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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DA NEVE / Jack London
A FILHA DA NEVE / Jack London

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A FILHA DA NEVE

 

Frona continuava a dirigir a casca de noz com mão de ferro. O que ganhavam conservavam-no e lutavam por mais, polegada a polegada, remada a remada; tudo teria terminado bem, se não fosse a vacilação da alma de Tommy. Um bloco de gelo, sugado pela corrente, levantou-se-lhe debaixo do remo, num turbilhão de espuma, voltou-se, mostrando o bordo denteado, e foi arrastado de novo para as profundezas. Naquela visão, ele viu-se a si próprio, cabelos em pé e mãos enclavinhadas apertando o vazio, de pés para a frente, a ser arrastado para o fundo, para o fundo. Ficou de olhos arregalados a fitar o presságio, e o remo, parado, recusou-se a trabalhar. Imediatamente a fenda lhes tornou a escancarar a boca; logo a seguir foram parar abaixo da costa íngreme, vogando suavemente no remoinho.

Frona estava estendida, de cabeça deitada para trás, soluçando virada para o sol; a meio do barco Corliss estava deitado, abandonado, a arfar; e à frente, sufocado e ofegante, arrasado, o escocês apoiava a cabeça nos joelhos.


Capitulo I

- Está tudo pronto, Miss Welse, mas tenho pena de não lhe podermos dispensar uma das lanchas.

Frona Welse levantou-se com vivacidade e veio para junto do comandante.

- Estamos tão ocupados - explicou este - e os pesquisadores de ouro são de uma impaciência, sabe...

- Eu sei... - interrompeu ela. - E também me estou a portar como eles. Desculpe as maçadas que lhe estou a dar, mas... mas... – voltou-se rapidamente e apontou para a margem. - Está a ver ali, entre o pinhal e o rio, aquela casa grande feita de toros de madeira? Foi lá que eu nasci.

- No seu lugar também estaria impaciente - murmurou o comandante, compreensivo, enquanto a guiava pelo convés apinhado de gente.

Andavam todos aos encontrões e aos berros. Mil pesquisadores de ouro reclamavam o descarregamento imediato dos seus equipamentos. Todas as escotilhas estavam escancaradas, e das profundezas os trepidantes guindastes içavam uma miscelânea de apetrechos. De ambos os lados do vapor, filas de barcaças recebiam a carga volante; em cada uma dessas barcaças uma multidão de homens suados assaltava os guinchos, logo que estes desciam, e punham-se a remexer fardos e caixas, numa busca frenética. Homens, acenando com guias de carga, gritavam-lhes das amuradas do navio. Por vezes o mesmo artigo era identificado por dois ou três, e estalava a guerra. O gado marcado com dois círculos e com um círculo e um ponto originava disputas sem fim, e para cada serra aparecia uma dúzia de reivindicadores.

- O comissário afirma que está quase louco - ia dizendo o comandante ao ajudar Frona a descer a escada para a plataforma de desembarque. Os despachantes entregaram a carga aos passageiros e lavaram daí as mãos. Mas não somos tão desafortunados como o Star of Bethlehem - garantiu, indicando um vapor ancorado a um quarto de milha de distância. - Metade dos passageiros têm cavalos de carga para Skaguay e White Pass, e a outra metade dirige-se para Chilcoot. Amotinaram-se, e está tudo parado. - Você aí - gritou, fazendo sinal a uma embarcação que pairava discretamente na periferia da confusão flutuante.

Uma lancha minúscula, remando heroicamente ao lado de um rebocador enorme, tentou passar pelo meio, mas o barqueiro, atravessando-se corajosamente pela proa e precisamente quando já o conseguira, remou em falso. Isto fez o barco girar sobre si próprio e parar.

- Cuidado! - gritou o comandante.

Duas canoas de setenta pés, carregadas de apetrechos, pesquisadores de ouro e índios, deslizavam a toda a vela, vindas do lado oposto. Uma delas desviou-se rapidamente em direcção à plataforma de desembarque, mas a outra apertou a embarcação de encontro ao rebocador. O barqueiro tinha desengatado os remos a tempo, mas o seu pequeno barco gemeu sob a pressão e ameaçou desintegrar-se. Então ele pôs-se em pé e em frases curtas e nervosas condenou todos os canoeiros e capitães de lanchas à perdição eterna. Um homem do rebocador inclinou-se lá de cima e cobriu-o de injúrias incisivas e crepitantes, enquanto os brancos e os índios da canoa riam, escarninhos.

- Anda prá frente - gritou um deles. - Porque é que não vais aprender a remar?

O punho do barqueiro acertou na ponta do queixo do seu crítico, fazendo-o cair, espantado, em cima da mercadoria amontoada. Ainda não satisfeito com este acto sumário, tentou ir atrás do punho e entrar na outra embarcação. O mineiro mais perto dele puxou com vigor um revólver, que ficou preso no coldre de pele reluzente, enquanto os seus irmãos argonautas, rindo, aguardavam o desfecho. Mas a canoa estava novamente em movimento, e o timoneiro índio apoiou a ponta do seu remo no peito do barqueiro atirando-o para o fundo da barcaça.

Quando a torrente de injúrias e blasfémias estava no auge e pareciam iminentes a agressão violenta e a morte rápida, o comandante volveu os olhos para a rapariga a seu lado. Esperava encontrar um rosto de rapariga chocado e assustado; não estava nada preparado para a expressão excitada e vivamente interessada com que deparou.

- Lamento muito - começou ele.

Mas ela interrompeu-o, como se ficasse aborrecida com a interrupção.

- Não, não, de modo algum. Estou divertidíssima, apesar de contente por o revólver se ter prendido. Se não...

- … poder-se-ia atrasar o nosso desembarque - rematou o comandante, rindo-se e demonstrando assim o seu tacto. - Aquele homem é um ladrão - prosseguiu, indicando o barqueiro que tinha tornado a deitar os remos à água e remava ao lado deles. - Concordou em levar só vinte dólares por a pôr em terra. Disse que levaria vinte e cinco, se fosse um homem. É um pirata, acredite, que ainda acabará por ser enforcado. Vinte dólares por meia hora de trabalho! É incrível.

- Calma! Calma! - aconselhou o homem em questão, ao mesmo tempo que executava uma atracagem desajeitada e deixava cair um dos remos pela borda fora. - Não tem nada que me estar a chamar nomes - acrescentou em ar de desafio, torcendo a manga da camisa, molhada por haver pescado o remo.

- Tens bom ouvido, rapaz - começou o comandante.

- E punhos rápidos - vociferou o outro. - E língua pronta. Preciso dela na minha profissão. Sem isso não se pode governar a gente no meio de vocês, seus tubarões do mar. Com que então sou um pirata? E você com mil passageiros apertados como sardinhas? Levam-lhes o preço de primeira classe, dão-lhes alimentação de terceira e acomodações piores que as dos porcos! Com que então eu é que sou pirata?!

Um homem de rosto rubicundo espetou a cabeça da amurada, em cima, e começou a berrar vigorosamente:

- Quero as minhas coisas desembarcadas! Venha cá acima, Sr. Thurston! Venha imediatamente. Tenho cinquenta caixotes meus a estragar-se nesta sua porcaria de barco, e verá em que enrascada se  mete se não trata de os desembarcar quanto antes. Estou a perder mil dólares por dia e não o tolerarei. Está a ouvir-me? Não o tolerarei! Tem-me roubado desde que zarpou de Seattle; e, pelo Inferno, não o tolerarei mais! Arraso esta companhia, tão certo como eu me chamar Thad Ferguson! Ouviu o que eu disse? Sou Thad Ferguson, e será melhor para si vir ter comigo o mais depressa que puder. Está a ouvir?

- Pirata hem? - soliloquiava o barqueiro. - Quem é que é pirata? Eu?

O Sr. Thurston acenou com a mão apaziguadoramente para o homem do rosto rubicundo e voltou-se para a rapariga:

- Gostaria de ir a terra consigo, e até ao armazém, mas bem vê como estamos atrapalhados. Adeus, e boa viagem. Vou mandar dois homens imediatamente tratar da sua bagagem. Estará no armazém amanhã de manhã, sem falta.

Ela apoiou-se-lhe na mão levemente e saltou para a embarcação. O seu peso fez o decrépito barco balouçar repentinamente; a água gorgolejou no fundo, chegando-lhe à biqueira dos sapatos; mas ela não se deixou impressionar e instalou-se nos assentos traseiros, encolhendo os pés debaixo de si.

- Espere! - gritou o comandante. - Isso não pode ser, Miss Welse. Volte para aqui, e eu arranjar-lhe-ei um dos nossos barcos, o mais depressa que puder.

- Antes disso dava cabo de si - retorquiu o barqueiro, empurrando-o. - Largue! - ameaçou ele.

O Sr. Thurston agarrara com força a amurada; em paga do seu cavalheirismo, ficou com os nós dos dedos esfolados pela lâmina do remo. Então perdeu a cabeça e, esquecendo a presença de Miss Welse, praguejou com veemência.

- Parece-me que a nossa despedida podia ter sido mais digna - gritou-lhe esta. E o seu riso ressoou pelas águas.

- Santo Deus! - murmurou ele, tirando o boné com galanteria. - Que mulher! - E um desejo súbito tomou-o, um desejo ardente de se ver sempre reflectido nos olhos cinzentos de Frona Welse. Não era um analítico; não sabia porquê, mas sentia que com ela iria até ao fim do mundo. Sentiu uma aversão pela sua profissão e vontade de largar tudo e partir para o Klondike, para onde ela se dirigia, mas, relanceando o olhar para cima, avistou o rosto rubicundo de Thad Ferguson e esqueceu o sonho que o possuíra durante um instante.

Pás! Uma chapada de água, provocada por uma remada trapalhona, atingiu-a em cheio no rosto.

- Espero que não se amofine, Miss - desculpou-se o barqueiro. - Faço o melhor que sei, o que não é lá muito.

- Assim parece - respondeu ela, de bom humor.

- Não é que eu goste do mar - disse com amargura - mas precisava de ganhar alguns dólares honestamente, e esta pareceu-me a maneira mais fácil. Já devia estar agora no Klondike, se não tivesse tão pouca sorte. Já lhe conto. Perdi o meu equipamento em Windy Arra, a meio caminho, depois de ter conseguido atravessar o Desfiladeiro...

Trás! Pás! Ela limpou a água dos olhos, contorcendo-se quando parte do líquido lhe escorreu pelas quentes espáduas abaixo.

- A senhora é desenrascada! - animou-a ele. - Está mesmo talhada para esta terra. Vai até ao fim?

Ela acenou com a cabeça, alegremente.

- Então há-de desenrascar-se. Mas, como estava a contar, depois de ter perdido o meu equipamento, voltei p'rà costa, pois não tinha massa p'ra arranjar outro. É por isso que estou a levar preços tão elevados. Espero que não esteja aborrecida por aquilo que eu lhe fiz pagar. Não! Pior que os outros, Miss, não sou. Tive de arranjar cem para esta banheira velha que nem dez vale lá na nossa terra. Por todo o lado os preços são o mesmo horror. Em Skaguay os cravos das ferraduras custam um quarto de dólar. Vai-se ao bar, pede-se um uísque. O uísque custa meio dólar. Bem, bebe-se o uísque, paga-se com dois cravos, e pronto! Ninguém protesta por causa dos cravos. Usam-nos p'rós trocos.

- O senhor deve ser um homem valente, para se aventurar a tornar lá depois de tal experiência. Quer dizer-me o seu nome? Podemos tornar-nos a encontrar no interior.

- Qual? O meu? Oh, chamo-me Del Bishop, mineiro. Lembre-se, se nos tornarmos a encontrar, darei a minha última camisa... Quer dizer: o meu último naco de pão é seu.

- Obrigada - respondeu a rapariga, com um sorriso doce, porque era uma mulher que gostava das coisas que vinham direitas do coração.

Ele parou de remar, o tempo necessário para pescar na água, em volta dos pés dela, uma lata velha de carne enlatada.

- É melhor começar a baldear a água - ordenou, entregando-lhe a lata. - Mete mais água, desde que apanhou aquele apertão.

Frona sorriu mentalmente, arregaçou as saias e atirou-se ao trabalho. A cada inclinação, quais vagalhões enormes elevando-se ao longo da linha do horizonte, as montanhas, bordadas de geleiras, pareciam erguer-se e baixar. De vez em quando, ela parava, a descansar as costas, e contemplava a praia cheia de gente, para onde se dirigia, e de novo o braço de mar rodeado pela terra no qual uma vintena ou mais de grandes navios estavam ancorados. De cada um deles, em direcção à praia e de regresso, circulava uma corrente contínua de chatas, lanchas, canoas e toda a espécie de embarcações pequenas. O Homem, o grande trabalhador, reagindo contra o ambiente hostil, pensou ela, recordando os mestres de cuja sabedoria usufruíra nas salas de conferência e meditações nocturnas. Era uma amadurecida filha da sua época, que compreendia perfeitamente o mundo físico e os seus trabalhos. E amava esse mundo e respeitava-o profundamente.

Durante algum tempo Del Bishop limitara-se a sublinhar o silêncio com chapinhadelas dos remos; mas ocorreu-lhe um pensamento.

- Não me disse ainda o seu nome - sugeriu, com delicadeza complacente.

- O meu nome é Welse. Frona Welse.

Estampou-se-lhe na cara um grande espanto, que foi aumentando mais e mais.

- A senhora é... Frona... Welse? - pronunciou lentamente. - O seu pai não é o Jacob Welse, pois não?

- É, sim. Sou a filha de Jacob Welse, para o servir.

Ele franziu os lábios, num assobio longo e baixinho, e parou de remar. - Volte já para a popa e tire o pés da água! - ordenou. - E passe-me p'ra cá essa lata.

- Não estou a tirar a água bem? - perguntou, indignada.

- Está! Está a tirar até muito bem; mas a senhora é... a senhora é...

- O mesmo que era, antes de saber quem eu sou. Ora continue lá a remar... é o trabalho que lhe compete a si. Eu cuidarei do que me compete a mim.

- Oh, a senhora é desenrascada - murmurou ele num êxtase, curvando-se de novo sobre os remos. - E o Jacob Welse é seu pai! Eu devia tê-lo adivinhado!

Quando chegaram à língua de areia, coberta de pilhas de mercadoria heterogénea e apinhada de homens, ela deteve-se o tempo necessário para apertar a mão ao seu barqueiro. Embora semelhante procedimento da parte das clientes femininas fosse sem dúvida invulgar, Dei Bishop compreendeu-o facilmente, pelo facto de ela ser a filha de Jacob Welse.

- Não esqueça que lhe darei o meu último naco de pão - tornou a afirmar, segurando-lhe ainda a mão.

- E a sua última camisa também, não esqueça.

- Bom, a senhora é bestial! - explodiu, com um último aperto de mão. - Isso é que é!

As saías curtas não lhe impediam os movimentos livres dos membros, e ela descobriu com agradável surpresa que abandonara os passos curtos e rápidos do andar citadino, que caminhava com as passadas compridas e ágeis próprias dos trilhos e que só se adquirem após muitos trabalhos e canseiras. Não poucos pesquisadores de oiro, lançando olhadelas ardentes aos seus artelhos e às pernas calçadas de botinas cinzentas, confirmaram a opinião de Del Bishop. Mais de um deles levantaram o olhar para o seu rosto e repetiram a mirada, porque era um rosto franco, com a franqueza da camaradagem; nos seus olhos pairava sempre uma luz risonha, tremeluzindo prestes a alvorecer. Se o observador sorria, os olhos dela sorriam também. E a luz risonha era multiforme: alegre, simpática, divertida, zombeteira - o complemento de fosse o que fosse que a ateasse. Por vezes a luz espraiava-se por todo o seu rosto, até que o sorriso anunciado por ela se realizasse. Mas era sempre uma camaradagem franca e aberta.

Aliás, muito havia para lhe provocar o sorriso, à medida que avançava por entre a multidão, através da língua de areia e pelo terreno plano, em direcção ao edifício de toros de madeira que havia indicado ao Sr. Thurston. O tempo retrocedera, e a locomoção e os transportes estavam de novo nas fases mais primitivas. Homens, que nunca nas suas vidas haviam carregado mais do que embrulhos, estavam transformados em bestas de carga. Não caminhavam já direitos sob a luz do Sol, mas inclinavam o corpo para a frente e curvavam a cabeça para a terra. Todas as costas estavam transformadas em albardas, onde começavam a formar-se esfoladelas das correias. Cambaleavam sob o peso não costumeiro, com as pernas entorpecidas, a fala entaramelada, sempre para um lado e para outro, hesitantes, e isto até a luz do Sol desaparecer. Carregadores e cargas caíam pelo caminho. Outros homens, exultando secretamente, empilhavam as suas mercadorias em carrinhos de duas rodas e puxavam quase alegremente, mas paravam ao primeiro encontro com os grandes rochedos redondos que invadiam o caminho. Então viam-se forçados a recorrer ao típico sistema de viandantes no Alasca. Punham de lado o carrinho ou empurravam-no de novo até à praia e vendiam-no por um preço fabuloso ao último homem desembarcado. Novatos, com dez arráteis de pistolas, cartuchos e facas de caça cingidas à cintura, trepavam corajosamente pelo trilho e voltavam, rastejando alquebradamente, largando pistolas, cartuchos e facas, num gesto sem esperança. E deste modo, arfando e suando amargamente, estes filhos de Adão expiavam o pecado original.

Frona, vagamente perturbada por esta imensa e vibrante corrida de homens tentados pelo ouro, avaliou, num relance, a imensa alteração havida no local; a pequena comunidade de outrora já não existia; tudo se mostrava empanado por estes forasteiros afadigados. Até os velhos marcos lhe pareciam estranhamente desconhecidos. Tudo era o mesmo, sem no entanto o ser. Ali, na planície verdejante onde brincara em criança e onde sentira medo do som da sua voz a ecoar de glaciar em glaciar, andavam dez mil homens para cima e para baixo, incessantemente, esmagando a vegetação tenra contra o solo e zombando do silêncio de pedra. No alto do carreiro estavam dez mil homens, que haviam passado já, em Chilcoot outros dez mil. E atrás, ao longo de toda a costa do Alasca, semeada de ilhas, mesmo até ao Horne, havia ainda outros dez mil, cavaleiros da quimera, vindos de todos os cantos da Terra. O rio Dyea, tal como outrora, descia, rugindo turbulento, para o mar; mas as velhas margens eram agora pisadas pelos pés de muitos homens que labutavam em filas movediças, puxando os cabos encharcados dos reboques, e os barcos carregadíssimos seguiam-nos, à medida que eles iam vencendo o caminho, sempre a subir. A vontade do homem lutava contra a vontade da água, os homens riam-se do velho rio Dyea e pisavam mais fundo as suas margens, para os homens que se lhes seguiriam.

O portão do armazém, pelo qual tantas vezes entrara e saíra noutros tempos e onde tinha observado com espanto o espectáculo invulgar que era um caçador perdido ou um negociante de peles, estava agora repleto de uma multidão barulhenta de homens. Onde antigamente uma carta à espera que a viessem reclamar era uma coisa que causava admiração, viu ela agora, ao espreitar pela janela, o correio amontoado do chão até ao tecto. E era por aquele correio que a multidão clamava com tanta insistência. Em frente do armazém, junto da balança, havia outra multidão. Um índio atirava o seu fardo para a balança, o dono, um branco, anotou rapidamente o peso numa agenda, e outro fardo se seguiu. Todos eles tinham correias, prontas para serem carregadas às costas do carregador e para a precária viagem através do Chilcoot. Frona aproximou-se mais. Estava interessada nos transportes de mercadorias. Lembrava-se dos tempos em que o explorador ou o negociante solitários despachava os seus equipamentos por seis cêntimos... cento e vinte dólares por tonelada!

O novato que estava a fazer as pesagens consultou o seu guia.

- Oito cêntimos - disse para o índio.

Os índios presentes riram-se com desdém e responderam em coro:

- Quarenta cêntimos!

No rosto do homem surgiu uma expressão aflita. Olhou à sua volta com ansiedade. Descobrindo a expressão de simpatia dos olhos de Frona, observou-a com pasmo atento. Na realidade estava ocupado a reduzir as três toneladas de equipamento a termos de dinheiro, à razão de quarenta dólares cada cem arráteis de peso.

- Dois mil e quatrocentos dólares por trinta milhas! - exclamou. - Que hei-de eu fazer?

Frona encolheu os ombros.

- O melhor que tem a fazer é pagar-lhes os quarenta dólares - aconselhou - senão eles desamarram-lho.

O homem agradeceu-lhe; mas, em vez de dar atenção, continuou a regatear. Um dos índios adiantou-se e começou a desatar as correias. O novato hesitou, mas, quando ia ceder, os carregadores subiram o preço para quarenta e cinco cêntimos. Sorriu, amarelo, e abanou a cabeça em sinal de rendição. Porém, um outro índio veio reunir-se ao grupo e começou a segredar, excitado. Um clamor se levantou; e, antes que o homem pudesse compreender o que se passava, eles largaram as correias e foram-se embora, espalhando a notícia de que os carregamentos para o lago Lindermann custavam cinquenta cêntimos.

De repente a multidão que se encontrava defronte da estação ficou perceptivelmente agitada. Os seus componentes cochichavam, excitados, uns com os outros, e todos os olhares estavam fixos em três homens que se aproximavam, descendo o carreiro. O trio era constituído por criaturas vulgaríssimas, mal vestidas e mesmo esfarrapadas. Numa comunidade mais estável seria imediata a sua detenção pelo oficial de polícia, por vagabundagem.

- Louis, o Francês - segredou o novato, passando a palavra.

- É dono de três demarcações seguidas no Eldorado - confidenciou-lhe o homem próximo de Frona. - Vale dez milhões, pelo menos.

Louis, o Francês, que caminhava um pouco à frente dos seus companheiros, não o parecia nada.

Perdera o chapéu, algures, no caminho, e trazia um lenço de seda esfiapado atado descuidadamente em volta da cabeça. Apesar de todos os dez milhões, transportava sobre os largos ombros o seu próprio saco de viagem.

- E aquele, o da barba, é o Swiftwater Bill, outro dos reis do Eldorado.

- Como é que sabe? - perguntou Frona duvi­dosa.

- Ora, como é que hei-de saber! - exclamou o homem. - O retrato dele tem aparecido em todos os jornais nas últimas seis semanas. Ora veja! - Desdobrou um jornal. - E está até muito parecido. Já o vi tantas vezes que era capaz de distinguir a carantonha dele no meio de mil.

- Então quem é o terceiro? -perguntou ela, aceitando-o tacitamente como uma autoridade.

O seu informador ergueu-se na ponta dos pés para ver melhor.

- Não sei - confessou, desgostoso; e em seguida bateu no ombro do homem que estava mais próximo dele. -Quem é o magro, de face rapada? O da blusa azul, com um remendo no joelho?

Nesse preciso instante Frona soltou um gritinho de alegria, lançando-se para a frente. - Matt! - gritou. - Matt McCarthy!

O homem do remendo apertou-lhe a mão com entusiasmo, embora a não reconhecesse. O seu olhar exprimia claramente a dúvida.

- Oh, não se lembra de mim! - palrou ela. - E não se atreve a dizer que sim! Se não houvesse tanta gente a ver-nos, eu beijava-o, seu urso velho!

«E então o Urso Grande foi para casa ter com os Ursinhos - recitou ela solenemente. - E os Ursinhos tinham muita fome. E o Urso Grande disse: «Adivinham o que lhes trouxe, meus filhos?» E um dos Ursinhos disse: «Amoras»; e outro disse: «Salmão»; e o outro disse: «Porco-espinho.» Então o Urso Grande riu-se: «Oh! Oh!» e respondeu “Um homem grande, muito gordinho!”»

À medida que escutava, a recordação ia-lhe iluminando o rosto; quando ela terminou, com os olhos todos enrugados, ele deu uma gargalhada pecu­liar, uma gargalhada silenciosa e cómica.

- Não há dúbeda que a conheço mas nem por nada me consigo alembrar quem é.

Ela apontou para dentro do armazém e obser­vou-o com ansiedade.

- Agora é que a topei! - Recuou e olhou-a da cabeça aos pés, e a expressão transformou-se em desilusão. - Não podia ser. Confundi-a com alguém. A senhora nunca apodia ter bibido naquela barraca - disse, espetando um dedo na direcção do armazém.

Frona acenou que sim com a cabeça, vigorosa­mente.

- Então és mesmo tu, afinal? A pequerrucha órfã de mãe, com o cabelo de oiro que eu despenteei tanta vez? O diabretezinho que corria descalço e sem meias por toda a parte?

- Sou! Sou! - confirmou ela, jubilosa.

- Aquele mafarrico que roubou a parelha de cães e atravessou o Desfiladeiro no pino do Inverno p'ra ber onde o mundo acabava e começava, só por o velho Matt McCarthy lhe contar histórias de fadas?

- Oh Matt, meu querido Matt! Lembras-te daquela vez que eu fui nadar com as raparigas siwash do acampamento índio?

- E eu tirei-te de lá pelos cabelos?

- E perdeste uma das tuas botas de borracha novas?

- Pois foi, é verdade. Foi mesmo um escândalo, um desastre! E as botas custavam dez dólares lá na loja do teu pai.

- E depois atravessaste o Desfiladeiro, para o interior, e nunca mais ninguém ouviu falar de ti. Todos pensávamos que tivesses morrido.

- Alembro-me muito bem desse dia. E tu choraste nos meus braços e num quiseste dar um beijo de despedida ao teu velho Matt. Mas por fim sempre deste - exclamou triunfante - quando biste que eu te ia deixar, de berdade. Que pedacito de gente que tu eras!

- Tinha apenas oito anos.

- E isto foi há doze. Doze anos que eu passei no interior, sem ter saído de lá uma única bez. Deves ter binte agora?

- E sou quase tão alta como tu - afirmou Frona.

- Estás mesmo uma mulher: alta, bem feita e tudo. - Observou-a com ar crítico. - Mas podias ser um bocadinho mais gordita, acho eu.

- Não, não - respondeu ela. - Aos vinte, não, Matt. Aos vinte, não. Toca no meu braço e verás. - E dobrou aquele membro até fazer músculo com o bíceps.

- Sim senhor! Que músculo! - admitiu ele, passando a mão com admiração pelo músculo saliente. - Até parece que tens trabalhado para ganhara bida.

- Oh, faço ginástica, sei jogar o boxe, esgrimir - exclamou ela, tomando sucessivamente as posi­ções adequadas - e nadar e dar mergulhos de grande altura e saltar uma barreira vinte vezes e… e caminhar com as mãos no chão. Ora aí tens!

- Então foi isso que andaste a fazer? Pensei que tinhas ido estudar - comentou ele secamente.

- Mas há métodos novos de ensinar, agora, Matt, e não nos enchem só a cabeça de coisas.

- E com essas pernas tão magras não podias aguentá-la! Bem, desculpo-te os músculos.

- E tu, Matt? - perguntou Frona. - Como é que te correram as coisas, estes doze anos?

- Olha para mim! - afastou as pernas, atirou a cabeça para trás, o peito para diante. - Estás a olhar para o Sr. Matthew McCarthy, um rei do nobre reinado do Eldorado, pelos seus próprios méritos. Os meus bens são ilimitados. Ganho mais massa num minuto do que antes tinha visto em toda a minha bida. A razão desta minha biagem aos Estados Unidos é procurar os meus velhotes. Tenho a certeza absoluta de que eles existiram. No Klondike pode haver pepitas, mas bom uísque é que não há. Outra das razões é também querer beber do autêntico antes de morrer. Depois disso, palavra de honra, boltarei para dirigir as minhas propriedades do Klondike. Pois é como digo: sou um rei do Eldorado. E, se desejares seja o que for, é só dizeres.

- Sempre o mesmo velho Matt que nunca ganha juízo - disse Frona rindo-se.

- E tu és uma verdadeira Welse, apesar desses teus músculos de atleta e desses miolos de filósofo. Mas anda daí atrás do Louis e do Swiftwater. Disseram-me que o armazém ainda é do Andy; veremos se ainda se alembra de mim.

- E de mim também - Frona agarrou-o pela mão. Era uma mania aquela de agarrar as mãos das pessoas de quem gostava. - Há dez anos que me fui embora.

O irlandês abriu caminho através da multidão, como uma escavadora, e Frona seguiu com facili­dade atrás do seu corpanzil. O novato olhava-os com reverência, pois considerava-os uma espécie de divindades do Norte. O rumor das conversas ele­vou-se de novo.

- Quem é a rapariga? - perguntou alguém. Quando ia a entrar a porta, Frona ainda apanhou o princípio da resposta.

- É a filha do Jacob Welse. Nunca ouviu falar em Jacob Welse? Por onde é que tem andado?


Capitulo II

Frona saiu do bosque de vidoeiros reluzentes e, com os primeiros raios de sol a adornar-lhe o cabelo solto, correu ligeira através do prado húmido do orvalho. A terra estava encharcada e fofa debaixo dos seus pés, ao passo que a vegetação molhada lhe vergastava os tornozelos, deixando cair borrifos resplandecentes de diamantes líquidos. O rubor da alvorada tingia-lhe o rosto, e o seu fogo brilhava-lhe no olhar. A jovem resplandecia de juventude e amor. Porque ela fora criada no seio da natureza - em substituição da mãe - e amava as velhas árvores e todas as plantas verdes, com um amor apaixonado; o odor húmido da terra era doce para as suas narinas.

No sítio onde a parte superior do prado se perdia numa vereda escura e estreita da floresta, por entre dentes-de-leão, de hastes lisas e ranúnculos berrantes, encontrou um molho de grandes violetas do Alasca. Estendendo-se ao comprido, enterrou a cara na frescura fragrante e com as mãos puxou as cabeças purpúreas, formando um resplendor em volta da sua própria cabeça. E não se sentia envergonhada. Tinha vagueado por entre as complexidades e sujeiras e paixões destruidoras do grande mundo e regressara simples, pura e sã. Sentia-se contente por isso, ali deitada, recordando os velhos tempos em que o universo começava e terminava na linha do horizonte, e em que ela atravessava o Desfila­deiro para contemplar o Abismo.

Fora uma vida primitiva a da sua infância, com poucas convenções, mas essas poucas, severas. Podiam-se resumir, tal como lera algures, anos mais tarde, como «a religião da lealdade». Esta religião conservara-a seu pai, pensou ela, ao lembrar-se que o seu nome soava bem nos lábios dos homens. E era esta a religião que ela aprendera - a religião que levara consigo para além do Abismo, para o mundo onde os homens andavam afastados das velhas verdades e inventavam dogmas egoístas e sofismas das mais subtis espécies; a religião que ela tornara a trazer consigo, ainda fresca, jovem e jovial. «E tudo era tão simples», pensava. Porque não seria a religião deles como a dela - a religião da lealdade ? Religião dos trilhos e dos acampamentos de caça? A fé com que os homens fortes e puros enfren­tavam o perigo rápido e a morte súbita nos campos ou nos rios? Porque não? A religião de Jacob Welse? De Matt McCarthy? A dos rapazes índios com quem ela brincara? Das raparigas índias que comandara em guerras amazónicas? A dos próprios cães-lobos, atrelados aos arreios ou correndo com ela através da neve. «Era saudável, era real, era boa», pensou, cheia de entusiasmo.

As notas harmoniosas de um tordo saudaram-na do bosque de bétulas, abrindo-lhes os ouvidos para o dia. Uma perdiz voou lá longe na floresta, e um esquilo arremessou-se, certeiro, no espaço, por cima da sua cabeça, avançando de ramo em ramo, de árvore em árvore, resmungando gracioso. Do rio escondido elevavam-se as vozes dos aventureiros que, já acordados, prosseguiam no seu caminho para o Pólo.

Frona ergueu-se, sacudiu o cabelo, seguiu instin­tivamente pelo velho caminho, por entre as árvores, para o acampamento do chefe George e da tribo dos Dyea. Encontrou um rapaz de tanga semelhante a um deus de bronze. Andava a apanhar lenha e obser­vou-a atentamente por cima do seu ombro bronzeado. Ela deu-lhe os bons-dias, alegremente, na língua Dyea, mas ele abanou a cabeça, largou uma garga­lhada insultuosa e suspendeu o trabalho para lhe gritar obscenidades. Frona fitou-o perplexa, pois não era assim antigamente. Quando, depois, passou por um índio sitkan, enorme e de olhar de poucos amigos, manteve-se calada. Na orla da floresta deparou com o acampamento. E quedou admirada. Não era o antigo acampamento de uma vintena ou pouco mais de tendas agrupadas e aninhadas juntas, na clareira, como para se fazerem companhia, mas sim um acampamento enorme. Começava no centro da floresta e espalhava-se para o interior e para o exte­rior, por entre os grupos de árvores espalhadas na planície, chegando até a margem do rio onde as compridas canoas se mostravam alinhadas, metidas na água. Era uma reunião de tribo como jamais se fizera no passado, e mil milhas de costa constituíam os limites. Eram todos índios desconhecidos, com as mulheres, os haveres e os cães. Acotovelavam-na homens juneau e wrangel, era empurrada por sticks, de olhares selvagens, vindos do outro lado do Desfi­ladeiro, chilcats ferozes e ilhéus da Rainha Charlotte. Os olhares que lhe deitavam eram negros e nada convidativos, com excepção - e esses eram piores ainda - dos dos lascivos que lhe atiravam olhares prometedores, e tasquinhavam.

Tal insolência, em vez de a assustar, provocava­-lhe a cólera e azedava o que devia constituir um agradável regresso a casa. No entanto, rapidamente compreendeu o seu estado de alma: o velho ambiente patriarcal do tempo de seu pai desaparecera, e a civilização, como um furacão violento, caíra de repente sobre este povo. Espreitando por baixo das abas erguidas de uma tenda, viu rapazes de expres­sões selvagens sentados em círculos no chão. Junto da porta, um montão de garrafas partidas denunciava a vigília nocturna. Um homem branco, de rosto vulgar e astuto, dava as cartas em volta, moedas de ouro e prata estavam empilhadas em montes sobre a prancha coberta com uma manta. Alguns passos adiante, ouviu o ruído de uma roda-da-fortuna e viu os índios, homens e mulheres, a arriscar avidamente os salários, ganhos com o seu suor, nos prémios espalhafatosos do jogo. E das tendas e barracas vinham as notas esganiçadas e malucas das caixas de música baratas.

Uma índia velha, que descascava uma vara de salgueiro ao sol de uma entrada de tenda aberta, ergueu a cabeça e soltou uma exclamação aguda:

- Hee-He! Tenas Hee-Hee! - murmurou o melhor e o mais excitadamente que as suas gengivas desdentadas lho permitiram.

Frona vibrou, ao chamamento. Tenas Hee-Hee!

Pequena Risonha! O seu nome do passado índio tão longínquo. Voltou-se e foi ao encontro da velha mulher.

- Então esqueceste assim tão depressa, Tenas Hee-Hee? - resmungou ela. - Com esses olhos tão novos e vigilantes! Neepoosa não esquecer assim depressa.

- Tu és a Neepoosa? - exclamou Frona, com a língua entaramelada pelo desuso de anos.

- Sim, ser Neepoosa. - respondeu a velha, arrastando-a para o interior da tenda e mandando um rapaz, a toda a pressa, fazer um recado qualquer. Sentaram-se juntas no chão. A mulher afagou a mão de Frona com carinho, observando-lhe, entretanto, o rosto com olhos turvos e nevoentos. - Aw, ser Neepoosa, que envelhecer depressa, como acontecer as nossas mulheres. Neepoosa que embalar a ti nos braços seus quando eras bebé. Neepoosa que te dar a ti o nome Tenas Hee-Hee. Que lutar por ti com a morte quando estiveste doente e apanhar plantas dos bosques e ervas do chão e fazer chá delas que dar a ti a beber. Mas eu notar pouca diferença porque eu reconhecer a ti imediatamente. Bastou a tua sombra no chão para fazer levantar a mim a cabeça. Um pouco mudada, talvez. Estás alta, e graciosa como um salgueiro esguio, e o sol beijar tuas faces com menos calor, dos anos. Mas o cabelo ser o mesmo, solto e da cor das algas castanhas que flutuam nas ondas, e a boca, pronta sempre a rir e avessa a chorar. E os olhos ser límpidos e since­ros como nos tempos em que Neepoosa ralhar a ti por causa de maldades e tu não teres nunca palavras falsas na tua língua. Ai! Ai! Não são como tu as outras mulheres que agora vêm para a região.

- E porque é que uma mulher branca não é respeitada entre vós? - perguntou Frona. - Os vossos homens disseram-me coisas horríveis no acam­pamento e, quando atravessei os bosques, até os rapazes. Nos velhos tempos, quando eu brincava com eles, não era esta vergonha assim.

- Ai! Ai! - responde Neepoosa. - É como dizes. Mas não culpes a eles. Não lances a tua cólera sobre as cabeças deles. Porque na verdade a culpa ser das vossas mulheres, que agora vêm para a região. Não podem apontar para nenhum homem e dizer: «Este ser o meu homem.» E não é bom mulheres ser assim. E elas olhar para todos os homens atrevida­mente e sem vergonha, e terem línguas sujas e cora­ções maus. Por isso as vossas mulheres não ser respei­tadas entre nós. Quanto aos rapazes, ser apenas rapa­zes. E os homens, como haviam eles de saber? As abas da tenda foram afastadas, e um velho entrou. Rosnou qualquer coisa para Frona e sentou-se. Apenas uma certa vivacidade denunciava o prazer que ele sentia com a presença dela.

- Então Tenas Hee-Hee voltou nestes tempos tão maus - disse ele numa voz aguda e trémula.

- E porque são eles maus, Muskim? - pergun­tou Frona. - Então as mulheres não usam cores mais garridas? Os estômagos não estão mais cheios com farinha e toucinho e comida do homem branco? Os homens novos não ganham bom dinheiro com os carregamentos e os barcos? E tu não te lembras já das ofertas de carne e peixe e cobertores de antiga­mente? Maus tempos, porquê, Muskim?

- Verdade - retorquiu ele com os seus modos patriarcais e delicados, com um relâmpago reminis­cente do fogo de antigamente a brilhar-lhe no olhar.­ Ser bem verdade isso. Mulheres usar cores mais garridas. Mas agradaram aos olhos dos homens brancos e não olhar já para os jovens do seu sangue. Por essa razão a tribo não aumentar, nem as crianças já empecilhar os nossos passos. É certo. Os estômagos estar mais cheios com comida do homem branco, mas também estar mais cheios com o mau uísque do homem branco. Nem podia ser doutro modo; os jovens ganhar bom dinheiro, mas eles ficar sentados a jogar durante a noite e gastar ele todo e dizer palavras desagradáveis uns aos outros, e encolerizados dar socos e correr sangue mau entre eles. Quanto ao velho Muskim haver poucas ofertas de carne e peixe e mantas. Porque as jovens não ser como antes, e os jovens já não honrar os velhos tótemes e os antigos deuses. Por isso os tempos são maus, Tenas Hee-Hee, e eles verão o velho Muskim ir para a sepultura cheio de dor.

- Ai! Ai! É assim, é! - gemeu Neepoosa.

- Por causa da loucura do teu povo, enlouque­ceu o meu - continuou Muskim. - Vêm do mar salgado como as ondas do mar, o teu povo, e vão... ah... quem sabe para onde?

- Ai! Quem sabe para onde? - lamuriou Neepoosa, balançando-se lentamente para trás e para diante.

- Eles ir sempre na direcção do gelo e do frio e sempre vir mais gente, onda atrás de onda!

- Ai! Ai! Na direcção do gelo e do frio. O caminho é longo, e escuro e frio! Estremeceu e pousou a mão de repente no braço de Frona. - E tu, ires?

Frona fez que sim com a cabeça.

- E Tenas Hee-Hee ir! Ai! Ai! Ai!

As abas da tenda ergueram-se e Matt McCarthy espreitou para dentro. - És tu, Frona, não és? Com o pequeno-almoço à espera há meia hora, e o velho Andy a resmungar furioso como uma galinha choca que é. Bom dia, Neepoosa! - dirigindo-se aos companheiros de Frona. - E Muskim, embora se não devam alembrar da minha cara.

O velho casal resmungou uma saudação e per­maneceu estolidamente calado.

- Mas apressa-te, rapariga - voltando a falar com Frona.- O meu barco parte ao meio-dia, e já pouco tempo tenho para estar contigo. Além disso, há o Andy e o pequeno-almoço, a ferver, os dois.


Capitulo III

Frona acenou com a mão a Andy e pôs-se a caminho. Bem apertados as costas levava a sua máquina fotográfica e um pequeno saco de viagem. Levava, ainda, como bordão de alpinista o varapau de salgueiro de Neepoosa. O vestido era de estilo para alpinismo, com saia curta e estreita, permi­tindo o máximo de amplitude com o mínimo de tecido e, além disso, de cor cinzenta e simples.

A sua bagagem, as costas de uma dúzia de índios e aos cuidados de Del Bishop, havia partido horas antes. No dia anterior, ao regressar, com Matt McCarthy, do acampamento siwash, encontrara Del Bishop no armazém, a espera dela. O assunto dele tinha sido rapidamente resolvido, porque a proposta que apresentou foi concisa e objectiva. Ela ia para o interior. Ele pretendia o mesmo. Ela ia precisar de alguém. Se não tivesse ainda contra­tado ninguém, ele era o homem ideal. Tinha-se esquecido de lhe dizer, no dia em que a trouxera para terra, que estava na região há anos e que a conhecia como as palmas das mãos. É certo que detestava a água, e que a viagem era grande parte por via fluvial, mas não lhe metia medo. Não tinha medo de nada. Além disso defendê-la-ia em qualquer circunstância. Quanto ao pagamento, quando che­gassem a Dawson, uma palavra de recomendação dela a Jacob Welse e equipamento para um ano seria a sua remuneração. Não, Não! Nada de adian­tamentos, nada que o sujeitasse! Pagaria o equipamento mais tarde, quando tivesse ouro na sacola. Que é que achava? E Frona achou bem, porque, antes que ela tivesse acabado de tomar o pequeno­-almoço, já ele andava lá fora a juntar as bagagens todas.

Descobriu que era capaz de andar mais depressa do que a maioria dos seus companheiros, que iam muito carregados e tinham de pousar as cargas, de espaço a espaço. Contudo verificou ter dificuldade em acompanhar o andamento de uns quantos escandinavos que seguiam a frente. Eram uns gigantes enormes e loiros, caminhando a passos largos, cada um com cem arráteis as costas e puxando ainda um carrinho carregado com mais uns seiscentos. De rostos risonhos como um raio de sol, irradiavam alegria de viver. O trabalho parecia uma brinca­deira de crianças e avançavam com facilidade. Gracejavam uns com os outros e com as pessoas que passavam, numa linguagem sem sentido, e os seus peitos robustos ressoavam com o eco das suas gargalhadas. Os homens davam-lhes passagem e ficavam a olhá-los com inveja; é que eles venciam as subidas do caminho a correr, deslizavam pelas vertentes contrárias e sustinham firmemente as rodas chapeadas de ferro em cima da rocha. Depois de atravessarem uma região sombria de bosques, chegaram ao rio, no sítio do vau. Um homem afogado estava deitado de costas na faixa de areia, fitando, sem pestanejar, o sol. Outro homem, com voz irri­tada, repetia e tornava a repetir a mesma pergunta:

«Onde está o companheiro? Não tinha nenhum com­panheiro?» Outros dois homens tinham pousado as cargas e faziam friamente um inventário dos haveres do morto. Um mencionava em voz alta os vários artigos, enquanto o outro os apontava num pedaço de papel sujo de embrulho. Cartas e recibos, molha­dos e desfeitos, juncavam a areia. Umas quantas moedas de oiro estavam empilhadas descuidada­mente em cima de um lenço. Outros homens, passando para trás e para diante em canoas e barcos de remos, nem se davam conta do facto.

Os escandinavos olharam, e os seus rostos torna­ram-se sérios durante um instante. «Onde está o companheiro? Não tinha nenhum companheiro?» - perguntou-lhes o homem irritado. Abanaram a cabeça. Não compreendiam inglês. Meteram-se a água e avançaram, chapinhando. Alguém da margem oposta gritou-lhes a adverti-los, ao que eles pararam e conferenciaram entre si. Depois começaram de novo a avançar. Os dois homens que faziam o inven­tário voltaram-se para ver. A corrente chegava-lhes quase as ancas, mas era rápida, e eles cambaleavam, enquanto, de vez em quando, o carrinho escorre­gava para um lado com a corrente. O pior estava passado, e Frona retinha a respiração. A água baixara até aos artelhos dos dois homens da frente, quando uma correia rebentou num dos mais pró­ximos do carrinho. A carga escorregou-lhe repentina­mente para o lado, desequilibrando-o. Ao mesmo tempo o seu vizinho escorregou, arrastando-se um ao outro para o fundo. Os dois seguintes foram derrubados, enquanto o carrinho, voltando-se, escor­regou do fundo do vau para a água profunda. Os dois homens que já quase haviam saído da água atiraram-se para trás puxando as cordas. O esforço era heróico; embora gigantes, a tarefa era demasiado grande e foram arrastados, polegada a polegada, para trás e para o fundo.

As cargas prendiam-nos no fundo, com excepção daquele cuja correia se partira. Este correu, não para a praia, mas pelo rio abaixo, tentando alcançar os camaradas. Umas centenas de metros mais abaixo, o rápido despenhava-se por cima de uns rochedos aguçados; aí, um minuto mais tarde, apareceram eles. O carrinho, ainda carregado, apareceu pri­meiro, esmagando uma roda e dando voltas e revira­voltas para se despenhar a seguir. Os homens segui­ram-no, numa confusão horrível. Foram esmagados contra as rochas submersas e continuaram a deslizar, à excepção de um. Frona, numa canoa (já acorriam uma dúzia delas em auxílio dos sinistrados), viu-o agarrar-se aos rochedos com dedos a escorrer sangue. Viu o rosto lívido e a agonia do seu esforço; mas as mãos desprenderam-se-lhe e foi arrastado, quando o seu camarada livre o estava mesmo a alcançar. Fora do alcance da vista deram o salto seguinte, aparecendo durante um segundo, lutando ainda, no baixio do rápido.

Uma canoa apanhou o homem que nadava, mas os restantes desapareceram num comprido troço de águas rápidas e profundas. Durante um quarto de hora as canoas andaram, as voltas, encontrando depois os mortos, calmamente encalhados na reversa. Foi requisitado um cabo a um barco que vinha a subir, assim como uma parelha de cavalos de uma caravana da margem; os despojos foram rebocados para terra. Frona contemplou os cinco gigantes jovens estendidos na lama, com os ossos partidos, mutila­dos, indefesos. Continuavam presos ao carrinho, e as pobres cargas inúteis estavam ainda presas as costas.

O sexto estava sentado no meio, de olhos enxutos e atordoados. A doze pés de distância, a torrente per­manente de vida corria. Frona misturou-se a ela e prosseguiu caminho.

 

As sombrias montanhas cobertas de abetos apertavam-se no canhão Dyea, e os pés dos homens pisavam o solo húmido, sem sol, transformando-o num lamaçal. Procuravam então novos caminhos, até haver muitos. Num desses caminhos Frona encon­trou um homem estendido, ao abandono, na lama. Estava deitado de lado, de pernas abertas e um braço enterrado debaixo de si, sobrecarregado por um fardo volumoso. A face repousava descansada­mente na lama, no rosto havia uma expressão de contentamento. Quando a viu os olhos brilharam­-lhe alegremente.

- já era tempo - saudou-a o homem. - Há uma hora que estou a espera. - Isso mesmo - disse, quando Frona se debruçou sobre ele. - Desaperte aí essa correia. Maldita coisa! Não conseguia che­gar-lhe.

- Está magoado?

Del Bishop libertou-se das correias, sacudiu-se e apalpou o braço torcido. - Ná. São como um pêro, obrigado. E não tenho de que me queixar, não senhor. - Adiantou-se e limpou as mãos enlameadas num arbusto baixo. - É a minha pouca sorte. Mas descansei um bocado, por isso não vale a pena pensar mais no caso. 'Stá a ver: tropecei naquela raizita ali e pumba, catapumba! Virei de cangalhas, sem conseguir chegar a fivela. E aqui fiquei estendido durante uma hora maldita pois toda a gente ia pelo carreiro de baixo.

 

- Mas porque não chamou?

- Para os obrigar a subir a colina até aqui? Eles, já cansados com a sua própria faina? Por nada desta vida! Não valia a pena. Se alguém me obrigasse a mim a trepar até aqui, só por ter caído, eu tirava-o da lama, claro, e depois tornava a atirá-lo p'ra lá. Além disso sabia que alguém havia de aparecer, mais tarde ou mais cedo.

- Oh, você é desenrascado! - exclamou a rapariga, apropriando-se da expressão de Del Bishop. - Está mesmo talhado p'ra esta terra!

- Pois 'stou - respondeu ele, colocando o fardo aos ombros e partindo em passo ligeiro. - No fim de contas, descansei um bom bocado.

O carreiro descia através dum pântano íngreme a beira do rio. Um pinheiro esguio estendia o alto tronco, dobrando-se a meio até tocar a água. A cor­rente batia no tronco afilado, imprimindo-lhe um balanço rítmico, os pés dos caminheiros haviam-lhe desgastado a superfície batida pelas ondas. Esten­dia-se num comprimento de oitenta pés, numa inse­gurança melindrosa. Frona subiu para cima dele, sentiu-o oscilar debaixo de si, escutou o fragor da água, viu a torrente enrouquecida... e recuou. Desfez o nó do atacador do sapato e fingiu atar o

mesmo com grande cuidado, quando um grupo de índios surgiu da floresta, através da lama. A frente vinham três ou quatro rapazes, seguidos por muitas mulheres, todos dobrados sob o peso de grandes fardos que transportavam a cabeça. Atrás vinham as crianças, carregadas conforme as idades, e no fim, meia dúzia de cães, de línguas pendentes e arrastando-se com dificuldade sob o peso das váriascargas.

Os homens olharam-na de soslaio, e um deles murmurou baixo qualquer coisa. Frona não o ouviu mas o riso que percorreu toda a fileira fez-lhe subir o rubor da vergonha ao rosto, elucidando-a mais claramente do que as palavras. O seu rosto escal­dava, porque se sentia envergonhada aos seus pró­prios olhos, mas não o demonstrou. O chefe pôs-se de lado, e um a um, e nunca mais do que um de cada vez, percorreram a perigosa passagem. Na curvatura, a meio, o peso deles obrigava a árvore a submer­gir e eles tacteavam o caminho com água até aos tornozelos na torrente fria e impetuosa. Mesmo as criancinhas fizeram a travessia sem hesitar, e depois os cães, latindo, relutantes, mas incitados pelo chefe. Depois de o último ter atravessado, o chefe voltou-se para Frona:

- Caminho de cavalos - disse apontando para o flanco da montanha. - Melhor seguir caminho cavalos. Mais longe; muito melhor.

Mas ela abanou a cabeça e esperou até ele atin­gir a outra margem; porque sentia o desafio, não só ao seu orgulho, mas ao orgulho da sua raça, que era maior do que o daquele, tal como a raça era maior do que ela. E assim subiu para o tronco e, com os olhos na gente estranha diante de si, avançou para o turbilhão de espuma branca.

Encontrou um homem a chorar ao lado do cami­nho. O seu fardo, desajeitadamente atado, estava pousado no chão. Tinha tirado um sapato, e o pé descalço mostrava-se inchado e coberto de bolhas.

- O que tem? - perguntou Frona postando-se em frente.

O homem levantou os olhos para ela, em seguida baixou-os para as profundezas onde o rio Dyea cortava a escuridão sombria com a sua prata bri­lhante. As lágrimas ainda lhe borbulhavam nos olhos; ele fungava.

- O que tem? - repetiu. - Posso ajudá-lo em alguma coisa?

- Não. Como é que me havia de ajudar? Tenho os pés em ferida, as costas quase quebradas e estou exausto. Pode remediar qualquer destas coisas?

- Bem - afirmou a rapariga judiciosamente. - Tenho a certeza que podia ser pior. Pense só nos homens que acabaram de chegar a praia. Levarão dez dias ou duas semans a andar com as bagagens as costas até ao sítio onde o senhor já chegou.

- Mas os meus camaradas deixaram-me e foram p'ra diante - gemeu ele num apelo servil a piedade.­Estou completamente só e não me sinto capaz de dar nem mais uma só passada. Só penso na minha mulher e nos meus filhos. Deixei-os nos Estados Unidos. Oh, se eles me pudessem ver agora! Não posso voltar para eles e não posso continuar p'ra frente. É de mais para mim. Não aguento trabalhar assim como um cavalo. Não nasci p'ra trabalhar como um cavalo. Morreria, sei que morreria, se o fizesse. Oh, que hei-de eu fazer? Que hei-de eu fazer?

- Porque o abandonaram os seus camaradas?

- Porque eu não era forte como eles; porque não conseguia carregar tanto peso como eles nem durante tanto tempo. Riram-se de mim e abandonaram-me.

- Tiveram alguma complicação? - perguntou Frona.

- Não.

- O senhor parece bem constituído e forte. Deve pesar uns setenta e cinco quilos.

- Oitenta - corrigiu.

- Não tem aspecto de doente. Esteve alguma vez fraco?

- N...não!...

- E os seus camaradas? São mineiros?

- Nunca na vida. Trabalhavam no mesmo esta­belecimento que eu. É o que mais me custa, com­preende? Conhecíamo-nos há anos. E irem-se assim embora e deixarem-me só por eu os não poder acom­panhar!

- Meu amigo - Frona sabia que defendia a raça -, o senhor é tão forte como eles. Pode tra­balhar tanto como eles e carregar o mesmo. Mas é fraco de coração. Isto não é lugar para os fracos de coração. Não pode trabalhar como um cavalo porque não quer. Por conseguinte esta terra não precisa de si. O Norte precisa mas é de homens fortes... fortes de alma, não de corpo. O corpo não importa. Portanto volte para casa. Não o queremos cá. Se vier morre, e depois que será da sua mulher e filhos? Venda pois o seu equipamento e volte para trás. Estará em casa daqui a três semanas. Adeus.

Atravessou o acampamento de Sheep. Algures, no alto, um imenso glaciar, sob a pressão contida de um açude subterrâneo, tinha rebentado em peda­ços e caído com milhares de toneladas de gelo e água pela garganta rochosa abaixo. A trilha estava ainda escorregadia com a lama da enxurrada e os homens rebuscavam desconsoladamente entre os destroços das tendas e dos esconderijos de provisões derrubados. Mas aqui e ali trabalhava-se com uma pressa nervosa, e os cadáveres rígidos a beira do cami­nho atestavam mudamente a sua tarefa. Algumas centenas de jardas mais adiante, o trabalho da fuga prosseguia ininterruptamente. Os homens pousavam as cargas em cima de pedras salientes, contavam uns aos outros como haviam escapado enquanto reto­mavam o fôlego e depois avançavam de novo aos tropeções para o seu trabalho.

O sol do meio-dia batia nos rochedos da «Esca­lada». A floresta desistira da luta, e o calor sufocante emanava da rocha despida. De cada um dos lados elevavam-se nervuras de terra disfarçadas pelo gelo, nuas e vigorosas na sua nudez. Ao cimo erguia­-se o Chilcoot batido pela tempestade. Pela sua vertente acima, descarnada e escabrosa, formigava um carreiro estreito de homens. Mas era um carreiro interminável. Saía da última orla de vegetação anã cá em baixo, traçava uma linha negra através de uma tira deslumbrante de gelo passando ao lado de Frona, que comia o seu almoço a beira do cami­nho. E prosseguia, pelo declive íngreme acima, tor­nando-se mais delgado e estreito, até se contorcer e serpear, qual coluna de formigas, e desaparecer na crista do Desfiladeiro.

Estava ela a olhar o Chilcoot envolvido numa neblina movediça e num remoinho de nuvens, quando uma tempestade de granizo e vento desabou, rugindo, sobre os pigmeus esforçados. A luz do dia extinguiu-se, e reinou uma escuridão profunda. Mas Frona sabia que algures lá em cima, segurando­-se sempre e lutando incansavelmente, a longa fila de formigas serpenteava em direeção ao céu. Tal pensamento emocionou-a. O velho amor do Homem pelo domínio! - e meteu-se na fila que saía da tempestade, lá em baixo, e desaparecia na tempes­tade adiante.

Atravessou a garganta do desfiladeiro num tur­bilhão de vapor, desceu de gatas pelas ruínas vulcâ­nicas daquilo que dera origem ao Chilcoot e deteve-se na beira acoitada pelos ventos do lago que enchia o fosso da cratera. O lago estava zangado e encape­lado e, embora uma centena de provisões aguardas­sem transporte, não havia barcos a navegar de um lado para o outro. Um esqueleto frágil de varas coberto de lona encerada jazia em cima das rochas. Frona procurou o proprietário, um rapaz de rosto alegre, olhos negros e argutos e queixo saliente. Sim, era ele o barqueiro, mas não trabalhava mais naquele dia. A água estava demasiado picada para transportes. Levava vinte e cinco dólares pelos pas­sageiros, mas não aceitava passageiros nesse dia. Não tinha dito já que estava demasiado picado? Era essa a razão.

- Mas leva-me a mim, não leva?

Abanou a cabeça e contemplou o lago.

- Lá no extremo está pior do que aqui. Nem os barcos grandes de madeira conseguem manobrar. O último que tentou, com um grupo de homens a bordo, foi arrastado para a praia ocidental. Vimo-lo perfeitamente. E como não há nenhum caminho por lá, tiveram de acampar até o vento amainar.

- Mas eles estão em melhor situação do que eu. Os meus apetrechos de acampar estão em Happy Camp, e não posso ficar aqui assim. - Frona sorriu de modo cativante, mas no sorriso não havia qualquer apelo; nenhuma fragilidade feminina apelando para a força e cavalheirismo do homem. - Reconsidere, por favor e leve-me.

- Não.

- Dou-lhe cinquenta.

- Não, já disse.

- Mas eu não tenho medo, sabe?

Os olhos do rapaz faiscaram, zangados. Avançou para ela repentinamente, mas, pensando segunda vez, não pronunciou as palavras que lhe acudiam aos lábios. Compreendera o insulto involuntário que lançara, e ia pedir desculpa. Mas, pensando segunda vez, também permaneceu calada; porque, tendo-o observado, compreendeu que era talvez a única maneira de conseguir o que queria. De pé, os corpos vergados pela tempestade, como os marinheiros nos convés inclinados, olhavam-se nos olhos, obsti­nadamente. O cabelo do rapaz estava empastado formando-lhe anéis molhados na testa, ao passo que o dela, em cachos mais longos, esvoaçava-lhe furiosamente em volta do rosto.

- Então venha daí! - Atirou a embarcação a água com um empurrão, zangado, e jogou os remos para dentro. - Suba! Levo-a, mas não pelos seus cinquenta dólares. Paga o preço normal e nada mais.

Uma lufada de vento apanhou a leve embar­cação e arrastou-a de lado durante uma vintena de pés. A água entrava num chuveiro contínuo e castigador, e Frona deitou-se imediatamente ao trabalho com a lata de baldear.

- Oxalá sejamos arrastados para a praia-gritou ele, inclinado para diante sobre os remos. - Seria embaraçoso... para si. - Levantou os olhos e olhou-a selvaticamente no rosto.

- Não - corrigiu ela. - Mas seria muito abor­recido para nós ambos... uma noite sem tenda, nem cobertores, nem fogueira. E além disso não vamos ser arrastados para a praia.

 

Frona saltou para as rochas escorregadias e aju­dou o rapaz a içar a embarcação de lona e a deitar a água fora. De cada um dos lados erguiam-se paredes de rocha nua a escorrer água. Uma forte saraivada caía continuamente, através da qual se percebiam na escuridão que se adensava alguns comboios de provisões em movimento.

- E melhor apressar-se - aconselhou ele, agra­decendo-lhe a ajuda e tornando a lançar o barco a água. - São duas milhas de caminho difícil até ao «Acampamento Feliz». Não encontra abrigo nenhum até lá, por isso é melhor apressar-se. Adeus.

Frona estendeu a mão e, pegando na dele, disse:

- O senhor é um homem valente.

- Oh, não diga isso! - Retribuiu-lhe o aperto de mão com ardor; o seu olhar exprimia admiração.

Uma dúzia de tendas mantinha-se precaria­mente agarradas as cavilhas, na extremidade da linha de barracas de madeira do «Acampamento Feliz». Frona, extenuada pelo dia, foi de tenda em tenda. As saias molhadas pegavam-se-lhe as pernas cansadas, e o vento açoitava-a com brutalidade, de todos os lados. De uma vez, através de uma parede de lona, ouviu um homem praguejar generosamente e teve a certeza de que era Del Bishop. Mas uma espreitadela para o interior confirmou-lhe o contrá­rio, e assim continuou a vaguear em vão até chegar a última tenda do acampamento. Desprendeu a aba da porta e espreitou. Uma vela crepitante iluminava o seu único ocupante, um homem, de joelhos, a soprar com força a fornalha de um fumacento fogão yukon.


Capitulo IV

Frona desatou os atilhos inferiores da abertura da tenda e entrou. O homem continuava a soprar para dentro do fogão, sem se aperceber da companhia. Frona tossiu, e ele ergueu para os dela um par de olhos vermelhos devido ao fumo.

- Pois não! - disse ele sem cerimónias. - Ate as abas e ponha-se à vontade. - Dito isto, voltou à sua tarefa eólica.

«Que hospitalidade, não haja dúvida!» - comen­tou a rapariga para si própria, obedecendo a sua ordem e aproximando-se do fogão.

Gravetos molhados, cortados no tamanho ade­quado para o fogão, estavam empilhados a um lado. Frona conhecia este tipo de lenha, arbustos que tre­pavam e rastejavam contorcidos por entre as rochas do depósito superficial de aluvião, que, diferente­mente do seu protótipo arbóreo, raramente erguiam a cabeça mais do que um pé acima da terra. Ela olhou para o interior do fogão, encontrou-o vazio e encheu-o com a lenha molhada. O homem levan­tou-se a tossir, por causa do fumo que lhe entrara para os pulmões, e fez gestos de aprovação.

Quando recobrou o fôlego disse

- Sente-se e seque as saias. Vou arranjar a ceia.

Colocou uma cafeteira em cima da tampa dian­teira do fogão e despejou-lhe para dentro o balde, saindo depois da tenda para ir buscar mais água. Quando lhe viu desaparecer as costas, Frona correu para a mochila. Quando ele regressou, momentos depois, encontrou-a com uma saia enxuta e a torcer a molhada. Enquanto o homem remexia na caixa dos alimentos em busca de pratos e utensílios para comer, Frona estendeu um pedaço de corda entre as estacas da tenda e pendurou a saia para secar. Os pratos estavam sujos. Enquanto o homem se debruçou para os lavar, ela voltou as costas e destramente mudou de meias. A sua infância ensinara-lhe a impor­tância de pés bem tratados para o caminho. Pôs os sapatos molhados em cima de uma pilha de lenha por detrás do fogão, substituindo-os por um par de mocas­sinas macias e graciosas de fabrico índio. O fogo ardia agora bem, e ela sentia-se contente por poder deixar secar as roupas interiores em cima do corpo.

Durante este tempo todo, nenhum deles pronun­ciara uma palavra. O homem não só se mantivera calado como se ocupara das suas tarefas com um ar tão absorto que pareceu a Frona que nem escutaria as palavras de explicação que ela gostaria de ter dito. Todo o seu comportamento dava a impressão de ser a coisa mais vulgar deste mundo uma jovem aparecer no meio de uma tempestade e em plena noite e compartilhar da sua hospitalidade. Por um lado, isto agradava-lhe, mas, na medida em que o não compreendia, confundia-a. Tinha a sensação de haver qualquer coisa que ele tomava como certa e que ela não compreendia. Por uma ou duas vezes humedeceu os lábios para falar, mas o sujeito parecia tão esquecido da sua presença, que se conteve.

Depois de abrir com um machado uma lata de carne de conserva, fritou meia dúzia de fatias grossas de toucinho fumado, retirou a frigideira e ferveu o café. Da caixa de mantimentos fez surgir a metade de uma panqueca fria e ensopada. Voltou-se, duvidoso, e deitou a rapariga um olhadela ríspida. Em seguida atirou com aquilo pela porta fora e esvaziou o conteúdo de um saco de biscoitos de marinheiro em cima de uma toalha de campismo. Os biscoitos estavam feitos em migalhas e generosa­mente ensopados pela chuva, tendo ficado transfor­mados numa massa polposa e flácida, de um branco

sujo.

- É o que tenho para fazer as vezes de pão - murmurou; - mas sente-se e contentemo-nos com o que há.

- Um momento... - E antes que ele pudesse protestar, Frona deitara os biscoitos para dentro da frigideira, em cima da gordura e do presunto fumado. A isto acrescentou duas chávenas de água e mexeu rapidamente ao lume. Depois de deixar rechinar ao calor durante alguns minutos, cortou em fatias a carne salgada e misturou-a com o resto. E, quando a temperou generosamente com sal e pimenta preta, elevava-se da mistura um cheirinho apetitoso.

- Confesso que é gostoso a valer - disse ele, balançando o prato em cima dos joelhos e provando a iguaria com avidez. - Que nome é que lhe dá?

- Slumgullion - respondeu ela lacónica mente, depois do que a refeição prosseguiu em silêncio.

Frona ajudou-o a preparar o café, estudando-o entretanto intensamente. E o rosto dele não só não era desagradável, decidiu ela, como era forte. Forte, corrigiu, mais potencialmente do que de facto. Um estudante, acrescentou, porque tinha visto muitos olhos de estudiosos e conhecia a marca da luz das vigílias nocturnas continuadas; os olhos dele tinham essa marca. Olhos castanhos, concluiu, e bonitos como os dos homens devem ser; mas notou com surpresa, quando lhe tornou a encher o prato de slumgullion, que não eram nada do castanho vulgar, mas sim dourados. A luz do dia, estava certa, e em épocas de melhor saúde, pareceriam cinzentos, quase azuis-acinzentados. Conhecia bem aquela cor; a sua unica companheira de quarto e amiga íntima tinha olhos assim.

O cabelo era castanho claro, com reflexos dou­rados a luz da vela, e o seu ligeiro ondulado expli­cava a curvatura perceptível do bigode castanho­-fulvo. O resto do rosto estava barbeado, e o talhe era bem masculino. Ao princípio desagradaram-lhe as covas um tanto pronunciadas por debaixo das maçãs do rosto, mas depois de lhe ter medido a figura bem constituída, musculosa e esbelta, com o peito largo e os ombros robustos, descobriu que pre­feria as covas; pelo menos não significavam falta de nutrição. O corpo enganava; mas, por seu lado, as covas desmentiam o vício da alimentação exces­siva. Altura, um metro e oitenta e tal, calculou ela pela sua experiência de ginásio; e a idade qualquer coisa entre os vinte e cinco e os trinta, mas mais provavelmente mais próximo dos primeiros.

- Não tenho muitos cobertores - disse ele de repente, parando para esvaziar a sua chávena e para a colocar na caixa de mantimentos. - Não espero os meus índios de volta do lago Linderman antes da manhã, e os miseráveis empacotaram tudo, excepto alguns sacos de farinha e o simples equipamento de campismo. Mas tenho dois casacões pesados que farão as vezes.

