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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FAMÍLIA / Mário Puzo
A FAMÍLIA / Mário Puzo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A FAMÍLIA

 

Quando a peste negra assolou a Europa, dizimando metade da população, muitos cidadãos desesperados volveram os olhos dos Céus para a Terra. Nesta, a fim de dominarem o mundo físico, os mais propensos à filosofia procuraram desvendar os segredos da existência e deslindar os grandes mistérios da Vida, enquanto os pobres almejavam unicamente vencer o sofrimento.

E assim aconteceu que Deus desceu à Terra feito Homem e a rígida dou­trina religiosa da Idade Média perdeu o seu poder, sendo substituída pelo estudo das grandes civilizações antigas de Roma, da Grécia e do Egipto. Do mesmo passo que a sede das Cruzadas principiava a estiolar, ressuscitaram-se os heróis do Olimpo e travaram-se de novo batalhas olímpicas. O Homem contrapôs a mente ao coração de Deus e a Razão reinou.

Foi a época dos grandes avanços na filosofia, nas artes, na medicina e na música. A cultura floresceu com grande pompa e cerimónia. Mas não sem cus­tos. Violaram-se leis antigas antes de se criarem leis novas. A passagem da estrita obediência à Palavra de Deus e da crença na salvação eterna à venera­ção do «Homem» e da recompensa no mundo material a que se chamou Humanismo foi, na verdade, uma transição difícil.

Nessa altura Roma não era uma Cidade Santa, mas sim um lugar sem lei. Nas ruas, os cidadãos eram roubados, as casas eram saqueadas, grassava a pros­tituição e todas as semanas eram assassinadas centenas de pessoas.

Acresce que o país que hoje conhecemos como «Itália» ainda não existia. Ao invés, adentro das fronteiras da «bota» havia cidades-estados independentes governadas por velhas famílias chefiadas por reis locais, senhores feudais,

duques ou bispos. No interior do país, os vizinhos lutavam entre si pelo terri­tório. E quem conquistava nunca deixava de estar em guarda... porque a con­quista seguinte estava próxima.

De fora do país vinha a ameaça de invasão por potências estrangeiras dese­josas de expandir os respectivos impérios. Os governantes de França e Espanha lutavam pelo território e os «bárbaros» turcos, que não eram cristãos, avança­vam sobre os Estados Papais.

A Igreja e o Estado defrontavam-se pela soberania. A seguir à caricatura do Grande Cisma — durante o qual houve dois papas em duas cidades, com um poder dividido e rendimentos reduzidos — a instituição de uma nova sede do Trono em Roma, com um só Papa, deu nova esperança aos Príncipes da Igreja. Surgindo ainda mais poderosos que outrora, os chefes espirituais da Igreja ape­nas tinham de combater o poder temporal dos reis, rainhas e duques das pequenas cidades e feudos.

Mesmo assim, a Igreja Católica Romana estava em tumulto, pois o com­portamento desregrado não se limitava apenas aos cidadãos. Os cardeais envia­vam os seus criados armados de pedras e arcos para as ruas a fim de comba­terem com os jovens romanos; homens de elevada posição na igreja — aos quais o casamento estava vedado — frequentavam cortesãs e tinham grande profusão de amantes, ofereciam-se e recebiam-se subornos e o clero oficial, aos níveis mais elevados, aprestava-se a aceitar dinheiro para conceder dispensas das leis e redigir sagradas Bulas Papais para perdoar os mais terríveis crimes.

Muitos cidadãos desiludidos diziam que em Roma tudo estava à venda. Uma quantia bastante podia comprar igrejas, sacerdotes, indulgências e até o perdão de Deus.

Com muito poucas excepções, os homens que abraçavam o sacerdócio dedicavam-se à igreja porque eram filhos segundos, educados desde a nascença para profissões eclesiásticas. Não tinham vocação religiosa propriamente dita, mas, como a igreja ainda detinha o poder de proclamar reis e outorgar grandes bênçãos na terra, todas as famílias aristocráticas italianas ofereciam presentes e subornos a fim de conseguirem que os filhos fossem designados para o colégio cardinalício.

Assim era o Renascimento — a época do cardeal Rodrigo Bórgia e da sua família.

Os raios dourados do sol estival aqueciam as ruas empedradas de Roma à hora a que o cardeal Rodrigo Bórgia vencia a passo rápido a distância entre o Vaticano e a casa de estuque de três pisos da Piazza de Merlo onde tinha vindo reclamar três das suas crianças: os filhos César e João e a filha Lucrécia, carne da sua carne, sangue do seu sangue. Nesse dia fortuito, o segundo homem mais poderoso da Santa Igreja Católica Romana sentia-se particularmente bem—aventurado.

Em casa da mãe das crianças, Vanozza de Cattanei, surpreendeu-se a asso­biar jovialmente. Como filho da igreja, o casamento estava-lhe vedado, mas, como homem de Deus, sentia-se seguro de conhecer os planos do Senhor. Acaso o Pai Celeste não criara Eva para completar Adão, mesmo no Paraíso? Não se concluía então desse facto que nesta terra traiçoeira, repleta de infelici­dade, o homem carecia ainda mais do conforto de uma mulher? Tinha três filhos anteriores, de quando era um jovem bispo, mas estes últimos filhos que gerara, os de Vanozza, ocupavam um lugar especial no seu coração. Dir-se-ia que acendiam nele as mesmas ardentes paixões que ela possuía. E mesmo agora, ainda tão jovens, visualizava-os postados sobre os seus ombros, a formar um grande gigante, ajudando-o a unir os Estados Papais e a dilatar a Santa Igreja Católica Romana pelo mundo fora.

Ao longo dos anos, sempre que viera de visita, as crianças tinham-lhe chamado invariavelmente «Papá», sem descortinarem nada de comprometedor na conciliação da sua devoção por eles com a lealdade à Santa Sé. Não viam nada de estranho no facto de ele ser cardeal e ao mesmo tempo seu pai. Pois não era frequente o filho e a filha do Papa Inocêncio desfilarem com grande forma­lismo pelas ruas de Roma por ocasião de solenidades?

O cardeal Rodrigo Bórgia estava com a amante, Vanozza, havia mais de dez anos e sorria ao pensar em quão poucas mulheres lhe haviam suscitado tama­nho entusiasmo e mantido tanto tempo o interesse. Não que Vanozza tivesse sido a única mulher da sua vida, pois ele era um homem de grandes apetites em todos os prazeres mundanos, mas fora de longe a mais importante. Era inteli­gente, na sua opinião, bonita... e uma pessoa com quem se podia falar de assun­tos terrenos e divinos. Dera-lhe muitas vezes conselhos sábios e, em contrapar­tida, ele tinha sido um amante pródigo e um pai carinhoso para os filhos.

Vanozza postou-se no umbral da porta de casa e sorriu corajosamente ao dizer adeus aos seus três filhos.

Um dos seus maiores pontos fortes, agora que atingira os quarenta anos, era compreender aquele homem que envergava as vestes de cardeal. Sabia que ele tinha uma ambição ardente, um fogo que lhe inflamava as entranhas e que nada podia extinguir, e uma estratégia militar para a Santa Igreja Católica que dilataria o seu âmbito, alianças políticas que a fortaleceriam e tratados que cimentariam tanto a sua posição como o seu poderio. Tinha falado com ela acerca de tudo isso. As ideias desfilavam-lhe na mente de modo tão inexorável como as suas tropas marchariam sobre novos territórios. Estava destinado a ser um dos maiores condutores de homens e com a sua ascensão viria a dos filhos. Vanozza tentava consolar-se com a ideia de que, um dia, como herdeiros legí­timos do cardeal, gozariam de fortuna, poder e oportunidades. E, por conse­guinte, podia deixá-los ir.

Naquele instante apertava ao peito o bebé, Godofredo, o único filho que lhe restava, demasiado jovem para lhe ser tirado, uma vez que ainda mamava. No entanto, também ele não tardaria a ir-se. Os seus olhos escuros brilhavam, marejados de lágrimas, ao ver os outros filhos afastarem-se. A filha, Lucrécia, olhou para trás uma única vez, mas os rapazes nem chegaram a voltar-se.

Vanozza viu a figura grácil e imponente do cardeal buscar a pequenina mão do filho mais novo, João, e a mão minúscula da filha de três anos, Lucrécia. O filho mais velho, César, excluído, parecia já descontente. Aquilo prenun­ciava complicações, pensou ela, mas, com o tempo, Rodrigo acabaria por conhecê-los tão bem como ela. De modo hesitante, fechou a pesada porta de madeira da entrada.

Tinham dado alguns passos apenas quando César, agora zangado, empur­rou o irmão com tal força que João, obrigado a largar a mão do pai, tropeçou e pouco faltou para que caísse por terra. O cardeal evitou a queda do filho, após o que se voltou e disse:

  • César, meu filho, não serás capaz de pedir o que queres, em vez de empur­rares o teu irmão?

João, um ano mais novo mas de compleição muito mais franzina do que César, de sete anos, soltou uma risadinha ufana perante a defesa do pai mas, antes que pudesse regalar-se de satisfação, César acercou-se mais dele e pisou—lhe violentamente o pé.

João soltou um grito de dor.

O cardeal agarrou César pelas costas da camisa com uma das manápulas - suspendendo-o sobre a rua empedrada - e abanou-o com tanta força que os caracóis castanho-claros do miúdo tombaram pelo rosto abaixo. A seguir vol­tou a pôr a criança no chão. Ao ajoelhar-se diante do rapazito, os seus olhos castanhos assumiram uma expressão mais doce.

  • Que foi, César? — perguntou. — O que foi que te contrariou tanto?

Os olhos do rapaz, mais escuros e mais penetrantes, cintilavam como bra­sas ao fitar o pai.

  • Detesto-o, Papá — disse, numa voz apaixonada. — Tu escolhe-lo sem­pre...

  • Ora, ora, César — volveu o cardeal, divertido. — A força de uma família, tal como a força de um exército, está na lealdade mútua. Além disso, é pecado mortal odiar um irmão e não há razão para pores a tua alma imortal em perigo por virtude de tais emoções. - Nessa altura pôs-se de pé, agigantando-se sobre eles. Depois sorriu, dando palmadinhas na barriga imponente. - Há com cer­teza bastante de mim que chegue para todos vós... não há?

Rodrigo Bórgia era um homem enorme, suficientemente alto para supor­tar o próprio peso, de uma elegância bastante mais rústica do que aristocrática. Os seus olhos escuros cintilavam frequentemente de bom humor; o nariz, embora grande, não era ofensivo, e os seus lábios grossos e sensuais, normal­mente sorridentes, conferiam-lhe uma aparência generosa. Era, porém, o seu magnetismo pessoal, a intangível energia que irradiava, que fazia todos serem unânimes em considerá-lo um dos homens mais atraentes do seu tempo.

  • Chez, podes ficar com o meu lugar — disse a certa altura a filha a César, numa voz tão cristalina que o cardeal se voltou, fascinado, para ela. Lucrécia, de pé com os braços cruzados diante do corpo, os longos caracóis louros a caí­rem sobre os ombros, ostentava uma expressão de firme determinação no rosto angelical.

  • Não queres dar a mão ao Papá? — perguntou o cardeal, simulando fazer beicinho.

  • Não te dar a mão não me dá vontade de chorar — disse ela. — E não me faz zangar.

  • Crezia — disse César com genuíno afecto —, não sejas burra. O João está a ser bebé; ele governa-se muito bem sozinho.

Olhou, contrariado, para o irmão, que enxugava rapidamente as lágrimas com a macia seda da manga da camisa.

O cardeal despenteou o cabelo escuro de João e tranquilizou-o.

  • Pára de chorar. Podes dar-me a mão. — Virou-se para César e disse: — E tu, meu pequeno guerreiro, podes pegar-me na outra. — A seguir olhou para Lucrécia e endereçou-lhe um sorriso rasgado. — E tu, minha doçura? Que há—de o Papá fazer contigo?

Como a criança mantivesse uma expressão inalterável e não revelasse qual­quer emoção, o cardeal ficou encantado. Sorriu com apreço.

  • És verdadeiramente a menina do Papá e, como recompensa pela tua gene­rosidade e coragem, podes sentar-te no único lugar de honra.

Rodrigo Bórgia baixou-se e ergueu rapidamente a rapariga no ar, deposi­tando-a sobre os ombros, e riu-se com genuína alegria. Ao caminhar assim, fazendo as elegantes vestes ondular graciosamente, dir-se-ia que a filha era mais uma nova e bela coroa na cabeça do cardeal.

Nesse mesmo dia, Rodrigo Bórgia transferiu os filhos para o Palácio Orsini, que ficava defronte do seu, no Vaticano. A sua prima viúva, Adriana Orsini, ficou a tomar conta deles e a servir de governanta, encarregando-se da sua edu­cação. Quando o filho mais novo de Adriana, Orso, ficara noivo, aos treze anos de idade, Júlia Farnese, de quinze, mudara-se para o Palácio a fim de ajudar Adriana a tomar conta das crianças.

Embora o cardeal tivesse a responsabilidade quotidiana pelos filhos, eles ainda iam visitar a mãe, que estava presentemente casada com o terceiro marido, Cario Canale. Tal como escolhera os dois anteriores maridos de Vanozza, Rodrigo Bórgia escolhera agora Canale, pois sabia que as viúvas deviam ter um marido para lhes conferir protecção e a reputação de uma casa respeitável. O cardeal tinha sido bom para ela, que dos dois anteriores mari­dos herdara aquilo que não recebera dele. Ao contrário das belas mas ocas cor­tesãs de alguma aristocracia, Vanozza era uma mulher com sentido prático, coisa que Rodrigo admirava. Era dona de diversas estalagens bem cuidadas e de uma propriedade rural que lhe proporcionava um rendimento significativo; e, como era uma mulher piedosa, erigira uma capela dedicada à Virgem onde rezava as orações diárias.

Mesmo assim, passados dez anos, a paixão entre eles parecera arrefecer e haviam-se tornado bons amigos.

Passadas semanas, Vanozza viu-se obrigada a entregar igualmente Godo-fredo, pois também este ficara inconsolável sem os irmãos. E foi assim que todos os filhos de Rodrigo Bórgia se juntaram sob os cuidados da prima.

Como competia aos filhos de um cardeal, nos anos que se seguiram foram educados pelos mais talentosos tutores de Roma. Aprenderam Humanidades, Astronomia e Astrologia, História Antiga e diversas línguas, incluindo espa­nhol, francês, inglês e, claro está, o idioma da igreja, o latim. César sobressaía devido à sua inteligência e espírito competitivo, mas de todos a mais promis­sora era Lucrécia, pois, acima de tudo, possuía carácter e verdadeira virtude. Embora muitas jovens fossem enviadas para conventos a fim de serem edu­cadas e dedicadas aos santos, Lucrécia - com o beneplácito do cardeal, a conselho de Adriana — fora dedicada as Musas e ensinada pelos mesmos talento­sos tutores que os irmãos. Como amava as artes, aprendeu a tocar alaúde, a dançar e a desenhar. Era exímia nos bordados, em tecidos de prata e ouro.

Como era sua obrigação, Lucrécia desenvolveu todos os encantos e talen­tos que lhe encareceriam o valor nas alianças matrimoniais que teriam utilidade futura para a família Bórgia. Um dos seus passatempos preferidos era escrever poesia; passava longas horas a fazer versos, quer de amor e enlevo divinos quer de amor romântico. Era particularmente inspirada pelos santos e por vezes o seu coração ficava tão repleto que as palavras não chegavam.

Júlia Farnese estragava Lucrécia com mimos como se fosse uma irmã mais nova e tanto Adriana como o cardeal cumulavam Lucrécia de atenções, de forma que a rapariga teve uma infância feliz, adquirindo um feitio agradável. Curiosa e muito dada, não lhe agradava a desarmonia e fazia todos os esforços por ajudar a manter a paz familiar.                                                   

Num belo domingo, após ter dito missa solene na Basílica de S. Pedro, o cardeal Bórgia convidou os filhos a reunirem-se-lhe no Vaticano. Tratava-se de um acto raro e corajoso, visto que, até ao Papa Inocêncio, todos os filhos do clero eram proclamados sobrinhos e sobrinhas. Reconhecer abertamente a paternidade podia comprometer uma nomeação importante para um cargo na alta hierarquia da Igreja. Claro está que toda a gente sabia que os cardeais e mesmo os Papas tinham filhos — toda a gente sabia que eles pecavam — mas, contanto que isso se mantivesse oculto sob a capa de «família» e a verdade do parentesco constasse apenas em pergaminhos secretos, a honra do cargo não era maculada. Toda a gente era livre de acreditar no que quisesse, mas o car­deal tinha pouca paciência para hipocrisias. Havia alturas, é certo, em que era obrigado a torcer ou aformosear a verdade. Mas isso era compreensível porque, no fim de contas, ele era um diplomata.

Adriana vestiu as melhores roupas às crianças para esta ocasião especial: César de cetim preto, João de seda branca e Godofredo, de dois anos de idade, com uma blusa de veludo azul debruada com um opulento bordado. Júlia pôs a Lucrécia um vestido comprido de renda cor de pêssego e colocou na loira cabeleira encaracolada da rapariga uma pequena touca cravejada de jóias.

O cardeal acabava de ler um documento oficial que o seu principal conse­lheiro, Duarte Brandão, lhe trouxera de Florença. O documento dizia respeito a um certo frade dominicano conhecido como Savonarola. Corriam rumores de que era um profeta, inspirado pelo Espírito Santo mas muito mais perigoso para os propósitos do cardeal; todos os cidadãos comuns de Florença acorriam a ouvir os sermões de Savonarola e reagiam a eles com grande fervor. Era um reputado visionário e um pregador eloquente, cujos inflamados discursos se centravam frequentemente nos excessos carnais e financeiros do papado de Roma.

  • Temos de manter esse frade simples debaixo de olho — disse Rodrigo Bór­gia. - E que houve grandes dinastias que foram derrubadas por homens sim­ples que julgam ser detentores de uma verdade sagrada.

Brandão era alto e magro, tinha uma longa cabeleira negra e feições elegan­tes. Aparentava ser afável e cordial, mas constava em Roma que ninguém con­seguia igualar-lhe a cólera quando confrontado com deslealdades ou insolências. Todos eram unânimes em considerar que era preciso ser louco para desejar tê—lo como inimigo. Na ocasião, Duarte cofiou o bigode com o dedo indicador ao ponderar as implicações do que Rodrigo Bórgia acabava de lhe dizer.

  • Corre por aí que o frade ataca igualmente os Mediei do púlpito, e os cida­dãos de Florença aplaudem — disse ao cardeal.

Quando as crianças entraram nos aposentos particulares de Rodrigo Bór­gia, a conversa cessou. Duarte Brandão saudou-os com um sorriso, após o que se afastou.

Lucrécia correu entusiasmada para os braços do cardeal, mas os rapazes dei­xaram-se ficar, de mãos atrás das costas.

  • Venham, meus filhos — disse Rodrigo, continuando a manter Lucrécia nos braços. — Venham dar um beijo ao papá. — Fez-lhes sinal para que se apro­ximassem, com um sorriso terno e acolhedor.

César foi o primeiro a alcançar o pai. Rodrigo Bórgia poisou Lucrécia no banquinho dourado que tinha aos pés e abraçou o filho. Era um rapaz forte, alto e musculoso. O pai gostava do contacto daquele filho, que o tranquilizava quanto ao seu futuro. Rodrigo afrouxou o abraço ao rapaz e a seguir segurou—o com os braços estendidos, a fim de poder olhar para ele.

  • César — disse, afectuosamente —, todos os dias dirijo uma oração de agra­decimento à nossa Virgem Santa, porque me alegras o coração sempre que te contemplo.

César sorriu de felicidade, satisfeito com a aprovação do pai.

Seguidamente César desviou-se para deixar João passar. Fosse a rapidez com que o coração do rapaz batia no peito, fosse a premência da sua respiração que lhe traía o nervosismo, algo em Rodrigo reagiu à fragilidade de João. E quando o cardeal abraçou o filho, apertou-o contra si com maior suavidade mas reteve—o um pouco mais.

Habitualmente, quando o cardeal tomava as refeições a sós nos seus apo­sentos, comia frugalmente apenas pão, fruta e queijo, mas desta vez tinha dado indicações aos criados para disporem uma mesa farta de massas e cria­ção, carne de vaca com doçarias especiais e montinhos redondos de castanhas cristalizadas.

Quando os filhos, Adriana e o seu filho Orso e a bela e cativante Júlia Far-nese se sentaram à roda da mesa rindo e tagarelando, Rodrigo Bórgia sentiu—se um homem de sorte. Rodeado de família e amigos, a vida na terra era boa. Rezou em silêncio uma prece de gratidão. Quando o criado lhe verteu o vinho cor de sangue na taça de prata, encontrava-se neste estado de espírito. Por isso, num gesto de afecto, ofereceu o primeiro gole ao filho, João, que estava sen­tado ao seu lado.                                                                                  

João, porém, provou o vinho e fez uma careta.

  • E azedo de mais, papá... - disse. — Não gosto.

Rodrigo Bórgia, sempre em guarda, ficou repentinamente gelado de medo. Tratava-se de um vinho macio; não deveria haver acidez nenhuma...

Quase de imediato, a criança queixou-se de que estava a sentir-se mal e começou a retorcer-se com dores de estômago. Tanto o pai como Adriana ten­taram tranquilizá-lo, mas, poucos instantes decorridos, João principiou a vomitar violentamente. O cardeal ergueu a criança do assento e depositou-a no sofá de brocado.

Mandaram chamar imediatamente o clínico do Vaticano, mas, antes de conseguir chegar aos respectivos aposentos, João perdeu os sentidos.

  • Veneno — declarou o clínico, mal examinou a criança.

João mostrava uma palidez mortal e estava já febril, com um fiozinho de bílis negra a escorrer-lhe dos lábios. Parecia muito pequeno e desamparado.

Nessa altura, Rodrigo Bórgia perdeu a compostura e enfureceu-se.

  • Um veneno que me era destinado... - disse.

Duarte Brandão, que se tinha mantido de pé, desembainhou então a espada, em guarda e atento à emergência de qualquer ulterior tentativa de fazer mal ao cardeal ou à sua família.

O cardeal voltou-se para ele.

  • Há um inimigo no palácio. Reúne toda a gente na Sala Grande. Serve a todos uma taça de vinho e insiste para que o bebam. Depois traz-me aquele que recusar.

Adriana, preocupada, sussurrou:

  • Meu caro primo, Excelência, compreendo a vossa dor, mas desse modo perdereis os vossos mais fiéis servidores, pois muitos adoecerão e alguns hão—de morrer...

Rodrigo voltou-se para ela.

  • Não lhes vou servir o vinho que foi servido ao meu pobre e inocente filho. O vinho que lhes for servido há-de ser puro. Mas apenas o pecador se negará a beber, pois o medo sufocá-lo-á antes de levar a taça aos lábios.

Duarte saiu imediatamente a fim de cumprir as ordens do cardeal.

João jazia imóvel como uma pedra, pálido de morte. Adriana, Júlia e Lucré­cia estavam sentadas junto dele, passando-lhe pela testa panos molhados e unguentos medicinais.

O cardeal Rodrigo Bórgia ergueu a mãozinha do filho e beijou-a, após o que se dirigiu à capela particular e ajoelhou diante da estátua da Virgem em oração. Argumentou com ela, pois sabia que ela compreendia a perda de um filho e a dor que isso causava. E fez uma jura:

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance, tudo o que for humanamente possível, para trazer as almas imortais de milhares de pessoas à única igreja ver­dadeira. A tua igreja, Mãe Santa. Velarei por que adorem o teu filho, contanto que poupes a vida ao meu.

O jovem César estava postado no umbral da porta da capela e, quando o cardeal se virou e o viu ali, surpreendeu-lhe os olhos marejados de lágrimas.

  • Vem cá, César. Vem cá, meu filho. Reza pelo teu irmão — disse o cardeal. E César foi ajoelhar ao lado do pai.

De regresso aos aposentos docardeal, toda a gente se manteve em silêncio até Duarte chegar e anunciar:

  • Foi descoberto o culpado. Não passa de um ajudante de cozinha, que anteriormente esteve ao serviço da Casa de Rimini.

Rimini era uma pequena província feudal na costa leste de Itália e o seu governante, um duque local, Gaspare Malatesta, era um inimigo figadal de Roma e do papado. Tratava-se de um homem corpulento, com um físico capaz de albergar a alma de dois, e a sua cara enorme tinha bexigas e traços muito marcados, mas era em virtude da cabeleira rebelde, ruiva e ondulada, que lhe chamavam «o Leão».

O cardeal Bórgia afastou-se de junto do filho enfermo e segredou a Duarte:

  • Pergunta ao ajudante de cozinha por que razão tem tanto desdém por Sua Santidade. Depois assegura-te de que ele bebe a garrafa de vinho da nossa mesa. Assegura-te de que a bebe toda.

Duarte acenou afirmativamente.

  • E que quereis que lhe façamos depois de o vinho fazer efeito? — perguntou.

O cardeal, de olhos coruscantes e rosto afogueado, respondeu:

  • Colocai-o em cima dum burro, amarrai-o bem e enviai-o com uma men­sagem ao Leão de Rimini. Dizei-lhe que comece a pedir misericórdia e a fazer as pazes com Deus.                                                      

João esteve várias semanas prostrado como num sono profundo e o cardeal insistiu para que ele ficasse no seu palácio do Vaticano a fim de ser tratado pelo seu clínico particular. Enquanto Adriana velava ao seu lado e diversas criadas cuidavam dele, Rodrigo Bórgia passava horas na capela a rezar à Virgem.

  • Trarei para a única igreja verdadeira as almas de milhares de pessoas - pro­metia fervorosamente —, contanto que intercedas junto de Cristo para que poupe a vida do meu filho.

Quando as suas preces foram atendidas e João se recompôs, o cardeal tor­nou-se ainda mais dedicado à Santa Igreja Católica e à família.

Mas Rodrigo Bórgia sabia que o Céu só por si já não podia garantir a segu­rança da sua família. E por isso compreendia que havia mais uma acção a tomar.

O cardeal sabia agora que tinha de mandar vir de  Espanha Miguel Corello, também conhecido por Don Michelotto...

Este sobrinho bastardo do cardeal Rodrigo Bórgia tinha sentido desde a mais tenra idade os abanões do destino. Em Valência, quando ainda criança, não era mau nem sádico. Apesar disso, via-se muitas vezes a defender as almas cuja bondade as tornava vulneráveis à natureza tirânica dos outros, pois mui­tas vezes a bondade é confundida com fraqueza.

Miguel aceitou desde a infância o seu fado: proteger os que traziam ao mundo o facho de Deus e da Santa Igreja Romana.

Mas Miguel era um rapaz forte e tão feroz na lealdade como nas acções. Constava que, quando robusto adolescente, tinha sido atacado pelo meliante mais bárbaro da sua aldeia ao levantar-se em defesa da casa da mãe, irmã do cardeal.

Miguel tinha apenas dezasseis anos quando o chefe dos meliantes e vários jovens vândalos entraram pela casa dentro e tentaram afastar o rapaz do baú de madeira onde se escondiam as preciosas relíquias sagradas da mãe e os atoalhados da família. Quando Miguel, que raramente falava, amaldiçoou o ban­dido e se recusou a afastar-se, o chefe dos meliantes lacerou-lhe o rosto com um estilete, causando-lhe um golpe profundo da boca até à face. Quando o sangue começou a jorrar às golfadas pela cara do rapaz sobre o baú, a irmã desatou a chorar em altos soluços, mas mesmo assim Miguel não arredou pé. Por fim, quando os vizinhos se juntaram nas ruas e começaram a gritar, o meliante e o seu bando, receando serem capturados, fugiram da aldeia para os montes.

Vários dias mais tarde, quando o mesmo bando de meliantes tentou voltar a entrar na aldeia, deparou com resistência e, ao passo que a maior parte se pôs em fuga, o chefe do bando foi capturado por Miguel. Na manhã seguinte o infeliz meliante foi encontrado com uma grossa corda ao pescoço, enforcado numa grande árvore da praça da aldeia.

A partir desse dia, a reputação de ferocidade de Miguel Corello correu todo o principado de Valência e ninguém mais ousou fazer-lhe mal a ele ou a qual­quer um dos seus amigos, temendo retaliações. O rosto sarou, embora ficasse com uma tal cicatriz que lhe deixou a boca num esgar constante; afora isso, não sofrera nenhum dano. Ainda que em qualquer outro homem aquele sorriso escarninho houvesse de ser uma visão assustadora, a sua reputação de justiça e a expressão de misericórdia que irradiava dos olhos castanho-claros de Miguel fazia todos quantos o viam reconhecer a sua alma bondosa. Foi nessa altura que os aldeões começaram a chamar-lhe carinhosamente «Don Michelotto» e ele se tornou bem conhecido como homem digno de respeito.

O cardeal Rodrigo Bórgia pensava que em todas as famílias havia alguém que tinha de sair à luz e pregar a palavra de Deus. Contudo, atrás deles tinha de haver outros a proporcionar a segurança e a garantir-lhes êxito nas suas pie­dosas empresas. Os que se sentavam no trono da Igreja não se podiam defen­der da maldade dos outros sem a ajuda de uma mão humana, pois esta era a natureza do mundo em que viviam.

O facto de o jovem Don Michelotto ter sido chamado para desempenhar o papel do malfeitor não surpreendeu nenhum deles, pois era um homem superior. O seu amor e a sua lealdade, tanto ao Pai Celeste como à Santa Sé, nunca estiveram em questão, por maiores que fossem os labéus sobre o seu

carácter sussurrados pelos seus inimigos. De facto, Rodrigo Bórgia não tinha dúvidas de que Don Michelotto vergaria sempre a sua vontade à do Pai Celeste e agiria de bom grado segundo as ordens da Santa Madre Igreja.

E, tal como o cardeal acreditava que os seus actos eram guiados pela inspi­ração divina, Don Michelotto acreditava que as suas mãos eram guiadas pela mesma força celeste, pelo que não se punha a questão do pecado. Acaso não estava ele, sempre que punha termo à vida de um inimigo do cardeal ou da Igreja, simplesmente a devolver essas almas ao julgamento do Pai Celeste?

E foi assim que, pouco depois do restabelecimento de João, Rodrigo Bór­gia, que tinha crescido em Valência e conhecia o sangue que corria no coração daquele espanhol, chamou o sobrinho a Roma. Ciente dos perigos naquela terra estranha, confiou então a Don Michelotto, de vinte e um anos de idade, o bem-estar da família. E, à medida que os filhos do cardeal cresciam, rara­mente se viravam que não vissem a sombra de Don Michelotto atrás de si.

Agora, sempre que o cardeal estava em Roma e as suas obrigações como vice-chanceler não o obrigavam a ausentar-se, visitava diariamente os filhos para conversar e brincar com eles, com Don Michelotto frequentemente ao lado. E, na primeira oportunidade, fugia do fétido e abafante calor estival de Roma, com as suas estreitas ruas apinhadas de gente, para os levar até ao seu magnífico retiro, no campo verde e luxuriante.

Oculta nas faldas dos Apeninos, a um dia de marcha de Roma, ficava uma grande extensão de terreno com uma magnífica floresta de cedros e pinheiros a rodear um pequeno lago muito límpido. Rodrigo Bórgia tinha-o recebido de presente do tio, o papa Calisto III, e ao longo dos últimos anos fizera dele um opulento retiro campestre para si e para a família.

Tratava-se do Lago de Prata, um lugar mágico. Povoado dos sons da natu­reza e das cores da criação, era para ele um paraíso terreal. Ao alvorecer e de novo ao cair da noite, quando o azul abandonava o céu, a superfície do lago adquiria uma tonalidade cinzento-prata. O cardeal ficara maravilhado desde o primeiro instante em que nele poisara os olhos. E a sua esperança era que ele e os filhos ali passassem os seus mais ditosos momentos.

Durante os cálidos dias estivais, da cor do limão, as crianças nadavam no lago para se refrescarem, após o que corriam à solta pelos luxuriantes campos verdes enquanto o cardeal passeava pelos fragrantes pomares de citrinos, des­fiando as contas de ouro do rosário. Durante essas serenas ocasiões, admirava a beleza da vida e em especial a beleza da sua vida. É certo que tinha trabalhado afincadamente, que era meticuloso na sua atenção aos pormenores desde os tempos de jovem bispo, mas até que ponto determinava isso a sorte de uma pessoa? Pois não era verdade que muitas pobres almas se fartavam de trabalhar e não eram recompensadas na terra pelos céus? Com o coração repleto de gra­tidão, o cardeal ergueu o olhar para o límpido azul do céu a fim de rezar uma oração e implorar uma bênção. De facto, sob a superfície da sua fé, decorridos

todos aqueles anos de graças, permanecia o terror oculto de que, por uma vida como a sua, um homem houvesse um dia de pagar um preço elevado. Estava fora de questão que a abundância de Deus era gratuitamente concedida, mas, para um homem ser digno de conduzir almas para a Santa Igreja, havia que pôr à prova a sinceridade da sua alma. Quando não, como poderia o Pai Celeste considerar o homem digno? O cardeal esperava mostrar-se à altura do desafio.

Uma noite, depois de ele e os filhos terem feito uma refeição opípara, sen­tados à beira do lago, proporcionou a estes uma extravagante exibição de fogos—de-artifício. Rodrigo pegou ao colo no bebé, Godofredo, e João agarrou-se com força às vestes do cardeal.

O céu iluminava-se de estrelas de prata em enormes arcos luminescentes e fúlgidas cascatas de cores vivas. César deu a mão à irmã e sentiu-a estremecer e chorar com o som da pólvora, à medida que as grandes explosões de luz alu­miavam o céu sobre eles.

Quando, porém, o cardeal viu o medo da filha, passou o bebé a César e bai­xou-se a fim de tomar Lucrécia nos braços.

  • O Papá pega-te ao colo — disse. — O Papá não deixa que te aconteça nada.

César manteve-se próximo do pai, pegando agora no bebé Godofredo ao colo, e ouviu o cardeal explicar com gestos soberbos e grande eloquência a constelação de estrelas. Encontrava um tão grande consolo no som da voz do pai, que naquele preciso momento percebeu que aquela ocasião junto do Lago de Prata era uma ocasião que sempre conservaria na memória. Porque nessa noite era a criança mais feliz do mundo e, de repente, sentia que todas as coi­sas eram possíveis.          

O cardeal Rodrigo Bórgia gostava de tudo quanto fazia. Era um daqueles raros homens com tão boa disposição que arrastava toda a gente à sua volta para o vórtice do seu entusiasmo. Conforme os filhos iam crescendo e os seus conhe­cimentos se refinavam, falava detidamente de religião, política e filosofia com eles, passando longas horas a conversar, tanto com César como com João, sobre a arte da diplomacia e o valor da estratégia religiosa e política. Embora César gostasse destas actividades intelectuais, João aborrecia-se amiúde. Por causa do susto antigo, o cardeal fazia-lhe tanto as vontades que isso se tornou uma des­vantagem, pois o rapaz ganhou mau génio e tornou-se mimado. Era, contudo, o seu filho César aquele em que depositava as maiores esperanças, e as expecta­tivas relativamente a este filho eram efectivamente muito elevadas.

Rodrigo gostava das visitas ao Palácio Orsini porque tanto a sua prima Adriana como a jovem Júlia o admiravam e lhe davam muita atenção. Esta fazia-se uma mulher muito bonita, com uma cabeleira mais dourada que a de Lucrécia, que lhe chegava quase até ao chão. Com os seus grandes olhos azuis e lábios carnudos, fazia jus ao nome «La Bella» com que toda a Roma a dis­tinguia. O cardeal começou a sentir um certo afecto por ela.

Júlia Farnese era oriunda da baixa nobreza e trouxera com ela um dote de 300 florins — uma quantia considerável — para os seus esponsais com Orsini, que era alguns anos mais novo do que ela. Embora os filhos de Rodrigo ficassem sempre muito felizes ao vê-lo, Júlia começou também a ansiar pelas suas visitas. As suas aparições traziam-lhe um rubor às faces, como sucedia à maioria das mulheres que ele conhecera na vida. E muitas vezes, depois de ajudar Lucrécia a lavar o cabelo e envergar a sua melhor indumentária para receber o pai, a pró­pria Júlia fazia um esforço especial para se tornar o mais atraente possível. Ape­sar da diferença de idades, Rodrigo Bórgia ficava enfeitiçado com a jovem.

Ao chegar a altura da cerimónia oficial do casamento civil do afilhado Orso, com Júlia Farnese, o respeito pela prima Adriana e a afeição pela jovem noiva levaram-no a oferecer-se para presidir à cerimónia no Salão das Estrelas do seu palácio.

Nesse dia, a jovem Júlia, envergando o seu vestido de noiva de cetim branco com o véu de pérolas prateadas a envolver-lhe o rosto encantador, pareceu-lhe transformada, de simples criança, na mulher mais bela que jamais vira, tão viçosa, tão cheia de vida, que o cardeal teve de reprimir a paixão.

Não tardou muito que o jovem Orso fosse enviado para o retiro campestre do cardeal em Bassanello, com os seus conselheiros, e sujeito a adestramento para se tornar um líder militar. Quanto a Júlia Farnese, de bom grado deu con­sigo nos braços do cardeal, primeiro, e a seguir no seu leito.

Quando César e João atingiram a adolescência, foram ambos enviados para longe a fim de cumprirem os respectivos destinos. João reagia penosamente às aulas e o Papa concluiu que o futuro do filho não era a vida de sacerdote ou de estudioso. Seria, ao invés, soldado. Em contrapartida, a espantosa inteli­gência de César levou-o aos estudos em Perugia. Dois anos depois de ali domi­nar as suas disciplinas, para as quais tinha talento, César foi mandado para a Universidade de Pisa a fim de prosseguir a sua formação em Teologia e Direito Canónico. O cardeal esperava que César lhe seguisse as pisadas e ascendesse a grandes honrarias na Igreja.

Embora tivesse cumprido o seu dever para com os seus anteriores três filhos de cortesãs, Rodrigo Bórgia concentrou as suas aspirações futuras nos filhos que teve de Vanozza, César, João e Lucrécia. Era-lhe muito mais difícil esta­belecer uma ligação forte com o filho mais novo, Godofredo. Procurava valer—se do raciocínio para desculpar a sua falta de afecto paternal. Era então que, nos mais profundos escaninhos da sua mente, se interrogava sobre se este filho mais novo de Vanozza seria mesmo seu, pois quem pode conhecer verdadeira­mente os segredos que se ocultam no coração de uma mulher?                 

O cardeal Bórgia tinha sido vice-chanceler, ou jurista papal, de vários papas. Servira o último papa, Inocêncio, durante oito anos e ao longo desse tempo tinha feito todos os possíveis por incrementar o poder e a legitimidade do papado.

Todavia, quando o pobre papa Inocêncio se viu no seu leito de morte, nem o leite materno fresco nem as transfusões de sangue de três rapazes lograram salvar-lhe a vida. Os rapazes tinham recebido um ducado cada, mas, quando a experiência médica fracassou e redundou em desastre, foram recompensados com requintados funerais e as famílias receberam quarenta ducados cada.

Infelizmente, o papa Inocêncio tinha deixado os cofres papais vazios e a Santa Igreja desprotegida em relação aos insultos do rei católico de Espanha e do cristianíssimo rei de França. As finanças papais estavam em tal estado que o próprio Santo Padre tinha sido obrigado a empenhar a mitra a fim de com­prar ramos para distribuir no Domingo de Ramos. Contrariando o conselho de Rodrigo Bórgia, tinha permitido que os governantes de Milão, Nápoles, Veneza e Florença e das outras cidades-estados e feudos se atrasassem nos seus tributos para o tesouro da Igreja e ele próprio tinha esbanjado fortunas a pre­parar Cruzadas nas quais ninguém queria aventurar-se.

Só um espírito superior em estratégia e finanças seria capaz de reconduzir a Santa Igreja Católica à sua glória passada. Mas quem seria ele? Toda a gente se interrogava. Contudo, era apenas ao sacro colégio dos cardeais, guiado pelo Espírito Santo e inspirado pela divindade, que cabia decidir. Porque um Papa não podia ser um homem vulgar; tinha de ser alguém enviado pelo céu.

A 6 de Agosto de 1492, no grande salão da Capela Sistina, com uma Guarda Suíça, nobres romanos e embaixadores estrangeiros a protegê-lo da influência de intrusos, o conclave do colégio cardinalício deu início aos traba­lhos de eleição do novo Papa.

Conforme a tradição, uma vez falecido o papa Inocêncio, todos os prínci­pes da igreja, os vinte e três membros do sacro colégio cardinalício, reuniram para eleger o homem de Deus que serviria de Guardião das Chaves, de suces­sor de S. Pedro, de Vigário de Cristo na terra. Ele deveria ser não só o líder espi­ritual da Santa Igreja Católica, como também o líder terreno dos Estados Papais. Como tal devia ser possuidor de uma enorme inteligência, da capacidade de conduzir homens e exércitos e do talento de negociar em seu favor, quer com os dirigentes das províncias locais quer com os reis e príncipes estrangeiros.

A Sagrada Tiara do papa acarretava, já a perspectiva de imensas riquezas, já a responsabilidade por unificar ou fragmentar ainda mais o conglomerado de cidades-estados e províncias feudais que constituíam o centro da península ita­liana - o país que ainda não se chamava «Itália». Assim, mesmo antes da morte do papa Inocêncio, tinham-se feito acordos, tinham sido prometidas proprie­dades e títulos e tinham-se negociado determinadas fidelidades a fim de garan­tir a eleição de determinados cardeais. Dentro do restrito grupo de cardeais considerados papabili havia apenas alguns que disso eram merecedores: o cardeal Ascânio Sforza, de Milão, o car­deal Cibo, de Veneza, o cardeal delia Rovere, de Nápoles, e o cardeal Bórgia, de Valência. Rodrigo Bórgia, porém, era estrangeiro - de ascendência espa­nhola - e, por conseguinte, as suas hipóteses eram reduzidas. O facto de ser considerado catalão era a sua maior desvantagem. E, conquanto tivesse mudado o nome do espanhol «Borja» para o italiano «Bórgia», isso não lhe granjeara maior aceitação por parte das velhas famílias institucionais de Roma.

Não obstante, era um nome a ter em consideração, pois havia mais de trinta e cinco anos que servia a Igreja de forma soberba. Como jurista papal, tinha negociado favoravelmente para os anteriores papas diversas situações diplomáticas difíceis, mas, a par de cada vitória para o Vaticano, tinha igual­mente aumentado a riqueza e os benefícios da sua própria família. Colocara muitos parentes seus em posições de poder e tinha-lhes outorgado proprie­dades que as famílias italianas mais antigas achavam não lhes pertencerem por direito. Um papa espanhol? Nem pensar. A sede da Santa Sé situava-se em Roma e por conseguinte era bom de ver que o Papa devia ser alguém das pro­víncias de Itália.

Nessa altura, rodeado de mistério, o conclave principiou a levar a cabo o trabalho de Deus. Isolados em celas individuais no interior da imensa e fria capela, os cardeais não podiam ter contactos uns com os outros nem com o mundo exterior. A sua decisão tinha de ser tomada individualmente, por meio da oração e da Inspiração Divina, de preferência de joelhos diante dos peque­nos altares com o crucifixo pregado e as velas a arder como únicos adornos. Dentro daqueles aposentos húmidos e obscurecidos havia um catre para os que tinham de dormir a fim de se recomporem, uma cadeira para expelirem o con­teúdo do estômago, um urinol, uma taça de amêndoas açucaradas, maçapão, biscoitos doces, cana-de-açúcar, uma caneca de água e sal como mantimentos. Como não havia nenhuma cozinha central, a comida tinha de ser confeccio­nada nos respectivos palácios, levada até eles em taças de madeira e passada através de um postigo. Durante aquele período, todos os cardeais tinham de dar tratos à sua própria consciência a fim de determinarem qual o homem que melhor conviria à sua família, à sua província e à Santa Madre Igreja. Isto porque, se não fosse cautelosa, uma pessoa podia salvar os seus bens terrenos mas perder a alma imortal.

Não se podia desperdiçar tempo, pois, passada uma semana, as rações seriam reduzidas; a partir dessa altura, apenas seria dado pão, vinho e água aos cardeais. Isto porque, uma vez falecido o papa, reinava o caos. Sem líder, as ruas de Roma encontravam-se em completa desordem. Saqueavam-se lojas, pilhavam-se castelos e assassinavam-se centenas de cidadãos. E as coisas não ficavam por aí. De facto, não havendo uma cabeça sob a Sagrada Tiara, a pró­pria cidade de Roma ficava em risco de ser conquistada.

Iniciada a votação, centenas de cidadãos reuniam-se na piazza fronteira à capela. Ficavam ali de pé a rezar em voz alta, a entoar hinos e a fazer votos por que um novo Papa intercedesse junto dos céus para pôr termo ao inferno que grassava nas ruas. Agitavam bandeiras, brandiam galhardetes e aguardavam que viesse um emissário à varanda anunciar a sua salvação.

A primeira ronda durou três dias, mas nenhum cardeal obteve a necessária maioria de dois terços. A votação repartiu-se entre o cardeal Ascânio Sforza, de Milão, e o cardeal delia Rovere, de Nápoles. Ambos obtiveram oito votos. Rodrigo Bórgia, com sete votos, era a segunda escolha da maioria do colégio. Terminada a contagem, sem que surgisse nenhum vencedor claro, os boletins foram cerimoniosamente queimados.

Nessa manhã, a multidão que enchia a praça observou expectante o fumo que se erguia da chaminé para formar aquilo que parecia um escuro ponto de interrogação no límpido céu azul por cima da Capela Sistina. Vendo-o como um sinal, persignaram-se e ergueram aos céus cruzes de madeira feitas à mão. Como não surgisse nenhum anúncio feito pelo Vaticano, os cidadãos começa­ram a rezar mais fervorosamente e a cantar mais alto.

Os cardeais regressaram às suas celas para reconsiderarem.

O segundo resultado, dois dias depois, foi muito parecido com o primeiro: não tinha havido concessões propriamente ditas e, desta feita, quando o fumo ainda negro se ergueu da chaminé sem mudar de cor e não surgiu nenhum anúncio, as orações esmoreceram e os cantares tornaram-se mais débeis. A piazza tinha um aspecto fantasmal na escuridão, iluminada apenas por umas escassas lanternas e bruxuleantes candeeiros de iluminação pública.

Roma foi assolada por boatos desencontrados. Os cidadãos asseveravam que, quando na manhã seguinte o sol nasceu, apareceram três sóis idênticos no céu, que a multidão espantada interpretou como um sinal de que o próximo Papa contrabalançaria os três poderes do papado: o temporal, o espiritual e o celestial. Afigurava-se-lhes um bom presságio.

Nessa noite, porém, no cimo da torre do palácio do cardeal Julião delia Rovere, onde não era permitida a entrada a ninguém, dizia-se que se tinham acendido espontaneamente dezasseis archotes e, sob o olhar da multidão, pri­meiro expectante e a seguir perturbada, todos se tinham apagado menos um. Um mau presságio! Qual o poder do papado que resistiria? Um silêncio arrepiante percorreu a piazza.

Lá dentro, o conclave estava irremediavelmente empatado. No interior da capela os quartos tornavam-se mais frios e húmidos. Muitos dos carde­ais mais idosos começavam a acusar a tensão. Seria insuportável: como podia alguém pensar como devia ser com os intestinos soltos e os joelhos doridos?

Nessa noite, um a um, alguns dos cardeais saíram dos seus quartos e entra­ram furtivamente nos quartos dos outros. Iniciaram-se renegociações e estabe­leceram-se novos acordos relativamente a bens sagrados e posições. Fizeram-se promessas. Tentadoras garantias de fortuna, de posição, de oportunidade, podiam ser trocadas por um único voto. Forjaram-se lealdades completamente novas. Mas as mentes e corações dos homens são inconstantes e podem efec­tivamente surgir dificuldades. Porque, se um homem pode vender a alma ao diabo, não poderá vendê-la a outro?

Na praça, a multidão tinha-se rarefeito. Muitos cidadãos, cansados e des-coroçoados, em cuidado pela sua própria segurança e pela das suas casas, aban­donaram a piazza a fim de regressarem para junto das suas famílias. Assim, às seis da manhã, quando o fumo da chaminé saiu finalmente branco e as pedras começaram a cair das janelas obstruídas do Vaticano a fim de poder ser feito o anúncio, havia apenas uns poucos para o ouvir.

Uma cruz de bênção foi erguida bem por sobre as suas cabeças e uma figura difícil de distinguir, envergando delicadas vestes, proclamou: «Com grande júbilo estou aqui para dizer que temos um novo Papa.»

Os que sabiam do empate perguntavam a si mesmos qual dos dois cardeais que iam à frente teria sido eleito. Seria o cardeal Ascânio Sforza ou o cardeal delia Rovere? Logo a seguir, porém, apareceu outra figura à janela, maior e mais imponente, que deixou cair das mãos pequenos pedaços de papel, atirados como confetti, com umas letras garatujadas que diziam: «Temos como Papa o cardeal Rodrigo Bórgia, de Valência, o Papa Alexandre VI. Estamos salvos!»

Ao tornar-se o Papa Alexandre VI, o cardeal Rodrigo Bórgia sabia que a pri­meira coisa que tinha a fazer era devolver a ordem às ruas de Roma. Durante o período decorrido entre a morte de Inocêncio e a sua coroação, tinham-se registado duzentos assassínios na cidade. Como seu Santo Padre, sabia que tinha de pôr termo a esta ilegalidade; devia fazer dos pecadores um exemplo, pois, a não ser assim, como poderiam as boas almas da cidade retomar em paz as suas orações?

O primeiro assassino foi capturado e sumariamente enforcado. Mais ainda, o irmão foi também enforcado. E - o que constituía a maior humilhação a que um cidadão romano podia ser sujeito — a sua casa foi demolida, incendiada e completamente arrasada, de tal sorte que a sua família ficou sem abrigo.

No espaço de algumas semanas foi reposta a ordem nas ruas de Roma e os cidadãos regozijaram-se por terem uma cabeça tão determinada e sensata sob a Sagrada Tiara. A escolha dos cardeais era agora também a escolha do povo.

Alexandre, porém, tinha outras decisões a tomar e dois importantíssimos problemas para resolver, nenhum dos quais era espiritual. Antes de tudo, tinha de criar um exército para afirmar a Igreja Católica como poder temporal e readquirir o controlo dos Estados Papais na Itália. A seguir, tinha de estabele­cer e consolidar a fortuna dos filhos.

Não obstante, sentado no trono do Salão da Fé do palácio do Vaticano, meditava nas leis de Deus, do mundo, das nações e das famílias. Pois não era ele o vigário infalível de Deus aqui na terra? E, por conseguinte, não lhe com-

petia lidar com todo o mundo, com as nações e com os seus reis, com todas as cidades independentes de Itália, repúblicas, oligarquias? Sim, incluindo as índias recentemente descobertas? E não era sua obrigação dar-lhes o melhor conselho? Representavam elas ou não um perigo para o império de Deus?

E a sua própria família, os Bórgia, com inúmeros parentes dos quais havia que cuidar, e os seus filhos e filhas, que lhe deviam fidelidade pelo sangue mas que eram incontroláveis devido às suas próprias paixões rebeldes? Onde resi­dia o seu principal dever? E podiam os seus dois objectivos ser atingidos sem sacrificar um ao outro?

O dever de Alexandre para com Deus era claro. Tinha de consolidar a igreja. A recordação do Grande Cisma, setenta e cinco anos atrás, em que tinha havido dois Papas e duas igrejas — ambas fracas — fortalecia a sua resolução.

As cidades de Itália que pertenciam à igreja eram na altura governadas por tira­nos que pensavam mais em engordar os cofres da respectiva família do que em pagar a sua renda à Santa Igreja que santificava o seu poder. Os reis tinham uti­lizado a igreja como instrumento no sentido de buscarem o poder para si pró­prios. A salvação das almas imortais da humanidade ficava no esquecimento. Até os ricos reis de Espanha e França sonegavam os seus rendimentos da igreja quando estavam descontentes com o Papa. Atreviam-se! E se a Santa Igreja retirasse a bên­ção ao seu poder? De facto, as pessoas que obedeciam aos reis faziam-no por acre­ditarem que eles eram ungidos por Deus e apenas o Papa, como representante da igreja e Vigário de Cristo, podia confirmar essa bênção. Alexandre sabia que tinha de continuar a estabelecer o equilíbrio entre o poder dos reis de França e dos reis de Espanha. O temido Grande Conselho, convocado pelos reis, nunca mais deve­ria acontecer. A igreja e o Papa tinham de ter o poder secular de fazer cumprir a vontade de Deus. Em suma, um grande exército. Por conseguinte, Alexandre ponderou maduramente o seu poder como Papa. E formulou um plano.

Logo a seguir à sua coroação, nomeou o seu filho César cardeal. Ainda em criança, César tinha recebido benefícios da igreja e fora-lhe conferido o título de bispo, com um rendimento de milhares de ducados. Agora, conquanto

César tivesse apenas dezassete anos de idade, com todas as paixões carnais e vícios da juventude, era de corpo e alma um adulto. Tinha licenciaturas tanto em Direito como em Teologia pelas Universidades de Perugia e Pisa e a sua tese era considerada um dos mais brilhantes trabalhos académicos alguma vez apre­sentados. A sua grande vocação, porém, era o estudo da história militar e da estratégia. Tinha efectivamente tomado parte em algumas pequenas batalhas, conseguindo distinguir-se numa delas. Estava bem adestrado na arte da guerra. Alexandre tinha sorte. Deus abençoara o seu filho com um espírito vivo, força de vontade e uma ferocidade natural, sem a qual não era possível sobre­viver neste mundo cruel.

César Bórgia recebeu a notícia de que tinha sido nomeado cardeal da Santa Igreja Católica Romana quando era ainda estudante de Direito Canónico na Universidade de Pisa. A nomeação não era inesperada, visto ser filho do novo Papa. Mas César Bórgia não ficou contente com ela. É certo que o tornaria mais rico, mas no fundo era um soldado; o seu desejo era comandar tropas em combate, assaltar castelos e subjugar as fortalezas das cidades. E queria casar e ter filhos que não fossem bastardos como ele.

Os seus dois amigos mais chegados e colegas, Giò de Mediei e Tila Baglio-ni, felicitaram-no e começaram logo a preparar uma festa nocturna, pois César teria de partir na semana seguinte para a sua investidura em Roma.

Giò tinha já sido nomeado cardeal aos treze anos de idade, por intermédio do poder de seu pai, o governante de Florença, o grande Lourenço o Magní­fico. Tila Baglioni era o único dos três que não possuía qualquer cargo religioso, mas era um dos herdeiros do ducado de Perugia. Ali na Universidade de Pisa não passavam os três de alunos cheios de vivacidade; embora tivessem criados e guarda-costas, estavam todos bem equipados para se protegerem a si próprios. César era um lutador emérito com a espada, o machado e o chuço, mas ainda não possuía armadura de combate completa. Tinha uma força física tremenda e era mais alto do que a maioria dos homens. Era brilhante nos estudos, o orgu­lho dos seus mentores. Mas tudo isso era de esperar do filho do Papa.

Giò era bom aluno, mas fisicamente não se impunha. Era também espiri­tuoso, mas guardava-se de o ser com os dois amigos. Mesmo aos dezassete anos, a determinação de César causava um temor reverencial aos amigos. Tila

Baglioni, em contrapartida, era um grande ferrabrás, atreito a fúrias cruéis quando detectava uma ofensa.

Nessa noite juntaram-se os três para comemorar numa casa de campo da família Mediei às portas de Pisa. Atendendo à recém-anunciada imposição do barrete cardinalício a César, tratou-se de uma função discreta, um pequeno banquete com seis cortesãs apenas. Fizeram um jantar frugal de carneiro, vinho, umas quantas doçarias e conversa ligeira e agradável.

Foram-se deitar cedo, pois tinham resolvido que no dia seguinte, antes de regressarem às suas casas - Giò Mediei a Florença e César Bórgia a Roma -iriam todos a Perugia com Tila Baglioni para um grande evento festivo. O primo direito de Tila ia casar e a tia, a duquesa Atalanta Baglioni, tinha-lhe enviado um pedido especial para estar presente. Pressentindo uma certa ten­são no pedido, Tila concordou em ir.

Na manhã seguinte partiram os três para Perugia. César montava o seu melhor cavalo, presente de Afonso, o duque de Ferrara. Giò montava uma mula branca, pois não era bom cavaleiro. Tila, à sua maneira de ferrabrás, montava um cavalo de batalha cujas orelhas tinham sido aparadas de forma a dar-lhe uma aparência feroz. Juntos, cavalo e cavaleiro eram esmagadores. Nenhum deles vestia armadura, embora estivessem os três armados de espadas e adagas. Eram acompanhados por uma companhia de trinta homens armados e protegidos por leves armaduras ao serviço de César, que envergavam as suas cores pessoais, amarelo e escarlate.

A cidade de Perugia ficava em caminho entre Pisa e Roma, uma tirada ape­nas da costa para o interior. A família Baglioni e a própria cidade de Perugia eram ferozmente independentes, apesar do facto de o papado a ter reivindicado como um dos seus Estados. César tinha fé na sua própria habilidade e dotes físicos, mas mesmo assim nunca se teria atrevido a visitá-la a não ser sob a pro­tecção de Tila. Agora ansiava por desfrutar da alegria de um casamento antes de assumir as suas obrigações em Roma.

Perugia era um local que tinha tanto de terrível como de belo. A sua forta­leza, que assentava numa enorme colina, era praticamente inexpugnável.

Quando os três jovens entraram na cidade, verificaram que as igrejas e palá­cios estavam ornamentados para o casamento, com as estátuas cobertas de tecidos dourados. César conversava animadamente, gracejando mesmo com os amigos; tomou meticulosamente nota das fortificações e divertiu-se a conge-minar planos para tomar a cidade de assalto.

Quem governava Perugia era a viúva, a duquesa Atalanta Baglioni. Bonita ainda, era célebre pela ferocidade com que governava, servindo-se do filho, Netto, como seu comandante militar. O seu mais ardente desejo era ver o sobrinho, Torino, casado com Lavina, uma das suas damas da corte preferidas. Estava convicta de que se podia contar com Torino para apoiar o domínio da família Baglioni.

Todos os diversos ramos do fisicamente poderoso clã Baglioni se juntaram nos terrenos do castelo. Havia músicos a tocar e pares a dançar na grande festa. Houve combates e justas. César, que se orgulhava da sua força, aceitou todos os desafios e venceu todas as competições.

Quando a noite caiu o clã Baglioni recolheu-se na fortaleza, enquanto Giò, César e Tila se reuniam nos aposentos de Tila para uma derradeira rodada.

Era quase meia-noite e estavam tontos do vinho, quando ouviram brados e gritos a ressoar por todo o castelo. Sobressaltado, Tila pôs-se imediatamente em pé de um salto e tentou precipitar-se para fora do quarto, de espada na mão, mas César reteve-o.

  • Deixa-me ver o que se passa. Podes correr perigo. Volto já.

Mal César ouviu os gritos, percebeu instintivamente que tinha ocorrido qualquer grande traição. Ao deixar os aposentos de Tila, segurava a espada junto ao flanco. Embora os membros do clã Baglioni tivessem fama de assas­sinos, sabia que eles não se atreveriam a matar o filho de um Papa. César atra­vessou calmamente os corredores do castelo por entre os gritos, que continua­vam a fazer-se ouvir. Deu consigo à entrada da câmara matrimonial.

Havia sangue por todo o lado. As estátuas da Virgem Maria, o retrato do Menino Jesus, os lençóis e fronhas brancas do leito matrimonial — até o dossel — estavam empapados de sangue. E no solo jaziam os corpos dos noivos, Lavina e Torino, com as camisas de noite manchadas de vermelho e perfurações de espada através do tecido e da carne, com ferimentos mortais na cabeça e no coração.

Por sobre eles estava Netto com quatro homens armados, todos eles com espadas escarlate. A mãe de Netto, a condessa Atalanta, gritava blasfémias ao filho bem-amado. Enquanto Netto procurava acalmá-la, César parou à escuta.

O filho estava a explicar à mãe:

  • Mamma, o Torino era demasiado poderoso e a família dele andava a cons­pirar para te destronar. Matei todos os membros do clã.

A seguir tentou tranquilizar a mãe, dizendo-lhe que, embora tivesse que ser deposta e tornar-se ele o governante, conservaria sempre uma posição de honra no seu governo.

Ela esbofeteou-o.

  • Uma traição de um filho! — gritou.

  • Abre os olhos, Mamma. Não foi só o Torino, mas também o primo Tila, que conspirou contra ti — insistiu Netto.

César ouvira já o bastante. Saiu dali e regressou rapidamente aos aposentos de Tila.

Ao ouvir o que sucedera, Tila enfureceu-se.

  • Intrigas, são tudo intrigas! - gritou. - O filho da mãe do meu primo, Netto, está a tentar usurpar a coroa à própria mãe. E projecta matar-me a mim também.

César, Tila e Giò barricaram a porta, após o que saíram pela janela até ao telhado do palácio, escalando as ásperas paredes de pedra. César e Tila deixa­ram-se cair na escuridão do pátio das traseiras, após o que ajudaram Giò, que não era fisicamente forte. Uma vez no solo, César teve de impedir Tila de ten­tar voltar ao castelo a fim de lutar com Netto. Finalmente conduziu-os aos campos onde a sua escolta estava acampada, onde sabia que estaria a salvo devido aos seus trinta homens armados. O seu único problema era Tila. Deve­ria ficar para salvar o amigo ou levá-lo até Roma, um lugar seguro?

César colocou as alternativas a Tila, mas este recusou. Pediu unicamente a César que o protegesse durante o percurso até ao Palácio Comunal, no centro de Perugia, onde podia reunir os seus sequazes para defender a sua honra e res­tituir o castelo à tia.

César anuiu, mas primeiro ordenou a dez homens armados seus que escol­tassem Giò de Médicis de volta a Florença. A seguir, com os restantes homens, levou Tila Baglioni ao Palácio Comunal.

Chegados ali, encontraram quatro homens armados, fiéis apoiantes de Tila, à sua espera. Ele enviou-os imediatamente como mensageiros e ao alvorecer havia já mais de cem soldados sob o comando de Tila.

Quando o sol nasceu, viram um exército de homens armados a cavalo chefiados por Netto atravessar a praça pública. César advertiu os seus homens no sentido de não tomarem parte em batalha alguma. Depois fica­ram a observar Tila cercar a praça com os seus homens e avançar sozinho para defrontar Netto.

O combate não durou muito. Tila avançou directamente para Netto, tra­vando-lhe o braço da espada, para a seguir o apunhalar na coxa com a adaga. Netto tombou do cavalo. Tila desmontou e, antes que Netto pudesse pôr-se de pé, empalou-o na espada. As tropas de Netto tentaram pôr-se em fuga, mas foram capturadas. Nessa altura Tila montou no seu cavalo de batalha de orelhas aparadas e ordenou que trouxessem à sua presença os inimigos cap­turados.

Quinze deles foram deixados vivos. A maioria deles estavam feridos e mal podiam ter-se de pé.

César testemunhou a ordem de Tila para decapitarem os homens de Netto e cravarem as cabeças nos baluartes da catedral. Ficou espantado diante da visão de Tila, o rústico estudante ferrabrás, que naquele preciso dia se trans­formara num impiedoso carrasco. Com dezassete anos apenas, Tila Baglioni tinha-se tornado o Tirano de Perugia.

Quando César chegou a Roma e se encontrou com o pai, contou-lhe a his­tória, perguntando-lhe seguidamente:

  • Se a Virgem Maria é a santa mais adorada em Perugia, por que são os de

lá tão impiedosos?

O Papa Alexandre riu-se. Parecia mais divertido do que horrorizado com a

história.

  • Os Baglioni são verdadeiros crentes — disse. — Acreditam no paraíso. É um imenso dom. De que outro modo pode um homem suportar esta vida mortal? Infelizmente, essa crença dá também aos homens coragem para cometerem grandes crimes em nome do bem e de Deus.

O Papa Alexandre não tinha amor ao luxo só para si. O seu palácio, o Vati­cano, tinha de evocar os prazeres abrangentes dos próprios céus. Compreendia que até os que eram espiritualmente elevados se deixavam impressionar pelos ricos e mundanos adornos de Deus, tal como a Santa Igreja Católica o repre­sentava. A gente comum aceitava a figura do Papa como Vigário de Cristo, infa­lível e venerado, mas os reis e príncipes tendiam a ser mais débeis na sua fé. Os de sangue nobre tinham de ser convencidos com ouro e jóias, sedas e ricos bro­cados, pela enorme mitra que o Papa punha na cabeça e pelo opulento tecido das vestes papais, pelos bordados a ouro e prata das suas casulas e capa, velhos de séculos, amorosamente conservados e com um valor para além do imaginável.

Uma das salas mais grandiosas do Vaticano era o enorme Salão dos Papas: milhares de metros quadrados de paredes laboriosamente decoradas e tectos magnificamente pintados que encerravam a promessa da vida eterna para os homens de virtude. Era neste salão que o Papa recebia aqueles que vinham em peregrinação de todos os pontos da Europa, com ducados na mão, implorando uma indulgência plenária. Estavam ali os retratos de Papas famosos a coroar grandes reis como Carlos Magno, e bem assim Papas a chefiar as Cruzadas e a suplicar à Virgem que intercedesse pela humanidade.

Em todos esses retratos transparecia que aqueles grandes reis deviam o seu poder ao Papa que os ungia. Este era o seu salvador terreno. Os reis, de cabe­ças curvadas, ajoelhavam diante do Papa, cujos olhos se erguiam para os céus.

Foi aos seus aposentos privados na antecâmara do Grande Salão do Vati­cano que Alexandre nessa altura chamou o seu filho João. Estava na altura de lhe dar a conhecer que o seu destino como parte da nobreza espanhola estava iminente.

João Bórgia era quase da altura de César, mas de compleição mais franzina. Tal como o irmão e o pai, era um homem atraente, mas com uma diferença. Tinha os olhos ligeiramente oblíquos e os malares altos dos seus antepassados espanhóis. Tinha a tez bronzeada das longas horas a cavalgar e a caçar, mas havia muitas vezes uma expressão de suspeita nos seus olhos negros bem sepa­rados. A sua grande desvantagem era de longe não possuir nada do fascínio de César ou Alexandre. Os seus lábios escuros crispavam-se frequentemente num sorriso cínico, mas isso não se passava agora, ao ajoelhar diante do pai.

  • Como posso servir-te, Papá? - perguntou.

Alexandre sorriu afectuosamente a este seu filho. Era, de facto, este jovem - como aquelas almas no limbo, perdidas e confusas — que mais precisava da sua orientação para alcançar a salvação.

  • Chegou o momento de assumires a responsabilidade que te foi deixada quando o teu meio-irmão, Pedro Luís, morreu. Como te foi dito, ele legou-te o seu ducado e o seu título de duque de Gandía. Na altura da sua morte estava noivo de Maria Enríquez, prima do Rei Fernando de Espanha, e eu, como teu pai — e como Santo Padre — decidi honrar esse compromisso, para garantir a nossa aliança com a Espanha recém-unificada e certificar a casa de Aragão da nossa amizade. Por conseguinte, dentro de um curto período de tempo, irás para Espanha reivindicar a tua real noiva. Compreendes?

  • Sim, Papá - disse ele, mas fez um ar carrancudo.

  • Estás descontente com a minha decisão? — perguntou o Papa. — É uma vantagem para nós e para ti. A família tem fortuna e posição e nós beneficia­remos politicamente com esta aliança. Além disso, há um grande castelo espa­nhol em Gandía e muitos ricos territórios que agora passarão a pertencer-te.

  • Terei riquezas para levar comigo, de modo que eles possam ver que tam­bém eu tenho de ser respeitado? — perguntou João.

Alexandre franziu o cenho.

  • Se queres ser respeitado, tens de ser piedoso e temente a Deus. Tens de servir fielmente o rei, honrar a tua mulher e abster-te de jogos a dinheiro e jogos de azar.

  • Mais nada, Pai? — perguntou sardonicamente João.

  • Quando houver mais alguma coisa, voltarei a mandar-te chamar - retor­quiu secamente o Papa Alexandre. Raramente se aborrecia com este filho, mas naquele momento deu por si extremamente irritado. Tentou recordar a si pró­prio que João era jovem e não tinha faro para a diplomacia. Quando tornou a falar, foi com um calor forçado. - Entretanto, goza a vida, meu filho. Ela vai ser uma grandiosa aventura, se a abordares como deve ser.

No dia em que César Bórgia ia ser ordenado cardeal da Santa Igreja Cató­lica Romana, a enorme capela da Basílica de S. Pedro estava a abarrotar de nobreza elegantemente vestida. Todas as grandes famílias aristocráticas de Itá­lia estavam presentes.

De Milão viera o trigueiro Ludovico Sforza, «II Moro», e o seu irmão, Ascâ-nio. Ascânio Sforza, agora vice-chanceler de Alexandre, envergava as opulen­tas vestes eclesiásticas de brocado de marfim e o barrete vermelho de cardeal. Todos os presentes na basílica superlotada murmuraram perante aquela visão.

De Ferrara vinham os dEste, uma das famílias antigas mais régias e con­servadoras de Itália. A sua indumentária, singelamente preta e cinzenta, fazia sobressair as deslumbrantes pedrarias que traziam ao pescoço. Tinham empre­endido a dificultosa jornada não apenas para mostrarem o seu respeito, mas para causarem boa impressão junto do Papa e do seu novo cardeal... porque haviam de precisar dos seus favores.

Não houve, contudo, quem fizesse voltar mais abruptamente as cabeças da multidão do que o jovem que caminhava atrás deles. Da ilustre cidade de Flo­rença, Piero de Mediei, solene e autocrático, trazia um gibão verde-esmeralda bordado com umas fantásticas rodas de ouro de vinte e dois quilates que lhe faziam incidir um fulgor luminoso em todo o rosto, conferindo-lhe quase uma aparência de santidade. Ao percorrer a longa nave central, tomava a dianteira a sete dos seus orgulhosos parentes, incluindo o irmão, Giò de Mediei, grande amigo de César. Piero representava agora o poder em Florença, mas o que constava era que a morte do pai, Lourenço o Magnífico, representara efectiva­mente o fim do controlo dos Mediei sobre a cidade. Corriam rumores de que não tardaria que o jovem príncipe fosse destronado e o governo dos Mediei chegasse ao fim.

Da cidade de Roma, tinham vindo quer os Orsini quer os Colonna. Ini­migas figadais havia muitas décadas, as duas famílias estavam momentanea­mente em paz. Tiveram, porém, o cuidado de sentar-se em lados opostos da basílica. E tinham boas razões para isso: uma sangrenta luta entre as duas tinha desbaratado a coroação de um anterior cardeal.

Na fila da frente, Guido Feltra, o poderoso duque de Urbino, falava baixinho com o mais astuto adversário do Papa, o cardeal Julião delia Rovere, sobrinho do falecido Papa Sisto IV e presentemente legado papal em França.

Feltra chegou-se mais ao cardeal.

  • Desconfio que o nosso César é mais soldado que estudioso — segredou. - Daria um dia um grande general, aquele rapaz, se não estivesse destinado a ser Papa.

Delia Rovere eriçou-se.

  • Como o pai, não se pode dizer que esteja acima das questões da carne. E também é um bom libertino noutros aspectos. Luta com touros e desafia os camponeses em feiras locais. É muito impróprio...

Feltra acenou afirmativamente.

  • Disseram-me que o cavalo dele acaba de ganhar o Pálio em Siena. O cardeal delia Rovere pareceu contrariado.

  • Mais com batota que com honra. Mandou o cavaleiro desmontar perto do fim, o que deixou o cavalo mais leve e mais veloz. Claro que o resultado foi objecto de protesto. Não obstante, manteve-se.

Feltra sorriu.

  • Que estranho...

Delia Rovere, porém, fez um ar carrancudo e disse:

  • Presta atenção ao meu aviso, Guido Feltra. Está possuído pelo diabo, este filho da igreja.

Julião delia Rovere era actualmente um inimigo jurado dos Bórgia. O que lhe aumentava a cólera, mais ainda do que a sua eleição frustrada, era a quan­tidade de cardeais pró-Bórgia que o papa Alexandre acabava de designar. Mas a falta de comparência àquela cerimónia seria impensável e os olhos de delia Rovere estavam firmemente postos no seu futuro.                 

De pé no altar, o Papa Alexandre VI, alto e largo de ombros, constituía uma visão altaneira e hipnotizante. A declarada teatralidade das suas vestes brancas, realçada pela estola de opus anglicanum escarlate e dourada conferiam-lhe uma presença imponente. Naquele momento os seus olhos cintilavam de orgulho e segurança: ei-lo que reinava, sozinho e infalível, a partir daquela imensa casa que Deus edificara havia séculos sobre o túmulo de S. Pedro.

Quando o potente órgão fez estrondear um triunfante Te Deum — o hino de louvor ao Senhor —, Alexandre deu um passo em frente, levantou o barrete car­dinalício no ar com ambas as mãos e, com uma sonora bênção entoada em latim, colocou-o solenemente na cabeça do filho, que estava ajoelhado diante dele.

César Bórgia baixara os olhos ao receber a Sagrada Bênção. A seguir ergueu—se, revelando uma figura altiva e imponente, quando dois idosos cardeais lhe puseram sobre os ombros largos a túnica púrpura do cargo. Quando acabaram de o fazer, ele adiantou-se e juntou-se ao Papa. Os dois religiosos viraram-se para a congregação.

César era sinistramente belo e vigorosamente constituído. Era ainda mais alto do que o seu maciço pai, com um rosto anguloso e malares proeminen­tes. O seu longo nariz aquilino era tão perfeito como o de uma escultura de mármore, e os seus olhos castanhos-escuros irradiavam inteligência. Um mur­múrio percorreu a multidão.

Na última fila sombria da basílica, porém, sentado sozinho num banco reservado, estava um homem muito gordo opulentamente vestido de prata e branco: Gaspare Malatesta, o Leão de Rimini. Malatesta tinha uma pendên­cia com o Papa espanhol, relacionada com um jovem que fora parar ao seu portão, assassinado e amarrado a um burro. Que importância dava ele a um Papa e às suas ameaças? Nenhuma! Que importância dava ele a este Deus? Nenhuma! O Leão não acreditava em nada disso. Alexandre não passava de um homem, e os homens podem morrer. O Leão cedeu à imaginação recor­dando novamente o ter vertido tinta nas pias de água benta, como fizera durante a temporada da Quaresma, para manchar as delicadas vestes do car­deal e dos seus convidados a fim de os trazer a todos de volta à terra. A ideia seduzia-o, mas agora tinha coisas mais importantes a tratar. Recostou-se no assento, sorrindo.

Atrás dele, oculto nas sombras, Don Michelotto estava de pé, vigiando. Quando as gloriosas notas finais do grande Te Deum recrudesceram de inten­sidade, num crescendo ensurdecedor, o homem baixo e de constituição robusta envergando roupa escura deslizou sem ser visto para o estreito e escuro espaço atrás de Gaspare Malatesta. Silenciosamente, passou um garrote pela cabeça de Gaspare e, com um único movimento fluido, puxou-o, apertando o letal nó corredio à volta do pescoço do homem gordo.

O Leão de Rimini ofegou, com a respiração cortada na garganta pelo aperto da corda. Tentou debater-se, mas os seus músculos, à míngua de sangue e oxi­génio, crisparam-se desajeitadamente. As últimas palavras que ouviu, à medida que a escuridão lhe apagava todos os pensamentos do cérebro, foram-lhe sus­surradas ao ouvido:

  • Uma mensagem do Santo Padre.

A seguir o estrangulador juntou-se sub-repticiamente à multidão, tão rapi­damente como surgira.

César Bórgia seguiu atrás do pai, o Papa, pela nave fora; na sua esteira vinham a mãe de César, Vanozza, a irmã, Lucrécia, e os irmãos, João e Godo-fredo. Atrás deles vinham outros celebrantes da família. Passaram todos pelo banco reservado da última fila da basílica sem prestar atenção ou fazer qual­quer comentário. Ali, Gaspare Malatesta tinha o queixo tombado sobre a imensa barriga, como se dormisse.

Por fim, várias mulheres pararam e apontaram para aquela visão cómica e a cunhada de Gaspare, humilhada por aquilo que julgava ser mais uma das suas brincadeiras, debruçou-se sobre ele para o acordar. Quando o pesado corpo de Gaspare tombou na nave, com os olhos esbugalhados a fixarem cegamente o magnífico tecto da basílica, soltou um grito.

O desejo de vingança do cardeal Julião delia Rovere atingiu o grau de obses­são. Muitas vezes acordava de noite gelado e a tremer, pois Alexandre tinha invadido o seu sonho. E deste modo, ao rezar de manhã as suas orações, ajoe­lhado na capela sob o olhar vigilante das gigantescas estátuas de mármore de misericordiosos santos e retratos profusamente coloridos de santos mártires, congeminava a destruição do Papa.

Não era apenas a derrota de delia Rovere na sua aspiração ao papado que animava estes sentimentos, embora tivesse sem dúvida o seu papel. Era a sua convicção de que Alexandre era no íntimo um homem imoral.

O fascínio bonacheirão e o carisma do Papa pareciam tornar aqueles que o cercavam indiferentes à importância de salvar almas e impotentes para resistir à medida que ele colocava os filhos em posições da alta hierarquia da igreja. Muitos dos cardeais e a maioria dos reis, bem como os cidadãos de Roma, per­doavam-lhe os excessos; pareciam apreciar as suas gigantescas procissões, bai­les, banquetes, espectáculos e requintadas festividades, que esbanjavam dinheiros que poderiam ser mais bem empregados para defender os Estados Papais e deslocar os exércitos da igreja para novos territórios.

Em contraposição ao amável Papa Alexandre, delia Rovere era um homem impaciente, de génio violento, que nunca parecia feliz a não ser nas caçadas ou na guerra. Trabalhava incessantemente e não podia tolerar o jogo fosse sob que forma fosse. Era devido a este defeito de carácter que se con­siderava um homem virtuoso. Não gostava grandemente de nada ou de ninguém, embora tivesse três filhas. E, em toda a sua vida, só uma vez amara verdadeiramente.

O cardeal delia Rovere tinha uma postura de uma certa dignidade, que seria tranquilizadora, não fora o brilho de fanatismo dos seus grandes olhos escuros. O porte hirto da sua volumosa cabeça, de vigorosos malares quadra­dos, fazia do seu rosto uma tela de linhas e ângulos rígidos. Raramente sorria para mostrar a beleza dos seus dentes pequenos e regulares e só a cova do queixo lhe conferia brandura. Era um rosto situado na Idade Média, um retrato vivo do dia do Juízo Final. Até a pétrea configuração quadrada do seu corpo dava mais a impressão de opinião inflexível do que de força. Que ele possuía coragem e inteligência, ninguém contestava. Não era, contudo, particularmente querido, devido à sua linguagem rude e insultuosa, que contras­tava vivamente com a elegância fácil do Papa. Não obstante, era um inimigo temível.

Nas muitas missivas de delia Rovere ao rei francês Carlos, ao rei Ferrante, de Nápoles, e a outros, acusava constantemente Alexandre de praticar a simo-nia — comprar o cargo papal -, de vigarices, de suborno, nepotismo, cupidez, gula e todo o género de pecados carnais. O facto de ele próprio ter cometido muitos dos mesmos pecados de que acusava Alexandre não parecia alterar de modo nenhum o seu juízo.

E algumas das suas acusações eram verdadeiras. A seguir à eleição, Alexandre tinha entregado valiosos castelos aos cardeais que o haviam apoiado e concedera—lhes as mais importantes posições no Vaticano. Ascânio Sforza recebera o cargo de vice-chanceler porque contribuíra para cimentar a posição do Papa na última votação. Recebera também um castelo, igrejas e diversos feudos. Constava que na escuridão da noite anterior à votação se tinham visto dois burros a transpor­tar pesados sacos de prata do palácio do cardeal Rodrigo Bórgia para o palácio do cardeal Ascânio Sforza. O voto do cardeal António Orsini garantiu duas cida­des com o valor de milhares de ducados e houve outros cardeais que receberam cargos eclesiásticos ou benefícios e feudos. Ao próprio Julião delia Rovere foram concedidos o papel de legado do Papa em Avinhão, a grande fortaleza de Óstia e o porto adriático de Senigallia, um castelo e outros cargos, bem como o cano-nicato de Florença.

Esta prática de distribuição de benefícios e territórios não era nova. Era habitual os Papas doarem os seus bens a outros a seguir à eleição, pois de outra forma os seus castelos e outras propriedades seriam imediatamente pilhados pelos cidadãos de Roma. E quem seria mais lógico recompensar do que aque­les que tinham mostrado a sua lealdade deitando o seu voto por ele? Assim, o facto de delia Rovere receber tais benefícios era mais um testemunho da gene­rosidade de Alexandre, pois era consebido que ele dera o seu voto a si próprio.

A acusação de simonia, porém, era afrontosa. De facto, o cardeal delia Rovere provinha de uma família mais rica e tinha de longe mais ligações impor­tantes do que Rodrigo Bórgia. Se era possível o cargo de Papa ser comprado e a eleição podia ser assegurada por meio de presentes liberais, delia Rovere pode­ria facilmente ter gasto mais do que Alexandre e o resultado ter-se-ia alterado.

Nessa altura, com o rancor a sobrepor-se a toda a razão e sentido político, Julião delia Rovere, acompanhado por outros cardeais dissidentes, projectou rogar ao rei Carlos de França a convocação de um Conselho Geral.

Muitos anos antes, um Conselho Geral podia impor ou mesmo depor um Papa; constituído por cardeais, bispos e dirigentes laicos, esta assembleia fora outrora utilizada para contrabalançar o poder e limitar a supremacia do papado. Tinha-se tornado, porém, uma arma extinta desde que Pio II a deitara abaixo trinta anos atrás.

Mesmo assim, a visão do novo Papa a coroar o seu filho César cardeal afron­tou de tal forma delia Rovere, que ele e os seus aliados procuraram insuflar nova vida ao conceito de Conselho Geral como meio de destruir Alexandre.

Querendo distanciar-se, delia Rovere deixou Roma pouco após a coroação de César, retirando-se para a sua sede oficial em Óstia a fim de dar início ao seu ataque a Alexandre. Uma vez estabelecidas as suas alianças e postos os seus planos em ordem, deslocar-se-ia a França a fim de colocar-se sob a protecção do rei Carlos.

Após ter posto os destinos dos seus filhos em movimento, o Papa Alexandre VI sabia que tinha de começar a firmar a posição da filha no seu grandioso plano. Ponderou cuidadosamente o que deveria fazer. Lucrécia não era ainda uma mulher, pois tinha apenas treze anos, mas ele não podia esperar mais. Tinha de prometer dá-la em casamento a Giovanni Sforza, duque de Pesaro. Tinha-a já prometido a dois jovens espanhóis quando era cardeal. Porém, a sua posição polí­tica mudara desde que se tornara Papa e tinha de elaborar planos meticulosos a fim de garantir a aceitação de Milão. As suas anteriores promessas aos dois jovens de Espanha tinham de ser quebradas tão amigavelmente quanto possível.

Lucrécia era o activo mais valioso de que ele dispunha nas suas alianças matrimoniais. E o jovem Giovanni, de vinte e seis anos de idade, que acabava de enviuvar, tendo a mulher morrido de parto, era uma perspectiva natural. Tinha de agir prontamente, pois o tio de Giovanni, II Moro, era o homem mais poderoso de Milão. Tinha de fazer amizade com ele antes que ele alinhasse com qualquer dos reis estrangeiros de Espanha ou França.

Alexandre sabia que, se não fosse capaz de unir as muitas cidades-estados feudais numa só Itália governada pelas leis da Santa Sé, os bárbaros turcos — os Infiéis —as conquistariam indubitavelmente. Se lhes fosse dada oportunidade, eles avançariam em direcção aos territórios romanos. Perder-se-iam imensas almas e inúmeros rendimentos escapariam à única verdadeira igreja. Mas, o que era mais importante, se ele não fosse capaz de manter a lealdade do povo e proteger Roma da invasão de estrangeiros, se não conseguisse usar o papado para incrementar o poder da Santa Madre Igreja, outro cardeal - sem dúvida Julião delia Rovere - ocuparia o seu lugar como Papa e toda a sua família estaria em grave risco. Era certo e sabido que os acusariam de heresia e os tortu­rariam a fim de se verem livres deles. A fortuna em propriedades pela qual tra­balhara com tanto afinco, durante tantos anos, seria roubada e ficariam sem nada. Tratava-se de um destino muitíssimo pior do que aquele que a sua encan­tadora filha estava prestes a suportar.

Depois de passar uma noite em claro a andar de um lado para o outro nos seus aposentos, ajoelhando no seu altar a rogar a orientação divina e ponde­rando o seu plano por todos os lados, mandou chamar os filhos: César, João e Lucrécia. Godofredo era ainda muito novo e não era o mais esperto dos rapazes. Esta estratégia só o confundiria.

Quando estavam na companhia de estranhos, Lucrécia fazia uma reverên­cia ao pai, beijava-lhe o anel e ajoelhava diante dele para mostrar o seu respeito, mas, sempre que estavam sozinhos, corria para ele e lançava-lhe os braços à roda do pescoço, beijando-o amorosamente. Ah, aquela doce criança tocava—lhe realmente o coração.

Hoje, em lugar de retribuir-lhe o abraço, o Papa Alexandre afastou-a de si e estendeu os braços até ela ficar de pé, erecta, na sua frente.

  • Que foi, Papá? — perguntou ela, com uma expressão que revelava a sua surpresa. Ficava desolada sempre que pensava que o pai estava descontente com ela. Aos treze anos de idade, era alta para rapariga e uma verdadeira beldade, de tez tão alva como a porcelana e uns traços tão delicados que se diria terem sido pintados por Rafael. Com uns olhos claros que cintilavam de inteligên­cia, a rapariga flutuava graciosamente de cada vez que se movia. Lucrécia era a luz da vida do pai; quando ela estava presente, era muito mais difícil ao Papa pensar em escrituras e estratégia.

  • Papá - repetiu impacientemente Lucrécia -, que foi? Que fiz eu que te desagradasse?

  • Tens que casar em breve — limitou-se a ele a dizer.

  • Oh, Papá - tornou Lucrécia, caindo de joelhos -, não te posso deixar já. Assim não viverei.

Alexandre pôs-se de pé e levantou a filha do chão, apertando-a contra si e confortando a chorosa criança.

  • Pronto, pronto - sussurrou. - Tenho de fazer esta aliança, Lucrécia, mas isso não quer dizer que tenhas de partir já. Vamos, enxuga as lágrimas e deixa o Papá explicar.

Ela sentou-se aos seus pés num coxim de ouro e pôs-se à escuta do que ele dizia.

  • A família Sforza, de Milão, é muito poderosa e o sobrinho de II Moro, o jovem Giovanni, acaba de perder a mulher, que morreu de parto. Ele concor­dou com uma aliança matrimonial. Bem sabes que o Papá quer o melhor para todos nós. E já tens idade para compreender que, sem estas alianças com as grandes e poderosas famílias estabelecidas, o meu reinado como Papa não será duradouro. Nessa altura estaremos todos em perigo e isso é uma coisa que eu não posso permitir.

Lucrécia curvou a cabeça e mostrou com um aceno que compreendia. Pare­cia muito novinha.

Quando terminou, Alexandre pôs-se de pé e principiou a caminhar à roda do grande salão, perguntando a si mesmo como havia de apresentar a sua nova proposta com toda a delicadeza.

Por fim virou-se para a filha e perguntou:

  • Já sabes como é que se têm relações com um homem? Alguém to explicou?

  • Não, Papá — disse ela e, pela primeira vez, sorriu-lhe perversamente, como tinha visto fazer a muitas das cortesãs...

Alexandre abanou a cabeça de espanto perante aquela sua filha. Era toda emotiva, como a mãe, e apesar disso conseguia ser imensamente esperta e brin­calhona, mesmo com a sua pouca idade.

Fez um gesto aos filhos, César e João. Um e outro aproximaram-se e ajoe­lharam diante dele, curvando a cabeça em sinal de respeito.

  • Levantai-vos, meus filhos — disse ele. — Temos de falar. Temos decisões importantes a tomar, pois o futuro de todos nós vai depender daquilo de que vamos falar hoje.

César era ponderado e introspectivo, embora não tão bonacheirão e jovial como a irmã. Ferozmente competitivo desde a mais tenra infância, fazia ques­tão de vencer em tudo, servindo-se de quaisquer meios de que pudesse lançar mão. João, em contrapartida, era mais sensível à ofensa pessoal, embora bas­tante insensível quando tocava aos outros. Tinha um traço cruel e na maior parte das vezes mostrava uma expressão sardónica. Não possuía nada que se parecesse com a graciosidade fácil de Lucrécia nem nada do carisma do irmão mais velho. Mesmo assim, Alexandre era-lhe muito afeiçoado, pressentindo nele uma vulnerabilidade que César e Lucrécia não tinham.

  • Por que foi que nos chamaste aqui, Papá? — perguntou César, olhando pela janela. Sentia-se cheio de energia e estava um belo dia; apetecia-lhe estar lá fora, na cidade. - Hoje ao meio-dia vai haver na praça um bom carnaval a que devíamos ir...

Alexandre mudou-se para a sua cadeira favorita, ao canto do grande salão.

  • Sentai-vos, meus filhos, sentai-vos ao pé de mim - ordenou-lhes branda­mente.

Sentaram-se os três aos seus pés, em grandes almofadas de seda. Ele sorriu ao mesmo tempo que movia o braço por cima deles.

  • Esta é a maior família de toda a Cristandade - declarou. - Vamos elevar—nos com os grandes actos que praticamos em prol da Santa Igreja Católica Romana, salvaremos muitas almas e viveremos muito bem enquanto realiza­mos a obra de Deus. Mas, como qualquer de vocês sabe, isso implica sacrifí­cios. Tal como aprendemos com as vidas de muitos dos nossos santos... as grandes obras requerem grandes sacrifícios. - E fez o sinal da cruz.

Olhou para Lucrécia, que estava sentada no tapete aos seus pés, encostada ao ombro do seu irmão César. Ao lado dele, mas afastado dos dois, estava João, a arear uma nova adaga que lhe tinham dado.

  • César, João. Espero que vós ambos já tenhais tido relações com uma mulher, não?

João franziu o cenho.

  • Claro, Papá. Por que é que hás-de perguntar semelhante coisa?

  • Uma pessoa deve obter o máximo de informações possível antes de tomar uma decisão importante - respondeu ele. A seguir virou-se para o filho mais velho. - E tu, César? Alguma vez tiveste relações com uma mulher? - perguntou.

  • Com muitas - respondeu César com simplicidade.

  • E elas ficaram satisfeitas? - perguntou a ambos os filhos. João carregou impacientemente o sobrolho.

  • Como hei-de eu saber? - perguntou, rindo. - Seria eu obrigado a per­guntar?

O Papa baixou a cabeça e falou.

  • César, as mulheres com quem tiveste relações ficaram satisfeitas? César, com um leve sorriso e um semblante franco, respondeu:

  • Suponho que sim, Pai - disse. - Porque todas elas pediram por tudo para me voltar a ver.

O Papa Alexandre olhou para a filha, que os observava com um misto de curiosidade e expectativa. A seguir desviou o olhar de novo para os filhos.

  • Qual de vós se disporá a ter relações com a vossa irmã? Nessa altura João pareceu enfadado.

  • Preferia ir para um convento, Papá - disse. Alexandre sorriu, mas disse:

  • Es um jovem tonto.

Lucrécia, porém, franzia agora a testa.

  • Por que é que fazes a pergunta aos meus irmãos sem ma fazeres a mim primeiro? — perguntou. — Se algum deles há-de ter relações comigo, não deve a escolha ser minha? — inquiriu.

César deu-lhe umas palmadinhas na mão para a tranquilizar e interveio:

  • Qual é a razão de ser disto, Papá? Por que é que fazes semelhante pedido? E não te preocupa que vejamos as nossas almas condenadas ao inferno por semelhante acto?

O Papa Alexandre levantou-se e caminhou pelos seus aposentos até ao arco do umbral da porta que ligava as grandes salas entre si, após o que perguntou:

  • Nos vossos estudos não aprendestes nada acerca das grandes dinastias egípcias, nas quais os irmãos se casavam entre si a fim de manterem a linha­gem pura? Não sabeis da jovem ísis, que desposou o irmão, o rei Osíris, o filho mais velho do Céu e da Terra? ísis e Osíris tiveram um filho chamado Hórus e constituíram a grande Trindade, a que precedeu a Trindade Cristã do Pai, Filho e Espírito Santo. Ajudaram os homens a escapar às ciladas do demónio e asseguraram que as boas almas ressuscitassem para a eternidade. A única dife­rença entre eles e a Santíssima Trindade é que um deles era uma mulher. — Nesta altura sorriu para Lucrécia. — O Egipto foi uma das civilizações mais avançadas da história e bem podemos seguir-lhe o exemplo.

  • Não pode ser essa a única razão, Pai - observou César. — Eles eram pagãos e tinham deuses pagãos. Há qualquer coisa em que reflectiste que não nos disseste.

Alexandre caminhou até junto de Lucrécia, afagou os longos cabelos lou­ros da filha e sentiu um rebate de consciência. Não podia contar a nenhum deles a sua verdadeira reflexão: que compreendia o coração das mulheres. Sabia que o homem a que ela se entregasse primeiro seria o homem que lhe con­quistaria o amor e a lealdade. De facto, uma vez que se entregasse a um homem, oferecer-lhe-ia igualmente as chaves do seu coração e da sua alma. Tinha, porém, de encontrar maneira de assegurar que ela não oferecesse tam­bém as chaves do reino. E, por conseguinte, como Alexandre nunca permiti­ria que um estranho reclamasse o seu melhor território, tinha chegado a hora de ele próprio afirmar os seus direitos.

  • Somos uma família — disse aos filhos. — E a lealdade da família deve ter prioridade sobre tudo e todos. Temos de aprender uns com os outros, prote­ger-nos uns aos outros e estar unidos antes de mais nada uns aos outros. Por­que, se honrarmos esse compromisso, nunca seremos vencidos... mas, se fra­quejarmos nessa lealdade, estaremos todos condenados. — Nessa altura o Papa voltou-se para Lucrécia. — E tu tens razão, minha filha. Porque neste caso a escolha é tua. Não podes escolher quem vais desposar, mas podes escolher agora quem será o primeiro a ter relações contigo.

Lucrécia olhou para João e empinou a cabeça recatadamente.

  • Antes queria ir para um convento do que ter relações com o João. - A seguir virou-se para César. — Tens de me prometer que serás meigo, porque é no amor, e não na guerra, que estamos envolvidos, querido irmão.

César sorriu e fez uma vénia zombeteira.

  • Tens a minha palavra. E tu, minha irmã, podes ensinar-me mais acerca do amor e da lealdade do que eu aprendi até agora, e isso também me será útil.

  • Papá? — perguntou ela, voltando-se para o pai, com os olhos muito aber­tos. - Estarás lá para garantir que tudo corre bem? Sem ti não serei suficiente­mente corajosa. Porque já ouvi histórias, tanto à Júlia como às minhas aias.

Alexandre olhou para ela.

  • Estarei lá - disse. - Como estarei na noite em que oficialmente te casa­res. Porque não há contrato válido sem testemunhas...

  • Obrigada, Papá - disse ela. Dando um salto para o abraçar, perguntou: - Dás-me um vestido novo e um anel de rubi como prenda desta solenidade?

  • Com certeza - respondeu ele. - Até te dou dois...

Na semana seguinte, Alexandre estava sentado no trono envolvido nas res­plandecentes vestes de cetim branco, liberto do peso da tiara. Tinha na cabeça apenas um pequeno barrete de cetim. O estrado bastante elevado sobre o chão, do lado oposto à cama, estava encostado a um pano de fundo de requin­tada beleza num dos quartos mais elaboradamente decorados dos recém—remodelados aposentos dos Bórgia. Mandou chamar César e Lucrécia, mas

os criados foram instruídos no sentido de se retirarem até que Alexandre lhes fizesse sinal.

O Papa observou os filhos enquanto se despiam. Lucrécia soltou uma risa-dinha quando o irmão, César, se libertou finalmente da indumentária.

Ele ergueu os olhos para ela e sorriu. Alexandre pensou como era estranho e de algum modo tocante que a única ocasião em que observava verdadeira ter­nura no rosto do filho fosse quando estava com a irmã. Se bem que em todos os outros casos ele fosse o agressor, com ela — mesmo aqui — parecia subme­tido ao seu poder.

Lucrécia era um tesouro, e não apenas pela sua beleza, embora não houvesse seda mais delicada do que os caracóis que lhe emolduravam o rosto. Os seus olhos brilhavam tão intensamente, que pareciam sempre albergar um segredo. Nessa altura o Papa perguntou a si mesmo o que seria que tanto os fazia bri­lhar. Ela tinha proporções perfeitas, embora ainda fosse muito ligeiramente magra, com uns seios em botão e uma pele macia e imaculada: um contenta­mento para os olhos, um perfeito sonho para qualquer homem que a possuísse.

E seu filho César? Nenhum deus antigo do Olimpo possuía uma estatura mais perfeita. Alto e vigoroso, era a imagem da força na masculinidade jovem. Ah, tivesse ele as outras virtudes, para servi-lo mais eficientemente do que a ambição que o movia... Mas naquele momento o rosto de César adoçou-se ao contemplar a irmã de pé à sua frente.

  • Sou mesmo bonita? — perguntou Crezia ao irmão. E como ele acenasse que sim, voltou a cabeça para o pai. - Sou, Papá? Achas-me tão bela como qualquer jovem que alguma vez viste?

O Papa assentiu e sorriu levemente.

  • És bonita, minha filha. Verdadeiramente uma das mais belas criações de Deus.

Levantou devagar a mão direita, traçando o sinal da cruz no ar, e ministrou uma bênção. Depois ordenou-lhes que começassem.

O coração de Alexandre estava repleto de júbilo e gratidão por aqueles filhos que tão profundamente amava. Imaginou que Deus Pai devia ter sentido aproximadamente o mesmo ao contemplar Adão e Eva no jardim. Mas passa­dos uns momentos apenas de divertimento, ficou intrigado com aquela ideia.

Seria aquilo a hubris de que tantos heróis pagãos padeciam, interrogou-se, e voltou a persignar-se rapidamente, implorando perdão. Mas pareciam tão ino­centes, os seus filhos, tão isentos de culpa, com os rostos jovens iluminados de curiosidade e prazer, que nunca mais voltariam a visitar um paraíso assim. E não era esse o fim do homem e da mulher? Sentir a alegria de Deus? Não tinha a religião provocado sofrimento que chegasse? Era essa a única maneira de honrar o Criador? O mundo dos homens estava demasiado cheio de traição; só aqui, no palácio do pai, na Santa Sé de Cristo, os seus filhos se sentiriam alguma vez tão seguros e protegidos. Era seu dever velar por isso. Estes tempos de grande prazer haviam de ajudá-los a ultrapassar as provações e canseiras com que haveriam de se deparar.

O grande leito de penas estava coberto de lençóis de seda e roupa delicada e, por conseguinte, quando Lucrécia se deitou nele guinchou de satisfação. Com a masculinidade já excitada, César saltou prontamente sobre a irmã, assustando-a.                                                     -

  • Papá? — gritou ela. — Papá, o César está-me a magoar...                  o O papa Alexandre pôs-se de pé.

  • César, foi assim que aprendeste a ter relações com uma mulher? Que pena! Falhei certamente contigo, pois quem, se não eu, devia ter-te mostrado como trazer o céu à terra?

César levantou-se e postou-se ao lado da cama, de olhos coruscantes. Sen­tia-se rejeitado pela irmã e censurado pelo pai, mas apesar disso era um jovem e por isso o seu ardor não arrefeceu.

Alexandre abeirou-se do leito, ao mesmo tempo que César se afastava para o lado.

  • Vem cá, meu filho — disse ao rapaz. — Vem cá. Crezia, aproxima-te mais da borda da cama. — Fez-lhe um gesto e ela deslocou-se cautelosamente na direcção deles. A seguir, com a mão poisada na do filho, começou a afagar o corpo da filha, lenta e ternamente. Primeiro acariciou-lhe o rosto, depois desceu pelo pescoço e percorreu-lhe os seios pequenos e firmes, ao mesmo tempo que instruía César: - Não tenhas tanta pressa, meu filho. Demora-te a apreciar a beleza. Não há nada tão requintado no mundo como o corpo de uma mulher, o cheiro de uma mulher ao entregar-se... de bom grado. Porém, se avançares

demasiado depressa, perdes a verdadeira essência do acto do amor, e assustas as pobrezinhas...

Lucrécia estava agora tranquilamente deitada, de olhos semicerrados, a res­piração a acelerar-se, enquanto sentia o prazer dos afagos da mão do irmão no corpo. Quando ele atingiu a barriga e começou a descer, ela abriu os olhos e tentou gritar, mas a voz foi sufocada pelo tremor do corpo à medida que onda após onda de prazer a agitava até ao fundo da alma.

  • Papá? — sussurrou. - Papá? Não é pecado sentir tanto prazer? Não vou para o Inferno, pois não?

  • Achas que o Papá punha a tua alma mortal em perigo? — perguntou ele. O Papa Alexandre, ainda a guiar a mão de César, estava suficientemente

próximo de Lucrécia para sentir o cheiro do seu hálito morno no rosto, e a intensidade da sua própria reacção a ela amedrontou-o. De súbito deixou tom­bar a mão de César e disse numa voz rouca ao filho:

  • Agora possui-a, mas possui-a devagar. Sê um amante, sê um homem, honra-a... mas possui-a.

Abalado, virou rapidamente costas e atravessou o quarto para voltar a sentar-se no trono. Contudo, quando ouviu a filha gemer, quando ela gemeu de novo e outra vez ainda de prazer, sentiu repentinamente medo de si mesmo. O coração batia-lhe com força e depressa de mais; começou a sentir-se tonto. Nunca tinha experimentado uma emoção tão intensa, uma tal excitação ao presenciar um acto carnal, e num breve instante percebeu. Compreendeu totalmente. Embora César pudesse resistir, pudesse ser salvo apesar disto, ele próprio — o Vigário de Cristo na Terra — acabava de ver a serpente no jardim do Paraíso. E tinha sido tentado. A cabeça latejava-lhe perante a ideia de que, se alguma vez voltasse a tocar aquela criança, estaria amaldiçoado para todo o sempre. Porque o prazer que sentia não era de ordem terrena, e não restavam dúvidas de que significaria para ele a perda da graça.

