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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CARAVANA DE VENEZA / Muriel Romana
A CARAVANA DE VENEZA / Muriel Romana

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MARCO POLO - A CARAVANA DE VENEZA

A SAGA DE UM DOS MAIS CÉLEBRES AVENTUREIROS DE TODOS OS TEMPOS

 

 A Cidade Espelho

Por fim, decidiu-se a abrir os olhos. Passou-lhe pelas pupilas uma carícia gelada, antes de ser capaz de distinguir a paisagem para lá dos cílios. À sua volta, o tumulto apazigua-se. O turbilhão, subindo como fumo, dissipa-se aos poucos. Então, a penumbra desvanece-se em longas volutas verdejantes. Ele escruta as trevas em busca de uma centelha, avança com a lentidão da eternidade. Sente um contacto efémero ao longo da perna. Volta-se rapidamente, mas ainda não tão depressa quanto deveria: a sensação já desapareceu. Este esforço súbito recorda-lhe que parou de contar em trinta e dois. Pode chegar a noventa e nove. Sente a tentação de apressar os movimentos. Sabe, porém, que é inútil. Os seus braços crescem como os dos pássaros, num leve bater de asas. O silêncio ecoa no horizonte invisível, por cima dele. Bate-lhe o coração nas têmporas, cada vez mais depressa. Vai buscar um derradeiro sopro ao fundo do ventre, só descobre a brusca angústia de não o poder encontrar. Lucíolos negros começam a esvoaçar diante dos seus olhos. Procura na escuridão glauca sem sequer poder ver a ponta dos dedos. Algas, como farrapos de antigas túnicas, enrolam-se-lhe nos pulsos. As suas mãos deslizam sobre conchas polidas pelo musgo do mar. Os pés enterram-se num lodo mole e tépido. Esforça-se por não respirar. As últimas bolhas escapam-se para a superfície. Soluça involuntariamente, o torso agitado por espasmos silenciosos. Tem de subir. Já ergue a cabeça para os reflexos turvos das ogivas do Palazzo Ducale, quando um cintilante raio de luz atrai o seu olhar. Hesita um segundo. Um instante a mais. O seu peito incha para aspirar um ar que não encontrará. Dispõe de tempo para se precipitar para a luz, para se apoderar do limo que oculta o ouro, antes de se fincar no lodo com toda a força que os pés lhe permitem. Mas escorrega. Num reflexo insensato de sobrevivência, aspira mais uma vez. A água penetra-lhe no corpo em quantidades cruéis. Cerra desesperadamente o punho na areia compacta - agarrar-se à vida. De repente, a superfície ilumina-se acima dele. Estende-se, tenso como uma flecha. Guindado pelo impulso, sufocando, surge finalmente ao ar. Lá fora, a noite sucumbiu ao assalto da aurora.

 

- Bravo, Marco! Bravíssimo! - exclama uma voz feminina.

 

Marco esbraceja dentro de água, como para subir mais alto, ainda mais distante dela, para lhe escapar. Aspira profundamente. Esforça-se por se acalmar - por controlar os movimentos. Consegue, com dificuldade, arrastar-se até aos degraus, expulsando da garganta a água verde da laguna. Os seus longos cílios gotejam, formando um rosário na terra árida de Veneza. Donatella, inconsciente do sofrimento do jovem, observa-o com o olhar malicioso que alimenta desde a infância com o cuidado que a ostra dedica à sua pérola.

 

Prostrado por uns momentos, Marco tosse, cospe do fundo dos pulmões. Contra a sua vontade, censura Donatella e, se prolonga este instante, é sobretudo para ter a certeza de que continua a pousar sobre ela um olhar apaixonado. Por fim, ergue as pálpebras.

 

O rosto de Donatella remete-lhe a luz da aurora. Pálpebras nacaradas, de um branco rosado, e uma cabeleira loura resguardada pelo véu de seda branca que lhe cobre o rosto, mas que Marco, por o ter tantas vezes admirado, adivinha perfeitamente à transparência. Finos cabelos prateados brilham nas mechas lisas que sobressaem do véu. A boca, que ela ousa pintar de carmim, dá cor a este quadro em tons de pastel. E em particular as sobrancelhas, tão finas, escuras, bem delineadas, linhas de fuga para as têmporas, emolduram os olhos azuis de cuja beleza tem perfeita consciência. O porte da cabeça adelgaça-lhe o pescoço ainda bem modelado. Continua a rir-se do feito de Marco. Uma graça infantil anima-lhe os traços do rosto, quando franze o nariz pequeno. Donatella compreendeu há muito os artifícios da sedução feminina. A mãe ensinou-lhe com perseverança todos os trunfos do seu sexo. E a sua beleza é a maior força de que dispõe. De facto, é com satisfação que vê cintilar no olhar de Marco aquele brilho escaldante que sabe reconhecer em todos os homens.

 

- Então? - pergunta ela, impaciente e com uma leve ironia. Marco estende as pernas, aprumando a silhueta delgada. Custa-lhe retomar o fôlego. O frio da aurora gela-lhe a roupa contra o corpo. Apesar do pudor, teria preferido lançar-se à laguna nu, e depois vestir uma indumentária seca, mesmo não aquecida. Os raios de sol acariciam os anéis cor de pêssego da cabeleira de Donatella, tecendo-lhe um véu dourado sobre a nuca. A fantasia das varandas do Palazzo Ducale em colunatas e arabescos assenta-lhe bem. Marco afasta-se da escadaria de mármore do Palazzo, repleta de mendigos que a elegeram como poiso.

 

- Tenho o corpo gelado, Donatella - disse ele, batendo os dentes.

 

- Mas não o coração! - respondeu ela, rindo.

 

Marco não consegue amaldiçoá-la, não obstante a vontade de a condenar ao inferno.

 

- À luz do dia, poderíamos ter sido vistos - prossegue ela. Além disso, bem sabe que o meu pai não me autoriza a sair.

 

Lentamente, Marco abre os dedos para deixar escorrer o lodo, viscoso, ao longo da mão. Donatella debruça-se sobre ele. Marco distingue, através das rendas, o contorno grená da sua boca.

 

- Mostre-mo, então, não seja cruel! - pede ela, num tom divertido de súplica.

 

Marco traz na palma da mão fechada o anel de ouro que o Doge lançou ao mar na véspera, dia da Ascensão, para selar a união de Veneza com o mar. Surpreende-se por o ver tão fosco fora da água. Lá no fundo, brilhava como um farol.

 

Pouco habituado ao próprio corpo, que cresceu mais depressa do que ele, Marco verga o torso, bonito e altivo. Fixa Donatella com o seu olhar azul-ultramarino, usando de uma ousadia que poderia rasar a audácia, se não fosse ditada por uma chama sincera, reflexo orgulhoso do primeiro amor.

 

- Aqui está a prova do meu afecto, Donatella. Dê-me a sua mão, para lhe enfiar o anel no dedo.

 

Marco avança para ela com uma solenidade afectada. Ainda ébrio de ar e de água, cambaleia por instantes, deixando esvoaçar o cabelo castanho e encaracolado que lhe roça os ombros trémulos. Mesmo do alto dos seus tacões de madeira, Donatella é ainda muito mais baixa do que ele. Aos quinze anos, o rapaz já exibe um arcaboiço de forçado das galés, embora ainda não possua a sua musculatura. Donatella recua como se a mão de Marco fosse o tentáculo de um polvo.

 

- Enlouqueceu? Vai sujar-me o vestido! Lembre-se de que saiu do fundo da laguna...

 

- Por si, Donatella, irei até ao fim do mundo! - declarou ele numa voz aguda.

 

Ela esboçou um leve sorriso.

 

- Marco, tenho de ir a correr, estão a tocar a matinas!

 

Faz imediatamente menção de se afastar em direcção à criada Anna, que a espera envolta numa grossa capa, dando sinais de uma trágica impaciência.

 

- Espere Donatella! Leve o anel! Donatella pára, volta-se para ele.

 

- Um verdadeiro apaixonado não teria mergulhado até ao fundo do mar para ir buscar um anel velho e já corroído pelo sal... correndo o risco de me deixar viúva ainda antes do casamento.

 

Marco mostra-se estupefacto.

 

- Mas, foi a Donatella que...

 

- Não, realmente não - prosseguiu ela, alisando os caracóis dourados com um ar desprendido, e exalando um fresco odor a orvalho. - Ele teria preferido oferecer-me um anel novo, com diamantes.

 

- Diamantes... - repete Marco, incrédulo.

 

Gotas de água gelada escorrem pelas lajes. ”O anel do Doge vale bem seis besantes de ouro!” pensa ele, despeitado.

 

Ouve-se tocar a marangona no campanário de San Marco, anunciando o início de um dia de trabalho. Abafando um bocejo, Anna tossica nas costas da ama.

 

- O meu pai apresentou-me... - diz ela com uma cruel desenvoltura. - Despache-se, não está sozinho...

 

O rapaz sente-se sufocar. O desprendimento da jovem é indigno do seu amor. Há oito anos que Donatella lhe promete casamento, mas este juramento infantil afigura-se, aos olhos do adolescente, um divertimento cujas regras só ela domina. Cada vez mais brincalhona, a jovem toma consciência da posição privilegiada que o pai ocupa.

 

O Signor Zecconne, o Senhor da Pimenta, é, em Veneza, membro do Grande Conselho junto do Doge. Exerce uma ciosa atenção sobre as opções do genro. Marco sabe perfeitamente que a nobreza da sua família é apenas mercantil. Aprendeu a ler a comédia de Donatella, mas detesta que ela inclua o seu amor. No seu passo ligeiro, Donatella afasta-se, seguida de Anna, desaparecendo nos nimbos da bruma matinal.

 

Marco admira o anel que traz na palma da mão, verde de lodo. Bruscamente, este objecto que quase lhe custou a vida não parece valer mais do que os seus seis besantes. Sente a tentação de o lançar ao mar, mas a recordação do fundo da laguna dissuade-o. Debruça-se sobre a água, lava a mão e, resolutamente, enfia o anel no dedo. ”Ano da graça de 1269: faço hoje quinze anos e Veneza pertence-me” pensa ele, orgulhoso.

 

O sol de Maio dissipa a bruma matinal, revelando, uns atrás dos outros, os cimos dos campanários. Marco penetra nos meandros do dédalo veneziano. Àquela hora em que os traghetti e as gôndolas ainda dormem, como os seus donos, os canais estão cheios de embarcações formando uma ponte improvisada. Marco salta de barca em barca, pisando às vezes, por descuido, um dos miseráveis que ali se abrigam durante a noite. Entra no mercado, que já exala os odores do pão ainda quente, do suco dos melões. As bancas, sobrecarregadas de ervas e frutos em exposição, assemelham-se a um jardim da Babilónia, onde a hortelã e a salva acariciam com os seus eflúvios o anis e o gengibre. Sucedem-se os gritos, numerosos, fortes. Os moinhos de seda começam a funcionar ao fundo dos pátios, exalando suor desde a manhã. Os canais cobrem-se de longas faixas de sangue, tinta forte dos tecidos do Oriente, ou de delgados rastos de anil. O odor repugnante do sangue fresco confere à Draperia sombras de matadouro. Marco atravessa a toda a pressa o imenso entreposto onde estão expostos tecidos de todas as origens.

 

Chega ao Grande Canal, pela magia do labirinto veneziano. Corpos adormecidos, encolhidos nas barcaças atracadas aos cais, estiram-se e fogem antes dos gondoleiros começarem a trabalhar. Os traghetti já começaram a sua incessante ronda, fabricando uma teia imaginária entre as margens do Grande Canal. Por baixo da loggia do Rialto, os primeiros mercadores vêm tratar de negócios. As margens enchem-se de enormes fardos, à espera de serem transportados para o Arsenal e, depois, para o casco dos navios. Os depósitos de vinho e de ferro encontram-se apinhados de barris, sacos e fardos, largados pelos viajantes que vieram descarregar as suas mercadorias. Os primeiros vendedores de cebolas acendem fogueiras. Tentado pelo aroma adocicado, Marco compra um punhado escaldante, que lhe desaparece na boca ainda gelada. Sacrifica as últimas moedas, sujas de gordura das cebolas, a uma dessas melancias que a mãe tanto aprecia.

 

Subitamente, uma voz infantil grita algures:

 

- Papá!

 

Por reflexo, de ventre vazio, Marco volta-se. Um rapazinho corre atrás de um homem alto e magro, cola-se às suas coxas e agarra-se às mãos que se estendem para ele. O pai sorri. Por um instante - ou talvez menos - Marco deseja ser aquele filho para ter aquele pai. Como num mau hábito do qual não consegue libertar-se, Marco pensa no pai, Niccolo. Partiu, desapareceu, morreu talvez? Há oito longos anos que a mãe, a todas as refeições, põe a mesa a contar com aquele fantasma. Pretende que precisam de estar preparados para o receber. Mas Marco detesta aquele prato vazio.

 

O jovem veneziano atravessa o Grande Canal, depois de regatear um adiamento para o preço da corrida, e vai juntar-se aos besteiros de Dorsoduro. Ao longe, a escassos passos de casa, julga reconhecer o padre de San Trovaso, a sua paróquia. Marco precipita-se para lhe falar. Mas a silhueta delgada como a flecha do campanile já desapareceu no labirinto das ruelas. Marco mal chega a interrogar-se sobre a sua presença, mas observa, surpreendido, que não há roupa a secar na varanda da sua casa. Esta, que só tem um piso, é rasgada por sacadas em ogiva que dão para o canal, de um lado, e para a calle, do outro. Atravessa rapidamente o pequeno pátio, saltando, como é seu costume, por cima do parapeito do poço em forma de cruz bizantina. Empurra a porta de madeira. Esta não range, como se aquele fosse um dia diferente dos outros. Dentro de casa, reina uma atmosfera pesada. Marco julga ouvir suspiros, ou gemidos.

 

- Mamma?


A criada, Fiordalisa, surge de repente no corredor. Esconde o rosto num lenço. Ao ver Marco, começa a chorar. Desaparece no quarto da mãe. Furioso com tantos mistérios, o jovem aproxima-se da porta de onde provêm os murmúrios. Empurra-a, mas permanece à entrada. O quarto está mergulhado na penumbra. Reposteiros roxos tapam as janelas. Os olhos de Marco têm de se habituar à escuridão. A mãe está deitada, imóvel no leito. O tio, o irmão mais velho do pai Niccolo, atirou-se para cima de uma cadeira, de garrafa na mão.

 

- Ontem à noite sentiu-se mal e, hoje de manhã, não acordou, senhor Marco - murmura Fiordalisa.

 

- Onde estiveste? - acrescenta o tio, num tom de censura. Vens encharcado.

 

Marco aproxima-se da mãe, incrédulo. Observando-a de perto, dir-se-ia que nunca viveu. A sua pele, pálida, brilha como cera. O coração de Marco não aceita aquela morte. É um abandono demasiado brusco para que acredite realmente nele. Marco sente-se desprotegido frente à morte e censura a mãe por não o ter preparado previamente. Ainda tem tantas perguntas para lhe fazer, tanto afecto a receber. Marco recorda com amargura todos os impulsos de amor que conteve. E o pai? Sem ela, de que servirá esperar por ele? Um estranho sorriso de ausência paira nos lábios da mãe. Onde quer que se encontre, parece zombar dele.

 

- Então, Marco, não me respondeste, onde estavas tu de manhã tão cedo?

 

O tio levantou-se e mantém-se de pé, corpulento e pesado, incapaz de encontrar um assento à sua medida. Marco Il Vecchio, como lhe chamam os irmãos, em família. Velho desde a infância, sem dúvida, avarento como um pão demasiado duro, pusilânime como uma corda mal apertada. Sempre enfiado num vestuário que teima em mandar talhar um número abaixo do seu, com uma vaidade fútil. Marco é forçado a admitir que o teme.

 

Lá fora, ouvem-se os pregões de sucateiros e de vendedoras de flores.

 

Marco olha para o anel que enfiou no dedo. Fecha o punho. Vêm-lhe as lágrimas aos olhos.

 

- Meu tio, apesar de todo o respeito que lhe devo, não tenho contas a prestar-lhe...


Il  Vecchio avança para Marco.

 

- Oh, claro que tens, pobre insolente! A partir de agora, estás sob a minha protecção.

 

- Resta-me o meu pai, está a esquecê-lo demasiado depressa!

 

- Niccolo? - exclama Il Vecchio, dubitativo. - Há oito anos que o esperas? És tão louco como a tua mãe.

 

Il Vecchio debruça-se sobre Marco, soprando-lhe para o rosto um hálito que tresanda a vinho barato.

 

- Se não foi despachado pelos bárbaros, esqueceu-se da vossa existência nos braços de alguma cortesã oriental!

 

Marco, num ímpeto de raiva, arremessa a melancia que ainda traz na mão contra o gordo Il Vecchio. Este vacila, mas volta a endireitar-se num movimento ágil e esbofeteia o sobrinho, com uma força que a fúria multiplica por dez. Marco cai por sua vez.

 

- Apressa-te a enterrá-la. Sentir-te-ás muito melhor. De resto, tens sorte, não ficas na rua. Ficarás ao meu serviço, na descarga dos barcos provenientes de Constantinopla. Quanto às tuas despesas, bastar-te-á falar comigo.

 

Marco ergue-se lentamente, de olhos toldados. Detesta a presença do tio, pois gostaria de se recolher sozinho junto do corpo da mãe. Correm-lhe pelas faces lágrimas que gostaria de conter. A indecência do seu desgosto revolve-lhe o estômago.

 

- As minhas condolências pela tua mãe - digna-se acrescentar o tio.

 

Sai, provocando, com o seu peso, o estremecimento das pranchas do soalho. Mas Marco, como a pequena serva Fiordalisa, não precisa daquele aparato para se arrepiar. A escuridão parece subitamente ainda bem mais densa aos olhos de Marco. E a ausência, essa, mais presente.

 

As mãos esfoladas começam a ficar vermelhas. Irritadas pelo contacto com o sal, ardem-lhe até aos cotovelos. Marco sopra para as mãos antes de pegar em mais um fardo. Os dias sucedem-se, dolorosos, com a noite por único horizonte. Usando de toda a sua raiva, o rapaz enche-se de força a descarregar dos navios fardos de peixe salgado, como um simples moço de fretes. A feitoria dos Polo importa as mercadorias vindas do Oriente, transitando por Constantinopla. Il Vecchio especializou-se em produtos de base: cereais, óleos, açúcar, algodão, lãs, carne salgada, vinhos, peixe seco, ceras, pedra-ume, escravos. Proibiu Marco de se abastecer na feitoria, nos seus próprios entrepostos. O tio apropriou-se da herança da mãe, a pretexto de que a guarda, na expectativa do regresso de Niccolo. Assim, Il Vecchio pôde alargar os entrepostos e diversificar as mercadorias. Ambiciona, acima de tudo, desenvolver os produtos de luxo: pimenta, canela, gengibre e noz moscada, bálsamos e gomas, sedas e tapetes da Pérsia, quermes animal para utilizar na tinturaria escarlate, fios de ouro e prata.

 

Os navios desembarcam sem descanso marinheiros de todas as cores, atracando entre altos gritos em línguas desconhecidas. Marco observa fascinado estes homens geralmente de pele mais escura do que a sua, que usam turbantes e túnicas, suando sob o peso dos fardos, a despeito da brisa fresca da laguna. O sol matinal, cujos raios atravessam com dificuldade a densa camada de nuvens, desenha, num surpreendente contraste, jogos de sombra e luz nos corpos tensos pelo labor. Os músculos destacam-se com orgulho, rolam sob a pele brilhante. No porto, a floresta de mastros adensa-se à medida que entram os comboios de mercadorias. Os últimos a chegar ancoram mais ao largo, colados aos primeiros, e Marco e os companheiros são obrigados a descarregá-los saltando de embarcação em embarcação, até à margem, já juncada de produtos variados.

 

No Inverno, regressam os navios que partiram no Verão. Marco não se cansa deste espectáculo. Julga sentir o vento quente que estes barcos trazem de países longínquos, no meio das mercadorias. Extasia-se ante os rostos burilados pelo sol de outras paragens. Giovanni, um operário do arsenal, mudo e um pouco mais velho do que Marco, também sonha com os mares do Oriente. Juntos, estudam a ciência do cordame, na falta da ciência da navegação. Os caminhos percorridos pelo pai no rasto de Alexandre Magno perseguem Marco. Equilibrista excepcional, Giovanni entrega-se muitas vezes a exercícios de acrobacia para divertir o amigo. Aos poucos, foi ocupando no coração de Marco o lugar do irmão que nunca teve. Mil vezes, o jovem Polo faz falar os marinheiros, os besteiros, ouvindo-os com avidez contar demoradamente o mistério do Levante.


Desde a morte da mãe, algumas semanas antes, Marco evita a paróquia Santa Croce de madrugada. Espera que Donatella repare na sua ausência, mas sofre por não ter a certeza. Terá de lhe anunciar que, doravante, é o tio o chefe da família, embora não queira que ela tome conhecimento desta nova sina que é a sua. Veneza sufoca-o com os seus canais sobrecarregados de barcaças, as ruelas estreitas e sombrias onde é preciso torcer o pescoço para vislumbrar um raio de sol vindo do paraíso, as vagas, prisioneiras dos homens, que se revoltam nos dias de acqua alta. Em Veneza, o horizonte parece-lhe afastar-se à medida que ele verga ainda mais a espinha sob o peso do destino. Algo dentro dele lhe grita que acabará por apodrecer naquela cidade de mentiras, que pretende abrir-se para o mundo, quando se limita a engoli-lo.

 

Enquanto espera, vê-se obrigado a lutar taco a taco pela mais ínfima moeda. Il Vecchio não se cansa de repetir que só se ganha negociando. Mas Marco sabe perfeitamente contar e avaliar os lucros do tio. Certo dia, quando Marco se prepara para se apoderar de umas botas que o tio lhe anda a prometer há semanas, fica a saber, por uma conversa entre Il Vecchio e um cliente que o tio o rouba bem mais do que ele alguma vez supôs.

 

Pousa-lhe no ombro uma mão, Marco volta-se, gela-se-lhe o sangue - terá sido surpreendido a furtar as botas? O chefe dos besteiros está à sua frente, alto e de bigode esvoaçando ao vento.

 

- Marco Polo, fizeste quinze anos e ainda não te apresentaste à tua companhia de besteiros.

 

Marco suspira, enfiando rapidamente as botas. As últimas emoções perturbaram-lhe suficientemente o espírito para que se tenha esquecido desta obrigação.

 

- Eu sei - prossegue o chefe dos besteiros - que o teu tio dispõe de muitos recursos e que te poderá dotar de uma balestra provida de corda e de goteira e que seja propriedade tua. Se assim não for, incorres numa multa de quarenta soldos.

 

Marco levanta-se de um pulo.

 

- Quarenta soldos! Mas eu não os tenho!

 

- Pois bem, descobre uma balestra antes do Natal!


IO SOL NO EXÍLIO

Marco Polo! Marco volta-se, escrutando a multidão de carregadores que se move entre os barcos e os armazéns de sal. Vê aproximar-se, a passos largos, um homem de barba farta e frisada. O seu rosto tem a pele curtida dos que vivem ao sol. Os ombros musculados do homem desenham-se na camisa demasiado apertada.

 

- Michele Saad? - pergunta Marco, sem ter a certeza. - És tu?

 

O outro, todo sorrisos, de olhos brilhantes, estreita Marco nos braços sem dizer uma palavra, antes de recuar para melhor o encarar.

 

- Como mudaste! Fizeste-te um homem, já quase se pode dizer que tens barba!

 

Marco, ufano, acaricia a barba que desponta.

 

- E tu, Michele, também não te reconheci!

 

- Sim, mas eu, é normal, andei a viajar! Constantinopla! Kayseri! Cheguei até à Pérsia! - exclama ele, orgulhoso. - Mas tu, pareces-me preocupado?

 

Marco ergue a cabeça, olhando o amigo.

 

- É verdade, Michele. Tenho de me treinar no uso da balestra, mas não tenho nenhuma. O meu tio recusa-se a dar-me uma, pois não considera o tiro utile ymo necessarium, ao contrário do Doge. Pensa que um mercador não precisa de aprender a manejar armas, sobretudo se permanecer em Veneza, como me recomenda que faça. Corro o risco de ter de pagar uma multa de quarenta soldos, quantia que não possuo, evidentemente - suspira o jovem. - Mas estou com certeza a enfadar-te.

 

- Nem penses nisso, Marco! - exclama Michele, com um gesto largo. - Dispões de tempo, não?

 

Marco meneia a cabeça, fatalista.

 

- Michele! O concurso realizar-se-á pelo Natal, dentro de poucos meses! E eu não terei uma coisa nem outra.

 

- E então, que sorte te estará reservada?

 

- O cárcere, imagino.

 

- Essa perspectiva não parece preocupar-te muito, Marco surpreendeu-se Michele.

 

O rapaz desviou o olhar, taciturno.

 

- No cárcere já eu estou, Michele.

 

Um marinheiro, de pele curtida e suado, carregando um pesado fardo, aproxima-se de Michele e sussurra-lhe algumas palavras em árabe. Michele responde na mesma língua, antes de se voltar para Marco.

 

- Marco, peço desculpa. Tenho de zelar pelos meus negócios

- acrescenta Michele, apontando para a Alfândega - antes da chegada de Niccolo Polo. Ele pretende que metade dos seus escravos passem por criados livres, para não pagar direitos, compreendes? Os documentos a fornecer são cada vez mais numerosos. E como sou judeu, vão exigir-me três vezes mais do que a qualquer outro veneziano.

 

Marco não está certo de ter ouvido bem.

 

- Que disseste tu, Michele? Michele sorriu ao amigo, negligente.

 

- Pois, sou judeu, e...

 

Marco interrompeu-o com um gesto.

 

- Eu sei, Michele, mas falaste de Niccolo Polo...

 

- Sim, Niccolo Polo está de regresso - confirma Michele. Esquecendo a melancolia, Marco lança-se nos braços de Michele.

 

- Onde está ele? Está contigo? Acreditas que se lembre? Falou-te de mim? Contou-te o seu périplo?

 

Michele repele-o delicadamente.


- Pace, pace! Marco! Respondo não a tudo! Não, não e não! Acaba de liquidar alguns negócios em Constantinopla. Deverá regressar a Veneza dentro de dias. O seu navio partiu pouco antes do meu, mas, de casco redondo, é muito lento.

 

- Michele! Diz-me, ao menos, como é ele? Como o poderei reconhecer!

 

Michele solta uma gargalhada.

 

- Vê-te num espelho!

 

Marco segue com os olhos Michele, que se afasta em direcção à Dogana. Incapaz de se manter quieto, larga o inventário e começa a correr pela margem, saltando de fardo em fardo, cada vez mais alto, como se quisesse atingir o céu. Alguém chama por ele. Mas Marco só ouve a música do vento nos inúmeros mastros que se erguem no ar. Pára, ofegante, apoia-se no último pontão da laguna. Ao longe, no horizonte salpicado de espuma, a água e o céu confundem-se no mesmo brilho. Extenuado, de olhos arregalados para o mar que lhe devolverá o pai, Marco enche os pulmões deste novo ar que lhe parece respirar pela primeira vez: o da liberdade.

 

- Meu tio - começa Marco com um nó na garganta -, o chefe dos besteiros de Dorsoduro perguntou-me mais uma vez pela minha balestra, para o concurso que se realizará no Lido, pelo Natal.

 

Do sol poente ainda despontam alguns raios dourados, rectilíneos como flechas, que incidem na mesa, no meio da sala. Separado de Il Vecchio por este biombo de luz, Marco distingue apenas a silhueta maciça, negra como o ónix, do tio.

 

- E tu respondeste-lhe mais uma vez que pagarei a multa de quarenta soldos - afirma, peremptória, a voz vinda da sombra.

 

Marco não replica, aguardando que Fiordalisa acabe de os servir. A criada vai ao mercado várias vezes por dia, o que irrita Il Vecchio, que a acusa de delapidar tempo e dinheiro. Na verdade, ela procura um marido que a leve daquela casa. Naquela mesma tarde, Marco viu-a a vender cebolas em troca de alguns dinheiros, no Campo San Stefano, o que lhe valeria uma severa reprimenda, se Il Vecchio viesse a descobrir.


Por enquanto, Fiordalisa, muito preocupada, continua a servi-lo de sopa, embora o prato já esteja a transbordar. Marco pousa a mão no pulso da rapariga, que se sobressalta e se afasta para as dependências, escorregando no chão constituído por camadas de detritos fossilizados dos anteriores ocupantes, como acontece em muitas casas de Veneza.

 

- Todos os fidalgos da minha idade vão estar presentes, meu tio - disse Marco, com uma ponta de raiva na voz.

 

- Não te peço que sejas exímio no tiro, mas na arte do comércio - vocifera Il Vecchio, num crescendo. - Ouvi dizer que te passeias muitas vezes pelas bandas do canal, que conversas com os marinheiros. Se me obrigares a tal, fechar-te-ei na loja.

 

Marco sente crescer a raiva.

 

- Meu tio, não está a entender nada! Em breve deixarei de estar sujeito às suas ”bondades”.

 

Il Vecchio franze o sobrolho por cima dos olhos pequenos, escondidos no meio das rugas. Involuntariamente, Marco cala-se, mergulhando o nariz no prato. Abate-se um silêncio sobre a mesa. Da rua, através do pequeno pátio, chegam-lhes os pregões dos últimos vendedores de peixe seco que procuram desfazer-se das sobras. O tio pousa as grandes mãos de cada lado do prato.

 

- Sou todo ouvidos, senhor meu sobrinho. Tem algo a dizer-me, ao que parece.

 

Marco, confiante, afasta o banco da mesa.

 

- Suponho, meu tio, que, como eu, já soube a novidade. O seu irmão Niccolo está de regresso a Veneza.

 

Il Vecchio solta uma gargalhada. As paredes estremecem como o coração de Marco.

 

- E depois? Não é a primeira vez, nem será a última, que o seu regresso é anunciado. Entretanto, sou eu que te dou cama e mesa! E obedecer-me-ás, por muito que te custe...

 

Il Vecchio avança em direcção a Marco, pega-lhe pela manga e puxa-o do banco, que cai, produzindo um ruído surdo. Arrasta-o para o compartimento onde se empilha o material por vender e fecha a porta.

 

- Não sairá daqui, até novas ordens! Uma boa maneira de abandonar a ideia de ir passear para as bandas do canal!


A voz ameaçadora de Il Vecchio cobre o ruído da chave que dá a volta dentro da fechadura.

 

- Buffone! - murmura Marco no seu íntimo.

 

Impaciente, o jovem espera pela noite escura para abrir a estreita lucarna e saltar para o pátio. Àquela hora, as oficinas de fiação estão fechadas. Marco pula sem hesitar, imobiliza-se, de joelhos flectidos, apura o ouvido. Da cozinha, chega-lhe a voz de Il Vecchio. Estica lentamente as pernas e desliza até à escada exterior que dá para o canal. Descendo rapidamente para a água, agarra-se agilmente às argolas cravadas na parede e que se destinam às gôndolas, e alcança a ruela. Embora esteja uma noite escura, Marco não hesita. Conhece perfeitamente a sua cidade natal. Ali, o cheiro a lama indica-lhe que segue o rio dei Mendicanti; mais adiante, o som firme das botas certifica-o de que se encontra na Ruga Giuffa; mais adiante, uma mancha de anil, obra dos tintureiros: não se encontra, portanto, longe da Draperia. Ouvindo passos abafados, abranda a marcha. Cose-se com o pórtico de San Giacomo, confundindo-se com os frescos. Vê passar uma família de cinco filhos, carregando fechaduras e armações de camas. Abandonaram, com certeza, um alojamento que já não podiam pagar, levando consigo este magro espólio que esperam poder vender. Marco espera que desapareçam na escuridão das ruelas. Retoma o caminho do Grande Canal. Começam a chegar-lhe aos ouvidos ecos de rixas, vindos do fundo da noite iluminada por tochas tardias. Alcança, assim, o Rialto, sem se ter cruzado com vivalma.

 

Enquanto Veneza dorme, ali, no Rialto, as volutas do Inferno mantêm os noctívagos despertos. Em frente do bordel, mulheres convidam os transeuntes a entrar. Exibem com obscenidade os corpos, mais enfeitados do que propriamente vestidos. Das rachas das túnicas escarlates emergem pernas provocantes. As cabeleiras pintadas de vermelho desdobram-se em pesados cachos sobre os ombros despidos. Tão pintadas quanto a gôndola do Doge, as faces coradas sobre a máscara de cerusa, oferecem as bocas por vezes desdentadas e murchas, de lábios descaídos. O olhar de Marco demora-se numa estrangeira de pele morena e corpo de liana. Ouve-as rir, porventura zombar. No espelho do Grande Canal, as casas emitem reflexos de uma margem para a outra, rivalizando na sedução dos paramentos de mármore. Nos degraus da ponte, disputam-se jogadores, proferindo blasfémias. Nas tabernas que exalam um forte cheiro a malvasia, falam-se todas as línguas, sobretudo as que Marco ignora. Ele só sabe italiano e latim. A mãe, que tanto sofreu com a ausência do marido, via com maus olhos o desejo de afastamento do filho único. E o tio quer mantê-lo sob vigilância. Nenhum deles encorajou Marco a aprender uma língua de horizontes mais longínquos, como o árabe ou o persa. De onde vêm aqueles homens que fazem escala de uma noite ou de um ano entre o povo das lagunas?

 

Subitamente, incrédulo, o jovem reconhece a silhueta de Michele Saad, saindo de uma taverna, cambaleante, acompanhado por um bando de alegres companheiros. O jovem avança para ele e assenta-lhe a mão no ombro, o que quase acabou por o desequilibrar.

 

- Ei, Marco, também por aqui? Dá cá um abraço, pois quero agradecer-te!

 

Michele aperta Marco contra os ombros fortes.

 

- Obrigado pela Dogana - sussurra Michele ao ouvido de Marco.

 

O jovem limita-se a responder por meio de um caloroso abraço. Conhecendo todos os funcionários que o tio recebe regularmente, não teve dificuldade em lhes pedir que dispensassem aquele judeu dos entraves que estavam dispostos a impor-lhe. Secretamente, espera que o pai aprecie o seu cordial procedimento.

 

- Procuras alguma má companhia? - pergunta-lhe o amigo, jovial.

 

- Então, encontraste-a! - exclama, rindo, um dos companheiros de Michele, que tem o rosto coberto de veias azuladas.

 

Numa voz hesitante, Michele faz as apresentações:

 

- Marco, tens à tua frente um futuro oficial da marinha! exclama ele, como se estivesse encarregado da nomeação. - Mas, por enquanto, não passa de um marinheiro.

 

E todos riem em consequência de uma chalaça que Marco não chega a ouvir.

 

- É verdade, Marco - confirma o futuro oficial, esboçando uma vénia grosseira -, em breve serei chamado senhor Farenna, per favor, si signor.

 

- Por esta noite, estou disposto a reconhecê-lo como graduado, imediatamente, senhor Farenna - replica Marco, trocista.


- Um seu criado - retorque o outro, renovando a ridícula vénia.

 

Michele interrompe-os.

 

- Não! Esse posto, ele terá de o conquistar! Venham todos! Apressado, começa a correr para a ponte do Rialto, apodera-se, de passagem, de dois remos de gondoleiro e entrega um a Farenna.

 

- Escolhe o teu adversário, marinheiro. Se o lançares à água, terás então direito a que te chamem senhor!

 

Farenna, de olhos brilhantes pelo vinho, dá uma volta sobre si mesmo, titubeante, avaliando o estado dos companheiros. Decidido, aponta o remo ao peito de Marco. Este examina a estatura maciça de Farenna, levando-lhe uma cabeça de altura. Pega no remo e avança tranquilamente para Farenna que, de joelhos flectidos, se equilibra ora num pé ora no outro. A multidão solta gritos de encorajamento. O marinheiro aproxima-se de Marco e aplica-lhe uma violenta pancada nas costelas, surpreendendo o jovem. Os efeitos do vinho conferem-lhe força e segurança. Marco já assistiu muitas vezes a esta espécie de rixa, chamada guerra das pontes, mas sem nunca ter participado em nenhuma, e ainda para mais numa ponte tão difícil como o Rialto. As arcadas de madeira são mais altas do que paredes e tornam a queda acidental improvável. É preciso empurrar o adversário para a água, ou mesmo erguê-lo à força e lançá-lo. A resistência de Marco espevitou a combatividade de Farenna. Marco defende-se com um ímpeto desordenado que tem o condão de extenuar o marinheiro. Subitamente, enquanto Farenna o enfrenta, trocista e certo da vitória, Marco trepa para cima do parapeito, como se fosse saltar para o canal. Os gritos da multidão cessam bruscamente. O marinheiro, surpreendido, sobe para a ponte, debruça-se sobre o vazio. O jovem, escondido atrás da cornija, agarra o adversário pela gola e lança-o à água, num retumbante mergulho. O público começa a aplaudir, rindo às gargalhadas da partida pregada ao marinheiro. Marco escala o Rialto. Farenna sobe do lado oposto da margem, encharcado, desanuviado e furioso, vociferando promessas de vingança e impropérios de corsário.

 

- Ah, bem gostaria que o teu pai tivesse assistido! - exclama Michele, julgando lisonjear o jovem.


Mas a alegria de Marco dissipa-se, cedendo o lugar à dúvida. Para lá da curva do Grande Canal, adivinha-se o mar. Os risos à sua volta parecem ter-se calado.

 

Marco não se lembra do pai, que partiu de Veneza ainda ele mal completara sete anos. Recorda apenas o seu olhar - que nunca baixava para o filho. Pensando nas palavras de Michele: ”Mira-te num espelho!” debruça-se sobre o Grande Canal e depara com o seu reflexo, maior do que a realidade. Ombros largos, queixo quadrado, longos cílios negros e brilhantes, cercando uns olhos de oceano, uma barba que começa a despontar, cabelo claro e ondulado. Por baixo do chapéu, esvoaçam-lhe os caracóis, quase num estremecimento. Uma silhueta que, de dia para dia, não cessa de se afirmar. Um corpo estranho cai à água, gritando no reflexo de Marco, interrompendo a contemplação. Há marinheiros que se entregam à guerra das pontes, à bastonada, imitando o duelo de Marco e Farenna.

 

Michele e o seu bando arrastam Marco para uma taberna da qual saem embriagados, mas ainda não completamente aniquilados. Desamarram gôndolas de particulares que lançam à deriva, deleitados com o feito, regozijando-se antecipadamente com a surpresa dos proprietários, pela manhã. Depois, esforçando-se por evitar os senhores da noite, patrícios encarregados da segurança das ruas ao cair da noite, metem-se pelas ruelas, conduzidos por Marco. O jovem ainda consegue, não obstante a escuridão e a bruma que lhe tolda o espírito, distinguir o caminho. Depois, assolado por uma súbita inspiração, pede a Michele, que não o conhece, que vá acordar, no meio de grande estrépito, o padre de San Trovaso, a fim de ir prestar os últimos sacramentos a Il Vecchio, supostamente moribundo. Marco, escondido com os companheiros atrás de uma coluna, morde o pulso para conter o riso. Quando Michele regressa, a alegre companhia, cansada de impertinências, decide ir terminar a noite em qualquer lugar mal afamado. Marco, que recuperou bruscamente a sobriedade, hesita. Sem saber porquê, acodem-lhe ao espírito maus pensamentos. E se o tio tivesse razão? E se Niccolo nunca mais voltasse? Marco não quer imitar a mãe, viver na expectativa e acabar por morrer.


- Então, Marco? Em que pensas? Vem comigo, nós vamos até aos banhos! - convida-o Michele com um ar guloso. - Verás que te escolherei uma mulher como se fosse para mim!

 

Marco roda o anel do Doge que traz no dedo. De punhos fechados, opta por ceder a esta tentação, num espírito de vingança.

 

Pouco antes da aurora, Marco separa-se dos companheiros. Com o coração inchado por um viril orgulho, vagueia, como por instinto, pelas ruas de Veneza até ao Palazzo Zeccone, cuja fachada ornada de saliências e de sagome esculpidos reconhece. Dois pequenos anjos sustentam alegremente as armas do Senhor da Pimenta. Marco apanha umas quantas pedras que arremessa habilmente à alta janela ornamentada do quarto de Donatella, situado no andar nobre - o primeiro. Ao cabo de um momento, demasiado prolongado para o gosto de Marco, a janela abre-se, revelando o rosto de Donatella. Assim tão furiosa, de cabeleira revolta, parece a Marco ainda mais bonita. Por detrás dela, o jovem adivinha a cúpula do leito, ornada de um céu estrelado.

 

- Marco, por que me acordou? - exclama Donatella.

 

- Porque a amo! - responde Marco, que se esforça por manter a voz tão firme quanto o vinho lhe permite.

 

Donatella suspira.

 

- Certo, eu sei! E há mais alguma coisa que mereça que me obrigue a levantar a esta hora?

 

Marco hesita, procurando confiar-se sem se confessar.

 

- Nada mais - acaba ele por dizer, num tom agudo, quase infantil.

 

- Muito bem, agora que está tudo dito, desejo-lhe uma boa noite, senhor Polo!

 

E Donatella volta a fechar a janela sem outra forma de despedida. Depois deste frio gesto, o jovem pergunta a si mesmo se uma amante genovesa, doce como dizem, não seria preferível a uma esposa com o temperamento de Donatella. Agrada-lhe pensar que conseguirá domá-la. ”Mas quem julga moldar o ferro aquecendo-o só consegue endurecê-lo ainda mais” pensa ele, perplexo. O sino da Rialtina começa a tocar a recolher. ”É a terceira hora da noite...”


Marco caminha arrastando os pés. Quase contrariado ao recordar os braços da cortesã, tiritando subitamente com saudades da mãe, vê uma embarcação livre e deita-se nela, disposto a passar ali o resto da noite, demasiado esgotado para desafiar o toque de recolher. O murmúrio da água embatendo contra as gôndolas, como uma imensidão de beijos, embala-o docemente.

 

De manhã, Marco é acordado por uma rixa entre açougueiros e queijeiros do mercado central. Como de costume, discutem quanto ao insuportável odor que cada uma das corporações acusa a outra de exalar, um pretexto para exigirem o maior número possível de bancas no mercado.

 

Marco, cujas dores de cabeça lhe recordam a noite agitada que passou, não sente vontade de intervir naqueles assuntos. Talvez fosse preferível ir pedir perdão ao tio. O orgulho dissuade-o. Deambula até ao Palazzo Ducale cujo mármore rendilhado serve de cenário bizantino aos vendedores ambulantes que expõem aos olhos de quem passa toda a espécie de ervas, melões, melancias e abóboras. É a hora em que os primeiros barcos de casco redondo começam a descarregar. Avançando em direcção ao cais, o jovem observa as manobras de um comboio que se prepara para ancorar. Os marinheiros afadigam-se na manobra. Os remadores apontam para o céu as longas palas de madeira. O barco é escoltado por galés armadas de fundo chato, velozes em caso de ataque de piratas, reservadas aos navios ricos e preciosos.

 

Na ponte, ao longe, o mercador discute na sua língua quente e grave, numa voz rápida e sonora. A sua silhueta esguia ultrapassa a • dos outros em pelo menos uma cabeça e agita-se fazendo gestos largos, indo do comandante para o contramestre, forte como um sírio, aparentemente sem dar tempo a nenhum deles para lhe responder. Apressado, dá ordens com a segurança de quem está certo de ser obedecido. A seu lado, um homem baixo acompanha-o por todo o lado, tentando fazer-se ouvir, mas em vão.

 

A atenção do jovem é então atraída por uma coluna de escravos que desce a passerelle até à margem. A fadiga é uma cadeia ainda mais difícil de transportar do que as grilhetas que os unem. São maioritariamente mulheres, de origens múltiplas, búlgaras, gregas, circassienses, abcases, tártaras. Marco reconhece certas faces eslavas de maçãs do rosto rosadas e salientes, e outras mais morenas. O contramestre orienta-lhes os passos com uma severidade seca. Subitamente, enquanto todas elas mantêm as pálpebras voltadas para os pés entravados, uma delas ergue os olhos e fixa-os nos de Marco, uma ilha longínqua. O jovem esboça um movimento de recuo. Os olhos dardejam sobre ele uma luz escura, sem pestanejar. Olhos como ele nunca viu, brilhantes como laca, luzidios como o aço de espelho. As pálpebras finas, alongadas, parecem ter sido rasgadas na carne. Neste olhar, medo, porventura raiva. As maçãs do rosto salientes, por baixo dos olhos amendoados acentuam a forma triangular do rosto. Com um nariz minúsculo cor de argila, é particularmente feia. O cabelo negro e comprido, apanhado na nuca, brilha ao sol da manhã. O vestuário, demasiado quente para Veneza, cola-se-lhe à pele ocre. Exibe uma grande tatuagem nas mãos, um animal fantástico, meio tigre, meio dragão, como jóias entrelaçadas em volta dos dedos, subindo até aos pulsos. Mantém os olhos fixos em Marco com uma tranquilidade vinda de paragens que ele não conhece. Este olhar, diferente de todos os que Marco alguma vez sustentara, pareceu durar uma eternidade, numa estranha e violenta intimidade.

 

- Ei, pequeno! És surdo, ou fazes-te!? - exclama uma voz, perto dele.

 

Marco volta a cabeça para o homem que o interpela. Este vem precisamente a descer do barco que trouxe a coluna de escravos. O jovem reconhece então a silhueta do mercador que pouco antes avistara a bordo do navio. As suas feições parecem talhadas pela lâmina das rajadas de vento. O rosto seco ainda ostenta marcas de sal nas sobrancelhas erguidas. A boca arvora um sorriso de satisfação, realçado por duas rugas profundamente cavadas. Sobre a longa cabeleira ainda negra apertada nas costas, usa um chapéu de pele, com certeza demasiado quente, mas que ele não dá mostras de querer tirar. A sua elevada estatura destoa, no meio das mulheres encurvadas.

 

- Enfim, ”pequeno” é uma maneira de falar - prossegue ele, num gesto de desculpa. - Não quero ofender-te.


Marco tem a impressão de que já viu aquele homem. Acontece-lhe reconhecer certos mercadores que chegam de Constantinopla, de seis em seis meses, mas este é diferente. Tem um sotaque que ele nunca ouviu. Demonstra a sua vontade de dominar o mundo por uma desconcertante ausência de boas maneiras.

 

- Tenho uma mensagem para enviar à Ca’Polo.

 

Marco acaba de compreender que o homem de pé à sua frente e que o toma por um garoto da rua, sedento de algumas moedas, é Niccolo Polo, o seu próprio pai.

 

Niccolo volta-se para outro mercador, que também desceu do barco, mas de cuja presença Marco só agora se apercebeu. É o homem baixo que, ao longe, lhe pareceu ser a sombra de Niccolo, na ponte do navio. Ao contrário de Niccolo, é franzino e pálido, mesmo doentio, de ombros encurvados sobre as mãos, que seguram uma bolsa. Niccolo dirige-se ao homem num gesto brusco:

 

- Matteo, dá alguns soldi ao ragazzo, dá.

 

Matteo ergue a cabeça para Marco e permanece momentaneamente interdito. Olha para Niccolo, depois novamente para Marco.

 

- Então, Matteo, por que esperas? Dá! - impacienta-se Niccolo.

 

Marco sorri, tão divertido quanto submerso pela emoção. Por fim, Niccolo, que até agora ainda não se dignou olhar para ele, dispõe-se a observá-lo. Aproxima-se do rapaz e fita-o, incrédulo.

 

- É estranho - murmura ele numa voz muito séria. - Como te chamas?

 

Desta vez, Marco não consegue evitar o riso.

 

- Marco.

 

Niccolo pega nele e ergue-o no ar. ;

 

- Meu filho! És tu, meu filho! Meu pequeno!

 

Niccolo pousa Marco no chão, ofegante e surpreendido por encontrar um filho tão grande. Marco, ri, ri tanto que não consegue falar. Matteo começa a chorar e cai-lhe nos braços, por sua vez. Por cima do ombro de Niccolo, Marco surpreende o olhar espantado da jovem escrava. Respeitadora desta curiosa familiaridade, baixa os olhos. Marco lamenta já não poder contemplar o seu estranho olhar negro de luz.

 

- Vem, vamos ver a tua mãe - ordena Niccolo, enlaçando o filho pelos ombros.


- Morreu, senhor - declara ele, solene.

 

Niccolo, momentaneamente chocado pela notícia, limita-se a opinar, numa voz surda:

 

- Os seus cozinhados vão fazer-me falta. Sabes, ela prepara as melhores cebolas do mundo conhecido. Foi a minha mãe que lhe ensinou.

 

Desconcertado, Marco procura nos olhos negros do pai lágrimas que não encontra.

 

- É tudo o que tem a dizer-me... senhor - surpreende-se Marco, numa voz eivada de raiva.

 

- Mas tu estás aqui! É o que importa, não? - exclama Niccolo, abanando o filho. - Lembras-te do teu tio Matteo? Não, decerto que não, eras muito pequeno.

 

Niccolo ri-se, enquanto aplica umas palmadas nas costas do irmão.

 

- Seja como for, nunca ninguém se lembra de Matteo!

 

Este esboça um débil sorriso. Marco repara que ainda não lhe ouviu a voz. Na sombra de Niccolo, parece sempre pronto a responder às mínimas perguntas do irmão, discreto e obviamente eficaz.

 

- Pois eu lembro-me muito bem de si, senhor meu pai! - declara Marco, orgulhoso, embora esteja a mentir.

 

Aqui está, pois, o homem por quem a mãe se fez velha de tanto esperar. A sua união afigura-se subitamente insólita aos olhos do rapaz.

 

- Estou extenuado - suspira Matteo. - Marco, meu sobrinho, leva-nos à Ca’Polo, por favor.

 

Niccolo vê uma linda vendedora de cebolas e aproxima-se dela. Volta-se para Marco e Matteo e diz:

 

- Vão andando, eu já lá vou. Matteo grita-lhe, atrás dele:

 

- Niccolo, disseste que te ocuparias pessoalmente do descarregamento e de...

 

Morrem-lhe as palavras num murmúrio. Volta-se para Marco, desanimado, com um sorriso cansado:

 

- Pois bem, seja, avança. Eu também já lá vou.

 

Marco vê-o afastar-se em direcção ao navio, de onde o contramestre lhe envia sinais interrogativos a respeito do seu irmão Niccolo. Matteo contenta-se em lhe responder com um encolher de ombros. Matteo não parece tão magro quando não está ao pé de Niccolo. Tira o chapéu, revelando uma calvície avançada e insuspeitada, pois o cabelo que lhe resta descreve uma auréola perfeita em volta do rosto macilento. O seu andar é hesitante, mantém os olhos baixos como se vigiasse cada um dos seus passos. Após muitas explicações, pede ao contramestre que conduza os escravos. A coluna passa à frente de Marco. A jovem que atraiu o seu olhar faz um movimento com a cabeça. Vista de perto, parece pouco mais velha do que ele. A longa cabeleira preta esvoaça como um bater de asas, largando, de passagem, um forte odor a animal selvagem. A violência entontecedora deste eflúvio atordoa momentaneamente o jovem.

 

Um riso feminino desperta a atenção do jovem veneziano, que tem a surpresa de reconhecer Fiordalisa. A criada exibe-se. Niccolo sorri divertido - abundância de mímica, efeitos de gestos, como se ela não fosse capaz de o compreender. Marco imagina-o esforçando-se por falar a povos de olhos amendoados. Niccolo debruça-se sobre a rapariga como para a beijar; ela não se afasta e ele sussurra-lhe ao ouvido uma confidência que provoca a hilaridade. Espantado e ao mesmo tempo furioso, Marco pergunta a si mesmo como pode aquele pai preferir namoriscar uma rapariga da rua, em vez de se informar sobre o filho. Fiordalisa, muito ocupada com Niccolo, ainda nem sequer deu pela presença de Marco. Este enraivece-se e decide afastar-se. Não foi, de resto, precisamente o que Niccolo lhe pediu que fizesse?

 

- Ei! Marco! Podias esperar por mim! - exclama Niccolo, nas suas costas.

 

Com as mãos cheias de cebolas grelhadas, oferece-lhe uma.

 

- Toma, comprei-as para ti - disse ele, com uma extraordinária desenvoltura.

 

Sem esperar pela resposta, Niccolo envereda pelo rio delpalazzo, começando a mordiscar as cebolas, sempre seguido por Marco.

 

- Já me tinha esquecido do mau cheiro dos canais! Tens a certeza de que não queres? - insiste Niccolo. - Vá, come, meu filho, come.

 

Mete-lhe uma cebola à força na boca, sempre a rir, enquanto Marco balbucia um agradecimento sincero, a despeito da náusea que sente. Niccolo detém-se, olha para Marco, muito sério.


- Em tua opinião, ela é melhor do que as cebolas?

 

- Quem?

 

- A rapariga, aquela. Por mim, não seria capaz. Por causa do cheiro - acrescenta ele, num trejeito de repugnância.

 

Esta ”delicadeza” surpreende Marco, pois o próprio Niccolo tresanda a estada passada no mar a dez passos de distância.

 

- Na verdade, senhor meu pai, julguei que, pelo contrário... após tão prolongada ausência, julguei que demonstrasse mais curiosidade por... mim.

 

Niccolo esboçou um gesto.

 

- Não, a donzela, aquela ali, foi por causa das cebolas, ofereceu-mas. Não quis ofendê-la.

 

Marco permanece céptico. Niccolo prossegue, piscando o olho:

 

- É isto o negócio, obter grátis o que por nada deste mundo compraríamos.

 

Marco sorriu levemente.

 

- Eu chamo a isso diplomacia.

 

Niccolo observa o filho com um interesse crescente.

 

- Estou a ver que não esperaste por mim para te instruíres! exclama ele, cortês. - É verdade que estás quase um homem, agora. E as mulheres?

 

- Gostaria de o ter acompanhado, meu pai.

 

- Ainda mal tinhas sido desmamado. Além disso, não podia deixar a tua mãe sozinha. Precisava de um pouco de companhia.

 

- Um pássaro numa gaiola faria o mesmo, meu pai - diz Marco, mordaz.

 

- Sim, talvez tenhas razão - admite Niccolo, com seriedade. Afrouxa o passo e volta-se para o filho, olhando-o com compaixão.

 

- Sabes, Marco, às vezes penso que passamos a vida à procura dos momentos de felicidade que conhecemos quando éramos novos. As cebolas grelhadas da minha infância tinham um sabor extraordinário, não eram como estas!

 

- Senhor meu pai, queira falar-me da sua viagem, per favor... Niccolo fez um gesto de contrariedade.

 

- Ah, mas era a minha mãe que as cozinhava, todos os domingos. Um verdadeiro rito, uma religião, deveria eu dizer! Lembro-me de regressarmos da igreja e de a ver ir para junto do fogão, que exalava aquele delicioso odor adocicado. Com o seu sorriso, era todo o seu amor que ela nos dava.

 

Niccolo enlaçou Marco pelos ombros, com as mãos luzidias de gordura.

 

- Juro-te, e vero, todo o seu amor. Pois bem, esse sabor e esse odor, nunca mais voltei a encontrá-los. Por muito longe que tenha ido, mesmo até ao Catai. É como se tivesse sonhado, como se eles nunca tivessem existido. E as mulheres, então? - insiste Niccolo, mudando bruscamente de assunto.

 

Marco solta um suspiro.

 

- Lembra-se da filha do Signor Zeccone? - começa ele, hesitante.

 

Niccolo já nem ouve, retomou a marcha.

 

- Sabes, recordações como esta, tenho muitas mais. São como pedras que a memória aguça ano após ano e que se tornam, à medida que vão perdendo a forma bruta, verdadeiras pedras preciosas.

 

Passou a mão pelo cabelo de Marco com um afecto pelo qual este muito ansiara.

 

- Aproveita o sabor destas pedras. Elas matar-te-ão a sede no deserto da vida. Queres partir, abandonar Veneza, mas olha bem para o sol que incide na laguna. É o teu. E ninguém to poderá roubar. Se partires, fica sabendo que levarás contigo a parcela mais dolorosa. És jovem e não sabes. És jovem e não acreditas. Tens a certeza de que serás diferente. Todavia, vou ensinar-te uma verdade rara, Marco. Eu, que viajei muito, posso afirmar-te que todos os homens são iguais, e tu também.

 

De momento, Marco não quer ouvir semelhante discurso, que não entende. Coloca-se à frente de Niccolo, barrando-lhe o caminho.

 

- Senhor, digo-lhe antes que o saiba por outra boca que não a minha - adianta ele precipitadamente, para que o pai não o possa interromper. - Estou apaixonado por Donatella Zeccone...

 

Niccolo delineou um gesto de incredulidade.

 

- Estás a falar de Zeccone, o Senhor da Pimenta?

 

- Desse mesmo, meu pai, e estou certo de que o nosso amor..”;

 

Nota: - Catai - China.

 

Niccolo interrompe-o, pousando uma mão afectuosa no ombro do filho.

 

- Enfim, Marco, és demasiado jovem para te casares, ainda és uma criança!

 

Marco insurge-se de imediato, furioso.

 

- E que mundo é este em que me dizem ser demasiado jovem para ser feliz com aquela que amo, mas suficientemente adulto para trabalhar como um louco!

 

Niccolo riu-se, divertido com a raiva do filho.

 

- És impetuoso, é da idade, Marco! Modera-te, sofrerás menos. Mas consinto em falar com Zeccone. Veremos qual o dote que nos propõe...


 A IDADE DA AVENTURA

Apanhado pelo ar penetrante da noite, Michele curva à esquerda, avança para o grande bolo dourado, indigesto e sumptuoso, a basílica San Marco. Ao desembarcar em Veneza, nove meses antes, na Primavera, esperava voltar a partir antes do Outono, mas teve de se decidir a passar o Inverno em Veneza, em vez de ir ao encontro da acolhedora tepidez do Oriente. Ergue a cabeça para a basílica. A austeridade das estepes mongóis parece-lhe muito longínqua. Aqui, pretende-se visivelmente fazer de mais. Penetra no vestíbulo iluminado pelo alto tecto dourado. A luz ácida irradia, abrupta. Os crentes começam a imaginar uma representação divina. Um homem velho e horrível, de cabelo hirsuto, observa tudo de nariz no ar, com um trejeito de repulsa. Aliviado, Michele constata que não é o único a detestar esta sublime obra em mosaicos. Ele que só aspira à simplicidade do silêncio, do deserto... Deixa o homem entregue ao seu detestável êxtase e penetra na basílica. No interior, a multidão comprime-se, esforçando-se por manter o silêncio. Michele não se demora, avança, hirto e lesto, para o coro. Aí, encontra Marco em plena contemplação dos ouros bizantinos. Michele interrompe os seus devaneios batendo-lhe no ombro.

 

- Michele! Come vai! - exclama Marco, avistando o amigo.

 

O timbre da sua voz grave provoca a surpresa de certos fiéis, que se voltam, tapando a boca com um dedo para impor o silêncio.


Marco, com um gesto, ignora-os. Michele arrasta o rapaz para junto da cruz.

 

- Michele, que ideia a tua, um judeu, marcar um encontro numa igreja! Julguei que te fosse interdito.

 

- E eu também! - exclama Michele, com um gesto de incompreensão. - Até ao dia em que, ainda criança, me refugiei numa igreja, perseguido por um bando que detestava as minhas origens. E ali fiquei, protegido por um fiel, até que eles desapareceram. Marco, nesse dia lamentei não praticar a tua religião.

 

Michele pegou num enorme círio, deu um besante ao maceiro, deleitado, e acendeu ele próprio a mecha.

 

- E por que não te convertes? - indaga Marco. Michele olhou-se de alto a baixo.

 

- Tornar-me cristão! Impossível, a minha mãe morreria! Não, mas prometi acender uma vela sempre que passasse por Veneza.

 

- Mas a tua mãe já morreu, Michele! - surpreende-se Marco.

 

- Justamente - murmura Michele, embaraçado. - É por isso que posso acender uma vela. Ela nunca mo teria permitido.

 

Michele ergue as mãos ao céu, como se implorasse o perdão da mãe.

 

Há algumas semanas que o Inverno se faz anunciar, antecipadamente. As pernas de Marco ainda tremem, em resultado da humidade dos canais.

 

- Que frio que está lá fora! Aqui, respira-se melhor.

 

- A proximidade de Deus, com certeza - declara Michele, apontando para a abóbada.

 

Marco procura adivinhar nesta consideração uma improvável ironia.

 

- Então, Michele, acabemos com os mistérios, diz-me por que me pediste para vir aqui - interroga Marco, que começa a impacientar-se.

 

Certificando-se de que ninguém os observa, a não ser por um acaso, Michele afasta-se para a sombra de um recanto, onde uma sensual Madona estreita nos braços roliços um menino bem desperto. Marco segue-o, suspirando de exasperação ante estas precauções que lhe escapam. Então, Michele abre a pelica e, orgulhoso, mostra a Marco uma balestra das mais perfeitas, composta por corda e goteira, como exige o chefe dos besteiros de Dorsoduro. Marco não consegue reprimir um grito de surpresa e admiração.

 

- Michele! Como conseguiste?

 

Michele, preocupado, fecha o amplo capote. Mas os fiéis rezam ou deambulam, de vela em punho, sem lhes prestar atenção.

 

Michele afasta-se rapidamente em direcção à antecâmara da basílica, onde resplandecem os dourados. Instala-se nos degraus e pousa suavemente a balestra, ao abrigo dos olhares.

 

- É tua, faz bom uso dela.

 

Marco, discretamente, esconde a arma por baixo da capa.

 

Michele, enigmático, afasta-se para se recolher como um verdadeiro cristão - ou quase - em frente do imponente círio que acendeu.

 

Mal viu a Ca’Polo organizada à maneira de Il Vecchio, Niccolo decidiu utilizar uma grande parte dos seus proventos a decorá-la a seu gosto. Começou por rebocar com cal o brasão dos antigos proprietários. Só resta o anjo que já nada tem para sustentar, de braços estendidos para o céu, como numa prece. Ricos tapetes vindos da Pérsia cobrem o chão fossilizado. Nas velhas paredes, tapeçarias de veludo e damasco aquecem-nas com a sua matéria espessa. Ostensivamente, ordenou mesmo a exposição das tapeçarias de Verão, só pelo prazer de as exibir. Tecidos finos de seda e linho esvoaçam como asas de grandes pássaros ao sabor das correntes de ar.

 

Niccolo e Matteo ocupam o quarto de Il Vecchio, que por sua vez se apoderou do de Marco. Na mansarda, o jovem descobriu um ninho de águia que se ergue acima dos telhados de Veneza, no antigo recanto ocupado por Fiordalisa, que agora partilha o leito de Niccolo. Agachado por baixo da única lucarna, coberta por uma delgada camada de neve, Marco verifica o virote da balestra, cuja ponta é tão afiada como o bico de uma ave de rapina e, depois, avalia a solidez da corda. Por fim, considera-a preparada para o concurso que se realizará nessa mesma tarde. A correr, desce os degraus que conduzem ao cais.

 

Michele, que o esperava andando de um lado para o outro em frente do molhe, recebe-o com um sorriso franco.


- Não te esqueças: enterra bem os pés no chão - recomenda ele, exalando jactos de vapor que vinham sublinhar os seus conselhos. - Não esperes, desce lentamente para o alvo e atira antes de o ultrapassares, apertando a mão como quem espreme um limão, é esse o segredo. Se hesitares, se voltares a subir... tremes e estás perdido.

 

Concentrado, Marco responde-lhe com um sinal que ouviu ao subir para o barco que os conduz à riva San Marco. No Canal, placas soltas de gelo erram ao sabor de uma corrente que não existe. À superfície da água parada, vapores de uma bruma pálida conferem a Veneza a máscara de uma miragem.

 

Ainda não acostaram, mas o chefe dos besteiros, impaciente, já puxa pela manga do capote de Marco, a fim de o juntar aos companheiros, no banco de uma das embarcações. O jovem acena a Donatella, que aceita a mão de um fidalgo galante para embarcar. Altiva, ela finge não o ver. Marco permanece discreto. Cada um dos rapazes mergulha a pá do remo na água e o barco começa a deslizar, cortando as vagas, em direcção ao Lido. O ar fresco vindo do mar pica os olhos. O marulho das vagas torna-se mais presente.

 

Chegados à ilha, onde o frio é ainda mais cortante do que na cidade, os adolescentes preparam-se para a prova. Os melhores serão escolhidos para constituírem os besteiros de uma galé veneziana. Na areia, instalam os alvos frente ao mar. Marco pousa o pé na balestra. A corda está tão retesada que se vê obrigado a estendê-la com as duas mãos. Lacera-lhe a palma das mãos. Marco sopesa o instrumento, muito mais robusto do que imaginara. Chegada a sua vez, recua para a orla das vagas. Carregando a arma nos braços, o seu peso impele-o para a frente. Marco visa aplicadamente e, no entanto, o alvo começa a dançar furiosamente diante da linha de mira, apoia no gatilho, que resiste, coriáceo. Bem-humorado, desencadeia bruscamente o tiro. Surpreendido pelo recuo, Marco sobressalta-se. A espuma vem lamber-lhe as botas. A seta desaparece atrás de um pinheiro. Marco esforça-se por ignorar os gracejos do público, e sobretudo Donatella, que se aproxima do fidalgo galante. Desvia o olhar. Entre a multidão, Michele indica-lhe a posição das pernas. Marco carrega a arma e atira de novo, demasiado depressa. Os seus dedos, tensos, não têm a precisão necessária e o virote vai espetar-se no tronco de uma árvore, pelo menos um palmo abaixo do alvo. Incapaz de se conter, Michele abeira-se de Marco e sussurra-lhe rapidamente ao ouvido:

 

- Marco, presta atenção à posição das pernas e esquece a vaidade.

 

Depois, afasta-se sem dar a Marco tempo para replicar.

 

Atento aos conselhos do amigo, o jovem veneziano respira mais devagar. Ergue a balestra, inclina-se levemente para trás para contrabalançar o peso, apoia-se no cotovelo, encostado ao torso, e desce lentamente a mira em direcção ao alvo. Imobiliza-se e, com um gesto seco, carrega no gatilho. Mas, embora os dedos tenham entretanto aquecido, tudo o que consegue é quebrar os virotes contra as árvores. Giovanni, sempre sorridente, corre a recuperar as raras setas que escaparam ao massacre. Restam-lhe três para disparar. Marco lança um rápido olhar aos outros concorrentes. O seu rival, junto de Donatella, lança-lhe um olhar sobranceiro. Furioso, Marco retoma posição. Tremem-lhe as mãos. Sente um nó no ventre, zumbidos à sua volta. Em frente, o alvo tolda-se. Enxuga as lágrimas - é do frio, com certeza. Pousa a balestra, inspira profundamente.

 

Cerra as pálpebras, assenta as mãos no ventre. Depois, pega na arma, fixa o alvo com um olhar límpido e seguro, aperta o gatilho, lenta e firmemente. O virote parte de repente, surpreendendo-o no seu gesto. O alvo vibra, atingido a poucas polegadas do centro. Ouvem-se gritos. O chefe dos besteiros, impressionado, felicita o jovem.

 

- Ah! Acabaste por ver onde estava o alvo!

 

Marco não responde, pega em outro virote e posiciona-o na balestra. Visa o centro e atira com a mesma precisão. A seta aloja-se a escassas polegadas da primeira, no canto inferior direito. O rapaz suspira. Imaginando que a mira o engana, tem a ideia de apontar para o canto superior esquerdo. Desta vez, o virote assenta em pleno alvo. Marco larga a arma com um profundo suspiro de alívio.

 

Forma-se um círculo para o admirar. Marco dirige um sorriso cúmplice a Michele.

 

Por fim, é Donatella quem se aproxima, cumprimentando-o num murmúrio, de ar altivo, endereçando trejeitos graciosos ao novo admirador, o qual olha de soslaio para Marco.


No fim do concurso, embora não tenha obtido nenhum prémio, Marco é abordado por um homem cujo rosto estriado de veias azuis reconhece imediatamente.

 

- Farenna! Come vai! Então, já é oficial de marinha?

 

- Pois sou, mas não graças a ti - responde Farenna, com um verdadeiro rancor que surpreende Marco.

 

Este sorri-lhe, desarmado.

 

- Estás mais entroncado - prossegue Farenna, avaliando a corpulência do antigo adversário.

 

Por detrás do oficial da marinha, Giovanni sorri-lhe abertamente, mas em silêncio.

 

- Embarca connosco como grumete - prossegue Farenna. Não falo por mim, mas em nome do meu comandante, que procura besteiros para embarcar no Nalia. Partimos brevemente para Constantinopla. Vi-te atirar. Aprendes depressa!

 

Marco empertiga-se, dirigindo um olhar altivo a Donatella. Esta aproveita imediatamente a ocasião.

 

- Senhor Farinna...

 

- Farenna - corrige Farenna, levemente irritado.

 

- Peço perdão - declara ela, num trejeito encantador. - Mas Marco ainda não tem vinte anos...

 

Marco sente dificuldade em engolir.

 

- Tenho apenas dezasseis... - confirma o jovem, embaraçado e furioso.

 

Farenna parece surpreendido.

 

- Aparentas muito mais! - murmura ele, debruçando-se sobre Marco, numa confidência. - Lamento que não tenhas idade suficiente para tentar a aventura...


O SEGREDO

A seda da China é menos bonita e menos preciosa do que a da Pérsia - explica Matteo, desdobrando uma peça de damasco escarlate. - Mas é sobretudo muito mais barata e...

 

O roçagar do tecido abafa-lhe as últimas palavras. Durante o Inverno, os tecidos permaneceram protegidos em fardos donde só saíam por encomenda. Com a chegada dos dias bonitos, os Polo começam a expor as suas mais belas peças. Ajudado por Marco, Matteo suspende o damasco do pilar da ponte, no Rialto. Desde que os irmãos Polo regressaram a Veneza, Marco passou mais tempo com o tio Matteo do que com o pai. O vento agita a seda, qual estandarte cor de sangue encimando o Grande Canal, onde, àquela hora matinal, as margens começam a acolher os primeiros mercadores. As bancas exibem mosaicos coloridos. O ar primaveril deste mês de Março de 1271 dissipa aos poucos a bruma que cobre a noite com o seu manto nocturno. Alugam-se os primeiros barcos do dia, que se enchem de especiarias e gomas. Ouvem-se os pregões das mercadorias, como outros tantos pios de pássaros.

 

- Olha para este cetim brocado - clama Matteo, acariciando o tecido -, é magnífico. Não te parece que é... como dizer...

 

Marco palpa o tecido, suave como a carícia de um sol de Inverno. A mão parece não o querer largar.

 

- A perfectione - conclui Marco, impressionado.


O canal propaga os reflexos das peles, das fazendas de lã exibidas no Rialto, como outros tantos motivos de orgulho venezianos.

 

Matteo pega num pequeno cofre cinzelado a ouro ocre no qual está pintada uma mulher de traços orientais entregue às suas abluções. Abre-o. As gomas nele contidas exalam um perfume doce e intenso.

 

- O que é? - pergunta Marco, interessado. Matteo acaricia a caixa com amor.

 

- É um presente do Grão Cão. É magnífico, não é? Estás a ver esta miniatura, este...

 

- Não - interrompe-o Marco -, estou a falar deste perfume.

 

- Ah, isto, isto é almíscar - declara Matteo, muito óbvio. É uma fragrância de elevado preço, Marco, vem de...

 

- Tio Matteo, há quase dois anos que regressaram, bem vejo que o meu pai me evita. Já engravidou Fiordalisa duas vezes, mas mal me dirige a palavra, a mim, que sou seu filho!

 

Matteo parece embaraçado.

 

Atrás deles, os caixeiros acabam de instalar os tecidos mais grosseiros.

 

- Shayabami, arruma os damascos mais atrás - ordena ele ao escravo sírio.

 

Matteo estende uma peça de cetim de fio grosso ao sobrinho.

 

- Ajuda-me, vamos estendê-la por cima do Canal. O rapaz aproxima-se do tio.

 

- Não, não, Marco, fica onde estás, podes amarrotá-la. Seria uma pena...

 

Marco recua. Matteo alisa cuidadosamente a peça de tecido.

 

- Sabes, Marco, creio que Niccolo não quer de modo nenhum transmitir-te a vontade de viajar. É uma vontade...

 

- Nem é preciso, essa vontade já eu a tenho! - exaspera-se Marco.

 

Desta vez, é Matteo quem se aproxima de Marco. Este recua, para que o tecido permaneça liso.

 

- Tio Matteo, o tecido!

 

- Deixa, é uma seda bruta, não se amarrota. Marco olha para o tecido, admirado.

 

- Sabes, são viagens muito duras, muito duras - insiste Matteo. - É preciso ser resistente e...

 

Marco não consegue evitar um sorriso. Tem pelo menos mais duas cabeças de altura que o tio e é tão forte como ele. Com a mão, acaricia a barba, em breve suficientemente basta para a poder cortar.

 

- Não digo que não tivesses talento, mas...

 

Nestas palavras que o tio não chega a proferir, Marco lê todo um universo de regiões inexploradas, de povos a descobrir. Matteo pertence à raça dos viajantes. Até mesmo o tio Il Vecchio viveu em Constantinopla. Mas a ele, parece que o querem condenar a permanecer naquela cidade-rio, no mesmo estado de incerteza que a cidade laguna, que não soube escolher entre a terra e o mar. Os jovens da sua idade partem geralmente para Constantinopla ou Cândia, para feitorias das famílias, a fim de aprenderem o ofício. Mas a ausência do pai, as reticências da mãe, a passividade do tio, tudo concorreu para impedir Marco de seguir os companheiros. Continua a ser um simples garoto da rua, originando desordens para exprimir a raiva que sente, para ocupar a dor de estar ali.

 

Fita Matteo com os seus olhos de oceano.

 

- Talvez não saibas, Matteo, e Niccolo também não, mas partirei.

 

Larga o pesado tecido, que acaba de se estender sobre o leito do Canal com a delicadeza do voo de uma gaivota, e pega no chapéu de abas largas.

 

- Marco, espera! - diz o tio, surpreendido com a determinação vincada da voz do rapaz. - O teu pai pediu-me que te confiasse uma tarefa importante!

 

Marco volta-se imediatamente e olha, desconfiado, para o tio. Acerca-se dele.

 

- Estamos a pensar organizar um leilão no Rialto. Nicco gostaria de te encarregar da tarefa - diz Matteo precipitadamente, sem encarar Marco.

 

Marco avança para Matteo, brutalmente, retira das mãos do tio a ponta do tecido, puxa lentamente pela peça que flutua à tona da água, a fim de a trazer para terra e, num gesto brusco, envolve Matteo no tecido, rindo.

 

- Meu tio, não podia proporcionar-me maior prazer!


Matteo debate-se como pode, soltando gritos que as gargalhadas de Marco abafam. Matteo está muito vermelho, quando o sobrinho o liberta.

 

- Marco, não vales mais do que o teu pai! O rapaz faz um trejeito interrogativo.

 

- Acredito perfeitamente! Então, de que mercadoria terei de me ocupar? - interroga Marco, ansioso.

 

As mãos tatuadas entrançam a pesada cabeleira negra. Marco observa, fascinado, o bailado dos dedos que se movem com precisão e habilidade, até formarem uma longa fita espessa de mechas negras. Raios de poeira dançam à luz do sol nas cordas de ébano. As linhas pintadas na pele, como jóias, exercem um poder hipnótico. A densa massa é finalmente domada. Paira no ar, palpável, o pesado véu de um perfume selvagem que inebria Marco, mesmo contra a sua vontade. O rosto da jovem parece muito mais magro sem a moldura armada pela cabeleira. As elevadas maçãs do rosto salientam-se, altivas, em direcção às têmporas. Ergue os olhos opacos para Marco. O jovem veneziano procura o enigma das suas origens. Sem conseguir atribuir-lhe uma idade, julga-a, sem dúvida, mais velha do que ele, mas pouco. O sorriso de ouro escuro da jovem escrava liberta-o das suas fantasias.

 

Marco olha-a com atenção.

 

- Seja como for, não é possível embelezá-la - pensa ele.

 

A rapariga sustenta o seu olhar com a mesma tranquilidade misteriosa que tanto surpreendeu Marco, quando a viu desembarcar.

 

Subitamente, ela pega na mão de Marco e abre-a. Ele esboça um movimento de recuo, mas a força e a doçura da rapariga surpreendem-no. Passa os dedos pelas linhas da mão, seguindo o seu traçado. Depois, abre a sua própria mão sobre a de Marco, sem lhe tocar. É ele que estabelece o contacto. Um ardor. Marco retira rapidamente o braço. Com um sorriso, ela aponta com o indicador para o peito de Marco e, com as duas mãos, imita o voo de um pássaro em direcção ao céu.


- Como é que ela sabe? - interroga-se Marco, franzindo as sobrancelhas.

 

 A rapariga assenta o punho fechado nos seios e diz:

 

- Noor-Zade.

 

Marco surpreende-se por ouvir o som cristalino da voz dela, como se tivesse imaginado que a rapariga não fosse dotada de fala. Nunca a ouvira exprimir-se ao longo da sua presença de dois anos entre os criados dos Polo, silhueta sempre mal desenhada nos fundos do armazém, a arrumar e seleccionar fardos de tecidos.

 

- Nor-Zadi?

 

Ela corrige-o e ele repete:

 

- Noor-Zade!

 

Desta vez, ela meneia a cabeça, encantada. Marco sorri, como para si mesmo, e, assentando a mão no peito:

 

- Marco.

 

Ela junta as mãos e inclina-se numa vénia deveras elegante que Marco nunca viu. O rapaz conservou a mão pousada no peito. Delicadamente, mas também com a simples audácia de quem não teme, ela pega na mão dele e aperta-a entre as suas, num gesto sagrado.

 

- Noor-Zade, Marco Polo - repete ela.

 

O rapaz fica momentaneamente desconcertado. Os raios de sol através da janela começam a aquecer-lhe o rosto. Marco sente enrubescer as faces.

 

As lajes do chão estalam atrás dele. O jovem veneziano volta-se rapidamente.

 

- Marco, ela já está pronta? - pergunta Niccolo, avançando para ele.

 

O jovem recua alguns passos, quebrando a intimidade que, por instantes, o uniu à jovem cativa.

 

- Sim, senhor.

 

Niccolo aproxima-se da escrava. Começa a falar-lhe numa língua que Marco não compreende. E ela responde-lhe da mesma maneira. Após algumas palavras, ele afasta-se dela.

 

- Que disse ela? O senhor compreendeu-a? Niccolo observa o filho, curioso.

 

- Naturalmente, ela é mongol. Portanto, fala tártaro, e eu também - declara ele, peremptório.

 

- Ensina-me essa língua? - pergunta Marco, ingénuo. Niccolo solta uma gargalhada.

 

- E para quê? Mesmo que compres uma mulher mongol, é ela que acabará por te compreender - acrescenta ele, apontando para o chicote pendurado na parede. - Sabes, estas escravas são um pouco como animais, basta saber domá-las.

 

Marco observa-o, sonhador. Por razões que ignora, não partilha as ideias do pai. Subitamente, volta-se para Noor-Zade. Esta já não sorri e fixa Niccolo com uma raiva gelada só comparável ao desprezo que ele exprime. Niccolo volta atrás. Ela desvia imediatamente o olhar. ”Que segredo partilham eles?” pergunta-se Marco, inquieto.

 

- Dá-lhe um banho, ela fede. Este noite, recebo o Signor Zeccone e quero que ela esteja presente.

 

- O senhor vai receber o pai de Donatella? - murmura Marco, quase sem fôlego.

 

Niccolo não se apercebeu da perturbação do filho. Pega num frasquinho verde-claro, de porcelana.

 

- Toma, Matteo deu-me esta água de cheiro para ela - acrescentou ele, antes de se ir embora.

 

Ainda distraído pela notícia da vinda de Zeccone, Marco mandou encher uma selha com água do poço. O pai regressou há dois anos e só agora se dignou encontrar-se com o Senhor da Pimenta. No ano passado, depois do concurso para o lugar de besteiro e de várias semanas de indiferença, Donatella cedera de novo, altiva, ao seu afecto.

 

Ausente nos seus pensamentos, mas impaciente, Marco levanta-se, ordena à escrava que se dispa, mas ela parece não o entender. Marco aproxima-se dela e, hesitante, começa a tentar despir-lhe a camisa de cânhamo. Um clarão de fúria ilumina-lhe o olhar de brilho de laca. Determinado, o rapaz ergue-a nos braços e mergulha-a, toda vestida, na água. Ela debate-se e atinge-o com os punhos, o que ele quase não sente. Num instante, fica tão molhado quanto ela. A rapariga tenta sair da água, mas Marco impede-a, obriga-a a permanecer dentro da selha. Marco começa a entrar no jogo. Pendurado na parede, o chicote, serpente tentadora. Instintivamente, Marco estende o braço para lhe pegar. Noor-Zade aproveita para sair da selha. Ao mesmo tempo, vê que a mão de Marco se apodera da arma. Movida pela mesma espécie de instinto que ele, pousa a mão no braço do veneziano. Duelo de olhares. Com um nó na garganta, Marco sabe que não pode hesitar. Num gesto largo, agita o chicote, que silva no ar e cuja correia se enrola no corpo da escrava, da cintura até às coxas. A rapariga solta um grito rouco, animalesco, erguendo-se como uma labareda. Marco larga o chicote, como se este o queimasse. A esbelta silhueta desenha-se sob a camisa grosseira, a pele morena perfeitamente recortada. A ponta dos seios erecta, os ossos das ancas, a curva do ventre sob o drapeado. Através do tecido que agora parece transparente, Marco procura adivinhar, fascinado, os vergões vermelhos do chicote, que se confundem com as tatuagens escuras. Apodera-se dele um intenso sentimento de orgulho por a ter ”marcado” assim. Aproxima-se da jovem cativa. Movido por uma violência que até então ignorava, Marco precipita-se sobre ela e, brutal, rasga-lhe a roupa. Ela ergue para ele um olhar enxuto, tão ardentemente carregado de ódio que o veneziano se imobiliza de imediato. Com um gesto, a jovem solta a cabeleira, que se desdobra até à cintura, envolvendo-a num véu pudico. Depois, de queixo erguido, num andar altivo, avança resolutamente para a tina. Nas suas costas, brilham sombras musculadas, através das madeixas negras que dissimulam, envergonhadas, as nádegas que Marco mal consegue vislumbrar. Mergulha suavemente na água protectora e, inclinando a cabeça para trás, fecha os olhos. Marco começa a imaginar que é ele que a lava, demora-se na sua pele de anis estrelado, acaricia-lhe os seios elásticos com a ponta dos dedos. Noor-Zade torce o cabelo molhado fora da água e depois deixa-os cair sobre os ombros, salpicando o jovem veneziano. Marco esboça um gesto.