Voltou as costas como se não esperasse resposta e desatou um rolo de cobertores coberto de borracha. Em seguida tirou os dois casacões da um saco e atirou-os para cima da roupa da cama.

- Artista de variedades, suponho?

Fez a pergunta aparentemente sem interesse, como que apenas para manter a conversação e, de facto, como se já conhecesse a resposta estereoti­pada de antemão. Mas para Frona a pergunta foi como uma bofetada na cara. Lembrou-se da dia­tribe de Neepoosa contra as mulheres brancas que afluíam a região e compreendeu a falsidade da sua posição e o lado por que ele a tomara.

Mas ele continuou antes que ela pudesse falar.

- A noite passada tive duas rainhas de varie­dades e na noite anterior três. Mas nessa altura havia mais roupa de cama. É uma infelicidade, não é? A tendência que elas têm para se perderem das bagagens? No entanto, até hoje nunca encontrei bagagens nenhumas perdidas. E elas são sempre rainhas, ao que parece. Nunca são actrizes substi­tutas ou actrizes secundárias, não senhor. E presumo que você seja uma rainha também.

O rubor habitual tingiu-lhe as faces, o que a enfureceu mais do que ele, porque, ao passo que Frona estava segura do domínio que tinha sobre si própria, o seu rosto ruborizado denunciava uma confusão que, de facto, não possuía.

- Não - respondeu friamente -, não sou artista de variedades.

O rapaz atirou com algumas sacas de farinha para um dos lados do fogão, sem replicar, for­mando com elas a base de uma cama; com as sacas restantes, repetiu a operação no lado oposto do fogão.

- Mas é uma artista qualquer, então - insis­tiu, depois de ter terminado, acentuando, com desprezo visível, a palavra «artista».

- Infelizmente não sou artista de espécie nenhuma.

Ele deixou cair o cobertor que estava a dobrar e endireitou-se. Até aí não tinha senão olhado de relance para ela, mas agora examinava-a atenta­mente, polegada a polegada, da cabeça aos pés e vice-versa, o corte do vestido e a própria maneira como trazia o cabelo arranjado. E levou bastante tempo.

- Oh, peço perdão. - Foi o veredicto, seguido por outro olhar. - Então é uma tonta que sonha com a fortuna e fecha os olhos aos perigos da pere­grinação. Só há duas espécies de mulheres que vêm para esta região. As que, por serem esposas e filhas, são respeitáveis; e as que o não são. Estrelas de varie­dades e artistas, chamam-se elas por respeito à decência, e por cortesia nós permitimos-lho. Sim, sim, já sei. Mas lembre-se que as mulheres que per­correm estes caminhos ou são de uma espécie ou da outra. Não há termo médio, e as que o tentam estão condenadas a fracassar. Por isso é uma rapariga muito, muito tonta e fará melhor em voltar para trás, enquanto pode. Se não se importar de aceitar um empréstimo de um desconhecido, adianto-lhe a passagem de regresso aos Estados Unidos e amanhã mando um índio acompanhá-la pelo caminho até ao Dyea.

Por uma ou duas vezes Frona tentara interrom­pê-lo, mas com a mão ele fizera-lhe um sinal impe­rativo que se calasse.

- Agradeço-lhe... - começou ela, contudo ele interrompeu-a.

- Oh, de nada, de nada.

- Agradeço-lhe - repetiu ela -, mas acontece que... que... o senhor está enganado. Acabei de chegar do Dyea e esperava encontrar a minha baga­gem já aqui no «Acampamento Feliz». Partiram horas adiante de mim, e não posso compreender como é que lhes passei à frente... isto é, já sei! Um barco foi arrastado para a praia de oeste do lago da cratera, esta tarde, e deviam ir nele. Foi onde eu me perdi deles e segui para diante. Quanto a eu voltar para trás, aprecio os motivos que o levaram a sugerir-mo, mas o meu pai está em Dawson, e não o vejo há três anos. Além disso, vim hoje do Dyea, estou cansada e gostava de descansar um pouco. Portanto, se mantém a sua hospitali­dade, vou-me deitar.

- Impossível! - Com um pontapé atirou os cobertores para o lado, sentou-se em cima dos sacos de farinha e dirigiu-lhe um olhar estupefacto.

- Há alguma... alguma mulher nas outras ten­das? - perguntou a rapariga com hesitação. - Não vi nenhuma, mas pode-me ter passado despercebida.

- Havia um homem com a mulher, mas levan­taram a tenda esta manhã. Não, não há mais mulher nenhuma, excepto duas ou três numa tenda, que... hum..., que não servem para si.

- Pensa que tenho medo da hospitalidade delas? - perguntou Frona com calor. - Conforme o se­nhor disse, são mulheres.

- Mas eu já disse que não serviam - respondeu ele distraído, fitando a lona esticada e escutando o rugir da procela. - Um homem morria lá fora numa noite destas. E as outras tendas estão apinhadas até à porta - ruminou. - Por acaso estou bem infor­mado. Eles abrigaram as provisões lá dentro, por causa da chuva, e não têm espaço nem para se virarem. Além disso, uma dúzia de outros desconhe­cidos foram obrigados a acoitar-se lá, por causa da tempestade. Dois ou três pediram-me que os deixasse estender as camas aqui, esta noite, se não conseguis­sem encontrar lugar noutro lado. Pelos vistos, encontraram, mas isso não significa que haja mais espaço livre. Aliás...

Interrompeu-se, desanimado. A inevitabilidade da situação avolumava-se.

- Poderei chegar ao lago Profundo esta noite? - perguntou Frona, esquecendo-se de si para se solidarizar com ele, apercebendo-se em seguida do que fazia e desatando a rir.

- Mas não conseguiria passar o rio a vau com esta escuridão - Franziu o sobrolho ante a levian­dade dela. - E não há acampamentos de permeio.

- Está com medo? - perguntou ela com um leve tom de sarcasmo.

- Não por mim.

- Bom, então, acho que me vou deitar.

- Eu podia ficar a pé e tomar conta do lume. - sugeriu ele após uma pausa.

- Disparate! Como se o seu codigozinho idiota ficasse salvo por isso! Nós não estamos na civilização. Isto é o caminho para o Pólo. Vá-se deitar.

O rapaz encolheu os ombros, em sinal de rendi­ção.

- De acordo. Que devo fazer então?

- Ajudar-me a fazer a cama, claro. Sacas colo­cadas de través. Muito obrigada, mas eu tenho ossos e músculos que se revoltam. Assim... Volte-a assim!

Sob a sua direcção, ele colocou as sacas ao com­prido, numa fila dupla. Isto deixou uma cova pouco confortável no meio, cheia de protuberâncias, mas ela alisou-as com o lado dum machado e, do mesmo modo, diminuiu o declive para a cova. Em seguida fez uma dobra tríplice num cobertor e estendeu-o ao longo do fundo da comprida depressão.

- Hum! - monologou ele. - Agora percebo porque é que dormia tão mal. Pronto! - E apres­sadamente pôs as suas sacas também em posição.

- É evidente que não tem prática - informou a rapariga, estendendo o último cobertor e sentando­-se em cima.

- Talvez não - ripostou o jovem. - Mas você, que prática é que tem desta vida? - resmungou pouco depois.

- A suficiente para me arranjar - tornou Frona enigmaticamente, tirando a lenha seca do fogão e substituindo-a por molhada.

- Escute! Que tempestade! Está a piorar, se é que é possível piorar ainda mais.

A tenda abanava sob as rajadas de vento, a lona estalava surdamente a cada pancada, enquanto o granizo e a chuva rufavam por cima das suas cabeças, como o tiroteio numa batalha. Nos inter­valos ouviam a água escorrendo pelas paredes late­rais com o fragor de pequenas cataratas. Ele ergueu a mão com curiosidade e tocou no tecto molhado. Uma golfada de água jorrou instantaneamente do ponto de contacto, tombando sobre a caixa de manti­mentos.

- Não faça isso - exclamou Frona, pondo-se de pé de um salto. Pôs um dedo no local e, fazendo força contra a lona, deslizou-o até a parede lateral. A água parou imediatamente! - Nunca se faz isso, sabe - reprovou ela.

- Céus! - foi a resposta. - E veio você hoje do Dyea! Não está estafada?

- Bastante - confessou ela candidamente. - E cheia de sono. - Boa noite! - desejou-lhe alguns minutos mais tarde, estendendo-se, consolada, nos quentes cobertores. E, um quarto de hora dedois: - Oh, ainda está acordado?

- Estou. - A voz dele soou, camuflada, do outro lado do fogão. - O que é?

- Cortou as aparas?

- Aparas? - perguntou, sonolento. - Que apa­ras?

- Para o lume, amanhã, claro. Então levante-se e vá cortá-las.

O jovem obedeceu sem uma palavra, mas Frona deixou de o ouvir, antes que ele tivesse terminado a tarefa.

 

O omnipresente presunto fumado fumegava no ar, quando ela abriu os olhos. O dia rompera, e com ele desvanecera-se a tempestade. O sol húmido bri­lhava alegremente sobre a paisagem encharcada e sobre as tendas espalhadas. Já principiara o trabalho, grupos de homens seguiam em fila sob os seus carregamentos. Frona voltou-se para o lado. O pequeno­-almoço estava preparado. O seu hospedeiro aca­bara de pôr o presunto fumado e as batatas fritas no fogão e estava ocupado a manter a porta aberta com dois cavacos de madeira.

- Bom dia - saudou ela.

- Bom dia - retorquiu o rapaz pondo-se de pé e pegando no balde. - Não lhe pergunto se dormiu bem porque sei que dormiu.

Frona riu-se.

- Vou lá fora buscar água - propôs ele. - Quando voltar, espero encontrá-la pronta para o pequeno-almoço.

Depois da refeição e quando aquecia ao sol, Frona avistou um grupo conhecido de homens a contornar o caminho do glaciar, na direção do lago da cratera. Bateu as palmas.

- Lá vem a minha bagagem e o Del Bishop, todo envergonhado, com certeza, por não ter che­gado a tempo. - Voltando-se para o homem ao mesmo tempo que atirava para o ombro máquina fotográfica e mochila: - Tenho então de lhe dizer adeus sem me esquecer de lhe agradecer pela sua amabilidade.

- Oh, não tem de quê, não tem de quê. Não vale a pena falar nisso. Faria o mesmo por qual­quer...

- Artista de variedades!

Ele fez um ar de desaprovação, mas prosseguiu

- Não sei o seu nome, nem desejo sabê-lo.

- Bem, não serei tão desagradável, porque eu sei o seu, SENHOR VANCE CORLISS! Li-o nas etiquetas das bagagens, claro - explicou. - E quero que me vá visitar quando chegar a Dawson. Chamo-me Frona Welse. Adeus.

- O seu pai não é o Jacob Welse? - gritou o rapaz, quando já Frona descia a correr, ligeira, direita ao caminho.

Ela voltou a cabeça e fez que sim.

Mas Del Bishop não estava envergonhado nem sequer preocupado. «Não há como os Welses para se livrarem de enrascadas» - consolara-se ele a si próprio, antes de cair a dormir, na noite anterior. Mas estava zangado - «pior que uma barata», na sua própria expressão.

- Bom dia - saudou. - Vê-se logo pela sua cara que passou uma noite esplêndida, mas não graças a mim.

- Não estava preocupado, pois não? - perguntou Frona.

- Preocupado? Com uma Welse? Quem? Eu? De modo nenhum! Estava muito ocupado a dizer ao lago da Cratera o que pensava acerca dele. Eu cá não gosto de água. Já lho tinha dito. Prega-me sempre a peça... não é que eu tenha medo, nada disso.

- Ei, Pete! - voltando-se para os índios. - Vamos embora! Temos de chegar ao Linderman ao meio-dia.

«Frona Welse?» - repetia Vance Corliss consigo próprio. Parecia-lhe tudo um sonho de que se pro­curou convencer, voltando-se e seguindo com os olhos o vulto da jovem que se ia distanciando. Del Bishop e os índios já haviam desaparecido por detrás de uma parede de rocha. Frona estava precisamente a contornar-lhe a base. O sol batia-lhe em cheio, e ela destacava-se, radiosa, contra a sombra escura da parede por detrás. Acenou com o bordão. Quando Vance lhe tirou o gorro, contornou a esquina e desapareceu.

 

Capitulo V

A posição ocupada por Jacob Welse era sem dúvida anómala. Um forte comerciante numa região sem comércio, um produto amadurecido do século XIX prosperava numa sociedade tão primitiva como a dos vândalos mediterrâneos. Magnata da indústria e esplêndido monopolista, dominava o agregado de homens mais independente, jamais reunido dos extremos da Terra. Missionário economista, este S. Paulo comercial pregava as doutrinas do expe­diente e da força. Acreditando nos direitos naturais do homem, ele próprio filho da democracia, vergava todos os homens ao seu absolutismo. «Governo de Jacob Welse, para Jacob Welse e o povo, por Jacob Welse», era o seu evangelho não-escrito. De mãos vazias, talhara o seu império, dando-lhe a grandeza de uma dúzia de províncias romanas. A uma ordem sua, a população fluía e refluía por cem mil milhas de território, e as cidades surgiam ou desapareciam ao seu comando.

No entanto, era um homem vulgar. Viu pela pri­meira vez a luz do sol numa pradaria plana junto do rio Platte, com o céu azul por cima e, por baixo, a erva verde da terra, comprimindo-se contra a sua tenra nudez. Foram os cavalos a imagem primeira que os seus olhos contemplaram, selados ainda e contemplando com sereno espanto o milagre; porque seu pai, um caçador, desviara-se do caminho apenas para que a esposa pudesse ter sossego e o parto se consumasse. Passada uma hora e tal, os dois, que eram agora três, tornavam a montar e toma­vam a dianteira aos seus camaradas. O grupo não se atrasara, não houvera perda de tempo. De manhã a mãe cozinhou o pequeno-almoço na fogueira do acampamento, rematando-a com uma cavalgada de cinquenta milhas, até ao pôr-do-sol seguinte.

O pai caçador era oriundo da robusta cepa galesa que afluíra ao Ohio do superpovoado Leste, e a mãe era uma filha nómada dos emigrantes irlandeses do Ontário. De ambos os lados havia no sangue a sede das viagens, a febre de mudar, de chegar ao âmago das coisas. No primeiro ano da sua vida, antes de aprender a utilizar-se das pernas, Jacob Welse vagueara a cavalo através de mil milhas de sertão, passando o Inverno num abrigo de caça, na parte superior do rio Vermelho do norte. Os seus primeiros sapatos foram as mocassinas, e a sua primeira gulo­seima, o sebo de um alce. As suas primeiras gene­ralizações foram que o mundo se compunha de grandes desertos, de imensidões brancas povoadas de índios e caçadores brancos como seu pai. Uma cidade era um aglomerado de choupanas de pele de veado; um entreposto de comércio, a sede da civi­lização; e um agente comercial, o próprio Deus Todo-Poderoso. Os rios e os lagos existiam unicamente para os homens os utilizarem para viajar. Vistas sob este prisma, as montanhas intrigavam-no, mas ele colocava-as no grupo das coisas inexplicáveis, e não se preocupava. Morriam homens, as vezes, mas a carne deles não prestava para comer, e a pele não valia nada... talvez por não terem pêlo. As peles eram valiosas e com alguns fardos podia-se comprar o universo. Os animais haviam sido criados para os homens os apanharem e lhes tirarem a pele. Ele não sabia para que haviam os homens sido criados, a não er para benefício do agente comercial.

medida que crescia foi modificando estes conconceitos, mas o processo era uma fonte contínua de percepções e admiração. Só depois de se tornar um homem e de já haver percorrido metade das cidades dos Estados Unidos é que esta expressão de admiração infantil se lhe apagou do olhar deixando-o penetrante e alerta. Quando do seu primeiro contacto juvenil com as cidades, enquanto revia a sua síntese das coisas, simultaneamente fazia novas generalizações. As pessoas que viviam nas cidades eram efeminadas. Não conheciam de cor os pontos cardeais e perdiam-se com facilidade. Era por isso que preferiam ficar nas cidades. Por terem medo de se constipar e medo do escuro, dormiam debaixo de telhas e trancavam as portas a noite. As mulheres eram meigas e bonitas, mas não eram capazes de erguer as raquetas dos sapatos para a neve num dia de caminhada. Toda a gente falava de mais. Era por isso que mentiam tanto e eram incapazes de trabalhar muito com as mãos. Finalmente, havia uma nova força humana chamada «ameaça». Um homem que fizesse bluff tinha de estar muito seguro da sua eficácia ou então estar preparado para aguentar as consequências. O bluff era uma coisa muito boa... quando praticada com discrição.

Mais tarde, embora passasse a maior parte do tempo nas florestas e montanhas, chegou a conclusão de que as cidades não são más de todo, que um homem podia viver numa cidade sem deixar de ser um homem. Habituado a lutar com as forças naturais, sentia-se atraído pela luta comercial com as forças sociais. Os senhores do mercado e da bolsa deslum­bravam-no mas não o cegavam, e ele procurava apreender os segredos da força deles. Mais tarde, na força da vida, numa confissão tácita de que «fora de Nazaré algumas coisas boas havia», escolheu uma mulher educada na cidade. Continuava, porém, a ansiar por atingir o âmago das coisas, como se um fermento lhe levedasse o sangue. Partiu, pois, até que, sobranceiro ao areal do Dyea, na orla da floresta, construiu um grande interposto comer­cial de toros de madeira. Aí, homem maduro já, aprendeu o verdadeiro centro das coisas e unificou os fenómenos da sociedade, com a precisão com que tinha já unificado os fenómenos da natureza. Não havia nada naqueles que não pudesse ser expresso em termos destes. Os mesmos princípios sustentavam ambos. A competição era o segredo da criação. A luta era a lei e o impulso do progresso. O mundo fora criado para os fortes, e só os fortes o herdavam, e em todo ele reinava uma equidade eterna. Ser-se honesto era ser-se forte. Pecar era ser-se fraco. Ludibriar um homem honesto era ser-se deso­nesto. Ludibriar um ludibriador era ferir com a espada da justiça. A força primitiva era a do braço; a moderna, a da inteligência. Embora tivesse mudado de campo, a luta era a mesma de antigamente. Tal como outrora, os homens continuavam a lutar pelo domínio da terra e dos prazeres que dela advi­nham. Mas a espada dera lugar ao livro e a razão; o barão de cota de malha dera lugar ao lorde bem vestido; e o centro do poder político imperial dera lugar a sede de transacções comerciais. A vontade da era moderna destruíra o antigo bárbaro. A terra obstinada rendia-se apenas a força. O cérebro era maior do que o corpo. O homem inteligente podia conquistar mais facilmente as coisas primitivas.

Educação, propriamente, não tinha muita. Ao á-bê-cê que sua mãe lhe ensinara, junto a fogueira dos acampamentos e a luz da candeia, ele juntara al­guns conhecimentos literários um tanto heterogéneos; mas não ficara sobrecarregado com o que aprendera. No entanto, aprendia os factos da vida com compreen­são e possuía a sobriedade, que vem da terra, e a visão clara do mundo.

E assim aconteceu que Jacob Welse atravessou, um dia, logo nos princípios, o Chilcoot e desapareceu no desconhecido imenso. Um ano depois, apareceu nas missões russas agrupadas em volta da desembo­cadura do Yukon, no mar de Bering. Descera um rio de três milhas de comprimento e vira coisas e sonhara um grande sonho. Mas guardara-o para si e deitara-se ao trabalho. Um dia, o apito estridente de um decré­pito vapor com rodas de pás na popa saudou o sol da meia-noite, no braço pantanoso do rio junto de Fort Yukon. Era uma aventura magnífica. Como ele o conseguira, só Jacob Welse o pode dizer; mas, começando pelo impossível, acrescentando-lhe outros impossíveis, foram somando vapores e vapores e amontoando empresas sobre empresas. Ao longo de milhares de milhas do rio e dos afluentes construiu interpostos comerciais e armazéns. Meteu a força o machado do homem branco nas mãos do aborígene e em todas as aldeias e entre elas ergueu as estruturas de lenha de quatro pés para as caldeiras dos seus navios. Numa ilha do mar de Bering, onde o rio e o mar se encontram, estabeleceu uma grande estação distribuidora e no Pacífico Norte colocou grandes transatlânticos; entretanto, nos seus escri­tórios de Seattle e S. Francisco trabalhavam empre­gados as dezenas para manter a ordem e o sistema dos seus negócios.

Os homens tinham afluído a região. A fome expul­sara-os de lá, mas agora havia Jacob Welse e os seus armazéns de mantimentos. E eles invernavam no gelo e pesquisavam no esterco gelado em busca de ouro. Ele encorajava-os, provia a sua alimentação, financiava-os. Os seus barcos levaram-nos Koyokuk acima, nos velhos tempos de Arctica City. Onde quer que o pagamento compensasse, construía um armazém e uma loja. A cidade seguia-se-lhes. Jacob Welse explorava, especulava, desenvolvia. Incansável, indomável, com o brilho do aço nos olhos escuros, estava em toda a parte, fazia tudo. Na exploração de um novo rio, ia na vanguarda; e na retaguarda, também, acelerando os mantimentos. No exterior combatia as combinações comerciais; fazia alianças com as corporações terrestres e obri­gava as grandes empresas transportadoras a empre­garem tarifas discriminatórias. No interior vendia farinha, cobertores e tabaco; construía serrações, demarcava cidades e procurava concessões de cobre, ferro e carvão; e, para que os mineiros estivessem bem equipados, esquadrinhava as regiões do Árctico até a Sibéria em busca de calçado para a neve feito pelos nativos.

Assegurava a satisfação de todo o bem-estar da região; provia-lhe as necessidades; fazia-lhe o tra­balho. Passavam-lhe pelas mãos todas as onças do seu ouro, todos os postais e letras de crédito. Era o banco e a bolsa; levava e distribuía o seu correio.

Desagradava-lhe a competição; desencorajava os capitais rapaces, ameaçava os sindicatos militantes e, quando eles não cediam, mantinha a ameaça e destruía-os. Apesar de tudo, encontrava ainda tempo e lugar para se lembrar da filha, órfã de mãe, para a amar e preparar para a posição que conquistara.


Capitulo VI

- Penso, por conseguinte, capitão, que concor­dará em não devermos exagerar a gravidade da situação. - Jacob Welse ajudou o seu visitante a vestir o casacão de peles e prosseguiu: -Não é que não seja séria, mas para que se não torne mais grave ainda. Tanto você como eu já dominámos outras carestias antes. Temos de os assustar e assustá-los agora, antes que seja tarde de mais. Leve-me cinco mil homens de Dawson e haverá mantimentos que cheguem. Deixe que esses cinco mil vão contar a sua história da carestia para Dyea e Skaguay, assim impe­dirão que outros cinco mil atravessem o gelo e venham para cá.

- Muito bem! E pode contar com a colaboração entusiasta da polícia, Sr. Welse. - O homem que assim falava, de feições másculas e cabelos grisalhos, robusto e de porte militar, levantou a gola e pousou a mão no puxador da porta. - já verifiquei que, graças a si, os recém-chegados já começaram a vender os equipamentos e a comprar cães. Meu Deus! Que debandada não vai haver através do gelo, assim que o rio gelar! E cada um que vende mil libras de mantimentos e se vai embora diminui o problema com um estômago a menos e enche outro que cá fica. Quando sai o Laura?

- Esta manhã, com trezentos homens sem manti­mentos a bordo. Quem dera que fossem três mil!

- Amen! A propósito, quando chega a sua filha?

- Deve estar a chegar, de um dia para o outro. - Os olhos de Jacob Welse suavizaram-se. - Quero que venha cá jantar quando ela chegar. Traga um grupo de moços do quartel. - Não sei os nomes deles todos, mas não importa, faça os convites como se fossem feitos pessoalmente por mim. Não tenho cultivado muito a vida social... não tenho tempo, mas quero que a rapariga se divirta. Acabada de chegar dos Estados Unidos e de Londres, é capaz de se sentir só, compreende.

Jacob Welse fechou a porta, inclinou a cadeira para trás e colocou o pés em cima da guarda do fogão da sala. Durante meio minuto, a visão de uma rapariguinha esvoaçou no ar trémulo, por cima do fogão, para depois se transformar numa mulher de belo tipo saxão.

A porta abriu-se.

- Sr. Welse, o Sr. Foster mandou-me vir saber se deve continuar a aviar encomendas assinadas pelo armazém.

- Com certeza, Sr. Smith. Mas diga-lhe que reduza para metade. A quem tiver uma encomenda para mil libras dêem-lhe quinhentas.

Acendeu um charuto e voltou a reclinar-se na cadeira.

- O capitão McGregor deseja vê-lo, Senhor. - Mande-o entrar.

O capitão McGregor penetrou na sala e ficou de pé diante do patrão. A mão rude do Novo Mundo marcara o escocês desde a sua adolescência; mas uma honestidade genuína estava escrita em cada traço do seu rosto vincado, ao passo que um queixo proe­minente proclamava ao observador que a honesti­dade era no entanto a melhor política... para o observador, se ele desejasse tratar com o dono do queixo. Este aviso era sustentado pelo nariz tor­cido e partido e por uma comprida cicatriz que lhe subia a testa e desaparecia no cabelo grisalho.

- Levantamos ferro dentro de uma hora, se­nhor, e venho saber as últimas ordens.

- Muito bem! - Jacob Welse girou a cadeira. - Capitão McGregor!

- Senhor!

-Tinha destinado outro trabalho para si, este Inverno; mas mudei de ideias e resolvo mandá-lo com o Laura. Adivinha porquê?

O capitão McGregor mudou o peso do corpo de uma perna para a outra, e um sorriso astuto enru­gou-lhe os cantos dos olhos.

- Vai haver sarilho - resmungou.

- E eu não podia escolher homem melhor. O Sr. Bally dar-lhe-á instruções detalhadas, quando for para bordo. Mas só lhe quero dizer isto: se não conseguirmos afugentar homens bastantes da região, todas as libras de mantimentos não serão de mais em Fort Yukon. Compreende?

- Sim, senhor.

- Portanto, nada de extravagancias. Leva daqui trezentos homens. É de contar que o dobro descerá o rio assim que ele gele. Ficarão mil, que teremos de alimentar durante o Inverno. Ponha-os a ração... ração de trabalho... e faça com que eles trabalhem. Lenha empilhada, seis dólares por pilha e posta nas margens onde os barcos possam atracar. Quem não trabalhar não leva ração. Compreende?

- Sim, senhor.

- Mil homens facilmente se tornam violentos, se estão ociosos. Mesmo sem o estarem, são capazes disso. Veja que eles não assaltem os mantimentos. Se o fizerem... cumpra o seu dever.

O outro acenou com a cabeça, severo. As mãos contraíam-se-lhe inconscientemente, enquanto a cica­triz da testa adquiria um tom lívido.

- Há cinco navios no gelo. Ponha-os em segu­rança contra o degelo da Primavera. Mas primeiro transfira toda a carga para um depósito grande. Pode defendê-lo melhor e torná-lo inexpugnável. Mande um mensageiro a Fort Burr pedir ao Sr. Carter três dos homens dele. O Sr. Carter pode dispensá-los. Não há grande coisa a fazer em Circle City. De caminho, pare e traga metade dos homens do Sr. Burdwell. Vai precisar deles. Terá de se haver com atiradores em barda. Seja firme. Domine a situação desde o princípio. Lembre-se que o pri­meiro a atirar é quem fica com a pele inteira. E man­tenha os mantimentos sob vigilância constante.

- E o resto também - resmungou o capitão McGregor, ao transpor a porta.

- John Melton... o Sr. Melton, senhor. Pode recebê-lo?

- Ouça cá Welse, o que é que isto significa? - John Melton entrou, irado, atrás do empregado e quase o atropelou ao brandir um papel diante do chefe da companhia. - Leia. Quanto é que isto vale?

Jacob Welse lançou-lhe uma vista de olhos e em seguida levantou-os calmamente:

- Mil libras de mantimentos.

- Foi o que eu disse, mas aquele tipo que tem lá no seu armazém diz que não... quinhentas libras é quanto vale.

- E disse a verdade.

- Mas...

- Vale mil libras, mas no armazém só vale qui­nhentas.

- Esta assinatura não é a sua? - empurrando­-lhe outra vez o recibo para dentro do campo de visão.

- É.

- Então o que é que vai fazer?

- Dar-lhe quinhentas. E o senhor o que é que vai fazer?

- Recusar aceitá-las.

- Muito bem. A discussão está encerrada.

- Não está tal. Nunca mais quero negócios consigo. Tenho dinheiro suficiente para fazer a minha custa o transporte das minhas coisas pelo desfila­deiro, e é o que farei no próximo ano. Os nossos negócios terminam neste preciso momento, e para sempre.

- Não tenho objecções a fazer. Tem trezentos mil dólares de ouro em pó depositados na minha casa. Vá ter com o Sr. Atshler e levante-os ime­diatamente.

O homem espumava, impotente, andando de um lado para o outro.

- Então não posso levantar essas outras qui­nhentas? Valha-me Deus, homem! Paguei-as. Não quer que eu morra a fome, pois não?

- Escute, Melton. - Jacob Welse fez um curto intervalo para sacudir a cinza do charuto. - O que é que pretende neste preciso momento? O que está a tentar conseguir?

- Mil libras de mantimentos.

- Para o seu estômago?

O rei das minas de ouro abanou a cabeça.

- É o mesmo. - As rugas desenhavam-se mais nítidas na testa de Jacob Welse. - Está a trabalhar para o seu estômago. Eu trabalho para o de vinte mil homens.

- Mas você ontem aviou as mil libras do Tim McReady.

- A redução só entrou hoje em vigor.

- Mas porque hei-de eu ser o primeiro a sofrê-la? - Porque é que não veio ontem e o Tim McReady hoje?

O rosto de Melton ficou lívido e Jacob Welse respondeu a sua própria pergunta com um encolher de ombros.

- É assim mesmo, Melton. Não há favoritismos. Se me atribui as responsabilidades pelo Tim McReady eu atribuo-lhe as responsabilidades por não ter vindo ontem. É melhor desculparmo-nos ambos com a Providência. Você passou pela carestia de Forty Mile. É um branco. Uma mina de ouro ou várias minas de ouro não lhe dão mais direito a uma libra sequer do que ao mais antigo dos garimpeiros sem cheta ou ao último recém-nascido. Confie em mim. Enquanto eu tiver uma libra de comida não mor­rerá à fome. Coragem! Aperte a mão! Mostre um sorriso e aceite as coisas como elas são.

Ainda aborrecido, mas acalmando-se rapidamente, o rei apertou-lhe a mão e saiu de rompante da sala. Mal a porta se fechara atrás dele, quando um ianque desajeitado entrou bamboleante, atirou um pé calçado com mocassinas para o lado, agarrou numa cadeira, puxou-a para debaixo de si, e sen­tou-se.

- Está-me cá a parecer - puxou ele conversa em ar de confidência - que os tipos começam a rabiar por causa dos víveres, não?

- Olá, Dave, és tu?

- Parece que sim. Mas, como eu estava a dizer, vai haver uma rica debandada, logo que o rio fique gelado.

- Achas que sim?

- Hum... hum.

- Então ainda bem. É o que esta terra precisa. Também vais?

- Nem pensar nisso! - Dave Harney atirou a cabeça para trás com uma complacência convencida. - Carreguei o meu vagão ontem para a mina. E já não era sem tempo. Mas, como ia a dizer... Foi-se-me o açúcar. Tinha-o todo no último trenó e no sítio onde o carreiro se afasta do Klondike, na direcção da mina de ouro, então o trenó não se enterra pelo gelo? Nunca vi uma coisa assim... o último trenó, com o açúcar todo! Por isso resolvi vir cá hoje comprar umas cem libras dele. Branco ou amarelo, tanto me faz.

Jacob Welse abanou a cabeça e sorriu, mas Harney puxou a cadeira para mais perto.

- O seu empregado disse que não sabia. Como não valia a pena estar a chateá-lo, eu disse que vinha ter consigo. Não me importa o dinheiro. Nem que seja a cem; p'ra mim, é igual. - Ouça - continuou rapidamente, ao reparar na posição decisivamente negativa da cabeça do outro. - Sou bastante guloso, lá isso sou. Lembra-se daqueles caramelos que eu fiz no Córrego do Pregador? É verdade! Como o tempo voa! Já foi há seis anos! Mais! Há sete, diabos me levem! Mas, como eu estava a dizer, prefiro passar sem tabaco a passar sem açúcar. E então o açúcar? Tenho os meus cães lá fora. É melhor ir ao armazém buscá-lo. Boa ideia! - Mas ele viu o «não» a formar-se nos lábios de Jacob Welse e apressou-se a continuar, antes que o outro tivesse tempo de o pronunciar. - Bem, não quero abusar. Por nada deste mundo! Por isso, se está apertado, posso-me arranjar com setenta e cinco... (estudou a expressão do outro) e até com cinquenta. Com­preendo a sua situação e não sou tão reles que o vá chatear...

- Para quê tanto palavreado, Dave? Não podemos desperdiçar uma libra, sequer, de açúcar...

- Como eu estava a dizer, não quero abusar e, por ser o senhor, arranjar-me-ei com vinte e cinco...

- Nem uma onça!

- Nada, mesmo nada? Bom, bom, não se amo­fine. Não se fala mais nisso; voltarei noutra altura melhor. Adeus. Escute! - Espetou o queixo para um dos lados e pareceu apurar os músculos do ouvido para escutar atentamente. - É o apito do Laura. Vai partir. Não se vai despedir dele? Venha daí.

Jacob Welse vestiu o casaco de pele de urso, calçou as luvas, e, através dos escritórios, passaram para o armazém principal. Era tão grande que os duzentos clientes que estavam diante dos balcões não pareciam muita gente. Muitos tinham expressões sérias, e mais do que um olhou sombriamente para o chefe da companhia, quando ele passou. Os empre­gados estavam a vender tudo menos víveres, e eram víveres que os clientes procuravam. «Escondem-nos para aumentar os preços. Preços de mercado negro» - rosnou um mineiro de suíças ruivas. Jacob Welse ouviu, mas não o deu a entender. Esperava ouvi-lo muitas vezes, e por forma mais desagradável, antes de a carestia terminar.

No passeio deteve-se para relancear os boletins públicos afixados na parede do edifício. Cães per­didos, achados e a venda ocupavam algum espaço, mas o restante era dedicado a anúncios de venda de equipamentos. Os tímidos começavam já a assustar-se. Equipamentos de quinhentas libras eram oferecidos a um dólar por libra sem farinha; outros, com farinha, a dólar e meio. Jacob Welse viu Melton a conversar com um recém-chegado de rosto ansioso, e a satis­fação manifestada pelo rei do ouro revelava que ele conseguira encher o seu depósito de mantimentos para o Inverno.

- Porque é que não vê se descobre aí o açúcar, Dave? - perguntou Jacob Welse, apontando para os anúncios.

A expressão de Dave Harney denunciou a sua reprovação.

- Pensa que o não fiz já? Estafei os cães a pro­cura, desde Klondike City ao hospital. Nem com dinheiro se arranja.

Caminharam pelo passeio ao longo do quarteirão, pelas portas do armazém e pelas compridas fileiras de cães esquimós enroscados confortavelmente na neve, a maneira dos lobos. Fora por esta neve, a pri­meira do Outono a prender, que os mineiros do cimo do córrego tinham esperado para começar os trans­portes.

- E engraçado, não é? - arriscou Dave suges­tivamente, quando atravessavam a rua principal para a margem do rio. - É engraçadíssimo, eu, dono de duas demarcações no Eldorado, de quinhen­tos pés, um terreno que vale a vontade cinco milhões, não tenho com que açucarar o meu café nem as minhas papas! Ora, diabos me levem! Esta terra que vá para o Inferno! Vou vender tudo! Vou largar tudo! Eu... eu... vou voltar para os Estados Unidos!

- Oh, não, não vais tal! -respondeu Jacob Welse. -já te ouvi dizer isso muitas vezes. Aguentaste um ano no rio Stewart a alimentar-te só de carne, se não estou esquecido. E comeste barrigas de salmão e carne de cão no Tanana, para não falar das duas carestias que atravessaste. E ainda não voltaste costas a terra. Nem nunca o farás. E hás-de morrer aqui, tão certo como aquilo ser o mastro do Laura que está a ser rebocado para bordo. E tenho muitas esperanças que ainda um dia te hei-de expedir numa caixa forrada de chumbo e encarregar lá os de S. Francisco de te liquidar os bens. Estás preso aqui e tu bem o sabes.

Enquanto falava, ia retribuindo constantemente saudações dos transeuntes. Aqueles que o conhe­ciam eram na maioria veteranos, conhecia-os a todos pelo nome, embora dificilmente houvesse um recém­-chegado a quem o seu rosto não fosse familiar.

- Aposto que em 1900 hei-de estar eu em Paris - protestou debilmente o rei do Eldorado.

Mas Jacob Welse não o escutava. Ouviu-se um repicar de gongos, quando McGregor o saudou da cabina do piloto e o Laura se afastou da margem. Os homens na margem enchiam o ar com despedidas e desejos de boa sorte e conselhos derradeiros, mas os trezentos homens a bordo, sem comida, que vol­tavam costas ao sonho do ouro, estavam tristes e abatidos e mal respondiam. O Laura recuou por um canal cortado no gelo da costa, balouçou na corrente e, com um último apito, afastou-se a todo o vapor.

A multidão foi dispersando, a tratar das suas vidas, deixando Jacob Welse como centro de um grupo de umas doze pessoas. O tema da conversa era a carestia, mas era uma conversa de homens. Até Dave Harney se esqueceu de amaldiçoar o país por causa da sua penúria de açúcar e lançava facécias sobre os recém-chegados - chechaquos, chamava­-lhes ele, recorrendo a língua siwash. No meio dos seus comentários, os seus olhos de lince avistaram uma mancha escura deslizando no gelo ainda pouco consistente do rio. - Olhem - exclamou. - Uma canoa a atravessar o gelo!

Contorcendo-se e dando voltas, ora remando, ora evitando os gelos flutuantes, os dois homens da canoa chegaram a borda do gelo, ao longo da qual foram deslizando, a espera de uma aberta. Em frente do canal cortado pelo navio, enterraram os remos fundo e deslizaram pela água calma e morta. O grupo que esperava recebeu-os de braços abertos, ajudando-os a subir para a margem e transportando-lhes o barco atrás deles. No fundo deste havia dois sacos de correio, de cabedal, um par de cobertores, cafeteira, frigi­deira e um parco saco de víveres. Quanto aos homens, estavam tão enregelados e entorpecidos com o frio, que mal se tinham de pé. Dave Harney propôs que fossem beber uísque e queria arrastá-los imedia­tamente; mas um deles atardou-se o suficiente para um aperto de mãos enregelado com Jacob Welse.

- Ela vem aí - anunciou. - Passámos o barco dela há uma hora. Deve estar a contornar a curva, de um momento para o outro. Trago-lhe despachos, mas só irei ter consigo mais logo. Tenho de ir tomar qualquer coisa primeiro. - Ao voltar-se para ir com Harney, parou de repente. - Lá vem ela. Mesmo a passar o alcantil.

- Corram, rapazes, e vão tomar o seu uísque - aconselhou Harney a ele e ao imediato. - Digam­-lhes que é por minha conta, dose dupla, e desculpem não ir beber convosco porque tenho de ficar aqui.

O Klondike estava a lançar uma torrente espessa de gelo, parte sólido, parte mole, que arrastou o barco em direcção ao meio do Yukon. Eles podiam presenciar perfeitamente a luta, da margem-quatro homens de pé e impelindo o barco com varas por entre os pedaços de gelo dissonantes. Um fogão de Yukon a bordo lançava para o ar uma coluna de fumo azul; e, quando o barco se aproximou, distin­guiram uma mulher na popa a manobrar a comprida vara da direcção. A vista disto, acendeu-se um brilho no olhar de Jacob Welse. Era o primeiro presságio, e era bom, pensou. Ela continuava a ser uma Welse; corajosa e lutadora. Os anos de estudo não a haviam amolecido. Embora gozando os frutos da mudança de terra, não a receava; podia regressar alegre e naturalmente.

Assim meditava Jacob Welse, até o barco se aproximar, recoberto de gelo e danificado de encontro a borda da costa de gelo. O único homem branco a bordo saltou para fora, de cabo de atracação na mão, para o travar e guiar para o canal. Mas a crosta de gelo formara-se durante a noite, e a parte da frente cedeu sob ele, fazendo-o mergulhar na cor­rente. O nariz do barco desviou-se sob a pressão de um grande bloco de gelo, de modo que o homem emer­giu a popa. O braço da mulher estendeu-se num ápice sobre a borda, segurando-o pelos colarinhos. Simultaneamente incisiva e autoritária, a voz de Frona soou ordenando aos remadores índios que remassem para trás. Continuando a manter a cabeça do homem acima da água, atirou o corpo contra a vara de direcção e guiou a embarcação, de popa para a frente, para a abertura. Mais umas remadelas e ele varou na margem. Entregou os colarinhos do homem tiritante a Dave Harney, que o puxou para fora e o recambiou pelo caminho do correio.

Frona ergueu-se, o rosto, afogueado com o exer­cício. Jacob Welse hesitou. Embora estivesse a um passo da amurada, separava-os um abismo de três anos. A maturidade dos vinte anos somada a rapariga de dezassete fazia uma soma mais prodigiosa do que ele imaginara. Não sabia se havia de beijar aquela criatura jovem e radiosa, se havia de lhe dar a mão e ajudá-la a saltar para terra. Mas não houve embaraço aparente, porque ela saltou para o lado dele e caiu-lhe nos braços. Os que haviam ficado em cima afastaram o olhar até os dois subirem a margem de mãos dadas.

- Senhores, a minha filha! - No rosto de Jacob Welse espelhava-se um grande orgulho.

Frona abraçou-os a todos com um sorriso camarada, e cada um deles sentiu que, durante um instante, os olhos dela o haviam fitado a direito.

 

Capitulo VII

Escusado é dizer que Vance Corliss ansiava por tornar a encontrar a rapariga com quem comparti­lhara a barraca. Não se lembrara de trazer consigo uma máquina fotográfica, contudo, por um processo mais subtil, uma imagem radiosa ficara gravada algures nos seus tecidos cerebrais. Ficara-o num ápice. Uma mensagem em ondas de luz e cor, uma agitação e uma integração molecular, um certo enrugamento minúsculo, embora bem definido, num recesso do cérebro... e lá ficou ela, uma fotografia completa! O sol resplandecente no negro contras­tante, um vulto cinzento e esguio, radioso, sobres­saindo da margem onde a luz e a escuridão se fun­diam; um sorriso fresco, jovem, alegre numa chama de ouro ardente.

Era uma imagem que ele contemplava muitas ve­zes. Quanto mais o fazia, maior se tornava o seu desejo de tornar a ver Frona Welse. Antevia este aconteci­mento com uma emoção, com a exultação perfeita­mente de acordo com as leis gerais da vida. A rapa­riga surgira-lhe como qualquer coisa de novo, um tipo desconhecido, diferente de todas as mulheres que conhecera. Do fascinante ignoto, um par de olhos dourados sorriam para os seus, e uma mão, macia ao tacto mas firme, acenava-lhe. E da visão irradiava uma tentação que era como a tentação do pecado.

Vance Corliss não era um ingénuo, nem levara uma existência de anacoreta; mas a educação impri­mira a sua vida uma certa tendência para o purita­nismo. O despertar da inteligência e conhecimentos mais vastos haviam enfraquecido a influência inicial de uma mãe austera, mas não a haviam extirpado por completo. Estava lá, bem no fundo, desvanecida, mas constituindo ainda uma parte integrante do seu eu. Não se podia libertar dela. Distorcia, muito ligeiramente, os seus conceitos das coisas. Deformava as suas percepções e frequentemente, quando o sexo feminino estava em jogo, determinava as suas classi­ficações. Orgulhava-se da sua largueza de ideias quando afirmava haver três espécies de mulheres. A sua mãe só admitia duas. Mas ele ultrapassara-a. Era incontestável que havia três: - as boas, as más e as que eram em parte boas e em parte más. Que as últimas normalmente se tornavam más era sua convicção assente. Na sua própria natureza não era possível ser permanente uma tal condição. Era o estado intermédio, que marcava a passagem do excelente para o inferior, do melhor para o pior.

Tudo isto podia ser muito verdade, mesmo como ele o entendia; mas, com definições por premissas, as conclusões não podiam deixar de ser dogmáticas. Onde se encontravam o bem e o mal? Aí estava. Era o que sua mãe lhe segredava do túmulo. E não só a sua mãe, mas várias gerações convencionais até ao primeiro e vigoroso antepassado que primeiro se erguera do chão e olhara para baixo. Vance Corliss fora muitas vezes afastado da natureza, mas, embora sem dar por isso, um chamamento interior incitava-o a regressar para não ser destruído.

Não que classificasse Frona de acordo com as suas definições herdadas. Recusava-se a classificá-la fosse como fosse. Não o ousava. Preferia fazer o seu julgamento mais tarde, quando tivesse reunido mais informações... E era isso que o tentava, reunir mais informações, o grande ponto crítico em que a pureza estende as mãos sonhadoras para o estrume e se recusa a chamar-lhe estrume... até ficar maculada. Não! Vance Corliss não era um grosseirão. Como a pureza é apenas um termo relativo, ele não era puro. Se não havia porcaria por debaixo das suas unhas, não era por que as tivesse tratado diligentemente, mas porque não lhe acontecera encontrar nenhuma porcaria em que as sujasse. Não era bom por que tivesse escolhido sê-lo, por o mal lhe ser repelente, mas por que não tivera oportunidade de se tornar mau. Por outro lado, não se pode inferir disto que ele se tivesse tornado mau se a ocasião lhe fosse propícia.

Era um produto da vida isenta de dificuldades. Toda a sua vida a vivera numa casa confortável; as canalizações eram excelentes. O ar que respirara fora principalmente ozónio fabricado artificialmente. Haviam-no feito apanhar sol no tempo agradável, e abrigado em casa quando chovia. Quando chegara a idade de escolher, estava demasiado ocupado para se desviar do caminho direito, ao longo do qual sua mãe lhe ensinara a gatinhar e a dar os primeiros passos vacilantes e por onde ele agora caminhava firme, sem pensar no que o ladeava.

Não se pode esbanjar a vitalidade. Se for distendida numa coisa, não resta nenhuma para outra coisa. E assim acontecia com Vance Corliss. As lucubrações escolares e os exercícios saudáveis, durante o seu tempo de estudante, haviam consumido toda a energia normal extraída de uma dieta sadia e omnívora. Quando veio a descobrir uns restinhos de energia supérfluos, despendeu-os na sociedade de sua mãe e dos espíritos convencionais e chás afectados de que ela se rodeava. Resultado um jovem muito simpático que as mães das donzelas não precisavam de recear; um jovem vigoroso cuja robustez não fora estragada num viver desregrado; um jovem muito instruído, com um diploma de engenheiro de minas por Freiberg e outro de bacha­rel em artes por Yale; e, por último, um jovem muito egoísta e calmo.

Ora a sua virtude maior residia nisto : não crista­lizara no molde preparado pelos seus vários antepas­sados e para dentro do qual fora empurrado pelas mãos de sua mãe. Um atavismo qualquer actuara na sua formação, e ele retrocedera aquele avoengo que, vigoroso, se erguera. Mas este quinhão da sua herança estivera adormecido. O jovem permanecera simplesmente bem ajustado a um ambiente estável. Não precisara nunca de utilizar a adaptabilidade que possuía. Mas, quando quer que a precisasse, e sendo assim constituído, era manifesto que se adaptaria, se ajustaria a pressão não costumada de condições novas. A máxima da pedra que rola pode ser verda­deira; mas não obstante, no esquema da vida, a inap­tidão para se ficar fixo é uma qualidade por excelência. Embora ele o ignorasse, esta inaptidão era a virtude mais esplêndida de Vance Corliss.

 

Mas, voltando ao que se estava a dizer: ansiava com uma grande e sóbria alegria por encontrar Frona Welse e, entretanto, consultava com fre­quência o retrato luminoso que trazia consigo.

Embora atravessasse o Desfiladeiro e descesse os lagos e os rios sob o impulso de dinheiro (os sindi­catos londrinos nunca são mesquinhos nestas coisas), Frona chegou a Dawson quinze dias mais cedo do que ele. Enquanto que, pela parte dele, o dinheiro acabava por vencer os obstáculos, pela dela, o nome de Welse era um talismã maior que um tesouro. Depois de sua chegada, gastou um par de semanas para comprar uma cabana, mostrar as cartas de apresentação e instalar-se. Mas tudo acabou por ficar concluído; e assim, uma noite, depois de o rio ter gelado, ele dirigiu as suas mocassinas na direcção da casa de Jacob Welse. A Sr.a Schoville, mulher do comissário do ouro, dava-lhe a honra da sua companhia.

Corliss apetecia-lhe esfregar os olhos. Sistema de aquecimento no Klondike! Mas no instante a seguir tinha saído do átrio através das portadas pesadas e penetrava na sala de visitas. E que sala de visitas! As suas mocassinas de pele de alce enterra­vam-se profundamente na carpete espessa, e os seus olhos foram atraídos por um nascer-de-sol, na parede em frente. E havia mais quadros e objectos de bronze. Duas lareiras holandesas crepitavam ruidosamente com enormes cepos de abetos. Havia um piano, e estava alguém a cantar. Frona saltou da banqueta e adiantou-se, saudando-o com ambas as mãos esten­didas. Ele tinha pensado que a sua imagem plena de sol era perfeita, mas esta imagem nimbada pela luz do fogo, esta jovem criatura com o viço e o calor da vida esfuziante esquissavam-na por completo. Foi um momento estonteante quando ele lhe apertou ambas as mãos nas suas, um desses momentos em que um orgasmo incompreensível faz o sangue correr mais rápido e atordoa a razão. Embora as primeiras sílabas lhe ocorressem num murmúrio, a voz da Sr.a Schoville fê-lo recuperar a presença de espírito.

- Oh! Você conhecia-o!

- Sim, conhecemo-nos na estrada do Dyea; e quem se conhece na estrada do Dyea jamais se pode esquecer - respondeu Frona.

- Que romântico!

A mulher do comissário do ouro bateu as palmas. Embora gorda e quarentona e de temperamento fleumático, entre exclamações e palmas, a sua ani­mada existência era bastante explosiva. O marido afirmava secretamente que se o próprio Deus se dignasse aparecer-lhe cara a cara, ela bateria as mãos rechonchudas e exclamaria: «Que romântico!»

- Como foi isso? - prosseguiu ela. - Ele não a salvou de cima dum rochedo ou coisa no género, pois não? Diga, diga que sim! E nunca disse uma palavra sobre o assunto, Sr. Colliss. Conte-me! Estou morta por saber.

- Oh, nada disso - apressou-se ele a respon­der. - Nada de importância. Eu, isto é, nós...

Sentiu-se desfalecer quando Frona o interrompeu. Ninguém poderia adivinhar o que poderia dizer esta rapariga.

- Ele ofereceu-me a sua hospitalidade, e mais nada - disse. - E eu posso testemunhar a favor das suas batatas fritas; quanto ao café que faz, é excelente... quando se está esfomeado.

- Ingrata! - conseguiu articular. A seguir com­pôs um sorriso antes de ser apresentado a um desem­penado tenente da Polícia Montada que estava de pé diante da lareira a discutir o problema dos víveres com um homenzinho todo esmerado e muito pouco à vontade na sua camisa branca e colarinho engo­mado.

Graças ao lugar especial da sociedade em que por acaso nascera, Corliss movimentou-se a vontade, de grupo para grupo, pelo que foi muito invejado por Del Bishop, sentado muito hirto na primeira cadeira em que caíra e que esperava pacientemente por que saísse a primeira pessoa para poder saber como realizar a manobra. Mentalmente havia resol­vido a situação quase por completo, sabia quantos passos eram precisos para o levar até a porta, tinha a certeza de que tinha de se despedir de Frona, mas ignorava se deveria ou não apertar a mão a toda a gente. Aparecera apenas para dizer «Olá!» a Frona, segundo a sua própria expressão; e, sem o desejar, encontrara-se no meio de uma reunião.

Corliss, tendo terminado uma discussão com uma tal Miss Mortimer sobre a decadência dos simbolistas franceses, encontrou-se com Del Bishop. Mas o pros­pector de ouro reconheceu-o imediatamente, de o ter visto só daquela vez diante da porta da sua tenda no Acampamento Feliz. Estava-lhe imen­samente reconhecido pela hospitalidade nocturna que prodigalizara a Miss Frona, visto ele ter ficado retido no caminho; achava que qualquer favor feito a ela era um favor feito a si próprio; lembrar-se-ia deste, santo Deus, enquanto tivesse um bocado de cobertor com que se cobrisse. Esperava que não tivesse sido obrigado a pernoitar cá fora. Miss Frona dissera que tinham tido falta de roupa de cama, mas a noite não estivera fria (mais ventosa que fria), portanto supunha que não tinham passado muito frio. Tudo isto achou Corliss que era perigoso, e afas­tou-se a primeira oportunidade, deixando o prospec

tor de minas ansioso pela porta da rua.

Mas Dave Harney, que não viera por engano, evitou colar-se a primeira cadeira. Sendo um rei do Eldorado, tinha sentido ser sua obrigação assumir a posição na sociedade a que os seus vários milhões lhe davam direito; e embora durante toda a sua vida não estivesse habituado a outras amenidades sociais que não fossem o cordão para abrir o trinco e a panela comum, obtivera, com grande satisfação sua, êxitos na sociedade. Rápido a apanhar uma deixa, circulava com um aplomb que o seu vestuário surpreendente e o seu andar largo e bamboleante ainda aumentavam, e proferia frases rápidas e des­conexas fosse com quem fosse que encontrasse. Miss Mortimer, que falava um francês parisiense, atrapalhou-o com os seus simbolistas; mas ele reme­diou a situação com uma boa dose do abastardado dialecto dos voyageurs canadianos e deixou-a de boca aberta a meditar numa proposta para lhe vender vinte e cinco libras de açúcar, branco ou amarelo. Mas não foi ela só a favorecida, porque com toda a gente ele habilmente encaminhava a conversação para os víveres e em seguida punha a eterna proposta. «Açúcar ou tudo para o Diabo!»- concluía ele sempre alegremente, passando a outro.

Mas atingiu o apogeu do seu êxito social, ao pedir a Frona que tocasse a comovente cançoneta «Por Ti Deixei o Meu Feliz Lar». Isso era algo supe­rior as forças da rapariga, embora esta o fizesse sussurrar os primeiros compassos a modos de acom­panhamento. A voz dele era mais forte do que agradável. Del Bishop, descobrindo-se a si próprio finalmente, associou-se roucamente aos coros, o que o fez sentir-se melhor e despegar-se da cadeira; por isso, ao chegar a casa acordou a pontapé o seu cama­rada de tenda para lhe contar como se divertira em casa dos Welses.

A Sr.a Schoville ria-se mansamente, achava tudo tão sem paralelo e continuou a achá-lo umas quantas vezes quando o tenente da Polícia Montada mais um grupo de compatriotas cantaram, troando, o «Rule Britannia» e o «God Save the Queen», e os ameri­canos responderam com «O Meu País É Teu» e «John Brown». O enorme Alec Beaubien, o rei de Circle City, pediu a «Marselhesa», e o grupo rompeu a cantar «Vigília no Reno» a noite gélida.

- Não apareça em noites destas - segredou Frona a Corliss, a despedida. - Não trocámos três palavras, e eu sei que viremos a ser bons amigos. O Dave Harney conseguiu-lhe extorquir algum açúcar?

Riram-se ambos e Corliss foi para casa, sob a au­rora boreal, esforçando-se por reduzir as suas im­pressões a qualquer espécie de ordem.


Capitulo VIII

- E porque não hei-de ter orgulho na minha raça?

As faces de Frona estavam ruborizadas, os olhos, brilhantes. Tinham ambos estado a recordar a infância, e ela estivera a falar a Corliss sobre a mãe, de quem mal se recordava. Bela e de louros cabelos, tipicamente saxónica, era a recordação que guardara, em grande parte preenchida por informa­ções colhidas do pai e do velho Andy do entreposto de Dyea. A discussão girava em torno da raça em geral, e Frona, no calor do entusiasmo, dissera coisas que haviam impressionado o espírito mais conser­vador de Corliss, como perigosas e não baseadas sòlidamente nos factos. Este considerava-se demasiado grande para egoísmos de raça e preconceitos insula­res e achara despropositado rir-se das convicções imaturas de Frona.

- É uma característica comum a todos os povos - observou ele - considerarem-se raças superio­res... um egoísmo ingénuo e natural, muito sau­dável e muito bom, mas nem por isso menos mani­festamente falso. Os judeus consideravam-se o povo escolhido por Deus e continuam a considerar-se como tal...

- Por essa razão deixaram uma marca profunda nas páginas da História - interrompeu ela.

- Mas o tempo não provou a estabilidade dos seus conceitos. E tem também de considerar a outra face. Um povo superior tem de considerar todos os outros povos como inferiores. Isto diz-lhe respeito. Ser-se romano era mais do que ser-se rei, e quando os Romanos se encontraram com os seus antepassados selvagens nas florestas da Alemanha ergueram o sobrolho e disseram: «Um povo inferior, bárbaros».

- Mas nós estamos aqui, agora. Nós estamos, e os Romanos não. O tempo é a prova. Até agora passámos a prova; e os indícios são favoráveis a que continuaremos a passá-la. Somos os mais bem dotados.

- Egotismo.

- Mas espere. Ponha-o à prova.

Enquanto falava, estendeu a mão impulsiva­mente para a dele. Ao contacto, o coração dele deu um salto, o sangue correu-lhe mais rápido, e sentiu nas têmporas uma sensação de aperto. Ridículo mas maravilhoso, pensou. Por este preço era capaz de discutir com ela a noite inteira.

- A prova! - repetiu Frona, retirando a mão sem qualquer embaraço. - Somos uma raça activa, de lutadores, de conquistadores do mundo. Labuta­mos e lutamos, persistindo no trabalho e na luta, por mais desesperados que sejam. Além de termos per­sistência e resistência, somos feitos de uma massa que se adapta as mais diversas condições. O índio, o Negro ou o Mongol conquistarão algum dia o Teutão? De certo que não! O índio tem persistência, mas não flexibilidade. Se não se modifica, morre; e, se tenta modificar-se, morre igualmente. O Negro tem adaptabilidade, mas é servil e tem de ser man­dado. Quanto aos Chineses, são estáveis. Tudo o que as outras raças não são, são-no os Anglo-Saxões, ou melhor, os Teutões. Tudo o que as outras raças não têm, têm-no os Teutões. Qual é a raça que se erguerá para nos subjugar?

- Ah, esquece-se dos Eslavos - sugeriu Corliss maliciosamente.

- Os Eslavos! - o rosto ensombrou-se-lhe. - É verdade, os Eslavos! Os únicos adolescentes neste mundo de homens, jovens e anciãos. Mas isso só no futuro; e então o futuro o dirá. Entretanto nós preparamo-nos. Talvez que nós levemos um impulso tão grande que os impeçamos de crescer. Não sabe que, por terem mais experiência de química, por saberem fabricar a pólvora, os Espanhóis venceram os Astecas? Não poderemos nós, que nos estamos a apoderar do mundo e das suas riquezas e a monopolizar todos os seus conhecimentos, não poderemos nós abafá-los, antes que eles criem forças nas pernas?

Vance Corliss abanou a cabeça sem se compro­meter e riu-se.

- Oh, bem sei que me torno absurda e me entu­siasmo! -exclamou a rapariga. - Mas, no fim de contas, uma das razões por que nós somos o sal da terra é por termos a coragem de o proclamar.

- E tenho a certeza de que o seu entusiasmo é contagioso - retorquiu o rapaz. - Ora veja, até eu me começo a entusiasmar. Não somos o povo escolhido de Deus, mas o escolhido da Natureza, nós os Anglos e os Saxões e os Normandos e os Vikings, e a Terra é a nossa herança. Ergamo-nos e marchemos em frente!

- Agora está a troçar de mim; além disso lá marchámos em frente. Porque é que você veio para o Norte, se não foi para deitar mão a herança da raça?

Frona voltou a cabeça, ao som de passos que se aproximavam, e exclamou, a guisa de saudação:

- Apelo para si, capitão Alexander! Intimo-o a que seja testemunha.

O capitão da polícia sorriu, no seu jeito austera­mente jovial, ao apertar a mão a Frona e a Corliss.

- Ser testemunha? - perguntou. - Ah, sim!

“Sede testemunhas, ó meus camaradas, do grupo que nós éramos... Servos do remo, mas senhores do mar!”

Citou os versos com uma solenidade selvagem, exultando através da sua voz profunda. O a-propósito da citação arrebatou Frona, que imediatamente lhe prendeu as mãos nas suas. Corliss sentiu um estre­mecimento interior diante do gesto. Era desagra­dável. Não gostava de a ver usar tão prodigamente aquelas suas mãos quentes e fortes. Favoreceria assim todos os homens que a encantavam, com uma palavra ou com um gesto? Não se importava que todos os dedos dela apertassem os seus, mas o gesto, não sabia porquê, parecia-lhe licencioso quando partilhado com a pessoa que chegasse a seguir. Enquanto pensava isto, Frona explicou o tema que estava a ser discutido, e o capitão Alexandre estava a fazer declarações:

- Pouca coisa sei sobre Eslavos e outros, excepto que são bons trabalhadores e fortes; mas o que sei é que o homem branco é a raça maior e melhor do mundo. Vejam os índios, por exemplo. Aparece o homem branco e vence-o em todos os seus jogos, trabalha mais do que ele, pesca melhor, caça melhor. Desde a noite dos tempos que os índios do Alasca fazem carregamentos as costas. Mas os pesquisa­dores de ouro, assim que aprenderam as manhas do negócio, transportaram cargas maiores e mais longe do que os índios. Então, em Maio passado, no dia do aniversário da rainha, realizámos desportos no rio. Nas corridas de canoa com um, dois, três, quatro ou cinco homens, batemos os índios sem apelo. No entanto eles já nasceram a saber remar, e a maior parte de nós nunca tinha visto uma canoa até ser homem.

- Mas porque é isso assim? - perguntou Corliss.

- Porque é, não sei. Só sei que é assim. Limito-me a testemunhar o facto. Sei que nós fazemos o que eles não sabem fazer, e que o que eles sabem fazemo-lo melhor.

Frona acenava com a cabeça, triunfante, para Corliss.

- Vá, reconheça a sua derrota, para podermos ir jantar. Derrota temporária, pelo menos. Os factos concretos dos remos e das cargas as costas destroem por completo os seus dogmas. Ah, já sabia! Mais tempo? Todo quanto quiser. Mas, entremos. Vere­mos o que o meu pai pensa sobre o assunto... e o Sr. Kellar. Um colóquio sobre a supremacia anglo-saxónica.

 

O frio e a irritabilidade repelem-se mutuamente. As regiões do Norte dão ao sangue uma viveza e um bem-estar impossíveis de obter em climas mais quen­tes. E assim também, naturalmente, a amizade que nasceu entre Corliss e Frona nada tinha de lân­guido. Encontravam-se muitas vezes debaixo do tecto do pai dela e iam a muitos lados juntos. Ambos sentiam uma agradável atracção um pelo outro e uma satisfação que as coisas em que não estavam de acordo não podiam estragar. Frona gostava do homem por ele ser um homem. Nos seus arroubos mais exaltados não conseguia nunca imaginar ligar-se a nenhum homem, por mais nobre do ponto de vista espiritual, que fisicamente não fosse um homem. Era um prazer para ela e uma alegria contemplar os machos fortes da sua espécie, com corpos belos, a semelhança de Deus, e músculos protuberantes com a promessa de acção e de tra­balho. O Homem, para ela, era proeminentemente um lutador. Acreditava na selecção natural e na selecção sexual e tinha a certeza de que, se o Homem obtivera faculdades e funções, devia usá-las, e elas não podiam senão visar o seu bem. O mesmo acon­tecia com os instintos. Se se sentia atraída para alguma pessoa ou coisa, é porque isso era bom para ela, bom para ela própria. Se se sentia impelida a apreciar um corpo bem conformado, uns músculos bem proporcionados, para quê constranger-se? Por­que não haveria de amar o corpo, e sem vergonha? A história da raça e de todas as raças aprovava a sua escolha. Ao longo de todos os tempos, os machos fracos e efeminados haviam desaparecido da face da Terra. Só os fortes podiam herdar a Terra. Ela nas­cera dos fortes e escolhera decidir a sua sorte com os fortes.

Contudo, seria a última pessoa a ficar surda e cega as coisas do espírito. Mas as coisas do espírito, exigia que fossem igualmente fortes. Nem hesitações, nem expressões balbuciantes, delongas trémulas ou queixumes abafados! A mente e a alma deviam ser tão rápidas, eficientes e seguras quanto o corpo. Nem o espírito fora criado apenas para sonhar a imortalidade. Tal como a carne, devia esforçar-se e labutar. Tinha de ser activo e também inactivo. Era capaz de compreender que um ser débil can­tasse docemente e até magnificamente, e era mesmo capaz de o amar pela doçura e pela magnificência; mas o seu sentimento seria mais completo se ele fosse igualmente forte de corpo. Estava convencida de ser justa. Dava a carne o que lhe era devido, e ao espírito o que lhe era devido; mas tinha, além disso, as suas preferências, o seu próprio ideal indi­vidual. Gostava de ver os dois equiparados. O vati­cínio e a dispepsia não a impressionavam como uma combinação feliz. Um selvagem magnífico e um poeta lânguido! Podia admirar um pelos seus músculos e o outro pelas suas canções; mas teria preferido que fossem um só, de início.

Quanto a Vance Corliss, primeiro e mais impor­tante de tudo, havia aquela afinidade fisiológica entre eles, que fazia com que o contacto da mão dele fosse para ela um prazer. Muito embora as almas possam voar juntas, se o corpo não suporta o corpo, a felicidade é construída na areia, e a estrutura ficará sempre instável e periclitante. Segundo, Corliss tinha a potência física do herói sem ter a vulgaridade do bruto. O seu desenvolvimento muscular era mais qualitativo do que quantitativo e é o desenvolvimento qualitativo que dá a beleza de forma. Um gigante não precisa de ser proporcionado; nem um atleta precisa de ser simétrico para ser sólido. E, finalmente - não menos necessário, mas por último - Vance Corliss não era espiritualmente um morto nem um decadente. Dava-lhe uma impres­são de frescura, de sanidade, de fortaleza, a impres­são de se ter erguido da terra mas sem desprezar essa terra. Naturalmente que ela não pensava nada disto a não ser por um processo subconsciente. As suas conclusões eram sentimentos, não pensamentos.

Embora discutissem e discordassem sobre inúme­ras coisas, bem no fundo, subjacente a tudo, havia uma unidade permanente. Ela gostava dele por uma certa sobriedade austera que ele tinha, pela sua digni­dade de humor. A seriedade e os gracejos não eram incompatíveis. Gostava dele pela sua galanteria mais eficaz do que exibicionista. Gostava da inten­ção da oferta que ele fizera no Acampamento Feliz quando lhe propusera arranjar-lhe um guia índio e o dinheiro da passagem de regresso aos Estados Unidos. Sabia agir, além de falar. Gos­tava dele pelas suas perspectivas, pela sua libera­lidade inata, que ela sentia existir nele, de qualquer modo, não obstante ele, muitas vezes, ser pouco expansivo. Gostava de Vance pelo seu espírito. Embora um tanto académico, um tanto contaminado por um escolasticismo recente, era no entanto um espírito que lhe permitia ser classificado entre os «intelec­tuais». Ele era capaz de divorciar o sentimento e a emoção da razão. Uma vez certo de ter integrado todos os factores, não se podia enganar. E era aí que Frona lhe encontrava o defeito principal: - a sua estreiteza, que prevenia todos os factores, a sua estreiteza que mascarava a face que ela sabia ser a face real dele. Mas a jovem sabia não ser isso um defeito irremediável, e que a nova vida que Vance estava a levar era muito capaz de o corrigir. Estava repleto de cultura, o que precisava era de mais uns quantos factos da vida.

Frona gostava dele por ele todo, o que era comple­tamente diferente de juntar as partes que o com­punham. Porque não é nenhum milagre que duas coisas, juntas uma a outra, produzam não só a soma das duas, mas uma terceira coisa que não existe em nenhuma delas. E era assim também com ele. Frona gostava de Vance por ele próprio, por aquela qualquer coisa que recusava separar-se como uma parte, ou uma súmula de partes, por aquela qualquer coisa que é a pedra angular da Fé e que sempre tem confundido a Filosofia e a Ciência. Além disso gostar, para Frona Welse, não significava amar.

Em primeiro lugar e acima de tudo, Vance Cor­liss fora atraído para Frona Welse pela íntima ânsia de regressar à terra. Nele os elementos estavam tão misturados que era impossível as mulheres, há muito afastadas, acharem favor aos seus olhos. Mulheres assim tinha-as encontrado constantemente, mas nem uma só lhe arrancara um bater de coração supér­fluo. Embora tivesse havido nele o conhecimento instintivo cada vez mais agudo de uma falta de uni­dade - a falta de unidade que deve preceder sempre o amor do homem e da mulher -, nem uma só das filhas de Eva que ele tinha conhecido surgira irresistivelmente a preencher o vazio. Quando encon­trou Frona, o vazio deixara de o ser, já completa­mente resolvido. Mas não o reconheceu, tomou-o por uma mera atracção pelo que era novo e desa­costumado.

Muitos homens de nascimento e educação supe­riores capitularam a este anseio por regressar. Des­mentindo a sua própria sanidade e estabilidade moral, muitos desses homens casaram com camponesas e cria­das de bar. Os que foram tocados pelo infortúnio tive­ram propensão a desconfiar do impulso a que obedeciam, esquecendo que a natureza faz ou esmaga o indivíduo por amor, sempre, da espécie. Porque em todos os casos de regresso, o impulso era bom - só que o tempo e o espaço interferiram, e a proximi­dade determinou se o objecto de escolha seria uma criadinha ou uma camponesa.

 

Felizmente para Vance Corliss, o tempo e o espaço foram propícios, e em Frona ele encontrou a cultura sem a qual não poderia passar, e o travo violento a terra de que ele precisava. Já tinha conhecido antes jovens com conhecimentos cientí­ficos superficiais, mas Frona tinha mais do que conhecimentos superficiais. Além disso dava vida nova aos factos velhos, e as suas interpretações das coisas vulgares eram coerentes, vigorosas e dife­rentes. Embora o seu conservantismo adquirido ficasse alarmado e gritasse perigo, não podia ficar insensível ao encanto do seu filosofar, ao passo que os seus dotes escolares eram amplamente redi­midos pelo seu entusiasmo. Embora ele não pudesse concordar com o que ela sustentava apaixonada­mente, reconhecia, no entanto, que a paixão da sinceridade e do entusiasmo era boa.

Mas o defeito principal de Frona, aos olhos dele, era o seu inconvencionalismo. A mulher era para ele algo de tão indizivelmente sagrado, que não podia suportar ver qualquer mulher decente aventurar-se por terreno precário. Qualquer mulher boa que assim se aventurara, ultrapassando os limites e as fronteiras do sexo e da posição, fazia-o, supunha ele, por temeridade. E a temeridade desta espécie era semelhante a... bem, não podia empregar o termo em relação a Frona, embora esta o ferisse muitas vezes com os seus gestos insensatos. No entanto, só sentia esses ferimentos quando longe dela. Quando estava com ela, olhando-a nos olhos, que sempre lhe retribuíam o olhar, ou quando a cumprimentá-la ou a saudá-la lhe apertava a mão, cuja pressão era sempre honesta, parecia-lhe certo não haver na jovem senão bondade e verdade.

E então gostava dela de muitas maneiras dife­rentes, por muitas razões diferentes. Pelos seus impul­sos e pelas suas paixões, que eram sempre elevadas. E já, ao respirar o ar da terra do Norte, começara a gostar dela por aquela camaradagem que ao prin­cipio o chocara. Havia mais coisas de que acabara por gostar, como a sua falta de afectação, por exem­plo, que ele de início confundira com falta de modés­tia. E fora apenas no dia anterior aquele em que fora arrastado, sem o pensar, a uma discussão com a rapariga acerca de Camille. Ela tinha visto a Bernhardt e comprazia-se amorosamente a recordá-la. Ao regressar a casa mais tarde, uma dor surda lhe rota o coração, esforçando-se por reconciliar Frona com o ideal que lhe fora inculcado por sua mãe, de que a inocência era um outro nome da ignorância. Não obstante, no dia seguinte, tinha-o conseguido, libertando-se um pouco mais da influência da mãe.

Gostava do reflexo vermelho dos cabelos de Frona, ao sol, do seu brilho dourado a luz do fogo, da sua indocilidade e da sua majestade. Gostava dos pés dela, esmeradamente calçados, e das pernas com boti­nas cinzentas, agora infelizmente escondidas sob as compridas saias de Dawson. Gostava dela pela força da sua esbelteza; e de caminhar com ela, acertando o passo e o caminhar pelo dele, ou simplesmente observando-a a atravessar uma sala ou a descer uma rua: era um prazer. A vida e a alegria de viver transbordavam-lhe do sangue, preenchendo e arre­dondando cada um dos músculos perfeitos e das doces curvas. E Vance gostava de tudo isso. Gostava espe­cialmente da protuberância do antebraço dela, que se erguia firme, forte e atormentador e logo pro­curava refúgio sob a manga solta.

A coordenação da beleza física e espiritual é muito forte nos homens normais, e assim acontecia com Vance Corliss. Que ele gostasse de uma, não era razão para não apreciar a outra. Gostava de Frona por ambas, e por ela própria também. E gos­tar, para ele, embora o ignorasse, era amar.


Capitulo IX

Vance Corliss continuou a adaptar-se bastante rapidamente a vida do Norte e descobriu que muitas das adaptações se processavam com facilidade. Enquanto que ao seu vocabulário fosse estranha a ira sagrada, habituou-se a linguagem forte por parte dos outros homens, mesmo na mais cordial das conversas. Carthey, um texano de baixa estatura que trabalhou para ele durante certo tempo, come­çava e terminava frase sim, frase não, em média, com a expletiva branda: «Raios!» Era igualmente a sua maneira invariável de exprimir surpresa, desi­lusão, consternação ou qualquer outra das restantes emoções súbitas. Pela acentuação e entonação, fazia a imprecação multiforme desempenhar todas as funções do discurso vulgar. Ao princípio era uma fonte constante de irritação e aborrecimento para Corliss; mas, antes de pouco tempo, chegou não só a tolerá-la, como a gostar dela e a esperá-la com avidez. Uma vez, o cão de Carthey ficou sem uma orelha, numa contenda impetuosa com um cão da bafa do Hudson, e, quando o rapaz se debruçou sobre o animal e descobriu a falta dela, a ternura mesclada de compaixão do «Raios!» que lhe saiu dos lábios foi uma revelação para Corliss. Nem tudo estava perdido, concluiu sensatamente e, tal como Jacob Welse anteriormente, reviu de acordo com isso a sua filosofia da vida.

Aqui também havia duas faces para a vida de sociedade en Dawson. No quartel, em casa de Welse e em mais uns quantos outros lugares, todos os homens de posição eram recebidos e acolhidos pelas mulheres de posição idêntica. Havia chás, jantares, bailes, reuniões de caridade e outras coisas habi­tuais; todas elas, no entanto, não conseguiam satis­fazer por completo os homens. No centro da cidade havia uma outra face totalmente diferente, se bem que igualmente popular. Como a região era ainda muito jovem para a vida de clubes, a parte masculina da comunidade expressava a sua masculinidade reunin­do-se nos bares, sendo os sacerdotes e os missionários a única excepção a este modo de expressão. Reuniões comerciais e negócios eram feitos e consumados nos bares, empresas projectadas, trabalhos combinados, as últimas notícias discutidas, e era mantida uma boa camaradagem geral. Ali todas as classes se acoto­velavam, e reis e condutores de trenós, veteranos e chechaquos encontravam-se nivelados. E acontecia, talvez por as serrações e o espaço dentro das casas serem escassos, que os bares acomodavam as mesas de jogo e os estrados de dança espelhantes. E aqui, porque precisava de se curvar aos hábitos, a adapta­ção de Corliss prosseguiu com rapidez. Tal como Carthey, que o apreciava, dizia para consigo «O melhor de tudo é que ele gosta disto, como um raio, raios!».

Mas todas as adaptações têm os seus períodos dolorosos; enquanto que a modificação geral de Corliss se processava suavemente, no caso parti­cular de Frona era diferente. Ela tinha um código próprio, absolutamente diferente do da comunidade, e talvez acreditasse que a mulher podia fazer coisas com as quais até os frequentadores masculinos dos bares ficariam chocados. Por causa disso, ela e Corliss tiveram a sua primeira desavença desagra­dável.

Frona gostava de correr com os cães, ao frio cortante, as faces incendiadas, o sangue a pulsar, o corpo inclinado para a frente e os membros erguen­do-se e baixando-se incessantemente, a compasso. Num dia de Novembro, com a primeira vaga de frio e o termómetro frigidamente a marcar sessenta e cinco graus abaixo de zero, a rapariga mandou tirar o trenó, ajaezou a parelha de cães e voou pela trilha do rio abaixo. Assim que deixou a cidade, saltou fora e correu. Deste modo, ora correndo, ora desli­zando de trenó, atravessou a aldeia índia abaixo da costa íngreme, fez um círculo de oito milhas até ao Córrego do Esconderijo do Alce, atravessou o rio pelo gelo e, algumas horas mais tarde, trepava, voando, a margem oeste do Yukon, do outro lado da cidade. Era sua intenção abrir caminho e regres­sar pela trilha dos trenós de madeira, que atraves­sava por ali, mas uma milha antes enterrou-se na neve mole e teve de pôr os cães exaustos a passo.

Ao longo da beira do rio e por sob a carranca dos rochedos salientes, dirigiu ela o caminho que estava a abrir. De vez em quando fazia desvios para evitar os taludes proeminentes, de outras vezes seguia o gelo contra as paredes escarpadas, contornando-as amar­rada às curvas abruptas. E assim, a frente dos cães, deu de súbito com uma mulher que estava sentada na neve e contemplava do outro lado do rio Dawson, sob um tecto de fumo. Estivera a chorar, e isto foi o suficiente para impedir que o exame de Frona fosse mais além. Uma lágrima, transformada num gló­bulo de cristal, estava pousada na sua face, e os olhos estavam embaciados e húmidos; era a expressão da angústia sem esperança, insondável.

- Oh! - exclamou Frona, detendo os cães e aproximando-se dela. - Está ferida? Posso ajudá-la? - perguntou, embora a desconhecida abanasse a cabeça. - Mas não deve estar aí sentada. Estão quase setenta graus negativos, e vai ficar enregelada em alguns minutos. Já tem as faces geladas. - Esfre­gou as partes atingidas, com uma luva coberta de neve, e depois ficou a observar o rubor quente que reaparecia.

- Queira desculpar - a mulher levantou-se um tanto constrangida. - Agradeço-lhe, mas estou bem agasalhada, bem vê. - Aconchegou a capa de peles mais a si com um gesto friorento - Sentei-me só por um instante.

Frona reparou que ela era muito bela, e os seus olhos de mulher percorreram-na, notando as peles esplêndidas, o corte do vestido e o bordado das mocassinas, que espreitavam por baixo da saia. Em vista de tudo isto e de o facto do rosto lhe não ser familiar, sentiu um desejo instintivo de recuar.

- Não me magoei - continuou a mulher. - Apeteceu-me, apenas, contemplar a brancura melan­cólica e imensa.

- Sim - retorquiu Frona, dominando-se. - Compreendo. Esta paisagem deve ter muito de triste, mas a mim nunca me impressiona dessa maneira. A sua melancólica severidade agradam-me, mas a tristeza não.

- Isso é porque as linhas das nossas vidas foram traçadas em lugares diferentes - sugeriu a outra, meditativamente. - Não é o que a paisagem é, mas aquilo que nós somos. Se nós não existíssemos, a paisagem continuaria, mas sem significado humano. Somos nós que a vestimos.

- A verdade está dentro de nós, não vem / Das coisas exteriores, seja o que for em que acredi­temos.

O olhar de Frona iluminou-se, e a mulher com­pletou a passagem

- Há um âmago interior em todos nós, / Onde a verdade plena se acoita; e em redor, - e... e... como é o resto? Não me lembro. - ...parede sobre parede, a carne densa encurrala-a lá dentro...

 

A mulher calou-se abruptamente, a voz ressoando num riso argentino com um certo timbre de estouvamento amargo que fez Frona estremecer interior­mente. Mexeu-se, como se fosse voltar para junto dos cães, mas a mão da mulher estendeu-se num gesto familiar - gémeo do de Frona - que imedia­tamente lhe tocou o coração.

- Fique um bocadinho - disse com um tom de súplica nas palavras - e converse um pouco comigo. Há tanto tempo que não encontrava uma mulher - calou-se à procura do nome - que soubesse recitar o Paracelsus. Você é... eu conheço-a, sabe... você é a filha de Jacob Welse, Frona Welse, creio.

Frona confirmou a sua identidade, hesitou e olhou para a mulher com secreta atenção. Sentia uma grande e desculpável curiosidade, um desejo de mais completos conhecimentos. Esta criatura, tão igual e tão completa; velha como a raça mais velha, e jovem como o mais rosado dos recém­-nascidos; arrastada para tão longe quanto as paixões dos homens, e eterna como a própria huma­nidade... onde é que eram diferentes esta mulher e ela? Os seus cinco sentidos diziam-lhe que não; por todas as leis da vida não o eram; apenas, apenas pelas linhas traçadas inflexivelmente da casta social e da sensatez social é que não eram iguais. Assim pensava ela, mesmo enquanto, durante um momento perscrutador, estudou o rosto da outra. E sentiu pela situação um horror crescente, como o que se sente quando o véu é arredado e se contempla o carácter misterioso da Divindade. Recordou «tem os pés assentes no Inferno, a sua casa é o cami­nho para o túmulo, afundando-se na câmara da morte», e simultaneamente assaltava-a a visão muito nítida do gesto familiar com que a mão da mulher se estendera num apelo mudo, e desviou o olhar para a imensidão branca e monótona; também para ela o dia encheu-se de tristeza.

Teve um estremecimento involuntário, seminer­voso, muito embora dissesse com bastante natura­lidade:

- Venha, continuemos a caminhar para pôr o sangue a circular de novo. Não pensava que estivesse tanto frio, até ter ficado parada. - Voltando-se para os cães: - Mush! King! Ei, Sandy! Mush! - E de  novo para a mulher: - Estou completamente gelada e, quanto a si, deve estar...

- Muito quentinha. Você tem andado a correr e tem a roupa húmida em cima do corpo, ao passo que eu mantive apenas a circulação necessária e nada mais. Vi-a quando saltou do trenó, ao pé do hospital, e se sumiu rio abaixo, qual Diana da neve. Como a invejei! Isso deve dar-lhe grande prazer.

- Oh, pois dá - respondeu Frona simples­mente. - Fui criada com os cães.

- Lembra os Gregos.

Frona não replicou, e continuaram a caminhar em silêncio. Mas Frona desejava, embora não ousasse tentar, dar livre curso à sua língua e conseguir da experiência amarga da outra, para sua própria tranquilidade de espírito, as generalizações ricas que aquela mulher devia possuir. Uma onda de piedade e de mágoa avassalou-a, sentiu-se contra­feita, porque não sabia que dizer nem como exprimir o que lhe ia no coração, E, quando a outra começou a falar, sentiu um grande alívio.

- Fale-me - pediu a mulher, meio ávida, meio imperiosa-, fale-me de si. Está há pouco tempo aqui no interior. Onde esteve antes de vir para cá? Conte-me.

A dificuldade ficou resolvida, de certo modo. Frona continuou a falar sobre si própria, com uma inocência juvenil bem simulada, como se não conhe­cesse a outra ou compreendesse o seu mal dissimulado anseio por aquilo que não podia ter mas que Frona possuía.

- Lá está o caminho que tentava encon­trar. - Tinham contornado os últimos rochedos, e a companheira de Frona apontava para o sítio onde as rochas recuavam e se encolhiam num desfiladeiro de onde os trenós carregavam a lenha para a cidade, através do rio. - Deixo-a aqui - con­cluiu.

- Mas não volta para Dawson? - perguntou Frona. - Está a fazer-se tarde, e é melhor não se demorar.

- Não... eu...

A hesitação dolorosa da outra fez compreender a Frona o seu próprio estouvamento. Mas tinha dado um passo e não podia voltar atrás.

- Regressaremos juntas - disse corajosamente e revelando candidamente estar a par da identidade da outra. - Não me importo.

Foi então que o rubor alastrou pelas faces geladas da mulher, e a sua mão se estendeu para a rapariga, no gesto tão seu conhecido.

- Não, não, peço-lhe - gaguejou - Peço-lhe... Eu... eu prefiro continuar o meu passeio até um pouco mais adiante. Olhe! Vem aí alguém agora!

Tinham chegado entretanto ao carreiro da flo­resta, e as faces de Frona ruborizaram-se, como as da outra já se tinham ruborizado. Um trenó ligeiro, com os cães a trote, vinha a sair do desfiladeiro mesmo em direcção a elas. Vinha um homem com a matilha e acenou a mão para as duas mulheres.

- Vance! - exclamou Frona, quando ele dirigiu os cães para a neve e fez parar o trenó. - Que anda a fazer por aqui? O sindicato também estará dis­posto a monopolizar a lenha?

- Não. Não somos tão maus como isso. - O rosto dele era todo sorrisos de felicidade pelo encontro, quando lhe apertou a mão. - Mas o Carthey vai-me deixar... vai fazer prospecções para os lados do Pólo Norte, creio... e vim ver se o Del Bishop me servirá.

Voltou a cabeça para relancear interrogativa­mente a companheira, e Frona viu o sorriso desvane­cer-se-lhe do rosto e a cólera substituí-lo. Frona estava incomodamente consciente de não poder dominar a situação e, embora algures, no seu íntimo, ardesse a revolta pela crueldade e injustiça dela, pôde apenas observar o culminar rápido da pequena tragédia. A mulher sustentou-lhe o olhar, meio encolhida, como receando uma pancada, e com uma expressão de doçura que implorava piedade. Mas Vance olhou-a, longa e friamente; e deliberadamente voltou-lhe as costas. Quando ele o fez, Frona viu o rosto da mulher tornar-se cinzento e cansado, ouviu o riso duro e estouvado soar com um som desagradável e vislumbrou um diabinho mordaz a espreitar-lhe no olhar. Era evidente que o mesmo diabinho mordaz lhe palpitava violento na língua. Mas aconteceu que nesse mesmo instante a mulher olhou para Frona, e então toda a expressão se lhe apagou do rosto, excepto um cansaço infinito. Sorriu, saudosa, para a rapariga e, sem uma palavra, voltou-se e desceu pelo caminho.

Sem uma palavra, Frona saltou para o trenó e partiu. O caminho era largo, por isso Corliss pôs os seus cães ao lado dos dela. A revolta latente estoirou. Frona pareceu adquirir um pouco do arrojo da mulher.

- Seu bruto!

As palavras saíram-lhe dos lábios, ríspidas, níti­das, cortando o silêncio como o silvo dum chicote. O inesperado e a violência espantaram Corliss. Não sabia que fazer ou dizer.

- Oh, que cobarde! Cobarde!

- Frona! Escute...

Mas ela interrompeu-o.

- Não. Não diga nada. Não pode ter nada para dizer. Procedeu abominavelmente. Estou desiludida consigo. É horrível! Horrível!

- Sim, foi horrível... horrível que ela passeasse consigo, falasse consigo, fosse vista consigo.

- Antes que o Sol exclua alguém, eu nunca excluirei esse alguém - ripostou-lhe ela.

- Mas não é decente...

- Decente! - Voltou-se contra o rapaz e deu livre curso a sua cólera. - Se ela não é decente, é-o você? Pode atirar a primeira pedra com esse seu ar de santidade fingida?

- Não me fale dessa maneira. Não lho admito.

Prendeu-lhe o trenó. Mesmo no meio da sua cólera, Frona notou-o com um pequeno estremeci­mento de prazer.

- Não falo? Cobarde!

Vance avançou como se lhe fosse deitar as mãos. Frona levantou o chicote para bater. Mas ele não se esquivou; o seu rosto pálido esperou calmamente ser atingido pela pancada. Então ela desviou a pancada, e o comprido chicote sibilou e foi cair no meio dos cães. Brandindo o chicote com vigor, ergueu-se de joelhos no trenó e incitou furiosamente os animais. Os seus eram melhores, e ela distanciou-se rapidamente de Corliss. Queria fugir, não tanto dele mas de si própria, e incitava os cães a correr mais e mais depressa. Seguiu a grande velocidade pela margem íngreme do rio e atravessou num turbilhão a cidade, até casa. Nunca na sua vida estivera naquele estado, nunca sentira tão tremenda ira. E não só sentia já vergonha, como susto e medo de si própria.


Capitulo X

Na manhã seguinte, Corliss foi arrancado tarde da cama por Bash, um dos índios de Jacob Welse. Era portador de um bilhete breve de Frona, que continha um pedido para que o engenheiro de minas a fosse ver, assim que pudesse. Era tudo quanto dizia. Vance meditou longamente acerca disso. Que lhe quereria ela dizer? Era-lhe ainda tão des­conhecida... e nunca tanto como agora a luz dos acontecimentos do dia anterior. Não conseguia adi­vinhar. Quereria ela despedi-lo, numa base defini­tiva e inequívoca? Aproveitar-se do seu sexo e humilhá-lo ainda mais? Dizer-lhe o que pensava dele, em termos calmamente calculados e friamente pesados? Ou estaria a tentar, arrependida, emendar a dureza imerecida com que o tratara? Não havia nem arrependimento nem cólera no bilhete, nem indício algum: nada, a não ser um desejo cerimo­niosamente expresso de o ver.

Foi portanto num estado de espírito bastante inquieto que a foi visitar, pelo fim da manhã. Não ia com um ar cheio de dignidade nem o contrá­rio, sendo a sua atitude estritamente reservada, aguardando o momento em que ela revelaria a sua. Mas sem rodeios, naquela sua maneira que ele já começara a admirar, Frona mostrou imediatamente as suas intenções e veio francamente ao encontro dele. Logo que lhe viu o rosto, logo que lhe tocou a mão, antes que ela pronunciasse uma palavra, compreen­deu que tudo estava bem.

- Estou contente por ter vindo - começou. - Não conseguia ficar em paz comigo própria, até que o tivesse visto e lhe dissesse que lamento o que se passou ontem e como estou profundamente enver­gonhada...

- Pronto, pronto. Não teve assim tanta impor­tância. - Estavam ainda de pé, e ele aproximou-se mais um passo dela. - Asseguro-lhe que sei com­preender o seu ponto de vista; se bem que do ponto de vista teórico fosse a conduta mais nobre, digna dos mais altos elogios, no entanto, com toda a fran­queza, há muita coisa...

- Sim?

- Há muita coisa a deplorar do ponto de vista social. E infelizmente não podemos ignorar o ponto de vista social. Mas, falando só por mim, você não fez nada de que se deva arrepender ou sentir ver­gonha.

- E muito amável da sua parte - exclamou a jovem graciosamente. - Simplesmente não é verdade, e você sabe-o muito bem. Sabe muito bem que a sua conduta foi irrepreensível; sabe muito bem que o magoei, que o insultei; sabe muito bem que me portei como uma regateira e sabe muito bem que o choquei...

- Não! Não! - Levantou as mãos, como que para aparar os golpes que ela vibrava em si própria.

- Mas sim, sim! E tenho mais que razão para estar envergonhada. Só tenho isto a dizer em minha defesa: a mulher comoveu-me profundamente... tanto que quase chorei. Então apareceu você em cena... bem sabe o que fez... a compaixão por ela deu origem a uma indignação contra si e... bom, fiquei num estado de nervos como nunca me tinha acontecido na vida. Foi histeria, suponho. Seja como for, não estava em mim.

- Nenhum de nós o estava.

- Não está a ser verdadeiro. Eu procedi mal, mas você estava calmo, tanto como agora. Mas sente-se. Estamos para aqui de pé, como se você estivesse pronto a fugir ao primeiro sinal de outra explosão.

- Não é assim tão terrível! - gracejou Vance, puxando habilmente a cadeira, de modo que a luz incidisse no rosto de Frona.

- Ou antes, você não é nada cobarde. Devo ter sido terrível ontem. Eu... eu quase que lhe bati ontem. E você foi muito corajoso, quando o chicote estava sobre si. Nem sequer tentou levantar a mão para se proteger.

- Tenho notado que os cães sobre os quais o seu chicote cai vêm, não obstante, lamber-lhe a mão e pedir carícias.

- Ergo? - perguntou ela audaciosamente.

- Ergo, tudo depende - esquivou-se ele.

- E, não obstante, estou perdoada?

- Como eu espero está-lo também.

- Então sinto-me feliz... semente você nada fez para ser perdoado. Agiu de acordo com os seus prin­cípios, e eu de acordo com os meus, embora se deva reconhecer que os meus são mais latos. Ah! É isso mesmo! - concluiu batendo as palmas de contentamento. - Ontem não era consigo que estava zangada; nem fui rude para si, nem tão-pouco o ameacei. Foi absolutamente impessoal tudo aquilo.

Você representava a sociedade, o tipo que provocou a minha indignação e cólera; e, como seu represen­tante, você arrostou com o ataque. Compreende?

- Compreendo. Expô-lo com muita clareza, mas, ao passo que se iliba da acusação de me ter maltratado ontem, hoje fá-lo abertamente. Acusa-me de mentalidade estreita, mesquinhez e baixeza, o que é muito injusto. Ainda há alguns minutos eu dissera que o seu ponto de vista, considerado teoricamente, era irrepreensível. Mas deixa de o ser, se incluirmos a sociedade.

- Mas você não me está a compreender, Vance. Escute! - A mão dela estendeu-se para a dele, e ele ficou feliz por escutar. - Sempre sustentei que o que é está bem. Aceito a sensatez do juízo social pre­valecente nesta matéria. Embora o deplore, aceito-o, porque os homens são desta massa. Mas só o aceito socialmente. Eu, como indivíduo, prefiro julgar as coisas diferentemente. E entre individualidades a isso inclinadas, porque não haverá de ser assim julgado? Não está a compreender? Aqui é que o acho culpado. Ontem, entre você e mim, no rio, não o julgou desta forma. Portou-se com a estreiteza de espírito da sociedade que representa.

- Então você prega duas doutrinas? - reta­liou ele. - Uma para os eleitos, outra para o re­banho? Seria uma democrata em teoria e uma aristocrata na prática? Na realidade, a posição que toma é muito semelhante à jesuítica.

- Aposto que a seguir vai afirmar que todos os homens nascem livres e iguais com uns quantos direitos naturais? O Del Bishop vai trabalhar para si; por que direito de igualdade e liberdade inatas é que ele vai trabalhar para si ou você fazê-lo tra­balhar?

- Não - contestou ele. - Teria de modificar um tanto a questão da igualdade e os direitos.

- Mas se modifica está perdido! - exultou ela. - Porque só poderá modificar no sentido da minha posi­ção, que não é nem jesuítica nem tão severa como você a definiu. Mas não nos percamos em dialécticas. Quero ver o que puder, portanto fale-me daquela mulher.

- Não é um tema muito agradável - objectou Corliss.

- Mas eu procuro conhecimentos.

- Tão-pouco podem ser conhecimentos sãos.

Frona bateu o pé com impaciência e observou-o.

- Ela é bela, muito bela! - insinuou. - Não acha?

- De uma beleza diabólica.

- Mas bela, apesar disso - insistiu Frona.

- Se assim o quer. E tão cruel, tão dura, tão incorrigível quanto é bela.

- No entanto encontrei-a sozinha, no caminho, de rosto suavizado e lágrimas nos olhos. Estou conven­cida de que, com a minha sensibilidade de mulher, descobri-lhe uma faceta para a qual você é cego. Vi-a com tal nitidez que, quando você apareceu, o meu espírito estava vazio de tudo que não fosse este lamento : «Oh, que pena! Que pena!» É uma mulher igual a mim, e não duvido que somos muito parecidas. Até citou Browning.

- E, na semana passada - interrompeu-a ele - numa só jogada, ganhou trinta mil de ouro em pó ao Jack Dorsey... o Dorsey, com duas hipotecas já às costas! Encontraram-no na neve, na manhã seguinte, com um cartucho vazio do seu revólver.

Frona não replicou, mas, aproximando-se do candelabro, pôs deliberadamente o dedo na chama.

Em seguida ergueu-o para Corliss, para que ele pudesse ver a pele maltratada, vermelha e inchada.

- Reconheço a parábola. O fogo é bom, mas eu utilizei-o mal e fui castigada.

- Esquece - objectou Vance - que o fogo age em obediência cega a lei natural. Lucile é um agente livre. O que ela escolheu é o que fez.

- Não! Você é que se esquece, porque Dorsey era na mesma um agente livre. Mas disse Lucile. É esse o nome dela? Gostava de a conhecer melhor.

Corliss contraiu-se.

- Não diga tal! Magoa-me quando diz coisas dessas.

- E porquê?,  pergunto eu. - Porque... porque...

- Porque, o quê?

- Porque eu a respeito muito. Frona, você usou sempre de franqueza, e eu posso agora apro­veitar-me disso. Magoa-me por causa do apreço em que a tenho, porque não suporto ver a mácula próximo de si. Quando a vi e a essa mulher juntas, eu... não pode compreender o que sofri.

- Mácula? - Os seus lábios estavam franzidos. Ele não o notou; apenas se lhe apercebia um brilho vitorioso a cintilar nos olhos.

- Sim, mácula... contaminação! - repetiu. - Há certas coisas que seria melhor que uma mulher não compreendesse. Não se pode mexer na lama sem se ficar conspurcado.

- Isso abre largas perspectivas - fechava e abria as mãos alegremente. - Disse que ela se chamava Lucile. Demonstra conhecê-la. Contou-me factos acerca dela. Sem dúvida guarda muitos outros que não ousa contar. Resumindo: se se não pode mexer sem ficar conspurcado, que acontece consigo?

- Mas eu sou...

- Um homem, naturalmente. Muito bem. Por ser um homem, pode procurar a contaminação. Por ser uma mulher, eu não posso. A contaminação contamina, não é verdade? Então que está você aqui a fazer comigo? Fora daqui!

Corliss levantou as mãos, e riu-se.

- Desisto. É demasiado forte para mim com a sua lógica formal. Só posso recorrer à lógica mais elevada, que você não reconhecerá.

- E que é?...

- A força. O que o homem quer para a mulher é o que ele terá.

- Então vou empregar os seus próprios termos - atacou ela. - E a respeito de Lucile? O que o homem quis, assim o teve. E o que você e todos os homens têm querido, desde o princípio dos tempos. Foi o que quis o pobre Dorsey. Não encontra resposta, portanto deixe-me dizer-lhe algo que me ocorre a respeito dessa lógica superior a que chama força. Já a conhecia. Reconheci-a em si, ontem, no trenó.

- Em mim?

- Em si, quando me quis agarrar. Não conseguiu dominar a paixão primitiva. Aliás, não sabia que ela era dominante. Mas a expressão da sua cara era muito semelhante, julgo eu, a do homem das cavernas, que raptava a mulher. Mais um instante e estou con­vencida que me teria batido.

- Então peço-lhe perdão. Não sonhava...

- Lá vai estragar tudo! Eu... eu até gostei. Não se lembra que também eu me portei como uma mulher das cavernas, brandindo o chicote sobre a sua cabeça? Mas ainda não terminei, senhor-de­-duas-caras, embora se tenha retirado da luta.

- Os olhos dela brilhavam maliciosamente. Rugas minúsculas de riso começavam a desenhar-se-lhe no rosto. - Proponho-me desmascará-lo.

- Como o barro nas mãos do oleiro - retorquiu o rapaz submissamente.

- Então terá de se lembrar de várias coisas. Ao princípio, quando me mostrei muito humilde e apologética, você facilitou-me as coisas, dizendo que só podia condenar a minha conduta por social­mente insensata. Lembra-se?

Corliss fez que sim com a cabeça.

- E depois, logo a seguir a ter-me apodado de jesuítica, eu encaminhei a conversa para Lucile, dizendo que queria compreender o que pudesse.

Ele tornou a fazer que sim com a cabeça.

- E, tal como eu esperava, comprendi. Porque logo a seguir você começou a falar de máculas e contaminação e chafurdar na lama... e tudo em relação a mim. Aí tem as suas duas teses, senhor. Só pode defender uma, e tenho a certeza que escolherá a última. Sim, tinha razão. Escolhe mesmo. E você não foi sincero, confesse, quando achou a minha conduta insensata só do ponto de vista social. Eu gosto da sinceridade.

- Sim - começou ele. - Fui insincero sem querer. Mas não me dei conta, até que uma análise mais profunda, com a sua ajuda, mo fez compreender. Diga o que disser, Frona, o meu conceito de mulher é que ela não deve aproximar-se da corrupção. - Mas não podemos ser como os deuses, conhecer o bem e o mal?

- Mas não somos deuses.

A rapariga abanou a cabeça, tristemente.

- Só os homens são?

- Isso é conversa de sufragista - disse com expressão de desagrado. - Igualdade de direitos, votos e tudo o mais.

- Oh, não diga isso! - protestou ela. - Não me compreende, não pode compreender-me. Não sou uma sufragista; e não defendo a nova mulher, mas a dignidade nova da mulher. Porque sou sincera; porque desejo ser natural, honesta e verdadeira; porque sou coerente comigo própria, você resolve interpretar tudo mal e faz-me críticas severas. Tento verdadeiramente ser coerente e penso que o consigo plenamente. Talvez seja por você não estar habituado a mulheres coerentes, naturais; ou, mais provavelmente, porque só está habituado às plantas de estufa: lindas, frágeis, opulentas de formas, bem-aventuradamente inocentes e criminosamente ignorantes. Não são nem naturais nem fortes; e não podem ter filhos naturais nem fortes.

Calou-se abruptamente. Ouviram alguém entrar no vestíbulo e passos pesados e macios calçados em mocassinas que se aproximavam.

- Somos amigos - acrescentou ela apressada­mente.

Corliss respondeu-lhe com os olhos.

- Incomodo? - Dave Harney fez um sorriso largo de insinuação e olhou em redor pesadamente, antes de lhes vir apertar a mão.

- De modo algum - respondeu Corliss. -Temo-nos aborrecido mutuamente, à espera que apare­cesse alguém. Se você não tivesse aparecido, dentro em pouco estaríamos a discutir, não é verdade, Miss welse?

- Não me parece que ele descreva bem a situa­ção - respondeu esta, retribuindo o sorriso. - De facto, já tínhamos começado a discutir.

- Com efeito parecem um bocado agitados - comentou Harney, deixando cair o seu corpanzil em cima das almofadas do sofá.

- Como vai a carestia? - perguntou Corliss. - Já veio algum auxílio oficial?

- Não é preciso auxílio oficial nenhum. Cá o pai de Miss Frona antecipou-se-lhes. Três mil homens foram-se embora para as terras altas, pelo gelo. Metade foram aos depósitos das provisões. O mercado ficou bastante aliviado. Era exactamente o que o Welse calculava, toda a gente especulava com uma subida e guardaram todos os víveres a que puderam deitar mão. Isto ajudou a assustar os que tinham poucos, e lá cavaram eles para Salt Water: a malta toda, com os cães todos atrás. Escutem! - Endirei­tou-se na cadeira com solenidade. - Cães vadios! Vão subir que é um disparate, na Primavera, quando os fretes começarem a animar; já apanhei cem e calculo fazer cem dólares limpos por cabeça.

- Acha que sim?

- Se acho! Tenho a certeza! Aqui para nós, confidencialmente, na próxima semana vou mandar um par de homens às planícies para comprarem qui­nhentos dos melhores cães esquimós que consegui­rem encontrar. Se acho! Já estou há tempo de mais nesta terra para me apanharem a dormir.

Frona desatou a rir.

- Mas o senhor ficou a ver navios com o açúcar, Dave.

- Oh, não sei - respondeu ele complacente. - E a propósito, arranjei um jornal e de há quatro semanas apenas. O Seattle Post-Intelligencer.

- Os Estados Unidos e a Espanha já...

- Calma, calma! - O enorme ianque esbra­cejou, a pedir silêncio, cortando a pergunta de Frona, que secundou imediatamente a de Corliss.

- Mas leu-o? - perguntaram ambos.

- Hum, Hum, todinho, anúncios e tudo.

- Então, conte-me - começou Frona. - já...

- Ora esteja sossegadinha, Miss Frona, até eu lhe contar tudo, do princípio. Aquele jornal custou-me cinquenta dólares... apanhei o homem na curva acima da cidade de Klondike e comprei-lho imedia­tamente. O parolo podia conseguir cem por ele, facilmente, se tivesse esperado até chegar a cidade...

- Mas que diz ele? Já...

- Como eu estava a dizer, aquele jornal custou­-me cinquenta dólares. É o único que cá chegou. Toda a gente está morta por saber as notícias. Por isso convidei um número escolhido de pessoas para virem aqui a sua sala, esta noite, Miss Frona, que é o único sítio capaz, e podem-no ler em voz alta, à vez, até quererem ou estarem cansados... isto é, se nos deixar utilizar a sua sala.

- Mas com certeza, a vontade. E o senhor é muito amável...

Dave rejeitou o cumprimento.

- Já calculava. Ora acontece, conforme disse, que fiquei a ver navios com o açúcar. Por isso, todos quantos, homens e mulheres, deitarem uma olhadela ao jornal, esta noite, vão ter de pagar cinco chá­venas de açúcar. Está a compreender? Cinco chá­venas... chávenas grandes, de branco, amarelo ou em cubos... eu recolherei os vales e, no dia seguinte, mandarei um rapaz fazer a recolha.

O rosto de Frona empalideceu, a medida que ele ia falando, depois o riso voltou a espelhar-se nele.

- Não vai ser engraçado? Aceito, mesmo que provoque um escândalo. Esta noite, Dave? Esta noite sim?

- Com certeza. E a Miss recebe um bónus, sabe, por emprestar a sala.

- Mas o papá tem de pagar as cinco chávenas. Deve insistir nisso, Dave.

Os olhos de Dave brilharam de prazer.

- Desforro-me, está visto.

- E eu obrigo-o a vir - prometeu - no séquito da carruagem do Dave Harney.

- Da carroça de açúcar - sugeriu Dave. - Amanhã a noite levo o jornal para a ópera. Já não será novo então, por isso podem lê-lo barato; uma chávena será o preço justo, calculo. - Endireitou-se e fez estalar os nós dos dedos enormes jactanciosamente. - Desde que a navegação ficou encerrada que não tive um dia alegre; e, se eles ficarem a pé toda a noite, na manhã seguinte não se levantam a tempo de tomarem a dianteira ao Dave Harney... nem mesmo no negócio do açúcar.


Capitulo XI

Ao canto, encostado ao piano, Vance Corliss estava embrenhado numa conversa com o coronel Trethaway. Este, perspicaz, inteligente e rijo, não obstante o seu cabelo todo branco e os seus sessenta e tal anos, era tão jovem de aparência como um homem de trinta. Engenheiro de minas veterano, com uma folha de serviços que o punha à cabeça na sua profissão, representava interesses americanos tão vastos como os ingleses que Corliss representava. Não só uma amizade cordial tinha nascido entre ambos, como, do ponto de vista profissional, tinham já sido de grande auxílio um ao outro. E era bom que se mantivessem unidos - um par que detinha e podia dirigir à vontade o capital potente com que duas nações haviam contribuído para o desenvolvi­mento da região a sul do Pólo.

Apinhada de gente, a sala estava saturada de fumo e tabaco. Uns cem homens, vestidos de peles e quentes lãs berrantes, estavam encostados as paredes a observar. Mas o burburinho da conversação geral destruía a faceta espectacular da cena, dando-lhe o aspecto da vulgar camaradagem.

Apesar de todo o seu aspecto bizarro, era muito semelhante à sala de um lar, quando os membros da família se reúnem depois do dia de trabalho. Lâmpadas de querosene e velas de sebo brilhavam fracamente na atmosfera sombria, enquanto fogões enormes crepitavam a sua alegria em brasa.

No sobrado, uma vintena de pares pulavam ritmi­camente ao som da música da valsa. Não se viam camisas engomadas nem sobrecasacas. Os homens traziam os seus gorros de pele de lobo ou de urso com as alegres borlas protectoras das orelhas, desa­pertadas, enquanto nos pés calçavam as mocassinas de pele de alce e os sapatos de pele de morsa do norte. Uma ou outra mulher trazia mocassinas, embora a maioria dançasse com frágeis sapatos de baile, de seda ou de cetim. Num dos extremos do vestíbulo, um grande portal aberto deixava entrever uma outra sala grande, onde a multidão era ainda mais densa. Dessa sala, nos intervalos da música, vinha o estoiro de rolhas a saltar, o tinir de copos e, mais esbatido, o estalido e o ruído constante de fichas e bolas de roleta.

A porta pequena das traseiras abriu-se, e uma mulher envolta em peles entrou, numa onda de frio. O frio avançou com ela para o calor, tomando forma numa nuvem espessa que pairava junto do chão, escondendo os pés dos dançarinos, e que se foi torcendo e enrolando até ser vencida pelo calor.

- Uma verdadeira rainha das neves, minha Lucile - cumprimentou o coronel Trethaway.

A mulher voltou a cabeça e riu-se, e, enquanto tirava as capas e as mocassinas da rua, tagarelou com ele alegremente. Mas em Corliss, embora esti­vesse a um metro de distância, não reparou. Meia­-dúzia de bailarinos esperavam pacientemente, a pequena distância, que ela terminasse a conversa com o coronel. O piano e o violino tocaram as notas de abertura de uma dança escocesa, Lucile voltou-se para se afastar. No mesmo instante um impulso súbito fez Corliss dirigir-se-lhe.

- Peço-lhe que me perdoe. - disse.

Os olhos da mulher faiscaram, irados, quando se voltou para ele.

- Falo a sério - repetiu, estendendo-lhe a mão. - Lamento imenso. Fui um bruto e um cobarde. Perdoa-me?

Lucile hesitou; com a sensatez nascida da espe­riencia, examinou-o em busca de motivo oculto. Em seguida o seu rosto suavizou-se, e apertou-lhe a mão. Uma névoa cálida embaciou-lhe o olhar.

- Obrigada.

Mas os homens que estavam à espera impacien­tavam-se, e ela foi arrebatada para longe nos braços de um rapaz simpático, brilhante no seu gorro de pele de lobo amarelo da Sibéria. Corliss voltou para junto do seu companheiro, sentindo uma paz extraor­dinária e admirando-se do seu gesto.

- É uma vergonha. - Os olhos do coronel seguiam ainda Lucile, e Vance compreendeu. - Corliss, já vivi os meus sessenta e gozei-os bem. E quer saber uma coisa? A mulher é um mistério maior do que nunca. Olhe para elas, olhe para elas todas! - Abarcou a cena toda com o olhar. - Bor­boletas, átomos de luz, de música e de riso, dançando, dançando ao longo da última via para o Inferno. Não apenas a Lucile, mas as outras todas. Repare na May, acolá, com o perfil de madonna e a língua de uma víbora! E Murtle... parece mesmo uma das antigas beldades inglesas de Gainsborough, saída da tela para vir viver a devassidão do século nos salões de dança de Dawson. E a Laura, acolá, não daria uma mãe? Não é capaz de imaginar um bebé na curva do braço, encostado ao seu peito? São do melhor que há, bem sei... os países jovens reúnem sempre o melhor... mas há algo errado, Corliss, algo errado. Já ultrapassei os ardores da juventude, e a minha visão é mais verdadeira, mais certa. Parece que tem de surgir um novo Cristo a pregar uma nova salvação... económica ou social... nestes tempos de hoje, isso não importa, contanto que seja pregada. O mundo tem necessidade dela.

A sala era habitualmente varrida por ondas súbitas, principalmente no intervalo das danças, quando os farristas irrompiam pela larga portada na direcção em que as rolhas estoiravam e os copos tilintavam. O coronel Trethaway e Corliss foram arrastados pela onda seguinte até ao bar, onde cin­quenta homens e mulheres estavam enfileirados. Foram dar junto de Lucile e do homem do gorro de pele de lobo amarelo. Era inegavelmente belo, as suas feições eram realçadas por um excesso de cor nas faces e um certo fogo jovial nos olhos. Não estava tecnicamente embriagado, pois mantinha abso­luto controlo físico; mas ostentava a euforia provo­cada pelo sumo da uva. A voz era um tudo-nada alta de mais, e alegre, e a língua estava solta e mordaz... exactamente naquele estado instável em que vícios e virtudes têm tendência a expressar-se com extra­vagância.

Quando ergueu o copo, o homem junto dele empurrou-lhe acidentalmente o braço. Ele sacudiu o vinho do gorro e disse o que pensava. Não foi uma palavra bonita, mas sim uma palavra que habitual­mente é calculada para provocar. O outro reagiu, e o seu punho acertou por debaixo do gorro de pele de lobo, com força suficiente para fazer cair o seu pos­suidor para trás, em cima de Corliss. O homem insultado continuou o ataque com rapidez. As mulhe­res esgueiraram-se, deixando o campo livre para os homens, alguns dos quais queriam entrar na briga, enquanto outros eram de opinião que se fizesse espaço para uma luta leal.

O «Gorro de Pele de Lobo» não deu luta nem tentou enfrentar a cólera que tinha provocado e, com as mãos a proteger o rosto, procurou retroceder. A multidão incitava-o a que lutasse. Ele arranjou coragem para fazer uma tentativa, mas fraquejou quando o homem caiu em cima dele, e fugiu.

- Deixe-o lá. Merece o que tem - gritou o coronel a Vance, quando este mostrou indícios de querer interferir. - Não lutará. Se o fizesse, penso que era quase capaz de o perdoar.

- Mas não posso vê-lo ser surrado - objectou Vance. - Se ele ao menos lutasse, não pareceria tão brutal.

O sangue corria-lhe do nariz e de um golpe pequeno por cima de um dos olhos, quando Corliss saltou para o meio. Tentou separar os dois homens; mas, tendo empurrado o indivíduo truculento com força de mais, fê-lo desequilibrar-se e cair no chão. Toda a gente tem amigos numa luta, numa sala de bar. E, antes que Vance percebesse o que se estava a passar, cambaleou com um soco de um camarada do homem que derrubara. Del Bishop, que tinha avançado, atirou-se prontamente ao homem que tinha atacado o seu patrão, e a luta generalizou-se. A multidão tomou partido imediatamente e embre­nhou-se nela.

O coronel Trethaway esqueceu-se que os ardores da juventude já tinham passado e, brandindo um banco de três pernas, entrou lesto na briga. Um par de polícias-montados, de folga, seguiram-no e com mais meia-dúzia de outros protegeram o homem do gorro de pele de lobo.

Conquanto fosse aceso e barulhento, era pura­mente um distúrbio local. No extremo do bar os empregados continuavam a servir bebidas, na sala ao lado a música prosseguia, e os dançarinos rodo­piavam. Os jogadores continuaram o seu jogo e só nas mesas mais próximas evidenciaram qualquer interesse pelo assunto.

- Deite-o abaixo e fora com ele! - disse Del Bishop, sorrindo, ao lutar durante um breve espaço de tempo, ombro a ombro com Corliss.

Corliss retribuiu-lhe o sorriso, aguentou a inves­tida de um robusto condutor de cães, agarrando-se a ele, e caiu por cima dele no meio da floresta de pés. Estava bem agarrado e sentiu os dentes do homem enterrarem-se-lhe na orelha. Num ápice, visionou todo o seu futuro, vendo-se a si próprio com uma orelha só, o resto da vida, e no mesmo ápice, como que inspirado, os dedos voaram-lhe para os olhos do outro, comprimindo com força as pupilas. Homens caíram-lhe por cima pisando-o, mas tudo lhe pareceu muito vago e distante. Sabia unicamente, enquanto comprimia com os dedos, que os dentes do homem cediam relutantemente. Fez um pouco mais de pressão (um tudo-nada mais e o homem ficaria cego) e os dentes afrouxaram e soltaram-se.

Depois disso, quando de gatas se pôs fora da confusão e se tornou a pôr de pé ao lado do bar, todo o seu desagrado pela briga tinha desaparecido. Descobrira que era muito semelhante aos outros homens, afinal de contas, e a perda iminente de parte da sua anatomia tinha apagado vinte anos de cultura. Jogar, sem ser a dinheiro, é um entreteni­mento insípido, e Corliss descobriu, do mesmo modo, que o prazer resultante da ginástica higiénica é completamente diferente do que se experimenta quando os músculos competem com músculos, a carne se comprime contra a carne, e o prémio é a vida. Quando se pôs de pé, apoiando-se ao corri­mão do bar, viu um homem com um casaco de pele de esquilo erguer uma caneca de cerveja para a atirar a Trethaway, a alguns passos de distância. E os dedos, que estavam mais habituados aos tubos de ensaios e a aguarelas, dobraram-se num punho possante que atingiu o atirador mesmo em cheio na ponta do queixo. O homem deixou simplesmente tombar o copo e a sua própria pessoa no meio do chão. Vance ficou estupidificado durante um ins­tante, compreendendo em seguida que tinha posto o homem inconsciente - o primeiro da sua vida - e um estremecimento de prazer percorreu-o todo.

O coronel Trethaway agradeceu-lhe com um olhar e gritou-lhe:

- Vá lá para fora! Abra caminho até a porta, Corliss! Abra caminho até a porta!

Houve ainda luta renhida, antes que conseguis­sem escancarar o guarda-vento; mas o coronel, sempre agarrado ao banco de três pés, venceu eficaz­mente a oposição, e a Casa da Ópera vomitou para a rua os seus ocupantes turbulentos. Feito isto, cessa­ram as hostilidades, conforme é hábito em tais brigas, e a multidão dispersou. Os dois polícias voltaram para manter a ordem, acompanhados pelo resto dos aliados, enquanto Corliss e o coronel, segui­dos pelo «Gorro de Pele de Lobo» e por Del Bishop, começaram a subir a rua.

- Sangue e suor! Sangue e suor! - exultava o coronel Trethaway. - E eu a falar em poupar energias. Ora, sinto-me vinte anos mais novo!

Corliss, aperte a mão. Felicito-o, felicito-o since­ramente. Confesso que não pensava que tivesse nervo. Você foi uma surpresa, homem, uma sur­presa!

- Até para mim próprio o fui-respondeu Corliss. A reacção passara. Começava a sentir-se enojado e fraco. - E o senhor também foi uma surpresa. A maneira como brandia aquele banco...

- Sim, é verdade. Não é para me gabar, mas trabalhei bem com ele. Reparou... oh, olhe! - Ergueu a arma em questão, ainda firmemente agarrada e associou-se ao riso contra si próprio.

- A quem devo agradecer, cavalheiros?

Tinham parado a esquina, e o homem que tinham salvado estendia-lhes a mão. - Chamo-me St. Vincent - continuou ele, - e...

- Como disse? - perguntou Del Bishop com súbito interesse.

- St. Vincent, Gregory St. Vincent...

O punho de Bishop disparou, e Gregory St. Vin­cent tombou pesadamente na neve. O coronel ergueu instintivamente o banco, em seguida ajudou Corliss a segurar o prospector de minas.

- Enlouqueceu, homem? - perguntou Vance.

- O imbecil! Devia-lhe ter dado com mais força - foi a resposta. Em seguida: - Oh, pronto! Larguem-me! Não lhe torno a bater. Larguem-me! Vou para casa. Boa noite!

Quando eles ajudavam St. Vincent a pôr-se de pé, Vance juraria que ouviu o coronel rir-se dis­farçadamente. Confessou-o mais tarde, explicando «Foi tão engraçado e inesperado». Mas peniten­ciou-se, encarregando-se de acompanhar St. Vincent a casa.

- Mas porque é que você lhe bateu? - per­guntou Corliss pela quarta vez, quando chegou a sua cabana.

- Aquele imbecil nojento e porco! - resmun­gou, rangendo os dentes, de dentro dos cobertores. - Para que é que me agarrou? Gostava de lhe ter batido com o dobro da força.


Capitulo XII

- Muito gosto em vê-lo, Sr. Harney. É Dave, creio, Dave Harney? - Dave Harney acenou que sim, e Gregory St. Vincent voltou-se para Frona. - Sabe, Miss Welse, o mundo é muito pequeno! Afinal o Sr. Harney e eu já nos conhecíamos.

O rei do Eldorado examinou o rosto do outro, até uma expressão de reconhecimento bruxulear no seu cérebro.

- Espere! - exclamou, quando St. Vincent ia recomeçar a falar. - Já o topei! Não usava barba nessa época. 86, Outono de 87, Verão de 88... sim, é isso. Verão de 88, vinha eu numa embarcação pelo rio Stewart, carregado de quartos de carcassa de alce, a tentar chegar as terras baixas, antes de se estragarem. É isso, e você vinha a descer o Yukon num barquito. Eu estava a teimar que era quarta-feira, o meu camarada que era sexta, e você tirou as teimas... era domingo, se não me engano. É isso, domingo. Ora vejam! Há nove anos! E nós trocámos costelas de alce por farinha e bicarbonato de sódio e... e... açúcar! Raios! Que prazer em o ver!

Estendeu a mão para o outro, e as mãos tornaram a apertar-se.

- Venha fazer-me uma visita - convidou, antes de se ir embora. -Tenho uma cabanita toda jeitosa no cimo da colina e outra em Eldorado. A chave está sempre na porta. Venha visitar-me e fique o tempo que quiser. Desculpe ter de o deixar já, mas tenho de ir lá abaixo a ópera receber os meus cupões... açúcar. Miss Frona conta-lhe.

- O senhor é surpreendente, St. Vincent - Frona voltou ao ponto de interesse, depois de, em poucas palavras, ter relatado as dificuldades sacarinas de Harney. - A região devia ser um deserto autêntico há nove anos atrás. E pensar que o senhor o percor­reu nessa época! Conte-me!

Gregory St. Vincent encolheu os ombros.

- Há muito pouco que contar. Foi um malogro horrível, recheado de muitas coisas nada bonitas e sem nada de que me possa orgulhar.

- Mas conte-me a mesma. Gosto dessas coisas. Parecem mais próximas da vida e mais reais do que os acontecimentos vulgares de todos os dias. Um malogro, como o senhor lhe chamou, pressupõe qualquer coisa que tenha sido tentada. O que foi?

Ele notou com satisfação o interesse franco da rapariga.

- Bem, se quiser, posso contar-lhe em poucas palavras tudo que há para contar. Meteu-se-me na cabeça a idéia louca de dar a volta ao mundo por um caminho novo e, no interesse da ciência e do jornalismo, principalmente do jornalismo, propus-me atravessar o Alasca, o estreito de Bering pelo gelo e chegar a Europa através da Sibéria do Norte. Era um empreendimento esplêndido, na maior partenunca intentado, mas falhei. Atravessei o estreito em boa ordem, todavia encontrei dificuldades na Sibéria Oriental... tudo por causa de Tamerlão, é esta a desculpa que me habituei a dar.

- Um Ulisses! - A Sr.a Schoville bateu as palmas e veio reunir-se-lhes. - Um Ulisses moderno! Que romântico!

- Mas de Othello não tem nada-replicou Frona. - Tem uma língua preguiçosa. Deixa-nos no ponto mais interessante com uma referência enigmá­tica a um homem dos tempos idos. O senhor não está a ser leal para connosco, St. Vincent, e não descansaremos enquanto não nos explicar como é que Tamerlão fez com que a sua viagem tivesse um fim prematuro.

Ele riu-se e com um esforço venceu a sua relutân­cia de falar nas suas viagens.

- Quando Tamerlão varreu a ferro e fogo a Ásia Oriental, foram rechaçadas nações, arrasadas cidades, e tribos dispersas como poalha de estrelas. - Com efeito, um grande povo foi dispersado pelo território. Fugindo a frente da cobiça louca dos conquistadores, estes refugiados embrenharam-se muito pela Sibéria, fazendo um círculo para o Norte e para o Leste e semeando a orla da bacia polar de tribos mongóis... não estou a maçá-los?

- Não, não! - exclamou a Sr.a Schoville. - É fascinante! A sua maneira de contar é tão realista! Faz-me lembrar... faz-me lembrar...

- Macauly - riu St. Vincente, bem disposto. - Como sabe, sou jornalista, e ele influenciou profunda­mente o meu estilo. Mas prometo-lhe ser mais sóbrio. Agora, voltando ao assunto : se não fossem, no entanto, estas tribos mongóis, não teria sido detido na minha viagem. Em vez de ter sido obrigado a casar com uma princesa sebenta e de me tornar perito em guerrilhas entre tribos e em roubar renas, teria avançado com facilidade e sossegadamente até Sampetersburgo.

- Oh, estes heróis! Não são exasperadores, Frona? O que é isso de roubar renas, e de princesas sebentas?

A mulher do comissário do ouro derretia-se toda para ele. Pedindo licença a Frona com um olhar, o homem continuou

- O povo costeiro era de raça esquimó, de feitio alegre e feliz, inofensivo. Apelidavam-se a si pró­prios de Oukilion, ou Homens do Mar. Comprei­-lhes cães e víveres, e eles trataram-me esplendidamente. Mas estavam sujeitos aos Chow Chuen, ou Povo do Interior, que eram conhecidos pelos Homens­-Veados. Os Chow Chuen constituíam uma raça selva­gem, indomável, com toda a ferocidade dos Mon­góis indómitos mais o dobro da sua malignidade. Assim que deixei a costa, caíram em cima de mim, confiscaram as minhas mercadorias e fizeram-me escravo.

- Mas não havia lá russos? - perguntou a Sr.a Schoville.

- Russos? Entre os Chow Chuen? - riu-se diver­tido. - Geograficamente estão dentro dos domí­nios do czar branco; mas politicamente não. Duvido que tenham mesmo alguma vez ouvido falar dele. Lembre-se que o interior da Sibéria Nordeste está escondida na escuridão polar, uma «terra incóg­nita» onde poucos homens têm ido e de onde nenhum regressou.

- Mas o senhor...

- Eu, acontece que sou a excepção. Porque teria sido poupado, não o sei. Aconteceu, simplesmente. Ao princípio fui tratado odiosamente, sovado pelas mulheres e crianças, vestido de peles sarnentas infestadas de vermes e alimentado de refugos. Eram extremamente cruéis. Como consegui sobre­viver, não compreendo; mas sei que ao princípio pensava muitas vezes em me suicidar. A única coisa que me impediu, nesse período, de me suicidar foi o facto de me ter tornado rapidamente bestial e estupidificado, devido aos meus padecimentos e degradações. Meio gelado de frio, meio morto de fome, suportando misérias e dificuldades indescri­tíveis, espancado vezes sem conta até perder os sentidos, tornei-me num animal autêntico. Ao recordar isto, parece-me quase tudo um sonho. Há lapsos que a minha memória não consegue preencher. Tenho uma vaga recordação de ter sido amarrado a um trenó e arrastado de acampamento em acampamento, de tribo em tribo, com o fim de ser exibido, julgo, tal como se faz com os leões e os elefantes. Não faço ideia do que andei para cima e para baixo nessa região gélida, mas devem ter sido alguns milhares de milhas. Sei que, quando recobrei a consciência e tornei de facto a ser eu próprio, estava bem a mil milhas para oeste do ponto onde havia sido capturado. Era Primavera, e pare­ceu-me que abria de repente os olhos, vindo dum passado esquecido. Uma correia de pele de rena, presa nas traseiras de um trenó, apertava-me o pulso. Agarrei-me a esta correia com ambas as mãos, como um macaco dos carrinhos de realejo, porque a minha carne estava em chaga nos sítios onde a correia a cortara. Tornei-me manhoso e fiz-me agradável e servil. Nessa noite dancei e cantei e fiz o possível por diverti-los, porque estava resolvido a não tornar a incorrer nos maus tratos que me haviam mergu­lhado nas trevas. Ora os Homens-Veados negociavam com os Homens do Mar, e os Homens do Mar com os Homens Brancos, especialmente os pescadores de baleias. Por isso descobri mais tarde um baralho de cartas na posse de uma das mulheres e tratei de intrigar os Chow Chuen com uns passes vulgares. De igual modo, com a solenidade adequada, exibi para eles o pouco que sabia da prestidigitação de salão. Resultado: fui logo muito apreciado e melhor alimentado e vestido. Resumindo, tornei-me gradual­mente numa personagem de importância. Primeiro, os velhos e as mulheres vinham ter comigo a pedir-me conselho; e, por fim, os chefes. Os meus conhecimen­tos superficiais mas prontos de medicina e cirurgia foram-me de grande valia, e tornei-me indispensável. De escravo consegui ascender a um lugar entre os chefes e, na guerra e na paz, assim que aprendi os costumes deles, era uma autoridade incontestada. A rena era o meio de permuta deles, a sua unidade de valor, por assim dizer, e andávamos constante­mente a pilhar gado entre as tribos vizinhas, ou a proteger os nossos rebanhos das incursões deles. Melhorei os métodos, ensinei-lhes estratégias e tác­ticas melhores e imprimi uma rapidez tal as suas operações, que nenhuma tribo vizinha era capaz de as suster. Apesar de me ter tornado uma força, continuava na mesma longe da liberdade. Dava vontade de rir, porque me tinha superado a mim próprio e tornado demasiado valioso. Eles rodeavam­-me de atenções inexcedíveis, mas eram de uma cautela enciumada. Podia ir e vir e dar ordens a vontade, mas, quando os grupos desciam a costa a negociar, não me era permitido acompanhá-los. Era a única restrição posta aos meus movimentos. Além disso, o equilíbrio é muito instável nas posições altas e, quando comecei a alterar-lhes as estruturas políticas, tornei a meter-me em complicações.

No processo de união de vinte ou mais tribos vizi­nhas, de modo a resolver reivindicações rivais, foi-me dado o comando supremo da federação. Mas o velho Pi-Une era o maior dos subchefes - um rei em certo sentido - e, ao renunciar ao seu direito de chefe supremo, recusou transmitir todas as honras. O mínimo que eu podia fazer para o apaziguar era casar com a filha dele. Ele é que o exigiu. Ofere­ci-me para abandonar a federação, mas ele não quis ouvir falar em tal. E...

- E? - murmurou a Sr.a Schoville em êxtase.

- E eu casei com Ilswunga, que em chow chuen significa Corça Selvagem. Pobre Ilswunga! Como a Isolda da Britânia de Swinburne, e eu o Tristão! A última vez que a vi, estava ela a fazer paciências na missão do Irkustan, recusando-se obstinadamente a tomar banho.

- Oh, Santo Deus! Já são dez horas! - excla­mou de repente a Sr.a Schoville, quando o marido por fim lhe conseguiu chamar a atenção, do outro lado da sala. - Tenho muita pena de não poder ouvir o resto, Sr. St. Vincent, como é que conseguiu escapar e tudo mais. Mas tem de me ir visitar. Estou morta por saber!

- E eu que o tomei por um novato, um chechaquo - disse Frona humildemente, enquanto St. Vincent apertava as abas protectoras dos ouvidos e levantava a gola, preparando-se para partir.

- Não gosto de armar - respondeu ele, imitando­-lhe a humildade. - Cheira a aldrabice. E é tão fácil cair-se nisso. Repare nos veteranos, «pães-duros», como se chamam a si próprios orgulhosamente. Só porque estão na região há alguns anos, todos se ufanam e vangloriam. Talvez eles o não saibam, mas é armar. Na medida em que cultivam peculiari­dades salientes, estão a cultivar a falsidade para si próprios e vivem uma mentira.

- Não me parece que esteja a ser inteiramente justo - disse Frona em defesa dos seus heróis favori­tos.-Gosto na verdade do que diz sobre o assunto em geral e detesto poses, mas a maioria dos veteranos seriam excêntricos em qualquer região, fosse em que circunstâncias fosse. Essa excentricidade é própria deles; é o seu modo de expressão. E é, tenho disso a certeza, o que os faz ir para as regiões inexploradas. O homem normal fica em casa, naturalmente.

- Oh! concordo absolutamente consigo, Miss Welse - contemporizou ele com facilidade. - Não era minha intenção ser tão radical. Queria era referir-me a uns quantos entre eles que são uns poseurs. No geral, tal como disse, são honestos, sin­ceros e naturais.

- Então está encerrada a discussão. Mas, antes de se ir embora, Sr. St. Vincent, importa-se de cá vir amanhã a noite? Estamos a organizar um teatro para o Natal. Sei que nos pode ajudar imenso, e penso que não será de todo desagradável para si. Toda a gente nova está interessada: os funcionários, os ofi­ciais da polícia, os engenheiros de minas, os viajan­tes, etc., para não falar das mulheres bonitas. Vai gostar com certeza.

- Tenho a certeza que sim - respondeu, pegan­do-lhe na mão. - Amanhã, não foi o que disse?

- Amanhã a noite. Boa noite.

«Um homem corajoso» - disse ela para consigo, ao afastar-se da porta. - «É um esplêndido tipo da raça».


Capitulo XIII

Gregory St. Vincent depressa se tornou um ele­mento importante na vida social de Dawson. Como representante da Associação de Imprensa Unida, trouxera com ele as melhores credenciais que uma influência poderosa podia obter e estava, aliás, bem qualificado socialmente pelas suas cartas de apresentação. Foi-se espalhando que ele era um andarilho e um explorador importante e que vivera e lutara por toda a crosta terrestre. Contudo, era tão modesto e simples acerca disso, que ninguém, nem mesmo entre os homens, ficava irritado com os seus feitos. Incidentalmente encontrou inúmeros velhos conhecimentos. Jacob Welse conhecera-o em St. Michael, no Outono de 88, de atravessar o estreito de Bering pelo gelo. Mais ou menos um mês depois, o padre Barnum (que viera de Lower River para tomar conta do hospital) conhecera-o, a umas duzentas milhas a norte de St. Michael. O capitão Alexandre, da polícia, estivera com ele na legação britânica de Pequim. E Bettles, um outro dos veteranos de destaque, conhecera-o em Yukon, nove anos antes.

Dawson, sempre pronta a olhar de soslaio para os recém-chegados casuais, recebeu-o de braços abertos.

Era um favorito, especialmente entre as mulheres. Como promotor de divertimentos e organizador de festas, tomou a direcção, e depressa nenhuma fun­ção passou a estar completa sem a sua presença. Não só veio ajudar as actividades teatrais, como insensivelmente, com toda a naturalidade, tomou a direcção delas. Frona, como os amigos diziam, andava com a «mania» de Ibsen, por isso representaram Casa de Bonecas, e a ela coube o papel de Nora. Corliss, que era o responsável das actividades teatrais, por ter sido o primeiro a sugeri-las, ia fazer o papel de Torvald; mas o seu interesse pareceu esmorecer, ou fosse porque fosse, ele desistiu, sob o pretexto de excesso de trabalho. Assim St. Vincent tomou conta, sem problemas, do papel de Torvald. Corliss arran­jou tempo para assistir a um ensaio. Talvez por estar cansado de percorrer quarenta milhas com os cães, ou talvez por Torvald ser obrigado a abraçar Nora, em diversos lances, e a brincar ternamente com a orelha dela por uma razão ou por outra, Corliss nunca mais tornou a assistir.

Ocupado estava-o, sem dúvida; e, quando não andava por fora, fechava-se quase o tempo todo com Jacob Welse e o coronel Trethaway. Que era um negócio de importância evidenciava-o o facto de só os interesses mineiros de Welse implicados nele se elevarem a alguns milhões. Corliss era basicamente um trabalhador e um homem de acção; ao descobrir que aos seus conhecimentos, exclusiva­mente teóricos, faltava experiência prática, sentiu-se incitado a fazer o impossível e pôs-se a trabalhar mais ainda. Espantou-se até da imbecilidade dos homens que o haviam sobrecarregado com tais res­ponsabilidades, apenas devido a sua influência, e disse-o a Trethaway. Mas o coronel, apesar de reconhecer as suas falhas, gostava dele pela sua franqueza e admirava-o pela seu esforço e pela rapidez com que apreendia as coisas reais.

Del Bishop, que se havia recusado a trabalhar para ninguém a não ser para si próprio, fora trabalhar para Corliss porque assim tinha possibilidades de trabalhar melhor para si. Era praticamente livre e as oportunidades de se promover ficavam grandemente aumentadas. Equipado com o melhor dos equipamentos e uma magnífica matilha de cães, a sua tarefa consistia principalmente em percorrer os vários riachos e em manter os ouvidos e os olhos abertos. Prospector em primeiro, último e todos os lugares, andava sempre a procurar particularmente minas cuja ocupação não interferisse em nada com as obrigações que tinha para com o patrão. E, a medida que o tempo decorria, ia enchendo a cabeça de um miscelânea de informa­ções a respeito da natureza de vários depósitos e da estrutura do solo, para no Verão, quando a terra descongelada e a água corrente lho permitissem, seguir um rasto, desde o leito de um ribeiro até a sua vertente e a nascente.

Corliss era um bom patrão, pagava bem e consi­derava ser seu direito fazer os homens trabalhar como ele próprio trabalhava. Aqueles que entravam ao seu serviço ou reforçavam a sua virilidade e ficavam, ou desistiam e diziam coisas desagradáveis acerca dele. Jacob Welse observava esta sua feição com agrado e continuamente tecia elogios ao enge­nheiro de minas. Frona ouvia e ficava contente, porque gostava das coisas de que seu pai gostava. E mais contente ficava ainda por se tratar de Corliss. Mas, absorvido pelo trabalho, via-o menos do que antigamente, ao passo que St. Vincent começou a ocupar-lhe uma porção cada vez maior do tempo. O espírito saudável e optimista deste último agradava-lhe, correspondia bem ao homem natural e ao tipo racial preferido e idealizado por ela. A primeira dúvida - se seria verdade o que ele con­tava - desvanecera-se. Toda a evidência era a isso contrária. Homens que ao princípio duvidavam da verdade das suas aventuras maravilhosas conven­ciam-se depois de o ouvirem falar. Aqueles que de algum modo conheciam as partes do mundo por ele mencionadas não podiam deixar de reconhecer que ele sabia do que estava a falar. O jovem Soley, repre­sentante do Bannock's News Syndicate, e Holmes do Fairweather recordavam o regresso dele ao mundo em 91 e a sensação que isso provocou. E Sid Winslow, jornalista da Costa do Pacífico, fora-lhe apresentado no Clube dos Andarilhos, pouco depois de ele ter desembarcado da lancha guarda­-costas dos Estados Unidos que o trouxera do Norte. Além disso, como Frona bem via, ele trazia as marcas das suas experiências, que mostravam a sua influência em toda a sua maneira de encarar a vida. O primitivismo era bem vincado nele, e possuía um orgulho apaixonado da raça que se irmanava perfeitamente com o dela. Na ausência de Corliss, andavam muito juntos, saíam frequentemente com os cães e ficaram a conhecer-se muito bem.

Isto não agradava nada a Corliss, principalmente quando os breves intervalos que podia dedicar a ela eram habitualmente interrompidos pelo correspon­dente. Corliss, naturalmente, não simpatizava com ele, os outros homens que haviam assistido ou tinham ouvido falar do incidente da Casa da ópera só o aceitavam sob reservas. Trethaway cometera a indiscrição, por uma ou duas vezes, de falar dele com desprezo, mas tão ferozmente foi ele defendido pelos seus admiradores que o coronel passou a ter o bom gosto de, daí em diante, manter a boca fechada. De uma vez em que Corliss escutava um panegí­rico extravagante dos lábios da Sr.a Schoville, permi­tiu-se o luxo de um sorriso de incredulidade; mas a onda de rubor que imediatamente tingiu as faces de Frona e o franzir de sobrancelhas puseram-no de sobreaviso.

De outra vez, a cólera fê-lo insensatamente refe­rir-se à briga da Casa da ópera. Estava exaltado e, fosse o que fosse que pudesse dizer sobre os aconteci­mentos daquela noite, não teria redundado nem em crédito de St. Vincent nem no dele próprio, se Frona, inocentemente, não lhe tivesse calado a boca antes de ele ter propriamente começado.

- Sim, o Sr. St. Vincent contou-me. Foi nessa noite que o viu pela primeira vez, parece-me. Todos vocês lutaram lealmente ao lado dele... você e o coronel Trethaway. Ele exprimiu a sua própria admiração sem reservas; para falar verdade, com entusiasmo.

Corliss fez um gesto depreciativo.

- Não, não! Pelo que ele disse, deve ter-se por­tado esplendidamente. E eu fiquei toda contente por o saber. Deve ser maravilhoso de vez em quando largar rédeas ao animal. E é saudável, também. Maravilhoso para nós, que nos afastámos do natural e fomos amolecendo numa maturidade doentia. Só para sacudir o artificialismo e ter uma furiazita; e, no entanto, o mentor interior, sereno e impassível, a observar tudo e a dizer: «Isto é o meu outro eu. Eu, que agora estou impotente, sou a força latente e restabeleço a calma. Este outro eu, o meu antigo, violento e mais velho eu enfurece-se cegamente como um animal, mas sou eu, aqui à parte, quem discerne o valor da causa e lhe ordena que se enfu­reça ou se apazigúe.» Oh, ser-se um homem!

Corliss não pôde evitar um sorriso divertido que pôs Frona imediatamente em guarda.

- Diga-me Vance, o que é que sentiu? Não o descrevi bem? Não foram assim os seus sintomas? Não ficou de parte a observar-se, a desempenhar o papel de bruto?

Vance recordou o deslumbramento momentâneo que sentira quando pusera o homem sem sentidos com um murro, e acenou que sim.

- E orgulho? - perguntou ela inexorável. - Ou vergonha?

- Um... bocadinho de ambos, e mais do pri­meiro do que da segunda - confessou. - Na altura penso que estava loucamente eufórico; mais tarde veio a vergonha, e passei metade da noite às voltas, acordado.

- E por último?

- Orgulho, parece-me. Não o pude evitar, não o pude dominar. Acordei de manhã como se tivesse ganho as minhas esporas. De um modo subconsciente, estava imoderadamente orgulhoso de mim próprio, repetidas vezes dei comigo, mentalmente, todo ufano. Depois voltou a vergonha, e eu procurei tornar a ganhar o auto-respeito pelo raciocínio. Por último, o orgulho. A luta tinha sido leal e franca. Não fora eu que a provocara. Fui forçado a entrar nela, pelo melhor dos motivos. Não estou arrependido. Torna­ria a repeti-la, se necessário.

- E com razão. - Os olhos de Frona estavam brilhantes. - Como se portou o Sr. St. Vincent?

- Ele?... Oh, suponho que bem, honrosamente. Estava demasiado ocupado a observar o meu outro eu, para reparar.

- Mas ele viu-o a si.

- É muito provável. Reconheço a minha negli­gência. Devia ter tido mais cuidado e tê-lo-ia, se pudesse adivinhar que o assunto lhe interessaria... per­doe a minha graça sem jeito. A verdade é que era demasiado inexperiente para fazer o meu trabalho e deitar olhadelas aos meus vizinhos.

E assim Corliss se foi embora, satisfeito por não ter falhado e admirando devidamente a habilidade de St. Vincent em antecipar-se astutamente aos comentários adversos, contando a história à sua própria maneira, modesta e auto-explicativa.

Dois homens e uma mulher! A mais poderosa trindade de factores na criação do patético e da tra­gédia humana! Tal como sempre, na história do Homem, desde que o nosso primeiro pai desceu da sua casa, nas árvores, e caminhou direito, assim foi em Dawson. Havia, necessariamente, factores meno­res, entre os quais Del Bishop não foi o menor quando, à sua maneira agressiva, se intrometeu e acelerou as coisas. Isto deu-se num acampamento, a caminho do riacho Miller, onde Corliss andava ocupado a reunir grande número de concessões de pequena importância que só poderiam ser explo­radas rendosamente, em grande escala.

- Não hei-de andar p'raí a esbanjar, quando arranjar fortuna, sabes? - observou o prospector ferozmente para o café que estava a preparar com um pedaço de gelo. - Nanja, nunca!

- Petróleo? - perguntou Corliss, esfregando um pedaço de pele de toucinho numa frigideira e dei­tando-lhe para dentro a farinha e os ovos.

- Petróleo, uma figa! Nunca mais me põem a vista em cima quando eu daqui me puser a andar p'ra terra de gente, com a «bagalhuça» na algi­beira e o sol nos olhos. Escute lá! Que tal? Não lhe apetecia agora um lombinho com molho, umas cebo­linhas, batatas fritas e os temperos necessários? Caramba! É o primeiro projecto que hei-de realizar. Depois uma orgia geral! Durante uma semana... Seattle ou «Frisco», tanto se me dá, e depois...

- Fica sem cheta, à procura de emprego.

- Nada disso! - rugiu Bishop. - Escondo o meu pé-de-meia antes de me pôr a andar, olarila! E depois, Califórnia do Sul comigo. Há um ror de tempo que ando com uma quinta-pomar, que é um mimo, debaixo d'olho... com quarenta mil, com­pro-a. Nada de mais negócios de adiantamentos de dinheiro, com a obrigação de dividir achados, nem nada disso. Já planeei tudo há muito tempo... contrato homens para cultivar a propriedade, um capataz para a dirigir, e eu a gozar e gastar a per­centagem. Um estábulo sempre com um par de cavalos bravos, sempre prontos; prontos para se lhes pôr as selas e os fardos em cima e partir, sempre que a febre de encontrar filões me atacar. É uma rica região de filões aquela, lá para leste, no deserto.

- E nenhuma casa no rancho?

- Claro. Com ervilhas-de-cheiro aos lados, e atrás um cantinho para horta: feijões e espinafres, rabanetes, pepinos e cenouras, nabos, repolhos e o resto. E uma mulher lá dentro para me obrigar a voltar, quando me der ganas de sair à procura de filões. Escute, o senhor que sabe tudo acerca de minas. Já alguma vez andou por aí a farejar filões? Não? Então nunca comece. É pior do que uísque, ou cavalos, ou jogo. As mulheres, quando vêm depois, já não contam. Quando lhe der a febre de procurar filões, case-se imediatamente. É a única coisa que o pode salvar; e, mesmo assim, não sei. Eu já o devia ter feito há anos atrás. Podia ser alguém, se o tivesse feito. Santo Deus. Os empregos que eu não deixei e coisas boas que deitei fora, só por causa dos filões! Pois case-se, e já. Digo-lhe com toda a franqueza! Siga o meu conselho e não fique solteiro mais tempo do que Deus manda, vá!

Corliss riu-se.

- É assim, estou a falar a sério. Sou mais velho do que o senhor e sei do que estou a falar. Ora há certa coisinha em Dawson que eu gostava de o ver apanhar. Foram feitos um para o outro, vocês.

Corliss já ultrapassara a fase em que teria consi­derado a intromissão de Bishop como uma imper­tinência. O caminho que atira os homens para as mesmas situações e os irmana era o grande nivelador de distinções, conforme ele já aprendera. Por isso deixou cair uma panqueca e permaneceu calado.

- Porque é que não entra na dança e ganha o par? - insistiu Del. - Não simpatiza com ela? Sei que sim, senão não voltava para a cabana, depois de estar com ela, como se caminhasse nas nuvens. É melhor entrar na dança, enquanto tem oportuni­dade. Não lhe aconteça como a mim com a Emmy, uma rapariga de estalo, e nós engraçávamos um com o outro a valer. Mas eu continuava a procurar filões e a adiar. Foi então que um lenhador, moreno e grandão, começou a arrastar-lhe a asa, e eu resol­vi-me a declarar-me... mas fui à procura de outro filão, só mais um, e, quando voltei, já ela era a mulher de um Sr. Qualquer-Coisa. Por isso já fica avisado. Esse escritor, esse imbecil que eu soquei fora da ópera, está a intrometer-se e a ganhar vantagem; e você aí, tal como eu, a correr por toda a parte e a deixar o casamento para trás. Note bem as minhas palavras, Corliss! Um belo dia de Inverno, quando chegar ao acampamento, encontra-os casados. Pode ter a certeza! E a si não lhe restará mais nada senão continuar a procurar filões.

A imagem era tão desagradável que Corliss se voltou de mau-humor e o mandou calar.

- Quem? Eu? - perguntou Del, tão ofendido, que Corliss se riu.

- Que faria você então? - perguntou.

- Eu? Vou-lhe dizer. Assim que voltar, vá visitá-la. Marque tantos encontros que seja pre­ciso tomar nota para se lembrar de todos. Ocupe­-lhe todo o tempo vago, de modo a pôr o outro camarada à margem. Não se faça mandão... ela não é o género... mas também não se ponha com muitas cerimónias. Meio-termo, compreende? E um dia, quando a vir bem disposta, a sorrir-lhe, com aquele jeito dela, coragem: peça-a em casamento. Não posso saber o resultado, naturalmente. Isso é o senhor quem o descobrirá. Mas não perca tempo de mais. É melhor casar cedo do que nunca. E se

esse escrevinhador se intrometer dê-lhe um empur­rão no estômago... com força! Isso arruma-o logo. Ou então, melhor ainda, chame-o de lado e fale com ele. Diga-lhe que o senhor é um homem mau e que aquele território está ocupado, ainda ele andava de fraldas, e que, se anda a meter o nariz, lhe arranca

a cabeça.

Bishop levantou-se, espreguiçou-se e foi lá para fora dar de comer aos cães.

- Não se esqueça de lhe arrancar a cabeça - gritou de lá. - E se está com escrúpulos, é só chamar-me. Não me faço rogado.


Capitulo XIV

- Ah, a água salgada, Miss Welse, a forte água salgada e as ondas enormes e os pesados barcos para o mar sereno ou picado... isso conheço eu! Mas a água doce e as canoazitas, cascas de noz, bolhas delicadas; um sopro forte, um suspiro, uma pulsação a mais, e pufe! Lá se viram elas! Não, senhor, essas não conheço. - O barão Courbertin sorriu de autocompaixão e prosseguiu. - Mas é encantador, magnífico. Tenho observado e invejado. Qualquer dia aprendo.

- Não é assim tão difícil - interveio St. Vincent. - Pois não, Miss Welse? Basta um equilíbrio de espírito e de corpo, seguro e delicado...

- Como um equilibrista?

- Oh, o senhor é incorrigível! - gracejou Frona. - Tenho a certeza de que percebe tanto de canoas como nós.

- E a senhora percebe?... uma mulher? - embora o francês fosse um cosmopolita, a independência e a destreza das mulheres ianques constituíam para ele uma admiração perpétua. - Como assim?

- Quando era pequena, em Dyea, com os índios. Mas na próxima Primavera, quando o rio ficar aberto à navegação, dar-lhe-emos as primeiras lições, o Sr. St. Vincent e eu. E assim, quando regressar à civilização, levará talentos novos. E vai adorar, de certeza.

- Com uma professora tão encantadora... - mur­murou ele galantemente. - O Sr. St. Vincent acha que serei capaz de aprender a ponto de vir a gostar? E o senhor gosta... o senhor, que se deixa ficar sempre na sombra, de parcas palavras, impenetrável, como se fosse sempre capaz mas não qui­sesse falar com a sabedoria eterna de uma expe­riência vasta? - O barão voltou-se rapidamente para Frona - Nós somos velhos amigos, não lhe tinha já contado? Posso por isso, como vocês costu­mam dizer, «entrar» com ele. Não é assim, Sr. St. Vincent?

Gregory confirmou com a cabeça, e Frona disse: - Tenho a certeza que se conheceram no fim do mundo, algures.

- Yokohama - cortou St. Vincent em poucas palavras. - Há onze anos, no tempo das cerejeiras em flor. Mas o barão Courbertin está-me a fazer uma injustiça que dói porque, infelizmente, não é verdade. Receio que ao princípio falasse de mais acerca de mim.

- Um mártir para os seus amigos - conciliou Frona. - E um narrador tão bom de histórias boas que os seus amigos não se dispensam de o obrigar.

- Então conte-nos uma história com canoas - pediu o barão. - Uma boa... uma... como vocês lhes chamam... de arrepiar os cabelos!

Aproximaram-se do fogão de lenha da Sr.a Schoville, que ardia bem recheado, e St. Vincent contou um episódio passado no grande remoinho do canhão Box, no sorvedoiro terrível conhecido por Rápidos do Cavalo Branco, com um seu camarada cobarde que o abandonara, deixando-o seguir sozinho... nove anos atrás, quando o Yukon era virgem.

Meia hora mais tarde, a Sr.a Schoville irrompeu pela sala com Corliss no seu rasto.

- Aquela colina! Estou sem fôlego! - disse, arfando e descalçando as luvas. - Nunca vi uma sorte assim! - declarou, não obstante, a seguir, com veemência não diminuída. - Esta peça nunca se representará! Nunca farei o papel de Sr.a Linden! Como posso eu? O Krogstad pôs-se a andar para Indian River e ninguém sabe quando voltará! O Krogstad - para Corliss - é o Sr. Maybrick sabe? A Sr.a Alexander está com nevralgias e não pode sair. Por isso não há ensaio hoje, está claro! - começou a declamar, dramaticamente: - Sim, no primeiro mo­mento de terror! Mas passou-se um dia, e nesse dia vi coisas incríveis nesta casa! O Helmer tem de saber tudo! É preciso pôr-se um fim a este segredo infeliz! Oh Krogstad, tu precisas de mim... e eu de ti, e tu estás para lá em Indian River a fazer bolinhos de garimpeiro, e eu nunca mais te ponho a vista em cima!

Aplaudiram.

- A minha única recompensa por me ter aven­turado a sair e a fazê-los a todos esperar, foi ter encontrado este ridículo rapaz - empurrando Corliss para a frente. - Oh, ainda se não conhecem! Barão de Courbertin, o Sr. Corliss. Se o senhor encon­trar um filão rico, aconselho-o a vender ao Sr. Corliss. Tem as bolsas de Creso e compra tudo com a condição de o título de propriedade ser bom. E, se não encontrar, venda à mesma. Ele é um filantropo profissional. Compreende?

«Mas então não querem lá saber! - dirigindo-se ao grupo em geral. - Então este ridículo rapaz não se me ofereceu amavelmente para me ajudar a subir a colina e bisbilhotar pelo caminho... bisbi­lhotar! Embora se recusasse terminantemente a entrar e a ver o ensaio? Mas, quando soube que não ia haver ensaio nenhum, mudou como um cata­vento. E aqui está ele, protestando ter estado no córrego Miller; mas, aqui para nós, não se sabe que feitos tenebrosos...»

- Feitos tenebrosos! Olhem! - interrompeu Frona, indicando a ponta de um cachimbo de âmbar que se desenhava no bolso do peito de Vance. - Um cachimbo! Os meus parabéns!

Ela estendeu-lhe a mão, e ele apertou-lha, bem­-humorado.

- A culpa é do Del - disse, rindo. - Quando me apresentar diante do grande trono branco, é ele que se adiantará e responderá por este pecado.

- Um melhoramento, seja como for - susten­tou a rapariga. - Só o que lhe falta agora é um bom palavrão, de vez em quando.

- Oh, asseguro-lhe que tenho alguns conheci­mentos - retorquiu Vance. - Nenhum homem é capaz de guiar cães sem isso. Sei praguejar, de todas as formas e feitios, e em todos os tons, com vossa licença, até ao último grau de danação. Pelos ossos do Faraó e pelo sangue de Judas, por exemplo, são bastante eficazes com uma matilha de cachorros; mas a minha melhor nomenclatura para guiar cães, só tenho pena que as senhoras a não possam ouvir. Prometo-lhes, no entanto, que raios...

- Oh! Oh! - guinchou a Sr.a Schoville, tapando os ouvidos com os dedos.

- Minha senhora - disse o barão Courbertin com gravidade - é um facto, um facto lamentável, que os cães do Norte são responsáveis por mais almas  humanas do que todas as outras causas juntas. Não é assim? Deixo o assunto aos cavalheiros.

Tanto Corliss como St. Vincent concordaram solenemente, passando a atacar a senhora com comovedoras e apropriadas histórias de cães.

 

St. Vincent e o barão ficaram para almoçar com a mulher do comissário do ouro, deixando Frona e Corliss sozinhos a descer, juntos, a colina. Num consentimento mudo, como para prolongar a descida, fizeram um desvio para a direita, atraves­sando transversalmente a miríade de carreiros e trilhas de trenó que conduziam à cidade. Era um dia de meados de Dezembro, límpido e frio, e o sol hesitante do meio-dia, tendo laboriosamente arrastado o seu pálido disco de detrás da linha de hori­zonte ao sul, detivera-se no seu zénite, contra a grande subida, e começava envergonhadamente a descer outra vez para detrás da terra. Os seus raios oblíquos reflectiam-se nas partículas de gelo sus­pensas, e o ar parecia cheio de uma poalha bri­lhante de pedras preciosas... resplandente, ofuscante, faiscando luz e fogo, mas fria como o espaço exterior.

Desceram, envolvidos pela cortina cintilante e magica, as mocassinas de ambos esmagando ritmicamente a neve, e a respiração saindo-lhes dos lábios em espirais misteriosas, numa auréola opales­cente. Nenhum deles falava, nem lhes apetecia, tão maravilhoso era tudo aquilo. A seus pés, sob a grande abóbada do firmamento, uma mancha no meio da imensidão branca, amontoava-se a cidade dou­rada - insignificante e sórdida, protestando fraca­mente contra a imensidade, desafio do homem ao infinito!

Gritos de homens e exclamações de incitamento chegavam-lhes nítidos, de muito perto, e eles deti­veram-se. Latidos impacientes, um raspar de patas, e uma matilha de cães-lobos, de línguas pendentes e fauces gotejando, puxava vertente acima, virando para o carreiro à frente deles. Em cima do trenó, um caixão comprido e estreito de madeira de abeto toscamente serrada denunciava a natureza da carga. Dois guias dos cães, uma mulher, que cami­nhava às cegas, e um padre, de negra sotaina, formavam o cortejo fúnebre. Pouco adiante, os cães tiveram outra vez de vencer a subida e, com latidos e gritos e muita algazarra, o corpo inerte foi sendo arrastado para a sua morada cavada no gelo, lá no alto da vertente.

- Um conquistador - murmurou Frona em voz comovida.

Corliss verificou que o seu pensamento seguia o dela e respondeu

- Estes batalhadores do gelo e guerreiros da fome! Compreendo como é que as raças dominadoras desceram do Norte para o Império. Fortes a aven­turar-se, fortes a suportar, com uma fé e uma paciên­cia infinitas, que é para admirar?

Frona olhou-o em silêncio eloquente.

- «Nós esmagamos com as nossas espadas - cantou ele. - Para mim foi um prazer tão grande como ter a minha linda noiva junto de mim, deitada. Marchei com a minha espada sangrenta, e a pilhagem seguiu-me. Lutámos furiosamente; o fogo devorou as habitações dos homens; dormimos no sangue daqueles que guardavam os portões. »

- E você sente isso, Vance? -exclamou ela, estendendo a mão num arrebatamento e descan­sando-lha no braço.

- Começo a sentir, parece-me. O Norte ensi­nou-mo, está a ensinar-me. As coisas antigas voltam com um significado novo. E, contudo, não sei. Parece-me um egoísmo tremendo, um sonho magní­fico.

- Mas você não é um negro nem um mongol nem descendente de negro ou de mongol.

- Sim - reflectiu ele -, sou o filho de meu pai, e a ascendência retrocede até aos reis do mar, que jamais dormiram sob as vigas fumacentas de um tecto nem esvaziaram vasos de cerveja em terra desa­bitada. Tem de haver uma razão para a condição paralisada do negro, uma razão para a expansão teutónica pela terra, como nenhuma outra raça jamais se expandiu. Tem de haver alguma coisa na heredi­tariedade da raça, ou eu não responderia ao chama­mento.

- Uma grande raça, Vance. Metade da Terra é a sua herança, e todos os mares! E em três dezenas de gerações realizou tudo isto... pense só! Três dezenas de gerações...! Hoje estende-se até mais longe do que nunca. Destruidora e esmagadora entre as nações. Que constrói e dita a lei. Oh, Vance, meu amor é apaixonado, mas Deus perdoará, porque é bom. Uma grande raça, magnificamente concebida. Se perecer, perecerá magnificamente! Lembra-se? «Vacilam as cinzas de Tggdrasil ainda de pé; geme a árvore antiga e Jõtun Loki está perdido. As sombras gemem pelos caminhos do Inferno, até o fogo de Surt ter consumido a árvore. Hrym aproxima-se de Leste, as águas sobem, a serpente mundana está enrolada enraivecida. 0 verme agita a água, e a águia grita; o pálido bico rasga carcaças; O navio Naglfar está perdido. Surt vem do Sul com chama bruxuleante; brilha-lhe na espada o sol do deus Val. »

Dominando o massacre final de homens e deuses, qual valquíria envolta em peles, Frona impressionou a imaginação de Vance, e o sangue irrompeu exul­tante por canais desconhecidos, vibrando emocionado.

«As colinas rochosas esmagam-se umas contra as outras, as gigantes vacilam; os homens calcorreiam o caminho do Inferno, e o Céu está fendido. 0 Sol escurece, a terra afunda-se no oceano, caem do firmamento as estrelas bri­lhantes, o hálito de fogo ataca a árvore que tudo alimenta, a labareda, alteando-se, ameaça o próprio Céu.»

Destacando-se contra o ar resplandecente, as sobrancelhas e as pestanas brancas de gelo, a poalha de pedras preciosas incidindo e flamejando-lhe contra o cabelo e o rosto, e o sol meridional ilumi­nando-a com um grande clarão rubro, o homem tomou-a pelo génio da raça. As tradições do sangue prenderam-no, e ele era sensível à pele branca e ao cabelo doirado dos gigantes do mundo mais novo. Ao contemplá-la, o passado poderoso ergueu-se diante dele, e as cavernas do seu ser ressoaram com o estrépito e o tumulto de batalhas esquecidas. Com o uivar dos vendavais e o fragor das ondas fume­gantes dos mares do Norte, visionou as galeras de combate, de proa aguçada, e os homens nórdicos atraídos pelo mar, musculosos, de peitos largos, emergindo dos elementos, homens da espada e do remo, saqueadores e flageladores das terras soalheiras do Sul! O estrondear de vinte séculos de batalha ribombava-lhe aos ouvidos e sobre si exercia-se forte o chamamento para regressar à espécie. Agar­rou-lhe as mãos apaixonadamente.

- Seja a minha linda noiva junto de mim, Frona! Seja a linda noiva junto de mim deitada!

Ela estremeceu e baixou os olhos para ele, inter­rogadoramente. Em seguida compreendeu a signi­ficação e involuntariamente recuou. O Sol dardejou um débil lampejo derradeiro e escondeu-se. O fogo desapareceu do ar, e o dia escureceu. Para cima, muito ao longe, os cães do carro funerário uivaram lugubremente.

- Não! - cortou ele, ao ver as palavras for­maram-se nos lábios dela. - Não diga nada. Sei a minha resposta, a sua resposta... agora... fui um louco... Venha, vamos descer.

Só depois de terem deixado para trás a monta­nha, atravessado a planície e chegado ao rio junto à serragem, sentindo o bulício e a correria da vida humana, é que conseguiram tornar a falar. Corliss tinha caminhado com os olhos tristemente pregados no chão; e Frona, com a cabeça erecta a olhar para todo o lado, arriscando uma olhadela ocasional para o rosto dele. No sítio onde a estrada passava por cima da trilha de toros da serração, o piso era escor­regadio; e, quando ele a segurou para evitar que caísse, os seus olhos encontraram-se.

- Eu... eu estou confundida - disse ela, hesi­tando. Em seguida, numa autodefesa inconsciente:­ Foi tão... Não esperava nada... naquela altura.

- Senão tinha-o evitado? - perguntou ele amar­gamente.

- Sim. Penso que teria. Não o queria magoar...

- Então já esperava, mais dia, menos dia?

- E receava. Mas tinha esperança... eu... Vance, eu não vim para o Klondike para me casar. Gostei de si, logo de princípio, e fui gostando cada vez mais de si... hoje mais do que nunca ... mas...

- Mas nunca me tinha considerado como um possível marido... é isso o que está a tentar dizer-me.

Enquanto falava, observava-a de soslaio e atenta­mente; e, quando os olhos dela encontraram os seus com a mesma franqueza antiga, o pensamento de a perder enlouqueceu-o.

- Tinha sim - retorquiu ela imediatamente. - Considerei-o sob esse aspecto, mas, não sei porquê, não foi convincente. Porquê, não sei. Havia tantas coisas em si que me agradavam, tantas...

Vance tentou fazê-la calar com um gesto de discordância, mas Frona prosseguiu.

- Tanto que admirar! Todo o calor da amizade, e amizade cada vez mais íntima... uma camara­dagem crescente, de facto. Mas nada mais. Embora não desejasse mais, tê-lo-ia acolhido bem, se isso surgisse.

- Como se acolhe o hóspede não desejado.

- Porque não me ajuda, Vance, em vez de tornar as coisas mais difíceis? É difícil para si, sem dúvida, mas pensa que a mim me diverte? Sinto pela sua dor e, além disso, sei que, quando recuso um amigo querido para apaixonado, o amigo querido se afasta de mim. Não me separo dos amigos com facilidade.

- Compreendo; desastre duplo. Amigos e apai­xonados, ambos. Mas facilmente são substituídos. Imagino que estava meio perdido antes de ter falado. Se tivesse ficado calado, teria sido o mesmo, de qualquer maneira. O tempo suaviza: novos conhecimentos, novos pensamentos e novos rostos; homens com aventuras maravilhosas...

A rapariga interrompeu-o abruptamente.

- É inútil, Vance, diga você o que disser, não questionarei consigo. Compreendo o que deve sentir...

- Se estou teimoso, o melhor é deixá-la. - Deteve-se de repente, e ela parou a seu lado. - Ali vem o Dave Harney. Acompanhá-la-á a casa. São só mais uns metros.

- Você não está a ser delicado nem para si nem para mim - ela falou com firmeza deci­siva. - Recuso-me a considerar isto como o fim. O assunto toca-nos muito de perto para o podermos compreender bem. Tem de me ir visitar, quando ambos estivermos mais calmos. Recuso-me a ser tratada desta maneira. É criancice sua - deitou uma olhadela apressada ao rei do Eldorado, que se aproximava. - Não acho que lhe mereça isto. Recuso perdê-lo como amigo. E insisto em que me venha visitar, e que as coisas fiquem no pé antigo.

O rapaz abanou a cabeça.

- Olá! - Dave Harney levou a mão ao gorro e abrandou o passo negligentemente. - É uma pena que não tenham seguido o meu conselho. Os cães subiram para um dólar o arrátel, desde ontem, e ainda estão a subir. Boa tarde, Miss Frona e Sr. Corliss. Vão para os meus lados?

- A Miss Welse vai - Corliss levou a mão à pala do boné e deu meia-volta sobre os calca­nhares.

- Onde vai? - perguntou Dave.

-Tenho um encontro - mentiu.

- Não esqueça - gritou-lhe Frona. - Tem de me ir visitar.

- Estou muito ocupado, receio, por estes dias. Adeus. Até à vista, Dave.

- Credo! - observou Dave, seguindo-o com o olhar. - Mas é um homem incansável. Sempre ocupado... e com coisas importantes. Admira-me que não se tenha entusiasmado com os cães.


Capitulo XV

Mas Corliss voltou a ir visitá-la, e antes que o dia tivesse terminado. Um pequeno auto-exame amargo não demorara a mostrar-lhe a sua infanti­lidade. A dor da perda era grande, mas o pensa­mento de que as últimas impressões dela a seu res­peito fossem más magoava-o quase tanto e, de certo modo, até mais. Além disso, posto tudo o resto de parte, sentia-se verdadeiramente envergonhado. Julgara que seria capaz de aceitar uma desilusão daquelas com mais virilidade, principalmente quando de antemão não estava nada seguro do terreno que pisava.

Por isso foi visitá-la e acompanhou-a até ao quartel. Pelo caminho, com a ajuda da rapariga, procurou suavizar o mal-estar que a manhã deixara entre eles. Falou sensata e humildemente, o que ela aprovou, e teria pedido formalmente perdão se lho não tivesse impedido.

- Não tem absolutamente nada de que se sentir envergonhado. Se eu estivesse no seu lugar, provavelmente teria feito o mesmo e ter-me-ia portado ainda pior. Porque você foi insolente, sabe?

- Mas, se estivesse no meu lugar, e eu no seu - respondeu numa débil tentativa de fazer humor - não haveria necessidade disso.

Frona sorriu, satisfeita por ele já se sentir mais bem disposto.

- Mas infelizmente as nossas boas maneiras sociais não permitem tal inversão - acrescentou Vance, mais pelo desejo de dizer qualquer coisa.

- Ah! - troçou ela. - Aí é que se revela o meu jesuitismo. Sou superior às nossas boas maneiras sociais.

- Não está a querer dizer que...?

- Pronto! Lá está você escandalizado outra vez! Não sou tão rude assim para falar directamente, mas podia valer-me de finesse, como vocês os joga­dores de uíste costumam dizer. Atingir o mesmo fim, mas com maior delicadeza. Ao fim e ao cabo, uma distinção sem uma diferença.

- Era capaz disso? - perguntou ele.

- Sei que era... se a ocasião o exigisse. Não sou pessoa para deixar fugir o que possa considerar como a felicidade da minha vida, sem lutar. Isso -judiciosamente - só acontece nos livros e entre sentimentais. Como costuma o meu pai dizer, per­tenço aos lutadores. Aquilo que a mim me parece grande e sagrado, por isso lutaria eu, nem que o céu me desabasse em cima.

«Você deu-me uma grande alegria - disse ela à despedida, em frente dos portões do quartel. - Tudo continuará como antigamente. E não gosto nem um bocadinho menos de si do que antigamente, antes pelo contrário, gosto muito mais.»

Mas Corliss, após várias visitas de protocolo, esqueceu o caminho para a casa de Jacob Welse e entregou-se ferozmente ao trabalho. Tinha mesmo a hipocrisia, às vezes, de se felicitar por haver escapado e de imaginar cenas monótonas à lareira, sobre o futuro sinistro que teria sido o seu, se ele e Frona se tivessem unido incompativelmente. Mas isto era só às vezes. Normalmente, pensar nela fazia-o sentir fome, num sentido semelhante ao da fome física; A única coisa que lha aplacava era o trabalho duro e intenso. Mas, mesmo assim, quer pelos caminhos, quer nos cursos de água, no acampamento ou a fazer inspecções, só conseguia libertar-se dela quando estava acordado. A dormir, era ignobilmente con­quistado. Del Bishop, que andava muito com ele, estudava a sua inquietação e escutava prontamente as palavras que deixava escapar.

O prospector juntou dois com dois e fez uma indução correcta das pequenas coisas que lhe saltavam aos olhos. Mas isto não requeria grande astúcia. O simples facto de ele já não visitar Frona era prova suficiente de um pedido de casamento recusado. Del Bishop foi, porém, mais longe e dedu­ziu o corolário de que St. Vincent era a causa de tudo. Por diversas vezes vira o correspondente com Frona, aqui e além, e ficava enraivecido a valer.

- Hei-de tratar-lhe da saúde! -resmungou, uma noite, no acampamento, em Gold Bottom.

- A quem? - perguntou Corliss.

- Quem? Esse jornalista, quem havia de ser?

-Para quê?

- Ah... questão de princípios. Porque é que não me deixou fazê-lo em fanicos naquela noite, na ópera?

Corliss riu-se, ao recordar-se.

- Porque é que lhe bateste, Del?

- Questão de princípios - ripostou Del. E ca­lou-se.

Mas Del Bishop, não obstante todo o seu espírito punitivo, não descurou a oportunidade principal e, no regresso, quando chegaram à confluência do Eldorado e do Bonanza, mandou parar.

- Escute aqui, Corliss - começou imediata­mente. - Sabe o que é um palpite? - O patrão acenou, em sinal de compreensão. - Bom, pois eu cá tenho um. Nunca lhe pedi nenhum favor, mas desta vez queria que o senhor ficasse aqui até amanhã. Quere-me cá parecer que já não falta muito para o rancho-pomar. Até já sinto o cheiro das laranjas a amadurecer, raios!

- Com certeza - concordou Corliss. - Mas, melhor ainda, eu vou para Dawson, e pode ir lá ter, quando tiver acabado esse palpite.

- Olhe cá! - objectou Del. - Eu disse que era um palpite; e quero-lhe contar, comprende? O senhor é um tipo direito e aprendeu um ror de coisas nos livros. É um entendido em coisas de laboratório e tudo o mais. Mas o que é preciso é ler a face da natureza sem óculos. Ora eu cá tenho uma teoria...

Corliss levantou as mãos ao ar, num pavor simulado, e o prospector começou a ficar zangado.

- Pois, pois! Ria-se! Mas baseia-se precisamente na sua teoria favorita da erosão e da mudança dos leitos dos rios. E eu não procurei minas no México durante dois anos para nada. Donde é que supõe que veio este ouro do Eldorado... acidentado e sem sinais de água? Hem? Agora é que precisa de óculos. Os livros fizeram-no míope. Mas não importa como vieram. Aliás não são propriamente minas, mas eu sei do que estou a falar. Não tenho andado a controlar vestígios para manter a linha. Garanto­-lhe que a mineração engana mais acerca do leito do Eldorado do que o senhor é capaz de descobrir num mês inteiro, a ler livros. Mas não faça caso, não quis ofender. Fique comigo até amanhã e poderá comprar um rancho ao lado do meu, juro.

- Bom, muito bem. Poderei descansar e rever os meus apontamentos, enquanto você vai procurar lá o seu leito antigo do rio.

- Não lhe disse que era só um palpite? - per­guntou Del, em tom de censura.

- E eu não concordei em ficar? Que mais quer?

- Dar-lhe um rancho, ora aí está! Só precisa de ir comigo e vasculhar um bocadito, e mais nada.

- Eu não quero nenhum dos seus quiméricos ranchos de fruta. Estou cansado e aborrecido; não me pode deixar em paz? Parece-me que estou a ser mais do que leal, quando condescendo contigo, ao ponto de parar. Você pode perder o seu tempo a vasculhar à vontade por aí, mas eu fico no acampa­mento. Compreende?

- Diabos me levem, que o senhor é mas é um grande ingrato! Raios me partam, que deixo o emprego, não tarda nada, se o senhor me não des­pedir primeiro! Eu acordado noites inteiras a magicar na minha teoria e a fazer cálculos e a metê-lo no segredo, e o senhor a ressonar, e Frona para aqui, Frona para ali...

- Basta! Cale-se!

- Calo-me uma figa! Se eu não soubesse mais de minérios de ouro do que o senhor sabe de fazer a corte...

Corliss saltou para ele, mas Del esquivou-se para um lado e ergueu os punhos. Em seguida evitou uma direita violenta e desviou-se para terreno mais firme, no carreiro batido.

- Espere um momento - gritou, quando Corliss fez menção de se atirar outra vez a ele. - Um momento. Se eu lhe der uma surra, subirá comigo a vertente da colina?

- Sim.

- E se eu não der, pode despedir-me. É justo. Vamos a isto!

Vance não tinha possibilidades nenhumas, como Del bem sabia, e este brincou com ele, fintando-o, atacando, recuando, desnorteando, e desaparecendo de vez em quando do seu campo de visão, de maneira exasperante. Conforme Vance rapidamente descobriu ele possuía muito pouca correlação entre o espírito e o corpo, e a coisa que descobriu a seguir é que estava estendido na neve, a recobrar lentamente os sentidos.

- Como... como é que fez isto? - gaguejou ele para o prospector, que tinha a sua cabeça em cima dum joelho e lhe esfregava a testa com neve.

- Oh, isso passa! - disse Del, a rir-se, aju­dando-o a pôr-se de pé, a vacilar. - O senhor é rijo. Ensino-lhe um dia destes. Tem ainda muitas coisas que aprender, que não vêm nos livros. Mas agora não. Temos de deitar mãos à obra e armar o acampamento, e depois vai subir a colina comigo.

- Eh, Eh - casquinou ele mais tarde, quando estavam a armar a chaminé do fogão yukon. – Míope e lento. Com que então não me podia seguir, hem? Oh, mas eu hei-de ensinar-lhe um dia destes, eu hei-de ensinar-lhe, pois então! Pois então! Pegue num machado e venha daí - ordenou, quando o acampamento ficou pronto.

Indicou o caminho pelo Eldorado acima, pediu emprestadas uma picareta, uma pá e uma peneira, numa cabana, e subiu por entre as margens perto da embocadura do riacho Francês. Vance, embora se sentisse um tanto dorido, por esta altura já se estava a rir de si próprio e a gozar a situação. Exa­gerava a humildade com que seguia atrás do seu conquistador, ao passo que o servilismo extravagante que caracterizava a sua obediência para com o seu empregado fazia este sorrir.

- O senhor é um tipo rijo. Tem têmpera! - Del deitou as ferramentas ao chão e esquadrinhou a superfície da neve. - Pegue no machado, trepe lá cima à colina e corte alguma lenha seca de skookum.

Quando Corliss voltou com a última braçada de lenha, o prospector tinha limpado a neve e o musgo em diversos sítios, que formavam, no desenho geral, uma cruz tosca.

- Estou a cortá-lo em ambos os lados - expli­cou. - Talvez dê com ele aqui, ou ali, ou lá acima; mas, se o meu palpite estiver certo, é este o sítio. Lá em cima, o leito rochoso afunda-se e é mais fundo lá e provavelmente mais rico, mas é muito mais trabalhoso. Aqui é a orla da margem. Não pode ter mais do que alguns pés de profundidade. O que pre­cisamos agora é de indicações; depois, mais tarde podemos furar pelo lado.

Enquanto falava, ia acendendo fogueiras aqui e ali, nos sítios descobertos.

- Mas ouça cá, Corliss, quero que fixe bem que isto não é prospectar. Isto é puro trabalho de apren­diz; mas prospectar... -endireitando as costas falou com reverência -prospectar é a ciência mais pro­funda, a mais bela das artes. Delicada em extremo, requer mão e olho certos e firmes como o aço. Quando se tem de queimar a peneira duas vezes por dia, até ficar negra, e de uma pazada de casca­lho se extrai a partícula minúscula de oiro em pó... isso sim, isso é que é! Sabe que mais? Prefiro seguir um filão a comer.

- E prefere lutar a fazer ambas essas coisas.

Bishop deteve-se a meditar. Auto-examinou-se com o mesmo cuidado necessário para extrair a tal partícula minúscula de oiro em pó.

- Não, isso é que não. Prefiro acima de tudo descobrir filões. É como a droga, Corliss, não tenha dúvidas. Desde que lhe entre no corpo, está perdido. Nunca mais se livra dela. Repare em mim! E ainda falam em quimeras; ao pé disto não são nada.

Deu uns passos e com um pontapé desmanchou uma das fogueiras. Em seguida ergueu a picareta, e a ponta de aço enterrou-se e deteve-se com um ruído metálico, como se tivesse embatido em cimento sólido.

- Não derreteu duas polegadas - resmungou abaixando-se e esgravatando com os dedos no estrume húmido. As folhas da erva do ano anterior tinha ficado queimadas, mas ele conseguiu juntar e arran­car uma mão cheia de raízes.

«Diabos!»

- O que é? -perguntou Corliss.

- Diabos! - repetiu com veemência, batendo com as raízes cobertas de terra contra a peneira.

Corliss aproximou-se e inclinou-se para examinar mais de perto.

- Espere! - exclamou, pegando em dois ou três pedacitos sujos de cascalho. E esfregou-os com os dedos. Surgiu um amarelo brilhante.

«Diabos! - repetiu o prospector, em tom inex­pressivo. - À primeira escavadela! Começa nas raízes da erva e vai por ali abaixo.»

De cabeça inclinada para o lado e levantada, olhos fechados, narinas dilatadas e a vibrar, ele ergueu-se de repente e cheirou o ar. Corliss olhou-o, espantado.

- Hum! -grunhiu o prospector. Em seguida inspirou fundo. - Não lhe cheira a laranjas?


Capitulo XVI

A debandada para a Colina Francesa começou no princípio da semana do Natal. Corliss e Bishop não tinham tido pressa em fazer o registo. Exami­naram o terreno cuidadosamente antes de colocar as marcas e puseram alguns amigos íntimos ao corrente: Harney, Welse, Trethaway, um holandês chechaquo que tinha perdido ambos os pés, gelados, dois polícias-montados, um velho camarada com quem Del fizera prospecções pela região das Colinas Negras, a lavadeira da confluência dos rios e, por último e inesperadamente, Lucile. Corliss fora o responsável por ela ter entrado na conjura, e fora ele próprio quem colocara as marcas dela, embora tivesse recaído no coronel o encargo de a convidar a entrar e a fazer fortuna.

De acordo com o costume da região, aqueles que assim foram beneficiados ofereceram-se para subs­crever metade dos interesses aos dois descobridores. Corliss não quis ouvir falar desta proposta. Del pensava da mesma maneira, embora não fosse movido por nenhumas razões éticas. Já tinha que lhe bas­tasse.

- Já tenho dinheiro para pagar o meu rancho-pomar do dobro do tamanho que eu calculava - explicava ele. - Se tivesse mais, não sabia que fazer com ele, de certeza.

Depois da descoberta do ouro, Corliss tratou de arranjar outro homem, naturalmente; mas quando trouxe para o acampamento um californiano de olhar vivo Del ficou furioso.

- Não pense em tal - rugiu este.

- Mas você agora está rico - respondeu Vance não precisa de trabalhar.

- Rico, uma figa! - retorquiu o prospector. - De acordo com a lei, o senhor não me pode des­pedir. Vou continuar no emprego, enquanto a minha namorada mo permitir, compreende?

Na manhã de sexta-feira, muito cedo, todas as partes interessadas compareceram perante o comis­sário do ouro, para registar as suas terras demar­cadas. A notícia espalhou-se imediatamente. Cinco minutos depois, punham-se a caminho os primeiros aventureiros. Ao fim de meia hora, toda a cidade estava a caminho. Para evitar enganos na sua pro­priedade - tirar, mudar marcas ou mutilar indi­cações - Vance e Corliss, assim que acabaram de fazer o registo, voltaram para lá. Mas, com o selo do governo impresso no seu título de propriedade, fizeram-no sem pressas, e os aventureiros passavam­-lhes à frente, numa fila ininterrupta. A meio do caminho, Del olhou por acaso para trás. St. Vincent estava à vista, caminhando a passo rápido, com a habitual mochila dos caminheiros às costas. O cami­nho fazia uma curva apertada naquele lugar, e, com excepção dos três, não se via ninguém.

- Não fale comigo. Faça de conta que me não conhece - avisou Del repentinamente, aconche­gando o cachecol à cara, o que servia para encobrir a identidade por completo. - Há além uma poça de água. Deite-se no chão e finja que está a beber. Depois vá sozinho para a propriedade. Tenho cá um negócio a tratar. E, pelas alminhas, não me dirija uma palavra a mim nem àquele patife. Não deixe que ele veja a sua cara.

Corliss obedeceu, admirado, desviando-se do caminho, deitando-se na neve e mergulhando uma lata vazia de leite condensado na poça de água. Bishop pôs um joelho em terra e inclinou-se, como se estivesse a apertar uma mocassinas. Quando St. Vincent chegou precisamente junto de Bishop, este acabou de apertar o nó e começou a caminhar com a pressa febril de alguém que desejasse recuperar o tempo perdido.

- Escute, espere aí, bom homem! - gritou-lhe o correspondente.

Bishop deitou-lhe uma olhadela rápida e conti­nuou com mais pressa. St. Vincent desatou acorrer até o apanhar.

- Este é o caminho...

- Para as faldas da Colina Francesa? - cortou ele rapidamente. - Garantido! É para lá que eu vou. Até à vista.

Pôs-se a caminho, a uma velocidade tremenda, e o correspondente, meio a correr, girou atrás dele com o evidente propósito de o acompanhar. Corliss, ainda escondido, levantou a cabeça e observou-os a afastarem-se; mas, quando viu o prospector flectir abruptamente para a direita e tomar pelo caminho para o riacho Adams, compreendeu tudo e riu baixinho para si.

Muito tarde, nessa noite, Del chegou ao acampa­mento no Eldorado, exausto mas radiante.

- Não lhe fiz nada - exclamou, ainda antes de passar as abas da tenda. - Dê-me uma trinca qual­quer  - agarrando na chaleira e despejando um jacto quente pela garganta abaixo - ...banha, neve derre­tida, mocassinas velhas, tocos de velas, qualquer coisa!

Em seguida caiu desfalecido em cima dos cober­tores e começou a massajar os músculos das pernas inteiriçados, enquanto Corliss fritava presunto fumado e punha na mesa os feijões.

- O que é que lhe aconteceu a ele? - contou exultante entre duas garfadas. - Bom, é garantido que ele não chegou às faldas da Colina Francesa. «Quanto falta, bom homem?» - imitando muito bem o tom protector de St. Vincent - «Quanto falta?» -já sem o tom protector - «Quanto falta para a Colina Francesa?» - debilmente - «Quanto acha que falta?» - muito debilmente com um trémulo que denunciava lágrimas reprimidas - «Quanto falta...»

O prospector desatou em gargalhadas estrondo­sas, que foram sufocadas por um jacto de chá mal dirigido, que o deixou a tossir e sem fala.

- Onde é que o deixei? - disse quando se recompôs. - Na encruzilhada para Indian River, sem fôlego, feito em papas, meio-morto. Capaz ape­nas de rastejar até ao acampamento mais próximo; e é tudo. Andei cinquenta milhas duras, por isso cá vou para a cama. Boa noite. Não me acorde de manhã.

Meteu-se entre os cobertores, todo vestido. Quando adormeceu, Vance ouviu-o murmurar: «Quanto falta, bom homem? Escute, quanto falta?»

 

Corliss ficou desiludido a respeito de Lucile.

- Confesso que a não consigo compreender - disse ele ao coronel Trethaway. - Pensava que os títulos de propriedade a tornassem independente da Casa da ópera.

- Não se arranja dinheiro dum momento para o outro -interpôs o coronel.

- Mas pode hipotecar-se a terra da propriedade, quando ela promete como a dela. No entanto eu tomei isso em consideração e ofereci-me para lhe adiantar uns milhares, sem qualquer interesse. Mas recusou. Disse que não precisava. Na realidade, mostrou-se verdadeiramente grata; agradeceu-me e disse-me que, em qualquer altura em que estivesse aflito, fosse ter com ela.

Trethaway sorriu e brincou com a sua corrente do relógio.

- Que faria você? A vida, mesmo aqui, significa sem dúvida mais para si e para mim do que um naco de comida, um cobertor e um fogão. Ela é tão gregá­ria como nós outros e provavelmente ainda um pouco mais. Suponha que ela se afastava da Casa da ópera... E depois? Podia ir para o quartel e conviver com a esposa do capitão, fazer visitas sociais à Sr.a Schoville, ou acamaradar com Frona? Não está a compreender? Você era capaz de a acompanhar à luz do dia, pela rua abaixo?

- E o senhor era? - perguntou Vance.

- Sim! - replicou o coronel sem hesitar. - E com muito prazer.

- Pois eu também, mas... - calou-se e contem­plou o fogo tristemente. - Mas veja como ela se dá com o St. Vincent. São unha com carne, e andam sempre juntos.

- Isso intriga-me - admitiu Trethaway. - Com­preendo a posição do St. Vincent. Vários ferros no fogo, e Lucile possui uma propriedade no segundo renque da Colina Francesa. Tome nota do que lhe digo, Corliss. Podemos dizer com infalibilidade o dia em que Frona consentirá em casar com ele... se chegar a consentir.

- E isso quando será?

- No dia em que St. Vincent romper com Lucile.

Corliss ficou meditativo. O coronel prosseguiu

- Mas não consigo compreender a posição de Lucile. O que pode ela achar em St. Vincent...

- O gosto dela não é pior do que... do que o do resto das mulheres. - interrompeu Corliss com calor. - Tenho a certeza de que...

- Frona não poderia ter mau gosto, hem?

Corliss deu meia-volta nos calcanhares e saiu, dei­xando o coronel Trethaway a sorrir com severidade.

Vance Corliss nunca soube quantas pessoas, directa e indirectamente, defenderam a sua causa nessa semana do Natal. Dois homens se esforçaram em particular, um por ele e outro por amor de Frona. Pete Whipple, um veterano da região, possuía uma propriedade no Eldorado, mesmo abaixo da Colina Francesa, e também uma mulher da região por esposa - da raça trigueira, não demasiado bonita, cuja mãe índia se casara com um negociante de peles russo, trinta anos antes, em Kutlik, no Grande Delta. Bishop foi lá, numa manhã de domingo, para matar saudades uma hora ou coisa assim com Whipple, mas encontrou a mulher sozinha na cabana. Ela falava um inglês abastardado, que era uma agonia ouvir, por isso, o mineiro resolveu fumar um cachimbo e partir, sem ser incorrecto. Mas ele soltou-lhe a língua, e de tal forma, que foi ficando e fumou muitos cachimbos; sempre que ela se retardava, incitava-a a continuar. Resmungava e ria-se à socapa e praguejava em voz baixa, enquanto a ouvia, sublinhando a narrativa dela regularmente com uns «Diabo!» que exprimiam adequadamente as muitas gradações de interesse que ia sentindo.

A certa altura, a mulher pescou um volume antigo encadernado em pele, todo estragado e arranhado, do fundo de uma arca delapidada, o qual daí para diante ficou pousado em cima da mesa entre os dois. Embora permanecesse fechado, ela referia-se-lhe cons­tantemente, por olhares e por gestos e, de cada vez que o fazia, uma expressão ávida brilhava nos olhos de Bishop. Por fim, quando a mulher já não tinha mais nada para contar e se tinha repetido duas ou seis vezes, ele puxou da bolsa e abriu-a. A Sr.a Whipple armou a balança do ouro e colocou os pesos, que ele contrabalançou com ouro em pó, no valor de cem dólares. Depois partiu, subindo a colina até à tenda, apertando a sua compra firmemente, e surgiu de rompante diante de Corliss, que estava sentado na cama a remendar as mocassinas.

- Hei-de tratar-lhe da saúde! - observou Del casualmente, apalpando ao mesmo tempo o livro o atirando-o para cima da cama.

Corliss levantou os olhos interrogativamente e abriu-o. As folhas estavam amarelas, do tempo, e em mau estado, pela acção do clima nas viagens. O texto estava impresso em russo.

- Não sabia que estudava russo, Del! - zombou.

- Eu não percebo nem uma linha.

- Nem eu, o que é uma pena. E a mulher do Whipple também não compreende a língua. Foi a ela que o comprei. Mas o pai dela era russo, autêntico, sabia? E costumava ler-lho em voz alta. E ela sabe o que sabe e o que o velho dela sabia, e eu cá também.

- E o que sabem vocês os três?

- Oh, isso é uma história muito comprida - respondeu Bishop modestamente. - Mas o senhor espere até ver o barulho que eu vou armar. Quando vir, ficará também a saber.

 

Matt McCarthy apareceu na semana do Natal, inteirou-se da situação respeitante a Frona e St. Vincent, e não gostou. Dave Harney forneceu-lhe todas as informações, às quais ele acrescentou as que obti­vera de Lucile, com quem se dava bem. Talvez por ter sido beneficiado com o conjunto das pre­venções deles, ou não importa como, o certo é que enfileirou ao lado daqueles que olhavam o corres­pondente com desagrado. Era impossível a esses dizer a razão por que não aprovavam o homem. Seja como for, St. Vincent não obtinha grande êxito junto dos homens. Isto, por sua vez, podia ser devido ao facto de ele brilhar com tanto resplendor entre as mulheres, que eclipsava os seus camaradas; porque, por outro lado, nas suas relações com os homens, ele era tudo quanto um homem podia desejar. Não havia nada de dominador ou de sober­bo nele; em contrapartida, manifestava boa cama­radagem, que pelo menos era igual à deles pró­prios.

Contudo, tendo adiado o seu juízo depois de haver escutado Lucile e Harney, resolveu passar uma hora com St. Vincent em casa de Jacob Welse - e isto em face do facto de aquilo que Lucile dissera ter ficado invalidado pela descoberta de Matt acerca da intimidade dela com o homem em ques­tão. Forte nas amizades, generoso de coração, Matt não perdeu tempo. «Vou-me meter numas funções sociais, como convém a um membro da nobre dinas­tia do Eldorado» - explicou. E trepou à colina para ir a uma partida de uíste na cabana de Dave Harney. Para consigo acrescentou: «E possivelmente, se o Satanás não olhar por aquilo que é dele, porei à prova aquele seu filhote».

Mas por mais de uma vez, durante a noite, deu consigo a duvidar do seu próprio julgamento. Son­dando como costumava, com a sua sagacidade ino­cente, Matt sentia-se desconcertado. St. Vincent parecia inquestionavelmente sincero. Simples, alegre, natural, troçando e sendo troçado com bom-humor, absolutamente democrático, Matt não conseguia descobrir-lhe o menor vestígio de fingimento.

«Diabos me levem - disse para consigo, enquanto estudava uma mão que sofria de uma superabun­dância de trunfos. - São os anos que já me estão a pesar no corpo. Um rapaz às direitas, e que direito tenho eu de o julgar mal só por ele ter êxito junto das senhoras? Só porque as lindas criaturas todas se sorriem para o rapaz e coram quando o avistam? Olhos brilhantes e homens valentes! É esta a ideia que elas fazem do amor. Todas estremecem e se horrorizam com os feitos cruéis e sangrentos da guerra, mas por quem é que elas se apaixonam senão pelos carniceiros dos bravos soldados? Porque não? O rapaz praticou feitos corajosos, e as raparigas prodigalizam-lhe sorrisos quentes e doces. Que razões de peso tenho eu para lhe chamar filho do Diabo? Fora contigo, Matt McCarthy, que estás um velho rabugento, de vísceras geladas e sem calor no coração! Estás um fóssil, é o que tu estás! Mas aguenta um pouquinho, Matt, aguenta um pouqui­nho. - acrescentou. - Espera até teres apertado os ossos dele».

A oportunidade surgiu pouco depois, quando St. Vincent, com Frona em frente, estava embre­nhado no jogo de cartas.

- Uma de mão! - exclamou Matt. - Vincent, meu rapaz, aperta cá o bacalhau, meu bravo.

Foi um aperto de mão vigoroso, nem quente nem mole, mas Matt sacudiu a cabeça duvidoso. «Para que me estou p'raqui a ralar? - resmungou para consigo, enquanto baralhava as cartas para a pró­xima jogada. - Velho tonto. Descobre primeiro em que pé está a querida Frona. Se estiver pelo beiço, então entras em acção.»

- Oh, o McCarthy é um valentão - afirmou Dave Harney aos outros mais tarde, vindo em socorro de St. Vincent com quem Matt, com o seu humor irlandês, não parava de implicar. A reunião tinha terminado, e o grupo estava a vestir os abafos e a calçar as luvas. - Ele ainda lhes não contou a visita que fez à catedral, quando estava no continente, pois não? Bom, foi assim, mais ou menos, segundo me contou. Foi à catedral, durante a celebração e enganou os padres e os meninos do coro com as suas sobrepelizes, albornozes, como ele lhes chamou, e ficou a ver o incenso a arder. «E sabes uma coisa Dave», disse-me ele, «fizeram uma fumarada que não ficou nem um raio dum mosquito à vista».

- E verdade, sem tirar nem pôr - Matt, imper­turbável, reconheceu a paternidade da história de Harney. - E já ouviram contar aquela vez em que o Dave e eu apanhámos uma borracheira de leite condensado?

- Oh! Que horror! - exclamou a Sr.a Schoville. - Mas como foi isso? Contem-nos.

- Foi na altura em que havia falta de velas em Forty Mile. Caíra uma onda de frio, o Dave veio ter à minha barraca para passar o dia e prega-me os olhos na minha caixa de leite condensado. «Não te apetecia um trago de bom uísque?», diz-me ele, sempre com os olhos na minha caixa de leite. Con­fesso que me cresceu a água na boca, só de pensar nisso. «Mas de que me serve apetecer?», respondi eu, «se o meu saco está vazio?». «As velas valem dez dólares a dúzia», diz ele, «um dólar cada uma. Davas seis latas de leite por uma garrafa de pinga, da velha?» «Como é que conseguias isso?», digo eu. «Confia em mim. Dá-me as latas. Está frio lá fora, e eu tenho duas formas de velas.» Seja ceguinho se não é verdade o que estou a contar. Pois que havia o Dave de se lembrar? Esvaziou as latas e gelou o leite dentro dos moldes de vela e trocou-as a Bill Moram por uma garrafa de aguardente ordinária.

Logo que conseguiu fazer-se ouvir no meio das gargalhadas, Harney levantou a voz:

- É verdade tudo o que o McCarthy contou, mas ele só lhes contou metade. Não adivinhas o resto, Matt?

Matt abanou a cabeça.

- Como eu também tinha falta de leite e pouco açúcar, baptizei três das tuas latas com água. Foi com isso que fiz as velas. E fiquei com leite para o meu café, para todo o mês seguinte.

- Levaste-me, Dave - admitiu McCarthy. -Se não fosse por estar em tua casa, escandalizava as senhoras com as tuas poucas-vergonhas famosas. Mas, por esta, ficas perdoado, Dave. Vem, poupa os convidados que estão a partir, temos de ir andando.

«Não, não, seu paladino de damas! - cortou ele, quando St. Vincent se preparava para acompa­nhar Frona na descida da colina. - Quem a leva esta noite a casa é o pai adoptivo dela.»

McCarthy riu com aquele seu riso silencioso e ofereceu o braço a Frona, enquanto St. Vincent se associava sem vontade à risota, recuou e se juntou a Miss Mortimer e ao barão Courbertin.

- O que é que eu ouço dizer acerca de ti e Vincent? - perguntou Matt abruptamente, assim que se afastaram dos outros.

Ele observou-a com os seus olhos cinzentos pene­trantes, mas a jovem retribuiu o olhar com igual penetrância.

- Como hei-de eu saber o que o senhor tem ouvido? - retrucou ela.

- Quando se fala de um homem e de uma rapa­riga, uma bonita e o outro não feio de todo, ambos novos e nenhum deles casado, que outra coisa pode ser?

- Sim?

- A mais importante do mundo.

- Qual? - Frona não estava nada zangada e não se sentia disposta a ajudá-lo.

- Casamento, naturalmente - deixou ele esca­par. - Diz-se que as coisas parecem estar a tomar esse rumo, com vocês os dois.

- Mas diz-se que estão ?

- As aparências não bastam? - perguntou ele.

- Não; e o senhor já tem idade suficiente para saber que não. O Sr. Vincent e eu... gostamos um do outro como amigos, é tudo. Mas, supondo que era como diz: e daí?

- Bom - considerou ele -, diz-se ainda mais. Diz-se que St. Vincent é unha com carne com uma sirigaita da cidade... Lucile, diz-se.

- E isso que significa?

Frona ficou à espera, e McCarthy observou-a em silêncio.

- Conheço a Lucile e gosto dela - continuou Frona, preenchendo a lacuna do silêncio dele e pro­curando ostensivamente ajudá-lo a continuar. - Conhece-a? Não gosta dela?

Matt começou a falar, pigarreou e depois calou-se. Por fim, desesperado, explodiu.

- O que me apetecia era dar-te uns açoites.

Ela riu-se.

- Não se atrevia. Eu já não ando a correr, des­calça, no Dyea.

- Agora não estejas a arreliar-me - disse.

- Não estou a arrelia-lo. Não gosta dela... da Lucile?

- E daí? - objectou impudente.

- Foi o que eu perguntei... e daí?

- Então vou-te dizer em palavras simples, como um homem que tem idade suficiente para ser teu pai. É indecente, abominavelmente indecente, um homem andar com uma boa rapariga...

- Muito obrigada - retorquiu Frona, fazendo uma vénia. Em seguida acrescentou, meio azeda: - Tem havido outros que...

- Diz-me o nome... - exclamou Matt com veemência.

- Vá, vá continue. Ia a dizer?...

- Que é uma vergonha que clama aos Céus um homem andar com... contigo e ao mesmo tempo ser unha com carne com uma mulher da espécie dela.

- E porquê?

- Vir a escorrer lama e sujar a tua pureza! E ainda perguntas porquê?

- Mas espere, Matt, espere um momento. Admitindo as suas premissas...

- Não sei cá disso de premissas. É com factos que eu estou a tratar.

Frona mordeu os lábios.

- Não importa. Seja como quer; mas deixe-me continuar, que eu também tratarei de factos. Quando é que viu a Lucile pela última vez?

- Porque é que perguntas? - retorquiu ele, desconfiado.

- Não importa a razão. O facto.

- Bem, então, a noite passada, e que te faça bom proveito.

- E dançaste com ela?

- Uma dança endiabrada da Virgínia, sem con­tar com uma quadrilha ou duas. É nas danças de salão que eu me distingo.

Frona continuou a andar, fingindo-se absorvida em pensamentos. Nenhum deles emitia o menor som, salvo os dos gemidos da neve sob as suas mocassinas.

- Bom, e então? - perguntou Matt, pouco à vontade. - E daí? - insistiu, depois de outro silêncio.

- Oh, nada - respondeu Frona. - Estava só a pensar qual era o mais enlameado: o Sr. St. Vincent ou você... ou eu própria, com quem vocês ambos são unha com carne.

Ora McCarthy não era versado nas virtudes da sabedoria social. Embora sentisse o erro da posição dela, não o conseguia expressar em termos defi­nidos. Por conseguinte pôs-se sensatamente, se bem que cobardemente, fora de perigo.

- Estás a ficar zangada com o teu velho Matt – insinuou -, só por querer o teu bem e por fazer figura de tolo por isso.

- Não, não estou tal.

- Ai isso é que estás.

- Pronto! - inclinando-se rapidamente para ele e beijando-o. - Como podia eu lembrar-me dos tempos de Dyea e zangar-me?

- E bem podes dizê-lo, querida Frona. Eu sou o pó debaixo dos teus pés, e podes pisar-me à vontade... tudo menos zangar-te. Era capaz de dar a vida por ti, fazer tudo para te tornar feliz. Era capaz de matar o homem que te desse um desgosto, com a maior das facilidades, e ir para o Inferno com um sorriso nos lábios e a alegria no coração.

Tinham parado diante da porta. Reconhecida, Frona apertou-lhe o braço.

- Não estou zangada, Matt. Mas, à excepção do meu pai, você é a única pessoa que eu admitiria que me falasse acerca de... deste assunto, da maneira como fez. Embora goste de si, Matt, embora o ame mais do que nunca, ficarei no entanto muito zan­gada se voltar ao assunto. Não tem esse direito. É algo que só a mim diz respeito. E é mal feito da sua parte...

- Evitar que corras às cegas para o perigo?

- Se quer dizê-lo assim, sim.

Matt resmungou qualquer coisa para dentro.

- O que é que disse? - perguntou ela.

- Que me podes fazer fechar a boca, mas que não me podes tolher o braço.

- Mas não deve, Matt querido, não deve.

De novo ele respondeu com um murmúrio subterrâneo.

- E quero que me prometa, já, que não inter­fere na minha vida, dessa maneira, nem por pala­vras, nem por gestos.

- Não prometo tal.

- Mas tem de prometer.

- Não prometo. Está a ficar frio na varanda, e vais ficar com os dedos dos pés gelados, esses lindos dedinhos cor-de-rosa, de onde eu tirei tantas lascas no Dyea. Portanto entra já, Frona, e boa noite.

Empurrou-a para dentro e partiu. Quando che­gou à esquina, parou de repente a observar a sua sombra na neve.

«Matt McCarthy, doido varrido! Quando é que já se viu um Welse que não saiba aquilo que quer? Como se nunca tivesse lidado com esta raça de obstinados, filho dum raio!»

Depois seguiu o seu caminho, sempre a grunhir baixinho; a cada grunhido o estranho cão-lobo que ia atrás dele eriçava o pêlo e arreganhava os dentes.


Capitulo XVII

- Cansada?

Jacob Welse pôs as duas mãos nos ombros de Frona. Os seus olhos exprimiam o amor que a língua rígida não conseguia expressar. A árvore, a agitação e a alegria tinham terminado, umas vinte crianças haviam ido para casa, geladas mas felizes, pela neve, o último convidado partira, a noite de Consoada findava, e começava o dia de Natal.

Ela retribuiu-lhe a ternura com a alegria no olhar, e ambos se deixaram cair em enormes cadei­rões, em frente um do outro, à lareira, onde um madeiro grosso se desfazia em cinzas rubras.

- E para o ano, onde estaremos? - Parecia estar a fazer a pergunta ao madeiro que ardia; como num presságio agoirento, este flamejou a des­fez-se numa chuva de faúlhas.

«É maravilhoso - prosseguiu, pondo de lado o futuro, num esforço para adquirir um estado de espírito mais alegre. - Tem sido um milagre con­tínuo e sem fim, estes últimos meses, desde que estás comigo. Temos estado pouco tempo juntos, bem sabes, desde a tua infância. Quando penso nisso a frio, é difícil acreditar que és minha de facto, que nasceste de mim, que és carne da minha carne e sangue do meu sangue. Quando eras a criaturinha selvagem, de cabelo emaranhado, de Dyea, um animalzito saudável e nada mais, não era precisa muita imagi­nação para te aceitar como pertencente à raça dos Welses. Mas, Frona, a mulher que és esta noite, que és agora quando olho para ti, que tens sido desde que chegaste a Yukon, é difícil... não consigo com­preender... eu... - gaguejou e levantou as mãos em desespero. - Quase desejo que não te tivesse dado educação, que te tivesse conservado comigo, viajando comigo, participando das minhas aventuras, dos meus triunfos, dos meus malogros. Assim, não te conheço. Àquilo que eu conhecia foi acrescentado, como direi?... uma subtileza, uma complexidade, palavras que empregas muito... que está para além da minha compreensão.

«Não! - Com um gesto da mão calou-lhe abrup­tamente as palavras nos lábios. Aproximou-se e ajoelhou-se-lhe aos pés, pousando a cabeça nos seus joelhos, apertando-lhe a mão com firmeza e cari­nho. - Não, não é verdade! Não era isto que queria dizer, mas não encontro as palavras. Não consigo explicar o que sinto. Deixa-me tentar outra vez. Lá bem no fundo, tu trazes a marca da raça. Sei que me arrisquei a perder isso quando te mandei para longe, mas tinha fé na persistência do sangue e corri o risco; duvidei e receei, quando partiste; aguardei e rezei obstinadamente, esperando, muitas vezes sem esperança; e chegou então o dia, o dia dos dias! Quando me disseram que o teu barco estava a chegar, a morte veio e caminhou a meu lado sem mais me abandonar. Completa ou estragada; completa ou estra­gada... as palavras soavam-me dentro da cabeça até me enlouquecerem. A Welse continuaria Welse? Perduraria o sangue? Cresceria o rebento novo, direito, alto e forte, pujante de seiva, fresco e vigoroso? Ou cairia, mole e sem vida, ressequido pelos calores do mundo, tão diferente do pequeno mundo, simples e natural, de Dyea?

«Foi o dia maior de todos, e contudo foi uma tragédia lenta, de espera e de vigília. Sabes como passei a minha vida sozinho, como lutei sozinho, contigo longe, a minha única família. Se tivesse falhado... Mas o teu barco surgiu do largo e eu estava com medo de olhar. Nunca ninguém me cha­mou cobarde, mas nunca estive tão próximo de o ser na minha vida. Oh, naquele momento preferia ter enfrentado a morte. Era um disparate, um absurdo. Como podia eu saber se era para bem se para mal, quando tu surgiste, um ponto distante, no rio? Mas eu continuei a olhar, e o milagre come­çou, porque eu soube. Tu vinhas ao leme. Eras uma Welse. Parecia tão pouco; na realidade significava muito. Ninguém esperaria isso de uma simples mulher, mas de uma Welse, sim. E, quando o Bishop caiu pela borda fora, e tu resolveste a situa­ção com a mesma segurança com que seguravas o leme, e a tua voz se elevou, e os índios se dobraram à tua vontade... foi esse o maior dia da minha vida».

- Tentei sempre e lembrava-me - murmurou Frona. Ergueu-se calmamente até lhe rodear o pes­coço com o braço e lhe repousar a cabeça no peito. Ele rodeou-lhe o corpo ao de leve com o braço e, com a mão, fazia com que o cabelo brilhante de Frona se desprendesse em ondas faiscantes.

- Conforme eu disse, a marca da raça estava intacta, mas no entanto havia uma diferença. Há uma diferença. Tenho-a observado, estudado, ten­tado descobrir. Tenho-me sentado à mesa, orgulhoso de te ter ao lado, mas diminuído. Quando tu falavas de coisas sem importância, eu conseguia acompa­nhar-te, quando falavas de coisas grandes, já não conseguia. Conhecia-te, segurava-te com a mão, e, de repente, tu ias embora, partias... e eu ficava per­dido! É louco aquele que não reconhece a sua própria ignorância; eu tinha a sensatez suficiente de reconhecer a minha. Arte, poesia, música... que sei eu disso? Isso é que eram as coisas grandes, as coisas que são grandes para ti, que significam mais para ti do que as coisas sem importância que eu posso compreender. Eu tinha a esperança, cega, louca, que nós pudéssemos ser o mesmo espírito como éramos a mesma carne. Tem sido duro, porém, tenho-lhe feito face e compreendo. Mas ver o meu próprio sangue, rubro, afastar-se de mim, esquivar-se­-me, elevar-se acima de mim! Custa! Tenho-te ouvido ler a tua Browning... não, não, não digas nada... e observado a expressão do teu rosto, o êxtase e a paixão dele, as palavras zumbindo-me monotonamente, sem sentido, musicais, enlouquecedoras. E a Sr.a Schoville aí sentada, compondo uma expres­são de êxtase idiota, e percebendo tanto como eu. Apetecia-me estrangulá-la.

«Sabes, tenho-me escondido à noite com a tua Browning, e fechado à chave, como um ladrão com medo. Os textos não faziam sentido. Batia na cabeça com os punhos, como um louco, para tentar meter lá dentro e compreender qualquer coisa. Porque a minha vida tem decorrido ao longo dum trilho fixo, profundo e estreito. Fui eu que o abri. Fiz as coisas que me vinham à mão e fi-las bem; mas isso já lá vai, não podia voltar atrás. Eu, que sou forte e domino, que brinquei com o destino, que podia comprar a alma e o corpo de cem pintores e versejadores, fiquei confundido com umas folhecas impres­sas no valor de alguns míseros cêntimos.»

Afagou-lhe o cabelo durante um momento de silêncio.

- Voltando atrás. Tentei o impossível, joguei contra o inevitável. Tinha-te afastado de mim para que adquirisses aquilo que eu não tinha, sonhando que no entanto seríamos iguais. Como se dois se pudessem somar a dois e continuassem a ser dois. E assim, resumindo, a raça permanece, mas tu aprendeste uma linguagem diferente. Quando a falas, eu sou surdo. O que mais custa é que eu sei que a linguagem nova é a maior. Não sei porque disse isto tudo, porque fiz a minha confissão de fraqueza...

- Ó meu pai, o maior de todos os homens! - Frona levantou a cabeça e riu-lhe nos olhos, enquanto lhe puxava para trás o espesso cabelo cinzento-escuro que lhe coroava o alto da testa. - Tu, que lutaste com mais vigor, que realizaste coisas maiores que esses pintores e esses versejadores. Tu, que não conheces a lei da mutabilidade. Não sairia a mesma queixa dos lábios do teu pai, se ele estivesse agora sentado a teu lado e te contemplasse a si e à sua obra?

- Sim, sim. Eu disse que compreendia. Não discutamos isso... foi uma fraqueza momentânea. O meu pai foi um grande homem.

- E o meu também.

- Um lutador até ao fim dos seus dias. Travou a grande luta, sem fim...

- E o meu também.

- E morreu a lutar.

- E o meu também há-de. É assim que todos nós morreremos, os Welses.

Ele sacudiu-a, de brincadeira, num indicativo de que o moral lhe voltava.

- Mas tenciono vender tudo... minas, compa­nhia, tudo... e estudar Brownnig.

- Sempre a luta. Não podes renegar o san­gue, pai.

- Porque não nasceste tu rapaz? - perguntou de repente. - Terias dado um rapaz esplêndido. Assim, uma mulher, nascida para ser a alegria de um homem qualquer, terás de me abandonar... amanhã, no dia seguinte, para o ano, quem sabe quando? Ah, agora já sei a direcção que o meu pensamento tem seguido. Tal como sei que o farás, assim reconheço a sua inevitabilidade e justiça. Mas o homem, Frona, o homem?

- Não - objectou ela. - Conta-me a luta do teu pai, a última, a grande e solitária luta de Trea­sure City. Dez contra um, e bem disputada. Con­ta-me.

- Não, Frona. Não compreendes que pela pri­meira vez na nossa vida estamos a falar a sério, como pai e filha... pela primeira vez? Não tiveste mãe que te aconselhasse; nem pai, porque eu confiava no sangue e deixei-te partir. Mas há sempre uma altura em que é preciso o conselho de uma mãe, e tu, tu que nunca a tiveste...

Frona rendeu-se, compreendendo imediatamente. Enquanto esperava, aconchegou-se mais a ele.

- Este homem, St. Vincent... que há entre vocês?

- Eu... eu não sei. Que queres dizer?

- Lembra-te sempre, Frona, que tens liberdade de escolher, que a última palavra é tua. Mas eu gostava de compreender. Eu podia... talvez... poderia sugerir. Mas nada mais. Contudo, uma sugestão...

Havia qualquer coisa de indizivelmente sagrado naquilo, e contudo ela sentia a língua presa. Em vez da frase definida para dizer, baralhava-se-lhe no cérebro uma confusão de ideias. Afinal de contas, saberia ele compreender? Não havia uma diferença que o impedia de compreender os motivos que, para ela, tinham tanta força? Apesar de toda a tendência dela para a defesa primitiva e vigorosa da razão e da verdade, dar-lhe-ia a filosofia inata dele o mesmo código que ela tirava da sua filosofia adqui­rida? Então pôs-se a analisar-se a si própria e às perguntas que punha, e apartou-se delas, porque sabiam a traição.

- Não há nada entre nós, pai - disse com reso­lução. - O Sr. St. Vincent não disse nada, nada. Somos bons amigos, gostamos um do outro, somos muito bons amigos. Penso que é tudo.

- Mas vocês gostam um do outro; tu gostas dele. Como uma mulher deve gostar de um homem, antes de poder honestamente partilhar a sua vida com ele e pertencer-lhe? Sentes o que Ruth sentia, de modo a poderes dizer, quando chegar a altura: «O teu povo é o meu povo, e o teu Deus o meu?»

- Não. Talvez; mas eu não posso, não ouso, dizer que sim ou que não, pensar que sim ou que não... por agora. E a afirmação mais importante. Quando tiver de vir, ninguém pode saber como ou porquê, como um grande relâmpago deslumbrante, como uma revelação, não escondendo nada, reve­lando tudo numa verdade ofuscante, fascinante. Pelo menos é assim que eu o imagino.

Jacob Welse abanou a cabeça, no jeito lento e meditativo de alguém que está a compreender, mas que se detém a ponderar e a pesar as coisas de novo.

- Porque perguntaste, pai? Porque é que falaste no Sr. St. Vincent? Já tenho tido mais amigos.

- Mas eu nunca pensei dos outros o que penso de St. Vincent. Nós podemos ser verdadeiros, tu e eu, e perdoar a dor que dermos um ao outro. A fali­bilidade é o mais vulgar dos males. Nem eu sei explicar porque sinto o que sinto... suponho que seja assim uma coisa parecida com o que tu esperas, quando o teu grande relâmpago deslumbrante ofus­car os teus olhos. Mas, numa palavra, não gosto de St. Vincent.

- Um juízo muito generalizado acerca dele entre os homens -interrompeu Frona, arrastada irresistivelmente para a defesa.

- Uma tal unanimidade de opiniões só torna a minha posição mais forte - retorquiu ele sem inten­ção disputativa. - No entanto, tenho de me lem­brar que o julgo como homem. O êxito dele com as mulheres deve ser devido ao facto de as mulheres julgarem diferentemente dos homens, tal como as mulheres diferem física e espiritualmente dos homens. É uma coisa profunda, demasiado profunda para eu poder explicar. Apenas sigo a minha natureza e procuro ser justo.

- Não tens nada de mais positivo? - pergun­tou Frona procurando compreender melhor a ati­tude do pai. - Não podes exprimir com coerência qualquer coisa daquilo que sentes?

- Nem ouso fazê-lo. As intuições raramente se podem exprimir em termos de pensamento. Mas deixa-me tentar. Nós os Welses jamais conhecemos um cobarde. E onde existe a cobardia, nada pode resistir. É como construir sobre areia ou como uma moléstia ruim que mina, mina e não sabemos quando se irá declarar.

- Mas parece-me a mim que o Sr. Vincent é o último homem do mundo com quem se poderá associar a cobardia. Não o consigo conceber a essa luz.

A angústia do rosto da filha magoou-o.

- Não sei nada contra St. Vincent. Não há prova nenhuma que demonstre que ele é diferente daquilo que aparenta. No entanto, não consigo deixar de o sentir, ao meu modo humano e falível. Mas há uma coisa que eu ouvi contar, uma rixa sórdida de botequim, na Casa da ópera. Garanto-te, Frona, que não digo nada contra a rixa ou contra o lugar... os homens são homens... mas diz-se que ele não se portou como um homem, nessa noite.

- Mas, como disseste, pai, homens são homens. Gostaríamos que eles fossem diferentes daquilo mesmo que são, porque o mundo seria sem dúvida melhor; porém, temos de os aceitar tal como são. A Lucile...

- Não, não; não me compreendes. Não me referi a ela, mas à luta. Ele não... ele foi cobarde.

- Tal como disseste, diz-se. Ele contou-me tudo, pouco tempo depois, e não penso que tivesse tido coragem, se tivesse havido qualquer coisa...

- Mas eu não estou a acusá-lo de nada - cortou Jacob Welse apressadamente. - São apenas boatos, e os preconceitos dos homens seriam suficientes para dar origem à história. Afinal não significa nada. Não a devia ter mencionado, porque já tenho visto muitos homens bons acobardarem-se... é nervo­sismo, ou coisa que o valha. E agora não pensemos mais nisso. Só quis dar uma sugestão, e parece que estraguei tudo. Contudo, compreende isto, Frona -­voltando-lhe o rosto para o seu. - Compreende que acima de tudo e apesar de tudo, primeiro que tudo e último e sempre, tu és minha filha, e eu acredito que a tua vida é sagradamente tua, não minha; é tua para fazeres dela o que quiseres, para a viveres ou estragares. A tua vida és tu quem a deve viver; se eu a influenciasse, tu não a viverias, nem a tua vida seria tua. Nem serias uma Welse, porque nunca houve ainda um Welse que tolerasse ordens. Prefe­rem morrer ou ser pioneiros a qualquer coisa.

«Se tu pensasses que o cabaré era o teu meio próprio ou natural de auto-expressão, eu podia ficar triste, mas amanhã sancionaria a tua ida à Casa da Ópera. Não seria sensato deter-te e, além disso, não é hábito nosso. Os Welses têm defendido muitas causas perdidas e empreendimentos auda­ciosos, de fileiras cerradas. As convenções não têm valor para pessoas como nós. São para os imbecis que, sem elas, chafurdam mais fundo. Os fracos devem obedecer ou ser esmagados; o mesmo não acontece com os fortes. A massa não é nada; o indi­víduo é tudo; e é o indivíduo, sempre, que governa a massa e dita a lei. Para o Diabo o que o mundo diz! Se os Welses gerassem uma linha bastarda, hoje, seria por vontade dos Welses, e tu serias uma filha dos Welses, e à face dos Infernos e do Céu, do pró­prio Deus, nós manter-nos-íamos unidos, nós os do mesmo sangue, Frona, tu e eu.»

- Tu és maior do que eu - murmurou a rapa­riga, beijando-lhe a testa. E a carícia dos seus lábios pareceu-lhe a ele o contacto suave de uma folha a cair no sereno ar outonal.

Enquanto o calor da sala ia decrescendo, ele falou-lhe acerca dos antepassados comuns, do valente Welse que travara a grande luta solitária e morrera a lutar em Treasure City.


Capitulo XVIII

A Casa de Bonecas foi um êxito. A Sr.a Schoville ficou de tal modo extasiada que se lhe referiu em termos tão incomensuráveis, tão inqualificáveis, que Jacob Welse, sentado a seu lado, cravou um olhar coruscante na sua garganta rechonchuda e branca, apertando e fechando a mão inconsciente­mente em torno de uma traqueia imaginária. Dave Harney proclamou a excelência da peça efusivamente, embora pusesse em dúvida a solidez da filosofia de Nora, e jurou pelos seus deuses puritanos que Torvald era o asno mais completo à face da Terra. Até mesmo a Miss Mortimer, embora contrária a todas as escolas, reconheceu que os actores tinham redimido a peça, enquanto Matt McCarthy declarou que não censurava Nora nem um bocadinho, embora tivesse confidenciado ao comissário do ouro que uma canção ou duas e um bailado não teriam prejudicado a representação. - Aquela rapariga, a Nora, tinha razão, é claro - insistiu ele para Harney, quando ambos seguiam atrás de Frona e St. Vincent. - Eu gostaria...

- Borracha...

- Borracha é a tua avó! - exclamou Matt, encolerizado.

- Como eu estava a dizer - continuou Harney imperturbável -, as botas de borracha vão subir extraordinariamente, na altura das lavagens da areia para extrair o minério. Três onças cada par, e podes apostar o teu dinheiro que é carta forte. Pode-se agora comprá-las a uma onça o par, e ganhar duas no negócio. É canja Matt, são favas contadas.

- Diabos te levem a ti e as tuas favas contadas! É na querida Nora que eu estou a pensar agora.

Despediram-se de Frona e de St. Vincent e afastaram-se, altercando sob as estrelas, na direcção da Casa da ópera.

Gregory St. Vincent soltou um suspiro audível. - Até que enfim!

- Até que enfim, o quê? - perguntou Frona sem curiosidade.

- Até que enfim, a primeira oportunidade de lhe dizer como foi bem. Desempenhou a cena final maravilhosamente; tão bem que parecia que ia sair, de facto, da minha vida para sempre.

- Que desgraça!

- Era terrível.

- Não.

- Mas, sim! Pus toda a situação em mim. Você não era Nora, era Frona; nem eu era Torvald, mas Gregory. Quando fez a sua saída, enchapelada e encasacada e de mala na mão, parecia-me ser impos­sível ficar a acabar de dizer o meu papel. E, quando a porta se fechou, e você desapareceu, a única coisa que me salvou foi a cortina. Fez-me voltar a mim, se não tinha corrido atrás de si, nas barbas dos espec­tadores.

- É estranho como um papel, a fingir, pode afec­tar uma pessoa -comentou Frona especulativamente.

- Ou o contrário? - sugeriu St. Vincent.

Frona não respondeu, e continuaram a caminhar em silêncio. Ela ainda estava sob o efeito da emoção da noite, e a exaltação que se apossara dela, como Nora, não desaparecera ainda. Além disso, lia nas entrelinhas da conversação de St. Vincent e sentia-se oprimida pela timidez que avassala a mulher quando enfrenta o homem no limiar de uma intimidade maior.

Era uma noite clara e fria, não demasiado fria - não mais de quarenta negativos - e a terra estava banhada numa torrente de luz doce e difusa, que tinha a sua origem, não nas estrelas, nem sequer na Lua, que estava algures no outro hemisfério da Terra. Desde o sudeste ao noroeste, um resplendor verde-pálido orlava a borda do firmamento, e era dele que exalava o resplendor ténue.

Repentinamente, qual raio de um holofote, uma faixa de luz branca sulcou o céu. A noite transfor­mou-se em pálido dia, por um instante, depois tornou a descer a treva, mais negra ainda. Mas, para sudeste, percebia-se uma agitação silenciosa. A névoa bri­lhante e esverdinhada estava em fermentação, borbulhando, elevando-se, decaindo e experimen­tando estender enormes mãos sem corpo para o espaço superior. De novo um foguete ciclópico ser­penteou, traçando o seu caminho faiscante através do céu, do horizonte ao zénite, e para a frente, para a frente, num voo tremendo, até ao horizonte outra vez. Mas a esteira de luz não podia manter-se. No seu rasto, a noite negra formava-se. Contudo, de novo, com serpentinas profusamente espalhadas para a esquerda e para a direita, mais largas, mais fortes, mais profundas, agitava o zénite mais central com a sua labareda deslumbrante, e continuava, para baixo, para o outro extremo do mundo. Por fim o céu ficou atravessado de lado a lado e a ponte aguentou-se!

Com este triunfo da luz, o silêncio da terra foi quebrado, e dez mil cães-lobos, em uivos uníssonos arrastados, soluçavam o seu pavor e aflição. Frona tiritou, e St. Vincent passou-lhe o braço pela cintura. A mulher que ela era sentiu o contacto do homem e um ligeiro estremecimento latejante de prazer vago; mas não opôs resistência. Enquanto os cães-lobos carpiam a seus pés, e a aurora resplan­decia por cima da sua cabeça, sentiu-se apertada for­temente contra ele.

- Será preciso falar? - sussurrou ele.

Frona deixou cair a cabeça, num contentamento cansado, no ombro dele, e juntos contemplaram a abóbada incendiada, onde as estrelas empalideciam e desapareciam. Fluindo e refluindo, pulsando a um incerto ritmo tremendo, as cores prismáticas arremessavam-se num dilúvio luminoso através do firmamento. Então a abóbada do firmamento tor­nou-se um vulto imenso onde a púrpura imperial e um verde profundo se combinavam, se entrela­çavam numa trama resplandecente e numa urdidura faiscante, sacudindo caprichosa e delicadamente o mais fino dos tules, fluorescente e desnorteante, no atónito rosto da noite.

Sem prévio aviso, a distância foi dividida por um arrogante braço de negrume. O arco dissolveu-se numa confusão rosada. Brechas de escuridão boce­jaram, cresceram e agruparam-se precipitadamente. Massas de cor, aos pedaços, e de fogo a desvanecer-se rompiam timidamente na direcção do horizonte. Então a cúpula da noite dominou imponderável, imensa, as estrelas tornaram a acender-se, uma a uma, e os cães-lobos uivaram de novo.

- Tenho tão pouco para te oferecer, querida - disse o homem com uma amargura a custo per­ceptível. - A fortuna precária de um vagabundo cigano.

E a mulher, segurando a mão dele contra o coração e apertando-a com força, respondeu o que uma grande mulher já respondera antes dela.

- Uma cabana e uma côdea de pão contigo, Richard.


Capitulo XIX

How-ha era apenas uma índia, descendente de uma longa linha de comedores de peixe e de carní­voros laceradores de carne, e a sua ética era tão crua e simples como o seu sangue. Todavia, o longo con­tacto com os brancos havia-lhe dado uma visão da maneira de eles avaliarem as coisas e, embora no íntimo resmungasse com desdém, compreendia per­feitamente a maneira de ser deles. Dez anos atrás, servira Jacob Welse como cozinheira, e desde então, de uma maneira ou de outra, não mais deixara de trabalhar para ele. Quando, numa manhã triste de Janeiro, foi abrir a porta da frente em resposta as pancadas da aldraba, batidas com força, até mesmo a sua presença estólida ficou abalada, ao reconhecer o visitante. O homem ou a mulher vulgares não teriam reconhecido esse alguém. Mas as faculdades de observação e de fixação de pormenores de How-ha haviam sido cultivadas numa dura escola em que a morte era o prémio dos negligentes e a vida saudava os vigilantes.

How-ha olhou de cima abaixo a mulher que tinha diante de si. Através do pesado véu, mal con­seguia distinguir-lhe o brilho dos olhos, ao passo que o capuz da capa lhe escondia por completo os cabelos, e a própria capa escondia os contornos do corpo. Mas How-ha deteve-se e tornou a olhar. Havia algo de familiar no vago aspecto geral. Tornou a examinar a cabeça encoberta e reconheceu a pose inconfundível. Então os olhos de How-ha ficaram turvos ao percorrer os meandros simples do seu cére­bro, inspeccionando os cacifos expostos, taciturna­mente arrumados, com as impressões de uma vida pobre. Não havia desordem alguma, nenhuma mistu­rada confusa de registros; nenhuma impressão tor­tuosa e interminável de emoções complexas, teorias emaranhadas e abstracções confusas... nada, a não ser factos simples, esmeradamente classificados e con­venientemente coleccionados. Sem errar, dos arqui­vos do passado tirou, escolheu e reuniu no momento presente, até desvendar a obscuridade da mulher em frente de si, e conhecê-la, palavras e obras, aspecto e história.

- Melhor ir embora, depressa, depressa - infor­mou-a How-ha.

- Miss Welse. Quero falar-lhe.

A mulher desconhecida falou em tom firme, calmo, que denunciava a vontade que o comandava, mas que não conseguiu comover How-ha.

- Melhor ir - repetiu estolidamente.

-Tome, leve isto a Frona Welse, e... ah! faz favor? - introduzindo o joelho entre a porta e a ombreira - ...deixe a porta aberta.

How-ha carregou o sobrolho, mas aceitou o bilhete, porque não conseguia libertar-se do domí­nio de dez anos de servidão a raça superior.

 

«Posso falar-lhe ? Lucile.»

Assim rezava o bilhete. Frona levantou os olhos para a índia, na expectativa.

- Ela meteu pé lá fora - explicou How-ha. - Eu dizer a ela ir embora depressa, depressa. Hem? Tu pensar assim? Ela não ser boa. Ela...

- Não. Leva-a... - Frona pensava com rapi­dez. - Não; trá-la cá acima.

- Ser melhor...

- Vai!

How-ha submeteu-se a obediência a que não conseguia subtrair-se; no entanto, ao descer a escadas para a porta, de uma maneira tortuosa e vaga, admi­rava-se que o acidente da pele, branca ou escura, determinasse os senhores e os servos, conforme os casos.

Num só relance de olhos, Lucile abrangeu Frona sorridente e de mãos estendidas, em primeiro plano, o toucador gracioso, a decoração simples, os mil indí­cios femininos; com aquela doçura sadia a impreg­nar-lhe as narinas, veio-lhe a memória a sua própria juventude e sentiu-se comovida. Depois deixou de prestar atenção as coisas exteriores.

- Ainda bem que veio - dizia Frona. - Tinha tanta vontade de a tornar a ver e... mas tire essa pesada capa, faz favor. Que espessa, que pele esplên­dida e que bem trabalhada!

- Sim, é da Sibéria. - Um presente de St. Vin­cent, apeteceu a Lucile dizer. Mas, em vez disso, disse: - Os Siberianos ainda não aprenderam a aldrabar o trabalho, sabe?

Afundou-se na cadeira de baloiço baixa, com uma graça inata que não podia escapar aos olhos amantes da beleza da rapariga e, com uma pose de cabeça orgulhosa e língua silenciosa, escutou Frona, a medida que os minutos iam passando. Observou, também, com divertimento impessoal, os esforços penosos de Frona para manter a conversa.

«O que veio ela cá fazer?», perguntava-se Frona, enquanto falava de peles, do tempo e de coisas indi­ferentes.

- Se a Lucile não disser nada, não tarda que fique nervosa - aventurou por fim desesperada. - Aconteceu alguma coisa?

Lucile dirigiu-se ao espelho e pegou, de entre os adornos que estavam por debaixo, numa miniaturazita de Frona. - É você? Que idade tinha?

- Dezasseis.

- Uma sílfide, mas uma sílfide fria, do Norte.

- O sangue aquece tarde em nós - censurou Frona, - mas é...

- Não obstante, quente que chegue - disse Lucile rindo-se. Que idade tem agora?

- Vinte.

- Vinte - repetiu Lucile lentamente. - Vinte. - e tornou a sentar-se. - Tem vinte anos. Eu tenho vinte e quatro.

- Uma diferença tão pequena.

- Mas o nosso sangue aquece cedo. - Lucile exprimiu a sua reprovação sobre o abismo imenso que quatro anos não podiam sondar.

Frona mal conseguia esconder o seu aborreci­mento. Lucile levantou-se para observar de novo a miniatura e tornou a voltar.

- O que pensa do amor? -perguntou abrupta­mente, adoçando-se-lhe o rosto num sorriso ines­perado.

- Amor? -perguntou a rapariga em voz tré­mula.

- Amor, sim. O que sabe disso? O que pensa dele?

Uma torrente de definições luminosas e rosadas acorreram-lhe aos lábios, mas Frona rejeitou-as e respondeu

- Amor é emolação.

- Muito bem... sacrifício. E então, compensa?

- Sim, compensa. Claro que compensa. Quem o pode duvidar?

Os olhos de Lucile brilharam, divertidos.

- Porque está a sorrir? - perguntou Frona.

- Olhe para mim, Frona. - Lucile ergueu-se, e o seu rosto resplandecia. - Tenho vinte e quatro anos. Não sou de todo feia; não sou de todo estúpida. Tenho um coração, tenho bom sangue, rubro e quente. E amei. Não me lembro da recompensa. Só sei que paguei.

- E na paga recebeu a recompensa - interveio Frona com entusiasmo. - O preço foi a recom­pensa. Se o amor é falível, no entanto você amou; você serviu. Que mais queria?

- O amor ingénuo - escarneceu Lucile.

- Oh! É injusta!

- Não! Estou a fazer-lhe justiça - insistiu Lucile com firmeza. - Você dir-me-ia que sabe; que andou de olhos desvendados e que viu claro; que, sem ter mais que aflorado os lábios na taça, adivinhou o sabor das borras, e que o sabor era bom. Ora! O amor ingénuo! Mas eu sei, Frona, eu sei! Você é uma mulher feita e tolerante e que não liga a ninharias, mas - batendo com um dedo esguio na testa - está tudo aqui. É um produto cerebral e você aspirou-lhe demasiado os vapores. Mas esvazie as borras, vase a taça e diga que é bom. Não, Deus me livre! - exclamou com paixão. - Há amores bons. Você não deve contentar-se com nenhuma simulação; merece o belo e o luminoso.

Frona teve o gesto habitual - que era comum a ambas - e a sua mão deslizou pelo braço de Lucile, até a mão apertar a mão.

- Você diz coisas que eu sinto que estão erradas, mas não posso responder. Posso, mas como ousaria? Não ouso opor simples pensamentos contra os seus factos. Eu, que tenho vivido tão pouco, não posso em teoria desmenti-la a si, que tem vivido tanto...

- Porque aquele que vive mais vidas do que uma deve morrer.

Do fundo da sua dor, Lucile arrancou as palavras que a exprimiam, e Frona, abraçando-se a ela, solu­çou sobre o peito dela, tudo compreendendo. Quanto a Lucile, o ligeiro franzido dos sobrolhos suavi­zou-se, e ela depôs o beijo maternal, ao de leve e secretamente, nos cabelos da outra. Durante um instante... depois as sobrancelhas franziram-se, os lábios apertaram-se, e ela afastou Frona de si.

- Vai casar com o Gregory St. Vincent?

Frona ficou admirada. Fora apenas há quinze dias, e nem uma palavra transpirara.

- Como é que sabe?

- Já respondeu. - Lucile observou o rosto franco de Frona e o aviso corajoso que nele se estam­pava, e sentiu-se como o esgrimista hábil que enfrenta um principiante, fraco de pulso, e desprotegido diante de si. - Como sei? - Riu asperamente. - Quando um homem abandona de repente os braços de uma mulher, os lábios húmidos dos últimos beijos e a boca suja com as últimas mentiras... e...

- E?

- E esquece o caminho para voltar para esses braços...

- E então? - O sangue dos Welses sublevou-se e, qual sol escaldante, secou as névoas dos olhos dela, deixando-os a relampejar. - Então foi por isso que veio. Devia tê-lo adivinhado, se tivesse dado ouvidos aos mexericos de Dawson.

- Não é tarde ainda. - Lucile fez beicinho. - Depende de si.

- Sou cuidadosa. O que é? Tenciona dizer-me o que ele fez, o que ele foi para si? Deixe-me que lhe diga que é inútil. Ele é um homem, e eu e você somos mulheres.

- Não! - Lucile engoliu o seu assombro. - Não tinha pensado que qualquer acto dele a afectasse a si. Sabia que era demasiado superior para isso. Mas... já pensou em mim?

Frona susteve a respiração durante um momento. Em seguida estendeu os braços para defender o homem em porfia dos braços de Lucile.

- O seu pai, outra vez! - Oh, vocês os Welses são impossíveis! Mas ele não a merece, Frona Welse - continuou. - A mim, sim. Não é um homem gentil, nem um grande homem, nem bom. O amor dele não pode comparar-se ao seu. Ora! Ele não sabe o que é amor; paixão, de uma espécie ou de outra, é o máximo a que ele pode ter preten­sões. Isso não o quer você. E tudo, na melhor das hipóteses, que ele lhe pode dar. E você, diga lá, o que é que lhe pode dar? A si própria? Desperdício prodigioso! Mas o ouro do seu pai...

- Não continue, ou recuso-me a escutá-la. É mal feito. - Assim Frona a fez calar, para em seguida, com nítida inconsistência : - E que pode a mulher Lucile dar-lhe?

- Alguns momentos de loucura - foi a resposta pronta. - Uma explosão ardente de felicidade e os remorsos do Inferno... que ele merece, bem como eu. E assim se mantém o equilíbrio, e tudo está bem.

- Mas... mas...

- Porque há um diabo dentro dele - prosse­guiu ela - , um diabo muito fascinante, que me encanta, de verdade, e praza a Deus, Frona, que você nunca venha a conhecer. Porque você não tem nenhum; o meu equipara-se ao dele e casa-se com o dele. Sou livre para confessar que tudo não é para mim senão uma atracção. Não há nada de permanente nele, nem em mim. Aí está o que tem de bom: o equilíbrio fica salvaguardado.

Frona reclinou-se na sua cadeira e indolente­mente observou a sua visitante. Lucile aguardava que ela falasse. O silêncio era grande.

- Então? - perguntou por fim Lucile numa voz baixa e esquisita, ao mesmo tempo que se levan­tava para se envolver na capa.

- Nada. Estava apenas a espera.

- Já acabei.

- Então deixe-me dizer-lhe que a não com­preendo - recapitulou Frona friamente. - Não con­sigo compreender o motivo. Há uma associação clara com aquilo que disse. No entanto, duma coisa tenho a certeza: por qualquer razão desconhecida, não foi sincera consigo hoje. Não mo pergunte, porque, conforme já disse, não sei onde foi nem como foi; no entanto, nem por isso estou menos convencida. Disto tenho a certeza, você não é a Lucile que eu encontrei no carreiro da floresta, do outro lado do rio. Essa era a verdadeira Lucile, embora eu pouco a conhecesse. A mulher que está aqui hoje é uma desconhecida. Não a conheço. Às vezes pareceu-me a Lucile, mas poucas vezes. Esta mulher mentiu, mentiu-me a mim e mentiu-me acerca dela própria.

Quanto ao que disse do homem, na pior das hipó­teses, é apenas uma opinião. Pode ser que tenha men­tido acerca dele igualmente. É muito provável que assim seja. O que acha?

- Que você é uma rapariga muito inteligente, Frona; que fala as vezes mais verdade do que aquilo que pensa, e que outras é mais cega do que aquilo que sonha.

- Há qualquer coisa que eu podia amar em si, mas você escondeu-a de modo a eu não poder encontrá-la.

Os lábios de Lucile palpitaram, prestes a fala­rem; mas, ajeitando a capa, voltou-se para partir.

Frona foi ela própria acompanhá-la a porta, e How-ha ficou a meditar sobre os brancos que faziam a lei e eram superior a lei.

Depois de a porta se fechar, Lucile cuspiu para a rua.

- Que nojo! St. Vincent, sujei a minha boca com o teu nome! - E tornou a cuspir.

 

- Entre.

Àquela ordem, Matt McCarthy puxou a corrente do trinco, abriu a porta e fechou-a cuidadosamente atrás de si.

- Oh, é você! - St. Vincent contemplou o seu visitante, absolutamente abstracto, depois, voltando a si, estendeu-lhe a mão. - Olá, Matt, meu velho. O meu espírito estava a mil milhas daqui, quando entrou. Sente-se num banco e esteja a vontade. Tem o tabaco aí ao pé de si. Experimente-o e dê-nos a sua opinião.

«O espírito dele bem podia estar a mil milhas», disse Matt para consigo, porque passara, na escuri­dão do caminho, por uma mulher que se parecia suspeitosamente com Lucile. Mas disse em voz alta:

- Pois claro! Era a sonhar acordado que bocê estava. E não é para admirar.

- Porque diz isso? - perguntou o correspon­dente, alegremente.

- Pela mesma razão de ter encontrado a Lucile a descer o caminho, e os calcanhares das mocassinas dela apontavam para a sua barraca. Às bezes as garotas têm a língua afiada - disse Matt, rindo-se à socapa.

- É o pior de tudo - admitiu St. Vincent com franqueza. - Uma pessoa olha para elas de soslaio, por um instante, e elas exigem que o instante seja eterno.

- Para o Diabo com as antigas normas amo­rosas, hem!

- Também acho. Você compreende. É fácil de ver, Matt, que no seu tempo teve grande experiência.

- No meu tempo? E tenho ainda, sabe, não sou ainda benzo de mais para gostar das paródias.

- Com certeza, com certeza. Vê-se-lhe nos olhos. Coração quente e olho vivo, Matt. - Deu uma palmada no ombro do seu visitante, soltando uma gargalhada gostosa.

- Conheço-o de ginjeira, Vincent. É um tipo reles, com muita saída com as mulheres... tão certo como eu estar diante do seu nariz. Tem dado muito beijo a toa, destroçado muito coração. Mas, Vincent, alguma bez gostou mesmo a sério?

- O que quer dizer?

- A sério, a sério... isto é... bom: já foi pai alguma vez?

St. Vincent abanou a cabeça.

- Nem eu. Mas sentiu o amor de um pai, então?

- Nem sei. Penso que não.

- Bom, eu cá, já. E isso é que é a sério, digo-lho eu. Se alguma bez um homem criou uma criança, fui eu, ou quase: uma menina, que agora é uma mulher. E, se é possível, amo-a mais do que o próprio pai dela. Foi azar, mas além dela só houve uma mulher a quem amei. Casei-me com ela em tem­pos passados. Nunca o contei a vivalma, pode crer, nem mesmo a ela. Mas morreu. E Deus a tenha em descanso!

Enterrou o queixo no peito e procurou na memó­ria uma mulher de cabelos louros, perdida como um raio de sol no armazém junto do rio Dyea. Levantou o olhar repentinamente e apanhou St. Vincent de olhos fixos no sobrado, distraído, a pensar noutras coisas.

- Basta de tolices, St. Vincent.

O correspondente voltou a si, com um esforço, e deu com os olhinhos azuis do irlandês a perfu­rarem-no.

- É um homem corajoso, Vincent?

Durante o espaço de um segundo, eles escruti­naram a alma um do outro. E nesse espaço Matt iria jurar ter visto uma vacilação ou confusão ligeiríssima no olhar do homem.

Bateu com o punho sobre a mesa, com uma pancada triunfante.

- Não é, por Deus!

O correspondente puxou o boião do tabaco para si e enrolou um cigarro. Fê-lo com cuidado, o deli­cado papel de arroz enrolando-se-lhe na mão sem um tremor; mas, durante todo o tempo, uma onda rubra foi subindo por ele, por debaixo do colarinho da camisa, acentuando-se-lhe nas concavidades das faces e esvaindo-se sobre as maçãs do rosto, rastejando, alastrando, até todo o rosto ficar em brasa.

- Ainda bem. Escuso de sujar os dedos num trabalho porco. Vincent, meu rapaz, a criança que é uma mulher agora está aqui em Dawson. Que Deus nos ajude, a si e a mim, mas nós não somos dignos nem de beijar o chão que ela pisa! Vincent, um conselho a bom entendedor: não ponha jamais a fateixa em cima dela. O demónio a que Lucile se referira começou a agitar-se... um demónio colérico, irritante, irra­cional.

- Não gosto de si. Guardo as razões para mim. Chega! Mas fixe isto, e fixe-o bem: se cometer a loucura de a fazer sua mulher, não verá o fim desse dia maldito, nem porá a vista no leito nupcial. Era capaz de o matar com porrada com estes meus dois punhos, se fosse preciso. Mas é de esperar que farei um trabalho asseado. Pode estar descansado. Prometo-lhe.

- Seu porco irlandês!

O demónio soltou-se, inesperadamente, porque McCarthy encontrou-se com o cano de um revólver apontado aos olhos.

- Está carregado? - perguntou. - Acredito. Mas porque espera? Levante o cão, ande.

O correspondente moveu o dedo do gatilho e ouviu-se um estalido preventivo.

- Agora puxe-o! Puxe-o, já disse! Como se fosse capaz, com essa expressão nos olhos.

St. Vincent tentou voltar a cabeça.

- Olhe para mim, homem! - ordenou McCarthy. - Fite-me nos olhos, quando fizer isso.

Involuntariamente, o movimento de desvio foi suspenso, e os olhos de Matt voltaram a encontrar-se com os do irlandês.

- Vá!

St. Vincent cerrou os dentes e puxou o gatilho... pelo menos pensou que o fez, como os homens pensam que fazem as coisas, em sonhos. Quis fazê-lo, atirou a ordem; mas a vacilação da sua alma fê-la parar.

- Está paralisado, não está, esse dedinho tré­mulo? - Matt arreganhou os dentes na cara do homem torturado. - Agora vire isso para o lado, assim, e deixe cair isso, devagarinho... devagarinho... devagarinho. - A voz dele foi sussurrando cada vez mais baixo, calmamente.

Quando o gatilho se abaixou, sem perigo, St. Vin­cent deixou o revólver cair da mão e, com um suspiro quase inaudível, deixou-se cair sobre um banco, desanimadamente. Tentou endireitar-se, mas em vez disso deitou-se em cima da mesa e escondeu a cara nas mãos paralisadas. Matt calçou as luvas, obser­vando-o, entretanto, com dó, e saiu, fechando a porta docemente atrás de si.


Capitulo XX

Onde a natureza mostra a sua mão dura, os filhos dos homens são capazes de responder com dureza igual. As amenidades da vida só brotam nas regiões suaves, onde o sol é quente e a terra pujante. O clima húmido e chuvoso da Britânia arrasta os homens para as bebidas fortes; o Oriente róseo atrai para o sonho esplendoroso do lótus. O habitante nórdico, de corpo avantajado e pele leitosa, rude e feroz, berra a sua cólera desagradavelmente e desfere um punho enorme no rosto do seu inimigo. O dócil autóctone do Sul, de sorriso de seda e gestos indolentes, espera e faz o seu trabalho quando ninguém está a olhar, graciosamente e sem ofensa. O objectivo deles é o mesmo; a diferença reside nos processos, e, nisso, o clima e a sua influência cumula­tiva são o factor determinante. Ambos são pecadores como os homens nascidos de mulher o têm sempre sido; mas um pratica o seu pecado abertamente, bem debaixo das vistas de Deus; o outro - como se Deus o não visse - encobre a sua iniquidade com fantasias ténues, ocultando-a como se fosse algum mistério esplêndido.

São estes os processos dos homens, cada um con­forme o sol que o ilumina e o vento que o fustiga, de acordo com a sua espécie, e o sangue de seu pai e o leite de sua mãe. Cada um é o resultado de muitas forças que compõem uma influência mais poderosa do que ele, a qual o molda na forma predestinada. Mas, dono de umas pernas vigorosas, ele pode fugir e ir ao encontro de uma nova influência. Pode conti­nuar a fugir, cada uma das novas influências a aguilhoá-lo a medida que foge, até que morre, e a sua forma final será a predestinada de muitas influên­cias. Uma troca de criancinhas de berço, e o que nasceu escravo pode usar as púrpuras imperiais, e o infante real, pedir uma esmola com modos untuosos ou encolher-se sob o chicote, tão abjecta­mente como o último dos seus súbditos. Um Rockfeller com o estômago vazio, topando com boa comida, devorará com tanta sofreguidão como o porco da pocilga mais próxima. E um Epicuro, no igló nojento dos esquimós, ou se tornará eloquente acerca do óleo de baleia e do sebo da morsa, ou morrerá.

Também assim, nas terras jovens do Norte, gela­das, austeras e ameaçadoras, os homens despojam-se da indolência do Sul e dão luta com vigor. E despo­jam-se igualmente das aparências de civilização - de todas as suas loucuras, da maior parte das suas fraquezas e talvez de algumas das suas virtudes. Talvez que sim; mas preservam as grandes tradições e, pelo menos, vivem com franqueza, riem honesta­mente e olham-se nos olhos.

E, assim, não é bom para as mulheres nascidas no Sul e criadas com doçura vaguear livremente pelas terras do Norte, a não ser que tenham um grande coração. Podem ser doces, ternas e sensíveis, possuir olhos que não perderam o brilho e o deslum­bramento, ouvidos habituados apenas a sons suaves; contudo, se a sua filosofia for sadia e estável, suficien­temente grande para compreender e perdoar, não lhes acontecerá mal algum e alcançarão a compreen­são. Se não, verão e ouvirão coisas que magoam, sofrerão grandemente e perderão a fé no Homem - que é o pior mal que lhes pode acontecer. Estas deviam ser tratadas com todos os carinhos, e seria bom confiar isto aos parentes, quanto mais próximos melhor. Em regra seria boa política procurar uma cabana na encosta sobranceira a Dawson ou, melhor ainda, do outro lado do Yukon na margem ociden­tal. Não as deixar sair sem serem anunciadas e acom­panhadas; e a vertente nas traseiras da cabana pode ser recomendada como um campo apropriado para esticar os músculos e respirar fundo, um lugar onde os ouvidos podem permanecer imaculados das palavras grosseiras dos homens que dão tudo por tudo.

 

Vance Corliss limpou o último prato e arrumou-o na prateleira, acendeu o cachimbo e deitou-se de costas, em cima da sua tarimba, para contemplar o tecto calafetado de musgo da sua cabana, na Colina Francesa. Esta cabana estava situada no último pendor da colina, antes de esta penetrar no desfiladeiro do Eldorado, próxima do caminho mais concorrido; e a sua janela única reluzia alegremente, de noite, aqueles que viajavam tarde.

A porta foi aberta com um pontapé, e Del Bishop entrou, a cambalear, com um braçado de lenha para o fogão. O bafo depositara-se-lhe no rosto, numa crosta branca, de modo que não podia falar. Tal situação era sempre um apuro para o homem, de modo que espetou a cara na direcção do calor trémulo, por cima do fogão. Num abrir e fechar de olhos, o gelo derreteu-se e os riachozitos gelados dançaram furiosamente sobre a superfície rubra, em baixo. Em seguida o gelo começou a cair-lhe da barba, em pedaços grossos, rufando nos tampas e rechinando maliciosamente, até se elevar em nuvens de fumo.

- Assim está a presenciar um fenómeno real, ilustrativo das três formas da matéria - declarou Vance a rir, imitando os tons monótonos do demons­trador: - sólida, líquida e gasosa. Daqui a instantes, verá a gasosa.

- 'tá... 'tá... 'tá muito bem-disse Bishop pre­cipitadamente, lutando com um pedaço de gelo atrevido, até que este foi arrancado do seu lábio superior e arremessado na direcção do fogão, fazendo «bangue!».

- Que temperatura calcula que esteja, Del? Cinquenta?

- Cinquenta? - perguntou o prospector com indizível desdém, limpando o rosto. - O Quicksilver há horas que gelou e está cada vez mais frio, de então para cá. Cinquenta? Apostava as minhas luvas novas contra as suas mocassinas velhas que não está nem um grau acima de setenta.

- Acha que sim?

- Quer apostar?

Vance fez que sim com a cabeça, rindo-se.

- Centígrados ou Fahrenheit? - perguntou Bishop, repentinamente desconfiado.

- Oh, bom! Se deseja tanto as minhas mocassinas velhas - replicou Vance fingindo-se ofendido pela falta de confiança do outro - pode ficar com elas sem apostar.

Del resfolegou e atirou-se para cima da tarimba em frente.

- Acha que tem muita graça, não acha? - Não obtendo nenhuma resposta calculou que ela fora confirmativa, virou-se e pôs-se a estudar as calafe­tagens de musgo.

Quinze minutos deste entretenimento foram sufi­cientes.

- Quer vir daí jogar uma partida, antes da deita? - desafiou para a outra tarimba.

- Pode ser. - Corliss levantou-se, espreguiçou-se e mudou o lampião de querosene da prateleira para a mesa. - Acha que se aguentará? - perguntou, examinando o nível de combustível através do vidro barato.

Bishop poisou as cartas e verificou o conteúdo do lampião. - Esqueci-me de o encher, não foi? Agora já é tarde. Encho amanhã. Chega para acabar a partida, de certeza.

Corliss pegou nas cartas, mas deteve-se, no acto de as baralhar.

- Temos um grande passeio em perspectiva, Del, daqui a um mês, mais ou menos, em meados de Março, segundo os meus cálculos... subir o rio Stewart até ao McQuestion, subir o McQuestion e regressar pelo Mayo abaixo; depois atravessar a região até Mazy May, fazendo um desvio no desfi­ladeiro Henderson...

- Para Indian River?

- Não - respondeu Corliss dando as cartas; - precisamente abaixo, onde o Stewart se junta com o Yukon. E depois de novo para Dawson, antes de o gelo derreter.

- Não teremos tempo de nos coçar; é um grande passeio, sim senhor! Palpite?

- Recebi recado do turma de Parker, no Mayo, e o McPherson não está a dormir em Henderson... você não o conhece. Eles estão muito calados, e claro que ninguém pode garantir, mas...

Bishop abanou a cabeça sabiamente, enquanto Corliss voltava o trunfo que tinha cortado. A visão autêntica de uma vasa de «vinte quatro» estava a fasciná-lo, quando se ouviu um som de vozes lá fora, e a porta estremeceu sob uma forte pancada.

- Entre! - berrou. - Não é preciso fazer tanto barulho! Olhe para isto - para Corliss ao mesmo tempo que mostrava a mão. - Quinze oito, quinze dezasseis, e oito são vinte e quatro. Isto é que é sorte!

Corliss pôs-se rapidamente de pé. Bishop revirou a cabeça. Duas mulheres e um homem tinham entrado desajeitadamente pela porta, a cambalear, e espe­ravam de pé, momentaneamente cegos pela luz.

- Com todos os diabos, Cornell! - O prospec­tor apertou a mão do homem e puxou-o para diante. - Lembra-se de Cornell, Corliss? Jake Cornell de Eldorado?

- Como podia eu esquecer-me? - saudou o engenheiro calorosamente, apertando-lhe a mão. - Foi uma noite horrível que nos fez passar, no Outono findo, quase tão horrível quanto era boa a carne de alce que nos serviu ao pequeno-almoço.

Jake Cornell, hirsuto e cadavérico de aspecto, sacudiu a cabeça com ênfase e depositou um cor­pulento garrafão em cima da mesa. Tornou a sacudir a cabeça e olhou em volta, com olhar feroz. O fogão atraiu-lhe a atenção, e, encaminhou-se para ele, levantou uma tampa e cuspiu um bochecho de líquido cor de âmbar. Outra passada, e estava de volta.

- Claro que me lembro dessa noite - bramiu ele, o gelo a tilintar-lhe no queixo peludo. - E estou muito satisfeito de o ver, ai isso é que eu estou. - Pareceu de repente lembrar-se de qual­quer coisa e acrescentou, um pouco timidamente: - A verdade é que estamos todos muito satisfeitos de o ver, não é raparigas? - Voltou a cabeça para trás e fez sinal as companheiras para se aproxi­marem. - Blanche, minha querida, Sr. Corliss... um... tenho... um... tenho a honra de os apresentar. Cariboo Blanche, senhor, Cariboo Blanche.

- Muito prazer. - Cariboo Blanche estendeu a mão franca e observou-o atentamente. Era uma mulher alourada, de feições regulares, originalmente não desagradável de aspecto, mas agora com rugas profundas e endurecidas como as dos rostos dos homens que as expõem muito ao tempo.

Felicitando-se a si próprio pela sua eficiência social, Jake Cornell pigarreou e empurrou a segunda mulher para diante.

- Sr. Corliss, a Virgem; apresento-os. Hem? - Em resposta a pergunta do olhar de Vance: - Sim, a Virgem. Mais nada, só Virgem.

Ela sorriu e fez uma vénia, mas não lhe apertou a mão. «Um peneirento» - foi o comentário que fez para consigo acerca do engenheiro; pela sua expe­riência limitada, tinha sido levada a concluir que não era costume entre os «peneirentos» apertar mãos.

Corliss retirou desajeitadamente a sua mão, em seguida fez uma vénia e olhou para ela com curio­sidade. Era uma criatura engraçada, de pouca cul­tura; uma beleza morena, de corpo esbelto; e, não obstante o tipo ser ordinário, ele não conseguia esca­par ao encanto da vitalidade que parecia trans­bordar dela. Cada um dos movimentos rápidos e espontâneos parecia brotar do excesso de sangue vivo e da energia superabundante.

- É uma mercadoria bem jeitosa, não é? - per­guntou Jake Cornell, seguindo o olhar do anfitrião com aprovação.

- Não é nada da sua conta, Jake - ripostou ela com os lábios franzidos desdenhosamente, em benefício especial de Vance. -Acho que fazia melhor se olhasse para a pobre Blanche.

- A verdade é que estamos arrasados - disse Jake. - E a Blanche enterrou-se no gelo, abaixo do caminho. Os pés dela estão a gelar.

Blanche sorria, enquanto Corliss a guiava para um banco ao lado da lareira; a sua boca firme não denunciava as dores que estava a sofrer. Ele afas­tou-se, quando Virgem começou a descalçar as meias molhadas, enquanto Bishop foi procurar peúgas e mocassinas.

- Não passou dos tornozelos - explicou Cornell confidencialmente - mas, com uma noite como esta, é muito.

Corliss concordou, com um aceno de cabeça. - Vimos a sua luz e... hum... foi assim que cá viemos ter. Não se importa, pois não?

- Ora, claro que não...

- Não incomodamos?

Corliss tranquilizou-o, pousando-lhe a mão no ombro e empurrando-o cordialmente para uma cadeira. Blanche suspirou voluptuosamente. As meias molhadas estavam estendidas e já fumegavam, e os pés aqueciam no calor capcioso das peúgas índias de Bishop. Vance pôs-lhes diante a lata do tabaco, mas Cornell sacou de uma mão-cheia de charutos e ofereceu-os a todos.

- Um bocado de caminho péssimo, mesmo na curva - observou em voz estentórea, ao mesmo tempo que lançava um olhar eloquente ao garra­fão.

- O gelo está partido, das nascentes, mas não se nota nada até se estar atascado nele. - Voltando­-se para a mulher junto da lareira. - Como te sentes, Blanche?

-Fina - respondeu ela, esticando o corpo preguiçosamente e mudando a posição dos pés, - embora as minhas pernas não estejam tão flexíveis como quando partimos.

Olhando para o seu hospedeiro, a pedir consen­timento, Cornell inclinou o garrafão por cima do braço, encheu parcialmente as quatro canecazitas e um frasco vazio, de geleia.

- Que tal um grogue? - interrompeu Vir­gem. - Ou um ponche?

- Tem algum sumo de limão? -perguntou a Corliss. - Tem? Óptimo! - Dirigiu os olhos escuros para Del. - Você, aí cozinheiro! Mexa-se e ponha uma cafeteira a aquecer água. Vamos! Todos! Jake oferece e eu preparo. Tem açúcar, Sr. Corliss? E noz-moscada? E canela, então? Óptimo! Serve! Mexa-se, cozinheiro!

- Não é uma pêssega? - confidenciou Cornell a Vance, contemplando-a com olhar meloso, enquanto ela mexia a beberagem fumegante.

Mas Virgem dirigiu as suas atenções para o engenheiro.

- Não lhe ligue, senhor - recomendou; - ele já está com um pifão, de tanto virar aquele abençoado garrafão.

- Ora, minha querida... - protestou Jake.

- Não me chame cá querida - ripostou com desdém. - Não o gramo.

- Porquê?

- Porque... - com a concha encheu cuidado­samente as canecas, meditando. - Porque masca tabaco. Porque é um bêbado. Do que eu gosto é de rapazes de cara escanhoada.

- Não acredite nos disparates que ela diz - adver­tiu o pequeno rei. - Ela diz aquilo de propósito para me enfurecer.

- Ora emborque lá o seu copo e cale-se - orde­nou ela asperamente.

- Cá vai!

- Por quem havemos de beber? - gritou Blanche, do fogão.

As canecas já levantadas hesitaram e detiveram-se.

- Pela rainha, que Deus a abençoe! - brindou Virgem prontamente.

- E pelo Bill! - cortou Del Bishop.

De novo as canecas hesitaram.

- Bill, quê? -perguntou Virgem, desconfiada. - McKinley.

Ela prodigalizou-lhe um sorriso.

- Obrigada, cozinheiro, és um compincha. Vamos a isto, gentes! De pé! Pela rainha, que Deus a abençoe, e por Bill McKinley!

- Virar os copos! - trovejou Jake Cornell. E as canecas bateram na mesa, tinindo.

Vance Corliss descobriu que estava divertido e interessado. Segundo Frona, pensou ele com ironia, isto era aprender a vida, era acrescentar ao seu con­teúdo de generalizações humanas. A frase era dela, e ele repetiu-a mentalmente umas poucas de vezes. Então, sub-repticiamente, o pensamento do noivado dela com St. Vincent instalou-se-lhe no espírito, e ele rogou a Virgem que cantasse. Mas ela estava envergonhada e só depois de Bishop ter interpretado várias estâncias de «Nuvem veloz» é que aquiesceu. A voz dela, débil, atingia talvez a oitava e meia; abaixo desse ponto sofria metamorfoses estranhas, ao passo que nas notas superiores se esganiçava e fraquejava. Apesar disso, cantou «Leva o teu Ouro» com sentimento comovedor que fez humedecer os olhos do pequeno rei, que escutava avidamente e que momentaneamente experimentou anseios éticos não costumados.

Os aplausos foram generosos, logo seguidos de Bishop, que brindou a cantora chamando-lhe «Fada de Bow Bells», e pelo estentóreo «Virar os Copos!», de Jake Cornell.

Duas horas depois, Frona Welse bateu a porta. Foi uma pancada nítida, insistente, sobrepondo-se ao barulho e fazendo Corliss vir a porta.

Ela deu um gritinho de alegria quando viu quem era.

- Oh, é você, Vance! Não sabia que vivia aqui.

O rapaz apertou-lhe a mão e bloqueou-lhe a entrada com o corpo. Por detrás dele, Virgem ria-se e Jake Cornell trovejava:

- Oh! Transmitam esta mensagem ao longo dos caminhos: Ele está no Oeste, mas vai regressar; Ponham vitela para mais um a assar. Trá-lá-lá, lá, lá, lá, lá, lá!

- O que foi? - perguntou Vance. - Aconte­ceu alguma coisa?

- Acho que me podia convidar a entrar. - Havia um ligeiro tom de censura e de pressa na voz de Frona. - Enterrei-me no gelo, os meus pés estão a gelar.

- Oh, Santo Deus! - a voz exuberante de Virgem veio em ondas por cima do ombro de Vance, e as de Blanche e Bishop juntaram-se-lhe numa gargalhada, a troçar de Cornell, seguidas dos protestos e vociferações deste. Vance julgou que todo o sangue do corpo lhe afluía ao rosto. - Mas não pode entrar, Frona. Não está a ouvi-los?

- Mas tenho de entrar - insistiu esta. - Os meus pés estão a gelar.

Com um gesto de resignação, ele afastou-se e fechou a porta atrás dela. Surgindo repentinamente da escuridão, a jovem hesitou um instante, mas nesse instante recuperou a vista e abrangeu a cena. A atmosfera estava densa com o fumo do tabaco, cujo cheiro, no compartimento fechado, era enjoa­tivo para quem vinha do ar puro lá de fora. Na mesa elevava-se uma coluna de fumo da enorme panela de ponche. Virgem, esquivando-se a frente de Cornell, defendia-se com uma comprida colher de mostarda. Enquanto se esquivava, sempre atenta, salpicava-lhe continuamente o nariz e as bochechas com a pasta amarela. Blanche virara as costas ao fogão para observar a brincadeira, e Del Bishop, com a caneca parada a meio caminho dos lábios, aplaudia as sucessivas besuntadelas. Os rostos de todos estavam afogueados.

Vance encostou-se a porta, sem coragem. A situa­ção parecia tão inacreditável! Um desejo louco de rir apossou-se dele e redundou num ataque de tosse. Mas Frona reconhecendo a sua pressa urgente, pela ausência cada vez maior de sensibilidade nos pés, avançou.

- Olá, Del! - saudou.

A alegria gelou-se-lhe na cara, aquela voz familiar. Lentamente e sem vontade voltou a cabeça para a encarar. Ela deixara cair o capuz da capa para trás, e o seu rosto, recortado contra a pele escura, rosado do frio e radioso, era como um raio de sol na escuri­dão de uma taberna. Todos a conheciam, pois quem não conhecia a filha de Jacob Welse? Virgem deixou cair a colher de mostarda, com um guinchinho assustado, enquanto Cornell, passando uma mão pasmada pelas suas manchas amarelas e limpando a sujeira geral, caiu prostrado no banco mais próximo. Só Cariboo Blanche manteve a calma e riu-se bai­xinho. Bishop conseguiu articular «Olá» mas foi incapaz de quebrar o silêncio que se seguiu.

Frona esperou um segundo; em seguida, disse:

- Boa noite a todos!

- Por aqui - Vance recuperou a presença de espírito e instalou-a junto do fogão, em frente de Blanche. - É melhor tirar a roupa imediatamente. Tenha cuidado com o calor. Vou ver o que consigo encontrar para si.

- Um pouco de água fria, por favor - pediu ela. - Pára tirar o gelo. O Del vai-ma buscar.

- Espero que não seja grave.

- Não. - Frona abanou a cabeça e sorriu-lhe, ao mesmo tempo que tratava de descalçar as mocassinas cobertas de gelo. - Não teve tempo senão de gelar na superfície. Na pior das hipóteses cairá a pele.

Um silêncio estranho reinava na cabana, que­brado apenas pelo barulho de Bishop a encher uma bacia com o balde da água, e de Corliss a procurar as suas mocassinas de trazer por casa, mais pequenas e elegantes, e as peúgas mais quentes.

Frona, que esfregava com energia os pés, parou e levantou os olhos.

- Não deixem esfriar a alegria, só porque eu estou com frio - disse, rindo. - Continuem, por favor.

Jake Cornell endireitou-se e pigarreou sem necessidade. Virgem ostentava um ar digníssimo; mas Blanche aproximou-se e tirou a toalha das mãos de Frona.

- Molhei os pés no mesmo sítio - disse, ajoe­lhando-se e fazendo surgir um rubor nos pés gelados.

- Acho que lhe servirão, mais ou menos. Tome! - Vance entregou-lhe as mocassinas e as meias de lã, que as duas mulheres com risinhos e vozes confi­denciais utilizaram logo.

- Mas o que é que andava a fazer na estrada, sozinha, a estas horas da noite? - perguntou Vance. Intimamente admirava o sangue-frio e o ânimo com que ela conduzia a situação.

- Sei de antemão que me vai censurar - repli­cou ela, ajudando Blanche a estender a roupa molhada por cima do fogo. - Eu estava em casa da Sr.a Stan­ton; mas primeiro precisa de saber que a Miss Mortimer e eu estamos a passar uma semana em casa dos Pently. Ora, voltando ao princípio, tencionava sair de casa da Sr.a Stanton antes de anoitecer, mas o bebé bebeu petróleo, o marido tinha ido a Dawson e... bom, só há meia hora é que ficámos descansados a respeito da criança. Ela não me queria deixar voltar sozinha; mas não havia nada a recear. O que eu não contava era que o gelo estivesse assim quebradiço.

- Como é que trataram a criança? - perguntou Del na intenção de manter a conversa, agora que ela tinha principiado.

- Demos-lhe tabaco a mascar. - Quando as gargalhadas se calaram, continuou: - Não havia mostarda, e foi a coisa melhor de que me consegui lembrar. Aliás o Matt McCarthy salvou-me a vida assim uma vez, em Dyea, quando tive o garrotilho. Mas vocês estavam a cantar, quando eu cheguei - observou. - Continuem.

Jake Cornell gaguejou prodigiosamente.

- Eu já acabei.

- Então você, Del. Cante a «Nuvem Veloz», como costumava quando vinha a descer o rio.

- Oh, já cantou! - disse Virgem.

- Então cante você. Tenho a certeza que sabe.

Sorriu directamente para Virgem, e a dama interpretou uma balada popular, com mais arte do que ela se dava conta. O silêncio causado pela che­gada de Frona foi rapidamente dissipado, e canções brindes e alegria reinaram de novo. Frona não desdenhou de tocar com os lábios, cordialmente, no frasco de compota; e contribuiu com a sua parte, cantando «Annie Laurie» e «Ben Bolt». E também, mas secretamente, ia observando o álcool a saturar as almas intoxicadas de Cornell e Virgem. Era uma experiência, sentia-se contente com isso, embora por outro lado tivesse pena, por causa de Corliss, que fazia o papel de hospedeiro, todo contrafeito.

Mas ele não precisava que sentissem pena. «Qualquer outra mulher...», repetiu ele a si próprio uma vintena de vezes, observando Frona e tentando visionar várias mulheres que conhecera nos chás da mãe, a bater a porta e a entrar, como Frona o tinha feito. Ainda ontem o teria aborrecido ver Blanche friccionar-lhe os pés; mas agora orgulhava-se de Frona o permitir, e o seu coração inclinava-se mais enternecidamente para Blanche. Talvez fossem efeitos do álcool, mas parecia-lhe descobrir novas virtudes no seu rosto enrugado.

Frona calçara as mocassinas secas e pusera-se de pé, escutando pacientemente Jake Cornell, que solu­çava um último brinde incoerente.

- Ao... hipe... homem - bramiu cavernosa­mente -, ao homem... hipe... que fez...

- Este abençoado país - sugeriu Virgem.

- Isso mesmo, minha querida... hipe! Ao homem que fez este abençoado país. A... hipe...  Jacob Welse!

- E a mais outra pessoa! - exclamou Blanche.­ À filha de Jacob Welse!

- Isso! De pé! Virar os copos!

- Oh! Ela é uma compincha! - começou Del, com o rosto afogueado, da bebida.

- Gostava de lhe apertar a mão, uma só vez - disse Blanche em voz baixa, enquanto os outros cantavam em coro.

Frona descalçou a luva que já tinha calçado, e o aperto de mão delas foi firme.

- Não! - disse para Corliss, que tinha posto o boné e estava a apertar os protectores das orelhas.­ A Blanche diz-me que a casa dos Pently fica apenas a meia milha daqui. O caminho é a direito. Não consinto que ninguém me acompanhe. Não! - Desta vez falou com tal autoridade que ele atirou o boné para cima da cama. - Boa noite a todos! - exclamou, derramando um sorriso pelos foliões.

Mas Corliss acompanhou-a até à porta e trans­pô-la. Frona levantou os olhos para ele. O capuz só estava meio puxado para cima, e o rosto brilhava, sedutor, à luz das estrelas.

- Eu... Frona... eu quero...

- Não esteja preocupado - segredou ela. - Não vou contar a ninguém, Vance.

O rapaz notou o brilho trocista no olhar, mas tentou continuar.

- Quero explicar como...

- Não é preciso. Eu compreendo. Mas, ao mesmo tempo, tenho de confessar que não admiro especial­mente o seu gosto...

- Frona!

A dor evidente expressa na voz dele comoveu-a.

- Oh, seu grande tolo! - disse, rindo. – Então eu não sei? Então a Blanche não me contou que tinha enterrado os pés?

Corliss curvou a cabeça.

- Com efeito, Frona, você é a mulher mais coerente que eu já conheci. Além disso - endirei­tando-se com uma convicção autoritária na voz - isto ainda não é o fim.

Ela tentou fazê-lo calar, mas ele prosseguiu.

- Eu sinto, eu sei que as coisas se hão-de modi­ficar. Para me servir das suas próprias palavras, não foram tomados em consideração todos os factores. Quanto a St. Vincent... você ainda há-de ser minha. E nunca será cedo de mais!

Estendeu os braços sedentos para ela, mas ela compreendeu-lhe antecipadamente as intenções e, rindo, esquivou-se-lhe, correndo ligeira pelo caminho abaixo.

- Volte aqui, Frona! Volte aqui! - chamou Vance. - Lamento...

- Não lamenta tal - foi a resposta. - E quem lamentava era eu se você lamentasse. Boa noite.

Ficou a vê-la confundir-se nas sombras. Depois entrou na cabana. Tinha esquecido por completo a cena lá dentro e, ao primeiro olhar, admi­rou-se. Cariboo Blanche estava a chorar de man­sinho. Os seus olhos estavam luminosos e húmidos. Quando ele a olhou, uma estrela solitária deslizou­-lhe pela face. O rosto de Bishop tornara-se sério. Virgem deitara a cabeça e os ombros em cima da mesa, no meio das canecas voltadas e das borras que gotejavam. Cornell titubeava com ela, aos soluços e repetindo estúpidamente

- Não te rales, minha querida. Não te rales.

Mas Virgem estava inconsolável.

- Oh, meu Deus! Quando penso no que sou e no que era... e sem culpa nenhuma. Sem culpa nenhuma, juro-te! - guinchou ela com súbita vio­lência. - Como é que eu nasci, pergunto eu. Quem era o meu velho? Um borracho, um crónico. E a minha velha? Santo Deus! Quem é que me ligava bóia, e como é que fui eu criada? Quem ligava bóia? Quem ligava bóia?

Uma repugnância súbita apoderou-se de Corliss.

- Cale-se! - ordenou.

Virgem ergueu a cabeça, com o cabelo solto espalhado em volta dela, como uma fúria.

- O que é? - zombou ela. - Queridinho!

Corliss avançou para ela ferozmente, o rosto branco e a voz trémula de exaltação.

Virgem encolheu-se e instintivamente ergueu as mãos para proteger o rosto.

- Não me bata, senhor! -gemeu. - Não me bata! Ele sentiu-se assustado de si próprio e esperou até conseguir dominar-se.

- Agora - disse calmamente - vistam as suas coisas e vão-se embora. Todos. Saiam! Rua!

- Você não é homem, não é nada - rosnou Virgem, descobrindo que não estava iminente nenhum agressão física.

Mas Corliss conduziu-a especialmente à porta e não ligou importância.

- Pôr assim senhoras na rua! - fungou ela, tro­peçando no limiar da porta.

- Ninguém fica ofendido - resmungou Jake Cornell pacificamente. - Ninguém fica ofendido.

- Boa noite. Desculpem - disse Corliss a Blan­che, com a sombra de um sorriso de desculpa, quando ela passou por ele ao sair.

- O senhor é um peneirento! É o que o senhor é, um grandessíssimo peneirento! - berrou ainda Vir­gem, quando ele fechava a porta.

Ele olhou inexpressivamente para Del Bishop e contemplou a confusão húmida em cima da mesa. Em seguida deu uns passos e atirou-se para cima da tarimba. Bishop apoiou um cotovelo na mesa e puxou uma baforada no seu cachimbo ruidoso. A lanterna fumegou, vacilou e apagou-se; mas o prospector ficou, enchendo e tornando a encher o cachimbo e riscando fósforos sem fim.

- Del! Está acordado? - perguntou Corliss.

Del grunhiu.

- Fui uma besta em os ter posto fora, com esta neve. Estou envergonhado.

- Claro - foi a resposta.

Um longo silêncio se seguiu. Del sacudiu as cinzas e levantou-se.

- Está a dormir? - chamou.

Não houve resposta. Dirigiu-se à tarimba, de mansinho, e puxou os cobertores para cima do engenheiro.


Capitulo XXI

- Sim! E isso tudo que significa? - Corliss espre­guiçou-se indolentemente e colocou os pés em cima da mesa. Não estava particularmente interessado, mas o coronel Trethaway insistiu em falar a sério.

- Ora aí é que está! E isso mesmo... a velha e sempre nova exigência que o homem atira a cara do mundo. - O coronel procurou entre os recortes de jornal, na sua agenda.

- Veja - arvorando um pedacinho sujo de papel dactilografado. - Copiei isto há anos. Escute «Que espectro monstruoso é este homem, este aborto de pó aglutinado, erguendo os pés altamente ou jazendo bêbado de sono; matando, alimentando-se, crescendo, gerando pequenas cópias de si próprio; com cabelos como relva e olhos que lhe luzem no rosto; coisa para fazer crianças gritar. Pobre alma, neste mundo para tão pouco, atirado para o meio de tantas dificuldades, cheio de desejos tão incomensurá­veis e tão inconsistentes; cercado ferozmente, atacado também ferozmente, irremediavelmente condenado a pilhar o seu semelhante. Infinitamente infantil, muitas vezes admiravelmente corajoso, muitas vezes comovedoramente terno; detendo-se a debater o Bem e o Mal e os atributos da divindade; erguen­do-se para lutar por uma ninharia ou morrer por um ideal! »

- E tudo isto para quê? - perguntou apaixona­damente, deixando cair o papel, - este aborto de pó aglutinado?

Corliss bocejou em resposta. Calcorreara a estrada o dia inteiro e ansiava pelo vale de lençóis.

- Aqui estou eu, o coronel Trethaway, de meia­-idade, bastante bem conservado, uma posição na comunidade, uma conta bancária razoável, sem necessidade de me esforçar mais, e no entanto supor­tando a vida tristemente e trabalhando ridicula­mente com um zelo próprio de um homem com metade da minha idade. E para quê? Não posso comer mais, nem fumar, nem dormir, e este cabo do mundo, a que os homens chamam Alasca, é o pior de todos os lugares possíveis, em matéria de comida, tabaco e cobertores.

- Mas é o viver tão activamente que o mantém - interpôs Corliss.

- Isso é filosofia de Frona - troçou o coronel.

- E a minha filosofia e a sua.

- E a do pó aglutinado...

- Que é estimulada por uma paixão que não toma em consideração... a paixão do dever, da raça, de Deus!

- E a compensação? - perguntou Trethaway.

- Cada sopro de ar que respira. A efeméride vive uma hora.

- Não compreendo isso.

- Sangue e suor! Sangue e suor! Foi o que o senhor disse depois da rixa da Casa da ópera, e cada uma das palavras era a quitação plena e rasa.

- Isso é filosofia de Frona.

- E sua e minha.

O coronel encolheu os ombros. Após uma pausa, confessou:

- Está a ver? Por mais que tente, não consigo tornar-me um pessimista. Todos somos compen­sados, eu mais largamente do que a maioria dos homens. Para quê? Fiz-me a pergunta, e a resposta que obtive foi esta: desde que o fim último nos é inacessível, então o imediato. Maior compensação aqui e agora!

- Hedonismo puro.

- E racionalismo. Tratarei disso imediatamente. Posso comprar comida e roupa para vinte. Só posso comer e dormir por um; ergo, porque não por dois?

Corliss pôs os pés no chão e endireitou-se na cadeira.

- Por outras palavras?...

- Vou-me casar e... dar um choque a comu­nidade. As comunidades gostam de choques. E uma das suas compensações por serem aglutinadoras.

- Só pode ser uma mulher - experimentou ele na dúvida, estendendo-lhe a mão. Trethaway apertou-lha lentamente.

- É essa.

Corliss retirou a mão, e a apreensão ensombrou -lhe o rosto.

- E St. Vincent?

- O problema é seu, não meu. - Então Lucile...?

- Com certeza que não. Quis fazer um papel­zinho quixotesco e saiu-se mal.

- Eu... eu não compreendo. - Corliss coçou as sobrancelhas, confundido.

Os lábios de Trethaway entreabriram-se num sorriso superior.

- Não é necessário que o compreenda. A ques­tão é: ficará ao meu lado?

- Com certeza. Mas que raio de rodeios que o senhor fez. Não é esse o seu método habitual.

- Nem o dela - acrescentou o coronel, retor­cendo o bigode orgulhosamente.

 

Um capitão da Polícia Montada do Noroeste, em virtude do seu cargo de magistrado, pode realizar casamentos em caso de necessidade, bem como aplicar justiça exemplar. Por isso o capitão Alexander rece­beu uma visita do coronel Trethaway e, depois de este ter saído, anotou um casamento para a manhã seguinte. Em seguida o noivo foi visitar Frona. Lucile não tinha pedido nada; apressou-se a explicar mas... bom, o facto era que ela não conhecia mulher nenhuma e, além disso, ele (o coronel) sabia quem Lucile gostaria de convidar, se o ousasse. Por isso ele o fazia, a sua própria responsabilidade. E, sendo uma surpresa, sabia que lhe daria uma grande alegria.

Frona ficou assombrada com a rapidez de tudo aquilo. Ainda há poucos dias Lucile lhe viera dis­putar St. Vincent, e agora era o coronel Tretha­way! É certo que houvera algo que lhe não soara a autêntico, mas agora parecia duplamente falso. Seria possível, afinal de contas, que Lucile fosse interesseira? Estes pensamentos amontoavam-se-lhe no espírito, enquanto o coronel lhe espiava o rosto com ansiedade. Sabia que tinha de responder depressa; contudo, estava distraída com a admiração involuntária da coragem dele. E assim seguiu forço­samente os ditames do seu coração e anuiu.

Contudo, no dia seguinte, quando os quatro se reuniram no gabinete particular do capitão Alexander, estavam todos bastante contrafeitos. O ambiente estava gelado e sombrio. Lucile parecia prestes a chorar e exibia uma perturbação reprimida, absolutamente inesperada nela, enquanto Frona, embora se esforçasse, não conseguia recorrer a sua habitual simpatia para quebrar o gelo que se infil­trava, intangível, entre eles. Isto, por seu turno, produzia um efeito sobre Vance, emprestando aos seus modos uma certa distância que o punha pouco a vontade, mesmo com o coronel.

O coronel Trethaway parecia ter tirado vinte anos de cima dos ombros erectos; a discrepância do par, que Frona tinha sentido, desapareceu quando olhou para ele. «Tinha gozado bem a vida», pensou; e, impelida misteriosamente, quase com uma vaga apreensão, volveu o olhar para Corliss. Mas, se o noivo tinha tirado vinte anos de cima, Vance não lhe ficava atrás. Desde o seu último encontro tinha sacrificado o bigode castanho ao frio, e o rosto glabro, resplandecente de saúde e energia, parecia invulgarmente jovem; contudo, por outro lado, o lábio superior, desguarnecido, denunciava uma firmeza e resolução até aí escondidas. Além disso, as feições denotavam um amadurecimento, os olhos, natural e suavemente firmes, eram agora firmes com um acréscimo de dureza ou aspereza que se adquire na luta com as coisas, e na luta rápida - o cunho do dinamismo impresso nos homens que agem, e em todos os homens que agem, quer conduzam cães, lutem com o mar ou ditem a política dos impérios.

Quando a cerimónia simples terminou, Frona beijou Lucile; mas esta pressentiu que havia algo subtil que faltava, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas não vertidas. Trethaway, que sentira a indiferença desde o princípio, aproveitou uma oportunidade de se aproximar de Frona, enquanto o capitão Alexander e Corliss felicitavam a Sr.a Tre­thaway.

- O que se passa, Frona? - perguntou o coro­nel abruptamente. - Espero que não tenha vindo contra vontade. Lamento, não por si, porque a falta de franqueza não merece nada, mas por Lucile. Não é justo para ela.

- Houve sempre falta de franqueza em tudo. - A voz dela tremia. - Fiz o possível... julguei que era capaz de fazer melhor... mas não consigo fingir o que não sinto. Lamento, mas eu... eu estou desiludida. Não, não sei explicar; e a si, ainda menos.

- Sejamos francos, Frona. É por causa de St. Vin­cent?

Ela acenou que sim.

- Sou capaz de pôr o dedo na ferida. Em primeiro lugar - olhou para o lado e viu que Lucile lhe deitava as escondidas um olhar ansioso, - em primeiro lugar, ainda no outro dia ela lhe contou uma história acerca de St. Vincent. Em segundo lugar, e em consequência disso, pensa que os sentimentos dela não têm nada a ver com o caso presente, que ela não me liga meia; em resumo, que ela casa comigo por segurança e por interesse. Não é verdade?

- E não chega? Oh, estou desiludida, coronel Trethaway, dolorosamente, com ela, consigo e comigo.

- Não seja tola! Gosto de si o bastante para ver que está a fazer figura de tola. O jogo foi rápido de mais; é o que é. Você perdeu-lhe o fio. Escute. Nós fizemos tudo em segredo, mas ela é uma das escolhidas da Colina Francesa. Os terrenos dela prometem ser os mais ricos do lote. Pelas últimas indicações, meio milhão, no mínimo, Em nome dela, limpos. Ela não podia pegar neles e ir para qualquer parte do mundo e começar nova vida? A propó­sito, poderá supor que eu caso com ela por interesse. Frona, ela gosta de mim, e, aqui para nós, eu não a mereço. A minha esperança é que o futuro a com­pensará. Mas não importa isso... não temos tempo agora.

«Acha o afecto dela muito repentino, não? Deixe­-me que lhe diga que o nosso interesse um pelo outro começou na altura em que eu para cá vim, e de olhos bem abertos. St. Vincent? Pfu! Estive sempre ao par. Meteu-se-lhe na cabeça a ela que ele inteiro não valia o seu dedo mindinho, e tentou desmanchar o namoro. Nunca saberá como manobrou com ele. Eu disse-lhe que ela não conhecia os Welses, e concordou depois. Ora aí tem; acredite, se quiser.»

- Mas o que pensa de St. Vincent?

- O que eu penso, não vem ao caso; contudo, dir-lhe-ei francamente que partilho da opinião de Lucile. Mas isso não importa. O que é que vai fazer em relação a ele, agora?

Frona não respondeu, mas foi ter com o grupo que esperava. Lucile viu-a aproximar-se e obser­vou-lhe o rosto.

- Ele esteve a contar-lhe?...

- Que eu sou uma tola - respondeu Frona. - Acho que tem razão. - E, com um sorriso: - Acre­dito que a terá. Eu... eu não consigo compreender, agora, mas...

O capitão Alexander lembrou-se de uma ane­dota pré-nupcial nesse mesmo instante e dirigiu-se ao fogão para a contar ao coronel. Vance acompa­nhou-os por solidariedade.

- É a primeira vez - dizia Lucile. - Para mim significa mais, muito mais do que... para maioria das mulheres. Tenho medo. Para mim é um passo terrível de dar. Mas amo-o, amo-o de ver­dade. - E, quando eles voltaram, depois de ter digerido bem a anedota, soluçava: - Querida, querida Frona.

Era o momento ideal, melhor do que se o tivesse escolhido. Encarapuçado e de luvas, sem bater, acob Welse entrou.

- O convidado que não recebeu convite! - foi a saudação. - Já acabou? Bem! - E engolfou Lucile no seu enorme casacão de pele.

- Coronel, a sua mão, o seu perdão por me intrometer e as suas desculpas por me não ter con­vidado. Venha de lá essa mão! Olá, Corliss! Capitão Alexander, bom dia!

- O que fiz eu? - gemeu Frona, recebendo o abraço do gigante e tratando de lhe apertar a mão até quase fazer doer.

- Tinhas de aguentar o jogo - segredou este; desta vez, a mão doeu-lhe, de verdade.

- Ora, coronel, não sei quais são os seus planos, nem me importa. Desista deles. Tenho lá uma refei­çãozita em casa e a única caixa de champanhe decente destas redondezas. Você também vem, Corliss, claro está, e... - o seu olhar passou pelo capitão Alexander, sem quase se deter.

- Com certeza! - veio a resposta pronta, embora o magistrado-chefe do Noroeste tivesse tido tempo de considerar as consequências possíveis de seme­lhante gesto não oficial.

- Trouxe carro?

Jacob Welse riu-se e mostrou um pé calçado de mocassinas.

- Andar... isso é que não! - O capitão diri­giu-se impulsivamente para a porta. -Tenho os trenós prontos, antes que vocês estejam despachados. Três, e muitas campainhas!

Assim, a previsão de Trethaway saiu certa. Dawson reivindicou a sua aglutinatividade esfre­gando os olhos, quando três trenós, com três polícias, de dólman escarlate, brandindo os chicotes, irrom­peram pela rua principal abaixo. Tornou a esfregar os olhos quando viu quem eram os ocupantes.

Vamos levar uma vida sossegada - disse Lucile a Frona. - O Klondike não é o mundo inteiro, e o pior ainda está para vir.

Mas Jacob Welse decidiu de outra maneira.

- Temos de dar uma ajuda a isto - disse ele ao capitão Alexander, e o capitão Alexander res­pondeu que não tinha por hábito desistir de um empreendimento.

A Sr.a Schoville emitiu vociferações preliminares, reuniu as outras mulheres e tornou-se cronicamente sísmica e insegura.

Lucile não ia a lado nenhum, a não ser a casa de Frona. Mas Jacob Welse, que raramente ia a qualquer lado, era visto muitas vezes a lareira do coronel Trethaway, e não só lá ia como normal­mente levava alguém com ele.

- Tem alguns planos para esta noite? - cos­tumava dizer, quando ocasionalmente encontrava alguém. - Não? Então venha daí comigo. - As vezes dizia aquilo com a inocência de um cordei­rinho, outras com um desafio sob as sobran­celhas farfalhudas, e raramente deixava escapar alguém. Estes homens tinham mulheres, e, deste modo, os germes da dissolução foram semeados nas fileiras da oposição.

Além disso, em casa do coronel Trethaway encon­travam algo mais do que chá fraco e conversas sem interesse; e os correspondentes, os engenheiros e os aventureiros-aristocratas mantinham o caminho bem concorrido naquela direcção. Desta forma a cabana de Trethaway tornou-se o centro das coisas e, apoiada comercialmente, financeiramente e ofi­cialmente, não podia deixar de ter êxito, do ponto de vista social.

A única consequência má de tudo isto foi tornar as vidas da Sr.a Schoville e diversas outras do seu sexo mais monótonas, e fazer-lhes perder a fé em certas máximas respeitáveis e inconsequentes. Além do mais, o capitão Alexander, como dignitário mais elevado, era um poder na região, e Jacob Welse era a Companhia, e havia uma superstição geral a res­peito da insensatez de estar em termos indiferentes com a Companhia. Não decorreu muito tempo até que talvez uma meia-dúzia apenas se mantiveram afastados, aliás, os que eram considerados uns sensaborões.


Capitulo XXII

Um êxodo autêntico se verificou na Primavera, em Dawson. Alguns, porque tinham delimitado terrenos, outros, porque o não tinham, compraram todos os cães que havia disponíveis e desaparece­ram na direcção de Dyea, aproveitando os últimos gelos. Incidentalmente descobriu-se que Dave Harney era quem possuía a maior parte destes cães.

- Está de abalada? - perguntou-lhe Jacob Welse, um dia em que o sol meridiano, pela primeira vez, conseguia aquecer debilmente a pele nua.

- Bom, calculo que não. Estou a fazer três dólares por par de mocassinas que monopolizei, sem falar das botas. Olhe cá, Welse, não é que eu esteja enganado, mas você levou-me no negócio do açúcar, não levou?

Jacob Welse sorri.

- Agora estamos quites, pelas barbas de Judas! Tem botas de borracha?

- Não; gastei as últimas no princípio do Inverno. Dave riu-se silenciosamente.

- Cá este rapaz é quem as tem bem guardadas. - Isso não tem. Dei ordens especiais aos empre­gados. Não foram vendidas por junto.

- Não senhor, não foram. Um homem para cada par e um par para cada homem, e umas centenas deles; mas foi o meu ouro em pó que eles pesaram na balança, e o de mais ninguém. Bebe? Não se mace! Calma. Guarde lá a bolsa. Faça de conta que é um desconto, porque eu posso pagar... Se estou de aba­lada? Este ano não; vem aí o tempo das pesquisas de ouro.

 

Uma descoberta de ouro em Henderson, em mea­dos de Abril, que prometia ser sensacional, levou St. Vincent ao rio Stewart. Pouco depois, Jacob Welse, interessado na ravina de Gallagher e com a atenção fixada nas minas de cobre de Rio Branco, dirigiu-se para o mesmo distrito, acompanhado de Frona, porque era mais uma viagem de recreio do que de negócios. Entretanto, Corliss e Bishop, que há um mês ou mais andavam em viagem, percor­rendo a região de Mayo e McQuestion, contor­naram o braço esquerdo do Henderson, onde uma série de reivindicações esperavam que fossem exa­minadas.

Mas em Maio a Primavera estava tão adiantada que viajar nos córregos se tornava difícil; sobre os últimos gelos que se desfaziam, os mineiros desciam para o grupo de ilhas abaixo da desembocadura do Stewart, onde se acolhiam temporàriamente ou abu­savam da hospitalidade daqueles que possuíam aí cabanas. Corliss e Bishop estavam instalados na ilha de Separação (assim chamada, devido ao hábito que os grupos de fora tinham de aí se separarem e partirem em diferentes direcções), onde Tommy McPherson estava confortàvelmente instalado. Alguns dias mais tarde, Jacob Welse e Frona chegaram, depois de uma viagem perigosa pelo rio Branco, e estabeleceram-se na parte elevada, na extremidade superior da ilha da Separação. Alguns chechaquos, os primeiros da avalancha da Primavera, chegavam em fila, exaustos, e acampavam em frente da brecha do rio. Havia ainda homens que partiam, os quais, bloqueados pelo degelo do rio, vinham para terra, para construir barcos de varas e esperar o fim do degelo ou negociar canoas com os habitantes. Entre estes destacava-se o barão de Courbertin.

- Ah! Que tormento! Que maravilha! Não é?

Foi assim que Frona o encontrou pela primeira vez, no dia seguinte.

- O quê? - perguntou, estendendo-lhe a mão. - Você! Você! - tirando o barrete. - Mas que sorte!

- Com certeza... - ia ela a dizer.

- Não, não! - sacudiu com vigor a cabeça encaracolada. - Não é você! Olhe! - voltando-se para a embarcação, pela qual McPherson acabara de lhe esmifrar o triplo do valor. - A canoa! Não é... como é que vocês costumam dizer?... ouro sobre azul?

- Oh, a canoa - repetiu ela, com uma nota de desapontamento na voz.

- Não! Não! Perdão! - bateu com os pés no chão, impaciente. - Não é isso. Não é você! Não é a canoa! E... ah! Já sei! É a sua promessa. Uma vez, não se lembra?, em casa da Sr.a Schoville, falá­mos de canoas e da minha ignorância, que era lamen­tável, e você prometeu-me, você disse-me...

- Que lhe daria a primeira lição?

- E não é uma sorte? Escute! Não está a ouvir? A ondulação... ah, a ondulação... Lá no fundo. Não tarda que a água corra livremente. E aqui está a canoa, e aqui nos encontramos. A primeira lição Uma sorte! Uma sorte!

A ilha que ficava abaixo da da Separação era conhecida pela ilha de Roubeau e estava separada da primeira por um canal estreito no lado posterior. Aqui, onde o caminho quase desaparecera, com os cães a fazer a maior parte do percurso a nado, chegou St. Vincent - o último homem a percorrer a estrada de Inverno. Foi para a cabana de John Borg, um indivíduo taciturno e macambúzio, com tendência para se isolar dos da sua espécie. Foi uma infelicidade para St. Vincent entre todas as cabanas ter escolhido a de Borg para se abrigar.

- Está bem - disse o homem, quando inter­pelado por ele. - Ponha os cobertores ali no canto. A Bella limpará a tarimba vaga.

Não tornou a falar senão à noite, quando disse - Já tem idade para cozinhar para si. Quando a mulher tiver acabado de se servir do fogão, pode ir para lá.

A mulher, ou Bella, era uma rapariga índia agra­dável, jovem e a mais bonita que St. Vincent jamais encontrara. Em vez da cor escura e lustrosa habitual da raça, a sua pele era clara de uma tonalidade bronzeada clara, e as feições menos duras do que as comuns dos do seu sangue.

Depois da ceia, Borg, com ambos os cotovelos apoiados na mesa e as mãos enormes e informes a apoiar o queixo, sentou-se a puxar fumaças de fedo­rento tabaco siwsh, de olhar fixo diante de si. Poderia parecer meditativo o olhar, se os olhos fossem mais suaves ou se pestanejasse; mas assim o rosto estava rígido, como em transe.

- Está há muito tempo na região? - perguntou St. Vincent, procurando entabular conversa.

Borg volveu os olhos solenes para ele e pareceu devassá-lo e, sempre a olhá-lo, tê-lo esquecido por completo. Era como se estivesse a meditar num assunto qualquer de grande importância e peso - talvez nos seus pecados, pensou o correspondente nervosamente, enrolando um cigarro. Quando o cubo amarelo se dissipou numa nuvem fragrante, e ele se decidia a enrolar um segundo, Borg falou de repente.

- Quinze anos.

E caiu de novo nas suas profundas cogitações.

Depois disso, e durante meia hora, St. Vincent, fascinado, estudou-lhe o rosto impenetrável. Para começar, tinha uma cabeça maciça, invulgar e pesada; a única desculpa de o ser era o imenso pescoço de touro que a suportava. Fora moldada com generosidade elementar, e tudo no homem compar­tilhava da crueza assimétrica do elementar. O cabelo, uma florescência basta e desalinhada, emaranhava-se aqui e ali em curiosas manchas cinzentas, para a seguir, troçando da idade, formar caracóis de um negro lustroso - caracóis de espessura invulgar, como dedos encurvados, pesados e fortes. As suíças hirsutas, quase peladas em certos sítios, e noutros concentrando-se em tufos semelhante a relva, esta­vam abundantemente salpicadas de cinzento. Alas­travam-lhe monstruosamente pela cara e caíam-lhe em farripas até ao peito, mas não lhe conseguiam esconder as faces escavadas nem a boca retorcida. Esta era fina e cruel, todavia, cruel apenas de uma maneira desapaixonada. Mas a anomalia era a testa - a anomalia requerida para completar a irregu­laridade do rosto. Porque era uma testa perfeita, ampla e larga, elevando-se soberba e poderosa para a sua alta cúpula. Dir-se-ia a sede e baluarte de uma inteligência vasta; a omnisciência poderia ter-se acoitado ali.

Bella, que lavava os pratos e os arrumava na prateleira por detrás de Borg, deixou cair uma pesada chávena de folha. A cabana estava muito silenciosa, e o ruído agudo soou sem aviso prévio. Imediatamente, com um rosnido animal, a cadeira foi derrubada, e Borg pôs-se de pé, os olhos a faiscar e a face convulsa. Bella soltou um gritinho animalesco e inarticulado de medo e encolheu-se aos pés dele. St. Vincent sentiu os cabelos porem-se em pé e um arrepio esquisito, como uma corrente de ar frio, subir-lhe e descer-lhe pela espinha. Então Borg endireitou a cadeira e retomou a posição anterior, queixo nas mãos, a cogitar profundamente. Nem uma palavra fora pronunciada; Bella continuou despreocupadamente a tratar dos pratos, enquanto St. Vincent se punha a enrolar um cigarro, todo trémulo, perguntando-se se teria sido um sonho.

Jacob Welse riu-se, quando o correspondente lhe contou.

- É mesmo dele - disse. - Porque a maneira de ser dele é como o seu aspecto: invulgar. É uma besta insociável. Está na região há mais anos do que os amigos que tem. A verdade é que me parece que não tem um único amigo em todo o Alasca, nem mesmo entre os índios, com quem tem convi­vido muito. «Johnny, Cabeça-Esquentada» é como eles lhe chamam; mas também lhe podiam chamar «Johnny, o Quebra-Cabeças», porque ele tem um génio vivo e a mão pesada. Génio! Um mal-enten­dido qualquer insignificante surgiu uma vez entre ele e o agente de Arctic City. Ele tinha razão, é certo. O agente é que estava errado. Pois cortou logo relações com a companhia e durante um ano inteiro viveu só de carne. Mais tarde encontrei-me com ele em Tanana Station. Depois das explicações devidas, consentiu em tornar a fazer-nos as suas compras.

- Arranjou a rapariga na parte superior do rio Branco - contou Bill Brown a St. Vincent. - O Welse pensa que anda a desbravar aqueles lados, mas o Borg era capaz de lhe dar os trunfos todos e no fim ganhar a partida. Há anos que ele conhece a região. Sim, é um tipo estranho. Não gostava nada de me acoitar na casa dele.

Mas St. Vincent não se importava com as excen­tricidades do homem, porque passava a maior parte do tempo na ilha da Separação, com Frona e o barão. Um dia, porém, e inocentemente, fé-lo enfurecer. Dois suecos do outro extremo da ilha de Roubeau, que andavam à caça de esquilos, tinham parado para pedir fósforos e conversar um bocadinho ao sol cálido da aberta. St. Vincent e Borg recebiam­-nos, este quase apenas com monossílabos profundos. Atrás, junto da porta da cabana, Bella estava a lavar roupa. A tina era de fabrico caseiro, tosca e, meia cheia de água, era pesada de mais para uma mulher normal. O correspondente reparou que Bella estava atrapalhada e foi imediatamente em seu auxílio.

Um de cada lado da tina, começaram a levá-la para a esvaziar num sítio onde o terreno era incli­nado. St. Vincent escorregou na neve derretida, e a água cheia de sabão salpicou-os. Depois escorregou Bella; em seguida, ambos. Bella riu-se baixinho, depois deu uma gargalhada, e St. Vincent imitou-a. A Primavera andava no ar e no sangue deles, e era bom estar-se vivo. Só um coração envelhecido seria capaz de negar um sorriso num dia daqueles. Bella tornou a escorregar, tentou equilibrar-se, escorregou com o outro pé e sentou-se abruptamente. Rindo-se alegremente os dois, o correspondente pegou-lhe nas mãos para a ajudar a pôr-se de pé. Com um salto e um urro, Borg atirou-se a eles. As mãos foram-lhes separadas, e St. Vincent foi empurrado com força para trás. Cambaleou alguns metros e quase caiu. Então repetiu-se a cena da cabana. Bella encolheu-se e rastejou no pó, e o seu senhor dominou-a com a sua estatura, irado.

- Escute cá - disse numa voz gutural e cava, voltando-se para St. Vincent - Você dorme na minha cabana e come. Mais nada. Deixe a minha mulher em paz.

As coisas continuaram depois daquilo como se nada tivesse acontecido. St. Vincent evitava Bella e parecia ter-lhe esquecido a existência. Mas os suecos voltaram para o seu extremo da ilha, rindo-se do acontecimento trivial que estava destinado a tor­nar-se importante.


Capitulo XXIII

A Primavera, acariciando com mãos doces e cálidas, viera como um milagre e agora atardava-se num intervalo de sonho, antes de explodir no Verão em toda a sua plenitude. A neve desaparecera dos lugares baixos e dos vales e aninhava-se apenas na vertente norte das cumeeiras bordadas de gelo. O degelo começara já, e todos os riachos rugiam, cheios. Todos os dias o Sol se levantava mais cedo e se demorava mais. Agora às três horas era dia frio e, às nove, crepúsculo suave. Em breve um círculo doirado cobriria o céu, e a meia-noite profunda se tornaria em dia luminoso. Os salgueiros e as faias há muito tinham rebentado e iam-se cobrindo de um manto de verde pálido de reseda, e a seiva rebentava nos pinheiros.

A mãe natureza soltara um suspiro ao despertar e deitara-se ao seu trabalho breve. Os grilos trilavam à noite nas cabanas silenciosas, e os mosquitos, à luz do sol, saíam das concavidades dos troncos e das fendas entre as rochas - enormes, barulhentos, inofensivos, procriados no ano anterior, tendo passado o Inverno gelados e rejuvenescendo, agora para zumbirem, durante uma breve decrepidez, e irem ao encontro de uma segunda morte. Todas as espécies de vida rastejante e alada surgiam da terra cálida e apressavam-se a crescer, a reproduzir-se e a morrer. Apenas uma baforada de ar fragrante, e depois outra vez o gelo frio e longo... ah! eles bem o sabiam e não perdiam tempo. Os martinetes esca­vavam as galerias antigas pelas margens barrentas e macias adentro, e os tordos cantavam nas ilhas cobertas de vegetação. No alto o pica-pau mar­telava com insistência, e no coração da floresta a perdiz afadigava-se e pavoneava-se numa arro­gância viril.

Mas o Yukon não compartilhava de toda esta pressa nervosa. Por muitas centenas de milhas esten­dia-se gelado, inóspito, morto. As aves selvagens, voando do sul em revoadas açoitadas pelo vento, detinham-se, buscavam em vão água livre e prosse­guiam a busca intrèpidamente para norte. De margem a margem estendia-se o gelo agreste. Aqui e ali a água irrompia e corria, mas nas noites gélidas tor­nava a gelar. Dizia a tradição que há muito tempo o Yukon estivera três Verões sem degelar, e acerca dele havia tradições menos fáceis de acreditar.

E assim o Verão esperava pela água, e o indolente Yukon ia demorando e estalando as junturas duras. Agora um buraco corroía o gelo e ia abrindo, abrindo; ou uma fissura se formava e aumentava, para tornar a gelar outra vez. Depois o gelo separava-se da margem e subia uma jarda. Mas o rio ainda se mos­trava relutante em soltar a sua presa. Era um tra­balho lento, e o homem, habituado a lidar com a natureza com uma habilidade de pigmeu, capaz de romper trombas de água e de aproveitar cataratas, nada podia fazer contra os milhares de milhões de toneladas geladas que se recusavam a descer pela colina abaixo até ao mar de Bering.

Na ilha da Separação tudo estava a postos para o degelo. As vias de navegação foram sempre as primeiras estradas, e o Yukon era a única estrada em toda a região. Assim, aqueles que se dirigiam para montante do rio amarravam os barcos e guarneciam as varas dos barcos com ferro; os que se dirigiam para jusante calafetavam as barcaças e chatas e talhavam remos sobressalentes com machados e facas de tanoeiro. Jacob Welse entregava-se à ociosidade e gozava a pausa total do trabalho. Frona associava­-se ao regozijo dele. Mas o barão Courbertin fervia de impaciência com a demora. O seu sangue quente fervilhava depois da longa hibernagem, o sol morno deslumbrava-o fazendo-lhe nascer caprichos singu­lares.

- Oh, oh! Nunca mais degela! Nunca mais! - E ficava-se de olhos fitos no gelo, carrancudo, cobrindo-o delicadamente de anátemas enérgicos. - É uma conspiração, minha pobre La Bijou, uma conspiração! - Acariciava La Bijou como se fosse um cavalo, pois era assim que ele baptizara a reluzente canoa.

Frona e St. Vincent riam-se e pregavam-lhe a vir­tude da paciência, que ele tratou de remeter para a profundas do Inferno, até ser interrompido por Jacob Welse.

- Olhe, Courbertin! Além, para sul da escarpa. Vê alguma coisa? A mexer?

- Sim, um cão.

- Mexe-se lentamente de mais para ser um cão. Frona, vai buscar os binóculos.

Courbertin e St. Vincent correram a buscá-los, mas o último sabia o lugar deles e regressou triun­fante. Jacob Welse pôs os binóculos nos olhos e examinou o outro lado do rio. Era uma milha bem medida, da ilha à margem mais distante, e o brilho do sol sobre o gelo tornava a visão difícil.

- E um homem. - Passou os binóculos ao barão e esforçou os olhos, com ar ausente. - Passa-se qualquer coisa.

- Está a arrastar-se! - exclamou o barão. - O homem arrasta-se de gatas! Olhe! Veja! - Meteu os binóculos a tremer nas mãos de Frona.

Olhando através da brancura vazia e brilhante, era difícil distinguir um vulto escuro daquele tama­nho, mal destacado contra um fundo igualmente escuro de vegetação e terra. Mas Frona conseguia distinguir o homem com bastante nitidez; e, à medida que se ia habituando ao esforço, distinguiu-lhe todos os movimentos, principalmente quando ele chegou a um pinheiro arrancado pelo vento. Ela observava com ansiedade. Por duas vezes, depois de um esforço tortuoso, contorcendo-se e rastejando, não conseguiu chegar ao grande tronco; e, à terceira tentativa, após esforços infinitos, acabou por tom­bar desamparado para a frente e cair com a cara em cima da vegetação emaranhada.

- É um homem - passou os binóculos a St. Vin­cent. - E arrasta-se sem forças. Caiu agora mesmo deste lado da árvore.

- Está a mexer-se? - perguntou Jacob Welse. Quando St. Vincent acenou que sim com a cabeça, foi buscar a espingarda à tenda.

Disparou seis tiros para o ar, em sucessão rá­pida.

- Está a mexer-se! - O correspondente seguia-o com atenção. - Está a arrastar-se para a margem. Ah... não; um momento... Sim! Está estendido no chão e levanta o chapéu ou qualquer coisa, num pau. Acena com ele. - Jacob Welse disparou mais seis tiros. - Acena outra vez. Agora deixou-o cair e ficou imóvel.

Olharam os três interrogativamente para Jacob Welse.

Este encolheu os ombros.

- Como é que hei-de saber? Um branco ou um índio; o mais provável é que esteja esfomeado, ou então ferido.

- Mas pode estar moribundo - disse Frona em tom implorativo, como se o seu pai, que tinha feito tanta coisa, pudesse fazer tudo.

- Não podemos fazer nada.

- Ah! Terrível! Terrível! - o barão torcia as mãos. - Mesmo diante dos nossos olhos e não podemos fazer nada! Não! - exclamou numa reso­lução rápida. - Não pode ser. Vou atravessar o gelo.

E teria começado precipitadamente a descer a margem se Jacob Welse não lhe agarrasse no braço. - Não tenha tanta pressa, barão. Calma. - Mas...

- Mas, nada. O homem precisará de comida, de remédios, ou de quê? Espere um momento. Tentaremos juntos.

- Conte também comigo - ofereceu-se ime­diatamente St. Vincent. E os olhos de Frona bri­lharam.

Enquanto a jovem fazia um embrulho com comida os homens arranjavam-se e equipavam-se com sessenta ou setenta pés de uma corda leve. Jacob Welse e St. Vincent ataram-se nas duas extremi­dades e o barão no meio. Este reivindicou a comida para si e prendeu-a aos largos ombros. Frona obser­vava da margem o avanço deles. As primeiras cem jardas foram fáceis, mas ela notou imediatamente a diferença, quando passaram o limite do gelo bas­tante sólido da margem. O pai ia à cabeça, forte, batendo com o bordão o caminho à frente e aos lados e mudando de direcção constantemente.

St. Vincent, na retaguarda da corda esticada, foi o primeiro a afundar-se mas caiu com a vara hàbilmente atravessada na abertura e pousada no gelo. A cabeça não se submergiu, embora a corrente empurrasse com força; os dois homens puxaram-no para fora com um puxão. Frona viu-os conferencia­rem durante um minuto, com muitos gestos e gesti­culações da parte do barão. Em seguida St. Vincent separou-se e voltou para a margem.

- Brrrr - disse a tremer, subindo a margem ao encontro dela. - É impossível.

- Mas porque não vieram eles? - perguntou ela, com uma leve nota de desagrado manifesta na voz.

- Disseram que iam fazer mais uma tentativa, primeiro. Aquele Courbertin é louco, bem sabe.

- O meu pai não lhe fica atrás - retorquiu ela sorrindo. - Mas não é melhor ir mudar-se? Na tenda há roupa.

- Oh, não. - Estendeu-se no chão ao lado de Frona. - Está quente ao sol.

Durante uma hora observaram os dois homens, que se tinham tornado nuns simples pontinhos negros à distância, porque haviam conseguido chegar ao meio do rio e ao mesmo tempo subido quase uma milha pelo rio acima. Frona seguia-os atentamente com os binóculos, embora muitas vezes se perdessem de vista por detrás dos espinhaços de gelo.

- Não foi decente da parte deles - ouviu-o ela queixar-se - dizerem que só iam fazer mais uma tentativa. De outra maneira não me teria vindo embora. Mas não conseguem... é absolutamente impossível.

- Sim... não... sim! Vêm-se embora - anun­ciou ela. - Mas escute! O que é isto?

Um ruído surdo, como o dum trovão distante, vinha do meio do gelo. Ela pôs-se de pé, de um salto. - Gregory, o rio não pode estar a degelar!

- Não, não. Decerto que não. Escute, já passou. - O ruído, que começara na parte de cima, fora morrendo a jusante.

- Mas escute! Escute!

Outro ruído, mais surdo e mais assustador do que antes, se fez ouvir, fazendo calar os tordos e os esqui­los. Quando chegou à frente deles, parecia um comboio sobre uns carris distantes. Um terceiro ruído, que se assemelhava a um trovão e foi de maior duração, começou em cima e foi-se desvanecendo.

- Oh, porque se não apressam eles?

Os dois pontinhos tinham parado, evidentemente a conferenciar. Embora outro ruído se tivesse feito ouvir, ela não distinguia movimento nenhum. O gelo permanecia quieto e imóvel. Os tordos recomeçaram a cantar, e os esquilos tagarelavam com maliciosa alegria.

- Não esteja assustada, Frona - disse St. Vincent rodeando-a com o braço protectoramente - Se hou­vesse perigo, eles sabiam-no melhor do que nós e não se estão a apressar.

- Nunca vi o degelo de um grande rio - con­fessou a rapariga, resignando-se a esperar.

Os ruídos soavam e desapareciam esporádica­mente, mas não havia outros indícios de ruptura. Gradualmente os dois homens, com mergulhos fre­quentes, iam aproximando-se das margens. Escor­riam água. Vinham a tremer violentamente quando subiram a margem.

- Até que enfim! - Frona tinha ambas as mãos do pai nas suas. - Pensei que nunca mais voltariam.

- Pronto, pronto! Corre a arranjar o jantar - disse Jacob Welse, rindo. - Não havia perigo.

- Mas o que era aquilo?

- Era o rio Stewart a estalar e a mandar o gelo para debaixo do gelo do Yukon. Lá ouvia-se perfeitamente o ranger.

- Ah! E era terrível, terrível! - exclamou o barão. - E aquele pobre homem, não o podemos salvar.

- Podemos, sim. Experimentaremos com os cães, depois do jantar. Depressa, Frona.

Mas os cães foram uma desilusão. Jacob Welse escolheu os guias, por serem os mais inteligentes. Com embrulhos de mantimentos mandou-os partir, da margem. Não conseguiam compreender o que lhes era exigido. Sempre que tentavam regressar, obrigavam-nos a voltar para trás com varas, pedras e imprecações. Isto só servia para os espantar. Retrocediam para fora do alcance e punham-se com as patas molhadas e frias no ar a ganir lamen­tosamente para a margem.

- Se eles conseguissem atravessar uma vez, compreenderiam e depois faziam-no automática­mente. Ah! Vai! Avante, Miriam, Avante! O que é preciso é conseguir que o primeiro lá vá.

Jacob Welse conseguiu finalmente que Miriam, o cão guia da matilha de Frona, seguisse a trilha deixada por ele e pelo barão. O cão avançou cora­josamente, aos tropeções, patinhando, e por vezes nadando; mas, quando atingiu o ponto mais dis­tante a que eles tinham chegado, sentou-se, desorien­tado.

Voltou depois para a margem, atalhando caminho e indo sair a uma ilha deserta, mais acima; e, uma hora depois, entrou trotando no acampa­mento, sem o embrulho de mantimentos. Foi então que os dois cães que estavam parados fora de alcance chegaram a acordo e devoraram as cargas um do outro; depois disto desistiu-se da tentativa e chama­ram-se os cães.

Durante a tarde, o barulho foi aumentando de frequência; e, ao anoitecer, era contínuo! Mas de manhã tinha cessado por completo. O rio tinha subido oito pés, em muitos lados corria por cima da costa. Continuavam os estalidos; fendas abriam-se e multiplicavam-se em todas as direcções.

- O gelo inferior derreteu entre as ilhas - expli­cou Jacob Welse. - Foi o que causou a subida do rio. Derreteu também na desembocadura do Steuwart e está a fazer pressão. Quando romper, deslizará por baixo e irá parar ao derretido mais abaixo.

- E depois? E depois? - o barão exultava.

- La Bijou vogará de novo.

Como o dia ia clareando, procuraram o homem do outro lado do rio. Não se tinha mexido; mas, em resposta aos disparos de espingarda deles, moveu­-se dèbilmente.

- Nada a fazer até o rio degelar, barão, para uma corrida com La Bijou. St. Vincent, é melhor trazer as suas mantas e dormir cá, esta noite. Vamos precisar de três remadores, e penso que poderemos contar com o McPherson.

- Não é preciso - apressou-se o corresponente a responder. - O canal de trás está que nem um pedra, e eu levantar-me-ei ao romper do dia.

- E eu? Porque não eu? - perguntou o barão Courbertin.

Frona riu-se.

- Lembre-se de que ainda lhe não demos as primeiras lições.

- E amanhã não haverá tempo - acrescentou Jacob Welse. Quando ele partir, parte como um raio. O St. Vincent, o McPherson e eu teremos de formar a tripulação, receio. Tenha paciência, barão. Fique connosco mais um ano e estará em forma.

Mas o barão ficou inconsolável e manteve-se amuado durante mais de meia hora.


Capitulo XXIV

- Acordem! Seus dorminhocos, acordem!

Frona desembaraçou-se das peles em que dormia, ao primeiro chamamento de Del Bishop; mas antes que tivesse enfiado uma saia e metido os pés des­calços numas mocassinas, o pai, do outro lado do cobertor que fazia de cortina, abrira as abas da tenda e safra aos tropeções para o exterior.

O nível do rio tinha subido. A luz parda e gélida, Frona conseguia ver o gelo a roçar suavemente contra a parte cimeira da margem; em certos sítios, che­gava mesmo a ultrapassá-la. O enormes blocos de gelo penetravam muitos pés pela costa dentro. Cem jardas adiante, o campo imaculado confun­dia-se com a madrugada pardacenta e o céu cinzento. Fendas e ruídos surdos sussurravam na escuridão, e podia ouvir-se um rangido suave.

- Quando é que se romperá? - perguntou ela a Del.

- Quanto mais depressa, melhor! Olhe ali! - Apontou com o dedo do pé para a água que borbu­lhava debaixo do gelo e rastejava sôfregamente em direcção a eles. - Sobe um pé de dez em dez mi­nutos. Perigo? - zombou ele. - Não há nenhum. Tem mesmo de rebentar. Aquelas ilhas além - ges­ticulando com a mão vagamente para a foz do rio - não podem aguentar mais pressão. Se não deixam passar o gelo, o gelo arranca-as do leito do Yukon, que é uma limpeza. É mais que certo! Mas tenho de me ir embora. Lá no nosso sítio é mais baixo. A água tem quinze pés no chão da nossa cabana, McPherson e Corliss andam numa azáfama a pôr os víveres para cima dos beliches.

- Diga ao McPherson que esteja preparado para quando o chamar - gritou-lhe Jacob Welse. E em seguida para Frona: - Agora é a altura de St. Vin­cent atravessar o canal.

O barão, a tremer, descalço, tirou o relógio.

- Dez para as três - disse, a bater os dentes.

- Não é melhor ir calçar as mocassinas? - per­guntou Frona. - Ainda tem tempo.

- E perder esta magnificência? Escute!

De origem indeterminada elevou-se um esta­lido vivo que em seguida se desvaneceu. O gelo estava em movimento. Lenta, muito lentamente, movia-se rio abaixo. Não havia agitação alguma, nenhum trovão atroador, nenhuma exibição esplên­dida de força; únicamente uma torrente silenciosa de branco, uma procissão ordenada de gelo com­pacto - tão junto que se não via uma única gota de água. Esta encontrava-se lá, algures, no fundo; mas ninguém o suspeitaria. Havia um zunido frouxo, ou um ranger abafado, mas tão baixo que tinha de se apurar o ouvido para o perceber.

- Ah! Onde é que está a magnificência? É uma fraude!

O barão brandia os punhos, irado, contra o rio. A espessas sobrancelhas de Jacob Welse pare­ceram franzir-se para esconder o sorriso astuto do seu olhar.

- Ah! Ah! Que riso! Que grande partida! Olhem! Como eu o desafio!

Quando o repto lhe saiu dos lábios, o barão de Courbertin saltou para cima de um bloco de gelo que roçara levemente pelos seus pés. O gesto foi tão ines­perado que, quando Jacob Welse correu para ele, o barão havia desaparecido.

O gelo aumentava de velocidade, e o zumbido tornava-se mais forte e ameaçador. Equilibrando-se graciosamente como um artista de circo, o francês ia girando ao longo da beira da margem. Deslizou assim por cinquenta pés precários, a montada tor­nando-se a cada instante mais instável, e saltou dextra­mente para terra. Voltou para junto dos companheiros, a rir, e recebeu em paga pelos seus trabalhos duas ou três frases das mais escolhidas que Jacob Welse conseguiu seleccionar da parte essencialmente masculina do seu vocabulário.

- Mas porquê? - perguntou Courbertin, ferido até ao âmago.

- Porquê? - limitou-se Jacob Welse, irado, apontando para a torrente lustrosa que deslizava junto deles.

Um grande bloco de gelo tinha enterrado o nariz no leito do rio, trinta pés abaixo, e lutava por se pôr de pé. Toda a corrente frígida que vinha atrás se dobrou e curvou para trás, como se fosse papel. Então o bloco de gelo encalhado deu uma volta completa, ficando com o nariz enlameado voltado para cima. Mas o aperto apanhou-o, enquanto atrás de si os blocos se amontoavam uns sobre os outros, e os seus cinquenta pés de esterco foram atirados ao ar. Veio esmagar-se contra a massa movediça em baixo, e os fragmentos, voando, vie­ram parar aos pés daqueles que observavam a  cena. Apanhado de lado, num caos de pressões, estilhaçou-se em pedaços que se espalharam e desa­pareceram.

- Santo Deus! - O barão pronunciou a excla­mação com reverência e espanto.

Frona agarrou a mão dele com uma das suas, e a do pai, com a outra. O gelo corria agora diante deles, numa pressa febril. Algures no fundo, um pesado bloco de gelo chocou contra a margem, e o chão oscilou debaixo dos pés deles. Um outro se seguiu, mais à superfície e, enquanto eles recuavam de um salto, elevou-se poderoso, com uma tonelada ou mais de terra em cima do vasto costado, e conti­nuou a avançar, insolente. E outro ainda, avançando pela terra, qual mão gigantesca, arrancou três pinhei­ros descuidados pela raiz, arrastando-os.

O dia rompera. A brancura movediça obstruía o Yukon, de uma margem à outra. Devido à pressão da água encerrada em baixo, a velocidade da torrente tornara-se vertiginosa. A todo o seu comprimento, a margem estava a ser comprimida e acutilada, e a ilha rangia e estremecia nas suas fundações.

- Oh! Sublime! Sublime! - Frona pulava, entre os homens. - Com que então era uma fraude, barão?

- Ah! - Ele abanou a cabeça. - Ah! Estava enganado. Sinto-me mesquinho. Mas que magni­ficência! Olhem!

Apontava para o grupo de ilhas mais abaixo, que obstruíam a curva. Ali a torrente, que tinha uma milha de largura, dividia-se e subdividia-se - o que para a água era fácil, mas já o não era para o gelo aglomerado. As ilhas metiam as cabeças cuneiformes pela torrente gelada adentro e atiravam os blocos de gelo ao ar, muito alto. Mas os blocos compri­miam-se contra os blocos, sobrepondo-se à água, deslizando, rangendo, e elevando-se; outros blocos se lhes juntavam, formando morros, montanhas de gelo, que se esmagavam por entre as árvores.

- O local ideal para um engarrafamento - disse Jacob Welse. - Passa-me os binóculos, Frona. - Olhou através deles durante muito tempo, fixa­mente.

- Está a aumentar, a alargar. Basta um bloco, no minuto exacto, no sítio preciso...

- Mas o rio está a baixar! - exclamou Frona.

O gelo tinha descido seis pés abaixo do cimo da margem, e o barão Courbertin fez uma marca com uma vara.

- O nosso homem ainda lá está, mas não se mexe.

Era dia claro. O Sol rompia para os lados do nordeste. Eles revezavam-se com os binóculos, a obser­var a outra margem.

- Olhem! Não é maravilhoso? - Courbertin apontava para a marca que tinha feito. A água bai­xara outro pé. - Ah! Que pena! Que pena! Que pena! O engarrafamento! Já não haverá nenhum!

Jacob Welse olhou-o com gravidade.

- Ah! Haverá? - perguntou, ganhando espe­ranças.

Frona olhou inquiridoramente para o pai.

- Os engarrafamentos nem sempre são agra­dáveis - respondeu, com uma gargalhada curta. - Tudo depende do sítio onde eles se dão e do sítio onde nós nos encontramos.

- Mas o rio! Olhem! Está a baixar; vê-se a olho nu.

- Não é tarde ainda. - Examinou a curva semeada de ilhas e viu as montanhas de gelo cada cada vez maiores e mais juntas. - Vá à barraca, Courbertin, e calce o par de mocassinas que estão ao pé do fogão. Vá lá. Não perderá nada. E tu, Frona, acende o lume e prepara o café.

Meia hora mais tarde, embora o rio tivesse bai­xado vinte pés, encontraram o gelo ainda a avançar pesadamente.

- Agora é que vai começar a ser divertido. Tome, dê uma olhadela, seu gaulês fogoso. O canal da esquerda, homem! Agora é que é!

Courbertin viu o canal do lado esquerdo fechar-se, e em seguida elevar-se uma grande barreira branca, atravessando-se dumas ilhas para as outras. Então, deu-se a subida instantânea do rio. Subiu rapidamente, como se nada, a não ser o Céu, o pudesse deter. Tal como quando tinham acordado, de manhã, os blocos entrechocavam-se e deslizavam para terra por cima da borda da margem, com a água lama­centa rastejando à frente, a marcar o caminho.

- Mon Dieu! Mas isto não tem nada de belo!

- Mas é magnífico, barão - disse Frona, tro­cista. - Entretanto está a molhar os pés.

O barão recuou para fora do alcance da água e fê-lo a tempo, pois uma pequena avalancha de blocos de gelo desabou fragorosamente no sítio que ele tinha acabado de abandonar. A água a subir obrigara o gelo a elevar-se acima da ilha, ficando à altura do peito, como uma muralha.

- Mas descerá depressa, quando o engarrafa­mento se desfizer. Vejam, agora já não está a subir tão depressa. Já se desfez.

Frona observava a barreira.

- Não, não se desfez - negou.

- Mas a água já não sobe como um cavalo de corrida.

- Mas também não deixa de subir.

Courbertin ficou um instante intrigado. Em seguida o rosto iluminou-se-lhe.

- Ah, já sei! Lá para cima, algures, há outro engarrafamento. As mil maravilhas, não é?

Frona prendeu a mão dele excitada na sua, deten­do-o. - Mas escute. Suponha que o engarrafamento de cima cede, e o de baixo continua a aguentar.

Ele olhou-a fixamente até compreender por completo o significado daquilo. O rosto ficou-lhe corado; com uma inspiração rápida, endireitou-se e deitou a cabeça para trás. Fez um gesto circular, como que para incluir a ilha. - Então vocês e eu, a barraca, os barcos, as cabanas, as árvores, tudo e La Bijou, Pufa! Ia tudo para o Diabo!

Frona abanou a cabeça.

- Que pena!

- Pena? Perdão! E magnífico!

- Não, não, barão. Não é isso. E pena que o senhor não seja um anglo-saxão. A raça bem se poderia orgulhar de si.

- E você, Frona, não seria uma glória para os Franceses?

- Outra vez, hem? A atirar cumprimentos um ao outro. - Del Bishop sorriu-lhes e dispôs-se a partir tão depressa como tinha vindo. - Mas despa­chem-se. Há uns homens doentes numa cabana ali em baixo. É preciso tirá-los de lá. Vocês são precisos. E não fiquem lá o dia todo - gritou por cima do ombro, desaparecendo entre as árvores.

O rio continuava a subir, embora mais lenta­mente. Assim que deixaram o terreno alto, começa­ram a chapinhar, com água até aos tornozelos. Fa­zendo rodeios por entre as árvores, encontraram um barco que havia sido rebocado no Outono anterior.

E três chechaquos, que tinham conseguido chegar até ali pelo gelo, tinham-se amontoado lá dentro, mais a barraca, os trenós e os cães. Mas o barco estava perigosamente próximo da barragem de gelo, que rugia e estrebuchava a menos de doze pés de distância.

- Venham! Saiam daí, seus loucos! - gritou­-lhes Jacob Welse, ao passar por eles.

Del Bishop dissera-lhes que «se raspassem dali», quando por lá passara a correr, e eles não tinham conseguido compreender. Um voltou para ele um rosto descomposto e aterrorizado. Outro estava reclinado languidamente na bancada da embar­cação, como se as forças o tivessem abandonado; enquanto o terceiro, que parecia um criado, se balan­çava para trás e para diante e gemia monotonamente: «Meu Deus! Meu Deus!»

O barão deteve-se só o tempo suficiente para lhe dar um safanão.

- Raios! - exclamou. - As tuas pernas, homem?... não chames por Deus, mas pelas tuas pernas! Ah! Ah!... Mexe-te! Sim, mexe-te! Põe-te a andar! Raspa-te! Afasta-te da margem! Os bos­ques, as árvores, qualquer sítio!

Tentou arrancá-lo de lá, mas o homem bateu-lhe com fúria e permaneceu firme.

- O vocabulário vernáculo que se colecciona! - confidenciou orgulhosamente a Frona, quando, apressadamente, retomaram o caminho. - «Ras­pa-te!» é uma palavra forte e adequada.

- Devia viajar com o Del - respondeu ela rindo. - Aumentava-lhe a colecção num instante.

- Não me diga!

- Pois digo mesmo!

- Ah! Os vossos idiotismos! Nunca aprenderei. - E, desesperado, sacudiu a cabeça.

Chegaram a uma clareira onde se erguia uma cabana muito perto do rio. Em cima do telhado plano, de barro, dois homens doentes jaziam embrulhados em mantas, enquanto Bishop, Corliss e Jacob Welse chafurdavam dentro da cabana, em busca das malas de roupa e do equipamento. A altura média da inundação era de um par de pés, mas o chão da cabana havia sido escavado com o fim de se tornar mais quente, e a água dava pela cintura.

- Ponham o tabaco a salvo - disse um dos homens doentes, em voz fraca, lá do telhado.

- O tabaco que vá para o Inferno! - retorquiu o companheiro. - Procurem a farinha e o açúcar - acrescentou em seguida.

- Isso é porque aqui o Bill não fuma, menina - explicou o primeiro homem. - Mas tome conta nele, sim? - suplicou.

- Tome lá, e agora esteja calado - Del atirou a caixa de lata para o lado dele, e o homem agar­rou-a como se fosse um saco de pepitas.

- Posso ajudar em alguma coisa? - perguntou ela, olhando lá para cima para eles.

- Não. E escorbuto. São um caso perdido. - O prospector observou-a durante um instante. - Que é que anda a fazer aqui? Vá lá para trás para um sítio alto.

Mas, com um ronco e um estrondo, a parede de gelo cedeu. Um bloco de cinquenta toneladas passou-lhes por cima, borrifando-o de água lamacenta, e parou diante da porta. Um bloco mais pequeno bateu de encontro aos toros salientes do canto, e a cabana oscilou. Courbertin e Jacob Welse encon­travam-se lá dentro.

- Primeiro o senhor - ouviu Frona o barão dizer, e em seguida a pequena gargalhada divertida do pai. O galante francês saiu em último lugar, espremendo-se para conseguir passar entre o bloco e os toros.

- Escuta Bill, se o engarrafamento lá de baixo se aguentar, estamos perdidos - disse o homem da caixa de lata para o companheiro.

- Lá isso estamos - foi a resposta. - Abaixo de Nulato eu vi uma vez a ilha de Bixbie ser varrida, como se fosse o chão da cozinha da minha velhota.

Os homens agruparam-se, inquietos, em volta de Frona.

- Isto não pode ser. Temos de os levar para a sua cabana, Corliss. - Enquanto falava, Jacob Welse trepou agilmente pela cabana acima e observou de lá a grande barreira. - Onde é que está o McPherson? - perguntou.

- Está petrificado há uma hora, escarranchado na viga mestra do telhado.

Jacob Welse acenou com o braço.

- Está a ceder! Lá vai ela!

- Desta vez não haverá chão de cozinha, Bill, com os meus respeitos para a tua velhota - disse o do tabaco.

- É verdade - respondeu o imperturbável Bill.

O rio inteiro pareceu levantar-se e precipitar-se, corrente abaixo. Com o aumento de velocidade, a parede de gelo rebentou numa centena de sítios, e de todos os lados da margem se ouviam o despeda­çar e o estilhaçar das árvores arrancadas.

Corliss e Bishop agarraram em Bill e dirigiram-se para a cabana de McPherson. Jacob Welse e o barão estavam a descer o companheiro pelo beiral do telhado, quando um enorme bloco de gelo abal­roou a cabana, esmagando-a por completo. Frona viu e gritou para os avisar, mas os toros empilhados foram derrubados corno um baralho de cartas. Ela viu Courbertin e o homem doente serem arre­messados para longe dos destroços e o pai cair debaixo deles. Correu para o local, mas ele não se levantou. Puxou-o para lhe pôr a boca fora de água, mas, todo esticado, a cabeça mal lhe aparecia. Então largou-o e tacteou em volta com as mãos, até que encontrou o seu braço direito preso entre os toros. Não os conseguia mover, mas meteu entre eles uma das vigas do tecto, que tinham sustentado o barro e o musgo. Era uma escora tosca e frágil para o esforço, pois, quando ela fez força sobre a extremidade livre, esta dobrou-se e estalou. Acautelando-se, devido ao aviso, aproximou-se uns passos e experimentou sacudi-la com cuidado, até que qualquer coisa cedeu, e Jacob Welse deitou a cara enlameada de fora.

Inspirou fundo meia dúzia de vezes e comentou:

- Que bem que sabe! - Em seguida, dei­tando um olhar rápido em volta: - Frona, o Del Bishop é um homem muito verdadeiro.

- Porquê? - perguntou perplexa.

- Porque disse que tu eras desenrascada, lem­bras-te?

Beijou-a, e ambos cuspiram a lama dos lábios, rindo. Courbertin apareceu a patinhar, de um dos cantos dos destroços.

- Nunca vi um homem assim! - exclamou alegremente. - É louco, doido varrido. E impossível acalmá-lo. A derrocada rachou-lhe a cabeça, e o tabaco desapareceu. É principalmente o tabaco que é de lamentar.

Mas a cabeça não estava rachada, pois era apenas um corte de couro cabeludo, de umas cinco pole­gadas.

- Terá de esperar que os outros voltem. Não posso carregar - Jacob Welse apontou para o braço direito que pendia inerte. - E apenas torcido. Não há nenhum osso partido.

O barão assumiu uma atitude extravagante e apontou para o pé de Frona.

- Ah, a água desapareceu e eis uma jóia deixada pela torrente, uma pérola de preço!

As mocassinas já gastas de Frona tinham-se rompido com a molha, e um pequeno dedo branco espreitava aquele mundo de lama.

- Então sou rica a valer, barão; porque tenho mais nove.

- E quem dirá o contrário? Quem dirá o con­trário? - exclamou ele com fervor.

- Que homem tão ridículo, louco e adorável que é!

- Beijo a sua mão. - E ajoelhou galantemente na lama.

A jovem afastou a mão e, enterrando-a com o seu par na cabeleira encaracolada do francês aba­nou-lha para trás e para a frente.

- O que é que lhe hei-de fazer pai?

Jacob Welse encolheu os ombros e riu-se; e ela virou o rosto de Courbertin para cima e beijou-o nos lábios. Jacob Welse sabia que, naquela manifestação de alegria, a sua foi a parte maior.

 

O rio, tendo baixado para o seu nível de Inverno, descarregava continuamente o excesso de gelo. Mas, ao baixar, deixara a margem orlada de uma parede de vinte pés de fragmentos de gelo enca­lhado. Os grandes blocos de gelo estavam espalhados pela terra por entre as árvores derrubadas, e as flores e as ervas cobertas de lama pareciam o vómito titânico de um monstro do Setentrião. O Sol não estava ocioso, e o degelo fumegante lavava a lama e a porcaria dos montes de gelo flutuantes até eles brilharem como diamantes amontoados na clari­dade, ou emitirem uma luz azul opalina. No entanto estavam empinados perigosamente uns em cima dos outros e continuamente se desmoronavam com fragor na torrente castelos faiscantes e minaretes iridescentes. Junto duma das brechas assim feitas, estava La Bijou, e em volta dela, salvando os che­chaquos e os homens doentes, estavam reunidos todos os habitantes da ilha da Separação.

- Ná, ná, ná! Dois homens chegam - Tommy McPherson volveu os olhos em redor, em busca de confirmação. - Se meter três dentro da canoa, não se conseguem mexer.

- Tem de ser uma corrida, ou não vale de nada - insistiu Corliss. - Precisamos de três homens, Tommy. Bem o sabe.

- Ná, ná! Dois chegam, já lhe disse.

- Mas parece-me que nos teremos de arranjar com dois.

O canadiano-escocês evidenciou abertamente a sua satisfação.

- Mais era uma enrascada; e tenho a certeza que se safará.

- E você tem de ser um dos dois, Tommy-con­tinuou Corliss, inexorável.

- Ná! Há muita gente, sem contar comigo.

- Não, não há. Courbertin não percebe pata­vina. St. Vincente é evidente que não pôde atra­vessar o pântano. O braço do Sr. Welse obriga-o a ficar de fora. Portanto tem de ser você e eu, Tommy.

- Não quero ser metediço, mas o seu empregado é um gajo teso. Tem uma boa remada. - Embora o escocês não simpatizasse muito com o truculento prospector, conhecia bem a sua coragem e aprovei­tou a oportunidade de se livrar, empurrando o outro.

Del Bishop adiantou-se para o centro do pequeno círculo, parou e olhou cada homem bem nos olhos, antes de falar.

- Há aqui alguém que seja capaz de dizer que eu sou cobarde? - perguntou ex-abrupto. - Tor­nou a olhar cada um nos olhos. - Há alguém que sugira, sequer, que eu cá alguma vez me tenha encolhido? - De novo inspeccionou o círculo. - Muito bem. Odeio a água, mas nunca tive medo dela. Não sei nadar. No entanto, já fui tantas vezes pela borda fora que nem me consigo lembrar. Não consigo puxar um remo sem bater com as costas no fundo do barco. Quanto a dirigir o leme... bom, os entendidos dizem que o compasso tem trinta e dois pontos, mas eu cá encontro sempre, pelo menos, mais trinta. E, tão certo como Deus ter criado o mundo, eu meto os pés pelas mãos quando pego num remo de pá larga. Capotei quase todas as malditas canoas em que pus pé. Meti-me fundo abaixo de duas delas. Virei-me no canhão e fui pescado abaixo do Cavalo Branco. Só consigo remar a compasso com um homem apenas. Mas, se for preciso, cavalheiros, tomarei lugar na La Bijou e levo-a até aos infernos, se ela se não virar pelo caminho.

O barão Courbertin abraçou-o, exclamando:

- Tão certo como Deus ter criado o mundo, que você é um homem a valer!

De rosto lívido, Tommy procurou refúgio do silêncio que caiu nas palavras:

- Não nego que eu cá tenha uma remada por­reira, nem que o meu fôlego seja bom; mas, se con­seguir avançar a décima parte do caminho, cai-nos em cima o gelo encalhado mais próximo. Pela minha parte consedero que é uma asneira. Aguente um poucochinho, até o rio ficar desimpedido.

- Não adianta, Tommy - admoestou Jacob Welse. - Isso não lhe serve de desculpa.

- Mas, ó homem! Não é preciso descernamento...

- Basta! - retrucou Corliss. - Você vem!

- O vais! Eu...

- Feche o bico! - Del viera ao mundo com pulmões de ferro e laringe de bronze. Quando trovejou aquela ordem, o escocês tremeu e encolheu-se

- Olhem! Olhem! - Em contraste com a voz de sirene de Del, a de Frona era do mais puro argên­teo, quando ecoou pela ilha abaixo, através do arvo­redo. - Olhem! Olhem! Água! Água! E esperem um pouco! Vou ter convosco!

Três milhas acima, no sítio onde o Yukon des­crevia uma larga curva do oeste, surgira um peda­cito de água. Parecia demasiado maravilhoso para se acreditar, depois do Inverno granítico; mas McPherson, sem se impressionar, iniciou uma reti­rada astuciosa.

- Esperem um nico, esperem um nico - protes­tou, quando o prospector o agarrou pelo colari­nho. - Esqueci-me do cachimbo.

- Então fica aqui a esperar, ao pé de nós, Tommy - respondeu Del com desdém. - Deixa­va-lhe dar umas fumaças no meu, se o seu não estivesse aí a espreitar da algibeira.

- Era a tabaqueira que eu queria.

- Então fique com esta - Meteu a sua bolsa nas mãos trémulas de McPherson. - É melhor des­pir o casaco. Vá! Eu ajudo. E, aqui entre nós, Tommy, se não se portar como um homem, nunca mais lhe falo. Juro.

Corliss tinha despido a pesada camisa de flanela para ficar mais livre. Quando Frona se lhes reuniu, tornou-se evidente que também ela se desembara­çara de alguma roupa. O casaco e a saia haviam desaparecido, e o saiote de baixo, de tecido escuro, dava-lhe por baixo do joelho.

- É desenrascada - disse Del, aprovativamente.

Jacob Welse olhou-a com ansiedade e foi ter com ela ao sítio onde estava a experimentar os cabos que amarravam os vários remos.

- Não vais...? - começou.

Ela fez que sim com a cabeça.

- A senhora é boa - interrompeu McPherson.­ Eu tenho mulher em casa, e mais três catraios...

- Tudo pronto! - Corliss ergueu a proa de La Bijou e olhou para trás.

A água turva batia nos esporões da corrente de gelo. Courbertin seguia à popa, na descida íngreme, e Del atrás do relutante Tommy. Um pedaço de gelo chato, boiando na água com uma ligeira incli­nação, serviu de cais de embarque.

- Para a proa consigo, Tommy!

O escocês resmungou, sentiu Bishop respirar pesadamente para a popa.

- Eu sei governar o leme - assegurou Frona a Corliss, que pela primeira vez se dava conta de que a rapariga ia ali.

Vance levantou o olhar para Jacob Welse, como a pedir o seu consentimento, que recebeu.

- E andar! É andar! - apressou Del impa­ciente. - Estão a perder a luz do dia!


Capitulo XXV

La Bijou era a expressão perfeita de tudo quanto de belo e delicado tinha a alma do construtor do barco. Leve e frágil como uma casca de ovo, o seu costado, de três oitavas de polegada, não oferecia protecção alguma contra um bloco do tamanho da cabeça de um homem. Nem tão-pouco, embora a água estivesse degelada, achava caminho desobs­truído, porque o rio ia cheio de pedaços de gelo, flutuantes, que se tinham desmoronado da margem gelada. Sem hesitar, seguro da destreza da jovem, Corliss confiou em Frona.

Era um espectáculo soberbo: o rio correndo turvo por entre as suas paredes cristalinas; ao longe, a flo­resta verde, estendendo-se para cima, a tocar o céu de Verão, salpicado de nuvens; e, sobre tudo aquilo, dardejando como um sopro de fornalha, o Sol escal­dante. Um espectáculo soberbo! Mas, por qualquer razão, o espírito de Corliss voltava-se para a mãe e os seus eternos chás, as carpetes macias, as emperti­gadas criadas da Nova Inglaterra, os canários a cantar nas janelas rasgadas, e perguntou-se se ela compreenderia. E, quando pensava na mulher atrás de si e ouvia o remo manejado por ela a levantar e a baixar, a levantar e a baixar, lembrava-se das amigas da mãe, uma a uma, desfilando em longa procissão - fantasmas pálidos, baços, pensou, caricaturas da raça que havia enchido a Terra e que continuaria a enchê-la.

La Bijou contornou um pedaço de gelo que rodopiava, voou como uma seta por um canal e foi sair disparada na água livre, deixando para trás paredes que se esmagavam umas contra as outras.

- Muito bem! - encorajou Corliss.

- Que maluca de mulher! - resmungaram de trás. - Não podia esperar um cibo?

Frona apanhou as palavras e soltou uma garga­lhada provocadora. Vance deitou-lhe um olhar por cima do ombro, o sorriso da rapariga enfeitiçava. O capuz, pousado precariamente, estava a descair, enquanto o cabelo esvoaçante, brilhando à luz do Sol, lhe emoldurava o rosto, como o vira uma vez emoldurado na estrada de Dyea.

- O que me apetecia cantar, se não fosse para poupar fôlego! A «Canção da Espada» ou «Cantiga da Ancora».

- Ou o «Primeiro Cântico» - respondeu Cor­liss. - A mulher era minha, encontrei-a no escuro - can­tarolou ele intencionalmente.

Frona meteu com força o remo na água, do lado oposto, para fugir a um bloco de gelo recortado, e pareceu não ter ouvido.

- Era capaz de continuar assim eternamente.

- Também eu - afirmou Corliss, com calor.

Mas ela recusou-se a perceber e disse:

- Vance, sabe que estou muito contente por sermos amigos?

- A culpa não é minha se não somos mais do que isso.

- Está a atrasar-se com as remadas - ralhou ela. E Vance deitou-se silencioso ao trabalho.

La Bijou navegava contra a corrente, a um ângulo de quarenta e cinco graus. O curso do barco daí resultante era uma linha que fazia ângulo recto com o rio. Assim atingiria a margem de oeste no sítio exactamente oposto ao ponto de partida de onde poderia subir o rio, pela torrente mais calma. Mas uma milha de costa recortada e, a seguir, cem jardas de alcantis erguendo-se em precipício de uma corrente fortíssima os separariam ainda do homem que iam salvar.

- Agora vamos afrouxar - aconselhou Corliss, quando escorregaram para um redemoinho e foram arrastados pelo refluxo para baixo da grande muralha de gelo da margem.

- Quem diria que estamos em meados de Maio? - Frona levantou os olhos para os blocos de gelo negligentemente equilibrados. - A si parece­-lhe verdade, Vance?

O rapaz abanou a cabeça.

- Nem a mim. Sei que eu, Frona, em carne e osso, estou aqui numa canoa, a remar para salvar a vida com dois homens; no ano da graça de mil oitocentos e noventa e oito, Alasca, rio Yukon; isto é água e aquilo é gelo; os meus braços estão cansados, o meu pulso acelerado, estou a suar... e, no entanto, parece tudo um sonho! Pense só! Há um ano estava em Paris! - Inspirou fundo e olhou por cima da água para a margem mais distante, onde a tenda de Jacob Welse, qual lenço de assoar, alvejava contra o verde profundo da floresta. - Não acredito que exista um lugar assim. Paris não existe!

- E eu estava em Londres há doze meses - disse Corliss meditativamente. Mas sofri uma nova encar­nação. Londres? Não existe Londres agora. É impos­sível. Como poderia haver tanta gente no mundo?

O mundo é isto, e sabemos de certeza que há muito pouca gente nele; de outro modo não poderia haver tanto gelo e mar e céu. Tenho a certeza que aqui o Tommy recorda com saudade uni lugar chamado Toronto. Está enganado. Só existe na imaginação dele... uma recordação de uma vida anterior que ele viveu. Claro que ele não pensa assim. Mas isso é mais que natural; não é filósofo nem se preocupa...

Feche o bico, sim? - murmurou Tommy, feroz. - O seu palavreado fará cair a desgraça sobre as nossas cabeças.

A vida é breve, nas terras árcticas, e as profecias realizam-se com grande rapidez. Um tremor pre­monitório atravessou o ar, e a parede iridescente osci­lou por cima deles. Os três remos fenderam a água, de comum acordo. La Bijou saltou, afastando-se de de­baixo. Alude atrás de alude cintilaram esmagaram-se, e mil toneladas frígidas desmoronaram-se atrás deles. A água deslocada moveu-se para fora, num remoinho escumoso e erecto, e La Bijou, lutando ferozmente por se erguer, afocinhava por entre a saliência densa da crista das ondas e rebolava, meio cheia, nas depressões cavadas entre as ondas.

- Eu não lhes dizia, seus fala-baratos malucos?

- Deixe-se estar quieto e baldeie a água - repri­miu Corliss com aspereza - ou não terá a conso­lação de nos dizer nada.

Abanou a cabeça para Frona, que lhe piscou os olhos em resposta; ambos abafaram o riso, à seme­lhança de crianças numa aventura que parece desas­trosa mas que acaba em bem.

Arrastando-se nitidamente sob a sombra das avalanchas ameaçadoras, La Bijou deslizou sem baru­lho pelo último remoinho. Uma esquina da costa íngreme erguia-se, feroz, do rio, massa monstruosa de rocha nua, gasta e marcada pelos séculos, odiando o rio que a roía continuamente; odiando a chuva que lhe marcava o rosto horrendo de sulcos medonhos; odiando o sol que se recusava a casar-se com ela, do que poderia resultar vida verde que lhe escon­desse a hediondez. Toda a força do rio se arremessava contra ela, travava luta furiosa ao longo das suas muralhas e tornava a afastar-se, carambolando, para o meio do rio. Ao longo de todo o seu comprimento, erguiam-se as ondas compactas em filas serradas, e as fendas e as cavernas cavadas pelas águas ribom­bavam numa luta invisível.

- Agora! Força! Dar tudo!

Foi a última ordem que Corliss conseguiu dar, pois no barulho em que estavam prestes a entrar a voz de um homem era como o trilo dum grilo no meio do rugido de um terramoto. La Bijou saltou para diante, livrou-se do remoinho, com um sola­vanco, e mergulhou no meio da refrega. Para baixo e para cima, para baixo e para cima, os remos trabalha­vam com uma força rítmica. A água agitava-se e puxava com violência em todas as direcções; e a frágil casca de noz, incapaz de ir para todas as direcções, abanava e estremecia com o choque da resistência. Cambava nervosamente à direita e à esquerda, mas Frona segurava-a com mão de ferro. Uma milha à frente, uma fenda na rocha escancarava a boca para eles. La Bijou deu um salto e arremessou-se como uma seta para diante, e a água, escapulindo-se de debaixo dela, mantinha-a sempre no lugar. Ora se afastavam da fenda, ora se aproximavam; afastavam-se meia milha e tornavam a retroceder; e a fenda troçava dos seus esforços.

Cinco minutos, cada um dos quais pareceu uma eternidade, e a fenda foi ultrapassada. Dez minutos, e ela ficou a cem pés à ré. Para baixo e para cima, para baixo e para cima, até o céu e a terra e o rio se apagarem, e a consciência se resumir a uma linha fina - uma listra de espuma, guarnecida, de um lado, de rocha escarninha, e do outro, de água amea­çadora. Aquela linha estreita resumia tudo. Algures abaixo dela, era o princípio das coisas; algures acima dela, para além do fragor e da agitação, era o fim; e era para atingir esse fim que eles lutavam.

Frona continuava a dirigir a casca de noz com mão de ferro. O que ganhavam conservavam-no e lutavam por mais, polegada a polegada, remada a remada; tudo teria terminado bem, se não fosse a vacilação da alma de Tommy. Um bloco de gelo, sugado pela corrente, levantou-se-lhe debaixo do remo, num turbilhão de espuma, voltou-se, mostrando o bordo denteado, e foi arrastado de novo para as profundezas. Naquela visão, ele viu-se a si próprio, cabelos em pé e mãos enclavinhadas apertando o vazio, de pés para a frente, a ser arrastado para o fundo, para o fundo. Ficou de olhos arregalados a fitar o presságio, e o remo, parado, recusou-se a trabalhar. Imediatamente a fenda lhes tornou a escancarar a boca; logo a seguir foram parar abaixo da costa íngreme, vogando suavemente no remoinho.

Frona estava estendida, de cabeça deitada para trás, soluçando virada para o sol; a meio do barco Corliss estava deitado, abandonado, a arfar; e à frente, sufocado e ofegante, arrasado, o escocês apoiava a cabeça nos joelhos. La Bijou roçou suave­mente contra a borda de gelo e parou. A parede iridescente elevava-se como uma montanha mágica; o sol, reflectido de inúmeras facetas, cobria-a de um resplendor de gemas. Jorros argênteos tilintavam pelas suas vertentes de cristal abaixo; e nas suas entranhas translúcidas, parecia desvendar, véu após véu, os segredos da vida e da morte e do esforço mortal - perspectivas de anil de brilho pálido abrindo-se como visões oníricas e prometendo, ali mesmo no grande e frio coração, descanso eterno, pausa eterna e repouso.

A torre mais alta, delicadamente maciça, uns vinte pés acima deles, oscilava para um lado e para o outro, suavemente, como o ondear dos trigais na brisa leve do Verão. Mas Corliss contemplava-a despreocupado. Estar ali estendido apenas, às portas do mistério, estar ali estendido apenas e beber o ar em grandes tragos, e não fazer nada! - Não pedia mais. Um dervixe, rodopiando sobre os calcanhares até ficar tonto, pode apanhar a essência do universo e provar o Deus indivisível; do mesmo modo um homem a manejar um remo, a manejar, a manejar, pode vencer as limitações e elevar-se acima do tempo e do espaço. Assim aconteceu com Corliss.

Mas gradualmente o sangue cessou o louco late­jar, o ar já não tinha a doçura do néctar, e voltou­-lhe o sentido real e premente das coisas.

- Temos de sair daqui - disse. A voz soou-lhe como a de um homem cuja garganta tivesse ficado seca por muitas e longas libações. Assustou-se, mas a custo ergueu um remo a tremer e remou para longe da costa.

- Sim! Temos de fugir de qualquer maneira - disse Frona numa voz débil, que a ele pareceu vir de muito longe.

Tommy levantou a cabeça e olhou em volta. - Temos mas é de desistir.

- Dá-lhe força!

- Não varros tentar outra vez, pois não?

- Dá-lhe força! - repetiu Corliss.

- Até lhe estoirar o coração, Tommy! - acres­centou Frona.

De novo lutaram pela linha estreita acima, e tudo resto desapareceu, à excepção da listra de espuma da água ameaçadora e da fenda da boca escanca­rada. Mas passaram-na, polegada a polegada, e a curva larga acolheu-os acima. Apenas o con­traforte rochoso de ódio implacável, em redor de cuja base bramiam as correntes de igual ódio, se interpunha entre eles. Então La Bijou deu um salto e arfou e estremeceu outra vez, e a corrente deslizava por debaixo, e eles permaneciam sempre no mesmo lugar. Para baixo e para cima, para baixo e para cima, durante um tempo e um suplício e um trabalho infi­nitos, até a própria listra se tornar indistinta e esba­tida e a luta ser vã. As almas deles fundiram-se ao ritmo do esforço. Sempre para baixo e para cima pareciam ter-se transformado cm grandes pêndulos do tempo. E, para a frente e para trás, bruxuleavam as eternidades, e no meio das eternidades, sempre para baixo e para cima, eles palpitavam num imenso movimento rítmico. Já não eram humanos, mas ritmos. Aproximavam-se até os remos roçarem a rocha dura, mas não se davam conta, afastavam-se, guiando-os a sorte, incólumes, por entre o gelo que os vergastava, mas não viam. Tão-pouco sentiam o embate das ondas que os açoitavam, nem o fustigamento da espuma que lhes refrescava o rosto.

La Bijou deu uma volta, e os remos, faiscando mecanicamente à luz do Sol, sustentaram-no obli­quamente ao rio num ângulo de compensação à medida que o tempo e as circunstâncias lhes voltaram à memória, e a ilha da Separação lhes surgiu diante dos olhos, qual praia de um novo mundo. Abran­daram,  dando remadas longas e fáceis, em que o fôlego e as forças se podiam recobrar.

- Uma terceira tentativa teria sido inútil - disse Corliss num sussurro seco, estrídulo.

E Frona respondeu.

- Sim, teríamos estoirado de certeza.

Tommy ia-se lembrando da vida e da acolhedora fogueira dos acampamentos e do repouso calmo do meio-dia, à sombra, à medida que a praia se aproximava, mas acima de tudo bendizia Toronto, as suas casas que estavam sempre no mesmo sítio, as suas ruas apinhadas. De cada vez que inclinava a cabeça para a frente e com o remo apanhava a água, as ruas alargavam-se, como se as estivesse a observar por um telescópio e ajustasse um foco mais próximo. De cada vez que o remo se erguia e a cabeça se lhe levantava, a ilha avançava para si. A cabeça abaixava-se, e as ruas eram do tamanho da vida; levantava-se, e Jacob Welse e os dois homens permaneciam na margem, à distância de três com­primentos.

- Eu não lhes dizia? - gritou-lhes triunfante.

Mas Frona virou abruptamente o barco paralelo com a margem, e ele encontrou-se a olhar para a longa extensão da parte superior do rio. Deteve uma remada no meio e o remo bateu no fundo.

- Levanta-o! - A voz de Corliss era áspera e implacável.

- Ó levantas! - Voltou o rosto rebelde para o seu carrasco e rangeu os dentes de raiva e desilusão.

A canoa seguia à deriva pela corrente abaixo. Frona apenas a mantinha em posição. Corliss arras­tou-se de joelhos até à frente.

- Não o quero magoar, Tommy - disse em voz baixa e tensa, - portanto,... bom, pegue nele, ande lá.

- Ó pegas!

- Então mato-o - continuou Corliss, no mesmo tom calmo e impessoal, ao mesmo tempo que tirava a faca de caça da bainha.

- E se eu não quiser? - perguntou o escocês, resoluto, embora se encolhesse todo, de medo.

Corliss empurrou suavemente a faca. A ponta de aço penetrou nas costas de Tommy, precisamente no sítio onde devia ser o coração, trespassou lentamente a camisa e mordeu a pele. Mas não parou aí; também não aumentou de velocidade, mas, com lentidão igual, continuou o seu caminho. Tommy recuou, a tremer.

- Pronto! Pronto! Tire lá isso! - guinchou. - Eu pego.

O rosto de Frona estava muito pálido, mas tinha o olhar duro, brilhante, e ela acenou com a cabeça, em sinal de aprovação.

- Vamos tentar por este lado e atravessar lá por cima - gritou ela para o pai. - O quê? Não ouço. O Tommy? Oh, não tem genica. Nada de grave. -Saudou com o remo.  - Estaremos de volta num instante, pai. Num instante.

O rio Stewart estava completamente desimpe­dido; subiram-no, um quarto de milha antes de atravessarem velozmente a embocadura e conti­nuarem Yukon acima. Mas, quando estavam mesmo em frente do homem que se encontrava na margem oposta, um novo obstáculo se lhes deparou. Uma milha mais acima, os restos de uma ilha agarravam-se desesperadamente ao leito do rio. Esses restos esta­vam reduzidos a uma língua de areia, que bissectava o rio até aos alcantis impraticáveis. Além disso, algumas centenas de milhares de toneladas de gelo haviam assentado sobre a língua, formando um espinhaço rebrilhante.

- Temos de o transpor - disse Corliss, quando Frona afastou a canoa da margem.

La Bijou voou como uma seta através da estreita passagem até à língua de areia e deslizou por uma ravinazita de gelo acima, onde as paredes eram menos íngremes. Desembarcaram num bloco de gelo saliente, que, sem suporte, se elevava acima da água mais de trinta pés. A que profundidade podia a outra extremidade estar enterrada na massa era assunto para conjecturas. Treparam até ao cimo, arrastando a canoa atrás deles, e contemplaram aquele deslumbramento. Pedaços de gelo amontoa­vam-se uns sobre os outros, numa confusão titânica. Enormes blocos se sobrepunham uns aos outros, apenas para servir de pedestais a grandes massas brancas, que rebrilhavam e cintilavam ao sol, quais jóias monstruosas.

- Um lugar excelente para um passeio - troçou Tommy. - Não tarda a haver outro alude. - Sen­tou-se resolutamente. - Não, muito obrigado, não quero ir.

Frona e Corliss continuavam a trepar, com a canoa entre eles.

- Os Persas obrigavam os escravos a combater à força de chicote -comentou ela, olhando para trás. - Nunca tinha compreendido isto. Não será melhor ir lá buscá-lo?

Corliss obrigou-o a levantar-se, com um pontapé, e forçou-o a continuar à sua frente. A canoa não pesava muito, mas o seu volume, nas subidas íngre­mes e nas voltas apertadas, sobrecarregava-os. O sol queimava. A sua luz brilhante magoava-lhes os olhos,  o suor escorria-lhes de todos os poros e eles respira­vam com dificuldade.

- Oh, Vance, sabe...

- O quê? - Limpou o suor da testa e sacudiu-o com gesto rápido da mão.

- Gostava de ter comido mais ao pequeno­-almoço.

Vance deu um rosnido de simpatia. Tinham atin­gido o espinhaço central e podiam ver o rio e, lá adiante, com nitidez o homem e o seu sinal de socorro. Mais em baixo, bucólica no seu verde calmo, estendia-se a ilha da Separação. Voltaram os olhos para cima, para a curva larga do Yukon, que sorria preguiçosamente, como se não fosse capaz, a qualquer momento, de despejar uma torrente mortífera. A seus pés, o gelo formava um desfiladeiro miniatura, no qual o sol projectava uma sombra enorme.

- Ande, Tommy - ordenou Frona. - Estamos a meio caminho, e lá em baixo há água.

- E água que têm estado a pensar, não é? - ros­nou ele - e estão é a mandar um gajo p'ra morte!

- Parece-me que você cometeu algum pecado grave, Tommy - disse ela com um meneio repro­vativo da cabeça. - De outra maneira não teria tanto medo da morte. - Suspirou e pegou na sua extremidade da canoa. - Bem, suponho que seja natural. Não sabe como morrer...

- Nem tenho ganas nenhumas de morrer - cor­tou ele, feroz.

- Mas chega a vez a todos... há ocasiões em que a única coisa a fazer é morrer. Talvez esta seja uma delas.

Tommy deslizou cuidadosamente sobre a saliên­cia brilhante de um rochedo e saltou para um sítio seguro.

- Isso é muito bonito - disse, mostrando os dentes - mas não acha que eu tenho miolos sufi­cientes p'ra julgar por mim próprio? Porque é que não hei-de ter opinião própria?

- Porque não sabe. Os fortes é que resolvem por aqueles como você. São eles que ensinam sempre aos da sua espécie quando e como devem morrer, e que os conduzem à morte, a poder de chicote.

- A senhora põe as coisas com clareza - retor­quiu ele. - E fá-lo bem. Não me fica bem quei­xar-me, quando a senhora se está a desempenhar tão bem do seu papel.

- Está-se a sair bem - disse Corliss, rindo-se, quando Tommy desapareceu da vista deles, saltando para o leito da garganta. - Que bruto intratável! Há-de discutir no próprio Juízo Final.

- Onde aprendeu a remar? - perguntou Frona.

- Na Faculdade... ginástica - respondeu ele laconicamente. - Mas que bom! Olhe!

O gelo derretido formara uma poça no fundo do desfiladeiro. Frona estendeu-se a todo o compri­mento e mergulhou a boca escaldante na água fresca.

E, assim estendida, as solas das suas delapida­das mocassinas ou, antes, as plantas dos pés (por­que mocassinas e meias estavam feitos em peda­ços) ficaram voltadas para cima. Eram muito brancas e, do contacto com o gelo, estavam arra­nhadas e cortadas. Aqui e ali o sangue pingava, de um dos dedos corria em fio.

- Tão minúsculos e bonitos e macios - escar­necia Tommy. - Ninguém pensaria que fossem capazes de conduzir um homem forte para o Inferno.

- Pelo que você resmunga, não é depressa de mais - respondeu Corliss, zangado.

- Quarenta milhas por hora - retorquiu

Tommy, afastando-se, regozijando-se por ter a última palavra ter sido sua.

- Espere. Tem duas camisas. Empreste-me uma. O rosto de escocês iluminou-se de curiosidade, até compreender. Depois abanou a cabeça e conti­nuou.

Frona pôs-se de pé com dificuldade. - O que é?

- Nada. Sente-se.

- Mas o que é que há?

Corliss pôs-lhe as mãos nos ombros e forçou-a asentar-se.

- Os seus pés... Não pode continuar nesse estado. Estão em tiras. Olhe! - Esfregou a sola de um deles e mostrou a palma, que gotejava sangue.

- Porque é que me não disse?

- Oh, não doía... muito!

- Dê-me uma das suas saias - pediu ele.

- Eu... - Frona gaguejou. - Só tenho uma. Vance olhou em volta. Tommy desaparecera entre os pedaços de gelo flutuantes.

- Temos de continuar - disse Frona, tentando pôr-se de pé.

Mas o rapaz obrigou-a a ficar sentada. - Não dá nem mais uma passada até eu a tratar. Cá vai. Feche os olhos.

Ela obedeceu. Quando os abriu, ele estava nu até à cintura, e a camisa, feita em tiras, estava a ser enrolada em volta dos seus pés.

- Você vinha atrás, e eu não sabia...

- Não se desculpe, por favor – interrompeu Frona. - Eu podia ter dito.

- Não estou a desculpar-me. Estou a censurá-la.

Agora o outro. Levante-o!

A proximidade dela enlouqueceu-o, e Vance pou­sou os lábios ao de leve no mesmo dedito branco que valera ao barão de Courbertin um beijo.

Embora ela se não esquivasse, as faces ruboriza­ram-se-lhe e vibrou como antes disso só uma vez vibrara na vida.

- Está a aproveitar-se da sua própria bon­dade - exprobrou-o ela.

- Então aproveitar-me-ei a dobrar.

- Por favor, não! - suplicou a jovem.

- E porque não? É um costume do mar aliviar os espíritos, quando o barco se prepara para afundar. E, como isto é uma espécie de esperança perdida, porque não?

- Mas...

- Mas o quê, menina afectada?

- Oh, sabe muito bem que isso é a última coisa que eu mereço ser chamada! Se não houvesse mais ninguém a considerar, bom, mas circunstâncias pre­sentes...

Ele apertou o último nó com força e poisou-lhe o pé no chão.

- Diabos levem o St. Vincent! Venha daí!

- Eu diria o mesmo, se fosse você. - Riu-se e pegou na sua extremidade da canoa. - Mas como você está mudado, Vance! Não é o mesmo homem que eu encontrei na estrada de Dyea. Não sabia praguejar, então, entre outras coisas.

- Não; não sou o mesmo; e agradeço-o a Deus e a si. Mas penso que sou mais honesto do que você. Vivo sempre de acordo com a minha filosofia.

- Ora confesse que isso é injusto. Pede de mais, nas circunstâncias presentes.

-Apenas um dedito.

- Ou então suponho que gosta de mim como um irmão mais velho, gentil. E nesse caso, se real­mente o desejar, pode...

- Esteja calada - cortou ele rudemente, - senão ainda farei uma linda figura de parvo.

- ...beijar os meus dedos todos - concluiu ela.

Vance resmungou, mas não se dignou responder. O esforço depressa lhes tirou o fôlego, e eles prosse­guiram em silêncio, até descerem a última vertente para o sitio onde MacPherson os esperava, junto do rio degelado.

- O Del odeia o St. Vincent - disse ela ousa­damente. - Porquê?

 - Sim, parece que sim. - Voltou os olhos para trás para a olhar, com curiosidade. - E, para onde quer que vá, leva consigo um velho livro russo, que ele não sabe ler, mas no entanto considera, de certo modo, como a némesis de St. Vincent. Sabe uma coisa, Frona, ele tem tanta fé naquilo, que eu não consigo evitar ter eu próprio um pouco. Não sei se é você que virá ter comigo, ou se sou eu que irei ter consigo, mas...

Frona deixou cair a extremidade da canoa e desatou a rir. Vance ficou aborrecido; uma onda de sangue tingiu-lhe o rosto.

- Se eu... - começou ele.

- Estúpido! - riu ela. - Não seja tolo! E, acima de tudo, não arvore esse ar digno. Não lhe fica lá muito bem, no momento presente... com o cabelo todo emaranhado, uma faca sanguinária à cinta e de tronco nu como um pirata despido para o com­bate. Seja feroz, carrancudo, pragueje, tudo, mas por favor não se mostre digno. Quem me dera ter aqui a minha máquina fotográfica. Daqui a alguns anos, podia dizer: «Este, meus amigos, é Corliss, o grande explorador do Árctico, quando terminou o seu passeio, famoso no mundo inteiro, Através do Interior do Alasca.

Ele apontou um dedo ominoso para ela e per­guntou severamente

- Onde está a sua saia?

Ela olhou involuntariamente para baixo. Mas a presença esfarrapada da dita aliviou-a e o rosto tingiu-se-lhe de escarlate.

- Devia ter vergonha!

- Por favor, por favor, não arvore esse ar digno - riu ele. - Não lhe fica nada bem, no momento presente. Ai, se eu tivesse uma máquina fotográfica...

- Esteja calado e continue - disse ela. - O Tommy está à nossa espera. Oxalá o sol lhe faça cair a pele toda das costas - disse, arquejando, vingativamente, quando faziam deslizar a canoa pela última saliência e a deitavam à água.

Dez minutos mais tarde, treparam a parede de gelo e prosseguiram subindo a margem, que era em parte uma vertente, até ao sítio onde continuava a tremular o sinal de socorro. Por debaixo dele, por terra, jazia estendido o homem. Estava imóvel, e o receio de terem chegado demasiado tarde já se apoderara deles, quando o homem mexeu ligeira­mente a cabeça e gemeu. As roupas grosseiras esta­vam em farrapos, a pele negra e ferida dos pés aparecia-lhe através do que restava das mocassinas. O corpo era magro, esquelético, sem gorduras nem músculos, ao passo que os ossos pareciam prestes a furar-lhe a pele esticada. Quando Corliss lhe tomou o pulso, entreabriu os olhos e fitou-os com um olhar vítreo. Frona estremeceu.

- Caramba! É horrível - murmurou McPher­son, passando a mão por um dos braços esqueléticos.

- Vá para a canoa, Frona - disse Corliss. - O Tommy e eu levá-lo-emos para baixo.

Mas a jovem cerrou os lábios com firmeza. Em­bora a descida ficasse facilitada com a ajuda dela, o homem estava muito combalido, quando o puseram no fundo da canoa... tão combalido que lhe desper­taram uns últimos fragmentos de consciência. Abriu os olhos e sussurrou roucamente: «Jacob Welse... correio... da metrópole.» Puxou debilmente a camisa aberta, e, em volta do peito emaciado viram-lhe a correia de pele à qual, sem dúvida, estava presa a bolsa do correio.

Nas extremidades da canoa havia espaço livre, mas a meio do barco Corliss era forçado a remar com o homem entre os joelhos. La Bijou afastou-se alegre­mente da margem. Finalmente, iam a favor da corrente, e pouca necessidade havia de exercício.

Os braços, os ombros e as costas de Vance, de um vermelho vivo, chamaram a atenção de Frona.

- As minhas esperanças realizaram-se - disse exultante, estendendo a mão e acariciando suave­mente um braço queimado. - Temos de lhe pôr creme quando voltarmos.

- Repita - encorajou ele. - Sabe tão bem!

Ela salpicou-lhe as costas a arder com uma mão cheia de água gelada do rio. Ele susteve a respiração e tiritou. Tommy voltou-se para olhar para eles.

- Foi uma acção porreira a que nós todos fizemos hoje - comentou satisfeito. - Dar a mão a quem precisa é bom aos olhos de Deus.

- Quem é que tem medo? - perguntou Frona, rindo.

- Bem - disse ele hesitante - eu tive um pouco de miúfa, não há dúvida, mas... - As pala­vras morreram-lhe nos lábios, e ele de repente pareceu ficar petrificado. Os olhos fixaram-se num olhar terrível por cima dos ombros de Frona. Em seguida, lenta e sonhadoramente, com a solenidade própria de uma invocação à Divindade, mur­murou: - Deus Todo-Poderoso!

Viraram as cabeças. Uma parede de gelo vinha a contornar a curva e, mesmo quando eles esta­vam a olhar o flanco do lado direito, incapaz de dar a volta, bateu na costa, do outro lado, espa­lhando uma cordilheira de montanhas alterosas.

- Santo Deus! Santo Deus! Como ratos na ratoeira! - E Tommy mergulhava o remo futilmente na água.

- Reme! - sibilou Corliss ao ouvido dele. E a Bijou saltou para diante.

Frona dirigia o barco a direito, perpendicular à corrente, quase em ângulo recto, para a ilha da Separação; mas, quando a língua de areia que eles tinham transposto se esmagou sob o impacte de um milhão de toneladas, Corliss olhou para ela com ansiedade. Ela sorriu e abanou a cabeça, ao mesmo tempo que afrouxava o leme.

- Não conseguimos - murmurou, olhando para trás para o gelo, a duas centenas de pés de distância. A nossa única possibilidade é correr à frente dela e ir forçando o nosso caminho lentamente.

Frona conservava ciosamente cada polegada conquistada para dentro, mantendo a canoa com rumo ascendente o mais que ousava, ao mesmo tempo que mantinha uma distância constante à frente do gelo.

- Não aguento! - gemeu Tommy de uma vez; mas o silêncio de Corliss e de Frona pareceu-lhe tão agoirento, que continuou a remar.

Mesmo à frente deles estava um pedaço de gelo flutuante, de cinco ou seis pés de espessura e um par de acres de extensão. Correndo à frente, esse bloco fendia a água fazendo com que se formasse de ambos os lados uma onda grande como a de uma maré a encher num estreito interior. Tommy viu-a e teria sucumbido, se Corliss o não aguilhoasse, entre as remadas, com a ponta do remo.

- Podemos manter-nos à frente - disse Frona arfando. - Mas precisamos de tempo para desem­barcar.

- Na primeira oportunidade dirija-a para terra, com a proa para diante - aconselhou Corliss. Quando bater, salte a corra.

- Ou antes, trepo. Ainda bem que tenho saias curtas.

Repelido pelos alcantis da margem esquerda, o gelo era impelido para a direita. O enorme bloco flutuante, à frente, chocou precisamente contra a ponta da ilha da Separação.

- Se olha para trás, racho-lhe a cabeça com o remo - ameaçou Corliss.

- Sim, senhor - resmungou Tommy.

Mas Corliss olhou para trás, e Frona também. A grande montanha de gelo chocou contra a terra com o impacte de um sismo. Cinquenta pés da ilha foram demolidos. Vinte pinheiros oscilaram deses­peradamente e foram abaixo; no sítio onde os pinheiros tombaram, ergueu-se uma montanha de gelo, que se levantou e tombou e de novo se levantou. Mais abaixo, apenas a alguns pés de distância, Del Bishop fugia da margem. Acima do fragor, eles distinguiram fracamente o seu « É andar! É andar!». Depois a orla de gelo franziu-se e ele deu um salto para trás para se pôr a salvo.

- A primeira oportunidade - disse Corliss, de modo ofegante.

Os lábios de Frona entreabriram-se; tentou falar, mas não conseguiu; depois abanou a cabeça, a dizer que tinha ouvido. Foram rodopiando num ritmo rápido sob a parede iridescentes, procurando um lugar onde pudessem desembarcar rapidamente. Ao longo de todo o comprimento da ilha da Sepa­ração, correram em vão, com a costa a esmagar-se nas suas costas, à medida que fugiam.

Quando atravessavam, voando, a embocadura do canal posterior para a ilha de Roubeau, encon­traram-se apontados directamente para uma aber­tura na orla de gelo. La Bijou meteu-se por ela den­tro, a toda a força, e ficou metade fora de água, em cima de um bloco inclinado. Saltaram os três ao mesmo tempo. Contudo, enquanto os dois agarravam a canoa para a puxar para cima, Tommy, à frente, só procurava salvar-se a si próprio. Tê-lo-ia conse­guido, se não tivesse escorregado e caído a meio da subida. Soergueu-se, escorregou e tornou a cair. Corliss, que puxava a proa da canoa, tropeçou nele, que estendeu os braços e agarrou-se à amurada. Estavam sem forças, e este obstáculo fê-los parar imediatamente. Corliss olhou para trás e gritou-lhe que largasse, mas ele limitou-se a levantar um rosto lamentoso, como o de um homem a afogar-se, e agar­rou-se com mais força. Atrás deles o gelo ribombava. A primeira avalancha da destruição iminente vinha sobre eles. Tentaram desesperadamente arrastar a canoa para cima, mas o acréscimo de peso era demasiado, e caíram de joelhos. O homem doente sentou-se de repente e riu histericamente.

- Sangue de Cristo! - exclamou e tornou a rir.

A ilha de Roubeau estremeceu ao primeiro embate, o gelo oscilou debaixo dos pés deles. Frona agarrou num remo e bateu nos nós dos dedos do escocês. No instante em que este soltou os dedos, Corliss puxou a canoa para cima, numa corrida louca, com Frona a ajudar de trás. A parede iridescente enrolou-se como um rolo de papel, e, nas dobras do rolo, qual abelha nas inúmeras pregas de uma orquídea magnífica, desapareceu Tommy.

Caíram, sem fôlego, por terra. Mas um bloco de gelo monstruoso separou-se da avalancha e balan­çava por cima deles. Frona tentou pôr-se de pé, mas caiu de joelhos; e foi Corliss que teve de a arrastar a ela e à canoa para longe. De novo caíram, desta vez debaixo das árvores, o sol a acariciá-los filtrado através das agulhas verdes dos pinheiros, os tordos a cantar por cima das suas cabeças, e uma colónia de grilos a trilar, ao calor.


Capitulo XXVI

Frona foi acordando, lentamente, como de um longo sonho. Estava estendida onde tinha caído, sobre as pernas de Corliss, que, de costas, a cara voltada para o Sol abrasador, parecia indiferente. Ela gatinhou até junto dele, que respirava regular­mente, de olhos fechados, os quais se abriram para encontrar os dela. Sorriu, e ela deixou-se cair outra vez. Depois Vance virou-se de lado, e os dois entreo­lharam-se.

- Vance.

- Sim.

Frona estendeu a mão; a mão do rapaz fechou-se sobre a dela, e as pálpebras dos dois estremeceram e cerraram-se. O rio continuava a bramir, algures, na distância infinita, mas chegava até eles como o murmúrio de um mundo esquecido. Um langor doce os rodeava. O sol dourado pingava sobre eles através da verdura vivificante, toda a vida da terra aquecida parecia cantar. A quietude era muito boa. Quinze longos minutos eles dormitaram; e voltaram a acordar.

Frona sentou-se.

- Eu... eu tive medo - disse.

- Você não.

- Medo de poder ter medo - corrigiu ela, ajeitando o cabelo.

- Deixe-o solto. O dia merece-o.

A rapariga acedeu, com uma sacudidela de cabeça que a fez ficar rodeada de um nimbo de ondas de ouro.

 - O Tommy desapareceu - disse Corliss, medi­tativo, recordando-se lentamente da corrida com o gelo.

- Sim - respondeu ela. - Eu bati-lhe nos nós dos dedos. Foi horrível. Mas há a possibilidade de termos um homem melhor na canoa e temos de tratar dele imediatamente. Olá! Vocês aí! - Através das árvores, a menos de vinte passos de distância, vira a parede de uma grande cabana. - Não se vê ninguém. Deve estar abandonada, ou então foram visitar alguém, quem quer que sejam. Olhe pelo nosso homem, Vance... eu estou mais apresentável... e vou ver.

Contornou a cabana, que era grande para a região do Yukon, e foi ter à parte da frente, que dava para o rio. A porta estava aberta, e, quando ela parou para bater, todo o interior lhe surgiu como uma imagem assombrosa... uma imagem cumulativa, ou antes uma série de imagens. A pri­meira coisa que notou foi uma multidão de homens, debruçados gravemente sobre um qualquer objec­tivo comum e importante. Quando ela bateu, eles dividiram-se instintivamente, de modo que se abriu uma passagem, flanqueada pelos corpos apertados, até ao extremo da sala. Aí, em compridos beliches de ambos os lados, sentavam-se duas filas graves de homens. No meio, contra a parede, havia uma mesa. Esta mesa parecia o centro de interesse. Ofuscada pela luz do sol do exterior, a de dentro parecia-lhe fraca e sombria, mas conseguiu distin­guir um americano barbudo sentado à mesa e mar­telando-a com um pesado malho de calafetagem. No lado oposto estava sentado St. Vincent. Ela teve tempo de notar o seu rosto cansado e desfigurado, antes que um homem de aspecto escandinavo se aproximasse da mesa, com um andar relaxado.

O homem do malho levantou a mão direita e papagueou:

- Jura solenemente que aquilo que vai relatar ao Tribunal... - Calou-se abruptamente e fitou furioso o homem diante de si. - Tire o chapéu! - trovejou.

Um riso dissimulado percorreu a assistência, quando o homem obedeceu.

Então o do malho começou de novo:

- Jura solenemente que aquilo que vai relatar ao Tribunal será a verdade, toda a verdade e só a verdade, assim Deus o ajude?

O escandinavo fez que sim com a cabeça e baixou a mão.

- Um momento, senhores! - Frona avançou pela passagem, que se fechou atrás de si.

St. Vincent pôs-se em pé, de um salto, e estendeu os braços para ela.

- Frona - exclamou. - Ó Frona, estou inocente! Foi como uma martelada, de tão inesperado, e durante um instante, na luz pálida, teve apenas consciência de um círculo de rostos brancos, cada um deles ornado de olhos que queimavam. «Inocente de quê?», pensou. E, enquanto olhava para St. Vincent, de braços ainda estendidos, teve a sensação, vaga e perturbada, de algo detestável. «Inocente de quê?» Podia ter sido mais reservado. Podia ter esperado até que o acusassem. Ignorava que ele tivesse sido acusado de qualquer coisa.

- Amiga do prisioneiro - disse autoritariamente o homem do malho. -Tragam um banco aqui diante, algum de vocês.

- Um momento... - Frona cambaleou contra a mesa e pousou uma mão em cima dela. - Não compreendo. Isto é tudo inesperado... - Mas os olhos dela pousaram por acaso nos seus pés, embru­lhados em farrapos sujos; sabia que trazia uma saia curta e rota, que o braço lhe aparecia através de um rasgão na manga, e que tinha o cabelo solto, a esvoa­çar. A face e o pescoço de um dos lados parecia estar coberta de uma substância qualquer, esquisita. Esfregou-a com a mão, e lama seca caiu no chão, produzindo um ruído.

- Basta - disse o homem, não sem bondade. - Sente-se. Estamos nas mesmas condições. Também não compreendemos. Mas pode acreditar em mim, estamos aqui para saber. Por isso sente-se.

Ela levantou a mão.

- Um momento...

- Sente-se! - trovejou ele. - O Tribunal não pode ser interrompido...

Um burburinho se levantou da multidão, vozes de discordância. O homem bateu na mesa, a impor silêncio. Mas Frona, resolutamente, manteve-se na sua.

Quando o barulho serenou, dirigiu-se ao homem na presidência.

- Senhor presidente, suponho que se trata de uma reunião de mineiros (o homem acenou que sim). - Portanto, tenho os mesmos direitos na ges­tão dos assuntos desta comunidade. Peço que me ouçam. É importante, e devem ouvir-me.

- Mas não é legal, Miss...

- ...Welse! - responderam urna dúzia de vozes.

- Miss Welse - prosseguiu ele, com um acrés­cimo de respeito a marcar a sua atitude -, lamento informá-la que não é legal. É melhor sentar-se.

- Não me sento - respondeu ela. - Peço uma situação de regalia e, se não for ouvida, apelarei para a assembleia.

Percorreu a multidão com o olhar. Vozes se elevaram para que lhe fosse dada urna oportunidade justa. O presidente aquiesceu e acenou-lhe que con­tinuasse.

- Sr. Presidente e meus senhores. Não sei de que assunto estão a tratar, mas sei que tenho um assunto mais importante a comunicar-lhes. Do lado de fora da cabana está um homem provavelmente a morrer de fome. Fomos buscá-lo à outra margem do rio. Não os teríamos incomodado, mas não conse­guimos chegar à nossa ilha. Este homem de que estou a falar precisa de cuidados imediatos.

- Uns quantos que estejam mais perto da porta vão lá fora tratar dele - ordenou o presidente. - E o senhor, Dr. Holiday, vá também, ver o que pode fazer.

- Peça uma suspensão - segredou St. Vincent. Frona fez que sim, com a cabeça.

- Sr. Presidente, requeiro uma suspensão, até o homem ser tratado.

Gritos de «Suspensão não!» e de «Continuemos com isto!» acolheram esta proposta, e o requeri­mento não foi atendido.

- Agora, Gregory - com um sorriso e uma sau­dação, ao sentar-se no banco ao lado dele -  conta-me o que se passa.

Ele apertou-lhe a mão com força.

- Não acredites neles, Frona. Eles estão a ten­tar... - engolindo em seco - ...matar-me.

- Porquê? Tem calma. Conta-me.

- É que, a noite passada - começou ele apres­sadamente, mas calou-se para escutar o escandinavo que tinha anteriormente prestado juramento, o qual estava a falar com lentidão enfadonha.

- Acordei de repente, por completo - dizia este. - Vim à porta. Ouvi então outro tiro.

Foi interrompido pelo homem de tez sanguínea, vestido com roupas desbotadas.

- O que é que pensou? - perguntou.

Hã? - fez a testemunha, o rosto ensombre­cido e perturbado de perplexidade.

- Quando veio à porta, qual foi o seu primeiro pensamento?

- Ah...h...h! - suspirou o homem, desanuvian­do-se-lhe o rosto, e ressoando-lhe na voz uma com­preensão infinita. - Não trazia mocassinas. Pensei que estava um frio de rachar. - A sua expressão satisfeita transformou-se numa atitude de surpresa ingénua quando uma explosão de gargalhadas acolheu a sua declaração, mas continuou estolidamente. - Ouvi outro tiro e corri pelo caminho abaixo.

Então Corliss abriu caminho através da multidão até junto de Frona, e esta perdeu o que o homem dizia.

- O que se passa? - perguntava o engenheiro. Alguma coisa grave? Posso ajudar em alguma coisa?

- Sim, sim. Frona agarrou-lhe na mão, cheia de gratidão. - Passe o canal das traseiras, seja como for, e diga ao meu pai que venha. Diga-lhe que o Gregory St. Vincent está em dificuldades, que é acusado de... De que é que és acusado, Gregory? - perguntou voltando-se para ele.

- Assassínio.

- Assassínio?! - fez Corliss.

- Sim, sim. Diga-lhe que ele é acusado de assas­sínio, que eu estou aqui, e que preciso dele. E diga­-lhe que me traga alguma roupa. E Vance... - com uma pressão da mão e um rápido olhar para cima. - ...não se arrisque... de mais, mas veja se consegue.

- Oh, hei-de conseguir. - Sacudiu a cabeça, confiante e começou a abrir caminho para a porta, à cotovelada.

- Quem é que o ajuda na defesa? - perguntou ela a St. Vincent.

Este abanou a cabeça.

- Ninguém. Eles quiseram designar alguém... um advogado renegado da metrópole, o Bill Brown... mas eu recusei-o. Passou-se para o outro lado, agora. E a lei do linchamento, sabe, e eles já resolveram. Estão seguros que me apanharão.

- Quem me dera ter tempo de ouvir a tua versão.

- Mas, Frona, eu estou inocente. Eu...

- Chiu! - Ela pousou-lhe a mão no braço, para o fazer calar, e voltou a atenção para a testemunha.

- E o gajo, esse jornalista, lutou sei lá como; mas o Pedro e eu puxámo-lo para a cabana. Ele gritava e ficou quieto num lugar...

- Quem é que gritou? - cortou o advogado de acusação.

- Ele. Aquele gajo além. - O escandinavo apon­tou directamente para St. Vincent. - E eu acendi uma luz. A lanterna encontrei-a quase toda entornada, mas tinha uma vela no bolso. É sempre bom trazer uma vela no bolso - afirmou gravemente. - E o Borg estava estendido no chão, morto. E a índia disse que foi ele, e em seguida morreu, também.

- Disse quem foi?

De novo o dedo acusador apontou St. Vincent. - Ele. Aquele gajo além.

- Sim - repetiu St. Vincent em segredo, - ela disse isso. Mas não compreendo porquê. Não devia estar boa da cabeça.

O homem de rosto sanguíneo e de fato desbo­tado procedeu em seguida à inquirição da teste­munha, que Frona seguiu atentamente, mas que pouco de novo trouxe à luz.

- Tem o direito de contra-inquirir a testemunha - disse o presidente para St. Vincent. - Quer fazer algumas perguntas?

O correspondente abanou a cabeça.

- Vá - incitou-o Frona.

- De que vale? - respondeu ele desesperan­çado. - Estou condenado de antemão. Decidiram o veredicto antes de começar o julgamento.

- Um momento, por favor - a ordem ríspida de Frona fez deter a testemunha, que já se ia a retirar. - Sabe por conhecimento próprio quem cometeu o crime?

O escandinavo fitou-a com uma expressão bovina nas feições pesadas, como se estivesse à espera que a pergunta lhe penetrasse no entendimento.

- Não viu quem cometeu o crime? – tornou ela a perguntar.

- Ah, sim, aquele gajo além - disse com o dedo acusador para a frente. - Ela disse que foi ele. Um sorriso geral acolheu a resposta.

- Mas o senhor viu?

- Ouvi tiros.

- Mas não viu quem deu os tiros?

- Ah, não; mas ela disse...

- Já chega, obrigada - disse ela docemente. O homem retirou-se.

O promotor público consultou as suas notas

- Pierre La Flitche! - chamou.

Um homem magro, de tez escura, de corpo ágil e gracioso, adiantou-se para o espaço aberto em frente da mesa. Era simpático e moreno, com olhos eloquentes e vivos, que fitavam todos com franqueza. Pousaram por um instante em Frona, francos e honestos na sua admiração, e ela sorriu e baixou levemente a cabeça, porque simpatizara com ele à primeira vista e parecia que já se conheciam de há muito tempo. Ele retribuiu-lhe o sorriso, com sim­patia, o lábio superior liso entreabrindo-se e reve­lando uns dentes lindos, imaculadamente brancos.

Em resposta às perguntas preliminares estereo­tipadas, declarou que o seu nome era o de seu pai, um descendente dos coureurs du bois. A mãe - com um encolher de ombros e um arreganho de dentes - era uma mestiça . Tinha nascido algures nos Barrens, durante uma caçada, não sabia onde. Ah, oui, chamavam-lhe um pioneiro. Viera para a região nos tempos de Jack McQuestion, pelas Rockies, do Great Slave.

Quando lhe disseram que contasse o que sabia sobre o caso em questão, pensou durante um momento como se procurasse o melhor começo.

- Na Primavera é bom dormir com a porta aberta - começou, as palavras soando claras e maviosas, marcadas por recordações ancestrais do sotaque que os seus antepassados punham na lín­gua.         E foi assim que dormi a noite passada. Mas eu durmo como os gatos. O cair de uma folha, um sussurro de vento, e os meus ouvidos segredam-me, segredam, segredam toda a noite. Logo ao primeiro tiro - dando um estalo com os dedos - eu acordei, num instante, e fui para a porta.

St. Vincent inclinou-se para diante, para Frona.

- Não foi o primeiro tiro.

Frona acenou com a cabeça, os olhos sempre presos em La Flitche que, cortesmente, esperou.

- Em seguida mais dois tiros continuou -, rápidos, a seguir: bum! bum! Assim. - «É na cabana do Borg», digo para comigo; e corro pelo caminho. Pensei que Borg tivesse matado a Bella, o que era pena. A Bella era uma boa rapariga - confidenciou com um dos seus sorrisos irresistíveis. - Gostava da Bella. Por isso corri. E o John correu também da cabana dele, como uma vaca gorda, fazendo grande barulho. «O que é que aconteceu?», perguntou; e eu respondi: «Não sei». E então saiu qualquer coisa da escuridão: pumba! Assim. E atirou o John ao chão, e a mim também. Pusemo-nos logo à pro­cura, por todo o lado. Era um homem. Estava em trajes menores. Lutou. E gritava: «Oh, oh, oh!». Assim. Agarrámo-lo com força e daí a pouco, um cibito, ele ficou quieto. Depois levantou-se e eu disse: «Venha. daí».

- Quem era o homem?

La Flitche voltou-se um pouco e pousou os olhos em St. Vincent.

- Continue.

- O homem não queria voltar, mas o John e eu dissemos que sim, e ele foi.

- Ele disse alguma coisa?

- Perguntei-lhe o que é que se tinha passado, mas ele pôs-se a chorar, ele... pôs-se a soluçar, fum... fum... fum...! Assim.

- Notou-lhe alguma coisa estranha?

As sobrancelhas de La Flitche ergueram-se inter­rogativamente.

- Alguma coisa invulgar, fora do comum?

- Ah, oui, sangue nas mãos. - Sem ligar ao burburinho da sala, continuou o jogo expressivo das feições e dos gestos, dramatizando a narrativa. - O John acendeu uma luz, Bella gemeu, como uma foca quando se lhe dá um tiro no corpo, exactamente, como quando se lhe acerta no corpo acima das patas. E o Borg estava estendido no canto. Fui vê-lo. Não respirava. Em seguida a Bella abriu os olhos, eu olhei-a e vi que ela me reconheceu, a mim, La Flitche. «Quem foi, Bella?», perguntei. E ela voltou a cabeça no chão e murmurou, muito baixinho, muito baixinho: «Ele morto?». Eu sabia que ela se referia a Borg, e disse que sim. Então ergueu-se sobre um cotovelo, olhou em volta rapidamente, muito depressa e, quando viu o Vincent, não pro­curou mais, não tirou mais os olhos de Vincent. Depois apontou para ele, assim. - Juntando o gesto à palavra La Flitche voltou-se e espetou um dedo trémulo para o prisioneiro. - E ela disse: «Ele, ele, ele». Eu perguntei: «Bella, quem foi?» E ela respondeu: «Ele, ele, ele. St. Vincent. Foi ele». Em seguida... - a cabeça de La Flitche tombou flacidamente sobre o peito e voltou a endi­reitar-se naturalmente, quando terminou com um arreganho de dentes: «Morta».

O homem do rosto sanguíneo, Bill Brown, subme­teu o mestiço ao habitual interrogatório directo, que serviu para fortalecer o seu testemunho e revelou o facto de que se devia ter travado uma luta terrível no assassínio de Borg. A pesada mesa estava espati­fada, o banco e as tábuas da tarimba partidos, e o fogão derrubado.

- Nunca vi nada semelhante - concluiu assim La Flitche a descrição dos destroços. - Não, nunca!

Brown entregou-o a Frona, com uma vénia, que um sorriso dela pagou de sobejo. Não consi­derava insensato cultivar a cordialidade com o advogado. O que ela pretendia era ganhar tempo - tempo para que o pai chegasse, tempo para ficar a sós com St. Vincent e saber todos os pormenores do que se tinha de facto passado. Por isso fez per­guntas, perguntas, perguntas intermináveis a La Flitche. Só por duas vezes conseguiu alguma coisa de importância.

- O senhor falou do primeiro tiro. Ora, as pa­redes da cabana são muito grossas. Se a porta esti­vesse fechada, acha que poderia ter ouvido o primeiro tiro?

La Flitche sacudiu a cabeça, embora os seus olhos escuros lhe dissessem que adivinhava o ponto que ela pretendia provar.

- E se a porta da cabana de Borg estivesse fechada, teria ouvido?

De novo sacudiu a cabeça.

- Então, Sr. La Flitche, quando diz primeiro tiro, não quer necessariamente dizer o primeiro tiro que foi disparado, mas sim o primeiro tiro que ouviu?

Ele fez que sim, e, embora ela tivesse conseguido ganhar o seu ponto, não conseguia compreender se ele teria afinal alguma relação material.

De novo se empenhou astuciosamente em chegar a outro clímax, mais forte, não obstante sentir durante todo o tempo que La Flitche lhe percebia o jogo.

- Disse que estava muito escuro, Sr. La Flitche?

- Ah, oui, escuro como breu.

- Escuro como breu? Como é que soube que era John que tinha encontrado?

- O John fez muito barulho a correr. Já conheço esse barulho.

- Podia vê-lo, de modo a reconhecê-lo?

- Ah, não.

- Então, Sr. La Flitche - perguntou triun­fante -, pode fazer o favor de declarar como é que soube que havia sangue nas mãos do Sr. St. Vincent?

O lábio dele entreabriu-se, num sorriso deslum­brante, e fez uma pausa. - Como? Senti-o quente nas mãos dele. E o meu nariz... ah, o fumo do acampamento de caçadores muito distante, a lura onde se esconde o coelho, o rasto do alce que fugiu, não mos denuncia o meu nariz? - Atirou a cabeça para trás e, de rosto tenso, olhos cerrados, narinas a palpitar e dilatadas, simulou o repouso de todos os sentidos, excepto um e a concentração de todo o seu ser nesse único. Em seguida as pálpebras palpitaram, os olhos entreabriram-se, e ele fitou-a sonhadora­mente. - Cheirei o sangue nas mãos dele, o sangue quente, nas mãos dele.

- E ele é bem capaz disso - exclamaram alguns homens.

E tão convencida ficou Frona, que involuntariamente olhou para as mãos de St. Vincent e notou as manchas cor de ferrugem dos punhos da camisa de flanela.

Quando La Flitche abandonou o estrado, Bill Brown veio ter com ela e apertou-lhe a mão.

- Uma advogada de defesa à altura - disse ele, bem disposto, recapitulando as notas para a teste­munha seguinte.

- Mas não acha que é injusto para mim? - per­guntou ela alegremente. - Não tive tempo para preparar a minha causa. Não sei nada, excepto o que apanhei aos poucos, das duas testemunhas. Não acha, Sr. Brown a voz sussurrando em notas persuasivas - não acha que seria aconselhável sus­pender a sessão até amanhã?

- Hum! - fez ele, consultando o relógio. - Não era má ideia. São cinco horas, afinal, e os homens precisam de ir preparar a ceia.

Ela agradeceu, como algumas mulheres o sabem fazer, sem palavras; no entanto, ao baixar a vista para o rosto e os olhos dela, ele sentiu um contentamento maior do que se ela tivesse falado.

Voltou para o lugar e dirigiu-se à assembleia.

- Tendo consultado a defesa e a acusação e considerando a hora tardia e a impossibilidade de terminar o julgamento dentro de um lignite razoável... eu... hum... tomo a liberdade de propor um adia­mento até amanhã às oito horas da manhã.

- Concedido - proclamou o presidente, des­cendo do seu lugar e indo tratar de acender o fogo, pois era co-proprietário da cabana e cozinheiro do seu grupo.


Capitulo XXVII

Frona voltou-se para St. Vincent, depois de ter saído a última pessoa. St. Vincent apertou-lhe as mãos espasmodicamente, como um homem a afogar-se.

- Acredita em mim, Frona. Promete-me.

O rosto da rapariga ruborizou-se.

- Estás enervado - respondeu - senão não dirias coisas dessas. Não é que eu te censure - disse com mais suavidade. -Acho que a situação o justifica plenamente.

- Sim, e eu que o diga - respondeu ele com amargura. - Estou a agir como um tolo e não o posso evitar. A tensão foi terrível. Como se não bastasse o horror do fim de Borg, ser acusado de assassínio e arrastado para ser julgado pela turba! Perdoa-me Frona. Estou fora de mim. Claro que sei que me acreditarás.

- Então conta-me, Gregory.

- Em primeiro lugar, a mulher, a Bella, mentiu. Devia ter enlouquecido para fazer aquela declaração ao morrer, depois de eu ter lutado como lutei por ela e pelo Borg. É a única explicação...

- Começa pelo princípio - cortou Frona. - Lembra-te de que eu não sei nada.

St. Vincent instalou-se mais confortavelmente no banco e enrolou um cigarro, enquanto iniciava a história da noite interior.

- Devia ser mais ou menos uma da manhã, quando fui acordado pelo brilho de uma lanterna. Pensei que fosse Borg, pensei o que andaria ele a procurar; e estava prestes a adormecer outra vez, quando, embora não saiba a razão por que o fiz, abri os olhos. Estavam dois homens desconhecidos na cabana. Ambos traziam máscaras e gorros de pele com as protecções das orelhas puxadas para baixo, de modo que eu não conseguia ver nada dos seus rostos, a não ser o brilho dos olhos através das fendas das olheiras. Não pensei em nada, ao princí­pio, a não ser que o perigo ameaçava. Deixei-me ficar imóvel durante um instante, a pensar. O Borg pedi­ra-me emprestada a pistola, e eu estava desarmado. A minha espingarda achava-se junto da porta. Decidi correr para ela. Mas, assim que pus os pés no chão, um dos homens voltou-se para mim, ao mesmo tempo que disparava o revólver. Foi o primeiro tiro, aquele que o La Flitche não ouviu. Foi a seguir, durante a luta, que a porta se abriu, o que tornou possível ele ouvir os últimos três. Bem, eu estava tão perto, e o meu salto da tarimba foi tão inespe­rado, que ele não me acertou. Agarrámo-nos um ao outro e rolámos pelo chão. O Borg acordou, natu­ralmente, e o segundo homem voltou a sua atenção para ele e para Bella. Foi este segundo homem quem os matou, porque o meu estava ocupado, claro está. Tu ouviste as declarações. Pela maneira como a cabana ficou destroçada, podes imaginar a luta. Rolámos e debatemo-nos, espatifando bancos, mesa, prateleiras... tudo.

«Oh, Frona, foi horrível! O Borg a lutar para salvar a vida, a Bella a ajudá-lo, embora estivesse ferida e gemesse, e eu sem os poder ajudar. Mas finalmente, e em pouco tempo, comecei a vencer o homem com quem estava a lutar. Deitei-o de costas, prendi-lhe os braços com os joelhos e estava a esga­ná-lo lentamente, quando o outro acabou o seu trabalho e se voltou também contra mim. Que podia eu fazer? Dois contra um, e exausto! Fui então atirado contra o canto, e eles fugiram. Confesso que devia estar muito aturdido, na altura, porque, assim que recuperei o fôlego, saí atrás deles, sem uma arma. Foi então que choquei com o La Flitche e o John. E... e tudo sabes o resto. Mas - franziu os sobrolhos perplexo, - mas não consigo compreender porque é que Bella me acusou».

Olhou para Frona, suplicante, mas esta, em­bora lhe apertasse a mão com carinho, permaneceu silenciosa, pesando os prós e os contras do que ouvira.

Abanou a cabeça lentamente.

- É uma causa difícil, e o pior é convencê-los...

- Mas por Deus, Frona, eu estou inocente! Nunca fui um santo, talvez, mas as minhas mãos estão limpas de sangue.

- Mas lembra-te, Gregory - respondeu ela doce­mente - não sou eu que te vou julgar. Infelizmente isso compete aos homens deste comício de mineiros, e o problema é: como os havemos de convencer da tua inocência? Os dois pontos principais estão contra ti... as palavras de Bella, ao morrer, e o sangue na tua manga.

- O lugar era um mar de sangue! - exclamou St. Vincent exaltadamente, pondo-se de pé, de um salto. - Já te disse que era um mar de sangue!

Como é que eu podia evitar espojar-me nele, a lutar como lutava, para salvar a vida? Não me acreditas...

- Pronto! Pronto!, Gregory. Senta-te. Estás completamente fora de ti. Se dependesse de mim, bem sabes que te soltaria, completamente ilibado. Mas estes homens... tu sabes o que é a lei das mul­tidões... como os convenceríamos a soltarem-te? Não compreendes? Não tens testemunhas. As decla­rações de uma mulher moribunda são mais sagradas do que as de um homem vivo. Podes dar uma expli­cação para a mulher ter morrido com a mentira nos lábios? Ela tinha alguma razão para te odiar? Tinhas-lhe feito alguma injúria a ela ou ao marido?

Gregory abanou a cabeça.

- Para nós a coisa é inexplicável, certamente; mas os mineiros não precisam de explicação nenhuma. Para eles é óbvio. Resta-nos a nós desmentir o óbvio. Seremos capazes de o fazer?

O correspondente afundou-se na cadeira, desa­lentado, metendo o peito para dentro e deixando cair os ombros.

- Então estou perdido.

- Não, não é tão mau como isso. Não serás enforcado. Confia em mim.

- Mas que podes tu fazer? - perguntou desespe­rado. - Eles usurparam a lei, constituíram-se em lei.

- Em primeiro lugar, o rio está navegável. Isso é o mais importante. O governador e os juízes territoriais podem aparecer a todo o momento, com um destacamento de polícia atrás. E de certeza que virão aqui. Além disso, nós também podemos fazer qualquer coisa. O rio está degelado, e, se acontecer o pior, a fuga podia ser outra solução; e fuga é a última coisa em que eles sonhariam.

- Não! Não! É impossível. O que somos tu e eu contra tantos?

- Mas há o meu pai e o barão de Courbertin. Quatro pessoas decididas, juntas, podem obrar mila­gres, meu querido Gregory. Confia em mim. Tudo acabará bem.

Beijou-o e passou-lhe a mão pelo cabelo, mas a expressão preocupada não o abandonou.

Jacob Welse atravessou o canal, muito antes do escurecer, e com ele vieram Del, o barão e Corliss. Enquanto Frona se retirava para mudar de roupa numa das cabanas mais pequenas, que os proprietá­rios masculinos imediatamente puseram à sua dis­posição, o pai cuidou da instalação do correio. Os despachos eram muito importantes, tão importantes que, muito tempo depois de Jacob Welse os ter lido e relido, o seu rosto ainda se conservava sombrio e preocupado; mas pôs a ansiedade de lado quando voltou para junto de Frona. St. Vincent, que estava preso numa cabana perto, teve permissão de os ver.

- A coisa está feia - disse Jacob Welse, ao despedir-se à noite. - Mas fique certo, St. Vincent, que, feia ou não, não será enforcado, enquanto eu tiver alguma influência na balbúrdia. Tenho a certeza de que não matou o Borg, e ponho as mãos por isso.

- Que dia comprido! - observou Corliss, quando acompanhava Frona à cabana.

- E amanhã ainda será mais - respondeu ela, cansada. - E estou tão cheia de sono!

- É uma mulherzinha valente. Orgulho-me de si. - Eram dez horas, e ele contemplou através do crepúsculo escuro o gelo espectral que continuava a deslizar regularmente. - E neste sarilho - conti­nuou - pode contar comigo para tudo.

- Para tudo? - perguntou ela com a voz presa.

- Se eu fosse um herói de melodrama, diria «Até à morte!». Mas, como não sou, limito-me a repetir: para tudo.

- Você é muito bom para mim, Vance. Nunca lhe poderei pagar...

- Chuta! Chuta! Não me pus à venda. Amar é servir, creio eu.

Frona olhou-o longamente; mas, enquanto o rosto lhe traía uma doce admiração, o coração estava perturbado, não sabia porquê, e os acontecimentos do dia e os de todos os dias desde que o conhecera perpassaram-lhe pelo espírito.

- Acredita numa amizade platónica? - per­guntou por fim. - É que eu tenho esperança que um laço assim nos una para sempre. Uma amizade luminosa, platónica, uma camaradagem, por assim dizer? - E, ao fazer a pergunta sentia que a frase não exprimia inteiramente o que sentia e o que dese­jaria. Quando ele abanou a cabeça, ela sentiu um contentamentozinho inexplicável.

- Camaradagem? - perguntou ele. - Sabendo que a amo?

- Sim - afirmou ela baixinho.

- Receio que, afinal de contas, os seus conheci­mentos sobre o homem sejam muito limitados. Acredite: nós não somos feitos desse barro. Camaradagem? Entrar cheio de frio e aquecer-me à sua lareira? Mas, estando outro homem sentado consigo a essa lareira? Não. A camaradagem exigiria que eu me alegrasse com as suas alegrias; e, no entanto, acredita, por um momento só que seja, que eu seria capaz de a ver com o filho de outro homem nos braços, um filho que podia ter sido meu, com esse outro homem a contemplar-me através dos olhos da criança, rindo-se para mim com a boca dele? Acha que eu era capaz de me alegrar com as suas alegrias? Não! Não! O amor não se pode algemar com amizades platónicas.

Frona pousou-lhe a mão no braço.

- Acha que não tenho razão? - perguntou, intrigado com a expressão esquisita do rosto dela. Ela soluçava baixinho. - Está cansada e com os nervos num feixe. Portanto, boa noite. Tem de se ir deitar.

- Não! Não se vá ainda. Não! - E segurou-o. - Não! Não! Eu sou uma tola. Estou cansada, tem razão. Mas escute, Vance. Há muito a fazer. Temos de planear o trabalho de amanhã. Entre. O pai e o barão Courbertin estão reunidos, e, se acontecer o pior, nós os quatro temos de fazer grandes coisas.

- Espectacular! - comentou Jacob Welse, depois de Frona ter exposto resumidamente o curso da acção e distribuído os papéis. - Por ser inespe­rado deve dar resultado.

- Um coup d'état! - foi o veredicto do barão. - Magnífico! Ah! Sinto o sangue ferver, só de pensar. «Mãos ao ar!», grito eu, assim, ferocíssimo. E se eles não levantarem as mãos? - apelou para Jacob Welse.

- Nesse caso, atire. Nunca finja, quando está com uma arma na mão, Courbertin. Os grandes entendidos afirmam que não é saudável.

- E você encarregar-se-á de La Bijou, Vance? - disse Frona. - O pai pensa que amanhã pouco gelo haverá, se não ficar preso esta noite. Tudo o que tem a fazer é ter a canoa na margem, em frente da porta. Claro que não saberá o que se está a passar, até o St. Vincent aparecer, a correr. Nessa altura, mete-o lá dentro e partem... para Dawson! Por isso dou as boas-noites e despeço-me já, porque amanhã posso não ter oportunidade disso.

- E vá sempre pelo canal da esquerda até passar a curva - aconselhou-o Jacob Welse. - Depois corte pela direita e siga pela corrente mais rápida. Agora vá meter-se nos cobertores. São setenta milhas até Dawson, e terá de as fazer de uma tirada.


Capitulo XXVIII

Jacob Welse recebeu a atenção que lhe era devida, quando foi convocado pelo comício dos mineiros e denunciou o processo. Conquanto tais comícios tivessem desempenhado uma função legítima no passado, argumentou ele, quando não existia lei nenhuma na região, esse tempo já estava ultrapas­sado; porque a lei agora estava estabelecida e era uma lei justa. O governo da rainha mostrara-se apto a resolver as situações, e se eles usurpassem os poderes desse governo era retroceder à noite de onde haviam saído. Além disso, nenhuma palavra mais benévola do que «criminosa» podia caracterizar uma conduta daquelas. E mais, prometeu-lhes em termos firmes, sóbrios, que se dali resultasse qualquer coisa de sério, tomaria uma parte activa na incriminação de cada um deles. A concluir o seu discurso, fez uma proposta para entregarem o pri­sioneiro ao tribunal territorial e suspenderem a sessão. Mas foi rejeitado sem discussão.

- Não estás a ver - disse St. Vincent a Frona­ - que não há esperanças nenhumas?

- Há sim! Escuta! - E rapidamente esboçou o plano da noite anterior.

Ele escutou-a, com pouco entusiasmo, demasiado aniquilado para compartilhar da exaltação dela.

- É uma loucura tentá-lo - objectou quando ela terminou.

- Mas, se não o tentarmos, é muito provável que haja o enforcamento - respondeu ela um tanto vivamente. - Lutarás, não é verdade?

- Com certeza - respondeu, sem calor.

As primeiras testemunhas foram dois suecos, que contaram o incidente da tina da água, quando Borg tivera um dos seus ataques de fúria. Conquanto tri­vial, o incidente, à luz dos acontecimentos subse­quentes, tornou-se imediatamente grave. Abriu caminho à imaginação para um vasto campo fami­liar. Não era tanto o que foi dito, como o que ficou por dizer. Os homens nascidos de mulher, os mais rudes de entre eles, conheciam a vida suficientemente bem para perceberem o significado daquilo - um acontecimento vulgar e comum, susceptível unicamente de uma interpretação. As cabeças meneavam sabiamente, no decurso das declarações, e comen­tários passaram de boca em boca.

Meia-dúzia de testemunhas se seguiram em rápida sucessão, cada uma das quais examinara cuidadosa­mente o local do crime e havia percorrido a ilha atentamente, concordando todas não existir o mínimo vestígio dos dois homens mencionados pelo prisioneiro nas suas declarações preliminares.

Com surpresa de Frona, Del subiu ao estrado. Ela sabia que ele antipatizava com St. Vincent, mas não conseguia imaginar que prova poderia ele ter que pudesse relacionar-se com o caso.

Depois de ter prestado juramento, declinado a idade e nacionalidade, Bill Brown perguntou-lhe a profissão.

- Prospector - retorquiu, em ar de desafio, varrendo a assistência com um olhar agressivo.

Ora acontece que muito poucos homens se dedicam à prospecção e que grande número, mineiros também, descrêem completamente de semelhante método de obter ouro.

- Prospector! - escarneceu um homem de ar patriarcal e camisa encarnada, um homem que havia feito as suas primeiras pesquisas na Califórnia, nos princípios dos anos cinquenta.

- Isso mesmo! - afirmou Del.

- Escute cá, meu rapaz - continuou o seu inter­locutor - você quer dizer que faz as pesquisas por esse processo extravagante?

- Isso mesmo!

- Não acredito - respondeu o outro, com um encolher de ombros desdenhoso.

Del engoliu rápido e ergueu a cabeça com uma sacudidela.

- Sr. Presidente, quero fazer uma declara­ção. Não interferirei com a dignidade do Tribunal, mas desejo declarar simples e claramente que, depois de a reunião terminar, partirei a cabeça de todos os homens que se fizerem engraçados. Percebe?

- Está a perturbar a ordem - replicou o pre­sidente, batendo na mesa com o machado de cala­fetagens.

- E a sua também - gritou Del, virando-se para ele. - Linda ordem a que o senhor mantém. As prospecções não têm nada a ver com este julga­mento, e porque é que o senhor não manda calar essas perguntas idiotas? Eu trato-lhe da saúde depois, seu limpa-panelas!

- Ai tratas? Ai tratas? - O presidente ficou apopléctico, pousou o malho e pôs-se de pé, de um salto.

Del avançou para ir ao encontro dele, mas Bill Brown saltou para o meio dos dois e separou-os.

- Ordem, senhores! Ordem! - suplicou. - Não é altura para exibições impróprias. E lembrem-se de que há senhoras presentes.

Os dois homens resmungaram e cederam.

Bill Brown perguntou:

- Sr. Bishop, parece que conhece bem o prisio­neiro. Faça o favor de contar ao Tribunal o que sabe sobre o carácter dele no geral.

Del abriu-se num sorriso.

- Bom, em primeiro lugar tem um feitio extre­mamente briguento...

- Alto! Não admito isso! - O prisioneiro estava de pé, tremendo de raiva. - Não disporão da minha vida desta maneira! Ir buscar um louco, que só encontrei uma vez na minha vida, para fazer decla­rações a respeito do meu carácter.

O prospector voltou-se para ele.

- Com que então não me conhece, hem, Gre­gory St. Vincent?

- Não - respondeu St. Vincent friamente. - Não o conheço, homenzinho.

- Não me chame homenzinho! - gritou Del, exaltado.

Mas St. Vincent ignorou-o, voltando-se para a multidão.

- Só vi este homem uma vez na vida, e só por breves momentos, em Dawson.

- Vai lembrar-se, antes que eu termine – disse Del com desdém. - Portanto, meta a viola no saco e deixe-me contar o que tenho para contar. Cheguei à região com ele, em 84.

St. Vincent olhou-o com interesse súbito.

- É isso mesmo, Sr. Gregory St. Vincent. Vejo que começa a lembrar-se. Eu usava suíças, e o meu nome era Brown, Joe Brown, naquele tempo.

Arreganhou os dentes vingativamente, e o corres­pondente pareceu perder todo o interesse.

- É verdade, Gregory? - segredou Frona.

- Parece-me reconhecê-lo - balbuciou lenta­mente. - Não sei... não, que disparate! O homem deve ter morrido.

- Disse em 84, Sr. Bishop? - incitou Bill Brown.

- Isso mesmo, em 84. Ele era jornalista, resol­vido a dar a volta ao mundo pelo Alasca e pela Sibéria. Eu tinha fugido de um baleeiro em Sitka. Isso explica o Brown. Entrei ao serviço dele por quarenta por mês. Bom, ele discutiu comigo...

Um risinho, começado em nenhum sítio deter­minado, mas que foi passando de homem para homem e aumentando de volume, acolheu esta decla­ração. Até Frona e Del foram forçados a sorrir. O único rosto que se manteve sério foi o do pri­sioneiro.

- Mas ele discutiu com o velho Andy em Dyea e com o chefe George dos Chilcoots e com o adminis­trador de Pelly, e assim por diante com todos. Arranjava sarilhos sem fim, especialmente sarilhos de saias. Andava sempre a intrometer-se...

- Sr. Presidente, protesto! - Frona pôs-se de pé, o rosto absolutamente calmo e autodomi­nado. - Não há necessidade de trazer para aqui os amores do Sr. St. Vincent. Não têm qualquer relação com o caso e, além disso, nenhum homem desta assembleia tem idoneidade suficiente para ser impelido pelos motivos justos a realizar um inquérito destes. Por isso peço que a acusação se confine pelo menos às declarações relevantes.

Bill Brown aproximou-se afectadamente compla­cente e sorridente.

- Sr. Presidente, acedemos de boa vontade ao pedido feito pela defesa. Tudo quanto revelámos tem sido relevante e objectivo. Tudo quanto tencionamos revelar será relevante e objectivo. O Sr. Bishop é a nossa testemunha principal, e as suas declarações são essenciais. Tem de ser tomado em consideração que nós não temos nenhumas provas directas do assassínio de John Borg. Não podemos trazer ao tribunal nenhuma testemunha ocular. Tudo quanto temos são provas circunstanciais. Temos a obrigação de descobrir as causas. Para descobrir as causas é necessário estudar o carácter do acusado. É isso que nós pretendemos fazer. Tencionamos mostrar a sua natureza adúltera e concupiscente, que culminou num acto pusilânime, pondo-lhe em perigo a cabeça. Tencionamos provar que ele não sabe o que seja a verdade; que é um mentiroso de alto coturno; que nenhuma palavra que ele possa dizer no estrado precisa de ser aceita por um júri dos seus iguais. Tencionamos demonstrar isto tudo, e ligar tudo, fio a fio, até termos uma corda suficientemente comprida e forte para o enforcar antes de terminar o dia. Por isso peço respeitosamente, Sr. Presidente, que a testemunha seja autorizada a prosseguir.

O presidente decidiu contra Frona, e a petição desta à assembleia foi votada contra. Bill Brown fez sinal a Del que prosseguisse.

- Como eu ia dizendo, ele arranjava-nos sari­lhos sem fim. Ora eu cá toda a vida tenho andado em barcos - parece que nunca me posso afastar da água -e, quanto mais ando, menos percebo dela. O St. Vincent sabia isto, e ele é um bom rema­dor; contudo mandou-me atravessar o canhão Box, sozinho, enquanto ele o contornava a pé. Resultado voltei-me, perdi metade do equipamento, e ainda por cima me deitou as culpas. Logo a seguir enredou-se com os índios Stick, e ambos íamos batendo a bota.

- Porquê? - cortou Bill Brown.

- Tudo por causa duma linda índia, que lhe deitava uns olhos demasiado meigos. Depois de termos escapado, dei-lhe uma lição sobre mulheres em geral e índias em particular, e ele prometeu ter juízo. Depois passámos um mau bocado com os Pequenos Salmões. Ele desta vez foi mais fino, eu nunca soube ao certo, mas adivinhei. Ele disse que foi o curandeiro que o hostilizou, mas não há nada que faça agitar mais um curandeiro do que mulheres, e os factos indicavam-no. Quando discuti o assunto com ele, em tom paternal, ele ficou furioso. Tive de o levar para a margem e de lhe dar uma surra. Então ficou todo mal-humorado e só tornou a ficar bem disposto quando chegámos à desembocadura do rio Reindeer, onde uma tribo dos Siwashes andava a pescar salmão. Mas ficou-me com rancor, aquele tempo todo; eu é que não sabia... E estava pronto para me atraiçoar na primeira oportunidade. Ora não se pode negar que ele tem muita saída com as mulheres. Basta-lhe assobiar-lhes, como se faz aos cães. É um talento notável, lá isso é! Havia lá entre os Reindeer a índia mais jeitosa e perversa de todas. Nunca vi outra igual, tirante a Bella. Bom, ele deve ter-lhe assobiado, porque demorou-se mais no acampamento do que era necessário. Sendo par­cial, quanto a mulheres...

- Basta, Sr. Bishop! - cortou o presidente, que, depois de em vão escrutinar o rosto impassível de Frona, voltou a atenção para a mão da jovem, cujo torcer e contorcer nervoso revelava o que o rosto escondia. - Basta, Sr. Bishop! Acho que já se falou que baste de índias.

- Por favor, não tolha as declarações - chilreou Frona docemente. - Parece ser muito importante.

- Sabe o que é que eu vou contar a seguir? - perguntou Del, exaltado, ao presidente. - Não sabe, pois não? Então meta a viola no saco. Eu é que estou a dirigir o espectáculo.

Bill Brown saltou para evitar hostilidades, mas o presidente conteve-se, e Bishop prosseguiu.

- Já teria acabado com o tiroteio, as índias e tudo o mais, se o senhor me não tivesse interrompido. Bom, conforme já disse, ele tinha-me rancor e, quando menos o esperava, deu-me com a coronha da espingarda na cabeça, meteu a índia na canoa e raspou-se. Vocês sabem como era o Yukon nos anos 80. E ali fiquei eu, sem equipamento, sozinho, a mil milhas da povoação mais próxima. Acabei por me desenrascar e não vem p'ra'qui contar-lhes como; ele também se desenrascou. Todos vocês ouviram contar as aventuras dele na Sibéria. Bom - fazendo uma pausa para criar efeito - acontece que sei umas coisas a esse respeito.

Enfiou a mão no enorme bolso do seu gibão e tirou para fora um livro de aspecto venerável, enca­dernado em pele desbotada.

- Deu-mo a mulher do Pete Whipple... o Whipple do Eldorado. Era do tio-avô dela ou do tio­-bisavô, não sei bem qual; se houvesse aqui alguém que soubesse russo, saberíamos pormenores dessa viagem à Sibéria. Mas, como não há...

- Courbertin! Ele sabe! - disse alguém entre a multidão.

Abriu-se caminho para o francês passar, o qual foi empurrado para diante, protestando.

- Sabe a língua? - perguntou Del.

- Sei; mas tão mal, tão pouco – objectou Courbertin. - Foi há muito tempo. Já esqueci.

- Leia. Nós não criticaremos.

- Não, mas...

- Leia - ordenou o presidente.

Del meteu-lhe o livro nas mãos, abrindo-o na página amarelada do título. -Há meses e meses que andava a rebentar por encontrar um gajo como você - afirmou, jubiloso. - E agora que encontrei não o largo, Charley. Portanto ande p'ra diante.

Courbertin começou com hesitação

- O diário do padre Yakontsk, contendo o relato breve da sua vida no mosteiro beneditino de Obidorskv, e integral das suas aventuras maravilhosas na Sibéria Leste entre os Homens-Veados. - O barão levantou a cabeça, aguar­dando instruções.

- Diga-nos quando foi impresso - ordenou-lhe Del.

- Em Varsóvia, 1807.

O prospector voltou-se triunfante para a sala. - Ouviram? Fixem isto: 1807, não se esqueçam! O barão iniciou o parágrafo de abertura.

- Foi por causa de Tamerlão -começou, cons­truindo inconscientemente a tradução de uma ma­neira que já lhe era familiar.

Logo às primeiras palavras, Frona ficou lívida e continuou lívida durante o resto da leitura. De uma vez, deitou um olhar furtivo ao pai e ficou contente que ele estivesse a olhar em frente, porque não se sentia capaz de defrontar nessa altura o seu olhar. Por outro lado, embora soubesse que St. Vincent não despregava os olhos dela, não lhe deu atenção, e tudo quanto conseguia distinguir era um rosto pálido e inexpressivo.

- Quando Tamerlão varreu a ferro e fogo a Ásia Oriental - lia Courbertin lentamente, - foram recha­çadas nações, arrasadas cidades e tribos dispersas como... como poalha de estrelas. Um grande povo foi impelido pela região. Fugindo diante dos conquistadores... Não, não... diante da cobiça louca dos conquistadores, estes refugia­dos embrenharam-se pela Sibéria, fazendo círculos para o norte e leste e semeando a orla do círculo polar de tribos mongóis.

- Passe umas páginas - aconselhou Bill Brown - e leia aqui e ali. Não podemos ficar aqui a noite toda. Courbertin acedeu.

- O povo da costa é de raça esquimó, de natureza alegre e não agressiva. Chamam-se a si próprios Oukilion ou Homens do Mar. Comprei-lhes cães e comida. Mas eles estão sujeitos aos Chow Chuen, que vivem no interior e a quem chamam os Homens-Veados. Os Chow Chuen são uma raça feroz e selvagem. Quando deixei a costa, caíram-me em cima, tiraram-me as mercadorias e fizeram-me escravo. - Passou algumas páginas. - Consegui obter um lugar entre os homens principais, mas não fiquei mais perto da liberdade. A minha sabedoria tinha demasiado valor para eles, para me deixarem partir... O velho Pi-Une era um grande chefe, e foi decretado que eu casasse com sua filha Ilswunga. Ilswunga era uma criatura nojenta. Não queria tomar banho e tinha péssimas maneiras... Casei com Ilswunga, mas foi minha mulher só de nome. Então ela queixou-se ao pai, o velho Pi-Une, e ele ficou irado. E a dis­sensão foi semeada entre as tribos; mas no fim saí mais poderoso do que nunca, devido à minha astúcia e expediente; e Ilswunga não tornou a queixar-se, porque eu ensinei-lhe jogos de cartas, que ela podia jogar sozinha, e outras coisas.»

- Chega? - perguntou Courbertin.

- Chega, sim - respondeu Brown. - Mas um momento. Faça o favor de declarar outra vez a data da publicação.

- 1807, em Varsóvia.

- Espere aí, barão - disse Del Bishop. - já que está aí, tenho uma pergunta ou duas para lhe fazer. - Voltou-se para o tribunal. - Senhores, todos ouvistes alguma coisa sobre as peripécias do prisioneiro na Sibéria. Reparastes na semelhança notável entre elas e essas publicadas pelo padre Yakontsk, quase há um século. E concluístes que aqui há um plágio chapado. Proponho-me demonstrar­-vos que é mais do que plágio. O prisioneiro pregou­-me a partida no rio Reindeer em 88. No Outono de 88, está ele em St. Michael, a caminho da Sibéria. Em 89 e 90, segundo ele diz, andava a fazer as suas proezas pela Sibéria. Em 91 regressou ao mundo civilizado, dando-se ares de herói-conquistador em Frisco. Ora vejamos se o francês nos poderá escla­recer. Esteve no Japão? - perguntou.

Courbertin, que seguira as datas, fizera um cálculo rápido e mal conseguia esconder a sua surpresa. Olhou suplicante para Frona, mas esta não o ajudou.

- Sim - respondeu por fim.

- E conheceu lá o prisioneiro?

- Conheci.

- Em que ano foi isso?

Todos estenderam o pescoço para diante para melhor escutarem a resposta.

- 1889 - foi a resposta contra vontade.

- Mas como pode isso ser, barão? - perguntou Del em tom adulador. - O prisioneiro estava nessa altura na Sibéria.

Courbertin encolheu os ombros, significando que isso não lhe dizia respeito, e deixou o estrado.

O Tribunal fez um intervalo improvisado, durante alguns minutos, no qual foram trocados muitos cochichos e abanos de cabeça.

- É tudo mentira - segredou St. Vincent junto da orelha de Frona. Mas ela não o ouviu. - As apa­rências são contra mim, mas eu posso explicar tudo.

Frona não mexeu um músculo, e Gregory foi chamado a depor, pelo presidente. Frona voltou-se para o pai, e as lágrimas subiram-lhe aos olhos, quando o pai pousou a mão na dela.

- Queres continuar? - perguntou depois de uma hesitação momentânea.

Ela acenou com a cabeça, e St. Vincent começou a falar. Era a mesma história que lhe contara a ela, embora contada agora com mais pormenores, e em nenhum ponto contradizia as declarações de La Flitch e de John. Reconheceu o incidente da tina, causado, explicou, por um acto de simples cortesia da sua parte e pela cólera insensata de Borg. Reconhe­ceu que Bella fora morta com a sua própria pistola mas afirmou que a emprestara a Borg, alguns dias antes, e que este lha não devolvera. Com respeito à acusação de Bella, não podia dizer nada. Não com­preendia porque teria ela mentido ao morrer. Não incorrera jamais, por forma alguma, no desagrado dela, de modo que nem o espírito de vingança podia ser aventado. Era inexplicável. Quanto às declara­ções de Bishop, não se dignava discuti-las. Era uma teia de falsidades astuciosamente misturadas com verdades. Era certo que o homem tinha ido com ele para o Alasca, em 1888, mas a sua versão de como as coisas se tinham passado era maliciosamente falsa. Quanto ao barão, havia um ligeiro erro de datas, mais nada.

Ao interrogá-lo, Bill Brown conseguira uma surpresazinha. Segundo a história do prisioneiro, ele travara uma luta rija contra dois homens misteriosos.

- Se - perguntou Brown - isso fosse verdade, como explica o facto que tenha saído da luta sem marcas? No exame do corpo de Borg notaram-se muitos arranhões e contusões. Como é que, se travou uma luta tão dura, escapou sem ficar ferido.

St. Vincent não sabia, embora confessasse sen­tir-se magoado e dorido em todo o corpo. Mas isso também não interessava. Não tinha matado nem Borg nem a mulher; isso podia ele garantir.

Frona antecedeu a sua defesa de uma disser­tação piedosa sobre a inviolabilidade da vida humana, a fraqueza e os perigos das provas circunstanciais e os direitos do acusado, sempre que sur­gisse qualquer dúvida. Em seguida atirou-se às provas, cortando o supérfluo e esforçando-se por se confinar aos factos. Em primeiro lugar, negou que se tivesse provado o motivo para o acto. A introdução de provas como as que haviam apresentado era um insulto à inteligência deles, e ela confiava suficientemente na sua maturidade e perspicácia, para saber que semelhantes puerilidades não os fariam vacilar no veredicto que iriam pronunciar.

Por outro lado, ao tratar das circunstâncias em questão, negou que tivesse ficado demonstrado existir qualquer intimidade entre Bella e St. Vin­cent. Analisado honestamente, o incidente da tina - a única prova apresentada - era um caso insigni­ficante e divertido, exemplificando como a simples cortesia de um cavalheiro podia ser mal interpretada por um marido grosseiro e louco. Ela deixava-lhes isso ao bom-senso; não eram parvos nenhuns.

Tinham tentado provar que o prisioneiro tinha um génio irascível. A respeito de John Borg não tinha necessidade de provar nada desse género. Todos conheciam os seus terríveis acessos de ira; todos sabiam que o seu génio era proverbial na comunidade; que isso o impedira de ter amigos e lhe granjeara muitos inimigos. Não seria, por con­seguinte, muito provável que os homens mascarados fossem dois desses inimigos? As razões particulares destes dois homens, ignorava-as; mas competia a eles, juízes, apurar se em todo o Alasca existiriam ou não dois homens a quem John Borg tivesse podido dar razões para o matarem.

A testemunha tinha declarado que não haviam sido encontrados quaisquer vestígios destes dois homens, mas a testemunha não declarara que não tinham sido encontrado vestígios de St. Vincent, Pierre La Flitche ou John, o Sueco. E nem era pre­ciso declará-lo. Toda a gente sabia que nenhumas pegadas ficaram marcadas, quando St. Vincente subiu o carreiro e quando voltou com La Flitche e o outro homem. Toda a gente sabia o estado do carreiro, que era um sulco muito batido no chão, sobre o qual uma mocassina leve não podia deixar marca alguma; e que, se o gelo não tivesse descido pelo rio, nenhuns vestígios teriam sido deixados pelos criminosos, ao atravessarem para o continente.

A esta conjectura, La Flitche aprovou com a cabeça, e ela prosseguiu.

Tinham dado a máxima importância ao sangue das mãos de St. Vincent. Se quisessem examinar as mocassinas que nesse momento trazia o Sr. La Flitche, também lá encontrariam sangue. O que não significava que o Sr. La Flitche tivesse colaborado no derramamento de sangue.

O Sr. Brown tinha chamado a atenção para o facto de o prisioneiro não ter ficado ferido nem magoado, na luta selvagem que se tinha travado. Agradecia-lhe que o tivesse feito. O corpo de John Borg revelava que tinha sido muito mal tratado. E ele era um homem maior, mais forte, mais pesado do que St. Vincent. Se, conforme pretendiam, St. Vincent tivesse cometido o crime e, por conse­guinte, se tivesse necessariamente envolvido numa luta suficientemente dura para ferir John Borg, como poderia ele ter saído ileso? Era um aspecto digno de ser pensado.

E porque teria ele descido o carreiro, a correr? Era inconcebível, se tivesse ele cometido o crime, que, sem se vestir nem fazer quaisquer preparativos para fugir, corresse em direcção às outras cabanas. Pelo contrário, era facilmente concebível que fosse na perseguição dos verdadeiros criminosos e, na escuridão, exausto, sem fôlego e certamente um tanto agitado, corresse às cegas pelo carreiro abaixo.

O resumo feito pela jovem era um bom trabalho de síntese. Quando terminou, a assembleia aplau­diu-a unanimemente. Todavia Frona ficou zangada e magoada, porque sabia que os aplausos eram diri­gidos à mulher e não à causa nem ao trabalho que fizera.

Bill Brown, advogado de fama um tanto duvidosa, ouvido sempre alerta, não deixava de tirar partido quando a oportunidade se oferecia e quando se

não oferecia para dogmatizar habilmente. Nisso o seu humor inato era um factor de peso. Assim, quando terminou, os misteriosos homens mascarados eram mitos demolidos - expressão que ele pronta­mente lhes aplicou.

Não podiam ter saído da ilha. O estado do gelo, nas três ou quatro horas anteriores ao degelo, não o teria permitido. O prisioneiro não acusara nenhum dos habitantes da ilha, ao passo que cada um deles, com excepção do prisioneiro, havia estado noutro lado qualquer. Talvez o prisioneiro estivesse agitado quando desceu o carreiro e fosse cair nos braços de La Flitche e John, o Sueco. Pensar-se-ia, contudo, que já devia estar habituado àquelas coisas na Sibéria. Mas isso era imaterial; o facto é que ele se encontrava sem dúvida num estado de agitação anor­mal, que estava histericamente agitado, e que um assassino nessas circunstâncias não se daria conta de para onde corria. Isso já tinha acontecido mais vezes. Mais do que um fora ao encontro do seu castigo.

Na questão das relações de Borg, Bella e St. Vin­cent, fez um apelo veemente aos preconceitos instin­tivos dos ouvintes e abandonou momentaneamente o raciocínio vulgar pelos lugares-comuns sentimentais irrefutáveis. Concordou que as provas circunstanciais não haviam provado absolutamente nada. Nem era preciso que provassem. Bastava a sombra de uma dúvida razoável. Para provar que tal dúvida fora levantada, passou a rever as declarações do réu.

- Finalmente, não podemos passar por cima das últimas palavras de Bella. Nada sabemos por conhecimento directo. Temos andado a tactear no escuro, agarrando pequenas coisas e tentando reconstruir tudo. Mas, senhores - fez uma pausa para estudar os rostos dos ouvintes - Bella sabia a verdade. É uma prova não circunstancial. De um fôlego só, na agonia, a vida a esvair-se-lhe e os olhos a vidrarem-se-lhe, ela disse a verdade. Com a noite escura a aproximar-se e o estertor da morte na gar­ganta, ela ergueu-se dèbilmente e apontou com um dedo trémulo para o acusado, assim, e disse: «Ele, ele St. Vincent, foi ele».

Com o dedo de Bill Brown ainda espetado para ele, St. Vincent pôs-se de pé com dificuldade. O seu rosto parecia velho e cinzento, e olhou em volta sem dizer nada. «Cobarde! Cobarde!» - murmurou-se por todo o lado, e não tão baixinho que ele não ouvisse. O jornalista humedeceu os lábios repetidas vezes. A língua esforçava-se por articular as palavras.

- É como já disse - conseguiu por fim dizer. - Não fui eu. Diante de Deus afirmo que não fui eu! - Olhou fixamente para John, o Sueco, repetindo dolentemente: - Não... fui eu!... Não... fui eu!... Não... não fui!

Parecia ter-se perdido numa meditação profunda, da qual John, o Sueco, seria uma das figuras cen­trais. Quando Frona lhe agarrou a mão e o puxou docemente para baixo, alguém gritou: «Votação secreta».

Mas Bill Brown pôs-se imediatamente de pé.

- Não! Isso não! Votação pública! Somos homens e como homens não temos medo de dar a nossa opinião.

Um coro de aprovação o saudou. Iniciou-se, então, a votação pública. Homem após homem, cha­mados pelos seus nomes, pronunciaram a palavra «Culpado».

O barão de Courbertin aproximou-se e segredou qualquer coisa a Frona. Esta abanou a cabeça e sorriu, e ele voltou para o seu lugar, tomando posição perto da porta. Votou «Inocente», quando chegou a sua vez, tal como Frona e Jacob Welse. Pierre La Flitche hesitou um momento, olhando atenta­mente para Frona e St. Vincent. Em seguida disse alto, em voz clara e suave: «Culpado».

Quando o presidente se ergueu, Jacob Welse foi postar-se com naturalidade do outro lado da mesa, com as costas para o fogão. Courbertin, que não per­dera nada, arrastou um barril pequeno de conservas de junto da parede e subiu para cima dele.

O presidente pigarreou e bateu, a impor silêncio.

- Senhores - anunciou - o prisioneiro...

- Mãos ao ar! - ordenou Jacob Welse peremptoriamente.

Uma fracção de segundos depois ouviu-se o grito de Courbertin

- Mãos ao ar, cavalheiros!

Pela frente e por trás dominavam a multidão com os revólveres. Todas as mãos estavam no ar, a do presidente segurava ainda o malho. Não houve distúrbios. Cada um estava sentado ou de pé, na mesma posição de quando a ordem foi dada. Os olhos, saltando de uma para outra das figuras cen­trais, retornavam sempre a Jacob Welse.

St. Vincent permanecia sentado, como que aturdido. Frona meteu-lhe um revólver nas mãos, mas os dedos recusaram-se a segurá-lo.

- Vá, Gregory - implorou ela. - Depressa! O Corliss está à espera com a canoa. Anda!

Sacudiu-o, e ele conseguiu segurar a arma. Então ela puxou-o e empurrou-o, como se estivesse a acor­dar alguém que dormisse profundamente, até ele se pôr de pé. Mas tinha o rosto lívido, os olhos como os de um sonâmbulo, e parecia tolhido. Continuando a ampará-lo, deu um passo atrás, para que avan­çasse. Tentou-o, com os joelhos a tremer. Não se ouvia som algum, a não ser a respiração peada dos homens. Alguém tossiu ligeiramente e pigarreou. Foi irritante, e todos os olhares convergiram para esse alguém, censuradores. O homem ficou embara­çado e pouco à vontade, mudou o peso do corpo para a outra perna. Tornou a ouvir-se então a respiração pesada.

St. Vincent deu outro passo, mas os dedos rela­xaram-se-lhe e o revólver caiu ruidosamente no chão. Não fez esforço algum para o recuperar. Frona abaixou-se apressadamente, mas Pierre La Flitche tinha-lhe posto o pé em cima. Ela olhou para cima e viu-lhe as mãos levantadas sobre a cabeça, e os olhos fixos distraidamente em Jacob Welse. Empurrou-lhe a perna e os músculos eram ten­sos e rijos, desmentindo-lhe a indiferença do rosto. St. Vincent olhou para baixo, desanimado, como se não pudesse compreender.

Mas esta demora chamou a atenção de Jacob Welse, o qual, ao tentar descobrir-lhe a causa, pro­porcionou ao presidente a sua oportunidade. Sem se dobrar, o seu braço direito fez um movimento rápido, e o pesado malho saltou-lhe da mão. Venceu a pequena distância e atingiu Jacob Welse abaixo da orelha. O revólver soltou-se, quando ele caiu, e John, o Sueco, grunhiu e bateu com a mão na coxa. Simultaneamente com isto, o barão foi derrubado. Del Bishop, sempre com as mãos levantadas acima da cabeça e os olhos fitos inocentemente à sua frente, tinha simplesmente dado um pontapé ao barrilzito por debaixo do francês e derrubado este. O tiro que disparou, no entanto, atravessou inofensivamente o tecto. La Flitche agarrou Frona nos braços. St. Vincent, despertando de súbito, saltou para a porta, mas tropeçou no pé ligeiro do mestiço.

O presidente bateu na mesa com o punho e con­cluiu a frase interrompida:

- Senhores, o prisioneiro é considerado culpado da acusação.


Capitulo XXIX

Frona correu logo para o lado do pai, mas este já estava a recobrar os sentidos. Courbertin foi arras­tado para a frente com o rosto arranhado, um pulso torcido, e a língua indisciplinada. Para evitar discus­sões e poupar tempo, Bill Brown tomou a palavra.

- Sr. Presidente, embora condenando a tenta­tiva de Jacob Welse, Frona Welse e do barão Cour­bertin para salvar o prisioneiro e contrariar a justiça, não podemos, nas circunstâncias presentes, deixar de simpatizar com eles. Não há necessidade de acres­centar mais nada sobre este assunto. Todos vós sabeis, sem sombra de dúvidas, que, numa situação semelhante, teríeis feito o mesmo. E assim, para podermos terminar prontamente este assunto, proponho que desarmemos os três prisioneiros e os deixe­mos ir em paz.

A proposta foi aceita, e os dois homens foram apalpados para ver se traziam armas. A Frona pou­param-lhe isto, por ela ter dado a palavra de que já não estava armada. O comício transformou-se então numa comissão executiva e começou a sair da cabana em fila.

- Lamento ter tido de o fazer - disse o presi­dente, meio apologético, meio acintosamente.

Jacob Welse sorriu.

- Aproveitou a sua oportunidade e não o posso censurar. Foi pena não o ter apanhado eu a si.

Vozes excitadas se levantaram no outro lado da cabana.

- Vá, agora! Pisa-lhe os dedos, Tim! Solta-o! Ai! Ai! Fá-lo abrir a boca!

Frona viu um magote de homens a lutar em volta de St. Vincent e correu para lá. Este tinha-se deitado ao chão e, com unhas e dentes, lutava como um possesso. Tim Dugan, um celta robusto, aproximara-se muito dele, e os dentes de St. Vincent estavam enter­rados nos braços do homem.

- Dá cabo dele, Tim! Dá cabo dele!

- Como é que eu posso, idiota? Mete-lhe uma alavanca na boca, sim?

- Um momento, por favor.

Os homens abriram caminho para Frona re­cuando e afastando-se de St. Vincent e de Tim.

Frona ajoelhou ao lado de St. Vincent.

- Larga, Gregory, Larga!

Ele levantou os olhos para ela, uns olhos que não pareciam humanos. Respirava estertorosamente, e a sua garganta produzia aqueles ruidozinhos esqui­sitos e ofegantes de alguém exausto.

- Sou eu, Gregory. - Passou-lhe a mão doce­mente pela testa. - Não compreendes? Sou eu, a Frona. Larga!

O corpo do homem descontraiu-se lentamente, e uma expressão de paz foi-se-lhe espalhando pelo rosto. A maxila abriu-se, e o braço foi retirado.

- Agora escuta, Gregory. Embora vás morrer...

- Mas não posso! - gemeu ele. - Tu disseste que podia confiar em ti, que tudo havia de acabar bem.

Ela pensou na oportunidade que lhe tinha sido dada, mas não disse nada.

- Oh Frona! Frona! - soluçou, escondendo o rosto no regaço da rapariga.

- Pelo menos podes ser um homem. É tudo quanto te resta.

- Vamos! - ordenou Tim Dugan. - Desculpe incomodá-la, menina, mas temos de o levar. Arras­ta-o, pá! Pega-lhe pelas pernas, Blackey, e tu também, Johnson.

O corpo de St. Vincent inteiriçou-se a estas pala­vras, o brilho de lucidez desapareceu dos seus olhos, e os dedos fecharam-se-lhe espasmodicamente em torno dos de Frona. A rapariga olhou suplicante para os homens, que hesitaram.

- Concedam-me um minuto com ele – rogou - só um minuto.

- Ele não vale isso - disse Dugan, desdenhoso, depois de se terem afastado. - Olhem para o tipo.

- É uma vergonha - corroborou Blackey olhando de soslaio para Frona, que segredava ao ouvido de St. Vincent, enquanto lhe passava a mão carinhosamente pelos cabelos.

O que ela disse, não o ouviram, mas conseguiu fazê-lo pôr-se de pé e ajudou-o a avançar. Ele cami­nhava como um morto e, quando saiu para o ar livre, contemplou surpreso a extensão lamacenta do Yukon. A turba juntara-se perto da margem, em volta de um pinheiro. Um rapaz, ocupado em passar uma corda em volta de um dos ramos, terminou o seu trabalho e escorregou pelo tronco até ao chão. Olhou vivamente para a palma das mãos e soprou­-lhes; e ouviu-se uma gargalhada geral. Perto, dois cães-lobos eriçavam o pelo um ao outro e mostravam as presas. Os homens atiçavam-nos. Atiraram-se um ao outro e rolaram pelo chão, mas foram separados a pontapé, para dar passagem a St. Vincent.

Corliss subiu a margem e veio ter com Frona.

- O que é que aconteceu? - segredou. - Já foi?

A jovem tentou falar, mas engoliu em seco e abanou a cabeça.

- Por aqui, Gregory. - Pegou-lhe no braço e guiou-o para o caixote, por debaixo da corda.

Corliss, andando ao lado deles, observou a mul­tidão especulativamente, e apalpou o bolso do casaco.

- Posso fazer alguma coisa? - perguntou, mor­dendo o lábio inferior impacientemente. - O que a Frona disser, faz-se. Posso fazê-los retroceder.

Ela olhou para ele, consciente do prazer que sentia só de o ver. Sabia que seria capaz de o fazer, mas sabia também que seria injusto. St. Vin­cent tivera a sua oportunidade, e não era justo que se fizessem mais sacrifícios.

- Não, Vance. É tarde de mais. Nada se pode fazer.

- Pelo menos deixe-me tentar - insistiu.

- Não, não é culpa sua que o nosso plano tenha falhado e... e... - Os olhos rasaram-se-lhe de água. - Por favor, não mo peça.

- Então deixe-me levá-la daqui para fora. Não pode ficar aqui.

- Tenho de ficar. - respondeu simplesmente. E voltou-se para St. Vincent, que parecia sonhar.

Blackey estava a fazer o nó do carrasco na extre­midade da corda, preparatório para passar o nó corrediço pela cabeça de St. Vincent.

- Beija-me, Gregory - disse ela, a mão pousada no braço dele.

St. Vincent estremeceu ao contacto e viu todos os olhares ávidos, fixos nele, e o nó corrediço amarelo, já dado, nas mãos do carrasco. Levantou os braços, como que para o repelir, e gritou alto: - Não! Não! Deixem-me confessar! Deixem-me confessar! Deixem-me contar a verdade, que depois acreditar-me-ão!

Bill Brown e o presidente empurraram Blackey para trás, e a turba juntou-se. Gritos e protestos se ergueram do meio dela.

-Não! Não! Isso não! - fez-se ouvir a voz aguda de um rapaz. - Não me vou embora. Fui eu que subi à árvore e atei a corda, e tenho o direito de ficar.

- És um garoto - respondeu uma voz de homem - e isto não é bom para ti.

- Não me importa, não sou garoto nenhum. Eu... eu estou habituado a estas coisas. E, além disso, fui eu que subi à árvore. Olhe para as minhas mãos.

- Claro que pode ficar - intrometeram-se outras vozes na discussão. - Deixa-o em paz, Curley.

- Não és tu quem manda.

Uma gargalhada acolheu isto, e a discussão acalmou.

- Silêncio! - gritou o presidente; e, em seguida, para St. Vincent: - Conte lá e não leve o dia todo.

- Também queremos ouvir! - protestou a turba. - Ponham-no em cima do caixote! Ponham­-no em cima do caixote!

Ajudaram St. Vincent a subir, e ele começou com volubilidade ansiosa.

- Não fui eu, mas vi quem foi. Não eram dois homens... foi só um. Foi ele quem matou, e Bella ajudou-o.

Uma onda de riso abafou-lhe a voz.

- Não vá tão depressa - avisou-o Bill Brown. - Explique, por favor, como é que Bella ajudou esse homem a matá-la a ela própria. Comece pelo princípio.

- Naquela noite, antes de se deitar, o Borg preparou o alarme contra ladrões...

- Alarme contra ladrões?

- Era assim que eu lhe chamava... um prato de lata para pão, atado ao fecho, de modo que a porta se não podia abrir sem o fazer cair. Punha-o todas as noites, como se receasse o que pudesse acontecer... isso mesmo que aconteceu, afinal de contas. Na noite do crime acordei com a sensação de que alguém se mexia. O lampião estava aceso baixinho, e vi a Bella à porta. O Borg ressonava; ouvia-o perfeitamente. Bella estava a tirar o prato do pão com mil cuidados. Em seguida, abriu a porta, e um índio entrou sem fazer ruído. Não trazia más­cara nenhuma, e reconhecê-lo-ia, se o tornasse a ver, porque tinha uma cicatriz que lhe atravessava a testa e descia por cima de um dos olhos.

- Suponho que saltou da cama e deu o alarme...

- Não, não saltei - respondeu St. Vincent com uma sacudidela arrogante de cabeça, como se quisesse dizer logo o pior. - Fiquei quieto à espera.

- O que é que pensou?

- Que a Bella estava feita com o índio, e que Borg ia ser assassinado. Ocorreu-me isto imediata­mente.

- E não fez nada?

- Nada! - A voz sucumbiu. Baixou os olhos para Frona, encostada ao caixote, por baixo dele, a segurá-lo. Ela não pareceu ficar impressionada. - A Bella aproximou-se de mim, mas eu fechei os olhos e respirei normalmente. Levantou o lampião acima de mim, mas eu fingi que estava a dormir, com naturalidade suficiente para a enganar. Depois ouvi um ronco como de alguém que acordasse de repente alarmado, e um grito, e olhei. O índio estava a esfaquear o Borg, e o Borg defendia-se com os braços e procurava agarrá-lo. Quando se agarraram um ao outro, a Bella rastejou por trás e com o braço rodeou o pescoço do marido apertando-lho. Pôs o joelho nas costas e puxou-o para trás e, com a ajuda do índio, deitou-o ao chão.

- E você o que fez?

- Observava.

- Tinha um revólver?

- Tinha.

- Aquele que anteriormente disse que o Borg lhe pedira emprestado?

- Sim! Mas fiquei a observar.

- O John Borg gritou por socorro?

- Gritou.

- É capaz de dizer o que ele disse?

- Gritou: «St. Vincent! Ó St. Vincent! Oh, meu Deus! Ó St. Vincent, ajude-me!» - Estre­meceu à lembrança e acrescentou: - Foi terrível.

- Eu calculo! - resmungou Brown. - E você?

- Eu observava - foi a resposta obstinada, enquanto um rugido se levantava da multidão. - O Borg conseguiu desenvencilhar-se deles e pôs-se de pé. Atirou a Bella pela cabana fora com uma pancada do braço e atirou-se ao índio. Lutaram então. O índio tinha deixado cair a faca. O som das pancadas do Borg era aflitivo. Pensei que ele matava de certeza o índio à pancada. Foi quando a mobília ficou estilhaçada. Rolavam e rosnavam e lutavam como feras. Admirei-me do peito do índio não rebentar com as pancadas do Borg. Mas a Bella agarrou na faca e esfaqueou o marido, repetidas vezes, pelo corpo. O índio tinha-se agarrado a ele e ele não tinha os braços livres, por isso dava pontapés na mulher. Deve ter-lhe partido as pernas, porque ela gritou e caiu e, embora tentasse, nunca mais conseguiu tornar a pôr-se de pé. Então ele caiu, com o índio por debaixo de si, por cima do fogão.

- Pediu mais alguma vez socorro?

- Suplicou-me que me aproximasse.

- E depois?

- Eu observava. Conseguiu livrar-se do índio e aproximou-se de mim, a cambalear. Sangrava, e via-se que estava muito fraco. «Dê-me a sua pis­tola - disse. - depressa, dê-ma». Apalpou em volta às cegas. Então o espírito pareceu desanuviar-se-lhe um pouco, e estendeu o braço por cima de mim para o coldre, pendurado na parede, e tirou a pistola. O índio veio para ele outra vez com a faca, mas ele não tentou defender-se. Em vez disso, foi direito à Bella, sempre com o índio pendurado, a esfaqueá-lo. O índio parecia estar a maçá-lo e a irritá-lo, e ele empurrou-o. Ajoelhou e voltou o rosto de Bella para cima, para a luz. Mas, a cara dele estava coberta de sangue e não conseguia ver. Por isso parou o tempo suficiente para limpar o sangue dos olhos. Parecia estar a olhar para ter a certeza. Em seguida apontou-lhe o revólver ao peito e disparou.

«O índio pareceu ficar doido e atirou-se a ele com a faca, ao mesmo tempo que lhe arrancava a pistola das mãos. Foi nessa altura que a prateleira com o lampião foi derrubada. Continuaram a lutar às escuras, e foram disparados mais tiros, embora não saiba por quem. Arrastei-me para fora da cama, mas eles chocaram comigo no meio da luta, e eu caí por cima da Bella. Foi quando fiquei com sangue nas mãos. Quando ia a sair a porta, foram dispa­rados mais tiros. Então encontrei o La Flitche e o John; e... e o resto já sabem. O que lhes contei é a verdade, Juro! »

Baixou os olhos para Frona. Ela amparava o caixote e tinha o rosto composto. Olhou para a multidão e viu a descrença. Muitos riam.

- Porque não contou esta história ao princí­pio? - perguntou Bill Brown.

- Porque... porque...

- Então?

- Porque eu podia tê-lo ajudado.

Ouviram-se mais gargalhadas, e Bill Brown afastou-se dele.

- Cavalheiros, ouvistes esta história-da-caro­chinha. É mais fantástica do que a primeira. No princípio do julgamento prometemos demonstrar que não dizia a verdade. Que o conseguimos, é amplo testemunho o vosso veredicto. Mas que ele o conseguisse igualmente, e mais brilhantemente, não o esperávamos. Que o fez, não podeis duvidar. Que pensais dele? Contou-nos mentiras sobre men­tiras. Provou ser um mentiroso crónico; ides acre­ditar nesta última e assustadoramente impossível mentira? Cavalheiros, posso apenas pedir que confir­meis o vosso julgamento. E para aqueles que possam duvidar da sua falsidade (muitos poucos, certa­mente) deixem-me dizer-lhes que, se a história dele for verdadeira; se ele usufruiu da hospitalidade deste homem, John Borg, e se deixou ficar nos cobertores, enquanto o crime era cometido; se ouviu, impávido, a voz do homem a pedir-lhe socorro; se se deixou ficar a observar aquela orgia de sangue, sem que a sua virilidade o impelisse... deixem-me dizer-lhes, cavalheiros, repito, deixem-me dizer-lhes que não é menos merecedor de ser enforcado. Não podemos errar. Que dizeis?

- Morra! Pendurem-no! Enforquem-no! - gri­taram.

Mas a turba voltou de súbito a atenção para o rio, e até mesmo Blackey descurou a sua missão oficial. Uma balsa grande, manobrada por uma vara comprida em cada uma das extremidades, vinha a ultrapassar a ponta da ilha da Separação, pró­ximo da costa. Quando chegou aos pés deles, apontaram-lhe o nariz para a margem, e enquanto a extre­midade livre voltava na corrente para fazer o círculo consequente, foi atirada uma corda achatada para a margem e deram-lhe várias voltas em redor da árvore, debaixo da qual estava St. Vincent. Uma carga de carne de alce, crua e sangrenta, cortada em quatro partes, espreitava por debaixo de uma fresca cobertura de galhos de abeto. Por causa dela, os dois homens da embarcação levantavam os olhos para os que estavam na margem com o orgulho espe­lhado neles.

- Vamos para Dawson com ela - explicou um deles - e o sol queima.

- Ná - disse o companheiro, em resposta a uma pergunta, - não nos interessa parar para vender. Lá vale dólar e meio a libra, e estamos com pressa de lá chegar. Mas temos aqui um homem todo estro­piado, que queremos deixar-lhes. - Voltou-se e apon­tou para um volume amplo de cobertores que deixa­vam vagamente adivinhar a forma de um homem, por debaixo. - Encontrámo-lo esta manhã a umas trinta milhas para cima do Stewart, calculo eu.

- Precisa de um médico - disse o outro homem, - e a carne está a estragar-se, e nós não temos tempo para nada. É um mendigo, que não tem nada para contar. Não fala inglês. Parece que andou às bulhas com um urso ou coisa no género... está todo partido e escavacado, deve ter lesões inter­nas. Onde é que o querem?

Frona, ao lado de St. Vincent, viu o homem ferido ser transportado da margem e pelo meio da multidão. Uma mão escura pendia, e um rosto bronzeado aparecia no meio dos cobertores. Os homens que o transportavam pararam próximo, enquanto se deci­dia para onde o deveriam levar. Frona sentiu um aperto repentino no braço.

- Olha! Olha! - St. Vincent estava inclinado para a frente e apontava, excitado, para o homem ferido. - Olha! Aquela cicatriz.

O índio abriu os olhos, e um esgar de reconhe­cimento contorceu-lhe as feições.

- É ele! É ele! - St. Vincent, tremendo de impaciência voltou-se para a turba. - Venham todos ser testemunhas! Aquele é o homem que matou o John Borg!

Ninguém se riu, porque havia uma seriedade terrível nos modos dele. Bill Brown e o presidente tentaram fazer o índio falar, mas não conseguiram. Um mineiro da Colúmbia Britânica foi chamado a ajudar, mas o seu dialecto chinook não produziu reacção nenhuma. Então chamaram La Flitche. O bonito mestiço curvou-se para o homem e falou­-lhe em sons guturais, que só a hereditariedade de sua mãe tornava possíveis. Parecia tudo a mesma, no entanto, percebia-se que ele experimentava várias línguas. Mas não obteve resposta nenhuma e calou-se, desanimado. Como se de súbito se tivesse lembrado, fez outra tentativa. Imediatamente uma expressão de entendimento percorreu as feições do índio, e a sua laringe vibrou com sons semelhantes.

- É o dialecto dos sticks da parte superior do rio Branco - interrompeu-se ele, o tempo suficiente para explicar.

Em seguida, de sobrancelhas franzidas e com pausas hesitantes à procura de palavras meio esque­cidas, ele crivou o homem de perguntas. Até ao fim foi como uma pantomina, os sons sem sentido, os gestos dos braços e as expressões faciais de per­plexidade surpresa e compreensão. Por vezes a paixão estampava-se no rosto do índio, e a piedade no de La Flitche. De novo, por meio de olhares e de gestos, foi mencionado St. Vincent, e uma vez um riso sóbrio e sem alegria desenhou-se nos lábios de ambos.

- Então? É certo - disse La Flitche, quando a cabeça do índio tornou a tombar para trás. - Este homem falar verdade. Ele vir do rio Branco. Ele não compreender. Ele muito admirado, tantos homens brancos. Ele nunca pensar haver tantos homens brancos no mundo. Ele morrer breve. Ele chamar-se Gow.

«Há muito tempo, há três anos, esse homem John Borg ir à região deste homem Gow. Ele caçar, ele trazer muita carne para campamento, por isso índios Sticks do Rio Branco gostar dele. Gow ter uma mulher, Pisk-ku. Passado tempo, John Borg preparar-se para partir. Ir ter com Gow, e ele dizer­-lhe: «Dá-me a tua mulher. Nós fazer negócio. Eu dar a ti muitas coisas por ela.». Mas Gow dizer não. Pisk-ku boa mulher. Nenhuma mulher coser mocassinas como ela. Ela curtir a pele do alce melhor que todas, e fazer a melhor pele. Ele gostar Pisk-ku. Então John Borg dizer não importar; ele querer Pisk-ku. Então eles travar grande luta skookum e Pisk-ku ir embora com John Borg. Ela não querer ir, mas ela ir. Borg chamar-lhe «Bella» e dar-lhe muitas coisas boas, mas ela gostar sempre de Gow. - La Flitche apontou para cicatriz que atravessava a testa e descia para um dos olhos do índio. - John Borg, ele fazer aquilo.

«Muito tempo Gow quase morrer. Depois ficar bom, mas cabeça ficar doente. Não conhecer nin­guém. Não conhecer o pai, a mãe, ninguém. Como uma criança, mesmo como uma criança. Depois um dia, zás! Qualquer coisa estalar, e cabeça dele ficar boa de repente. Ele conhecer o pai e a mãe, ele lem­brar Pisk-ku, ele lembrar tudo. Seu pai dizer John Borg descer o rio. Então Gow descer o rio. Ser Prima­vera, gelo muito mau. Ele ter muito medo tanto homem branco e, quando chegar a esta região, viajar de noite. Ninguém ver, mas ele ver toda a gente. Ele ser como o gato, ver na escuridão. Sem saber, ir ter direito à cabana de John Borg. Ele não saber como fazer, só saber que o que ter de fazer ser bom trabalho.»

St. Vincent apertou a mão de Frona, mas a jovem desprendeu os dedos e recuou um passo.

- Ele ver Pisk-ku dar de comer os cães, e ele falar com ela. Nessa noite ele ir, e ela abrir a porta. Depois vocês saber o que aconteceu. St. Vincent não fazer nada. Borg matar Bella. Gow matar Borg. Borg matar Gow, porque Gow ir morrer depressa. Borg ter braço forte. Gow doente por dentro, todo partido. Gow não ter pena; Pisk-ku estar morta.

«Depois daquilo, ele atravessar gelo para terra. Eu dizer a ele que todos vocês dizer ser impossível ninguém conseguir atravessar o gelo naquela altura. Ele rir e dizer que é, que tem de ser. Mas ele ter muita dificuldade, mas ter atravessado. Ele muito doente por dentro. Pouco depois não poder andar mais; ele rastejar. Levar muito tempo chegar rio Stewart. Ele não poder avançar mais, por isso deitar­-se no chão para morrer. Dois homens brancos encontrar ele e trazer ele para aqui. Ele não se importar. Ele ir morrer.»

La Flitche calou-se abruptamente, mas ninguém falou. Em seguida acrescentou

- Eu penso que Gow é um bom homem.

Frona aproximou-se de Jacob Welse.

- Leva-me daqui, pai. Estou tão cansada.


Capitulo XXX

Na manhã seguinte, Jacob Welse, apesar da Companhia e dos seus milhões em minas, rachou a provisão de lenha para o dia, acendeu um charuto e desceu a ilha à procura do barão Courbertin. Frona acabou de lavar a louça do pequeno-almoço, pendu­rou a roupa a arejar e deu de comer aos cães. Em seguida tirou da mala um Wordsworth muito manuseado e saiu para a margem, onde se instalou confortavelmente num assento formado por dois pinheiros caídos. Mas limitou-se apenas a abrir o livro, porque os seus olhos vaguearam pelo Yukon até ao redemoinho, por baixo da costa escarpada, à curva mais cima, e à ponta da língua de areia no meio do rio. O salvamento e a corrida ainda lhe estavam frescos na memória, embora houvesse estranhos lapsos, aqui e ali, de que ela pouco se lembrava.

A luta junto da fenda fora incomensurável; não sabia quanto durara; e a corrida pela ilha da Sepa­ração abaixo até à ilha Roubeau era algo de que a sua razão a convencia, mas de que se não recor­dava nada.

O devaneio tomou-a, e ela seguiu Corliss pelos acontecimentos dos três dias, mas tacitamente evitou a figura de outro homem que ela não queria nomear. Algo de horrível estava relacionado com ele, sabia-o, que tinha de ser enfrentado, mais tarde ou mais cedo; mas preferia afastar de si esse momento. Sentia-se endurecida e dorida de espírito, tal como de corpo, e a vontade e a acção eram-lhe, de mo­mento, odiosas. Era mais agradável, até, pensar em Tommy de língua mordaz e coração covarde; e tomou nota, para que a mulher e os filhos em Toronto não fossem esquecidos, quando o Norte pagasse os seus dividendos aos Welses.

O estalar de um galho de salgueiro seco, debaixo de uns pés, fê-la despertar, e deu com os olhos em St. Vincent.

- Não me felicitaste pela minha libertação - começou ele jovialmente. - Mas devias estar morta de cansaço, a noite passada. Eu também estava. E tu ainda tinhas feito aquele esforço todo no rio.

Observava-a furtivamente, tentando descobrir qualquer indicação, quanto à atitude dela e a sua disposição.

- És uma heroína, uma verdadeira heroína, Frona - tornou com exuberância. - Não só sal­vaste o correio, como, com o tempo que ganhaste no julgamento, me salvaste a mim também. Se no pri­meiro dia tivesse sido chamada mais uma teste­munha, eu teria sido enforcado devidamente antes de o Gow fazer a sua aparição. Bom tipo, o Gow. É uma pena que vá morrer.

- Estou contente por te ter podido ajudar - res­pondeu ela, sem saber que mais dizer.

- E eu mereço felicitações...

- O teu julgamento dificilmente é coisa para que  te possam dar felicitações - replicou com viva­cidade, olhando-o de frente nos olhos, por um ins­tante. - Estou contente por ter terminado como ter­minou, mas com certeza que não esperas que eu te vá felicitar.

- Ó ... ó... ó... - com uma inflexão pro­longada. - Então é aí que dói. - Sorriu bem­-humorado e moveu-se, como se fosse sentar-se, mas ela não lhe deu lugar, e ele ficou de pé. - Posso explicar. Se tem havido mulheres...

Frona tinha estado a torcer as mãos nervosa­mente, mas àquela palavra desatou a rir.

- Mulheres? - perguntou. - Mulheres! - repe­tiu. - Não sejas ridículo, Gregory.

- Pela maneira como te mantiveste a meu lado durante o julgamento - começou reprovadora­mente - pensei...

- Oh, tu não compreendes - respondeu Frona desanimada. - Tu não compreendes. Olha para mim, Gregory, a ver se te faço compreender. A tua presença é-me penosa. Os teus beijos magoam-me. A recordação deles ainda me queima o rosto, e os meus lábios parecem-me sujos. Porquê? Por causa de mulheres, que tu podes explicar? Como percebes pouco! Mas será preciso dizer-to?

Chegaram-lhe aos ouvidos vozes de homens, vindas da margem do rio mais abaixo, e o chapinhar de água. Deitou uma olhadela rápida e viu Del Bishop a manobrar um barco de varas através da corrente, e Corliss na margem, curvado para o cabo de reboque.

- Será preciso dizer-te porquê, Gregory St. Vincent? - repetiu. - Dizer-te porque é que os teus beijos me conspurcaram? Porque tu cometeste uma traição. Porque tu aceitaste a hospitalidade de um homem e depois viste esse homem travar uma luta de morte, desigual, sem levantares um dedo. Preferia que tivesses morrido a defendê-lo; a recor­dação que guardaria de ti seria boa. Sim, preferia que tu próprio o tivesses matado. Pelo menos demons­traria que tens sangue nas veias.

- E é a isso que chamavas amor? - começou ele desdenhosamente, o diabinho irritante e irrequieto a começar a rabiar. - Um lindo amor, não haja dúvida! Santo Deus, como nós os homens apren­demos!

- Eu julgava que eras uma autoridade nisso - retorquiu. - Então, e as outras mulheres?

- Mas o que tencionas tu fazer? - perguntou ele, sem reparar. - Não sou um homem fácil de atraiçoar. Não me podes abandonar impunemente. Não o tolerarei, aviso-te. Ousaste fazer coisas nesta terra que te sujariam, se fossem conhecidas. Eu tenho ouvidos. Não tenho estado a dormir. Verás que não será brincadeira nenhuma explicar coisas que podes declarar que foram inocentíssimas.

Ela olhou-o com um sorriso cheio de piedade, na sua fria jovialidade, que o aguilhoou.

- Estou por terra, podes fazer troça de mim, ter pena de mim, mas prometo-te que te posso arrastar comigo. Os meus beijos conspurcaram-te, hem? Como te não sentirias então no Acampamento Feliz da Estrada de Dyea?

Como em resposta, Corliss surgiu entre eles com o cabo de reboque.

Frona acenou-lhe uma saudação.

- Vance, o correio trouxe notícias importantes ao pai, tão importantes que tem de se ir embora.

Parte esta tarde com o Barão Courbertin na La Bijou. Quer acompanhar-me a Dawson? Queria ir imedia­tamente, hoje. «Ele... ele propô-lo a si», acrescentou Frona timidamente, indicando St. Vincent.

 

                                                                                            Jack London

 

 

                      

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