Nesse dia rezou ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, para que nunca mais o deixassem cair em tentação. «Livrai-me do mal», sussurrou fervorosamente e, quando voltou a erguer a vista, os seus dois filhos estavam deitados na cama, nus e esgotados.

  • Filhos - disse, com uma voz destituída de toda a força. - Vesti a roupa e

vinde ter comigo...

E quando eles tornaram a ajoelhar diante dele, Lucrécia ergueu os olhos para o pai com lágrimas nos olhos.

  • Obrigada, Pai. Não consigo imaginar entregar-me a outro homem da mesma maneira sem primeiro conhecer isto. Assustei-me imenso e contudo senti imenso prazer. - A seguir virou-se para o irmão. - Meu irmão, agradeço—te também. Não sou capaz de imaginar-me a amar alguém como te amo neste momento.

César sorriu, mas nada disse.

E quando o Papa Alexandre baixou os olhos para os filhos, viu uma expres­são no olhar de César que o perturbou. Não tinha pensado em alertar o filho para a única armadilha do amor: o amor verdadeiro concede plenos poderes à mulher e põe o homem em perigo. E agora via que, embora este dia pudesse ter sido uma bênção para a filha e fortalecesse a dinastia dos Bórgia, poderia a seu tempo revelar-se uma maldição para o filho.

 

No dia em que estava previsto o futuro marido de Lucrécia, Giovanni Sforza, duque de Pesaro, chegar à cidade de Roma, o Papa Alexandre organi­zou um grande cortejo comemorativo. Isto porque sabia que o tio de Giovanni, // Moro, consideraria esse gesto um sinal de respeito, testemunho da sinceri­dade de Alexandre na sua aliança com Milão.

Mas Alexandre tinha também outras considerações em mente. Como Santo Padre compreendia os corações e as almas do seu povo e sabia que este gostava de pompa. Ela reafirmava-lhes a sua benevolência, assim como a bene­volência do seu Pai Celeste, e ajudava a aliviar o torpor das suas vidas monó­tonas e estúpidas. Qualquer motivo de celebração trazia uma nova esperança à cidade e frequentemente impedia os mais desesperados entre os cidadãos de se assassinarem uns aos outros por questões de lana-caprina.

A vida dos cidadãos menos afortunados era tão destituída de prazer que ele se sentia responsável por proporcionar-lhes alguma pequena felicidade a fim de alimentar-lhes a alma. De facto, que outra coisa podia assegurar o seu apoio ao papado? Se as sementes da inveja fossem repetidamente lançadas no cora­ção dos homens que eram obrigados a contemplar os prazeres dos menos mere­cedores mas mais afortunados, como podia um governante pedir-lhes lealdade? O prazer tinha de ser compartilhado, pois só desse modo era possível manter o desespero dos pobres sob controlo.

Foi nesse dia cálido e balsâmico, um dia carregado do cheiro a rosas, que César, João e Godofredo Bórgia se dirigiram a cavalo até às altas portas de

pedra de Roma a fim de receberem o duque de Pesaro. A acompanhá-los estava todo o senado romano e os embaixadores regiamente adornados de Flo­rença, Nápoles, Veneza e Milão, assim como os representantes de França e Espanha.

O cortejo seguiria esta comitiva no seu regresso, passando pelo palácio do tio, Ascânio Sforza, o vice-chanceler, onde o jovem duque permaneceria até à noite do casamento. Continuaria depois pelas ruas até chegar ao Vaticano. Ale­xandre tinha dado instruções aos filhos para passarem pelo palácio de Lucré-cia, a fim de lhe permitir ver o futuro marido. Embora o pai tivesse tentando dissipar-lhe os receios garantindo-lhe que após o casamento ela podia ficar no seu próprio palácio, em Santa Maria in Pórtico, com Júlia e Adriana, e não teria de ir para Pesaro durante um ano, Lucrécia parecia perturbada. E Ale­xandre nunca se sentia em paz quando a filha estava descontente.

Os preparativos para o cortejo tinham levado muitas semanas, mas agora tudo estava no seu lugar. Havia bobos de fatos de veludo verde e amarelo vivo, malabaristas que faziam rodopiar paus de cores alegres e atiravam berrantes bolas de pasta de papel ao ar, enquanto brigadas de flautas e trombetas, com um ritmo inebriante, faziam soar as suas notas musicais para animar as multi­dões de cidadãos romanos que se tinham reunido ao longo do trajecto a fim de verem o duque de Pesaro que ia desposar a jovem filha do Papa...

De manhã cedo, porém, César tinha acordado de mau humor, com uma dor que lhe fazia latejar terrivelmente a cabeça. Tentou escusar-se a ir receber o futuro cunhado, pois achava isso uma obrigação desagradável, mas o pai nem queria ouvir semelhante coisa.

  • Como representante do Santo Padre, não serás dispensado da tua obri­gação a não ser que estejas no leito de morte atacado pela peste ou pela malá­ria - dissera severamente o pai, após o que saíra de rompante.

César teria argumentado, não fosse a irmã entrar no quarto para lhe dirigir uma súplica. Tinha vindo a correr pelo túnel do seu próprio palácio mal ouvira dizer que ele estava doente. Nessa altura sentou-se na cama dele, esfregando—lhe suavemente a cabeça, e perguntou:

  • Quem, senão tu, Chez, me dirá a verdade acerca desse homem com o qual vou casar? Em quem mais posso eu confiar?

  • Que diferença há-de isso fazer, Crezia? — perguntou ele. -i Estás já prometida, e quanto a isso não posso fazer nada.

Lucrécia sorriu ao irmão e correu os dedos pelo seu cabelo. Curvou-se para lhe beijar ternamente os lábios e sorriu.

  • Isto é tão difícil para ti como para mim? - inquiriu. - Porque eu não suporto a ideia de outro homem na minha cama. Hei-de chorar e tapar os olhos e, embora não possa impedi-lo de cumprir o contrato, recusar-me-ei a beijá-lo. Juro que o farei, meu irmão.

César inspirou profundamente e resolveu fazer o que a irmã pretendia.

  • Espero que ele não seja um animal, para bem de nós ambos - disse ele. - Caso contrário terei de o matar antes sequer de ele te tocar.

Lucrécia soltou uma risadinha.

  • Eu e tu vamos desencadear uma guerra santa - disse, satisfeita com a reac­ção de César. - O Papá vai ter ainda mais que fazer do que já tem. Depois de matares o Giovanni, vai ter de pacificar Milão; a seguir Nápoles há-de vir implorar uma aliança. II Moro pode capturar-te e levar-te para a masmorra de Milão para te torturar. Enquanto o Papá se serve do exército do Papa para ten­tar resgatar-te, Veneza há-de ter decerto alguma coisa na manga para conquis­tar os nossos territórios. E Florença mandará os seus melhores artistas pintar retratos pouco lisonjeiros nossos, e os seus profetas lançar sobre nós a maldi­ção eterna!

Riu-se com tanta vontade que caiu de costas na cama.

César adorava ouvir a irmã rir. Fazia-o esquecer que todos os outros exis­tiam e aplacava até a sua raiva para com o pai. Nessa altura o latejar da cabeça pareceu abrandar. E, sendo assim, aceitou ir...

Mal Lucrécia ouviu a música do cortejo que se aproximava, subiu as esca­das a correr até ao segundo andar, dirigindo-se ao salão grande do castelo, a partir do qual se estendia a loggia, ou varanda, como a mão de um grande gigante, de dedos crispados. Júlia Farnese, que era amante do Papa havia mais e dois anos, ajudou Lucrécia a escolher um vestido de cetim verde-escuro com

mangas de cor creme e peitilho cravejado de jóias. Depois penteou Lucrécia, puxando-lhe os caracóis louros para o cimo da cabeça e deixando umas quan­tas madeixas cair na testa e no pescoço a fim de realçar o seu aspecto refinado. Júlia tinha tentado durante meses instruir Lucrécia sobre o que esperar na noite de núpcias, mas Lucrécia não lhe prestava grande atenção. Enquanto Júlia explicava com abundância de pormenores a maneira de satisfazer um homem, o coração e a mente de Lucrécia iam direitinhos para César. Embora nunca tivesse dito uma palavra a ninguém, o seu amor por ele povoava todos os dias muitos dos seus pensamentos.

Agora, ao caminhar para a varanda, Lucrécia Bórgia surpreendeu-se ao ver as multidões que a aguardavam. O pai tinha fornecido guardas para a prote­gerem, mas eles não a podiam salvar das pétalas de flores que a cobriram e ata-petaram a enorme varanda. Sorriu e acenou aos cidadãos.

Ao ver aproximar-se o cortejo, Lucrécia riu-se do bobo que passou diante dela e bateu alegremente palmas quando os trombeteiros e flautistas tocaram as suas melodias mais alegres. Depois, cá de trás, viu-os.

Primeiro o seu irmão César, elegante e nobre a cavalo na sua montada branca, de costas direitas e expressão sisuda. Levantou a cabeça a fim de olhar para ela e sorriu. Seguia-se João, que não reparou nela, curvando-se do cavalo para recolher as flores de mulheres da rua que chamavam por ele. O irmão mais novo, Godofredo, acenou-lhe com um sorriso apagado mas feliz.

Atrás deles, viu-o: Giovanni Sforza. Tinha uma longa cabeleira negra e uma barba bem aparada, nariz delicado e uma estatura mais baixa e encorpada do que qualquer dos seus irmãos. Sentiu-se constrangida e acanhada quando o viu pela primeira vez, mas, quando ele ergueu a vista para a varanda, refreou o cavalo e a cumprimentou, ela retribuiu-lhe com uma vénia como lhe tinham ensinado.

Daí a três dias casaria e, enquanto o cortejo passava por ela a caminho de casa do pai, mal podia esperar para ouvir o que Adriana e Júlia tinham a dizer acerca do seu noivo. Embora Adriana houvesse de consolá-la e dizer-lhe que tudo correria bem, ela sabia que Júlia lhe diria a verdade.

De regresso ao interior do palácio, Lucrécia perguntou-lhes:

  • O que é que acharam? Acham-no um animal?

Júlia riu-se.

  • Acho que ele é bastante bem parecido, embora um bocado grande... Tal­vez grande de mais para ti — implicou, e Lucrécia sabia exactamente onde ela queria chegar.

Nessa altura Júlia abraçou-a.

  • Há-de servir muito bem. É só pelo Santo Padre, e pelo Pai Celeste, que tens de casar. Tem pouco que ver com o resto da tua vida.

Quando estabelecera a sua residência oficial no palácio papal, Alexandre ocupara uma série de quartos nus construídos e abandonados havia muito e fizera deles os fabulosos aposentos dos Bórgia. As paredes da sua sala de recep­ção privada, a Sala dei Misteri, estavam cobertas de grandes murais do seu artista preferido, Pinturicchio.

Num desses murais, estava representado o próprio Alexandre incluído na Ascensão, como um dos raros escolhidos que viram a subida de Cristo ao céu. Envergando a sua grande capa cravejada de jóias, poisou a tiara dourada no chão junto de si. Está de pé, com os olhos volvidos aos céus, ao ser abençoado pelo Salvador que ascende.

Noutros murais, exibiam-se semelhanças outros Bórgia nos rostos de san­tos, mártires e outras figuras religiosas mortas havia muito: Lucrécia, impres­sionantemente bela como uma Santa Catarina esbelta e loira; César, como um imperador num trono doirado; João, como um potentado oriental; e Godo­fredo, como um inocente querubim. E em todos os murais deambulava o toiro vermelho a investir que era o símbolo da família Bórgia.

Na porta do segundo aposento dos Bórgia, Pinturicchio tinha pintado um retrato da Madonna, a Virgem Maria, em toda a sua serena beleza. A Madonna era a preferida de Alexandre entre as figuras sagradas, de forma que o artista tinha utilizado Júlia Farnese como modelo, satisfazendo duas paixões de Ale­xandre com uma só pintura.

Havia também o Salão da Fé, um quadrado de mil metros. Esta sala era abobadada, com frescos a preencher as lunetas e medalhões do tecto. Havia um fresco para cada apóstolo, todos eles a lerem um pergaminho aos ávidos pro-

fetas que iriam espalhar a palavra da divindade de Cristo. Os rostos dos pro­fetas eram os de Alexandre, César, João e Godofredo.

Todas estas salas estavam sumptuosamente decoradas com requintadas tapeçarias e guarnições de ouro. No Salão da Fé estava o trono papal, onde Ale­xandre se sentava para receber pessoas importantes. Encostados ao trono havia escabelos ornamentados onde os nobres ajoelhavam para lhe beijar o anel e os pés, bem como divãs nos quais aqueles que tinham poder se podiam sentar em audiências mais demoradas enquanto elaboravam planos para futuras cruzadas ou discutiam quem deveria governar as cidades de Itália e como.

Naquela ocasião o duque de Pesaro, Giovanni Sforza, foi conduzido aos aposentos do Papa. Ajoelhou para beijar o santo pé e seguidamente o anel sagrado do Papa. Ficara imensamente impressionado com a beleza do Vaticano e com as riquezas que em breve possuiria. De facto, juntamente com a sua jovem noiva viera um dote de trinta mil ducados, o suficiente para ele embe­lezar grande parte da sua casa em Pesaro e lhe proporcionar outros luxos.

Quando o Papa Alexandre lhe deu as boas vindas e à família, Giovanni pen­sou nos irmãos da sua nova mulher. Dos dois mais velhos, sentia-se muito mais atraído por João do que por César; Godofredo era demasiado jovem para ser objecto de consideração. César não parecia nada acolhedor, mas João tinha prometido ao duque boas diversões na cidade antes do casamento e por con­seguinte ele acabara por se persuadir de que aquilo podia não ser tão mau como imaginara. Fossem quais fossem as circunstâncias, evidentemente, nunca poderia ter discutido com o tio,  Moro, caso contrário Milão voltaria a apo­derar-se de Pesaro e ele perderia o seu ducado tão prontamente como o con­quistara.

Nessa tarde, depois de todos terem chegado ao Vaticano para o início das festividades, César desapareceu rapidamente. Abandonou o palácio a cavalo e saiu a galope de Roma para o campo. Quase não passara tempo nenhum com Sforza, e no entanto já detestava o filho da mãe. Era um rústico, um fanfarrão e um pateta. Mais bronco que Godofredo, se é que isso era possível, e mais arrogante que João. Que faria a irmã com um marido assim? E que podia ele dizer-lhe quando voltasse a vê-la?

Com a mesma intensidade com que César antipatizava com aquele que bre­vemente seria seu cunhado, João sentia-se atraído por ele. João tinha amigos bem posicionados; o seu único companheiro constante era o príncipe turco Djem, que era mantido como refém pelo Papa a pedido do irmão de Djem, o sultão reinante.

O sultão Bajazeto tinha feito uma combinação com o Papa Inocêncio quando receara que as Cruzadas cristãs planeassem destroná-lo a pretexto de repor no trono o seu irmão, Djem. A troco de manter Djem refém no Vati­cano, o Papa recebia quarenta mil ducados por ano. Quando Inocêncio mor­rera, o Papa Alexandre mantivera a promessa, tratando-o como um hóspede honrado do palácio. De facto, que melhor maneira de encher os cofres da Santa Igreja Católica Romana do que aceitar dinheiro dos infiéis turcos?

Djem, de trinta anos de idade, tez escura e ar carrancudo para os cidadãos romanos, com o seu turbante e negro bigode arrebitado, insistia em vestir a sua indumentária oriental no Vaticano, e não tardou que João, quando não se tra­tava de actos oficiais, principiasse a vestir-se como ele. Embora Djem tivesse quase o dobro da idade de João, começaram a ir juntos a todo o lado e o prín­cipe exercia considerável influência sobre o mimado e protegido filho do Papa. Alexandre tolerava aquela amizade não apenas pelo rendimento que Djem pro­porcionava ao Vaticano, mas também porque a companhia do príncipe pare­cia trazer um sorriso ao rosto habitualmente carrancudo de João. Mas César achava insuportável estar na companhia de ambos.

Na noite anterior ao casamento, João convidou Giovanni Sforza a acom­panhá-los a ele e Djem até à cidade de Roma para visitarem as estalagens locais e irem para a cama com algumas prostitutas devassas. Giovanni anuiu ime­diatamente. Djem e o duque de Pesaro pareceram entender-se bem, trocando histórias e conversando jovialmente enquanto comiam e bebiam copiosamente. Os cidadãos de Roma mantinham-se o mais longe possível e não convidavamotrio a entrar nos seus estabelecimentos ou lares.

Com as prostitutas o caso era bem diverso. João era-lhes familiar e muitas raziam pequenas apostas sobre quem seria capaz de ter mais vezes relações com

ele. Corriam boatos de que ele era amante de Djem, mas as cortesãs que ganha­vam o pão de cada dia tendo relações com homens de posição elevada não se importavam, pois quando ele as visitava para seu prazer, pagava-lhes genero­samente.

Uma das raparigas que João mais frequentava tinha os seus quinze anos, uma longa cabeleira negra e pestanas encaracoladas. Chamava-se Avalona. Filha de uma das estalajadeiras, gostava verdadeiramente de João. Na noite em que os três jovens do Vaticano foram à cidade, porém, João ofereceu Avalona primeiro ao cunhado e depois a Djem. Ambos foram para a cama com ela, no andar de cima, enquanto João assistia, embriagado de mais, porém, para pen­sar no que ela sentiria. Quando se dirigiu a ela esperando o costumado calor e afecto, ela, ao invés, virou-lhe costas e recusou-se a beijá-lo. João, com a sua habitual sensibilidade irritadiça, ficou irado ao pensar que ela gostava mais do cunhado do que dele. Esbofeteou-a por este insulto e ela recusou-se a falar com ele. João amuou durante todo o trajecto de regresso ao palácio. Mas tanto Gio­vanni Sforza como o príncipe Djem passaram uma bela noite e mal deram pelo facto de João estar ofendido.

O dia do casamento não tardou a chegar. Lucrécia estava sumptuosa, com um vestido de veludo vermelho debruado de peles e o cabelo loiro quase branco-oiro entrançado e ornamentado com rubis e diamantes. Júlia Farnese envergava um vestido simples de cetim cor-de-rosa, que lhe iluminava a beleza pálida. Quanto a Adriana, tinha escolhido um vestido de veludo azul-escuro, sem enfeites, de forma a não competir com o peitilho cravejado de rubis do vestido de Lucrécia. Só o noivo, Giovanni Sforza, que trazia um grosso colar de ouro emprestado, o irmão João e o seu amigo Djem envergavam roupa mais opulentamente elegante do que a dela. Traziam os três turbantes de cetim creme e estolas de brocado de ouro, suficientemente ornados para ofuscarem, não apenas o vestuário da noiva, como também as vestes eclesiásticas do Papa.

Alexandre tinha escolhido o irmão João para a acompanhar ao longo da nave e ela sabia que César estava zangado. No entanto, Lucrécia achava que era melhor assim, pois sabia que César nunca poderia entregá-la com afabilidade. Neste momento perguntava a si mesma se ele assistiria sequer, conquanto as ordens do pai lhe deixassem poucas alternativas. Se houvesse discussão, ela sabia que César sairia a galope para o campo. Rezava, porém, para que desta feita isso não acontecesse, pois era César quem mais queria que lá estivesse; era a ele que amava mais que tudo.

O casamento realizou-se no Grande Salão do Vaticano, perante as objecções dos chefes tradicionais da igreja e dos outros príncipes da igreja, que eram de opinião que os salões sagrados deviam ser ocupados apenas com assuntos ofi­ciais da igreja. Porém o Papa queria Lucrécia casada no Vaticano, e assim foi.

Num estrado disposto mesmo na parte dianteira da sala estava o trono do Papa, com seis assentos de veludo cor de vinho a cada um dos lados para os doze recém-eleitos cardeais do Papa. Na capela privativa do Papa, que era muito mais pequena e esparsa do que a Capela Principal de S. Pedro, tinha dado instruções para serem colocadas fileiras e mais fileiras de altos archotes dourados e prateados, a fim de arderem diante das estátuas de enormes santos de mármore que adornavam os flancos do altar.

O bispo que presidia, envergando amplas vestes cerimoniais, com a mitra prateada a coroar-lhe a cabeça, entoava as orações em voz alta em latim e der­ramava bênçãos sagradas sobre os noivos.

O incenso que ardia durante a bênção parecia particularmente pungente. Tinha vindo do Oriente apenas uns dias antes, como presente do irmão do príncipe Djem, o sultão turco Bajazeto II. O espesso fumo branco ardia na gar­ganta de Lucrécia, obrigando-a a abafar a tosse com o seu lenço de renda. A visão de Jesus crucificado na enorme cruz de madeira parecia a Lucrécia tão agoirenta como a grande espada de fidelidade que o bispo mantinha erguida sobre a sua cabeça enquanto o jovem casal trocava os seus votos.

Por fim, captou um vislumbre do irmão César na outra entrada da capela. tinha ficado perturbada pelo facto de o seu lugar no altar, ao lado dos outros cardeais, se manter conspicuamente vago.

Lucrécia tinha passado a noite anterior de joelhos, a rezar à Virgem, pedindo perdão, depois de se ter esgueirado pelo túnel até ao quarto de César para ele uma vez mais lhe chamar sua. Perguntava a si mesma por que sentiria

tanta alegria com ele e tanto temor ao pensar em qualquer outro. Nem sequer conhecia aquele homem que ia ser seu marido. Vira-o uma só vez, da varanda, e, quando tinham estado na mesma sala no dia anterior, ele não lhe dirigira uma palavra nem denunciara de modo algum aperceber-se da sua existência.

Agora, ajoelhados os dois nos pequenos escabelos dourados diante do altar, ao ouvir as primeiras palavras do noivo — «Aceito esta mulher por minha esposa» —, achou que a voz dele tinha um som desengraçado e desagradável.

Como num transe, Lucrécia aceitou honrá-lo como seu marido. O seu olhar e o seu coração, porém, estavam postos em César, que envergava uma solene indumentária sacerdotal e agora se encontrava ao lado de seu irmão João. Não olhou uma só vez para ela.

A seguir, num dos grandes salões do Vaticano — a Sala Reale— Lucrécia Bór-gia sentou-se esplendorosamente à mesa especial colocada sobre um estrado. Ao seu lado estavam o noivo, Giovanni, a sua governanta, Adriana, e Júlia Far-nese, que ela escolhera para dama de honor. A neta do falecido Papa Inocên-cio, Battestina, partilhava também a mesa, como outras aias, mas os seus três irmãos tinham ficado numa mesa do lado oposto da sala. Muitos dos convi­dados estavam sentados nas centenas de almofadas dispostas no chão. À volta da periferia da sala havia diversas mesas grandes cheias de comida e doçarias e, depois de os convidados terem comido, a parte central do salão foi desimpe­dida para poderem ver actuar os artistas de teatro. Mais tarde, haveria bailari­nos e cantores para os divertir.

Lucrécia olhou várias vezes para o noivo, mas este ignorou-a e passou a maior parte do tempo a atafulhar-se de comida e a enfrascar-se em vinho. Repugnada, ela desviou o olhar.

Naquele dia, que deveria ser uma grande solenidade, Lucrécia, por uma das poucas vezes na vida, sentiu saudades da mãe. Efectivamente, agora que Júlia era amante do pai, não havia lugar no palácio para Vanozza.

Ao voltar a olhar de relance para o seu novo marido, perguntou a si pró­pria se alguma vez se habituaria à sua expressão carrancuda. A ideia de deixar a sua casa em Roma para ir viver com ele em Pesaro enchia-a de desespero, e sentiu-se grata pela promessa do pai de que não teria de partir a não ser daí a um ano.

Cercada pela jovialidade e risos dos hóspedes, Lucrécia sentia-se incrivel­mente só. Não tinha fome, mas bebeu uns goles do requintado vinho tinto que lhe tinha sido posto na taça de prata, não tardando a sentir-se tonta. Princi­piou a tagarelar com as aias e por fim começou a divertir-se. Porque, no fim de contas, era uma festa, e ela tinha treze anos de idade.

Mais tarde, o Papa Alexandre anunciou que nessa noite haveria um jantar nos seus aposentos privativos, onde se podiam entregar os presentes para o noivo e para a noiva. Antes de abandonar o salão do Vaticano e dirigir-se às suas instalações, deu instruções aos criados para deitarem as doçarias restantes pela varanda às multidões de cidadãos da piazza, a fim de que estes pudessem participar nas festividades.

Passava já bastante da meia-noite quando Lucrécia teve a possibilidade de falar com o pai. Estava ele sentado à secretária, pois muitos dos convidados tinham já saído e só os irmãos dela e uns quantos cardeais tinham sido deixa­dos à espera na antecâmara.

Lucrécia aproximou-se hesitante do Papa, pois não queria ofendê-lo, mas o assunto era demasiado importante para esperar. Ajoelhou-se diante dele e inclinou a cabeça aguardando autorização para falar.

O Papa Alexandre sorriu e encorajou-a.

  • Vamos, minha filha. Diz ao Papá o que te vai no espírito.

Lucrécia ergueu a vista, com os olhos brilhantes mas o rosto pálido dos acontecimentos do dia.

  • Papá - disse, numa voz mal audível. - Papá, tenho de ir esta mesma noite para o quarto com o Giovanni? Tens de ser testemunha do contrato assim tão cedo?

O Papa levantou os olhos aos céus. Também ele tinha estado a pensar no quarto, durante mais horas do que lhe agradava reconhecer.

  • Se não for agora, quando é? - perguntou à criança.

  • Só mais um bocadinho - disse ela.

  • É melhor arrumar as coisas desagradáveis o mais cedo possível — tornou ele, sorrindo meigamente à filha. — Depois podes continuar a tua vida sem a espada pendente sobre a tua cabeça.

Lucrécia inspirou profundamente e suspirou.

  • O meu irmão César tem de estar presente? — perguntou. O Papa Alexandre franziu o cenho.

  • Que importância tem isso — perguntou —, desde que o teu pai lá esteja? Para o contrato ser válido, quaisquer três testemunhas servem.

Lucrécia acenou com a cabeça e disse com determinação:

  • Prefiro que ele lá não esteja.

  • Se é esse o teu desejo — volveu o Papa —, assim será.

Tanto Giovanni como Lucrécia estavam relutantes ao encaminharem-se para a câmara nupcial: ele porque ainda sentia saudades da primeira mulher, que morrera, e ela porque se sentia envergonhada por ser observada e detestava permitir que alguém a não ser César a tocasse. Agora, estava tão tonta que nada parecia importar. Procurara o irmão, mas ele esgueirara-se, e por isso tinha bebido rapidamente mais três taças de vinho antes de conseguir reunir cora­gem para fazer o que sabia ter de fazer.

No interior da câmara ela e Giovanni despiram-se com a ajuda dos respec­tivos criados e ambos se enfiaram dentro dos lençóis de cetim branco, tendo o cuidado de não tocar a pele um do outro antes da chegada das testemunhas.

Quando o Papa entrou, sentou-se na cadeira de veludo, de frente para uma grande tapeçaria das Cruzadas na qual se pudesse concentrar e rezar. Tinha nas mãos um rosário de contas cravejadas de jóias. O segundo assento foi ocupado pelo cardeal Ascânio Sforza e o terceiro pelo irmão de Júlia, o cardeal Farnese, que tinha sofrido a humilhação de lhe chamarem o «cardeal de saias» após a sua investidura por Alexandre.

Giovanni Sforza não dirigiu uma palavra a Lucrécia; ao invés, limitou-se a virar-se para ela, com o rosto próximo do seu, e agarrou-lhe rudemente no ombro a fim de a puxar para si. Tentou beijá-la, mas ela virou a cara a escon­deu-a no queixo. Ele cheirava que parecia um boi e, quando começou a passar as mãos por ela, Lucrécia sentiu o corpo estremecer de repulsa. Por instantes receou ter vontade de vomitar e fez votos por que alguém tivesse tido a ideia

de colocar um vaso de noite ao lado da cama. Quando de repente sentiu uma tristeza avassaladora, pensou que era capaz de começar a chorar. Porém, ao che­gar a altura de ele a cavalgar, não sentiu nada. Tinha fechado os olhos e trans­portara-se em espírito para longe dali, para um lugar na sua mente onde cor­ria entre canas altas e rebolava numa pradaria de erva verde e macia... no Lago de Prata, o único sítio em que se sentia livre.

 

Na manhã seguinte, quando Lucrécia correu a saudar César na altura em que este saía do Palácio do Vaticano para dirigir-se aos estábulos, percebeu imediata­mente que ele estava aborrecido. Tentou tranquilizá-lo, mas ele não conseguia ouvir. Por conseguinte, ficou muda e queda a vê-lo aparelhar o cavalo e partir.

Passaram-se dois dias antes do regresso de César. Disse-lhe que tinha pas­sado uns tempos no campo a pensar no seu futuro e nela. Tinha-lhe perdoado, disse, mas isso irritou-a.

  • O que é que há a perdoar? Eu fiz o que tinha de fazer, como tu fazes. Estás sempre a queixar-te de ser cardeal - disse ela. - Mas eu antes queria ser cardeal do que mulher!

César ripostou:

  • Temos ambos de ser o que o Santo Padre deseja que sejamos, pois eu antes queria ser soldado que ser cardeal! Por isso, nenhum de nós tem aquilo que quer!

César compreendeu que a batalha mais importante que tinha de travar seria o exercício do seu próprio livre arbítrio, porque o amor pode roubar o livre arbítrio sem utilizar qualquer arma que não ele próprio, e César gostava ver­dadeiramente do pai. No entanto, tinha analisado as estratégias do pai o tempo suficiente para saber do que Alexandre era capaz e sabia que ele próprio nunca desceria a tamanha traição. Na opinião de César, tirar a um homem os bens, a fortuna e até a vida era um crime bem menor do que roubar-lhe o livre arbí­trio, pois sem este ele é um mero títere das suas próprias carências, um animal de carga que cede ao estalar do chicote de outro homem. E jurou que não seria esse animal.

Embora César percebesse o que o pai tinha feito pedindo-lhe que tivesse relações com Lucrécia, achava-se à altura da tarefa de amá-la. Depois dessa pri­meira reivindicação, tentara enganar-se a si próprio convencendo-se de que fora opção sua. E contudo havia uma carta oculta. Lucrécia amava-o com um coração suficientemente grande para domar o animal mais bravio, e assim, sem o saber, tornou-se o chicote usado pelo pai.

Lucrécia pôs-se a chorar; César abraçou-a e tentou consolá-la.

  • Não há-de ser nada, Crezia - disse. Manteve-se de pé durante um largo espaço de tempo, alisando-lhe os loiros caracóis e amparando-a. Finalmente, enxugou-lhe as lágrimas e disse: - Não te rales com aquela codorniz de três per­nas do Sforza, porque, apesar de tudo, nos teremos sempre um ao outro.

Ludovico Sforza, o homem conhecido por II Moro, representava o poder na grande cidade-estado de Milão. Embora fosse o regente, e não o duque, era ele quem governava. Perante o vácuo do seu fraco e mole sobrinho, tinha reivin­dicado ele a autoridade.

Embora o nome II Moro conjurasse um tom moreno escuro, tratava-se de um homem alto e elegante, com a beleza loiro-clara dos italianos do norte, inteligente e sensível ao mundo do espírito e da razão. Podia-se dizer que era mais enamorado dos mitos antigos do que da religião. Era confiante e seguro de si quando as coisas corriam de feição, mas menos confiante em tempos de adversidade. Suscitava o respeito dos seus cidadãos e, embora fosse por vezes pouco escrupuloso e frequentemente desleal nos seus negócios políticos, era um governante misericordioso, cuja compaixão impunha uma taxa sobre os cidadãos mais ricos destinada a apoiar lares e hospitais para os pobres.

Os cidadãos de Milão, uma cidade considerada a pátria das descobertas, abraçavam a nova cultura do humanismo, e IIMoro e a mulher, Beatriz dEste, faziam muita coisa para melhorar as condições. Renovavam e decoravam os castelos, pintavam as sombrias casas da cidade com as cores alegres da nova arte e limpavam as ruas para eliminar o cheiro pestilento a fim de que o ar se pudesse respirar sem luvas com cheiro a limão ou laranjas meio cortadas colo­cadas sob os narizes da nobreza. Além disso, pagava aos melhores tutores para ensinarem nas universidades, pois tinha consciência da importância da edu­cação.

Fora a mulher de  Moro — a bela e ambiciosa Beatriz dEste, de Ferrara — que, muitos anos atrás, o tinha encorajado a reclamar a coroa ao sobrinho, Gian. Isto porque, quando Beatriz tivesse um filho, perturbava-a que os seus herdeiros pudessem não ter direito legal ao reino dos pais.

Durante treze anos, Ludovico governou como regente sem oposição por parte do sobrinho, o duque, e Milão acabou por ser uma cidade cheia de arte e cultura. Mas um dia Gian desposou uma jovem de génio irritadiço e cheia de determinação: Avia de Nápoles, neta do temido rei Ferrante.

Visto que Avia tinha dois filhos — que ela jurava serem obrigados a viver como homens do povo por causa de IIMoro, queixou-se ao marido, o duque. No entanto este estava absolutamente satisfeito com o facto de o tio governar Milão e não ofereceu resistência. Nesta altura Avia não tinha outra opção. Levou o assunto ao avô, o rei Ferrante. Escreveu-lhe cartas a seguir umas às outras e mandou-lhas entregar diariamente em Nápoles por mensageiro. Por fim, Ferrante sentiu-se ultrajado, tanto com a desfeita à família, como pelo aborrecido conteúdo e frequência das cartas. Era, no fim de contas, um rei, e um rei não podia tolerar este insulto à neta. Assim, decidiu exercer vingança sobre Milão e recolocar Avia no seu devido lugar no trono.

Ora, informado da ira do rei pelos seus conselheiros secretos, e receando as implacáveis tácticas de Ferrante,  Moro reconsiderou a sua posição. A força militar de Nápoles era lendária: vigorosa e adestrada. Milão não teria possibi­lidade de se defender sem auxílio.

Nessa altura, como que enviado dos céus por forças benevolentes, II Moro recebeu notícias de que o rei Carlos de França estava a preparar o seu exército para reclamar a coroa de Nápoles. Tomando uma acção drástica, IIMoro rom­peu com a tradição e mandou de imediato um convite ao rei Carlos, ofere­cendo-lhe a ele e às suas tropas livre passagem por Milão no avanço para sul, à conquista de Nápoles.

No Vaticano, o Papa Alexandre estava a reavaliar a sua posição política à luz das notícias da invasão francesa e da pouca previdência de II Moro. Tinha man-

dado chamar César bem cedo nessa manhã a fim de combinar novas estraté­gias, quando Duarte Brandão o procurou nos seus aposentos para o informar da nova ameaça ao papado.

  • Chegou ao meu conhecimento — explicou — que o rei Ferrante, de Nápo­les, enviou uma mensagem ao sobrinho, o rei Fernando de Espanha, expres­sando a sua preocupação acerca da vossa fidelidade a  Moro e da posição do Vaticano relativamente a Milão, agora que França está a aprontar as suas tro­pas.

César disse que sim com a cabeça, fazendo um ar entendido.

  • Soube sem dúvida do casamento da minha irmã com Giovanni Sforza. E está aflito com a nossa aliança com Milão.

Alexandre fez um aceno afirmativo.

  • É muito capaz de estar. E qual foi a resposta do bom rei Fernando?

  • Recusou-se a interferir nos nossos assuntos, para já - retorquiu Duarte O Papa Alexandre riu-se.

  • É um homem honrado. Lembra-se de que fui eu que emiti a dispensa permitindo-lhe casar com a sua prima direita, Isabel de Castela. E foi por causa dessa proclamação que os países de Espanha e Castela se uniram, expandindo o império aragonês.

  • Seria sensato pensar em enviar um embaixador a Nápoles com um com­promisso... - sugeriu Duarte. - E reafirmar-lhe a nossa lealdade a Espanha e à casa de Aragão.

Alexandre concordou.

  • Vamos oferecer também a Ferrante uma aliança matrimonial. Pois havia Milão de ter o que Nápoles não tem?

  • E com muito pesar meu que não posso ser-te útil, pai - disse César, agora divertido. - Porque, no fim de contas, sou um cardeal da Santa Igreja Católica Romana.

Ao final dessa noite, sozinho nos seus aposentos, Alexandre pôs-se a con­templar o negro céu nocturno e a ponderar sobre os caminhos dos homens. Como Santo Padre chegou a uma conclusão arrepiante: o medo faz os homens agir contra os seus melhores interesses. Transforma-os de homens de razão em Patetas chorões; se assim não fosse, por que havia  Moro de alinhar com

França, quando não havia qualquer esperança de vitória para ele? Não conse­guiria ele adivinhar que, uma vez entrado o exército na cidade, todos os cida­dãos estavam em perigo? As mulheres, as crianças e os homens estavam em perigo. Nessa altura, o Papa suspirou. Era nestas ocasiões que achava a certeza da sua própria infalibilidade um alívio.

Mesmo nos tempos mais traiçoeiros, há homens que se revelam mais per­versos do que outros. A crueldade palpita-lhes no coração e nas veias, trazendo—os à vida e despertando-lhes os sentidos, e por conseguinte obtêm a mesma satisfação quando torturam o seu semelhante que muitos homens sentem ao fazer amor. São fiéis a um Deus castigador e poderoso, de sua própria inven­ção, e com um pervertido fervor religioso criam-se a si próprios na visão desta ilusão. O rei Ferrante, de Nápoles, era um destes homens. Tinha ainda a par­ticularidade, lamentável para os seus inimigos, de encontrar ainda mais êxtase na tortura mental do que na física.

Era um homem de baixa estatura, corpulento e de tez olivácea, com umas rebeldes sobrancelhas pretas grosseiras tão bastas que lhe escondiam os olhos e lhe davam um aspecto absolutamente ameaçador. Tinha o corpo coberto do mesmo pêlo grosseiro, que muitas vezes despontava do colarinho das suas vestes reais e das mangas como a pelagem de algum animal primitivo. Quando era jovem, tinha extraído os dois dentes da frente ao contrair uma infecção quase fatal. Mais tarde, devido à sua vaidade, tinha mandado o ferreiro real forjar-lhe dentes novos de ouro. Raramente sorria, mas quando o fazia, ficava com um ar particularmente sinistro. Corria em toda a Itália o rumor de que Ferrante nunca andava armado e não tinha grande precisão de guarda-costas, pois, com aque­les dentes de ouro, era capaz de arrancar a carne dos corpos dos inimigos.

Como governante de Nápoles, o território mais poderoso do continente ita­liano, Ferrante inspirava um terror medonho em toda a gente. Quando o ini­migo lhe caía nas mãos, acorrentava-o em jaulas e todos os dias se passeava pelas masmorras regozijando-se maldosamente com aquele «jardim zológico». E quando os corpos dilacerados e quebrados dos seus prisioneiros finalmente

perdiam a vontade de viver e libertavam as almas para o céu, Ferrante man­dava-os embalsamar e recolocar nas jaulas, para lembrar aos que ainda se agar­ravam à vida que a paragem dos seus corações não faria parar o seu prazer. Nem os seus mais fiéis servidores escapavam ao ganancioso apetite de cru­eldade de Ferrante. Arrebatava-lhes quanto podia, quer em favores quer em dinheiro, após o que os retalhava enquanto dormiam no seu leito, de forma que eles não tinham um momento de paz enquanto viviam.

A acrescer à impossibilidade da situação, era um soberbo e consumado esta­dista, que conseguira evitar que o papado reclamasse qualquer porção do seu território. Durante muitos anos tinha-se recusado a pagar os seus dízimos à igreja, aceitando apenas enviar a Roma o tradicional presente de um cavalo branco para o exército do Papa.

Era mais no seu papel de estadista do que no de guerreiro cruel que o rei Ferrante encarava a aliança com o Papa. Porém, para ter a certeza de que não haveria surpresas, e para garantir que teria a ajuda de que precisava na sua con­quista, endereçou outra carta ao primo, o rei Fernando de Espanha. «Se o Papa não propuser nada que me satisfaça», anunciava, «e se recusar auxiliar-nos, aprontaremos as nossas tropas e a caminho de Milão tomaremos igualmente Roma.»

Ciente da tensão entre Roma, Milão e Nápoles, o rei Fernando de Espanha percebeu que tinha de intervir. Precisava da ajuda deste Papa para manter a paz, que era sempre melhor para ele do que a guerra. Se tudo corresse bem, informaria também Alexandre de uma fraude de que tivera conhecimento atra­vés do seu primo Ferrante.

Fernando era um homem alto e despótico, que levava muito a sério a sua posição de monarca de Espanha. Era um rei cristão, sem incertezas relativa­mente ao seu Deus, e sujeitava-se sem questionar à infalibilidade do Papa. A sua crença não atingia, porém, o nível de fervor evangelista de sua mulher, a rainha Isabel; não tinha necessidade de processar aqueles que não acredita­vam. Era na essência um homem razoável e só seguia a doutrina na medida em

que isso era vantajoso para o reino de Aragão. Ele e Alexandre respeitavam-se um ao outro e consideravam-se mutuamente dignos de confiança... tanto quanto se podia confiar em qualquer mortal.

Sentado diante do Papa, o rei Fernando, que envergava uma singela capa de cetim azul-escuro com um debrum de peles, tinha um ar elegante. Bebeu um gole do seu vinho.

  • Num gesto de boa vontade - disse - o rei Ferrante pediu-me para o infor­mar de uma circunstância que chegou recentemente ao seu conhecimento e pode ser útil a Vossa Santidade. Porque ele está seguro de que a igreja é um alia­do, não apenas de Espanha, mas de Nápoles também.

Alexandre sorriu, mas tinha os olhos cheios de cansaço ao dizer:

  • O céu sempre recompensou os seus fiéis. Fernando falou baixinho.

  • Pouco depois do conclave, o comandante geral de Ferrante, Virgínio Orsini, encontrou-se com o cardeal Cibo para concretizar a compra dos três castelos Cibo herdados do pai, o Papa Inocêncio.

Nessa altura o Papa Alexandre franziu o cenho, mas manteve-se bastante tempo em silêncio antes de falar.

  • Essa transacção realizou-se sem meu conhecimento? Sem a autoridade da Santa Sé? Uma traição dessas cometida por um príncipe da Santa Igreja Católica?

Na verdade, Alexandre estava mais intrigado com a traição de Orsini do que com o cardeal Cibo, porquanto o comandante Orsini, além de ser cunhado de Adriana, sempre fora considerado um amigo pelo Papa. E mesmo nos tempos mais iníquos, há homens que inspiram confiança. Virgínio Orsini era um deles.

Nessa noite, ao jantar, o rei Fernando forneceu a peça que faltava.

  • O acordo para a compra dos castelos efectuou-se em Óstia, no palácio de Julião delia Rovere.

Ah, agora Alexandre compreendia. Era delia Rovere que estava atrás daquela maldosa acção! Quem quer que possuísse aqueles castelos — todos eles fortale­zas inexpugnáveis a norte de Roma — tinha nas mãos a segurança de Roma.

  • Isso é um obstáculo que tem de ser ultrapassado — disse Alexandre. O rei Fernando concordou.

  • Vou a Nápoles falar com Ferrante em vosso nome, para ver o que se pode

fazer.

Antes de partir, o rei beijou o anel do Papa, garantindo a Alexandre que empregaria toda a sua influência para resolver a questão. Depois, quase como reflexão tardia, Fernando disse:

  • Há mais um problema, Santidade. O Novo Mundo está em disputa. Tanto Portugal como Espanha reivindicam os novos territórios. A vossa media­ção seria grandemente apreciada pela rainha e por mim próprio, pois é óbvia a necessidade de orientação divina nesta situação.

O rei Fernando de Espanha foi a Nápoles e falou com o primo, o rei Fer­rante. Quase imediatamente a seguir à sua chegada, começaram a ser trocadas mensagens entre Roma e Nápoles. Mensageiros cavalgavam noite e dia. Por fim, o rei Ferrante garantiu benevolentemente ao Papa que Virgínio Orsini não tivera a intenção de prejudicar a pessoa de Alexandre; pelo contrário, os caste­los em questão podiam ser detidos para manter Roma segura. Ficavam mesmo às portas da cidade e por conseguinte podiam servir de protecção em caso de invasão francesa.

Acordou-se, assim, que Virgínio Orsini podia conservar os seus castelos, mas ser-lhe-ia exigido que pagasse todos os anos um imposto de quarenta mil ducados ao Vaticano como prova da sua sinceridade e lealdade ao Papa Ale­xandre.

Agora punha-se a pergunta: que estaria o Papa disposto a oferecer a troco do apoio, quer do rei Fernando quer do rei Ferrante?

O rei Ferrante queria César Bórgia como marido para a sua neta de dezas­seis anos, Saneia.

Alexandre recusou, lembrando a Ferrante que o seu segundo filho tinha obrigações inerentes a um cargo eclesiástico. Em lugar dele propôs o filho mais novo, Godofredo.

rerrante rejeitou. De facto, quem quereria o filho mais novo em vez do mais velho?

Embora muitos Papas anteriores tivessem receado negar a Ferrante o que quer que ele pedisse, o Papa Alexandre mostrou-se irredutível. Tinha planos para César e não estava disposto a trocar o seu ouro por metal vulgar.

 

Ferrante tinha ouvido muita coisa sobre a habilidade e astúcia de Alexan­dre em matéria de negociação e ficou extremamente agastado. Sabia que, se deixasse fugir a oportunidade de uma aliança, Alexandre não tardaria a forjar outra que poria Nápoles em perigo. Depois de muita deliberação e pouca espe­rança de vitória de qualquer outra maneira, Ferrante aceitou a contra-gosto. Só esperava que Godofredo, de doze anos de idade, fosse capaz de ter relações com a sua filha Saneia, de dezasseis, e legitimar o contrato antes que Alexandre arranjasse melhor partido.

Cinco meses antes do casamento por procuração, porém, o rei Ferrante, o homem mais temido em Nápoles, faleceu. Seu filho Masino, nem pouco mais ou menos tão esperto ou cruel como o pai, ficou à mercê do Papa Alexandre. Como Nápoles era um território papal e o Papa o seu suserano, ou senhor feu­dal, a coroa só podia ser outorgada por ele, e incorrer no seu desagrado podia forçá-lo a escolher outro.

Na ocasião sucedeu que também Alexandre estava comprometido. O jovem rei Carlos VIII de França, que proclamara Nápoles sua propriedade, pretendia igualmente a coroa. Enviou uma embaixada para advertir Alexandre, para o ameaçar de destituí-lo do poder e nomear outro Papa se ele favorecesse Masino, o herdeiro de Ferrante. O Papa sabia, contudo, que o controlo de Nápoles por parte de França seria fatal para a independência dos Estados Papais.

A acrescer à aflição do Papa, começou a gerar-se uma intranquilidade galopante entre os que odiavam os espanhóis e os inimigos tradicionais do papado, que ele sabia poder levar à quebra da frágil paz que existia em toda a Itália desde que assumira o cargo.

Por conseguinte, recebeu a notícia que o ajudou a decidir.

Duarte Brandão regressou aos aposentos do Papa para lhe dizer:

  • Correm boatos de uma nova invasão francesa. O rei Carlos é fervoroso e entusiasta e está absolutamente determinado a ser o maior monarca cristão desta era. Projecta chefiar outra cruzada para conquistar Jerusalém.

Alexandre compreendeu.

  • Portanto esse jovem rei tem primeiramente de conquistar Nápoles, por­que a cidade confina com as terras dos infiéis. E tem de atravessar os Estados Papais no caminho para Nápoles.

Duarte aquiesceu.       Carlos deixou também claro o seu desejo de reformar o papado, e só há uma maneira de o conseguir, Santidade.

O Papa ponderou o que Duarte dissera.

  • Tem de me depor a fim de fazer o que pretende...

Nessa altura, o Papa Alexandre decidiu não alienar o filho de Ferrante, Masino, pois precisava que a força militar de Nápoles avançasse para norte, até Roma, a fim de prevenir qualquer ataque do rei Carlos. Não tardou que Ale­xandre começasse a formular outro plano: a fim de proteger a sua posição no Vaticano, e a própria Roma, de uma invasão estrangeira, o Papa começou a adquirir a certeza de que tinha de unificar as cidades-estados de Itália. Foi então que concebeu o conceito de uma Santa Liga. O seu plano era unificar e chefiar várias das maiores cidades-estados; isso conceder-lhes-ia mais poder juntas do que alguma delas poderia ter sozinha.

Contudo, no momento em que apresentou o seu plano aos governantes dessas cidades-estados, surgiram dificuldades. Veneza, como sempre, manteve—se neutral; Milão estava já ao lado dos franceses e Florença era militarmente fraca... e tinha ainda o profeta chamado Savonarola, que dispunha de influ­ência suficiente para desencorajar os Mediei de se aliarem.

Depois de ter deparado com forte resistência, Alexandre concluiu que tinha de coroar rapidamente Masino; caso contrário, não tardaria que outro homem ostentasse a Sagrada Tiara.

Quatro dias após Masino ser coroado rei de Nápoles, Godofredo Bórgia desposou a filha de Masino, Saneia.

No altar da capela de Castel Nuovo, Godofredo, de doze anos de idade, em

Pe ao lado da sua noiva de dezasseis, procurava parecer mais velho do que era

moora iosse mais alto do que ela e bastante bem parecido, com o seu basto

cabelo loiro e olhos claros, não tinha graça nem encanto. Saneia, uma rapariga

bonit e esperta, ficou contrariada com a escolha do pai. Recusou-se a provar

 qualquer nova indumentária para o casamento e, durante a cerimónia, fitava

impacientemente os convidados na capela a abarrotar. Quando o bispo per­guntou a Godofredo: «Aceitas esta mulher...», não conseguiu terminar a frase sem que o entusiástico Godofredo interrompesse, esbaforido: «Sim...»

Os convidados riram alto. Saneia ficou humilhada e mal se ouviu a sua resposta ao juramento. Que fazia ela com aquela criança pateta?

Na recepção, porém, assim que viu as muitas moedas de ouro e jóias que ele trouxera e oferecera, a expressão de Saneia suavizou-se. E quando ele per­mitiu que as suas damas de honor escolhessem mais moedas de ouro dos seus bolsos, a morena Saneia sorriu-lhe.

Nessa noite, na câmara matrimonial, com o rei Masino e duas outras tes­temunhas, Godofredo Bórgia pôs-se em cima da noiva e montou-a como se fosse um pónei novo. Ela quedou-se teimosamente quieta, rígida como um cadáver. Ele montou-a repetidamente — quatro vezes, até que o rei em pess­oa impôs uma paragem e concordou que o contrato matrimonial era válido.

Alexandre mandou a certa altura chamar César e João para se lhe juntarem no Salão da Fé, onde, em conformidade com o acordo que fizera com o rei Fer­nando acerca de Nápoles, tinha prometido encontrar-se com os embaixadores de Espanha e Portugal para mediar a disputa acerca de novas terras.

Quando César e João entraram no ornamentado compartimento, o pai apresentava um aspecto imponente, com a mitra papal e a capa vermelha e dourada profusamente bordada.

  • Isto pode ser um exercício de diplomacia que contenha ensinamentos para vós, poi nos cargos que ocupais na igreja ambos tomareis parte em mui­tas negociações - disse aos filhos.

O que omitiu foi que o pedido de arbitragem papal por parte do rei Fer­nando não era um gesto vazio, reflectindo, sim, a influência papal tanto na reli­gião como na política na nova Era dos Descobrimentos. Agora, valeria ao Papa o apoio de Espanha, de que ele muito precisaria caso o rei Carlos de França resolvesse invadir os territórios italianos.

Quando os embaixadores entraram no salão, Alexandre ergueu a vista. Cumprimentou-os calorosamente e disse:

  • Pensamos que conheceis os nossos filhos, o cardeal Bórgia e o duque de Gandía, não?

  • Conhecemos, sim, Santo Padre — retorquiu o espanhol, um corpulento nobre castelhano que trazia uma túnica negra profusamente brocada. Dirigiu um aceno a César e a seguir outro a João, tal como o idoso emissário português.

Alexandre tinha estendido um mapa na comprida mesa de embutidos. Ele e os dois embaixadores estavam a apontar para diversos locais.

  • Meus filhos, resolvemos um problema que tem vindo a causar grande pre­ocupação entre as nações destes dois notáveis.

Os dois homens assentiram novamente e Alexandre prosseguiu:

  • Ambas estas grandes nações enviaram bravos exploradores aos mais remo­tos confins dos mares ignotos. Ambas reivindicaram as riquezas do Novo Mundo. A nossa santa igreja, por intermédio de Calisto III, decretou que o reino de Portugal tinha direito a todas as terras não cristãs na costa do Atlân­tico. Por conseguinte, Portugal sustenta que isso garante ao seu país o direito a todo o Novo Mundo. A Espanha, por outro lado, insiste que Calisto se refe­ria unicamente às terras na costa oriental do grande oceano, e não às novas ter­ras descobertas no ocidente.

«A fim de evitar um conflito entre aqueles grandes povos, o rei Fernando pediu-nos para arbitrarmos as suas divergências. E ambas as nações, esperando a orientação divina, concordaram em aceitar a nossa decisão. Não é assim?»

Os dois emissários acenaram afirmativamente.

  • Pois bem — tornou Alexandre —, ponderámos detidamente a questão e passámos longas horas de joelhos em oração. E chegámos a uma decisão. Temos de dividir o Novo Mundo segundo esta linha longitudinal.

Apontou para uma linha do mapa que ficava cem léguas a leste dos Açores e das ilhas de Cabo Verde.

37°

  • Todas as terras não cristãs a leste desta linha, que incluem muitas ilhas valiosas, pertencerão ao reino português. Doravante os respectivos povos fala­rão português. Todas as terras para oeste da linha pertencerão a Suas Majestades Católicas Fernando e Isabel.

Alexandre fitou os embaixadores.

  • Publicámos já a nossa bula, Inter Caetera, a promulgar a nossa deci­são sobre o assunto. Plandini, o secretário do Vaticano, dará a cada um de vós uma cópia quando partirdes. Espero que isto seja satisfatório e que muitas almas sejam salvas, ao invés de serem sacrificadas, devido ao nosso acordo.

Exibiu o seu brilhante sorriso carismático e ambos os homens se inclinaram para beijar-lhe o anel quando lhes deu licença para se retirarem. Após a sua saída, Alexandre virou-se para César.

  • Que achas da minha decisão?

  • Acho, pai, que os portugueses estão em desvantagem, porque recebem muito menos território.

O rosto de Alexandre iluminou-se com um sorriso cruel.

  • Bem, filho, foi o rei Fernando de Espanha que nos pediu para intervir, e a nossa família é no fundo espanhola. Temos também de ter em atenção que Espanha é hoje provavelmente o país mais poderoso do mundo. Com o rei de França a encarar uma invasão e a planear deslocar as suas tropas através dos Alpes a conselho do nosso inimigo, o cardeal delia Rovere, podemos precisar da ajuda espanhola. Os portugueses, em contrapartida, tendem a produzir ousados mareantes, mas exércitos, nem por isso.

Antes de César e João deixarem o Papa, este poisou a mão no ombro de João e disse:

  • Meu filho, graças à nossa bem sucedida mediação, deu-se um passo em frente nos teus prometidos esponsais com Maria Enríquez. Torno a dizer: prepara-te. Não ofendas o nosso rei Fernando, pois foi necessária muita diplomacia para garantir as nossas alianças. Agradecemos todos os dias a Deus a boa sorte da nossa família, as oportunidades de difundir a palavra de Cristo em todo o globo a fim de fortalecer o papado para os corpos e almas dos fiéis.

Passada uma semana, acompanhado por uma caravana de vastas riquezas, João estava a caminho de Espanha e de um encontro com a família Enríquez em Barcelona.

Em Roma, o Papa sentia-se cansado do peso do mundo: tanto o céu como a terra pareciam assentar nos seus ombros. Contudo, um só pequeno prazer podia reanimá-lo...

Nessa noite Alexandre preparou-se para aparecer com a sua mais requintada camisa de noite de seda, pois a sua jovem amante, Júlia Farnese, tinha sido con­vidada a passar a noite na sua cama. Enquanto o criado o banhava e lhe lavava a cabeça com sabonete perfumado, deu por si a sorrir ao pensar no seu mavio­so rosto a fitá-lo com admiração e, estava convencido, genuíno afecto.

Embora o intrigasse que uma mulher jovem de semelhante beleza e fascínio se sentisse encantada por um homem cuja mocidade passara já, aceitava-o como aceitara muitas mais coisas intrigantes na vida. Verdade se diga que era sufici­entemente sensato para saber que o seu poder e os seus favores podiam inspirar uma certa devoção. E a sua relação com ele como Santo Padre podia melhorar a situação e a fortuna de toda a família dela e por conseguinte promover o seu próprio estatuto. Mas havia mais, e no íntimo ele sabia-o. De facto, quando Júlia e ele faziam amor, era uma dádiva sem preço. A inocência dela era cati­vante; a sua necessidade de aprender e agradar e a sua curiosidade relativamente a toda e qualquer espécie de exploração sensual conferia-lhe especial atracção. Alexandre tinha estado com muitas belas cortesãs possuidoras de muito maior experiência, que sabiam como agradar a um homem empregando pura habilidade. A resposta desinibida de Júlia ao prazer sensual era, porém, a de uma criança jovial e, de certo modo, embora ele não pudesse descrevê-la como a relação mais apaixonada que tivera, proporcionava-lhe imensa satisfação. Nessa altura Júlia, envergando uma camisa de noite de veludo de cor púr-Pura, foi conduzida ao seu quarto. O cabelo doirado caía-lhe solto pelas costas. 35

trazia no pescoço um simples colar de pequenas pérolas que ele lhe dera da Primeira vez que tinham feito amor.

 

Ao sentar-se na borda da cama larga, Júlia começou a desapertar a camisa de noite. Sem uma palavra, virou-se de costas e pediu:

  • Querida Santidade, levanta-me o cabelo, por favor?

Alexandre pôs-se de pé, com o seu volumoso corpo muito próximo atrás dela, enchendo os sentidos do odor a lavanda da cabeleira dela. Segurou os cara­cóis loiros com as suas grandes mãos, aquelas que detinham o destino das almas de tantos, enquanto ela se libertava da camisa de noite e esta tombava no chão.

Quando ela se voltou a fim de erguer a face para aceitar o seu beijo, ele teve de curvar-se para chegar-lhe aos lábios. Ela não era sequer da altura de Lucré-cia e possuía formas mais delicadas. Rodeou-lhe o pescoço com as mãos e, quando ele se endireitou, viu-se levantada do chão.

  • Minha doce Júlia, passei imensas horas à espera da tua chegada. Ter-te nos braços dar-me-á tanto prazer como dizer missa... embora fosse sacrilégio eu admitir essa verdade em voz alta diante de alguém que não tu, minha doçura.

Júlia sorriu-lhe e deitou-se junto dele entre os lençóis de cetim.

  • Recebi hoje uma mensagem do Orso - disse ela —, que quer regressar a Roma de visita por uns tempos.

Alexandre procurou não mostrar o seu desagrado, pois a noite era dema­siado bela.

  • E uma pena, mas creio que a presença do teu jovem marido em Bassa-nello é importante por algum tempo mais. Posso ter de recorrer a ele para comandar uma das minhas unidades militares.

Júlia sabia que o Papa tinha ciúmes, pois toda a expressão desse sentimento lhe brilhava nos olhos. Para o tranquilizar, inclinou-se e poisou os lábios nos dele, beijando-o com força. Tinha os doces e frescos lábios de alguém jovem e inexperiente, mas ele tinha o cuidado de tratá-la com toda a meiguice, pois acima de tudo não queria amedrontá-la. Já tinham feito amor várias vezes, mas ele pusera de lado o seu próprio prazer para se certificar de que se apercebia de quando ela atingia o seu. Não queria perder-se completamente e deixar que a paixão o impelisse para dentro dela com demasiada força, uma vez que nessa altura ela se contrairia e todo o prazer lhes fugiria.

  • Agradar-te-ia possuir-me deitada de barriga para baixo? — perguntou-lhe. — E depois, tu por cima?

  • Receio fazer-te mal — respondeu ele. — Prefiro deitar-me eu de costas e que tu me montes à tua vontade. Dessa maneira podes controlar a intensidade da tua própria paixão e obter tanto prazer quanto consigas suportar.

Tinha pensado muitas vezes na inocência pueril de Júlia ao deixar tombar os cabelos como aquelas deusas dos mitos e histórias antigas, aquelas tentado­ras que lançavam um feitiço para manter um príncipe aprisionado para sem­pre contra a sua vontade.

Todas as vezes que se deitava de costas e erguia a vista para o rosto dela, de olhos fechados de prazer, a cabeça arremessada para trás em abandono, ele acre­ditava que o prazer carnal que sentia era um presente de sujeição ao Pai Celeste. De facto, quem senão um Pai Benévolo proporcionaria ao homem semelhante graça celestial na terra?

Antes de Júlia abandonar os seus aposentos na manhã seguinte, Alexandre deu-lhe uma cruz de filigrana de ouro que encomendara a um dos melhores joalheiros de Florença. Ela sentou-se na cama, despida, e deixou-o colocar-lho ao pescoço. Ali sentada, parecia a imagem da graça e, na beleza do seu corpo e do seu rosto, o Papa Alexandre sentiu-se de novo convicto de que havia Pai Celeste, pois ninguém na terra seria capaz de conceber tal perfeição.

Um clínico do Papa acorreu ao Vaticano com a notícia urgente de uma erup­ção de peste na cidade de Roma. Naquele momento, sentado no seu trono, no Salão da Fé, e ao saber da chegada da peste, Alexandre alarmou-se. Mandou chamar rapidamente a filha aos seus aposentos.

  • É tempo de partires para Pesaro e procurar refúgio junto do teu marido - disse simplesmente.

  • Mas, Papá — exclamou ela, ajoelhando aos seus pés e agarrando-se às suas pernas -, como posso eu deixar-te? Como posso deixar os meus irmãos e a minha querida Adriana e a nossa Júlia? Como posso eu viver nesse lugar tão distante desta cidade que amo?

Em circunstâncias normais, Alexandre teria tentando ganhar mais tempo com a sua preciosa filha, mas agora, nesta nova e perigosa circunstância, achou que tinha de insistir para que ela partisse.

  • O Papá vai mandar a Madonna Adriana e a querida Júlia contigo para Pesaro - disse. - E enviaremos mensagens todos os dias, de forma que nenhum de nós se sentirá sozinho, minha doce filha.

Mas Lucrécia ficou inconsolável. Pôs-se então de pé, com os olhos habi­tualmente meigos em chamas.

é Preferia morrer de peste em Roma a viver com Giovanni Sforza em esaro. Ele é impossível. Nunca olha para mim, raramente fala comigo e, quando fala, é só acerca dele, ou para me mandar fazer qualquer coisa que eu detesto.

O Papa Alexandre atraiu-a a si num abraço afectuoso e tentou consolá-la.

  • Não falámos já sobre isso? Dos sacrifícios que todos nós temos de fazer a fim de mantermos o bem-estar da família e o poder de Deus no mundo? A nossa querida Júlia falou-me da tua admiração por Santa Catarina. Acaso poria ela objecções, como tu pões, ao chamamento do Pai Celeste? E não é o teu papá a voz do Pai Celeste na terra?

Lucrécia deu um passo atrás e olhou para o pai. Com o lábio inferior ainda a fazer beicinho, disse:

  • Mas Santa Catarina de Siena é uma santa; eu sou apenas uma rapariga. Não é preciso que as raparigas façam o mesmo que as santas. Porque ser filha de um Papa não me deve transformar em mártir.

Os olhos do Papa Alexandre iluminaram-se. Só um homem muito especial seria capaz de resistir à apaixonada argumentação da filha, e contudo deu por si encantado e divertido com a relutância que ela manifestava em abandoná—lo.

Tomou-lhe delicadamente a mão na sua.

  • Ah, o teu papá também tem de se sacrificar pelo Pai Celeste, pois não há ninguém neste mundo que eu ame mais do que a ti, minha filha.

Nessa altura Lucrécia olhou timidamente para o pai.

  • Nem sequer a Júlia?

O Papa fez o sinal da cruz sobre o peito.

  • Com o Senhor por testemunha, torno a dizer: não há ninguém que eu ame mais do que a ti.

  • Oh, Papá - exclamou Lucrécia, deitando-lhe os braços ao pescoço e aspi­rando o odor de incenso das suas vestes douradas. — Prometes-me mandar-me mensagens umas a seguir às outras sem nunca parar? E prometes que me man­das chamar sempre que vires que já não aguento mais? Porque, quando não, hei-de definhar de desespero e nunca mais me porás a vista em cima.

  • Prometo - tornou ele. - Agora reúne as tuas aias e eu informarei o teu marido de que vais partir imediatamente para Pesaro.

Ao sair, Lucrécia curvou-se para beijar o anel do Papa e, quando levantou a cabeça, perguntou:

  • Conto eu à Júlia, ou contas tu?

O Papa sorriu. Podes contar-lhe – disse-lhe, fingindo seriedade. - Agora vai.

No último dia da sua jornada de cinco dias até Pesaro, a chuva caía tor­rencialmente, encharcando Lucrécia, Júlia e Adriana, bem como todos os seus criados e mantimentos.

Lucrécia estava desapontada, pois albergara a esperança de se apresentar no seu melhor à chegada; no fim de contas, era a duquesa. Com o orgulho e o entusiasmo de uma criança a fingir, Lucrécia queria gozar a admiração e o afecto que esperava ver nos rostos daquelas pessoas que agora passariam a ser seus súbditos.

Viajavam numa caravana de cavalos que transportavam a sua valiosa carga em carroças de camponeses ao percorrerem os belos campos que bordejavam a irregular estrada de terra batida. Embora Michelotto e muitos dos seus homens armados acompanhassem Lucrécia e o seu séquito a fim de as prote­gerem dos perigos de assalto pelos bandidos e do risco de roubo, eram obriga­dos a parar todas as noites quando caía a escuridão. Havia, porém, poucos alo­jamentos na estrada de Roma até Pesaro e muitas vezes tinham de montar um acampamento.

Várias horas antes de chegarem, Lucrécia pediu à sua comitiva para esta­belecer um abrigo de forma que ela e Júlia pudessem preparar-se. Havia mui­tos dias que andavam na estrada e o seu rosto fresco e jovem e o cabelo bem cuidado tinham estiolado devido ao tempo, para já não falar da lama que lhe empastava os sapatos e o vestido. Pediu às aias que lhe soltassem o cabelo, o enxugassem com panos de algodão novos e lhe aplicassem bálsamo nas madei­xas a fim de lhe conferirem um brilho especial. Quando, porém, se desemba­raçou do vestido para envergar outro, sentiu-se repentinamente tonta.

  • Estou com arrepios — disse à aia, após o que estendeu a mão para se agar­rar ao ombro dela a fim de se amparar.

Adriana pareceu preocupada, pois as faces de Lucrécia pareciam rosadas de febre.

  • Sentes-te mal? — perguntou.

Lucrécia sorriu, com os olhos mais brilhantes que o habitual.

  • Sinto-me bem — mentiu, mas Adriana reparou que ela tinha os braços arrepiados. — Mal cheguemos e tome um chá quente, tenho a certeza de que me sentirei melhor. Mas ponhamo-nos a caminho, pois estou certa de que há festividades a aguardar-nos e não queremos fatigar os leais cidadãos.

Prosseguiram viagem até Pesaro, onde, muitos quilómetros antes de alcan­çarem as respectivas portas, viram multidões de homens, mulheres e crianças que se tinham juntado, alguns segurando tábuas ou tecidos por cima da cabeça a fim de se abrigarem da chuva fustigada pelo vento. Mesmo assim, porém, cantavam-lhe e batiam-lhe palmas, ao mesmo tempo que gritavam joviais sau­dações. Lançavam flores e levantavam crianças para que ela as tocasse.

Quando chegaram ao portão, contudo, Lucrécia sentia a cabeça a andar à roda. E quando Giovanni a saudou com um sorriso e disse: «Bem-vinda, minha duquesa», ela mal o ouviu antes de desmaiar de fraqueza e escorregar do cavalo.

Um dos criados colheu-a nos braços e transportou-a até ao palácio. Espan­tado com o seu pouco peso e impressionado com a sua beleza loira, depositou—a suavemente no leito de penas do grande quarto e regressou para contar tudo aos outros sobre a nova noiva do duque. Adriana e Júlia começaram a azafa-mar-se à volta dela, pedindo chá e sopa para ajudar a aquecê-la, mas nessa altura Giovanni já tinha voltado para junto das multidões, dizendo-lhes que a duquesa os saudaria formalmente no dia seguinte, depois de repousar e de con­seguir recompor-se.

Nessa noite, no quarto obscurecido e numa cidade estranha, Lucrécia dei­tou-se na cama, rezou as suas orações e procurou dormir. Tinha imensas sau­dades do pai, mas ainda mais do irmão, César.

No dia em que ela partira de Roma, César prometera ir visitá-la a Pesaro, mas, caso por qualquer razão tal fosse impossível, prometeu que lhe mandaria Don Michelotto a fim de a acompanhar para se encontrar com ele no Lago de Prata, que ficava a meio caminho entre Roma e Pesaro. Ali podiam passar algum tempo sozinhos. Podiam falar sem que ninguém ouvisse; podiam brin­car nos campos como faziam em crianças, longe dos olhares perscrutadores

do Papa e dos outros que estavam comprometidos por juramento a salva­guardá-los.

A lembrança de César consolou-a e, por fim, quando fechou os olhos e imaginou os lábios do irmão nos seus, adormeceu.

Ao acordar, na manhã seguinte, ainda se sentia febril, mas recusou-se a ficar na cama, porque não queria desperdiçar outro dia sem ver Pesaro e saudar os cidadãos que sabia terem estado à espera para a ver. A chuva tinha parado e agora o sol brilhava dentro do quarto, fazendo-o parecer quente e acolhedor. Alguns cidadãos tinham ficado a noite inteira e estavam ainda na praça fron­teira ao castelo; ela ouvia-os a cantar através das janelas abertas.

Giovanni tinha prometido a Lucrécia que haveria grandiosos bailes e recep­ções aos quais teria de comparecer. Tinha de se preparar. Com Júlia, Adriana e as aias, conseguiu escolher um vestido que era ao mesmo tempo simples e elegante, de cetim cor-de-rosa com um peitilho de requintada renda veneziana. Tinha um toucado de contas de ouro e pérolas, com o cabelo preso aos lados, mas comprido e solto atrás. Quando se apresentou a Júlia, rodopiou jovialmente.

  • Pareço uma duquesa?

Júlia, com os olhos azuis a brilhar, respondeu:

  • A mim, mais uma princesa. Adriana concordou.

  • Um perfeito anjo.

Lucrécia avançou até à varanda e acenou à multidão que estava na praça. As pessoas bateram palmas e aclamaram-na, atirando-lhe coroas entrançadas de flores. Ela curvou-se, apanhando uma do chão da varanda e pondo-a na cabeça. E a multidão aclamou-a ainda mais alto.

Depois houve música na cidade, com malabaristas, contendores em justas e bobos a correrem pelas ruas tal como houvera em Roma, e uma vez mais ela sentiu-se inebriada de felicidade com todas as atenções que lhe eram dispen­sadas. Tinha perguntado sempre a si mesma por que razão o pai e os irmãos gostavam tanto dos desfiles pela cidade e do poder da posição, mas agora achava que percebia. Ao fitar os semblantes dos homens, mulheres e crianças que erguiam os rostos para a contemplarem, Lucrécia sentiu-se muito menos Talvez também ela tivesse nascido para isto.

Pesaro era bonita; os seus campos, salpicados de oliveiras, eram luxuriantes e verdes. Rodeando-a e protegendo-a, os enormes e graciosos Montes Apeni-nos embalavam a cidade. Lucrécia soube que podia ser verdadeiramente feliz ali; e mais feliz ainda se conseguisse encontrar maneira de tolerar o marido, Giovanni.

Era consabido em toda a França que o rei Carlos depositava grande fé, não só na Santa Igreja Católica Romana, como no alinhamento das estrelas nos céus. Por conseguinte, o seu conselheiro de maior confiança era o físico e astrólogo Simão de Pavia. Simão tinha interpretado o mapa celeste por ocasião do nasci­mento de Carlos e fora ele quem proclamara o destino futuro do jovem rei como líder da nova Cruzada contra os turcos infiéis. Desde criança que Carlos não empreendia nenhuma missão importante sem o conselho do seu astrólogo.

Foi devido não só a uma grande habilidade como a uma grande sorte que Duarte Brandão obteve esta importante informação e concebeu uma estraté­gia brilhante. Estava tão animado que correu aos aposentos do Papa para falar com ele.

O Papa Alexandre estava sentado à secretária, a assinar uma grande pilha de bulas papais. Quando ergueu o olhar e viu Duarte, sorriu amavelmente e mandou sair todos os restantes da sala.

Alexandre pôs-se de pé e dirigiu-se à sua cadeira favorita. Quando, porém, Duarte se curvou para lhe beijar o anel, o Papa retirou impacientemente a mão.

  • Meu amigo, poupa toda essa cerimónia para actos públicos ou para quando estivermos na companhia de outros, pois em privado reconheço que é em ti que confio acima de todos, até dos meus filhos. E essa responsabilidade impõe uma certa igualdade, mesmo ao Vigário de Cristo. Porque eu, Alexan­dre, o homem, estimo a tua lealdade e aprecio a tua amizade.

Acenou com a mão indicando uma cadeira em frente dele, mas Duarte era incapaz de parar quieto enquanto explicava o que tinha sabido.

O Papa Alexandre escutou atentamente. A seguir perguntou:

  • E tu, acreditas que as estrelas comandam?                   oDuarte abanou a cabeça.

  • Aquilo em que eu acredito, Santidade, pouco importa.

  • E contudo importa — volveu o Papa.

  • Acredito que as estrelas afectam a vida da pessoa, mas ninguém a não ser o homem e o nosso Pai Celeste comandam a sua vida.

O Papa estendeu a mão para tocar no amuleto de âmbar que trazia sempre pendurado ao pescoço, e esfregou-o afectuosamente.

  • Todos nós acreditamos que há um sortilégio na nossa vida, e por conse­guinte esse Carlos não é muito diferente. - Sorriu a Duarte. - Mas tu deves ter um plano para me trazeres, pois vejo-o no teu rosto; por isso, fala-me dele.

A voz de Duarte era quase um sussurro.

  • Deixai-me ir ter com esse homem, esse Simão de Pavia, antes da invasão, com «honorários profissionais». Um acto de confiança.

  • De que montante? — inquiriu Alexandre.                          o

Duarte hesitou um momento, pois conhecia a natureza frugal do Papa quando se tratava de qualquer coisa que não fosse o cerimonial de Estado e a família.                                                      é

  • Eu ofereceria vinte mil ducados.

Alexandre arregalou os olhos e tentou controlar a surpresa na voz.

  • Duarte! Com essa quantia podíamos equipar um exército com cavalos. Vinte mil ducados não são honorários profissionais, são um suborno colossal...

Brandão sorriu.

  • Não devemos usar de sofismas a respeito de umas quantas moedas de ouro, Santidade. Temos de garantir uma leitura favorável por parte desse físico, pois ele conquistou a confiança do rei de França.

O Papa manteve-se em silenciosa ponderação durante vários minutos, após o que concordou.

  • Como de costume, Duarte, tens razão. Paga ao dottore os seus honorários, como sugeres. A astrologia em si nega o dom divino do livre arbítrio. É proi­bida pelo direito canónico. Por conseguinte, não estamos propriamente a con­trariar um processo cristão legítimo. A nossa interferência nele não macula a nossa alma imortal.

 

I

Nessa mesma noite Duarte atravessou, disfarçado, as linhas francesas. Cavalgou durante vários dias até alcançar o seu destino: uma pequena cabana no bosque. Chegou ali a tempo de encontrar Simão de Pavia em folguedos nos braços de uma prostituta bem rotunda. Sempre cavalheiro, Brandão conven­ceu delicadamente Simão a escusar-se perante a dama e juntar-se-lhe nos apo­sentos, pois tinha uma mensagem muito importante a transmitir.

Bastaram apenas alguns momentos para Duarte apresentar o acordo e pagar os honorários ao físico.

Ainda disfarçado, certo do êxito da sua missão, Brandão montou a cavalo e empreendeu o caminho de regresso a Roma.

Ah, pudesse porventura o Papa ter o coração e a alma de um santo, em lugar dos desejos mundanos de um mortal! Porém, embrenhado como estava na intriga política, Alexandre era agora constantemente distraído pelos seus assuntos pessoais. A sua jovem amante, Júlia Farnese, que tinha ido com Lucrécia para Pesaro, fora obrigada a manter-se fora umas semanas mais do que tencionava quando Lucrécia adoecera, a fim de tratar dela. Assim que Lucrécia se restabeleceu o suficiente para Júlia a abandonar de consciência tranquila, resolveu ir visitar o marido, Orso, ao Castelo de Bassanello, por um motivo que Alexandre não podia entender. Primeiro, porém, implorou ao Papa, tinha de fazer uma paragem para ir ver a mãe e o irmão doente a Capo-dimonte.

Quando Alexandre leu o pedido de Júlia, proibiu-a: o marido, Orso, era um soldado, insistia, e tinha sido enviado em serviço papal. Mas Júlia, jovem e fogosa, rebelou-se contra as instruções do Papa de regressar imediatamente a Roma. Escreveu uma segunda carta implorando o perdão de Alexandre pela sua desobediência, mas reiterou que não podia regressar ainda. E, a somar à sua traição, levou a sogra, Adriana, consigo a Capodimonte.

Quando Alexandre recebeu a mensagem seguinte, ficou furioso. Se ele não podia suportar estar sem a sua Júlia, como podia ela suportar estar sem ele? Desleal rapariga! Nessa altura o Papa teve fúrias com toda a gente ao seu ser-

viço. Passava a noite acordado, insone, não devido a qualquer ameaça política, mas apenas de saudades do contacto da mão de Júlia, do odor do seu cabelo, do conforto do seu corpo cálido. Por fim, quando já não aguentava mais, ajoe­lhou diante do altar e rezou para que o demónio dos seus insaciáveis apetites fosse libertado do seu coração. Quando o cardeal Farnese tentou argumentar com ele - explicando que a irmã não tinha por onde escolher, pois Orso tinha—a mandado chamar e no fim de contas era seu marido —, o Papa silenciou-o com um grito:

  • Ingrata!

Alexandre passou quatro dias irritado. Andava de um lado para o outro nos aposentos e repetia longas listas dos vícios da amante, do marido e da sua prima preferida. Excomungá-los-ia. Iriam certamente para o inferno por esta traição.

Mas foi o jovem Orso que finalmente contribuiu para aliviar a angústia do Papa. Ao saber da aflição de Alexandre, e temendo pela sua própria posição, proibiu a mulher de ir a Bassanello. Ao invés instruiu-a no sentido de regress­ar imediatamente a Roma, uma vez que havia perigo nas estradas por causa da invasão francesa. E, porque ele era seu marido, foi obrigada a obedecer.

Quando o rei Carlos fez avançar o seu poderoso exército através dos Alpes por território italiano dentro, o desiludido e irado cardeal delia Rovere estava ao seu lado, incitando-o, insistindo que um ataque ao Papa Bórgia era mais importante do que qualquer um contra os turcos infiéis.

Quando as tropas francesas se deslocaram para sul, em direcção a Nápoles, ninguém reagiu para as deter: nem Milão, nem Bolonha, nem Florença.

Ao saber da sua aproximação, o Papa Alexandre preparou-se para defender Roma e o Vaticano. Investiu a sua confiança no capitão-general do rei Ferrante, »irgínio Orsini, chefe da família Orsini. Virgínio tinha convencido o Papa da sua boa fé pagando o devido imposto pelos seus castelos; Alexandre sabia que “irgínio podia reunir mais de vinte mil vassalos e, com a sua grande fortaleza, a inexpugnável Bracciano, eram quase invencíveis.

No entanto, as sementes da traição e da avareza podem ocultar-se no cora­ção dos homens mais corajosos, e nem o Santo Padre podia pressagiar o seu crescimento.

Duarte Brandão correu nessa altura aos aposentos do Papa Alexandre.

  • Chegou-me notícia, Excelência, de que o vosso ex-amigo Virgínio Orsini se passou para os franceses.

Ao ouvir a notícia, o Papa Alexandre comentou:

  • Deve ter perdido o juízo...

Duarte, cuja compostura era lendária, pareceu nessa altura transtornado.

  • Que foi, meu amigo? — perguntou o Papa. — A única coisa que é neces­sária é uma mudança de estratégia. Ora bem, em lugar de combatermos esse rei Carlos, temos simplesmente de nos antecipar ao seu pensamento.

Duarte baixou a cabeça e a voz.

  • Há notícias mais perturbantes, Omnipotência. Os franceses capturaram Júlia Farnese e a Madonna Adriana quando regressavam de Capodimonte. Têm-nas neste momento detidas no quartel-general da cavalaria.

O Papa Alexandre empalideceu de raiva. Durante longos instantes perma­neceu sem fala, com o espírito ensombrado de preocupação e temor. Final­mente falou.

  • Duarte, a queda de Roma seria uma tragédia, mas, se a minha quer­ida Júlia sofresse algum dano, seria uma completa calamidade. Tens que conseguir a sua libertação, pois eles hão-de certamente exigir um resgate por ela.

  • Quais são as vossas condições? — perguntou Duarte.

  • Paga o que for preciso — disse Alexandre. — Porque Carlos tem neste momento nas mãos o meu coração e os meus olhos.

Além de serem bons soldados, os franceses eram também conhecidos pelo seu cavalheirismo. Assim que capturaram Júlia Farnese e Adriana Orsini, liber­taram todos os criados que as acompanhavam. A seguir procuraram cativar as belas damas, quer com comida quer com histórias divertidas. Porém, quando

Carlos descobriu quem as cativas eram, ordenou imediatamente que fossem

devolvidas ao Papa.

  • A troco de que resgate? - perguntou o comandante da cavalaria.

Carlos sentia-se generoso.

  • Três mil ducados — disse.

O comandante protestou.                            O Papa Alexandre pagará cinquenta vezes isso.

  • Mas nós estamos aqui para conquistar a coroa de Nápoles - recordou Carlos ao general -, que vale muitíssimo mais.

Daí a três dias, Júlia Farnese e Adriana foram devolvidas a Roma incólu­mes, acompanhadas por quatrocentos soldados franceses. E, aguardando às portas da cidade, jubiloso e aliviado, estava Alexandre.

Mais tarde, nos seus aposentos, vestido de cavaleiro, com a espada e a adaga à ilharga, envergando umas reluzentes botas pretas de Valência e uma capa negra com brocado de ouro, fez amor com Júlia. E, pela primeira vez desde que ela partira, sentiu-se em paz.

Dada a vergonhosa traição de Virgínio Orsini, o Papa Alexandre sabia que era agora inviável resistir aos franceses. Sem as suas fortalezas a guardar a entrada em Roma, não haveria maneira de deter Carlos. Precisava de tempo para conceber uma estratégia destinada a vencer em esperteza o jovem rei, em lugar de tentar derrotar os franceses em combate.

Com a sua habitual perspicácia, mal fora eleito Papa, Alexandre preparara—se para a possibilidade de uma invasão estrangeira. Tinha encomendado um corredor seguro entre os quartos do Vaticano e o Castelo de SantAngelo que lhe pudesse garantir protecção. Tinha-o abastecido de comida e água suficien­tes para durarem pelo menos um Inverno, e nesta ocasião resolveu resistir todo esse tempo, se necessário.

A dada altura, sob o olhar vigilante de Duarte Brandão e Don Michelotto, Alexandre e César ordenaram aos criados que reunissem todos os seus valores é as tiaras de ouro, as jóias papais, relíquias, camas, arcas e tapeçarias - visando

a sua retirada para o Castelo de SantAngelo, uma fortaleza inexpugnável. As famílias seguiram com eles; até Vanozza deixou o seu palácio pela segurança de SantAngelo. E, com grande prudência e sensibilidade, o cardeal Farnese fez sumir sua irmã, Júlia, de Roma, evitando qualquer ocorrência que pudesse ser incómoda para o Papa. O confronto entre amantes passadas e presentes podia provocar maior perturbação a Alexandre do que a chegada do rei Carlos, pois embora Vanozza aceitasse Júlia - nunca conseguindo levá-la completamente a sério -, Júlia tinha muitos ciúmes da mãe dos filhos do Papa.

No dia de Natal, o Papa ordenou a todas as tropas de Nápoles que abando­nassem Roma de imediato. Não eram suficientemente fortes para derrotarem as tropas francesas e Alexandre temia que a sua presença na cidade fizesse Roma parecer um lugar hostil. Nessa altura Carlos poderia recorrer ao saque da cidade, arrebatando e pilhando todos os valores à medida que iam tomando conta dela, ou, no mínimo, não conseguindo refrear as suas tropas quando o fizessem.

Disse a Duarte:

  • Leva uma mensagem a Carlos, por favor. Diz-lhe que Sua Santidade o Papa Alexandre pretende dar-lhe as boas vindas quando da sua passagem pela nossa cidade a caminho de Nápoles.

Duarte franziu o cenho, semicerrando os olhos.

  • Passagem?

  • É uma maneira de dizer — volveu Alexandre, mas parecia preocupado ao acrescentar: — Embora eu não tenha bem a certeza daquilo que o bom rei tem na ideia.

Em Dezembro, à medida que a queda da neve punha tudo cinzento, o aflito Papa Alexandre e seu filho César viam da janela da sua fortaleza o exér­cito francês, em ordenadas fileiras, marchar pelas portas de Roma dentro.

Tropas suíças com letais chuços e lanças de três metros, gascões com arcos e as compridas armas de pequeno calibre a que chamavam arcabuzes, merce­nários alemães com machados e espigões e cavalaria ligeira com temíveis lan­ças inundavam a cidade. Eram acompanhados por homens de armas forte-

mente couraçados com espadas e maças de ferro e ocupando a retaguarda vinham fileiras atrás de fileiras de artilheiros franceses que marchavam ao lado de gigantescos canhões de bronze.

Preparand-se para a chegada do rei, Alexandre tinha reservado o sump­tuoso Palazzo Venezia para Carlos, que teria ao seu serviço o melhor cozinheiro que o Papa podia requisitar, e foram contratadas centenas de criados para pro­porcionar toda a sorte de luxos ao monarca francês. Em troca da hospitalidade do Papa, Carlos deu rigorosas instruções às suas tropas para que não se verifi­cassem pilhagens nem qualquer violência na cidade, sob pena de morte.

Porém, enquanto Carlos gozava a sua «visita» a Roma, impressionado com o respeito que o Papa mostrara para com ele, o cardeal delia Rovere e os seus cardeais dissidentes segredavam ao ouvido do rei, advertindo repetidamente Carlos da astúcia do Papa e instigando-o a convocar um Conselho Geral.

Alexandre mandou um dos seus muitos cardeais leais, e um dos mais per­suasivos, falar com o rei, para o defender da acusação de simonia lançada pelo cardeal delia Rovere. E Carlos pareceu mais persuadido pelos argumentos do ministro de Alexandre do que pelo martelar na mesma tecla do frenético delia Rovere.

Não foi convocado nenhum Conselho Geral.

Ao invés, passados vários dias, o rei Carlos enviou uma mensagem selada ao Papa. Quando Alexandre desenrolou o pergaminho, permitiu-se respirar fundo. Perscrutou minuciosamente o documento real e tentou apreender o estado de espírito do seu autor. Era um pedido. O rei Carlos pretendia uma audiência com ele.

O Papa ficou aliviado. Tinha conseguido o que desejava. A sua estratégia estava a dar frutos; agora afigurava-se que esta situação quase impossível podia ser negociada em seu benefício. Embora o seu território tivesse sido violado por Carlos e pelas suas tropas, o Papa sabia que tinha de manter um aspecto de supe­rioridade perante aquele impetuoso rei francês. Não queria parecer arrogante; mesmo assim, percebia que tinha de evitar que o seu alívio se tornasse evidente.

O Papa combinou um encontro nos jardins do Vaticano. A ocasião esco­lhida, porém, seria crucial. Alexandre sabia que não podia chegar antes junto do rei e dar a ideia de que estava à espera; não obstante, era igualmente impor-

tante que o rei não chegasse primeiro e fosse obrigado a esperar. Foi aqui que o génio de Alexandre atingiu o seu maior requinte.

Foi transportado de liteira ao Castelo de SantAngelo, até ao local do encontro no jardim. Mandou, porém, que os homens que o levavam o escon­dessem atrás de um grande arbusto que bordejava um dos edifícios de pedra. Aguardou ali silenciosamente durante vinte minutos. A seguir, mal se viu o rei Carlos entrar no jardim e começar a percorrer o comprido carreiro orlado de rosas escarlate, os transportadores de Alexandre fizeram avançar a sua liteira.

O Papa Alexandre envergava uma das suas indumentárias mais imponen­tes: as três coroas de ouro eram um farol cintilante na mitra que o toucava e baloiçava-lhe contra o peito um grande crucifixo cravejado de jóias.

Carlos, o poderoso rei de França, a mais pujante nação militar da cristan­dade, era um homem baixinho, quase anão, que andava de botas de tacões altos e parecia esconder a sua pessoa sob volumosas vestes de todas as cores do arco-íris. Foi tão patente o temor reverencial que lhe causou a estatura do Papa Alexandre, que lhe escorreu da boca um fio de saliva.

E foi assim, naquele jardim cheio de rosas sagradas, que o Papa Alexandre negociou para salvar Roma.

No dia seguinte, o Papa e o rei voltaram a encontrar-se para finalizarem o acordo, desta vez no Salão dos Papas. Alexandre sabia que isso lhe concederia vantagem. Carlos considerá-lo-ia um lugar sagrado, o local de encontro mais sagrado que podia haver.

Alexandre ditou que o preâmbulo fosse redigido de tal maneira que Carlos nunca pudesse agir no sentido de o depor. «O nosso Santo Padre», rezava ele, «manter-se-á o bom pai do rei de França, e o rei de França manter-se-á um filho dedicado do nosso Santo Padre.» Estava então na altura de passar aos outros assuntos em agenda.

Alexandre facultaria ao exército francês livre passagem por todos os Esta­dos Papais, e ainda por cima mantimentos. Em suma, se Carlos conseguisse tomar Nápoles pelas armas, Alexandre conceder-lhe-ia a aprovação da igreja-

Para o garantir, o Papa entregaria o seu bem-amado filho César ao rei Carlos como refém. César Bórgia seria também investido de autoridade para coroar Carlos rei de Nápoles, uma vez conquistada a cidade.

O príncipe Djem, ainda mantido cativo pelo Papa, seria igualmente entre­gue a Carlos, mas permitir-se-ia ao Papa conservar os quarenta mil ducados que o sultão da Turquia lhe pagava todos os anos para manter o irmão cativo. Carlos utilizaria Djem como um dos chefes da Cruzada, a fim de entorpecer o vigor do Infiel defensor.

O principal desejo de Carlos era ser nomeado pelo Papa comandante ofi­cial das Cruzadas. Alexandre anuiu, mas antes fez questão de que Carlos lhe jurasse obediência e o reconhecesse como o verdadeiro Vigário de Cristo.

Assim se acordou, com a excepção de que Carlos só seria nomeado coman­dante das Cruzadas depois de conquistar Nápoles.

Carlos curvou-se diversas vezes consoante necessário e beijou o anel de Ale­xandre. A seguir disse:

  • Juro obediência e reverência a Vossa Santidade, como fizeram todos os reis de França. Reconheço-vos, Santo Padre, como pontífice de todos os cris­tãos e sucessor dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo. Agora ofereço tudo o que pos­suo à Santa Sé.

Alexandre levantou-se, estreitou Carlos nos braços e disse: «Conceder-vos—ei três favores», como era costume. Antes de jurar obediência e reverência a um novo senhor, os vassalos tinham o direito de pedir favores. Para evitar qual­quer indignidade do ofício sagrado, estava entendido que os favores seriam negociados de antemão e desse modo não daria a ideia de haver regateio.

Carlos prosseguiu:

  • Peço-vos que confirmeis a minha família em todos os seus privilégios reais, que decreteis que reinamos por vontade de Deus. Em segundo lugar, que abençoeis a minha expedição a Nápoles. E, em terceiro lugar, que nomeeis car­deais três pessoas por mim indicadas, permitindo ao cardeal delia Rovere resi­dir em França.

O Papa Alexandre concordou com as condições e assim, com grande júbilo,ofei Carlos chamou do seu séquito um homem alto e magro como um cão, de rosto comprido e olhos lúgubres.

  • Santidade, quero apresentar-vos o meu físico e astrólogo, Simão de Pavia. A sua leitura das estrelas influenciou mais a minha decisão do que qualquer outro factor e levou-me a rejeitar as instigações do cardeal delia Rovere e a depositar a minha confiança em vós.

Assim, numa posição de desespero, Alexandre tinha negociado uma paz razoável.

Nessa noite, Alexandre mandou chamar César aos seus aposentos para explicar o acordo da tarde com o rei Carlos.

César sentiu um breve acesso de ira ao ouvir, mas inclinou a cabeça. Sabia que, como cardeal e filho do Papa, era logicamente um refém ade­quado. Seu irmão João, que em breve se tornaria capitão-general do exér­cito do Papa, não podia ser o refém primário. A cólera de César tinha menos que ver com o perigo da situação do que com a maneira como a transacção lhe recordava que era um peão a ser negociado de acordo com o capricho de outros.

Alexandre sentou-se na arca elegantemente trabalhada, de tampa intrica-damente esculpida por Pinturicchio, aos pés da cama. Dentro daquela arca havia taças para beber, muitas camisas de dormir, perfumes e essências extra -tudo aquilo necessário quando o Papa Alexandre trazia as suas amantes para os seus aposentos de dormir no apartamento dos Bórgia. Preferia sentar-se na arca a fazê-lo em qualquer das cadeiras dos seus aposentos.

  • Meu filho, bem sabes que não posso mandar o teu irmão João ficar como refém, pois ele vai ser o capitão-general do exército do Papa. Por conseguinte, tens de ser tu — disse Alexandre ao filho, ao aperceber-se da irritação de César. — Carlos pediu também Djem como refém, de modo que terás companhia. Anima-te! Nápoles é uma cidade para um jovem como tu. — Alexandre calou—se por um momento, com um brilho folgazão nos olhos escuros. A seguir disse a César: - Tu não tens afeição pelo teu irmão João.

Mas César estava habituado a este estratagema do pai: a jovialidade que mascarava uma intenção séria.

  • Ele é meu irmão - volveu César, respeitosamente. — Portanto tenho-lhe afeição como meu irmão.  o:

César tinha segredos muito mais terríveis a esconder do que o seu ódio ao irmão, segredos que podiam arruinar-lhe a vida e a sua relação com o pai, a igreja e os seus semelhantes. Por conseguinte não se esforçou grandemente por esconder a sua antipatia por João. Em lugar disso, riu-se.

  • Claro que, se ele não fosse meu irmão, seria meu inimigo. Alexandre franziu o cenho, de contrariedade. Sabia que lhe escapava qual­quer coisa importante.

  • Nunca digas isso, nem de brincadeira. A família Bórgia tem muitos ini­migos e só podemos sobreviver mantendo a fé uns nos outros. — Ergueu-se da arca, dirigiu-se a César e abraçou-o. — Sei que preferirias ser soldado a ser sacer­dote. Mas acredita que és mais importante nos planos da família do que o João, e bem sabes como gosto do teu irmão. Porém, quando eu morrer, tudo se des­morona a não ser que tu me sucedas. Tu és o único dos meus filhos que pode levar isso a cabo. Tens a esperteza, a ousadia e a destreza em combate. Já houve papas guerreiros, e tu podes com certeza ser mais um.

  • Sou demasiado novo — ripostou impacientemente César. — Terias de viver mais vinte anos...

Alexandre deu-lhe um empurrão com a mão.

  • E por que não? — Endereçou um largo sorriso a César, aquele sorriso travesso que tão querido o tornava dos filhos e das amantes. A sua pro­funda voz de barítono projectava-se com toda a sonoridade. — Quem gosta mais de banquetes do que eu? Quem é capaz de caçar mais horas por dia do que eu? Quem ama melhor as mulheres? Se não fosse tão estritamente contra o direito canónico um Papa ter filhos, quantos mais bastardos teria eu agora? Hei-de viver mais vinte anos e tu hás-de ser Papa. Já planeei tudo.

  • Eu preferia combater a rezar — contrapôs César. — É a minha natureza.

  • Como já provaste. — Alexandre suspirou. — Mas vou-te dizer uma coisa para te provar o meu amor por ti. Es o meu filho querido e a minha maior esperança. Um dia tu, e não Carlos, reconquistarás Jerusalém. - Fez uma pausa momentânea, dominado pela emoção.

112

A mais temível arma de Alexandre era a sua capacidade de inspirar uma sen­sação de bem-estar na sua companhia; era esta capacidade de fazer as pessoas pensar que o seu bem-estar era da maior importância para ele que nelas susci­tava a confiança nele e as fazia acreditar mais nele do que em si próprias. Era esta a sua verdadeira perfídia.

E assim era nas suas transacções com a realeza, com os filhos e com os súb­ditos; porque, enquanto fosse Papa, a terra inteira estava sob o seu domínio.

Por um instante o sortilégio de Alexandre extasiou César. Porém a referên­cia a outra Cruzada quebrou o encantamento. Papas e reis tinham muitas vezes usado a esperança de outra Cruzada para extorquirem dinheiro aos crentes; era outra fonte de rendimento. Mas o tempo das Cruzadas tinha passado, pois o Islão era agora demasiado forte. Ameaçava a própria Europa. Veneza vivia no terror de que o seu comércio com todo o mundo fosse interrompido por uma guerra dessas e de que os turcos pudessem mesmo atacar a cidade. França e Espanha estavam constantemente engalfinhadas pela coroa de Nápoles e o pró­prio Papa via-se e desejava-se para conservar o poder temporal nos Estados Papais de Itália. E o pai era demasiado inteligente para não saber tudo isso. Porém César sabia também que João ocupava o primeiro lugar no coração do pai — e com razão, pensava. João tinha as artimanhas de uma mulher tortuosa e o coração de um cortesão. Às vezes conseguia mesmo fascinar o próprio César, embora este o desprezasse por o achar um cobarde. Comandante do exército do Papa? Só por piada!

  • Quando chefiar a Cruzada, hei-de fazer a tonsura — disse César. Era uma piada entre ele e o pai. Nunca usara o cabelo com a tonsura sacerdotal.

Alexandre riu-se.

  • Depois de chefiares a Cruzada, talvez consigas convencer a igreja a aca­bar, quer com o celibato quer com a tonsura dos padres. Talvez uma e outra sejam práticas saudáveis, mas mesmo assim são contra a natureza. — Ale­xandre manteve-se calado por um momento, perdido em reflexões. Depois disse: — Deixa-me recordar-te uma coisa. Quando acompanhares o exército de França a Nápoles, tens de guardar a vida do teu companheiro refém, Djem. Lembra-te de que o sultão da Turquia me paga quarenta mil duca­dos todos os anos pela sua custódia. Se ele morrer, acabou-se o dinheiro; se

  • Guardá-lo-ei a ele e a mim - respondeu César

  

 na mão „ dos Borgia  Farei sempre o que puder.  „

Sabendo que à tarde seria tomado como refém e obrigado a abandonar Roma, César deixou o Vaticano, a cavalo, antes do amanhecer e internou-se no campo. Tinha apenas um propósito em mente.

Depois de cavalgar durante bastante tempo, atravessando colinas e cru­zando uma floresta povoada pelo restolhar de animais e pelo piar dos mochos, alcançou os arrabaldes de uma pequena aldeia no preciso momento em que o sol despontava para arredar as sombras da noite. O cavalo estava suado, da velocidade e do esforço da jornada.

Quando chegou à pequena cabana de pedra, chamou. - Noni, Noni — clamou, mas ninguém respondeu. Até onde a sua vista alcançava, os campos estavam desertos. Deu a volta até às traseiras.

Estava ali uma velha, quase dobrada pelos anos, pesadamente apoiada num pau de pilriteiro. Arrastava os pés ao atravessar o jardim, levando no braço um cesto de vime cheio de ervas e flores acabadas de colher. Por um momento curvou-se e ncou parada, com a cabeça tão baixa que por pouco não se desequilibrou; depois levantou dissimuladamente a cabeça e olhou em redor em todas as direcções, lorem, através dos olhos toldados, não o viu. Poisou o cesto no solo molhado, colheu mais um molho de ervas e depositou-as cuidadosamente mesmo em cima é nores. Volveu o olhar para cima e persignou-se. Depois, como que confundida, Prosseguiu o caminho a arrastar os pés, com as sandálias a sulcar a lama.

  • Noni - gritou novamente César à velha, ao fazer a montada aproximara-

  • se dela.Noni!                                                                                 -

A mulher deteve-se ao vê-lo e levantou prontamente o seu pau de pilriteiro para bater. A seguir, porém, através dos olhos semicerrados, reconheceu-o. Só então sorriu.

  • Apeia-te, meu rapaz — disse, com uma voz tensa, da idade e da emoção. — Vem cá e deixa-me tocar-te.

César desmontou e passou os braços à volta da velha, abraçando-a suave­mente, com receio de que os seus ossos frágeis se quebrassem.

  • Que posso eu fazer por ti, meu filho? - perguntou ela.

  • Necessito da tua ajuda - respondeu ele. - Uma erva que ponha um homem corpulento a dormir por muitas horas, mas que não lhe faça mal. É preciso que não tenha sabor e também que não tenha cor.

A velhota soltou uma casquinada a estendeu a mão para tocar afectuosa­mente a face de César.

  • Bom rapaz. És um bom rapaz — repetiu. — Veneno, não? Não és como o teu pai... — murmurou. Depois voltou a casquinar e o rosto encarquilhou-se—lhe como uma delgada folha de pergaminho castanho.