 

- Senhor Marco, está ali o senhor Michele - diz uma voz baixa nas suas costas.

 

Marco volta-se e vê Fiordalisa, que traz o pequeno Stefano assente na anca. Pergunta a si mesmo há quanto tempo estará ela ali, a observá-lo. Fiordalisa, espicaçada pela curiosidade, com o grande ventre projectado para a frente, examina sem vergonha o corpo moreno da escrava.

 

- Fiordalisa, ajuda-a a vestir-se para a festa desta noite. Conheces melhor do que eu o gosto do meu pai.


A criada inclina-se numa breve reverência, enquanto Marco desce as escadas quatro a quatro, indo ao encontro de Michele.

 

No cais em frente da Ca’Polo, Michele espera-o junto de uma magnífica gôndola coberta.

 

- Temos de saber ocupar o nosso lugar - declara Michele, enrolando a barba nos dedos.

 

- Ou aquele ao qual aspiramos - corrige Marco, num trejeito desgostoso.

 

- Estás de muito mau humor. Felizmente, trago uma boa notícia.

 

- E qual é ela, por favor? - interroga-o Marco, sorrindo.

 

- Vem, explicar-te-ei pelo caminho.

 

Marco hesita por instantes antes de saltar para a embarcação, que balança de modo ameaçador. Michele entra por sua vez e acena ao gondoleiro.

 

- Para casa do Signor Bonnetti - ordenou ele.

 

Marco instala-se confortavelmente nas macias almofadas de seda, no habitáculo lacado de negro e ricamente decorado. Um pesado perfume de âmbar sobrecarrega a atmosfera.

 

- Parecem os aposentos de uma cortesã. Quem é Bonnetti?

 

- Um homem que terás de seduzir, meu caro Marco... - declara Michele com um sorriso misterioso.

 

A noite ainda mal caiu sobre Veneza, e já reina uma atmosfera de festa na Ca’Polo. A fachada de três andares ornamentada de molduras encontra-se iluminada para a ocasião com dezenas de grandes velas que provocam a admiração dos Venezianos, em passeio de gôndola pelo canal, na expectativa de ver o surpreendente espectáculo.

 

Lá dentro, as paredes foram enfeitadas de grinaldas e reposteiros de franjas, bordados a ouro, veludos e tapeçarias preciosas. TaÇas de cobre transbordam de frutos e flores, enquanto recipientes de vidro contêm essências de perfumes requintados. Desenrolaram-se grandes e bonitos tapetes persas, expuseram-se salvas douradas e taças prateadas vindas de Constantinopla. Patas de javalis e cornos de veados imperam por cima das portas, trofeus de caça raríssimos em Veneza. À refeição, Niccolo serve ao Signor Zeccone cabritos monteses e javalis, seguidos de pratos variados de peixe, esturjões, trutas e chernes, tenças e solhas secas, salmonetes, enguias e linguados. O patrício, instalado numa imponente poltrona, com a descontracção e a majestade do Doge no seu palácio, saboreia especialmente esta cozinha muito condimentada, perfumada com cinamomo, açafrão e pimenta, em particular. De ventre bem proeminente, os dedos gotosos cheios de anéis, à maneira florentina, olhos biliosos, hálito deteriorado pelo excesso de vinho, Zeccone observa com uma certa inveja a silhueta aprumada de Niccolo Polo.

 

Ambos discorrem longamente sobre as diferentes espécies de pimenta que polvilham a rota do Oriente. Zeccone aprecia particularmente a manteiga de pimenta silvestre.

 

Niccolo mandou vestir as escravas, como ele gosta, à oriental, de véu dourado e azul fino. O criado Shayabami pôs um turbante na cabeça e vestiu calças tufadas. Em turíbulos suspensos arde olíbano. Niccolo queria servir o festim no chão, mas Matteo dissuadiu-o, temendo pelas articulações do visitante.

 

Para estar tranquilo, Matteo encarcerou o irmão, Il Vecchio, pela terceira vez no ano, com o pretexto de refazer as contas desde que partira de Veneza, dez anos antes.

 

Niccolo ofereceu ao convidado vinho de arroz e escravas à discrição. Depois de Zeccone se servir de tudo, Niccolo abordou, enfim, a razão deste sumptuoso convite.

 

- Não há tempo para demoras. A nossa partida está iminente...

 

- Quais serão as mercadorias e o itinerário? - pergunta Zeccone, retomando o modo comedido de mercador.

 

Niccolo retira da manga da túnica um mapa árabe que desdobra em cima da mesa, depois de, com um gesto largo, arrasar tudo o que nela se encontrava.

 

- Por ocasião da nossa primeira viagem, em 1260 - explica ele, empolgado pelas recordações -, seguimos a rota do Norte. Depois de sairmos de Constantinopla, avançámos para Soldaia. Mais adiante, em Bolgar, o cão da Horda de Ouro recebeu-nos com muitas honras durante um ano inteiro... Continuámos até Bucara, uma cidade magnífica, se bem que regularmente saqueada pelas invasões bárbaras...

 

- Encontram-se ali eucaliptos de grande beleza - observa Matteo.

 

- Após uma estada prolongada...

 

- Três anos - explicita Matteo.

 

- Três anos! Que fizeram então? - surpreende-se Zeccone.

 

- Nada que mereça ser contado - responde Niccolo, sorrindo.

 

- Aperfeiçoámos o persa e aprendemos a língua tártara... acrescenta Matteo.

 

O irmão interrompe-o bruscamente.

 

- Enfim... conhecemos um emissário de Hulagu, o ilcão da Pérsia, que se dirigia em missão ao encontro do Grão Cão Cublai. Imagine, éramos os únicos latinos da região.

 

- O infeliz mongol quase caiu de costas quando nos viu... recorda Matteo, num pequeno assomo de nostalgia.

 

- Depois de se refazer das emoções, propôs-se oferecer o espectáculo a Cublai, que nunca vira nenhum latino e estava muito curioso por nos ver de perto.

 

Zeccone riu-se.

 

- Tornaram-se, assim, uma verdadeira atracção de circo!

 

- De certo modo - admite Matteo.

 

- Com a diferença de sermos ao mesmo tempo o animal e o domador - acrescentou Niccolo com um ar misterioso.

 

- Ou seja, tínhamos direito a uma escolta. Aquelas terras são muito perigosas, nem é possível imaginar quanto! - disse Matteo, com um arrepio de medo, desta vez. - Acompanhados por soldados armados até aos dentes, sentíamo-nos capazes de chegar ao fim do mundo.

 

Zeccone debruçou-se sobre eles.

 

- E não havia nisso tudo uma vontade política? Niccolo dissimula um trejeito embaraçado.

 

- Nós não éramos de modo nenhum embaixadores, Signor Zeccone, mas simplesmente modestos mercadores.

 

- Modestos mercadores... - repete Zeccone, que não acredita em nada do que os outros dizem.

 

- Seguimos por Samarcanda até Caracórum, capital do Império Mongol - termina Niccolo, enfático.


Zeccone está suspenso das palavras do mercador veneziano.

 

- E... - impacienta-se o Senhor da Pimenta.

 

- Tendo partido por oito meses, regressámos oito anos mais tarde... - declarou Matteo, com uma ponta de orgulho.

 

Zeccone pega num figo que estala calmamente entre os dentes.

 

- Nada disso me tranquiliza - replica ele. Niccolo olha para o irmão com severidade.

 

- Era a nossa primeira viagem ao Catai. Signor Zeccone, fomos, até hoje, os primeiros (e os únicos! posso gabar-me) a ter chegado tão longe, no Oriente, e a ter regressado!

 

- Bravíssimo! - aplaudiu Zeccone, muito sério. - Todavia, também poderiam ter enriquecido em Veneza.

 

Niccolo fez um trejeito de repulsa.

 

- Estar fechado entre quatro paredes com uma mulher exigente e um criado ladrão, sem contar com os filhos que é preciso casar ou dotar! Não! Entendo-me melhor com os camelos e os Árabes.

 

Zeccone sorriu, divertido por este veneziano que já não o era.

 

- Retomámos esse mesmo trajecto que conhecíamos bem explica Niccolo, debruçando-se sobre o mapa. - Veja, primeiro Acre, depois a Arménia, até Soldaia, atravessámos o Volga em Astracã, para alcançar Bucara, Samarcanda e, por fim, Khanbalik, a nova capital do império, criada por Cublai.

 

Zeccone segue o trajecto com interesse e uma certa admiração.

 

- Parece tão simples visto daqui... - observa ele com um sorriso.

 

- Tranquilize-se: para si, sê-lo-á sempre. Nós abrimos o caminho de Catai. Repare na seda que veste os nossos escravos.

 

- É magnífica - concede Zeccone.

 

- E, contudo, é de feitura muito deficiente. Vem do Catai, onde é fabricada em troca de quase nada. O seu preço é dez vezes inferior ao da seda de Gella, que os nossos concorrentes mandam vir da Pérsia, a grandes custos. Proponho-me inundar mesmo Lucca...

 

Zeccone fez uma breve pausa.

 

- Está a falar de...

 

Nota: - Khanbalik - Pequim.


- Sim, do mercado de seda mais próspero do mundo cristão. Poderá abastecê-lo com estas sedas que, em poucos anos, farão as delícias das cortes mais nobres! - exalta-se Niccolo.

 

O Senhor da Pimenta parece mergulhado numa profunda reflexão.

 

- E o que esperam de mim? - acaba por perguntar.

 

- Cinco mil besantes...

 

- É uma fortuna! - exclama o patrício.

 

- Não é nada em comparação com o que renderá - garante Niccolo, confiante. - Organizaremos o tráfico das caravanas até Astracã, onde o senhor abrirá uma feitoria para importar a seda até Constantinopla e Veneza. A pimenta é uma boa moeda de troca no Oriente, como sabe. Assim, nem um besante terá de desembolsar. Limitar-se-á a encher os cofres.

 

- E que garantia tenho do que me propõe?

 

- A minha palavra de cavalheiro - certifica Niccolo, fazendo uma vénia.

 

Zeccone não consegue disfarçar um trejeito de cepticismo.

 

- O senhor é o primeiro a dizer que as estradas não são seguras. Deve ter de pagar uma boa escolta.

 

Niccolo dirige um olhar a Matteo, que o aprova com um movimento do queixo.

 

- A nossa escolta, é esta! - exclama ele, abrindo a túnica. No seu peito largo e coberto de pêlos brilha uma placa de ouro

 

maciço com dois palmos de comprimento e quatro polegadas de largura. Zeccone aproxima-se para distinguir as inscrições que nela se encontram gravadas. Um focinho de leão de olhar tranquilo e severo domina uma série de sinais verticais incompreensíveis que parecem da família do persa, mas sem apresentar arabescos.

 

- Está aqui escrito: quem usar esta tabuinha de ensinamentos deve ser obedecido e tratado como eu próprio. E está assinada...

 

Niccolo faz uma pausa para causar mais efeito.

 

- O Grão Cão Cublai, non e vero} - remata Zeccone.

 

- Este salvo-conduto permitiu-nos regressar indemnes até Veneza - especifica Matteo, orgulhoso.

 

- Não está a dizer-me tudo, Signor Polo - insiste Zeccone, desconfiado.

 

Niccolo esvazia o copo de um trago e senta-se na cadeira mais próxima do Senhor da Pimenta.

 

- Confio em si, Signor Zeccone, por saber que é um homem de palavra - diz Niccolo, acrescentando para si mesmo: ”e de intrigas”.

 

Matteo, preocupado, deixa de debicar no prato e sustém a respiração.

 

- O Grão Cão espera-nos. Soubemos que está muito doente - acrescenta o irmão, baixando a voz. - Eu e Matteo tomámos, pois, a decisão de partir sem mais demoras, não podemos faltar à palavra dada ao imperador. Temos de o ver antes que a doença...

 

Niccolo nem termina a frase, deixando pairar uma sombra sobre as últimas palavras que proferiu com um ar misterioso. Matteo suspira, aliviado, antes de explicar:

 

- Há dois anos, trouxemos essencialmente especiarias: gengibre, incenso, goma-laca, galanga, macis, ”sangue-de-drago”... mas também plantas orientais, como duas cerejeiras, três laranjeiras, espinafres, chalotas e escravos. Possuímos um conhecimento perfeito dos países do Império Mongol e das mercadorias que aí se podem vender por bom preço. Como a viagem é muito longa, não podemos levar milhares de besantes ou outras moedas de ouro, seria demasiado perigoso. Temos de nos carregar de mercadorias que venderemos ou trocaremos, e cujos lucros nos permitirão prosseguir viagem. Assim, deixaremos Veneza munidos, no essencial, de algodão fiado e tecidos de Florença e Veneza, tecidos de Milão, vidraria preciosa, bem como veludos e brocados bordados a ouro, sem esquecer as armas tauxiadas, que os bárbaros adoram.

 

- Estranha ironia esta, pensar que lhes vendemos a seda bruta que é deles, depois de se tornar a mais preciosa do mundo nas nossas oficinas especializadas... - observa Niccolo.

 

- Começaremos por transaccionar a vidraria, que é mais frágil

 

- prossegue Matteo, calculando mentalmente. - Esta venda deveria permitir-nos comprar grandes quantidades de mel, confeitaria, vinhos digestivos e perfumes, sobretudo água de rosas, muito usada no Oriente.

 

- Compreenda bem, Signor Zeccone - interrompe-o o irmão -, ofereço-lhe a possibilidade de participar na grande aventura do Oriente. Abro-lhe o caminho. Poderá beneficiar das invenções do império do Grão Cão, particularmente em matéria financeira...

 

Zeccone reflecte ainda por longos momentos. Matteo dirige sinais angustiados ao irmão, que, ele, parece estar absolutamente confiante.

 

- De quanto tempo necessitam para chegar a Catai? - pergunta Zeccone, que parece gravar todas as informações na memória, com grande precisão.

 

- Menos de um ano, piu o meno. Levamos connosco o melhor guia de todo o Oriente.

 

- Poderei encontrar-me com ele? - indaga Zeccone.

 

- Sofreu uma grave diarreia e deixámo-lo em Acre - explica Matteo.

 

- Eu próprio falo árabe, persa e tártaro - gaba-se Niccolo. Conhecemos o comércio e a diplomacia, os costumes dos povos bárbaros e nómadas...

 

- Já vi que é o melhor, Signor Polo - confirma Zeccone com um sorriso.

 

Enquanto a gôndola se aproxima, Marco admira a magnificência da construção, na qual o crepúsculo estampa reflexos rosados, com os seus torreões antigos como já não se fazem e a porta maciçamente esculpida nas mais preciosas madeiras. A embarcação acosta, visivelmente aguardada. Marco e Michele acompanham o criado que os ilumina com uma grande vela através das escadas e corredores antes de serem introduzidos numa antecâmara magnificamente decorada de tapeçarias predominantemente avermelhadas, iluminada por duas luxuosas palmatórias maciças.

 

- Se os senhores quiserem ter a paciência de esperar - sugere o criado, deixando-os sozinhos. - O Signor Bonnetti vai recebê-los.

 

O pequeno compartimento de tecto baixo é ornamentado com uma rica galeria de miniaturas persas. Marco delicia-se diante do magnífico trabalho rendilhado e colorido.

 

- O senhor aprecia a decoração?


Ao ouvir esta voz cava, o jovem sobressalta-se. Um velho entrara na sala sem ser ouvido, embora fosse coxo. Os seus cabelos brancos emitem reflexos azulados, prolongando como num eco a claridade dos olhos deslavados. Através da luz do sol poente que atravessa a janela de sacada, o fino tecido de Milão da sua túnica deixa adivinhar uma frágil silhueta e uns braços magros e trémulos, apoiados numa grossa bengala de madeira esculpida em espiral.

 

- Trouxe-as todas das minhas viagens - explica o velho, apontando para as miniaturas. - Sinto uma atracção especial pela Pérsia. Venham, meus senhores, passemos aos meus aposentos.

 

Precede-os, num passo lento e desequilibrado, até um quarto ricamente embelezado, à moda oriental, com uma tapeçaria de seda gbella da Pérsia, uma estátua de jade, uma cabeça de bronze, peças de cristal colorido, um minúsculo tabuleiro de xadrez, e instala-se com dificuldade numa poltrona de madeira esculpida.

 

Michele faz um sinal a Marco para que este comece a falar.

 

- Disseram-nos que o senhor tem mercadorias para transportar - diz Marco com um nó na garganta, sem deixar de olhar para a decoração. - As suas peças são absolutamente magníficas...

 

- É verdade. Mas, ponhamos de lado as questões de gosto interrompe o velho com um elegante gesto do seu dedo ossudo.

- Falemos de negócios.

 

Curva-se sobre os joelhos, convidando-os a sentarem-se nas cadeiras à sua frente.

 

- Michele falou-me de si. Um jovem dotado da sua ambição não deve apodrecer em Veneza.

 

Faz uma pausa, à espera de uma reacção de Marco, que lhe responde com um sorriso aberto. O velho prossegue:

 

- Para Veneza, é vital que o reino de Além-Mar não se isole de nós. No ano passado, conseguimos estabelecer a paz com Génova. A rota marítima está livre. Jerusalém já caiu nas mãos dos Muçulmanos. É preciso conservar Acre. O seu pai, Niccolo Polo, que eu próprio conheci nos seus verdes anos, nas minhas feitorias de Constantinopla e Soldaia, prepara-se para organizar uma caravana que partirá de Veneza, não é verdade?

 

Marco volta-se para Michele, deixando-o replicar.

 

- É o que consta - responde Michele, evasivo.

 

- Sendo verdade, precisaria de meios para pagar as despesas. Ah! Um equilíbrio sempre difícil de encontrar, sobretudo há sempre quem tenha tendência para crescer à custa dos outros - acrescenta ele, como homem conhecedor do assunto.

 

- E... sendo verdade - repete Marco -, que teria o senhor para lhe oferecer?

 

O velho sorri, enquanto Michele dá um discreto pontapé a Marco, que compreende ter cometido uma deselegância. Bonnetti aponta com o dedo para o pequeno jogo de xadrez.

 

- Meu caro amigo, vou confiar-lhe o transporte, por minha conta, deste jogo de xadrez de cristal e jaspe, cujas peças são feitas da mais fina prata. Está avaliado em quinhentos besantes de ouro.

 

Marco contém uma exclamação ao ouvir o preço.

 

- Repare na posição das peças. É capaz de a memorizar perfeitamente?

 

Debruçando-se para a frente, Marco examina as peças, profundamente concentrado. Ornamentadas a seda, pérolas e pedras preciosas, as figuras são tão finamente trabalhadas que apresentam o sumptuoso aspecto de nobres venezianos em traje de gala. A estes peões, que envergam o uniforme com uma perfeita disciplina, só falta a centelha da vida. Após longos instantes de exame, fecha os olhos e indica a posição exacta.

 

- Parece-me perfeito - aprova Bonnetti, satisfeito. Marco ergue as pálpebras, orgulhoso.

 

- Uma vez em Tabriz, na Pérsia - prossegue o velho -, será encarregado de o entregar aos meus correspondentes. Se não os encontrar, autorizo-o a negociar pelo melhor preço esta peça, com a ajuda de Michele, e a reinvestir os fundos obtidos em mercadorias. Está preparado para aceitar os termos deste negócio, meu caro amigo?

 

- Acontece, Signor Bonnetti, que não tencionamos passar pela Pérsia.

 

O velho esboçou um sorriso enigmático.

 

- Nesse caso, será em Soldaia, na Crimeia. Depois verá. Marco mostrou-se momentaneamente estupefacto.

 

- A sua confiança honra-nos muito, Signor Bonnetti - declara Michele, inclinando-se.


- Michele, bem sabe que nutro muita afeição por alguém que lhe diz respeito - explica o velho, com um sorriso nos seus olhos transparentes.

 

Marco, que não entende a conversa, retoma a palavra:

 

- E o que teremos nós a lucrar? Falava de meios; até agora, só vejo os seus interesses.

 

O velho enterra-se mais na poltrona, paira-lhe nos lábios finos uma expressão de satisfação.

 

- A sua impertinência agrada-me, rapaz. Merece mesmo um conselho: se os mamelucos o deixarem passar, prossiga até Herat, a leste, sem descer em direcção ao estreito de Ormuz.

 

- Repito-lhe, Signor Bonnetti, que seguiremos a rota que o meu pai percorreu, pela Crimeia.

 

- Tenciona, então, atravessar o canato da Horda de Ouro?

 

- Assim é - confirma Marco.

 

Bonnetti fixa-o com um estranho sorriso que lhe atravessa o rosto pergaminhado.

 

- Para responder à sua pergunta, cedo-lhe um terço dos lucros.

 

Levanta-se no seu passo claudicante para pegar num elegante alfange dourado que mostra a Marco.

 

- Diga-me quanto me daria por ele se lho quisesse ceder. Cautelosamente, Marco examina a arma, ostentando algumas manchas. Rapidamente, restitui-a ao proprietário.

 

- Digamos que a compraria por alguns soldos a um saltimbanco numa tarde de Carnaval.

 

- Os meus parabéns. Tinha pouco mais do que a sua idade, quando me venderam este alfange como tendo pertencido à rainha de Sabá. Suponho que me deu prazer acreditar. Custou-me tão caro que nunca tive coragem para me separar dele. Leve-o como recordação da minha história, e para que o incite à prudência que tanta falta me fez...

 

 

Já a noite vai bem avançada, quando Marco põe os pés no cais que o leva a casa. A fachada já não se encontra iluminada, coberta de estalactites de cera. As janelas ainda deixam transparecer alguma luz interior, vinda de altos candelabros de pé. Marco, impante de orgulho, precipita-se para dentro de casa, apertando contra o peito o jogo de xadrez.

 

Entra no salão, atraído pelo som de gargalhadas. O choque corta-lhe a respiração. Nos braços do pai está uma mulher que enverga um vestido tecido de fios de ouro e prata, pouco decotado e apertado no peito, que Marco reconhece como tendo pertencido à mãe. Por breves instantes, o jovem acreditou na visão de um casal de quem já não se lembra: o pai abraçando a mãe. Mas o riso ordinário de Fiordalisa remete-o para a realidade. A criada, deformada pela gravidez, usa um vestido da antiga ama, decerto oferecido por Niccolo. Marco já nem se lembra de que tem uma missão a cumprir. Fiordalisa está meio embriagada, o bebé chora no berço, aos pés da mãe, mas ela nem parece ouvi-lo. Músicos tocam música do Oriente e uma dançarina contorce-se, incitada pelos aplausos dos convivas. O Signor Zeccone brinca com o colar de uma escrava. Perturbado sem saber porquê, Marco reconhece Noor-Zade, ornada de véus e pérolas coladas à pele escura. Não parece a mesma, assim enfeitada para satisfazer o prazer de um amo. Sobretudo, aos pés do Signor Zeccone que nem a vê, apesar de ela se oferecer, submissa. Uma raiva invisível atinge Marco no ventre.

 

Zeccone, vendo-o, abre-se num grande sorriso.

 

- Marco! Vem juntar-te a nós, se o teu pai o permitir...

 

Este convida o filho, batendo as pálpebras. Fiordalisa já se levantou para oferecer um copo cheio a Marco, que o esvazia de um trago.

 

- Niccolo, estou encantado com o nosso acordo...

 

- Sobretudo porque arrecada três quartos dos lucros, além do reembolso do investimento...

 

- Devo confessar - prossegue Zeccone, rindo - que, quando me convidou, julguei que fosse para me pedir a mão da minha filha, em nome do seu filho. Como vê, estou tranquilo.

 

Niccolo baixa os olhos perante o olhar irado do filho, enquanto Matteo se apressa a encher o copo, se bem que quase cheio, do Signor Zeccone, e desvia a conversa, num tom mundano:

 

- Marco conseguiu maravilhas desta escrava, é uma mongol. Acreditam que a água é pura e que, lavando-se, a conspurcariam...

 

Zeccone solta subitamente o véu de Noor-Zade.


- Mas Marco lavou-a pessoalmente da cabeça aos pés, pode acreditar, Signor...

 

- De facto, parece-me cheirar mais a almíscar do que a bode - comenta Zeccone num riso algo constrangido.

 

Marco não quer ouvir mais nada e abandona a festa sem se voltar nem para o pai, nem para Noor-Zade, guardando para si a magnificência do pequeno xadrez, e apertando na mão o punhal da rainha de Sabá.

 

A VENDA DAS ESCRAVAS

Nos dias de leilão, o Rialto atrai tantos mercadores, compradores ou vendedores, quanto basbaques, curiosos e viandantes. Por infelicidade, naquele dia de Primavera de 1271, chove em Veneza. As gotas embatem contra a água do Grande Canal, descrevendo grandes aréolas, sempre renovadas.

 

Voltando a acorrentar os pulsos de Noor-Zade, Marco pergunta a si próprio por que se terá bruscamente interessado pelo passado da jovem. Onde as cadeias a prenderam, a pele da escrava encontra-se magoada. Ela estende os braços, indiferente e dócil. Ele apercebe-se da distância que os separa. A rapariga é ao mesmo tempo uma paisagem e um mundo desconhecidos.

 

O estrado está encharcado quando as escravas sobem para se alinharem em exposição. As que esperam pela sua vez estão ocultas atrás do palco, sentadas no chão. Uma delas, arménia, confia-se em voz baixa, na esperança de um destino melhor do que aquele que lhe estava reservado na sua terra. A maioria permanece calada, ansiosa, coberta pelos véus caros com que as enfeitaram para a ocasião, mas que o vendedor irá recuperar, mais tarde, a casa do comprador. Com os pés descalços ou apertados um contra o outro dentro de sandálias, algumas mulheres tremem até à cabeça tapada. São, na sua maior parte, eslavas que o próprio Niccolo comprou a caçadores das planícies do Cáucaso. Para efeitos desta venda, alguns mercadores associaram-se a Niccolo Polo, pois este goza de uma reputação que valoriza muito os escravos. O mercador veneziano separa-se das últimas escravas que trouxe da viagem ao Oriente. A certeza da sua partida iminente precipita a venda. Noor-Zade não ouve a vizinha, que lhe fala em arménio, sem se calar. Está atenta ao que se passa no estrado, por cima dela, mas que ainda não pode ver. A arménia sobe, por sua vez, os poucos degraus de madeira. Já não é nova, talvez vinte e cinco anos, e exibe um rosto astuto capaz de incitar a cobiça dos presentes. Noor-Zade ouve a multidão animar-se quando ela sobe à cena. A voz do vendedor convida a escrava a executar alguns passos de dança, a mostrar as ancas, os dentes. As exclamações deleitadas da multidão respondem aos seus meneios. A rapariga parece entregar-se àquela exibição com entusiasmo. Quase se poderia dizer que sente prazer naquela espécie de avaliação.

 

- Vai, sobe, Noor-Zade! - ordena o vendedor.

 

É a voz de Marco que a chama. Ela levanta-se, com o coração num alvoroço. Em cima do estrado, sente vertigens, atemorizada pelo reboliço da feira. Feira repleta de cabeças enchapeladas, coloridas e emplumadas, na qual gritam mil vozes que ela não ouve. Incrédula, Noor-Zade vacila sobre as pernas dobradas durante demasiado tempo. À luz da tempestade, procura Marco, que não olha para ela. Mas centenas de olhares espiam o medo que tem estampado no rosto, o pudor do seu corpo. Ela já faz parte da vaga tumultuosa do desejo inconfessado da multidão. A escrava, porém, tem a impressão de que todos se enganam, de que não devia estar ali.

 

Marco avista o pai, que o observa. Puxa por Noor-Zade tão brutalmente que ela se desequilibra.

 

Cortejos de nuvens negras deixam, por vezes, o campo livre aos raios de um sol intenso. Do alpendre por cima do estrado escorrem águas passadas. Marco fixa Noor-Zade, a escrava tártara, e esta fixa-o a ele. Os seus olhos pestanejam e os seus lábios também estremecem, com certeza. Um laço vibrante parece uni-los, aos dois. Vontade de se tocarem? A escrava exibe a sua condição no trejeito guerreiro da boca. Baixa as pestanas fartas quando não olha para Marco. Os véus escuros que a cobrem revelam, impudicos, os tornozelos e os pequenos pés encolhidos em poças húmidas que reflectem o tumulto dos céus. ”Não quero conhecê-la - pensa Marco - e, no entanto, vendo-a, sinto-me longe da minha casa, e também longe de mim.”


Marco volta-se para a multidão. Não vê nenhum rosto, apenas um mar de cabeças cobertas, de veludo ou de feltro, de encarnado claro ou de escarlate. Um murmúrio propaga-se até ele, como um rumor, em vagas carregadas de impaciência. Marco decide não voltar a pensar em Noor-Zade, mas apenas na escrava que ela é.

 

Grita:

 

- Ecco! Educadas pelo grande Niccolo Polo, aqui estão as suas escravas privativas, que ele tem a honra de, finalmente, pôr à venda, depois de terem prestado serviço durante dois anos na sua própria casa. Já baptizadas, discretas, conhecem a nossa língua, os nossos costumes e as nossas exigências. Boas trabalhadoras, asseadas, bem constituídas e gozando de boa saúde, estão desde já preparadas para servir. A casa Polo representa uma garantia da sua origem, livre de vícios ou enfermidades. Se forem bem tratadas, prestarão bons serviços.

 

Aos pés do estrado, Niccolo nem acredita no que ouve.

 

- Se forem bem tratadas?! Mas o que fez a minha mulher ao longo destes oito anos? Então não lhe ensinou nada?

 

Desesperado, afasta-se do estrado para se misturar com a multidão. Quer sentir o comprador. Avista a escadaria exterior de uma casa que dá para o canal, salta por cima do rebordo e instala-se na rampa, de costas para o canal. Dali, tem uma visão perfeita de todo o recinto da venda.

 

Longe da primeira fila, no meio da mole humana, Marco vê o pai erguer-se na ponta dos pés, tentando avistar o palco através das cabeças levantadas.

 

Naquele instante, os raios ardentes do sol atravessam as densas nuvens cinzentas. Em cima do estrado, Marco sente que um suor tépido lhe escorre pelas costas. Terá de resistir, porém. Procura com os olhos o pai, ou qualquer outro que saiba dizer-lhe o que está a passar-se. Erguem-se mãos, em cachos, impacientes. Não muito longe dali, transacciona-se damasco roxo, pesado. Marco sabe que tem de obter êxito naquela venda. O pai concedeu-lhe a imensa honra de lha confiar. Todavia, ali, bruscamente, sente vontade de a ver terminada. Olha de novo para Noor-Zade. Como é possível desejar que alguém lha queira comprar? Há mãos que parecem querer tocá-la. Instintivamente, coloca-se à frente dela. Os olhos opacos da jovem, que brilham como estrelas à chuva, já aceitaram o que ele ainda rejeita. Ela dirige-lhe a sombra de um sorriso uma vitória. Marco volta-se para a multidão. Todos os olhares parecem querer confirmar-lhe a condição de Noor-Zade. Ele recebe-os como setas, por vezes pérfidas. Parecem considerá-la um objecto ou um animal. Marco experimenta um mal-estar doloroso. Sob o veludo do gibão, domina-o um calor clandestino. Dá um passo para o lado, a fim de exibir Noor-Zade aos olhos do público. Liberta as mãos acorrentadas da escrava. Levanta os véus que a cobrem para a mostrar aos homens que esperam. Uma onda de vida percorre a multidão, que se comprime ainda mais. Há olhos que se fixam na silhueta da jovem. Marco também sente um desejo louco de conservar Noor-Zade sob a sua protecção. Tão frágil...

 

- Ei, Marco! Há gente à tua espera! - grita, de longe, a voz de Niccolo, que se apercebeu da impaciência dos compradores.

 

Por fim, Marco ergue o queixo, elevando a altivez de Noor-Zade.

 

- Signori, permitam-me que os felicite antecipadamente por libertar as vossas bem carregadas bolsas de um peso tão excessivo. Na verdade, mesmo que a venda por um preço superior ao que ela vale, a satisfação que vos proporcionará fará dela o melhor negócio do mundo.

 

Um murmúrio intrigado percorre a multidão. Marco lança um preço, bem mais elevado do que os precedentes.

 

Niccolo, preocupado, desce do seu posto de observação para se juntar, acotovelando os espectadores, ao irmão Matteo, por detrás do estrado.

 

- Mas ele é um pazzo! Nunca conseguirá vendê-la! Giammail Matteo retém-no:

 

- Deixa-o! Ele aprende. Se não a vender, dar-lhe-ás uma lição. Para surpresa de Niccolo, os lances sobem a bom ritmo. Marco deixa que os primeiros se elevem e espera pelos cinquenta besantes para desempenhar cabalmente o seu papel de negociante. Instintivamente, Marco sobe a parada. Começa mesmo a divertir-se. Vendê-la-á por um preço elevado, ou não a venderá. Os compradores animam-se. Bruscamente, porém, a vaga esmorece. O coração de Marco palpita contra o seu torso forte. Apercebe-se intimamente de que não quer cedê-la - mas o que fará dela, então? E, ao mesmo tempo, receia não ser bem sucedido nesta primeira venda, quando o pai tem o olhar assestado nele. Instala-se um duelo entre dois conhecidos homens de Veneza. O primeiro, Duputti, negociante de mulheres, sabe escolhê-las para satisfazer o prazer do segundo, o çignor Zeccone, marido exemplar e pai de Donatella. Mas o momento é de disputa. Marco ignora Duputti, no meio da multidão, o que aguça o apetite do homem. Concentra, porém, a atenção em Zeccone, dando-lhe a entender que poderá obter a escrava pelo preço que deseja. Vê que a mão do homem volta a remexer negligentemente no véu de Noor-Zade.

 

Aos pés do estrado, Niccolo repreende o irmão, Matteo.

 

- Tu é que tiveste a ideia de lhe confiar esta venda! - adianta ele, irado.

 

- Enfim, Nicco, confia um pouco nele! É teu filho! Niccolo desvia o olhar. - Justamente.

 

Marco não tira os olhos do pai, suspenso da sua aprovação ou reprovação. Então, bruscamente, volta-se para Duputti, que já considera a partida ganha e duplica a oferta para ter a certeza de vencer. Furioso, Zeccone urra de raiva e triplica, dominado por um ímpeto de orgulho. Marco sente que pode escolher quem ganhará. Já não pensa no destino de Noor-Zade, cujo olhar paira por cima das nuvens que cobrem a laguna. Por instantes, Marco volta-se para o pai. Niccolo gostaria com certeza de ceder a escrava a Zeccone. Na posse de Duputti, ela encontrar-se-á no Rialto, nas traseiras de um qualquer pátio sombrio, dez anos mais velha no espaço de poucos meses, perdendo o gosto pela vida e inebriando os homens de passagem - marinheiros, carregadores, remadores - com o seu intenso odor fulvo.

 

As ofertas dos dois homens crescem como um tumulto, começam a ecoar na cabeça de Marco, qual tempestade antes do primeiro trovão. A chuva parou, mas deixou marcas na terra, charcos de agua tremeluzente. Marco não pode deixar de pensar na má reputação de Zeccone, nos gestos desprezíveis que, em certa noite, manifestou em relação à rapariga. Marco finge não ouvir a oferta de Duputti, quando sente que Zeccone está prestes a desistir. O jovem ouve-se gritar, voltando-se para Noor-Zade:

 

- ...Arrematada!

 

Num repente, a jovem lança-lhe um olhar brilhante. Marco lê nele um sentimento de pânico e raiva. É a última troca de olhares.


O contramestre de Zeccone apresenta-se, paga a Shayabami, pega na escrava e leva-a para longe de Marco. Este experimenta pela primeira vez o suplício do alívio. Gostaria de voltar atrás, de remontar no tempo, até onde? Sentiu-se manipulado, pelos seus, pela família, os Polo, os mercadores de Veneza, o pai, afinal.

 

- Marco! - grita a voz de Niccolo.

 

O jovem abre brutalmente os olhos. A luz ofusca-o, quando reconhece o pai que sobe ao estrado para se lhe juntar. Niccolo abraça-o, ignorando a emoção que impregna o rosto de Marco.

 

- Procedeste muito bem, Marco! Eu nunca teria alcançado um preço tão elevado! Eu bem sabia, não é verdade, Matteo? - perguntou ele naquela sincera má-fé que ainda desconcerta o irmão.

 

Matteo aquiesce, meneando a cabeça.

 

- E vero. Foste realmente perfeito...

 

Marco sente-se orgulhoso por ver o pai contente com ele.

 

- Ainda assim, devias ter vergonha de a teres vendido tão caro ao Signor Zeccone, nosso sócio!

 

- É verdade, Marco. Devíamos tê-la oferecido. Compensá-lo-emos presenteando a filha com uma peça de tecido caro...

 

Niccolo já arrasta o filho para a riva delvin.

 

- Sinto-me orgulhoso de ti, Marco. Sinto quase vontade de te levar connosco, sabes?

 

Marco abandona brutalmente a melancolia em que caíra.

 

- Onde? Quando?

 

- Calma! Pace, Marco! - exclama Niccolo, rindo. - É verdade, agora posso dizer-to, partimos antes do fim do Carnaval.

 

Marco sente-se aterrado. Com uma mão, detém o pai.

 

- Mas... o senhor... ter-me-ia dito? Não? - balbucia ele. O senhor não...

 

Marco não ousa concluir a frase. Niccolo dirige um longo olhar embaraçado ao irmão.

 

- Matteo explicar-te-á - decreta ele, prosseguindo o seu caminho.

 

Mas Marco é mais rápido do que o pai. Com o pulso, aperta firmemente o braço do pai.

 

- Ah não, senhor! Seria um ultraje demasiado grande! De si, espero mais do que um abraço. O senhor deve levar-me consigo.

 

Em guisa de resposta, Niccolo ostenta uma expressão tão dura que o jovem o liberta.

 

- Sim, partimos. Regressamos à corte do Grão Cão. E não, não irás connosco! É suficientemente clara, a resposta?

 

Sem mais demoras, Niccolo afasta o filho com as costas da mão e dirige-se para a margem. Matteo endereça uma expressão desolada a Marco. Mas este não está interessado na sua piedade. De lágrimas nos olhos, precipita-se para o pai, agarra-o pelo braço e volta-o para si. Sem reflectir, aplica-lhe um murro que surpreende Niccolo a tal ponto que cai ao Canal. Marco massaja os dedos doridos. Matteo chama pelo irmão, preocupado. Ao estrondo da queda do corpo na água sucedeu-se um borbulhar intenso de tecidos pesados. Por fim, reaparece uma forma que se debate através das peças de roupa de veludo. Involuntariamente dominado pelos remorsos, Marco suspira profundamente e mergulha no intuito de ajudar o pai. Debaixo de água, é fácil pegar na cabeça de Niccolo e trazê-la à superfície. Niccolo tenta sovar o filho, por sua vez, mas o vestuário encharcado impede-o de o fazer. Matteo estende-lhe a mão. Niccolo escorre água lodosa. Matteo hesita em sorrir, receando a ira do irmão. Marco procura subir para a margem, mas o pai repele-o com o pé. Niccolo aguarda que o filho reapareça para se debruçar sobre ele. Então, torce a capa, que o encharca generosamente.

 

- Marco Polo, nunca ninguém me humilhou assim - murmura ele, furioso, entre dentes. - Fica sabendo que nunca mais na vida quero voltar a ver-te, entendes! Nunca mais!

 

- Foi o senhor que...

 

- Cala-te, insolente! - exclama Niccolo, tentando aplicar uma bofetada no filho, que recua para a água. - Depois de tudo o que fiz por ti, atreves-te... Vergogna!

 

Recompõe-se e arrasta Matteo, deixando Marco diante do ajuntamento de basbaques que oscilam entre o riso e a dúvida. Niccolo arrasta-se, soberbo, pingando e sem deixar de vociferar:

 

- Vergogna! Vergogna!

 

Marco pisa de novo a terra firme, perguntando-se se algum dia conseguirá deixá-la.


De regresso ao seu exíguo quarto, depois de seco, Marco embrulha cuidadosamente cada peça do jogo de xadrez que Bonnetti lhe deu. Batem intensamente ao ferrolho.

 

- Entre! - grita Marco, demasiado alto.

 

Niccolo surge no limiar, sem penetrar no quarto. Marco levanta-se imediatamente. Permanecem imóveis, frente a frente.

 

Com o ventre dilacerado pela raiva, como se um tigre lhe rasgasse as entranhas, Marco entrega-se de novo à sua tarefa.

 

- Que estás a fazer? - pergunta Niccolo, apontando para o jogo de xadrez.

 

- Estou a embalar as peças, a fim de as proteger durante a viagem.

 

Niccolo avança um passo, de sobrolho interrogativo.

 

- Que viagem?

 

- A sua, evidentemente! - exclama Marco, encolerizado. Veja o que Bonnetti me deu. Encarregou-me de o revender em Tobrez.

 

- Tabriz - corrige Niccolo friamente. - É na Pérsia.

 

- Pouco me importa que seja no Catai! O senhor levá-lo-á.

 

- Está bem, Marco, deste provas de um real discernimento. Vender, com Bonnetti...

 

Marco emite uma espécie de riso sinistro.

 

- Na verdade, irei longe, foi o que o senhor veio dizer-me?

 

- Não, creio que não compreendeu: não irá a parte nenhuma

- replica Niccolo, glacial.

 

O mercador aproxima-se do filho.

 

- Ouve, Marco, não vim pedir-te perdão, nem despedir-me. Vim simplesmente explicar-te. És meu filho, posso confiar em ti, mais do que no malandro do meu irmão, Il Vecchio. Sei que te encarregarás dos meus negócios, em Veneza.

 

Marco suspira profundamente.

 

- Além disso, a viagem até ao Catai é muito perigosa. Não quero perder-te - acrescenta Niccolo, quase com indiferença.

 

Marco ergue os olhos rasos de lágrimas.

 

- Mas, meu pai, não é partindo e deixando-me para trás que me perderá?

 

Niccolo crispa-se, de dentes cerrados. Esboça um gesto negligente.

 

- Podes devolver o jogo de xadrez a Bonnetti. Não vale a viagem.

 

Sem mais palavras, dá meia volta e sai do quarto. Marco ouve-o descer os degraus com a fria regularidade de uma máquina.

 

AACQUA ALTA

Então, esse maravilhoso tecido cujas virtudes tanto me gabou? - impacienta-se Donatella.

 

O salão em que a bela veneziana recebe Marco está decorado com o requinte autorizado pelo pai. As sacadas estão fechadas por vidro pintado de Murano. Vasos de vidro soprado ostentam as cores quentes do crepúsculo e reflectem os raios do sol num sumptuoso espelho manchado.

 

A criada de Donatella, Anna, entra com taças de caldo que oferece a Marco, o qual aproveita para retirar a máscara que o faz transpirar e, depois, perfila-se em frente da porta - obedecendo, sem dúvida, às ordens do Signor Zeccone. Anna já vestiu o zendale, traje de Carnaval reservado às mulheres de baixa condição. Marco surpreende-se por Donatella ter consentido, excepcionalmente, em autorizar o seu pessoal a festejar o último dia de Carnaval, pois, embora a maior parte dos patrícios ceda perante esse costume, Donatella nem por um instante alguma vez se encontraria sem criadagem.

 

Marco olha com curiosidade os olhos demasiado azuis da bela veneziana. ”Porquê demasiado?” pergunta-se ele. Glaciais. Os seus longos cílios louros filtram a luz do sol.

 

Na véspera, a galera do pai fez-se ao largo. O sonho de partir nunca lhe pareceu tão remoto. Ele nem sequer quis regressar à Ca’Polo para se despedir de Fiordalisa e dos dois pequenos bastardos que Niccolo abandona, por sua vez. Cada dia em Veneza é um dia perdido. O Carnaval aproxima-se do fim. Marco aguarda-o com impaciência, pois, no ano que corre, esta festa pareceu-lhe lúgubre. Só a esperança de desposar Donatella tem ainda o efeito de apaziguar o seu sofrimento. A jovem encomendou aos estabelecimentos Polo uma das suas mais lindas sedas, fornecendo assim ao jovem uma oportunidade de se declarar. O seu coração palpita até lhe queimar as têmporas. Aproxima-se o momento em que vai ouvir daquela bonita boca a promessa de uma vida.

 

- O meu empregado está lá fora - anuncia Marco, apontando para a porta de madeira. - Vou procurá-lo.

 

Donatella esboça um trejeito mudo.

 

- Não. Vou mandar um dos meus criados buscá-la, um presente do meu pai - explica ela. - Verá que isso se coadunará perfeitamente com a seda exótica.

 

Muito modestamente vestida de cânhamo grosseiro, Noor-Zade entra no quarto como se caminhasse sobre uma nuvem - flutuando. Avança de maneira singular, a passos curtos, de cabeça direita e pálpebras quase cerradas, exalando um perfume forte que Marco não suporta. Traz nos braços, como uma mortalha - do que ela foi? -, envolto em papel fino, o tecido fornecido por Marco a pedido de Donatella. Tem a densa cabeleira apanhada no cimo da cabeça, decerto uma fantasia da ama. Esta aparição provoca em Marco um arrepio tão intenso quanto uma queda no Grande Canal em pleno Inverno. Qualquer outra serva lhe seria indiferente, a presença desta escrava é-lhe intolerável.

 

- Então, meu amigo! Julguei que o impressionaria... mas confesso que, afinal, fui eu que me impressionei! - exclama Donatella, surpreendida com a expressão de Marco.

 

O jovem ensaia um sorriso de circunstância.

 

- Sente-se, pois, minha senhora, quero mostrar-lhe a seda que ira realçar a sua beleza, mesmo não sendo necessário... - adiantou ele, hábil negociante.

 

Enquanto Donatella se instala como para um espectáculo, isto é, em pose, Marco fixa Noor-Zade, à espera de um sinal. Mas tal não acontece, e é Donatella que insiste.

 

- Então, meu caro Marco?


Marco sorri de novo, no seu papel, e, voltando-se para Noor-Zade:

 

- Ela, agora, já compreende a nossa língua?  Donatella franze as sobrancelhas claras.

 

- Agora?

 

- Sim - responde Marco descontraidamente. - Desde que se encontra em Veneza.

 

Noor-Zade não deixa transparecer o mais leve estremecimento sob o olhar inquisidor da veneziana.

 

- Muito pouco. O meu pai deu-lhe pessoalmente algumas lições particulares. Conheço-o, é sempre muito generoso.

 

Marco sente um aperto no coração ao pensar nesta generosidade. Procura um laivo de ironia no tom de Donatella e censura-a intimamente por não o vislumbrar.

 

- Ajoelha-te à minha frente - ordena Donatella a Noor-Zade por meio de um gesto.

 

A jovem escrava obedece, sempre de olhos baixos. Quando se ajoelha, a visão da grácil nuca fustiga Marco com um desejo repentino.

 

Noor-Zade apresenta o embrulho a Donatella, que sorri, deleitada com a comédia. Marco sente-se furioso por ver a veneziana ironizar daquele modo com a sua inclinação. Provocador, ajoelha-se atrás de Noor-Zade. O doce calor contra o seu corpo entontece-o. Uma sensação quase dolorosa retesa-lhe as bragas. Sente que a jovem se crispa levemente quando a envolve com os braços para abrir o precioso embrulho. É deste que retira uma longa peça de seda de um branco imaculado.

 

- Oh! Este branco é o mais bonito do mundo! - exclama Donatella. - Marco! Posso tocar-lhe?

 

Marco coloca o tecido nos joelhos de Donatella, sentada num grande cadeirão de madeira esculpida, e vê-se rodeado pelas duas jovens.

 

- Donatella, feche os olhos - pede Marco.

 

A veneziana pestaneja, sedutora, antes de fechar os olhos.

 

Com um olhar inflamado, Marco observa a silhueta dócil da jovem escrava bárbara, oculta por detrás dos seus olhos semicerrados. Os seus pulsos delicados, de dedos longos e finos, transportam a seda como uma oferenda. As sobrancelhas finas e escuras realçam a suavidade das pálpebras ambreadas.

 

Num gesto quase brusco, Marco envolve a veneziana na peça de tecido.

 

- Esta seda vem do Catai - explica ele sem deixar de fitar Noor-Zade. - O meu pai trouxe-a na caravana, no regresso.

 

Marco estende ligeiramente o tecido. Noor-Zade adere imediatamente ao movimento e deixa escorregar a seda entre os dedos. O seu corpo leve e gracioso contorce-se momentaneamente. Um frémito percorre a seda. As ancas demasiado estreitas, as pernas esbeltas, a cintura frágil vergam-se às ordens do jovem. Marco imagina os seios pequenos, em liberdade sob a espessura da camisa. Uma forte perturbação envolve-o numa obsessão lasciva. Irado, luta contra o terrível impulso - submeter aquele corpo rebelde ao seu desejo.

 

- Marco, vejo-o muito pálido - comenta Donatella, que voltou a abrir os olhos.

 

Ele volta-se para ela sem a ver.

 

- O meu pai costuma repetir-me que o melhor remédio contra a dúvida reside na acção - murmura ela.

 

Um encorajamento?

 

Os seus olhares cruzam-se, nervosos. Marco observa que o peito alvo da jovem arfa mais rapidamente. A sua boca grená deixa escapar um ligeiro sopro tépido.

 

- Donatella, vou tocar na fímbria do seu vestido - adverte Marco num sussurro.

 

A veneziana espera ansiosamente por este momento. A sua respiração acelera-se ainda mais. Marco passa delicadamente os dedos pelo tecido. A sua mão, pudica mas audaciosa, não ousa tocar na pele, satisfazendo-se com a seda, macia como veludo.

 

- Veja estes fios grossos: há quem os considere um defeito prossegue Marco, febril. - Para mim, são os impulsos de vida no estado puro que venceram a obra do homem.

 

O olhar de Marco acaricia Donatella através da seda, tão fina que deixa transparecer os raios do sol.

 

Imperceptível mas obstinadamente, a mão de Marco avança pelo sapato de brocado que aperta, porventura com alguma força, pois Donatella sobressalta-se levemente. Marco sente o tornozelo fino alargar-se até à barriga da perna. Os seus dedos deslizam pela curva do joelho, Donatella esboça um gesto de surpresa, como se fosse ela própria a descobrir aquele recanto oculto. Audacioso, Marco pousa a mão na coxa da jovem veneziana, através do tecido.

 

- Estes fios que julgamos ter tecido, trabalhado à nossa maneira, permanecem, porém, indomáveis.

 

Como por acaso, pousa os olhos em Noor-Zade. A sua boca cor de ouro escuro parece estremecer.

 

Marco aventura-se a aflorar com as mãos o peito de Donatella, que consente, de olhos fechados. Encorajado pelos suspiros da jovem, decide acariciá-la mais intensamente. Os seios da veneziana parecem feitos para as suas mãos. Marco fica sempre surpreendido por o peito de uma mulher poder ser tão tenro sob o corpete que o retesa.

 

- É a razão pela qual esta seda bruta deve ser a mais sumptuosa. E, sempre que a mão a acariciar, deve amaciar um pouco.

 

Marco aperta o precioso tecido nos dedos. A boca cor de ameixa de Noor-Zade sobressalta-se, como se ela não conseguisse suportar aquela ligeira crispação da seda.

 

”Só a pele de uma mulher é mais doce do que isto, mas de quem?” interroga-se Marco, inquieto. ”Que corrente de ar ausente é esta que provoca rajadas de arrepios?”

 

Quando Marco larga o tecido, os fios readquirem a forma inicial, quase nada amarfanhada.

 

Donatella abana a cabeça anelada. A mão de Marco desliza até à anca da veneziana.

 

- Só alguns camponeses de uma aldeia longínqua sabem onde encontrar estes casulos - prossegue ele, na sua voz pausada e suave.

 

Noor-Zade debruça-se para a frente para evitar que o tecido se engelhe. Marco ouve os suspiros da seda sempre que ela soergue, rápida, o peito. A mão de Noor-Zade aflora a de Marco, como por acaso. O odor fulvo assedia-o de novo. Sente-lhe o gosto, que sobe dentro dele, bebe-o, afoga-se nele, como se quisesse que os dois se fundissem num único ser. Surpreende-se a suster a respiração, na esperança de impedir que o perfume se dissipe.

 

- Esses camponeses conhecem os vermes, vigiam as posturas, e só intervêm para retirar os casulos.

 

Continua a acariciar o veludo, até ao olhar da escrava, que não encontra. A seda aquece até empalidecer o sol, arde-lhe um sangue novo nas veias, que lhe enrubesce a boca. Uma mordedura violenta aperta-lhe o ventre. É a raiva do seu amor-próprio ferido que grita mais alto do que a seda. Sente-se furioso por descobrir que o desejo que sente poderia não provir da proximidade de Donatella, mas da outra, a animalesca.

 

- Esta seda não é tão suave como a do bombyx mori. Mas é a mais resistente de todas - prossegue Marco.

 

Estica o tecido com uma pancada seca, de tal modo que Noor-Zade perde o equilíbrio e, para se aprumar, pousa as mãos nas coxas do jovem. A escrava ergue para ele um olhar em que se mistura surpresa e angústia. Marco, sem deixar de a observar, prossegue, ciente de que Donatella nada viu da cena:

 

- Este saber transmite-se de pai para filho desde os primeiros imperadores chineses.

 

Estranhamente, Marco sente-se dominado por um poderoso sentimento de raiva. Vendo Donatella, embevecida com as suas carícias, aproveitar-se da perturbação que Marco experimenta, sem saber qual a sua origem, ele sente a revoltante sensação de que ela o utiliza unicamente para seu próprio prazer. É evidente que se trata de uma linda rapariga, e que o rubor das faces a torna ainda mais encantadora. O queixo da veneziana ergue-se para o céu. Marco sopra de uma maneira indecente para o pescoço de Donatella. Esta estremece. O jovem experimenta a surpreendente tentação de apertar entre as mãos aquela nuca que tanto o despreza.

 

Num impulso quase irado, Marco pega no braço da veneziana.

 

- Donatella, dá-me a honra de me conceder a sua mão? pergunta ele, numa derradeira oportunidade.

 

A jovem liberta-se e ergue-se, esboçando um trejeito arrogante.

 

- Um dia, disse-me que, por mim, iria até ao fim do mundo... Consegue recordar-se, Marco?

 

Marco olha-a, suspenso das suas palavras.

 

- Evidentemente. E, hoje, repeti-lo-ia.

 

Donatella volta-se, brincando com a bolsa que traz suspensa à cintura.

 

O odor a almíscar incomoda Marco, que tenta resistir-lhe.

 

- Não peço tanto, Marco. Na verdade, o que esperaria do meu marido, seria, pelo contrário, que permanecesse para sempre junto de mim. Mas isso... A verdade é que quer casar comigo para seguir imediatamente os passos do seu pai, pelo que só voltaria a vê-lo daqui a cinco ou dez anos!

 

Marco está sem voz. Entre os dois, abriu-se um abismo. E ele sofre por o ter escavado, recusando-se a acreditar.

 

Donatella volta-se para ele, de olhar altivo e límpido.

 

- É um mercador, Marco, como todos os da sua família. Não digo isto por si, pessoalmente, mas temos de nos render à evidência: não pertencemos ao mesmo meio. A minha vida é aqui. Tenho de me mostrar, de representar a casa do meu pai, e depois a do meu marido. E a sua - suspira ela quase com tristeza - não precisa de representação, pois está sempre de partida.

 

Marco levanta-se, furioso, cruza o olhar de laca negra de Noor-Zade.

 

Donatella surpreende aquele vislumbre. Com um gesto seco, pega no braço de Noor-Zade e endireita-a. Pega no tecido e enrola-o no corpo, à maneira de uma toga.

 

- Segura-o bem, nas minhas costas - ordena ela à jovem escrava numa voz dura, mas sem olhar para ela.

 

Noor-Zade ajusta o tecido à cintura fina de Donatella. Esta avança até ao grande espelho manchado e põe-se em pose, naquele jeito gracioso que Marco tanto aprecia.

 

- Marco, meu amigo, que lhe parece, se mandar bordar rosetas e laços nos ombros, realçados por safiras? Ficaria um sonho, daria bem com os meus olhos! Para um vestido de casamento... acrescenta ela, após uma pausa.

 

Marco cambaleia, irritado.

 

- Que me diz? Essa seda que encomendou à nossa casa...

 

- ...destina-se ao meu vestido de casamento, obviamente! - prossegue ela com um sorriso malévolo.

 

Os dentes cerram-se sobre um sonho que finda.

 

- Ah! Ter-me-ei esquecido de lho anunciar?

 

Os seus olhos, brilhando de inocência perversa, lançam centelhas.

 

- Que negligência! - prossegue ela, fixando o jovem, prostrado. - Mas, bem sabe que ando muito ocupada nos preparativos.

 

Repare, o meu pai gostaria de reposteiros de veludo estampado, eu, por mim, hesito entre o carmesim e o escarlate...

 

Verdadeiramente rubro de indignação, Marco interrompe-a:

 

- Falou de safiras? Creio que o diamante lhe assentará melhor: é a pedra mais dura - adianta ele, cerrando os dentes. - Quanto ao veludo, terá de ser de trama apertada, cor de sangue, mas os Polo não fabricam esse material.

 

Marco ergue-se, pega nos seus pertences:

 

- Adeus, minha senhora, pode guardar a seda bruta. É o meu presente de casamento.

 

Marco volta-lhe as costas, dirige um último olhar a Noor-Zade, antes de ajustar o tabarro à cabeça e aos ombros. A escrava tártara devolve à máscara um olhar desamparado.

 

Donatella, então, pousa a mão no braço do jovem, retendo-o num gesto imperioso.

 

- Não, Marco, é a minha prenda de despedida. Leve-a, é sua - concluiu ela, num trejeito cruel.

 

O céu plúmbeo esmaga-se sobre Marco, quando este atravessa a Piazzetta já repleta de gente para os últimos festejos do Carnaval. Marco ordenou ao criado que regressasse a casa, sem se decidir a fazer o mesmo à escrava que agora é sua. Atrás dele, apressando-se para não o perder de vista, Noor-Zade avança, silhueta muda envolta em esperança. A acqua alta obriga-os a caminhar em equilíbrio nas compridas pranchas de madeira que parecem flutuar à tona da água, inacreditáveis pontes improvisadas, quando, desde sempre, Veneza é vítima submissa das cheias caprichosas da laguna. Marco prossegue a marcha em direcção ao Palazzo Ducale, a água acaba de lhe atingir os sapatos. O marulho das pequenas vagas ressoa com uma leve palpitação. Ao longe, afadigam-se as velas sulfurosas, obedecendo à vontade do vento sul. O jovem veneziano permanece pregado ao chão, com os pés na água. O mar parece tão acolhedor, manso e calmo, assim estendido como um tapete de cetim resplandecente. Ao longe, as velas sulfurosas levam consigo sonhos de futuro. Aos poucos, desaparecem umas atrás das outras Por detrás das brumas. Em Veneza, Marco sente-se preso numa teia de areias movediças, prontas para o engolir tanto mais rapidamente quanto se tornou mais robusto. Agora, rejeita a moleza oriental que perpassa de ponte em ponte ao longo das rosáceas voluptuosas dos palazzi. O seu espírito impregna-se da bruma tépida que mergulha a cidade-navio nos prismas mouriscos. Os canais sinuosos reflectem-se até ao infinito nas fachadas bizantinas.

 

Marco sente que perde vigor, mas nem sequer tem força para lutar, receando soçobrar ainda mais. Como abandonar Veneza? Tudo lhe parece inconsistente. Curva para uma ruela estreita da qual a inundação obrigou os habitantes a fugir. Subitamente, Noor-Zade escorrega, penetra na água até aos joelhos. Marco volta-se, hesitante. Recusando aquele olhar entre o desprezo e a raiva, ela apoia as duas mãos nas tábuas. Marco segura-a pelos pulsos e puxa-a para terreno seco. Movido por um súbito impulso, aperta-a bruscamente contra o peito. O contacto daquele corpo tépido e rebelde acaba de o inflamar. Os seios rijos da rapariga contra si, o ventre macio, é a vida escaldante que se oferece ao jovem. Subitamente, perde o controlo de si próprio. Ela continua a lutar, embora saiba, como ele, que se trata de uma luta vã. Se aqueles olhos negros queimassem, o veneziano ter-se-ia consumido num ápice. Marco sente-se em brasa e aquele olhar incendeia-o mais do que tudo o resto. Forçando os punhos da rapariga, rebate-lhe os braços para as costas. Nunca estiveram tão próximos um do outro. Os seus hálitos confundem-se. Marco saboreia o momento em que vai beijar aquela boca que parece à sua espera. Ela entreabre os lábios carnudos. Ele precipita-se avidamente.

 

...E solta um grito de dor. A escrava mordeu-o. A surpresa é tamanha que ela consegue libertar-se dos braços de Marco. Desliza ao longo do muro e desaparece, correndo, na esquina da ruela.

 

- Noor-Zade! - clama Marco, lançando-se em sua perseguição.

 

A multidão mascarada encobre habilmente a fugitiva. Marco desiste da corrida e alcança o Campo San Stefano, onde se permite o luxo de uma gôndola, que manda vogar pelos canais em fonãamenti, ao sabor das correntes que impedem o acesso a certas línguas da laguna. Esquecendo-se da escrava tártara, deita-se no fundo de madeira da embarcação e enrosca-se, embalado pelas pancadas do remo do gondoleiro contra o casco. Fixa, acima da sua cabeça, pedaços de céu que formam grinaldas através das pedras da cidade de água. Marco imagina-se uma ave poderosa, uma águia real, erguendo-se muito acima das calli, pairando longe dos tectos rosados de Veneza. Num golpe de asas, relança o voo, foge para o mar alto, para a liberdade do Oriente. Veria as vagas crescer à medida que se afastasse da cidade e do seu filtro mágico.

 

Um movimento brusco do gondoleiro salpica-o de água e chama-o à realidade. Endireita-se e responde com um gesto ao pedido de desculpas do desajeitado homem. Mergulhar no esquecimento da água? A água, também ela prisioneira das paredes e dos homens. Parece queixar-se a cada impulso da gôndola para a frente. Abre-se, fende-se, solta um soluço à medida que a embarcação avança, e Marco vê-a fechar-se atrás de si num discreto turbilhão. Mais adiante, desapareceram quaisquer rastos da sua passagem, como se não tivesse existido. Não é um pouco da história da vida? O pai partiu e Marco ignora se voltará a vê-lo. E que recordação lhe resta da mãe? Quando ele morrer, não estará presente mais ninguém para se lembrar dela. E dele, quem se recordará da sua existência? ”Não quero deixar nada de mim” pensa ele, altivo.

 

Grossas gotas de água caem nas faces e no queixo de Marco, subtraindo-o à sua fantasia. O jovem veneziano abre os olhos. Por cima dele, na ponte sob a qual avança a gôndola, duas máscaras. Uma mão jovem mas já desgastada retira a máscara para desvendar o rosto risonho de Giovanni. Por baixo da outra, Marco reconhece as veias azuis de Farenna. O imediato do navio mercante agarra Giovanni pelos ombros.

 

- Vem connosco para a Piazzetta - propõe Farenna, visivelmente bem provido de vinho de má qualidade.

 

Marco apruma-se, salta da embarcação e corre pelas ruelas atrás dos companheiros, perseguido pelos insultos do gondoleiro, a quem se recusa a pagar, a pretexto dos salpicos de água com que ousou conspurcá-lo. E, neste último dia de Carnaval, parece pesar um surdo cansaço numa densa névoa sobre os canais em que balanÇam numerosos traghetti. À medida que o trio se aproxima da Piazzetta, cresce a vaga do rumor produzido pelos Venezianos, um zumbido monstruoso dilacerado, aqui e ali, por gritos que explodem contra os cais. Agora, Veneza inteira acorre a integrar-se no enxame que transborda das ruelas estreitas. A numerosa multidão comprime-se então na Piazzetta. No meio de muita alegria, arremessam-se de todos os cantos ovos odoríferos, que se esborracham nos fatos de Carnaval, sem distinção de categoria social ou de sexo, libertando um aroma mais ou menos agradável, consoante o alvo. Veneza rejubila. Uma multidão colorida, burgueses e operários, fidalgos e estudantes, comprime-se nas imediações do Grande Canal, até ao Palazzo Ducale. Os palhaços exibem-se nas praças, onde os transeuntes lhes lançam algumas moedas. Um macaco amestrado, vestido à moda dos comediantes italianos, traje justo de Arlequim e colete vermelho, faz as delícias dos Venezianos. O animal diverte-se a roubar cestos de verga numa loja. A vendedora, irritada, expulsa-o à vassourada perante o riso do público. Acaba mesmo por encerrar o estabelecimento. As atenções voltam-se, então, para um homem que cospe fogo, inflamando as plumas dos chapéus pontiagudos de um grupo de fidalgos perdidos no meio da multidão. Mas, quando os emplumados ameaçam desembainhar as espadas, a multidão protege o forasteiro e repele os arrogantes, os quais preferem afastar-se. Mal acaba de chegar à praça que regurgita de gente, Giovanni separa-se dos companheiros para se juntar às Forças de Hércules, figuras humanas em forma de pirâmides que desafiam as leis do equilíbrio. Giovanni compensa a falta de força com uma extrema agilidade. Sem hesitar, com um sorriso cativante, trepa para as coxas dos colossos que formam a base, a fim de se integrar na pirâmide humana. Equilibra-se e mantém-se aprumado. A sua concentração impressiona Marco. Um garoto, de idade compreendida entre os cinco e os sete anos, apenas, salta por sua vez para o topo dos mais velhos. Com uma leveza felina, atinge o cume do edifício. Um clamor acompanha a oscilação e há mesmo uma matrona que retira a máscara, descruzando os braços para se benzer, aterrorizada. Num breve olhar, o garoto certifica-se de que a mãe o está a observar e, ansioso por se exibir, esforça-se por fazer o pino. No seu entusiasmo, faz oscilar perigosamente a frágil construção. Para a matrona, é demasiado. O marido, que é também o pai do garoto, agarra-se à base da pirâmide e começa a abaná-la com tanta força que o edifício se desmorona, começando todos os homens a cair, com mais ou menos sorte; o garoto acaba por descer do céu - onde a mãe já o imaginava -, vindo assentar no punho encolerizado do pai.

 

Na queda, Giovanni torceu um pé. Marco precipita-se para o suster, mas o mudo responde-lhe com um sorriso franco. São abordados por um vendedor de orvietão que lhe apresenta um bálsamo destinado a fazer milagres a quem sofrer daquele mal. Marco rejeita, num tom seco. Mal aquele se afasta, surge um outro, insurgindo-se contra o colega, a quem chama charlatão, enquanto ele possui o elixir que restituirá as forças ao estropiado. Giovanni acaba por aceitar a pomada malcheirosa que o vendedor lhe aplica com uma generosidade suspeita. Confia-lhe uma caixa pequena, que lhe servirá nos dias de velhice contra a gota e os humores frios. Uma cigana, de rosto completamente velado, pega na mão de Marco, de passagem. Distraído, ele abandona-lha, vagamente atento às suas palavras fúteis. Ouve predizer honrarias e amores, o primeiro dos quais morrerá deixando-lhe um filho.

 

- Vejo que vais partir - diz ela com uma voz aguda, num sotaque de parte nenhuma.

 

- Se é isso que me predizes, não terás direito a nada, bruxa! - exclama Marco, retirando a mão.

 

Faz menção de se afastar, mas a mulher, audaciosa, retém-no.

 

- Queres ler as linhas da minha mão? - sugere ela. Marco detém-se, intrigado pela estranha proposta.

 

- Leva-me contigo.

 

O jovem baixa os olhos para os dedos da cigana. A sua delicadeza confere-lhes uma graça natural. A brancura das unhas contrasta com a negrura da pele. Subitamente, os dedos voltam-se, confessando o segredo - um entrelaçado de jóias tatuadas na pele. O animal meio tigre, meio dragão palpita na mão em concha. O jovem permanece mudo de espanto. Mesmo tendo-a vendido naquela condição, nunca imaginaria que pudesse conhecer tão bem o veneziano. Procura o olhar da jovem através do véu.

 

- Leva-me contigo - repete ela, num tom de desespero que Marco nunca lhe ouviu.

 

Ele volta-se, à procura do amigo, esquivando-se àquela súplica a que se recusa responder. Ela segue-o, apressada.

 

Marco encontra Anna, a criada de Donatella, que reconhece Pelo traje de zendale.

 

- Bom-dia, senhor Marco. A minha ama autorizou todo o Pessoal a sair no último dia de Carnaval.

 

Noor-Zade afasta-se discretamente.

 

- Não queres conhecer o teu futuro, Anna?

 

- O meu futuro? Eu conheço-o, senhor Marco, mas terei por onde escolher? Tenho uma família a sustentar. É verdade que, por vezes, é uma tortura. Ela é tão ingrata! Agora que o sabe, posso confessar-lhe que o senhor já não é nada, para ela, nada! - repete a rapariga num tom de dureza.

 

”Ohimé”. - pensa Marco, despeitado. - Não sou nada para ela, como diz esta safada! Como se alguma vez tivesse sido de outro modo!”

 

- Não deve querer-lhe mal - corrige Anna, que lamenta ter-se deixado arrebatar tão facilmente. - Não teve por onde escolher. O melhor que tinha a fazer era esquecê-lo. Uma senhora como ela precisa de segurança.

 

Marco afasta-se de Anna. Muito perto dele, Noor-Zade procura protecção naquela multidão que receia. Através do véu, o jovem distingue as pálpebras amendoadas cor de canela. O dia está a chegar ao fim. As luzes que iluminam a noite de festa do Carnaval revelam de maneira indecente os traços que Noor-Zade procura dissimular. Esta surge sob o véu impudico. A boca vermelha escura brilha como as suas altivas maçãs do rosto. Franze as sobrancelhas finas com um encanto desarmante.

 

Marco está preocupado com Giovanni, cujo rasto perdeu. Se a sua alta estatura lhe permite espreitar por cima das cabeças, os olhos não lhe possibilitam adivinhar os rostos por detrás da maré de máscaras que se desloca em fluxos e refluxos à sua frente. Farenna titubeia a seu lado, acaba de esvaziar mais um pichel que lhe ofereceram.

 

- Senhor Farenna, sabe onde se encontra Giovanni ?

 

O segundo levanta os braços para o céu. Marco suspira, irritado, Farenna ri-se do espectáculo de um tira-dentes que acaba de deixar o paciente aos gritos, retorcendo-se com convulsões, enquanto o apresentador sorri, de boca muito aberta. Marco reconhece-os. Fazem todos os anos o mesmo número. Procura Giovanni com os olhos, só vê o domador de ursos, mais adiante os cães que são lançados aos touros em fúria. O estalido de um chicote sobressalta Noor-Zade. Um grupo de cómicos disfarçados de cocheiros diverte-se com aquele objecto tão pouco habitual em Veneza, onde os cavalos são desconhecidos. Há venezianos que nunca viram nenhum. O disfarce que usam afigura-se-lhes perfeitamente extraordinário.

 

O coice de um touro mais surpreendente do que os outros gera um movimento de pânico. Marco precipita-se para Noor-Zade e aperta-a nos braços protectores. Ela olha para ele com os olhos brilhantes de lágrimas. Marco abraça-a com tanta força que ela parece pertencer-lhe. O calor suave do seu corpo transmite-se-lhe ao ventre. Pressionados por todos os lados, sentem-se sozinhos no mundo. Marco luta contra a vaga que lhe aquece o cérebro. Abre caminho entre a multidão transbordante de máscaras. O jovem perdeu-se definitivamente de Farenna e já nem sequer procura Giovanni. Arrasta Noor-Zade para o mar e, erguendo-a pela cintura fina, senta-a num marco de pedra. Um gondoleiro insolente pede-lhe que lhe leia a sina e Marco promete-lhe uma pranchada se não se afastar imediatamente. Marco e Noor-Zade trocam um sorriso.

 

- Que poderei fazer de ti? - pergunta-se Marco em voz alta.

 

- Levar-me para a minha terra - responde de seguida Noor-Zade com uma determinação feroz.

 

- E o que te leva a crer que aceitarei fazê-lo?

 

- Ambos queremos voltar a ver o nosso pai.

 

Marco volta-se e afasta-se, sonhador, quase esbarrando contra um cuspidor de fogo que começa a vociferar ameaças infernais contra ele. Marco recua até ao canal.

 

Noor-Zade tem os olhos fixos no céu. Instintivamente, Marco ergue-se na ponta dos pés, apontando o queixo para a direcção-que Noor-Zade escruta, horrorizada. Por cima deles, muito ao longe, ao sol da noite, como o fantasma de um sonho, Giovanni escalou o Campanile. Cautelosamente, pousa um pé no vazio. Noor-Zade sustém a respiração. Marco mal distingue a corda estendida dali do cimo até uma minúscula barcaça ancorada no cais. Com a segurança de um louco, Giovanni salta para a corda como se fosse voar. A multidão grita em uníssono. Marco vigia a barcaça amarrada ao cais, mas é demasiado tarde: a criança acrobata das Forças de Hércules prepara-se para embarcar. O jovem veneziano precipita-se, solta um grito que o rapazinho talvez nem tenha ouvido - o garoto já saltou para o barco, que balança alegremente. Marco vê a onda propagar-se com uma cruel lentidão ao longo da frágil corda até ao amigo. Em seguida, passa-se tudo tão depressa que Marco nem tem tempo de piscar os olhos. Giovanni sentiu a vibração. Procura manter o equilíbrio. Mas, lá em cima, não há lugar para a vida. Marco vê que ele desiste. Instintivamente, Giovanni estende os braços pedindo auxílio e cai, vertiginoso, uma longa queda silenciosa. A multidão também se calou. O corpo abate-se no terreno deserto, num abalo surdo de ossos quebrados e carnes esmagadas. O povo afastou-se para permitir que o anjo cumprisse o último número. ”Matou-se!” ouve-se murmurar. Marco acotovela a maré humana que ainda há pouco evitava. Abrindo caminho, quase obrigado a agredir os curiosos que lhe recusam a passagem, o jovem consegue aproximar-se. Entre as cabeças apertadas umas contra as outras, mal entrevê o rosto ensanguentado de Giovanni. Adivinha o seu corpo desarticulado, os membros torcidos numa posição estranha. Marco, encolerizado, de boa vontade aniquilaria todos estes malvados que se deleitam ante o espectáculo da morte. A ira do momento fatal que não pôde ser contido.

 

Uma mão pousa no seu ombro. Farenna, agora sóbrio, olha para Marco com tristeza. Num passo lento, o veneziano junta-se a Noor-Zade no cais. Farenna segue-o de perto. Marco sente o anel de ouro do Doge no seu dedo. O dia em que Donatella lho recusou... Os dedos engrossaram, torna-se difícil retirá-lo do dedo. Vê-o cintilar na palma da mão e, sem qualquer hesitação, restitui-o ao mar - arremessando-o para longe, à maneira do Doge. Farenna esboça um gesto para o deter, mas é demasiado tarde.

 

- Que estás tu a fazer? - exclama o marinheiro. - É ouro! Marco volta-se para ele. Uma imensa esperança ilumina a aurora do seu rosto.

 

- Não, não é ouro, é o passado! - grita ele voltado para o céu, que começa a clarear em volutas de nácar e púrpura.

 

AS MONTANHAS DE ESPUMA

Noor-Zade apanhou o cabelo numa longa trança que lhe cai pelas costas. Aos olhos da tripulação, a sua tez cor de cobre confirma a fábula de que Marco fez dela o seu escravo pessoal. Sendo filho de um mercador, ninguém sentiu necessidade de se interrogar sobre a origem exótica deste criado. Noor-Zade apertou o peito numa faixa. E os marinheiros estão tão pouco habituados a conviver de perto com os povos do Levante que não consideram as suas feições particularmente femininas. Todavia, na opinião de Marco, os trajes masculinos realçam a sua feminidade. Noor-Zade mostra-se radiosa. Instala-se muitas vezes na proa do navio, sentada de pernas cruzadas, mãos pousadas nos joelhos, deleitada com o chuvisco que lhe acaricia o rosto. Por vezes, mantém-se de pálpebras cerradas, mas Marco juraria que ela vê, ainda assim. Como verdadeira nómada que é, delicia-se ao ar livre, depois de passar anos enclausurada entre quatro paredes. Marco, agora, apercebe-se de que ela perecia, em Veneza. Usa uma pulseira de pequenas contas redondas, de madeira, nas quais se encontram gravadas múltiplas séries de sinais, semelhantes a estranhos algarismos. Desfia-a como se fosse um rosário, e talvez o seja, na sua crença. Marco acabou por se deixar convencer a levá-la de volta para a sua terra, para lá dos planaltos do tecto do mundo, em cumes que nem os pássaros atingem.

 

A caminho da sua terra natal, Noor-Zade recorda a viagem que a conduziu a Veneza. Separada dos seus, esfomeada e acorrentada, reduzida à escravatura, ao som dos chicotes que vibravam no ar para a flectir. Recorda-se da longa agonia do seu orgulho na rota do mundo dos Latinos. Com um sonho louco que a mantinha viva: ver o mar! Noor-Zade descobriu-o pela primeira vez em Constantinopla. Que maravilha! Na extensão imensa brilhavam minúsculas manchas de neve como uma estepe móvel. O incessante vaivém das vagas ritmava o cantar do porto, o silêncio dos peixes, as injunções das gaivotas. Noor-Zade deixara-se ficar por longos momentos a contemplar as aves, tão alvas que pareciam ter sido amassadas com a neve da sua terra. Os seus olhos seguiam-nas no voo por cima das suas cabeças. Mentalmente, pedia-lhes ajuda para os seus. Planando por cima das vagas, as gaivotas deixavam-se embalar docemente até à superfície da água, antes de retomarem o voo, batendo as asas, levando no bico um peixe ainda fremente. Perguntava a si mesma se o peixe tivera tempo de ver o predador, ou se sentira bruscamente que mudava de elemento, outra visão do mundo, a última. Os gritos das aves ressoavam nos seus ouvidos com uma acuidade assustadora. Noor-Zade sabe que Marco quer encontrar o pai e partir com ele para o Oriente. Ignora como conseguirá o veneziano convencer o mercador nómada a levá-los aos dois. A que título aceitaria ele restituir aos seus uma escrava que levara consigo até Veneza?

 

Enquanto Noor-Zade sonha com o seu regresso, sozinha na popa, Marco admira, do seu posto de besteiro, no castelo da popa, as penosas manobras do comboio de navios. Amante da liberdade, sente-se inebriado por este ar diferente, de peito aberto, cabelos ao vento, faces fustigadas pelo chuvisco, boca humedecida de salpicos de sal. As pequenas galés, compridas, velozes e de fácil manejo, avançam à frente da pesada nau que corta as vagas com a afiada proa. Marco apercebe-se então de que, em vez de efectuarem a manobra em jeito de diversão, as galés se protegem do vento que uiva por detrás do elevado casco das volumosas embarcações, carregadas de mercadorias para Alexandria ou Constantinopla. O comandante do Nalia gaba-se de ser capaz de chegar a Constantinopla num mês. Pela velocidade que o navio leva, Marco começa a acreditar.

 

 

Três semanas depois da partida, avistam a costa cipriota, majestosa e dourada, orlada de uma larga faixa turquesa, transparente, que deixa a descoberto, quase despudoradamente, o esplendor da rocha coralina. Marco decide descer a terra. Leva consigo Noor-Zade. Trepam ambos para a barcaça, em companhia dos oficiais dispensados e de alguns peregrinos. Um atrás do outro, saltam para o cais de desembarque.

