Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Chave / Michael Palmer
A Chave / Michael Palmer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Chave

 

PREFÁCIO

Julho de 1946

Com um breve grunhido de satisfação, Ramirez bebeu o resto do uísque dum longo trago. Quando se preparava para se servir da quarta bebida daquela noite, o Rosa T elevou-se na crista duma onda e desceu-a desajeitadamente até ficar de novo na posição horizontal. Com os reflexos resultantes de anos no mar, ajustou habilmente o ângulo da garrafa e encheu o copo sem entornar uma gota.

 

Tomás Ramirez tinha mais de sessenta anos, mas a farta barba grisalha e a corpulência, mais a pele morena e curtida pelos elementos, davam-lhe uma aura sem idade definida. Entre os seus conhecidos nenhum conseguia recordá-lo ou imaginá-lo a fazer outra coisa que não fosse comandar o Rosa T

 

Originariamente destinado e usado no transporte de bananas, o cargueiro albergara muitas e mais interessantes cargas desde que formara equipa com o seu comandante. Durante anos, antes do início da guerra, tinha feito contrabando de cocaína e haxixe para os Estados Unidos e o Canadá, voltando a vários portos sul-americanos carregado de produtos industriais e bebidas alcoólicas, sem pagar direitos.

 

Quando os combates no Atlântico aumentaram de intensidade, Ramirez descobriu rapidamente que as suas habilidades especiais valiam dinheiro e protecção, tanto da parte dos Aliados como dos Alemães. Arvorando a bandeira do Panamá, o Rosa T transportou armas da Alemanha para os guerrilheiros da América Central e do Sul, e em várias outras ocasiões, sob a bandeira alemã e contratado pelos Americanos, levou «homens
de negócios» até à costa norueguesa. Ao todo, entre os anos de

1941 e 1945, comandante e cargueiro haviam feito mais de trinta travessias do Atlântico, as últimas das quais transportando, por elevadas quantias, dirigentes militares e políticos alemães para portos no Brasil e na Argentina.

 

Ramirez adquirira justificadamente uma reputação internacional de homem que fazia o seu trabalho bem feito, sem perguntas sobre a carga desde que lhe pagassem o que exigia. Contudo, nos meses que se seguiram à guerra, os contratos foram poucos e os lucros inexistentes. Ramirez teve de despedir a maior parte da sua tripulação de nove homens e viu-se obrigado, por duas vezes, a efectuar transportes legais e mal pagos.

 

De repente, num dia de calor sufocante na Cidade do Panamá, tudo isso mudou. Ramirez tinha outra vez dinheiro, uma tripulação completa e cumpria um contrato tão lucrativo que não ia precisar doutro por muitos meses.

 

Três metros abaixo do comandante, numa estreita tarimba no maior dos três minúsculos camarotes do navio, dormía o motivo da sua inesperada sorte. O homem, conhecido pela tripulação apenas como Nick, passara quase toda a viagem de sete dias ali fechado, saindo só uma vez por dia para partilhar uma pequena refeição e vinho tinto, ao meio-dia, com Ramirez. Todos a bordo tinham concluído erroneamente que o passageiro sofria de enjoo, mas, na realidade, Nicholas Ferlazzo passara quase dezasseis horas, todos os dias, a estudar e a decorar os documentos e livros que lhe tinham sido entregues pelos homens que o esperavam quando chegara ao Panamá, aliás, os mesmos que haviam contratado Ramirez e organizado a viagem para norte.

 

O comandante olhava para a garrafa e encarava a hipótese duma quinta bebida, quando o seu imediato e único membro permanente da tripulação bateu à porta e enfiou a cara queimada no camarote.

 

- Acabámos de estabelecer contacto via rádio, meu comandante. Mesmo no horário. Não deve demorar mais do que uma hora...

 

- Qual é a nossa posição? - interrompeu Ramirez.

 

- Cerca de sessenta milhas a norte do farol de Eastport, seguindo a duzentos e oitenta.

 

- Vou para a ponte daqui a um minuto. O tempo aguenta-se?
- Há algum nevoeiro, mas devemos conseguir alcançá-los sem problema, se souberem o que estão a fazer.

 

- Até agora têm sabido - comentou Ramirez.

 

A notícia do iminente encontro despertou pouca reacção da parte de Ferlazzo, que pousou os mapas que estudava e voltou a deitar-se, olhando para o tabique cinzento diante de si. Tinha um pouco mais de um metro e oitenta, e a barba de três meses fazia-o parecer ligeiramente mais velho do que os seus dezanove anos. No conjunto, a sua aparência nada tinha de especial, ou seja, nada excepto os olhos, que, emoldurados por espessas sobrancelhas e ligeiramente lânguidas pálpebras, eram dum castanho-escuro quase metálico, com uma mirada tão aguda que poucos conseguiam sustentá-la durante muito tempo.

 

Com uma semana de vida, fora encontrado, embrulhado num pano cuidadosamente cosido, junto ao portão dum pequeno convento perto de Siracusa, a cerca de oitenta quilómetros a sul do monte Etría, na Sicília. Levado para o orfanato, junto ao convento, foi tratado como todas as outras trinta e cinco crianças, até que o descobriram, aos três anos, sentado, sozinho, a ler» um livro de histórias em voz alta. Para seu espanto, as freiras descobriram que o decorara todo, depois de as ter ouvido lê-lo uma única vez.

 

Aos cinco anos, falava fluentemente italiano e latim e começava a aprender francês. A sua capacidade de recordar factos que lhe eram expostos uma só vez ultrapassava a sua compreensão, mas mesmo esta era notavelmente avançada.

 

A fama da espantosa criança espalhou-se pelas aldeias vizinhas e, no fim de 193 1, Domenico Ferlazzo deu a volta às montanhas desde Ragusa para o ver. A sua imediata oferta de adoptar o garoto foi aceite, bem como um generoso donativo para o orfanato. O facto de o novo pai, o homem mais rico de Ragusa, ter regressado da América uns anos antes por entre rumores de problemas nesse país pouco peso teve para dissuadir as freiras, visto ser um homem religioso e muito caritativo para a Igreja.

 

Com professores especiais, Nicholas Ferlazzo aprendeu a falar oito línguas sem sotaque até aos dezasseis anos, e outros ajudaram-no a desenvolver as suas extraordinárias qualidades de atleta, a aprofundar a história da Itália e da América, a tornar-se um atirador de primeira e a especializar-se noutras dísciplinas, Ao mesmo tempo, Domenico Ferlazzo passava horas sem fim com o filho, que foi absorvendo e retribuindo a sua dedicação do mesmo modo que aproveitava os ensinamentos.
Nicholas tinha quase quinze anos quando possuiu a sua primeira mulher, uma criada da cozinha dos Ferlazzo, de vinte e nove anos e peito avantajado, e acabara de fazer dezasseis quando matou o seu primeiro homem, por ordem do pai, dada durante um dos seus frequentes passeios pelas pedregosas colinas em volta de Ragusa.

 

- Sabes que gosto muito de ti, Nicholas - disse Domenico - e que és mais importante para mim do que tudo neste mundo.

 

- E o pai também é o meu mundo! - respondeu o jovem. -Era isso que eu queria ouvir, filho... Nicholas, quando deixei a América, há anos, havia uns homens nesse país que queriam fazer-me muito mal. Agora não interessa o motivo de pretenderem acabar com a minha vida, mas esse sentimento não desapareceu com o tempo. Soube há pouco que um fulano chamado Amadeo Secchi chegou a Palermo e que tem planos para me matar. Estou a ficar velho e não me sinto capaz de me defender dele.

 

- Fale-me desse homem, pai, e eu vou à procura dele e mato-o!

 

- Assim será, porque tem de ser. Tenho informações sobre ele lá em casa, mas tu não podes ser visto nem relacionado de qualquer maneira com a sua morte.

 

- Eu percebo, pai - respondeu Nicholas.

 

Três dias depois, numa rua deserta de Palermo, Amadeo Secchi era morto por um assaltante desconhecido com um único tiro de espingarda na testa. Ao longo dos anos seguintes, houve mais três pedidos semelhantes de Domenico Ferlazzo, e três mortes de inimigos seus igualmente impossíveis de desvendar. O jovem Nicholas não sentiu culpa ou remorso pelos assassínios - o pai encarregara-se pessoalmente da educação moral do rapaz.

 

Durante esses anos, procurou-se ensinar a Nicholas todas as matérias relacionadas com a vida na

América, e ele depressa aprendeu tudo o que os seus professores sabiam acerca do governo, da história social e cultural e da economia dos Estados Unidos. A sua educação não foi interrompida pela guerra, que pouco efeito teve na sua família ou sequer na maioria dos habitantes de Ragusa.

 

Em Fevereiro de 1946, Nicholas soube pela primeira vez dos planos e disposições do pai a seu respeito. Mais uma vez,
passeavam juntos pelas poeirentas colinas cobertas de arbustos, quando Domenico Ferlazzo falou do assunto. Como sempre, ao lidar com o filho, dirigiu-se-lhe directa e honestamente:

 

- Nicholas - disse ele, colocando o braço sobre os ombros do rapaz -, os médicos em Palermo disseram-me que o tumor do estômago voltou. Podem operar-me outra vez, mas quase sem esperança de o tirar todo. Por isso, decidi não ser operado; eles dizem que agora é só uma questão de meses.

 

-Têm a certeza, pai? Deve haver outros médicos a que possa ir. Talvez em Roma...

 

- Não, filho - interrompeu Ferlazzo. - Não vale a pena. Já sei há várias semanas e comecei a tomar algumas providências quanto ao teu futuro. A tua mãe vai para o Norte, viver com a família dela, e a casa será vendida. Para mim, o que é importante agora é tu teres oportunidade de continuar os estudos.

 

Nicholas estava tão perto das lágrimas como nunca mais em toda a sua vida.

 

-Claro que vou continuar os estudos, pai. Mas a casa...

- Isto não é sítio para viveres, Nicholas. Há anos que decidi que o teu futuro estava noutro sítio e agora, com o fim da ,guerra, os Estados Unidos voltaram a ser um país de muitas oportunidades para aprenderes e cresceres. Entrei em contacto com o teu tio Peter, em Bóston, e ele concordou em arranjar um princípio de vida para ti. Acha que é possível entrares numa universidade americana e conhece um casal sem filhos que está ansioso por tratar-te como se fosses da família. Sei que é uma perspectiva assustadora, mas tens de me prometer que concordas com o meu plano.

 

- Eu faço tudo o que o pai me pedir - concordou o rapaz. - Sabe que sempre o fiz.

 

- Muito bem, partes este Verão. O Peter, em troca, quer um favor teu. Como aconteceu em relação a mim, quando me ajudaste a... bem... a lidar com pessoas que queriam fazer-me mal, o teu tio tem um inimigo desses e gostava que tu o eliminasses. Ele é o meu único irmão, Nicholas, e fomos sempre muito unidos enquanto vivi na América. Os inimigos dele têm de ser tratados como se fossem meus. Depois de fazeres isto por ele, ficas livre para continuar a tua educação e seguir a tua vida. Entretanto, precisas de acelerar os teus estudos e tens de me ajudar a fechar a casa.
Nos meses que se seguiram, Domenico Ferlazzo piorou rapidamente e no princípio de Abril, com o filho à cabeceira, morreu. Ojovem Nicholas não mostrou qualquer reacção emocional, a não ser passar muitas horas, depois do enterro, a percorrer as colinas por onde passeara com o pai. Em Junho, chegou um recado de Peter Ferlazzo, com instruções para fazer uma mala apenas com o necessário e apanhar, em Palermo, um cargueiro com destino ao Panamá, na América Central, onde estariam à sua espera amigos, que tratariam da sua viagem para os Estados Unidos.

 

Sem lágrimas e muito pouca apreensão, Nicholas Ferlazzo deixou a sua casa e viajou para Palermo.

 

Foi Ramirez quem primeiro avistou as luzes do barco que se aproximava. Com uma agilidade imprevisível numa pessoa da sua corpulência, correu para a proa do Rosa T e enviou o sinal de luz previamente combinado e, assim que obteve resposta, mandou o imediato prevenir Nick.

 

- Ouva isto - disse Ramirez, entregando-lhe um revólver de cano curto - e não o deixes sair do camarote até eu te fazer sinal de que nos pagaram. A seguir, rumamos a Bóston. Dizem que há lá muitas mulheres lindas, ansiosas por nos ajudarem a gastar o dinheiro.

 

Com o imediato de sentinela à porta do camarote, Ferlazzo guardou cuidadosamente todo o material que estudara, bem como as suas poucas roupas, num saco de marinheiro, tirando, primeiro, dele uma caixa de cartão com cerca de vinte centímetros quadrados por dez. Abriu-a, ligou dois fios, fechou-a e meteu-a debaixo da tarimba, empurrando-a bem para o fundo. A seguir, estendeu-se no fino colchão e ficou à espera.

 

O Atlântico norte manteve-se calmo enquanto Ferlazzo, com o seu saco de marinheiro, desceu a escada de corda até ao barco de recreio acostado ao cargueiro.

 

O comandante Ramirez, depois de contar e recontar os cinquenta mil dólares recebidos, encontrava-se na ponte quando o barco de recreio se afastou para nordeste.

 

A bordo deste, a quase uma milha do cargueiro, Ferlazzo encarou os seus novos associados.

 

- Pagaram mesmo cinquenta mil dólares para me trazerem até aqui? - perguntou, um tanto incrédulo.

 

Um dos seus anfitriões, um homem de aspecto distinto,
com um fato de fazenda e uma gravata larga, sorriu e respondeu:

 

- Não com notas que alguém possa querer gastar.

 

Nesse momento, o céu iluminou-se com um clarão a sudoeste e, três segundos depois, um estrondo abafado chegava ao convés do barco de recreio: o Rosa T incendiara-se, partira-se ao meio e, em cinco minutos, afundara-se.

 

Nicholas Ferlazzo dirigiu-se ao bar, onde se serviu de um pouco de chianti, e depois estendeu-se num fofo sofá de cabedal para continuar a estudar.


I PARTE

Abril de 1978

... Resumindo, esta portuguesa de cinquenta e seis anos apresentou-se no consultório queixando-se de dores no ombro direito, e apresentou sinais de bursite deltóide ao ser examinada. o procedimento inicial será imobilização e aspirina. Apressão arterial é de 210/115 e apresenta sintomas de prolongada hipertensão em ambas as retinas. No entanto, não consegui convencê-la da necessidade de novos exames e tratamento para este problema. O plano é contactar o filho, que fala inglês, para nos ajudar a organizar o acompanhamento da pressão arterial. Fim do ditado ... L. T. C. obrigado.

 

Luke Corey desligou o dictafóne e encostou-se na cadeira, de olhos fechados e a esfregar a cana do nariz. Um raio de sol do fim da tarde iluminou um canto da secretária e fez uma risca brilhante no desenho do papel da parede. O seu pensamento estava nas vinte e duas pessoas com cujos problemas lidara nesse dia. Durante dez minutos, apreciou o silêncio, prazer apenas ligeiramente diminuído pela dor no fundo das costas. Ultimamente, parecia-lhe que elas começavam a incomodá-lo todos os dias mais cedo.

 

- Acabado aos trinta e seis - disse em voz baixa para consigo.

 

Levantou-se, espreguiçou-se e observou o consultório onde trabalhava nos últimos quatro anos, satisfeito com a atmosfera um tanto atravancada mas agradável. Localizado numa esquina, numa casa ao estilo de Cape Cod, com sessenta anos, o consultório tinha uma grande secretária de carvalho antiga, um sofá de dois lugares estofado com um tecido azul, uma estante do chão ao tecto cheia de livros, sebentas e revistas por encadernar, e ainda uma cadeira baixa, creme, a um canto para ele poder evitar uma das coisas que mais detestava - falar com os doentes por cima da secretária. Na parede fronteira à única janela, estavam pendurados quatro diplomas com molduras pretas.

 

Pelos documentos cheios de desenhos ornamentais, era possível determinar que o ocupante do consultório era Lewis Tyier Corey e que se formara em Harvard, em 1963, e na Faculdade de Medicina do Mississípi, em 1967. Os outros dois quadros mostravam que o Dr. Corey tinha licença para praticar medicina no estado do Massachusetts e era membro da Ordem dos Médicos como clínico geral.

 

Na gaveta de baixo, do lado esquerdo da secretária, havia um quinto certificado, no seu sobrescrito original e por emoldurar - um louvor do presidente dos Estados Unidos, datado de Julho de 1970 - e, num elegante estojo preto, uma medalha da Estrela de Prata e uma Cruz de Guerra.

 

Os poucos minutos de sossego foram interrompidos por um estalido e um apito abafado do intercomunicador, a um canto da secretária. O som parou e foi seguido pela voz nasal e quase neutra da telefonista do hospital:

 

- Doutor Corey, é favor ligar para a Urgência. Doutor Corey, Urgência, por favor.

 

parado junto à janela, observou um passarinho a saltitar na relva. Depois, com um suspiro de resignação, dirigiu-se à secretária, carregou no botão que desligava o aparelho e pegou no auscultador do telefone.

 

-Pai, posso parar agora? Estou a estudar há quase uma hora e sinto-me cansado.

 

- Podes parar assim que souberes bem a peça, Luke. Trabalhas na mesma fuga há mais duma semana e continuas a cometer os mesmos erros. Como vamos ser a estrela do recital da senhora Hartman, se não conseguimos aprender uma simples fuga de Bach?

 

-Mas eu não consigo, pai!

 

- Luke, sabes que a tua mãe e eu não queremos ouvir-te dizer «não consigo». Descansa um minuto e tenta do princípio.

 

- Está bem.

 

Janet Dibbs era a enfermeira-chefe da Urgência do Hospital de Strathmore e sentia-se justificadamente orgulhosa do seu trabalho.

 

Como ficava em Cape Cod, Strathmore registava no Verão quase um aumento para o décuplo da sua população de dez mil habitantes do resto do ano. A Urgência sofria um aumento proporcional de admissões e surgiam todos os anos problemas de pessoal, que Janet Dibbs resolvia com eficiência. O seu único defeito, se o fosse, era a necessidade de fazer ver aos doentes a sua importância pessoal nos cuidados que recebiam.

 

Com trinta e um anos e solteira, Janet era completamente dedicada ao trabalho, ao hospital e aos doentes. Tinha um profundo respeito, quase amor, pelos bons médicos - os que eram competentes e carinhosos - e era impiedosa para com os «mercenários» que faziam as coisas sem se ralar ou que davam sonoras ordens de vida ou de morte, apoiados em fracos motivos clínicos por serem   demasiado inseguros para pedir ajuda.

 

Em várias ocasiões,  havia mesmo discutido abertamente ordens de médicos desse   tipo diante de outros membros do pessoal e, pelo menos uma vez, teve de responder perante os seus superiores por pedir a um clínico que observasse um doente particularmente grave sem obter o consentimento do médico desse doente.

 

Quase desde o dia da chegada a Strathmore, Luke era um dos favoritos de Janet Dibbs. Os sentimentos da enfermeira para com ele nasceram, e consolidaram-se depois, durante a primeira verdadeira emergência em que trabalharam juntos: uma paragem cardíaca.

 

Foram aplicados os choques eléctricos e restabelecido um ritmo cardíaco aparentemente normal. Luke foi dando as ordens apropriadas, com uma voz forte mas calma, pontuadas com «por favor», e comentando abertamente manobras de enfermagem bem feitas. Desenvolvera-se um ritmo de boa cooperação entre a equipa de três enfermeiras e dois médicos, quando Susan Carmichael exclamou:

 

--Não consigo ouvir a pressão, doutor Corey. Há um minuto atrás era noventa/sessenta.

 

-Abra mais a IV, por favor.

 

- Já abri.

 

- Começa outra vez a compressão, Walt. Enfermeira Díbbs, preciso de dopamina, se faz favor.

 

-  Sim, doutor. Que concentração?

- Como?

 

- A dopamina, doutor. Que concentração quer?

 

Durante alguns segundos, fez-se silêncio completo na sala, excepto quanto ao constante bater do compressor cardíaco e o ruído periódico do respirador portátil. Luke, de olhos fixos no chão, ergueu a cabeça, ligeiramente inclinada para um lado, e disse:

 

- Raios me partam. Não consigo pensar. É capaz de me ajudar, enfermeira Dibbs?

 

- Acho que oitocentos miligramas em quinhentos centímetros cúbicos de água com sal devem resultar.

 

- óptimo, misture e aplique, por favor. Aguentem-se todos, que ele safa-se.

 

Dez minutos depois, estava restabelecida uma pressão sanguínea estável.

 

Luke não tentou desculpar-se do lapso. Em vez disso, sorriu abertamente e dirigiu-se a Janet diante do pessoal. -Obrigado por me safar, enfermeira Dibbs. Pode ajudar-me sempre que haja uma paragem cardíaca.

 

urgência, enfermeira Dibbs.

 

- É o Luke, Janet. Que é que tem aí?

 

-Uma mulher de cinquenta e cinco anos que sofreu um colapso durante o jantar com amigos. Não tem médico particular, e como o nome do doutor vem na lista desta noite... Que tal está ela?

 

Não reage, a pressão é duzentos e trinta/cento e trinta, a respiração trinta e o pulso cento e vinte, regular. Provavelmente, trata-se de um derrame cerebral.

 

- Pupilas?

 

- Posição média, iguais e reactivas.

- Faça-lhe um cardiograma e ponha-a a dextrose e água, se faz favor. Estou aí em dois minutos.

 

Luke desligou o telefone, massajou as costas durante um momento, enfiou um casaco leve e saiu pela porta das traseiras. Habitualmente, fazia a pé os quatrocentos metros que separavam os consultórios de T. Kenner Putriam, médico, e Lewis T. Corey, médico, até ao hospital. Nessa noite, contudo, com um doente na Urgência, decidiu levar o seu Oldsmobile verde de 1966, alcunhado «Kong» por um amigo depois de ter saído incólume duma colisão que desfizera um Ford novo de bom tamanho.

 

Luke gostava do Olds pela sua estrutura sólida e pelo facto de acomodar confortavelmente os seus metro e noventa e oitenta e sete quilos. Atraente duma maneira rude, o seu aspecto tinha sido descrito por uma ex-namorada como «rufião antigo», e o único pente que usava no cabelo liso castanho-claro eram os dedos, o que lhe dava um ar quase descuidado. Esse ar, aliado aos olhos azul-esverdeados encovados, parecia despertar o instinto maternal das mulheres, independentemente da idade.

 

Luke tinha consciência do sentimento que nelas despertava, mas não conseguia aceitar o facto de muitas o acharem também sexualmente atraente. Hábil e seguro na medicina que praticava, não tinha confiança em si próprio nem muita experiência com o sexo oposto fora do ambiente hospitalar.

 

Como sempre, a porta do Olds não abriu quando ele carregou no botão do puxador. Luke ia a meter a mão no bolso à procura da chave, mas lembrou-se de que nunca trancava o carro. Sorriu e levantou ligeiramente o puxador, abrindo então a porta.

 

-  Que é este medíocre em francês?

 

-A Madame Smeeth não gosta de mim. Parece que não consigo ter a pronúncia que ela quer

 

- Ora, Luke, a doutora Smith ensina francês há muito tempo e, se ela diz que a tua pronúncia não está correcta, provavelmente é verdade. Tens ido ao estudo depois das aulas?

 

- Não, pai. Tem havido treinos de basquetebol e...

- Deixa lá os treinos de basquetebol. Sabes perfeitamente que as notas deste ano ficam no teu currículo. Queres que te arranje um explicador de francês?

 

-Não, pai, não é preciso...

 

- Não achas que estás a ser um bocadinho severo com ele, Lew?

 

- Margaret, eu sei o que é preciso para entrar na faculdade e não são notas destas,

 

-Eu vou tentar melhorar no período que vem. -óptimo, Luke. E olha...

 

- Sim?

 

- Estou satisfeito com os «muito bons» de todas as outras disciplinas.

 

A Urgência dos hospitais, com a sua actividade contínua e fluorescência artificial, tem um aspecto intemporal. Só os muitos relógios de parede, espalhados por todo o lado, orientam uma equipa quanto ao que pode estar a passar-se no mundo exterior, mas, desde os primeiros dias de estágio, Luke sentira-se bem nesse ambiente.

 

Às seis e um quarto da tarde do dia vinte e um de Abril, a Urgência do Hospital de Strathmore estava particularmente activa. Os gritos desamparados duma criança a ser cosida na sala dois misturavam-se com o incessante toque dos telefones e as frases habituais: «Chama outra vez o especialista o mais depressa possível!» « ... então mude alguém, porque este homem tem de ficar nos C.I ... » « ... Doutor Clarke, a sua doente está pronta na sala cinco. Parece muito aborrecida por ter esperado tanto ... » «Olhe, diga-lhe que vá... deixe lá, digo-lhe eu mesMo.»

 

Luke passou as portas giratórias, olhou em volta e dirigiu-se à sala seis, sempre reservada para os casos críticos. Janet Dibbs estava a colocar o soro, e outra enfermeira verificava a pressão arterial duma mulher um tanto obesa, de cabelo preto, imóvel na estreita marquesa.

 

Com um breve olhar na direcção da paciente, Luke fez uma ligeira careta e perguntou à enfermeira-chefe:

 

- Então?

 

- Pouca alteração desde que falei consigo ao telefone. Veio de ambulância, mas acho que acabam de chegar uns amigos ou pessoas de família. Estão na sala de espera. Chama-se Evelyn Samuels, tem cinquenta e sete anos, sem historial clínico, mas a Hazel da recepção julga lembrar-se dela e diz que vive sozinha.

 

Lukc fez um rápido exame a Evelyn Samuels, observando diversas coisas em segundos e registando-as na mente, enquanto continuava a falar com Janet Dibbs.

 

«Pupilas quatro milímetros, ligeiramente reactivas, sem movimentos espontâneos nos olhos ou membros. Pescoço um tanto rígido.»

 

- Como está a pressão?

 

- Subiu um bocadinho para duzentos e cinquenta/cento e quarenta, mas o pulso baixou para oitenta e a respiração para quinze.

 

- Parece ser uma hemorragia ou uma crise hipertensiva. Dê-lhe imediatamente trezentos centímetros cúbicos de diazóxido.

 

«0 coração apresenta um ritmo regular. Sem murmúrios. Os pulmões estão limpos.»

 

- Enfermeira Olsen, dá-me um oftalmoscópio, se faz favor?

 

- Claro, doutor.

 

«Pulsação, femoral normal, ausência de espasmos nas pernas, reflexo de Babinski bilateral.»

 

-O oftalmoscópio, doutor.

 

- Obrigado. Arranje-me um martelo de reflexos, se faz favor, e veja lá por que razão a enfermeira Dibbs se demora com o diazóxido.

 

«Ausência de reflexos. O pescoço parece um pouco mais hirto agora. As carótidas estão normais e iguais. Os olhos não apresentam hemorragias, mas talvez um ligeiro enevoamento das margens do disco óptico. Os vasos retínicos estão estreitados, mas não muito.»

 

- Já apliquei o diazóxido, doutor.

 

- Bom, acho que é uma hemorragia. Dê-me quinhentos centímetros cúbicos de manitol e veja se o Lowenstein está de serviço na Neurologia. Ela já apresenta aumento da pressão intercraniana.

 

-Quer que chame o neurologista?

 

- Só se for o Lowenstein, os outros dois não têm sido grande ajuda até aqui. Olhe, e diga à família que as coisas estão complicadas. Eles que esperem, irei lá assim que puder.

 

Luke endireitou-se e fez uma careta, porque, pela primeira vez desde que chegara à Urgência, teve consciência do aumento da dor nas costas. Eram já seis e quarenta e cinco, o começo do que parecia vir a ser uma longa noite, e ainda tinha de fazer a visita nocturna.

 

- Aqui tem o manitol. O doutor Lowenstein está numa reunião fora - informou Janet Dibbs, despertando Luke duma breve distracção.

 

-Não lho ponha até vermos o que acontece com a pressão. Verifique-a de um em um ou dois em dois minutos, se puder. Quero falar com a família dela. E, por favor, prepare o material para lhe tirarmos um pouco de fluido espinal, com uma agulha bem fina, para termos a certeza da hemorragia.

 

Três pessoas, dois homens e uma mulher, levantaram-se ao fundo da sala de espera cheia e seguiram Lukc até à «sala tranquila» numa extremidade da Urgência. Os homens estavam com ar grave e preocupado. A mulher chorava.

 

- Sou o doutor Corey. Algum dos senhores é da família da senhora Samuels? - perguntou Luke, lembrando-se de repente que não reparara se a doente usava aliança.

 

- Não, somos amigos. Estávamos a jantar em casa dela, quando isto aconteceu - respondeu um dos homens, entre cinquenta e cinco e sessenta anos, calculou Luke, cabelo grisalho, casaco de desporto azul, sem gravata.

 

- Pode dizer-me exactamente o que aconteceu, por favor?

- Foi incrivelmente rápido - respondeu o homem. - Ela estava com óptimo aspecto e parecia sentir-se perfeitamente quando, de repente, se agarrou à cabeça, depois inclinou-se para a frente e caiu. Nunca deixou de respirar e o pulso parecia bem, de maneira que chamei o cento e doze,

 

- Teve alguma coisa parecida com uma convulsão? Sabe se toma medicamentos?

 

- Que eu desse por isso não, e somos amigos há uns anos

- disse o outro homem, que aparentava cerca de quarenta e cinco anos, estava bem vestido, tinha as unhas arranjadas e trazia uma camisola amarelo-clara e um laço. - A filha talvez saiba. Ela tem uma filha. Sabes onde ela vive, Lil?

 

- Como está a Evelyn, doutor?

 

A mulher chamada Lil tinha provavelmente quarenta anos, mas aparentava cinquenta, apesar de muito pintada.

 

- Achamos que sofreu um acidente vascular cerebral, provavelmente uma hemorragia. Estamos a fazer tudo o que é possível, mas de momento o caso é complicado.

 

- A filha chama-se Karen e é assistente social ou coisa parecida, em Nova Iorque. Não sei a morada, mas a Evelyn fala dela a toda a hora. Eu trouxe a bolsa da minha amiga. Talvez haja alguma coisa sobre a Karen.

 

Luke acabava de pegar na carteira onde estavam os documentos quando Janet Dibbs enfiou a cabeça na sala.

 

- Pode chegar aqui imediatamente, doutor Corey? O médico devolveu a bolsa à mulher.

 

- Olhe, veja se consegue descobrir alguma coisa sobre a filha. Eu volto assim que puder.

 

Janet foi falando enquanto se dirigiam rapidamente à sala seis.

 

-A pupila esquerda está muito maior do que a direita, a pressão baixou para cento e vinte, mas o pulso é só cinquenta e a respiração também está mais lenta.

 

- Aplique o inanitol o mais depressa possível. Temos de tentar reduzir o hematoma cerebral. Assim que estiver a correr, dê-lhe doze miligramas de dexametasona e ponha-lhe uma algália, por favor. E, se ela é católica, chame o capelão.

 

Luke reviu rapidamente o exame físico de Evelyn Samuels, confirmando a sua impressão de aumento da pressão intercraniana. Pouco mais podia fazer do que os tratamentos que já decidira, excepto esperar que resultassem e invertessem o processo. Ficou uns minutos a olhar para a mulher que lhe absorvia completamente o pensamento e as energias, alguém que, uma curta hora antes, nem sequer conhecia.

 

A sua primeira impressão era de que devia ter sido encantadora quando era mais nova. O peso a mais não lhe atingira a cara, que era estreita, de boa estrutura óssea, emoldurada pelos cabelos pretos até aos ombros. Uma fina linha rosada aparecia sob a máscara plástica de oxigénio, e as únicas jóias que usava eram umas simples pérolas nas orelhas.

 

Nesse momento, Luke reparou no pulso esquerdo e pensou por um instante em quantas vezes, na sua carreira de médico, não via inicialmente uma característica física importante, como um membro deformado, enquanto se concentrava no que se relacionava com a doença imediata dum paciente. O pulso tinha adesivo a toda a volta, com cerca de dois centímetros de largura. Ia tirar-lho quando Janet entrou com o tabuleiro com a algália e começou a falar enquanto trabalhava.

 

- Acho que a mulher que está na «sala tranquila» descobriu qualquer coisa sobre a filha desta doente. Pode ir lá, se quiser, que eu tomo conta dela.

 

Quando Luke entrou na sala, a mulher chamada Lil, já sem lágrimas e com a pintura retocada, tinha na mão um cartão gasto. -Cá está! - exclamou. - Em caso de acidente, avisar

 

Karen Samuels, oitocentos e oitenta, Rua Cinquenta e Sete, Oeste, Nova Iorque.

 

Luke pegou no cartão, e um dos homens perguntou: -Como está ela?

 

-Não muito bem. Permanece em coma, mas continuamos a fazer tudo o que é possível.

 

- Acha melhor esperarmos?

 

- Se quiserem, tudo bem, mas as coisas deste género costumam ser imprevisíveis. Se deixarem um número de telefone onde possam ser contactados, eu dir-lhes-ei qualquer coisa assim que surgir uma alteração.

 

- Obrigado, doutor, é isso que vamos fazer.

 

-Luke, estás ocupado? Posso entrar e falar contigo um minuto?

 

- Claro, mãe, estou só a acabar o raio da química. Mais quatro meses e pronto! Pelo menos o liceu.

 

- Luke, sabes que eu gosto de ti e da Elisabeth mais do que tudo neste mundo...

 

- Claro que sei, mãe, e nós também a adoramos. Aos dois.

 

- O pai e tu não têm falado muito, ultimamente. - É por causa daquela chatice com a faculdade. Opai parece que não compreende...

 

- Eu sei o que se passa. O teu pai e eu estamos casados há mais de vinte anos. Se alguém sabe como ele é obstinado e casmurro, sou eu. Desde o dia em que nasceste que ele só quer o que lhe parece melhor para ti...

 

-Pois sim, mãe, mas, o que ele acha que é melhor não o é necessariamente...

 

- Espera, Luke! deixa-me acabar Eu só quero que percebas que ele te ama tanto como eu. É claro que ficou magoado quando recusaste a entrada em Harvard. É a universidade dele, e supÔs automaticamente que...

 

- O problema é esse! Está sempre a supor automaticamente sem me consultar. Às vezes, chego a não fazer uma coisa que me interessa só porque o pai insiste em que eu  a faça!

 

E o caso da universidade também? Eu... acho que sim.

 

E que pensas fazer?

 

-Acho que sempre planeei ir para Harvard, mais tarde ou mais cedo,

 

-E disse eu que o teu pai é obstinado! Boa noite, Luke.

 

-É só porque eu quero ir para lá. Boa noite, mãe.

 

Entrando na sala seis, Luke olhou primeiro para Evelyn Samuels, que, muito ligeiramente, movia o braço direito e as duas pernas, e depois para Janet, que sorriu e o observou com ar embevecido, dizendo:

 

-As pupilas estão bem e reagem ligeiramente à luz. Os movimentos começaram há cerca de dois minutos. Mais uma cura milagrosa?

 

- Duvido - respondeu luke, espreitando novamente pelo oftalmoscópio para a rede de artérias e veias no fundo dos ’olhos de Evelyn Samuels. - Acho que podemos experimentar o fluido espinal agora, mas depois quero tentar encontrar a filha, em Nova Iorque. Ajude-me aqui.

 

Com todo o cuidado, rolaram a doente para o lado esquerdo. A enfermeira colocou um braço atrás dos joelhos de Evelyn e o outro em volta do pescoço, para lhe curvar as costas e tornar mais acessível o espaço entre as vértebras. luke desinfectou uma área na parte inferior central e injectou uma pequena quantidade de novocaína, para o caso de a doente sentir alguma dor, Depois, localizando duas vértebras adjacentes, inseriu facilmente a fina agulha espinal, sorrindo levemente ao sentir primeiro um leve estalido e depois outro. O fluido saiu em gotas mais rápidas do que habitualmente; era dum vermelho-claro em vez de translúcido como normalmente. luke deixou cair dez gotas num pequeno tubo de ensaio e retirou a agulha.

 

- Vou levar isto ao laboratório. Parece mau - comentou.

- Não há camas nos C.I. Podemos mantê-la aqui algum tempo?

 

- Claro, continue o manitol a duzentos centímetros cúbicos por hora. Vou tentar ligar para a filha, e depois fazer a visita da noite, se puder.

 

-Quer que mande vir alguma coisa para o seu jantar?

 

- Obrigado, mas eu como qualquer coisa num dos andares.

 

Além disso, não quero jantar enquanto não almoçar - gracejou o médico, sorrindo.

 

Só quando estava sentado na sala do terceiro andar, à espera da chamada para Nova Iorque, é que Luke se lembrou do adesivo no pulso.

 

- Lamento, mas a Karen foi passar o fim-de-semana fora. Eu sou Jackie, a companheira de quarto dela. Quer deixar recado?

- Jackie, daqui fala Lewis Corey, médico do hospital de

 

Cape Cod. A mãe da Karen chegou aqui aparentemente com um grave acidente vascular cerebral.

 

--Ai, meu Deus! Ela está, quer dizer, ela vai ficar.. -Não sei. Faz alguma ideia de como posso entrar em contacto com a Karen?

 

-Não. Ela saiu com uns amigos, foram para uma quinta num sítio qualquer do Connecticut, mas nem sequer sei o nome de nenhuma das pessoas que foram com ela.

 

- Bom, então, oiça. Talvez amanhã possa tentar ligar para o emprego dela e perguntar se alguma colega sabe para onde ela foi. Diga-lhe que venha para cá ou que ligue para Lewis Corey, no Hospital de Strathmore.

 

- Doutor Corey, eu só vi a senhora SarmicIs uma vez, mas foi muito simpática para mim. Acha que pode ligar-me logo à noite para dizer-me como ela está?

 

- Com certeza, Jackie. E você veja se consegue localizar a Karen, está bem?

 

- Com certeza! Adeus, doutor.

- Adeus.

 

Nem todos os médicos fazem visitas hospitalares à noite, bem como de manhã, e muitas vezes, na realidade, isso não é necessário ou possível. Luke criara esse hábito durante a sua permanência no Hospital Civil de Bóston, pois considerava a visita matinal como de trabalho e a da noite um acto social, durante o qual se assegurava de que os doentes estavam confortáveis para a noite, respondendo a alguma pergunta que eles ou as famílias lhe fizessem.

 

Quando começou a sua carreira de clínico geral e associado do venerável Ken Putriam, Luke fazia visitas à noite. No entanto, com o decorrer dos anos, o aumento do número de doentes obrigara-o a limitar essas visitas hospitalares ao terceiro ou quarto fim-de-semana em que estava «de serviço» por si próprio, pelo sócio e por outro clínico geral.

às nove horas, tinha observado dez doentes e preparava-se para ver os últimos quatro quando o chamaram para entrar em contacto com a Urgência. Janet atendeu e nem se esforçou por disfarçar o entusiasmo:

 

- Ela acordou! A nossa doente acordou! Primeiro, chamou Karen e depois doutor! Está sempre a dizer qualquer coisa sobre uma chave.

 

-Vou já para aí!

 

- Ah, e para que é o adesivo no pulso dela? -Não sei. Espere aí, que talvez possamos descobrir. Luke ficou admirado com a súbita energia que lhe permitiu

 

descer a correr três lanços de escadas até à Urgência, dois degraus de cada vez. A dor nas costas parecia ter diminuído e o ligeiro coxear, sempre presente em superficies planas, desapareceu quando se apoiou ao corrimão.

 

A Urgência estava consideravelmente mais calma. Ao passar pela sala de engessar, Luke parou e riu-se ao ver o ortopedista John Nowak, com a cara e os braços salpicados de gesso seco, a cantarolar enquanto dava os toques finais no aparelho do^ braço dum garoto ainda com o equipamento de basebol. Nowak olhou para a porta e acenou com a cabeça na direcção do seu paciente de nove anos.

 

- Antes que este «craque» chegue aos seniores, temos de lhe ensinar a evitar algumas bolas, não achas, Luke? - perguntou.

 

Luke riu-se e piscou o olho ao garoto, dirigindo-se depois para a sala seis.

 

Janet esperava-o à porta.

 

-Está ainda mais acordada, agora, mas continua a não mexer o braço esquerdo. Perguntei-lhe porque tinha o adesivo no pulso, mas não responde e não me deixa tocar nele.

 

-Já chegou a análise do fluido espinal?

 

- Já, sim. Espere um segundo, tenho aqui o papel em qualquer sítio. Cá está! - exclamou Janet, com um molho de papéis na mão, depois de procurar nos bolsos da farda. - Juntamente com os turnos da semana que vem e a minha lista da mercearia. Açúcar cinquenta, proteínas cento e quarenta, células brancas trinta e vermelhas demasiado numerosas para serem contadas.

 

Luke contraiu-se ligeiramente ao ouvir aquilo, não abriu a boca e aproximou-se de Evelyn Samuels, visivelmente consciente, mas não ficou muito contente com o seu aspecto. Para além do braço esquerdo flácido, notou uma marcada inclinação do lado esquerdo da cara e uma acentuada assimetria das pupilas, com a direita muito maior do que a esquerda. A respiração era forçada, pouco profunda e rápida. A pele apresentava uma cor pálida. Luke teve poucas dúvidas de que aquela doente não ia sobreviver à hemorragia cerebral.

 

Fez um ligeiro aceno de cabeça a Janet, que, por trabalhar com ele durante quatro anos, percebeu e saiu silenciosamente, fechando a porta atrás de si. Luke puxou um banco para junto da cabeceira e sentou-se, de modo a Evelyn Samuels ter mais facilidade em ver-lhe a cara. Ficou propositadamente do lado direito dela, consciente de que todo o seu campo visual esquerdo fora provavelmente suprimido pela hemorragia.

 

Falou devagar, num tom um tanto mais alto do que uma conversa normal. As respostas dela eram roucas e entrecortadas, cada palavra um esforço.

 

- Sou o doutor Corey, senhora Samuels. Estamos na Urgência do Hospital de Strathrnore.

 

- Doutor... Corey. Que... aconteceu?

 

- A senhora desmaiou em casa, sofreu uma hemorragia cerebral. Por favor, tente não se assustar. Compreendeu o que eu disse?

 

-  Doutor Corey... Hemorragia? Estou... a morrer?

 

Nos seus anos de estudo e de exercício de medicina, Luke tinha ouvido muitas vezes tal pergunta, mas nunca numa situação como aquela. Houvera sempre tempo para equívocos, pelo menos tempo para se ter mais a certeza do que o doente queria realmente saber, para explicar, para apresentar todos os «talvez» e «possivelmente» que acarretam um elemento de esperança. Não que ele a fabricasse quando nenhuma existia; em situações de cancro terminal dissera muitas vezes aos doentes que nada mais podia fazer, a não ser atenuar-lhes as dores. Era uma área da medicina, da vida, em que nunca se sentira confortável. Depois de mais de dez anos como médico, ainda não resolvera a questão de ter ou não o direito de mentir a um doente. Em certos casos fizera-o, mas aquela noite não podia ser uma dessas ocasiões.

 

- A sua hemorragia foi grave - disse ele. - Estamos a fazer tudo o que é possível, contudo, neste momento, as coisas não parecem promissoras. Tentei falar com a sua filha em Nova Iorque, mas não se encontra em casa. Espero saber dela ainda esta noite ou amanhã de manhã. Compreende?

 

- Compreendo      ... por favor... a chave... tudo ... está tudo... por favor  ... a Karen ... tem de dar a chave à Karen  ... tudo... mais ninguém    ... por favor, dê-a à Karen...

 

- Que chave, senhora samuels? Onde está a chave?

 

As palavras surgiam ainda mais estranguladas e pastosas, e luke teve de se aproximar da boca dela para as ouvir.

 

- Adesivo... adesivo no meu pulso.

 

Retirando rapidamente o adesivo, Luke encontrou uma chave de bronze encostada ao pulso, meteu-a no bolso e deitou o adesivo para o lixo. Quando olhou de novo para a doente, viu que tinha os olhos fechados e respirava lenta e superficialmente.

 

- Evelyn... Evelyn, consegue ouvir-me? - falou mesmo junto ao ouvido dela e pegou-lhe na mão direita. - Por favor, aperte-me a mão, se consegue ouvir-me!

 

A respiração mantinha-se, mas não sentiu qualquer reacção. Olhou para o relógio por cima da porta: eram dez e um quarto.

 

Janet estava na sala das enfermeiras, a tomar café. Diante do lugar vago junto dela, uma chávena de café simples com um pacote de açúcar esperava por Luke. Este sentou-se e ficou a olhar para o café agora morno, como se procurasse nele alguma resposta.

 

Queridos pais,

 

Depois de ter conseguido telefonar ou ir até aí vê-los durante os últimos dois anos, parece esquisito telefonar de Matyland, tão longe. Ontem, o professor de Filosofia perguntou-me, depois da aula, se o Dr. Lewis Corey, que tinha sido nomeado director do Instituto Nacional de Saúde, era meu pai. Durante um instante, estive quase a dizer que não, que o meu pai era reitor duma Faculdade de Medicina! Meu Deus, o pai já fez tanta coisa!

 

As coisas têm-me corrido bastante bem aqui. Os exames são daqui a uma semana, mas o único que me faz realmente suar é o de física. É pior do que o francês costumava ser!

 

Tenho boas e más notícias. Primeiro, as más: não vou aí este Verão. O projecto em que me envolvi no centro juvenil daqui está mesmo a avançar e prometeram pagar-me ordenado se eu continuar a trabalhar com os garotos durante o Verão. Sei como gostavam que a Elisabeth e eu fôssemos a casa, mas ela pelo menos vai.

 

E agora as boas notícias: estou a pensar cada vez mais a sério na Faculdade de Medicina, e decidi fazer a admissão. Desde que consiga passar em física, claro! Ver a pobreza e as doenças entre as crianças duma cidade despertou-me o interesse em fazer alguma coisa quanto a isso. Uma das principais coisas que me causam ainda hesitações na minha decisão.final é o ser avaliado em comparação com os incríveis feitos do meu pai. Um Dr Lewis T Corey é quase de mais para este mundo... Que diabo fariam com dois? Bom, tenho de estudar.

 

A propósito, tenho saído com uma rapariga muito especial, Sarah Rosen. Espero que a conheçam um dia. Saudades aos dois e à Elisabeth.

 

Luke

 

Janet voltou à sala das enfermeiras, para junto de Luke, depois de verificar o estado de Evelyn samuels.

 

- Está mais ou menos na mesma - informou. - A pressão continua cem/sessenta, a pupila direita está igual, mas a esquerda parece mais dilatada. Que acha?

 

- Não sei. Se ela tivesse continuado como estava de manhã, tinha pensado mandá-la para a equipa de neurocirurgia de Bóston, mas não me parece que tenhamos de nos preocupar com essa decisão.

 

- Conseguiu descobrir a que chave é que ela se referia? -Descobri. Já a tenho.

 

-O quê?

 

- Estava debaixo do adesivo, em volta do pulso.

- É a chave de quê?

 

-Não faço ideia.

 

- Que estranho! Quer dizer que ela trazia sempre a chave presa ao pulso?

 

- Se calhar.

 

- Que mistério! Que vai fazer com ela?

- Entregá-la à filha, acho eu.

 

Janet desviou o olhar dele durante um momento e viu as horas no relógio da parede. Alisou inconscientemente uma madeixa de cabelo que lhe caíra para a testa e pousou o cotovelo na mesa, descansando a cara na mão.

 

- Saio daqui a um quarto de hora. Venha até lá a casa e eu arranjo-lhe qualquer coisa de comer..

 

- Já falámos desse assunto, Janet - interrompeu Luke com alguma irritação na voz. - Não posso meter-me nisso.

- Não é preciso que aconteça alguma coisa. Só um agradável jantar a dois.

 

- Bolas, Janet, não me fale nesse tom condescendente, por favor!

 

O seu tom de voz subira o suficiente para uma das enfermeiras, no outro extremo da sala, levantar os olhos do que estava a fazer.

 

- Por favor, Luke - pediu Janet num murmúrio. - Não quis aborrecê-lo, mas toda a gente precisa de alguém de quem possa sentir-se próximo; não queria que pensasse que esperava outra coisa. Tenho a certeza de que, na altura certa, tudo vai correr como deve ser para si.

 

- Olhe, agradeço o seu convite - replicou Luke, levantando-se, e num tom mais cansado do que irritado. - Agradeço realmente, talvez para a próxima. Seja como for, vou ficar por aqui um bocado a ver se posso fazer alguma coisa pela Evelyn Samuels.

 

Dizendo isso, voltou-se e entrou na sala seis. Janet ficou a olhar até o ver desaparecer, depois dirigiu-se para o átrio, nas traseiras da Urgência, para trocar com a enfermeira do turno seguinte.

 

«Quem será ela, Luke Corey?», pensou para consigo. «Não tu, minha querida, de certeza, não tu!»

 

O fim da vida de Evelyn Samuels chegou calmamente. Luke foi acordado dum sono leve, no estreito sofá da sala, pela enfermeira Joan Porter, do turno da noite, à uma e meia.

 

- Não consigo encontrar a pressão da senhora Samuels há vinte minutos, doutor Corey - disse ela.

 

Ao levantar-se, sentiu uma forte guinada, provocada pelo estilhaço de metal enterrado nas costas. Joan Porter, uma competente, embora não brilhante, enfermeira, mais velha que Janet Dibbs, reagiu protectoramente:

 

- Sente-se bem? Precisa dalguma coisa?

 

- Não, não, estou bem - respondeu ele. - Este sofá não é o mais indicado para a minha coluna. Pensando melhor, talvez pudesse arranjar-me duas aspirinas. Tomo-as depois de ver o que se passa na sala seis.

 

Parou à porta e olhou para Evelyn Samuels. Mantinha-se deitada, de olhos fechados, imóvel, respirando levemente de quinze em quinze segundos. Luke sentou-se junto dela, pegou-lhe na mão e encostou-a à sua testa. Em dois minutos, a respiração da doente parou. O médico permaneceu na sala durante mais uns minutos, depois foi lentamente ao encontro de Joan Porter e tomou os dois comprimidos que esta lhe estendeu.

 

- Que idade têm os seus filhos, enfermeira Porter? - perguntou de repente.

 

- Um está na faculdade, a June tem dezasseis e o mais pequeno quase dez - respondeu ela.

 

-Algum quer ser médico?

 

- O Steven, o que está na faculdade. Fala sempre nisso. Porque pergunta?

 

-Já pensei no assunto - observou Luke. - Olhe, diga-lhe que tenho muito prazer em recebê-lo quando tiver tempo para vir até cá.

 

- Que simpático, doutor Corey! Obrigada. Aposto que o Steven vai adorar. Ah, tenho muita pena da senhora Samuels.

- Pois é, também eu - disse Luke, acenando com a cabeça.

 

Depois, encaminhou-se para um telefone, ligou para Nova iorque e disse à companheira de quarto de Karen Samuels que o corpo da mãe desta ficava no hospital até a rapariga poder organizar as coisas. Pensou em mencionar a chave, mas no último momento decidiu não o fazer.

 

A seguir, telefonou para o delegado de saúde, que concordou em observar o corpo de manhã e passar a certidão de óbito. Então, após agradecer ao turno da noite e de se despedir,

 

abandonou a Urgência, a fim de ir para casa deitar-se. Tinha de voltar para a visita da manhã e para um dia completo de trabalho daí a cinco horas e meia.

 

O ecoar de fortes trovões acordou Luke um quarto de hora antes do toque do radiodespertador. Virou-se e olhou pela janela para os lençóis de chuva que caíam no lago Verde e sobre a casa onde morava há três anos. O quarto era o maior dos dois situados no sótão por cima duma sala e casa de jantar em L. Ajanela do outro lado da cama era voltada a leste e permitia-lhe admirar belas nascentes do outro lado do lago, mas não nessa manhã de sexta-feira.

 

O ruído ritinado da pesada chuva punha-o inevitavelmente numa agradável disposição. Encontrou um posto de rádio a transmitir música de câmara, Haydn, pareceu-lhe, fez a barba e deu início à difícil tarefa de escolher o que havia de vestir. Sarah sempre fizera troça dele por causa de riscas com quadrados e cores que não ficavam bem umas com as outras. Assim, depois de muitas tentativas e erros, desenvolvera o infalível sistema de pendurar uma roupa em tons de castanho dum lado do armário e uma em tons de azul do outro. A ocasional camisa vermelha ou camisola verde era relegada para o roupeiro da entrada, no andar de baixo, e raras vezes tornava a ser vista. Olhando novamente para a chuva lá fora, sorriu e escolheu azul.

 

Depois de se vestir, apanhou as calças amarrotadas que usara na véspera e esvaziou os bolsos em cima da cama: duas canetas do hospital, a carteira, umas moedas, três folhinhas cor-de-rosa com recados telefónicos ainda por responder e uma velha chave escura.

 

Precisou de meio minuto para recordar totalmente os acontecimentos da noite anterior e pegar na chave. -Provavelmente é do cofre das jóias de família dos Samuels -, disse em voz alta, reparando ao mesmo tempo que era mais provável ser duma porta.

 

Atirou-a ao ar, tentando, e falhando, apanhá-la atrás das costas e procurou em seguida um sítio onde deixar aquilo a que a sua infeliz doente chamara «tudo». Ia guardá-la na pequena caixa de teca, em cima da cómoda, mas avistou a ponta do seu tabuleiro dobrável de xadrez, guardado, debaixo doutros jogos, numa das prateleiras do roupeiro. Com um olhar por cima do ombro, num gesto de segredo, abriu o tabuleiro, colocou a chave no meio das peças e voltou a colocá-lo na prateleira.