César conhecia Noni desde sempre. Corria em toda a Roma que ela fora a ama de leite do pai em Espanha e que Alexandre tinha tal afeição por ela que a trouxera para Roma e lhe concedera aquela casinha no campo e um jardim onde cultivar as suas ervas.

Não havia memória de ela não viver sozinha, apesar do que ninguém a incomodara nunca: nem sequer os bandidos nocturnos ou grupos de indisci­plinados vândalos de rua que por vezes vagueavam pelo campo para saquear e pilhar os aldeões fracos e indefesos. Era espantoso que tivesse sobrevivido tanto tempo. E no entanto, a dar crédito a outros rumores, Noni tinha muitíssimo maior protecção do que o próprio Santo Padre. Porque se dizia também que na escuridão da noite se ouvia muitas vezes um estranho uivar proveniente daquela casa, e não só nas noites de lua cheia. E uma coisa sabia César que era verdade: ela nunca tinha que caçar ou fazer compras para comer. Isto porque se afigurava que apareciam pássaros e pequenos animais mortos à sua porta ou no jardim prontinhos para a panela.

César raramente ouvia o pai falar dela, e nessas escassas ocasiões fazia-o com ternura e simpatia. Porém, todos os anos, cerimoniosamente, Alexandre diri­gia-se àquela casa perdida no interior do campo para ser banhado por Noni no pequeno e límpido tanque das traseiras. Os que com ele iam mantinham-se afastados, mas todos juravam ter ouvido o som de ventos tempestuosos e asas a adejar e visto uma grande espiral de estrelas.

Havia também outras histórias. Alexandre usava ao pescoço um amuleto que Noni lhe tinha dado quando jovem cardeal e uma vez, quando o perdera, ficara num frenesi. Nessa mesma tarde durante uma caçada caíra do cavalo, batera com a cabeça e ficara inconsciente durante horas. Toda a gente pensara que morreria.

Nesse dia, todos os criados do seu castelo e muitos cardeais procuraram o amuleto perdido e, após muitas promessas e fervorosas orações, acabaram por encontrá-lo. Alexandre restabeleceu-se e, mal teve possibilidades, mandou o ourives do Vaticano fazer um cadeado resistente, montado num grosso fio de ouro, para pendurar o amuleto de âmbar. Mais tarde mandou soldar o cadea­do para nunca o poder tirar. Jurava que o protegia do mal e não havia quem o convencesse do contrário.

Noni entrou lentamente, seguida por César. Pendurados em várias peque­nas escápulas que forravam as paredes da casa obscurecida, havia molhos de ervas de todo o género amarrados com guitas. A velhota arrancou cuidadosa­mente umas folhas de um desses molhos e, com os dedos nodosos e aduncos a envolver o pilão de pedra, colocou as folhas num almofariz, esmagando-as até obter um pó fino. A seguir meteu este num saquinho e deu-o a César.

  • Este é o grande segredo da planta do horielzitel — disse-lhe. — E capaz de induzir um sono sem sonhos. Precisas apenas de uma pitada para um homem, mas dei-te aqui o suficiente para um exército.

César agradeceu à velhota e tornou a abraçá-la. Quando ele ia montar no cavalo, porém, ela poisou-lhe a mão no braço e advertiu-o:

  • Há morte na tua casa. Alguém jovem. Protege-te, porque também estás em perigo.

César acenou afirmativamente e procurou tranquilizá-la.

é A morte está sempre por perto, porque vivemos numa época perigosa.

 

Acompanhando a cavalaria francesa, César via as disciplinadas tropas gal­garem vastas porções de terreno, parando apenas para conquistarem castelos hostis ao desbravarem caminho em direcção a Nápoles com a precisão militar de uma gigantesca foice.

Embora César devesse ser um refém, era tratado com grande respeito pelos soldados e frouxamente guardado, mesmo de noite. Durante os longos dias era evidente o seu amor às campanhas: observava os comandantes franceses a pla­nearem as suas tácticas militares e estudava as suas estratégias. Ali, nos campos de batalha, não era um cardeal, mas sim um combatente, e César sentiu-se em casa pela primeira vez na vida.

Se os interesses de César fossem apenas os pessoais, a sua vontade era acom­panhar os franceses até conquistarem Nápoles. Quer como filho quer como príncipe da Santa Igreja, porém, tinha outras questões a considerar. Sabia que, apesar do pacto de Alexandre com o rei Carlos, o pai não queria que os fran­ceses ou qualquer outra potência estrangeira controlassem sequer o mais pequeno feudo de Itália. Tinha a certeza de que, enquanto ele cavalgava por aqueles campos fora rumo a Nápoles, Alexandre ia reunindo com os embaixa­dores de Espanha, Veneza, Milão e Florença, tentando construir uma Santa Iga de cidades-estados para resistir à agressão estrangeira a Itália.

Sabia também que, enquanto ele marchava com os franceses rumo a Nápo­les, Espanha preparava navios e aprontava tropas para os deter. E se por acaso as tropas francesas chegassem mesmo a Nápoles e o exército de Carlos conse-

guisse aguentar os ataques das ferozes e sanguinárias tropas napolitanas o tempo suficiente para conquistar Nápoles e derrubar o rei Masino, o Papa Ale­xandre, apoiado pelo rei Fernando de Espanha, com a ajuda de Veneza, podia recuperar a coroa e obrigar os franceses a retirar.

Havia, contudo, uma grande dificuldade a ter em conta. Tudo isto podia ser realizado se - e tratava-se de um perturbante se- se a vida de César não estivesse em causa. Agora que era refém, sentia que o pai poderia hesitar, que poderia até recusar-se a encarar a hipótese de tomar qualquer atitude contra os franceses por causa dele. A solução, claro, era evidente. Tinha de fugir. Mas permanecia sem­pre a questão de Djem. Poderia levá-lo? E estaria ele pelos ajustes?

Ao longo dos últimos dias, o próprio Djem dava a impressão de desfrutar da sua situação de refém dos franceses. De facto, ainda na noite anterior, César tinha-o ouvido falar com os militares, a beber com eles e a planear excitada­mente ajudar a derrubar o seu próprio irmão, o sultão. Não constituiria tarefa simples convencer Djem a regressar com ele a Roma e seria um perigo fiar-se nele.

César analisou então as suas alternativas: uma dupla fuga duplicaria o perigo, e ele não se podia dar ao luxo de falhar. Djem não estava em perigo nas mãos dos franceses, pois vivo possuía valor como meio de comprometer o Papa e, se Alexandre e Espanha fracassassem no seu plano, seria certamente uma ajuda para Carlos na sua Cruzada. Morto, não teria evidentemente valor algum. E, por conseguinte, César tomou a sua decisão.

Nessa noite, por volta da meia-noite, saiu para o exterior da tenda. Dois guardas — jovens com os quais tinha alguma familiaridade, pois tinham passado muitas noites juntos — estavam sentados na terra à volta de uma pequena fogueira.

César saudou-os.

  • Está uma linda noite. Límpida e fresca, não é verdade? — Quando eles exprimiram a sua concordância, fingiu perscrutar os céus. — Lua cheia — disse -> e contudo não oiço nenhum uivo... — A seguir soltou uma risada, a fim de eles perceberem que estava a brincar.

Um dos jovens estendeu um frasco e ofereceu-lho. César, porém, abanou a cabeça.

  • Tenho uma coisa melhor — disse. E voltou a entrar na tenda, regressando com uma garrafa de bom vinho tinto e três taças de prata.

Os olhos dos soldados cintilaram ao luar quando ele estendeu uma taça a cada um e encheu outra para si.

Os homens brindaram uns aos outros na escuridão, à entrada da tenda, observando juntos as estrelas. Passado pouco tempo, porém, os dois jovens principiaram a bocejar. César deu-lhes as boas-noites e entrou na tenda, onde devolveu o saquinho castanho que Noni lhe dera ao respectivo esconderijo e se sentou à espera.

Daí a vinte minutos César espreitou o exterior da tenda, verificando que ambos os guardas dormiam profundamente.

A seguir, completamente vestido, esgueirou-se silenciosamente através da comprida fiada de tendas até ao sítio onde estavam amarrados os cavalos. Havia lá outro soldado de costas para César, a vigiar os militares que dormiam. César aproximou-se silenciosamente por detrás, tapando a boca do guarda com a mão a fim de garantir que não se escapasse nenhum som. Depois aplicou-lhe rapi­damente uma chave de cabeça e com o antebraço exerceu uma forte pressão na garganta e no pescoço do soldado. Daí a instantes o jovem perdia os sentidos.

César encontrou o seu cavalo, um veloz e vigoroso garanhão preto, e caval­gou-o em pêlo, como tantas vezes fizera no Lago de Prata. Uma vez atingida a estrada, César principiou a correr à desfilada pela noite adentro na direcção de Roma.

No dia seguinte, depois de um banho e de uma troca de roupa, César foi conduzido ao escritório do pai. Alexandre levantou-se para o saudar com lágri­mas nos olhos. E quando o Papa o abraçou, fê-lo com tamanha força que César se sentiu surpreso.

Na voz de Alexandre ressumava genuína afeição.

cesar, meu filho, não podes imaginar a minha tortura nestes últimos dias.

livraste-me da mais terrível escolha da minha vida. Assim que eu reunisse os fos da Santa Liga, sabia que Carlos havia de considerá-lo uma violação

do nosso acordo e por conseguinte temia pela tua segurança. Por uma das pou­cas vezes na vida, fui atormentado pela indecisão. Deveria abandonar os meus planos relativamente à Liga e sacrificar os nossos territórios e o papado? Ou deveria avançar, com o risco da vida do meu querido filho?

César raramente vira o pai tão angustiado, e sentiu-se divertido.

  • E que decidiste tu? - perguntou, em tom jocoso.

  • Agora já não tem grande importância, meu filho — respondeu Alexandre, sorrindo meigamente. — Porque estás são e salvo e assim resolveste o meu dilema.

A reacção do rei Carlos à fuga de César foi mais moderada do que o Papa esperara. E, mal soube o resultado da campanha napolitana do rei, compreen­deu porquê.

As tropas francesas tinham conseguido ocupar Nápoles; o rei Masino, sem dar luta, tinha abdicado e fugido. O rei Carlos ganhara. Tinha vencido o pri­meiro obstáculo à sua conquista de Jerusalém e ao derrube do Infiel. E estava pouco interessado em arrefecer a sua disposição preocupando-se com a fuga de César. Tudo o que agora queria era gozar a beleza de Nápoles, a comida, as mulheres e o vinho.

Porém, com César em liberdade, Alexandre passou rapidamente à acção a fim de pôr em marcha os seus planos para a Santa Liga. Agora que o rei Fer-rante tinha morrido, e já não havia qualquer ameaça de Nápoles invadir Milão, II Moro estava disposto a alinhar novamente com Roma. Começaram a reunir—se no norte tropas de Milão e Veneza; projectavam juntar-se aos espanhóis, cujos navios aterrariam abaixo de Nápoles e avançariam pela península ita­liana acima.

Sentado no trono, Alexandre chamou César e Duarte Brandão aos seus aposentos a fim de passar em revista a sua estratégia militar e os planos para a Santa Liga.

  • Não te preocupa, Pai — perguntou César —, que o rei Carlos considere uma ofensa terrível o facto de teres faltado à tua palavra relativamente a Nápoles-

Alexandre pareceu intrigado por um momento, após o que franziu o cenho.

  • Faltado à minha palavra? - ripostou. - De que estás tu a falar, César? Eu prometi não interferir na sua conquista de Nápoles. Nem uma única vez disse que lhe permitiria conservá-la.

Duarte sorriu.

  • Duvido de que o jovem rei seja capaz de apreender essa subtileza. César prosseguiu.

  • Por conseguinte o teu plano é que as forças da Santa Liga devem bloquear o caminho da fuga, de forma que o exército francês seja esmagado entre os espanhóis a sul e as tropas de Veneza e Milão a norte? Isso é ser apanhado entre o martelo e a bigorna, pai.

Duarte perguntou:

  • E se o exército francês conseguir avançar até Roma passando as tropas espanholas e napolitanas?

Alexandre ficou pensativo.                                                             

  • Se eles escapassem às nossas tropas do sul e conseguissem atingir a nossa cidade, mesmo que fosse só por alguns dias, podiam causar danos considerá­veis. Certamente saqueariam a cidade...

  • E, Santo Padre, desta vez tenho sérias dúvidas de que o rei Carlos os deti­vesse... — observou Duarte, i.

César pensou um pouco, após o que fez uma sugestão.

  • Carlos tem de perceber que, se quer reclamar Nápoles, tem de vos con­vencer a romper a aliança com a Santa Liga. Tem também de ser coroado por ti e receber as tuas bênçãos, porque o suserano és tu.

Alexandre ficou impressionado com a análise do filho, mas sentia que havia qualquer coisa que César não estava a dizer.                          o

  • E, meu filho, a tua estratégia seria...? César sorriu maliciosamente.

  • Se o rei francês encontrar Vossa Santidade aqui ao retirar, pode aprovei­tar a oportunidade para a forçar a fazer concessões. Mas se estiverdes noutro lugar...

Quando a guarda avançada francesa entrou na cidade, trouxe a Carlos a informação de que o Papa tinha ido para norte, com destino a Orvieto. O rei Carlos, determinado a convencer o Papa a fazer o seu lanço, ordenou ao seu exército que atravessasse Roma e prosseguisse até Orvieto. Porém, quando os batedores de Alexandre avistaram a guarda avançada francesa a aproximar-se de Orvieto, Alexandre estava preparado. Não tardou que ele e a sua comitiva se pusessem a caminho, dirigindo-se a toda a velocidade para Perugia, onde ele se encontraria com Lucrécia.

De Orvieto, Alexandre tinha já mandado Don Michelotto acompanhar a filha no regresso através das montanhas, pois havia vários meses que não a via e precisava de se certificar do seu bem-estar e falar com ela acerca do marido. O Papa achava que seria agradável ter a companhia de Lucrécia: ajudaria a pas­sar o tempo enquanto aguardava o desfecho da invasão francesa.

O rei Carlos entrou em Orvieto ansioso por convencer Alexandre a firmar outro tratado. Todavia, frustrado pela notícia de que o Papa tinha seguido para Perugia, Carlos mandou iradamente o seu exército abandonar Orvieto e diri­gir-se para Perugia.

Subitamente, reconheceu adiante, na estrada, um dos seus guardas avança­dos. O soldado, esbaforido, gaguejava ao dar a notícia de que as tropas da Santa Liga, em grosso número, estavam a concentrar-se no norte. Carlos teve de modificar os planos. Depois recebeu outra má nova. O seu novo aliado, Vir-gínio Orsini, tinha sido capturado pelas tropas espanholas. Estavam agora a avançar para sul, mesmo atrás de Carlos.

Carlos não podia desperdiçar mais tempo na perseguição daquele Papa fugaz. A armadilha que receara estava prestes a saltar e o seu exército era a presa. Sem um momento a perder, obrigou impiedosamente as suas tropas a prosseguir em direcção aos Alpes, numa série de marchas forçadas. Chegaram mesmo a tempo. Mesmo assim, as suas tropas tiveram de combater contra os infantes da Santa Liga com chuços a fim de atravessarem a fronteira até à segurança.

O rei Carlos, muito abalado e derrotado, regressava a França.                  

Agora que Roma estava temporariamente tranquila, o Papa deslocou-se até ao Lago de Prata para uma necessária pausa. E mandou imediatamente cha­mar os filhos para se lhe juntarem numa comemoração familiar.

Lucrécia veio de Pesaro; João veio de Espanha sem a sua Maria; Godofredo e Saneia deixaram Nápoles para se associarem às festividades. A família Bórgia estava novamente reunida. Júlia Farnese e Adriana chegariam até ao fim da semana, pois Alexandre fazia tenção de passar os primeiros dias com os filhos e não queria distracções.

Rodrigo Bórgia tinha erigido no Lago de Prata uma majestosa casa de pedra, uma cabana de caça com estábulos para os seus valiosos cavalos e várias pequenas choupanas para alojar as mulheres e crianças que frequentemente o acompanhavam quando fugia do sufocante calor estival da cidade. O Papa Ale­xandre adorava rodear-se de mulheres bonitas requintadamente vestidas e ouvir o som daquelas delicadas criaturas a rir alegremente. Assim, com os maridos ausentes em locais distantes, muitas destas jovens beldades da corte acompa­nhavam-no, algumas com os respectivos filhos. Os rostos radiosos das crian­ças, tão jovens e sem mácula, enchiam-no de uma sensação de esperança.

A sua roda de nobres e respectivas esposas, aios e aias, criados e cozinhei­ros do palácio para confeccionarem as sumptuosas refeições a servir, junta­mente com os membros da sua corte, perfazia mais de cem pessoas. Havia músicos e actores, malabaristas e bobos, todos eles para prestarem o seu con-uto nas comédias e representações que o Papa tanto apreciava.

124

O Papa Alexandre passou muitos dias sentado à beira do lago com os filhos. Durante aquele período sereno, presenteava-os muitas vezes com nar­rações dos grandes milagres que tinham ocorrido quando os pecadores de Roma vinham banhar-se nas águas do lago a fim de se lavarem dos seus dese­jos pecaminosos.

Anos atrás, da primeira vez que contara aquelas histórias, César perguntara:

  • Também te banhaste nas águas, pai? O cardeal sorrira.

  • Nunca — disse. — Pois que pecados cometi eu? César rira-se.

  • Então, tal como o meu pai, não faço tenções de me banhar. Lucrécia olhara para ambos e dissera maliciosamente:

  • Imagino que nenhum de vocês precisa de um milagre, não? Rodrigo Bórgia lançara a cabeça para trás e rira com genuína alegria.

  • Bem pelo contrário, minha filha — disse. E a seguir, com a mão na boca, sussurrara: - Mas de momento tenho maior necessidade dos meus desejos ter­renos, e vivo no terror de eles me serem levados cedo de mais. Há-de vir o tempo. Mas não enquanto a fome da plenitude da vida que sinto na barriga for maior do que a fome de salvação da minha alma...

Nessa altura benzera-os, como se receasse um sacrilégio.

Agora, todos os dias principiavam com uma caçada de manhã cedo. Embora pelo direito canónico estivesse vedado ao Papa caçar, ele invocava as recomendações dos seus médicos segundo as quais devia fazer exercício. No íntimo, pensava mudamente, fazia outras coisas que eram proibidas, muitas das quais lhe agradavam menos que caçar. Quando chamado à atenção pelo criado de quarto por calçar umas botas que impossibilitavam os seus súbditos de mostrar o seu respeito beijando-lhe os pés, ele gracejava dizendo que pelo menos isso impedia os cães de caça de lhe levarem os dedos dos pés.

À volta da cabana de caça, tinham sido fechados quarenta hectares com vedações compostas por estacas de madeira e grosso pano de vela, formando um enclave onde a caça naturalmente se congregava. Antes de cada caçada, empilhavam-se quilos e quilos de carne crua junto do largo portão do cercado para serem utilizados a fim de atrair os animais ao seu destino.

Quando o dia principiava a despontar, reuniam-se os caçadores. Depois de beberem um forte vinho de Frascati para engrossarem o sangue e fortalecerem—se, Alexandre abatia o estandarte papal. Ao som do clangor das trombetas e do rufar dos tambores, abriam-se os portões do cercado da caça. Uma dúzia de ajudantes corria lá para dentro a fim de espalhar um trilho de carne crua e os animais precipitavam-se pelos portões fora para aquilo que julgavam ser a liber­dade. Veados, lobos, javalis, lebres, porcos-espínhos, todos eles eram encon­trados pelos caçadores. Brandindo lanças e espadas - até achas de armas para os mais sanguinários —, os caçadores perseguiam a sua presa.

Lucrécia e Saneia, com as respectivas aias, estavam em segurança em cima de um estrado de forma a poderem assistir sem perigo à mortandade. A pre­sença de mulheres nas caçadas tinha o objectivo de inspirar e encorajar os caça­dores, mas Lucrécia, repugnada, tapava os olhos e virava a cabeça. Havia qual­quer coisa dentro de si que se retraía perante a similitude entre o destino daqueles pobres animais encurralados e o seu. Saneia, em contrapartida, não via qualquer significado mais profundo naquela exibição; exultava com o espectáculo, consoante dela se esperava, e ia ao ponto de dar o seu lenço de seda ao cunhado, João, para este o embeber do sangue de um javali abatido. Porque, embora não fosse tão hábil como César no manejo das armas, João tinha propensão para a crueldade e uma necessidade de impressionar que o tor­navam o caçador mais dedicado da família. Exibia a sua coragem não arre­dando pé quando um grande javali atacava, para a seguir o abater com uma lança e desferir-lhe golpes com a acha de armas.

César cavalgava pelo terreno de caça com dois dos seus galgos favoritos, Urze e Cânhamo. Embora fingisse caçar, do que na realidade gostava era de correr com os galgos, e naquele dia estava ocupado com os seus pensamentos. Invejava João. O irmão podia viver uma vida plena, uma vida normal, e aspi­rar a uma carreira militar, enquanto César estava comprometido com a igreja, uma carreira que não tinha escolhido e da qual não gostava. À medida que a atrabílis lhe subia na garganta, sentiu um ódio crescente pelo irmão. Mas, tão depressa como lhe ocorrera, censurou-se pelo que sentia. Um homem bom, especialmente um homem do clero, nunca podia odiar o irmão. Não só era ar>tinatural, não só entristeceria o pai, como era perigoso. João, como capitão-

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  • general do exército do Papa, tinha mais poder do que qualquer cardeal da Igreja Católica. E restava outra verdade: mesmo após todos aqueles anos e de todos os seus esforços por agradar e notabilizar-se, continuava a ser João, e não ele, o favorito do pai.

Embrenhado em pensamentos, César foi rapidamente devolvido à atenção integral pelo ganido estridente de um dos seus galgos. Ao cavalgar em direc­ção ao lastimoso som, viu o magnífico animal pregado ao chão por uma lança. Quando desmontou para ajudar o galgo ferido, viu o rosto bem parecido do seu irmão João desfigurado por uma carranca feroz. E percebeu repentina­mente o que tinha acontecido. João tinha falhado o veado em fuga e atingira o galgo. Por um momento César pensou que podia ter sido intencional, mas depois o irmão fez a montada aproximar-se dele e disse, a desculpar-se:

  • Eu compro-te outra parelha para o substituir, irmão.

Segurando ainda na mão a lança retirada, César baixou os olhos para o galgo morto e por um instante sentiu uma raiva assassina.

A seguir viu o pai avançar até ao local onde um javali estava preso num emaranhado de cordas, aguardando o golpe fatal da sua lança. O Papa passou por eles, gritando:

  • O trabalho do caçador já foi feito neste animal; tenho de encontrar outro... Esporeou com força o flanco do cavalo e logo arrancou para seguir outro

grande javali. Outros caçadores, preocupados com a imprudência e a veloci­dade do Papa, vieram ao seu encontro para o protegerem; mas nessa altura o Papa, que era ainda um homem possante, já tinha enfiado a sua lança bem fundo no flanco do javali, infligindo um ferimento mortal. O Papa enterrou a lança duas vezes mais, trespassando o coração do animal moribundo. Cessaram os derradeiros estremecimentos frenéticos do javali e os restantes caçadores caí­ram sobre a carcaça e retalharam-na em pedaços.

Ao observar a corajosa exibição do pai e admirar-se com o vigor do homem, César sentiu orgulho nele. Se o próprio César não fazia o que queria na vida, fazia pelo menos o que o pai queria, e sabia que isso era motivo de alegria para Alexandre. Ao olhar para o animal tombado, pensou que era uma sorte ser o homem que o pai queria que fosse.

Ao crepúsculo, César e Lucrécia caminhavam de mãos dadas à beira das reluzentes águas do lago. Faziam um belo par, aqueles dois irmãos: a elegância alta e morena do bem parecido rapaz contrastava flagrantemente com a cabe­leira loira e os olhos cor de avelã da irmã, que frequentemente se iluminavam de inteligência e divertimento. Naquela noite, porém, ela estava perturbada.

Lucrécia disse:

  • Foi um erro, César, o papá obrigar-me a casar com o Giovanni. Ele não é um bom homem. Quase não me fala e, quando o faz, é rude e malcriado. Não sei do que estava à espera. Sabia que o nosso casamento era um casamento de conveniência política, mas não fazia ideia de que seria tão infeliz.

César procurou ser meigo.

  • Bem sabes, Crezia, que o Ludovico continua a ser o homem mais pode­roso de Milão. O Giovanni ajudou a cimentar a nossa relação com a família num momento crucial.

Lucrécia acenou afirmativamente.

  • Eu compreendo. Mesmo assim, julguei que sentiria outra coisa. Mas, mal ajoelhei naqueles ridículos escabelos de ouro, naquele casamento obscena-mente sumptuoso, e olhei para o homem que viria ser meu marido, percebi que havia qualquer coisa que não estava nada bem. Não sabia se havia de rir ou chorar quando vi todos aqueles cardeais de paramentos de cor púrpura e os aios de vestes turcas de brocado de prata. Era para ser uma solenidade, mas eu sentia-me absolutamente infeliz.

  • Não houve nada que te agradasse? — perguntou ele, a sorrir.

  • Houve — respondeu ela. — Tu, vestido de preto. E as gôndolas venezianas feitas com as vinte mil rosas.                                                                    i

César deteve-se e virou-se para a irmã.

  • Eu não conseguia suportá-lo, Crezia - disse. - Não podia suportar a ideia da tua pessoa nos braços de outro homem, fosse qual fosse a razão. Se pudesse rnanter-me ausente e não fazer parte daquele fiasco, fá-lo-ia. Mas o papá insistiu que eu lá estivesse. Nesse dia o meu coração estava tão negro como o meu traje...

Lucrécia beijou suavemente o irmão nos lábios.

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  • O Giovanni é um fanfarrão arrogante - disse. - E é um amante horro­roso. Escapei por pouco às suas garras chorando que nem uma Madalena. Nem sequer tolero o seu cheiro.

,:.   César tentou esconder o sorriso.

  • Ter relações com ele não é a alegria que é comigo? — perguntou. Lucrécia soltou uma risadinha contra vontade.

-,   — Meu querido amor, para mim é a diferença entre o céu e o inferno.

Quando recomeçaram a andar, atravessaram uma pequena ponte e entra-«am na floresta.

  • O teu marido faz-me lembrar o nosso irmão João — disse César. Lucrécia abanou a cabeça.

  • O João é jovem. Talvez com o crescer lhe passe. Para ele, ter-te como irmão não é a bênção que é para mim.

César manteve-se calado durante algum tempo, mas, quando falou, foi num tom muito sério.

  • Na verdade, acho que o nosso irmão Godofredo é mais uma maldição para a família do que o João. Aceitei a sua estupidez, mas a casa que ele e a San­eia montaram é um escândalo. Mais de cem criados só para os dois? Pratos de ouro e taças cravejadas de jóias para duzentos convidados sempre que lhes ape­tece? É uma loucura e reflecte-se negativamente na nossa família. Pior ainda, é perigoso para o filho de um Papa viver de uma maneira tão extravagante.

 Lucrécia concordou.

  Bem sei, Chez. O papá também está aborrecido com isso, embora rara­mente o reconheça. Mas ele gosta menos do Godofredo do que do resto de nós e, conhecendo a sua fraqueza e falta de entendimento, é mais indulgente.

César deteve-se uma vez mais para contemplar Lucrécia à luz do luar. A sua pálida tez de porcelana parecia mais luminosa do que o costume. César ergueu—lhe delicadamente o rosto para poder fitá-la nos olhos. Viu, porém, tamanha tristeza, que foi obrigado a desviar a vista.

  • Crezia — disse então —, queres que eu fale com o papá sobre a possibili­dade de te divorciares do Giovanni? O pai adora-te. Pode ser que esteja pelos ajustes. O Giovanni consentiria?

Lucrécia sorriu para o irmão.

  • Nao tenho duv.das de que o meu marido poderia facilmente viver sem num; do que ele sentiria a falta seria do meu dote. Foi sempre o ouro na sua mão, e não o ouro do meu cabelo, que lhe conquistou a afeição.     César sorriu da sua sinceridade.

  • Vou aguardar o momento oportuno e nessa altura colocarei o ao papá.           

Enquanto o anoitecer descia lentamente sobre o Lago de Prata, João dispôs—se a mostrar à mulher de Godofredo, Saneia, a velha cabana de caça do pai. Agora que o novo barracão, mais elegante, tinha sido concluído, aquela rara­mente era usada.

Saneia tinha a mesma idade que João, embora parecesse muito menos madura. Com os seus olhos verde-escuros, as compridas pestanas negas e a luzi­dia cabeleira negra de azeviche, era bonita, ao jeito clássico aragonês. Toda a sua atitude era frívola e irrequieta, o que dava a toda a gente uma impressão de um génio folgazão. Na realidade era uma pretensão superficial, um estafado expediente para fascinar os inocentes.

João deu a mão a Saneia ao conduzi-la pelo carreiro invadido pela vegeta­ção até uma clareira da floresta. Ali chegada, ela viu a casa, de pinho mal des­bastado e com uma chaminé de pedra.

  • Não é o lugar adequado para uma princesa — observou João, sorrindo-lhe. Isto porque, no fim de contas, ela era filha do rei Masino de Nápoles e por conseguinte uma verdadeira princesa.

  • Eu acho-o encantador — respondeu Saneia, prendendo ainda a mão de João.

Uma vez no interior, João acendeu uma fogueira, enquanto Saneia deambu­lava em torno da sala, examinando os muitos trofeus de cabeças de animais fixa­dos na parede. Parou e passou a mão pelo guarda-louça de madeira de árvore de fruto, pelo espaldar da cama de penas e pelas outras peças de bom mobiliário cuja patina dourada reflectia anos de cuidadosa utilização e enceramento.

  • Por que é que o teu pai mantém esta casa mobilada, se já não é usada? “” perguntou.

João, que estava ajoelhado diante da lareira, ergueu a vista e sorriu.

  • O pai ainda a usa de vez em quando, quando tem alguma visita com a qual quer estar a sós... como nós agora.

João pôs-se de pé e atravessou a sala, aproximando-se dela. Atraiu-a rapi­damente a si, rodeando-a com os braços. A seguir beijou-a. Por momentos ela manteve-se silenciosa, mas depois esquivou-se-lhe, murmurando:

  • Não, não, não posso. O Godofredo há-de...

O desejo de João forçou-o a puxar Saneia ainda mais contra si, ao mesmo tempo que dizia num sussurro rouco:

  • O Godofredo não há-de fazer nada. Não é capaz de nada!

João podia antipatizar com o seu irmão César, mas respeitava a sua inteli­gência e dotes físicos. Pelo frívolo Godofredo, em contrapartida, sentia apenas desdém.

João voltou então a atrair a si a mulher do irmão. Enfiando a mão por baixo da sua larga saia branca, acariciou-lhe o interior da coxa, avançando lentamente os dedos por ela acima até senti-la reagir. A seguir empurrou-a na direcção da cama próxima.

Daí a segundos estavam deitados. Iluminado apenas pelo fulgor bruxu-leante da fogueira, o comprido cabelo negro de Saneia espalhado na almofada dava-lhe um ar requintado, ao mesmo tempo que a saia muito levantada infla­mava o desejo de João. Rapidamente, pôs-se em cima dela. Quando a pene­trava, para depois lentamente se retirar, ouviu-a gemer. Não resistia, porém; ao invés, beijava-lhe uma e outra vez com força os lábios abertos, bebendo da boca dele como se tivesse uma sede insaciável. João começou a acometê-la com mais força, numa sucessão de longas e poderosas arremetidas, penetrando cada vez mais fundo nela, arredando da mente de Saneia todos os pensamentos de «não» e de Godofredo e precipitando-a num vórtice de descuidado esquecimento.

Nessa noite o Papa e a família jantaram tarde ao ar livre nas margens do Lago de Prata. Havia lanternas coloridas suspensas das árvores e ao longo das margens tremeluziam archotes a arder sobre altos postes de madeira. A caça

que tinham abatido proporcionou um grande festim, suficiente para alimen­tar os mais de cem membros do séquito do Papa, deixando bastantes restos para os pobres das cidades vizinhas. E, depois de os malabaristas e músicos terem actuado para eles durante o banquete, João e Saneia levantaram-se e can­taram um dueto.

César, sentado ao lado de Lucrécia, perguntou a si mesmo onde teriam eles arranjado tempo para ensaiarem juntos, pois cantavam muito bem. O marido de Saneia, porém, pareceu satisfeito e aplaudiu. César interrogou-se: seria mesmo Godofredo tão obtuso como parecia?

O Papa Alexandre gostava tanto de uma boa conversa como de caçadas, comida e mulheres bonitas. Após o banquete nocturno, quando começou a comédia dos actores e a dança, Alexandre dissertou para os seus filhos. Um dos actores, num acesso de ousadia comum a essa excêntrica gente, tinha repre­sentado um diálogo em que um desgraçado nobre sofredor perguntava como pode um Deus misericordioso infligir desgraças naturais aos homens fiéis. Como podia Ele permitir cheias, incêndios, pragas? Como podia Ele deixar cri­anças inocentes sofrerem crueldades terríveis? Como podia Ele permitir que o homem, criado à Sua imagem, fizesse abater semelhante devastação sobre o seu semelhante?

Alexandre aceitou o desafio. Dado que estava entre amigos, optou por não recorrer às palavras da Escritura para expor a sua argumentação. Respondeu, ao invés, como um filósofo grego ou um mercador florentino responderiam.

  • E se Deus prometesse um Paraíso obtido tão facilmente, e sem dor, aqui na terra? - contrapôs. - O Paraíso não pareceria um prémio assim tão grande. Que razão poria à prova a sinceridade e a fé do homem? Sem purgatório, não ha Paraíso. Nessa altura, que mal inexaurível engendraria o homem? Os homens conceberiam tantas maneiras de se extinguirem uns aos outros, que nem sequer existiria uma terra. Aquilo que é obtido sem sofrimento nada vale.ohomem seria um trapaceiro, jogando o jogo da vida com dados viciados e cartas marcadas. Não seria melhor que os animais que criamos. Sem todos estes obstáculos a que chamamos infortúnio, que prazer seria o Paraíso? Não, estes inrortunios são a prova de Deus, do seu amor pela humanidade. Pelo que resta ao que os homens fazem uns aos outros, não podemos culpar disso o

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nosso Deus. Temos que culpar-nos a nós próprios e cumprir a nossa pena no purgatório.

  • Pai - perguntou-lhe Lucrécia, pois era a sua filha mais preocupada com as questões de fé e bondade —, mas então o que é o mal?

  • O mal é o poder, minha filha - respondeu ele. - E o nosso dever é eli­minar o desejo de poder dos corações e das mentes dos homens. Isso, pode a Santa Igreja fazer. Mas nunca podemos eliminar o poder da sociedade, na socie­dade. Por conseguinte nunca podemos eliminar o mal da sociedade civilizada. Será sempre injusto, será sempre cruel para o homem comum.épossível que daqui a quinhentos anos os homens não se intrujem e matem uns aos outros, quem dera esse dia feliz!

Depois olhou directamente para os seus filhos João e César e continuou.

  • Mas é da própria natureza da sociedade que, para manter um povo unido para o seu Deus e o seu país, um rei deva enforcar e queimar os seus súbditos a fim de lhes vergar a vontade. Porque a humanidade é tão rebelde como a natureza, e há demónios que não temem a água benta. A    o!;.”;..

Alexandre ergueu então o copo para brindar:

  • À Santa Madre Igreja a à nossa família. Para que prospera» ao espalhar o nome de Deus no mundo inteiro.                                              

Nessa altura todos ergueram os copos e gritaram:              >       

  • Ao Papa Alexandre! Que Deus o abençoe com saúde, felicidade e a sabe­doria de Salomão e dos grandes filósofos.                       

Não tardou que toda a companhia se retirasse para os respectivos aposen­tos, instalando-se nas casas à beira do lago, ostentando todas elas o estandarte do touro vermelho a investir dos Bórgia. Acenderam-se fogos para dar luz, e muitos archotes a arder, amarrados a arcos de madeira, brilharam nas margens do Lago de Prata.

Nos seus aposentos, Godofredo caminhava de um lado para o outro, mal—humorado. Saneia não regressara nessa noite para junto dele. Quando a abor­dara antes, durante as festividades, no sentido de ela regressar com ele à cabana»

ela recusara com um riso abafado e fizera um gesto de rejeição. Ao perscrutar os rostos da multidão à volta deles, ele sentira o rubor pungente do embaraço colorir-lhe as faces e fazer-lhe arder os olhos.

Aquele dia no Lago de Prata tinha sido para ele uma humilhação, embora todos os demais parecessem estar a beber, a rir e a divertir-se tanto que duvi­dou de que tivessem reparado. Tinha batido palmas, claro está, e sorrido -como lhe era exigido pelo protocolo real —, mas a visão da sua mulher e do seu arrogante irmão, João, a cantarem um dueto fizera-o ranger os dentes e estra­gara todo o gozo que pudesse sentir com o mavioso som da sua canção.

Godofredo tinha regressado sozinho à sua cabana. Após tentar adormecer e verificar que não conseguia, saiu para o exterior a fim de acalmar a sua inquietude. O zumbido das criaturas da noite adormecidas nos bosques fê-lo sentir-se menos só. Sentou-se no chão, sentindo a sua frescura, que o acalmou. E pensou no pai, o Papa, e nos irmãos...

Sempre soubera que não era tão esperto como o seu irmão César e que não chegava aos calcanhares de João em força física. Porém, nos recônditos da sua mente, tinha uma noção que eles não tinham: que os pecados que cometia — de gula e excessos — não eram tão negros como a crueldade de João ou a ambi­ção de César.

Quanto ao espírito acutilante, que importância podia ele ter na determi­nação do rumo da sua vida? A irmã, Lucrécia, era muito superior a ele em capacidades mentais, e no entanto não tivera maior escolha na vida do que ele. Reflectindo sobre a condição da sua família, Godofredo concluiu que a inteli­gência era muito menos importante do que o conselho de um coração puro e de uma alma bondosa.

João fora sempre o mais cruel dos seus irmãos, chamando-lhe nomes desde que era pequeno e consentindo apenas em jogar jogos que sabia poder facil­mente vencer. César era por vezes impelido pelas suas obrigações como príncipe da Santa Igreja Católica Romana a reprimir Godofredo pelos seus excessos; razia-o, contudo, com uma benevolência firme, em lugar da crueldade e do ape-te de humilhar que João tão frequentemente demonstrava. A irmã, Lucrécia, era a sua preferida, pois tratava-o com uma doce e meiga afeição e fazia-o sem-Pre sentir que ficava satisfeita ao vê-lo. O pai, o Papa, mal parecia reparar nele.

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Nessa altura, sentindo-se novamente desassossegado, Godofredo resolveu ir à procura de Saneia. Persuadi-la-ia a regressar com ele à cabana que lhes estava destinada. Pôs-se de pé e começou a caminhar pelo estreito carreiro entre as árvores, o que serviu momentaneamente para o acalmar. Mesmo à saída do local de acampamento, porém, sob o escuro céu da noite, viu duas sombras escuras. Sentiu-se tentado a chamá-las, a saudá-las, mas houve qualquer coisa que o fez parar.

Ouviu-a rir antes de vê-la distintamente. Depois o luar claro fez sobressair o seu irmão João e a sua mulher Saneia, que caminhavam de braço dado. Silen­ciosamente, fez meia volta e seguiu-os de regresso à cabana. Ali, viu João e San­eia deterem-se para se abraçarem. Godofredo sentiu o lábio crispar-se de des­dém. Manteve-se quieto e hirto enquanto via o irmão inclinar-se para beijar apaixonadamente Saneia ao despedir-se.

Naquele momento, Godofredo achou João desprezível. Mais do que isso, porém, viu em João qualquer coisa de profano. Assim, com absoluta determi­nação, condenou-o no seu íntimo e jurou denunciá-lo como irmão. De súbito via com uma clareza cristalina: já não havia qualquer dúvida. Tal como a semente de Cristo fora lançada no ventre da Virgem Mãe pelo Espírito Santo, também o germe do mal podia ser plantado — sem que ninguém soubesse ou o reconhecesse — até à ocasião da descoberta, quando o fruto do ventre é exposto.

Nessa altura o irmão começou a afastar-se e, num raro momento de boa dis­posição, João tirou a adaga da bainha e fê-la rodopiar num movimento rápido. A seguir riu-se, ao mesmo tempo que se vangloriava ruidosamente a Saneia:

  • Não tarda serei capitão-general do exército do Papa, e nessa altura verás o que farei!

Godofredo abanou a cabeça e tentou conter a sua fúria. Passado algum tempo conseguiu serenar. Depois, com uma frieza antinatural, tentou racioci­nar: combates insensatos por lucros políticos não lhe interessavam: não eram agradáveis e, de facto, aborreciam-no. Empregar uma arma para tirar a vida a outrem, arriscando a condenação eterna por qualquer objectivo militar, não fazia sentido. Para arriscar isso, pensou, o prémio tinha de ser muito mais precioso e pessoal.

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César estava também inquieto. A sua conversa com Lucrécia pesava-lhe no coração e descobriu que não conseguia adormecer. Ao inquirir, verificou que o Papa se tinha já retirado para os seus aposentos. Apesar disso, sentia que tinha de falar com o pai.

No seu apartamento, o Papa estava sentado à secretária, a ler e assinar do­cumentos oficiais que lhe eram apresentados por um par de secretários, os quais foram sumariamente dispensados à entrada de César nos aposentos do pai. Espantado com a energia deste, César avançou em direcção a ele para rece­ber um abraço. Uma fogueira de cinco achas ardia na enorme lareira.

O Papa envergava já a indumentária de dormir: uma comprida camisa de noite de lã coberta por um roupão de seda profusamente bordado debruado de peles, que ele alegava que lhe conservava o calor do corpo e o protegia dos ventos maláricos de Roma. Tinha na cabeça uma pequena mitra cor de rubi, muito simples. Alexandre dizia muitas vezes que embora um Papa, por razões de Estado, devesse sempre mostrar as riquezas da igreja em público, podia ao menos dormir com a simplicidade de um camponês.

  • E que confiou a minha filha ao seu irmão preferido.  perguntou o Papa. - Queixa-se do marido?

César captou a ironia de entendido na voz do pai; não obstante, ficou sur­preendido pelo facto de o pai estar ao corrente dos sentimentos de Lucrécia.

  • E infeliz com ele — respondeu.

Alexandre pareceu pensativo por um momento.

  • Tenho de reconhecer que eu próprio já não estou satisfeito com o casa­mento da minha filha. Não tem a serventia política que eu esperava.  Apa­rentava satisfação pela oportunidade de falar do assunto.  Afinal, de que nos serve esse moço Sforza? Nunca gostei verdadeiramente dele e como soldado foi inutil. E agora  Moro já não é tão valioso para nós, porque as suas fidelidades são frágeis e nem sempre se pode confiar nele. É um homem a considerar, sem

uvida, porque precisamos dele na Santa Liga. Mas pode ser imprevisível. sendo assim, temos de ter também em atenção os sentimentos da tua irmã. Não concordas?

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César pensou em como Lucrécia ficaria feliz e isso agradou-lhe. Achá-lo-ia um herói.

  • Como agiremos? Alexandre prosseguiu.

  • O rei Fernando pediu-me para estabelecer amizade com a casa real de Nápoles. Está claro que, embora o casamento de Godofredo com a Saneia já o tenha colocado no campo napolitano, isso não tem necessariamente utilidade para nós. Aliás, pode ter-nos causado prejuízo. A menos que... — O Papa sor­riu antes de continuar. — Pode ser que consigamos reparar essa brecha com alguma nova aliança.

César franziu o sobrolho.

  • Como, pai? Não compreendo lá muito bem.

Os olhos de Alexandre cintilaram; parecia divertido com a sua mais recente inspiração.

  • O irmão da Saneia, Afonso. Esse é que sim, pode ser um bom partido para a Lucrécia. É sempre delicado ofender os Sforza, mas é capaz de valer a pena pensar nisso. Diz à tua irmã que vou pensar em alterar a sua situação.

Alexandre afastou a cadeira da secretária e pôs-se de pé, atravessando a sala a fim de atiçar o lume com um dos ganchos de ferro fundido que estavam poi­sados no chão de pedra à sua frente.                                 

Quando voltou para junto do filho, disse:

  • Hás-de compreender, César, que temos de controlar os Estados Papais. Os vigários papais são como chefes militares ávidos, sempre a digladiarem-se uns com os outros, a combater a infalibilidade do Papa, a sugar e a oprimir o povo. Temos de fazer qualquer coisa para os meter na ordem.

  • E tens algum plano? — inquiriu César.

  • Os reis de França e Espanha estão a unir os respectivos territórios sob uma autoridade central. Temos de fazer o mesmo. É imperativo para o povo e para o papado. Mas temos também de fazê-lo pela nossa família. Porque, se não cri­armos um governo unificado, controlado pelos Bórgia, que obrigue os habi­tantes a reconhecer a autoridade de Roma e do Papa, tu e o resto da família estareis em grave perigo.

Remeteu-se ao silêncio.

  • Temos de ter fortalezas bem guarnecidas — disse César com determina­ção. - Tanto para sufocar os levantamentos locais como para determos os inva­sores estrangeiros que esperam fazer seus os territórios centrais.

Alexandre nada disse; parecia mergulhado em pensamentos.      

César inclinou a cabeça.

  • Estou ao teu serviço, pai. Sou um cardeal da igreja.

Ao tornar a sentar-se na sua cadeira de pele favorita, o Papa Alexandre falou com uma intensidade grave.

  • Escusado será dizer-te quão perigoso será para todos vós se eu morrer e for eleito um Papa hostil, como o delia Rovere. Nem imagino o que acontecerá à tua irmã. O inferno de Dante não se compará com o inferno que ela enfrentará...

  • Por que é que me estás a dizer tudo isso, pai? — tornou César. — Não pre­cisamos de temer por enquanto, porque ainda não começaste a fazer as boas obras que tens de fazer pela Santa Igreja, e por conseguinte estou certo de que viverás muitos mais anos. Alexandre baixou a voz.

  • Qualquer que seja o perigo, só há dois homens nesta corte nos quais podes confiar inteiramente. Um é Don Michelotto...

  • Isso não é nenhuma surpresa, pai, porque a tua afeição por ele não esca­pou a ninguém. E não me é difícil confiar nele, pois desde criança que o faço. - Nessa altura fez uma pausa. - No entanto, a sua vida é para mim um certo mistério. Nunca te pedi isto, pai: como é que um valenciano se embrenhou tanto nos trabalhos de Roma?

E assim Alexandre contou ao filho a história de Miguel Corello, hoje conhecido como Don Michelotto.

  • Mas também é conhecido como o estrangulador — disse César.

é Sim, meu filho, chamam-lhe o estrangulador, mas ele é muito mais do e lsso.éum consumado condutor de tropas, um guerreiro feroz e, acima de tudo, seria capaz de morrer para proteger a nossa família. A sua lealdade é tão mtensa como a sua fúria. Por isso, não te iludas: não é só um assassino. É digno de toda a confiança.

  • E o outro? - perguntou César.                                  

  • O segundo homem é Duarte Brandão. Sobre o seu passado pouco te posso dizer, pois foi capturado trouxeram-mo como prisioneiro muitos anos atrás, quando precisei de um tradutor de inglês e o meu estava indisponível. Mas tinha sido muito maltratado pelas nossas tropas e não se recordava de nada do seu passado.

  • E mesmo assim conservaste-o? — inquiriu César. Alexandre manteve-se imóvel, recordando.

  • Da primeira vez que o vi, estava imundo e desgrenhado, como qualquer prisioneiro que tivesse estado encerrado nas masmorras estaria, mas, depois de um banho e de ter recebido roupas decentes, foi-me novamente trazido. Nesse dia, houve qualquer coisa na sua atitude que me suscitou a recordação de um tal Edward Brampton, um judeu converso, que prestou grandes serviços a Eduardo IV de Inglaterra. Tinha-o visto só uma vez, havia muito tempo, mas reparara nele, pois fora o primeiro judeu a ser armado cavaleiro. Diz-se que serviu o irmão do rei, Ricardo III, que como sabes foi assassinado pelos homens de Hen­rique Tudor. Brampton combateu em grandes batalhas terrestres e marítimas por Eduardo IV e salvou literalmente toda a esquadra inglesa a Ricardo III. Foi então que Brampton desapareceu de Inglaterra e por volta dessa altura que Duarte Brandão foi capturado em Roma. Os Tudor tê-lo-iam matado se o apa­nhassem, e ainda hoje corre perigo por parte dos agentes dos Tudor.

  • E isso explica a sua mudança de nome, pai? - perguntou César. - Mas o Brandão é judeu, não é?

  • Se o é, é um convertido à Santa Igreja Católica - respondeu Alexandre, - pois já o vi tomar a comunhão. E durante estes últimos sete anos serviu-me a mim e à Santa Madre Igreja mais religiosamente do que qualquer outro homem que eu conheça. É o homem mais corajoso e inteligente com que alguma vez deparei, um belo soldado e, coisa estranha, um hábil marinheiro também.

  • Não coloco objecções ao facto de ele ser judeu, pai — disse César, com uma expressão divertida. - Apenas pergunto a mim mesmo o que pensará qual­quer outra pessoa quando descobrir que tu, o chefe da Santa Igreja Católica Romana, és aconselhado por um homem que nem sequer é cristão.

Alexandre sorriu.

  • Ainda bem que não colocas objecções, meu filho — disse, sarcasticamente. Depois a sua voz assumiu um tom mais sério. — Conheces bem as minhas opi­niões sobre a situação judaica, César. Quando Fernando e Isabel de Espanha me pediram para prender, torturar e matar judeus que ousavam praticar a sua religião em segredo, recusei. Disse-lhes que achava que a Inquisição espanhola era uma abominação, tal como o tratamento dos judeus no seu próprio país. No fim de contas, foi esse povo que nos deu a lei; foram eles que nos deram Jesus. Devo chaciná-los porque não acreditam que ele é o Filho de Deus? Não o farei! Nem sempre posso impedir os nossos cidadãos ou mesmo os nossos funcionários de os atacarem ou maltratarem, mas não é com certeza a minha política.

César sabia que, quando os Papas eram eleitos, fazia parte da cerimónia o chefe da comunidade judaica de Roma oferecer o livro das leis hebraicas ao novo Papa. Todos os Papas tinham pegado no livro para o atirarem ao chão, num gesto de repulsa. Só o seu pai não o fizera. Alexandre VI tinha-o igual­mente rejeitado... mas devolvera-o, com respeito.

Nessa altura César perguntou:

  • Qual é a tua política, pai?

  • Não lhes farei mal - respondeu o Papa. - Tributá-los-ei, porém, fortemente.

10 Papa Alexandre fora traído no momento de maior necessidade por Vir-gínio Orsini, um dos seus barões papais, um homem no qual confiava, e não suportara de ânimo leve essa traição. O diabo tinha reclamado outra alma, pen­sou, e o diabo tinha de ser destruído. O facto de o próprio Virgínio ter sido capturado, torturado e morto numa das mais famosas masmorras de Nápoles não libertou Alexandre da sua necessidade de vingança.

Para o Papa, aquilo tornou-se um combate entre o Vigário de Cristo e o próprio Satanás. Como líder dos Estados Papais, sabia que tinha de tomar uma atitude contra os barões locais, aqueles ávidos chefes militares que andavam sempre a combater-se uns aos outros e, o que era ainda mais desastroso, a com­bater os ditames da Santa Igreja Católica. Porque, a não ser respeitada e obe­decida a palavra do Santo Padre, a permitir-se que o mal florescesse e os homens de virtude nada fizessem, a própria autoridade da igreja seria enfra­quecida. Então quem salvaria as almas do bem para Deus?

Alexandre percebia que o poder espiritual tinha de se apoiar no poderio temporal. Embora o exército francês tivesse retirado, e as poucas tropas que res­tavam tivessem sido derrotadas pelos exércitos da Santa Liga, Alexandre sabia que tinha de imaginar um castigo adequado para garantir que uma traição semelhante não se repetiria.

Uepois de muito cogitar, chegou à conclusão de que tinha de fazer de

Slni um exemplo, a fim de desencorajar para sempre a rebelião dos outros arões debaixo da sua tutela. Para o fazer, tinha de utilizar a arma mais letal do

seu arsenal espiritual: a excomunhão. Desgraçadamente, não tinha outra opção. Tinha de banir publicamente toda a família Orsini da Santa Igreja Católica Romana.

A excomunhão era a mais extrema das proclamações e o mais poderoso ins­trumento do poder do Papa, porque se tratava de um castigo aplicado não ape­nas a esta vida, mas extensivo à outra. Uma vez expulsa da igreja, a pessoa dei­xava de poder receber a graça dos santos sacramentos. A sua alma não podia ser livrada do pecado pela confissão; as manchas negras ficavam forçosamente sem perdão, negada a oportunidade da absolvição. O casamento deixava de poder ser santificado; uma criança não podia ser baptizada, abençoada e pro­tegida do demónio pela aspersão de água benta. Oh, triste dia! Não se podiam ministrar os últimos sacramentos para conferir a paz no final da vida, pois pas­sava a ser vedado o enterro em terreno sagrado. Era a mais aterradora de todas as acções; no seu âmago, era um juízo que precipitava a alma no purgatório ou mesmo no inferno.

Depois de expulsar os Orsini dos céus, Alexandre concentrou-se então em destruir o seu poder terreno. Chamou de Espanha o filho, João, para ser capi-tão-general do exército do Papa — apesar da oposição de Maria Enríquez, que estava novamente grávida. O seu filho e herdeiro, João II, tinha apenas um ano de idade, argumentava ela, e precisava do pai.

O Papa Alexandre insistiu, porém, que João tinha de abandonar imediata­mente Espanha para comandar as tropas do Papa, pois a seguir à traição de Vir-gínio já não confiava em nenhum dos condottieri pagos. O filho tinha de vol­tar de imediato para tomar todos os castelos dos Orsini. Entretanto, o Papa mandou também uma mensagem ao genro, Giovanni Sforza, em Pesaro, com ordens para trazer todos os soldados que tivesse, e prestou-se a pagar-lhe um ano inteiro de salário de ele o fizesse sem delongas.

Desde que seu irmão João fora mandado para Espanha, o cardeal César Bórgia tinha albergado a esperança de que o pai ponderasse uma mudança de papel para a sua pessoa. No fim de contas, César tinha sido aquele que estivera

ao lado do pai, a trabalhar em assuntos de Estado. Compreendia a Itália. João pertencia a Espanha. E, por mais que o pai insistisse na sua posição na Santa Madre Igreja, esperava constantemente que ele reconsiderasse.

Nessa altura, sentado nos aposentos do Papa, Alexandre pôs César a par dos seus planos para João: caber-lhe-ia conquistar e conservar os castelos dos Orsini.

César ficou furioso.

  • O João? O João? — exclamou, incrédulo. — Mas, pai, ele não percebe nada do comando de tropas. Não percebe nada de estratégia. A única coisa com que se preocupa é com ele próprio. Os seus pontos fortes residem na sedução das mulheres, no esbanjamento da fortuna da nossa família e na sua própria vai­dade. Como irmão dele devo-lhe fidelidade, mas, pai, eu era capaz de coman­dar tropas de olhos vendados e terias a garantia de maior êxito. O papa Alexandre semicerrou os olhos e fitou o filho. - Estou de acordo, César. Tu tens mais inteligência e jeito para a estratégia. Mas és um cardeal, um príncipe da igreja, e não um guerreiro do campo de batalha. E quem me resta a mim? O teu irmão Godofredo? Infelizmente, ele poria o cavalo a andar às arrecuas. Nem sequer imagino uma arma na mão dele. Por conseguinte, qual era a minha opção? Tem de aparecer um Bórgia para comandar esta força, caso contrário perderemos as repercussões deste cas­tigo pela traição do Orsini nos outros barões papais.

César ficou mudo e pensativo por um momento antes de reagir.

  • Esperas verdadeiramente que o João nos assegure uma vitória? Depois do seu comportamento ridículo em Espanha, apesar das nossas advertências no sentido de não jogar, de não ter relações com prostitutas e de tributar o devido respeito à mulher e à família Enríquez, primos direitos do rei Fernando? Mesmo assim escolhe-lo a ele?

A profunda voz de barítono de Alexandre era suave e tranquilizadora.

  • O verdadeiro comandante será o Guido Feltra. É um condottiere experi­ente ramoso pela sua perícia e mestria militar.

César já tinha ouvido contar histórias de Feltra. Que era bom homem, um honim leal, não havia dúvida; era um famoso patrono da literatura e das artesoduque bem amado de Urbino. Porém, na verdade, a sua fama era a do filho

um verdadeiro condottiere, um soldado profissional, que conquistara o

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ducado como recompensa pelos seus serviços militares. O jovem Guido em pessoa tinha combatido em muito poucas batalhas e ganhara-as com dema­siada facilidade, para desafiar a experiência dos impiedosos soldados dos Orsini. Especialmente na sua principal fortaleza de Bracciano. Estava fora de dúvida que, caso as tropas do Papa tentassem tomar Óstia, a terra do cardeal delia Rovere, quer o pai quer Roma corriam perigo. Mas César não disse nada disto ao Papa, pois sabia que, quando se tratava de João, o pai recusava toda e qualquer razão.

Para o final da noite, ainda irado, enviou uma mensagem à irmã. Depois extraiu a Don Michelotto a promessa de que a acompanharia desde Pesaro, pois tinha pedido a Lucrécia que viesse ter com ele ao Lago de Prata na semana seguinte.                                                                            

Quando Lucrécia chegou à cabana, César estava à sua espera. Ela trazia um vestido de cetim azul que fazia realçar as suas tranças doiradas e acentuava o azul dos olhos. Tinha sido uma longa cavalgada, que levara dia e meio, pelo que trazia as faces ruborizadas do calor e da excitação. Correu para o interior da cabana e lançou os braços ao pescoço do irmão.

  • Tive tantas saudades tuas... - disse. Porém, ao recuar a fim de olhar para ele, viu a angústia nos seus olhos. - Que se passa, Chez? O que é que te per­turba?

César sentou-se num dos grandes assentos de pele e bateu repetidamente com a mão no escabelo à sua frente.

  • É uma rematada loucura, Crezia. O pai mandou o João regressar para chefiar as tropas como capitão-general, e eu estou tão cheio de inveja que era capaz de o matar...

Lucrécia levantou-se, pôs-se atrás dele e principiou a esfregar-lhe a testa a fim de o acalmar.

  • Tens de aceitar o teu destino, Chez - disse. - Não é só o João que te pro­voca essa tristeza toda. Tu também tens culpa. É como se ainda fossem crian­ças a brigar pelos bolos da Mãe Vanozza. Eu compreendo bem o que sentes,

mas isso só te pode fazer mal, porque o pai há-de fazer o que sempre fez. ape­nas aquilo que quer.

  • Mas eu sou melhor soldado que o João, muito mais indicado para coman­dar tropas, e garantiria uma vitória à Santa Igreja e a Roma. Por que é que o pai prefere um comandante que é um fanfarrão arrogante, um tonto que só aparenta comandar o seu exército?

Nessa altura Lucrécia ajoelhou diante de César e ergueu os olhos para os dele.

  • Chez, por que é que o papá há-de ter também uma filha que aparenta ser feliz casada com o ignorante duque de Pesaro?

César sorriu.

  • Vem - disse, atraindo-a a si. - Agora preciso de ti. Porque tu és aquilo que é verdadeiro na minha vida. Eu aparento ser um homem de Deus, mas, tirando o barrete cardinalício e o amor ao meu pai, juro-te, Crezia, receio bem ter vendido a alma ao diabo. Não sou quem aparento ser, e acho isso insupor­tável.

Quando a beijou, procurou ser meigo, mas tinha esperado tanto tempo que não o conseguiu. A medida que ele a beijava uma e outra vez, ela começou a tremer e depois a chorar.

César deteve-se e levantou a cabeça para a fitar. Havia lágrimas nos olhos dela.

  • Desculpa - disse ele. - Foi uma brutalidade da minha parte.

  • Não é a dor dos teus beijos que vês - explicou ela. - São as lágrimas das minhas saudades de ti. Este tempo em Pesaro faz-me sonhar com a glória de Roma e tu fazes parte desses sonhos.

Depois de fazerem amor, ficaram muito tempo deitados. César parecia des­contraído e Lucrécia era capaz de sorrir de novo. Poisou a cabeça no ombro dele e perguntou:

  • Acreditas, como o papá, que é vontade de Deus que os seus filhos vivam sem amar de verdade?

  • E isso que o papá pensa? - volveu César, brincando com o cabelo da irmã. é A julgar pelo comportamento dele, não se imaginaria tal coisa.

é  eu estou casada com um homem que indubitavelmente não amo. -  disse ela. — E o nosso irmão João não casou por amor. O Godofredo ama com

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facilidade, e por isso pode ser o felizardo, por estranho que pareça; Porque só o barrete cardinalício te salvou de uma sorte como a minha.                     <-,-

  • É um barrete pesado — disse César.

  • Mas não deixa de ter os seus benefícios - lembrou-lhe Lucrécia.

Depois de se vestirem, sentaram-se à pequena mesa de madeira para come­rem. César serviu à irmã um bom vinho que trouxera e ergueu a taça para brin­dar.

  • A tua felicidade, minha querida irmã — disse, sorrindo. Sentia-se sempre muito seguro com Lucrécia, muito amado e aceite. Não podia imaginar a vida sem ela.

Tinha trazido de Roma um pão comprido acabado de cozer, com uma côdea doirada e estaladiça — mesmo do género que sabia ser o preferido da irmã -, o qual estava na mesa ao lado de várias rodas de queijo ainda fresco. Ao partir o pão e cortar o queijo para a servir, César disse:

  • Espero bem conseguir controlar o que sinto quando o João voltar a apa­recer em Roma, porque preciso de toda a contenção para o tratar como irmão.

Com um sorriso malicioso, Lucrécia retrucou:

  • Pode ser que ele tenha o que tu queres, Chez, mas não tem o que tu tens...

  • Isso sei eu, minha querida — volveu ele, beijando-lhe o nariz. — Isso sei eu, e é a minha salvação.

João Bórgia chegou a Roma no meio de grandes celebrações. Correu pelas ruas cavalgando aprumado uma égua baia castanha ajaezada com um tecido de ouro; segurava nas mãos as rédeas do seu freio, incrustado de belas jóias. Ves­tia um requintado fato de veludo castanho e uma capa cravejada de esmeral­das preciosas. Os seus olhos escuros cintilavam de poder e os seus lábios esta­vam crispados no sorriso insolente de um herói já conquistador.

Ao chegar ao Vaticano, o Papa abraçou-o, saudando-o efusivamente.

  • Meu filho, meu filho — repetia Alexandre, atravessando o Salão dos Papas, para onde tinha convocado uma reunião a fim de delinear a estratégia do exér­cito do Papa.

Passaram-se longas horas a discutir tácticas militares, com Guido Feltra, Alexandre, João, César e Duarte Brandão a assistir.

Os conclaves continuaram durante três dias. César notou nessas reuniões que Duarte raramente falava directamente com João; quando tinha alguma sugestão a fazer, dirigia-a ao Papa e utilizava o título de João, «capitão-general», em vez do nome. Foi a primeira vez que César desconfiou do desagrado de Duarte Brandão, e este era tão subtil que teve a certeza de só ele o ter notado. Nessa noite, porém, após a derradeira sessão, quando Alexandre ficou sozi­nho com Duarte Brandão, perguntou:

  • Achas que é um erro pôr o meu filho João a comandar as nossas tropas contra os Orsini?

Duarte respondeu simultaneamente com esperteza e respeito.

  • Acho que é uma pena que, por acidente da ordem de nascimento, um príncipe por natureza tenha de se tornar soldado e um verdadeiro soldado tenha de se tornar cardeal.

  • Mas, meu amigo - inquiriu Alexandre -, não acreditas no destino? Nos planos do nosso Pai Celeste? Na infalibilidade do Papa?

Duarte Brandão retorquiu bem-humoradamente:

  • Quem pode conhecer o plano do Pai Celeste? E não estamos nós, como homens mortais, sujeitos a um erro de interpretação ocasional? Até os mais honrados e virtuosos de nós?

  • Duarte — tornou Alexandre —, Pedro Luís, Deus abençoe a sua alma, foi o meu primogénito. César é o meu segundo filho. É costume que o segundo filho seja chamado para servir a Santa Igreja. Esse plano não encerra nenhum erro de interpretação, porque mantém o poder das famílias reais sob controlo sem deixar de lhes conceder a vantagem de benefícios especiais do nosso Santo Padre. E não é sempre o destino de um homem simultaneamente um dom e um fardo? Porque qual de nós não tem de lutar com o seu próprio livre arbí­trio quando reza: «Seja feita a Vossa vontade, Senhor, e não a minha»?

O riso bem-humorado de Duarte ressoou pelo grande salão.

  • Perdoai-me, Excelência. E é simultaneamente com temor reverenciai e admiração que apresento a minha argumentação. Como pode ter-se a certeza de que o vosso jovem guerreiro, César, é apenas o vosso segundo filho? O vosso

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poder de atracção sobre as mulheres é lendário e o vosso vigor tem proporções heróicas. É-me difícil acreditar que não haja alguns outros, escondidos pelas respectivas mães e escondidos de vós...

Ao ouvir isto, Alexandre desatou a rir.

  • És um conselheiro brilhante e além disso diplomata — disse. — E se o des­tino do jovem cardeal for ser um guerreiro sagrado, tempos virão em que a tua argumentação nos valerá. Para já, porém, é o João o capitão-general e deve comandar as nossas tropas. E por conseguinte, para já, temos de flectir os joe­lhos e rezar pela vitória.

César, com vinte e um anos de idade, de pé à entrada do Salão dos Papas, envergando as vestes de cardeal, entreouviu esta conversa e, pela primeira vez desde que se lembrava, sentiu uma certa esperança. Seria possível que acima de toda a traição do mundo houvesse efectivamente um céu e um Pai que o tivesse ouvido? Regressou aos seus aposentos, com a cabeça cheia de fantasias, ousando pela primeira vez prever o dia em que poderia ser chamado a coman­dar as tropas de Roma.

O capitão-general João Bórgia e o condottiere Guido Feltra conduziram o exército do Papa para norte de Roma em direcção ao primeiro dos castelos dos Orsini. Embora os Orsini fossem ferozes combatentes, neste primeiro bastião ficaram aturdidos com a mera superioridade numérica das tropas do Papa, pelo que os primeiros dois castelos caíram sem luta.

Quando a notícia foi dada a Duarte, este foi ter com Alexandre.

  • Desconfio que há um plano dos Orsini, destinado a fazer crer aos nossos comandantes que se tratará de uma vitória fácil. Só nessa altura os Orsini mos­trarão as suas verdadeiras capacidades.

Alexandre acenou com a cabeça em sinal de concordância.

  • Nesse caso tens pouca confiança em Feltra?

  • Já vi os Orsini em combate... - retorquiu Duarte.

.    César tinha sido chamado por Alexandre, pois o pai conhecia o seu talento em estratégia. O pai perguntou-lhe:

  • Podes dizer a verdade. A que atribuis o maior perigo nesta situação? Cuidando de controlar as emoções, César respondeu com cautela.

  • Receio que o Feltra não seja mais competente em assuntos militares do que o capitão-general. E prevejo que esta vitória fácil os deixará a ambos des­prevenidos, redundando num desastre em Bracciano, pois aí os Orsini reuni­rão os seus melhores guerreiros. E aí delia Rovere inspirá-los-á a considerá—la uma guerra santa, o que os tornará ainda mais fortes.

O Papa espantou-se com a avaliação que o filho fazia da situação, mas ainda não conhecia a dimensão do seu acerto. De facto, poucos dias eram passados, a resistência dos Orsini tornou-se mais obstinada e delia Rovere, o mais perigoso inimigo do Papa, convocou o distinto comandante de artilharia, Vitellozzo Vitelli, para formar um exército a fim de ir em socorro dos Orsini.

A formação de Vitelli pôs-se rapidamente em marcha e caiu sobre o exér­cito do Papa em Soriano. Ali, tanto João como Guido Feltra se mostraram irre­mediavelmente incapazes e as forças do Papa sofreram uma estrondosa derrota. Guido Feltra foi capturado, feito prisioneiro e atirado para uma masmorra de um dos castelos dos Orsini. João pôs-se em fuga, escapando a ferimentos gra­ves, apenas com uma cutilada no rosto.

Ao saber disto, e certificando-se de que o filho não estava gravemente ferido, Alexandre voltou a chamar César e Duarte ao Salão dos Papas.

  • A guerra não está perdida — tranquilizou-o Duarte —, pois temos outros recursos à nossa disposição.

César ajuntou:

  • E se o Santo Padre determinar que estamos em grave perigo, podemos sempre mandar vir de Nápoles as experientes tropas espanholas de Gonçalo de Córdova...

Porém, depois de conferenciar com os embaixadores de Espanha, França e Veneza - todos eles apelando à paz —, o Papa Alexandre, sempre diplomata, concordou relutantemente em devolver os castelos rendidos aos Orsini. Claro esta que seriam obrigados a pagar um certo preço por este acordo. Depois de longas negociações, o Papa aceitou cinquenta mil ducados. Porque, no fim de contas, essa indemnização era necessária para encher os cofres da Santa Igreja Católica.

O desfecho parecia uma vitória para o Papa. Quando João regressou, con­tudo, queixou-se amargamente de que tinha sido impedido de futuras con­quistas e privado das propriedades que lhe competiriam pelos acordos de Ale­xandre. Por conseguinte, argumentou, era ele quem merecia os cinquenta mil ducados pela sua vexação. Para consternação de César, Alexandre cedeu.

Havia, no entanto, um problema ainda mais sério, no entender de César. A fim de restaurar a sua reputação, João insistia em ser-lhe confiada a tarefa de retomar Óstia ao exército francês que ali fora deixado pelo rei Carlos.

César correu aos aposentos do pai para interceder junto dele.

  • Só restam lá poucos soldados, pai, eu sei. Mas, se houver uma maneira de perder, o João perderá, e com a sua derrota virá a condenação do papado e da família Bórgia. Porque o delia Rovere está lá, a preparar uma cilada, espe­rando precisamente por essa loucura.

Alexandre suspirou.                                          

  • Já falámos sobre isto vezes sem conta, César. Achas o teu pai tão tolo que não seja capaz de ver aquilo que tu vês? Desta vez garantirei uma vitória. Cha­marei Gonçalo de Córdova, pois não há no mundo melhor capitão.

A voz de César encheu-se de frustração.

  • Isso não deterá o meu irmão. Ele há-de interferir. Lutará com Gonçalo de Córdova, bem sabes que o fará. Suplico-te, Santo Padre, reconsidera a tua posição.

Mas Alexandre manteve-se irredutível.

  • O João não fará tal coisa. Enviei-lhe instruções explícitas. Limitar-se-á a sair de Roma como comandante das forças do Papa e, terminada a batalha e quando tivermos vencido, voltará vitorioso, acompanhado da bandeira dos Bórgia a ondu­lar. Entre estas duas exibições de esplendor não dará ordens nem fará sugestões.

João obedeceu ao pai. Saiu da cidade num fogoso cavalo de batalha negro, acenando com o capacete às multidões de cidadãos romanos que orlavam as ruas ao longo do seu caminho e, tal como lhe fora ordenado, não desempe­nhou qualquer papel na bem conduzida batalha por Óstia.

Os homens de Gonçalo de Córdova neutralizaram rapidamente a guarni­ção francesa e conquistaram a cidade de Óstia sem qualquer interferência. E João regressou à cidade de Roma, tal como dela tinha saído, desta vez sob os aplausos e gritos de vitória das turbas de cidadãos romanos que bordejavam

as ruas.

Passadas três noites, no Palácio Bórgia, o cardeal Ascânio Sforza dava um enorme baile para o qual convidara muita gente importante, incluindo os filhos de Alexandre. Estavam também em Roma os irmãos Mediei, Piero e Giò, amigos de César dos tempos da universidade; os Mediei tinham sido arredados das suas casas de Florença pelos franceses e pelas prédicas de Savo-narola.

O imponente palácio do cardeal Sforza tinha sido a residência dos Bórgia enquanto Rodrigo era ainda cardeal, mas fora dado como presente a Ascânio quando este fora eleito Papa. Toda a gente era unânime em considerá-lo o mais belo palácio de toda a Roma.

Nessa noite César regressou à primitiva casa do pai com os amigos, com os quais passara a noite antes de comer, jogar e beber na cidade.

Das paredes do amplo vestíbulo de entrada pendiam elaboradas tapeçarias, carregadas de opulentos bordados que reviviam os muitos momentos grandes da história. Para lá deste vestíbulo havia muitas salas que tinham igualmente penduradas intricadas tapeçarias e cujos pavimentos estavam cobertos por ines­timáveis carpetes orientais de cores que condiziam com os estofos de veludo e cetim e complementavam os armários, aparadores e mesas de madeira profu­samente trabalhada.

Naquela noite, porém, o grande vestíbulo tinha sido transformado em salão de baile, com uma pequena orquestra a tocar no mezanino para acompanhar a grande quantidade de jovens pares elegantes a dançar.

César, que estava na companhia de uma bela e popular cortesã, acabava pre­cisamente de dançar quando Gonçalo de Córdova se abeirou dele. Gonçalo, um homem robusto e sempre sério, parecia nessa noite particularmente preo-

cupado. Saudou-o com uma vénia e a seguir perguntou a César se podiam falar

em privado.

César pediu desculpa e conduziu o capitão espanhol a uma das varandas abertas nas quais brincara em criança. A varanda dava para um pátio privado; por baixo dela havia um grande movimento de vários convidados que falavam e riam enquanto comiam acepipes e bebiam os encorpados vinhos tintos que eram servidos em brilhantes salvas de prata pelos criados.

A alegria da noite era, todavia, contrabalançada pela disposição de Gonçalo de Córdova, cujo rosto, habitualmente prazenteiro, estava desfigurado pela cólera.

  • César, estou tão furioso com o vosso irmão que nem podeis imaginar. Nem ninguém pode imaginar.

César poisou a mão no ombro do capitão, num gesto de amizade e tran-quilização.

  • Que fez desta feita o meu irmão? — perguntou. A voz do capitão estava rouca de tensão.

  • Estais ao corrente de que o vosso irmão não participou no combate em Óstia?

César exibiu um sorriso rasgado.

  • Sim, depreendi que assim era, capitão. Porque vencemos.       o,-.

  • E tendes conhecimento de que João tem andado a colher os respectivos louros, reivindicando a vitória por esta conquista? - César escutou com uma expressão compreensiva enquanto o capitão continuava a dar largas à sua fúria. - João conta-o por todo o lado, dizendo que foi ele (nem sequer nós) que pôs os franceses em fuga.

  • É um fanfarrão sem nada dentro da cabeça - observou César -, e as suas pretensões são ridículas. Não há ninguém em Roma que lhe desse crédito. Mas raciocinemos sobre o que se pode fazer para corrigir essa tremenda injustiça.

Gonçalo, ainda furioso, não se deixava aplacar.

  • Em Espanha, desafiá-lo-ia sem dúvida para um duelo. Mas aqui... - e parou para retomar o fôlego. - Sabeis que o arrogante tolo mandou até fazer uma medalha de bronze para ser distribuída em sua honra?

César franziu o sobrolho.

  • Uma medalha de bronze?»- repetiu, surpreso. Não tinha ouvido dizer nada a esse respeito.           

  • Mostra o seu perfil. Por baixo dele, em letras elaboradamente esculpi­das, a inscrição dirá: «João borgia — Vencedor de Óstia.»

César sentiu-se tentado a rir daquele absurdo do irmão, mas conteve-se a fim de não inflamar mais Gonçalo. A seguir disse:

  • Não há um soldado no exército do Papa, e com certeza nem um nas tro­pas francesas, que não saiba a verdade: que sois vós, Gonçalo de Córdova, e só vós, o vencedor de Óstia.

Mas o capitão espanhol não se consolava. Ao invés, voltou-se para César com uma expressão irada.

  • João Bórgia? Vencedor de Óstia? Veremos! Eu devia era matá-lo. E pode ser que ainda o faça...

Dito isto, virou costas e abandonou a varanda, regressando ao interior do palácio.

César permaneceu ali durante alguns momentos após a saída de Gonçalo, a contemplar o escuro céu nocturno, e perguntou a si mesmo como era possí­vel que ele próprio e aquele a que chamava irmão tivessem provindo do mesmo ventre. Era uma partida do destino, estava certo disso. Mas, quando estava pre­cisamente para deixar a varanda, houve qualquer coisa no pátio que lhe des­pertou a atenção.

Lá em baixo, de pé em volta da fonte central e falando em voz demasiado abafada para que ele pudesse ouvir, César viu o seu irmão Godofredo a con­versar com o capitão espanhol e um jovem, alto e esguio. Gonçalo de Córdova escutava com atenção, completamente absorvido, enquanto o jovem parecia circunvagar a vista pelo pátio como se procurasse alguém. Mas foi Godofredo, habitualmente tão afável e apático, que mais sobressaltou César. De facto, havia no seu rosto uma expressão de ferocidade que César nunca tinha visto até então.

César pensou em chamar por eles, quando sentiu uma mão no ombro. Pos­tado atrás dele, com o dedo nos lábios, Don Michelotto afastou César do pei­toril da varanda para um lugar onde ninguém os visse. Ocultos nas sombras, observaram por alguns momentos até verem o capitão sorrir e apertar a mão

do jovem Godofredo. Quando Godofredo estendeu a mão ao outro jovem, Michelotto reparou num grande anel de forma irregular com um topázio azul, que despediu cintilações nítidas quando o luar nele incidiu. Apontou para ele.

  • Tomai nota, César. Porque aquele homem é Vanni, um sobrinho de Orsini.

A seguir, tão rapidamente como aparecera, Michelotto sumiu-se.

Novamente no interior do palácio, César atravessou as salas tentando encontrar Godofredo, mas dir-se-ia que este tinha desaparecido. Dirigiu um aceno de cabeça a sua irmã Lucrécia, que dançava com o palerma do marido, Giovanni; perto deles, completamente alheio ao caos que estava a provocar, João dançava com a cunhada, Saneia. Ambos riam e se divertiam imenso. Mas o que mais preocupou César foi Gonçalo de Córdova quando abandonava o baile, pois de repente parecia sereno.

Lucrécia tinha vindo juntar-se ao pai e aos irmãos para as festividades da Páscoa no Vaticano e estava, por conseguinte, nos seus aposentos do palácio de Santa Maria in Pórtico quando o camareiro de Giovanni Sforza a procurou com uma mensagem urgente. O marido tinha pedido que ela o acompanhasse de regresso a Pesaro, explicou o homem, porque achava a sua estadia em Roma opressiva e desejava fugir à vigilância do Papa.

Lucrécia escutou, perturbada, enquanto Júlia começava a escolher alguns pertences daquela para a criada meter na bagagem. Tinha-se sentido incrivel­mente sozinha em Pesaro; aqui em Roma, sentia-se novamente ela própria.

  • Que hei-de fazer? — perguntou em voz alta, caminhando de um lado para outro. - Em Pesaro, como em Roma, o duque parece não me ligar patavina; quando olha para mim, é com tudo menos afecto. No entanto agora quer par­tir, comigo ao lado.

Júlia abeirou-se para a consolar.

O camareiro aclarou a garganta para reunir coragem e pediu licença para ralar. Quando esta lhe foi concedida, prosseguiu.

  • O duque de Pesaro refere que gosta muito da duquesa. Anseia pela sua companhia; mesmo que não seja para conversar, para estar pelo menos com ele no seu próprio ducado, onde é livre de governar como lhe apraz.

é Bem, bom homem — respondeu Lucrécia —, é esse o seu desejo e ele pretende levar a sua avante. Mas que será de mim se regressar? Definharei e morrerei de solidão. Não há nada que me interesse em Pesaro.

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Impaciente com Lucrécia, pois sabia o tormento que causaria a Alexandre, Júlia pediu desculpa e saiu da sala.

De súbito ouviu-se uma pancada na porta e Lucrécia ouviu a voz do irmão exclamar:

  • Crezia, é o Chez. Posso entrar?

Rapidamente, ordenou ao camareiro que se escondesse atrás do seu biombo de vestir. Preveniu-o de que não se mexesse nem produzisse qualquer som, pois qualquer descuido podia custar-lhe a vida. Ultimamente a antipatia do irmão pelo duque tinha-o enraivecido e ela não queria outra cena.

O homenzinho deslocou-se silenciosamente para trás do biombo e tapou—se com uma das túnicas de Lucrécia, pondo outras peças de vestuário sobre a cabeça a fim de se ocultar completamente, para o caso de César se aproximar demasiado ou resolver revistar os aposentos da irmã.

Quando César entrou, a primeira coisa que fez foi beijar Lucrécia. Parecia satisfeito.

  • O pai decidiu atender aos teus desejos de te divorciares. Tem a certeza absoluta de que esse brutamontes do Giovanni Sforza não nos trouxe qualquer vantagem e, agora que Milão está novamente alinhada com os franceses, não tem qualquer serventia para nós. Além disso, o que é ainda mais importante, o pai está aborrecido por ele não te ter feito feliz.

Lucrécia sentou-se no divã e ofereceu a César um lugar ao pé dela. Ele, porém, recusou, preferindo caminhar em redor do quarto.

  • Mas o que é que vais dizer ao Giovanni? — perguntou ela. — Como é que pode haver divórcio? Ele não é um herege e não cometeu qualquer traição a não ser causar-me infelicidade...

César sorriu.

  • E isso não é crime que chegue? — inquiriu.

Os olhos de Lucrécia iluminaram-se de divertimento.

  • Embora eu o ache absolutamente abominável, receio bem que isso não seja visto sob a mesma perspectiva por outros.                                             o

César assumiu um ar mais sisudo.

  • O pai não se arrisca a um divórcio legal. Provocaria demasiado escândalo Deu ordens para se fazer desaparecer o Giovanni.

Lucrécia pôs-se de pé e fitou o irmão de cenho carregado.

  • Não podes permitir tal coisa, Chez. O Giovanni é um bruto e um maça­dor, não há dúvida. Mas muita da minha infelicidade com ele consiste em ele não ser a tua pessoa! E embora isso também seja um crime, não é crime que mereça o castigo que sugeres.

  • E dispor-te-ias a dizer ao Santo Padre que te recusas a acatar as suas ordens? Atrairias o fogo do inferno sobre ti por causa do Giovanni, que age como um verdadeiro porco? - perguntou César.       o   o

Lucrécia perscrutou o irmão.

  • Alguém perguntou ao duque de Pesaro se ele estaria disposto a dissolver de bom grado este casamento antes de encarares as medidas extremas de uma adaga ou veneno?

César respondeu:                                                          -

  • O pai perguntou e o duque recusou. Já não há nada a falar. A voz de Lucrécia vibrava de determinação.                                     

  • Nesse caso volta a falar com o Santo Padre, e teu pai também, para dizer que eu não estou de acordo em pôr a minha alma em perigo com semelhante acção. Porque o inferno é eterno e, a despeito de muitos dos meus pecados, albergo a esperança de um Deus misericordioso e de uma eternidade no paraíso.

César baixou a cabeça e esfregou resignadamente os olhos.      

  • Crezia, tem de se fazer qualquer coisa para pôr termo a esta mascarada, e depressa.

  • Não há nada que eu mais deseje do que ver-me livre do duque — explicou Lucrécia. — E isso não é segredo para ti, meu irmão. Mas é a tua alma, e a do pai, que me preocupam, bem como a minha. Não posso tomar parte no acto de tirar a vida a alguém exclusivamente por vantagens mun­danas.

César albergara a certeza de que a irmã ficaria satisfeita quando lhe desse a notícia da decisão do Papa quanto ao seu casamento, e a reacção dela desa­pontou-o. Fizera tenção de libertá-la do animal que os separara e tornar-se o seu salvador. Agora estava irado e, prestes a abandonar de rompante os apo­sentos da irmã, gritou:

  • Estar entalado entre ti e o pai, minha querida irmã, é estar entalado nas garras de metal de um torno. Não há fuga possível. Por isso pergunto-te: que quererás tu que eu faça?

  • Não te traias, meu querido irmão, para não traíres outro — advertiu-o Lucrécia.

Quando se certificou de que César tinha partido, Lucrécia dirigiu-se à parte de trás do biombo para socorrer o camareiro de Giovanni, que tremia tão vio­lentamente que aquela agitação se via por baixo das roupas que empilhara por cima dele. Ao começar a destapar o pobre homem, sussurrou:

  • Ouviste o que foi dito?

Com os olhos arregalados de susto, ele respondeu rapidamente.

  • Nem uma palavra, duquesa. Nem uma única palavra.

  • Meu Deus, serás tu uma vagem sem sementes? Vai depressa. Conta ao duque tudo o que ouviste. Diz-lhe que se apresse. Eu, por mim, não quero a mancha do seu sangue nas minhas mãos. Vai, anda...

E, dito isto, conduziu o camareiro ao exterior através de uma porta lateral do palácio.

Quando o camareiro esbaforido chegou aos aposentos dos Bórgia onde Giovanni estava alojado e lhe confiou o que tinha entreouvido, Giovanni Sforza procurou prontamente o Papa. Pediu a este que o dispensasse das vés­peras da tarde, pois sentia necessidade de ir à igreja de Santo Onofre, fora de Roma, a fim de se confessar.

Alexandre aceitou-o, pois estava-se na Semana Santa e era bem sabido que durante essa época, naquela igreja em especial, os pecadores podiam receber uma indulgência especial que libertaria a sua alma de todos os pecados. Tanto César como o Papa, conhecedores do que estava planeado relativamente a Gio­vanni, acharam sua obrigação permitir-lhe que se confessasse na igreja que lhe aprouvesse, pelo que foi autorizado a ir.

Porém, mal chegou à igreja, Giovanni montou um esplêndido cavalo turco que ali fora colocado pelo comandante das suas tropas em Pesaro. Impelido

pelo medo, fustigou rudemente o cavalo e cavalgou vinte e quatro horas sem parar até alcançar Pesaro. Às portas da cidade, o cavalo - exausto da jornada e com espuma a borbulhar na boca — caiu de joelhos e morreu rapidamente. Giovanni Sforza, que era mais amigo dos animais que dos homens, ficou compungido. Deu instruções ao palafreneiro para enterrar o cavalo com grande cerimonial e passou dias nos respectivos aposentos sem comer nem falar com quem quer que fosse. Nenhum dos cidadãos de Pesaro conseguiu desco­brir se estava mais desolado com a perda da mulher ou do cavalo.         o

Lucrécia estava zangada com o pai por não lhe falar directamente dos seus pla­nos, privando-a consequentemente da oportunidade de dar a conhecer os seus cuidados. Quando descobriu que o Papa tinha mandado um advogado papal a Pesaro para pedir uma anulação a Giovanni com o único fundamento de que uma comissão aceitaria — o de impotência —, Lucrécia decidiu aquilo que tinha de fazer. Embora não tivesse amor ao duque, bastava a razão para ditar que, se ele fosse obrigado a reconhecer uma fraqueza que era simultaneamente vexatória e falsa, resistiria com a verdade de que havia de suspeitar relativamente a ela e ao irmão. E, especialmente nesta altura, estava relutante em permitir que isso acontecesse.

Porque era ela, por causa de César, que - depois daquela primeira noite -se recusava a dormir na cama dele, e raras vezes tinha cumprido o seu dever de esposa. Embora a admissão de impotência fosse menos letal do que o veneno ou uma adaga, era mesmo assim um golpe mortal para uma pessoa de tama­nha arrogância. Ele ver-se-ia forçado a retaliar, e isso poria em perigo o Papa, e bem assim toda a família Bórgia.

Na manhã seguinte acordou ao alvorecer e reuniu várias das suas aias para a acompanharem ao Convento de São Sisto, pois estava ciente de que o único refugio para as mulheres que fugissem à autoridade, quer dos maridos quer dos pais, era um convento. A sua opção era ao mesmo tempo simples e virtuosa.

Mas Júlia e Adriana tentaram persuadi-la a não o fazer.

  • O Santo Padre não descansará enquanto estiveres fora — disse-lhe Adri­ana. - E não aceitará sem resistência o teu plano de partires.

Lucrécia estava decidida.                                                                  ¡; <

  • Não mo impedirá, porque só o saberá depois de eu estar há muito; tempo a caminho.

Júlia dirigiu-lhe rogos, pois sabia quão infeliz o Papa ficaria.

  • Querida irmã, dá ao Santo Padre uma hipótese de te dissuadir. Dá-lhe uma oportunidade de explicar o ssseu raciocínio. Bem sabes como ele fica infe­liz sempre que estás ausente do Vaticano.

Mas Lucrécia virou-se para ela com enfado.                        

  • Não alterarei a orientação dos meus planos. E, Júlia, se não queres que o Santo Padre, e meu pai também, fique infeliz, sugiro-te que o distraias da maneira como ele espera de ti. Eu já não tenho necessidade de lhe agradar, pois ele não atendeu nem à minha posição nem à do Pai Celeste nas suas decisões.                                                                                   

  • Adriana tentou uma vez mais.                                                                                                                                   

  • Lucrécia, disseste imensas vezes que eras infeliz... e no entanto, agora que o pai que te ama procura arrancar o decreto de divórcio ou anulação ao marido que tu própria tanto difamaste, viras as costas e rejeitas igualmente o teu pai. Onde está nisso a razão?

Ainda que com os olhos marejados de lágrimas, Lucrécia não podia per­mitir-se duvidar de si mesma, pois nessa altura tudo quanto amava estaria per­dido. Sem uma palavra, abraçou Adriana e Júlia e deu-lhes instruções:

  • Durante meio dia não digam uma palavra ao Santo Padre. Se ele per­guntar, digam-lhe que estou ajoelhada na capela a rezar e não quero ser inco­modada.

A seguir virou-se para uma das suas aias mais leais e estendeu-lhe uma carta que tinha escrito na noite anterior.

  • Leva isto, por favor, ao meu irmão, o cardeal. Assegura-te de que lha entregas em mão, e não a qualquer outra pessoa.

Em todas as questões da igreja e do Estado, o Papa Alexandre era um homem razoável. Nas questões de coração e nas suas relações com os filhos, era

muito menos razoável. E, assim, ao ser informado de que a filha partira do seu palácio e era sua intenção permanecer dentro dos muros do Convento de S. Sisto, ficou simultaneamente pesaroso e enraivecido.

Que importava um homem tornar-se Papa se não conseguia sequer domi­nar a própria filha? Como era possível aquela sua filha, outrora tão dócil, ajoe­lhar diante do Santo Padre e beijar-lhe com genuíno respeito o anel e o pé sagrado e apesar disso desobedecer ao seu próprio pai sem qualquer conside­ração?

Convocou César à sua presença e também Duarte Brandão. Depois man­dou chamar Michelotto.

Uma vez reunidos nos seus aposentos, perguntou:

  • Que fiz eu à minha própria filha, da qual tanto gosto, para ela me aban­donar desta maneira?

César, de cabeça baixa, não disse nada.

Duarte, revelando compaixão nos olhos escuros, disse:               »

  • Pode ser um apelo ao serviço do Pai Celeste, Excelência.

  • Por favor, Duarte — retorquiu o Papa. — Não tentes comprazer-me como se eu fosse um débil velho cretino. Há qualquer coisa que eu desconheço, qual­quer coisa que escapou ao meu entendimento.         

Duarte aquiesceu:

  • A minha intenção não era comprazer-vos, Santo Padre, pois não pretendi faltar-vos ao respeito, e sim dissuadir-vos de vos culpardes a vós próprio pelos actos dos vossos filhos. Porque, na verdade, ela já não é uma criança. E ou corre para uma promessa maior, ou foge de uma maior ameaça.

  • E de que pode tratar-se? - inquiriu Alexandre, voltando-se para César. Os olhos de César cruzaram-se com os do pai. Naquele momento, o fogo

do olhar do pai fez mirrar o seu. Durante todos aqueles anos nunca tinham ralado do amor que mais importância tinha para César, pois este temia que ele ainda tivesse mais importância para o pai. E, em qualquer combate de amor e poder com Alexandre, César tinha a certeza de que sairia derrotado. Porque o papa esperava que a sua lealdade a ele contasse mais do que tudo na terra. Revelar a verdade da relação entre ele e a irmã desencadearia um inferno espi­ritual.

César não tinha falado disso a ninguém; mesmo quando embriagado e na cama com cortesãs, conseguira manter sigilo. Os criados da corte nunca fala­riam certamente do assunto, por medo de serem decapitados. Mas poderia o pai, tal como o Pai Celeste, perscrutar a alma do filho? César interrogava-se.

Subitamente, a máscara feroz do rosto do Papa suavizou-se e deu lugar a um

sorriso.

  • Meu amigo, Don Michelotto. Escolhe-me um mensageiro para ir todos os dias ao convento. Não tenho dúvidas de que a minha filha há-de compa­decer-se. Certifica-te de que o jovem seja de bom carácter e inteligente. Tem de ter boa apresentação e ser atraente, de forma que a minha filha Lucrécia aceite as minhas mensagens e acabe por se convencer a regressar a casa.

Don Michelotto fez o que lhe fora ordenado. Escolheu para mensageiro um jovem chamado Perotto, que sabia estar nas boas graças de Alexandre. Músico e poeta, o rapaz servia o Papa como mensageiro a troco do seu sustento e da sua sal­vação. Mais instruído do que a maioria dos restantes da corte, viera de Espanha para passar uns tempos em Roma depois de ter ouvido falar da sua beleza. Era honesto e profundamente devotado à igreja e Alexandre confiava inteiramente nele.

Quando Alexandre depositou a primeira mensagem para Lucrécia nas mãos de Perotto, fê-lo sabendo que, se Perotto não conseguisse fazer-lha chegar, era porque tinha sido assassinado nos montes durante o trajecto, tal era a con­fiança que depositava no jovem.                                            

Quando Lucrécia encontrou Perotto pela primeira vez no jardim do con­vento, tentou recusar a mensagem que ele trazia do Papa.

  • Não quero entrar em quaisquer divergências com o Santo Padre - disse a Perotto. — E a maneira de o fazer é nunca começar.

Perotto, com os compridos cabelos loiros presos atrás e os olhos claros a cin­tilar, limitou-se a fazer um jovial aceno afirmativo com a cabeça.

  • Compreendo, senhora duquesa. Só abuso da vossa boa vontade porque creio que a mensagem diz respeito a um assunto importante.

Lucrécia olhou para ele, abanou a cabeça e virou-se, afastando-se. Sentou—se num dos bancos de pedra da parte mais afastada do jardim e ponderou o que fazer.

Em lugar de dar meia volta para se ir embora, porém, ou de deixar a men­sagem onde ela pudesse alcançá-la, Perotto desapareceu por uns momentos, para regressar com uma guitarra. Pediu então licença a Lucrécia para se sentar na relva e tocar a sua música.

Ela franziu o cenho; contudo, ele tinha um rosto cativante e simpático e a vida do convento enfadava-a, de forma que acabou por consentir:

  • Toca, se quiseres — disse.                                                               •    >i Lucrécia ficou admirada ao descobrir que, quando Perotto cantava, a sua

voz era tão agradável como a sua canção. Havia tanto tempo que não tinha uma companhia masculina, que deu por si a sorrir.

Quando ele terminou, a disposição dela era bem melhor; pediu-lhe a men­sagem. Sorrindo, Perotto entregou-lha.

A mensagem era bastante formal. Dizia-lhe o pai que as suas negociações para a anulação estavam ainda em curso e que se tinham feito alguns progres­sos. Que Giovanni estava a ponderar os benefícios e a indemnização que tinham sido propostos. Alexandre dizia-lhe que, se ela tinha quaisquer preo­cupações, deveria pô-las por escrito, pois o mensageiro regressaria no dia seguinte com mais notícias.

Ela dirigiu-se aos seus aposentos do convento, sentou-se à escrivaninha e redigiu uma curta resposta formal ao Papa. Dizia-lhe nela que esperava que ele estivesse bem e agradecia-lhe os seus esforços em seu favor. No entanto, assi­nou apenas «Lucrécia Bórgia» e, desse modo, quando ele a recebeu e a leu, per­cebeu que ainda estava zangada com ele.                                       

 

No dia seguinte, Alexandre acordou determinado a pôr a questão do divórceo de Lucrécia para trás das costas. Os assuntos do papado corriam razoavel-

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mente bem e, uma vez completadas as suas orações matinais, ficou livre para devotar o resto do dia à resolução dos assuntos familiares.

César acordou também de boa disposição, de forma que, ao vir juntar-se

ao pai, disse:

  • Talvez esteja na altura de pensar noutro festival, pois a gente da cidade anda agitada e precisa de qualquer coisa para comemorar antes de arranjar

algum sarilho.

  • Sim — concordou Alexandre. — Também a mim me dava jeito um carnaval,  porque os assuntos da igreja me fizeram tornar demasiado

sério.

Nesse preciso momento, Plandini, o secretário principal, anunciou a che­gada de Ludovico Sforza e do sobrinho, Giovanni.

Sentaram-se todos à roda de uma mesa de mármore e foram servidas tra­vessas de queijo, fruta e vinho. Depois de trocarem algumas graças, Alexandre virou-se para Sforza com uma expressão sisuda.

  • Não posso continuar a andar às voltas, Ludovico. Convidei-vos para aqui virdes hoje a fim de finalizarmos os planos para o divórcio.

Ludovico, com a taça de vinho imobilizada em pleno ar, pareceu surpreso. Precisou, contudo, de alguns momentos apenas para se recompor.

  • Não há necessidade de nenhum divórcio, Santidade, se estais a falar do Giovanni e da vossa gentil filha, Lucrécia.

Giovanni aquiesceu, mas nada disse.

Nessa altura Alexandre retirou-se da mesa e começou a andar de um lado para outro na sala.

  • Há mesmo necessidade de um divórcio, Ludovico. Giovanni deixou a cidade há meses para ficar em Pesaro. Lucrécia ficou sozinha em Roma.

Ludovico levantou-se e deslocou-se para a zona dos assentos, seguido por

Giovanni.

  • O meu sobrinho deixou Roma devido às ameaças do vosso filho, Exce­lência - explicou Ludovico, à guisa de desculpa.

César não saíra da mesa; permaneceu sentado, a acabar o seu vinho. Alexandre voltou-se para ele.

  • Isto é verdade, meu filho? Ameaças? césar reagiu com perfeita compostura.       

  • Eu nunca faço ameaças. Se um homem me encoleriza, desafio-o para um duelo. - Nessa altura abanou a cabeça. — Não me recordo de te ter desafiado, Giovanni. Desafiei?

Olhou para o cunhado com um olhar frio e sinistro.

Os dois homens antipatizavam tremendamente um com o outro.  

  • Tens de admitir que não és um cunhado amável — disse Giovannij arro­gantemente.

Enervando-se, Ludovico dirigiu-se ao Papa num tom melífluo:    o,•-.

  • Santidade, o Giovanni regressou a Roma. Os dois jovens podiam viver felizes em Pesaro, como um casal de marido e mulher. Mas Lucrécia... não, Lucrécia recusou. Ela queria Roma.

Estavam agora todos sentados no escritório do Papa.   Alexandre impacientou-se.      

  • Ludovico, meu amigo. Podíamos passar todo o dia a discutir, mas temos ambos mais que fazer. Aqui só pode haver uma conclusão. Giovanni e Lucrécia têm que se divorciar. Compreendemos tanto as vossas preocupa­ções como os sentimentos do vosso sobrinho. Mas, para bem da igreja, assim tem de ser.          

  • Da igreja? — tornou Ludovico, perplexo.                                    o Nessa altura tanto ele como Alexandre se puseram de pé e começaram a

andar para cá e para lá, juntos.

  • Santo Padre — sussurrou Ludovico. — Estou certo de que o Giovanni con­cordaria com o divórcio, desde que fosse com o fundamento de que o casa­mento nunca foi válido. - Aclarou a garganta antes de acrescentar: - Porque Lucrécia já estava noiva do espanhol.

Alexandre voltou-se e poisou a mão no ombro de Ludovico.

  • Ludovico, Ludovico — disse. — Ah, quem dera que esta desorientação pudesse ser esclarecida com tanta facilidade! Mas o organismo dirigente, a santa comissão, não concorda.

A voz de Ludovico baixou ainda mais.            

  • Poderíeis sempre promulgar uma bula.         o Alexandre aquiesceu.

  • Tendes razão, meu amigo - disse. - Podia. Se ela fosse filha de outro homem. — O Papa voltou-se então de forma a ficar de frente para Ludovico e falou com uma voz cheia de autoridade.

  • O único fundamento possível é a impotência. O reconhecimento de que o casamento nunca se consumou. Isto é uma coisa que quer os cidadãos quer a comissão, hão-de compreender. E temos a declaração escrita de Lucrécia.

Giovanni pôs-se em pé de um salto, com o rosto congestionado e vermelho.

  • Ela mente. Eu não sou impotente e nunca confessarei que o seja. Ludovico virou-se para ele e, com voz severa, ordenou-lhe que cedesse.

  • Senta-te, Giovanni. Temos de arranjar maneira de ir ao encontro do Santo Padre.

 Moro sabia que precisava do Papa, pois temia que Nápoles pudesse ser engolida pelos franceses e de um momento para o outro e podia precisar um dia dos exércitos do Papa e do seu apoio espanhol.

Nessa altura César falou com palavras que eram como pedras.

  • Creio que tenho uma solução. A Crezia diz uma coisa e o Giovanni diz outra. Proponho uma experiência. Podemos reunir os membros de ambas as famílias numa ampla sala de visitas. E nessa sala podemos pôr uma cama con­fortável. Nessa cama poremos uma cortesã atraente, saudável e entusiástica. Depois o Giovanni meter-se-á na cama ao lado dela e provará a sua virilidade de uma maneira ou de outra.

Giovanni ficou consternado.

  • Diante de ambas as famílias? Não o farei. Não me prestarei a tal coisa! Nessa altura o Papa aproximou-se de Ludovico.

  • Bem, nesse caso o assunto está resolvido. Giovanni recusou a oportuni­dade de se afirmar e por conseguinte temos de concluir, como qualquer tribu­nal concluiria, que a declaração de Lucrécia é verdadeira. Claro está que trata­remos Giovanni com generosidade, pois ele fez o que pôde como marido, e não estamos aqui para lhe deitar culpas.