 

Penetram no labirinto das ruelas, cujas paredes caiadas reflectem a deslumbrante luz do sol. A sensação de pisar o solo após tantos dias passados no mar é nova para Marco. Divertido, cambaleia por diversas vezes, como dominado por uma vertigem, apoiando-se às paredes de pedra branca da ilha. Aos poucos, as suas passadas tornam-se mais seguras na terra firme. Marco passa por imensas pirâmides de cor de areia e alaranjadas, cujas bancas, por modestas que possam parecer a um olhar pouco treinado, ocultam a riqueza dos proprietários. Marco conhece bem estes métodos de dissimulação, abundantemente utilizados pelo tio Il Vecchio. O assento em que se instala o mercador é imponente, de maneira a assegurar o maior conforto ao seu proprietário durante as longas horas de discussão, embora passe a maior parte do tempo em conversas amenas nas bancas dos colegas ou com os fornecedores. Subitamente, um homem volta-se e embate contra Noor-Zade. A jovem crispa-se. Um longo sabre curvo, cuja lâmina se mostra tão brilhante e areada quanto o cabo está gasto, cintila na anca do desconhecido. Hirto e esguio como um fuso, enverga uma túnica apertada na cintura. Ergue o braço, pronto para atacar, quando se apercebe da presença de Marco. O seu bonito rosto moreno, prolongado por uma barba em ponta de punhal, muda imediatamente de expressão, abrindo-se num sorriso inofensivo que revela uma dentição em bom estado Para a idade. Do cabelo preto soltam-se chamas de fios de prata. A pele crestada por anos passados ao sol parece tensa como um pergaminho nos ossos salientes do rosto. Um olhar que, acima de tudo, hilmina tudo o que se lhe atravessar no caminho. Olhos imensos, desenhados a khôl, negros e penetrantes como os de um felino que parecem ter penetrado nos segredos do mundo. Deixa cair o braço ao longo do sabre. A jovem esconde-se precipitadamente atrás de Marco. O desconhecido, aproveitando o momento de hesitação, avança resolutamente, com um belo sorriso.

 

- O escravo é seu, pelo que vejo? - pergunta ele num veneziano perfeito. - Onde o encontrou, senhor... ?

 

- Marco Polo, cidadão de Veneza - apresenta-se Marco ao estrangeiro.

 

O outro inclina-se numa saudação oriental, testa, boca, coração.

 

- Kunze al-Khaír é o meu nome. Sou da Pérsia. Desta vez, Marco reconhece um ligeiro sotaque.

 

- É para lá que volta?

 

- Inch’Allah... - responde o outro, acenando com a cabeça.

- A caminho de Acre, embarco daqui a pouco num dos navios do comboio. Não respondeu à minha pergunta.

 

- Ele vem comigo de Veneza. É um bom rapaz!

 

- É estranho, parece-se com um escravo que já tive. Marco mostra-se embaraçado.

 

- Como sabe, os Turcomanos são todos parecidos. -

 

- Não, senhor Polo, está enganado, não é um turcomano. Conheço-os bem. Penso que ela é originária de muito mais longe.

 

Kunze al-Khair reconheceu o sexo de Noor-Zade. A jovem mantém obstinadamente os olhos baixos. O jovem veneziano sente o suor perlar-lhe na testa, escorrer-lhe pelas têmporas. Finge nada ter ouvido. O persa solta uma gargalhada.

 

- Afinal, posso estar enganado.

 

Marco ri, por sua vez. si

 

- Talvez nos encontremos a bordo: também sigo para Acre!

 

- Inch’Allah... - limita-se a responder o persa.

 

 

Marco é brutalmente acordado. Uma porta que bate, uma persiana que oscila. Não. É só a porta da cabina que embate contra o alizar, mas tão violentamente que parece sair dos gonzos. A seus pés, Noor-Zade há muito que não dorme, a avaliar pelo rosto cansado, a respiração ofegante, os olhos fixos na ponte do navio. Marco decide subir à ponte. Mal consegue sair do camarote. A nau baloiça como um homem embriagado. O vento assobia entre as velas impotentes. Os dois mastros estalam perigosamente. O pavilhão esvoaça, aterrado. A chuva abate-se sobre a tripulação como setas cerradas. Os reflexos negros da tempestade iluminam a noite. As vagas crescem de todos os lados, retorcendo-se numa dança desenfreada, tão altas que parecem montanhas em movimento. O barco sobe até à crista branca, eleva-se ainda mais, como prestes a levantar voo. Equilibra-se na aresta, hesitante no cimo do abismo. Depois, num estrondo ensurdecedor, deixa-se cair no imenso precipício cavado pelo mar. O choque é tão violento que o navio parece ameaçar afundar-se na espuma.

 

Marco volta a descer precipitadamente, à procura de Noor-Zade.

 

Ela rasteja atrás de Marco até à escotilha e vê-se repentinamente encharcada por uma vaga que vem esmagar-se na ponte. Num gesto instintivo, Noor-Zade lança-se para os braços de Marco, soltando um grito. O jovem, surpreendido, também se refugia no calor daquele enlace. Apodera-se dele uma sensação violenta. O capelão observa aquele par formado por um besteiro e o seu criado com um olhar de suspeição. Marco apercebe-se e afasta suavemente Noor-Zade.

 

- Vem - sussurra ele.

 

Arrasta-a para o castelo da popa, o sítio mais protegido do barco, tropeçando no cordame que se desenrola à velocidade de um raio, puxado pelos marinheiros. Debatem-se contra as pesadas âncoras que deslizam pela ponte como simples peças de xadrez. Desamparado pelo olhar amedrontado de Noor-Zade, Marco arrepende-se de a ter trazido. No estábulo da popa, carneiros, vacas e porcos soltam grunhidos estridentes, aterrados. O odor do pânico apoderou-se do barco. Os marinheiros descem as grandes velas latinas e içam o papaficho.

 

- Virem de bordo! Virem de bordo! - grita o comandante. - Ponham-se de capa!

 

Oito homens metem-se ao leme, enquanto dois grumetes imberbes dão uma volta à verga em torno do mastro para proteger a adriça do vento. Um deles larga um cabo e é empurrado pelas vagas contra o casco do navio. Marco nem lhe viu o rosto. Ouve-o gritar, guando o rapaz se esmaga contra as cavilhas que unem as pranchas ”e madeira. Este uivo repercute-se na cabeça de Marco, até à náusea.

 

O jovem precipitou-se, mas em vão - o homem foi lacerado pelo ferro das âncoras salientes, e imediatamente lavado pelas vagas do sangue que por momentos o maculou. O veneziano abandona Noor-Zade e acorre em auxílio do outro grumete em má situação. Juntos, conseguem resistir à força do vento e prender a adriça.

 

- As velas vão cair! - grita o grumete a fim de cobrir o barulho da tormenta.

 

Marco ergue os olhos para o mastro da proa. A lona estica-se, escorrendo água como uma chaga sangrenta, numa tensão dolorosa, arriscada. Uma vaga tão alta quanto um campanário atinge a tripulação ao desenrolar-se na ponte. Numa fracção de segundos, relâmpagos fulgurantes iluminam o mar em fúria. A noite aclara-se de tal maneira que adquire aspectos fantasmagóricos de alucinação. Um estrondo lancinante arranca um imenso queixume à tripulação. É apenas um trovão, mas tanto basta para que todos abandonem os seus postos e corram, aterrorizados, para o meio da ponte, onde o capelão se entrega a sortilégios desesperantes, enquanto os marinheiros, esquecidos da emergência, rezam com ele, em vez de tentarem algumas manobras capazes de resistir aos ataques da tempestade. O comandante, furioso e ao mesmo tempo desesperado, exorta a tripulação a recomeçar a luta. Para grande surpresa de Marco, Noor-Zade, um dos passageiros mais assustados, junta-se aos marinheiros e começa a rezar na sua língua, desfiando as contas de madeira da pulseira.

 

- Comandante, ordene ao senhor Polo que impeça o escravo de invocar o Diabo! Foi por causa dele que a tempestade se abateu sobre nós!

 

Voltam-se todos para Marco, aprovando os propósitos do capelão. O clérigo, irado, prepara-se para agredir Noor-Zade, que se debate na sua língua, aplicando-lhe pontapés violentos dos quais o outro se esquiva como pode, numa dança grotesca. Os marinheiros unem-se para o ajudar a defender-se. Marco acorre, demasiado tarde. Um marinheiro de serviço apalpa o peito de Noor-Zade, que o repele violentamente; o homem abate-se sobre o veneziano com todo o seu peso e rolam os dois pela ponte encharcada, que parece quebrar-se sob aquele assalto brutal.

 

- É uma mulher! Um diabo de uma mulher! - exclama o marinheiro estendido no chão.

 

O comandante, ocupado na manobra dificultada pelos elementos, intervém ao ouvir o clamor.

 

- Então, senhor Farenna, que grito foi esse?

 

Marco ergue-se em frente de Farenna, que não reconhecera.

 

- Niente, meu comandante, uma simples brincadeira... do seu imediato! - grita Marco.

 

Farenna, humilhado por ver a sua palavra posta em causa, lança-se sobre Noor-Zade.

 

- Per hacco, não, meu comandante, e posso prová-lo!

 

Com uma força tão brutal que anula qualquer resistência de Noor-Zade, Farenna rasga de alto a baixo o seu traje masculino, pondo a descoberto o triângulo impudico que obscurece as coxas cor de bistre da rapariga. Todos, incluindo Marco, recuam como se tivessem visto o Diabo em pessoa. O capelão brande a cruz num gesto trémulo dirigido à jovem, que aperta contra o corpo o pedaço de tecido que a cobre, bem mais assustada e desamparada do que a tripulação.

 

Mantendo o sangue-frio, o comandante supera a desordem e, para acalmar os espíritos, manda prender Marco e Noor-Zade, depois de apreender a balestra do jovem.

 

No fundo do porão, os rangidos do navio ouvem-se como urros. Meio imersos na água, rodeados por uma escuridão quase total, sufocados por um cheiro insuportável, os dois jovens cambaleiam ao ritmo dos violentos balanços do navio, embatendo um contra o outro. As grilhetas não tardam a ferir-lhes os pulsos e os tornozelos. O sal que lhes penetra nas chagas completa a tortura. Transida, Noor-Zade treme de frio, de lábios arroxeados. O seu estômago rebelde rejeita o tratamento infligido e vomita as tripas até a bílis. Marco, mais robusto, não se comporta muito melhor. O mar raivoso embate contra o casco, num eco que se repercute até ao fim do mundo. O jovem impede Noor-Zade de deslizar por aquele chão em que se afogaria rapidamente. Sente vontade de chorar ao Pensar naquela morte absurda tão perto da costa de Veneza, no anonimato mais completo.

 

Mas ainda não chegou o momento de render a alma a Deus. Esfomeados, sequiosos, com o ventre num inferno, jazem, num estado lastimável, quando os vão buscar. São violentamente arrastados para as escadas. Emergindo em pleno dia, são atirados para a ponte e abandonados. Marco ergue-se, lutando contra o esgotamento que o atinge. A superfície brutal da água reflecte o brilho de um espelho. Necessita de alguns instantes para compreender que o mar, por agora, amainou. A imensa extensão cintila como um canteiro de jóias atapetando o horizonte. De onde em onde, o céu azul estria-se de fitas prateadas.

 

Enquanto Marco tarda a recobrar os sentidos, o comandante dirige-se-lhe num tom formal:

 

- Senhor Polo, esta escrava foi-lhe vendida como sendo do sexo masculino? Se assim é, o senhor é muito mau negociante! Mas inocente do crime de ter introduzido uma mulher no meu navio!

 

Alguns marinheiros mostram vontade de rir, mas a maior parte permanece consternada depois da descoberta de Noor-Zade. A jovem cruza as mãos acobreadas sobre o ventre com tanta força que as articulações embranquecem. Convencida de que chegara a sua hora, aguarda, impaciente, a resposta de Marco Polo. O jovem vê que todos os olhares se carregam de ódio, prestes a aliviarem-se de toda a raiva contida às primeiras palavras que ele proferir. Noor-Zade dardeja-o com um olhar feroz em que se misturam a cólera e o medo. Aperta ainda mais os lábios tumefactos à medida que o peito arfa, sacudido, como o de quem escapa a um afogamento.

 

Marco volta-se para o comandante, de queixo erguido. O sal, seco pelo sol, empalidece-lhe as faces castigadas.

 

- é verdade, comandante, o meu escravo é uma mulher. E creio que ninguém, a bordo, terá comentários a fazer - acrescenta Marco com uma ingenuidade que desencadeia sorrisos de conivência com os homens que tanto sentem a falta de carícias desde que partiram.

 

É verdade que a partida lhe parece ganha. Mas esqueceu-se de contar com o capelão, que ergue as mãos ao céu.

 

- É um partidário de Satanás, tem de ser enforcado! E lançado ao mar! É a nossa única possibilidade de salvação!

 

Como para confirmar estas sentenças, um terrível trovão rasga o céu, ensurdecendo-os.

 

Prenderam-no ao cimo da verga. Foi rapidamente acometido de uma náusea que lhe alquebrou a vontade. Noor-Zade é suspensa do outro lado e já não reage. Parece ter desistido. Foi açoitada a fim de lhe expulsar do corpo o espírito maligno. Está toda ela estriada de vermelho. Ainda têm os olhares cravados um no outro, quando Noor-Zade perde os sentidos. A violência da tempestade desencadeou a fúria de Farenna, encarregado do ofício de carrasco. Marco nunca imaginaria que a cena passada no Rialto o pudesse levar tão longe. Os gritos lancinantes de Noor-Zade eram abafados pelos sinistros estalidos do trovão, cujo eco ecoava, correndo, sobre a espuma das agitadas ondas. Nada parecia poder tornar mais leve a mão a Farenna. O jovem ergueu os olhos para a massa de nuvens negras. Um raio abate-se brutalmente sobre o mar. Obnubilado, fecha os olhos. A escuridão das suas pálpebras é riscada pela luz. Aos poucos, perde a consciência...

 

...A águia real voa sobre o mar, que observa do alto da sua arrogante distância. Por puro prazer, desce à superfície da água, adeja rente à espuma branca que a lambe como uma baba húmida, depois volta a levantar voo, num batimento de asas imperceptível. Do navio, podem lançar-lhe flechas, mas a. águia real nada teme e afasta-se, troçando dos homens cujos pés dependem da terra. Subitamente, embora já se encontre bem longe da costa, é atingida por vários projécteis de todos os tamanhos que ecoam no seu crânio, num tom baixo mas constante... Marco Polo... Marco Polo...

 

Num tom baixo mas constante, o veneziano ouve repetir o seu nome.

 

Ergue com dificuldade as pálpebras pesadas e julga reconhecer, na ponte, uma silhueta familiar, cujo cabelo grisalho cintila, escapando-se do turbante. Kunze al-Khaír agita-se e gesticula diante-do comandante e do capelão. Marco distingue algumas palavras soltas:

 

- Marco Polo... não permitirei... assassinato!... autoridade dependente... bonança depois da tempestade...

 

A discussão anima-se a tal ponto que chegam a vias de facto. Kunze empurra violentamente o comandante contra o casco. Marco surpreende-se com a vivacidade daquele homem que parece tão senhor de si. Uma vaga submerge de novo a ponte. Bruscamente, Marco sente que estão a descer a corda da qual se encontra suspenso. Quando toca no chão, abate-se como um fantoche de Carnaval.

 

Kunze em pessoa ajuda-o a levantar-se, enquanto soltam Noor-Zade.

 

Marco mal pode caminhar, todo o seu corpo parece ter-se distendido pelo suplício, fustigado pela tempestade. Incapaz de proferir qualquer palavra, Marco esboça um aceno dirigido a Noor-Zade.

 

- Não se preocupe, ocupar-me-ei pessoalmente dela... - acrescenta Kunze, deleitado.

 

 

No camarote, Marco deita-se no exíguo espaço que lhe está reservado e restaura-se, servindo-se das provisões dos outros passageiros, convicto de que a necessidade prevalece sobre a honestidade.

 

- Como conseguiu, senhor Kunze? - consegue murmurar Marco, depois de devorar cinco ou seis ovos.

 

- À força de persuasão - admite Kunze, muito naturalmente.

 

- Devo-lhe a vida.

 

- Por que não confessou que ignorava a impostura da escrava? Nesse caso, só ela seria condenada.

 

- Por que não era verdade.

 

Kunze mostra-se momentaneamente deslumbrado, observando o jovem. Furtivamente, acodem ao seu espírito recordações longínquas - matar e morrer pela fé. Mas a lei da estrada impôs-se-lhe nos desertos das estepes, nos glaciares das mais elevadas montanhas, lutando contra a fome, o frio e o medo. Nenhum homem é invencível. ”Este também não o será” tranquiliza-se Kunze.

 

Descem por sua vez Noor-Zade, martirizada, que é largada ao lado de Marco. Apesar de muito fraco, o veneziano consegue arrastar-se até ela.

 

- Per bacco, Noor-Zade, por minha culpa, que lhe fizeram eles?

 

- O que merece. Por causa dela, pouco faltou para ser morto. Kunze retirou um saquinho da algibeira da capa, pegou numa pitada de um pó negro e deu-o a respirar à rapariga, que reagiu de imediato.

 

- É pimenta de Alexandria - explica o persa a Marco.

 

O veneziano pergunta-se por que desperdiçará aquele homem a mais preciosa das especiarias para reanimar uma escrava que ainda poucos minutos antes aconselhara Marco a deitar ao mar.

 

Noor-Zade lança a Kunze um olhar aterrado. Ao avistar o veneziano, tranquiliza-se.

 

Numa voz autoritária e numa língua desconhecida, Kunze dá uma ordem a Noor-Zade, que se apressa a obedecer. Volta-se de barriga para baixo. Marco adivinha-lhe os seios contra o cânhamo grosseiro que cobre a tarimba do camarote. Um ligeiro frémito percorre-lhe as costas doridas.

 

Kunze pega numa caixa cinzelada e aquece entre as palmas das mãos um unguento ceroso. Aplica-o em camadas finas sobre os ferimentos da rapariga, que suporta este contacto com a repulsa da água pelo fogo. Fecha os olhos, mordendo os lábios cor de ouro escuro. Na comissura dos olhos brilha-lhe uma gota de suor - ou será uma lágrima? No entanto, o persa emprega, no desempenho da tarefa, a delicadeza de um pai para com uma filha.

 

- O senhor fala a língua dela - surpreende-se o veneziano. Kunze ergue para Marco um olhar inflamado.

 

- Também falo a sua, senhor Polo.

 

Finalmente, Kunze apruma-se. Noor-Zade solta um profundo suspiro de alívio e enrosca o corpo.

 

- Vou deixá-los repousar - disse Kunze, antes de acrescentar:

- Desconfie dela, estas mulheres usam de sortilégios cujos poderes decerto ignora.

 

Marco volta-se para Noor-Zade, tão inofensiva e vulnerável. Para já, a tempestade amainou, já ninguém pensa em os lançar à agua, mas apenas em os desembarcar no primeiro porto, Acre.

 

- Noor-Zade?...

 

A rapariga não responde, mas Marco sabe, pelo estremecimento dos ombros morenos, que ela o ouviu. A cabeleira entrançada em pesadas lianas negras dissimula-lhe o rosto no qual brilham, através do cabelo, o suor e as lágrimas.

 

A MISSÃO

O persa despede-se de Marco, antes de se afastar no meio da multidão. Bastou-lhe bater as pálpebras para desaparecer, como por magia, por detrás das peças de tecido expostas nas ruas.

 

Desembarcado em Acre nessa mesma manhã, depois de ter terminado a travessia recolhido num camarote, sem poder usufruir da paisagem da costa, Marco descobre o reino de Além-Mar com o coração em júbilo. Tudo lhe parece transmitir o esplendor do sol. Longe da palidez de Veneza, Acre oferece-se, transparente, luminosa, transportando um ar carregado de uma poeira seca. Mas não ofusca o vestuário dos habitantes que, não possuindo a elegância dos gibões venezianos, cintila em drapeados de mil tons inspirados na cor da terra. O porto de Acre é banhado pelas ondas de um mar resplandecente. Acolhe navios de menor tonelagem que Tiro, ali tão perto.

 

Desde que desembarcaram, a Primavera parece ter cedido o lugar ao Verão, num só dia. A despeito dos torpores venezianos, Marco não está habituado a esta espécie de sufocação. Carregando o peso da balestra que o comandante lhe restituiu ao abandonar o navio, descalça as luvas e despe o gibão de veludo, que passa para as mãos de Noor-Zade. Incharam-lhe os pés, dentro das botas de couro espesso. O ar é particularmente seco, a ponto de lhe gretar a pele das mãos. Pelo meio da multidão, deslizam como sombras raras silhuetas femininas, cobertas por longos véus pretos que as ocultam da cabeça aos pés, deixando apenas adivinhar os olhos. Nunca caminham sozinhas, são sempre seguidas por um ou vários homens. Transportam produtos alimentícios ou selhas, sob o olhar atento dOS companheiros - ou dos guardas? - de mão crispada no sabre. Estas mulheres talvez só revelem a sua beleza sob a nudez dos véus, para deleite dos maridos. Marco surpreende-se por os homens não procurarem orgulhar-se da beleza das companheiras, ao contrário do que acontece entre os cristãos. Mas há mulheres que não se escondem tanto, permitem fantasias em redor dos seus olhos sublinhados a kbôl, ou dos tornozelos nus que emergem das sandálias. Estas exibem véus de cores garridas, por vezes enfeitados a pérolas ou pedras, mas, tal como as outras, também não andam sozinhas, embora pareçam mais acompanhadas por familiares do que por guardas.

 

Noor-Zade voltou a vestir-se de homem, camisa apertada na cintura, bragas até ao joelho, cabelo apanhado por baixo de um chapéu de aba redonda, olhos baixos. Caminha à frente de Marco, a passos curtos. Em Acre, as praças e as ruas são tão agitadas que mal se lá pode pôr um pé. De soslaio, Marco observa a silhueta que adivinha sob as vestes grosseiras que lhe dissimulam o sexo. Espreita-lhe as ancas estreitas que se bamboleiam sob o tecido ocre. Marco observa à sua volta a multidão colorida que constitui a colónia veneziana. Mercadores e banqueiros, cavaleiros e soldados. Donatella e os seus trajes requintados não teriam com certeza lugar nesta cidade, onde, todavia, ainda vigora a cultura veneziana. O calor, a multidão, as obrigações mercantis prevalecem sobre todas as preocupações de elegância da metrópole. Aqui, os compradores encobrem a sua fortuna sob modestos ouropéis e os vendedores imiscuem-se por toda a cidade, cobertos de areia e carregados de objectos heteróclitos, amostras das suas mercadorias. O odor das peles dos tanoeiros, embora seja familiar ao jovem, nunca lhe pareceu tão nauseabundo. Toda a cidade está suja e cheira mal, transbordando de imundícies e de excrementos de todas as espécies. As ruelas regurgitam de esterco e de montes de restos de comida podre. Marco é obrigado a saltar por cima de uma grande quantidade de dejectos, sempre atento a que não lhe caia nada em cima da cabeça.

 

Avançam até ao bairro veneziano da cidade, situado à beira-mar, para sul. As ruelas são mais largas do que em certos bairros de Veneza. Ou será a brancura das pedras que cria espaço onde não couberam as paredes? Marco caminha com prudência, orgulhoso e ao mesmo tempo altivo. Tranquiliza-o ouvir falar a sua língua, mas gostaria de já se encontrar nessas paragens onde ainda se ignora que Veneza existe.

 

Subitamente, Noor-Zade esboça um gesto no sentido de se afastar, mas, desta vez, Marco é mais rápido e agarra-lhe o pulso com firmeza. A rapariga lança-lhe um olhar colérico.

 

- Lasciate mi! Niccolo Polo vai matar-me, senhor Marco!

 

Marco sente um nó na garganta. Também ele infringiu as ordens do pai. Receia a sua reacção, mas enfrentá-lo-á. Noor-Zade esforça-se por soltar o braço. Marco surpreende-se com a força de um corpo tão frágil. Ergue o colo gracioso, salientando o coração que pulsa dentro dele, sobressaltado. Ela é muito bonita, para uma mulher de pele escura. Sem aquele calor impiedoso, Marco teria cedido àquela súbita tentação por uma mulher cuja condição autoriza que se abuse dela.

 

- Proteger-te-ei - garante-lhe ele.

 

- O senhor! - exclama ela, examinando-o de alto a baixo com um olhar em que se mistura a dúvida e a surpresa.

 

- Levar-te-ei de volta para junto dos teus - promete Marco.

- Tens a minha palavra.

 

Noor-Zade, incrédula, ergue para ele os olhos negros. Esboça um sorriso infantil. Apesar de tudo o que viveu, das provações que sofreu, continua a manter a ingenuidade do seu povo, sem dúvida, ou do seu sexo. Marco, estranhamente, culpabiliza-se por ter ganho uma confiança que não está certo de merecer.

 

- Vem! - diz ele, puxando-a violentamente para a porta que impede a entrada no bairro veneziano.

 

Um vendedor de objectos de pacotilha indica-lhe o palácio do bailo, representante de Veneza em Acre. Marco arrasta Noor-Zade até à praia, magnífica franja de areia que orla o mar. De perto, verifica, contrariado, que, juncada de toda a espécie de detritos e dejectos, não escapa à sujidade que reina no porto. Abrindo caminho através de ânforas quebradas, farrapos repugnantes, restos de comida, avança até à água que transporta algas ou tecidos que já perderam toda a cor. Marco quer comparecer diante do pai num estado apresentável, sem dissimular que este é também um meio de adiar o momento do encontro. Marco diverte-se a imaginar que o pai o estreitará nos braços, contente por voltar a vê-lo, como na Piazzetta em Veneza. Marco agacha-se à beira da água, pousa a balestra e mergulha a mão nas ondas que vêm acariciar-lhe os dedos. Decide livrar-se da areia que acumulou na roupa e no rosto. Ergue a cabeça admirando, à beira-mar, a fortaleza dos Templários, hirta e poderosa. Poucos meses antes, conseguiram mais uma vez rechaçar os ataques de Baybars, sultão do Egipto, que prometeu a si próprio apoderar-se da cidade, enquanto caía o krak dos Cavaleiros Hospitalários. Aqui, é a guerra. Pelas ruelas circulam fluxos de monges soldados, cuja presença apazigua a população essencialmente mercantil de Acre. Os colonos habituaram-se mesmo às rixas públicas entre Cavaleiros da ordem do Templo e do Hospital, como preço a pagar pela sua segurança. Deslumbrado pelo reflexo do sol sobre o mar, Marco deixa flutuar a mão à tona da corrente. A tepidez da água surpreende-o. Apodera-se dele uma vontade irresistível de mergulhar na água. Atrás dele, Noor-Zade mantém-se a uma distância muito respeitável. Marco passa um pouco de água pelo rosto, um lodo acastanhado tinge-lhe as mãos que mergulha de novo na água. Endireita-se - demasiado depressa: diante dos seus olhos esvoaçam borboletas. A fome atenaza-o quando passa pelo palácio do bailo, perto daquele que Niccolo Polo alugara.

 

- Niccolo, sei que te desagrada que eu aborde este tema, mas...

 

- Então por que me falas dele, Matteo? - interrompe Niccolo, debruçado sobre o mapa da viagem.

 

Ofuscado pela audácia do irmão, aplica uma palmada, como Por descuido, na pele de loukoum? de rosa de uma hetera que ainda há pouco acariciara.

 

Matteo suspira: sempre a mesma guerra, da qual nunca ganhara mais do que batalhas. Volta a contar os montículos de moedas  alinhados à sua frente, antes de as guardar cuidadosamente na bolsa de couro.

 

- Bem sabes, porém - prossegue suavemente Matteo -, que temos de pagar dez besantes sarracenos de taxa por cada peça de madeira que trouxemos. Tudo isso simplesmente porque declaraste ao bailo que elas não estavam em trânsito.

 

Outra donzela debica azeitonas numa taça de pórfiro que depois oferece a Niccolo. Este levanta os olhos do mapa.

 

- Meu caro Matteo, não sabes nada de diplomacia. Tenho de explicar muito bem ao bailo a nossa estada em Acre. Eu estou ciente, já que tu o ignoras, de que é preciso gerir os sentimentos de alguns para enternecer os de outros.

 

- Seja como for - resmunga o irmão. - A tua diplomacia vai custar-nos pelo menos dez besantes.

 

- Enganas-te, Matteo, a diplomacia nunca rendeu nada a ninguém.

 

Matteo, ofendido por Niccolo pretender não o ter compreendido, quer corrigi-lo, mas este não lhe dá a palavra:

 

- Para dizer a verdade, estou farto das tuas contas de boticário. Pela minha parte, tenho de ser de vistas largas. E, para tal, preciso de me concentrar no horizonte. Toma, come umas azeitonas. Uma delícia.

 

Não sendo apreciador, Matteo aceita de bom grado a última azeitona que o irmão lhe oferece, enquanto as duas raparigas se levantam para ir buscar mais. Niccolo segue com atenção o andar escandalosamente bamboleante das duas jovens, mas Matteo concentra-se novamente no conteúdo da sua bolsa e, entre dois suspiros, ingere um gole de vinho de má qualidade para diluir o sabor salgado das azeitonas.

 

- Bastaria termos pedido a Michele... Além disso, pagamos uma fortuna pelo aluguer deste palácio em Acre, só para ”manter a nossa posição”. Mas que posição, Niccolo, na verdade!

 

- A posição que nos permitirá ir a Jerusalém cumprir a nossa missão sem demoras.

 

- Bem o sei!

 

- Então! - exclama Niccolo, gesticulando. - De acordo com as informações de Michele, a saúde de Cublai deteriorou-se.

 

Imagina que chegamos a Khanbalik a tempo de o cumprimentarmos no seu leito de morte...

 

- Seríamos decapitados ainda antes de recebermos autorização para nos apresentarmos - conclui Matteo, fatalista.

 

Ouvindo esta predição, Niccolo benze-se.

 

- É ali - não pode deixar de constatar Marco. Em ornamentações, o palácio rivaliza com o do bailo. O jovem troca um olhar com Noor-Zade, que não parece mais tranquila do que ele. Marco enfia o gibão e as luvas, ignorando o suor que lhe encharca a camisa, e decide-se a bater à porta de madeira. Mas o batente abre-se mal ele lhe toca.

 

- Michele! Sinto-me feliz por te voltar a ver!

 

Michele sorri, como se estivesse perfeitamente à espera de encontrar Marco atrás da porta, naquele preciso momento. Está vestido à veneziana, muito elegante, com uma capa leve e curta feita de um tecido de Florença e bragas de pano fino de Milão.

 

- E o que direi eu! Tinha a certeza de que te encontraria em Acre!

 

Michele encara o escravo mongol de Marco com perplexidade, procurando visivelmente de onde lhe é familiar aquele rosto. O jovem veneziano, apercebendo-se da situação, dá um passo em frente para esconder Noor-Zade atrás dele.

 

- Leio impaciência nos teus olhos! Despacha-te! - exclama Michele.

 

Sem dizer mais nada, afasta-se para deixar passar Marco. O jovem veneziano avança para a entrada, seguido por Noor-Zade. -

 

Um servidor, em quem Marco reconhece o grande Shayabami, aproxima-se e inclina-se diante do jovem casal.

 

- Vai anunciar a minha presença ao teu amo - ordena Marco, num tom porventura demasiado alto, para se sentir mais seguro.

 

O sírio faz uma rasgada vénia e sai à procura de Niccolo. Marco sente que o coração pulsa mais aceleradamente. Aproveita para observar o interior da habitação dos Polo. Como de costume, Niccolo instalou-se com todo o conforto. Marco reconhece um Vaso, um tapete, a peça de seda natural exposta no salão de Niccolo.

 

Os Polo gostam de se sentir em casa, mesmo debaixo de um tecto que lhes pertença apenas por algumas semanas ou meses. Em cima de um móvel baixo, de madeira de oliveira esculpida, vê-se um tabuleiro de cobre com os mesmos lavrados de um mucharabi. Um foco de luz deixa pairar num raio de sol uma nuvem de pó em suspensão. O compartimento central é rodeado por quatro quartos de dimensões mais modestas.

 

Surge Niccolo, envergando uma túnica de inspiração oriental, de turbante na cabeça, seguido por duas odaliscas roliças de dentes cariados mas de pele deveras apetitosa. Marco dificilmente teria reconhecido Niccolo se este não trouxesse o seu cartão na mão, que esconde de imediato nas pregas da túnica.

 

- Marco! Per bacco, que fazes aqui?

 

O jovem procura ganhar coragem trocando um olhar com Noor-Zade, mas esta mantém os olhos obstinadamente baixos e Marco vê, através do véu, que lhe tremem os lábios.

 

- Pai, vím juntar-me a si para empreender a grande viagem ao Catai - explica Marco, com um nó na garganta.

 

O sorriso que Niccolo arvorara momentaneamente apaga-se.

 

- Vais regressar imediatamente a Veneza! Ordenei-te que ficasses em casa, a tomar conta dos nossos bens, com o meu irmão!

 

Perante a fúria do amo, as duas raparigas cessam de pairar e retiram-se prudentemente para um canto da sala, aguardando que a tempestade amaine.

 

- Mas, pai, pode precisar de mim!

 

- Ah sim? E para quê, não me dirás? Marco hesita por uns instantes.

 

- Sei manejar uma balestra!

 

Niccolo solta uma gargalhada, afastando os braços num gesto largo.

 

- E qual é o teu alvo, meu querido filho?

 

Marco sente que a fome lhe tortura o ventre. O olhar de Matteo, que acaba de se lhes juntar, imprime-lhe confiança.

 

- Pai, sabe perfeitamente que corre riscos e perigos imensos, metendo-se por estas estradas. Necessitará de protecção...

 

A expressão de Niccolo paralisa-lhe as palavras na garganta, avança para o filho, lentamente mas a passos largos. Noor-Zade recua, mas ele nem sequer a viu, homem ou mulher, livre ou escravo.

 

- Senhor Marco Polo, tem o mesmo nome que eu, mas é tudo o que tem de mim. Acredita seriamente que, após todos estes anos que passei a percorrer todo o mundo conhecido, não soube rodear-me das necessárias precauções?! O senhor é um idiota! - grita Niccolo. - Fora da minha vista, já!

 

As raparigas apertam-se uma contra a outra, tão aterradas se sentem pela raiva do amo, que não entendem.

 

- Meu irmão, tente recordar-se... Não era como ele, quando tinha a mesma idade? - acode Matteo em defesa de Marco, sem grandes esperanças.

 

- Nunca! - inflama-se Niccolo, exagerando um pouco.

 

- Pelo menos, sê caridoso e permite que resida em nossa casa até embarcar para a metrópole! - suplica Matteo.

 

- Pensei que fosses tu o encarregado de contar todos os solai que gastamos!

 

Matteo ergue as mãos ao céu.

 

- Nicco! Mas É a nossa família! Niccolo resmunga entre dentes.

 

Naquele momento, surge Michele à entrada da sala.

 

- Ah! Michele! Nem de propósito. Quero que conduzas imediatamente Marco ao porto e que o embarques no primeiro navio com destino a Veneza!

 

Tão furioso quanto o pai, Marco arrasta Noor-Zade pelo braço.

 

- Pai, nunca serei um peso para si. Como decerto sabe, nunca

o fui, e não será hoje o primeiro dia. Já que, ainda há pouco tempo, eu nem sequer existia aos seus olhos, não perderá nada se eu desaparecer do seu horizonte.

 

E Marco dirige-se para a porta sem se voltar, alimentando a Secreta esperança de que o pai se precipite atrás dele para o deter.

 

Na ruela, Michele procura acalmar o jovem.

- Só assisti ao fim da audiência, mas adivinho que, se não eras esperado, pelo menos foste ouvido...

 

Marco suspira.

 

- Ele não quer nada comigo. Eu sei, porém, que lhe poderia ser útil.

 

- É ele que decide, Marco. A sua vontade é soberana, depois da de Deus - afirma o amigo, passando-lhe os dedos pelas pálpebras e levando-os, depois, aos lábios.

 

- Mas ele não é infalível, Michele.

 

O judeu, visivelmente embaraçado, não está disposto a continuar a discutir o assunto.

 

- Tive uma ideia. Vem comigo, levo-te para casa da minha gente, na cidade velha.

 

- E o navio para Veneza?

 

- Esperará... - responde Michele, com um sorriso cúmplice.

 

Michele conduz Marco e Noor-Zade por sítios obscuros e estreitos, travessas desconhecidas para o jovem, de cuja existência nunca teria desconfiado. Nestes bairros, as silhuetas mudam de fisionomia, vestidas à maneira oriental, trajes amplos de cores claras.

 

Michele referencia-se perfeitamente no labirinto das ruas. Transeuntes saúdam-no por meio de um gesto que Marco não conhece. À entrada da taberna, Noor-Zade detém-se.

 

- O teu criado pode ficar cá fora, se preferires - observa Michele.

 

Mas Noor-Zade mostra-se visivelmente inquieta ante a ideia de aguardar sozinha, naquela ruela estreita.

 

Mal transpõem a porta, o ar torna-se milagrosamente fresco. Deslumbrado pela luz cintilante da rua, Marco avança prudentemente pela brusca penumbra, rapidamente envolvido por perfumes anisados. Aos poucos, os seus olhos habituam-se à escuridão. O contraste com o calor da rua provoca-lhe arrepios. O reduto é minúsculo, pequenas mesas de madeira praticamente encostadas umas às outras, de tal modo que os clientes trocam de copos como por distracção, o que, por vezes, dá origem a ruidosos escarros, seguidos de gargalhadas. O ambiente é caloroso, íntimo. De resto, Marco e Michele são recebidos como irmãos. Quanto a Noor-Zade, os clientes limitam-se a ignorá-la, precisamente porque a viram. Michele dirige algumas palavras de amizade ao dono da tasca, na sua língua, e depois convida Marco a sentar-se. Noor-Zade permanece de pé, junto da porta, de olhos fixos no veneziano. Num rápido olhar, verificou que era a única mulher da assembleia, embora não envergue trajes femininos. O patrão serve biscoitos de canela, com uma peça de pano debaixo do braço.

 

- Jacopo, apresento-te Marco Polo, um cidadão de Veneza que irá longe, não obstante a sua pouca idade - declara Michele na língua de Veneza.

 

Jacopo saúda Marco com um sorriso rasgado que certamente nunca dirige aos seus compatriotas. Michele interroga-o resumidamente na sua língua. Jacopo debruça-se sobre o ouvido de Michele e transmite-lhe palavras breves, antes de lhe passar para as mãos o tecido, que o judeu pousa nos joelhos.

 

- Uma peça de pano

éuma peça de samito - explica Michele.

- É para o teu pai, enfim para Matteo, que emprestou treze besantes a Jacopo.

 

Michele aponta para Noor-Zade.

 

- Chama o teu escravo.

 

Marco acena a Noor-Zade, que se aproxima deles.

 

- Pega neste tecido, vai! - ordena ele.

 

Noor-Zade volta para junto da porta, sob o olhar de Michele.

 

- Onde o compraste? - pergunta ele.

 

Marco engole precipitadamente um pedaço de bolo, que se lhe esfarela na boca, deixando-o quase sufocado.

 

- És muito gentil, Michele - murmura ele, tossindo. O judeu não insiste.

 

- Toma, mais isto... feita por mim, à base de pimenta - encoraja-o Michele, retirando da algibeira uma pequena bolsa.

 

- Estou a ver que continuas a trazer sempre contigo a tua dose de carica com pimenta. Diz-me, Michele - sussurra Marco, aproximando-se do companheiro -, por quanto tempo ficarão ainda em Acre?

 

Michele olha para Marco, surpreendido.

 

- O teu pai? Partirá para Jerusalém logo que obtenha autorização do legado.

 

- Do legado do Papa? Por que razão? - insiste Marco.

 

Nota: Carica - Preparação culinária confeccionada à base de cenouras (CArottes), arroz (Rlz) e amendoins (CAcahuètes) e temperada com especiarias. (N. da T.)

 

- A Missão para o Grão Cão. O óleo do Santo Sepulcro. Com cem monges eruditos, para o convencer a abraçar a tua fé.

 

Marco afasta a cadeira para trás, inspirando profundamente.

 

- Quando partem para Jerusalém? - pergunta ele, impaciente.

 

- Ora! Ainda não partimos! O legado quer confiar-nos uma espécie de embaixada em nome de Eduardo de Inglaterra, herdeiro do trono. ...;

 

- Que ”espécie” de embaixada?

 

- Dde confiança - replica Michele, evasivo.

 

- Mas tu, como estás ao corrente disso?

 

Michele limita-se a responder por meio de um sorriso enigmático.

 

Marco suspira.

 

- Quero partir com o meu pai e...

 

O jovem esboça um gesto de impotência.

 

- Ele imaginava-te a tratar dos seus negócios em Veneza, ao lado do teu tio.

 

Marco, subitamente irritado, ergue-se do banco, despertando a atenção dos clientes.

 

- Já não sou nenhuma criança, para que ele decida por mim! Michele, tenho fé no meu destino, sei que ele não está em Veneza!

 

Michele sorri, o que irrita ainda mais Marco.

 

- Estou a falar muito a sério, Michele!

 

- Eu sei. Mas Niccolo é essencialmente um mercador. Não pode dar-se ao luxo de levar na sua caravana (peço desculpa pela franqueza!) uma boca inútil.

 

- Está certo... Todavia, ele tem com certeza necessidade de um guia. Eu conheço todos os caminhos!

 

Michele não consegue conter o riso.

 

- Perdoa-me, Marco, mas a tua ingenuidade é comovedora! O teu pai dispõe do melhor guia de todo o Oriente até Khanbalik. Sei-o porque, durante muito tempo, viajei com ele. Um mestre caravaneiro como já não se encontram muitos - lamenta ele, num suspiro.

 

- Ouve, Michele, irei a Jerusalém. Trarei os santos óleos e farei parte da caravana. Juro-to pelo nosso San Marco.

 

Michele sente-se impressionado e ao mesmo tempo enternecido pela determinação deste rapaz de dezassete anos.

 

1Subitamente, Jacopo aproxima-se, de olho vivo. Fala de novo em hebreu. Michele levanta-se de imediato, lançando um olhar perscrutante para o fundo da sala. Depois volta a sentar-se, sorrindo para Marco.

 

- Marco, meu irmão, meu amigo, sou obrigado a deixar-te... uma pessoa com quem tenho de me encontrar... Jacopo dar-te-á tudo aquilo de que necessitas. Confia nele como em mim. Vamos!

 

Não querendo levar a curiosidade até à indiscrição, Marco contém-se. Levanta-se por sua vez, esboçando um gesto no sentido de pagar a conta, que Michele interrompe, e arrasta Noor-Zade atrás de Jacopo.

 

Mal o jovem veneziano transpôs o limiar da porta, Michele dirige-se apressadamente para o fundo da taberna e, erguendo a cortina feita de contas, num roçagar suave, passa para a parte de trás da sala. Um soldado, usando cota de malha e talabarte, precipita-se para ele para o revistar. Terminado o exame, faz-lhe sinal para avançar, enquanto ele próprio se põe de sentinela, num recanto escuro do qual vê tudo sem ninguém suspeitar da sua presença.

 

Michele, descendo três degraus, avança para um pequeno compartimento iluminado apenas por uma espécie de postigo. Cavaleiros munidos de uma armadura, arvorando armas do reino de Inglaterra, levam a mão ao punho da espada quando vêem Michele. ”Ainda desconfiam!” surpreende-se Michele, que se considera perfeitamente inofensivo, ao lado destes guerreiros de olhar sanguinário.

 

- Queira aproximar-se - ordena, em francês, uma voz cujo proprietário Michele não identifica.

 

Os soldados afastam-se, destruindo a barreira que formavam. Um homem encontra-se sentado a uma mesa, diante de um prato de amêndoas e uvas cristalizadas, no qual ainda não tocou. Esforça-se por manter um porte altivo, a despeito do calor, ao qual não está visivelmente habituado, ainda que suavizado pelas grossas paredes. Enverga o traje dos cavaleiros, ornado de uma grande cruz e de uma cota de malha, que lhe cobre o torso até à nuca. O suor escorre-lhe pelo pescoço.

 

Michele inclina-se respeitosamente diante daquele que identificou como Eduardo de Inglaterra, herdeiro do trono.

 

- O senhor sabe quem eu sou - diz o príncipe inglês, convidando Michele a sentar-se num banco à sua frente. - Mas eu ignoro com quem estou a falar.

 

A conversa prossegue em francês, única língua que os dois homens dominam em comum. Michele retira da manga uma medalha que pousa na palma da mão aberta. O príncipe apodera-se dela. Talhada em forma de estrela de seis pontas, tem gravada uma cruz e uma inscrição em árabe: ”Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, um único Deus”.

 

O príncipe não pode impedir-se de esboçar um gesto de indignação.

 

- Os Mongóis não têm nenhuma fé.

 

- Mas toleram-nas todas nas suas moedas.

 

- Trata-se de uma moeda cunhada pelo vosso amo, o ilcão da Pérsia - aprova Eduardo.

 

- Alteza, Abaga, o ilcão da Pérsia, não é meu amo - especifica Michele. - Encontro-me ao seu serviço unicamente para cumprir a missão que me foi confiada.

 

O príncipe franze os olhos.

 

- Decididamente, a vós, judeus, nunca vos poderei compreender.

 

- Basta conceder-nos um pouco de tempo e ouvir-nos - responde Michele, humildemente.

 

- Para já, foi o senhor que veio ouvir-me.

 

- É verdade, Alteza.

 

- Decerto não ignora a situação intolerável em que se encontra a Terra Santa. Continua nas mãos dos infiéis. Sua Majestade o falecido Luís IX sucumbiu em Tunes antes de levar a cabo a libertação de Jerusalém. Vim retomar o facho e entrar na cidade com as minhas tropas, até ao túmulo de Cristo, no interior do Santo Sepulcro. Porém, Baybars, esse malvado, tem as garras bem afiadas e as espadas dos meus cavaleiros talvez não sejam capazes de as quebrar. Não carecemos de coragem nem de força, mas estes mamelucos são verdadeiros animais selvagens, chefiados por um demónio hábil e de uma feroz determinação.

 

- Baybars foi escravo, Alteza. Quem quebrou essas cadeias é capaz de derrubar montanhas.

 

O príncipe franze o sobrolho, preocupado.

 

- O apoio do vosso... de Abaga ser-me-ia extremamente precioso. Um ataque da Síria vindo de leste permitir-me-ia lançar os meus soldados do outro lado. Em que condições se encontra o exército do ilcão?

 

Michele enche o peito, altivo.

 

- É um exército mongol, Alteza!

 

- Também era mongol o exército que Baybars derrotou em Ain Djalut, em 1260! - explica o príncipe.

 

- Para quando prevê Vossa Alteza o ataque? - pergunta Michele, sem acusar a alusão do príncipe à primeira derrota dos Mongóis, desde a época gloriosa de Gengiscão.

 

O príncipe, com um ar céptico, engole uma amêndoa. O açúcar cola-se-lhe às mãos.

 

- Antes do fim do ano. Mas diga-me, quando poderá o senhor dar-me a resposta de Abaga? - interroga Eduardo, erguendo os olhos para Michele.

 

- A nossa caravana só partirá dentro de algumas semanas, ou mais - reflectiu Michele em voz alta.

 

- Estou perfeitamente ao corrente. Esse astucioso mercador veneziano tem a audácia de não fazer depender a sua decisão de uma ordem minha.

 

- Infelizmente, e salvo todo o respeito que devo a Vossa Alteza, ele está no seu direito. Não é um súbdito de Sua Majestade.

 

- E também terá o direito de pactuar com os nossos inimigos?

- exclama Eduardo, encolerizado.

 

- Alteza, a vida dele é negociar. É seu inimigo quem não lhe pagar.

 

- É desagradável que o negócio prevaleça sobre a fé.

 

O príncipe morde mais uma amêndoa. Esboça um esgar, agarrando no queixo.

 

- Com algum esforço, poderia alcançar Tabriz em pouco mais de um mês... Quanto à resposta, o ilcão Abaga virá transmiti-la pessoalmente a Vossa Alteza à frente dos seus cavaleiros.

 

- Quanto tempo terei de esperar? - pergunta Eduardo, lmpaciente.

 

- Se o seu exército não entrar na Síria antes do fim do ano de 1271, então é porque não entrará.

 

Eduardo recostou-se no assento, esfregando um no outro os dedos pegajosos.

 

- Se eu os pudesse dispensar... - resmungou o príncipe para consigo mesmo.

 

- Se detesta os Mongóis como detesta os muçulmanos, Alteza, por que recorre ao seu auxílio?

 

- Entre dois males, escolhi o menor. E não esqueço a promessa que eles nos fizeram da entrega de Jerusalém, no caso da nossa aliança sair vitoriosa.

 

Eduardo de Inglaterra pega numa bolsa que tilinta, quando a pousa em cima da mesa.

 

- Aqui estão cinquenta besantes, para a viagem.

 

- É muito, Alteza.

 

- É o preço que me disponho a pagar pela vossa embaixada secreta.

 

Eduardo desvia o olhar, está terminada a entrevista. Michele inclina-se, apoderando-se da bolsa, antes de ultrapassar a cortina feita de pérolas, cantante como chuva de Verão.

 

O TESOURO DE JERUSALÉM

Naquele mês de Junho de 1271, quando Marco parte para Jerusalém, o calor do sol ainda mal se faz sentir. Densas nuvens, de contornos esbatidos, parecem suspensas do céu azul-pálido como grandes bolas de algodão puro, de orlas irregulares. Atravessam-nas com subtileza tons que vão do branco mais transparente até ao cinzento mais precioso. O olhar de Marco abarca a abóbada azulada, lavando-se das águas salobras de Veneza. Deixa-se invadir pelo sentimento de pureza que o céu lhe remete. O caminho que percorre é largo e, por vezes, pavimentado - porventura uma antiga via romana. A descoberta dos restos de um aqueduto, um pouco mais adiante, reforça esta ideia.

 

Após várias horas de marcha, o jovem veneziano é obrigado a constatar que a mula cedida por Jacopo, a pedido de Michele, é demasiado lenta para lhe permitir alcançar Jerusalém, e regressar, antes que o pai obtenha a autorização do legado. Mas as más recordações que conserva da viagem por mar, de Veneza até Acre, dissuadem-no de procurar outros meios, tanto mais que lhe parece bem mais discreto viajar por terra.

 

Marco e Noor-Zade juntaram-se a peregrinos a caminho de Jerusalém, que iniciam a caminhada ao raiar da aurora, a fim de evitarem o calor intenso. Avançam lentamente, em fila. Marco montou Noor-Zade na mula. A rapariga aperta-se contra o corpo do jovem para não escorregar para trás. Marco sente o seu bafo no pescoço, carregado de suspiros pela liberdade. Logo que sente os braços de Noor-Zade relaxarem-se em volta da sua cintura, relança a mula a trote. A rapariga, então, enlaça-o com mais força, os seus seios pequenos esmagam-se contra as costas do jovem e, de pálpebras cerradas, Marco entrega-se, deliciado, à violência do seu desejo insatisfeito.

 

- Meu filho, vejo que a proximidade do escravo lhe é insuportável - diz-lhe uma voz, no seu dialecto.

 

O jovem abre os olhos, ruborizado, perguntando-se quem será aquele ”pai” que o interpela. Um monge franciscano, já idoso mas muito vivo, instalado num carro de bois, protegido por uma cobertura, fixa-o com um olhar perscrutante, enterrado numa corola de rugas. A carroça ultrapassa a mula de Marco.

 

- Faço por me adaptar, frade - balbucia o veneziano.

 

- Faz parte da sua penitência, rapaz ?

 

- Não propriamente, não vou em peregrinação - responde Marco, enquanto o carro de bois se afasta. - Espere!

 

O franciscano volta-se, na expectativa do que se seguirá. Marco inspira profundamente.

 

- Se me conceder a honra de partilhar a sua carroça, talvez possa ceder a mula àquela família de peregrinos que já leva os pés dilacerados pelas pedras do caminho.

 

O monge sorri, divertido.

 

- Venha - limita-se a responder.

 

O jovem veneziano cede a mula à miserável família que, a muito custo, consegue equilibrar em cima da mula a avó e os três filhos, bem agarrados uns aos outros. Marco senta-se ao lado do monge que conduz a carroça, enquanto Noor-Zade se instala atrás, em cima da bagagem do religioso.

 

- Procure aí ao fundo, levo um vinho de Auxerre que lhe recordará a civilização. E um pedaço de pão do convento muito saboroso, pela minha fé!

 

Marco descobre um verdadeiro carregamento de garrafas. Abre uma e oferece-a ao monge.

 

- É de Veneza, não é verdade?

 

O jovem aquiesce, meneando a cabeça.

 

- Apercebi-me imediatamente! - exclama o monge, senhor de si.

 

Marco franze o sobrolho, intrigado.

 

- Essa mania de nunca se vestirem de forma adequada - observa o franciscano, apontando para o veludo de Marco, aureolado por manchas de suor. - Mas, se não é peregrino, então o que o traz a estas paragens?

 

- Há muito tempo, frade, que veio para este reino de Além-Mar?

 

O monge observa-o, malicioso.

 

- Ora aqui está uma excelente maneira de não responder às perguntas! Resido em Acre há quinze anos. Faz-me falta viajar, portanto, vou regularmente a Jerusalém.

 

- Viajou muito, frade? - pergunta Marco, subitamente interessado.

 

- Ah! Bem mais do que possas imaginar - declara o monge com um ar misterioso.

 

Marco esboça um trejeito de cepticismo.

 

- A minha imaginação não tem limites.

 

- Fui até à corte do Grão Cão - prosseguiu o monge, altivo, atento ao efeito produzido.

 

- Cublai? - pergunta Marco, surpreendido.

 

- Não, esse é um impostor. Refiro-me ao irmão, quando ainda era vivo, Deus o tenha em descanso, Mongka.

 

- Por que chama impostor a Cublai?

 

- O yasaq, a lei mongol, é estrita desde que Gengiscão a instaurou. Cublai não devia ter subido ao trono, tomou o poder pela força.

 

- A força não é uma impostura, frade. O monge encara Marco, surpreendido.

 

- Pois bem, rapaz! Desconfia de tais pensamentos. Podem conduzir-te onde não queiras ir.

 

- Porquê? A força é uma forma de poder.

 

- Sim, mas não é um poder necessariamente legítimo. Gengiscão ergueu o Império Mongol a golpes de sabre. Os Tártaros são um povo singular. Matar quando se é o mais forte parece-lhes um direito justo; submetem-se-lhe ou exercem-no com um prazer animal...

 

Interrompe-se, perdido nas suas recordações, antes de acrescentar, como para consigo mesmo:

 

- Quando conheci os meus primeiros Mongóis, julguei penetrar num outro mundo...

 

Marco medita longamente sobre as palavras do franciscano.

 

- No entanto, ouvi dizer que organizavam discussões teológicas...

 

- É verdade. Eu próprio participei num desses encontros. Reunimo-nos por ordem de Mongka: eu, um cristão nestoriano, um sarraceno e um idólatra. Na realidade, tínhamo-nos aliado provisoriamente contra o idólatra.

 

- E a que conclusão chegaram?

 

- Saí vencedor - responde o monge com modéstia.

 

- No entanto, Mongka não se converteu? - observa Marco, quase ingenuamente.

 

O franciscano acaba de beber a garrafa.

 

- O pior, naquelas terras, é o frio e a fome. O frio como podes imaginar, queima como o fogo. Uma vez, nas estepes, fui obrigado a renunciar a caminhar descalço por ter os pés gelados. Deus perdoou-me, pois, de outro modo, não poderia ter prosseguido a minha missão.

 

Em cima de um perigoso rochedo, a carroça estrebucha.

 

- A sua missão, frade?

 

O monge debruça-se sobre Marco, de olhos brilhantes, deliciado por ter encontrado ouvidos dignos de o escutarem.

 

- Eu partira numa embaixada secreta, do nosso bom rei Luís IX. Foi por isso que viajei em condições muito duras e não com o conforto de um diplomata. Em ocasiões como estas, temos de permanecer fiéis a nós próprios, às nossas convicções profundas. Naquelas terras, tudo se congrega para nos obrigar a renunciar. Nem conseguimos acreditar no que vemos. Espera pelo pior, e ainda ficarás aquém da realidade... Não te esqueças. E desconfia dos guias, o meu era uma verdadeira calamidade! Prolongava as nossas etapas porque ganhava uma percentagem sobre todas as nossas despesas e extorquia-me presentes e dinheiro a todo o momento, sob ameaça de me entregar aos bandidos com quem estabelecia conluios! Uma calamidade, sem dúvida!

 

Marco sorriu, ao ouvir o relato do franciscano.

 

- E, quando chegámos à corte de Mongka - prosseguiu o monge -, íamos como agora me vês, descalços e em cabelo. Vendo-nos assim, foi tão grande a surpresa que nos perguntaram se não precisávamos dos pés, pois pensaram que rapidamente ficaríamos sem eles, atendendo àquele frio de gelar!

 

Desta vez, Marco solta uma franca gargalhada.

 

- São vaidosos, sujos, bêbados, mentirosos e gatunos, um povo sem préstimo! Os Mongóis são tão orgulhosos que imaginam que todas as populações se lhes devem submeter! Na verdade, se pudesse, defenderia que nos batêssemos contra eles!

 

O monge fixa-o intensamente. Subitamente, aperta-o nos braços com tanta força que quase sufoca o veneziano. Liberta-o logo de seguida.

 

- Peço perdão, rapaz!... - desculpa-se ele, de lágrimas nos olhos cercados de rugas. - Na verdade, nem sequer sei o seu nome...

 

- Marco Polo... e o seu, frade?

 

- Marco, vê-lo tão jovem, cheio de vida - prossegue o franciscano sem responder -, dá-me vontade de regressar aos meus quinze anos...

 

- Dezassete! - corrige Marco.

 

O monge sorri abertamente, abrindo uma grande boca desdentada.

 

- Aparentas vinte! Decididamente, agradas-me, Marco! Se pudesse recuperar a vista, a força... levar-te-ia comigo.

 

”Ou o contrário...” corrige Marco, para consigo mesmo.

 

- Perdoe-me a franqueza, frade, mas tenho dificuldade em o imaginar viajando como me contou.

 

Impressionado pelo tom determinado do jovem, o monge, que tem vindo a olhar de soslaio para Noor-Zade, interpela-o:

 

- E o teu escravo, imagina-lo, delicado como é, atravessando estepes, desertos, montanhas, até Veneza?

 

- Tem razão - admite Marco.

 

Com o coração num sobressalto, decide confiar-se.

 

- Frade, talvez possa ajudar-me: vou a Jerusalém em busca de umas gotas de óleo do Santo Sepulcro.

 

- E a tua intenção reduz-se simplesmente recolher o óleo?

 

- Sim.

 

- Não conheces esta gente. O que te parece uma gentileza é uma pura extorsão. Só por milagre saíste de Acre sem escolta. É o que fazem a todos os estrangeiros, que têm de pagar caro, obviamente. Para entrares em Jerusalém, terás de pagar uma portagem proporcional à riqueza do teu vestuário. Na cidade, a entrada no Santo Sepulcro está sujeita aos bons ofícios de um mameluco que exigirá muito de ti, em nome de Alá, pela adoração de Cristo. Começa por te vestir de peregrino e adquire um ar de penitente.

 

- Mas, não possuo ouro suficiente para pagar o que me pedirem.

 

O franciscano reflectiu por uns instantes.

 

- Obterás o teu óleo - declarou ele, convicto.

 

- A que distância se encontra Jerusalém de Acre?

 

- Oh! Chegaremos dentro de três a cinco dias.

 

- É muito longe! - exclama Marco.

 

- Se quiseres avançar depressa, precisas de um cavalo. Com estes pobres bois, Deus me perdoe!, é como se fôssemos a pé.

 

Marco olha para ele, incrédulo.

 

- Frade, é inacreditável, conheço-o há tão pouco tempo, e parece ter resposta para tudo. Na verdade, é um anjo.

 

- Não, sou simplesmente um homem que viveu. Imagina, rapaz, que são muitas vezes os desconhecidos que mais nos surpreendem, para o bem e para o mal.

 

A noite cai com uma rapidez surpreendente. Em poucos instantes, o céu cobre-se de um manto estrelado, cintilando de uma extremidade à outra do horizonte. O monge franciscano, compreensivo, sugere a Marco que aproveite a lua cheia. Conhece o caminho suficientemente bem para poderem avançar iluminados apenas pelo astro nocturno. Seguem pelo leito seco de um rio. Os javalis grunhem à volta deles, num tom particularmente selvagem. Para dormir, revezam-se na carroça. As construções fortificadas dos Cruzados sucedem-se ao longo do caminho, como contas de um rosário, muitas vezes cercadas por tendas de beduínos. A despeito da idade, o monge suporta muito bem as oscilações que, a cada buraco e a cada pedra, lhe revolvem o estômago e o obrigam a bater com a cabeça na cobertura da carroça. Sente-se visivelmente encantado com aquilo a que chama esta ”pequena aventura”.

 

Noor-Zade também não se incomoda com as condições da viagem. Marco procura ler-lhe nos olhos a recordação das viagens feitas.

 

O monge acorda com um solavanco da estrada. Apercebendo-Se do enjoo de Marco, esboça um gesto divertido.

 

- Precisas de criar calo, se queres ir longe, Marco Polo - declara ele, depois de ingerir um bom trago de vinho. - O caminho é longo e aterrador. Pensa no dia seguinte, para te consolares. Depois da tempestade vem a bonança.

 

 

Teobaldo Visconti, legado do Papa em terras de Além-Mar, impera do alto do seu trono honorífico com a altivez que lhe é habitual e da qual se serve para compensar a sua juventude. Os irmãos Polo vestiram os seus mais belos brocados de Veneza. Niccolo enfeitou o seu, de cor lilás, com pérolas de jade e ”nácar trazidas das viagens que efectuou. Inclinam-se numa profunda vénia.

 

- Meus filhos, sinto-me muito feliz por os voltar a ver. Dêem-me notícias da vossa cidade.

 

Niccolo aproxima-se do legado com a segurança que lhe é própria e começa a falar, rasgando o ar com as amplas mangas.

 

- Monsenhor, quando cheguei a Veneza, já a minha mulher falecera. Uma grande perda, na verdade!

 

Matteo suspira ao olhar para a expressão do legado, que Niccolo nem sequer vê. Na verdade, prossegue:

 

- Mas encontrei rapidamente outra mulher e fiz-lhe dois filhos, para que ela não se entedie durante a minha ausência, evidentemente. A minha primeira mulher também me deixou um filho. Um verdadeiro diabo, o rapaz! Encarrego-o dos meus negócios em Veneza, e ei-lo que se atreve a viajar! Que ousadia! Para já, mandei-o de volta para junto do meu irmão, que deverá encarreirá-lo no ofício.

 

Niccolo retoma fôlego, o legado aproveita para dizer:

 

- Meu filho, a sua vida familiar interessa-me profundamente. Porém, o que agora gostaria de ouvir são as notícias da vida pública.

 

Frustrado por não poder prosseguir o seu relato, Niccolo dirige um sinal ao irmão.

 

- Monsenhor - começa Matteo numa voz pausada -, o acontecimento mais importante da nossa cidade foi o tratado de paz com Génova, nossa rival... Esta paz é uma bênção para o nosso ofício, pudemos chegar a Acre sem...

 

Niccolo já não ouve o irmão, observa a sala dos embaixadores, onde o legado recebe as visitas. O mercador surpreende-se sempre ao verificar quão grande é a diferença entre esta sala e a alma do deserto. Em pleno Verão, poderia julgar-se em Roma, quando, na verdade, maravilhas orientais deviam enriquecer aquelas ornamentações.

 

- Monsenhor - interrompe Niccolo, na sua voz forte -, fomos incumbidos de desempenhar uma missão junto do Papa.

 

- Já mo tinham dito, por ocasião da última audiência. Não posso fazer nada por vós. Terão de aguardar pela sua eleição - respondeu o legado, com frieza.

 

- Mas não podemos esperar pacientemente, durante anos e anos, que o Papa seja eleito - replica Niccolo, exasperado.

- É por isso que aqui estamos, pedindo autorização para nos dirigirmos a Jerusalém, em busca de algumas gotas do óleo do Santo Sepulcro para o Grão Cão, que já possui uma bela colecção de relíquias.

 

- Meu filho, o seu irmão estava a relatar-me a vossa viagem até Acre... - protesta o legado, ofendido.

 

Niccolo ri-se.

 

- Monsenhor, certo dia, cruzei-me com um caminhante que considerava uma viagem a maior das orgias. Decerto não gostará que os seus santos ouvidos ouçam relatos dessa natureza, não é verdade?

 

Matteo, tal como o legado, irrita-se com a intervenção de Niccolo. Este, reconfortado pelo efeito obtido, retoma a palavra.

 

- Poderemos partir rapidamente nos próximos dias e regressar igualmente depressa. Presentemente, o nosso destino encontra-se nas vossas mãos, Monsenhor.

 

- Meu filho, decerto terá reparado que as nossas ruas se animaram depois da chegada de Sua Alteza o príncipe Eduardo de Inglaterra à colónia.

 

- E verdade, os Ingleses não sabem comportar-se... O legado adora a impertinência de Niccolo.

 

- O príncipe de Inglaterra entende prosseguir a obra de LUÍS IX, incapacitado pela doença. Quanta infelicidade, depois de ganhar tantas batalhas!

 

- Como diz o Sage, nenhum inimigo é demasiado pequeno para vencer o maior dos homens - declara Matteo, suspirando profundamente.

 

Niccolo, que não quer ouvir falar da morte, irrita-se.

 

- Já discutimos este assunto, Monsenhor.

 

- Com certeza, mas o vosso acordo foi dado sob reserva e Sua Alteza possui um temperamento como o vosso, sanguíneo, o que lhe torna penosos os momentos de expectativa. Eduardo de Inglaterra quer subjugar os Infiéis que tomaram Jerusalém, tanto mais que o sultão Baybars entende tomar o nosso partido. Não podemos deixar de o apoiar nesta santa e ambiciosa empresa. O sultão Baybars ameaça Acre uma vez mais e o príncipe pretende detê-lo aliando-se aos vossos amigos mongóis. Pensem no que aconteceria às feitorias venezianas, se caíssemos nas mãos de Baybars!

 

- Ficaríamos bloqueados! - alarma-se Matteo.

 

- Já estaremos longe! - replica Niccolo, confiante, voltando-se para o irmão.

 

- Sua Alteza continua a desejar que negociemos a aliança com os Mongóis contra os muçulmanos... - atreve-se a dizer Matteo.

 

O legado aprova por meio de um gesto.

 

- Gostaríamos de passar por Jerusalém no desempenho de semelhante missão - replica Matteo, que não perdeu o fio condutor da audiência, esboçando uma bela reverência.

 

 

À medida que a carroça do franciscano se aproxima de Jerusalém, o vento levanta-se subitamente, com o habitual cortejo de turbilhões de areia quente. O ar carrega-se instantaneamente de uma poeira tão densa que as montanhas desaparecem no horizonte. Ao fim do dia, o vento muda e começa a cair uma chuva fina. A leste, o céu escuro tinge-se de ocre, enquanto nasce, a oeste, uma grande claridade. À frente deles, uma chama rasante ilumina a cadeia de montanhas. O sol ainda não se pôs, e já a lua se eleva acima de Jerusalém, tão redonda que se distinguem nitidamente as mancha escuras que a salpicam. Impacientes, avançam para uma planície árida, sombreada por figueiras centenárias. Percorrem esta paisagem até atingirem um planalto em que pedras de todas as cores se cobrem de musgo. Subitamente, ao fundo do caminho, Marco avista muralhas em ruínas ladeadas por torres quadradas, por detrás das quais se erguem restos de edifícios. Em redor das muralhas, acampa uma soldadesca mameluca.

 

- A Santa! - exclama o franciscano, exaltado.

 

Marco permanece de olhos fixos em Jerusalém, avaliando a altura das muralhas, impregnando-se das recordações da história e da fé dos homens. Começa por descobrir um templo, depois túmulos dourados pela luz do crepúsculo. Os raios afloram os edifícios dourados com a carícia do divino.

 

Trepam pela encosta do monte das Oliveiras. Um carreiro que sobe ao monte Sião condu-los à porta dos Peregrinos, dando uma volta inteira à cidade.

 

À entrada de Jerusalém, o monge paga a taxa de entrada na cidade santa. São revistados. Confiscam-lhes as armas. Ao vislumbrar o alfange de Bonnetti, um monge esboça um trejeito desdenhoso.

 

- É ineficaz, rapaz! - murmura ele.

 

Marco encolhe os ombros e, com uma grande emoção, transpõe o limiar da porta. Entra em Jerusalém como no santuário da memória dos homens.

 

Mendigos esfarrapados dirigem-se-lhes imediatamente, implorando, de mão estendida, enxotando com a outra os insectos que os devoram.

 

- Não lhes dês nada, todo o dinheiro que tens não chegaria disse o monge.

 

Penetram no bazar, onde reina uma grande miséria. Por detrás da entrada das lojas, vê-se o único quarto em que o vendedor e a família comem e dormem no chão.

 

O franciscano examina Marco dos pés à cabeça. O jovem sua em bica por baixo da indumentária de veludo.

 

- Vê como estás vestido! De facto, acabas de descer da tua laguna! Assim, não irás longe, sentir-te-ás sufocado...

 

- Mas... eu não tenho dinheiro...

 

- Alguma vez tiveste? - suspira o monge.

 

Marco surpreende-se por a cidade não estar fortificada, perguntando-se se todos a julgarão realmente santa, sem ideias de a conquistarem; todavia, uma virgem tem com certeza bem mais encantos para um guerreiro do que uma dama.

 

- A tua observação é judiciosa, Marco. O próprio sultão manjou demolir as muralhas a fim de que, justamente, se Jerusalém fosse tomada, a reconquista se tornasse mais fácil.

 

Visitando a cidade, Marco sente-se dominado por um sentimento de eternidade. Como se as pedras pudessem contar a sua história. A cidade parece escavada na rocha, em múltiplos labirintos minúsculos. Marco pensava que só Veneza era tão apertada. Aqui, porém, a luz atinge mesmo os recantos mais escuros. De momento, as pedras adquiriram corpo e voz na muito santa pessoa do franciscano.

 

Chegaram demasiado tarde para poderem penetrar na igreja do Santo Sepulcro. Para ajudar Marco a manter a paciência, o monge leva-o ao bazar, onde se cruzam com mulheres que envergam uma habá preta que as cobre da cabeça aos pés. Sob as arcadas do suk transbordante de tecidos, tapetes e louças, Marco troca o seu traje veneziano, e o de Noor-Zade, por saios de pele de cabra, claros e leves, mais adaptados ao clima. O jovem pode finalmente respirar com a nova túnica e, contrariado, compra um cafetã bem forrado. O franciscano, certo de que os seus conselhos serão largamente compreendidos logo que se instale o tempo frio, mostrou-se particularmente insistente. Marco lê nos olhos do velho uma real angústia quanto ao seu destino, o que o emociona tanto como se ele fosse seu pai.

 

Comem tâmaras, romãs e uvas. Por medida de economia, passam a noite na carroça, a poucas ruelas de distância do túmulo de Cristo, perto de uma fonte que lhes embala o sono com o seu rumorejar cristalino.

 

De madrugada, Marco é acordado pela voz do muezim, doce e profunda como o calor da aurora. Por fim, o monge cede à impaciência de Marco e leva-o à igreja do Santo Sepulcro, construída no tempo do imperador Constantino, no próprio local em que se encontra o túmulo de Cristo. Enquanto examina o edifício de três cúpulas, o veneziano tem a surpresa de ver o monge conversar com Noor-Zade. Aproxima-se e a rapariga cala-se imediatamente.

 

- Frade, fala mongol ?

 

- Alguma coisa, mas não foi essa a língua que acabas de ouvir... Esta jovem é uma uigure. Estive a tentar descobrir o nome do seu clã. Sinto-me surpreendido, pois os Uigures nunca são reduzidos à escravatura... Habitualmente, vivem em boa harmonia com os Mongóis. Constituem mesmo a elite letrada dos seus conquistadores. Sabes que o mongol se escreve em alfabeto uigure? Ela fala em reencontrar os seus. Acaba de me dizer que lhe prometeste levá-la à sua terra. Bem me parecia que trazias na cabeça alguma ideia louca. Sozinho, nunca lá conseguirás chegar. Por que não lhe explicas que o seu destino, aqui, não é assim tão mau? Pareces ser um bom amo... E, se mantiveres o projecto de partir, estou pronto a ficar com ela. Terá cama e comida, se for trabalhadora. No nosso mosteiro de Acre, os braços nunca são de mais.

 

O veneziano promete reflectir sobre a proposta. Para já, a revelação das origens de Noor-Zade preocupa-o menos do que o santo óleo. O franciscano avança resolutamente pelo adro da igreja, saudando todos aqueles com quem se cruza. Recusa-se a pagar a um monge avarento que negoceia com relíquias, e em particular com o santo óleo. Estão em jogo a fé e a honra religiosa. Marco inclina-se e, acompanhado pelo monge, penetra na igreja. Noor-Zade fica à porta, recusando-se a pisar um local que considera profano.

 

Dominados por um intenso cheiro a incenso, esbarram numa grossa pedra esverdeada, achatada e muito larga, iluminada por luzes.

 

- É a pedra da unção - explica o franciscano. - Foi aqui que ungiram com mirra e aloés o corpo de Nosso Senhor, antes de o introduzirem no sepulcro.

 

- Está muito deteriorada.

 

- Olha! Os peregrinos partem pedaços da pedra que depois levam com eles!

 

O Santo Sepulcro situa-se a trinta metros da pedra de unção, por baixo da maior das cúpulas, constituído por um pequeno compartimento, escavado na rocha a golpes de cinzel.

 

- Vai, eu ocupo-me da sentinela - sussurra o monge, muito divertido. - Onde vais guardar as gotas de óleo?

 

Marco abana a cabeça, deveras embaraçado.

 

Sem uma palavra, o franciscano retira das pregas do burel uma galheta de prata cinzelada. Dá o seu conteúdo a cheirar ao veneziano. Um perfume fresco delicadamente ácido acaricia-lhe as narinas.

 

- Água de jasmim - explica o monge, de olhos brilhantes. Uma recordação muito antiga.

 

Despeja a galheta na pia de água benta, benzendo-se apressadamente.

 

- Vai - ordena ele a Marco. - Vou intervir a teu favor para que possas recolher-te sozinho no túmulo...

 

Enquanto o monge interpela o sacerdote, o jovem veneziano avança sob a cúpula. O espaço iluminado por várias dezenas de luzes eleva-se para o céu. Marco contempla o cimo da cúpula, sustentada por longas vigas de cedro. Colunas coríntias sustentam o edifício. O franciscano discute acaloradamente com o guarda do local que parece aceder ao pedido do visitante. O sacerdote passa por Marco, saudando-o com uma expressão contrita carregada de pesada compaixão e expulsa os peregrinos que oravam no Sepulcro. O jovem agradece, com uma profunda e respeitosa vénia. A porta que conduz ao Sepulcro é tão baixa que quase precisa de se dobrar ao meio para descer os degraus. Aguarda que os últimos peregrinos se retirem. O compartimento é quadrado e encimado por colunas que formam uma rotunda. Alcovas na galeria superior albergam mosaicos representando os doze apóstolos. Por baixo da cúpula, ergue-se um túmulo de mármore branco muito simples.

 

É a gargalhada do franciscano que o distrai da contemplação. Caminhando ao longo das paredes frescas, de olhos fixos no túmulo, avança para a tão cobiçada lamparina, por detrás da pedra tumular. O óleo reluz em mil transparências, ardendo numa chama antiga que os vivos alimentam com respeito e devoção. Estremecendo ante a ideia de perder uma só gota nas lajes de pedra, Marco ergue delicadamente o precioso receptáculo, verte uma ínfima parte para a galheta prateada que ainda exala um suave perfume aveludado. Prepara-se para voltar a colocar a lamparina no seu lugar, quando, avaliando a quantidade que resta, muda de ideias e a ergue de novo. Naquele momento, ouve passos que avançam na sua direcção. Lutando contra o pânico, Marco, desajeitadamente, acrescenta mais umas gotas à sua galheta. Acaba de pousar o objecto quando surge o sacerdote, seguido de perto pelo companheiro de viagem de Marco. O veneziano cai de joelhos e de mãos postas, numa oração fervorosa. O franciscano aproxima-se dele e abençoa-o.

 

- Agora, a confissão. Siga-me - ordena o padre, esboçando um gesto em direcção a um simples espaço isolado por um resguardo meio rasgado.

 

Sem lhe dar tempo para reagir, o franciscano arrasta Marco para trás da cortina, seguido de perto pelo sacerdote habituado a ouvir. O jovem veneziano ajoelha-se diante do monge.

 

- Eu te abençoo, meu filho, cumpriste o teu dever?

 

- Sim, frade - responde Marco, apontando para a galheta.

 

- Meu filho, agradece ao Senhor por te ter guiado a mão. Marco benze-se, antes de se erguer e de se afastar pelo coro,

 

demasiado depressa para um penitente.

 

Lá fora, o monge agarra no veneziano pelo ombro, à maneira dos Orientais, e afasta-o da igreja.

 

- Depressa, frade - suplica o jovem, preocupado com a bonomia do companheiro. - Quero estar de regresso a Acre antes que o meu pai parta para Jerusalém!

 

O franciscano gostaria de mostrar a cidade a Marco. Mas o veneziano, impaciente como o pode ser um jovem da sua idade, não quer esperar nem mais um minuto, arguindo que ainda lhe sobrará muito tempo na vida para voltar a Jerusalém. Os conselhos do monge, baseados na sua experiência, nada conseguem e partem os dois imediatamente para Acre, depois de recuperarem o alfange veneziano.

 

No trajecto do regresso, a viagem processa-se mais depressa, sem tempo para trocarem mais do que umas breves palavras.

 

- Irmão, quero agradecer-lhe, dizer-lhe quanto...

 

- Não digas nada. Sabes que tenho uma memória que todo o convento me inveja? Isto é, que, até exalar o último suspiro, recordarei todos os momentos que passámos juntos... Enquanto tu, um dia, me esquecerás...

 

Chegados a Acre, Marco acompanha o monge até ao mosteiro, onde as despedidas são tão breves quanto o deseja o homem ao serviço de Deus. Pede a Marco que aguarde um momento e regressa com um magnífico sabre curvo escondido nas dobras do burel.

 

O cabo do sabre é de damasco de seda índigo. Marco prepara-se para protestar, mas o monge faz um gesto imperativo.

 

- Trata-se de uma recordação. Deixa-me transmitir-te a minha memória.

 

No momento de o deixar, Marco interpela-o pela última vez:

 

- Afinal, frade, ainda não me disse o seu nome!

 

- É verdade! Habituei-me a não o dizer, porque ninguém o fixa... as pessoas, aqui, são um tanto... - acrescenta ele com um gesto sugestivo: - Frade Guilherme de Rubrouck!

 

Marco regressa ao bairro veneziano no cavalo que o monge lhe deu, montando Noor-Zade na garupa. O movimento das ruelas que conduzem a casa do pai afigura-se-lhe intolerável. De longe, o jovem veneziano adivinha os preparativos para uma partida, comandada por Shayabami, que dá ordens, rápido e preciso.

 

- Senhor Marco, ainda não foi para Veneza?

 

- Veneza não parece querer nada comigo, Shayabami.

 

- Chega um pouco tarde, senhor Marco, estamos de partida para Jerusalém...

 

- Justamente! - exclama Marco, apeando-se do cavalo, que confia a Noor-Zade.

 

Marco precipita-se para casa do pai. Shayabami tenta impedi-lo de avançar, mas o jovem, ágil, ignora a barreira e penetra no pátio. Niccolo conversa animadamente com um mercador grego.

 

- Senhor, em Veneza, cada bola de pimenta custa dezassete besantes!

 

- E aqui custa doze, peço desculpa, senhor Polo, mas não posso oferecer-te mais. Terás à tua disposição os melhores camelos para te levarem até ao Catai.

 

- Bem sabes que não é verdade, malandro! Aos primeiros frios da estepe, as patas dos teus animais gelarão!

 

O mercador inclina-se numa saudação respeitosa.

 

- Tu mandas, senhor Polo. Guardar ou vender a mercadoria... Marco julga chegada a oportunidade de se dar a conhecer.

 

- Senhor Niccolo...

 

- Mais tarde, estou ocupado - declara Niccolo, afastando o intruso por meio de um gesto negligente.

 

O mercador volta-se para Marco e o seu rosto enrugado pela secura do deserto abre-se num sorriso.

 

- Senhor Polo, é teu filho?

 

Nesse momento, Niccolo volta-se para Marco e dirige-lhe um olhar furioso.

 

- Se assim se pode dizer... - limita-se ele a responder.

 

O grego sente a atmosfera bruscamente carregada e prefere esquivar-se, deixando o pai e o filho frente a frente. Niccolo avança para Marco.

 

- Que fazes aqui? Onde está Michele? Não te ordenei que te fizesses ao mar?... Estamos de partida para Jerusalém. As nossas despedidas serão breves.

 

Niccolo encaminha-se a passos largos para o limiar do pátio. Marco dá um salto e impede-o de passar.

 

- Ouça-me, pai! Creio estar em condições de evitar o seu périplo até Jerusalém! - exclama ele, brandindo a preciosa galheta.

 

Niccolo cruza os braços, céptico.

 

- O que é isso, Marco?

 

- O óleo do Santo Sepulcro para o senhor Cublai!

 

- Mais baixo, meu filho, mais baixo: podem ouvir-nos! Por aqui.

 

Niccolo arrasta Marco para trás de um biombo em mucharabi.

 

- E como poderei ter a certeza de que se trata do santo óleo?

 

- Meu pai! - indigna-se Marco. - É para me irritar que me faz essa afronta?

 

- Calma, Marco, a desconfiança é um hábito muito antigo entre os mercadores.

 

- E o senhor serve-se dele mesmo para com o seu filho - observa Marco, sarcástico.

 

Niccolo, surpreendido, examina de alto a baixo este garoto que teve a audácia de desobedecer às suas ordens para lhe poupar um tempo precioso.