 

Então, vestiu um impermeável com capuz e saiu em direcção ao hospital.

 

Janet Dibbs chegou ao trabalho com meia hora de atraso nessa tarde. Encontrara um troço de estrada inundado e o seu Camaro tinha-se ido abaixo.

 

Susan Carmichael dirigiu-se-lhe a toda a pressa, na enfermaria.

 

- Estás bem? Nenhuma de nós se lembra de teres chegado tão tarde ao trabalho. Liguei para a tua casa e...

 

-Estou bem - respondeu ela, com o aborrecimento a evaporar-se perante os sinais de preocupação do seu pessoal. Ainda não trataram daquele maldito problema do esgoto na Seaview. Um dia destes, afoga-se alguém naquela poça!

 

Susan baixou a voz e segredou:

 

- Olha, está cá um fulano a perguntar pela doente do doutor Corey que tratámos ontem à noite. Mandei-o esperar na sala tranquila».

 

-A senhora Samuels? Onde a puseram?

 

- O caso é que ela morreu por volta das duas. Não chegou a sair da enfermaria, e ainda não lho dissemos.

 

-Bom, quem é?

 

- Um amigo, acho eu. Diz que esteve cá ontem à noite e que o doutor Corey prometeu telefonar-lhe, caso o estado dela se alterasse. Calculo que se tenha esquecido ou então pensou que era demasiado tarde para comunicar o facto.

 

-Devia estar com pressa de ir para casa - disse Janet, com alguma amargura. Depois, encolhendo os ombros, comentou: - Acho que até ele tem o direito de se esquecer, como todos nós. Na «sala tranquila»? - perguntou, e Susan acenou com a cabeça. - Está bem, eu falo com ele.

 

- É giro - exclamou Susan, quando Janet se voltou para pendurar a gabardina.

 

Esta alisou a frente da bata com a mão e dirigiu um sorriso à colega antes de se encaminhar para a «sala tranquila».

 

-Com licença - disse ela, reparando imediatamente que Susan não exagerara. - Sou a enfermeira Dibbs. Posso ajudá-lo?

 

- Sim, se faz favor. Estou a tentar saber de Evelyn Samuels, que foi trazida para cá ontem à noite com... espere. Não era uma das enfermeiras que estava a tratar dela?

 

Tinha uma voz baixa e delicada, que condizia com o seu aspecto educado e bem vestido. Janet sentiu o coração acelerar-se ao observar-lhe as feições vincadas e os profundos olhos azuis. Aparentava cerca de quarenta anos, calculou, não, talvez quarenta e cinco, reconsiderou, reparando no cabelo encaracolado grisalho.

 

- Era, sim - respondeu. - Trabalhei com o doutor Corey quase toda a noite. Fizemos tudo o que era possível.

 

- Que diz? - perguntou o homem, semicerrando os olhos e aumentando ligeiramente o tom de voz.

 

Janet sentiu-se de repente atrapalhada, percebendo que não estava a tratar do assunto como devia. Sentou-se e ficou calada um momento, para se recompor.

 

- Desculpe, senhor..

 

- Spear, Jim Spear. - A respiração do homem acelerara-se enquanto se inclinava para Janet.

 

- Lamento muito, senhor Spear - prosseguiu ela -, a senhora samuels faleceu cerca das duas da manhã. O doutor Corey e eu fizemos tudo o que era possível para a salvar, mas o derrame foi demasiado forte.

 

- Bolas! - exclamou ele, com uma intensidade que a espantou.

 

- Lamento realmente. Eram amigos íntimos? - perguntou a enfermeira.

 

Spear enterrou a cara nas mãos, mas a voz estava mais controlada e recuperara grande parte da sua delicadeza.

 

- Muito. Tínhamos planeado casar em breve.

 

- Ai, que horrível para si - comentou Janet, tentando imaginar como conseguira Evelyn Samuels fisgar um homem tão interessante e muito mais novo do que ela. - Se houver alguma coisa que eu possa fazer...

 

-  A filha já foi avisada? Nós demos ao médico o número de telefone dela.

 

- Ele tentou ligar, mas não sei se conseguiu falar-lhe. Pode confirmar com o doutor Corey.

 

- É o que vou fazer. Vai ser um golpe terrível para a Karen. Era muito amiga da mãe.

 

- Foi o que me pareceu. A senhora samuels fartou-se de chamar por ela quando acordou.

 

- Acordou? - perguntou Spear, ligeiramente espantado.

- Pois foi, e o doutor Corey e eu chegámos a pensar que ia sobreviver. Mas o derra...

 

-Ela disse alguma coisa? - interrompeu o homem. Perguntou por mim, ou algo parecido?

 

Janet começava a sentir muita pena dele e sentia-se ansiosa por dizer qualquer coisa que lhe mitigasse o sofrimento.

 

- Sim? Sim, chamou por si várias vezes. O doutor Corey escutou-a mais tempo, mas ouvi-a pronunciar o seu nome. Falou em si, na filha e na chave. Dizia sempre a mesma coisa.

 

- Chave? -- inquiriu olhando-a nos olhos, e Janet sentiu o pulso acelerar-se.

 

- Sim, a chave que trazia presa ao pulso. Deu-a ao doutor Corey e pediu-lhe que a entregasse à filha. Porque a trazia assim, sabe?

 

Spear sorriu ligeiramente e inclinou-se mais ainda para a enfermeira.

 

- Ah, essa chave. É duma caixa que ela guardava debaixo da cama, com recordações da família, acho eu. A Evelyn era muito sentimental com coisas desse género; estava sempre a dizer que era a única chave e não queria perdê-la.

 

Janet retribuiu-lhe o sorriso, sentindo-se muito mais confortável por ter tratado assim do assunto.

 

- Bom, tenho a certeza de que a chave está segura com o doutor Corey. Se falar com a filha, pode dizer-lhe que entre em contacto com ele. - Depois, acrescentou: - Será que também vai usá-la presa ao pulso, como a mãe?

 

-Duvido - respondeu o homem, com um sorriso.

 

A Karen é muito mais prática e menos romântica do que a mãe... do que a mãe era - e desviou o olhar.

 

- Olhe, agora tenho de voltar ao trabalho - disse Janet.

- Se quiser conversar mais um bocado, tenho um intervalo para jantar às seis.

 

- Foi muito simpática, enfermeira Dibbs...

- Janet - interrompeu ela.

 

- Janet - repetiu o homem olhando-a com uma expressão calorosa. - Aprecio muito o que me contou sobre a morte da Evelyn. Gostava de conversar consigo outro dia, mas agora tenho de ir a casa dela para começar a arrumar as coisas e a tratar do funeral - e desviou novamente o olhar.

 

- Sempre que eu possa ajudar, Jim. O meu nome vem na lista - concluiu, levantando-se e despedindo-se com um aperto de mão formal, antes de se dirigir à enfermaria.

 

Spear ficou sentado mais uns minutos, felicitando-se por ter decidido voltar ao hospital. A informação que recebera da enfermeira boazona era mais do que esperara conseguir. Tentara arranjar maneira de descobrir se Evelyn tinha falado com alguém. Ligara de hora a hora, até que uma enfermeira lhe dissera que ela morrera às duas e meia. Fez um pequeno sorriso trocista e pensou para consigo: «Assim que deitar a mão à tal chave, trato da enfermeira Janet Dibbs. Que grande par de mamas!»

 

Kenner Putriam fora médico de clínica geral em Cape Cod durante mais de vinte anos, até que uma enorme sobrecarga de trabalho e múltiplas dores no peito o obrigaram a procurar um sócio mais novo. Nunca se cansava de contar episódios de quando não existia hospital e Strathmore só tinha três médicos. «Pensam que as coisas são dificeis... era a frase com que o «Dr. Kenner indicava aos que o rodeavam que chegara o momento de se recostarem para ouvir uma história ou de arranjarem uma desculpa para sair da sala.

 

Contudo, apesar de todas as histórias dos velhos tempos, Putriam era um excelente clínico, que passava uma hora todas as noites a ler revistas médicas, e ainda um influente e poderoso político, pois fora presidente da associação dos médicos do condado por duas vezes, sendo frequentemente mencionado para o mesmo posto a nível estadual. Uma das suas favoritas homilias políticas era «nunca fazer dum homem um inimigo até se ter a certeza de nunca mais se precisar dele como amigo».

 

Só quem conhecesse tão bem Putriam como o seu jovem sócio conseguia compreender de que forma mantinham ambos um excelente relacionamento profissional havia quatro anos. O pequeno e vivo Putriam parecia o oposto do lento e quase desajeitado Luke Corey, mas entendiam-se bem, sobretudo devido ao respeito mútuo e à vontade de Luke de fazer o que pudesse para aliviar o colega mais velho da sobrecarga de trabalho.

 

Eram quase seis horas da tarde nessa sexta-feira quando Putriam atravessou o corredor em direcção ao consultório de Luke. Parecia invulgarmente cansado e, na realidade, tinha acabado de dissolver um comprimido de nitroglicerina sob a língua. Luke fechou a velha pasta castanha, cheia de artigos para ler e fichas para ditar, e dirigiu-se ao sócio com óbvia preocupação:

 

- Sente-se bem, Ken? Parece um bocadinho em baixo. -Nada que um bom uísque não cure - respondeu Putriam, mas sem a sua habitual gabarolice.

 

- É a angina outra vez, não é? Acho que devia realmente tratar..

 

- Disparate! - cortou Putriam. - Trate você da canalização e do jardim, que eu cuido da clínica.

 

-Mas, Ken...

 

-Nem mas nem meio mas. Vá lá para casa ter com a fêmea com quem pensa brincar esta noite, que eu faço a visita no hospital. - Elevou ligeiramente a voz na última palavra e fez uma pausa, como sempre antes dum pedido. - Ai, pode fazer uma coisita por mim, se tiver tempo. Ir ver uma velhota de apelido O’Brian. O filho telefonou a dizer que ela estava a vomitar e tinha dores de barriga. Moram para os seus lados e o filho não se importa que seja você ou eu a observá-la, desde que não a recambiemos para o hospital. Acho mesmo que pediu que fosse lá você.

 

- Meu Deus, tem cá uma lábia! - troçou Luke. - Acaba de se livrar duma hora de trabalho com uma velhota qualquer, sem grande esforço. Está bem, eu vejo-a, mas só se me prometer que faz um electrocardiograma.

 

- Aqui tem a morada - interrompeu putriam, atirando o papel para cima da secretária de Luke. Saiu da sala sempre a falar: Se tiver de ser hospitalizada, mande-a que eu trato dela. -- Não precisa de agradecer! - exclamou Luke, quando

Putriam abria já a porta da frente e desaparecia na fresca e enevoada tarde de Abril.

 

Luke suspirou, riu-se sozinho da lata do sócio, pegou na pasta e na pequena maleta e saiu em direcção ao Oldsmobile.

 

- Bolas, Liz! Ele nem sequer quer que a gente vá até

 

lá para a conhecerem. Que diabo se passa com aquele homem? E com a mãe. Ao menos desta vez, talvez pudesse enfrentá-lo.

 

- Acalma-te, Luke. Sabes como é o pai. Está aborrecido por não teres falado com eles antes de lhes dizeres que ias casar com a Sarah. Isso passa-lhe, como sempre. E quando a conhecerem, vão adorá-la.

 

- Quem me dera poder acreditar em ti. Ele ficou furioso quando fui para o Mississípi em vez da sua preciosa Harvard. Não o diz claramente, mas sabes o que eu acho que o chateia realmente? É eu ir casar com uma judia! Por isso é que está tão danado.

 

- Ora, sê razoável! Opai só pensa que não devias casar antes de começares o curso de Medicina. -Pois! Estou mesmo a ouvi-lo: «Margaret, se julgas

 

que voufazer uma viagem de quase dois mil quilómetros para pôr um barrete idiota, ficar sentado numa igreja esquisita e ver o meu filho casar com uma mulher que ele mal conhece, estás muito enganada.’»

 

-Por favor Luke...

 

-Acabou-se, Liz. Não tenciono dizer outra palavra a esse homem até ele pedir desculpa e aceitar a Sarah. É a minha vida e vou vivê-la à minha maneira.

 

Luke ficou admirado ao descobrir que, como Putriam dissera, a rua onde Ruth O’Brian morava ficava mais ou menos a caminho da sua casa. Apesar disso, teve de consultar o roteiro três vezes para conseguir descobrir como chegar lá. Começara novamente a cair uma chuva fininha, e o nevoeiro, em alguns sítios, era tão cerrado que só conseguia avançar conduzindo o carro ao longo do risco branco no meio da rua. A viagem de dez quilómetros do consultório até à zona ocidental de Strathmore demorou quase quarenta e cinco minutos.

 

Eram sete e um quarto quando Luke meteu o Oldsmobile pela Avenida Marginal e começou a tentar descortinar os números das portas por entre o nevoeiro. Ruth O’Brian vivia no número duzentos e oitenta e cinco.

 

Como muitas ruas de Cape Cod, a Marginal ficava virtualmente deserta na estação baixa. A maior parte das vivendas, de cores claras, estavam às escuras, excepto algumas das maiores, cujos ocupantes se tinham reformado, passando a viver todo o ano nas suas residências de Verão. Três solitários candeeiros de rua, muito afastados uns dos outros, pouco faziam para romper a mortalha de nevoeiro e escuridão da noite. De cada lado da rua, só uma em cada nove ou dez casas tinha algum sinal de vida.

 

Luke preparava-se para parar junto a uma delas e pedir ajuda, quando descobriu uma fila de caixas de correio numeradas do lado direito da rua. Para sua satisfação, encontrou o duzentos e oitenta e cinco descuidadamente pintado numa delas, e como a luz do alpendre estava acesa numa casa de cada lado da rua, Luke pegou na maleta de médico e decidiu tentar primeiro a da direita - o número duzentos e oitenta. No entanto, espreitou primeiro para a do outro lado, tentando perceber se havia outras luzes acesas para além da do alpendre.

 

O ar pesado foi provavelmente o responsável por ele não ouvir o ruído do motor até o carro, que se aproximava a grande velocidade, estar muito perto. Não teve tempo para saber se os faróis se tinham acendido nessa altura ou se apenas haviam ficado visíveis nesse momento. Só quando o automóvel estava quase em cima dele é que percebeu que o queriam atropelar.

 

A reacção de Luke foi tão tardia que mal teve tempo para mergulhar na valeta antes de o carro o atingir em cheio, mas o farol direito ainda lhe bateu na coxa, atirando-o ao ar a uns três metros de altura e fazendo-o cair pesadamente na lama diante do número duzentos e oitenta e cinco. Com um chiar de borracha, o carro acelerou e afastou-se.

 

Ficou deitado uns segundos, tentando orientar-se, quando sentiu uma dor aguda na perna direita. Gemeu alto, consciente, nesse momento, da água que começava a ensopar-lhe as calças e a camisa. Tinha a gabardina enrolada no corpo e o lado esquerdo da cara enterrado na lama. Com grande esforço e não poucas dores, rolou sobre si próprio, tentando limpar os olhos com a mão enlameada. Foi aclarando lentamente as ideias e olhou na direcção em que o carro seguira, mas não viu sinal de luz ou movimento.

 

Conseguiu sentar-se mas, incrivelmente, por alguns momentos, o seu pensamento fixou-se nos documentos que tinha na carteira e no que a água lhes faria. Nessa ocasião percebeu que continuava agarrado à maleta. Aproximou-a da cara e verificou que estava muito amolgada. Parecia ter suportado grande parte do impacte do pára-choques do carro, o que o fez sorrir ao pensar que o seu instrumento de trabalho talvez fosse responsável por lhe salvar a vida.

 

Levantou-se, apoiando-se na perna esquerda e, quando pousou o pé direito no chão, sentiu uma forte dor, que quase o deixou sem fôlego, mas aguentou-se. Sempre agarrado à maleta amolgada e coxeando, subiu os dois degraus que davam acesso à casa de Ruth O’Brian. Embora a luz amarela do alpendre brilhasse fantasmagoricamente, não viu qualquer outra em toda a habitação.

 

Tocou à campainha repetidas vezes, depois bateu à porta, experimentou o puxador e espreitou pelos vidros ao lado da porta, mas não viu sinal de vida. O número duzentos e oitenta e cinco da Avenida Marginal estava deserto.

 

Quase em estado de choque, extremamente confuso, Luke cambaleou até ao ffismobile e lutou com a porta durante dois minutos, pelo menos, antes de se lembrar de como a abrir. A dor na perna direita era agora acompanhada por náuseas e um doloroso latejar nas costas. Ligou o motor e pensou dirigir-se ao hospital, mas considerou o seu estado e achou melhor ir primeiro a casa.

 

De pé no duche, com a cabeça inclinada, viu o sangue e a lama escura a escorrerem-lhe pelo corpo e a desaparecerem no ralo. Sessenta miligramas de codeína tinham adormecido um pouco a dor, juntando uma sensação de euforia à sua confusão. Doía-lhe também o ombro direito, e a água quente ardia-lhe nas esfoladelas do braço e da mão, mas os estragos maiores pareciam localizar-se na coxa direita.

 

Um feio vergão vermelho, de cerca de vinte centímetros de comprimento, apresentava vários pequenos cortes e um maior mesmo a meio. Deste saía um pedaço aguçado de vidro, produzindo dores agudas como facadas de cada vez que lhe tocava. Fios do músculo cortado pendiam em volta do vidro como algas na cascata do duche.

 

Fechou a água, enxugou-se e colocou desajeitadamente um penso sobre o golpe que ainda sangrava. Reparou então, pela primeira vez, no estado da roupa que atirara para um canto da casa de banho: a perna direita das calças azul-claras ficara em farrapos, ensopados em sangue, e o resto das calças e a camisa estavam cobertos de lama já meio seca. Pensou, por instantes, na reacção do pessoal da Urgência se lá tivesse chegado com aquela roupa; depois voltou-se para a retrete e vomitou violentamente.

 

Foi com grande dificuldade que Luke persuadiu Janet Díbbs a não chamar Ken putriam. Richard Thane, um excelente e jovem cirurgião, encontrava-se na enfermaria quando Luke se arrastou até lá. Depois de ouvir a história do acidente de atropelamento e fuga, Thane anestesiou-lhe habilmente os cortes, desinfectou-os e coseu-os. O pedaço de vidro do farol dianteiro que tirou do corte central media três centímetros.

 

As radiografias da perna e do ombro de luke foram negativas e ele estava a descer a custo da marquesa quando dois polícias entraram na sala.

 

O mais alto dos dois (provavelmente antigo jogador de basebol, pensou Luke) dirigiu-se-lhe numa voz surpreendentemente aguda dada a sua corpulência.

 

- Sou o guarda Norton, doutor Corey, e este é o guarda Donaldson. - luke acenou com a cabeça, sentindo um misto de aborrecimento e alívio com a presença deles. - Uma das enfermeiras comunicou-nos o seu... aa... acidente. É o segundo atropelamento e fuga que temos esta semana. Agradecíamos que viesse connosco à esquadra para podermos fazer o relatório do sucedido.

 

- Olhe, eu tive um dia tramado. Isso não pode esperar até amanhã? Além de que não há grande coisa para relatar - replicou Luke, esquecendo-se temporariamente do facto de o número duzentos e oitenta e cinco estar desabitado.

 

- Bom, era muito melhor e mais fácil se pudesse ser esta noite, enquanto as coisas estão frescas no seu espírito. Dava-nos mais hipóteses de apanhar o culpado.

 

luke encolheu os ombros, resignado, e vestiu o sobretudo a custo.

 

-Nós vamos atrás de si, doutor - disse o polícia mais baixo, sorrindo -, para termos a certeza de que essas costuras todas não lhe prejudicam a condução.

 

luke coxeava em direcção à saída quando Janet Dibbs correu para ele e lhe pegou na mão.

 

- Está bem, Luke? Talvez fosse melhor ficar esta noite em minha casa e deixar aqui a superenfermeira tratar de si.

 

- Obrigado, Janet, mas estou bem. Só me aborrece ter tão pouco para lhes contar, nem consegui ver o carro que me bateu e muito menos a pessoa que ia a guiar. Mas obrigado por se preocupar comigo. Já agora, não me importo de ir à esquadra, mas não precisava de chamar a Polícia.

 

-Que ideia é essa? Eu não os chamei - disse ela.

 

- Mas eles disseram que uma das enfermeiras tinha telefonado e só você é que...

 

Luke foi interrompido pelo guarda corpulento, que o chamava da porta.

 

- É melhor irmos andando, doutor. Está a fazer-se tarde. Luke coçou a cabeça, olhou interrogativamente para Janet e seguiu os polícias.

 

Foram precisas mais de sete assembleias municipais, em

1972, para a população de Stratmore aprovar fundos para a construção duma nova esquadra de Polícia. Os opositores ao projecto afirmavam que o prédio de cento e cinquenta anos, com as suas duas extensões, «era perfeitamente adequado à taxa de criminalidade» e ainda que a estrutura de tijolos e vidro proposta não condizia com «a arquitectura da rua principal da povoação».

 

Reinava grande excitação em volta da questão da nova esquadra e parecia que a proposta podia ser recusada. Contudo, uma semana antes do voto final, o chefe da Polícia, Robert Paradise, e os seus homens obtiveram grande publicidade a nível estadual ao desmantelarem «a maior rede de traficantes de drogas e narcóticos do Estado». O chefe fez então um apaixonado apelo na assembleia municipal e, entre grandes aplausos, a proposta foi aprovada por larga maioria. Uns nove meses depois, quando se aplicavam os últimos retoques na moderna esquadra de Strathmore, apareceu um pequeno artigo numa página interior do jornal Sentinela de Cape Cod relatando o facto de terem sido retiradas todas as acusações contra os arguidos da «grande operação de limpeza». O artigo aludia ainda a certas questões técnicas legais, mas não continha pormenores.

 

Luke, ao entrar na esquadra bem iluminada, ficou admirado por ser recebido pelo próprio Robert Paradise. Veterano condecorado da Segunda Guerra Mundial, o chefe ocupava o seu posto em Strathmore havia vinte e cinco anos, tendo ganho a reputação de polícia muitíssimo duro mas honesto. Paradise não tinha mais de um metro e setenta de altura, mas a sua cintura estreita e os ombros largos davam-lhe um ar de quem sabia tratar de si mesmo nas mais dificeis situações. O cabelo preto e fino desaparecera-lhe já do alto da cabeça, e nessa noite tinha vestido uma versão cor de vinho da sua roupa habitual, um casaco de malha.

 

-Quero dizer-lhe como apreciamos a sua vinda aqui a esta hora da noite, doutor Corey. Não calcula como estamos preocupados com estes atropelamentos e fugas que têm ocorrido.

 

O discurso de Paradise era tranquilizante, e Luke sentiu-se relaxar, apesar da terrível noite.

 

- É claro que lhe digo tudo o que puder - disse o médico -, mas as coisas passaram-se tão depressa! Está sempre de serviço à sexta-feira à noite?

 

- Às vezes - respondeu ele em tom paternal -, mas hoje vim para a esquadra quando os rapazes me telefonaram a dizer que o senhor havia sido atropelado. Temos de tomar bem conta dos nossos médicos. Nunca se sabe se um dia precisarei de que o senhor trate de mim, não é? - Deu uma gargalhada como se achasse graça a si próprio. - Nós achamos que estes atropelamentos e fugas são da autoria de dois fedelhos de Portsmouth Leste que se metem nos copos. Algumas pessoas comunicaram que quase tinham sido atingidas por eles e que os viram rir-se e comportar-se como se se tratasse duma brincadeira. Os dois atropelamentos foram provavelmente mais acidentes do que outra coisa.

 

- O meu não foi acidente, chefe. Na realidade, quase acredito que foi propositado - objectou Luke em tom severo. Paradise mostrou-se chocado.

 

- Ora, doutor Corey... Luke, não é? Onde foi buscar uma ideia dessas?

 

O médico começou a sentir-se irritado e resolveu pôr-se na defensiva.

 

- Está bem! - exclamou. - Deixe-me contar-lhe o que aconteceu e veja se acha que foi acidente.

 

- Pronto, Luke, pronto. Instale-se aqui. Eu mando vir cafés e depois examinamos tudo o que aconteceu. Como bebe o seu?

- Sem leite, com pouco açúcar. Quer que comece já?

 

respondeu Luke, respirando com mais facilidade.

 

- Vamos esperar até termos uma bebida quente no estômago, está bem? Que tal falar-me um pouco de si? Há quanto tempo trabalha com o doutor Putriam?

 

-Há cerca de quatro anos. É um grande médico e tenho aprendido muito - respondeu Luke, sentindo-se ainda ligeiramente desconfortável.

 

-E já conseguiu uma excelente reputação na cidade.

- Obrigado - agradeceu Luke, sorrindo. - Não consigo compreender quem é que podia querer fazer-me uma coisa destas.

 

- Pronto, comece pelo princípio da noite e conte-me exactamente o que aconteceu - pediu Paradise, recostando-se na cadeira e assoprando o café a ferver, que tentava beber aos golinhos.

 

Luke relatou os acontecimentos das últimas cinco horas, começando com a visita de Putriam ao seu consultório. Falou deliberadamente e medindo cada frase, para ter a certeza de relatar apenas os factos. À medida que a história se desenrolava, ia ficando cada vez mais convencido de que ocorrera uma tentativa deliberada para o ferir e, possivelmente, mesmo para o matar. A sua reacção a essa perspectiva era mais de confusão e fúria do que de medo, pois já estivera em situações, a milhares de quilómetros dali, em que outros homens sem rosto tinham tentado matá-lo.

 

Paradise ouviu calmamente, com os olhos castanhos sempre fixos em luke. O único movimento que fez durante todo o relato foi acender um longo e fino charuto, que tirou da gaveta de cima da secretária. Quando o médico acabou, ficou pensativo durante uns minutos, a tirar fumaças do charuto. Depois, falou com o ar dum professor paciente, seguro de, mais cedo ou mais tarde, conseguir explicar devidamente um conceito difícil ao seu aluno.

 

- Está a dizer-me que a tal chamada foi feita pelo filho da senhora O’Brian para o doutor Putriam?

 

- Exactamente, mas o Ken disse que tinha a impressão de que perguntaram por mim.

 

- Pronto, então deixe-me dizer-lhe o que me parece. O doutor Putriam recebe um telefonema desse homem numa altura em que ele próprio não se sente muito bem. Rabisca a morada que julga ser a que lhe deram, sempre com mil outras coisas no pensamento. Você vai para a rua errada e encontra os tarados que têm andado a assustar as pessoas com a tal brincadeira e, pum!, vai parar ao hospital.

 

- Olhe, chefe! - exclamou Luke, um tanto aborrecido. O senhor pode pensar o que quiser sobre o que lhe relatei. Não sou paranóico, não acredito que alguém ande atrás de mim, mas foi o que aconteceu e garanto-lhe que não se tratou de acidente.

 

Paradise olhou para o tecto e respondeu, sem alterar o seu tom paciente e profissional:

 

- Pronto, partindo do princípio de que tem razão, ainda precisamos duma resposta à grande pergunta. Por que motivo? Acha que existe alguém que possa ter uma razão, ou pense que a tenha, para lhe fazer uma coisa destas?

 

Luke olhou para ele sem expressão e abanou a cabeça. Estava a começar a ter dificuldade em arranjar uma posição cómoda para a perna.

 

-Vamos tentar por outro lado - propôs Paradise. Aconteceu algo invulgar no seu trabalho? Alguma morte súbita ou coisa parecida?

 

Luke pensou imediatamente na luta que travara na noite anterior para tentar salvar Evelyn Samuels.

 

- Perdi uma doente que teve um forte derrame cerebral e não.houve hipótese de a salvar. - Olhou de repente para Paradise e começou a falar mais depressa. - Espere! Havia uma chave, que ela trazia presa ao pulso, da qual falava como se fosse a coisa mais importante deste mundo. E entregou-ma.

 

- Uma quê? - perguntou Paradise, colocando cuidadosamente a cinza do charuto numa concha que fazia de cinzeiro.

- Uma chave. Disse-me que eu tinha de a entregar à filha

 

e a mais ninguém - acrescentou Luke, sentindo as ideias atropelarem-se-lhe na cabeça.

 

-Bom, é a chave de quê?

 

- Não faço ideia. A filha está fora este fim-de-semana e... não, espere! - Luke deixou descair os ombros. - Ninguém, a não ser uma das enfermeiras do hospital, sabia que eu a tinha. Por isso, não pode estar relacionada com o acidente.

 

Paradise inclinou-se para a frente e pareceu finalmente interessado.

 

- Nunca se sabe como as pessoas descobrem as coisas nesta terra. Se a chave é de algo de valor, talvez alguém tentasse atacá-lo para a apanhar. Posso vê-la, se faz favor?

 

- É uma velha chave de bronze. Não a trago comigo, está lá em casa. Além de que não pode ter sido o motivo...

 

- Talvez seja melhor deixar-me dar-lhe uma olhadela, apesar de tudo - insistiu Paradise, interrompendo-o. - Temos pessoas que são capazes de descobrir onde serve praticamente qualquer chave.

 

Lukc bocejou e deu-se conta de que estava realmente exausto. Era quase meia-noite. Percebeu também que não conseguia prestar atenção ao que o polícia dizia.

 

- Olhe, chefe, estou mesmo a começar a ir-me abaixo. Vou pensar em quem pode ter motivo para me fazer mal e, se me lembrar de alguém, telefono-lhe.

 

-Acho que não ouviu o que eu disse, doutor Corey. Parece que a chave que tem consigo, afinal, pode ser importante. Acho que é melhor entregar-ma e deixar-nos descobrir para que serve. Vou mandar um homem consigo até sua casa para a ir buscar.

 

Luke ficou completamente desperto e não se sentiu bem com a insistência ansiosa do seu interlocutor. De repente, queria desesperadamente ver-se fora da esquadra da Polícia e ir para casa.

 

- Espere um segundo, se faz favor - replicou o médico. Eu prometi à senhora que entregava a porcaria da chave à filha e a mais ninguém. Vamos esperar até que ela chegue, está bem?

 

- Como queira, doutor Corey, mas lembre-se de que o senhhor é que foi atropelado. - A voz do chefe da Polícia parecia ter adquirido um tom mais áspero, quase um aviso. - Estou apenas a tentar fazer o que posso, o mais depressa possível, para que nada mais lhe aconteça.

 

Luke estava farto. De repente o chefe parecia ter esquecido a sua teoria de adolescentes bêbedos com brincadeiras idiotas. O médico usou o tom mais firme que conseguiu e levantou-se, decidido a sair dali.

 

- Aprecio muito a sua preocupação, chefe, palavra que sim, mas foi uma promessa que fiz àquela senhora pouco antes de ela morrer. Não me sentiria bem comigo próprio se desse a chave a alguém sem ser a filha, mesmo à Polícia. Tente compreender.

 

- Faça como quiser - respondeu Paradise, parecendo ligeiramente desencorajado.

 

- Obrigado, chefe. Eu telefono-lhe assim que me lembrar de alguma coisa que possa ser importante - concluiu Luke, recuando até à porta do gabinete.

 

Voltou-se e, a coxear muito, saiu da esquadra. Estava demasiado cansado para pensar no assunto nessa noite, disse para consigo. No dia seguinte, depois de dormir umas horas, tentaria perceber que raio tinha acontecido.

 

- Queria falar comigo, doutor Zarrens?

 

- Ah, sim, Corey, entre e sente-se. Tenho água a ferver num bico de Bunsen. Espero que goste de chá. Não faço ideia onde diabo meti ofrasco do café instantâneo. Chá é óptimo.

 

--Muito bem. Estive a ver os dados que você recolheu desde que começou as experiências da interferência vírica no seu laboratório. Tem hipótese de completar um dos melhores projectos de investigação que alguma vez houve nesta faculdade. Com alguma sorte e bastante trabalho durante os próximos meses, não vejo motivo para não publicarmos pelo menos um ou mesmo dois estudos sobre ele.

 

-Isso é fantástico! Trabalhar consigo tem sido a coisa mais estimulante que faço desde que comecei a estudar Medicina. No início, queria ser clínico geral, mas agora estou a pensar cada vez mais em investigação virológica.

 

-A sua mulher compartilha o seu interesse? -Bom, nunca se habituou realmente às minhas vindas ao laboratório às duas da manhã para mudar as culturas de células, mas tenho a certeza de que as exigências da clínica geral não são muito melhores.

 

-Ainda bem quepensa assim do seu trabalho de investigação, Corey, porque eu acho que é esse o seu.futuro. Mas já deve conhecer-me o suficiente para saber,que não chamo pessoas ao meu gabinete só para as encher de louvores. Surgiu um problema e acho que talvez possa ajudar.

 

-Se se refere aos tubos contaminados, parece-me que já...

 

- Não, Corey, quem me dera que fósse uma coisa tão simples como essa. Refiro-me ao nosso pedido daquela grande bolsa para o Instituto do Cancro. Foi recusado.

 

-Ai, que pena! Mas não percebo como é que eu...

- Tem de entender como detesto pedir-lhe isto, Corey, mas grande parte da nossa investigação, incluindo o projecto de interferência em que você está a trabalhar, depende do dinheiro dessa bolsa. Quero que,fàle com o seu pai sobre uma reapreciação do nosso pedido. Introduzi algumas modificações importantes e...
-Lamento, doutor Zarrens, mas não posso fazer,isso, é impossível. Além de que não vejo ou.falo com o meu pai há quase dois anos. A minha intervenção ia provavelmente prejudicar ainda mais o pedido da bolsa.

 

- Parece que não percebe que até o futuro do seu trabalho está em questão!

 

- Percebo perfeitamente, demasiado até, mas nada posso fazer.

 

- Ou seja, não quer fazer. Bom, Corey, se mudar de ideias, durante a próxima semana, avise. Doutra maneira, acho que será preferível,fazer um resumo do que conseguiu até aqui e consideraremos isso o seu projecto de investigação.

 

Mais alguma coisa? Não, Corey. Bom dia.

 

Obrigado pelo chá, doutor Zarrens.

 

Eram cinco e um quarto da manhã de sábado quando a dor se tornou maior do que o cansaço e Luke acordou na escuridão do seu quarto. Roscoe, um gato branco que aparecera lá em casa dois anos antes e nunca mais se fora embora, estava enroscado de encontro à sua perna direita. As guinadas desciam-lhe até ao pé. Sentou-se de repente, o que o fez sentir outras em diversos sítios.

 

Aos bocados, o pesadelo da noite anterior voltou e, com ele, surgiu uma dúzia de perguntas: «Podia ter sido tudo uma terrível série de coincidências? Preciso de falar com o putriam. Se a Janet não chamou a Polícia, quem a chamou? Preciso de falar com ela. A chave. Tenho de contactar com a Karen Samuels. Se queriam realmente matar-me, porque não pararam e voltaram para trás?»

 

O pequeno frasco de codeína estava em cima da mesa-de-cabeceira, junto a um copo de água. Luke tomou sessenta miligramas e tornou a deitar-se, à espera de que o remédio lhe adormecesse a dor. Meia hora depois, conseguiu sair lentamente da cama e ir até à janela. A fraca claridade azul-rosada, do outro lado do lago Verde, prometia um brilhante dia de Primavera, uma visão que lhe afastou alguma da confusão que ainda sentia.

 

Uma hora mais tarde, estava a meter-se a custo no Olds, a caminho do hospital. Contudo, soltou um gemido ao travar antes de chegar à rua principal e nem reparou no Buick cinzento estacionado um pouco mais adiante.

 

Às nove e meia, quando Ken Putriam entrou no hospital, Luke já fizera a maior parte da visita aos doentes, embora a coxear. Toda a gente se interessou pelo seu estado, mas ele tentou não dar importância ao assunto, dizendo coisas do género «nada de grave, senhora Shaw, só um carro zangado com quem discuti ontem à noite».

 

Na segurança do hospital, sentiu grande parte da sua apreensão desaparecer. Ali nada mudara e, para além duma ou outra pergunta sobre a sua óbvia lesão, ninguém parecia reparar especialmente nele.

 

- Luke, meu rapaz - chamou Putriam do fundo do corredor do terceiro andar. - Que diabo anda aqui a fazer depois da noite que teve? ,

 

-Não é coisa que duas semanas nas Baamas não cure respondeu Lukc, com um sorriso amarelo.

 

- Que tal o pequeno-almoço na cafetaria, para começar? Pode contar-me o que aconteceu.

 

Putriam observava-o com ar preocupado, sobretudo as feri-’ das, ainda em carne viva, nas costas das mãos.

 

A cafetaria ficava na cave e a auxiliar que tomava conta dela tinha tentado dar-lhe certo ambiente, com cortinados estampados e candeeiros artísticos, mas continuava tudo com o mesmo aspecto institucional. Quando se sentaram numa mesa a um canto, Luke lembrou-se de que não comia há quase vinte e quatro horas e começou a animar-se com a perspectiva duma refeição, apesar de a codeína estar a deixar de fazer efeito.

 

Putriam insistiu em que ficasse sentado e voltou do balcão daí a pouco com sumo, café e dois gordurentos pratos de toucinho fumado e ovos.

 

-Adoro esta comida de hospital - observou ele. - Sinto cada bocadinho a nadar até à minha artéria coronária esquerda. Luke comeu em silêncio durante uns momentos, até que Putriam, fitando-o, comentou:

 

- Parece que a visitinha domiciliária a que eu o mandei se transformou numa autêntica aventura...

 

- Se quiser chamar-lhe assim - respondeu Luke secamente. - Como soube?

 

Já lá vamos. Acha que consegue contar-me o que aconteceu?

 

Pela segunda vez, embora com menos pormenores, recordou os acontecimentos que tinham rodeado o acidente. Mencionou o encontro com o chefe Paradise, mas não falou na chave nem em Evelyn Samuels.

 

- Sabe, Luke, o Bob Paradise e eu trabalhamos nesta cidade há quase um quarto de século - comentou Putriam, quando ele acabou de contar a história. - É um dos mais imaginativos e eficientes polícias que alguma vez conheci, e é directo e honesto como ninguém. Contudo, percebi há muito tempo que é capaz de tornar a vida agradável ou desagradável às pessoas cá da terra, quando quer. A sua posição permite-lhe controlar as actividades policiais em todo Cape Cod, já para não falar de Strathmore.

 

- Deixe-se de evasivas, Ken - pediu Luke, contrafeito.

- Luke Corey, o xerife. Dispara logo da anca! - gracejou Putríam, em tom paternal.

 

Luke respondeu com um sorriso e a tensão momentânea evaporou-se.

 

- O chefe Paradise telefonou-me esta manhã e contou-me o que aconteceu ontem à noite. Disse-lhe que não havia praticamente hipótese de me ter enganado quanto à morada. Ele verificou e a casa pertence a um banqueiro de Sudbury que só cá vem no Verão. Quanto à luz do alpendre, acende-se automaticamente. Além disso, eu próprio procurei nos meus registos e vi que não existe qualquer processo em nome de Ruth O’Brian. Ambos pensamos que houve premeditação, mas o curioso é não sabermos se queriam apanhá-lo a si ou a mim. Fui eu quem atendeu o telefone, lembre-se disso.

 

- Pois foi, Ken, mas recordo-me perfeitamente de você ter dito que a pessoa perguntou por mim.

 

- Talvez nunca se saiba - continuou Putriam. - O chefe parecia ligeiramente aborrecido por causa duma chave qualquer que você tem. Disse-me que não queria entregar-lha para ele tentar descobrir se é ou não importante. Olhe, Luke, já lhe disse que o Bob Paradise pode tornar as coisas...

 

- Eu não disse isso - interrompeu Luke -, só que tinha prometido a uma moribunda entregá-la apenas à filha dela. Por amor de Deus, Ken, o mínimo que posso fazer é cumprir uma promessa deste género.

 

- Faça como quiser, Luke - concordou Putriam, com um suspiro audível. («Paradise não utilizara exactamente as mesmas palavras?», pensou Luke.)

 

Foi o primeiro a levantar-se.

 

- Obrigado pelo pequeno-almoço, chefe - disse. - Estava mesmo a precisar. Olhe, a filha da falecida deve estar em casa daqui a um dia ou dois, e tenho a certeza de que poderá esclarecer o assunto da chave. Provavelmente, nem tem que ver com o que aconteceu ontem à noite.

 

- Se eu puder ajudar em alguma coisa, diga, Luke. Estou em casa o fim-de-semana todo. O Goodinan faz as visitas amanhã, de maneira que não precisa de vir ao hospital.

 

Saíram da cafetaria com o braço de putriam sobre os ombros do colega.

 

Depois de ver os seus dois últimos doentes, Luke telefonou para a Patologia e foi informado de que não havia corpos à espera de sair da morgUe. O responsável não estava e a secretária não fazia ideia de quando ou a quem os corpos eram entregues.

 

Foi então ao arquivo e obteve a fina ficha hospitalar da falecida, que levou para um pequeno cubículo. Começou a examiná-la e foi tomando apontamentos enquanto lia.

A primeira página» duma ficha hospitalar apresenta um extenso perfil pessoal - demasiado completo em muitos casos. A necessidade de um funcionário pedir e registar tantos dados de natureza privada, antes de um doente obter uma coisa tão simples como uma radiografia a um dedo, continuava a ser um motivo de frustração e consternação para muita gente, bem como uma fonte para muitas cenas de comédia. Luke nunca conseguira compreender a necessidade de se registar o local de nascimento e as convicções religiosas, antes de um doente poder ser tratado ou mesmo diagnosticado num hospital.

 

O ritual de preencher a primeira página» tornara-se de tal maneira parte do sistema que já tinha visto funcionários da admissão entrarem numa sala de exame, logo a seguir a um doente ser reanimado duma paragem cardíaca, para completar espaços num impresso como «apelido de solteira da mãe» e «residência anterior».

 

Nessa manhã, contudo, ficou grato à eficácia do funcionário da admissão de doentes. Aparentemente, tinha falado com Evelyn Samuels antes dele e registara informações que ele próprio desconhecia.

 

Nome: Samuels, Evelyn Marie Apelido de solteira: DeCarlo

 

Data de nascimento: 19 de Março de 1922 Local de nascimento: Bóston, Massachusetts

 

Religião: católica Estado civil: viúva

 

Morada: Redfern Terrace, 104, Forestville, Massachusetts

 

Telefone: 442-6101 Profissão: pintora

 

Apelido de solteira da mãe: (espaço em branco)

 

Parente mais próximo: Karen Samuels, Rua 57 Oeste, 888, Nova Iorque, 1-212-877-4982 (filha)

 

Admissões anteriores ao Hospital de Strathmore: nenhuma.

 

O resto da ficha consistia no relato do exame físico, que ele ditara e no qual não mencionara o adesivo no pulso ou a chave. ,Devolveu a ficha e marcou o número do telefone de casa de

 

Evelyn Samuels, sem obter resposta. Depois, ligou para a telefonista do hospital e pediu-lhe que tentasse o telefone de Karen Samuels em Nova Iorque, mas, mais uma vez, ninguém atendeu. Recostou-se na cadeira, de olhos fechados, tentando encontrar alguma explicação lógica para os acontecimentos das últimas dezoito horas, só que, tal como acontecera com as chamadas telefónicas, ficou sem resposta.

 

Saiu do hospital e foi conduzindo o carro devagar, ainda com dores de cada vez que tinha de usar o travão. Ao fazer Uma curva, reparou na rua por onde passara na noite anterior para chegar à Marginal e, num impulso, virou para lá. Dessa vez, deu com a avenida sem dificuldade e viu que era agradável e pitoresca, com uma bela vista da baía por entre as casas do lado esquerdo. Verificou ainda que era mais curta do que pensava.

 

O número duzentos e oitenta e cinco encimava uma pequena vivenda de madeira, pintada de cinzento com uma risca amarela, cuja tinta estava a descascar-se. A poça onde tantas dores sofrera na noite anterior já tinha secado e o passeio diante da casa não mostrava sinais do acidente. «Os homens do Paradise trabalham bem, pensou para consigo, metendo-se novamente no Olds e dirigindo-se a casa.

 

Dentro do carro, não sentia a ligeira brisa que corria, e o calor agradável do sol do meio-dia fê-lo desejar estender-se na rede atrás da sua casa, a ler um livro.

 

Roscoe estava deitado no tapete junto à porta, ao sol. Luke sorriu ao ver o seu preguiçoso gato e inclinou-se para lhe fazer uma festa, quando reparou no sangue. Voltou-o e a cabeça do animal caiu para trás, revelando um corte no pescoço e a traqueia cortada. Luke largou o animal e afastou-se, com o estômago convulsionado. Sentou-se pesadamente num degrau da entrada, respirou fundo, até que reparou num pingo de sangue nas costas da mão e, pela segunda vez em doze horas, vomitou sem poder controlar-se.

 

O interior da casa também fora atacado com malvadez, aparentemente no decorrer duma cuidadosa busca feita sem o mais pequeno esforço para evitar partir alguma coisa. As gavetas da cozinha tinham sido tiradas e o seu conteúdo espalhado no chão. As prateleiras da estante estavam vazias e dúzias de livros espalhavam-se pelo chão. Os tapetes voltados, os candeeiros caídos e uma delicada jarra de cerâmica espatifada, que a avó adorara, completavam o quadro.

 

Luke ficou parado durante alguns minutos, a olhar aquele cenário de destruição, enquanto um cheiro amargo se insinuava desconfortavelmente no seu nariz e o latejar na perna aumentava.

 

Em transe, atravessou a sala e começou a subir os polidos degraus da escada. Lá em cima, a busca também fora meticulosa e os estragos consideráveis. A caixa cuidadosamente entalhada, que transportara consigo por quase nove mil quilómetros, tinha sido atirada para o chão, e a sua tampa apresentava uma racha dum lado ao outro. Nada escapara.

 

Lentamente, cada vez mais apreensivo, dirigiu-se ao roupeiro, a coxear, e procurou na prateleira. Estava vazia.

 

Só depois de se deixar cair sobre a beira da cama é que descortinou a um canto o tabuleiro de xadrez: fora aparentemente atirado da prateleira para o outro lado do quarto, e o conteúdo duma gaveta da secretária despejado em cima dele. Deixou-se cair de joelhos, gatinhou por cima da confusão, com as mãos a tremer ligeiramente, e pegou no estojo. O fecho não estava aberto; o som das peças lá dentro fê-lo sorrir mesmo antes de o abrir. Tirou a chave do meio delas, começou a rir e acabou por se deitar de costas em cima da cama, com um ataque de riso incontrolável. «Estúpidos filhos da mãe!», gritou, «estúpidos, malvados e assassinos!»

 

Dez minutos depois, continuava deitado de costas, olhando para o tecto, dando gargalhadas esporádicas, quando o telefone tocou. Pegou lentamente no auscultador e encostou-o à orelha, sem falar. A voz do outro lado soou quase imediatamente, uma voz profunda e culta, com um tom suave e quase calmante.

 

-Doutor Corey, oiça-me bem, por favor. O senhor tem uma chave que nos pertence. Dá acesso a uma grande quantidade de dinheiro que a senhora Evelyn Samuels nos tirou. Precisamos dela, precisamos mesmo. Os inconvenientes que sofreu nas últimas vinte e quatro horas são apenas uma amostra. Compreende o que lhe digo?

 

Luke ficou indeciso um momento quanto a desligar ou dar uns berros pelo telefone. Em vez disso, respirou fundo e falou com o máximo de controlo possível.

 

- Não tenho a chave, fizeram esta porcaria toda para nada.

- Doutor Corey - continuou a voz -, estamos a par de todos os seus movimentos. O senhor tem a chave e, duma maneira ou doutra, acabará por a entregar.

 

- Fizeram-me mal, deram-me cabo da casa e das minhas coisas, mataram cruelmente o meu gato... - replicou Luke já menos controlado.

 

-Lamentamos ter utilizado demonstrações tão evidentes, mas trata-se de uma grande quantidade de dinheiro, uma grande quantidade mesmo, e o senhor tem a chave que nos ajudará a recuperá-lo. Não queremos causar-lhe mais problemas, na realidade, estamos até dispostos a recompensar generosamente a sua cooperação. Calculo que cinco mil dólares lhe permitam substituir as poucas coisas destruídas durante a busca.

 

As ideias de Luke iam ficando mais claras e começou a poder raciocinar.

 

- Quanto? - perguntou.

 

- Cinco mil dólares, doutor Corey, mais quinhentos para pedir desculpa pelo... hum... acidente do seu gato.

 

- Porra! Vocês querem mesmo a chave!

 

-Espero ter tornado isso bem claro - insistiu a voz.

- Bom, mas eu não a tenho - disse Luke. - Pelo menos, aqui.

 

- Já sabemos, doutor Corey - respondeu a voz, com algum sarcasmo. - Se a for buscar, podemos combinar um ponto de encontro e trocá-la pelo seu dinheiro, digamos daqui a duas horas.

 

- Tem de ser num local público. Só lha entrego onde houver gente à nossa volta. - luke fez uma curta pausa e depois propôs: - A biblioteca. Vou ter consigo à biblioteca de Strathmore daqui a duas horas.

 

-A biblioteca é perfeita.

 

- E que eu não descubra alguém a seguir-me, ou juro que não a apanha! Tenho uma condecoração que mostra que não me acagaço com ameaças como a sua. Nada do que fizeram ou venham a fazer me assusta. Portanto, é bom que saiba que lhe entrego a chave porque quero o dinheiro e não porque a vossa violência doentia tenha dado resultado. Nem um bocadinho, percebeu?

 

- Perfeitamente, doutor Corey - respondeu a voz com toda a naturalidade. - Encontramo-nos consigo daqui a duas horas, na biblioteca. E não precisa de se preocupar com o ser seguido.

 

Fez-se uma breve pausa, houve um estalido e depois ficou a ouvir-se o sinal de marcar.

 

Luke continuou sentado um bocado, a observar o caos à sua volta. «Estúpidos filhos da mãe!», pensou novamente. A seguir levantou-se e começou a andar dum lado para outro, com uma determinação que já não se lembrava de ter há muitos anos.

 

A chave era de bronze escuro e pertencia quase de certeza a uma porta ou a um grande armário. A marca Surelok estava gravada na parte de cima. Copiou o nome para um papel, bem como o número 14607106, e guardou a folhinha na carteira.

 

Ligou então para as informações interurbanas e conseguiu o número do Motel Metropolitano, de Bóston. O recepcionista fê-lo esperar uns minutos, mas informou-o de que tinha quarto e lho reservaria até às oito da noite. Francis Sullivan, o nome que deu ao homem, fora o seu comandante de companhia no Vietname, antes de ser atacado e morto à facada numa ruela de Saigão.

 

Pegou na chave e prendeu-a entre dois pedaços de cartão, metendo-a depois num envelope comercial dirigido a Francis Sullivan, Motel Metropolitano, Avenida Huntington, Bóston, Massachusetts. Como remetente, escreveu o nome da irmã e a sua morada de Lexington.

 

Por fim, guardou o livro de cheques e algumas peças de roupa num saco de viagem e procurou na confusão da secretária até encontrar selos de correio. Pelo sim, pelo não, pôs três no envelope e enfiou-o também no saco. Então, lançando um último olhar à sua própria casa devastada, desempenhou a sinistra tarefa de meter o seu animal de estimação num saco de plástico e de o enterrar entre as árvores, atrás da casa.

 

Antes de levar o saco para o carro, olhou para um lado e para o outro, até ter a certeza de que ninguém o observava. Eram quase duas horas quando desceu a rua e se dirigiu para Strathmore, parando por momentos num marco de correio para lá pôr a carta. A sensação de excitação e antecipação que o invadia foi aumentando ao aproximar-se da baixa. Percebeu que mal sentia as dores na perna e nas costas.

 

Seguiu propositadamente pelo caminho mais longo que conseguiu descobrir, pelas ruas mais a direito, sempre a olhar pelo retrovisor, para ver se era seguido. Não era. A seguir, parou num supermercado onde levantava cheques com frequência e conseguiu convencer a empregada da caixa a trocar-lhe um de cem dólares. Juntou os cem aos trinta que já tinha consigo, parou uma vez ainda para encher o depósito do Olds, percorrendo depois a rua principal em direcção à Ponte de Sagmore. Olhou o relógio e viu que faltavam trinta e cinco minutos para a hora marcada para a troca.


II PARTE

Até 1934, Cape Cod fora uma península com cerca de cem quilómetros de comprimento, estendendo-se como um dedo nodoso e curvo pelo oceano Atlântico. Para ir de Nova iorque até Bóston, os navios tinham de dar a volta, passando por Provincetown, na ponta do dedo, e atravessar a baía de Cape Cod, até que, no fim do referido ano, os sapadores militares completaram a abertura do canal através da base do dedo, transformando a península numa ilha. Duas pontes, uma em Bourne, no extremo ocidental do canal, e outra em Sagmore, no extremo oriental, passaram a ser as únicas ligações directas com a terra firme.

 

luke percorreu a distância do centro de Strathmore até à entrada da ponte nuns cuidadosos quinze minutos, sempre a verificar se estava a ser seguido. Ao chegar lá, um vulgar carro cinzento saiu do parque de estacionamento dum restaurante e seguiu-o à mesma velocidade, a uns vinte metros.

