após as refeições. Na soleira da porta, anunciei:

— Espero que a fritada tenha sido horrível. A Srta. Frost lamenta estar atrasada um minuto para o encontro. Nós fica­mos prosando durante uma deliciosa refeição e o tempo simples­mente voou.

— Ela veio? O demônio — o sorriso mudou para uma carranca enquanto ele fazia preparativos para erguer-se. — Não pense nem por um momento que fui ludibriado. Eu não sou realmente tolo assim.

Precedi-o para abrir a porta do gabinete. Ele se dirigiu para a escrivaninha ainda mais deliberadamente do que lhe era comum, passou por trás da Srta. Frost, sentada numa cadeira, arriou-se na sua e inclinou a cabeça para ela sem dizer palavra. Ela o olhou diretamente e eu pude ver que ela estava, por Deus, guarnecendo a fortaleza e que ia continuar a mantê-la. Sentei-me calmamente na minha cadeira com o bloco de notas, sem tentar ocultá-lo.

Wolfe perguntou-lhe cortesmente:

— Desejava ver-me, Srta. Frost?

Com os olhos ligeiramente esbugalhados, ela respondeu, indignada:

— Eu? O senhor enviou esse homem para buscar-me.

— Ah, de fato mandei — Wolfe suspirou. — Agora que está aqui, tem alguma coisa especial que queira dizer-me?

Ela abriu a boca, fechou-a novamente e, em seguida, disse simplesmente:

— Não.

Wolfe exalou outro suspiro. Reclinou-se na cadeira,  fez um movimento para cruzar as mãos sobre o estômago e, em seguida, lembrou-se de que era cedo demais após o almoço e deixou-as pender de ambos os lados da cadeira. Com olhos semicerrados, continuou sentado, confortável, imóvel.

Finalmente, murmurou:

— Que idade tem?

— Farei vinte e um em maio.

— Realmente. Em que dia de maio?

— Sete.

— Soube que chama o Sr. McNair de "Tio Boyd". Seu primo contou-me isso. Ele é seu tio?

— Ora, não. Claro que não. Simplesmente chamo-o assim.

— Conhece-o há muito tempo?

— Toda minha vida. Ele é um velho amigo de minha mãe.

— Neste caso deve conhecer-lhe as preferências. Em bom-bons, por exemplo. Que tipos prefere ele?

Ela empalideceu, mas mostrou-se muito firme nos olhos e na voz. Nem pestanejou:

— Eu... eu não sei. Realmente, não saberia...

— Ora, vamos, Srta. Frost — Wolfe manteve um tom calmo e cordial. — Eu não lhe estou pedindo que divulgue al­gum segredo esotérico que apenas a senhorita conhece. Numa •questão de detalhe como essa muitas pessoas poderiam ser in­terrogadas ... qualquer dos amigos íntimos do Sr. McNair, nu­merosos conhecidos, os empregados domésticos, as lojas onde ele compra balas, se por acaso as compra. Se, por exemplo, ele preferir amêndoas jordanianas, essas pessoas poderiam di­zer-me. Acontece simplesmente que, neste momento, estou-lhe perguntando. Há algum motivo para que a senhorita tente •ocultar esse fato?

— Claro que não — ela não recuperara ainda as cores. — Não preciso ocultar coisa alguma — engoliu em seco. — O Sr. McNair gosta realmente de amêndoas jordanianas, isso é inegá­vel — subitamente, as cores reapareceram, um ponto no rosto, mostrando com que velocidade lhe circulava o sangue. — Mas eu não vim aqui apara discutir os tipos de bombons de que as pessoas gostam. Vim aqui para dizer-lhe que o senhor enga­nou-se redondamente a respeito do que eu disse ontem.

— Então a senhorita tem algo de especial a dizer-nos...

— Certamente que tenho — começou ela, irritando-se. — Aquilo foi apenas um truque, o senhor sabe disso perfeitamente. Eu não queria que minha mãe e meu tio viessem aqui, mas o meu primo Lew perdeu a cabeça, como sempre. Ele fica sempre receoso a meu respeito, de qualquer maneira, como se eu não tivesse cabeça bastante para tomar conta de mim mesma. O

senhor simplesmente me enganou e levou-me a dizer algo — não sei o quê — que lhe deu a oportunidade de fingir...

— Mas, Srta. Frost — interrompeu-a Wolfe com a mão erguida —, seu primo Lew tem inteira razão. Quero dizer, a respeito de sua cabeça. Não, permita-me! Deixe-me poupar tempo. Não repetirei palavra por palavra o que a senhorita disse ontem. A senhorita sabe o que foi tão bem como eu. Afirmarei simplesmente que as palavras que pronunciou, e a maneira como as pronunciou, tornaram apodítico que a senho­rita conhecia o conteúdo daquela caixa de bombons antes que a Srta. Mitchell lhe tirasse a tampa.

— Isso não é verdade! Eu não disse...

— Oh, mas sabia — disse Wolfe, dando um tom mais áspero à voz. — Entenda-me. Diabos a levem, pensa que vou bater boca com uma criança como a senhorita? Ou tem a espe­rança de que sua beleza paralise minha inteligência? Archie. Escreva isto a máquina, por favor. Uma cópia a carbono. Ta­manho carta, intitulado "Declarações Alternativas de Helen Frost".

Virei-me na cadeira, pus a máquina em cima da mesa e enfiei o papel no rolo.

— Comece. Wolfe ditou:

"1. Admito que conhecia o conteúdo da caixa de bombons e estou disposta a explicar a Nero Wolfe como soube, honesta­mente e em detalhe.

2. Admito que conhecia o conteúdo. Recuso-me no mo­mento a explicar, mas estou disposta a submeter-me a interro­gatório por Nero Wolfe sobre quaisquer outros assuntos, reservando-me o direito de, a minha discrição, negar-me a responder.

3. Admito que conhecia o conteúdo, mas recuso-me a con­tinuar esta conversação.

4. Nego que conhecesse o conteúdo." Wolfe recostou-se na cadeira e disse:

— Muito obrigado, Archie. Não, ficarei com o carbono. O original para a Srta. Frost — voltou-se para ela: •— Leia, por favor. Percebe as diferenças? Eis aqui uma caneta. Gos­taria de que pusesse suas iniciais em uma delas. Um momento. Em primeiro lugar, devo-lhe dizer que estou disposto a aceitar o número um ou o número dois. Não aceitarei os demais. Se

resolver escolher os números três ou quatro, terei de renunciar a0 trabalho que empreendo em nome de seu primo e tomar ime­diatamente certas medidas.

Ela não era mais uma deusa; estava nervosa demais para isso. Mas levou-lhe apenas alguns segundos para reunir bas­tante bom senso e perceber que estava apenas atrasando as coi­sas ao brincar com o papel. Levantou os olhos e olhou direta­mente para Wolfe:

— Eu... eu não sou obrigada a assinar coisa alguma. Por que devo fazê-lo? — as manchas de cor apareceram novamente. __É um truque e o senhor sabe disso! Todas as pessoas sufi­cientemente inteligentes podem fazer perguntas e obrigar outras a dar algum tipo de resposta que parece...

— Srta. Frost J Por favor. Quer dizer que pretende man­ter sua absurda negativa?

— Claro que vou mantê-la e nada há de absurdo a respeito dela. Eu o advirto também de que quando meu primo Lew...

Wolfe virou a cabeça e disse secamente:

— Archie! Chame o Sr. Cramer.

Puxei o telefone e disquei o número. Transferiram-me para uma extensão, falei com um escriturário e pedi para ser posto em contato com o Inspetor Cramer. No interesse do bolo de Wolfe, que precisava de forno quente, eu nutria a esperança de que ele não tivesse saído. E não tinha. A voz dele trovejou ao telefone:

— Alô! Alô, Goodwin! Descobriu alguma coisa?

—- Inspetor Cramer? Um momento. O Sr. Wolfe quer falar-lhe.

Fiz uma inclinação de cabeça para Wolfe e ele estendeu a mão para o aparelho. A moça, porém, pôs-se de pé, parecendo suficientemente furiosa para comer até salada de urtigas. Antes de levantar o aparelho, Wolfe disse-lhe:

— Por questão de cortesia, a senhorita pode escolher. Quer que o Sr. Goodwin a leve à delegacia ou quer que eu peça que mandem buscá-la?

A voz com que ela lhe respondeu soou como um grasnido:

— Não faça... não faça... — agarrou da pena e escre­veu o nome sob a declaração número dois. Estava tão zangada que a mão lhe tremia. Wolfe falou no aparelho.

— Sr. Cramer? Como está. Eu queria saber se o senhor chegou a alguma conclusão a respeito da operação desta manhã... Realmente... Eu não diria isso... Não, não tenho, mas iniciei uma linha de investigações que poderá transformar-se em algo, mais tarde. Não, nada para o senhor no momento. Como o senhor sabe, eu gosto de ser discreto nestes assuntos... O senhor deve deixar que eu decida isso, cavalheiro...

No momento em que ele pôs o aparelho no gancho, Helen Frost sentara-se novamente, olhando-o com o queixo levantado e os lábios contraídos. Wolfe apanhou o papel, relanceou os olhos para ele, estendeu-o através da secretária para mim e recostou-se na cadeira. Estirou a mão para tocar a campainha e pedir uma cerveja e reclinou-se novamente.

— Muito bem. A senhorita reconhece que possui infor­mação no tocante à arma do homicídio, que se recusa a revelar. Desejo lembrar-lhe que não fui contratado para manter con­fidencial esse conhecimento. No momento, conservá-lo-ei assim. Mas não me comprometo além desse ponto. A senhorita sabe por acaso como funciona a mente de um policial? Uma das suposições que surgem em primeiro lugar, e das mais cons­tantes, é que qualquer conhecimento recusado concernente a um crime é conhecimento culpado. Trata-se de uma suposição absurda, mas eles a acalentam. Por exemplo, se eles sou­bessem do que a senhorita acabou de assinar, partiriam da teoria de que ou a senhorita colocou o veneno nos bombons ou sabe quem o  fez. Não farei tal coisa. Mas, apenas como questão formal, pergunto-lhe: envenenou aquele bombom?

Ela se saiu muito bem. Respondeu em voz calma, apenas ligeiramente tensa:

— Não. Não envenenei.

— Sabe quem o  fez?

— Não.

— A senhorita está noiva? Ela comprimiu os lábios.

— O senhor nada tem a ver com isso. Wolfe falou, pacientemente:

— Terei de perguntar-lhe muitas coisas que a senhorita julgará que nada têm a ver com os meus negócios. Realmente. Srta. Frost, foi tolice sua irritar-se desnecessariamente. A per­gunta que lhe fiz é inteiramente inócua. Qualquer um dos seus amigos provavelmente a responderá. Por que não deve a senho­rita fazê-lo? Imagina por acaso que estamos aqui para um bate-papo cordial? Absolutamente. É uma conversação muito unilateral. Estou forçando-a a responder a perguntas sob amea­ça de entregá-la à Polícia, caso não o faça. A senhorita está noiva?

Ela começava a ceder um pouco. Mantinha as mãos con­traídas no regaço, parecia menor, como se tivesse encolhido, e os olhos estavam tão úmidos que uma lágrima finalmente formou-se no canto de cada um deles e escorreu. Sem prestar-lhe a mínima atenção, ela disse, encarando-o:

— O senhor é um gordo e sujo animal. O senhor... o senhor...

Ele inclinou a cabeça, concordando.

— Sei disso. Faço perguntas a mulheres apenas quando é inevitável, porque abomino histerismo. Enxugue os olhos.

Ela não se moveu. Ele suspirou.

— A senhorita está noiva?

Lágrimas de fúria molhavam-lhe também a voz.

— Não.

— A senhorita comprou esse diamante que usa no dedo?

Ela o olhou, involuntariamente.

— Não.

— Quem lhe deu?

— O Sr. McNair.

— E aquele incrustado no seu estojo de maquilagem... quem lhe deu aquele?

— O Sr. McNair.

— Espantoso. Eu não teria pensado que a senhorita desse importância a diamantes — Wolfe abriu uma garrafa de cer­veja e encheu o copo. — A senhorita não deve dar impor­tância ao que faço. Quero dizer, a minha aparência de inconseqüência. Uma empregadinha chamada Anna Fiore sentou-se nessa cadeira certa vez e conversou comigo durante cinco horas. A Duquesa de Rathkyn passou aqui a maior parte de uma noite. Costumo explorar cada ângulo e suplico-lhe que tenha paciência comigo — levantou o copo e esvaziou-o de dois goles. — Por exemplo, essa história do brilhante é curiosa. Gosta de brilhantes?

— Não... habitualmente.

— O Sr. McNair gosta deles? Ele os presenteia mais ou menos a torto e a direito?

— Não que eu saiba.

— E, embora não goste deles, usa-os... Por questão de respeito ao Sr. McNair? Por afeição a um velho amigo?

— Uso-os porque acontece que sinto vontade de fazê-lo.

— Exato. Como vê, eu pouco sei a respeito do Sr. McNair. Ele é casado?

— Como lhe disse, ele é um velho amigo de minha mãe. Um amigo de toda a vida. Ele teve uma filha que teria minha idade, mais ou menos um mês, mas ela morreu quando tinha dois anos. A mulher morreu antes, de parto. O Sr. McNair é o homem mais decente que já conheci. Ele é... meu melhor amigo.

— E cobre-a de brilhantes. Peço-lhe que me desculpe essa insistência nos brilhantes. Acontece que não gosto deles. Oh, sim, eu queria perguntar, conhece alguma outra pessoa que goste de amêndoas jordanianas?

— Qualquer outra pessoa?

— Além do Sr. McNair.

— Não, não conheço.

Wolfe serviu-se de mais cerveja e, esperando que a espuma baixasse, recostou-se e olhou carrancudo para a vítima.

— Sabe, Srta. Frost, é tempo que alguém lhe diga uma coisa. Na sua presunção, a senhorita está assumindo, para sua mocidade e inexperiência, uma terrível responsabilidade. Molly Lauck morreu há nove dias, provavelmente em virtude do tra­balho desastrado de alguém para matar outra pessoa. Durante todo esse tempo a senhorita possuía conhecimentos que, se transmitidos com competência e prontidão, poderiam ter re­sultado em algo muito mais importante do que vingar-se. Po­deria salvar uma vida e é mesmo possível que a vida mere­cesse ser salva. Que é que acha? Não é uma responsabilidade muito pesada para a senhorita? Tenho bom senso demais para tentar coerção. Há muito egoísmo e obstinação na senhorita. Mas devia realmente pensar no caso — apanhou o copo e bebeu.

Ela o observou. Finalmente, disse:

— Pensei no caso. Não sou uma egoísta. Eu... eu pensei no caso.

Wolfe levantou os ombros uns dois centímetros e deixou-os cair.

— Muito bem. Sei que seu pai faleceu. Depreendi de uma declaração do seu tio, Sr. Dudley Frost, de que ele é o curador de sua herança.

Ela concordou com um aceno de cabeça.

__ Meu pai morreu quando eu tinha meses apenas. Por isso mesmo, nunca tive realmente um pai — ela contraiu as sobrancelhas. — Isto é...

— Sim? Isto é?

— Nada — disse ela, sacudindo a cabeça. — Nada, abso­lutamente .

— Em que consiste a sua herança?

— Herdei-a do meu pai.

— Exato. Quanto?

Ela ergueu as sobrancelhas.

— Aquilo que meu pai me deixou.

— Ora, vamos, Srta. Frost. Hoje em dia o montante de heranças sob regime de tutela não constitui segredo. Quanto vale a senhorita?

Ela encolheu os ombros.

— Pelo que sei, algo mais de dois milhões de dólares.

— Realmente. Está intata?

— Intata? Por que não deveria estar?

— Não tenho a mínima idéia. Mas não pense que me estou metendo em assuntos que sua família considera íntimos demais para serem discutidos com estranhos. Seu tio disse-me ontem que sua mãe não possui um único centavo. Expressão dele. Então a fortuna de seu pai foi deixada para a senhorita?

Ela corou um pouco.

— Foi. Isso mesmo. Eu não tenho irmão ou irmã.

— E lhe será entregue... Desculpe. Se não se incomodar, Archie.

Era o telefone. Impulsionei a cadeira até a escrivaninha e atendi-o. Reconheci a voz calma e controlada antes que ela desse o nome e dei ao meu tom a nota contida e respeitosa que ela merecia. Gosto tão pouco de histerismo como Wolfe.

Voltei-me para Helen Frost.

— Sua mãe gostaria de falar-lhe — levantei-me e cedi-lhe a cadeira. Ela se aproximou.

— Sim, mamãe... Sim... Não, não fiz... Sei que disse isso, mas, nas circunstâncias... Não posso contar-lhe direito agora... Não pude perguntar ao tio Boyd porque ele não vol­tara ainda do almoço, assim disse apenas a Sra. Lamont aonde eu ia... Não, mamãe, isso é ridículo. Não acha que eu já tenho bastante idade para saber o que estou fazendo? ... Não posso fazer isso nem explicar-lhe até que a veja, e quando sair daqui vou diretamente para casa, mas não sei a que horas... Não se preocupe com isso e, pelo amor de Deus, acredite que tenho um pouco de bom senso... Não... Adeus...

A cor voltara-lhe ao rosto novamente quando ela se levantou e reocupou a cadeira. Wolfe pousou sobre ela olhos apertados. £ murmurou com simpatia:

— A senhorita não gosta que pessoas a importunem, não é, Srta. Frost? Até mesmo sua mãe. Eu sei. Mas devo tolerar isto. Lembre-se que física e financeiramente a senhorita vale muito bem certa amolação. Mentalmente, a senhorita está... bem... no estado de ninfa. Espero que não se importe por eu a estar discutindo.

— Não adiantaria se eu me importasse.

— Eu não disse que importaria. Disse apenas que espe­rava que não se importasse. E, voltando à sua herança. Acho que lhe será entregue ao alcançar a maioridade. No dia sete de maio.

— Presumo que sim.

— Daqui a apenas cinco semanas. Vinte e nove, trinta e cinco dias a partir de amanhã. Dois milhões de dólares. Outra responsabilidade para a senhorita. Continuará a trabalhar?

—i Não sei.

— Por que trabalha? Não certamente para auferir renda?

— Claro que não. Trabalho porque gosto. Sinto-me inútil sem fazer coisa alguma. E tio Boyd... o Sr. McNair... acon­teceu que lá havia trabalho que eu podia fazer.

— Por quanto tempo... Diabos. Desculpe-me.

O telefone novamente. Virei na cadeira, levantei o apare­lho e iniciei minha saudação habitual:

— Alô, gabinete de...

— Alô! Alô! Quero falar com Nero Wolfe!

Fiz uma careta para o meu calendário de mesa. Eu conhecia também essa voz. Adotei um tom agressivo.

— Não precisa berrar assim. O Sr. Wolfe está ocupado. Aqui fala Goodwin, o assistente confidencial. Quem...

— Aqui fala Dudley Frost! Não quero saber se ele está ocupado. Quero falar-lhe imediatamente! Minha sobrinha está aí? Quero falar com ela! Quero falar com o Sr. Wolfe em primeiro lugar! Ele vai-se arrepender...

Tornei-me mais áspero:

— Escute aqui, moço, se não mudar de tom, vou desligar. O Sr. Wolfe e a Srta. Frost estão conversando e eu me recuso a perturbá-los. Se quiser deixar um recado...

— Insisto em falar com Wolfe!

— O senhor não PODE, não pode. Não seja infantil.

— Eu lhe mostrarei quem é infantil! Diga a Wolfe... diga-lhe que sou o tutor de minha sobrinha. Ela está sob minha proteção. Não tolerarei que ela seja importunada. Man­darei prendê-lo e a Wolfe como calamidades! Ela é de menor idade! Vou processá-los...

— Escute, Sr. Frost. Quer escutar? O que o senhor diz está muito bem. -E deixe-me sugerir que mande o Inspetor Cramer fazer a prisão porque ele já esteve aqui muitas vezes e conhece o caminho. Além disso, vou desligar agora e se me encher telefonando toda hora, vou procurá-lo e amasso-lhe o nariz. Digo-lhe isso com toda a seriedade.

Coloquei o telefone no gancho, apanhei a caderneta de notas e disse secamente:

— Mais chateação.

— Meu primo? — perguntou Helen Frost em voz tensa, pois não gostava de ter de perguntar.

— Não. Seu tio. O seu primo será o próximo.

O que foi exato e mais imediato do que eu pensava. Ela abriu a boca para fazer outra pergunta, mas mudou de idéias. Wolfe continuou:

— Eu estava para perguntar-lhe há quanto tempo tra­balha?

— Quase dois anos — respondeu ela, inclinando-se para ele. — Eu gostaria de perguntar, isto... isto vai continuar indefinidamente? O senhor está tentando apenas provocar-me...

Wolfe sacudiu negativamente a cabeça.

— Não estou tentando provocá-la. Estou reunindo infor­mações, possivelmente nada de pertinente, mas isto é problema meu — relanceou a vista para o relógio. — São três e quinze. Às quatro, pedir-lhe-ei que me acompanhe às minhas estufas no andar superior. A senhorita achará as orquídeas interessan­tes. Acho que deveremos terminar lá pelas seis. Asseguro-lhe de que vou levar isto até o fim. Tenho a intenção de convidar o Sr. McNair a visitar-nos esta noite. Se ele julgar a ocasião inoportuna, então amanhã. Se se recusar, o Sr. Goodwin irá à loja pela manhã e verá o que pode ser feito. Por falar nisso, preciso ter certeza de que a senhorita estará lá amanhã? Estará?

— Naturalmente. Estou lá todos... Oh! Não. Não es­tarei. Amanhã a loja estará fechada.

— Fechada? Numa terça-feira? Dia 2 de abril? Ela inclinou a cabeça.

— Sim, dois de abril. É justamente por isso. Nesse dia morreu a esposa do Sr. McNair.

— Realmente. E data do nascimento da filha? Ela inclinou novamente a cabeça.

— Ele... ele sempre fecha a loja.

— E visita o cemitério?

— Oh, não. A esposa dele morreu na Europa, em Paris. O Sr. McNair é escocês. Ele veio para este país há mais ou menos doze anos, um pouco depois de minha mãe e eu che­garmos .

— Então passou parte da infância na Europa?

— A maior parte. Os primeiros oito anos. Nasci em Paris, mas meu pai e minha mãe eram ambos americanos — ela incli­nou um pouco o queixo. — Sou uma moça americana.

— Bem que parece — Fritz trouxe mais cerveja e Wolfe serviu-se. — E após doze anos o Sr. McNair ainda fecha a loja no dia 2 de abril em homenagem à esposa. Um homem constante. Naturalmente, ele perdeu também a filha... quando ela tinha dois anos, penso que foi o que disse — o que completou a perda. Ainda assim, ele continua a vestir mulheres... bem. Então não estará lá amanhã?

— Não, mas ficarei com o Sr. McNair. Eu... faço sem­pre isso por ele. Ele pediu isto há muito tempo, minha mãe deixou, e eu sempre faço isto. Eu tenho quase exatamente a idade que a filha dele teria. Naturalmente, não me lembro dela. Eu era jovem demais.

— Então passa o dia com ele como substituta da filha — Wolfe estremeceu. — O dia de luto dele. Fantasmagórico. E ele a cobre de diamantes. Não obstante... a senhorita sabe que seu primo, o Sr. Llewellyn Frost, deseja que deixe o emprego, não?

— Talvez saiba. Mas isto nem mesmo é assunto meu. É assunto dele.

— Certamente, e, daí, meu, desde que ele é meu cliente. Continua a esquecer que ele me contratou?

-— Não esqueço — disse ela em tom desdenhoso. — Mas posso assegurar-lhe que não vou discutir meu primo Lew com o senhor. Ele teve boas intenções. Sei disso.

— Mas não gosta da confusão que se está armando em torno do caso — Wolfe suspirou. A espuma desaparecera da cerveja e ele pôs um pouco mais no copo, ergueu-o e bebeu. Sentado na minha cadeira, tamborilei com o lápis sobre o bloco enquanto observava os tornozelos da Srta. Frost e a sugestão de formas que deles subia. Eu não estava exatamente entediado, mas começava a preocupar-me, perguntando a meus botões se o germe da recaída ainda trabalhava nos centros nervosos de Wolfe. Não apenas ele nada estava conseguindo com essa operosa herdeira, 'mas não me parecia que estivesse nem mesmo fazendo um esforço resoluto. Lembrando-me das exibições que o vira fazer com outras pessoas — por exemplo, Nyura Fronn naquele caso do Clube dos Diplomatas — comecei a nutrir a suspeita de que ele estava apenas matando tempo. Em qual­quer estado que lhe lembrasse a melhor forma, ele teria encurra­lado essa rica mocinha há muito tempo num canto. Mas aqui estava ele...

Fui desviado desses pensamentos pela campainha da porta e o som dos passos de Fritz indo atendê-la. Ocorreu-me inespe­radamente a idéia de que o Sr. Dudley Frost, não gostando da maneira como eu desligara, estivesse vindo para endireitar o nariz. Negligentemente, firmei-me mais na cadeira, pois sabia que Wolfe não estava no estado de espírito de ser lançado nova­mente de um lado para outro por aquele ciclone verbal. E, diabos o levassem, eu não ia servir mais o Old Corcoran.

Mas, em vez do ciclone, entrou apenas a brisa, o filho. Nosso cliente. Fritz apareceu e anunciou-o. À inclinação da cabeça de Wolfe, saiu para introduzi-lo no gabinete. Ele não estava só. Introduziu à sua frente um homenzinho de mais ou menos sua idade, de rosto redondo rosado e olhos vivos. Lew Frost escoltou esse espécime para frente, largou-o e voltou-se para a prima. i

— Helen! Você não devia ter feito isto...

— Ora, Lew, pelo amor de Deus, por que veio aqui? De qualquer modo, é culpa sua se fui obrigada a vir — ela notou o gordinho. — Você também, Bennie? — parecia zangada e sombria. — Está armado!

Lew Frost voltou-se para Wolfe, dando em cada centí­metro a impressão de um jogador de futebol.

— Que diabo é que o senhor está tentando fazer? O senhor pensa que pode fazer isso impunemente? Que é que diria se eu o arrancasse dessa cadeira...

O gordo amigo agarrou-lhe o braço com autoridade. Falou secamente:

— Nada disso, Lew. Acalme-se. Apresente-me. O nosso cliente controlou-se com esforço.

— Mas Ben... muito bem. Esse cavalheiro é Nero Wolfe. — Olhou furioso para Wolfe. — Este senhor é o Sr. Benjamin Leach, meu advogado- Tente alguns truques com ele.

Wolfe inclinou a cabeça.

— Muito prazer, Sr. Leach. Não conheço truque algum, Sr. Frost. De qualquer modo, o senhor não está complicando um pouco as coisas? Em primeiro lugar, contrata-me para fazer um trabalho e agora, a julgar por sua atitude, o Sr. contrata o Sr. Leach para frustrar-me. Se continuar com isso...

— Não para frustrá-lo —> o advogado dava a impressão de cordial e macio. — O senhor vê, Sr. Wolfe, sou um velho amigo de Lew. Ele é um pouco impulsivo. Ele me contou algo a respeito deste caso... das circunstâncias excepcionais, e eu simplesmente pensei que seria apropriado se ele e eu esti­véssemos presentes em quaisquer conversações que o senhor possa ter com a Srta. Frost. De fato, teria sido inteiramente apropriado se o senhor tivesse combinado para virmos, desde o início — sorriu agradàvelmente. — Não é fato? Dois dos senhores e dois de nós?

Wolfe  fez uma careta.

— O senhor fala, cavalheiro, como se fôssemos exércitos hostis alinhados para batalha. Claro que isto é natural, desde que desavenças são para os advogados o que dentes cariados são para os dentistas. Com isso não tenho em mente qualquer hostilidade. Os detetives vivem também de encrencas. Mas não as provocam quando não há nenhuma... eu pelo menos não provoco. Não lhe peço que se sente porque não o quero aqui. Acho que a esse respeito teremos de consultar... Sim, Fritz?

Fritz batera, entrara e agora caminhava em direção à escrivaninha com seu andar peculiar, levando a bandeja de peltre na mão. Curvou-se até a cintura e estendeu-a.

Wolfe apanhou o cartão, leu e disse:

— Ainda não é conveniente. Diga-lhe... não. F&ça-o entrar.

Fritz curvou-se outra vez e saiu. O advogado voltou-se para a porta e Llewellyn virou a cabeça. A Srta. Frost ficou simplesmente onde estava. O recém-chegado entrou. À vista do seu nariz fino, cabelo lustroso e olhos escuros buliçosos, abafei um sorriso e murmurei para mim mesmo: "Mais con­fusão."

Levantei-me.

— Por aqui, Sr. Gebert.

Lew Frost deu um passo e explodiu.

— Você? Que diabo é que você quer aqui?

— Sr. Frost! — disse Wolfe secamente. — Lembro-lhe de que o senhor está no meu gabinete!

O advogado agarrou nosso cliente — dele também, natu­ralmente — e conservou-o seguro. Perren Gebert não lhes deu atenção alguma. Passou por ele antes de parar e inclinar o torso na direção de Wolfe.

— Sr. Wolfe? Prazer em conhecê-lo. Permita-me — voltou-se e curvou-se novamente na direção de Helen Frost, desta vez com técnica diferente. — Ah, então está aqui! Como está? Você esteve chorando! Desculpe-me, eu não tenho tato, não devia ter mencionado isso. Como está? Tudo bem?

— Claro que estou bem! Pelo amor de Deus, Perren, por que você veio aqui?

— Vim para levá-la para casa — Gebert voltou-se e dirigiu os olhos escuros para Wolfe. — Permita-me, cavalheiro. Vim até aqui para levar a Srta. Frost para casa.

— Não diga! — murmurou Wolfe. — Oficialmente? Pela força? A despeito de tudo?

— Bem... — Gebert sorriu. — Semi-oficialmente. Como é que direi... A Srta. Frost é quase minha noiva.

— Perren! Isso não é verdade! Já lhe pedi para não dizer isso!

— Eu disse quase, Helen — ele levantou uma mão num gesto de autocomiseração. — Disse quase e permiti-me dizer isso apenas na esperança...

— Bem, não o diga novamente. Por que veio aqui? Gebert curvou-se novamente.

— A verdade é que sua mãe sugeriu isso.

— Oh, então ela sugeriu — a Srta. Frost olhou em volta para os vários protetores. Dava a impressão de totalmente desesperada. — Acho que ela sugeriu o mesmo a você também, Lew. E a você, Bennie?

— Ora, Helen — disse o advogado dando um tom persuasivo à voz. — Não comece comigo. Vim aqui porque Lew falou-me a respeito do caso e pareceu-me a melhor coisa a fazer... Cale-se, Lew! Acho que se discutíssemos a coisa tran­qüilamente. ..

O telefone tocou e voltei à cadeira para atendê-lo. Leach continuou a falar, espalhando óleo. Logo que descobri quem falava ao telefone, fiquei discreto. Não pronunciei nomes e man­tive baixa a voz. Pareceu-me provável que desta vez o momento fosse apropriado. Pedi-lhe para esperar um pouco, pus a mão no bocal, e escrevi num pedaço de papel, McNair quer vir vê-lo e estendi-o por sobre a mesa para Wolfe.

Wolfe leu-o rapidamente, enfiou-o no bolso e disse sua­vemente :

— Obrigado, Archie. É assim que gosto. Diga ao Sr. Brown para telefonar novamente dentro de quinze minutos.

Tive algum problema a esse respeito. McNair insistia e não queria admitir ser despedido assim. Os demais deixaram de falar. Adotei um tom tranqüilizador, mas firme, e o con­segui finalmente. Desliguei e disse a Wolfe:

— Okay.

No momento, ele fazia preparativos para levantar-se. Empurrou a cadeira para trás, pôs as mãos nos braços como alavancas e lá subiu a montanha. De pé, distribuiu olhares em volta e adotou um tom mais seco:

— Cavalheiros, são quase quatro horas e sou obrigado a deixá-los. Não, por favor. A Srta. Frost teve a gentileza de aceitar meu convite de subir até minhas estufas para ver as orquídeas. Ela... ela e eu fizemos um pequeno acordo. Devo dizer que não sou nenhum ogre e também que não gostei da invasão de minha casa. Os senhores estão de saída agora e ela certamente tem liberdade de acompanhá-los se quiser. Srta. Frost?

Ela se levantou. Tinha os lábios contraídos, mas abriu-os para dizer:

— Irei ver as orquídeas.

Todos eles começaram a ganir ao mesmo tempo. Levantei-me e preparei-me para bancar o guarda de trânsito, em caso de congestionamento. Llewellyn soltou-se do advogado e começou a andar na direção da moça, pronto para lançá-la sobre a sela e galopar para longe. Ela os olhou destemidamente:

—. Pelo amor de Deus, calem a boca! Não acham que sou bastante crescida para tomar conta de mim mesma? Lew, acabe com isso!

Saiu com Wolfe. Tudo que eles podiam fazer era aceitar o fato e dar a impressão de idiotas. O amigo advogado puxou o seu pequeno nariz rosado. Perren Gebert meteu as mãos no bolso e ficou parado, espigado. Llewellyn deu um passo em direção à porta, logo que os amantes das orquídeas passaram, e tudo que pudemos1 ver foram as belas e fortes costas dele. Ouvimos o som da porta fechando-se e o ruído do elevador subindo.

— Isto é tudo por ora — anunciei — e eu não gosto de cenas. Elas me atacam os nervos.

Lew Frost girou sobre os calcanhares e disse-me:

— Vá para o diabo que o carregue. Ri para ele.

— Não lhe posso dar uns sopapos porque você é nosso cliente. Mas pode muito bem dar o pira. Tenho coisas a fazer.

O gordinho tomou a palavra:

— Vamos, Lew. Iremos para meu escritório.

Perren Gebert já estava de saída. Llewellyn afastou-se para um lado e, com os olhos, encheu-o de buracos enquanto ele passava. Em seguida, Leach saiu, dando uma cotovelada no amigo. Passei por eles para abrir-lhes a porta. Llewellyn continuava a fazer observações, mas ignorei-as. Ele e o advogado desceram juntos as escadas até a calçada e tomaram a direção Leste; Gebert subira num pequeno e elegante conversível que estacionara atrás do meu e pisava no acelerador. Fechei a porta e voltei para casa.

Liguei o intercomunicador para o orquidário e apertei o botão. Vinte segundos depois, Wolfe respondeu e eu lhe disse:

— Está tudo calmo e tranqüilo aqui embaixo. Nenhuma confusão absolutamente.

O meu murmúrio chegou pelo fio:

— Ótimo. A Srta. Frost está no meio da sala, apreciando as orquídeas... razoavelmente bem. Quando o Sr. McNair telefonar, diga-lhe que o espero às seis horas. Se ele insistir em vir mais cedo, deixe-o vir e entretenha-o. Avise-me quando ele chegar e feche a porta do gabinete. Ela deixou o estojo de maquilagem sobre a minha escrivaninha. Mande Fritz trazê-lo aqui em cima.

— Okay.

Desliguei e acomodei-me para esperar a chamada de McNair, refletindo sobre o poder relativo de atração da beleza em dificuldades e de dois milhões de homens de ferro e como tudo provavelmente dependia de o cara ser do tipo romântico ou não.

 

Capitulo 8

Duas horas depois, às seis, sentava-me à escrivaninha ba­tendo com força, numa explosão de velocidade, na máquina de escrever, copiando as páginas iniciais de um dos catálogos de Hoehn. O rádio estava ligado, alto, na faixa do Sulf Room, do Hotel Portland. Em conjunto, eu e o rádio fazíamos um barulho apreciável. Boyden McNair, com o cotovelo direito sobre o joelho e a cabeça curvada repousando na mão que lhe cobria os olhos, sentava-se perto da escrivaninha de Wolfe, na cadeira dos bobos, batizada assim por mim no dia em que o Promotor Público Anderson, de Westchester, sentou-se nela enquanto Wolfe o fazia de tolo.

McNair estava ali havia quase uma hora. Gritara um bocado no telefone e recusara-se a esperar até seis horas. Final­mente, aparecera logo depois das cinco, gritara um pouco mais e finalmente sentara-se porque não havia mais coisa alguma a fazer. Trouxera o vidro de aspirina e já tomara umas duas, enquanto eu fornecia a água e também comprimidos de fenacetina para variar. Não aceitaria uma bebida, embora certamente desse a impressão de que precisava de uma.

O rádio das seis horas e o barulho da máquina de escrever tinham por finalidade abafar qualquer som de voz que pudesse vir do corredor no momento em que Nero Wolfe acompanhasse a convidada, Srta. Frost, do elevador até a porta da frente e ao táxi que Fritz chamaria do telefone da cozinha. Natural­mente, eu não podia ouvir também coisa alguma e por isso continuei a olhar para a porta do gabinete sem dar descanso aos dedos. Finalmente, ela se abriu e Wolfe entrou. Obser­vando a mise en scène, piscou-me o olho direito e dirigiu-se para a escrivaninha. Atravessou o aposento e sentou-se antes

que o visitante lhe percebesse a chegada. McNair levantou a cabeça com um repelão. Viu Wolfe, pestanejou, levantou-se e olhou em volta.

— Onde está a Srta. Frost? — indagou.

— Desculpe-me tê-lo feito esperar, Sr. McNair — disse Wolfe. — A Srta. Frost foi para casa.

— O quê? — McNair olhou-o boquiaberto. — Foi para casa? Não acredito nisso. Quem a levou? Gebert e Lew Frost estiveram aqui...

— Estiveram, realmente — disse Wolfe erguendo um dedo para ele. — Peço-lhe, cavalheiro. Esta sala esteve cheia de idiotas esta tarde e, para variar, eu gostaria de alguma sani­dade. Não sou um mentiroso. Coloquei a Srta. Frost num táxi há menos de dez minutos e ela foi diretamente para casa.

— Dez minutos... mas eu estava aqui! Aqui mesmo, nesta cadeira! O senhor sabia que eu queria vê-la! Que tipo de artimanha...

— Eu sabia que o senhor queria vê-la. Mas não quis que a visse e ela ficará em perfeita segurança se conseguir livrar-se do trânsito. Não quero que converse com a Srta. Frost até que eu tenha oportunidade de conversar com o senhor. Foi um truque, sim, mas tenho o direito de fazê-lo. Que é que o senhor diz dos seus próprios truques? Que é que o senhor diz das mentiras deslavadas que está contando à Polícia desde o assassinato de Molly Lauck? Bem, cavalheiro? Responda-me!

McNair começou a falar duas vezes, mas não emitiu som algum. Olhou para Wolfe. Sentou-se. Puxou o lenço do bolso e recolocou-o no mesmo lugar sem usá-lo. Tinha a testa coberta de suor.

Finalmente, disse em voz aguda e fina:

— Não entendo o que o senhor está dizendo.

— Claro que entende — disse Wolfe, pregando-o na ca­deira com os olhos. — Estou falando a respeito da caixa de bombons envenenados. Sei como a Srta. Frost veio a conhecer-lhe o conteúdo. Sei que o senhor soube desde o começo e que deliberadamente negou informações vitais à Polícia num caso de homicídio. Não seja idiota, Sr. McNair. Tenho uma de­claração assinada por Helen Frost. Ela não tinha alternativa. Se eu contasse à Polícia o que sei, o senhor seria trancafiado. No momento, nada lhes direi porque quero merecer meus hono­rários e se o senhor fosse metido atrás das grades eu não teria acesso à sua pessoa. Faço-lhe o cumprimento de supor que o senhor tem alguma inteligência. Se envenenou aquelas balas, aconselho-o a nada dizer, sair daqui imediatamente e tomar cuidado comigo. Se não envenenou, seja objetivo e não esconda a verdade. — Wolfe reclinou-se e murmurou: — Antipatizo com os ultimatos, até mesmo com os meus. Mas isto já foi longe demais.

McNair continuou sentado, imóvel. Notei,, em seguida, um tremor no seu ombro esquerdo, um pequeno e rápido es­pasmo. Os dedos da mão esquerda, pousados sobre o braço da cadeira, começaram a tremer. Baixando a vista para eles, ele estendeu a outra mão, segurou-os e torceu-os. Apareceu outro espasmo no ombro e observei que lhe tremia um lado do pescoço. Os nervos dele estavam certamente em frangalhos. Moveu os olhos, pousou-os sobre o copo vazio na borda da escri­vaninha de Wolfe, voltou-se para mim e perguntou como se fosse um grande favor:

— Poderia dar-me um pouco mais de água?

Apanhei o copo, afastei-me com ele, enchi-o e trouxe-o de volta. Como ele não levantou a mão para recebê-lo, coloquei-o novamente sobre a escrivaninha. Ele não lhe deu atenção alguma.

— Preciso chegar a uma conclusão — murmurou ele em voz alta, mas a ninguém em particular. — Pensei que teria, mas não esperava isto.

— Se o senhor fosse um homem inteligente — disse Wolfe — teria feito isso antes que o inesperado o forçasse.

McNair tirou o lenço e, desta vez, enxugou o suor. Conti­nuando sentado, disse tranqüilamente:

— Não sou inteligente. Sou o mais completo idiota que jamais existiu. Arruinei toda minha vida — o ombro tremeu novamente. — Não haveria utilidade em contar à Polícia o que o senhor sabe, Sr. Wolfe. Não envenenei aquele bombom.

— Continue — disse Wolfe. McNair inclinou a cabeça.