 

- Dá-me o óleo - exige Niccolo, na sua voz de buffo basso. Marco hesita. O pai tenta adivinhar até onde ele está disposto a levar a sua recusa a uma exigência que não ousa fazer. As suas pupilas batem-se em duelo. Uma gota de suor, deslizando da testa, obriga o jovem a pestanejar.

 

- Vou pedir a Matteo que te equipe com uma túnica de seda. É preferível a esse tecido grosseiro. Dir-se-ia um burel! É pena que não possamos transportar o calor numa galheta como a que tens na mão, pois, na terra para onde vamos, o nosso maior inimigo será o frio, portanto, prepara-te para o pior.

 

Marco não se atreve a proferir uma palavra.

 

- Vá, dá-me o óleo, vou guardá-lo comigo.

 

De peito inchado, Marco cede o precioso óleo ao pai.

 

- Aqui tem, senhor!

 

Niccolo apodera-se, lesto, da galheta e esconde-a nas pregas da túnica.

 

Bate as palmas, imponente.

 

- Shayabami! Onde te metes tu, animal, quando preciso de ti? O sírio acorre, bamboleando o corpo adiposo. Inclina-se numa profunda vénia.

 

- Sempre que me chamas, eu venho, senhor Polo. Deus te abençoe - diz ele, de mansinho.

 

- Shayabami, já não iremos a Jerusalém. Marco acompanhar-nos-á a Khanbalik. Alojá-lo-emos até partirmos.

 

O GUIA

Matteo, ao cabo de muito discutir, obteve uma nova audiência junto do legado. Não possui o poder de persuasão do irmão, mas maneja uma arma que, por vezes, é igualmente temível: a tenacidade. Os seus interlocutores acabam por ceder, para não voltarem a ouvir falar dele. Este método, não sendo glorioso, tem o precioso mérito de funcionar, e é tudo o que Matteo espera. Niccolo, que conhece este estranho poder do irmão, serve-se dele quando estima dever poupar-se. Em conjunto, conseguem, assim, vencer todos os obstáculos, pois, quando alguém resiste a Matteo, surge Niccolo como salvador, alcançando o que o irmão preparou para glória e orgulho do primogénito.

 

- O tempo urge, Monsenhor - diz Niccolo -, não podemos adiar por mais tempo a nomeação do novo Papa.

 

- Estou a ver que os seus informadores, tal como os meus, se mostram alarmistas quanto ao estado de saúde de Cublai e receiam as piores notícias de um momento para o outro.

 

Niccolo e Matteo trocam um olhar.

 

- Com certeza, Monsenhor, o Grão Cão está a envelhecer e os Mongóis não vivem muito tempo.

 

O legado esboçou um gesto de impotência.

 

- Meu filho, compreendo a vossa inquietação. Deus, como vós, aguarda há já dois anos essa nomeação!

 

Niccolo avança para o legado e curva a alta silhueta diante da frágil estatura de Visconti.

 

- Para podermos partir, precisamos de uma mensagem dirigida ao Grão Cão, explicando-lhe por que nos apresentamos de mãos a abanar... enfim, sem os cem monges que nos exigiu.

 

- Porém - observa o legado -, sem monges, talvez não aceite converter-se...

 

- Monsenhor, não tenho dúvidas de que a sua pluma vale mais do que cem religiosos.

 

- Deixe-se de elogios, senhor Polo - diz Visconti, agastado e ao mesmo tempo divertido.

 

Niccolo tem de se conter, para não se mostrar irritado.

 

- Há seis anos que nos encontrámos com o Grão Cão. Fomos certamente os únicos cristãos a ser recebidos com muitas atenções por esse grande imperador. Julga acertado que percamos esta oportunidade inesperada para a nossa fé?

 

- Sei que a vossa posição junto dos Mongóis constitui um trunfo para toda a Cristandade... O que espero de vós é justamente que queiram ter a paciência de que damos provas.

 

Niccolo olha para Matteo, que lhe responde com um sinal discreto.

 

- Monsenhor, estamos prontos para aceitar a embaixada de Sua Alteza o príncipe Eduardo de Inglaterra...

 

O legado franze os olhos.

 

- Senhor Polo, o príncipe, infelizmente, já enviou um mensageiro.

 

O legado convida o escriba a instalar-se à frente da escrivaninha. Com uma lentidão que irrita Niccolo, o escriba estende um rolo de papel grosso que coloca em cima da mesa, alisado por dois pesos cinzelados, figurando anjos. Depois, retira da escrivaninha uma pena nova e começa a apará-la com as mãos tão enrugadas quanto um pergaminho.

 

- Espere - diz Niccolo, que sente pena do homem.

 

Pega na pena e apara-a como um homem pouco habituado a servir-se dela, sob o olhar horrorizado de Matteo, que, no entanto, não se atreve a interromper esta bela acção. Orgulhoso, Niccolo estende a massacrada pena ao escriba, que lhe pega com um sorriso de confessionário.

 

- Muito agradecido, senhor.

 

O escriba esmera-se a desenhar, mais do que a escrever, a importante mensagem endereçada ao dirigente máximo do mundo conhecido, sob o olhar atento dos dois irmãos e do legado. A pena parece ter prazer em gravar o papel sem se quebrar. O exercício prolonga-se por longos minutos, durante os quais todos se calam. Terminada a missiva, o escriba massaja o pulso, tão grande foi o esforço que fez.

 

- Tome, releia, meu filho - diz o legado, estendendo a mensagem a Niccolo.

 

O mercador pega na mensagem e limita-se a olhar para o sinete. Depois, passa-a para as mãos de Matteo.

 

- É o meu irmão que lê por mim. Deixei de o fazer no dia em que os meus braços se tornaram demasiado curtos - acrescentou ele, estendendo as mãos à sua frente.

 

Matteo lê com todo o cuidado que lhe merece a mensagem da qual depende o acolhimento que lhes será reservado no fim do mundo. Niccolo aproveita para pedir ao legado duas ou três bênçãos para a viagem, o que o legado faz de boa vontade.

 

Laias. Setembro de 1271.

 

Niccolo enxota os mendigos como se fossem moscas. Aqui, ainda mais do que em Acre, a miséria e a sujidade estão presentes a cada passo. As ruelas estreitas regurgitam de uma população variada no meio da qual se ouvem, ou se falam, todas as línguas. Niccolo, conhecido, é frequentemente saudado à sua passagem. Marco, altivo, pavoneia-se ao lado do pai.

 

Niccolo dá ordens, compra, negoceia em árabe, ignorando o filho. Encontrando-se há três meses na colónia, Marco já adquiriu sólidos rudimentos de árabe, se bem que o veneziano seja corrente em Acre. O jovem, respeitador, não ousa perguntar nada ao pai, convicto, com ou sem razão, de que conversas mantidas à parte, diante do cliente, prejudicariam a transacção. O mercador depara com uma taberna mal afamada.

 

- Talvez prefiras esperar-me cá fora.

 

- Entro consigo! - exclama Marco, vexado.

 

Olha através da escura entrada, do interior da qual lhe chegam vagos movimentos bruscos e uma melopeia lancinante, envolvida em estranhos vapores.

 

- Muito bem. Neste lugar, se bem que pouco atraente, encontram-se os melhores guias de toda a região, até Bagdade.

 

Niccolo entra sem hesitar, familiarizado com o local. Marco acompanha-o, tacteando. O jovem permanece à entrada da porta, piscando os olhos na noite fresca da taberna. Quando, por fim, se habitua à escuridão, já o pai desapareceu. A atmosfera húmida e carregada de bebidas alcoólicas mal fabricadas pica os olhos de Marco. Todos os olhares se voltam para o recém-chegado, o intruso. Sustém a respiração perante o espectáculo destas figuras que nenhum navio escolheria para a sua proa. Um homem volta para Marco um rosto desfigurado, abominavelmente queimado, de pele tumefacta, como se a carne tivesse derretido. O jovem veneziano avança, de queixo erguido, coração palpitante e mão trémula no punho da espada. Afogando a taberna em notas lancinantes, um cego toca tamborim, acompanhando a dança de uma rapariga de pés descalços, em cujos tornozelos retinem guizos. A mulher requebra-se como uma liana, sem perder o fôlego. O seu corpo crepita como a chama de uma fogueira de Verão, esquivando as ancas bamboleantes às mãos que a solicitam. Quando finalmente se sente capaz de afastar os olhos da dançarina, o jovem veneziano procura o pai no meio daquelas personagens aterradoras, em vão.

 

- Quanto dinheiro tens, garoto? - pergunta uma voz pastosa a seu lado.

 

Por reflexo, Marco leva a mão à bolsa pendurada à cinta. Antes de ter tempo de reagir, o outro apodera-se do objecto de sua cobiça.

 

- Per bacco, que está o senhor a fazer? - insurge-se Marco’.

 

- Pago-me - responde o outro, sopesando as moedas. - Com isto, tens direito à rapariga durante um quarto de hora. Lá atrás, na ruela.

 

- O quê! Mas eu não quero nada com aquela megera! - protesta Marco, tentando recuperar os seus haveres.

 

- Mas eu bem estou a ver as moedas de ouro que trazes contigo! - responde o outro, afastando-se.

 

Marco, furioso, precipita-se sobre o homem. Ainda o seu punho não atingiu o alvo e já o jovem veneziano é lançado ao chão e sovado. Defende-se como pode. Puxam-lhe pelas botas, pela arma. Visivelmente, era por aquela cena que toda a taberna ansiava.

 

- Alto aí! - exclama uma voz forte, em persa.

 

A multidão em fúria abre clareiras. Marco reencontra finalmente o ar livre. O chefe dos atacantes foi agarrado por um punho de ferro que lhe torce o braço até se ouvir um sinistro estalido. O homem solta um gemido de dor. A sua arma voa através da taberna, indo espetar-se num pilar de madeira. Com gestos precisos e seguros, o salvador de Marco aplica-lhe um murro rápido no plexo, outro no queixo, e o brutamontes abate-se, agora inofensivo, dobrado ao meio, agarrado ao próprio punho.

 

A multidão hostil afasta-se respeitosamente, revelando a presença serena de Kunze al-Khaír. O belo rosto moreno debruça-se sobre Marco. Atrás dele, Niccolo aproxima-se do filho para o ajudar a levantar-se.

 

- Kunze, apresento-te Marco - diz Niccolo. - Kunze al-Khair é o melhor guia de todo o Oriente.

 

O persa inclina-se, com a mão pousada no coração, enquanto lhe paira nos lábios um leve sorriso.

 

O jovem olha para o persa, assaltado por mil interrogações, que prefere calar. Kunze franze os olhos, que se rodeiam de pequenas rugas irónicas.

 

- Sente-se bem, senhor Marco, não tem nada partido? Sufocado, o jovem responde ao persa por meio de um simples aceno de cabeça.

 

- Agradeçamos a Deus, na sua força e majestade!

 

- Venham, vamo-nos embora daqui, já fiz o que tinha a fazer

- ordena Niccolo.

 

Puxa pela manga do filho.

 

Abandonam aquele lugar devasso precisamente quando se reatam as conversas, cobrindo os guizos da dançarina.

 

- Mais uma vez, não sei como lhe agradecer, na verdade, senhor Kunze - murmura Marco discretamente.

 

- Até Khanbalik, surgirá com certeza uma ocasião, senhor Marco! - frisa Kunze, com um sorriso feroz.

 

Ainda não é meio-dia quando Niccolo, Marco e Kunze entram em casa dos Polo, onde reina uma atmosfera de cortiço. A partida está iminente. Niccolo precipita-se à procura de Matteo. No momento em que acabam de transpor a entrada da residência, um mensageiro, abrindo caminho, aproxima-se deles.

 

- Meus senhores, sou portador de uma mensagem de Sua Senhoria Teobaldo di Visconti, legado do Papa, dirigida ao senhor Niccolo Polo.

 

Kunze dirige um olhar furtivo a Marco.

 

- Dá-ma - diz ele, voltando-se para o mensageiro. - Sou todo dele.

 

O outro hesita.

 

- É uma missiva a entregar por mão própria.

 

- Dá-me - ordena Kunze.

 

O tom autoritário vence as últimas resistências do mensageiro. O persa esconde rapidamente o envelope no interior da túnica.

 

- Ah! Kunze, andei à tua procura, pensei que me seguisses! surpreende-se Niccolo. - Marco, o teu tio Matteo espera-te na intendência, vai ajudá-lo!

 

O jovem aproxima-se de Kunze.

 

- E a mensagem do legado, senhor Kunze?

 

- Nada receie, eu próprio lha entregarei quando nos encontrarmos a sós.

 

Tranquilizado, Marco despede-se dos dois homens e parte à procura do tio.

 

Matteo, coberto de ventosas, de rosto pálido, entrega-se-aos cuidados de uma mulher gorda, de olhos de gazela.

 

- Meu tio! Per Bacco, que lhe aconteceu?

 

- Uma febre perniciosa - balbucia Matteo. - Sinto-me terrivelmente fraco, estou a escaldar, transpiro como um porco, que Deus me perdoe!, e não consigo trabalhar.

 

Marco pega na mão do tio, húmida.

 

- Meu tio, não lhe parece que pode estar simplesmente a sofrer de calor? - pergunta o jovem, incapaz de ironizar com tamanha ansiedade.

 

- Não troces de mim, Marco - protesta Matteo, num sussurro. - Passa-me o vinho, veremos se ainda tenho forças para o beber.

 

Marco ajuda-o a beber, limpa-lhe a testa com um pano embebido em água.

 

- Se eu morrer, o teu pai, por preguiça é capaz de se servir de carros de bois, só para não ter de libertar os animais da carga que transportam. Conheço-o... Ainda assim, nem terá de ser ele a desempenhar essa tarefa.

 

- Se não for preciso descarregar todos os dias, ganha-se um tempo precioso, meu tio.

 

- E caminhar a passo de boi, duplicaria o tempo de viagem, como sabes! Teremos de ultrapassar as altas montanhas antes do Inverno! - exclama Matteo, enfático. - Ah, não és seu filho por acaso! Passam o tempo a contrariar-me, a pretender que não sei nada, que não sirvo para nada! Afinal, bem posso morrer que nada mudará.

 

Deixa-se cair para trás, de olhos fechados. Marco suspira.

 

- Tio Matteo, o meu pai enviou-me para junto de si para saber da intendência.

 

Matteo ergue-se com um vigor inesperado.

 

- Vá, fixa o que te vou dizer. Tens boa memória?

 

- Eu até sei escrever, tio Matteo! Matteo esboça um gesto de irritação.

 

- É inútil estragar uma pena só com isto! Carrega as mulas com frutos secos e vinho moscatel. Acrescenta ainda aqueles bolos delicados que o teu pai adora... O nosso guia ocupar-se-á dos víveres. Precisamos de um cavalo de sela para cada um, isto é... - prossegue Matteo, contando pelos dedos. - Eu, Nicco, Kunze al-Khaír, os dois escravos... as escoltas que conseguirmos congregar pelo caminho terão os seus próprios cavalos, o que perfaz...

 

- E eu! - exclama o jovem veneziano, irado.

 

Matteo dissimula um riso embaraçado, por detrás da mão.

 

- Evidentemente, Marco! Portanto, são...

 

- Seis - anuncia o jovem, glacial. - Todavia, esqueceu-se de Michele, tio Matteo.

 

Matteo mostra-se contristado.

 

- Não me esqueci de Michele, Marco. Há dois meses, ele pediu-nos para abandonar Acre... Não creio que regresse. Pergunta a Niccolo se aceita que o acompanhes na compra das montadas.

 

Marco entra na sala em que Niccolo saboreia uma bebida de anis, enquanto a mais roliça das odaliscas o refresca com um leque, entre suspiros.

 

- Meu pai, perdoe-me por o vir importunar... - balbucia Marco, hesitante.

 

Niccolo lança sobre o filho um olhar impenetrável, duro como um dardo.

 

- Pois bem, que desejas? Como vês, estou ocupado!

 

- O seu irmão Matteo está muito doente e... Niccolo solta uma gargalhada.

 

- Há vinte anos que andamos sempre juntos, e creio que nunca o vi de boa saúde. Ainda assim, juro-te que morrerei antes dele!

 

- Enfim, ele pede-me que o acompanhe na escolha dos cavalos.

 

- Ocupa-te das mulas. Eu encarrego-me dos cavalos, com Kunze.

 

Marco morde os lábios, despeitado.

 

- Meu pai, sinto-me perfeitamente habilitado para o acompanhar...

 

- Estás habilitado para o que eu decidir, Marco - corta cerce Niccolo. - Não te esqueças. Agora deixa-me.

 

O jovem prepara-se para se voltar, espumando, mas suspende o gesto.

 

- Só mais uma palavra, meu pai: Kunze al-Khair entregou-lhe a mensagem?

 

- A que mensagem te referes, Marco?

 

- À mensagem do legado do Papa...

 

- E então? Não percebo nada do que estás a dizer.

 

- Um mensageiro trouxe uma missiva para si da parte do legado do Papa, para, si, pai - atrapalha-se Marco. - E Kunze comprometeu-se a entregar-lha.

 

- Mas não o fez - conclui Niccolo, mais embaraçado do que pretende deixar transparecer em frente do filho. - Fá-lo-á decerto mais tarde. E agora desaparece!

 

Mal o filho acaba de sair da sala, Niccolo bate as palmas, ordenando à criada que vá à procura de Kunze. Passado um momento, esta regressa, correndo, seguida de perto pela silhueta longilínea do persa.

 

- Kunze, soube que vieram trazer uma mensagem para mim.

 

- Senhor Niccolo, aqui a tem, vinha justamente entregar-lha

- exclama Kunze, entregando-lhe o pergaminho.

 

Niccolo apodera-se dele e solta um suspiro irritado, depois de o desdobrar. Os seus olhos cansados mal distinguem as letras baralhadas.

 

- Lê-ma, amigo Kunze. O latim deve fazer parte dos dialectos que conheces.

 

O persa inclina-se, obsequioso, e percorre lentamente o documento, decifrando cada caracter em voz baixa, o que exaspera Niccolo, impotente.

 

- O legado anuncia a nomeação do novo Papa e convida-o a estar presente em Acre.

 

- Diz quem é esse novo Papa?

 

- A este respeito, nada de explícito, senhor Niccolo. O rei da Arménia, porém, já fretou uma galera para acelerar a vossa partida.

 

Niccolo suspira, pensando no tempo perdido que terá de consagrar ao regresso a Acre. Mas é o preço a pagar pela missão de Cublai. Terá de se resignar.

 

- Pois bem, partamos para Acre, eu e Matteo. O grosso da caravana ficará aqui.

 

Mal desembarcou da galera, Niccolo apressou o passo em direcção ao palácio de Visconti, ignorando os suspiros de Matteo. É-lhes imediatamente concedida uma audiência. Atravessam a antecâmara deserta, mal olhando para a criadagem, bem mais numerosa, que se precipita para limpar os pedaços de lama que eles largam ao passar. Os mercadores saúdam rapidamente o legado, confortavelmente instalado na sua poltrona ricamente ornamentada.

 

- Monsenhor - começa a dizer Niccolo, antes de ser convidado a falar -, sentimo-nos aliviados por saber que, finalmente, foi eleito um novo Papa. Do senhor, que penetra nos segredos da Igreja, acariciamos a esperança de que consiga obter-nos uma audiência...

 

- Com Gregório X - especifica o legado.

 

- Se partirmos ainda hoje para Roma com uma recomendação escrita pela sua mão...

 

- Terá a audiência ainda mais cedo do que imagina... - declara Visconti, com um meio sorriso. - Todavia...

 

Niccolo aguarda, suspenso dos lábios de Visconti.

 

- Soube que conseguiu obter o óleo do Santo Sepulcro sem a minha autorização...

 

- É verdade, Monsenhor - replica Niccolo, embaraçado. Um... mercenário fez-nos a proposta, não podíamos recusar.

 

Marco, que ficara para trás, quase sufoca.

 

- A peso de ouro, suponho.

 

- Trata-se de algo que não tem preço - observa Matteo.

 

- Não me apresentou o seu novo companheiro - observa o legado, dirigindo um olhar intrigado a Marco.

 

Niccolo estala os dedos, fingindo recordar-se da presença do filho, praticamente imposta por Matteo.

 

- É verdade, Marco acompanhar-nos-á na viagem.

 

O jovem inclina-se mais uma vez diante de Visconti, sentindo-se emocionado com a imponência do legado que, no entanto, não tem dez anos a mais do que ele.

 

- É seu filho, não é? Tão parecido consigo.

 

A observação irrita Niccolo, que não pode deixar de concordar.

 

Visconti volta-se para Marco.

 

- Então, meu filho, sente-se preparado para esta odisseia?

 

- Monsenhor, eu preferiria falar de conquista! - frisa Marco, de coração inflamado pelo orgulho.

 

- Estou a ver. Gostaria de seguir as pisadas de Alexandre Magno, meu rapaz?

 

- E por que não, Monsenhor? Como ele, tenho grandes tarefas a realizar!

 

- Marco! - exclama Niccolo, pretendendo acalmar o filho. Volta-se para o legado, humildemente.

 

- Perdão, Monsenhor, é o entusiasmo da juventude.

 

- Meu filho, depois de o conhecer, não me parece que a juventude tenha alguma coisa a ver com o caso...

 

Depois, de novo compenetrado, ordena:

 

- Devolvam-me a minha precedente carta para o Grão Cão, para que a destrua.

 

- Vai dar-nos uma para o Papa? - inquieta-se Niccolo.

 

- Não - responde Visconti, muito calmo. - Porque sou eu o Papa.

 

Estupefacto, Niccolo cai de joelhos, e de mãos postas.

 

- Ohimé! Monsenhor!

 

Gregório X deixa escapar um sorriso franco. Imitado por Matteo e Marco, Niccolo beija a mão do novo Papa, multiplicando as genuflexões.

 

- Então e os monges, onde estão? - pergunta Niccolo, estendendo o pergaminho a Gregório X.

 

O Papa rasga cuidadosamente a carta em pedacinhos, antes de os lançar para o incensório, pousado a seu lado.

 

- Sim, os nossos cem monges para o Grão Cão! - insiste por sua vez Matteo.

 

- Cem monges, cem! A principal preocupação da Igreja é a luta contra Baybars - declara Gregório X.

 

- Ecco, como sabem, foi o que o senhor Cublai exigiu de nós para pôr à prova a veracidade da vossa... enfim, da nossa santa religião. Cem monges eruditos.

 

- Eruditos, ainda por cima! Perdoem-me, meus filhos, mas teria imensa dificuldade em descobrir dez, em Acre! Seria mais fácil reunir um exército de Hospitalários.

 

- Vai ser preciso mandá-los vir de Roma? - inquieta-se Niccolo, deveras angustiado ante a ideia de ter de aguardar ainda algumas semanas.

 

O Papa esboçou um gesto de impotência.

 

- Roma encontra-se a uma longa distância, meu filho, e não ponho lá os pés desde... a noite dos tempos. Não posso prometer nada.

 

- Cublai só pede para se converter. Imagine-se o baptismo do senhor do maior império do mundo! Toda a população dos seus territórios, do Danúbio até ao rio Amarelo adoraria Cristo! - exclama Niccolo, exaltado.

 

Matteo toma a palavra, contando em voz alta.

 

- Cem monges... Digamos dois guardas para cinco... O que perfaz vinte para a escolta... cento e vinte e seis cavalos, outros tantos animais de carga. Vinho, água, carne, tendas, mantas, tapetes, botas e barretes.

 

Niccolo olha para o irmão, ansioso.

 

- Avalio as despesas em cinquenta mil besantes! - conclui Matteo, triunfante.

 

O Papa franze o sobrolho, preocupado.

 

- Receio bem que seja impossível.

 

- Monsenhor, o tesouro da Igreja...

 

- O tesouro - interrompe Gregório X - não pode permitir-se gastar tanto com uma embaixada ao Império Mongol. Os problemas da Igreja encontram-se hoje na Terra Santa, com Eduardo de Inglaterra e as novas cruzadas, as cortes cristãs e a sua sucessão, as querelas no seio dos nossos reinos, a heresia catara...

 

- Se não nos ocuparmos dos Mongóis, tenhamos a certeza de que eles se interessam por nós!

 

O Papa permanece impassível.

 

- É possível... Porém, já saíram da corte de Cublai há seis anos. Consta que este se encontra muito doente. Se lá chegarem dentro de um ano, completar-se-ão sete anos? Será que ainda se recorda de vós?

 

- Os seus ministros encarregar-se-ão de lhe avivar a memória.

 

- Cem monges... É tarefa impossível.

 

- Falou de dez... - atreve-se Matteo, tímido.

 

- Sim, mas falei por falar... sem pensar, realmente!

 

- Cinco! - começa a regatear Niccolo, veemente.

 

- Espere, espere! Vejamos, poderia confiar-lhes o frade N-icolau de Vicenza e o frade Eduardo de... não, a sua débil constituição não suportaria a viagem. Talvez o frade Guilherme de Tripoli... é sabedor em matéria de religião e é robusto, se bem que pouco ousado.

 

- Quatro? - pergunta Matteo.

 

- Meus senhores, para meu grande desgosto, só me lembro de dois.

 

- Pois sim, aceitemos apenas dois! - exclama Niccolo. - Se cada um deles valer por cinquenta, está a conta feita.

 

Marco avança, audacioso:

 

- Monsenhor, ouvi falar de um monge que se chama Guilherme de Rubrouck e que é deveras entendido em Mongóis.

 

Niccolo volta-se para o filho, surpreendido.

 

- Onde o conheceste, onde?

 

- E o senhor, meu pai? - replica Marco.

 

- Ouvimo-lo pregar na Igreja de Santa Sofia de Constantinopla, antes da nossa primeira viagem ao encontro do Grão Cão

- explica Matteo.

 

O Papa parece reflectir por instantes, antes de murmurar, num sussurro:

 

- É verdade que já ouvi esse nome. Mas é um homem velho, desgastado pelo tempo.

 

Marco recorda com nitidez os olhos cintilantes do monge, que parecia cheio de vida.

 

- Não, não vejo mais ninguém que lhes possa recomendar, meus filhos.

 

- Monsenhor, conceda-nos a vossa protecção, por amor de Deus, pois ser-nos-á de muito préstimo.

 

- Aproximem-se, meus filhos.

 

Os três homens aproximaram-se para receber a bênção do Papa. Marco sente-se reconfortado, pronto para enfrentar os piores desertos e abater as montanhas do mundo inteiro.

 

O MEDO DO ORIENTE

Apoiado no filarete da galera que conduz os aventureiros de Acre até Laias, Marco recorda com emoção Michele, desaparecido há quase três meses. As vagas sucedem-se, incontáveis e múltiplas, emergindo da plenitude do oceano, carregado de segredos escondidos. A embarcação percorre a costa, pejada de navios. Um vento favorável empurra-os para Laias, a boa velocidade.

 

Os frades Guilherme de Tripoli e Nicolau de Vicenza, ansiosos, vêem aproximar-se a costa da pequena Arménia. Na verdade, embora se sintam felizes com a honra de terem sido nomeados embaixadores da Cristandade junto do imperador mongol, receiam acima de tudo não poderem prestar contas ao seu senhor, pois ouviram contar histórias terríveis sobre as estradas tártaras. Como se não bastasse, o capitão arménio da galera informa-os de que o sultão do Egipto, Baybars, que assedia o seu país, aliado e vassalo dos Mongóis desde 1265, se mostra particularmente agressivo. Para aumentar ainda mais a sua angústia, durante toda a viagem, que, no entanto, dura apenas alguns dias, os dois infelizes monges receiam uma tempestade a cada balanço da embarcação.

 

Mal desembarcam em Laias, Marco toma conhecimento, pelos Marinheiros do porto, de que o ilcão da Pérsia, Abaga, acaba de lançar um exército de dez mil cavaleiros mongóis sobre Alep, na Síria, a fim de contrariar o avanço de Baybars. Todos os viajantes se sentem aliviados, em particular os dois monges. Mas Kunze, por brincadeira, não se cansa de lhes contar as mais assustadoras histórias sobre os costumes bárbaros dos Mongóis:

 

- Sabem que os Tártaros não distinguem a carne humana da carne de cão?

 

O frade Nicolau de Vicenza estremece de pavor.

 

- Mas, meu filho, como conseguiu atravessar tantas vezes aquele território e regressar vivo?

 

- Comi à mesa deles - ousa confessar o persa com um olhar demoníaco que produz um grande efeito nos dois monges.

 

Benzendo-se vigorosamente, o frade Nicolau e o frade Guilherme entreolham-se, angustiados.

 

- As cartas credenciais protegem-nos - diz o frade Guilherme de Tripoli, como para se tranquilizar.

 

- Reze, é o seu dever, a fim de que os nossos presentes sirvam também para a vossa salvação. Previno-os de que, se não se sentirem em condições de chegar ao fim da viagem, os abandonarei pelo caminho!

 

- Não seria capaz, meu filho!

 

- E por que não? - insiste Kunze, deveras divertido.

 

No pátio da casa dos Polo, banhada pelos raios do tépido sol do Outono, encontram-se todos reunidos para enfrentar os preparativos da grande expedição. Os monges embaixadores, que não têm nada para preparar, pedem uma audiência aos irmãos Polo. Niccolo começa por os repreender pelos processos utilizados.

 

- Meus irmãos, lembrem-se de que não sou o Papa nem o Grão Cão e de que não precisam de pedir audiência para serem recebidos.

 

- Seja como for, nunca poderão ter a certeza de que serão ouvidos... - acrescenta Matteo, entre dentes.

 

- Como assim? - pergunta Niccolo, que receia ter entendido a observação do irmão.

 

Matteo esboça um gesto vago.

 

- Niente, niente, Nicco...

 

Os monges dão um passo em direcção a Niccolo.

 

- Meu filho, o vosso guia advertiu-nos quanto aos costumes dos Mongóis... - declara o frade Guilherme.

 

Niccolo lança um olhar trocista aos monges.

 

- Irmãos, lembrem-se de que não são mamelucos, para assim temerem um ataque dos Mongóis...

 

Os dois monges trocam de novo um olhar chocado, murmurando, concentrados, uma oração.

 

- Meu filho, bem pode dar-se ao luxo de ironizar, porque tem a certeza de que, seja como for, regressará vivo! - irrita-se o frade Guilherme. - Não é isso que nos preocupa. De resto, se ainda fazem parte deste mundo, é justamente porque se entendem bem com esses povos selvagens!

 

- E por que não com o diabo! - exclama Niccolo, soltando uma gargalhada.

 

Os dois monges benzem-se imediatamente, evocando o Senhor, a Virgem e todos os Santos. As suas lamentações começam a irritar seriamente Niccolo, que se esforça por nada deixar transparecer, empenhado no sucesso da sua missão junto do Grão Cão.

 

- Meus senhores, amanhã é o dia da grande partida. Sei que serão capazes de chegar ao fim da Estrada, mas compenetrem-se de que não tolerarei nenhuma fraqueza, porque a Estrada é impiedosa. Mas poderão partir tranquilos: viajarão na caravana mais bem preparada do mundo conhecido, que percorri pessoalmente de um extremo ao outro. Sinto-me grato por aqueles que me acompanharam na primeira viagem me seguirem de novo.

 

Matteo resmunga em voz baixa.

 

- Como se tivessem outra opção...

 

Niccolo prossegue, enfático, cativando os dois monges com o seu tom dramático:

 

- Pode acontecer que não durmamos durante vários dias. A falta de sono será um dos vossos inimigos. Se caírem da montada, correrão o risco de só pararem no fim de um precipício. Nesse caso, não poderão contar com ninguém. Para escapar ao calor mortal, viajaremos muitas vezes de noite, e lutaremos contra o frio e os animais selvagens, ursos, lobos e outras feras igualmente perigosas e aterradoras, de cuja existência nem sequer suspeitam. Mas, de noite, as estrelas são também as nossas melhores aliadas.

 

Guiam-nos e transmitem-nos esperança... excepto nas noites sem luar. Neste caso, a escuridão é total, trevas tão densas que nem saberão se levam os olhos abertos. Nessas noites, sempre que possível, faremos uma paragem, nas dunas ou nos glaciares. Mas, se tivermos de prosseguir caminho, terão de confiar cegamente em mim. Não se esqueçam: sejam quais forem as circunstâncias, terão de demonstrar uma total confiança em mim.

 

- Amen - conclui Matteo.

 

Aterrados, os religiosos, a despeito das palavras tranquilizadoras de Matteo e da sobranceria de Niccolo, pensam voltar atrás na primeira galera, a pretexto de que a religião cristã pode perfeitamente defender-se sozinha, sem necessidade da ajuda dos dois irmãos. Niccolo, então, exige que lhe apresentem os documentos e os presentes de que são portadores. Pretende mesmo, num gesto de bom humor, aceitar a proposta dos dois monges, afirmando que Matteo, com os conhecimentos que possui de teologia, desempenhará o papel que lhes está destinado diante do Senhor do maior império do mundo conhecido. Humilhados, os dois monges disfarçam o medo e aceitam prosseguir, mas só depois de exigirem novas condições de conforto, que constituem um verdadeiro quebra-cabeças para o equilíbrio das contas de Matteo.

 

Niccolo, cada vez mais irritado, decide ignorá-los.

 

- Kunze, vá verificar o carregamento das carroças. Matteo, diz-me o que se passa com a mercadoria.

 

Marco aproxima-se do pai.

 

- Pai, creio que se esqueceu de me confiar uma tarefa. Niccolo encara o filho, perplexo.

 

- É que... julguei que Michele se ocupasse de ti.

 

- Michele não veio... Talvez lhe tenha acontecido alguma coisa... não lhe parece suspeita, esta longa ausência? - insiste Marco.

 

Niccolo decide-se, enfim, a cravar no filho um olhar perscrutante.

 

- E se assim fosse, julga que lho comunicaria, senhor Marco?

- responde o mercador, desdenhoso.

 

- Não seria uma atitude insensata, um pai confiar no filho. Já tem acontecido.

 

O pai ignora o argumento do filho, esboçando um gesto com as costas da mão.

 

- A ausência de Michele priva-nos de uma preciosa espada. Kunze, ensina a este jovem o manejo das armas. Como viste, ele nem sequer sabe defender-nos.

 

Deixando Marco humilhado, Niccolo afasta-se para junto do irmão.

 

- Sou da mesma opinião, senhor Marco - murmura Kunze discretamente. - Há já quatro meses que Michele partiu... Siga-me.

 

O persa conduz o jovem para o pátio interior, ornamentado de palmeiras. Discretamente, de costas voltadas, retira da camisa um pequeno frasco escuro e ingere um trago. Quando se volta, tem os olhos mais brilhantes do que habitualmente. Desembainha um

longo sabre curvo, produzindo um som agudo.

 

- É uma arma originária da Pérsia. Só tem um gume, mas é muito eficaz em combates corpo a corpo. A minha arma chama-se Zufagar, como a de Maomé.

 

Marco saca da cintura a arma que Guilherme de Rubrouck lhe ofereceu.

 

- Permite que a observe, senhor Marco? - pergunta Kunze, curioso.

 

O veneziano estende-lhe o sabre. O persa afasta-se, ameaçando o jovem com as duas armas. Marco parece sufocado de surpresa. O guia recua, retomando uma posição menos belicosa.

 

- Primeira lição, primeiro erro - diz ele, sorrindo. Marco suspira.

 

Kunze examina o sabre de Rubrouck, revira o cabo para lhe acariciar a lâmina.

 

- Bela arma. Como a obteve, senhor Marco?

 

- Foi uma herança...

 

Franzindo as pálpebras, intrigado, Kunze espera pelo resto da história, que não chega a ouvir. Restitui o sabre a Marco. Aliviado, o veneziano aperta-lhe o cabo com o punho.

 

- Em guarda! - exclama o guia.

 

Pegando no cabo forrado com um belo damasco cor de púrpura, Kunze começa a fazer impressionantes sarilhos, ritmados por impressionantes silvos. Parece tecer um pedaço de tecido invisível capaz de o proteger.

 

- Por vezes, pode ser o bastante para afugentar o inimigo. Terminada a dança, dá um salto ágil em direcção a Marco. Este esquiva-se por meio de fintas bem conduzidas, procura retomar a vantagem, mas falha nos ataques.

 

- Não se esqueça, senhor Marco, de que se trata de uma arma de talho e não de estoque, embora, nesta matéria, eu tenha a minha especialidade - acrescenta o persa, misterioso.

 

As lâminas entrecruzam-se. Marco consegue evitar o ataque do adversário. Kunze recua. As armas chocam uma contra a outra, num atrito acerado. O persa ataca Marco. Este defende-se, esticando o braço. Kunze, ligeiro, torce-se, como se deslizasse em torno da lâmina do adversário. Domina perfeitamente a força do braço e o espaço que os cerca, enquanto o veneziano cambaleia, avalia mal a distância, desequilibra-se, pouco familiarizado com o peso da arma. Retomando vigor e ardor no combate, o jovem debruça-se para a frente, mas o persa, hábil, esquiva-se e, erguendo o braço acima da cabeça, toca com a ponta do sabre no pescoço do veneziano. Em contacto com a lâmina fria, Marco sente um arrepio ao longo da espinha. Nos olhos fundos do guia, cintila um clarão brutal.

 

- Este passe é o segredo do estoque... Os condenados à morte chamam-lhe ”Vento do Anoitecer”...

 

Subitamente, baixa a arma e dirige a Marco um sorriso doce. Os dois homens cumprimentam-se.

 

- Obrigado, senhor Kunze.

 

- Seria embaraçoso, para mim, apresentar ao pai um filho decapitado. Que Deus, todo-poderoso e majestoso!, o abençoe.

 

Kunze indica-lhe que siga à sua frente, Marco avança, de costas para o persa, não sem experimentar uma furtiva sensação de mal-estar.

 

Agachados em volta de uma pequena mesa octogonal, os irmãos Polo conversam alegremente. Matteo examina discretamente o conteúdo das duas bolsas, pega nas tabuinhas e recapitula:

 

- Em primeiro lugar, venderemos o tapete, é o que temos de mais pesado, o amianto e o anis também. Guardei os cristais e a vidraria para a nossa passagem por Soldaia. Depois, compraremos almíscar, canela e âmbar, que trocaremos por vinhos e biscoitos, muito apreciados pelos nómadas tajiques. Poderemos, então, obter o que quisermos, não é isso que me preocupa, mas pergunto a mim próprio se não nos arriscamos a perder no anis, ouvi dizer que o seu preço baixou muito... Os monges têm feito exigências que eu não previra e...

 

Niccolo aplica uma palmada nas costas do irmão.

 

- Eles são coriáceos, mas eu sou capaz de os vencer!

 

- Estou preocupado, Nicco, e tenho pressa de chegar ao canato da Horda de Ouro. Porque, aqui, entre Baybars e Abaga, pergunto-me se...

 

- Eles que continuem a combater entre eles deixando-nos livre a via do Norte! - exclama Niccolo, bem-humorado.

 

Matteo benze-se, fatalista.

 

- Oxalá que tenhas razão, Nicco.

 

15 de Outubro de 1271. À hora de prima, a caravana parte, enfim, de Laias, em direcção ao norte. Niccolo cavalga ao lado de Matteo, a quem provoca gargalhadas. Atrás deles, os dois monges, firmemente agarrados às rédeas. Guilherme de Tripoli leva as mãos tão húmidas que deslizam pelo couro. Limpa-as regularmente à capa de burel. Por último, Marco, dividido entre a vontade de ouvir as divertidas palavras do pai e a náusea que lhe inspira o frade Guilherme de Tripoli, que transpira como um boi, a despeito do ar fresco da madrugada. Precedido por Noor-Zade que monta, altiva, tão bem como um homem, cujos trajes veste, Shayabami encerra o cortejo, imponente em cima do seu cavalo, que parece muito mais enfermiço do que os outros. É ele que chefia a longa coluna dos animais de carga, seis mulas que avançam abanando as orelhas. Transportam três tendas enroladas sobre dois tapetes, mantas e pelicas, dois odres de água por animal, quatro de vinho, utensílios vários e vestuário. Duas mulas carregam os presentes destinados a pagar as portagens cobradas pelos chefes de clã ou pelos salteadores. Os presentes para Cublai foram cuidadosamente misturados com a restante carga, de modo a não suscitarem as atenções. Vestidos à moda veneziana em territórios onde isso ainda tem algum sentido, todos levam pelo menos uma espada, indo Marco igualmente munido da sua balestra. À frente, Kunze al-Khair, armado do seu longo sabre pendurado à cinta, e de um alfange, comanda o comboio, montado num nervoso puro-sangue de pêlo luzidio como o cabelo grisalho do dono. Nos cavalos assentam selas árabes, terrivelmente rígidas. Os estribos, muito curtos, magoam as pernas, por terem de ir muito dobradas, e esfolam os flancos dos animais. Marco vê-se obrigado a manter-se bem direito, em equilíbrio, sob pena de ver o punho da espada espetar-se-lhe no peito, ou, nas costas, o alto rebordo da sela perfurar-lhe os rins. Kunze, porém, não poupara elogios a todos aqueles aprestos, extremamente sólidos para as longas cavalgadas que terão de empreender.

 

Um vento forte e carregado de areia abranda o passo das montadas e dos homens, mas nem Kunze nem os irmãos Polo parecem inquietar-se. Marco, a despeito da poeira que lhe pica os olhos e o nariz, procura fazer boa figura. Noor-Zade, pelo contrário, parece reviver, em contacto com a borrasca. Quanto aos dois monges, queixam-se constantemente das pedras que engolem, dos turbilhões de areia que os entontecem, dos insectos que lhes trepam pelas pernas nuas e os devoram. Marco pergunta-se se o divertimento que lhe proporcionam compensa o desagrado de ter de os suportar durante toda a viagem.

 

Os comboios sucedem-se na pista coberta de neve que sobe em direcção à bruma dos planaltos despidos da Arménia. À cabeça da caravana, Matteo pressiona Niccolo, angustiado, repetindo que se arriscam a ficar bloqueados pelas neves. Ao que o irmão responde, fatalista, que nunca poderão avançar mais depressa do que as montadas permitem. Matteo resmunga, as suas palavras são levadas pelos longos rastos de poeira branca.

 

Subitamente, no cimo da crista, visto na contraluz, um cavaleiro parece esperá-los.

 

Kunze estaca, leva a mão ao sabre, põe-se em guarda. Niccolo junta-se a ele, num ápice.

 

- Que te parece, Kunze?

 

- Senhor Niccolo, se for um ladrão, os seus cúmplices espreitam-nos, com certeza, e teremos de lutar contra eles. Se não for, seguirá o seu caminho, para nos deixar passar.

 

- Avancemos - ordena Niccolo, forçando a montada.

 

A caravana retoma a caminhada. Os monges deixam-se ficar ostensivamente para trás.

 

O cavaleiro mantém-se atento às movimentações. Detém o cavalo, que se empina, relinchando. A sua silhueta, talhada num cedro, oscila ao sabor do vento forte. A barba frisada adquire o tom dourado da poeira que nela se incrusta.

 

- Michele! - exclama Marco.

 

Ouvindo este grito, Michele aproxima-se, no seu magnífico cavalo árabe, de peitoral ainda a espumar, carregado como uma mula, e cuspindo das ventas.

 

Marco aperta o amigo contra o peito.

 

- Michele! Julguei que nunca mais te via!

 

- Mas eu sabia onde vos encontrar. Dá-me de beber e de comer, estou sem forças.

 

O jovem veneziano oferece-lhe uma garrafa de vinho, que Michele esvazia quase até à última gota.

 

- Onde estiveste? - insiste Marco.

 

- ...lá para diante - replica Michele, evasivo.

 

Marco repara nos ferimentos recentes do rosto do amigo. Mas este recusa-se a explicar a sua origem. Enquanto Michele trota em direcção a Niccolo, Marco aproxima-se de Noor-Zade.

 

- Quero que me ensines a falar mongol, é também a tua língua.

 

Intrigada, a rapariga ergue a face de maçãs do rosto salientes na direcção de Marco. Este responde com um bonito sorriso juvenil, que lhe desenha duas covinhas na cara.

 

- Xongor é a cor do seu cavalo, senhor Marco... Significa ”isabel”. Gengis é a cor dos seus olhos.

 

- Como Gengiscão?

 

- Sim, ”o Príncipe do Oceano”.

 

- E Noor-Zade?

 

- Nada, não significa nada.

 

- Porquê? - insiste o jovem, curioso.

 

- Noor-Zade é um nome persa.

 

- Mas tu não és persa?

 

A jovem arvora uma expressão indecifrável e esquiva-se a qualquer conversa. Marco chicoteia o cavalo e galopa até junto do pai, que ajusta contas com Michele.

 

- Felizmente, não sou feito de molde a apegar-me às pessoas! Poderia ter-me preocupado com a tua sorte!

 

- Agradeço-lhe o seu pensamento, senhor Niccolo.

 

- Cala-te, ingrato! Nem sequer devia aceitar-te na minha caravana. Só o faço por possuíres conhecimentos de medicina. Já percebeste que, se tivéssemos esperado por ti, as nossas pobres carcaças teriam sofrido o ataque das tropas de Abaga?!

 

Ao ouvir esta evocação, Michele apruma-se, mas Niccolo, ocupado como está com a sua própria raiva, nem se apercebe. Kunze não se cansa de observar o judeu.

 

- O ilcão da Pérsia foi atacado na Síria, a sul, e nós avançamos para norte - declara Michele, tranquilizador. - Obteremos mais informações quando chegarmos a Kayseri.

 

- E então? Acredito que os cavaleiros mongóis sejam mais velozes do que nós e, se lhes apetecer invadir a Arménia...

 

- Impossível, o rei Hetum é um dos seus mais fiéis aliados.

 

- E vassalo - explicita Kunze.

 

À frente da caravana, desdobram-se vastas planícies, em tons profundos que vão do verde ao azul. De onde em onde, iluminados por uma luz transparente, carneiros salpicam de branco as colinas atapetadas por uma bela vegetação de Inverno.

 

Marco sente o suor escorrer-lhe pelas costas. Os monges, porém, tremem de frio, montados num equilíbrio instável. À medida que sobem, sentem cada vez mais a mordedura do ar gelado. A encosta é varrida por uma suave brisa.

 

No cimo do monte ergue-se uma aldeia, anichada nas rochas talhadas pelo vento. Niccolo é o primeiro a avançar. É imediatamente envolvido por uma nuvem de garotos esfarrapados, de olhos imensos, que querem tocar no cavalo, na sela, nas suas botas. Niccolo avalia a aldeia com um olhar atento. Um homem que parece ser o chefe avança para o mercador. É magro e ressequido pelo frio. A pobreza dos habitantes está patente nas paredes rachadas das casas, algumas das quais ostentam telhados de palha meio desmoronados. No seu olhar, Marco lê os sonhos e as esperanças que aquela gente deposita neles, ricos mercadores de pele clara. O chef saúda-os humildemente. Trocam longos cumprimentos de boas-vindas, como é seu uso. Niccolo faz um sinal discreto a Kunze: esta será uma das suas etapas.

 

Recebidos como príncipes, constituem motivo de verdadeiras querelas entre os aldeões que se disputam para os albergar. O chefe da aldeia cede a sua casa a Niccolo e Matteo. Recebe-os à porta, de cabeça descoberta, envergando um traje de cerimónia já

muito coçado. Por deferência, Marco sente-se obrigado a tirar o chapéu, a despeito do frio que lhe fere as orelhas. O chefe enverga uma túnica leve e parece insensível ao Inverno que se anuncia. Cada um dos seus gestos é pesado e executado apenas quando absolutamente necessário. Desenrolam-se tapetes em honra dos hóspedes. Num tabuleiro de couro, é-lhes servida uma espécie de pão mal cozido. Mas não lhes é possível recusar a oferta, sob pena de melindrarem os anfitriões. Marco demonstra a sua curiosidade sobretudo em relação ao seu fabrico. As mulheres estendem a massa com as largas palmas das mãos, carregando com toda a força até obterem uma camada muito delgada. Depois, lançam-na sobre uma placa de ferro aquecida e deixam-na cozer apenas por alguns momentos. Marco queixa-se de dores de barriga e é imediatamente repreendido por Niccolo por falta de diplomacia, enquanto Michele se rebola no chão de tanto rir. Em grandes malgas é-lhes depois servido um prato de carne, com leite, natas azedas, um ovo e mel, e regalam-se com guloseimas. Michele lambe os dedos até aos cotovelos.

 

- Para que a vossa viagem se processe com doçura - explica o chefe da aldeia, fazendo uma saudação.

 

Os irmãos Polo, uma vez perdida a vergonha, instalam-se como se estivessem em casa. Niccolo estuda o mapa com a mesma constância que o irmão usa na contagem das moedas contidas nas bolsas, meio deitado debaixo de uma manta, mastigando um pedaÇo de pão. Kunze estende um pequeno tapete e ajoelha-se para a oração da noite. Vêm apresentar ao mais velho dos irmãos Polo uma jovem criada que ele fitou insistentemente à entrada da aldeia. Os monges, que ainda pouco antes se haviam queixado de ter sido albergados em casa do dignitário religioso, felicitam-se por não terem de passar a noite debaixo do mesmo tecto que semelhante devasso. Niccolo responde-lhes que poderão dormir em paz, enquanto ele se esforça por festejar até mais não poder. Marco pergunta-se como irão decorrer as coisas até Khanbalik. Divertido Michele tranquiliza-o, dizendo-lhe muito seriamente que tudo poderá continuar assim, durante meses, para bem de todos.

 

Uma família sai de casa para instalar Marco e Michele num leito de palha fresca, enquanto os criados e os escravos dormem no estábulo. A tão grande distância do luxo de Veneza, Marco refastela-se na rudeza daquele alojamento. Mas, perseguido pelas terríveis cólicas, não consegue conciliar o sono. Secretamente, preferiria o doce calor do corpo de Noor-Zade sob um céu estrelado, ao fedor dos animais e ao ressonar de Michele. Na escuridão da noite propagam-se os gritos de uma ave nocturna. Está prestes a mergulhar no sono quando ouve um barulho suspeito. Apoia-se nos cotovelos, apura o ouvido. Pergunta a si próprio onde se terá instalado Kunze. Intrigado, acaba por se levantar, pega no sabre, calça as botas e sai à sua procura, em vão. Por fim, volta para a cama, despeitado, no momento em que os pássaros começam a cantar.

 

Passadas poucas horas, Marco é brutalmente acordado por Kunze. O persa, já de partida, lança sobre o jovem um olhar calmo e penetrante. Os animais estão carregados, aparelhados, finalmente soltos.

 

Longas horas de cavalgada a passo de boi conduzem-nos à entrada de uma aldeia, abandonada pelos seus ocupantes. À beira de um poço, um homem aterrorizado esconde-se ao vê-los aproximar-se e só se dispõe a sair do esconderijo quando Niccolo lhe mostra a tabuinha de ouro do Grão Cão.

 

- Perdão, perdão, Deus o abençoe, meu senhor! - exclama o homem, caindo de joelhos até bater com a testa no chão. - Suplico-lhe que me deixe partir!

 

- Consinto - responde Niccolo sem desmontar do cavalo.

- Mas, primeiro, diz-me onde estão os habitantes da tua aldeia.

 

Kunze, montado no seu puro-sangue, avançou por detrás do aldeão, desembainhando o sabre.

 

- Eu vim apenas buscar água! O sultão Baybars avança sobre nós. Consta que os Sarracenos já aqui se encontrarão amanhã!

 

O pobre infeliz treme como varas verdes” só de pensar no senhor do Egipto.

 

- Toda a aldeia se refugiou na montanha, levando os animais. Acautele-se, senhor, os soldados são tão cruéis para aqueles que encontram que nem sequer poupam os embaixadores e os mensageiros mongóis!

 

Com um gesto, Niccolo deixa-o partir. O homem foge, deixando para trás o odre pelo qual arriscara a vida. Kunze diz a Shayabami que o leve. Impenetrável, Niccolo ordena à caravana que prossiga o seu caminho. Os monges trocam olhares cada vez mais preocupados.

 

- Depois de termos escapado aos mongóis de Abaga, corremos o grande perigo de ser degolados pelo sultão Baybars! - exagera o frade Nicolau, rilhando os dentes.

 

Carros de bois em grande número e camponeses carregados de trouxas abrandam o andamento do comboio, o que exaspera Niccolo e desespera Matteo. Fugindo ao ataque de Baybars, famílias inteiras partem para as colmas. Os burros, carregados a tal ponto que os alforges rasam a terra, parecem transportar víveres para um mercado. Mais atrás, mulheres veladas arrastam os filhos ou levam-nos ao colo. Todavia, mesmo a este ritmo lento, Marco sente dores por todo o corpo. As coxas em carne viva desde os primeiros dias, esfoladas pelo atrito da sela, as costas mortificadas pelos solavancos da estrada em mau estado. Mas, resistindo à dor, apaziguado todas as noites pelos unguentos de Michele, vai-se tornando mais aguerrido, de pele curtida como couro. Noor-Zade, por seu lado, regozija-se a cada instante que passa.

 

- E tu, não receias cair nas mãos de Baybars?

 

- E depois? - responde descaradamente a rapariga. - Não pode ser pior do que o destino que os Mongóis reservam aos seus cativos.

 

A suavidade do ar deixa adivinhar uma noite clemente. À hora das vésperas, Niccolo decide dormir ao ar livre, convicto de que os animais necessitam de repouso. Só gosta da cidade, mas detesta a promiscuidade dos caravançarás. Escolhe um recanto numa colina, à sombra de cedros ainda de pequeno porte e odoríferos. Uma raposa foge, vendo-os aproximar-se. O sol poente recorta as rochas altas e estreitas num céu avermelhado. Marco, Shayabami, Michele e os outros descarregam os animais. Kunze acende uma fogueira na qual Noor-Zade assa pedaços de carneiro. Mais adiante, os monges mordiscam os lábios, sussurrando entre dentes orações inverosímeis.

 

A ROTA DA ARMÉNIA

Veneza ainda dorme, envolta nos primeiros raios da aurora. O silêncio apaziguador é bruscamente rasgado por gritos de hordas bárbaras e sanguinárias que se abatem sobre a cidade sonolenta. Penetrando pelas ruelas nos cavalos bem protegidos para o assalto, mergulhando nos canais que não os assustam, decapitam quem se atravessar no seu caminho, revolvendo os sabres no ar. É inútil qualquer tentativa de resistência. Em poucos instantes, a água tinge-se de vermelho, os cais enchem-se de cadáveres ainda tépidos. Crianças de pele morena devoram em pequenas dentadas o que resta de um patrício sanguinolento. Escarpins de seda torcem-se na terra batida, manchada de pedaços de carne. Donatella foge, de cabelo ao vento, aterrorizada. Envergando um lindo vestido de noiva, da mais alva seda, assemelha-se a um pássaro ferido, tentando um derradeiro voo. Demasiado tarde! Eles apanham-na, retalham-lhe os véus a golpes de espada, ignorando os seus gritos de medo. O sangue brota dos seios despidos, inundando-a de um calor mórbido. Donatella debate-se, desesperada. O chefe avança para ela, solidamente presa pelos soldados. O homem ajoelha-se entre as coxas abertas, debruça-se sobre ela. Subitamente, num derradeiro esforço, Donatella arranca a máscara que protege o rosto de olhos cruéis. É Niccolo Polo!

- Não!

 

Marco acorda sobressaltado, com o coração aos pulos, banhado em suor. Soergue-se no leito. Na Alta Arménia, tirita de frio. Os seus olhos procuram o pai. Mal tem tempo de ver os dois monges, que saltam para um cavalo e fogem a toda a brida. Marco acaba de se levantar.

 

- Ei! Esperem aí! Onde vão?

 

Os companheiros começam a agitar-se, por sua vez. Marco precipita-se para o pai, que abana com alguma violência. Mas Niccolo está longe de se alarmar.

 

- Per bacco! Para onde irão aqueles idiotas? - surpreende-se ele.

 

Kunze sai da noite escura, a sua silhueta recorta-se na luz mortiça de um raio de luar.

 

- Ontem, antes de se deitarem, falaram-me de regressar na galera dos Templários. Mas não acreditei que estivessem realmente dispostos a fazê-lo - explica o persa, esboçando o seu fino sorriso enigmático.

 

- Que tolos! - insiste em exclamar Niccolo. - Esta era com certeza a única oportunidade que tinham de transpor as paredes do mosteiro.

 

Michele observa, sentado de pernas cruzadas. Matteo, incapaz de conciliar o sono, levanta-se por sua vez, passando a mão pelo cabelo ralo, meio desgrenhado.

 

- O caso é deveras desagradável, meu irmão, já não dispomos de embaixadores cristãos para levar ao Grão Cão.

 

- Vejam - comenta Kunze, apontando para a sacola dos monges. - Deixaram toda a bagagem que o Papa lhes confiou para o senhor Cublai, perderíamos tempo se voltássemos atrás. Vou preparar a partida para amanhã de manhã.

 

Com o coração palpitante, sem ousar encarar Kunze, Marco aproxima-se de Niccolo.

 

- Meu pai, se partirmos imediatamente, poderemos alcançá-los antes de embarcarem na galera. Não nos levam mais do que uma hora de avanço.

 

Niccolo olha para o filho, hesitando. Reflecte por longos momentos. Kunze intervém de novo.

 

- Senhor Niccolo, não se esqueça de que tem o santo óleo, o essencial para o imperador.

 

- Desde que partimos, os monges eram uma espinha cravada na nossa caravana. O medo que demonstravam constantemente punha-nos em perigo.

 

- Temos de voltar - insiste Marco. - Pensem na missão do Grão Cão.

 

- Justamente, senhor Niccolo. Já se imaginou a apresentar estes dois religiosos ao maior imperador do mundo conhecido?

 

Niccolo continua mergulhado nos seus pensamentos. Marco sente-se penetrado pelo olhar do guia, mas concentra toda a sua atenção no pai, que se volta lentamente para o irmão.

 

- Convenhamos que Kunze tem razão.

 

- És tu o chefe, Nicco.

 

Niccolo volta a deitar-se e tapa-se com a manta.

 

- Esses monges só serviram para nos atrasar. Eu, para já, volto a deitar-me. Terei de me preparar para a longa marcha de amanhã, rumo a Kayseri. Kunze, certifica-te de que estaremos prontos para partir amanhã de manhã cedo. Não quero deixar passar o nascer do sol.

 

Mais tranquilo, Matteo pega no saco dos dominicanos e esconde-o debaixo da manta que lhe serve de travesseiro. Deita-se com a determinação de quem sabe que o sono não comparecerá ao encontro, mas está decidido a contrariá-lo. Marco procura em vão o olhar de Kunze. Este, discretamente, bebe um gole do frasco escuro que traz preso ao peito.

 

O jovem volta a deitar-se, mas tarda a adormecer, perturbado pelas idas e vindas de Kunze, pelos segredos trocados com Shayabami, pelos animais que estão a ser carregados.

 

Ainda é de noite quando Marco é acordado a pontapés. Ergue-se num ápice, de punho erguido... mas encontra-se face a Kunze e ao seu belo sorriso enternecedor. O jovem veneziano, bruscamente desamparado, sente a fugaz impressão de enfrentar um inimigo desconhecido.

 

- Deus o proteja, senhor Marco! - inclina-se Kunze, ajustando o turbante.

 

Respondem-lhe as gargalhadas de Niccolo, como num eco.

 

- Não te agastes, Marco! Fui eu que o convidei a acordar-te, dormias a sono solto, como uma criança. Despacha-te, estamos de Partida.

 

Um pouco afastado, Michele termina a sua oração, numa voz cantante, como o murmúrio de um regato vindo da montanha. Devorando um pedaço de pão embebido num prato de carneiro acompanhado por um trago de vinho, copiosa colação matinal que lhe sustentará o ventre até à refeição da noite, Marco verifica, sob o comando de Kunze, que a carga das carroças vai bem segura.

 

Piscando os olhos contra os raios brilhantes do sol nascente, o jovem veneziano tem dificuldade em manter os olhos abertos e dá graças por o cavalo seguir docilmente os outros.

 

Dia após dia, Marco adapta-se ao ritmo agora imposto por Niccolo. Evita as aldeias e os caravançarás, certo de que seriam atacados por Baybars antes de qualquer outro alvo. A despeito do frio do Inverno, passam as noites na tenda, envoltos em mantas. Acordados desde a aurora, Shayabami, Marco e Michele carregam os animais, enquanto Noor-Zade prepara a refeição da manhã, composta pelo tal prato de carneiro ou por esturjão seco com arroz e um pedaço de pão. Niccolo estuda o mapa sob o olhar atento de Kunze. Ao abrigo dos olhares, Matteo volta a contar a sua parca fortuna, retirando da bolsa cosida ao forro da capa, as poucas moedas necessárias durante o dia. Por fim, enrolam as tendas, que prendem às mulas, e fazem-se à estrada, quando a última estrela acaba de se extinguir acima da lua, que ainda rasa o horizonte. Em seguida, as nuvens alinhadas no céu começam a brilhar como diamantes, inflamando-se do esplendor do sol nascente. Majestosa, a aurora começa a iluminar, em longos rastos de poeira, a linha azulada das montanhas. Presentemente, a caravana avança em direcção ao Levante. Nos dias de muito sol, Niccolo tapa por completo os olhos com um véu transparente.

 

Torna-se cada vez mais sensível o medo das tropas de Baybars. Ao longo do caminho, os camponeses refugiam-se nas montanhas, as aldeias ficam desertas. Os Arménios receiam que Baybars lhes faça pagar caro a aliança do rei Hetum com os Mongóis.

 

- Meu pai, que será de nós se formos atacados pelas tropas de Baybars?

 

- Seremos massacrados ou reduzidos à escravatura - responde friamente Niccolo. - Somos essencialmente mercadores, mesmo a calhar para sermos roubados.

 

- Mas a tabuinha de ensinamentos do Grão Cão protege-nos! Niccolo esboça um sorriso que deixa o jovem perplexo.

 

- Marco, a tabuinha de ensinamentos do Grão Cão Cublai possui algum valor nas suas terras - especifica Matteo -, mas, para Baybars, constitui acima de tudo uma excelente razão para nos executar ou...

 

Matteo deixa pairar um silêncio carregado de ameaças inconfessáveis.

 

Kunze, montado no seu puro-sangue, avança para Polo, abrindo passagem entre as montadas com a ajuda do chicote.

 

- Senhor Niccolo, talvez tenhamos interesse em nos livrar da tabuinha de ouro. Poderíamos então ter a sorte de ser poupados...

 

Sem se dignar responder, Niccolo franze o sobrolho, sonhador.

 

A caravana trepa pela montanha branca que se ergue à frente dela. O carreiro estreita-se, atravessando as pastagens cobertas de neve. Os animais fatigam-se, mas Marco sente-se revigorado pelo ar da altitude. As ventas dos cavalos exalam longos jactos de vapor. O som dos cascos parece abafar-se sob a neve que esmagam com todo o seu peso. Os raios de sol cintilam na estrada, formando um tapete de luz pura.

 

Subitamente, o declive surge enfim à frente deles. O jovem veneziano respira, deslumbrado. É grandiosa a paisagem que se lhe oferece: a planície desenrola-se, imensa, em toda a volta da caravana, sob a luz fresca do sol. O tio Matteo lança-lhe um olhar enternecido.

 

Ao longe, os montes começam a invadir a paisagem, fundindo-se, por vezes, com as nuvens azuladas que obscurecem a claridade do dia.

 

- E ainda é só o início - conta Matteo a Marco -, até chegarmos a Khanbalik, as nuvens rendilharão todo o horizonte.

 

Quando se detêm, marcando mais uma etapa, Niccolo relata as suas viagens diante de todos os habitantes da aldeia. No caravançará, os animais já se encontram na cave, na estrebaria onde poderão repousar, e os homens são dispersos por pequenos compartimentos partilhados por dois, quatro, ou mesmo seis hóspedes. Michele regozija-se ante a ideia de se aproximarem rapidamente de Kayseri, cujo caravançará oferece verdadeiras camas e celas individuais. Pincela as feridas de Marco com um bálsamo cicatrizante, enquanto o jovem veneziano pousa cuidadosamente a seu lado o embrulho contendo o jogo de xadrez de Bonnetti. Niccolo manda buscar uma jovem hetera para passar a noite e, com o seu proverbial mau feitio, só consente em adormecer após muitas reclamações dos vizinhos.

 

Em Kayseri, os Polo hospedam-se no Sultão Han, um luxuoso caravançará, juntamente com outros viajantes. Quando penetram no imenso pátio quadrado, rodeado de arcadas, Marco sente que lhe falham as pernas. Esta súbita fraqueza não escapa ao pai, que o olha com desprezo.

 

Niccolo, com a temível energia que o distingue dos outros homens, dirige-se para a sala comum. Matteo, por seu lado, deixa-se cair sobre um grande saco de pano, lançando olhares a Kunze, que comanda o descarregamento dos cavalos e das mulas, executado por homens extenuados.

 

- Marco, vai descansar. Eu ocupo-me do resto.

 

- E o senhor, meu tio ?

 

- Eu... - suspira Matteo, passando a mão pela cabeleira sem vida.

 

Michele passa por detrás de Marco e segreda-lhe discretamente:

 

- Temos direito a aposentos privativos. E até a um banho. Aproveita - acrescenta ele, piscando-lhe o olho, antes de se afastar, a fim de ir saborear os pratos apetitosos que uma jovem criada lhe oferece entre sorrisos.

 

De longe, Marco ouve-o certificar-se de que a carne de porco não faz parte da sua confecção.

 

Marco avança para a imensa porta trabalhada da sala comumUm tanto impressionado, imobiliza-se à entrada. Da sombra das alcovas, chegam conversas animadas em todas as línguas. Alguns viajantes dormem, encostados a fardos de seda meio rotos que ostentam as marcas do seu périplo. Passam criadas cobertas por véus, transportando tabuleiros vergados sob o peso de guloseimas e bebidas; uma pequena bolsa presa à cintura tilinta a cada passo que dão, como guizos de dançarinas. Cuspidores de fogo exibem-se em espectáculo. Por cima de um monte de brasas, assa-se um carneiro que exala um odor devastador. No andar de cima, penduradas nas balaustradas de madeira, vêem-se peças de roupa a secar. Os palafreneiros levam os cavalos cobertos de suor para a estrebaria da cave.

 

Niccolo sai da cozinha, onde foi inspeccionar os utensílios e escolher os pratos preferidos.

 

- Oh, senhor Niccolo Polo, que surpresa! Julgava-o morto... ou insolvente! - lança-lhe um genovês pérfido.

 

- Desconfie, sou como um cavalo. Ferido, terei de ser abatido.

 

- Se assim falei, foi por ver que se fez de novo à estrada. Niccolo afasta-se, sem se dignar responder.

 

Um grego agarra-o pelo braço, e fala-lhe sotto você.

 

- Senhor Polo, ouvimos dizer que o seu carregamento contém produtos susceptíveis de nos interessar. Nós levamos vinho muito forte, deveras apreciado pelos Tártaros. Se quiser, podemos fazer negócio...

 

- Os vossos produtos são muito caros para nós.

 

- Já nos cruzámos tantas vezes, que decerto acabarei por lhe vender alguma coisa. Ouça pelo menos o meu conselho: um desmoronamento obstruiu a estrada a duas semanas daqui. Deverá evitar Malatya e passar por Sivas para chegar a Erzincan.

 

Marco sente uma sombra passar-lhe pelas costas. Volta-se rapidamente, mas Kunze já se encontra à sua frente, veloz como um raio.

 

- Então, senhor Marco, não se atreve a entrar? Uma má recordação de Laias, porventura?

 

Sem olhar para o guia, o jovem sobe os degraus. Rumores de vozes atravessam as paredes grossas. Relentos de uma cozinha bem condimentada rivalizam de maneira mais ou menos agradável. Músicos tocam cítara por detrás de uma dançarina envolta num véu, que se bamboleia num canto lancinante, Yalil, yalil. Peregrinos rezam a oração da noite, antes de se deitarem no sobrado. Ali perto, ouve-se o apelo do muezim. Niccolo acena a Marco.

 

- Vai-te lavar, Marco, cheiras muito mal! E depois vem para Junto de mim, há coisas que tens de aprender.

 

O jovem sai do pátio quadrado e aproxima-se de Noor-Zade que se deixou cair na terra batida. A rapariga ergue a cabeça para ele, franzindo as pálpebras para se defender do sol de Inverno.

 

- Noor-Zade, e se fosses tu a lavar-me, desta vez? - sugere ele, guloso.

 

- Senhor Marco, se for uma ordem, sujeitar-me-ei - responde ela friamente.

 

Marco solta um profundo suspiro. Senta-se junto da rapariga.

 

- Noor-Zade, bem sabes que não aceito essa submissão.

 

- Senhor Marco, não sou Donatella. Comigo, não são precisas falas mansas. Basta ordenar - declara ela, num tom categórico.

 

- E se eu quiser fazer-te a corte! - corrige Marco, irado.

 

- Ah pois! Julguei que estava farto dos amuos da sua veneziana!

 

- E tu, ignoras que também te sabes servir de trejeitos afectados? - exclama Marco.

 

Noor-Zade cora bruscamente, levanta-se e afasta-se sem mais uma palavra.

 

O jovem veneziano prepara-se para ir no seu encalço, quando surpreende o olhar de Kunze, que observa a silhueta pouco cuidada da escrava.

 

Nos banhos saturados de vapor de água, Marco lava-se de bom grado, acompanhado por dois gregos, desejosos de tomar umas bebidas. De cabelos ainda a escorrer, junta-se ao pai, em animada conversa com Michele. Matteo descalça-se, fazendo um esgar.

 

- Ah! Nunca me habituarei, que desconforto! - queixa-se ele, sentando-se num tapete muito usado. - Estas camas são horríveis, de uma sujidade...

 

- Matteo, estás sempre a sonhar com palacetes venezianos! Olha à tua volta, para o horizonte, para a doçura deste clima, para as mulheres...

 

- É sufocante, Niccolo!

 

- E, em Veneza, o ar dos pântanos é mais saudável?

 

- Enfim - suspira Matteo. - Aqui, pelo menos, estamos entre cristãos, sem todos aqueles salamaleques...

 

- Tens razão: com os cristãos, sabemos imediatamente que podemos ser degolados sem qualquer gesto de delicadeza - ri-se Niccolo.

 

Matteo agacha-se junto do irmão, entretido a coser as botas, Michele aproveita para começar a comer um prato de beringelas pousado em frente do veneziano.

 

- Nicco, aquele gatuno do genovês acaba de me dizer que a cotação do lápis-lazúli desceu, em Soldaia. Talvez seja uma manobra da sua parte. No entanto, com a guerra a recomeçar, pergunto-me se não deveríamos vender imediatamente, logo à chegada a Erzincan, arriscando-nos a perder um pouco, em vez de perdermos muito, mais tarde. Além disso, os cristais são frágeis. É um risco suplementar. Já com o anis...

 

Niccolo embebe uma almôndega de carne num molho esverdeado.

 

- Gosto do risco, como sabes. Mas confio em ti, pois não és jogador, precisamente. Portanto, procede como considerares melhor. Mesmo que te enganes, terás razão.

 

Depois, volta-se para o filho:

 

- Marco, prova estas beringelas: uma delícia. Experimenta!

 

O jovem decide-se a mordiscar os legumes embebidos em gordura, embora, na realidade, tivesse preferido juntar-se aos jovens gregos que falam em voz alta, esvaziando os copos diante da dançarina meio despida.

 

Pondo o trabalho de parte, Matteo aproxima-se ainda mais de Niccolo.

 

- Nicco, agora temos de decidir: qual é o caminho...?

 

- E tu, o que soubeste de novo? - pergunta Niccolo, baixando de tom, ao contrário do habitual.

 

Marco apura o ouvido, mas Matteo fala tão baixo que a conversa se torna inaudível. Só a voz de Niccolo, mais próxima de Ma-rco, chega até ao jovem.

 

- Sei que conhecemos melhor a rota do Norte...

 

- Simplesmente, teremos de atravessar o canato da Horda de Ouro... - observa Marco, interrompendo o pai, que esboça um gesto de bom humor antes de prosseguir, voltando-se para o irmão:

 

- Soube que, depois da coroação de Cublai, aumentaram as querelas entre o cão da Horda de Ouro e o ilcão da Pérsia.

 

Michele intervém, por sua vez:

 

- Se me permite, dir-lhe-ei que sei de fonte segura que os venezianos foram atacados por mongóis da Horda de Ouro. Só restou um sobrevivente para contar o que sofreu.

 

- Mas nós temos a tabuinha de ensinamentos do Grão Cão! A Horda de Ouro prestou juramento perante o império!

 

E, para provar as suas afirmações, num gesto decidido, Matteo abre a túnica do irmão, como para se certificar de que a preciosa tabuinha ainda ali se encontra.

 

- Com certeza, meu irmão - declara Niccolo, guardando cuidadosamente o salvo-conduto junto ao peito -, mas a Horda de Ouro é hostil a Cublai. Portanto, este salvo-conduto levar-nos-á à prisão.

 

- Por que havemos de hesitar? - pergunta Marco. - Passemos pela Pérsia!

 

- Os ataques do sultão do Egipto, Baybars, tornam estas estradas perigosas - explica Matteo.

 

- Se chegarmos sãos e salvos à Pérsia, ficaremos em segurança

- admite Niccolo.

 

O mercador nómada ergue-se e bate as palmas.

 

- Kunze! Kunze al-Khair! - chama ele, aos gritos.

 

O persa acorre e ajoelha-se, com a mão pousada no coração.

 

- Kunze - segreda-lhe Niccolo ao ouvido. - Procura saber se poderemos avançar até Tabriz.

 

O persa não consegue conter uma exclamação de surpresa:

 

- Tabriz, na Pérsia? Mas, senhor Niccolo, que Deus lhe perdoe!, devíamos passar pelo canato da Horda de Ouro!

 

- Kunze, devias ficar contente com a ideia de regressar ao teu país...

 

- Sem dúvida, senhor Niccolo, se não estivesse ocupado por um povo de infiéis! - murmura Kunze entre dentes.

 

Michele aproximou-se de Marco.

 

- O cão da Horda de Ouro, esse, converteu-se ao islão - explica ele ao jovem.

 

- Essa mudança vai custar-nos caro - calcula Matteo. - Teremos de comprar túnicas leves e turbantes, para além das pelicas. Consegui obter do nosso anfitrião um dia extra, gratuito. Nestes tempos conturbados, nunca se encheria, de qualquer maneira. Assim, poderemos permanecer aqui três dias completos, até partirmos para Erzincan, o que permitirá que Kunze resolva todos estes problemas.

 

Niccolo olha para o irmão, angustiado.

 

- Matteo, o meu mapa... Já não vale nada...

 

Niccolo passa a noite seguinte a revolver-se na cama, o que o irrita, tanto mais que não está habituado. Procura desesperadamente como encontrar um novo itinerário. Por ocasião da sua primeira longa viagem, partira por caminhos desconhecidos sem sequer levar um mapa e perdera dinheiro e um tempo precioso, pois teve de negociar a obtenção de informações com todos os clãs que encontrou. Agora, recusa-se a repetir semelhante sacrifício.

 

No dia seguinte, a chegada tonitruante de uma caravana de três mil camelos aviva-lhe a esperança. Ao contrário dos vizinhos, a poeira e o mau cheiro que dela se liberta não o incomodam.

 

Após uma ruidosa troca de cumprimentos, relaciona-se com o mercador. Familiar do rei da Arménia, este homem baixo e pretensioso, de farta cabeleira negra, exibe os animais destinados à corte de Mengu Temur, o cão da Horda de Ouro. Seis avestruzes e um animal como Marco nunca viu: um corpo grande como o de um cavalo, cascos de boi, um pescoço inacreditavelmente comprido e as patas dianteiras mais altas do que as traseiras. O ventre branco contrasta com o corpo dourado, decorado com longas faixas brancas. Quando ergue o pescoço, este atinge uma altura assustadora. Tem olhos de corça, sombreados por pestanas espessas. A cabeça é encimada por dois pequenos cornos cobertos de pêlos.

 

- A este animal, chamam-lhe girafa - explica ele ao jovem, estupefacto. - Espero que sobreviva ao clima...

 

O arménio convida Niccolo, que não esperava outra coisa, a juntar-se à sua caravana, bem escoltada, cuja extensão é uma garantia de segurança. O comboio conta com três mil camelos e quinze mil homens. Inclui mercadores gregos, cuja companhia ganharam pelo caminho.

 

Vituperando contra este costume, que permite que os ricos enriqueçam ainda mais à custa do viajante comum desejoso de protecção, Matteo negoceia um preço aceitável com o arménio, servindo-se do armamento que possuem, em particular da balestra de Marco. Cavalgarão juntos até Tabriz. No pátio do ban, os condutores de camelos carregam os animais com tecidos e especiarias, verificam os arreios, ordenam os camelos numa longa fila que se estenderá por várias léguas. A preparação da partida prolonga-se por toda a manhã. Por fim, o primeiro camelo avança, seguido pelos outros companheiros, comandados pelo chefe dos condutores, encarregado de obter uma coordenação perfeita, até que, finalmente, a caravana se põe em marcha, qual infindável cadeia de enormes fardos, progredindo em lentas ondulações. Já os primeiros vão longe, quando partem os últimos.

 

A caravana levanta grandes nuvens de poeira. Os viajantes protegem-se tapando o rosto com grossas mantas de lã. À noite, acampam à entrada de uma aldeia constituída por algumas casas, não muito longe de um poço, ignorando os protestos dos camponeses. Mas a presença da escolta armada dissuade-os de continuarem a opor-se à vontade dos viajantes, sentindo-se mesmo na obrigação de lhes fornecer carne, pão e vinho à discrição. Antes de montarem as tendas, os condutores dos camelos descarregam as trouxas e, depois, soltam os animais, que se afastam do acampamento, em busca de alimentos do seu agrado. Debruçando o pescoço sobre a erva que começa a escassear, os camelos arrancam grandes tufos que mastigam aplicadamente. Quanto à girafa, estica o imenso pescoço e devora uma quantidade incrível de folhas que retira do cimo das árvores.

 

Em redor da fogueira, os condutores dos camelos saboreiam com uma concentração comparável à dos animais pedaços de pão bolorento que secaram ao sol, embebidos num molho de pimentão com gordura de carne de carneiro. Para nada perderem desta gordura, lambem cuidadosamente os dedos. Depois de esvaziarem algumas garrafas, os homens espreguiçam-se descontraidamente. Um deles pega numa cítara e dedilha algumas notas. Do círculo em redor da fogueira crepitante, erguem-se cantos.

 

Marco deixa-se arrebatar pela melopeia lamurienta desta música nómada.

 

Kunze graceja com o intérprete arménio, satisfeito por ter encontrado alguém com quem trocar uma agradável conversa em qualquer língua.

 

Um pouco afastada, Noor-Zade ouve a melodia, sonhadora, enquanto repara um estribo. Marco agacha-se a seu lado.

 

- Gostaria de te ver enfeitada com os mais bonitos véus do Oriente - suspira ele.

 

Noor-Zade, sempre sonhadora, contempla as estrelas.

 

- Eu também gostaria de retomar o vestuário próprio do meu sexo. Não fora a presença do seu pai...

 

- Disseste-me que ele nem sequer sabia o teu nome. Duvido de que se recorde do teu nome. Para ele, são pessoas de olhos em forma de amêndoa, nada mais.

 

A jovem esboçou um sorriso amargo.

 

- É verdade. Ele nem sequer sabe distinguir os Uigures dos Mongóis.

 

- Guilherme de Rubrouck disse-me que o teu povo é letrado, entre os Mongóis.

 

- Eles são tão estúpidos que nunca foram capazes de inventar um alfabeto para a sua própria língua. Viram-se obrigados a utilizar

 

o nosso.

 

Com o dedo, começou a desenhar símbolos na terra. Marco deu-lhe o pequeno alfange da ”rainha de Sabá”. Ela pegou nele, deleitada, e continuou a escrever caracteres semelhantes a desenhos.

 

- É o meu nome - declarou ela. - O do meu pai, Sanga.

 

- És escrava, és mulher... e, no entanto, sabes escrever...

 

- Ainda tem muito que aprender, senhor Marco. Também julgou que eu fosse mongol...

 

- Se o teu povo é aliado dos Mongóis, por que organizaram eles uma razia que te levou, como escrava, até Veneza?

 

De pálpebras cerradas, Noor-Zade contém as lágrimas.

 

- Os Mongóis são vaidosos. Quem os ofender desgraça a sua vida...

 

Noor-Zade restitui a faca a Marco, mas o jovem interrompe-lhe o gesto.

 

- Guarda-a.

 

A rapariga hesita por uns instantes, antes de a pendurar à cintura.

 

- Os teus olhos são tão escuros, que reflectem milhares de estrelas.

 

A jovem sorri.

 

- E os seus são tão azuis que julgo termos trazido o mar connosco.

 

O silêncio enche-se de palavras que não ousam proferir. Lancinante, o canto dos condutores de camelos envolve-os no seu ritmo hipnótico. Sentindo vontade de chorar, hesitante, Marco avança a mão, lentamente. Antes de pegar na mão de Noor-Zade já ele sente o seu doce calor espalhar-se-lhe pelo ventre. No braço da jovem, o desenho da tatuagem palpita quase até sangrar. Marco sustém a respiração.

 

- Noor-Zade! Vai buscar uma garrafa de vinho - ordena a voz imperiosa de Kunze.

 

Um estremecimento imperceptível abala as pálpebras da rapariga. Todo o seu corpo se retesa, como se estivesse prestes a fugir. Marco volta-se para o persa:

 

- Julguei que Alá não permitisse que os seus crentes bebessem o fruto da vinha, senhor Kunze.

 

O persa bebe um trago do seu frasco de vidro escuro.