 

Após atravessar a ponte, luke sentiu desaparecer alguma da excitação, e relaxou a sua vigilância do retrovisor. Semicerrou os olhos por causa da luz do Sol, que se punha à esquerda, e recostou-se no assento, saboreando o seu calor. Daí a uma hora, estaria a salvo no Motel Metropolitano de Bóston.

 

O carro cinzento ficara completamente escondido por um grande tractor com atrelado, e os dois homens que nele seguiam pareciam satisfeitos, limitando-se a ocupar de vez em quando a faixa de ultrapassagem para vigiar o progresso de Luke. Só a alguns quilómetros a norte de Plymouth é que o tractor, sem fazer sinal, virou bruscamente para a direita, para uma saída, e o condutor do carro cinzento quase o seguiu, mas, no último momento, percebeu o que se passava e voltou rapidamente à auto-estrada. Foi nesse movimento repentino que Luke reparou primeiro, mas o trânsito no sentido em que seguia era pouco e o carro cinzento deixou-se ficar para trás, o que não o impediu de, desconfiado, carregar no acelerador até atingir os cem.

 

O homem ao lado do condutor era entroncado, com ar simiesco, de lábios grossos, orelhas muito em baixo e praticamente sem pescoço e testa. Quando o Olds acelerou, olhou para o magro condutor de cara bexigosa e disse, em voz rouca:

 

- Já nos topou, Richie, tenho a certeza! Vamos apanhá-lo.

- O chefe disse que tínhamos de seguir o estupor e descobrir para onde vai - replicou o bexigoso. - Não falou em apanhá-lo.

 

- Ouve, minha besta, se ele nos topou, que vamos fazer, segui-lo num passeio turístico pela costa? - exclamou o macacão. - Vá lá, carrega no acelerador! Ele está a afastar-se! insistiu, tirando um pesado revólver do coldre sob o casaco e acariciando-lhe a coronha, enquanto o bexigoso acelerava a fundo e o carro avançava que nem uma seta.

 

Luke não tivera a certeza absoluta de estar a ser seguido pelo carro cinzento até o ver aproximar-se rapidamente pelo retrovisor. Nos seus tempos, o Olds proporcionava conforto e força, mas, depois de treze anos e cento e noventa mil quilómetros, começava a tremer a mais de cento e dez.

 

O retrovisor vibrava de tal maneira que Luke quase não distinguia o carro atrás de si, apesar de estar a menos de dez metros. Nos segundos seguintes, pensou numa dúzia de maneiras para enfrentar o perigo, mas pô-las todas de parte. A indicação de «Área de descanso a mil e quinhentos metros», à beira da estrada, deu-lhe a única ideia plausível. Decidiu deixá-los aproximarem-se o mais possível e virar de repente para a área de descanso. Com um bocado de sorte, estariam prestes a ultrapassá-lo e não conseguiriam curvar para a direita. Então, talvez pudesse sair do carro e fugir, ou tentar fazer marcha atrás, atravessar a divisória central e seguir em sentido contrário.

 

Na realidade, não teve sorte, pelo menos com esse plano. A saída surgiu com o carro cinzento ainda a cerca de dez metros dele e a única coisa que pôde fazer foi virar para lá na mesma. Nessa altura, uma caravana mal estacionada, pertencente a um casal idoso, os reflexos de Luke e o macacão do carro cinzento conseguiram o que todo o plano não fora capaz. O casal, a tomar chá gelado e a comer sanduíches numa mesa de piquenique ali perto, viu horrorizado o Oldsmobile entrar a chiar na área de descanso e dirigir-se para a traseira da sua caravana. Luke calculou instintivamente que não conseguia evitar o veículo e carregou a fundo no travão, sem pensar na dor que lhe desceu pela perna.

 

O outro carro, muito perto dele, quase não teve hipótese de abrandar e atingiu a traseira do Olds a oitenta quilómetros à hora. A cabeça de Luke saltou para trás com a pancada e depois para a frente, quando o seu carro bateu na caravana.

 

Esta, em ponto morto, saltou para a frente e subiu o passeio, parando a um escasso metro dos seus aterrorizados donos. Luke reagiu a tempo de se preparar para o embate e até conseguiu colocar uma mão entre a cabeça e o volante, mas os ocupantes do outro carro não tiveram tempo para isso. O bexigoso deu com a cara no volante, partindo o nariz e abrindo uma antiga ferida de facada na face direita, enquanto o macacão batia no pára-brisas com aquilo que devia ser a testa e fazia um buraco de vinte centímetros no pára-brisas, ao mesmo tempo que o resto do vidro se estilhaçava como uma teia de aranha.

 

Com uma exclamação de júbilo, Luke deu uma palmada no painel dos instrumentos, um beijo no volante e afastou-se a toda a velocidade. Tinha o farol direito da frente partido e várias mossas razoáveis no pára-choques traseiro e na mala, mas, fora isso, o Choque não afectara o carro.

 

Como não sabia de que maneira o haviam encontrado, tomou a precaução extra de deixar a auto-estrada e seguir por caminhos secundários com bastantes curvas.

 

- Quantas vezes vamos falar neste assunto, Sarah? Não é possível, e pronto!

 

- Bolas, Luke! Porque não tentas perceber o que eu sinto? Mal vi o meu marido durante os dois últimos anos do curso e ainda o vejo menos durante a primeira metade do internato. Agora temos uma hipótese de passar dois anos descansados na Direcção-Geral de Saúde e tu nem sequer queres concorrer!

 

- Concorri a outros serviços públicos e não fui aceite. -Mas o teu pai é o director..

 

- Pára com isso, Sarah, por favor Ele não respondeu à minha carta, nem sequer ao convite para assistir à

licenciatura. Além disso, o serviço militar dura uns bons dois anos, e ser colocado no Sul da Califórnia é uma aventura. Podemos viajar e até ter um bebé, se quisermos.

 

-Isso é tudo muito bonito desde que não vás parar ao mato!

 

-Anda cá, Sarita, deixa-me dar-te umas beijocas e vais atrás de mim para qualquer lado...

 

-Não para o delta do Mecom, podes ter a certeza. -Nem pensar querida. O exército reconhece um cobarde à primeira vista. Os únicos que podem querer-me no Vietname são os vietcongues! Tiras ou não o roupão ou tenho de me atirar para o chão e fazer uma birra?

 

-Não, porfavor nada de birras. Aqui tens o roupão e o conteúdo do dito. Quandofoi a última vez que ganhei uma discussão contigo?

 

- Neste instante, minha senhora, neste mesmo instante.

 

O Motel Metropolitano de Bóston estava totalmente decorado com cores e motivos do Bicentenário, até os cortinados dos quartos eram vistosas manchas de águias brancas, azuis e encarnadas. Luke assinou o registo como Francis Sullivan, de Portland, Maine, e teve de pagar sessenta dólares adiantados, por não apresentar um cartão de crédito. «Lá se vai o jantar no Cais Quatro», pensou para si próprio, atravessando o átrio a coxear, em direcção ao quarto.

 

Depois de fechar a porta à chave, meteu as suas poucas peças de roupa numa cómoda folheada a carvalho e enfiou-se num banho quase a ferver, sem se esforçar por proteger os pontos na coxa direita. O acidente na área de descanso acrescentara um espasmo doloroso ao pescoço, além dum galo na testa às suas lesões anteriores. Passou uma hora, durante a qual o seu único movimento foi inclinar-se a custo para diante e acrescentar mais água quente ao banho de imersão.

 

Elizabeth Corey Bufler acabava de meter a filha de quatro anos na cama quando o telefone tocou. No seu roupão amarelo acolchoado, movia-se com uma graça natural que os homens achavam atraente desde os seus primeiros anos da adolescência. Tivera uma breve carreira docente, mas adorava a sua vida com o marido, Paul, professor no MIT, e os dois filhos.

 

Durante o namoro de Elizabeth e Paul, os amigos duvidavam de que o sério e conservador Bufler conseguisse acompanhar o andamento da vibrante e jovial Liz, mas durante os sete anos do casamento a relação tinha evoluído e ambos se sentiam bem, com as necessárias adaptações.

 

- É para ti, Liz! - exclamou Paul da sala. - É o Luke. Não lhe contei da Polícia.

 

Liz aproximou-se rapidamente e pegou no auscultador.

- Estás bem, Luke? O que te aconteceu?

 

- Tem calma, estou óptimo. Bom, pelo menos inteiro.

- Estiveram cá uns inspectores da Polícia, à tua procura. Não disseram o que queriam. Que se passa?

 

- Polícia? De Lexington?

 

- Não, de Bóston! Vieram há cerca duma hora, entraram pela casa dentro e instalaram-se, com toda a calma. Felizmente que o Paul já chegara a casa, pois eu ficaria desfeita, se estivesse sozinha.

 

-Descontrai-te, Liz, está tudo bem. Eu encontro-me em Bóston. Posso falar com o Paul, se fazes favor?

 

-  Claro, mas que história é esta?

 

-Já te conto. Deixa-me falar com o Paul. -Eu estou a ouvir, Luke. Que se passa?

 

A voz de Paul era preocupada, mas Luke notou também uma nota de irritação. Estabelecera-se alguma intimidade entre eles durante os dois últimos anos de internato, em Bóston, mas Luke achara o químico reservado e muitas vezes de difícil relacionamento.

 

-Tens a certeza de que eram de Bóston? Quero dizer, identificaram-se?

 

-Detectives, Luke, dois. Tanto quanto sei, as identificações e os distintivos eram verdadeiros. Queres fazer o favor de me dizer o que se passa? Disseram qualquer coisa sobre teres abandonado o local dum acidente. Ficaste ferido? E onde estás, afinal?

 

- Polícia de Bóston?

 

«Merda, o desastre foi só há três horas», pensou Luke. Quem diabo seriam aqueles tipos? O Paradise devia fazer parte da história...

 

- Estás aí, Luke? - interrompeu a voz de Paul.

 

-Sim, estou. Ouve, eu não sei o que se passa, não sei mesmo. Uma doente entregou-me uma coisa antes de morrer e alguém se tem esforçado muito por ma tirar. Deram-me cabo da casa e até me mataram o gato.

 

- O quê?

 

-O gato... Olha, Paul, deixa lá. Tu e a Liz estão bem? Eles ameaçaram-vos, ou coisa assim?

 

-Não, só disseram que queriam interrogar-te sobre um acidente em que te envolveste no caminho para cá. Tiveste um desastre?

 

- Sim, mais ou menos. Acredita em mim, Paul, eu não sei mesmo o que se passa nem quem são as pessoas que... Espera aí! Como diabo foram ter com vocês? Explicaram?

 

- Não, não me lembro de nos terem dito como nos encontraram.

 

luke já não o ouvia; o seu pensamento percorria todas as maneiras possíveis de a Polícia de Bóston ter sabido tão depressa da existência da sua irmã. Só uma pessoa, concluiu, podia tê-los informado: Ken Putriam. Lembrou-se de ter incluído o nome dela em vários documentos, como parente mais próxima, entre eles uma apólice de seguro que ele e o sócio haviam feito dois anos antes.

 

- Ouve, Paul, eu estou em Bóston e não fiquei ferido. Provavelmente, até é bom não saberem exactamente onde me alojei. Assim que descobrir quem é esta gente, devo ser capaz de desembrulhar a meada. Entretanto, vê se a Liz não se preocupa demasiado. Eu telefono daqui a um dia ou dois, está bem?

- Claro, Luke, mas se pudermos ajudar..

 

- Já ajudaste, Paul. Só espero que não vos chateiem outra vez. Falo contigo daqui a um dia ou dois.

 

-Boa sorte, Luke!

 

- Obrigado. Eu digo qualquer coisa.

 

Era quase uma e meia da tarde do dia seguinte quando Luke foi acordado por uma criada que empurrou o seu carrinho pelo quarto dentro, quase até à cama, antes de perceber que ele ainda estava deitado e a dormir. A televisão continuava ligada, como quando adormecera, quase catorze horas antes. A criada parou, ficou a olhar para a grande nódoa negra da testa dele, depois desfez-se em desculpas e saiu do quarto.

 

Antes de se levantar, Luke telefonou a Ken Putriam e o sócio confirmou imediatamente que tinha dado o nome e a morada da irmã à Polícia. Preocupado, mostrou-se incrível e invulgarmente disposto a ocupar-se dos doentes durante o tempo que Luke afirmou ir estar ausente.

 

Este não lhe deu pormenores dos acontecimentos de sábado nem lhe disse donde estava a telefonar. Contudo, Putriam ofereceu-se para ajudar no que pudesse, incluindo com dinheiro, assuntos legais ou um sítio onde ficar. Luke agradeceu-lhe e prometeu telefonar-lhe todos os dias. Depois, tomou um duche, fez a barba e vestiu-se, antes de tentar falar com Karen Samuels.

 

Atendeu Jackie Gallante, a companheira de quarto de Karen, dizendo-lhe que a amiga tinha sido contactada na véspera, no Connecticut, e que fora directamente para Cape Cod, a fim de tratar do enterro da mãe.

 

- Tenho estado à espera de notícias, doutor Corey - disse a rapariga. - Até julguei que era ela. Ficou de me avisar, para eu ir ao funeral.

 

- Gostava de falar com ela, Jackie - pediu o médico. Acha que a apanho em casa da mãe?

 

- Deve estar lá. Espere aí, doutor, tenho aqui o número do ,telefone num sítio qualquer..

 

-Tudo bem, eu sei o número. Obrigado pela ajuda.

 

Karen Samuels atendeu ao primeiro toque e começou a falar assim que ele se identificou.

 

-Doutor Corey, ainda bem que ligou! - disse ela, ofegante. - Os amigos da minha mãe contaram-me como o senhor tentou salvá-la. Muito obrigada! Eu... eu ainda não consigo acreditar que isto esteja realmente a acontecer.

 

- Tenho muita pena da sua mãe. Fizemos tudo o que pudemos, mas o ataque foi muito forte. Era impossível ela viver sem ficar paralisada. Como está a reagir?

 

-Estou bem. Toda a gente aqui tem sido maravilhosa e compreensiva. O funeral foi ontem, assim que eu cheguei. Os amigos da minha mãe já haviam tratado de    tudo. Ajudaram-me tanto, que não sei o que faria sem.---

 

-Está sozinha neste momento? - interrompeu Luke. Quero dizer, pode falar comigo durante uns minutos sobre problemas que surgiram com a morte da sua mãe?

 

-Estou sozinha, sim - confirmou ela, intrigada. - Que aconteceu?

 

-Olhe, pouco antes de morrer, a sua mãe recuperou a consciência o tempo suficiente para me dar uma chave, que trazia presa a um pulso com adesivo, e fez-me prometer que só a entregava a si. Desde essa altura que alguém ou um grupo de pessoas tentam por todos os meios tirar-ma. Faz ideia de que chave se trata ou do motivo pelo qual alguém está disposto a atacar-me e depois fazer chantagem para a apanhar?

 

- Ai, meu Deus! - exclamou ela, ofegante. - Espero que esteja bem, doutor Corey. Eu sabia da chave, claro. A mãe trouxe-a assim durante anos, mas nunca acreditei realmente que se tratasse de tanto dinheiro como ela dizia. A minha mãe era uma artista, sabe? Com muita imaginação e dada a exagerar as coisas a toda a hora. - Eu quero entregar-lhe a chave, mas acho que é melhor descobrirmos primeiro quem anda atrás dela, senão pode vir a ter tantos problemas como eu. Neste momento, estou em Bóston. Acha que pode vir até cá, para falarmos disto tudo?

 

- Hoje?

 

- Quanto mais depressa se resolver o assunto, melhor. Sejam eles quem forem, sabem ser bastante persuasivos.

 

- O senhor tem a certeza de que ... ? - começou ela, em tom hesitante.

 

- Por favor! - interrompeu Luke, com alguma irritação.

- Quase me atropelaram e deram-me cabo da casa. Preciso de falar consigo, e depressa, antes que um de nós se magoe realmente. Então, pode vir até cá ou não?

 

- Eu... eu acho que sim. Tenho carro. Onde quer que vá ter? Luke estava prestes a dar-lhe a morada e instruções para chegar ao motel, quando se lembrou do carro cinzento que o seguira no princípio da viagem. Então, pediu-lhe que desligasse e marcou-lhe um quarto no Sheraton, perto donde ele estava.

 

- Eu sei que isto pode parecer um filme de capa e espada, mas quero que tome cuidados especiais para não ser seguida até cá - recomendou Luke, quando voltou a ligar para Karen Samuels. - Depois de passar a ponte, saia da auto-estrada e dê as voltas que forem precisas para ter a certeza de que não há carros a seguir o seu. Acho que me encontraram na Ponte de Saginore, ontem. A estrada vinte e quatro é capaz de ser a melhor para chegar cá. Arranje um mapa, se precisar. Vá para o Sheraton, eu telefono-lhe às sete e combinamos um sítio para nos encontrarmos.

 

- Está bem - concordou Karen -, mas custa-me a crer que sejam precisas tantas precauções.

 

- Faça-me a vontade - insistiu o médico.

 

luke ficou no quarto quase toda a tarde, a ver um jogo de básquete na televisão. Às cinco, saiu, à procura duma rua sossegada onde pudesse encontrar-se com Karen Samuels e ficar com a certeza de que ela não estava a ser seguida. A Rua Blacklow, com quatro quarteirões, sentido único e vários becos transversais para a rua paralela, pareceu-lhe perfeita. Sentiu-se entusiasmado por saber que, daí a pouco, pelo menos alguma da confusão dos últimos três dias estaria esclarecida.

 

De volta ao hotel, fez um desvio de dois quarteirões ao avistar um carro-patrulha preto e branco a subir a Avenida Huntington na sua direcção. «Não te parece que estás a levar a paranóia demasiado longe?», perguntou a si próprio, metido num portal, a vigiar a rua. Depois, soltou uma gargalhada, lembrando-se dum vistoso cartaz que um colega da faculdade tinha pendurado em cima da secretária, no quarto. Era roxo, com letras encarnadas, e dizia: «Lá porque és paranóico, isso não quer dizer que não andem atrás de ti! »

 

Luke estava satisfeito e até orgulhoso da precisão com que planeara o encontro com Karen Samuels. Ficou à espreita numa esquina, no quarto quarteirão da Rua Blacklow, e viu-a aproximar-se, confiante, com o casaco verde que lhe descrevera ao telefone. Como ninguém vinha atrás dela, fez-lhe sinal para entrar no beco e atravessaram até ao outro lado.

 

Só no quarto dela, no hotel, é que Luke relaxou o suficiente para perceber como era incrivelmente bela. O longo cabelo preto, liso, formava a moldura ideal para o rosto em forma de coração e para os olhos verdes com reflexos dourados, antes de lhe cair até ao meio das costas como uma cascata. Trazia calças castanhas e uma blusa amarelo-limão, que acentuavam subtilmente um corpo dos mais perfeitos que já vira. Ainda mais impressionante era a maneira natural como se movia, aparentemente inconsciente da sua própria beleza.

 

luke sentiu a garganta contraída, a voz falhou-lhe quando começou a falar, e só com grande esforço não ficou a olhar para ela fixamente. Em contraste, Karen parecia perfeitamente à vontade, estendida na cama enquanto falavam. Gradualmente, Luke deixou de sentir dores e esqueceu a violência das últimas setenta e duas horas. A cordialidade e a beleza daquela mulher, que tinha vindo ajudá-lo, eram muito mais tangíveis, muito mais reais do que tudo o que lhe acontecera.

 

Hesitante ao princípio, mas cada vez com mais facilidade, reviu os pormenores da morte da mãe dela e os incríveis acontecimentos que se lhe tinham seguido. A rapariga ouviu com toda a atenção, abanando de vez em quando a cabeça, com dificuldade em acreditar em algumas das partes mais sinistras da história.

 

Quase a acabar, Luke inclinou-se para a frente e impulsivamente segurou uma mão dela entre as suas.

 

- Bom, é assim - concluiu ele. - Agora é a sua vez. Fale-me da sua mãe-artista e da sua chave mágica. Ou melhor, ajude-me a não pensar nesta loucura por um instante e fale-me de si.

 

-Não há muito para contar - começou ela, rolando languidamente para um lado. - Sou assistente social em Nova Iorque, mas isso é tudo a que se pode chamar social. Sempre fui muito solitária, talvez por ser filha única. Tenho algumas amizades masculinas, mas poucas femininas.

 

- Que quer dizer? - perguntou Luke, que a imaginara várias vezes, desde o princípio da conversa, de calças de ganga a brincar com amigas numa quinta de Connecticut.

 

- Isso mesmo - insistiu ela, olhando-o com ar interrogativo. - Tive uma má experiência com a minha primeira companheira de quarto na faculdade e nunca mais voltei a ter uma amiga íntima ou uma companheira de quarto.

 

- Mas eu pensei que...

 

luke calou-se de repente, com um grande nó no estômago. Os pensamentos atropelavam-se-lhe e quando conseguiu voltar a falar, ao fim do que lhe pareceu serem horas, as palavras saíram-lhe medidas e inexpressivas. Não conseguiu disfarçar a sua crescente apreensão e o nó duplicou e tornou a duplicar de tamanho.

 

- Quem é a Jackie, Karen? - perguntou.

 

- Jackie? Não conheço ninguém chamado Jackie. - Continuava controlada, mas afastara-se inconscientemente dele.

- Oiça-me com atenção, Karen, ou lá quem você é - quase gritou o médico, enquanto ela se encolhia devido ao tom da voz, que Luke mal conseguia controlar, tal era a fúria. - Vou fazer-lhe umas perguntas sobre a sua mãe. Responda, e bem. Qual era o apelido de solteira dela?

 

- Que é isto? - perguntou a jovem, cada vez menos segura. - É maluco, ou quê? Não vejo o que...

 

Luke inclinou-se para a frente e deu-lhe um estalo com tanta força e tão de repente que se admirou tanto como ela.

 

- Raios partam isto! - gritou. - Quero saber o apelido de solteira de Evelyn Samuels. Quem é você? Passei por muita coisa nos últimos dias e juro que, se a apanho a mentir, dou cabo de si!

 

Uns grandes vergões encarnados começavam a aparecer na pálida cara da rapariga e um fiozinho de sangue formava-se-lhe ao canto da boca. Saltou da cama para uma cadeira e ficou encolhida, a soluçar.

 

- Por favor, por favor, não me bata mais - pediu. - Eles não me disseram que lhe tinham feito essas coisas horríveis. Palavra! Eu nem sequer sei o que é isto tudo, tem de me acreditar!

 

Luke deixou-se cair de joelhos e segurou a cara entre as mãos. A sua linda realidade tornara-se novamente no pesadelo anterior, mais terrível do que nunca.

 

- Está bem - concordou por fim. - Eu não torno a bater-lhe, mas só se começar do princípio e me disser quem é e como se meteu nesta porcaria.

 

A rapariga limpou o canto da boca com as costas da mão e pareceu prestes a vomitar quando viu o sangue.

 

- Chamo-me Connie, Connie Evans, e sou actriz, pelo menos quando tenho trabalho, mas as coisas não me têm corrido muito bem ultimamente. Por isso, quando um tipo me ofereceu quinhentos dólares para vir até aqui e receber uma chave que você tinha, não pude recusar. Meu Deus, Luke, há seis meses que não ganho tanto dinheiro! Tem de acreditar que...

 

- Continue - ordenou ele.

 

- Um tipo com quem saí uma vez ou duas telefonou-me e disse que, se eu viesse até Cape Cod, podia ganhar com facilidade quinhentos dólares a desempenhar um papel.

 

-Como se chama ele?

 

- Jim, Jim Spear. Garantiu que era fácil e que não havia problema, mas quando cheguei lá tinham uma rapariga atada a uma cadeira e ameaçaram-me de que, se não agisse como eles queriam, me cortavam a cara. Ai, meu Deus! Que me irão fazer agora? Tem de me ajudar, Luke! Por favor!

 

-A rapariga que     estava atada era a Karen Samuels?

 

- Era... Estão em casa da mãe dela, à espera de notícias minhas. Disseram que você nunca falara com ela, só sabia que era assistente social e  vivia em Nova Iorque.

 

- Estúpidos filhos da mãe! - resmungou Luke. - Você disse «eles». Quantos são?

 

- Só dois. O Jim, Spear e outro homem, que ele tratava por Bob. Não sei o resto do nome.

 

-Como é ele?

 

- Baixo, mas bastante forte, percebe? Com quarenta e tal anos, acho eu, mas não sou grande coisa a calcular idades. Um bocado careca atrás -, explicou ela, apontando para o alto da própria cabeça.

 

-O Paradise! - exclamou Luke.

- Quem?

 

-Nada, nada. Foi consigo que eu falei ao telefone?

 

- Eles obrigaram-me, palavra! A verdadeira Karen recusou-se a ajudá-los e não quis falar comigo nem consigo. Até tentou dar um pontapé nos... bom, você sabe, do Jim. Então ele bateu-lhe ainda com mais força do que você a mim.

 

- Olhe, desculpe tê-la magoado - lamentou Luke, começando a ter pena da rapariga, que, tal como ele, parecia ter caído no meio da loucura doutras pessoas. - Estou prestes a perder completamente a paciência e não consigo encontrar uma pessoa em quem possa confiar. Alguém me espera neste hotel?

 

- Não sei. Eu vim de carro sozinha e ninguém me contactou. Era suposto receber a chave e regressar a Cape Cod. Parecia mais calma e falava num tom sincero.

 

- Dê-me as chaves do seu carro -, exigiu Luke. -Mas como é que eu ... ?

 

- Bolas, Comnie, já disse que lamento tê-la magoado, mas bato-lhe outra vez, se não mas dá e não me diz onde estacionou o carro!

 

De posse das chaves e do talão de parqueamento, mandou-a deitar-se de bruços numa das duas camas. Com tiras que rasgou dum lençol da outra cama, atou-lhe cuidadosamente os braços e as pernas a uma perna da cama e, apesar da promessa da rapariga, de ficar calada, amordaçou-a com outro bocado do lençol, tentando, no entanto, causar-lhe um mínimo de desconforto. Por fim, tapou-a até ao pescoço com um cobertor.

 

- Tente dormir - recomendou Luke dirigindo-se para a porta - e, se precisar de referências para arranjar trabalho, diga. É uma actriz e tanto! Para a próxima, seja é mais cuidadosa com o papel que escolher.

 

Abriu uma greta da porta e observou o corredor: estava vazio. Pendurou o dístico «Não incomodar» na porta e desceu a escada das traseiras, oito lances até à garagem. Chegara o momento de enfrentar de novo o inimigo, pensou, mas dessa vez com um pequeno plano.

 

O Hospital Municipal de Bóston ficava a cerca de três quilómetros do hotel. Como muitos grandes hospitais municipais, era no que respeitava à arquitectura, um agrupamento de edifícios grandes e pequenos, novos e velhos, para demolir e em construção’, ocupando dois quarteirões, ligados por uma série de túneis subterrâneos chamados, por quem lá trabalhava, «passagem dos ratos».

 

Luke fizera os seus quatro anos de internato nesse hospital. Fora um dos mais de trezentos jovens médicos que, todos os anos, aceitavam trabalhar mais de oitenta horas por semana em circunstâncias muito dificeis, em troca de sete mil dólares e uma incomensurável prática médica. Os internos e residentes do Municipal de Bóston que conseguiam ultrapassar o escasso número de enfermeiras, o equipamento antiquado e a política municipal obstrucionista, saíam de lá muitas vezes como excepcionais especialistas.

 

Tinham passado quase três anos desde que Luke visitara pela última vez o hospital, mas poucas mudanças encontrou. Deixou o Volkswagen de Connie numa rua próxima e entrou pela porta lateral do edifício, que dava para uma sala onde os médicos de serviço dormiam, quando podiam. Como eram só nove e meia, o edifício estava quase deserto, por isso não teve dificuldade em encontrar um cubículo com pilhas de batas e casacos lavados, vindos da lavandaria.

 

Dez minutos depois, envergando as calças e o casaco branco dum interno, Luke saiu do elevador no nono andar do bloco operatório. A sua decisão de ir ao hospital apoiara-se na necessidade de ter à sua disposição uma arma qualquer para enfrentar os homens que mantinham Karen Samuels presa. Depois de pensar bem no assunto, decidiu-se pelos medicamentos.

 

Não tinha intenção de ferir alguém e sentia-se incapaz de utilizar uma faca ou um cacete. Durante a guerra, andara com uma M-16 e uma pistola nas zonas de combate, mas nunca disparara qualquer delas fora duma carreira de tiro. A ideia de um médico matar propositadamente alguém fora sempre anátema para si, mas, se tivesse de o fazer, talvez fosse nessa noite.

 

Pensou em diversos medicamentos susceptíveis de serem ministrados hipodermicamente e que, se utilizados nas quantidades certas, podiam incapacitar um homem sem o matar. A maior parte estava entre o material usado pelos anestesistas, e ele adquirira alguma experiência ao trabalhar com eles durante um período de estudo de três meses.

 

Tentando aparentar decisão e à-vontade, passou por duas portas de vaivém e entrou no bloco operatório propriamente dito, onde só uma das salas não estava às escuras, pois nela uma equipa operava uma vítima de arma de fogo. Através da porta fechada, ouvia a tensa conversa entre os três médicos e as duas enfermeiras que lutavam por salvar a vida do homem.

 

Ficou ali uns minutos, a ouvir o drama que se desenrolava lá dentro e, absorto, não deu pela aproximação duma enfermeira, até que esta falou. Surpreendido, voltou-se, sentindo imediatamente a subida da adrenalina e a consequente sensação de vazio no peito.

 

Era uma mulher atarracada, de pescoço curto, com um proeminente tufo de pêlos escuros sobre o lábio superior, e a roupa verde da sala de operações ainda a tornava mais volumosa. Ficou parada, a olhá-lo com curiosidade e censura.

 

- Desculpe, doutor, mas o que está aqui a fazer? - perguntou a mulher.

 

Sou o doutor Sullivan - respondeu Luke, tentando desesperadamente avaliar se a enfermeira podia ser uma ameaça.

- Começo a trabalhar amanhã como anestesista e estava a ver se me orientava, se descobria onde estão as coisas.

 

- De que programa faz parte? - insistiu a enfermeira, de mão na anca e pernas afastadas, observando a nódoa negra na testa dele.

 

Luke sentia as palmas das mãos cada vez mais húmidas, pois não tinha como recuar, nem maneira fácil de acabar com aquele confronto.

 

- Sou o chefe dos internos do Programa de Acompanhamento Familiar - justificou-se, - Porque pergunta?

 

- Bom, doutor chefe dos internos Sullivan, não me parece que tenha passado muito tempo em blocos operatórios. Ninguém pode andar aqui sem bata verde - replicou a mulher.

 

- Meu Deus, que maneira de começar! - exclamou Luke, com um ligeiro suspiro e sentindo a tensão diminuir. - Aqui estou eu, que devo dar exemplo aos internos, e venho para o bloco sem a bata verde! Obrigado por evitar que eu fizesse alguma coisa realmente absurda, como entrar no bloco operatório. Não se importa de me dizer onde fica a sala dos médicos? Gostava de poder entrar e ver o que estão a fazer.

 

- Tem de passar outra vez por aquela porta e depois virar à esquerda - explicou a enfermeira, com uma expressão mais

amena.

- Obrigado. Olhe, onde param os internos de anestesia?

- última porta à direita, no mesmo corredor.

 

Com o pulso acelerado, afastou-se dela, dirigiu-se à sala dos médicos, envergou as calças e a bata verdes, voltou ao bloco e entrou imediatamente na Anestesia. A porta não estava fechada à chave e, excitado, encontrou o que procurava numa prateleira à esquerda duma velha secretária muito riscada.

 

Alinhados na prateleira, estavam três tabuleiros de anestesia, com os respectivos tubos, agulhas e dúzias de ampolas de medicamentos injectáveis. Como esperara, viu também vários frascos dos medicamentos que queria e ainda um pequeno saco de pano com o laringoscópio utilizado para afastar a língua do paciente e expor as cordas vocais antes de inserir o tubo respiratório na traqueia. Esvaziou o saco e encheu-o com seringas, agulhas e três frascos de cada uma das substâncias que tinha escolhido - pancurónio e quetamina.

 

Enfiou o saco no bolso de trás das calças verdes, puxando-as o mais para cima possível, para o casaco tapar o volume. Passou pela sala quatro e estava a menos de seis metros da porta de saída quando a enfermeira atarracada saiu de lá, fazendo o coração dar-lhe um salto no peito.

 

- O doutor Klein diz que pode entrar e ver o resto da operação, doutor Sullivan. Venha comigo, que eu arranjo-lhe pantufas e uma máscara.

 

Durante uma hora, que mais lhe pareceram vinte, Luke ficou atrás do cirurgião, de pescoço estendido para ver a incisão. Tão depressa se amaldiçoava por não ter arranjado uma desculpa que lhe evitasse aquela demora, como se ria interiormente do absurdo da situação. O controlado e imperturbável Dr. Luke Corey ali vestido como um interno, a quilómetros de casa, assistindo a uma operação feita por jovens médicos que não conhecia, com um saco cheio de medicamentos e seringas encostado à nádega direita.

 

Por fim, quando os colegas se preparavam para coser a incisão do externo até ao púbis, Luke afastou-se da mesa, agradeceu à equipa tê-lo deixado assistir e saiu da sala.

 

Um quarto de hora depois, metia o Volkswagen à estrada para a viagem de cem quilómetros até Cape Cod. Um cartaz electrónico na berma informou-o de que a temperatura não passava dos oito graus centígrados e de que eram onze da noite. O saco de pano com os medicamentos de que se apropriara descansava no banco a seu lado. A quetamina era o que esperava utilizar se, na realidade, fosse obrigado a isso. Tratava-se de um dos anestésicos de mais rápida acção que tinha a propriedade única de agir quer fosse administrado na veia, quer directamente no músculo. Pouco depois de receber uma injecção, o doente entrava no estado de «anestesia desassociativa», em que a dor desaparece e todos os outros modos de percepção ficam distorcidos, como o efeito duma alucinação. Dois minutos depois da administração de quantidades suficientes de quetamina, o paciente fica totalmente apático e essencialmente desprotegido.

 

O outro medicamento, o pancurónio, não é um anestésico, mas, tal como o curare, donde é retirado, paralisa rapidamente todos os grupos de músculos. Contudo, Luke não tinha qualquer vontade de utilizar essa droga, visto saber que entre os músculos que ficariam paralisados se encontravam os que controlam a respiração. Com uma suficiente injecção de pancurónio e sem o auxílio do respirador, uma pessoa morria numa questão de minutos. Assim, levava consigo o suficiente de cada medicamento para imobilizar ou matar vários homens.

 

Apesar da frescura da noite, o volante continuava húmido de suor enquanto conduzia o carro, a oitenta.

 

14 de Agosto de 1969 Querido Luke,

 

Esta carta é a coisa mais difícil e dolorosa que alguma vez tive de fazer. Queria desesperadamente poder sentar-me ao pé de ti, falar-te do que tem vindo a acontecer e de como me sinto, mas já passaram seis meses desde que te mandaram para esse sítio horrível e nem sequer faço ideia de quando voltas para casa.

 

Parece que cada ano que passámos juntos só falámos de como as coisas vão ficar melhores no ano seguinte. Sabes tão bem como eu que já antes de ires para o Vietname o nosso casamento não ia muito bem, Estou aborrecida comigo própria por nunca ter arranjado maneira de te partilhar com a medicina e os doentes, mas acho que sou assim mesmo.

 

Tu és uma das pessoas mais bondosas, sensíveis e maravilhosas que já conheci, e quero que saibas que te amo e provavelmente amarei para toda a vida. Infelizmente, o nosso amor não parece ser suficiente para contrabalançar a vida em comum que perdemos nos últimos seis anos. Custou-me imenso suportar sozinha todas aquelas noites da tua faculdade e do internato, e agora, que estás a milhares de quilómetros de distância, a minha vida transformou-se num sofrimento constante.

 

Pedi o divórcio e disse claramente ao advogado que não quero levar do nosso casamento senão o que trouxe para ele. Pelo menos, não teremos discussões sobre quem fica com quê e também quero que saibas que nãofoi só a deterioração do nosso relacionamento que me fez tomar esta atitude. Conheci um homem, um homem meigo e nada complicado, que me ama profundamente. É muito menos interessante do que tu, mas está sempre presente quando preciso de contacto físico ou de apoio. Tem um emprego das nove às cinco e vem para casa todas as noites, para junto de mim.

 

Escrevi aos teus pais e à Liz, tentando explicar o que sinto e o motivo do meu pedido de divórcio.

 

Porfavor não tentes convencer-me a desistir isso só tornaria as coisas mais difficeis para ambos.

 

Espero que te mandem para casa em breve, para poderes começar a refazer a tua vida. Sei que há por aí

mulheres com carácter e força suficientes para estarem casadas contigo e com a medicina. Só lamento não ser nenhuma delas.

 

Nunca ficarás completamente fora do meu pensamento e do meu coração, e espero que um dia possamos sentar-nos a conversar como amigos.

 

Com amor, Sarah

 

Era meia-noite e meia hora quando Luke passou pela primeira vez pela Rua de Forestville onde ficava a casa de Evelyn Samuels. Nessa rua, como na maioria das ruas secundárias de Cape Cod, os poucos postes de iluminação junto às árvores eram mais decorativos do que funcionais. A zona era densamente arborizada e cada residência tinha bastante terreno à volta. Sentiu-se encorajado ao ver que a de Evelyn ficava separada das adjacentes por densos renques de carvalhos e pinheiros.

 

Passou várias vezes pela casa, evitando mudanças de velocidade que despertassem a atenção de quem estivesse lá dentro, e verificou que era uma casa rústica branca, impecável, com persianas pretas, um pequeno relvado salpicado de árvores na parte da frente e um caminho de pedrinhas soltas que levava a um abrigo para carros. Viu luzes nas janelas do lado direito, mas as da esquerda estavam às escuras.

 

Um carro pequeno, estrangeiro ou monovolume, estava estacionado no abrigo e outros dois na rua, um de cada lado. À segunda passagem, Luke reparou na palavra «Polícia» ao lado da matrícula dum carro azul e, quando passou de novo, conteve a respiração, apertando mais o volante, ao notar o farol direito partido e o pára-choques torto do Ford preto estacionado do outro lado da rua, mesmo diante do número cento e quatro.

 

Teve várias ideias, mas foi-as abandonando umas a seguir às outras, na tentativa de elaborar um plano que lhe permitisse enfrentar separadamente os dois homens que se encontravam no interior da casa. Por fim, ainda sem um esquema definido, estacionou no quarteirão seguinte e foi-se aproximando da casa por entre as árvores. No bolso direito do casaco levava duas seringas, cada uma com uma dose incapacitante de quetamina; no esquerdo, duas outras cheias com doses letais de pancurónio.

 

A noite estava excepcionalmente calma. Ao aproximar-se, teve a certeza de que as pessoas dentro da casa conseguiam ouvir as pulsações do seu coração, que lhe soavam como tiros. Mantendo-se tão baixo quanto lho permitia a dor na perna, atravessou rapidamente o estreito pátio das traseiras e encostou-se à parede da casa.

 

Espreitando pelas janelas, deu a volta até avistar uma sala agradavelmente decorada. As três pessoas, que lá se encontravam, ficaram dentro do seu campo de visão ao mesmo tempo. Paradise e Spear jogavam às cartas e bebiam cerveja numa mesa baixa, diante duma lareira de pedra, cujas fortes chamas dançantes distorciam as sombras na parede do fundo, enquanto a rapariga estava sentada de maneira que só lhe via a parte de trás da cabeça e as mãos atadas atrás da cadeira. Ficou a olhar lá para dentro durante uns minutos, imóvel, com a cabeça inclinada para o lado e os ombros a moverem-se ritmicamente, ouvindo as ocasionais explosões de riso dos dois homens, que atravessavam a fresca noite de Abril.

 

Tocou nas seringas dentro do bolso e voltou para o pátio das traseiras da casa. Uma ideia começava a cristalizar-se e, observando de novo o abrigo para os carros e as árvores em volta, o plano, foi-lhe parecendo cada vez mais plausível. A um canto do abrigo, viu uma lata de sete litros e meio de gasolina, quase cheia, e na orla do bosque havia uma grande pilha de galhos cortados, além de um monte de jornais, junto à porta de trás.

 

Precisou de doze cuidadosas viagens através do pátio, mas quando acabou tinha um muro de galhos com mais dum metro de altura ao longo de toda a parede das traseiras. Completou-o com jornais amarrotados enfiados ao acaso na parte inferior, depois, cansado, deixou-se cair na relva fria, admirando a sua criação.

 

De repente, ficou imóvel, perante um terrível rosnar muito perto, à sua direita. Um grande doberman estava parado na orla do bosque, a cerca de três metros dele, com os dentes à mostra e o pêlo negro a brilhar à luz da Lua. Embora não tivesse muito medo de cães grandes, também nunca se sentira muito à vontade ao pé deles. Inexplicavelmente, contudo, a sua reacção naquele momento não foi de medo nem de pânico. Durante um interminável minuto, tanto ele como o belo animal ficaram perfeitamente imóveis, de olhos um no outro, com as nuvens brancas da respiração quase a tocarem-se.

 

Depois, num lento movimento suave, Luke levantou um braço e estendeu-o, com a mão fechada, na direcção do cão. O rosnado parou imediatamente e, com as narinas a tremer, o animal avançou, aproximando o focinho da mão do médico. De repente, fez um estranho ruído sibilante do fundo da garganta, recuou um pouco, voltou-se e desapareceu por entre as árvores, num unico salto.

 

Segundos depois, Luke estava de pé, dirigindo-se rapidamente para a rua seguinte. Deu a volta ao quarteirão e aproximou-se do Ford do lado contrário à rua, protegido da casa pelo carro. Respirou de alívio ao encontrar a porta só no trinco e meteu a mão lá dentro para abrir o capô. Durante os trinta segundos de que precisou para desligar o fio do distribuidor, ficou à vista da casa, mas ninguém apareceu à janela.

 

Voltou pelo mesmo caminho, molhou os galhos com a gasolina e, por fim, fez um rastilho de papel de jornal ensopado também em gasolina até ao carro, no abrigo, despejando o resto do combustível debaixo dele.

 

Ia a correr por entre as árvores o mais depressa que conseguia quando o muro de galhos pegou fogo.

 

Paradise reparou no incêndio segundos antes de a janela da sala de jantar rebentar para dentro. Com um grito de aflição, dirigiu-se para os longos cortinados dourados já em chamas, mas uma terrível onda de calor fê-lo parar a alguma distância da janela. Perturbado, mas mantendo um controlo fruto dos seus anos como polícia, voltou-se para Spear, que parecia pregado à cadeira.

 

-A merda da parede das traseiras está toda a arder! gritou. - Chama os bombeiros, quatrocentos e quarenta e quatro, cento e doze. Tenho de me pirar daqui antes que apareçam.

 

Spear levantou-se, atrapalhado, deitando olhares desvairados à sua volta.

 

-Que fazemos com ela? - perguntou.

 

- Leva-a para a tua casa - respondeu Paradise, dirigindo-se para a porta. Depois, olhou para a rapariga e disse: - Se ela te chatear, dá-lhe um tiro num joelho. Agora chama lá o raio dos bombeiros, pois continuamos sem saber se o que procuramos está ou não nesta casa.

 

E saiu porta fora, ouvindo-se o carro da polícia pouco depois a acelerar pela rua abaixo.

 

O ruído do fogo, um inferno que cobria toda a parede traseira, obrigou Spear a dizer a morada aos gritos pelo telefone, até ter a certeza de que os bombeiros tinham percebido. Karen Samuels continuava sentada, mas com a cabeça erguida, a vê-lo correr dum lado para outro. O lenço branco que lhe enchia a boca dificultava-lhe a respiração, mas os olhos cinzento-azulados brilhavam mais de curiosidade e divertimento do que de terror.

 

Spear puxou-a, pô-la de pé, ainda com as mãos atadas atrás das costas, deitou-lhe um sobretudo por cima e abotoou-lho. Uma nuvem de fumo negro entrava pela janela rebentada e a temperatura da sala começava a ficar demasiado quente quando ele a empurrou pela porta da frente, olhou para o carro pequeno, já a arder, e dirigiu-se ao Ford.

 

Vários mirones, a maioria de olhos ensonados e de roupão, observavam o incêndio, agrupados a um lado da casa, mas ninguém os interpelou, enquanto Spear fazia a rapariga atravessar a rua e a metia no carro. Com o estalido morto da ignição, começou a mover a chave freneticamente para a direita e para a esquerda, experimentando as luzes, a buzina e o rádio ao mesmo tempo. Então, o céu nocturno transformou-se em dia e a terra tremeu literalmente com a explosão do outro carro.

 

Luke agachou-se o mais possível na parte de trás do Ford. Pusera um cobertor escuro por cima de si e segurava uma seringa de quetamina na mão direita.

 

Com o clarão e a explosão, a cabeça de Spear voltou-se repentinamente para a direita e Luke, levantando-se imediatamente, passou o braço direito em volta do pescoço do homem. Ao mesmo tempo, espetou-lhe a agulha na base do pescoço e carregou no êmbolo. Spear lutou em vão para se soltar, depois começou a procurar o revólver no bolso do casaco. Luke percebeu o que se passava e disse, com toda a firmeza possível:

 

-Ainda não te dei o suficiente para te matar, mas outro empurrãozinho com o polegar e estás morto. Por isso, põe as mãos no volante e deixa-as lá ficar.

 

Spear parou de se agitar, mas as mãos não apareceram no volante. Luke apertou então mais o cerco com o braço esquerdo e gritou:

 

-Põe lá as mãos, raios te partam! Já!

 

Lentamente, as mãos de Spear apareceram no volante. O homem começava a sentir o coração a bater com mais força e a respiração acelerada. Ao mesmo tempo, um calor reconfortante substituía o medo, enquanto os músculos se agitavam involuntariamente. Pelo pára-brisas, viu um comprido carro dos bombeiros, vermelho, a descer a rua na sua direcção, mas o clarão do incêndio despertava-lhe a atenção, por isso ficou quieto, deixando a luz alaranjada dançar-lhe na mente.

 

Luke largou-lhe o pescoço e retirou a seringa, ao mesmo tempo que o desarmava.

 

- Não tenha medo, Karen - disse ele, tirando-lhe o lenço da boca. - Sou Luke Corey. Agora está tudo bem. Ele já não pode fazer-lhe mal.

 

A rapariga ia começar a falar, mas Luke já estava fora do carro, a ligar o fio do distribuidor. Outro carro de bombeiros acabava de chegar e a multidão de espectadores do outro lado da rua atingia agora várias dúzias. Um bombeiro exclamou:

- Há azar, amigo? Não pode tirar isso daí?

 

- Era um fio solto - gritou Luke. - Saímos daqui num segundo!

 

Entrou no carro do lado do volante, empurrando o dócil Spear de encontro a Karen. Para o homem, luzes, cores e minutos misturavam-se, não conseguindo prestar atenção a qualquer coisa. Tentou falar, mas só foi capaz de emitir uns sons guturais e indistintos.

 

O Ford pegou com facilidade e Luke conduziu cuidadosamente em volta do quarteirão seguinte. Parou, guardou as chaves do carro, desatou Karen e tirou a carteira a Spear. Depois, apearam-se os dois, meteram-se no Volkswagen e desceram a rua, afastando-se das chamas e do caos.

 

Nenhum dos dois falou até terem passado a Ponte de Sagmore. Sem a olhar, Luke perguntou:

 

-Você está bem?

 

- Estou, estou. bem - respondeu Karen.

 

Prosseguiram em silêncio durante dez minutos. Luke sentia-se pouco à vontade, sem saber o que dizer, e também não tinha ideia do que fazer a seguir. Olhou para o relógio e viu que já passava das duas. Com certo esforço, aclarou a garganta e espreguiçou-se, deitando uma olhadela à rapariga à sua direita. Ia sentada no seu lugar, muito empertigada, com uma perna debaixo do corpo, a olhar em frente. Uma lágrima solitária desli zava-lhe pela face esquerda. Parecia cansada e muito frágil.

 

Luke engoliu com esforço e tentou novamente falar-lhe.

- Lamento muito o que aconteceu com a sua mãe - disse-lhe.

 

- Obrigada. Eu também. Olhe. doutor Corey. preciso de mais uns dez minutos ou coisa assim. para tentar recuperar. está bem?

 

- Trate-me por Luke e leve o tempo que quiser. A mim, apetece-me guiar mais um bocado.

 

Durante o quarto de hora seguinte, os únicos sons para além do motor do Volkswagen foram uma ocasional fungadela ou um soluço de Karen. De repente, a rapariga respirou fundo três vezes, voltou-se de lado e encostou-se à porta do carro.

 

- Dou-lhe os meus parabéns, sabe? - começou ela. Nesta noite ocorreu um dos mais criativos primeiros encontros de toda a minha vida. Você tem realmente um certo... estilo!

 

Apanhado completamente desprevenido, Luke respondeu-lhe no mesmo tom:

 

- Pensei que gostasse. Quis manter as coisas simples, com bom gosto mas não saloias. Não é fácil para nós, rapazes do campo, planear a noite adequada a uma rapariga da grande cidade. Se realmente gostou, temos de combinar uma coisa parecida para o próximo fim-de-semana, como, por exemplo, saquear e incendiar Roma.

 

- Talvez prefira pôr Paris a arder - observou ela. - Por falar nisso, você incendiou mesmo a minha casa e fez explodir o meu carro?

 

- Parecia a melhor solução, naquele momento - respondeu Luke, embaraçado.

 

- E foi - concordou Karen, sorrindo. - Obrigada por me tirar, daquele sarilho.

 

- Uest rien - disse Luke.

 

Continuaram mais uns minutos, até que ela continuou:

- Há dois dias que não durmo, Luke. Temos dinheiro para ,um motel?

 

-Claro - anuiu ele. - Parece que há um ali à frente.

- Então, vamos, mas com cuidado. Da maneira como as coisas se têm passado, não me admirava de chegarmos lá e encontrarmos uma tabuleta a dizer «Motel Bates, como no Psico.

 

- Damos conta do recado - declarou Luke, em tom confiante. - Tenho injecções mágicas que chegam para o Norman Bates e a mãe dele. Mas há uma coisa que me preocupa...

- Sim, que coisa? - perguntou Karen.

 

- Bom, da última vez que estive num motel consigo, não se tratava da mesma pessoa. Ajude-me a aclarar as ideias. Quem é a Jackie?

 

- Hum... A viúva do falecido... -Tente outra vez.

 

- Já sei! A primeira jogadora negra do basebol, a segunda base dos Dodgers, com um palmarés invejável.

 

- Mais uma tentativa dessas, Karen, ou lá quem você é, e depois dormimos no Volkswagen, e eu fico no banco de trás.

 

- Está bem - concordou ela, resignada. - Provavelmente, está a referir-se à minha companheira de quarto, Jackie Gallante. Mas não espere grande coisa dela, joga muito mal.

 

Estavam os dois a rir quando o sonolento recepcionista os recebeu e lhes indicou o quarto vinte e três do Motel BelAire, de Weymouth.

 

Diante do lavatório, a lavar a cara, Luke foi-lhe relatando os acontecimentos da noite pela porta entreaberta.

 

-Foi então que decidi tentar chegar cá para a tirar das garras deles - disse, entrando no quarto.

 

Contudo, a maior parte da história não tinha sido ouvida. Karen dormia profundamente numa das camas e a sua roupa estava empilhada numa cadeira a um canto.

 

Luke apagou a luz, enfiou-se na outra cama e ficou acordado algum tempo, de olhos abertos no escuro, até que o sono chegou. Uma hora mais tarde, acordou o suficiente para perceber que a rapariga se metera na cama dele e dormia encostada a si. Abraçou-a, ela remexeu-se para se acomodar melhor, e daí a um momento, também ele mergulhava num sono profundo, sem sonhos.

 

Luke acordou pouco depois do meio-dia e verificou que estava sozinho. Vestiu-se, saiu rapidamente e viu Karen estendida debaixo duma grande árvore, numa pequena colina coberta de erva, do outro lado da estrada. Apoiada num cotovelo, sorriu-lhe quando o viu atravessar. Enquanto se aproximava, percebeu pela primeira vez que ela era muito baixa, esguia, de pele clara e encantadora, parecendo uma garota. O cabelo, dum tom doirado de Outono, quase até aos ombros, emoldurava-lhe os grandes olhos ovais, cinzentos, e a nódoa negra sobre o direito não lhe diminuía os atractivos.

 

Estava novamente um daqueles dias quentes e brilhantes de Primavera da Nova Inglaterra, cheio do fresco aroma de coisas a crescer. Raios de sol dançavam por entre as minúsculas folhas da árvore centenária, espalhando círculos de luz no chão à volta dos dois.

 

Estiveram horas deitados à sombra salpicada de luz, compartilhando episódios das suas vidas, embora sem mencionar a bizarra sequência de acontecimentos que os juntara e conduzira a um local tão improvável.

 

Karen, filha única duma filha única, tinha sido criada em Bóston, mas frequentara um colégio interno em Vermont, a partir dos doze anos. O pai morrera ou saíra de casa muito antes disso, e ela parecia saber pouco acerca do assunto.

 

-O meu pai era o único problema sobre o qual a minha mãe e eu nunca conseguimos falar livremente - contou a rapariga. - Ela quase nunca chorava, mas uma noite, depois de eu a massacrar com uma série de perguntas de fedelha, fui dar com ela a soluçar no sofá, por isso nunca mais pus questões daquele género. Talvez por isso é que me custa tanto acreditar que você ainda não tenha sido capaz de fazer as pazes com o seu pai.