Giovanni tentou falar, mas o tio atalhou-o, puxando-o de parte.

  • Toda a nossa família te renegará se não concordares. Perderás o teu título e a tua terra. Neste momento, embora já não sejas marido, ainda és duque. E isso não é coisa pouca.

Mais para o final do dia, César sentou-se à escrivaninha, nos seus aposen­tos, e releu a mensagem que a irmã enviara no dia anterior. O seu rosto bem—parecido reflectia a tristeza que sentia, pois estar separado de Lucrécia causava—lhe uma dor profunda e saudade. Mas havia qualquer coisa mais que o preo­cupava. A mão tremia-lhe ligeiramente ao ler uma e outra vez a mensagem.

Havia uma linha que parecia sobressair na página: «Não me é permitido, nesta altura, abordar a questão que é de primordial importância para nós.»

Era a formalidade da carta, a sua insistência em não lhe dar qualquer infor­mação, que lhe chamava a atenção. Era tudo o que ela não dizia. E ele conhe­cia suficientemente bem a irmã para perceber que ela tinha um segredo que, uma vez contado, podia pô-los a todos em grave perigo.                    .                                                                                                                                                                      os convidados de Vanozza Cattanei estavam sentados nas mesas de ban­quete de cores alegres a ver o sol abrasador declinar sobre as ruínas de pedra vermelha do Fórum Romano. Tinha convidado diversos amigos, bem como os filhos, para a sua propriedade rural, a fim de comemorarem a partida de César de Nápoles na semana seguinte como delegado papal.

A Vinha de Vanozza, como os filhos lhe chamavam afectuosamente, ficava no quase deserto Monte Esquilino, defronte da imponente Igreja de San Pietro.

João, Godofredo e César estavam, por uma vez, sentados ao lado uns dos outros, rindo e divertindo-se. A certa altura César reparou na mãe, no extremo oposto do pátio, a conversar com grande intimidade com um jovem guarda suíço. Sorriu para consigo mesmo, porque ela ainda era muito bonita. Embora alta, era de constituição delicada, com uma pele morena clara e uma opulenta cabeleira castanha que por enquanto ainda não revelava brancas. Com um vestido comprido de seda preta adornado com uma única fiada de pérolas dos Mares do Sul, um presente especial de Alexandre, a sua aparência era esplêndida.

César adorava a mãe e tinha orgulho na sua beleza, inteligência e óbvia habilidade para os negócios, pois ela era tão bem sucedida com as suas hospe­darias como qualquer homem da cidade de Roma. Voltou a olhar para o jovem guarda e desejou intimamente felicidades à mãe, pois, se ela ainda podia gozar um amor activo, era o que desejava para ela.

Nessa noite, Vanozza mandara vir dois chefes de cozinha das suas hospe­darias da cidade para confeccionarem uma grande variedade de deleitáveis pratos. Saltearam saboroso fígado de pato com pedaços de maçã e de uvas, cozeram a fogo lento lagosta recém-pescada num delicado molho de tomate, manjericão e natas e panaram tenros escalopes de vitela com suculentas tru­fas tiradas da terra e viçosas azeitonas verdes apanhadas maduras das árvores locais.

Alguns dos cardeais mais jovens, entre os quais Giò de Mediei, gritavam entusiasmados cada vez que era servida nova travessa. O cardeal Ascânio Sforza manteve-se tranquilo, mas conseguiu repetir cada novo prato, tal como o primo de Alexandre, o cardeal de Monreal.

Durante a refeição foram servidas grandes garrafas de vinho, feito com as gordas uvas de Borgonha das vinhas de Vanozza, e João bebeu todas as taças que lhe foram servidas, mal esperando por esvaziar a primeira antes de levar aos lábios a seguinte. No decurso do banquete, um jovem muito magro com uma máscara negra sentou-se ao lado dele e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido.

César tinha visto o mascarado no Vaticano diversas vezes no mês anterior em companhia do irmão, mas, quando inquirira sobre o estranho, ninguém parecia conhecê-lo. Quando interrogara João, este limitara-se a rir sardonica-mente e afastara-se. César pressupôs que o jovem era um artista excêntrico de um dos guetos da cidade, onde João ia frequentemente para frequentar pros­titutas e esbanjar dinheiro.

A dada altura, com a túnica desabotoada e o cabelo baço de transpiração, João pôs-se vacilantemente de pé — pois estava bastante bêbedo — e dispôs-se a fazer um brinde. Ergueu a taça e manteve-a diante de si, inclinando-se de forma que o vinho começou a entornar-se. Godofredo estendeu a mão para ajudar a endireitá-la, mas João repeliu-o rudemente. Depois, com a voz enta­ramelada, virou-se para César e disse:

  • À fuga do meu irmão dos franceses. À sua habilidade para evitar o perigo sempre que surge. Seja pondo o barrete cardinalício seja escapulindo-se dos franceses. Há quem lhe chame audácia... Eu chamo-lhe covardia... — e come çou a rir sonoramente.

César pôs-se em pé de um salto, levando a mão à espada. Arremeteu con­tra João, mas o seu velho amigo Giò de Mediei agarrou-o e, com o auxílio de Godofredo e dos rogos de Vanozza, conseguiu retê-lo.                          

Vanozza intercedeu junto do filho.                             (              

  • Ele não sabe o que diz, César. Não está a falar a sério. César respondeu com os olhos coruscantes e o queixo levantado.

  • Ele sabe, mãe, e se não estivéssemos na tua casa matava o insolente filho da mãe neste preciso momento... embora seja meu irmão e teu filho.

Ainda abalado pela fúria, César deixou Giò conduzi-lo de volta ao lugar. Os convidados, cujo entusiasmo fora esfriado pela discórdia entre os irmãos, esta­vam agora em amena conversa.

A certa altura o mascarado levantou-se e segredou mais uma vez qualquer coisa a João. E este, a quem a fúria do irmão fizera passar a embriaguez, levan­tou-se com mais firmeza e anunciou:

  • Hão-de desculpar-me, porque tenho outro compromisso que devo honrar.

Ajudado pelo pajem a vestir a sua capa de veludo azul-escuro, abandonou rapidamente a festa, acompanhado por um dos seus escudeiros e pelo homem alto da máscara.

Pouco depois o resto dos convivas dispersou-se e César saiu com o seu irmão Godofredo, Giò e Ascânio Sforza. Ao afastarem-se a cavalo, César disse adeus à mãe, Vanozza, que ficou com o jovem guarda suíço por companhia.

Cavalgaram velozmente em direcção à cidade. Depois de passarem as por­tas de Roma — na encruzilhada fronteira ao Palácio Bórgia — conversaram durante um bocado acerca do incidente com João. César fez saber que não podia tolerar a arrogância de bêbedo e a falta de lealdade à família do irmão, estava decidido a voltar a falar com João, a fim de lhe fazer ver a gravidade do incidente em casa de Vanozza. Queria argumentar primeiro com João mas, se fosse obrigado a isso, desafiá-lo-ia para um duelo a fim de arrumar as coisas de uma vez por todas. João sabia que num duelo César era o mais hábil e seria obrigado a arrepender-se da sua conduta ridícula, não apenas em relação a césar, mas para com todos os outros que tinha afrontado, atraindo escândalo sobre toda a família Bórgia.

César sabia também que era João, e não ele, o cobarde, a despeito das suas estouvadas acusações. Em qualquer combate, de vontades ou de espadas, César sairia vitorioso.

O cardeal Ascânio Sforza queixou-se igualmente, porque ainda umas noi­tes atrás, novamente bêbedo, João tinha matado o mordomo de Ascânio sem qualquer provocação. Ascânio ainda estava ofendido com isso e jurava que, se não envergasse o barrete cardinalício e não receasse retaliações por parte do Papa, ele próprio teria saldado a dívida com João.

O jovem Godofredo, de dezasseis anos de idade, não disse uma única pala­vra contra João, mas César percebeu que ele estava zangado com o irmão, pois não ignorava a relação de Saneia com João. Era um enigma, este irmão mais novo. A princípio, por a sua expressão ser tão doce, parecia não ser grande luminária. Porém César tinha observado a sua transformação na presença de Gonçalo de Córdova naquela noite no jardim e nunca mais o veria da mesma maneira.

Depois de darem as boas-noites a Ascânio e de Giò de Mediei ter partido para o seu palácio, Godofredo disse a César:

  • Acho que vou fazer uma visita ao gueto e passar umas horas com uma mulher que há-de corresponder aos meus afectos.

i   César sorriu-lhe e deu-lhe uma palmada de encorajamento no ombro. -    Não serei eu quem te dissuada — disse, rindo-se. — Passa uma boa noite.

César ficou a ver o irmão afastar-se a cavalo. Foi então que presenciou uma coisa que lhe suscitou cuidados. Quando o jovem Godofredo dobrou a esquina em direcção ao gueto, três homens a cavalo surgiram sub-repticiamente de entre os edifícios de pedra e deram a impressão de segui-lo. Um homem, mais alto do que os outros, montava um garanhão preto.

Depois de esperar uns momentos a fim de que eles não se apercebessem do galope do seu próprio cavalo atrás deles, César dirigiu-se para a praça que ficava acima do gueto. A sua frente, muitas ruas adiante, alongavam-se as sombras de quatro homens a cavalo, com o seu irmão Godofredo entre eles. Ouviu-os falar, com vozes amigáveis e animadas. Convencido de que o irmão não estava em perigo, fez a montada dar meia volta e regressou sozinho ao Vaticano.

 

Havia horas que César adormecera quando foi acordado por um pesadelo assustador. Seria o som de cavaleiros? Tentou espantar o sono, mas a lanterna dos seus aposentos tinha-se consumido e reinava no quarto uma escuridão de breu.

A suar e com o coração a bater descompassadamente, tentou acalmar-se, mas nada parecia arredar o pânico que sentia. Às cegas, pôs-se de pé e tentou encontrar um fósforo para o acender, mas tinha as mãos inseguras e o espírito cheio de temores irracionais. Presa de terror, chamou pelo criado. Mas nin­guém acorreu.

Finalmente, sem explicação, a sua lanterna tremulou a fez-se novamente luz. Ainda meio acordado, recostou-se no leito. Agora, porém, rodeavam-no negras sombras, que se estendiam para ele das paredes. César embrulhou-se num cobertor, pois sentia um frio gélido e não conseguia controlar o tremor do corpo. Nessa altura, vinda não se sabia de onde, ouviu a voz de Noni nos ouvidos: «Há morte na tua casa...»

Tentou libertar-se da sensação, afastar a voz, mas tinha o espírito cheio de terror. Estaria Crezia em perigo? Não, tranquilizou-se. Um convento era um lugar seguro para ela: o pai tinha velado por isso, mandando Don Miche-lotto montar uma guarda em volta do convento, cuidadosamente oculta a fim de não alarmar ou enraivecer ainda mais Lucrécia. A seguir pensou em Godofredo. Mas, ao recordar o som da sua voz com os companheiros, César sossegou.

João? Deus sabia que, se havia alguma justiça nos céus, o facto de João correr perigo não lhe causaria pesadelos. Mas nessa altura César foi assaltado de cuidados em relação ao pai. Que seria dele se acontecesse alguma coisa a João?

César vestiu-se rapidamente e aproximou-se dos aposentos do Papa. Posta­dos diante do quarto do pai, dois soldados da Guarda Sagrada estavam em sen­tido, um de cada lado das pesadas portas metálicas.

  • O Santo Padre está a descansar bem? - perguntou César, lutando por manter a compostura.

Foi Jacamino, o criado favorito do pai, que respondeu da antecâmara:

  • Ainda há momentos estava a dormir — disse. — Está tudo bem.

César regressou aos seus aposentos. Porém a inquietude persistia e não lhe restava senão cavalgar pelos campos, como fazia sempre quando o bater do seu coração ameaçava explodir através da pele. Correu para os estábulos e estava prestes a montar o seu garanhão preferido, quando viu o cavalo de Godofredo a ser escovado por um dos moços de estrebaria. Notou espessa lama vermelha do rio nas ferraduras do cavalo.

  • Então o meu irmão Godofredo regressou são e salvo a casa? — perguntou César.

  • Sim, cardeal — respondeu o rapaz.

  • E o meu irmão João? Já voltou?                                         

 - Não, cardeal - retorquiu o moço. - Até agora, não.          César abandonou a cidade com uma sensação de mau agoiro. Não sabia o que procurava, mas apesar disso corria à desfilada como que possuído pelo demónio. Tudo à sua volta lhe aparecia como num sonho. Foi neste estado de espírito transtornado que cavalgou pelos campos à beira-rio, à procura do seu irmão João.

A noite estava fresca e húmida e o cheiro a sal do Tibre desanuviou-lhe as ideias e acalmou-o. Procurou nas margens, em busca de sinais de desordem, mas não os encontrou e, passadas umas horas de cavalgada, alcançou a lama vermelha da margem do rio. Em frente de uma das grandes docas de pesca erguia-se o palácio do Conde Mirandella e um hospital com lanternas a tre­mular nas janelas. No entanto, tudo parecia calmo.

César desmontou, procurando em redor alguém que pudesse ter visto o irmão. Mas tanto a doca como a margem pareciam desertas, e os únicos sons que escutou foram o do chapinhar dos peixes ao saltarem através da cintilante superfície vítrea do rio.

César avançou até ao final da doca e parou a olhar as águas. Havia uns quantos barcos de pesca ali fundeados, cujas tripulações ou estavam numa das

tabernas locais da aldeia ou a dormir a sono solto nas entranhas dos barcos. Pensou como seria viver como pescador, quando a única coisa a fazer todos os dias era lançar uma rede e esperar que o peixe atraído viesse. Nessa altura sor­riu, sentindo-se mais sereno.

Estava prestes a dar meia volta e partir quando reparou num barquinho amarrado à fiada de estacas de madeira, com um homem a dormir lá dentro.

  • Signor? Signor?— chamou César.

Enquanto caminhava em direcção ao barco, o homem soergueu-se e olhou—o cautelosamente.

  • Sou o cardeal Bórgia - disse César - e ando à procura do meu irmão, o capitão-general. Observaste alguma coisa que te despertasse suspeitas esta noite?

Enquanto se mantinha de pé a falar com o homem, fez girar um ducado de ouro entre os dedos.

Ao ver a moeda, o homem, cujo nome era Giorgio, sentiu-se persuadido a falar livremente com César.

Passada meia hora, antes de se despedir do pescador, César agradeceu-lhe e deu-lhe a moeda de ouro.

  • Ninguém deve saber que falámos — disse. — Conto contigo para isso.

  • Já me esqueci, cardeal - garantiu Giorgio.

César regressou ao Vaticano. Contudo, não disse a ninguém o que tinha sabido.

O Papa Alexandre acordou mais cedo do que o habitual, com uma sensa­ção de desassossego. Tinha convocado uma reunião para rever a estratégia mili­tar que seria empregada nos combates vindouros, e estava convencido de que o seu mal-estar podia ter tido origem na ansiedade sobre o seu desfecho.

Depois de ajoelhar para as vésperas matinais, implorando a orientação divina, chegou à reunião, deparando-se-lhe apenas a presença de Duarte Brandão.

  • Onde estão os meus filhos, Duarte?«- perguntou o Papa. – Está na hora

de começar.                                                                                   

Duarte receava o que tinha a dizer a Alexandre. Tinha sido acordado antes do alvorecer por um criado do capitão-general, que lhe dissera que o amo não regressara do seu jantar na vinha. E, o que encerrava piores presságios ainda, o escudeiro que o acompanhava estava também desaparecido.

Duarte tinha tranquilizado o criado, instruindo-o para regressar aos apo­sentos do capitão-general e informá-lo quando o filho do Papa regressasse. Porém Duarte sentia qualquer coisa estranha no ar e não conseguiu voltar a adormecer. Depois de passar muito tempo acordado, acabou por sair da cama, vestiu-se rapidamente e, antes de a luz doirada do dia romper o negro céu da noite, percorreu as ruas de Roma, perguntando no gueto se alguém tinha visto João Bórgia. Ninguém o vira, porém.

Quando regressou ao Vaticano, Duarte acordou imediatamente César para lhe perguntar onde tinha sido João visto pela última vez.

  • Foi-se embora da festa com o seu escudeiro e o homem mascarado — res­pondeu César. — Deveria regressar ao Vaticano. O escudeiro recebeu instruções no sentido de se certificar de que ele lá chegava, pois estava bastante embriagado.

  • Não consegui encontrar o escudeiro que o acompanhou — disse Duarte a César. - E eu próprio corri a cidade inteira à procura do João.

  • Vou-me vestir imediatamente - tornou César. - Para o caso de o meu pai precisar de mim.

Duarte reparou, contudo, ao abandonar os aposentos de César, que as botas deste ainda estavam cobertas de lama vermelha recente.

Passadas bastantes horas mais, Alexandre começou a ficar progressivamente inquieto com a ausência de João. Percorria os aposentos de um lado para outro, de rosário dourado na mão.

  • Aquele rapaz é impossível — disse a Duarte. — Temos de o encontrar. Tem muito por que responder.

Duarte procurou tranquilizar o Papa.

  • É jovem, Santidade, e a cidade está cheia de mulheres bonitas. Pode ter des­falecido em qualquer cama do Trastevere que ainda não tenhamos descoberto.

Alexandre acenou em sinal de concordância, mas nessa altura entrou César com notícias sinistras.

  • Pai, encontraram o escudeiro do João, mortalmente ferido, e parece que as feridas infligidas são tão terríveis que ele não consegue falar.

  • Vou ter com esse homem e perguntar pelo meu filho - disse o Papa -, porque, se esse homem conseguir falar com alguém, há-de falar comigo.

César estava cabisbaixo e falou com voz sumida.     

  • Sem língua, não, pai.                                           não          

O Papa sentiu os joelhos fraquejarem.                                        

  • E está demasiado ferido para escrever essas informações? - inquiriu.»

  • Não pode - retorquiu César. - Porque ficou sem os dedos.    

  • Onde foi encontrado esse escudeiro? — perguntou o Papa ao filho. >

  • Na Piazza delia Giudecca - respondeu César - e há horas que devia estar ali caído, diante de centenas de transeuntes, que, cheios de medo, não comu­nicaram o incidente.

  • E ainda não há notícias do teu irmão? - perguntou então Alexandre, sen­tando-se.

  • Não, pai - retorquiu César. - Não se soube nada.

Depois de correrem Roma inteira a recolher informações junto dos capitães da Guarda Sagrada, do comandante da força espanhola e da Guarda Suíça, bem como da polícia apeada da cidade, tanto César como Duarte regressaram ao Vaticano.

Alexandre continuava ainda sentado em silêncio, com as contas douradas do rosário agora estreitamente apertadas entre os dedos. Quando entraram nos apo­sentos do Papa, César olhou para Duarte Brandão. Achou que seria mais agradá­vel para o pai saber as notícias mais recentes da boca de um amigo de confiança.

Duarte postou-se ao lado do Papa e poisou-lhe a vigorosa mão no ombro Para ajudar a prepará-lo.

  • Chegou muito recentemente ao meu conhecimento, Santidade, que o cavalo do capitão-general foi encontrado a andar à toa com um estribo cortado por aquilo que se afigura ser uma espada.

O Papa sentiu faltar-lhe o ar, como se tivesse sofrido uma súbita pancada no estômago.

  • E o cavaleiro? — perguntou baixinho.                                   

  • Não se encontrou cavaleiro algum — disse César.                  

O Papa Alexandre ergueu a cabeça, com os olhos toldados, e virou-se para César.

  • Reúne a Guarda Sagrada e manda-os fazer buscas nas ruas e no campo dos arredores de Roma. Diz-lhes que estão proibidos de regressar enquanto não encontrarem o meu filho.

César saiu, como lhe era pedido, para dar instruções às tropas. No vestíbulo de entrada do palácio passou pelo seu irmão Godofredo.

  • O João desapareceu — disse César — e o pai está inconsolável. Se eu fosse a ti, falaria com muito cuidado e não o deixaria em caso algum saber do teu paradeiro na noite passada.

Godofredo dirigiu um aceno de concordância ao irmão e disse: •;   —Compreendo.                                                                                                                                  

Não se prestou, contudo, a dizer mais nada.

da festa tinha visto quatro cavaleiros, um deles mascarado. Vira do barco avan­çar um quinto cavalo, com um corpo embrulhado sobre a sela, até ao local do rio Tibre onde se despejava o lixo da cidade. Nessa altura o corpo fora apeado do cavalo e arremessado ao rio.                                                 

A polícia perguntou:                Que aspecto tinham esses homens? Que podes tu dizer-mais? Giorgio respondeu:

  • Estava muito escuro...

Sujeito a posterior interrogatório, admitiu que tinha ouvido a voz de um, o patrão, a mandar os outros atirarem várias pedras para cima do cadáver, quando a sua capa azul veio à superfície. E revelou-lhes, claro, que um dos cavalos era branco.

Manteve, porém, a promessa que fizera ao cardeal e nunca descreveu o homem com quem falara, o homem que lá estivera. Quando a polícia se tor­nou mais agressiva, perguntando-lhe por que razão não tinha comunicado semelhante ocorrência, Giorgio retorquiu, aborrecido:

  • Nos últimos anos tenho visto centenas de corpos atirados ao Tibre. Se fosse a comunicar todas as vezes à polícia, ficava sem tempo para pescar, ou para comer!           

Espalharam-se boatos por toda a cidade a respeito de João, o filho do Papa: que tinha desaparecido e que o Papa estava numa grande angústia, ameaçando severo castigo caso se descobrisse que lhe tinham feito mal.

Quando os soldados espanhóis começaram a correr as ruas de espada desembainhada, as montras foram entaipadas e as lojas encerradas. Temendo que os responsabilizassem, os inimigos de Alexandre, incluindo os Orsini e os Colonna pegaram igualmente em armas. Foram expedidos mensageiros para revistar todos os becos da cidade de Roma e todos os soldados foram ameaça­dos de morte caso João não fosse encontrado.

No dia seguinte, de manhã cedo, a polícia acordou um pescador que des­cobriu a dormir no barco. Chamava-se Giorgio Schiavi e alegava que

Ao meio-dia, os mergulhadores inspeccionaram o rio de uma margem à outra com redes de arrasto e enormes fateixas. Foi só às três horas, contudo, que uma das fateixas lançadas por um pescador local apanhou qualquer coisa sólida e veio à superfície um corpo inchado, de rosto para cima, com uma capa de veludo azul a rodopiar com a corrente.

Calçava ainda as botas e as esporas. Tinha as luvas enfiadas no cinto e a bolsa continha trinta ducados, de forma que o móbil não fora o roubo. Uma vez tirado da água e examinado, porém, descobriu-se que tinha nove fundas punhaladas no corpo e que lhe haviam cortado a garganta.

Duarte Brandão foi identificar o corpo. Não havia dúvidas. Era o filho do PaPa. João Bórgia.

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O corpo de João tinha sido imediatamente levado de barco para o Castelo de SantAngelo. Ao ver o cadáver do seu filho preferido, Alexandre caiu de joe­lhos, enlouquecido e perdido de dor. Soluçava sem parar, de tal forma que os gritos dirigidos ao seu Deus se ouviam em todo o Vaticano.

Quando Alexandre conseguiu recompor-se, deu ordens para que o funeral se realizasse nessa mesma noite. O corpo de João foi preparado e colocado em câmara ardente, envergando a opulenta farda de brocado do capitão-general da Santa Igreja Católica Romana.

Às seis da tarde, João, bem-parecido e como se estivesse a dormir, foi colo­cado num magnífico ataúde e transportado através da ponte pelos nobres da sua casa, enquanto o Papa ficava sozinho, a ver, da torre do Castelo de SantAngelo.

Abriam o cortejo cento e vinte facheiros e escudeiros, seguidos por cente­nas de camareiros da igreja e eclesiásticos, chorosos e muito confundidos.

Nessa noite, acompanhado por mil participantes, cada um com o seu archote, contidos entre fileiras de soldados espanhóis, com as espadas desem­bainhadas na frente, o cortejo chegou à Igreja de Santa Maria dei Popolo, onde João foi sepultado na capela que a mãe, Vanozza, tinha preparado para ser a sua própria sepultura.

Alexandre era ainda presa de uma dor intensa quando, imediatamente após o funeral, pediu a presença do filho César nos seus aposentos. •..<   Ansioso por ser útil ao pai, César apressou-se a comparecer.                   

Ao entrar no escritório particular do pai, deparou-se-lhe Alexandre sentado à secretária, com os olhos aureolados de vermelho, de chorar. César só vira o pai assim uma vez: quando era criança e a vida de João estivera em perigo. Per­guntou naquele momento a si mesmo se a oração poderia alguma vez alterar o destino, e não apenas adiar o inelutável.

Ao ver o filho, na escuridão da sala debilmente iluminada, Alexandre apro­ximou-se de César, posicionando o seu volumoso corpo a uns centímetros de

distância apenas. Estava fora de si de desgosto e cólera. Sempre soubera que César não tinha amor ao irmão; percebia que João tinha usurpado a vida que César queria para si mesmo. Soubera que eles tinham discutido acerbamente duas noites atrás em casa de Vanozza, na noite em que João desaparecera. Agora queria a verdade da boca de César. E falou com um tom de voz áspero e autoritário.

  • Jura-me que não mataste o teu irmão. Jura-o pela tua alma imortal. E fica sabendo que, se me ocultares a verdade, arderás para sempre no inferno.

O choque da acusação do pai quase o deixou sem fôlego. Na verdade, não lamentava a morte do irmão. Mas era também verdade que não matara João. Apesar disso, não podia culpar o pai por suspeitar dele.

César aproximou-se ainda mais, cravando o olhar nos olhos do pai. Levou a mão ao peito e falou com sinceridade ao pai.

  • Eu não matei o meu irmão, pai. Juro-o. E, se não estou a dizer a verdade, de bom grado arderei para sempre no inferno.                                  

Viu a confusão no rosto do Papa e, por isso, repetiu as palavras:  

  • Eu não matei o João.

Foi o Papa o primeiro a desviar a vista. Nessa altura tornou a sentar-se, parecendo abater-se sobre a grande cadeira de couro, cobrindo os olhos com as mãos. Quando falou, a sua voz era meiga e triste.

  • Obrigado. Obrigado, meu filho - disse. - Como vês, estou desolado com a morte do meu rapaz. E fico imensamente aliviado com o que disseste. Por­que devo dizer-te - e isto não são as palavras de um pai dolorido que se pos­sam pôr de parte - que, se tivesses matado o teu irmão, eu mandaria arranca­rem-te os membros do corpo. Agora deixa-me, porque tenho de rezar e tentar encontrar algum refrigério na minha dor. em toda a vida humana há uma altura na qual a decisão que a pessoa toma ajuda a decidir do seu destino. É nessas encruzilhadas, sem saber o que o futuro reserva, que se faz uma opção que influencia todos os acontecimentos subsequentes. Foi assim que César resolveu não falar ao pai do pescador que

tinha encontrado o anel do topázio azul e omitir que sabia que o seu irmão Godofredo tinha matado o seu irmão João. De facto, que proveito teria dizer—lho?

Fora João que convocara o seu próprio destino. O facto de Godofredo ter sido utilizado como instrumento de justiça afigurava-se um desfecho apropria­do para a patética vida de João. Ele nada contribuíra para a família Bórgia; pelo contrário, pusera-a em perigo. Assim, o assassínio do irmão por Godofredo parecia uma penitência apropriada pelos muitos pecados dos Bórgia.

Não que ele não ficasse surpreendido ao descobrir que o pai desconfiava dele, embora a repercussão das dúvidas de Alexandre sobre a sua lealdade e amor ferissem César mais do que julgara possível.

Porém, se Alexandre resolvesse culpabilizá-lo, era assim que tinha de ser, pois contra-atacar o pai com a verdade apenas o magoaria mais. Como Santo Padre, o Papa tinha de ser infalível, pois era a infalibilidade que sustentava o seu poder. Neste caso, concluía César, a verdade desmentiria a própria condi­ção que constituía o esteio do papado.

César sabia que o pai desconfiava dele, mas teria alguma utilidade fazer o pai duvidar de si próprio? Não, isso debilitá-lo-ia. E, ao debilitá-lo, debilitaria toda a família Bórgia. Isso era uma coisa que César não podia permitir.

Foi assim, com a morte de João e a sua decisão, que César assumiu o manto da tutela de Roma, bem como a tutela da família.

 Lucrécia rezava diante da grande estátua de mármore da capela do Con­vento de San Sisto quando foi chamada por uma das jovens freiras, uma rapa­riga nervosa de uma das famílias reais de Nápoles. Havia tantas jovens ricas das famílias aristocráticas da Europa enviadas para o refúgio dos conventos como camponesas pobres possuidoras de verdadeira vocação religiosa. Umas e outras eram úteis à igreja. As famílias das raparigas ricas pagavam avultadas quantias à igreja e as raparigas do campo rezavam pela salvação dos ricos.

Nessa altura a rapariguinha gaguejou ao dizer a Lucrécia que alguém estava à espera dela com uma mensagem importante.

Lucrécia, com o coração já aos saltos de apreensão, caminhou o mais depressa que podia, fazendo ecoar os sapatos nos pisos de pedra dos corredores desertos.

Vestia um simples vestido cinzento de lã de cinta alta e por cima dele uma singela camisola de algodão. Graças a Deus, pensava todas as manhãs ao ves­tir-se, que as suas roupas eram suficientemente largas e pouco lisonjeiras para lhe ocultarem a barriga, que cada dia crescia mais.

Nos minutos que demorou a chegar ao vestíbulo de entrada, perpassaram—lhe milhares de pensamentos pela mente. O pai estaria bem? Seu irmão César? Não teria conseguido viver sem ela todos estes meses e partira para sempre? Ou era apenas mais um recado do Santo Padre, seu pai, instando-a a regressar a Roma e reocupar o seu lugar na corte?

Abrira apenas uma das mensagens que o jovem pajem, Perotto, lhe trou­xera. Depois disso temia que fosse a mesma coisa: o pai a exigir-lhe obediên­cia, e ela a ser incapaz de obedecer, mesmo que quisesse. Não teria decerto uti­lidade nenhuma para quem quer que fosse mostrar-se em semelhante estado, especialmente quando sabia pela boca do jovem Perotto que o pai tinha insis­tido na anulação do casamento com Giovanni com o argumento da impotên­cia. Enquanto caminhava, tocava levemente a barriga.

  • E depois como é que te vamos explicar a toda a gente?

O vestíbulo de entrada era nu e frio, com os seus despidos pavimentos de mármore, as janelas cobertas com cortinas escuras e diversos crucifixos pen­durados nas paredes singelas. Quando lá chegou, Lucrécia parou, atordoada com o que viu. O seu irmão César, envergando as vestes eclesiásticas, aguar­dava-a sozinho no vestíbulo da frente.

Ficou tão feliz ao vê-lo, que correu na sua direcção, atirando-se a ele, sem lhe importar que alguém os visse. César, porém, repeliu-a, postou-se diante dela e- severamente, com o sobrolho carregado a alterar-lhe o rosto bem-parecido.

  • Chez? - exclamou ela, quase em pranto. — Que foi?

Não podia acreditar que ele tivesse notado tão depressa, ou sabido do seu estado por qualquer outra pessoa. Contudo, enquanto se encontrava postada diante do irmão, com um milhar de pensamentos a perpassar-lhe pelo espírito, e|e inclinou a cabeça e disse:                                                          “

é O João morreu. Foi assassinado à noite.                                  

Com os joelhos a fraquejar, Lucrécia tombou para diante, por pouco não se estatelando no pavimento de mármore antes de César a amparar. Ajoe­lhando ao lado dela, ele notou-lhe a palidez da pele, as vénulas das pálpebras fechadas mais salientes que nunca. Chamou-a meigamente: «Crezia, Cre-zia...», mas ela não despertava. A seguir, tirando a capa de veludo, colocou-a no chão e poisou-lhe a cabeça sobre ela.

Os olhos de Lucrécia pestanejaram a começaram a abrir-se no momento em que César lhe passou a mão pela barriga a fim de a sossegar, de a acordar. E, quando os olhos dela começaram a ver distintamente, tudo o que conseguiu ver foram os olhos dele.

  • Sentes-te melhor? - perguntou ele.

  • Foi um pesadelo terrível - disse ela. - O João morreu? E o pai? O pai con­segue aguentar?

  • Nem por isso - respondeu-lhe César. A seguir, porém, poisou-lhe a mão no estômago e franziu o cenho. — Há uma mudança no teu estado de que eu não tinha conhecimento.

  • Sim.

  • Com o pai a pugnar por uma anulação, não se pode dizer que isto tenha vindo no momento mais oportuno. Ninguém vai acreditar que a besta do Gio-vanni é impotente e não te será concedida a anulação.

Lucrécia sentou-se rapidamente. Havia um tom desagradável na voz do irmão: estava descontente com ela. Ainda estava abalada pela notícia da morte de seu irmão João, e agora ver César zangado com ela confundia-a.

 

  • O meu estado não tem nada que ver com o Giovanni — disse, friamente. — Só tive relações com ele uma vez, e foi no leito nupcial.

César pareceu irado.

  • Então que patife tenho eu de matar?                                                                                              . Lucrécia estendeu a mão para tocar a face do irmão.

  • Esta criança é tua, minha doçura - disse. — E haverá coisa mais triste? Ele ficou a olhar, silencioso e pensativo, durante longos minutos. Depois disse:

  • Tenho de me livrar do barrete cardinalício. Porque filho meu não há-de ser bastardo.

Lucrécia cobriu-lhe os lábios com o dedo.

  • Mas nunca filho teu pode ser meu.       

  • Temos de pensar, temos de arquitectar um plano — disse ele. — Mais alguém sabe?

  • Ninguém - disse Lucrécia. - Porque, no dia em que tive a certeza, deixei  Roma. Depois da morte de João, o Papa enclausurou-se. A despeito dos rogos de Duarte, Don Michelotto, César e todos os que o amavam, recusou-se a comer ou a falar com quem quer que fosse durante dias; nem sequer com Júlia. As suas preces e os gritos de remorso que soltava ao implorar perdão ouviam-se no exterior do seu quarto.

Primeiro, porém, agitou o punho e arengou contra Deus.

  • Pai celeste, que vantagem tem salvar as vidas de milhares quando a perda desta é causa de tanta dor? — Alexandre não parava de bramar. — Punir-me pela falta de virtude, com a vida do meu filho, é injusto. O homem está sujeito à fraqueza humana, mas um Deus deve ser misericordioso! — A ouvi-lo, dir-se-ia que a loucura se tinha apossado dele.

Os cardeais de que ele gostava revezavam-se a bater à porta dos seus aposentos e implorar para entrarem, a fim de o ajudarem no seu sofrimento. Mas ele recusa­va invariavelmente. Finalmente, ouviu-se soar um grito por todo o Vaticano.

  • Sim, sim, Pai Celeste, bem sei: o teu filho também foi martirizado... E fez-se silêncio durante mais dois dias.

Quando, por fim, Alexandre abriu as portas dos seus aposentos, estava magro e pálido; não obstante, parecia em paz. Anunciou a todos os que esperavam:

  • Fiz uma jura à Madonna de reformar a igreja, e vou começar imediata­mente. Convoquem o consistório para eu poder falar-lhes.

O Papa proclamou publicamente o seu amor pelo filho e disse aos cardeais presentes que cederia sete tiaras para o ter de volta. Mas, como isso não era pos­sível, disse, iniciaria antes as reformas da igreja, pois o assassínio de João tinha-o despertado e fizera-o ter plena consciência dos seus pecados.

Era evidente a sua angústia ao falar da sua dor e, ao confessar a sua própria perversidade e a perversidade da sua família, jurou corrigir-se. Disse a toda a assembleia de cardeais e embaixadores que se apercebia de ter ofendido a Pro­vidência e pediu a constituição de uma comissão para apresentar alvitres de alterações.

No dia seguinte, o Papa escreveu aos governantes cristãos registando tanto a sua tragédia como a sua recente compreensão da necessidade de mudança. Toda a gente estava de tal modo convencida das intenções de Alexandre, que houve discursos de compreensão pronunciados em toda a Roma, e tanto o car­deal delia Rovere como o profeta Savonarola, dois dos maiores inimigos do Papa, lhe enviaram cartas de condolências.

Parecia, assim, que uma nova era estava prestes a iniciar-se.

Alexandre estava ainda de luto por João, razão pela qual Duarte se dirigiu a César Bórgia para sugerir que, depois de coroar o rei de Nápoles, visitasse a cidade de Florença, que ficara virada do avesso durante a invasão francesa. Por agora, a fim de consolidar a relação entre o maior corpo legislativo da cidade - a Signoria — e o Papa, tentar restabelecer os Mediei e aquilatar do perigo do profeta Savonarola, havia que enviar alguém digno de confiança para avaliar a verdade dos boatos que chegavam a Roma.

  • Diz-se por aí — observou Duarte a César — que o frade dominicano, Savo­narola, se tem tornado ainda mais incendiário e influente nos últimos meses e que anda a virar o povo de Florença contra o Papa... a menos que haja seve­ras reformas.

Alexandre já tinha expedido uma interdição para Florença proibindo o frade de pregar caso projectasse continuar a minar a fé do povo no papado. Ordenara que Savonarola não voltasse a pregar enquanto não se dirigisse a Roma para falar com o Papa em pessoa; chegara mesmo a impor sanções aos mercadores de Florença para impedir que eles ouvissem os discursos do frade. Não obstante, nada detinha o zeloso profeta.

A arrogância de Piero de Mediei tinha afastado tanto os cidadãos de Florença como os membros da sua corte. E agora, do alto dos púlpitos e nas  incendiárias prédicas de Girolamo Savonarola contra os Mediei que tinham Posto as multidões a favor das reformas. O crescente poder dos plebeus ricos, Uque guardavam ressentimento aos Mediei e sentiam que o dinheiro lhes con-

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feria o direito de ter voz activa nos assuntos de Florença, juntavam-se ao cla­mor e ameaçavam minar o poder do Papa. César sorriu.

  • Podes garantir, meu amigo, que eu próprio não serei trucidado se visitar Florença? Eles podem querer fazer de mim um exemplo. Ouvi dizer que, de acordo com o profeta e os cidadãos de Florença, sou quase tão mau como o Santo Padre.

  • Tendes lá amigos, como tendes inimigos - replicou Duarte. - E até alguns aliados. O brilhante orador Maquiavel é um deles. Nestes tempos de debili­dade do papado, é preciso uma visão penetrante para separar os falsos dos ver­dadeiros perigos para a família Bórgia.

  • Aprecio o teu cuidado, Duarte — tornou César. — E, se for capaz, tens a minha palavra de que visitarei Florença quando tiver acabado em Nápoles.

  • O barrete de um cardeal proteger-vos-á - volveu Duarte. - Mesmo de alguém tão zeloso como o profeta. E pode ser que nos seja útil ouvir directa­mente de que acusa ele o Papa, de forma a podermos refutá-lo como deve ser.

Nessa altura, receando que, com a perda dos Mediei como família reinante e a eleição de uma nova Signoria, o Papa ficasse sujeito a maior perigo, César consentiu em ir a Florença a fim de ver como poderia alterar a situação em favor de Roma.

  • Assim que for possível - disse César - farei o que pedes.

Em Florença, Niccolò Maquiavel tinha acabado de regressar de Roma, onde se deslocara como emissário da Signoria para investigar o assassínio de João Bórgia.

Maquiavel estava de pé na enorme sala do Palazzo delia Signoria, rodeado de extraordinárias tapeçarias e inestimáveis quadros. Giottos, Botticellis e mui­tas outras preciosidades doadas pelo falecido Lourenço, o Magnífico, decora­vam a sala.

Sentado numa grande cadeira de veludo vermelho no meio dos oito membros da Signoria, e agitando-se nervosamente, o idoso presidente es-

cutava atentamente enquanto aiayel se dispunha a; relatar o que tinha descoberto.                              

Todos os membros temiam a perspectiva do que iriam descobrir, quer sobre Florença quer sobre si próprios. Porque, embora muitas vezes se impres­sionassem com a capacidade de apresentação dos argumentos por parte daquele jovem, estavam também preocupados com o grau de concentração que tinham de manter para compreenderem cabalmente a sua apresentação. Não podiam repousar os olhos por um só momento.

Maquiavel era de compleição franzina e aparentava menos idade do que os seus vinte e cinco anos. Na ocasião, com o corpo teatralmente envolvido por uma comprida capa negra, andava de um lado para outro diante deles à medida que falava.

  • Toda a Roma crê que foi César Bórgia que assassinou o irmão. Mas eu, não. O próprio Papa pode acreditar nisso, mas mesmo assim eu discordo. É fora de dúvida que César Bórgia tinha um móbil, e todos nós conhecemos que a relação entre os irmãos era no mínimo tensa. Diz-se que quase travaram um duelo na noite do assassínio. Mesmo assim, porém, eu digo que não.

O presidente agitou impacientemente a mão mirrada.

  • Não me interessa nem um bocadinho o que Roma pensa, meu jovem. Em Florença pensamos pela nossa própria cabeça. Fostes enviado para avaliar a situação, e não para trazerdes mexericos que podiam ser ouvidos em qualquer rua de Roma.

Maquiavel permaneceu imperturbável diante do ataque do presidente. Com um sorriso zombeteiro, continuou:

  • Não acredito que César Bórgia tenha matado o irmão, Excelência. Há muitos outros que possuíam motivos fortes. Os Orsini, para começar, que ainda estão rancorosos devido à morte de Virgínio e ao ataque às suas fortale­zas; Giovanni Sforza, por causa do processo de divórcio da filha do Papa, Lucrécia.

  • Despachai-vos, jovem — tornou o presidente -, senão ainda morro de

velho

antes que termineis a vossa apresentação.

Maquiavel não vacilou. Falou com paixão, conquanto tivesse sido interrompido.

  • Há o duque de Urbino, Guido Feltra, que esteve prisioneiro nas mas­morras dos Orsini devido à incompetência do capitão-general, e ali ficou meses, pois, devido à sua ganância, João Bórgia se recusava a pagar o resgate. E não menosprezemos o comandante espanhol Gonçalo de Córdova, que foi esbulhado tanto do dinheiro como da glória da conquista dos Orsini. Mas, tal­vez mais do que qualquer outro, há o Conde Mirandella. A sua filha de catorze anos foi seduzida e utilizada por João, que imediatamente a seguir disso se gabou perante a multidão na praça pública. Podereis compreender a vergonha de um pai. E foi do seu palácio que fica mesmo em frente, do outro lado do Tibre, que João Bórgia foi lançado ao rio.

O presidente principiou a dormitar e Maquiavel levantou a voz para lhe captar a atenção.

  • Mas ainda há mais inimigos... O cardeal Ascânio Sforza podia tê-lo feito, pois o seu mordomo tinha sido assassinado mesmo na semana anterior. E não descuremos... o homem cuja mulher foi seduzida... — Deteve-se, numa pausa bem coreografada, após o que prosseguiu, com uma voz que as pessoas tinham que fazer um esforço para ouvir: — O seu irmão mais novo, Godofredo...

  • Basta, basta — atalhou o presidente, contrariado. A seguir, com uma cla­reza notável para a idade, argumentou: — O que nos interessa é apenas a amea­ça a Florença representada por Roma. João Bórgia, o capitão-general do exér­cito do Papa, foi assassinado. Há quem diga que o culpado pode ser o irmão, César. E razoável admitir que, se César Bórgia for mesmo culpado, Florença corre perigo. Porque, se isso for verdade, ele é um patriota cheio de ambição, e segue-se que um dia tentará reivindicar Florença como sua. Para simplificar as coisas, meu jovem, o que achamos necessário saber é a resposta a esta per­gunta: «César Bórgia assassinou o irmão?»

Maquiavel abanou a cabeça. A seguir, com uma voz simultaneamente apai­xonada e sincera, argumentou:

  • Não acredito que ele seja culpado, Excelência. E passo a expor as minhas razões. As provas mostram que João Bórgia foi nove vezes apunhalado... nas costas. Não é o estilo de César Bórgia. Ele é um guerreiro, ainda para mais vigoroso, ao qual basta uma punhalada para cada inimigo. Além disso, para um homem como César Bórgia cantar vitória, o combate deve ser cara a cara.

Assassínios à meia-noite em becos escuros e corpos atirados ao rio Tibre não são actos condizentes com a sua natureza. É isso, acima de tudo, que me per­suade da sua inocência.      

Após a morte de João, Alexandre andou meses a sofrer de frequentes aces­sos de depressão. Quando o desgosto se apoderava dele, retirava-se para os seus aposentos e recusava-se a ver quem quer que fosse ou sequer a cumprir as suas funções papais. Depois, novamente inspirado, saía das suas instalações cheio de energia, determinado a levar por diante a sua missão de reformar a igreja.

Por fim, Alexandre mandou chamar o seu secretário-chefe, Plandini, e ditou-lhe o pedido de uma reunião da comissão de cardeais a fim de estes lhe trazerem o seu conselho.

Alexandre chamou Duarte e confessou que as reformas não parariam ape­nas na igreja; que estava preparado para reformar a sua própria vida e também a de Roma. Não carecia de autorização, pois nesta matéria precisaria unica­mente de orientação divina.

Não havia dúvida de que Roma precisava de reformas. A fraude e o roubo eram comuns em todas as áreas do comércio. O latrocínio, a devassidão, a homossexualidade e a pedofilia campeavam nas ruas, em todas as lojas e em todos os becos. Até cardeais e bispos se pavoneavam pelas ruas com os seus jovens catamitos predilectos envergando sumptuosas vestes orientais.

Seis mil e oitocentas prostitutas vagueavam pelas ruas da cidade, represen­tando uma nova ameaça tanto médica como moral para o povo. A sífilis come­çava a grassar; tendo principiado em Nápoles, fora disseminada pelas tropas francesas, alastrara ao norte, até Bolonha, sendo depois transportada pelo exér­cito através dos Alpes. Os romanos mais ricos infectados pelo «mal-gálico» Pagavam somas fabulosas aos negociantes de azeite para lhes permitirem pas­sarem horas de molho em barris de azeite a fim de aliviarem as dores das feridas- Mais tarde, esse mesmo azeite era vendido um lojas da moda como azeite “Puro extra-virgem». Que paródia!

Alexandre sabia, porém, que tinha de alterar a prática da própria igreja e para isso precisava do trabalho da comissão. A Santa Igreja Católica Romana era uma grande e rica empresa, com um número enorme de contas. Só a chan­celaria enviava mais de dez mil cartas por ano. O cardeal encarregado da sec­ção financeira, a Câmara Apostólica, era responsável por pagar milhares de contas, e bem assim receber pagamentos em ducados, florins e outras moedas. O numeroso pessoal da Cúria, que todos os anos ia aumentando, era remune­rado e havia cargos valiosos, legítimos ou não, a vender e negociar.

No entanto, havia muitas coisas a ponderar. Com o correr dos anos, o Papa e os cardeais rivalizavam entre si para tudo controlar. As reformas significariam que o poder do Papa enfraqueceria, ao passo que o do colégio cardinalício se reforçaria. Durante mais de um século isto constituíra motivo de tensão entre eles.

Era, assim, evidente que uma das áreas de discórdia seria o número de car­deais ordenados. Inundando o colégio de familiares, um Papa podia reforçar o seu poder. Podia, aliás, por intermédio deles, controlar as futuras eleições papais, garantir e proteger determinados interesses da família e aumentar a sua riqueza.

Claro está que a limitação do número de cardeais que qualquer Papa podia nomear daria a todos os cardeais existentes mais poder individual, bem como maiores rendimentos, visto que os lucros do colégio cardinalício em si eram divididos equitativamente.

Foi assim que, cinco semanas após o início dos trabalhos, a comissão que Alexandre tinha encarregado de investigar as reformas se reuniu no Grande Salão do Vaticano a fim de comunicar as suas conclusões e formular as suas recomendações ao Papa.

O cardeal Grimani, um veneziano baixo e loiro, levantou-se para falar em nome do grupo. Exprimiu-se cuidadosamente, com uma voz bem modulada.

  • Explorámos as sugestões de reformas de anteriores comissões papais e apreciámos as que julgamos necessárias nesta altura. Principiaremos pelas refor­mas para os cardeais. Decidiu-se que temos de reduzir os nossos prazeres ter­renos. Temos de limitar o número de jantares em que se serve carne. A Bíblia deve ser lida a todas as refeições...

Alexandre aguardou, pois não havia ali nada de surpreendente.

O cardeal Grimani prosseguiu propondo a redução de toda a simonia e pre­sentes de propriedade da igreja, e bem assim a limitação dos rendimentos dos cardeais... embora não os rendimentos pessoais de origem particular ou fami­liar, mas tão-somente de certos benefícios da igreja. Uma vez que na sua maio­ria os cardeais eram ricos, isto não causaria dificuldades.

Nessa altura, contudo, as recomendações de Grimani tornaram-se mais agressivas, conforme Alexandre sabia que havia de acontecer.

  • Tem de haver limites aos poderes conferidos ao Papa - encetou suave­mente Grimani. — Os cardeais darão a sua aprovação à nomeação dos bispos. O Papa fica proibido de vender ou permutar qualquer cargo administrativo sem o consentimento do colégio cardinalício. Quando da morte de qualquer cardeal actualmente em funções, não será designado outro.

Alexandre franziu o cenho enquanto escutava.

Grimani, agora numa voz tão baixa que o Papa se viu obrigado a inclinar—se para diante, esforçando-se por ouvir, disse:

  • Nenhum príncipe da igreja terá mais de oito criados, nem mais de trinta cavalos, e não terá malabaristas, nem bobos, nem músicos. Nenhum empregará rapazes novos como criados particulares. E, independentemente da sua cate­goria, todos os membros do clero terão de deixar de ter concubinas, caso con­trário perderão todos os benefícios.

O Papa dedilhou então as contas do seu rosário, enquanto escutava, impas-sivelmente, sentado. Tratava-se de sugestões sem valor, que em nada contri­buíam para o bem da alma ou o bem da igreja. Não obstante, manteve-se em silêncio.

Quando por fim terminou, Grimani perguntou cortesmente:

  • O Santo Padre tem alguma pergunta a fazer?

O fervor de Alexandre pelas reformas tinha diminuído no decurso do último mes; naquela ocasião, ao ouvir a proposta da comissão, desaparecera de todo. O Papa levantou-se do trono e voltou-se para a comissão.

  • De momento não tenho nada a dizer, Grimani. Mas claro que quero agradecer-vos a todos pela vossa diligência. Vou analisar atentamente os relatórios

e o meu secretário-chefe, Plandini, notificará a comissão quando eu estiver em condições de discutir as questões apresentadas.

Alexandre fez o sinal da cruz, abençoou a comissão, virou-se rapidamente e deixou o salão.

Um dos outros cardeais do Vaticano, SanGiorgio, abeirou-se de Grimani, que ainda estava de pé junto da estante.

  • Bem, Grimani - segredou-lhe -, duvido que devamos precipitar-nos nos preparativos para a viagem de regresso a Roma. Desconfio que estas reformas sugeridas pelo Papa estão prestes a receber a extrema-unção.

De regresso aos seus aposentos, Alexandre mandou chamar Duarte Bran­dão. Beberricava uma taça de vinho forte quando Duarte entrou e insistiu com ele para que se sentasse a fim de poderem discutir os acontecimentos da tarde.

Duarte aceitou o vinho que lhe era oferecido e sentou-se, atento.

  • É inacreditável — disse Alexandre — que a natureza humana vá constan-temente contra si própria quanto a princípios elevados.

Duarte perguntou:

  • E por conseguinte não encontrastes nada no relatório da comissão que valha a pena considerar?

Alexandre levantou-se e pôs-se a andar de um lado para outro, com uma expressão divertida no rosto.

  • É escandaloso, Duarte. As sugestões deles vão contra todos os prazeres terrenos. Ser moderado é uma coisa, mas ser asceta? Que alegria sentirá Deus se nós não sentirmos nenhuma?

  • Das recomendações deles, Santidade, quais achastes mais censuráveis? Alexandre parou e virou-se para Duarte.

  • Meu amigo, eles sugerem acabar com as «concubinas». Como Papa não posso casar e, por conseguinte, a minha querida Júlia não teria lugar na minha cama ou ao meu lado. Eu nunca poderia permitir tal coisa. E, mais pérfido ainda, nada de propriedades para os meus filhos? Nada de divertimentos para os cidadãos? É um disparate, Duarte, um puro e simples disparate, e acho preo-cupante que os nossos cardeais se tenham tornado tão indiferentes às necessi­dades do nosso povo.

Duarte sorriu.       »          

  • Deverei depreender então que não aceitareis as sugestões da comissão? Alexandre voltou a sentar-se, mais descontraído.

_ Devia estar louco de desgosto, meu amigo. Porque uma reforma da igreja desta maneira distanciaria o Papa dos seus filhos, do seu amor e do seu povo. E, por conseguinte, menos almas serão salvas. Esperaremos mais um mês, mas depois há que acabar com toda e qualquer conversa sobre reformas.

Duarte cofiou pensativamente o queixo.

  • Ficastes então surpreendido com este relatório? Alexandre abanou a cabeça.

  • Horrorizado, meu caro amigo, horrorizado.

Na região rural de Roma, os boatos brotavam como ervas daninhas. E dizia—se que a Providência tinha cobrado o preço da vida de João porque tanto os perversos irmãos Bórgia como o Papa tinham tido relações com Lucrécia.

Giovanni Sforza tinha concordado com o divórcio, mas não de bom grado, de forma que começou a combater os boatos das razões para a anulação com as suas acusações de incesto no seio da família Bórgia. Além de ter dormido com o irmão, César, insistia ele, tinha-o feito também com o pai, o Papa. Os boatos eram tão escandalosos que animaram as ruas de Roma e por fim as de Florença também. Savonarola começou a pregar com renovado fervor sobre «os males que se abaterão sobre os seguidores do falso Papa».

Aparentemente imperturbável perante tudo quanto se dizia, o Papa Ale­xandre ponderava uma série de pretendentes para a filha. De todos eles, Afonso de Aragão, filho do rei de Nápoles, parecia o mais desejável.

Afonso era um jovem bem parecido, alto e loiro, simpático e bonacheirão.

 

como a irmã, Saneia, era ilegítimo, mas o pai tinha anuído a fazê-lo duque

oisceglie, a fim de lhe proporcionar maiores rendimentos e posição. Factor

mas importante ainda, a relação da família de Afonso com Fernando uniria o

aPa ao rei espanhol, conferindo a Alexandre uma vantagem táctica nas suas

disPutas com os barões e chefes militares a sul de Roma.

À medida que Alexandre gizava os seus planos relativamente a Lucrécia, o jovem Perotto deslocava-se entre o Convento de San Sisto e o Vaticano levando-lhe mensagens diárias acerca do processo de divórcio e das negociações matrimoniais em curso.

No decurso deste período, Lucrécia e o meigo Perotto tornaram-se bons amigos. Todos os dias compartilhavam histórias e música e caminhavam em companhia pelos jardins do convento. Ele encorajou-a a explorar a sua liber­dade, pois tratava-se da primeira vez na vida que não se encontrava sob o domínio do pai e, por conseguinte, podia ser ela própria.

Lucrécia, muito nova ainda, e o encantador Perotto davam as mãos e tro­cavam segredos e muitas vezes, depois de almoçarem juntos na relva, Perotto passava as tardes a entrelaçar flores de cores garridas nos longos cabelos loiros de Lucrécia. Ela principiou a rir, a animar-se de novo, a sentir-se jovem.

No dia em que Perotto entregou o aviso de que Lucrécia devia regressar ao Vaticano a fim de participar na cerimónia de anulação do casamento perante a Rota Romana - o supremo tribunal eclesiástico -, o terror apossou-se dela. Ao segurar o pergaminho nas mãos trémulas, começou a chorar. Perotto, que por esta altura estava já profundamente apaixonado por Lucrécia - embora ainda não lho tivesse confiado -, estreitou-a contra si a fim de a consolar.

  • Que foi, minha querida? — perguntou, rompendo o seu formalismo habi­tual. — O que pode causar-vos tanta dor?

Ela abraçou-se muito a ele, afundando a cabeça no seu ombro. Não tinha revelado o seu estado a ninguém além de César, mas ser chamada a declarar—se virgem agora afigurava-se uma empresa impossível. Se o pai ou mais alguém descobrisse o seu verdadeiro estado, a recente aliança com o príncipe Afonso, da Casa de Aragão e Nápoles, correria perigo; pior ainda, ela e o irmão podiam ser mortos pelos seus inimigos, pois tinham posto o próprio papado em risco.

E foi assim que Lucrécia, sem ter mais ninguém a quem fazer confidências, confessou ao jovem Perotto a sua delicada situação. E ele, um honrado cava­leiro, sugeriu que, em lugar de admitir a sua relação com o irmão, ela alegasse que era ele, Perotto, o pai da criança por nascer. Haveria ainda assim algumas consequências para o seu acto, mas certamente não se revestiriam da gravidade que uma acusação de incesto implicaria.

Lucrécia ficou simultaneamente tocada e assustada com a sugestão.

  • Mas o Pai mandar-te-á torturar, uma vez que pôr em perigo a aliança que planeou enfraquecerá a sua posição na Romanha. Claro que os boatos já são suficientemente maus sem provas, mas agora... — e tocou a barriga, suspirando.

  • Estou disposto a dar a minha vida por vós e pela igreja — redarguiu sim­plesmente Perotto. - Não tenho dúvidas de que, com a bondade das minhas intenções, o Pai Celeste há-de recompensar-me, seja o que for que o Santo Padre decrete.

  • Tenho de contar ao meu irmão, o cardeal — meditou Lucrécia em voz alta. Com o seu génio inalterável e o seu bom coração, Perotto disse:

  • Dizei-lhe o que pensais que deveis dizer, e eu suportarei as consequências com que todo o verdadeiro amor deve arcar, porque uma graça tão maravilhosa como aquela que conheci nestes últimos meses vale bem o que possa custar.

Fez uma vénia e despediu-se dela. Não sem que antes, porém, ela lhe desse uma carta para entregar ao irmão.

  • Assegura-te de que seja ele, e só ele, que recebe esta mensagem, pois bem conheces o perigo que adviria de ela cair nas mãos de outra pessoa.

Perotto chegou a Roma e dirigiu-se imediatamente ao Papa para o infor­mar de que Lucrécia estava grávida de seis meses e de que era ele o pai da criança. Implorou perdão ao Papa por trair a sua confiança e jurou ressarcir-se da maneira que o Papa determinasse.

Alexandre escutou atentamente o que Perotto tinha a dizer-lhe. Pareceu momentaneamente intrigado, mas a seguir ficou sereno; para surpresa de Perotto, contudo, não pareceu zangado. Limitou-se a dar ordens ao jovem espanhol. Ordenou a Perotto que não falasse a ninguém sobre a situação, sem qualquer excepção possível. Explicou que Lucrécia permaneceria no convento, onde teria a crianÇa, auxiliada pelas noivas de Cristo que tinham jurado obediência à igreja e nas quais se podia por conseguinte confiar para protegerem os seus segredos.

Mas que fazer quanto à criança? Afonso e a família não deveriam de modo  nenhum saber a verdade. E o mesmo se aplicava a toda a gente, menos Alexan-

dre, Lucrécia e, evidentemente, César. Até Godofredo e Saneia podiam correr perigo se aquilo fosse descoberto. E subentendia-se que, mesmo sob tortura, Perotto não denunciaria esta verdade.

Quando Perotto se apressava para se despedir do Papa, Alexandre perguntou:

  • Não falaste disto a ninguém, presumo eu?

  • Absolutamente a ninguém — admitiu Perotto - porque o meu amor pela vossa filha impôs o seu próprio silêncio aos meus lábios.

Alexandre abraçou então o jovem e mandou-o seguir o seu caminho.

  • Toma cuidado — disse, quando Perotto se afastava. — Aprecio a tua since­ridade e a tua coragem.

Depois da visita ao Papa, Perotto foi ter com o cardeal a fim de lhe entre­gar a mensagem de Lucrécia. César empalideceu ao ler o pergaminho, após o que fitou Perotto, surpreendido.

  • Qual é o objectivo deste reconhecimento? - perguntou ao jovem espa­nhol.

Perotto, com a guitarra a tiracolo, sorriu e respondeu:         o

  • O amor é a sua própria recompensa.

O coração de César batia descompassadamente.

  • Contaste a alguém? Perotto fez um sinal afirmativo.

  • Apenas a Sua Santidade...

César manteve a custo a compostura.

  • E a reacção dele?

  • Foi bastante indulgente — replicou Perotto.

Nessa altura César alarmou-se. Sabia que era quando mais se encolerizava que o pai ficava mais calado.

  • Então vai depressa para um sítio do gueto do Trastevere e mantém-te escondido — disse a Perotto. — E, se tens amor à vida, não tornes a falar disto a ninguém. Eu pensarei no que fazer e, mal regresse de Nápoles, mandar-te-ei chamar.

Perotto fez uma vénia ao abandonar a sala, mas César ainda lhe disse:

  • És uma alma nobre, Perotto. Vai, com a minha bênção.

Em Roma, Lucrécia postou-se diante dos doze juizes, grávida de seis meses. Mesmo com o disfarce da roupa larga, era evidente a alteração do seu aspecto. No entanto, tivera o cuidado de prender esmeradamente o cabelo atrás com uma fita e de limpar muito bem a sua tez rosada. Devido aos meses passados no convento, comendo frugalmente, rezando com frequência e dormindo mui­tas horas todas as noites, tinha um ar muito jovem e inocente.

Ao vê-la, três dos juizes sussurraram e curvaram-se a conferenciar. Porém o vice-chanceler, o roliço e obeso cardeal Ascânio Sforza, fez então um gesto com a mão para os silenciar. Quando pediu a Lucrécia para falar, o discurso desta, escrito pelo seu irmão César, lido em latim, de modo titubeante e com extremo recato, surtiu de tal modo efeito que todos os cardeais se deixaram encantar pela gentil e jovem filha do Papa.

Ainda sentada defronte deles, que conferenciavam entre si, Lucrécia levou o lenço de linho aos olhos e começou a derramar lágrimas doloridas.

  • Perdoar-me-eis, Excelências, se implorar uma indulgência mais de vós. — Baixou a cabeça e, quando voltou a erguê-la, a fim de olhar para os cardeais, tinha ainda os olhos brilhantes de lágrimas. — Pensai, por favor, no que será a minha vida sem crianças para pegar ao colo e cuidar. E condenar-me-eis a viver sem conhecer a paixão do amor carnal de um marido? Impor-me-íeis uma maldição que não é minha? Imploro-vos, em toda a vossa bondade e miseri­córdia: poupai-me, por favor, a vida anulando este infeliz casamento... que pela sua própria natureza há-de permanecer sem amor.

Não foi levantada uma única objecção quando Ascânio, virando-se para Lucrécia, a pronunciou, sonora e firmemente, Femina intacta!» Virgem. Nessa noite, estava de regresso ao convento a fim de aguardar o nascimento da criança.

Quando Perotto chegou a San Sisto para transmitir a Lucrécia a notícia de que o seu divórcio era definitivo e que as negociações para o seu casamento

com Afonso, o duque de Bisceglie, estavam concluídas, sentiu os olhos mare­jarem-se-lhe de lágrimas.

  • Depois de dar à luz, a criança ser-me-á tirada - disse Lucrécia tristemente a Perotto, sentados ambos no jardim do convento. - E não me será permitido voltar a ver-te, pois dentro de pouco tempo estarei de novo casada. Por conse­guinte este dia é ao mesmo tempo feliz e triste para mim. Por um lado já não estou casada com um homem que me desagrada, mas por outro vou perder quer o meu filho quer o meu mais caro amigo.

Perotto cingiu-a com os braços a fim de a consolar e tranquilizar.     Até ao dia em que chegue ao céu, guardar-vos-ei no meu coração.

  • E tu estarás no meu, meu bom amigo — respondeu ela.

Quando César se preparava para partir rumo a Nápoles, ele e Alexandre reuniram-se nos aposentos do Papa para discutirem, a questão de Lucrécia e da criança.

César foi o primeiro a falar.

  • Acho que resolvi o problema, pai. Imediatamente a seguir ao nasci­mento, a criança pode vir viver para os meus aposentos, dado que os teus ou os da Lucrécia estão fora de questão. Farei uma declaração no sentido de que a criança é minha e que a mãe é uma cortesã casada que prefiro não identifi­car. Hão-de acreditar, porque isso se coaduna com o que consta sobre o meu carácter.

Alexandre fitou o filho com admiração e exibiu um largo sorriso. César perguntou:

  • Por que é que sorris, pai? É assim tão engraçado que não seja crível? Os olhos do Papa brilharam de divertimento.

  • É bem engraçado - disse. - E é mesmo crível. Estou a sorrir porque também eu tenho uma fama que se coaduna com a situação. E hoje assinei uma bula (que ainda não foi tornada pública) designando a criança como o «Infans Romanus» e declarando que sou eu o pai. Também de uma mulher anónima.

Alexandre e César abraçaram-se, um e outro ainda a rir.

Alexandre exprimiu o seu acordo quanto a facto de a melhor solução ser declarar que era César o pai da criança. Prometeu então que no dia do nasci­mento da criança publicaria outra bula declarando César o pai do «Infans Romanus». Quanto à bula original que declarava Alexandre como pai, seria escondida numa gaveta do Vaticano.

No próprio dia em que Lucrécia deu à luz a criança, um saudável bebé do sexo masculino, Alexandre mandou-o levar imediatamente de San Sisto para a casa de César, enquanto Lucrécia ficava no convento para se restabelecer. Foi acordado que mais tarde Lucrécia o reclamaria como seu sobrinho e o criaria como se fosse seu. Restava, porém, uma perigosa ponta solta para Alexandre: um pormenor que urgia ser abordado com cautela.

Embora sentisse algum remorso, sabia o que tinha a fazer. Mandou chamar Don Michelotto. Uma hora antes da meia-noite, o homem baixo, de consti­tuição robusta e barrigudo, estava à porta do seu escritório.

O Papa abraçou Michelotto como um irmão e contou-lhe a crise que se abatera sobre ele.

  • É o jovem que afirma ser o pai da criança - disse o Papa. - Um belo jovem espanhol, um jovem nobre... e contudo...

Don Michelotto olhou para Alexandre e levou os dedos aos lábios.

  • Não há necessidade de se dizer uma palavra mais - disse. - Estou às ordens do Santo Padre. E se essa boa alma é tão excelente como parece, é inquestionável que o Pai Celeste a acolherá com grande alegria.

  • Pensei desterrá-lo - disse Alexandre - porque ele foi um servidor leal. Mas não há maneira de saber que tentação na vida lhe desatará a língua e provocará a ruína da família.

A expressão de Don Michelotto era de compreensão.

  • O vosso dever é mantê-lo fora de tentação, e o meu é ajudar de todas as formas que possa.

  • Obrigado, meu amigo — disse Alexandre. A seguir, hesitando, acrescen­tou: - Sê tão benévolo quanto possas, porque ele é realmente um bom rapaz e é compreensível ter sido seduzido pelas manhas de uma mulher.

Don Michelotto inclinou-se para beijar o anel do Papa, após o que se des­pediu, assegurando-o de que era como se a tarefa estivesse já cumprida.

Michelotto internou-se na noite e correu apressadamente pelos campos até à zona rural, atravessando carreiros irregulares e montes, até alcançar as dunas de Óstia. Dali conseguia ver a pequena herdade, com as suas pequenas leiras de vegetação heterogénea, as suas fiadas e mais fiadas de legumes semelhantes a raízes e uma série de canteiros cheios de estranhas ervas e arbustos altos car­regados de bagas roxas e pretas e flores de aspecto exótico.

Michelotto fez o cavalo dar a volta até às traseiras da pequena choupana. Encontrou ali a velha curvada alcachinada, pesadamente apoiada num pau de pilriteiro. Ao ver Michelotto, levantou-o e semicerrou os olhos.

  • Noni — chamou-a ele, de modo tranquilizador. — Vim buscar um remédio.

  • Vai-te embora - disse a velha. - Não te conheço.

  • Noni - disse ele, aproximando-se mais. - Esta noite as nuvens estão car­regadas. Venho enviado pelo Santo Padre...

Nessa altura ela sorriu, numa máscara enrugada.

  • Ah, então és tu, Miguel. Envelheceste...

  • É verdade, Noni - disse ele, soltando uma pequena risada. - É verdade. E vim pedir-te ajuda para salvar outra alma.

Já ao pé da velha, agigantando-se sobre ela, estendeu a mão para o cesto de verga a fim de lho levar, mas ela voltou a puxá-lo.

  • É um homem mau que queres mandar para o inferno, ou um homem bom que se interpõe no caminho da igreja?

O olhar de Don Michelotto era suave ao responder:

  • É um homem que em qualquer caso verá o rosto de Deus.

A velha acenou com a cabeça e fez-lhe sinal para que o seguisse até à casa. Ali chegada, analisou várias das ervas penduradas na parede e por fim escolheu cuidadosamente uma amarrada com a mais delgada seda.

  • Isto deixá-lo-á num brando sono sem sonhos - disse. - Não lutará. -Antes de a estender a Michelotto, borrifou-a com água benta. - É uma bên­ção - acrescentou.

Enquanto ficava a vê-lo afastar-se a cavalo, a velha curvou a cabeça e fez o sinal da cruz sobre o peito.

No gueto do Trastevere, o proprietário de uma sombria taberna via-se e desejava-se para acordar um freguês adormecido à hora do fecho. A loira cabeça do jovem estava tombada de borco sobre os braços, posição em que se manti­nha desde que o companheiro o deixara, uma hora atrás. O proprietário ten­tou acordar o homem às sacudidelas, desta vez com mais vigor, e a cabeça tom­bou-lhe dos braços. Ao ver aquilo, o dono da taberna recuou, horrorizado. O rosto do jovem estava intumescido e azul, com os lábios roxos e os olhos esbugalhados, injectados de sangue, mas o mais impressionante era a língua, tão inchada que saía pela boca fora, transformando o seu belo rosto no de uma gárgula.

A polícia chegou daí a minutos. O dono da taberna lembrava-se mal do companheiro do jovem, afora o facto de ser baixo e barrigudo. Podia ser qual­quer um de mil cidadãos romanos.

O jovem, porém, não. Houve vários cidadãos dali que o identificaram. O seu nome era Pedro Calderón, e chamavam-lhe «Perotto».

no dia em que César Bórgia coroava o rei de Nápoles, recebeu uma men­sagem urgente da irmã. Fora-lhe trazida pelo seu mensageiro secreto e entre­gue quando caminhava sozinho pelos terrenos do castelo. Ele devia encontrar—se com ela no Lago de Prata daí a uns dias, pois Lucrécia tinha que falar com ele antes de qualquer deles poder regressar a Roma.

César passou a noite na sumptuosa recepção comemorativa da coroação. Toda a aristocracia de Nápoles estava presente para o conhecer, incluindo mui­tas mulheres bonitas, fascinadas pela sua beleza e fácil encanto, que o cercavam a despeito das suas vestes cardinalícias.

Foi visitar o irmão Godofredo e a cunhada, Saneia, e reparou que Godo-fredo parecia caminhar com um passo diferente, mais seguro, desde a morte de João. Perguntou a si mesmo se mais alguém daria por isso. Saneia modifi­cara-se também. Continuava namorisqueira, mas parecia mais disposta a agra­dar, um pouco menos fogosa que dantes.

Foi Godofredo que, durante a noite, o apresentou a um jovem alto e bem pare­cido que havia de impressionar César com a sua inteligência e modos palacianos.

  • Meu irmão, o cardeal Bórgia, apresento-te o duque de Bisceglie, Afonso de Aragão. Já se conheciam?

Quando Afonso estendeu a mão a César, este ficou intrigado com o aspecto do jovem. Possuía uma constituição atlética, mas a sua fisionomia era tão delicada e o sorriso tão radioso, que era tão difícil não ficar a olhar embasbacado Para ele como não examinar um bom quadro.

  • É para mim uma honra conhecê-lo - disse Afonso, fazendo uma vénia, e a sua voz era tão agradável como o aspecto.

César acenou com a cabeça em sinal de reconhecimento. Durante as horas que se seguiram, os dois homens pediram licença à multidão para caminharem pelos jardins e familiarizarem-se um com o outro. A inteligência de Afonso condizia com a de César e o seu sentido de humor era reconfortante. Disser­taram sobre teologia, filosofia e, claro está, política. Quando César se despe­diu sentiu uma certa ternura pelo jovem e por isso, ao separarem-se, disse:

  • Não tenho dúvidas de que sois merecedor da minha irmã. E tenho a cer­teza de que ela será feliz convosco.

Os olhos azuis de Afonso cintilaram.

  • Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que assim seja.

César deu por si ansioso por se encontrar com a irmã no Lago de Prata. Havia meses que ele e Lucrécia não estavam a sós e, agora que ela recuperara do parto, surpreendeu-se a pensar em tornar a fazer amor com ela. Perguntou a si mesmo, enquanto galopava o mais velozmente que podia, o que seria que ela tinha para lhe dizer. Nas últimas semanas não tinha sabido nada do pai nem de Duarte e, por conseguinte, desconfiava que era qualquer coisa mais pessoal do que política.

Tendo chegado ao lago antes dela, deteve-se um momento à distância, a contemplar o azul límpido do céu e a gozar a tranquilidade do campo antes de entrar na choupana. Lá dentro, depois de tomar banho e mudar de roupa, sen­tou-se, a beber um copo de vinho e a reflectir sobre a sua vida.

Ultimamente tinham sucedido imensas coisas, e contudo sabia que haviam de suceder ainda mais num futuro próximo. Estava decidido, quando regressasse de Roma a Florença, a pedir ao Santo Padre que o dispensasse das suas obriga­ções de cardeal. Já não suportava a hipocrisia que o barrete cardinalício lhe impunha. Sabia que convencer o Santo Padre seria tarefa de monta, que estica­ria ainda mais a corda na já tensa relação entre eles. Desde a morte de João, em lugar de se aproximar, o pai dava a ideia de afastar-se aos poucos de César.

César transbordava de ambição e de paixão; queria viver a vida ao máximo. E no entanto sentia-se frustrado. Agora que a irmã ia casar novamente, aper­cebeu-se de um debate dentro de si. Afonso era um homem honrado, de que ele gostava, e, apesar de querer o melhor para Lucrécia, deu consigo a sentir ciúmes. Agora a irmã teria filhos que podia amar e reivindicar como seus. Como cardeal, os filhos dele seriam negados — ou, pior ainda, bastardos, tal como ele. Procurou acalmar-se, arredar de si aqueles sentimentos, penitenciar—se pela sua curteza de vistas. César recordou a si próprio que os esponsais de Lucrécia com o filho do rei de Nápoles constituíam uma grande aliança para a igreja e para Roma. Apesar disso sentia-se presa de impaciência e dominado pela frustração devido ao facto de o curso da sua vida ter sido decidido por um simples acidente de nascimento.

O Papa também gozara sempre a vida; sentia-se genuinamente realizado com a sua missão na igreja e com a salvação das almas da humanidade. Mas César debatia-se com a crença e não sentia tal paixão. Passar a noite com cor­tesãs raramente lhe proporcionava prazer; de repente descobria que queria mais. Godofredo e Saneia pareciam felizes, com o seu luxo material e o seu empenhamento na vida da corte. E até o seu irmão João tivera sem dúvida uma boa vida — uma vida de liberdade, riqueza e distinção — até ser por fim derro­tado pela morte que merecia.

Quando Lucrécia chegou, César estava taciturno. Mal, porém, ela se lhe ati­rou aos braços e sentiu de novo o cheiro do seu cabelo e o contacto do seu corpo cálido contra o dele, todo o seu descontentamento principiou a desapa­recer. Só quando a afastou a fim de olhar para ela, de ver-lhe o rosto, é que reparou que ela tinha estado a chorar.

  • Que foi? - perguntou. - O que foi, meu amor?

  • O Papá matou o Perotto — disse ela. Havia anos que não lhe chamava Papá, desde criança.

  • O Perotto está morto? — César ficou atordoado com a notícia. - Dei-lhe instruções para que se escondesse até eu regressar. — Respirou fundo e pergun­tou baixinho: - Onde o encontraram?

Lucrécia agarrou-se com força ao irmão.

  • No gueto. Numa taberna do gueto. Um sítio onde ele nunca iria.

E César apercebeu-se de que, ao tentar ajudar Perotto, era já demasiado tarde. A seguir falaram os dois da bondade do homem, da sua disponibilidade para se sacrificar por amor.

  • Era verdadeiramente um poeta — observou Lucrécia.

  • A sua bondade faz-me sentir envergonhado - redarguiu César. - Porque, se as coisas fossem diferentes, eu não confiaria em mim para fazer a opção que ele fez, embora te ame deveras.

Lucrécia falou com uma certeza clarividente.

  • Há justiça nos céus, não tenho dúvidas. E a coragem dele há-de ser reco­nhecida.

Decorreram horas enquanto caminhavam à beira do lago, e outras horas mais ao conversarem junto ao rugir do lume, na choupana.

Mais tarde fizeram amor. E foi melhor do que nunca. Deixaram-se ficar dei­tados um ao pé do outro durante muito tempo, antes de qualquer deles se dis­por a quebrar o elo de silêncio, e na ocasião foi Lucrécia quem falou primeiro.

  • O nosso bebé é o mais belo querubim que jamais vi - disse, sorrindo. — E parece-se imenso...

César apoiou-se no braço e fitou os límpidos olhos azuis da irmã.

  • Parece-se imenso com quem? — perguntou.

  • Lucrécia riu.

  • Parece-se imenso... connosco! — disse, tornando a rir. — Acho que sere­mos felizes juntos, apesar de ele ser teu filho, e nunca poder ser meu.

  • Mas nós somos mais importantes — tranquilizou-a César. — E sabemos a verdade.

Nessa altura Lucrécia soergueu-se, enrolando-se num roupão de seda, e saiu da cama. Numa voz ao mesmo tempo dura e fria, perguntou:

  • Achas o Santo Padre mau, César?

César sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.

  • Há alturas em que não tenho a certeza do que é o mal — disse. — Tu tens sempre a certeza?

Lucrécia virou-se e olhou para ele.

  • Tenho a certeza, sim, meu irmão. Eu conheço o mal. Perante mim ele não se consegue disfarçar...

Na manhã seguinte Lucrécia partiu a fim de regressar a Roma, mas César não pôde. Era cedo de mais para enfrentar o pai, pois estava cheio de ira e sen­timento de culpa. E agora que o jovem Perotto estava morto, não havia razão para pressas.

Disfarçado com as roupas simples de um camponês, César aproximou-se das portas de Florença. Parecia-lhe ter sido há já muito tempo que estivera naquela cidade. Enquanto cavalgava sozinho, tendo deixado o séquito fora de portas, recordou a sua primeira visita a Florença. Fora para lá saído da escola, quando era ainda rapaz, com Giò de Mediei. E nessa altura era tão dife­rente...

Tinha havido um tempo em que Florença fora uma república orgulhosa, tão orgulhosa que proibira que quem quer que tivesse sangue nobre fizesse parte do governo. A família Mediei, porém, com a sua grande casa bancária e os seus dinheiros, governava efectivamente Florença através da sua influência junto dos funcionários eleitos. Fazia-o enriquecendo os que faziam parte das comissões governativas eleitas pelos cidadãos. Fora assim que Lourenço, o Magnífico, cimentara o poder da família Mediei.

Para o jovem César Bórgia, viver numa grande cidade cujo governante era quase universalmente amado constituía uma experiência nova. Lourenço era um dos homens mais ricos do mundo e também um dos mais generosos. Dava dotes às raparigas pobres a fim de que pudessem casar. Dava a pintores e escul­tores dinheiro e instalações onde trabalhar. Foi assim que o grande Miguel Angelo viveu em jovem no palácio Mediei, onde foi tratado como um filho.

Lourenço de Mediei trouxe livros de todo o mundo e mandou-os traduzir e reproduzir a elevados custos a fim de que pudessem estar disponíveis para os estudiosos na Itália. Financiou cadeiras de filosofia e grego em universidades italianas. Escreveu poesia que foi aclamada pelos críticos mais severos e com­posições musicais para serem executadas nos grandes carnavais. Os melhores eruditos e poetas, artistas e músicos eram frequentemente convivas da mesa dos Mediei no palácio.

Quando César era convidado para lá ir, e muito embora fosse apenas um jovem de quinze anos, era tratado com requintada cortesia por Lourenço e os outros homens que o acompanhavam. No entanto, as melhores recordações de Florença que César tinha eram as histórias que lhe contavam da ascensão da família Mediei ao poder; especialmente a história que Giò lhe contara de seu pai, Lourenço, ter escapado por uma unha negra às malhas de uma grande conspiração quando era jovem.

Aos vinte anos, quando da morte do pai, Lourenço tinha-se tornado o chefe da família Mediei. Nessa altura os Mediei eram os banqueiros do Papa e diver­sos reis, a mais poderosa instituição financeira do mundo. Lourenço, porém, percebeu que, a menos que quisesse arriscar essa posição, teria de consolidar o seu próprio poder pessoal.

Fê-lo financiando grandes festividades, como diversões populares. Encenou réplicas de batalhas navais no rio Arno e financiou comédias musicais na grande Piazza delia Santa Croce; patrocinou cortejos das relíquias sagradas da catedral, com um espinho da coroa que Jesus tinha envergado, um prego da sua cruz e um fragmento da lança que lhe fora cravada num flanco por um soldado romano. Todas as lojas de Florença estavam decoradas com o estan­darte dos Mediei, sendo as suas três bolas vermelhas reconhecíveis por toda a cidade.

Lourenço era simultaneamente devasso e religioso. Nos dias de Carnaval, carros alegóricos garridamente decorados transportavam as mais belas prosti­tutas da cidade pelas ruas; na Sexta-feira Santa reconstituía-se a Via-sacra, retra-tando a vida e morte de Cristo. Transportavam-se até à catedral imagens em tamanho natural de Cristo, da Virgem Maria e de vários santos e largavam-se pombas brancas, que flutuavam nos ares como anjos. Havia concursos de beleza para raparigas jovens de famílias respeitáveis e procissões de monges para alertar as pessoas relativamente ao inferno.

Lourenço era porventura o homem mais feio de Florença, mas, devido ao seu espírito e encanto, tinha muitos casos amorosos. O seu irmão mais novo e seu melhor companheiro, Julião, foi, em contrapartida, aclamado como o mais belo homem da cidade num festival realizado em sua honra, no seu vigésimo segundo aniversário, em 1475- Não era de estranhar que tivesse vencido: o seu

traje para a ocasião foi desenhado por Botticelli e o capacete por Verrochio, pelo preço de vinte mil florins. O povo de Florença ficou deleitado ao ver o feio mas generoso Lourenço abraçar o irmão sem sombra de inveja.

Contudo, no auge no poder de Lourenço em Florença, no apogeu da sua felicidade, a família Mediei tornou-se alvo de uma poderosa conspiração.

As complicações começaram quando Lourenço se recusou a conceder um enorme empréstimo exigido por um anterior Papa, destinando-se o dinheiro a comprar a estratégica cidade de Imola, na Romanha. O Papa Sisto IV ficou enraivecido com a recusa. Este Papa era igualmente devotado à família; tinha já dado a sete dos sobrinhos o barrete cardinalício e queria a cidade de Imola para o seu filho natural, Girolamo. Quando Lourenço recusou o empréstimo, o Papa, como retaliação, recorreu à família Pazzi, os grandes rivais dos Mediei.

A família Pazzi e o seu banco deram os cinquenta mil ducados ao Papa com toda a presteza, após o que se candidatou a outras contas do papado, especial­mente a conta das minas de alúmen do Lago de Prata, nos imediatos arredo­res de Roma. Quanto a isso, porém, o Papa não esteve pelos ajustes, talvez por Lourenço lhe ter mandado sumptuosos presentes a fim de o aplacar. No entanto, o atrito entre Lourenço e o Papa continuava assanhado.

Quando o Papa nomeou Francesco Salviati arcebispo de Pisa, uma posses­são florentina - violando um acordo segundo o qual todos os postos do género seriam sujeitos à aprovação de funcionários de Florença -, Lourenço impediu o arcebispo de ocupar o posto.

A família Pazzi tinha raízes muito mais antigas em Florença e uma linha­gem de fama mais longínqua do que os Mediei. Quanto ao seu chefe, Iacopo, um homem muito mais velho e mais comedido, detestava o jovem Lourenço.

O arcebispo Salviati e Francesco Pazzi ferviam igualmente de ambição e ódio. Os dois homens arquitectaram uma reunião com o Papa Sisto IV e con­venceram-no de que derrubariam os Mediei. Ele deu o seu consentimento. Isto convenceu o velho, Iacopo Pazzi, um homem implacável e de má índole, a ade­rir à conspiração.

O plano consistia em matar Lourenço e o irmão, Julião, enquanto assistiam à missa de domingo; a seguir, os apoiantes dos Pazzi e tropas escondidas no exterior das muralhas invadiriam e tomariam a cidade.

Para fazer toda a gente entrar na igreja ao mesmo tempo, combinou-se que o insuspeito cardeal Rafael Riario, o septuagenário sobrinho-neto do Papa, faria uma visita a Lourenço. Como se esperava, Lourenço organizou um grande banquete em honra do cardeal e na manhã seguinte acompanhou-o à missa. Atrás deles iam dois padres chamados Maffei1 e Stefano, levando um e outro punhais ocultos sob as vestes.

Ao ouvirem o sino da sacristia tocar para a elevação da Hóstia — altura em que todos os fiéis presentes na igreja baixariam os olhos —, os padres puxariam dos punhais e dariam início ao seu ímpio acto. Porém o irmão de Lourenço, Julião, não estava lá, e os conspiradores tinham sido industriados para matarem ambos. Francesco Pazzi correu a casa de Julião a fim de o apressar a ir para a igreja; no caminho de regresso espetou-lhe um dedo no tronco, como que por brincadeira, a fim de confirmar que ele não tinha armadura por baixo da roupa.

Na igreja, Lourenço ficou de pé no extremo mais afastado do altar. Viu o seu irmão Julião entrar na igreja com Francesco Pazzi atrás e a seguir ouviu tocar o sino da sacristia. Horrorizado, viu Francesco sacar de um punhal e enterrá-lo no corpo de Julião. Nesse preciso momento, sentiu uma mão agar­rar-lhe o ombro. Encolheu-se ao sentir o frio do aço tocar-lhe a garganta, fazendo soltar-se sangue. Instintivamente, porém, esquivou o corpo e despiu a capa, servindo-se dela para repelir a investida do punhal do outro padre.

Lourenço puxou da espada e defendeu-se deles, saltando por cima da balaustrada do altar e correndo para a porta lateral. Três dos seus amigos tinham-se juntado à sua volta. Conduziu-os à sacristia e fechou as pesadas por­tas atrás deles. Por ora, estava a salvo.

Entretanto, lá fora, o arcebispo Salviati e o assassino, Francesco Pazzi, saíam correndo da catedral para gritar que os Mediei tinham sido mortos e Florença estava livre. Contudo, a população da cidade correu a armar-se. As tropas do arcebispo que estavam na praça foram dominadas e chacinadas.

Lourenço saiu da catedral para ser aclamado pelos amigos e apoiantes. Cer­tificou-se primeiramente de que nada tinha acontecido ao jovem cardeal Ria. Trata-se certamente de um lapso do autor; o nome de um dos padres era António de Vol­teira, e não Maffei. (

rio, mas nada fez para impedir a execução do arcebispo e de Francesco, que foram enforcados nas janelas da catedral.

Os dois padres, Maffei e Stefano, foram castrados e decapitados. Iacopo Pazzi foi perseguido, despido e enforcado ao lado do arcebispo. O palácio da família Pazzi foi saqueado e todos os membros do clã Pazzi foram banidos de Florença para sempre.

Ao regressar à cidade tantos anos mais tarde, César encontrou uma Florença completamente diferente no lugar daquela cidade de justiça e luxo.

Até as ruas eram palco da maior desordem, com as imundícies e os esgo­tos a fluírem livremente. Havia animais mortos e a apodrecer nos becos; mesmo o cheiro era pior que o de Roma. É certo que se tinha detectado peste em Florença — embora apenas uns poucos casos —, mas o próprio espírito das pessoas parecia ter sido subjugado pela doença. Ao percorrer as ruas, César ouviu acesas discussões e assistiu a rancorosos combates à paulada, ao mesmo tempo que os ouvidos se lhe enchiam de sons, não de sinos, mas de gritos irados.

Quando parou na estalagem mais respeitável a fim de arranjar um quarto para descansar até ao cair da noite, certificou-se de que o estalajadeiro não o reconhecera: tentou até rejeitá-lo, até César lhe enfiar um ducado de ouro na mão ávida.

Mal o fez, o estalajadeiro tornou-se educado e indulgente. Conduziu César a um quarto que, embora escasso no tocante a mobiliário, era limpo e de boa qualidade. Pela janela César via a praça fronteira à Igreja de San Marco e o mosteiro do profeta Savonarola. Decidiu aguardar até à noite antes de percor­rer as ruas para ver o que conseguiria descobrir.

Momentos depois, o estalajadeiro regressou com uma grande garrafa de vinho e uma enorme travessa de fruta e queijo. Desse modo, César descansou ia cama e sonhou...

Foi um sonho perturbante, um pesadelo no qual rodopiavam à sua volta cruzes e cálices, paramentos sagrados e objectos religiosos, sem que os conse-

guisse alcançar. Uma voz tonitruante vinda de cima indicava-lhe que se apo­derasse de um cálice dourado, mas, quando estendeu a mão para o agarrar, viu—se com uma pistola na mão. Embora tentasse controlá-la, ela parecia disparar de moto próprio. Depois, como em todos os sonhos, o cenário mudou e estava numa cerimónia, sentado defronte do pai, a irmã e o seu noivo recente, o prín­cipe Afonso. O sorriso que tinha no rosto transformou-se num esgar e a pis­tola dourada disparou e despedaçou o rosto da irmã, ou de Afonso, já não con­seguia ver o suficiente para distinguir.

César acordou, banhado em suor, ouvindo as vozes e gritos dos cidadãos na praça por baixo da sua janela. Levantou-se da cama, ainda abalado, e olhou para fora. Ali, num púlpito de madeira improvisado, estava Savonarola. Come­çou por uma fervorosa oração ao Senhor, com voz tremente de paixão, à qual se seguiu um hino de louvor sagrado. Na praça, as vozes dos cidadãos cresciam de intensidade, em adoração. Daí a pouco tempo, contudo, o pregador deu iní­cio à sua feroz invectiva contra Roma.

  • O Papa Alexandre é um falso Papa — gritava o frade, numa voz potente e carregada de paixão. — A mente dos humanistas é capaz de distorcer a verdade e dar sentido ao que o não tem. Mas, tal como há preto e branco, há bem e mal e não há que ver: o que não é bem é mal!

César examinou o homem. Magro, ascético e envergando as vestes casta­nhas com o capuz da Ordem Dominicana; tinha umas feições grosseiras, que contudo não eram desagradáveis. A sua cabeça tonsurada acenava convicta-mente e as mãos diziam parábolas à medida que ele as mexia para acentuar as palavras.

  • O Papa tem cortesãs — gritava. — Mata e envenena. O clero de Roma mantém rapazes e rouba aos pobres para encher as arcas aos ricos. Comem em pratos de ouro e andam a cavalo sobre os que vivem na pobreza.

Os cidadãos continuavam a juntar-se e César deu por si estranhamente fas­cinado por aquele homem, arrebatado, como se não conhecesse as pessoas que o frade invectivava.

Quando começou a formar-se uma grande multidão, ouviram-se gritos ira­dos, mas no instante em que o frade recomeçou a falar fez-se um tal silêncio que se poderia ouvir uma estrela cair do céu.

  • O Deus do céu lançará as vossas almas no inferno para a eternidade, e os que seguirem estes padres pagãos serão condenados. Renunciai aos vossos bens terrenos e segui o caminho de S. Domingos.

Alguém da multidão gritou:

  • Mas vós no mosteiro tendes comida doada pelos ricos! Os vossos pratos não são de madeira e as vossas cadeiras têm estofos sumptuosos. Dançais con­forme a música de quem vos paga!

Savonarola estremeceu e proferiu uma jura.

  • De hoje em diante todo o dinheiro dos ricos será recusado. Os frades de San Marco comerão apenas aquilo que os bons cidadãos de Florença lhes facul­tarem. Uma refeição por dia basta. O restante será dado aos pobres que todas as noites se reúnem na praça. Nem um só passará fome. Mas isso cuidará ape­nas do vosso corpo! Para preservardes as vossas almas tendes de renunciar ao Papa de Roma. Ele é um fornicador; a filha é uma prostituta que dorme quer com o pai quer com o irmão... e com poetas também.

César testemunhara já o suficiente. Quando o Papa soubesse disto, não só excomungaria Savonarola, como o acusaria de heresia.

César achou perturbante a sua própria reacção ao homem. Pensava que o homem tinha visão, mas também que era doido. De facto, quem se martiriza­ria a si próprio daquela maneira, sabendo o desfecho? Não obstante, concedia, quem sabe que imagens e ícones se derramam na mente dos outros? A despeito de toda a sua lógica, sabia que o homem era perigoso e que tinha de se fazer qualquer coisa quanto a ele. Isto porque a nova Signoria de Florença podia dei­xar-se influenciar e, se proibisse Florença de se juntar à Santa Liga, os planos do pai para unir a Romanha seriam frustrados.

Não se podia permitir tal coisa.

César vestiu-se rapidamente. Lá fora, quando se deslocava por entre a mul­tidão na rua que conduzia à praça, um jovem magro e pálido, de capa negra, que lhe dava pelo pescoço, pôs-se ao seu lado.

  • Cardeal? — sussurrou o jovem.

César voltou-se, com a mão já poisada na espada oculta debaixo da túnica.

Porém o jovem inclinou a cabeça numa vénia, em sinal de reconheci­mento.

  • O meu nome é Niccolò Maquiavel. E temos de falar. Neste momento correis perigo nas ruas de Florença. Vinde comigo.

O olhar de César suavizou-se e, por conseguinte, Maquiavel tomou-o pelo braço e conduziu-o à sua residência, afastando-se da praça.

Lá dentro, as salas bem mobiladas estavam atafulhadas de livros: as secre­tárias transbordavam e havia papéis espalhados pelas cadeiras e pelo chão. Uma pequena fogueira ardia na lareira de pedra.

Maquiavel libertou uma das cadeiras e ofereceu-a a César. Quando este circunvagou o olhar pela sala, achou-se estranhamente à vontade. Maquia­vel serviu um copo de vinho a ambos e ocupou uma cadeira diante de César.

  • Estais em perigo, cardeal — alertou-o Maquiavel. — Isto porque o Savo-narola acha que está incumbido de uma missão, uma missão sagrada. A fim de ele cumprir o seu papel nessa missão, o Papa Bórgia tem de ser destronado e a família Bórgia destruída.

  • Eu estou a par das suas objecções religiosas aos nossos costumes pagãos -retorquiu sardonicamente César.

  • Savonarola tem visões — advertiu Maquiavel. — Primeiro houve um sol a cair do céu, e Lourenço, o Magnífico, morreu. Depois houve a célere espada do Senhor, vinda do norte, que se abateu sobre o tirano, e seguiu-se a invasão francesa. Ele detém poder sobre os nossos cidadãos; eles temem por si e pelas suas famílias e crêem que este profeta tem dons de vidente. Ele diz que a única misericórdia virá com anjos vestidos de branco, depois da destruição das peca­minosas iniquidades, quando as almas dos bons se submeterem à lei de Deus e se arrependerem.

César reconhecia em Savonarola aquela centelha da verdade. Mas não havia ninguém que pudesse suportar as visões que o frade se arrogava e continuar a viver no mundo. Uma vez que se decidira a falar, se tinha mesmo dons de vidente, devia ser capaz de predizer o seu próprio destino. Para César essas visões nunca poderiam ser a sua verdade, pois negariam o livre arbítrio. Se o destino levasse sempre a melhor, que papel desempenhava o homem? Era um jogo pré-combinado, no qual ele não participaria.

César voltou a concentrar a atenção em Maquiavel.

 O Papa já excomungou o frade. Se ele continuar a inflamar a populaça, será condenado à morte, pois não haverá mais nada que o Santo Padre possa fazer para o silenciar.

Nessa noite, de regresso ao seu quarto da estalagem, César ouvia ainda a voz de Savonarola que soava através da janela. A voz do frade mantinha-se forte.- Alexandre Bórgia é um Papa pagão que busca inspiração nos deuses pagãos do Egipto! Enche-se de prazeres pagãos, enquanto nós, os da verdadeira fé, suportamos o sofrimento. Todos os anos os cardeais de Roma impõem tributos mais pesados aos nossos cidadãos, para enriquecerem a sua própria arca de tesouros. Nós não somos burros, para sermos utilizados como bestas de carga!

Quando o sono começava a apossar-se dele, César ouviu a voz apaixonada do frade e as suas palavras de condenação:

  • Na igreja primitiva os cálices eram de madeira, mas a virtude do clero era de ouro. Nestes tempos sombrios, com o Papa e os cardeais de Roma, os cáli­ces são de ouro e a virtude do clero é de madeira!

15

Mal Alexandre entrou na confortável casa de campo de Vanozza Cattanei, vie­ram-lhe à recordação todos os anos que tinham passado juntos, todas as épocas que haviam compartilhado: as muitas noites que haviam passado a cear na sala de jantar iluminada pelas velas, as cálidas noites de Verão que passara no luxuoso quarto do andar de cima, com os sentidos alerta devido ao perfume dos jasmins que entrava pela janela aberta, enchendo o quarto obscurecido; a sensação de paz e amor que sentia, o conforto e tepidez da carne dela contra a sua. Fora numa dessas noites de completo êxtase, reflectiu, que a sua crença em Deus alcançara o auge e que fizera os maiores e mais sinceros votos de serviço à Santa Madre Igreja.

Vanozza acolheu-o com o seu calor habitual. E o Papa, sorrindo, recor­dando, deu um passo atrás a fim de a fitar com ternura e admiração.

  • És um dos milagres de Deus - disse. - Cada ano estás mais bonita. Vanozza abraçou-o e sorriu.  é Não suficientemente jovem para ti, não é, Rodrigo? A voz de Alexandre era suave e tranquilizadora.

  • Agora sou Papa, Vi. É diferente de quando éramos mais novos.

  • E também é «diferente» com La Bellai — provocou-o ela. Alexandre enru­besceu, mas Vanozza dirigiu-lhe um largo sorriso. — Não te ponhas tão sério, “Jgo, estou a brincar. Bem sabes que não guardo ressentimento relativamente a Juua ou a qualquer das outras. Estivemos bem juntos como amantes, mas a”ida estamos melhor como amigos, pois os verdadeiros amigos são sempre mais raros que os amantes.

Vanozza conduziu-o à biblioteca e serviu uma taça de vinho a ambos. Foi Alexandre quem falou primeiro.

  • Então, Vi, por que é que me mandaste chamar? As vinhas ou as estala­gens não vão bem?

Vanozza sentou-se em frente do Papa e falou prazenteiramente.

  • Pelo contrário, vão ambas extremamente bem. E ambas dão lucros. Não se passa praticamente um dia que eu não me sinta agradecida pela tua genero­sidade. Mesmo assim, teria adorado que não me comprasses nada. E ter-te-ia cumulado de presentes, se pudesse.

Alexandre retorquiu afectuosamente:

  • Bem sei, Vi. Mas, se não é isso, o que é que te preocupa e como posso eu ajudar?

Nessa altura os olhos de Vanozza puseram-se sombrios e sérios.

  • É o teu filho, Rigo. É o César. Tens de vê-lo como ele é. Alexandre franziu o cenho, ao mesmo tempo que explicava:

  • Eu vejo-o com toda a clareza. E o mais inteligente de todos os nossos filhos. E um dia há-de ser Papa. Por minha morte será eleito... Porque, se não o for, a vida dele, e talvez mesmo a tua, estará em perigo.

Vanozza escutou enquanto Alexandre falava, mas, mal ele terminou, insistiu:

  • O César não quer ser Papa, Rigo, nem tão-pouco quer ser cardeal. Deves sabê-lo. É um soldado, um amante, um homem que quer uma vida repleta. Nem toda a riqueza e amantes que lhe dás lhe enchem o coração; por mais benefícios e propriedades que tenha, sente-se vazio. Ele quer combater touros, Rigo, e não publicar bulas

Alexandre ficou silencioso, a pensar. A seguir perguntou:

  • Foi ele que te disse isso?

Vanozza sorriu e mudou de posição a fim de se sentar mais perto dele.

  • Eu sou mãe dele - disse. - Ele não precisa de mo dizer. Eu sei-o, como tu devias saber.

De súbito a expressão de Alexandre crispou-se.

1 O autor estabelece aqui um jogo de palavras intraduzível entre as palavras «touro» e «bula», que em inglês são homónimas. (N. T)

  • Se eu fosse tão pai dele como tu éssuatnSe,é possível que isso fosse igual­mente claro para mim...       

Vanozza Cattanei baixou a cabeça por um momento, como se rezasse. Quando voltou a erguê-la, tinha o olhar límpido e a voz forte.

  • Só te digo isto uma vez, Rigo, pois não sinto precisão de me defender. Ainda assim, acho que tens o direito de saber. Sim, é verdade que o Julião delia Rovere e eu fomos amantes antes de nós nos conhecermos; aliás, até sentir um baque no coração da primeira vez que te vi. E não vou armar-me em superior perante ti fingindo que na altura era virgem, porque sabes que isso não é ver­dade. Mas, pela minha honra, e sob o olhar claro da Madonna, juro-te que o César é teu filho, e não de outro homem.

Alexandre abanou a cabeça e suavizou-se-lhe o olhar.

  • Antes nunca pude ter a certeza, Vi... Tu sabe-lo. Nunca me consegui sen­tir seguro disso. E por conseguinte não podia confiar no que sentia pelo rapaz, ou no que ele sentia por mim.

Vanozza buscou a mão de Alexandre.

  • Nunca tínhamos conseguido falar disto. Porque, para te proteger, quer a ti quer ao teu filho, tive de permitir que o Julião julgasse que o César era filho dele. Mas juro por Cristo que era mentira. Fi-lo para manter o Julião à distância, por­que o coração dele não é tão bom nem tão indulgente como o teu. A única pro­tecção relativamente à sua perfídia consistia em ele julgar que o teu filho era dele.