 

- Saiba, senhor Marco, que, na minha terra, cozemos o vinho antes de o beber, o que é permitido.

 

O jovem meneia a cabeça, meio convencido.

 

- Shayabami, enche, então, o copo do nosso guia.

 

O persa fixa no veneziano um olhar carregado de um profundo e altivo ódio.

 

- Senhor Marco, ignorava que este escravo estava reservado ao seu uso pessoal.

 

- Mas está! - exclama Marco, com algum orgulho.

 

Mal acordam, os condutores de camelos vão buscar os animais, com a ajuda de um laço, obrigam-nos a ajoelhar e carregam-nos com uma rapidez extraordinária. Por fim, enrolam as tendas e fixam-nas às selas dos camelos. Quando o grupo dos Polo acaba de preparar os cavalos, já a coluna está pronta. A caravana retoma o seu caminho, levantando o pó ocre do caminho.

 

A planície de Erzincan abre-se diante do Eufrates, rodeada de montanhas de cumes cobertos de neve. As últimas searas, que os camponeses, com a pressa da fuga, não ceifaram, oscilam suavemente ao sabor do vento. Intragáveis, tornam-se um manjar para a cáfila de camelos, que se sacia demoradamente.

 

Por fim, avistam a cidade, rodeada por uma muralha de torres defensivas. Os terraços das casas formam socalcos, vêem-se os habitantes sentados em volta de uma malga de leite quente. Numerosos minaretes apontam as flechas para o céu. Ouve-se o rumorejar das fontes em diversos locais, sobretudo no bazar, onde se vendem as mais variadas mercadorias, tão ricas como em Acre.

 

A caravana instala-se no antigo caravançará, onde é recebida por um homem obeso que vive no meio das vacas e exige ser pago antecipadamente. Como o anfitrião deixa os animais ir e vir a seu bel-prazer, as celas dos viajantes estão extremamente sujas e cheiram a estrume.

 

Matteo, aliviado, vai finalmente poder vender o seu lápis-lazúli. Envia Marco com Niccolo liquidar a commenda de Zeccone, trocar pedras e adquirir brocados e tecidos de algodão que pretende trocar mais adiante, em Erzurum, contra fio de prata, mais fácil de transportar. Niccolo e Marco dirigem-se, a pé, até à casa do mercador de pedras, encimada por uma fachada decorada. Penetram num pátio quadrado no centro do qual impera uma fonte - um verdadeiro luxo nestas paragens em que a água é um bem raro.

 

- Desta vez, não faças perguntas que possam ofendê-lo - recomenda Niccolo, severo.

 

- Se receia ver gorar-se o negócio, retiro-me, meu pai!

 

- Deixa-te de pruridos! Limita-te a observar e a aprender.

 

O mercador recebe-os numa sala quadrada decorada com mucharabis de madeira, sentado numa poltrona de espaldar estofada a seda e envergando um cafetã forrado ricamente bordado. Demoram-se em longos cumprimentos de boas-vindas, votos de boa saúde e outras atenções destinadas à família e chefes de clã, antes de abordarem o tema principal.

 

- Voltas para junto desses loucos dos Mongóis? - pergunta o mercador a Niccolo. - Afinal, o louco és tu, sempre a percorrer o mundo. No entanto, dizem que Veneza é uma linda cidade, cheia de mulheres das mais atraentes.

 

- Justamente, mas só podemos ter uma.

 

- Ah! Os cristãos privam-se do melhor que há nesta vida.

 

- E o vinho, guarda-lo?

 

- Tens razão. Dá-me a honra de te embebedares.

 

Estende a Niccolo uma taça de prata cheia de vinho. O veneziano pega-lhe com as duas mãos e esvazia-a completamente. O mercador manda organizar um festim à altura da sua posição social. Chegam músicos que começam a tocar instrumentos de sons penetrantes. A refeição é servida em bandejas de metal montadas em tripés: carneiro bem condimentado, almôndegas, arroz, legumes de todas as cores. Cada um dos presentes tem direito a um pão, pousado numa toalha de seda. Os venezianos instalam-se no chão, imitando o anfitrião e começam a comer com as mãos. Pratos com mel, pêssegos, uvas, alcaparras e outra fruta seca desde o último Verão encerram a refeição. O mercador come com gestos muito grosseiros e Niccolo bebe de mais, mas pousa o copo antes de estar embriagado. Mais uma vez, Marco pergunta a si próprio por que ironia o terá levado o pai a este jantar, onde o que lhe ensinam, acima de tudo, é a devassidão. Feitas as negociações, Niccolo consegue vender cochonilhas em grande quantidade, pequenos insectos preciosos, muito cobiçados pelo mercador para tingir de carmim tecidos de seda.

 

À hora da despedida, o mercador segreda a Niccolo:

 

- Baybars conseguiu deter as tropas de Abaga. O ilcão foi forçado a retroceder para a Pérsia.

 

- Talvez o encontremos - conclui Niccolo, em jeito de mofa.

 

- Não vos desejo semelhante encontro... - responde o mercador num tom lúgubre.

 

Contra a sua vontade, Marco arrepia-se, ao ouvir estas palavras, que soam como uma predição ou uma advertência.

 

Por fim, partem de Erzincan com destino a Erzurum. A estrada é montanhosa e ladeada por alguns terrenos cultivados, salpicados de branco. Mais adiante, começa a nevar e o frio surpreende-os, de tal modo que são obrigados a fazer uma paragem mais cedo do que haviam previsto. Uma vez mais, Niccolo barafusta contra a lentidão da caravana. Em quase seis meses de viagem, ainda não saíram da Arménia.

 

No dia seguinte, de madrugada, o comboio põe-se em marcha, rumo ao sul, tendo como destino a Pérsia. Os planaltos erguem-se a perder de vista, planícies azuladas pelo frio da altitude. Os ramos dos choupos ondulam ao vento, em longos arrepios. Pelo caminho, cruzam-se com crianças perdidas, esfarrapadas, caminhando descalças sobre pedras. Aterrorizadas, não ousam pedir esmola, fugindo do impressionante comboio. Niccolo insiste em lhes dar algumas provisões, das quais o arménio se desfaz, contrariado.

 

Uma montanha de sal resplandece nos seus milhares de cristais, pedestal magnífico de um minúsculo castelo construído no seu cume. Decidem fazer uma paragem. Surpreendidos, descobrem que as portas do castelo foram arrombadas. Todavia, ainda é habitado por uma mulher muçulmana. Esta mostra-se profundamente aterrorizada quando Niccolo lhe apresenta a tabuinha de ensinamentos. Explica-lhes, então, que o castelo acaba de ser assaltado por cavaleiros mongóis ao serviço do ilcão da Pérsia, que lhe mataram o marido. Tendo-lhes sido recusada hospitalidade, destruíram os rastrilhos, de tal modo que a viúva, poupada para poder receber os invasores por ocasião da próxima passagem, vive desde então desgostosa e cheia de medo.

 

Quando caminham ao longo do lago de Van, na Grande Arménia, Marco avista rebanhos que pastam, conduzidos por mongóis que subiram com eles até às nascentes de água. Ao longe, adivinham-se as suas silhuetas imponentes, cobertas de agasalhos. A caravana atravessa uma cidade cercada de rochedos, com vista sobre um vasto rio.

 

Marco sente-se subitamente deslumbrado perante a visão que se abre à sua frente, o monte Ararat, brilhando como um diamante nas suas eternas camadas de neve. Parece conseguir erguer-se para além das nuvens até atingir o céu. Para ele, é a imagem da arca de Noé ali refugiada a fim de escapar ao dilúvio. Consta que uma igreja não muito distante conserva pranchas de madeira utilizadas na construção da arca. Matteo explica ao sobrinho que a neve cobre o monte durante todo o ano, devido à sua grande altitude.

 

Então, como se a mão de Deus tivesse consentido em desvendar, por breves instantes, as suas maravilhas, a coroa de bruma dissipa-se, deixando transparecer o cume deslumbrante.

 

- É a mão de Deus, que Ele seja louvado por assim dissipar as nuvens - diz Kunze a Marco.

 

- Foi só sorte, Kunze! - explica Niccolo, abrindo-se num grande sorriso. - E Marco é como eu: a sorte também o acompanha!

 

As terras começam a metamorfosear-se. A estrada a caminho da Pérsia forma um corredor estreito entre os montes cobertos de neve. O ar arrefece brutalmente. O sol reflecte-se violentamente naquelas extensões imaculadas, cegando-os ao longo de várias semanas. Os homens vêem-se obrigados a fixar o olhar no pescoço da montada, cuja cabeça vai oscilando ao sabor do declive.

 

- Em breve chegaremos a Tabriz. Ali adiante, do outro lado do monte, é a Pérsia - diz Kunze, de olhos brilhantes.

 

O GARANHÃO DE TABRIZ

Primavera de 1272. A escassas léguas de Tabriz, encontra-se uma fortaleza maravilhosamente defendida. As duplas muralhas de rochas calcárias são reforçadas nas esquinas por pedras encimadas por torres. Estas protegem os entrepostos instalados entre as muralhas, aos quais se tem acesso por meio de degraus escavados na rocha. Acima da segunda muralha ergue-se a residência senhorial, rodeada por outras casas de pedra. O rochedo prolonga-se superiormente, formando uma espécie de alpendre natural, de tal modo que o castelo nem sequer pode ser sitiado, pois no interior das muralhas corre uma espécie de nascente que abastece toda a população, e é graças a esta água que se irrigam jardins e hortas. O senhor da terra sente-se encantado por receber uma caravana de cristãos, praguejando contra os muçulmanos, diante de Kunze, o que o persa finge não compreender, entretido a instalar o tapete para a segunda oração da manhã. Recebe a caravana com muitas atenções, permitindo que os condutores de camelos entrem no seu pátio com os animais. Organiza um grande banquete para o qual são convidados os chefes das tropas. Sob o efeito do vinho, conta a Niccolo como foi obrigado a submeter-se aos Mongóis, após uma dura luta.

 

- Levaram o meu filho mais novo.

 

Repele o prato ainda cheio, antes de acrescentar, com um nó na garganta:

 

- Talvez seja soldado. Acharam-no tão robusto que merecia combater no exército mongol.

 

- Como compreendo este infeliz pai que não consegue regozijar-se com tal honra - deplora Niccolo para consigo mesmo, antes de pressionar o arménio a prosseguir caminho.

 

Após muitas negociações, este acaba por ceder. Mas havia avaliado mal o estado dos animais, os quais, demasiado cansados, ainda não haviam atingido a etapa seguinte, à hora das vésperas. Por sorte, passam por um acampamento de nómadas, onde poderão trocar os cavalos por outros em bom estado. Apesar das habituais trocas de cumprimentos, o chefe recebe-os com desconfiança; mas, logo que Niccolo lhe mostra a tabuinha de ouro, inclina-se respeitosamente, cedendo-lhe a própria tenda. Nessa noite, o arménio, furioso por o veneziano o ter obrigado a extenuar os animais, recusa-se a partilhar a sua refeição. De manhã, é com alívio que se separam, partindo o arménio para norte, os Polo para sul.

 

À hora de prima, a caravana dos Polo retoma o caminho da Pérsia. Kunze conheceu, no acampamento turcomano, um jovem zarolho chamado Samud, robusto e simplório, que lhes servirá de cicerone até Qazvin.

 

No dia seguinte, depois de chegarem a Khvoí, Niccolo informa Marco de que abandonaram a Arménia e penetraram na Pérsia. Durante toda a travessia da Arménia, a paisagem apresentou-se fria e coberta de neve, mas, agora, as terras tornam-se mais áridas e o ar mais quente, com a Primavera que se anuncia. Desapareceram as montanhas cobertas de neve. A última etapa até Tabriz leva-os mesmo a atravessar paisagens de vinhas e jardins irrigados.

 

Construída numa planície, a cidade de Tabriz encontra-se encravada entre duas montanhas elevadas e despidas de vegetação. Uma é árida, enquanto a outra permanece eternamente coberta de neve.

 

- Consta que, outrora, estes dois cumes se tocavam e que, agora, estão cada vez mais afastados um do outro - explica Niccolo.

 

- Como é possível, pai?

 

- Há quem diga que nada é imutável. Repara, nasceste indefeso como um gatinho, mas um dia serás forte como um tigre, e depois declinarás, até seres decrépito como um figo seco.

 

Da montanha coberta de neve desce um curso de água, de débito abundante, em direcção à cidade. A caravana segue este canal até à entrada da cidade, que não possui muralhas. Aí, a água divide-se em numerosos regatos e valas, que vão então alimentar ruas e praças. Niccolo e Matteo deslumbram-se ante a riqueza das lojas e bazares que se desenvolvem em muitas ruas e alamedas. Niccolo acaricia, sem sequer descer do cavalo, as peças de seda e de algodão, os finos véus e tafetás, enquanto Matteo avalia as pérolas mais perfeitas. A cidade ainda se encontra em grande actividade, poupada por vontade de Abaga, desejoso de preservar as riquezas do seu território.

 

Os Polo são abordados por um garoto que, contra algumas moedas, os conduz ao caravançará da cidade. As casas e as mesquitas são ornamentadas de azulejos azuis e dourados, de esculturas de gipso, e de vitrais. O garoto conta-lhes que os homens ricos da cidade se arruinaram em despesas sumptuárias para construírem os mais belos palácios. Na pequena praça em frente do caravançará, um mercado asseado e bem organizado vende carne cozinhada e temperada, frutos frescos e secos.

 

Mal acabam de se instalar, Marco acompanha Michele, a fim de se saciarem com um pedaço de carneiro grelhado e com uma fatia de melancia fresca. Um regalo, depois daqueles meses de Inverno em que tiveram de se contentar com carne seca. Decidem permanecer durante vários meses em Tabriz, cidade mercantil bem abastecida, onde conseguem finalmente repousar. No caravançará, cada um tem direito à sua cela, exceptuando os escravos, e Samud, que dornia na estrebaria, a fim de vigiar os cavalos com o único olho que possui, enquanto espera que sejam trocados por outros. Doravante, em território mongol, poderão beneficiar do seu maravilhoso sistema de posta, o qual permite que os viajantes percorram distâncias fixas ao fim das quais os esperam novos cavalos.

 

Marco acompanha Michele, que avança a passos largos pelas ruas de Tabríz. Passam por numerosas fontes, onde encontram, à discrição, pedaços de gelo num recipiente de cobre ou latão, para se refrigerarem. Alcançam o bazar coberto, nem sequer se detendo para admirar os famosos tapetes de cores garridas. Michele volta-se para trás, a fim de se certificar de que não foram seguidos, e depois, penetra numa minúscula loja, idêntica a todas as outras, iluminada pelos raios de sol que riscam as passagens estreitas do suk.

 

Lá dentro, encontra-se agachado um homem bastante idoso, de cabeça envolta num turbante de várias toesas de comprimento, que masca um pedaço de pau. O velho gratifica-os com um sorriso que ostenta os poucos dentes amarelados que lhe restam na boca.

 

- Salaam Alekuum - declara o mercador, fazendo uma saudação à maneira oriental.

 

- Alekuum Salaam - responde Michele, esboçando o mesmo gesto.

 

O homem do turbante já começou a desfiar as conhecidas fórmulas de cortesia e de boas-vindas, quando Michele abre a túnica e exibe a medalha em forma de estrela que inclui uma inscrição em árabe e que lhe permitira apresentar-se ao príncipe Eduardo de Inglaterra. O homem cala-se imediatamente, passa por detrás deles para ir correr a cortina que os isolará do bazar, como quando negoceia uma venda delicada. Marco segue com atenção cada um dos seus movimentos. O mercador convida-os a instalarem-se num tapete desenrolado especialmente para eles, na pequena loja sobrecarregada das mais variadas mercadorias, cuja arrumação o homem conhece com precisão. Bacias decoradas com motivos recordando a vida animal, coloridos a pigmentos de açafrão e índigo empilham-se ao longo de toda uma parede. Do tecto, pendem peças de tecido, tufadas como nuvens de cores garridas. Amontoam-se tapetes de todas as cores e de todas as dimensões, feitos de algodão ou seda. Uma criada de rosto coberto por um véu espreita por detrás de uma cortina de contas que ela atravessa produzindo o som de uma cascata. Nem sequer se lhe vêem os olhos. Através dos movimentos do tecido que envolve a mulher da cabeça aos pés, Marco tenta adivinhar a sua silhueta. Até pode ser uma velha. Marco observa as mãos que lhe servem o leite azedo. Têm as veias salientes até aos punhos, o que confirma a maturidade da sombra feminina, que se desloca em silêncio.

 

- Mostre-me a mercadoria - pede o homem em persa, logo que a criada desaparece de novo atrás do rumorejar da cortina de contas.

 

Marco, que adquiriu rudimentos de persa com a ajuda de Kunze, pega no embrulho. Cautelosamente, desdobra os panos que envolvem o jogo de xadrez. Expõe as peças uma a uma na casa que lhes corresponde. O jogo parece ocupar o seu lugar naquele antro das Mil e Uma Noites. O homem examina-o com atenção.

 

- Bismillah! - exclama ele subitamente. - Fico com ele! Sabia, senhor Polo, que a língua mongol utiliza a mesma palavra para designar o cavalo e o cavaleiro?

 

- Não, ignorava.

 

- No jogo de xadrez, naturalmente - explica o homem. Quanto lhe prometeu Bonnetti?

 

- Um terço do produto.

 

- É um bom negócio... - avalia o outro.

 

O homem meneia a cabeça em silêncio, antes de acrescentar, após um breve silêncio:

 

- Suponho que conta com o fruto desta transacção para seguir viagem?

 

- Evidentemente - admite Marco, abrindo-se num sorriso franco.

 

- Poderão seguir - declara ele, voltando-se para Michele.

 

- Tem a certeza? Ainda trago comigo as marcas da minha última embai... viagem - diz Michele, apontando para a cicatriz por cima de uma das sobrancelhas.

 

- Encontramo-nos daqui a uma hora à porta do bazar - responde simplesmente o outro.

 

O mercador oferece uma bebida aos visitantes. Michele recusa delicadamente. Marco examina com atenção o líquido acastanhado, bastante espesso, que cobre as paredes da taça.

 

- Beba. É haschisch.

 

- Limita-te a provar - previne Michele. - Nunca mais serás capaz de o dispensar.

 

Marco molha os lábios. Um sabor forte e ácido enche-lhe a boca.

 

- É a beberragem dos Assassinos - declara o mercador. Perante a incompreensão de Marco, o homem prossegue, com um sorriso enigmático, testemunho de recordações longínquas.

 

- Trata-se de uma seita fundada por um homem a quem chamavam o Velho da Montanha. Criara um magnífico jardim, digno do jardim do Éden, onde cresciam todos os frutos do mundo, e onde se encontrava o mais belo dos palácios, dourado e profusamente decorado. No jardim corriam regatos de vinho, de mel e de leite. As mais formosas mulheres tocavam toda a espécie de instrumentos, sabiam cantar e dançar maravilhosamente bem. E, de facto, este jardim era conhecido por ser o Paraíso. O Velho contratava rapazes entre os doze e os vinte anos para serem os seus homens de armas. Oferecia-lhes uma bebida que os adormecia imediatamente, chamada hascbisch, e, depois, levava-os para o seu jardim. Ao acordar, como é evidente, eles julgavam-se realmente no paraíso. Ao longo do dia, as mulheres satisfaziam todos os seus desejos, de tal modo que nunca mais se queriam ir embora. Aprendiam o manejo das armas, a manipulação dos venenos, a arte da dissimulação, a criar um coração duro como pedra. Quando o Velho precisava de enviar um homem em missão, dava-lhe a beber o seu hascbisck, o que o adormecia e o transportava para fora do jardim, diante do castelo fortificado. O homem, infeliz, apresentava-se diante do Velho, que o mandava então matar um qualquer grande senhor e lhe prometia que, no regresso, os anjos o transportariam para aquele jardim paradisíaco. O Velho garantia ainda que, se o homem porventura morresse, seria igualmente transportado para o Paraíso. Deste modo, conseguira formar um exército de homens aguerridos, prontos para tudo. O Velho exigia assim resgates aos grandes senhores, na maior das impunidades.

 

- E o que aconteceu a essa terrível seita?

 

- Há vinte anos, o cão Mongka, decidido a pôr cobro a estes procedimentos, ordenou ao irmão, Hulagu, ilcão da Pérsia e pai de Abaga, que sitiasse o castelo. O cerco durou três anos e, no fim, com a ajuda de um arrependido, o exército mongol apoderou-se da fortaleza e massacrou os ocupantes. Consta que alguns terão escapado ao cerco.


Marco olha, aterrado, para a beberragem. O homem abafa um gargalhada discreta.

 

- Não tenha medo, rapaz, o Éden fica muito longe daqui... Michele levantou-se, convidando Marco a imitá-lo. Até saírem do suk, o veneziano permanece calado, a despeito das milhares de perguntas que lhe queimam os lábios. Espera-os um garoto que segura as rédeas de um magnífico cavalo branco. O dorso do animal resplandece ao sol. Sob a pelagem clara, afloram os músculos generosos e fortes.

 

- É o senhor Marco Polo? - pergunta o garoto a Marco. O meu pai encarregou-me de lhe confiar este cavalo.

 

O garoto estende a rédea ao veneziano.

 

- É magnífico!

 

O garanhão ergue as orelhas e fixa Marco com um olhar altivo. O jovem aproxima-se. O animal relincha, dando um salto imprevisível. Sacode a crina, batendo com os cascos no chão. O garoto acaricia-o com meiguice, antes de entregar de novo as rédeas a Marco.

 

- Terás de aprender a montar - previne-o o amigo.

 

- Per bacco! Pensas que passo o dia a andar de gôndola!? exclama Marco, vexado.

 

- Não... Mas montar verdadeiramente, é o que eu quero dizer... Quando nos aproximarmos dos Mongóis compreenderás o que isso significa. O cavaleiro e o cavalo formam um todo.

 

- Talvez sejam centauros!

 

- Talvez...

 

Marco irrita-se, mais habituado, como homem das lagunas que é, a avaliar barcos do que animais:

 

- Michele! Queres explicar-me todos estes enigmas?

 

- Que mais precisas de saber?

 

- Quero saber o que me escondes - insiste o jovem. Michele pega nas rédeas do animal e dirige-se para o caravançará, acenando a Marco para que o siga.

 

- É assim que Bonnetti indica o preço. O seu correspondente decifrou a combinação do jogo de xadrez e ofereceu-nos este cavalo...

 

- Tantos mistérios para um simples mercador.

 

Marco permanece sonhador, meditando sobre a revelação do amigo.

 

- E se a minha memória me tivesse traído ?

 

- Sabe Deus o que nos teria acontecido! - responde Michele, ambíguo.

 

Volta-se para o jovem veneziano, detendo o cavalo.

 

- O homem teria pensado que roubámos o jogo de xadrez... Marco, regressa sozinho ao caravançará com o garanhão. Ver-nos-emos mais tarde.

 

- Vais lá outra vez? Michele suspira.

 

- Há coisas que não precisas de saber, acredita-me.

 

 

- É magnífica - exclama Noor-Zade ao ver a nova montada de Marco.

 

Samud escova-lhe o pêlo, desdobrando-se em cuidados. A jovem aproxima-se do cavalo e acaricia-o, cobiçosa.

 

- Posso montá-lo? Marco olha-a, surpreendido.

 

- Na minha terra, as mulheres montam como os homens explica ela.

 

Marco passa-lhe as rédeas para as mãos, com um olhar de desafio.

 

Perita, Noor-Zade guinda-se suavemente para a sela, sem um gesto brusco. Aplica uma palmada na garupa do puro-sangue e este dá um salto para a frente. Usando de todo o cuidado, ela leva-o a trotar elegantemente. Com as coxas bem encostadas ao animal, meio deitada sobre o seu pescoço, Noor-Zade parece ignorar os limites do caravançará. Puxa pelas rédeas e obriga o animal a seguir a passo, debruçando-se para a frente, a fim de o recompensar com uma carícia no peitoral. A rapariga é leve e sabe montar os cavalos meio selvagens das estepes mongóis. Marco admira a sua arte do equilíbrio quando o animal dá saltos bruscos. Ambos sonham com horizontes em que o esgotamento fosse a única fronteira para um galope desenfreado.

 

No bazar, Michele reencontrou o homem de Bonnetti. Este convida-o a atravessar a cortina feita de contas. Com um gesto, expulsa a mulher, que desaparece apressadamente no fundo do pátio.

 

Um rapaz, de mãos habilidosas, estende no cavalete uma folha de nácar que alisa com o auxílio de uma bola de marfim.

 

- Ninguém te viu regressar, Michele?

 

Fascinado pelo trabalho do adolescente, Michele não cessa de o fitar, enquanto se instala, agachado, com as pernas dobradas por baixo das nádegas.

 

- Não.

 

O rapaz certifica-se de que a folha está suficientemente estendida, depois mergulha num cadinho cheio de água um minúsculo pincel com a ajuda do qual traça as linhas principais de um desenho que representa uma caravana de camelos no deserto. Em seguida, abana o trabalho com um leque para o secar.

 

O mercador retira uma garrafa de uma prateleira.

 

- Toma, vinho de tâmaras. Para explicar o teu regresso ao suk. Michele guarda-o no saco.

 

O jovem embebe os pêlos do pincel numa mistura de vermelho e índigo e volta a pintar os traços da aguada.

 

- Soubemos que um enviado de Mengu Temur...

 

- O cão da Horda de Ouro!

 

- Esse mesmo. Um dos seus mensageiros entrou, pois, secretamente em Tabriz pouco tempo depois da vossa chegada e espera recuperar um objecto precioso para o seu amo.

 

- Sabemos de que objecto se trata? - pergunta Michele. Poderá tratar-se de uma mensagem?

 

- Ignoramos, mas é de supor que se trata com certeza de contrariar o primo, o ilcão da Pérsia. Tenho interrogado discretamente todas as caravanas. O que levam para Abaga no vosso comboio?

 

- Nada, não está previsto que nos encontremos com ele.

 

Por fim, com um pincel ainda mais pequeno, o jovem pinta a miniatura de vermelho rubi, esmeralda e safira, numa deslumbrante harmonia de mosaicos.

 

O homem de Bonnetti olha para Michele, intrigado.

 

- Mas, e o cavalo? Que explicação fornecerás ao veneziano?

 

- Eu? Não tenho nada a explicar. Foi o seu filho Marco que obteve o cavalo em troca do jogo de xadrez.

 

O homem encara Michele com um sorriso subtil.

 

- Muito bem. Desconfia, porém. Talvez Niccolo Polo não te tenha dito tudo. Os Venezianos são conhecidos pela sua duplicidade.

 

- Niccolo Polo já viaja há tanto tempo que passou a ser menos veneziano. E eu gozo de toda a sua confiança.

 

- No entanto, negoceia com os muçulmanos, e até contratou um guia infiel.

 

- É o melhor do Oriente. Também o escolheria se fosse idólatra.

 

Na miniatura, as dunas assemelham-se a vagas carregadas de espuma.

 

O SEGREDO

Os meus cumprimentos, Marco! Na verdade, fizeste um excelente negócio. Por um jogo de xadrez como aquele... Eu próprio não faria melhor!

 

Marco, muito ufano, acaricia o pescoço do garanhão.

 

- Estás a tornar-te um verdadeiro mercador veneziano. Falta-te mostrar-me o que vales como homem - acrescenta Niccolo, piscando o olho. - Vem comigo, levo-te aos banhos mouros... Vai preparar-te.

 

Marco atravessa o pátio e, ao passar pelas celas comuns, acena a Noor-Zade para se lhe juntar, e depois sobe para o seu quarto.

 

Marco muda de roupa, atrás de um biombo no qual se vêem bordadas aves de plumagem flamejante.

 

- Noor-Zade, preciso de te pedir um favor...

 

A rapariga apruma-se. O jovem surge, sorridente, todo vestido de branco, com umas calças tufadas e uma faixa larga índigo à cintura. Estende à rapariga algumas moedas. Ela não lhes pega, na expectativa. Marco aproxima-se, pega-lhe no pulso fino. Um rubor intenso cobre Noor-Zade até à ponta dos cabelos. Marco reforça a sua atitude. Deposita as moedas na palma da mão da rapariga e dobra-lhe os dedos.

 

- Noor-Zade, vai ao bazar e compra atributos do teu sexo.

 

- Tem algum encontro galante? - indaga ela com uma ponta de inveja na voz.

 

- Talvez - replica Marco, enigmático. - Na verdade, gostaria de te ver bem ataviada.

 

Noor-Zade sente-se percorrida por um frémito escaldante.  - E o tal encontro, senhor Marco?

 

- Vai ser esta noite, contigo... - murmura ele, de olhar inflamado.

 

Noor-Zade não responde, mas conserva o ouro que Marco lhe deu na mão fechada. Volta-se repentinamente e sai do quarto.

 

Lá fora, o ruído, a multidão. Um homem que leva um longo sabre pendurado à cinta interpela imediatamente a jovem, para lhe vender um turbante à moda. Recusando com um gesto discreto, a rapariga entra no bazar, a passos largos. Mas os clientes de saída atrasam-na. Passa por várias lojas, antes de se deter na de um mercador de perfumes e pinturas. O homem, depois dos cumprimentos de boas-vindas, doces como mel, convida-a a sentar-se num pequeno tapete já gasto e serve-lhe uma taça de natas. Em seguida, apresenta-lhe várias placas de argila, pintura para os lábios de todas as cores. Vai buscar grandes recipientes onde empilha pós de quermes e sementes de anis. Mostra-lhe ervas de virtudes soporíferas, ou afrodisíacas, ou ainda abortivas. Noor-Zade deixa-se entreter com todo o prazer, reencontrando, mas apenas por breves momentos, recordações da sua vida passada. Revê-se, ainda menina, sentada ao lado do pai, descobrindo, maravilhada, os objectos heteróclitos e excepcionalmente inúteis que os mercadores nómadas expunham em grandes peles já gastas.

 

Acaba por escolher cortes de uma seda preciosa que as mulheres de Tabriz usam por baixo do pesado haik que as cobre da cabeça aos pés.

 

- Aquele, é o marido que o despe - explica o homem com um sorriso cúmplice.

 

Por fim, decide-se por uma simples capa de seda branca com o capuz levemente debruado a crina de cavalo para tapar os olhos. Passa um pouco de goma de cidra pelo pescoço, que exala imediatamente um suave perfume acidulado.

 

Sai da loja já de noite, o bazar encontra-se praticamente deserto.

 

Pouco depois, encontra-se sozinha no labirinto em que as lojas fecharam as portas umas atrás das outras, presas com uma simples tábua. Escondida atrás de uma tenda, retira da algibeira a pintura para os lábios, esfrega o indicador na argila. Baixa o véu que lhe cobre o rosto e passa o dedo avermelhado pela boca.

 

Um homem que acaba de embalar as suas bugigangas estende a Noor-Zade um colar de granadas e de nácar. É magnífico, mas ela não tem quem lho ofereça. Continua a avançar e dá consigo diante de uma parede. Volta atrás, perde-se, entra em pânico antes de reconhecer a loja onde fez as compras, cuja porta se encontra agora fechada.

 

Niccolo acompanha o filho aos banhos mouros e arrasta consigo Matteo, cheio de dores, como habitualmente, lamentando-se de que o banho acabará por dar cabo dele.

 

- Se falasses verdade - troça Niccolo -, ficaríamos tranquilos... e tu também.

 

Vexado, Matteo cala-se e segue atrás do irmão.

 

Ao transpor a entrada da porta, a frescura que ali reina arrepia Marco. Niccolo bate as palmas e surge uma miríade de mulheres, em silêncio e de olhos baixos, que rodeia Marco. Niccolo dirige-lhe um rasgado sorriso cúmplice, antes de desaparecer.

 

As mulheres conduzem o jovem para uma sala com o tecto em abóbada ricamente decorada. Mantêm-se obstinadamente em silêncio. Entre elas, Marco distingue uma mulher de pele escura e lábios grossos, mas de feições tão correctas como as de uma veneziana. O véu realça, como uma maquilhagem, os seus imensos olhos negros, sombreados por longas pestanas, que batem delicadamente. A densa cabeleira escura forma uma verdadeira armação nas costas da jovem, envolvendo-a como uma capa até à cintura bem torneada. Quando ela o toca, Marco sente a doçura do seu cabelo, tão subtil como a da seda que roçaga ao ritmo dos seus passos. O cabelo da jovem brilha como a promessa de uma noite estrelada.

 

As mulheres conduzem-no através de uma série de salas, cujo calor aumenta à medida que avançam por aquele labirinto. Marco ainda tem tempo para examinar a segunda sala, enquanto as odaliscas o despem, deixando-lhe apenas uma simples tanga em volta das ancas, à moda antiga. As paredes são ricamente decoradas com vidraças lápis-lazúli. O tecto alarga a sua curvatura ocre de cada lado da sala, assentando em colunas de mosaicos coloridos, de dominante turquesa. O sol espreita através do vidro colorido, estampando longos feixes de luz dourada, precisos como flechas, nas fitas de vapor branco. Transpirando, Marco diverte-se a iluminar os corpos, piscando os olhos. Aos poucos, o jovem começa a sentir-se purificado do suor da viagem.

 

Deitam-no numa ampla bancada de mosaicos que forma uma saliência ao longo da parede. O calor das lajes apazigua-o divinamente. Subitamente, uma mulher avança, de olhos translúcidos e fixos, guiada por uma menina. A cega enverga um longo corte de pano branco que a envolve e se lhe cola à pele húmida. A hetera de cabeleira de ébano retira, com um gesto determinado, a tanga do veneziano. As outras mulheres pousam as mãos da cega nas ancas de Marco. Os dedos percorrem as coxas e a sua virilidade já bem patente, rapidamente, em gestos de perícia, como para encontrar terreno conhecido. O jovem não ousa mover-se. Não pode deixar de pensar em Noor-Zade, em Donatella. A cega acaricia-o com uma determinação firme. Singularmente, ele sente por detrás daquela energia toda a exigência do amo - Niccolo Polo. A mulher esboça um gesto de aprovação e retira as mãos. Em seguida, desaparece.

 

Pouco habituado a encontrar-se assim despido em frente de tantas mulheres, desajeitado, Marco tenta dissimular a nudez, constatando, desgostoso, que para tal não lhe bastam as mãos. Mas as mulheres não prestam atenção ao seu pudor nem à sua indecência. Não o observam mais atentamente do que se estivesse vestido, acostumadas como decerto estão a receber dezenas de homens por dia. Elas próprias também se encontram despidas, na sua maioria, de forma subtil e delicada, deixando entrever, sob um véu de cetim ou um colar de pérolas, as partes mais surpreendentes do corpo feminino. Enquanto, lá fora, as mulheres se cobrem de tecidos para se dissimularem perante os olhares estranhos, ali, as sedas revelam, impudicas, uma nudez oferecida. Marco pensa em Alexandre Magno, que porventura terá vivido encontros como aquele, no seu tempo. Marco nunca teria sido capaz de imaginar que pudesse haver mulheres tão diferentes. Algumas possuem uma forma de rosto, uma cor de pele como ele jamais viu. Uma pele clara mas de um tom levemente azeitona, com olhos que se rasgam desmedidamente para as têmporas. Um nariz pequeno e uma boca grande, cabelo fino e preto, de um comprimento impressionante, que elas enrolam na nuca. Entre elas, falam uma língua que não parece formada por palavras, assemelhando-se mais ao coaxar das rãs.

 

O jovem nunca contemplou tantos corpos de mulher. Boquiaberto, descobre a multiplicidade das suas formas. Algumas já são mesmo idosas e, menos pudicas do que as mais novas, deambulam à vontade nos seus corpos adiposos e enrugados, de seios reconfortantes descaídos até ao umbigo, ventre flácido, nádegas gordas. Os olhos deleitados do veneziano fixam os seios que se exibem à sua frente. Pequenos e pontiagudos, redondos e escuros, chatos e moles, em forma de maçã, raiados por veias, erguidos para o céu ou, pelo contrário, aspirando ao repouso na terra. Alguns pendem, desprotegidos, outros resistem, corajosos, aos sinais cruéis do tempo que imprime as marcas da sua impiedosa exigência nestes corpos à sua mercê.

 

Estes pares de seios são acompanhados por toda a espécie de nádegas. Pesadas, pequenas, firmes, crivadas de covinhas, erguidas e musculosas, ou nádegas gordas, estriadas por linhas brancas, de pele grumosa. Nádegas que pendem ou nádegas que se estendem. Nádegas de linhas redondas ou duvidosas. Nádegas que atraem ou nádegas que repelem.

 

Todavia, todas elas têm em comum, tanto quanto se pode ver, uma tatuagem. Marco não consegue distinguir o desenho com precisão, mas é idêntico em todas elas, na base do pescoço, perto do queixo. Marco aprenderá mais tarde que esta é uma maneira de as reconhecer se vierem a sair do lupanar, o que não estão autorizadas a fazer.

 

A rapariga de pele escura exibe sobrancelhas fartas cuja curvatura realça a doçura e a firmeza do seu olhar sombrio. Com um movimento gracioso do braço, repele para trás das costas a magnífica cabeleira. E Marco contempla as mechas langorosas que ondulam nas ancas estreitas. Por detrás do véu nacarado, adivinha-lhe os lábios carnudos e brilhantes, sente vontade de os morder com toda a força. Baixa os olhos, envergonhado destes pensamentos ávidos.

 

Como se todas elas tivessem adivinhado a sua escolha, é precisamente ela que atrai Marco para uma nova sala, mais pequena do que as anteriores. Ultrapassado o limiar, parece-lhe que vai sufocar. O ar é irrespirável. Uma densa bruma torna a atmosfera opaca. Quer voltar atrás, mas a jovem de pele escura puxa-o suavemente pelo braço. Convida-o a sentar-se em grandes pedras esculpidas de motivos afrodisíacos e mostra-lhe como respirar suavemente. Aos poucos, habitua-se ao vapor, perfumado de eucalipto. Diverte-se a imaginar que respira dentro de água, como um peixe. Recorda os mergulhos na laguna de Veneza... há uma eternidade. Em breves instantes, fica encharcado. O cabelo cola-se-lhe à pele. Na bruma vaporosa, Marco julga adivinhar silhuetas masculinas - Niccolo e Matteo? - acariciados por jovens de corpos magníficos. Nesta sala, as mulheres permanecem silenciosas, decerto esmagadas por aquela atmosfera pesada, enquanto ele as ouve conversar, e mesmo rir, através das paredes. A rapariga do cabelo cor de azeviche fala pouco. Como ela, Marco cala-se. Por breves instantes, Marco sente-se um sultão no seu harém. É provavelmente o que o pai deseja oferecer-lhe. Mas o pensamento de Noor-Zade não o abandona. Passado um momento, a jovem convida-o a levantar-se e a acompanhá-la à sala precedente, onde o ar é mais respirável. Aí, deita-se de novo nas mesmas lajes quentes que o apaziguam, como a frescura de uma manhã de Verão.

 

Por detrás dos véus impudicos, a beldade negra de cabelo escuro manipula-lhe o corpo sem desvelo, esfregando-lhe com um vigor cruel todas as parcelas da pele, com a ajuda de um pano áspero. Tem o corpo a escaldar, avermelhado. Estes movimentos descolaram placas de sujidade que se estendem em rolos finos pelas coxas, pelos braços. Marco sente-se como um cavalo almofaçado. Depois, com gestos leves como carícias, ela envolve-o numa camada de argila. Por fim, manda-o sentar-se e asperge-o com várias selhas de água gelada, obrigando-o a soltar gritos de horror.

 

Envolto num corte de pano grosseiro, acompanha a hetera até um quarto exíguo, mais fresco do que os outros. Ela fecha a porta decorada de volutas vertiginosas. Estão sozinhos. Por meio de um gesto, a rapariga pede-lhe que se deite no chão, num confortável tapete de linho. Ela ajoelha-se perto dele.

 

- O meu nome é Mira - diz ela bruscamente, em persa.

 

Marco sente-se tão surpreendido que nem tem a certeza de que ela tenha realmente falado.

 

- E eu, sou...

 

- ...o filho do senhor Polo - conclui ela com um sorriso dócil.

 

A rapariga oferece a Marco frutos secos e uma taça de vinho de figos. O jovem escolhe uma tâmara.

 

- Que pele tão leitosa tens, Senhor! E a cor de fogo do teu cabelo, e os teus olhos! Nunca vi algo que se assemelhasse.

 

- Sabes lisonjear quem te visita, Mira.

 

Com um sorriso, ela verte umas gotas de óleo nas palmas das mãos, cheirando a baunilha, e começa a massajar Marco. Aos poucos, ele descontrai-se, enlanguecido por um torpor vaporoso. Agora, observa Mira de perto, repara nos seus lábios brilhantes cor de terra escura, o traço de khôl que lhe sublinha as pálpebras - um segredo feminino que Donatella ignora... - e os ardentes arabescos que tem desenhados no corpo, onde ele julgara ver um pedaço de tecido. Marco admira, fascinado, a precisão e a graça da guipura que a cobre. Nos tornozelos, enrola-se uma liana rendilhada que figura um cordão delicadamente trabalhado. Em redor do pescoço, um colar fino, de malha requintada. Volutas bem delineadas elevam-se das nádegas até aos rins, que estreitam delicadamente nas suas correntes lascivas. O desenho realça a elegância da cintura, a curvatura das nádegas, a concavidade das ancas, ou ainda o arredondado dos seios. O espectáculo é magnífico, de cortar a respiração. Mais do que nunca, Marco sente-se possuído por um desejo violento de Noor-Zade. Imagina o seu corpo tatuado como o de Mira. Fecha os olhos.

 

Noor-Zade avança rapidamente pela ruela escura. Só as paredes caiadas reflectem a pouca luz de que necessita para lhe guiar os passos, que ela desejaria largos. Ao fundo de uma passagem mais ampla, avista uma patrulha de soldados. Instintivamente, sente-se Apaziguada, mas, sob o disfarce que usa, bem sabe que nada tem a esperar deles. Estuga o passo, o que já é praticamente impossível. Pensa em Marco e surpreende-se a sorrir, sozinha.

 

Subitamente, sente um peso nas costas e os braços apertados contra o corpo. Enquanto se debate, apercebe-se de que se trata de Um homem, sente a sua virilidade contra as nádegas. ”É Marco!” pensa imediatamente. Invade-a uma vaga de calor intenso, escaldante, desconhecida.

 

- Larga-me, larga-me, por favor, peço-te! - grita ela, entre risos.

 

Mas o amplexo é brutal e Noor-Zade nem sequer consegue voltar-se para ver o adversário. Ao calor segue-se imediatamente um pânico indescritível, infindável, como uma tempestade de areia que se desencadeia. Simplesmente fugir. Ilusório. De repente, desequilibrada por aquele peso intenso, é empurrada contra a parede, no meio da escuridão. Incapaz de lutar, sente-se muito enfraquecida sob aquele peso que a esmaga. Continua a debater-se. Marco rir-se-ia, como ela... Naquele instante, começa a tremer, pensando que aquilo que assim a prende, aquele que a mantém em seu poder não pode ser Marco. Por breves instantes, censura-se por se ter deixado surpreender, sozinha no mundo. Na verdade, contra aquela força, nada é possível. Encostada à parede de pedra, de rosto esfolado, repele a barreira que a esbofeteia, mas sente ainda mais duramente as intenções do agressor; presentemente, ele esfrega-se contra ela, freneticamente. A jovem começa a gritar, mas uma mão tapa-lhe a boca. O chão parece fugir-lhe por baixo das pernas. Sente-se escorregar, incapaz de permanecer de pé. Agora, é a terra que lhe fere o rosto, os seus olhos choram e ardem-lhe, doridos. Aquele peso em cima dela, aquela mão contra os seus dentes sufocam-na, deixando-a sentir um gosto infecto. Asfixia. Ainda tenta desesperadamente respirar um pouco de ar. Mas, como é possível que não deseje morrer? O instinto de sobrevivência - tão injusto e odioso! - impõe-lhe a sua lei intolerável. Os braços esmagados contra o peito magoam-na. Finca-se no chão para se levantar. Ouve-se vociferar, suplicar, emudecida, que a deixem partir. E, em seguida, perguntas que lhe martelam o crânio prestes a explodir: Quem? Porquê? Em cima dela, o homem esfrega-se cada vez mais violentamente, como se quisesse... Não! Subitamente, sem saber como foi possível, sente circular o ar entre as coxas... mas não por muito tempo. Por obra de um joelho, com certeza, abrem-se-lhe as pernas, a despeito da sua resistência. Tenta libertar-se. Sem nenhum ruído, o homem movimenta-se entre as suas pernas e um membro rude e de grandes proporções, duro como gelo e frio como pedra, penetra no seu corpo tão árido quanto a sua garganta. A dor aguda leva-a a soltar um grito, mas a mão que lhe tapa a boca só deixa escapar um sopro. Veloz, selvagem, a queimadura profanadora impõe-se. Noor-Zade quer repeli-la, mas é demasiado tarde. Lamenta imediatamente que aquilo esteja a acontecer. Dilacerada a cada movimento, quer que o homem se detenha, ou que seja apenas mais brando. Mas ele, pelo contrário, começa a fustigá-la, brutal. Experimenta a sensação de que um instrumento de madeira desliza dentro dela, forçando a passagem a cada impulso dos rins, demorado e profundo. Gostaria de vociferar, de se debater desordenadamente, mas ele detém-na, retém-na. Tenta erguer-se a fim de lhe fugir. E cada tentativa intensifica o ardor viril, e a dor do ventre. Bloqueia, então, a respiração, como se receasse provocar algum gesto, deixando escapar um qualquer suspiro. Fechando os olhos à dor, sufocada pelos soluços, brotam-lhe das pálpebras lágrimas salgadas. Dentro do seu coração, ainda recusa entregar-se. Não renuncia à luta. Porém, aos poucos, incapaz do mínimo movimento, julga perder a consciência. Um objecto, um animal de quem o homem se serve. Ele imobiliza-a, asfixia-a sob aquele peso horrível. O peso do mundo que há-de olhar para ela. E se a vissem assim naquele momento? Não! Aquele pensamento é-lhe quase tão intolerável quanto o resto. Os soluços sufocam-na, presos na garganta. Agora, só queria que ele a deixasse chorar, não gritaria, apesar da dor. Todo o seu corpo sofre, de braços dobrados, de pernas abertas, de rosto esfolado, de boca mortificada, de peito atrofiado sob aquele peso que se liberta da raiva no seu ventre em fogo. Gostaria de estar longe, algures, mais tarde, antes. Para além da dor e do vexame. Não, não gritaria, porque não se grita contra a humilhação. Ouve a respiração entrecortada, animalesca, do intruso, pois só um animal seria capaz de lhe infligir aquele padecimento. Num brusco golpe de misericórdia, violento e fundo, ele penetra-a até a rasgar.

 

E depois, subitamente, de forma tão brutal como quando sofreu o ataque, a rapariga sente-se livre. Nada mais em cima dela, nem entre as coxas, nenhuma mão a tapar-lhe a boca, nenhum hálito no pescoço. Precipitadamente, tenta erguer-se, vacila, cobre-se com as vestes rasgadas.

 

Retoma o fôlego como pode, entrecortado, e afasta-se, calmamente, sem se voltar. Todo o seu corpo está tenso, mas ela não quer dar mostras de medo, de dor. Então, avança, altiva, recusando-se a sentir as lágrimas que lhe inundam as faces. Já fora forçada a ceder, mas nunca tão violentada. Ouve que alguém a persegue. Mas não, não se voltará, para que ele não lhe veja o rosto mortificado. Mas ele não se importa, não são os traços do seu rosto que lhe interessam.

 

Noor-Zade quase cai, precisa de se agarrar à parede. Os passos do homem ressoam atrás dela. Sobressalta-se ao vê-lo, tão perto oculto por um turbante feito de toesas de tecido, impassível, fruindo do seu crime enquanto a contempla. Às escuras, o monstro observa-a, como um animal. Nas pálpebras abertas e húmidas, a imobilidade dos olhos das estátuas. A raiva apodera-se dela, a injustiça do sol na terra árida.

 

- Vai-te embora - grita ela. - O que mais queres tu? Deixa-me!

 

A rapariga grita, nas ruelas desertas. Ninguém veio socorrê-la. Agora, não gostaria de que alguém a visse, sobretudo ele. Submerge-a uma onda de ódio, uma vontade de matar, mais forte do que tudo. De repente, lembra-se do alfange que Marco lhe ofereceu. Discretamente, segura-o na mão fechada e, num gesto de raiva capaz de devastar o mundo, lança-se sobre ele, de lâmina erguida, com todo o ardor da sua honra ultrajada. O homem levanta os braços para se proteger, mas não suficientemente depressa, e o metal enterra-se-lhe na carne, na concavidade do ombro. É com uma alegria intensa que ela sente penetrar a lâmina. Mas a mão que ainda há pouco a prendia detém-na. O homem - mas será mesmo um homem? - aperta-a até a obrigar a soltar a arma. Então, Noor-Zade pensa que vai morrer, pensa nos seus que, de resto, já a consideram morta.

 

- Cabra! Como te atreves?

 

Noor-Zade crispa-se de terror. Não precisa de luz para reconhecer o sotaque persa de Kunze al-Khair.

 

- Esqueces que fui o teu primeiro amo... E Marco Polo julga poder guardar-te para seu ”uso pessoal”! Vou contar-lhe tudo...

 

- Não! - ouve-se a si própria gritar.

 

Cravando o seu olhar negro na jovem, Kunze meneia a cabeça, antes de retomar a voz doce e calma.

 

- Se não disseres nada, também me calarei. Será o nosso segredo...

 

Kunze abre a mão, libertando o punho da rapariga. Esta dá um

1 salto para trás. Ele é o primeiro a afastar-se, sem se voltar. A sua ampla capa abre-se como as asas de uma ave predadora.

 

Noor-Zade apanha do chão a faca que o homem largou. Aliviada, vê a fina lâmina tinta de sangue. Sente-se tentada a limpá-la, mas decide não o fazer, como prova do que acaba de sofrer. Cautelosamente, pega num pedaço das suas vestes rasgadas, envolve a arma com delicadeza e guarda-a no bolso.

 

De regresso ao caravançará, Noor-Zade desliza furtivamente até à cela que partilha com a criadagem. Àquela hora, como seria de esperar, encontram-se todos no pátio quadrado, descansando antes de se recolherem. Aliviada, precipita-se para se lavar e esfregar com a energia de uma demente. Trémula, cobre de argila o rosto maculado de lágrimas secas. Raivosa, arremessa para longe a roupa suja que não consegue lavar da vergonha. Pega no magnífico véu que comprou em honra de Marco e envolve-se nele. Deita-se, apertando as mãos num gesto de oração, crispa os dedos na pulseira. Todavia, mesmo invocando os deuses, não consegue acalmar-se. Ouve um ruído que a sobressalta - julga que vai morrer.

 

Marco Polo espreita para dentro do quarto.

 

- Que se passa? Estás a tremer.

 

- Nada! Não se passa absolutamente nada!

 

Marco encara-a, surpreendido. Noor-Zade apercebe-se de que gritou. Volta a cabeça.

 

- Está tudo bem, senhor Marco.

 

- Mentes! - exclama o jovem. - Tremes, estás doente! Precisas de ser tratada.

 

- Sim! - confessa ela. - Estou doente. Tem razão!

 

Marco aproxima-se lentamente, ergue a mão, ela recua, ele aproxima-se ainda mais suavemente, toca-lhe na testa, sente o seu hálito quente e húmido nos dedos.

 

- Tens febre, deita-te, sentir-te-ás melhor.

 

Noor-Zade abandona-se. Marco senta-se perto dela e acaricia-lhe o cabelo, com uma imensa delicadeza. Sempre que os dedos dele a afloram, ela sobressalta-se. O silêncio da noite é tão profundo que ela o ouve respirar e ele ouve roçagar as mechas do seu cabelo sedoso na palma da mão.

 

- Noor-Zade, o teu cabelo é tão suave. Vê como corre pelos meus dedos como água. A mais pura água.

 

A voz de Marco ressoa como veludo aos ouvidos da jovem.

 

- O meu sonho é tocar na tua pele, mas... não me atrevo. Todavia, és minha escrava - afirma Marco, como se não acreditasse nas suas próprias palavras. - Deixa-me estreitar-te nos braços...

 

Cada vez mais apaziguada, Noor-Zade gostaria de continuar a ouvir aquela voz doce a seu lado.

 

- Estás doente, vou retirar-me.

 

- Não! - exclama ela, angustiada. Os seus olhares cruzam-se: azul-negro.

 

O peso do jovem deitado em cima dela reaviva a dor do seu corpo martirizado. Um arrepio de terror percorre violentamente a espinha e os membros da rapariga. Marco ilude-se quanto ao que julga ser um frémito voluptuoso. Ela recorda o sentimento fugaz, mas violento que sentiu quando, precisamente antes de ser violada, julgou que fosse Marco quem a abraçava com tanta força. Mas não era ele. Noor-Zade aperta-o contra si, em busca de protecção. Ele penetra no seu calor, experimentando uma serena exaltação. Admira aquele lindo rosto de olhos fechados, julgando-a desfalecida, extasiada, mas ela chora por detrás da escuridão das pálpebras e o que ele julga serem gemidos apaixonados são soluços que a sufocam. Noor-Zade chora durante todo o acto de amor, e Marco ri-se daquelas lágrimas cujo significado ignora.

 

OS ADORADORES DO FOGO

Agarrem que é ladrão! Agarrem que é ladrão! A aurora ainda mal se adivinha e já a voz de Niccolo ressoa contra as antigas paredes de pedra do caravançará.

 

Marco, ainda ensonado, precipita-se para a balaustrada. O pai tem o cabelo desgrenhado, está seminu, a despeito da fresca temperatura matinal, os olhos saem-lhe das órbitas.

 

- Desapareceu a galheta dos santos óleos!

 

Nesse momento surge Matteo, ajustando desajeitadamente a pequena calote no crânio envelhecido.

 

- Tens a certeza? Onde estava ela?

 

- Mas, ali, ali! Vem! Venham! Venham todos comigo! Matteo e Marco acompanham-no ao quarto. A rapariga que ali passou a noite ainda se confunde com os lençóis da cama desfeita.

 

- Trago-a sempre comigo, pendurada ao pescoço, com a-tabuinha do Grão Cão, e... vejam! - exclama Niccolo exibindo o peito peludo apenas coberto por uma grosseira túnica de tecido de algodão. - Já cá não está!

 

De facto, resta-lhe apenas a tabuinha, na qual brilham algumas marcas recentes deixadas por unhas.

 

- Que fazemos, Niccolo? - indaga Matteo, preocupado. - Já não levávamos os monges, agora o óleo, não poderemos apresentar-nos assim diante de Cublai...

 

Niccolo começa a andar de cá para lá, dentro do quarto, furioso.

 

- De mãos a abanar, eu sei, Matteo. Seria uma grande ofensa. Mas já perdemos um tempo precioso em terras de Além-Mar. E temos de nos apressar a chegar a Khanbalik, pelas razões que conheces

- acrescenta ele, com um ar entendido.

 

- Senhor Niccolo, não nos esqueçamos de que a neve nos bloqueará lá mais para diante - observa Kunze, que acabou de se introduzir discretamente no quarto, numa voz dengosa.

 

- Estamos na Primavera, senhor Kunze - intervém Marco. O guia volta-se para o jovem.

 

- Não conhece as neves eternas, senhor Marco... Se for essa a vontade de Deus, grande e misericordioso!, teremos de regressar a Jerusalém.

 

- A vontade de Deus, senhor Kunze! Por enquanto, só estou a ver um acto de um ser de carne e osso - replica Marco.

 

O persa arregala os olhos, chocado. Mas é Niccolo que pergunta:

 

- O que queres tu dizer, Marco?

 

- Esse óleo não tem valor comercial. Por que lhe roubaram a galheta e não os rubis que ofereceu a essa rapariga e que ela traz ao pescoço? E por que não a tabuinha com os mandamentos do Grão Cão?

 

- Será possível que o cão da Horda de Ouro, inimigo de Cublai, queira impedir o sucesso da nossa embaixada?

 

- E por que não optamos por enviar um só mensageiro a Jerusalém, enquanto a caravana permanece aqui, à espera? Seria muito mais rápido - sugere Marco. - Ofereço-me como voluntário.

 

Niccolo franze o sobrolho, irritado com a perspicácia do filho.

 

- Nicco, se me permites, parece-me que o rapaz tem razão.

 

- Afinal, talvez tenha sido uma boa ideia trazer-te connosco. Ardendo de cólera, Marco sente dificuldade em se conter.

 

- Senhor Niccolo, não será disto que se trata? - interroga a voz doce e calma de Kunze.

 

O persa levanta o lençol e pega num cordão cuidadosamente entrançado, da extremidade do qual pende uma pequena bolsa de couro curtido.

 

- Ohimé, Kunze!

 

Desconfiado, Niccolo examina o interior da bolsa, da qual retira a pequena galheta prateada.

 

- Meu salvador! - exclama ele, apertando o guia nos braços. - Sim, é isso! Mille grazze, mille!

 

Niccolo enxuga as lágrimas de alegria, antes de olhar à sua volta como se recobrasse subitamente consciência.

 

- Saiam todos, deixem-me vestir!

 

Todos os presentes obedecem, habituados às variações de humor de Niccolo Polo. Kunze lança um estranho olhar a Marco. Pelo canto do olho, enquanto o pai revolvia tudo o que se encontrava no quarto, o jovem apercebera-se da silhueta de Kunze entrando no quarto. E seria capaz de jurar que ele já trazia na mão fechada a pequena bolsa de couro.

 

Saindo da galeria do caravançará, Marco cruza-se com um criado que transporta uma bandeja de natas e pão. O jovem retira-lha das mãos e regressa ao quarto de Niccolo, que o escravo da noite ajuda a vestir.

 

- Marco! Que queres tu? Eu disse que saíssem todos.

 

- E ela? - pergunta Marco, decidido a ficar.

 

- Ela não conta - responde Niccolo, esboçando um gesto negligente.

 

Para se dirigir ao pai, o jovem troca o persa pelo seu dialecto veneziano.

 

- Meu pai, não posso deixar de lhe transmitir uma impressão, ou mesmo mais do que isso.

 

- De que estás a falar? - interroga-o displicentemente o pai, mais interessado na rapariga, que também está a vestir-se, com os trejeitos próprios do seu ofício.

 

- Creio que foi o próprio Kunze que trouxe a galheta e a dissimulou debaixo do lençol.

 

Niccolo franze as sobrancelhas escuras.

 

- As tuas acusações são insultuosas para o meu guia, e para mim, que o escolhi.

 

- Permita, ao menos, que me certifique.

 

- E como o farás, se não te importas?

 

- Isso é comigo - replica Marco com um olhar determinado. - Lembre-se de que fui eu que trouxe a galheta de Jerusalém.

 

Niccolo ignora a observação do filho.

 

- Serei condescendente. Toma! - diz ele, desatando o cordão do qual pende a galheta.

 

Sem hesitar, o jovem abre a pequena galheta e leva-a ao nariz. Esboça um esgar de repulsa.

 

- Meu pai, receio bem que a minha impressão se torne uma acusação... Kunze...

 

Niccolo interrompe-o com um gesto.

 

- Serias capaz de jurar que assististe ao seu procedimento, Marco? Condená-lo-ias à forca por uma ”impressão”?

 

- Decerto que não, meu pai.

 

- Nesse caso, se não for condenado à forca, não terás necessidade de confirmar essa afirmação, non e vero ?

 

- Certo - vê-se Marco forçado a admitir, embora prometa a si mesmo deslindar o caso. - Porém, meu pai, a galheta liberta um odor intenso e nauseabundo, enquanto a que eu lhe dei cheirava a jasmim.

 

Intrigado, Niccolo leva a galheta ao nariz, que é imediatamente obrigado a tapar, dada a intensidade do eflúvio.

 

- É verdade, a galheta fede. Mas, como podes estar assim tão certo de que algum dia exalou o perfume do jasmim? Eu próprio nunca a cheirei. Além disso, como conheces essa fragrância, tu, que nunca estiveste nos países do Levante?

 

Alguém tossica atrás deles, provocando-lhes um sobressalto.

 

Kunze entra bruscamente no quarto banhado pela poeira do sol. Saúda o mercador veneziano, com a mão apoiada no coração, ignorando Marco.

 

- Senhor Niccolo, conheço esse fedor. É um óleo usado pelos zoroastrianos.

 

- Os zo... quê? - exclama Marco.

 

- Os adoradores do fogo - explica Niccolo, com um gesto de evidência.

 

- Devem tê-lo substituído - sugere o persa. - Devo informá-lo de que Samud desapareceu.

 

- O chacal! - exclama Niccolo.

 

- Mas com que fim teria roubado o óleo, é absurdo? - interroga-se o jovem veneziano.

 

- Organizemos uma acção punitiva, senhor Niccolo.

 

- Não, meu pai, tratemos de saber, em primeiro lugar, se ainda estão na posse do santo óleo e tentemos recuperá-lo.

 

- Acredita que o senhor Cublai saberá que este óleo não é o do túmulo de Cristo?

 

Niccolo encara o persa com desprezo.

 

- Senhor Kunze al-Khair, muito me surpreende verificar que encara a ideia de enganar o seu amo e senhor neste mundo, obrigando-me a perder a face à sua frente!

 

- Não foi isso que eu quis dizer...

 

- Mas foi isso que eu ouvi.

 

- Decerto por não dominar convenientemente a vossa língua, senhor Niccolo; queira perdoar-me.

 

- Por mim, domino a tua suficientemente bem para te dizer que, se conheces dezassete dialectos, também deves saber ter tento na língua quando é preciso.

 

Niccolo volta as costas ao persa, que se desfaz em vénias de humildade.

 

- Se Vossa Senhoria me autorizar, serei o guia do seu filho, a fim de recuperarmos o óleo na posse dos zoroastrianos... A Pérsia é a minha terra.

 

Niccolo volta-se para Marco, de sobrolho erguido.

 

- Vês, Marco, procedeste mal ao acusá-lo. Faremos como Kunze diz. Vai!

 

Descendo rapidamente às estrebarias do caravançará, Marco, mortificado, sela ele próprio o novo cavalo. Com o sangue a latejar, monta-o. Michele, que entretanto acorrera, tenta detê-lo e estende-lhe as rédeas da sua montada. Marco recusa, depois de gratificar o amigo com um olhar de reconhecimento. O animal esfrega os cascos brancos na terra, empinando-se de impaciência, tal como o dono, enquanto Kunze se prepara para partir. Marco esporeia o cavalo, sem permitir que Kunze o alcance para o guiar. A galope, afastam-se em direcção ao norte. Algumas léguas adiante, não se vislumbra mais nenhum rasto de habitações. A planície árida foge debaixo dos cascos dos animais. Cavalgam a toda a brida até avistarem as chamas de um templo zoroastriano. Reduzindo drasticamente a velocidade, Marco segura o cavalo entre as tenazes de aço que formam as suas pernas, e Kunze puxa pelos freios com a maior brutalidade. Os cavalos ofegam ruidosamente, suando a coberto das selas. Enquanto se aproximam, a passo, Marco decide-se a interrogar o persa:

 - Senhor Kunze, quem são os zoroastrianos?

 

- Senhor Marco, surpreende-me que não saiba, o senhor, um cristão - desfere Kunze, impiedoso.

 

- E a mim surpreende-me que o senhor conheça o odor do óleo contido na galheta, sem sequer o ter cheirado!

 

O guia dirige um olhar mordaz ao veneziano.

 

- Eles seguem os preceitos do mestre, Zaratustra. Consta que, logo que os reis magos regressaram da visita ao filho do vosso Deus...

 

- Julguei que tivéssemos o mesmo Deus...

 

- Entre o vosso Pai, o vosso Filho e o vosso Espírito Santo, conseguimos sempre descobrir um Deus, louvado seja Ele!, susceptível de ser adorado em conjunto - admite Kunze, pérfido. Aos reis magos, foi oferecida uma caixa que só deveriam abrir depois de chegarem à sua terra. Mas, impacientes, eles abriram-na e encontraram uma pedra. Sentiram-se tão decepcionados, ansiosos como estavam por um magnífico presente, que lançaram a pedra para trás, e ela produziu uma enorme chama. Daí a crença dos zoroastrianos, segundo a qual o fogo é de origem divina. Terá ocasião de observar, senhor Marco, uma singularidade das suas práticas. Possuem em grande abundância um óleo que arde mas não pode ser ingerido, e é tão grande a sua quantidade que dez navios não bastariam para o transportar. Pode revelar-se muito nefasto a quem não o usar com parcimónia.

 

- E de onde vem esse óleo?

 

- De uma nascente perto do mar Cáspio, mais a norte.

 

Os dois homens alcançam a entrada da seita ainda ofegantes, com o pêlo dos cavalos reluzente de suor. Eleva-se no ar um fumo denso e negro que exala um intenso mau cheiro, o mesmo da galheta. A fachada do templo ergue-se, direita e austera, deixando transparecer uma cúpula ao centro e chamas brilhando nas quatro esquinas. Uma grande porta encimada por um arco em abóbada confirma a austeridade do conjunto, ao qual nenhum ornamento dá um ar de graça. Por detrás do templo, ao alcance do tiro de uma balestra, encontra-se a nascente de onde brota o óleo, escuro e viscoso. O odor é tão sufocante que Marco sente tonturas.

 

À entrada do recinto, Kunze penetra resolutamente pela porta aberta aos quatro ventos.

 

Um homem jovem e corpulento saúda-os, erguendo um braço sem mão. No centro do templo, aberto para o céu, um grande poço alberga um altar onde arde uma chama, de um cheiro intenso e nauseabundo.

 

Kunze, sem se apear, interroga o homem maneta. Este afasta-se para dentro do recinto do templo e regressa com a galheta de prata, irmã gémea da que fora obtida por Marco. O persa esboça um gesto para se apoderar dela, mas é o jovem veneziano, mais rápido, que lhe pega. Destapa a galheta a reconhece a suave fragrância do jasmim.

 

- É precisamente isto - confirma Marco, apaziguado.

 

- O maneta diz que um homem com um só olho lhe pediu para efectuar a troca - esclarece Kunze.

 

- Um homem de um só olho como...

 

No mesmo instante, por detrás do maneta, Marco tem a surpresa de reconhecer o cicerone, Samud.

 

- Fornece-nos uma explicação - pede delicadamente Marco. O outro abre a boca para falar, mas Kunze exibe o chicote. A correia enrola-se no pescoço do rapaz. O persa salta do cavalo e, com um gesto firme, atrai Samud para junto de si.

 

- Traidor! Pagarás o teu crime com a morte.

 

Samud volta para Kunze um olhar de incompreensão. Sem mais delongas, este desembainha o sabre que traz pendurado à cinta e, com a lâmina curva, degola o rapaz.

 

- Kunze, endoideceu?!

 

O infeliz ainda tenta proferir umas palavras, mas o sangue brota-lhe da garganta em gorgolhões. Soluça violentamente, antes de cair de borco no chão. Após um derradeiro sobressalto, o corpo imobiliza-se, embebendo a terra de sangue.

 

Ignorando Marco, que o fixa de olhos arregalados, Kunze limpa a lâmina ao turbante da vítima, embainha-a de novo e, depois, enrola o chicote com uma lentidão aplicada, atando-o em volta das ancas. Antes de voltar a trepar para a sela, ordena aos zoroastrianos que se ocupem do cadáver, como é seu uso e costume, deixando-o apodrecer numa esteia, a fim de que a morte não conspurque o fogo.

 

Os dois homens galopam durante toda a noite sem trocar uma palavra, iluminados pela lua, em quarto decrescente. Chegam ao caravançará aos primeiros alvores da aurora. No pátio, os dois irmãos Polo encontram-se em animada discussão, com certeza a propósito da odalisca que Niccolo agarra firmemente pelo punho. Ouvindo os cavalos, os Polo voltam a cabeça e Marco vê o rosto ruborecido do pai erguer-se para ele.

 

- Marco! O que é isto?! - exclama Niccolo, puxando pelo braço da hetera. - Encontrei-a no seu quarto!

 

A rapariga caída no chão não é outra senão Noor-Zade, envergando uma túnica de gaze de seda branca com reflexos ondeados de ametista. A farta cabeleira, que se adivinha por baixo do véu, cai-lhe pelas costas até às coxas. Selvagem e frágil, é uma imagem magnífica.

 

- É a minha escrava - responde Marco.

 

- Sinto-me feliz por o reconhecer. Pelo que me diz Matteo, trata-se da rapariga que o Signor Zeccone comprou em Veneza. É verdade, Signor Marco Polo’?

 

- Sim, é verdade - replica Marco, altivo.

 

- E devo então concluir que o meu sócio ficou assim privado de um bem que lhe pertencia?

 

- Neste momento, já pode considerar-se reembolsado, não é verdade? E ele pagou-lhe esta rapariga, não? Assim, de que se queixa o senhor? Saiba ainda, meu pai, que, uma vez que nem ele nem o senhor me cederam a sua filha, Donatella me concedeu a honra de me dispensar a sua escrava!

 

Niccolo recorda-se perfeitamente do encontro com o Signor Zeccone.

 

- Mudaste muito, meu pequeno Marco...

 

- Não! Foi o senhor que nunca olhou para mim. Nunca fui o seu pequeno Marco. Como pode o senhor atrever-se, depois de termos saído há quase um ano de Veneza, a dizer-me o que devo beber ou comer, ou ainda a escolher as heteras no bousbir para os quais me arrasta com os seus gracejos de macho? Durante os quinze primeiros anos da minha existência, nunca se preocupou com o filho único que teve nem com a mulher! Na verdade, só nos faltava uma coisa: o senhor, Niccolo Polo. Agora, que o conheço, compreendo que me equivoquei. O que me faltava era um pai... E vejo que continua a faltar-me...

 

Niccolo, incomodado, mesmo sem saber porquê, permanece imóvel, sob o choque, observando Noor-Zade, mas com o olhar perdido no vazio.

 

Marco retira das dobras da túnica a galheta que lhe queima o peito. Arremessa-a ao pai, que a apara in extremis com a luva de couro.

 

- Fique com ela, Marco Polo - admite Niccolo, passado um momento.

 

Larga Noor-Zade, que se precipita para os braços de Marco.

 

Erguendo-a nos braços, o jovem leva-a para dentro do caravançará, abandonando os irmãos Polo, que nem ousam trocar um olhar.

 

- Vamos partir - decide Kunze, com a voz ainda mais doce do que habitualmente.

 

A NOITE BÁRBARA

A hora da nona, a expedição, formada por uma quinzena de animais, faz-se à estrada. Privados da protecção da grande caravana arménia, os venezianos decidiram trocar as vestes venezianas por trajes locais, mais discretos e em harmonia com o clima, uma longa túnica que lhes chega aos joelhos, calças de tecido de algodão, botas de pele, turbante em volta da cabeça. Até mesmo Noor-Zade, que já não disfarça a feminilidade, se distingue daquelas silhuetas apenas pela longa trança que lhe fustiga as ancas. Dispersos pela planície cada vez mais árida, mantêm-se a uma certa distância uns dos outros, evitando falar. Marco ignora o pai, cavalgando atrás de Noor-Zade, que, de vez em quando, se volta para ele, dirigindo-lhe um olhar brilhante como laca ao qual ele responde com um sorriso. Mas há um homem, Kunze, cujo olhar não os abandona. Sob os cascos dos cavalos, as pedras rangem. Do fundo, chega-lhes o murmurejar de uma torrente. O planalto é coberto de pedras nuas e soltas. No solo, arenoso, salpicado de cardos ou de ervas secas e murchas, vislumbram-se, de vez em quando, reflexos avermelhados.

 

À frente deles, na concavidade de um vale, ergue-se Saveh, que porventura alberga o túmulo dos reis magos. Niccolo ordena que façam uma paragem. Marco, curioso, pede autorização ao pai para ir visitar a sepultura. Michele decide acompanhá-lo, sob o olhar desconfiado de Kunze.

 

Mal se encontram a sós, Michele acelera para alcançar o amigo.

- Marco, montar o garanhão de Tabriz é uma loucura! - exclama ele, quase a vociferar.

 

- Porquê? Não estás a ser razoável, Michele. É meu, já te esqueceste?

 

O judeu pega nas rédeas e, baixando de tom:

 

- Marco, este animal não te estava destinado. É um presente do qual necessitamos, uma prova de amizade para com Abaga, o ilcão da Pérsia.

 

- Que me dizes?

 

- O príncipe Eduardo de Inglaterra pediu ao ilcão que atacasse a Síria.

 

- O que ele fez, bem sei.

 

- O garanhão é uma maneira de lhe agradecer e de perpetuar o acordo que une os dois príncipes. Perdoa-me, Marco, mas tu não sabes montar. Podes magoar o cavalo.

 

O veneziano franze os olhos, incrédulo.

 

- Mas como é que Bonnetti podia saber...?

 

- Eu próprio cumpria uma missão na Pérsia durante o Verão da tua estada em Acre. Se me acontecesse alguma desgraça, a mensagem teria de chegar ao destinatário. Uma caravana de mercadores é mais discreta e habitual do que a de um embaixador.

 

A raiva enrubesce as faces de Marco.

 

- Serviste-te de mim, Michele! Considerei-te meu amigo.

 

Michele responde-lhe com um sorriso:

 - A minha confissão não é uma prova de amizade?

Os seus olhares fixam-se demoradamente um no outro.

 

Em Saveh, os habitantes, na sua maioria muçulmanos, ignoram totalmente a história dos reis magos e desinteressam-se dela como do primeiro turbante do Profeta. Os dois viajantes acabam por descobrir o túmulo, cuidado por um monge nestoriano, que masca frutos secos com um ar sofredor, imbuído de uma evidente culpabilidade. No túmulo, os corpos, exumados, estão expostos à vista de todos, ainda inteiros. O cabelo e a barba, conservados através dos tempos, conferem-lhes uma expressão de vida. Marco contempla demoradamente este testemunho de uma parte da sua história, ignorado e perdido no interior da Pérsia. O monge, depois de lhe propor que partilhe com ele o seu manjar, confessa, contrito, que deve haver outros túmulos dos reis magos, mas que aquele é o único autêntico. Como prova o facto de ter sido poupado pelos Mongois.

 

De regresso à caravana, Marco convida Noor-Zade a montar o garanhão. A jovem, emocionada, ilumina-se num sorriso caloroso. Não repele a mão que pousa em cima da sua quando ele lhe entrega as rédeas do animal. Niccolo fulmina o filho com um terrível olhar. Matteo aproxima-se imediatamente de Marco.

 

- Meu sobrinho, o meu irmão sente-se muito irritado por ver que autoriza a escrava a montar o garanhão.

 

- Pois bem, meu tio, queira explicar ao seu irmão que eu não só a autorizo a montar o garanhão, como a convido a fazê-lo.

 

- E por que razão, não me dirá?

 

- Poderia não lhe responder. Todavia... saiba que me agrada vê-la cavalgar aquele magnífico animal.

 

A uma curta distância, Kunze cerra os dentes quase até quebrar os queixos.

 

A caravana cavalga até uma aldeia onde um pastor descarnado, coberto de cicatrizes recentes e de marcas de agressões, os informa de que Abaga atravessou o território cerca de um mês antes. O ilcão exigira que os cavalos fossem alimentados, mas não restava aveia, palha nem erva que pudessem satisfazer os animais do exército mongol. Assim, a despeito dos protestos e das súplicas dos camponeses, Abaga ordenara-lhes que ceifassem a seara de espigas de trigo ainda tenras e que as servissem aos cavalos. As tropas roubaram e devastaram tudo o que pudesse ter préstimo na aldeia e arredores. O pastor, amargurado, desculpa-se por não poder satisfazer as exigências da caravana. Niccolo ordena que lhe ofereçam um fardo de lã.

 

O pastor corre atrás deles, suando e arquejando. Suplica-lhes que o levem com eles. Perdeu o seu rebanho e toda a família, e pretende conhecer as línguas do Império Mongol e as estradas. Niccolo deixa-se persuadir, ordenando a Shayabami que partilhe a montada com o pastor.

 

- Será possível, meu pai? - surpreende-se Marco, que aproximou o seu cavalo do de Niccolo.

 

Este tarda a responder ao filho.

 

- Responde! - ordena Matteo, com uma autoridade inesperada que o irmão nunca lhe conheceu.

 

- Ele gaba-se para ter a certeza de que terá direito a encher a [barriga.

 

- Mas se descobrirmos que nos mentiu...

- Expulsá-lo-emos. Não nos podemos dar ao luxo de levar connosco mais uma boca para alimentar.

 

- O que terá ele a lucrar?

 

- Estes pobres miseráveis não vêem mais do que um palmo à frente do nariz.

 

No dia seguinte, passam a noite num acampamento de nómadas turcomanos. As tendas de pêlo de camelo, baixas e escuras, contrastam com as que a caravana carrega, leves e claras.

 

- Vejam como as suas tendas são primitivas! - exclama Marco.

 

- É verdade, Marco - retorque Niccolo. - Todavia, é ali que vivem durante todo o ano e talvez sejam mais resistentes do que as nossas.

 

À medida que avançam, o calor infernal abate-se cada vez mais sobre a paisagem plana e monótona. Nestas paragens, a Primavera de 1272 assemelha-se ao Verão. A despeito das exacções cometidas pelas tropas mongóis, continuam a ser recebidos com as maiores atenções nas aldeias que atravessam. Estas populações desfavorecidas receiam os portadores da tabuinha de ouro como os próprios mongóis e esperam que os mercadores lhes deixem algumas das suas riquezas. As mulheres e as crianças andam descalças. Logo que chegam a uma aldeia, os habitantes desenrolam tapetes em sua honra, à sombra, e oferecem-lhes pão e leite azedo. Depois, servem-lhes uma verdadeira refeição, com carne, sopa e arroz. Os homens de todas as idades servem-se e, depois, lançam os restos às mulheres e às filhas, que se precipitam para os apanhar. Noor-Zade, envergonhada, enojada, afasta-se para vomitar o que acaba de ingerir.

 

Ao retomarem a estrada, Matteo resmunga contra o tempo que faz, um forno desumano e pouco propício a viagens.

 

- A época ideal para atravessar a Horda de Ouro - deplora Niccolo.

 

- Ainda assim, concordaste.

 

- A escolha foi essencialmente tua, Matteo.

 

E continuam os dois a discutir quanto às condições climáticas que não conseguem dominar, e a vociferar alto e bom som contra a fatalidade e o Papa.

 

Marco sorri, Michele esboça esgares.

 

- O que tens tu?

 

- Nada, um mau trânsito intestinal.

 

Ao longe, na planície, brilham as pequenas pedras da cidade de Qazvin. A cidade estremece sob o efeito do calor, como se, qual miragem, estivesse prestes a desaparecer. Iluminada, como uma jóia em exposição, pela luz do sol poente, a cidade ergue-se no deserto ocre. As casas apresentam-se, quase arrogantes, sem muralhas, adossadas às fortes paredes de pedra de uma poderosa fortaleza. À medida que avançam, as decorações das torres e das muralhas destacam-se do esplendor do crepúsculo. Azulejos de faiança exibem entrelaçados de motivos coloridos. Marco assiste à entrada na cidade de uma longa caravana de dez mil camelos que desaparecem um a um atrás das casas, como uma interminável coluna de formigas.

 

Envoltos nas longas túnicas e nos turbantes, os cavaleiros penetram na cidade, que exala um intenso odor a cominhos e a suor. Niccolo sente-se feliz por encontrar abrigo nesta região inóspita. Mas continua a queixar-se do calor, que, no entanto, ainda não atingiu o auge, no entender dos habitantes. Estes afirmam que, ali, o sol é capaz de matar quem não estiver habituado àquele clima. Tudo começa com uma violenta vertigem, seguida de um forte acesso de febre. Conta-se ainda que todo aquele que permanecer sob os raios ardentes fica queimado e muda de cor, nunca mais voltando a recuperar a carnação natural.

 

O mercado de Qazvin é dos mais prósperos, rico em tecidos variados, do algodão bruto aos mais finos tafetás. Matteo compra várias peças de seda de Ghella e de Chamakhi, que considera das mais bonitas, e que espera revender no Catai. As ruas encontram-se apinhadas de gente. Devido ao forte calor, que amolece os corpos e entorpece os espíritos, as pessoas avançam devagar. Marco acompanha o pastor ao bazar, onde espera encontrar fardos de lã de carneiro selvagem. Passeia-se demoradamente, deleitado com as especiarias que ali se encontram em grande quantidade: cravinho, noz moscada e cinamomo. Por acaso, cruza-se com Kunze, que lhe

 mostra pérolas provenientes de Ormuz. O persa pretende que nascem dentro de grandes conchas escamadas que os pescadores vão buscar ao fundo dos oceanos, pondo em perigo a própria vida. Mostra a Marco uma dessas ostras muito brancas que teria contido uma pérola.

 

À noite, juntam-se a Niccolo e Matteo numa tasca onde um homem toca uma música lancinante. Michele ficou deitado, esgotado pelo calor e pelas cólicas que o obrigam a repousar cada vez mais frequentemente.

 

Agachado diante de loukoums, frutos secos e leite perfumado, Niccolo examina o mapa, enquanto saboreia um figo.

 

- Senhor Niccolo - adianta Kunze, palpando uma guloseima que tem na mão -, renunciámos à estrada do norte, que era a melhor, porque já a conhecíamos. O caminho ainda é longo e o senhor não é homem para querer perder tempo. Desçamos até Ormuz, onde embarcaremos num navio que nos conduzirá às costas do Catai. É a via mais rápida e mais segura.