 

-Não lhe custava tanto acreditar, se o conhecesse - retorquiu Luke, brincando com o pé dum dente-de-leão. - Ou talvez devesse dizer «nos conhecesse». Nos últimos anos, escrevi-lhe duas vezes a dar notícias, nada complicado, mas não respondeu imediatamente a nenhuma delas, só meses depois e, das duas vezes, sem mencionar as minhas cartas. Limitou-se acomunicar-me as investigações médicas em que estava a trabalhar e a dizer que a minha mãe tinha muitas saudades.

 

- Também não a vê? - perguntou Karen.

 

-Vejo, claro. Ela vem duas ou três vezes Por ano a Lexington, a casa da minha irmã. Antigamente, costumava dizer que era um disparate a maneira como eu e o meu pai nos comportávamos, que tudo se resolveria assim que um de nós se aproximasse do outro, mas acho que acabou por se fartar de não fazer progressos com ele, no Maryland, e de encontrar a mesma obstinação da minha parte, em Bóston, porque já praticamente não toca no assunto.

 

- Isso é muito triste - comentou Karen. - Quando saí do colégio, decidi que a minha vida tinha sido demasiado protegida, de maneira que fui para Nova iorque e arranjei trabalho como assistente social. Nove décimos da miudagem que me passa pelas mãos não conhece o pai, como eu, mas você, que tem um que provavelmente gosta imenso de si e já está com alguma idade, não consegue arranjar força para levantar a mão e tocar-lhe. Com certeza que uma pessoa que tem a coragem de fazer o que você fez ontem à noite, também é capaz disso.

 

- Pode acreditar que o meu acto de ontem foi uma mistura de desespero e loucura - explicou Luke, um minuto depois.

- A coragem não foi para lá chamada.

 

- Quando o oiço falar da sua relação com o seu pai, quase que o acredito.

 

Dizendo isto, Karen aproximou-se, deu-lhe um beijo, suave ao princípio, mas adquirindo gradualmente energia e paixão.

- Com ou sem coragem, fez uma coisa incrível e maravilhosa por mim - murmurou ela, enquanto Luke se esforçava por fixar uma folha da árvore para evitar entrar em órbita. Faço tenções de descobrir o que é preciso fazer na sua vida e de o ajudar em tudo o que eu puder.

 

Uns minutos mais tarde, estavam de volta ao quarto, despiram-se desajeitadamente um ao outro e começaram a fazer amor. Ela moveu o corpo esguio à volta e por cima do dele, esfregando-lhe os seios no peito e depois nos lábios. Luke sentiu a excitação aumentar rapidamente, demasiado rapidamente. Respirou fundo várias vezes e tentou abrandar o andamento, mas Karen meteu-lhe a língua na orelha, depois beijou-o ainda com mais paixão no pescoço e percorreu-lhe o corpo com os lábios. Ao penetrá-la, Luke tentava ainda recuperar algum controlo sobre a sua excitação desenfreada, mas uns segundos depois estava tudo acabado para ele. Voltou a cabeça e praguejou: -Outra vez não, merda!

 

- Então, Luke, se essa «merda» foi porque tiveste um orgasmo mais cedo do que querias, deixa lá - murmurou ela. Somos novos um para o outro, novinhos em folha. Que esperavas? Eu quase tive um só de te dar um beijo lá fora. És uma brasa e excitante ao tacto e, se calhar, eu também. Gosto de saber que te agradei tanto. Não podemos ficar aqui deitados, abraçados um ao outro? Repetimos mais tarde. Podes crer que nada do que faças ou não faças me desilude.

 

Ele olhou-a, mas não encontrou palavras para lhe responder. Daí a pouco, tornaram a fazer amor, e Luke sentiu uma alegria descontraída que não experimentava desde os primeiros tempos com a mulher. Mais tarde, calmamente deitados a olhar um para o outro, Karen estendeu um dedo e tocou-lhe nos lábios.

 

- Fique mais uns tempinhos comigo, doutor Corey, se puder - pediu. - Devemos ter muito que dizer um ao outro. Quando a rapariga, daí a algum tempo, se vestiu para ir comprar pasta de dentes, champô e umas carnes frias para o jantar, Luke procurou alguma coisa para ler, mas só encontrou a inevitável Bíblia e um Guia para visitantes de Cape Cod e da Costa Sul. «Strathmore, Massachusetts», leu ele, «é possivelmente o mais calmo e pitoresco de todos os municípios de Cape Cod. O visitante ver-se-á afastado da febril vida citadina ao passear, numa vila intemporal, por estreitas ruas ladeadas de árvores, passando por grandiosas mansões, muitas das quais datam do tempo dos grandes navios de madeira.» Riu e abanou a cabeça, perante a ironia.

 

Nesse momento, Karen irrompeu no quarto.

 

-Meu Deus, Luke! Liga a televisão - exclamou ela. Temos de ouvir as notícias. - Parecia não ter uma gota de sangue e tremia incontrolavelmente quando se deixou cair na beira da cama.

 

- Acalma-te, Karen - pediu Luke num tom de voz firme e profissional. - Depois de tudo o que passámos, com certeza que podemos ultrapassar seja o que for juntos. Toma lá duas almofadas. Agora, deita-te e tenta dominar-te. Vou ver se consigo apanhar as notícias.

 

- Ai, Luke, foi horrível - prosseguiu ela, a soluçar. Tinham uma televisão pequena atrás do balcão da loja e de repente... por favor, descobre um noticiário qualquer! Um canal de Bóston.

 

«Recapitulando a nossa história principal da noite», dizia a voz do locutor, antes do aparecimento da imagem, «um médico de Cape Cod é procurado por se supor que está relacionado com a brutal violação e estrangulamento dum modelo de Bóston. Mais pormenores no noticiário das onze. Transmitiremos boletins à medida que forem chegando.»

 

Luke sentiu o quarto girar e, por um momento, julgou que ia perder o controlo dos intestinos.

 

- Ai, não, meu Deus! - era a única coisa que conseguia dizer repetidamente.

 

- Mataram-na, Luke! - gritou Karen histericamente. Como não queria ajudá-los mais, violaram-na e mataram-na! Ela só pedia que não a desfigurassem. E agora mataram-na!

 

Também profundamente abalado, Luke abraçou-a com força, incapaz de pronunciar as mais simples palavras de conforto. O belo rosto e o corpo perfeito de Connie Evans materializavam-se-lhe no pensamento, e as suas súplicas de ajuda explodiam-lhe no cérebro.

 

Por fim, mudou de canal, à procura de mais informações. Quando apanhou o quatro, ficaram ambos ofegantes. No aparelho estava um grande plano de Luke, fardado, uma fotografia tirada pelo exército mesmo antes de passar à disponibilidade. Incrédulos, ouviram a notícia da morte de Connie Evans.

 

«Pouco depois do meio-dia», disse o locutor, «uma empregada descobriu o corpo e avisou o gerente do Sheraton de Bóston, que chamou a Polícia. A vítima tinha sido espancada e sexualmente violentada antes do estrangulamento. Um médico de Cape Cod, o doutor Lewis T. Corey, é procurado por suspeita de ter cometido este crime. Fontes policiais afirmam que Corey, de trinta e seis anos, foi visto a entrar no hotel com a modelo, na noite anterior à sua morte, mas ninguém se apercebeu da sua saída, depois disso. A autópsia indica que a morte deve ter ocorrido por volta das três horas da manhã. A identificação de Corey, veterano condecorado da Guerra do Vietname, foi feita através de impressões digitais encontradas no quarto. Connie Evans, de vinte e dois anos, trabalhava a tempo parcial para a agencia de modelos Diamante, de Bóston. Vivia em Quincy, mas estava registada no hotel com o nome de Karen Samuels, de Nova iorque.»

 

A seguir, mostraram uma provocante fotografia de Connie, com um transparente vestido branco, a cabeça inclinada para trás e o longo cabelo preto a esvoaçar. O sorriso do modelo evocava um jantar à luz das velas e um cálice de Courvoisier junto a uma lareira crepitante.

 

«0 suspeito, Corey, médico de clínica geral em Strathmore, é divorciado.»

 

A fotografia de Luke, fardado, apareceu novamente na televisão, enquanto a voz propositadamente imparcial continuava: «Uma equipa de exteriores do canal quatro está em Strath-more, onde a repórter Rboda Martin vai entrevistar o doutor T. Kenner Putriam, sócio maioritário da clínica de Strathmore onde também trabalha o doutor Corey.»

 

Apareceu uma jovem morena, bonita, empunhando um grande microfone entre ela e um Ken Putriam calmo, mas de lábios apertados.

 

«Encontro-me em Cape Cod com o doutor Kenner Putriam, sócio do suspeito deste crime, Lewis Corey. Doutor Putriam, há quanto tempo conhece o doutor Corey?»

 

«Somos sócios há mais de quatro anos, Rhoda.»

 

Os seus anos de político tinham-lhe proporcionado muitas oportunidades de dar entrevistas televisivas, e via-se que estava perfeitamente à vontade. Olhava directamente para a câmara e falava num tom comedido.

 

«Quando foi a última vez que soube do doutor Corey?», perguntou Voda Martin.

 

«Fizemos a ronda hospitalar juntos no sábado de manhã, mas não sei dele desde essa altura, Voda.»

 

«Quando o viu no sábado, pareceu-lhe preocupado com alguma coisa em especial?»

 

«Nem por isso, Voda.»

 

-Deixa-te disso, Ken! - exclamou Luke, em tom irritado. - Não estás a exagerar com o toque pessoal? Dizes o nome  dela outra vez e a rapariga convida-te para sair.

 

Putriam continuou:

 

«Tinha umas ligeiras contusões numa perna e na cabeça, dum acidente rodoviário ocorrido na véspera, mas, tirando isso, parecia bem-disposto. Não posso acreditar que o doutor Corey ,,tenha alguma coisa a ver com esse crime horroroso. Se ele estiver a ver isto, peço-lhe encarecidamente que apareça.»

 

«Muito obrigada, doutor Putriam. Falámos com o doutor Kenner Pútriam, sócio do suspeito Lewis Corey, que acaba de fazer um apelo para que o doutor Corey o contacte ou à Polícia. Voda Martin, em Cape Cod, para o canal quatro.»

 

«Obrigado, Vhoda. E agora o noticiário nacional...»

 

Passaram alguns minutos antes que qualquer dos dois fosse capaz de falar; o breve idílio terminara com a rapidez duma guilhotina. Durante um feliz meio dia, tinham-se afastado do pesadelo, libertando-se da irracional corrente de violência, vivendo num mundo de ternura, palavras e amor. Num instante, esse mundo desaparecera. Como minúsculas criaturas marinhas apanhadas numa grande onda, eram novamente sacudidos por forças, que não compreendiam, para direcções que nenhum dos dois desejava seguir.

 

A voz de Luke tremeu, falhou e desapareceu completamente; os seus olhos estavam inchados e brilhantes, e tinha as mãos fortemente apertadas nas de Karen.

 

-Eles não nos largam - observou. - Nunca mais nos largam, e quando conseguirem de nós o que pretendem, vamos ser simplesmente esmagados, sem pensarem sequer no assunto. Aquela pobre rapariga nunca ouvira falar de nós antes de ontem e agora está morta por causa duma coisa que se encontra em nosso poder. Chegou o momento, Karen, tens de respirar fundo e contar-me tudo o que sabes sobre a chave, tudo. Ela continuou sentada na cama, imóvel, com a cabeça levantada e as pernas dobradas debaixo de si. Os soluços tinham parado e olhava fixamente a escuridão. Luke viu que algum do brilho desafiador que já aceitava como parte do seu aspecto natural voltara aos seus olhos.

 

- Essas pessoas foram de algum modo responsáveis pela morte da minha mãe? - perguntou ela.

 

- Não vejo como. O que me pareceu foi que ela tinha uma pressão sanguínea alta e não ia ao médico.

 

- Aquele tal Spear que me trouxe para o carro... a minha mãe amava-o, sabes? Andou atrás dela durante anos, e ela escreveu-me a dizer que aceitara finalmente a sua proposta de casamento. Era mesmo uma mulher encantadora.

 

-  Acredito que sim - disse Luke, percebendo que só muito a custo a jovem se controlava. Escolheu cuidadosamente as palavras: - As marinhas na tua sala, foi ela quem as pintou?

 

- Eram temas da sua preferência - respondeu Karen. O filho da mãe andava à volta dela só para apanhar a chave, não era?

 

Luke conseguiu não desviar os olhos, mas foi incapaz de responder.

 

-  Ainda bem que ela morreu daquela maneira - continuou Karen com veemência. - Assim que ele apanhasse o que queria, Deus sabe o que lhe faria. Quem me dera que o tivesses matado!

 

- Querida, ouve uma coisa - pediu ele suavemente. Quanto mais zangados ficarmos, mais hipóteses há de cometermos algum erro. Tens de te acalmar, para podermos raciocinar, está bem?

 

Ela inclinou-se para a frente e abraçou-o com força.

 

- Se alguma vez sairmos disto, vais ter a vida cheia comigo. Estás preparado?

 

- Arrisco. Vamos lá, então, que sabes?

 

- Não tanto como podias esperar - começou a jovem.

 

A minha mãe, desde sempre trouxe a chave presa com adesivo ao tornozelo ou ao pulso. Tenho a certeza de que existia alguma relação com um homem para quem ela trabalhou em Bóston.

 

- Conta lá - pediu Luke.

 

- Era um homem de negócios de quem foi secretária. Sei que se chamava Peter, mas acho que nunca ouvi sequer o apelido. Não vivia connosco, mas era parecido com o pai que nunca tive. Por volta dos meus seis ou sete anos, começou a passar muito tempo lá em casa. Deu-me presentes e levou-me ao jardim zoológico no dia dos anos. Acho que Peter e a minha mãe se amavam muito, apesar de ele parecer bastante mais velho do que ela. Morreu quando eu tinha dez ou onze anos e foi o único enterro a que assisti. O Spear mandou cremar a minha mãe, sem qualquer cerimónia, na véspera de eu chegar. Quando isto acabar, quero fazer qualquer coisa, uma festa com flores e música, com todos os amigos e uma sala cheia dos quadros dela. Seria lindo, não achas?

 

- Acho! - concordou Luke. - Pensas que o tal Peter lhe deu a chave?

 

- Tenho quase a certeza. Mais ou menos um ano depois de ele morrer, a mãe mandou-me para um colégio interno. Creio que foi nessa altura que recebeu a chave, em 1963, Nunca falámos disso, a não ser uma vez, quando eu estava em casa de férias. Ela deu um jantar para mim e depois de todos terem saído, ficámos horas a conversar. Acho que tinha bebido um bocadinho de mais, porque arrastava as palavras e estava sempre a desfazer-se em lágrimas. Contou-me que se sentia só desde a morte do Peter e que este gostava muito de mim. Depois, disse que ele escondera uma coisa para nós, algo que valia muito e que, desde que não lhe tocasse, nunca lhe faltaria dinheiro ou segurança.

 

Luke estava inclinado para a frente, espantado por ouvir aquilo.

 

- Fazes alguma ideia do que se trata? - perguntou. -Não, e acho que a minha mãe também o ignorava. Uma vez por mês, aparecia lá em casa, ou no carro dela, um sobrescrito com dinheiro, e julgo que ela nunca soube donde vinha. Mas era impossível mandar-me para aquele colégio e depois pagar-me a faculdade com o que ganhava com os quadros.

 

- Chantagem - murmurou Luke.

 

- O quê?

 

- O que é que podia valer tanto dinheiro para alguém só por ninguém lhe tocar? Tens a certeza de que ela não sabia do que se tratava ou de quem vinha o dinheiro?         ,

 

Se sabia, nunca mo revelou e, depois daquela noite em que conversámos, acho que nem eu queria saber.

 

-Mas com certeza que te disse donde era a chave, onde estava escondido o que quer que fosse.

 

- Acredites ou não, até aqueles homens sinistros me terem atado e começado a bater-me, nem sequer tinha a certeza de a chave estar relacionada com o dinheiro que ela recebia. A unica coisa que me disse que podia... espera um segundo...

 

-Que é, querida, de que te estás a lembrar?

 

Karen olhava para longe, com os maxilares apertados, os olhos semicerrados, espreitando na escuridão para uma cena e um tempo há muito passados. Com a cabeça inclinada para o lado, falou lentamente, tirando cada palavra da memória com grande esforço.

 

Sim, lembro-me, foi nessa noite, na noite da festa. Ela chorou, depois riu-se e disse sentir-se muito orgulhosa de eu ter ido para a faculdade; como eu era engraçada quando me escondia no meu «sítio de pensar», ficando lá sentada horas, a olhar pela janela.

 

Luke observava-a, fascinado.

 

- Depois, disse que o meu «sítio de pensar» era um local muito especial, que sempre ali estaria e, se eu alguma vez tivesse um problema, podia ir lá, ficar sozinha e procurar respostas para as minhas dúvidas.

 

-  «Sítio de pensar»? - perguntou Luke.

 

- Era o que eu costumava chamar à janela da casa da senhora que tomava conta de mim, perto da qual me sentava quando tinha alguma coisa que me preocupava ou aborrecia. Era no sótão, uma janela redonda com tiras de madeira que a faziam parecer uma tarte de vidro.

 

-Isso era em Bóston?

 

- Claro, a uns dois quarteirões da nossa antiga casa. Eu costumava ir para lá depois da escola, quando a mãe estava a trabalhar, e às vezes dormia lá, se a mãe e o Peter saíam à noite. Depois já não ia tanto, logo que fui para o colégio interno, e nunca mais lá voltei desde que nos mudámos para Cape Cod.
-Quando foi isso?

 

- Há mais de dez anos. Achas que a chave é dessa casa, Luke?

 

- Tudo é possível - comentou ele. - Mas como podia a tua mãe saber que o «sítio de pensar» estaria sempre lá? Diz-me tudo o que te lembras da casa e dessa senhora.

 

- Ai, era uma casa antiga linda, perto da nossa. Nós morávamos em Mattapan. A senhora chamava-se Theona e era uma preta muito gorda, a melhor e mais maravilhosa pessoa do mundo. Sabes onde é Mattapan?

 

- Sei, perto de Dorchester, acho eu. Mas, segundo me lembro, é uma zona bastante difícil.

 

-Estava a mudar já nessa altura - explicou Karen. Acho que foi por isso que a minha mãe decidiu mudar-se para Cape Cod. Seja como for, queria estar mais perto do mar, pois adorava pintar paisagens de praias e água.

 

- Espera aí um segundo - pediu Luke, excitado. - Vamos lá a ver se percebo. A tua mãe disse-te que a casa dessa Theona estaria sempre à tua disposição? Que idade tem ela? Sabes se ainda é viva?

 

-É, pois. Eu saberia, se ela tivesse morrido. Recebemos

 

um cartão de boas-festas todos os anos. A mãe costumava tentar que Theona viesse visitar-nos, mas acho que ela estava demasiado doente para fazer a viagem. É muito mais velha do que a mãe, até acho que os filhos já eram todos crescidos e tinham saído de casa quando começou a tomar conta de mim. -Mas porquê essa casa? A Theona era dona dela?

 

-Não faço ideia.

 

-Bom, e achas que eras capaz de dar com ela agora?

- Provavelmente. Tinha uma linda janela redonda com um vitral por cima da porta. A janela do meu «sítio de pensar» era nas traseiras. Aposto que, se fôssemos até à minha antiga casa, eu depois conseguia encontrar a dela.

 

- Então, temos de ir até lá. Mas primeiro precisamos de ir buscar a chave.

 

-Não a tens contigo?

 

- Não, mandei-a pelo correio, endereçada a mim próprio, para o Motel Metropolitano e... merda, o pior é se eles julgam que eu me vim embora porque não dormi lá esta noite. Temos de encontrar um telefone.

 

Existia uma cabina a um quarteirão dali e, para seu alívio, Luke verificou que o quarto continuava seu. Depois, tentando soar o mais profissional possível, perguntou se havia correspondência para Francis Sullivan.

 

- Há, sim, senhor Sullivan, está aqui uma carta para si.

- Muito obrigado. Volto esta noite ainda para Bóston com a minha mulher.

 

-Nesse caso, temos de fazer novo registo, para quarto duplo.

 

-Com certeza. Um de nós vai aí ainda hoje, para tratar disso e ir buscar o correio.

 

- Obrigado por nos avisar.

 

A seguir, ligou para a irmã que, como ele esperava, se mostrou desvairada.

 

- Oh, Luke, por onde andas? Estás bem? - perguntou ela, com a voz a tremer.

 

- Sim, Liz. Sabes perfeitamente que não fiz mal àquela rapariga.

 

- Claro que sim, mas já cá vieram duas vezes à tua procura e acho que estão a vigiar a casa. A mãe ligou, porque a história já vem nos jornais de Washington, e disse que o pai ficou muito incomodado.

 

-Por minha causa ou por estragar a sua imagem? -Por favor, Luke...

 

Nesse momento, ouviu-se um leve mas inconfundível estalido na linha.

 

-Bolas, Liz, puseram-te uma escuta no telefone. Tu ... ?

- Pára com isso, Luke! Sabes muito bem que eu nunca faria uma coisa dessas!

 

- Desculpa, Liz, palavra - emendou ele. - Ouve, não te deixes ir abaixo. Duma maneira ou doutra, isto há-de acabar por esclarecer-se. Liga para a mãe e diz-lhe que estou bem. Gosto muito de ti, Liz. Adeus.

 

Minutos depois estavam de volta ao quarto, a examinar o conteúdo da carteira de Jim Spear, espalhado em cima da cama. As únicas coisas de interesse, para além de cento e cinquenta dólares em dinheiro,’eram uma carta de condução e dois cartões de crédito. Havia ainda um cartão-de-visita, que identificava Spear como consultor de investimentos. Luke ia deitá-lo fora quando reparou que havia qualquer coisa escrita nas costas: «Stonehili, 549-2477». Meteu o cartão e as outras coisas úteis na sua própria carteira.

 

- Bom, agora temos de pensar numa maneira de andar por Bóston sem sermos identificados. Tens alguma ideia? - perguntou.

 

- Pintar o cabelo e pôr um bigode? - sugeriu ela.

 

- E talvez uma pala e uma perna de pau - gracejou Luke, mas com pouco entusiasmo. De repente, ficou mais animado e soltou uma gargalhada. - Já sei! é perfeito.

 

- Então diga lá, senhor ilusionista.

 

-É muito simples e deve resultar. Em vez de tentarmos disfarçar-nos, vamos mas é dar o mais possível nas vistas, só que duma maneira que as pessoas evitem olhar para nós.

 

- Achas que a pancada na cabeça pode estar a afectar-te o cérebro? - perguntou ela.

 

- Atreves-te a duvidar do homem que concebeu e dirigiu o grande ataque de comandos a Redfern? Devias ter vergonha! Além disso, temos de fazer qualquer coisa e eu não me sinto seguro com a ideia da tinta para o cabelo e um bigode postiço a separar-me da prisão. Ou de pior ainda.

 

- Muito bem, meu general. Qual é o plano?

 

Uma hora e meia depois, dirigiam-se lentamente pela Rua BoyIston, em direcção ao jardim municipal de Bóston. Karen, com uma recém-comprada gabardina com cinto e um chapéu verde de abas moles, empurrava Luke numa cadeira de rodas. Este tinha um barrete na cabeça e estava embrulhado até ao peito numa manta castanha que ocultava também as palavras «Hospital Municipal», nas costas da cadeira.

 

Ninguém no hospital protestara quando ela empurrou a cadeira com ele para fora da agitada Urgência, principalmente devido à sua excelente imitação duma pessoa com paralisia cerebral, com espasmos incontroláveis na cara e nos braços.

 

A ideia surgira no cérebro de Luke em virtude da grande amizade entre ele e um colega, Stan Willinan, que sofria de grave paralisia cerebral. De facto, muitos doentes sentiam-se pouco à vontade perante um interno com aqueles sintomas, ao ponto de serem incapazes de reconhecer que era provavelmente o médico mais brilhante que alguma vez passara por um hospital civil.

 

«Aposto um jantar no Lochobers em como sou capaz de andar por aí com uma cascavel viva ao ombro e ninguém repara, por estarem todos a tentar não me encarar», tinha ele dito uma vez a Luke.

 

Assim, após uma infrutífera tentativa num consultório particullar, Willman dedicara-se ao ensino e à investigação. E Luke

 

lia muitos documentos importantes provenientes do seu laboratórío.

 

Como suspeitara, conseguiram andar facilmente pelas ruas de Bóston, a ver montras - até jantaram numa esplanada - e os vários polícias por quem passaram não pareceram reparar neles. Dirigiram-se então para o Motel Metropolitano. Quando entrou, Karen tirou a gabardina, revelando uma blusa branca arrendada e transparente. O recepcionista, de meia-idade, ficou tão imerso nas suas fantasias, só de vê-la, que tropeçou nos próprios pés ao entregar-lhe a carta dirigida ao marido.

 

Minutos depois, chamaram um táxi e, com a cadeira de rodas no porta-bagagem, disseram ao motorista que os levasse a Mattapan.

 

Condecoração por bravura,

 

com a Estrela de Prata de Primeira Classe, Capit~~ão Lewis Tyler Corey Exército dos Estados Unidos Washington, Distrito de Colúmbia

8 de Dezembro de 1970

 

Depois de seis meses de serviço na República do Vietname, o capitão Corey ofereceu-se como voluntário para o Grupo de Reacção Médica da Terceira Zona, em Bien Hoa. Antes dessa transferência, servia, longe da linha da frente, como oficial médico do grupo de Milpliapp, no orfanato de 7av Ninh. Ao fim da tarde do dia 21 de Setembro de 1969, o capitão Corey encontrava-se em patrulha voluntária com um pelotão da Primeira Companhia do Terceiro Regimento de Cavalaria dos Estados Unidos. De repente, o pelotão foi atingido por um pesado bombardeamento com morteiros, e três homensficaram imediatamente feridos, caindo em campo aberto. Ofogo inimigo era tão intenso que parecia impossível alguém ir em seu socorro. Perante isso, e sob o ataque cada vez mais cerrado com morteiros, o capitão Corey correu até junto dos feridos e transportou primeiro um e depois outro para a relativa segurança da selva. Apesar deferido numa perna durante o segundo salvamento, voltou, a coxear para o campo aberto, a fim de retirar o terceiro ferido. A poucos metros da segurança, uma granada de morteiro explodiu perto, ferindo-o gravemente nas pernas e matando o homem que transportava. Os primeiros dois feridos foram evacuados, assim como o capitão Corey, tendo todos sobrevivido. Com a sua corajosa acção e total desprezo pela própria vida, o capitão Corey,foi directamente responsável pelo salvamento de dois dos seus camaradas. Por esse acto de heroísmo, é-lhe concedida pelo Congresso e pelo Exército dos Estados Unidos a Estrela de Prata de Primeira Classe.

 

III PARTE

A quarenta quilómetros dali, num canto remoto de Lincoln, Massachusetts, um Cadillac Eldorado seguia por um caminho de terra batida que atravessava uma zona densamente arborizada. Seguindo cuidadosas leis de povoamento e grotescos valores imobiliários, Lincoln continua a ser um dos mais exclusivos e menos acessíveis dormitórios suburbanos. «É realmente impossível comprar uma propriedade grande em Lincoln», diziam muitas vezes os agentes aos clientes. «Tem de se nascer lá.»

 

O Cadillac seguiu por esse caminho durante mais de quatrocentos metros até encontrar um pesado portão metálico entre dois pilares de pedra de mais de dois metros de altura e quase metro e meio de largura. Os faróis iluminaram uma pequena tabuleta preta com letras douradas, cravada num dos pilares, anunciando «Stonehill». O condutor não fez qualquer esforço por dar a conhecer a sua presença nem saiu do carro. Contudo, num instante, os dez mil vóltios que passavam pelo portão e pela quase invisível vedação de arame para lá dos pilares foram desligados. Dois homens de armas numa mão e poderosas lanternas portáteis na outra aproximaram-se, fazendo incidir os focos primeiro no condutor e depois no banco de trás do carro. Ritualisticamente, o homem abriu a janela e entregou as chaves a um dos guardas. Este abriu e inspeccionou o porta-bagagem, devolvendo-as depois e fazendo sinal para o carro passar.

 

A uns quinhentos metros para lá do portão, o arvoredo dava subitamente lugar a um vasto relvado perfeitamente tratado, rodeado por um caminho circular semelhante a uma pista para cavalos. No meio do relvado, uma intricadamente esculpida fonte de mármore tinha em volta várias filas de arbustos imaculados. Ao cimo do caminho ficava a elegante mansão Stonehill, de tijolos brancos, ao estilo de muitas das propriedades de Long Island, com uma larga varanda, numerosas chaminés, telhados pontiagudos e múltiplas pequenas e intrigantes torres. Praticamente todas as luzes da enorme residência pareciam estar acesas, mas, além do Cadillac, não havia qualquer outro veículo à vista.

 

O condutor saiu do carro e subiu os doze degraus de mármore até à porta principal com a graça poderosa dum atleta, Vestia um fato escuro, bem cortado, que lhe acentuava o metro e noventa, os largos ombros e a cintura estreita. A cara, barbeada e sem rugas sob o cabelo louro ondulado, dava-lhe o aspecto de um astro do cinema, o que em tempos sonhara ser. Parou mesmo antes de chegar à maciça porta de carvalho, retirou um invulgar revólver de cano comprido que levava preso no cinto e, com ele pendurado num dedo, estendeu as mãos, com as palmas voltadas para cima. A porta abriu-se silenciosamente e ele entrou no espaçoso átrio bem iluminado. Dois homens atravessaram o chão preto e branco e tomaram conta da arma e do casaco, conduzindo o visitante até ao imenso escritório de paredes forradas a nogueira do Sr. Albert Julian.

 

O homem encaminhou-se directamente para o bar e serviu-se de conhaque, sabendo que o dono da casa o deixaria à espera precisamente cinco minutos até à sua aparição, Acomodou-se num cadeirão e foi beberricando o conhaque, percorrendo com os olhos azuis a opulência que o rodeava.

 

Chamava-se Damian Steele e dispunha, havia alguns anos, da sua própria opulência, embora não da magnitude da de Albert Julian, mas que lhe permitia ser dono de casas em Aspen e na Riviera espanhola. Aos trinta e nove anos, Damian Steele atingira o apogeu da sua profissão. Os seus preços eram tais que não precisava de aceitar mais de três trabalhos por ano. Em quase quinze anos como assassino, nunca tinha falhado uma missão. Apesar desse facto, a Polícia do mundo inteiro não possuía sequer uma fotografia, uma impressão digital ou uma descrição consistente dele.

 

A sua política era sempre arranjar trabalho por intermédio dum agente em Nova Iorque, e só o pedido dum homem na posição de Julian podia tê-lo feito tratar do assunto pessoalmente. O seu preço para qualquer serviço era de cem mil dólares, além das despesas, e, mesmo assim, recusava mais do que aceitava.

 

- Bem-vindo a Stonehill, Damian - disse Albert Julian, fazendo a sua entrada.

 

Steele levantou-se e abraçou calorosamente o homem que lhe dera vários dos seus primeiros trabalhos e que, de tempos a tempos, ainda contribuía para o aumento da sua conta na Suíça.

 

- Tenho muito prazer em vê-lo, Dom Alberto. Está com óptimo aspecto.

 

-Então, Damian, tens de te lembrar que os tempos do Dom Alberto já lá vão! - replicou Julian.

 

Vestia um roupão de seda vermelha e movia-se com uma agilidade que desmentia os seus setenta anos. O abundante cabelo grisalho e o nariz aquilino davam-lhe um aspecto que ficaria bem numa embaixada ou na sala de reuniões duma grande empresa.

 

-Agradeço teres vindo tão depressa - acrescentou ele.

- Eu é que agradeço, senhor Julian. Se não fosse o senhor, era capaz de andar por aí atrás de papéis secundários em algum estúdio de Hollywood. A propósito, esta manhã soube do que aconteceu em relação àquele assuntozinho de Cape Cod. Um acidente infeliz, acho eu.

 

- A culpa foi minha, por ter confiado no aselha do Spear. Damian, gostava muito que o meu filho Carl tomasse parte na nossa conversa. Estou a ficar cansado das responsabilidades duma organização tão grande, e espero que ele possa substituir-me dentro de pouco tempo.

 

-Como quiser, Dom Alb... senhor Julian. Por mim, tudo bem.

 

Julian saiu um momento do escritório e voltou com o filho, que, à excepção do cabelo preto, era uma cópia mais nova do pai. Depois das apresentações, Julian serviu bebidas para os três, antes de se instalar num cadeirão diante de Steele, enquanto o filho se sentava respeitosamente num pequeno sofá de dois lugares a alguma distância do pai,

 

- Quero que saibas que estou muito satisfeito com a maneira como trataste daquele assunto da rapariga em Bóston, Carl - começou Julian, ao que o filho reagiu desviando o olhar modestamente. - Não te esqueças de recompensar devidamente os homens que Fizeram o trabalho. Tens de aprender a ser tão generoso com os que te servem bem, como firme com os que te deixam ficar mal. O Damian teve a amabilidade de nos ajudar a exprimir o nosso desagrado perante o trabalho do senhor Spear. Acho que o chefe da Polícia é suficientemente valioso para nós, por isso teremos de o desculpar por esta vez.

 

O filho acenou com a cabeça, mas manteve-se silencioso.

- São tempos difíceis, Damian, mas muito menos do que eram. Há anos que tentamos estabelecer uma situação que nos permita assegurar economicamente o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos e, tendo isso em vista, a competição nos nossos variados negócios já foi praticamente eliminada. As famílias em Chicago, Miami, Las Vegas e na Costa estão satisfeitas e em paz umas com as outras, pela primeira vez. Mas agora, na véspera do nosso maior empreendimento, aparecem complicações! Como os problemas surgiram no nosso território, as outras famílias estão à espera de ver como os resolvemos. Já recebi telefonemas de Chicago e de Los Angeles a mostrar preocupação com o atraso na solução da potencial ameaça ao nosso programa.

 

Steele ouvia-o atentamente, com o rosto bronzeado transformado numa máscara sem expressão. Tinha só um vago conhecimento da organização mencionada pelo seu anfitrião, mas estava a par do boato de que uma única fonte de poder tinha conseguido, nos últimos anos, unificar o sindicato do crime a nivel nacional duma maneira que sempre se julgara impossível.

 

-Acho que o melhor é pôr-te a par de alguns dos antecedentes da situação, a qual te peço que resolvas.

 

- Sabe que eu fico totalmente satisfeito por saber só o que o senhor quiser - observou Steele. - Já me comprometi a fazer tudo o que puder para o ajudar.

 

- Eu sei, Damian, eu sei - assegurou Julian -, mas espero que o que te vou contar frise bem a necessidade duma eficiência discreta da tua parte. Além disso, o meu filho sabe pouco do que vou contar, e é um projecto que eu quero que ele supervisione pessoalmente.

 

O Julian mais velho acabava de dar uma ordem ao filho sem um aceno sequer na sua direcção. Este inclinou-se ligeiramente para a frente e começou a fazer girar nervosamente o grande anel de oiro e diamantes do dedo mínimo da mão esquerda. Era o único filho do segundo casamento do pai, por isso gozara de benefícios e de uma atenção muitas vezes recusados às duas irmãs mais velhas. Depois dum percurso liceal onde se distinguira mais no campo atlético do que no académico, fora matriculado em Yale. A sua experiência universitária durara três meses e originara uma lesão num joelho até ao regresso a casa, para começar a trabalhar num dos muitos negócios do pai. Contudo, durante mais de dez anos, evidenciara muito mais interesse por mulheres e belos carros do que por qualquer outra coisa.

 

Após vários anos de tíbios esforços, uma noite apanhou uma valente tareia às mãos duma organização rival, que o obrigou a prolongada hospitalização. A partir daí começou a prestar muito mais atenção aos conselhos do pai e à complexidade de controlar uma grande e variada rede de actividades ilícitas. Contudo, nunca chegaria a saber que a organização rival fora realmente um grupo de homens do próprio pai, encarregados de lhe reajustar as prioridades.

 

Naquele momento, tremia literalmente de excitação ao ouvir o pai conferir-lhe tão importante responsabilidade, ainda mais significativa pela oportunidade de trabalhar com o lendário Damian Steele. «Tenho de ligar àquela tipa dos estilistas e dizer-lhe que amanhã à noite fica sem efeito», pensou para consigo.

 

Albert Julian recostou-se na cadeira, cruzou as mãos e olhou alternadamente para Steele e para o fogo que crepitava na lareira.

 

-No fim dos anos cinquenta e princípio dos sessenta, várias famílias competiam pelo controlo das principais operações monetárias no Nordeste. Durante algum tempo, as coisas ficaram mesmo feias e muitos homens, e bons, foram mortos nessas guerras. Cada uma das famílias tinha o seu grupo de políticos, polícias, juizes e jornalistas, sendo evidente, pelo menos para mim, que a organização que controlasse os mais influentes e poderosos acabava por vencer.

 

«0 meu ajudante e amigo íntimo nesse tempo chamava-se Ferlazzo, Peter Ferlazzo. Era duro, leal e, durante anos, foi o meu homem de maior confiança, mas depois teve um caso com a secretária, bastante mais nova, e começou tudo a estragar-se. Ela era realmente uma brasa, com uns belos cabelos negros, cara e corpo dum anjo. Tinha uma filha, provavelmente era mãe solteira, mas o Peter não parecia importar-se. Seja como for, como trabalhava com ele, sabia o suficiente sobre o que nós fazíamos para querer que Peter se afastasse antes de lhe acontecer alguma coisa. Acho que o chateava dia e noite para abandonar a família. Se calhar, até o fazia jejuar! Seja o que for que tenha feito, ele acabou por ceder à pressão e tentou afastar-se. Um dia, escreveu-me a dizer que deixava a organização e que, para garantir a sua segurança e a da rapariga, levava consigo a coisa que menos podíamos perder nessa altura, ou seja, o registo de todos os tipos que tínhamos no bolso - congressistas, juizes, a tropa toda. Com a carta vinha um embrulho com cópias de todos os documentos comprometedores para a organização. Contudo, só queria que os deixássemos em paz, garantindo que ninguém veria aqueles nomes e contas, desde que não os importunássemos, mas que a imprensa e outras entidades receberiam todos esses documentos, se não fizéssemos o que ele pedia. Sei que lhe foi difícil agir daquele modo, só que, como sempre, tive de admirar a sua inteligência e eficácia. Tal como prometeu, os registos nunca viram a luz do dia, até que, anos mais tarde, soube que Peter contraíra um cancro, e nessa altura veio visitar-me. Entretanto, a maior parte da nossa concorrência já fora eliminada ou absorvida, como agora, embora houvesse ainda uns independentes a morderem-nos os calcanhares. Demos um longo passeio, falámos dos velhos tempos e ele disse-me como sempre gostara de mim, que me respeitava e quanto fora difícil afastar-se. Como estava a morrer de cancro, perdoei-lhe e até lhe prometi fazer o que pudesse por ele. Então disse-me que a tal mulher, essa Evelyn, sabia onde estavam os nossos registos, mas, se eu prometesse cuidar dela, garantia-me que os livros nunca seriam vistos por ninguém. Tentei um acordo melhor, mas o teimoso não cedeu, por isso, quando morreu, comecei a mandar dinheiro à mulher todos os meses, e ela manteve a promessa do Peter.

 

Nessa altura, levantou-se, espreguiçou-se e dirigiu-se lentamente ao bar. Steele continuou pacientemente sentado, a passar um dedo pela borda do copo, mas Carl foi incapaz de conter a excitação por ser incluído pelo pai na revelação de informações tão importantes.

 

-Mas, pai, tudo isso aconteceu há anos! Não percebo como...

 

- Senta-te, Carl! - explodiu Julian. - Senta-te e fica quieto.

 

Continuou a servir cuidadosamente três bebidas, deixando acalmar a atmosfera tensa que a sua história criara na sala, e, como se pretendesse contrariar a explosão do filho, demorou-se a reanimar o fogo na lareira e a distribuir as bebidas uma a uma, antes de voltar a instalar-se para continuar o relato.

 

-Durante anos, tratei de fortalecer a organização, ajudando a obter a unificação e a paz que temos agora com as outras famílias por todo o país. Como a tal Evelyn Samuels não me causava problemas, pareceu-me melhor mandar-lhe simplesmente dinheiro todos os meses e esquecer o assunto, mas parte do acordo de paz que ajudei a estabelecer era as famílias contribuírem com os seus recursos e influência, incluindo políticos, polícias e tudo. Assim, embora muitos dos homens que constam dos registos já tenham morrido ou perdido utilidade para a organização, alguns ainda estão por aí e mantêm posições de algum poder, por isso, há três ou quatro anos, duas famílias, sobretudo Moretti e a gente dele de Chicago, começaram a insistir que eu devia fazer qualquer coisa para recuperar os registos. Então, mandei o Jimmy Spear a Cape Cod, onde a mulher vivia. Ele era bem-falante, um tipo vistoso, e facilmente se aproximou. Na realidade, até dizia que ela concordara em casar com ele daí a uns meses, e tinha a certeza de que, depois de casados, conseguiria descobrir o esconderijo dos registos. Até à semana passada, não conseguira sacar-lhe uma palavra, mas as outras famílias e eu estávamos satisfeitos com a ideia do casamento. Contudo, há dias, a tal Evelyn sofreu uma trombose, ou coisa do género, e morreu. Desde essa altura só tenho tido dores de cabeça, a maior parte provocadas pela inépcia do Jimmy Spear. Descobriu que, pouco antes de morrer, ela dera uma chave ao médico que a atendeu, fazendo-o prometer que só a entregava à filha. O Spear estava convencido, e eu concordei com ele, de que a chave se relacionava com os registos escondidos e também de que a filha sabia do caso. Que acham que o idiota fez? Decidiu ir atrás do médico e sacar-lhe a chave antes de este poder entregá-la à rapariga, mas não previu que o tipo era uma espécie de herói da guerra e nada tinha de trouxa, pelo que o resultado foi perder o médico, a rapariga e a chave. É aqui que vocês entram, Damian e tu, Carl. Quero apanhá-los depressa e quero-os mortos, mas não antes de descobrirem onde estão os registos e de mos trazerem.

 

Julian levantou-se, dirigiu-se lentamente à enorme secretária de ébano e mogno, abriu a gaveta de cima e tirou de lá uma grande pasta. Voltou a sentar-se e entregou-a a Steele, que, mais uma vez, deu mostras da sua paciência e maturidade, ficando a segurá-la, por abrir, à espera de novas instruções.

 

- Ficam com toda a organização ao vosso dispor - cominou Julian. - O Carl sabe quem são os homens e as suas especialidades. Arranjámos maneira de o tal doutor lewis Corey ser procurado pelos chuis por matar uma rapariga num quarto de hotel, e já consta entre os nossos amigos polícias que há dez mil dólares para o que conseguir deixar-nos chegar a ele primeiro. Tenho gente a vigiar a antiga casa do Peter, em Belmont, aquela onde a tal Evelyn vivia, em Bóston, e até a da irmã do médico, em Lexington. A casa de Bóston ardeu completamente, provavelmente às mãos do médico, de maneira que não há motivo para pensar que ele volte lá. O facto de saber que é procurado pela Polícia deve fazê-lo andar mais devagar, mas com os agentes e os nossos homens atrás dele, além da fotografia estampada em todos os jornais e na televisão, espero poder caçá-lo antes que deite as unhas aos registos, ou, pelo menos, antes que descubra o que há-de fazer com eles. Dentro dessa pasta, estão umas fotografias e todas as informações que consegui sobre o médico e, como ainda não sabemos grande coisa sobre a rapariga, pus o Lopresti e o irmão a tratarem disso. Temos todos os motivos para julgar que permaneçam juntos e algures perto de Bóston. A Polícia possui a descrição do carro dele; está uma cópia disso aí na pasta. Quando os apanhares, são teus, Damian, e não me interessa o que vais fazer com os corpos. Só quero os registos e saber que ambos deixaram de existir. Está claro?

 

-  Começamos esta noite, senhor Julian - afirmou Steele. O Carl pode ir comigo para a cidade e ficar no meu hotel. Estás de acordo, Carl?

 

Claro que estou, Damian. É uma honra trabalhar contigo. Steele acenou com a cabeça, aprovando o que considerava uma prova de respeito, e chegou mesmo a esboçar um leve sorriso, dirigindo-se ao Julian mais velho:

 

- Não parece que tenham grande coisa a seu favor, neste momento. Comparado com alguns dos trabalhos em que colaborámos, este parece ser bastante fácil.

 

- Não subestimes o médico, Damian. O Spear era um idiota, mas não era mole, e o tal Corey deu-lhe um nó cego, a ele e a dois capangas.

 

- Eu nunca subestimo as pessoas, senhor Julian - garantiu Steele. - Tem sido essa a chave do meu êxito e da minha sobrevivência estes anos todos. Estou muito grato por poder servi-lo, Dom Alberto.

 

Julian aceitou a utilização do seu antigo título naquele contexto, e deu um grande abraço primeiro a Steele e depois ao filho.

 

- Antes de se irem embora, vamos jantar - convidou. Penso que o Burton deve ter tudo pronto na sala de jantar. Escolhi os teus vinhos preferidos, Damian!

 

A noite estava excepcionalmente escura, com pesadas nuvens e uma névoa rasteira, enquanto o táxi percorria a Avenida da Colina Azul em direcção a Mattapan, que, metida entre Hyde Park e a zona de Dorchester, era o centro da comunidade judaica de Bóston. Mansões de uma e duas famílias, cuidadosamente conservadas, sucediam-se ao longo de ruas a subir e a descer, muitas protegidas da rua por altos muros de sebes bem cortadas. Para além duma grande população judaica, a zona continha núcleos doutros grupos étnicos, incluindo polacos, alemães, irlandeses católicos e um número menor de italianos.

 

Os anos 60, contudo, haviam provocado uma rápida transição na zona, com muitas das famílias mais antigas a mudarem-se para os mais espaçosos subúrbios de Newton, Milton e outros. No fim dessa década, uma significativa população negra instalara-se em Mattapan, ocupando três ou quatro famílias, muitas vezes, apartamentos em casas que anteriormente eram habitadas por uma só. A violência de rua aumentou e o aspecto físico de muitos bairros foi-se deteriorando. Gradualmente, no entanto, organizações de moradores, em especial da comunidade negra, foram criando raizes, e as estreitas ruas pareciam retomar grande parte do seu anterior carácter e encanto.

 

Karen ficou surpreendida ao verificar que aquela zona lhe era apenas vagamente familiar. Durante quase uma hora, foi indicando ao espantado motorista de táxi uma rua após outra.

 

-É incrível como tudo isto me parece estranho! - coMentou. - Talvez fosse melhor desistirmos e tentarmos outra vez à luz do dia.

 

- Só mais um quarto de hora - segredou-lhe Luke, reparando na quantia marcada no taxímetro. - Quanto mais dePressa chegarmos ao fundo da questão, mais hipóteses há de sairmos inteiros. - Tinha o chapéu enterrado na cabeça e, Sempre que se lembrava, fazia uma careta ou agitava um braço num espasmo, para evitar que o motorista olhasse para ele durante muito tempo.

 

Passaram outros dez minutos. Luke começava a perder a fé nas recordações de Karen, quando ela de repente se inclinou para a frente, espreitando atentamente pela janela, e gritou para o motorista:

 

-Ali à direita, aquele parquezito! Leve-nos até ali, se faz favor.

 

O parque era na realidade um jardim infantil, com escorregas, caixa de areia e baloiços em postes de metal. Karen apeou-se e dirigiu-se à caixa de areia, olhando primeiro para um e depois para o outro lado da rua. Voltou rapidamente para o táxi e disse, ofegante:

 

- A casa onde eu morava fica ali para cima, voltando para a direita. Acho que a rua se chama Alter ou Almon.

 

Na realidade, a rua era a Avenida Alton. Assim que lá chegaram, Karen teve pouca dificuldade em identificar a sua antiga habitação. Os candeeiros eram um tanto antiquados e, à fraca luz, a casa estreita de dois andares parecia cinzenta, embora fosse provavelmente branca. Ao aproximarem-se, Karen preparava-se para dar instruções ao motorista, mas Luke agarrou-lhe um braço com força e disse:

 

-Acelere, se faz favor, e volte ali à frente!

 

O homem, cada vez mais confuso, fez o que lhe mandavam, enquanto Luke segredava a Karen:

 

-Viste o carro ao pé da tua casa? -Acho que sim. Porquê?

 

-Porque estavam dois homens lá dentro. Vi-os perfeitamente, o que estava ao volante usava chapéu e o outro entretinha-se a fumar. Não me parece que reparassem no táxi, mas, em todo o caso, é melhor tomarmos cuidado.

 

-Tens a certeza, Luke?

 

Tanto quanto possível. Achas que consegues descobrir a casa da senhora que tomava conta de ti? Alguém deve saber que estamos juntos. Não percebo como aquele chefe da Polícia de Strathmore teve a lata de dizer à Polícia de Bóston o que aconteceu ontem à noite, de maneira que talvez nem sejam polícias. São capazes de trabalhar para o Spear.

 

Ela ficou calada um momento, a digerir o que ele havia dito, e depois dirigiu-se ao motorista.

 

- Siga para a direita, se faz favor, mas devagar. - Depois, para Luke: - Temos de encontrar uma casa escura, pelo menos era assim naquele tempo, ou talvez encarnada, com uma janela _redonda com um vitral por cima da porta, ou ao lado, não tenho bem a certeza.

 

Durante os vinte minutos seguintes, encontraram cinco casas com esses requisitos. Karen avistou a primeira quase imediatamente e correu rapidamente para a porta. Ao toque da campainha, surgiu um enorme negro, com uma camisola encarnada que parecia prestes a rasgar-se ao meio devido à tensão de lhe tapar o peito. Muito maior do que ela, quase enchia o vão da porta, com uma lata de cerveja numa mão e um enorme charuto na outra. Do banco de trás do táxi, Lukc ouviu a sua voz profunda.

 

- Então que temos nós aqui? Procura quem? Theona? Isso é nome de negra. Anda à procura duma negra? Não há aqui ninguém com esse nome. Se calhar, tem de se contentar comigo, deve haver alguma coisa que eu possa fazer por si. Pronto, pronto, desculpe lá! Estava só a brincar. Não fique chateada. Gostava de ajudar, se pudesse, mas não conheço essa Theona. De nada. Olhe, desculpe, se a chateei!

 

Karen virou as costas ao gigante e voltou para o carro. -Tinha tanto a certeza de que era ali... - lamentou-se ela, abanando a cabeça e sentando-se ao lado de Luke. - Mas o homem disse que não a conhecia.

 

- Eu ouvi o que ele disse. Reparaste no tamanho do animal?

 

- Reparei. Porquê?

 

- Onde arranjaste coragem para falar assim com ele? Se desse um espirro, atirava-te para o outro lado da rua!

 

- Ah, estavas preocupado comigo, Luke! Que querido! ironizou ela, sem sinal de um sorriso. - Mas estás a esquecer que eu trabalho como assistente social em Nova Iorque. No nosso gabinete, puseram na parede um quadro bordado que diz «Tem coragem porque só se morre uma vez.» Além disso, daqui não vias, mas a mãe dele estava lá dentro sentada numa cadeira de baloiço - acrescentou, muito séria.

 

Durante um momento, abraçaram-se, mas o motorista, que olhava nervosamente pelo retrovisor, interrompeu-os:

 

- Vocês dois aí atrás! Acho que devíamos sair daqui protestou o homem. - Não é seguro para um táxi estar parado tanto tempo num sítio como este. A propósito, têm a certeza de que podem pagar a corrida?

 

Inclinaram-se para a frente, olharam para o taxímetro, que mostrava mais de quarenta dólares, e deram umas risadinhas. Por fim, Luke alvitrou:

 

Talvez seja melhor ficar por aqui esta noite e ver o que te parece à luz do dia.

 

Só mais um bocadinho, Luke, por favor - pediu Karen. Eu sei que é por aqui algures, tenho a certeza.

 

-Está bem, damos mais uma volta durante um quarto de hora, mas desta vez tomamos só nota das moradas, para poder voltar amanhã. Achas bem?

 

- Combinado - concordou ela. - Siga por aquela rua ali à esquerda, se faz favor.

 

As quatro casas que Karen indicou como possíveis ficavam a dois quarteirões de distância umas das outras. Todas tinham telhados muito inclinados, pequenos pórticos e proeminentes janelas redondas ou ovais com vitrais. Na viagem de regresso a Bóston, luke sugeriu que talvez valesse a pena passarem de manhã pelo Registo Predial, para saberem os nomes dos respectivos donos. Tomada essa decisão, continuaram em silêncio até chegarem ao seu destino, onde o motorista, pouco à vontade, ajudou a colocar Luke na cadeira de rodas. Mas, apaziguado por uma boa gorjeta, tocou-lhes a buzina ao passar por eles, já a descer a Rua Tremont. A relativamente falhada incursão custara-lhes quase sessenta dólares.