— Continuarei. Não censuro Helen por ter-lhe contado, depois do modo como o senhor a enredou na manhã de ontem. Posso imaginar o que ela sofreu hoje aqui, mas tampouco estou magoado com o senhor por isso. ultrapassei todos os ressentimentos comuns. Eles nada significam. O senhor deve observar que eu nem mesmo estou tentando descobrir o que Helen lhe disse. Sei que se ela lhe disse tudo, disse-lhe a verdade. Ele levantou a cabeça para olhar diretamente Wolfe nos olhos e continuou:

— Não envenenei aquele bombom. Ao subir para o meu gabinete às doze horas daquele dia para livrar-me da multidão durante alguns minutos, encontrei a caixa sobre a minha escri­vaninha. Abri-a e examinei o conteúdo, mas não tirei nenhum porque sentia uma horrível dor de cabeça. Quando Helen entrou minutos depois, ofereci-lhe alguns, mas, graças a Deus, ela não aceitou porque nela não havia caramelos. Quando desci, deixei-a sobre a minha mesa. Molly deve tê-la visto lá mais tarde e levou-a. Ela... ela gostava de pregar peças.

Parou e enxugou novamente a fronte. Wolfe perguntou:

— Que é que o senhor  fez com o papel de embrulho e o barbante?

— Não havia papel nem barbante algum. Não estava embrulhada.

— Quem a colocou sobre a sua escrivaninha?

— Não sei. Vinte e cinco ou trinta pessoas haviam entra­do e saído de lá antes das 11:30, observando alguns modelos Crenuit que eu não queria expor publicamente.

— Quem, julga o senhor, colocou-a ali?

— Não tenho a mínima idéia a esse respeito.

— Quem, pensa o senhor, poderia querer matá-lo?

— Ninguém poderia querer matar-me. É por isso que estou convencido de que ela se destinava a outra pessoa e foi deixada lá por engano. De qualquer modo, não há motivo para supor...

— Não estou supondo — Wolfe deu impressão de enfas­tiado. — O senhor certamente sabe o que diz quando afirma que não é inteligente. Mas, por certo, o senhor não é um imbe­cil. Considere o que me está dizendo: encontrou a caixa sobre a sua mesa, não desconfia de quem possa tê-la posto lá, está convencido de que não o visava e não tem idéia para quem era e, apesar de tudo, escondeu cuidadosamente da Polícia o fato de que a viu naquele local. Nunca ouvi tanto absurdo na minha vida. Uma criança de colo riria do senhor — Wolfe suspirou profundamente. — Preciso de uma cerveja. Imagino que isto exigirá toda minha paciência. Quer também?

McNair ignorou o convite. Disse tranqüilamente:

— Sou escocês, Sr. Wolfe. Admiti que sou um tolo. Em alguns aspectos vitais eu sou um fraco. Mas saberá por acaso como um homem fraco pode ser teimoso? Posso ser — ele se inclinou um pouco para frente e a sua voz tornou-se mais débil.

— Aquilo que lhe disse a respeito daquela caixa de balas é o

que vou repetir até morrer.

— Não diga! — disse Wolfe, observando-o. — Então é isso. Mas o senhor não parece compreender que conquanto nada mais formidável do que a minha paciência o enfrente, algo mais desagradável certamente o fará. Se eu não esclarecer este caso dentro de um prazo razoável, terei de contar o que sei à Polícia. Devo isto ao Sr. Cramer, desde que lhe aceitei a cooperação. Se o senhor apegar-se à história confusa e absurda que me contou, a Polícia o levará para o cárcere e o trabalhará interminàvelmente, poderá mesmo dar-lhe uns sopapos, embora isso não seja provável com um homem em sua situação, des­truirá sua dignidade, seu negócio e sua digestão. No fim, com sorte e perseverança, poderá mesmo eletrocutá-lo. Duvido que o senhor seja suficientemente tolo para ser tão teimoso assim.

— Sou suficientemente teimoso — afirmou McNair. Incli­nou-se novamente para a frente. — Mas ouça aqui. Não sou bastante tolo para não saber o que estou fazendo. Estou can­sado, esgotado, nervoso, mas sei o que estou fazendo. O senhor pensa que me forçará a admitir algo por ter trazido Helen aqui e a intimidade, mas eu teria prontamente admitido isso para o senhor. E há outra coisa. Eu lhe disse praticamente que aquela parte de minha história sobre a caixa não é verdadeira, mas que vou apegar-me a ela. Eu não precisava fazer isso. Poderia ter-lhe contado a história e levado o senhor a pensar que espe­rava que acreditasse nela. Fiz isso porque não quero que o senhor pense que sou mais tolo do que sou. Queria que tivesse uma opinião tão boa de mim quanto possível, nas circunstân­cias, porque quero pedir-lhe que me faça um favor muito impor­tante. Vim aqui para ver Helen, isto é verdade, e verificar como... como ela estava, mas também para pedir-lhe esse favor. Quero que aceite um legado no meu testamento.

Wolfe não era homem de surpreender-se facilmente, mas aquela foi demais. Olhou-o firmemente. Também fiquei aba­lado. Era algo inesperado como se McNair estivesse realmente tentando subornar Nero Wolfe para que ele aliviasse a pressão. E essa idéia era tão nova que comecei a admirá-lo. Focalizei minhas lâmpadas sobre ele com renovado interesse.

McNair continuou:

— O que eu quero deixar-lhe é uma responsabilidade. Um... pequeno objeto e uma responsabilidade. É espantoso que eu seja obrigado a pedir-lhe isso. Moro em Nova York há doze anos e compreendi um dia destes, quando tive oportuni­dade de pensar no assunto, que não tenho um amigo em quem possa confiar. Oh, confiar ordinariamente, certo, diversos, mas não confiar algo vital, algo mais importante do que a minha própria vida. Hoje, porém, no escritório do meu advogado, tive de dar o nome de tal pessoa e dei o seu nome. Isto é de surpreender porque somente o encontrei uma vez, durante alguns minutos, na manhã de ontem. Mas o senhor pareceu-me o tipo do homem... que será necessário se eu morrer. Noite passada e esta manhã fiz algumas indagações e penso que o senhor é a pessoa indicada. Tem que ser um homem corajoso, um homem que ninguém possa enganar, e inteiramente honesto. Eu não conhecia ninguém nessas condições e o testamento teria de ser feito hoje. Decidi, portanto, arriscar-me e dar o seu nome.

McNair deslizou para a frente, colocou ambas as mãos na borda da escrivaninha de Wolfe, segurando-a fortemente. Vi que os músculos do seu pescoço moviam-se novamente. Ele prosseguiu:

— Estipulei que o senhor será pago por isso. Será uma herança substancial. Meus negócios vão indo bem e eu tive cuidado com os investimentos. No seu caso, será apenas outra missão, mas no meu, se eu morrer, será de importância funda­mental . Se eu apenas pudesse ter certeza... certeza... Sr. Wolfe, meu espírito teria repouso. Fui ao escritório do meu advogado esta tarde, refiz meu testamento e dei o seu nome. Deixei-lhe... este trabalho. Devia ter vindo aqui consultá-lo em primeiro lugar, mas não quis arriscar a possibilidade de não ter seu nome no papel, assinado. Naturalmente, não posso deixá-lo assim sem o seu consentimento. O senhor precisa dá-lo e eu então terei paz — o braço começou a agitar-se e ele agarrou com mais força a borda da escrivaninha. — Em se­guida, que ela venha.

— Recoste-se na sua cadeira, Sr. McNair — disse-lhe Wolfe. — Não? O senhor vai acabar tendo um ataque. Que ela venha? A morte?

— Qualquer coisa. Wolfe sacudiu a cabeça.

— Um mau estado de espírito. Mas, aparentemente, sua mente deixou de funcionar. O senhor é incoerente. É claro que o senhor tornou sua posição absolutamente insustentável no tocante ao bombom envenenado. Obviamente...

— Indiquei seu nome. O senhor concorda?

— Permita-me, por favor — disse Wolfe erguendo um dedo. — Obviamente, o senhor sabe quem envenenou a bala e sabe que se destinava ao senhor. O senhor está obcecado com o medo de que essa pessoa inimiga continue e mate-o a des­peito da cincada fatal do primeiro trabalho. Possivelmente, outros correm também perigo. O senhor, em vez de permitir que alguém com- um pouco de inteligência lide com o assunto concedendo-lhe sua confiança, senta-se aí, delirante, e bravateia a respeito de sua obstinação. Mais do que isso, o senhor tem a coragem de pedir-me que concorde em empreender um tra­balho do qual sou completamente ignorante e sem idéia alguma de quanto ganharei com isso. Pfui! Não, permita-me. Ou tudo o que o senhor contou-me é verdade, ou o senhor mesmo é o assassino e está tentando uma fraude tão complicada que não espanta que lhe provoque dor de cabeça. O senhor per­gunta se eu concordo. Se o senhor pergunta se concordo em fazer um trabalho desconhecido, por um salário desconhecido, certamente que não.

McNair ainda segurando a borda da escrivaninha, con­tinuou com as mãos na mesma posição enquanto Wolfe servia-se de cerveja. Respondeu:

— Não tem importância. Não me importo que o senhor fale assim. Eu esperava isto. Sei que tipo de homem o senhor é. E não tem importância. Não espero que o senhor concorde em empreender um trabalho desconhecido. Vou contar-lhe tudo a respeito e foi para isso que vim aqui. Mas eu me sentiria mais à vontade... se o senhor dissesse apenas... que o faria se nada houvesse de errado com o caso... se o senhor dissesse apenas que...

— Por que deveria eu? — Wolfe mostrou-se impaciente. — Não há muita urgência. O senhor dispõe de bastante tempo. Não janto até oito da noite. O senhor não precisa temer que sua Nemese esteja emboscada à sua espera nesta sala. A morte não o seguirá furtivamente até aqui. Continue e conte-me tudo. Mas advirto-o: suas palavras serão tomadas por termo e preci­saremos de sua assinatura.

— Não — disse McNair, enérgica e positivamente. —. Não quero nada escrito. Não quero também esse homem aqui.

— Então eu não quero ouvir-lhe a história — Wolfe indicou-me com um polegar. — O Sr. Goodwin é meu assis­tente confidencial. Qualquer opinião que o senhor tenha for­mado de mim o inclui necessariamente. A discrição dele é o reverso do seu valor.

McNair olhou-me e disse:

— Ele é moço. Não o conheço.

— Como quiser — respondeu Wolfe, encolhendo os ombros. — Não tentarei convencê-lo.

— Sei disso. O senhor sabe que não precisa fazê-lo. O senhor sabe que não posso ajudar-me a mim mesmo. Estou encurralado. Mas não deve ser tomado por termo o que vou dizer.

— A esse respeito farei uma concessão — Wolfe estava novamente paciente. — O Sr. Goodwin pode registrá-lo e, em seguida, se assim for decidido, o documento será destruído.

McNair soltou as mãos da mesa. Os seus olhos passearam de Wolfe para mim e vice-versa. Vendo-lhe a expressão nos olhos, pensei que, se não estivesse no horário de trabalho — o horário de trabalho de Nero Wolfe — ele me teria dado pena. Certamente ele não estava em condições de pechinchar com Nero Wolfe. Ele deslizou de volta para a cadeira e cruzou as mãos. Momentos depois, separou-as e agarrou o braço da cadeira. Olhou-nos novamente. Abruptamente, disse:

— O senhor precisará conhecer a minha história ou não acreditará no que fiz. Nasci em 1885 em Camfirth, Escócia. Meus pais tinham algum dinheiro. Não estudei muito e nunca fui muito sadio, nada realmente sério, apenas débil. Pensei que sabia desenhar e ao completar vinte e dois anos fui para Paris estudar arte. Gostava de arte, esforcei-me, mas jamais fiz real­mente coisa alguma importante, apenas o suficiente para des­perdiçar o dinheiro dos meus pais. Logo que eles morreram pouco tempo depois, minha irmã e eu ficamos sem um níquel, mas eu chegarei lá — ele parou, pôs as mãos nas têmporas, pressionou-as e massageou-as. — Minha cabeça vai explodir.

— Acalme-se — murmurou Wolfe. — O senhor se sentirá melhor daqui a pouco. O senhor está-me dizendo algo que devia ter dito a alguém há anos.

— Não — respondeu McNair amargamente. — Algo que não devia ter nunca acontecido. Posso contá-lo agora, não tudo,

 o suficiente. Talvez eu seja realmente louco, talvez tenha perdido o equilíbrio, talvez eu esteja destruindo tudo aquilo que defendi durante tantos anos de sofrimento. Não sei. De qual­quer modo, não posso evitá-lo, tenho de deixar-lhe a caixa vermelha e o senhor conhecerá os fatos.

Ele prosseguiu:

— Naturalmente conheci muita gente em Paris. Uma dessas pessoas foi uma moça americana chamada Anne Crandall. Casei-me com ela em 1913 e tivemos uma filha. Perdi ambas. Minha esposa morreu de parto, no dia 2 de abril de 1915. Perdi minha filha dois anos depois — McNair parou e, olhando para Wolfe, perguntou ferozmente: — O senhor já teve uma filha?

Wolfe meramente sacudiu a cabeça. McNair continuou:

— Entre outras pessoas que conheci havia dois ricos irmãos americanos, os Frosts, Edwin e Dudley. Passavam a maior parte do tempo em Paris. Havia também uma moça que eu conhecera durante toda minha vida, na Escócia, chamada Calida Buchan. Ela queria estudar arte também e conseguiu mais ou menos o mesmo resultado que eu. Edwin Frost casou-se com ela meses depois de eu ter casado com Anne, em­bora parecesse durante certo tempo que o irmão mais velho, Dudley, ia ficar com ela. Penso que teria ficado, se não esti­vesse bebendo fora certa noite.

McNair interrompeu-se e pressionou as têmporas nova­mente. Perguntei-lhe:

— Phenacetim?

Ele sacudiu negativamente a cabeça.

— Estas ajudam um pouco — tirou o vidro de aspirina do bolso, pôs umas duas pílulas na mão, lançou-as na boca, levantou o copo de água e deu um gole- Voltou-se para Wolfe. — O senhor tem razão. Vou sentir-me melhor depois que isto estiver terminado. Estive transportando um fardo pesado demais de remorso durante um número excessivo de anos.

Wolfe inclinou a cabeça afirmativamente.

— E Dudley Frost saiu para beber...

— Sim. Mas isso não teve importância. De qualquer modo, Edwin e Calida casaram-se. Pouco depois, Dudley voltou aos Estados Unidos, onde estava o filho. A esposa dele morrera como a minha, de parto, seis anos antes. Acho que ele somente voltou à França três anos depois, quando os americanos entraram na

guerra. Edwin morrera. Ingressara na aviação britânica e mor­rera em 1916. Nessa época eu não estava mais em Paris. Não me aceitaram no Exército em virtude de minha saúde. Não tinha dinheiro algum. Fui para a Espanha com minha filha...

Parou e eu levantei a vista da caderneta de notas. Ele estava ligeiramente inclinado, com as mãos estendidas aper­tadas contra o estômago. Pela expressão fisionômica, podia-se ver que acontecera subitamente algo pior do que uma dor de cabeça.

Ouvi a voz de Wolfe soar como uma chicotada:

— Archie! Ajude-o!

Saltei da cadeira e estendi os braços para ele. Errei porque ele entrou num espasmo, uma convulsão tomou-lhe o corpo, ergueu-o da cadeira e o pôs em pé, oscilando de um lado para outro.

— Cristo! Jesus! — gritou ele. Pôs as mãos, os punhos cerrados, sobre a mesa de Wolfe e tentou endireitar-se. Gritou novamente: — Oh, Cristo! — outra convulsão avassalou-o, ele se dobrou em dois e disse em voz entrecortada a Wolfe: — A caixa vermelha... o número... Deus, deixe-me dizer-lhe — soltou.um gemido que subiu das próprias entranhas e desmo­ronou no chão.

Eu já o segurava nessa ocasião, mas deixei-o arriar-se porque ele estava inconsciente. Ajoelhei-me a seu lado e vi os sapatos de Wolfe aparecerem atrás dele.

— Ainda respira — disse-lhe. — Não. Acho que não. Penso que está morto.

— Chame o Dr. Vollmer — disse Wolfe. — Chame Cramer. Em primeiro lugar, dê-me esse vidro que ele tem no bolso.

Enquanto eu me dirigia para o telefone, ouvi-o murmurar atrás de mim:

— Eu estava enganado. A morte seguiu-o furtivamente até aqui. Sou um imbecil.

 

Capitulo 9

Em fins da tarde seguinte, quinta-feira, 2 de abril, sen­tado à escrivaninha, eu dobrava cheques e punha-os em enve­lopes à medida que Wolfe assinava-os e passava-os para mim. As contas de março estavam sendo pagas. Ele descera pontual­mente das estufas às onze e estávamos aproveitando o tempo enquanto esperávamos a prometida visita do Inspetor Cramer.

McNair estava morto ao chegar o Dr. Vollmer, que morava a apenas um quarteirão de distância e continuava morto quando Cramer e uns dois detetives apareceram. Um legista assistente viera também e fizera um exame rotineiro. O corpo fora levado para exame post mortem. Wolfe contara tudo a Cramer sem nada omitir, mas recusara-se a atender a solicitação de uma cópia datilografada de minhas notas da sessão com o Sr. McNair. O vidro de aspirina, que originariamente continha 50 comprimidos e tinha ainda quatorze, foi entregue ao Inspetor. Quase no fim da entrevista com Cramer, depois das oito, Wolfe ficou um pouco irritado com ele porque já passava da hora do jantar. Eu pensara antes que a inclinação para comer quan­do chegava a hora, a despeito de horrores e homicídio, cons­tituía apenas outro detalhe do seu temperamento excêntrico, mas não era. Ele estava simplesmente faminto. E isto sem precisar dizer que eram os petiscos de Fritz Brenner que o esperavam.

Eu fizera minhas habituais gestões diplomáticas junto a Wolfe na noite de quarta-feira após o jantar e novamente pela manhã quando ele descera das estufas, mas nada consegui senão má acolhida de tipos variados. Não o pressionei muito porque percebi haver aí um caso em que um pouco de entusiasmo tolo poderia facilmente projetar-me em órbita. Ele se mostrava tão sensível como jamais o vira antes. Um assassinato bem feito e completo tivera o final ali mesmo no seu gabinete, diante de seus olhos, menos de dez minutos depois de ele ter solenemente assegurado à vítima que a Nemese era verbotem naquele lugar. Não me surpreendeu, portanto, a pouca inclinação para con­versar e nenhum esforço fiz para meter-lhe as esporas. Muito bem, pensei, fique taciturno, você está de qualquer modo metido nisso até as orelhas e terá de sair da água para terra mais cedo ou mais tarde.

O Inspetor Cramer chegou no momento em que eu enfiava o último cheque num envelope. Fritz introduziu-o. Ele parecia ocupado, mas não excessivamente aborrecido. A bem da ver­dade, piscou-me o olho ao sentar-se, bateu a cinza do charuto, recolocou-o no canto da boca e começou em tom de conversa:

— Sabe de uma coisa, Wolfe, eu estava pensando durante a minha vinda até aqui que desta vez tenho uma desculpa nova em folha para vir procurá-lo. Estive aqui por um bocado de razões diferentes, para tentar extrair-lhe alguma coisa, desco­brir se estava ocultando um suspeito, acusá-lo de obstruir a ação da justiça e assim por diante, mas esta é a primeira vez que tenho a desculpa de vir à cena do crime. De fato, estou sentado justamente em cima dela. Ele não estava nesta cadeira? Hummm?

Dirigi-me a Wolfe, consolando-o:

— Não tem importância, chefe. Isso é apenas humor. Um ligeiro toque.

— Eu ouvi — respondeu Wolfe sombriamente. — Mereço até mesmo o humor do Sr. Cramer. O senhor pode esgotar seu suprimento, cavalheiro — a coisa havia-o atingido ainda mais do que eu pensava.

— Oh, tenho mais — disse Cramer com um risinho. — Conhece Lanzetta, do gabinete do Procurador Estadual? Ele odeia a sua epiderme desde aquele caso Fairmount há três anos. Telefonou esta manhã ao Comissário dizendo que havia possibilidade de que o senhor estivesse perpetrando um truque. O Comissário falou-me a respeito disso e eu respondi que o senhor é realmente rápido, mas não mais rápido do que a luz — Cramer cacarejou novamente, tirou o charuto da boca, puxou a pasta de documentos da mesa e abriu-a. Resmungou: — Muito bem. Eis o homicídio. Tenho de voltar antes do almoço. Teve alguma inspiração?

— Não — Wolfe permaneceu sombrio. — Tive quase índigestão — e apontando para a pasta com um dedo: — Trouxe documentos da casa do Sr. McNair?

Cramer sacudiu negativamente a cabeça.

— Isto é apenas refugo. Talvez haja um ou dois itens ie interesse. Segui sua orientação, de que o caso está certa­mente ligado aos Frosts, tendo em vista a maneira como McNair começou a história que lhe contou. Os Frosts e esse cara Gebert estão sendo investigados de todos os ângulos, de cima para baixo, e dos lados também. Mas existem duas outras possibi­lidades que não quero perder de vista. Em primeiro lugar, suicídio. Em segundo, essa mulher, a tal Condêssa von Rantz-Deichen, que esteve andando atrás de McNair ultimamente. Há uma possibilidade...

— Bobagem — disse Wolfe explosivamente. — Desculpe-me, Sr. Cramer. Não estou no estado de espírito para fan­tasias. Continue.

— Okay — resmungou Cramer. — Magoado, hem? Okay. Fantasia. Não obstante, vou deixar dois homens trabalhando na condêssa — ele folheava os papéis na pasta. — Em pri­meiro lugar, o vidro de aspirina. Havia quatorze comprimidos. Doze estavam perfeitamente normais. Os dois outros eram de cianeto de potássio, aproximadamente cinco grãos cada, com uma fina camada de aspirina por fora, aparentemente colocada como pó seco e cuidadosamente recoberta por cima. O químico diz que a camada foi colocada com habilidade e por toda parte, de modo que não haveria gosto de cianeto nos poucos segundos antes que o comprimido fosse engolido. Não havia cheiro de oianeto, o cheiro de amêndoas amargas, no vidro, mas, natu­ralmente, ele estava absolutamente seco.

— E o senhor fala de suicídio — murmurou Wolfe.

— Eu disse apenas uma vaga possibilidade. Okay, esque­ça-a. O exame preliminar na autópsia fala em cianeto de po­tássio, mas eles não sabem se os comprimidos que ele tomou estavam envenenados ou não, porque o veneno evapora-se ràpi-mente logo que se torna úmido. Não acho que eles se estejam preocupando muito se foi um ou dois comprimidos e, portanto, eu tampouco. Pergunta seguinte: quem colocou os comprimi­dos falsos junto às aspirinas? Ou, de qualquer maneira, quem teve oportunidade de fazê-lo? Botei três bons homens nesse ângulo e eles estão ainda trabalhando. A resposta até agora é, quase todo mundo. Na última semana mais ou menos, McNair esteve tomando aspirina como um frango come milho. Havia invariavelmente um vidro na mesa dele ou numa gaveta. Não há nenhum lá agora, de modo que quando ele saiu ontem deve tê-lo posto no bolso. Desapareceram trinta e seis daqueles cin­qüenta e se calcularmos que ele tomava doze por dia, isto signi­fica que o vidro esteve sendo usado durante três dias, tempo em que dezenas de pessoas entraram e saíram do escritório déi onde ficava o vidro. Naturalmente, todos os Frosts estiveram lá e também esse tal Gebert. Por falar nisso — Cramer folheou os papéis e se deteve num deles — o que é que um cantai... camalot du alguma coisa significa em francês? Wolfe inclinou a cabeça.

— Camelot du roi. Um membro da facção política realista parisiense.

— Oh, Gebert era um deles. Mandei um cabograma a Paris na noite passada e recebi outro esta manhã, Gebert foi um deles. Ele está em Nova York há uns três anos e estamos no encalço dele. Os relatórios preliminares que recebi são vagos. N.M.C.S. Paris diz a mesma coisa.

Wolfe ergueu uma sobrancelha.

— N.M.C.S.?

Expliquei-lhe:

— Gíria da Polícia. Nenhum meio conhecido de subsis­tência. O mesmo que vagabundo.

Wolfe suspirou. Cramer prosseguiu:

— Estamos fazendo todas as investigações rotineiras. Impressões digitais no vidro, nas gavetas de escrivaninha de McNair, e assim por diante. Compras de cianeto de potássio...

Wolfe interrompeu-o:

— Eu sei. Pflui. Não no caso deste assassinato, Sr. Cramer. O senhor precisa de algo melhor do que rotina.

— Claro que preciso. Ou o senhor precisa — Cramer apa­gou o charuto e meteu a mão no bolso para tirar outro. — Es­tou apenas lhe contando. Descobrimos uma ou duas coisas. Por exemplo, ontem a tarde McNair perguntou ao advogado se ha­via alguma maneira de descobrir se Dudley Frost, como testa-menteiro da herança da sobrinha, havia desperdiçado parte dela, e disse ao advogado que trabalhasse com urgência. Ele falou que quando Edwin Frost morreu há vinte anos deixou a es­posa sem um centavo e tudo para a filha, Helen, e  fez o irmão Dudley tutor em tais condições que ninguém, nem mesmo He-

len, podia exigir uma prestação de contas dele. E Dudley ja­mais prestou contas. Istp, segundo McNair. Estamos investi­gando isso também. Isto serve para alguma coisa? Se Dudley Frost deu um desfalque de um milhão como tutor, que proveito teria ele em liquidar McNair?

— Não sei. Quer uma cerveja?

— Não, obrigado — Cramer acendeu o charuto e mordeu-o profundamente. As baforadas que tirou ficaram apenas a um passo de um incêndio. — Bem, talvez consigamos alguma coisa com isso — folheou novamente os papéis. — O segundo é um item que o senhor deve julgar interessante. Acontece que o advogado de McNair é um tipo que pode ser abordado, dentro de limites, e depois de seu palpite na noite passada, procurei-o esta manhã. Ele me deu aquelas informações sobre Dudley Frost e admitiu que McNair fizera um testemunho ontem. Na /erdade, depois de ter-lhe explicado a seriedade de um homi­cídio, ele deixou que eu o visse e o copiasse. McNair disse a verdade. Ele o indicou, sem dúvida alguma.

— Sem o meu consentimento — disse Wolfe servindo-se de cerveja. — O Sr. McNair não era meu cliente.

Cramer resmungou:

— É agora. O senhor não recusaria um pedido de um morto, recusaria? Ele deixou alguns legados e o resto da he­rança para a irmã, Isabel McNair, residente na Escócia, num lugar chamado Camfirth. Há menção de instruções particula­res que ele deu à irmã concernente à herança — Cramer virou a folha de papel. — Em seguida, o senhor começa a aparecer. O parágrafo seis nomeia-o testamenteiro, sem remuneração. O' parágrafo seguinte diz:

7. A Nero Wolfe, residente no número 918 da Rua 35 Oeste, na Cidade de Nova York, lego a minha caixa de couro vermelho e seu conteúdo. Informei-o sobre o lugar onde a mesma será encontrada e o con­teúdo deve ser considerado como de sua exclusiva propriedade, para ser usado por ele a sua vontade e discrição. Determino que todas as contas que ele possa apresentar, num montante razoável, por serviços exe­cutados nesta conexão, sejam consideradas como dívi­das justas e apropriadas de minha herança e imediata­mente liquidadas.

— Bem — disse Cramer tossindo a fumaça. — Ele é seu cliente agora. Ou será logo que o testamento for validado num tribunal.

Wolfe sacudiu negativamente a cabeça e disse:

— Não consenti. Tenho dois comentários a fazer: em pri­meiro lugar, note a espantosa cautela do escocês. No momento em que escreveu aquilo, o Sr. McNair estava em um estado de frenético desespero, contratava-me para uma missão tão vital que teria de ser feita da maneira correta ou seu espírito não encontraria repouso. Ainda assim, inseriu a frase num mon­tante razoável — Wolfe suspirou. — Obviamente, isso era tam­bém necessário para descanso de seu espírito. Em segundo lugar, deixou-me nabos num saco. Onde está a tal caixa de couro vermelho?

Cramer olhou-o diretamente e disse em voz calma:

— Não tenho a mínima idéia. Wolfe abriu os olhos, suspeitoso.

— Que é que o senhor está insinuando com esse tom de voz, cavalheiro? Não tem a mínima idéia do quê?

— Não tenho a mínima idéia sobre o local onde se encontra a caixa vermelha — Cramer virou para ele a palma da mão erguida. — Por que deveria eu saber onde ela se encontra? Aposto cem contra um que o que há nela resolverá este caso — lançou um olhar em volta e fitou Wolfe novamente. — Acho que não há possibilidade alguma de que esteja neste gabi­nete, exatamente neste minuto, por exemplo, no cofre ou numa das gavetas da mesa de Goodwin? — voltou-se para mim. — Você se importa de dar uma olhada, filho?

Sorri para ele.

— Não preciso olhar. Ela está dentro do meu sapato.

— Sr. Cramer — disse Wolfe. — Disse-lhe na noite passada até que ponto foi McNair com a sua história. O senhor quer dizer que tem a impudência de suspeitar...

— Escute aqui — falou Cramer, em voz mais alta e mais firme. — Não me venha com essa. Se eu tivesse alguma impu­dência não me daria o trabalho de trazê-la aqui comigo. Eu simplesmente tomaria alguma emprestada. Já vi essa sua ino­cência indignada com demasiada freqüência. Lembro-me de uma ocasião recente quando me aventurei a sugerir que aquela Fox podia estar escondida em sua casa. Lembro-lhe também que McNair disse ontem em seu testamento — eis aqui, deixe-

me ler esta parte — Informei-o onde ela poderá ser encon­trada. Entendeu? No tempo passado. Claro, sei que me contou tudo que McNair disse ontem à tarde, mas onde é que ele descobriu essa idéia de tempo passado antes de tê-lo visto ontem? O senhor viu-o na terça-feira também...

— Tolice. Na terça-feira tivemos apenas uma curta entre­vista e...

— Muito bem. Conheço casos em que o senhor avançou mais do que aquilo numa primeira entrevista. Muito bem, sei que estou berrando e vou continuar a berrar. Pelo menos por uma vez, o diabo me leve se vou entrar numa fila na calçada até que o senhor decida abrir as portas e nos admita ao espe­táculo. Não há motivo algum por que o senhor não mostre aquela caixa vermelha agora e me deixe olhar-lhe o conteúdo. Não estou tentando evitar que o senhor ganhe um honorário. Estou a seu lado. Mas sou o titular da Delegacia de Homi­cídios da Cidade de Nova York e estou enojado e cansado de vê-lo bancar o Deus Todo-Poderoso com todas as provas, pistas, fatos, testemunhas — qualquer coisa que ache de que necessita durante algum tempo. Nada feito! Não desta vez! Pode apostar que não!

— Informe-me quando tiver terminado — murmurou Wolfe mansamente.

— Não vou terminar.

— Sim, vai. Mais cedo do que pensa. O senhor está sem sorte, Sr. Cramer. Ao exigir que eu exiba a caixa vermelha do Sr. McNair, o senhor escolheu o pior momento possível para trazer suas reservas e bombardear a fortaleza. Confesso que, em certas ocasiões, sofismei com o senhor e usei de duplo sentido, mas o senhor jamais ouviu de mim uma mentira direta e categórica. Nunca, senhor. Digo-lhe que nunca vi a tal caixa vermelha do Sr. McNair. Não tenho idéia de onde estava ou de onde está, nem sei absolutamente o que contém. Portanto, não grite comigo dessa maneira.

Cramer fitava-o com a boca aberta. Considerando que ele se mostrava habitualmente tão senhor da situação, pareceu-me tão notável com a mandíbula pendente que pensei que eu não o feriria se mostrasse a simpatia que sentia por ele. E assim, com o lápis numa mão e o bloco de notas na outra, elevei-os bem alto sobre a cabeça, abri a boca, expandi o peito e emiti um enorme bocejo. Ele me viu, mas nem por isso lançou o charuto na minha cara, pois estava realmente atônito. Final­mente, conseguiu modelar as palavras que queria dizer a Wolfe:

— O senhor está falando sério? Não tem a caixa?

— Não.

— E não sabe onde ela está? Nem sabe o que ela contém?

— Não.

— Então por que ele disse ontem no testamento que o havia informado sobre o local onde ela se encontrava?

— Ele tinha intenção de fazer isso. Apenas antecipou-se.

— Não lhe disse em momento algum? Wolfe  fez uma carranca.

— Diabos o levem, cavalheiro! Deixe a redundância para a música e para os interrogatórios no tribunal. Não lhe estou tocando uma música e não gosto de ser aborrecido.

A cinza caiu do charuto de Cramer no chão, mas ele não notou. Murmurou:

— Diabos me levem — e recostou-se na cadeira. Consi­derei o momento apropriado para outro bocejo e, com a sur­presa, quase consegui um caso de cãibra na mandíbula quando Cramer explodiu inesperada e selvagemente em minha direção:

— Caia dentro dela, seu palhaço! Censurei-o:

— Puxa vida, Inspetor, a gente não pode evitar se tem de...

— Cale a boca! — ele continuou sentado, com expressão idiota. A coisa ia ficando monótona quando ele disse em voz humilde para Wolfe:

— Foi uma sadia repreensão, admito. Não sabia que o senhor podia intimidar-me desta maneira. Acostumei-me tanto a vê-lo tirar coelhos da cartola que tinha a certeza de que o mesmo iria acontecer. Em primeiro lugar, que a solução deste caso está naquela caixa vermelha. Em segundo, que o senhor a tinha ou sabia onde ela se encontrava. Agora o senhor me informa que o número dois está fora de cogitação. Muito bem. Acredito no senhor. Que tal a respeito do número um?

Wolfe inclinou a cabeça, concordando.

— Eu concordaria. É certo, segundo acho, que se sou­béssemos qual o conteúdo da caixa vermelha saberíamos quem tentou matar o Sr. McNair há uma semana, na segunda-feira, e quem o matou ontem — Wolfe comprimiu os lábios durante

um momento e acrescentou: — Matou-o aqui, no meu gabi­nete, na minha presença.

— Sim. Claro. — Cramer bateu o charuto no cinzeiro. — Para o senhor essa circunstância é que a transforma num crime em vez de um caso — ele se voltou abruptamente para mim. — Pode chamar meu gabinete ao telefone?

Voltei-me na cadeira, tirei o aparelho do gancho, puxei-o para mim e disquei. Consegui o número e a extensão, pedi-lhes que esperassem um momento e vaguei a cadeira. Cramer aproximou-se e entrou na linha.

— Burke? Cramer. Tem um bloco aí? Escreva isto: caixa de couro vermelho, não sei o tamanho, ou o peso e se é velha ou nova. Provavelmente não muito grande porque as possibi­lidades são que contenha apenas papéis, documentos. Pertencia a Boyden McNair. Primeiro: dê a dez homens cópias da foto­grafia de McNair e mande-os investigar todos os cofres de aluguel da cidade. Descubra qualquer cofre de aluguel que ele possa ter tido. E logo que o encontrar, obtenha uma ordem do juiz para abri-lo. Mande Haskins procurar aquele pássaro do Midtown National que é tão arrogante. Segundo: telefone aos homens que estão revistando o apartamento de McNair e a loja e fale-lhes a respeito da caixa. Aquele que a encontrar terá um dia de folga. Terceiro: recomece tudo com os amigos e conhecidos de McNair e pergunte-lhes se algum deles o viu com a caixa, quando, onde e com o que ela se parece. Per­gunte também a Collinger, o advogado de McNair. Eu tinha tanta certeza... Não, não lhe pergunte isso. Quarto: envie outro cabograma à Escócia e diga-lhes para interrogar a irmã de McNair sobre a caixa. Chegou resposta do que você enviou esta manhã? ... Não, mal haveria tempo. Entendeu? ... Ótimo... Comece logo. Voltarei daqui a pouco.

Desligou. Wolfe murmurou:

— Dez homens... cem... mil... Realmente, Sr. Cramer, dispondo de tal organização, o senhor deveria capturar pelo menos dez culpados por cada crime cometido.

— Sim- Capturamos. — Cramer olhou em volta. — Oh, acho que deixei meu chapéu no saguão. Eu lhe direi quando encontrarmos a caixa desde que lhe pertence. Talvez dê uma espiada nela em primeiro lugar, apenas para certificar-me de que não contém uma bomba. Eu não suportaria que Goodwin ficasse ferido. Vai fazer alguma investigação?

Wolfe negou com um movimento da cabeça.

— Com o seu exército de terriers cavoucando cada buraco? Não haveria espaço. Sinto muito, cavalheiro, por tê-lo desa­pontado. Se eu soubesse onde se encontra a caixa vermelha o senhor seria o primeiro a saber. Acho que somos ainda cama­radas d'armas, não? Isto é, neste caso?

— Claro. De cama e mesa.

— Ótimo. — Então farei uma pequena sugestão. Provi­dencie para que os Frosts, todos eles, conheçam imediatamente os termos do testamento do Sr. McNair. Não precisa preo­cupar-se com o Sr. Gebert. Suponho que se os Frosts o conhe­cerem, o mesmo acontecerá com ele logo depois. O senhor está em melhor situação do que eu de fazer isso sem muita fanfarra.

— Muito bem. Mais alguma coisa?

— Isto é tudo. Exceto que, se encontrar a caixa, não aconselharia pregar-lhe o conteúdo no seu quadro de avisos. Acho que os papéis precisarão ser manuseados com discrição e delicadeza. A pessoa que pôs aqueles comprimidos envene­nados e recompostos no vidro de aspirina é bastante engenhosa.

— Hum, hum! Mais alguma coisa?

— Apenas melhor sorte do que teve aqui.

— Obrigado. Precisarei dessa sorte, sem dúvida.

Wolfe tocou a campainha, pedindo cerveja. Fui até a co­zinha beber um copo de leite, voltei ao gabinete com o copo, postei-me ao lado da janela e comecei a bebericá-lo. Um olhar de relance a Wolfe mostrou-me que as coisas estavam em ponto morto. Sentado espigado, de olhos bem abertos, ele folheava as páginas de uma pasta Richardt que chegara no correio, da manhã. Encolhi os ombros, negligentemente. Terminado o leite, voltei à escrivaninha, fechei os envelopes contendo os cheques, selei-os, fui até o saguão buscar o chapéu e tomei a direção da esquina para colocá-los na caixa. De volta, encontrei Wolfe ainda no recreio. Tirara uma laeliocattleya luminosa áurea de um vaso sobre a mesa e levantava as antenas para examinar-lhe a pollinia com uma lente. Mas pelo menos não começara com o atlas. Sentei-me e observei:

— Lá fora está fazendo um belo e balsâmico dia de pri­mavera. Dois de abril. O dia de luto de McNair. Você disse ontem que era fantasmagórico. Agora ele próprio é um fan­tasma .

— Ele não é um fantasma — disse Wolfe indiferente­mente .

— Então é matéria inerte.

— Não é também matéria inerte. A menos que tenha sido embalsamado com um cuidado incomum. A atividade da decom­posição é uma coisa tremenda.

— Muito bem, então é um banquete. Qualquer coisa que queira. Posso perguntar se entregou o caso ao Inspetor Cramer? Devo ir procurá-lo e pedir-lhe instruções?

Nenhuma resposta. Esperei durante um intervalo decente e continuei:

— Veja o caso dessa caixa de couro vermelho, por exem­plo. Digamos que Cramer ache-a, abra-a e descubra tudo aquilo que seria engraçado saber, atrela o cavalo à carroça, sai e prende o assassino, com provas na mão. Nesse caso lá se iria a primeira parte dos honorários que Llewellyn iria pagar. A segunda metade já se foi, desde que McNair está morto e, naturalmente, a herdeira não vai mais trabalhar lá. Começa a parecer que você teve apenas o incômodo de ver McNair morrer a sua frente e que não poderá cobrar por isso a pessoa alguma. Você me ensinou a ser duro em questões de dinheiro. Compreende por acaso que o Dr. Vollmer cobrará cinco dóla­res pela visita que  fez ontem aqui? Você poderia obrigá-lo a mandar a conta ao espólio de McNair, mas teria o trabalho e os aborrecimentos de encaminhar a coisa de qualquer maneira, desde que é testamenteiro sem remuneração. Ê por falar nisso, que é que me diz desse papel de testamenteiro? Você não devia mexer-se e fazer alguma coisa?

Nenhuma resposta.

— Além disso — prossegui — Cramer não tem realmente qualquer direito absolutamente à caixa vermelha. Legalmente, ela lhe pertence. Mas, se ele a conseguir, vai saqueá-la. Não pense que não vai. Neste caso, naturalmente, poderia fazer com que seu advogado lhe escrevesse uma carta...

— Cale a boca, Archie — Wolfe depositou a lente sobre a mesa. — Você está dizendo asnices. Ou talvez não esteja. Está falando sério? Quer sair com uma pistola e atirar em todos os soldados do exército do Sr. Cramer? Não vejo outra maneira de impedir-lhes a busca. E, depois, você mesmo encon­trará a caixa vermelha?

Dirigi-lhe um sorriso condescendente.