 

Kunze aguarda a resposta de Niccolo. Este reflecte, de sobrolho carregado, com a boca cheia de um grande loukoum que lhe deixou os lábios polvilhados de açúcar.

 

- Senhor Kunze, o seu discurso surpreende-me - ousa dizer Marco, com uma arrogância inocente. - O senhor, que é da Pérsia, devia conhecer a sua terra e saber que já terminou a estação dos comboios marítimos.

 

- Como é que sabes, tu, que não és desta terra? - pergunta Niccolo, de boca cheia.

 

- Disse-mo o pastor que nos conduziu até aqui e que encontrou no bazar dois primos de Ormuz.

 

Niccolo fita Marco, aliando a admiração à surpresa. Kunze cala-se, continuando a mastigar.

 

- A monção não permite nenhuma partida antes do próximo ano - prossegue Marco, vendo que todos o ouvem atentamente.

 

- Lembre-se, senhor Niccolo - intervém Kunze, que optou por ignorar Marco -, de que os senhores são marinheiros e de que a travessia dos mares vos é mais familiar do que a das montanhas, sobretudo a cadeia do Pamir e a do Hindu Kuch.

 

- É verdade - admite Niccolo.

 

- Precisamente por ser marinheiro, sou capaz de avaliar a qualidade dos seus navios, que é muito má - prossegue Marco, que ganha segurança. - Meu pai, nem sequer são pregados a ferro, são cosidos com fibra de coqueiro.

 

- Como assim? - indaga Matteo, furioso.

 

- Malham a casca da árvore até parecer crina de cavalo. Resiste à água do mar, mas não a uma tempestade. O casco dos navios só é preso por cavilhas e fibra de coqueiro!

 

- Mas estes mares do sul não são tão tranquilos, tão calmos quanto os seus habitantes, atacados pelo torpor em que os mergulha o calor ardente do sol? - interroga Matteo.

 

Marco olha de soslaio para Kunze.

 

- Meu tio, não me parece que os habitantes destas regiões tenham esse temperamento. Pelo contrário! Considero-os sanguíneos. Consta que, alguns deles, são mesmo canibais.

 

- É também do que os acusam os Mongóis e verás que não é verdade - observa Niccolo.

 

- Alcançar Ormuz representa uma viagem de sessenta dias calcula Matteo.

 

- Pelo menos - especifica Kunze.

 

- Se o que Marco diz é verdade, seremos obrigados a retroceder caminho - inquieta-se Matteo. - Partimos de Veneza há um ano e ainda nem atravessámos a Pérsia!

 

- Já perdemos muito tempo - acrescenta Marco.

 

Niccolo engole de um trago o último loukoum e decide, num tom que dá a discussão por encerrada:

 

- Prosseguiremos por terra. Amanhã, de madrugada!

 

No dia seguinte, após duas escassas horas de estrada, sem o pastor, que encontraram assassinado debaixo das suas janelas, abateu-se sobre eles um enxame de moscardos, devorando os cavalos até o sangue lhes escorrer pelos peitorais. Os animais assustam-se e correm a galope, na mais absoluta desordem. Nos dias que se seguem, os ataques tornam-se cada vez mais frequentes. Matteo, à beira de uma crise de apoplexia, suplica ao irmão que tenha uma ideia. Niccolo pede a opinião de Kunze. O persa decide, então, que devem viajar de noite. Todos aceitam esta opção com alívio.

 

A caravana retoma a caminhada ao cair da noite. A planície estende-se a perder de vista, longínqua e imensa. As montanhas orlam o horizonte. De madrugada, Marco tem a impressão de que não avançaram nada. À sua frente, sempre a mesma paisagem, idêntica à da véspera. Passam as horas de calor numa muda abandonada, da qual apenas resta uma pequena parte do telhado para lhes dar sombra. Empilham-se uns sobre os outros, incluindo os animais, para os protegerem dos insectos. Marco, agora, presta uma especial atenção ao garanhão. Aproveita esta proximidade forçada para estreitar Noor-Zade contra si. Sem trocarem uma palavra, encostados um ao outro, reencontram aliviados a felicidade simples deste contacto carnal. O calor acaba por atacar os últimos resistentes ao sono. Húmidos de suor, voltam a partir, sem a impressão de terem repousado.

 

Chegam a Teerão na última noite da Primavera. A cidade não é mais fortificada do que Qazvin e podem entrar na cidade sem esperar pela abertura das portas. No seu palácio, situado no meio de um pomar onde crescem maçãs anãs, o senhor da cidade recebe-os com grande fausto, encantado por homenagear mercadores que, como espera, trarão prosperidade à sua cidade. Felicita-se por Abaga não ter passado por Teerão. Niccolo interroga-o sobre os desígnios e o destino final do ilcão da Pérsia. Mas o senhor cala-se imediatamente, ignorando a pergunta. O prato principal do banquete é um cavalo servido com a cabeça. À sobremesa, comem ovas de esturjão, muito apreciadas na região, mas que não conseguem exportar. Marco regala-se com uma maçã anã de casca grumosa, cor-de-laranja como um sol poente, sumarenta e doce. Por fim, o festim encerra com tâmaras e pistácios.

 

Durante a estada na cidade, Kunze vai todos os dias à mesquita, onde pratica as abluções, como é seu dever, no meio de um conforto que a viagem não lhe pode proporcionar.

 

Finalmente, decidem-se a partir no fim do mês de Maio, para atingirem os montes do Pamir antes do Inverno. Vendo o estado dos animais, extenuados, tumefactos devido às picadas e às mordeduras de insectos, as ferraduras num estado lastimável, o senhor da terra decide oferecer-lhes cavalos novos, conservando os deles, que espera vender uma vez restabelecidos.

 

Ao meio-dia, depois de mastigarem alguns pedaços de esturjão seco, dormem a sesta numa casa abandonada perto de um rio. Depois, voltam a partir e, antes de anoitecer, alcançam uma grande cidade cujas muralhas, em ruínas, se estendem por uma inútil circunferência de pedras gastas, a exemplo da coroa de colinas despidas que a rodeia. Permanecem por vários dias nesta cidade irrigada por numerosos canais, onde os habitantes vêm buscar a água de que necessitam. Marco segue com o olhar as silhuetas claras das mulheres carregadas de bilhas de água que equilibram em cima da cabeça; os amplos mantos que as cobrem até aos pés enfunam-se ao vento, como velas de um barco no oceano. Caminham num passo seguro e quase viril, sem entornar uma gota do precioso líquido.

 

Nos primeiros dias do Verão de 1272, fazem-se à estrada ao crepúsculo, conduzidos por Kunze. O persa espreita as eventuais nuvens que possam encobrir as estrelas. Por cima deles, o céu estende-se, imenso, infinito. Marco começa a contar as estrelas, por brincadeira, mas acaba por desistir. Trota até se juntar a Kunze.

 

- Senhor Kunze, diga-me como procede para conhecer o caminho no meio desta escuridão.

 

Kunze observa-o por alguns instantes antes de responder.

 

- A noite não é escura para quem tiver os olhos abertos, senhor Marco. Olhe para cima de nós, se não houver nuvens, podemos ler no céu como na terra. Veja as duas constelações que têm uma forma geométrica quase perfeita, são os dois bois. Permitem-nos orientar-nos se a estrela Polar não estiver visível, quando descemos mais para sul. Senão, basta medir a distância que as separa ou a altura da estrela Polar acima do horizonte.

 

Kunze leva os dedos aos olhos, fechando um olho.

 

- Encontra-se a doze dhoubbans. Em breve teremos de subir para nordeste.

 

Chegam, por volta do meio-dia, a uma aldeia onde dormem durante toda a tarde. Voltam a partir ao pôr-do-sol. A meio da noite, atravessam os escombros de uma grande cidade onde ainda se erguem vestígios de minaretes. Os cavaleiros avançam em silêncio através das pedras roídas pela erosão e das casas abandonadas outrora palpitantes de vida. Só o ruído seco produzido pelos cascos ecoa pelas ruas fantasmas. Marco procura um rasto de vida, um sinal susceptível de ser visto. Imagina que as ruelas se animam, os operários transportando pedras para construírem novos edifícios. Vendedores de tâmaras à esquina das ruas interpelam os transeuntes. Há roupa a secar nos terraços. Mas as ruínas ostentam com indiferença o orgulho ferido dos homens. Marco não pode deixar de recordar Veneza, cidade morta, tragada pelas águas, coberta pela laguna, exibindo como único ornamento uma camada de algas. O Palazzo Ducale, agora habitado por peixes e conchas. E, no fundo arenoso, o anel do Doge...

 

A região que atravessam neste momento encontra-se totalmente devastada. A maior parte das aldeias encontra-se deserta, os habitantes fogem do refluxo mongol, receando o saque das terras sob a raiva da derrota. Os exércitos do ilcão Abaga não poupam nada à sua passagem.

 

Decorrida uma semana, param diante de uma fortaleza deserta. Um velho milagrosamente vivo diz-lhes que Abaga a atacou há menos de um mês, pois o seu senhor se rebelara contra a autoridade mongol. Todos os ocupantes da fortaleza foram massacrados ou feitos prisioneiros.

 

Dormem durante uma parte do dia ao pé das muralhas abandonadas. Com parcimónia, Kunze distribui víveres por todos os presentes. Voltam a partir à hora das vésperas. Ao luar, Marco observa Noor-Zade, que tem os olhos fixos no horizonte. Subitamente, compreende a paisagem do seu rosto, o aveludado da pele, que tão bem se alia às imensas e austeras extensões daquelas regiões áridas. O vento, a areia e o pó deslizam pelas faces lisas da jovem, descendo pelos grossos cílios que orlam as pálpebras estreitas, mais destinadas a ver do que a ser vistas. Tem os lábios tumefactos de água, mesmo quando esta escasseia. Como uma flor do deserto, Noor-Zade desabrocha cada vez mais, à medida que se aproxima da sua terra. Marco gosta de imaginar que se divertirá junto daquela gente que não conhece, recebido como o homem que lhes restitui a filha. Mas Marco nada sabe sobre Noor-Zade. Ela afirma querer reencontrar os seus. Ele não consegue conceber um pai para aquela rapariga, vinda de nenhures, de um mundo do qual seria a única sobrevivente. Todavia, enquanto avançam, Marco sente-se preso àquela outra terra, onde conhecia bem a presença de estrangeiros, mas sem ser capaz de pensar na sua vida, nos seus rostos. Agora, é ele o estrangeiro para quem os outros olham cheios de curiosidade. Bem recebido unicamente graças ao ouro que eles, mercadores, transportam certamente em quantidade considerável. Aqui, a miséria ultrapassa para além do imaginável tudo o que Marco viu em Veneza. Comer à saciedade é algo reservado aos privilegiados, mas ninguém parece queixar-se ou mesmo pensar que pudesse ser de outra maneira. Pergunta-se que ideia terá feito Noor-Zade dele, jovem peralvilho de Veneza. No meio de uma vaga confusão, lembra-se dos olhares que ela lhe lançou, quando a vendeu.

 

Pouco depois da aurora, alcançam uma aldeia que a maior parte dos habitantes abandonou, levando consigo os animais, com receio do exército mongol, que por ali passou há três semanas. As tropas incendiaram e pilharam as casas, furiosas por não encontrar gado. Depois disso, alguns aldeões regressaram e oferecem hospitalidade à caravana, nas casas vazias das quais fugiram à pressa os seus ocupantes. Marco repara em certos trabalhos inacabados, como um cozinhado de carneiro carbonizado numa caldeira, em cima das cinzas de um fogareiro, ou na oficina de um ferreiro, onde ainda se vêem peças de metal já cobertas de uma poeira quente. Os cavalos foram todos requisitados pelo exército mongol e a caravana dos Polo vê-se obrigada a aguardar que os cavalos repousem, antes de poderem partir.

 

Fazem-se à estrada dois dias mais tarde. O caminho está pejado de carcaças de cavalos descarnados.

 

- De onde vêm estes animais? - surpreende-se Marco.

 

- Os Mongóis são mais fortes do que os animais que montam noite e dia, até ao esgotamento. Degolam-nos sem piedade, quando já não os podem transportar, ou abandonam-nos pelo caminho.

 

A paisagem muda bruscamente, rasgando grandes círculos na terra. Os cascos dos cavalos enterram-se na lama seca. Desistem de parar em Damghan, demasiado devastada. Um homem, envelhecido pelas lágrimas que lhe escavam sulcos nas faces, conta-lhes que os fortes nevões do Inverno derreteram tão bruscamente que uma torrente violenta arrastou a cidade, destruindo as casas e o castelo, Submergindo os campos, afogando o gado. Niccolo oferece-lhe um saco de cevada, ele que, num outro ano, poderá ter de pedir auxílio e assistência.

 

A caravana prossegue sem se abastecer naquela planície desesperadamente monótona e árida. O calor aperta-os como num torno em que cada movimento, cada sopro constitui um sofrimento. A meio da noite, levanta-se o vento, mas, em vez de lhes proporcionar uma sensação de frescura, queima-lhes os pulmões, transmitindo-lhes a impressão de que caminham entre chamas invisíveis. O estado de Michele agrava-se. Cambaleia em cima do cavalo, prestes a cair. Fabricam-lhe uma espécie de assento para que se mantenha na sela sem esforço. Os olhos de Marco não o largam. Não puderam abastecer-se de água. Esfumou-se a esperança de encontrarem um oásis. Param unicamente para alimentar os animais, que ainda terão de encontrar forças para os transportar até uma região mais hospitaleira. Os cavalos mastigam com uma lentidão fúnebre a cevada que lhes é distribuída.

 

É em meados do Verão de 1272 que avistam Neyshabur. A uma légua da entrada da cidade, encontram um acampamento de nómadas. O chefe vem ao encontro deles e, após uma longa troca de cortesias, que nunca lhes pareceram tão reconfortantes, convida-os para a sua tenda, como ditam os costumes. Enquanto lhes oferece pão, acompanhado por natas e leite, assim como grandes melões muito doces, previne-os de que encontrarão Neyshabur deserta, como lhes aconteceu a eles próprios na véspera. Os Mongóis devastaram a cidade cerca de dez dias atrás, massacrando tudo o. que se lhes opusesse. A despeito deste sinistro relato e da sua extrema fraqueza, Michele aceita ingerir alguns pedaços de pão. Descansam durante todo aquele dia e no dia seguinte, numa grande tenda que lhes foi cedida. A despeito do esgotamento de todo o grupo, Niccolo decide prosseguir até Mashhad, onde espera encontrar um rasto de civilização, ou simplesmente de vida. Um dos nómadas aceita conduzi-los até às portas de Mashhad.

 

Decorridos dois dias, os cavaleiros recomeçam a viajar de noite. Embora o astro solar tenha desaparecido, a própria terra continua a irradiar um calor vindo do inferno. Certa noite, muito depois do sol posto, o vento traz consigo um amplo manto de nuvens que os mergulha numa escuridão total. Abrandam o ritmo. Marco já não vê os companheiros, nem sequer vê o cavalo que monta, só lhe distingue as orelhas, um pouco adiante. De pernas e costas entorpecidas, sente-se pairar acima do solo. A sua montada segue o cavalo de Noor-Zade, sem precisar dos impulsos do cavaleiro. Só as pancadas surdas dos cascos dos cavalos são perceptíveis. Marco nunca viu uma noite tão negra. Arregala os olhos nas densas trevas. Meio conturbado pelo calor, imagina-se no banho mouro de Tabriz, cego no meio daquelas mulheres que só poderia identificar por meio das mãos. Esquece a cor da pele de Noor-Zade, os seus olhos amendoados. Passando-lhe os dedos pelo rosto, pelo corpo desenhado por pudicos contornos, pela seda do cabelo que lhe acaricia os ombros, pelas ancas que se bamboleiam em redor dos rins, Marco sentir-se-ia um homem.

 

A coluna prossegue o seu caminho num silêncio inspirado na escuridão. Desta, eleva-se lentamente um odor. Bruscamente, solta-se um vento que assobia e varre as nuvens que encobrem a Lua. Marco pisca os olhos, deslumbrado pela noite. Avista, enfim, os companheiros, dispersos. Também ele se afastou deles, sem o saber. A extensa planície estende-se até ao horizonte em que a noite encontra a noite. Os cavalos aproximam-se uns dos outros. À sua frente, ao alcance de um tiro de balestra, erguem-se duas enormes torres no meio da planície. São irregulares, como se fossem feitas de rochedos empilhados uns sobre os outros. Chega até eles um mau cheiro atroz. À medida que se aproximam, Marco sente-se percorrido por um arrepio que o gela, a despeito do calor sufocante. O cavalo dá sinais de nervosismo. Aos poucos, os rochedos adquirem uma forma familiar, se bem que inabitual. Com os olhos postos numa das torres, no momento em que o jovem compreende por que razão este espectáculo não lhe é estranho, um grito poderoso rasga o silêncio. O cavalo de Marco empina-se, surpreendido. O jovem veneziano bem procura, mas, sem ver nada, não sabe para onde conduzir a montada, que se irrita, amedrontada. Retém o cavalo com todas as suas forças, sentindo os músculos do animal retesarem-se contra as suas coxas.

 

- Noor-Zade! - chama Marco.

 

De uma das torres, rolou um rochedo para o solo. Marco segura as rédeas, tentando evitá-lo. Baixando os olhos, sente-se petrificado de horror. Aos pés do cavalo, jaz uma cabeça humana em decomposição. Marco ergue os olhos para os dois edifícios. São constituídos por cabeças degoladas, soldadas umas às outras por argila. O horrível fedor impossibilita a aproximação. O guia nómada, com uma indiferença que lhes diz muito sobre tudo o que viu e sofreu, explica que os membros daquela tribo tiveram a audácia de se revoltar contra o invasor. Em certas noites, avistaram-se centelhas no cimo das torres. Marco apeia-se do cavalo e ajuda Noor-Zade a descer do dela. A rapariga treme como varas verdes. Não consegue deixar de fixar o espectáculo macabro. Marco desvia-a à força, estreitando-a quase até a asfixiar. Kunze aproxima-se para lhe alisar a cabeleira, que já começava a eriçar-se. O jovem sente a respiração de Noor-Zade apaziguar-se contra o seu peito.

 

- Nada receies, eu proteger-te-ei - murmura Marco, apesar de não se sentir muito seguro de si.

 

Noor-Zade ergue para Marco as pálpebras molhadas de lágrimas e, embora não se sinta mais convicta do que ele, as palavras do veneziano reconfortam-na. Voltam a subir para as montadas.

 

- Afastemo-nos, não fiquemos aqui! - exclama Niccolo. Numa grande confusão, todos se precipitam, a trote e a galope,

 

durante longos minutos. À cabeça da caravana, abrandando a marcha, Niccolo e Matteo olham-se, preocupados. Conversam em voz baixa. Marco aproxima-se deles.

 

- ...não há outra opção, temos de prosseguir! - responde Niccolo ao irmão. - Estamos apenas a alguns dias de viagem de Mashhad.

 

- E se não pudermos passar?

 

- Lembra-te da nossa primeira viagem. Em Bolgar, não conseguíamos avançar e, no entanto...

 

- E se reuníssemos uma escolta? - sugere Marco, com a voz marcada por um ligeiro pânico.

 

Michele e Kunze juntam-se a eles, seguidos de Noor-Zade, enquanto Shayabami se mantém afastado, perto das mulas.

 

- Para nos proteger de um exército de Mongóis? Não brinques, Marco.

 

- De resto, onde a encontraríamos, senhor Marco? - observa Kunze.

 

- E se fizéssemos aqui uma paragem? Afinal, temos a certeza de que não voltarão - sugere Michele, cheio de cólicas no ventre.

 

- Podíamos regressar ao acampamento dos nómadas, enquanto esperamos... - adianta Matteo.

 

- Esperamos o quê? - pergunta Niccolo, prostrado. - Não, meus senhores, só nos resta prosseguir.

 

- E se Mashhad... ? - murmura Matteo, sem terminar a frase.

 

- Matteo Polo! - grita o irmão, abanando-o. - Esqueces-te de quem somos, Matteo? Ainda não estamos mortos!

 

Os dois irmãos estreitam-se num abraço caloroso, prestes a sufocarem-se um ao outro, como se fosse a última vez. Mas, para já, aos olhos de Marco, aquele abraço fraterno assemelha-se mais ao primeiro, desde há muito tempo...

 

O ILCÃO DA PÉRSIA

Numa atmosfera fúnebre, acabrunhados pelo ar quente que os oprime até à sufocação, a pequena coluna de doze cavaleiros e outras tantas mulas prossegue a sua marcha numa paisagem hostil. O guia nómada voltou para junto dos seus. Quase incrédulos, vislumbram a vasta planície que, em Mashhad, se apresenta exposta num estojo formado por rochas às quais a luminosidade da aurora imprime tons avermelhados. A cidade ainda conserva as muralhas e a fortaleza intactas. Cheios de impaciência, aceleram o passo das montadas a fim de se apresentarem às portas da cidade antes que o sol se erga bem alto no céu. Matteo paga a portagem sem discutir. São imediatamente informados de que as tropas de Abaga não atingiram a cidade. Sem procurarem meditar sobre esta notícia, partem em busca de um caravançará, que encontram à entrada das muralhas.

 

Todos os membros da caravana, esgotados, se deixam cair no chão do vasto dormitório comum. O edifício encontra-se praticamente vazio. São recebidos como príncipes pelo dono que, depois dos cumprimentos da praxe, começa a negociar a estada, que prevê longa. A despeito do barulho e do vaivém dos raros viajantes que, imobilizados em Mashhad há algumas semanas com receio dos Mongóis, dão livre curso à sua impaciência, conseguem dormir vários dias a fio, com a tranquila segurança de terem reencontrado a civilização, depois daquelas longas semanas de cavalgada através de terras selvagens e tórridas.

 

Marco é o primeiro a emergir, esfomeado. Estendendo os membros entorpecidos e doridos, sai da galeria deserta. Ainda não nasceu o sol. O jovem acaricia com orgulho a barba cerrada. Compra um pouco de pão na sala destinada às refeições e, depois, prepara-se para tomar um banho. Está a barbear-se em frente de um pedaço de espelho, quando, subitamente, surge um homem em pânico, soltando gritos de terror no dialecto que é o dele. Marco pousa a navalha, sem pensar, e sai para o pátio quadrado do caravançará.

 

Estaca por baixo da arcada. Lá fora, um grupo de trinta cavaleiros, de pele morena e olhos rasgados, armados até aos dentes, apoderaram-se do recinto. À primeira vista, parecem cavalgar criaturas aladas, vindas de lendas fantásticas. Na realidade, cavalos e homens, trazendo gerifaltes pousados nos braços, arvoram couraças que lhes conferem um aspecto temível. Os cavalos de batalha, que são conduzidos à mão, exibem no cimo do crânio bestiários ornamentais. As próprias selas são magnificamente esculpidas, representando cada botão do arção da sela um animal diferente, à imagem do temperamento do cavaleiro. Um deles figura a cabeça de uma ave da rapina. Por baixo do capacete de ponta, vislumbra-se a cabeleira, parcialmente rapada nas têmporas e no crânio. Atrás das orelhas reúnem-se finas tranças negras. Barbas e bigodes, tão rígidos quanto os homens, descaem até ao peito de alguns deles. A túnica que lhes cobre as coxas mal dissimula as bragas de pele entaladas nas leves botas que os protegem durante as cavalgadas. Os cavalos de batalha carregam um arco, uma pesada clava, uma longa lança barbelada na extremidade e um sabre curvo, armamento altamente dissuasivo, que basta para honrar a sua reputação. O chefe, pouco mais velho do que Marco, mas que não consegue ocultar os estigmas da rude vida das estepes e dos sucessivos combates, aperta entre os dentes um pequeno chicote. Pele morena, olhos amendoados, maxilas de carnívoro. Formando parelha com a maçã do arção da sela, traz no punho uma águia real, coberta com uma máscara, que tem as imensas asas meio desdobradas. Num ápice, o pátio fica deserto. As próprias paredes parecem estremecer. Satisfeito, o chefe perpassa o olhar cintilante à sua volta, antes de o deter em Marco. Fascinado pelo aspecto bárbaro destes bandidos, o jovem veneziano debate-se contra uma angústia eivada de excitação. Pela primeira vez, oprime-o o medo dos povos com quem se cruzaram. Impressiona-o o fácies de pele morena e pálpebras cerradas, desgastado pelo vento das estepes. Os olhos de gato do chefe cintilam, enquanto segura na montada, retesando as coxas de cavaleiro extenuado, de guerreiro indómito. Com a mão enluvada, acaricia o rosto coberto de cicatrizes, ainda recentes. Apeia-se do cavalo, dando sinais de leveza. Dá duas passadas e encontra-se em frente de Marco, revirando o chicote no ar. Um fedor indefinível atinge brutalmente o veneziano, que engole a saliva com dificuldade. Discretamente, procura, em vão, o punhal que costuma trazer à cinta.

 

- És tu o enviado do nosso amo e senhor, o Grão Cão? indaga o soldado, em persa, sem mais preâmbulos.

 

Marco mal tem tempo para reflectir.

 

- Sou eu - responde ele com segurança.

 

- Prova-o - exige o outro, arrogante.

 

Marco volta-se, mas o guerreiro assenta-lhe a mão no braço,

 

como uma serra.

 

- Onde vais?

 

- Vou buscar a prova que reclamas.

 

- Vou soltar a minha águia. Se, quando ela voltar, não estiveres aqui, irei à tua procura para te degolar e matarei todos quantos se atravessarem na minha passagem.

 

- Já aqui estarei - garante Marco, tenso.

 

O cavaleiro larga-lhe o pulso. Retira a máscara à águia e, num gesto, lança-a para o céu. A ave solta-se num voo pesado, batendo as asas. Marco avança pausadamente até às arcadas, mas, mal sai do campo de visão do outro, sobe quatro a quatro as escadas que conduzem ao quarto. Àquela hora, ainda todos dormem. Marco salta por cima dos corpos, pisando-os sem cuidado.

 

- Pai, acorde! Depressa! Eles chegaram!

 

Niccolo resmunga, sonolento, resistindo ao despertar. Pela lucarna, Marco aprecia o voo da águia.

 

Resolutamente, levanta o pai e arrasta-o, meio adormecido, por entre os viajantes, que vociferam contra tão maus modos.

 

- Chegou um exército. Perguntam pelo enviado do Grão Cão.

 

Niccolo apruma-se, brutalmente desperto.

 

- Já lá vamos. Verás como devemos proceder à frente deles. Vou barbear-me.

 

- Não! Não dispomos de tempo para tal! - exclama o jovem, assustado.

 

Mas Niccolo, surdo à voz do filho, empertiga o peito nu e começa a vasculhar o conteúdo do seu saco.

 

- Vai procurar Shayabami. Quero vestir-me de veludo de Veneza.

 

Naquele momento, Marco, pela pequena abertura rasgada na parede, avista a águia que, como se mergulhasse do alto de uma nuvem, plana antes de descer lentamente em direcção ao pátio. O jovem, sem se demorar a reflectir, arranca a tabuinha de ouro do pescoço do pai e precipita-se para fora do quarto, desce as escadas a correr e salta para o pátio, precisamente no momento em que a ave de rapina pousa elegantemente no punho estendido. Ignorando o olhar feroz do cavaleiro, o jovem brande a tabuinha com os mandamentos do Grão Cão entre as duas mãos, como uma espada.

 

O mongol prosterna-se imediatamente à sua frente. Depois ergue-se e diz, em persa:

 

- Chamo-me Argun, mensageiro do ilcão da Pérsia, Abaga. O meu amo e senhor convida-te a ir visitá-lo no seu acampamento, onde se encontra com a sua Horda. Como te chamas?

 

- Marco Polo.

 

Entretanto, Niccolo, furioso, renunciando a apresentar-se na sua mais bela indumentária, surgiu envergando uma simples e leve capa que arrasta atrás de si como um longo manto. Atraídos pela agitação, Michele, Kunze e Matteo juntaram-se a eles, no pátio.

 

- Escoltá-los-ei até ao acampamento de Abaga - declara Argun, num tom que não admite réplica. - Partimos imediatamente.

 

Por meio de um sinal, o mercador ordena a Kunze e Michele que organizem a partida sem mais demoras. No momento em que Marco se prepara para os seguir, Argun esboça um gesto para o deter.

 

- Onde vais? Ainda não discutimos o preço da minha escolta. Marco encara-o, incrédulo.

 

- Ouvimos o teu pedido - responde Niccolo, aproximando-se humildemente. - Porém, como tu próprio disseste, dirigimo-nos ao encontro do Grão Cão. Ainda nos resta um longo caminho a percorrer e não podemos despojar-nos daquilo que nos permitirá prosseguir a nossa viagem.

 

- Quem és tu?

 

- Sou Niccolo Polo - retorque Niccolo, quase ultrajado, esquecendo-se de que já não está na posse da tabuinha de ouro.

 

- É o meu pai.

 

- Que a paz seja contigo - saúda Argun.

 

Examina os Polo de alto a baixo, com um ar concentrado.

 

- Mostrem-me as mercadorias que levam, dir-lhes-ei o que me é mais necessário a mim.

 

Niccolo engole com dificuldade, enquanto Michele, Kunze, Noor-Zade e Shayabami, terminados os preparativos, aguardam ordens, retraídos.

 - Levamos vinho... Uma verdadeira maravilha! - intervém Matteo.

- É vinho cozido?

- Não, é da nossa terra. O mongol solta um suspiro de alívio.

- Dá cá! Passando à frente de Matteo, Michele expõe várias garrafas de vinho. De um trago, Argun absorve uma quantidade que teria chegado para inebriar qualquer cristão, antes de oferecer umas gotas aos companheiros. Como revigorado, volta a instalar-se na sela, antes de lançar o cavalo a galope, para fazer uma demonstração da sua agilidade equestre. Depois, volta a cravar os olhos de gato nos de Marco. Niccolo monta a cavalo, imitado por toda a caravana.

 

Argun avança, a trote, em direcção a Niccolo.

 - Consenti em receber o teu miserável presente.  O jovem mongol solta um sonoro arroto.

 

- O que tencionas oferecer a Abaga, o nosso amo e senhor? Espero que tenhas escolhido um presente digno da sua divina pessoa. Ele é bisneto de Gengiscão!

 

- Podes ter a certeza de que o teu senhor será honrado, Argun - replica Niccolo, caloroso.

 

- Só terei a certeza depois de ver com os meus olhos - insiste o mongol com uma calma ameaçadora.

 

 Niccolo prepara-se para responder, quando Michele intervém com um gesto:

 

- Pois bem, avalia por ti...

 

Niccolo interroga Michele com o olhar, mas este permanece impassível.

 

O mongol volta a cabeça para apreciar o garanhão de Tabriz montado por Noor-Zade. De imediato, imprimindo um impulso às coxas, galopa até à rapariga, que não consegue evitar um movimento de recuo.

 

- O cavalo... - especifica Michele.

 

Marco quer avançar, mas Niccolo retém-no com a mão.

 

O mongol considera a mulher e o animal como um conquistador. Noor-Zade, com os dedos crispados nas rédeas e os braços rígidos agarrados ao pescoço do animal, nem ousa encará-lo: ela sabe que os Mongóis não toleram que o cavaleiro se agarre à crina do cavalo. O homem aproxima-se e dá uma volta em torno do puro-sangue, sem despegar os olhos da rapariga, qual fera avaliando a presa.

 

- Ele permitirá que eu os monte depois dele! - exclama ele, irónico.

 

E oferece mesmo uma nova montada a Noor-Zade, a fim de preservar o puro-sangue. Para a ajudar a apear-se, segura-a pela cintura. Se os braços musculosos do mongol não a tivessem segurado, a jovem teria caído.

 

Marco avança.

 

- O presente é só o puro-sangue! - explica o veneziano, calmamente.

 

O mongol fita-o com desprezo.

 

- O ilcão escolherá o que quiser.

 

- Mas não esta escrava, ela é minha - reforça o jovem. Passando a águia para as mãos de um dos seus homens, Argun ergue o chicote em direcção a Marco, mas o veneziano detém-no brutalmente. O mongol, surpreendido, ri-se. Arremessa a arma para longe e precipita-se sobre Marco, que se esquiva, mas Argun aplica-lhe um violento murro, entontecendo-o. Lança-se sobre o adversário e ambos rolam pelo chão. O veneziano sente o hálito avinhado de Argun mesmo a seu lado. Surpreende-o a força física do agressor. Ao fim de uns tantos assaltos, compreende que o outro se diverte à espera de o cansar para então o deixar estendido. O grupo dispôs-se em circunferência à volta deles. A escolta rnongol impede a intervenção dos homens da caravana. O combate está antecipadamente perdido. Pela primeira vez, Marco lê o medo nos olhos do pai. E esta visão aquece-lhe o coração, embora se sinta fraco.

 

O mongol ataca-o, rasgando-lhe a camisa. Ergue o punho, grosso como uma maça, prestes a esmagá-lo.

 

- Se me matares, é o qagban que ofendes! - declara Marco, num mongol perfeito.

 

O tártaro interrompeu o gesto mortal, com a estupefacção estampada no rosto. Escruta Marco intensamente. O veneziano não desvia os olhos.

 

Argun estende o braço para ajudar Marco a erguer-se. O jovem agarra naquela mão capaz de quebrar a sua. Levanta-se com dificuldade, a boca sabe-lhe a sangue fresco. Tem o lábio tumefacto e dorido.

 

O mongol monta o cavalo com uma delicadeza que contrasta com a habitual brutalidade. Volta a pousar a águia no pulso, e depois, com um aceno, convida Marco a segui-lo, à frente da coluna.

 

O calor amainou, quando, à hora das vésperas, retomam uma estrada entrecortada de etapas onde os aguardam cavalos descansados. Em algumas destas mudas, Marco chega a contar cem animais. Mal acabam de chegar, apeiam-se das montadas, que são substituídas por outras, já seladas, prontas a serem cavalgadas. Marco nunca viu semelhante organização nos reinos cristãos. Argun imprime-lhes um andamento forçado, avançam dia e noite por caminhos tão diversos que, por mais de uma vez, julgam perder-se. Às perguntas de Niccolo, o mongol responde sempre com um brutal resmungo. Não lhes permite que comam nem bebam. A Marco, que se insurge, Niccolo explica que o homem os quer debilitar, antes de os apresentar ao seu amo.

 

Após vários dias e noites nestas condições, Argun anuncia-lhes que se encontrarão no acampamento de Abaga um pouco antes da aurora.

 

Por várias léguas, estendem-se pelo menos três mil tendas, formando um imenso tapete do qual emergem colunas de fumo branco. Filas de carroças descrevem uma grande circunferência em redor do acampamento, como uma muralha. Perto das carroças alinhadas, vê-se um rebanho de bovinos, de cabeça baixa, em busca de alimentos. Disseminados pelo terreno, camelos de aspecto robusto mascam conscienciosamente as raras ervas que conseguiram encontrar. Mais adiante, cavalos tão corpulentos quanto os donos cavalgam em volta do acampamento. Pela estepe, espalham-se numerosos carneiros, como montículos de algodão. Crianças com apenas cinco ou seis anos de idade, rapazes e raparigas, montam a cavalo, com uma extraordinária destreza. Contornam, rindo, homens e mulheres, nus como vieram ao mundo, transidos, de punhos e pés acorrentados por pesadas cadeias, espólio das últimas razias dos Mongóis.

 

Marco avalia em cerca de dez mil estes numerosos bárbaros armados que vão restituir à vida. Volta-se para o pai, cuja expressão confiante contribui para o apaziguar. Niccolo dispõe-se mesmo a dirigir um sorriso tranquilizador ao filho.

 

Todavia, Marco não distingue indulgência nem doçura no olhar das mulheres e das crianças. A pequena caravana dos Polo avança lentamente pelo meio das tendas, despertando todas as atenções. Marco vê um grupo de mongóis que jogam com o que parece ser uma grande bola. Desvia os olhos, com o estômago virado do avesso, quando reconhece uma cabeça humana. Mais adiante, gritos indistintos - risos ou súplicas - suscitam nele uma furiosa vontade de se certificar de que ninguém clama por socorro.

 

Mongóis montam uma tenda um tanto afastada do acampamento. Com destreza, erguem a armação de galhos entrançados que a sustentará. Depois, fixam outras vigas que convergem em círculo até ao cimo, onde deixam um orifício em aberto. Cobrem o conjunto com pesadas tapeçarias de feltro. No chão, dispõem mantas que o isolam, deixando livre o espaço central, para acender a fogueira.

 

- Aqui está o vosso gher - declara Argun, esboçando uma vénia para se despedir.

 

Nota: gher - Tenda mongol chamada iurte pelos Europeus.

 

A sua maxila de predador, gratifica Marco com um sorriso.

 

- Preparem os vossos escravos para o argal teghiikii.

 

Marco volta-se para o pai. Niccolo faz um sinal de assentimento ao filho e explica-lhe no seu dialecto:

 

- Eles utilizam o esterco como combustível. São precisos braços para o apanhar. Penso que devias aceitar, Marco.

 

- Não quero deixá-la sozinha com eles! - insurge-se o jovem.

 

- Shayabami irá com ela.

 

O sírio, que compreendeu, acompanha o mongol, levando consigo Noor-Zade.

 

Um pequeno pedaço de carneiro e uma única tigela de milho-miúdo para sete pessoas comporão o seu regime frugal durante vários dias, por vezes completado por uma porção de cerveja de milho a distribuir por todos. Cozinham a carne na marmita pousada numa trempe que os mongóis lhes venderam. Shayabami cozinha o milho no caldo da carne, até adquirir um sabor que os estômagos não rejeitem.

 

Um grupo de mongóis arrasta-se pelas proximidades, no visível intuito de os vigiar. A despeito dos protestos de Matteo, vasculham todas as suas provisões.

 

A tenda é de dimensões tão reduzidas que os sete que perfazem o grupo têm dificuldade em se acomodar para dormir.

 

- Aqui está ela, a tal horda! - exclama o jovem, deixando-se cair no chão com todo o seu peso.

 

- A horda designa o acampamento e não o exército, Marco especifica Niccolo. - Eles são simplesmente bárbaros.

 

Após várias semanas deste regime de isolamento, o ilcão consente em os receber. Niccolo hesita em levar o filho com ele. Matteo objecta que Argun parece demonstrar alguma afeição por Marco e que este trunfo merece ser aproveitado. Preparam-se os três, envergando os melhores trajes de Veneza, capa, bragas de veludo, e chapéu a condizer. Marco pendura o sabre à cintura e leva a balestra ao ombro. Quando saem do gher, Argun, revelando sinais de impaciência, examina-os de alto a baixo com a habitual arrogância, detendo-se, em particular, no armamento de Marco.

 

A cavalo, seguem o mongol à distância de uma flecha arremessada por um arco, até uma grande tenda, de trinta pés de largura, de feltro caiado, cuja única entrada é magnificamente decorada, de vermelho e azul. Carroças carregadas de baús de ramos entrançados enquadram a tenda de ambos os lados, de tal modo que esta se encontra como entre duas paredes, ao abrigo das indiscrições.

 

Os mongóis circulam à sua volta, examinando-os atentamente e soltando exclamações de horror e surpresa. Muitos deles usam vestes esfarrapadas. Todos exalam um fedor repelente. O olhar azul oceano de Marco impressiona os espíritos, e o jovem acaba por gracejar, divertido. Alguns chegam mesmo a tocá-los, sobretudo na barba farfalhuda de Matteo, que se defende como pode daquelas mãos gordurosas e sujas.

 

Argun, com a sua elevada estatura, impede-os de penetrar na tenda.

 

- Que vieram fazer aqui? - indaga ele, cheio de sobranceria. O seu hálito cheira a cerveja de arroz acabada de ingerir. Precedendo Marco, Niccolo dá um passo em frente.

 

- Di-lo-emos ao teu amo e senhor.

 

- Terão de mo dizer primeiro a mim, se quiserem ter a honra de serem recebidos em audiência pelo ilcão.

 

- E por que te enviaria ao nosso encontro, se não nos quisesse ouvir de viva voz? - pergunta Marco, no mesmo tom reflectido do pai.

 

Todo sorrisos, Argun avança em direcção a Marco e retira-lhe o sabre, sem que o jovem tenha oportunidade de protestar. Apalpa-lhe o peito, os braços e as pernas, bem como os de Niccolo e Matteo, e confisca-lhes todas as armas, que passa para as mãos de um dos seus lugar-tenentes. Depois, ergue a cortina de feltro decorada com motivos de pássaros e árvores. Como todas as entradas, está orientada para sul.

 

- Imita-me em tudo o que eu fizer, disso depende a tua vida

- sussurra Niccolo ao ouvido do filho.

 

Penetra na tenda à frente dos outros, passa para o lado esquerdo da porta, seguido de Matteo, tendo o cuidado de não pisar o limiar da entrada. Marco reproduz os seus gestos com todo o cuidado.

 

Sente-se imediatamente submergido pelo odor a gordura rançosa e a uma sujidade há muito entranhada ao qual não consegue habituar-se. Com o coração na boca, cerra os dentes.

 

À entrada, encontra-se um banco com um odre de leite e taças de ouro e prata incrustadas de pedras preciosas. Por cima deles, ídolos com úberes de égua parecem saudar o visitante, à sua passagem. Ajoelhado perto do banco, um músico, de mão pousada numa cítara, encontra-se a postos. Ao centro, na fogueira acesa, ardem restos de espinhos e raízes de absinto, entre bosta seca. Um criado alimenta o fogo, lançando-lhe, de vez em quando, montes de excrementos. O interior da tenda encontra-se elegantemente decorado com reposteiros dourados e feltro bordado a várias cores.

 

Em frente da porta, sentado de pernas cruzadas num vasto leito que deve ter conhecido várias gerações de transumância, impera um homem de cerca de quarenta anos de idade, de músculos flácidos e pele luzidia em virtude do calor. Um comprido e fino bigode, sujo de recentes ágapes, pende dos dois lados da boca. Aquele homem é o único que usa uma túnica de tecido dourado e um gorro de arminho. O ilcão da Pérsia, Abaga. Massaja os joelhos, num trejeito de dor. À sua esquerda, encontra-se sentada uma rapariga muito jovem. Atrás deles, mulheres e crianças de todas as idades. Pendurados por cima do ilcão, outros ídolos de feltro, representando divindades.

 

Os Polo são convidados a sentar-se à frente do ilcão, à esquerda, num banco, do lado das mulheres. À direita, encontram-se os homens. Todos examinam os visitantes com igual curiosidade.

 

Abaga revolve nas mãos omoplatas de carneiro carbonizadas, que estuda cuidadosamente. Passa o dedo por uma fenda aberta pelo lume. Ergue os olhos raiados de tons de amarelo para os Polo, antes de se debruçar para Argun, que se ajoelhou à sua direita, apoiando as nádegas nos calcanhares.

 

- Abaga pergunta o que desejam beber - declara Argun, em persa, numa voz forte.

 

- O que mais agradar ao ilcão servir-nos - replica Niccolo muito delicadamente, na mesma língua.

 

Argun transmite a resposta a Abaga, que dá uma ordem esboçando um gesto. É-lhes servido, em pequenas taças, um leite grosso à tona do qual flutuam escórias suspeitas. Se bem que sequioso, em virtude do calor ardente, Marco contém-se, aguardando que o pai dê o exemplo.

 

Um criado sai da tenda com um recipiente cheio e espalha o líquido por três vezes para Sul, dobrando um joelho de cada uma das vezes, depois para Oriente e finalmente para Ocidente.

 

Cumprido este ritual, Abaga mergulha um dedo no leite, lança duas gotas para o chão, pousa o dedo na testa, e depois bebe o resto. O tocador de cítara faz ouvir o seu instrumento até que o ilcão arrote. Então, todos começam a beber, homens e mulheres, ruidosa e gulosamente.

 

Marco interroga o pai com o olhar.

 

- É a sua especialidade: o kumis, leite de égua fermentado... Ainda Niccolo não terminara de beber, quando Marco engole

 

um grande trago. Acometido por uma náusea, cospe-o imediatamente, de faces ao rubro.

 

Sobre os convivas, abate-se imediatamente um silêncio mortal. Todos os olhares convergem para o jovem estrangeiro, que limpa a boca à manga, visivelmente enjoado.

 

- Perdoe-me, senhor - declara Marco em mongol. - É a primeira vez que viajo por estas paragens. Este sabor é-me tão desconhecido que preciso de me habituar. Na verdade, nunca bebi nada tão amargo nem tão nauseabundo.

 

- Não sabes que só deves dirigir-te ao ilcão se ele te conceder a honra de te interrogar? - exclama Abaga, irado.

 

- Não, senhor - responde simplesmente o jovem.

 

O ilcão debruça-se sobre Argun e segreda-lhe qualquer coisa ao ouvido. O jovem mongol avança então para Marco, carregando nas mãos um dos grandes recipientes que se encontravam no banco da entrada.

 

- Se precisas de te habituar, o ilcão ordena que comeces desde já - diz Argun, estendendo-lhe o odre.

 

Hesitante, o olhar do jovem veneziano cruza-se com o do pai, furioso. Apodera-se do recipiente e, resolutamente, leva-o aos lábios. A repugnância é tanta que tem de se conter para não vomitar. De olhos fechados, ingere conscienciosamente grandes goles. Por fim, absorve o último trago com um esgar de repulsa que a taça, muito a propósito, consegue dissimular. Marco apercebe-se de que as paredes do recipiente estão cobertas por uma camada seca, amarelada, na qual se disputam excrementos e pêlos de toda a espécie. Um arrepio que lhe percorre a espinha obriga-o a pousar a malga à sua frente, com o suor a escorrer-lhe pela testa. Todos o fixam com redobrada atenção. Descontraído, arrota ruidosamente.

 

Abaga observa Marco demoradamente. O vestuário do veneziano está encharcado de suor. Subitamente, o ilcão solta uma gargalhada, logo imitado por toda a assembleia.

 

- Travaram conhecimento com um dos meus filhos! - declara Abaga, pousando altivamente a mão no ombro de Argun, impante de orgulho.

 

- Tivemos a honra de ser escoltados por ele, senhor - replica Niccolo.

 

Abaga debruça-se sobre Argun.

 

- O que fazem nas nossas terras? Abaga ordena que respondam.

 

Niccolo ergue-se do banco e ajoelha-se, seguindo o exemplo de Argun. Matteo e Marco imitam-no.

 

- Senhor, somos mercadores, cidadãos de Veneza, e dirigimo-nos para Khanbalik, para a corte do Grão Cão Cublai.

 

- E o que transportam, mercadores do Poente?

 

- Mercadorias, senhor, susceptíveis de permitir que prossigamos a nossa viagem, segundo o desejo do Grão Cão.

 

- Provem-no.

 

E Niccolo, não sem dar mostras de orgulho, exibe aos olhos de Abaga a tabuinha de ouro do Grão Cão.

 

A um sinal do pai, Argun convida-os a sentarem-se à direita, do lado dos homens, isto é, dos convidados de honra. Os Polo inclinam-se numa profunda vénia de reconhecimento.

 

- E o que levam ao meu tio, o Qagban? - pergunta Abaga, furioso.

 

Niccolo e Matteo trocam um olhar discreto.

 - Peças de cristal e tapetes de Tabriz, senhor.

  - Mostrem-me essas peças - ordena Abaga.

 

Dentro da tenda, Noor-Zade prepara o pão, amassando vigorosamente a magra mistura, enquanto Shayabami alimenta o lume.

 

- Agora, encontras-te em terreno aliado - declara Kunze, dirigindo um olhar turvo a Michele.

 

- E tu encontras-te em casa.

 

- Enganas-te, Michele.

 

Entra um mongol, sem sequer se fazer anunciar, e transmite uma ordem de Niccolo.

 

- Eu fico - decreta Kunze.

 

- Não, vamos juntos. Niccolo Polo assim o exigiu. Resignado, Kunze levanta-se. Os dois homens, auxiliados por Shayabami, transportam uma parte das mercadorias adquiridas durante a viagem, sempre seguidos pelos guardas mongóis.

 

Depois de terem deposto as armas à entrada da principesca tenda, passam por cima do limiar sem o pisar e prosternam-se diante do ilcão, expondo os presentes aos seus pés.

 

Marco juraria que, ao erguer-se, Michele permitiu que Abaga visse a sua medalha.

 

O ilcão apodera-se de um vaso requintadamente cinzelado, de vidro colorido. Levanta-se e expõe-no à luz, no centro da tenda. O sol reflecte-se nas facetas do vidro, dardejando raios impiedosos em direcção às paredes de feltro, obrigando todos os presentes a desviar o olhar.

 

- Fico com aquele - declara o ilcão, mostrando o objecto a Argun, que se inclina à sua frente.

 

- Que ousadia! Apoderar-se de um presente destinado ao seu amo e senhor! - sussurra Marco.

 

- Aqui, o imperador parece bem longe - replica Matteo ainda mais baixo, retendo Niccolo, que se preparava, instintivamente para reaver o vaso.

 

- Não fará falta ao meu tio - retorque Abaga, a quem não escaparam as reacções dos estrangeiros. - Pensem em tudo o que lhe levam! E não estou a contar com o que me ocultaram. De resto, Cublai nada saberá, se ninguém lho disser.

 

O mercador veneziano envida todos os esforços para se conter.

 

- E a mim, que presente me reservam? - pergunta o ilcão. Ao ouvido do príncipe mongol, Argun responde em lugar dos Polo. Abaga sorri, regozijado.

 

- O meu filho acaba de me dizer que possuem um magnífico garanhão árabe. Aceitamo-lo - declara ele, olhando para Michele.

 

O ilcão ordena que sirvam a refeição. Abaga lança repetidos olhares a Marco, atento às mínimas expressões do jovem, que, para ele, constituem um verdadeiro divertimento. Trazem um carneiro vivo, firmemente mantido por vários guerreiros. Argun desembainha uma faca com dois palmos de comprimento e, num gesto preciso, faz um pequeno entalhe na base do pescoço do animal, que quase nem estremece. Depois, sem hesitar, enterra o braço até ao cotovelo no ferimento.

 

- Aperta o coração do animal na mão - explica Niccolo a Marco, horrorizado. - Assim, evita que o sangue escorra.

 

Pouco depois, o animal jaz, morto, diante de uma assembleia acrescida de mais de uma centena de pessoas, suficientemente apinhadas para que os piolhos possam passar de umas para as outras.

 

Vários criados ocupam-se a decepar o animal em pequenos pedaços que introduzem, de seguida, numa bandeja cheia de sal e água. Argun limpa o braço às calças, lambendo os dedos tintos do sangue fresco do animal, sob o olhar consternado de Marco, a quem dirige um amplo sorriso que mais parece o ricto de uma fera. Os pedaços de carne são lançados para a fogueira, para dentro da marmita em que já coze o arroz. Decorridos alguns instantes, começam a estender-se as malgas.

 

Os irmãos Polo são os primeiros a ser servidos. Oferecem-lhes o rabo do animal, quase cru. Os pedaços reluzentes de gordura pendem-lhes dos dedos trémulos. Os dois venezianos nem ousam i olhar um para o outro.

 

- Nunca conseguirei engolir semelhante horror! - exclama Niccolo, no dialecto de Veneza.

 

- Preferes que nos degolem a nós! - arrepia-se Matteo. Talvez pudéssemos atirá-los para trás...

 

- Impossível, meu irmão. Todos eles têm os olhos cravados em nós.

 

Marco aproxima-se.

 

- Proponham-lhes que partilhem convosco a refeição.

 

Assim fazem. Após alguns protestos de cortesia, pois o melhor bocado está reservado aos convidados de honra, mas a gula prevalece e os mongóis acabam por os livrar daquelas imundícies. O músico entoa uma ária festiva. Todos batem palmas e dançam ao som da cítara, os homens diante do amo e as mulheres diante da esposa favorita.

 

Marco sente o ar quente acariciar-lhe os braços tensos. A única abertura no tecto da tenda fica mesmo por cima deles. O rapaz pensa no gher em que dormem, tão exíguo que acorda todas as manhãs banhado em suor. Será assim que tratam os hóspedes de categoria neste país? Apesar de tudo, sente-se feliz por ter deixado Veneza. O vento escaldante assobia em rajadas contra a tenda, cujas paredes de pano resistem ao embate. O vento desliza pelas paredes redondas num profundo mugido. Ouvir aquele grito do deserto basta para arrepiar o jovem Marco. Observa Niccolo, absorvido pelos seus deveres de convidado, e que não se cansa de discorrer, em todos os tons, sobre um sem número de assuntos. Responde com grande paciência às inúmeras interrogações do ilcão sobre os países que atravessou, esquivando-se às questões políticas, refugiando-se por detrás do seu papel de mercador. Quanto a Matteo, cujo cansaço é mais visível, limita-se a inclinar a cabeça, de vez em quando, de ar atento. O festim, que o ilcão prometera ser sumptuoso, é frugal. Os pedaços de carneiro quase crus bóiam ao de cima de uma papa de arroz. Num país permanentemente em guerra, onde há falta de tudo, quem souber contentar-se com pouco não espera mais do que o necessário. À medida que o banquete avança, tanto os homens como as mulheres começam a mostrar-se mais naturais. Aclaram a voz, cospem para o chão, escarram, arrotam ruidosamente, dão peidos malcheirosos, não se poupam a nada. Passadas algumas horas, o chão da tenda principesca encontra-se coberto de lixo, de ossos, de dejectos de toda a espécie.

 

- Tudo leva a crer que nunca limpam os tapetes - surpreende-se Marco, debruçando-se discretamente sobre Niccolo.

 

- A água é sagrada, Marco. Conspurcá-la merece punição de morte, pois o seu espírito não deve ser perturbado.

 

- Mas, então, como fazem eles para se lavar, se consideram a água sagrada?

 

- Eles não se lavam - responde Niccolo, tapando o nariz. Nem lavam o vestuário, que usam até se desfazer em farrapos. Limpam as mãos à roupa, o que explica a sua tesura. Bebem de preferência kumis ou vinho de arroz.

 

- Ainda assim reparei em alguns que bebiam água.

 

- É excepcional. Se tiverem de lavar as mãos, tiram-na da boca, a fim de expulsar as forças mágicas, e cospem-na para os dedos. Compreende que a água é um bem precioso. Para ti, que vens de uma cidade construída sobre as ondas...

 

- E o senhor também, pai - recorda Marco. O olhar de Niccolo perde-se no vazio.

 

- Eu sou um pouco como eles. Sinto-me em casa em todo o lado e em parte nenhuma.

 

Argun vem oferecer-lhes mais uma taça de kumis. Atrás dele, o ilcão dirige-lhes um sorriso.

 

- Consinto em os convidar para seguir o nosso exército declara Abaga a Niccolo, que nada pedira.

 

O mercador ajoelha-se e saúda o príncipe mongol.

 

- Agradecemos profundamente a oferta, senhor. No entanto, não queremos constituir um encargo.

 

- Não se preocupe com isso, dar-vos-emos os nossos restos.

 

- Obrigado, senhor - replica Niccolo, sem saber que dizer.

- No entanto, o Grão Cão aguarda-nos e não podemos faltar ao compromisso assumido, atrasando-nos.

 

- Por sermos do mesmo sangue, sei que o meu tio se sentiria ultrajado se não os recebesse condignamente.

 

- Ficamos muito agradecidos por se preocupar tanto connosco, senhor. Sentir-me-ia lisonjeado se pudesse aceitar essa honra. No entanto, o nosso guia adora Maomé e tem de fazer as suas abluções quotidianas.

 

- Uma vez que são hóspedes do Grão Cão, consinto em que ele se entregue a tais práticas, mas fora do acampamento, longe dos nossos olhos, a fim de não melindrar as nossas crenças.

 

Niccolo inclina-se, vencido.

 

- Nesse caso...

 

Argun avança para Marco, com uma taça cheia na mão. Canta e dança à sua frente, sempre a rir, e depois estende-lhe a taça. Quando Marco se prepara para lhe pegar, Argun retira-lha bruscamente; repete várias vezes esta brincadeira, que irrita Marco, até acabar por lha oferecer. O veneziano ingere um trago, receando continuar a beber kumis, mas reconhece tratar-se de vinho de arroz. Argun faz-lhe um sinal para que beba até ao fim. O mongol bate com as mãos e os pés até ver que Marco esvaziou a taça. Depois, Argun enche-a de novo. O jogo prossegue até que a embriaguez, redobrada pelo calor deprimente, domine o veneziano, cambaleante.

 

 Agora, os homens dançam no meio da tenda, repelindo os convivas, que se encostam à parede. Michele permaneceu sonhador durante todo o banquete.

 

- Com que sonhas tu? - balbucia Marco com dificuldade.

 

O amigo sobressalta-se, bruscamente arrancado aos seus pensamentos.

 

Demasiado longe para os ouvir, Kunze debruça-se, a fim de captar algumas palavras. Michele meneia a cabeça, dirigindo-se a Marco.

 

- Os meus remédios não conseguem curar as minhas dores de barriga.

 

- E não é a comida que nos servem que te curará! - ironiza Marco.

 

O veneziano procura alguém com quem partilhar a alegria que sente, quando, bruscamente desanuviado, enfrenta o duro olhar de Kunze...

 

A ESTEPE

A luz ardente do sol desponta através do feltro fino que cobre a tenda. Ouvem-se piar aves inverosímeis. Desde que partiram de Tabriz, Noor-Zade acorda antes do alvorecer. Nas noites carregadas de pesadelos, julga reviver a violação. Recorda então, emocionada, o antes, quando imaginou que era Marco que a seguia. Cerra os dentes, lutando contra uma náusea amarga. Foi violentada, ignorada, como qualquer escrava. Por vezes, ainda lhe acontece esquecer a sua condição, sobretudo desde que iniciou o trajecto do regresso. Marco agita-se durante o sono. A rapariga suspira. Nunca ousará confessar-lhe.

 

Subitamente, Noor-Zade levanta-se, muito hirta, batendo contra o tecto da tenda. Crispa as mãos no ventre. Mal tem tempo para transpor o limiar da entrada, e já vomita num espasmo doloroso, entre soluços que lhe dilaceram a garganta.

 

- Que se passa? - pergunta Marco, sonolento. Noor-Zade lava a boca com kumis. Sente um sabor azedo no palato.

 

- Não é nada, volte a deitar-se, senhor Marco.

 

A jovem deixa-se cair no chão, à sombra da tenda. Agrada-lhe reencontrar a austeridade da vida ao ar livre. A simplicidade das habitações nómadas. Na terra dela, por baixo das parreiras, dançar-se-á mais uma vez durante todo o Verão. O seu olhar paira pelas dobras cor de uva preta do horizonte. Atrás dela, Marco levanta-se e veste a túnica. Noor-Zade volta-se para a escuridão do gher. A claridade da aurora desenha à transparência os músculos recentes do veneziano, que lhe conferem praticamente uma silhueta de mongol. Há quase um ano que partiram, e o jovem aristocrata veneziano que ela conheceu, ofuscado pelo orgulho e a ingenuidade, começa a diluir-se diante do aventureiro sólido e corajoso. A rapariga volta a cabeça, num acesso de vertigens.

 

Marco ajoelha-se perto dela. Pousa-lhe a mão na testa quente.

 

- Queres que chame Michele?

 

Noor-Zade repele-o.

 

- Não, não: está tudo bem.

 

- Mas há várias manhãs que acordas doente.

 

Noor-Zade ergue a cabeça. A aurora ilumina-lhe os cílios negros e rijos.

 

O jovem pega-lhe na mão. Graças a este contacto, ela sente o calor do reconforto apaziguar o seu corpo gelado, a despeito do torpor do ar, já seco. A rapariga hesita, solta um profundo suspiro. Ergue as pálpebras para os olhos claros de Marco.

 

Ele agarra-a pelos ombros.

 

- Confia em mim.

 

- Creio que estou grávida - desabafa ela.

 

Os olhos do veneziano começam a cintilar como diamante azul. Nas suas faces, macilentas desde que saíram de Veneza, desenham-se duas covinhas de felicidade. Marco rebola Noor-Zade na terra, estreitando-a nos braços fortes.

 

- Trazes o meu filho dentro de ti! - exclama ele, no auge da alegria. - Vem, vamos dar a notícia ao meu pai!

 

- Não! Senhor Marco, por favor! Ninguém pode saber.

 

- Porquê?

 

Levantaram-se, sentaram-se sobre os calcanhares. Ela hesita.

 

- Antes... na minha terra... ia casar-me - diz ela num sussurro.

 

Estupefacto com a novidade, Marco cala-se, fitando o rosto pálido da rapariga.

 

- Agora, com um filho, não sei se poderia...

 

- E se assim não fosse, poderias? Não te esqueças da tua condição - lançou-lhe ele, cruel.

 

Noor-Zade dardeja-o com um olhar marejado de lágrimas. Os seus lábios tremem de raiva. Levanta-se e corre, desaparecendo no meio do dédalo das tendas.

 

Mal ultrapassa a última tenda do acampamento, uma mão agarra-a pelos cabelos e arrasta-a violentamente para trás de uma carroça cheia de baús, ao abrigo de olhares indiscretos. A palma da mão que lhe tapa a boca é larga e esmaga-lhe os lábios. A jovem debate-se, arrancando um pedaço da túnica do homem. Com um gesto, ele domina-a. Mas ela teve tempo de ver a antiga cicatriz no ombro do homem, a marca de uma arma branca. O seu coração pulsa aceleradamente, bate tão forte que julga poder ouvi-lo. O suor perla-lhe a testa e molha-lhe o cabelo. Vacilante, ergue um olhar horrorizado para o homem. Tenta gritar. Luta ferozmente para se manter de pé. O coração contraído martela-lhe o peito com uma brutalidade tão assustadora que parece querer soltar-se - o tempo suspende as pulsações. Ouve pancadas ensurdecedoras nas têmporas. A sua cabeça está prestes a explodir. Começa a ver lucíolos brilhar à sua frente.

 

- O filho que trazes no ventre pertence-me! - articula Kunze numa voz rouca. - Se viver, levá-lo-ei e nunca mais o verás.

 

- Ele não... - diz ela num murmúrio.

 

Certa manhã, à hora de prima, Marco é acordado pelo tumulto de um trovão. Lá fora, ainda o sol mal aclarou neste início de Outono, e já os mongóis se encontram em actividade. As coberturas de feltro são rapidamente enroladas pelas mulheres, enquanto os homens se afadigam a desmontar as armações de madeira. As tendas são dobradas e depois empilhadas nas carroças, segundo uma ordem estabelecida. O que resta das fogueiras é meticulosamente coberto de terra. Algumas iurtes são erguidas e colocadas, intactas, em cima de enormes carroças. O jovem admira aquela habilidade que os mongóis demonstram e que lhes confere uma mobilidade que todos os exércitos cristãos invejam.

 

Ao longe, uma manada de cavalos, lançada a toda a brida, é perseguida por cavaleiros.

 

Argun, montado num capão branco, munido de um laço armado na ponta de um longo bastão, estaca de repente ao lado de Marco.

 

- Marco Polo! Vens comigo? - propõe ele.

 

O veneziano segue Argun, sem saber para onde este o conduz. No meio da planície encontra-se um cavalo cujos membros já estão imobilizados por uma corda. O animal tem as pernas curtas e um aspecto robusto. Todavia, despontam-lhe os ossos do couro desgastado. O largo peitoral deixa adivinhar uma forte musculatura. O animal estrebucha, prestes a soltar-se, como se precisasse de ser domado. A sela estreita adapta-se perfeitamente à forma angulosa do dorso.

 

O mongol desliza suavemente da montada.

 

- Segura a rédea - diz ele a Marco.

 

Entretanto, num gesto rápido e seguro, liberta o animal, que tenta imediatamente empinar-se. Marco prende-o firmemente, sob o olhar atento de Argun.

 

- Monta-o com leveza - recomenda o mongol.

 

O jovem salta para cima do cavalo, que dá um salto em frente e depois se imobiliza, de pernas afastadas. Marco puxa pelas rédeas. Como petrificado, o animal nem se move. O veneziano sente a tensão dos músculos, que se recusam a estremecer. Enterra-lhe os calcanhares nos flancos. Bruscamente, o cavalo abate-se, rasando a terra com o ventre, e, qual tigre, dá um salto no ar, torcendo a garupa e produzindo um terrível fragor com os cascos. O cavaleiro é projectado para o chão como um ídolo de feltro.

 

- Com leveza! - repete Argun, rindo.

 

Sem poder respirar, Marco levanta-se com dificuldade, agarrado às costelas, duvidando de que se encontre inteiro. Argun deteve o cavalo e convida Marco a montá-lo de novo. O veneziano suspira, acaricia suavemente o animal, que relincha. Cuidadosamente, como viu fazer Noor-Zade e Argun, Marco instala-se na sela. Aperta delicadamente as coxas contra os flancos do cavalo. O animal avança num passo sacudido, à espreita das reacções do cavaleiro.

 

Movido unicamente pela vontade, Argun lança a montada num galope rápido que arrasta atrás dele o cavalo de Marco. Imitando o mongol, o jovem quase se deita no pescoço do animal. Este galopa como se estivesse prestes a voar. Aperta as rédeas com tanta força que o suor lhe escorre dos dedos. Pelos ouvidos sente perpassar o rugido do vento. O cabelo bate-lhe contra o crânio. Já só ouve a fúria dos cascos. A planície desfila a uma velocidade vertiginosa. Agarrado ao cavalo, lutando para se manter de pé nos estribos, Marco sente que lhe falta o fôlego. À sua frente, Argun forma um todo com montada, verdadeiro centauro das estepes. Adquire vida, na sua qualidade de cavaleiro, enquanto, sem montada, as coxas grossas como mastros destinadas a transportar um torso de colosso lhe conferem um andar pesado. Alcançam rapidamente a manada de cavalos, no meio da qual Argun penetra sem receio. O mongol brande o laço, escolhe uma presa e ataca quase com ferocidade. O animal tenta escapar, mudando bruscamente de direcção. Mas Argun, implacável, segue-o sem se desviar. Por fim, apruma-se nos estribos e lança habilmente o laço que envolve o pescoço do cavalo. Argun obriga o cavalo de batalha a abandonar a manada. O outro animal resiste, empina-se, desdobra-se em relinchos. O mongol segura o chicote no braço. A sua própria montada imobilizou-se, dócil. O outro cavalo continua a lutar, cuspindo das ventas. Argun apeia-se com toda a cautela e aproxima-se do animal, suavemente mas sem hesitar. O cavalo permanece imóvel, prestes a formar um

salto. O príncipe mongol acaricia-lhe firmemente a cabeça, afaga-lhe o pescoço.

 

Os criados, habituados a esta dança, logo que viram que umanimal fora capturado, arremessaram uma sela do alto dos seus cavalos.

Argun mostra a Marco como os Mongóis selam os animais.

 

Aperta as cilhas com uma energia feroz. Vêem-se as marcas, nos flancos dos animais.

 

A trote curto, regressam ao acampamento, trocando olhares de uma cumplicidade que não poderiam imaginar algumas horas antes. Mais adiante, Argun avista Noor-Zade, entretida, com outras mulheres, a tecer fio com a ajuda de nervos.

 

Enquanto uns homens mungem as éguas, outros remexem com um longo pau oco um grande odre que encheram de leite para fabricar kumis. Batem-no energicamente até o leite começar a subir, de modo a poderem extrair a manteiga.

 

- Compro-te a tua escrava - propõe o príncipe mongol. Tenho uma jovem húngara para te dar em troca.

 

- Não, Argun. Ela é minha - responde Marco, sorrindo.

 

- Esta poldra, como te disse, foi ela que a domou! Argun coloca pedaços de carne crua debaixo da sela.

 

Último rito antes da partida, os xamãs vertem kumis nos estribos de cada cavalo, e nas crinas.

 

Homens e mulheres atrelam as tendas a bois ou a camelos, conduzidos por um só homem, de pé em cima do eixo, como se fosse o mastro grande de uma galera. Certos carros chegam a ter vinte e dois bois. As carroças são presas umas às outras, formando um imenso comboio que até mesmo as mulheres manobram habilmente. Explodem gritos, silvam chicotes, os camelos vão desaparecendo sob o peso dos enormes fardos que pendem dos dois lados das bossas.

 

Marco junta-se aos seus, já prontos para partir. Carregam os cavalos com a pequena tenda e os utensílios de cozinha.

 

Alguém dá o sinal de partida. O imenso comboio de várias léguas de comprimento avança lentamente. Nos locais em que o caminho se estreita, as carroças são separadas para poderem passar umas atrás das outras, e depois novamente atracadas entre si. Todo este movimento das carroças que avançam, transportando as tendas mongóis, fazendo estremecer a terra debaixo dos cascos dos animais, transmite a estranha ilusão de uma cidade em marcha.

 

- Com estas armas, não receamos os nossos inimigos - declara Argun.

 

Há duas semanas que partiram; agora, a horda de mongóis faz pequenas paragens de um dia ou dois, durante as quais aproveitam para se dedicar aos seus exercícios favoritos, o tiro ao arco, a luta e a cavalgada.

 

O jovem príncipe exibe com orgulho um arco mongol de haste recurvada. A corda, feita de tendões e nervos, é tão dura que o jovem veneziano não consegue esticá-la. Michele segue com atenção as tentativas do amigo. Argun recupera a arma.

 

- Quem são os vossos inimigos? - pergunta Marco.

 

Argun enfia no polegar da mão direita um anel de prata, para se proteger dos ferimentos que a corda lhe possa provocar.

 

- Todos os que recusem submeter-se.

 

Fixa a atenção nos fardos de feno pousados a quinhentos passos dali, perto dos quais se encontram o ilcão Abaga, Niccolo e Kunze, frente a uma multidão de guerreiros atentos à proeza. Argun protege todos os músculos dos seus enormes braços. Concentrado até à imobilidade perfeita, que não lhe assenta nada bem, ergue subitamente o arco e atira a flecha, sem sequer dar mostras de visar, num tiro ligeiramente curvo que a dirige para o céu, antes de descer em voo picado, cravando-se no alvo, derrubado pela acção do impacte.

 

- Uuqafl - grita a multidão. Argun irradia um sorriso confiante.

 

- Somos capazes de dominar todos os povos da terra e mesmo aqueles que se julgam fortemente armados contra nós. O meu avô Hulagu esmagou os Assassinos que imaginavam conseguir resistir-nos. É a tua vez! - desafia ele.

 

Menos seguro do que o adversário, Marco arma a balestra com gestos precisos, sob o olhar atento do mongol. Enterrando profundamente os pés na terra que cobre a estepe, entala o cotovelo entre as costelas. Eleva a mira acima do alvo, que se encontra tão afastado que basta um suspiro para o desviar da mira. Respira fundo, desce lentamente a balestra até ao coração do alvo, que parece palpitar ao longe ao ritmo do seu, mesmo acima da linha do horizonte. Larga o virote que voa a direito à sua frente.

 

- Uuqail - grita de novo a multidão.

 

Marco descontrai-se, banhado em suor e ofegante.

 

Naquele instante, um mensageiro mongol atravessa as tendas a toda a brida com uma extraordinária destreza. A duas vezes a distância do lançamento de uma pedra, diante de Abaga, abranda a corrida, suando tão intensamente quanto a montada. O cavaleiro salta do cavalo e deixa-se, por assim dizer, cair de joelhos, devido ao esgotamento, sem dúvida, mas também ao respeito que o ilcão lhe inspira. Este desvia os olhos do espectáculo. Os seus homens, a um sinal seu, deixaram chegar até ele o mensageiro. Abaga, com um gesto, autoriza-o a falar. O correio, sempre prosternado, transmite a mensagem.

 

- Senhor Abaga, notícias de Acre.

 

- Vem comigo - ordena o ilcão, afastando-se um pouco, sob o olhar curioso dos seus homens, que se mantêm prudentemente nas proximidades.

 

Marco e Argun juntaram-se-lhes, a galope. Após uma breve troca de palavras, Abaga despede o cavaleiro, antes de avançar, satisfeito, em direcção a Argun.

 

- Meu filho, saiba que foi assinada a paz com Baybars, há escassos meses, a 15 de Maio de 1272.

 

- Então esse maldito sarraceno ainda está vivo! - exclama Argun num rugido, de punho cerrado.

 

- Poderemos concentrar-nos nessa víbora que é Caidu! - conclui Abaga, de olhos brilhantes. - Tanto mais que Eduardo de Inglaterra regressou à sua terra com as suas conhecidas ideias de cruzado.

 

Acena a Michele para que este se aproxime. O seu hálito avinhado revolve o estômago frágil do judeu.

 

- Um Assassino atingiu Eduardo de Inglaterra com um punhal envenenado...

 

Michele quase sufoca.

 

- O príncipe... morreu... ?

 

- Não, mas deve considerar a região demasiado perigosa. Podes orgulhar-te de ti, Michele. A paz é de algum modo obra tua.

 

Guardando o arco, Argun interpela Marco:

 

- Repara no meu irmão: ele atira quase tão bem como eu.

 

- É pelo menos o trigésimo irmão que me apresentas! Argun incha o peito.

 

- Somos todos filhos de Gengiscão. O meu glorioso antepassado tinha quinhentas mulheres! - explica o mongol, sonhador. Ele, sozinho, teria sido capaz de fecundar toda a nossa raça. O meu pai, por seu lado, só tem cerca de cinquenta mulheres.

 

- E tu, ainda não te casaste?

 

- Em breve te convidarei para as minhas núpcias - responde Argun com um olhar malicioso.

 

Avança para Marco e, num gesto brutal, arranca-lhe a balestra. O jovem veneziano prepara-se para protestar quando Argun lhe estende o seu próprio arco. Emocionado, Marco apodera-se dele. Observa a haste esculpida, figurando penas e um bico de águia. Talvez seja a primeira vez que o mongol dá alguma coisa em troca do que apreende.

 

Enquanto Argun se afasta para se juntar ao pai, Niccolo aproxima-se do filho e puxa-o pela manga.

 

- Marco, não devias conviver tão intimamente com estes bárbaros. Não são do nosso mundo.

 

- Aqui, nós é que não somos do mundo deles, pai.

 

Ainda se encontram a um mês de cavalgada de Herat, quando Argun anuncia a Marco que vai adquirir a primeira mulher. Custou-lhe cinco cavalos. Convida Marco para a ”cerimónia”. A jovem encontra-se escondida em casa dos pais e o noivo terá de a descobrir e raptar para a levar consigo. Argun, vestido de guerreiro, com o capacete de ponta, exibe-se num magnífico cavalo de batalha enfeitado com a magnífica sela de cabeça de águia. Uma alameda de honra conduz à tenda dos sogros. Atravessa-a sob aclamação da multidão, que aguarda impacientemente a abertura dos odres de kumis, uma vez consumado o casamento. Altivo, Argun detém a montada, rodeado pelos seus lugar-tenentes, entre os quais foi reservado um lugar a Marco. O príncipe mongol apeia-se do cavalo e penetra na tenda. Esta encontra-se aparentemente deserta, apenas juncada de almofadas. Com o seu olhar felino, Argun escruta a penumbra. Pega no chicote e começa a fustigar todas as mantas. Ouve-se um grito e começa a agitar-se uma forma. O jovem, então, precipita-se para desvendar o esconderijo da sua prometida. A jovem olha-o, aterrorizada. Argun solta uma gargalhada de triunfo e deixa-a fugir, numa corrida. Passado um momento, o mongol apressa-se a persegui-la, enquanto isso o diverte. Depois, acelera o passo até se lançar sobre ela. A rapariga defende-se, aplicando-lhe murros que ele sente como carícias. Argun levanta-a do chão sem quaisquer cuidados e carrega-a aos ombros, sob os aplausos dos seus. Quase sem esforço, monta-a na sela. Logo de seguida, com a presa na garupa, o raptor parte a galope. A jovem aproveita imediatamente para se agarrar à crina áspera do animal, antes que caia em plena estepe. Mas a corrida é tão violenta que sente os dedos deslizar pela densa crina. Felizmente, o mongol, cheio de ardor, aperta-a contra si. Todo o grupo o segue, a cavalo, soltando altos gritos. Argun pára diante da sua própria tenda, apeia-se, pega na noiva ao colo e leva-a para dentro, onde a viola com uma brutalidade experimentada, sob os comentários entusiastas dos companheiros. Argun sente o corpo da jovem debater-se nos seus braços, inspirando-lhe vigor pela sua resistência inútil mas necessária. Marco, ao longe, observa que a noiva, apesar de honrada por um príncipe herdeiro, nem assim deixa de lutar. Enquanto bebe com os companheiros, diverte-se com aquele brutal debate amoroso. Os amigos de Argun soltam gritos animalescos, ao ritmo dos movimentos do príncipe mongol. A noiva, imobilizada, submete-se, de rosto crispado, aguardando pelo fim. Subitamente, o jovem veneziano avista Noor-Zade atrás das tendas. De sobrolho carregado, faces ao rubro, tremem-lhe os lábios e as mãos, pousadas no ventre redondo. Como se tivesse sentido o olhar de Marco, fixa os olhos brilhantes nos dele. O eco dos incitamentos bárbaros ecoa no crânio do veneziano, subitamente distante. Desvia a atenção do espectáculo, com um nó na garganta, provocado por uma brutal sensação de humilhação.

 

NO RASTO DOS MONGÓIS

O Outono ainda não acabou de dourar os choupos e amoreiras. Os camponeses, que terminaram a colheita do cominho e do açafrão, escondem-se à aproximação dos mongóis. Através das planícies áridas, o exército, à sua passagem, faz estremecer toda a forma de vida humana. Onde chegam, as tropas mongóis são recebidas com uma deferência receosa. Fornecem-lhes imediatamente carne para os homens, alimentação para os animais. Argun conserva cuidadosamente todos os ossos e detritos num saco de pele que traz a tiracolo. À medida que avançam pelo país das estepes, os víveres vão escasseando. Durante todo o périplo até Herat, dormem sempre ao ar livre, ou a coberto das carroças, nunca numa tenda.

 

A monotonia da planície quebra-se subitamente à luz de Herat, cujas casas quadradas são construídas de lama seca, oásis protegido no interior de um vale clemente, cintilando de reflexos avermelhados.

 

O exército mongol penetra na cidade ao anoitecer. A maioria dos habitantes regressou a casa. Ao ouvir a algazarra provocada pela vanguarda mongol, algumas pessoas aferrolham as portas, enquanto outras as entreabrem timidamente. Os soldados de Abaga apoderam-se com brutalidade desta gente, que é espancada com violência. Os chicotes assobiam no ar, açoitam carnes ressequidas, fracturam membros. Argun sublinha os golpes dos guerreiros com gritos ferozes:

 

- Grandes safados! Ficam obrigados a mostrar obediência ao vosso amo e senhor e a fornecer-nos tudo aquilo de que necessitarmos!

 

Um velho aproxima-se, cheio de medo.

 

- Senhor, ignorávamos a vossa chegada - desculpa-se o velho, ainda mais vergado do que lhe exige o peso dos anos.

 

- Pois bem, deviam ter adivinhado! Tu, ajoelha-te! - ordena-lhe numa voz calma, bem mais ameaçadora do que os gritos que soltara.

 

Perante a manifesta dificuldade que o velho tem em obedecer, Argun derruba-o com um pontapé. O velho agarra-se aos rins, gemendo.

 

- Regozija-te: servirás de exemplo aos teus.

 

Sem desmontar do cavalo, num gesto amplo, o sabre do mongol silva no ar e, de um só golpe, degola o camponês. O cadáver estrebucha, violentos espasmos fazem jorrar fluxos avermelhados. Na atmosfera, paira um odor a sangue fresco. Noor-Zade não consegue reprimir um grito. Argun volta-se para a jovem uigure com um ricto animalesco. O corpo pesado da jovem começa imediatamente a tremer. Marco pega-lhe na mão e aperta-a até quase a quebrar. Michele apeia-se do cavalo para vomitar as tripas. Kunze aproxima-se e dá-lhe de beber.

 

- Senhor Argun, dir-se-ia que sentes prazer em matar - observa Marco, com uma extrema ousadia.

 

- Sim! É verdade! Inspira este odor a carne fresca que a lâmina acaba de dilacerar, o sangue em que a vida ainda pulsa por uns instantes... - recomenda Argun, dominado por um estranho êxtase. - Repara como a terra se sacia, absorve o sangue dos nossos inimigos. Ela delicia-se e cabe-me a mim alimentá-la!

 

- Este velho era inofensivo. Não era teu inimigo.

 

- Era meu inimigo porque eu assim decidi.

 

Desvia-se de Marco para dar ordens aos camponeses aterrorizados. Os homens válidos cumprem-nas imediatamente, correndo em busca de animais descansados, de carne e de feno. Os queixumes de uma mulher violentada algures pouco perturbam o carregamento das montadas. Os habitantes servem-lhes um verdadeiro banquete de carnes cozinhadas, arroz, leite, natas azedas e melões. Niccolo chama o filho para longe das comezainas.

 

- Marco, és louco! Argun poderia ter-te rachado ao meio! Modera os teus impulsos.

 

- E terei de me sujeitar aos dele? Não consigo, meu pai. Marco afasta-se, abandonando o pai aos seus temores.

 

Não suportando sentir-se encerrado entre quatro paredes, o exército de Abaga acampa à entrada da cidade. Marco obtém autorização para sair do acampamento e dirigir-se a Herat. Fortemente muçulmana, a cidade alberga numerosas mesquitas e banhos mouros. Depois destes meses passados no meio do fedor dos mongóis, Marco passa longas horas rodeado de vapor de água, suando toda a sujidade acumulada. Cochilando num torpor sufocante, sente-se reviver. Permite-se o luxo de uma prolongada massagem, descobrindo a nova firmeza do seu corpo sob o efeito das carícias musculadas de uma escrava tajique. Por fim, regala-se com um pedaço de pão embebido em uvas em calda, o que lhe parece um néctar em comparação com o kumis. Antes de abandonar este antro voluptuoso, protegido da rudeza bárbara da estepe que o espera lá fora, leva caroços de marmelo, remédio soberano para as diarreias, bem como amoras secas, brancas e pretas, que se desfazem na boca. Infelizmente, o amigo não experimenta melhoras e, enfraquecido pela cavalgada, se bem que deveras moderada dos mongóis, não consegue restabelecer-se.