Alexandre debateu-se consigo próprio por um momento.

  • E como pode qualquer de nós acreditar qual é a verdade? Como pode qualquer de nós saber de ciência certa?

Vanozza tomou a mão do Papa na sua e pô-la no ar, colocando-a diante dos olhos dele. Virou-se lentamente para ele.

  • Quero que examines esta mão, Rigo. Quero que a analises muito bem, em todos os seus ângulos e formas. E depois quero que examines a mão do teu filho. Isto porque, desde que ele nasceu, vivi no medo de que mais alguém visse o

  • que era para mim evidente, e nesse caso estaria tudo perdido.

De súbito Alexandre compreendeu a hostilidade de Julião delia Rovere rela­tivamente a ele, compreendeu o seu ciúme e ódio. De facto, ele tinha tudo o que delia Rovere julgara ser seu: o papado, a amante e o filho.

Não constituía segredo entre os cardeais que delia Rovere só tinha amado uma vez, que Vanozza era o grande amor da sua vida. Sentira uma humilha­ção considerável quando ela o trocara por Rodrigo Bórgia. Até aí sempre tivera um brilho de alegria no olhar e um sorriso fácil. Só depois de Vanozza partir se tornou um homem tão azedo, irado e fervoroso. O facto de nunca ter tido um filho não ajudava nada: todos os seus descendentes eram raparigas. Como Deus o pusera à prova!

Alexandre sentiu-se percorrido por uma onda de alívio, pois compreendia presentemente muita coisa mais, agora que admitia para consigo mesmo aquilo de que sempre desconfiara: que nunca tivera certezas relativamente a César. Se não amasse Vanozza com tamanha paixão, e não a admirasse também, pode­ria ter feito a pergunta mais cedo e evitado muito sofrimento a si próprio e a César. Mas viver sem ela, correr o risco de a perder, era um preço muito ele­vado, razão por que nunca o fizera.

  • Pensarei no que sugeriste quanto ao nosso filho — disse Alexandre a Vanozza. — E falarei com César sobre a escolha da sua vocação, se ele alguma vez falar comigo.

A voz de Vanozza transbordava de compaixão.

  • O nosso filho João morreu, Rigo. Sem ele a vida nunca mais será a mesma coisa. Mas o nosso César está vivo e tu precisas que ele comande os teus exér­citos. Se não for ele, quem há-de ser? O Godofredo? Não, Rigo. Tem de ser o César, porque ele é um guerreiro. Mas, para reivindicares a sua vida, tens de usar o teu amor para o libertar. Deixa que o Papa seja outra pessoa. Tivemos vidas felizes.

Quando Alexandre se pôs de pé para beijar a face de Vanozza, sentiu o cheiro do seu perfume. E, quando se voltou para partir, não foi sem arrependimento. Vanozza ficou à porta e sorriu ao acenar.

  • Olha para as mãos dele, Rigo. Fica em paz.

No dia em que César regressou a Roma, vindo de Florença, foi imediata­mente conferenciar com o pai e Duarte Brandão. Retiraram-se para um com-

partimento interior com tapeçarias nas paredes e decorado com as elaboradas arcas entalhadas que continham as vestes do ofício. Ali não havia formalida­des. Alexandre abraçou o filho, mas havia naquele abraço uma ternura que pôs César de sobreaviso.

Duarte foi o primeiro a falar.

  • Achastes o profeta tão perigoso como por aí tem constado? — perguntou. César sentou-se numa cadeira defronte de Duarte e do pai.

  • É um orador apaixonado e os cidadãos formam grandes multidões, como num carnaval, para o ouvir pregar.

Alexandre pareceu interessado.

  • E de que fala ele?

  • De reformas - retorquiu César. - E dos vícios da família Bórgia. Acusa—nos de toda a sorte de más acções e amedronta as pessoas, fazendo-as crer que seguir a Santa Igreja de Roma e honrar o papado as condenará à maldição eterna.

Alexandre pôs-se de pé e começou a andar de um lado para outro.

  • É uma pena que um espírito tão brilhante como o dele tenha sido inva­dido por semelhantes demónios. Gostei de muitas das coisas que ele tem escrito. E ouvi dizer que ele admira o mundo da natureza; que muitas vezes, em noites límpidas, acorda todos os do mosteiro para os chamar ao pátio a fim de contemplarem as estrelas.

César interrompeu Alexandre.

  • Pai, neste momento ele é um perigo para nós. Insiste em reformas drásticas. Está alinhado com os franceses. E insiste que o papado seja devolvido a alguém realmente virtuoso. Não há dúvidas de que esse alguém seria Julião delia Rovere.

Alexandre erritou-se.

  • Hesito em obrigar um homem a confessar os seus pecados quando serviu bem a igreja, mas receio que haja que o fazer. Duarte, vê se arranjas maneira de resolver isto rapidamente, pois é necessário instaurar um pouco de ordem en Florença antes que o estrago seja maior.

Duarte fez uma vénia e despediu-se.

Alexandre reclinou-se finalmente num divã e indicou a César um banco de veludo almofadado. O seu rosto estava impassível, mas os olhos mostravam

aquela expressão de astúcia que nunca revelava em público. Quase com for­malismo, disse:

  • Chegou a altura de me dizeres o que te vai no coração. Amas a Santa Igreja como eu? Continuarás a devotar-lhe a tua vida como eu?

As coisas tomavam o caminho que César esperava. Tinha mostrado clara e deliberadamente ao pai que era um soldado, e não um sacerdote. Ponderou cuidadosamente a resposta. O Papa tinha de ter absoluta confiança nele. César sabia que o pai não o amava tanto como tinha amado João, mas estava certo do amor do pai em certa medida. Sabia também que devia rodear-se de cui­dados relativamente à astúcia do pai, uma arma que ele utilizava mesmo com os mais amados ou adorados. Assim, César sentiu-se compelido a guardar os seus mais terríveis segredos.

  • Pai - disse por fim -, tenho de confessar que tenho demasiados apetites mundanos para servir a igreja como desejas. E não quero condenar a minha alma ao inferno.

Alexandre ergueu-se no divã para poder fitar César nos olhos.

  • Quando era novo, eu era muito parecido contigo — disse. — Ninguém sonhava que eu viria a ser Papa. Porém, labutei durante quarenta anos e tor­nei-me um homem melhor e um melhor sacerdote. Podia passar-se o mesmo contigo.

  • Não o desejo — disse serenamente César.

  • Porquê? - perguntou Alexandre. - Tens amor ao poder; tens amor ao dinheiro. Neste mundo, os homens têm de trabalhar para sobreviver. E, com os teus dotes, podes elevar a igreja à sua devida sublimidade. - Fez uma pausa momentânea. — Há algum grande crime na tua consciência que te leve a crer que não podes servir a igreja?

Naquele momento, César adivinhou tudo. O pai queria que ele confessasse a verdade sobre a sua relação carnal com Lucrécia. Porém, caso confessasse, sabia que o pai nunca lhe perdoaria. Conquanto achasse difícil ocultar a ver­dade, César apercebeu-se de que o pai queria ser iludido, mas de forma con­vincente.

  • Sim — respondeu César. — Há um grande crime. Mas, se eu o confessar, isso condenar-me-á no teu coração.

Alexandre inclinou-se para diante. O seu olhar era duro, penetrante, com-pletamente isento de clemência. Naquele momento, embora César tivesse a certeza de que o pai calculava que ele continuara durante todos aqueles anos a ser amante de Lucrécia, não conseguiu deixar de experimentar um assomo de sentimento de triunfo por levá-lo à certa.

  • Não há nada que Deus não perdoe — disse Alexandre.

César falou com suavidade, pois sabia a repercussão que as suas palavras teriam.

  • Não acredito em Deus, não acredito em Cristo, nem na Virgem Maria, nem em nenhum dos santos.

Alexandre pareceu admirado por um momento, mas logo se recompôs.

  • Muitos pecadores dizem isso porque temem o castigo após a morte -disse. - Por isso, tentam renunciar à verdade. Há mais alguma coisa?       

César não conseguiu reprimir o sorriso.                                               

  • Há. Fornicação. Amor ao poder. Assassínio, mas apenas de inimigos peri­gosos. Uso da mentira. Mas tu já os conheces todos. Já não há nada para con­fessar.

Alexandre tomou a mão de César na sua e examinou-a detidamente.

  • Escuta, meu filho — disse. — Os homens perdem a fé; quando as cruelda­des deste mundo são de mais para eles, questionam um Deus eterno e amante. Questionam a sua infinita misericórdia. Questionam a Santa Igreja. Mas a fé tem de ser avivada com a acção. Até os próprios santos eram pessoas de acção. Não tenho grande apreço por aqueles religiosos que se autoflagelam e medi­tam sobre os misteriosos caminhos da humanidade durante anos e anos, vivendo nos seus mosteiros. Não fazem nada pela igreja viva; não a ajudarão a resistir neste mundo temporal. São homens como tu e eu, que têm de cumprir o seu dever específico. Mesmo que — e nesta altura Alexandre ergueu um auto­ritário dedo papal - as nossas almas possam repousar durante algum tempo no purgatório. Pensa em quantas almas de cristãos ainda por nascer salvaremos nas próximas centenas de anos; nos que hão-de encontrar a salvação numa Santa igreja Católica forte. Quando rezo as minhas orações, quando confesso os meus pecados, é essa a minha consolação para certas coisas que fiz. Pouco •mporta que os nossos humanistas (esses crentes nos filósofos gregos) julguem

que a humanidade é tudo o que existe. Há um Deus Omnipotente, que é mise­ricordioso e compreensivo. É essa a nossa fé. E tu tens de acreditar. Vive com os teus pecados, quer os confesses quer não, mas nunca percas a fé... porque não existe mais nada.

Este discurso não comoveu minimamente César. A fé não resolveria os seus problemas. Tinha de se assenhorear do poder neste mundo, caso contrário a sua cabeça decoraria as muralhas de Roma. Queria uma mulher e filhos, e por conseguinte tinha de viver uma vida de poder e riqueza e não fazer parte do rebanho impotente. E, para o fazer, tinha de cometer actos pelos quais o Deus de seu pai o faria sofrer. Por que havia de acreditar em semelhante Deus? E ele próprio era tão cheio de vida, aos vinte e três anos, com o sabor do vinho, da comida e das mulheres tão intenso no sangue, que não podia acreditar na pos­sibilidade da sua própria morte, embora ela tivesse sido provada à saciedade com a morte de outros.

Mas César inclinou a cabeça.

  • Acredito em Roma, pai - disse. - Darei a minha vida por ela, se me deres os meios para lutar por ela.

Alexandre suspirou de novo. Finalmente já não podia lutar contra o pró­prio filho, porque reconhecia que César podia ser o seu mais poderoso instru­mento.

  • Nesse caso temos de elaborar os nossos planos — disse. — Vou-te nomear capitão-general do exército do Papa e tu reconquistarás os Estados Papais e tor­nar-te-ás o duque da Romanha. Um dia uniremos todas as grandes cidades de Itália, por muito que isso pareça impossível: Veneza, cujo povo vive na água como as serpentes; aqueles ardilosos sodomitas de Florença; a altiva Bolonha, tão ingrata para com a Madre Igreja. Mas temos de começar pelo princípio. Tens de ser senhor da Romanha, e para isso tens primeiro de casar. Vamos reu­nir com o consistório dos cardeais dentro de dias e tu devolver-lhes-ás o bar­rete cardinalício. Depois far-te-ei capitão-general. Compensarás aquilo que perderes em benefícios eclesiásticos com a guerra.

César fez uma inclinação de cabeça. Como agradecimento, tentou beijar o pé do Papa, seu pai, mas com suficiente lentidão para que Alexandre movi­mentasse impacientemente o corpo e dissesse:

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  • Ama mais a igreja, César, e menos o teu pai. Mostra a tua obediência à minha pessoa por actos, e não por estes gestos formais. És meu filho e eu per­doo-te todos os pecados, como qualquer pai natural faria.

Pela primeira vez desde que tinha memória, César sentiu-se invadido pela certeza de que era dono do seu próprio destino.

Na noite em que foi firmado o contrato final de casamento da filha do Papa com o príncipe Afonso, Alexandre conversou com Duarte.

  • Quero ouvir a Lucrécia rir de novo - disse. - Há demasiado tempo que anda solene.

Não lhe escapara à atenção como aquele ano transacto tinha sido difícil para a filha e esperava compensá-la a fim de garantir a sua continuada leal­dade. Sabendo que se proclamava que Afonso de Aragão era o «homem mais bem-parecido da Cidade Imperial», o Papa pretendia surpreender a filha e por conseguinte insistiu em que a chegada de Afonso a Roma se mantivesse em segredo.

O jovem Afonso entrou na cidade de Roma num dia de manhã cedo, acompanhado de apenas sete elementos da sua comitiva. Os restantes, dos cinquenta que tinham viajado com ele desde Nápoles, haviam sido deixados às portas, em Marino. Foi recebido pelos emissários do Papa, que o levaram imediatamente ao Vaticano e, uma vez tranquilizado Alexandre pela sua beleza e modos directos, foi conduzido a cavalo ao palácio de Santa Maria in Pórtico.

Lucrécia estava de pé na sua varanda a trautear baixinho para si mesma a ver umas crianças jogar ao trapo queimado nas ruas lá em baixo. Estava um belo dia de Verão e ela pensava no homem com quem ia casar, porque o pai a mrormara de que ele deveria chegar antes do final da semana. Surpreendeu-se a ansiar por conhecê-lo, pois nunca houvera ninguém de que o seu irmão césar falasse com tanta veemência.

Subitamente Afonso aproximou-se a cavalo e postou-se diante dela. Os olhos de Lucrécia poisaram no jovem príncipe e o coração bateu-lhe desor-

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denadamente como só uma vez acontecera. Sentiu os joelhos fraquejarem-lhe foi preciso, para a impedir de desmaiar, a intervenção de Júlia e uma das suas açafatas, que tinham vindo avisá-la da chegada de Afonso. Tinham-se, porém, atrasado.

  • Glória a Deus - disse Júlia, sorrindo. - Não é a mais bela criatura que alguma vez viste?

Lucrécia permaneceu calada. Nesse preciso momento Afonso ergueu a vista, viu-a ali e também ele pareceu ficar atordoado e presa de um transe, como que por obra de um mago.

Durante os seis dias que se seguiram até poder realizar-se a cerimónia do casamento, Lucrécia e Afonso foram a festas e passaram longas horas a passear pelo campo. Exploraram as melhores lojas e ruas de Roma, deitaram-se tarde e levantaram-se cedo.

Como uma criança, Lucrécia tornou a correr aos aposentos do pai e abra­çou-o jubilosamente.

  • Como posso eu agradecer-te, papá? Como poderás saber como me fizeste feliz?

Alexandre sentiu o coração de novo repleto.

  • Quero para ti tudo o que tu própria queres... — disse à filha — e mesmo maiores tesouros do que podes imaginar.

A celebração do casamento foi muito parecida com a primeira de Lucrécia, com toda a pompa e cerimónia. Desta vez, porém, ela prestou o seu juramento de livre vontade e quase não deu pela espada desembainhada suspensa sobre a sua cabeça pelo capitão espanhol, Cevillion.

Nessa noite, depois das festividades, Lucrécia e Afonso firmaram alegre­mente o seu contrato matrimonial na presença do Papa, de outro cardeal e de Ascânio Sforza e, assim que o protocolo o permitiu, o jovem casal reti-rou-se rapidamente para Santa Maria in Pórtico a fim de ali passar os três dias e três noites subsequentes. Não precisavam de nada a não ser um do outro. E, pela primeira vez na vida, Lucrécia sentiu a liberdade de um amor que era permitido.

Depois da cerimónia nupcial, César, solitário, calcorreava os seus aposen­tos do Vaticano. A cabeça fervilhava-lhe de ideias e planos para si próprio como general do Papa, mas o seu coração gelara.

Conduzira-se com grande contenção durante o casamento da irmã, contri­buindo até para a bem-humorada cerimónia ao apresentar-se com a indu­mentária de um unicórnio mágico — como representação dos símbolos míticos da castidade e da pureza - na peça que Alexandre pediu depois de ver Lucré­cia e Saneia dançarem diante dele. O Papa adorava observar jovens com as suas coloridas indumentárias a rodopiar nas velozes danças espanholas que recor­dava da infância, ao mesmo tempo que ouvia o som que os pés delas produ­ziam, num rápido sapateado, no chão de mármore.

César tinha bebido de mais, mas o vinho tornara a noite suportável. Agora, à medida que os efeitos se dissipavam, sentia-se sozinho e agitado.

Lucrécia estava nesse dia mais bonita que o habitual. O seu vestido de noiva vermelho-escuro, cravejado de jóias, bordado a veludo preto e orlado de pérolas, dava-lhe um ar de imperatriz. Naquele momento parecia régia, não já uma criança. Desde o seu último casamento, tinha-se tornado dona da sua própria casa, tivera uma criança e agora sentia-se a seu bel-prazer em sociedade. Até àquele dia, César mal dera pela mudança da irmã. Vestido de cardeal, abençoara-a e dese­jara-lhe felicidades, mas no íntimo tinha a consciência de uma ira crescente.

A seguir à cerimónia ela tinha cruzado várias vezes o olhar com César e sor­rira para o tranquilizar. Mais tarde, porém, à medida que a noite passava, foi—se tornando cada vez menos acessível. Sempre que se abeirava a fim de falar com ela, Lucrécia estava embrenhada numa conversa com Afonso. Animada e sorridente, por duas vezes nem sequer dera por ele. E, quando abandonara o salão naquela noite para firmar o contrato matrimonial, nem sequer pensara em dar-lhe as boas-noites.

César disse para consigo que, com o tempo, se esqueceria do que sentia nessa noite; que, quando se libertasse da púrpura e tivesse uma vida própria, quando se casasse e tivesse filhos, quando passasse a ser general do Papa e tra­vasse grandes batalhas conforme sempre sonhara, deixaria de sonhar com ela.

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Nessa altura a mente tentou pregar-lhe uma partida. Convenceu-se de que o casamento de Lucrécia com Afonso não passava de um estratagema arqui­tectado pelo pai para alinhar Roma com Nápoles, a fim de que César pudesse casar com uma princesa napolitana. Sabia que Rosetta, filha do rei, serviria Tinha ouvido dizer que ela era muito bonita e tinha um sorriso fácil. E, uma vez entrincheirado e tendo recebido bens e títulos em Nápoles, podia começar a fazer guerra aos lugar-tenentes e barões e conquistar o resto da Romanha para o Papa e a família Bórgia.

Tentou adormecer nessa noite com visões de glória na cabeça, mas acordou repetidamente com saudades da irmã.

Franco Saluti, inquiridor do Conselho dos Dez florentino, sabia que o interrogatório pela tortura de Girolamo Savonarola seria a mais importante tarefa da sua vida oficial.

O facto de Savonarola ser sacerdote, e um sacerdote importante, não ate­nuava a sua resolução. É certo que muitas vezes tinha ouvido os sermões do homem e se sentira emocionado com eles. Porém Savonarola atacara o Papa em pessoa e desafiara a classe governante de Florença. Tinha conspirado com os inimigos da república. Por conseguinte, devia ser submetido a julgamento. Havia que arrancar-lhe do corpo a verdade da sua traição.

No aposento especial, guardado por soldados, Saluti dava instruções ao seu pessoal. A roda estava pronta; o artesão tinha verificado os mecanismos, as várias rodas, correias, polés e pesos. Estavam em ordem. Um pequeno forno, com as entranhas vermelhas e a abertura trespassada por várias tur­queses, aquecia a tal ponto o compartimento que fazia Saluti transpirar. Ou talvez isso se devesse ao facto de saber que aquele era um dia em que rece­beria uma paga generosa.

Saluti tinha o brio de um profissional, mas não gostava do seu traba­lho. Não lhe agradava o facto de a sua ocupação constituir um segredo ofi­cial, mantido para sua própria protecção. Florença era uma cidade cheia de gente vingativa. Ia sempre armado para casa, que estava rodeada pelas casas da sua extensa família, a qual acorreria em sua defesa, caso fosse ata­cado.

O seu emprego era muito cobiçado. A remuneração era de sessenta florins anuais, o dobro do dos caixeiros dos bancos florentinos, acrescido de um bónus de vinte florins por cada trabalho de que fosse incumbido pelo conselho.

Saluti vestia uma calça justa de seda e uma blusa cor de pimpinela, um tecido azul, quase preto, fabricado apenas em Florença. Aquela cor dignificava o seu cargo, mas não era tão austera que ofendesse o seu gosto pessoal. De facto, Saluti, apesar das frequentes indisposições de estômago e insónias, era um homem jovial e atencioso. Assistia a conferências sobre Platão na universidade. Nunca perdia um sermão de Savonarola e visitava regularmente os estúdios dos grandes artistas para se inteirar das mais recentes pinturas e esculturas. Tinha sido convidado uma vez para visitar os jardins mágicos de Lourenço de Mediei, quando II Magnifico era ainda vivo. Fora o dia mais importante da sua vida.

Nunca gozara com o sofrimento das suas vítimas. Ofendia-se com essas acusações. Ainda assim, nunca era atormentado por rebates de consciência. No fim de contas, o infalível Papa Inocêncio tinha publicado uma bula decretando que a tortura se justificava em caso de investigação de heresia. É certo que os gritos das suas vítimas eram lancinantes. E certo que as noites de Franco Saluti eram longas, mas ele bebia sempre uma garrafa inteira de vinho antes de se recolher e isso ajudava-o a dormir.

O que realmente o incomodava era a inexplicável teimosia das suas vítimas. Por que razão se recusavam a admitir imediatamente a sua culpa? Por que razão esperavam e faziam toda a gente sofrer com elas? Por que razão se recusavam os homens a dar ouvidos à razão? Especialmente em Florença, onde a beleza e a razão floresciam mais do que em qualquer outro lugar, excepto provavel­mente a Atenas da antiguidade.

Era uma pena, mesmo uma pena, que o próprio Franco Saluti viesse a ser um instrumento do seu sofrimento. Mas não era verdade, como dissera Platão, que na vida de cada pessoa, por melhores que fossem as suas intenções, havia sempre, neste mundo mortal, outras que fazia sofrer?

Mais importante ainda: os documentos jurídicos eram irrepreensíveis. Na grande república de Florença, nenhum cidadão podia ser sujeito a tortura a menos que houvesse provas da sua culpa. Os documentos tinham sido assina­dos pelos funcionários responsáveis da Signoria, o conselho reinante. Tinha-os

lido atentamente, mais de uma vez. O Papa Alexandre tinha dado a sua apro­vação e enviara dignitários da igreja como observadores oficiais. Corriam boa­tos de que o grande cardeal César Bórgia estava secretamente em Florença para observar. Nesse caso não havia esperança para o consagrado frade. Silenciosa­mente, o homem a quem incumbia torturar rezou pela rápida libertação do religioso desta terra.

Com a mente e alma preparadas, Franco Saluti aguardou junto da porta aberta da câmara de tortura o derrotado Martelo de Deus, Fra Girolamo Savo­narola. Por fim, o famoso orador foi arrastado até à sala. Parecia que já tinha sido espancado, facto que desapontou Saluti. Era um insulto à sua competência.

Como profissionais que eram, Saluti e o ajudante amarraram firmemente Savonarola na roda. Não querendo deixar a crítica tarefa a um subordinado, foi o próprio Saluti que fez girar as rodas de ferro que moviam as engrenagens que, por seu turno, puxavam muito lentamente do corpo os membros da vítima. Durante todo este processo, nem Saluti nem Savonarola pronunciaram uma palavra. Isto agradou a Saluti. Considerava que aquela sala era como uma igreja, um lugar de silêncio, oração e, finalmente, confissão, e não de conver­sas fúteis.

Não tardou que Saluti ouvisse o familiar estalo rangente, quando os ante­braços do sacerdote se soltaram nos cotovelos. O cardeal mais antigo de Florença, que estava sentado ali próximo, empalideceu, abalado pelo ruído espectral.

  • Confessas, Girolamo Savonarola, que a tua mensagem oral era falsa e herética, um desafio a Nosso Senhor? — perguntou Saluti.

O rosto de Savonarola revelava uma palidez mortal e os seus olhos rolaram em direcção ao céu como os dos mártires santificados dos frescos religiosos. Ainda assim, não deu resposta.

O cardeal acenou a Saluti, que voltou a fazer girar a roda. Passado um momento houve um violento som de rasgadura, acompanhado por um agudo grito animalesco, quando os ossos e músculos dos braços de Savonarola foram arrancados dos ombros.

Saluti voltou a entoar a sua pergunta.

  • Confessas, Girolamo Savonarola, que a tua mensagem oral era falsa e herética, um desafio a Nosso Senhor?

As palavras murmuradas mal se ouviram quando Savonarola sussurrou:

  • Confesso.

Estava tudo consumado.

Savonarola tinha reconhecido a sua heresia e, por conseguinte, o fim estava predeterminado. Não houve protestos por parte dos florentinos. Antes tinham-no adorado, mas agora estavam satisfeitos por se verem livres dele. Nessa mesma semana o Martelo de Deus foi enforcado, com o corpo que­brado a retorcer-se na corda até quase o matar. Depois foi mutilado e quei­mado na fogueira na praça em frente da Igreja de S. Marcos, onde vomitara o seu fogo e enxofre e onde por pouco não levara o próprio Papa à morte e à destruição.

Na manhã do seu dia de trabalho, o Papa Alexandre meditava sobre os caminhos do mundo, os estratagemas das nações, as traições das famílias e os estranhos e satânicos desígnios ocultos no coração de cada indivíduo da terra. Ainda assim, não desesperava. Sobre os desígnios de Deus nunca tinha de meditar, uma vez que era o Vigário de Cristo na terra e a sua fé era incomen­surável. Sabia que, acima de tudo, Deus era misericordioso e perdoaria a todos os pecadores. Era esse o fundamento da sua fé. Nunca duvidava de que o pro­pósito de Deus era criar felicidade e alegria neste mundo temporal.

As tarefas de um Papa eram, contudo, diferentes. Acima de tudo, tinha de tornar a Santa Igreja mais forte a fim de poder levar a palavra de Deus a todos os lugares da terra e, o que era mais importante ainda, através da vastidão dos tempos até ao futuro. A maior calamidade para o homem seria que a voz de Cristo fosse silenciada.

Desta forma o seu filho César podia ser útil. Embora deixasse de ser car­deal, contribuiria por certo para unificar os Estados Papais, pois era um exce­lente estratego militar e também um patriota. A única questão era esta: teria ele carácter bastante para suportar as tentações do poder? Conhecia a miseri­córdia? Porque, se assim não fosse, podia salvar as almas de muitos e mesmo assim perder a sua. Isto perturbava Alexandre.

Agora, porém, havia outras decisões a tomar; pormenores do seu cargo, enfadonhos regulamentos administrativos. Hoje havia três, dos quais apenas um lhe suscitava um verdadeiro conflito. Tinha de decidir sobre a vida ou a morte do seu secretário principal, Plandini, que fora condenado por vender bulas papais. Depois teria de decidir se um dos membros de uma grande e nobre família devia ser objecto de canonização como santidade da igreja. E, terceiro, em conjunto com o filho e Duarte, tinha de examinar os planos e fundos reunidos que tinha destinado ao começo de uma nova campanha para unir os Estados Papais.

Alexandre estava vestido de uma maneira formal mas singela, como um Papa que fosse distribuir favores, e não exigi-los. A sua túnica branca era sim­ples, guarnecida apenas de seda vermelha, e trazia na cabeça a leve mitra de linho. Na mão tinha apenas o anel de S. Pedro, o anel papal, para dar a beijar. Nada mais.

Hoje, para justificar as acções que estava prestes a tomar, tinha de repre­sentar a igreja como clemente. E para esse efeito utilizou a sala de visitas cujas paredes estavam adornadas com as pinturas da Virgem Maria, a Madonna que intercede junto de Deus por todos os pecadores.

Mandou chamar César para se sentar ao seu lado, pois compreendia que a certos homens há que ensinar a aplicação virtuosa da clemência.

O primeiro cliente foi o seu mais leal servidor desde há vinte anos, Stiri Plandini, que fora descoberto a forjar bulas papais. César conhecia-o bem, pois ele estava na corte desde o tempo em que César era criança.

O homem foi conduzido ao aposento numa cadeira de prisioneiro: uma cadeira estofada na qual estava imobilizado por correntes, cobertas por roupa­gens por respeito para com os ternos olhos do Papa.

Alexandre mandou imediatamente soltar as correntes dos braços do homem e a seguir ordenou que lhe dessem um copo de vinho. De facto, Plandini tinha tentado falar, mas só conseguia grasnar roucamente. O Papa falou a seguir, com compaixão.

  • Foste declarado culpado e condenado, Plandini. Serviste-me fielmente durante todos estes anos, mas agora não te posso ajudar. Contudo imploraste-“fne Uma audiência e eu não ta podia recusar. Por isso, fala.

Stiri Plandini era um amanuense típico. Tinha os olhos piscos de ler e o seu rosto possuía aquela frouxidão que evidencia um homem que nunca caçou ou envergou uma armadura. O seu corpo era tão franzino, que ocupava apenas um pequeno espaço da cadeira. E, quando falou, a sua voz era muito débil.

  • Santo Padre — disse. — Tende piedade da minha mulher e dos meus filhos. Não os deixeis sofrer pelos meus pecados.

  • Velarei por que nada de mal lhes aconteça — disse Alexandre. — Ora bem, denunciaste todos os teus conspiradores?

Esperava que Plandini pudesse designar um dos cardeais por quem nutria especial malquerença.

  • Sim, Santo Padre - respondeu Plandini. -Arrependo-me do meu pecado e peço-vos, em nome da Santa Virgem, pela minha vida. Deixai-me viver e cui­dar da minha família.

Alexandre meditou sobre aquilo. Um perdão a este homem encorajaria outros a trair a sua confiança. Contudo, sentia pena. Quantas manhãs tinha ditado cartas a Plandini e com ele trocara uma graça, ou perguntara pela saúde dos filhos? O homem tinha sido um secretário perfeito e um cristão devoto.

  • És bem pago. Por que razão cometeste um crime tão grave? — inquiriu o Papa.

Plandini segurava a cabeça com as mãos e todo o seu corpo estremecia ao ser assolado por soluços.

  • Os meus filhos. Os meus filhos — respondeu. — São jovens e irreflectidos e eu tinha de pagar as suas dívidas. Tinha de os manter perto de mim. Tinha de trazê-los de volta à fé.

Alexandre olhou para César, mas a expressão deste mantinha-se impassível. Fosse verdade ou não, tratava-se de uma resposta inteligente da parte de Plan­dini. A ternura do Papa pelos seus próprios filhos era bem conhecida em Roma. O homem tinha-o tocado.

Ali postado à luz clara do sol que se coava pelas janelas de vitrais, rodeado pelos retratos da benigna Madonna, Alexandre sentiu-se esmagado pela res­ponsabilidade. Nesse preciso dia, este mesmo homem que estava diante dele seria pendurado numa forca na praça pública, para sempre surdo e mudo aos prazeres da terra, e os seus cinco filhos e três filhas ficariam dilacerados pelo

desgosto. E os três conspiradores haviam certamente de morrer, mesmo que ele perdoasse a este homem. Seria justo matá-lo igualmente?

Alexandre ergueu a mitra de linho da cabeça; por muito leve que fosse, não conseguia suportar por mais tempo o seu peso. Ordenou aos guardas papais que libertassem o prisioneiro e o ajudassem a pôr-se de pé. Depois viu o torso deformado de Plandini, com os ombros torcidos pela roda durante o interro­gatório.

Dominado não tanto pela tristeza por aquele pecador singular, mas por todo o mal do próprio mundo, levantou-se e abraçou Plandini.

  • A Santa Mãe da Compaixão falou-me. Não morrerás. Perdoo-te. Mas tens de abandonar Roma e deixar a tua família. Viverás o resto da tua vida num mosteiro longe daqui e devotarás a vida a Deus para conquistares a sua mise­ricórdia.

Com suavidade, voltou a empurrar Plandini para a sua cadeira e fez sinal para que o levassem. Tudo correria bem: o perdão seria encoberto pelo segredo, os outros conspiradores seriam enforcados e tanto a igreja como Deus seriam servidos.

Subitamente sentiu um júbilo que raramente experimentava, nem sequer com os filhos, as mulheres que amava ou os tesouros que contava para as Cru­zadas. Sentiu uma crença no seu Cristo que era tão pura, que toda a pompa, todo o poder se dissiparam e pareceu-lhe ser todo ele feito de luz. Quando essa sensação se desvaneceu, perguntou a si próprio se o seu filho César poderia alguma vez sentir aquele êxtase de misericórdia.

O requerente seguinte era loiça bem diferente, pensou Alexandre. Com ele teria de manter a cabeça fria e não amolecer. Havia que conduzir uma difícil negociação e não podia fraquejar. Este cliente não inspiraria um pingo de mise­ricórdia. Voltou a colocar a mitra na cabeça.

é Queres que espere na antecâmara? — perguntou César, mas o Papa fez-lhe sinal para que o seguisse.

  • Es capaz de achar isto interessante — disse.

Para este encontro, Alexandre escolheu outra sala de visitas que não era tão clemente. Tinha as paredes pintadas com os retratos de Papas guerreiros, der­rubando os inimigos da igreja com a espada e água benta; representações de santos a serem decapitados pelos Infiéis, Cristos em cruzes com coroas de espi­nhos e paredes pintadas de vermelho vivo. Era o Salão do Mártires, mais que apropriado para esta entrevista.

O homem presente ao Papa era o chefe da nobre e rica família veneziana dos Rosamundi. Possuía cem navios que comerciavam por todo o mundo. Como bom veneziano, a sua riqueza era um segredo ciosamente guardado.

Este Baldo Rosamundi, um homem que passava dos setenta anos, estava res-peitavelmente vestido de preto e branco, mas usava pedras preciosas como botões e no seu rosto havia a expressão de um homem preparado para fazer negócios a sério, como os dois homens tinham feito quando Alexandre era cardeal.

  • Pensais portanto que a vossa neta devia ser canonizada — disse jovialmente Alexandre.

Baldo Rosamundi falou respeitosamente.

  • Isso seria presunçoso da minha parte, Santo Padre. Quem iniciou a peti­ção para fazer dela uma santa foi o povo de Veneza. Foram os piedosos funcio­nários da vossa igreja que investigaram a pretensão e a levaram avante. Tanto quanto sei, sois vós, o Santo Padre, quem pode proclamar a aprovação final.

Alexandre tinha sido posto a par do assunto pelo bispo designado como Protector da Fé, cujo papel era investigar requerimentos de canonização. Era um caso absolutamente vulgar. Doria Rosamundi seria uma santa branca, e não uma santa vermelha, isto é, seria elevada à santidade com base numa vida impecavelmente virtuosa: uma vida de pobreza, castidade e boas acções, com um ou dois improváveis milagres à mistura. Todos os anos havia centenas de requerimentos desses. Alexandre não tinha grande apreço por santos brancos; preferia os que morriam como mártires da Santa Igreja: os santos vermelhos.

A documentação mostrava que Doria Rosamundi tinha desdenhado da boa vida da sua abastada família. Auxiliara os pobres e, uma vez que não os havia suficientes em Veneza — uma cidade que não admitia sequer a liberdade da pobreza —, viajara por todas as cidadezinhas da Sicília reunindo crianças órfãs para delas cuidar. Fora casta, vivera na pobreza e, o que era mais importante,

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tinha tratado destemidamente de vítimas das epidemias de peste que constan-temente assolavam a população em geral. Depois ela própria morrera aos vinte e cinco anos em consequência de uma dessas epidemias de peste. Havia apenas dez anos que morrera quando a família deu início ao processo de canonização.

Claro que, como prova, tinha havido milagres. Durante a última epidemia de peste, algumas das vítimas tinham sido dadas como mortas e colocadas nas pilhas de cadáveres para queimar. Porém, quando Doria rezara por elas, tinham voltado miraculosamente à vida.

Após a sua morte, as orações feitas junto do seu túmulo tinham originado algumas curas de doenças mortais. E, nas azuis águas do Mediterrâneo, os marinheiros viam o seu rosto pairando sobre os seus navios em ocasiões de grande tempestade. Documentos atrás de documentos atestavam estes mila­gres. Fora tudo investigado e nada fora desmentido. E era uma ajuda o facto de a grande fortuna dos Rosamundi poder contribuir para fazer esta petição trepar todos os escalões da igreja.

Alexandre disse:

  • O que pedis é de monta, e a minha responsabilidade maior ainda. Quando a vossa neta for santificada, residirá por definição no paraíso, sentada ao lado de Deus e, por conseguinte, pode interceder por todos os seus entes queridos. O seu sepulcro será na vossa igreja; virão peregrinos de todo o mundo para a adorar. Trata-se de uma decisão momentosa. Que podeis acres­centar a todas estas provas?

Baldo Rosamundi inclinou a cabeça numa reverência.

  • A minha experiência pessoal — disse. — Quando ela era pequena, eu estava no auge da minha boa estrela e, contudo, isso nada me dizia. Tudo era cinzas. Todavia, quando Doria tinha apenas sete anos, viu a minha tristeza e implo­rou-me que rezasse a Deus pela felicidade. Assim procedi, e tornei-me feliz. Em criança nunca foi egoísta; e nunca foi egoísta na adolescência. Eu deleitava-me em comprar-lhe jóias caras, mas ela nunca as usava. Vendia-as e dava o dinheiro aos pobres. Depois da morte dela, estive muito doente. Os médicos sangraram-me até ficar pálido como um fantasma, mas mesmo assim defi­nhava. Foi então que, uma noite, vi o rosto dela e ela me falou. Disse: «Tens de viver para servir a Deus.»

241

Alexandre levantou as mãos numa respeitosa bênção e a seguir tiasu a mitra da cabeça, colocando-a na mesa entre eles.

  • E vivestes para servir a Deus? — perguntou.

  • Deveis saber que sim — retorquiu Baldo Rosamundi. - Construí três igre­jas em Veneza. Apoiei uma casa para expostos em memória da minha neta. Renunciei a prazeres mundanos impróprios para homens da minha idade e encontrei renovado amor por Cristo e pela Santa Virgem. - Interrompeu-se por momentos, após o que se virou para o Papa com um sorriso benigno que Alexandre recordava bem. — Santo Padre, não tendes mais do que ordenar-me como ser útil à igreja.

Alexandre fingiu ponderar aquilo, após o que falou:

  • Haveis de saber que, desde que fui eleito para este santo cargo, a minha maior esperança tem sido chefiar outra Cruzada. Chefiar um exército cristão que vá a Jerusalém retomar a terra natal de Cristo.

  • Sim, sim - disse Rosamundi fervorosamente. - Usarei de toda a minha influência em Veneza para que tenhais a melhor esquadra de navios. Podeis contar comigo.

Alexandre encolheu os ombros.

  • Veneza é unha com carne com os turcos, como sabeis. Eles não podem prejudicar as suas rotas comerciais e colónias dando apoio liberal a uma Cru­zada para a Santa Igreja. Estou ciente disso, como vós certamente estareis. Do que realmente preciso é de ouro, para pagar aos soldados e fornecê-los de man­timentos. Os fundos sagrados não são abundantes, mesmo com os rendimen­tos do jubileu, com o imposto extraordinário que colectei a todos os membros do clero, alto e baixo, e o imposto de dez por cento para a Cruzada a todos os cristãos. Aos judeus de Roma pedi vinte por cento. Mas os fundos sagrados ainda estão um pouco magros. - Sorriu e a seguir acrescentou: — Por conse­guinte, podeis ser útil.

Baldo Rosamundi acenou pensativamente, como se aquilo fosse para ele uma surpresa. Atreveu-se mesmo a arquear ligeiramente o sobrolho. Depois disse:

  • Santo Padre, dai-me uma ideia daquilo de que precisais e eu obedecerei, mesmo que tenha de hipotecar a minha frota.

Alexandre já tinha meditado um pouco sobre a quantia que arrancaria a Rosamundi. Ter uma santa na família abriria a Rosamundi as portas de todas as cortes do mundo cristão. Protegê-lo-ia grandemente de inimigos poderosos. Pouco importava que houvesse quase dez mil santos na história da Igreja cató­lica; apenas umas centenas tinham a certificação do papado de Roma.

Alexandre falou devagar.

  • A vossa neta foi sem dúvida abençoada pelo Espírito Santo. Como cristã foi imaculada e acrescentou glória ao reino de Deus na terra. Mas passou-se oorventura pouco tempo sobre a sua morte para ser canonizada. Há muitos outros candidatos à espera, alguns inclusivamente há cinquenta ou cem anos. Não quero ser precipitado. Trata-se de um acto irrevogável.

Baldo Rosamundi, que apenas uns momentos antes irradiava esperança e fé, pareceu encolher-se na cadeira. Num sussurro quase inaudível, disse:

  • Quero rezar no seu sepulcro antes de morrer, e já não tenho muito tempo de vida. Quero que ela interceda por mim no céu. Sou um verdadeiro crente em Cristo, acredito verdadeiramente que a minha Doria é uma santa. Quero venerá-la enquanto estou na terra. Rogo-vos, Santo Padre, pedi-me o que quiserdes.

Naquele momento Alexandre viu que o homem era sincero, que acreditava mesmo. Por conseguinte, com a jovialidade de um jogador, Alexandre pediu o dobro da quantia que tencionara pedir.

  • O nosso fundo para a Cruzada precisa de quinhentos mil ducados - disse. - Nessa altura o mundo cristão pode fazer-se a Jerusalém.

O corpo de Baldo Rosamundi deu a impressão de saltar nos ares, como que atingido por um raio. Por momentos apertou as mãos contra os ouvidos como que para não escutar, mas estava a concentrar o espírito e a procurar res­ponder. Não tardou que se acalmasse e um bela serenidade lhe transfigurasse o rosto.

  • Obrigado, Santo Padre - disse. - Mas tereis de vir pessoalmente a Veneza Para consagrar o sepulcro e realizar as necessárias cerimónias.

Serenamente, Alexandre respondeu:

  • tra essa a minha intenção. Um santo é maior que qualquer Papa. E agora vamos rezar os dois para lhe pedir que interceda por nós no céu.

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17

César acordou nessa manhã com uma excitação crescente. Sentia já a mudança em si próprio. Hoje era o dia em que compareceria diante do con­sistório de cardeais que fora escolhido pelo Papa para «ponderar» libertá-lo dos votos e permitir-lhe renunciar à sua condição de cardeal.

Fora nomeada uma comissão de quinze elementos, dos quais apenas dois não estavam presentes. Um cardeal espanhol tinha adoecido com malária e um dos cardeais italianos caíra do cavalo.

Nenhum dos cardeais restantes tinha sido alguma vez confrontado com semelhante pedido, pois ser cardeal era o sonho da maior parte dos homens em toda a Itália. Ser escolhido era subir bem alto na hierarquia da igreja e ser tido na maior estima, pois todos eles estavam em condições de serem considerados como um futuro Papa. A maioria dos cardeais presentes tinha-se empenhado em longos anos de exaustivo labor, oração — e um ou outro pecado — para alcançarem a sua posição, pelo que o pedido de César era considerado ao mesmo tempo intrigante e uma impertinência. Abandonar voluntariamente a purpura era uma afronta à sua honra.

Todos os membros da comissão estavam rigidamente sentados na sua cadeira de madeira de espaldar alto elaboradamente entalhada, no Salão da Fé. t-nvergando todos eles a indumentária formal, a longa fila de barretes verme­lhos assemelhava-se a uma imensa fita pendurada diante do retrato do Juízo rinal, com os rostos dos cardeais a constituírem máscaras desfiguradas pela écredulidade: hirtas, brancas e espectrais.

César pôs-se de pé para lhes falar.

  • Venho à vossa presença para que compreendais por que razão vou pedir a vossa indulgência nesta questão. Devo confessar que nunca desejei a vida eclesiástica. Foi o meu próprio pai, Sua Santidade Alexandre VI, que fez esta opção por mim, com a melhor das intenções. Não obstante, nunca foi a minha opção e nunca será a minha vocação.

Os cardeais entreolharam-se nervosamente, surpreendidos com a sua fran­queza. César explicou então:

  • A minha escolha é comandar o exército do Papa, defender a igreja e Roma. E a isso devo acrescentar que desejo casar e ter filhos legítimos. Sendo essa a minha verdadeira vocação e a minha maior convicção, colegas, peço humildemente que me liberteis dos votos e permitais que resigne.

Um dos cardeais espanhóis protestou:

  • Se isso for permitido, pode haver um perigo. Suponhamos que o cardeal vem a ser príncipe e nessa altura se sente capaz de formar novas alianças, ser­vir um novo rei e tornar-se inimigo da actual igreja e de Espanha?

Alexandre mantinha-se impassível diante deles, indiferente. Os cardeais tinham sido postos ao corrente dos seus desejos, mas agora todos olhavam para ele procurando a confirmação desta importante decisão. Tomou a pala-

vra:

  • É apenas para o bem da sua alma que o meu filho faz este pedido. De facto, tal como ele confessou, a sua verdadeira vocação é casar e ser soldado, e não ser sacerdote. Os seus apetites temporais e mundaneidade provocaram o escândalo universal do papado, pois ele parece incapaz de dominar as suas pai­xões. E havemos de convir que isso não serve a Santa Madre Igreja de Roma. Temos de considerar também que, com a resignação do cardeal, mais de trinta e cinco mil ducados em territórios e benefícios ficarão vagos e ser-nos-ão devol­vidos. Em vista dos benefícios desta acção, e porque estamos empenhados em salvar almas, temos de satisfazer este pedido.

A votação foi unânime, pois o montante dos benefícios dissipou toda e qualquer dúvida.

Numa curta cerimónia, o Papa Alexandre libertou o filho dos votos e auto­rizou-o a casar, concedendo-lhe uma especial bênção papal.

E foi assim que César Bórgia se desfez cuidadosamente da sua grande capa púrpura e do barrete vermelho diante do consistório, fazendo uma vénia de reconhecimento aos cardeais da comissão e ao Santo Padre. A seguir, de cabeça bem erguida, César abandonou a sala a passo rápido, rumo ao sol dourado de Roma. Era agora um homem do mundo, e não da igreja, e a sua nova vida podia iniciar-se.

Posteriormente, Alexandre experimentou uma sensação de desgosto, pois tinha construído a sua vida sobre a esperança de que o seu filho César viesse a ser Papa. Porém, agora que João estava morto e precisava de um comandante no qual pudesse confiar para chefiar o exército do Papa, resolveu vergar-se à vontade do Pai Celeste e aceitar a decisão do filho.

Sentiu-se a mergulhar na depressão, coisa absolutamente invulgar num homem com a sua natureza alegre, e por conseguinte concluiu que precisava de algum prazer para lhe animar a disposição e arredar a tristeza. Decidiu sub­meter-se a uma massagem, pois os prazeres do corpo contribuíam sempre para o pôr de boa disposição.

Alexandre mandou chamar Duarte e informou-o de que faria quaisquer reuniões de emergência vespertinas na sua sala de recepções privada. Como fazia noutras situações que lhe proporcionavam prazer mas que outros não veriam com bons olhos, disse a Duarte que comunicasse ao seu pessoal que o seu clínico pessoal lhe tinha receitado uma longa massagem vespertina como medida sanitária.

Estava há menos de uma hora na sala de recepções quando Duarte entrou, anunciando:

  • Há uma pessoa que quer falar convosco. Alega que se trata de uma ques­tão de grande importância.

Deitado de barriga para baixo, coberto apenas com uma leve toalha de algo­dão, o Papa falou sem levantar a cabeça.

  • Ah, Duarte, tens de deixar estas raparigas relaxarem-te depois deoar> Isto expulsa-nos o diabo do corpo e traz uma nova luz à alma.

eu aca-

  • Há outras maneiras que eu acho mais eficazes - ripostou Duarte, rindo.

  • Quem é que pretende a audiência? — perguntou Alexandre.

  • É o embaixador francês, Georges dAmboise — anunciou Duarte. — Que­reis que lhe peça para aguardar até estardes vestido?

  • Diz-lhe que, se for suficientemente importante, terá que falar comigo tal como estou, porque não faço tenção de terminar esta sessão mais depressa do que tinha em mente — disse Alexandre. — No fim de contas, Duarte, até um Papa tem de dispor de um momento para venerar o templo do seu corpo. Pois não é ele uma criação do Senhor?

  • A teologia não é o meu forte, Excelência - tornou Duarte. - Mas man­darei chamá-lo, porque os franceses raramente se horrorizam com os prazeres da carne.

E foi assim, deitado nu em cima de uma mesa alta, com duas raparigas atraentes a massajar as costas de Alexandre e a esfregar-lhe as musculosas per­nas, que o embaixador francês, Georges dAmboise, encontrou o Papa. Foi conduzido à sala de recepção por Duarte, o qual, divertido, se despediu rapi­damente de ambos.

Embora cínico e altamente requintado, Georges dAmboise foi surpreen­dido por aquela visão. O seu rosto, porém, impassível devido à prática da diplomacia, nada revelava.

  • Podeis falar à vontade, embaixador — disse o Papa. — Estas raparigas não prestam atenção.

DAmboise, contudo, recusou.

  • As instruções do rei são de que ninguém deve ouvir isto a não ser Vossa Santidade - informou Alexandre.

O Papa Alexandre fez um sinal impaciente para as raparigas saírem, deixou—se deslizar da mesa e pôs-se de pé. O embaixador tentou desviar a vista.

  • DAmboise, vocês, os franceses, têm a obsessão do segredo, mas os boa­tos voam no vento e nada nos escapa. A vossa corte não consegue manter nada em sigilo, tal como a nossa. Mas agora estamos sós. Podeis falar.

Georges dAmboise sentia dificuldade em abordar uma questão de tamanha importância com o Papa nu diante dele e, na sua tentativa de se acalmar, come­çou a tossir e a falar atabalhoadamente.

Alexandre baixou a vista par o seu próprio corpo e sorriu.

  • E ainda dizem que os franceses são muito liberais... - observou, com um certo sarcasmo. - Vou-me vestir, para que possais deixar de gaguejar e ir ao que importa.

Passado um pouco, envergando uma indumentária formal, o Papa reuniu—se a dAmboise no seu escritório. DAmboise principiou a falar.

  • O rei Carlos morreu. Num infeliz acidente, no qual bateu com a cabeça numa grande viga do tecto, perdeu rapidamente os sentidos e daí a umas horas, a despeito dos seus clínicos e das atenções da corte, morreu. Não foi possível fazer nada. O seu parente, Luís XII, subiu agora ao trono como rei. Sob a sua regên­cia, mandaram-me transmitir esta informação: a situação relativamente, quer a Nápoles quer a Milão, alterou-se, pois o rei reivindica-as. São suas por direito.

Alexandre pensou por um momento, franzindo o cenho.

  • Deverei depreender que o novo rei reivindica ambos os reinos?

  • Sim, Santidade. Uma pretensão assenta em fundamentos dos seus ante­passados e a outra em fundamentos do rei Carlos. Mas podeis estar tranquilo, que ele não pretende fazer qualquer mal a vós ou à Santa Igreja Católica.

O Papa simulou surpresa.

  • Deveras? E como podemos ter a certeza disso?

O embaixador pôs a mão sobre o coração num gesto de sinceridade.

  • Sempre esperei que aceitásseis a minha palavra e a palavra do rei. Alexandre permaneceu silencioso e pensativo por momentos.

  • O que é que o vosso rei pretende de mim? Para se dirigir a mim com essa informação e ao mesmo tempo adiantar garantias, deve desejar algo de valor...

  • Bem - tornou dAmboise -, ele tem um desejo que só Vossa Santidade pode conceder, que está relacionado com o seu casamento com Joana de frança. Pediu-me para vos dizer que não está satisfeito, Santidade.

  • Meu caro dAmboise - volveu Alexandre, com uma expressão de diverti­mento. - Não está satisfeito com o seu casamento com a filha deformada e dis­forme de Luís XI? Que surpresa! Se bem que me desaponte, pois esperava mais dele. Não é tão caridoso como eu supunha.

A voz do embaixador tornou-se fria e mais formal. Estava afrontado com a« observações de Alexandre.

  • Não é a questão da sua beleza, Santo Padre, garanto-vos. O casamento nunca foi consumado e o jovem rei deseja ardentemente um herdeiro.

  • Tem outra esposa em mente? — perguntou Alexandre, suspeitando já da resposta.

O embaixador acenou afirmativamente.

  • Deseja casar com Ana da Bretanha, a viúva do seu falecido primo, Car­los VIII.

O Papa riu bem-humoradamente.

  • Ah - disse. - Agora a coisa torna-se mais clara para mim. Deseja casar com a cunhada e por conseguinte pede uma dispensa ao Santo Padre. Em con­trapartida, propõe um tratado de protecção das nossas terras.

O corpo de dAmboise pareceu dobrar-se sobre si próprio de alívio.

  • Em substância, Santo Padre, embora eu o exprimisse mais delicadamente... A voz sonora do Papa Alexandre ressoou por todo o salão.

  • É um assunto sério, o que me trazeis. Porque está escrito nos santos Man­damentos: «Não cobiçarás a mulher do teu semelhante.»

O embaixador gaguejou.

  • Mas, com a vossa dispensa, Santidade, até um mandamento pode ser em certa medida alterado.

O Papa recostou-se na cadeira e descansou, ao mesmo tempo que a voz se lhe tornava muito mais coloquial.

  • Isso é verdade, Embaixador. Mesmo assim, antes de concordar, há uma coisa que eu desejo mais do que a segurança das nossas terras, visto que o vosso rei está a pedir uma grande indulgência. — DAmboise não disse nada e Ale­xandre prosseguiu: — Deveis ser conhecedor de que o meu filho, César Bórgia, renunciou ao barrete cardinalício. E por conseguinte é imperativo que case bre­vemente. A filha do rei Frederico de Nápoles, a Princesa Rosetta, afigura-se um bom partido, que seria grandemente influenciado pelo vosso rei, não concor­dais? Presumo que podemos contar com o seu apoio, não?

  • Farei todos os possíveis, Santidade, para me assegurar de que o rei com­preenda os vossos desejos e garanta um compromisso. Até voltarmos a falar, rogo a Vossa Santidade que considere o pedido do rei, pois ele esperou paci” entemente por isto.

O Papa fitou maliciosamente o embaixador.      

  • Ide, dAmboise, levai a minha mensagem a Luís. Porque talvez tanto a França como o papado possam celebrar, se efectivamente vier a haver dois casa­mentos.

César tinha mandado diversas mensagens a Lucrécia, para Santa Maria in Pórtico, pedindo-lhe para se encontrar com ele em privado, mas em todos os casos ela respondera que tinha outros compromissos urgentes, embora se dis­pusesse a ir ter com ele o mais depressa possível. A princípio César sentiu-se desfeiteado, mas não tardou que se zangasse.

A irmã não era apenas sua amante, como a sua mais querida amiga. Agora que havia tantas coisas na sua vida e nos seus planos que estavam a alterar-se, queria compartilhá-las com ela. Contudo, durante meses ela não tinha feito outra coisa que não fosse passar todos os minutos do dia e da noite com o novo marido, o príncipe Afonso, dando festas, recebendo poetas e artistas, fazendo excursões ao campo. O seu palácio tinha-se tornado ponto de encontro de artistas, atraindo visitantes de toda a parte.

César coibiu-se de imaginar o jovem casal a fazer amor, pois tinha ouvido rumores sobre a noite de núpcias e neste caso — ao contrário da sua experi­ência com Giovanni Sforza — ouvira dizer que fora repleta de alegria e entu­siasmo.

Agora que já não era cardeal, César tinha pouco que fazer. Para passar o tempo, ocupava horas a estudar estratégia militar e a tentar determinar a melhor aliança matrimonial que podia estabelecer a fim de ajudar o pai a expandir os territórios papais. E queria falar do assunto com a irmã, obter con­selhos não apenas do pai e dos seus conselheiros, mas também dela, pois quem melhor do que ela o conhecia?

Desembaraçado das vestes cardinalícias, começou a passar dias e noites a beber na cidade com cortesãs, arranjando maneira, em vários encontros incau­tos, de contrair o mal-gálico. E pagou caro as suas indiscrições, pois o seu pró-Prio clínico o utilizou como cobaia para descobrir uma cura, obrigando-o a

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passar semanas a ensopar as pústulas que lhe cobriam o corpo com todo o tipo de ervas e pachos de pomes a ferver. Foi retalhado, esfregado e ensopado até que finalmente as feridas desapareceram, deixando-lhe uma série de pequenas cicatrizes redondas que ficavam escondidas debaixo da roupa. E por esse facto o seu médico ficou com a fama de uma cura.

Uma vez curado, César mandou novamente chamar Lucrécia. Durante dois dias não obteve resposta. A seguir, quando já se enfurecia no seu quarto, deci­dido a deslocar-se ao palácio dela e insistir num encontro, ouviu uma batida na porta da passagem secreta. Soergueu-se, alerta, de um dos lados da cama.

De súbito Lucrécia estava diante dele, radiosa e mais bela que nunca. Cor­reu ao seu encontro e ele pôs-se de pé para a beijar, para abraçá-la com toda a sua paixão reprimida, mas os lábios de ambos uniram-se por um momento apenas antes de ela se libertar. Foi um beijo terno, um abraço afectuoso, mas completamente destituído de luxúria.

  • Foi isto que me vieste trazer? - perguntou-lhe César. - Agora que tens mais alguém a quem enfeitiçar?

Voltou-se antes de ela responder e virou-lhe as costas. Ela rogou-lhe que se virasse e olhasse para ela, mas ele recusou-se e ela deu por si a dirigir-lhe uma súplica.

  • César, meu querido irmão, meu amor, não te zangues comigo, por favor. Tudo muda. E agora, que já não és cardeal, encontrarás um amor tão completo como eu.

César tornou a virar-se para ela, com o peito oprimido, como se tivesse engolido uma pedra. Os seus olhos escuros brilhavam de cólera.

  • É isso que sentes depois de todos os anos que passámos juntos? Numa questão de meses deste o teu coração a outro? E que te deu ele?

Ela procurou aproximar-se novamente dele, desta feita com lágrimas nos olhos.

  • Chez, ele prodigaliza-me amabilidades, conversa e afecto. É um amor que me preenche o coração e a vida, mas, mais do que isso, é um amor que não tenho de esconder. Não é proibido, é abençoado, e isso é uma coisa que tu e eu nunca poderíamos ter.

César escarneceu.

  • Todas as tuas promessas de nunca amares ninguém como me amaste... tudo isso mudou em tão pouco tempo? Só porque tens uma bênção, és capaz de te dar inteiramente a outro? Os teus lábios podem ser beijados como eu os beijava? A tua carne reage com o mesmo fogo?

A voz de Lucrécia tremeu.

  • Nunca haverá para mim ninguém como tu, porque foste o meu primeiro amor. Foi contigo que primeiro compartilhei os segredos do meu corpo, bem como os segredos do meu coração e os pensamentos mais íntimos da minha mente. - Nessa altura caminhou até junto dele e ele permitiu-o. Tomou o rosto dele nas mãos e ele não se afastou quando ela o fitou nos olhos. A voz dela era terna mas forte quando prosseguiu: — Mas, meu querido Chez, tu és meu irmão. E o nosso amor foi sempre manchado pelo pecado, pois, embora o Santo Padre o sancionasse, o Pai Celeste não podia fazê-lo. Não é preciso ser cardeal ou Papa para conhecer a verdade do pecado.

Ela cobriu o rosto quando ele gritou:

  • Pecado? Pecado, o nosso amor? Nunca aceitarei tal coisa. Foi a única coisa verdadeira na minha vida e proíbo-te de o amesquinhares. Vivi e respirei por ti. Consegui viver com o Papá a amar mais João do que me amava a mim; con­segui viver com o Papá a amar-te mais do que a mim, porque sabia que tu me amavas acima de todas as coisas. Mas, agora que o teu amor por outro é maior do que por mim, como é que o concilio dentro de mim mesmo? César começou a andar de um lado para outro. Lucrécia sentou-se na cama e abanou a cabeça.

  • Eu não amo outro mais do que te amo a ti. Amo o Afonso de um modo diferente. Ele é meu marido. Chez, a tua vida ainda agora começou. O Papá vai-te empossar como capitão-general do exército do Papa e terás grandes bata­lhas para combater, como sempre sonhaste. Hás-de casar e ter filhos que podes reivindicar como teus. Hás-de ser senhor da tua própria casa. César, meu rmão, tens a vida inteira à tua frente, porque és finalmente livre. Não deixes que eu seja a causa da tua infelicidade, pois és mais especial para mim do queoPróprio Santo Padre.

Nessa altura ele curvou-se para a beijar, um beijo suave, o beijo de um lrmão à irmã... e houve uma parte dele que ficou rígida e fria. Que faria sem

ela? De facto, até essa noite, sempre que pensava no amor, pensava nela; sem­pre que pensava em Deus, pensava nela. Agora receava que, sempre que pen­sasse na guerra, pensasse nela.

18

César passou as semanas subsequentes solenemente vestido de preto, a cal­correar os corredores do Vaticano, taciturno e irado, esperando impaciente­mente o começo da sua nova vida. Todos os dias registava ansiosamente o tempo enquanto aguardava um convite de Luís XII, rei de França. Sentia-se inquieto e queria fugir à paisagem familiar de Roma, deixar para trás todas as lembranças da irmã e da sua vida como cardeal.

Durante essas semanas os seus terrores nocturnos voltaram e sentia relu­tância em adormecer, com medo de acordar coberto de suores frios, com um meio grito nos lábios. Por mais que tentasse expulsar a irmã do coração e do pensamento, estava possuído por ela. E, cada vez que fechava os olhos para ten­tar repousar, imaginava-se a fazer amor com ela.

Quando o Papa, com grande prazer, o informou de que Lucrécia estava novamente grávida, passou o dia inteiro a cavalgar pelos campos, quase louco de ciúme e cólera.

Nessa noite, ao virar-se agitadamente de um lado para o outro durante o sono, surgiu-lhe no sonho uma intensa chama amarela. De súbito apareceu—lhe o doce rosto da irmã e ele viu aquilo como um sinal, um símbolo do amor entre eles. Tinha-o aquecido, queimara-o depois, mas continuava a arder inten­samente. Estabeleceu o compromisso, durante essa noite escura, de usar aquela lama como sua insígnia pessoal e colocá-la ao lado do touro dos Bórgia. esse dia em diante, na paz ou na guerra, a chama do seu amor inflamaria a sua ambição.

O cardeal Julião delia Rovere tinha sido durante muitos anos o inimigo acérrimo do Papa Alexandre. Na sequência, porém, do seu exílio em França -depois da malograda e humilhante tentativa de destronar o Papa e alinhar com o desditoso Carlos VIII -, delia Rovere chegara à conclusão de que a sua ati­tude litigiosa apenas lhe trouxera infelicidade. Um homem como ele estava muito mais à vontade nos atravancados e apinhados corredores do Vaticano, onde podia elaborar planos subtis para o seu próprio futuro e avaliar a sua posi­ção ao falar directamente com os seus amigos e inimigos. Ali, pela expressão de um rosto ou pela inflexão de uma voz, podia ficar a saber mais do que atra­vés de todos os acordos escritos.

Mal verificou que a sua posição contrária ao Papa já não lhe era vantajosa, delia Rovere apressou-se a tentar uma reconciliação. A oportunidade surgira com a morte de João, o filho do Papa, altura em que escreveu uma carta de condolências a Alexandre. O desgosto do Papa e a sua determinação de refor­mar-se a si próprio e à igreja levaram-no a aceitar a mensagem do cardeal com benevolência. Quando o Papa respondeu, foi com estima e um convite para delia Rovere servir como legado papal em França. Isto porque, mesmo no meio da desolação, o Papa tinha consciência da importância de delia Rovere na corte e antevia poder um dia ter que recorrer à sua ajuda.

Quando, por fim, César recebeu o convite para visitar o rei Luís em Chi-non, tinha duas importantes missões a desempenhar: primeiro, tinha de levar a pretendida dispensa papal ao rei; a seguir, tinha de convencer a princesa Rosetta a casar com ele.

Alexandre chamou-o aos seus aposentos antes de ele estar de partida para França. Depois de abraçar o filho, deu a César o pergaminho com o selo de lacre vermelho do Papa.

  • Isto é a dispensa para o rei, que anula o seu casamento e lhe permite casar com a rainha Ana da Bretanha. É muito importante, porque não se

trata simplesmente do caso de um homem que pretende uma mulher mais bonita, mas antes uma delicada questão política. Porque, se o rei não puder casar com Ana, ela retirará a Bretanha ao controlo dos franceses, o que cons­tituirá um rude golpe no plano de Luís no sentido de «la grandeur de la France».

  • Ele não pode simplesmente divorciar-se ou provar causas de anulação? -perguntou César.

Alexandre sorriu.

  • Pode parecer uma questão simples, mas não é. Porque, embora Joana de França seja baixa e mal feita, tem verdadeiramente estatura e é inteligente. Apresentou testemunhas que juram ter ouvido Luís declarar publicamente que a montou mais de três vezes na noite do casamento. Além disso, ele alega ter na altura menos de treze anos, portanto uma idade inferior à legal, mas não aparece ninguém que ateste a data do seu nascimento.

  • E como vais resolver esse problema? - inquiriu maliciosamente César.

  • Ah - respondeu Alexandre, suspirando. - Ser Papa, e infalível, é uma ver­dadeira bênção. Limitar-me-ei a colocar a idade dele onde acho que deve estar e declararei falsa qualquer prova em contrário.

  • Há mais alguma coisa que eu possa levar a França para garantir um bom acolhimento? - perguntou César.

A voz de Alexandre adquiriu seriedade.

  • O barrete cardinalício para o nosso amigo Georges dAmboise.

  • DAmboise quer ser cardeal, mas é um esplêndido embaixador - retor­quiu César.

  • Pretende-o desesperadamente - disse o Papa — mas só a amante dele está certa das suas razões.

O Papa abraçou ternamente César.

  • Ficarei absolutamente perdido sem ti, meu filho. Mas velei por que sejas bem tratado, porque o nosso legado papal em França, o cardeal delia Rovere, «tara lá à tua espera e para te proteger de qualquer perigo oculto. Dei-lhe ins­truções claras para te guardar com todo o cuidado e de te tratar como um filho.

Foi assim que em Outubro, quando César chegou por mar a Marselha acompanhado por um enorme séquito, o cardeal delia Rovere e a sua embai­xada estavam lá para o receber. César ia vestido de veludo preto e brocado de ouro, sendo todas as peças de vestuário profusamente ornamentadas com deli­cadas jóias e diamantes. O chapéu era bordado a ouro e ostentava penas bran­cas. Até os seus cavalos tinham ferraduras de prata, pois o tesouro papal tinha sido pilhado a fim de o equipar.

O cardeal delia Rovere abraçou-o e disse:

  • Meu filho, estou aqui para me dedicar ao vosso conforto e honra. Se hou­ver alguma coisa que desejeis, podeis ter a certeza de que eu providenciarei.

Delia Rovere tinha conseguido convencer o conselho de Avinhão a contrair um empréstimo para proporcionar uma recepção condigna ao dignitário recém-chegado.

No dia seguinte, num histórico castelo de França, a indumentária de César era ainda mais afrontosa. Vestia um gibão branco por cima do veludo negro, incrustado de pérolas e rubis. O seu cavalo era um garanhão cinzento com manchas pretas, com a sela, os arreios e os estribos pregueados de ouro. Era precedido por vinte corneteiros, todos eles de escarlate, montados em cavalos brancos, e atrás de César vinha uma formação de cavalaria suíça com unifor­mes papais carmesim e dourados, à qual por sua vez se seguiam trinta gentis—homens criados de César, todos eles magnificamente ataviados. Por fim vinham músicos, malabaristas, acrobatas, ursos, macacos e setenta mulas car­regando a opulência do seu guarda-roupa e presentes para o rei e membros da corte. Que grandioso e garrido desfile!

Antes de partir de Roma, Brandão tinha-o precavido contra semelhantes excessos, dizendo-lhe que os franceses não se deixariam impressionar por tal exibição. César, porém, achava que ele é que sabia.

Delia Rovere e o seu enviado levaram César pela cidade, cheia de pen” does e arcos triunfais ricamente decorados para a sua chegada. Seguindo as instruções do cardeal, toda a gente tratou o filho do Papa como um prín­cipe real. Foi cumulado de presentes de salvas e baixelas de prata e seguida

mente conduzido à Maison de la Ville para ser objecto de uma grande cele­bração.

Delia Rovere tinha convidado muitas das mais belas raparigas e senhoras elegantes da cidade para estarem presentes, pois era bem sabido que César apre­ciava a sua companhia. Seguiram-se vários dias preenchidos com sumptuosos banquetes e requintadas peças de teatro, e as noites foram passando a beberem bons vinhos no meio das diversões e exibições de dança perante César e o seu séquito.

Durante dois meses foi a mesma coisa, em todas as cidades e vilas. Não havia feira a que César não fosse, nem corrida de cavalos em que não apostasse, nem jogo de cartas do qual estivesse ausente.

Nesse Outono fazia frio em França, com ventos cortantes e um granizo fus-tigante; apesar disso apareciam multidões em todos os municípios e a chegada de César suscitava grande atenção. A humildade nunca fora um das suas vir­tudes, e agora, em lugar de ver na atenção que lhe dispensavam a curiosidade do povo pelo filho de um Papa, tomava-a por um sinal de adoração por ele, e este novo poder subiu-lhe à cabeça. Tornou-se arrogante e excessivamente con­fiante, malquistando os franceses que podiam verdadeiramente ajudá-lo. finalmente César chegou à corte de França, em Chinon, e por essa altura o rei estava furioso. Aguardava ansiosamente novas da sua anulação e não lhe tinham feito chegar informação alguma quanto ao facto de o Papa ter acedido ou não ao seu pedido.

No dia em que chegou, César vinha acompanhado por uma grandiosa cavalgada e uma longa fila de mulas ajoujadas com uma quantidade de ador­nos luxuosos. Cada um dos animais vinha coberto com opulentos panos ama­relos e vermelhos, ostentando o touro dos Bórgia e a nova insígnia de César, a chama amarela. A sua embaixada ia profusamente cravejada de jóias e em diversas mulas vinham arcas imensas, que alimentavam a imaginação dos cidadãus. Uns diziam que continham pedras preciosas para a futura mulher de esar! diziam outros que se tratava de santuários e relíquias para grandes bên-

çãos. No entanto, nenhum dos aristocratas se impressionou. Em Itália esta gar­rida exibição teria transmitido a ideia de grande riqueza e posição, mas em França inspirava desdém.

O próprio rei tinha propensão para a parcimónia e a corte seguia-lhe o exemplo. Não tardou que César deparasse com risos nas ruas. Cheio de uma nova sensação de importância, e sem a sabedoria do pai ou o bom senso da irmã para o equilibrar, mantinha-se alheio àquelas reacções.

Mal pôs a vista em César, o rei Luís segredou a um conselheiro: «Isto é de mais.» Não obstante, acolheu o filho do Papa com grande entusiasmo e teve de reter-se para não o interrogar de imediato sobre a tão esperada dispensa de Alexandre.

Ao passar, acompanhado por Georges dAmboise, pela formal fila de recep­ção a fim de ser apresentado a membros importantes da corte, César não pare­cia preocupar-se com as suas expressões de divertimento. Podiam rir se quises­sem, mas o seu rei tinha de tratá-lo bem, pois ele tinha consigo uma decisão que era crítica para o monarca.

Os jovens aristocratas suficientemente estouvados para troçar de César rece­beram do rei uma admoestação tão severa, que ficaram surpreendidos. Era evi­dente, pensaram, que este Bórgia era alguém de quem o rei gostava.

Uma vez feitas as apresentações, César, Luís e o embaixador, Georges dAm-boise, retiraram-se para uma sala deliciosa e íntima dos aposentos do rei. Tinha as paredes cobertas de painéis de seda amarela e carvalho. Umas altas portas envidraçadas davam para um belo jardim, com um delicado repuxo profusa­mente povoado de pássaros de cores vivas, cujo doce canto invadia a sala.

O rei Luís começou por tranquilizar César.

  • Compreendeis decerto, meu caro amigo, que os soldados franceses que se deslocam para França não desafiam de modo algum os direitos papais nem ameaçam os territórios papais. Além disso, se houver alguma dificuldade em desalojar os chefes militares locais ou lugar-tenentes na Romanha, posso asse­gurar-vos que será aprontado um número considerável de militares franceses para vos ajudar.

  • Obrigado, Alteza - disse César. Agradado com a generosidade do rei, César deu imediatamente a Luís a dispensa formal do Papa.

O rei não conseguiu ocultar o seu deleite e, quando César passou o perga-rninho lacrado a Georges dAmboise e este o leu, o seu rosto irradiou um pra­zer atónito ao ver-se nomeado cardeal e ser aceite como príncipe da Santa Madre Igreja.

O próprio Luís estava agora num estado de espírito expansivo. Em vista da generosidade do Papa, oficializaria as coisas: César seria Duque de Valentinois. O título trazia consigo alguns dos melhores castelos e mais lucrativas proprie­dades de França. César ficou imensamente aliviado, pois gastara demasiado na sua embaixada e sabia que precisaria de contratar tropas para a sua campanha na Romanha. O presente do rei garantia que ele nunca mais teria de se preo­cupar com dinheiro.

Os três homens brindaram uns aos outros. A seguir César perguntou:

  • Como vai a aliança matrimonial?

De súbito, Luís pareceu pouco à vontade.

  • Há alguns problemas com a princesa Rosetta. De facto, embora ela esteja em França, como dama de companhia da minha amada rainha Ana, não é súb­dita minha, mas sim filha do rei de Nápoles (de linhagem espanhola), e por conseguinte súbdita da casa de Aragão. E é uma rapariga muito senhora do seu nariz. Não posso pura e simplesmente ordenar-lhe que case convosco.

César franziu o cenho, mas depois inquiriu:

  • Posso falar com a dama, Majestade?

  • Claro - respondeu o rei. - DAmboise tratará disso.

Nessa mesma tarde, César e a princesa Rosetta sentaram-se um ao pé do

outro no banco de pedra do jardim, cercados pelo odor fragrante das laranjei­ras.

Rosetta era uma rapariga alta e não era propriamente a mais bonita que <-esar vira="" mas="" era="" r="" gia="" no="" porte="" o="" seu="" cabelo="" escuro="" apanhado="" na="" nuca="" ava-lhe="" um="" ar="" severo="" tinha="" por="" m="" uma="" abordagem="" agrad="" vel="" e="" directa="" n="" sup="">mostrou qualquer relutância em discutir a proposta união.

Rosetta sorriu com brandura, mas falou com firmeza.

  • Não quero de modo algum ofender o duque, porque, até este momento, nunca o vi. Mas a infeliz verdade é que estou desesperadamente apaixonada por um nobre bretão e por conseguinte não me resta amor para dar a outro.

César tentou persuadi-la do contrário.

  • Muitas vezes um amor desesperado não é a ligação mais fiável para uma vida a dois — disse.

Mas Rosetta fitou-o resolutamente.

  • Tenho de falar com franqueza, pois creio que sois digno da minha confi­ança. Sois o filho do Papa, e a opinião papal, tal como os exércitos papais, são muito importantes para o meu pai. Julgo que são de tão suprema importância que, se insistísseis, o meu pai me obrigaria a casar convosco. Mas rogo-vos que o não façais. Nunca seria capaz de vos amar, porque o meu coração já tem dono.

E os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas.

César admirou a rapariga, uma vez que se batia pela sua verdade. Estendeu—lhe o lenço.

  • Nem por um momento desejaria forçar-vos ao casamento. Se o meu encanto não pode conquistar-vos, não vos terei por noiva. — Nessa altura sor­riu. — Mas tendes verdadeiro valor como amiga... e, se eu alguma vez for vítima dos tribunais, pedirei que vos apresenteis como advogada para me defenderdes.

Rosetta riu-se, divertida e aliviada. E a princesa e César passaram a tarde juntos, gozando a companhia um do outro.

Nessa noite César apresentou-se ao rei, explicando o que sucedera. Luís não pareceu surpreendido com a resposta de Rosetta, mas ficou satisfeito com a reacção de César.

  • Agradeço a vossa bondade e a compreensão — disse o rei.

  • Temos outra princesa que não se tenha apaixonado? — perguntou César, jocosamente.

Ainda embaraçado pela sua incapacidade de cumprir a promessa feita ao Papa, o rei disse:

  • Pensei oferecer o título adicional de duque de Dinois e acrescentar duas propriedades de grande monta às que vos concedi já.

César fez uma vénia de reconhecimento; depois, com um brilho nos olhos, perguntou:

  • Fico muito grato, evidentemente...  mas isso conquistar-me-á uma esposa?

Luís ficou patentemente atrapalhado.

  • Com a recusa da princesa Rosetta, e com vossa licença, iniciaremos ime­diatamente uma busca mais ampla. Esquadrinharemos as casas reais francesas à procura da princesa certa.

César levantou-se para sair.

  • Prolongarei a minha estadia — disse — e visitarei o vosso campo até que a encontrem.

Em Roma, o Papa não era capaz de pensar noutra coisa que não fosse o casamento do filho. Chamou o cardeal Ascânio Sforza à sua presença e pediu—lhe que regressasse a Nápoles para interceder novamente junto do rei.

Semanas mais tarde, porém, o cardeal regressou sem êxito, pois Rosetta per­sistia na sua recusa e ele não encontrara partido pelos ajustes entre as outras jovens. Acrescia que, durante a sua estadia em Nápoles, o cardeal Sforza depa­rara com mais coisas perturbantes. Havia notícias no sul de que Luís XII tinha em mente outra invasão francesa para reclamar os seus direitos ancestrais sobre Milão e Nápoles.

  • Isso é verdade? - perguntou Ascânio Sforza a Alexandre. - E que tencio­nais fazer a esse respeito?

O Papa ficou irado por ser interpelado desta maneira por Ascânio. Mas nem foi capaz de mentir nem de dizer a verdade. Em lugar disso, declarou:

  • Tomaria uma atitude se o meu filho, César, não estivesse refém na pró-Pria corte de França.

  • Um refém muito bem vestido, bem tratado e condescendente - observouocardeal —, que leva consigo os cofres da Santa Madre Igreja cheios de rique-

zas para seu próprio prazer. Ou para seduzir uma mulher a fim de estabelecer uma aliança que ameaçará a própria Roma.

O Papa Alexandre sentiu-se então ultrajado, pelo que vociferou:

  • Meu caro cardeal, foi o vosso irmão II Moro, se estais bem lembrado, que abriu as portas à primeira invasão francesa. E é Roma que é traída, porque nenhum dos membros da casa de Aragão proporá uma aliança matrimonial. Deixam-me pouco por onde escolher.

  • E portanto verdade que alinhastes com a França contra Aragão? - per­guntou Ascânio, com uma certa satisfação.

Alexandre esforçou-se por recuperar a calma. Depois levantou-se e apontou para a porta dos seus aposentos, dizendo:

  • Saí imediatamente, pois aquilo que dissestes roça a heresia. E sugiro que rezeis pelo perdão por tamanha calúnia, caso contrário ministrar-vos-ei a extre-ma-unção e mandarei que esta mesma noite vos lancem às escuras águas do Tibre.

O cardeal Ascânio Sforza fugiu, mas o som da feroz invectiva do Papa e da sua voz trovejante fizeram-no descer os degraus com tanta velocidade que o coração lhe batia com violência. Tropeçou uma vez, mas recuperou o equilíbrio, decidido a seguir de Roma para Nápoles assim que lhe fosse possível.

Durante os meses subsequentes, o Papa pôs de lado todos os assuntos papais. Não conseguia concentrar-se em nada que não fosse uma nova aliança. Recusou-se a receber embaixadores que o visitavam vindos de Veneza, Flo­rença, Milão e Nápoles: não estava disponível para quem não viesse oferecer uma esposa ao seu filho César.

Em França, vários meses decorridos, o rei Luís chamou César aos seus apo­sentos e anunciou alegremente:

  • Trago uma óptima notícia. Se vós e o Santo Padre concordardes, encon­trei um esplêndido partido para vós: Charlotte dAlbret, uma mulher bonita e inteligente, irmã do rei de Navarra.

 

Satisfeito e aliviado, César mandou imediatamente uma mensagem ao pai pedindo-lhe autorização para casar e prolongar a sua estadia em França.

Depois de celebrar missa solene em S. Pedro, Alexandre estava profunda­mente perturbado. Tinha recebido uma mensagem do filho e, ao ajoelhar no altar da basílica sob o olhar vigilante da Santa Virgem, procurou raciocinar.

Durante os últimos trinta e cinco anos como vice-chanceler dos Papas, durante os seus seis anos como Papa e em todos os anos da sua vida, Alexan­dre nunca fora confrontado com semelhante dilema. A aliança com Espanha fora sempre a sua força, como homem de Deus e como homem do mundo. Tinha conseguido equilibrar os poderes estrangeiros de Espanha e França e manter o apoio ao papado em ambos os países.

Após a morte de João, contudo, a viúva deste, Maria Enríquez, convencera a rainha Isabel, e por conseguinte o rei Fernando, de que César Bórgia era o verdadeiro assassino do irmão. Consequentemente, não havia uma única famí­lia da casa de Aragão — nem em Espanha, nem em Nápoles ou Milão — que autorizasse a filha a casar com o filho do Papa.

Alexandre tinha esquadrinhado todas as cidades, falara com inúmeros embaixadores e oferecera grandes benefícios, mas nem assim conseguira encon­trar uma esposa adequada e uma aliança forte para César. No entanto, tinha de o fazer, caso contrário os próprios Bórgia cairiam.

Precisava de apoio para o papado e carecia do auxílio dos exércitos de Nápoles e Espanha a fim de unificar as terras e sufocar as insurreições dos che-res militares ávidos. Até o casamento de sua filha Lucrécia com Afonso de Nápoles, sob o domínio da casa de Aragão, assentava secretamente nesta inten­ção de assegurar a aliança de César com a irmã de Afonso, a princesa Rosetta.

Contudo, agora ela recusara e ofereciam ao filho, que ele enviara para casar com uma princesa espanhola, uma princesa francesa para esposa. Estaria a per­der o controlo do papado?

Cruzou as mãos, curvou a cabeça diante da grande estátua de mármore da Madonna e implorou o seu conselho.

 

Como deveis já saber, Mãe Santa, o meu filho, César, pergunta se pode aceitar como esposa uma filha de França. E Sua Majestade Católica, Luís XII, propõe-se ajudá-lo a reclamar as terras devidas à nossa igreja. Vai enviar solda­dos franceses para o acompanharem em combate.

Alexandre debateu-se com os seus pensamentos e ponderou as suas opções. Se consentisse no casamento de César com Charlotte, deveria cortar não apenas com Espanha e Nápoles, mas também com a sua bem-amada filha? Porque o marido dela, Afonso, era príncipe de Nápoles, e uma aliança francesa destruiria indubitavelmente o casamento de Lucrécia. No entanto, o que aconteceria à sua família se ele rejeitasse a França? De facto, aquele rei havia certamente de inva­dir, com autorização sua ou não, e instalar o cardeal delia Rovere como Papa.

Se os franceses chegassem até Milão, disso tinha Alexandre a certeza, Ludo-vico fugiria sem dar luta. Contudo, o mais importante era isto: uma vez que Nápoles pegasse em armas, o que aconteceria ao seu filho Godofredo e à res­pectiva mulher, Saneia?

O Papa procurou desesperadamente uma única razão para escolher Espa­nha em detrimento da França, para negar a César a esposa francesa. Porém, depois de ajoelhar, rezar e andar de um lado para outro durante horas, Ale­xandre não conseguiu encontrar nenhuma. Por outro lado, se os adestrados sol­dados franceses se juntassem a César para tomar os territórios presentemente governados por barões locais e chefes militares, ele poderia ser coroado duque da Romanha. A família Bórgia estaria então segura e o papado garantido.

Passou toda a noite a pé, observando as velas tremeluzentes e implorando a inspiração divina. Quando abandonou a capela, às primeiras horas do dia, tinha chegado a uma decisão, embora com relutância.

Duarte Brandão aguardava nos aposentos do Papa quando este regressou, pois compreendia a luta de Alexandre.

  • Duarte, meu amigo - disse o Papa. - Considerei isto tão minuciosamente quanto me é possível. E cheguei a uma conclusão. Preciso de um pedaço de pergaminho, para poder escrever a minha resposta, a fim de conseguir poisar a cabeça na almofada e repousar finalmente.

Duarte viu o Papa sentar-se à secretária e pela primeira vez pareceu-lhe velho e cansado. Estendeu a pena ao Papa.

A mão de Alexandre estava firme, mas a sua mensagem para César foè breve.

Dizia apenas: «Meu querido filho. Excelente partido. Avança.»

No dia do casamento de César Bórgia com Charlotte dAlbret, em França, a cidade santa de Roma levou a efeito grandes festejos. O Papa ordenou uma enorme exibição de fogos-de-artifício, um gigantesco espectáculo de jorros de luz para clarear o céu e que se acendessem fogueiras para iluminar as ruas. Ah, que júbilo!

Em casa, em Santa Maria in Pórtico com Afonso, Lucrécia viu horrori­zada uma das maiores fogueiras ser acesa defronte do seu palácio. Não que não se sentisse feliz pelo irmão, pois tinha-lhe um grande amor, mas o que seria do seu querido esposo, para o qual esta nova aliança só podia significar desgraça?

Quando lhes chegou notícia de que o cardeal Ascânio Sforza fugira da cidade, acompanhado por vários outros cardeais alinhados com Nápoles, Afonso foi invadido pelo medo e pela confusão relativamente ao seu futuro.

Atraiu Lucrécia aos seus braços para a apertar contra si, ao mesmo tempo que observava os fogos-de-artifício a bramir.

  • Se houver uma invasão francesa, a minha família corre perigo — disse ele, em voz baixa. - Tenho de ir para Nápoles a fim de comandar as tropas. O meu pai e o meu tio vão precisar de mim.

Lucrécia abraçou-se muito a ele.

  • Mas o Santo Padre garante-me que não correremos perigo, porque ele nunca deixará a discórdia política interferir no nosso amor.

Embora tivesse apenas dezoito anos, Afonso fitou Lucrécia com uma pro­funda tristeza. Afastou-lhe os cabelos dos olhos.

  • E tu acreditas nisso, minha doce Lucrécia?

Nessa noite, depois de fazerem amor, mantiveram-se muito tempo acorda­dos antes que Lucrécia fosse capaz de conciliar o sono. E, mal ouviu o suave som da sua respiração tranquila, Afonso saiu sub-repticiamente da cama e diri-giu-se aos estábulos. Ali chegado, montou no seu cavalo e dirigiu-se para sul,

metendo pelos campos, rumo ao castelo dos Colonna; dali, de manhã, parti­ria para Nápoles.

O Papa, porém, mandou a polícia do Papa persegui-lo e obrigaram-no a permanecer no castelo ou regressar a Roma, pois caso contrário seria levado de volta pelas tropas papais. Afonso escrevia todos os dias a Lucrécia, implorando—lhe que se lhe juntasse, mas as suas cartas nunca chegaram ao destino, pois caíam nas mãos dos mensageiros do Vaticano e eram entregues ao Papa.

Lucrécia estava mais infeliz que nunca. Não conseguia perceber por que motivo Afonso não escrevia, pois tinha imensas saudades dele. Se não estivesse grávida de seis meses, teria ido no seu encalço até Nápoles. Agora, contudo, não se atrevia a empreender uma viagem tão cansativa, uma vez que já tinha perdido um bebé no princípio do ano, quando caíra do cavalo. E mesmo ten­tar semelhante jornada significaria ter de esgueirar-se de noite por entre os guardas do pai, uma vez que estes cercavam o palácio.

César permaneceu em França, não apenas o tempo suficiente para casar com Charlotte, mas para passar uns meses com ela num pequeno castelo do belo vale do Loire.

Charlotte era tão bonita e inteligente como o rei garantira e César conhe­ceu por fim uma certa tranquilidade. Ela irradiava uma serenidade notável e o amor que faziam acalmava César. Todos os dias, contudo, lutava consigo pró­prio, pois no íntimo continuava a ter saudades de Lucrécia.

Durante uns tempos, a presença de Charlotte na sua vida equilibrou a vio­lenta ânsia que César tinha de obter êxito, atingir objectivos, conquistar. O jovem casal passava dias em companhia, dando longos passeios, andando de barco no plácido rio e lendo. E riam a bom rir à medida que César tentava ensinar Charlotte a nadar e a pescar.

Neste período, uma noite Charlotte confessou:

  • Amo-te deveras como nunca amei nenhum homem.

A despeito do seu cinismo habitual, César descobriu que acreditava nela, sendo que, apesar disso, as palavras dela não tinham tanto significado como

deviam. Era intrigante: embora procurasse apaixonar-se de novo, havia qual­quer coisa que parecia constituir um empecilho. Ao passarem noites juntos a fazer amor à lareira e a abraçarem-se confortavelmente, César começou a per­guntar a si próprio se teria sido amaldiçoado, como a irmã dera a entender. Seria que o pai o tinha sacrificado de verdade à serpente daquela primeira vez no Jardim?

Na própria noite em que Charlotte lhe disse que estava grávida dele, rece­beu uma mensagem urgente do Papa.

«Volta imediatamente para Roma a fim de cumprires as tuas obrigações», rezava ela. «Os lugar-tenentes andam a conspirar e os Sforza convidaram os espanhóis a entrar na Itália.»

César disse a Charlotte que tinha de regressar a Roma a fim de comandar as tropas papais, para reivindicar os territórios da Romanha e estabelecer um governo central forte para o papado. Enquanto ele não garantisse tão comple-tamente o poder dos Bórgia que ele durasse para além da sua vida e da vida do Papa, ela e os filhos correriam perigo. Entretanto, disse-lhe que ela e o filho que trazia dentro de si deviam permanecer em França.

No dia em que César partiu, Charlotte tentou ser condescendente, mas no fim agarrou-se vigorosa e chorosamente a ele quando ele montou a cavalo. Ele apeou-se, tomou-a nos braços e sentiu-lhe o corpo a tremer.

  • Minha querida Charlotte — disse -, mandar-te-ei chamar a ti e à criança assim que puder. E não tenhas medo, pois ainda está para nascer o italiano que me possa matar.

Baixou-se e beijou-a ternamente.

A seguir César montou o seu esguio cavalo branco e, com um último aceno a Charlotte, cruzou o portão do castelo.

Alexandre não podia suportar as lágrimas de Lucrécia. Embora ela afivelasse uma máscara de coragem em público, sempre que estavam a sós falava pouco e, mesmo nessas escassas ocasiões, fazia-o nos termos mais corteses. Nem o con­vite por ele endereçado a Júlia e Adriana, que trouxe o primogénito de Lucré­cia para ficar com ela, pareceu aliviar o seu desespero. Agora, a maioria das noi­tes permaneciam todos em silêncio. Ele tinha saudades das animadas conversas que mantinham e do entusiasmo de Lucrécia: pesava-lhe a sua ausência.

Lucrécia voltou a sentir-se impotente para alterar o seu destino e, embora não censurasse o pai pela sua aliança com França, compreendia a necessidade do marido de ajudar a família. Mesmo assim, lamentava a verdade: que, devido às divergências políticas, ela e o bebé que estava prestes a nascer fossem obri- gados a viver sem Afonso. Parecia uma situação impossível. Tentou trazer o seu coração à razão, mas este recusava toda e qualquer racionalidade. E todos os dias perguntava cem vezes a si própria por que razão o seu querido marido não lhe enviava uma mensagem.

Depois de testemunhar durante várias semanas o desespero da filha, Ale­xandre não se conteve. Idealizou, por conseguinte, um plano que acreditava poder ajudar. Lucrécia era uma mulher inteligente, condescendente e abençoa­da com muitas das suas próprias qualidades de liderança. Tinha sem dúvida herdado o seu encanto, ainda que ultimamente este não fosse visível.

Não obstante, no seu plano mais vasto, ele sempre tencionara doar-lhe alguns territórios da Romanha - quando César os conquistasse - e, assim, pen-

sou que uma certa prática de governo proporcionaria uma vantagem no futuro e a faria abstrair da angústia imediata. Aquele seu tolo marido estava ainda enfiado no castelo dos Colonna, recusando-se teimosamente a regressar a Roma. Estava fora de dúvida que tinha saudades da mulher, mas, não tendo tido notícias dela durante meses, acreditava que ela o abandonara. O Papa foi obrigado a mandar Cevillion, o capitão espanhol que segurara a espada sobre eles na cerimónia nupcial, assegurar a ajuda do rei de Nápoles para recuperar Afonso.

Toda esta emoção suscitava a impaciência de Alexandre. Embora fosse tudo menos estóico na sua vida amorosa, o seu sofrimento parecia muito mais digno do que o sofrimento daqueles dois jovens. De facto, só Deus sabia quantos mais amantes um e outro teriam na vida! Se uma pessoa sofresse no mesmo grau com cada um deles, não restaria tempo para fazer o seu trabalho, nem o de Deus.

Assim, depois de muito deliberar e debater com Duarte, Alexandre decidiu que mandaria Lucrécia governar uma terra chamada Nepi, um belo território que tinha recuperado ao cardeal Ascânio Sforza quando ele fugira para Nápoles.

Como Lucrécia estava nos últimos tempos da gravidez, Alexandre sabia que teriam que tomar especiais cuidados e dar mais tempo para a jornada. Dispo-nibilizaria uma numerosa embaixada para a acompanhar e uma liteira coberta de ouro para o caso de se lhe tornar demasiado incómodo montar o seu cavalo. Enviaria Michelotto para a guardar nas primeiras semanas e para se certificar de que o território era seguro. Claro está que ela teria também de ter um con­selheiro quando chegasse a Nepi, a fim de ensiná-la a governar.

O Papa Alexandre sabia que havia na igreja quem levantasse objecções, porque, no fim de contas, ela era mulher. Mas Lucrécia tinha nascido e fora criada para a arte de governar e não havia razão para desperdiçar os seus dons pelo simples facto de não ter nascido homem. Corria-lhe nas veias o sangue dos Bórgia, e por conseguinte os seus dotes tinham de ser utilizados.

Não sentia tal ternura pelo filho mais novo, Godofredo, e estava, aliás, bas­tante zangado com a respectiva esposa, Saneia. Claro que se apercebia de que uma parte dessa má vontade se devia à extrema antipatia pelo tio dela, o rei de Nápoles, cuja filha Rosetta se recusara a casar com o filho do Papa. Tratava-se

de uma arrogância inacreditável. Que humilhação! Além disso, Alexandre não se deixava enganar. Estava ciente de que um rei podia obrigar a filha a casar com César, e contudo ele não o fizera. Era, portanto, o rei, concluía, que tinha rejeitado o seu filho.

Saneia, a princesa de Nápoles com quem o filho mais novo casara, conti­nuava a ser uma rapariga obstinada e voluntariosa; além disso, coisa mais sig­nificativa, ainda não tinha dado um herdeiro a Godofredo. Era também uma sedutora. Teriam ambos feito bem melhor se tivesse sido Godofredo a ser car­deal e César a desposar Saneia, pois este poderia certamente tê-la domado.

Alexandre chamou Godofredo, então com dezassete anos, aos seus aposen­tos. O filho entrou com um sorriso rasgado no rosto satisfeito e, conquanto não se queixasse, coxeava imenso.

  • Que aconteceu? - perguntou-lhe Alexandre, sem o seu habitual cuidado ou sequer um abraço negligente.

  • Não é nada, pai - respondeu Godofredo, de cabeça baixa. - Feri-me na coxa a praticar esgrima.

Alexandre tentou abster-se de parecer impaciente, mas a incompetência provocava-lhe irritação.

Godofredo tinha cabelos loiros e um semblante franco. Os seus olhos não tinham a cintilante inteligência da irmã, o obscuro brilho de astúcia dos de João ou a impetuosa ambição patente nos olhos de César. Aliás, quando o Papa fitava os olhos do filho não via nada, coisa que achava desconcertante.

  • Quero que acompanhes a tua irmã a Nepi - disse Alexandre. - Ela vai precisar da companhia de alguém de quem goste e de uma certa protecção. E uma mulher só, prestes a dar à luz, e tem de ter um homem presente no qual possa confiar.

Godofredo sorriu e acenou afirmativamente.

  • Terei muito prazer nisso, Santidade - disse. - E a minha mulher também terá muito prazer, pois gosta muito da Lucrécia e far-lhe-á bem uma mudança de ambiente.

Alexandre observou-o para ver se a expressão do rosto do filho se modifi­caria quando desferisse o golpe seguinte, embora estivesse disposto a apostar que não.

  • Não falei de a tua mulher, como lhe chamas, te acompanhatéEla não irá, pois tenho outros planos no que a ela diz respeito.                    o i

  • Dir-lho-ei — tornou obedientemente Godofredo —, mas tenho a certeza de que não ficará contente.

Alexandre sorriu, porque não esperava nada do filho e este não o tinha desa­pontado.

Não podia, contudo, dizer-se o mesmo de Saneia. Nessa tarde, mal soube das novidades, ela enfureceu-se com Godofredo.

  • Será que nunca serás mais meu marido e menos filho do teu pai? - gri­tou.

Godofredo perscrutou-a, intrigado com as suas palavras.

  • Ele não é só meu pai — defendeu-se. — E também o Santo Padre. Há mais coisas em jogo se eu me recusar a obedecer-lhe.

  • Há mais coisas em jogo se ele me obrigar a ficar e a ti a ires, Godofredo — advertiu-o Saneia, após o que desatou a chorar de frustração. — Detestei casar contigo quando me obrigaram, mas acabei por gostar mesmo de ti... e mesmo assim deixas o teu pai afastar-te de mim?

Godofredo sorriu, mas pela primeira vez era um sorriso astuto.

  • Houve alturas em que vontade não te faltava de ficares afastada... As altu­ras que passaste com o meu irmão João.

Saneia manteve-se absolutamente imóvel e parou de chorar.

  • Tu eras uma criança e eu estava sozinha. O João consolou-me, mais nada. Godofredo conservou a calma.

  • Acho que o amaste, pois choraste mais que qualquer outra pessoa no funeral dele.

  • Não sejas parvo, Godofredo - tornou ela. — Chorei porque temia pela minha própria pessoa. Nunca acreditei que o teu irmão tivesse morrido às mãos de um estranho.

Godofredo pareceu ficar alerta. Os seus olhos adquiriram uma expressão de fria inteligência e pareceu mais alto, de ombros mais largos e porte mais vigo­roso.

  • E queres tu dizer na tua que sabes quem matou o meu querido irmão? -perguntou.

Naquele momento, Saneia reconheceu que havia qualquer coisa no marido que tinha mudado. Mostrava-se agora como alguém completamente diferente do rapaz que ela conhecia. Aproximou-se dele e estendeu os braços para lhe rodear o pescoço.

  • Não o deixes mandar-te para longe de mim - implorou. - Diz- lhe que tenho de estar contigo.

Godofredo afagou-lhe o cabelo e beijou-lhe o nariz.

  • Podes dizer-lho - disse, apercebendo-se de que, passado todo aquele tempo, ainda estava zangado com o que houvera entre ela e João. — Diz o que tiveres a dizer, e vejamos se te sais melhor do que os outros que tentaram dis­cutir com o Santo Padre.

E, assim, Saneia dirigiu-se aos aposentos do Papa e pediu-lhe uma audiência.

Quando ela entrou, Alexandre estava sentado no seu trono, após ter ter­minado uma discussão com o embaixador de Veneza, que o deixara de bastante mau humor.

Saneia postou-se diante dele, depois de uma vénia quase imperceptível e sem o respeitoso beijo no anel ou no seu santo pé. No entanto, para o que ele estava prestes a fazer-lhe, podia desculpar estas pequenas desconsiderações.

Saneia falou sem esperar autorização, pois no fim de contas era filha e neta de reis. Naquele dia específico parecia-se mais com o avô, o rei Ferrante, do que com qualquer outro; tinha a cabeleira negra solta, despenteada e liberta. Os seus olhos verdes eram penetrantes e a voz acusadora quando se lhe dirigiu.

  • Que vem a ser o que ouço? Não sou enviada com o meu marido e a irmã a Nepi? Pretende-se que fique no Vaticano sem a companhia daqueles que me agradam?

Alexandre bocejou deliberadamente.

  • Pretende-se, minha querida, que façais o que vos pedem, que é uma coisa que aparentemente não vos é fácil.

Saneia bateu com o pé, numa fúria que não conseguia dominar. Desta vez ele tinha ido longe de mais.

  • O Godofredo é meu marido, e eu sua mulher. O meu lugar é ao pé dele, pois é a ele que devo a minha lealdade.

O Papa riu-se, mas os seus olhos tinham a dureza do aço.

  • Minha querida Saneia, o vosso lugar é em Nápoles; junto daquele estou­vado do vosso tio, na terra daquele animal que era o vosso avô, Ferrante. E man­dar-vos-ei para lá imediatamente se não tiverdes tento na língua.

  • Não me assustais, Santidade - ripostou ela. - Porque eu acredito num poder mais alto que o vosso. E é ao meu Deus que rezo.

  • Tende cuidado com as vossas palavras, filha - advertiu-a Alexandre. - Olhai que posso mandar-vos enforcar ou queimar por heresia, e então a vossa reunião com o bem-amado marido tardará mais ainda.

De queixo espetado, Saneia estava a tal ponto encolerizada, que se tornou temerária.

  • Provocarei um escândalo e podeis mandar-me queimar, se quiserdes, mas isso não me impedirá de dizer a verdade. Isto porque não há nada em Roma que seja o que parece, e a verdade há-de ser conhecida.

Quando se levantou, Alexandre era uma figura tão imponente que Saneia recuou instintivamente. Recuperou imediatamente a calma, dominou-se e não arredou pé. Quando, porém, se recusou a baixar a vista, a deixar-se intimidar pelo olhar sagrado do Papa, este enfureceu-se com ela. Se o filho não era capaz de a domar, fá-lo-ia ele.

  • Partireis amanhã para Nápoles - disse o Papa. - E levareis um recado meu ao rei. Dizei-lhe que, se ele não quer nada meu, eu não quero nada dele.

Antes de partir, com a mais exígua escolta e quase sem dinheiro para levar na viagem, disse a Godofredo:

  • O teu pai tem mais inimigos do que tu julgas. Um dia isto acabará mal. Só rezo para estar cá a fim de o ver.

i

Envergando um opulento brocado com abelhas de ouro bordadas, o rei Luís dirigia-se a Milão com César ao seu lado. Eram acompanhados pelo car­deal delia Rovere, pelo cardeal dAmboise, pelo duque de Ferrara, Ercole dEste, e uma força de ocupação de quarenta mil homens.

Ludovico Sforza, // Moro, tinha-se reduzido à pobreza contratando solda­dos mercenários, mas estes não podiam ombrear com os competentes solda-

dos do exército francês. Sabedor de que a derrota estava próxima, Ludovico tinha mandado os seus dois filhos e o irmão, Ascânio, à Alemanha para fica­rem sob a protecção do marido da irmã, o imperador Maximiliano.

Foi assim que, após uma vitória fácil, o rei Luís de França foi declarado o verdadeiro duque de Milão. E, pelo seu auxílio durante a invasão, o rei ficou agradecido pelas bênçãos do Papa, assim como pela ajuda do filho, César.

Na sua inspecção à cidade, o primeiro lugar que o rei visitou foi o grande cas­telo dos Sforza. Ali chegado, procurou as arcas de carvalho com sistemas de fecho especiais desenhados por Leonardo da Vinci, que se dizia estarem cheias de ouro e pedras preciosas. Ao abri-las, o rei achou-as vazias. Parecia que Ludovico levara a maior parte das jóias e para cima de 240 000 ducados com ele ao fugir. Mesmo assim, ainda havia valores bastantes na fortaleza para o rei Luís ficar impressio­nado com a grandeza da corte de Ludovico, dos estábulos dos Sforza, com os seus deslumbrantes e pormenorizados retratos de cavalos premiados, à pintura da Ultima Ceia nas paredes do Mosteiro de Santa Maria, da autoria de Leonardo.

Apesar disso o rei não reparou quando os seus archeiros utilizaram a mara­vilhosa estátua de argila de Leonardo representando um cavalo, colocada na praça, como alvo de exercício, destruindo-a por completo. Os cultos cidadãos de Milão achavam os soldados franceses bárbaros, porque cuspiam nos pavi­mentos dos castelos e deitavam lixo nas ruas.

Se os territórios da Romanha estivessem unificados, a invasão de Itália por Luís podia ter sido travada ali. Mas não estavam. Assim, Alexandre sabia que era a altura de os reivindicar, porque eram, no fim de contas, Estados Papais, e era apenas devido à sua generosidade e indulgência que os seus ávidos chefes militares tinham podido governá-los durante todo aquele tempo.

Agora bastava a César derrubar os pequenos príncipes para conquistar o resto dos territórios dos Estados Papais, a fim de unificar a Itália e trazer gló-na e riqueza para a sua família e Roma.

Em Nepi, Lucrécia embrenhou-se de alma e coração nas suas obrigações administrativas. Estabeleceu um corpo legislativo e uma força policial para

fazer cumprir as respectivas leis e manter a tranquilidade nas ruas. Tal como o pai fizera, todas as quintas-feiras que estava em Roma convidava os cidadãos para o castelo a fim de exprimirem os seus motivos de descontentamento e a seguir fazia tudo o que podia para remediar tais situações. Parecia ter talento para governar e os cidadãos acabaram por gostar bastante dela.

Durante este tempo Godofredo foi um consolo para Lucrécia quando sen­tia saudades de Afonso, e ela foi um consolo para ele. Porque Godofredo estava desanimado com Saneia, difícil como ela por vezes era. Enquanto Lucrécia aprendia a governar, Godofredo caçava e cavalgava pelos belos campos e os dias tornavam-se mais amenos para ambos.

Como recompensa pela sua excelente prestação e serventia, um mês depois de Lucrécia chegar a Nepi, o Papa conseguiu convencer Afonso a juntar-se-lhe. Para isso, doou generosamente ao jovem casal a cidade, o castelo e as terras circun­dantes de Nepi. Os dois jovens amantes ficaram tão extasiados por se encontra­rem de novo juntos, que nenhum deles perguntou o que queria o Papa em troca.

Alexandre concedeu várias semanas a Lucrécia e Afonso antes de os visitar. Não podia dar-lhes mais tempo, porque não havia tempo para dar. No seu segundo dia em Nepi, durante um sumptuoso almoço de família, o Papa per­guntou a Lucrécia se ela estaria na disposição de regressar a Roma para ter o bebé. Foi extremamente convincente ao explicar que estava a ficar velho e o facto de ter um novo neto lhe proporcionaria grande prazer. Cheia de felici­dade por estar novamente com o marido, e aliviada perante a perspectiva de estar com Júlia e Adriana, ela acedeu a ir. Após jurar que nunca mais se sepa­rariam, Afonso concordou em ir com ela.

Lucrécia regressou a Roma com o marido, Afonso, e com seu irmão Godo­fredo, e deparou uma banda de música, mimos e malabaristas, que o Papa tinha enviado para os acolher às portas da cidade.

Enquanto ela estivera fora, o palácio de Lucrécia em Santa Maria in Pór­tico fora decorado com opulentas colgaduras de seda e intricadas tapeçarias. O próprio Papa não tardou em vir recebê-la e dar-lhe as boas-vindas.

  • Que dia tão feliz! - exclamou, abraçando-a até, mesmo na sua delicada situação, a levantar do chão. - A minha querida filha regressa, e não tarda que o meu filho César chegue, como herói conquistador.

Deu até um relutante abraço a Godofredo, pois mal se podia conter. Nesse dia, sentiu que todas as suas preces tinham sido atendidas.

Pouco depois o seu júbilo foi ilimitado ao receber notícia da invasão de Milão por César. Passado pouco tempo Lucrécia dava à luz um saudável bebé do sexo masculino, chamado Rodrigo em honra de seu pai, e Alexandre ficou tão satisfeito que um episódio de síncope o obrigou a passar o dia de cama. Mal se recompôs, porém, começou a fazer preparativos para o baptismo da criança.

20

De armadura negra e montado num magnífico cavalo branco, César Bór­gia encontrou-se com os seus comandantes às portas de Bolonha. Foi ali que um grande contingente de militares veteranos franceses se juntou ao exército suíço, aos mercenários alemães, aos artilheiros italianos e aos oficiais espanhóis.

O rei tinha cumprido a sua promessa.

Com o porta-estandarte imediatamente atrás dele, desfraldando a bandeira branca ostentando o touro a investir dos Bórgia, o exército de César, de quinze mil homens, ia serpenteando pela estrada Bolonha-Rimini em direcção às cida­des de Imola e Forli.

O touro dourado cinzelado no peitoral negro de César resplandecia ao sol do meio-dia. A sua nova armadura era de construção ligeira, a fim de permi­tir maior liberdade de movimentos e mesmo assim proporcionar protecção vital. Agora podia lutar eficazmente mesmo a pé, caso estivesse desmontado.

Os homens de César, fortemente couraçados e montando poderosos cava­los, eram eficientes máquinas de guerra, difíceis de travar e temíveis de enfren­tar. A sua cavalaria ligeira era protegida por cotas de malha e duro couro cur­tido, armada de espadas e lanças letais.

A infantaria era constituída por audazes soldados suíços, equipados com temíveis chuços de três metros, militares italianos com diversas armas e tri­gueiros alemães providos de bestas e longas espingardas de pequeno calibre.

A mais devastadora arma de todo o arsenal de César era, porém, a pode­rosa artilharia italiana do capitão Vitellozzo Vitelli.

Imola e Forli tinham sempre sido uma fonte de problemas na Romanha As duas terras haviam sido em tempos governadas por Girolamo Riario, rude e brutal herdeiro de uma poderosa família italiana e filho do velho Papa Sisto Girolamo casara com Catarina Sforza, sobrinha de Ludovico Sforza, de Milão era ela ainda menina. Quando Girolamo fora assassinado, doze anos mais tarde, Catarina tornara-se uma mulher e uma mulher irada; em lugar de reco­lher a um convento, montara o seu cavalo e conduzira os seus soldados em pronta perseguição dos assassinos do marido.

Quando estes foram capturados e trazidos à sua presença, Catarina exerceu uma feroz e terrível vingança sobre os aristocráticos assassinos. Decepou-lhes os órgãos genitais, tomou-os nas suas próprias mãos para os colocar num lenço de linho e, com fitas que tirara do cabelo, amarrou-lhes os pénis à volta do pes­coço, pois considerava-os uma casta que não devia ser encorajada.

  • Estas terras são minhas — disse, de pé sobre elas. — Eu não tinha desejos de ser viúva.

Depois ficou a ver o sangue dos corpos deles escorrer para o solo em peque­nos veios vermelhos, quais aranhas, até os assassinos ficarem hirtos e frios. Ah, o que teria ela feito se verdadeiramente o amasse!

Imediatamente após o seu regresso, Catarina reivindicara Imola e Forli em nome do filho, Otto Riario, afilhado do Papa Alexandre. Assim que correu pelas cidades e territórios a notícia do seu impiedoso castigo, Catarina tornou—se tão famosa pela sua ferocidade como era pela beleza. Efectivamente, era tão perversa como qualquer combatente... e tão feminina como qualquer duquesa. Os seus longos cabelos loiros emolduravam um rosto de feições dis­tintas; a sua pele, da maciez do veludo, era o seu orgulho e, embora fosse mais alta que muitos homens, era uma bonita mulher. Passava muito tempo com os filhos e à guisa de diversão criava frequentemente unguentos especiais para a impecável tez pálida, descolorantes para o cabelo loiro cendrado e loções para os seios grandes e firmes, que muitas vezes trazia quase a descoberto. Usava car­vão para polir os dentes alvos e regulares e dizia-se que tinha um livro onde registava todos os seus feitiços. Era bem conhecido nas aldeias o seu apetite pelo prazer sensual, que ombreava com o de qualquer homem. Era, em termos renascentistas, um verdadeiro virago: uma mulher digna de admiração pela sua

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coragem e cultura, um testemunho da sua mente poderosa e inflexível e deter­minação sem escrúpulos.

Quando tornou a casar — e o seu segundo marido foi também assassinado - tirou de novo uma furiosa desforra. Desta feita mandou arrancar os mem­bros dos corpos dos assassinos, após o que lhes esquartejou os restos mortais.

Três anos depois desposou Giovanni de Mediei, do qual teve um filho. Gio-vanni dalle Bande Nere, assim se chamava o bebé, era o seu filho preferido. Agradava-lhe ter Giò por marido; até a fealdade dele a atraía, porque de noite, e no quarto, era mais homem do que qualquer outro que ela conhecera. No ano transacto, porém, tinha enviuvado de novo. Catarina tinha agora trinta e seis anos e era tão feroz que passara a ser conhecida como a Loba.

Catarina Sforza desprezava a família Bórgia por tê-la traído após a morte de seu marido Riario e não fazia tenção de lhe permitir que assumisse o controlo dos territórios que o filho, Otto Riario, governava. Meses antes, recebera a bula papal exigindo o dinheiro devido em impostos pelos seus territórios e acusando—a de sonegar dízimos ao Papa e à igreja. Antevendo já este estratagema do Papa, Catarina mandou antecipadamente o seu dízimo, e na totalidade, por mensa­geiro especial. Ainda assim, Alexandre estava determinado a reclamar as suas ter­ras para a Romanha. E, por conseguinte, ela preparou-se para a contenda.

Os seus informadores, bem pagos mas não leais, trouxeram-lhe notícia de que César comandava o exército destinado a conquistar as suas cidades. Ela enviou em troca um presente ao Papa: uma mortalha negra do cadáver de uma vítima da peste, que enrolou muito bem e enfiou numa bengala oca. Quando Alexandre abrisse o presente, esperava ela, contrairia a doença e desistiria dos seus planos para aquela conquista. Submetidos a tortura, contudo, os seus informadores deram informações sobre ela e assim, enquanto eles foram con­denados à morte, o Papa salvou-se.

O plano de César era tomar primeiro Imola e a seguir Forli. Quando o exército do Papa se aproximou de Imola, César reuniu as suas tropas, deslocou a artilharia para a frente e empregou a cavalaria ligeira e a

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infantaria como barreira. Depois avançou com um batalhão especial de solda­dos armados.

Estes preparativos eram, contudo, desnecessários, pois à medida que se aproximava, abriram-se as portas da cidade e um preocupado grupo de cida­dãos avançou impetuosamente. Na tentativa de se pouparem a si próprios e pouparem a cidade a serem saqueados, roubados e esbulhados pelo exército do Papa, logo se renderam.

Catarina Sforza, por virtude da sua célebre crueldade e ferocidade, não era uma governante popular ou querida. Os seus súbditos não tinham nada a ganhar combatendo por ela. No primeiro dia dois lanceiros franceses desco­briram um carpinteiro local que, tendo sido defraudado por Catarina e que­rendo vingar-se, pediu para se encontrar com César. Esperando ser poupado, indicou pressurosamente os pontos fracos da estrutura das muralhas do castelo. Havia, porém, uma pequena fortaleza dentro da cidade, cujo comandante, Dionigi di Naldo, um verdadeiro soldado, gritou do telhado: «Lutaremos!» Por conseguinte, o exército de César preparou-se para o cerco. Vitellozzo Vitelli, o comandante italiano, deslocou os seus canhões para a linha da frente, aprontou as tropas e começou a bombardear as muralhas do castelo com disparos contínuos. Apercebendo-se do perigo que corria, Dionigi di Naldo pediu uma trégua e anunciou que, se não chegassem reforços dentro de três dias, entregaria a cidade.

Ciente de que a negociação pouparia quer dinheiro quer vidas, César mon­tou acampamento e ali aguardaram durante três dias.

Não chegaram reforços. Naldo, um oficial competente de uma célebre família de combatentes, tinha também razões de queixa, de forma que depôs as armas e mandou os homens destroçar. Teria lutado até à morte se sentisse alguma lealdade para com os governantes; mas mesmo agora, que ele se encon­trava a defender o seu castelo, Catarina Sforza mantinha a sua mulher e seus filhos como reféns na cidadela de Forli. Naldo entregou Imola, com uma con­dição: que ele próprio se pudesse juntar a César e às forças do Papa quando avançassem sobre Forli.

Assim, César Bórgia alcançou o primeiro objectivo da sua campanha sem perder um único homem... nem defrontar Catarina Sforza.

Forli albergava a principal fortaleza de Catarina e era ali que César teria de se defrontar com a Loba em pessoa. O filho do Papa era mais novo e tinha muito menos experiência do que a feroz Catarina, pelo que se abeirou das por­tas com alguma cautela. Mais uma vez, porém, elas se abriram e uma multidão de cidadãos saiu impetuosamente para anunciar a sua rendição.

Postada sobre as muralhas do castelo, estava Catarina Sforza, envergando uma armadura completa, brandindo uma espada com uma das mãos e segu­rando na outra um falcão. Ao longo de todos os telhados encontravam-se os seus archeiros, de setas apontadas e arcos retesados.

No momento em que Catarina viu os seus cidadãos com César, enfureceu—se e gritou aos soldados:

  • Disparem sobre os cidadãos! Disparem sobre os poltrões que abandonam a nossa boa cidade!

As setas voaram como bandos de pássaros e os seus súbditos tombaram aos pés de César.

  • Meu Deus — comentou César, voltando-se para Vitelli. — A mulher está louca. Está a chacinar o seu próprio povo.

Um dos seus comandantes gritou da janela de uma torre que a condessa se queria encontrar com César Bórgia, a fim de negociar uma rendição pacífica.

  • Atravessai a ponte levadiça - gritou o comandante. - A condessa encon-trar-se-á convosco no passadiço coberto.

César viu a ponte levadiça descer lentamente e as portas do castelo abrirem—se. Ele e o capitão espanhol, Porto Díaz, começaram a atravessar as portas mas, quando César olhou para cima através da ampla abertura no tecto de madeira sobre a entrada, pareceu-lhe ouvir qualquer coisa a correr por cima deles. Subi­tamente, fez meia volta a tempo de ver vários dos homens de Catarina a subirem a ponte levadiça. Ao voltar-se para trás viu a grade de ferro abater-se à sua frente.

César agarrou Porto Díaz e gritou:              <

  • Apressa-te. Uma cilada!

Saltou para cima do gigantesco molinete de dentes de aço que fazia elevar a ponte. Estava apenas a centímetros de o esmagar quando a ponte se fechou

e, num acesso de ousadia, César atirou-se para o lado, mergulhando no fosso. Dezenas de bestas dispararam pesadas pontas de lança sobre a água, falhando—o por pouco enquanto nadava desesperadamente para a outra margem.

Três morenos soldados suíços amaldiçoaram sonoramente Catarina ao recolherem César da água.

Porto Díaz, todavia, menos feliz, foi apanhado entre a grade de ferro e a ponte fechada. Mal César atingiu terra firme, Catarina mandou derramar óleo a ferver sobre Díaz pela abertura do tecto. De pé na margem, César escutou os gritos de fazer gelar o sangue que aquele soltava e jurou que Catarina não escaparia sem castigo pela tortura daquele grande capitão.

César sabia que ela não se renderia sem um combate mortífero. Assim, reti­rou para o seu acampamento a fim de arquitectar um plano. Finalmente, depois de muitas horas, julgou ter uma surpresa que poderia fazê-la mudar de ideias. Dois dos seus filhos tinham sido capturados em Imola e César levou-os consigo até à margem do fosso à vista do castelo.

Chamou-a:

  • Catarina, tenho uma coisa que é tua.

Ela olhou para baixo a fim de o ver e ele apontou para os filhos.

  • Se este castelo não se render e a tortura do meu capitão não terminar ime­diatamente, matarei estas crianças diante dos teus próprios olhos.

À luz difusa do crepúsculo, com o sol cor de laranja a declinar atrás de si, Catarina emergiu como uma sombra escura. Soltou uma risada rouca e o seu riso ecoou ameaçadoramente. A seguir levantou a saia até ao peitoral, expondo-se.

  • Olha, filho de uma prostituta - gritou para César, apontando para o ven­tre. - Estás a ver isto? Destrói-os, anda: eu tenho o molde. Posso fazer mais filhos, muitos mais, de maneira que faz o que tiveres de fazer.

Nessa precisa altura Catarina levantou o braço e César ouviu um chape. O corpo decapitado e escaldado de Porto Díaz tinha sido atirado ao fosso.

E foi assim que César Bórgia, duque de Valentinois e filho do Papa, orde­nou que se desse início ao bombardeamento. Os canhões de Vitellozzo Vitelli dispararam munição atrás de munição contra as muralhas do castelo.

Na escuridão da noite, Dino Naldo aproximou-se dele.

  • Ides mandar matar os filhos dela? - perguntou a César.

César pareceu surpreso: tinha-se esquecido. Rapidamente, tranquilizou

Naldo:                                Era apenas uma ameaça. E com qualquer mãe normal teria resultado. Nessa altura podíamos ter salvo muitas vidas. Agora, por causa desta louca, essas vidas perder-se-ão. Mas matar duas crianças não terá qualquer utilidade. Leva-as daqui.

  • Que farei com elas? - inquiriu Naldo.

  • Fica com elas — respondeu ele. — Cria-as como se fossem tuas.

Naldo sorriu, agradecido, e persignou-se numa oração. Por que razão cha­mavam monstro a este homem, era coisa que não entendia, porque a mulher que agora tinha os seus filhos era na verdade bem pior.

Mal o sol nasceu na manhã seguinte, César bombardeou a fortaleza. Não obstante, Catarina mantinha-se sobre as muralhas, brandindo a espada. César virou-se e ordenou aos seus homens que cortassem árvores próximas, a fim de construírem jangadas quadradas para os transportarem.

  • Cada uma delas tem de levar trinta soldados — gritou. — Porque, quando se abrir uma brecha nas muralhas, servirão para os nossos soldados transporem o fosso.

O fim levou tempo a chegar. Finalmente, porém, as bolas de pedra dispa­radas pelos canhões de Vitelli trespassaram a muralha da fortaleza e César ouviu o grito:

  • Uma brecha! Uma brecha!

A muralha norte tinha-se desmoronado.

O capitão francês conduziu os seus soldados às jangadas que estavam já a Hutuar no fosso. Remando rapidamente, com as armas prontas a fazer fogo, desembarcaram e mandaram as jangadas de volta para serem novamente car­regadas. Ao todo, mais de trezentos dos homens de César assaltaram o castelo.

Mal os seus soldados baixaram a ponte levadiça, César e os seus homens transpuseram-na a cavalo e penetraram no castelo, gritando:

  • Ao ataque!

Foi então que Catarina, do seu poleiro no cimo do telhado, reparou no sor­tido de munições e pólvora empilhado em grandes montes no centro da for­taleza. Com toda a força, arrancou um dos ígneos archotes das ameias e ati­rou-o para o monte de pólvora. Preferia fazer-se ir a si própria e à sua cidade pelos ares a cair prisioneira do inimigo! A explosão abalou a castelo, destruiu casas e lojas e matou mais de quatrocentos cidadãos de Forli. Contudo, César e muitos dos seus soldados permaneceram incólumes. Os soldados de Catarina emergiram dos telhados, torres, varandas e outros taludes. Feridos e esfarrapa­dos, renderam-se, aliviados com a vitória de César.

Infelizmente para ela, Catarina Sforza não foi ferida. Em lugar disso, foi tomada como refém pelo capitão francês, que, à noite, num jogo de cartas a seguir ao jantar, a entregou a César contra trinta mil ducados de resgate.

Catarina Sforza pertencia agora a César Bórgia, que dela podia fazer o que quisesse.

Depois da ceia, César tomou um demorado banho quente e vestiu a sua túnica de seda preta, tirada para ele da sua bagagem. O quarto principal do cas­telo de Forli tinha ficado intacto e César deitou-se na cama a pensar no que faria a Catarina.

Ela estava naquele preciso momento prisioneira num pequeno comparti­mento às escuras, na cave do castelo, guardada por dois dos mais fiéis guardas de César, que lhes tinha dado instruções explícitas de não tirarem os olhos dela nem por um momento.

A meia-noite, ainda de túnica, César foi até à adega. Ouviu-a arquejar, gri­tar e praguejar, antes mesmo de a ver. Entrou no pequeno compartimento húmido, escassamente iluminado por uma vela. Catarina estava deitada de cos­tas numa cama de ferro, com os pulsos e os tornozelos amarrados às partes late­rais da armação. Amarrada e agrilhoada, a Loba agitava furiosamente a cabeça de um lado para outro.

César postou-se silenciosamente diante dela e, mal o viu, Catarina parou de gritar. Em vez de bramar, levantou a cabeça o mais que podia e cuspiu

nele com todas as forças. Ele, porém, manteve-se ligeiramente fora do seu

alcance. Minha cara condessa - disse César, de modo encantador. - Podias ter evi­tado que te fizessem mal a ti e ao teu povo, se tivesses capacidade de raciocinar.

Ela virou a cabeça e cravou nos olhos dele os seus, de um azul surpreen­dente. A seguir o seu belo rosto desfigurou-se de cólera e, com uma voz vene­nosa, desafiou-o.

  • Que género de tortura reservas para uma mulher, cobarde pedaço de merda romana?

  • Já te mostro - respondeu ele, com uma voz fria.

César desfez-se da túnica e pôs-se em cima dela, acometendo-a primeiro devagar, para a seguir a trespassar num movimento para diante e para cima, penetrando-a profundamente. Esperava ouvir os seus gritos e as suas pragas, mas ela manteve-se silenciosa. E o único som no compartimento era o mur­múrio dos guardas romanos ali postados.

César prosseguiu então como numa fúria, enterrando-se por ela dentro numa sucessão de poderosas arremetidas, até que subitamente ela se começou a mexer em uníssono com ele. Como ela tivesse as largas ancas levantadas e a pélvis espetada contra ele, César começou a acreditar que estava a proporcio­nar-lhe prazer. Continuou a violentá-la, pois estava certo da sua vitória sobre ela. Quando terminou, ela tinha as faces coradas e o cabelo ensopado de suor.

  • Devias agradecer-me - disse ele, ao afastar-se dela. Ela olhou para ele com os olhos azuis a faiscar.

  • étudo o que tens para me dar? — perguntou.

César saiu de rompante do compartimento. Nas duas noites subsequentes, porém, visitou Catarina à meia-noite e repetiu o mesmo acto silencioso de con­quista. Os resultados continuaram a ser os mesmos. No fim, de faces coradas e o corpo escorregadio de transpiração, ela perguntava: «É tudo o que tens para me dar?»

Ele decidiu continuar do mesmo modo até ela se render. Na terceira noite, contudo, uns minutos depois de César entrar e iniciar as suas arremetidas, ela ordenou:

é Desata-me, porque de outra maneira não há competição.

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Catarina estava nua; não podia esconder qualquer arma. E os dois guardas de César, fortes e musculosos, estavam postados no compartimento. Assim, que perigo podia haver? Foi o próprio César que lhe retirou as correntes, após o que lhe desamarrou suavemente as mãos. Ela dirigiu-lhe um aceno de agra­decimento e, pela primeira vez, adoçou-se-lhe o olhar. Depois ele pôs-se em cima dela. Ela enroscou primeiro as pernas e depois os braços à volta dele, atraindo-o mais profundamente para dentro de si. Puxou-lhe a cabeça para trás pelos cabelos e percorreu-lhe os lábios com a língua, após o que o beijou, pene­trando-o tão fundo com a língua, que todo o corpo dele estremeceu. Momen­tos depois Catarina começou a emitir pequenos sons de prazer, que por pouco não o deixaram louco de êxtase. No espaço de minutos cada um dos dois fez o outro atingir um trémulo clímax.

No dia seguinte, Catarina recusou-se a comer se não lhe fosse permitido um banho perfumado. Foi conduzida, acorrentada, até à banheira, onde uma das damas de companhia que tinha sobrevivido à explosão lhe deu banho, mas foi essa a única vez que Catarina saiu da cama.

Nas duas semanas que se seguiram, todas as noites César aparecia à meia—noite e punha-se em cima de Catarina. A meio soltava-a e ela abraçava-o outra vez. Os guardas mantinham-se ali, pois César nunca podia estar seguro de que, num momento de paixão ou raiva, ela não tentaria arrancar-lhe os olhos, mas tanto César como Catarina os ignoravam. Houve então uma noite em que os dois violentos amantes começaram a falar.

  • Tens de admitir que a violação pode ser aprazível — disse César. Catarina riu-se e respondeu maliciosamente:

  • Achas que me violaste? Enganas-te, bastardo romano, filho de um Papa. Ali de pé no baluarte do castelo, no primeiro momento em que te vi, fiquei decidida a matar-te ou violar-te. Se te tivesse capturado, ter-te-ia amarrado, como me fizeste a mim. E depois ter-me-ia posto em cima de ti. Mas nao importa; o resultado é o mesmo.

Catarina tinha verdadeira queda para a estratégia. Reivindicando a inten­ção dele como sua, tinha desequilibrado a relação de forças. E assim, sem uma arma, Catarina tinha-o efectivamente desarmado. Porque agora César sentia—se tanto vencido como vencedor.

No dia em que estavam prestes a partir para Roma, Catarina fez uma per­gunta a César.

  • Vais conduzir-me agrilhoada pelas ruas da cidade como uma rainha cap­turada, para que os teus cidadãos possam zombar de mim e insultar-me como faziam na Roma antiga?

César riu-se. Catarina estava muito bonita nesse dia, especialmente para alguém que tinha estado numa masmorra.

  • Não me tinha ocorrido — disse ele —, mas...

  • Já sei, vais é queimar-me no poste, pelo meu atentado contra a vida do Papa - disse Catarina. - Sempre escolho cada idiota para mensageiro...

  • A vida do Papa é frequentemente ameaçada — tornou César. — Ele rara­mente guarda ressentimento por isso, especialmente se a conspiração for der­rotada. Mas, se é essa a sua intenção, enforcar-te ou queimar-te por heresia, assegurar-lhe-ei que foste castigada por mim todos os dias desde a tua captura.

  • E ele acreditaria em ti? — inquiriu ela.

  • Considerá-lo-ia violação e havia de achá-lo um castigo mais severo do que a morte, pois crê que a violação causa feridas na alma e ama as mulheres como eu nunca amei — admitiu César.

Catarina fez um sorriso irónico.

  • Mas seria preciso acreditar na alma para acreditar que ela é ferida.

  • Ah, e isso o Papa acredita — respondeu César, sorrindo. — Entretanto, como afinal de contas és uma Sforza, arranjei maneira de ficares em Belvedere. Sem correntes. O castelo pertence-me. Tem uns jardins encantadores e uma vista maravilhosa sobre a cidade. Serás tratada como uma hóspede honrada... bem guardada, claro está.

21

César entrou em Roma como um herói conquistador. O grandioso cortejo comemorativo da sua vitória foi o mais espectacular que os cidadãos de Roma alguma vez tinham visto. Todos os homens de armas de César, a sua cavalaria ligeira e os seus chuceiros suíços estavam totalmente vestidos de negro; até as carroças da caravana da sua bagagem estavam cobertas de tecido preto. E César, envergando uma armadura negra de azeviche, cavalgava à cabeça do seu exér­cito acompanhado por quatro cardeais, cujas vestes vermelhas e púrpura faziam um contraste perfeito. Para aplaudir o seu triunfo até o touro a inves­tir dos Bórgia figurava a vermelho num estandarte negro, em lugar do costu­mado branco. A cavalo num esbelto garanhão preto, César parecia o régio prín­cipe negro.

O cortejo avançou pelo meio da turba de cidadãos que bordejavam as ruas até ao Vaticano. Ali chegado, César saudou o pai em espanhol ao curvar-se para beijar o anel papal, e entregou ao Papa as chaves das cidades e castelos que tinha conquistado.

Alexandre, com o rosto radioso de orgulho, ergueu César no ar e abraçou ternamente o filho diante da multidão deleitada.

Imediatamente a seguir ao cortejo, César despediu-se do pai e dirigiu-se aos seus aposentos no Vaticano.

O próprio César tinha mudado espectacularmente durante o tempo em que «tivera ausente. Após compreender que o riso nos rostos dos franceses se devia ao facto de o considerarem um tolo, após tentar fascinar Rosetta e fracassar e

após descobrir que até a sua felicidade com a mulher era embotada pela recor­dação da irmã, jurara esconder as suas emoções. Desse dia em diante o rosto raramente se lhe abria num sorriso e os seus olhos não traíam qualquer indí­cio da sua ira.

Ah, o seu rosto! César sofrera ultimamente outro grave ataque de mal—gálico, e desta feita a doença crivara-o de fundos buracos nas faces e fizera-lhe covas no nariz e na testa, deixando várias cicatrizes redondas que não desapa­receriam. No campo de batalha isso não importava, evidentemente, mas na cidade, numa cerimónia, ou quando ia para a cama com cortesãs, era uma maldição. Aos vinte e cinco anos, César Bórgia estava habituado a ser elogiado e admirado pela sua beleza; agora sentia-se defraudado. Cobriu todos os espe­lhos dos seus aposentos com um pano preto e advertiu os criados para nunca o tirarem.

Os terrores nocturnos regressaram e por isso, para arredar os seus medos, dormia de dia e trabalhava a noite inteira. Mais uma vez, passava muitas horas a cavalgar pelos campos envolvido pela escuridão.

Agora já não podia esperar mais para ver Lucrécia. Tinha passado imenso tempo longe. O rosto dela tinha sido a visão que perseguira até às suas vitórias.

Tinham decorrido quase dois anos desde que haviam estado juntos, e per­guntava a si mesmo se ela teria mudado. Teria ainda o mesmo efeito sobre ele, passado todo este tempo, depois do seu casamento com Charlotte e do dela com Afonso? No íntimo César albergava a esperança de que Lucrécia se tivesse cansado do marido, pois, agora que as alianças papais se tinham alterado, Afonso constituía efectivamente uma ameaça para a família Bórgia.

Fervilhava-lhe uma série de pensamentos no espírito enquanto esperava para ser recebido nos aposentos de Lucrécia. Conquanto fosse temerário ate a indiferença ao perigo na sua vida quotidiana e não parecesse preocupar-se com coisa alguma, agora estava apreensivo. Que pensaria a irmã? Amá-lo-ia menos.

Mal viu o irmão, Lucrécia correu a abraçá-lo, lançando-lhe os braços ao pescoço e escondendo o rosto no seu peito.

  • Meu Deus, tive tantas saudades tuas! - exclamou, com lágrimas nos olhos.

é

  

Quando levantou a cabeça a fim de olhar para ele, não ficou abalada, mas apenas desolada com o que lhe acontecera. Envolveu-lhe o rosto com as mãos.

  • Meu querido Chez, como a vida te tratou...

Constrangido, ele desviou a vista. O coração batia-lhe como antigamente, como nunca batera com ninguém.

  • Estás com bom aspecto, Crezia — disse meigamente, não conseguindo evi­tar que os seus olhos revelassem o que sentia. - Ainda és igualmente feliz?

Ela pegou-lhe na mão e conduziu-o ao sofá.

  • Só o paraíso poderia ter-me trazido maior alegria - respondeu. - Com os meus bebés e com o Afonso, sinto uma felicidade como nunca conheci, e vivo no receio de acordar brevemente deste sonho ilusório.

Ele sentiu-se ficar hirto.

  • Fui ver o pequeno Giovanni. E reparei que o nosso filho se parece mais con­tigo do que comigo — disse. — Os caracóis loiros e os olhos claros denunciam-no.

  • Mas não completamente - replicou Lucrécia, rindo. - Tem os teus lábios, tem o teu sorriso e tem as tuas mãos, como as do Papá. — Ergueu-lhe as mãos para lho mostrar. — A Adriana trá-lo todos os dias dos teus aposentos e, desde que partiste, tive o prazer de o ver muitas vezes. É uma criança inteligente e razoável, embora tenha também os teus súbitos acessos de mau humor. — Riu—se e ele pôde ver o prazer espalhado no seu rosto.

  • E o teu filho? - perguntou ele. - Estás igualmente satisfeita com ele? Com um rosto radioso, emoldurado pelos caracóis loiros na testa e nas

feces, Lucrécia acenou afirmativamente.

  • O Rodrigo é ainda bebé; quem sabe quem ele será? Mas é tão bonito como o pai, e igualmente meigo.

César olhou circunspectamente para a irmã.

  • Continuas, então, satisfeita com o teu marido?

Lucrécia sabia que tinha de ser cautelosa na sua resposta. Se procurasse tranquilizar o irmão dando a entender que era infeliz, Afonso perderia a sua protecção e podia acabar por perder a liberdade. Contudo, se dissesse que amava demasiado o marido, poderia perder mais ainda.

  • O Afonso é um homem bom e virtuoso - respondeu. - E trata-nos bem, a mim e aos filhos.

1QÁ

O tom de César era comedido.

  • E se o Papá tentasse anular este casamento, consentirias? Lucrécia franziu o sobrolho.

  • Se o Papá tivesse em mente fazer tal coisa, diz-lhe que eu preferia mor­rer. Não viverei neste mundo sem o Afonso... como não quereria viver sem ti.

Ao sair nesse dia, César ia cheio de confusões. Achava difícil aceitar o amor dela pelo marido, e apesar disso sentia-se reconfortado por ela ainda professar o seu amor por ele.

Nessa noite, deitado na cama apenas com o luar que entrava pela janela a iluminar o quarto, recordou o aspecto dela, o seu cheiro fragrante e as palavras que pronunciara. Foi então que reflectiu na sua careta quase imperceptível quando lhe vira pela primeira vez o rosto. E ouviu a sua voz carregada de pie­dade ao dizer: «Meu querido Chez, como a vida te tratou...» Percebeu então que ela tinha visto tanto as cicatrizes do seu rosto como as cicatrizes mais pro­fundas da sua alma.

Por conseguinte, prometeu solenemente que desse dia em diante cobriria o rosto com uma máscara, a fim de ocultar o tributo que a vida lhe cobrara. Jurou que se rodearia de mistério e que continuaria a fazer a guerra - não pelo Deus de seu pai, mas sim ao Deus de seu pai.

Um mês após a chegada de César a Roma, numa cerimónia solene, o Papa encontrava-se, personificando o Vigário de Cristo, envergando as suas mais requintadas vestes, junto ao altar magnificamente ornamentado da Basílica de S. Pedro.

César Bórgia, o duque francês de Valentinois, estava de pé ao seu lado. O manto do duque foi retirado e o Papa depôs nos ombros de César a capa de gonfaloniere e capitão-general do exército do Papa, enquanto lhe era colocado na cabeça o barrete carmesim. Por fim, foi-lhe entregue o bastão de comandante.

César ajoelhou diante do Papa Alexandre e, com a mão sobre a Bíblia, pres-tou o juramento de obediência, declarando solenemente que nunca conspira­ria contra o Santo Padre para lhe causar, a ele ou aos seus sucessores, qualquer

dano, e que, mesmo sob tortura ou no medo da morte, nunca revelaria nenhum dos segredos do Papa.

Foi assim que Alexandre o abençoou com a Rosa de Ouro e entoou:

  • Recebe esta rosa como símbolo do júbilo, querido filho, pois mostraste as virtudes da nobreza e da coragem. Que o Pai Celeste te abençoe e te livre do mal!

Mais tarde, num encontro privado nos aposentos do Papa, com Duarte Brandão por única testemunha, Alexandre disse ao filho que lhe concedia ter­ritórios e rendimentos adicionais.

  • Recompensamos-te desta maneira devido ao nosso respeito pelas tuas vitórias. E por conseguinte temos de discutir a retoma da campanha. É certo que agora Imola e Forli são nossas, mas falta conquistar Faenza, Pesaro, Car-marino e mesmo Urbino. Como capitão-general, tens de dominá-las, pois temos de estabelecer o estatuto do papado e criar um governo efectivo a fim de assegurar uma Romanha unida.

E, dito isto, Alexandre retirou-se para os seus aposentos, pois tinha combi­nado encontrar-se com a sua cortesã preferida.

O jubileu acontecia apenas uma vez em cada vinte e cinco anos, pelo que Alexandre concluiu que haveria apenas uma comemoração grandiosa durante o seu reinado como Papa. Dado que dele advinham enormes rendimentos — pois a cidade de Roma enchia-se de peregrinos de toda a Europa para ouvirem o sermão da Páscoa do Papa —, tinham de se fazer preparativos para garantir o enchimento dos cofres da Santa Igreja Católica. Devia ser o papado a recolher os maiores benefícios, pois o dinheiro seria empregado para financiar a cam­panha.

O Papa Alexandre queria que o jubileu fosse esplendoroso, que fosse tão grandioso que reflectisse a majestade de Deus. Por conseguinte, rinha muito que fazer. Tinha de construir novas avenidas, largas e desimpedidas para as car­ruagens transitarem. Os pardieiros tinham de ser demolidos e havia que cons-truir novos edifícios para albergar os peregrinos com segurança e comodidade.

Alexandre chamou César aos seus aposentos e pediu-lhe para se encarregar do projecto, pois redundava em seu benefício fazer com que este jubileu fosse financeiramente tão bem sucedido quanto possível.

César acedeu, mas logo deu uma notícia desagradável ao pai.

  • Chegaram-me relatos fidedignos de que há dois homens ao teu serviço que te são desleais. O primeiro é o mestre-de-cerimónias do Papa, Johannes Burckardt.

  • E que ouviste tu dizer de Herr Burckardt? - perguntou Alexandre. César aclarou a garganta antes de responder:

  • Que ele está a soldo do cardeal delia Rovere e que redige um diário car­regado de mentiras acerca da nossa família, algumas bem escandalosas.

Alexandre fez um sorriso matreiro.

  • Há bastante tempo que sei do diário, mas o Burckardt é um homem valioso.

César inquiriu:

  • Valioso?                                                               oAlexandre explicou-se:

  • As suas obrigações sociais como secretário são frívolas. O verdadeiro valor que Burckardt tem para mim reside em contar-lhe tudo o que quero que delia Rovere saiba. É um sistema maravilhoso e eficaz, e até ver foi-me muito útil.

  • Já leste o diário? — perguntou César. Alexandre riu-se alto.

  • Já. Em segredo, há já algum tempo. Há partes que são bastante interes­santes, porque, se fôssemos tão depravados como ele nos fez parecer, devería­mos divertir-nos muito mais. Outras partes roçam o ridículo, porque mostram verdadeira falta de inteligência. Algumas são risíveis.

César carregou o sobrolho.

  • Tenho a certeza de que delia Rovere planeia um dia divulgá-lo como um registo verdadeiro do teu papado. Não estás preocupado?

O olhar de Alexandre era sábio e límpido.

  • Há por cá tantos difamadores a soldo dos nossos inimigos, César, que mais um não fará diferença.

  • Podias pôr-lhes cobro — disse César.

O Papa pareceu pensativo durante alguns minutos antes de responder.

  • Roma é uma cidade livre, meu filho — disse. — E eu prezo a liberdade. César fitou desconfiadamente o pai.

  • Os caluniadores e os mentirosos mantêm-se em liberdade, pai, enquanto os que governam e servem ficam incapacitados de se defenderem? De facto, ninguém acredita na verdade. Se fosse eu que tivesse de julgar os difamadores, castigá-los-ia severamente; não se ficariam a rir com mentiras e insultos tão escandalosos.

O Papa Alexandre ficou divertido com a revolta do filho. Como se um Papa pudesse impedir o povo de formar uma opinião e registar os seus pensamen­tos! Mais valia saber o que eles diziam do que mantê-lo escondido.

  • A liberdade não é um direito, mas sim um privilégio, e um privilégio que nesta altura me apraz conferir ao Burckardt. Pode haver uma ocasião em que mude de ideias, mas por agora atrai-me a ideia da liberdade.

Quando César contou ao pai a acusação seguinte, ficou perturbado, pois sabia o que significaria para a irmã.

  • Soube de várias fontes muito fidedignas, pai, que há alguém da nossa família que conspira com os nossos inimigos para nos destruir.

A expressão de Alexandre não se alterou.

  • Não me vais dizer que é o teu pobre irmão Godofredo, pois não?

  • Não, pai — tornou César. — Claro que não. Mas há alguém próximo que nos põe em perigo. O amado de Lucrécia, o príncipe Afonso.

Pelo rosto do Papa perpassou uma expressão de alerta, mas apenas por uma fracção de segundo antes de se recompor.

  • Um boato perverso, César. Tenho a certeza. E temos de conter o nosso juízo, porque Crezia lhe tem muito amor. Não obstante, investigarei.

Nesse momento foram interrompidos pela música sonora e festiva que vinha da rua, lá em baixo. Alexandre foi o primeiro a chegar à janela, baixou a vidraça e riu-se.

  • Anda cá, César, olha para isto.

César colocou-se ao lado do pai e olhou para o exterior. Viu um cortejo de homens mascarados a marchar, todos vestidos de preto. Eram mais de cin-

quenta e em cada máscara, no lugar do nariz, despontava um enorme pénis erecto.

  • Que vem a ser isto? - perguntou César, intrigado. Alexandre, bastante divertido, respondeu:

  • Julgo que seja em tua honra, meu filho. Espero bem que não tenhas sido tu a posar para as máscaras.

Durante os meses que se sucederam, enquanto esperava para iniciar a etapa seguinte da sua campanha, César escreveu cartas a sua mulher, Charlotte, em França, dizendo-lhe das saudades que tinha dela e que em breve estariam jun­tos. Sentia, porém, que não era seguro para ela vir a Roma. Parecia impelido por uma ambição antinatural e atormentado por aquilo que temia. Embora fosse tremendamente forte, era magro e musculoso; incitado pela sua natureza competitiva, percorria, disfarçado, as aldeias circunvizinhas de Roma e desa­fiava os campeões locais para desafios de pugilato ou luta, que vencia sempre.

Como muitos membros das famílias reais da época, César acreditava na astrologia e foi então consultar o mais eminente astrólogo das cortes, o qual, através do estudo das estrelas e dos planetas, concluiu que o seu destino era perturbante. Mesmo assim César não se preocupou, pois tinha a certeza de que, se fosse suficientemente esperto, podia enganar as próprias estrelas.

Subsequentemente, ao almoçar com a irmã, estendeu a mão sobre a mesa para tomar a dela e, com um sorriso, revelou o que tinha sabido.

  • Sei agora que aos vinte e seis anos de idade corro o risco de perder a vida, com armas e pelas armas. Por conseguinte deves aproveitar a oportunidade para me amares enquanto vivo.

Lucrécia admoestou-o.

  • Não fales assim, Chez, porque sem ti fico indefesa. E as crianças também. Tens de ter cuidado, porque o pai conta tanto contigo como nós.

Daí a uma semana, porém, a fim de pôr o seu destino à prova, encomen­dou uma tourada na qual seis touros seriam soltos num recinto especialmente construído na Piazza San Pietro.

César entrou na arena montado no seu garanhão branco favorito e lidou um touro de cada vez, cravando tão profundamente nos animais a sua lança ligeira, a única arma de que dispunha, que não tardou que cinco deles mor­ressem. O sexto era um corpulento touro cor de ébano, musculoso e mais veloz que os outros, pois estava na flor da vida. César trocou a sua lança ligeira por uma espada bicéfala e voltou a entrar na arena. Depois, fazendo apelo a todasoas suas forças, com um violento golpe decepou a cabeça do touro do resto do | corpo.

Cada dia parecia ter mais necessidade de desafiar a sua própria destreza e coragem levando a cabo actos de ousadia quase impossíveis. O seu rosto mas­carado, a sua ausência de medo e os seus modos misteriosos começaram a ame­drontar toda a gente em Roma.

Quando Duarte Brandão deu parte da sua preocupação ao Papa, Alexan-[ dre replicou:

  • E verdade que ele é terrível na vingança e não tolera insultos. Mas, afora disso, o meu filho César é um jovem bonacheirão.

O príncipe Afonso de Aragão, orgulhoso filho de reis, tinha um porte régio mesmo após ter bebido vinho de mais, como acontecera naquela noite de Iluar. Mal terminou o jantar no Vaticano com o Papa, Lucrécia e os irmãos desta, pediu licença para sair. Disse-lhes que queria voltar para casa porque [tinha uma coisa a tratar. Deu um beijo de despedida à mulher, com a promessa de que aguardaria ansiosamente o prazer da sua companhia quando lhe aprou­vesse regressar.

A verdade é que achava profundamente incómodo estar sentado na com­panhia do Papa e dos filhos, pois andava a ter encontros secretos com o car­deal delia Rovere. Em duas ocasiões delia Rovere, uma vez mais impulsionado pela ambição, tinha pedido o apoio de Afonso e discutira o perigo que o jovem corria na actual situação. Delia Rovere encorajara o jovem príncipe a encararofuturo, após a perda do poder pelos Bórgia, quando ele — o cardeal — se tor-lasse o próximo Papa. Nápoles não teria então nada a temer, pois a coroa seria etirada ao rei francês e devolvida aos seus legítimos donos. E um dia seria sua. Agora Afonso estava aterrado ante a perspectiva de Alexandre descobrir a verdade sobre aqueles encontros secretos. Desde que regressara do castelo dos slonna a Roma, surpreendia frequentemente os irmãos a vigiarem-no aper-adamente e sabia que eles suspeitavam de traição da sua parte.

Ao percorrer a praça vazia fronteira a S. Pedro, pareceu subitamente a afonso que os seus passos ecoavam sonoramente no pavimento. Quando a lua escondeu atrás de umas nuvens passageiras, a praça ficou repentinamente

escura como breu. Afonso ouviu passos arrastados e olhou rapidamente para ver se alguém o seguia. Respirando fundo, tentou serenar o coração desen­freado. Mas havia qualquer coisa que não estava bem. Sentia-o.

De repente, quando as nuvens descobriram a lua, viu diversos homens mas­carados precipitarem-se sobre ele, saídos das sombras dos edifícios. Empunha­vam scorti, uma primitiva arma secreta feita de uma bolsa de couro cheia de pedaços de ferro e amarrada a uma pega de couro. Tentou virar-se para trás e correr pela praça fora, mas três deles agarraram-no e atiraram-no ao chão. Sal­taram os três sobre ele e, com os seus scorti, fustigaram-lhe violentamente o corpo. Ele tentou cobrir a cabeça com os braços e virar-se de barriga para baixo a fim de se proteger, mas os scorti não paravam de se abater impiedosamente sobre as suas pernas e os seus braços, ao mesmo tempo que ele procurava aba­far os gritos de dor. Nessa altura um dos homens acertou-lhe com o scortum em cheio na cana do nariz. Ao abater-se, sentindo que perdia os sentidos, ainda conseguiu ouvir o estalar dos ossos.

No preciso momento em que o último assaltante puxava do pequeno punhal e esfaqueava Afonso do pescoço até ao umbigo, ouviu-se o grito de um guarda papal. Surpreendidos, os atacantes correram em direcção a uma das ruas que saíam da praça.

De pé junto do jovem, o guarda avaliou a gravidade dos seus ferimentos e percebeu que tinha de fazer uma opção. Podia prestar de imediato os necessá­rios cuidados àquela desditosa alma ou perseguir a escumalha que o tinha ata­cado. Nessa altura, à luz pálida do luar, reconheceu em Afonso o genro do Papa.

Freneticamente, pediu socorro. A seguir tirou rapidamente a sua própria capa e tentou estancar o sangue que jorrava do extenso ferimento do peito do rapaz.

Gritando repetidamente por auxílio, o homem, desesperado, transportou Afonso até ao vizinho quartel-general da guarda papal e depositou-o suave­mente no catre de ferro.

Mandou-se imediatamente chamar o clínico do Vaticano, que foi pronta­mente conduzido à cabeceira de Afonso. Felizmente, o ferimento era extenso mas não demasiadamente profundo. Tanto quanto podia ver, nenhum órgão essencial tinha sido atingido e a rapidez de raciocínio do guarda tinha impedido que o jovem príncipe morresse esvaído em sangue.

Homem prático e experiente, o médico do Vaticano olhou rapidamente em volta e a seguir fez sinal a um dos outros guardas para lhe dar uma garrafa de aguardente. Verteu o álcool na ferida aberta e começou a suturá-la. Pouco podia, contudo, fazer relativamente ao rosto do rapaz, que fora belo, a não ser colocar uma compressa no nariz desfeito e rezar para que ele sarasse sem dema­siado estrago.

Chamado da mesa, Alexandre foi sigilosamente informado do incidente por Duarte.

O Papa ordenou que Afonso fosse levado para os seus aposentos priva­dos e deitado num dos seus quartos. Dezasseis dos seus melhores guardas foram convocados para servirem de sentinelas. Deu então instruções a Duarte no sentido de enviar uma mensagem urgente ao rei de Nápoles, explicando o que acontecera ao sobrinho e pedindo-lhe para mandar a Roma o seu próprio clínico, bem como Saneia, a fim de tratar do irmão e confor­tar Lucrécia.

Alexandre tinha receio de contar à filha o que se passara, mas sabia que tinha de o fazer. Regressando à mesa, postou-se mesmo diante dela.

  • Houve um acidente na praça. O teu amado esposo, Afonso, foi atacado por vários patifes traiçoeiros.

Lucrécia mostrou uma expressão abalada, pondo-se imediatamente de pé.

  • Onde está ele? Foi ferido com gravidade?

  • Os ferimentos são bastante sérios - respondeu Alexandre. - Mas, com as nossas orações, esperamos que não sejam fatais.

Lucrécia virou-se para os irmãos.

  • Chez, Godofredo, façam qualquer coisa! Descubram os vilões, encerrem—nos numa prisão e soltem-lhes os cães bravos que lhes dilacerem as carnes. -Nessa altura desatou a correr e a chorar. - Papá, leva-me até junto dele.

Alexandre indicou imediatamente o caminho, seguido por Lucrécia, César e Godofredo.

O jovem Afonso estava inconsciente, com o corpo coberto de lençóis de algodão e sangue a cair em grossos fios de cada um dos ferimentos do rosto.

Mal o viu, Lucrécia soltou um grito, após o que desfaleceu. Foi o seu irmão Godofredo que a amparou e a conduziu a uma cadeira. César tinha o rosto

coberto com uma máscara de Carnaval, mas mesmo assim Godofredo notou que ele parecia trair escassa comoção, relativamente à que ele próprio experi­mentara.

  • Irmão - perguntou Godofredo -, quem teria motivos para atacar? Só se viam os olhos de César, que cintilavam como brasas.

  • Meu irmão pequeno, cada um de nós tem mais inimigos do que possa imaginar — respondeu. Depois, relutantemente, propôs-se: — Vou ver se con­sigo descobrir alguma coisa — e abandonou o quarto.

Mal voltou a si, Lucrécia ordenou aos criados que lhe trouxessem ligaduras limpas e água quente. Levantou então cuidadosamente o lençol para ver que mais danos teriam sido causados ao seu amado, mas, ao ver o corte do pescoço até ao umbigo, sentiu-se mal e voltou rapidamente ao assento.

Godofredo mantinha-se ali, e juntos passaram a noite à espera de que Afonso abrisse os olhos. Passaram-se, contudo, dois dias sem que ele se mexesse sequer e nessa altura já o clínico de Nápoles e Saneia tinham chegado. Saneia, perturbada, inclinou-se para beijar a testa do irmão, mas não conseguiu encontrar um lugar incólume e, por conseguinte, ergueu-lhe a mão e deposi­tou-lhe um beijo nos dedos magoados e enegrecidos.

Beijou Lucrécia e o marido, Godofredo, que mesmo naquelas circunstân­cias lúgubres não conseguiu ocultar o prazer de a ver. Para Godofredo, Saneia estava mais bela que nunca: a sua exuberante e encaracolada cabeleira negra, as faces rosadas de medo pelo irmão e os olhos brilhantes de lágrimas faziam—no amá-la ainda mais.

Sentou-se ao lado de Lucrécia e pegou-lhe na mão.

  • Minha cara irmã - disse Saneia. — Que coisa medonha, aqueles terríveis vilões terem feito mal ao nosso gracioso príncipe! Agora estou aqui e podes des­cansar sem cuidados, pois eu tomarei conta do meu irmão no teu lugar.

Lucrécia sentiu-se tão grata por ver Saneia, que desatou novamente a cho­rar. Saneia serenou-a.

  • Onde está César? Já descobriu alguma coisa de interesse? Capturou os assaltantes?

Lucrécia estava tão fatigada, que a única coisa que conseguiu fazer foi aba­nar a cabeça.

  • Tenho de descansar - disse a Saneia — mas apenas por um bocadinho. Depois volto para esperar que o Afonso acorde, pois quero que o meu rosto seja o primeiro que ele veja ao abrir os olhos.

Saiu, então, e encaminhou-se com Godofredo para Santa Maria in Pórtico, onde falou aos filhos e a Adriana, após o que se deitou, exausta, na cama. Antes, porém, de mergulhar num longo sono sem sonhos, houve qualquer coisa que a assaltou e a deixou perturbada.

O seu irmão César. A sua expressão ao ouvir a notícia... ou melhor, a sua ausência de expressão. O que se passaria atrás daquela máscara?

Alguns dias depois, Godofredo e Saneia estavam finalmente sozinhos nos seus aposentos. Havia dias que ela tinha chegado e ele ansiava por estar algum tempo a sós com ela, compreendendo, contudo, a sua preocupação com o irmão enquanto o acompanhava.

Nesse momento, quando ela se despia para se deitar, Godofredo dirigiu-se a ela e rodeou-a com os braços.

  • Tive verdadeiramente saudades tuas - disse. - E lamento a tragédia que se abateu sobre o teu irmão.

Nua, de pé, Saneia passou os braços à roda do pescoço de Godofredo e, num raro momento de ternura, poisou-lhe a cabeça no ombro.

  • É sobre o teu irmão que temos de falar — disse Saneia, em voz baixa.

Godofredo afastou-se de forma a poder ver-lhe o rosto. Estava espantosa­mente bela e a sua aflição por causa de Afonso fazia-lhe o semblante parecer mais doce que o habitual.

  • Há alguma coisa no César que te perturbe? - perguntou ele.

Saneia meteu-se na cama e fez sinal a Godofredo para se lhe juntar. Virou—se para o lado enquanto ele se despia.

  • Há muita coisa no César que me perturba — disse. — Aquelas exóticas máscaras que lhe deu para usar fazem-no parecer absolutamente sinistro.

  • São para esconder as cicatrizes do mal-gálico, Saneia — observou Godo­fredo. - Tem vergonha delas.

  • Não é só isso, Godofredo — tornou Saneia. — É mais o mistério que se apoderou dele desde que voltou de França. Está diferente, sinto-o. Quer esteja inebriado com o seu próprio poder, quer o mal lhe tenha invadido o cérebro além do rosto, sinto-me temerosa por todos nós.

  • É o seu desejo de proteger a nossa família, de tornar Roma forte, de uni­ficar as cidades-estados para poderem ser governadas como deve ser, submeti­das ao Santo Padre — disse Godofredo.

A voz de Saneia era forte.

  • Não é segredo que eu não nutro afeição pelo teu pai desde que ele me mandou embora. Se não fosse pelo bem-estar do meu irmão, nunca mais vol­taria a pôr os pés em Roma. Se quiseres estar comigo, terás de regressar a Nápo­les, pois eu não confio neste Papa.

  • Ainda estás zangada com ele, e com muita razão — volveu Godofredo. — Mas é possível que o teu ódio por ele passe com o tempo.

Saneia sabia de sobra que não era assim, mas compreendia que quer ela quer Afonso estavam numa situação complicada e, portanto, desta vez guar­dou silêncio. Não obstante, perguntou a si própria o que pensaria Godofredo do pai: o que se atreveria sequer a sentir.

Ela tinha-se já metido na cama, ao seu lado, e estava apoiado sobre o braço, virado para ela; e uma vez mais, como anteriormente, ela apercebeu-se da sua inocência.

  • Godofredo - disse, tocando-lhe a maçã do rosto -, sempre reconheci que quando nos casámos te achava demasiado jovem e obtuso. Mas, desde que comecei a compreender-te, vejo a bondade da tua alma. Sei que és capaz de amar como outros da tua família não são.

  • A Crezia ama — defendeu-a Godofredo. Recordando a maneira leal como o irmão tinha guardado o seu segredo, sentiu-se tentado a acrescentar: e o César ama. Ao invés, porém, guardou silêncio.

  • Sim, a Crezia ama, e é uma infelicidade, porque o seu coração há-de ser destroçado pela ambição ilimitada quer do teu pai quer do teu irmão - ripos­tou Saneia. — Não és capaz de ver quem eles são?

  • O pai acredita na sua missão para com a igreja - explicou Godofredo. - E o César quer que Roma seja tão imponente como era no tempo do seu homónimo, Júlio César. Acredita que a sua vocação é travar guerras santas.

     Saneia sorriu meigamente a Godofredo.

Já alguma vez meditaste sobre qual é a tua vocação? Alguém to pergun­tou alguma vez, ou reparou? E como é que podes abster-te de detestar o irmão que monopoliza a admiração do teu pai, ou o pai que mal dá por ti?

Godofredo deslizou a mão pela macia pele olivácea dos ombros dela. O contacto da pele da mulher proporcionava-lhe grande prazer.

  • Sonhei, à medida que crescia, ser cardeal. Sempre. O cheiro das vestes do papá, quando era eu muito pequeno, me abraçava e eu poisava a cabeça no ombro dele, enchia-me de amor a Deus e de desejo de O servir. Mas, antes que tivesse possibilidade de escolher, o pai descobriu que eu podia ser útil em Nápoles. Casando contigo. E foi assim que acabei por te amar com o amor que tinha guardado para Deus. A sua total devoção por ela só aumentava o seu desejo de lhe fazer ver quanto lhe tinha sido sonegado.

  • O Santo Padre é muitas vezes desumano nos seus desígnios - declarou Saneia. - Vês essa desumanidade, embora esteja envolta em razão? E a ambi­ção do César roça a loucura; vês isso?

Godofredo fechou os olhos.

  • Eu vejo mais do que tu julgas, meu amor.

Saneia beijou-o apaixonadamente e fizeram amor. Passados todas aqueles anos, ele era um amante cuidadoso, pois ela tinha-o ensinado. E, acima de tudo, ele queria proporcionar-lhe prazer.

Mais tarde, ficaram deitados lado a lado e, embora Godofredo estivesse calado, Saneia sentiu que devia alertá-lo a fim de se proteger a si própria.

  • Godofredo, meu amor - disse. - Se a tua família tentou matar o meu irmão, ou no mínimo não tentou evitá-lo, e me mandou embora para obter dividendos políticos, durante quanto mais tempo pensas que estaremos segu­ros? Quanto mais tempo pensas que eles nos permitirão estar juntos?

Godofredo disse, ameaçadoramente:

  • Não permitirei que nada nos separe.

Não era tanto uma declaração como uma promessa de vingança.

César tinha passado a manhã a percorrer a cavalo as ruas de Roma, inter­rogando os cidadãos acerca do ataque contra Afonso. Alguém tinha ouvido boatos acerca de forasteiros na cidade? Como do seu interrogatório nada resul­tasse, regressou ao Vaticano, onde Alexandre lhe lembrou a reunião com o car­deal Riario a fim de discutirem projectos para o jubileu.

Almoçaram juntos no terraço do palácio do cardeal e César ofereceu uma indemnização pelos muitos festivais planeados, bem como a limpeza da cidade.

No final, caminharam pelo estreito beco até à loja de um negociante de arte que vendia antiguidades. O cardeal Riario tinha uma bela colecção particular e o negociante, que vinha altamente recomendado, possuía uma requintada escultura nova que o cardeal queria ver.

Passados alguns minutos pararam diante de uma pesada porta de madeira trabalhada e o cardeal bateu. Um homem de idade, de olhos tortos, comprido cabelo grisalho e um sorriso malicioso, abriu a porta para os deixar entrar.

O cardeal apresentou-os.

  • Giovanni Costa, trago aqui o grande César Bórgia, capitão-general, para ver as suas estátuas.

Giò Costa foi efusivo nos cumprimentos e conduziu-os entusiasticamente, atravessando a loja, a um pátio cheio de estátuas. César olhou em redor do espaço atravancado. Em cima de mesas e por todo o chão coberto de pó havia braços, pernas, bustos inacabados e outros pedaços de mármore meio escul­pido. No canto mais afastado do pátio, havia um objecto coberto com um pano.

Curioso, César apontou para ele.

  • O que é que está ali?

Costa conduziu-os à peça tapada. Com grande teatralidade, e um grandio­so movimento circular, arredou a cobertura.

  • Esta é provavelmente a peça mais sumptuosa que alguma vez me passou pelas mãos.

César susteve involuntariamente a respiração quando os seus olhos poisa­ram num Cupido de mármore branco requintadamente esculpido. Tinha os

olhos semicerrados, os lábios cheios a formar um gracioso sorriso e uma expres­são ao mesmo tempo sonhadora e cheia de saudade. Era tão translúcido que se diria cinzelado em luz e tinha umas asas tão delicadas que levavam uma pes­soa a crer que o querubim podia levantar voo a seu bel-prazer. A sua beleza, a sua pura e simples perfeição, cortaram-lhe a respiração.

  • Qual é o preço? — perguntou César. Costa fingiu não querer vendê-lo.

  • Quando se souber que o tenho — disse — o preço disparará por aí acima. César riu-se e repetiu:

  • Quanto leva por ele agora? - Pensou em Lucrécia, como ela o adoraria.

  • Hoje, para Vossa Eminência, apenas dois mil ducados - disse ele.

Antes que César pudesse dizer alguma coisa, o cardeal Riario começou a cir­cundar a peça, examinando-a detidamente e tocando-lhe. Depois virou-se para Costa e disse:

  • Mau caro, isto não é um objecto de antiguidade. Os meus sentidos dizem-me que é uma coisa feita muito recentemente.

Costa volveu:

  • Tendes olho, cardeal. Eu não declaro que seja uma antiguidade. Mas não foi acabado ontem, nem, aliás, o ano passado. É de um jovem artista de Flo­rença muito talentoso.

O cardeal abanou a cabeça.

  • Não tenho interesse por obras contemporâneas; não é isso que colec­ciono. E, de qualquer modo, nunca a um preço tão exorbitante. Vinde, César, vamo-nos embora.

Mas César não arredava pé, fascinado. Depois, sem qualquer consulta mais ou regateio, disse:

  • Não me importa quanto custa ou quando foi cinzelado; tenho de o possuir. Costa desculpou-se.

  • O lucro não me pertence todo a mim, porque tenho de pagar ao artista e ao seu representante o preço que eles pedem. E o transporte é caro...

César sorriu.

  • O vosso trabalho está terminado, pois já disse que tenho de o possuir. E por conseguinte dar-vos-ei o que me pedis. Dois mil, seja... - disse. Depois,

como se tivesse ficado a pensar no assunto, perguntou: — Como é que se chama esse jovem escultor?

  • Buonarroti. Miguel Angelo Buonarroti. Revela um certo talento, não?

Roma fervilhava de boatos. Primeiro dizia-se que César tinha abatido outro irmão, mas, uma vez que ele o negou publicamente, esse boato foi pronta­mente substituído por outro. Agora os cidadãos bichanavam que os Orsini, ira­dos com a governação de Nepi por parte de Lucrécia, tinham exercido a sua vingança sobre o marido, aliado dos seus inimigos, os Colonna.

Nas salas do Vaticano, porém, as preocupações eram outras. O Papa, atin­gido por vários acessos de síncope, estava a ficar mais fraco, de forma que tinha recolhido ao leito. Lucrécia, que se mantivera à cabeceira do marido durante o seu pronto restabelecimento, deixava agora frequentemente Saneia cuidar do irmão enquanto ela tratava do pai. Este parecia debilitado e sentia-se recon­fortado com a sua companhia.

  • Diz-me a verdade, papá — pediu-lhe ela um dia. — Não tiveste nada que ver com o ataque ao Afonso, pois não?

  • Minha querida filha — disse Alexandre, soerguendo-se na cama. - Eu não levantaria uma mão para quem te trouxe tamanha felicidade. E foi por isso que mandei postar tanta segurança à porta dele.

Lucrécia ficou descansada por saber que não tinha sido o pai a ordenar o infortúnio que se abatera sobre o marido. Mas, no preciso instante em que o Papa tranquilizava a filha, dois napolitanos trigueiros cujos rostos não eram estranhos a Saneia eram conduzidos ao interior do Vaticano, passando pelos guardas do quarto de Afonso. Este tinha vindo a restabelecer-se: naquele dia sentia-se bastante bem, embora tivesse decorrido apenas uma quinzena sobre o ataque. Já se tinha de pé, conquanto ainda não conseguisse andar.

Afonso cumprimentou efusivamente os homens, após o que pediu à irmã para os deixar por momentos, a fim de poderem conversar como é próprio dos homens quando não há mulheres presentes, pois explicou que não via aqueles amigos desde que fora para Nápoles, vários meses atrás.

Satisfeita por ver o irmão feliz, Saneia saiu do Vaticano para visitar os filhos de Lucrécia. Estaria ausente por pouco tempo. E na companhia daqueles homens tinha a certeza de que o irmão estaria em segurança.

Naquele doirado dia de Agosto fazia mais calor em Roma do que o habi­tual e os jardins do Vaticano estavam em plena floração. César caminhava sozi­nho, gozando a serenidade dos altos cedros, do suave murmúrio das fontes e do jovial chilreio dos pássaros. Raramente sentia semelhante paz. O calor não o incomodava; agradava-lhe, até, o que fazia sem dúvida jus ao seu sangue espanhol. Estava imerso em pensamentos, tentando tirar conclusões das infor­mações que acabava de receber de Don Michelotto, quando viu a bela flor exó­tica vermelha no caminho diante dele. Curvou-se para a examinar e, ao fazê—lo, ouviu o veloz assobio de uma flecha passar perigosamente próximo da cabeça, para se ir cravar num cedro próximo.

Instintivamente, atirou-se ao chão no momento em que uma segunda fle­cha sulcava os ares. E, ao mesmo tempo que gritava pelos guardas, rolou sobre si mesmo para ver de onde vinham as setas.

Além, na varanda do Palácio do Vaticano, estava o seu cunhado Afonso, amparado por dois guardas napolitanos. Um armava o seu arco a fim de dis­parar de novo, enquanto o próprio Afonso tinha o seu directamente apontado a César. A flecha cravou-se no solo a apenas alguns centímetros da sua perna. César chamou pelos seus guardas mais uma vez, gritando: «Traidor, traidor! Procurem na varanda!» Automaticamente puxou a sua espada, pensado como poderia matar o seu cunhado antes de ser atingido pela arma de Afonso.

Nessa altura os guardas do Vaticano corriam na sua direcção, gritando, e viu Afonso escapulir-se da varanda e desaparecer. César arrancou a seta da terra ao seu lado, mas não havia maneira de desalojar a que se fora cravar no cedro. Levou imediatamente a seta que recolhera ao ensaiador do Vaticano, um homem altamente competente no estudo de metais e outras substâncias.ohomem confirmou aquilo de que César desconfiava: a seta tinha sido embeada num veneno mortal e um simples arranhão teria sido fatal.

Seguidamente César dirigiu-se aos aposentos do Vaticano, onde encontrou sua irmã Lucrécia a lavar suavemente os ferimentos do marido. Afonso jazia imóvel com o peito nu a ostentar ainda a inflamada cicatriz vermelha do punhal do assal­tante. Os dois homens que estavam com ele na varanda tinham fugido por um corredor qualquer do Vaticano, mas os guardas de César iam em sua perseguição

César não disse nada à irmã. Afonso ergueu nervosamente a vista para ele, sem saber ao certo se César o reconhecera quando do ataque no jardim. César sorriu após o que se curvou sobre ele, aproximando-se muito, como que para o confor­tar, e lhe sussurrou ao ouvido:

  • O que foi iniciado ao almoço será terminado ao jantar.

A seguir voltou a endireitar-se, fitou o príncipe silencioso e beijou a irml antes de sair.

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s;

Horas depois, no mesmo quarto do Vaticano onde Afonso se restabelecia, Lucrécia e Saneia estavam a fazer projectos para irem até ao seu palácio, em Nepi. Passariam ali algum tempo juntas enquanto Afonso recobrava as forças e recuperariam o tempo perdido quando Saneia fora desterrada para Nápoles. Lucrécia tinha ganho um profundo respeito pelo espírito combativo de Saneia e estabelecera-se amizade entre elas.

Afonso tinha adormecido enquanto as mulheres conversavam baixinho à sua cabeceira. De súbito, porém, foi acordado por uma forte batida na porta. Quando Lucrécia a abriu, ficou surpreendida ao ver Don Michelotto.

  • Primo Miguel. Que fazeis aqui? - perguntou, sorrindo.

  • Vim falar como vosso marido sobre assuntos do Vaticano - respondeu ele, pensando ternamente nos tempos em que andara com Lucrécia às cavalitas, era ela criança. Fez uma vénia e perguntou: — Posso pedir a vossa compreensão por momentos? Vosso pai chama-vos e eu gostaria de ter oportunidade de falar com o vosso marido em particular.

Lucrécia hesitou um momento apenas, antes de anuir.

  • Claro, vou ter com o papá e a Saneia ficará aqui, porque esta noite o Afonso está fraco.

O rosto de Michelotto não abandonou nem por um momento a sua expres­são cordial. Curvou-se então para Saneia e disse, à guisa de desculpa:

  • É muito privada, esta conversa.

Afonso não disse uma palavra; fingiu estar a dormir, esperando que Miche­lotto se fosse embora, pois não lhe apetecia tentar explicar o que tinha estado a fazer essa tarde na varanda.

Lucrécia e Saneia abandonaram o quarto, em direcção aos aposentos do Papa, mas, antes de chegarem ao fim do corredor, foram novamente chamadas com urgência por Michelotto.

Correram de volta ao quarto para se lhes deparar Afonso deitado na cama como se dormisse, mas agora com a pele coberta de um tom azulado e o corpo imóvel e inerte.

  • Deve ter sofrido uma hemorragia - explicou Michelotto em voz baixa -porque de repente deixou simplesmente de respirar. — Nada disse sobre as mãos poderosas que tinha colocado à volta do pescoço de Afonso.

Lucrécia desatou a soluçar incontrolavelmente, ao mesmo tempo que arre­messava o corpo sobre o do marido. Saneia, porém, começou a soltar berros e guinchos, atirando-se a Michelotto, esbracejando e batendo-lhe repetidamente no peito com os punhos. Quando César entrou no quarto, Saneia caiu ime­diatamente sobre ele, arranhando-o e gritando ainda mais.

  • Filho da mãe! ímpio filho do demónio! - vociferou.

Começou a puxar-lhe os cabelos, arrancando-lhe mechas da cabeça e dei­xando muitos dos seus longos caracóis negros amontoados no chão aos seus pés.

Godofredo entrou, avançou para ela e susteve a força dos seus murros até ela não conseguir soltar mais guinchos e berros. Depois abraçou-a, a fim de tentar confortá-la, até ela conseguir deixar de tremer. Finalmente, levou-a para os seus aposentos.

Foi só depois de César mandar sair Michelotto que Lucrécia ergueu a cabeça do peito do marido morto e se virou para César. Com lágrimas a cor­rer pelas faces, disse:

  • Nunca te perdoarei isto, meu irmão, porque me arrebataste uma parte do coração que nunca mais poderá amar. Nunca poderá ser tua, porque já não me pertence. E até os teus filhos hão-de sofrer por isto.

Ele tentou alcançá-la, explicar que Afonso tinha disparado a sua arma pri­meiro. Viu-se, porém, sem palavras diante da desolação da irmã.

Lucrécia saiu então, correndo, do quarto, dirigindo-se aos aposentos do pai.

  • Nunca mais sentirei o mesmo por ti, meu pai — ameaçou —, porque me causaste mais infelicidade do que podes imaginar. Se foi às tuas ordens que alguém cometeu esta vil acção, devias, por amor, ter pensado em mim. Se foi a mão do meu irmão, devias tê-lo impedido. Mas nunca mais amarei qualquer de vós, pois traístes a minha confiança.

O Papa Alexandre ergueu a cabeça a fim de olhar para ela e a sua expressão era de surpresa.

  • Que dizes tu, Crezia? Que foi que te aconteceu?                  • Os olhos claros dela estavam ensombrados de mágoa.

  • Arrancaste-me o coração do peito e cortaste um nó que estava dado nos céus.

Alexandre pôs-se de pé e caminhou lentamente até junto da filha, mas guar­dou-se de lhe passar os braços em redor, pois estava certo de que ela se retrai­ria do seu contacto.

  • Minha querida filha, nunca ninguém fez tenção de fazer mal ao teu marido, mas ele tentou matar o teu irmão César. Eu ordenei a protecção do teu marido — disse, mas baixou a cabeça e acrescentou: — mas não podia impe­dir o teu irmão de se proteger a si próprio.

Lucrécia viu a angústia no rosto do pai e caiu de joelhos aos seus pés. Cho­rando, cobriu a face com as mãos.

  • Papá, tens de me ajudar a compreender. Que espécie de mal sobrevêm neste mundo? Que espécie de Deus é este, que permite que um amor assim se extinga? Isto é uma loucura! O meu marido tentou matar o meu irmão e o meu irmão mata o meu marido? As suas almas perder-se-ão no inferno; serão con­denados. Nunca mais voltarei a vê-los; bastou esta trágica acção para que os perdesse para sempre.

Alexandre poisou a mão na cabeça da filha e tentou pôr cobro ao seu pranto.

  • Pronto, pronto - disse. - Deus é misericordioso e há-de perdoar a ambos. A não ser assim, não há razão para Ele existir. E um dia, quando esta tragédia mundana terminar, todos nos reuniremos de novo.

  • Não posso esperar uma eternidade para ser feiii— disse Ltidécia, a cho­rar, posto o que se ergueu e abandonou a sala.                                   •

Desta vez não havia dúvidas. Toda a gente sabia que César fora responsá­vel pelo assassínio. Contudo, espalhara-se a notícia do ataque contra ele per­petrado no jardim, pelo que muitos romanos acharam que a sua acção se jus­tificava. Daí a pouco tempo os dois napolitanos foram capturados, confessaram e foram enforcados na praça pública.

Uma vez dissipado o abalo inicial, porém, Lucrécia encheu-se de furor. Entrou nos aposentos de César, gritando que ele tinha matado primeiro o irmão e agora o cunhado. Alexandre tentou impedir que César se encolerizasse, pois não queria zangas entre os seus dois filhos preferidos. César, porém, ficou atordoado e incomodado com a presunção da irmã de que ele tinha matado o irmão de ambos, João. Jamais pusera a hipótese de se defender perante ela, pois nunca imaginara que ela suspeitasse da sua pessoa.

Passadas várias semanas, Alexandre e César já não podiam suportar ver Lucrécia em pranto nem testemunhar resignadamente a sua infelicidade. Começaram, por conseguinte, a evitá-la e acabaram por a ignorar. Quando Alexandre tentou fazê-la regressar, bem como aos filhos, a Santa Maria in Pór­tico, Lucrécia insistiu em trocar Roma por Nepi e levar os filhos e Saneia com ela. O seu irmão Godofredo era bem-vindo, disse ao pai, mas nenhum outro irmão podia ir. Imediatamente antes de partir, informou Alexandre de que nunca mais queria falar com César.

César fez um esforço por se coibir de seguir Lucrécia, pois tinha imensa vontade de se lhe explicar. Sabia, porém, que de nada valeria, e, assim sendo, distraiu-se com estratégias para a sua nova campanha. A primeira coisa que sabia que tinha de fazer era ir a Veneza a fim de reduzir qualquer possibilidade

de interferência daqueles lados, porque Rimini, Faenza e Pesaro eram todos ter­ritórios sob a protecção dos venezianos.                                                        o

Após dias de viagem por mar, César aproximou-se finalmente de Veneza e a imensa e cintilante cidade de tons pastel construída sobre fendas emergiu das vastas águas escuras como algum mítico dragão. Viu diante dele a Praça de S. Marcos e a seguir o palácio dos Doges.

Do porto foi conduzido a um imponente palácio mourisco mesmo à beira do Grande Canal, onde vários nobres venezianos o receberam e o ajudaram a pôr-se à vontade. César instalou-se e daí a pouco pediu uma reunião com os membros do Grande Conselho. Ali, César explicou a posição do Papa e pro­pôs um compromisso: as tropas do Papa defenderiam Veneza dos turcos em caso de invasão e, em contrapartida, Veneza retiraria a sua protecção a Rimini, Faenza e Pesaro.

Numa cerimónia brilhantemente colorida, o conselho formulou a sua reso­lução e vestiu a César a capa escarlate de cidadão honorário. Passava a ser «um cavalheiro de Veneza».

Os dois anos que Lucrécia passara com Afonso tinham constituído o perío­do mais feliz da sua vida, uma época em que as promessas que o pai lhe fizera na infância pareciam tornar-se realidade. Agora, contudo, a mágoa que sentia pela morte de Afonso transcendia a perda do terno sorriso, do olhar brilhante e da disposição prazenteira do marido. Transcendia a perda dos risos de ambos, até mesmo a perda da sua própria inocência quando tivera pela primeira vez relações com César. Porque nessa altura ela tinha fé no pai, confiança no amor do irmão por ela e no poder do Santo Padre de impor e desobrigar o pecado. Desde a morte de Afonso, todavia, tudo isto estava para ela perdido. Agora sen­tia-se tão abandonada pelo pai como pelo seu Deus.

Viera para Nepi com Saneia, Godofredo, os filhos Giovanni e Rodrigo e somente cinquenta dos mais fiéis membros da sua corte a acompanhá-la.

Apenas um ano antes, ela e Afonso tinham ali passado as suas horas juntos a fazer amor, a escolher mobiliário requintado e tapeçarias encantadoras

decorarem o seu castelo e a passear por entre os altos e escuros carvalhos e matas dos campos vibrantes.

Nepi propriamente dita era uma cidade acanhada, com uma pequena praça central e ruas bordejadas de edifícios góticos e uns quantos castelos onde os nobres viviam. Havia uma igreja, uma igreja encantadora, construída sobre o templo de Júpiter. Ela e Afonso tinham calcorreado aquelas ruas juntos de mão dada e rindo prazenteiramente da sua singularidade. Agora, porém, tudo em Nepi parecia tão melancólico como o estado de espírito de Lucrécia.

Quer olhasse pela janela do seu castelo para o negro vulcão de Bracciano, quer se virasse para ver a cadeia azul dos montes Sabinos, tinha vontade de chorar, pois em tudo o que via, via Afonso.

Num claro dia de sol, Saneia e ela passeavam com os bebés ao colo pelo campo. Lucrécia parecia mais tranquila do que até aí, mas de súbito o balir das ovelhas e as notas doloridas da flauta do pastor mergulharam-na de novo na melancolia.

Havia noites em que jurava tratar-se de um pesadelo, que ao virar-se encon­traria o seu belo marido deitado ao seu lado, mas depois estendia a mão, tocava os frios lençóis vazios e via-se novamente sozinha. O seu corpo e a sua alma sentiam dolorosamente a sua falta. Perdera o gosto pela comida e não tinha apetite para o prazer. Todas as manhãs acordava mais cansada do que na noite anterior e os poucos sorrisos que se lhe viam eram suscitados pelos filhos. A única atitude que tomou no primeiro mês que passou em Nepi foi mandar fazer roupas para os pequenos, mas até brincar com eles parecia deixá-la exausta.

Por fim, Saneia decidiu tentar ajudar a cunhada a recompor-se. Pôs de parte a sua própria dor e dedicou-se a Lucrécia e aos bebés. Godofredo era também uma grande ajuda, confortando Lucrécia sempre que ela chorava e passando noras no castelo e nos campos a brincar com as crianças, a ler-lhes histórias e a cantar para elas todas as noites, quando as ia deitar.

Foi durante esse período que Lucrécia começou a explorar os seus senti­mentos relativamente ao pai, ao irmão e a Deus.

César encontrava-se em Veneza havia mais de uma semana e estava pronto para regressar a Roma a fim de retomar a sua campanha. Foi assim que, na noite da véspera da sua partida, César jantou com vários colegas da Universi­dade de Pisa, desfrutando o bom vinho e entregando-se a velhas recordações e conversas interessantes.

Por mais brilhante e radiosa que Veneza parecesse de dia, com a sua imen­sidão de gente, os castelos de cores pastel e telhados doirados, igrejas grandio­sas e encantadoras pontes em arco, era igualmente sinistra ao cair a noite. A crescente humidade das águas dos canais abafava a cidade sob um espesso e brumoso manto de nevoeiro, no qual era difícil encontrar o caminho. Entre os edifícios e os canais, os becos proliferavam como patas de aranha, propor­cionando refúgio aos ladrões de rua e outros patifes que não se atreviam a sair de dia.

Ao avançar pelo estreito beco que o levaria de volta ao seu palazzo, César foi repentinamente chamado à atenção por um feixe de luz que varria o canal de um lado a outro.

Olhou em redor, pois alguém tinha aberto uma porta.

Antes, porém, que César pudesse orientar-se, três homens, envergando andrajosas e puídas roupas de camponeses, precipitaram-se sobre ele. Na escuri­dão das trevas, viu o brilho das suas facas.

Virou-se rapidamente e viu outro homem que avançava para ele vindo da direcção oposta, com outra faca a brilhar na escuridão.

César estava encurralado; não tinha por onde fugir. Tanto a entrada como a saída do beco estavam cortadas por homens que esperavam para o atacar.

Instintivamente, mergulhou de cabeça nas águas lodosas do canal paralelo ao beco, coalhadas de lixo e dos esgotos da cidade. Nadou sob a superfície, retendo a respiração até ter a certeza de que o peito lhe rebentaria. Finalmente veio à superfície, na margem oposta.

Dali distinguiu dois outros homens a correr por uma estreita ponte em arco, vindos do lado do canal oposto àquele em que se encontrava. Traziam archotes, além de facas.

César inspirou outra vez profundamente; depois, voltando a submergir, nadou por debaixo da própria ponte, onde estavam fundeadas duas compridas gôndolas. Mergulhando bem fundo entre as duas embarcações, rezou para não ser visto.

Os homens percorriam para um lado e para outro cada um dos canais e becos, procurando encontrá-lo. Esquadrinharam cada recanto e cada vão com os archotes, mas, de cada vez que se aproximavam de César, este enfiava-se debaixo de água e retinha o fôlego até não aguentar mais.

Depois do que se afigurou uma eternidade, como os homens não desco­brissem nada, reuniram-se na ponte mesmo sobre a sua cabeça. Ouviu um deles resmungar:

  • Não há sinais do romano em parte nenhuma. Provavelmente o filho da mãe afogou-se.

  • Mais vale estar afogado do que a nadar no meio desta merda - comen­tou um dos outros.

  • Vamos pôr termo a isto - ouviu-se uma voz cheia de autoridade. - O Nero pagou-nos para lhe cortarmos o pescoço, e não para andarmos por aí a perseguir um ganso selvagem até ao amanhecer.

Escutou as passadas dos homens ao atravessarem a ponte por cima da sua cabeça, um por um, até deixar de ouvir o que quer que fosse.

Preocupado com a possibilidade de terem deixado um guarda de vigia numa janela ou varanda, César nadou silenciosamente ao longo da sombria margem do pequeno canal até ao Grande Canal propriamente dito, e por fim até ao cais do seu próprio palazzo. O seu guarda da noite, atribuído pelo doge, ficou admirado ao ver o ilustre hóspede sair da água a tremer e exalando um cheiro fétido.

No seu alojamento, depois de um banho quente, César vestiu uma túnica lavada e bebeu uma caneca de xerez quente. Permaneceu sentado durante bas­tante tempo, profundamente pensativo. Seguidamente deu a conhecer a sua disposição de partir de madrugada. Quando alcançassem a terra seca do “eneto, tomaria a sua carruagem.

Nessa noite César não dormiu. Quando o sol nascia sobre a laguna, embarcuu numa grande gôndola, guarnecida por três dos homens do doge armados

de espadas e arcos. Estavam para largar quando um homem corpulento, de uniforme escuro, correu para o cais.

  • Excelência — disse, esbaforido. — Tenho de me apresentar antes de partir­des. Sou o capitão da polícia que vigia este distrito da cidade. Antes de partir­des quero pedir-vos desculpa pelo incidente de ontem à noite. Veneza está cheia de ladrões e bandidos que roubam qualquer forasteiro suficientemente azarado para ser apanhado à noite.

  • Tendes de postar mais homens vossos onde alguém os possa encontrar -volveu César, sardonicamente.

O capitão tornou:

  • Far-nos-íeis um grande favor se adiásseis a vossa viagem e nos acompa­nhásseis à zona do ataque. A vossa escolta pode aguardar aqui. Talvez possa­mos entrar numa ou duas das casas próximas para que possais identificar os vossos atacantes.

César estava dividido. Queria pôr-se a caminho, mas também queria saber quem tinha planeado atacá-lo. No entanto, a investigação do ataque podia demorar horas e ele tinha muito que fazer. Outros podiam fazer-lhe chegar a informação. Agora tinha de regressar a Roma.

  • Capitão — disse César —, em condições normais teria muito prazer em vos ajudar, mas a minha carruagem está à espera. Conto chegar a Ferrara ao cair da noite, porque as estradas do campo são tão perigosas como os vossos becos. Portanto, tereis de me desculpar.

O corpulento polícia sorriu e levou a mão ao capacete.                     o

  • Regressareis brevemente a Veneza, Excelência?                                i

  • Espero que sim — respondeu César, sorrindo.

  • Ah, nesse caso talvez estejais disposto a ajudar-nos. Podeis contactar-me no quartel-general da polícia perto do Rialto. O meu nome é Bernardino Nerozzi, mas toda a gente me chama «Nero».

Durante a longa viagem de regresso a Roma, César meditou sobre quem poderia ter contratado o capitão da polícia para o assassinar em Veneza. Era, porém, uma tarefa desesperada, porque havia demasiadas possibilidades. Se ele tivesse sido morto, riu interiormente, haveria tantos suspeitos, que o crime nunca seria solucionado.

 

Ainda assim, interrogava-se. Teria porventura sido um dos parentes arago­neses de Afonso, buscando vingança pela sua morte? Ou Giovanni Sforza, ainda irado e humilhado com o divórcio e a alegação de impotência? Ou um dos Riario, enfurecido com a captura de Catarina Sforza? Ou Julião delia Rovere, que detestava todos os Bórgia, por mais civilizado que fingisse ser? Poderia sem dúvida ter sido um dos lugar-tenentes de Faenza, Urbino ou qual­quer outra cidade que quisesse deter esta campanha e evitar os seus projecta­dos ataques. Ou qualquer um das centenas de homens que guardavam ressen­timentos contra seu pai.

Quando a carruagem chegou às portas de Roma, só tinha uma certeza. Era preciso estar atento, pois era já certo que alguém pretendia vê-lo morto.

Se o seu despertar sexual com César tivera lugar no paraíso, a morte de Afonso fora a perda da graça para Lucrécia, uma vez que agora era obrigada a ver a sua vida, e a sua família, como na realidade eram. Sentia-se expulsa pelo pai, pelo Santo Padre e também pelo Pai Celeste.

A sua perda da inocência fora uma época avassaladora. De facto, vivera em reinos mágicos, míticos, mas tudo isso terminara agora. E como ela o lamen­tava! Procurou recordar como tudo começara e no entanto tudo parecia ter sempre existido...

Quando era ainda bebé, o pai, sentado nos seus aposentos com ela no regaço, tinha-a presenteado com excitantes mitos povoados de deuses olímpi­cos e titãs. Pois não era ele Zeus, o maior deus olímpico de todos? Porque a sua voz era o trovão, as suas lágrimas a chuva e o seu sorriso o sol que brilhava no rosto dela. E não era ela Ateneia, a filha-deusa que brotava já crescida da sua cabeça? Ou Vénus, a deusa do amor, ela própria?

O pai lia, com mãos adejantes e palavras eloquentes, a história da criação. E nessa altura ela era ao mesmo tempo a bela Eva, tentada pela serpente, e a casta Virgem, que dera à luz a própria bondade.

Nos braços do pai sentia-se escudada de todo o mal; nos braços do Santo Padre sentia-se defendida do mal; e assim nunca temia a morte, pois tinha a

certeza de que estaria segura nos braços do Pai Celeste. Pois não eram todos

eles a mesma coisa?

Era apenas agora, que envergava o véu negro das viúvas, que o negro véu da ilusão lhe era levantado dos olhos.

Quando se curvara para beijar os lábios frios e hirtos do marido morto, sen­tira o vazio do homem mortal e percebera que a vida era sofrimento e a morte havia de chegar um dia: para o pai, para César e para ela. Até esse momento, no seu íntimo, eles eram imortais. E por isso chorava agora por todos eles.

Havia noites em que não conseguia dormir, e de dia passava horas a cal­correar os seus aposentos, incapaz de repousar ou encontrar um momento de paz. As penumbras do medo e as sombras da dúvida seduziam-na. Por fim, sentiu que perdia os últimos resquícios de fé. Questionou tudo aquilo em que acreditava e, por conseguinte, ficou sem terreno onde se firmar.

  • Que se passa comigo? — perguntou a Saneia, porque havia dias que se dei­xava cair no terror e no desespero. Nessa altura ficava na cama e chorava Afonso, assustando-se consigo própria.

Saneia sentava-se na cama ao seu lado, massajava-lhe a testa e beijava-lhe as faces.

  • Estás a tomar consciência de que és um peão no jogo do teu pai -, expli­cava-lhe a cunhada. - Sem mais importância que a conquista dos territórios do teu irmão para o progresso da família Bórgia. E isso é uma verdade difícil de suportar.

  • Mas o papá não é assim — tentou Lucrécia protestar. — Sempre se preo­cupou com a minha felicidade.

  • Sempre? — retorquiu Saneia, com um certo sarcasmo. - Essa é uma faceta do teu pai, e do Santo Padre, que eu não consigo ver. Mas tens de te pôr boa, tens de te manter forte, porque os teus bebés precisam de ti.

  • O teu pai é bom? - perguntou Lucrécia a Saneia. - E trata-te como deve ser?

Saneia abanou a cabeça.

  • Presentemente não é bom nem cruel para mim, porque, desde a invasão dos franceses, adoeceu (enlouqueceu, dizem alguns) e contudo eu acho-o mais bondoso que antigamente. Está em Nápoles numa torre do palácio da família

com cada um de nós a cuidar dele. Sempre que se assusta, grita: «.Estou a ouvirFrança. As árvores e os rochedos chamam pela França.» Contudo, apesar de toda a sua loucura, estou em crer que é mais bondoso que o teu pai, porque, mesmo quando estava bem, eu não era o mundo dele, nem ele era o meu. Era sim­plesmente o meu pai e por conseguinte o meu amor por ele nunca foi sufici­entemente forte para me enfraquecer.

Lucrécia chorou ainda mais, pois havia na argumentação de Saneia uma verdade que ela já não podia negar. Lucrécia voltou a enrolar-se nos lençóis. E procurou discernir os aspectos em que o pai mudara.

O pai falava de um Deus que era misericordioso e alegre, mas o Santo Padre era um agente de um Deus castigador e frequentemente até cruel. O coração batia-lhe mais acelerado quando se atrevia a pensar: «Como pode tanto mal ter sido por bem, ou por Deus?»

Foi então que principiou por fim a questionar a sabedoria do pai. Seria bom e exacto tudo aquilo que lhe fora ensinado? Seria o pai verdadeiramente o Vigário de Cristo na terra? E o juízo do Santo Padre era igualmente o de Deus? Tinha a certeza de que o Deus terno que trazia no coração era muito diferente do Deus castigador que segredava aos ouvidos do pai.

Menos de um mês após a morte de Afonso, o Papa Alexandre começou a procurar outro marido para Lucrécia. Conquanto fosse talvez desumano, estava decidido a traçar planos para o futuro dela, pois, caso morresse, não queria que ela se visse reduzida à condição de viúva desamparada, obrigada a comer em pratos de barro em lugar de prata.

Alexandre chamou Duarte aos seus aposentos para falar sobre as possibili­dades.

  • Que achas de Luís de Ligny? - perguntou. - No fim de contas, é primo do rei de França.

Duarte limitou-se a dizer:

é Não me parece que Lucrécia o ache aceitável.

O Papa enviou uma mensagem a Lucrécia, em Nepi.

Recebeu uma mensagem de volta, que dizia: «Não viverei em França.» Seguidamente Alexandre sugeriu Francesco Orsini, duque de Gravina. A mensagem de volta de Lucrécia rezava: «Não desejo casar.» Quando o Papa enviou outra mensagem perguntando-lhe as suas razões, a

resposta dela foi simples: «Todos os meus maridos têm azar e eu não quero ter

outro a pesar-me na consciência.»

O Papa mandou novamente chamar Duarte.

  • Ela é pura e simplesmente impossível - disse. - É obstinada e irritante. Eu não hei-de durar sempre e, se morrer, ficará só o César para cuidar dela.

Duarte replicou:

  • Ela parece dar-se bem com Godofredo e com Saneia também. Pode ser que precise de mais tempo para se recompor do desgosto. Voltai a chamá-la a Roma e nessa altura tereis ocasião de lhe pedir que pense no que lhe sugeris. Um novo marido vem demasiado perto do antigo e Nepi fica demasiado longe de Roma.

As semanas iam decorrendo lentamente ao passo que Lucrécia procurava recompor-se da dor e encontrar uma razão para continuar a viver. Finalmente, uma noite, deitada na cama a ler à luz das velas, seu irmão Godofredo veio sen­tar-se ao lado do leito.

Com a basta cabeleira loira oculta sob um barrete de veludo verde, Godo­fredo tinha os olhos claros injectados de sangue da insónia. Lucrécia sabia que ele tinha pedido para se recolher cedo e achou, por conseguinte, estranho que ele tivesse vestido roupa nova como se fosse sair. Antes, porém, que tivesse qualquer hipótese de o questionar, ele começou a falar, como se as palavras que fossem arrancadas à força dos lábios.

  • Fiz coisas de que me envergonho — disse ele. — E julgo-me por elas. Nenhum Deus me julgaria assim. E fiz coisas pelas quais o nosso pai me jul­garia, apesar de eu nunca o ter julgado assim.

Lucrécia soergueu-se na cama, com os olhos inchados de chorar.

  • Que podes tu ter feito, irmãozinho, que o nosso pai pudesse julgar? Por­que, de nós os quatro, foste o que recebeu menos atenção e o mais dócil de todos.

Godofredo olhou para ela, que testemunhava a sua luta. Tinha aguardado imenso tempo para confessar e confiava nela acima de todas as outras pessoas.

  • Não aguento arcar por mais tempo com este pecado na minha alma -disse ele - porque o guardei durante demasiado tempo.

Lucrécia estendeu a mão para a dele, pois via-lhe nos olhos tal confusão e fcculpa, que a sua própria infelicidade parecia tornar-se menor.

  • O que é que tanto te perturba?

  • Vais desprezar-me por esta verdade — tornou ele. — Se falar disto a alguém |que não tu, a minha vida está perdida. No entanto, se não desabafar, receio

enlouquecer, ou que a minha alma esteja perdida. E para mim isso comporta um terror ainda maior. Lucrécia ficou intrigada.

  • Que pecado tão terrível é esse que te faz tremer? - perguntou. - Podes depositar a tua confiança em mim. Juro que nenhum perigo advirá para ti, por­que a tua verdade nunca passará pelos meus lábios.

Godofredo olhou para a irmã e começou a gaguejar.

  • Não foi o César que matou o nosso irmão João. Lucrécia levou prontamente os dedos aos lábios dele.

  • Não digas nem mais uma palavra, meu irmão. Não pronuncies as pala-ras que eu possa ouvir no meu coração, pois conheço-te desde que eras o bebé

em que eu pegava ao colo. Mas estou desesperada por perguntar: o que poderá er tão caro que tenha suscitado semelhante acto?

Godofredo apoiou a cabeça no peito da irmã e deixou que ela o abraçasse ernamente enquanto sussurrava:

  • Saneia - disse. - Porque a minha alma está unida à dela de uma maneira e não compreendo. Sem ela, dir-se-ia que a minha própria respiração cessa.

Lucrécia pensou em Afonso e compreendeu. Depois pensou em César, em amo ele devia estar atormentado. Sentiu então uma grande compaixão por Jos os sacrificados pelo amor, e nesse momento o amor pareceu-lhe bem lais traiçoeiro do que a guerra.

César não podia continuar a sua campanha pela Romanha sem primeiro visitar a irmã. Tinha de se avistar com ela para se explicar, para pedir perdão, para recuperar o seu amor.

Quando chegou a Nepi, Saneia tentou mantê-lo à distância, mas ele arre­dou-a, dirigindo-se aos aposentos da irmã e forçando a entrada no quarto.

Lucrécia estava ali sentada, a tocar uma dolorida melodia no alaúde. Quando viu César, paralisaram-se-lhe os dedos nas cordas e a sua canção deteve-se no ar.

Ele correu para ela e ajoelhou aos seus pés, poisando-lhe a cabeça nos joe­lhos.

  • Amaldiçoo o dia em que nasci para te causar tanta dor. Amaldiçoo o dia em que descobri que te amava mais do que à própria vida e quis ver-te nova­mente por um só instante, antes de travar outra batalha, pois sem o teu amor não há batalha que valha sequer a pena combater.

Lucrécia poisou a mão nos cabelos castanho-claros do irmão e afagou-lhos para o confortar até ele conseguir erguer a cabeça a fim de a fitar. Porém, nada disse.

  • Poderás alguma vez perdoar-me? — perguntou ele.

  • Como posso não te perdoar? — respondeu ela.                                -« Os olhos dele marejaram-se de lágrimas, embora os dela não.           

  • Ainda me amas acima de tudo na terra? - inquiriu ele.

Ela respirou fundo e deu por si a hesitar por um instante apenas.

  • Amo-te, meu irmão, porque neste jogo és mais um peão que um jogador e por isso tenho pena de ambos.

César postou-se diante dela, intrigado, mas mesmo assim agradeceu-lhe.

  • Agora que te voltei a ver, será mais fácil combater a fim de conquistar mais territórios para Roma.

  • Tem cuidado — disse Lucrécia — porque, na verdade, não poderia supor­tar outra perda.

Antes de ele partir, ela permitiu que a abraçasse e, a despeito de tudo o que acontecera, achou-se confortada por ele.

  • Parto para unificar os Estados Papais — disse ele. — E, quando nos voltar­mos a encontrar, espero ter realizado tudo quanto prometi.

Lucrécia sorriu.

  • Se Deus quiser, não há-de tardar o dia em que estaremos definitivamente de volta a Roma.

Durante os últimos meses em Nepi, Lucrécia começou a ler sem parar. Leu as vidas dos santos, explorou as vidas de heróis e heroínas e estudou os gran­des filósofos. Encheu o espírito de conhecimentos. E compreendeu por fim que havia apenas uma decisão que tinha de tomar. Iria viver a sua vida ou pôr-lhe-ia termo?

Se vivesse, perguntava a si própria, como encontraria a paz? Tinha já con­cluído que, por mais vezes que o pai a negociasse em casamento, nunca mais amaria como tinha amado Afonso.

Para encontrar a paz, contudo, sabia que tinha de ser capaz de perdoar aos que lhe tinham feito mal, pois, se não o conseguisse, a raiva que albergava no coração acorrentá-la-ia ao ódio e privá-la-ia da liberdade.

Três meses após ter chegado, começara a abrir as portas do seu palácio de Nepi, a receber as pessoas, a ouvir as suas queixas e a erigir um sistema de governo que servisse tanto os pobres como os que ostentavam ouro. Decidiu dedicar-se, e dedicar a sua vida, aos desprotegidos, que tinham sofrido como ela sofrera; àqueles cujo destino estava nas mãos de governantes mais podero­sos do que eles.

Se assumisse o poder que o pai lhe outorgara e utilizasse o nome dos Bór-gia para o bem como César o utilizava para a guerra, poderia encontrar uma vida que valesse a pena viver. Como os santos, que devotavam a sua vida a Jeus, ela devotaria doravante a sua a ajudar os outros e fá-lo-ia com tal gene­rosidade e clemência que, quando encontrasse a morte, a face de Deus lhe sor­risse.

Foi então que o pai insistiu para que Lucrécia regressasse a Roma.

23

De novo em Roma, César aprontou o seu exército; desta feita a maioria dos seus soldados eram italianos e espanhóis. Os seus infantes italianos eram disci­plinados e envergavam capacetes metálicos de cor escarlate e gibões dourados nos quais tinha sido bordado o brasão de César. O seu exército era comandado por talentosos capitães espanhóis, bem como por condottíeri veteranos, nos quais se incluíam Giampaolo Baglioni e Paolo Orsini. Para chefe do estado-maior, César escolhera criteriosamente o seu capitão, Vitellozzo Vitelli, que trazia com ele vinte e um soberbos canhões. Eram ao todo dois mil e duzentos soldados a cavalo e quatro mil e trezentos infantes. Dionigi di Naldo, o antigo capitão de Catarina, trouxe as suas tropas para auxiliar César na sua nova empresa.

O primeiro objectivo do exército foi Pesaro, ainda governada pelo ex—marido de Lucrécia, Giovanni Sforza. Alexandre tinha-o excomungado quando se descobrira que ele estava em negociações com os turcos para repe­lir o exército do Papa.

Também ali, como em Imola e Forli, os cidadãos em si não estavam na dis­posição de sacrificar as suas vidas ou os seus bens pelo seu brutal governante. Alguns dos cidadãos mais importantes prenderam o irmão de Giovanni, Galli, ao saber que César vinha a caminho, mas, em lugar de defrontar o seu terrível ex-cunhado, Giovanni fugiu pressurosamente para Veneza a fim de lhe ofere­cer o seu território.

César entrou em Pesaro debaixo de chuva, acompanhado pelo seu exército de 150 homens envergando uniformes vermelhos e amarelos, e foi recebido por

multidões felizes e grandes fanfarras. Os cidadãos renderam-se prontamente e entregaram as chaves da cidade a César. Ei-lo agora senhor de Pesaro.

Sem combate a travar, César estabeleceu de imediato o seu aquartelamento no castelo dos Sforza, nos precisos aposentos onde sua irmã Lucrécia tinha vivido. Ali dormiu na sua cama duas noites, sonhando com ela.

Na manhã seguinte ele e Vitelli conseguiram confiscar setenta canhões do arsenal de Pesaro antes de prosseguirem a campanha. Ao chegarem a Rimini César tinha acrescentado noventa canhões à sua artilharia. O obstáculo mais difícil de transpor foi a copiosa chuva que o exército enfrentou na longa tra­vessia da estrada costeira. Porém, antes que César chegasse sequer às portas da cidade, os cidadãos — ao saberem da sua vinda — expulsaram os seus odiados opressores, os irmãos Pandolfo e Cario Malatesta. E mais uma cidade se rendeu.

César estava exultante com as suas vitórias, mas a sua conquista seguinte revelar-se-ia uma tarefa difícil e esmagadora. O seu objectivo era Faenza, gover­nada pelo benquisto Astorre Manfredi. Para além de a cidade ser uma pode­rosa fortaleza cercada de altas muralhas ameadas que a defendiam, era povoa­da por cidadãos corajosos e leais. Era ainda protegida pela melhor infantaria de toda a Itália. Faenza não se renderia sem uma luta feroz.

O combate começou mal para César. Os canhões de Vitelli disparavam continuamente sobre as muralhas da fortaleza, mas apenas conseguiram abrir uma pequena brecha. Infelizmente, quando tentaram entrar por essa brecha, os homens de César foram repelidos pelos infantes italianos locais de Astorre Manfredi, sofrendo pesadas baixas.

No acampamento de César desencadearam-se disputas entre os coman­dantes mercenários italianos e os seus capitães espanhóis, culpando-se uns aos outros pela derrota.

O tempo arrefeceu impiedosamente e tudo gelou com a chegada do Inverno. As tropas começaram a queixar-se; Giampaolo Baglioni, um dos céle­bres condottieri de César, enfureceu-se com as críticas dos espanhóis e regres­sou com os seus homens a Perugia.

César sabia que, com todas estas dificuldades, não era possível vencer o combate no Inverno; teria que aguardar até à Primavera. Assim sendo, deixou uma pequena força a cercar a cidade e enviou o restante dos seus soldados para as aldeias locais que salpicavam a estrada de Rimini. Disse-lhes que contassem com uma longa permanência invernal e que se preparassem para retomar o combate na Primavera.

César, por seu turno, foi para Cesena. Esta cidade, anteriormente governada pela família Malatesta, que fugira mal soubera da sua aproximação, tinha um ande castelo e cidadãos que tinham fama em toda a Itália de serem ferozes no jmbate mas amigos de se divertirem na vida. Ocupou o Palazzo Malatesta e jmprazeu-se em convidar os cidadãos da urbe a examinarem as fascinantes e amamentadas salas onde os anteriores amos tinham vivido e amado, a fim de les mostrar o que se tinha forjado com o trabalho árduo e os sacrifícios que laviam feito.

Ao contrário dos anteriores governantes, César divertia-se no meio do povo. )urante o dia tomava parte em todos os torneios clássicos que se realizavam e legava até a entrar em justas com os nobres que tinham permanecido. Encon-rava grande deleite em ir aos seus festivais, bailes e feiras, e os cidadãos de Desena gostavam dele e sentiam-se lisonjeados com a sua companhia.

Numa dessas feiras nocturnas, César encontrou um grande salão reservadodesafios de luta. O pavimento estava coberto de palha e no centro tinham anstruído uma arena de madeira onde jovens competidores musculosos se tigalfinhavam, suando em bica e amaldiçoando-se entre si.

César esquadrinhou o compartimento cheio de gente, à procura de um competidor digno. Lá adiante, de pé junto da arena, viu um homem corpu-ento e careca, de compleição tão sólida como um muro de pedra. Levava uma abeça de vantagem sobre a estatura de César e tinha o dobro da largura, guando César se informou a seu respeito, disseram-lhe que o homem era um avrador chamado Zappitto e que era actualmente o campeão da cidade.

No entanto, o cidadão que dera esta informação a César apressou-se tam­bém a acrescentar: é — Esta noite não compete. César decidiu abordar Zappitto pessoalmente.

  • Bom homem — disse —, ouvi falar da tua reputação. Quererás porventura dar-me a honra de um desafio nesta bela noite, uma vez que és o campeão da cidade?

Zappitto abriu-se num largo sorriso, exibindo os dentes enegrecidos. Seria muito admirado na cidade depois de derrotar o filho de um Papa. E assim ficou assente, combinando-se o combate.

César e Zappitto despiram os casacos, camisas e botas. César era musculoso, mas o campeão tinha uns bicípites e antebraços do dobro da grossura dos seus. Isto proporcionava o desafio de que César precisava.

Os dois homens entraram na arena.

  • Dois derrubes de três - anunciou o árbitro em voz alta, ao que a multi­dão repentinamente fez silêncio.

Os dois homens descreveram vários círculos em torno um do outro; depois, repentinamente, o homenzarrão precipitou-se sobre César. Este, porém, mergu­lhou e arremessou o peso do corpo contra as pernas de Zappitto. Servindo-se do peso e da força do seu opositor, César arremessou-o para cima, fazendo-o passar por sobre o seu corpo, e Zappitto estatelou-se no solo atrás de si. Quando o cam­peão jazia por terra, atordoado, César abateu-se sobre o seu peito, averbando um derrube imediato.

  • Um derrube para o desafiador! — gritou o árbitro.

A multidão, surpresa, guardou silêncio por um momento, após o que começou a gritar e a aplaudir.

César e Zappitto regressaram aos lados opostos da arena.

O árbitro gritou:                                                                          

  • Começar!

Os dois homens voltaram a descrever círculos em redor um do outro. Zap­pitto, porém, não era tolo. Desta feita não houve precipitação cega. Demorou—se e continuou a deslocar-se em círculo.

Foi César quem lançou o primeiro ataque. Arremessou a perna contra os joelhos do rival, na tentativa de fazer o lavrador perder o equilíbrio. Foi, porém, como se desse um pontapé num tronco de árvore. Nada aconteceu.

Nesse momento Zappitto, que se mexia mais depressa do que César espe­rava, apoderou-se do pé deste e começou a fazê-lo rodopiar às voltas, até César

sentir a cabeça a andar à roda. O homem corpulento passou então a prisão para a coxa de César e puxou-o para os seus ombros, fazendo-o rodopiar mais duas vezes. Por fim atirou César de frente para a palha e precipitou-se sobre o seu atordoado opositor, virando-o e esmagando-lhe as costas contra o solo. A multidão rugiu quando o árbitro anunciou:

  • Um derrube para o campeão!

César demorou um minuto a desanuviar a cabeça, antes de estar pronto.

Quando o árbitro gritou «Começar!», César avançou rapidamente.

Tencionava prender a mão e os dedos de Zappitto com uma chave que tinha aprendido em Génova. Depois forçar-lhe-ia os dedos para trás e, quando o homenzarrão tentasse recuar a fim de evitar a pressão, estenderia rapidamente a perna por trás dos joelhos de Zappitto e empurrá-lo-ia por sobre a sua pró­pria perna, fazendo-o tombar de costas.

Com isto na ideia, César conseguiu agarrar a enorme mão do lavrador. Com todas as forças, começou a empurrar para trás os dedos de Zappitto. Mas, para sua surpresa, estes conservavam a rigidez de tubos de ferro.

Então, transpirando com o esforço, Zappitto fechou os dedos à volta da mão de César, esmagando-lhe os nós dos dedos uns contra os outros. César conseguiu reprimir um grito e tentou servir-se do braço livre para fazer uma chave de cabeça a Zappitto, mas o homenzarrão apanhou-lhe também esse braço. A seguir, com um franzir de cenho e uma expressão de grave intensidade no rosto, Zappitto começou a esmagar os nós dos dedos de ambas as mãos de César.

A dor foi tão intensa que cortou a respiração a César, mas, num último esforço intenso, César girou ambas as pernas para cima e enrolou-as à volta do gigantesco peito do rival. As suas pernas eram fortes e musculosas e, usando toda a sua força, César tentou asfixiar Zappitto. Com um sonoro uivo, o lavra­dor limitou-se a arremessar todo o seu peso para diante, conseguindo facil­mente fazer César tombar de costas no solo.

Zappitto atirou-se rapidamente sobre ele.

  • Derrube e vitória! — gritou o árbitro.

Quando levantou o braço de Zappitto em sinal de triunfo, a multidão aplaudiu satisfeita. O seu campeão tinha vencido.

César apertou a mão a Zappitto e felicitou-o.

  • Um combate digno - disse. A seguir puxou do casaco, que tinha poisado ao lado da arena, e tirou dele a sua bolsa.

Com uma rasgada vénia e um sorriso cativante, estendeu-a a Zappitto.

Nessa altura, a multidão entusiasmou-se ao rubro, desatando a gritar e a aplaudir. Para além de os tratar bem, o grande senhor partilhava os seus pra­zeres. Dançava, lutava e, o que era mais importante, sabia perder.

César participava naqueles festivais e torneios não apenas para seu próprio prazer, embora realmente lhe agradassem, mas porque conquistar o coração das pessoas fazia parte do seu plano para unificar a área e trazer a paz a todos os seus súbditos. A boa vontade não era, contudo, bastante. César ordenou tam­bém às suas tropas que se abstivessem de violar, saquear ou fazer mal à gente das cidades dos territórios que conquistava de alguma maneira.

César ficou, por conseguinte, furioso quando, numa fria manhã de Inverno, uma semana apenas depois do seu combate com Zappitto, um dos seus guardas lhe trouxe três infantes acorrentados.

O sargento da guarda, um tal Ramiro de Lorca, um rijo veterano romano, anunciou que eles tinham passado todo o dia a beber.

  • Mas o pior de tudo, capitão-general — disse Ramiro -, foi que entraram por um talho dentro, roubaram dois frangos e uma perna de carneiro e espan­caram desalmadamente o filho do carniceiro quando ele tentou detê-los.

César aproximou-se dos três homens, que agora se acotovelavam descon­soladamente nos degraus do seu palazzo.

  • Sois culpados, como afirma o sargento?

O mais velho, que tinha quase trinta anos, falou num tom falso e implorativo:

  • Excelência, a única coisa que fizemos foi arranjar um magro pedaço de comida. Tínhamos fome. Excelência, nós só...

O sargento Lorca interrompeu:

  • Isto não faz sentido, senhor. Estes homens são relativamente bem pagos, como toda a gente. Não têm necessidade de roubar.

Alexandre sempre dissera a César que, quando se era condutor de homens, havia que fazer opções. Opções difíceis. Olhou para os três homens e para a multidão de gente da cidade que se juntara na praça.

  • Enforquem-nos — disse César. O prisioneiro falou como se não tivesse ouvido César.               

  • Foram só uns frangos e um pedaço de carne, Excelência. Nada de grave. César caminhou direito a eles.

  • Não estás a perceber, homem. Não são apenas uns frangos. Por ordem do santo Padre, todos os elementos deste exército foram bem pagos. Porquê? Para  nem roubarem nem brutalizarem a gente das cidades que conquistamos. Os

meus soldados receberam comida suficiente e alojamentos cómodos para evitar qualquer dano às populações locais. Fiz tudo isso para que os cidadãos das terras que conquistamos não odeiem as forças do Papa. Não têm que nos ter amor, mas a minha esperança é que, pelo menos, não nos desprezem. O que vocês, seus tontos, fizeram, foi dar cabo do meu plano e violar uma ordem do Ipróprio Santo Padre.

Nessa tarde, ao pôr do sol, os três prisioneiros, soldados do exército do Papa, foram enforcados na praça como exemplo para todas as outras tropas do Papa e à guisa de desculpa a todos os cidadãos de Cesena.

A seguir, por toda a cidade e pelas estradas rurais, nas tabernas e nas casas, pessoas festejaram e todas foram unânimes em declarar que melhores tempos se avizinhavam, porque o novo governante, César Bórgia, era justo.

Com a aproximação da Primavera, o exército de César foi reforçado com um contingente enviado pelo rei Luís. Um amigo milanês recomendou tam­bém imenso o artista, engenheiro e inventor Leonardo da Vinci, que se dizia ser perito em guerra moderna.

Quando da Vinci chegou ao Palácio Malatesta, encontrou César a perscrutar um mapa das fortificações de Faenza.

  • Estas muralhas parecem sacudir os nossos bombardeamentos como um cão ie a água do pêlo. Como poderemos alguma vez criar uma brecha suficien-

lente larga para permitir um ataque bem sucedido da cavalaria e da infantaria?

Com os cabelos castanhos encaracolados a cair em compridos cachos  que quase lhe tapavam a cara, Da Vinci sorriu.

  • Não é difícil. Não é nada difícil, capitão-general.

  • Explicai-vos, por favor, Maestro — volveu César, com interesse. Da Vinci assim fez.

  • Utilizais muito simplesmente a minha torre-rampa amovível. Bem sei estais a pensar que há séculos que se usam torres de cerco e não resultam. Mas a minha torre é diferente das outras. É constituída por três partes separadas e pode ser deslocada sobre rodas até às muralhas da fortaleza no último momento do ataque. No seu interior, as escadas conduzem a uma zona de espera coberta suficientemente ampla para conter trinta homens, que ficam protegidos na frente por uma barreira de madeira articulada que pode ser bai­xada como uma ponte levadiça no topo das muralhas, criando uma rampa por onde os trinta homens avançam. Ali chegados, podem precipitar-se sobre as ameias de armas na mão, enquanto trinta outros homens podem rapidamente substituí-los na zona de espera. No espaço de três minutos, podem estar noventa homens dentro das muralhas a zurzir o inimigo. Daí a mais dez minu­tos podem lá estar trezentos, tantos quanto a minha torre suporta.

Da Vinci parou de falar, esbaforido.

  • Isso é brilhante, Maestrd — exclamou César, com uma risada sonora e rude.

  • Mas, para dizer a verdade, a particularidade mais brilhante da minha torre — prosseguiu da Vinci — é que nunca tereis de a utilizar.

  • Não compreendo - disse César, intrigado. O rosto crispado de da Vinci descontraiu-se.

  • O vosso diagrama mostra que as muralhas de Faenza têm dez metros de altura. Alguns dias antes do combate, tendes de fazer circular a informação de que estais prestes a empregar a minha nova torre e que ela pode abrir uma bre­cha em qualquer muralha até doze metros de altura. Podeis fazê-lo?

  • Claro. Todas as tabernas da estrada de Rimini estão cheias de homens que regressarão correndo a Faenza com a notícia.

  • Nessa altura iniciareis a construção da torre e certificar-vos-eis de que ela fica à vista do inimigo. - Da Vinci desenrolou um pergaminho no qual estava muito bem desenhada a volumosa torre de três partes. — Tenho o desenho aqui mesmo — disse. Ao lado do desenho, porém, cada uma das peças estava des­crita numa língua que César não conseguia ler.

                                                                                                                         uma pequena

risada. trata-se de um estratagema especial para enganar espiões e plagiadores, [ pois nunca se sabe quem tentará roubar-nos. Na maior parte dos meus dese-Inhos, escrevo de tal modo que só se consiga ler diante de um espelho. Nessa Itltura a escrita torna-se perfeitamente clara.

César sorriu, pois admirava os homens precavidos.

Da Vinci continuou:                                                      

  • Ora bem, capitão-general, o inimigo soube da temível torre. Vê-a a ser construída. E sabe que não tem muito tempo. A torre há-de chegar e, com

luralhas de dez metros, será derrotado. Que faz então? Acrescenta as muralhas até terem mais três metros. Mas cometeu um erro terrível. De que é que

esqueceu? As muralhas deixaram de ser estáveis, porque a base teria de ser eforçada para suportar o peso adicional. Mas na altura em que pensam hisso... a vossa artilharia abre fogo.

César congregou o seu exército a partir de todas as cidades circunvizinhasnãoos seus homens falaram a todos quantos estivessem dispostos a dar-lhes ouvi­dos, em todas as tabernas locais, da nova e espectacular torre de César Bórgia.

Tal como da Vinci sugerira, César mandou os seus homens darem início à anstrução bem à vista de Faenza. Quando as forças de César ocuparam as suas osições em torno da cidade e os canhões avançaram, César testemunhou o invio dos frenéticos esforços. Viam-se homens a correr à volta dos baluartes car-gando e assentando grandes pedras em cima umas das outras, nas muralhasfortaleza. Divertido, César protelou o ataque a fim de lhes dar mais tempo.

César mandou depois chamar Vitellozzo Vitelli, tendo os dois ficado na enda daquele a observar a desditosa cidade.

  • Eis o que pretendo, Vito — disse César. — Dirige todo o teu fogo para a  muralha entre aquelas duas torres. - E apontou para uma zona de largura mais que suficiente para o seu exército passar.

  • Para a base, capitão? — inquiriu Vitelli, com incredulidade. — Isso foi para onde apontámos no Inverno passado e falhámos miseravelmente. Desta vez

veríamos alvejar as ameias. Pelo menos assim sempre podemos matar uns quamtos homens deles de cada vez.

César não queria que ninguém soubesse o segredo da torre de da Vinci, uma vez que a seguir podia haver outras cidades em que quisesse usá-la.

  • Faz o que eu digo e mais nada, Vito - ordenou César. - Faz todos os dis­paros sobre a base.

O comandante da artilharia fez um ar intrigado, mas acedeu.

  • Como queirais, César. Mas será um desperdício de munições. - Fez uma ligeira vénia e saiu.

César viu Vitelli a dar ordens aos seus artilheiros, que a seguir movimenta­ram os canhões na direcção da zona que César tinha designado. Os homens baixaram a elevação das peças a fim de diminuírem o ângulo de fogo.

César ordenou à infantaria e à cavalaria ligeira que se juntassem mesmo atrás das peças. Horas antes, tinha envergado também ele a armadura. Deu então indicações aos seus homens de armas para se prepararem e aprontarem as res­pectivas montadas, uma vez que deveriam permanecer a cavalo. Eles murmu­raram. O cerco podia durar meses. Deveriam permanecer a cavalo até ao Verão?

Quando César se certificou de que as suas forças estavam prontas, fez sinal a Vitelli para dar início ao bombardeamento.

Os condottien gritaram por seu turno:

  • Fogo!

Os canhões travejaram uma vez, foram carregados e travejaram de novo. César viu as balas embaterem nas muralhas, um metro ou metro e meio apenas acima do solo. O bombardeamento prosseguiu sem trégua. Por duas vezes Vitelli olhou para trás, na direcção de César, como se este estivesse louco. E por duas vezes César lhe fez sinal para continuar a disparar como lhe tinha ordenado.

De súbito, ouviram um rumor surdo, que se foi tornando mais intenso a medida que toda uma zona de quinze metros da muralha abatia, esboroando—se no solo e levantando uma enorme nuvem de poeira. Ouviam-se os gritos dos soldados que estavam a defender aquela porção da muralha, dos poucos que tinham sobrevivido.

César ordenou imediatamente às suas tropas que avançassem.

Com um grande brado, a cavalaria ligeira precipitou-se sobre a brecha, seguida pela infantaria. Todos eles divergiriam, uma vez no interior das mura­lhas, a fim de voltarem a atacar pela retaguarda.

César esperou somente quatro minutos, após o que deu o sinal de ataque aos seus homens de armas.

As forças de reserva da cidade precipitaram-se para a zona da brecha e pre­pararam-se para defender a abertura. Foram, porém, esmagados pela investida dos homens de César.

Os consternados defensores de Faenza que se encontravam nas porções da muralha ainda de pé viram-se atacados pela retaguarda. Os arcos, espadas e lanças dos soldados de César não tardaram a abater-se sobre eles. Daí a minutos,  um oficial de Faenza gritava:

  • Rendemo-nos! Rendemo-nos!

César viu os soldados da praça deporem as armas e levantarem as mãos. Fez um aceno afirmativo, após o que deu indicações aos seus comandantes para | pararem a carnificina. E foi assim que Faenza ficou sob o controlo do Papa.

O respectivo governante, o príncipe Astorre Manfredi, recebeu de César lum salvo-conduto e autorização de partir para Roma. Em lugar de o fazer, impressionado com César e o seu exército e ansioso por aventuras, pediu para ficar por uns tempos, para servir porventura no estado-maior de César. Este ficou surpreendido, mas acedeu. Manfredi tinha dezasseis anos, mas era um jovem inteligente e sensato. César gostou dele.

Depois de uns dias de descanso, César estava pronto para tornar a fazer avançar os seus homens.

Deu a da Vinci uma quantidade substancial de ducados, a atafulhar uma alsa de pele, e pediu-lhe seguidamente que acompanhasse o exército na sua larcha. Da Vinci, porém, abanou a cabeça:

  • Tenho de regressar às artes, porque o jovem e laborioso cinzelador Miguel ígelo Buonarroti anda a obter boas encomendas, enquanto eu perco o meu

empo num campo de batalha. Ele tem talento, devo reconhecê-lo, mas não em profundidade nem subtileza. Tenho de regressar.

Então, ao montar no seu cavalo e preparar-se para seguir rumo ao norte, césar disse adeus a da Vinci. O mestre estendeu a mão, entregando a César ia folha de pergaminho.

  • éuma lista das várias habilidades que pratico, Príncipe: pintura, frescos, tializações... muitas coisas. O pagamento é uma coisa que podemos discutir.

  • Sorriu e depois veio-lhe uma ideia. - Excelência, fiz um fresco da Última Ceia em Milão. Adorava que o Santo Padre o visse. Achais que ele o faria?

César acenou afirmativamente.

  • Eu vi-o, quando estive em Milão. É verdadeiramente maravilhoso. O Santo Padre tem um grande amor a todas as coisas belas. Tenho a certeza de que estará interessado.

Enrolou cuidadosamente o pergaminho e enfiou-o num bolso da capa. Depois, com um cumprimento a da Vinci, fez a sua fogosa montada virar para a estrada que seguia rumo a norte.

24

À medida que César deslocava o seu exército para norte, seguindo a estrada Rimini-Bolonha, rumo precisamente a esta última cidade, Astorre Manfredi seguia ao seu lado. Astorre possuía um feitio aprazível e vontade de trabalhar com afinco. Jantava todas as noites com César e os seus comandantes, divertindo-os com canções libertinas dos camponeses de Faenza. Após a refeição da noite, ouvia César analisar a situação e formular planos para os dias subsequentes.

Naquele momento, César enfrentava graves problemas estratégicos. Tinha praticamente terminado a campanha para estabelecer o controlo papal sobre a Romanha, mas não podia aspirar a tomar Bolonha, uma vez que esta se encon­trava sob protecção francesa. Mesmo que pudesse, não queria hostilizar o rei Luís e tinha a certeza de que o Papa não aprovaria semelhante ataque.

A verdade era que o objectivo real de César não era a cidade de Bolonha em si, mas sim Castel Bolognese, uma poderosa fortaleza no exterior da cidade. E César dispunha de uma carta oculta: os Bentivoglio, que governavam Bolo­nha, sabiam apenas que o respeitável César Bórgia e as suas tropas avançavam na sua direcção. Nem os comandantes de César se encontravam ao corrente dos seus objectivos e estavam preocupados com o seu plano de atacar Bolonha.

Depois de muito pensar, e com grande astúcia, César avançou com os seus homens até uns quilómetros antes das portas da cidade. O governante de Bolo­nha, Giovanni Bentivoglio, um homem corpulento, veio num cavalo gigan­tesco ao seu encontro. Atrás dele vinha um porta-estandarte com a sua insíg­nia: uma serra vermelha num campo branco.

Bentivoglio, um líder forte mas pessoa razoável, abeirou-se de César. — César, meu amigo, é forçoso que nos batamos? Não é provável que ven­çais... e, mesmo que assim aconteça, os vossos amigos franceses destruir-vos—ão. Não há maneira de eu vos poder induzir a abandonar a vossa disparatada empresa?

Decorridos vinte minutos de intensa negociação, César concordou em não atacar Bolonha e Bentivoglio anuiu, em contrapartida, em dar Castel Bolognese a César. A pedido de César, como prova de boa fé, Bolonha forneceria também tropas para futuras campanhas papais.

No dia seguinte, os homens de César ocuparam Castel Bolognese. As pode­rosas muralhas ajudá-los-iam a repelir os inimigos, os grandes paióis subterrâ­neos continham numerosas munições e os alojamentos dos oficiais eram invul­garmente cómodos para uma fortaleza militar. César e os seus comandantes ficaram satisfeitos.

Nessa noite César brindou-os com um sumptuoso festim de cabrito assado com molho de figos e pimentos, acompanhado de rabanetes salteados em azeite e ervas da região. Conversaram, dançaram e beberam uma grande quan­tidade de vinho tinto de Frascati.

Todas as suas tropas e infantes comemoraram também, quando César pas­sou no meio deles, agradecendo-lhes e felicitando-os pela vitória. O seu exér­cito sentia grande afeição por ele e era-lhe leal, como os cidadãos das terras que conquistava.

Após a refeição, César e os seus oficiais despiram-se e mergulharam nos banhos de vapor sulfuroso do castelo, que eram alimentados por uma nascente subterrânea. Por fim, descontraídos, chapinharam na água quente e lamacenta, que cheirava levemente a ovos podres.

Mais tarde, um por um, os comandantes de César abandonaram os banhos e lavaram-se com baldes de água fresca e limpa de um poço próximo. Final­mente, só César e Astorre Manfredi ficaram, flutuando preguiçosamente nas tépidas águas lamacentas.

Passados uns instantes, César sentiu uma mão na parte interior da coxa. Bastante embriagado, reagiu com lentidão, à medida que os dedos se desloca­vam levemente para cima, para o acariciar e excitar.

Repentinamente alerta, César arredou suavemente a mão de Astorre.

  • Eu não sou desses, Astorre. Não sou como tu. Não é pura e simplesmente a minha preferência.

  • Não estás a perceber, César. O que eu sinto por ti não é desejo — disse Astorre, com sinceridade. — Estou verdadeiramente apaixonado por ti, e há já bastante tempo.

César soergueu-se na água lamacenta, tentando pôr os pensamentos em ordem.

  • Astorre - disse. - Eu encaro-te como um amigo. Gosto de ti e admiro—te. Mas não é só isso que tu esperas, não é verdade?

  • Não — disse Astorre, com uma certa tristeza. — Não é. Estou apaixonado por ti da mesma maneira que Alexandre o Grande amou o seu rapaz persa. Da mesma maneira que o rei inglês Eduardo II amou Piers Gaveston. Tenho a cer­teza, correndo o risco de parecer disparatado, que se trata de amor verdadeiro.

  • Astorre — disse César, brandamente mas com segurança —, eu não posso ser isso para ti. Conheço muitos bons homens que são soldados, atletas, mesmo cardeais, que têm relações dessas e gostam. Mas eu não sou assim, Astorre. Isso, não posso dar. Posso ser o teu amigo leal, mas mais do que isso não.

  • Eu compreendo, César - disse Astorre, mas nessa altura pôs-se de pé, constrangido e perturbado. — Parto amanhã para Roma.

  • Não tens que fazer tal coisa — redarguiu César. — Não fico com pior impressão tua por teres declarado que me tinhas amor.

  • Não, César — tornou Astorre. - Já não posso ficar. Ou aceito o que tu dis­seste, e nessa altura torna-se-me demasiado doloroso estar todos os dias con­tigo, ou me iludo pensando que ainda há esperança. Nesse caso havia de con­tinuar a tentar captar as tuas atenções até que, um dia, te zangarias, ou, pior ainda, sentias repugnância por mim. Não, tenho de partir.

Na madrugada do dia seguinte, Astorre apertou a mão a cada um dos comandantes. Virou-se para César e abraçou-o, segredando-lhe ao ouvido:

  • Adeus, meu amigo. Os meus sonhos serão sempre preenchidos com o que poderia ter sido. — A seguir, com um sorriso de afecto, Astorre Manfredi mon­tou a cavalo e dirigiu-se para sul, a caminho de Roma.

Nessa noite, César ficou na tenda a pensar no seu próximo alvo militar Quando se apercebeu de que tinha atingido todos os objectivos que o pai lhe estabelecera, compreendeu que era tempo de regressar a Roma.

Contudo, César tinha ainda apetite de conquistas, tal como os seus comandantes, Vitellozzo Vitelli e Paolo Orsini, que então o instigaram a ata­car Florença. Vitelli desprezava os florentinos e Orsini queria repor no poder os Mediei, que eram velhos aliados da sua família. César gostava tanto de Flo­rença como dos Mediei, além do que tinha lealdades antigas. Mesmo assim, hesitava.

Quando os raios do sol matinal começaram a coar-se através da sua tenda, César ponderou a sua decisão. Possivelmente Vitelli e Orsini tinham razão; possivelmente podiam tomar a cidade e voltar a colocar os seus amigos Mediei no poder. Mas, por mais jovem e agressivo que fosse, César sabia que um ata­que a Florença era um ataque a França. Semelhante aventura seria temerária, uma vez que se perderiam muitas vidas; e, mesmo que ele conseguisse tomar a cidade, os franceses nunca o deixariam conservá-la. Por fim, decidiu: em lugar de atacar a cidade, empregaria uma estratégia semelhante à que utilizara com os bolonheses.

Conduziu o seu exército para sul até ao vale do Arno, colocando-o, tal como em Bolonha, a poucos quilómetros das muralhas da cidade.

Ali, o comandante florentino saiu a fim de parlamentar, acompanhado por um pequeno séquito de tropas, com bandeiras a drapejar e o sol a refulgir nas armaduras. César viu-os olharem nervosamente para os canhões de Vitelli. Tinha a certeza de que queriam evitar o combate. Não havia o castelo ou forte que César buscava, de forma que se contentou com a promessa de um apre­ciável pagamento anual, além de uma aliança continuada contra os inimigos do Papa.

Não foi uma grande vitória. Não tinha reposto os Mediei no poder. Era, contudo, a decisão acertada. E havia outras terras a conquistar.

César pôs então o seu exército em marcha para sudoeste, em direcção a cidade ribeirinha de Piombino. Ali, ao largo, viu a ilha de Elba, com as suas

famosas e bem nutridas minas de ferro. Ali estava um objectivo que podia tomar! Que esplêndida conquista a ilha constituiria! Que trofeu para o pai! Parecia, no entanto, uma tarefa impossível, pois César não possuía experiência naval.

Estava a ponto de abandonar o seu sonho mais recente quando avistou três homens cavalgando para ele, vindos da direcção de Roma. Com espanto, aca­bou por distinguir de quem se tratava: o seu irmão, Godofredo, com Miche-lotto e Duarte Brandão.

Godofredo tomou a dianteira para o saudar. Pareceu a César mais largo e um pouco mais velho. Trazia um gibão de veludo verde com calções verdes e dourados. O seu cabelo loiro esvoaçava debaixo de uma mitra de veludo verde. A sua mensagem, porém, era sucinta e clara, embora fosse transmitida com afecto:

  • O pai felicita-te pela tua brilhante campanha. E anseia pelo teu regresso, mandou-me dizer que está cheio de saudades tuas. E manda-te regressar a

roma sem demora, pois as tuas tácticas ardilosas com os militares junto de bolonha e Florença suscitaram o ressentimento do rei francês. César, o pai avisa que não se pode passar novamente nada desse género. Nada.

César levou a mal o emprego do irmão mais novo para transmitir esta men­sagem e percebeu que Brandão e Michelotto ali estavam para o caso de ele mostrar teimosia ou resistência.

César pediu para falar com Duarte Brandão em particular. Enquanto cami­nhavam ao longo das docas, César apontou para Elba, ao largo, envolta na bruma distante.

  • Sabes até que ponto são abundantes aquelas minas de ferro, Duarte? -perguntou. - O suficiente para financiar uma campanha contra o mundo inteiro. Gostaria de conquistar a ilha para o pai. Seria uma bela prenda para o seu aniversário, que está próximo, e raramente tive uma ocasião semelhante de o surpreender. Que outra coisa se pode dar ao Santo Padre? Ultimamente ele tem andado tão sério, que gostaria de o ver rebolar-se de riso. E no próximo ano pode cair sob a protecção dos franceses, se não se fizer mais nada. Porém, por muito que eu a queira para ele, de momento o desafio está para além das minhas capacidades.

 

Brandão manteve-se silencioso, observando a neblina. César parecia tão cheio de entusiasmo perante a perspectiva de tão grandioso presente para o Papa, que Duarte se sentia inclinado a ajudá-lo. Virou-se e fitou oito galeões genoveses atracados no cais.

  • Acho que posso realizar o que desejais, César, se os vossos homens esti­verem pelos ajustes. Outrora, há muito tempo, comandei barcos e travei com­bates no mar.

Pela primeira vez na vida de César, Duarte falava do passado com saudade. César hesitou um momento. Depois, baixinho, perguntou:

  • Inglaterra?

Duarte crispou-se e César percebeu que tinha sido presunçoso. Passou o braço à volta do ancião.

  • Desculpa — disse. — Não tenho nada com isso. Ajuda-me apenas a tomar aquela ilha.

Sentiu que Duarte se descontraía. Durante um momento mais ficaram a fitar silenciosamente Elba, para lá da baía. A seguir Duarte apontou para os navios genoveses.

  • Guarnecidos por gente competente, aqueles navios velhos e desajeitados são de confiança, César. E estou convencido de que os defensores da ilha se preocupam mais com os piratas do que com exércitos invasores. As suas defe­sas - canhões, redes de ferro e brulotes - hão-de estar concentradas na baía, onde se espera que os piratas ataquem. Encontraremos uma praia tranquila do outro lado da ilha e desembarcaremos lá gente bastante do vosso exército para tomar a ilha.

  • Como se portarão os cavalos e os canhões em semelhante viagem?

  • Receio que não muito bem — respondeu Duarte. — Os cavalos ficariam aterrados e criariam devastação e mesmo uma carnificina; quanto aos canhões, rebolariam e fariam rombos no costado dos navios, afundando-os bastante depressa. Não levaremos nem uns nem outros. A infantaria será suficiente.

Depois de examinar mapas genoveses e fazer planos para dois dias, a força de invasão estava pronta. Os oito galeões soltaram as velas, atestados de solda­dos de infantaria e respectivos capitães. Levantaram ferro, acenando jovial­mente aos camaradas de cavalaria e artilharia que haviam ficado no cais.

A sua jovialidade foi de pouca dura. Durante a lenta e sacudida viagem pela [baía fora e à volta da ilha, muitos dos homens enjoaram violentamente, vomi-itando por todo o lado. O próprio César sentiu náuseas, mas mordeu o lábio tentando furiosamente escondê-lo. Michelotto e, surpreendentemente, Godo-fredo pareciam impassíveis.

Duarte, perfeitamente à vontade, mandou os navios fazerem-se a uma tran­quila baía, com uma praia de areia branca e cintilante. Atrás da praia havia arbustos de um verde acinzentado dispersos e umas quantas oliveiras nodosas, com um carreiro que atravessava os montes. Não havia vivalma à vista.

Os oito galeões aproximaram-se bastante de terra, mas não o suficiente. Com uma profundidade de metro e meio, os infantes mostravam relutância em nadar até terra. Ciente do seu temor, Duarte ordenou aos homens de cada um dos navios que amarrassem um comprido e pesado cabo à proa e o largas­sem para o mar. Depois escolheu-se um homem de cada galeão que nadasse bem, dando-se-lhe ordem para segurar o cabo e nadar até à praia, a fim de o passar a uma das oliveiras nodosas que bordejavam a costa.

A seguir, Duarte pediu a César que mandasse metade dos homens amarra­rem as armas às costas. A outra metade manter-se-ia a bordo dos navios até ver o sinal de que a cidade tinha sido tomada.

Eles fizeram o que lhes era ordenado, mas não sem resmungar. Duarte foi o primeiro a saltar pela borda; depois, agarrando no cabo do seu navio e erguendo-o bem alto para todos o verem, pôs-se a nadar, segurando a corda alternadamente com uma e outra mão, até à praia.

César foi o segundo a saltar pela borda, seguindo Duarte pela corda fora até à praia. Tranquilizados, os soldados transpuseram a amurada uns a seguir aos outros, agarrando-se ao cabo esticado à medida que avançavam para terra, pois tudo era preferível a ficar nos navios ao sabor do balanço.

Uma vez desembarcadas as tropas e secas ao sol, César conduziu-as para fora da praia, ao longo de um carreiro íngreme e sinuoso que cruzava os mon­tes. Passada uma hora, tinham alcançado o cimo, de onde puderam avistar a cidade e a baía.

Tal como Duarte predissera, havia enormes canhões de ferro fundido apon­tados em posições fixas à entrada da baía. Uma hora mais tarde, não conse-

guiram avistar do cume qualquer artilharia móvel nem mais do que uma pequena unidade defensiva de milícia a marchar na praça principal.

Silenciosamente, César conduziu as suas tropas pelo carreiro da montanha abaixo até chegarem à orla da cidade.

  • À carga! À carga!- gritou César, ao que desataram todos a correr e a gri­tar, brandindo as armas, pela rua principal adiante, rumo à praça central A milícia, em grande inferioridade numérica, foi colhida de surpresa e rendeu—se rapidamente.

Os aterrados habitantes da cidade escapuliram-se para as respectivas casas. César enviou uma força para se apoderar dos sólidos canhões e outra para tomar posse das minas de ferro, enquanto Duarte chefiava um contingente para se assenhorear do cais. Finalmente, César ordenou ao seu porta-estandarte que içasse o touro a investir dos Bórgia e a sua própria bandeira com a chama no pau vazio da praça da cidade.

Quando a nervosa delegação de cidadãos chegou à praça, César identificou—se e avisou-os de que a ilha estava agora sob controlo papal, mas tranquilizou—os dizendo que nada tinham a temer.

Nessa altura, os seus oito navios genoveses dobravam o promontório.

Os soldados acenderam então uma fogueira na praia para indicar que a cidade tinha sido tomada e que os galeões podiam entrar sem perigo no porto. Quando estes entraram, ostentando a bandeira dos Bórgia, e atracaram ao cais, os restantes soldados desembarcaram.

Depois de se inspeccionarem as minas de ferro e se escolherem um contin­gente de homens para assegurar a posse da ilha, as tropas estavam prontas para regressar ao continente. César voltou a fazer embarcar os seus homens nos navios.

E foi assim que, quatro horas apenas depois do primeiro desembarque na praia, César Bórgia e Duarte Brandão capturaram a ilha de Elba. Agora Miche-lotto, Godofredo, César e Duarte cavalgavam lado a lado durante a longa jor­nada de regresso a Roma.

25

O cardeal delia Rovere e o cardeal Ascânio Sforza encontraram-se secreta­mente num almoço de rosado presunto salgado, pimentos vermelhos assados a gotejar azeite verde, salpicados de diversos dentes de alho reluzentes e estala-diças carcaças de pão de sêmola acabado de cozer. O vinho tinto de boa qua­lidade era abundante e contribuía para lhes soltar a língua.

Ascânio foi o primeiro a falar.

  • Dar o meu voto a Alexandre no último conclave foi um erro. Ser vice—chanceler dele é uma tarefa impossível, porque, embora o seu talento admi­nistrativo seja irrepreensível, é um pai demasiado dedicado. E estraga os filhos a tal ponto que é capaz de levar a igreja à bancarrota quando um novo Papa ascender ao trono. O desejo de César Bórgia de conquistar e unir os territó­rios da Romanha esvaziou praticamente os cofres papais com os seus inces­santes pagamentos às tropas. E não há rainha nem duquesa que tenha um guarda-roupa tão requintado como este jovem filho do Papa.

O cardeal delia Rovere sorriu com um ar entendido.

  • Mas, meu caro Ascânio, não viestes de tão longe só para discutir agora os pecados do Papa, porque nisso não há nada de novo. Há-de haver outra razão que permanece invisível para mim.               o o   o

Ascânio encolheu os ombros.

  • O que é que há a dizer? O meu sobrinho Giovanni foi humilhado pelos Bórgia e Pesaro pertence agora a César. A minha sobrinha Catarina, uma ver­dadeira virago, está presa num dos castelos dos Bórgia e os seus territórios

 

foram igualmente conquistados. O meu próprio irmão, Ludovico, foi captu­rado e relegado para uma masmorra pelos franceses, porque eles detêm Milão. Agora ouvi dizer que Alexandre fez um pacto secreto com a França e a Espa­nha para dividir Nápoles, a fim de que César possa usar a coroa. É uma abo­minação!

  • E qual é a vossa solução? - inquiriu delia Rovere. Esperara que Ascânio tivesse vindo ter com ele mais cedo, mas agora sentia a necessidade de maior vigilância, porque numa época de semelhantes traições, as cautelas nunca eram de mais. Embora os criados tivessem de jurar que não tinham olhos nem ouvi­dos, tanto delia Rovere como Ascânio sabiam que uns quantos ducados podiam restituir aos surdos o dom da audição e aos cegos o dom da visão. Para os que padeciam a pobreza, o ouro podia sempre operar mais milagres que a oração.

Assim, depois de Ascânio falar, segredou:

  • Quando Alexandre já não estiver sentado no trono como Papa, há a espe­rança de que os nossos problemas se possam resolver. E não há dúvida de que num novo conclave sereis vós o escolhido.

Os olhos escuros de delia Rovere dir-se-iam frinchas de negro no rosto pálido e gordo.

  • Não vi nenhum indício de que Alexandre esteja disposto a renunciar. Ouvi dizer que está bastante bem de saúde e, quanto a qualquer outra possi­bilidade, é sabido que o filho é louco. Quem se arriscaria a fazer-lhe mal?

Ascânio Sforza colocou a mão no peito e falou com sinceridade.

  • Não me interpreteis mal, cardeal. Este Papa tem inimigos que ficariam gratos pela nossa ajuda. E um filho mais novo... que tem rezado verdadeira­mente pelo barrete cardinalício. Não estou a sugerir que participemos em qual­quer acto que nos macule a alma. Não estou a sugerir nada que nos cause perigo - disse. - Estou apenas a pedir que encaremos uma alternativa a este papado: nem mais, nem menos.

  • Estais a sugerir que este Papa pode repentinamente adoecer? Um gole de vinho, porventura, um marisco estragado? - perguntou delia Rovere.

Ascânio falou suficientemente alto para que os criados ouvissem.

  • Ninguém pode garantir quando o Pai Celeste chamará um dos seus filhos à Sua casa.

Delia Rovere digeriu o que Ascânio dissera, elaborando uma lista mental

dos inimigos dos Bórgia

  • E verdade que Alexandre está a planear um encontro com o duque de Fer­rara para sugerir uma nova aliança matrimonial para a filha com o filho do duque, Afonso?

  • Não ouvi grande coisa a esse respeito - respondeu Ascânio. - Mas é ver­dade que há-de ter chegado alguma coisa aos ouvidos do meu sobrinho, Gio-vanni, pois ultimamente foi a Ferrara. E, por mais que toda a gente tente, não há quem o convença a ter tento na língua. Não tenho dúvidas de que Ferrara recusará qualquer aliança que envolva a infame Lucrécia, porque ela é merca­doria usada.

Delia Rovere pôs-se de pé.

  • César Bórgia vai capturar os territórios da Romanha e colocá-los sob o controlo do Papa. Ferrara é o último território que resta e, uma vez formada a aliança, os Bórgia serão donos de nós todos. Estou certo de que Alexandre pre­feriria vencer pelo amor a vencer pela guerra. Por conseguinte, há-de fazer muita força por esta aliança. Nós temos de fazer força contra ela, porque ele tem de ser detido.

Agora, com a família de regresso a Roma, Alexandre apressou as críticas negociações para o enlace da filha, Lucrécia, com Afonso dEste, de vinte e quatro anos de idade, o futuro duque de Ferrara.

A família dEste era a mais antiga e respeitada família da nobreza italiana e toda a gente pensava que a mais recente tentativa de Alexandre fracassaria. Ele, porém, sabia que era preciso que assim não acontecesse.

O ducado de Ferrara ficava situado numa zona de grande importância estratégica. Constituía um amortecedor entre a Romanha e os venezianos, que eram frequentemente hostis e indignos de confiança. Além disso, Ferrara estava bem armada e bem defendida e constituiria um aliado altamente desejável.

Muitos romanos achavam, contudo, difícil acreditar que os aristocráticos e poderosos dEste alguma vez entregassem a adorada herdeira do seu altivo

ducado a um Bórgia - uma família de recém-chegados espanhóis - apesar do prestígio de Alexandre como Papa e da riqueza e excelência como guerreiro de César.

Contudo, Ercole dEste, pai de Afonso e actual duque de Ferrara, era um realista impenitente. Estava bem ciente da competência militar e da agressivi­dade de César. Com todas as suas defesas, Ferrara passaria por grandes difi­culdades se o poderoso exército de César a atacasse. E Ercole não tinha garan­tia de que, no ano seguinte, César não atacasse.

Sabia que uma união com os Bórgia poderia transformar um inimigo potencialmente perigoso num poderoso aliado contra os venezianos. E, pen­sava ele, um Papa era, afinal de contas, o Vigário de Cristo na terra e chefe supremo da Santa Madre Igreja. Se isso fosse tido em consideração, compen­sava, pelo menos em parte, a falta de antecedentes familiares e cultura dos Bórgia.

Os dEste, que dependiam dos franceses, estavam desejosos de agradar ao rei Luís. Ercole sabia que o rei estava decidido a conservar a boa vontade do Papa e que favorecia a união entre Afonso e Lucrécia - facto que fizera ques­tão de dar a conhecer a Ercole nas últimas semanas.

E, assim, as difíceis e complexas negociações prosseguiram durante dias. No final, como em tantas outras situações do género, subsistia a questão do dinheiro.

No dia derradeiro Duarte Brandão juntou-se a Alexandre e Ercole dEste para uma sessão que todos eles esperavam que, por fim, desembocasse num acordo. Instalaram-se os três na biblioteca de Alexandre.

  • Santo Padre - principiou Ercole —, reparei que por todos os vossos esplên­didos aposentos tendes apenas as obras de Pinturicchio. Nada de Boticelli? Nada de Bellini ou Giotto? E que pena não terdes nenhuma das obras de artis­tas tais como Perugino ou Fra Filippo Lippi!

Alexandre manteve-se imperturbável. Tinha as suas próprias concepções artísticas inabaláveis.

  • Gosto de Pinturicchio. Um dia há-de ser reconhecido como o maior de todos.

Ercole sorriu com ar paternalista.

  • Acho que não, Santidade» Desconfio que talvez sejais o único homem em

Itália a ter essa opinião.

Duarte reconheceu as observações de Ercole como uma táctica negociai superficialmente disfarçada, uma maneira de realçar a grandeza e riqueza cul­tural dos dEste e daí, por comparação, os gostos vulgares e ignorância cultural | dos Bórgia.

  • Talvez tenhais razão, Don Ercole — retorquiu maliciosamente Duarte. — Asocidades que conquistámos este ano continham muitas obras dos bons artistas que referis. César propôs-se enviá-las para cá, mas Sua Santidade recusou. Ainda

espero persuadi-lo do valor de tais obras de arte e de como elas embelezariam o Vaticano. Aliás, ainda recentemente conversámos sobre o facto de a vossa pró­pria cidade, Ferrara, ter a maior e mais valiosa colecção de todas... para além da tsua riqueza em ouro e prata.

Ercole empalideceu momentaneamente, apercebendo-se de imediato de onde Duarte, sem demasiada subtileza, queria chegar.

  • Bem — disse, mudando de assunto. — Talvez devêssemos discutir a questão do dote.

  • Quais eram as vossas expectativas, Don Ercole? - perguntou Alexandre |com alguma apreensão.

  • Eu estava a pensar em trezentos mil ducados, Santidade — disse presumi-| damente Ercole.

Alexandre, que tinha planeado começar por oferecer trinta mil, engasgou-se com o vinho.

  • Trezentos mil ducados é um escândalo — declarou.

  • No entanto, é o mínimo que eu poderia aceitar sem ofensa - retorquiu Ercole. - Porque o meu filho, Afonso, é um belo jovem, com um futuro extraordinário e muito requestado.

Regatearam durante mais de uma hora, tendo cada uma das partes avançado todos os argumentos imagináveis acerca da liberalidade da sua proposta. Quando Alexandre se recusou a alterar a sua posição, Ercole ameaçou ir-se embora.

Alexandre reconsiderou e propôs um acordo.

Ercole recusou e Alexandre ameaçou ir-se embora, até que reparou na expressão surpreendida no rosto do duque e se deixou convencer a ficar.

Finalmente Ercole aceitou duzentos mil ducados, que Alexandre continua­va a considerar um enorme dote, pois Ercole ainda insistiu na eliminação do imposto anual pago por Ferrara à Santa Igreja.

E foi assim que naquele dia se acertou a união da década.

Uma das primeiras coisas que César fez ao regressar a Roma foi encontrar—se com o pai em privado para inquirir sobre a sua prisioneira, Catarina Sforza. Foi-lhe dito que ela tentara fugir de Belvedere e, como castigo, tinha sido presa no Castelo de SantAngelo, um lugar bem menos aprazível e saudável.

César foi imediatamente visitá-la.

O Castelo de SantAngelo era uma sólida fortaleza redonda com aparta­mentos ricamente decorados no piso superior, mas a imensa cave que abran­gia a maior parte da fortaleza compreendia diversas masmorras grandes. César mandou os guardas trazerem Catarina ao andar de cima e conduzi-la a uma grandiosa sala de recepção. Ela perscrutou o mundo através dos olhos semi—cerrados, pois havia algum tempo que não via a luz do sol. Continuava bela, embora algo desgrenhada devido ao tempo que passara nas masmorras.

César cumprimentou-a calorosamente e fez uma vénia para lhe beijar a

mão.

  • Com que então, minha querida amiga - disse, sorrindo -, és mais dispa­ratada do que eu imaginava. Alojo-te nos melhores aposentos de Roma e tu recompensas a minha generosidade tentando fugir? Não és tão esperta como eu imaginava.

  • Já devias saber - tornou ela, sem emoção.

César sentou-se num sofá de brocado e ofereceu um assento a Catarina, mas ela recusou-o.

  • Creio que a tua tentativa de fuga me passou pela cabeça - explicou César - mas contei com o teu interesse pessoal e acreditei que preferisses estar con-fortavelmente presa a está-lo na infelicidade.

  • A prisão nos melhores alojamentos nem por isso é menos infeliz - retor­quiu ela, com frieza.

César estava divertido, pois embora esta atitude lhe desagradasse,

continuava a achá-la encantadora.                               

  • Mas qual é agora o teu plano? — perguntou. — Porque tenho a certeza de que não podes passar o resto da vida no Castelo SantAngelo.

  • Que propões como opção? — perguntou ela desafiadoramente.

  • Cede os teus territórios de Imola e Forli em documentos oficiais — res­pondeu César. — E compromete-te a não tentar retomá-los. Nessa altura darei ordens para te libertarem e poderás retirar-te livremente para qualquer local à tua escolha.

Catarina sorriu-lhe maliciosamente.

  • Posso assinar qualquer documento que me ponhas à frente, mas como me impedirá isso de tentar reconquistar as minhas terras?

  • Outro governante, menos digno, poderia fazê-lo - disse ele - mas acho difícil acreditar que te traísses assinando, se em boa consciência não pudesses concordar. Claro que é sempre possível que pudesses quebrar a tua promessa, mesmo depois de ser feita, mas nesse caso provaremos nos tribunais de Roma que somos os legítimos governantes. E a nossa razão será reforçada pela tua desonestidade.

  • Confias nisso? - perguntou ela, rindo com bonomia. - Acho difícil acre­ditar. Há qualquer outra coisa que me ocultas.

César endereçou-lhe um sorriso encantador.

  • édemasiado sentimental para ser inteligente, mas, na verdade, desagrada—me a ideia de uma bela criatura a apodrecer para sempre numa masmorra. Parece um tremendo desperdício.

Catarina ficou surpreendida ao descobrir que ele lhe agradava, mas recusou—se a deixar que essa distorção do seu coração a obrigasse a uma cedência dema­siado grande. Tinha um segredo que podia revelar, mas fá-lo-ia? Para essa deci­são precisava de tempo.

  • Regressa amanhã, César — disse, prazenteiramente. — Deixa-me ponderar o assunto.

Quando César voltou, no dia seguinte, mandou outra vez trazerem-lhe Catarina ao andar de cima. Ela tinha utilizado as criadas que ele lhe enviara, para ajudarem a dar-lhe banho e lavar-lhe a cabeça. Agora, conquanto as suas

roupas ainda estivessem sujas e esfarrapadas, ele pôde ver que tinha tentado tornar-se mais atraente.

Caminhou em direcção a ela e, em lugar de recuar, ela avançou. Ele esten­deu as mãos para ela e obrigou-a a deitar-se no sofá com ele, beijando-a apai­xonadamente. Quando ela o repeliu, porém, não se serviu da força para se pôr em cima dela.

Ela falou antes de César, ao mesmo tempo que passava os dedos por entre os caracóis castanhos.

  • Farei o que sugeres. Mas haverá quem diga que és louco em confiar em mim. César olhou afectuosamente para ela.

  • Fazem-no sempre. Se os meus comandantes levassem a sua avante, esta­rias a boiar no Tibre - disse. - Para onde decidiste ir?

Sentaram-se os dois no sofá e ele agarrou-lhe a mão.

  • Para Florença. Imola e Forli estão fora de questão e os meus parentes de Milão são uns tremendos maçadores. Florença, pelo menos, é um lugar inte­ressante. Talvez consiga até encontrar lá um marido... valha-o Deus.

  • Será um homem afortunado - disse César, com um sorriso. - Os do­cumentos estarão aqui esta noite e amanhã poderás pôr-te a caminho... com uma guarda de confiança, evidentemente.

Preparou-se para sair, mas deteve-se junto à porta, virando-se para ela.

  • Tem cuidado contigo, Catarina.

  • E tu também - disse ela.

Quando César partiu, ela sentiu uma surpreendente tristeza, pois naquele momento teve a certeza de que não voltariam a encontrar-se, e por conseguinte ele poderia nunca saber que aqueles papéis não podiam fazer qualquer dife­rença, porque ela trazia no ventre a parte dele que reclamara já. E, como mãe do seu herdeiro, aqueles territórios voltariam afinal a pertencer-lhe.

Filofila era o melhor difamador em verso de Roma. Secretamente a soldo da família Orsini, estava sob a protecção pessoal do próprio cardeal António Orsini. Filofila inventava os crimes mais grosseiros aos homens mais santos.

|Divertia-se ainda mais com gente de acções vis, desde que ela ocupasse posiçóes elevadas. Era capaz de denegrir cidades inteiras: Florença era a prostituta

seios fartos e ancas largas, uma cidade cheia de riquezas e grandes artistas aas com falta de guerreiros. Os cidadãos de Florença eram emprestadores de inheiro, amigos íntimos dos turcos, versados em sodomia. E, como uma meretriz, acolhia-se à protecção de todo o tipo de potências estrangeiras, em lugar de se aliar às cidades italianas suas congéneres.

Veneza era, evidentemente, a dissimulada e implacável cidade dos doges, que era capaz de vender o sangue dos seus cidadãos para fazer negócio, que exe­cutava a sua própria gente só por dizer a um forasteiro quantos ducados cus­tava comprar seda no Extremo Oriente. Veneza era uma enorme serpente, à espera no seu grande canal de abocanhar qualquer pedaço do mundo civilizado que pudesse ajudá-la a obter lucros. Uma cidade sem arte ou artesãos, sem grandes livros ou uma grande biblioteca, uma cidade fechada para sempre às humanidades. Mas uma cidade perita em traições, executando tanto pequenos como grandes pelos seus crimes.

Nápoles era a cidade da sífilis, do mal francês, tal como Milão era a sico-fanta francesa, parceira da sodomita e traidora Florença.

Era, porém, o clã Bórgia que Filofila tomava como alvo dos seus mais esca­brosos versos.

Cantava em rima as suas orgias no Vaticano, os seus assassínios em Roma e em todas as cidades-estados de Itália. A sua poesia era eloquente e a sua prosa requintada, quando pegava na pena para alegar que o Papa Alexandre tinha usado a simonia para comprar o papado, ou que tinha vinte filhos naturais. Tinha traído as Cruzadas, roubando o dinheiro de S. Pedro para pagar aos sol­dados de César Bórgia, fazendo o filho senhor da Romanha e obrigando os Estados Papais a submeterem-se. E para quê? Para sustentar a sua família, os seus filhos bastardos, as suas amantes, as suas orgias. E mais ainda: como se não bastasse cometer incesto com a sua filha natural, tinha-a ensinado a envenenar os seus inimigos ricos do colégio cardinalício e a seguir negociara-a em casa­mento por mais de uma vez para cimentar as suas alianças com outras famílias poderosas de Itália. Um casamento fora anulado; o outro terminara em viuvez, situação criada pelo seu próprio irmão natural, César Bórgia.

Era, contudo, quando escrevia os seus poemas sobre César Bórgia que ele se superava. Com extremoso pormenor, relatava que César andava sempre de máscara para esconder um rosto desfigurado pelas feridas supurantes do mal—gálico; que tinha iludido tanto os reis espanhóis como os franceses e traíra a Itália com ambos ao mesmo tempo; que César cometera também incesto, quer com a irmã quer com a cunhada. Tinha feito cornudo de um irmão e do outro, cadáver. A violação era o seu especial prazer e o assassínio a sua diplomacia mais subtil.

Nesta ocasião, porém, com a realização próxima do fabuloso casamento dEste, Filofila assestou a sua venenosa pena sobre Lucrécia. Ela tinha dormido com o pai e com o irmão — primeiro em separado, mas mais tarde com os dois ao mesmo tempo na mesma cama. Tinha relações sexuais com cães, macacos e muares; e, quando o lacaio a surpreendera nessas vis perversões, envenenara—o. Actualmente incapaz de suportar a vergonha da sua luxuriosa conduta, o pai entregava-a a Ferrara para cimentar a relação com uma ilustre família ita­liana. Sim, pensava Filofila, ele tinha-se ultrapassado no trabalho que fizera em Lucrécia.

Tudo isto tornara Filofila famoso. Os seus versos tinham sido copiados e afixados nas paredes de Roma e distribuídos em Florença e eram especialmente procurados por venezianos ricos. Não que Filofila se atrevesse a assinar com o seu nome, mas os dois corvos esboçados grasnando um para o outro tinham—se tornado a sua marca. E, assim, as pessoas sabiam.

Numa tarde ensolarada o poeta vestiu-se e perfumou-se, preparando-se para se juntar à corte do seu patrono, o cardeal Orsini. O cardeal tinha-lhe pro­porcionado o uso de uma casinha nos terrenos do Palazzo Orsini. Como todos os grandes senhores, o cardeal queria os seus apoiantes e parentes de sangue próximos para o protegerem. E Filofila era tão destro com o punhal como com a pena.

Ao ouvir o ruído de cavalos e o tilintar de armaduras, espreitou pela janela do quarto. Uma dúzia de homens a cavalo avançavam direitos à sua casa, cer-

cando-a. Envergavam todos armaduras ligeiras, excepto o chefe, que vestia com-pletamente de preto: gibão preto, calções pretos, luvas pretas e, na cabeça, uma mitra preta. Com um ligeiro aperto na garganta, Filofila reconheceu César Bór-

igia, mascarado de preto... e notou a espada e o punhal que o armavam.

Aliviado, Filofila viu a seguir um grupo de soldados de Orsini aproxima-

Irem-se a pé. César, porém, ignorou-os e avançou direito à casa. Filofila saiu

Ipara ir ao seu encontro pela primeira vez.

Aos olhos do poeta, César parecia tão alto e musculoso como um alemão.

ITrazia no rosto um sorriso jovial. Interpelou directamente Filofila, com uma

 cortesia exagerada.

  • Ora viva, Mestre Poeta - disse. - Vim ajudar-vos a rimar. Mas neste sítiooé impossível. Tendes de vir comigo.

Filofila fez uma profunda reverência.

  • Meu Senhor, tenho de declinar. O meu cardeal mandou-me chamar. Ireioquando estiverdes novamente livre.

Experimentava ressentimento por os Bórgia terem ido até à sua casa, mas não se atrevia a levar a mão à espada ou ao punhal.

César não hesitou. Levantando o homem como se ele fosse feito de trapos, pô-lo em cima do cavalo. Uma vez montado, agrediu Filofila uma única vez, mas o golpe deixou-o inconsciente.

Ao abrir os olhos, o poeta viu vigas grosseiramente serradas e paredes cobertas com cabeças embalsamadas de animais: javalis, ursos e bois. Parecia que se | encontrava numa espécie de pavilhão de caça.

Olhou então para o extremo da sala e viu um homem que reconheceu. Só o choque impediu o grito que lhe subiu à garganta quando as entranhas lhe estremeceram de medo: era o célebre estrangulador Don Michelotto. Afiava | uma comprida faca.

Passado um momento Filofila reuniu coragem para falar. - Deveis saber que o cardeal Orsini e a sua guarda me encontrarão aqui e castigarão severamente quem me fizer mal.

Michelotto nada disse, continuando simplesmente a afiar a comprida lâmina.

  • Imagino que planeais estrangular-me - disse Filofila, com voz trémula Nessa altura Michelotto pareceu prestar atenção.

  • Não, Signor Poeta. De maneira nenhuma. Isso seria rápido de mais, fácil de mais para um homem da tua extrema crueldade. O que tenciono fazer - disse, sorrindo - é cortar-te a língua, depois as orelhas e o nariz, a seguir os órgãos genitais e depois os dedos, um por um. A seguir posso cortar outras coi­sas. Ou, se me deixar levar pela comiseração, talvez nessa altura te faça o favor de te matar.

Na tarde seguinte, um grande saco ensopado de sangue foi atirado por cima do muro do Palazzo Orsini. O seu conteúdo provocou uma náusea aos guar­das que o abriram. Lá dentro estava um corpo decapitado e sem dedos. Os seus órgãos genitais, língua, dedos, nariz e orelhas encontravam-se também lá den­tro, muito bem embrulhados num dos poemas de Filofila.

Nada se disse sobre o incidente. Não apareceram mais poemas de Filofila. Correu o boato de que tinha ido até à Alemanha, para os salutares banhos de água mineral. 26

O Lago de Prata estava lindo naquela Primavera. César e Lucrécia formavam um elegante par ao passear pela margem, ela com a sua capa provida de (capuz cravejada de jóias e ele com o seu fato de veludo preto, de boina guarnecida de penas e pedras preciosas. Tinham regressado ao local onde haviam (passado os seus momentos mais felizes, pois o tempo que estariam juntos passaria a ser reduzido, agora que estava bem próximo o casamento dela com Afonso dEste.

O cabelo castanho de César brilhava ao sol e, a despeito da sua habitual (máscara negra, o sorriso que lhe animava o rosto era prova da sua alegria por estar com a irmã.

  • Com que então na próxima semana serás uma dEste - disse César, de Imodo provocador. - Passarás a ter a responsabilidade, bem como a sorte, de |ser um membro de uma família distinta.

  • Hei-de ser sempre uma Bórgia, Chez - retorquiu Lucrécia. - E não há razões para ciúmes. no caso desta aliança, porque não me iludi convencendo-me Ide que este casamento seja por amor. O Afonso tem tanta relutância em acei-Itar-me como esposa como eu em tê-lo por marido. Mas, tal como eu sou filha Pdo meu pai, ele é filho do dele.

César sorriu-lhe afectuosamente.

  • Os teus infortúnios tornaram-te mais bonita. E este casamento permitir—te-á fazer muitas das coisas de que gostas. Os dEste apreciam as artes, as reu­niões de poetas e escultores. Ferrara está inundada de cultura e humanidades,

precisamente os assuntos que te animam de vida. É também uma sorte para mim o facto de ficar ao lado dos territórios da Romanha e que o rei Luís comande o duque com mão de ferro.

  • Sempre que estiveres em Roma, verificarás se o Giovanni e o Rodrigo estão bem? Porque me desagrada estar sem eles mesmo por pouco tempo em Ferrara. Velarás por eles, fá-los-ás sentir os teus braços vigorosos à volta deles e tratá-los-ás como se fossem igualmente importantes... por mim? — pergun­tou ela.

  • Nem se põe a questão. Porque uma criança é mais minha e a outra, mais tua... de forma que ambas têm o meu amor eterno - tranquilizou-a César.

  • Crezia, se o pai não te tivesse aliado com os dEste, terias passado a vida de luto pela viuvez, habitando e governando Nepi?

  • Ponderei muito esta decisão antes de concordar — retorquiu Lucrécia.

  • E, embora saiba que o pai me pode ter pressionado, ele havia de ver que eu me tinha escondido num convento, ou até que me fizera freira, se me opusesse violentamente a esta aliança. Mas aprendi a governar e creio que neste lugar poderei encontrar o meu. Há também a questão da tua pessoa e dos filhos a ter em consideração. Um convento não é o melhor sítio para as crianças e não consigo imaginar a minha vida sem eles.

César deteve-se e fitou a irmã com admiração.                 <

  • Não há nada que não tenhas considerado? Nada a que não te possas adap­tar com boa vontade e inteligência?

Uma expressão de tristeza, como uma sombra, perpassou pelo rosto dela.

  • Houve um pequeno problema para o qual não consegui encontrar solu­ção. E, embora seja insignificante comparado com todas as outras questões, parece causar-me uma certa infelicidade.

  • Terei de te torturar para te arrancar essa verdade - gracejou ele - ou con­fessá-la-ás voluntariamente, para ver se eu posso ajudar?

Lucrécia abanou a cabeça.

  • Não posso chamar Afonso a este meu novo marido sem que o meu cora­ção se retraia quando o comparo com o último. E contudo não conheço qual­quer outra maneira de lhe modificar o nome.

Os olhos de César cintilaram de divertimento.                                      

  • Não há problema tão grande que eu não possa resolver, e por conseguinte posso ter a resposta às tuas orações. Dizes que ele é filho do pai dele; porque não lhe chamas Filho? Di-lo pela primeira vez no leito matrimonial, com grande afecto, e ele acreditará que se trata de um tratamento carinhoso.

Lucrécia franziu o delicado nariz e riu alto.

  • Um aristocrático dEste? Filho?

Porém, quanto mais pensava nisso, mais à vontade se sentia.

Caminharam até ao fim do velho cais onde costumavam pescar e nadar em pequenos, chapinhando na água em completa liberdade. Depois o pai sentava—se perto deles, a observá-los, protegendo-os e fazendo-os sentirem-se seguros. Agora, tantos anos depois, sentavam-se no mesmo cais e olhavam para a água encrespada, que cintilava como um milhão de minúsculos diamantes reflectindo o sol da tarde. Lucrécia encostou-se ao irmão e ele envolveu-a com os braços.

A voz dela era suave e séria.

  • Já soubeste do malogrado poeta Filofila, Chez?

  • Ah, sim? - respondeu César, sem emoção. - A morte dele perturbou-te? Porque ele não sentia afecto semelhante por ti, caso contrário não seria capaz de escrever tão maldosas rimas e poesias.

Lucrécia virou-se e tocou-lhe o rosto.

  • Eu sei, Chez - disse. - E suponho que devia agradecer-te por tudo quanto fazes para me defender... apesar da morte de Afonso, pois até isso compreendi há muito. É o teu bem-estar que me preocupa. Porque ultimamente pareces matar com muita facilidade. Não estás em cuidado pela tua própria alma?

César explicou-se.

  • Se existe um Deus, como o Santo Padre o descreve, ele não pretende que não devamos matar nunca... pois de outro modo não haveria guerras santas. O que «Não matarás» significa é que matar sem uma causa boa e honrosa se torna pecado. Sabemos que não é pecado enforcar um assassino.

  • Sabemo-lo mesmo, Chez? - inquiriu ela. Lucrécia mudou de posição para se colocar de frente para ele ao falar, pois este assunto era para ela impor­tante. - Não é uma arrogância decidir o que é uma causa boa e honrosa? Para os infiéis chacinar os cristãos é uma causa boa e honrosa, mas para os cristãos o contrário é verdade.

César tornou a deter-se, admirado como frequentemente ficava com a irmã.

  • Crezia - disse. - Eu tento nunca matar por satisfação pessoal, mas ape­nas para o bem de todos nós.

Embora com os olhos marejados de lágrimas, Lucrécia tentou manter a voz firme.

  • Haverá então outras mortes?

  • Na guerra decerto haverá, Crezia. Mas, fora da guerra, temos por vezes de eliminar vidas por um bem maior, assim como para nossa própria protec­ção. — E passou a relatar-lhe a sua decisão de enforcar os ladrões de galinhas na sua última campanha em Cesena.

Lucrécia hesitou antes de responder, pois não estava convencida.

  • Preocupa-me, César, que possas dar por ti a usar «o bem maior» como desculpa para eliminares homens incómodos. E a vida está cheia de homens incómodos.

César parou a contemplar o lago.

  • éuma sorte para nós não seres um homem, porque te deixas acorrentar pela dúvida, Crezia, e isso poderia impedir-te de agir.

  • Estou certa de que tens razão, Chez — redarguiu pensativamente Lucré­cia. — Mas não sei bem se isso é mau... — Já não estava certa de entender o mal, especialmente uma vez que ele estava oculto nas sombras dos corações daque­les que amava.       não.

Quando o róseo crepúsculo começou a cobrir o lago prateado, Lucrécia tomou a mão do irmão e conduziu-o pelo carreiro de volta à cabana. Lá den­tro, deitaram-se ambos nus no tapete de pele branca diante da cálida fogueira que crepitava e resplandecia na lareira de pedra. César maravilhou-se com a tur-gidez dos seios da irmã, com a maciez da sua barriga, petrificado por ela se ter tornado tão mulher e por se sentir atraído para ela por uma paixão ainda maior.

Lucrécia falou com voz terna e afectuosa.

  • Tiras a máscara antes de me beijar, Chez? Porque com ela podias ser qual­quer um.

O sorriso desvameceo-se dos lábios  dele dando lugar a uma expressão   de constrangimento. não serei capaz de fazer amor contigo se vir os teus olhos encherem-se de piedade pelo meu rosto marcado das bexigas - disse ele. - Isso impedir-me-á de gozar aquilo que pode ser a nossa última ocasião juntos.

  • Juro que não olharei para o teu rosto com piedade — tornou ela. E a seguir fez-lhe cócegas, ao mesmo tempo que dizia: - Até pode ser que me ria, e nessa altura tu deixar-te-ás desta palermice sem sentido. Porque te amei desde que abri os olhos e te vi debruçado sobre mim a sorrir. Brinquei con­tigo e tomei banho contigo enquanto crescíamos. Vi-te tão bonito que tinha de virar a cara, ou entregar-me, e vi-te quando o teu coração se dilacerou e a tristeza dos teus olhos obrigou os meus a encherem-se de lágrimas. Mas nem uma única vez te menosprezei, ou te amei menos, por umas pequenas marcas no teu rosto.

Curvou-se então sobre ele, cobrindo-lhe os lábios com os seus, com o corpo já a estremecer. Quando voltou a erguer a cabeça, fitou-o nos olhos e disse:

  • Quero apenas tocar-te, ver as tuas pálpebras fechadas em êxtase, passar suavemente os dedos pelo teu nariz, sentir os teus doces lábios carnudos. Não quero barreiras entre nós, meu irmão, meu amante, meu amigo. Porque, desta noite em diante, tudo o que resta da minha paixão repousará em ti.

César soergueu-se e, lentamente, retirou a máscara.

Lucrécia casou na semana seguinte por procuração com Afonso dEste. Jun­tamente com o contrato ele tinha mandado um pequeno retrato, que mostrava um homem alto, de expressão bastante austera, que não deixava de ter atracti­vos e guardava uma severa reserva. Vestia o uniforme de gala preto, com mui­tas medalhas e fitas a decorá-lo; imediatamente debaixo do nariz longo e deli­cado, um bigode fazia-lhe cócegas no lábio superior, embora isso não o fizesse sorrir. O cabelo preto encaracolado cingia-lhe a cabeça num meticuloso pen­teado, sem nenhuma madeixa solta. Ela não podia imaginar aquele Afonso a fazer amor com desvairado abandono.

Devia juntar-se-lhe em Ferrara, onde ficariam a viver. No entanto, estavam a realizar-se festejos matrimoniais em Roma, muito mais sumptuosos e caros do que o seu casamento com Giovanni, e muitas vezes o que tinham sido quando do consórcio com o seu bem amado Afonso. De facto, foi uma comemoração mais extravagante do que todas as que os cidadãos alguma vez haviam visto

Os palácios das famílias nobres eram numerosos e opulentos. Mesmo assim, todas elas receberam estipêndios para compensar o custo daqueles banquetes e festivais. O Papa parecia pronto para esvaziar o tesouro do Vaticano nas cele­brações do brilhante enlace da filha. Decretou um feriado para todos os tra­balhadores romanos e durante toda a semana seguinte houve novos cortejos, procissões e festivais. Fizeram-se fogueiras defronte do Vaticano, bem como diante de todos os grandes castelos, sendo a maior de todas elas a fronteira a Santa Maria in Pórtico.

No dia em que o contrato de casamento foi assinado e o Papa deu a sua bênção, Lucrécia envergava uma coroa de ouro coberta de pedras preciosas, que atirou da varanda à multidão em baixo, mal a cerimónia terminou. A coroa foi parar acima de um bobo da corte, que desatou a correr pelas ruas aos gritos: «Viva a duquesa de Ferrara! Viva o Papa Alexandre!»

O próprio César desempenhou um importante papel neste casamento da irmã e mostrou as suas habilidades de cavaleiro, encabeçando uma marcha pelas ruas em honra da irmã.

Nessa noite, na festa de casamento para toda a família e amigos mais che­gados, Lucrécia executou diversas das suas danças espanholas, para comprazi­mento do pai.

Alexandre, com uma expressão radiante, batia palmas, sentado no trono, cheio de gozo. César, com os olhos a brilhar através da máscara de Carnaval de ouro e pérolas, estava postado à direita do pai. Godofredo situava-se à sua esquerda.

A certa altura Alexandre, envergando as suas mais requintadas vestes papais, pôs-se de pé e desceu lentamente as escadas para atravessar a pista de dança em direcção à filha. Fez-se silêncio no meio da multidão e todos os risos cessaram.

  • Dás ao teu pai a honra desta dança? — perguntou Alexandre. — Porque, não tarda, estarás longe de mais.

Lucrécia fez uma vénia e deu-lhe a mão. Virando-se para os músicos, Ale­xandre mandou-os tocar, para depois tomar a filha nos braços. Ela ficou admi­rada por ele ser ainda tão forte, ter um sorriso tão radioso e possuir um passo tão ligeiro e suave. Pareceu-lhe que era novamente criança, recordando-se de poisar os seus pezinhos, enfiados nas chinelas de cetim cor-de-rosa, sobre os do pai, e aprender os passos, de como ia deslizando. Nessa altura, amava mais o pai do que a própria vida. Fora uma época mágica para ela, em que tudo era possível, muito antes de se aperceber de que a vida exigia sacrifício.

De súbito ergueu a cabeça e olhou por cima do ombro do pai, para ver o seu irmão César de pé imediatamente atrás.

  • Posso, pai? — perguntou.

Alexandre virou-se e olhou para César com uma leve surpresa, mas logo se recompôs e disse:

  • Com certeza, meu filho. — Não obstante, em lugar da largar a mão de Lucrécia e passá-la a César, Alexandre deu instruções aos músicos para conti­nuarem a tocar: uma melodia ligeira e alegre.

O Papa colocou-se entre os filhos, com uma mão dada à filha e a outra ao filho, e, exibindo um grande sorriso e soltando uma sonora gargalhada, começou a dançar com ambos. Com uma energia inacreditável, começou a voltear e rodopiar, arrastando-os com ele. E o seu rosto brilhava de êxtase.

A multidão desatou a rir até perder o fôlego. Aplaudiu, bateu palmas e por fim juntou-se-lhes, até que toda a sala se encheu de gente a dançar frenetica­mente.

Apenas uma pessoa permaneceu de parte, abstendo-se de dançar. Atrás do trono do Papa, o filho mais novo de Alexandre, Godofredo, alto e cismático, mantinha-se, calado e sisudo, a observar.                                •

Pouco tempo antes de Lucrécia partir para Ferrara, o Papa ofereceu um banquete destinado apenas a homens, para o qual toda a sociedade masculina romana foi convidada. Tinha mandado vir bailarinas para o amenizar e encheu o salão de mesas de jogo e de cartas para comemorar a sua nova aliança.

Alexandre, César e Godofredo sentaram-se na mesa de honra com o idoso duque de Ferrara, Ercole dEste, e os seus dois jovens sobrinhos. Afonso dEste o noivo, tinha ficado em Ferrara, para governar no lugar do pai.

O jantar foi um festim sumptuoso com todo o género de iguarias e uma série de garrafas de vinho a contribuir para a alegria e bom humor dos convivas

Quando os criados retiraram os pratos, o filho de Alexandre, Godofredo levantou-se subitamente, pouco firme, e ergueu o copo num brinde.

  • Como prenda da minha família de Nápoles, e em honra da minha nova família, os dEste, preparou-se uma diversão muito especial... Algo que há muitos anos não se vê em Roma.

Alexandre e César ficaram surpreendidos com o anúncio e embaraçados com a grosseira presunção de Godofredo ao referir-se à sua «nova família». Per­guntavam a si mesmos, com grande ansiedade, o que lhes reservava ele, enquanto os convidados olhavam com expectativa em redor.

As grandes portas de madeira trabalhada abriram-se de par em par e entra­ram quatro lacaios na sala. Sem uma palavra, espalharam castanhas douradas no chão no centro da sala.

«Meu Deus», pensou César, olhando na direcção do pai. Num súbito lam­pejo de horror, apercebeu-se do que estava prestes a acontecer. Exclamou para o irmão:

  • Godofredo! Não faças isso — mas era já demasiado tarde.                  Ao som de trombetas, Godofredo abriu outra porta e deixou entrar um cor­tejo de vinte cortesãs nuas, com o cabelo escuro solto e a macia pele untada e perfumada. Todas elas traziam uma pequena bolsa de seda pendurada numa correia à volta da cinta.

Godofredo prosseguiu, com voz estridente, entontecido do vinho:

  • O que vedes no chão diante de vós são castanhas de ouro puro. E estas damas encantadoras terão muito prazer em baixar-se de forma que as possais ver de um ângulo diferente. Será um novo deleite... pelo menos para alguns de vós.

Os convidados soltaram grandes gargalhadas. Porém, tanto César como Alexandre tentaram pôr termo à lúbrica exibição antes que o estrago fosse demasiado.

Godofredo, ignorando os sinais que o pai e o irmão lhe faziam, continuou:

  • Cavalheiros, podeis cavalgar estas éguas quando muito bem vos aprouver. Notai que tendes de as cavalgar de pé por detrás. E, por cada cavalgada bem sucedida, a vossa dama pode apanhar uma castanha de ouro do chão e colocá—la na bolsa. Escusado será dizer que as damas podem conservar as castanhas que apanharem como prenda pela diversão que proporcionaram.

As cortesãs começaram a baixar-se e a saracotear sensualmente os traseiros nus para os convivas masculinos.

Ercole dEste, escandalizado pela vulgar exibição, empalideceu de espanto.

Um a um, porém, os nobres romanos começaram a levantar-se e a afastar—se das mesas, deslocando-se na direcção das cortesãs agachadas que acenavam. Alguns, conquanto não as cavalgassem, apalparam libidinosamente as protu­berâncias carnudas das cortesãs.

Na sua juventude Alexandre tinha apreciado este tipo de manifestações, mas agora sentia-se vexado, consciente de que nesta ocasião estava grotesca­mente deslocado. E estava certo de que a intenção era essa, pois compreendia a repercussão negativa que aquilo representaria no tocante ao requinte — e senso — da sua família.

O Papa aproximou-se de Ercole dEste e tentou em vão desculpar-se. Ercole, porém, abanando a cabeça, disse para consigo que, se o casamento por procuração não se tivesse já realizado, cancelaria o enlace e correria os seus ris­cos face aos franceses e às tropas de César, com ducados ou sem eles. Uma vez que tinha já arrecadado o ouro, limitou-se a abandonar a sala, murmurando: «Estes Bórgia são uns grosseirões.»

Mais para o fim da noite, César recebeu notícias que o perturbaram ainda mais. O corpo de Astorre Manfredi tinha sido encontrado a boiar no Tibre. César tinha-lhe prometido salvo-conduto após a queda de Faenza, e esta notí­cia faria parecer a muitos que tinha faltado à sua palavra. César sabia que mais uma vez seria suspeito. Havia os que acreditariam que ele tinha matado uma vez mais: com Michelotto, não havia dúvida de que César dispunha dos meios necessários. Mas quem faria aquilo? E porquê?

Dois dias mais tarde, no andar de cima, na sala chamada do Pappagallo, o Papa despediu-se da filha. Ela estava triste por deixar o pai, apesar de toda a perturbação que ele tinha causado. O próprio Papa tentou mostrar-se mais jovial do que se sentia, pois teria muitas saudades da filha.

  • Se alguma vez fores infeliz - disse-lhe ele - manda recado, pois servir-me—ei da minha maior influência para conseguir que tudo se componha. E não te rales com as crianças, porque a Adriana é muito capaz de tomar conta delas, como bem sabes.

  • Mas, papá - retorquiu Lucrécia. - Aprendi imensas coisas sobre a arte de receber e de governar, mas mesmo assim estou assustada por ir para este novo lugar, onde sei que ninguém me aprecia.

  • Depressa se apaixonarão tanto por ti como nós — contrapôs Alexandre. — Basta-te apenas pensar em mim, e eu sabê-lo-ei — disse. — E, sempre que eu pensar em ti, sabê-lo-ás. — Nessa altura deu-lhe um beijo na testa. — Vai. Não parece bem um Papa derramar lágrimas pela perda de um dos seus filhos.

Alexandre observou-a da janela. Quando Lucrécia se aprestava a partir, ace­nou e gritou através dela:

  • Coração ao alto! Porque tudo o que desejas está já concedido.              oLucrécia partiu para Ferrara, acompanhada por um milhar de nobres rica­mente ataviados, criados, músicos e comediantes. Os nobres seguiam em belos cavalos ou em esplêndidas carruagens. Lucrécia, essa, montava um pequeno cavalo espanhol, ricamente ajaezado e equipado com uma sela e arreios cravejados de ouro. Os restantes viajavam de burro ou em grosseiras carroças. Alguns iam a pé.

Pararam em cada um dos territórios que César tinha conquistado, para que Lucrécia pudesse lavar o cabelo e tomar banho. Em todas as cidades as crian­ças corriam excitadamente ao encontro do cortejo, vestindo o vermelho e ama­relo que eram as cores de César. Durante a totalidade da viagem, toda a comi­tiva fez alto para participar em bailes fantásticos e imensamente caros e outras comemorações.

A espectacular jornada durou mais de um mês a ir de Roma a Ferrara e no caminho esvaziou as bolsas de muitos anfitriões locais.

Ercole dEste, duque de Ferrara, era um homem conhecido pela sua avareza e poucos dias passados estava a mandar a maior parte do dispendioso séquito de Lucrécia de volta para Roma. Ela viu-se obrigada a lutar por cada serviçal e ajudante que queria conservar na sua nova casa de Ferrara.

Quando a maioria dos desapontados romanos e espanhóis que tinham acompanhado Lucrécia partiram, por ordem do duque, Ercole deu a Lucrécia uma espectacular lição sobre a maneira como as coisas se faziam em Ferrara. Conduziu Lucrécia, por uma estreita escada de caracol, a um quarto próximo do alto do castelo. Ali chegado, apontou para uma mancha castanho-escura no chão de pedra e disse-lhe:

  • Um anterior duque decapitou a mulher e o enteado, porque descobriu que eram amantes. Olha, minha querida - casquinou. - Ainda se vê o sangue de ambos.

Lucrécia estremeceu ao olhar para as manchas no chão.                     

Alguns meses apenas depois de passar a viver com Afonso dEste, Lucrécia ficou grávida. As gentes de Ferrara ficaram transbordantes de felicidade, pois tinham rezado por um herdeiro varão. Mas, numa circunstância infeliz, esse Verão foi húmido em Ferrara e tornou-se um campo de criação para os mos­quitos que transmitiam a malária. Lucrécia adoeceu.

Afonso dEste mandou um recado ao Papa, explicando que a duquesa de Ferrara, filha de Alexandre, padecia de febre, arrepios e suores. Explicava que recentemente tinha entrado em grave delírio e que Alexandre podia querer mandar os seus próprios físicos de Roma.

Alexandre e César ficaram aterrados ante a ideia de perderem Lucrécia. Ambos temiam que ela pudesse ter sido envenenada. Assim, o Papa enviou ins­truções, escritas pelo seu próprio punho, segundo as quais somente o médico que enviava devia tratá-la.

Nessa mesma noite, César, disfarçado de camponês mouro, com a pele escurecida e um manto com capuz, acompanhou esse médico ao leito de Lucrécia.

Desconhecendo quem aqueles homens eram quando chegaram a Ferrara -apenas sabiam que tinham sido enviados por Roma -, tanto Afonso como Ercole dEste se mantiveram nos seus próprios aposentos quando um criado conduziu César e o médico pela escada acima até ao quarto de Lucrécia.

Embora estivesse letárgica e delirante, Lucrécia reconheceu imediatamente César. Tinha a pele branca e pálida, os lábios macilentos gretados de febre e o estômago demasiado sensível para que lhe tocassem, dos constantes vómitos que havia já mais de duas semanas a acometiam. Tentou cumprimentar César, mas a sua voz estava tão roufenha e débil, que nenhum som se lhe escapou dos lábios.

Quando o criado saiu, César curvou-se para a beijar.

  • A minha princesa está esta noite um pouco pálida — segredou-lhe. — O fulgor das faces rosadas não te embeleza o rosto. Será que o amor não te assiste neste lugar?

Lucrécia tentou retribuir o sorriso, para dar a conhecer que entendia o seu humor, mas nem sequer conseguiu levantar o braço para lhe tocar o rosto.

Tornava-se evidente que o seu estado era crítico; mesmo assim, César ficou mais aflito quando o médico o confirmou.

César dirigiu-se ao lavabo, despiu a túnica com capuz e retirou a tinta da cara. Depois ordenou a um criado que fosse chamar o duque.

Momentos depois chegou Ercole, claramente alarmado por ser chamado ao quarto de Lucrécia. Viu imediatamente César.

  • César Bórgia! — arquejou Ercole. — Por que estais aqui? A voz de César não albergava qualquer simpatia.

  • Vim visitar a minha irmã. Acaso não sou bem-vindo? Há alguma coisa nas sombras que eu não devesse ver?

  • Não, claro que não — respondeu Ercole, gaguejando de nervoso. - Só... só estou surpreendido por vos ver.

  • Não ficarei por muito tempo, caro duque — volveu César. — Apenas o sufi­ciente para transmitir um recado do meu pai... e meu também.

  • Sim? - disse Ercole, agora com os olhos semicerrados de desconfiança e temor.

César levou a mão à espada como se estivesse prestes a combater contra Fer­rara inteira. No entanto a sua voz era fria e razoável quando se abeirou de Ercole e disse:

  • O Santo Padre e eu estamos imensamente desejosos de que a minha irmã recupere a saúde. Se ela morresse, culparíamos decerto os seus anfitriões e esta cidade. Fui claro?

  • Devo subentender que isso é uma ameaça? — inquiriu Ercole.

  • Creio que me entendeis — tornou César, com a voz mais firme que o seu estado de espírito. - A minha irmã não pode morrer. Porque, se isso aconte­cer, não morrerá sozinha!

César e o médico mantiveram-se ali durante várias horas. Por fim, decidiu—se que, para se curar, Lucrécia tinha de ser sangrada. Ela, porém, recusou-o.

  • Não quero ficar exangue como uma morta - exclamou, abanando a cabeça e dando sapatadas com a pouca energia que lhe restava.

César sentou-se ao seu lado, abraçando-a e acalmando-a, implorando-lhe que fosse corajosa.

  • Tens de viver por mim — segredou-lhe. — Pois por que outra razão have­ria eu de viver?

Finalmente Lucrécia parou de se debater e escondeu o rosto no peito de César para não ver o que estava a ser feito. Enquanto César se mantinha firme, o médico fez-lhe várias pequenas incisões no tornozelo e nas pontas dos pés, até sair sangue suficiente para o físico achar que ela podia restabe­lecer-se.

Antes de sair, César beijou Lucrécia e prometeu visitá-la novamente em breve, pois agora estava a viver em Cesena, a horas apenas de Ferrara.

Lucrécia não morreu. Ao longo das semanas subsequentes, começou a melhorar. Principiou a sentir-se outra vez quente, os seus suores abundantes pararam e mantinha-se mais tempo acordada, sem mergulhar no pesado sono

sem sonhos das suas noites mais negras. Embora a criança tivesse nascido morta, recuperou gradualmente a saúde e a vitalidade.

Era apenas nos momentos tranquilos das noites escuras que chorava aquele filho, pois tinha acabado por perceber que o tempo ocupado em mágoas era tempo perdido... e houvera demasiada mágoa na sua vida. E, se quisesse tirar o melhor partido do que lhe fora dado, e fazer o maior bem, devia concentrar—se naquilo que se podia fazer, e não no que era impotente para modificar. E foi assim que começou a viver uma vida de virtude.

Quando do seu primeiro aniversário em Ferrara, tinha começado, gradual­mente, a conquistar o amor e o respeito dos seus súbditos, bem como o amor da estranha a poderosa família dEste com a qual vivia agora.

O velho duque, o próprio Ercole, foi o primeiro a apreciar a sua brilhante inteligência. A medida que os meses passavam começou a apreciar mais ainda o seu conselho do que o dos filhos e a deixar decisões e tarefas governamentais críticas ao seu cuidado.

27

Godofredo e Saneia estavam a dormir profundamente nos seus aposentos do Vaticano quando, sem qualquer aviso ou explicação, vários guardas do Papa entraram e a arrebataram da cama do casal. Enquanto Saneia dava sapatadas e gritava, Godofredo exprimia a sua resistência aos berros.

  • Isto é uma afronta! - exclamou Godofredo para um dos jovens lugar—tenentes. - Falastes com o meu pai acerca disto?

  • Foi o Santo Padre em pessoa que deu a ordem - confessou o soldado. Godofredo correu aos aposentos do Papa, onde encontrou Alexandre sen­tado à secretária do seu escritório.

  • Que significa isto, pai? — perguntou.

O Papa ergueu a vista e respondeu mal-humoradamente.

  • Podia dizer que se deve à frouxidão moral da tua mulher (porque ela é um cravinho bem picante) ou à tua inabilidade para a ajudares a moderar o génio — disse Alexandre. — Mas desta vez é bem menos pessoal. Ao que parece, não consigo convencer o bom rei de Nápoles, que está alinhado com Fernando de Espanha, da importância do interesse francês em Nápoles. Luís pediu-me para fazer alguma coisa e assim, para provar a minha fidelidade, fi-lo.

  • Que tem isso que ver com Saneia? — perguntou Godofredo.  Ela não passa de uma rapariga e não fez coisa nenhuma em relação a França.

  • Godofredo! Por favor! Não sejas um eunuco desmiolado! - exclamou impacientemente Alexandre. - Está em causa o bem-estar do teu irmão; o

papado depende da capacidade de ele sustentar as suas alianças. E, neste momento, a nossa aliança mais forte é com a França.

  • Pai - disse Godofredo, com o olhar incendiado. - Não posso permitir isto, porque a Saneia nunca poderá amar um homem que não consiga, no mínimo, protegê-la das masmorras.

  • Ela pode mandar uma mensagem ao tio, o rei, e explicar-lhe a sua neces­sidade de auxílio — retorquiu o Papa.

Naquele momento Godofredo teve de desviar a vista do pai, pois temia que o Papa visse o ódio patente no seu rosto.

  • Pai — disse Godofredo. — Vou-to pedir mais uma vez, como teu filho. Tens de libertar a minha mulher, pois, se o não fizeres, causarás o fim do meu casa­mento. E eu não posso permitir tal coisa.

Alexandre pareceu intrigado por um momento. Que estava este filho a dizer? A sua mulher, Saneia, tinha causado problemas desde o dia em que che­gara, e ele nada fizera para a dominar ou sequer para a refrear. Que insolência o levava agora a ousar dizer ao seu pai — e igualmente ao Santo Padre - como dirigir a Santa Madre Igreja?

Porém, a voz do Papa cedeu à razão, desprovida de qualquer emoção, ao responder ao filho.

  • Por seres meu filho, perdoar-te-ei esta ofensa — disse. — Mas, se alguma vez voltares a falar dessa maneira, seja por que razão for, mandarei trazerem—me a tua cabeça na ponta de um chuço e eu próprio te declararei herege. Com­preendes?

Godofredo respirou fundo.

  • Quanto tempo estará a minha mulher presa?

  • Pergunta ao rei de Nápoles - retorquiu Alexandre. - Porque tudo depende dele. O instante em que ele concordar que Luís usará a coroa será o instante em que a tua mulher sairá em liberdade. - Quando Godofredo se virava para sair, o Papa acrescentou: — De hoje em diante, serás guardado dia e noite para te evi­tar tentações.

Tudo quanto Godofredo perguntou foi:

  • Posso vê-la?

Alexandre aparentou surpresa.

378

  • Que espécie de pai seria eu se separasse o meu filho da mulher? — per­guntou. - Julgas-me um monstro?

Godofredo não conseguiu evitar que as lágrimas lhe corressem pela face, pois nessa noite tinha perdido, não apenas a mulher, como também o pai.

Saneia foi levada para a cave da fortaleza de SantAngelo e colocada numa masmorra sozinha. Das celas à sua volta ouvia as exclamações e berros dos outros, que gemiam e gritavam obscenidades aos guardas do Papa.

Os que a reconheciam escarneciam dela e os que não a identificavam per­guntavam a si mesmos como é que uma jovem tão bem posta podia ter ido parar àquela situação.

Saneia estava lívida e louca de fúria. Desta vez ele tinha-o feito. O Papa, que já uma vez a tinha mandado embora, selara agora o seu destino, pois ela certi­ficar-se-ia, mesmo naquele lugar, de contribuir para o destronar. Nunca mais se sentaria no trono do Santo Padre, jurou a si mesma; nem que ela tivesse de con­sagrar a vida a essa missão, isso valeria mais que todos os ducados do mundo.

Quando Godofredo apareceu, Saneia já tinha derrubado o catre e arremes­sado a respectiva palha ao chão da masmorra. Tinha pegado na água e na comida que lhe tinham levado, e mesmo no vinho, e arremessara-os contra a pequena porta de madeira, deixando pedaços da sua refeição agarrados a ela.

Godofredo ficou surpreendido ao verificar que, ao saudá-lo, ela se dirigiu a ele e o abraçou.

  • Marido, tens de me ajudar — disse-lhe. — Se me amas, tens de fazer chegar um recado à minha família. Tens de dar a conhecer ao meu tio o que me aconteceu.

  • Fá-lo-ei — disse Godofredo, abraçando-a e afagando-lhe os cabelos. — Farei mais do que isso. E, entretanto, passarei tantas horas quantas queiras nesta mas­morra.

Godofredo levantou então o catre e nele se sentaram ambos, ele com o braço a envolver-lhe os ombros, à guisa de conforto.

  • Trazes-me imediatamente papel e velas e certificas-te de que a mensagem segue rapidamente? — perguntou ela.

379

  • Fá-lo-ei — disse Godofredo —, porque não posso estar sem ti. Nessa altura Saneia sorriu e sentiu-se esperançada.

  • Somos como um só — disse ele. — E, por conseguinte, o que te fizerem, fazem-no a mim também.

  • Eu sei que é pecado odiar outrem — declarou Saneia —, mas, pelo ódio que tenho ao teu pai, estou disposta a macular a minha alma de pecado. Não importa que ele seja o Santo Padre: é tão mau aos meus olhos como o maior dos anjos caídos.

Godofredo não sentia desejo de o defender.

  • Escreverei ao meu irmão, César — disse. — Porque não tenho dúvida de que ele nos ajudará assim que regresse.

  • Porquê? Nunca vi esse lado dele que o torne tão cativante - observou Saneia.

  • Eu tenho as minhas razões — tornou Godofredo. — O meu irmão César compreenderá e confio que nos livrará deste inferno.

Quando se despediu dela com um beijo, abraçou-a durante mais tempo do que o costume. E ela permitiu-o.

Nessa noite, porém, depois de ele sair, um após outro, os guardas entraram na sua cela e violaram-na. Despiram-na toda, beijaram-lhe os lábios, bafejando—lhe o rosto com o seu mau hálito, e penetraram-na sem qualquer consideração pela sua resistência. Porque, uma vez colocada no meio das prostitutas e dos ladrões, ela não tinha já a protecção do Papa Bórgia e, por conseguinte, não havia qualquer castigo a temer.

Quando o marido a foi visitar na manhã seguinte, Saneia estava novamente lavada e vestida, mas deixara de falar. E, fosse o que fosse que Godofredo lhe dissesse, ela não dava atenção, pois tinha-se extinguido a luz que antigamente tanto brilhava nos seus cintilantes olhos verdes, que agora eram simplesmente de um cinzento baço.

César Bórgia controlava agora, por fim, toda a Romanha. Mas ainda havia outras cidades a conquistar antes que ele pudesse concretizar o seu sonho de

unificar toda a Itália. Havia Camerino, governada pela família Varano, e Seni-gallia, onde imperavam os delia Rovere. E havia Urbino, onde Guido Feltra governava como duque. Urbino afigurava-se demasiado forte para o exército de César atacar; não obstante, barrava-lha o caminho para o Adriático e podia cortar as comunicações com Pesaro e Rimini, se nada se fizesse no sentido de alterar a situação em favor dos Bórgia.

E, por conseguinte, a campanha de César prosseguiu... O seu primeiro objectivo foi a pequena cidade-estado de Camerino. César reu­niu um exército para atacar por norte, a partir de Roma. Ali, articular-se-ia com um dos capitães espanhóis de César e as suas tropas que permaneciam na Romanha. A fim de concretizar o seu desígnio, contudo, foi obrigado a pedir a Guido Feltra que autorizasse a passagem do seu capitão, Vitellozzo Vitelli, e da sua artilharia por Urbino, que pertencia àquele. Ora, era sabido em toda a Itália que Feltra tinha pouca afeição pelos Bórgia. Feltra, cuja reputação como con-dottiere era maior do que a sua habilidade e inteligência, desejava ardentemente evitar uma confrontação imediata e, por conseguinte, concedeu a autorização a César — a fim de dissimular as suas verdadeiras intenções, que eram ajudar Alessio Varano a defender Camerino.

Infelizmente para o duque, os espiões de César descobriram-lhe o plano e a poderosa artilharia de Vitelli marchou sobre Urbino. Sem aviso, tanto a força de César proveniente de Roma como o seu exército do norte alcançaram as portas da cidade.

Essa visão de toda a força papal, com César envergando a sua armadura negra de combate, cavalgando na sua fogosa montada de um lado para outro diante deles, bastou para persuadir Guido Feltra a pôr-se em fuga.

A cidade rendeu-se rapidamente a César, para espanto, não só de Itália, como de toda a Europa, uma vez que o poderoso duque de Urbino tinha até então sido considerado invencível.

E assim, tal como tinha planeado, César avançou sobre Camerino. Sem o auxílio de Guido Feltra, a cidade rendeu-se igualmente com reduzida resistência. Uma vez conquistadas Urbino e Camerino, parecia que nada podia impe­dir César de impor a sua vontade - e o domínio papal - a qualquer vila ou cidade da Itália.

Nesse Verão, em Florença, o sol da tarde, bem alto no céu, era um fume-gante disco vermelho que abrasava a cidade. As janelas do Palazzo delia Sig-noria estavam abertas de par em par sobre a praça, convidando as moscas, mas nem uma brisa refrescava a sala sufocante. Os homens da Signoria suavam e agitavam-se, ansiosos pelo termo da difícil sessão, a fim de poderem correr para casa, tomar um banho frio e beber um copo de vinho bem fresco.

A questão mais importante a debater era o relatório de Niccolò Maquiavel, emissário especial ao Vaticano, o qual podia predizer o futuro da sua cidade.

A situação dos Estados Papais era motivo de crescente preocupação. Na última campanha César Bórgia tinha ameaçado a própria Florença e havia o receio de que, desta vez, não o conseguissem comprar com tanta facilidade.

Maquiavel pôs-se de pé para se dirigir à Signoria. Apesar do calor, vestia um gibão de cetim cinzento-pérola e a sua blusa, de um branco resplandecente, mantinha-se seca e fresca.

  • Excelências - disse ele, com uma voz teatral e eloquente -, todos sabeis que o duque foi apanhado de surpresa. Há quem diga que pela traição, mas, sendo assim, não foi imerecido. Guido Feltra estava claramente a conspirar contra os Bórgia e eles, em contrapartida, enganaram-no. Dir-se-ia um caso de frode onorevole, fraude honrosa. — Maquiavel começou a andar diante deles enquanto prosseguia.

  • Qual é a situação de César Bórgia? Bem, o seu exército é numeroso e bem organizado e os seus homens são leais. Sabe-se em todas as vilas e cidades que os soldados de César o adoram. Subjugou a Romanha e agora Urbino. Aterro­rizou os bolonheses... e, verdade seja dita, aterrorizou-nos também a nós. -Cobriu os olhos com a mão, num gesto teatral, para transmitir aos membros da Signoria a severidade do que ia dizer. - Não podemos confiar em que os france­ses interfiram nos planos de César. E certo que os franceses desconfiaram dos Bórgia na revolta de Arezzo e que estão muito descontentes com o facto de César ameaçar Bolonha e a nossa grande cidade. Mas, não esqueçais, Luís ainda pre­cisa do apoio do Papa para negociar com a Espanha e com Nápoles... e, dada a força e destreza do exército de César, a posição deles parece bastante sensata.

Maquiavel baixou a voz.

  • Ora, vou fazer-vos uma confidência. César fez uma visita secreta a Luís, viajando disfarçado e sem guardas. Ao colocar-se totalmente à mercê do rei francês, e pedir-lhe desculpa pela errónea aventura de Vitelli em Arezzo, César sanou qualquer zanga que possa ter existido entre a França e o papado. Por conseguinte, desta vez, se César atacar Bolonha, vaticino que o rei o apoiará. Se ele atacar Florença, os franceses podem interferir ou não.

Um transpirado signore pôs-se de pé, enxugando a testa com um lenço de linho branco, mostrando o cenho carregado de preocupação.

  • O que se afigura que estais a dizer-nos, Maquiavel, é que César Bórgia é imparável e que aqueles de nós que têm a sorte de possuir casas de campo nas montanhas devem fugir.

  • Duvido de que seja assim tão mau, Excelência - tranquilizou-o Maquia­vel. - Até agora, a nossa relação com César é amigável e ele tem um genuíno afecto pela nossa cidade.

«Mas há mais uma coisa a ter em conta, que pode alterar o equilíbrio desta equação. César Bórgia derrotou e humilhou uma série de homens perigosos expulsando-os dos seus territórios e, embora seja certo que o seu exército é leal e os soldados o adoram, estou muito menos seguro quanto aos seus condo-ttieri, porque são homens violentos e imprevisíveis, capazes de inveja e coisa pior. Receio que um dia voltem e procurem derrubá-lo. É que, ao mesmo tempo que se tornava o homem mais poderoso de Itália, César Bórgia criou um rol de inimigos tremendos... rol esse que nenhum de nós gostaria de compartilhar.»

Em Magioni, num castelo do território dos Orsini, a conspiração começou a tomar forma. Giovanni Bentivoglio, de Bolonha, estava decidido a chefiar a conspiração. Grande e atlético, de cabelo grisalho ondulado e feições rudes, tinha o sorriso fácil e falava com uma voz carregada de persuasão. Tinha, no entanto, um lado sombrio. Antes de atingir a idade adulta, integrado num grupo de ban­didos, matara uma centena de homens. Reabilitara-se, tornando-se um bom

governante de Bolonha, e todos os seus ferozes e sanguinários impulsos pareciam ter sido postos de lado... Isto é, até ser ameaçado e humilhado por César.

Bentivoglio organizou uma reunião no seu castelo de Bolonha, para a qual convidou o baixo e robusto Guido Feltra, o expulso e ultrajado duque de Urbino. Feltra falava tão baixo que as pessoas tinham de escutar muito bem tudo quanto dizia... a menos que soubessem, claro está, que em Guido Feltra cada frase encerrava uma ameaça.

Associados à conspiração estavam dois condottieri-chave do exército de César: Paolo e Francesco Orsini, um dos quais era louco e o outro um idoso prefeito de Roma e duque de Gravina, que construíra a sua reputação de sol­dado desumano exibindo a cabeça de uma das suas vítimas na ponta da lança durante dias a seguir a uma conquista. Os Orsini andavam sempre ávidos de conspirar contra os Bórgia.

Não constituía surpresa que estes homens fossem inimigos de César; mais digna de nota era a participação de comandantes que anteriormente tinham servido bem César. Oliverotto da Fermo - e, o que era ainda mais chocante, o próprio Vitellozzo Vitelli — foram até ao castelo. Vitelli estava enfurecido por ter sido obrigado a devolver Arezzo. Estes homens, que estavam suficien­temente perto de César para saber que as suas estratégias militares o tinham colocado em grave perigo, comandavam ainda uma grande parte do seu exér­cito.

Juntos, agora, arquitectaram um plano. Primeiro acordaram em que pre­cisariam de outros aliados. Uma vez conseguido isso, encontrar-se-iam de novo para organizar as suas tropas e, o que era mais importante, decidir onde e quando atacariam César. Parecia, assim, que César Bórgia tinha os dias contados.

Alheio aos perigos que enfrentava, César estava sentado à lareira no seu novo quartel-general de Urbino, saboreando um bom vinho do Porto da adega de Guido Feltra, quando o seu ajudante anunciou que um cavalheiro de Flo­rença tinha vindo para se avistar com ele: o Signore Niccolò Maquiavel.

Maquiavel foi conduzido à sala. Quando ele se desfez da comprida capa cinzenta, César notou-lhe as feições pálidas e fatigadas, ofereceu-lhe uma cadeira cómoda e serviu-lhe um cálice de Porto.

  • Então o que é que traz por cá a brilhante estrela da diplomacia florentina pela calada da noite? — perguntou com um sorriso o amável anfitrião.

O rosto de Maquiavel revelava preocupação.

  • Assuntos críticos, César. Não farei rodeios. Florença foi convidada a jun­tar-se a uma nutrida conspiração contra vós. Alguns dos vossos melhores comandantes estão implicados. De muitos deles suspeitais já, mas de um não desconfiareis, Excelência: o vosso comandante, capitão Vitellozzo Vitelli. - E Maquiavel mencionou também os outros que se tinham reunido em Magioni.

César ficou atordoado, mas não o demonstrou.

  • Por que me contastes isso, Niccolò? - perguntou. - Não seria do melhor interesse de Florença que a minha campanha fosse travada?

  • César - replicou Maquiavel -, debatemos essa mesma questão. Serão os conspiradores um mal menor que os Bórgia? Não se tratou de uma decisão fácil e foi tomada, não pela Signoria, mas numa sessão de emergência pelo Conselho dos Dez.

«Eu disse-lhes que vós éreis bastante racional e pelo menos os vossos objec­tivos, aqueles que confessais, são razoavelmente sãos. E creio que aceitareis a preferência de França de que Florença não seja atacada.

«Os conspiradores, em contrapartida, não são gente completamente racio­nal. Paolo Orsini é meio louco. Toda a família Orsini despreza o governo de Flo­rença e o vosso amigo Vitellozzo Vitelli despreza pura e simplesmente a cidade em si, sabe-se lá porquê. Nós sabemos, por exemplo, que foram Orsini e Vitelli quem vos instigou a atacar Florença na vossa última campanha, e que vós re­cusastes. Essa demonstração de lealdade foi para nós um argumento importante.

«Se esses homens conseguirem destruir-vos, deporão o vosso pai e nós tere­mos um Papa militante escolhido por eles. Nesse caso, o poder deles seria catas­trófico. Eles, ao contrário de vós, não hesitariam em atacar, e mesmo saquear, Florença.

«Além disso, referi ao conselho que vós havíeis de ter conhecimento da conspiração (esses homens não conseguem manter um segredo) e que, sabendo

da sua traição, com a vossa superior destreza táctica, derrotaríeis os conspira­dores. — Um olhar de divertimento perpassou pelo rosto de Maquiavel. — Por conseguinte, limitei-me a dizer: “Alertemo-lo nós mesmos. Podemos ganhar alguma boa vontade.”»

César riu-se e deu uma palmada nas costas ao florentino.

  • Por Deus, Maquiavel, sois inigualável... simplesmente inigualável. A vossa franqueza é empolgante e o vosso cinismo uma delícia — observou.

Conquanto numa posição quase impossível, César agiu com grande rapi­dez. Retirou as suas forças leais de Urbino e Camerino, concentrando-as mais a norte, nas bem protegidas fortalezas da Romanha.

Além disso, expediu delegados em todas as direcções, dia e noite, em busca de substitutos para os condottieri que o tinha traído. Pretendia capitães novos e hábeis e soldados mercenários veteranos, desejavelmente com canhões, e que­ria também mobilizar a gabada infantaria de Vai di Lamone — a melhor infan­taria de toda a Itália — na área próxima de Faenza, um lugar que tinha sido bem tratado e governado desde a ocupação. Chegou a contactar Luís para obter sol­dados franceses.

Daí a uma semana Maquiavel enviou um relatório ao Conselho dos Dez. «Existe aqui a firme convicção», escrevia ele, «de que o rei de França auxiliará Bórgia com homens e o Papa lhe facultará dinheiro. O atraso dos inimigos em cercá-lo conferiu vantagem a César. Agora estimo que é demasiado tarde para causar grande dano a César, porque ele proveu todas as cidades importantes de guarnições e abasteceu adequadamente todas as fortalezas.»

Os conspiradores não tardaram a aperceber-se do mesmo que Maquiavel. E, assim, a conspiração começou a deslindar-se.

Bentivoglio foi o primeiro a abordar César, para pedir perdão e jurar fideli­dade. A seguir os Orsini expressaram o desejo de estabelecer a paz... ou, se os outros conspiradores não estivessem nessa disposição, traí-los. Apenas Guido Feltra se manteve afastado.

Finalmente, César encontrou-se com os seus inimigos propondo-lhes con­dições generosas: primeiro, garantiu-lhes que não haveria castigo. Quanto a Camerino e Urbino, porém, que tinham sido ocupadas pelos conspiradores, não podia ceder: tinham de lhe ser devolvidas. Tranquilizou, contudo, Benti-

voglio, dizendo-lhe que podia conservar Bolonha, pois o Papa tinha assinado um tratado com Bentivoglio, a instâncias do rei de França. Em contrapartida, Bentivoglio acedeu a fornecer lanças e cavalos, juntamente com soldados para a próxima campanha.

Os condottieri — Orsini, Vitelli, Gravina e da Fermo — reocupariam as suas posições como comandantes dos exércitos de César.

Durante seis semanas, reinou a paz. Quando o exército francês chegou, César enviou-o de volta a Luís com os seus agradecimentos.

Tinha terminado a conspiração.                              o.  o.

Em Roma, contudo, sem conhecimento de César, Alexandre tinha-se também encarregado de auxiliar o filho. Sabia que Francesco e Paolo Orsini não podiam ser castigados enquanto o cardeal António Orsini permanecesse vivo, pois, como patriarca da família, o cardeal garantiria que houvesse uma retaliação brutal e o Papa não estava na disposição de arriscar-se a perder outro filho.

E assim, num espírito amigável, Alexandre convidou o cardeal para o Vati­cano, dizendo a António que estava a pensar num dos seus sobrinhos para um cargo na igreja.

Não foi sem pressentimentos que António Orsini aceitou o convite para o Vaticano, embora simulasse humildade e gratidão.

Uma vez sentado nos aposentos do Papa, o cardeal foi brindado com um sumptuoso jantar, composto por inúmeras iguarias e diversas variedades de vinho. Discutiram bem-humoradamente um com o outro sobre questões polí­ticas e gracejaram entre si acerca de certas cortesãs que ambos tinham conhe­cido. Segundo todas as aparências, dir-se-ia que apreciavam a companhia um do outro e um espectador não teria adivinhado o que ia no coração de cada um dos religiosos.

Todavia o cardeal, sempre alerta e desconfiado dos Bórgia, recusou-se a beber o vinho, não fosse ter sido envenenado. Não obstante, vendo que o Papa comia com gosto, comeu também com fartura, pedindo apenas água fresca em

lugar de vinho, pois a água era transparente e qualquer intenção menos clara não lhe passaria despercebida.

Terminado o jantar, no preciso momento em que o Papa convidava o cardeal a reunir-se-lhe no escritório, o cardeal António Orsini agarrou-se ao estômago, amarfanhou-se na cadeira e caiu redondo no chão, com os olhos a rebolarem nas órbitas como os mártires nos frescos das paredes dos aposentos do Papa.

  • Eu não bebi vinho - sussurrou roucamente o cardeal.      o            >

  • Mas comeste os chocos com tinta - retorquiu o Papa.       > ).

Nessa mesma noite o cardeal Orsini foi levado do Vaticano por guardas papais a fim de ser sepultado. Durante uma missa na capela, no dia seguinte, o próprio Papa proferiu orações pela alma do cardeal e mandou-o para o céu com a sua bênção.

Alexandre mandou então os guardas papais confiscarem os bens do cardeal Orsini, incluindo o palácio, pois a dispendiosa campanha de César precisava de fundos acrescidos. Quando os guardas lá chegaram, porém, deram com a mãe de Orsini, uma velha encarquilhada de cabelos brancos, a viver lá e, assim, despejaram-na nas ruas de Roma.

  • Tenho de ter os meus criados — exclamava ela, assustada, enquanto avan­çava tropegamente, arrimando-se à bengala. Por conseguinte, mandaram os criados com ela.

Nessa noite nevava em Roma e o vento era cortante e brutalmente frio. Mas ninguém dava abrigo à velha, pois temiam que o Papa ficasse desagradado.

Dois dias depois, na capela do Vaticano, o Papa mandou dizer outra missa, desta feita pela mãe do cardeal Orsini, que sofrera um infortúnio e fora encon­trada morta, enrolada à porta de uma casa, com a bengala enregelada presa na mão mirrada.                                       

Em Dezembro, no caminho para Senigallia, César passou por Cesena para saber do seu governador, Ramiro da Lorca. Este havia sido empossado naquele cargo, mas agora tinham chegado aos ouvidos de César notícias de um certo descontentamento entre os seus cidadãos.

Os últimos rumores acerca de brutalidade de da Lorca obrigaram César a convocar uma audiência na praça de vila, perante os habitantes, para que da Lorca se pudesse defender.

  • Ouvi dizer que usastes de extrema crueldade para castigar a gente da vila. É verdade? - perguntou César.

Com uma cabeleira ruiva que parecia uma auréola peluda à volta da cabeça, e os lábios grossos apertados, da Lorca falou com uma voz tão aguda que era quase um guincho.

  • Não me parece que tenha sido indevidamente cruel, Excelência - disse -, porque ninguém me dá ouvidos e poucos se portam como eu ordeno.

César inquiriu:

  • Dizem-me que um jovem pajem foi atirado a uma fogueira na praça por vossa ordem e que lhe pusestes um pé em cima enquanto ele era queimado vivo.

Da Lorca hesitou.

  • Mas claro que foi com razão...  

César permaneceu hirto, com a mão na espada.    

  • Nesse caso tenho de a ouvir...

  • O rapaz foi insolente... e desajeitado - disse da Lorca.

  • Governador, acho a vossa defesa insuficiente — replicou asperamente César.

César soubera também que Ramiro tinha tramado com os conspiradores para o apanhar na armadilha. Mas a boa vontade do povo de Cesena era para ele de maior importância. Qualquer crueldade indevida minaria o controlo dos Bórgia nas áreas da Romanha onde César imperava e, por conseguinte, da Lorca tinha de ser castigado.

Por ordem de César, da Lorca foi imediatamente lançado nas masmorras da fortaleza. Depois, César mandou chamar o seu leal amigo Zappitto, nomeou—o governador de Cesena e deu-lhe uma bolsa cheia de ducados, juntamente com pormenorizadas instruções.

Para surpresa dos cidadãos, mal César deixou a vila, Zappitto libertou o desu­mano e cruel Ramiro da Lorca da sua masmorra. E, embora os habitantes da vila ficassem descontentes com o facto de ele ser libertado, sentiram-se afortunados, pois perceberam que Zappitto era um governante com o dom da clemência.

Na manhã a seguir ao Natal, porém, Ramiro da Lorca foi descoberto deca­pitado, amarrado ao cavalo, que galopava pelo mercado fora, ainda vestido com a sua brilhante capa de Natal vermelho-vivo e dourada e respectivos adornos.

Nessa altura toda a gente foi unânime em considerar que fora uma grande desventura para da Lorca ter sido libertado da masmorra.

César preparou-se para o ataque a Senigallia, governada pela família delia Rovere. Havia muito que planeava ocupar aquela cidade portuária do Adriático e por isso deu ordens às suas tropas leais no sentido de marcharem para a costa, onde se lhe juntariam os antigos conspiradores e as forças destes. Os condottieri leais e os que tinham conspirado ficaram satisfeitos por trabalharem de novo em harmonia e ambos os grupos se dirigiram para o litoral como lhes fora indicado.

Quando estas forças se aproximaram de Senigallia, a cidade não tardou a render-se. Andrea Doria, porém, o comandante da fortaleza, insistiu em ren­der-se apenas a César.

Enquanto César aguardava a hora dessa reunião, ordenou que as suas tro­pas mais leais fossem colocadas mais perto da cidade, enquanto as dos outros comandantes ocupavam uma área mais distante das portas da cidade.

A ordem de César, os seus comandantes leais juntaram-se a um pequeno grupo de infantes às portas de Senigallia, preparados para aceitar a rendição da cidadela. Este grupo incluía também Paolo e Francesco Orsini, Oliverotto da Fermo e Vitellozzo Vitelli.

Seguindo as indicações de César, o grupo transpôs as portas para se encon­trar com o comandante Andrea Doria num palácio local, onde se estabelece­riam as condições da rendição.

Quando entraram na cidade e as pesadas portas se fecharam atrás deles, César observou, rindo, que os desconfiados senigalenses não queriam arriscar-se a que o exército papal saqueasse a cidade enquanto decorriam as conversações.

Ao entrarem no pequeno palácio, foram conduzidos por César a uma sala de visitas octogonal cor de pêssego com quatro portas interiores, uma grande mesa de conferências e cadeiras de veludo cor de pêssego.

A conversa foi descontraída, enquanto bebiam copos de vinho da região que os criados tinham servido. Ali não haveria disputas e Paolo e Francesco Orsini, Oliverotto da Fermo e Vitellozzo Vitelli, os ex-conspiradores, ficaram contentes por serem novamente aceites, especialmente por tomarem parte numa campanha que era já bem sucedida.

César caminhou até ao centro da sala. Desfazendo-se da espada, sugeriu aos seus comandantes que, tratando-se de conversações de paz, se lhe associassem, desarmando-se antes da chegada do comandante Doria. Eles seguiram-lhe pron­tamente o exemplo, entregando as armas a um dos ajudantes de César. Apenas Viteloozzo Vitelli parecia preocupado, pois as portas da cidade estavam fechadas e as suas tropas encontravam-se a centenas de metros das muralhas da cidade.

  • Sentai-vos, por favor, senhores — ordenou César. — Senigallia foi sempre um porto importante, mas será, creio eu, muito mais importante a partir de hoje. Todos vós merecestes abundantemente a vossa paga e recebê-la-eis. Agora!

À palavra «Agora», duas dúzias de homens fortemente armados entraram de rompante na sala, vindos de todos os lados. E, em menos de um minuto, Paolo e Francesco Orsini, Oliverotto da Fermo e Vitellozzo Vitelli foram bem amar­rados às respectivas cadeiras.

César, com os olhos negros de veemência, disse:

  • Portanto, meus senhores, para vossa paga, permiti que vos apresente o meu bom amigo Don Michelotto.

Michelotto fez uma vénia e sorriu. Detestava traições. Pegando no seu gar­rote que um ajudante lhe estendia, percorreu à vez os comandantes desleais, estrangulando cada um deles, enquanto os restantes assistiam, horripilados.

Quando do seu regresso a Roma, César foi calorosamente recebido, quer pelos cidadãos quer pelo Papa, que aguardava a sua chegada com a sua comi­tiva às portas da cidade. Desde a sua conquista da Romanha, César sorria com mais facilidade; parecia tão satisfeito consigo próprio como seu pai e não tinha dúvidas de que não tardaria que toda a Itália estivesse sob o seu domínio.

Secretamente, o Papa e ele tinham mesmo falado em transmitir-lhe a tiara, ou no mínimo coroá-lo rei da Romanha. Primeiro, contudo, tinha de tomar a Toscana, coisa que até agora seu pai se tinha recusado a permitir.

Nessa noite, nos seus aposentos, enquanto se descontraía e gozava a recor­dação das suas vitórias, César recebeu uma caixa com um recado de Isabel dEste, irmã do duque de Urbino, que ele depusera.

Quando César se encontrava no palácio do irmão em Urbino, tinha rece­bido uma mensagem dela, implorando-lhe a restituição das suas duas precio­sas estátuas que ele confiscara juntamente com o castelo, uma de Cupido e a outra de Vénus. Tinham valor estimativo para ela, explicara-lhe, nada referindo quanto à sua inclinação para coleccionar antiguidades.

Agora, porém, que ela era cunhada de Lucrécia, ele tinha-se deixado levar pelos seus rogos e mandara imediatamente alguns dos seus homens levar-lhe as estátuas. Neste recado ela agradecia-lhe a amabilidade e mandava-lhe em troca uma pequena coisa.

Era uma grande caixa, embrulhada com fitas de seda e atada com laços dou­rados. Ao abri-la, deu por si tão excitado como em criança sempre que desem­brulhava um presente inesperado. Levantando cuidadosamente a tampa, extraiu devagar o pergaminho que a cobria, e viu lá dentro uma centena de máscaras, de todos os tipos: máscaras de Carnaval de ouro e jóias, máscaras de cetim vermelho e amarelo, misteriosas máscaras pretas e prateadas e outras com as formas de rostos de dragões, demónios e santos.

César riu em voz alta ao examinar cada uma delas, detendo-se a ver-se ao espelho à medida que as colocava uma a uma no rosto, divertindo-se com as muitas imagens diferentes que surgiam diante dos seus olhos.

Um mês depois, César e Alexandre encontraram-se no apartamento Bór-gia, aguardando Duarte, que acabava de regressar de Florença e Veneza.

Alexandre contou entusiasticamente a César os seus novos planos para embelezar o Vaticano.

  • Com muita dificuldade, persuadi o artista Miguel Angelo a desenhar pla­nos para uma Basílica de S. Pedro completamente nova. Quero criar uma coisa sumptuosa, uma glória para o mundo cristão.

  • Não conheço os seus talentos como arquitecto, mas o Cupido que com­prei diz-me que Miguel Angelo é um grande artista.

Nessa altura Duarte entrou na sala e cumprimentou Alexandre, beijando—lhe o anel papal. César perguntou:

  • Então, Duarte, encontrastes os vilões em Veneza? E a boa gente de Flo­rença continua a considerar-me um ogro, um tortuoso estrangulador dos ino­centes, por causa do sucedido em Senigallia?

  • Não, César, tendem a acreditar que fizestes o que tínheis de fazer, e o fizestes com esperteza e habilidade. Foi, como ele dizem, scelleratezza gloriosa, uma traição gloriosa. As pessoas adoram a vingança, e quanto mais especta­cular, melhor.

Duarte assumiu então uma expressão séria e virou-se para Alexandre.

  • Santidade — disse —, nas actuais circunstâncias, creio que subsiste verda­deiro perigo.

  • O que é que vos preocupa, Duarte? Mexericos sérios, ou alguma verdade fatal que descobristes? - perguntou Alexandre.

Duarte respondeu:

  • Os conspiradores podem estar mortos... mas as famílias, não. Agora estão mais iradas e sem dúvida procurarão vingança. — Olhou para César. — Não podem ombrear convosco em força, César, mas nunca vos perdoarão. E, como o papado vos apoia, o Papa está também em perigo.

28

O cardeal Julião delia Rovere andava às voltas nos seus aposentos de Óstia, enraivecido como um louco. Tinha acabado de receber a notícia de que César Bórgia conquistara Senigallia, e agora o domínio dos Bórgia era lei mesmo no local que dantes pertencia à sua família. Mas isso não era o pior.

Quando César partira a fim de regressar a Roma, as tropas que deixara no interior das portas de Senigallia tinham violado, saqueado e pilhado a vila inteira. Nem uma das mulheres escapara, nem sequer a sua doce sobrinha, Anna, e esta não passava de uma criança de doze anos de idade.

A fúria do cardeal atingiu um tal estado febril que nem a oração lhe valia. Em lugar disso, pegou na pena e, de pé frente à escrivaninha, com os pés e as pernas a tremerem incontrolavelmente, redigiu uma mensagem dirigida a Ascânio Sforza. «Se o que de bom há em nós se ativer à virtude», escreveu, «o • mal reinará. Para o maior bem de Deus e da Santa Madre Igreja, temos de des­fazer agora os males que foram feitos.» Depois indicava a data e local em que se deveriam encontrar.

Com as mãos a tremer, colocou o lacre sobre a chama da vela e observou os pingos vermelhos a caírem lentamente sobre o pergaminho dobrado. Depois pegou no sinete e carimbou o lacre quente com a cabeça do Cristo martirizado.

O cardeal delia Rovere estava para chamar um mensageiro quando uma lancinante pontada de dor lhe atingiu a cabeça com tal intensidade que o obri­gou a ajoelhar. Tapou o rosto com as mãos e a cabeça pendeu-lhe. Tentou cha­mar alguém, mas ficou sem fala com o que viu diante de si.

A visão, em movimento retardado, era do porta-estandarte do Papa, empunhando a bandeira branca com o touro vermelho dos Bórgia bordado a drapejar livremente ao vento. Porém, enquanto a observava, a bandeira tom­bava e um milhar de cavalos passava-lhe por cima, deixando-a rota e esfarra­pada na terra lamacenta. Quando levantou a cabeça e olhou em redor, não havia nada na sua esteira. E compreendeu imediatamente: o touro dos Bórgia fora abatido.

Pôs-se então de pé, abalado pela visão, e amparou-se à escrivaninha. Quando sentiu firmeza nas pernas, voltou a pegar na pena. Redigiu mais men­sagens. E, à medida que o lacre vermelho as fechava, pronunciava uma oração sobre cada uma delas. Uma foi enviada ao duque de Nápoles, outra a Fortu-nato Orsini, que era agora o patriarca da família Orsini, desde a morte do car­deal António. Uma foi enviada ao cardeal Coroneto, para Roma, outra ao car­deal Malavoglia, para Veneza, outra ainda a Catarina Sforza, para Florença, e a derradeira à rainha Isabel, para Espanha.

Agora tinha que principiar a pôr fim àquilo...

Como fizera ao longo das últimas semanas, Godofredo desceu a comprida escada de caracol da cave do Castelo de SantAngelo, em direcção às masmor­ras. Ali chegado, passou pelos guardas adormecidos, que cada dia reparavam menos nele, e encaminhou-se para a pequena e esquálida masmorra do canto.

Ali, num simples catre coberto de palha, com o cabelo preto em desalinho e emaranhado de nós, estava Saneia, silenciosa como uma estátua. Ao fitá-la, viu-lhe os olhos marejados de lágrimas, mas dir-se-ia que não o via.

O guarda abriu a porta e Godofredo entrou na cela. Quando se sentou junto dela e poisou a mão na de Saneia, ela não a retirou, mas tinha-a frouxa e gélida.

  • Saneia, Saneia — rogou ele. — Não faças isso, por favor. Por favor, não con­sintas em abandonar-me sem luta. Enviei uma mensagem ao nosso tio e ele virá em breve reclamar-te. Mas receio partir eu próprio, com medo de que te aconteça algum mal.

Saneia começou a murmurar baixinho, mas não disse nada.

Godofredo sabia o que devia fazer. Mas como?                            

 Desde o dia em que o pai pusera Saneia na masmorra, Godofredo tinha sido continuamente guardado e todos os seus movimentos tinham sido vigia­dos. Excepto quando descia as escadas do castelo de SantAngelo, nunca pas­sara um momento sozinho.

César acabava de regressar e tranquilizara o irmão, garantindo-lhe que, pas­sado um curto período de tempo, podia tratar de que o Papa pusesse Saneia em liberdade.

Godofredo olhou para a mulher e os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas. Se ele não se apressasse, ela libertar-se-ia para sempre, e ele não poderia suportá-lo.

Foi então que um guarda se aproximou dele e o chamou pelo nome. Godo­fredo, porém, não o reconheceu, embora a sua voz lhe trouxesse reminiscên­cias de algum conhecido. Tinha olhos de um azul claro e uma cabeleira negra e, embora as suas feições fossem carregadas, eram suficientemente definidas para lhe dar um ar de força.

  • Conheço-te? — perguntou Godofredo.

O jovem acenou afirmativamente, mas só quando estendeu a mão para o cumprimentar é que Godofredo se recordou.

  • Vanni — disse, abraçando-o. — Vanni, como é que apareceste sem seres apanhado?

O guarda sorriu.

  • É um disfarce eficiente, não achas? Agora anda, temos que falar durante algum tempo... antes que não tenhamos tempo nenhum.

Dias mais tarde, quando o sol cor de laranja se punha sobre o campo som­brio, dois homens estavam de pé diante de uma grande coudelaria. Envergando ambos vestes cardinalícias, o mais alto dava instruções a quatro cavaleiros mon­tados. Estavam mascarados e vestiam capas negras com capuz.

  • Façam exactamente como eu mando - dizia o cardeal mais imponente. — Nada de vestígios. A coisa deve ser concluída... de modo final.

Os quatro cavaleiros mascarados transpuseram as dunas de areia, dirigindo—se à choupana de uma velha chamada Noni. Esta veio lentamente, arrastando os pés, ao encontro deles, com o cesto de verga na mão.

Um dos cavaleiros debruçou-se muito na sela para falar com ela, baixinho, como se estivesse a sussurrar um importante segredo. Ela acenou com a cabeça, olhou para um lado e para outro e depois dirigiu-se, com passo arrastado, ao jardim. Daí a um momento estava de volta, trazendo um punhado de bagas escuras. Entrou na sua choupana, enfiou as bagas numa pequena bolsa de couro e estendeu-a ao cavaleiro, que nesta altura aguardava lá dentro.

  • Gmzie — disse ele cortesmente. A seguir puxou da espada e, com um único golpe rápido, abriu-lhe o crânio ao meio.

Daí a minutos a choupana de Noni estavam em chamas, com o corpo dela no interior.

Os cavaleiros voltaram a montar e, galgando as colinas, afastaram-se dali.

Na manhã do banquete comemorativo das vitórias de César e do undécimo aniversário de Alexandre no trono papal, Alexandre acordou com uma sensa­ção de mal-estar. Tinha passado toda a noite às voltas, incapaz de conciliar o sono. Assim, ao sentar-se na borda da cama para se equilibrar antes de se pôr de pé, levantou a mão, como sempre fazia, para esfregar o seu amuleto e rezar as suas orações. A princípio, quando apalpou o pescoço e verificou que não estava lá nada, não compreendeu. A seguir riu-se interiormente. Devia estar virado para trás. Não o podia ter perdido, pois tinha sido soldado ao fio, uma porção de anos atrás, e nem uma única vez desde então lhe tinha caído do pes­coço. Nessa manhã, porém, não havia meio de o encontrar e Alexandre ficou preocupado. Gritou pelos criados, todos eles. Chamou por Duarte, César e Godofredo. Porém, embora os seus aposentos fossem diligentemente esqua­drinhados, o amuleto tinha desaparecido.

  • Não saio dos meus aposentos — disse-lhes, com os braços cruzados sobre o peito.

Eles, contudo, garantiram-lhe que procurariam no quintal, nanmifale até nos bosques, não descansando enquanto não o encontrassem.

Como o amuleto não tivesse sido recuperado ao anoitecer, e o cardeal Coroneto mandou dizer que estava toda a gente à espera para comemorar, o Papa acedeu em ir.

  • Mas se até amanhã de manhã não mo trouxerem, todo o serviço da igreja será suspenso — advertiu Alexandre.

No luxuoso castelo de campo do cardeal Coroneto, as mesas tinham sido deslocadas para o fabuloso jardim que bordejava o lago, com repuxos a derra­mar água cristalina sobre pétalas de rosa de cores alegres que nele flutuavam. A chuva tinha parado e a comida era deliciosa. Havia grandes travessas de pequenos camarões genoveses com molho de limão e ervas, carne de veado com molho de bagas de junípero e uma magnífica filho de frutas e mel. As esplêndidas diversões incluíam um cantor tradicional napolitano e um grupo de bailarinos da Sicília.

O vinho era abundante, servido pelos criados em grandes taças cintilantes de prata. Coroneto, o cardeal romano, tremendamente gordo, ergueu a taça para brindar aos Bórgia, como os trinta ricos e influentes romanos presentes.

Alexandre tinha posto momentaneamente as suas preocupações de lado e estava de esplêndido humor, gracejando jovialmente com os filhos. Com César sentado de um lado dele e Godofredo do outro, no decurso da refeição o Papa rodeou ambos os filhos com os braços e apertou-os num terno abraço. Foi então que Godofredo se debruçou para dizer qualquer coisa a César e, por qualquer estranho acidente ou desígnio, fez-lhe saltar a taça da mão, entornando o vinho, brilhante como sangue, por cima da camisa de seda dourada de César.

Apareceu um criado para limpar a nódoa, mas César repeliu-o, impacien­temente.

Com o avançar da noite, porém, Alexandre começou a sentir-se extrema­mente cansado e muito quente. Não tardou que pedisse para o desculparem. César sentia-se igualmente mal, mas estava mais preocupado com o pai, que aparentava uma palidez espectral e tinha começado a suar.

Alexandre foi auxiliado a regressar aos seus aposentos. Nessa altura ardia já em febre e mal conseguia falar.

Mandaram imediatamente chamar o seu médico, Michele Marruzzi. Após examinar o Papa, aquele abanou a cabeça. Depois, virando-se para César, declarou:

  • Desconfio que é malária. - Observando melhor, acrescentou: - César, vós também não pareceis bem. Metei-vos na cama, que eu virei amanhã de manhã ver-vos a ambos.

Na manhã seguinte, era evidente que pai e filho estavam gravemente doen­tes. Ambos ardiam em febre.

O Dr. Marruzzi, sem saber exactamente se estava a lidar coma malária ou com veneno, receitou uma sangria imediata com sanguessugas que tinha tra­zido consigo. Numa jarra de boticário que Marruzzi segurava, César via as escuras e delgadas sanguessugas a rastejarem à volta do fundo, como compri­das linhas castanhas que tivessem ganho vida.

Com as espessas sobrancelhas negras unidas de concentração, o Dr. Marruzzi rebuscou suavemente no interior da jarra com uma pequena pinça metálica e extraiu cuidadosamente uma sanguessuga. O médico mostrou a sanguessuga num pequeno prato de estanho a César e explicou com grande orgulho:

  • São as melhores sanguessugas de Roma inteira. São compradas por ele­vado preço no Mosteiro de S. Marcos, onde são alimentadas e criadas com esmero.

César retraiu-se ao ver o médico colocar uma das sanguessugas no pescoço do pai e depois outra. Não tardou que a primeira sanguessuga escurecesse do sangue, tornando-se-lhe o corpo filiforme mais curto e grosso à medida que se ia enchendo. Quando a quarta sanguessuga foi colocada, a primeira estava cheia até mais não poder; redonda e roxa como uma baga, soltou-se e caiu nos lençóis de seda lavados.

César ia ficando cada vez mais repugnado à medida que o Dr. Marruzzi, fascinado, quer com as sanguessugas quer com a sua própria habilidade, con­tinuava:

  • Vão sugar o mau sangue do corpo do vosso pai e ajudá-lo a restabelecer-se. Quando o Dr. Marruzzi achou que já tinha saído sangue suficiente, retirou

as sanguessugas, declarando:                                                        

  • Creio que Sua Santidade já está melhor.                -

De facto, Alexandre parecia ter menos febre, mas agora estava frio, viscoso

e mortalmente pálido.     <   

Marruzzi virou-se então para César.                                                   

  • E agora vamos a vós, meu filho - disse, avançando para ele com mais qua­tro sanguessugas. César, porém, achava o processo repugnante e, por conse­guinte, recusou. Mas que sabia ele de medicina moderna? Além disso, sentia—se tão doente que já nada lhe importava.

A noite, apesar do optimismo do médico, era evidente que Alexandre estava cada vez mais doente; havia quem receasse que estivesse à beira da morte.

No andar de cima, nos seus aposentos, César foi informado por Duarte de que a mãe, Vanozza, tinha ido visitar o Papa e fora vista saindo do quarto dele a chorar. Tinha passado para ver César, mas não quisera acordá-lo.

Nessa altura César insistiu em que o levassem até à cabeceira do pai. Impos­sibilitado de andar, foi transportado numa liteira até ao bafiento quarto do enfermo, onde se deixou cair, debilmente, numa cadeira ao lado da cama de Alexandre. Estendeu o braço e tomou a mão do pai, beijando-lha.

O Papa Alexandre, deitado de costas, com a barriga a fermentar de toxinas e os pulmões cheios de fluido espesso, tinha dificuldade em respirar. Dormia entrecortadamente um sono sem sonhos, com a mente muitas vezes turva, mas ocasionalmente limpidíssima.

Ergueu a vista para ver o seu filho César sentado ao seu lado, com o rosto desfigurado e pálido e o cabelo castanho-claro baço e sem vida. Ficou tocado com a preocupação que leu nas feições de César.

Pensou nos filhos. Tê-los-ia ensinado suficientemente bem? Ou tê-los-ia corrompido e desarmado através do exercício de demasiado poder, quer como pai quer como Santo Padre?

Mal colocava a si próprio estas perguntas, os pecados que tinha feito expiar aos filhos pareceram desfilar-lhe diante dos olhos, em imagens distintas, de uma clareza, dimensão e emoção como nunca tinha visto até aí. E subitamente compreendeu. Todas as suas perguntas tinham sido respondidas.

Nessa altura Alexandre ergueu o olhar para César.

  • Meu filho, procedi mal contigo e imploro o teu perdão. César observou o pai com um misto de compaixão e cautela.

  • O que é, Papá? - perguntou, com tal ternura que quase fez chorar o Papa.

  • Referi-me ao poder como um mal - disse Alexandre, esforçando-se por respirar. - Mas receio nunca o ter explicado completamente. Alertei-te contra isso, em lugar de te encorajar a examiná-lo mais detidamente. Nunca te expli­quei que a única boa razão para exercer o poder é o serviço do amor.

A sua respiração emitia um som sibilante.

  • Qual é a conclusão? - inquiriu César.

De repente Alexandre começou a delirar. Sentiu-se de novo jovem, como um cardeal sentado nos seus aposentos, a conversar com os dois filhos e a filha enquanto o bebé brincava. Sentiu que a respiração se lhe tornava mais fácil.

  • Se não amares nada, o poder é uma aberração e, o que importa ainda mais, continua a ser uma ameaça. Porque o poder é perigoso e pode virar-se a qualquer momento.

Voltou a afundar-se num sonho, ao que parecia, e imaginou o seu filho como general papal, imaginou as batalhas travadas e vencidas, viu as sangren­tas feridas, as mortes brutais e a devastação do povo que ele tinha conquistado.

Ouviu César chamar por ele. Ouviu o filho perguntar, como que de muito longe e muito tempo atrás:

  • O poder não é uma virtude? Não ajuda a salvar as almas de muitos?

  • Meu filho - murmurou Alexandre. — O poder por si só não prova coisa nenhuma. É o exercício vão da vontade de um homem sobre a de outro. Não é nada de virtuoso.

César pegou na mão do pai e apertou-a com força.

  • Pai, fala mais tarde, porque isso parece debilitar-te as forças.

Alexandre sorriu e na sua mente era um sorriso radioso, mas César viu ape­nas um esgar. Inspirando a maior quantidade de ar que os pulmões suporta­vam, falou novamente.

  • Sem amor, o poder coloca os homens mais perto dos animais que dos anjos. — A pele do Papa tornava-se cinzenta e o rosto ia ficando cada vez mais pálido, mas, quando o Dr. Marruzzi foi novamente chamado, Alexandre arre­dou-o com um gesto.

  • O vosso trabalho aqui está feito — disse ao médico. — Tende consciência do vosso lugar. — A seguir voltou-se outra vez para o filho, esforçando-se por

conservar os olhos abertos, pois pareciam muito pesados. — César, meu filho, alguma vez amaste alguém em maior medida que a ti próprio?

  • Amei, Papá — respondeu César. — Amei. Alexandre perguntou:

.   — E quem pode ter sido essa pessoa?

  • A minha irmã - reconheceu César, de cabeça baixa e com os olhos bri­lhantes de lágrimas. Afigurava-se-lhe uma confissão.

  • Lucrécia — disse Alexandre baixinho, e voltou a sorrir, pois aos seus ouvi­dos o nome soava como uma canção. — Sim — disse. — Esse foi o meu pecado. A tua maldição. E a virtude dela.

César declarou:

  • Dir-lhe-ei que a amas, porque a mágoa dela por não estar contigo nesta altura será incomensurável.

Com o rosto despido de fingimento, Alexandre prosseguiu:

  • Diz-lhe que ela será sempre a flor mais preciosa da minha vida. E uma vida sem flores não é vida nem coisa nenhuma. Porque a beleza é mais neces­sária do que possamos imaginar.

César fitou o pai e pela primeira vez viu-o como o homem que ele era: inse­guro e imperfeito. Nunca tinham falado livremente e agora havia imensas coi­sas que queria saber sobre este homem que era seu pai.

  • Papá, alguma vez amaste alguém mais do que a ti próprio? Com grande esforço, Alexandre falou de novo, penosamente.

  • Amei, meu filho, ah, amei, sim... - e disse-o com imensa saudade.

  • E quem pode ter sido? - perguntou César, como o pai fizera.

  • Os meus filhos - tornou Alexandre. - Todos os meus filhos. No entanto sinto que também isso foi uma falta. Em alguém que foi abençoado para ser o Santo Padre, foi excessivo. Devia ter amado mais a Deus.

  • Papá — disse César, em tom tranquilizador —, quando erguias o cálice dourado no altar, quando levantavas os olhos para o céu, enchias os corações dos devotos, porque os teus próprios olhos estavam cheios de amor pelo divino.

O corpo de Alexandre principiou a tremer todo, ao mesmo tempo que a tosse e sufocação o acometiam. A sua voz encheu-se de ironia.

  • Quando eu erguia o cálice de vinho tinto, quando abençoava o pão e bebia o vinho, esse símbolo do corpo e sangue de Cristo, no meu íntimo ima­ginava o corpo e sangue dos meus filhos. Eu, como Deus, tinha-os criado. E, como Ele, sacrifiquei-os. Presunção, com toda a certeza. Isso nunca foi tão claro para mim como o é neste momento. — Soltou uma risada pela ironia, mas começou outra vez a tossir.

César tentou confortar o pai, mas ele próprio se sentia fraco e débil.

  • Pai, se tens necessidade de perdão, posso dar-to agora. E, se tens necessi­dade do meu amor, hás-de saber que sempre o tiveste...

Por instantes o Papa teve um pensamento e pareceu melhorar.

  • Onde está o teu irmão Godofredo? — perguntou, com um ligeiro franzir do sobrolho.

Duarte foi procurá-lo.

Quando Godofredo chegou, postou-se atrás do irmão, afastado do pai. Tinha um olhar frio e duro, sem qualquer vestígio de mágoa.

  • Aproxima-te, meu filho — disse Alexandre. — Pega na minha mão só por um momento.

Alguém ajudou a afastar César e, relutantemente, Godofredo pegou na mão do pai.

  • Inclina-te mais para mim, meu filho. Aproxima-te - disse. - Há umas coisas que tenho de dizer...

Godofredo hesitou, mas debruçou-se mais sobre o pai.

  • Procedi mal contigo, meu filho, e não tenho dúvidas de que és meu filho. Mas, até esta noite, os meus olhos estavam fixados em disparates.

Godofredo olhou através das nuvens que cobriam os olhos do pai e disse:

  • Não te posso perdoar, pai. Porque, por tua causa, não me posso perdoar a mim mesmo.

Alexandre fitou o filho mais novo.

  • Isto vem tarde, bem sei, mas antes de morrer é importante que o ouças da minha boca. Devias ter sido tu o cardeal, pois eras tu o melhor de nós todos.

Godofredo abanou quase imperceptivelmente a cabeça.

  • Pai, tu nem sequer me conheces.

Ao ouvir isto, Alexandre sorriu com ar matreiro, pois, quando as coisas eram tão claras, não havia que enganar.

  • Sem Judas, o próprio Jesus não teria passado de um carpinteiro, vivendo uma vida de oração que poucos teriam ouvido e morrendo de velho - disse, soltando uma pequena risada. Porque, de repente, a vida parecia imensamente absurda.

Porém, Godofredo abandonou precipitadamente o quarto.

César voltou a ocupar o seu lugar à cabeceira do pai e segurou-lhe a mão até senti-la ficar fria como gelo.

Alexandre, já em estado comatoso, não ouviu a leve batida na porta. Não viu Júlia Farnese, com a sua capa negra com capuz e véu pela cabeça, entrar no quarto. Removendo-os, ela virou-se para César.

  • Não podia suportar ver o Santo Padre partir sem o ver uma última vez — explicou, ao curvar-se para beijar Alexandre na testa.

  • Tens passado bem? - perguntou-lhe César, mas ela não respondeu.

  • Sabes uma coisa? — disse, em contrapartida. — Este homem era a minha vida, o fundamento da minha existência. Conheci muitos amantes, ao longo de muitos anos. Na sua maioria são rapazes, rapazes imberbes, fanfarrões, em busca da glória. Mas, com todos os seus defeitos — declarou, virando-se nova­mente para Alexandre — ele era um homem.

Ao mesmo tempo que lhe começavam a vir lágrimas aos olhos, ela sus­surrou:

  • Adeus, meu amor. - Pegou na capa e no véu e saiu rapidamente do quarto.

Uma hora depois mandaram chamar o confessor de Alexandre e foram-lhe ministrados os últimos sacramentos.

César tornou a aproximar-se mais do pai.

Alexandre sentiu uma grande paz invadi-lo ao mesmo tempo que o rosto de César se desvanecia da sua vista...

E o seu olhar tombou na face resplandecente da morte. Viu-se banhado de luz, caminhando pelo meio dos pomares de citrinos do Lago de Prata, com as contas do rosário de ouro a desfiarem pelas mãos. Era uma vida tão esplên­dida... Nunca se sentira tão bem...

Fora, o seu corpo enegreceu rapidamente e inchou até adquirir dimensões tais que teve de ser metido à força no caixão, pois parecia transbordar dos lados. A tampa do caixão teve de ser pregada, pois, por mais homens que ten­tassem fixá-la, não havia maneira de se manter fechada.

E foi assim que no final o papa Alexandre VI pareceu, não só maior que o tamanho natural em vida, como também maior que a própria morte.

29

Na própria noite da morte de Alexandre, bandos armados percorreram as ruas de Roma, espancando e matando toda a gente de ascendência espanhola — catalães, como lhes chamavam — e saqueando-lhes as casas.

No seu próprio castelo de Roma, César, mais novo e mais forte que o Pai, continuava a lutar e mantinha-se perigosamente enfermo. Havia semanas que estava acamado, tentando com todas as forças restabelecer-se, resistir ao apelo da Morte. Afigurava-se, contudo, que não estava a ficar de modo algum mais forte. E assim, a despeito da sua recusa, a conselho de Duarte, o Dr. Marruzzi foi obrigado a aplicar as sanguessugas.

Nos dias subsequentes César estava demasiado fraco para se manter de pé e, por conseguinte, viu-se incapacitado de tomar as medidas necessárias para proteger os seus bens. Enquanto as famílias dos governantes cujos territórios ele tinha conquistado promoviam reuniões e estabeleciam novas alianças, ele mal se conseguia manter acordado. Do mesmo passo que os seus inimigos jun­tavam as tropas para retomar as cidades de Urbino, Camerino e Senigallia, e outros governantes regressavam rapidamente às suas cidades a fim de restabe­lecerem residência nos seus próprios castelos, César não podia dar-lhes luta. Enquanto as famílias Colonna e Orsini se uniam e enviavam tropas para Roma, na esperança de influenciarem a eleição do novo Papa, César não podia sair da cama.

Ao longo dos anos, César e o pai tinham elaborado estratégias para serem postas em prática quando Alexandre morresse, a fim de salvaguardar a sua

família, os seus bens, títulos e territórios. Agora, porém, o filho do Papa con­tinuava demasiado enfermo para pôr esses planos em prática.

Um César saudável poderia ter concentrado as suas tropas leais dentro e nas proximidades de Roma de um momento para outro. Poderia ter tratado da defesa e aprovisionamento das suas fortalezas da Romanha e teria cimentado as suas alianças. Agora, contudo, não podia fazer nada disso. Pediu-o ao irmão, Godofredo, mas este recusou, pois estava mergulhado no luto — não pelo pai, e sim pela mulher.

Saneia tinha morrido nas masmorras antes de ser libertada.

César chamou então Duarte e procurou reunir um exército próximo, mas o colégio cardinalício, que já não estava sob o seu poder, exigiu que todas as tropas fossem imediatamente retiradas de Roma.

A eleição de um novo Papa era da maior prioridade; quaisquer tropas estrangeiras seriam uma distracção, segundo lhe disseram, e poderiam causar uma influência indevida naqueles que tinham de votar. Esta sentença foi tão rigorosamente posta em prática pelos cardeais que até as famílias Colonna e Orsini obedeceram. Não tardou que todas as tropas fossem expulsas de Roma.

O colégio cardinalício era uma força poderosa. Por conseguinte, César mandou mensageiros em busca de auxílio francês e espanhol. Mas a situação tinha-se alterado radicalmente e essas potências já não estavam dispostas a intervir a seu favor. Aguardariam, ao invés, o veredicto dos cardeais.

Duarte Brandão visitava frequentemente César, trazendo-lhe ofertas de novas condições por parte dos inimigos.

  • Não são tão drásticas como poderiam ser — explicava Duarte. — Podeis conservar toda a vossa fortuna pessoal, mas as cidades e territórios que reivin­dicastes devem ser restituídos aos seus anteriores governantes.

Os governantes das cidades conquistadas estavam a ser, não generosos, mas cautos. César ainda estava vivo e os vigários que tinham sido esbulhados das suas terras ainda o temiam. Preocupava-os até que ele pudesse estar apenas a simular debilidade para os fazer cair noutra armadilha — tal como fizera em Senigallia.

Acrescia que os cidadãos das cidades da Romanha estavam satisfeitos com o governo de César. Ele era mais justo e mais generoso do que os seus senhores

de antes e tinha melhorado espectacularmente as suas vidas. Se César aceitasse a oferta desses governantes, haveria poucas probabilidades de revolução no seio do povo.

César protelou a resposta, mas sabia que, a não ser que acontecesse um milagre, teria de aceitar. Não via saída.

Nessa noite, sentou-se penosamente à secretária. A primeira coisa que fez foi escrever uma carta a Catarina Sforza, para Florença. Se tinha de devolver os castelos conquistados, pelo menos o dela seria o primeiro. Redigiu uma ordem para a imediata restituição de Imola e Forli a Catarina e ao filho, Otto Riario. Na manha seguinte, porém, como se sentisse ligeiramente melhor, deci­diu enfiar a carta e a ordem numa gaveta. Também ele esperaria para ver o que acontecia.

«O Papa morreu! O Papa morreu!», era o grito dos pregoeiros que percor­riam as ruas de Ferrara. Lucrécia saltou, sonolenta, da cama e foi ver à janela. Antes que conseguisse acordar de todo, porém — pois aquilo parecia um sonho — Michelotto apareceu gélido e trémulo à sua frente. Cavalgara de Roma sem parar e chegara imediatamente a seguir à notícia.

  • Miguel? - disse Lucrécia. - É verdade o que dizem do Papá? É verdade que morreu?

Michelotto não conseguiu falar, cabisbaixo de mágoa como estava. Lucré­cia sentiu que os seus gritos se ouviam em toda a Ferrara, e contudo não emi­tira um som.

  • Quem foi que fez isto? — perguntou, e até a si própria a sua voz parecia estranhamente calma.

  • Foi a malária, ao que parece - respondeu Michelotto.

  • E acreditais que isso seja verdade? — perguntou ela. — E o Chez acredita igualmente?

  • O vosso irmão adoeceu também - replicou ele. — Escapou à morte por pouco.

A respiração de Lucrécia tornou-se acelerada e penosa.

  • Tenho de ir ter com ele — disse, chamando a aia. O pai tinha morrido e o irmão precisava dela. — Tenho de levar roupa e sapatos e qualquer coisa preta - disse à rapariga.

Michelotto, porém, objectou, com a rigidez de uma pedra.

  • O vosso irmão pede-me que vos mantenha afastada de Roma... longe do perigo. Os cidadãos andam pelas ruas a fazer distúrbios, a pilhar e a saquear. Não é um lugar seguro para vós.

  • Não podeis impedir-me de estar junto dele, Miguel, dos meus filhos, de ver mais uma vez o Papá antes de ele ser sepultado... — Nessa altura os olhos encheram-se-lhe de frustração e de lágrimas.

  • Os vossos filhos foram postos a salvo em Nepi — disse ele. — Adriana con­tinua a cuidar deles e Vanozza chegará em breve. Quando César estiver bom, encontrar-se-á lá convosco.

  • Mas o Papá? — volveu ela. — E o Papá?

Michelotto não conseguiu imaginar como se sentiria Lucrécia caso tivesse visto os restos enegrecidos do corpo mortal do pai. Essa imagem tinha gravado uma tristeza e uma reacção profundas no seu cérebro; o que não fariam no daquela meiga mulher?

  • Podeis rezar pelo vosso paizinho em Ferrara — disse-lhe Michelotto. — Por­que Deus sabe onde estais, e ouve-vos.

Porém, Ercole dEste e Afonso entraram naquele instante no aposento e ambos se aproximaram de Lucrécia, tentando consolá-la. Não havia, contudo, consolo possível. Ela dirigiu-se a Michelotto e disse-lhe para descansar, que poderia voltar para junto de César no dia seguinte. Assegurou-lhe que estaria em Nepi quando quer que o irmão a mandasse chamar.

Ercole e Michelotto saíram do aposento, mas Lucrécia verificou, surpreen­dida, que o marido ali permanecia, tanto mais que, durante todo o tempo desde que haviam casado, Afonso passara o tempo, não na bem-aventurança ou sequer comunhão conjugal, mas a brincar com a sua colecção de armas e ocupado com cortesãs. Ela, por seu turno, tinha passado os serões abrindo a casa a artistas e os dias a ouvir os problemas dos cidadãos comuns. Agora, toda­via, Afonso estava postado diante dela, com uma cara que era um retrato vivo da compaixão.

  • Posso servir-vos de consolo, duquesa? — perguntou. — Ou cauévos mais desgosto terdes-me junto de vós?                                                      -

Lucrécia não conseguia pensar, não conseguia decidir coisa nenhuma. Nem sequer conseguia sentar-se ou caminhar. Finalmente desfaleceu e a escuridão obliterou todo e qualquer pensamento.

Afonso ergueu-a prontamente nos braços. A seguir sentou-se na cama e, em lugar de a deitar, ficou a ampará-la contra si, embalando-a ternamente.

  • Fala comigo, Filho — disse ela, ao abrir os olhos. — Enche-me a cabeça de quaisquer pensamentos que não sejam os que a povoam agora. — Ainda não conseguia chorar, porque as suas lágrimas estavam demasiado fundo para que lograsse alcançá-las.

Afonso manteve-se toda a noite junto dela e durante os dias e noites que se seguiram, enquanto ela era dilacerada pela mágoa.

A eleição de um novo Papa não podia ser protelada por mais tempo. Con­tudo César estava decidido a derrotar Juliao delia Rovere, esse inimigo sempre presente dos Bórgia.

A escolha de César recaía no cardeal Georges dAmboise, que era, eviden­temente, apoiado pelos outros cardeais franceses. A maioria dos cardeais italia­nos não estava disposta o ouvir o que César tinha a dizer e apoiava delia Rovere. César procurou convencer os cardeais espanhóis a dar apoio a dAm-boise, mas estes tinham o seu próprio candidato. Os que se mantinham leais a César opunham-se, pelo menos, ao seu inimigo.

Os florentinos adoravam o jogo e a sua forma preferida era apostarem na eleição do Papa. Afora as apostas pessoais entre indivíduos, o grosso das apos­tas em eleições papais era feito através dos bancos florentinos. E a quantia apos­tada era enorme.

As probabilidades a favor de dAmboise eram de cinco para um; delia Rovere tinha melhores hipóteses, de três para um. Dir-se-ia que mais ninguém estava na corrida, pois as probabilidades de todos os outros candidatos eram superiores a vinte para um. Mas as eleições eram imprevisíveis. Muitas vezes o

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favorito quando o conclave principiava náo passava de cardeal quando ela che­gava ao fim.

Este conclave não constituía excepção. Após os primeiros escrutínios -como se chamava às votações - tornou-se evidente que nem dAmboise nem delia Rovere obteriam votos suficientes.

Após mais dois escrutínios, saiu finalmente fumo branco da chaminé do Vaticano. Num acontecimento surpreendente, o colégio tinha escolhido o idoso e enfermo cardeal Francesco Piccolomini. E César ficou aliviado, se não completamente feliz.

Piccolomini, quando da sua coroação, tomou o nome de Papa Pio III. Nem sempre estivera de acordo com Alexandre, mas era um homem justo e mode­rado. César sabia que ele trataria honestamente os Bórgia e os protegeria o melhor que pudesse, desde que essa protecção não fosse contrária aos interes­ses da Santa Madre Igreja. Por qualquer milagre, o perigo de um Papa hostil tinha sido arredado.

Nas semanas que se seguiram à eleição do Papa, César recuperou gradual­mente as forças, percorrendo primeiramente para um lado e para outro o com­primento dos seus aposentos, a seguir passeando pelo jardim e finalmente montando o seu cavalo branco pelos campos. Começou então a preparar uma estratégia para conservar as suas conquistas da Romanha e derrotar os seus ini­migos.

Foi então que, um dia, quando César regressava de uma longa e vigorosa cavalgada, desmontou para deparar com Duarte Brandão à sua espera.

A expressão de Duarte reflectia a sua aflição.

  • As notícias não são boas, César. Pio III morreu.   •

Tinha sido Papa durante vinte e sete dias apenas.

Agora as perspectivas de César eram negras. Com a morte de Pio III, a pos­sibilidade de protecção papal — ou mesmo de justiça papal - eram uma esperança remota. Os inimigos de César viam isto tal como ele e depressa se puseram em acção. Os Orsini persuadiram os Colonna a juntarem-se-lhes contra César.

Com poucas tropas leais na cidade, César retirou-se para o Castelo de Sant Angelo, ainda considerado uma fortaleza inexpugnável. Mandou Vanozza em segurança para Nepi, na convicção de que a vida dela era mais importante do que as estalagens e as vinhas.

Não havia maneira de travar o cardeal Julião delia Rovere. Desde o último conclave, tinha-se tornado o favorito absoluto. Nunca foi discutido qualquer rival sério. À medida que se aproximava o dia da eleição, os bancos transfor­maram imediatamente delia Rovere numa aposta em que não se perderia dinheiro. Não tardou que as probabilidades se desequilibrassem ainda mais drasticamente, tornando-o um favorito ainda mais forte, com um para dois. César sabia que tinha de aceitar esta derrota e apelar a todas as suas forças se quisesse suportar este golpe avassalador.

Foi assim que César Bórgia se avistou com Julião delia Rovere e firmou uma negociação, utilizando a ameaça da sua influência sobre os cardeais espa­nhóis e franceses e a força do Castelo de SantAngelo para extrair o acordo que desejava.

César propôs-se apoiar delia Rovere nas eleições, na condição de lhe ser per­mitido conservar os castelos e cidades da Romanha. Insistiu ainda em ser nomeado gonfaloniere da igreja e capitão-general do exército papal.

Para se certificar de que o cardeal honraria as suas promessas, César fez finca-pé na promulgação de um anúncio público. Delia Rovere anuiu, pois não queria que nada impedisse a eleição.

Então, com o apoio de César, delia Rovere foi escolhido na eleição mais rápida de que havia memória: no primeiro escrutínio, mal se fecharam as por­tas do conclave.

Tal como César, o cardeal delia Rovere idolatrava Júlio César. Por conse­guinte, escolheu o nome de Papa Júlio II. Meu Deus, havia quanto tempo

esperava que este milagre se desse! Quantas visões tivera pata a reforma da

Santa Madre Igreja!                                                                                 oi

Embora o Papa Júlio II não fosse um jovem, era ainda fisicamente forte e, agora que estava na posição na qual achava dever estar, assumira um ar menos carrancudo e zangado. Ironicamente, o seu plano para os Estados Papais era muito parecido com o de Alexandre e César, consistindo em unificar todos os territórios e colocá-los sob um governo central. A única diferença, claro está, era que o seu plano não previa o domínio dos Bórgia.

Quando Júlio II assumiu o trono, estava indeciso quanto à maneira como lidaria com César. Não que estivesse preocupado com mater a palavra, pois isso pouca importância tinha para ele; compreendia, porém, que precisava de con­centrar o seu poder e a sua posição e manter os inimigos à distância.

Nesta altura receava tanto os venezianos como temia o poder dos Bórgia e sabia que César podia ser um forte aliado contra a expansão veneziana na Romanha. Visto que sabia poder precisar de César, Júlio II assegurou-se de que as relações entre os dois homens - que toda a vida tinham sido inimigos - pare­cessem amigáveis.

Entretanto, César procurava fortalecer a sua própria posição. Manteve-se em contacto estreito com todos os capitães dos seus castelos e cidades rema­nescentes, garantindo-lhes que a sua posição era forte, apesar da velha malícia do novo Papa. A fim de consolidar a sua posição, César contactou o seu amigo Maquiavel, buscando a ajuda de Florença.

Os dois homens encontraram-se num tonificante dia de Dezembro nos jar­dins do Belvedere, de onde se viam os pináculos e torres de Roma. Caminharam por entre as áleas de altos cedros e sentaram-se num gasto banco de pedra, com a ampla vista da cidade a estender-se por baixo deles. O vento tinha dissipado o fumo e a poeira e os edifícios de terracota e mármore dir-se-ia terem sido recor­tados e colocados de encontro ao límpido céu azul.

Maquiavel notou que César falava com um ar agitado, as faces vermelhas e os lábios apertados. Fazia gestos largos e, ao falar, o riso surgia-lhe com uma

frequência um tanto exagerada e alto de mais. Maquiavel perguntou a si mesmo se ele estaria ainda febril.                                                                 •

  • Estais a ver tudo aquilo além, Nicco? - disse César, acenando com o braço. — Foi outrora a cidade dos Bórgia. E há-de sê-lo de novo, garanto-vos. Reivindicar de novo as fortalezas caídas não será mais difícil do que reclamá—las da primeira vez. Defender as que mantive não constituirá problema algum. Os meus comandantes são presentemente fortes e leais. O povo apoia-os e eu estou a formar uma nova força, que inclui tanto mercenários estrangeiros como infantaria de Vai di Lamone.

«Uma vez consolidada em Roma a minha posição na Romanha, tudo o que vedes me cairá nas mãos. Sim, o Papa Júlio já foi meu inimigo, mas hoje em dia tudo isso pertence para nós ao passado. Fez promessas públicas no seu juramento sagrado. Jurou aos cidadãos, e aos funcionários do governo e da igreja, que me apoiaria. Continuo a ser gonfaloniere. Chegámos mesmo a dis­cutir um casamento unindo as nossas duas famílias... Possivelmente a minha filha, Luísa, e o sobrinho dele, Francesco. Este é um novo dia, Nicco. Um novo dia!»

Que era feito do brilhante e obstinado comandante que em tempos idola­trara? - perguntou Maquiavel a si mesmo. Sim, havia que admiti-lo, o homem que ele tinha idolatrado. Maquiavel considerava-se amigo de César. Porém, no tocante ao seu relatório oficial, tinha apenas uma amizade: Florença. Nessa noite cavalgou o mais depressa que lhe era possível a fim de chegar à cidade antes que fosse tarde de mais. E desta feita a opinião que expressou à Signoria foi bem diferente de todas as que a tinham antecedido.

Pôs-se de pé, com as roupas não tão frescas como o habitual e uma voz menos teatral; na realidade, ele próprio não estava na sua forma habitual. Na pequena câmara privada utilizada pelo conselho-chave reinante, a sua expres­são era carrancuda. Desagradava-lhe o que tinha para dizer, mas sabia que não tinha outro remédio.

  • Excelências, seria o cúmulo da loucura dispensar qualquer apoio a César Bórgia. Sim, o Santo Padre, o Papa Júlio II, prometeu publicamente confirmar César nas suas conquistas e fazê-lo gonfaloniere. Mas, Excelências, estou con­vencido de que este Papa se considera tão obrigado a cumprir essa promessa

como eu a sair desta câmara pela porta norte em lugar da porta sul.,Ele ainda despreza os Bórgia. Trairá César; já decidiu privadamente fazê-lo.

«Quanto ao próprio César, observo uma temível mudança. Este homem, que nunca sugeriria sequer o que tencionava fazer, brinda agora os homens com as coisas que planeia mas nunca poderá concretizar. A pouco e pouco, Excelências, César Bórgia desliza para a sepultura. Florença não deve deslizar com ele.»

Maquiavel tinha razão. O Papa Júlio, convencido por fim de que tanto a ameaça veneziana como o poder de César eram exagerados, apressou-se a dis­solver o acordo. Exigiu que César devolvesse imediatamente todos os seus cas­telos. Conseguido isso, o Papa Júlio II colocou César Bórgia sob prisão e man­dou-o para Óstia acompanhado por um idoso cardeal e uma guarda armada para se certificar de que as suas ordens eram executadas.

César Bórgia entregou as duas primeiras fortalezas e escreveu aos coman­dantes das outras dizendo-lhes que lhe tinha sido ordenado que as devolvesse aos anteriores proprietários. Esperava que estas mensagens fossem ignoradas, pelo menos por uns tempos.

Pediu então ao idoso cardeal autorização para viajar até Nápoles, agora sob domínio espanhol. Considerando que César tinha cumprido substancialmente as ordens do Papa, e que não podia causar problemas desde que se mantivesse fora da Romanha, o cardeal acompanhou César ao porto de Óstia e embarcou—o num galeão destinado a Nápoles.

Em Nápoles, César tinha mais uma carta para jogar: Gonçalo de Córdova.

Os espanhóis eram agora os únicos senhores de Nápoles, o que lhes per­mitia exercer maior influência que nunca por toda a Itália. César procurou imediatamente auxílio de Fernando e Isabel, pois julgava-os aliados dos Bór­gia. Com o seu apoio, disse a Gonçalo de Córdova, ele e os seus homens leais podiam conservar indefinidamente as suas fortalezas, formar tropas adicionais e obrigar Júlio II a estabelecer e respeitar condições favoráveis.

Gonçalo de Córdova concordou em apresentar o caso aos monarcas espa­nhóis. Naquilo que era agora território espanhol, César sentia-se finalmente

seguro, fora do alcance do Papa Júlio. Enquanto aguardava resposta de Fer­nando e Isabel, César enviou mensagens aos seus restantes comandantes inci­tando-os a não devolverem as suas fortalezas. Começou também a reunir mer­cenários que pudessem lutar lado a lado com os espanhóis sob o comando de Gonçalo.

César aguardou três semanas e continuava a não haver resposta de Suas Majestades Católicas de Espanha. Começou a ficar inquieto e cheio de apre­ensão. Já não era capaz de se manter sossegado; tinha de fazer qualquer coisa!

Assim, César pôs-se a caminho pelas colinas costeiras dos arredores de Nápoles, em direcção ao acampamento militar espanhol. Ali chegado, foi escoltado até aos alojamentos do comandante, onde o fizeram entrar.

Gonçalo de Córdova ergueu a cabeça de uma mesa onde estava estendido um mapa, para o abraçar com um sorriso.

  • Pareceis preocupado, amigo1.

  • Si, Gonzalo, claro2 — retorquiu César. — Estou a lutar por conservar as minhas fortalezas e por juntar mais homens. Mas preciso do apoio do vosso rei, e depois preciso dos vossos homens.

  • Ainda não há resposta, César — disse Gonçalo de Córdova. — Mas está para chegar um galeão de Valência ao meio-dia de amanhã. Se tivermos sorte, a resposta deve vir nele.

  • Dizeis «não há resposta». Há dúvidas no vosso espírito de que eles me aju­dem? - perguntou César, intrigado.

  • Não é uma questão simples, César. Sabei-lo muito bem - tornou Gon­çalo de Córdova. - Os meus monarcas têm muitas coisas a ponderar. O Papa é vosso inimigo jurado e trata-se de um homem duro e vingativo.

  • Disso não há dúvida - retorquiu César. - Mas, Gonçalo, Fernando e Isa­bel são amigos de toda a vida. Foi o meu pai que intercedeu e tornou possível o seu casamento. Foi padrinho do seu primeiro filho. E vós sabeis que eu sem­pre os apoiei...

Gonçalo de Córdova poisou a mão no braço de César.

1   Em castelhano no original. (N. T)

2 Idem. (N. Z)

  • Tende calma, tende calma, César — disse. — Eu sei tudo isso. Suas Majes-tades Católicas sabem-no também. E consideram-vos um amigo, um amigo leal. Amanhã à tarde devemos ter a sua resposta e, se Deus quiser, ela dar-me—á instruções para contribuir com todo o peso das minhas forças para os vos­sos esforços.

César ficou um tanto ou quanto reconfortado com as garantias de Gonçalo.

  • Tenho a certeza de que será essa a sua mensagem, Gonçalo; e a seguir temos de agir rapidamente.

  • Absolutamente — disse Gonçalo de Córdova. — E sem atrair atenções antes de estarmos preparados. Há espiões por todo o lado... Até entre os trabalha­dores aqui no nosso acampamento. Temos de arranjar um local de encontro menos público. Conheceis o antigo farol que fica na praia a norte daqui?

  • Não — respondeu César -, mas hei-de encontrá-lo.

  • Óptimo — tornou o capitão. — Encontrar-nos-emos lá amanhã ao pôr do sol. Será então que planearemos a nossa estratégia.

 

Ao final da tarde seguinte, precisamente quando o sol dourado mergulhava no horizonte, César percorria a praia a norte do porto, à beira do mar de espec­tral palidez, até ver o velho farol de pedra.

Ao aproximar-se, viu Gonçalo de Córdova sair a porta do farol.

Na sua ânsia, César gritou:

  • Que novidades há, Gonçalo?                                                        

O comandante espanhol levou o dedo aos lábios e falou num tom abafado.

  • Silêncio, César — disse. — Vinde cá para dentro. As cautelas nunca são de mais.

Seguiu César, cruzando a porta do farol. Mal este penetrou na escuridão do interior, viu-se imediatamente agarrado por quatro homens. Foi rapidamente desarmado e, com igual prontidão, amarrado de pés e mãos com uma grossa corda. Depois arrancaram-lhe a máscara.

  • Que traição vem a ser esta, Gonçalo? - perguntou César.

Gonçalo de Córdova acendeu uma vela e César viu   uma dúzia de soldados espanhóis fortemente armados.            

  • Não é traição nenhuma, César - redarguiu ele. — Estou simplesmente a cumprir as ordens do meu rei e da minha rainha. Eles reconhecem-vos efecti­vamente como um velho amigo, mas recordam-se também da vossa aliança com a França e reconhecem que o poder dos Bórgia terminou. Actualmente ele reside no Papa Júlio. E o Santo Padre não vos considera um amigo.

  • Dios mío!xexclamou César. — Esquecem-se de que me corre sangue espanhol nas veias!

  • Pelo contrário, César — retorquiu Gonçalo de Córdova. — Ainda vos con­sideram seu súbdito. E por isso as minhas ordens são de vos enviar para Espa­nha. Eles dar-vos-ão asilo... numa prisão valenciana. Lamento, meu amigo, mas bem sabeis que Suas Majestades Católicas são extremamente devotas. Estão convencidas de que tanto Deus como o Santo Padre ficarão satisfeitos com a sua decisão. — Gonçalo de Córdova começou a afastar-se, mas depois voltou-se de novo para César. — Deveis saber também que a viúva do vosso irmão João, Maria Enríquez, vos acusou formalmente do seu assassínio. E ela é prima do rei.

César sentiu-se de tal forma traído, que não conseguiu proferir palavra.

Gonçalo de Córdova deu uma ordem concisa e, sem cerimónia, César foi levado para fora e atirado para cima do dorso de uma mula, debatendo-se ferozmente. Depois, acompanhado por Gonçalo de Córdova e pelos seus sol­dados, foi transportado pela escura praia fora e levado às faldas das colinas onde se situava o acampamento espanhol.

Ao alvorecer da manhã seguinte, ainda amarrado de pés e mãos, César foi amordaçado, embrulhado numa mortalha e metido num caixão de madeira. O caixão foi encerrado e conduzido numa carroça até ao porto, onde foi embarcado num galeão espanhol com destino a Valência.

César não conseguia respirar; não havia espaço suficiente dentro do pequeno caixão para sequer se debater. Tentou com todas as suas forças resis­tir ao pânico, pois estava certo de que, caso cedesse, poderia enlouquecer.

Em castelhano no original. (N. T)

Gonçalo de Córdova escolhera este método de transporte porque não tinha intenção de deixar que quaisquer napolitanos ainda leais a César soubessem que ele tinha sido preso. Achava que tinha homens mais que suficientes para repelir qualquer tentativa de resgate, mas, conforme disse ao seu lugar-tenente, «Para quê correr riscos? Desta maneira qualquer espião que esteja no cais verá apenas o caixão de um pobre espanhol morto que é transportado para o país natal para ali ser enterrado.»

Quando o galeão estava há uma hora no mar, o comandante deu final­mente ordem para soltarem César do caixão e retirarem-lhe a mordaça e a mortalha.

Pálido e trémulo, ainda amarrado, foi arremessado para dentro de um paiol de arrumações perto da popa do navio.

O paiol estava atestado, mas, por muito sujo que estivesse, tinha pelo menos um respiradouro na porta, pelo que era melhor que o sufocante ataúde onde César passara as últimas horas.                                           

Durante a sua viagem por mar, uma vez ao dia um elemento da tripulação dava a César bolachas bichosas e água. Bondoso e obviamente habituado às viagens marítimas, o homem batia com cada uma das bolachas no convés para os bichos se soltarem antes de as partir em bocados, que enfiava na boca de César.

  • Desculpe lá as cordas — disse a César —, mas foi o comandante que man­dou. Vai ficar amarrado até chegarmos a Valência.

Depois de uma viagem miserável caracterizada por mar alteroso, comida repugnante e um alojamento atravancado e malcheiroso, o galeão atracou finalmente em Villanueva dei Grão. Ironicamente, tratava-se do mesmo porto valenciano do qual o tio-avô de César, Afonso Bórgia - que viria a ser o Papa Calisto -, tinha saído de Espanha rumo a Itália, mais de sessenta anos atrás.

O buliçoso porto estava cheio de soldados de Fernando e Isabel e por con­seguinte já não havia necessidade de disfarçar ou esconder o prisioneiro.

Uma vez mais, César foi arremessado sobre o dorso de uma mula e levado por uma estrada empedrada que bordejava o porto para um alto castelo que servia agora de prisão. Desta feita não opôs resistência.

César foi enfiado numa pequena cela perto do cimo do castelo e ali, com quatro guardas presentes, foram-lhe finalmente retiradas as cordas.

César ficou de pé, a esfregar os pulsos doridos. Olhou em redor da cela, dis­tinguindo o colchão manchado no chão, a enferrujada tigela da comida e o malcheiroso balde de despejos. Seria este o seu lar durante o resto da vida? Se assim fosse, era muito provável que ela não fosse longa, pois os seus devotos amigos Fernando e Isabel, na ânsia de agradar, quer ao novo Papa quer à viúva de João, decidiriam quase com certeza torturá-lo e matá-lo.

Passaram dias e semanas. César mantinha-se sentado no chão da cela, ten­tando conservar a mente alerta contando coisas: baratas no chão, manchas de moscas no tecto, o número de vezes ao dia que o pequeno postigo da porta se abria. Uma vez por semana, era-lhe permitida uma hora de ar livre no pequeno pátio da prisão. Aos domingos traziam-lhe uma bacia de água rançosa para se lavar.

Seria isto melhor que a morte? — interrogava-se. Não tinha a certeza, mas sabia que não tardaria a descobri-lo.

Não obstante, as semanas converteram-se em meses e a sua situação man­tinha-se igual. Havia ocasiões em que tinha a certeza de que enlouquecera, em que se esquecia de onde estava, em que se imaginava a caminhar pelas margens do Lago de Prata ou a discutir bem-humoradamente com o pai. Procurava não pensar em Lucrécia, mas havia alturas em que se diria que ela estava de pé na mesma cela, afagando-lhe o cabelo, beijando-lhe os lábios e dirigindo-lhe ter­nas palavras de conforto.

Tinha agora tempo para pensar no pai e compreendê-lo, ver o que ele tinha tentado fazer, e não criticá-lo pelos seus erros. Seria o pai tão grande como parecia a César? Embora soubesse que o facto de ter estabelecido uma ligação entre ele e Lucrécia constituíra uma estratégia brilhante, tratava-se também da

única coisa que ele considerava indesculpável, pois tinha custado demasiado caro a ambos. Porém, teria ele preferido viver a vida sem a amar desta maneira? Não conseguia imaginá-lo, embora isso o tivesse impedido de amar verdadeiramente qualquer outra. E o pobre Afonso... Até que ponto a morte dele se devia ao seu ciúme? Nessa noite chorou, tanto por si próprio como pelo marido da irmã. E isso conduziu-o naturalmente a reminiscências da sua que­rida mulher, Charlotte. Ela amava-o tanto...

Nessa noite decidiu libertar-se da sua paixão por Lucrécia e viver uma vida honrada com Charlotte e a filha, Louise. Se alguma vez escapasse ao seu actual destino... se lhe fosse concedida essa graça pelo Pai Celeste.

César recordou então o que o pai tinha dito anos atrás, quando César lhe dissera que não acreditava em Deus, na Virgem Maria ou nos santos. Pare­cia-lhe estar a ouvir a voz do pai: «Muitos pecadores dizem que não acredi­tam em Deus porque temem o castigo após a morte. Por conseguinte ten­tam renunciar à verdade.» O Papa tinha tomado as mãos de César nas suas e continuara fervorosamente: «Escuta, meu filho, os homens perdem a fé. As crueldades deste mundo são de mais para eles e por isso questionam um Deus eterno e amante; questionam a sua infinita misericórdia. Questionam a Santa Madre Igreja. Mas o homem deve manter a fé viva por meio da acção. Até os próprios santos eram homens de acção. Não tenho grande apreço por aqueles religiosos que se autoflagelam e meditam nos misterio­sos caminhos da humanidade, escondidos nos seus mosteiros. Eles nada fazem pela igreja viva; não a ajudarão a perdurar neste mundo temporal. São homens como tu e eu que têm de cumprir o seu dever específico. Mesmo que» — e nesta altura Alexandre levantara um autoritário dedo papal — «as nossas almas possam repousar por uns tempos no purgatório. Quando rezo as minhas orações, quando confesso os meus pecados, é essa a minha con­solação para algumas das coisas terríveis que tenho de fazer. Pouco importa o que dizem os nossos humanistas, esses crentes nas filosofias gregas segundo os quais a humanidade é tudo quanto existe. Há um Deus todo—poderoso e é misericordioso e compreensivo. É essa a nossa fé. E tu tens de acreditar. Vive com os teus pecados, quer os confesses ou não, mas nunca percas a fé.»

Na altura o discurso do Papa não significara nada para César. Agora, con­quanto estivesse em luta com a fé, tinha confessado tudo quanto Deus podia ouvir. Nos tempos de outrora, porém, as únicas palavras que ouvira tinham sido estas: «Lembra-te, meu filho, tu és a minha mais radiosa esperança para o futuro dos Bórgia.»

Um dia, passava da meia-noite, César viu a porta da sua cela abrir-se sem ruído. A espera de um guarda nalguma missão tardia, viu, ao invés, Duarte Brandão, que trazia um rolo de corda.

  • Duarte, que vindes fazer aqui, santo Deus? — perguntou César, com o coração a bater descompassadamente.

  • Resgatar-vos, meu amigo — respondeu Duarte. — Mas apressai-vos. Temos de partir imediatamente.

  • E os guardas? — inquiriu César.

  • Foram generosamente subornados... Uma habilidade que domino há muito — respondeu Duarte, desenrolando a corda.

  • Vamos descer por essa corda? — perguntou César, carregando o cenho.

  • Parece curta de mais.

  • E é — tornou Duarte, sorrindo. — Tenho-a aqui só para amostra, para pro­teger os guardas. O comandante deles há-de julgar que foi assim que fugistes.

  • Duarte amarrou a corda a uma argola de ferro da parede e lançou-a pela janela, após o que se virou para César. — Vamos seguir um caminho muito mais fácil.

César seguiu Duarte pela escada de caracol do castelo abaixo, indo desem­bocar numa pequena porta das traseiras do edifício. Não havia nenhum guarda à vista. Duarte correu para o sítio onde a corda que tinha lançado bambo­leava, pendendo da janela, demasiado longe do solo. Enfiou a mão na algibeira da capa e tirou de lá o que parecia um frasco de terracota.

  • Sangue de galinha — disse. — Vou derramá-lo por baixo da corda e depois faço um rasto com ele para sul. Eles hão-de pensar que vos feristes ao saltar da corda e que seguistes a coxear nessa direcção. Mas na realidade ides para norte.

 

César e Duarte atravessaram um campo e subiram ao cimo de uma colina onde os aguardavam dois cavalos, presos por um rapazinho.

  • Para onde vamos, Duarte? - perguntou César. - Há muito poucos luga­res seguros para qualquer de nós.

  • Tendes razão, César: muito poucos — respondeu Duarte. — Mas ainda há alguns. Ireis até ao castelo do vosso cunhado, o rei de Navarra. Ele está à vossa espera. Sereis ali bem recebido e estareis em segurança.

  • E vós, Duarte? — inquiriu César. — Para onde ireis? A Itália seria mortal. A Espanha, depois desta noite, será igualmente fatal. Nunca confiastes nos franceses. Nem eles em vós, diga-se de passagem. Para onde, então?

  • Tenho um pequeno barco à minha espera na praia, relativamente perto daqui — disse Duarte. — Vou nele para Inglaterra.

  • Para Inglaterra, Sir Edward? — perguntou César, com um pequeno sor­riso.

Duarte levantou o olhar, surpreendido.

  • Sabíeis, então? Desde sempre?

  • O pai desconfiou durante anos — volveu César. — Mas não deparareis com um rei hostil, porventura mortífero?

  • E possível. Mas Henrique Tudor é um homem astuto e com sentido prá­tico, que procura reunir homens capazes para o aconselharem e coadjuvarem. De facto, tenho ultimamente ouvido dizer que ele perguntou pelo meu para­deiro, que até agora desconhece. Deu fortes indícios de que, se eu regressar para o seu serviço, poderei ser brindado com uma amnistia e talvez até com a recuperação da minha antiga situação. A qual, devo admiti-lo, era bem inte­ressante. Pode, evidentemente, tratar-se de uma cilada. Mas, para ser realista, acaso tenho outra opção?

  • Nenhuma, creio bem. Mas, Duarte, conseguis navegar sozinho até tão longe?

  • Oh, já naveguei para mais longe. E com o andar dos anos acabei por me afeiçoar à solidão.

Duarte fez uma pausa.

  • Bem, meu amigo, faz-se tarde — disse. — Temos de seguir os nossos dife­rentes caminhos.

Abraçaram-se no cimo da colina, iluminados pela clara lua de Espanha.

A seguir César deu um passo atrás.

  • Nunca vos esquecerei, Duarte. Felicidades e boa navegação!

Virou-se, saltou para o cavalo e afastou-se na direcção de Navarra antes que Duarte pudesse ver as lágrimas que lhe corriam pela cara abaixo.

30

Atento ao perigo de ser recapturado pela milícia espanhola que passava o campo a pente fino, César evitava todas as cidades e viajava apenas de noite, dormindo nos bosques durante o dia. Sujo e exausto, alcançou finalmente Navarra, na ponta setentrional da Península Ibérica.

César era esperado pelo cunhado, pois Duarte tinha avisado o rei da sua chegada. Foi-lhe rapidamente franqueado o portão e escoltaram-no até uma sala ampla que dava para o rio.

Depois de César ter tomado banho e vestido a roupa que lhe foi posta à dis­posição, apareceu um soldado para o conduzir aos aposentos reais.

Ali, o rei João de Navarra, um homem corpulento, de tez bronzeada e barba bem aparada, abraçou-o calorosamente.

  • Meu caro irmão, que prazer em ver-vos! — disse João. — Soube tudo a vosso respeito pela Charlotte, claro, e sois bem-vindo a esta terra. Bem, de vez em quando temos umas pequenas escaramuças com barões turbulentos, mas nada que possa ameaçar a vossa segurança ou paz de espírito. Por conseguinte, repousai, descontraí-vos e diverti-vos. Ficai o tempo que quiserdes. E, por amor de Deus, temos de mandar o alfaiate real fazer-vos roupa!

César ficou imensamente grato àquele homem, que nunca tinha visto, e que lhe salvava a vida. Não fazia tenção de deixar essa dívida por pagar, especial­mente quando deixara a sua querida Charlotte em França havia tanto tempo.

  • Agradeço a Vossa Majestade a vossa amável hospitalidade - disse César. - Mas gostaria de vos ajudar nessas «pequenas escaramuças» de que falastes,

porque tenho experiência de guerra e teria muito gosto em colocar essa expe­riência ao vosso serviço.

O rei João sorriu.

  • Bem, claro que podeis fazê-lo. Eu estou a par das vossas proezas. — Sacou da espada e tocou jocosamente com ela o ombro de César. — Eu vos nomeio comandante do exército real. Devo dizer-vos, contudo, que o anterior coman­dante foi a semana passada feito em pedaços. — E o rei soltou então uma gar­galhada, mostrando uma cintilante dentadura branca.

César descansou dois dias, pois estava completamente exausto. Dormiu sem parar, mas, mal acordou, depois de vestir a roupa nova — incluindo armadura e armas —, foi inspeccionar o exército que iria comandar. A começar pela cava­laria, verificou que eram profissionais experientes, bem treinados e bem diri­gidos. Sair-se-iam bem em combate.

A seguir César inspeccionou a artilharia. Eram vinte e quatro peças, limpas e em bom estado. Os artilheiros, tal como a cavalaria, pareciam ser veteranos afeitos ao combate. Podiam não estar à altura da unidade de Vitellozzo Vitelli, mas serviriam.

A infantaria era outra história. Constituída fundamentalmente por cam­poneses locais que se apresentavam regularmente para cumprir serviço militar, eram bastante solícitos, mas mal equipados e aparentemente mal treinados. Quando surgissem problemas, teria de contar com a cavalaria e a artilharia para resolverem o assunto.

As semanas seguintes decorreram tranquilamente. Estranhamente, foram os tempos mais felizes de que César se lembrava, afora porventura o seu tempo com Charlotte e os dias no Lago de Prata. Por uma vez, a sua vida não estava em perigo. Não havia necessidade de tramar contra ninguém e ninguém andava a tramar contra ele.

O rei João era um companheiro encantador, que parecia grato pela compa­nhia de César. Era bondoso e César não temia qualquer traição. Passavam prati­camente todos os dias juntos, a andar a cavalo e a caçar, e ele sentia por João o que gostaria de sentir pelos irmãos. À noite, depois do jantar, sentavam-se à lareira a falar de livros que tinham lido, dos métodos de bom governo e das responsa-bilidades da liderança. Disputaram até uma partida de luta. Mas, embora César

tivesse ganho, não foi uma verdadeira vitória, pois tinha a certeza de que o mus­culoso e cavalheiresco rei se tinha rendido por uma questão de amizade por ele.

César sentia-se seguro pela primeira vez em muitos anos. Assim, disse ao rei:

  • Acho que é finalmente tempo de mandar vir a minha mulher e a minha filha. Porque, desde que nos separámos, tenho escrito à Charlotte e tenho-lhe mandado presentes para ela e para a criança, mas por mais de uma vez, tendo planeado mandá-las vir, apareceu-me sempre alguma nova crise, algum novo perigo que as colocaria em risco demasiado grande.

João, irmão de Charlotte e agora também de César, concordou com grande entusiasmo. Brindaram ao dia em que ela chegaria.

A meia-noite, nos seus aposentos, César pegou numa pena e escreveu à mulher, para o Chateau de Ia Motte Feuilly, no Dauphine.

Minha querida Charlotte:                                                       

Aqui vão finalmente as notícias que há tanto te queria mandar. Creio que é tempo de te juntares a mim aqui na Navarra... com Ia petite Louise. Claro que o João tem sido um amigo dedicado, e a situação aqui permite que todos nós estejamos juntos... finalmente. Sei que a viagem será longa e árdua, mas, uma vez que aqui estejas, nunca mais nos separaremos. o                                                                              Teu, apaixonadamente                                                                       c.

César mandou a carta por correio real no dia seguinte. Sabia que decorre­riam meses até que Charlotte e a filha se lhe pudessem reunir, mas o coração enchia-se-lhe de júbilo com a ideia.               

Alguns dias depois, quando César se juntou ao rei ao jantar, João estava de mau humor e mantinha-se silencioso de raiva.o   — O que é que vos preocupa, irmão? — perguntou César.

O rei estava de tal modo furioso que mal conseguia falar, mas, assim que começou, não conseguiu praticamente parar.

  • O conde Louis de Beaumont anda a levantar-me problemas há meses. Os seus homens roubam o gado e os cereais das nossas aldeias, o que é um desas­tre para o povo. O bispo dele finge estar numa missão da igreja, mas em lugar disso contacta os meus oficiais, oferecendo-lhes terras e dinheiro para me traí­rem. Agora foi ainda mais longe. E desta vez passou das marcas. Hoje os sol­dados dele incendiaram uma aldeia, chacinaram todos os homens e, evidente­mente, violaram todas as mulheres. Não se tratou de uma leviandade ocasional por parte de um bêbedo desconhecido, César. Beaumont tem pretensões a uma porção significativa das minhas terras. E a sua táctica é o terror. Há-de aterrorizar os aldeãos até eles me abandonarem e apoiarem-no a ele, a fim de salva­rem as suas vidas e os seus lares.

Mais uma vez a traição, qual dragão surgido das profundezas, tinha levan­tado a cabeça. César reconheceu-a e temeu por João.

O rei bateu com o punho na mesa, entornando o vinho.

  • Detê-lo-ei! Imediatamente! Como governante de Navarra, tenho o dever de protecção para com os meus súbditos. Eles não têm de viver no medo. Ama­nhã vou comandar um ataque ao seu castelo de Viana. Ali, ou o expulso ou o mato.

César interveio:

  • Sois um verdadeiro rei. Deveis ordenar esse ataque, João. Mas não deveis comandá-lo vós mesmo, porque se trata de um combate muito perigoso e vós sois demasiado importante para o vosso povo para arriscardes a vossa pessoa. Eu estou sinceramente grato pelo que haveis feito por mim, quando eu não tinha qualquer probabilidade de viver se não fôsseis vós. Rogo-vos que me dei­xeis chefiar o ataque, porque já comandei muitos e seremos bem sucedidos.

O rei acabou por anuir, derrotado pela lógica de César. Nessa noite os dois homens passaram horas a examinar um mapa das fortificações de Viana e a pla­near estratégias para o dia seguinte.

Ainda não raiara o dia quando César acordou. O exército do rei tinha che­gado e aguardava. A sua montada, um fogoso garanhão baio, estava à porta, a dar impacientes patadas no chão. O exército percorreu o sinuoso caminho de saída do castelo e, com César à cabeça, atravessou campos, galgou colinas e cur­sos de água e chegou finalmente às portas do castelo de Louis de Beaumont.

César estudou a fortaleza. As muralhas eram altas e bem desenhadas. César, porém, já as tinha visto mais altas e melhores. Comparadas com Forli e Faenza, não constituiriam tarefa difícil.

César dispôs os seus homens como tantas vezes fizera, após o que envergou uma armadura ligeira e se preparou para combater uma vez mais. Ele próprio comandaria a carga da cavalaria; dada a situação da infantaria, César sabia que a carga seria crítica: podia levar a melhor.

Recordando as lições que tinha aprendido com Vitellozzo Vitelli, César começou por dispersar os canhões à volta da periferia das muralhas e protegê—los com unidades de cavalaria e infantaria. Feito isso, ordenou-lhes que alve­jassem primeiro os parapeitos. Esta atitude mataria ou neutralizaria muitos dos defensores e reduziria o grosso do risco para as forças de César. Os oficiais de artilharia transmitiram as suas ordens e o bombardeamento começou.

Correu bem. Repetidamente, à medida que as peças faziam fogo, desagre­gavam-se pedaços das muralhas mais altas, que caíam por todos os lados do castelo. A medida que os canhões continuavam a disparar, César ouvia os gri­tos dos defensores que tinham ficado mutilados ou feitos em pedaços nos para­peitos pelo ataque incessante.

Agora, todavia, passado mais de uma hora, era altura de mudar de táctica. César deu ordens para que todos os canhões fossem deslocados para um dos lados do castelo. Depois ordenou que o fogo fosse orientado para uma única porção da muralha, de largura inferior a quinze metros. Será por ali, pensou César, que a minha carga de cavalaria atacará.

Este castelo não era de tão boa construção como os que César tinha atacado em Itália. As muralhas começaram a ceder a cada barragem e César viu que o fim estava próximo.

Foi então que deu a ordem para a cavalaria preparar a carga. Os oficiais de cavalaria transmitiram a ordem e cada um dos homens a cavalo colocou uma lança de aspecto mortífero debaixo do braço, na posição de ataque. Cada um deles levava também uma espada e, mesmo desmontado, seria um inimigo temível.

César montou o seu cavalo baio, colocando a sua lança a postos. Verificou a espada e a maça eriçada de picos pendente da sela, pronta a usar se ele fosse desmontado e perdesse a espada.

O espírito combativo de César foi despertado. Mas era mais do que isso. Não se tratava apenas de um combate visando a conquista. O rei tinha sido bom para ele, salvara-lhe a vida e tornara-se um amigo.

Além disso, César sabia de sobra o que um perverso barão como Beaumont podia fazer se não lhe pusessem cobro. Devia ao rei acabar com Louis de Beau­mont.

Nessa altura César ouviu o grito familiar:

  • Uma brecha! Uma brecha!

Tinha sido aberto um enorme buraco de bordos irregulares na muralha, através do qual a sua cavalaria podia passar sem obstáculos e tomar o castelo.

Com o coração a bater com força, César virou-se e gritou às suas tropas que atacassem a muralha. Baixando a viseira do elmo, esporeou o cavalo na direc­ção da brecha.

Ao mesmo tempo que se precipitava sobre a muralha, percebeu repentina­mente que havia qualquer coisa de gravemente errado. Não se ouvia som de cascos atrás de si.

Sem parar, virou-se na sela.

Atrás dele, onde os tinha deixado, todos os soldados da cavalaria permaneciam imóveis. Horrorizado, apercebeu-se de que nem um homem o tinha seguido.

De um momento para outro a reserva do castelo precipitar-se-ia para a bre­cha e, sem uma carga de cavalaria, seria difícil desalojá-los.

César afrouxou a sua montada. Tornou a voltar-se para a sua unidade de cavalaria, levantou a viseira e berrou:

  • À carga, seus cobardes!

Mas, uma vez mais, toda a unidade de cavalaria permaneceu imóvel.

Nessa altura César compreendeu. Aqueles homens ignóbeis tinham sido comprados e pagos. Estavam a trair o seu rei... o seu amigo, o seu salvador, João de Navarra.

Pois bem, ele não o faria!

César não hesitou mais. Baixou a viseira, agarrou bem a lança e precipitou—se para a brecha... sozinho.

Havia poeira e confusão por todo o lado. Imediatamente, hordas de reser-vistas armadas de chuços, lanças e espadas precipitaram-se sobre ele.  cavalgou direito ao magote de gente, que dispersou. Mas matara apenas dois com a lança. Nessa altura o inimigo reagrupou-se e lançou-se novamente sobre ele.

Instintivamente, César lutou, com a espada numa mão e a maça na outra, fazendo tombar inimigo após inimigo, decepados pela sua espada ou arremes­sados ao chão pela maça.

Depois, subitamente, o cavalo de César caiu e ele tombou por terra, rebo­lando para o lado a fim de evitar as impetuosas arremetidas dos chuços dos ini­migos. Pôs-se em pé de um salto, já privado da maça, mas mesmo assim vibrando cutiladas com a espada em todas as direcções.

Os inimigos eram, porém, demasiados; eram simplesmente demasiados. E de súbito cercavam-no todos, apunhalando-o e vibrando-lhe machadadas. Experimentou a dor aguda de uma lança que lhe penetrou pela axila. Sentiu—se fraco; agora estava a perder sangue. A seguir ouviu uma voz, um som recon­fortante: Com armas e pelas armas... Pensou em Lucrécia. Depois deslizou para o solo e todo o pensamento cessou.

César Bórgia estava morto.

 

          

César Bórgia, que fora cardeal, duque e gonfalionere, foi objecto de uma requintada cerimónia em Roma conduzida pelo irmão, o cardeal Godofredo Bórgia, e o próprio Papa Júlio II. A seguir, as suas cinzas foram colocadas debaixo de um enorme monumento na Igreja de Santa Maria Maggiore. Disse—se que o Papa Júlio II queria César onde pudesse tê-lo debaixo de olho mesmo depois de morto.

Lucrécia Bórgia, todavia, tinha arranjado maneira de as cinzas do irmão serem roubadas por Michelotto e colocadas numa urna dourada. Michelotto, que por milagre tinha conservado a vida, largou a cavalo durante a noite para lhas levar a Ferrara.

No dia seguinte, Lucrécia saiu com uma comitiva de trezentos nobres e homens de armas e ocupou a cabeça do cortejo fúnebre na longa jornada até ao Lago de Prata.

Foram montadas tendas ao longo da margem. Apareceram os habituais penitentes das minas de Tolfa, a uns escassos dezasseis quilómetros dali, e as amantes de alguns dos clérigos de posição elevada a verterem nas águas as suas lágrimas arrependidas. Os homens de Lucrécia correram com eles.

Do acidentado terreno sobranceiro, ela via os pináculos de Roma, que lhe traziam lembranças do tempo em que fora uma pecadora carnal, em que sofrera angústias de medo pelo irmão e pelo pai devido ao que deles sabia. Como muitos outros pecadores, tinha vindo àquele lago para se purificar dos seus pecaminosos desejos, acreditando sinceramente que as águas mágicas a

lavariam das tentações, pois o lago tinha fama de proporcionar refrigério, de reabilitar malfeitores.

Seu pai, contudo, o Papa, com o seu sorriso zombeteiro mas bem-humo-rado, recordava-lhe que não havia nada tão traiçoeiro como o malfeitor em busca da redenção. No fim de contas, semelhante pessoa era o exemplo pro­vado da debilidade de carácter, propensa às variações dos ventos.

Naquela altura, Lucrécia sentou-se à beira do lago, na sua tenda dourada, e sentiu que as águas prateadas lhe traziam uma paz que nunca conhecera real­mente até então. O pai e o irmão estavam mortos e o seu destino estava tra­çado. Daria à luz mais filhos; ajudaria a governar Ferrara; seria justa, e acima de tudo clemente, durante o resto da sua vida. Nunca rivalizaria com o pai e com o irmão em proezas mundanas, mas isso não tinha importância, pois seria aquilo que eles nunca tinham sido. Tristemente, reconheceu no seu íntimo que eles nunca tinham sido verdadeiramente clementes. Recordava-se da maneira como César tinha castigado o poeta satírico romano Filofila, que compusera os injuriosos versos acerca do clã Bórgia. Que importava tudo isso agora? Qual era o mal das palavras? Alguma vez alguém acreditaria verdadeiramente nelas?

E por conseguinte tinha trazido as cinzas de César para o Lago de Prata, como se os seus restos mortais pudessem, mesmo agora, cair na tentação do pecado. Ou como uma espécie de peregrinação para expiar os seus próprios pecados da carne, os únicos pecados de que era culpada e dos quais nunca mais seria culpada. Finalmente, seria redimida.

E isso reconduzia-a com ternura à lembrança do pai: um cardeal da Santa Igreja Católica quando ela nascera, um pai amante e atento quando era Papa e Vigário de Cristo. Arderia a sua alma para sempre no inferno pelos seus peca­dos? Se ela podia sentir clemência, como não havia de senti-la um Deus omni­potente? Recordou então o que o pai tinha dito quando ela chorara pelo assas­sínio do marido por César.

  • Deus há-de perdoá-los ambos — dissera ele. — Caso contrário não há razão para a Sua existência. E um dia, quando a nossa tragédia mundana se consu­mar, estaremos todos juntos de novo.

Perto do cair da noite, o lago tinha adquirido um fulgor prateado. Lucré­cia caminhou lentamente até ao pequeno cais onde tinham nadado e mergu-

lhado em criança e, no seu espírito, parecia-lhe ouvir a voz de seu irmão César

com o som que tinha quando ele era criança:

  • Não, Crezia, é demasiado baixo.

  • Não te preocupes, Crezia, eu salvo-te.

E, mais tarde, quando eram mais crescidos, com mais da vida vivida e alguns sonhos desfeitos, a voz dele outra vez, prometendo:

  • Se é isso que queres, Lucrécia, eu tentarei ajudar. Depois, quando ela o vira pela última vez, o seu rogo:

  • Se eu alguma vez for morto, Crezia, tens de viver por mim. E ela prometera-lhe que o faria.

A medida que caminhava até ao extremo do cais, a noite começou a envolvê-la na sua escuridão tremeluzente e Lucrécia viu a pálida lua nascer mesmo por sobre os cedros. Foi nessa altura que destapou a urna e espalhou as cinzas de César no Lago de Prata.

Mais tarde, ao voltar à margem, vários dos penitentes que regressavam a casa pelas colinas depois do seu dia de oração e penitência repararam nela.

Uma mulher bonita virou-se para o jovem com quem estava e apontou para Lucrécia.

  • Quem é aquela mulher encantadora? — perguntou-lhe.

  • Lucrécia dEste, a boa e clemente duquesa de Ferrara - disse ele. - Nunca ouviste falar dela?

 

                                                                                            Mário Puzo

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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