 

Damian Steele estava junto da janela da sua suite, no quinto andar do Bóston Plaza, observando a rua lá em baixo. Eram quase onze horas e ainda não havia notícias de qualquer dos pontos de vigia. O conteúdo da pasta sobre Corey fora cuidadosamente estudado e estava espalhado em cima duma grande mesa redonda na sala, com círculos a encarnado em volta de factos que lhe pareciam úteis para prever os passos do médico.

 

Tinha de se render perante os recursos e a eficiência de Albert Julian, que, em menos de cinco dias, reunira uma incrível quantidade de material acerca de uma pessoa da qual nada sabia antes. Havia cópias de artigos da Crónica, de Stratmore, da folha de serviço militar, inúmeras fotografias, um extenso perfil pessoal e familiar do médico que parecia ter sido feito por um psicólogo e, na realidade, assim sucedera.

 

Depois de ler e reler os documentos, Steele ficara com um retrato mental bastante pormenorizado do doutor Lewis T. Corey. Percebia agora facilmente as dificuldades que Spear e os seus homens tinham encontrado para prever e controlar as acções do médico. As pistas estavam ali na pasta, vezes sem conta - Corey demonstrava um incrível desprezo pela sua segurança pessoal e total indiferença pela sobrevivência.

 

«0 padrão que ressalta», dizia o relatório, «é dum homem interessado no bem-estar dos outros, mas muito menos no seu. A explicação mais lógica para esta atitude é uma razoavelmente profunda depressão, possivelmente relacionada com uma perda pessoal, privação de afecto durante os anos de crescimento, ou as duas coisas. O documento três, transcrição do interrogatório do doutor Corey Sénior pela Polícia, em Washington, parece apoiar esta teoria. O pai deu pouca ou nenhuma informação sobre o possível paradeiro do filho, afirmando que este não o contactara e que não lhe falava havia vários anos. Não explicou os motivos dessa falta de comunicação, mas o entrevistador parece seguro de que ele avisará a Polícia, se receber notícias, pois em nenhum ponto da entrevista tentou convencer o entrevistador de que o filho não seria capaz de cometer o crime pelo qual é procurado.

 

Ainda a favor da conclusão, estão o divórcio, a folha militar e a conduta profissional. O documento cinco é uma cópia da ,,condecoração que lhe foi atribuída por agir ”com total desprezo

 

pela sua segurança pessoal”, o que não é típico do comportamento dum médico - na realidade, só cinco foram condecorados durante toda a Guerra do Vietname.

 

Durante os últimos quatro anos, trabalhou como clínico geral numa pequena cidade, e fontes aí contactadas (documento dois) usam termos como ”dedicado”, ”solitário”, ”severo” e até austero”. Contudo, as mesmas fontes utilizam também os termos ”invulgarmente inteligente”, ”inventivo” e ”de fácil diálogo”. Foi obrigado a concluir que o conjunto das energias deste homem está dirigido para o exterior e que o seu tipo de personalidade é vulgar em muitos dos médicos mais capazes e de maior êxito, cuja dedicação e desempenho são motivados tanto pelo desinteresse por si próprios, como pela preocupação com os doentes.

 

Concluímos, portanto, que a pessoa em questão é, como parece já ter sido comprovado, excepcionalmente inteligente e expedito. No entanto, as suas acções são um tanto imprevisíveis, já que lhe falta o Impulso da autopreservação que motiva o comportamento da maioria das pessoas. A manipulação do seu tipo de personalidade não pode ser feita por ameaças directas ou pela dor, mas talvez seja possível através da ameaça sobre terceiros, Num confronto directo, é provável que morra em vez de concordar com exigências inaceitáveis e, caso não seja suficientemente provocado, é improvável que utilize violência física contra alguém.»

 

Enquanto Steele olhava pela janela, pensativo, Carl Julian estava estendido num sofá do outro lado da sala, a ler uma revista. Até ali, a sua falta de inteligência e discernimento tinham constituído uma desilusão para Steele, mas estava em excelente forma física e não lhe faltava entusiasmo e vontade de cooperar. «Pelo menos, não deve atrapalhar», pensou steele para consigo, continuando a observar o movimento na rua por baixo de si. A maneira como via as pessoas daquela altura não era diferente da sua visão normal acerca delas - minúsculas criaturas semelhantes a insectos, apressando-se por entre carrinhos de brinquedo, à procura dos seus pequenos prazeres, cada uma aparentemente abstraída das outras, que, apressadas, a rodeiam.

 

Durante um breve momento, a sua atenção dirigiu-se para uma cena que se passava do outro lado da rua, onde quatro brutamontes provocavam uma mulher que empurrava uma cadeira de rodas, cujo ocupante se agitava espasmodicamente. Os homens estavam alinhados a toda a largura do passeio, e imitavam os movimentos involuntários do doente que sorria ligeiramente, enquanto a mulher, depois de hesitar, empurrou a cadeira de rodas por entre dois dos rufias quase atropelando um deles. Steele seguiu o seu avanço com o olhar, até atravessarem a rua e se perderem no trânsito. Depois, viu que os homens se tinham reagrupado e estavam a meter-se com três mulheres vestidas para uma noite de discotecas.

 

Abanou a cabeça, aborrecido, voltou para a pasta com o estudo sobre Corey e tornou a ler o escasso material que as fontes de Julian tinham conseguido sobre Karen Samuels. Vinte e seis anos e ainda solteira, «deve ser um frasco», pensou ele, «ou uma daquelas feministas». Todavia, o seu estudo foi interrompido pelo toque do telefone, mas Carl voltou-se no sofá e atendeu sem se levantar.

- É o Corrigan - disse ele, tapando o bocal. - Um dos tenentes da Polícia que o meu pai tem no bolso. Queres falar com ele?

 

Steele aceitou imediatamente o auscultador e pegou num bloco e um lápis.

 

- Sim?

 

- Dave Corrigan, da Décima Sexta Esquadra. Quem fala?

- Sou a pessoa com quem o senhor Julian lhe pediu que colaborasse sem fazer perguntas. Que tem para mim, tenente?

- Desculpe. Só queria ter cuidado.

 

- Tudo bem. Então, que informação nos pode dar?

 

- Pouca coisa, na verdade, e provavelmente nem é importante, mas o senhor Julian deu-me instruções para comunicar tudo o que acontecesse relacionado com o caso Corey.

 

- Exactamente - confirmou Steele, esforçando-se por não soar impaciente com a conversa mole do polícia. - Quero saber tudo o que lhe chegar aos ouvidos.

 

- Bom, é sobre o carro da rapariga que ele matou, Connie Evans.

- è?

 

- Não conseguimos encontrá-lo, é só isso. Não está em casa dela, em Quincy, nem na garagem do Sheraton. Lançámos um aviso e os detectives destacados para o caso dizem que talvez o médico ande com ele.

 

- Descrição?

 

- É um Volkswagen Carocha encarnado com matrícula de Massachusetts, número quatrocentos e vinte e seis-NMP.

 

- Mais alguma coisa?

- Por enquanto, não.

 

- Muito bem, mantenha-me informado de tudo o que surgir. Se daqui não atendermos, ligue para o outro número que o senhor Julian lhe deu e deixe o recado.

 

Pousou o auscultador e entregou a descrição a Carl.

 

- Temos andado à procura do carro errado. Liga para todos os postos de vigia e eles que procurem este. O Corey e a rapariga estão em qualquer sítio à volta de Bóston, é mais que certo.

 

- Tenho pensado nisso - observou Carl. - Como podes garantir isso? Se eu soubesse que era acusado dum crime de morte, a esta hora já ia a meio caminho do Brasil. Temos quase cem homens, todos colocados nesta área. Porque não estarão em Worcester ou. não voltaram para Cape Cod?

 

- Anda cá ver este mapa, Carl - pediu Steele, expondo a sua lógica mais para reforçar o seu pensamento do que para esclarecimento de Julian. - Cada xis neste mapa da cidade indica um lugar que nós sabemos estar relacionado com o médico ou com a rapariga: a casa da irmã dele, a antiga casa do Ferlazzo, em Belmont, a da mulher que morreu, a faculdade que o médico frequentou e o hospital onde trabalhava, todos não muito afastados uns dos outros. Estamos a contar com a Polícia para cobrir todas as zonas que não podemos vigiar, mas tenho a certeza de que estão escondidos em casa de alguém ou num motel aqui à volta. Devem saber que a Polícia possui a descrição do carro dele, de maneira que, provavelmente, se sentem seguros com o outro e, mesmo que já estejam na posse dos documentos que o teu pai quer, não têm para onde ir com eles. O melhor será esconderem-se durante uns tempos à espera de que a busca abrande. Com uma acusação de crime de morte sobre a cabeça do Corey, não acredito que tentassem a sorte indo à Polícia, mas, se quiserem poupar-nos trabalho, melhor. Faz sentido?

 

-Ainda bem que não andas atrás de mim!

 

Também acho - respondeu Steele, não percebendo a piada de Carl. - Vamos mas é dar a informação do carro à nossa gente.

 

Seguindo pela rampa da garagem subterrânea do Motel Metropolitano e depois no elevador, Karen conseguiu levar Luke na cadeira de rodas até ao quarto, sem repararem neles. Tomaram duche juntos, deitaram-se e examinaram a chave que dera origem às peripécias pelas quais tinham passado. Ojornal da noite trazia a notícia do assassínio de Connie Evans na primeira página, com duas fotografias de Luke, a militar e a da licenciatura em Medicina, mas, tirando isso, dava poucas novidades.

 

-É uma chave com um aspecto bastante inocente, não achas? - perguntou ele.

 

-Donde poderá ser, Luke?

 

-Duma porta qualquer, ou talvez duma gaveta onde se guardem provas dum antigo crime ou coisa assim. A única coisa que não consigo perceber é o motivo por que lhe dão tanta importância. Uma fechadura pode sempre ser arrombada ou arranjar-se outra chave. Se calhar é boa ideia levá-la a uma loja da especialidade e ver se conseguem descobrir alguma coisa pelo número de série. Antes de a mandar para cá pelo correio, copiei o número, para o caso de se extraviar. Já nessa altura pensei que, se calhar, acabava por ir a uma loja.

 

-Porque não a entregaste? - perguntou Karen.

- O quê?

 

-A chave. Porque não a deste ao Spear, em Strathmore?

- Não sei. Acho que quis respeitar o último desejo duma mulher que vi morrer.

 

A rapariga deitou-lhe um olhar reprovador.

 

- Desculpa, Karen - emendou ele, tapando a cara. - Eu nunca a conheci senão como uma pessoa em estado terminal. Além disso, também não gostei da maneira como começaram a lidar comigo.

 

-Mas arriscares-te desta maneira...

 

- Podes crer que, se tivesse percebido que estava em perigo de vida, provavelmente, nesse momento, o caso já estava resolvido, mas agora não me parece que nos deixem fugir, seja como for, portanto, não há grande coisa a perder.

 

- Desculpa, mas não consigo ver as coisas dessa maneira. O teu divórcio foi há anos. Porque não voltaste a casar? -Por nenhum motivo, a não ser por não ter encontrado a

 

mulher certa. Não me importava de tentar o casamento outra vez, mas até agora não apareceram candidatas. Que tem o facto de eu não ter casado a ver com isto tudo?

 

-Talvez nada e talvez tudo - comentou ela, olhando-o bem nos olhos. - Gostavas muito da tua mulher, não é verdade?

- Acho que sim, mas, como tu disseste, isso foi há muito tempo.

 

- Aposto que nunca deixaste outra mulher aproximar-se, porque tens medo de que te magoem outra vez!

 

- Se isto é psicanálise, o melhor é deitar-me ali no sofá gracejou Luke.

 

-Ahhh! toquei no nervo. Desculpa, não queria coscuvilhar, mas já passámos por tanta coisa juntos nestes últimos dias que me sinto muito perto de ti. Se as minhas perguntas estúpidas te,irritam ou incomodam, farei o possível por não falar em coisas sérias.

 

- Não é que fique irritado ou incomodado – replicou é que... - Calou-se e olhou directamente para ela, continuando: - Tens razão, o que disseste deixou-me pouco à vontade. Não sei quem diabo tento enganar, sobretudo agora que uns selvagens vão provavelmente cortar-nos aos bocadinhos daqui a pouco tempo. Quando tive alta do hospital militar, no Japão, não conseguia sair com mulheres. Depois, recebi uma carta da Sarah, a contar-me que casara e ia ter um bebé. Acho que isso fez com que entendesse o recado, e comecei a conviver com mulheres. As coisas corriam bem, até que a pessoa começava a interessar-se por mim e eu fechava-me completamente.

 

- Queres dizer sexualmente?

 

- Isso também, mas fechava-me em todos os aspectos. Não imaginas as cenas de ruptura por que passei naqueles tempos!

- Faço ideia - disse ela. - Então resolveste esconder-te em Cape Cod, não foi?

 

-Talvez. Pensei que devia ir para um sítio onde a vida fosse mais calma, mas adoro o meu trabalho, adoro mesmo. E tenho arranjado tempo para o piano, para tentar pintar e para dar passeios pela praia quando me apetece.

 

- Sempre sozinho e sempre em segurança - comentou Karen.

 

- Nem sempre, ainda saio acompanhado, quando quero.

- Mas nada de relacionamentos sérios, não é?

 

luke não desviou o olhar, mas limitou-se a encolher os ombros.

 

-Ouve - disse ela finalmente. - Temos de sair disto, vamos sair disto. E, quando isso acontecer, quero que confies em mim, que partilhes a tua vida comigo. Sem exigências, sem riscos, só partilhar. Achas que consegues?

 

- Acho que talvez seja uma pergunta académica, mas, se sairmos disto, adorava que fosses tu a tentar encontrar alguma coisa do que me resta.

 

Durante muito tempo, ficaram deitados às escuras, com as mãos, os lábios e os corpos a explorarem-se mutuamente. Ele descobriu a cova macia onde as costas dela acabavam para dar lugar às rijas nádegas, e passou muitos minutos a seguir o seu contorno, enquanto a boca quente da rapariga saboreou cada centímetro do pescoço dele, demorando-se sob a orelha esquerda. Depois, guiou-o para dentro de si, suavemente, e fizeram amor com a intensidade e a paixão de duas pessoas que pensavam talvez não chegar ao dia seguinte. Serviram-se de cada parte dos seus corpos para fazerem perguntas um ao outro, encontrando sempre as respostas. Luke descobriu que Karen preferia ficar de lado, com os joelhos encolhidos e as costas contra o peito dele, movendo-se para trás e para a frente no esforço de o fazer chegar cada vez mais fundo dentro de si. O ritmo das suas respirações e dos seus movimentos foi-se misturando gradualmente, enquanto cada um procurava e encontrava novas maneiras de dar prazer ao outro. De repente, os seus corpos estremeceram e, durante alguns momentos, cada grama das suas energias misturou-se e explodiu em volta deles.

 

Por cima da cidade, a espessa cobertura de nuvens começou a desvanecer-se e um raio de luz da lua cheia entrou pela janela do quarto, banhando-os num lago de prata.

 

Era quase meio-dia quando Luke conseguiu ligar para o Registo Predial. Karen tinha saído mais cedo e voltara com uma garrafa de leite com chocolate e um saco de bolinhos fritos, que devoraram num instante. Quando acabaram, planearam a estratégia desse dia e decidiram não abusar da sorte, andando ambos dum lado para o outro durante o dia, ficando Karen com a tarefa de procurar uma loja de chaves. Impecável, de calças azul-escuras e camisola clara, meteu a chave no bolso, enfiou a gabardina e pôs o chapéu de abas largas, prometendo não voltar sem ter resolvido o mistério.

 

Quando ela saiu, Luke passeou pelo quarto e depois estendeu-se na cama, de olhos fechados, revivendo o que se passara entre os dois. Nunca, em toda a sua vida, se sentira tão excitado com uma mulher, e em paz ao mesmo tempo, sentimentos que imaginara muitas vezes sem esperar realmente vir a experimentá-los. E agora, aparecia-lhe de repente uma rapariga na sua vida e, em dias, ajudava-o a descobrir algo dentro de si que estava enterrado havia anos. «Quero ter a oportunidade de a conhecer», pensou. «Dê por onde der, é preciso arranjar maneira de ter tempo. Se eles lhe fazem mal, eu... Merda! Não podem fazer-lhe mal.»

 

A mulher que o atendeu à terceira vez que ligou para o Registo Predial chamava-se Federman e, ao contrário das duas funcionárias anteriores, era alegre e parecia ansiosa por ajudar no que pudesse.

 

O meu nome é Frank Sullivan - apresentou-se Luke. Estou em Bóston para escolher uma entre várias propriedades, na zona de Mattapan-Dorchester, a fim de a comprar. Ontem, apanhei um táxi para as ir ver, mas parece que há dúvidas sobre os donos de quatro delas. Espero que possa descobri-los, se eu lhe der as moradas.

 

Tinha muito prazer em ajudá-lo, senhor Sullivan, mas não podemos dar essa informação pelo telefone - explicou a mulher. - O Registo fica no edifício Stallworth, no número três da Rua Ingram, e se quiser fazer o favor de vir até cá e preencher..

 

-O problema é exactamente esse, senhora Federman. Sabe, é que eu estou paralisado da cintura para baixo e tenho muita dificuldade em deslocar-me pela cidade na cadeira de rodas. Detesto pedir-lhe que faça uma coisa contra o regulamento, palavra, mas, se fosse possível ajudar-me pelo telefone, poupava-me uma data de problemas.

 

-Senhor Sullivan, claro que compreendo. O meu irmão está numa cadeira de rodas há quase dez anos, teve um desastre de carro. Eu sei como as deslocações são dificeis, além de que a_maior parte dos edifícios públicos não tem sequer as alterações mais básicas para ajudar os deficientes físicos. Por isso, o Tom, o meu irmão, detesta ter de tratar de algum assunto na baixa.

 

-Então ajuda-me?

 

Vou fazer o possível, senhor Sullivan. Dê-me as moradas que lhe interessam e eu depois ligo para si assim que encontrar os nomes.

 

Com um suspiro de alívio, deu-lhe os quatro endereços que Karen apontara na véspera e ficou à espera do telefonema da mulher. Sem material de leitura, ligou a televisão e ficou a ver o sofrimento, as intrigas e o drama da série Médicos. «Quando isto tudo acabar», pensou, «talvez tente escrever um guião para uma telenovela.» De súbito, soltou uma gargalhada. «Não, provavelmente diriam que era exagerado, mesmo como ficção.» O seu sorriso transformou-se num infeliz abanar de cabeça. «Além disso, Luke, quando isto tudo acabar, estás provavelmente na prisão, se tiveres sorte.»

 

Quase duas horas depois, Karen voltou e encontrou-o a dormir de costas, com a almofada em cima da cara. Fechou a porta devagarinho, foi em bicos de pés até à mesa e abriu o saco de papel que trazia consigo. Tirou de lá uma garrafa de champanhe, duas taças, queijo e duas velas. Depois de as acender, trocou a camisola pela blusa transparente e tomou uma pose de modelo junto à garrafa.

 

- Tarã! - exclamou. - Acordai, ó príncipe adormecido! O mistério da chave foi resolvido!

 

Luke estava mais profundamente adormecido do que ela pensava e sentou-se de repente, com as mãos estendidas para a frente, como se quisesse afastar um atacante. Em vez de reparar na surpresa preparada por Karen, olhou logo para o relógio.

- Caramba, são quatro e meia!

 

-Olá, Luke, estou aqui! Que tens?

 

- Ah, olá - respondeu, nitidamente aborrecido. - Desculpa, é que o estafermo da mulher do Registo Predial não me telefonou.

 

- Bom, também já não é preciso. Acertei em cheio, sabes? Até tive tempo para comprar umas coisas para festejarmos disse Karen, dando um passo para o lado e deixando à vista o champanhe e as velas.

 

- Ena, fantástico! Foi com o número de série da chave?

- Claro. Ai, Luke, fiquei tão excitada! Devo ter andado uns vinte quarteirões à procura duma loja de chaves e depois, à esquina dum beco, vi uma, minúscula, com uma tabuleta superminúscula. Lá dentro estava um homenzinho com um grande bigode grisalho, rodeado por milhares de fechaduras empilhadas por todo o lado, que trabalhava com uma máquina de fazer chaves. Seja como for, mostrei-lhe esta e perguntei-lhe se havia maneira de descobrir donde era. Ele observou-a de todos os lados e disse-me que era velha e que nem sequer tinha o mesmo modelo para fazer um duplicado.

 

- Vá lá, vá lá - interrompeu Luke, excitado. - Diz lá o que descobriste.

 

-Então, não queres ouvir esta história tão interessante? -Contas-me os pormenores depois. Donde é o raio da chave?

 

-Dum prédio de escritórios.

- Dum quê?

 

- Sim, dum dos escritórios no sétimo andar, para ser exacta. Paguei vinte e cinco dólares ao homem e ele telefonou à fábrica dessas chaves. Acho que gostou do meu corpo. Demorou um bocado, mas disseram-lhe que as daquela série tinham sido todas feitas ao mesmo tempo, como parte dum grande contrato de construção. Deram-lhe a morada e até informaram de que andar era. Por isso, amanhã vamos lá, abrimos a porta e resolvemos o mistério duma vez por todas.

 

-Calma, querida. Diz lá onde é o edifício. -Na baixa,    no número três da Praça de Bóston.

 

-E aquela história a respeito do teu «sítio de pensar»? Não sei. Achas que é possível o que a minha mãe dizia não estar relacionado com a chave?

 

-Bom, foi contigo que ela falou. Julgas que se referia à chave ou não? - perguntou Luke, nitidamente irritado. Passa-se alguma coisa, Luke. Eu disse ou fiz alguma

coisa que te aborrecesse? Se assim foi, tens de falar comigo sobre o assunto, em vez de ficares aí sentado a deixares-te roer por dentro.

 

Num instante, a rapariguinha era de novo uma mulher. Sentou-se à beira da cama, mas não fez menção de lhe tocar. Luke sustentou-lhe o olhar todo o tempo que pôde, mas acabou por desviar o seu.

-Não vais deixar-me levantar muros, pois não? - perguntou. - Desculpa, querida, mas antes de adormecer estive a pensar na nossa maravilhosa noite e acho que comecei a ficar aborrecido por não podermos esperar um futuro de mais do que umas horas, agora que finalmente encontrei uma pessoa como tu.

 

Karen aproximou-se dele e abraçaram-se. Os olhos dela encheram-se de lágrimas e uma deslizou-lhe pela cara.

 

Não acreditas que vamos sair disto, pois não?

 

Luke começou a responder, mas foi interrompido pelo toque do telefone. Com a pressa de atender, quase a atirou ao chão.

 

- Sullivan - disse ele.

 

- Senhor Sullivan, daqui é a Cecelia Federman. Lembra-se? Do Registo Predial? Desculpe ter levado tanto tempo, mas alguns dos livros de que eu precisava estavam a ser consultados e fiquei à espera.

 

-Não faz mal - respondeu Luke, tentando respirar normalmente. - Agradeço-lhe muito a sua ajuda. Conseguiu descobrir os nomes dos proprietários?

 

-  Consegui, mas nenhum deles vive nestas moradas.

 

- Isso não admira. Tenho aqui um lápis. Pode ditar-me os nomes e as moradas?

 

Os primeiros três nomes nada lhe disseram, mas tomou nota na mesma. Então, quando a mulher leu o quarto, Karen ouviu-o respirar com mais força. Em grandes letras, Luke escreveu: Rua Abbott, 22. - Proprietária: Evelyn D. samuels.

 

Quando desligou, olharam um para o outro em silêncio até que Karen disse:

 

- Então, era assim que ela sabia que o meu «sítio de pensar» estaria sempre ali... Não fazia ideia de que a minha mãe fosse dona duma casa sem ser a nossa.

 

- Tens a certeza de que o homem das chaves não te enganou?

 

- Tanto quanto posso estar certa de alguma coisa. Como te disse, acho que excitei as hormonas do velhote, e ele parecia realmente com vontade de me ajudar.

 

- Isso é incrível - lamentou-se Luke. - Não tínhamos um sítio onde a chave servisse a agora há dois. Bom, não podemos fazer grande coisa a respeito do prédio de escritórios esta noite. Acho que é melhor ir visitar a senhora que tomava conta de ti.

 

,- Gostava de poder telefonar-lhe para lhe dizer quem somoss e ter a certeza de que está em casa. Quanto menos andarmos em público, melhor. Vem outra vez um artigo na primeira página dos jornais, com uma fotografia tua. Acho que um médico fora da lei é coisa grave, não?

 

- A visibilidade acompanha a profissão. Quando cheguei a Strathmore, descobri que, assim que tinha uma borbulha no nariz, a notícia aparecia no jornal local. Bom, vamos ficar quietos até estar escuro, de maneira que talvez seja boa ideia abrir o champanhe e festejar o facto de estarmos juntos.

 

Pegou na garrafa e soltou a rolha, continuando a falar:

- Os meus pais devem estar completamente desfeitos com esta história, sabes? Acho que talvez fosse boa ideia eu ligar para eles, se passarmos por uma cabina. Não, pensando melhor, e apesar de ninguém saber ao certo se estamos em Bóston, devem ter a linha deles sob escuta e são capazes de nos localizar, nem que eu fale só um minuto. O mais inteligente é não lhes dar essa hipótese, pelo menos até resolvermos o caso da chave ou até a publicidade sobre o crime ter acalmado.

 

- Espera, Luke! - pediu Karen, com um sorriso excitado.

- Acho que me lembrei!

 

-De quê? Foi alguma coisa que eu disse?

 

- Não, desculpa, mas acho que me lembrei do apelido dela. -De quem?

 

Da Theona. Settles, é o último nome dela, tenho a certeza.

 

Na lista dos telefones de Bóston, encontraram T. Settles no vinte e dois da Rua Abbott. Karen marcou o número e, ao quinto toque, uma mulher atendeu.

 

-Pretendia falar com a senhora Theona Settles. Ela está, se faz favor?

 

-Sou eu. Quem fala? - A voz era ligeiramente rouca, mas forte, e falava com o ritmo arrastado dos negros do Norte.

- Theona! Estou muito contente por a encontrar. É a Karen, a Karen Samuels. Lembra-se de mim?

 

-  Se me lembro? Karen, minha querida, que bom saber de si! Há dez anos ou mais que não a vejo. Como está a sua mãe? Foi por isso que eu telefonei, Theona. Tenho uma notícia

 

muito triste para si. A mãe teve uma trombose e morreu na quinta-feira no hospital de Stratmore.

 

Fez-se silêncio do outro lado e depois Theona disse:

 

- Era uma grande mulher, a sua mãe. Sabe que não acei-’ tou um tostão de renda durante estes anos todos? Eu tentava pagar e ela nunca recebia. E agora morreu, diz a menina. Esteve doente muito tempo?

 

- Não, não ia ao médico há meses. Aconteceu de repente, em casa, e morreu horas depois. Olhe, Theona, eu estou com um problema e acho que pode ajudar-me. Há alguma hipótese de eu ir aí esta noite?

 

Claro, minha querida, nada me dava maior alegria do que vê-la. Tenho uma reunião da Associação de Moradores até cerca das oito e meia, mas depois estou em casa. Podia faltar, mas, como sou uma das fundadoras, as pessoas pedem-me conselhos. Alguma coisa de útil há-de sair de todos estes anos que tenho vivido e acho que um pouco de sabedoria é tudo o que posso oferecer. Que tal aparecer por volta das nove? Sofro de artrite nos joelhos e, mesmo com bengala, pareço um caracol a andar. Levo meia hora a chegar a casa.

 

-às nove está perfeito - concordou Karen. Sabe como chegar cá, filha?

-Acho que sim, Theona. Não se preocupe que nós achamos o caminho. Vou com um amigo chamado luke.

 

-Um namorado?

-Mais ou menos. Olhe, estou excitadíssima por ir vê-la! Estamos aí às nove.

 

Eram exactamente nove e um quarto quando se apearam do Volkswagen diante do número vinte e dois da Rua Abbott. Com um chapéu enterrado até aos olhos, Luke preferira deixar a cadeira de rodas no quarto do motel e descer a escada das traseiras até à garagem. Não tiveram dificuldade em encontrar a casa e foram recebidos com beijos e apertados abraços por uma excitada Theona SettIes.

 

A sua compleição era semelhante à de uma gigantesca bola de praia, pois, mal alcançando um metro e meio de altura, pesava mais de noventa quilos. Tinha um vestido azul, um avental sem peitilho, e a sua cara cor de ébano era cheia e sem rugas, com um aspecto de querubim que desmentia os seus setenta anos. Era juvenil no seu carácter aberto e caloroso e no seu riso agudo.

 

Fê-los sentar num gasto sofá na sala, foi buscar um carrinho de chá com um serviço de prata e instalou-se num cadeirão que, com os anos, fora modificando a sua forma para acolher a dela.

 

- Não recebo muitas visitas nos últimos tempos - observou.

 

- Está com óptimo aspecto, Theona - exclamou Karen.

- Acho que exactamente o mesmo de quando me limpava o nariz e me obrigava a beber o leite.

 

- Mas a menina mudou e muito! Meu Deus, que linda mulher se fez! A sua mãezinha contou-me, na última carta que me escreveu, que a Karen tinha um emprego em Nova Iorque, e até me custou a crer que já passara tanto tempo. Mas não veio cá para me ouvir falar do passado. Diga lá à Theona qual é o seu problema, e esteja à vontade, querida. Há muito tempo que aprendi a não deixar os outros fazerem julgamentos por mim. -Que quer dizer com isso?

 

- Ora, ora. Sou velha, mas não cega. Aí o seu belo namorado tem uma cara que não é fácil esquecer, mesmo de fotografias de jornais.

 

- O Luke nunca fez mal a uma mosca, Theona. A minha mãe entregou-lhe uma chave que deve ser de alguma coisa muito importante e, desde essa altura, anda gente a fazer-nos coisas horríveis para tentar deitar-lhe a mão.

 

- Olhe, conte lá isso mais devagar. Volte ao princípio e conte-me o que puder sobre o que lhe aconteceu.

 

Karen, durante cerca de meia hora, relatou-lhe lentamente a história, com todos os pormenores possíveis, e, de vez em quando, Luke acrescentava uma ou outra informação, enquanto Theona ouvia em silêncio.

 

- Estão mesmo com problemas - comentou ela, por fim. O homem a quem vocês chamam Peter foi dono desta casa. Era casado com uma bruxa de Belmont, e eu costumava fazer a limpeza em casa deles. O apelido de ambos era Ferlazzo, Peter e Julia Ferlazzo. Seja como for, um dia o senhor Ferlazzo perguntou-me se eu gostava de me mudar para esta casa e de tomar conta de si, em troca da renda; foi assim que vim morar para cá. A sua mãezinha amava-o e ele retribuía-lhe, mas a mulher dele nem queria ouvir falar de divórcio e ameaçou-o, de o arruinar. Então, Peter e a senhora Evelyn passavam todo o tempo que podiam juntos, enquanto eu tomava conta de si. Quando ele morreu, a sua mãe disse-me que a casa ficara para ela, mas que queria que eu continuasse a morar cá, apesar de já não tomar conta de si. Muitas vezes planeámos ver-nos, depois de se mudarem para Cape Cod, mas aparecia sempre alguma coisa que o impedia. Bom, filha, o local a que chama «sítio de pensar» ainda está onde o deixou. Tomamos mais uma chávena de chá e depois vamos lá acima ver o que encontramos.

 

Para Damian Steele, a oportunidade surgiu precisamente às nove e vinte. Fora um longo e frustrante dia, com poucos ou nenhuns progressos na procura deCorey e da rapariga. Carl Julian tinha começado a enervá-lo, e Steele chegou mesmo a perder as estribeiras, gritando-lhe que parasse de estalar os dedos. Revira completamente a pasta pela décima vez e desmanchara e limpara a sua Walter de cano longo, feita de encomenda.

 

Carl também estava a ficar nervoso e irritado. A sua sugestão de arranjarem duas mulheres para o quarto do hotel fora rotundamente rejeitada, e as suas poucas tentativas de conversa com o famoso assassino recebidas com pouco mais de monossílabos.

 

Num dos raros momentos de conversa espontânea, steele disse, andando dum lado para o outro:

 

- Eles estão escondidos em Bóston, não acredito que fossem para outro sítio, de maneira que devem ter-se refugiado nalgum local aqui perto. Há quanto tempo tivemos notícias das equipas que andam a verificar os motéis da zona sete pela última vez? - perguntou, mas foi interrompido pela campainha do telefone.

 

- Sim?

 

- É o chefe?

 

- Sou. Que se passa?

 

- Daqui é o Berggren, na zona três. Acho que os encontrámos. O Volkswagen está estacionado em frente duma casa em Dorchester, no vinte e dois da Rua Abbott, e não o vimos lá quando passámos por essa rua, há meia hora.

 

- Tens a certeza da matrícula? -Absoluta. É o carro.

 

- Continuem a vigiar, mas fiquem escondidos. Vamos já para aí. - Depois, voltou-se para Carl e exclamou: - Eu sabia! Estão numa casa na Rua Abbott, em Dorchester. É aqui mesmo, a poucos quarteirões da antiga casa da mãe da rapariga. Puseste a corda no carro? Toca a andar!

 

- Theona, adorava continuar a conversar consigo toda a noite - observou Luke -, mas precisamos de ir lá acima ver se encontramos alguma coisa. Nada garante que isso me ajude a livrar-me desta acusação de assassínio, mas não me parece que a sorte que tivemos até aqui dure muito mais tempo.

 

A rotunda mulher demonstrou ser ainda mais sensata e encantadora do que Luke suspeitara. Tinha ouvido com toda a atenção o relato e parecia compreender mesmo os matizes mais subtis do problema.

 

- As coisas vão realmente muito mal quando nem nos polícias uma pessoa pode fiar-se - comentou. - Penso que, na sua maioria, são bons e honestos, mas é impossível distingui-los das maçãs podres até ser tarde de mais. Grande parte da minha gente não tem fé na Polícia, nem mesmo nos agentes negros; eu digo-lhes que alguém tem de começar por confiar em alguém, mas até agora essa é uma parte da minha sensatez que ninguém aceita. Então, quando encontrarem o que a mãe da Karen escondeu, que vão fazer com isso?

 

-Não sabemos - respondeu Luke. - Tudo depende do que for. Se se tratar de dinheiro ou algo do género, ficamos no mesmo sarilho. A nossa grande esperança é que seja suficientemente importante para servir de moeda de troca. As únicas pessoas que sabem que eu não estava com a rapariga quando ela foi assassinada são a Karen e o homem que anda atrás da chave, e não me parece que possa contar com ele.

 

No momento em que se levantaram, as portas da frente e das traseiras da casa abriram-se de repente e quatro homens, três deles de armas em riste, entraram na sala. Luke deu um

rápido passo na direcção da porta da frente, mas parou ao som da voz dum dos homens, alto, bem vestido e o único sem arma na mão.

 

Mais um passo, doutor Corey, e a menina samuels fica com um buraco num pé.

 

À menção dos seus nomes, Luke sentiu todos os músculos do corpo ficarem moles. Durante uns segundos, alimentara a esperança de que se tratasse de gatunos que nada tivessem a ver com eles, mas assim ficou imóvel uns segundos, e depois deixou-se cair no sofá.

 

O homem alto tornou a falar, na direcção dos que estavam à sua esquerda:

 

Vocês dois, levem esta senhora para o quarto e depois

esperem por nós no carro. O Carl e eu temos um assunto a tratar com o doutor Corey e a menina Samuels.

A voz dele era suave, mas autoritária e tão gelada que fez Luke contrair-se. Vendo os dois homens levarem Theona para

fora da sala, manteve-se imóvel, fazendo o exercício mental

 

que costumava usar para se acalmar em situações clínicas críticas .«Respirar fundo, manter. Expirar lentamente... olhar em volta... concentrar.. concentrar... relaxar.. decidir.» Nas referidas situações, a ordem seguinte para si próprio seria agir, mas naquele caso a acção era impossível, pelo menos de momento.

 

Com um olhar observador, afinado por anos de prática nas enfermarias e no consultório, começou a avaliar os dois homens que os confrontavam e o problema que constituíam.

 

Achou a tarefa de se concentrar mais difícil do que nunca, sobretudo porque o pensamento lhe fugia constantemente para a rapariga sentada a seu lado. Por fora, parecia incrivelmente descontraída, mas, vendo melhor, estava numa posição demasiado rígida e, embora a cara não tivesse expressão, esfregava ritmicamente os polegares nos dois dedos seguintes de cada mão. «Não posso deixá-los fazerem-lhe mal... não posso», deu consigo a repetir em pensamento.

 

Então, com um esforço considerável, começou a avaliação dos dois homens. Era evidente desde o princípio qual dos dois era mais de recear. O tal Carl parecia hesitante, um tanto inseguro, mantinha-se a uma distância respeitosa atrás do homem alto e parecia esperar por ordens para fazer qualquer coisa. Este último mostrava-se completamente seguro de si, com uma economia de movimentos que transmitia uma impressão de grande autoridade. Vendo-o dirigir-se deliberadamente para a sala de jantar, a fim de ir buscar uma cadeira, Luke não teve dúvida de que os esperava uma difícil e provavelmente dolorosa provação.

 

- Senta-te, Cari - ordenou o homem, indicando-lhe o cadeirão que Theona ocupava minutos antes. Depois, colocou a sua cadeira defronte deles e sentou-se, olhando primeiro para um e depois para o outro.

 

- O meu nome é Steele, Damian Steele, doutor Corey. Primeiro, quero dar-lhe os parabéns pela sua imaginação e desenvoltura. Causou-nos grandes inconvenientes nos últimos dias.

 

’- Pois pode dizer ao seu Jim Spear que não fazemos tenções de o ajudar mais do que em Strathmore - interveio imediatamente Karen, desafiadora.

 

- É muito valente, menina Samuels, mas garanto-lhe que, embora o senhor Spear tenha trabalhado para nós, os seus serviços foram, digamos, dispensados.

 

O segundo sentido da frase foi compreendido por qualquer deles, e Karen afundou-se no sofá.

 

- Ora bem, não precisamos de apresentações, e acho que podemos passar ao que interessa. Faça favor de despejar lentamente os bolsos em cima da mesa, doutor Corey. Obrigado. Creio que esta chave é o objectivo da nossa transacção, não concorda? - Empunhou-a diante deles, virando-a e revirando-a. - Pelo sim, pelo não, Carl, faz, por favor, o inventário da carteira e bolsos do casaco da menina. Não queremos deixar escapar outras chaves que possam trazer consigo.

 

-Não vale a pena - disse luke. - A chave é essa.

- Luke! - exclamou Karen, espantada com a facilidade com que ele se rendera.

 

-Não estamos em posição de regatear. Além disso, agora que têm o que querem, podem deixar-nos em paz. A perseguição acabou e nós perdemos, é o que é.

 

- Muito bem dito, doutor, mas engana-se num pequeno pormenor. Temos a chave, é verdade, mas esta é apenas parte do que pretendemos de si. O resto relaciona-se com a localização da fechadura que condiz com este bocado de metal.

 

-Pense bem, Steele. Acha que ainda estávamos aqui escondidos, se fizéssemos alguma ideia donde é a chave? Tenho a certeza de que Spear sabia. Ele não lhe disse, antes de o terem... dispensado?

 

- Infelizmente, não. Nesse ponto, estou inclinado em acreditar no que me diz, doutor, mas previno-o de que, embora não me zangue com facilidade, as pessoas, por norma, ficam magoadas quando me irrito. Não afasto completamente a possibilidade de estar a mentir, e quero que saiba que, se descubro que é assim, obrigo-o a ficar sentado a ver-me cortar os dedos da menina Samuels, um a um. Então, já se lembrou de mais alguma informação que possa ajudar-me?

 

Luke mordeu o lábio por dentro, para manter algum controlo sobre as suas funções gástricas e intestinais. Karen estremeceu e sentiu um suor gelado debaixo dos braços e nas têmporas.

 

- Mais nada - conseguiu Luke dizer. - Acredite que lhe dizia, se soubesse.

 

- Muito bem, doutor. Carl, por favor, amarra bem estas pessoas e fica a vigiá-las enquanto faço uma visita a uma loja de chaves dum amigo nosso. Ah, olhe, doutor, fique sabendo que, quando voltar, trago comigo uma quantidade suficiente de pentatol de sódio, e pode ter a certeza de que sou especialista em utilizá-lo. Só tem até eu regressar para tentar lembrar-se de qualquer outra informação que possa ajudar-me. A menina Samuels tem umas mãos tão bonitas e delicadas...

 

Steele desviou a cadeira, continuando sentado enquanto Carl atava os pulsos e os tornozelos de Luke e Karen. Depois, fez-lhe sinal para o seguir até à porta da rua, onde recomendou:

 

- Nada de tocar na rapariga, Carl, pelo menos, até termos o que queremos. Depois, é toda tua.

 

Com aquela promessa, Carl sentiu o sangue descer-lhe até às virilhas, imaginando Karen Samuels deitada numa cama, com os braços e as pernas abertos, como Connie Evans. Com essa, tinha chegado ao orgasmo só de a ver retorcer-se e implorar, e fora obrigado a deixar um dos seus homens violá-la. Desta vez, ia controlar-se melhor, prometeu a si próprio.

 

Nos poucos segundos em que os homens ficaram fora da vista, Luke segredou:

 

- Não quero que fales, nem uma palavra, aconteça o que acontecer. Percebes?

 

Karen concordou com a cabeça e, quando Carl voltou para a sala, ela aproximou-se e pousou a cabeça no ombro de Luke, com os olhos fechados.

 

-- Que ganha com isto, Carl? - perguntou Luke.

 

- Olhe, doutor Corey, fique quieto e calado! - ordenou o rapaz.

 

Era a primeira vez que o ouvia falar e, depois de se encostar e semicerrar os olhos, Luke acompanhou cuidadosamente todos os seus movimentos. Carl, primeiro, ficou sentado uns minutos, mas a seguir bocejou, levantou-se e andou dum lado para o outro, parando para folhear um livro de bolso na estante de Theona. Voltou então para a cadeira com um baralho de cartas e começou a fazer uma paciência, bocejando mais duas vezes. Um plano foi-se formando e cristalizando gradualmente na mente de Luke.

 

Dez minutos mais tarde, Carl Julian levantou-se de novo e, após verificar os nós das cordas, dirigiu-se para a casa de banho. Assim que achou que ele não podia ouvi-lo, Luke voltou-se para Karen e segredou-lhe o mais firmemente que conseguiu:

 

- Olha, querida, ouve bem o que te digo. Uns minutos depois de ele voltar, quero que fiques com a maior dor de cabeça de sempre. Finge bem, e faz o que eu disser. Achas que és capaz? - Karen acenou com a cabeça e ele deu-lhe um leve beijo na testa. - Aguenta, querida. Pode ser a nossa única hipótese e temos de fazer com que funcione.

 

Quando ela ia começar a dizer qualquer coisa, ouviram o ruído do autoclismo, e Carl voltou e sentou-se.

 

Daí a cinco minutos, Karen começou a mexer-se, a seguir a respirar ofegante, piscando os olhos e abanando a cabeça para trás e para diante. Carl olhou-a e nesse momento Luke perguntou:

 

-Que foi, querida? Que tens?

 

A rapariga começou a torcer-se e Luke viu, encantado, que ela tinha os olhos cheios de lágrimas.

 

-Ai, Luke, é mais uma enxaqueca! - articulou a custo. Pior do que todas as outras. Não aguento, acho que vou vomitar.

 

Ao vê-la com as lágrimas a escorrer pela cara, acreditou que fosse mesmo capaz de vomitar.

 

Ela está cheia de dores, Carl. Deixe-me levantar - pediu Luke - para ver se há alguma coisa no armário dos remédios que possa dar-lhe para aliviar as dores.

 

-Nem pensar. O senhor fica onde está e diga-lhe que se acalme e esteja calada ou eu amordaço-a.

 

Se ela vomita com uma mordaça, aspira o vómito e morre. Acha que o senhor Steele ia gostar?

 

-Deixe lá o senhor Steele comigo. Diga-lhe que se acalme, ouviu?

 

O rapaz começava a ficar nitidamente incomodado com os gemidos cada vez mais fortes de Karen.

 

- Eu vou tentar, mas você tem de me ajudar. Apague a luz e fique em silêncio total.

Espantado, Carl fez o que ele disse, deixando apenas acesa a luz da sala de jantar.

 

Luke começou a falar com Karen num tom calmo e tranquilizador:

 

Olha, Karen, quero que respires mais devagar e que oiças o que te digo. Tens de te descontrair, ou a dor de cabeça ainda aumenta. Fecha os olhos e respira mais devagar. Concentra-te na minha voz e deixa tudo o mais desaparecer. Pensa só na minha voz, isso mesmo. Tens de te relaxar e deixar os braços inertes no colo.

Pelo canto do olho, viu Carl bocejar e colocar inconscientemente as mãos no colo.

 

-Fecha os olhos com mais força e deixa a dor sair, concentra-te só no som da minha voz. Inspira mais lentamente, mais ainda, e deixa cair os braços. - A respiração de Karen enfraqueceu e a cabeça começou a baloiçar ligeiramente para a frente. Luke continuou:

 

- Fecha os olhos, sentes as pálpebras pesadas. Estás a ficar cansada, muito cansada. Só queres dormir, nada mais do que dormir.

 

Não precisou de mais do que cinco minutos para saber que

haviam ambos adormecido. Carl ainda oferecera menos resistência do que imaginara, e estava imóvel, a respirar normalmente, com os olhos fechados. Por segurança, Luke continuou a falar:

 

- Vou contar de dez para trás e, quando chegar a dois, tu, Carl, podes abrir os olhos, mas só conseguirás mexer-te ou falar se eu disser. Pronto: dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro

- os olhos do rapaz começaram a tremer ligeiramente - três, dois - e abriram-se completamente -, um, zero.

 

Luke exalou o ar com força e sorriu, vendo Karen a dormir calmamente a seu lado. Fizera vários cursos de hipnose e utilizara a técnica, com frequência, em doentes com problemas de peso e em fumadores. Naquele momento, abençoava as muitas horas passadas a aprender o método.

 

A ideia de tentar adormecer Carl sem ele perceber tinha-lhe surgido ao lembrar-se duma demonstração na faculdade. O professor hipnotizara propositadamente não só um aluno, mas também a maioria dos que se sentavam nas duas primeiras filas. Mais tarde, mostrara que os estudantes «inadvertidamente» hipnotizados tinham dormido uma média de duas horas e meia menos na noite anterior do que os que haviam resistido à sua técnica.

 

Luke escolheu as palavras cuidadosamente, lembrando-se de que o rapaz cumpriria literalmente as ordens que lhe desse.

- Carl, há grandes trepadeiras, com folhas grandes, a espalharem-se pela sala toda. Estás a vê-las? - perguntou, e o rapaz,acenou com a cabeça. - As trepadeiras enrolaram-se à volta dos nossos corpos e estamos com dificuldade em respirar.

- A respiração do rapaz tornou-se forçada. - Tens de levantar as mãos e vir aqui antes que te enrolem completamente. Carl obedeceu e atravessou a sala, aproximando-se de Luke. Agora, tens de soltar as minhas mãos das trepadeiras. óptimo, Carl, é isso mesmo. Agora as trepadeiras estão a encolher e já podes deitar-te no sofá sem problema. Muito bem, Carl. Estende-te, fecha os olhos e diz-me o teu nome todo.

 

- Carl Julian.

 

-E onde vives, Carl? -Em Lincoln.

 

Luke tinha muitas perguntas que gostava de lhe fazer, mas não ia perder mais do seu precioso tempo a interrogar um pistoleiro contratado.

 

- Muito bem, Carl, agora quero que durmas profundamente, até que eu, e só eu, te diga que acordes. A pessoa que falar tem de ser um anjo, um anjo verdadeiro, com asas e halo. Percebes?

 

Carl acenou de novo com a cabeça. Então, Luke voltou-se para Karen e disse:

 

-Estás a ouvir-me, Karen? óptimo. Vou tirar-te as trepadeiras das mãos e dos pés. Depois, quero que te levantes e venhas comigo.

 

Quando ficaram na cozinha, sozinhos, continuou:

Agora vou estalar os dedos, Karen, e tu acordas descansada e fresca como nunca.

A rapariga despertou instantaneamente e ficou ali a piscar os olhos, tentando orientar-se.

 

Estava mais ou menos a perceber o que se passava, mas não conseguia acreditar que fosse real! - exclamou ela. - És fantástico! Como te lembraste disto?

 

Falamos depois - segredou Luke. - Neste momento, o melhor é despacharmo-nos. Não faço ideia de quanto tempo temos até o Steele aparecer. Vai ver se a Theona está bem, mas afasta-te das janelas. Os outros dois brutamontes devem estar lá fora num carro.

 

Minutos mais tarde, Theona, de lanterna portátil em punho e seguida por Luke e Karen, subia a custo a escada do sótão, cujo recheio era o habitual: caixas, móveis velhos, molduras rachadas e poeira, poeira a cobrir tudo. Havia até um manequim de costureira, de arame e tecido, enferrujado por anos de abandono. Nos pontos em que o telhado inclinado tocava nas paredes, a altura era de menos de um metro. No centro, contudo, na parte mais alta, Luke andava perfeitamente de pé.

 

-Há tempos que não venho aqui - disse Theona, enquanto abriam caminho até ao centro da divisão. Uma lâmpada fraca era a única fonte permanente de iluminação, o que deixava os cantos às escuras.

 

Lá está, filha - indicou Theona, apontando o centro da parede das traseiras.

 

E, Luke, é a minha janela!

 

Ele aproximou-se rapidamente, inspeccionou-a durante um momento, e depois voltou para junto das duas mulheres, a abanar a cabeça, desapontado.

 

O que descobrira fora uma janela circular, como Karen tinha descrito, numa secção da parede que se salientava cerca de meio metro do resto da casa. Debaixo da janela havia um sólido banco, com perto de um metro de altura e da largura da pequena alcova. Imaginou-a facilmente, em rapariguinha, sentada ali, a observar a actividade no pátio lá em baixo. O assento era nu, e tanto quanto podia ver, nada havia no sótão que pudesse interessar-lhes..

 

Voltou-se para sair dali, mas Karen agarrou-o por um braço.

- Espera, Luke, só mais um minuto. Tenho a sensação de que nunca mais volto a ver este sítio.

 

Correu para a janelinha, enroscou-se em cima do banco e durante uns minutos silenciosos ficou ali sentada na alcova, a olhar lá para fora com os olhos húmidos, contemplando a clara noite de Abril.

 

-- Era exactamente assim que ela se sentava em pequena

- murmurou Theona. - Fez-se uma bela mulher!

 

Luke acenou com a cabeça, mas continuou a admirar a cena à janela. O perfil imóvel de Karen, recortado na suave claridade da janela, dava-lhe a mesma calorosa sensação que tinha muitas vezes quando admirava alguns dos seus quadros preferidos no Museu de Arte de Bóston. Finalmente, com esforço, obrigou os seus pensamentos a voltarem à realidade da situação e aproxímou-se dela para a ajudar a descer do banco, mas, enquanto o fazia, tocou com o sapato no rodapé.

 

Já iam a descer a escada, quando se lembrou desse som e da sensação de ter dado um pontapé numa coisa sólida e não oca como seria de esperar. Num impulso, deu meia volta, correu para o banco e deu-lhe umas pancadinhas na parte de cima e dos lados, primeiro com firmeza e depois com a técnica utilizada pelos médicos para verificar os contornos de órgãos como o coração e o fígado, mas não encontrou a ressonância característica duma estrutura cheia de ar.

 

Procurou nas caixas de cartão, enquanto as duas mulheres o observavam, fascinadas e intrigadas. De repente, com um eureka, ergueu um pequeno martelo de madeira e começou a bater na parte de baixo da borda superior do assento. Num minuto, o tampo saltou e, com as mãos a tremer, meteu a mão lá dentro. Quando a retirou, deixou-se cair de joelhos no chão poeirento.

 

- Nem posso acreditar que estivemos quase a desistir quase gritou. - Está aqui, Karen, exactamente como a tua mãe disse.

 

Um pequeno cofre rectangular tinha sido metido no espaço vazio, sob o banco da janela, e preso com cimento de todos os lados, deixando apenas a tampa à vista.

 

Karen fez incidir sobre ele a luz da lanterna e exclamou:

- Isto é incrível! Depois de tudo o que nos aconteceu, descobrimos finalmente o grande segredo, e agora o Steele tem a porcaria da chave.

 

- Veja melhor, Karen - observou Theona, chamando a atenção da rapariga para o que Luke já constatara. - É um cofre! Olhe a pega e o disco com os números. Não há chave neste mundo que sirva ali.

 

Karen olhou para Luke durante um momento e depois desviou o olhar. A tensão e a excitação, que lhes tinham alimentado o entusiasmo durante os últimos três dias, acabavam de se esgotar como o ar que sai dum pneu furado. Automaticamente, Luke experimentou a pega do cofre, mas não sentiu a mínima folga. A resposta às suas perguntas, às suas esperanças num futuro, e até à sua sobrevivência, estavam ali, a centímetros deles, centímetros que bem podiam representar anos-luz.

 

Por fim, declarou:

 

- Não podemos fazer grande coisa aqui. Vamos mas é pôr outra vez o assento no seu lugar e fugir, antes que apareça o loiraço. Arranjamos um sítio para nos escondermos durante uma semana ou duas e depois tentamos voltar cá. O Steele pode ter a chave, mas nada garante que encontre este sítio.