 

Após uma semana de repouso, Abaga retoma a caminhada para nordeste, desejoso de alcançar Bucara e Samarcanda antes do-Inverno. O estado de Michele piora de dia para dia. A diarreia e as cólicas impedem-no de continuar a montar a cavalo. Os mongóis constróem uma maca para o transportar. O doente sente-se interiormente devorado por um animal e o medo é tão grande quanto a dor que o atormenta. A secura do ar tornou-se-lhe insuportável. Sempre que inspira, parece-lhe engolir um trago do inferno. Começam todos a temer pela sua vida. Kunze já fala dele em termos de passado. Ele próprio prediz que em breve perderá o uso da palavra e dos sentidos.

 

A vasta embaixada chega a Shebergan quando o Inverno começa a anunciar-se. Niccolo vê com muito maus olhos a aproximação das montanhas que dizem tão altas que ninguém consegue atingir os seus cumes num dia. Por milagre, consegue negociar a um preço perfeitamente razoável um mapa da região até Kashgar, para lá dos montes do Pamir e da cadeia do Hindu Kuch.

 

Quando Abaga anuncia que vão prosseguir para norte, para chegar a Bucara e Samarcanda, que pertencem ao primo e inimigo Caidu, Niccolo aproveita a oportunidade para se separarem. Tanto mais que um mensageiro lhes deu a notícia de que a saúde do Grão Cão se degradou, pois os médicos pisaram-lhe o ventre e ele riu-se. Niccolo não quer correr o risco de entrar demasiado tarde em Khanbalik.

 

No momento da partida, Matteo compra um gher a preço de ouro.

 

À margem da transacção, Marco oferece algumas talhadas de melão seco a Argun.

 

- Senhor Argun, experimenta, é doce como mel. Nunca comi nada semelhante.

 

O mongol mastiga com um trejeito de enfado as fatias de fruta.

 

- Prefiro kumis.

 

- Já se encontram muito longe da Pérsia - observa Marco.

 

- A Pérsia não é a nossa terra, mas sentimo-nos em casa em toda a parte. Abateremos Caidu, essa serpente que ousou estabelecer laços fraternais de sangue com os nossos dois inimigos da Horda de Ouro e da Transoxiana. Troçam da autoridade do Grão Cão. Tengri quis que a Transoxiana perdesse o seu chefe. Arrasaremos tudo o que ele construiu e reduziremos o seu povo à escravatura.

 

- Melhor assim - comentou friamente Marco -, pelo menos, não estão a pensar em atacar os cristãos.

 

Argun ri-se.

 

- A hora do teu povo acabará por chegar. Quando eu for ilcão, por minha vez...

 

- Mas tu não és o príncipe herdeiro.

 

Nota: Transoxiana - Na Antiguidade e até à Idade Média, região da Ásia Central que corresponde praticamente ao actual Usbequistão. (N. da T.)

 

Tengri - ”O Céu”; divindade suprema dos Mongóis.

 

- É verdade. Mas... quem sabe o que o futuro nos reserva?... Vem participar na pilhagem e no massacre. Verás que é um grande prazer fazer correr sangue - acrescenta Argun, guloso.

 

- Não sou guerreiro, Argun. Sou simplesmente um mercador.

 

- Não és nenhuma das coisas, Marco Polo. Não quiseste vender-me a mercadoria que te quis comprar. Saberei recordar-me disso - acrescenta ele com um rancor de que Marco nunca teria suspeitado.

 

Argun dirige-lhe um sorriso cruel, antes de o estreitar nos braços com uma brutalidade calorosa. Exala tamanho fedor que Marco tem a certeza de que nunca mais o esquecerá.

 

De manhã, o acampamento mongol desapareceu, apenas os restos das cinzas espalhadas pelo chão testemunham a passagem dos nómadas por aquela terra. A caravana dos Polo, com os seus seis cavalos e seis mulas, retoma a rota do Oriente. Apesar de já estarem no Outono, o calor ainda se faz sentir. Atravessam um deserto de areia fina. Nem um animal, nem um tufo de erva para mostrar que a vida também ali tem o seu lugar. As dunas altas como montanhas deslocam-se lentamente ao sabor do vento, alterando constantemente a paisagem. Qual oceano em tempestade, cujas vagas ondulam com uma força que só a lentidão pode igualar, o deserto encobre o horizonte aos viajantes. Marco sente-se minúsculo entre aqueles montes dourados. Nervosos, os cavalos erguem os pesados cascos da terra escaldante.

 

Como se tivessem nascido das areias movediças, erguem-se à sua frente as ruínas de uma cidade, meio enterradas e cobertas de poeira ocre. O vento esculpiu as paredes comidas pela erosão. O assobio das rajadas açoita as paredes petrificadas na sua terrível degradação.

 

Atravessam regiões desertas onde não encontram água nem alimentos, nem sequer um recanto à sombra onde possam fazer uma paragem.

 

E, depois, acontece o que todos temiam. O vento levanta-se brutalmente. Kunze é obrigado a gritar para se fazer ouvir.

 

- Apeiem-se das montadas! Sigam exactamente os meus passos. Se escorregarem numa duna, serão imediatamente soterrados.

 

Todos o imitam. Marco pousa cuidadosamente os pés na areia que apaga de imediato o rasto do guia. A caravana avança entre os silvos do vento ardente, lutando contra aquele sopro de fogo, esforçando-se por seguir as suas marcas, como se o mínimo desvio pudesse assustar as dunas. Como se elas lhes fugissem debaixo dos pés... O suor seca imediatamente em contacto com o ar. A tempestade é tão violenta que os cavalos mal se equilibram nas pernas. Por um momento, Marco lamenta que tenham deixado Abaga seguir para norte. Os mongóis conheciam com certeza os perigos que os esperavam. Michele, transportado na maca, parece uma múmia. Marco agarra-o pelos ombros, mas o corpo não reage. Ajeita o turbante do amigo de modo a proteger-lhe o rosto da chuva de areia. A poeira atinge-os como um aguaceiro de fogo, cegando-os. Marco distingue os companheiros como sombras na noite de areia. Estuga o passo, caminha para a frente dos outros, hesitante, até alcançar Kunze.

 

- Precisamos de parar! Nem sequer vês para onde vamos! Mas o guia, com um gesto, dá-lhe a entender que não ouve o que Marco diz. Este volta para junto de Michele, a fim de tentar protegê-lo. Continuam a avançar com dificuldade, lutando durante longas horas para se manterem de pé.

 

Por milagre, no auge da tempestade, deparam com uma aldeia construída nos limites do deserto, onde a areia se torna rochosa. Usando de toda a sua força, Kunze bate à porta da maior das casas. Alguém acaba por abrir. O persa entra sem se dar a conhecer, seguido pelos companheiros. Arrastam a maca para o interior. Depois, Kunze e Marco voltam a sair, com Shayabami, para instalarem os animais nas traseiras da casa, ao abrigo do vento. Os cavalos, de ventas e boca cheias de areia, mostram-se particularmente nervosos. Quando voltam a entrar em casa, Marco julga-se no paraíso. Extenuado, deixa-se escorregar ao longo da porta fechada. Ouvindo o rugido exterior, ainda se sente esbofeteado pelo vento. Tem as pálpebras irritadas, cheias de areia. Uma mão limpa-lhe as faces, a testa, a boca. Vê tudo turvo, a cabeça enche-se-lhe de vibrações irreprimíveis. Por fim, vertem-lhe um pouco de água nos lábios. É com dor que a garganta árida recebe aquele gosto húmido. Marco cospe. Piscando os olhos, distingue, enfim, a sala em que se encontram, único compartimento da mansarda, onde se come, se dorme, onde se guardam os animais nos dias de fúria dos céus. Matteo tosse ruidosamente, apoiando a mão no ventre. Noor-Zade suspira, de olhos fechados e cabeça encostada à grossa parede que tanto protege do frio como do calor. Uma cabra magrizela fez as suas necessidades no chão de terra batida, que exala um fedor ácido. Um homem tão enfezado quanto o animal fita-os, entre o terror e a avidez, agachado num tapete esfiapado e esburacado, com um longo turbante enrolado na cabeça. Tem os olhos tão escuros quanto a pele. Por vestuário, usa apenas uma tanga de cor acinzentada. Atrás dele, várias crianças de todas as idades, macilentas, observam-nos, abrindo uns olhos imensos nos rostos descarnados. Duas silhuetas, cujos ossos se salientam sob os véus, mãe e filha, afadigam-se em redor dos estrangeiros, com a energia inspirada pelo instinto de sobrevivência observado por Marco desde o início da viagem em todas as mulheres que encontrou. Com gestos precisos e seguros, sem outros cuidados para além dos exigidos pela hospitalidade, limpam a areia que se lhes incrustou na carne, oferecendo-lhes leite e mel.

 

- Partiremos logo que os animais descansem - declara Niccolo.

 

Marco arrastou-se para junto de Michele. O judeu agoniza em silêncio. A maca conspurcada e malcheirosa é o único sinal de vida que o jovem consegue distinguir.

 

- Michele não sobreviverá, senhor Kunze! Quer despachá-lo antes de chegar a sua hora? - exalta-se Marco, furioso.

 

Kunze aclara a voz, depois cospe no chão.

 

- Compreendo a sua dor, senhor Marco. Deus, louvado seja Ele!, quis que encontrássemos este refúgio e decidirá igualmente quanto ao destino de Michele.

 

- Podemos ajudá-lo - diz o jovem, benzendo-se.

 

- Marco, teremos de chegar a Bactra rapidamente - interrompe Niccolo. - Mesmo ao abrigo desta casa, os animais não sobreviverão por muito tempo. E, sem eles, morreremos todos.

 

Marco mostra-se interdito.

 

- Prepara-se para sacrificar o mais fraco de todos nós, meu pai? - pergunta Marco, numa voz estrangulada.

 

O mercador, embaraçado, bebe um trago de leite azedo.

 

- Aguardaremos que a tempestade amaine, senhor Niccolo sugere Kunze.

 

- A tempestade pode prolongar-se por vários dias, bem sabes.

 

- Esperemos até amanhã de manhã. E então veremos.

 

O homem magro diz-lhes, numa língua que só o persa entende, que, mais adiante, encontrarão erva e pastagens. Oferece-se para tratar de Michele, se quiserem deixá-lo com ele.

 

Noor-Zade aproxima-se de Marco.

 

- Kunze enganou-se no caminho - segreda ela ao ouvido do jovem.

 

- Como sabes?

 

- Compreendo a língua deles.

 

- São uigures?

 

- Pastuns. Adoram Maomé... como Kunze.

 

Marco observa a família que a fome tornou tão esquiva. Por que haveriam de cuidar de um doente?

 

Durante a noite, a tempestade amaina um pouco. O vento cessa de assobiar, o que acorda Marco. Arrasta-se para junto do pai, abana-o.

 

Niccolo abre os olhos, numa atitude defensiva.

 

- Já não está vento. Aproveitemos a acalmia. Não quero deixar Michele com esta gente, por favor.

 

Niccolo percorre com o olhar o compartimento mergulhado na escuridão. Resoluto, ergue-se, tocando na tabuinha e na galheta que traz ao peito. Em escassos instantes, acordam todos. Marco certifica-se de que continua a ouvir o sopro rouco do peito magro de Michele. Este tem a roupa e o corpo negros de sujidade coagulada. Mas aqui, onde a água é mais preciosa do que o ouro, limitam-se a esfregá-lo sumariamente com areia. Marco murmura-lhe ao ouvido palavras reconfortantes, sem ter a certeza de ser ouvido.

 

O homem oferece uma das filhas, Eshka, para os guiar durante uma parte do caminho. A garota corre à frente deles, com a planta dos pés endurecida pelo hábito de caminhar descalça sobre as pedras. As suas pernas esqueléticas afiguram-se demasiado frágeis para transportar um corpo de passarinho. A paisagem torna-se cada vez mais rochosa. Um réptil serpenteia em ondulações rápidas por baixo de um rochedo, presença tranquilizadora de uma vida que recobra os seus direitos. Mais adiante, Bactra arvora as suas orgulhosas muralhas, destruídas pelos Mongóis. A pequena pastum abranda a marcha, ofegante.

 

- Kunze, diz-lhe que passe a noite connosco antes de voltar para junto dos seus - ordena Niccolo.

 

O persa troca algumas palavras com a garota e, depois, dirige-se a Niccolo, soltando um profundo suspiro.

 

- Não voltará para casa. O pai proibiu-a de regressar. Niccolo estica a barba, nervoso.

 

- Não podemos levá-la connosco, não nos será útil em nada. Já nos basta uma mulher - observa Matteo, com frieza.

 

- Pode ajudar-nos a tratar de Michele. Foi ela que se ocupou dele ontem à noite e ele parece-me estar melhor - observa Marco.

 

- Ajudá-lo a morrer? - pergunta o guia.

 

- Dir-se-ia que a ideia o diverte, senhor Kunze - resmunga o jovem, de dentes cerrados.

 

- Desengane-se, senhor Marco - diz o persa, suavemente. Há anos que viajo com Michele. Juntos, percorremos várias vezes a largura do mundo conhecido. Sempre aceitámos os riscos. Aqui, a água é rara e recuso-me a sacrificá-la por uma rapariga.

 

- Dar-lhe-ei um pouco da parte que me cabe.

 

- Nesse caso, consinto - conclui Niccolo, aliviado.

 

 

Bactra, nos confins da Pérsia, é uma grande cidade cujo esplendor foi destruído pelas invasões mongóis. As brechas abertas nas muralhas nem sequer foram colmatadas. A cidade, que se tornou sombria, parece agora curar as feridas. Os habitantes ostentam um torpor de sobreviventes. Antigos palácios exibem as suas magníficas ruínas, invadidas pela magra vegetação que irrompeu do meio das pedras. A caravana instala-se nos vestígios de um caravançará parcialmente reconstruído. O hospedeiro que os recebe conta-lhes, orgulhoso, que foi em Bactra que Alexandre desposou a filha de Dário, e gaba-se de ser, ele próprio, descendente do grande conquistador. Marco ouve-o com indulgência, enquanto a pequena Eshka, obedecendo às suas ordens, lava Michele e lhe veste roupa nova. A temperatura, que desceu brutalmente, desencadeou um acesso de febre no doente.

 

Marco chama dois médicos ao quarto mergulhado na escuridão por uma cortina de linho estendida sobre a lucarna. Um deles examina demoradamente o fundo do olho do doente, apalpa-lhe diversas partes do corpo e, em particular, a planta dos pés, enquanto o outro se limita a olhá-lo de longe. O primeiro garante que há esperanças de que se salve. O outro prediz uma morte próxima e dolorosa. Mal acabam de sair, Marco ouve Michele tossir.

 

O seu rosto adquiriu um tom esverdeado, tem os olhos enterrados nas órbitas. Perdeu tanto peso que todos os ossos lhe saem da pele, tensa nas articulações, como prestes a rasgar-se. Tem o cabelo quebradiço, seco e áspero.

 

- Não sabia que era possível sofrer tanto. O pior é morrer assim... humilhado...

 

A sua voz é tão fraca e rouca que o jovem não a reconhece. É com dificuldade que contém as lágrimas.

 

- Gostaria de entrar contigo em Khanbalik...

 

- E entrarás.

 

Michele meneia a cabeça, desolado.

 

- Marco, no meu peito... pega nela...

 

Sobre as costelas que Michele soergue com irregularidade brilha a medalha talhada em estrela de seis pontas. O veneziano introduz a mão por baixo do pescoço emagrecido do amigo e desaperta o cordão.

 

- Devolver-ma-ás quando eu estiver curado... De contrário

- acrescenta Michele, de garganta seca - gostaria de que a enterrasses em Jerusalém, no monte das Oliveiras.

 

Marco abana a cabeça, incapaz de proferir uma palavra.

 

Aliviado, Michele fecha os olhos.

 

No dia seguinte, perde o uso da fala e já só consegue mover os dedos. Marco descobre, desesperado, o seu olhar prisioneiro de um corpo que já não lhe obedece.

 

O hospedeiro adverte-os de que não encontrarão nenhuma casa durante os muitos dias que demorarão a chegar a Taloqan. Muitos camponeses refugiaram-se em Bactra, ou nas montanhas, na sua maioria, cientes de que os Mongóis, que só conhecem a estepe e a tenda, nunca poupam as cidades, que detestam particularmente.

 

Os ecos do saque de Bucara pelos guerreiros de Abaga abalam os habitantes da região. A guerra entre Caidu e Abaga provoca devastações das quais são eles as primeiras vítimas. Os Polo vêem-se obrigados a não se afastar da rota do Sul para escapar aos combates. A caravana faz-se ao caminho com seis cavalos repousados. Trocaram as seis mulas por um camelo e compraram mais dois, bem mais resistentes, e carregaram-nos de odres de água e carne seca. Ao calor abrasador sucedeu um frio seco e penetrante. Cobriram-se com as capas e os gorros de pele pagos a bom preço aos mongóis. Atravessam a região durante doze dias sem encontrar uma única habitação. Avançam em direcção às montanhas, percorrendo vastos planaltos desérticos, a um andamento retardado pela maca de Michele. Por cima deles, pairam águias reais que descrevem grandes círculos majestosos.

 

- Marco, as águias! São um mau presságio... - anuncia Noor-Zade, fatalista.

 

- Procuram alimentar-se, é tudo.

 

- Não, neste caso não... - afirma ela.

 

Leões listados atravessam calmamente a estrada, enormes felinos de pelagem densa e dourada, cujos dentes, de dois palmos de comprimento, cintilam numa branca ameaça. Seguem a caravana, de mata em mata, preparados para atacar, como se tivessem farejado uma presa.

 

Por fim, avistam Taloqan. A sul da cidade, erguem-se imensas montanhas brancas.

 

- São montanhas de sal - explica Kunze. - E é o melhor do mundo.

 

Operários armados de pesadas picaretas de ferro aplicam-se no trabalho de talha. Vergados sob o peso de enormes sacos, os carregadores afastam-se. O contacto permanente com o ouro branco avermelha-lhes e irrita-lhes a pele.

 

Atenazados pela fome, os viajantes entram na cidade no dia do mercado de trigo. Homens carregados de grandes fardos abrem caminho, empurrando quem se oponha à sua passagem. Todos os homens usam grandes turbantes enrolados à volta da cabeça. Marco não vê nenhuma mulher nas ruelas. Os transeuntes afastam-se de Noor-Zade e de Eshka fazendo gestos de esconjuro.

 

Enquanto procura uma casa que os acolha, os componentes da caravana assistem a várias rixas. Este grupo de estrangeiros acossados e extenuados desperta a curiosidade. Um habitante oferece-lhes hospitalidade. Ao dinheiro que Matteo lhe propõe, prefere as peles que transportam.

 

- Estranho país este em que o ouro não tem o valor do que permite comprar - observa Marco.

 

Matteo reflecte sobre a troca que o hospedeiro pretende efectuar.

 

- Não, Matteo - intervém Niccolo -, vamos precisar das peles para atravessar as montanhas.

 

- Para já, precisamos de repousar - recorda Marco. - Bem vê como olham para nós. O nosso aspecto é assustador. Aceitemos, pai, todos nós nos encontramos extenuados.

 

- O homem talvez nos queira levar para casa para nos matar.

 

- Organizaremos turnos de vigilância.

 

Decidem pernoitar uma única vez e não abandonar Michele. De noite, as ruas enchem-se de homens embriagados que se disputam. No mercado, Matteo compra um saco de farinha que arrasta atrás dele, exultando.

 

Noor-Zade esvazia-o para um grande recipiente. Todos assistem àquela preparação com a emoção de quem muito esperou por um momento assim. Aos poucos, a rapariga acrescenta leite, água e sal e mistura tudo até obter uma consistência espessa. Depois, com toda a energia, bate a massa, que vira e revira vigorosamente, nada incomodada com o seu ventre proeminente. Marco contém-se para não devorar aquele corpo dourado, tão apetitoso quanto a farinha que mistura. Noor-Zade estende a massa, corta-a em fatias finas e achatadas. Por fim, lança-a para a chapa de ferro aquecida em cima da fogueira, depois de polvilhada de farinha. Decorridos alguns minutos estão prontos os primeiros bolos. Uma vez que todos se encontram servidos, num silêncio religioso, só se ouvem as maxilas em acção, numa mastigação aplicada, fruindo daquele maná, após várias semanas em que, muitas vezes, tiveram de se contentar com magras refeições, uma tigela de sopa e um pedaço de pão bolorento, que lhes revolvia as tripas.

 

No dia seguinte, partem de Taloqan e prosseguem a caminhada por uma região árida e seca. Sucedem-se as estepes, salpicadas, de onde em onde, de raros tufos de ervas. Os rochedos impõem a lei, esculpindo as montanhas escarpadas. Ao longe, à frente deles, erguem-se os cumes do mundo, magníficos e aterrorizadores. À noite, montam o acampamento ao abrigo das rochas. Kunze procede à distribuição dos víveres, carne seca e pão escuro. A despeito do frio que se faz sentir desde o cair da noite, não acendem nenhuma fogueira, a qual poderia atrair bandidos esfomeados. O persa e Marco revezam-se na vigilância.

 

De madrugada, apesar de sentir o estômago vazio, Marco partilha o caldo com Noor-Zade, que engoliu o dela num instante.

 

- Coma, senhor Marco, precisa de mais forças do que ela diz Kunze. - Não comerá mais nada antes do anoitecer.

 

Após vários dias de viagem através de uma paisagem cada vez mais escarpada, chegam a Scasem. Mas a esperança de poderem fazer uma paragem esbate-se, quando penetram nas zonas habitadas. É com surpresa que deparam com construções talhadas na montanha, como cavernas. As cavidades dispostas em socalcos na encosta só são acessíveis por degraus escavados na rocha.

 

- Nunca conseguiremos subir lá para cima com a maca de Michele! - alarma-se Marco.

 

- Deixá-lo-emos cá em baixo com Shayabami e Eshka - propõe Kunze.

 

- Se quiseres, também podes ficar cá em baixo - sugere Niccolo.

 

A caravana separa-se, Niccolo, Matteo e Kunze passam a noite ao abrigo das cavernas, enquanto Marco cuida de Michele, com Shayabami, Eshka e Noor-Zade, que o ventre, já muito volumoso, impede de se mover tão livremente como anteriormente. Montam a tenda no sopé da montanha, Shayabami fica de guarda no exterior. Lá dentro, ninguém consegue conciliar o sono, ouvem-se grunhidos inquietantes cujo eco se repercute repetidamente pelos rochedos. O mau cheiro dos dejectos do doente enjoa Marco até à náusea. Só a pequena Eshka dorme serenamente junto de Michele.

 

Um mês depois de terem abandonado Abaga, um ano e meio depois de terem partido de Veneza, no fim do ano de 1272, tomam finalmente conhecimento de que entraram na província do

 

Badakhshan, às portas do Pamir. Agora, desenha-se ao longo de todo o horizonte uma muralha de neve. Os habitantes falam uma língua que nem Kunze conhece. Logo que entram numa cidade chamada Eshkashem, são cercados por um grupo de curiosos que nunca mais os larga: apenas homens, muito magros, na sua maioria jovens, envoltos em cortes de um tecido pesado e com a cabeça coberta por grandes turbantes que quase lhes tapam os olhos, levemente amendoados. Sempre que Niccolo ou Kunze tentam dirigir-lhes a palavra, afastam-se, visivelmente inquietos. A caravana decide acampar à entrada da cidade, onde se sentirá mais em segurança do que no meio daqueles estrangeiros que parecem ansiosos por os assaltar.

 

Mal acabaram de montar a tenda e já um homem de baixa estatura, rosto cor de bistre e cabelo negro e liso como um capacete se aproxima cautelosamente. Os olhos são uma simples fenda rasgada sob as sobrancelhas ralas. Inclina-se com um sorriso generoso e modesto, de mãos postas. Niccolo responde à saudação.

 

- Sejam bem-vindos - começa o homem por dizer, em mongol.

 

O mercador sente-se tão feliz por encontrar alguém que aceite falar-lhes que o convida a entrar no gher.

 

À primeira vista parece um homem frágil, mas basta sentar-se de pernas cruzadas, o que faz num único movimento e de queixo erguido para que se lhe vejam os músculos dos dedos enormes, desproporcionados em relação ao seu tamanho, bem como os braços fortes, as costas largas. Tudo nele é força e resistência. Marco seria capaz de lhe confiar a vida.

 

- Que a graça celeste guie os vossos passos na ventura e na serenidade - prossegue o desconhecido, novamente de mãos postas.

 

Segue-se uma troca de preciosas fórmulas de cortesia e de votos de prosperidade e boa saúde. Por fim, o homem apresenta-se.

 

- Chamo-me Darmala. Venho das montanhas do Tibete. Matteo e Niccolo olham um para o outro.

 

- De facto, és um enviado do céu. Procuramos justamente um guia para atravessarmos os desfiladeiros.

 

Darmala saúda-os com um sorriso benévolo.

 

- Agradeço a honra. Todavia, a estação não é favorável, sobretudo com um doente - diz ele, apontando para Michele. - É preciso esperar pelo fim do Inverno.

 

Matteo solta um suspiro, saltitando para aquecer.

 

- Não poderemos aguardar tanto tempo. O tibetano meneia a cabeça, desapontado.

 

- Pretendemos partir o mais depressa possível, Darmala. Com ou sem ti - acrescenta Niccolo, decidido.

 

- A vontade celeste não compreende a impaciência. Morrerão se partirem no Inverno. É meu dever impedi-los de trepar aos cumes que só os conduzirão às nuvens eternas. Esperem pelo prazer de ver a alegria florir de novo no rosto do vosso companheiro.

 

O homem levanta-se, despede-se dos anfitriões e acrescenta, na sua voz calma:

 

- Aceito com muito júbilo a honra de os acompanhar até Kashgar, do outro lado do tecto do mundo. Quando as neves tiverem fundido nos desfiladeiros e o espírito das montanhas já não revelar os acessos de fúria que arrebatam os montes em escassos instantes.

 

Niccolo segue-o com os olhos até o ver sair da tenda e, depois, volta-se para o persa.

 

- Kunze, teremos de encontrar outro guia. Precisamos de atravessar as montanhas o mais depressa possível!

 

- Nicco, acalma-te! - implora Matteo. - Todos nós precisamos de repouso. Não recebemos más notícias sobre o estado de saúde de Cublai.

 

- Não recebemos notícias nenhumas! - irrita-se o irmão.

 

- Quanto a Michele, talvez seja a única hipótese que lhe resta de sobreviver - defende por sua vez Marco, baixando a voz.

 

Lá fora, Noor-Zade aguardava, saltitando ora num pé ora no outro.

 

- Posso? - perguntou Darmala.

 

A rapariga assentiu com a cabeça.

 

O homem pousou a grande mão no ventre de Noor-Zade. Foi um contacto suave e terno. Depois, ele dirigiu-lhe um sorriso simpático e formulou uma bênção para o parto, já próximo.

 

Marco sai por sua vez da tenda, esfregando os braços e tiritando.

 

- Ficamos aqui, Noor-Zade! - exclama ele.

 

- Oh, obrigada! - desabafa ela, aliviada. O jovem restitui-lhe o sorriso.

 

- Obrigada em nome dos dois - acrescenta ela, pousando a mão no ventre. - Toque-o, estou a senti-lo.

 

Hesitante, Noor-Zade pega na mão de Marco e aplica-a na proeminência palpitante de vida. O veneziano sente um abalo brusco na palma da mão. Retira o braço, surpreendido. Cúmplices, Noor-Zade e Marco trocam olhares risonhos.

 

Niccolo acaba por admitir que não poderão sobreviver vários meses de Inverno no gher. Começam, pois, a procurar uma casa onde se alojar. Um operário das minas aluga-lhes metade do espaço em que vive. Mas é tão glacial que eles decidem armar a tenda. No seu interior, o frio é tão intenso que a pequena Eshka se muda para aquecer Michele, imóvel na maca. Darmala enviou-lhes um médico da sua família que pretende que o doente poderá curar-se. Mas é ele o único a acreditar, embora Marco pretenda continuar embalado em ilusões. Noor-Zade permanece muito tempo deitada, fatigada pelo enorme ventre.

 

Nas ruas, os poços foram cobertos por pelicas de carneiro, a fim de evitar que a água gele. Todavia, algumas peles estalam, quebradiças, tão intenso é o frio.

 

Logo que se instalam, Kunze dirige-se aos banhos mouros para fazer as suas abluções. A curta distância que separa a mesquita da casa que habitam basta para lhe gelar a barba. De regresso, descongela-a diante da fogueira, recolhendo a água do bloco de gelo, que reserva para Michele.

 

As ornamentações mongóis do gher valem-lhes temor e respeito. São mesmo recebidos com as maiores atenções pelo senhor da cidade, um homem surpreendentemente obeso para aquelas paragens, onde a magreza é a regra. Gaba-se de que os filhos, ainda crianças, foram enviados para a corte do Grão Cão, a fim de receberem uma educação digna da nobreza da família. Também ele se pretende descendente de Alexandre. Niccolo mostra-se curioso quanto às dimensões dos traseiros das mulheres da região. Enquanto o governador da cidade ri ruidosamente, Darmala, que serve de intérprete, explica que elas usam umas bragas de cem braças de comprimento por baixo dos vestidos, a fim de darem a entender que são volumosas precisamente onde os homens gostam que sejam. O governador exibe à frente das visitas a sua colecção de rubis balaches, que ele considera os mais belos do mundo, cujo comércio e detenção regulamenta rigorosamente, preocupado como está em conservar o seu monopólio. Convida-os a visitar as minas de que tanto se orgulha e que fazem a riqueza do Badakhshan: rubis balaches e lápis-lazúli, aqui chamado azul. A ideia entusiasma Niccolo. O espectáculo é surpreendente. Os veios azuis formam longas volutas nas encostas das montanhas, ao longo das quais se afadiga um exército de operários e escravos, incluindo crianças, todos eles escorrendo suor sob os farrapos que os cobrem, a despeito do frio. O trabalho na mina de rubis balaches é ainda mais penoso. Os escravos e os prisioneiros escavam em profundidade para extrair as pedras preciosas. Um bando de guardas armados de chicotes e longos sabres vigia-os atentamente. Ninguém ali sobrevive por muito tempo.

 

No dia seguinte de manhã, soldados do governador irrompem pela tenda, atiram-se a Marco sem contemplações e revistam-lhe a enxerga.

 

- O que procuram? - insurge-se o veneziano.

 

O capitão, orgulhoso, agita no ar uma pequena bolsa, que abre. Lá dentro, um punhado de pedras negras dissimula o brilho de um belo vermelho luminoso.

 

- Isto! - exclama o capitão em mongol, encantado com o valor da apreensão.

 

Marco é imediatamente lançado para o fundo de um poço, um cárcere onde se verá obrigado a coabitar com ratazanas. Apesar de l proclamar a sua inocência, ninguém o quer ouvir. Sem luz, perde rapidamente a noção do tempo, mas permanece ali tempo suficiente, com um simples caldo por alimento, para se sentir coberto de piolhos e bicharia. Num momento em que se coça por todo o corpo, distingue uma luz pálida acima dele. Atiram-lhe uma corda.

 

Sem reflectir, agarra-se a ela com a energia que lhe resta e emerge da galeria em que o aprisionaram.

 

À saída, Niccolo e Matteo esperam-no, examinando-o com repulsa.

 

- Juro que estou inocente!

 

- Não importa! - responde Niccolo. - Conseguimos poupar-te à condenação à morte. A tua pena foi comutada numa expulsão imediata da região.

 

Niccolo regressa à tenda com Matteo, enquanto Marco se dirige para os banhos. Ainda sob o choque sofrido, o jovem deixa-se esfregar, praticamente indiferente ao prazer de se sentir asseado.

 

Decorrido um longo momento, junta-se aos outros, na tenda.

 

- Decidimos partir imediatamente - anuncia Niccolo numa voz fria.

 

- E... Michele?

 

- Preocupa-te em primeiro lugar com a tua sorte! - exclama o pai, incapaz de conter a raiva. - Quanto ao teu amigo, traiu-nos. Portanto, vamos enviá-lo para a Pérsia, para junto do seu amo e senhor.

 

- Foi graças a ele que Abaga nos tratou bem.

 

- Pouco importa. Não merece a minha compaixão.

 

- E a sua caridade cristã, meu pai?

 

- Esqueces-te de que se trata de um judeu...

 

- Não o abandonarei.

 

Niccolo estende a mão para Michele, que jaz a um canto da tenda, entregue aos cuidados de Eshka.

 

- É ele próprio quem to pede. Não sabes ler no seu olhar? Marco cala-se, desviando a cabeça do moribundo.

 Niccolo chama Kunze para o enviar à procura de Darmala. Depois, pega no precioso mapa e começa a estudá-lo, de sobrolho carregado.

 

O persa penetra de novo na tenda, seguido de Darmala, que saúda os presentes, antes de se sentar, de pernas cruzadas.

 

- Aceitas guiar-nos através dos cumes do Pamir? - indaga Matteo numa voz doce.

 

- De acordo com o meu mapa - diz Niccolo -, a melhor passagem é pelo estreito do Penjab.

 

- O seu mapa não diz que esse estreito é intransponível no Inverno.

 

- Oferecemos-te dez besantes de ouro - propõe Matteo.

 

- Aqui, o ouro não serve para nada.

 

Darmala, arrastando-se pelo chão, vai ajoelhar-se perto de Michele, que não o vê, de pálpebras cerradas, lábios gretados pelo hálito fraco e fétido. O tibetano volta-se para Niccolo.

 

- Quero dois camelos antes da travessia. Sou eu que decido sozinho a composição da caravana e de todo o carregamento. Terão de comprar cavalos novos.

 

- E os nossos?

 

- Não sabem procurar debaixo da neve a erva que os alimentará. Precisamos de camelos bactrianos, de cavalos para os cameleiros que vou contratar, de iaques. Todas as despesas ficarão a vosso cargo. E tudo isto sem o doente - acrescenta o tibetano. - Atrasar-nos-ia e, seja como for, morrerá.

 

- Deixá-lo-emos aqui - aquiesce Matteo. Marco empertiga-se.

 

- Meu tio!

 

- Procuraremos encontrar os melhores médicos. Mas ele ficará aqui. E a pequena Eshka ocupar-se-á dele. Como vês, Marco, não deves inquietar-te.

 

- E ela, o que fará ela quando ele...

 

O jovem interrompe-se, horrorizado com as palavras que calou.

 

- É apenas uma mulher - declara Darmala, encolhendo os ombros. - Vem comigo, quero informar-me quanto aos vossos haveres. Ah, derradeira condição: acompanho-os até Khanbalik.

 

Na véspera da partida, Marco passa toda a noite à cabeceira de Michele. Sente um nó na garganta e tem as pálpebras inchadas de tanto conter as lágrimas.

 

O doente já não consegue falar, só o seu olhar deixa transparecer a vida que se agita dentro dele e que anseia por o abandonar. Marco lê nos seus olhos um tão grande sofrimento que julga compreender que Michele lhe suplica que o abandonem. Tem o ventre estranhamente inchado, apesar da horrível magreza.

 

Quando o veneziano se abeira momentaneamente de Noor-Zade, fora da tenda, Kunze aproxima-se e agacha-se ao lado de Michele. Com a mais doce das vozes, murmura:

 

- Agora que estás prestes a morrer, devo-te a verdade. Quando te dava de beber, juntava umas gotas de um veneno que se destila no sangue e te devora lentamente. Sempre que julgavas matar a sede, era a morte que ingerias. Uma antiga prática dos Assassinos!

 

Kunze escruta com crueldade a expressão de pavor estampada nos olhos de Michele. Nenhum músculo do seu rosto febril se move. As suas mãos continuam crispadas nas mantas que o cobrem e que ele já não sente. O persa volta-se e afasta-se, satisfeito, abandonando a vítima à sua longa agonia.

 

- Marco, não quero ficar aqui sozinha. Mas não quero que o meu filho nasça nas montanhas. Correria o risco de não sobreviver.

 

Marco aperta a mão de Noor-Zade na sua.

 

- Estarei a teu lado.

 

A rapariga afasta-se dele e fixa-o com os olhos negros e brilhantes.

 

- Não, Marco, nem sempre.

 

Marco cala-se, incapaz de a tranquilizar.

 

- Volte para junto de Michele, ele precisa de si.

 

Dentro da tenda, o odor da putrefacção é insuportável. Eshka enxuga a fronte acinzentada, coberta de um suor maligno.

 

Marco ajoelha-se ao lado de Michele. Este dirige-lhe um olhar carregado de terror, que dilacera o coração do jovem.

 

- Michele, vamos partir... Perdoa-me... Gostaria de estar presente... até ao fim...

 

Marco pega na preciosa medalha que Michele lhe deu.

 

- Tens a minha palavra, meu amigo... meu irmão.

 

Com um nó na garganta, incapaz de dizer mais alguma coisa, Marco estreita Michele contra o peito pela última vez.

 

O FILHO DO TECTO DO MUNDO

A aurora glacial espalha uma luz pálida. Ao longe, nasce o dia, iluminando os cumes com um brilho tão vivo que, mesmo no céu escuro, se tornam deslumbrantes. A caravana avança pela cadeia do Hindu Kuch, prolongamento ocidental do Himalaia, antes de empreender a ascensão do Pamir, a norte, que a conduzirá ao outro lado do mundo. Os cinco iaques, bovídeos de longos cornos pontiagudos, são cobertos por uma espessa camada de pêlos que descem até ao chão. Os camelos, uma dezena, enormes, têm um aspecto pré-histórico. Uma abundante pelagem de mamute esconde-lhes os olhos e cobre-lhes as patas até ao fundo. Como vergados sob o próprio peso, avançam lentamente mas a passo certo. Vão presos uns aos outros e formam uma longa fila com uma calma tranquilizadora. Enormes, carregados como mulas, um tapete de feltro assente entre o dorso e a sela, protege-os da geada. Os três condutores de camelos que os precedem a cavalo, atentos ao seu andamento, vão tão agasalhados quanto os animais, envoltos em grandes pelicas forradas. A caravana transporta barcos de couro destinados a atravessar rios, provisões de pão, milho-miúdo, carne seca e salgada para três meses, arroz para a população das montanhas.

 

As encostas estão verdejantes, cobertas por florestas de cedros que estendem os ramos bem desenvolvidos. Em frente, do outro lado do vale, extensões de pedras escondem a erva parda que espera pela Primavera para enverdecer e acolher os rebanhos de carneiros dos nómadas. Para já, em pleno Inverno, estes acampam nas planícies. Vestígios de campos retalhados nas encostas testemunham a obstinação dos habitantes. Pequenos sulcos desenham finas rugas nas vertentes onde, no Verão, a água resultante da fusão dos glaciares escava o seu caminho até ao vale.

 

O ar seco e frio perturba a visão. Os cumes envolvem-se numa luz irreal, emergindo da terra com uma fúria antiga, perdendo-se nas nuvens que desafiam, altivos. O próprio sol parece empalidecer. Como as mulheres e os homens, as montanhas vivem veladas por nimbos esbranquiçados que se confundem com as neves eternas.

 

Logo que os últimos raios de sol desaparecem por detrás das alturas, a temperatura desce bruscamente. À medida que vão subindo, Noor-Zade agarra-se cada vez mais à crina do cavalo, de dentes cerrados, esforçando-se por apaziguar o peito, que reclama mais ar. Perante a intensidade daquele frio impiedoso, capaz de a triturar, dirige olhares angustiados ao jovem veneziano, que avança mesmo à sua frente. Mas, perdido na lembrança de Michele, Marco refugia-se num silêncio que não lhe é habitual. Àquela altitude, o gelo ainda não venceu a água que escorre em cascatas murmurejantes, ao longo da estrada. Os cavaleiros evitam escorregar pelas pedras húmidas. A caravana sobe a encosta da montanha cinzenta, em fila indiana. Do lado oposto, crianças trepam até ao cimo com a mesma agilidade das cabras, detendo-se de onde em onde para observar os estrangeiros. Noor-Zade esforça-se por não olhar para baixo, para a terra cada vez mais distante.

 

À noite, encontram um acampamento de pastores nómadas, instalado na vertente da montanha. Os homens olham-nos com desconfiança. As mulheres, por detrás dos véus, lançam olhares de compaixão a Noor-Zade. Marco repara nos seus pés descalços, nos tornozelos enfeitados por grossas pulseiras e nas mãos carregadas de tatuagens. À noite, à luz de uma pobre fogueira, os homens dançam ao som do tambor para que a sorte lhes seja favorável e as mulheres chamam Noor-Zade à parte para lhe fazerem as devidas recomendações.

 

É sem terem dormido profundamente que, no dia seguinte, retomam a ascensão, para depois descerem a um planalto cor de cobalto assente entre duas montanhas redondas. Em seguida, desaparece a estrada, verdadeiro desfiladeiro, entre rochedos tão altos como muralhas. A caravana prossegue, Darmala vai à frente, devagar. A passagem é tão estreita que os homens são obrigados a parar para descarregar os camelos, transportando eles próprios os fardos para o outro lado. As montanhas do Kafiristão impõem-se pelas suas dimensões vertiginosas, cobertas por uma densa camada de neve. A paisagem conserva o segredo de um mundo que precedeu o homem. Nas encostas, Marco vê rochedos reunidos segundo formas estranhas. Grandes carneiros selvagens de cornos com pelo menos seis palmos de comprimento, muito recurvados, acompanham-nos na ascensão, mas como uma destreza extraordinária. À medida que se aproximam, o jovem começa a distinguir uma espécie de cabanas abertas sobre o vale, encaixadas umas nas outras. Sai fumo dos terraços que as cobrem, ínfimo sinal de vida humana. Os habitantes amontoam-se para os ver subir até eles. Os rostos ostentam a altivez solitária dos montanheses. As mulheres, de corpo semelhante ao dos maridos, erguem os filhos nos braços. Kunze é particularmente saudado, reconhecido por ser da mesma fé. Mal chegam, cobram-lhes um tributo para os albergarem, mesmo por uma noite. A lei da hospitalidade apaga-se sob a da necessidade. Até das palavras fazem economia e Niccolo não encontra nenhum apreciador dos seus habituais gracejos, demasiado cristãos para serem compreendidos em tais paragens. A entrada da casa do chefe encontra-se enfeitada de cornos de carneiro selvagem. São eles próprios que fabricam as tigelas em que servem mel generosamente coberto de manteiga pura. À volta do jantar, os homens, agachados uns contra os outros, parecem aves de rapina sempre à espreita. No exterior, os cerca de vinte animais regalam-se com uma erva de Inverno ainda dispersa, mas tão gorda que um raminho vale mais do que um molho de feno.

 

Com a ajuda de escadas talhadas em troncos de árvore, Kunze passa de terraço em terraço, cada um deles formando o telhado da casa do vizinho, até chegar à mesquita da minúscula aldeia, magnificamente decorada com motivos de madeira de inspiração persa. Tem uma vista vertiginosa sobre o vale, uma verdadeira ravina profundamente escavada por uma torrente em fúria. À noite, Marco ouve lobos que uivam de fome. Deitam-se com os arcos pousados bem perto deles. Mais uma vez, o sono não lhes faz companhia. De manhã, as pegadas dos ursos misturam-se com as dos lobos.

 

- Não tenham medo, eles só saem de noite.

 

- Mas, lá em cima, no cimo dos montes, dormiremos em tendas. E, nesse caso, como nos poderemos defender? - indaga Matteo.

 

- Lá em cima - replica Darmala, sorrindo - não haverá animais selvagens.

 

Esta resposta, em vez de os tranquilizar, provoca-lhes arrepios.

 

Saindo da aldeia, cruzam-se com mulheres carregadas de lenha que transportam às costas, como os filhos, em grandes sacos feitos de pêlo de cabra entrançado. Descem com a mesma agilidade dos carneiros selvagens, descalças, com as pernas envolvidas em bragas de lã, o que lhes confere um aspecto viril.

 

A caravana prossegue a ascensão durante um mês. As sete montadas dos viajantes ultrapassam a dezena de camelos, enquadrados pelos três cameleiros a cavalo. O gelo escavou sulcos profundos na terra. As árvores fendem-se, deixando cair os ramos, meio rachados. A neve range suavemente, esmagada pelo peso dos animais. Os cameleiros apearam-se para se certificarem do estado da estrada, tão estreita que protegem os animais com antolhos para que estes não se sintam tentados a olhar para o precipício. Os cascos escorregam e torna-se necessário escavar degraus na neve, a fim de guiar as patas dos animais.

 

Marco está sempre a pensar que já atingiram o cume. Mas, mal chegam ao cimo, surgem outros picos, como se acabassem de nascer. De longe em longe, marcas na neve assinalam a presença de lobos ou de roedores. Por fim, avistam um pequeno planalto, refúgio inesperado num mundo hostil.

 

- A terra está mesmo lá em baixo? - pergunta Marco, incrédulo.

 

- Penso que sim - responde Darmala.

 

- Nunca julguei que a camada de neve pudesse ser tão profunda!

 

- Quanto mais subimos, mais necessário se torna proteger os olhos.

 

Montam duas tendas uma ao lado da outra. Darmala certifica-se de que os pés e as mãos dos companheiros não enregelaram? esfregando-os com neve. O ar está tão glacial que a fogueira não consegue aquecer o suficiente para cozinhar a carne. Noor-Zade, extenuada, quase não tem forças para dirigir a Marco um sorriso tranquilizador. Kunze reza as suas orações com fervor, julgando-se perto da porta do grande frio do inferno descrita pelo Alcorão.

 

A meio da noite, reúnem-se todos na mesma tenda para se aquecerem, ignorando as hierarquias. Começa a nevar. De madrugada, apesar de bem agasalhado entre pelicas, Marco acorda com a cara colada à manta que o cobre. Lá fora, neva intensamente. Darmala vê-se obrigado a limpar a neve da entrada da tenda. Retiram toda uma camada de massa branca, antes de dobrarem o abrigo que nunca lhes pareceu tão precioso. Em seguida, retomam a ascensão.

 

Marco certifica-se de que traz ao peito o fuzil e a isca de acender. Aquela neve nunca derrete e, no entanto, parece tão leve como se tivesse acabado de cair. Raras são as espécies que sobem tão alto para a calcar. Ao longe, acima deles, o cume parece tocar nas nuvens que pesam em camadas espessas, como suspensas das imensas elevações. Todos avançam em silêncio, seguindo as recomendações de Darmala, a fim de economizarem o fôlego que o espírito das montanhas lhes rouba, à medida que penetram no seu território. Vão envolvidos em várias camadas de roupa, túnica de seda, cafetã, pelica e capa de feltro, gorro de pele, dois pares de bragas de pele e três pares de botas. Encolhido, Marco mal se pode mexer. Troçou do número de peças de roupa que o guia lhe ordenou que vestissem. Mas, agora, felicita-se mesmo por ter dado ouvidos a Rubrouck. Com os ouvidos cheios de algodão, o nariz crestado pelo frio, os olhos sempre a chorar, seguem tão hirtos em cima dos cavalos que quase poderiam deslizar para a morte sem se aperceberem. Ouvem um leve assobio, vindo de algures. Darmala percorre a caravana.

 

- Aconteça o que acontecer, é essencial que não se detenham!

 

A tempestade levanta-se num prolongado rugido ininterrupto, que cresce até os ensurdecer. Continua assim por várias horas, uivando por cima das suas cabeças. Os aguçados flocos de neve dilaceram-nos. O vento, nestas paragens, nunca amaina, como revoltado contra a presença de estrangeiros no seu território. À frente de Marco, a silhueta branca de Darmala, rígida na pelica que o cobre, permanece surda a qualquer grito. Os camelos enterram-se até aos joelhos na neve solta. Os cavalos sofrem, de cabeça baixa. Esgotado, o jovem adormece em cima da sela. É brutalmente acordado, quando o cavalo derrapa numa placa de gelo. O coração de Marco pulsa aceleradamente. In extremis, o animal equilibra-se. Marco sua, tremendo como varas verdes. Por fim, cessa de nevar.

 

Alcançam um vasto planalto onde uma estrada plana se abre em largos meandros, antes de estreitar, no meio da montanha. Aqui e ali, parecem mover-se manchas sombrias. Um rio gelado! Só o seu leito de mármore branco o deixa adivinhar. Darmala continua a avançar, sem sequer fingir abrandar. Não terá visto? Marco precipita-se para junto dele, descobre a boca tapada pela pelica e grita aos ouvidos do tibetano:

 

- Darmala! É um rio!

 

O guia limita-se a abanar a cabeça. O veneziano recorda-se, então, da confiança que o homem lhe inspirou no primeiro encontro.

 

- Justamente, não fiques aqui a meu lado, vai lá para trás! grita-lhe Darmala.

 

Com o pensamento na mãe, Marco reza com fervor. A caravana avança prudentemente pelo rio gelado. Os três condutores de camelos levam os olhos cravados nos animais. Darmala desmontou do cavalo e avança em primeiro lugar. Subitamente, ajoelha-se. Todos se imobilizam atrás dele. Debruçando-se, encosta o ouvido ao gelo, atento ao mais leve estalido. Depois, ergue-se, desvia-se para uma espessura mais forte. Os camelos retomam a marcha, os cavalos pousam cuidadosamente os cascos no chão. Muito perto deles, de uma abertura no gelo, a água jorra em borbotões. Noor-Zade fixa o olhar na crina do cavalo, com as mãos crispadas, húmidas, agarradas às rédeas. Os passos dos camelos felpudos estalam na neve dura. Subitamente, um grito. Lentamente, quase sem um ruído, um camelo enterra-se na água gelada. Todos os homens se precipitam de imediato. Niccolo puxa pelas rédeas do animal, que se debate furiosamente, prestes a atacá-lo no peito. A galheta do santo óleo pende do pescoço do mercador. Kunze desembainha o sabre e, num golpe seco, corta as faixas que prendem o carregamento ao dorso do animal, fazendo assobiar a lâmina a poucas polegadas do pescoço de Niccolo, cujos protestos se afogam na terrível voz do animal, que o medo leva a empinar-se. Darmala e Marco ajudam Kunze a libertar o animal dos fardos que o arrastam para o fundo. Subitamente, o jovem vê a galheta do santo óleo flutuar por instantes à tona da água quebrada pelas patas do camelo, antes de desaparecer, levada pelas ondas.

 

Sem reflectir, mergulha no rio gelado. O frio queima-lhe imediatamente os pulmões. Um turbilhão escuro agita as ondas geladas. Marco sente-se de imediato à vontade e experimenta mesmo uma sensação de calor. A galheta de prata brilha na penumbra. Estende o braço com uma estranha lentidão e agarra-a em movimento. Verifica que a segura nos dedos, pois não tem sensibilidade na mão. Finca-se nos pés para regressar à superfície. O esforço envidado é desmesurado. Mais um impulso e consegue emergir à tona da água. Lá fora, todos se agitam para o recuperar.

 

- Estou bem, nem sequer sinto frio - diz ele. Todos os homens o observam, horrorizados.

 

- Tem os lábios roxos! - exclama Matteo.

 

Marco sente que começa a tremer sem conseguir parar. Incapaz de se manter de pé, cai em cima do gelo.

 

- O camelo? Onde está ele?

 

Mas ninguém se preocupa com o animal. Darmala dá ordens aos três cameleiros, que despem Marco num ápice. Enxugam-no vigorosamente. Niccolo põe-se de tronco nu para ceder a mais quente das suas pelicas. Matteo e Darmala imitam-no e envolvem o jovem tiritante em várias camadas de roupa. Banhado por um estranho torpor, Marco entrega-se aos cuidados dos outros, pois o seu corpo perdeu qualquer sensação. Os companheiros friccionam-lhe os pés e as mãos com uma energia obstinada.

 

- Sentes alguma coisa? - pergunta Darmala, ansioso. Marco abana a cabeça.

 

- Vai perder os dedos das mãos e dos pés - alerta Kunze, fatalista. - Talvez pior ainda...

 

Sem uma palavra, Niccolo debruça-se sobre o filho e começa a esfregá-lo por sua vez, com uma raiva furiosa e desesperada. Por fim, sopra para as mãos, roxas e rígidas.

 

- Matteo! Não temos uma garrafa de uma boa bebida?

 

Darmala vai buscar um odre de vinho de Arroz. Matteo aproxima o gargalo da boca do sobrinho. Mecanicamente, Marco engole vários goles. A garganta aquece rapidamente. O álcool queima-o, irradiando por todo o seu ser. As pernas e os braços inflamam-se numa dor intensa. O ventre revolta-se-lhe bruscamente. Sem saber como, vomita toda a refeição da manhã.

 

- Estou a arder! Vou morrer! - exclama ele, numa voz rouca. Darmala responde-lhe com um sorriso.

 

- Pelo contrário, Marco Polo!

 Por fim, começa a mover os dedos, inchados e escaldantes.

 

- A galheta! Perdi-a!

 

Niccolo mostra-lha, apertada na palma da mão, presa à tira de couro.

 

Extenuado, Marco suspira, incapaz do mínimo movimento.

 

- O meu sabre lacerou-a por incúria - explica Kunze, muito calmo.

 

Após vários dias de cavalgada ininterrupta, Darmala aproveita uma acalmia da queda de neve para organizar uma paragem. Sem um queixume, ofegante, Noor-Zade deixa-se escorregar do cavalo e ajuda a instalar o acampamento. Na tenda, onde abandonaram as pelicas, Marco volta a descobrir o corpo da jovem. O ventre enorme no corpo magro confere um estranho aspecto à sua silhueta. Os seus seios incharam. Mas ela sofre, agarrada aos rins, disfarçando esgares de dor. Aproxima-se o fim do tempo.

 

Marco abeira-se de Niccolo.

 

- Meu pai, o filho de Noor-Zade está prestes a nascer. Não será possível esperar pelo acontecimento?

 

- Marco, eu também sinto pena dela. Nessa matéria, confio no nosso chefe caravaneiro. Não te esqueças da sua condição. Nunca arriscaria a vida dos meus homens por ela.

 

O mercador chama Kunze e expõe-lhe o pedido de Marco. O persa volta-se para o jovem.

 

- Infelizmente, senhor Marco, ignoramos a data do parto. Por outro lado, sei que, se esperarmos, estaremos condenados. Aproxima-se a Primavera. E os grandes desfiladeiros são muito perigosos... Correríamos o risco de enfrentar avalanchas.

 

Marco é obrigado a resignar-se. Nem sequer adverte Noor-Zade da tentativa que empreendeu.

 

A ascensão é cada vez mais abrupta. Os caminhos são tão estreitos que os homens se apeiam dos cavalos, a fim de não os desequilibrar.

 

A 28 de Fevereiro de 1273, dois meses depois de terem iniciado a ascensão, quando se encontram no cimo do mundo, onde a falta de ar impede as fogueiras de arder, Noor-Zade sente as primeiras dores. Aperta o ventre entre as mãos e desliza suavemente para o chão.

 

Marco precipita-se para ela. A caravana deteve-se.

 

Darmala observa as montanhas cujos dentes se recortam, agressivos, à sua volta. Uma gruta, simples cavidade, oferece a sua sombra para os proteger do vento que sopra, glacial. Dá algumas ordens aos outros cameleiros, que começam imediatamente a escavar a neve num promontório acima do precipício.

 

Kunze, furioso, avança para eles, de chicote no ar.

 

Darmala interpõe-se, calma mas firmemente.

 

- Temos de lhe dar um oportunidade. Niccolo também voltou atrás.

 

- Marco, é um assunto de mulheres.

 

- Não posso abandoná-la, sozinha! - exclama o jovem, com a voz carregada de uma terrível angústia.

 

O pai pousa a mão no braço armado de Kunze que, de dentes cerrados, recua. O seu olhar cruza-se com o de Noor-Zade. Nos seus olhos, lê o ódio feroz que lhe inspiram o medo e a raiva de sobreviver.

 

- Teremos de prosseguir o nosso caminho, ou morreremos todos! - exclama ele.

 

Matteo confia as rédeas do cavalo ao sobrinho.

 

- Não é o mais veloz, mas é resistente. Com o teu, poderão descer os dois.

 

Marco aperta o tio nos braços.

 

Darmala, antes de partir, cede uma das suas pelicas.

 

- Para a criança - diz ele, com um sorriso.

 

A caravana põe-se em marcha, através do carreiro. Marco vê-os afastar-se, com o coração apertado, até se tornarem minúsculos pontos negros na neve. Noor-Zade está sentada na manta que os cameleiros lhe deixaram. Pega num pedaço de neve que derrete tranquilamente na boca. O veneziano senta-se a seu lado, pega-lhe na mão.

 

- Teremos de andar depressa. Marco, se as coisas não correrem bem, promete-me que optarás por salvar a criança.

 

Marco apertou ainda mais a mão de Noor-Zade.

 

- Prometo.

 Noor-Zade entrega-lhe a faca da rainha de Sabá.

 

Marco recolhe os cavalos na gruta, contra a rapariga, a fim de que ela beneficie do calor animal. Durante as longas horas que se seguem, observa Noor-Zade, que cerra os dentes, resistindo à dor. A despeito do frio, gotas de suor cobrem-lhe o rosto, formando uma fina película. Está a tiritar. Marco quer apertá-la nos braços, mas a rapariga repele-o delicadamente. A sua pele apresenta um tom cinzento mais próximo da morte do que da vida.

 

Numa voz entrecortada, explica a Marco os gestos que este terá de executar. Sozinhos, abandonados por todos, nunca, porém, se sentiram tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes um do outro. Noor-Zade esmaga a mão de Marco dentro da sua. Aos poucos, concentrando-se na criança que vai nascer, aceita o domínio da dor, deixando-se penetrar pelas sucessivas vagas que se intensificam. Desarmado, Marco sente-se constrangido por um profundo sofrimento. A noite começa a lançar sobre a terra o seu manto escuro, transformando a paisagem, tão clara, num lúgubre reflexo do inferno. Subitamente, Marco lembra-se de utilizar o óleo dos zoroastrianos, cuja galheta guardou. Embebe um dos seus turbantes no óleo e pega-lhe fogo. As chamas aquecem imediatamente a atmosfera da gruta. Noor-Zade esboça um esgar, franze os olhos, com o rosto alagado em suor. Passa um pedaço de gelo pela testa, pelas têmporas, enquanto se esforça por alimentar a fogueira com os parcos meios de que dispõe. Trinca pedaços de gelo, solta gritos estridentes e breves que assustam Marco. O seu corpo já não lhe pertence, possuído por aquele acto que Deus lhe ordenou que cumprisse. Dentro dela, move-se uma força inacreditável, que explode dentro do seu ventre, se esforça por vir a este mundo. Sente o ventre dilacerado por uma dor avassaladora. Tem o corpo tão tenso que não se pode mexer. Contrariando o esgotamento, Noor-Zade reúne forças. Agarra-se a Marco, incapaz de falar, e agacha-se no chão. O jovem tapa-a com a manta. Em escassos instantes, o sangue espalha-se à sua volta. Noor-Zade crava as unhas no ombro do jovem. Contrai-se-lhe o rosto. Pulsam-lhe as artérias do pescoço, tumefactas como tentáculos. Os seus lábios apresentam uma palidez extrema, eivando-se de roxo, devido ao esforço. Desesperada, Noor-Zade tenta recobrar o fôlego.

 

- Não consigo respirar - desabafa ela, em pânico. Impotente, Marco beija-lhe a boca. Depois, ajoelha-se à sua frente.

 

- Oh Dio! - exclama Marco, emocionado. - Estou a vê-lo, o cabelo, a cabeça!

 

Noor-Zade, encorajada, puxa com toda a força.

 

- Estou a ver-lhe os olhos, Noor-Zade! Ele está a olhar para mim!

 

Embora a dor se tenha apoderado de todo o seu corpo, a rapariga sente o filho deslizar entre as coxas, passar do seu corpo para a vida. Marco estende os braços para acolher o recém-nascido. O jovem, comovido até às lágrimas, mostra-lhe o pequeno ser que chora com dificuldade.

 

- Está todo azul! - exclama Noor-Zade, com a voz fraca. Com a ajuda da faca, Marco corta o cordão. A rapariga deixa-se cair na neve, surpreendida e aliviada. Com as poucas forças que lhe restam, abre a capa e encosta o bebé contra o peito, contra o calor que ele acaba de abandonar. Começa a orar com fervor.

 

- Marco, dá-me a bolsa de sangue que envolvia o bebé.

 

- Deitei-a fora.

 

- Procura-a.

 

Marco rebusca no meio da neve e pega num pedaço de carne ensanguentada, brilhante. Noor-Zade pega nela e trinca-a com toda a força. O jovem volta a cabeça para o lado.

 

- Marco, rahmed - murmura ela, suavemente.

 

O seu sorriso é mais bonito do que o sol que ilumina o horizonte, recortado. Noor-Zade fecha os olhos. Aos poucos, a sua boca, vermelha de sangue, descontrai-se. Noor-Zade parece adormecer ou antes, desfalecer docemente. Marco, preocupado, abana-a.

 

- Noor-Zade, temos de partir. Não podemos continuar aqui.

 

Nota: rahmed - ”Obrigada” em uigure.

 

Ela não parece ouvi-lo. Limita-se a sussurrar:

 

- Só quero que me deixes, Marco.

 

- Noor-Zade, tens de te levantar, de te equilibrar no cavalo. Vem! - ordena ele num tom de voz firme.

 

Agarra-a pelos ombros, segurando no bebé, e pousa-a no cavalo, bem agasalhada. Prende os dois cavalos um ao outro e, tomando a dianteira, envereda pelo caminho abrupto e acidentado. Por várias vezes, os cavalos escorregam nas pedras cobertas de neve. Mas retomam o equilíbrio, como se se sustentassem mutuamente. Marco volta-se para trás, para se certificar de que Noor-Zade não cai do cavalo. Com os olhos inchados fixos na crina da montada, ela vai abanando o filho, a fim de confirmar que continua vivo.

 

Subitamente, depois de avançarem durante todo o dia, na curva de um desfiladeiro, surge um telhado de forma estranha, de cantos revirados para o céu. O palácio apresenta-se decorado de cores garridas e intensas.

 

- O pagode de uma lamaseria - diz Noor-Zade.

 

Penetram no pátio. Sob os flocos de neve, celebra-se um casamento. Os noivos estão de pé, cobertos de neve, imóveis em frente de um homem envolto numa túnica vermelha drapeada, de crânio rapado e com a cabeça coberta por um chapéu em forma de crista de galo, de cor amarela dourada. Numa voz grave, salmodia uma litania de inflexões monótonas. Uma procissão de músicos toca instrumentos de sons graves, címbalos, tambores e trompas. Sopram para dentro de tubos de cobre muito compridos cujas extremidades são sustentadas por crianças. O som é tão profundo que ressoa no coração de Marco. Por fim, reparam na presença dos recém-chegados. Aproximam-se deles alguns homens, com o sorriso acolhedor que Marco já viu em Darmala, e ajudam-nos a apear-se do cavalo. Noor-Zade dirige-se a eles numa língua que Marco não compreende e são conduzidos para uma sala ornamentada por um magnífico tapete bordado a mil cores, estendido em frente da única peça de mobiliário, a estátua dourada de um risonho buda. A jovem abre a pelica com todo o cuidado. Contra o seio, a criança já não se mexe, coberta por uma substância amarelada e seca. Noor-Zade tem o rosto banhado de lágrimas. Um lama, esboçando um sorriso apaziguador, pega no bebé pelos pés e agita-o, antes de o mergulhar num banho fumegante. Imediatamente reanimado, o bebé começa a gritar.

 

Passam um mês na lamaseria, beneficiando do repouso e dos cuidados dispensados a Noor-Zade e ao filho. A rapariga restabelece-se tanto mais depressa quanto se sente rodeada de monges que partilham as suas crenças.

 

Abandonam a lamaseria e fazem-se à estrada, guiados por um monge habituado a viajar e que conhece todos os caminhos até Kashgar. Crianças que usam no pulso uma pulseira igual à de Noor-Zade acenam-lhes em sinal de despedida.

 

- Encontrarás muitos lamas na corte de Cublai.

 

- E tu? - pergunta Marco.

 

- Eu chegarei em breve à minha terra - sorri a jovem, beijando ternamente o filho que leva preso à cintura.

 

Vista de cima, Kashgar parece uma minúscula aldeia. A descida será bem mais lenta do que todos desejam. Àquela altitude, a Primavera ainda se anuncia timidamente. Avistam, ao fundo, árvores que tentam enverdecer. Kashgar parece, no entanto, tão perto que Marco imagina poder lançar-se pela rampa abaixo, rebolar até ao fundo e depois levantar-se, sentindo vertigens na cabeça, mas feliz por se encontrar simplesmente vivo. A descida é difícil. Os animais sofrem. Marco crispa as coxas no ventre do cavalo. Subitamente, o casco derrapa, o animal quase se senta no chão. O veneziano, instintivamente, reclina-se para trás, a fim de escapar ao vazio. Deslizam ambos a uma velocidade fulgurante ao longo do gelo. O jovem, debruçado para frente, agarra-se bem ao animal. À sua frente, um pinheiro barra-lhes a passagem. É o fim. Marco nunca verá o Grão Cão. O embate é violento. À sua volta, tudo explode. O último pensamento vai para o pai.

 

O OÁSIS DE KASHGAR

Noor-Zade atravessa as ruelas numa corrida, antes de cair a noite. Volta-se por várias vezes para todos os lados, antes de penetrar num pátio que esconde um verdadeiro labirinto de artérias, tão estreitas que não permitem o cruzamento de duas pessoas. Detém-se diante de uma loja cuja entrada, tapada por uma cortina de feltro, é ornamentada de símbolos xamânicos. Bate à porta, febril. Passado um momento, uma mulher vem abrir. Enrugada como um figo seco, cabelo enriçado coberto por uma touca quadrada, enfeitada com bordados mas já rota, a velha examina Noor-Zade, desconfiada.

 

- O que queres? - pergunta ela.

 

- É meu filho.

 

- E tens com que pagar?

 

Noor-Zade retira do bolso a velha faca da rainha de Sabá, limpa de sangue seco. A velha observa-a, antes de deixar entrar a jovem uigure. O interior é composto por um único compartimento coberto de tapetes malcheirosos. A um canto, vê-se uma enxerga enrolada. Ao centro, uma pequena fogueira cujo lume se escapa pela pequena lucarna. Ali, a escuridão deve reinar de manhã à noite. Noor-Zade senta-se em frente do lume, embalando a criança.

 

A mulher retira omoplatas de carneiro de um saco de pele e lança-as para a fogueira. Espera que estejam carbonizadas declamando fórmulas mágicas. Espalha cinzas sobre um ladrilho, reflectindo intensamente. Em seguida, ergue a cabeça, preocupada.

 

- Vai-te embora - ordena com dureza.

 

Noor-Zade aperta o braço magro da mulher com uma força desesperada, que surpreende a sacerdotisa.

 

- Preciso de saber.

 

A velha suspira profundamente e, depois, volta a mergulhar na contemplação das cinzas.

 

- Não verás crescer o teu filho... É tudo. Agora, vai-te embora - ordena de novo a velha.

 

O coração de Noor-Zade pulsa aceleradamente. O sangue parece ter-lhe fugido das veias. Não se controla. Um suor húmido escorre-lhe das costas e das mãos.

 

- Espera.

 

Noor-Zade levanta o véu que lhe cobre o braço e exibe a tatuagem do seu clã, em forma de animal fantástico.

 

- Quero que lhe faças a mesma marca!

 

- Agora? - pergunta a velha, incrédula. - Ainda é um lactente.

 

- Faz o que te peço! - grita Noor-Zade num tom que não admite réplica.

 

Por fim, abre os olhos. Por cima dele, uma imensa abóbada, mas que não é a celeste. Um odor a sangue fresco e a decomposição invade-lhe as narinas. Sente os ouvidos cheios de gemidos. Procura soerguer-se. Tem a perna esquerda, enfaixada até meio da coxa num pano embebido no seu próprio sangue. Por muitos esforços que envide, não consegue mover-se. Lembra-se da terrível encosta, da vertigem, da queda. Através da lucarna, Marco avista um magnífico jardim como já nem se recordava de que existissem. Flores de todas as cores do arco-íris enfeitam um terreno no qual se afadigam monges vestidos de burel. Para lá de um campo de algodão, uma vasta vinha de cepas retorcidas espalha-se pela planície. À sua volta, dezenas de corpos juncam o solo de terra e de palha, gemebundos e agitados, sanguinolentos e mutilados. Doentes quase válidos aproximaram-se, movidos pela curiosidade. A luz azul-escura dos seus olhos abertos provoca um movimento de recuo. Na sua maioria, os homens têm os olhos rasgados e a pele ocre.

 

- Onde estou? - pergunta ele, em persa.

 

Não o compreendem. Tenta o uigure e um jovem com os dois braços amputados saúda-o com os cotos que lhe restam, encantado por o compreender.

 

- Kashgar! - replica o rapaz.

 

O veneziano deixa-se estar deitado, mais tranquilo.

- E aqui? - prossegue ele.

 

O rapaz não lhe responde, afastando-se, depois de lhe fazer um sinal, em direcção a um homem que enverga um burel ricamente ornamentado. Este homem desliza entre os corpos, lento e fantasmagórico, debruça-se sobre os feridos por alguns instantes e depois volta a afastar-se. Como por encanto, as lamentações apaziguam-se, como se ele lhes proporcionasse o maior dos repousos. Detém-se junto de um doente, pega-lhe no pulso e depois, resolutamente, sobe-lhe para o ventre e começa a pisá-lo aplicadamente. Sem saber porquê, Marco estremece quando o homem se aproxima e se debruça sobre ele. O homem interroga-o numa língua desconhecida.

 

- Não o compreendo - murmura Marco em uigure.

 

- Sente a perna? - repete o homem numa voz aguda, em latim. Marco olha, fascinado, para o rosto amarelo, para a grande cruz que traz pendurada ao pescoço e para os estranhos olhos rasgados, muito brancos, que parecem fixá-lo.

 

-Não.

 

O padre ajoelha-se ao lado de Marco e, com gestos lentos, desfaz o penso.

 

- Por favor, padre, onde estou? - indaga o veneziano, olhando para o ferimento.

 

Tem o joelho desmedidamente inchado, variando entre o vermelho mais vivo e o roxo mais intenso, até ao tornozelo.

 

- Está num mosteiro nestoriano, onde acolhemos os que sofrem do corpo ou da alma.

 

O homem apalpa a perna do jovem, arrancando-lhe gemidos de dor. Marco sente uma alucinação e volta a cair, meio desfalecido. Aplicam-lhe um unguento fresco, que o apazigua de imediato. Depois, fazem-lhe de novo o penso. Uma mão seca pousa-lhe suavemente na testa húmida.

 

- Está bem - diz a voz aguda. - Acalme-se. O seu nome é mesmo Marco Polo?

 

- Sim, sou eu.

 

- Onde se encontra o resto da caravana? Onde estão as suas bagagens?

 

- Não sei de nada - retorque Marco, intrigado. - E o meu pai, Niccolo Polo, conhece-o?

 

- Um seu criado... - responde o outro, meneando a cabeça. Marco, demasiado fraco, cede à necessidade de fechar os olhos.

 

O longo burel aflora-o, antes de se afastar. Cai num torpor febril.

 

Decorridos alguns instantes - ou algumas horas - Marco ouve uma voz fina que chama por ele. É com dificuldade que descerra as pálpebras.

 

- Noor-Zade!

 

Marco tenta abraçá-la, mas esbarra contra uma proeminência

 

no ventre.

 

Com um gesto discreto, Noor-Zade levanta a túnica para lhe mostrar o bebé, preso à mãe por uma larga faixa de várias toesas de comprimento, e apertada nas costas. A criança dorme, perto do seio materno.

 

- Chiu! Senhor Marco, as mulheres não têm o direito de aqui entrar - murmura ela, por detrás do turbante que lhe cobre o rosto.

 

- Sinto-me tão feliz por te ver!

 

- Fracturou o joelho, mas o lama tratou de si e trouxe-o para junto dos cristãos, antes de retomar o caminho das montanhas.

 

- E... a caravana? O meu pai? - indaga Marco, preocupado. Noor-Zade sorri.

 

- Aguarda-o numa casa mal frequentada...

 

- ...mas que ele frequenta muito - conclui o jovem, aliviado.

 

- De dia e de noite - confirma Noor-Zade. - Aprecia muito as mulheres desta região.

 

- Há quanto tempo aqui estou?

 

- Há um mês.

 

- Não me lembro de nada - diz Marco, aterrado.

 

- Delirou muito.

 

A rapariga aproxima-se um pouco mais.

 

- Vim despedir-me - diz ela.

 

- Vais partir? - exclama Marco.

 

- Encontramo-nos em território uigure. Vou juntar-me aos meus.

 

Marco meneia a cabeça, com um nó na garganta. Aperta as mãos da jovem nas suas até as articulações perderem a cor. Afasta-se e, levantando delicadamente a túnica, acaricia a cabeça da criança.

 

Noor-Zade levanta-se e vai-se embora, sem uma palavra. Marco nem consegue retê-la.

 

 

 Já a noite vai adiantada, quando Noor-Zade desliza, em silêncio, para fora do leito. A seu lado, o filho dorme profundamente. O petiz sorri enquanto dorme, com uma expressão de felicidade misteriosa. Noor-Zade admira-o por alguns instantes, nu e indefeso - uma criança votada a um grande destino ou, porventura, a nunca atingir a idade de lhe ser dado um nome... Depois, delicadamente, com uma doçura infinita, pega-lhe ao colo, sustentando-lhe a nuca, envolve-o cuidadosamente numa pele de urso. O lactente começa a chorar. Num ápice, a mãe prende-o ao ventre. O seu suave calor apazigua-o. Com o coração a pulsar aceleradamente, sai de casa, levando como única bagagem uma manta, uma tenda, um tapete e um odre de água.

 

Solta um cavalo e toma todas as precauções para o montar. Lança o animal a trote e depois, mal se afastam, a galope através da estepe. Com as coxas bem presas ao corpo do animal, Noor-Zade sente-se voar acima do solo, ensurdecida pelo ribombar dos cascos que rasgam a terra. Contra o peito da mãe, colada a ela, a criança mal se mexe. Noor-Zade cavalga àquela velocidade durante três dias.

 

Quando a aurora começa a despontar, avista contrafortes escarpados. Aí, abranda, de sorriso nos lábios, aproximando-se de rochedos comidos pela erosão do tempo, desde o aparecimento dos seus antepassados. Reconhece o que tem a forma de um tigre usando uma coroa na cabeça. Na sua infância, esculpia-a dia a dia. Por detrás da ”orelha” do animal, surgirão as primeiras casas da aldeia e, com elas a do xamã, muito simples, e a do pai, magnífica. Noor-Zade julga sentir os odores da vinha e do estrume. O coração dilata-se-lhe no peito.

 

Subitamente, julga avistar uma sombra, em baixo. Relança o cavalo a galope e aproxima-se de um velho, aterrorizado.

 

- De que tens medo? - exclama a jovem, em uigure. Ao ouvir falar a sua língua, o homem levanta a cabeça.

 

Sem uma palavra, Noor-Zade mostra-lhe a tatuagem. O homem cai de joelhos, numa prosternação respeitosa, como Noor-Zade nunca mais voltara a ver.

 

- Princesa Alva Sanga! - grita o velho. - Está viva! Dando largas a uma dor durante muito tempo contida, o homem começa a chorar ruidosamente.

 

- E tu, quem és?

 

- Desgraçadamente, Princesa... eu era o curtidor da aldeia...

 O bebé chora, encostado ao peito de Noor-Zade. Esta apeia-se do cavalo, instala-se à sombra da estátua do tigre, para amamentar o filho. Levanta a cabeça e observa melhor o velho.

 

- É verdade, agora estou a reconhecer-te. Por que dizes que eras o curtidor?

 

- Desgraçadamente, Princesa - repete o homem com uma infinita tristeza.

 

Alarmada, a jovem endireita-se, sempre com o bebé ao colo.

 

Contorna o tigre coroado.

 

Em redor do poço, não resta nada. Ardeu tudo. Da sólida casa da família, subsistem apenas os pilares que sustentavam a porta. Visões furtivas - recordações fragmentadas, como estilhaços de um vaso quebrado cujo desenho ela gostaria de reconstituir - açodem-lhe à ideia em rajadas. O alfange de prata de Yengisar que o pai ofereceu ao irmão no dia dos seus treze anos. A partida do pai para a corte dos cães. E depois, aquela madrugada fatal - ninguém lhe dissera nada, tudo lhe fora poupado para proteger a filha do chefe, que esperança alimentavam, então, os homens que sabiam? Apenas por orgulho... Noor-Zade acordara de repente.

 

Ainda iluminada pelos sonhos, a escuridão ofusca-a. A seu lado, na larga enxerga imbricada de corpos, qual animal monstruoso, a criada também se ergueu. Do exterior, chega-lhes um barulho terrível. Cavalos que relincham, ameaçadores, e, por detrás deles, o inconfundível silvo das lâminas que se cruzam no ar. Sem se dar ao trabalho de acender a tocha de resina, a jovem precipita-se para o andar de cima. O frio das paredes envolve-a, picam-lhe os olhos.

 

Na densa escuridão, quase escorrega nos degraus desgastados pelos antepassados. Chama pelos irmãos, mas só lhe respondem urros bárbaros.

 

Naquele momento, a porta principal, em baixo, cede ao assalto dos vândalos. O som das couraças e das botas ressoa imediatamente até ao tecto. Aterrada, Noor-Zade quase nem tem tempo para se esconder, agachada atrás do baú entrançado. As paredes iluminam-se de manchas escuras, silhuetas imensas que nelas se projectam, deixando marcas. Aproxima-se um corpulento guerreiro, malcheiroso e de pele avermelhada, com o gorro de peles enterrado até aos olhos. A jovem não tem dificuldade em reconhecer o príncipe mongol Caidu, acompanhado por um persa de rosto formoso e cruel. Os seus olhos, berlindes de ébano brilhantes, escrutam a sala avidamente. Noor-Zade sustém a respiração, cerra as pálpebras. O rangido seco das botas fá-la vibrar, bem no íntimo de si mesma. Aproxima-se dela um intenso odor a animal feroz. Por fim, abre os olhos. O ar turva-se à sua frente. A escassos palmos, o rosto brilhante de Caidu fixa-a, concupiscente. Petrificada, sustém um grito.

 

- Razão tinha eu ao julgar que andava no ar o odor da donzela Sanga... Aquele bandido partiu para a corte de Cublai, mas não perde pela demora...

 

Bate as palmas.

 

- Kunze, é tua...

 

- Conheço um mercador que dará bom dinheiro por ela. Caindo de joelhos, Noor-Zade deixa, enfim, correr as lágrimas, enxugando-as à medida que embebem o fino cabelo do filho. Que espécie de orgulho a levou a imaginar que eles podiam ter deixado alguma coisa de pé?

 

Carcaças de animais secam ao sol. Entre as ossadas, um crânio humano, alguns ossos irreconhecíveis, misturados, fracturados.

 

Noor-Zade descobre o horror do espectáculo num grito mudo, hesitando entre a pena e o alívio de não ter assistido.

 

- Mas tu, como sobreviveste?

 

- Quis o destino que, naquela semana, me encontrasse no mercado de Kashgar, a fim de vender as minhas peles. Má semana.. - acrescenta ele. - Quando voltei, era o único. Julguei que também a tivessem morto, como toda a...

 

Interrompe-se, baixa os olhos, arrependido de ter falado de mais.

 

- Como toda a minha família, não é ?

 

O velho meneia a cabeça.

 

Noor-Zade volta-se. O filho puxa-lhe pela longa trança negra, soltando as primeiras gargalhadas. A mãe estreita-o contra o peito, apertando-o com toda a força. Ir buscar ao filho a coragem de abafar o desgosto.

 

Ao cabo de algumas semanas, Marco encontra-se suficientemente restabelecido para poder caminhar com a ajuda de uma comprida bengala que entala debaixo do braço. É o próprio Kunze que o vai buscar. Marco apoia-se no braço do persa.

 

- Sinto-me feliz por o ver em vias de cura, senhor Marco. Tememos pela sua vida. Desta vez, Deus, grande e misericordioso!, poupou-o.

 

- Obrigado, Kunze. A tua gentileza comove-me.

 

Juntam-se a Niccolo, Matteo, Shayabami e Darmala no mercado de Kashgar, que atingiu o auge. Constitui um dos mercados mais ricos e mais variados da região. Ali se encontram enormes blocos de gelo, de três pés de comprimento, transportados das grandes altitudes, nos dorsos dos iaques. O mercado de animais está muito bem abastecido, desde os camelos bactrianos, de bossas carnudas e pêlo espesso, aos plácidos iaques de densa pelagem. Povos vindos das longínquas estepes ou dos planaltos montanhosos vendem e compram as suas mercadorias. Marco permanece por um longo momento em admiração diante de um homem que, a partir de uma simples bola de massa, consegue formar um filamento que gira em torno das mãos, volteia no ar com uma destreza incomparável até obter um fio muito fino e desmedidamente comprido. Depois, o veneziano é convidado a saboreá-lo. Na minúscula loja, é com dificuldade que se senta no chão. Entre fórmulas de cortesia dignas das de Darmala, servem-lhe uma sopa leve guarnecida de pedaços muito finos de pimento, pimentão, gengibre, uma mistura colorida de vermelho e verde na qual flutua aquela espécie de aletria que mais parece uma minhoca. Rindo, apresentam-lhe dois pauzinhos dos quais Marco não sabe servir-se. O cozinheiro faz uma demonstração, debruçado por cima da tigela, segurando nos alimentos para os levar à boca. Após várias tentativas infrutíferas que o obrigam a duvidar do seu restabelecimento, Marco serve-se directamente com os dedos, curioso por experimentar uma nova especialidade. A massa desfaz-se-lhe na boca, exalando um gosto subtil, logo submerso pelo sabor picante do pimentão que queima a boca do jovem. Ao cabo de alguns momentos, Marco nada em suor mas sente-se satisfeito com a descoberta. O cozinheiro só aceita dar-lhe a receita em troca do relato das suas viagens. Até tarde, pela noite dentro, rodeado por uma multidão de curiosos que o ouve, fascinada e divertida, Marco entusiasma-se com as suas recordações, mais ricas em dois anos de périplo pelas rotas do Oriente do que em quinze anos de vida em Veneza.

 

Nessa mesma noite, enquanto o sono tarda em chegar, parece-lhe ouvir um ruído. Marco pousa a mão no sabre que esconde por baixo da cama. Uma sombra introduz-se no quarto. Marco dá um salto, pronto para atacar.

 

- Noor-Zade! Que fazes aqui? Voltaste!

 

O veneziano larga a arma, afasta lentamente as madeixas negras que cobrem o rosto da rapariga. Só então repara nela, desgrenhada, de faces vermelhas, maceradas, olhos inchados de chorar. Com o peito oprimido por um imenso desgosto, o corpo é sacudido por violentos espasmos, por soluços dolorosos, mas de uma dor seca. Como se perdesse contacto com o mundo, o chão foge-lhe debaixo dos pés, as pernas já não a sustentam, e ela abate-se como uma planta vergada pelo sopro violento da tempestade. Marco estende os braços para a abraçar. A rapariga estremece, desesperada, e o seu choro sufoca-se contra o peito de Marco. Os soluços agitam-lhe o corpo, como vagas ao sabor da dor. A sua alma desfeita rebela-se contra a injustiça absurda da vida. Marco estreita-a violentamente e começa a falar-lhe docemente, como se o som da sua voz importasse mais do que o sentido das palavras proferidas. Beija delicadamente a testa da rapariga, banhada de lágrimas. Acaricia-lhe a face trémula de choro. Beija-lhe a mão aberta e nervosa, cujos dedos, tão finos, estão rígidos de dor.

 

Aniquilada, desorientada, extenuada de tanto sofrer, Noor-Zade abandona-se nos braços daquele estrangeiro de quem tanto desconfiou e a quem tanto se entregou.

 

- Oh! Leve-me consigo! Leve-me!

 

Cola os lábios aos dele e, à tensão dos soluços, sucedem as vertigens da volúpia. Os suspiros do desejo seguem-se aos gemidos da queixosa. Noor-Zade enlaça-o pela cintura e atrai-o para si com uma doçura infinita. Deslizam para o chão e apoderam-se febrilmente um do outro. Noor-Zade, entorpecida, paralisada por uma mistura de sofrimento e desejo, deixa-se penetrar pelo jovem impetuoso e impaciente. Sobressalta-se por não sentir nenhuma dor. Enlaça-o, acabando por ceder à tirania do prazer. Demoradamente, Marco deixa-se esvaziar, vertendo fluxos escaldantes no fundo do antro palpitante. Angústia ou lamento, receio ou desejo, sentem-se morrer mil vezes, num mundo que, aos seus olhos, lhes foge, ou serão eles que fogem do mundo? Sem pensarem que os seus corpos terão de se separar, como pela primeira vez, no dia da Criação.

 

Dilaceração.

 

A TEMPESTADE NEGRA

O homem agacha-se, pega na pata do camelo e volta-a para cima. As partes carnudas da sola estão ensanguentadas, cobertas de pó e de pedras. O animal blatera com a fúria provocada pela dor. Darmala larga a pata. O camelo afasta-se, coxeando.

 

A caravana parou entre duas dunas altas como montanhas, majestosas e inquietantes. A areia do deserto do Takla-Makan escorre, suavemente, ao sabor do vento, cobrindo-as de poeira dourada. Todos os homens se apearam das montadas. Em Kashgar, adquiriram novos animais, sete cavalos e dois camelos, encarregados de transportar o gher, os tapetes, as mantas, os capotes que não usam no deserto, os odres e as carnes fumadas e secas. Os cavalos transportam os sabres e as espadas, o cavalo de Marco leva o arco oferecido por Argun.

 

- Então? - indaga Niccolo, enxugando o rosto banhado em suor.

 

- Está ferido.

 

- Isso vejo eu, pazzol - suspira Niccolo.

 

O mercador volta-se para o irmão, sentado na areia, ofegante como um boi.

 

Matteo, extenuado, esboça um gesto de impotência.

 

- Podemos abandoná-lo ou abatê-lo - sugere Kunze. Marco aproxima-se de Darmala, coxeando levemente.

 

- Só tu é que nos podes responder.

 

- Senhor Marco, não consigo conceber a ideia funesta de nos separarmos de um único dos nossos animais. É a nossa segurança que está em causa.

 

- Então, o que propões? - pergunta Niccolo, impaciente. Este camelo atrasa-nos o passo.

 

Sem uma palavra, Darmala retira do interior da túnica uma longa e fina agulha, enfiada num pêlo de iaque. Com a ajuda do alfange, retalha um pedaço de couro do seu saco.

 

- Deixe-me tentar ajudar o Céu, senhor Niccolo - diz ele, retorcendo o pêlo de iaque entre os dedos.

 

Cautelosamente, de joelhos flectidos, saltita devagar, ora num pé ora no outro, em direcção ao camelo ferido. O animal blatera de novo. Darmala estende lentamente a mão e pega no loro que o prende. Puxa pelo animal e acaricia-lhe o focinho, que escorre baba, num gesto tranquilizador. Aos poucos, o camelo acalma-se.

 

- Senhor Kunze, é capaz de ter a extrema bondade de segurar o camelo, por favor?

 

O persa levanta-se e aperta o focinho do camelo no cotovelo dobrado. Darmala continua a acariciá-lo no peitoral, nos flancos, desce cautelosamente ao longo da coxa e, com firmeza, levanta a pata ferida. O camelo, desequilibrado, queixa-se. Kunze mantém-no, esfregando-lhe a cabeça.

 

Noor-Zade aproximou-se de Marco, que assiste ao espectáculo com grande curiosidade.

 

O persa dirige um olhar carregado de ameaças a Noor-Zade. Esta desvia os olhos.

 

- Marco Polo, não devem continuar a avançar pelo Takla-Makan - segreda ela, numa voz insistente.

 

Darmala limpa suavemente a ferida, aplica o pedaço de couro na carne. Marco volta-se para ela, interrogador.

 

Noor-Zade hesita. Os olhos negros de Kunze não cessam de a fitar.

 

- Kunze al-Khair...

 

O grito do camelo interrompe-a. Darmala enterrou a agulha na pele do animal, mas este rebela-se, debatendo-se.

 

- Não consigo segurá-lo! - exclama Kunze.

 

- Eu vou! - oferece-se Marco, que avança, coxeando, até ao animal.

 

Kunze recua para junto de Noor-Zade, com um sorriso nos lábios. A jovem afasta-se dele.

 

Marco agarra o focinho do animal. Darmala cantarola uma melodia, como faz enquanto repousam. Aos poucos, o animal apazigua-se. Com a mão certa e rápida, Darmala cose na pata o penso improvisado. O tibetano dá uns tantos pontos na sola e esta fica de novo protegida. Por fim, liberta o animal e acena a Marco para que faça o mesmo. O camelo ensaia uns passos, coxeando, mas depois aproxima-se deles, num andamento menos penoso. Darmala abre um odre de óleo e deixa-o saciar-se com uns quantos goles. Marco volta para junto de Noor-Zade. Kunze precipita-se, antes que ela tenha tempo de proferir qualquer palavra.

 

- O calor não o incomoda, senhor Marco?

 

- Vejo-o muito atencioso, senhor Kunze... Façamo-nos ao caminho.

 

Qual monstro marinho desenrolando os anéis nas vagas do oceano de areia, a caravana ondula entre as imensas dunas. Envolvidos da cabeça aos pés em longos turbantes, os homens lutam contra o calor implacável.

 

Kunze não volta a afastar-se de Marco.

 

- Senhor Marco, ”Takla-Makan” significa ”de onde nunca se regressa”.

 

- E é o senhor que nos leva para terras onde a morte nos espera?

 

- Houve quem regressasse, para que se soubesse...

 

- Aí está uma maneira eficaz de assustar os viajantes... ou os rivais.

 

- Consta que caravanas, cidades inteiras desapareceram! As dunas escondem, enterradas sob um manto de areia, as riquezas que os saqueadores tentam, por vezes, descobrir. Queira Deus, poderoso e majestoso!, proteger-nos do kara-huran, a tempestade negra.

 

Ao ouvir estas palavras, Marco benze-se.

 

O vento sopra continuamente. O seu assobio não permite nenhuma troca de palavras. A areia apaga logo de seguida o rasto que deixam à sua passagem.

 

Seguem as curvas da poeira, procurando decifrar o labirinto ameaçador das dunas, temendo a avalancha de pó que os enterraria todos. Em silêncio, avançam devagar, acariciando suavemente os animais, como para apaziguar a sua própria angústia. Subitamente, um silvo estridente rasga o ar.

 

- Marco Polo!

 

Com uma flecha enterrada nas costas, Noor-Zade, desesperada, estreita o filho.

 

- O meu filho... Salva o meu filho...

 

Atravessando as dunas como uma horda de escorpiões, uma vintena de cavaleiros mascarados avança sobre eles soltando gritos animalescos. Cego pela poeira levantada pelos bandidos, o jovem veneziano brande o sabre. Mas os salteadores evitam o corpo a corpo, cortam os loros dos animais que transportam o carregamento e arrastam-nos por caminhos de areia. Marco sente a fugaz impressão de que escolhem os animais como quem sabe precisamente quais os que transportam mais valores. Bruscamente, dois cavaleiros atacam Niccolo e rasgam-lhe a camisa com um golpe de sabre. Marco precipita-se, em vão. Os vândalos arrastam Niccolo pela túnica antes de o abandonarem na poeira escaldante. O pequeno grupo foge e desaparece na teia formada pelas dunas tão rapidamente quanto surgiu.

 

Vendo que Darmala presta assistência a Noor-Zade, Marco dirige-se ao pai, ensanguentado. Afasta delicadamente os pedaços de tecido colados à carne, onde se misturam a carne e o pó. Niccolo esboça esgares de dor. Prestes a desfalecer, enterra as unhas no braço do filho.

 

- O santo óleo, Marco! - murmura ele, entre dentes. - Não desiludas o Grão Cão.

 

De lágrimas nos olhos, o jovem ergue os olhos para o tio. Matteo dirige-lhe um sorriso confiante.

 

- Encontrar-nos-emos no oásis de Lop, à entrada do deserto de Gobi - diz Darmala.

 

- Meu tio, cuide dele... e de Noor-Zade.

 

Sem perda de tempo, Marco salta para o cavalo, imitado por Darmala.

 

- Onde está Kunze? - pergunta Marco a Darmala.

 

Mas o tibetano, que já disparara a galope, não o ouve. Avançam rapidamente pelo planalto de areia, que parece repercutir o eco dos cascos dos animais, ensurdecedor. Deparam com o deserto de Takla-Makan e as suas dunas, que desafiam a imaginação dos homens. A cavalgada afigura-se extremamente fatigante e difícil, para além do que haviam receado. Os cavalos enterram-se na areia e extenuam-se, a este ritmo sofreado. Os dois cavaleiros não trocam uma palavra, poupando o fôlego. Naquele galope entrecortado, os animais ofegam, reluzentes de suor, em virtude do calor e do esforço. Marco pergunta-se se os camelos não teriam sido melhores montadas. Mas os salteadores não lhes deixaram nenhum. Estariam ao corrente do carregamento transportado? Darmala, apesar de ser um homem das montanhas, monta quase tão bem como um mongol. Cavalgam através do deserto ao longo de várias léguas, galopando a toda a brida horas a fio, fazendo breves paragens para descansar os animais, escassos instantes perdidos na imensa extensão, rude como a aurora dos tempos.

 

Por fim, Marco distingue ao longe uma série de pequenos pontos minúsculos, na linha do horizonte. Esporeia o cavalo, impaciente. A respiração rouca do animal mistura-se com o odor a espuma. Um acampamento de poucas tendas. Os salteadores, bem mais numerosos. Marco e Darmala abrigam-se atrás de uma duna.

 

- Darmala, à distância de uma flecha lançada por um arco encontram-se dois homens de sentinela. Eu podia atingi-los, e tu apoderavas-te dos dois camelos. Depois, juntava-me a ti para roubarmos os cavalos e viríamos de novo abrigar-nos. Assim, estaríamos em condições de negociar a restituição da galheta.

 

Darmala aprova o plano com um sorriso confiante.

 

Preparam-se, montados nos cavalos.

 

Marco ergue-se nos estribos e larga duas flechas, abatendo uma das sentinelas, mas falha a outra, que foge para dar o alerta. Marco lança-se em perseguição do homem. Darmala, por seu lado, perde tempo a levantar os camelos que, extenuados, preferem continuar ajoelhados. Os bandidos, passada a surpresa, atacam os intrusos. Preparado para morrer, mas nada decidido a sucumbir, o jovem veneziano bate-se como um tigre, ferindo ou matando ainda quatro dos bandidos. Compreendeu que, numa luta corpo a corpo, eles estão perdidos. Apeados dos cavalos, desarmados, caem nas mãos do inimigo. Já se ouvem lâminas no ar.

 

- É meu! - exclama em mongol uma voz autoritária, que suspende o gesto melhor do que o faria qualquer braço.

 

Corpulento, com um ar soberbo do alto dos seus quarenta anos feitos de músculos, um homem avança. Fixa Marco com um olhar arrogante e sombrio meio encoberto pelas pálpebras amendoadas. Usa o cabelo rapado, deixando escapar do capacete apenas estreitas madeixas pretas entrançadas em volta das orelhas. O suor escorre-lhe pelo rosto, até ao pescoço de iaque, entre rugas profundas - ou serão cicatrizes? As mãos exibem grandes cortes e marcas de queimaduras. Todo o seu corpo é um monumento à memória das batalhas que ganhou.

 

- Os teus olhos dizem-me que vens de longe. Quem és tu, homem que me preparo para matar com as minhas próprias mãos?

 

- Chamo-me Marco Polo e ainda não morri! - grita em mongol o veneziano, para ganhar coragem.

 

- És tu esse tal Marco Polo, o maldito imbecil que desviou a caravana para a rota da Pérsia? - vocifera o mongol, encolerizado.

 

- Se conhecesses o meu pai, não falarias assim. Vale mais do que dez como tu! Vou abater-te! - exclama o jovem, que se debate com energia e furor.

 

Os soldados cerram fileiras.

 

O homem observa Marco demoradamente. O jovem recobra um pouco de fôlego, meio sufocado pelo fedor que exala o homem que tem à sua frente. Este esboça um gesto largo com a mão.

 

- E ousas vir de tão longe sem um exército susceptível de me desafiar? Porquê?

 

- Talvez por procurar um guerreiro que me deixasse prosseguir o meu caminho...

 

O mongol solta uma gargalhada.

 

- Estás à procura de salvar a vida? Impossível, a tua sorte está lançada.

 

- Enquanto sentir pulsar o meu coração, saberei que ainda poderei lutar contra ti.

 

O guerreiro alisa o comprido bigode negro.

 

- A tua coragem honra-te. Convido-te a combater a meu lado. Juntos, abateremos Cublai, esse impostor.

 

Ao ouvir este nome, Marco estremece.

 

- É a ele que vou juntar-me.

 

O mongol aproxima-se do veneziano, interessado.

 

- Eu sei... O teu guia contou-me tudo.

 

- O meu guia? - surpreende-se Marco, que ainda resiste à evidência.

 

- Kunze al-Khair, esse verme! - exclama o mongol, satisfeito. O veneziano solta um grito de raiva.

 

- Vou abreviar o teu sofrimento - diz o outro, desembainhando um longo sabre curvo que traz à cintura.

 

Marco crispa-se, retesando os músculos, como para impedir que a lâmina lhe penetre na carne.

 

- Tu, quem és tu para decidir sobre a vida e a morte dos teus semelhantes? - pergunta ele, num tom em que se confundem a raiva e o desespero.

 

O mongol empertiga-se, orgulhoso.

 

- Não há outro como eu. Dizem que só há um Deus no Céu, Tengri, e um único senhor na terra. Esse senhor sou eu. Fica ciente, antes de te trespassar: sou Caidu, bisneto de Gengiscão e herdeiro legítimo do império que Cublai me roubou.

 

Com a outra mão, pega na galheta de prata roubada a Niccolo.

 

- E vou fritar a tua língua e a do teu companheiro neste óleo que transportaste até aqui! - exclama Caidu, soltando uma gargalhada que faz estremecer Marco e Darmala.

 

Bruscamente, um assobio brutal ensurdece o veneziano. Instintivamente, este fecha os olhos. Mas, o estrondo vindo não se sabe de onde cresce cada vez mais, com uma rapidez que surpreende toda a gente. O jovem volta a abrir os olhos. Os mongóis olham à sua volta com um terror incompreensível.

 

- O kara-buran! - declara Caidu com uma voz rouca. Uma nuvem de areia preta levanta no ar as primeiras tendas,

 

como montículos de palha. Os mongóis deitam-se imediatamente, tentando abrigar-se por detrás das tendas ainda de pé, na base das dunas. No meio daquela aflição, a despeito dos protestos de Caidu, que tenta, em vão, chamar à razão os seus homens aterrorizados, Darmala e Marco foram abandonados pelos saqueadores. Num ápice, correm para os cavalos que os aguardavam nas proximidades. Seguram-nos firmemente pelas rédeas para os acalmar, montam-nos e partem a galope. Marco vê que Caidu conserva na mão a galheta de óleo. Não hesita nem um instante: debruça-se e, de passagem, apodera-se dela. Caidu não se apercebeu de nada, como se a galheta tivesse desaparecido, levada pela tempestade.

 

A nuvem de areia adensa-se, zumbindo como um enxame de insectos devoradores, envolvendo animais, tendas e homens. O assobio do vento não deixa ouvir o galope dos cavalos. A linha do horizonte sobe, parecendo reduzir o céu. A poeira crepuscular encobre o sol e instaura a noite em pleno dia. Perdido na escuridão do deserto, Marco segue Darmala, simples silhueta que mal se distingue na tempestade. Sente o coração oprimido pela angústia e ao mesmo tempo impante da vida que acaba de prevalecer sobre a morte. Marco sente que o cavalo hesita e, usando de toda a energia, aperta os flancos do animal, como para incutir nele a força necessária para avançar na escuridão total, a despeito dos obstáculos que possam erguer-se à sua passagem. Ramos secos ou rochedos voam à sua volta - mas de onde vêm? - é por milagre que não são arrebatados. A areia fere-lhes o rosto, como milhares de agulhas impetuosamente arremessadas. O vento sopra com tamanha violência que só pode ser inspirado pela ira de Deus. Marco julga-se de volta à origem do mundo, aos tormentos do seu nascimento. Os turbilhões são tão tumultuosos que já nem sabe se estão a avançar no sentido do vento ou contra ele. Mas, nesta tormenta, seja como for, os elementos estão contra eles. Não lhes salvaram a vida para dela se apoderarem no instante seguinte? Subitamente, o tibetano acena-lhe para que se detenham. Os dois homens apeiam-se dos cavalos, deitam-se no chão com grande dificuldade, forçando os animais a imitá-los. Os cavalos respiram um sopro rouco que lhes abafa os relinchos. O vento insiste em os arrebatar, poeiras da humanidade, abanando-os numa desordem tempestuosa. Marco envida todos os esforços para estender os braços em direcção ao tibetano. Consegue pegar-lhe na mão. Deste modo, juntos, agarrados à vida, permanecem deitados no chão durante horas. O suor encharca o vestuário de Marco, mas seca logo de seguida. Com o nariz escondido no turbante, não vê nada, não ouve nada para além do rugido sinistro da natureza, que recupera os seus direitos. Aos poucos, deixa de sentir o corpo, coberto por uma densa camada de areia. Poderia morrer assim sem sequer se aperceber. O estrondo da tempestade inflige-lhe uma longa e violenta tortura. Fecha os olhos, ante a impaciência de um qualquer fim. O combate dura uma eternidade. Marco esquece-se mesmo de que existe.

 

O assobio torna-se subitamente menos estridente. O jovem permanece imóvel, perguntando-se se não terá ensurdecido. Tenta mover os dedos doridos entrelaçados nos de Darmala. A tempestade amaina. Marco nem ousa acreditar. Experimenta abrir os olhos mas tem os cílios colados pela areia, apesar de se proteger com o turbante. É com dificuldade que ergue os braços entorpecidos à altura do rosto. Não consegue levantar-se do chão. Larga a mão do companheiro. Esfrega delicadamente a testa, as faces com os dedos secos. Aos poucos, consegue abrir as pálpebras. Agora, distingue Darmala, a seu lado. O tibetano é uma verdadeira múmia de areia ornada de cotos nas extremidades dos membros. Marco esforça-se por sorrir, feliz por estar vivo. Banhado de suor, como o cavalo. O animal espera que o dono o ajude a levantar-se. Chega-lhe ao nariz um cheiro intenso a suor e a medo. O jovem ajoelha-se com dificuldade, libertando-se do peso de areia que triplicou o do seu corpo. Nunca lhe teria ocorrido que pudesse sentir-se tão extenuado permanecendo simplesmente deitado no chão durante horas. Darmala nem se mexe, como se não conseguisse libertar-se do jugo da terra. Marco desenrola suavemente o pedaço de pano que lhe protegia o rosto. A areia, carregada de pedras muito finas, fustiga-lhe as faces. Tem o rosto em sangue, crivado de minúsculos grãos de areia, cortantes como pedaços de vidro.

 

- Conseguimos! Estamos vivos! - exclama Marco numa voz rouca, com a garganta cheia de areia.

 

Debruça-se sobre Darmala e limpa-o da terra que o cobre. A massa de areia desencadeia o pânico de Marco. Escava com frenesim, deitando para trás onças de terra. Por fim, distingue a cabeça do tibetano. Arranca-lhe o turbante. Tem o rosto cor de areia, a própria pele parece formar um todo com o deserto. O nariz, os olhos, a boca encontram-se obstruídos por uma densa camada de pó. Marco abana-o, chamando-o pelo nome, mas sabe de antemão que é inútil. Crispado no último combate, apresenta a rigidez dos cadáveres. Foi o corpo do companheiro, protegendo-o do vento, que lhe salvou a vida. Aniquilado, Marco deixa-se cair junto do tibetano, prestes a soluçar. Ardem-lhe os olhos, mas em vão. O deserto até lhe secou as lágrimas. Então, como uma suprema homenagem que lhe deve, a despeito do seu esgotamento, Marco decide fazer o funeral de Darmala, morto longe das suas neves natais, no ardor de um deserto que reclamou o seu tributo. Lentamente, de braços entorpecidos, pela noite adiante, termina a obra iniciada pela areia mortífera.

 

O DESERTO DE GOBI

Marco chega ao oásis de Lop no dia seguinte à noite. Extenuado, dirige-se imediatamente ao caravançará. O seu porte confere-lhe um aspecto fantasmagórico. No pátio, lançam-lhe olhares desconfiados, fazendo sinais místicos. Marco não se apeia do cavalo, antes se deixa escorregar, e confia as duas montadas a um jovem criado.

 

- As ferraduras... Lava-as... e traz água - pede Marco, para os animais e para si próprio.

 

Arrasta-se até à sala comum. Quando entra, todas as conversas cessam. Deixa-se cair num tapete completamente novo que o hospedeiro não tem tempo de retirar antes o ver abater-se em cima dele, levantando uma impressionante nuvem de pó. Marco corta cerce toda a espécie de salamaleques.

 

- Sirvam-me de comer e beber - resmunga ele, tinindo umas tantas moedas no chão.

 

O hospedeiro aproxima-se para apanhar o dinheiro e examina-o atentamente antes de o guardar na algibeira.

 

- É para já, Excelência - diz ele, satisfeito. Volta atrás e aproxima-se do estrangeiro.

 

- Excelência, se me permite... de onde vem o senhor, em semelhante estado ?

 

- ...DeTakla-Makan...

 

Ouvem-se exclamações de estupefacção, vindas das mesas em redor. O hospedeiro regressa rapidamente, encantado por a sua taberna dispor de tal atracção, carregando uma grande travessa de carneiro fumegante envolvido em arroz gorduroso, bem como uma grande malga de leite.

 

- Preciso de ver Niccolo Polo. Ele está cá? - indaga Marco, depois de ingerir, de um trago, o conteúdo da tigela.

 

- Niccolo Polo, Excelência?

 

- Um estrangeiro, como eu - acrescenta o jovem, demasiado cansado para se explicar melhor.

 

Marco devora literalmente, à maneira dos Mongóis, a refeição que lhe foi servida.

 

O hospedeiro interroga os criados. O jovem que se ocupou dos cavalos aproxima-se de Marco e saúda-o humildemente.

 

- Foram-se embora, senhor.

 

- Como assim, foram-se embora? Apanhado de surpresa, o jovem empertiga-se.

 

O rapaz, receoso, esboça um movimento de recuo.

 

- Pareciam ter pressa. Fui eu que os servi à mesa, senhor. Sou curioso por natureza - acrescenta o rapaz, em jeito de justificação.

 

- Sou mesmo indiscreto... se me permite, Excelência...

 

- Continua - ordena Marco, com um gesto imperioso.

 

- Falavam de Dunhuang.

 

- Onde fica Dunhuang? - pergunta o veneziano, que começa a impacientar-se.

 

- Do outro lado do Gobi - responde o hospedeiro.

 

- Kunze obriga-os a atravessar o Gobi!

 

Irritado, Marco engole um pedaço de carneiro sem o mastigar.

 

- Partirei imediatamente para os alcançar! Vai a correr selar os meus cavalos!

 

O hospedeiro detém o rapaz, com um gesto.

 

- Mas, senhor, precisa de repousar, antes de empreender a travessia do imenso deserto.

 

Pelo rosto do veneziano perpassa uma sombra.

 

- Sobrevivi ao Takla-Makan, conseguirei sobreviver ao Gobi

- decreta Marco, seguro de si.

 

O hospedeiro que o serve meneia a cabeça, desolado.

 

- Senhor, Alá deu-lhe forças para resistir ao kara-buran, mas não lhe dará as necessárias para iludir os demónios do Gobi. A travessia do deserto dura quarenta dias. É tão grande que não poderia ser cavalgado de um extremo ao outro num ano! Se me permite, senhor, deveria descansar antes de partir. Se não o fizer por si, faça-o pelos animais. Eles não resistiriam...

 

O veneziano admite secretamente que nem sequer tem forças para se levantar. Irado, mas resignado, decide permanecer em Lop.

 

- Lamento que a sua escrava não possa ocupar-se de si, Excelência.

 

Marco ergue-se de um salto.

 

- Que me dizes ? Falaste de uma escrava.

 

A toda a pressa, dominado por um funesto pressentimento, Marco precipitou-se atrás do hospedeiro, obrigado a fugir com receio de ser maltratado. Pelo caminho, o homem explicou-lhe, numa voz entrecortada:

 

- Ela está muito doente. Ontem, as suas entranhas cuspiram um fluxo de sangue tão abundante que tivemos as maiores dificuldades em o dissimular aos seus olhos. Não dispomos de nenhum médico para a tratar. Creio que só trocará o leito pelo sudário conclui o homem, aproximando-se do recanto do estábulo em que repousa Noor-Zade.

 

Naquele lugar imundo, reina uma atmosfera pestilenta de cortar o coração, que se mistura com o cheiro a estrume.

 

Marco abeira-se lentamente da enxerga, descobrindo o corpo da jovem uigure, envolto em lençóis piolhentos que parecem afogá-la. Está praticamente irreconhecível. O seu rosto adquiriu o tom macilento da estepe. Tem os olhos escuros fechados, enterrados nas órbitas, mas as pálpebras pisadas agitam-se em palpitações irregulares que respondem ao eco das do coração. Das faces encovadas salientam-se ainda mais os ossos das maçãs do rosto. O nariz, pequeno, enche-se do ar que dificilmente o atravessa. Os lábios estão gretados. Os membros permanecem rígidos e os músculos retesados, prestes a quebrar-se. As mãos crispam-se desesperadamente nas mantas que já não a aquecem e tem os dedos tão brancos que é legítimo pensar que todas as gotas de sangue os abandonaram.

 

Devagar, com a humildade do desespero, Marco aproxima-se e ajoelha-se. Pega na mão da jovem, tão gelada que o percorre um estremecimento.

 

Noor-Zade ergue penosamente as pálpebras. Marco julga entrever um brilho fugaz no seu olhar já extinto.

 

- Está vivo, Marco... - sussurra ela, numa voz rouca e estrangulada.

 

Marco debruça-se um pouco mais sobre ela. A rapariga tenta soerguer-se.

 

- ...Senhor Marco... Ele levou o meu filho... Kunze... Tenho de lho dizer... o senhor precisa de saber...

 

- Descansa, Noor-Zade, falarás quando te sentires melhor... Amanhã...

 

Noor-Zade meneia a cabeça, muito debilitada, deixa-se cair, banhada em suor por ter envidado aquele ínfimo esforço.

 

- Para mim, senhor Marco, não haverá amanhã. Marco acaricia-lhe o cabelo com a mão trémula.

 

- Há dias, tive um sonho. Alguém queria afogar-me, os meus pulmões eclodiam, o meu peito rasgava-se, dilacerado por cada movimento de respiração. Desde que ele levou o meu filho, nunca mais tive forças para me levantar. Sinto um peso enorme oprimir-me o ventre, tão pesado...

 

Marco aperta-lhe a mão.

 

- Oh, eu que tanto rezei para morrer de desespero sem nada lamentar! - suspira ela. - Agora, rezo para me reencarnar numa águia de olhar perscrutante que consiga ver o meu filho, onde quer que ele se encontre, à superfície da terra.

 

Marco encosta a cabeça da jovem contra o peito. Naquele instante, tem a certeza de que a ama.

 

- Noor-Zade, não me deixes!

 

Um esgar de imensa dor deforma o rosto da jovem uigure.

 

- Ouça, senhor Marco. Quero que descubra o meu filho. Tenho de lhe contar... Certa noite, em Tabriz... recorda-se?

 

Marco revê com precisão o corpo frágil de Noor-Zade abandonando-se nos seus braços, trémulos de emoção.

 

- Enquanto esteve no banho mouro... fui ao bazar da cidade, ao cair da noite... e, aí, fui... ele violou-me! Kunze!

 

- Que me dizes?! - exclama Marco, incrédulo.

 

- A verdade, senhor Marco... Mas como poderia ter-lho confessado antes ?

 

- Queres dizer que o teu filho não é...

 

- Ignoro-o - murmura ela. Marco levanta-se, melindrado.

 

- Oh, senhor Marco, suplico-lhe. Ama aquela criança, não é verdade? Se quer ser seu pai, então seja-o! Suplico-lhe! Kunze raptou o meu filho. Não o deixe nas mãos do meu carrasco.

 

- Oh, Noor-Zade... O que estás tu a exigir de mim? Uma criança que talvez nem seja minha!

 

Pelas faces descarnadas da jovem, começam a escorrer lágrimas.

 

- A minha vida chega hoje ao fim e foi consigo que vivi os melhores momentos, os mais bonitos - diz ela, docemente. - Não abandone o meu filho, suplico-lhe...

 

Como Marco permanece em silêncio, ela acrescenta:

 

- Estão unidos um ao outro. É o seu karma, senhor Marco.

 

O veneziano volta a cara, a fim de dissimular a raiva impotente que lhe revolve as entranhas. Noor-Zade encoleriza-se:

 

- Não me deixe morrer assim, Marco Polo!

 

Marco continua calado. Apodera-se dele um desejo incontido de matar - de vingar a sua honra ultrajada. Todavia, calando a fúria que o domina, leva a mão ao coração, num gesto de gravidade:

 

- Prometo-te que encontrarei o teu filho, Noor-Zade, pela minha honra.

 

A jovem deixa-se cair lentamente na enxerga, soltando um profundo suspiro.

 

- Falta-me o ar... Dê-me o beijo que hei-de levar comigo na minha derradeira viagem. Um beijo em troca do meu último sopro de vida.

 

Delicadamente, quase hesitante, os lábios secos da jovem comprimem-se contra a boca húmida e trémula do jovem. Ele estreita-a contra o peito com todas as suas forças, respondendo à sua súplica. Subitamente, Marco sente que o corpo de Noor-Zade sucumbe, que a cabeça descai para trás, que os seus braços lhe pesam em volta da cintura. Ergue os olhos e depara com as pálpebras cerradas da jovem uigure, mais imobilizadas do que nunca. Deixou de ouvir o silvo da sua respiração, bem como as pulsações aceleradas do seu coração sofredor. O seu rosto parece uma máscara aterradora de realismo, figura mortuária pousada num túmulo ainda recente.

 

Marco vai pessoalmente comprar uma preciosa mortalha de seda e ouro como sudário. Manda transportar o corpo para uma casa que aluga só para ele. Depois, procura um lama, a quem paga com os últimos besantes que lhe restam, para se ocupar da incineração. O budista escolhe, em função das estrelas, a data da cerimónia. Marco resigna-se a esperar uma semana. A fim de conservar o corpo, o lama cobre-o com cânfora e especiarias, dentro de um caixão de madeira muito grossa. Todos os dias deposita alimentos em frente do caixão. Por fim, na data aprazada, o corpo é transportado para fora de Lop, para a orla do deserto. Os lamas colocam-no no meio de cavalos, de camelos e de besantes recortados em pergaminho, simbolizando os bens de que ela disporá no além. Acrescentam ainda vinho, carne e outras iguarias. Quando as chamas se inflamam, encobrindo a longínqua linha do horizonte, Marco sente que o seu coração também se consome. O calor da fogueira não consegue aquecer-lhe os membros enregelados. Por detrás das lianas vermelhas e douradas, Noor-Zade parece reviver, esvoaça-lhe o cabelo, levanta-se a mortalha, como quando o vento a envolvia, pudico. Pela última vez, Marco grava na memória aquele rosto infantil e meigo, de lindos olhos amendoados que nunca mais voltará a fitar. No momento em que Noor-Zade desaparece totalmente por detrás da muralha de fogo, o jovem, querendo-se empedernido, enterra bem fundo a sua dor.

 

Logo a seguir à dispersão das últimas cinzas, Marco faz-se à estrada. As duas montadas salvaram-lhe a vida, ele apegou-se a elas e, embora o hospedeiro lhe tivesse proposto outras bem mais repousadas, o veneziano não quis abandoná-las numa qualquer muda mongol, onde acabariam por sucumbir à custa de tanto serem cavalgadas. Carrega o animal com dois odres repletos até aos bordos de provisões susceptíveis de assegurar a sua sobrevivência no deserto, de um tapete enrolado, de uma manta, de uma tenda e de um fardo de carne seca. Ao cavalo, prende as suas pelicas e as de Darmala. Despedindo-se dele com a certeza de ser o último a vê-lo em vida, o hospedeiro adverte-o contra os espíritos de todos os que morreram no deserto e agora deambulam pelas areias.

 

Marco penetra no Gobi, com o coração cheio de coragem e determinação, animado por um desejo de vingança que confina com a raiva. Se bem que lhe leve mais de duas semanas de avanço, o jovem espera alcançar rapidamente a caravana do pai. Deseja poder avançar de dia e de noite, guiado pelas estrelas, fazendo breves paragens. Consegue descobrir o caminho graças às ossadas de animais ou de homens meio enterrados na areia. Estranha paisagem esta em que os mortos apontam o caminho aos vivos. Ao fim do primeiro dia, já se sente dominado pelo terrível deserto. Depois dos sufocantes calores do Takla-Makan, o universo glacial do Gobi parece-lhe ser a outra vertente do inferno. O ar é tão seco que as mãos e o rosto se cobrem de finíssimas rugas sanguíneas. À noite, a temperatura desce tanto que a água gela nos odres. Marco vê-se obrigado a esperar pelo ténue aquecimento diurno para matar a sede. Aos poucos, invade-o uma surda angústia. À sua volta, nada lhe desperta a atenção. A estepe desértica estende a sua superfície despida e branca até aos confins do horizonte. Subitamente, parece-lhe atingir a orla do mundo. Há vários dias que não vislumbra sinais de vida atrás dele. Abandonado, isolado, podia ter-se perdido. Nunca mais seria encontrado. O mundo poderia desaparecer para lá do deserto sem que ele o soubesse. Marco, porém, sente-se disposto a vencer os demónios. Durante o dia, segue com os olhos a longa progressão do sol que sobe lentamente até ao zénite, antes de descer inexoravelmente e cair por detrás da linha do horizonte. O crepúsculo torna-se, então, o momento da conflagração quotidiana, enlace tórrido da terra e do céu, que se misturam em cores infernais. Logo que o astro desaparece na terra, engolido, o frio apodera-se de Marco, tanto mais violentamente quanto agora lhe parece sentir o coração gelado. Durante o dia, aguarda pelo momento em que o sol o abandonará à dor cruel da noite. Decorridas algumas horas, as estrelas retomam o seu poder sobre a noite, na qual reinam sem partilha, reconforto na solidão daquelas noites todas elas semelhantes. O jovem nunca viu tantas assim. Cobrem o firmamento do Levante ao Poente, salpicando a escuridão da noite com biliões de minúsculos lucíolos. Marco está sempre a descobrir novas estrelas. Graças a Kunze - estranha ironia -, consegue reconhecer o caminho no tapete de estrelas. Sente dificuldade em situar a estrela Polar entre as irmãs. Chama-as pelos nomes das suas recordações, camuflando-as para as sentir mais próximas: Noor-Zade, Michele, Darmala, Donatella... perguntando a si mesmo se as estrelas também morrerão. Este jogo leva-o a manter-se acordado, permitindo-se apenas alguns momentos de sono durante o dia. Obstinadamente, prossegue a caminhada pelo deserto, guiando-se pela orientação da sombra. Encerrado no espaço imenso do Gobi, sente-se mais apertado do que na enxovia em que o encarceraram pelo roubo dos rubis. Os montes e vales de areia sucedem-se com uma monotonia desesperante. Ao ritmo desenfreado da partida seguiu-se um avanço tórpido em que o cansaço luta contra a incerteza. Se Marco não se enganou, há mais de vinte dias e vinte noites que abandonou Lop. Pergunta-se se irá na boa direcção ou se, pelo contrário, os outros se terão perdido. As reservas de água estão prestes a esgotar-se. Já começa a fazer racionamento, como aos cavalos. Subitamente, ao longe, avista, tremendo acima do horizonte, uma minúscula coluna de homens e animais. Marco refreia a impaciência. Alertaram-no contra as miragens e respectivas ilusões. Encontra-se demasiado longe para ser visto ou ouvido. Limita-se a acelerar suavemente o passo do cavalo. Cai a noite antes de atingir a pequena coluna. Decide prosseguir no meio da escuridão, iluminado pelas miríades de estrelas no céu. No dia seguinte, de madrugada, quando finalmente os raios de sol dardejam no horizonte, como se nascesse ali, Marco escruta atentamente o deserto, em vão. Receia que os raios solares, que fixou demoradamente, o tenham ofuscado. Mas, passado um longo momento, tem de se render à evidência: o deserto permanece desesperadamente vazio. Abate-se imediatamente sobre ele uma terrível desilusão. Por muito prevenido que se sentisse, deixou-se levar pela miragem. Solta a rédea no pescoço do cavalo, deixa cair os braços ao longo do corpo. Aos poucos, o animal abranda, até que pára. O cavalo de carga, preso ao primeiro, imobiliza-se por sua vez. Marco escorrega da montada e cai no chão, aniquilado pela sede, a fome, o desespero. Maquinalmente, acompanha com os olhos o trajecto do sol, por cima dele. As horas passam. O jovem sente-se cegar. Fecha os olhos. A morte não o assusta. Espera-a com uma tranquila impaciência. Insidiosamente, como uma maré que sobe, afluem-lhe à memória todas as recordações, Veneza, Donatella, o regresso do pai, o entusiasmo da partida, o ilcão, o abandono de Michele, o nascimento do filho, a luta pelo santo óleo, a traição de Kunze, a morte de Noor-Zade. O nascimento do filho... Revê-se menino, abandonado por um pai que julgava heróico, um novo Alexandre, e que era apenas negligente. Ouve de novo a súplica de Noor-Zade para que lhe salve o filho.

 

De repente, à velocidade de um raio, o sangue reflui-lhe ao coração. A angústia de um perigo bem mais grave do que a própria morte reanima-o do mundo dos moribundos. O corpo, anquilosado, que ainda há poucos instantes nem sequer sentia, estimula-o de novo. Finca-se nos braços, ergue-se. A garganta árida arranca-lhe gemidos de sofrimento. Com uma mão insegura, apodera-se do odre e esvazia-o de um trago, tendo o cuidado de não verter uma gota naquela areia maldita e inimiga. Tossindo, cospe uns tantos goles, que secam ainda antes de tocarem no chão. Acaricia o cavalo afectuosamente e retoma a marcha, avançando ao lado do animal. Este, acabrunhado pela fadiga, marca um passo constante. Marco percebe que não poderão voltar a parar, se querem sobreviver. A noite chega ao fim, fria, no silêncio da solidão dos primeiros dias da Criação. Surge a aurora, cruel pela secura que anuncia. Marco encoraja o cavalo, que dá sinais de fadiga. Se o animal desfalecer, não restará nenhuma possibilidade a Marco. Já não sabe há quantos dias partiu de Lop. É com dificuldade que o cavalo trepa por uma imensa duna de areia, verdadeira colina branca. Atingem, enfim, o cume, entre suspiros partilhados pelo cavaleiro e a montada. Subitamente, quando se prepara para empreender a descida da outra vertente, Marco retém o cavalo. Em baixo, ao alcance de alguns tiros de balestra, a mesma coluna que avistara alguns dias antes serpenteia entre as dunas.

 

- Pai! - quer gritar Marco.

 

Mas o jovem, que não proferiu uma palavra desde que partiu de Lop, encontra-se bruscamente mudo.

 

Movido por uma força desesperada, fustiga o cavalo que se lança num galope ofegante e desenfreado. Quando o animal se recusa a avançar, Marco apeia-se e puxa por ele, dominado por uma energia ditada por uma vontade implacável.

 

Antes do fim da manhã, o veneziano junta-se à caravana, que montou uma pequena tenda improvisada. Os mercadores, agachados à sombra, voltaram-se para ver aquele cavaleiro do deserto que, vindo de nenhures, avançava sobre eles.

 

- Marco! - exclama a voz de Niccolo.

 

O filho precipita-se para os seus braços. Matteo junta-se às efusões. Shayabami verte uma lágrima.

 

- Marco, meu filho! - geme Niccolo.

 

O jovem tenta exprimir-se, mais uma vez, mas não consegue. Shayabami estende-lhe um odre. Marco leva-o à boca, bebendo longos goles. Mas, logo a seguir, cospe a beberagem.

 

- Está salgada! - surpreende-se ele, numa voz rouca.

 

- Que dizes tu? - exclama Niccolo, horrorizado.

 

- Onde está Kunze, esse traidor? - pergunta Marco. Niccolo desvia o olhar, deixando ao irmão o cuidado de responder.

 

- Certa manhã, quando acordámos, tinha partido.

 

Marco fulmina Niccolo com um olhar furioso e ao mesmo tempo cansado.

 

- Ludibriou-nos. Anunciou-nos que não teríamos mais do que doze léguas a percorrer. Perdão, Marco.

 

- Tarde de mais, pai. Aquele malvado salgou a vossa água. E a mim não me resta nenhuma.

 

- Condenou-nos - deplora Matteo, com um nó na garganta. A evidência deixa Niccolo acabrunhado.

 

- Eu... eu nem consigo acreditar. Após tantos anos... Deve-me tudo. Porquê? Por que terá procedido assim?

 

Matteo encolhe os ombros, resignado.

 

- Para já, Nicco, teremos de encontrar uma maneira de atravessar o deserto sem água.

 

- É impossível.

 

- Não, não podemos conceder-lhe essa vitória! - revolta-se Marco. - Temos de chegar ao fim da nossa viagem. Vimos de tão longe! Não podemos desistir, tão perto do fim.

 

- Ele traiu-me.

 

- Veja, pai! Trago a galheta comigo! - declara o jovem, brandindo o objecto mais precioso do que uma vida.

 

- Não há tempo para lamúrias, Nicco - interrompe Matteo. Niccolo olha-o, surpreendido com a sua determinação. Nunca o viu assim. Os seus olhos vazios passam do irmão para o filho.

 

A caravana parte de imediato, composta apenas por quatro cavalos e pelo animal de carga de Marco. Cavalgam durante uma dezena de dias numa atmosfera fúnebre, economizando o último odre de água doce. Marco, de olhar vago e distante, parece insensível. Certa noite, chega mesmo a perder-se, ouvindo as vozes dos que ficaram pelo caminho, Michele, Darmala, Noor-Zade... Já não param para dormir, limitando-se a repousar montados nos cavalos, tanto para poupar as provisões como para escapar aos espíritos e aos sons de tambor que habitam o deserto, a fim de desviar os viajantes. Dia após dia, os cavalos extenuam-se, até já não poderem carregar os homens. Ajoelham-se no chão, lutando contra a tortura da sede que os atenaza, sustentando-se uns contra os outros. Marco, que recuperou todos os sentidos, oferece-se para procurar uma nascente de água. Cansado de protestar, Niccolo cede ao desejo do filho, sem sequer se despedir.

 

No dia seguinte, Marco descobre um minúsculo charco, para dentro do qual se lança. Limita-se a humedecer os lábios, observando a reacção do cavalo, que se desaltera até à saciedade. Depois, enche o estômago até lhe doer. Mergulha na água os dois odres que trouxe vazios e, revigorado, volta para junto dos companheiros nessa mesma noite. Moribundos, os Polo saboreiam, deliciados, os goles que escorrem dos odres de pele que Marco torce por cima das suas bocas, um de cada vez. Shayabami, ajoelhado, abençoa o jovem, votando-o a um eterno reconhecimento. Reunindo novas forças, voltam a montar nas respectivas selas, avançando a um trote moderado. Aproximando-se da pequena nascente, ainda conseguem encher os odres até meio, e repousam durante uma noite, antes de prosseguir a caminho do Oriente.

 

Após dez dias desta extenuante cavalgada, o deserto começa a dar lugar a uma vegetação rasteira em pequenas parcelas pedregosas. A paisagem torna-se mais acidentada, desenham-se colinas, como dentes carcomidos pela erosão. Contornam um imenso rochedo branco, quando avistam, ao alcance do tiro de uma balestra, algumas tendas redondas. O peito dos homens exala um suspiro de alívio.

 

- Estamos salvos! São as tropas de Cublai! - exclama Niccolo, numa voz pastosa.

 

As sentinelas do acampamento avistaram-nos. Uma dezena de soldados galopa em direcção ao grupo esgazeado. Tranquilizado, Marco reconhece-lhes o uniforme. Subitamente, o seu espírito embotado inquieta-se. Como poderá ele identificar as cores dos homens de Cublai? Aquelas couraças afiguram-se-lhe estranhamente familiares.

 

- Somos embaixadores do vosso amo! - declara Niccolo, exibindo a tabuinha de ouro de Cublai.

 

- Não! - exclama Marco, de braço estendido, mas demasiado tarde.

 

O HOMEM DO GRÃO CÃO

Num ápice, vêem-se cercados por cavaleiros mongóis, usando um capacete de pele, de ponta e viseira, e com o torso e as coxas cobertos por uma sólida armadura de couro tratado. Os cavalos relincham, batem com os cascos no chão a escassos passos dos viajantes, prestes a empinar-se. Os estrangeiros são ameaçados por sabres e arcos curvos que se agitam à sua frente.

 

Matteo desfalece, esgotado, desanimado. Niccolo ergue-o.

 

- Ajuda-me, Marco.

 

Os dois irmãos apoiam-se um contra o outro, amparados pelo jovem veneziano e por Shayabami, que reza em voz baixa.

 

- Meu filho, é o fim... Sinto muito por te ter trazido - declara Niccolo, benzendo-se.

 

- Fui eu que o obriguei a fazê-lo, recorda-se?

 

O mercador responde com um estranho ricto, que se assemelha a um sorriso.

 

- Parece-te?

 

Marco retira a tabuinha de ouro do pescoço do pai e, resoluto, avança em direcção ao capitão.

 

- Quero encontrar-me com o teu amo Caidu - declara ele, em mongol, numa voz firme.

 

O chefe examina-o de alto a baixo, sem responder, por detrás da máscara que lhe encobre o rosto.

 

- Lembra-te de que, se nos degolares, Cublai acabará por ser informado e não deixará de punir o crime cometido contra os seus embaixadores.

 

O capitão aproxima-se do jovem. Irado, arranca a tabuinha de ouro das mãos de Marco e arremessa-a para o chão, levando o cavalo a calcá-la, louco de raiva. Os venezianos, estupefactos, permanecem mudos. O mongol acena aos seus homens. De repente, todos os cavaleiros se lançam como feras sobre os viajantes. Marco e Shayabami distribuem murros e pontapés onde e como podem, se bem que, atacando guerreiros, incorram na pena de morte. Marco esquiva as pauladas e as chicotadas, evita os ataques. Quando vê o pai em muito má posição, a braços com o mais feroz dos mongóis, puxa pela couraça do cavaleiro e volta-o para si, aplicando-lhe um valente murro no queixo. No momento em que estica o braço, reconhece Caidu, que ergueu a viseira. Demasiado tarde. O príncipe mongol enterra o chicote no ventre do veneziano. Marco, com o fôlego brutalmente entrecortado, verga o seu corpo de atleta. Mais uma pancada na nuca e o jovem cai de joelhos. Vendo o adversário no chão, Caidu esmaga-lhe os ossos da mão, pisando-o violentamente. Marco solta um gemido de dor. Fecha o punho válido em redor da perna de Caidu e morde-a até escorrer sangue. Os olhos do guerreiro lançam chispas de raiva.

 

- Malvado! Hei-de matar-te!

 

Num movimento brusco, Marco atrai Caidu para o chão. O mongol aplica uma cotovelada no queixo do veneziano. O jovem rebola para o lado e cai nos braços de Niccolo, cujo ombro o detém.

 

- Pára! Serás esmagado! - grita o pai.

 

Após um momento de intensa luta, Caidu considera as couraças dos seus guerreiros suficientemente esventradas e os ossos dos prisioneiros suficientemente fracturados. Acena aos archeiros para que cerquem rapidamente os viajantes, apontando-lhes as flechas ameaçadoras.

 

Caidu aproxima-se. Shayabami agarra-se ao ventre, torcendo-se de dor, Matteo sente o ombro fracturado, Niccolo geme, massajando o crânio, Marco limpa os lábios, que escorrem sangue.

 

- Boa resistência, Marco Polo! Fica sabendo que, por muito menos, houve quem fosse empalado!

 

- O inocente não teme a justiça dos homens, mas unicamente o julgamento de Deus - declama gravemente Marco, sem largar a mão magoada.

 

Perante tamanha segurança e descaramento, Caidu solta uma gargalhada.

 

- Que resgate julgas tu que o meu primo Cublai pagaria por ti? - pergunta ele, observando-o com atenção.

 

Marco ergue-se na ponta dos pés, se bem que o príncipe mongol seja manifestamente muito mais alto do que ele.

 

- Alguém terá de lhe perguntar.

 

Caidu meneia a cabeça, sonhador, sem desviar o olhar daquele jovem, que ousa desafiá-lo com tanta valentia.

 

- Entretanto, queiram aceitar a minha hospitalidade - ordena ele, soberbo, esboçando um leve sorriso.

 

Uma vez desarmados e despojados de toda a mercadoria - excepção feita da galheta, que Marco tivera a ideia de dissimular no forro da capa, os prisioneiros são conduzidos até ao acampamento, a pé, sob a ameaça dos chicotes dos guerreiros. Transpondo imensas muralhas recortadas por ameias que se estendem até ao horizonte, esgotados, descobrem sem curiosidade bairros mongóis, tendas negras desdobrando-se na estepe como asas de morcegos.

 

Caidu encarcera-os num gber, exíguo e gelado, onde são abandonados sem água nem alimentos durante vários dias. Confiscaram-lhes as armas e a isca de acender, deixando-lhes apenas uma leve pelica a cada um num leito de palha. Matteo queixa-se de todos os males da terra e Marco sente-se, por uma vez, tentado a acreditar no tio, tão trémulo e pálido o vê. Niccolo multiplica as lamentações sobre a sua sorte, sobre a mercadoria perdida - uma verdadeira fortuna. Shayabami, com uma constância admirável, continua a servir os amos, embora tenha visto reduzidas as suas tarefas. Marco angustia-se, desesperando de encontrar o filho e Kunze al-Khaír no acampamento. A fim de apaziguar a impaciência, imagina meios de sobrevivência. Escava um buraco na parede da tenda para atingir a neve e esgravatar uns tantos pedaços que chupam com parcimónia.

 

- Bravo, bravíssimo, Marco - murmura Matteo do fundo da enxerga, onde Shayabami lhe massaja vigorosamente os pés.

 

Através da reduzida abertura do gher, os venezianos, que começam a sofrer cruelmente de fome e de sede, observam os mongóis, que troçam deles, extirpando um pedaço de carneiro que conservavam na sela há semanas, devorando-o avidamente.

 

Certo dia, o chefe da guarda abre o alforge de pele que usa a tiracolo. Mete resolutamente a mão no saco e retira um pedaço de carne de aspecto repugnante, capaz de matar qualquer cristão. Começa a roê-lo com grande apetite, sob o olhar quase invejoso dos prisioneiros. A fome que os atormenta provoca vertigens a Niccolo.

 

Numa manhã, os quatro homens são acordados antes da hora de prima e arrastados para um ajuntamento. De longe, Marco vê os dois ramos de dois choupos retorcidos até ao chão, a fim de formarem um arco em ogiva. Aproximando-se, vê uma mulher solidamente presa aos ramos de cada uma das duas árvores. A mulher soluça e geme, suplicando que a poupem. Mas o carrasco, indiferente às suas preces, continua a amarrá-la. Depois, recua alguns passos, desembainha um longo sabre que range de modo sinistro e arranca gritos de terror à condenada. Num gesto seco, corta a corda que prendia as árvores. Os dois ramos afastam-se subitamente e, no meio de um barulho terrível, eivado de gritos, de ossos fracturados e de carne esquartejada, o corpo é brutalmente dilacerado.

 

Depois, os prisioneiros, muito trémulos, são reconduzidos à tenda. Perturbado por este suplício provocado por um adultério, Matteo permanece doente durante uma semana.

 

- Tu! - ordena uma voz.

 

Marco necessita de alguns instantes para compreender que o guerreiro que irrompeu na tenda se dirige a ele.

 

Sem sequer lançar um derradeiro olhar aos outros sobreviventes da caravana, enquadrado por dois archeiros fedorentos que o apertam tão estreitamente que se sente nauseado, Marco segue a guarda através do campo. Os mongóis voltam-se à passagem do cortejo, com uma sinistra curiosidade. Assaltado por recordações, o veneziano começa a orar mentalmente, recitando o Pater Noster com fervor. Sempre a tremer, titubeia a cada passo. À medida que avança para a tenda do chefe, invade-o uma imensa lassidão. A sul de todas as outras, enquadrada por carroças carregadas de baús, a tenda é coberta de feltro branqueado por osso em pó.

 

Marco é mais uma vez revistado, certamente apenas por respeito pelos costumes ali praticados, pois já lhe retiraram todas as armas. Abre-se a austera entrada. Momentaneamente, o jovem, enraivecido, sente a tentação de pisar o limiar, sagrado aos olhos dos Mongóis e cuja violação pode ser punida de morte. Num instante, tudo poderia terminar. Marco, porém, passa resolutamente por cima da entrada. À sua frente impera Caidu, perto de uma jovem que estremece sob uma imensa coifa em forma de cone, que lhe cobre a cabeça. À esquerda, o lado das mulheres encontra-se deserto. O dos homens conta com toda a aristocracia militar do acampamento. Marco avança para o lado esquerdo e ajoelha-se diante de Caidu. Um escravo serve ao estrangeiro uma tigela de kumis. Dominando como pode a fraqueza e a impaciência, o veneziano derrama algumas gotas no chão e ingere o conteúdo da tigela de um trago, apreciando particularmente, após tantas privações, o sabor da acre beberagem, como se saboreasse leite de amêndoas. Depois, fixa os olhos claros nos de Caidu. O príncipe mongol vê-o cumprir estes gestos tribais com curiosidade.

 

- Vens de longe e, no entanto, conheces os nossos costumes, Marco Polo.

 

Aliviado por se sentir de algum modo saciado, o veneziano cala-se, aguardando que o convidem a falar. Caidu sorri, deveras satisfeito.

 

- Verifiquei, contristado, que a galheta de óleo não se encontrava entre as mercadorias confiscadas...

 

O olhar de águia de Caidu penetra no do veneziano.

 

- Por que esperas? A um simples sinal da minha parte, os meus capitães degolam-te num ápice.

 

O veneziano faz um esforço para não replicar. Os minutos vão passando lentamente.

 

- Não obtive nenhuma resposta de Cublai ao meu pedido de resgate - declara Caidu, sibilino.

 

Perante esta notícia, que destrói uma das suas secretas esperanças, Marco nem pestaneja. Dez anos depois de terem abandonado a sua corte, o Grão Cão ainda se recordará da missão que confiou aos irmãos Polo?

 

- Como resposta, enviou um exército ao meu encontro prossegue o príncipe mongol. - E não foi um exército qualquer, chefiava-o o filho, Namo Cão, com a estúpida esperança de me amedrontar. Vejo que um brilho de esperança perpassa pelos teus olhos, Marco Polo. Vou aniquilá-lo sem mais demoras: os capitães de Namo preferiram juntar-se a mim, um verdadeiro mongol da estepe, em vez de permanecerem ao serviço desses príncipes impostores que se abastardam em contacto com esses malditos amarelos!

 

Marco não consegue evitar uma expressão de horror. O príncipe mongol avança em direcção ao jovem. Os seus olhos de águia cintilam sob o poço de luz da tenda.

 

- Tranquiliza-te, ele é apenas um refém meu. Não por muito tempo... Vou remetê-lo para o nosso antepassado comum, o glorioso Gengiscão. Como é do mesmo sangue e o yasaq impede que o sangue corra, será envolvido numa manta de feltro e arrastado por cavalos até que a morte sobrevenha. Ele é dos meus - acrescenta Caidu, movido por um sincero respeito.

 

Um arrepio percorre a espinha de Marco.

 

O mongol faz-lhe um sinal, autorizando-o a falar.

 

- Senhor Caidu, de que resulta o ódio que nutres por Cublai?

 

- Sou neto do Grão Cão Ogotai, filho de Gengis, que sucedeu ao pai. Cublai é filho de Tului, irmão mais novo de Ogotai. Roubou-me o trono que me devia caber, vindo em linha directa de Gengiscão.

 

Marco cambaleia, reencontrando, a milhares de léguas de Veneza, intrigas dignas das piores sucessões de doges.

 

- Cublai é um degenerado - prossegue Caidu, cujo tom sobe à medida que ele se arrebata. - Contaram-me mesmo que trocou o couro do guerreiro pela seda dos haréns! O meu primo veste-se como uma mulher! Com cores! Ousou voltar as costas ao nosso berço ancestral, Caracórum, para criar a sua própria cidade, Khan-balik, em território chinês!

 

Olha para Marco, que não reagiu.

 

- Marco Polo, tu também vives numa grande cidade?

 

- Eu, senhor, há muitas luas que vivo a cavalo. As estrelas são o meu tecto e são elas que me guiam. Os ventos do deserto e dos glaciares são as minhas únicas paredes, mais sólidas do que qualquer muralha. Mas é verdade que nasci numa cidade construída sobre vagas.

 

Caidu, intrigado, não tira os olhos dele.

 

- Esta tão longa viagem para vires ao encontro do meu povo só pode honrar-te. É uma grande prova de coragem. Fica comigo. Dar-te-ei um cavalo e mulheres. Poderás caçar connosco. Em vez de te deixares corromper nas cidades - acrescenta ele, num tom de desprezo.

 

- Por que detesta a esse ponto os habitantes das cidades?

 

- Construindo muralhas, afastam-se da Natureza. É por isso que as cidades devem ser arrasadas, a fim de restituirmos à terra o que lhe pertence. Os sedentários como vós pretendem vergar os elementos à vossa vontade, constróem muralhas para deter os ventos, quando uma rajada enviada por Tengri é capaz de as desmoronar de uma vez. Nós, os Mongóis, somos essa rajada.

 

- Ao abrigo dessas muralhas que pretende arrasar, construímos obras úteis para os homens.

 

- A verdadeira obra é a da estepe. Gengiscão queria que o recordássemos não como um construtor mas como aquele que teria destruído as mais belas obras da humanidade. E tinha razão.

 

Caidu afasta-se, significando que a audiência chegara ao fim.

 

No dia seguinte, fornecem-lhes mantas, instalam-lhes uma lareira e dão-lhes mesmo uma marmita de água com leite seco coalhado. Shayabami abençoa Marco em todas as suas orações. O jovem mergulha as placas amareladas na água, a fim de as tornar comestíveis. Com parcimónia e deleite, a despeito de um sabor terrivelmente azedo, todos mastigam a sua parte. Pelas faces de Matteo escorrem lágrimas que ele não consegue conter. Cresceu-lhes imenso a barba mas, sem uma navalha, não podem cortá-la.

 

Marco obtém autorização para circular pelo acampamento, ladeado por um corpulento mongol que se obstina em não lhe dirigir a palavra nem responder às suas perguntas.

 

Após vários meses de observação, o veneziano compreende os costumes da corte de Caidu. Os seus vassalos, criadores de cavalos, pagam-lhe um tributo quotidiano, constituído por leite de égua e carne, obtendo em troca uma protecção que lhes sai cara. Alguns têm a sorte de poder oferecer uma das filhas a Caidu. Mas este, com sessenta e duas esposas reconhecidas, começa a dar mostras de cansaço. Já só aceita uma nova mulher quando precisa de estabelecer uma aliança. Os camponeses, por seu lado, fornecem milho e farinha, os pastores carneiros e peles.

 

Marco examina as suas técnicas de tratamento da carne de cavalo e de vaca. Os mongóis cortam-na em fatias finas, que penduram em cordas a fim de que sequem ao sol e ao vento das estepes. Aprende a fabricar o que julgava ser kumis seco. Extraem manteiga do leite de iaque longamente fervido. Esta técnica permite-lhe conservar-se durante muito tempo, dentro de odres previstos para o efeito, sem sequer precisar de sal. Depois, deixam coalhar o resíduo da manteiga e fervem-na de novo, antes de coalhar mais uma vez. Desta última matéria, obtêm uma espécie de pasta que secam ao sol, até se tornar dura como ferro. Recortam, então, placas deste leite seco, que reservam para o Inverno e do qual se servem para purificar a água quente que bebem, a despeito do seu sabor ainda mais azedo do que o kumis. A água, na verdade, encontra-se muito contaminada e não pode ser bebida.

 

Só os escravos se alimentam de uma água gordurosa que os mata aos poucos, embora consigam, por vezes, caçar um rato ou uma marmota que os amos os autorizam a comer, em troca das peles, que utilizam na confecção dos chapéus.

 

Durante estes longos meses de cativeiro, Marco é muitas vezes convidado para a tenda do príncipe mongol, a fim de lhe descrever a viagem que efectuou. Marco insiste demoradamente nos mais pequenos pormenores, evitando qualquer informação militar. O seu sentido da ênfase diverte suficientemente o seu amo e senhor para que este já não pense em o executar. Mas Marco não se sente disposto a prosseguir por mil e uma noites.

 

Entretanto, a sua consideração cresce junto de Caidu. As condições de vida dos prisioneiros melhoram ostensivamente. São autorizados a sair do gber. Só Niccolo permanece acamado, de olhos brilhantes devorados pela febre. Agora, servem-lhes enchidos frescos confeccionados com tripa de cavalo. Encontram-se tão magros que aceitam qualquer alimento entoando orações e bênçãos. Fornecem-lhes calçado novo, talhado e cosido em couro de cavalo. Marco deambula pelo acampamento, procurando obter informações sobre Kunze ou sobre Namo Cão. Mas ainda ninguém foi autorizado a dirigir-lhe a palavra e os escravos cristãos evitam-no.

 

Marco é mais uma vez convidado a penetrar na tenda de Caidu. O veneziano avança para o lado reservado às mulheres e ajoelha-se diante do príncipe mongol.

 

- Consta que o meu primo se encontra doente, espero que tenha morrido. Cublai, esse patife, tornou-se mais chinês do que mongol.

 

- O meu pai também está necessitado de cuidados.

 

- Dizem que os curandeiros do Grão Cão são excelentes. Vê como conseguem manter vivo o meu primo.

 

Marco suspira.

 

- Tomei uma decisão a respeito do vosso destino - declara friamente Caidu.

 

O veneziano sustém a respiração.

 

- Serão libertados, a fim de poderem ir até junto de Cublai. Antes disso, quero que assistas à morte do filho, Namo Cão, a fim de que lhe contes em meu nome e fielmente, como tão bem sabes fazer, o que viste.

 

Um arrepio percorre as costas de Marco.

 

- Entretanto, senhor Caidu, que eu saiba, nunca a morte de um príncipe ficou sem punição...

 

- Receias pela tua vida? É provável que, depois de ouvir o teu relato, Cublai te condene à morte, a fim de te castigar por lhe teres levado tão desagradável notícia.

 

Marco ergue os olhos claros para Caidu.

 

- Com certeza, senhor - admite o jovem.

 

- Lamento não poder assistir.

 

- Simplesmente, depois disso, Cublai enviará todo o seu exército contra o vosso, que é muito mais reduzido em número. E vencerá.

 

- Está certo - reconhece Caidu, decorrido um momento.

 

- Namo Cão é um refém deveras embaraçoso, mas que pode revelar-se muito útil - prossegue Marco, sem recobrar o fôlego.

 

- Cublai não negociará nada, equivaleria a perder a face resmunga o mongol.

 

- Livre-se dele cedendo-o a Mengu Temur. É uma boa maneira de fortalecer a aliança com a Horda de Ouro. Quando Cublai souber que o seu filho foi poupado, talvez faça o mesmo aos vossos territórios.

 

Os olhos de Caidu lançam chispas.

 

- Marco Polo, não compreendeste, eu não quero ser poupado. Eu sou o único herdeiro legítimo de Gengiscão. Quero ser o Grão Cão.

 

- Por agora não dispõe de poder para derrubar Cublai. Precisa, portanto, de ganhar tempo.

 

Caidu puxa pelos fios sedosos da barba negra. Ordena que lhe vão buscar uma omoplata recentemente carbonizada de um carneiro. Revolve o osso nas mãos, examina-o com toda a atenção exigida pela decisão que vai tomar e, depois, devolve-a ao xamã.

 

- Terei de lhe enviar um emissário.

 

Sem hesitar, Marco inclina-se diante do príncipe.

 

- Para ti, é uma boa maneira de, finalmente, te desempenhares da tua embaixada.

 

- Ou de ser morto. Envergando as cores de Caidu.

 

- Aceito a tua proposta. Com uma condição: entregas-me a galheta de óleo destinada a Cublai, e conservá-la-ei comigo para evitar qualquer traição.

 

- Muito bem, senhor - responde Marco friamente. - Mas quero levar comigo toda a minha companhia.

 

Pela primeira vez há muito tempo, Marco dorme um sono tranquilo. Ao jantar, Matteo demorou-se a elogiar o sobrinho e as suas qualidades de diplomata, enquanto Niccolo asseverava que as herdara dele. Shayabami não dizia nada, mas os seus olhos cintilantes de felicidade falavam por ele. Por fim, evocaram o futuro, arquitectaram os mais loucos projectos, partir para a índia mal chegassem a Khanbalik, casar Marco, esfolar Kunze. Abusaram do infame kumis que lhes era oferecido até ficarem embriagados e lhe encontrarem o sabor do mais delicioso dos vinhos.

 

O sono repousado do jovem veneziano é perturbado por um leve roçagar contra a lona da tenda. Marco arregala os olhos e, nesse mesmo instante, o feltro rasga-se brutalmente, dando passagem a um homem que traz um turbante na cabeça e se lança sobre ele com a agilidade de um felino, brandindo a preciosa lâmina de uma adaga curva iluminava por um raio de luar. O veneziano ainda tem tempo de levantar o braço para se proteger. A arma rasga-lhe a carne no ombro. Num gesto brusco, Marco repele o adversário, que cai de costas.

 

- Kunze! - exclama Marco, acordando os outros.

 

Vendo que perdera a partida, o persa sai pelo entalhe feito na tenda, disposto a fugir. Mas fora dado o alarme e é recebido pelos guardas mongóis cuja cumplicidade não conseguiu comprar.

 

Kunze lança ao jovem Marco um olhar mortífero. Niccolo hesita entre a vontade de lhe pedir explicações e a de o punir raivosamente, acabando, enfim, por decidir ignorá-lo. Matteo inspecciona o ferimento de Marco, que é apenas superficial.

 

São conduzidos à força até à tenda de Caidu.

 

Este acaba por aparecer, envergando umas simples bragas e uma túnica que lhe cai até às botas. Com um gorro de pele na cabeça, está visivelmente furioso.

 

- Senhor Caidu - declara Marco, no tom mais calmo do mundo. - Este traidor atentou contra a minha vida. Ora, na minha actual qualidade de embaixador, encontramo-nos sob a vossa protecção.

 

Franzindo o sobrolho, Caidu volta-se para Kunze.

 

- Senhor, prometeste-me a cabeça deste homem - defende-se o persa, mal podendo disfarçar a raiva.

 

- E quiseste agir pelas tuas próprias mãos? - ironiza o mongol. - Tratando-se de estrangeiros, devia reservar-lhes aos dois o mesmo destino, por ousarem perturbar o meu repouso. Mas vou ser magnânimo...

 

Marco rejubila, esquecendo o ferimento. Kunze sente dificuldade em engolir.

 

- Defrontar-se-ão num combate singular, à nossa maneira, até à morte do primeiro dos dois - prossegue o príncipe mongol. Kunze, cabe-te a escolha das armas.

 

- O sabre - responde o persa de imediato.

 

- Então, exijo que me seja restituído o que me pertence declara Marco, numa voz firme.

 

Atam uma corda a um tornozelo de cada um dos adversários. Os dois combatentes encontram-se assim unidos, à distância da altura de um homem. Os guerreiros mongóis formam um círculo em redor dos dois adversários, repelindo os Polo para trás das primeiras filas.

 

Sem dirigir um olhar aos seus familiares, Marco apodera-se do sabre de Guilherme de Rubrouck, apertando-o pelo cabo, como se este pudesse transmitir-lhe força e coragem. Kunze passa o polegar pela lâmina com um sorriso de satisfação e dá início a um verdadeiro bailado, com a arma a rodopiar à sua volta, fabricando uma teia invisível. O sabre corta o ar entre silvos ameaçadores. Marco recua, esquiva-se, sentindo que o suor lhe escorre pelas costas. Num gesto rápido, dobra a perna, desequilibrando o persa, e aproveita para se colocar em posição de ataque. Kunze ergue-se, mais furioso do que nunca. Para o destabilizar, Marco finge por diversas vezes fendê-lo de alto a baixo.

 

- Onde está o filho de Noor-Zade? - murmura Marco. O persa remete-lhe um sorriso feroz.

 

- A criança? Está viva, mas não voltará a vê-la, senhor Marco. De resto, por que se importa com o filho de uma escrava? - assobia ele entre dentes.

 

Kunze esboça um gesto destinado a enrolar a corda em volta dos dois pés do veneziano. Mas este dá um salto por cima. O persa avança em direcção ao exterior, quando, subitamente, cruzando o braço por cima do ombro, se prepara para abater a lâmina sobre o pescoço do veneziano. Este esquiva-se  suavemente. Kunze fica tão surpreendido por ver a sua estocada desviada que reage demasiado lentamente ao contra-ataque de Marco, cuja lâmina toca no punho de Kunze. O sabre do persa cai ao chão.

 

- Por Noor-Zade! - exclama Marco.

 

Kunze tenta recuperar a arma com a outra mão, mas o veneziano entalha profundamente o braço do inimigo.

 

- Por Michele!

 

Atrás deles, a multidão dos guerreiros mongóis sublinha por meio de gritos os gestos dos combatentes.

 

- Onde está o meu filho? - grita Marco, encolerizado.

 

Apercebendo-se de que perdera, Kunze deixa-se cair de joelhos, reflectindo nos olhos negros uma serenidade brilhante, e dirige a Marco o seu mais bonito sorriso, subtil e cruel.

 

- Chegou a hora do Vento da Noite, senhor Marco... Desesperado, soltando um rugido terrível, o veneziano atinge o persa no pescoço que se lhe oferece. O sangue jorra em grandes fluxos, ao ritmo das pulsações do coração, acelerado.

 

Com uma pancada seca, Marco corta a corda que o une ao inimigo. Mal conseguindo respirar, cai de joelhos, como se, também a ele, a vida o tivesse abandonado.

 

De madrugada, a caravana dos Polo parte do acampamento, a fim de cumprir a última etapa. Os quatro homens vão vestidos com as cores de Caidu. O príncipe mongol cedeu-lhes uma escolta de uma dezena de guardas fortemente armados. A estepe encontra-se salpicada de esteias citas antigas, representando rostos de pálpebras alongadas ou cavalos ornados de cornos encurvados. Caminham ao longo da Grande Muralha durante vários dias, gigantesca barreira perdida no meio das estepes antes de alcançar o primeiro posto avançado fortificado pertencente a Cublai. Marco espera que a qualidade de embaixadores permita evitar o combate. Ainda antes de poder começar a parlamentar, as tropas do Grão Cão, vendo o seu reduzido número, lançam-se sobre eles. Marco, a quem foi restituído o arco, desfere uma série de flechas. A escolta, por sua vez, consegue abater alguns homens, mas são obrigados a render-se. Marco, invocando o nome de Namo Cão, consegue que sejam conduzidos à presença de Cublai. Caminham durante semanas, rodeados pelos soldados armados do Grão Cão, sem água nem víveres.

 

Extenuados, sedentos e esfomeados, rodeados de archeiros, após três anos de périplo e um ano de cativeiro, os viajantes venezianos chegam uma noite à entrada da imensa tenda, palácio de Verão de Cublai, a várias léguas de Khanbalik, no meio de um magnífico parque no qual prolifera a caça.

 

Marco nunca viu nada semelhante. A tenda não é um perfeito gher mongol, a sua armação, muito leve, é feita de bambu, coberta por um tecido de fios de seda entrançados, decorada com peles de leão raiado de amarelo, preto e branco.

 

O interior é suficientemente vasto para conter pelo menos mil pessoas. A atmosfera é banhada por pesados eflúvios de incenso. Criados ocupam-se de múltiplas tarefas. Mas Marco não vislumbra nenhum trono. Os guardas empurram-nos para uma segunda sala e, por fim, para uma terceira, que ultrapassa as duas primeiras em magnificência. As paredes são revestidas de peles de zibelina e arminho, suspensas por finos cordões de seda.

 

Os cortesãos, muito numerosos, vestem túnicas de ouro e seda, forradas de peles ricas, veiro ou raposa. Os vestidos das damas são ornados de pedras preciosas e de pérolas. Usam cintos de ouro e sapatos de salto alto, de couro bordado. Rivalizam em beleza, têm uma tez de porcelana, reavivada por um belo carmim nas faces, iluminando-lhes os olhos negros amendoados. Usam turbantes pesados e muito requintados que lhes encobrem o cabelo, ornamentando-os de pérolas e nácar.

 

À frente deles, num trono soberbamente decorado com dragões e tigres de boca muito aberta, encontra-se o Grão Cão, dono de uma grande parte do mundo conhecido. Enverga uma longa túnica da mais bela seda de ouro, bordada a motivos de flores e animais, e usando na cabeça uma espécie de coroa. Não fora o fácies, que Marco aprendera a reconhecer, e não acreditaria estar na presença de um imperador mongol. Cublai é quase um velho, embora se vejam muito poucas rugas no seu rosto. Os olhos, muito rasgados, brilham de inteligência cruel. Fixa as pupilas dos estrangeiros como se procurasse sondar-lhes a alma. O seu rosto expressivo, fresco como uma rosa, desmente todos os rumores respeitantes à sua saúde deteriorada ou à morte iminente. Arvora uma corpulência bem musculada para a idade que tem. Os Polo avançam para o lado reservado às mulheres. O mestre de cerimónias faz-lhes um sinal para que se detenham, à distância de uma pedra arremessada. Esfarrapados, depois do tratamento que lhes foi dispensado, macilentos, mal barbeados, fedendo como o mais sujo dos mongóis, prosternam-se a todo o comprimento diante do imperador. Chefiados por Marco.

 

- És, então, Marco Polo... Caidu, essa víbora, ousa enviar-me um embaixador, ao mesmo tempo que sequestra o meu filho Namo?

- comenta Cublai com um raiva fria. - Só o nome do meu filho te poupou, miserável verme. Considera-te protegido por Tengri, pois ainda não ordenei que te empalassem.

 

Com um gesto, o mestre de cerimónias autoriza Marco a falar.

 

- Grande Senhor, eu não sou apenas aquele que vês diante de ti, embaixador do teu figadal inimigo Caidu, sou também aquele por quem esperas há longos anos - responde ele, sem desarmar.

 

Cublai solta um urro de raiva.

 

- Como te atreves a dizer que te esperava, insignificante verme? Terás pressa de pôr termo a este mundo? Não tenhas a audácia de ser tão impaciente, a tua hora chegará, mesmo que tenhamos de esperar.

 

Marco prosterna-se de novo diante de Cublai.

 

- Grande Senhor, não trazemos a tabuinha de ouro que foi entregue a meu pai, quando partiu desta corte, há quase dez anos.

 

- Quem é o teu pai, então?

 

- Niccolo Polo, Grande Senhor.

 

Cublai debruça-se sobre um homem que se encontra a seu lado, muito digno. O conciliábulo prolonga-se por um longo momento. O imperador meneia a cabeça, entre rumores de aprovação. Depois, volta-se de novo para Marco.

 

- Se o que dizes é verdade, não me esqueci de que o teu pai foi incumbido de uma missão particular e não vejo que tenhas regressado para a cumprir.

 

Niccolo avança, por sua vez, em direcção a Cublai.

 

- Escutai-o, Grande Senhor. É meu filho e doravante será um dos vossos homens.

 

O pai e o filho trocam um olhar carregado de sentido. Marco sente dificuldade em conter a emoção que o assola. É a primeira vez que Niccolo afirma publicamente o laço que os une.

 

Cublai observa com um olhar vivo o contacto mudo efectuado entre os dois homens.

 

- Aqui está a prova de que somos quem afirmamos ser declara Marco, retirando a galheta do peito. - O óleo do Santo Sepulcro.

 

O Grão Cão ergue a sobrancelha rala, surpreendido. Niccolo dirige um olhar interrogativo a Marco. Cublai debruça-se novamente sobre o ministro.

 

- Deixei a Caidu o óleo dos adoradores do fogo - segreda Marco ao ouvido do pai.

 

Com um gesto, Cublai ordena que lha levem. Um criado avança um coxim de seda bordada para a frente Marco, que nele depõe cautelosamente o precioso objecto. O Grão Cão apodera-se dele, abre a galheta e mergulha o olhar no seu interior.

 

Marco sustém a respiração.

 

O Grão Cão fecha os olhos.

 

- E a minha discussão teológica? - pergunta ele.

 

- Infelizmente, Grande Senhor, os monges não suportaram a longa viagem - suspira o jovem veneziano, aliviado.

 

Oferecem-lhes, por fim, uma pequena tigela azul e branca da mais fina porcelana. Sem tirar os olhos de Cublai, Marco ingere de um trago o conteúdo da tigela. Mas, em vez da beberagem acre à qual começara a habituar-se, descobre o calor de um aroma subtil e perfumado. Olha para o líquido, fumegante, cor de âmbar claro, no qual flutuam minúsculas parcelas de um pó escuro.

 

- Grande Senhor, depois de ter sido feito prisioneiro, Namo foi poupado por Caidu. Este entregou-o a Mengu Temur, da Horda de Ouro. Foi o melhor meio que ele imaginou para obter a libertação do príncipe sem perder a face.

 

O imperador reflecte, com um sorriso nos lábios.

 

- Que ele imaginou ou que tu imaginaste?

 

O veneziano inclina-se, numa profunda vénia.

 

- Para dizer a verdade, Grande Senhor, fui de facto eu o autor da ideia deste estratagema que me permitiria negociar a partida do acampamento de Caidu, onde nos mantinha cativos há um ano.

 

- Então, foste tu que salvaste o meu filho Namo? Que Tengri te proteja.

 

E, num gesto amplo, convida-os a sentarem-se à sua direita.

 

                                                                                            Muriel Romana

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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