— Não faria isso porque não seria preciso. Se eu fosse o tipo de homem que você é, simplesmente me sentaria com toda a calma na minha cadeira, de olhos fechados, e usaria psi­cologia. Como você  fez com Paul Chapin, lembra-se? Em primeiro lugar, decidiria o que era a psicologia de McNair, cobrindo todos os ângulos. Em seguida, diria a mim mesmo, se minha psicologia fosse assim, e se eu tivesse um objeto muito importante como a caixa vermelha para esconder, onde a escon­deria? Em seguida, diria a alguma outra pessoa, Archie, vá imediatamente a tal e tal lugar, apanhe a caixa vermelha e traga-a aqui. Dessa maneira, você a conseguiria antes de qual­quer dos homens de Cramer e...

— Basta — disse Wolfe, positivo, mas calmo. — Tolerarei o aguilhão apenas quando for necessário, Archie. Neste caso, não preciso dele. Preciso de fatos, mas recuso-me a gastar suas energias e as minhas reunindo uma coleção deles que podem ser inteiramente inúteis. Quanto a encontrá-la, estamos eviden­temente fora da busca, desde que os cachorrinhos de Cramer estão cavoucando todos os buracos — ele se tornou um pouco amargo. — Quero lembrar-lhe do que consistia o meu programa ontem: supervisionar o cozimento de um ganso. Não observar um homem morrer envenenado. E o seu esta manhã: ir de carro até a casa do Sr. Salzenbach em Garfield buscar um cabrito recém-abatido. E não me atormentar com futilidades. Quanto a esta tarde... sim, Fritz?

Fritz aproximou-se e disse:

— O Sr. Llewellyn Frost deseja vê-lo.

— O demônio — suspirou Wolfe. — Não há nada a fazer agora. Archie, se você... não. Afinal de contas ele é nosso cliente. Mande-o entrar.

 

Capitulo 10

Aparentemente, Llewellyn não viera desta vez, como no dia anterior, para arrancar gorduchos de suas cadeiras. Nem trazia a reboque o advogado. Parecia um pouco deprimido e mostrou-se delicado. A gravata dele estava torta. Disse-nos bom dia como se tivesse certeza de que íamos concordar com ele e precisasse de confirmação. E agradeceu mesmo a Wolfe por convidá-lo a sentar-se. Sentou-se e olhou-nos sucessiva­mente como se fosse uma questão aberta se se lembrava ou não do que viera fazer ali.

Wolfe começou:

— O senhor teve um choque, Sr. Frost. O mesmo me aconteceu: O Sr. McNair sentava-se nesta cadeira onde o senhor está no momento em que engoliu o veneno.

— Sei disso — respondeu Lew Frost com uma inclinação de cabeça. — Ele morreu exatamente aqui.

— Morreu, de fato. Dizem que três grãos são suficientes para matar um homem em trinta segundos. O Sr. McNair

•engoliu cinco ou dez. Teve convulsões quase imediatamente e morreu dentro de um minuto. Queira aceitar os meus pêsames. Embora o senhor e ele não estivessem nos melhores termos, ainda assim o senhor conheceu-o durante longo tempo. Não foi assim?

Llewellyn inclinou a cabeça novamente:

— Conheci-o durante mais ou menos doze anos. Nós não... estávamos exatamente brigados... — ele parou um momento e pensou no caso. — Bem, acho que estávamos. Nada de pessoal, embora. Quero dizer, não acho que nos antipatizássemos mutuamente. Não era nada demais, apenas um mal entendido. Apenas esta manhã soube que me enganei na principal coisa que tinha contra ele. Pensei que ele queria que minha prima casasse com aquele tipo Gebert, e agora soube que ele nunca teve essa idéia. Era absolutamente contrário a ela — Llewellyn pensou novamente. — Isso... isso  fez-me pensar... Quero dizer, enganei-me redondamente em tudo isto. O senhor vê, quando vim procurá-lo na segunda-feira... e na semana passada também... eu pensava que sabia de certas coisas. Não lhe disse coisa alguma a respeito, ou ao Sr. Goodwin quando estive explicando a ele, porque sabia que eu tinha preconceitos no caso. Eu não queria acusar pessoa algu­ma. Queria apenas que o senhor descobrisse. E quero dizer... quero desculpar-me. Minha prima disse-me que viu aquela caixa de bombons, como e quando. Teria sido melhor que ela lhe tivesse contado tudo, percebo isso agora. Ela também. Mas o diabo é que eu tinha os pensamentos em outra... em outra... Quero dizer, eu pensei que sabia de alguma coisa...

— Compreendo, senhor — Wolfe deu-me a impressão de estar impaciente. — O senhor sabia que Molly Lauck estava enamorada do Sr. Perren Gebert. Sabia que o Sr. Gebert queria casar-se com sua prima Helen e pensou que o Sr. McNair era favorável à idéia. Estava mais do que pronto a suspeitar de que a gênese do bombom envenenado era o enredamento erótico-matrimonial, já que estava profundamente inte­ressado no caso porque desejava casar com sua prima.

Llewellyn olhou-o firmemente.

— Onde é que o senhor arranjou essa idéia? — começou a ficar vermelho e tartamudeou: — Eu, casar-me com ela? O senhor está maluco? Que tipo do estúpido...

— Por favor, não faça isso — disse Wolfe erguendo um dedo. — O senhor devia saber que detetives algumas vezes (detectam... pelo menos alguns o fazem. Não digo que o senhor tencionava casar com ela e sim meramente que queria. Descobri isso no início de nossa conversação na tarde da última segunda-feira, quando me contou que ela era sua ortoprima. Não havia motivo para que uma expressão tão abstrusa e incomum estivesse no primeiro plano de seus pensamentos, como obviamente estava, a menos que o senhor estivesse tão preo­cupado com a idéia de casar-se com ela e com o relativo à propriedade e ao costume de casamentos entre primos carnais, para examinar exaustivamente o assunto. Era evidente que o Direito Canônico e as posturas levíticas não tinham sido suficientes para o senhor. Chegou mesmo a estudar Antropologia'. Ou, possivelmente, isso não foi suficiente para outra pessoa... ela mesma, a mãe dela, seu pai...

Com o rosto ainda vermelho, Lew Frost disse impetuosa­mente :

— O senhor não detectou isso. Ela lhe contou. Ontem... Ela lhe contou?

Wolfe sacudiu negativamente a cabeça e respondeu: —' Não, cavalheiro. Eu detectei. Entre outras coisas. Não me surpreenderia saber que, quando o senhor me visitou há três dias, estivesse convencido de que ou o Sr. McNair ou Sr. Gebert haviam assassinado Molly Lauck. Evidentemente, o senhor não estava em condições de estabelecer a diferença entre absurdo e possibilidade.

— Sei que não estava. Mas eu não estava... convencido» de coisa alguma — Llewellyn mordeu os lábios. — Agora, naturalmente, estou num aperto. Este caso de McNair é algo de terrível. Os jornais recomeçaram tudo novamente. A Po­lícia esteve nos procurando esta manhã — a nós, Frosts — como se... como se soubéssemos de alguma coisa sobre o caso. E, naturalmente, Helen está inconsolável. Ela quis ir ver o corpo de McNair esta manhã e tivemos de dizer-lhe que não poderia porque estavam fazendo autópsia, e que isso não era agradável. Por último, ela quis vê-lo e eu a trouxe de carro até aqui. Entrei em primeiro lugar porque não sabia o que haveria aqui. Ela está lá fora no meu carro. Posso fazê-la entrar?

Wolfe  fez uma careta.

— Nada há que eu possa fazer por ela neste momento. Desconfio de que ela não está em condições...

— Ela quer vê-lo.

Wolfe levantou os ombros dois centímetros e deixou-os cair.

— Vá buscá-la.

Lew Frost levantou-se e saiu. Acompanhei-o para abrir a porta. De um cupê cinzento parado junto à calçada emergiu Helen Frost. Llewellyn escoltou-a escada acima e corredor abaixo. Devo dizer que ela não mais se parecia muito com uma deusa. Os olhos estavam inchados, o nariz manchado e ela dava a impressão de doença. O ortoprimo entrou no gabinete à frente dela e eu os segui. Ela  fez uma inclinação de cabeça

"para Wolfe, sentou-se na cadeira dos bobos e olhou-nos, a Llewellyn, a mim e a Wolfe, como se em dúvida se nos conhecia

•ou não.

Fitou o chão e levantou os olhos novamente.

<— Foi exatamente aqui — disse ela em voz sem expressão. — Não foi? Exatamente aqui.

Wolfe concordou com um aceno de cabeça.

— Foi, Srta. Frost. Mas se foi para isso que veio aqui, para arrepiar-se no local onde morreu seu melhor amigo, isto não nos vai ajudar em coisa alguma — ele se espigou um pouco. — Tenho aqui uma agência de detetive e não uma enfer­maria de morbidez. Sim, ele morreu aqui. Engoliu o veneno sentado nessa cadeira. Levantou-se cambaleante e tentou man­ter-se de pé, colocando os punhos sobre minha escrivaninha. Teve uma convulsão e morreu. Se ele ainda estivesse aqui, a senhorita poderia estender a mão e tocá-lo sem sair do lugar.

Helen fitou-o, sem respirar. Llewellyn protestou:

— Pelo amor de Deus, Wolfe, você pensa... Wolfe ergueu a palma da mão para ele.

— Penso que fui obrigado a ficar sentado aqui e observar o Sr. McNair ser assassinado no meu gabinete. Archie, o seu bloco de notas, por favor. Ontem eu disse à Srta. Frost que era mais do que tempo de ela ouvir alguma coisa. Que é que eu disse naquela ocasião? Leia.

Apanhei o bloco, folheei as páginas, encontrei o trecho e li-o em voz alta:

"... Na sua presunção, a senhorita está assumindo, para sua mocidade e inexperiência, uma terrível responsa­bilidade. Molly Lauck morreu há nove dias, provavel­mente em virtude do trabalho desastrado de alguém que queria matar outra pessoa. Durante todo esse tempo a senhorita possuía conhecimentos que, se transmitidos com fidelidade e prontidão, poderiam ter resultado em algo muito mais importante do que vingar-se. Poderia salvar uma vida e é mesmo possível que a vida merecesse ser salva. O que é que..."

— Basta — disse Wolfe, voltando-se para ela. — Aquilo, mademoiselle, foi um apelo cortês e razoável. Não apelo fre­qüentemente para as pessoas nesses termos. Sou excessivamente vaidoso. Mas fiz-lhe um apelo, sem êxito. Se é doloroso para

a senhorita ser lembrada de que o seu melhor amigo morreu ontem, no meio de grande sofrimento, no local ocupado agora por sua cadeira, pensa por acaso que me foi agradável ficar sentado aqui e vê-lo morrer? — voltou-se bruscamente para Llewellyn. — E o senhor, cavalheiro, que me contratou para resolver um problema e passou em seguida a criar-me obstá­culos logo que dei o primeiro passo... E agora fica todo agitado se eu recuso mostrar pena e consideração pelo remorso e sofri­mento de sua prima. Não os demonstro porque não os sinto. Se ofereço à venda neste escritório alguma coisa que vale a pena ser comprada, certamente não é um coração terno nem simpatia sentimental pelos sofrimentos de uma criança mimada e obtusa — virou-se para Helen. — Ontem, no seu orgulho, a senhorita nada pediu e nada ofereceu. A informação que me deu foi extraída sob ameaça. Que é que vejo fazer aqui hoje? Que quer?

Llewellyn levantou-se e aproximou-se da cadeira da prima. Estava-se contendo.

— Vamos, Helen — suplicou. — Vamos, vamos sair daqui...

Ela ergueu a mão, tocou-lhe a manga e sacudiu a cabeça sem olhá-lo.

— Sente-se, Lew — disse-lhe. — Por favor, mereço isso .— vi-lhe uma mancha de cor no rosto.

— Não. Vamos.

Ela sacudiu negativamente a cabeça mais uma vez.

— Vou ficar.

— Eu não vou — disse ele e projetou novamente o queixo na direção de Wolfe.

— Escute aqui. Pedi desculpa. Muito bem, devia-lhe isso. Mas agora quero dizer... que aquele papel que eu assinei aqui na terça-feira... Estou-lhe dando aviso prévio de que não quero mais nenhum negócio com o senhor. Não lhe vou pagar dez mil dólares porque não os tenho e também porque o senhor nada  fez para merecê-los. Posso pagar-lhe uma soma razoável logo que me enviar a conta. A combinação está encerrada.

Wolfe inclinou a cabeça e murmurou:

— Eu esperava por isso, naturalmente. As suspeitas que tinha e que o levaram a contratar-me para apurá-las desapare­ceram. A ameaça de incômodo à sua prima, ocasionada pela admissão dela de que vira a caixa de balas, não mais existe. Metade de sua intenção foi realizada, desde que sua prima não trabalhará mais... pelo menos não na loja de McNair. Quanto à outra metade, a continuação da investigação do assassinato de Molly Lauck implicará a necessidade de investigar também a morte do Sr. McNair, e isso pode resultar em algo profun­damente desagradável para os Frosts. Tal a lógica da situação, para o senhor, e perfeitamente correta. E se esperasse receber até mesmo uma fração justa dos meus honorários, eu provavel­mente teria de processá-lo — ele suspirou e reclinou-se na ca­deira. — E o senhor forçou-me a ir à Rua 52 com aquela mal­dita carta. Bom dia, cavalheiro. Não o censuro. Mas vou mandar-lhe, sem dúvida alguma, uma conta no valor de dez mil dólares. Sei o que o senhor está pensando. Que não o pro­cessarei porque não irei a um tribunal prestar depoimento. O senhor tem razão, mas vou enviar-lhe uma conta de qualquer maneira.

— Pois mande. Vamos, Helen.

Ela não se mexeu. Disse apenas, tranqüilamente:

— Sente-se, Lew.

— Por quê? Vamos! Não ouviu o que ele disse a res­peito de situações desagradáveis para os Frosts? Não percebe que ele pôs a Polícia atrás de nós como se fôssemos uma qua­drilha de assassinos? E que ele o  fez em virtude de algo que McNair lhe disse ontem... antes que aquilo acontecesse? Exa­tamente como papai disse, e tia Callie também? Não percebe que eles não deixariam que você viesse aqui a menos que eu viesse também? Não estou dizendo que McNair contou-lhe qualquer mentira, estou apenas dizendo...

— Lew! Pare! — ela não falou em voz alta, mas apenas resoluta. Pôs a mão novamente na manga do primo. — Escute, Lew. Você sabe muito bem que todos os mal-entendidos que tivemos foram a respeito de tio Boyd. Não acha que podemos deixar de tê-los agora que ele morreu? Eu disse ao Sr. Wolfe ontem... que ele... ele foi o homem mais decente que eu conheci... Não espero que você concorde com isso... mas era verdade. Eu sabia que ele não gostava de você e, hones­tamente, pensava que era a única coisa em que ele se enga­nava — ela se levantou e segurou-lhe os dois braços. — Você é um homem decente, também, Lew. Há muita coisa boa em você. Mas eu amava tio Boyd — ela comprimiu fortemente os lábios e inclinou a cabeça várias vezes. Finalmente, engoliu em seco e continuou: — Ele era um homem notável... era mesmo. Ele me deu o pouco de bom senso que tenho, e foi ele quem evitou que eu me tornasse numa tola completa... — comprimiu os lábios novamente e em seguida prosseguiu: — Ele sempre dizia... em todas as ocasiões que eu... eu...

Ela se voltou bruscamente e sentou-se, pôs o rosto entre as mãos e começou a chorar.

Llewellyn olhou-a fixamente:

— Ora, Helen, pelo amor de Deus. Sei como você se sente...

Rosnei para ele:

— Cale a boca e sente-se. Feche a matraca.

Ele ia continuar a consolá-la. Saltei da cadeira, agarrei-lhe os ombros e virei-o para mim dizendo:

— Você não é mais nosso cliente. Não discuta. Não lhe disse que as cenas me põem nervoso? — deixei-o olhando-me furiosamente, fui até o armário, servi uma dose de conhaque e um copo dágua fria e aproximei-me da cadeira de Helen Frost. Logo depois, ela aquietou-se, puxou um lenço da bolsa e co­meçou a enxugar as lágrimas. Esperei até que ela pudesse ver e disse-lhe:

— Conhaque. 1890 Guarnier. Quer que ponha um pouco dágua?

Ela sacudiu negativamente a cabeça, estendeu a mão para o copo e bebeu elegantemente a bebida de um trago. Ofereci-lhe a água e ela deu um gole. Em seguida, voltou-se para Nero Wolfe e disse:

— Não lhe vou falar mais a respeito de tio Boyd. Não adianta, não é? — enxugou os olhos novamente, tomou uma longa respiração trêmula, exalou e voltou-se novamente para Wolfe, dizendo:

— Não me importo com o que Tio Boyd possa lhe ter dito sobre nós, os Frosts. Não poderia ter sido coisa alguma muito horrível, porque ele não mentiria. Tampouco me importo se o senhor está colaborando com a Polícia. Não poderia haver coisa mais... mais desagradável para um Frost do que o que já aconteceu. De qualquer modo, a Polícia não descobriu coisa alguma a respeito de Molly Lauck e o senhor descobriu.

As lágrimas haviam secado. Ela continuou:

— Sinto muito não lhe ter dito... Claro que lamento. Pensei que estava guardando um segredo de tio Boyd, mas la­mento de qualquer maneira. Gostaria somente que houvesse alguma coisa que eu lhe pudesse contar... mas, de qualquer maneira... posso fazer o seguinte. Trata-se da primeira vez em que me sinto realmente feliz por ser muito rica. Eu lhe pagarei qualquer coisa para descobrir quem matou tio Boyd. Qualquer coisa... e o senhor não terá de processar-me.

Recolhi o copo e fui até o armário para trazer mais co­nhaque. Sorri para a garrafa enquanto servia, refletindo que este caso estava-se transformando numa maldita sucessão de clientes.

 

Capitulo 11

Llewellyn repreendia-a.

— Mas Helen, isto é trabalho para a Polícia. Não que ele possa ser mais insultuoso do que a Polícia, mas isto é um trabalho de Polícia e ela que o faça. De qualquer maneira, papai e tia Callie vão ficar magoadíssimos, você sabe disso. Você sabe o que eles me disseram quando eu... na terça-feira.

Helen respondeu:

— Não me importo se eles ficarem magoados. O dinheiro não é deles, é meu. Vou fazer isto. Claro que só terei maioridade no mês que vêm... Isso tem importância, Sr. Wolfe? Está certo com o senhor?

— Inteiramente certo.

— O senhor o fará?

— Se aceito a missão? A despeito de minha experiência com outro Frost, sim.

Ela se voltou para o ortoprimo:

— Faça o que quiser, Lew. Vá para casa e conte-lhes, se quiser. Mas eu... eu gostaria de que você...

Ele a olhava carrancudo.

— Você está resolvida?

— Estou. Inteiramente.

— Muito bem — disse ele, recostando-se na cadeira. — Então eu fico. Sou pelos Frosts, mas você é a primeira da lista. Você... Oh, nada — ele corou um pouco. — Faça o que quiser.

— Obrigado, Lew — disse ela, voltando-se para Wolfe. — Acho que quer que eu assine alguma coisa?

Wolfe sacudiu negativamente a cabeça e disse:

— Isto não será necessário — reclinara-se na poltrona e mantinha os olhos semicerrados. — Minha conta será justa, mas não exorbitante. Não procurarei levá-la a pagar pela frivolidade do seu primo. Mas uma coisa deve ficar claramente entendida: A senhorita contrata-me em virtude da afeição e estima que sentia pelo Sr. McNair e do desejo de que a pessoa que o assassinou seja descoberto e castigada. A senhorita está, no momento, sob os efeitos de poderosas emoções. Tem cer­teza de que amanhã, ou na próxima semana, ainda quererá que eu investigue o caso? Quer que o assassino seja capturado, jul­gado, condenado e executado, se por acaso, dando um exemplo, ele for o seu primo, seu tio, sua mãe... ou o Sr. Perren Gebert?

— Mas... isso é ridículo...

— Talvez, mas continua a ser uma pergunta a carecer de resposta. Vai pagar-me para capturar o assassino, não importa quem seja ele?

Ela o olhou de frente e disse finalmente:

— Sim. Quem quer que tenha assassinado tio Boyd... Sim, quero.

— Não mudará de idéia?

— Não.

— Excelente. Confio na senhorita. Tentarei trabalhar em seu nome. Desejo agora fazer-lhe algumas perguntas, mas é possível que sua resposta à primeira torne as outras desnecessá­rias. Qual a última vez em que viu a caixa de couro vermelho do Sr. McNair?

— Dele o quê — ela contraiu as sobrancelhas. — Uma caixa de couro vermelho?

— Exatamente.

— Nunca. Nunca a vi. Não sabia que ele possuía uma caixa dessas.

— Realmente. O senhor, cavalheiro, estará por acaso res­pondendo a perguntas?

— Acho que estou — disse Lew Frost. — Claro. Mas não a respeito de uma caixa de couro vermelho. Nunca a vi também.

Wolfe suspirou.

— Então, receio de que tenha de prosseguir. Posso muito bem dizer-lhe, Srta. Frost, que o Sr. McNair previu — ou pelo menos temia — aquilo que o esperava. Enquanto a senhorita esteve aqui ontem, ele estava no advogado reformando o testa­mento. Deixou todas as propriedades à irmã, Isabel, que mora na Escócia. Nomeou-me testamenteiro e legou-me sua caixa de couro vermelho e respectivo conteúdo. Veio aqui para pedir-lhe que aceitasse a missão e o legado.

— Ele o nomeou testamenteiro? — Llewellyn fitou-o, incré­dulo. — Mas ele não o conhecia. Anteontem nem mesmo queria conversar com o senhor...

— Exatamente. Isto mostra a extensão do desespero que lhe ia na alma. Mas é evidente que a caixa vermelha contém o segredo da morte dele. Para dizer a verdade, Srta. Frost, estou satisfeito por ter vindo aqui hoje. Eu tinha esperança de obter alguma informação da senhorita... uma descrição da caixa, se não outras coisas.

Ela sacudiu a cabeça e disse:

— Nunca a vi. Eu não sabia... Mas, não compreendo... se ele queria dá-la ao senhor, por que não lhe disse ontem...

— Ele tinha intenção de fazê-lo. Mas não chegou até esse ponto. As últimas palavras dele... a última luta inútil contra o destino... foi um esforço para dizer-me onde ela se encon­tra. Devo informá-la: o Inspetor Cramer possui uma cópia do testamento e neste momento dezenas de policiais estão pro­curando a caixa, de modo que se a senhorita ou seu primo puderem dar-me uma sugestão, não há um instante a perder. É desejável que eu obtenha a caixa em primeiro lugar. Não para proteger o assassino, mas porque eu faço as coisas a minha maneira... E a Polícia não tem clientes, mas apenas uma ca­deira elétrica.

Llewellyn interveio:

— Mas o senhor disse que ele lhe deixou a caixa. É sua propriedade...

— A evidência de um homicídio não é de propriedade de ninguém logo que a lei a toca. Não, se o Sr. Cramer encontrá-la, o melhor que podemos esperar é o papel de espectador privi­legiado. Portanto, procurem lembrar-se. Procurem lembrar-se de dias, semanas, meses, anos. Revivam, se puderem, alguma observação do Sr. McNair, algum gesto esquecido, talvez de irritação ou embaraço ao ser interrompido, talvez o fechamento apressado de uma gaveta ou a revelação involuntária de um esconderijo. Uma observação de alguém que talvez tenha conhecimento da caixa. Algum ato do Sr. McNair, excepcional ou habitual, inexplicado na ocasião...

Llewellyn sacudiu lentamente a cabeça. Helen disse:

— Nada. Tentarei pensar nisso, mas tenho certeza de que não me lembrarei de coisa alguma a esse respeito.

— Isto é uma pena. Continuei a tentar. Naturalmente, a Polícia está saqueando agora o apartamento dele e a loja. Possui ele qualquer outra extensão de terra ou água? Uma, garagem, um barco, uma casa no campo?

Llewellyn olhou a prima com as sobrancelhas erguidas num gesto de interrogação. Ela inclinou a cabeça.

— Sim. Glennanne. Uma pequena cabana com alguns hectares de terra em volta, nas proximidades de Brewster.

— Glennanne?

— Sim. O nome da esposa dele era Anne e o da filha, Glenna.

— Ele era o proprietário?

— Era. Comprou-a há mais ou menos seis anos.

— O que é e onde fica Brewster?

— É um pequeno vilarejo a oitenta quilômetros ao norte de Nova York.

— Realmente! — Wolfe endireitou-se na cadeira. — Archie. Diga a Saul, Orrie, Johnny e Fred para virem aqui imediatamente. Se não puderem vir todos imediatamente, mande os dois primeiros dar uma busca em Glennanne e que os outros os ajudem quando chegarem. A cabana, em primeiro lugar, rápida e completamente e, em seguida, os terrenos. Há um jardim na cabana, Srta. Frost? Ferramentas?

Ela inclinou a cabeça e disse:

— Ele... ele plantava algumas flores.

— Ótimo. Eles podem levar o seda. Arranje ferramentas extras para cavar, caso eles precisem e devem levar luzes para continuar após o anoitecer. A cabana é a coisa mais provável... um buraco na parede, uma ripa solta no assoalho. Chame-os. Espere. Primeiro, o seu bloco. Tome este ditado e datilografe em papel timbrado:

"Pela presente, autorizo o portador, Saul Panzer, a tomar posse da casa e dos terrenos de Glennanne, pro­priedade de Boyden McNair, falecido, e empreender nela certas atividades de acordo com as minhas ins­truções".

— Deixe lugar para minha assinatura sobre o título, "Testamenteiro da Herança de Boyden McNair". Não fui investido ainda, mas podemos resolver as formalidades depois — com um gesto de cabeça mandou-me começar. — Agora, Srta. Frost, talvez possa dizer-me...

Dirigi-me para o telefone e comecei a discar. Consegui Saul e Orrie na primeira ligação. Responderam que viriam imediatamente. Fred Durkin estava fora. A esposa, porém, disse que sabia onde ele se encontrava e que ele chamaria dentro de dez minutos. Johnny Keems, quando não estava tra­balhando para nós, formara o hábito de telefonar todos os dias às nove para dar-me o programa do dia. Dissera-me naquela manhã que estava fazendo um trabalho de acampamento para Del Pritchard. Tentei, portanto, o escritório deste último. Johnny estaria ocupado durante todo o dia, mas, antes que eu terminasse a autorização para Saul, Fred telefonou e conse­guimos pelo menos três.

Saul Panzer chegou em primeiro lugar e Wolfe mandou Fritz trazê-lo ao escritório. Ele entrou de chapéu na mão, lan­çou-me uma piscadela, perguntou a Wolfe como estava, gravou indelèvelmente na memória a planta baixa dos dois Frosts com um ligeiro olhar e apontou interrogativamente o grande nariz em direção a Wolfe.

Wolfe deu-lhe informações e disse-lhe o que devia des­cobrir. Helen Frots ensinou-lhe como ir a Glennanne partindo da aldeia de Brewster. Entreguei-lhe a autorização assinada e quarenta dólares para as despesas. Ele puxou do bolso a velha carteira marrom e guardou-os cuidadosamente. Wolfe disse-lhe para tirar o carro da garagem e esperar em frente da casa por Fred e Orrie.

— Sim, senhor — disse Saul. — Se eu encontrar a caixa, deixo Fred ou Orrie no lugar quando voltar?

— Sim. Até que ele seja avisado. Fred.

— Se algum estranho oferecer-se para a ajudar, devo deixar?

Wolfe  fez uma carranca.

— Eu ia mencionar esse ponto. Certamente não poderá haver objeção se você mostrar preferência pela lei e pela ordem. Com toda a cortesia, peça para ver o mandado de busca.

— Há alguma coisa perigosa naquela caixa? — perguntou Saul, corando. — Quero dizer, objetos roubados?

— Não. É legalmente minha. Defenda-a.

— Certo — disse Saul e saiu. Refleti que se ele por acaso pusesse as patas naquela caixa eu não gostaria de ser o gajo que tentasse tirá-la dele, por menor que ele fosse. Ele não pensaria mais em Nero Wolfe do que eu pensava do meu nariz patrício e grandes e inteligentes olhos castanhos.

Wolfe apertou o botão chamando Fritz, a chamada longa, não as duas curtas da cerveja. Fritz apareceu e ficou aguar­dando ordens.

Wolfe olhou-o carrancudo e perguntou:

— Pode tirar o almoço para nós? Dois convidados?

— Não — interrompeu Llewellyn — realmente... nós temos de voltar... Prometi e papai e a tia Callie...

— O senhor pode telefonar-lhe. Eu aconselharia a Srta. Frost a ficar. A qualquer momento podemos ser informados de que a caixa foi encontrada e isso significaria uma crise. E para garantir-me contra a possibilidade de ela não ser encon­trada, precisarei de grande volume de informações. Srta. Frost?

Ela assentiu com um movimento de cabeça e disse:

— Ficarei. Não estou com fome, mas ficarei. Você fica comigo, Lew?

Ele rosnou alguma coisa para ela, mas ficou imóvel. Wolfe deu instruções a Fritz:

— O fricandeau deve ser suficiente. Acrescente alface à salada se a chicória for pouca. E, naturalmente, aumente o azeite. Esfrie uma garrafa de 28 Marcobrunner. Chame-nos logo que tudo estiver pronto — com um dedo despediu Fritz e recostou-se novamente. — Agora, Srta., Frost, somos sócios numa empresa conjunta. Preciso de fatos. Vou fazer-lhe um bocado de perguntas tolas. Se uma delas for sábia ou inteligente, a senhorita não perceberá, mas esperemos que eu perceba. Por favor, não perca tempo em admoestações. Se eu lhe perguntar se sua mãe a enviou recentemente até a farmácia da esquina para comprar comprimidos de cianeto de potássio, responda simplesmente que não e aguarde a pergunta seguinte. Certa vez resolvi um caso difícil descobrindo com uma jovem, depois de interrogá-la durante cinco horas, que ela recebera um jornal com uma parte cortada. O seu direito inalienável à vida privada está temporariamente suspenso. Está certo assim?

— Sim — respondeu ela fitando-o nos olhos. — Não me importo. Naturalmente que sei que o senhor é inteligente e quero que seja. Sei com que facilidade o senhor surpreendeu-me numa mentira na manhã de terça-feira. Mas o senhor deve saber... o senhor não me surpreenderá agora porque não tenho mais motivo algum para mentir. Não compreendo como algo que eu saiba possa auxiliá-lo...

— Possivelmente não pode. Podemos apenas tentar. Va­mos passar o presente um pouco a limpo e, em seguida, retroagir. Mas devo informá-la: o Sr. McNair contou-me algumas coisas ontem antes de ser interrompido. Disponho de algumas informações básicas como ponto de partida. Agora... por exemplo... o que tinha o Sr. Gebert em mente quando disse que era quase seu noivo?

Ela comprimiu os lábios, mas respondeu pertinentemente:

— Nada, realmente. Ele... ele pediu-me diversas vezes que casasse com ele.

— A senhorita encorajou-o? — Não.

— Alguém o  fez?

— Ora... quem é que poderia?

__Um bocado de gente. A sua empregada, o padre de sua igreja, membros de sua família... Alguém o encorajou?

— Após uma pausa, ela respondeu: — Não.

— A senhorita disse que não tinha mais motivos para mentir.

— Mas eu... — parou e tentou sorrir para ele. Foi nesse momento que comecei a pensar que ela era uma garota muito boazinha, isto é, quando tentou sorrir para mostrar que não queria enganá-lo. Continuou: — Mas é uma coisa tão pessoal... Eu não vejo como...

Wolfe ergueu um dedo.

— Nós estamos trabalhando na base da teoria de que, em qualquer eventualidade, desejamos descobrir o assassino do Sr. McNair. Mesmo que — meramente como um exemplo — isto signifique levar sua mãe a um tribunal para prestar depoi­mento contra alguém que ela preza. Se for esse o nosso objetivo, a senhorita deve deixar aos meus cuidados o método de atingi-lo. Peço-lhe que não resista nem se espante com qualquer pe­queno obstáculo. Quem encorajou o Sr. Gebert?

— Não mentirei novamente — prometeu ela. — Ninguém realmente o encorajou. Conheci-o durante toda vida e minha mãe o conheceu mesmo antes de eu nascer. Mamãe e Papai o conheciam. Ele sempre foi... atencioso, divertido e, de certa maneira, ele é interessante e gosto dele. Em outras coisas antipatizo com ele profundamente. Mamãe disse-me para combater esta antipatia em virtude do que existe de bom nele. E disse que ele era um amigo tão antigo que eu não devia feri-lo evitando-o completamente, e que não faria mal deixar que ele pensasse que era ainda bem-vindo enquanto eu não me decidisse por alguém.

— A senhorita concordou com isso?

— Bem, eu... não lutei. Minha mãe é muito convincente.

— Qual a atitude de seu tio? Sr. Dudley Frost, o seu tutor.

— Oh, nunca discuto essas coisas com ele. Mas sei o que teria sido. Ele não gosta de Perren.

— E o Sr. McNair?

— Ele antipatizava com Perren mais do que eu. Aparen­temente, eram amigos, mas... de qualquer maneira, tio Boyd não era um homem de duas caras. Quer que eu lhe conte?

— Sem dúvida alguma.

— Bem, certo dia, há mais ou menos um ano, tio Boyd chamou-me ao escritório no andar superior. Lá, encontrei Perren. Tio Boyd estava de pé, pálido e parecendo muito deter­minado. Perguntei-lhe o que havia. Ele respondeu que queria apenas dizer-me, na presença de Perren, que qualquer que fosse a influência que sua amizade e afeição pudessem ter sobre mim, ele era realmente contrário a meu casamento com Perren. Ele disse isso muito... formalmente, o que não era do jeito dele. Não me pediu que fizesse promessa alguma ou outra coisa qualquer. Disse apenas isso e, em seguida, pediu-me para retirar-me.

— E a despeito disso o Sr. Geber persistiu em fazer-lhe a corte?

— Claro que sim. Por que não o faria? Muitos homens fizeram a mesma coisa. Sou tão rica que bem vale o esforço.

— Meu Deus — disse Wolfe, entreabrindo e fechando os olhos novamente. — Tão cínica assim? Mas, naturalmente, um cinismo corajoso e apropriado. Nada mais a admirável do que a fortaleza com que os milionários toleram as desvantagens da riqueza. Qual a profissão do Sr. Gebert?

,— Nenhuma. Esta é uma das coisas de que não gosto nele. Ele não faz coisa alguma.

— Possui renda própria?

__ Não sei. Realmente, nada sei a esse respeito. Suponho

que sim... Ouvi-o fazer observações vagas. Ele mora no Chesebrough e tem automóvel.

— Sei disso. O Sr. Goodwin informou-me que ele veio ontem aqui de carro. De qualquer modo, um homem corajoso. A senhorita conheceu-o na Europa. Que é que ele fazia lá?

— Não mais do que aqui, tanto quanto consigo lembrar-me... mas, naturalmente, eu era muito jovem naquele tempo. Foi ferido na guerra. Mais tarde, foi visitar-nos na Espanha — isto é, minha mãe. Eu tinha apenas dois anos de idade, e ele foi ao Egito conosco pouco tempo depois, mas, logo que ele partiu para o Oriente, nós voltamos...

— Um momento, por favor — disse Wolfe com as so­brancelhas franzidas. — Vamos ver se pomos ordem na cro­nologia. Parece que houve uma festa e tanto na Espanha. Praticamente as últimas palavras do Sr. McNair foram a res­peito da ida para a Espanha com a filha pequena. Começaremos quando a senhorita iniciou a vida. Nasceu, segundo me disse ontem, em Paris — no dia 7 de maio de 1915. Seu pai estava na guerra como membro da aviação britânica e foi morto quando a senhorita tinha alguns meses de idade. Em que data sua mãe levou-a à Espanha?

— Em princípios de 1916. Ela teve receio de ficar em Paris por causa da guerra. Fomos inicialmente para Barce­lona e depois para Cartagena. Pouco tempo depois, tio Boyd e Glenna chegaram e se reuniram a nós. Ele não tinha dinheiro e estava muito doente. Mamãe ajudou-o... Acho que Perren chegou, não muito depois, parcialmente porque tio Boyd estava lá — e ambos haviam sido amigos de meu pai. Em 1917, Glenna morreu e logo depois tio Boyd voltou à Escócia. Mamãe levou-me para o Egito porque eles temiam uma revolução ou algo parecido na Espanha. Perren acompanhou-nos.

— Ótimo. Tenho uma casa no Egito que não vejo há vinte anos. Possui mosaicos de Rhages e Veramine na entrada. Quanto tempo passou no Egito?

— Mais ou menos dois anos. Em 1919, quando eu tinha quatro anos — claro que tudo isso eu soube por intermédio de minha mãe — três ingleses foram mortos em distúrbios de rua do Cairo e mamãe resolveu partir. Perren decidiu voltar à

França. Mamãe e eu fomos a Bombaim e, mais tarde, a Bali, Japão e Havaí. Meu tio, que era meu tutor, continuava a insistir em que eu devia receber uma educação americana. Finalmente, em 1924 — eu tinha nove anos nessa ocasião — deixamos o Havaí e viemos para Nova York. Foi dessa época em diante, realmente, que conheci Tio Boyd, pois naturalmente não me lembro dele na Espanha, época em que eu tinha apenas dois anos de idade.

__ Ele já estava estabelecido em Nova York quando vocês chegaram?

— Não. Ele contou-nos... Começou a desenhar vestidos para a Wilmerding em Londres, teve muito êxito e tornou-se sócio. Em seguida, pensou que Nova York tinha mais futuro, chegou em 1925 e estabeleceu-se. Claro que a primeira coisa que  fez foi procurar mamãe. Ela o ajudou um pouco graças às pessoas que conhecia, mas ele teria chegado ao cume de qual­quer maneira porque possuía grande capacidade. Era muito talentoso. Paris e Londres começavam a copiá-lo. O senhor nunca teria pensado, apenas estando com ele, conversando com ele... o senhor nunca teria pensado...

Ela hesitou e parou. Wolfe começou a murmurar algo para acalmá-la. Uma interrupção, porém, evitou-lhe o pro­blema . Fritz apareceu para anunciar o almoço. Wolfe empurrou a cadeira para trás, dizendo:

— O seu casaco pode ficar aqui, Srta. Frost. Seu chapéu? Mas, permita-me que insista, como um favor: comer de chapéu, exceto numa estação de estrada-de-ferro, é bárbaro. Muito obrigado. Restaurante? Nada sei de restaurantes. A não ser que fosse obrigado, eu não comeria num lugar desses nem mesmo que tivesse Vatel como chef.

À mesa, logo que Fritz entrou para servir a entrada, Wolfe apresentou-o, segundo seu costume, aos convidados que não lhe haviam ainda provado os petiscos.

— Srta. Frost, Sr. Frost, este é o Sr. Brenner.

Além disso, mais uma vez segundo o costume, não se dis­cutiram negócios durante a refeição. Llewellyn mostrou-se ner­voso, mas comeu. E, de fato, pareceu-nos que nossa nova cliente estava esfomeada como o demônio. Provavelmente não tomara o café da manhã. De qualquer modo, atacou o fricandeau de uma maneira que levou Wolfe a olhá-la com aprovação. Ele falou a maior parte do tempo, principalmente sobre o Egito,

mosaicos, os usos de beiço duplo dos camelos e a teoria de que o gênio colonizador inglês devia-se ao clima repulsivo do país, que levava todos os britânicos que tinham qualquer bom senso e força de vontade a decidir invariavelmente a ir trabalhar noutro lugar. A refeição terminou somente às duas e meia. Voltamos ao gabinete, onde Fritz serviu o café.

Helen Frost telefonou para a mãe. Aparentemente, foi insistente o protesto maternal do outro lado do fio, pois Helen, inicialmente persuasiva, tornou-se em seguida irritada e, de­pois, bastante desrespeitosa. Durante todo o ato, Llewllyn, sentado na sua cadeira, olhava carrancudo. Eu não sabia se a carranca era para ela ou para a oposição. De qualquer modo, não afetou a nossa cliente, pois ela falou de minha mesa e não a viu.

Wolfe recomeçou, fazendo um sumário da história de Perren Gebert. Na primeira parte, porém, a conversação encheu-se de lacunas devido à insistência das interrupções do telefone. Johnny Keems chamou para dizer que podia deixar a missão de Pritchard, se precisássemos dele. Respondi que consegui­ríamos dar um jeito. Dudley Frost telefonou para descompor o filho. Llewellyn recebeu a surra verbal calmamente e respon­deu que a prima precisava dele onde ele se encontrava, ao que ela se manteve impassível, enquanto eu abafava um risinho de mofa. Em seguida, Fred Durkin telefonou dizendo que haviam chegado e tomado posse de Glennanne, onde não havia ninguém, e que tinham iniciado as operações. O telefone da cabana es­tava desligado e Saul enviara-o à aldeia para fazer o relatório. Um homem chamado Collinger telefonou e insistiu em falar com Wolfe. Escutei e estenografei as palavras na forma habi­tual. Era o advogado de Boyden McNair e queria saber se Wolfe poderia visitá-lo imediatamente para uma conferência a respeito do testamento. Naturalmente, a simples idéia atrasou a digestão de Wolfe em pelo menos dez minutos. Combinou-se que Collinger viesse à Rua 35 na manhã seguinte. Uma pouco depois das três, o Inspetor Cramer chamou e comunicou que seu exército avançava uniformemente em todas as frentes: isto é, em nenhuma. Nenhuma caixa vermelha e nenhuma infor­mação a respeito dela. Nem sombra de motivo em parte alguma. Nada nos papéis que pudesse ser estirado para sugerir nome do assassino; nenhuma indicação de alguém que tivesse com­prado cianeto de potássio; nada de nada.

Cramer deu-me a impressão de um tanto cansado.

— Há também uma coisa engraçada — disse em tom ma­goado __ não podemos encontrar os jovens Frosts em parte alguma. O seu cliente Lew não está em casa, no escritório do Portland Theatre nem em parte alguma. Helen, a filha, tam­pouco pôde ser encontrada. A mãe diz que ela saiu às onze, mas não sabe para onde. Descobri que Helen era mais íntima de McNair do que qualquer outra pessoa, amigos muito íntimos, e assim ela é a nossa melhor oportunidade para descobrir a caixa vermelha. E por falar nisso, que é que ela anda fazendo pela cidade, com o McNair recém-assassinado? Há uma vaga possibilidade de que a situação tenha esquentado demais para que eles tenham dado o pira. Lew esteve no apartamento dos Frosts na Rua 65 e os dois saíram juntos. Estamos tentando descobrir...

— Sr. Cramer. Por favor. Comecei a dizer-lhe duas ve­zes. A Srta. Helen Frost e o Sr. Llewellyn Frost estão no meu escritório. Estou conversando com ambos. Almoçaram...

— Hum? Estão aí agora?

— Estão. Chegaram aqui pela manhã logo depois de o senhor sair.

— Bolas — disse Cramer, estrilando um pouco. — Que é  que o senhor está tentando fazer? Arrancar informações ape­nas para uso próprio? Quero vê-los. Peça-lhes para vir até aqui... ou não, espere, quero falar com ela. Chame-a ao tele­fone.

— Ora, Sr. Cramer — replicou Wolfe, limpando a gar­ganta. — Não é do meu feitio extrair informações dessa ma­neira. Esse homem e essa senhorita vieram aqui sem aviso e inesperadamente. Não tenho objeção alguma a que fale com ela, mas não vejo vantagem...

— Que é que o senhor quer dizer com objeção? Que é isso? Graça? Por que deveria ter objeções?

— Eu deveria. Mas é aconselhável mencionar o fato desde que a Srta. Frost é minha cliente e está, por conseguinte, sob minha...

— Sua cliente? Desde quando? — Cramer fervia. — Que tipo de trapaça é essa? O senhor mesmo me disse que foi con­tratado por Lew Frost!

— Disse, sim. Mas aqui... hum, mudamos tudo. Eu — falando como um cavalo — mudei de cavaleiro no meio do banhado. Estou trabalhando para a Srta. Frost. Estava para dizer-lhe que não há vantagem em duplicação de esforços. Ela teve um choque muito sério e está muito tensa. Pode interrogá-la se quiser, mas eu o estou fazendo e não terminei ainda. E não há muita probabilidade de que no fim os interesses dela choquem-se com os seus. Ela está tão ansiosa para descobrir o assassino de McNair como o senhor. Foi para isso que ela me contratou. Posso dizer-lhe o seguinte: nem ela nem o primo sabem coisa alguma a respeito da caixa vermelha. Nem a viram nem ouviram falar dela.

— Diabo — houve uma pausa no telefone. — Quero vê-la e conversar com ela.

Wolfe suspirou.

— Nesse covil infernal? Ela está cansada, nada tem a dizer-lhe de útil, vale dois milhões de dólares e terá idade suficiente para votar antes do próximo outono. Por que não a visita em casa, após o jantar hoje à noite? Ou envia um dos seus lugares-tenentes?

— Porque eu... Oh, diabos o levem. Eu devia saber que não vale a pena discutir com o senhor. Então ela não sabe onde está a caixa vermelha?

— Nada, absolutamente. Nem tampouco o primo. Pode acreditar na minha palavra.

— Okay. Talvez a procure mais tarde. Informe-me do que descobrir, hum?

— Certamente.

Wolfe desligou, empurrou o aparelho, recostou-se, cruzou os dedos sobre o estômago e sacudiu lentamente a cabeça enquanto murmurava:

— Esse homem fala demais... Tenho certeza, Srta. Frost, que não ficará ofendida por perder uma visita à delegacia de polícia. Este é um dos meus preconceitos mais fortes, o per­mitir que um cliente meu apareça por lá. Esperemos que a busca da caixa vermelha mantenha distraído o Sr. Cramer.

Llewellyn interrompeu:

Em minha opinião, de qualquer maneira só há uma coisa a fazer: esperar até que ela seja encontrada. Toda esta mi­xórdia de história antiga... Se o senhor tivesse tanto cuidado em defender sua cliente de sua própria importunação como está...

— Lembro-lhe, cavalheiro, que o senhor está sendo ape­nas tolerado aqui. A sua prima tem o bom senso, quando contrata um especialista, de permitir-lhe o seu hocus-pocus. Que 'dizia, Srta. Frost? Oh, sim. Dizia-me que o Sr. Gebert chegou a Nova York em 1931. A senhorita tinha, nessa ocasião, de­zesseis anos de idade. Disse também que ele tem quarenta e quatro agora. Ele tinha, portanto, trinta e nove quando chegou, o que não constitui idade avançada. Suponho que, como velho amigo, ele tenha visitado imediatamente sua mãe. Ela inclinou a cabeça afirmativamente.

— Sim. Sabíamos que ele estava a caminho. Ele escreveu. Claro que eu não me lembrava dele. Não o via desde os quatro anos de idade.

— Claro que não. Terá por acaso ele vindo em missão política? Sei que ele era membro dos camelots du roi.

— Acho que não. Tenho certeza de que ele não... mas isto é tolice, eu de modo algum posso ter certeza. Mas acho que não.

— De qualquer modo, tanto quanto sabe, ele não trabalha e a senhorita não gosta disso.

— Não gosto disso em pessoa alguma.

— Sentimento notável para uma herdeira. Apesar disso, se o Sr. Gebert casasse com a senhorita, ele teria um emprego. Deixê-mo-lo à vaga esperança de sua redenção. Já são quase quatro horas, quando terei de deixá-los. Preciso perguntar-lhe algo a respeito de uma frase que deixou interrompida ontem, pouco depois de ter-lhe feito o meu inútil apelo. Contou-me que seu pai morreu quando a senhorita tinha apenas alguns meses e que, por isso, nunca teve um pai. Em seguida, disse: "Isto é", e parou. Insisti, mas a senhorita disse que não era coisa alguma, e deixamos a conversa nessa altura. Pode, de fato, nada ser, mas eu gostaria de saber... o que foi que a senhorita esteve a ponto de dizer-me. Lembra-se?

Ela inclinou afirmativamente a cabeça.

— Realmente, nada de importância. Apenas uma tolice.

— Mas, diga-me o que é. Como lhe disse, estamos pas­sando um pente-fino numa campina à cata de um grão de mostarda.

— Mas isso nada era. Apenas um sonho, um sonho infantil que tive certa vez. Depois, o sonho repetiu-se várias vezes, sempre o mesmo. Um sonho sobre mim mesma.

— Conte-me.

— Bem... quando tive o sonho pela primeira vez eu andava pelos seis anos. Em Bali. Pergunto-me desde então se aconteceu alguma coisa naquele dia para levar-me a ter aquele sonho, mas não consegui lembrar-me de coisa alguma. Sonhei que era um bebê, não de colo, mas bastante crescido para andar e falar, acho que com uns dois anos. Sobre uma cadeira, num guardanapo, havia uma laranja que fora descascada e dividida em gomos. Tirei um gomo e comi-o. Em seguida, apanhei outro, virei-me para um homem que estava sentado num banco, entreguei-o a ele e disse claramente: "Para papai". Era a minha voz, apenas na boca de um bebê. Comi outro gomo, apanhei um outro e disse: "Para papai", novamente, e con­tinuei dessa maneira até que a laranja acabou. Acordei tremendo e comecei a chorar. Mamãe dormia em outra cama ao lado — numa varanda fechada por uma tela. Ela veio para junto de mim e perguntou-me o que havia e respondi: "Estou chorando porque me sinto tão bem". Nunca disse a ela qual tinha sido o sonho. Este repetiu-se várias vezes depois daquela ocasião... Penso que a última vez quando eu tinha mais ou menos onze anos, aqui em Nova York. Sempre chorei quando tive aquele sonho.

— Com que se parecia o homem? — perguntou Wolfe.

Ela sacudiu a cabeça e respondeu:

— Por isso é que o sonho era tão maluco. Não era um homem. Apenas parecia um homem. Nós tínhamos uma foto­grafia de meu pai, que minha mãe guardava, mas eu não sabia se era parecido com ele no sonho. Apenas... Apenas eu o chamava de papai.

— Realmente — disse Wolfe estirando e puxando os lá­bios. Finalmente, observou: — Possivelmente notável em vir­tude da fotografia específica. A senhorita comia laranja em gomos quando era criança?

— Acho que sim. Sempre gostei de laranjas.

— Bem. Não há como saber. Possivelmente, como a se­nhorita diz, nada absolutamente. A senhorita mencionou uma fotografia de seu pai. A sua mãe guardou apenas uma?

— Sim. Guardou-a para mim.

— Nenhuma para ela?

— Não —  fez uma pausa e, em seguida, Helen disse tran­qüilamente: — Não há segredo algum a esse respeito. E é perfeitamente natural. Minha mãe ficou profundamente ofendida com os termos do testamento de meu pai e acho que ela tinha direito de ficar. Eles tiveram um sério mal-entendido de algum tipo, jamais soube qual, mais ou menos na ocasião em que nasci, mas, por mais sério que fosse... De qualquer ma­neira, ele nada lhe deixou. Nada, absolutamente, nem mesmo uma pequena renda.

Wolfe inclinou a cabeça.

— Assim soube. Tudo foi deixado à senhorita, sob custó­dia de seu tio — o irmão de seu pai, Dudley — como tutor. Leu por acaso o testamento?

— Uma vez, há muito tempo. Pouco depois de chegar­mos a Nova York meu tio  fez com que eu o lesse.

— À idade de nove anos? Mas conseguiu ir até o fim. Espantoso, de sua parte. Sei também que todo poder e auto­ridade foram investidos em seu tio, sem qualquer direito de fiscalização de sua parte ou de qualquer pessoa. Acho que a frase legal habitual é "absoluta e irrestrita liberdade". De modo que, para falar a verdade, a senhorita não sabe quanto valerá ao completar vinte e um anos. Podem ser milhões ou coisa alguma. Talvez descubra que está endividada. Se qualquer...

Lew Frost interrompeu-o:

— Que é que o senhor está querendo insinuar? Se quer dizer que meu pai...

— Não comece! — disse Wolfe secamente. — Eu nada insinuo. Simplesmente descrevo o fato da ignorância de minha cliente a respeito da herança. Pode ser maior; pode ser menor; ela não sabe. Sabe, por acaso, Srta. Frost?

— Não — replicou ela, com o cenho franzido. — Não sei. Sei que durante vinte anos a renda foi paga integralmente, logo depois de cada trimestre. Realmente, Sr. Wolfe, penso que estamos...

— Terminaremos dentro de breve. Terei de deixá-los da­qui a pouco. Quanto à irrelevância das perguntas, adverti-a de que podíamos vaguear quase para qualquer ponto. Perdoe-me mais duas perguntas sobre o testamento de seu pai: a senhorita tomará inteira posse e domínio no dia 7 de maio?

— Sim.

— E, no caso de sua morte antes da maior idade, quem herda a fortuna?

— Se eu fosse casada e tivesse um filho, o filho. Se não, metade para meu tio e metade para o filho dele, meu primo Lew.

— Realmente. Nada para sua mãe mesmo nesse caso?

— Nada.

— Então é assim. Seu pai levou realmente a sério a parte que lhe coube naquele mal-entendido — Wolfe voltou-se para Llewellyn. — Tome bom cuidado com sua prima durante mais cinco semanas. Caso lhe aconteça alguma coisa nesse período, o senhor ganhará um milhão de dólares e o demônio dormirá com os cornos no seu travesseiro. Testamentos são coisas absurdas. Freqüentemente. É espantoso o volume de dano que a cólera de um homem pode ocasionar depois que as células cerebrais que a nutriam apodreceram — ele ergueu um dedo em direção a nossa cliente. — Dentro em breve, naturalmente, a senhorita deve fazer um testamento dando destino à fortuna no caso de falecer... digamos... no dia 8 de maio, ou depois. Acho que tem um advogado, não?

— Não. Nunca precisei de um.

— Precisará agora. É para isso que existem as fortunas, para sustentar os advogados que a defendem em nosso nome contra as depredações — Wolfe lançou um olhar ao relógio. — Sou obrigado a deixá-los. Entendo que a tarde não foi desper­diçada. Mas acho que a senhorita pensa de modo contrário. Eu, não. Podemos deixar no momento as coisas como estão? Grato pela paciência. E enquanto continuamos a marcar tempo, esperando que seja encontrada aquela maldita caixa, tenho um pequeno favor a pedir-lhe. Poderia convidar o Sr. Goodwin a tomar chá em sua casa?

A carranca de Llewellyn, que estivera ligada na última hora, aprofundou-se. Helen Frost olhou-me de relance e, em seguida, fitou Wolfe.

— Ora — disse ela — acho que... se o senhor quiser...

— Quero. Seria possível que o Sr. Gebert também com­parecesse?

Ela inclinou a cabeça.

— Ele está lá agora. Ou estava quando telefonei para minha mãe. Naturalmente... o senhor sabe... minha mãe não aprova...

— Sei disso. Ela pensa que a senhorita está enfiando um pau num ninho de vespas. Mas o fato é que as vespas são os policiais. A senhorita evitou-as, mas não ela. O Sr. Goodwin é um homem discreto e decente e não deixa de ter certa acuidade. Quero que ele converse com o Sr. Gebert e também

com sua mãe, se ela consentir. A senhorita chegará brevemente à maior idade. Resolveu empreender um projeto difícil e possi­velmente perigoso. Por certo, poderá obrigar sua família e ami­gos íntimos a mostrarem certa consideração. Se eles ignoram quaisquer circunstâncias pertinentes à morte do Sr. McNair, mais ansiosos ainda deverão estar para provar esse fato e ajudar-nos a percorrer, aos tropeços embora, o caminho que nos afastará da ignorância. Assim, se convidar o Sr. Goodwin para uma chávena de chá...

— Penso que papai estará lá também — disse Llewellyn amargamente. — Ele ia ficar até voltarmos. Será apenas um motivo de grande aborrecimento... Se é o Gebert que o senhor quer, por que não o convida para vir aqui? Ele fará qualquer coisa que Helen lhe pedir.

— Porque durante duas horas ficarei ocupado com as minhas plantas — Wolfe olhou novamente para o relógio e levantou-se.

Nossa cliente mordia os lábios. Interrompeu o gesto e perguntou-me.

— Gostaria de tomar chá conosco, Sr. Goodwin?

— Sim. Ficar-lhe-ia muito grato — respondi com uma inclinação de cabeça.

Wolfe, já a caminho da porta, disse-lhe:

— É um prazer receber honorários de uma cliente como a senhorita. A senhorita pode dizer sim ou não sem ter pri­meiro de dar a volta ao globo. Espero e acredito que, quando tivermos terminado, a senhorita não terá motivos de arrepen­dimento — continuou a andar; voltou-se na soleira da porta, dizendo ainda: — Por falar nisso, Archie, faça-me o favor de ir buscar aquele pacote em seu quarto antes de sair. Coloque-o na minha cama.

Dirigiu-se para o elevador. Ergui-me e disse a minha fu­tura hóspede que voltaria dentro de um minuto, deixei o es­critório e subi as escadas. Não parei no segundo andar, onde ficava meu quarto. Continuei subindo até a cobertura e lá che­guei quase no exato momento em que atracava o elevador com sua carga. À porta da estufa, Wolfe esperava-me.

— Uma idéia — murmurou ele — é observar as reações dos demais com a volta dos primos de nosso escritório antes de haver oportunidade de troca de informações. Outra, formar opinião exata sobre se cada um deles viu a caixa vermelha e se a tem agora em seu poder. A terceira, um ataque geral sobre a discrição deles..

— Okay. Com que franqueza devemos falar?

— Com uma franqueza razoável. Leve em conta que, es­tando presentes os três, são muitas as possibilidades contra uma única de que você esteja conversando com o assassino, de modo que a franqueza será unilateral. Você, naturalmente, esperará cooperação.

— Claro, sempre espero, decente como sou.

Corri escadas abaixo e descobri que nossa cliente já estava de chapéu, casaco e luvas. O primo, ao lado, parecia sério, mas um tanto em dúvida.

Sorri para eles e disse:

— Vamos, crianças.

 

Capitulo 12

Estritamente falando, aquele não era meu tipo de traba­lho. Sei perfeitamente do que sou capaz. À parte a função pri­mária como espinho no assento da poltrona de Wolfe para im­pedi-lo de dormir e acordar apenas para as refeições, sou talha­do principalmente para duas coisas: saltar e agarrar alguma coisa antes que o outro cara ponha as patas em cima dela e reu­nir pedaços de quebra-cabeças para Wolfe armar. Esta expe­dição à Rua 54 não era nada disso. Não finjo ser muito forte nesta questão de distinguir entre nuanças. Sou basicamente do tipo direto e é por isso que jamais poderei ser um detetive real­mente bom. Embora mantenha essa disposição sob controle tanto quanto possível para que ela não interfira no meu tra­balho, sinto sempre a inclinação nos casos de homicídio de di­rigir-me a todos os possíveis suspeitos, um depois do outro, olhá-los bem no fundo dos olhos e perguntar: "Você botou ve­neno naquele vidro de aspirina?" e continuar até que um deles diga: "Sim." Como disse, controlo-me, mas com esforço.

O apartamento dos Frosts na Rua 65 não era tão luxuoso como eu esperava em vista do conhecimento íntimo que eu possuía das finanças da família. Eu diria que era um pouco vistoso, com um dos lados do vestíbulo recoberto de espelhos, até mesmo a porta do armário onde pendurei o chapéu. Na sala-de-estar, cadeiras e mesinhas de pernas cromadas, um bo­cado de vermelho nos alcochoados e nas cortinas, uma grelha de metal na lareira, aparentemente não usada, e quadros a óleo em molduras modernas de prata.

De qualquer modo, era certamente mais alegre do que as pessoas que lá encontrei. Dudley Frost, abancado numa gran­de cadeira, tinha junto do cotovelo uma mesa com uma garrafa

de uísque, outra de água e uns dois copos. Perren Gebert, de pé junto à janela na outra extremidade, dava as costas para a sala, com as mãos no bolso. Quando entramos, ele se voltou. A mãe de Helen dirigiu-se para nós, erguendo ligeiramente as sobrancelhas ao ver-me.

— Oh! — disse, e para a filha: — Você convidou... Helen inclinou firmemente a cabeça.

— Sim, mamãe — mantinha o queixo um pouco mais alto do que o natural para não perder a coragem. — Vocês... todo° vocês conhecem o Sr. Goodwin. Ontem pela manhã... naquela história dos bombons, com a Policia. Contratei Nero Wolfe para investigar a morte de tio Boyd. O Sr. Goodwin trabalha para ele...

— Lew! Venha cá! — mugiu Dudley. — Bolas, que tipo de besteira...

Llewellyn apressou-se para conter a explosão. Perren Ge­bert aproximara-se de nós e sorria-me:

— Ah! O moço que não gosta de cenas. Lembra-se do que eu lhe disse, Calida? — ele transferiu o sorriso para a Srta. Frost. — Minha querida Helen! Contratou o Sr. Wolfe? Você é por acaso uma das Erínias? Alerto? Megera? Tisífone? Onde as serpentes que lhe servem de cabelo? Então é verdade que se pode comprar qualquer coisa com dinheiro, até mesmo vingança?

— Pare, Perren — murmurou a Sra. Frost.

— Não estou comprando — falou Helen corando um pou­co. — Disse-lhe esta manhã, Perren, que você tem-se mos­trado especialmente odioso. É melhor não me fazer chorar no­vamente, ou eu... bem, não faça. Sim, contratei o Sr. Wolfe, o Sr. Goodwin veio aqui e quer falar com você.

— Comigo? — Perren encolheu os ombros. — Sobre Boyd? Se você me pede, ele pode, mas devo avisá-lo para não esperar muita coisa. A Polícia passou aqui a maior parte do dia e compreendi na ocasião quão pouco realmente sabia de Boyd, embora o conhecesse há mais de vinte anos.

— Deixei de esperar há muito tempo — interrompi-o. — Qualquer coisa que me disser será como veludo. Preciso tam­bém conversar com a senhora, Sra. Frost. E com o seu cunhado. Serei obrigado a tomar notas e fico com cãibras quando escrevo de pé...

Ela inclinou a cabeça em minha direção e disse!

— Aqui acho que estará bem — dirigiu-se para o lado da sala onde se encontrava Dudley. Acompanhei-a. Ela tinha cos­tas graciosas e era indubitavelmente aerodinâmica para a idade. Llewellyn começou a carregar cadeiras. Gebert ajudou com outra. Quando nos sentávamos e eu tirava o bloco e o lápis do bolso, notei que Helen mantinha ainda o queixo erguido. Não, porém, dirigido para a mãe. A Sra. Frost tomou a palavra:

— Tenho a esperança de que compreenda o seguinte, Sr. Goodwin. Isto é uma coisa terrível, horrenda, todos fomos ve­lhos amigos do Sr. McNair, e não nos dá prazer conversar sobre o caso. Conheci-o durante toda minha vida, desde a in­fância.

— Oh, sim, a senhora é escocesa. Ela inclinou a cabeça.

— Meu nome era Buchan.

— Foi isso mesmo o que McNair nos contou — levantei vivamente os olhos do bloco, o que constitui hábito meu para contrabalançar a minha incapacidade de manter um olhar duro sobre a vítima. Ela, porém, não se contraiu de desalento. Me­ramente inclinou a cabeça outra vez.

— Sim. Depreendi do que os policiais disseram que Boy-den contou muita coisa ao Sr. Wolfe sobre o início da vida dele. Naturalmente, o senhor tem a vantagem de saber o que ele contou ao Sr. Wolfe. Eu sabia, naturalmente, que Boyden não estava bem... os nervos dele...

Gebert interrompeu-a:

— Ele era o que se chamaria de um frangalho humano. Estava em péssimas condições. Foi por isso que eu disse à Po­lícia que eles acabarão descobrindo que ele se suicidou.

— Ele estava louco! — esse coaxar foi emitido por Du­dley Frost. — Contei-lhes o que ele  fez ontem? Deu ordens ao advogado para exigir uma prestação de conta do espólio de Edwin! Baseado em que motivos? Sobre o fundamento de que é o padrinho de Helen? Absolutamente fantástico e ilegal! Eu sempre pensei que ele era louco...

Tais palavras deram início a uma confusão generalizada. A Sra. Frost repreendeu-o com certa irritação, Llewellyn com irritação respeitosa e Helen com uma explosão nervosa. Perren Gebert olhou em volta, inclinou a cabeça era minha direção como se ele e eu compartilhássemos de um segredo divertido, e puxou um cigarro. Não tentei restabelecer a calma. Simplesmente examinei a cena e escutei. Dudley Frost não cedia terreno:

— ... doido como qualquer demente! Por que não deve­ria ele suicidar-se? Helen, minha querida, adoro você, sabe muito bem disso, mas recuso-me a respeitar seu afeto por aquele simplório somente porque ele morreu! Ele não gostava de mim nem eu dele! E se é assim, qual a vantagem de fingir? No que interessa ao fato de você arrastar esse homem até aqui...

— Papai! Ora, papai! Acabe com isso...

Perren Gebert ergueu a voz, sem dirigir-se a pessoa algu­ma em particular:

— E uma garrafa pela metade — a Srta. Frost, paciente, de lábios cerrados, olhou-o de relance. Inclinei-me para a fren­te a fim de aproximar-me de Dudley Frost e, praticamente, berrei para ele:

— Que é? Onde é que está doendo?

Ele levantou a cabeça com um papelão e olhou-me fu­rioso:

— Onde está doendo? Sorri para ele.

— Nada. Queria saber apenas se o senhor podia ouvir. Acho que ouviria logo que eu me fosse. A melhor maneira de levar a coisa, no tocante a todos vocês, é deixar que eu faça algumas perguntas tolas e respondê-las curta e talvez honesta­mente.

— Nós já respondemos a todas elas. Todas as perguntas tolas que existem. Fizemos isso o dia inteiro. Tudo porque aquele tolo McNair...

— Okay. Já escrevi que ele era um tolo. O senhor  fez algumas observações sobre suicídio. Que motivos teria McNair para suicidar-se?

— Como é que posso saber?

— Não pode pensar de improviso num motivo?

— Não tenho que pensar em motivo algum. O homem estava louco. Eu sempre disse isso. Disse o mesmo há vinte anos em Paris, quando ele costumava pintar fileiras de ovos enfiados em fios e chamar aquilo de "O Cosmo".

Helen começou a explodir:

— Tio Boyd nunca foi... — estendi o braço para ela, sentada a minha direita, toquei-lhe na manga com os dedos e disse-lhe: — Acalme-se. Não se pode quebrar todas as casta­nhas do saco — voltei-me em seguida para Perren Gebert:

— O senhor mencionou suicídio em primeiro lugar. Que motivo tinha McNair para matar-se?

Gebert encolheu os ombros.

— Um motivo específico? Não sei. Ele estava com os nervos em muito mau estado.

— Oh, sim. Ele tinha dores de cabeça. E a senhora, Sra. Frost? Sabe algum motivo?

Ela me fitou. Não se podia receber casualmente o olhar daquela mulher. Era preciso fazer um esforço.

— O senhor torna a pergunta um tanto provocadora, não? Se quer saber se eu conhecia um motivo concreto para que Boyden cometesse suicídio, não sei.

— Pensa que suicidou-se? Ela franziu as sobrancelhas.

— Não sei o que pensar. Se penso em suicídio, isto ocorre porque o conheci intimamente, e é ainda mais difícil acreditar que houvesse alguém... que alguém o tivesse assassinado.

Iniciei um suspiro, compreendi que estava imitando Nero Wolfe, e abafei-o. Abarquei-os com os olhos e disse:

— Naturalmente, todos os presentes sabem que McNair morreu no gabinete de Nero Wolfe. Sabem que Wolfe e eu estávamos lá, e naturalmente sabemos o que ele nos disse e o que estava sentindo. Não sei que cuidado a Polícia tem com suas conclusões, mas Nero Wolfe é muito esnobe a respeito das dele. Já chegou a uma ou duas a respeito deste caso e a primeira é que McNair não se matou. O suicídio está fora de cogitação. Neste caso, se algum dos presentes tem alguma idéia de que essa teoria será julgada aceitável, agora ou eventual­mente, é melhor abandoná-la. Dêem outro palpite.

Perren Gebert estendeu um comprido braço para apagar o cigarro no cinzeiro.

— De minha parte — disse ele — não me sinto obrigado a dar palpites. Dei um para ser caridoso. Suponhamos que o senhor nos diga por que não foi suicídio.

— Eu o convidei a sentar-se em minha casa, Sr. Goodwin

— disse a Sra. Frost tranqüilamente — porque minha filha o trouxe aqui. Mas fico na dúvida se o senhor sabe quando se torna insultuoso. Nós... eu não tenho teoria alguma a ofe­recer ...

Dudley Frost começou a coaxar:

— Não dê importância a ele, Calida. Ignore-o. Recuso-me a falar-lhe — e estendeu a mão para a garrafa de uísque.

— Se querem saber — repliquei — posso ser ainda mais insultuoso e ainda esperar notas suficientes para entrar no céu —. consegui atrair novamente os olhos da Sra. Frost. — Por exemplo, eu poderia fazer uma observação a respeito deste falso convite para sentar-me em sua casa. Esta casa não é sua, é de sua filha, a menos que ela lhe tenha dado de presente... — a cliente, a minha direita, tomou uma forte respiração. A Sra. Frost abriu a boca, mas continuei antes da tropelada de palavras que viria:

— Isto é apenas para mostrar como posso ser insultuoso quando me esforço. Que espécie de parvos vocês acham que somos? Nem mesmo os policiais são tão estúpidos como vocês pensam. É mais do que tempo que vocês se dêem beliscões e acordem. Boyden McNair foi assassinado e Helen Frost aqui sente bastante interesse por ele para querer saber quem o ma­tou e tem suficiente iniciativa para contratar o homem apro­priado para a missão e dinheiro bastante para custeá-la. Ela é sua filha, é sobrinha, prima e quase noiva. Ela me trouxe aqui. Já sei o suficiente para perceber que vocês têm informa­ções vitais que não querem revelar, e sabem que eu sei disso. E vejam só que história de jardim de infância me contam! McNair teve uma dor de cabeça e por isso foi ao gabinete de Nero Wolfe para suicidar-se! Os senhores poderiam ter pelo menos a polidez de dizer-me francamente que se recusam a dis­cutir o assunto porque não querem envolver-se, se puderem «vitá-lo, e então poderíamos passar a essa história do envolvi­mento — apontei o lápis para o longo e estreito nariz de Perren Gebert. — Você, por exemplo! Sabia, por acaso, que Dudley Frost poderia dizer-nos onde se encontra a caixa vermelha?

Concentrei-me em Gebert, mas a Sra. Frost estava a ape­nas pouca distância à esquerda dele, de modo que pude obser­vá-la de relance também. Gebert caiu inteiramente. Girou viva­mente a cabeça para olhar Dudley Frost e, em seguida, voltou-se para mim. A Sra. Frost ergueu também rapidamente a cabeça, inicialmente para Gebert. Em seguida, recaiu na antiga firmeza. Dudley metralhava-me verbalmente:

— O quê? Que caixa vermelha? Aquela coisa idiota no testamento de McNair? Diabos o levem. Você está louco tam­bém? Você ousa...

Sorri para ele.

— Acalme-se. Eu disse apenas que o senhor poderia. Sim, aquela coisa que McNair deixou no testamento para Wolfe. O senhor a tem?

Ele se voltou para o filho e rosnou:

— Recuso-me a falar com ele.

— Muito bem. Mas a verdade é que sou amigo de vocês. Estou-lhes dando uma informação reservada. O senhor sabia que há maneiras de o Promotor Público forçá-lo a prestar conta da herança de seu irmão? E já ouviu falar num mandado de busca? Acho que quando os policiais foram esta tarde a seu apartamento para procurar a caixa vermelha havia uma em­pregada lá para deixá-los entrar. Ela não lhe telefonou? E, naturalmente, procurando a caixa eles teriam oportunidade de examinar tudo que estivesse por lá. Ou talvez não tenham che­gado lá ainda! Talvez estejam agora a caminho. E não ponha a culpa em sua empregada, porque ela não poderia evitar...

Dudley Frost levantou-se apressadamente.

— Eles não fariam isso... Isso seria um ultraje...

— Claro que seria. Não estou dizendo que fizeram. Es­tou simplesmente dizendo que num caso de homicídio eles fa­zem qualquer coisa.

Dudley Frost começou a atravessar a sala.

— Vamos, Lew... Por Deus, vamos ver...

— Mas, papai, eu não...

— Eu disse, vamos! Você não é meu filho? — voltou-se na extremidade oposta da sala. — Muito obrigado pelos refri­gerantes, Calida. Avise-me se houver alguma coisa que eu possa fazer. Lew, bolas, venha! Helen, minha querida, você é uma tola. Eu sempre disse isso. Lew!

Llewellyn parou e murmurou algo para Helen,  fez uma inclinação de cabeça para a tia, ignorou Gebert e saiu apres­sadamente atrás do pai para ajudá-lo na defesa do castelo. Ouvi­mos murmúrios na porta de entrada e, em seguida, o ruído da porta abrindo-se e fechando-se.

A Sra. Frost levantou-se e olhou a filha de cima para baixo. Falou-lhe tranqüilamente:

— Isto é pavoroso, Helen. Que isso aconteça... justa­mente agora, quando você está prestes a tornar-se mulher e pronta para a vida, como a deseja. Sei o que Boyd significava para você, e ele significava muito para mim também. Neste momento você tem coisas contra mim que o tempo fará esquecer... Está-se recordando que julguei prudente temperar a. afeição que você sentia por ele. Pensei que era a melhor coisa, a fazer. Você era uma mocinha e mocinhas devem voltar-se para a mocidade. Helen, minha querida criança...

Ela se curvou, pôs a mão nos ombros e no cabelo da filhai e endireitou-se novamente.

— Você tem sentimentos fortes, como seu pai, e algumas vezes não pode controlá-los. Não concordo com Perren quando ele zomba de você por tentar comprar vingança. Perren adora zombar. É a pose favorita dele. Ele chamaria a isso de ser sardônico... mas você o conhece. Acho que a emoção que a levou a contratar este detetive foi generosa. Certamente que tenho todos os motivos para saber que você é generosa — a voz começou baixa, mas tornou-se mais sonora, como uma espécie de música de metal. — Sou sua mãe e não acredito que você queira realmente trazer aqui pessoas que me dizem que eu re­cuso discutir... aquele assunto... porque não quero envolver-me nele. Desculpe-me se fui brusca com você hoje ao telefone, mas os meus nervos estavam à flor da pele. A Polícia esteve aqui, você estava longe, criando mais encrencas para nós, sem nenhuma finalidade. Realmente... realmente, não percebe isso? Insultos baratos e intimidação de sua própria família não faci­litarão coisa alguma. Acho que você aprendeu, em vinte e um anos, que pode confiar em mim, e eu gostaria de pensar que posso também confiar em você... ...

Helen Frost levantou-se. Observando-lhe o rosto, exangue, trêmulo, a boca contorcida, pensei em intervir, mas resolvi conservar a matraca fechada. Ela estava espigada; com as mãos pendentes dos lados. Os olhos anunciavam perturbação, mas olhavam fixamente para a Sra. Frost. Esse o motivo> por que me contive. Gebert deu uns dois passos à frente em direção a ela e parou.

— Você pode confiar em mim, mamãe — disse ela. —Mas o mesmo eu posso dizer a respeito de tio Boyd., Isto está certo, não está? Oh, não está — ela me olhou e. disse num tom engraçado, como uma criança. — Não insulte minha mãe, Sr. Goodwin — voltou-se em seguida abruptamente e saiu correndo da sala, encerrando a cena. Saiu por uma, porta à di­reita não aquela em direção ao saguão, e fechou:a,, atrás, de si.

Perren Gebert encolheu os ombros, enfiou as' mãos nos bolsos e puxou uma delas para fora para cocar o nariz' estreito, com o indicador. A Sra. Frost, com uns dois dentes fincados no lábio inferior, lançou um olhar para ele e outro para a porta por onde a filha desaparecera.

— Acho que ela não me despediu — disse eu vivamente. — Não entendi dessa maneira. Que é que vocês pensam?

Gebert endereçou-me a sombra de um sorriso.

— O senhor vai embora agora, não?

— Talvez — respondi, ainda com o bloco de notas na mão. — Mas vocês, gente, bem podiam compreender que esta­mos falando sério. Não nos estamos distraindo, nós fazemos isto para viver. Não acredito que consigam demovê-la. Esta casa pertence a ela. Estou disposto a ter um acerto de contas agora mesmo. Digamos que vamos ao quarto dela ou onde ela por acaso estiver e perguntamos se me botou para fora de casa — lancei um olhar para a Sra. Frost. — Ou podemos dar dois dedos de prosa aqui mesmo. Por falar nisso, a senhora sabe que a Polícia pode encontrar a caixa no apartamento de Dudley Frost? Que é que a senhora acharia disso?

— Truques estúpidos e sem sentido — respondeu ela.

— Sim, acho que sim — repliquei, inclinando a cabeça. — Se a senhora me botasse para fora, o Inspetor Cramer me en­viaria aqui imediatamente de volta com um policial se Wolfe lhe pedisse isso, e a senhora não está em condições de irritar os tiras, que são muito sensíveis e simplesmente ficariam descon­fiados. No momento, eles não estão, realmente. Pensam ape­nas que a senhora esconde algo porque pessoas do seu tipo não •querem publicidade alguma salvo nas colunas sociais e nos anún­cios de cigarros. Para dar um exemplo, eles acreditam que a senhora sabe onde está a caixa vermelha. A senhora sabe, na­turalmente, que ela é propriedade de Nero Wolfe. McNair dei­xou-lhe a caixa em testamento. Nós realmente gostaríamos de tê-la, apenas por curiosidade.

Gebert, após escutar-me polidamente, inclinou a cabeça para a Sra. Frost e sorriu-lhe, dizendo:

— Como você vê, Calida, este moço realmente pensa que podemos dizer-lhe algo. Ele é absolutamente sincero a esse res­peito. A Polícia, igualmente. A única maneira de livrar-nos dele, é atendê-lo. Por que não lhe diz alguma coisa? — ele  fez um gesto abrangente com a mão. — Todas as coisas.

Ela o olhou sem nenhuma expressão de aprovação e disse:

— Não há motivo para brincadeiras. Certamente, não o seu tipo de brincadeiras.

Ele levantou as sobrancelhas.

— Eu não tinha a intenção de ser faccioso. Eles que­rem informações sobre Boyd e, indubitavelmente, nós a possuí­mos, em enorme quantidade — voltou-se para mim. — Você taquigrafa nesse bloco? Ótimo. Escreva isto: McNair era um inveterado apreciador de caracóis e preferia calvados a conha­que. A esposa dele morreu de parto porque ele insistia em ser artista e era excessivamente pobre e incapaz para proporcionar-lhe os devidos cuidados. O quê, Calida? Mas o moço quer fatos! Edwin Frost certa vez pagou a McNair dois mil francos — naquela ocasião quatrocentos dólares — por um dos seus quadros e, no dia seguinte, trocou-o com uma florista por uma violeta — não um buquê, por uma única. McNair chamou a filha de Glenna porque significava vale e ela saiu do vale da morte desde que a mãe morreu de parto... Apenas um bocado de loucura calvinista. Um homem alegre, tal era Boyd! A Sra. Frost era a amiga mais antiga dele e certa vez salvou-o do de­sespero e da miséria. Apesar disso, quando se transformou no maior costureiro vivo e fabricante de vestidos de lã para mu­lheres, ele invariavelmente cobrava os preços mais altos por tudo o que ela comprava. E ele nunca...

— Perren! Pare com isso!

— Minha querida Calida! Parar quando eu mal comecei? Vamos dar ao moço o que ele quer e ele nos deixará em paz. É uma pena que não possamos dar-lhe a caixa vermelha. Boyd devia realmente ter-nos falado dela. Mas compreendo que o principal interesse dele reside na morte e não na vida de Boyd. Eu também posso ser útil nesse aspecto. Sabendo tão bem como ele vivia, certamente deve saber como morreu. Para dizer a verdade, quando soube noite passada que ele morrera, lembrei-me de uma citação de Norboisin. A moça Denise diz em voz entrecortada ao expirar: "Au moins, je meurs ardemment" Boyd não poderia ter usado essas mesmas palavras, Ca­lida? Claro que, no caso de Denise, o advérbio aplicava-se a ela mesma, enquanto que, no caso de Boyd, teria indicado o agente...

— Perren! — não havia protesto na voz desta vez, mas um comando. O tom e a expressão da Sra. Frost gelaram-no e fizeram-no calar. — Você é um palrador idiota. Quer fazer pilhéria com isso? Somente um idiota faz pilhéria com a morte.

Gebert  fez-lhe uma ligeira curvatura.

— Exceto com a sua própria, talvez, Calida. A fim de manter as aparências.

— Você pode fazer. Sou escocesa também, como Boyd. Não é piada para mim — voltou-se e pôs nos meus os seus olhos. — O senhor bem poderia ir-se. Como o senhor disse, esta casa pertence a minha filha. Nós não o estamos pondo para fora Mas a minha filha é ainda de menor idade... e, de qualquer maneira, não podemos ajudá-lo. Nada tenho abso­lutamente a dizer além do que já disse à Polícia. Se o senhor gosta do vaudeville do Sr. Gebert, posso deixá-lo em sua com­panhia.

Sacudi negativamente a cabeça.

— Não, não gosto muito — enfiei o bloco no bolso. — De qualquer maneira, tenho um encontro no centro da cidade, para arrancar sangue de uma pedra o que será facílimo. É bem possível que o Sr. Wolfe telefone convidando-a a ir ao gabinete dele para uma prosa. A senhora tem algum compro­misso para hoje à noite?

Ela me gelou com um olhar.

— O ato do Sr. Wolfe tirando proveito do impulso emo­cional dt minha filha é algo de abominável. Não quero vê-lo. Se ele vier aqui...

— Não se preocupe com isso — respondi com um sorriso. — Ele já  fez e ultrapassou todas suas viagens da atual estação. Mas espero vê-la novamente — comecei a dirigir-me para a porta, dei alguns passos e voltei-me. — Por falar nisso, se eu fosse a senhora não me esforçaria muito para convencer sua filha a despedir-nos. Isso tornaria Wolfe desconfiado e uma coisa assim transforma-o num demônio. Não posso controlá-lo quando ele fica desse jeito.

Não me pareceu que até mesmo esta última observação fosse lançá-la numa crise de soluços. Resolvi cair fora, por­tanto. No saguão tentei abrir o espelho errado, encontrei o certo e apanhei o chapéu. A etiqueta parecia ter sido desligada, saí sozinho e dirigi-me para o elevador.

Tive de chamar um táxi para levar-me para casa, pois viera com a nossa cliente e o primo, não querendo deixá-los a sós naquelas circunstâncias.

Passavam das seis quando cheguei. Fui em primeiro lugar à cozinha, servi-me de um copo de leite, funguei umas duas vezes para o goulash que fervia suavemente no fogão e disse a Fritz que ele não cheirava muito a cabrito recém-abatido.

Dei o pira quando ele brandiu uma escumadeira em minha di­reção.

Encontrei Wolfe à escrivaninha com um livro, Seven Pillars of Wisdom, de Lawrence, que ele já lera duas vezes. Per­cebi-lhe o estado de espírito quando observei que havia sobre a mesa uma bandeja e um copo, mas nenhuma garrafa vazia de cerveja. Era esse um dos seus truques mais infantis, per­petrado vez por outra, especialmente quando ultrapassava a cota mais do que o habitual, pôr a garrafa na cesta de papéis logo que a esvaziava. Se eu estivesse no gabinete, ele o fazia quando eu não estivesse olhando. Era essa coisa que me man­tinha céptico a respeito do estado básico do seu cérebro. E aquele truque especial era ainda mais tolo porque ele estava indubitavelmente em boa situação com as chapinhas de cerveja. Invariavelmente, punha-as todas na gaveta. Sei disso porque o controlei vezes sem conta. Quando ele ultrapassava a cota, fazia sempre algum comentário depreciativo sobre estatísticas a cada chapinha que punha na gaveta, mas jamais tentava escon­der uma delas.

Lancei o bloco sobre a mesa, sentei-me e sorvi o leite. Não valia a pena arrancá-lo da leitura com uma explosão. Após certo tempo, porém, ele apanhou a delgada tira de ébano que usa como marcador, inseriu-a entre as páginas, fechou o livro, colocou-o sobre a mesa, estendeu o braço e pediu uma cerveja. Finalmente, recostou-se na cadeira e admitiu que eu estava vivo.

— Tarde agradável, Archie? Resmunguei:

— Aquele chá foi uma calamidade. Dudley foi o único que o tomou e, como ele não estava inclinado a distribuir divi­dendos, mandei-o para casa. Consegui apenas um fragmento de notícia importante, que somente um tolo zomba da morte. Que é que você acha disso?

Wolfe  fez uma careta e respondeu:

— Conte-me o que houve.

Li as observações que anotara no bloco, preenchendo os claros com recordações, embora não precisasse muito disso, porque condensei meus símbolos e posso estenografar a Cons­tituição dos Estados Unidos nas costas de um envelope, o que talvez seja um bom lugar para ela. A cerveja chegou e teve o destino que merecia. Exceto durante o tempo em que a sor­via, ele escutou, como sempre recostado confortàvelmente e de olhos cerrados.

Lancei o bloco na escrivaninha, girei na cadeira, puxei a gaveta inferior e descansei nela os pés.

— Foi essa a colheita. A que trouxe. Que é que faço agora?

Wolfe abriu os olhos.

— O seu francês não é nem mesmo absurdo. Mas voltare­mos a isso depois. Per que amedrontou o Sr. Frost falando-lhe no mandado de busca? Há na idéia alguma sutileza pro­funda demais para mim?

— Não, apenas o impulso do momento. Perguntei-lhe a respeito da caixa vermelha para observar também a reação dos outros dois e, enquanto fazia isso, ocorreu-me que seria diver­tido descobrir se ele possuía também em casa alguma coisa que queria que ninguém visse. E, de qualquer maneira, qual a uti­lidade dele? Livrei-me dele.

— Oh, eu estava prestes a dar-lhe o crédito por uma suti­leza superior. Teria sido mandá-lo embora em vista da opor­tunidade de que talvez houvesse uma observação, um olhar, um gesto, não esperado na presença dele. Em verdade, foi exata­mente isso o que aconteceu. Dou-lhe os meus parabéns de qual­quer maneira. Quanto ao Sr. Frost... todo mundo tem em casa algo que não quer que seja visto. Está aí uma das fun­ções do lar, a de proporcionar um lugar para guardar tais coisas. E você diz que eles não têm a caixa vermelha e não sabem onde ela está.

— Submeto a seguinte opinião: o olhar que Gebert lan­çou a Frost quando eu insinuei que este a tinha e o olhar que a Sra. Frost. lançou a Gebert, conforme lhe disse. É claro como água que o que pensam que está na caixa significa algo impor­tante para eles. É um bompalpite que eles não a têm e que não sabem onde ela está,,. ou não teriam sido tão rápidos no gatilho quando insinuei aquilo. Quanto a Frost, só Deus sabe. Esta é a vantagem de um cara que sempre explode, não importa o que se diga. Não há nuanças sintomáticas que possam ser per­cebidas por um observador como eu.

— Você? Ah! Estou impressionado. Confesso que me surpreende que a Sra. Frost não tenha encontrado um pretexto, logo que você entrou, para levar a filha para a outra sala. Aque­la mulher está imuie ao medo? Até mesmo à curiosidade co­mum ...

Respondi negativamente com um gesto de cabeça. 152

— Se é comum, ela não a tem. Aquela madama tem uma espinha de aço, uma válvula de controle que impede a acelera­ção e, como cérebro, um sistema patenteado, esfriado a ar. Se você quisesse provar que ela matou alguém, teria de vê-la co­meter o crime e não esquecer de levar uma máquina fotográfica.

— Caramba — disse Wolfe, inclinando-se na cadeira para servir-se de cerveja. — Então temos de encontrar outro cul­pado — observou a espuma descer e continuou: — Apanhe o bloco e veja suas notas sobre o vaudeville do Sr. Gebert. Na parte em que ele citou Nerboisin. Leia a frase.

— Quer-se divertir um pouco mais com o meu francês?

— De fato,- não. Não tem graça. Desde que sua taquigrafia é fonética, faça o que puder com os símbolos. Penso que conheço a citação, mas quero ter certeza. Há anos que não leio Narboisin e não lhe possuo os livros.

Reli todo o parágrafo, começando com "Minha querida Calida". Pronunciei as palavras francesas de qualquer modo e fui até o fim, ridículo ou não, tendo recebido apenas três lições desse idioma: uma de Fritz em 1930, e duas de uma moça que conheci quando trabalhávamos num caso de falsificação.

— Quer ouvi-la novamente?

— Não, obrigado — disse ele, com os lábios contraindo-se e abrindo-se. — E a Sra. Frost chama isso de conversação infantil. Teria sido instrutivo se eu estivesse lá no tocante ao tom de voz e olhos. O Sr. Gebert foi realmente irônico ao dizer-lhe com tantas palavras quem matou o Sr. McNair. Seria uma mentira, apenas para ser provocante? Ou a verdade, a fim de revelar sua própria argúcia? Ou uma conjetura, como uma pequena sutileza própria? Penso que foi o segundo caso. Acre­dito que sim, realmente. Concorda com minhas suposições, mas ele não podia saber disso. E admitido que conheçamos o assas­sino, o que diabo faremos a esse respeito? Provavelmente, nenhum volume de paciência será suficiente. Se o Sr. Cramer conseguir a caixa vermelha e resolver agir sem me consultar, ele provavelmente perderá por completo a fagulha e nos deixará com um combustível que não se inflamará — sorveu a cerveja, depositou o copo na mesa e limpou os lábios. — Archie, preci­samos daquela maldita caixa.

— Claro. Vou buscá-la dentro de um minuto. Em pri­meiro lugar, somente para agradar-me, qual foi exatamente o momento em que Gebert nos disse quem matou McNair? Será que por acaso você não está falando apenas para ouvir a pró­pria voz?

— Claro que não. Não é óbvio? Mas esqueço... você não conhece francês. Ardemment significa ardentemente. A citação quer dizer: "Pelo menos, morro ardentemente."

— Realmente? — respondi, elevando as sobrancelhas. — Não diga.

— Sim. E por conseguinte... mas esqueci novamente. Você não conhece latim. Conhece?

— Não intimamente. Sou meio fraco também em chinês — ensaei um sorriso assim como numa direção geral. — Talvez devêssemos passar o caso à Escola Heinemann de Idiomas. A citação de Gebert forneceu a prova também, ou teremos de levantá-la por nós mesmo?

Exagerei. Wolfe comprimiu os lábios e lançou-me um olhar onde não havia tolerância alguma. Recostou-se na cadeira e disse:

— Qualquer dia destes, Archie... serei forçado... Mas, não. Não posso reformar o universo e, portanto, devo tolerar este que existe. Isto é, incluindo você — suspirou. — Esqueça o latim. Informação para seu registro: esta tarde telefonei ao Sr. Hitchcock em Londres. Ponha isso na conta. Pedi-lhe que enviasse um homem à Escócia para conversar com a irmã do Sr. McNair e instruísse seu agente, em Barcelona ou em Madri, para examinar certos registros na cidade de Cartagena. Isto significa uma despesa de várias centenas de dólares. Não recebi mais notícias de Saul Panzer. Nós precisamos daquela caixa vermelha. Já era claro quem matara o Sr. McNair e por que, antes que o Sr. Gebert se permitisse a diversão de informar-lhe. Ele realmente não nos ajudou em coisa alguma e, naturalmente, não era essa sua intenção. Mas o que sabemos não é necessariamente demonstrável. Pfui! Sentar aqui e es­perar o resultado do jogo de cabra-cega quando todas as difi­culdades foram realmente superadas! Por favor, datilografe uma nota sobre a declaração do Sr. Gebert, enquanto a recor­dação está vivida. Possivelmente, ela será necessária.

Levantou novamente o livro, pôs os cotovelos nos braços da cadeira, abriu-o na página marcada e saiu de circulação.

Leu até a hora do jantar, mas até mesmo os Seven Piliars of Wisdom não lhe prejudicaram a reação imediata à convo­cação de Fritz. Durante a refeição, ele bondosamente explicou-me o principal motivo do espantoso sucesso de Lawrence em manter unidas as tribos árabes durante a grande revolta. Acontecera que a atitude pessoal de Lawrence em relação as mulheres era a mesma que a clássica e tradicional atitude árabe. O fato básico a respeito de qualquer homem, no tocante às suas atividades como animal social, é sua atitude em relação às mulheres. Daí, os árabes julgavam que, basicamente, Lawrence era um deles e aceitaram-no. A sua capacidade de liderança e sutileza nata fizeram o resto. Eles não teriam compreendido um romântico, teriam ignorado rudemente um puritano e rido do sentimental, mas receberam de braços abertos o desdenhoso realista Lawrence, com sua falsa humildade e feroz orgulho secreto. O goulash estava tão bom quanto qualquer outro que Fritz já havia feito.

Passava das nove quando terminamos o café e voltamos ao gabinete. Wolfe reiniciou a leitura do livro. Sentei-me à escrivaninha com os registros das plantas. Matutei que, após uma hora mais ou menos de digestão e desta tranqüila cena familiar, eu faria um esforço para extrair um pouco de latim de Wolfe e descobrir se Gebert dissera realmente alguma coisa ou se por acaso Wolfe estava apenas fazendo alguma pilhéria. Uma interrupção, porém, ocorreu antes mesmo de eu escolher o método de ataque. Às nove e trinta o telefone tocou.

Estendi a mão para ele.

— Escritório do Sr. Nero Wolfe.

— Archie? Fred. Estou falando de Brewster. Melhor chamar o Sr. Wolfe.

Disse-lhe para esperar um pouco e voltei-me para Wolfe.

— Fred chamando de Brewster. Quinze centavos o mi­nuto.

A essas palavras ele interrompeu a leitura e colocou o marcador no livro. Levantou o aparelho, eu disse a Fred para continuar e abri o bloco de notas.

— Sr. Wolfe? Fred Durkin. Saul mandou-me à aldeia para telefonar. Não encontramos a caixa vermelha, mas houve uma pequena surpresa. Terminamos na casa, exploramos cada centímetro e começamos do lado de fora. É a pior época, por­que, quando vem o degelo na primavera, é o tempo mais lama­cento do ano. Quando escureceu e estávamos trabalhando com lanternas, percebemos as luzes de um carro vindo pela estrada. Saul mandou apagar as lanternas. É uma estrada de terra, es­treita, e não se pode correr muito. O carro virou no portão

e parou no caminho particular- Nós havíamos posto o seda na garagem. As luzes se apagaram, o motor parou e um homem desceu. Havia uma única pessoa e nós ficamos silen­ciosos, escondidos detrás de umas moitas. Ele foi até uma janela, acendeu uma lanterna e tentou abri-la. Orrie e eu toma­mos posição entre ele e o carro. Saul aproximou-se dele e per­guntou-lhe por que não entrava pela porta. Ele recebeu a per­gunta friamente e disse que havia esquecido a chave. Em se­guida, disse que não sabia que estava interrompendo alguém e deu uns passos para ir embora. Saul deteve-o, disse-lhe que era melhor entrar primeiro, tomar um trago e conversar um pouco. O cara riu, disse que sim, e eles entraram. Orrie e eu entramos depois deles, acendemos as luzes e sentamo-nos. O nome do cara é Gebert. G-E-B-E-R-T, um tipo alto e magro,  moreno, de nariz fino...

— Eu sei. Conheço-o. Que é que ele disse?

— Nada, absolutamente. Fala, mas não diz coisa alguma. Diz que McNair era amigo dele, que na casa há coisas que lhe pertencem e que pensou que podia vir buscá-las. Não está com medo nem é um cara fácil. Ele ri à toa.

— Sim, sei disso. Onde está ele agora?

— Ora, está lá. Saul e Orrie detiveram-no. Saul mandou-me perguntar o que é que o senhor quer que façamos com ele...

— Solte-o. Que mais podem vocês fazer? A menos que estejam com fome e queiram fazer uma sopa dele. Saul não con­seguirá coisa alguma com esse pássaro. Vocês não podem con­tinuar a detê-lo...

— Não podemos uma ova. Não terminei ainda. Espere até que lhe conte. Estávamos lá com Gebert havia uns der ou quinze minutos, quando ouvimos um barulho na frente da casa e eu saí para dar uma espiada. Eram dois carros, que pararam junto ao portão. Eles desceram e vieram para o ter­raço atrás de mim, com armas por todos os lados. Pensei que era o Dillinger. Vi uniformes da Polícia Estadual. Berrei para Saul fechar a porta e enfrentei o ataque. Imagine só por quem fui cercado? Por Rowcliff, aquele tenente imbecil da Delegacia de Homicídios, e três outros tiras, dois milicianos e um nanico de óculos, que me disse que era o Promotor Público Assistente do Município de Petunam. Hum. Eu não estava mesmo cercado?

— Sim. Finalmente, eles o fuzilaram?

— Claro, mas apanhei as balas e lancei-as de volta. Bem, parece que eles vieram atrás daquela caixa vermelha. Foram até a porta e quiseram entrar. Saul deixou Orrie do lado de dentro, foi até uma janela e falou com eles pelo vidro. Claro que ele pediu para ver o mandado de busca e eles não o pos­suíam. Houve um bocado de conversa. Em seguida, 03 mili­cianos disseram que iam prender Saul porque ele estava inva­dindo propriedade alheia. Ele mostrou o papel assinado pelo senhor contra a vidraça e eles o leram com uma lanterna. Rowcliff não disse coisa alguma até revistar-me procurando a caixa vermelha. Disse a ele que se me tocasse eu lhe arran­caria a pele, vivo,- e a penduraria para secar. Mas eu não podia tirar o seda porque o carro de Gebert estava no caminho e os outros bloqueavam a estrada no portão. Assim, declaramos uma trégua, Rowcliff tirou o carro dele e nós dois viemos a Brewster. É uma distância de apenas quatro quilômetros e •meio. Deixamos o resto da turma sentado lá no terraço. Estou numa cabina telefônica num restaurante e Rowcliff numa far­mácia rua abaixo, telefonando para a central. Estou com a idéia de tomar o carro e ir embora sem ele.

— Okay. Idéia excelente. Ele sabe que Gebert está lá?

— Não. Se Gebert tem motivos para temer a Polícia, ele naturalmente não quererá vir. Que é que vamos fazer? Jogá-lo fora? Deixar os policiais entrarem? Não podemos sair e cavar. Tudo que podemos fazer é ficar sentados ali e olhar o sorriso de Gebert, que é frio como o coração de um inglês, e nós não temos um fogo. Puxa, o senhor devia ouvir a con­versa daqueles milicianos. Acho que lá no mato eles apanham ursos e leões com as mãos e os comem crus.

— Espere um pouco — disse eu, voltando-me para Wolfe. — Acho que vou ter de sair de carro, não?

Ele estremeceu. Acho que calculou que deveria haver pelo menos mil solavancos entre a Rua 35 e Brewster, além de dez mil carros para ultrapassar no caminho. Os perigos que se escondem na noite. Ele deu o assentimento com um gesto de cabeça.

— Fred — disse-lhe eu — volte para lá. Detenha o Gebert e não deixe que eles entrem. Chego aí logo que puder.

 

Capitulo 13

Faltava um quarto para as dez quando parti e dobrei a esquina até a garagem na Décima Avenida e comecei a descer a rampa na barata. Às 11:13 entrei no povoado de Brewster e virei à esquerda, segundo a orientação que ouvira Helen Frost dar a Saul Panzer. Uma hora e vinte não era um mau tempo, contando-se as curvas na Estrada de Pines Bridge e o trecho acidentado entre Muscoot e Croton Falls.

Segui o asfalto por um pouco mais de quilômetro e meio e, em seguida, virei novamente à esquerda para tomar a estrada de terra. Era tão estreita quanto a mente de um fanático. Meti-me nos sulcos abertos e fiquei neles. Os faróis nada mos­travam senão ramos nus e imóveis de árvores e arbustos de ambos os lados. Comecei a pensar que a piada de Fred sobre o mato não fora tão estúpida assim. Vi uma ou outra casa, mas elas estavam às escuras e silenciosas. Continuei aos sola­vancos, fazendo uma curva fechada à esquerda, outra à direita e novamente à esquerda, e comecei a perguntar a mim mesmo se por acaso não tomara a estrada errada. Finalmente, vi luzes à frente, fiz outra curva conservando-me nos sulcos e cheguei.

Além de alguns comentários rápidos de Wolfe antes de eu partir, eu martelara o cérebro fazendo um exame da situação durante a viagem. Aparentemente, nada havia de muito sério, exceto que seria bom manter para nós mesmos durante algum tempo a notícia da expedição de Gebert. Eles podiam entrar e procurar a caixa vermelha se quisessem, desde que Saul, tendo toda a tarde para trabalhar sossegadamente, não a encontrara. Gebert, porém, valia um pequeno esforço, para não mencionar o fato de que tínhamos nossa reputação a considerar. Parei a barata do lado dos dois outros carros estacionados à beira da estrada, botei a cabeça para fora e berrei:

— Ei, tirem este ônibus daqui! Está bloqueando o portão e quero entrar.

Ouvi um berro mal-humorado vindo do terraço.

— Que diabo é você? Respondi:

— Haile Selassié. Okay, vou empurrá-lo eu mesmo. Se ficar atolado, não me culpem.

Desci e entrei no outro carro, aberto, com a capota descida, um conversível da polícia. Ouvi e vi indistintamente dois caras deixarem o terraço e virem pelo curto caminho. Saltaram por sobre a cerca baixa. O primeiro estava uniformizado. No segundo, reconheci meu velho amigo, o Tenente Rowcliff. O miliciano mostrou-se bastante severo e conseguiu apavorar-me inteiramente:

— Saia daí, meu chapa. Mova esse carro e dou um nó em você.

Respondi:

— Não, não dá. Meu nome é Archie Goodwin, repre­sento o Sr. Nero Wolfe, tenho direito de estar aqui e o senhor não tem. Se um cara encontra um carro bloqueando seu pró­prio portão, tem todo o direito de tirá-lo do lugar. E é isto o que vou fazer, e se tentar deter-me será uma pena porque estou furioso e falando sério.

— Muito bem — rosnou Rowcliff — caia fora e nós move­remos este maldito carro — e murmurou para o cossaco. — É bom tirar o carro. Este pássaro nunca foi domado.

O miliciano abriu a porta e disse:

— Saia.

— Vai tirar o carro?

— Por que diabo não o tiraria? Saia.

Desci e subi na barata. O miliciano deu partida, moveu o carro um pouco para a frente, colocando-o na estrada, e desli­gou-o um pouco depois da entrada. Os meus faróis o ilumi­naram. Engrenei, dei a volta, entrei pelo portão, parei atrás de um carro que reconheci como o conversível que Gebert havia estacionado em frente da casa de Wolfe no dia anterior, desci e dirigi-me para o terraço. Encontrei uma multidão sentada na borda. Um deles bancou o sabidinho e acendeu uma lanterna

no meu rosto, quando me aproximei. Rowcliff e o miliciano aproximaram-se também e ficaram aos pés dos degraus do terraço.

— Quem está chefiando esta quadrilha? — indaguei. — Sei que não é você, Rowcliff, desde que estamos fora dos limites da cidade. Quem é que tem qualquer direito de estar aqui, numa propriedade particular?

Eles se entreolharam. O miliciano projetou o queixo em minha direção e perguntou:

— E você tem?

— Pode apostar que tenho. O senhor viu um papel assi­nado pelo testamenteiro do espólio do dono desta casa? Tenho outro no bolso. Bem, vamos, quem é o encarregado? Quem é o responsável por este ultraje?

Uma sombra no terraço emitiu um cacarejo:

— Tenho direito de estar aqui, não tenho, Archie? Examinei a sombra.

— Oh, ei, Fred. Que é que você está fazendo aqui fora no frio?

Ele veio lentamente em minha direção e disse:

— Nós não quisemos abrir a porta porque esse bando de palhaços podia meter na cabeça a idéia.

Funguei, irritado:

— E de onde é que eles podiam tirar tal idéia. Muito bem, ninguém está encarregado, certo? Fred, chame Saul...

— Eu assumo a responsabilidade! — um nanico levantou-se e observei-lhe os olhos. Ele guinchou: — Sou o Promotor Público Adjunto deste município! Temos o direito legal...

Espiguei-me bem acima dele.

— O senhor tem o direito legal de ir para casa e meter-se na cama. Tem por acaso um mandado, uma ordem judicial, ou mesmo um papel de cigarro?

— Não, não houve tempo...

— Então feche a matraca — voltei-me para Rowcliff e para o miliciano: — Vocês pensam que sou duro? Não, absoluta­mente. Estou apenas indignado e tenho todo o direito de estar. Vocês têm a coragem de vir a uma casa particular alta noite, sem evidência alguma de que tenha havido nela alguma coisa criminosa ou nela esteja escondido algum criminoso. Que é que vocês querem? A caixa vermelha? Ela é propriedade de Nero Wolfe e, se estiver aqui, vou apanhá-la, colocá-la no bolso e sair com ela. E não adianta me seguirem, porque sou muito sensível quando entro em contato com pessoas — passei por eles, subi ao terraço, atravessei-o a caminho da porta e bati:

— Venha aqui, Fred. Saul!

— Ouvi-lhe a voz do lado de dentro:

— Alô, Archie! Tudo okay?

— Claro, tudo okay. Abra a porta! Fique de lado, Fred. O grupo levantara-se e aproximara-se vagarosamente de

nós. Ouvi a fechadura girando. A porta abriu-se e um feixe de luz apareceu no terraço. Vi Saul na soleira, tendo Orrie ao lado. Fred e eu estávamos também ali. Voltei-me para a mul­tidão :

— Ordeno-lhes que deixem o local. Todos vocês. Em outras palavras, dêem o pira. Bolas, façam o que quiserem, mas fica consignado, para futura referência, que estiveram aqui ile­galmente. Ficamos chateados com vocês aí, andando pelo ter­raço, mas se tentarem entrar na casa, ficaremos ainda mais. Recuem. Saul. Vamos, Fred.

Entramos. Saul abriu a porta e fechou-a. Olhei em volta. Sabendo que o local pertencera a McNair, eu esperava mais ou menos ver outras delícias de decoradores, mas a casa era rús­tica. Excelentes poltronas acolchoadas, uma grande mesa de madeira e um fogo queimando numa ampla lareira numa das extremidades. Voltei-me para Fred Durkin:

— Seu mentiroso danado. Você disse que não havia fogo. Ele sorriu, esfregando as mãos em frente à lareira.

— Achei que o Sr. Wolfe não devia pensar que estávamos tendo conforto demais.

— Ele não se importaria. Ele não gosta de provocações nem mesmo no seu caso — olhei em volta novamente e falei com Saul em tom mais baixo: — Onde é que está aquela coisa que você tinha?

Ele indicou a porta com a cabeça.

— Nu outra sala. Não há luz ali.

— Encontrou a caixa?

— Nem sinal dela. Examinamos cada centímetro cúbico. Desde que era Saul quem falava, estava falado. Pergun­tei-lhe :

— Há alguma outra porta?

— Nos fundos. Nós a escoramos.

— Okay. Você e Fred fiquem aqui. Orrie, venha comigo. Ele se levantou pesadamente e eu segui à frente até o outro

quarto. Depois de ter fechado a porta atrás de nós, o quarto ficou confortável e escuro, embora segundos depois eu distin­guisse os dois apagados retângulos da janela. Lobriguei tam­bém uma silhueta numa cadeira. Disse a Orrie:

— Cante.

Ele resmungou:

— Bolas, estou com fome demais para cantar.

— Cante de qualquer maneira. Se algum deles por acaso colar o ouvido contra a janela, quero que ouça alguma coisa. Cante Git Along Littl eDogie-

— Não sei cantar no escuro...

— Diabos o levem, vai cantar ou não?

Limpou a garganta e começou. Orrie tem uma voz bas­tante boa. Aproximei-me da silhueta na cadeira e falei-lhe:

— Sou Archie Goodwin .Sabe quem sou?

— Certamente — respondeu Gebert num tom de palestra. — Você é o tipo que não gosta de cenas.

— Certo. É por isso que estou aqui, quando devia estar na cama. Por que veio aqui?

— Vim buscar meu guarda-chuva que deixei aqui no último outono.

— Oh, deixou? Encontrou-o?

— Não. Alguém deve tê-lo levado.

— Que pena. Escute-me durante um minuto. Lá fora no terraço está reunido um exército de milicianos estaduais, dete­tives de Nova York e um promotor do Município de Putnam. Gostaria por acaso de falar-lhe a respeito do guarda-chuva?

Notei que a silhueta encolhia os ombros.

— Se por acaso os divertisse. Não acredito que saibam onde está.

— Compreendo. Você é despreocupado, não? Nem uma única preocupação no mundo. Nesse caso, que é que está fa­zendo aqui, sozinho no escuro? Um pouco mais alto, Orrie.

Gebert escolheu novamente os ombros.

— O seu colega — o baixinho do nariz grande — pediu-me para vir para aqui. Ele foi muito cortês comigo, quando tentei abrir a janela porque não possuía a chave.

— Assim, você quis retribuir-lhe a cortesia. Que fino de sua parte. Então não há problema se eu deixar os policiais

entrarem e dizer-lhes que o descobrimos tentando arrombar a casa?

— Isso me deixa totalmente indiferente — não pude ver-lhe o sorriso, mas tinha certeza de que ele sorria. — Realmente, eu não estava arrombando. Estava apenas tentando abrir a janela.

Endireitei-me, nauseado. Ele não me concedia coisa algu­ma para uma troca e, mesmo que fosse um blefe, desconfiava de que ele fosse irônico o bastante para ir até o fim. Orrie parou e eu resmunguei que continuasse. As condições eram más para negociações. Inclinei-me novamente para ele:

— Ouça aqui, Gebert. Temos seu número — Nero Wolfe tem — mas estamos dispostos a dar-lhe uma oportunidade. É meia-noite. Que é que há de errado no seguinte plano: deixo os tiras entrarem e digo-lhes que procurem a caixa vermelha durante o tempo que quiserem. Sei por acaso que eles não a encontrarão. Você é um dos meus colegas. Seu nome é Jerry. Deixaremos meus outros colegas aqui, e você e eu tomamos meu carro, voltamos a Nova York, e você dorme na casa de Wolfe... há uma boa cama num quarto que fica em cima do meu. A vantagem é que você estará lá pela manhã para ter uma conversa com ele. Isto me parece um bom programa.

Notei que ele sacudiu negativamente a cabeça.

— Moro no Chesebrough. Grato pelo convite, mas pre­firo dormir na minha própria cama.

— Estou-lhe pedindo. Vem?

— Ir dormir na casa de Wolfe? Não.

— Muito bem. Você é maluco. Certamente tem bastante cabeça para compreender que terá de conversar com alguém a respeito de uma viagem de 90 quilômetros apenas para passar por uma janela e apanhar um guarda-chuva. Conhecendo Wolfe e conhecendo a Polícia, eu simplesmente o aconselho a con­versar com ele em vez de com eles- Não estou tentando abalar sua confiança. Admiro-a, penso que é interessante, mas o diabo me leve se vou ficar aqui pedindo-lhe o resto da noite. Dentro de uns dois minutos começarei a ficar impaciente.

Gebert encolheu novamente os ombros.

— Confesso que não gosto da Polícia. Sair daqui incóg­nito com você. É isso?

— Exatamente.

— Muito bem. Irei.

— Para a casa de Wolfe passar a noite.

— Disse-lhe que sim.

— Ótimo. Não se preocupe com o carro. Saul tomará conta dele. Seu nome é Jerry. Mostre-se duro e ignorante, como eu ou qualquer outro detetive. Okay, Orrie, desligue. Vamos, vamos, Jerry.

Abri a porta para a sala iluminada, seguido por eles. Reuni Saul e Fred e expliquei-lhes a estratégia em curtas palavras. No momento em que Saul objetou contra a entrada dos poli­ciais, concordei com ele sem argumento algum. O nosso trio devia reiniciar as operações pela manhã e, entrementes, preci­sava dormir um pouco. Ficou assentado que ninguém teria permissão para entrar, ficando proibidas escavações por es­tranhos ao ar livre. Eles deveriam enviar Fred à aldeia para arranjar comida e telefonar ao escritório pela manhã.

Fui até a janela, achatei o nariz contra a vidraça e notei que o grupo estava ainda reunido junto aos degraus. A um sinal meu, Saul abriu a porta de par em par, Gebert e eu saímos para o terraço. A nossa retaguarda, Saul, Fred e Orrie ocupavam a soleira. Andamos cuidadosamente até a borda do terraço.

— Tenente Rowcliff? Oh, então está aí. Jerry Martin e eu vamos voltar à cidade. Estou deixando três homens aqui e eles ainda preferem não ser perturbados. Precisam dormir e a mesma coisa ocorre com os senhores. Apenas como um favor, dir-lhe-ei honestamente que Jerry e eu não temos conosco a caixa vermelha e portanto não há motivo para que você rilhe os dentes. Okay, Saul, feche e deixe um de vigia — a porta fechou-se, deixando novamente o terraço na escuridão. Voltei-me, dizendo: — Vamos, Jerry. Se alguém lhe der um empurrão, enfie-lhe um alfinete.

Mas, no instante em que a porta se fechou, alguém des­confiou, ligou uma lanterna e focalizou-a no rosto de Gebert. Segurei-lhe o cotovelo para apressá-lo, mas houve uma agitação a nossa frente, seguida de um rosnado:

— Ei, vocês não precisam mais correr — um tipo parrudo postou-se em frente de Gebert e focalizou nele a lanterna. — Olhe, aqui, tenente, olhe para esse Jerry. Jerry, o diabo. Este é aquele cara que estava no apartamento dos Frosts, quando estive lá esta manhã com o Inspetor. O nome dele é Gebert, um amigo da Sra. Frost.

Soltei um risinho de mofa e disse:

— Não o conheço, rapaz, mas você deve ser zarolho.. Talvez o ar do campo. Vamos, Jerry.

Não adiantou. Rowcliff, os dois outros detetives e o par de milicianos barraram o caminho. Rowcliff cantou para mim:

— Para trás, Goodwin. Você já ouviu falar de Bill Northrup e sabe até que ponto ele é zarolho. Tem certeza, Bill"

— Absoluta. É Gebert.

— Não diga. Mantenha-o sob a luz. Que é que tem" á dizer, Sr. Gebert? Que idéia foi essa de tentar enganar o Sr. Goodwin dizendo-lhe que seu nome é Jerry Martin, hem?

Conservei a matraca fechada- Por azar, eu estava levando um pontapé na canela e nada havia a fazer, senão recebê-lo. E eu tinha de passá-lo a Gebert. Com a luz diretamente sobre o rosto e a tropa de gorilas com as mandíbulas empinadas em sua direção, ele sorriu como se lhe tivessem perguntado se queria leite ou limonada.

Respondeu:

— Eu não tentaria enganar o Sr. Goodwin. Claro que não. Além disso, como é que eu poderia? Ele me conhece.

— Oh, então conhece. Nesse caso, vou discutir essa idéia de Jerry Martin com ele. Mas você poderia contar-me õ que anda fazendo aqui tão longe, na propriedade de McNair. Eles o encontraram aqui, hummm?

— Encontraram-me? — Gebert deu a impressão de cortês, mas um pouco aborrecido. — Claro que não. Eles me trou­xeram. Por solicitação deles, vim aqui para mostrar-lhes onde julgava que McNair pudesse ter escondido a caixa vermelha que procuram. Depois, o Sr. Goodwin chegou. Ele pensou que seria mais agradável se os senhores não soubessem que eu havia vindo para ajudá-los e sugeriu que eu devia ser o Sr. Jerry Martin. Não vi motivo para não lhe fazer a vontade.

— Mas você não achou conveniente — resmungou Row­cliff — mencionar este local ao Inspetor Cramer esta manhã quando ele lhe perguntou se tinha alguma idéia do local onde podia estar a caixa. Ou achou?

Gebert teve uma resposta inteligente também para aquela pergunta e para outras, mas não as escutei com muito inte­resse. Eu estava muito ocupado dando um balanço na situação» Recuei, porque Gebert estava sendo um pouco escorregadio' demais. Claro que ele calculava que eu deixaria passar a his­tória porque queria reservá-lo para Nero Wolfe, ma» começou

a parecer-me que ele não valia o preço. Não era uma crise de escrúpulos. Eu, sem maior problema, lançaria terra nos olhos de todo o Departamento de Polícia aí partir do Comissário Hombert para cima, em tudo aquilo que fosse uma causa justa. Mas, de qualquer maneira, parecia mais do que duvidoso que Wolfe conseguisse extrair qualquer lucro de Gebert e, se ele não pudesse, estaríamos dando a Cramer outro motivo para ficar magoado conosco sem coisa alguma que nos consolasse. Sabia que corria um grande risco, pois, se Gebert tivesse assas­sinado McNair, havia possibilidade de que eles lhe extraíssem uma confissão na delegacia e nosso caso entraria pelo cano. Mas, eu não era Wolfe e estava em desvantagem sem saber se Gebert era ou não culpado. Enquanto fazia esses cálculos, ouvi-o, com um dos ouvidos, explicando-se a Rowcliff. E saiu-se elegantemente. Tinha chegado a um ponto em que ele e eu podíamos ter tomado o carro e ido embora sem mesmo nos tirarem as impressões digitais.

— Não saia de casa pela manhã — rosnou Rowcliff para ele. — O Inspetor pode querer vê-lo. Se sair, informe a alguém da casa onde estará — voltou-se para mim e poder-se-ia ter destilado vinagre do hálito dele. — Você é tão cheio de artimanhas sujas que aposto que, quando está sozinho, pratica-as •contra você mesmo. O Inspetor lhe dirá o que pensa desta última. Eu não lhe poderia falar o que penso.

Sorri para o rosto que me encarava no escuro.

— E eis-me aqui, pronto com outra. Estive aqui vendo Gebert desenrolar a história apenas para ver até que ponto ele é escorregadio. Ele poderia deslizar até sobre um raspador de queijo. É melhor o senhor levá-lo à delegacia e dar-lhe uma cama.

— Não diga. Por que motivo? Acabou com ele?

— Não, nem mesmo comecei ainda. Um pouco antes das nove, ele chegou aqui naquele carro. Sem saber que havia alguém aqui, porque as luzes estavam apagadas, tentou forçar uma janela para entrar. Quando Saul Panzer perguntou-lhe o que queria, ele disse que deixara aqui o guarda-chuva no último outono e que viera buscá-lo. Talvez esteja na sua sala de acha­dos e perdidos na Chefatura. Seria melhor levá-lo até lá para dar uma espiada. Seria uma testemunha importante.

— Não há dúvida de que você tinha outra pronta — res­mungou Rowcliff. — Quando é que pensou nesta?

— Não tive de pensar. A verdade é mais estranha do que a ficção. Você não devia estar sempre suspeitando de todo mundo. Se quiser, posso chamá-los e você pode perguntar-lhes. Todos os três estavam aqui. Eu diria que um guarda-chuva que merece uma janela arrombada merece também algu­mas perguntas.

— Hummm, humm. E você o estava chamando de Jerry e tentando escapar daqui com ele. Para onde? Que tal vir também e examinar pessoalmente alguns guarda-chuvas?

Isto me enojou. De qualquer modo, eu não estava muito satisfeito deixando que Gebert se fosse.

— Tolice — respondi. — Paspalhões. Vocês dois. Você está parecendo um guarda de pé chato que prende garotos que jogam bola na rua. Talvez eu quisesse ajudá-lo a fugir do país, colocando-o no metrô para Brooklyn, onde acho que você mora. Você o agarrou, não, com o cabo que lhe dei para segu­rá-lo? Paspalhões, isto é o que vocês são. Já passou de minha hora de dormir.

Atravessei o cordão de isolamento, empurrando-os para os lados como se fossem moscas, fui até a barata, subi, recuei através do portão dando a volta para entrar na estrada, errei por uma fração de centímetro o pára-choque do carro da Polícia e meti-me nos sulcos e buracos da estrada. Estava tão desa­pontado com o jeito das coisas que bati meu recorde anterior entre Brewster e a Rua 35 em dois minutos.

Claro que a casa estava escura e silenciosa. Não encontrei nota alguma de Wolfe sobre a minha escrivaninha- No andar superior, no meu quarto, para onde levara o copo de leite que enchera na cozinha, vi a luz de aviso como um ponto vermelho na parede, indicando que Wolfe havia ligado seu interruptor de modo que, se alguém mexesse em alguma de suas janelas ou chegasse pelo corredor a uns dois metros de sua porta, um gongo sob minha cama iniciaria uma barulheira infernal, que me despertaria. Meti-me sob as cobertas às 2:19.

 

Capitulo 14

Virei a cadeira giratória para fitar Wolfe.

"— Oh, sim, esqueci-me de dizer-lhe. O advogado, Collinger, informou que vão tratar do corpo de McNair da forma determinada no testamento. Será realizado um serviço reli­gioso na Belford Memorial Chapei às nove da noite. Amanhã ele será cremado e as cinzas enviadas à irmã na Escócia. Collinger parece pensar que o testamenteiro naturalmente estará presente à cerimônia religiosa. Iremos no seda?

— Pueril — murmurou Wolfe. — Você em nada é melhor do que uma mosca varejeira. Você pode representar-me na Belford Memorial Chapei — ele teve um estremecimento. — Preto e branco. Melancólica e muda obediência ao indizível horror. O assassino estará lá. Diabos o levem, não me ator­mente — voltou ao Atlas, examinando a página dupla da Arábia.

Meio-dia de sexta-feira. Eu tivera menos de seis horas de sono, ajustando o despertador para as oito a fim de estar pronto pela manhã, sem perder o café, para fazer um rela­tório a Wolfe às nove, na estufa. Perguntou-me inicialmente se eu tinha conseguido a caixa vermelha. Daí em diante, escutou-me de costas, enquanto examinava um canteiro de mudas de Cattleya. A notícia sobre Gebert pareceu entediá-lo, mas ele sempre pôde sair-se com essa sem que eu soubesse se era uma pose ou se ele expressava realmente o que sentia. Quando lhe recordei que Collinger viria às dez para discutir o testamento e o espólio e perguntei-lhe se tinha instruções especiais, ele meramente sacudiu a cabeça, sem se dar ao trabalho de voltar-se. Deixei-o, desci até a cozinha, comi mais umas duas pan­quecas para combater o sono. Fritz mostrou-se cordial nova­mente, esquecendo e perdoando o fato de eu ter salvo Wolfe,

no último momento, da recaída de quarta-feira. Ele jamais guarda rancor por muito tempo.

Mais ou menos às 9:30 Fred Durkin telefonou de Brewster. Logo depois de minha partida de Glennanne na noite anterior, os invasores foram embora e o nosso trio pôde gozar de uma noite tranqüila. Mas mal acabaram o café, quan­do detetives e milicianos apareceram novamente, armados de papéis. Eu falei a Fred para dizer a Saul para manter de olho a mobília e outros objetos portáteis.

Às dez, chegou Henry H. Barber, nosso advogado, e, logo depois, Collinger. Ali sentado, ouvi um bocado de con­versa enrolada sobre testamento, testamenteiro, validade e assim por diante. Subi, consegui a assinatura de Wolfe em alguns papéis e datilografei algumas coisas para eles. Foram-se antes que Wolfe descesse às onze horas. Ele arrumou as orquídeas no vaso, tocou a campainha pedindo cerveja, experimentou a caneta, passou a vista pela correspondência da manhã, deu um telefonema para Raymond Plehn, ditou-me uma carta, foi até a estante, voltou com o atlas e sentou-se com o volume. Eu jamais consegui pensar em mais de uma vantagem a ser espe­rada do trabalho de Wolfe com o atlas: se por acaso conse­guíssemos um caso internacional, estaríamos certamente em terreno familiar, não importa onde ele nos levasse.

Continuei a fazer um bocado de lançamentos nos registros das plantas, com indicações tiradas das fichas de Theodore Horstmann.

Mais ou menos a um quarto para uma Fritz bateu na porta e apareceu com um cabograma na mão. Abri-o e li-o:

 

ESCÓCIA NEGATIVO NUGANT GAMUT CARTA-GENA NEGATIVO DESTRUIÇÃO DISTÚRBIOS DAN-NUM GAMUT

HITCHCOCK

 

Tirei o livro do código, fiz algumas consultas e garatujei no meu bloco. Wolfe permaneceu na Arábia. Limpei a gar­ganta como um leão e notei-lhe os olhos faiscar em minha direção-

— Se falta de notícia é boa notícia, eis aqui um petisco mandado por Hitchcock. Ele diz que na Escócia não conseguiu ainda resultados porque o sujeito se recusa a fornecer ajuda ou informações, mas que o trabalho continua. Em Cartagena, do mesmo modo, nenhum resultado devido a distúrbios de rua há dois anos e, da mesma maneira, o trabalho, continua. Eu poderia acrescentar por mim mesmo que a Escócia e a Cartagena ganharam da Rua 35 pelo menos num ponto. Gamut. O trabalho continua.

Wolfe resmungou.

Dez minutos depois, fechou o atlas e disse:

— Archie, precisamos daquela caixa vermelha.

— Sim, senhor.

— Sim, precisamos. Telefonei novamente ao Sr. Hitchcock em Londres, à taxa da noite, depois que você saiu na noite passada e acho que o tirei da cama. Soube que a irmã do Sr. McNair está morando numa velha propriedade da família, num lugarejo nas proximidades de Camfirth, e pensei que era possível que ele a tivesse escondido lá numa de suas viagens à Europa. Pedi ao Sr. Hitchcock para revistar o local à pro­cura da caixa, mas, aparentemente, a irmã — a deduzir-se do cabograma — não quer dar autorização.

Ele exalou um suspiro e continuou:

— Nunca ouvi falar num caso mais irritante. Temos todos os dados de que precisamos e nem um fiapo de prova apresentável. A menos que a caixa vermelha seja encontrada — sere­mos forçados realmente a enviar Saul à Escócia, à Espanha, ou a ambos os lugares? Santo Deus! Seremos tão ineptos que teremos de dar meia volta ao mundo para demonstrar o motivo e a técnica de um assassinato que ocorreu em nosso próprio escritório, diante de nossos olhos? Pfui! Fiquei duas horas noite passada estudando a situação e confesso que estamos diante de uma excepcional combinação de sorte e destreza. Mas, mesmo assim, se formos forçados ao extremo de comprar pas­sagens de navio para atravessar o Atlântico, nem desprezo mereceremos.

— Certo — disse-lhe, sorrindo. Se ele se queimava, havia ainda esperança. — Estou abaixo do seu desprezo e você do meu. Por falar nisso, talvez tenhamos aqui um destes casos em que coisa alguma salvo a rotina pode resolvê-lo. Por exem­plo, um dos mercenários de Cramer pode resolver a coisa desco­brindo a compra do cianeto de potássio.

— Ora — disse Wolfe com toda a palma da mão erguida. Ele estava quase frenético. — O Sr. Cr&mer nem mesmo sabe quem é o assassino. Quanto ao veneno, foi provavelmente comprado há muitos anos, possivelmente não neste país. Temos de enfrentar não apenas esperteza, mas também espírito de previsão.

— Eu bem que desconfiava. Então está-me dizendo que sabe quem é o assassino? Hummm?

— Archie — respondeu Wolfe, erguendo um dedo em minha direção — eu antipatizo com mistificações e nunca a pra­tico para divertir-me. Mas não o sobrecarregarei com fardos que submeterão suas faculdades a tensões. Você não tem ta­lento algum de dissimulação. Certamente que sei quem é o assassino, mas que vantagem isso me traz? Não estou em melhor situação do que o Sr. Cramer. Por falar nisso, ele telefonou na noite passada minutos depois de você ter saído. De muito mau humor. Parecia pensar que devíamos ter-lhe falado sobre a existência de" Glennanne em vez de deixar que ele a desco­brisse entre os papéis do Sr. McNair. E ficou furioso porque Saul defendeu o local. Acho que ele esfriará agora um pouco depois que você lhe entregou Gebert de presente.

Indiquei meu assentimento com um gesto de cabeça.

— Acho que eu ficaria com cara de bobo se ele conseguisse extrair o suficiente de Gebert para solucionar o caso.

— Nunca. Não tenha receio, Archie. Não é provável que o Sr. Gebert, sob qualquer pressão concebível, abandone seu único ponto de apoio no penhasco da existência que conseguiu manter. Teria sido inútil trazê-lo aqui. Ele calculou seus lucros « perdas. Sim, Fritz? Ah, o soufflé resolveu ignorar o relógio? Agora mesmo, sem dúvida.

Segurou-se na borda da escrivaninha para empurrar a cadeira.

Nós não ignoramos o soufflé.

O meu almoço foi imediatamente interrompido por um tele­fonema de Helen Frost. Habitualmente, Wolfe proibia de pla­no que eu perturbasse uma refeição para ir atender ao telefone, deixando que Fritz recebesse a chamada na extensão da co­zinha. Mas permitia exceções. Uma delas eram as clientes femininas. Fui até o escritório, embora sem excesso de ale­gria, pois durante toda manhã pensara que poderíamos receber a qualquer minuto um aviso dela dizendo que a combinação estava terminada. Sozinha com a mãe em casa, nem queria imaginar o que lhe poderiam ter posto na cabeça. Mas ela queria saber apenas o paradeiro de Perren Gebert. Contou •que a mãe telefonara para o Chesebrough na hora do cate e descobrira que Gebert não passara lá a noite. Depois de telefonar e movimentar-se a manhã toda, fora finalmente infor­mada pela Polícia de que Gebert estava detido e que não per­mitiriam que ela falasse com ele. Disse que o Inspetor Cramer contara à mãe alguma coisa sobre a prisão na base de infor­mações fornecidas pelo Sr. Goodwin, do escritório de Nero Wolfe. E que é que eu tinha a dizer a respeito? Respondi:

— Foi isso mesmo. Nós o surpreendemos tentando arrom­bar uma janela em Glennanne. Os tiras estão-lhe perguntando para quê. Apenas uma pergunta natural e sensata. Depois de certo tempo, ele responderá ou não se eles o soltarão ou, con­servarão preso. É isso mesmo.

— Mas eles não... — ela pareceu-me embaraçada. — O senhor sabe, como eu lhe disse, há coisas a respeito dele de que não gosto, mas ele é um velho amigo de minha mãe e meu também. Eles não lhe farão mal, farão? Não posso enten­der o que ele fazia em Glennanne, tentando penetrar na casa. Ele nunca esteve lá... Acho que nunca esteve... Como o senhor sabe, ele e tio Boyd não se gostavam. Não entendo isso. Mas eles não lhe podem fazer coisa alguma apenas porque1 tentou abrir uma janela, podem?

— Podem e não podem. Podem aborrecê-lo um pouco. Não o machucarão muito.

— Isto é horrível — percebi-lhe um tremor na voz. — É horrível. Pensei que fosse uma pessoa dura. Acho que sou,, mas ... de qualquer maneira, quero que o senhor e o Sr. Wolfe continuem. Continuem com plena liberdade. Apenas, pensei que podia pedir-lhe... Perren é realmente o amigo-mais antigo de minha mãe... se podia ir até a Polícia, des­cobrir onde ele e=tá e o que estão fazendo... Sei que a Polícia é muito atenciosa com o senhor...

— Claro — repliquei, fazendo uma careta para o telefone. — Ir a Polícia? Claro que sim. Deus a abençoe. Terei prazer em ir. Não demorarei muito a terminar o almoço e vou até lá imediatamente. Em seguida, eu lhe telefonarei e contarei o que há.

— Oh, ótimo. Eu lhe ficarei gratíssima. Se eu não esti­ver em casa, mamãe estará... Eu... eu vou sair para comprar algumas flores..

— Certo. Eu lhe telefonarei.

Voltei à sala de jantar, apanhei as ferramentas e contei a Wolfe. Ele se sentiu afrontado, como sempre acontece quando os negócios lhe interrompem uma refeição. Continuei a almoçar sem pressa, esperei o café e demorei a bebericá-lo, pois sabia que se me apressasse e não mastigasse devidamente eu lhe perturbaria a digestão. Ele não ficaria com o coração partido se eu fosse surpreendido no campo durante a hora das refeições e fosse obrigado a arranjar o que pudesse, mas, se começasse uma refeição naquela mesa, seria obrigado a concluí-la como um cavalheiro. Além disso, eu estava resistindo um pouco a uma missão que não me agradava.

Passava das duas quando fui à garagem apanhar a barata. Fiquei novamente irritado ao descobrir que a lavagem e o polimento haviam sido feitos por um caolho.

No centro "da cidade, na Rua do Centro, estacionei no triângulo, entrei e tomei o elevador. Percorri o corredor do andar superior como se fosse minha propriedade, entrei na sala de espera do gabinete de Cramer tão arrogantemente quanto possível, e disse ao parrudão à escrivaninha:

— Diga ao Inspetor que Goodwin, do gabinete de Nero Wolfe, quer vê-lo.

Fiquei esperando de pé durante uns dez minutos. Final­mente, mandaram-me entrar com um gesto de cabeça. Tinha a esperança de que Cramer tivesse saído e eu pudesse conversar com Burke, não devido a minha timidez natural, mas porque sabia que seria melhor para todas as partes interessadas se o primeiro tivesse mais tempo para esfriar antes de reiniciar o intercâmbio social conosco. Mas ele estava à escrivaninha quan­do entrei e, para surpresa minha, não se levantou e nem me mordeu a orelha.

Mas rosnou um pouco:

— Então é você. Vem logo aqui. Burke  fez uma obser­vação a seu respeito esta manhã. Disse que, se você precisar algum dia de uma esfregadela, devíamos mandar Smoky fazer isso em você. Smoky é o homenzinho de perna de pau que dá o polimento nos bronzes lá embaixo na entrada.

— Acho que vou sentar-me — respondi.

— Pois não. Sente-se. Quer minha cadeira?

— Não, obrigado.

— Que é que você quer?

Sacudi a cabeça pensativamente e disse:

— O diabo me leve, Inspetor, se o senhor não for um homem difícil de contentar. Fazemos o possível para ajudá-lo a encontrar aquela caixa vermelha e o senhor fica ressentido.

Capturamos um tipo perigoso que tentava uma penetração ile­gal, entregamo-lo, e o senhor fica ressentido. Se embrulharmos este caso e o presentearmos ao senhor, acho que nos acusará de cúmplices. O senhor talvez se lembre de que no caso da Elástico...

— Sim, eu sei. Os favores passados foram devidamente apreciados. Estou ocupado. Que é que você quer?

— Bem... — inclinei a cabeça para trás para olhá-lo de cima para baixo. — Eu represento o testamenteiro do espólio do Sr. McNair. Vim aqui para convidar o Sr. Perren Gebert a comparecer ao serviço fúnebre da Belford Memorial Chapei às nove da noite. Poderia por favor indicar-me o quarto onde ele se encontra?

Cramer olhou-me de má cara. Em seguida, exalou um> profundo suspiro, enfiou a mão no bolso em busca de um cha­ruto, mordeu-lhe a extremidade e acendeu-o. Tirou diversas baforadas e colocou-o firmemente num canto da boca. Abrupta­mente, indagou:

— Que é que vocês têm contra Gebert?

— Nada. Nem mesmo uma luz vermelha. Nada absoluta­mente .

— Veio aqui para vê-lo? Que é que Wolfe quer que você lhe pergunte?

— Nada. Palavra de honra. Wolfe disse que ele está sim­plesmente se apegando ao penhasco da existência ou algo pare­cido e que não o recebia em casa.

— Então que diabo é que você quer com ele?

— Nada. Estou apenas mantendo minha palavra. Pro­meti a alguém que viria aqui e lhe perguntaria como é que ele está e quais são as perspectivas dele. Assim, ajude-me. Estou falando sério.

— Eu acredito, talvez. Quer dar uma espiada nele?

— Não, especialmente. Mas logo que puder.

— Você pode — disse ele e apertou um botão numa fi­leira. — Para dizer a verdade, é bom que você esteja aqui - Trata-se de um caso aberto e fechado: aberto para os jornais e fechado para mim. Se tem curiosidade a respeito de alguma coisa que pense que Gebert pode satisfazer, vá em frente e ex­perimente. Ele está sendo trabalhado desde as sete da manhã. Oito horas. Mas o pessoal não consegue nem mesmo irritá-lo.

Um sargento com ombros fora de série entrara e aguardava ordens. Cramer disse-lhe:

— Este homem se chama Goodwin. Leve-o até a Sala 5 e diga a Sturgis que ele pode ajudar, se quiser — voltou-se para mim. — Apareça de novo antes de ir embora. Eu talvez queira perguntar-lhe alguma coisa.

— Okay. Pensarei em algo para lhe responder.

Segui o sargento pelo corredor até o elevador. Paramos num andar abaixo do nível da rua. Conduziu-me por um sa­guão escuro e em torno de uma esquina até que finalmente pa­ramos a uma porta que podia ter tido o número 5, mas, se era assim, não se podia vê-lo. Abriu a porta, entramos, e ele a fechou novamente. Dirigiu-se até o lugar onde um cara estava sentado numa cadeira, enxugando o pescoço com um lenço, disse-lhe alguma coisa, deu a volta e saiu novamente.

A sala era de tamanho médio, quase sem mobiliário algum. Havia uma fileira de cadeiras comuns alinhadas contra uma parede. Uma maior, com braços, estava colocada no centro do quarto. Nela sentava-se Perren Gebert com o rosto iluminado totalmente por uma lâmpada de teto e um grande refletor à frente. De pé junto a ele, notei um homem musculoso em man­gas de camisas com orelhas peludas e um corte de cabelo Yon-kers. O tipo sentado com quem o sargento falara estava tam­bém em mangas de camisa. O mesmo acontecia com Gebert. Ao aproximar-me o suficiente da luz para que ele me visse, Gebert  fez um movimento para levantar-se e disse num curioso tom áspero:

— Goodwin! Ah, Goodwin...

O tira musculoso estendeu a mão e deu-lhe uma palmada de mão aberta no lado esquerdo do pescoço e, em seguida, com a outra mão, outra no ouvido direito. Gebert estremeceu e caiu na cadeira.

— Sente-se, sim? — disse o tira queixosamente. O outro tira, ainda com o lenço na mão, levantou-se e dirigiu-se para mim:

— Goodwin? Meu nome é Sturgis. De onde é você, da turma de Buzzy?

Disse que não com a cabeça.

— Agência privada. Estamos trabalhando neste caso e te­mos um bocado de reputação.

— Oh, Particular, hem? Bem... o Inspetor mandou-o aqui embaixo. Quer trabalho?

— Agora não. Continuem, cavalheiros. Escutarei e verei se posso pensar em alguma coisa.

Aproximei-me um passo de Gebert e examinei-o. Ele es­tava um bocado vermelho, com aquele tipo de manchas verme­lhas, mas não vi quaisquer marcas autênticas. Estava sem gra­vata e a camisa apresentava um rasgão no ombro. Notei tam­bém suor seco sobre a pele dele. Tinha os olhos injetados de pestanejar para a poderosa luz e provavelmente de serem abertos aos tapas, quando os fechava. Perguntei-lhe:

— Quando disse há pouco o meu nome, queria dizer-me alguma coisa?

Ele sacudiu negativamente a cabeça e emitiu um grunhido rouco. Voltei-me e disse a Sturgis:

— Ele não lhe poderá dizer coisa alguma se não puder talar. Talvez seja bom dar-lhe um pouco de água.

Sturgis bufou:

— Ele podia beber se quisesse. Demos-lhe água quando desmaiou há umas duas horas. Neste mundo de Deus há ape­nas uma coisa errada com ele. Ele é do contra. Quer tentar?

— Mais tarde, talvez — dirigi-me a fileira de cadeiras junto à parede e sentei-me. De pé, Sturgis enxugava pensativamente o pescoço. O tira musculoso inclinou-se para mais perto do rosto de Gebert e perguntou-lhe em tom magoado:

— Para que ela lhe deu aquele dinheiro? Nenhuma resposta, nenhum movimento.

— Para que ela lhe deu aquele dinheiro? Mais uma vez, nada.

— Para que ela lhe deu aquele dinheiro?

Gebert sacudiu levemente a cabeça. O tira rugiu para ele. indignado:

— Não balance a cabeça para mim! Compreendeu? Para que ela lhe deu aquele dinheiro?

Gebert permaneceu imóvel. O tira recusou o braço e deu-lhe mais dois tapas, lançando-lhe a cabeça de um lado para outro e, em seguida, mais dois.

— Para que ela lhe deu aquele dinheiro?

A coisa continuou durante algum tempo. Duvidei que algum progresso fosse feito. Senti pena dos pobres e estúpidos tiras, percebendo que eles não tinham inteligência suficiente para compreender que estavam apenas pondo-o gradualmente a dormir e que, em mais três ou quatro horas, ele não valeria o trabalho. Naturalmente, ele estaria novo em folha pela ma­nhã, mas eles não podiam continuar com isso durante semanas

mesmo que ele fosse estrangeiro e não pudesse votar. Esse era o ponto de vista prático e embora a ética da história não fosse de minha conta, admito que tinha certos preconceitos. Posso acuar um homem se ele merece, mas prefiro fazer isso no terreno dele e certamente dispenso ajuda.

Aparentemente, eles haviam abandonado todas as questões secundárias que tentaram no início do dia e concentravam-se em alguns pontos principais. Após vinte minutos mais ou me­nos sobre quem o havia pago e para que, o tira musculoso mu­dou subitamente para outra pergunta, o que ele tinha ido pro­curar em Glennanne na noite anterior. Gebert murmurou algu­ma coisa e recebeu mais uns tapas. Em seguida, nenhuma res­posta, e novos tapas. O tira tinha mais ou menos o nível men­tal de uma marmota. Não apresentava variedade, mudança de ritmo, nada absolutamente, salvo as palmas da mão e elas mes­mas deviam ter começado a ficar doloridas. Apegou-se a Glen­nanne durante meia hora enquanto eu fumava cigarros na minha cadeira e tornava-me mais e mais nauseado. Finalmente vol­tou-se, dirigiu-se até o local onde estava o colega e murmurou cansadamente:

— Trabalhe-o um pouco agora. Vou à privada.

Sturgis perguntou-me se eu queria tentar e eu declinei, agradecendo. Na verdade, eu estava prestes a sair, mas pensei que poderia observar um pouco a técnica de Sturgis. Ele en­fiou o lenço no bolso traseiro, dirigiu-se a Gebert e explodiu:

— Para que ela lhe deu aquele dinheiro?

Rilhei os dentes para não lançar uma cadeira no idiota. Mas ele realmente mostrou alguma variação. Era mais do tipo empurrador do que batedor. O gesto que mais usava era colocar a pata na orelha de Gebert e administrar uns curtos e vivos empurrões e, em seguida, colocar a pata na outra orelha e en­direitá-lo do mesmo jeito. Algumas vezes, pegava-o pelo rosto, empurrava-o diretamente para trás e terminava com uma palmadinha.

O tira musculoso voltou, sentou-se a meu lado e começou a contar-me quanto farelo comia. Decidi que já tirara o preço da entrada e puxava a última baforada no cigarro quando a porta se abriu e o sargento entrou — o mesmo que me havia trazido. Aproximou-se, olhou para Gebert de modo como um cozinheiro olha para uma chaleira para ver se ela já começou a ferver. Sturgis recuou, tirou o lenço e começou a enxugar-se. O sargento dirigiu-se a ele:

— Ordens do Inspetor. Ajeite-o, espane-o, leve-o para a porta norte e espere lá por mim. O Inspetor quer que ele saia daqui em cinco minutos. Tem um caneco?

Sturgis foi até um armário, abriu-o e voltou com um ca­neco esmaltado. O sargento encheu-o com o líquido de uma garrafa e colocou-a novamente no bolso.

— Dê isso para ele beber. Ele pode andar?

Sturgis respondeu que sim. O sargento voltou-se para mim:

— Quer fazer o favor de ir até o gabinete do Inspetor, Goodwin? Tenho algo a fazer no andar principal.

Saí e segui-o sem dizer palavra. Não havia ninguém ali com quem eu quisesse trocar números de telefone.

Tomei o elevador até o andar superior. Esperei um bo­cado na ante-sala de Cramer. Aparentemente, ele estava dando uma festa, porque três tiras saíram e, um pouco mais tarde, um capitão uniformizado e, ainda mais tarde, um magrelo de cabelo grisalho, em quem reconheci o Subcomissário Allway. Final­mente, disseram-me para tomar a escada de embarque. En­contrei Cramer com expressão amargurada, mastigando um charuto apagado.

— Sente-se, filho. Você não teve oportunidade de nos mostrar o que sabe lá embaixo. Hummm? E nós não lhe mos­tramos muita coisa tampouco. Um homem muito competente esteve trabalhando Gebert durante quatro horas esta manhã, um homem competente e inteligente. Mas não conseguiu extrair coisa alguma. Assim, deixamos de lado a inteligência e tenta­mos coisa diferente.

— Oh, então é isso — sorri para ele. — É justamente isso o que aqueles caras são, algo diferentes. Descreve-os per­feitamente. Então vai soltá-lo agora?

— Vamos — disse Cramer franzindo as sobrancelhas. — Um advogado começou a criar casos. Acho que foi contratado pela Sra. Frost. Ele conseguiu um habeas-corpus há pouco. Achei que não valia a pena brigar por Gebert e, de qualquer maneira, duvido que tivéssemos podido mantê-lo em cana. O cônsul francês começou também a movimentar-se. Gebert é ci­dadão francês. Claro que vamos mandar segui-lo, mas que van­tagem resultará disso? Quando um homem como aquele sabe alguma coisa sobre um crime devia haver uma maneira de san­grá-lo como se faz com uma macieira e tirar-lhe a seiva. Hummm?

Concordei com um movimento de cabeça.

— Claro, seria ótimo. Seria melhor do que... — enco­lhi os ombros. — Não tem importância. Alguma notícia dos rapazes em Glennanne?

— Não — disse Cramer cruzando as mãos por trás da cabeça, reclinando-se, mastigando o charuto e fazendo uma carranca para mim. — Sabe de uma coisa, odeio ter de dizer isto a você. Mas é o que penso. Não quero vê-lo ferido, mas poderia ter sido mais sensato se você tivesse estado lá embaixo na Sala 5 durante todo o dia em vez de Gebert.

— Eu? — sacudi a cabeça. — Não acredito. Depois de tudo o que fiz pelo senhor?

— Oh, deixe de brincadeira. Estou cansado. Não estou para graçolas. Estive pensando. Sei como Wolfe trabalha. Não finjo que possa fazer o mesmo, mas sei como ele o faz. Admito que ele até agora não terminou do lado errado, mas um ovo só precisa ser quebrado uma vez. É bem possível que neste caso ele esteja com os pés amarrados. Ele está trabalhando para os Frosts.

— Ele está trabalhando para uma Frost.

— Certo, e isto é engraçado também. Em primeiro lugar, ele disse que Lew o contratara. E, em seguida, a prima. Nunca ouvi dizer antes que ele mudasse de clientes assim. Será que isso tem algo a ver com o fato de que a fortuna pertence a ela, mas que foi controlada pelo pai de Lew durante vinte anos? E o pai de Lew, Dulley Frost, é o máximo quando se trata de guardar coisas para si mesmo. Dissemos a ele que estávamos investigando um assassinato e pedimos-lhe para examinar o ati­vo de espólio porque talvez houvesse alguma ligação que poderia ser útil. Pedimos a ele que cooperasse. Ele nos mandou to­mar banho. Frisbie, do gabinete do Promotor Público, tentou conseguir através de ação judicial, mas, aparentemente, não há uma fresta. Ora, por que Wolfe, inesperadamente, abandonou Lew e transferiu a afeição para o outro lada da família?

— Ele não  fez isso. Ocorreu o que o senhor poderia cha­mar de uma venda forçada.

— No duro? Talvez. Eu gostaria de ver Nero Wolfe ser forçado a fazer alguma coisa. Notei que isso aconteceu ime­diatamente depois de liquidarem McNair. Muito bem. Wolfe possui algum tipo de informação positiva. Onde a encontrou? Na caixa vermelha. Como vê, não estou querendo bancar o astucioso, estou simplesmente lhe dizendo. Aquele truque em Glennanne foi apenas para despistar. O seu jogo com Gebert  fez também parte da coisa. Não tenho um vestígio de prova sobre coisa alguma, mas estou-lhe dizendo. E aviso a você e a Wolfe: não pensem que sou estúpido demais para não descobrir finalmente o que havia naquela caixa vermelha, por­que não sou.

Sacudi a cabeça tristemente e disse:

— O senhor está todo suado, Inspetor. Juro por Deus que está pingando. Quando acabar de procurar a caixa vermelha avise-nos e nós começaremos a procurá-la.

— Não desisti. Estou fazendo todos os movimentos. Não digo que Wolfe esteja deliberadamente protegendo um assassi­no. Ele teria de ter mais do que os pés amarrados para fazer uma bobagem dessas, mas digo que ele está retendo evidência valiosa que eu desejo. Não pretendo saber por quê. Não finjo conhecer uma única maldita coisa sobre este caso miserável. Mas penso que a solução está na família Frost, porque, pelo menos por uma coisa, não conseguimos descobrir quaisquer outras ligações de McNair que ofereçam qualquer pista. Não consegui­mos coisa alguma da irmã na Escócia. Nada nos papéis de Mc­Nair. Nada em Paris. Nenhuma pista para o veneno. A única teoria definida sobre os Frosts é algo que descobri de um velho inimigo da família, um velho escândalo de Edwin deserdando a esposa porque não gostava das idéias dela a respeito de amizades com um francês e forçando-a a renunciar aos direitos de viúva sob ameaça de pedir divórcio. Bem, Gebert é francês, mas Mc­Nair não era, e então? Parece que estamos derrotados, não? Lembra-se do que eu disse na terça-feira no escritório de Wolfe? Mas Wolfe não é absolutamente um maldito idiota e devia saber que não devia sentar-se sobre uma tampa que mais cedo ou mais tarde será aberta. Você lhe dará um recado meu?

— Claro. Quer que eu o escreva?

— Não é preciso. Diga-lhe que Gebert vai ser acampanado de agora em diante até que o caso seja solucionado. Diga-lhe que se a caixa vermelha não for encontrada, ou algo de igual valor, um dos meus melhores auxiliares viajará para a França no Normandie na próxima quarta-feira. E diga-lhe que já sei de algumas coisas, como, por exemplo, que nos últimos cinco anos 60.000 dólares do dinheiro da cliente foram pagos a Ge­bert e que somente Deus sabe quanto, antes disso.

— Sessenta mil dólares? — levantei as sobrancelhas. — Do dinheiro de Helen?-

— Sim. Acho que isto é novidade para você.

— Claro que é. Bolas, este dinheiro nós nunca mais vere­mos. Como é que ela deu a ele, em níqueis?

— Não se meta a engraçadinho. Estou-lhe contando isso para você dizer a Wolfe. Gebert abriu uma conta bancária em Nova York há cinco anos e desde então tem depositado um cheque de mil dólares todos os meses, assinados por Calida Frost. Você conhece os bancos o suficiente para imaginar como é fácil descobrir essas coisas.

— Claro. Naturalmente, 0 senhor tem influência junto à Polícia. Posso chamar-lhe a atenção para o fato de que Ca­lida Frost não é nossa cliente?

— Mãe e filha, qual a diferença? A renda é da filha, mas acho que a mãe fica com a metade. Qual a diferença?

— Talvez haja. Por exemplo, aquela moça em Rhode Island que matou a mãe no ano passado. Uma estava viva e a outra morta. Havia uma pequena diferença. Por que a mãe pagava dinheiro a Gebert?

Cramer fitou-me com os olhos semicerrados e disse:

— Quando chegar em casa, pergunte a Wolfe.

— Ora essa, Inspetor — disse eu com uma risada — Ora, ora. O seu problema com Wolfe é que não o vê muito exceto quando ele manda botar serragem no picadeiro e está prestes a estalar o chicote. Devia conhecê-lo da maneira como o vejo, algumas vezes. O senhor pensa que ele sabe de tudo. Eu poderia dizer-lhe pelo menos três coisas que ele nunca sa­berá.

Cramer enfiou os dentes no charuto e respondeu:

— Acho que ele sabe onde está a caixa vermelha e pro­vavelmente a tem. Acho que no interesse de um cliente, para não mencionar o próprio interesse dele, ele está negando evi­dência num caso de homicídio. E sabe o que ele pretende fazer? Esperar até o dia 7 de maio para abri-la, no dia em que Helen Frost completar vinte e um anos. Que é que você pensa que eu acho disso? E que é que você pensa que eles pensam no gabinete do Promotor Público?

Abafei um bocejo.

— Desculpe-me, tive apenas seis horas de sono ontem. Juro que não sei o que posso dizer-lhe para convencê-lo. Por que não dá um pulo lá e conversa com Wolfe?

— Para quê? Sei como será. Explicarei a ele por que penso que ele é um mentiroso. Ele dirá "Realmente", fechará os olhos e os abrirá novamente quando estiver pronto para pe­dir uma cerveja. Ele devia montar uma fábrica de cerveja. Alguns grandes homens, quando morrem, deixam o cérebro para um laboratório científico. Wolfe devia deixar o estômago.

— Okay — respondi e levantei-me. — Se está tão magoado com ele que se ressente com o fato de ele matar ocasionalmente a sede cada poucos minutos, não posso esperar que ouça a voz da razão. Posso apenas repetir que o senhor está todo suado. O próprio Wolfe diz que, se tivesse a caixa vermelha, ele solu­cionaria o caso — estalei os dedos — com esta facilidade.

— Não acredito nisso. Dê-lhe meu recado, sim?

— Certo. Recomendações?

— Vá para o inferno.

Não deixei que o elevador me levasse até lá, pois desci no saguão principal. Tomei a barata no triângulo e manobrei-a em direção de Centre Street.

Claro que Cramer era engraçado, mas eu não estava tão divertido assim. Não havia vantagem alguma em ele estar tão desconfiado que não acreditava nem mesmo numa simples de­claração de fato. O problema era que ele não tinha uma mente suficientemente liberal para compreender que Wolfe e eu éra­mos inerentemente tão honesto como qualquer indivíduo deve ser, a menos que seja um eremita, e que se McNair tivesse de fato nos entregue a caixa vermelha ou nos dito onde ela se en­contrava, a melhor política teria sido confessar o fato e de­clarar que o seu conteúdo era confidencial, que nada tinha a ver com qualquer assassino e recusar a mostrá-lo. Até eu mes­mo podia compreender isso e eu não era um Inspetor e nem me passava pela cabeça sê-lo.

Era mais de seis quando cheguei em casa. Encontrei uma surpresa ai minha espera: Wolfe no gabinete, recostado na cadeira com os dedos cruzados no ápice do contraforte anterior e, sentado na cadeira dos bobos, com os restos de um Highball num copo numa mão, Saul Panzer. Cumprimentaram-me com a cabeça e Saul continuou:

— ... o primeiro sorteio é realizado na terça-feira, três dias antes da corrida e elimina todo mundo cujo número não for sorteado para uma ou outra das inscrições. Os cavalos Outro sorteio, porém, é feito no dia seguinte, quarta-feira.

Saul prosseguia com a lição sobre o swespstake. Sentei-me à mesa, procurei o número do telefone do apartamento dos

Frosts e disquei. Helen estava, e eu lhe contei que vira Gebert, que ele parecera bastante cansado com as perguntas, mas que o haviam solto. Ela disse que já sabia. Ele telefonara pouco antes e a mãe fora ao Chesebrough para visitá-lo. Ela começou a agradecer-me e eu disse que era melhor reservar os agrade­cimentos para uma emergência. Terminada essa maçada, girei a cadeira e prestei atenção a Saul. Fiquei com a impressão de que ele tinha mais do que conhecimento teórico do assunto. Logo que ouviu o suficiente para compreender o caso, Wolfe interrompeu-o com uma inclinação de cabeça e voltou-se para mim.

— Saul precisa de vinte dólares. Há apenas dez na ga­veta.

Concordei com um aceno de cabeça.

— Vou descontar um cheque amanhã pela manhã — ti rei a carteira do bolso. Wolfe nunca andava com dinheiro. En­treguei quatro de cinco a Saul, que as dobrou cuidadosamente e meteu no bolso.

Wolfe ergueu um dedo na direção dele e disse:

— Você compreende, naturalmente, que não deve ser visto.

— Sim, senhor — disse Saul, deu a volta e foi embora.

— Saul está voltando a Glennanne?

— Não — respondeu Wolfe com um suspiro. — Ele me esteve explicando a maquinaria do sweepstake irlandês. Se as abelhas resolvessem seus assuntos dessa maneira nenhuma colméia teria mel suficiente para sobreviver no inverno.

— Mas algumas abelhas fariam uma grande farra.

— Acho que sim. Em Glennanne eles desviaram cada lago nos caminhos do jardim e fizeram uma esburacação geral sem resultados. O Sr. Cramer encontrou a caixa vermelha?

— Não. Disse que você é que a tem.

— Ah, então ele diz isso. Estará ele encerrando o caso com base nessa teoria?

— Não. Está pensando em mandar um homem à Europa Talvez ele e Saul possam ir juntos.

— Saul não irá... pelo menos não imediatamente. Dei a ele outra missão. Pouco depois de você ter saído, Fred tele­fonou e eu os chamei de volta. A Polícia Estadual tomou posse de Glennanne. Fred e Orrie foram embora quando eles chegaram. Quanto a Saul... aproveitei uma sugestão sua. Você a  fez com a intenção de ser sarcástico. Adotei-a como proce­dimento sensato. Em vez de procurar a caixa em todo o mundo, pense em primeiro lugar onde ela está e, em seguida, mande buscá-la. Mandei Saul.

Olhei-o e disse sombriamente:

— Essa não. Quem é que esteve aqui e lhe contou?

— Ninguém esteve aqui.

— Quem é que telefonou?

— Ninguém.

— Compreendo. Apenas uma piada. Durante um minuto pensei que você realmente sabia.. . espere, recebeu uma carta de quem, um telegrama, ou um cabograma ou, em suma, uma comunicação?

— De ninguém.

— E mandou Saul buscar a caixa vermelha?

— Mandei.

— Quando ele voltará?

— Não sei. Penso que amanhã... possivelmente depois de amanhã...

— Hum. Okay, se é apenas um disparate. Eu devia ter sabido. Você me engana todas as vezes. Você não ousa encontrar a caixa vermelha agora, de qualquer maneira. Se a en­contrássemos, Cramer teria a certeza que ela esteve conosco durante todo o tempo e talvez cortasse de mal com a gente. Ele está enojado e desconfiado. Levaram o Gebert para lá, de­ram-lhe tapas, guincharam e berraram com ele o dia inteiro. Eles dizem que o sistema funciona algumas vezes, mas, mesmo que funcione, como é que poderiam confiar em alguma coisa que conseguissem daquela maneira? E para não mencionar que de­pois de terem feito isso algumas vezes qualquer lata de lixo decente ficaria envergonhada de o cara ser encontrado nela Mas Cramer deu-me realmente uma pequena informação e so­mente Deus sabe por quê: nos últimos cinco anos a Sra. Edwin Frost pagou sessenta mil dólares e Perren Gebert. Mil dólares por mês. Ele não quis dizer para quê. Não sei se eles pergun­taram a ela ou não. Será que isso combina com os fenômeno psíquicos com os quais você sente afinidade?

Wolfe inclinou a cabeça afirmativamente.

— Satisfatoriamente. Claro que eu não sabia qual era o montante.

— Oh, não sabia. Quer-me dizer que sabia que ela dava dinheiro a ele?

— Não, absolutamente. Simplesmente supus isso. Claro que ela lhe dava dinheiro. O homem precisa viver, ou pelo me­nos pensa que precisa. Ele foi obrigado a confessar isso à força?

— Não. Conseguiram a informação no banco onde ele tem conta.

— Compreendo. Trabalho de detetive. O Sr. Cramer pre­cisa de um espelho para certificar-se de que tem um nariz no rosto.

— Desisto — respondi, franzindo os lábios e sacudindo a cabeça. — Você "é a perfeição das perfeições — levantei-me e sacudi as pernas das calças. — Só consigo pensar num único melhoramento que podia ser feito neste lugar. Podíamos man­dar instalar uma cadeira elétrica na sala da frente e fazermos nós mesmos o nosso assado. Vou dizer a Fritz que jantarei na cozinha, porque terei de sair às oito e meia novamente para representá-lo na cerimônia religiosa.

— Que pena — ele falava sinceramente. — Você precisa realmente ir?

— Eu vou. Para conservar as aparências. Alguém por lá deve fazer alguma coisa.

 

Capitulo 15

Naquela hora, 8:50, as vagas eram poucas e muito espaça­das na Rua 73. Finalmente encontrei uma a mais ou menos meio quarteirão distante do endereço da Belford Memorial Cha­pei e ocupei-a. Pensei que havia algo familiar com o número da chapa do carro imediatamente a minha frente e, realmente, logo que desci e dei uma espiada, vi que era o conversível de Gebert. Estava limpo e lustroso, tendo sido lavado depois da aventura pelo sertão do Município de Putnam. Admirei Ge­bert pela sua fortaleza, desde que ele havia evidentemente se recuperado o suficiente em três horas para aparecer numa fun­ção social.

Caminhei até a porta da capela e entrei numa sala de es­pera, quadrada, com paredes de mármores. Um homem de meia-idade vestido de preto aproximou-se e  fez uma curvatura. Ele parecia estar sob a influência de uma melancolia crônica, mas aristocrática. Indicou a porta à direita com o antebraço, man­tendo o cotovelo junto ao corpo e murmurou:

— Boa noite, cavalheiro. A capela fica ali. Ou...

— Ou o quê?

Ele tossiu delicadamente.

— Desde que o falecido não possuía família, alguns amigos íntimos reuniram-se na sala particular...

— Oh, eu represento o testamento. Eu não sei. Que é que o senhor acha?

— Eu diria, senhor, que, neste caso, talvez a sala...

— Okay. Onde fica?

— Por aqui — ele virou para a esquerda, abriu uma porta e  fez-me entrar com uma curvatura.

Pise* num tapete grosso e macio. A sala era elegante, com luzes mortiças, divas, cadeiras acolchoadas e um cheiro pare­cido com o de uma barbearia de alta classe. Em uma cadeira num canto vi Helen Frost, parecendo pálida, concentrada e bela num vestido cinza-escuro e pequeno chapéu preto. De pé, pro­tetoramente ao lado, Llewellyn. Perren estava sentado num diva à direita. Duas mulheres, uma das quais reconheci como uma das que estiveram na sessão de escolha de bombons, ocupa­vam cadeiras do outro lado. Inclinei a cabeça na direção dos ortoprimos, que responderam da mesma maneira. Dirigi um deles a Gebert, que respondeu, e tomei uma cadeira à esquerda. Ouvi um murmúrio da direção onde Llewellyn se curvava sobre Helen. As roupas'de Gebert pareciam mais elegantes do que o rosto, onde sobressaíam os olhos inchados e um ar geral de alguém que ficou muito tempo exposto às intempéries.

Sentei-me e pensei na frase de Wolfe; melancólica e silen­ciosa obediência ao indizível horror. A porta foi aberta e Du-dley Frost entrou. Eu era a pessoa mais próxima da porta. Ele olhou em volta, passou por mim sem fingir ter-me reconhe­cido, notou as duas mulheres e disse "Como estão?", tão alto que elas saltaram das cadeiras,  fez uma seca inclinação de ca­beça na direção de Gebert e dirigiu-se para o canto onde esta­vam os primos.

— Antes da hora, quem diria! Eu quase nunca chego an­tes! Helen, querida, onde diabo está sua mãe? Telefonei-lhe três vezes... Santo Deus! Acabei esquecendo as flores! Quan­do pensei nelas era tarde demais para mandá-las e resolvi trazê-las comigo...

— Está bem, papai. Está bem. Há flores bastantes...

Talvez ainda melancólico, mas não mais silencioso. Per­guntei-me como conseguiam controlá-lo durante o minuto de silêncio no Dia do Armistício. Pensara já em três possíveis métodos quando a porta se abriu novamente e a Sra. Frost en­trou. O cunhado adiantou-se para recebê-la, com exclamações. Ela parecia também pálida, mas não tanto quanto Helen e, aparentemente, usava um vestido de noite preto sob um xale preto com uma fita de cetim preto à guisa de chapéu. Não deu impressão de fraqueza enquanto mais ou menos ignorava Dudley, inclinava a cabeça para Gebert, cumprimentava as duas mulheres e atravessava a sala em direção à filha e ao sobrinho.

Do meu lugar, observei a cena.

Subitamente, apareceu outra pessoa. Tão silenciosamente en­trou por outra porta que não a notei chegar. Era outro aristo­crata, mais gordo do que aquele que eu havia encontrado na sala de espera, mas igualmente melancólico. Ele se adiantou alguns passos,  fez uma curvatura e disse:

— Se quiserem fazer o favor de entrar...

Todos nós nos levantamos. Fiquei onde estava e deixei que os outros tomassem a frente. Lew parecia pensar que Helen devia tomar-lhe o braço e ela parecia pensar o contrário. Segui-os com o acelerador até a tábua na questão de decoro.

A capela estava também na penumbra. A nossa escolta murmurou algo para a Sra. Frost, ela sacudiu negativamente a cabeça e tomou a frente em direção aos assentos. Havia umas quarenta ou cinqüenta pessoas sentadas. Um olhar de relance mostrou-me diversos rostos que eu havia visto antes: entre outros, Collinger, oi advogado, e uns dois tiras nos últimos assen­tos. Dirigi-me para os fundos porque notei que lá ficava a porta do vestíbulo. O caixão, preto azeviche com pegadores de cromo, cercado e coberto de flores, estava colocado numa peça elevada em frente às cadeiras. Uns dois minutos depois abriu-se a porta na extremidade mais distante do salão e por ela saiu um cara, que se postou junto ao caixão e olhou em volta. Envergava o uniforme de sua profissão, possuía uma boca rasgada e usava uma expressão de confortável segurança, mas não absolutamente impudente. Depois de um espaço decente de olhares em volta, ele começou a falar.

Para um profissional, acho que ele era okay. Fiquei cheio muito antes de ele terminar, pois, comigo, um pouco de unção vai longe. Se eu tivesse de subir aos céus ajudado por todo aquele afetado sentimentalismo, preferiria esquecer o caso e procurar eu mesmo o meu nível natural. Mas falo apenas por mim mesmo. Se o leitor gostar disso, espero que o consiga.

O assento nos fundos permitiu-me cair fora logo que ouvi o amém. Fui o primeiro a sair. Por ter-me admitido à sala particular, ofereci dois dólares ao aristocrata, que aceitou, acho, apenas porque noblesse oblige, e ganhei a calçada. Um sala­frário tinha entrado numa vaga, estacionou a uns seis centí­metros do pára-choque traseiro da barata e eu tive de contorcer-me um bocado para sair sem arranhar o pára-choque do conver­sível de Gebert. Saí como uma bala em direção a Central Park West e ao centro.

Cheguei em casa quase às dez e meia. Um olhar de relance à porta do gabinete indicou-me que Wolfe continuava em sua cadeira, com os olhos cerrados e uma careta horrenda no rosto, escutando no rádio as Pérolas da Hora da Sabedoria. Na co­zinha, Fritz jogava paciência na pequena mesa onde eu tomava o café da manhã. Tirara os chinelos e enfiara os dedos n© degrau de outra cadeira. No momento em que eu me servia de um copo de leite no refrigerador, ele me perguntou:

— Como é que foi? Belo funeral? Repreendi-o:

— Você devia ter vergonha de falar assim. Acho que todos os franceses são sardônicos.

— Não sou francês! Sou suíço.

— Isso é o que você diz. Você lê jornal francês.

Dei o primeiro gole no leite, levei-o para o escritório, sen­tei-me em minha cadeira e olhei para Wolfe. A careta parecia ainda mais pronunciada do que quando eu a olhara de passa­gem. Deixei que ele continuasse a sofrer durante algum tempo, depois fiquei com pena, fui até o rádio, desliguei-o e voltei à cadeira. Beberiquei o leite, observando-o. Gradualmente, o rosto dele relaxou-se. Finalmente, vi-lhe as pálpebras treme­rem e, em seguida, abrirem-se um pouco. Ele inalou um suspiro que foi mesmo até o fundo.

— Muito bem — disse-lhe eu — você bem que merece. Que é que isso significa? Em conjunto, pouco mais de doze passos. Logo que aquele bobalhão começou, você podia ter-se levantado da cadeira, dado quinze passos de ida e quinze de volta, o que faria trinta, e terminaria o sofrimento. Ou, se pensa honestamente que seria esforço demais, poderia mandar instalar um desses aparelhos de controle remoto...

— Eu não o faria, Archie — disse ele à sua maneira pa­ciente. — Realmente, não o faria. Você sabe perfeitamente que tenho iniciativa suficiente para desligar o rádio. Você já me viu fazer isso. O exercício me faz bem. Sintonizo intencional­mente a estação que mais tarde transmitirá as Pérolas da Sa­bedoria e deliberadamente as suporto. É uma questão de dis­ciplina. Fortifica-me para tolerar durante dias as trivialidades comuns. Confesso com prazer que depois de escutar as Pérolas da Sabedoria a sua conversação constitui uma delícia inte­lectual e estética. É o máximo — ele  fez uma careta- — Foi isso que as Pérolas da Sabedoria disseram a respeito dos interesses

culturais. Disseram que são o máximo — contorceu novamente o rosto numa careta. — Santo Deus, estou sedento — projetou-se para a frente com um repelão e inclinou-se para apertar o botão da cerveja.

Mas demoraria um pouco até a cerveja chegar. Pouco depois de ter apertado o botão, a campainha da porta tocou, o que significava que Fritz teria de atendê-la em primeiro lugar. Desde que eram quase onze horas e não esperávamos pessoa alguma, o meu coração começou a bater apressado, como sempre faz quando estamos trabalhando num caso interessante e surge uma pequena surpresa. Para dizer a verdade, tive prova de que caíra novamente diante da teatralidade de Wolfe, pois ocorreu-me a convicção súbita de que Saul Panzer ia entrar com a caixa vermelha debaixo do braço.

Ouvi, em seguida, uma voz no saguão que não pertencia a Saul. A porta foi aberta, Fritz recuou para introduzir o visitante, e Helen Frost entrou. Vendo-lhe o rosto, levantei-me bruscamente da cadeira, aproximei-me, coloquei a mão no braço dela, pensando que pouco faltava para ela desmaiar.

Ela sacudiu a cabeça e eu deixei a mão cair. Dirigiu-se até a escrivaninha de Wolfe e parou. Wolfe tomou a palavra:

— Como está, Srta. Frost? Sente-se — e, secamente:

— Archie, faça-a sentar-se.

Segurei-lhe novamente o braço, empurrei-a suavemente e pus uma cadeira sob ela. Arriou-se na cadeira, olhou-me e disse:

— Obrigada — em seguida, voltou os olhos para Wolfe:

— Aconteceu uma coisa horrenda. Eu não quis ir para casa... e vim para aqui. Estou com medo. Estive com medo durante todo o dia, realmente, mas... Estou com medo agora. Perren morreu. Agora mesmo, na Rua 73. Morreu na calçada.

— Realmente. O Sr. Gebert — Wolfe ergueu um dedo na direção da moça. — Respire fundo, Srta. Frost. De qual­quer modo, precisa respirar. Archie, arranje um pouco de conhaque.

 

Capitulo 16

A nossa cliente recusou com um movimento da cabeça:

— Não quero conhaque algum. Não acho que possa engoli-lo — disse, queixosa e trêmula. — Eu... eu estou com medo!

— Claro — Wolfe endireitou-se na cadeira e abriu bem os olhos. — Ouvi o que disse. Se não se controlar, com o conhaque ou sem ele, a senhorita vai ter uma crise histérica e isso não resolverá coisa alguma. Quer um pouco de amônia? Deitar-se um pouco? Conversar? Pode conversar?

— Posso — respondeu ela, pondo as pontas dos dedos nas têmporas e acariciando-as suavemente — a testa e as têm­poras novamente. — Posso. Não vou ter um ataque histérico.

— Ótimo. Então o Sr. Gebert morreu na calçada da Rua 73. Quem o matou?

— Não sei — ela se sentava espigada, com as mãos cruza­das no regaço. — Estava entrando no carro quando subita­mente recuou, veio correndo pela calçada em nossa direção... e caiu. Lew me disse depois que ele estava morto...

— Espere um minuto. Por favor. Será melhor contar a história ordenadamente. Presumo que isso tenha ocorrido antes que a senhorita tivesse deixado a capela. Saíram todos juntos? Sua mãe e tio, seu primo e o Sr. Gebert?

Ela inclinou a cabeça.

— Sim, Perren ofereceu-se para levar-nos de carro até em casa, mas respondi que preferia andar um pouco. Meu tio disse que queria falar com minha mãe, de modo que iria tomar um táxi. Estávamos andando devagar pela calçada, resolvendo o que...

Eu interrompi:

— Na direção leste? Para o carro de Gebert?

— Sim. Eu não sabia na ocasião... Não sabia onde estava o carro dele, mas ele se afastou e meu tio, minha mãe e eu ficamos ali, enquanto Lew descia até a rua para chamar um táxi. Eu estava olhando na direção que Perren tinha tomado. Meu tio, também. Vimo-lo parar, abrir a porta... e saltar para trás, ficar em pé um segundo, gritar e começar a correr em nossa direção... mas ele somente percorreu metade da dis­tância, caiu... tentou rolar... tentou...

Wolfe ergueu o dedo em direção da moça e disse:

— Menos vividamente, Srta. Frost. A senhorita viveu a cena já uma vez e portanto não tente revivê-la. Apenas nos conte o que aconteceu. Os fatos. Ele caiu, tentou rolar no chão, parou. Pessoas correram para socorrê-lo. A senhorita também? Sua mãe?

— Não. Minha mãe segurou-me o braço. Meu tio correu para ele e também um homem que estava por ali. Chamei Lew, ele veio e correu também. Mamãe me disse para ficar onde estava e foi andando até eles. Outras pessoas começaram a chegar. Fiquei onde estava e mais ou menos meio minuto depois Lew aproximou-se de mim e disse que pensava que Perren estava morto. Disse-me para tomar um táxi e ir para casa, onde devia ficar. O táxi que ele chamara estava parado ali, ele me colocou nele, mas logo que o táxi partiu, não quis ir mais para casa e disse ao motorista para trazer-me aqui. Eu... eu pensei que talvez...

— Não se poderia esperar que a senhorita pensasse. Não estava em condições de fazê-lo — Wolfe recostou-se na pol­trona. — Então foi assim. A senhorita não sabe de que morreu Gebert?

— Não. Não houve som... nada...

— Sabe por acaso se ele comeu ou bebeu qualquer coisa na capela?

Ela levantou vivamente a cabeça e engoliu em seco.

— Não. Tenho certeza que não.

— Não importa — disse Wolfe, exalando um suspiro. — Isto será apurado. A senhorita disse que depois de ter recuado do carro, o Sr. Gebert gritou. Gritou alguma coisa especial?

— Sim... gritou. O nome de minha mãe. Como se esti­vesse pedindo socorro.

Wolfe ergueu uma das sobrancelhas.

— Tenho esperança de que tenha gritado ardentemente. Perdoe-me por permitir-me uma observação facciosa. O Sr. Gebert a entenderia, caso estivesse aqui. Assim, ele gritou. "Calida". Mas de uma vez?

— Sim, diversas vezes. Se quer dizer... o nome de minha mãe...

— Na verdade, não estou insinuando coisa alguma. Estava dizendo uma bobagem. Parece, pelo que a senhorita contou, que o Sr. Gebert pode ter morrido de um ataque cardíaco, uma embolia cerebral ou de misantropia aguda. Mas acredito que disse que ficou com medo. De quê?

Ela o fitou,, abriu a boca, fechou-a novamente e mur­murou :

— É porque... é o que... — e calou-se. Descruzou as mãos, agitou-as no ar e pousou-as novamente no regaço. Tentou novamente: — Eu lhe disse... Tenho estado com medo...

— Muito bem — disse Wolfe erguendo a palma da mão. — Não precisa tentar. Compreendo. A senhorita quer dizer que já há algum tempo tem estado receosa de algo maligno nas relações com aqueles mais próximos e mais queridos. Natural­mente, a morte do Sr. NcNair agravou as coisas. Teria sido isso porque... mas perdoe-me. Estou-me entregando a um dos meus vícios num momento inapropriado... inapropriado para a senhorita. Eu não hesitaria em atormentá-la se isto servisse aos nossos fins, mas é inútil agora. Nada é necessário. A senhorita tinha a intenção de casar-se com o Sr. Gebert?

— Não. Jamais tive essa intenção.

— Sentia afeição por ele?

— Não. Já disse... Eu não gostava realmente dele.

— Ótimo. Então, logo que o choque temporário passar, a senhorita poderá ser objetiva a respeito do caso. O Sr. Gebert tinha muito pouca coisa que o recomendasse, seja como ser sapiente seja como espécime biológico. A verdade é que a morte dele simplifica um pouco nosso trabalho. Não sinto pena e nem finjo que sinto. Ainda assim, o seu assassinato será vingado porque não podemos evitar isso. Asseguro-lhe, Srta. Frost, de que não estou tentando mistificá-la. Mas, desde que não estou.em condições ainda de dizer-lhe coisa alguma, acho que seria melhor nada lhe dizer, de modo que vou limitar-me esta noite a um pequeno conselho. Naturalmente, a senhorita tem amigos... como, por exemplo, aquela Srta. Mitchell que tentou mostrar-lhe lealdade na manhã de terça-feira. Vá para a casa dela agora, sem informar a pessoa alguma, e passe lá a noite. O Sr. Goodwin pode levá-la de automóvel. Amanhã...

— Não — respondeu ela, sacudindo a cabeça. — Não farei isso. Aquilo que o senhor disse... sobre o assassinato de Perren. Ele foi assassinado, não?

— Claro. Morreu ardentemente. Repito a frase porque gosto dela. Se fizer^uma conjectura a esse respeito, tanto me­lhor para a senhorita, como preparação. Não a aconselho a passar a noite com um amigo em virtude de qualquer perigo para sua pessoa, pois não há nenhum. Na verdade, não há mais perigo para pessoa alguma, exceto na medida em que eu o personifico. Mas deve saber que se for para casa não vai dormir muito. A Polícia exigirá detalhes aos berros. Prova­velmente está intimidando sua família agora mesmo e seria apenas bom senso livrar-se desse catecismo. Amanhã pela manhã eu poderia informá-la dos acontecimentos.

Ela recusou novamente com um movimento da cabeça.

— Não — disse e deu a impressão de decidida. — Vou para casa. Não quero fugir... Vim aqui simplesmente... e de qualquer maneira, minha mãe, Lew e meu tio... não. Vou para casa- Mas se o senhor pudesse apenas dizer-me... por favor, Sr. Wolfe, por favor... se pudesse dizer-me alguma coisa para que eu pudesse saber...

— Não posso. Não agora. Breve. Entrementes...

O telefone tocou. Girei na cadeira e atendi. Imediata­mente fiquei em dificuldades. Um tolo qualquer, com uma voz que parecia sirena de nevoeiro, queria que Wolfe atendesse imediatamente e, quanto mais cedo melhor, sem dar-se ao tra­balho de dizer-me quem era e quem queria falar comi ele. Levei-o na troça até que ele trovejou para eu esperar um pouco. Após um minuto, ouvi outra voz que reconheci imediatamente:

— Goodwin? Inspetor Cramer. Talvez eu não precise de Wolfe. Eu sentiria imensamente ter de perturbá-lo. Helen Frost está aí?

— Quem? Helen Frost?

— Foi isso o que eu disse.

— Por que deveria estar aqui? O senhor acha que tra­balhamos também no turno da noite? Espere um minuto, eu não sabia que era o senhor. Acho que o Sr. Wolfe quer-lhe perguntar alguma coisa — abafei o telefone e voltei-me; — O Inspetor Cramer quer saber se a Srta. Frost está aqui.

Wolfe ergueu os ombros um centímetro e deixou-os cair. Nossa cliente respondeu:

— Naturalmente. Diga-lhe que estou aqui. Falei ao aparelho:

— Não. Wolfe não consegue pensar em coisa alguma que o senhor provavelmente já sabe. Mas se o senhor se refere a Srta. Helen Frost, acabo de vê-la sentada numa cadeira.

— Oh, então ela está aí. Qualquer dia destes eu vou torcer-lhe o pescoço. Quero que ela venha imediatamente para casa... não, espere. Mantenha-a aí. Mandarei uma pessoa...

— Não se preocupe. Eu mesmo vou levá-la.

— Quando?

— Agora mesmo. Imediatamente. Sem demora. Desliguei e girei na cadeira para fitar a cliente.

— Ele está no seu apartamento. Acha que todos estão lá. Vamos? Eu ainda posso dizer a ele que sou míope e que não era a senhorita que estava nessa cadeira.

Ela se levantou. Fitou Wolfe, um pouco abatida, mas logo espigou-se.

— Muito obrigada — disse. — Se não há realmente coisa alguma...

— Sinto muito, Srta. Frost. Nada, por ora. Talvez amanhã. Dar-lhe-ei um aviso. Não se incomode com o Sr. Cramer mais do que deve. Ele indubitavelmente tem boas intenções. Boa noite.

Levantei-me, indiquei-lhe com a cabeça a saída, saímos e eu apanhei o chapéu no saguão.

Eu colocara a barata na garagem e tivemos de caminhar até lá. Ela me esperou à entrada. Depois que subimos e eu entrei na Décima Avenida, disse-lhe:

— A senhorita andou recebendo esquerdos e direitos e está um pouco grogue. Recoste-se, feche os olhos e respire profun­damente .

Ela agradeceu mas permaneceu espigada, com os olhos abertos e nada disse até a Rua 65. Eu pensava que bem po­deria aproveitar a noite. Desde que ela irrompera em nossa casa com a notícia, eu me censurava por ter saído com tanta pressa da Rua 73 naquele dia. O caso ocorrera exatamente no carro de Gebert, estacionado em frente ao meu, menos de cinco minutos depois de eu ter ido embora. Que azar. Eu poderia ter estado lá, mais perto do que qualquer outra pessoa...

Não consegui tampouco aproveitar a noite. Minha jornada até o apartamento dos Frosts como escolta de Helen foi curta e amarga. Ela me entregou a chave da porta de entrada do edifício e, logo que a abri, vi um detetive. Outro aboletava-se numa cadeira junto aos espelhos. Helen e eu começamos a caminhar, mas fomos bloqueados.

— Esperem um minuto, por favor — disse o detetive. — Ambos.

Desapareceu pela porta da sala de estar. Logo depois a porta foi reaberta e Cramer entrou. Deu-me a impressão de preocupado e inamistoso.

— Boa noite, Srta. Frost. Entre comigo, por favor.

— Minha mãe está aqui? Meu primo...

— Estão todos aqui. Muito bem, Goodwin, muito obriga­do. Bons sonhos.

Sorri para ele.

— Não estou com sono. Posso ficar por aqui sem inter­ferir ...

— Pode também dar o fora sem interferir. Quero vê-lo fazer isso.

Pelo seu tom de voz vi que não adiantava. Ele meramente continuaria inflexível. Ignorei-o. Fiz uma mesura para nossa cliente.

— Boa noite, Srta. Frost. Voltei-me para o detetive.

— Atenção, meu bom homem, abra a porta.

Ele não se moveu. Estendi a mão para a maçaneta, abri-a de par em par, aí, e deixei-a aberta. Aposto que ele a fechou.

 

Capitulo 17

Na manhã seguinte, sábado, não houve indicação prematura de que a atividade detetivesca de Nero Wolfe tivesse fardo mais pesado do que uma pena na mente ou consciência. Banhei e vesti minha figura antes das oito, esperando mais ou menos uma convocação do chefe da firma antes do café da manhã para algum tipo de ação, mas eu bem poderia ter roncado os meus 510 minutos completos. O telefone continuou silencioso. Como sempre, Fritz levou-lhe uma bandeja de suco de laranja, bolachas e chocolate no momento aprazado e não houve indi­cação alguma de que eu estivesse escalado para algo mais ativo do que abrir envelopes do correio da manhã e ajudar Fritz a esvaziar a cesta de papéis usados.

Às nove, quando fui informado pelo sussurro do elevador que Wolfe subia para as duas horas com Horstmann nas estu­fas, eu me encontrava sentado à mesinha da cozinha, fazendo o que devia com uma fila de torradas e quatro ovos fritos em manteiga escura e xerez numa caçarola tampada sobre fogo lento, absorvendo os relatos dos matutinos sobre a morte sen­sacional de Perren Gebert. A versão era nova para mim. A idéia era que, quando ele começara a entrar no carro, batera com a cabeça contra um prato cheio de veneno posto sobre um pedaço de fita adesiva colocada no forro em cima do assento do motorista. O veneno tinha-se derramado por cima dele, a maior parte pela nuca. Os jornais não deram o nome do veneno. Resolvi terminar a segunda xícara de café antes de ir à estante no gabinete apanhar um livro sobre toxicologia e exa­minar as possibilidades. Não poderia haver mais de dois ou três que produzissem resultados tão rápidos e completos quando aplicados externamente.

Pouco depois das nove recebemos um telefonema de Saul Panzer. Perguntou por Wolfe e eu o liguei até a estufa. Em seguida, para desgosto meu, mas não para minha surpresa, Wolfe disse-me para sair da linha. Estirei as pernas, olhei para as pontas dos sapatos e disse a mim mesmo que chegaria o dia em que eu entraria no escritório levando um assassino na valise e que Nero Wolfe teria de pagar uma fortuna para dar uma espiada. Pouco depois, Cramer telefonou. Foi ligado também para Wolfe e desta vez fiquei na linha e garatujei no bloco. Mas foi tudo pura perda de tempo e de talento. Cramer dava a impressão de cansado e irritado como se precisasse de três drinques e de um bom cochilo. O núcleo dos seus rosnados era que estavam furiosos no gabinete do Promotor Público e pres­tes a tomar providências drásticas. Wolfe murmurou, cheio de simpatia, que nutria a esperança de que eles não fizessem coisa alguma que interferisse no progresso que Cramer realizava no caso. Cramer indicou a Wolfe o lugar para onde ir.

Apanhei o livro sobre toxicologia e acho que, para um es­pectador leigo, eu teria dado a impressão de uma cara estudioso mergulhado numa pesquisa, mas, para dizer a verdade, eu era um tigre enjaulado. Queria tanto entrar em ação que o estô­mago me doía. E queria principalmente porque eu havia feito umas duas besteiras no caso, a primeira quando não conseguira arrancar Gebert dos gorilas em Glennanne e depois quando saíra na Rua 73 três minutos antes de Perren Gebert receber seu recado ali mesmo.

Foi esse estado de espírito que não me tornou muito hospi­taleiro, quando, mais ou menos às dez horas, Fritz trouxe-me o cartão de um visitante em que vi chamar-se Mathias. R. Frisbie. Disse a Fritz para mandá-lo entrar. Eu ouvira falar desse Frisbie, Promotor Público Assistente, mas não o conhe­cia. Observei, quando ele entrou, que não perdera grande coisa. Era do tipo de manequim de vitrina — colarinho alto, roupas bem passadas, duro e frio por efeito do embalsamamento. A única coisa que se podia depreender dos olhos era que a auto-estima quase lhe doía.

Ele me comunicou que queria ver Nero Wolfe. Respondi que o Sr. Wolfe estaria ocupado, como sempre pela manhã, até às onze. Replicou que era urgente e importante e que queria vê-lo imediatamente. Respondi com um sorriso:

— Espere um minuto.

Subi três lances de escada até as estufas e encontrei Wolfe e Theodore experimentando um novo método de polinizar se­mentes híbridas. Ele inclinou a cabeça para admitir que eu estava presente.

— As providências drásticas estão lá embaixo — disse-lhe. — O nome é Frisbie. O gajo que funcionou na acusação em nome de Muir no caso de furto de Clara Fox, lembra-se? Ele quer que você abandone tudo que esteja fazendo e desça logo.

Wolfe continuou calado. Esperei meio minuto e perguntei-lhe agradàvelmente:

— Digo a ele que você perdeu a fala subitamente? Wolfe resmungou e disse sem se voltar:

— E você ficou satisfeito em vê-lo. Até mesmo um Pro­motor Público Assistente e até mesmo ele. Não negue. A vinda dele deu-lhe uma desculpa para vir importunar-me. Muito bem, importunou-me. Vá.

— Nenhum recado?

— Nenhum. Vá.

Desci preguiçosamente as escadas. Pensei que Frisbie po­deria gostar de alguns momentos a sós, de modo que parei na cozinha para um dedo de prosa com Fritz a respeito das pers­pectivas do almoço e outros tópicos interessantes. Ao entrar no gabinete, encontrei Frisbie sentado, de sobrancelhas franzi­das, com os cotovelos nos braços da cadeira e as pontas dos dedos juntas, devidamente correspondendo entre si.

— Oh, sim, Sr. Frisbie — disse-lhe — desde que o senhor disse que precisa falar com o próprio Sr. Wolfe, posso arranjar-lhe um livro ou alguma coisa? O jornal da manhã? Ele descerá às onze.

As pontas dos dedos de Frisbie se separaram. Ele indagou:

— Ele está em casa, não?

— Certamente. Ele nunca está em outro lugar.

— Neste caso... Não esperarei uma hora. Fui avisado para esperar isto. Mas não o tolerarei.

Encolhi os ombros.

— Okay. Farei as coisas tão fáceis para o senhor quanto puder. Quer ler os jornais da manhã enquanto não o tolera?

Levantou-se.

— Ouça aqui. Isto é insuportável. Vezes sem conta esse Wolfe teve o desaforo de obstruir a ação do nosso gabinete. O Sr. Skinner enviou-me aqui...

— Aposto que enviou. Ele não viria novamente aqui de­pois da última experiência que teve...

— Ele me enviou e em hipótese alguma tenho a intenção de ficar esperando até as onze. Devido a um excesso de leniência com que Wolfe foi tratado por certos servidores públi­cos, ele aparentemente se considera acima da lei. Ninguém pode escarnecer do processo da justiça... ninguém! — ele ficou mais vermelho. — Boyd McNair foi assassinado há três dias neste gabinete e há todos os motivos para acreditar que Wolfe sabe mais a respeito do caso do que contou. Ele devia ter sido levado à presença do Promotor Público imediatamente... mas não, não foi nem mesmo devidamente interrogado! Agora, outro homem foi assassinado e, mais uma vez, há bons motivos para acreditar que Wolfe se recusou a dar informações que podiam ter evitado o crime. Fiz a ele uma grande concessão em vir aqui e quero vê-lo imediatamente. Imediatamente!

Concordei com um gesto de cabeça.

— Claro, sei que o senhor quer vê-lo, mas não perca o rebolado. Vamos fazer uma pergunta hipotética: se eu disser que o senhor tem de esperar até as onze, que é que vai acon­tecer?

Olhou-me furioso.

— Não esperarei. Voltarei a meu gabinete e enviar-lhe-ei uma intimação. E providenciarei para que seja revogada a li­cença dele. Ele pensa que o amigo Morley pode salvá-lo, mas não pode ficar impune com esse tipo de desonesta e fraudu­lenta ...

Dei-lhe um tapa. Provavelmente não o teria feito se, de qualquer maneira, eu não estivesse de mau humor. Não foi um soco, meramente um tapa com a palma da mão na bochecha, mas abalou-o um pouco. Ele recuou um passo e começou a tremer, com os braços de lado e os punhos cerrados.

— Eles não lhe farão bem algum dessa maneira, junto dos joelhos — disse-lhe. — Levante-os ou dou-lhe outro tapa.

Furioso demais para pronunciar as palavras corretamente, ele gaguejou:

— Vo... você... vai-se arrepender. Você...

— Cale a boca e dê o pira antes que eu fique zangado — respondi. — O senhor fala em suspender licenças! Sei o que lhe está mordendo. O senhor tem sonhos de grandeza, está pensando em conseguir um grande caso desde que lhe deram aquela escrivaninha e uma cadeira lá no gabinete do Promotor. Conheço-o muito bem. Sei por que Skinner mandou-o aqui. Quis dar-lhe uma oportunidade de fazer-se de palhaço por si mesmo e o senhor nem mesmo teve bom senso bastante para perceber isso. Na próxima vez que abrir a boca para dizer que Nero Wolfe é desonesto e fraudulento eu não lhe darei um tapa onde ninguém veja, mas diante de uma platéia. Fora! De certa maneira acho que foi certo e, naturalmente, era a única coisa a fazer nas circunstâncias, mas não senti uma satis­fação lá muito profunda em fazê-lo. Ele se voltou e saiu. Depois de ter ouvido a porta da frente fechar-se nas costas dele, bocejei, cocei a cabeça e dei um pontapé na cesta de papéis. Fora um prazer passageiro esbofeteá-lo e passar-lhe um sermão de despe­dida, mas, agora que tudo estava acabado, notei uma inclinação bem dentro de mim para sentir-me virtuoso, e isto tornou-me ainda mais sombrio e irritado do que antes. Odeio sentir-me virtuoso, pois me põe pouco à vontade e sempre acabo querendo dar pontapés em alguma coisa.

Levantei a cesta de papéis e apanhei o lixo peça por peça. Tirei o registro das plantas, abri-o e devolvi-o novamente ao lugar, fui à sala da frente, olhei pela janela para a Rua 35, voltei, respondi a um telefonema do Mercado Ferguson, que passei a Fritz e, finalmente, encarapitei-me novamente sobre o cóccix com o livro de toxicologia- Lutava ainda com ele quando Wolfe desceu às onze das estufas.

Dirigiu-se até a escrivaninha, sentou-se e  fez os movi­mentos habituais com a caneta, correspondência, o vaso de or­quídeas e o botão para convocar a cerveja. Fritz apareceu com a bandeja, Wolfe serviu-se, bebeu e enxugou os lábios. Em seguida, recostou-se e suspirou. Relaxava-se após as can­sativas atividades entre os vasos de flores.

— Frisbie tornou-se tão detestável que eu lhe dei um tapa no rosto com a palma da mão — disse. — Ele vai revogar sua licença, mandar trazer-lhe diferentes intimações e talvez o jogue num vidro de água de barrela.

— Realmente — disse Wolfe abrindo os olhos e mirando-me. — Ele ia revogar a licença antes que você lhe batesse ou depois?

— Antes. Depois ele não falou muito. Wolfe estremeceu.

— Confio na sua discrição, Archie, mas às vezes tenho a impressão de que estou confiando na discrição de uma ava­lancha. Não havia outro meio senão massacrá-lo?

— Não o massacrei. Nem mesmo dei-lhe um bom tapa. Foi mais um gesto de aborrecimento. Estou de mal-humor hoje.

— Sei que está. E não o censuro. Este caso tem sido te­dioso e desagradável desde o início. Parece que aconteceu alguma coisa a Saul. Temos um trabalho a fazer. Terminará, penso eu, tão desagradàvelmente como começou, mas nós o faremos com estilo, se pudermos, e com finalidade... Ah! Es­pero que seja Saul agora.

Tocara a campainha da porta. Mais uma vez, porém, como na noite anterior, não era Saul. Desta vez era o Inspetor Cramer.

Fritz introduziu-o e ele atravessou pesadamente a sala. Dava a impressão de que estava precisando ir para uma doca seca. Tinha bolsas sob os olhos, o cabelo grisalho estava despenteado e os ombros não pareciam tão eretos e militares como deviam ser os ombros de um inspetor. Wolfe cumprimentou-o:

— Bom dia, cavalheiro. Sente-se. Aceita uma cerveja?

Ele se sentou na cadeira dos bobos, permitiu-se uma res­piração profunda, tirou um charuto do bolso, olhou-o com uma careta e devolveu-o novamente ao bolso. Tomou outra respi­ração e dirigiu-se a nós ambos:

— Quando fico num estado em que não quero um cha­ruto, é porque estou numa encrenca dos diabos — ele me fitou. — O que, por falar nisso,  fez você com Frisbie?

— Nada absolutamente. Nada de que me lembre.

— Bem, ele se lembra. Acho que você está liquidado. Acho que ele vai apresentar uma acusação de perfídia contra você.

— Isto não me tinha ocorrido — respondi, sorrindo para ele. — Acho que foi isso mesmo, perfídia. Que é que eles vão fazer, enforcar-me?

Cramer encolheu os ombros:

— Não sei nem me interessa. O que lhe acontece é o que menos me preocupa. Oh, Deus, eu queria ter vontade de acender um charuto — tirou um charuto do bolso, examinou-o e desta vez conservou-o na mão. Em seguida, ignorou-me. — Des­culpe-me, Wolfe, acho que esqueci de dizer que não queria a cerveja. Acho que você pensa que vim aqui para armar um barulho.

— Bem, não veio? — murmurou Wolfe.

— Não, não vim. Vim para termos uma conversa razoá­vel. Posso fazer-lhe umas duas perguntas diretas e conseguir umas duas respostas diretas?

— Pode tentar. Dê-me um exemplo.

— Okay. Se déssemos uma busca neste lugar, nós encon­traríamos a caixa vermelha de McNair?

— Não.

— Já a viu por acaso ou sabe onde ela está.

— Não. A ambas as perguntas.

— McNair disse-lhe alguma coisa aqui na quarta-feira antes de morrer que, lhe sugerisse qualquer motivo para esses assassinatos?

— O senhor conhece cada palavra que o Sr. McNair pro­nunciou neste escritório. Archie leia suas notas.

— Sim, eu sei. Recebeu qualquer informação sobre o mo­tivo de qualquer outra fonte.

— Ora, realmente — Wolfe ergueu um dedo. — Essa per­gunta é absurda. Claro que sim. Não estou investigando este caso há quatro dias?

— De quem?

— Bem, para citar apenas uma fonte, do senhor mesmo. Cramer olhou-o fixamente. Enfiou o charuto na boca e

mordeu-o sem saber o que estava fazendo. Ergueu as mãos e deixou-as cair.

— O problema com você, Wolfe — disse ele — é que você não pode esquecer nem por um momento o quanto é sabido. Diabo, eu sei disso. Você pensa que perco meu tempo fazendo visitas destas a Del Pritchard ou Sandy Mollew? Quando foi que eu lhe disse e o que foi?

Wolfe sacudiu a cabeça.

— Não, Sr. Cramer. Agora — como dizem as crianças — o senhor está ficando quente. E não estou ainda inteiramente pronto. Suponhamos que mudemos de lado. Também tenho minhas curiosidades. A história do matutino estava incom­pleta. Que espécie de engenhoca foi essa que derramou veneno sobre o Sr. Gebert?

— Quer saber? — perguntou Cramer com um resmungo.

— Estou curioso e poderíamos matar o tempo.

— Oh, poderíamos mesmo — o Inspetor tirou o charuto da boca, olhou-lhe a ponta surpreso por vê-la apagada, acendeu

um fósforo e tirou uma baforada. — Foi mais ou menos assim Imagine um pedaço de esparadrapo comum de dois centímetros de largura por dez de comprimento. Pregue as extremidades do esparadrapo ao forro da capota do carro de Gebert, em cima do assento do motorista, mais ou menos a dez centímetros de distância, de modo que o esparadrapo fique pendente como uma rede. Tome um prato de molho comum de matéria plástica, do tipo que se compra nas lojas de cinco e dez centavos, co­loque-o na rede, equilibrando-o cuidadosamente, porque à mí­nima agitação ele cairá. Antes de colocar o prato na rede, derrame nele uns sessenta gramas de nitrobenzeno — ou, se preferir, pode chamá-lo de essência de mirbane, ou óleo de imitação de amêndoas amargas porque é a mesma coisa. Além disso, derrame também trinta gramas mais ou menos de água do pote, de modo que o nitrobenzeno se deposite no fundo e a camada de água na parte superior impeça que o óleo se evapore e desprenda cheiro. Se você fizer o experimento de entrar num carro do jeito que qualquer pessoa comum o faz, descobrirá que os olhos se dirigem naturalmente para o assento e o piso e que não há uma chance em mil de que veja coisa alguma presa no teto, especialmente à noite e, além disso, descobrirá ainda que sua cabeça ficará a dois centímetros do teto e que inevi­tavelmente baterá no prato. E mesmo que não bata, ele cairá e derramará por cima de você no primeiro buraco em que entrar ou na primeira esquina que virar. Que é que acha disso como brincadeira pesada.

Wolfe inclinou a cabeça.

— Do ponto de vista pragmático, quase perfeito. Simples, eficaz, e barato. Caso a pessoa tivesse aquele veneno já há algum tempo, em preparativo para uma emergência, a despesa total não iria a mais de quinze centavos — esparadrapo, uma onça de água, uma molheira. Pela reportagem do jornal, des­confiei de nitrobenzeno. Produziria o efeito esperado.

Cramer concordou enfaticamente com a cabeça.

— Claro que sim. No ano passado, um operário numa fábrica de corantes derramou alguns gramas nas calças, não diretamente na pele, e morreu dentro de uma hora. O homem que mandei acampanar Gebert pegou nele depois de ele ter caído, recebeu um pouco nas mãos e alguns vapores fortes e está agora no hospital com um rosto azul e lábios e unhas de cor púrpura. Lew Frost também absorveu um pouco, mas não muito. Gebert deve ter virado a cabeça quando sentiu a coisa escorrer e cheirou-a, porque recebeu um pouco no rosto e talvez mesmo umas duas gotas sob os olhos. Você devia tê-lo visto uma hora depois de ter acontecido.

— Acho que não — respondeu Wolfe servindo-se de cer­veja. — Olhá-lo não lhe teria feito bem algum e certamente nenhum a mim — bebeu, apalpou o bolso à procura de um lenço, não o encontrou. Dei-lhe um da gaveta. Ele se recostou e olhou com simpatia para o Inspetor. — Confio, Sr. Cramer, em que a rotina se desenvolva satisfatoriamente.

— Sabidinho novamente, hem? — disse Cramer puxando uma baforada. Minha vez chega dentro de um minuto. Mas tentarei satisfazê-lo. A rotina desenvolve-se exatamente como deve, mas sem resultado algum. Isto deve levá-lo a estalar os lábios de satisfação. Você me deu o palpite na quarta-feira passada para concentrar-me na família Frost — muito bem, qualquer um deles podia ter cometido o crime. Se foram os jovens, eles fizeram a coisa juntos, porque chegaram juntos à capela. Teriam apenas o tempo suficiente para pregar o espa­radrapo e derramar o veneno porque chegaram lá apenas um minuto ou dois depois de Gebert. Poderia ter sido feito em dois minutos. Fiz um teste. O tio e a mãe chegaram separada­mente e ambos teriam tido tempo de sobra. Eles explicaram o tempo, naturalmente, mas não de uma maneira que se possa conferir quando chega aos minutos. No tocante à oportuni­dade, nenhum deles está excluído.

O Inspetor tirou outra baforada e continuou:

— Outra coisa, você poderia pensar que podíamos ter encontrado algum transeunte que viu alguém mexendo no teto daquele carro, mas a coisa poderia ter sido feita do lado de dentro, com a porta fechada, e não teria atraído muita atenção, pois era noite. No particular, não tivemos sorte até agora. Encontramos os vidros vazios no carro, no porta-luvas — vidros comuns de sessenta gramas, vendidos em todas as farmácias, sem rótulo. Claro que não havia impressões digitais neles ou no prato e, quanto a descobrir de onde vieram, seria igual a querer descobrir de onde veio um fósforo de cabeça vermelha de uma dessas carteirinhas. Estamos examinando as fontes de nitrobenzeno, mas concordo com você que quem quer que esteja dirigindo esse espetáculo não ia deixar uma pista dessas.

— Digo-lhe uma coisa — prosseguiu ele, tirando outra ba­forada — não acredito que possamos resolver o caso. Podemos continuar tentando, mas não acredito em sucesso. Há um excesso de sorte e inteligência maligna contra nós. Passarão meses antes que eu entre no meu carro novamente sem olhar para o teto. Temos de solucioná-lo através do motivo, ou juro que começo a acreditar que jamais o solucionaremos. Sei que é isto o que quer também e que foi por isso que disse que a caixa vermelha resolveria o caso. Mas onde diabo ela se encontra? Se não pudermos encontrá-la, teremos de descobrir o motivo sem ela. Até agora, resultado zero, não apenas com os Frosts, mas também com todas as outras pessoas que investigamos. Admitido que Dudley Frost tenha dado um desfalque como curador do espólio, o que pode ter havido ou não, que pro­veito lhe traria liquidar McNair e Gebert? No caso de Lew e da moça, não há nem mesmo sombra de motivo. No caso da Sra. Frost, sabemos que ela esteve pagando a Gebert um bocado de dinheiro durante longo tempo. Ela diz que estava amortizando uma velha dívida, ele está morto e, de qualquer modo, não nos diria coisa alguma. Provavelmente, era chan­tagem por algo que ocorreu há muito tempo, mas por que ela teria de matá-lo exatamente agora e em que parte é que se enquadra McNair? McNair foi o primeiro a morrer.

Cramer estendeu a mão para bater a cinza no cinzeiro, recostou-se na cadeira e resmungou:

— Aí estão — disse amargamente. — Aí estão uma ou duas perguntas para você. Estou de volta onde estava na últi­ma terça-feira, quando vim aqui e lhe disse que estava derro­tado, com a diferença de que morreram mais duas pessoas. Não lhe disse que este caso era seu? Não é o meu tipo. Há uma hora, no gabinete do Promotor Público, eles queriam co­locar um anel no seu nariz e o que eu disse a Frisbie serviria para fritar um ovo. Você é o pior espinho na carne que conheço, mas é pelo menos também metade tão sabido quanto penso que é, e isto o põe cabeça e ombros acima de qualquer pessoa desde Júlio César. Sabe por que mudei de cantiga desde ontem? Porque Gebert foi assassinado e você ainda conserva a cliente. Se você tivesse desistido deste caso esta manhã, eu estaria pronto e ansioso para colocar três anéis no seu nariz. Mas agora acre­dito em você. Não acredito que você tenha a caixa vermelha...

A interrupção foi de Fritz — a batida na porta do escri­tório, a entrada, a aproximação até dois passos da escrivaninha de Wolfe, a mesura cerimoniosa:

— O Sr. Morgan quer vê-lo, senhor.

Wolfe inclinou a cabeça e as rugas do seu rosto relaxaram-se um pouco. Eu não o vira assim desde que o tirara à força daquela recaída. Ele murmurou:

— Não tem importância, Fritz, não temos segredos para o Sr. Cramer. Diga-lhe que entre.

Fritz saiu e Saul Panzer entrou. Observei-o. Deu-me a impressão de abatido, mas não exatamente desanimado e, sob o braço, conduzia um pacote embrulhado em papel pardo, mais ou menos do tamanho de uma caixa de charutos. Dirigiu-se até a mesa de Wolfe.

Wolfe ergueu as sobrancelhas.

— Então? .

Saul  fez aceno afirmativo.

— Sim, senhor.

— Conteúdo em ordem?

— Sim, senhor. Como atrasou...

— Não tem importância.

Archie, por favor, coloque esse pacote no cofre. É tudo agora, Saul. Volte as duas horas.

Apanhei o pacote, fui até o cofre, abri-o e fechei-o, pacote parecia sólido, mas não pesava muito. Saul saiu.

Wolfe reclinou-se na escrivaninha e semicerrou os olhos.

— Então foi assim — murmurou. Exalou um profundo suspiro. — Sr. Cramer, eu disse há pouco que poderíamos muito bem matar o tempo. Nós o fizemos. É sempre um triunfo evitar o tédio — olhou de relance para o relógio. — Agora podemos falar de negócios. Passa de uma hora e nós aqui almo­çamos à uma hora. Poderia trazer a família Frost aqui, todos eles, às duas horas? Se fizer isto, solucionarei este caso para o senhor. Levará uma hora, talvez.

Cramer coçou o queixo. Fê-lo com a mão que segurava o charuto, caindo-lhe a cinza sobre as calças, mas não prestou atenção ao fato. Olhava Wolfe atentamente. Finalmente, disse:

— Uma hora, hem?

Wolfe disse que sim com a cabeça.

— Possivelmente mais. Mas acho que não. Cramer fitou-o.

— Oh, acha que não — lançou-se para a frente. — Que é que havia naquele pacote que Goodwin acabou de colocar no cofre?

— Algo que me pertence. Agora, espere! — Wolfe ergueu um dedo. — Diabos o levem, por que precisa explodir? Con­vido-o para observar a solução dos assassinatos de Molly Lauck, do Sr. McNair e do Sr. Gebert. Não discutirei o assunto nem admito que grite comigo. Se eu tivesse outra intenção, poderia convidar, em vez do senhor, representantes dos jornais, ou o Sr. Morley do gabinete do Promotor Público. Pratica­mente qualquer pessoa. Cavalheiro, o senhor é rude. Quer dis­cutir com a sorte? Duas horas e todos os Frosts devem estar aqui. Bem, cavalheiro?

Cramer levantou-se.

— Diabos me levem — disse, lançando um olhar ao cofre. — Aquilo era a caixa vermelha, hem? Diga-me.

Wolfe sacudiu a cabeça.

— Duas horas.

— Muito bem. Mas escute aqui. Algumas vezes você fica um bocado imaginoso. Mas, por Deus, é melhor que a tenha.

— Terei, às duas horas.

O Inspetor olhou novamente para o cofre, balançou a ca­beça, enfiou o charuto entre os dentes e saiu.

 

Capitulo 18

Os Frosts chegaram todos ao mesmo tempo, um pouco depois das duas, e isto por um motivo excelente: eram escol­tados pelo Inspetor Cramer e por Purley Stebbins, da Dele­gacia de Homicídios, Purley trouxe Helen e a mãe num carro de passeio azul-escuro que, acho, pertencia a Helen, encarregando-se Cramer dos dois homens no seu próprio ônibus. Eu terminara o almoço, olhava pela janela da sala da frente e man­dei-os entrar. Minhas instruções eram no sentido de levá-los diretamente ao escritório.

Eu me sentia tão nervoso como um deputado em véspera de eleição. Fora informado dos pontos principais do programa de Wolfe. Era-lhe agradável armar essas complicadas chara­das, na parte que lhe tocava, pois não possuía nervos e era presunçoso demais para sofrer de qualquer dolorosa apreensão com a possibilidade de fracasso. Eu, porém, era feito de material diferente e não gostava da sensação que elas me davam. É ver­dade que ele declarara pouco antes de começarmos o almoço que teríamos pela frente uma tarefa perigosa e desagradável, mas não falava sério. Chamava-me meramente a atenção para o fato de que pregava a montagem de um espetáculo de inteli­gência.

Convidei os visitantes a entrar, ajudei-os a depositar cha­péus e casacos no saguão e conduzi-os até o escritório. Wolfe, sentado por trás da escrivaninha, cumprimentou-os com um ges­to de cabeça. Eu já havia organizado as cadeiras e indiquei-as: Helen, mais próxima de Wolfe, com Cramer à esquerda e Llewellyn ao lado de Cramer; tio Dudley não longe de mim, de modo que eu podia estender a mão e amordaçá-lo, se necessá­rio, e a Sra. Frost do outro lado de Dudley, numa grande cadeira de couro, que ficava habitualmente ao lado de um grande globo. Nenhum deles parecia muito alegre. Lew tinha os olhos esbugalhados e um palor acinzentado no rosto, acho que por efeito do nitrobenzeno. A Sra. Frost continuava tão espigada como sempre, embora pálida no seu vestido preto. Helen, num ter-ninho marrom-escuro com um chapéu combinado, cruzou os de­dos tão logo se sentou, pôs os olhos em Wolfe e não os despregou mais. Dudley olhou para todo o mundo e contorceu-se. Wolfe murmurou para o Inspetor:

— O seu ajudante, Sr. Cramer. Poderia ele esperar na cozinha?

— Ele é legal — resmungou Cramer. — Não morderá pessoa alguma.

Wolfe sacudiu a cabeça.

— Não precisaremos dele. Ele ficará melhor na cozinha. Cramer deu a impressão de que ia discutir, mas desistiu

com um encolher de ombros. Voltou-se e disse:

— Vá para a cozinha, Stebbins. Gritarei se precisar de você.

Com um olhar zangado para mim, Purley deu a volta e saiu. Wolfe esperou até que a porta se fechasse, olhou em volta e disse:

— E aqui estamos. Embora eu saiba que os senhores vieram a convite do Sr. Cramer, apesar disso agradeço-lhes por ter vindo. Era desejável tê-los todos aqui, embora coisa alguma seja esperada dos senhores...

Dudley Frost disse impulsivamente.

— Vimos porque fomos obrigados! O senhor sabe disso! Que mais poderíamos ter feito com a atitude que a Polícia está tomando?

— Sr. Frost, por favor...

— Não há favor algum nisso! Eu queria apenas dizer que é bom que nada se espere de nós porque o senhor nada conse­guirá! Em vista da atitude ridícula da Polícia, recusamo-nos a submeter-nos a qualquer outro interrogatório a não ser na presença de um advogado. Eu disse isso mesmo ao Inspetor Cramer. Pessoalmente, declino de pronunciar a mínima pala­vra! Nem uma palavra!

Wolfe ergueu um dedo na direção dele e disse:

— Na eventualidade de que o senhor esteja falando sério, Sr. Frost, prometo não o importunar. E temos outro bom motivo para não admitir advogados. Eu estava dizendo: nada se espera dos senhores, salvo escutar uma explicação. Não haverá interrogatório. Prefiro falar e tenho muito a dizer... Por fa­lar nisso, Archie, eu gostaria de ter aquela coisa à mão.

Esta era a deixa para o primeiro grande número. Não me cabia dizer coisa alguma, mas fazer. Levantei-me, fui até o cofre, tirei o pacote e coloquei-o na mesa em frente a Wolfe, sem o papel de embrulho, que fora removido antes do almoço. O que ali coloquei era uma velha caixa de couro vermelho, desbotada, gasta e arranhada, de vinte centímetros de compri­mento, oito de largura e quatro de profundidade. Num dos la­dos havia o que sobrava de duas dobradiças douradas da tampa e, do outro, um pequeno brasão dourado com o buraco da fe­chadura. Wolfe meramente olhou-a antes de empurrá-la para um lado. Sentei-me e apanhei o bloco de notas.

Houve alguma agitação, mas nenhum comentário. Todos eles olhavam fixamente a caixa, exceto Helen Frost, que con­tinuou a fitar Wolfe. Cramer deu-me a impressão de cauteloso e pensativo ao pregar os olhos na caixa.

Wolfe falou com inesperada secura:

— Archie, podemos dispensar as notas. A maior parte das palavras serei eu quem as pronunciará e não as esquecerei. Por favor, tome sua arma e conserve-a na mão. Se achar que seja necessário, use-a. Não queremos ninguém por aqui esgui­chando nitrobenzeno. Basta, Sr. Frost! Disse-lhe para parar! Lembro-lhe de que uma mulher e dois homens foram assassi­nados ! Fique onde está!

Dudley Frost realmente amunhecou. Isto talvez se tenha devido parcialmente à automática que eu tirara da gaveta e que mantinha na mão, pousada no joelho. O aspecto de uma arma carregada sempre produz certo efeito, não importa quem seja o cara. Observei que Cramer empurrara a cadeira para trás alguns centímetros, que parecia ainda mais cauteloso do que antes e que tinha as sobrancelhas franzidas.

— Isto, naturalmente, é um melodrama — disse Wolfe. — Todo assassinato o é, pois a tragédia real não é a morte, mas a situação que a induz. Não obstante — ele se recostou na ca­deira e dirigiu os olhos para nossa cliente — desejo dirigir-me à Srta. Frost, principalmente à senhorita. Parcialmente por vaidade profissional. Desejo demonstrar-lhe que contratar os serviços de um bom detetive significa muito mais do que contratar alguém para levantar tacos do assoalho e cavar em can­teiros de flores procurando uma caixa vermelha. Quero de­monstrar-lhe que antes de ver esta caixa ou seu conteúdo eu conhecia os fatos básicos deste caso. Sabia quem havia assassi­nado o Sr. McNair e por quê. Vou chocá-los, mas não posso evitá-lo.

Suspirou e prosseguiu:

— Serei breve. Em primeiro lugar, não mais a chamarei de Srta. Frost, mas de Srta. McNair. Seu nome é Glenna McNair e a senhorita nasceu no dia 2 de abril de 1915.

Pelo canto dos olhos tive um vislumbre suficiente dos outros para ver Helen enrijecer-se, Lew saltar da cadeira, Dudley esbugalhar os olhos, mas o meu principal interesse era a Sra. Frost. Ela parecia mais pálida do que quando entrara, mas nem pestanejou. Evidentemente, a exposição da caixa vermelha prepa­rara-a para a revelação. Ela falou, fria e seca, cortando umas duas exclamações masculinas.

— Sr. Wolfe. Penso que meu cunhado tem razão. Este tipo de absurdo transforma isto num caso para advogados.

O tom de Wolfe correspondeu ao dela:

— Acho que não, Sra. Frost. Se assim, haverá tempo de sobra para eles. No momento, fique sentada onde está até que este absurdo chegue ao fim.

Helen Frost falou num tom seco e calmo:

— Então tio Boyd era meu pai. Era meu pai. Durante todo o tempo? Como? Diga-me como — Lew levantara-se e punha uma mão sobre o ombro dela, olhando ao mesmo tempo fixamente para tia Callie. Dudley emitiu alguns sons.

— Por favor, sente-se Sr. Frost — disse Wolfe. — Sim, Srta. McNair, ele era seu pai durante todo tempo. A Sra. Frost pensa que eu não soube disto até que a caixa vermelha fosse encontrada, mas está enganada. Fiquei definitivamente convencido do fato pela primeira vez na quinta-feira pela ma­nhã, quando a senhorita me disse que, no caso de sua morte antes dos vinte e um anos, toda a fortuna de Edwin Frost passa­ria para o irmão e o sobrinho. Quando pensei nisso, em conjun­to com outros pontos que se haviam apresentado, o quadro se completou. Naturalmente, a primeira coisa que me sugeriu tal possibilidade foi o fato do inexplicável desejo do Sr. McNair de querer que a senhorita usasse diamantes. Que virtude espe­cial teriam diamantes na senhorita — desde que ele parecia não os tolerar de outra maneira? Seria talvez o fato de o dia­mante ser a pedra do mês de abril? Notei essa possibilidade. Llewellyn murmurou:

— Santo. Eu disse... eu contei a McNair certa vez...

— Por favor, Sr. Frost. Outro pequeno ponto: o Sr. McNair disse-me na noite de quarta-feira que a esposa morrera, mas não a filha. Disse-me que a perdera. Isto, naturalmente é um eufemismo comum para morte, mas por que não o empregou tam­bém com relação à esposa? Um homem pode falar direta ou eufemisticamente, mas não é comum que o faça na mesma sen­tença. Ele disse que os pais morreram. Duas vezes disse que a esposa morrera. Mas não a filha. Disse que a perdera.

Os lábios de Glenna McNair moviam-se. Ela murmurou:

— Mas como? Como? Como foi que ele me perdeu...

— Paciência, Srta. McNair. Houve vários outros peque­nos indícios, coisas que a senhorita me disse a respeito de seu pai e de si mesma. Não preciso repeti-los para a senhorita. O seu sonho a respeito da laranja, por exemplo. Um sonho pro­vocado por uma memória subconsciente? Deve ter sido. Disse-lhes o suficiente, segundo espero, para mostrar-lhe que não pre­cisava dessa caixa vermelha para dizer-me quem era a senho­rita, quem matou o Sr. McNair e o Sr. Gebert, e por quê. De qualquer modo, não lisonjearei mais a minha vaidade a sua custa. A senhorita quer saber como. Isto é simples. Dar-lhe-ei os fatos principais... Sra. Frost! Sente-se!

Não sei se Wolfe considerava minha automática principal­mente como um adereço teatral. Eu, porém, não pensava assim. A Sra. Edwin Frost levantara-se, tendo nas mãos uma bolsa de bom tamanho. Admito que era improvável que ela estivesse carregando um borrifador cheio de nitrobenzeno ali no escri­tório de Wolfe, para ser encontrado caso fosse revistado, mas aquilo não era coisa com que a gente brincasse. Achei que era melhor intervir em benefício da compreensão geral. E intervi:

— Sra. Frost, sou obrigado a dizer-lhe que, se não quer esta arma apontada para a senhora, é melhor dar-me essa bolsa ou colocá-la no chão.

Ela ignorou-me, continuando de olhos presos em Wolfe. Falou com calma indignação:

— Não posso ser obrigada a escutar essa tolice — vi um lampejo no fundo dos seus olhos, refletindo o fogo que lhe ia no íntimo. — Eu me vou. Helen! Vamos.

Dirigiu-se para a porta. Corri atrás dela. Cramer, de pé, bloqueou-a antes que eu chegasse. Bloqueou-a, mas não a to­cou:

— Espere, Sra. Frost. Apenas um minuto — olhou para Wolfe e perguntou: — Que é que você descobriu? Não vou jo­gar esta partida de olhos fechados.

— O suficiente, Sr. Cramer — respondeu Wolfe seca­mente. — Não sou tolo. Tome-lhe a bolsa e mantenha-a aqui, ou o senhor se arrependerá disto o resto da vida.

Cramer não hesitou mais de meio segundo. Isto sempre foi uma das coisas de que sempre gostei nele. Ele nunca hesita muito. Colocou-lhe uma mão no ombro. Ela recuou, afastando-se da mão, e enrijeceu-se.

— Dê-me a bolsa e sente-se. Isto não é um grande sofri­mento. Terá oportunidade de explicar-se, se quiser.

Estendeu a mão e tomou-lhe a bolsa. Notei que nessa con­juntura, ela não apelou para os parentes masculinos. Acho que ela não era muito forte na questão de: apelos. Tampouco tre­meu. Olhou Cramer duramente e disse:

— O senhor me mantém aqui à força? É isto o que está fazendo?

— Bem... — Cramer encolheu os ombros. — Achamos que a senhora vai ficar aqui durante algum tempo. Até acabar­mos.

Ela recuou e sentou-se. Glenna McNair olhou-a rapida­mente de relance e voltou a fitar Wolfe. Os homens ignoraram-na.

Wolfe prosseguiu secamente:

— Essas interrupções em nada ajudarão. Certamente não à senhora. Coisa alguma pode ajudá-la agora — voltou os olhos para nossa cliente. — A senhorita quer saber como. Em 1916, a Sra. Frost foi com a filha, Helen, que tinha apenas um ano, para a costa leste da Espanha. Lá, um ano depois, a filha morreu. De acordo com os termos do testamento do marido falecido, a morte de Helen implicava a transferência de toda a fortuna para Dudley e Llewellyn Frost. A Sra. Frost não gos­tou disso e  fez um plano. Havia guerra e a confusão em toda a Europa tornou possível executá-lo. O velho amigo dela Boyden McNair tinha uma filha quase da mesma idade de Helen, com a diferença de apenas um mês, perdera a esposa, estava sem tostão e sem meios para ganhar a vida. A Sra. Frost comprou-

 lhe a filha, explicando-lhe que, de qualquer maneira, ela ficaria em melhor situação assim. Investigações estão sendo feitas ago­ra em Cartagena a respeito da manipulação do registro de óbi­tos no ano de 1917. A idéia era, naturalmente, explicar que Glenna McNair morrera e que Helen Frost sobrevivera.

— Imediatamente depois, a Sra. Frost levou-a, já como Helen Frost, para o Egito, onde havia pouco perigo de que a senhorita fosse vista por algum viajante que a conhecera como bebê em Paris. Ao terminar a guerra, até mesmo o Egito tor­nou-se perigoso e ela se dirigiu para o Extremo Oriente. So­mente quando a senhorita tinha nove anos ela se arriscou a mostrá-la nesta parte do mundo e mesmo nessa ocasião ela evitou a França. A senhorita chegou a este continente vindo do Oeste.

Wolfe ajeitou-se na cadeira e deu aos olhos um novo alvo:

— Acho que seria mais delicado, Sra. Frost, deste ponto em diante, que eu me dirigisse à senhora. Vou falar das duas dificuldades inevitáveis com que seu plano se defrontou — uma delas desde o início. Refiro-me a seu jovem amigo Perren Gebert. Ele sabia de tudo porque esteve lá e a senhora foi obri­gada a, comprar-lhe o silêncio. Chegou mesmo a levá-lo ao Egito o que constituiu uma precaução sábia, mesmo que não o quisesse em torno de si. Enquanto pudesse pagá-lo, ele não re­presentaria perigo sério porque era um homem que sabia guar­dar segredo. Em seguida, uma nuvem cruzou o seu céu, mais ou menos há dez anos, quando Boyden McNair, que fizera su­cesso em Londres e recuperara o auto-respeito, veio para Nova York. Queria ficar perto da filha que perdera e não tenho dú­vida de que ele se tornou incômodo. Manteve os pontos essen­ciais da barganha concluída com a senhora em 1917 porque era um homem escrupuloso, mas lhe deu incômodas bicadas. Insis­tiu no direito de tornar-se bom amigo da filha. Acho que foi mais ou menos nessa época que a senhora adquiriu, provavel­mente numa viagem à Europa, certos produtos que começou a temer que poderiam ser necessários algum dia.

Wolfe ergueu um dedo na direção dela. Ela permanecia espigada e imóvel, com os olhos nos dele, os lábios da boca orgulhosa talvez um pouco mais comprimidos do que o comum.

— E, sem dúvida alguma, a necessidade surgiu. Consti­tuiu-se de uma dupla situação de emergência. O Sr. Gebert con­cebeu a idéia de casar-se com a herdeira antes que ela chegasse à maioridade insistiu na sua influência e autoridade. E o que

é pior, McNair começou a ter uma crise de escrúpulos. Ele não me contou a exata natureza das exigências que  fez, mas acho que as posso imaginar. Queria comprar a filha de volta. Não quis? Ele fizera sucesso ainda maior em Nova York do que em Londres e tinha dinheiro suficiente. É verdade que ele estava ainda preso ao acordo que fizera com a senhora em 1917, mas suspeito de que ele conseguira convencer-se de que havia uma obrigação mais alta, tanto para com seus sentimentos paternais quanto para com a própria Glenna. Sem dúvida alguma, ele se sentiu ultrajado com a impudente aspiração do Sr. Gebert de casar-se com Glenna e com a sua aparente aquiescência. — A senhora era certamente contrária ao casamento, isto eu sei, depois de tanta engenhosidade, dedicação, vigilância e controle de vinte anos de uma excelente renda. Com o Sr. Gebert insistindo em casar com ela e o Sr. McNair exigindo-a como filha, e ambos ameaçando-a diariamente de denunciá-la, o surpreendente é que a senhora tenha encontrado tempo para a astúcia deliberada que empregou. É fácil compreender por­que escolheu o Sr. McNair em primeiro lugar. Se tivesse morto Gebert, McNair teria descoberto a verdade quaisquer que fos­sem as precauções que a senhora tomasse e teria agido ime­diatamente. O seu primeiro trabalho, por conseguinte, foi o bombom envenenado para McNair, com veneno colocado nas amêndoas jordanianas, que sabia que ele apreciava muito. Ele escapou dessa tentativa e, em vez disso, morreu uma jovem inocente. Ele sabia, naturalmente, o que significava aquela ten­tativa. Aqui eu me permito outra suposição: meu palpite é que o Sr. McNair, sendo um homem sentimental, resolveu reivin­dicar a filha no vigésimo primeiro aniversário real, no dia 2 de abri!. Mas, conhecendo-lhe a fertilidade de recursos e temendo que a senhora pudesse matá-lo antes dessa data, tomou algumas providências no testamento e numa entrevista comigo. Esta última, infelizmente, não foi levada até o fim. A sua segunda tentativa, os comprimidos de imitação de aspirina, interferiu. E exatamente no momento! Exatamente no momento em que ele estava prestes a... Srta. McNair! Rogo-lhe...

Glenna McNair ignorou-o. Acho que nem mesmo o ouviu. De pé, deu-lhe as costas e enfrentou a mulher de espinha reta e boca orgulhosa que durante tantos anos chamara de mãe. Deu três passos em direção a ela. Cramer também, colocando-se ao lado dela. Lew Frost levantou-se também e colocou uma mão no braço da prima. Com um movimento convulso ela se libertou da mão, sem olhá-lo. Mirava fixamente para a Sra. Frost. Um pequeno estremecimento percorreu-lhe o corpo, mas passou e, imóvel, ela disse numa voz meio abafada:

— Ele era meu pai e a senhora o matou. A senhora matou meu pai. Oh! — O tremor novamente, ela parou até que pas­sasse, e disse: — Você... sua mulher!

Llewellyn gaguejou para Wolfe:

— Isto é demais para ela... Meu Deus, o senhor não devia tê-la chamado aqui... Vou levá-la para casa...

Wolfe interrompeu-o secamente:

— Ela não tem casa. Não deste lado da Escócia. Srta. McNair, rogo-lhe. Sente-se. A senhorita e eu estamos traba­lhando. Não estamos? Deixe-me terminar isto. Vamos fazê-lo corretamente, em nome do seu pai. Venha.

Ela tremeu outra vez, livrou-se com um repelão do braça de Lew, voltou-se e sentou-se. Fitou Wolfe e disse:

— Muito bem. Não quero que ninguém toque em mim. Mas está tudo terminado, não?

Wolfe sacudiu negativamente a cabeça.

— Não, inteiramente. Iremos até o fim — apontou um' dedo rígido para a Sra. Frost. — A senhora, madama, tem que escutar um pouco mais. Tendo-se livrado do Sr. McNair, pode ter tido mesmo a idéia de que poderia parar. Mas foi um cálculo mal feito, indigno da senhora, pois o Sr. Gebert sabia natural­mente o que aconteceu e começou imediatamente a pressioná-la. Foi mesmo temerário a esse respeito, mas tal era seu humor. Disse ao Sr. Goodwin que a senhora havia assassinado McNair. Ele presumiu, acho, que o Sr. Goodwin não conhecia francês e que não sabia que calida, seu nome, é uma palavra latina que significa "ardentemente". Sem dúvida ele disse isso para dar-lhe um susto. E sem dúvida alguma assustou-a e com tal su­cesso que a senhora o matou no dia seguinte. Não lhe dei ainda os parabéns pela técnica daquele trabalho, mas asseguro-lhe...

— Por favor! — disse a Sra. Frost. Todos olharam. Ela mantinha o queixo alto, fitava Wolfe nos olhos e não parecia que ia ter uma tremedeira. — Preciso por acaso escutar a sua... Preciso escutar isto? — ela girou a cabeça e pôs os olhos em Cramer. — O senhor é um Inspetor da Polícia. O senhor com­preende o que este homem está-me dizendo? O senhor é res­ponsável por isto? O senhor está... sou acusada de alguma coisa?

Cramer respondeu num tom de voz extremamente oficial:

— Tudo indica que a senhora será. Francamente, a senho­ra ficará aqui até que eu tenha oportunidade de examinar algu­mas provas. Devo avisá-la formalmente agora, contudo, de que não deve dizer alguma coisa que não queira que seja usada contra a senhora.

— Não tenho intenção de dizer coisa alguma — parou e eu notei que ela mordia o lábio inferior. Mas a voz estava calma ainda quando ela continuou: — Nada há a dizer diante de uma fábula destas. Na verdade, eu... — parou novamente. Virou a cabeça na direção de Wolfe. — Se há alguma prova de tal história a respeito de minha filha, ela é forjada. Não tenho por acaso direito de vê-la?

Os olhos de Wolfe eram duas frestas. Ele murmurou:

— A senhora falou em advogado. Acho que os advogados têm um método legal para apresentar tais solicitações. Mas não vejo motivo para tal demora — ele pôs a mão na caixa. — Não vejo motivo por quê...

Cramer, de pé novamente, aproximou-se da escrivaninha. Falou secamente e sério:

— Isto já foi longe demais. Quero essa caixa. Eu mesmo a examinarei...

Era de Cramer que eu tinha receio nesta altura. Talvez se eu tivesse deixado Wolfe sozinho ele pudesse tê-lo controlado, mas os meus nervos estavam à flor da pele, eu sabia que, se o Inspetor metesse as patas na caixa, ele faria uma confusão dos diabos, e sabia também perfeitamente que ele não poderia tomá-la de mim. Levantei-me com um salto e agarrei-a. Puxei-a de baixo da mão de Wolfe e segurei-a. Cramer rosnou e olhou-me fixamente. Devolvi-lhe a mirada, mas eu não rosno. Wolfe disse secamente:

— Esta caixa é propriedade minha. Sou responsável por ela e continuarei a sê-lo até que ela me seja tomada legalmente. Não vejo motivo por que a Sra. Frost não a possa examinar, para economizar tempo. Estou arriscando tanto quanto o se­nhor, Sr. Cramer. Entregue-lhe a caixa, Archie. Está aberta.

Dirigi-me a ela e pus a caixa na sua mão enluvada de preto. Não me sentei novamente porque Cramer tampouco o  fez. E fiquei a um metro e meio mais perto da Sra. Frost do que ele. Todos a olharam, até mesmo Glenna McNair. Ela pôs a caixa no colo com a fechadura virada para si e abriu parcialmente a tampa. Ninguém podia ver o interior da caixa, somente ela. Agia deliberadamente e não consegui ver sinal de tremor nos seus dedos ou em qualquer outra parte do corpo. Ela deixou a mão na parte interior, com a tampa em cima, olhou fixamente para Wolfe e eu notei que ela mordia novamente os lábios. Inclinando-se um pouco para ela, Wolfe disse:

— Não desconfie de um truque, Sra. Frost. Não há coisa alguma forjada no conteúdo dessa caixa. É autêntico. Eu sei, e a senhora sabe, que tudo o que eu disse aqui é verdade. De qualquer modo, a senhora perdeu toda oportunidade no tocante à fortuna Frost. Isto é certo... É também certo que a fraude que a senhora praticou durante dezenove anos pode ser provada com a ajuda da irmã do Sr. McNair e corroboração de Cartagena, e que será divulgada. E, naturalmente, o dinheiro irá para seu sobrinho e seu cunhado. Se a senhora será ou não condenada pelos três assassinatos que cometeu, para ser franco, não posso ter certeza. Será indubitavelmente uma dura batalha judicial. Haverá provas contra a senhora, mas não absoluta­mente conclusivas e, naturalmente, a senhora é uma mulher ex­tremamente atraente, apenas de meia-idade, e terá ampla opor­tunidade de sorrir afetadamente para o juiz e o júri, chorando nos intervalos apropriados para despertar-lhes a compaixão. E, sem dúvida alguma, a senhora sabe como se vestir para esse papel... Ah, Archie!

Ela agiu com a rapidez de um raio. A mão esquerda estivera mantendo a tampa da caixa parcialmente aberta e a direita, na parte de dentro, movia-se um pouco — não remexendo, mas eficientemente. Duvido que outra pessoa além de mim tenha notado. Jamais esquecerei a maneira como ela controlou o rosto. Os dentes mantiveram-se fincados nos lábios, mas, à parte isso, não havia sinal do gesto desesperado e fatal que ela tomava. Em seguida, como um relâmpago, a mão saiu da caixa e foi até a boca com um vidro. Lançou tanto a cabeça para trás que lhe vi a garganta branca quando ela engoliu.

Cramer saltou em direção a ela. Não me movi para blo­queá-lo porque tinha a certeza de que ela engoliria tudo. Ao saltar, ele berrou:

— Stebbins! Stebbins!

É minha opinião que Cramer tinha o direito de ser Ins­petor, pois ele era um executivo nato. E como entendo a coisa, o executivo nato é o cara que, quando alguma coisa difícil ou inesperada acontece, grita chamando alguém para ajudá-lo.

 

Capitulo 19

— Eu gostaria de ter essas palavras sob a forma de uma declaração assinada — disse o Inspetor Cramer mastigando o charuto. — É a coisa mais maluca que já ouvi até hoje. Você quer dizer que aquilo era tudo que tinha para continuar?

Passavam seis minutos das seis e Wolfe acabara de chegar das estufas. Os Frosts e Glenna McNair haviam partido muito antes. Calida Frost fôra-se, também. A balbúrdia passara. A porta acorrentada tornava mais fácil a Fritz manter longe os repórteres. Duas janelas eram conservadas abertas e assim ha­viam ficado durante duas horas, embora o odor do óleo de amêndoas amargas, parte do qual derramara-se pelo chão, estivesse ainda no ar e parecesse estar ali para ficar.

Wolfe inclinou a cabeça, servindo-se de cerveja.

— Exatamente, cavalheiro. Quanto a assinar uma declara­ção, prefiro não fazê-lo. Na verdade, recuso. A sua barulhenta indignação desta tarde foi insuportável. Demais disso, foi tola. Fiquei ressentido na ocasião. E ainda estou.

Bebeu. Cramer resmungou e Wolfe continuou:

— Somente Deus sabe onde o Sr. McNair escondeu a mal­dita caixa. Pareceu-me mais do que provável que jamais fosse encontrada. E se fosse, afigurava-se quase certo que provar a culpa da Sra. Frost seria, na melhor das hipóteses, tedioso e árduo e, na pior, impossível. Ela tivera uma sorte incrível e poderia continuar a tê-la. Enviei, portanto, Saul Panzer a um artesão e disse-lhe para mandar fazer uma caixa de couro ver­melho, dando-lhe a aparência de coisa velha e gasta. Era quase certo que nenhum dos Frosts jamais a havia visto e, portanto, era pequeno o perigo de que sua autenticidade fosse posta em dúvida. Calculei que o efeito psicológico sobre a Sra. Frost se­ria apreciável.

— Sim. Você é um grande calculador — disse Cramer, mastigando um pouco mais o charuto. — Você assumiu um grande risco e bondosamente deixou que eu dele compartilhasse sem explicar-me antes coisa alguma, mas admito que foi um bom truque. Mas isto não é o principal. O ponto é que você comprou um vidro de óleo de amêndoas amargas. Colocou-o na caixa e entregou-o a ela. Isto foi demais, mesmo para você. E eu estava aqui quando isso aconteceu. Eu não ouso registrar isso desse jeito na minha parte. Sou um Inspetor e não tenho coragem.

— Como quiser, cavalheiro — respondeu Wolfe, levantan­do os ombros meio centímetro e deixando-os cair novamente.

— Foi uma infelicidade que o resultado tivesse sido fatal. Fiz isso para impressioná-la. Fiquei estupefato e paralisado quan­do ela... hum... abusou. Utilizei o óleo envenenado em vez de um substituto porque pensei que ela poderia abrir o vidro e... o cheiro... Aquilo foi também para fins de efeito psicoló­gico...

— O diabo é que foi. Foi exatamente para o que ela o usou. Que é que você está tentando fazer, brincar comigo?

— Não, realmente. Mas o senhor começou a falar numa declaração assinada e não gostei disso. Gosto de ser franco. O senhor sabe perfeitamente que eu não assinaria tal declaração

— Wolfe ergueu um dedo. — O fato é que o senhor é um in­grato. O senhor queria o caso solucionado e o criminoso pu­nido, não? Está solucionado. A lei é um monstro invejoso e o senhor a representa. O senhor não pode tolerar uma conclusão decente e rápida de uma escaramuça entre um indivíduo e aquilo que chama de sociedade, enquanto puder transformá-la numa longa e horrenda luta. A vítima deve contorcer-se como um -verme em seus dedos, não durante dez minutos, mas durante dez meses. Pfui! Não gosto da lei. Não fui eu, mas um grande filósofo, que disse que a lei é burra.

— Bem, não me culpe. Não sou a lei. Sou apenas um po­licial. Onde é que comprou o vidro de amêndoas amargas?

— Realmente — disse Wolfe semicerrando os olhos. — O senhor está falando sério com essa pergunta?

Cramer pareceu pouco à vontade. Mas apegou-se a ela.

— Estou sim.

— Ah, então o senhor está. Muito bem, cavalheiro. Sei, naturalmente, que a venda daquele material é ilegal. A lei nova­mente ! Um químico meu amigo  fez-me o favor. Se o senhor for suficientemente mesquinho para tentar descobrir quem é ele e tomar providências para puni-lo por infração da lei, deixarei este país e vou morar no Egito, onde possuo uma casa. Se eu fizer isso, um em cada dez dos seus assassinatos permanecerá insolúvel e tenho a esperança de que sofra por isso.

Cramer tirou o charuto da boca, olhou para Wolfe e, len­tamente, balançou a cabeça de um lado para outro. Finalmen­te, disse:

— Estou bem, sentadinho aqui. Não vou espionar seu amigo. Poderei aposentar-me dentro de dez anos. Mas o que me preocupa é o seguinte: que é que a força policial vai fazer, digamos, dentro de cem anos a partir de agora, quando você estiver morto? Vai ter um tempo miserável — e ele continuo» apressadamente. — Agora, não se sinta ofendido. Sei distin­guir um sabido de um bobo. Mas há outra coisa que eu gos­taria de pedir-lhe. Como sabe, nós temos uma sala lá na dele­gacia onde guardamos algumas curiosidades — machadinhas, armas e coisas assim, que foram usadas uma ou outra vez. Qual a minha chance de levar aquela caixa vermelha e acrescentá-la à coleção? Eu gostaria realmente de tê-la. Você não vai pre­cisar mais dela.

— Não sei — replicou Wolfe, inclinando-se para servir-se de mais cerveja. — O senhor terá de perguntar ao Sr. Goodwin. Dei-a a ele de presente.

Cramer voltou-se para mim:

— Que tal, Goodwin? Okay?

— Neres — disse eu, sacudindo a cabeça e sorrindo. — Sinto muito, Inspetor. Vou guardá-la. É exatamente o que pre­ciso para guardar selos.

Ainda hoje a uso. Mas Cramer conseguiu também uma para sua coleção, porque, mais ou menos uma semana depois, a própria caixa de McNair foi encontrada na propriedade da família na Escócia, por trás de umas pedras da lareira. Conti­nha matéria suficiente para convencer três júris, mas por essa época Calida Frost já estava morta e enterrada.

 

Capitulo 20

Wolfe franziu as sobrancelhas, olhando de Llewellyn Frost para o pai e vice-versa.

— Onde está ela? — indagou.

Meio-dia de segunda-feira. Os Frosts haviam telefonado naquela manhã solicitando uma entrevista. Lew sentava-se na cadeira dos bobos, o pai à esquerda com uma mesinha junto ao cotovelo e, sobre ela, dois copos e a garrafa do Old Corcoran. Wolfe acabara de terminar a segunda garrafa de cerveja e recostara-se confortàvelmente. Tirei o bloco de notas.

Llewellyn ficou um pouco vermelho.

— Está em Glennanne. Ela disse que lhe telefonou na noite de sábado perguntando-lhe se podia ir lá. Ela... ela não quer ver nenhum dos Frosts. Não quer falar comigo. Sei que ela teve um tempo horrendo, mas, meu Deus, ela não pode viver para sempre sem contatos humanos... Nós queremos que o senhor vá até lá e converse com ela. O senhor pode ir até lá em menos de duas horas.

— Sr. Frost — disse Wolfe erguendo um dedo na direção dele — por favor, acabe com isso. Que o senhor tenha a idéia de pôr-me num automóvel durante duas horas é imperdoável, mas sugerir-me isto seriamente é uma descarada imprudência. O seu êxito com aquela carta idiota que me trouxe há uma semana subiu-lhe à cabeça. Não me surpreendo que a Srta. McNair queira umas férias temporárias da família Frost. Dê-lhe mais um dia ou dois para ela acostumar-se à idéia de que nem todos vocês merecem o extermínio. Afinal de contas, quando for con­versar com ela novamente, o senhor terá duas vantagens recém-adquiridas: não será um ortoprimo e valerá mais de um milhão de dólares. Pelo menos acho que sim. Seu pai pode dizer-lhe alguma coisa a esse respeito.

Dudley Frost depositou o copo de uísque na mesa, tomou um delicado gole de água com um cuidado a indicar que uma dose de mais de dez gotas daquele fluido poderia ser perigosa, e limpou a garganta:

— Eu já disse a ele — declarou abruptamente. — Aquela mulher, minha cunhada, que Deus a tenha na sua santa paz, vinha-me insultando a esse respeito durante quase vinte anos... Bem, agora não o fará mais. De certa forma, ela não passou de uma idiota. Ela devia ter sabido que, se eu administrasse o espólio de meu irmão, mais cedo ou mais tarde nada sobraria. Eu sabia disso. E foi por isso que não o administrei. Entreguei a sua administração, em 1918, a um advogado chamado Cabot — dei-lhe uma procuração — não o suporto, nunca o suportei, ele c careca, magrelo e joga golfe nos domingos. Conhece-o? Tem uma verruga num dos lados do pescoço. Ele me fornecia um relatório trimestral assinado por um contador público titu­lado, demonstrando que o espólio aumentara, até esta data, 22% sobre o valor inicial, de modo que acho que meu filho vai receber seu milhão. E eu também. Veremos quanto tempo le­varei para gastá-lo... Tenho minhas próprias idéias a esse respeito. Mas há uma coisa sobre a qual eu queria falar com o senhor... de fato, foi por isso que vim aqui com Lew esta manhã. Parece-me que a origem natural dos seus honorários é o milhão que me toca. Se não fosse por sua causa, eu não o receberia. Naturalmente, não lhe posso dar um cheque agora, porquanto levará ainda algum tempo. ..

— Sr. Frost! Por favor! A Srta. McNair é que é minha cliente...

Dudley Frost, porém, estava com a corda toda.

— Absurdo! Tolice. Sempre pensei que meu filho devia pagar-lhe. Eu não sabia que ele poderia fazê-lo. Helen... isto é... bolas, Helen! Ela não terá coisa alguma, a menos que aceite parte do nosso...

— Sr. Frost, insisto! O Sr. McNair deixou instruções par­ticulares com a irmã a respeito de seu espólio. Sem dúvida alguma...

— McNair, aquele bobalhão? Por que deveria ela aceitar dinheiro dele? Porque o senhor diz que ele era o pai dela? Tal­vez. Tenho minhas dúvidas sobre essas pretensas descobertas de paternidade. Talvez. De qualquer modo, não será nada pa­recido com um milhão. Ela pode ter um milhão se casar com meu filho e espero que se case porque gosto muito dela. Mas eles podem também guardar todo o dinheiro, porque precisarão dele, ao passo que eu não precisarei do meu porque não há muita possibilidade de que eu possa conservá-lo durante muito tempo, pague-lhe ou não. Não que dez mil dólares sejam uma fatia muito grande de um milhão — a menos que seja mais de dez mil dólares em virtude dos novos fatos surgidos desde que con­versei com o senhor pela última vez sobre o caso. De qualquer modo, não quero ouvir mais falar nesta história de Helen ser sua cliente e não. a escutarei. Pode enviar-me sua conta e, se não for absurda, providenciarei para que seja paga. Não, digo-lhe que não adianta discutir. O fato é que o senhor deve consi­derar, como eu considero, uma sorte danada que eu tenha tido a idéia de entregar a administração do espólio a Cabot...

Fechei o bloco, lancei-o sobre a mesa, coloquei a cabeça entre as mãos, fechei os olhos e tentei relaxar-me. Como eu disse antes, este caso foi apenas uma maldita sucessão de clientes.

 

                                                                                            Rex Stout

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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