 

- Ah, pois - observou ela, desencorajada. - Acreditas tanto nisso como eu, Luke. O homem que ficou lá em baixo tem uma arma. Vamos pegar nela e tentar apanhar o Steele de surpresa.

 

- Ora, Karen, o homem é um profissional! Além disso, mesmo que o conseguíssemos surpreender, duvido seriamente de que fosse capaz de me servir da arma. Estás disposta a abater alguém à queima-roupa?

 

-Não sei, mas não tenho medo. Ai, merda! Que estou eu a dizer? Não, não sei se sou capaz de matar alguém. -Bom, o melhor é não nos arriscarmos. Pelo menos, se

 

fugirmos agora, temos a certeza de ficar vivos e inteiros durante mais algum tempo.

 

- Espera, Luke - pediu Karen quando ele começou a colocar a parte superior do assento no seu lugar - Vamos só pensar no assunto mais um minuto. Se o que a minha mãe e o Peter esconderam está ali no cofre, donde é a chave?

 

- Não sei. Talvez haja outras coisas escondidas no edifício de escritórios ou talvez a combinação do cofre esteja lá. Tenho a certeza de que foi feito de encomenda, de maneira que a combinação pode ser uma coisa qualquer, dia de anos, número de telefone, qualquer coisa do género. Seja como for, querida, ainda tenho o número de série da chave, de maneira que talvez possamos mandar fazer uma cópia na tal loja que descobriste. Vamos lá, assim que encontrarmos um sítio para nos escondermos. Desde que estejamos livres e juntos, temos uma hipótese. Cos diabos, já chegámos até aqui, ou não?

 

Como não obteve resposta às suas palavras de encorajamento, Luke parou de martelar os pregos do assento e voltou-se para ela.

 

-Que é, Karen? - perguntou. - Que tens? -Ouviste bem o que acabaste de dizer?

 

-Claro, disse que desde que estejamos livres e juntos... -Não, não! A combinação do cofre!

 

-Não percebo o que estás a...

 

- A chave, Luke, não vês? Disseste que podiam ter feito a combinação do cofre com um número qualquer!

 

- Meu Deus! - exclamou ele, rebuscando os bolsos É isso, não é? Merda, não consigo encontrar o papel. Não to dei? Não, espera, acho que foi aqui que o escrevi. Cá está! Theona, aponte a luz para aqui. Mais perto, ainda não vejo. Isso mesmo, para aqui. E-quatro-seis-zero-sete-um-zero-seis. Os números do disco vão até quantos, Karen?

 

Ela tirou novamente o assento e ajoelhou-se para espreitar, com Theona a iluminar o interior.

 

-Noventa e cinco. Não, há mais marcas. Noventa e nove, acho eu.

 

- Por onde começamos? - perguntou Luke, ajoelhando-se junto a ela e pousando o papel ao lado do disco.

 

- Não estás a ver? O número parece mesmo uma combinação - alvitrou Karen, excitada. - O E pode ser para rodar para a esquerda.

 

Luke rodou o disco várias vezes para a esquerda e olhou para ela.

 

-Acho que esgotei o meu poder de raciocínio - observou. - E agora?

 

-Talvez isto seja só eu a imaginar: mas se os zeros não contassem a não ser para separar os números da combinação? Cuidadosamente, Luke marcou quarenta e seis, depois voltou para a direita, parando no setenta e um. Finalmente, retrocedeu para a esquerda, parando no seis. Olhou primeiro para Theona e depois para Karen antes de agarrar a pega. Os três contiveram a respiração ao mesmo tempo, ele empurrou a pega para baixo e todos deitaram o ar fora quando viram que a tampa do cofre não cedia. Para ter a certeza, voltou a marcar os números, com todo o cuidado, mas o resultado foi o mesmo.

-Bolas para a ideia - comentou o médico, abanando a cabeça, desapontado. - Estamos a esgotar o tempo. Mesmo que a combinação esteja no número de série da chave, há milhares de maneiras de agrupar os algarismos. Podia levar horas a descobrir a combinação certa.

 

Por favor, Luke, estamos tão perto! - pediu Karen. Eu sei que é assim. Ainda não te mostraste assustado uma única vez em todas as situações, nas quais estiveste envolvido até agora. De repente, pareces aterrorizado, dá a impressão que o teu pensamento está a milhares de quilómetros daqui. Que se passa?

 

-Estás doida? Aquele louco pode voltar dum momento para o outro. Achas que vou ficar aqui sentado e calado enquanto ele começa a cortar-te bocados? - Com as últimas palavras, a voz começou a falhar-lhe. Puxou-a para si e abraçou-a com força. - Nunca te acontece ver as coisas ao contrário? perguntou, em tom carinhoso. - Estou com medo, e é realmente a primeira vez, como tu disseste. Amo-te, talvez mais do o que a outra pessoa em toda a minha vida, e não consigo pensar noutra coisa, a não ser em que possam fazer-te mal. Só me interessa fugir deste sítio contigo.

 

Karen agarrou-lhe a cabeça e puxou-a para o peito.

 

Eu também te amo, Luke, e cada vez mais, mas não quero só um dia ou uma semana, e não me apetece passar todos os minutos a olhar por cima do ombro. A hipótese duma vida em comum permanece ali dentro daquele cofre e, raios me partam, estou pronta a sofrer ou a morrer, ou até a matar, para que isso aconteça. Tens de parar de te preocupares comigo, deves é concentrar-te em descobrir uma maneira de abrir o cofre. Eu vou lá abaixo buscar a arma do homem. Theona, fique aqui e segure na luz, que eu já volto.

 

Beijou-o suavemente e desceu a escada a correr. Quando voltou, dois minutos depois, encontrou-o de joelhos com o queixo apoiado nos braços cruzados, a olhar fixamente para a tampa de ferro.

 

Ele já tentou alguma coisa? - perguntou Karen a Theona. A mulher abanou a cabeça.

 

- Luke!

 

- Espera, querida, tenho quase a certeza... Ai, meu Deus, já sei! - Luke sorriu-lhe. - Tinhas razão, os números são o segredo!

 

- Então porque não funcionou?

 

-Nunca tiveste um daqueles armários com fechadura de combinação no colégio?

 

Claro, mas não estou a ver..

 

É o segundo número. Temos de passar pelo primeiro e depois parar no segundo.

 

Com todo o cuidado, voltou a marcar os números, dando uma volta completa a seguir ao quarenta e seis, antes de parar no setenta e um. Depois de recuar e marcar o seis, agarrou no fecho, puxou e este desceu com um estalo, enquanto, com o mesmo movimento, Luke abria a pequena porta.

 

Deram um grito quando ele fez incidir a luz da lanterna no interior do cofre.

 

- Parece um livro. É teu, Karen, por isso faz tu as honras, não queres?

 

Com as mãos húmidas e inseguras, a rapariga tirou lá de dentro duas coisas: um livro encadernado e uma bolsa de cabedal preto tão atafulhada de recortes de jornal que não fechava. Começou a folhear rapidamente o livro.

 

- Está cheio de listas de datas e números - disse ela - e há iniciais no cimo de cada página. Achas que têm alguma coisa a ver com pagamentos de protecção ou coisa do género?

 

- Não sei, mas não é altura de tentarmos descobrir. Vamos já cavar daqui, está bem?

 

-Sim! Vá, tu levas isto e eu levo a arma.

- Alguma vez te serviste de alguma?

 

- Não, mas garanto-te que, se for preciso, disparo mesmo. O médico colocou o tampo do assento no seu lugar, pegou no livro e na bolsa de cabedal e abraçou cada uma das mulheres antes de começar a descer a escada. Já na cozinha, voltou-se para Theona:

 

- Acha que conseguimos sair daqui pelas traseiras? Ela acenou com a cabeça.

 

- Há um beco que vai dar à rua a seguir. Esperem um minuto enquanto faço um telefonema.

 

Marcou um número sem ter de o procurar.

 

-Está, Charlotte? É a Theona Settles. O Júnior está aí? Exactamente, quero falar com ele, e depressa, se faz favor, é muito importante. Está, Júnior? Daqui a Theona. Preciso da tua ajuda. Optimo, estava a contar com isso. Tenho aqui dois amigos que precisam de auxílio para sair do bairro, Poderás arranjar-lhes um carro? óptimo! Ela chama-se Karen e ele Luke. São brancos, mas boas pessoas, apesar disso. Não, eu vou ter contigo. E olha, Júnior, estes pequenos têm uns malvados atrás deles. Toma cuidado. Bom, seja como for, talvez seja melhor veres se o Davy e o George ou alguns dos outros andam por aí. Tens-te portado bem? Espero que sim. Obrigada pela ajuda. Eles não se demoram.

 

Desligou e voltou-se de novo para eles.

 

- Está tudo combinado. O Júnior Ellis arranja-lhes um car ro. A casa dele é fácil de encontrar, não quero ninguém aí a guiar um carro e a chamar as atenções.

 

- Ele vai levar-nos no carro dele? - perguntou Luke, espantado.

 

- Bom, eu não disse o carro dele, mas um carro. Não me parece que nos últimos dez anos, o Júnior Ellis ande com algum que não tivesse sido roubado. No entanto, é bom rapaz, gosta é muito de automóveis. Agora, oiçam com atenção. Seguem pelo beco que vai do pátio até à próxima rua. Depois, andam dois quarteirões para a esquerda até à Rua da Fonte. Não sei o número, mas ele deve estar à porta. Perceberam?

 

- Claro - concordou Luke. - Mas a senhora vem connosco, não vem? Não vamos deixá-la aqui.

 

- Eu fico perfeitamente, muito obrigada. Assim que saírem, chamo a Polícia e arranjo um belo comité de recepção quando o nosso amigo voltar. Vão-se lá embora.

 

- Isto é um disparate! E se o Steele volta antes da ... ? Contudo, a frase ficou por terminar e os três, contendo a respiração, voltaram-se ao ouvir passos à porta da rua.

 

- Depressa, ponham-se a andar! Eu fico bem - insistiu Theona no momento em que a porta se abria. Beijaram-na rapidamente e desceram a curta escada até à porta das traseiras.

 

Damian Steele trauteava uma melodia indistinta ao aproximar-se da porta do número vinte e dois da Rua Abbott, Tinha sido uma noite muito proveitosa, Apanhar Corey e a rapariga fora ainda mais fácil do que esperara, e Dom Alberto ficara tão satisfeito com a notícia que lhe prometera mais vinte e cinco mil quando o trabalho tivesse terminado. Para cúmulo, Brian fora absolutamente sensacional.

 

Deixando Carl a guardar os prisioneiros, steele dirígira-se directamente aos seus aposentos no Plaza, onde se despira e envergara um roupão de seda preta, para fazer duas chamadas telefónicas. A primeira, para Stonelifil, provocara grande satisfação em Dom Alberto, mas também preocupação devido à espera, até à manhã seguinte, por uma loja de chaves. Steele dissera a Carl que ia tratar disso, mas só tencionava fazê-lo de manhã.

 

A segunda chamada fora para o quarto mil duzentos e oito do mesmo hotel. À espera, estava lá Brian Mundt, um reputado advogado que conhecera dois anos antes num bar de Nova Iorque. Desde então, passavam juntos todo o tempo que Mundt conseguia tirar à sua firma, à mulher e aos três filhos. Para steele, todo o tempo seria pouco.

 

Mundt atendeu o telefone ao terceiro toque e, com o som da sua voz, Steele sentiu as pulsações aceleradas, Tinham passado quase dois meses desde o seu último encontro, e ser obrigado a dormir no mesmo quarto com um ignorante e suado machão como Carl Julian, sabendo que Brian se alojara dois andares abaixo, dera-lhe vontade de vomitar.

 

Mundt entrou nos aposentos de Steele sem bater, trazendo na, mão uma pequena mala com os óleos, vibradores e outros apetrechos que gostavam de usar. Com quarenta e poucos anos, passara por algumas modificações físicas desde o seu tempo de campeão de luta no Michigan. A mulher do advogado achava as mudanças nojentas, mas Steele deliciava-se com elas - os músculos, outrora duros e bem salientes, tinham amolecido e ficado indefinidos e, além disso, a sua cintura de setenta e cinco centímetros media agora quase mais quinze.

 

-Pensei que nunca mais ligavas - lamentou-se ele. Mais um dia à espera naquele quarto e dava em doido!

 

- Desculpa, Brian, não consegui livrar-me do estúpido do Julian até há uns minutos. Deixei-o de guarda a umas pessoas. Só temos mais ou menos uma hora, mas amanhã à tarde já as coisas devem estar despachadas.

 

- Sabes, Damian, eu podia ter ficado em Nova iorque os dois últimos dias a tratar de alguns assuntos. Às vezes, fazes-me cada desconsideração!

 

Ao aproximar-se da esquina, abanou a cabeça, admirando Karen, que, de mãos nas ancas, o olhava, mas, já perto dela, viu-lhe a súbita expressão de terror e, quase ao mesmo tempo, o vidro traseiro dum carro estacionado à sua direita estilhaçou-se.

 

- Cuidado, Luke! - gritou ela, apontando para a rua atrás dele.

 

Voltou-se e avistou o vulto de Damian Steele agachado em posição de disparar a uns dez candeeiros de si.

 

-Corre, Karen, que eu cá me arranjo! - exclamou Luke com dificuldade.

 

Ela voltou-se e recomeçou a correr pela Rua da Fonte, seguida de Luke, que foi ficando cada vez mais para trás, ziguezagueando, para não constituir um alvo fixo. A dor dilacerante que sentia na perna era insuportável e a cabeça balançava incontrolavelmente a cada passo. De repente, meteu o pé direito num buraco e caiu de bruços, largando o livro e a bolsa. Os joelhos e as palmas das mãos absorveram o impacte, o que lhe provocou novas dores nos braços e nas pernas.

 

Numa escuridão quase total e em pânico, gatinhou à procura do que deixara cair. Durante uns segundos, pensou que perder a tudo, e estava quase paralisado quando tocou com os dedos na bolsa de cabedal. Continuou de gatas, com os joelhos e as mãos esfolados, a arder, à procura do livro, até que avistou Steele a apenas seis candeeiros de distância e a correr bem. Com grande esforço, pôs-se de pé e avançou conforme pôde, tentando descobrir o vulto de Karen à sua frente, mas sem o conseguir. As dores nas pernas, de lado e nas mãos fundiam-se numa agonia crescente, tornando cada passo um esforço terrível. Teve a certeza de distinguir o eco dos passos do homem que o perseguia. A cabeça descaiu-lhe mais a cada passo, abanando dum lado para o outro, a sua velocidade diminuíra consideravelmente e começou a suar frio quando percebeu que Steele o apanharia rapidamente.

 

Na realidade, isso teria acontecido em menos de um minuto, se o outro não tivesse parado no sítio onde Luke caíra, e quando retomou a perseguição levava o livro debaixo do braço. Perdera uns metros, mas não duvidava de os recuperar com facilidade.

 

Luke estava a chegar ao limite das suas forças, perdera o ritmo, os braços e pernas agitavam-se descontrolados, além de que a incapacidade de avistar Karen lhe aumentava a sensação de que não conseguia escapar.

 

De repente, ficou sem o pouco fôlego que lhe restava ao chocar com uma parede, na realidade um enorme negro parado no meio da rua, que, com calças e casaco pretos, era quase invisível, à excepção do branco dos seus grandes olhos. Tinha pelo menos um metro e noventa, devia pesar mais de cem quilos, e o revólver na sua mão direita dava-lhe um ar ainda mais ameaçador. O impacte do corpo de Luke teve nele mais ou menos o efeito do toque de uma pena, mas o médico, já sem ar nos pulmões, caiu redondo no chão. Sem esforço, o homem estendeu um braço e levantou-o.

 

, - Calma, filho - sossegou-o ele numa voz forte, provavelmente incapaz de segredar. - Está tudo bem. Já pode parar de correr. A sua amiga está ali à frente com o Júnior. Vá lá ter com ela, que nós tratamos do jeitoso que vem atrás de si.

 

E indicou a Luke um brilhante Lincoln prateado e um negro magro numa posição descontraída junto à porta do condutor. Ao afastar-se do negro enorme, Luke viu, pelo canto do olho, mais seis ou sete saírem das sombras e aproximarem-se do gigante.

 

Steele chegou à barricada humana, com o revólver em punho, quase ao mesmo tempo que luke alcançava o carro, mas compreendeu a situação e enfiou a arma de novo no cinto. Não menos de meia dúzia de homens enfrentavam-no a curta distância de armas em riste. Percebeu que eram capazes de disparar. Discretamente, baixou o livro e ficou a ver Luke sentar-se ao volante do Lincoln. Quando um dos negros falou, Steele já decorara a matrícula do carro.

 

- Guardar a arma foi uma decisão inteligente, senhor .. ?

- Davis, Bill Davis,

 

-Espero que a Mãe Settles esteja bem. Não lhe fez mal, pois não?

 

- Está óptima - mentiu ele, procurando desesperadamente algum ponto fraco dos adversários que pudesse aproveitar. Contudo, não o encontrou, e embora tivesse hipóteses de abater três ou quatro antes de algum deles conseguir disparar um tiro, com o livro em seu poder não valia a pena arriscar. Como quem lhe lia o pensamento, o enorme negro lançou um aviso:

 

- Não sei que espécie de truques tem na manga, mas seria bom que os esquecesse e não tentasse qualquer gracinha.

 

- Olhem, amigos, eu não tenho problema com vocês disse Steele, tentando parecer descontraído. - Aquele homem roubou-me dinheiro, mais uns documentos importantes, e há meses que anda a tentar fazer chantagem comigo. Não procuro chatices, mas quero os papéis e dar-lhe uma lição. É importante eu apanhar esses papéis. Digamos que a importância é de cinco mil dólares. Tudo o que têm a fazer é deixarem-me passar e o dinheiro é vosso, para dividirem como quiserem.

 

O negro corpulento mirou-o da cabeça aos pés durante um minuto; depois, lentamente, baixou a arma. Steele sentiu uma vaga de excitação ao perceber como fora fácil comprar os arruaceiros.

 

- Olhe, se me deixar tirar a carteira, dou-lhe já um adiantamento - disse ele, levando a mão ao bolso de trás das calças.

 

-  Mais devagar, amigo - replicou o outro, fazendo-o parar imediatamente. - Não há aqui ninguém que não deva favores à Mãe Settles. Felizmente para si, ela só   nos pediu que o afastássemos da rapariga e do namorado e não falou em dar-lhe cabo do canastro. Por isso, porque não fica aí  quieto e calado? Quando eles se forem embora, talvez a gente o deixe dar meia volta e voltar para onde veio sem uns buracos novos no corpo.

 

Steele ficou ali, completamente frustrado, a ver o Lincoln arrancar e afastar-se lentamente rua acima, com os seus dois ocupantes. Para além de anotar mentalmente a matrícula, nada mais podia fazer.

 

Quando o carro chegou à esquina e desapareceu, o homem dirigiu-se-lhe de novo:

 

- Bom, senhor Davis, é a sua vez. Se fizer o favor de colocar dez notas de cem dólares na minha mão, com todo o cuidado, deixamo-lo dar meia volta e regressar por onde veio.

 

steele fez o que lhe diziam e voltou-se, mas o homem lançou-lhe um último aviso.

 

- Olhe, senhor Davis, deixámo-lo ir porque não temos um bom motivo para o matar.. por enquanto. Mas fique sabendo que, se descobrirmos que fez mal à Mãe Settles, a sua vida dura só até o encontrarmos. Por isso, pire-se. Nós vamos a casa dela daqui a pouco, de maneira que ainda lhe damos tempo para pôr uns pensos em alguns arranhões que ela lhe tenha feito.

 

Menos duma hora depois, steele chegava de carro a Stonehill. O livro descansava a seu lado, e Carl Julian ia estendido no banco de trás. Vários estalos na cara tinham-no acordado
parcialmente, mas continuava a piscar os olhos e a abanar a cabeça, como que a tentar aclarar as ideias. As respostas às perguntas de Steele haviam sido vagas e sem nexo, dando praticamente a impressão de ter sido drogado.

 

Albert Julian prestou muito mais atenção ao livro do que ao filho, mas mandou-o levar para um quarto, guardado à vista. Examinou as páginas do livro, enquanto Steele lhe relatava os acontecimentos dessa noite, cuidadosamente alterados quanto ao seu paradeiro durante o tempo em que Carl fora hipnotizado.

 

-- Então, depois de deixar as «coristas» negras, fui buscar o seu filho e vim logo para cá.

 

-Não paraste outra vez no sítio onde o Corey caiu para ver se havia lá mais alguma coisa” - perguntou Julian, evidenciando pouca satisfação por recuperar o livro.

 

- Não, já o tinha - respondeu Steele, ligeiramente confuso. - Olhe, se está preocupado com o Corey, não vale a pena. Quando muito, meteu-se num sarilho ainda maior do que antes. Há mais uma mulher morta e as impressões digitais dele ficaram espalhadas pela casa toda. Sei a matrícula do carro em que fugiram e já telefonei às nossas patrulhas, e para o Corrigan, na esquadra. Não se preocupe, Dom Alberto, que eu não espero que me pague sem o trabalho estar feito.

 

Julian não lhe respondeu até acabar de folhear o livro. Então, olhou-o abanando a cabeça, obviamente desapontado.

- Tens de lá voltar, Damian - insistiu. - É preciso ires de novo ao sítio onde encontraste isto.

 

-De que está a falar? Há mais alguma coisa?

 

- Em toda a minha vida, nunca pedi nada a ninguém senão à Nossa Senhora, mas agora peço-te a ti, Damian.

 

Steele não respondeu, vendo a preocupação evidente do homem que muitos consideravam o mais importante do mundo do crime. Uns minutos antes, começara a sentir um cheiro muito desagradável, que percebeu de repente ser das próprias calças, sujas pelo espasmo de morte da negra. Involuntariamente, estremeceu e fez uma careta de nojo, expressão que não passou despercebida a Julian, que o olhou intrigado.

 

- Ficaste ofendido com o meu pedido? - perguntou.

- Não, não, Dom Alberto. Alguém me mijou em cima e cheiro mal. Continue, se faz favor. Que mais é preciso encontrar?

 

-  Os homens que figuram nestas listas já morreram quase todos e, seja como for, não são uma ameaça para a organização, mas eu tenho a certeza de que junto com o livro estavam também uns documentos que o Peter Ferlazzo havia escondido. Desses é que eu preciso. Se caem nas mãos erradas, pode ser o fim de tudo aquilo para que trabalhei estes anos todos.

 

-Mas porque não me disse logo isso?

 

- Dessa minha decisão idiota é que te peço desculpa, mas era realmente melhor não falar nos documentos ao Carl, como viste pelo seu trabalho desta noite, e achei que quanto menos pessoas soubessem da sua existência, melhor.

 

Steele continuou sentado, em silêncio, a reflectir sobre a nova informação. Os documentos, fossem quais fossem, tinham importância suficiente para Albert Julian autorizar a compra do silêncio de alguém durante quase duas décadas, para já não falar na autorização para quatro mortes, pelo menos. Decidiu que viveria mais tempo se não soubesse do que se tratava.

 

- Não precisa de se desculpar - disse por fim. - Tenho praticamente a certeza de que o Corey não tinha esses documentos quando caiu, mas é claro que volto lá para procurar. Se não se importa, agradeço-lhe que continue a guardar segredo. Só precisaria de saber do que se trata, se o senhor achasse que era imprescindível para o meu trabalho

 

- Muito bem, Damian. Por agora, o segredo fica comigo, mas é essencial encontrar o médico, a rapariga e os documentos o mais depressa possível. Ligaram de Chicago outra vez e concordaram em dar-nos mais dois dias, depois, mandam gente de lá para tratar do assunto, e eu não posso impedi-los. O que não falta é quem esteja à espera da nossa demonstração de fraqueza e confusão para avançar e tomar conta das operações.

 

- Vamos encontrá-los - garantiu Steele, em tom confiante. De repente, inclinou-se para a frente e fez estalar os dedos, numa invulgar exibição de animação para o seu feitio. A chave, Dom Alberto! Quase me esquecia da chave - e tirou-a do bolso, entregando-a a Julian, que a examinou pensativamente durante uns momentos e depois a apertou com força na mão, de olhos fechados, como que a tentar avaliar o seu significado.

 

- Vê lá se estou enganado, Damian. Segundo disseste, não te parece que o Corey tivesse o livro com ele quando o ataste e lhe tiraste a chave, pois não?

 

- Correcto.

 

-E depois ele, fosse como fosse, recebeu o livro da mulher sem precisar da chave. Talvez tenhas razão, meu amigo, talvez o Peter escondesse noutro sítio os papéis que procuramos. Eu fico com a chave. Vai com dois homens ao sítio onde ele deixou cair o livro, enquanto vou falar com a nossa gente na Polícia, para fazerem uma busca cuidadosa à casa da velha. Assim, amanhã saberemos ao certo o que esta chave abre. Entretanto, quero que encontres o Corey, tens todos os meus recursos à disposição.

 

- Obrigado, Dom Alberto, não deve demorar. Levantou-se e sentiu-se de novo enojado ao ver que as calças se colavam à coxa. Disfarçando cuidadosamente a repulsa, Steele descolou o tecido da pele, dizendo para consigo que ia passar pelo hotel para tomar duche antes de fazer qualquer outra coisa. Quando o caso ficasse resolvido, Carl Julian pagaria caro por o ter exposto a tal vexame, muito caro.


IV PARTE

--Estás quieto e deixas-me acabar de te pôr a ligadura? Sempre ouvi dizer que os médicos são os piores doentes, mas nunca percebi o que isso significava até agora!

 

A luz interior do Lincoln iluminava o suficiente para Karen lhe colocar uma ligadura na mão direita. Fora do carro, os ramos dos carvalhos agitavam-se na brisa matinal, varrendo ritmicamente o tejadilho e as janelas. Estavam estacionados no fim duma estrada de terra, na reserva das Colinas Azuis, a sul da cidade.

 

Quase sem poder agarrar o volante, luke acabara por desistir de guiar e deixara-se cair de encontro à porta, enquanto Karen procurara, durante uma hora, uma farmácia aberta. As dores nos membros esfolados e o latejar nas costas não se comparavam com o desespero que sentia por ter perdido o livro.

 

A rapariga, possivelmente por causa dos ferimentos, não lhe fizera perguntas quando soube do acontecido, e os dois haviam seguido sem falar até saírem da estrada e pararem na estreita estrada de terra.

 

-Merda, essa coisa arde! - gemeu luke quando ela lhe lavou os arranhões com desinfectante,

 

- Disparate! - ralhou Karen. - O farmacêutico disse que não. Fica mas é quieto e porta-te bem, para eu acabar de te tratar a mão. Quando sairmos desta embrulhada, vou pôr-te em forma com umas corridas pela praia. Nenhum pistoleiro deste mundo será capaz de te apanhar quando acabares o programa de treino que tenho para ti!

 

-Não vamos sair da embrulhada, Karen - resmungou ele, desencorajado. - Estraguei tudo, meu Deus...

 

-Não digas isso, luke - pediu ela, demasiado calma.

 

- Estamos juntos, arranjámos um carro e escondemo-nos no arvoredo. Se pensarmos nos últimos dias, não me parece tão mau assim. Além disso, ainda temos a bolsa com os recortes de jornal que talvez nos dêem uma ideia da importância do livro.

 

- Olha, o mínimo que podes fazer é ser honesta comigo! explodiu Luke. - As nossas hipóteses de sobreviver a isto estão algures entre poucas e nenhumas, e tu ficas aí sentada com essa conversa, como se eu fosse um menino mal-comportado. O mínimo que podes fazer..

 

- Pára com isso e cala-te já, doutor Lewis Sabichão! A voz dela tinha uma dureza e um histerismo controlado que ele nunca lhe ouvira. - Quem és tu para me dizer como hei-de lidar contigo? A última mulher com quem tiveste um relacionamento, sem ser tua doente, foi provavelmente a tua mãe, e guardo sérias dúvidas de que fosse bom. Bolas, Luke, eu não preciso de estar para aqui a choramingar, a dizer que tenho medo, que me apaixonei por ti e que receio perder-te! Tu devias saber isso tudo e, em vez de me desencorajares, o que tinhas a fazer é pensar numa maneira de... - calou-se tão depressa como começara e estendeu as mãos, agarrando-lhe a cara, com lágrimas nos olhos e o lábio inferior a tremer incontrolavelmente.

 

Desculpa falar contigo assim, Luke - soluçou. - Mas eu...

- Realmente atacaste-me bem - concordou ele, visivelmente irritado. - Eu não te percebo, Karen, não percebo mesmo. De certeza que também tens algumas fraquezas! Estamos aqui num salva-vidas de borracha a quase cinco quilómetros de terra e temos um furo. Em vez de ficares desanimada com a nossa situação, começas a falar na hipótese de um peixe saltar do mar com um estojo de emergência com remendos. Realmente, que te deu?

 

Karen ficou calada durante uns minutos, a olhá-lo, e quando finalmente falou a sua voz já não continha fúria nem o tom de  defesa anterior. Em vez disso, parecia resignada.

 

- Sabes o que é a doença de Guillian-Barré, não sabes? Ele acenou com a cabeça, um bocadinho incomodado com a súbita mudança. - Bom, quando eu tinha dezasseis anos, tive essa doença, sob a forma de paralisia ascendente. Primeiro, fiquei com as pernas fracas e não conseguia andar bem, até que não podia já mexer-me do pescoço para baixo. Respirar era um esforço terrível, e os médicos disseram que tinha de ficar num pulmão de aço e que, com o tempo, talvez a infecção desaparecesse e eu me curasse. Passei nove meses naquele pulmão, a olhar para a minha mãe e para os meus amigos por um espelho colocado em ângulo mesmo por cima da cara. Nove meses a ser alimentada à colher e lavada com uma esponja; nove meses em que o sono só vinha durante duas ou três horas de cada vez; nove meses que muitas vezes medi em minutos. A maior parte do tempo, limitava-me a ficar ali a olhar para o meu mundo minúsculo através dum espelho redondo de quinze centímetros de diâmetro. Ao princípio, queria morrer, queria matar-me, mas nem sequer podia mexer-me o suficiente para isso! Depois, comecei a concentrar-me em melhorar e decidi que, se essa fosse a minha única hipótese na vida, ia mesmo ficar boa e aproveitá-la o melhor possível. Compreendi que nada podia ser tão horrível como o que eu estava a passar, e prometi a mim própria que, se melhorasse, viveria cada momento como se fosse o último. Nada de grandes depressões nem de sentimentos de piedade por mim mesma, nada de choraminguices. Então, comecei a melhorar, primeiro os braços e a respiração, depois as pernas. Meses de fisioterapia, meses de pensar se voltaria a andar, mas voltei, e foi porque quis. Durante todo aquele tempo, pensei muito sobre a espécie de pessoa com quem passaria o resto da minha vida. Tu tens quase tudo o que eu desejei encontrar num homem, Luke, menos a aceitação e a excitação de viver o dia-a-dia. Aí é que te vais abaixo, e vejo isso como um problema, embora não insuperável. Seja como for, quiseste saber o motivo da minha atitude tão positiva para com todas as coisas. Só te posso dizer que...

 

- Chega, Karen - interrompeu-a ele. - Não continues, não é preciso. Como sempre, acertaste no alvo. Durante anos, deixei de acreditar que ainda me podiam acontecer coisas boas. Pensei que tinha apenas uma vida cheia de pessoas agradecidas por eu as curar, a fim de poderem continuar a fazer algo para o que eu não arranjava tempo.

 

- Ou tinhas medo de experimentar - interveio ela. -Talvez sim, também. Seja como for, precisamente quando descubro que o que sinto pode ser um motivo para fazer coisas, uma razão para viver, estão a tentar tirar-me isso. Muito simplesmente, não sei se consigo aguentar muito mais.

 

- Quando é que perceberás que não tens de lutar sozinho, nunca mais? Isso não significa nada para ti?

 

- Talvez quando começar a compreender que é verdade, Karen, lamento, palavra que sim. Não desistas de mim, pelo menos por enquanto, mas continua a lembrar-me, que eu farei o que puder para arranjar um sítio um pouco mais seguro e quente do que um carro roubado, estacionado no fim duma estrada de terra perdida em qualquer lado, E agora vamos deitar uma olhadela aos recortes de jornais.

 

Procurou a bolsa no chão do carro. Nesse momento Karen estendeu a mão e apagou a luz. Beijaram-se e ficaram abraçados na escuridão, com a respiração a abrandar ao mesmo tempo, até que adormeceram ambos.

 

Quando Luke acordou, horas mais tarde, o sol da manhã passava por entre as árvores e fazia brilhar a pintura metalizada do Lincoln.

 

Precisou de dez dolorosos minutos para mudar da posição em que dormira. As mãos e os joelhos realmente não lhe doiam muito, mas todos os músculos pareciam gritar à mais pequena contracção. Olhou pelo retrovisor e descobriu que um arranhão na ponta do nariz viera juntar-se às nódoas verde-amareladas da testa. A imagem que lhe ocorreu à mente, ao ver-se naquele espelho, foi a de entrevistas que tinha visto com os derrotados em combates de boxe, e as ligaduras nas mãos mais acentuavam a impressão. Durante um instante, riu-se sozinho, ao pensar na reacção do seu sócio, o Dr. Ken, sempre todo aprumado, se o visse naquele estado, para não falar do proeeminente Dr. Lewis T. Corey Sénior.

 

Só nessa altura percebeu que a porta do condutor estava entreaberta e que Karen e a bolsa com os artigos de jornal tinham desaparecido. Saiu a custo pela outra porta e coxeou pela estrada, arrastando a perna direita. O céu estava claro, mas salpicado de espessas nuvens cinzentas. Soprava uma razoável brisa de oeste e, espreitando por entre as árvores nessa direcção, viu uma densa faixa de nuvens ainda mais ameaçadoras. «Duas ou três horas até chegar uma tempestade», pensou para consigo. E que raio de dia é hoje, já agora?

 

Albert Julian tinha o auscultador do telefone preso entre a orelha e o ombro e uma expressão vazia no rosto, mas qualquer pessoa que o conhecesse, mesmo mal, poderia aperceber-se da ansiedade e agitação que sentia. A luz da manhã atravessava os cortinados parcialmente fechados do seu escritório, fazendo brilhar por momentos o cubo de gelo a boiar no-largo copo de uísque que ele fazia rodar ritmicamente na mão esquerda.

 

A conversa que mantinha ao telefone era claramente dominada pela pessoa do outro lado, e as respostas de Julian limitavam-se quase a monossílabos de concordância. Enquanto ouvia, fazia rabiscos na metade superior duma folha de papel, interrompendo-se de vez em quando para acrescentar algo à lista de apontamentos na metade inferior.

 

Ainda não eram dez horas da manhã de quarta-feira, 27 de Abril, e a última vez que Dom Alberto Juliano, agora Albert Julian, ingerira uma bebida alcoólica de manhã fora nove anos antes, no dia da morte da mulher.

 

- Exactamente, padrone - concordou ele, com a voz bem controlada. - Não me parece que o horário para La Tartaruga precise de ser alterado.

 

- Claro, padrone, que garantia melhor do que a minha vida posso dar-lhe ... ?

 

-Mas por que motivo?

 

- Garanto-lhe que foi drogado, e desconhece tudo sobre La Tartaruga.

 

-Mas é meu filho!

 

- Sim, padrone ...

-O Steele também?

 

- Sim, padrone.

 

- Dou-lhe a minha palavra. O Carl fica arrumado hoje mesmo, e o Steele assim que o material for recuperado. Como lhe disse, não me parece que o médico e a rapariga o tenham. Continua escondido onde quer que o Peter o guardou, mas nós possuímos a chave. Já não deve demorar.

- Sim, meu padrone. O dia de La Tartaruga está quase a chegar, e nenhum de nós o desapontará.

 

Depois de pousar cuidadosamente o auscultador, Albert Julian ficou imóvel durante longos minutos, a olhar, sem ver, para as altas janelas estreitas da parede de fundo do escritório. Por fim, como um robô, colocou o copo e o bloco numa mesa perto de si e aproximou-se das janelas. Uma faixa de nuvens cinzentas obscurecia o Sol e parecia deslocar-se rapidamente para nordeste.

 

- Il giorno per la morte - murmurou. - Acabou-se tudo para ti, Carlo, meu filho. Estás sozinho, já não posso ajudar-te, ninguém pode.

 

Tinha os olhos húmidos e brilhantes, ao encaminhar-se mecanicamente para a grande secretária de mogno e nogueira. No canto traseiro direito, havia um longo e estreito altifalante tapado por uma grade de madeira, com uma fila de pequenos interruptores por baixo. Julian estendeu a mão para eles, mas parou, como se não conseguisse aproximar-se mais. O único som que interrompia o silêncio do escritório era o estalido abafado do pêndulo dum grande relógio de caixa alta, num canto.

 

Recuou ligeiramente, para depois, resoluto, avançar, accionando um dos interruptores. Menos de um minuto depois, abriu-se a porta, dando passagem a um homem que ocupava quase todo o espaço da moldura da mesma. Quem o conhecia referia-se-lhe muitas vezes, embora nunca na sua presença, como o Humanóide, e ninguém, incluindo o seu patrão e amigo mais íntimo, Albert Julian, podia ter arranjado um termo que o descrevesse melhor. O seu metro e noventa e cinco era apenas uma estrutura para a cara incrível, numa cabeça do tamanho e feitio duma bola de basquetebol apoiada solidamente nos ombros, não existindo qualquer vestígio dum pescoço. O corpo imenso pesava à vontade mais de cento e trinta quilos, e os curtos braços, desproporcionados, terminavam em mãos que fariam um melão parecer pouco mais do que um limão.

 

Contudo, ainda mais extraordinário do que o seu tamanho era a total ausência de cabelo e pêlos - Alopecia totalis. A pele luzidia do crânio caía-lhe em várias grandes pregas, que lhe formavam a testa, culminando numa maior e a direito, onde deveriam estar as sobrancelhas. Os olhos eram pouco mais do que duas passas num mar de leite-creme, e o resto das suas feições completamente indefinível.

 

Era conhecido por Victor Barker, embora tivesse nascido Vito Bacciarelli, em Palermo, há mais de cinquenta anos. Matara mais de cem homens e mulheres, a maioria a pedido, para protecção de Dom Alberto Juliano, o seu padrone de quase trinta anos. Assim, a não ser que tivesse ido cumprir alguma missão específica, nunca se afastava mais dum minuto do seu «dono». Quando Julian accionou o interruptor na secretária, uma luz piscou e uma campainha tocou num painel no quarto de Victor, indicando que precisavam dele no escritório.

 

Alberto Julian indicou ao gigante um forte sofá perto da lareira, e o Humanóide deslocou-se com uma facilidade e uma ligeireza surpreendente, sentando-se sem uma palavra.

 

- Estive a falar com Il Padrone Grande, Victor. Está com receio de que a inépcia do Carlo tenha posto em perigo La Tartaruga.

 

O Humanóide replicou com uma voz que parecia lixa sobre cascalho:

 

- Quer que eu tome conta do menino até La Tartaruga ficar acabada?

 

Julian não conseguiu articular o que quer que fosse durante algum tempo, e depois respondeu.

 

-Quem me dera que fosse tão simples, meu amigo... Passaram mais alguns minutos sem que nenhum dos dois falasse ou olhasse para o outro. Por fim, Victor levantou-se e, voltando-se para a lareira apagada, perguntou simplesmente:

- Hoje?

 

Albert Julian fez um ligeiro aceno com a cabeça, virou-lhe as c’ostas e o Humanóide parou um instante, dirigindo-se depois para a porta.

 

- Victor - chamou Albert Julian, numa voz abafada e sem expressão. - Quando este assunto estiver tratado, procura o senhor Damian Steele, se fazes favor, fica com ele e ajuda-o. Logo que os documentos forem recuperados, ele também tem de ser neutralizado.

 

- Com certeza, meu padrone. Tenho muita pena do menino Carlo.

 

-Também eu, Victor, também eu.

 

O vento aumentara consideravelmente de intensidade quando Luke saiu do carro e foi até um pequeno descampado situado a uns duzentos metros do Lincoln, onde Karen se atarefava, baixando-se de vez em quando para apanhar pedras, que colocava depois sobre os recortes de jornal. Aliás, pareceu a Luke que já estavam pelo menos trinta ou quarenta dispostos na erva em filas ordenadas.

 

A rapariga apercebeu-se da sua aproximação e parou, a sorrir, de mãos nas ancas e a cabeça à banda, com uma expressão avaliadora no rosto. Luke reparou como ela parecia fresca, enérgica e adorável, apesar de tudo o que lhes acontecera.

 

- Pára já aí! - exclamou ela, em tom alegre, colocando as mãos como se segurasse uma máquina fotográfica e o estivesse a enquadrar. - Quero ficar com esta cena gravada para sempre. Pareces mesmo saído do filme O Regresso da Múmia! Manteve as mãos na mesma posição e foi descrevendo a cena com um sotaque britânico: - E depois, enquanto a bela Lady Karen olhava aterrorizada, Rarasés IV, morto há dois mil anos, arrastou-se na sua direcção, através do campo, com a sua lúgubre respiração a cortar o ar matinal, as ligaduras penduradas e os braços e as pernas muito abertas. Ela sentiu o sangue arrefecer-lhe só de pensar em ter de suportar sexo com a odiosa criatura antes do café da manhã. «Ainda se lavasse os dentes ou, pelo menos, mudasse algumas das ligaduras», pensou ela, recordando por momentos o retroseiro de Liverpool com quem podia ter casado. Como te sentes, ó grande Ramsés?

 

Como sempre, era irresistivel e Luke começou a grunhir ao melhor estilo de múmia que conseguiu e a arrastar ainda mais a perna direita.

 

- Primeiro panquecas e depois quecas - rosnou ele. Desataram os dois a rir, e ela correu pela erva para o abraçar. O beijo foi húmido, doce e imediatamente excitante. Luke deixou-se cair, puxou-a para cima de si e Karen deu-lhe outro beijo, passando-lhe a mão pelo corpo até acariciar a erecção.

 

- Meu Deus, afinal ainda há vida na velha múmia! - exclamou a jovem.

 

- Continua a fazer isso e eu sigo-te para onde quiseres disse ele, com um sotaque que era uma mistura atroz de Bela Lugosi e Boris Karloff.

 

A erva estava fresca, com pouca humidade e, por cima deles, as nuvens cinzentas tinham cortado o céu ao meio. Ficaram abraçados durante um bom bocado, movendo-se ocasionalmente para trocarem um beijo ou acariciarem-se. Finalmente, percebendo que o mau tempo se aproximava a toda a velocidade, Luke rolou para o lado e sentou-se, com os braços apoiados nos joelhos.

 

-Já os leste? De que falam? - perguntou.

 

- É estranho, Luke, muito estranho. Só li dois, mas referem-se todos à mesma pessoa. Muitos dos recortes não têm datas, mas o mais antigo que encontrei é de 1955 e o mais recente de dez anos mais tarde. Nada a partir de 1965, até agora, mas acho que foi nesse ano que o Peter morreu, e deve ter sido ele a juntá-los. Ainda há outros na pasta. Anda lá ver o que eu fiz, tentei ordená-los por datas. A maior parte é de jornais de Bóston, mas também há alguns do Times. Devem significar qualquer coisa. Espera até veres de quem falam.

 

Luke levantou-se com bastante dificuldade e, de mãos dadas, dirigiram-se para os artigos cuidadosamente dispostos no chão. Alguns eram simples fotografias, outros, notícias de várias colunas com as continuações doutras páginas coladas com fita gomada no fim. Durante dez minutos observaram-nos silenciosamente, ajoelhados na erva. Os recortes estavam amarelados, mas geralmente bem conservados. De vez em quando Luke olhava para Karen espantado e apreensivo.

 

A colecção seguia cronológica e pormenorizadamente o princípio da carreira pública e política dum homem chamado Nicholas Fearing, o mesmo que, apenas dezoito meses antes, tivera tão grande influência na eleição da presidência democrática, o mesmo que, desde a sua tomada de posse, dezasseis meses antes, desempenhava com tanto êxito o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos. Em suma, tratava-se do brilhante, expedito, vigoroso e muito adorado Nicholas Fearing, o Menino de Ouro da política americana.

 

De repente, docilmente, os empregados e a gerência da Nathan goldsteyn e C.a Importações, Exportações e Armazenagem, empresa que ocupava o sexto andar do edifício de escritórios no número três da Praça de Bóston, começaram a entrar em fila no pequeno gabinete ao fundo do átrio. Dirigindo os seus movimentos, estava um autêntico gigante, cujo aspecto assustador infundia ainda mais respeito devido à ausência de cabelo e pêlos na enorme cabeça e na cara e também à metralhadora que empunhava na sua enorme mão direita.

 

Tinham colocado guardas junto ao elevador e da porta para a escada, e o Sr. Nathan Goldstein ajudava involuntariamente na cuidadosa e sistemática busca de todo o andar, obrigado a isso por um revólver de cano comprido empunhado descontraidamente por um bem vestido Apolo.

 

Goldsteyn era obeso, de cara avermelhada, um fumador inveterado que pigarreava ou tossia quase continuamente, atirando cinza de cigarro para a alcatifa dourada e vermelha. Steele levara-o de sala em sala, enquanto ele praguejava interiormente ao pensar no almoço perdido com a voluptuosa secretária da Companhia de Comércio do Extremo Oriente.

 

- Saltava-lhe para a cueca hoje, de certeza - resmungou e aparecem-me estes anormais. Depois disto, não quererá saber de mim. Lá volto eu para a Shirley e para um novo episódio da epopeia «A Esposa não Sensual». Que merda!

 

- Disse alguma coisa, senhor Goldsteyn? - perguntou Damian Steele.

 

- Não, não, estava só a amaldiçoá-lo e aos seus antepassados. Olhe, se você me disser o que procura, talvez eu possa poupar a todos uma data de tempo e chatices. Já lhe disse que não há dinheiro por aqui. Só computadores, percebe? Com os computadores e os cartões de crédito, geralmente nem trago comigo uma moeda para um cagatório, portanto, porque não mete os seus valentões no elevador e vão assaltar o joalheiro Lipshitz, no primeiro andar?

 

- Senhor goldsteyn, se não se cala e não afasta aquele ficheiro da parede, sou obrigado a dar-lhe um tiro numa das mãos - replicou Steele calmamente. - Estou a ser claro?

 

- Que nem água - respondeu Nathan goldsteyn, esforçando-se por arredar o ficheiro.

 

A chave servira perfeitamente na fechadura da porta do gabinete de goldsteyn, que ficara sentado à secretária, confuso, frustrado, irritado e a fumar, enquanto Damian Steele rebuscava cuidadosamente cada centímetro da divisão, o que incluía um cuidadoso exame do conteúdo das gavetas e ficheiros. Até a alcatifa fora arrancada e as tábuas do chão batidas à procura dum compartimento escondido. Contudo, nada relacionado com Peter Ferlazzo aparecera até ali, e Nathan goldsteyn negava a pés juntos ter conhecido tal pessoa.

 

- Que empresa ocupava este andar antes da sua companhia, senhor goldsteyn? - perguntou Steele, examinando cuidadosamente o conteúdo de cada gaveta do ficheiro.

 

-Viemos para aqui há oito, não, nove anos. Não faço ideia de quem diabo cá estava antes. Fosse quem fosse, espero que tivesse melhor assistência da merda da empresa dona desta pocilga. Dois mil por mês por esta porcaria de gabinetes e uma morada chique. Não pagamos extra pela porra das baratas.

 

- Meta a viola no saco, senhor Goldsteyn - ordenou Steele, nitidamente irritado. - Vá para o gabinete ali de trás com o resto da sua gente e esteja calado, para ninguém se magoar.

 

Goldsteyn obedeceu, contrariado.

 

- Há qualquer coisa estranha com esta chave, Victor disse Steele, andando para trás e para diante no estreito gabinete.

 

O Humanóide ficou calado, mas deslocou a sua enorme cabeça ligeiramente no que pareceu ser um gesto de concordância. Os dois profissionais estavam sozinhos no gabinete de Nathan goldsteyn, enquanto este e o seu pessoal eram guardados à vista noutra divisão.

 

-Vamos lá rever o que sabemos sobre o raio da coisa continuou Steele, embora sem esperar encorajamento verbal do Humanóide, mas falando consigo próprio em voz alta, como fazia muitas vezes.

 

Por motivos que não compreendia nem analisava, Damian sentia um conforto e uma segurança inusitados em companhia do gigante, sendo fácil supor como Dom Alberto Juliano impunha respeito e obediência instantâneos com Victor Barker em silêncio à sua direita. Enquanto andava dum lado para o outro e falava, Steele ia contando distraidamente pelos dedos as conclusões a que chegava.

 

- Peter Ferlazzo quer sair da organização, de maneira que desvia e esconde documentos que considera suficientemente importantes para que Dom Alberto e a sua família lhe garantam a vida, e pelo menos parte do que rouba fica escondida algures em casa da preta. Passados anos, Ferlazzo sabe que está a morrer e transfere o segredo do paradeiro dos documentos para a tal Evelyn Samuels, que, por sua vez, já às portas da morte, no hospital, dá esta chave ao médico e fá-lo prometer que só a entrega à filha. Apanhamos ambos, e a chave, em casa da preta, ainda de mãos vazias, mas depois de fugirem têm pelo menos o antigo livro-razão, apesar de eu possuir a chave. Seguimos o rasto desta e descobrimos onde serve, mas nada encontramos que tenha a ver com o Ferlazzo, com a Samuels, com a organização, ou seja, com o que for. Então a chave nada significa, era só para despistar? Nesse caso, porque estava com uma senhora de Cape Cod, se era dum escritório em Bóston? Esta hipótese não me convence, Victor, não tem lógica. Se soubéssemos mais alguma coisa sobre a espécie de homem que o Peter Ferlazzo era e o que fazia, ajudava, mas não me parece que haja tempo para o descobrirmos. Aliás, começo a pensar que há mesmo pouco tempo.

 

Steele andava e falava depressa, com os pensamentos a atropelarem-se e a saírem-lhe da boca cada vez com mais velocidade. Victor Barker deixou-se ficar imóvel, com os seus olhinhos pretos a seguirem quase imperceptivelmente os movimentos do lendário assassino. No fundo da sua mente, procurava decidir como «neutralizaria» Damian Steele, assim que a missão estivesse completada. Mãos ou arame, resolveu por fim.

 

- Muito bem, muito bem - dizia Steele. - Que significa isto tudo? Quer dizer, Victor, meu amigo, que temos de voltar a casa da preta. A resposta está lá, tem de estar, e significa também que, provavelmente, o nosso doutor e a namorada ficaram com os documentos. Se assim for, devem estar a aparecer às claras daqui a pouco, talvez hoje. Vamos precisar de ajuda, Victor, de muita ajuda, para vigiar o sócio do médico, em Cape Cod, a irmã e até a família, no Maryland, também o apartamento da rapariga em Nova Iorque, além de quaisquer amigos ou pessoas de família de qualquer deles que venhamos a descobrir. Eles aparecerão daqui a pouco, e precisarão de ajuda. Telefona a Dom Alberto, vê se ele pode tratar disso. Fala também com o nosso homem da Polícia de Bóston, diz-lhe que precisamos de voltar à casa de Mattapan nas próximas duas horas.

 

«Encontramo-nos no hotel daqui a quarenta e cinco minutos, e seguimos para a Rua Abbot. Tu tratas dos telefonemas e eu do Goldsteyn e do pessoal dele. Alguma pergunta?

 

Os enormes ombros encolheram-se ligeiramente e a cabeça de bola de basquetebol cor-de-rosa moveu-se uma vez para a direita e outra para a esquerda, enquanto Steele, com um curto aceno de cabeça e um sorriso aprovador, se dirigia para o átrio.

 

Quando Damian Steele o chamou ao átrio, Nathan Goldsteyn acabara de fumar o sexto Kool, «medicinal dum raio», cravado à sua secretária, a única outra fumadora das doze pessoas guardadas à vista no apinhado gabinete.

 

-Que foi agora, Harpo? - perguntou ele, com grande descontracção. - Onde está o Limpinho?

 

- Senhor Goldsteyn, o senhor ou é extremamente corajoso ou deploravelmente estúpido, não tenho bem a certeza - respondeu Steele, com a voz calma mas firme que nunca deixava de impressionar e assustar as pessoas a quem se dirigia. - Seja como for, e por um motivo qualquer, não me apetece vê-lo magoado. Está a perceber?

 

Goldsteyn engoliu em seco e concordou com a cabeça, sem mais gracinhas.

 

- Se venho a saber que o senhor ou alguém do seu pessoal diz uma palavra sobre a nossa visita, eu encontro todos, a começar por si, e mato-os da maneira mais dolorosa que possam imaginar. A minha recomendação inclui toda e qualquer agência noticiosa que pensem contactar. Alguma pergunta, senhor goldsteyn?

 

O empresário sentiu um espasmo nos intestinos e, percebendo que tinha de ir depressa à casa de banho, abanou a cabeça negativamente.

 

- Eu perguntei-lhe se tinha alguma dúvida, senhor Goldsteyn. - Cada palavra de Steele era um estalo na cara do homem.

 

-Não senhor, nenhuma. - As cordas vocais de Nathan Goldsteyn estavam quase virtualmente paralisadas.

 

- Ora então, muito bem - concluiu Damian Steele, antes de dar lentamente meia volta e conduzir os seus homens dali para fora.

 

Nathan goldsteyn correu para a casa de banho e depois avisou os empregados de que quem falasse nos acontecimentos daquela manhã fora dali ia para o meio da rua imediatamente. Ele era muitas coisas, mas não deploravelmente estúpido.

 

Seguros pelas pedras, os recortes de jornal agitavam-se como peixes presos no anzol, pois o vento aumentara consideravelmente. Luke pensava que tinha mudado de direcção, soprando nesse momento de nordeste, e caíam também algumas gotas de chuva dum céu cinzento-escuro.

 

«Vai ser uma tempestade dos diabos», pensou para consigo.

Como que numa espécie de confirmação cósmica, ouviu vários trovões distantes, cada um mais forte do que o precedente.

 

- Acho que é melhor guardarmos estes recortes - recomendou ele a Karen, embrenhada na leitura dos mais recentes. Já tiveste alguma grande revelação?

 

A rapariga abanou a cabeça e começou a juntá-los, ao mesmo tempo que prometia a si própria não deixar Luke perceber que começava a sentir-se desencorajada e sem esperança. «Chegámos demasiado longe», repetia para consigo, «para agora sermos derrotados. Por isso, Karen Samuels, o melhor é respirares fundo e deixares-te de merdas. Este homem precisa de ti, precisa da tua compreensão, da tua força e de saber que nada, nem mesmo a vida, vale a pena se não pudermos ficar juntos. Tu acreditas nisso, confirma-o agora. Tens de o ajudar a não sentir medo.»

 

Olhou para Luke, curvado para a frente, a juntar distraidamente os recortes. As nódoas negras e as ligaduras, o seu sofrimento fisico e moral fizeram-na ficar agoniada de repente. Começou a respirar fundo, lentamente, tentando não vomitar diante dele, e conseguiu controlar-se, embora com dificuldade. Estaria tudo acabado para eles? Teria terminado antes mesmo de surgir uma hipótese de começar? «Porquê, Deus meu?», gritou a si própria. «Porquê?»

 

Contraída, aproximou-se dele e apanhou do chão a bolsa de cabedal preto que contivera os recortes. Ao curvar-se para apanhar os que já pusera num montinho, os poucos que ainda estavam lá dentro caíram no chão e esvoaçaram.

 

Corria atrás deles, quando Luke, sem levantar os olhos, disse:

 

- Isto é muito menos do que eu imaginava, Karen. com certeza que andavam à procura do livro, não podia ser disto. Quer dizer, nem sequer sabemos quem é que coleccionou os artigos, quanto mais o que significam. Não vejo nada de anormal, mesmo sendo o Peter Ferlazzo e o Nicholas Fearing amigos. Bolas, quem anda a fazer isto connosco já tem o livro, de maneira que talvez estejamos salvos, talvez nos deixem em paz. Que mais podem querer de nós? Não achas?

 

Não obtendo resposta, sentiu um súbito nó no estômago e voltou-se imediatamente para o sítio onde a vira pela última vez.

 

Respirou de alívio quando a viu sentada, de pernas cruzadas, a pouca distância, embrenhada na leitura de um dos artigos. Abanando a cabeça, resignado por ela não o ter ouvido, retomou a tarefa de apanhar os recortes. A temperatura baixara bastante em apenas alguns minutos, e os raros pingos de chuva tinham sido substituídos por um nevoeiro empurrado pelo vento.

 

- Vá lá, querida! - chamou Luke. - O temporal está quase em cima de nós. Vamos outra vez para o carro pensar no que havemos de fazer, Sabes, eu estava a dizer que agora que o livro caiu nas mãos deles, talvez estejamos safos, talvez já nem andem atrás de nós. É claro que ainda temos de enfrentar uma acusação de homicídio, mas alguém há-de ouvir-nos e acreditar em nós, não achas?

 

Pela segunda vez, a sua pergunta ficou sem resposta e as suas especulações sem discussão.

 

-Tu estás bem, Karen?          perguntou Luke, já bastante preocupado.

 

-Estou, claro que sim         respondeu ela. - Olha, põe aqui esses recortes. Vamos para o carro, que eu quero mostrar-te o que descobri.

 

-Encontraste alguma coisa? Bom, então conta. Que foi?

- Digo-te assim que estivermos abrigados. Está a começar a chover a sério e, se calhar, até nem é importante.

 

Contudo, ela sabia que isso não era verdade. Então, percorreram apressadamente os últimos metros até ao Lincoln sob uma carga de água. As copas dos carvalhos protegeram-nos um pouco da chuva, mas a escuridão aumentava o efeito dos frequentes relâmpagos, pois os trovões eram quase contínuos. Molhados e sem fôlego, enfiaram-se os dois dentro do carro pela porta do lado do passageiro. O ruído do dilúvio no tejadilho acrescentava o fogo de armas ligeiras ao da artilharia pesada dos trovões. Luke fechou os olhos durante um momento, relembrando vivamente sensações experimentadas na selva com tiroteios reais, «milhares» de anos antes e a «milhões» de quilómetros de distância.

 

«Nunca me senti realmente assustado naquela altura, nem uma só vez», pensou para consigo. «Porque estarei agora a suar e a tremer?»

 

Abriu os olhos e viu que Karen o fitava.

 

- É a guerra? - perguntou ela, como se estivesse dentro dos seus pensamentos.

 

- És de mais, sabias? És parecida com Afrodite, corres como Hermes e, nas horas vagas, lês o pensamento das pessoas. Bom, na qualidade de alguém que é parecido com Marte e corre como Zeus com gota, deixa-me garantir-te que não consigo adivinhar nem o mais básico dos teus pensamentos. Então, porque não me mostras o que descobriste?

 

Karen metera o sobrescrito na blusa para não se molhar e, sem uma palavra de explicação, entregou-lho.

 

Era velho, bastante velho, e estava amarelado. A letra era pequena e certa, feita com caneta de tinta permanente, caracterizada pelo curioso desenho da vogal a e de algumas consoantes. O remetente, em duas curtas linhas, dizia: Domenico Ferlazzo; Ragusa, Sicília. A morada era: Sr. Peter Ferlazzo, Companhia de Produtos do Nordeste, Praça de Bóston 3, Sala

703, Bóston, Massachusetts, Estados Unidos da América.

 

No canto inferior esquerdo da frente e no canto inferior direito das costas, lia-se «Confidencial» e «Pessoal». O selo era italiano e o carimbo dos correios estava ligeiramente borrado e apagado.

 

À luz interior do carro, Luke teve quase a certeza de ver

1946 no carimbo, mas fosse ou não esse o ano, a carta tinha provavelmente sido enviada havia mais de trinta.

 

Não tentou dominar o tremor das mãos, ao abrir o sobrescrito para tirar de lá o conteúdo. A chuva continuava a cair com toda a força, mas Luke Corey nem dava por isso, como também não sentia as dores no corpo. Mesmo antes de desdobrar as frágeis folhas amareladas, sabia: o motivo da perseguição do terror, de todo aquele pesadelo estava ali na sua mão.

 

A carta tinha duas folhas e meia de meticulosa caligrafia e a data de 4 de Janeiro de 1946 ao alto, no lado direito. Os cantos de duas das folhas tinham desaparecido mas, fora isso, as páginas estavam intactas.

 

Começava com Carissimofratello e acabava com Con affezione immortale, Domenico, e em toda a carta havia só meia dúzia de palavras que Luke conseguia entender, visto estar escrita em italiano.

 

Olhou para Karen e encolheu os ombros, com uma expressão de esperança.

 

- Que tal é o seu italiano, minha senhora? - perguntou.

- Clássico ou contemporâneo? - inquiriu ela, com um sorriso modesto.

 

-Quer dizer que falas mesmo?

 

- Ná! Nem uma palavra -- admitiu Karen. - Que maçada, não é? - e riram ambos. -A sério, Luke, que achas?

- Acho que talvez seja importante, mas precisamos de arranjar a tradução, é o que é. Até lá, ficamos sem ter a certeza. -Não me refiro à carta, palerma, mas sim à fotografia! -Fotografia? Mas eu não vi...

 

-No sobrescrito. Procura bem.

 

Estava metida num canto. Uma fotografia quadrada, com sete centímetros de lado, incrivelmente bem conservada. Nitidamente trabalho de amador representava um rapaz, no fim da adolescência, de pé diante duma grande mansão, com ar solene. Tinha uma camisola escura de gola alta que, juntamente com o seu cabelo escuro e grosso, emoldurava um rosto bastante atraente, de feições bem esculpidas. Não parecia muito à vontade.

 

- Pouca técnica, mas a cara é mais ou menos familiar comentou Luke.

 

- Tu não existes, Luke! - exclamou a rapariga, abanando a cabeça de espanto.

A que te referes?

 

-Olhe outra vez para a fotografia, doutor. Será que pode haver alguma dúvida?

 

Luke obedeceu até que os olhos se lhe abriram de espanto. Mais uma vez Karen tinha razão, não podia mesmo haver dúvida. A idade modificara bastante o jovem, mas o cabelo, os olhos e o feitio da boca pouco se tinham alterado. O rapaz da fotografia era o vice-presidente Nicholas Fearing.

 

- O Corey tem os documentos, os documentos todos. Agora tenho a certeza, Dom Alberto.

 

Damian Steele estava estendido no sofá dos seus aposentos no hotel, a falar ao telefone, e olhava aprovadoramente para a sua nudez bronzeada, contraindo um músculo de cada vez. Brian MundI, só com umas cuecas de seda azul-clara, sentava-se do outro lado da sala, a fumar cachimbo e a olhar para a rua, com um ar satisfeito. Como de costume, valera a pena esperar por Damian.

 

- Deixe-me contar-lhe tudo o que fizemos. Tenho a certeza de que concorda com o facto de os documentos já não estarem escondidos... Estou sozinho, sim. Porque pergunta? O Victor? Ficou no quarto dele. Tem sido uma grande ajuda, Dom Alberto. Obrigado pela sua sugestão de trabalharmos juntos.

 

Mundt atravessou a sala e entregou-lhe uma bebida, enquanto ele continuava a relatar o encontro com Nathan Goldsteyn e a posterior visita à casa de Theona Settles.

 

- A ligação era entre a preta e o seu amigo Ferlazzo. Descobrimos marcas no pó do sótão e num assento de janela, desmanchámos o banco e encontrámos um cofre metido em cimento no espaço interior. É um cofre Argus, de Bóston, de maneira que eu e o Victor fomos lá discutir o assunto com o director da firma construtora. Precisámos de cinco mil dólares e da promessa de certas coisas desagradáveis, mas ele acabou por ver as coisas à nossa maneira, ou seja, à do Vietor, e deu-nos a combinação, mas o cofre está vazio, Dom Alberto.

 

Enquanto Steele ouvia, Mundt ajoelhou-se a seu lado e começou a massajar-lhe os músculos da coxa direita. Tapando o bocal, ele sorriu e segredou:

 

-Agora não, meu idiota!

 

Mundt retribuiu o sorriso, deu-lhe uma palmadinha entre as virilhas nuas e voltou para a cadeira do outro lado da sala.

- Não, Dom Alberto, não disse. A chave? Bom, isso também me incomodava, e só percebi quando voltei para o hotel. O seu Peter Ferlazzo, que era um homem muito cuidadoso e muito esperto, utilizou o número de série da chave para o segredo do cofre. O Corey devia saber isso e tinha o número consigo, estou certo que sim, Dom Alberto. Nem consigo imaginar como o senhor podia ter sobrevivido todos estes anos e chegado aonde chegou, se os seus amigos e consultores não fossem cuidadosos... Não, nem uma palavra sobre o médico ou a rapariga. A Polícia emitiu um mandado de captura deles e do carro, e acho que já não deve faltar muito para termos novidades, mas também penso que talvez seja importante eu conhecer mais qualquer coisa sobre o que eles têm em seu poder. Diga-me o menos possível sobre os documentos, para não haver qualquer falha depois de os apanharmos... Uma carta e uma fotografia, é tudo. Em italiano? Ainda bem, porque não sei uma palavra e não me interessa ficar a par do conteúdo dessa carta... Pois é, eles têm de aparecer daqui a pouco e nessa altura apanhamo-los. Eu quero o Corey, Dom Alberto, estou morto por o apanhar, e quando desejo uma coisa com tanta força, consigo-a. O senhor sabe disso, não sabe?... Devo-lhe uma por ter drogado o Carl... Quê? Ai, Dom Alberto, lamento muito. Quando é o enterro?... Vou plantar as orelhas do Corey na campa do seu filho, Dom Alberto, prometo! Sim senhor, telefono assim que o apanharmos. Obrigado, Dom Alberto.

 

Steele desligou, encaminhou-se lentamente para Mundt e começou a massajar-lhe a nuca com força.

 

- Alguém me poupou o trabalho de pagar à besta do Carl os problemas que me causou. Olha, acho que assim podemos estar mais tempo juntos. Tens alguma coisa que fazer neste momento?

 

«Um extenso núcleo de baixas pressões cobre todo o Nordeste e mostra poucos sinais de se afastar. Portanto, até que o sistema de altas pressões que está sobre os Grandes Lagos comece a exercer a sua influência, a chuva e o tempo instável mantêm-se. A previsão é, pois, de chuva e trovoadas, ocasionalmente severas, persistindo pelo menos até amanhã à noite ... »

 

O Lincoln arrastava-se em direcção a Bóston, preso no trânsito da auto-estrada do Sudeste. A chuva ininterrupta obrigava a diminuir a velocidade ainda mais do que habitualmente, numa via conhecida depreciativamente pelos habitantes da Nova Inglaterra como «o maior parque de estacionamento do mundo». Karen inclinou-se para a frente e aumentou o volume do rádio. Vestia roupa nova, calças Levis, uma camisa aos quadrados e uma camisola azul-escura, que lhe realçava os seios pequenos e firmes, tudo comprado no Centro Comercial Braintree. Luke olhou-a e sentiu um calor percorrer-lhe o corpo. Era a mulher mais encantadora, meiga e vibrante que já conhecera, pensou.

 

- Ouve lá uma coisa, Karen - pediu. - Tive uma ideia.

- Sorte de principiante - comentou ela sorrindo, o que fez o coração dele dar um salto.

 

- Que gracinha! - replicou, continuando: - Nestes últimos dias, temo-nos dado cada vez melhor e fomo-nos adaptando a todas as situações que nos surgiram, não foi?

 

- E?

 

-E aqui estamos agora metidos num bloco de metal que se desloca dois centímetros por hora.

 

-E então?

 

- Então, pomos o navio em piloto automático, vamos à superficie de dez em dez minutos, para verificar a posição da próxima estação de serviço, saltamos para o banco de trás e tentamos entrar para o Guinness.

 

- Ena, ena, doutor! Talvez não tenha ideias com muita frequência, mas quando tem...

 

- Mas que achas?

 

- Acho que olhes para a estrada e eu ponho a cabeça no teu colo. Talvez não se estabeleça um recorde, mas, pelo menos, não acabamos enfiados numa vala.

 

- Olha que não sei...

 

Inclinou-se para ela e deu-lhe um beijo no cabelo radioso, antes de Karen se estender no banco e encostar a face no colo dele.

 

Luke ia baixar o som do rádio, quando começaram a ouvir notícias acerca do homicídio de Theona Settles. De olhos fechados, agarrados um ao outro, em silêncio e imóveis, escutaram a voz impessoal do locutor, a fazê-los cair de novo no pesadelo. O corpo fora encontrado pela Polícia pouco depois das três da manhã, a seguir a uma informação anónima, e, segundo o resultado da autópsia, tinha sido estrangulada não mais de duas horas antes. Havia sido emitido um mandato de captura em nome do Dr. Lewis Corey, cujas impressões digitais estavam espalhadas por toda a casa da mulher assassinada. Aquele era já procurado pela Polícia por ser suspeito de ter violado e estrangulado a modelo Connie Evans num hotel de Bóston, três dias antes.

 

A mão de Karen ia apertando mais o joelho de Luke à medida que a notícia prosseguia. Pensava-se que Corey viajava com uma mulher, Karen Samuels, de vinte e seis anos, um metro e sessenta, loira, de olhos azuis. A última informação sobre eles era que utilizavam um Lincoln Continental prateado, roubado, com matrícula de Massachusetts número 648-P.IC. Quem os avistasse devia entrar imediatamente em contacto com a Polícia e usar do máximo cuidado ao aproximar-se dos suspeitos, pois podiam estar armados e deviam ser considerados extremamente perigosos.

 

-Ela sabia, não sabia, Luke? - perguntou Karen.

 

- Sabia, sim - respondeu ele, desligando o rádio. - Provavelmente, demorou-o o suficiente para podermos fugir.

 

- Temos de os fazer pagar, Luke, e também pela Connie, coitadinha. Raios os partam! Theona era uma mulher fantástica

- e Karen endireitou-se, com a cara enterrada nas mãos.

 

- Primeiro, precisamos de descobrir quem são - observou ele - e antes disso pirarmo-nos desta estrada. Eles têm a descrição do carro e até a matrícula, caraças! O Steele deve estar em comunicação directa com a Polícia, que faz exactamente o que ele manda. Merda! Mesmo que pensássemos entregar-nos e arriscar, isso agora ficou fora de questão. Mais uma hipótese que vai à vida e, que eu saiba, só temos mais outra...

 

- Arranjar a tradução da carta e descobrir o mistério.

 

- Claro, mas primeiro temos de sair da porcaria da estrada. Se o tipo que vem aqui atrás ouviu o mesmo posto que nós, já podemos estar lixados. Vou tentar aquela saída ali adiante e depois vamos até Cambridge por estradas secundárias que eu conheço bem.

 

- Cambridge?

 

- Quero ver se encontro alguém do Departamento de Italiano de Harvard que possa traduzir a carta. Enquanto trato disso, tu podes começar a procurar na Widener.

 

E uma biblioteca?

 

É a biblioteca, saloia! Eu trato da carta e tu do Nicholas Fearing.

 

Incrivelmente, o trânsito diminuiu de intensidade de repente, permitindo a Luke sair da auto-estrada e dirigir-se para Cambridge pela Avenida Morrisey, mas não podiam seguir muito depressa, por causa das ruas alagadas com a chuva que não parava.

 

Daí a uma hora e meia, no entanto, estavam na Avenida de Massachusetts, em direcção à Praça de Harvard.

 

- Achas que é seguro continuar muito mais tempo neste cargueiro? - perguntou Karen.

 

- Não, tenho a certeza de que já estamos a abusar da sorte, mas que podemos fazer? É pena não conseguirmos falar com o nosso amigo Júnior para trocarmos de carro. - Soltou uma gargalhadinha e abanou a cabeça.

 

- Encosta ali, Luke, ali! - exclamou ela de repente.

 

- Onde? Que viste? - perguntou Luke, tão alto que ambos se sobressaltaram.

 

- Naquele parque de estacionamento. Entra ali - indicou Karen, apontando para um edifício baixo com uma grande tabuleta encarnada e azul que dizia «Parque coberto - máximo três dólares».

 

Encolhendo os ombros, Luke reprimiu as cem perguntas que lhe apetecia fazer, virou para o parque de estacionamento, tirou o bilhete da máquina e começou a subir a rampa. Encontrou lugar no segundo nível e arrumou o Lincoln. Ainda o carro não tinha parado e já Karen estava fora dele, a andar apressadamente ao longo das filas de carros estacionados.

 

- Anda cá e diz-me o que estamos a fazer! - pediu Luke. Ela parou e voltou para trás, olhou a cara dele e esfregou o queixo, como um professor à procura de palavras para explicar um conceito difícil a um simplório.

 

- Sabes como se rouba um carro fechado à chave?

 

- Não, porque perguntas? Tu sabes?

 

- Claro que não - respondeu ela, fazendo um beicinho teatral -, mas acho que consigo descobrir como se rouba um par de chapas de matrícula. Talvez não ajude muito, mas pelo menos ficamos com uma vantagem que não temos agora, certo?

 

- Luke anuiu com a cabeça e sorriu da ideia dela. - E precisamos mesmo do carro, certo? - Mais uma vez, recebeu um aceno de cabeça.

 

- Pronto - continuou Karen. - Tu procuras uma matrícula com três algarismos e três letras, como a nossa, e eu vou lá fora comprar uma chave de fendas e um alicate.

 

- Sim, patrão, mas porque queres uma matrícula parecida?

- Meu filho, meu filho - disse ela, abanando a cabeça -, é para o dono do carro ter menos hipótese de descobrir que a sua matrícula é nova. Agora, despacha-te! - e, voltando-lhe as costas, dirigiu-se para a saída.

 

- És realmente espantosa, sabias?        quase gritou Luke.

- Tenta encontrar um Volkswagen           respondeu Karen, num murmúrio. - Os donos desses carros, geralmente, não têm cartões de crédito, de maneira que há menos hipóteses de precisarem de olhar para a matrícula.

 

De facto, só quase quatro semanas depois é que George Karajanian, um vendedor duma loja de móveis, reparou que as placas de matrícula do seu Volkswagen não eram as que deviam ser, e foi por intermédio da Polícia, depois de passar um sinal vermelho, além de que perdeu uma noite inteira de corridas de galgos antes de o assunto se resolver.

 

O professor Alexandre D’Ambrosio estava a dar os últimos retoques no exame final de introdução ao italiano quando Luke lhe bateu à porta.

 

- Entre, se faz favor - exclamou D’Ambrosio.

 

Era um homem magro, provavelmente no princípio da casa dos cinquenta, pensou Luke, com óculos de aros de tartaruga e alguns cabelos brancos, o que lhe dava um perfeito ar de professor universitário. Os olhos eram castanho-escuros e possuíam uma expressão calorosa, aumentada pelos pés-de-galinha ao  canto de cada um. Luke gostou imediatamente dele.

 

- Tem a certeza de que procura o Departamento de Italiano  e não a enfermaria? - perguntou D’Ambrosio, observando as  múltiplas nódoas negras e as mãos ligadas de Luke.

 

- Tive um desastre de moto - explicou este, encolhendo os  ombros e esperando parecer à vontade. - Falei com a sua secretária, professor, e ela disse que o senhor podia ajudar-me.

 

- Bom, ela deve saber se posso ou não. E a minha Sexta-Feira há tanto tempo que qualquer dia tenho de lhe chamar Sábado! - Luke conseguiu aumentar ligeiramente o seu sorriso, embora com algum esforço. - Porque não começa por me dizer o seu nome? Parece-me um bocadinho velho para estudante.

 

- E até para finalista. Sou médico interno no hospital de Cambridge. Tom putriam.

 

D’Ambrosio levantou-se e estendeu-lhe a mão, mas parou quando reparou novamente nas ligaduras de Luke.

 

- Bom, doutor putriam, em que posso ajudá-lo?

 

- Gostava que me traduzisse uma carta - pediu Luke, sentando-se numa cadeira do outro lado da secretária do professor.

- Para italiano ou para inglês? - perguntou D’Ambrosio, sorrindo, o que ajudou Luke a ficar um pouco mais à vontade.

- Para inglês, nem pensei que alguém pudesse querer o contrário.

 

- Realmente, poucos querem. Então, diga-me lá que carta é essa, doutor.

 

Luke entregou-lha por cima da secretária coberta de papéis.

- Encontrei-a no sótão, num baú cheio de papéis velhos e fotografias. Era tudo em inglês, excepto esta carta, e estou com curiosidade de saber de que se trata. Parece ter sido escrita há mais de trinta anos.

 

-Pois parece - concordou D’Ambrosio, distraído. Estava já a ler a segunda página e daí a uns minutos acabou, mas quando voltou a olhar para Luke, toda a simpatia tinha desaparecido dos seus olhos, substituída por uma mistura de confusão e preocupação.

 

- Pode dizer-me mais alguma coisa sobre esta carta, doutor Putriam? Quem a escreveu ou quem a recebeu, por exemplo?

- Na verdade, não, senhor professor - respondeu Luke. Só sei que a maior parte do que estava no baú havia pertencido ao avô da minha mulher, que, segundo ela, tinha uma ligação qualquer com a Mafia. Por isso estamos ansiosos por traduzir a carta.

 

D’Ambrosio fixou os seus olhos escuros em Luke e ficou assim durante quase um minuto. Depois, resignado, tirou um bloco da gaveta e passou-lho, juntamente com uma caneta.

 

- Há algumas palavras que não são fáceis de traduzir para inglês, doutor Putriam. Vou tentar encontrar o termo ou ideia que achar mais aproximada. Se ditar muito depressa, diga, e eu falo mais devagar.

 

- Sim, senhor - concordou Luke, consciente de que o professor o olhava fixamente.

 

D’Ambrosio começou a traduzir a carta numa voz lenta e monótona, com a mesma animação dum funcionário de tribunal. Luke não teve dificuldade em escrever tudo, mas, à medida que o conteúd  *o se revelava, começou a sentir um suor gelado, primeiro debaixo dos braços e depois no corpo todo. Quando o professor acabou, tinha o pulso acelerado e a respiração alterada ao ponto de sentir tonturas.

 

Ficaram os dois sentados, sem falar, enquanto Luke examinava a carta. Era o motivo, sabia-o agora, de tantas mortes e da descida do valor da vida dele e da de Karen, mais rápida do que a da bolsa em 1929. Leu sem levantar os olhos para D’Ambrosio, mas parando de vez em quando e fechando-os, para evitar que o gabinete andasse à roda.

 

Querido irmão,   4 de Janeiro de 1940

Esta é com certeza a última vez que tens notícias minhas. As dores são tão grandes agora que preciso de tomar remédios com intervalos de poucas horas. Os médicos ofereceram-se para me operar de novo, mas com pouca ou nenhuma garantia de êxito, de maneira que recusei.

 

Contudo, estou pronto, Peter. chegou a hora e estou preparado, graças a ti. Conheces-me o suficiente, tenho a certeza, para compreender que me aguentaria vivo, fosse como fosse, até o meu filho ficar com o.futuro garantido. Agora, em paz, posso aguardar a minha morte.

 

Foram bons tempos os nossos, meu irmão, antes de eu ser deportado, mas as lembranças desses anos ajudaram-me a passar muitos tempos dificeis e vão comigo para a campa.

 

Agora chegou a vez do Nicholas, o teu sobrinho, o meu filho, levar uma vida na América como eu nunca pude ter. O dinheiro que te mandei é para ser utilizado da seguinte maneira:

 

- Vinte mil dólares para a passagem e documentos da sua nova identidade;

 

-- Cinquenta mil dólares para o Nicholas e a sua nova família, incluindo a sua educação numa universidade americana;

 

- Vinte mil dólares para ti.

 

Tens de conseguir a transição para a sua nova vida de maneira que não reste qualquer ligação a mim ou a qualquer membro da família; ele deve ter a hipótese de seguir o seu próprio caminho.

 

Nicholas é um rapaz brilhante, Peter um génio, dizem alguns. Já fala inglês e francês como um nativo, e os professores dizem que a sua compreensão da história e da matemática é espantosa.

 

Finalmente, quero falar-te da execução que o Nicholas levará a cabo para ti e para o Dom Alberto. Ele concordou, porque eu lho pedi e, como já te disse, eliminou três homens por mim indicados, o Molinaro, o Secchi e o Aranha, todos enviados para cá pelo Provone. Digo-te os nomes deles só para poderes garantir ao teu padrone que o trabalho vai ser feito calma e eficientemente, à maneira do Nicholas. Contudo, tens de te lembrar, Peter, de que esta execução tem de ser a última que alguma vez lhe é exigida; é o meu pedido de morte para ti.

 

O Nicholas recebeu ordem para ficar aqui em casa depois de eu morrer. à espera das tuas instruções. Envio-te estas fotografias recentes, para o passaporte dele e para outros documentos que tens de mandar fazer

 

Deus te acompanhe, meu irmão.

 

Com eterna amizade, Domenico

 

- Fascinante - comentou D’Ambrosio finalmente, recostando-se na cadeira e juntando as pontas dos dedos das duas mãos, pensativo. - Havia algum nome no sobrescrito? Tem alguma pista quanto a estes Peter e Nicholas?

 

- Nenhuma - respondeu Luke, demasiado depressa.

 

- Se não se importa, gostava de ficar com uma cópia para a minha própria informação e estudo. Talvez com alguma pesquisa consiga descobrir qualquer coisa sobre as pessoas relacionadas com esta carta espantosa.

 

- óptimo, eu faço uma cópia a mais e trago-lha amanhã

- gaguejou Luke, lembrando-se nesse momento de ter visto uma fotocopiadora no gabinete da secretária do professor.

 

- Muito bem - concordou D’Ambrosio. - Entregue-a à Barbara, se eu não estiver cá.

 

Luke tentava perceber porque não teria o professor sugerido exactamente essa fotocopiadora, quando ele se levantou com um aceno de cabeça, indicando que o tempo se tinha esgotado. Agradeceu-lhe, pegou na carta e na tradução e recuou, consciente dos olhos fixos nele.

 

Ao voltar-se para agarrar o puxador da porta, D’Ambrosio falou, e as suas palavras, pronunciadas calmamente e sem vestígios de crítica, feriram Luke como punhais.

 

- Gostei de o conhecer, doutor Corey. Só lamento que tenha sido em circunstâncias tão dificeis.

 

Luke ficou imóvel, de olhos fechados, virado para a porta. O professor torturou-o com alguns momentos de silêncio, e depois abrandou o golpe.

 

- Descontraia-se, Lewis. Volte-se, eu não sou uma ameaça para si.

 

Luke voltou-se com dificuldade, obrigando-se a enfrentar o olhar de D’Ambrosio.

 

- Senhor professor.. como é que ... ?

 

- O seu pai, Luke. Fizemos parte de vários comités juntos, quando ele pertencia à universidade, e sempre apreciei as conversas que tínhamos no fim daquelas horríveis reuniões, Sigo o seu caso nos jornais desde o princípio e não consigo perceber como...,

 

- É uma história longa e complicada, senhor professor interrompeu Luke. - Só posso dizer-lhe que não sou culpado e que, ao traduzir-me esta carta, talvez me tenha ajudado a chegar ao fundo da questão.

 

- Se eu puder fazer mais alguma coisa...

 

- Já fez mais do que eu podia esperar, senhor professor disse ele, recordando Connie Evans e Theona Settles. - Obrigado.

 

- Lembre-se de que estou aqui para o ajudar - concluiu D’Ambrosio, quando Luke saiu do gabinete.

 

- Para um homem que não existiu durante o primeiro terço da sua vida, o Nick Fearing não se saiu nada mal! - comentou Karen, com a cadeira inclinada para trás no cubículo de leitura, a roer a borda dum copo de papel ainda meio cheio de café morno.

 

A mesa diante dela estava coberta de folhas escritas dos dois lados com a letra ornamentada mas desenvolta que era a suâ marca registada desde a faculdade, e Lukc achou-a invulgarmente desmazelada, com a fralda da camisa azul-clara a aparecer debaixo da camisola azul-escura e uma madeixa de cabelo amarelo-palha caída na testa.

 

- Que achas da carta? - perguntou ele, estendendo a mão para lhe arranjar o cabelo, mas retirando-a logo ao verificar que gostava dele assim.

 

- Não tem grandes surpresas, acho eu, a não ser os crimes. Condiz com o que se sabia até aqui. O que me parece cada vez mais assustador é que, para além de assassino e vice-presidente, o Fearing deve ter uma organização incrível atrás dele... ou por baixo dele. Quem sabe?

 

- Continua, querida - pediu Luke.

 

- Bom, pensa no que nos aconteceu. Até agora, sabemos que tem gente em Cape Cod, incluindo o corrupto do chefe da Polícia, em Bóston e, com um bocado de sorte, nos jornais, na

 rádio e na televisão. Localizaram-nos em casa da Theona uma hora depois de lá chegarmos, há homens a vigiar a casa da tua irmã, provavelmente puseram-lhe o telefone sob escuta, e isto tudo com o Fearing a oitocentos quilómetros de distância, em Washington. Meu Deus, Luke, sabe-se lá o que enfrentamos! Mas neste momento aposto que é mais do que estamos dispostos a acreditar.

 

O médico suspirou e começou a fazer furos no copo de papel, enquanto digeria o que ela dissera. Podia haver buracos no copo, mas na lógica dela é que não. Mecanicamente, pegou na fotografia do jovem Nicholas FerlazzoíFearing e colocou-a diante deles.

 

- Não tem muito ar de assassino - comentou Karen, pensativa.

 

- O Baby Face Nelson também não tinha - replicou Luke, num tom lúgubre. - Isto está quase a tocar as raias do inconcebível. Como diabo pode um embusteiro ser eleito vice-presidente dos Estados Unidos? Não é suposto verificarem os antecedentes e a família dos candidatos?

 

- Acho que sim - disse Karen -, mas depois de ouvires o que eu descobri, não me parece que possas culpar alguém por não desconfiar. O tio Peter e os amigos dele eram imaginativos e perfeitos, não deixavam pontas soltas, excepto, acho eu, a carta e a fotografia. E, portanto, nós. Que tal te sentes como ponta solta?

 

- Como quem está agarrado a uma corda demasiado curta respondeu Luke - e já devemos ter chegado mesmo a ponta.

 

- Por favor, Luke, vê lá se te animas - disse ela, zangada. - Descontrai-te e ouve mas é a biografia que eu fiz do czar Nicholas. Depois, se não conseguirmos resolver como liavemos de agir, deixo-te afundar no pessimismo até onde quiseres. Está bem?

 

luke sorriu, deu-lhe um beijo e recostou-se na cadeira. -Nicholas Mark Fearing - começou ela - nasceu em PowelI, Montaria, no dia seis de Novembro de mil novecentos e vinte e oito. Escorpião, não era de prever? Os pais eram o falecido reverendo Joseph Fearing e a também falecida sua esposa, Mary. E isto é que é o máximo, Luke, esta gente era sabida. Dois anos depois, o bom reverendo e a mulher supostamente pegaram no seu forte rebento e foram para África como missionários. Não consegui encontrar uma palavra sobre o seu destino concreto e o que lá fizeram, mas aposto que existe algures uma floreada descrição das suas boas obras. Seja como for, após uma prolongada estada no continente negro, os Fearing voltaram para os Estados Unidos em...

 

- Espera! Deixa-me adivinhar - pediu Luke -, em mil novecentos e quarenta e seis.

 

- Brilhante e certo, meu querido, ora aí tens. Dezassete ou dezoito anos esfumados na calma - e Karen estalou os dedos com tanta força que fez eco no silêncio da biblioteca.

 

-Mas os registos, a certidão de idade... Com certeza que deve haver..

 

- Posso continuar ou queres ser tu a estrela?

- Desculpa.

 

- Também pensei nisso, de maneira que liguei para a conservatória do Registo Civil de PowelI, Montaria. A funcionária não pareceu espantada com as minhas perguntas e deu-me a entender que eu era apenas uma das muitas pessoas que queriam informações biográficas sobre o primeiro filho, de Powell. E depois fez-me uma conversa semipreparada, louvando as virtudes do Fearing e as suas contribuições para o bem da humanidade, acabando por dizer que a cidade se sentia muito grata ao vice-presidente pela sua generosidade em ajudar à reconstrução do edifício onde ficava a conservatória depois da explosão e do incêndio que tinham praticamente destruido tudo, em mil novecentos e sessenta e quatro. É claro que, na altura, ele era apenas governador do Massachusetts.

 

- Incrível - foi a única coisa que Luke conseguiu dizer. Absolutamente incrível.

 

- Tanto quanto sei, nenhum dos Fearing voltou alguma vez a PowelI, pelo menos até Nick ir lá inaugurar o novo edifício, em sessenta e quatro. Nessa altura, os pais já tinham morrido uns catorze anos antes, num trágico desastre de automóvel, imagina tu. Outra ponta solta cortada.

 

- Olha que fizeste um trabalho impressionante! - gabou Luke.

 

-Há mais, mas a maior parte é biografia normal. Ainda não topo bem o homem, a não ser pelo que tinha visto na televisão ou lido nos jornais antes de isto tudo acontecer, mas é a personificação do sonho americano. Filho de pobres missionários, educado nos primeiros anos pelos pais, acabou o liceu em

1973
Lawrence, Massachusetts, imagina. Foi para Harvard em mil novecentos e quarenta e oito e formou-se entre os primeiros do curso três anos depois, com um de avanço. Depois cursou Direito também em Harvard e foi o editor da Revista de Direito. Fez um estágio no gabinete do procurador distrital e deve ter sido bastante competente, porque, em mil novecentos e cinquenta e oito, com a «madura» idade de trinta anos, foi nomeado para o cargo. Aparentemente, o tipo que ele substituiu morreu ao serviço. Hum hum...

 

Hum hum, dizes bem - concordou Luke. - E o resto? Procurador-geral estadual entre sessenta e sessenta e dois e depois vice-governador durante dois anos, tornou-se governador aos trinta e seis, quando O’Brian ocupou outro cargo qualquer em Washington. O resto, como se diz, é história. Fearing, o Destemido, o mais duro procurador-geral que os Estados Unidos jamais tiveram, inimigo declarado do crime organizado e terror dos «patrões» corruptos dos sindicatos. Finalmente, candidato, juntamente com George Tabor, de longe o mais fraco e inepto presidente que alguma vez elegemos. Um editorial que li dizia que, durante a campanha, Tabor não teria sido capaz de andar e mastigar pastilha elástica ao mesmo tempo, se o Fearing não o treinasse.

 

-Achas que a tua mãe sabia o que estava no cofre? perguntou Lukc.

 

Duvido, ela nunca foi pessoa de guardar segredos. Se soubesse, acho que me tinha contado e, para bem dela, foi melhor assim. Bom, mas sabemos nós. E que vamos fazer?

 

Luke não teve oportunidade de responder à pergunta, pois uma elegante morena, que parecia tudo menos bibliotecária, aproximou-se do cubículo e informou-os de que a Widener ia fechar.

 

-Acho que podemos cá voltar amanhã - observou ele, enquanto recolhiam os apontamentos.

 

-Para quê?

 

- Precisamos de saber mais coisas sobre o Fearing, só ainda temos umas quantas ideias e uma fotografia desbotada. Estamos na pista certa, mas, se tentarmos convencer alguém com as provas que até agora conseguimos, acabamos provavelmente no mesmo quarto do hospital de Bridgewater ou pior.

 

- Há com certeza muitas coisas bem piores do que ficar no mesmo quarto que tu, seja lá onde for - gracejou Karen, o que o fez sorrir.

 

- Bom, nesse caso, ficas encarregada de arranjar um sítio para passarmos a noite. Deve haver pensões aqui perto.

 

A tempestade transformara-se numa fina chuva empurrada pelo vento, quando, após descerem a escada da biblioteca, atravessaram o relvado de Harvard. Quando muito, pensou Luke para consigo, as descobertas daquele dia tornavam a posição e o futuro de ambos ainda mais desesperados, o que o fez sentir um nó na garganta ao compreender que aquela podia perfeitamente ser a última noite que passavam juntos.

 

Luke estava encostado a duas almofadas em cima da cama de latão do quarto que haviam alugado no terceiro andar da Pensão Cranwood. Tinham feito amor várias vezes durante a noite e outra vez ao acordar. Naquele momento, o seu corpo gozava uma paz livre de dores que não se lembrava de sentir há anos. Admirava Karen, só de calcinhas brancas, a fazer uma série de exercícios de alongamento seguidos de quinze minutos de outros movimentos perfeitamente controlados. A luz cinzenta da manhã formava um halo à volta do corpo dela, uma verdadeira combinação de criança e mulher, leve mas musculosa, desenvolta e sensual - o género de corpo que seria tão atraente e desejável daí a vinte anos como era naquele dia.

 

Sorriu e voltou a adormecer, mal fechou os olhos a beleza delicada da rapariga foi subitamente substituída pela aterradora imagem de Damian Steele. Tinha o cabelo louro em chamas, a pele dum nojento tom esverdeado e ostentava um grotesco sorriso malvado, com os olhos avermelhados e os dentes a brilhar. Luke começou a tremer, tentando em vão abrir os olhos, e então a cara riu-se com gargalhadas agudas e trocistas, misturadas com o som da respiração aterrorizada de luke. A imagem tornou-se mais vívida e o riso quase ensurdecedor, até que, tal como aparecera, se desvaneceu, substituída por uma voz suave junto ao seu ouvido.

 

- Acorda, luke. Pronto, já passou, está tudo bem. - Karen fazia-lhe festas na testa, abrindo-lhe cuidadosamente os dedos apertados.

 

Despertou completamente, olhou-a durante um momento, depois abraçou-a com toda a força, até que, gradualmente, a sua respiração foi ficando mais lenta e parou de tremer. Karen afastou-se um pouco, para lhe pegar nas mãos.

 

- Estás melhor?

 

Luke acenou com a cabeça, e ela perguntou:

 

- Vamos trabalhar? - E, perante novo aceno, continuou no mesmo tom suave: - Deve ter sido um sonho horrível, tens de mo contar depois.

 

- Que dia é hoje, a propósito? - perguntou Luke, sentando-se na cama.

 

- Quinta-feira, vinte e oito.

- Uma semana.

 

- Quê?

 

- Uma semana - repetiu ele. - Só passou uma semana desde a morte da tua mãe. Meu Deus, que dias!

 

- Vá lá, matulão, veste-te. Falaremos do passado assim que estivermos mais seguros do futuro, está bem?

 

- Tu mandas - concordou Luke pegando na camisa e nas calças que atirara para o chão na noite anterior.

 

De braço dado, saíram para a manhã húmida e dirigiram-se de novo para a biblioteca Widener. Embora a chuva tivesse parado, o vento forte e a ameaça de nova carga de água permitiram-lhes usar os capuzes dos anoraques sem darem nas vistas. Por sugestão de Luke, seguiram por um caminho secundário, parando numa entrada de prédio mais ou menos em cada quarteirão, para terem a certeza de que não os seguiam, e nenhum dos dois achou a precaução exagerada.

 

Na escada da biblioteca, juntaram-se a uma contínua leva de estudantes sombrios e de lábios apertados.

 

- Época de exames finais -- comentou Luke, abanando a cabeça ironicamente. - Tudo ou nada.

 

- Que queres dizer? - perguntou ela.

 

- Que, quando estamos na faculdade, perdemos a noção da vida protegida e limitada que temos, sobretudo na altura dos exames. - Baixou a voz para um murmúrio, ao passarem as portas de madeira e vidro. - Quando penso nas coisas minúsculas com que eu me preocupava, comparadas com as que me absorvem agora a mente, apetece-me ir ter com cada um destes marrões, abaná-los até os dentes lhes baterem uns nos outros e dizer-lhes que teriam uma educação muito melhor se passassem menos tempo enterrados em livros bolorentos e mais a descobrir o que se passa realmente lá fora. Vida prática, devia ser uma cadeira obrigatória.

 

- Absolutamente - concordou Karen. - E podemos pedir ao Nick Fearing que escreva o compêndio.

 

- Sabes, querida, isso não tem muita graça.

 

-Mas vai ter, Luke, e daqui a pouco tempo, estou certa disso.

 

O cubículo que tinham utilizado na véspera estava ocupado por um rapaz cheio de acne e dentes muito saídos, virtualmente escondido atrás duma pilha de livros, mas Luke viu o suficiente para perguntar a Karen por que motivo Harvard começara a admitir miúdos directamente do ciclo preparatório.

 

Continuaram a andar por entre os cubículos até que conseguiram encontrar um vazio e espalharam os apontamentos em cima da mesa.

 

- Bom, por onde começamos hoje? - perguntou ela.

- Os jornais são provavelmente o melhor. Tu ficas com o Times e eu tento o Globe. Devem ter os dois em microfilme. Talvez depois possamos tentar o Washington Post; também devem tê-lo. Principia com os números mais recentes e vamos andando para trás.

 

-Mas estamos à procura de quê? - insistiu Karen.

 

- Vamos tentar compreender o homem, acho eu, conhecer as suas amizades, hábitos, qualquer coisa que possa ligá-lo à Mafia, qualquer coisa que nos dê uma pista da utilização que faz do cargo. Tenho a horrível sensação de que não tenciona continuar a ser vice-presidente durante os seis anos que restam do mandato de Tabor.

 

-É o género de paciência que não parece condizer com ele, pois não? - comentou Karen.

 

- Digamos que eu não gostava de ser o agente do seguro de vida de George Tabor. Anda, vamos ver se arranjamos duas pessoas que nos ajudem, dizemos-lhes que estamos a preparar um livro.

 

- Perfeito - concordou ela. - Chamamos-lhe Que Aconteceu ao Bebé Nick?

 

Ao princípio da tarde, já tinham dúzias de páginas de apontamentos e perfeitamente idênticas enxaquecas. Estavam sentados um diante do outro no cubículo, a saborear grossas sanduíches de salame que Karen fora comprar e à espera de que as aspirinas que tinham tomado fizessem efeito.

 

-Porque não começas tu, querida? - sugeriu Luke. Como assistente social, conseguiste descobrir algumas aberrações mentais no nosso homem?

 

- Vamos deixá-lo pelo menos fora do nosso almoço! Parece que tenho os olhos fritos por aquele visor de microfilme. Assim que tiver tempo, cancelo a minha assinatura do Times. Já chega!

 

Durante uma hora, falaram dos museus de Bóston, dos benefícios duma educação vocacionalmente dirigida e dos melhores filmes que cada um tinha visto.

 

Subitamente, no meio duma curta exposição, comparando os contos de Cheevers e Faulkner, Karen calou-se, sorriu e disse:

 

- Obrigada, estava mesmo a precisar disto.

 

Luke retribuiu-lhe o sorriso, abriu a pasta das suas notas e começou a relê-las, página por página. As informações que obtivera pouco acrescentavam ao que já sabiam. Nicholas Fearing era um verdadeiro fenómeno. Se tinha alguma coisa de invulgar, percebeu Luke, era a aparente ausência total de inimigos políticos, ou, já agora, de críticos na imprensa. Era aplaudido por todo o lado, e o Times e a Newsweek dedicavam-lhe títulos de primeira página pela sua intervenção na solução de difíceis e complicadas disputas laborais, às vezes com poucas semanas de intervalo. Num dos casos, o fim duma greve de três meses dos metalúrgicos, Luke não encontrou uma palavra de desagrado sobre o contrato que Fearing ajudara a elaborar, nem da parte dos operários nem dos patrões.

 

Karen também não descobriu óbvios esqueletos nos armários que esquadrinhou e, de todos os factos que reuniu, o que mais impressionou ambos foi o número de acusações e significativas condenações obtidas por Fearing contra patrões do crime organizado durante os seus anos de procurador-geral. Até várias peças-chave, intocáveis durante a guerra de Robert Kennedy contra os chefes da Mafia, cumpriram prolongadas penas de prisão, e duas das mais importantes, Sammy Gambone, de Providence, e Arthur Krenz, dono do maior hotel e casino de Las Vegas, tinham-se aparentemente suicidado para não enfrentarem a acusação de Fearing.

 

- Não parece grande coisa - observou Karen quando acabou.
-À primeira vista, não - concordou Luke -, mas uma vez ou outra, enquanto falavas, senti que algo não me soava bem. Percebes o que quero dizer?

 

- Eu... acho que sim.

 

- Deixa-me dar-te um exemplo de como a maioria dos médicos resolve problemas intrigantes - continuou ele. - Primeiro, começam por partir do princípio de que existe uma resposta algures, uma explicação para a complicada doença dum paciente. Depois, reúnem todas as informações que julgam pertinentes e procuram padrões de diagnóstico. Se daí nada resulta, juntam mais elementos e retomam o processo do princípio, em perder de vista a premissa básica de que há uma resposta. As vezes, têm de abandonar a noção de que um processo provoca a doença e procurar uma ou mais coisas que corram mal ao mesmo tempo. Mais tarde ou mais cedo, presumindo que seja suficientemente inteligente para ir atrás da informação certa, um bom médico encontra a resposta correcta, ou, pelo menos, o suficiente para ajudar o doente.

 

-E tu achas que a resposta ao Fearing está aqui nos nossos apontamentos?

 

-Talvez não toda, mas alguma coisa. Juro que quase a descobri, num segundo.

 

- Bom, então e agora? Mais informações? - perguntou ela. Notava nele uma energia e uma determinação que nunca vira antes. «Se alguma vez voltar a estar doente», pensou para consigo, «é ele que quero que me trate. Aliás, onde param todos os grandes médicos quando uma pessoa precisa deles?»

 

- Sim, mais informações - concordou Luke. - Duas ou três horas e oxalá nos surja alguma coisa. Mais tarde ou mais cedo, alguém vai acabar por perceber por que razão a minha cara lhe parece familiar, e quando isso acontecer acaba-se tudo.

 

Uma hora e meia depois, surgiu aquilo por que esperavam e, curiosamente, na coluna social dum Globe de Bóston com três anos. Luke, depois de passar as páginas rapidamente - demorando-se sobretudo na primeira e no editorial e ignorando o resto - ia voltar ao visor de microfilme, após uma ida aos lavabos, quando reparou na cara de Fearing numa fotografia de grupo a três colunas, no fundo duma página que já folheara.

 

- Realmente, chama-se a isto olhar sem ver - comentou em voz alta, lendo e relendo a legenda da fotografia e a curta notícia que a acompanhava. - Karen, anda cá ver isto! - exclamou, demasiado alto, virando-se imediatamente para a máquina quando vários rostos atentos se voltaram na sua direcção.

 

- Esta agora ... ! - murmurou ela, de pé, com as mãos sobre os ombros de Luke, a olhar para o visor. - Não será demasiada coincidência?

 

- Demasiadíssima! - insistiu Luke, em tom triunfante. Demasiadíssima! - repetiu, rindo às gargalhadas, enquanto ela o abraçava pelo pescoço, com os olhos pregados na fotografia.

 

«Gala política para obtenção de fumdos», chamava-se o artigo sobre uma festa, a cinco mil dólares por pessoa, em Stonehill, propriedade do industrial Albert Julian. Na fotografia, via-se o candidato à vice-presidência, Nicholas Fearing, acompanhado pela mulher, Angela, além do anfitrião, Albert Julian, e do filho deste, Carl.

 

- Carl Julian, uma cara que só um pai pode amar - comentou Luke, anotando a data e o número da página, no seu bloco.

 

Depois, olhou por cima do ombro para os dois lados, tirou o microfilme da máquina e enrolou-o no bolso.

 

- Doutor Corey - gracejou Karen, fingindo-se desapontada. - Sou capaz de aceitar que o senhor seja um violador e um assassino, mas um ladrãozeco? Bom, a minha mãe sempre disse que eu não sabia avaliar o carácter das pessoas.

 

-Pelo menos é só uma cópia do Globe e não qualquer coisa importante como a Popular Mechanics - replicou Luke, arrumando os apontamentos. - Toca a agarrar na tralha e a cavar daqui.

 

- Aonde vamos? - perguntou Karen, seguindo atrás dele.

- Arranjar uma mancheia de trocos e descobrir um telefone! Há um fulano chamado Albert Julian que, segundo penso, está ansioso por ter uma conversazinha conosco.

 

- Mas como podemos ter a certeza de que o pai está metido nisto tudo com o Carl?

 

- O Carl é um brutamontes, duvido de que seja capaz de encontrar a saída duma sala com mais duma porta. Alguém poderoso trata das coisas por estas bandas, e tu mesma disseste que era pouco provável o Fearing fazer tudo a partir de Washington. Tem de ser o Albert Julian. Além disso, olha para aqui - pediu ele, puxando um cartão-de-visita da carteira tirei-o ao nosso amigo James Spear.

 

- Stonehill - leu Karen. - Meu Deus, é a casa do Julian e tem o número de telefone.
-Ainda duvidas?

 

- Venha daí, capitão, que eu arranjo-lhe uma cabina telefónica isolada. Acha que, se for suficientemente isolada, podemos...

- Noutra altura, noutra altura!

 

Albert Julian sentia-se mal desde a morte do filho. Começara a sentir frequentes tonturas e, em diversas ocasiões, vomitara as refeições sem ter tempo para sair da sala de jantar. Tentou passar algum tempo no jardim e muito mais do que o habitual no seu jacuzzi de três metros e meio, mas nem mesmo a presença de duas encantadoras jovens lhe aliviou os sintomas. A erecção, há muitos anos conseguida com grande dificuldade, passou a ser impossível e pela primeira vez descarregou a fúria e a frustração numa das raparigas, o que lhe custou vários milhares de dólares, e mais de dez horas de cirurgia reconstrutiva a ela.

 

Involuntariamente, amaldiçoara ainda diversas vezes Dom Nicholas Fearing e a jura que ele e os chefes das outras famílias tinham feito numa noite, quase vinte anos antes, quando os seus planos haviam sido postos em marcha. Agora, fora obrigado a sacrificar o próprio filho no altar de La Tartaruga.

 

O enterro de Carl fora umas horas antes e Julian estava agora estendido na sua enorme cama de teca, com um copo meio de conhaque na mesa-de-cabeceira. Tentava dormir, mas o sono não vinha. Vívida e dolorosamente, a gênese e a evolução de La Tartaruga ocupavam-lhe os pensamentos. Por fim, dominado pelo álcool e por um fascínio mórbido, descontraiu-se, fechou os olhos e   deixou correr as imagens.

 

Na realidade, fora em parte ideia sua, sua e de Dom Nicholas. Estava-se em 1957, em Junho., e as coisas não corriam bem à família Juliano e aos seus negócios. Um esforço desmedido para eliminar as duas mais influentes famílias rivais da Nova Inglaterra resultara num mar de sangue inconclusivo, no qual as suas forças tinham ficado gravemente comprometidas. O dinheiro era cada vez mais difícil de conseguir, e Alberto Juliano sabia que era apenas uma questão de tempo até a bala dum assassino, ou um desastre financeiro, fazer ruir o seu enfraquecido império.

 

Nicholas Fearing há muito que dominava as complexidades e as facetas dos sistemas económico, legal e político americanos, pelos quais sentia profundo desprezo. Uma «hipocrisia constitucional», era como ele chamava à forma de governo americano, dirigido por homens moles e ignorantes, de visão limitada, facilmente manipulados pelo dinheiro, dominados nos tribunais e susceptíveis a vários meios de controlo.

 

- Podemos ter tudo, Dom Alberto - dissera ele -, o país inteiro! As ferramentas estão aqui mesmo, nas nossas mentes e no nosso desejo, só precisamos de paciência e de planos cuidadosos.

 

Depois, elogiara o pai, o tio, Juliano e outros, por terem aberto os alicerces sobre os quais poderiam construir um império. Pretendia substituir a desconfiança e a tolerância mal disfarçada que existia entre as famílias de todo o país por uma organização com objectivos comuns, e os métodos para afastar quem se opusesse aos seus planos seriam a manipulação financeira, a perseguição legal e, se necessário, a força. Para começar, as famílias mais fortes do país seriam chamadas por Dom Alberto e convencidas com promessas de inimaginável riqueza e poder para elas, os filhos e os netos.

 

O começo seria lento e delicado, cada família precisaria de constantes garantias de que Dom Alberto seria capaz de fornecer o que prometia, fosse o controlo dum sindicato, duma fábrica ou dum político. No fim, seria através dos planos e manipulações dirigidos por Fearing que essas promessas dariam frutos.

 

Inicialmente, frisou Fearing, ninguém, a não ser Juliano e os seus conselheiros mais íntimos, podia saber da sua existência, capacidade e rapidamente crescente influência política, e, eventualmente, apenas os «patrões» das organizações participantes teriam o privilégio de conhecer o segredo.

 

Objectivo: controlo gradual das principais indústrias, do Congresso e, finalmente, da própria presidência.

 

Embora com muitas dúvidas, Juliano, incitado pela determinação e inteligência de Fearing, bem como pela própria posição precária em que se encontrava, expressou um interesse cuidadoso. Primeiro, no entanto, fez alguns pedidos e Fearing mostrou-se totalmente de acordo com eles. Assim, dentro dum ano, Dom Alberto Juliano, enfraquecido chefe duma periclitante família, era substituído por Albert Julian, financeiro, próspero industrial e supervisor de todas as operações sindicais no Nordeste.

As mudanças ocorreram subtil e magistralmente, sem a mínima sugestão de envolvimento de Fearing. Ao princípio, foi necessário utilizar chantagem, ameaças e mesmo violência em situações mais dificeis, mas só quando ele decidia que os meios convencionais não resultavam. Deste modo manipulou pessoas, situações e até sistemas económicos inteiros com a habilidade dum grande mestre a jogar xadrez anonimamente, pelo correio, com um novato.

 

Quase dois anos depois do dia das discussões iniciais com Fearing, Albert Julian convocou os chefes das seis mais poderosas organizações do país, e nessa reunião, realizada na isolada ilha Caimão, nas Caraíbas, foi preparada a estrutura de La Tartaruga. Fearing ficou em Bóston durante todo o tempo, mas manteve contacto diário com Julian, dirigindo o andamento da assembleia, enquanto continuava os seus preparativos para ocupar o cargo de governador do Massachusetts.

 

Foi Dom Alberto quem sugeriu o nome apropriado para o movimento, inspirado nas gigantescas tartarugas-marinhas da ilha, e assim nasceu a nova aliança, que se consolidou lenta mas persistentemente, revelando-se indestrutível.

 

Seis meses mais tarde, depois de todos os dirigentes da organização terem testemunhado suficientes exemplos do génio de Julian, Fearing encontrou-se com eles pela primeira e única vez, de novo nas Caraíbas, onde explicou o seu papel de homem por detrás do homem. Os chefes foram facilmente conquistados, e os juramentos de La Tartaruga literalmente selados com sangue.

 

«Nada pode intrometer-se no caminho da total realização de La Tartaruga, nem preconceitos mesquinhos, nem conflitos financeiros, nem ligações emocionais, nem laços de sangue, tudo tem de ser sacrificado à vontade da maioria», foi este o compromisso por todos assumido, mas gradualmente essa vontade tornar-se-ia de Nicholas Fearing.

 

Naquele momento, com a grande hora de La Tartaruga muito próxima, Albert Julian fora chamado ao máximo sacrifício com vista ao objectivo final - a vida do seu único filho, um simplório cujo crime fora a posse de demasiada informação, pouca inteligência e nenhum autocontrolo.

 

E a culpa da morte de Carl, pensava Julian constantemente, era um pontinho perfeitamente insignificante em Cape Cod, chamado Lewis Corey. Havia de lhe provocar sofrimento e morte, bem como a cada pessoa da sua família. La Tartaruga vingaria o seu filho, e a linha genealógica que incluía Lewis Corey desvanecer-se-ia agonizantemente da face da Terra.

 

-Patrão. É o Burton.

 

O estalido do intercomunicador junto à sua cabeça pôs fim às recordações cada vez mais dolorosas de Julian.

 

- Sim, que foi? - perguntou, sem tentar disfarçar a irritação por ter sido interrompido.

 

- Uma chamada, patrão. O homem diz que é o doutor Luke Corey e que o senhor gostaria, por certo, de falar com ele. --Como diabo conseguiu ele o meu ... ? Deixa lá, Burton. Eu atendo aqui.

 

Levantou-se com dificuldade, encaminhando-se lentamente para o lavatório de mármore defronte da cama, onde molhou a cara com água fria. Depois, bebeu o resto do conhaque e instalou-se de novo na cama antes de pegar no auscultador.

 

-Fala Albert Julian.

 

- Senhor Julian, sou Luke Corey. Sabe porque estou a ligar para si -- começou Luke, sentindo alguma da resolução e agressividade abandoná-lo ao ouvir a voz baixa e controlada do mafioso.

 

-Não me parece, senhor Corey, mas estou interessado em saber como conseguiu saber o meu número particular. «E agora, doutor Corey, vamos ver como se aguenta contra um profissional», pensou Julian para consigo.

 

Luke não respondeu imediatamente, preso de momentânea indecisão. Remexeu-se na apertada cabina telefónica, olhando para Karen, que observava as montras. Nesse momento, a rapariga olhou na sua direcção e os olhares cruzaram-se. Ela acenou, ele encolheu os ombros e ela fez-lhe sinal, virando um polegar para cima. Era exactamente o reforço de que precisava.

 

- Senhor Julian - começou Luke, com todo o vigor de que foi capaz. - Não me parece que seja boa altura para brincadeiras. Ando a ser perseguido há uma semana. Pessoas boas e inocentes foram assassinadas e eu sei que o senhor é o responsável por grande parte disso, se não por tudo. Na realidade, até sei bastante mais. Portanto, ou fala comigo a direito ou eu levo a informação que tenho às autoridades. Estou a ser claro.

Albert Julian sentiu-se corar. «Pessoas boas e inocentes», pensou para consigo. «Tu mataste o meu único filho, meu arrogante pedaço de merda. Mataste o meu filho, e agora estás a fazer-me ameaças vãs.»

 

Respirou fundo antes de falar, mas teve de apertar o auscultador com força para não o deixar cair da mão a tremer.

 

- Deve calcular que eu tenho algum conhecimento da situação em que se encontra, doutor Corey, Exactamente por que motivo decidiu telefonar-me?

 

Na realidade, a admissão de envolvimento de Julian era tudo o que Luke esperava conseguir com o telefonema, mas, animado pela facilidade com que isso acontecera, decidiu insistir, improvisando sobre o que planeara com Karen.

 

- Quero sair disto, senhor Julian. Em troca do meu silêncio, quero as pessoas responsáveis pelas mortes de Connie Evans e Theona Settles e garantias de segurança para mim e para Karen Samuels. Quero isso numa carta sua documentando o seu envolvimento em tudo isto, que me entregará em troca da informação que eu tenho e o senhor deseja. Finalmente, quero dinheiro, meio milhão de dólares, para ser exacto. Assim que tivermos a carta e o dinheiro e nos encontrarmos em segurança, fora do país, envio-lhe o material que o senhor pretende.

 

Nessa altura, Luke sentia as pulsações bem acima de cem e as mãos a tremer.

 

- Doutor Corey - retorquiu Julian, falando muito mais alto -, o senhor mostra realmente muita coragem para quem nem sequer pode aparecer em público sem o risco de ser preso por dois homicídios. Que pode o senhor ter que valha meio milhão de dólares para mim, para além da confissão de crimes que não cometi?

 

- Está outra vez a brincar. Eu sei tudo: Ferlazzo, Fearing, Damian Steele, tudo. - Luke respirou fundo e decidiu que a altura era tão boa como outra qualquer para jogar a última cartada. Não sabia qual seria o seu efeito, mas continuou: - Além disso, tenho informações que recebi do seu filho Carl, depois de o hipnotizar, suficientes para o meter a ele, e provavelmente a si, num grande sarilho.

 

Houve um prolongado silêncio da parte de Albert Julian, mas quando finalmente falou as palavras saíram-lhe numa torrente aguda e histérica, a de alguém que já não consegue disfarçar os pensamentos ou ter tento na língua.

 

- O meu filho Carl está morto, seu verme! Morto por sua causa. Não faço acordos consigo, porque quero vê-lo morto, e hei-de vê-lo! Não faço acordos, porque não preciso disso. Acha que um papelito qualquer pode meter-se no caminho de La Tartaruga?,Que vai fazer com o seu precioso papel? Entrega-o a quem? à Polícia? É nossa! Aos jornais? Também são nossos! Aos políticos? Não tem aonde ir, Corey, convença-se. E agora já sabe, o único acordo que faço consigo é a promessa duma morte mais piedosa, se não me obrigar a grandes esforços para o localizar. Você é que está com brincadeiras, com ameaças vãs, completamente impossíveis de cumprir. Faça os seus jogos, durante o tempo que quiser, mas fique sabendo que já perdeu. Está morto! O seu corpo nem sequer será enterrado, para os pássaros e os cães vadios o comerem. O meu único filho vai ser vingado!

 

Sem fala e quase em choque, Luke apertou o auscultador de encontro à orelha. Ouviu uma série de gemidos de fazer gelar a medula, alternando com gargalhadas agudas, seguida finalmente por um estalido.

 

Ficou imóvel, a olhar fixamente para o auscultador, até que Karen percebeu que alguma coisa estava errada e forçou a porta da cabina.

 

-Que tens, Luke? Estás bem? - perguntou.

 

- Tira-me daqui - pediu Luke -, tira-me já daqui. Sem mais palavras, ela ajudou-o a sair da cabina e do centro comercial para a fria tarde cinzenta. Durante vários quarteirões, Luke foi-se arrastando a seu lado, com o braço direito metido no dela, com o olhar vazio fixo no passeio. Finalmente, Karen parou num pequeno recinto infantil enlameado e sentou-se junto dele em dois troncos, parte duma espiral artisticamente construída. Três rapazitos negros, que brincavam perto de uma árvore, observaram-nos como se fossem intrusos e depois desataram a correr rua abaixo.

 

Luke estava perto das lágrimas quando conseguiu dizer qualquer coisa, numa voz incerta e rouca.

 

- Está tudo acabado, Karen - lamentou-se encostando a testa às mãos, - O Julian é louco, e é tudo muito pior do que pensámos. Ele acha que eu lhe matei o filho e não descansa enquanto eu não estiver morto. O homem é completamente doido!

 

- Por favor, fala mais devagar e tenta controlar-te, Luke, pediu a jovem. - Respira fundo e conta-me exactamente o que aconteceu.

 

Luke olhou-a durante um momento e depois começou novamente a falar entrecortadamente, abraçando-a com toda a força e a soluçar. Karen percebeu que ele estava no limite, prestes a ir-se abaixo com a terrível pressão das dores, da incerteza e da desilusão.

 

-  Eu amo-te, luke - disse baixinho, acariciando-lhe suavemente a cabeça. - Nada do que aconteça vai alterar isso. Foram precisos alguns minutos para o médico recuperar o suficiente para lhe relatar o duelo telefónico com Albert Julian. Karen ouviu-o atentamente e, quando Luke acabou, assobiou baixinho por entre os dentes.

 

- Acreditas nele, querido? - perguntou.

 

- Em que parte? - inquiriu, por sua vez, ele, sorumbático. - Na parte sobre controlar a Polícia, os jornais e os políticos ou naquela de o meu corpo ser comido pelos pássaros e pelos cães vadios? Pensando melhor, não precisas de me responder, porque a resposta é sim, acredito no que ele disse.

 

- Mas, se é tudo verdade, porque havia de te contar? Ou seja, que tinha ele a ganhar?

 

-  O homem não tencionava dizer-me fosse o que fosse, a não ser talvez que ia apanhar-nos, mas eu falei no Carl, então descontrolou-se e desatou a gritar. Meu Deus, devias ter ouvido como berrava!

 

- Fazes alguma ideia do que queria Julian dizer com essa coisa de La Tartaruga? - insistiu Karen, limpando-lhe o resto das lágrimas da cara.

 

- Não, deve ser o nome da organização secreta deles, como numa porra dum romance de espionagem. Que diferença é que isso faz agora? Estamos lixados, Ele sabe-o e nós sabemo-lo. A nossa única esperança é tornar a ligar-lhe e tentar chegar a algum acordo.

 

-Achas que é possível?

 

- Só enquanto o filho da mãe não chama uns pássaros e uns cães vadios - respondeu Luke, estremecendo. - Está convencido de que lhe matei o filho, o que foi provavelmente outro trabalhínho do Steele.

 

- Deve haver alguém a quem possamos recorrer, Luke. Que tal o professor de italiano? Ele disse que ajudava, se pudesse.

 

- Enfrenta os factos, Karen. O Julian tem razão, ninguém vai acreditar em pessoas acusadas de dois homicídios. Logo que a carta e a fotografia saiam das nossas mãos, estamos perdidos. E a quem raio havíamos de as entregar? A um professor de Harvard? Como nos pode ele ajudar? Precisamos de alguém influente e que não seja da gente deles, alguém que nos dê uma oportunidade de expor o caso antes de nos entregar à Polícia. Como é possível saber quais são os políticos, os jornalistas ou os polícias a quem podemos recorrer? Se nos arriscamos e nos enganamos, perdemos tudo. Eu amo-te e quero ficar contigo. Não sou capaz de me arriscar dessa maneira, quando há tanto a perder. Acho que o melhor é tentar fugir.

 

Karen levantou-se e afastou-se uns passos, olhando para a fila de casas de dois andares dum dos lados do recinto infantil.

- Fugir para onde? Com cem dólares e um carro roubado,

 

talvez consigamos chegar a Worcester. Não, tu mesmo disseste, vamos começar presumindo que há uma resposta...

 

- Mas isso era para resolver um problema médico - protestou Luke, abrindo as mãos num gesto de frustração. - Isto é dife...

 

Não chegou a acabar a frase, pois, com um gritinho de excitação, a rapariga correu para ele e ajoelhou-se na lama, agarrando com os braços as pernas dele.

 

- Fala-me do Serviço Nacional de Saúde, Luke! É um organismo bastante importante, não é?

 

A confusão do médico perante aquela explosão durou apenas uns segundos. Sem sequer lhe empurrar os braços, levantou-se e olhou-a fixamente.

 

- Estás doida, Karen? Não há a mínima hipótese de o meu pai nos ajudar.

 

- Porque não? - insistiu ela, sem sinal de desistir. -Não nos falamos há anos. Quer dizer, para ele, eu morri há muito tempo.

 

- Como sabes isso, Luke? - perguntou a rapariga levantando-se também. - É teu pai.

 

- O que não quer dizer..

 

- Tu próprio afirmaste que ele tem um cargo importante em Washington - interrompeu a jovem.

 

-Sim, mas não vejo como...

 

- E não há grande hipótese de pertencer à gente do Fearing, pois não?

-  Não, mas...

 

- Não estás a ver, Luke? Ele pode ajudar-nos, por certo ainda gosta de ti. Só tens de lhe falar, por favor, Luke, por favor, telefona-lhe, e já. - As palavras dela atropelavam-se e a excitação pusera-a à beira das lágrimas.

 

- Ouve, Karen -- pediu ele baixinho, puxando-a para si. Amo-te mais do que tudo o que já conheci, mas... -Não! - gritou ela, empurrando-o. - Quando se ama

 

realmente alguém, não há mas! Quando se ama realmente, corre-se todos os riscos, sejam eles quais forem. Engole o orgulho e dá tudo por tudo! Isto é, por mim, Luke, por nós! Telefona-lhe, por amor de Deus, telefona-lhe! - As lágrimas corriam-lhe pela cara, mas os olhos eram de aço e fogo.

 

Luke aguentou o olhar de Karen durante um minuto, desviou os seus, mas voltou a pousá-los nela. Mais um minuto de silêncio, até que estendeu a mão e pegou na da rapariga,

 

- Anda - decidiu por fim. - O Uwis T. Corey Segundo vai receber um telefonema do Lewis T. Corey Terceiro.

 

- Fala-me do cargo do teu pai - pediu Karen, enquanto se dirigiam de novo para o centro comercial. - Que fazem na Direcção-Geral de Saúde?

 

- Acredites ou não, não sei grande coisa. É a torre de marfim no topo da torre de marfim, são os manda-chuva. Fica em Bethesda, mesmo à saída de Washington, e é suficientemente grande para melhorar as condições de vida urbanas, se alguém pudesse transformá-la em apartamentos. Há trinta ou quarenta edifícios, um para cada sector da saúde, mais um hospital de bom tamanho, onde experimentam novos tratamentos em doentes a quem os outros hospitais já não têm nada que oferecer. É um complexo bonito, com um ambiente assustador e uma capacidade operacional impressionante.

 

-E o teu pai é o director?

 

-É, e bastante bom, segundo o        que tenho ouvido dizer. É o primeiro, em mais de cem anos, a vir de fora. Era professor em Harvard e parece que teve alguns problemas, ao princípio, com a velha guarda de Washington.

 

- E depois conquistou-os com o característico encanto dos Corey, não foi? - perguntou Karen, evitando os buracos do passeio.

 

-Acho que foi uma mistura disso com um corte radical com os velhos processos - e riram-se os dois.

 

- Ele dá-se com os grandes de Washington? - Mais dois buracos no chão, mais dois saltinhos.

 

- Com certeza. O meu pai é um político consumado, sempre foi. Não me admirava saber que jantou com o Tabor ou o Fearing, ou ambos, nestas últimas semanas.

 

- Como vai ficar admirado quando souber que jantou mas foi com o Nichy Ferlazzo, assassino profissional! - exclamou Karen, com uma gargalhadinha. - Achas que o apanhas no serviço?

 

- Espero que sim, porque nem me lembro se o número de casa dele vem na lista. Quando vivia aqui, não vinha. De qualquer maneira, ainda não são cinco. Ouve uma coisa, Karen, eu vou tentar, mas não alimentes demasiadas esperanças, por favor. Eu conheço-o.

 

- Confio em ti, querido - replicou ela, enquanto entravam ambos no centro comercial. - Mas mantém a calma, que eu sei que vai correr tudo bem.

 

Ansiosa por ouvir ao menos uma das partes da conversa, convenceu-o a deixar a porta da cabina entreaberta. Depois de a fazer prometer que não o interrompia, marcou o número enquanto ela folheava um livro de bolso que tirara duma bancada próxima. luke esperava ter de lidar com várias telefonistas, de maneira que ficou um tanto desnorteado quando, depois duma só secretária, lhe apareceu a voz preocupada do pai.

 

- És mesmo tu, Luke? A tua mãe e eu temos estado preocupadíssimos.

 

Luke respirou fundo e deixou escapar um suspiro de alívio, antes de responder:

 

- Sim, pai, sou eu e estou bem. Pelo menos, de momento. -Meu Deus, luke, que semana tem sido esta para nós! A Polícia foi lá a casa várias vezes e a tua mãe parece um farrapo. Onde estás?

 

- Calma, pai. Eu conto-lhe tudo. Estou em Bóston, com uma rapariga chamada Karen Samuels, mas metemo-nos num sarilho, num grande sarilho. - Fez uma pausa, para se concentrar, mas o pai disse imediatamente:

 

- Tens de ir já à esquadra de Polícia mais próxima. Os detectives que foram lá a casa disseram que havia boas hipóteses de te matarem, se não te entregasses. Vai à esquadra e eu apanho o primeiro avião para aí. Arranjamos-te os melhores advogados e daremos toda a ajuda de que precisares. Nós gostamos muito de ti, Luke, e queremos estar contigo, seja o que for que tenhas feito.

 

- Pai, eu não fiz nada! - exclamou Luke, espantado com a irritação que transparecia da sua própria voz. - Caí no meio duma conspiração para controlar o país. Sei que parece fantasia, mas há pessoas atrás de nós porque temos provas de que o Nicholas Fearing faz parte dessa conspiração. E não podemos ir à Polícia, porque ela também está metida no caso... bom, não toda, mas...

 

-Tem calma, Luke - interrompeu o pai. - Eu sei que estás a passar por uma fase terrível, mas precisas de ter calma e ouvir o que te digo. Não me pareces bem. Tenho amigos em Bóston, os melhores das especialidades, que podem ajudar-te, se me disseres onde...

 

- Não preciso de psiquiatra, pai - retorquiu Luke, esforçando-se por não gritar. - Não estou paranoico e não sou um assassino. O que lhe digo é verdade.

 

- Pronto, Luke, é verdade - concordou o pai, com uma calma profissional. - Então agora diz lá onde estás, que eu arranjo-te ajuda assim que...

 

-Não, não quero essa espécie de ajuda, quero alguém com influência e poder, e que não faça parte da conspiração, para me ouvir e ler o que guardo comigo. Tenho motivos para pensar que o presidente Tabor pode estar em grande perigo. Com certeza que, se o pai falasse com ele ou com um dos conselheiros, eles...

 

-É preciso calma, Lukc - interrompeu de novo o pai, dessa vez com uma firmeza paternal na voz. - O sítio mais seguro para ti neste momento é numa esquadra da Polícia ou num hospital. Diz-me para onde queres ir que eu vou lá ter.

 

- Não está a ouvir o que eu digo, pai. Bolas, nunca me ouviu! Eu telefono-lhe a pedir ajuda e tudo o que me diz é que me entregue exactamente às pessoas que tentam matar-me. Bom, deixe lá, Tenho-me safado até aqui e hei-de continuar a safar-me daqui em diante. Obrigado por nada.

 

Sem esperar a resposta, desligou.

 

Furioso, abriu a porta da cabina com um repelão e saiu do centro comercial, com Karen quase a correr para conseguir acompanhá-lo. Por fim, a vários quarteirões de distância, parou de repente e voltou-se para ela.

 

- Estás a ver? Eu bem te disse que ele não me ia ajudar.

- Talvez não - respondeu Karen, em tom ríspido. - Mas

 

caramba, Luke, custou-me a crer no que ouvi. Fazes ideia de como parecias paranóico? Eu não sou médica, mas também tive vontade de dizer que precisavas de ser internado.

 

-Mas tudo o que eu disse é verdade!

 

-Eu sei, meu bruto, mas como há-de o teu pai saber, quando te pões a barafustar e lhe desligas o telefone? Está decidido, querido, a partir de agora, és meu subalterno.

 

-Que queres dizer com isso?

 

- Que passo a tomar conta do assunto. Ou fazemos o que eu  disser, ou nos arriscamos indo à Polícia.

 

- Sabes perfeitamente que não podemos...

 

- E a primeira coisa que eu digo é que vou falar com o teu pai pessoalmente.

 

- Quê? - perguntou ele, incrédulo.

 

- Achas que consegues sair de Bóston pelas estradas secundárias?

 

-Acho, mas porquê?

 

- Porque vais de carro para Washington, esta noite, sozinho. Foi preciso quase uma hora de discussão para Luke ceder à sua persistência e determinação. Na verdade, Karen não abdicou de um único ponto do seu plano, com base no facto de Julian e a sua gente esperarem que eles viajassem juntos, além de não haver fotografias dela a circular, Mais importante ainda era ter a certeza de ser capaz de convencer o pai de Luke da verdade do que este, com tão pouco êxito, tentara dizer.

 

- Apanho o primeiro autocarro para lá e falo com ele amanhã - continuou. - Tu segues pelas estradas secundárias, sempre de noite, e tentas chegar a Washington depois de amanhã, que é sábado. Combinamos um sítio para nos encontrarmos e, se eu não conseguir levar o teu pai, vou sozinha. Se a Polícia te apanhar, liga para ele, que vamos os dois buscar-te. Mesmo de noite, a Direcção-Geral de Saúde deve ter maneira de o contactar em caso de emergência.

 

Mostrou-se igualmente positiva e insistente quanto aos pormenores secundários do seu plano. Luke devia levar consigo o original da carta, a fotografia e os artigos. Ela ficaria com uma cópia, todos os apontamentos dos dois e o microfilme. O encontro seria no gabinete do pai dele, às oito horas da noite de sábado.

 

Quando arrumaram o carro na Rua BoyIston, a vários quarteirões do terminal dos autocarros, Luke estava realmente convencido de que as ideias dela podiam resultar.

 

O chuvisco contínuo transformara-se numa carga de água, e ficaram sentados, de mãos dadas e olhos húmidos, a ouvir o reconfortante ruído no tejadilho do carro.

 

- Aconteça o que acontecer, Karen, quero que saibas que... - começou Luke, cortando o silêncio.

 

-- Deixa-te disso - interrompeu ela, encostando-lhe um dedo aos lábios - e dá-me mas é um beijo. Dizes-me essas coisas todas que queres que eu saiba quando nos encontrarmos em Washington... mil vezes, se achares bem. De acordo? -Com certeza.

 

Deram um longo e meigo beijo; depois ela abriu a porta e saiu rapidamente para a chuva. Luke ficou a vê-la desaparecer na esquina da Rua Arlington, e começou a pensar no caminho que devia seguir para Bethesda. Decidiu ir para sudoeste, entrar no Connecticut e atravessar o estado de Nova iorque e a Pensilvânia, antes de voltar para sul, em direcção ao Maryland.

 

Quando pôs o motor a trabalhar, deitou uma olhadela ao banco onde ela estivera. Cuidadosamente entalado entre o assento e as costas, estava o revólver de Carl Julian. Karen devia saber que ele se recusaria a andar armado, de maneira que nem se incomodara a perguntar. Pegou nele e sopesou-o. Depois, guardou-o cuidadosamente no porta-luvas, subiu a Rua Clarendofi e dirigiu-se para sudoeste, saindo da cidade.


V PARTE

Damian Steele nunca gostara de jogos de cartas nem, a falar verdade, de qualquer outro. Assim, ver-se reduzido, pelas circunstâncias, a fazê-lo com um monstro como Victor Barker só lhe aumentara a crescente frustração e impaciência, e perder quase cem dólares para o Humanóide fora quase o golpe de misericórdia para o seu autocontrolo.

 

Era sábado, ao fim da noite, e Brian Mundt partira para Nova iorque dois dias antes. Não havia sinal de Corey, nem qualquer comunicação, desde o telefonema de quinta-feira para Julian. A chuva continuava a cair impiedosamente e, depois de quarenta e oito horas fechado num quarto de hotel com Victor Barker, ainda não tinha a certeza se o gigante conhecia mais palavras sem ser «jogue» e «sou eu a dar».

 

Por várias vezes, estivera prestes a dizer a Albert Julian que, lá por Carl ter feito asneira, ele não se sentia obrigado a levar o caso Corey até ao fim.

 

O telefone tocou quando estudava o que parecia vir a ser a sua primeira vitória numa hora. Era demasiado cedo para a chamada rotineira de Julian, de maneira que sentiu uma ponta de excitação ao atirar com as cartas e pegar no auscultador a seguir ao primeiro toque. Era Albert Julian.

 

- Damian, o Corey anda às claras e está no papo - informou ele.

 

- Calma aí e conte lá o que aconteceu. Onde o encontraram?

- Na Pensilvânia, está na Pensilvânia. Não sei como diabo chegou lá, mas continua a conduzir o Lincoln, agora com chapas de matrícula dum parvo qualquer de Watertown. Deve tê-las roubado antes de partir.

 

- Esperto - comentou Steele, acenando ligeiramente com a cabeça em sinal de admiração.

 

Nem por isso. Eu digo-te o que aconteceu. Há uma cidadezinha chamada Roseburg, no centro da Pensilvânia, a cerca de cento e dez quilómetros de Harrisburg. Parece que o juiz e os três polícias lá do sítio montaram uma operação para apanhar carros de fora do Estado e ganharem uns trocados. O juiz, se é que é juiz, é dos nossos há alguns anos.

 

Continue - pediu Steele.

 

Bom, hoje, logo de manhãzinha, um dos chuís, chamado Colton, avistou o Lincoln a sessenta à hora numa das zonas de trinta onde há escolas não assinaladas. Mandou-o parar e pediu-lhe os documentos. O motorista meteu a mão no porta-luvas e, de repente, o tal Colton estava a olhar para o cano de uma arma. --De que género?

 

- Um revólver de cano curto. Seja como for, o Corey faz o tipo recuar até ao carro-patrulha, entram os dois, dirige-se para uma mata próxima e deixa o polícia algemado a uma árvore. Depois, volta até ao Lincoln e segue caminho, todo contente. A voz de Julian tinha um tom histérico que começou a incomodar Steele.

 

-A rapariga estava com ele? -Não, ia sozinho.

 

Então porque tem tanta certeza de que era ele? Deixa-me acabar, Damian! O Colton ficou agarrado à árvore durante quase uma hora até ser encontrado. Então, procura um telefone e fala para o juiz, que sabe da recompensa que prometemos. Este liga aos rapazes da Quinta Esquadra. É o Corey, com nódoas negras e tudo! As chapas de matrícula falsas é que nos deram a certeza.

 

Como sabe que está no papo? - perguntou Steele, começando a ficar impaciente com a narrativa do velho.

 

Um helicóptero, Damian! Mandei o helicóptero da Policia de Harrisburg à procura dele e há cerca de um quarto de hora descobriram-no em direcção ao sul, a uns cem quilómetros da fronteira do Maryland. Vai muito devagar, pára em zonas arborizadas, parece ir nas calmas - e Julian começou a rir. -Onde está a rapariga?

 

-Não sei, porquê?

 

Steele nem se incomodou em responder. Folheou as informações sobre os dois, apesar de as saber quase de cor. -Eles que continuem a seguir o Corey, mas que não o prendam - disse, por fim.

 

-Não fazia tenções disso - respondeu Julian, soando já mais controlado.

 

- Quê?

 

- Eu quero-o, Damian, quero que tu e o Victor vão até lá e o apanhem para mim. Ele deixou-me ficar mal diante dos outros, muito mal. O jacto está à vossa espera em Logan. Vão buscá-lo e tragam-no para aqui, de preferência, mas não necessariamente vivo. Assim que aterrarem, têm um carro com rádio à vossa espera, e a nossa gente segue-o por terra o mais depressa possível.

 

- Muito bem - concordou Steele, sentindo algum alívio por a voz do multimilionário soar mais como estava habituado a ouvi-la. - Faça-me um favor antes de partirmos. O Corey parece dirigir-se para Washington, ora o pai dele vive lá. Verifique com os homens que têm estado a vigiar a casa e veja se ocorreu alguma actividade inesperada ou houve visitas, e depois torne a ligar para mim. Saímos logo a seguir, mas não consigo afastar a ideia de que a rapariga já chegou a Washington e está lá à espera do Corey.

 

«Vais conseguir, Corey, vais mesmo», dizia Luke para consigo, seguindo pelo pico de RockvIlle em direcção à Direcção-Geral de Saúde. Não podiam faltar mais de duas dezenas de quilómetros até ao desvio, até Karen e ao começo do fim do pesadelo. Deitou uma olhadela à carteira de cabedal preto, com o seu incrível conteúdo, inocentemente pousada no assento ao seu lado. Então, meteu a mão no bolso do anoraque e acariciou o revólver. Depois do susto em Roseburg, decidira que o porta-luvas lhe limitava o acesso à arma.

 

As dores nas costas e nas pernas, que tinham piorado durante a viagem, quase desapareceram ao entrar em Bethesda. Pela primeira vez em horas, era capaz de prestar alguma atenção ao que se passava à sua volta. As imagens com que sonhava acordado continuavam a aparecer, embora menos vívidas do que antes: Karen, Fearíng, a casa de férias no New Hampshíre, Ken putriam, Evelyn Samuels, o Hospital Militar de Tóquio, o pai, e outras, que lhe entravam e saíam do pensamento, enquanto se aproximava do fim da viagem.

 

Eram quase sete da tarde, embora zonas de nevoeiro e escuras nuvens fizessem parecer mais tarde. Viu com alguma inveja dois casais risonhos ultrapassarem-no, aparentemente a camínho de divertimentos na cidade. «Ai, Karen», pensou, «assim que sairmos deste sarilho passamos uma noite na cidade que vai durar uma semana.»

 

Durante as últimas duas horas, sentira os olhos a arder cada vez mais. Resolveu parar numa rua lateral ladeada de árvores, examinou-os no retrovisor e viu que estavam inchados e raiados de sangue, um perfeito complemento da barba de dois dias. Nas quarenta e oito horas decorridas desde que deixara Bóston, tinha dormido alguma coisa, mas nunca profundamente, apenas umas sestas no carro ou entre as árvores, o que lhe parecera mais seguro do que motéis, onde precisaria de se registar. Quanto a comida, limitara-se a refeições compradas em máquinas de estações de serviço.

 

- Há quanto tempo é vadio, amigo? - perguntou ele à sua imagem no espelho,

 

Como esta não lhe respondeu, suspirou, deu meia volta e retomou a auto-estrada. Tinha passado várias horas tensas depois do encontro com o polícia de Roseburg, dirigindo a sua atenção mais para o retrovisor do que para a estrada, mas gradualmente, à medida que avançava pelo Maryland, foi-se descontraindo, e uma euforia alimentada pelo cansaço substituiu grande parte da tensão.

 

Contudo, se olhasse pelo retrovisor nesse instante, teria visto um Cadillac, preto, conduzido por um homem tão grande que a sua cabeça sem cabelo parecia encher mais de metade do pára-brisas, que o seguia a pouca distância.

 

Victor Barker amaldiçoou a sua falta de cuidado ao permitir que o seu carro chegasse tão perto do de Corey. Abrandou, deixou dois outros meterem-se entre ele e o Lincoln e então, falou pelo rádio:

 

-Continuo atrás dele. Estamos a poucos quilómetros do sítio onde o pai trabalha. O Corey deve ir para lá. Dêem a nossa posição e destino ao Steele e digam-lhe que apanho o estupor assim que souber se tem os documentos. Eu aviso da minha posição quando o caçar.

 

Utilizando a alta silhueta do centro clínico como guia, Luke entrou nos terrenos do hospital. Dez anos antes, passara ali um dia a visitar amigos, e lembrava-se de um balcão de informações na entrada, onde planeava perguntar o caminho para a direcção. Viu cerca de dez carros no parque de estacionamento fracamente iluminado atrás do edifício principal.

 

Estacionou e ficou junto do carro a espreguiçar-se, quando o Cadillac parou a vários lugares vagos de distância.

 

Não reparou em Victor Barker até o homem sair do carro e começar a dirigir-se lentamente para si. Usava uma gabardina escura com cinto e uma bengala qualquer, embora mal se notasse que coxeava, tapara o crânio careca com um boné de quadrados enganadoramente pateta e acenava a Luke com a mão livre.

 

-Olhe, amigo! - chamou ele, numa voz suave e aguda, com um nítido defeito, pensou Luke. - Importa-se de ajudar um velhote deficiente por um instante?

 

- Lamento, mas sou apenas uma visita - respondeu Luke, enquanto Barker continuava a aproximar-se.

 

Menos de trinta metros separavam os dois quando reparou realmente na envergadura do homem. Apertou instintivamente a bolsa de cabedal preto e, ao mesmo tempo, deu um passo para trás, mas era demasiado tarde. Barker distraiu-o por um instante deixando cair a bengala e, antes de o ruído cessar, o gigante, em dois enormes passos rápidos, estava diante dele. Um segundo antes de a pata, semelhante a um martelo, o atingir, Luke apercebeu-se do movimento pelo canto do olho e desviou-se, por reflexo. Mesmo assim, a pancada dirigida à têmpora apanhou-o no alto da cabeça, atrás da orelha, fazendo-o voar uns metros pelo ar antes de cair no alcatrão. Sem conseguir aclarar as ideias o suficiente para fazer um movimento, foi apanhado pela garganta até ficar só com os bicos dos pés a tocar no chão. Então, com uma lenta e quase paciente pressão, as enormes mãos começaram a apertar e, em poucos segundos, as dores e o medo de Luke foram desaparecendo, sendo substituídos por uma enevoada sensação de flutuar. O animal ostentava um sorriso grotesco no rosto rosado, a centímetros do seu, até que por fim começou também a desaparecer.

 

Do que lhe pareceu serem quilómetros de distância, chegou-lhe um estranho ruído agudo - o escape de um carro? Um foguete? Quase ao mesmo tempo, o aperto na garganta desapareceu e Luke caiu no chão como um boneco. O Humanóide recuara um pouco e, ainda a sorrir, olhava para a parte da frente da gabardina. O boné tinha-lhe caído e Luke encarou a enorme cabeça brilhante.

 

Só alguns segundos mais tarde é que reparou que segurava o revólver na mão direita e começou a perceber o que se passava. Nessa altura, Barker avançou de novo e o ruído do tiro foi muito mais forte da segunda vez, mas pareceu ter pouco ou nenhum efeito no gigante. Luke disparou mais três vezes, cada disparo obrigava o Humanóide a parar ou a dar um passo atrás, e, após o quinto tiro, viu aparecer de repente um buraquinho escuro no meio da testa da criatura, donde escorria um fio de sangue para as gordas pregas de carne. Barker pareceu um tanto confuso, mas continuou de pé, a menos de um metro e meio de distância, uma escura montanha humana contra o cinzento céu do entardecer.

 

Luke disparou mais duas vezes, mas ouviu apenas impotentes estalidos das câmaras vazias. Desajeitadamente, tentou pôr-se de pé, mas, antes de o conseguir, sentiu de novo as mãos em volta do pescoço, esmagando músculos já doridos, comprimindo cartilagens já enfraquecidas, A sensação de flutuar estava de volta, dessa vez progredindo até um nevoeiro cinzento e depois à escuridão.

 

Acordou num remoinho de dor e falta de ar. Só com a cabeça num ângulo esquisito conseguiu aliviar o latejar no pescoço e, ao mesmo tempo, meter o ar suficiente nos pulmões. Victor Barker jazia imóvel a seu lado no alcatrão, com os olhinhos minúsculos voltados para cima, sem ver, e uma pequena poça de sangue a começar a congelar em cima de um deles.

 

Na realidade só o segundo tiro, apenas, o segundo, fora fatal para o Humanóide, um golpezinho na aorta torácica, que sangrou e acabou por explodir com a pressão do seu ataque final.

 

Com uma agonizante lentidão, Luke conseguiu pôr-se de pé e recuperar a bolsa do sítio onde a deixara cair. Cambaleou num círculo completo, mas não viu outro sinal de vida no parque de estacionamento. Então, sem olhar sequer para o homem que acabava de matar, avançou a coxear para a porta do Centro Clínico.

 

A mulher de cabelo azul sentada ao balcão das informações olhou-o com receio e nojo, mas acabou por desistir de tentar convencê-lo de que o edifício que procurava estava fechado e indicou-lhe o caminho. O inchaço no pescoço e na laringe era tão grande que tinha a voz reduzida a um murmúrio quase inaudível. Mesmo assim, refreou o impulso de dizer à curiosa galinha: «Não faz mal, o director é meu pai.»

 

As indicações da mulher eram tão boas como maus os modos, e uns minutos depois Luke subia a escada de granito do antiquado edifício. Tirando o átrio bem iluminado, não viu luzes em qualquer das janelas e, surpreendentemente, a porta da frente estava aberta, o que lhe aumentou a esperança de que o pai e Karen tivessem chegado.

 

A um canto do átrio, um segurança fardado lia a secção desportiva do Washington Post, sentado a uma pequena secretária.

 

- Desculpe, venho ter com o doutor Lewis Corey. Ele está? - perguntou Luke, num murmúrio.

 

- Não posso ajudá-lo - respondeu o homem, espreitando por cima do jornal.

 

Tinha um forte sotaque sulista e, embora só conseguisse ver-lhe os olhos entre o jornal e o boné, Luke experimentou a desagradável sensação momentânea de já os conhecer. Avançou o suficiente para espreitar por cima do jornal e mal conseguiu reprimir um sobressalto ao ver a cara toda. Um bigode de pontas bem enroladas não conseguia disfarçar-lhe a aparência grotesca, de pele amarelada, com papos e dentes dum tom castanho-escuro que dava a volta ao estômago de qualquer pessoa. Ainda mais impressionante era uma cicatriz vermelho-viva que ia às curvas desde o olho esquerdo ao meio do queixo, passando-lhe pelo canto da boca. Outra, mais pequena, mas não menos colorida, cortava-lhe a face direita, desaparecendo debaixo da ponta do bigode. Um gordo charuto, da cor dos seus dentes, saía-lhe do canto da boca, exalando um fumo acre.

 

«Detestava encontrar o mangas que lhe fez aquilo», pensou Luke, sorrindo para consigo.

 

- O doutor Corey - tornou a dizer, no mesmo tom rouco.

 

-   Venho ter com o doutor Corey.

 

-Não está - resmungou o homem.

 

- Bom, eu espero no gabinete dele.

 

- Fechado, - O guarda abanou a cabeça e voltou ao jornal.

- Diga-me só onde fica o gabinete dele e eu espero lá. Luke mal conseguiu pronunciar as palavras, e começou a sentir cada vez maior frustração e fúria por desconfiar de que a laringe podia fechar-se-lhe completamente.

 

- Primeiro andar, pelo corredor, à direita.

 

Luke voltou-lhe as costas sem responder e dirigiu-se para a curta escada que dava acesso ao primeiro andar. A meio do átrio, viu umas pernas nuas no chão a sair duma porta. Sentiu um arrepio no corpo todo, avançou o mais depressa que pôde para o vulto imóvel e viu que se tratava de um homem de idade, estendido à porta do gabinete do director e... morto. Estava em roupa interior, tinha o cabelo prateado ensopado de sangue e salpicos manchavam-lhe a cara paradoxalmente serena. A parte de trás do crânio desaparecera, espalhando parte do conteúdo.

 

Varrido por uma onda de náusea, Luke afastou-se, voltou para a escada e avistou o guarda a uma dezena de metros, sorrindo ironicamente. O bigode, o charuto e as cicatrizes tinham desaparecido, e o boné estava no chão junto aos seus pés, expondo o forte e ondulado cabelo louro que, mesmo à distância, parecia meticulosamente penteado. Com uma das mãos na cintura, segurava com a outra um pesado revólver de cano longo, apontado a Luke.

 

Num reflexo, este pronunciou o nome de Steele, mas o único som que se ouviu foi o do ar forçado através das cordas vocais inchadas.

 

- A esta hora, os meus homens apanharam o seu pai e a rapariga, Corey. Acabou - anunciou Steele calmamente, sem dar um passo sequer na direcção do médico. - Se quiser ter a bondade de manter as duas mãos onde eu possa vê-las e de avançar lentamente, gostava de examinar o conteúdo dessa bolsa que traz consigo.

 

Voltando a cabeça o menos possível, Luke olhou primeiro para o guarda morto e depois para o outro lado, onde brilhava uma luz vermelha de saída a menos de dez metros.

 

Tentou a sua sorte  quase por instinto, por recear pela vida de Karen e para tentar fugir. Rodando de repente, atirou-se de cabeça para a base da parede e depois ~- no instante em que uma explosão rebentava o estuque junto à sua cara. Dera apenas três passos cambaleantes na direcção da saída, quando uma segunda explosão soou e com ela, quase instantaneamente, uma indescritível dor na perna esquerda.

 

O corpo rodou-lhe quase cento e oitenta graus antes de bater com toda a força na parede e cair no chão. Ficou deitado de costas, com os olhos fechados e a aproveitar o que lhe restava de energia para forçar o ar para os pulmões. Tinha sido atingido logo acima do joelho, mas a mente já não conseguia localizar as dores, e o resultado era ter a metade inferior do corpo como se estivesse a ser queimada com carvões em brasa.

Steele avançou lentamente, tirando imenso prazer da cena. Luke estava imóvel, com a respiração fraca e a perna das calças ensanguentada. Com cuidado para não tocar na sua vítima, Steele pegou na bolsa de cabedal e examinou o seu conteúdo. Acenou com a cabeça, satisfeito, assim que encontrou primeiro a carta e depois a fotografia.

 

- Foi um adversário e tanto, doutor Corey - elogiou ele, olhando para a poça de sangue que se formava no chão de mosaicos. - Nestes últimos dias fiquei com uma grande admiração pela sua desenvoltura. Se a sua luta fosse contra outra pessoa qualquer, acredito realmente que era capaz de se ter safado.

 

Luke abriu os olhos mas estava envolto numa névoa. A cara de Steele era quase invisível na sombra e na escuridão que aumentavam gradualmente. Só conseguia pensar em Karen, queria implorar pela vida dela, agora que a horrorosa carta e a fotografia estavam em poder dos perseguidores. Queria mentir e dizer que o que Steele tinha na mão eram apenas cópias, mas já não era capaz de emitir qualquer som.

 

- Nem sequer ouve o barulho, doutor Corey, prometo disse Steele, colocando a arma lentamente dentro do campo de visão do médico. Este mordeu o lábio inferior e tentou fixar o olhar hipnoticamente no buraco no fim do cano.

 

O que se seguiu foi uma confusão de ruídos e movimentos, primeiro os gritos, depois a arma a desaparecer-lhe da vista, depois as explosões - três?, quatro? - e finalmente o baque, quando o vulto alto caiu no chão a seu lado. Passos, vozes e, de repente, caras desconhecidas, dois homens novos, de armas em punho, curvados sobre si. A seguir, mais passos e outro rosto, este familiar.

 

A voz do pai pareceu chegar-lhe através dum túnel de muitos quilómetros.

 

- Luke, ouves-me? Tu estás bem? Ai, meu Deus! Chamem uma ambulância! Depressa!

 

A névoa cinzenta desfez-se por um momento, depois voltou, quase escondendo o rosto preocupado, mas de repente, sentiu uma mão num ombro e viu outra cara. Com grande esforço, piscou os olhos e forçou-os a focarem. o vulto. Primeiro o cabelo cinzento, a seguir os olhos familiares e o nariz aquilino e, por fim, o reconhecimento. Era o presidente George Tabor.

 

-Você está bem, filho? - perguntava ele. - Viemos ajudá-lo.

 

De repente, também a cara dele começou a desaparecer, substituída por uma luz reconfortante, que parecia emanar do seu vulto. Lentamente, Luke fechou os olhos, entregando-se à escuridão.

 

Foi o cheiro de Karen, mais do que o toque, que atravessou o vazio. Era o rosto dela, a centímetros do seu, com lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces. Sentiu-lhe as mãos acariciarem-lhe a testa.

 

- Karen - a palavra saiu de facto.

 

A rapariga forçou um sorriso, encostou os lábios à orelha dele e a escuridão voltou a envolvê-lo, enquanto as vozes se afastavam.

 

-- Acabou, Luke. Está tudo terminado - foram as últimas palavras que ouviu.


EPÍLOGO

2 de Junho de 1978

-Margaret, Karen, oiçam isto. Aconteceu exactamente o que o Tabor disse! - exclamou Lewis Corey Jr., sentado no seu gasto cadeirão de cabedal, a ler o Post de domingo. O sol da manhã entrava pela grande janela do seu escritório, dando à sala forrada de madeira escura um calor e uma vida que normalmente não possuía.

 

-Espera um minuto, Lewis - acalmou-o a mulher.

 

O café está quase pronto. Vamos já. Karen querida, importa-se de arranjar os pãezinhos e de os pôr no tabuleiro’? Conhecendo o meu marido, se não tem público nos minutos mais chegados, fica com a tensão altíssima!

 

- Calculo que sim - disse Karen, rindo. Vestia um roupão comprido azul-claro e andava dum lado para o outro na cozinha, com pantufas peludas amarelas, dando ao ambiente um calor muito seu. - Os pãezinhos estão prontos. Vamos lá ouvir os últimos acontecimentos.

 

As duas mulheres dirigiram-se para o escritório, distribuíram café e pãezinhos e sentaram-se em cadeirões confortáveis. Embora Corey tratasse cada nova notícia como um acontecimento único, Karen e Margaret tinham-se habituado às sessões de esclarecimento quase diárias e divertiam-se com o entusiasmo da leitura.

 

Lewis Corey levantou ligeiramente os olhos do jornal, para ter a certeza de que as suas ouvintes estavam a postos e então, sem preâmbulos, começou a ler, evitando cuidadosamente qualquer entoação ou comentário.

 

- «Fearing anuncia demissão. Vice-presidente nega qualquer irregularidade, mas demite-se no interesse do partido e da nação. Sob a pressão crescente da comissão do Congresso que investiga as suas possíveis irregularidades financeiras, o vice-presidente Nicholas Fearing anunciou hoje a sua demissão. Enfrentando estoicamente uma conferência de imprensa em Washington, acompanhado da mulher e das filhas, Fearing denunciou a investigação do Congresso como uma ”caça às bruxas” e tornou a afirmar-se inocente de quaisquer irregularidades. Investigações recentes desvendaram possiveis inconsistências nas declarações de impostos do vice-presidente durante os três anos anteriores à sua eleição, e correm rumores na colina do Capitólio de múltiplas acusações contra o homem que muitos observadores consideravam um sucessor certo do presidente Tabor. Este tem recusado firmemente comentar a situação de Fearing, embora já marcasse uma comunicação televisiva a nível nacional para as dezanove horas de hoje. Espera-se que aceite nessa altura, com pesar, a demissão do vice-presidente e que indique os seus planos para a escolha dum sucessor.»

 

Corey deu uma vista de olhos pelo resto do artigo, decidiu que não havia mais informações e, cerimoniosamente, pousou o jornal.

 

- Grande Nick! Fez um trabalho fantástico e vamos ter imensas saudades dele! - exclamou Karen. - Que acha que vai acontecer a seguir, doutor Corey?

 

- Não sei, Karen - respondeu ele, enchendo um cachimbo à Sherlock Holmes com a sua mistura especial de encomenda. - É irónico ser deposto pelas mesmas manipulações financeiras que utilizou com tanto êxito para destruir outros. Ouvi dizer que o George quer o Fearing fora do país dentro dum ano ou menos, quando estiver convencido de que a maior parte dos membros de La Tartaruga foram identificados continuou, - O Fearing acaba provavelmente por escrever um livro no convés do seu iate ao largo da sua ilha particular, no mar Egeu.

 

- Pelo menos, sempre é melhor do que no seu «país particular», ou seja, no nosso - comentou Karen. - É pena que o Albert Julian não tenha ficado por cá tempo suficiente para participar nisto tudo, pois adorava seguir o relato do julgamento dele nos jornais.

 

- Homens como ele não são julgados muitas vezes, Karen - observou Margaret Corey. - Embora sejam geralmente libertados por um advogado esperto e não por um frasco de comprimidos para dormir.

 

- Nunca lhe perguntei uma coisa, Karen, mas tenho pensado nisso - interveio o Dr. Corey. - Que planeava fazer, se eu tivesse recusado recebê-la ou se os meus planos de ir à pesca naquele dia não tivessem falhado?

 

- Que teríamos nós todos feito, se não tivesse ficado suficientemente convencido para falar com o presidente Tabor e conseguir que ele mandasse os serviços secretos para lá? Provavelmente, éramos o prato principal dum jantar do Fearing na Casa Branca, a esta hora - respondeu ela com outra pergunta.

 

- Que conversa é essa de jantar? Ainda nem tomei o pequeno-almoço.

 

Voltaram-se os três ao mesmo tempo para a porta, onde Luke parara, confortavelmente apoiado a um par de canadianas. O aparelho de gesso da sua perna esquerda estava coberto de desenhos e assinaturas, incluindo muitas dos políticos mais proeminentes do país, o que faria com que qualquer caçador de autógrafos ficasse cheio de inveja,

 

- Sabes perfeitamente que não deves andar já por ai sem ajuda, Luke - ralhou a mãe.

 

-Eu estou bem - protestou ele.

 

- Seja como for, acho que devias seguir as ordens dos médicos, para variar - ralhou Karen, abraçando-o com toda a força.    Não quero desculpas que te safem da cerimónia. Qual cerimónia?

 

Do casamento, pateta! De quem?

 

Eu respondo a essa pergunta assim que me fizeres o pedido - disse Karen.

 

- Achas que vais conseguir aguentá-la, Luke? - perguntou o pai.

 

- Sim, com paciência e compreensão - respondeu ele. Primeiro, um bocadinho de paciência, depois um bocadinho de compreensão e finalmente ceder a tudo o que ela quiser. Aí é que está a verdadeira chave.

                                                                                            Michael Palmer

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa