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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Cândida Eréndira / Gabriel Garcia Márquez
Cândida Eréndira / Gabriel Garcia Márquez

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da sua Avó Desalmada

 

Um senhor muito velho com umas asas muito grandes

No terceiro dia de chuva tinham matado tantos caranguejos dentro de casa que Pelayo teve de atravessar o seu pátio inundado para atirá‑los ao mar, pois o bebé recém‑nascido tinha passado a noite com febre e pensava‑se que era por causa da pestilência. O mundo estava triste desde terça‑feira. O céu e o mar eram uma única e mesma coisa de cinza e as areias da praia, que em Março resplandeciam como poeira de luz, tinham‑se transformado numa papa de lodo e mariscos podres. A luz era tão fraca ao meio‑dia que, quando Pelayo regressava a casa depois de ter deitado fora os caranguejos, teve dificuldade em ver o que era que se movia e gemia no fundo do pátio. Teve de aproximar‑se muito, para descobrir que era um homem velho, que estava caído de borco no lodaçal e que, apesar dos seus grandes esforços, não podia levantar‑se, porque lho impediam as suas enormes asas.

Assustado por aquela visão aflitiva, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava a pôr compressas ao bebé doente, e levou‑a até ao fundo do pátio. Ambos observaram o corpo caído com um silencioso pasmo. Estava vestido como um trapeiro. Não lhe restavam mais do que uns fiapos descoloridos no crânio pelado e pouquíssimos dentes na boca, e essa lastimosa condição de bisavô ensopado tinha‑o desprovido de qualquer grandeza. As suas asas de abutre velho, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda muito rapidamente se recompuseram do assombro e acabaram por achá‑lo familiar. Então atreveram‑se a falar‑lhe, e ele respondeu‑lhes num dialecto incompreensível, mas com uma boa voz de navegante. Foi por isso que deixaram de preocupar‑se com o inconveniente das asas e chegaram à sensata conclusão de que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro, desfeito pelo temporal. Contudo, chamaram, para que o visse, uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela chegou‑lhe um olhar para tirá‑los do engano.

‑ É um anjo ‑ disse‑lhes. ‑ Com certeza vinha por causa da criança, mas o desgraçado está tão velho que a chuva o fez cair.

No dia seguinte toda a gente sabia que em casa de Pelayo tinham cativo um anjo de carne e osso. Contra o critério da vizinha sábia, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá‑lo à paulada. Pelayo esteve toda a tarde a vigiá‑lo, da cozinha, armado com o seu garrote de aguazil, e, antes de deitar‑se, tirou‑o de rastros do lodaçal e fechou‑o com as galinhas no galinheiro alambrado. À meia‑noite, quando terminou a chuva, Pelayo e Elisenda continuavam a matar caranguejos. Pouco depois o menino acordou, sem febre e com desejos de comer. Então sentiram‑se magnânimos e decidiram pôr o anjo numa balsa com água doce e provisões para três dias e abandoná‑lo à sua sorte no mar alto. Mas, quando foram ao pátio com as primeiras claridades, encontraram toda a vizinhança em frente do galinheiro, divertindo‑se com o anjo, sem a menor devoção e a atirar‑lhe coisas para comer pelos buracos dos alambres, como se não se tratasse de uma criatura sobrenatural, mas sim de um animal de circo.

O padre Gonzaga chegou antes das sete, alarmado pela desproporção da notícia. A essa hora já tinham acorrido curiosos menos frívolos que os do amanhecer e tinham feito toda a espécie de suposições sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado alcaide do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na Terra uma estirpe de homens alados e sábios que se encarregassem do universo. Mas o padre Gonzaga, antes de ser cura, tinha sido lenhador vigoroso. Chegado aos alambres, fez uma rápida revisão do seu catecismo, e, entretanto, pediu que lhe abrissem a porta, para examinar de perto aquele varão de lástima que mais parecia uma enorme galinha decrépita entre as galinhas absortas. Estava deitado num canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de frutas e as sobras de pequenos‑almoços que lhe tinham atirado os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, mal levantou os seus olhos de antiquário e murmurou alguma coisa no seu dialecto quando o padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu os bons‑dias em latim. O pároco teve a primeira suspeita da sua impostura ao verificar que não compreendia a língua de Deus nem sabia cumprimentar os seus ministros. A seguir, observou que, visto de perto, tinha a aparência demasiado humana: tinha um insuportável odor de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada da sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro e, com um breve sermão, preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Recordou‑lhes que o Demónio tinha o mau hábito de servir‑se de artifícios de Carnaval para confundir os incautos. Argumentou que, se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos o podiam ser para reconhecer os anjos. No entanto, prometeu escrever uma carta ao seu bispo, para que este escrevesse outra ao seu primaz e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de maneira que o veredicto final viesse dos tribunais mais altos.

A sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo divulgou‑se com tanta rapidez que ao cabo de poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram de levar a tropa, com baionetas, para espantar o tumulto, que já estava quase a deitar a casa abaixo. Elisenda, com o espinhaço torcido de tanto varrer lixo de feira, teve então a boa ideia de taipar o pátio e receber cinco centavos pela entrada para ver o anjo.

Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou a zumbir várias vezes por cima da multidão, mas ninguém lhe ligou importância, porque as suas asas não eram de anjo, mas de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os doentes mais infelizes do Caribe: uma pobre mulher que desde criança estava a contar os latejos do seu coração e já não tinha números que lhe chegassem, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer as coisas que tinha feito acordado, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra, Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana atulhavam de dinheiro os quartos de dormir, e, todavia, a fila de peregrinos que esperavam vez para entrar chegava até ao outro lado do horizonte.

O anjo era o único que não participava do seu próprio acontecimento. O tempo ia‑se‑lhe em procurar acomodação no seu ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno das lamparinas de azeite e das velas de sacrifício que lhe encostavam aos alambres. Ao princípio insistiram para que comesse cristais de cânfora, que, de acordo com a sabedoria da vizinha sábia, era o alimento específico dos anjos. Mas ele desprezava‑os, como desprezou, sem os provar, os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por ser anjo ou por ser velho que acabou por comer nada mais que papas de beringela. A sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Sobretudo nos primeiros tempos, quando o espiolhavam as galinhas em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas e os aleijados lhe arrancavam penas, para tocar com elas nos seus defeitos, e até os mais piedosos lhe atiravam pedras, tentando conseguir que se levantasse, para vê‑lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram perturbá‑lo foi quando lhe queimaram as costas com um ferro de marcar novilhos, porque havia tantas horas que estava imóvel que pensaram que estava morto. Acordou sobressaltado, disparatando em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e bateu as asas duas vezes, o que provocou um remoinho de estrume de galinheiro e pó lunar e um vendaval de pânico que não parecia deste mundo. Apesar de muitos terem ficado convencidos de que a sua reacção não tinha sido de raiva, mas sim de dor, desde esse dia trataram de não o incomodar, porque a maioria compreendeu que a sua passividade não era a de um herói em gozo de boa reforma, mas a de um cataclismo em repouso.

O padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto lhe chegava um parecer decisivo sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma tinha perdido a noção da urgência. O tempo ia‑se‑lhes a averiguar se o prisioneiro tinha umbigo, se o seu dialecto tinha alguma coisa a ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta dum alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas de parcimónia teriam ido e vindo até ao fim dos séculos se um acontecimento providencial não tivesse posto um fim às tribulações do pároco.

Sucedeu que, por esses dias, entre muitas outras atracções das feiras ambulantes do Caribe, levaram ao povoado o espectáculo triste da mulher que se tinha convertido em aranha por ter desobedecido a seus pais. A entrada para a ver não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas ainda permitiam fazer‑lhe toda a espécie de perguntas sobre a sua absurda condição e examiná‑la pelo direito e pelo avesso, de maneira que ninguém pusesse em dúvida a veracidade do horror. Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. Porém, o mais aflitivo não era a sua aparência de disparate, mas a sincera aflição com que contava os pormenores da sua desgraça; sendo quase uma criança, tinha‑se escapado de casa dos seus pais para ir a um baile, e, quando regressava pelo bosque, depois de ter dançado toda a noite sem autorização, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades e por aquela greta saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. O seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caritativas quisessem deitar‑lhe na boca. Semelhante espectáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível castigo, tinha de derrotar, sem premeditação, o de um anjo despeitoso que mal se dignava olhar para os mortais. Além disso, os raros milagres que se atribuíam ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recuperou a vista mas a quem apareceram três dentes novos, o do paralítico que não pôde andar mas esteve quase a ganhar a lotaria e o do leproso a quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação, que mais pareciam divertimentos de troça, já tinham enfraquecido a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha acabou de a aniquilar.

Foi desta maneira que o padre Gonzaga se curou para sempre das insónias e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos andavam pelos quartos.

Os donos da casa não tiveram nada que lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de dois andares, com balcões e jardins e com muros muito altos, para que não entrassem os caranguejos do Inverno, e com barras de ferro nas janelas, para que não entrassem os anjos. Pelayo instalou, além disso, uma criação de coelhos muito perto da povoação, renunciando para sempre ao seu mau emprego de aguazil, e Elisenda comprou uns sapatos acetinados com saltos altos e muitos vestidos de seda furta‑cor, como os que usavam as senhoras mais categorizadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi a única coisa que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e nele queimaram as lágrimas de mirra, não foi para prestar honras ao anjo, mas para conjurar a pestilência de esterqueira, que andava como um fantasma por toda a parte e estava a tornar velha a casa nova. Ao princípio, quando o menino começou a andar, tiveram cuidado para que não estivesse muito perto do galinheiro. Mas depois foram‑se esquecendo do temor e acostumando‑se à pestilência, e antes que o menino mudasse os dentes tinha‑se habituado a brincar dentro do galinheiro, cujos alambres apodrecidos caíam aos bocados. O anjo não foi menos desabrido para com ele do que para com o resto dos mortais, mas suportava as infâmias mais engenhosas com uma mansuetude de cão sem ilusões. Ambos contraíram a varicela ao mesmo tempo. O médico que tratou o menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo e encontrou‑lhe tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins que não lhe pareceu possível que estivesse vivo. O que mais o assombrou, contudo, foi a lógica das suas asas. Pareciam tão naturais naquele organismo completamente humano que não podia compreender‑se porque não as tinham também os outros homens.

Quando o menino foi à escola, havia muito tempo que o sol e a chuva tinham desmantelado o galinheiro. O anjo andava a arrastar‑se por aqui e por ali, como um moribundo sem dono. Expulsavam‑no a vassouradas de um quarto e um momento depois encontravam‑no na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava, fora de si, que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Mal podia comer, os seus olhos de antiquário tinham‑se‑lhe tornado tão turvos que andava a tropeçar nas vigas que sustentavam o telhado e já não lhe restavam senão os ráquis pelados das últimas penas. Pelayo atirou‑lhe para cima uma manta e fez‑lhe a caridade de o deixar dormir no alpendre, e só então repararam que passava a noite com febres, delirando, em tartamudeios de norueguês velho. Foi essa uma das poucas vezes em que se alarmaram, porque pensavam que ia morrer e nem sequer a vizinha sábia tinha podido dizer‑lhes o que se fazia com os anjos mortos.

No entanto, não só sobreviveu ao seu pior Inverno como até pareceu melhor com os primeiros sóis. Permaneceu imóvel durante muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém o visse, e em princípios de Dezembro começaram a nascer‑lhe nas asas umas penas grandes e duras, penas de passarão velho, que mais pareciam um novo percalço da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tinha todo o cuidado para que ninguém as notasse e para que ninguém ouvisse as canções de navegantes que às vezes cantava sob as estrelas.

Uma manhã, Elisenda estava a cortar rodelas de cebola para o almoço, quando um vento que parecia do alto mar se meteu na cozinha. Então assomou‑se à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas do voo. Eram tão desajeitadas que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve quase a deitar abaixo o alpendre, com aqueles adejos indignos que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de alívio, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando‑se de qualquer maneira com um agourento esvoaçar de abutre senil. Continuou a vê‑lo até ter acabado de cortar a cebola, e continuou a vê‑lo até quando já não era possível que o pudesse ver, porque nesse momento já não era um estorvo na sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.

 

O mar do tempo perdido

Para o fim de Janeiro o mar ia‑se tornando tempestuoso, começava a despejar sobre a povoação um lixo espesso e poucas semanas depois tudo estava contaminado pelo seu humor insuportável. A partir de então o mundo não valia a pena, pelo menos até ao outro Dezembro, e ninguém ficava acordado depois das oito. Mas no ano em que veio o senhor Herbert o mar não se alterou, nem sequer em Fevereiro. Pelo contrário, tornou‑se cada vez mais liso e fosforescente, e nas primeiras noites de Março exalou uma fragrância de rosas.

Tobías sentiu‑a. Tinha o sangue doce para os caranguejos e passava a maior parte da noite a espantá‑los da cama, até que virava a brisa e conseguia dormir. Durante as suas longas insónias tinha aprendido a distinguir qualquer mudança do ar. De maneira que quando sentiu um cheiro de rosas não precisou de abrir a porta para saber que era um cheiro do mar.

Levantou‑se tarde. Clotilde estava a acender o lume no pátio. A brisa era fresca e todas as estrelas estavam nos seus lugares, mas era difícil contá‑las até ao horizonte, por causa das luzes do mar. Depois de tomar café, Tobías sentiu um ressaibo da noite no paladar.

‑ Esta noite ‑ recordou ‑ sucedeu uma coisa muito estranha.

Clotilde, evidentemente, não a tinha sentido. Dormia de uma maneira tão pesada que nem sequer recordava os sonhos.

‑ Era um cheiro de rosas ‑ disse Tobías ‑, e tenho a certeza de que vinha do mar.

‑ Não sei a que cheiram as rosas ‑ disse Clotilde. Talvez fosse verdade. O povoado era árido, com um solo duro, gretado pelo salitre, e só de vez em quando alguém trazia de outro lugar um ramo de flores para o atirar ao mar, no sítio de onde se atiravam os mortos.

‑ É o mesmo cheiro que tinha o afogado de Guacamayal ‑ disse Tobías.

‑ Está bem ‑ sorriu Clotilde ‑, então se era um bom cheiro, podes ter a certeza de que não vinha deste mar.

Era, com efeito, um mar cruel. Em certas épocas, enquanto as redes não arrastavam senão lixo em suspensão, as ruas do povoado ficavam cheias de peixes mortos quando se retirava a maré. A dinamite só punha a flutuar os restos de antigos naufrágios.

As raras mulheres que ficavam na aldeia, como Clotilde, viviam cheias de rancor. E, como ela, a esposa do velho Jacob, que naquela manhã se levantou mais cedo que de costume, pôs a casa em ordem e chegou ao pequeno‑almoço com uma expressão de adversidade.

‑ A minha última vontade ‑ disse ao seu esposo ‑ é que me enterrem viva.

Disse‑o como se estivesse no seu leito de agonizante, mas estava sentada na cabeceira da mesa, numa sala de jantar com grandes janelas, por onde entrava a jorros e se metia por toda a casa a claridade de Março. Em frente dela, apascentando a sua fome repousada, estava o velho Jacob, um homem que a estimava tanto e desde há tanto tempo que já não podia conceber nenhum sofrimento que não tivesse origem na sua mulher.

‑ Quero morrer com a certeza de que me porão debaixo da terra, como às pessoas decentes ‑ prosseguiu ela. ‑ E a única maneira de o saber é ir‑me para outro lugar a suplicar a caridade de me enterrarem viva.

‑ Não precisas de suplicá‑lo a ninguém ‑ disse com muita calma o velho Jacob. ‑ Hei‑de levar‑te eu mesmo.

‑ Então vamo‑nos ‑ disse ela ‑, porque vou morrer muito em breve.

O velho Jacob examinou‑a a fundo. Só os seus olhos permaneciam jovens. Os ossos tinham‑se tornado descarnados nas articulações e tinha o mesmo aspecto de terra aplanada que, no fim de contas, sempre tinha tido.

‑ Estás melhor do que nunca ‑ disse‑lhe.

‑ Esta noite ‑ suspirou ela ‑ senti um cheiro de rosas.

‑ Não te preocupes ‑ tranquilizou‑a o velho Jacob. ‑ Essas são coisas que nos sucedem aos pobres.

‑ Nada disso ‑ disse ela. ‑ Sempre rezei para que me seja anunciada a morte com a devida antecipação, para morrer longe deste mar. Um cheiro de rosas nesta povoação não pode ser senão um aviso de Deus.

O velho Jacob não se lembrou de mais nada senão de pedir‑lhe um pouco de tempo para arranjar as coisas. Tinha ouvido dizer que a gente não morre quando deve, mas sim quando quer, e estava seriamente preocupado com a premonição da sua mulher. Até se interrogou para saber se, chegado o momento, teria coragem para a enterrar viva.

Às nove abriu o local onde tivera antes uma loja. Pôs na porta duas cadeiras e uma mesinha com o tabuleiro das damas e esteve toda a manhã a jogar com adversários ocasionais. Do seu lugar via a povoação em ruínas, as casas descalabradas, com vestígios de antigas cores carcomidas pelo sol e um pedaço de mar no fim da rua.

Antes do almoço, como sempre, jogou com dom Máximo Gómez.

O velho Jacob não podia imaginar um adversário mais humano que um homem que tinha sobrevivido intacto a duas guerras civis e só tinha deixado um olho na terceira. Depois de perder propositadamente uma partida, reteve‑o para outra.

‑ Diga‑me uma coisa, dom Máximo ‑ perguntou‑lhe então ‑, o senhor seria capaz de enterrar a sua esposa viva?

‑ Com certeza ‑ disse dom Máximo Gómez. ‑ Você creia‑me que a mão não me tremeria.

O velho Jacob guardou um silêncio assombrado. A seguir, tendo‑se deixado despojar das suas melhores peças, suspirou:

‑ É que, pelo que parece, a Petra vai morrer. Dom Máximo Gómez não se perturbou.

‑ Nesse caso ‑ disse ‑, não tem necessidade de a enterrar viva. ‑ Comeu duas peças e fez uma dama. Depois fixou no seu adversário um olho humedecido por uma água triste. ‑ Que é que ela tem?

‑ Esta noite ‑ explicou o velho Jacob ‑ sentiu um cheiro de rosas.

‑ Então vai morrer meio povoado ‑ disse dom Máximo Gómez. ‑ Esta manhã não se tem ouvido falar de outra coisa.

O velho Jacob teve de fazer um grande esforço para perder de novo, sem o ofender. Guardou a mesa e as cadeiras, fechou a loja e andou por todos os lados em busca de alguém que tivesse sentido o cheiro. Por fim, só Tobías tinha a certeza. De maneira que lhe pediu o favor de passar pela sua casa, como se fosse por acaso, e de contar tudo à sua mulher.

Tobías cumpriu. Às quatro, vestido como para fazer uma visita, apareceu no corredor onde a esposa tinha passado a tarde preparando para o velho Jacob a sua roupa de viúvo.

Fez uma entrada tão sigilosa que a mulher sobressaltou‑se.

‑ Santo Deus ‑ exclamou ‑, pensei que fosse o arcanjo Gabriel.

‑ Pois veja que não ‑ disse Tobías. ‑ Sou eu e venho para lhe contar uma coisa.

Ela ajustou as lunetas e voltou ao trabalho. ‑Já sei o que é ‑ disse.

‑ Aposto que não ‑ disse Tobías.

‑ Que esta noite sentiste um cheiro de rosas.

‑ Como o soube? ‑ perguntou Tobías, desolado.

‑ Na minha idade ‑ disse a mulher ‑ tem‑se tanto tempo para pensar que uma pessoa acaba por tornar‑se adivinha.

O velho Jacob, que tinha a orelha encostada ao tabique do quarto atrás da loja, endireitou‑se, envergonhado.

‑ Que te parece, mulher?! ‑ gritou através do tabique. Deu a volta e apareceu no corredor. ‑ Então não era o que tu pensavas.

‑ São mentiras deste rapaz ‑ disse ela, sem levantar a cabeça. ‑ Não sentiu nada.

‑ Foi por volta das onze ‑ disse Tobías ‑, e eu estava a espantar os caranguejos.

A mulher acabou de remendar um colarinho.

‑ Mentiras ‑ insistiu. ‑ Toda a gente sabe que és um mentiroso. ‑ Cortou o fio com os dentes e olhou para Tobías por cima das lentes. ‑ O que não compreendo é que te tenhas dado ao trabalho de untar o cabelo com vaselina e de engraxar os sapatos unicamente para vires faltar‑me ao respeito.

A partir daí, Tobías começou a vigiar o mar. Pendurava a rede no corredor do pátio e passava a noite esperando, assombrado com as coisas que acontecem no mundo enquanto as pessoas estão a dormir. Durante muitas noites ouviu o arranhar desesperado dos caranguejos tentando marinhar pelas vigas, até que passaram tantas noites que se cansaram de insistir. Conheceu a maneira de dormir de Clotilde. Reparou que os seus roncos de flauta se foram tornando mais agudos à medida que o calor aumentava, até se converterem numa única nota lânguida, no torpor de Julho.

Ao princípio Tobías vigiou o mar como o fazem aqueles que o conhecem bem, com o olhar fixo num único ponto do horizonte. Viu‑o mudar de cor. Viu‑o apagar‑se, tornar‑se espumoso e sujo e lançar os seus arrotos carregados de desperdícios, quando as grandes chuvas agitaram a sua digestão tormentosa. Pouco a pouco, foi aprendendo a vigiá‑lo como o fazem aqueles que o conhecem melhor, sem olhá‑lo sequer, mas sem poder esquecê‑lo nem sequer durante o sono.

Em Agosto morreu a esposa do velho Jacob. Amanheceu morta na cama e tiveram de atirá‑la, como a toda a gente, para um mar sem flores. Tobías continuou à espera. Tinha esperado tanto que aquilo se converteu na sua maneira de ser. Uma noite, enquanto dormitava na rede, deu‑se conta de que alguma coisa tinha mudado no ar. Foi uma lufada intermitente, como nos tempos em que o barco japonês despejou na entrada do porto um carregamento de cebolas podres. Seguidamente, o cheiro consolidou‑se e não tornou a mover‑se até ao amanhecer. Só quando teve a impressão de que podia agarrá‑lo com as mãos para mostrá‑lo, Tobías saltou da rede e entrou no quarto de Clotilde. Sacudiu‑a várias vezes.

‑ Cá está ‑ disse‑lhe.

Clotilde teve de afastar o cheiro com os dedos, como uma teia de aranha, para poder endireitar‑se. A seguir voltou a deixar‑se cair na lona tépida.

‑ Maldito seja ‑ disse.

Tobías deu um salto até à porta, saiu para o meio da rua e começou a gritar. Gritou com todas as suas forças, respirou fundo e tornou a gritar, a seguir fez um silêncio e respirou mais fundo, e o cheiro ainda estava no mar. Mas ninguém respondeu. Então foi batendo de casa em casa, inclusivamente nas casas de ninguém, até que o seu alvoroço se misturou com o dos cães e acordou toda a gente.

Muitos não o sentiram. Mas outros, e especialmente os velhos, desceram para o gozar na praia. Era uma fragrância compacta que não podia comparar‑se a nenhum cheiro do passado. Alguns, esgotados de tanto cheirar, regressaram a casa. A maioria ficou a acabar o sono na praia. Ao amanhecer o cheiro era tão puro que fazia pena respirar.

Tobías dormiu quase todo o dia. Clotilde foi ter com ele durante a sesta e passaram a tarde a divertir‑se na cama sem fechar a porta do pátio. Primeiro fizeram como as lombrigas, depois como os coelhos e por fim como as tartarugas, até que o mundo se pôs triste e voltou a escurecer. Contudo, ficavam vestígios de rosas no ar. Às vezes, chegava até ao quarto uma onda de música.

‑ É no Catarino ‑ disse Clotilde. ‑ Deve ter chegado alguém.

Tinham chegado três homens e uma mulher. Catarino pensou que, mais tarde, podiam vir outros, e tentou consertar a grafonola. Como não o conseguiu, pediu esse favor a Pancho Aparecido, que fazia toda a espécie de coisas porque nunca tinha nada que fazer e, além disso, tinha uma caixa de ferramentas e umas mãos inteligentes.

A taberna do Catarino era uma casa afastada, de madeira, em frente ao mar. Tinha um salão grande com bancos e mesinhas e vários quartos no fundo. Enquanto observavam o trabalho de Pancho Aparecido, os três homens e a mulher bebiam em silêncio, sentados ao balcão, e bocejavam por turnos.

A grafonola funcionou bem depois de muitas experiências. Ao ouvir a música, remota mas definida, as pessoas deixaram de conversar. Olharam umas para as outras e durante um momento não tiveram nada para dizer, porque só então se deram conta de quanto tinham envelhecido desde a última vez em que tinham ouvido música.

Tobías encontrou toda a gente acordada depois das nove. Estavam sentados à porta, escutando os velhos discos do Catarino, na mesma atitude de fatalismo pueril com que se contempla um eclipse. Cada disco recordava‑lhes alguém que tinha morrido, o sabor que tinham os alimentos depois de uma longa doença, ou alguma coisa que deviam fazer no dia seguinte, muitos anos atrás, e que nunca fizeram, por esquecimento.

A música acabou por volta das onze. Muitos deitaram‑se pensando que ia chover, porque havia uma nuvem escura sobre o mar. Mas a nuvem desceu, esteve a flutuar um momento à superfície e acabou por afundar‑se na água. Por cima só ficaram as estrelas. Pouco depois, a brisa da povoação foi até ao centro do mar e trouxe de regresso uma fragrância de rosas.

‑ Eu disse‑lho, Jacob ‑ exclamou dom Máximo Gómez.

‑ Cá o temos outra vez. Tenho a certeza de que agora o sentiremos todas as noites.

‑ Deus nos livre disso ‑ disse o velho Jacob. ‑ Este cheiro é a única coisa na vida que me chegou demasiado tarde.

Tinham jogado às damas na loja vazia, sem prestar atenção aos discos. As suas recordações eram tão antigas que não existiam discos suficientemente velhos para as fazer voltar.

‑ Eu, pela minha parte, não acredito muito em nada disto ‑ disse dom Máximo Gómez. ‑ Depois de tantos anos a comer terra, com tantas mulheres desejando um patiozinho onde semear as suas flores, não admira que uma pessoa acabe por sentir estas coisas, e até por acreditar que são verdadeiras.

‑ Mas estamos a senti‑lo com os nossos próprios narizes

‑ disse o velho Jacob.

‑ Não quer dizer nada ‑ disse dom Máximo Gómez. ‑ Durante a guerra, quando a revolução já estava perdida, tínhamos desejado tanto um general que vimos aparecer o duque de Marlborough, em carne e osso. Eu vi‑o com os meus próprios olhos, Jacob.

Passava da meia‑noite. Quando ficou só, o velho Jacob fechou a loja e levou a luz para o quarto. Através da janela, recortada na fosforescência do mar, via a rocha de onde atiravam os mortos.

‑ Petra ‑ chamou, em voz baixa.

Ela não pôde ouvi‑lo. Naquele momento navegava quase à superfície da água, num meio‑dia radiante do golfo de Bengala. Tinha levantado a cabeça para ver através da água, como numa vitrina iluminada, um transatlântico enorme. Mas não podia ver o seu esposo, que nesse instante começava a ouvir de novo a grafonola do Catarino, no outro lado do mundo.

‑ Repara ‑ disse o velho Jacob. ‑ Há apenas seis meses supuseram‑te louca e agora eles próprios fazem festa com o cheiro que te causou a morte.

Apagou a luz e meteu‑se na cama. Chorou devagarinho, com o chorinho sem graça dos velhos, mas muito depressa adormeceu.

‑ Punha‑me a andar desta aldeia, se pudesse ‑ soluçou entre soluços. ‑ Iria mesmo para o catano, se, pelo menos, tivesse vinte pesos arrecadados.

Desde aquela noite, e durante várias semanas, o cheiro permaneceu no mar. Impregnou a madeira das casas, os alimentos e a água de beber e deixou de haver um lugar onde estar sem o sentir. Muitos se assustaram ao encontrá‑lo no vapor da sua própria cagada. Os homens e a mulher que tinham vindo à taberna do Catarino foram‑se embora numa sexta‑feira, mas regressaram no sábado, com um tumulto. No domingo vieram mais.

Formigaram por todos os lados, à procura de comer e de onde dormir, até que não se pôde andar pela rua.

Vieram mais. As mulheres que tinham partido quando morreu a povoação voltaram à taberna do Catarino. Estavam mais gordas e mais pintadas e trouxeram discos da moda que não recordavam nada a ninguém. Vieram alguns dos antigos habitantes da aldeia. Tinham ido apodrecer‑se de dinheiro noutro lugar e regressavam falando da sua fortuna, mas com a mesma roupa que tinham levado vestida. Vieram músicas e tômbolas, mesas de jogos de azar, adivinhadeiras e pistoleiros e homens com uma cobra enrolada no pescoço que vendiam o elixir da vida eterna. Continuaram a vir durante várias semanas, mesmo depois de terem caído as primeiras chuvas e o mar se ter tornado turvo e desaparecido o cheiro.

Entre os últimos chegou um padre. Andava por todos os lados, a comer pão molhado numa malga de café com leite, e pouco a pouco ia proibindo tudo o que o tinha precedido: os jogos de azar, a música nova e a maneira de a dançar, e até o recente costume de dormir na praia. Uma tarde, em casa de Melchor, pronunciou um sermão sobre o cheiro do mar.

‑ Dai graças aos céus, meus filhos ‑ disse ‑, porque este é o cheiro de Deus.

Alguém o interrompeu.

‑ Como pode sabê‑lo, padre, se ainda não o sentiu?

‑ As Sagradas Escrituras ‑ disse ele ‑ são explícitas a respeito deste cheiro. Estamos numa povoação eleita.

Tobías andava como um sonâmbulo, de um lado para o outro, no meio da festa. Levou Clotilde, para conhecer o dinheiro. Imaginaram que jogavam somas enormes na roleta e a seguir fizeram as contas e sentiram‑se imensamente ricos com o dinheiro que poderiam ter ganho. Mas, uma noite, não só eles, mas também a multidão que ocupava o povoado, viram muito mais dinheiro junto do que o que poderia ter‑lhes cabido na imaginação.

Essa foi a noite em que veio o senhor Herbert. Apareceu de repente, pôs uma mesa no meio da rua e em cima da mesa dois grandes baús cheios de notas até aos bordos. Havia tanto dinheiro que ao princípio ninguém lhe prestou atenção, porque não podiam acreditar que fosse verdade. Mas, como o senhor Herbert se pôs a tocar uma pequena sineta, as pessoas acabaram por lhe dar crédito e aproximaram‑se, para ouvir.

‑ Sou o homem mais rico da Terra ‑ disse. ‑ Tenho tanto dinheiro que já não sei onde metê‑lo. E, como, além disso, tenho um coração tão grande que já não me cabe dentro do peito, tomei a determinação de percorrer o mundo para resolver os problemas do género humano.

Era grande e corado. Falava alto e sem pausas e movia ao mesmo tempo umas mãos tíbias e lânguidas que pareciam sempre acabadas de ser tratadas. Falou durante um quarto de hora, e descansou. Depois, voltou a agitar a sineta e começou a falar outra vez. A meio do discurso, alguém agitou um chapéu, por entre a multidão, e interrompeu‑o.

‑ Bem, mister, não fale tanto e comece a repartir o dinheiro.

‑ Assim não ‑ replicou o senhor Herbert. ‑ Repartir o dinheiro, sem tom nem som, além de ser um método injusto, não teria nenhum sentido.

Localizou com a vista o que o tinha interrompido e fez‑lhe sinal para que se aproximasse. A multidão abriu‑lhe passagem.

‑ Em vez disso ‑ prosseguiu o senhor Herbert ‑, este impaciente amigo vai permitir‑nos agora que expliquemos o mais equitativo sistema de distribuição da riqueza. ‑ Estendeu uma mão e ajudou‑o a subir. ‑ Como te chamas?

‑ Patrício.

‑ Muito bem, Patrício ‑ disse o senhor Herbert. ‑ Como toda a gente, tu tens, desde há tempos, um problema que não podes resolver.

Patrício tirou o chapéu e confirmou com a cabeça.

‑ Qual é?

‑ Pois o meu problema é esse ‑ disse Patrício ‑, que não tenho dinheiro.

‑ E de quanto precisas?

‑ Quarenta e oito pesos.

O senhor Herbert lançou uma exclamação de triunfo. «Quarenta e oito pesos», repetiu. A multidão acompanhou‑o num aplauso.

‑ Muito bem, Patrício ‑ prosseguiu o senhor Herbert. ‑Agora diz‑me uma coisa: que sabes fazer?

‑ Muitas coisas.

‑ Decide‑te por uma ‑ disse o senhor Herbert. ‑ A que faças melhor.

‑ Bem ‑ disse Patrício. ‑ Sei fazer como os pássaros. Aplaudindo outra vez, o senhor Herbert dirigiu‑se à multidão.

‑ Portanto, senhoras e senhores, o nosso amigo Patrício, que imita extraordinariamente bem os pássaros, vai imitar quarenta e oito pássaros diferentes e resolver por essa forma o grande problema da sua vida.

No meio do silêncio assombrado da multidão, Patrício fez então como os pássaros. Umas vezes assobiando, outras vezes com a garganta, fez como todos os pássaros conhecidos e completou o número com outros que ninguém conseguiu identificar. No fim, o senhor Herbert pediu um aplauso e entregou‑lhe quarenta e oito pesos.

‑ E agora ‑ disse ‑ vão passando um por um. Até amanhã a esta mesma hora estou aqui para resolver problemas.

O velho Jacob foi informado do acontecimento pelos comentários da gente que passava diante da sua casa. A cada nova notícia o coração ia‑se‑lhe pondo grande, cada vez mais grande, até que o sentiu rebentar.

‑ Que opinião tem o senhor deste gringo? ‑ perguntou. Dom Máximo Gómez encolheu os ombros.

‑ Deve ser um filantropo.

‑ Se eu soubesse fazer alguma coisa ‑ disse o velho Jacob ‑, agora poderia resolver o meu problemazinho. É coisa de pouco valor: vinte pesos.

‑ Você joga muito bem às damas ‑ disse dom Máximo Gómez.

O velho Jacob não pareceu prestar‑lhe atenção. Mas, quando ficou só, embrulhou o tabuleiro e a caixa das peças num jornal e foi desafiar o senhor Herbert. Esperou pela sua vez até à meia‑noite. Por fim, o senhor Herbert mandou levar os baús e despediu‑se até à manhã seguinte.

Não foi deitar‑se. Apareceu na taberna do Catarino, com os homens que levavam os baús, e até ali o perseguiu a multidão, com os seus problemas. Pouco a pouco foi‑os resolvendo, e resolveu tantos que por fim só ficaram na taberna as mulheres e alguns homens com os seus problemas resolvidos. E, ao fundo do salão, uma mulher solitária que se abanava muito devagar com um cartão de propaganda.

‑ E tu ‑ gritou‑lhe o senhor Herbert ‑, qual é o teu problema?

A mulher deixou de abanar‑se.

‑ A mim não me meta na sua brincadeira, mister ‑ gritou, através do salão. ‑ Eu não tenho problemas de nenhuma espécie e sou puta porque me dá na gana.

O senhor Herbert encolheu os ombros. Continuou a beber cerveja gelada, junto dos baús abertos, à espera de outros problemas. Transpirava. Pouco depois, uma mulher separou‑se do grupo que a acompanhava na mesa e falou‑lhe em voz muito baixa.

Tinha um problema de quinhentos pesos.

‑ Qual é o teu preço? ‑ perguntou o senhor Herbert.

‑ Cinco.

‑ Imagina ‑ disse o senhor Herbert. ‑ São cem homens. ‑ Não tem importância ‑ disse ela. ‑ Se consigo todo

esse dinheiro junto, estes serão os últimos cem homens da minha vida.

Examinou‑a. Era muito nova, de ossos frágeis, mas os seus olhos expressavam uma decisão simples.

‑ Está bem ‑ disse o senhor Herbert. ‑ Vai para o quarto, que para lá tos vou mandando, cada um com os seus cinco pesos.

Saiu à porta da rua e agitou a sineta. Às sete da manhã, Tobías encontrou a loja do Catarino aberta. Estava tudo apagado. Meio adormecido e inchado de cerveja, o senhor Herbert controlava o ingresso dos homens no quarto da rapariga.

Tobías também entrou. A rapariga conhecia‑o e surpreendeu‑se de vê‑lo no seu quarto.

‑ Tu também?

‑ Disseram‑me para entrar ‑ disse Tobías. ‑ Deram‑me cinco pesos e disseram‑me: «Não te demores».

Ela tirou da cama o lençol empapado e pediu a Tobías que o segurasse de um lado. Pesava como tela. Espremeram‑no, torcendo‑o pelos extremos, até que recuperou o seu peso natural. Viraram o colchão, e o suor saía pelo outro lado. Tobías fez as coisas de qualquer maneira. Antes de sair pôs os cinco pesos no montão de notas que ia crescendo ao pé da cama.

‑ Manda toda a gente que possas ‑ recomendou‑lhe o senhor Herbert ‑, a ver se acabamos com isto antes do meio‑dia.

A rapariga entreabriu a porta e pediu uma cerveja gelada. Estavam vários homens à espera.

‑ Quantos faltam? ‑ perguntou.

‑ Sessenta e três ‑ respondeu o senhor Herbert.

O velho Jacob passou todo o dia a persegui‑lo com o tabuleiro. Ao anoitecer conseguiu a sua vez, expôs o seu problema, e o senhor Herbert aceitou. Puseram duas cadeiras e a mesinha sobre a mesa grande, em plena rua, e o velho Jacob começou a partida. Foi a última jogada que conseguiu premeditar. Perdeu.

‑ Quarenta pesos ‑ disse o senhor Herbert ‑, e dou‑lhe duas peças de vantagem.

Voltou a ganhar. As suas mãos mal tocavam nas peças. Jogou vendado, adivinhando a posição do adversário, e ganhou sempre. A multidão cansou‑se de vê‑los. Quando o velho Jacob decidiu render‑se, estava a dever cinco mil setecentos e quarenta e dois pesos com vinte e três centavos.

Não se perturbou. Anotou a importância num papel que guardou no bolso. Depois dobrou o tabuleiro, meteu as peças na caixa e embrulhou tudo no jornal.

‑ Faça de mim o que quiser ‑ disse ‑, mas deixe‑me estas coisas. Prometo‑lhe que passarei o resto da minha vida a jogar até lhe reunir este dinheiro.

O senhor Herbert olhou para o relógio.

‑ Tenho muita pena ‑ disse. ‑ O prazo acaba dentro de vinte minutos. ‑ Esperou até se convencer de que o adversário não encontraria a solução. ‑ Não tem mais nada?

‑ A honra.

‑ Quero dizer- explicou o senhor Herbert ‑, qualquer coisa que mude de cor quando se lhe passe por cima uma broxa suja de tinta.

‑ A casa ‑ disse o velho Jacob, como se tivesse decifrado um enigma. ‑ Não vale nada, mas é uma casa.

Foi desta maneira que o senhor Herbert ficou com a casa do velho Jacob. Ficou, além disso, com as casas e propriedades de outros que também não puderam cumprir, mas ordenou uma semana de músicas, foguetes e acrobatas e ele mesmo dirigiu a festa.

Foi uma semana memorável. O senhor Herbert falou do maravilhoso destino da povoação, e até desenhou a cidade do futuro, com imensos edifícios de vidro e pistas de baile nas açoteias. Mostrou‑a à multidão. Olharam assombrados, procurando encontrar‑se nos transeuntes coloridos pintados pelo senhor Herbert, mas estavam tão bem vestidos que não conseguiram reconhecer‑se. Doeu‑lhes o coração de tanto o usar. Riam‑se das ganas de chorar que sentiam em Outubro e viveram nas nebulosas da esperança, até que o senhor Herbert sacudiu a sineta e proclamou o termo da festa. Só então descansou.

‑ Vai morrer com essa vida que leva ‑ disse o velho Jacob.

‑ Tenho tanto dinheiro ‑ disse o senhor Herbert ‑ que não há nenhuma razão para que morra.

Deixou‑se cair na cama. Dormiu dias e dias, roncando como um leão, e passaram tantos dias que a gente se cansou de o esperar. Tiveram de desenterrar caranguejos para comer. Os novos discos do Catarino tornaram‑se tão velhos que já ninguém pôde escutá‑los sem lágrimas, e teve de se fechar a taberna.

Muito tempo depois de o senhor Herbert ter começado a dormir, o padre bateu à porta do velho Jacob. A casa estava fechada por dentro. À medida que a respiração do adormecido ia gastando o ar, as coisas tinham ido perdendo o seu peso e algumas começavam a flutuar.

‑ Quero falar com ele ‑ disse o padre.

‑ É preciso esperar ‑ disse o velho Jacob.

‑ Não disponho de muito tempo.

‑ Sente‑se, padre, e espere ‑ insistiu o velho Jacob. ‑ E, entretanto, faça‑me o favor de falar comigo. Há muito que não sei nada do mundo.

‑ A população está em debandada ‑ disse o padre. ‑Dentro em pouco, a aldeia será a mesma de antes. Essa é a única novidade.

‑ Voltarão ‑ disse o velho Jacob ‑ quando o mar voltar a cheirar a rosas.

‑ Mas, entretanto, é preciso sustentar com alguma coisa a ilusão dos que ficam ‑ disse o padre. ‑ É urgente começar a construção do templo.

‑ Por isso veio procurar o senhor Herbert ‑ disse o velho Jacob.

‑ É verdade ‑ disse o padre. ‑ Os gringos são muito caritativos.

‑ Então, espere, padre ‑ disse o velho Jacob. ‑ Pode ser que acorde.

Jogaram às damas. Foi uma partida longa e difícil, de muitos dias, mas o senhor Herbert não acordou.

O padre deixou‑se confundir pelo desespero. Andou por todos os lados, com um pratinho de cobre, pedindo esmolas para construir o templo, mas foi muito pouco o que conseguiu. De tanto suplicar foi‑se tornando cada vez mais diáfano, os seus ossos começaram a encher‑se de ruídos, e num domingo elevou‑se dois palmos acima do nível do chão, mas ninguém o soube. Então pôs a roupa numa maleta e noutra o dinheiro recolhido e despediu‑se para sempre.

‑ Não voltará o cheiro ‑ disse àqueles que tentaram dissuadi‑lo. ‑ É preciso enfrentar a evidência de que a povoação caiu em pecado mortal.

Quando o senhor Herbert acordou, a povoação era a mesma de antes. A chuva tinha fermentado o lixo que a multidão deixou nas ruas e o solo estava outra vez árido e duro como um ladrilho.

‑ Dormi muito ‑ bocejou o senhor Herbert.

‑ Séculos ‑ disse o velho Jacob.

‑ Estou morto de fome.

‑ Toda a gente está assim ‑ disse o velho Jacob. ‑ Não tem outro remédio senão ir à praia desenterrar caranguejos.

Tobías encontrou‑o esgaravatando na areia, com a boca cheia de espuma, e assombrou‑se de que os ricos com fome se parecessem tanto com os pobres. O senhor Herbert não encontrou suficientes caranguejos. Ao entardecer, convidou Tobías para ir procurar alguma coisa para comer, no fundo do mar.

‑ Ouça ‑ preveniu‑o Tobías. ‑ Só os mortos sabem o que há lá dentro.

‑ Também o sabem os cientistas ‑ disse o senhor Herbert. ‑ Mais abaixo do mar dos naufrágios há tartarugas de carne deliciosa. Dispa‑se e vamos.

Foram. Nadaram primeiramente em linha recta e depois para baixo, muito fundo, até onde se acabou a luz do Sol, e a seguir a do mar, e as coisas eram unicamente visíveis pela sua própria luz. Passaram diante de uma povoação submergida, com homens e mulheres a cavalo, que giravam em torno do coreto da música. Era um dia esplêndido e havia flores de cores vivas nos terraços.

‑ Afundou‑se num domingo, por volta das onze da manhã ‑ disse o senhor Herbert. ‑ Deve ter sido um cataclismo.

Tobías desviou‑se em direcção da povoação, mas o senhor Herbert fez‑lhe sinais para o seguir até ao fundo.

‑ Ali há rosas ‑ disse Tobías. ‑ Quero que Clotilde as conheça.

‑ Num outro dia voltas, com calma ‑ disse o senhor Herbert. ‑ Agora estou morto de fome.

Descia como um polvo, com braçadas amplas e sigilosas. Tobías, que fazia esforços para não o perder de vista, pensou que aquela devia ser a maneira de nadar dos ricos. Pouco a pouco foram deixando o mar das catástrofes comuns e entraram no mar dos mortos.

Havia tantos que Tobías não acreditou ter visto alguma vez tanta gente no mundo. Flutuavam, imóveis, de barriga para cima, a diferentes níveis, e todos tinham a expressão dos seres esquecidos.

‑ São mortos muito antigos ‑ disse o senhor Herbert. ‑ Precisaram de séculos para conseguir este estado de repouso.

Mais abaixo, em águas de mortos recentes, o senhor Herbert deteve‑se. Tobías alcançou‑o no momento em que passava em frente deles uma mulher muito jovem. Flutuava de costas, com os olhos abertos, perseguida por uma corrente de flores.

O senhor Herbert pôs o indicador na boca e permaneceu assim até terem passado as últimas flores.

‑ É a mulher mais formosa que vi na minha vida ‑ disse.

‑ É a esposa do velho Jacob ‑ disse Tobías. ‑ Parece cinquenta anos mais nova, mas é ela. Garanto.

‑ Viajou muito ‑ disse o senhor Herbert. ‑ Leva atrás a flora de todos os mares do mundo.

Chegaram ao fundo. O senhor Herbert deu várias voltas sobre um solo que parecia de ardósia lavrada. Tobías seguiu‑o. Só quando se acostumou à penumbra da profundidade descobriu que ali estavam as tartarugas. Havia milhares, aplanadas no fundo e tão imóveis que pareciam petrificadas.

‑ Estão vivas ‑ disse o senhor Herbert ‑, mas dormem desde há milhões de anos.

Virou uma. Com um impulso suave empurrou‑a para cima e o animal adormecido escapou‑se‑lhe das mãos e continuou

subindo à deriva. Tobías deixou‑a passar. Então olhou para a superfície e viu todo o mar ao contrário.

‑ Parece um sonho ‑ disse.

‑ Para o teu próprio bem ‑ disse‑lhe o senhor Herbert ‑, não contes isto a ninguém. Imagina a desordem que haveria no mundo se as pessoas soubessem destas coisas.

Era quase meia‑noite quando voltaram à aldeia. Despertaram Clotilde, para que aquecesse a água. O senhor Herbert degolou a tartaruga, mas foram precisos os três para perseguir e matar outra vez o coração, que saiu dando saltos pelo pátio, quando a esquartejaram. Comeram até não poder respirar.

‑ Bem, Tobías ‑ disse então o senhor Herbert ‑, é preciso enfrentar a realidade.

‑ Certamente.

‑ E a realidade ‑ prosseguiu o senhor Herbert ‑ é que esse cheiro não voltará nunca.

‑ Voltará.

‑ Não voltará ‑ interveio Clotilde ‑, entre outras coisas porque não veio nunca. Foste tu quem convenceu toda a gente.

‑ Tu própria o sentiste ‑ disse Tobías.

‑ Naquela noite eu estava meio atarantada ‑ disse Clotilde. ‑ Mas agora não tenho a certeza de nada que tenha que ver com este mar.

‑ De maneira que me vou embora ‑ disse o senhor Herbert. E acrescentou, dirigindo‑se a ambos: ‑ Também vocês deviam partir. Há muitas coisas a fazer no mundo em vez de ficarem a passar fome nesta aldeia.

Partiu. Tobías permaneceu no pátio, contando as estrelas até ao horizonte e descobriu que havia mais três, desde o Dezembro anterior. Clotilde chamou‑o para o quarto, mas ele não lhe deu atenção.

‑ Vem para aqui, bruto ‑ insistiu Clotilde. ‑ Há séculos que não fazemos como os coelhinhos.

Tobías esperou um bom bocado. Quando por fim entrou, ela tinha voltado a adormecer. Semiacordou‑a, mas estava tão cansado que ambos confundiram as coisas e por fim só puderam fazer como as lombrigas.

‑ Estás embobado ‑ disse Clotilde, de mau humor. ‑ Tenta pensar noutra coisa.

‑ Estou a pensar noutra coisa.

Ela quis saber em que era e ele decidiu contar‑lhe, com a condição de que não o repetisse. Clotilde prometeu.

‑ No fundo do mar ‑ disse Tobías ‑ há uma povoação de casinhas brancas com milhões de flores nos terraços.

Clotilde levou as mãos à cabeça.

‑ Ai, Tobías ‑ exclamou. ‑ Ai, Tobías, pelo amor de Deus, não vás começar agora, outra vez, com estas coisas.

Tobías não voltou a falar. Chegou‑se para a beira da cama e tentou dormir. Não o pôde fazer até ao amanhecer, quando mudou a brisa e os caranguejos o deixaram tranquilo.

 

O afogado mais formoso do mundo

As primeiras crianças que viram o promontório obscuro e sigiloso que se aproximava pelo mar tiveram a ilusão de que era um barco inimigo. Depois viram que não levava bandeiras nem mastreação e pensaram que fosse uma baleia. Mas, quando ficou varado na praia, tiraram‑lhe os matagais de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia em cima, e só então descobriram que era um afogado.

Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando‑o e desenterrando‑o na areia, quando alguém os viu por acaso e deu a voz de alarme na povoação. Os homens que com ele carregaram até à casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto como um cavalo, e convenceram‑se de que talvez tivesse estado demasiado tempo à deriva e a água se lhe tivesse metido dentro dos ossos. Quando o estenderam no chão viram que tinha sido muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a faculdade de continuar a crescer depois da morte estivesse na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que era o cadáver de um ser humano, porque a sua pele estava revestida de uma couraça de rémora e de lodo.

Não precisaram de limpar‑lhe a cara para saber que era um morto alheio. A povoação tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedras sem flores, dispersas no extremo de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com o temor de que o vento levasse as crianças, e os poucos mortos que lhes iam causando os anos tinham de atirá‑los nos despenhadeiros. Mas o mar era manso e pródigo e todos os homens cabiam em sete botes. Por isso, quando encontraram o afogado, bastou‑lhes olharem‑se uns aos outros para perceberem que estavam completos.

Naquela noite não saíram para trabalhar no mar. Enquanto os homens averiguavam se não faltava alguém nas povoações vizinhas, as mulheres ficaram a tratar do afogado. Tiraram‑lhe o lodo com tampões de esparto, desenredaram‑lhe do cabelo os abrolhos submarinos e rasparam‑lhe a rémora com ferros de escamar peixe. À medida que o faziam, notaram que a sua vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas e que as suas roupas estavam em farrapos, como se tivesse navegado por entre labirintos de corais. Notaram também que suportava a morte com altivez, pois não tinha o aspecto solitário dos outros afogados do mar, nem tão‑pouco a catadura sórdida e indigente dos afogados fluviais. Mas só quando acabaram de o limpar tiveram consciência da espécie de homem que era, e então ficaram sem alento. Não somente era o mais alto, o mais forte, o mais viril e o melhor armado que jamais tinham visto, como ainda, apesar de o estarem a ver, não lhes cabia na imaginação.

Não encontram na povoação uma cama bastante grande para estendê‑lo nem uma mesa bastante sólida para velá‑lo. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos nem as camisas dominicais dos mais corpulentos, nem os sapatos do mais bem plantado. Fascinadas pela sua desproporção e formosura, as mulheres decidiram então fazer‑lhe umas calças com um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cambraia de noiva, para que pudesse continuar a sua morte com dignidade. Enquanto cosiam, sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre dois alinhavos, parecia‑lhes que o vento não tinha sido nunca tão tenaz, nem o Caribe tinha estado nunca tão ansioso como naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham alguma coisa a ver com o morto. Pensavam que, se aquele homem magnífico tivesse vivido na povoação, a sua casa teria tido as portas mais largas, o tecto mais alto e o sobrado mais firme e a armação da sua cama teria sido feita de cavernas mestras, com pernos de ferro, e a sua mulher teria sido a mais feliz. Pensavam que haveria tido tanta autoridade que teria tirado os peixes do mar apenas chamando‑os pelos seus nomes, e teria posto tanto interesse no trabalho que teria feito brotar mananciais entre as pedras mais áridas, e teria podido semear flores nos despenhadeiros. Compararam‑no, em segredo, com os seus próprios homens, pensando que não seriam capazes de fazer em toda uma vida o que aquele era capaz de fazer numa noite, e terminaram por repudiá‑los no fundo dos seus corações, como os seres mais esquálidos e mesquinhos da Terra. Andavam extraviadas por esses dédalos de fantasia, quando a mais velha das mulheres, que por ser a mais velha tinha contemplado o afogado com menos paixão do que compaixão, suspirou:

‑ Tem cara de chamar‑se Esteban.

Era verdade. À maioria bastou olhá‑lo outra vez para compreenderem que não podia ter outro nome. As mais obstinadas, que eram as mais jovens, mantiveram‑se com a ilusão de que, depois de lhe vestirem a roupa, estendido entre flores e com uns sapatos de polimento, poderia chamar‑se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã. O pano foi insuficiente, as calças, mal cortadas e pior cosidas, ficaram‑lhe estreitas e as forças ocultas do seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da meia‑noite tornaram‑se mais finos os assobios do vento e o mar caiu na modorra da quarta‑feira. O silêncio acabou com as últimas dúvidas: era Esteban. As mulheres que o tinham vestido, as que o tinham penteado, as que lhe tinham cortado as unhas e raspado a barba, não puderam reprimir um estremecimento de compaixão, quando tiveram de resignar‑se a deixá‑lo estendido pelos pavimentos. Foi então que compreenderam quanto devia ter sido infeliz, com aquele corpo descomunal, se mesmo depois de morto o estorvava. Viram‑no condenado, em vida, a passar de lado pelas portas, a magoar‑se com as traves, a permanecer de pé durante as visitas, sem saber o que fazer com as suas delicadas e rosadas mãos de boi‑marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais resistente e lhe suplicava, morta de medo, sente‑se aqui Esteban, faça favor, e ele, encostado às paredes, sorrindo, não se preocupe, senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne viva e as costas escaldadas de tantas vezes repetir a mesma coisa em todas as visitas, não se preocupe, senhora, estou bem assim, só para não passar pela vergonha de desfazer a cadeira, e talvez sem nunca ter sabido que aqueles que lhe diziam não te vás embora Esteban, espera, pelo menos, até que sirva o café, eram os mesmos que depois cochichavam já saiu o bobo grande, que bom, já saiu o tonto formoso. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe taparam a cara com um lenço, para que a luz não o incomodasse, viram‑no tão morto para sempre, tão parecido com os seus homens, que se lhes abriram as primeiras gretas de lágrimas no coração. Foi uma das mais jovens a que começou a soluçar. As outras, encorajando‑se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos e quanto mais soluçavam mais desejos sentiam de chorar, porque o afogado se lhes ia tornando cada vez mais Esteban, até que o choraram tanto que foi o homem mais desamparado da Terra, o mais manso e o mais diligente, o pobre Esteban. De tal maneira que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era das povoações vizinhas, elas sentiram um espaço de júbilo, entre as lágrimas.

‑ Bendito seja Deus! ‑ suspiraram. ‑ É nosso!

Os homens convenceram‑se de que aqueles espaventos não passavam de frivolidades de mulher. Cansados pelas tortuosas averiguações da noite, a única coisa que queriam era livrar‑se de vez do estorvo do intruso antes que pegasse o sol valente daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas cangalhas com restos de traquetes e espichas e amarraram‑nas com sobrequilhas de altura, para que resistissem ao peso do corpo até aos despenhadeiros. Quiseram acorrentar‑lhe aos tornozelos uma âncora de barco mercante, para que fundeasse sem tropeços nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de nostalgia, de maneira que as más correntes não o fossem devolver à beira‑mar, como tinha sucedido com outros corpos. Mas, quanto mais se apressavam, de mais coisas se lembravam as mulheres para perder o tempo. Andavam como galinhas assustadas, espiolhando amuletos de mar nos arcazes, umas estorvando aqui porque queriam pôr ao afogado os escapulários do bom vento, outras estorvando ali para lhe porem uma pulseira de orientação, e, ao cabo de tanto tira‑te daí mulher, põe‑te onde não estorves, olha que quase me fazes cair sobre o defunto, aos homens subiram‑lhes ao fígado as suspicácias e começaram a resmungar que qual seria o objectivo de tanta ferraria de altar‑mor para um forasteiro, se por mais pregos e caldeirinhas que levasse com ele iam mastigá‑lo os tubarões, mas elas continuavam remexendo as suas relíquias de pacotilha, levando e trazendo, tropeçando, enquanto se lhes ia em suspiros o que não se lhes ia em lágrimas, de tal maneira que os homens acabaram por disparatar que desde quando se viu semelhante alvoroço por um afogado à deriva, um afogado de ninguém, um fiambre de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou então o lenço da cara do cadáver, e também os homens ficaram sem respiração.

Era Esteban. Não foi preciso repeti‑lo para que o reconhecessem. Se lhes tivessem dito Sir Walter Raleigh, porventura, até eles se teriam impressionado com o seu acento de gringo, com o seu papagaio no ombro, com o seu arcabuz de matar canibais, mas Esteban só podia ser um no mundo, e ali estava estendido como um sável, sem botins, com umas calças de sete‑mesinho e essas unhas cascalhosas que só podiam cortar‑se à faca. Bastou que lhe tirassem o lenço da cara para se perceber que estava envergonhado, que não tinha a culpa de ser tão grande, nem tão pesado nem tão formoso, e, se tivesse sabido que aquilo ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar‑se, a sério, ter‑me‑ia amarrado eu mesmo uma âncora de galeão ao pescoço e teria tropeçado como quem não quer a coisa nos despenhadeiros, para não andar agora a estorvar com este morto de miércoles como vocês dizem, para não incomodar ninguém com esta porcaria de fiambre que não tem nada que ver comigo. Havia tanta verdade na sua maneira de estar que até os homens mais desconfiados, os que achavam amargas as minuciosas noites do mar, temendo que as suas mulheres se cansassem de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais duros, estremeceram até à medula com a sinceridade de Esteban.

Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplêndidos que podiam conceber‑se para um afogado enjeitado.

Algumas mulheres que tinham ido buscar flores vizinhas regressaram com outras que não acreditaram no que lhes contavam, e estas foram buscar mais flores e viram o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que mal se podia caminhar. À última hora custou‑lhes devolvê‑lo órfão às águas, e elegeram‑lhe um pai e uma mãe entre os melhores, e outros fizeram‑se‑lhe irmãos, tios e primos, de maneira que através dele todos os habitantes da povoação acabaram por ser parentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o pranto à distância perderam a certeza do rumo, e soube‑se de um que se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto discutiam pelo privilégio de levá‑lo aos ombros tiveram a consciência, pela primeira vez, da desolação das suas ruas, da aridez dos seus pátios, da estreiteza dos seus sonhos, perante o esplendor e a formosura do afogado. Largaram‑no sem âncora, para que voltasse, se quisesse e quando o quisesse, e todos retiveram a respiração durante a fracção de séculos que demorou a queda do corpo até ao abismo. Não tiveram necessidade de olhar‑se uns aos outros para se aperceberem de que já não estavam completos, nem voltariam a está‑lo jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente a partir desse momento, que as suas casas iam ter as portas mais largas, os tectos mais altos, os pavimentos mais firmes, para que a recordação de Esteban pudesse andar por todos os lados sem tropeçar com as traves, e que ninguém se atrevesse a cochichar de futuro, já morreu o bobo grande, que pena, já morreu o tonto formoso, porque eles iam pintar as fachadas das casas com cores alegres para eternizar a memória de Esteban e iam partir‑se o espinhaço escavando mananciais nas pedras e semeando flores nos despenhadeiros, para que nos amanheceres dos anos vindouros os passageiros dos grandes navios acordassem sufocados por um cheiro de jardins no alto mar e o capitão tivesse de descer do seu castelo de popa, com o seu astrolábio, a sua estrela polar e a sua fileira de medalhas de guerra, e, apontando para o promontório de rosas no horizonte do Caribe, dissesse, em catorze idiomas, olhem para ali, de onde o vento é agora tão manso que fica a dormir debaixo das camas, ali, onde o Sol brilha tanto que os girassóis não sabem para que lado girar, sim, ali, é a povoação de Esteban.

 

Morte constante para além do amor

Ao senador Onésimo Sánchez faltavam‑lhe seis meses e onze dias para morrer quando encontrou a mulher da sua vida. Conheceu‑a no Rosal del Virrey, uma povoaçãozinha ilusória, que de noite era um abrigo furtivo para os navios de longo curso dos contrabandistas e, em contrapartida, em pleno sol parecia a curva mais inútil do deserto, frente a um mar árido e sem rumos, e tão afastado de tudo que ninguém teria suspeitado que ali vivesse alguém capaz de torcer o destino de ninguém. Até o seu nome parecia uma zombaria, pois a única rosa que se viu naquela povoação levou‑a o próprio senador Onésimo Sánchez na mesma tarde em que conheceu Laura Farina.

Foi uma paragem iniludível na campanha eleitoral de cada quatro anos. Pela manhã tinham chegado os furgões com a farândola. Depois chegaram os camiões com os índios de aluguer que levavam pelos povoados para completar as multidões dos actos públicos. Pouco antes das onze, com a música e os foguetes e os guardas de campo da comitiva, chegou o automóvel ministerial de cor de refresco de morango. O senador Onésimo Sánchez estava plácido e sem tempo dentro do carro refrigerado, mas logo que abriu a porta estremeceu‑o um sopro de fogo e a sua camisa de seda natural ficou empapada de uma sopa lívida e sentiu‑se muitos anos mais velho e mais só do que nunca. Na vida real acabava de completar os quarenta e dois, tinha obtido com distinção o diploma de engenheiro metalúrgico em Gotinga e era um leitor perseverante, ainda que sem muita sorte, dos clássicos latinos mal traduzidos. Estava casado com uma alemã radiante, de quem tinha cinco filhos, e todos estavam felizes na sua casa, e ele tinha sido o mais feliz de todos até que lhe tinham anunciado, três meses antes, que estaria morto para sempre no próximo Natal.

Enquanto se acabavam os preparativos da manifestação pública, o senador conseguiu ficar só, uma hora, na casa que lhe tinham reservado para descansar. Antes de deitar‑se, pôs na água de beber uma rosa natural que tinha conservado viva através do deserto, almoçou os cereais de dieta que trazia consigo, para iludir as repetidas fritadas de chibo que o esperavam no resto do dia, e tomou várias pílulas analgésicas antes da hora prevista, para que o alívio lhe chegasse antes da dor. A seguir pôs o ventilador eléctrico muito perto da rede e estendeu‑se nu, durante quinze minutos, na penumbra da rosa, fazendo um grande esforço de distracção mental para não pensar na morte enquanto dormitava. Além dos médicos, ninguém sabia que estava condenado a um final previsto, pois tinha decidido padecer só o seu segredo, sem nenhuma mudança de vida, e não por soberba, mas sim por pudor.

Sentia‑se com um domínio completo do seu alvedrio quando voltou a aparecer em público, às três da tarde, repousado e limpo, com umas calças de linho cru e uma camisa com flores pintadas, e com a alma bem disposta pelas pílulas contra a dor. Não obstante, a erosão da morte era muito mais pérfida do que ele supunha, pois, ao subir para a tribuna, sentiu um extraordinário desprezo por aqueles que se disputaram a sorte de lhe apertar a mão e não se compadeceu, como noutros tempos, das recuas de índios descalços que mal podiam resistir às brasas de salitre da pequena praça estéril. Acalmou os aplausos com uma ordem da mão, quase com raiva, e começou a falar sem gestos, com os olhos fixos no mar que suspirava de calor.

A sua voz pausada e profunda tinha a qualidade da água em repouso, mas o discurso aprendido de cor e tantas vezes repetido não lhe tinha sido inspirado para dizer a verdade, mas por oposição a uma sentença fatalista do livro quarto dos pensamentos de Marco Aurélio.

‑ Estamos aqui para derrotar a natureza ‑ começou, contra todas as suas convicções. ‑ Deixaremos de ser os enjeitados da pátria, os órfãos de Deus, no reino da sede e da intempérie, os exilados na nossa própria terra. Seremos outros, senhoras e senhores, seremos grandes e felizes.

Eram as fórmulas do seu circo. Enquanto falava, os seus ajudantes lançavam para o ar punhados de passarinhos de papel e os falsos animais adquiriam vida, revoluteavam sobre a tribuna de tábuas e afastavam‑se pelo mar. Ao mesmo tempo, outros tiravam dos furgões umas árvores de teatro com folhas de feltro e plantavam‑nas por detrás da multidão, no solo de salitre. Por fim armaram uma frontaria de cartão, com casas fingidas de ladrilhos vermelhos e janelas de vidro, e taparam com ela as cabanas miseráveis da vida real.

O senador prolongou o discurso, com duas citações em latim, para dar tempo à farsa. Prometeu as máquinas de chover, os viveiros portáteis de animais de mesa, os óleos da felicidade que fariam crescer legumes no salitre e cachos de amores‑perfeitos nas janelas. Quando viu que o seu mundo de ficção estava terminado, apontou‑o com o dedo.

‑ Assim seremos, senhoras e senhores ‑ gritou. ‑ Olhem. Assim seremos.

O público virou‑se. Um transatlântico de papel pintado passava por detrás das casas, e era mais alto que as casas mais altas da cidade de artifício. Só o próprio senador reparou que, à força de ser armada e desarmada e levada de um lado para outro, também a cidade de cartão sobreposta estava carcomida pela intempérie e era quase tão pobre, poeirenta e triste como o Rosal del Virrey.

Nelson Farina não foi cumprimentar o senador, pela primeira vez em doze anos. Escutou o discurso na sua rede, entre as fracções da sesta, sob a enramada fresca de uma casa de tábuas por polir que ele tinha construído com as mesmas mãos de boticário com que esquartejou a sua primeira mulher. Tinha‑se evadido da penitenciária de Caiena e apareceu em Rosal del Virrey num barco carregado de papagaios inocentes, com uma negra formosa e blasfemadora que conheceu em Paramaribo e de quem teve uma filha. A mulher morreu de morte natural pouco tempo depois e não teve a sorte da outra, cujos pedaços alimentaram a sua própria horta de couves‑flores, porque a enterraram inteira e com o seu nome de holandesa no cemitério local. A filha tinha herdado a sua cor e os seus tamanhos e os olhos amarelos e atónitos do pai, e este tinha razões para supor que estava a criar a mulher mais bela do mundo.

Desde que conheceu o senador Onésimo Sánchez na primeira campanha eleitoral, Nelson Farina tinha suplicado a sua ajuda para obter um falso bilhete de identidade que o pusesse a salvo da justiça. O senador, amável mas firme, tinha‑lho negado. Nelson Farina não desistiu durante vários anos, e cada vez que se lhe proporcionava uma ocasião repetia a diligência com uma petição diferente. Mas recebeu sempre a mesma resposta. De maneira que daquela vez deixou‑se ficar na rede, condenado a apodrecer‑se vivo naquela ardente guarida de corsários. Quando ouviu os aplausos finais esticou a cabeça, e por cima das estacas da cerca viu o avesso da farsa: os espeques dos edifícios, as armações das árvores, os ilusionistas escondidos que empurravam o transatlântico. Cuspiu o seu rancor.

‑ Merde ‑ disse ‑, c'est le Blacaman de la politique. Depois do discurso, como de costume, o senador deu um passeio pelas ruas da povoação, por entre a música e os foguetes, e assediado pela gente do povoado, que lhe contava as suas dificuldades. O senador escutava‑os de boa vontade e encontrava sempre uma maneira de consolar todos sem lhes fazer favores difíceis. Uma mulher encarrapitada no telhado de uma casa, entre os seus seis filhos menores, conseguiu fazer‑se ouvir por cima do alvoroço e dos estampidos de pólvora.

‑ Eu não peço muito, senador ‑ disse ‑, a não ser um burro para trazer água do Poço do Enforcado.

O senador observou as seis crianças esquálidas.

‑ Que é que aconteceu ao teu marido? ‑ perguntou.

‑ Foi procurar destino na ilha de Aruba ‑ respondeu a mulher, bem disposta ‑ e o que encontrou foi uma forasteira daquelas que põem diamantes nos dentes.

A resposta provocou um estrondo de gargalhadas.

‑ Está bem ‑ decidiu o senador ‑, terás o teu burro. Pouco depois, um ajudante seu levou a casa da mulher um burro de carga, nas costas do qual tinham escrito com pintura eterna um manifesto eleitoral, para que ninguém se esquecesse de que era uma dádiva do senador.

No breve trajecto da rua fez outros gestos menores e, além disso, deu uma colherada a um doente que tinha mandado pôr a cama na porta da casa para vê‑lo passar. Na última esquina, por entre as estacas do pátio, viu Nelson Farina na rede e pareceu‑lhe cinzento e murcho, mas cumprimentou‑o sem afecto:

‑ Como está?

Nelson Farina virou‑se na rede e deixou‑o ensopado no âmbar triste do seu olhar.

‑ Moi, vous savez ‑ disse.

A sua filha apareceu no pátio, ao ouvir a troca de palavras. Trazia vestida uma bata cubana vulgar e usada e tinha a cabeça enfeitada com laços de fitas de cores e a cara pintada para o sol, mas mesmo naquele estado de negligência era possível imaginar que não havia outra mais bela no mundo. O senador ficou sem alento.

‑ Porra ‑ suspirou, assombrado ‑, as tolices de que Deus se lembra!

Nessa noite Nelson Farina vestiu a filha com as suas melhores roupas e mandou‑a ao senador. Dois guardas armados de rifles, que cabeceavam de calor na casa emprestada, mandaram‑na esperar na única cadeira do vestíbulo.

O senador estava no quarto contíguo, reunido com os principais do Rosal del Virrey, que tinha convocado para cantar‑lhes as verdades que ocultava nos discursos. Eram tão parecidos com os que o ajudavam sempre em todas as povoações do deserto que o próprio senador sentia o enfarte da mesma sessão todas as noites. Tinha a camisa ensopada de suor e tentava secá‑la sobre o corpo com a brisa quente do ventilador eléctrico, que zumbia como um moscardo na modorra do quarto.

‑ Nós, certamente, não comemos passarinhos de papel ‑ disse. ‑ Vocês e eu sabemos que no dia em que haja árvores e flores nesta latrina de chibos, no dia em que haja sáveis em vez de vermes nos poços, nesse dia tanto vocês como eu não temos nada a fazer aqui. De acordo?

Ninguém respondeu. Enquanto falava, o senador tinha arrancado um cromo do calendário e tinha feito com as mãos uma borboleta de papel. Pô‑la na corrente do ventilador, sem nenhuma intenção, e a borboleta revoluteou dentro do quarto e depois saiu pela porta entreaberta. O senador continuou a falar com um domínio sustentado pela cumplicidade da morte.

‑ Então ‑ disse ‑ não preciso de repetir‑lhes o que já sabem de sobras: que a minha reeleição é um negócio melhor para vocês do que para mim, porque eu estou farto de águas podres e de suor de índios, ao passo que vocês vivem disso.

Laura Farina viu sair a borboleta de papel. Só ela a viu, porque os guardas do vestíbulo tinham adormecido nos escanos abraçados aos fuzis. Depois de ter dado várias voltas, a enorme borboleta litografada desdobrou‑se completamente, esborrachou‑se contra a parede e aí ficou pegada. Laura Farina tentou arrancá‑la com as unhas. Um dos guardas, que acordou com os aplausos no quarto contíguo, reparou na sua tentativa inútil.

‑ Não se pode arrancar ‑ disse entre sonhos. ‑ Está pintada na parede.

Laura Farina tornou a sentar‑se quando começaram a sair os homens da reunião. O senador permaneceu na porta do quarto com a mão na aldraba e só reparou em Laura quando o vestíbulo ficou desocupado.

‑ Que fazes aqui?

‑ C'est de la part de mon père ‑ disse ela.

O senador compreendeu. Observou atentamente os guardas sonolentos, depois observou atentamente Laura Farina, cuja beleza inverosímil era mais imperiosa que a sua dor, e então resolveu que a morte decidisse por ele.

‑ Entra ‑ disse‑lhe.

Laura Farina ficou maravilhada na porta do quarto: milhares de notas de banco flutuavam no ar, esvoaçando como a borboleta. Mas o senador apagou o ventilador, e as notas ficaram sem ar, e pousaram‑se sobre as coisas do quarto.

‑ Já vês ‑ sorriu ‑, até a merda voa.

Laura Farina sentou‑se num tamborete de estudante. Tinha a pele lisa e tendida, com a mesma cor e a mesma densidade solar do petróleo cru, e os seus cabelos eram de crinas de poldra, e os seus olhos imensos eram mais claros que a luz. O senador seguiu o fio do seu olhar e encontrou no fim a rosa maltratada pelo salitre.

‑ É uma rosa ‑ disse.

‑ Sim ‑ disse ela, com um vestígio de perplexidade ‑, conheci‑as em Riohacha.

O senador sentou‑se numa cama de campanha, falando das rosas, enquanto desabotoava a camisa. Sobre o lado, onde ele supunha que estava o coração dentro do peito, tinha a tatuagem corsária de um coração atravessado por uma flecha. Atirou para o chão a camisa molhada e pediu a Laura Farina que o ajudasse a tirar as botas.

Ela ajoelhou‑se diante do catre. O senador continuou a estudá‑la, pensativo, e, enquanto lhe desapertava os atacadores, perguntou‑se para qual dos dois seria a má sorte daquele encontro.

‑ És uma criança ‑ disse.

‑ Não acredite ‑ disse ela. ‑ Vou completar dezanove em Abril.

O senador interessou‑se.

‑ Em que dia?

‑ A onze ‑ disse ela.

O senador sentiu‑se melhor.

‑ Somos Aries ‑ disse. E acrescentou, sorrindo: ‑ É o signo da solidão.

Laura Farina não lhe prestou atenção, pois não sabia o que fazer com as botas. O senador, por seu lado, não sabia o que fazer com Laura Farina, porque não estava habituado aos amores imprevistos, e, além disso, estava consciente de que aquele tinha origem na indignidade. Só para ganhar tempo para pensar, prendeu Laura entre os joelhos, abraçou‑a pela cintura e estendeu‑se de costas no catre. Então compreendeu que ela estava nua por debaixo do vestido, porque o corpo exalou uma fragrância obscura de animal de monte, mas tinha o coração assustado e a pele aturdida por um suor glacial.

‑ Ninguém gosta de nós ‑ suspirou ele.

Laura Farina quis dizer alguma coisa, mas o ar apenas lhe chegava para respirar. Deitou‑a ao seu lado, para a ajudar, apagou a luz e o aposento ficou na penumbra da rosa. Ela abandonou‑se à misericórdia do seu destino. O senador acariciou‑a lentamente, procurou‑a com a mão, mal lhe tocando, mas onde esperava encontrá‑la, topou com um estorvo de ferro.

‑ Que tens aí?

‑ Um aloquete ‑ disse ela.

‑ Que disparate! ‑ disse o senador, furioso, e perguntou o que sabia de sobras: ‑ Onde está a chave?

Laura Farina respirou, aliviada.

‑ Tem‑na o meu pai ‑ respondeu. ‑ Disse‑me que lhe dissesse a si que a mande buscar por um mensageiro e que lhe mande com ele uma promessa escrita de que lhe vai resolver a situação.

O senador pôs‑se tenso. «Francesote cabrão», murmurou, indignado. Depois cerrou os olhos para relaxar‑se e encontrou‑se consigo próprio na obscuridade. «Recorda ‑ recordou ‑ que sejas tu ou outro qualquer, estarás morto dentro de um tempo muito breve e que pouco depois não restará de vós nem o nome.» Esperou que passasse o calafrio.

‑ Diz‑me uma coisa ‑ perguntou então ‑: o que ouviste dizer de mim?

‑ A verdade, verdadinha?

‑ A verdade, verdadinha.

‑ Bem ‑ atreveu‑se Laura Farina ‑, dizem que o senhor é pior do que os outros, porque é diferente.

O senador não se perturbou. Manteve um silêncio grande, com os olhos fechados, e quando voltou a abri‑los parecia regressar dos seus instintos mais recônditos.

‑ Que merda! ‑ decidiu ‑, diz ao cabrão do teu pai que lhe vou resolver o assunto.

‑ Se quer, vou eu mesma buscar a chave ‑ disse Laura Farina.

O senador reteve‑a.

‑ Esquece‑te da chave ‑ disse ‑, e dorme um bocado comigo. É bom estar com alguém quando se está só.

Então ela deitou‑o no seu ombro com os olhos fixos na rosa. O senador abraçou‑a pela cintura, escondeu a cara na sua axila de animal de monte e sucumbiu ao terror. Seis meses e onze dias depois havia de morrer nessa mesma posição, pervertido e repudiado pelo escândalo público de Laura Farina e chorando com a raiva de morrer sem ela.

 

A última viagem do navio fantasma

«Agora vão ver quem sou eu», disse consigo mesmo, com o seu novo vozeirão de homem, muitos anos depois de ter visto pela primeira vez o transatlântico imenso, sem luzes e sem ruídos, que uma noite passou diante da povoação como um grande palácio desabitado, mais comprido que toda a povoação e muito mais alto que a torre da sua igreja, e continuou a navegar nas trevas em direcção da cidade colonial fortificada contra os corsários, no outro lado da baía, com o seu antigo porto negreiro e farol giratório, cujas lúgubres cruzes de luz, de quinze em quinze segundos, transfiguravam a povoação num acampamento lunar de casas fosforescentes e ruas de desertos vulcânicos, e, apesar de ele ser nessa altura um rapazinho sem vozeirão de homem, mas com autorização da sua mãe para escutar até muito tarde na praia as harpas nocturnas do vento, ainda podia recordar como se o estivesse a ver que o transatlântico desaparecia quando a luz do farol lhe dava de lado e tornava a aparecer quando a luz acabava de passar, de maneira que era um navio intermitente que ia aparecendo e desaparecendo em direcção da entrada da baía, procurando com tenteies de sonâmbulo as bóias que assinalavam o canal do porto, até que alguma coisa deve ter falhado nas suas agulhas de orientação, porque derivou em direcção dos escolhos, tropeçou, saltou em pedaços e afundou‑se sem um único ruído, apesar de que semelhante encontrão com os recifes era para produzir um fragor de ferros e uma explosão de máquinas que gelassem de pavor os dragões mais adormecidos na selva pré‑histórica que começava nas últimas ruas da cidade e acabava no outro lado do mundo, de tal maneira que ele próprio se convenceu de que era um sonho, durante todo o dia seguinte, quando viu o aquário radiante da baía, a desordem de cores das barracas dos negros nas colinas do porto, as escunas dos contrabandistas das Guaianas recebendo o seu carregamento de papagaios inocentes com o papo cheio de diamantes, pensou, adormeci a contar as estrelas e sonhei com esse barco enorme, claro, ficou tão convencido que não o contou a ninguém nem voltou a recordar‑se da visão até à mesma noite do Março seguinte, quando andava à procura de indícios de delfins no mar e o que encontrou foi o transatlântico ilusório, sombrio, intermitente, com o mesmo destino errado da primeira vez, com a diferença de que ele estava nessa altura tão certo de estar acordado que correu a contá‑lo a sua mãe, e ela passou três semanas a gemer de desilusão, porque se te estão a apodrecer os miolos de tanto andares às avessas, dormindo de dia e andando à aventura de noite, como as pessoas de má vida, e como teve de ir à cidade por esses dias à procura de alguma coisa cómoda em que se sentar a pensar no marido morto, pois à sua cadeira de balouçar tinham‑se gasto os balanceiros em onze anos de viuvez, aproveitou a ocasião para pedir ao homem do bote que passasse pelos recifes de maneira que o filho pudesse ver o que, com efeito, viu na vitrina do mar, os amores das mantas em primaveras de esponjas, os capatões rosados e as corvinas azuis mergulhando nos poços de águas mais tenras que havia dentro das águas, e até as cabeleiras errantes dos afogados de algum naufrágio colonial, mas nem vestígios de transatlânticos afundados, nem pensar nisso, e, contudo, ele continuou tão convencido que a sua mãe prometeu acompanhá‑lo na véspera do próximo Março, de certeza, sem saber que já a única coisa certa que havia no seu futuro era uma poltrona dos tempos de Francis Drake que comprou num leilão de turcos, na qual se sentou a descansar naquela mesma noite, suspirando, meu pobre Holofernes, se visses que bem que se pensa em ti, sobre estes forros de veludo e com estes brocados de túmulo de rainha, mas quanto mais evocava o marido morto mais lhe borbulhava e se lhe tornava de chocolate o sangue no coração, como se em vez de estar sentada estivesse a correr, empapada de calafrios e com a respiração cheia de terra, até que ele voltou de madrugada e a encontrou morta na poltrona, ainda quente, mas já meio apodrecida, como os picados pelas cobras, o mesmo que aconteceu depois a outras quatro senhoras, antes de terem atirado ao mar a poltrona assassina, muito longe, onde não fizesse mal a ninguém, pois tinham‑na usado tanto através dos séculos que se lhe tinha gasto a faculdade de produzir descanso, de maneira que ele teve de habituar‑se à sua miserável rotina de órfão, apontado por todos como o filho da viúva que levou para a povoação o trono da desgraça, vivendo não tanto da caridade pública como do peixe que roubava nos botes, enquanto a voz se lhe ia tornando de bramante e sem lembrar‑se mais das suas visões de antanho, até outra noite de Março em que olhou por acaso para o mar, e subitamente, minha mãe, lá está a descomunal baleia de amianto, a besta varrasca, venham vê‑la, provocando tal alvoroço de ladridos de cães e pânicos de mulher que até os homens mais velhos se lembraram dos espantos dos seus bisavós e meteram‑se debaixo da cama, supondo que tinha voltado William Dampier, mas os que se atiraram para a rua não se deram ao trabalho de ver a forma inverosímil que naquele instante tornava a perder o oriente e se desfazia no desastre anual, mas quase o mataram com pancadas e deixaram‑no tão mal torcido que foi então quando ele se disse, babando de raiva, agora vão ver quem sou eu, mas teve a precaução de não compartilhar com ninguém a sua determinação e passou o ano inteiro com a ideia fixa, agora vão ver quem sou eu, esperando que fosse outra vez a véspera das aparições para fazer o que fez, já está, roubou um bote, atravessou a baía e passou a tarde esperando a sua hora grande nas anfractuosidades do porto negreiro, entre a salmoura humana do Caribe, mas tão absorto na sua aventura que não se deteve, como de costume, diante das lojas dos hindus para ver os mandarins de marfim talhados na presa inteira do elefante, nem troçou dos negros holandeses nos seus velocípedes ortopédicos, nem se assustou, como das outras vezes, com os malaios de pele de cobra que tinham dado a volta ao mundo, seduzidos pela quimera de uma estalagem secreta onde vendiam filetes de brasileiras na brasa, porque não deu atenção a nada enquanto a noite não lhe caiu em cima com todo o peso das estrelas e a selva exalou uma fragrância doce de gardénias e salamandras apodrecidas, e lá estava ele remando no bote roubado para a entrada da baía, com a lâmpada apagada, para não alvoroçar a guarda fiscal, idealizado de quinze em quinze segundos pela pancada verde do farol e tornado outra vez humano pela escuridão, sabendo que estava perto das bóias que sinalizavam o canal do porto, não só porque visse cada vez mais intenso o seu fulgor opressivo, mas porque a respiração da água se lhe ia tornando triste, e assim remava tão ensimesmado que não soube de onde lhe veio subitamente um pavoroso sopro de tubarão nem porque a noite se tornou densa como se as estrelas tivessem morrido de repente, e era porque o transatlântico estava ali com todo o seu tamanho inconcebível, mãe, mais grande que qualquer outra coisa grande no mundo e mais escuro que qualquer outra coisa escura da terra ou da água, trezentas mil toneladas de cheiro de tubarão passando tão perto do bote que ele podia ver as costuras do precipício de aço, sem uma única luz nas infinitas clarabóias, sem um suspiro nas máquinas, sem uma alma, e levando consigo o seu próprio âmbito de silêncio, o seu próprio céu vazio, o seu próprio ar morto, o seu tempo parado, o seu mar errante, no qual flutuava um mundo inteiro de animais afogados, e de repente tudo aquilo desapareceu com o trago do farol, e por um instante voltou a ser o Caribe diáfano, a noite de Março, o ar quotidiano dos pelicanos, de maneira que ele ficou só entre as bóias, sem saber o que fazer, perguntando‑se, assombrado, se de facto não estaria a sonhar acordado, não só agora, mas também das outras vezes, mas, mal acabara de se fazer esta pergunta, quando um sopro de mistério foi apagando as bóias, desde a primeira até à última, de modo que quando passou a claridade do farol o transatlântico voltou a aparecer e já tinha as bússolas extraviadas, talvez sem sequer saber em que lugar do mar oceânico se encontrava, buscando com tenteios o canal invisível, mas na realidade derivando na direcção dos escolhos, até que ele teve a revelação esmagadora de que aquele percalço das bóias era a última chave do encantamento, e acendeu a lâmpada do bote, uma minúscula luzinha vermelha que não tinha nada para alarmar ninguém nas almenaras da guarda fiscal, mas que deve ter sido para o piloto como um sol oriental, porque, graças a ela, o transatlântico corrigiu o seu horizonte e entrou pela porta grande do canal numa manobra de ressurreição feliz, e então todas as suas luzes se acenderam ao mesmo tempo, as caldeiras voltaram a resfolegar, as estrelas prenderam‑se ao seu céu e os cadáveres dos animais foram para o fundo, e havia um estrépito de pratos e uma fragrância de molho de loureiro nas cozinhas, e ouvia‑se o bombardino da orquestra nas cobertas de lua e o tum‑tum das artérias dos enamorados de mar alto na penumbra dos camarotes, mas ele levava ainda tanta raiva atrasada que não se deixou aturdir pela emoção nem amedrontar pelo prodígio, mas disse para si mesmo, com mais decisão do que nunca, que agora vão ver quem sou eu, catano, agora vão vê‑lo, e, em vez de pôr‑se para um lado, para que não o investisse aquela máquina colossal, começou a remar em frente dela, porque agora, sim, vão saber quem sou eu, e continuou orientando o navio com a lâmpada, até que esteve tão certo da sua obediência que o obrigou a mudar de novo o rumo dos molhes, tirou‑o do canal invisível e levou‑o de cabresto, como se fosse um cordeiro de mar, em direcção das luzes da povoação adormecida, um barco vivo e invulnerável aos feixes do farol que agora não invisibilizavam, mas que o tornavam de alumínio de quinze em quinze segundos, e além começavam a definir‑se as cruzes da igreja, a miséria das casas, a ilusão, e, não obstante, o transatlântico ia atrás dele, seguindo‑o com tudo o que levava dentro, o seu capitão adormecido do lado do coração, os touros de lida na neve das suas despensas, o doente solitário no seu hospital, a água órfã das suas cisternas, o piloto irremível que deve ter confundido os farelhões com os molhes, porque naquele instante rebentou o bramido descomunal da sereia, uma vez, e ele ficou ensopado pelo aguaceiro de vapor que lhe caiu em cima, outra vez, e o bote alheio esteve quase a soçobrar, e outra vez, mas já era demasiado tarde, porque aí estavam os búzios da margem, as pedras da rua, as portas dos incrédulos, a povoação inteira iluminada pelas mesmas luzes do transatlântico apavorado, e ele mal teve tempo de afastar‑se para deixar passar o cataclismo, gritando no meio da comoção, aí o têm, cabrões, um segundo antes que o tremendo casco de aço esquartejasse a terra e se ouvisse o estropício nítido das noventa mil e quinhentas taças de champanhe que se partiram, uma atrás da outra, desde a proa à popa, e então fez‑se a luz, e já não foi mais a madrugada de Março, mas sim o meio‑dia de uma quarta‑feira radiante, e ele pôde permitir‑se o gosto de ver os incrédulos contemplando com a boca aberta o transatlântico mais grande deste mundo e do outro encalhado em frente da igreja, mais branco que tudo, vinte vezes mais alto que a torre e cerca de noventa e sete vezes mais comprido que a povoação, com o nome gravado em letras de ferro, halalcsillag, e ainda jorrando pelos seus flancos as águas antigas e lânguidas dos mares da morte.

 

Blacamán, o bom vendedor de milagres.

Logo no primeiro domingo em que o vi pareceu‑me uma mula de mono‑sábio, com os seus suspensórios de veludo pespontados com filamentos de ouro, as suas argolas com pedrarias de cores em todos os dedos e a sua trança de cascavéis, empoleirado sobre uma mesa no porto de Santa Maria del Darién, entre os frascos de específicos e as ervas de consolação que ele mesmo preparava e vendia a altos brados, pelas povoações do Caribe, com a diferença de que naquela altura não estava a vender nada àquela porcaria de índios, mas simplesmente pedindo que lhe levassem uma cobra verdadeira para demonstrar em carne própria um contraveneno da sua invenção, o único indelével, senhoras e senhores, contra as picadas de serpentes, tarântulas e escolopendras, e toda a espécie de mamíferos peçonhentos. Alguém que parecia muito impressionado pela sua determinação conseguiu, ninguém soube onde, e levou‑lhe dentro de um frasco uma mapaná das piores, dessas que começam por envenenar a respiração, e ele destapou‑a com tantas ganas que todos acreditámos que a ia comer, mas, mal se sentiu livre, o animal saltou para fora do frasco e deu‑lhe uma tesourada no pescoço que ali mesmo o deixou sem ar para a eloquência, e apenas teve tempo de tomar o antídoto quando o dispensário de pacotilha se despenhou sobre a multidão e ele ficou a rebolar‑se no chão com o enorme corpo desordenado, como se não tivesse nada por dentro, mas sem parar de rir com todos os seus dentes de ouro. De tal maneira seria o estrépito que um couraçado do Norte que estava no molhe desde havia cerca de vinte anos em visita de boa vontade se pôs de quarentena, para que não lhe subisse a bordo o veneno da cobra, e as pessoas que estavam santificando o Domingo de Ramos saíram da missa com as suas palmas benditas, pois ninguém queria perder o espectáculo do empeçonhado, que já começava a inchar com o ar da morte e estava duas vezes mais gordo do que tinha sido, deitando espuma de fel pela boca e resfolegando pelos poros, mas, não obstante, rindo‑se com tanta vida que os cascavéis lhe cascavelhavam por todo o corpo. A inchação rebentou‑lhe com os cordões das polainas e as costuras da roupa, os dedos amorcelaram‑se‑lhe pela pressão das argolas, pôs‑se da cor do veado em salmoura e saíram‑lhe pelo ânus umas ventosidades póstumas, de maneira que todos aqueles que tinham visto um picado por cobra sabiam que estava a apodrecer antes de morrer e que iria ficar tão esmigalhado que teriam de recolhê‑lo com uma pá para deitá‑lo dentro de um saco, mas também pensavam que até no seu estado de serradura ia continuar a rir‑se. Aquilo era tão incrível que os fuzileiros da marinha se encarrapitaram nas pontes do navio para tirar‑lhe retratos a cor com aparelhos de longa distância, mas as mulheres que tinham saído da missa estragaram‑lhes as intenções, pois taparam o moribundo com uma manta e colocaram‑lhe por cima as palmas benditas, umas porque não lhes agradava que a armada profanasse o corpo com máquinas de adventistas, outras porque lhes fazia medo continuar a ver aquele fanático que era capaz de morrer a morrer de rir e outras para ver se por acaso com isso conseguiam que, pelo menos, a alma se lhe desenvenenasse.

Toda a gente o dava como morto, quando afastou os ramos com uma braçada, ainda meio atarantado e todo enfraquecido pelo mau bocado, mas endireitou a mesa sem a ajuda de ninguém, tornou a subir para ela como um caranguejo e pôs‑se outra vez a gritar que aquele contraveneno era simplesmente a mão de Deus num frasquinho, como todos tínhamos visto com os nossos próprios olhos, apesar de só custar dois cuartillos,(1) porque ele não o tinha inventado para negócio, mas para o bem da humanidade, e quem é que pediu um, senhoras e senhores, não se me amontoem, por favor, que há que chegue para todos.

É de crer que se amontoaram, e que fizeram bem, porque no fim não houve para todos. Até o almirante do couraçado comprou um frasquinho, convencido por ele de que também era bom para os chumbos envenenados dos anarquistas, e os tripulantes não se conformaram com tirar‑lhe em cima da mesa os retratos em cor que não puderam tirar‑lhe morto, mas fizeram‑no assinar autógrafos até que as cãibras lhe torceram o braço. Era quase noite e só tínhamos ficado no porto os mais perplexos, quando ele procurou com o olhar algum que tivesse cara de bobo para que o ajudasse a guardar os frascos, e, evidentemente, reparou em mim. Aquele foi como que o olhar do destino, não só do meu, como também do seu, pois isso aconteceu há já mais de um século e ambos nos recordamos ainda como se tivesse sido no domingo passado. O caso é que estávamos a meter a sua botica de circo naquele baú forrado de púrpura, que mais parecia o sepulcro de um erudito, quando ele me deve ter visto por dentro alguma luz que não me tinha visto antes, porque me perguntou, de mau humor, quem és tu, e eu respondi‑lhe que era o único órfão de pai e mãe a quem ainda não tinha morrido o papá, e ele soltou umas gargalhadas mais estrepitosas que as do veneno e perguntou-me, depois, o que fazes na vida, e eu respondi‑lhe que não fazia nada mais que estar vivo, porque tudo o resto não valia a pena, e ainda chorando de riso perguntou‑me qual a ciência que eu mais gostaria de conhecer no mundo, e essa foi a única vez em que lhe respondi sem enganar a verdade, que queria ser adivinho, e então não tornou a rir, mas disse‑me, como se estivesse a pensar em voz alta, que para isso me faltava pouco, pois já tinha o mais fácil de aprender, que era a minha cara de bobo. Nessa mesma noite falou com o meu pai, e, por um real e dois cuartillos e um baralho de prognosticar adultérios, comprou‑me para sempre.

Assim era Blacamán, o mau, porque o bom sou eu. Era capaz de convencer um astrónomo de que o mês de Fevereiro não era mais do que um rebanho de elefantes invisíveis, mas, quando a sorte se lhe virava, tornava‑se duro de coração. Nos seus tempos de glória tinha sido embalsamador de vice‑reis, e dizem que lhes compunha uma cara de tanta autoridade que durante muitos anos continuavam a governar melhor do que quando estavam vivos, e que ninguém se atrevia a enterrá‑los enquanto ele não lhes tornasse a pôr a catadura de mortos, mas o prestígio foi‑lhe estragado pela invenção de um xadrez de nunca acabar que enlouqueceu um capelão e provocou dois suicídios ilustres, e assim foi decaindo de intérprete de sonhos em hipnotizador de aniversários, de arrancador de molares por sugestão em curandeiro de feira, de maneira que na época em que nos conhecemos já até os flibusteiros o olhavam de lado. Andávamos à deriva com a nossa barraca de tramóias, e a vida era um eterno soçobro, tentando vender os supositórios de evasão que tornavam transparentes os contrabandistas, as gotas furtivas que as esposas baptizadas deitavam na sopa para infundir o temor de Deus aos maridos holandeses, e tudo o que vocês queiram comprar de própria vontade, senhoras e senhores, porque isto não é uma ordem, mas um conselho, e, ao fim e ao cabo, tão‑pouco a felicidade é uma obrigação. Contudo, por mais que nos morrêssemos de rir das suas ideias, a verdade é que com grandes dificuldades nos chegavam para comer, e a sua última esperança fundava‑se na minha vocação de adivinho. Fechava‑me no baú sepulcral, disfarçado de japonês e amarrado com correntes de estibordo, para que tentasse adivinhar o que pudesse, enquanto ele desentranhava a gramática procurando a melhor maneira de convencer o mundo da sua nova ciência, e aqui têm, senhoras e senhores, esta criatura atormentada pelos pirilampos de Ezequiel, e vocemecê que ficou para aí com essa cara de incrédulo, vamos a ver se se atreve a perguntar‑lhe quando vai morrer, mas nunca consegui adivinhar nem a data em que estávamos, de maneira que ele desesperou de eu ser adivinho, porque o torpor da digestão transtorna‑lhe a glândula dos presságios, e, depois de me abater com uma trancada, para restaurar‑se da boa sorte resolveu levar‑me ao meu pai, para que lhe devolvesse o dinheiro. Contudo, nesses tempos deu‑lhe para encontrar aplicações práticas para a electricidade do sofrimento e pôs‑se a fabricar uma máquina de coser conectada com ventosas à parte do corpo em que se tivesse uma dor. Como eu passava a noite a queixar‑me das sovas que ele me dava para conjurar a desgraça, teve de ficar comigo como provador do seu invento, e assim se foi atrasando o regresso e se lhe foi compondo o humor, até que a máquina funcionou tão bem que, não só cosia melhor que uma noviça, mas ainda bordava pássaros e flores, segundo a posição e a intensidade da dor. Estávamos nisso, convencidos da nossa vitória sobre a má sorte, quando nos chegou a notícia de que o comandante do couraçado tinha querido repetir em Filadélfia a experiência do contraveneno e converteu‑se em marmelada de almirante em presença do seu estado‑maior.

Não voltou a rir‑se durante muito tempo. Fugimos por desfiladeiros de índios e, à medida que mais perdidos nos encontrávamos, mais claras nos chegavam as vozes de que os fuzileiros navais tinham invadido a nação, com o pretexto de exterminar a febre amarela, e andavam a degolar todos os vendedores ambulantes inveterados ou fortuitos que encontravam pelo caminho, e não só os nativos por precaução, como também os chineses por distracção, os negros por costume e os hindus por serem encantadores de serpentes, e depois arrasaram com a fauna e a flora e com o que puderam do reino mineral, porque os seus especialistas dos nossos assuntos tinham‑lhes ensinado que a gente do Caribe tinha a virtude de mudar de natureza para enrolar os gringos. Eu não percebia de onde lhes tinha saído aquela raiva nem por que razão nós tínhamos tanto medo, até que nos encontrámos a salvo nos ventos eternos da Guajira, e só ali teve a coragem para confessar‑me que o seu contraveneno não era mais do que ruibarbo com terebintina, mas que tinha pago dois cuartillos a um calanchín para que lhe levasse aquela mapaná sem peçonha. Ficámos nas ruínas de uma missão colonial, enganados com a esperança de que passassem os contrabandistas, que eram homens de fiar e os únicos capazes de aventurar‑se sob o sol mercurial daqueles ermos de salitre. Ao princípio comíamos salamandras defumadas com flores de escombros, e ainda nos ficava ânimo para rirmos quando tentámos comer as suas polainas fervidas, mas finalmente comemos até as teias de aranha da água dos poços, e só então nos demos conta da falta que nos fazia o mundo. Como eu não conhecia naquele tempo nenhum recurso contra a morte, deitei‑me simplesmente a esperá‑la onde me doesse menos, enquanto ele delirava com a recordação de uma mulher tão terna que podia passar suspirando através das paredes, mas também aquela recordação inventada era um artifício da sua arte para enganar a morte com desgostos de amor. Contudo, na hora em que devíamos ter morrido, aproximou‑se de mim mais vivo do que nunca e esteve a noite inteira a vigiar‑me a agonia, pensando com tanta força que ainda não consegui saber se o que assobiava entre os escombros era o vento ou o seu pensamento, e antes de amanhecer disse‑me com a mesma voz e a mesma determinação de outra época que agora conhecia a verdade, e era que eu lhe tinha tornado a virar a sorte, de maneira que amarra‑te bem as calças porque assim como ma torceste vais‑ma endireitar.

Foi nessa altura que começou a desaparecer a pouca afeição que eu lhe tinha. Tirou‑me os últimos trapos de cima, enrolou‑me em arame farpado, esfregou‑me pedras de salitre nas chagas, pôs‑me salmoura nas minhas próprias águas e pendurou‑me pelos tornozelos para me macerar ao sol, e ainda gritava que aquela mortificação não era suficiente para apaziguar os seus perseguidores. Por fim atirou‑me a apodrecer nas minhas próprias misérias para dentro do calabouço de penitência onde os missionários coloniais regeneravam os hereges, e com a perfídia de ventríloquo que ainda lhe sobrava pôs‑se a imitar as vozes dos animais de comer, o rumor das beterrabas maduras e o ruído dos mananciais para torturar‑me com a ilusão de que estava a morrer de indigência no Paraíso. Quando, por fim, o abasteceram os contrabandistas, descia ao calabouço para dar‑me a comer alguma coisa que não me deixasse morrer, mas a seguir fazia‑me pagar a caridade arrancando‑me as unhas com tenazes e rebaixando‑me os dentes com pedras de moer, e o meu único consolo era o desejo de que a vida me desse tempo e sorte para desforrar‑me de tanta infâmia com outros martírios piores. Eu próprio me assombrava de poder resistir à pestilência da minha própria putrefacção, e ainda me atirava para cima com as sobras dos seus almoços e deitava pelos cantos pedaços de lagartos e gaviões podres, para que o ar do calabouço se acabasse de envenenar. Não sei quanto tempo tinha passado quando me levou o cadáver de um coelho para mostrar‑me que preferia deitá‑lo a apodrecer do que dar‑mo de comer, e até ali me chegou a paciência e unicamente me ficou o rancor, de maneira que agarrei o corpo do coelho pelas orelhas e atirei‑o contra a parede, com a ilusão de que era ele, e não o animal, que ia rebentar, e então foi quando sucedeu como num sonho, que o coelho não só ressuscitou com um guincho de espanto, como também regressou às minhas mãos caminhando pelo ar.

Foi assim que começou a minha vida grande. Desde aí ando pelo mundo tirando a febre aos palúdicos por dois pesos, dando vista aos cegos por quatro e cinquenta, desaguando os hidrópicos por dezoito, completando os mutilados por vinte pesos se o são de nascença, por vinte e dois se o são por acidentes ou bulhas, por vinte e cinco se o são por causa de guerras, terramotos, desembarques de fuzileiros ou qualquer outro género de calamidades públicas, atendendo os doentes vulgares em grosso mediante combinação especial, os loucos conforme o género, às crianças por metade do preço e aos bobos por gratidão, e a ver quem se atreve a dizer que não sou um filantropo, damas e cavalheiros, e agora, sim, senhor comandante da vigésima esquadra, ordene aos seus rapazes que tirem as barricadas para que passe a humanidade dorida, os lazarentos à esquerda, os epilépticos à direita, os tolhidos onde não estorvem e lá para trás os menos urgentes, mas, por favor, não se me amontoem, que depois não me responsabilizo se se lhes baralham as doenças e ficam curados do que não é, e que continue a música até que ferva o cobre, e os foguetes até que se queimem os anjos e a aguardente até matar a ideia, e venham as matronas e os acrobatas, os magarefes e os fotógrafos, e tudo isso por minha conta, damas e cavalheiros, que aqui se acabou a má fama dos Blacamanes e se promoveu o avigoramento universal. Assim os vou adormecendo com técnicas de deputado, para o caso de me falhar o critério e alguns me ficarem piores do que estavam. A única coisa que não faço é ressuscitar os mortos, porque mal abrem os olhos contramatam de raiva o perturbador do seu estado, e, no fim de contas, os que não se suicidam voltam a morrer de desilusão. Ao princípio, perseguia‑me um séquito de sábios, para investigar a legalidade da minha indústria, e quando ficaram convencidos ameaçaram‑me com o inferno de Simão, o Mago, e recomendaram‑me uma vida de penitência para que viesse a ser santo, mas eu respondi‑lhes, sem menosprezo pela sua autoridade, que era precisamente por aí por onde tinha começado. A verdade é que eu não ganho nada com ser santo depois de morto, eu o que sou é um artista, e a única coisa que quero é estar vivo para continuar uma vida sem peias com este calhambeque descapotável de seis cilindros que comprei ao cônsul dos fuzileiros, com este motorista trinitário que era barítono da ópera dos piratas de Nova Orleães, com as minhas camisas de seda pura, as minhas loções de oriente, os meus dentes de topázio, o meu chapéu de palhinha e os meus botins de duas cores, dormindo sem despertador, bailando com as rainhas da beleza e deixando‑as como que alucinadas com a minha retórica de dicionário, e sem que me trema a voz se numa Quarta‑Feira de Cinzas se me murcham as faculdades, pois, para continuar com esta vida de ministro, basta‑me a minha cara de bobo e chega‑me o tropel de barracas que tenho daqui até mais além do crepúsculo, onde os mesmos turistas que nos andavam a fazer figura de almirante esbarram agora nos retratos com a minha rubrica, nos almanaques com os meus versos de amor, nas minhas medalhas de perfil, nos meus bocadinhos de roupa, e tudo isso sem a gloriosa madorna de estar todo o dia e toda a noite esculpido em mármore equestre e cagado pelas andorinhas como os pais da pátria.

É pena que Blacamán, o Mau, não possa repetir esta história, para que vejam que não tem nada de invenção. A última vez que alguém o viu neste mundo tinha perdido até as grandes tachas douradas do seu antigo esplendor, e tinha a alma desmantelada e os ossos em desordem pelo rigor do deserto, mas ainda lhe sobrou um bom par de cascavéis para reaparecer naquele domingo no porto de Santa Maria del Darién com o eterno baú sepulcral, com a diferença de que nessa altura não estava a vender nenhum contraveneno, mas pedindo, com a voz fendida pela emoção, que os fuzileiros navais o fuzilassem em espectáculo público, para demonstrar em carne própria as faculdades ressuscitadoras desta criatura sobrenatural, senhoras e senhores, e ainda que a vocês lhes sobre o direito de não me acreditar depois de ter padecido durante tanto tempo as minhas más astúcias de embusteiro e falsificador, juro‑lhes pelos ossos de minha mãe que esta experiência de hoje não é nada do outro mundo, mas a humilde verdade, e no caso de lhes restar alguma dúvida reparem bem que agora não estou a rir como antes, mas aguentando as ganas de chorar. Estava de tal maneira convincente que desabotoou a camisa com os olhos afogados de lágrimas, e dava‑se palmadas de mulo no coração, para indicar o melhor sítio da morte, e, não obstante, os fuzileiros navais não se atreveram a disparar com o temor de que as multidões dominicais lhes reconhecessem o desprestígio. Alguém que possivelmente não esquecia as blacamanices de outra época conseguiu, ninguém soube onde, e levou‑lhe, dentro de uma lata, umas raízes de verbasco que teriam chegado para pôr a flutuar as corvinas do Caribe, e ele destapou‑as com tantas ganas como se, de facto, as fosse comer, e com efeito comeu‑as, senhoras e senhores, mas, por favor, não se me comovam nem vão rezar pelo meu descanso, que esta morte não é mais do que uma visita. Daquela vez foi tão honrado que não se comprometeu com estertores de ópera, mas desceu da mesa como um caranguejo, procurou no chão através das primeiras dúvidas o lugar mais digno para se deitar, e dali olhou para mim como para uma mãe e exalou o seu último suspiro entre os seus próprios braços, contudo contendo as suas lágrimas de homem e torcido do direito e do avesso pelo tétano da eternidade. Foi essa a única vez, certamente, em que me falhou a ciência. Meti‑o naquele baú de tamanho premonitório onde coube de corpo inteiro, mandei‑lhe cantar uma missa de trevas que me custou cinquenta dobrões de quatro, porque o oficiante estava vestido de ouro e, além disso, havia três bispos sentados, mandei‑lhe edificar um mausoléu de imperador sobre uma colina exposta aos melhores tempos do mar, com uma capela só para ele, e uma lápida de ferro onde ficou escrito com maiúsculas góticas que aqui jaz Blacamán, o Morto, mal chamado o Mau, mistificador de fuzileiros e vítima da ciência, e, quando estas honras me bastaram, para lhe fazer justiça pelas suas virtudes, comecei a desforrar‑me das suas infâmias, e então ressuscitei‑o dentro do sepulcro blindado e ali o deixei a rebolar‑se no horror. Isto aconteceu muito antes de que Santa Maria del Darién tivesse sido tragada pela marabunta, mas o mausoléu continua intacto na colina, à sombra dos dragões que sobem para dormir nos ventos atlânticos, e cada vez que passo por esses rumos levo‑lhe um camião carregado de rosas e dói‑me o coração com pena pelas suas virtudes, mas depois ponho o ouvido na lápida para ouvi‑lo chorar entre os escombros do baú desfeito e se, por acaso, voltou a morrer volto a ressuscitá‑lo, pois a graça do castigo é que continue a viver na sepultura enquanto eu esteja vivo, isto é, para sempre.

 

A incrível e triste história da cândida Eréndira e da sua avó desalmada

Eréndira estava a dar banho à sua avó quando começou o vento da sua desgraça. A enorme mansão de argamassa lunar, perdida na solidão do deserto, estremeceu até às fundações com a primeira investida. Mas Eréndira e a avó estavam afeitas aos perigos daquela natureza desatinada e mal notaram o calibre do vento no quarto de banho ornamentado com pavões repetidos e mosaicos pueris de termas romanas.

A avó, nua e grande, parecia uma formosa baleia branca na alverca de mármore. A neta mal tinha completado os catorze anos, e era lânguida e de ossos tenros, e demasiado mansa para a sua idade. Com uma parcimónia que tinha alguma coisa de rigor sagrado, fazia abluções à avó com uma água em que tinha fervido plantas depurativas e folhas de bom cheiro, e estas ficavam pegadas às espáduas suculentas, nos cabelos metálicos e soltos, no ombro potente tatuado sem piedade com um escárnio de marinheiros.

‑ Esta noite sonhei que estava à espera de uma carta ‑ disse a avó.

Eréndira, que nunca falava, a não ser por motivos iniludíveis, perguntou:

‑ Que dia era no sonho?

‑ Quinta‑feira.

‑ Então era uma carta com más notícias ‑ disse Eréndira ‑, mas não chegará nunca.

Quando a acabou de lavar, levou a avó para o seu quarto. Era tão gorda que só podia andar apoiada no ombro da neta, ou com um báculo que parecia de bispo, mas mesmo nas suas diligências mais difíceis notava‑se o domínio de uma grandeza antiquada. Na alcova composta com um critério excessivo e um pouco demente, como toda a casa, Eréndira precisou de mais de duas horas para arranjar a avó. Desenredou‑lhe o cabelo fio por fio, perfumou‑lho e penteou‑lho, pôs‑lhe um vestido de flores equatoriais, polvilhou‑lhe a cara com pó de talco, pintou‑lhe os lábios com carmim, as pálpebras com almíscar e as unhas com esmalte de nácar, e quando a teve enfeitada como uma boneca mais grande que o tamanho humano levou‑a para um jardim artificial de flores sufocantes como as do vestido, sentou‑a numa poltrona que tinha a base e a estirpe de um trono e deixou‑a a ouvir os discos fugazes do gramofone com altifalante.

Enquanto a avó navegava pelos lamaçais do passado, Eréndira ocupou‑se a varrer a casa, que era escura e pintada de várias cores, com móveis frenéticos e estátuas de césares inventados, e aranhas de lágrimas e anjos de alabastro, e um piano com verniz de ouro, e numerosos relógios de formas e medidas imprevisíveis. Tinha no pátio uma cisterna para armazenar durante muitos anos a água transportada a dorso de índio desde mananciais remotos, e numa argola da cisterna estava uma avestruz raquítica, o único animal de penas que pôde sobreviver ao tormento daquele clima malvado. Estava longe de tudo, na alma do deserto, junto a uma espécie de povoado com ruas miseráveis e ardentes, onde os cabritos se suicidavam de desolação quando soprava o vento da desgraça.

Aquele refúgio incompreensível tinha sido construído pelo marido da avó, um contrabandista legendário que se chamava Amadís, de quem ela teve um filho que também se chamava Amadís e que foi o pai de Eréndira. Ninguém conheceu as origens nem os motivos dessa família. A versão mais conhecida em língua de índios era que Amadís, o pai, tinha resgatado a sua formosa mulher dum prostíbulo das Antilhas, onde matou um homem à facada, e transportou‑a para sempre para a impunidade do deserto. Quando os Amadises morreram, um de febres melancólicas e outro crivado de golpes num pleito de rivais, a mulher enterrou os cadáveres no pátio, despediu as catorze criadas descalças e continuou apascentando os seus sonhos de grandeza na penumbra da casa furtiva, graças ao sacrifício da neta bastarda, que tinha criado desde a nascença.

Só para dar corda e acertar os relógios, Eréndira necessitava de seis horas. No dia em que começou a sua desgraça não teve de o fazer, pois os relógios tinham corda até à manhã seguinte, mas, em troca, teve de dar banho e tornar a vestir a avó, esfregar os andares, fazer o almoço e polir a cristalaria. Cerca das onze, quando mudou a água do balde da avestruz e regou as ervas daninhas das tumbas contíguas dos Amadises, teve de contrariar a coragem do vento, que se tinha tornado insuportável, mas não sentiu o mau presságio de que aquele fosse o vento da sua desgraça. Às doze estava a polir as últimas taças de champanhe, quando percebeu um cheiro de caldo delicado, e teve de fazer um milagre para conseguir correr até à cozinha sem deixar no seu caminho um desastre de vidros de Veneza.

Quase não conseguiu tirar a panela, que começava a entornar‑se na fornalha. A seguir pôs ao lume um guisado que já tinha preparado e aproveitou a ocasião para sentar‑se a descansar num banco de cozinha. Fechou os olhos, abriu‑os depois com uma expressão sem cansaço, e começou a deitar a sopa na sopeira. Trabalhava adormecida.

A avó tinha‑se sentado só na cabeceira de uma mesa de banquete, com candelabros de prata e serviços para doze pessoas, tocou a campainha, e quase no mesmo instante acudiu Eréndira com a sopeira fumegante. No momento em que lhe servia a sopa, a avó reparou nos seus modos de sonâmbula e passou‑lhe a mão em frente dos olhos, como se estivesse a limpar um espelho invisível. A menina não viu a mão. A avó seguiu‑a com o olhar, e quando Eréndira lhe virou as costas para voltar à cozinha, gritou‑lhe:

‑ Eréndira.

Despertada de chofre, a menina deixou cair a sopeira no tapete.

‑ Não é nada, filha ‑ disse‑lhe a avó, com uma ternura verdadeira. ‑ Voltaste a dormir a andar.

‑ É o costume do corpo ‑ desculpou‑se Eréndira. Apanhou a sopeira, ainda aturdida pelo sono, e tentou limpar a mancha do tapete.

‑ Deixa‑o assim ‑ dissuadiu‑a a avó ‑, lava‑la esta tarde. De maneira que, além dos trabalhos naturais da tarde,

Eréndira teve de lavar o tapete da sala de jantar, e aproveitou o estar no tanque para lavar também a roupa de segunda‑feira, enquanto o vento dava voltas em torno da casa, procurando um intervalo por onde meter‑se. Teve tanto que fazer que a noite lhe caiu em cima sem que se desse conta, e quando tornou a colocar o tapete da sala de jantar era a hora de deitar‑se.

A avó tinha dedilhado no piano toda a tarde, cantando, com voz de falsete, para si mesma as canções da sua época, e ainda lhe ficavam nas pálpebras as nódoas de óleo de almíscar com lágrimas. Mas, quando se estendeu na cama com o camisão de musselina, tinha‑se restabelecido da amargura das boas recordações.

‑ Aproveita amanhã para lavar também o tapete da sala ‑ disse a Eréndira ‑, que não viu o Sol desde os tempos do ruído.

‑ Sim, avó ‑ respondeu a menina.

Pegou num leque de penas e começou a abanar a matrona implacável, que lhe recitava o código de ordem nocturno enquanto se afundava no sono.

‑ Engoma toda a roupa antes de deitar‑te, para que durmas com a consciência tranquila.

‑ Sim, avó.

‑ Revista bem os roupeiros, que nas noites de vento as traças têm mais fome.

‑ Sim, avó.

‑ Com o tempo que te sobre, põe as flores no pátio para que respirem.

‑ Sim, avó.

‑ E pões a comida à avestruz.

Tinha adormecido, mas continuou a dar ordens, pois dela tinha herdado a neta a virtude de continuar a viver no sono. Eréndira saiu do quarto sem fazer barulho e fez os últimos trabalhos da noite, respondendo sempre aos mandatos da avó adormecida.

‑ Dá de beber às tumbas.

‑ Sim, avó.

‑ Antes de deitar‑te, repara em que tudo fique em perfeita ordem, pois as coisas sofrem muito quando não são postas a dormir nos seus lugares.

‑ Sim, avó.

‑ E se vierem os Amadises diz‑lhes que não entrem ‑ disse a avó ‑, que as quadrilhas de Porfirio Galán estão à espera deles para os matar.

Eréndira não respondeu mais, porque sabia que começava a extraviar‑se no delírio, mas não se esqueceu de uma ordem.

Quando acabou de revistar as tranquetas das janelas e apagou as últimas luzes, pegou num candelabro da sala de jantar e foi alumiando o caminho até ao seu quarto de dormir, enquanto as pausas do vento se enchiam com a respiração aprazível e enorme da avó adormecida.

O seu quarto de dormir também era luxuoso, embora não tanto como o da avó, e estava atulhado com as bonecas de trapo e os animais de corda da sua infância recente. Vencida pelas ocupações bárbaras da jornada, Eréndira não teve coragem para despir‑se, só pôs o candelabro na mesa‑de‑cabeceira e caiu na cama. Pouco depois, o vento da sua desgraça meteu‑se no quarto como uma manada de cães e tombou o candelabro contra as cortinas.

Ao amanhecer, quando por fim se acabou o vento, começaram a cair umas gotas de chuva grossas e separadas que apagaram as últimas brasas e endureceram as cinzas fumegantes da mansão. A gente da povoação, índios na sua maioria, tentava recuperar os restos do desastre: o cadáver carbonizado da avestruz, a armação do piano dourado, o torso de uma estátua. A avó contemplava com um abatimento impenetrável os resíduos da sua fortuna. Eréndira, sentada entre as duas tumbas dos Amadises, tinha parado de chorar. Quando a avó se convenceu de que ficavam muito poucas coisas intactas entre os escombros, olhou para a neta com uma compaixão sincera.

‑ Minha pobre menina ‑ suspirou. ‑ Não te chegará a vida para pagar‑me este percalço.

Começou a pagar‑se nesse mesmo dia, sob o estrondo da chuva, quando a levou ao lojista da povoação, um viúvo esquálido e prematuro que era muito conhecido no deserto porque pagava um bom preço pela virgindade. Ante a expectativa impávida da avó, o viúvo examinou Eréndira com uma austeridade científica: considerou a força dos seus músculos, o tamanho dos seus seios, o diâmetro das suas ancas. Não disse uma palavra enquanto não fez um cálculo do seu valor.

‑ Ainda está muito verde ‑ disse então ‑, tem tetazinhas de cadela.

Depois fê‑la subir para uma balança para provar com números o seu ditame. Eréndira pesava 42 quilos.

‑ Não vale mais de cem pesos ‑ disse o viúvo. A avó escandalizou‑se.

‑ Cem pesos por uma criatura completamente nova! ‑ quase gritou. ‑ Não, homem, isso é faltar muito ao respeito à virtude.

‑ Até cento e cinquenta ‑ disse o viúvo.

‑ A menina fez‑me um prejuízo de mais de um milhão de pesos ‑ disse a avó. ‑ Por este andar far‑lhe‑iam falta cerca de duzentos anos para me pagar.

‑ Por sorte ‑ disse o viúvo ‑, a única coisa boa que tem é a idade.

O temporal ameaçava desengonçar a casa, e havia tantas goteiras no tecto que quase chovia no interior como no exterior. A avó sentiu‑se só num mundo de desastre.

‑ Suba, pelo menos, até trezentos ‑ disse.

‑ Duzentos e cinquenta.

Por fim puseram‑se de acordo por duzentos e vinte pesos em dinheiro efectivo e algumas coisas para comer. A avó então fez sinal a Eréndira para que fosse com o viúvo, e este levou‑a pela mão até ao quarto por detrás da loja, como se a levasse para a escola.

‑ Espero‑te aqui ‑ disse a avó.

‑ Sim, avó ‑ disse Eréndira.

O quarto atrás da loja era uma espécie de alpendre com quatro pilares de ladrilhos, um tecto de palmas podres e uma barda de tijolo de um metro de altura, por onde se metiam na casa os distúrbios da intempérie.

Postos na beira dos tijolos estavam vasos de cactos e outras plantas de aridez. Pendurada entre dois pilares, agitando‑se como a vela solta de uma balandra garrada, estava uma rede sem cor. Por cima do assobio da tormenta e as cordoadas da água ouviam‑se gritos distantes, uivos de animais remotos, vozes de naufrágio.

Quando Eréndira e o viúvo entraram no alpendre tiveram de segurar‑se, para não caírem com um golpe de chuva que os deixou ensopados. As suas vozes não se ouviam e os seus movimentos tinham‑se tornado diversos, pelo fragor da borrasca. À primeira tentativa do viúvo, Eréndira gritou algo inaudível e tentou escapar. O viúvo respondeu‑lhe sem voz, torceu‑lhe o braço pelo punho e arrastou‑a até à rede. Ela resistiu‑lhe com um arranhão na cara e voltou a gritar em silêncio e ele respondeu‑lhe com uma bofetada solene que a levantou do chão e a fez flutuar um instante no ar com o comprido cabelo de medusa ondulando no vácuo, abraçou‑a pela cintura antes que voltasse a pisar o chão, derrubou‑a dentro da rede com um golpe brutal e imobilizou‑a com os joelhos. Eréndira sucumbiu então ao terror, perdeu os sentidos e ficou como que fascinada com as franjas de lua de um peixe que passava a navegar pelo ar da tormenta, enquanto o viúvo a despia, rasgando‑lhe a roupa com unhadas espaçadas, como a arrancar erva, desfazendo‑a em longas tiras de cor que ondulavam como serpentinas e se iam com o vento.

Quando não houve na povoação nenhum homem que pudesse pagar alguma coisa pelo amor de Eréndira, a avó levou‑a num camião de carga para os rumos do contrabando. Fizeram a viagem na plataforma aberta, entre sacos de arroz e latas de manteiga e os restos do incêndio: a cabeceira da cama vice‑real, um anjo de guerra, o trono chamuscado e outros trastes inúteis. Num baú com duas cruzes pintadas à broxa levaram os ossos dos Amadises.

A avó protegia‑se do sol eterno com um guarda‑chuva descosido e respirava mal pela tortura do suor e do pó, mas mesmo naquele estado de infortúnio conservava o domínio da sua dignidade. Atrás da pilha de latas e sacos de arroz, Eréndira pagou a viagem e o transporte dos móveis, fazendo amor a vinte pesos com o carregador do camião. Ao princípio, o seu sistema de defesa foi o mesmo com que se tinha oposto à agressão do viúvo. Mas o método do carregador foi diferente, lento e sábio, e acabou por amansá‑la com a ternura. De maneira que quando chegaram à primeira povoação, ao cabo de uma jornada mortal, Eréndira e o carregador descansavam do bom amor por detrás do parapeito da carga. O condutor do camião gritou à avó:

‑ De aqui para diante já tudo é mundo.

A avó observou com incredulidade as ruas miseráveis e solitárias de uma povoação um pouco maior, mas tão triste como a que tinham abandonado.

‑ Não se dá por isso ‑ disse.

‑ É território de missões ‑ disse o condutor.

‑ A mim não me interessa a caridade, mas o contrabando

‑ disse a avó.

Suspensa do diálogo por detrás da carga, Eréndira esburacava com o dedo um saco de arroz. Subitamente encontrou uma linha, puxou por ela e tirou um grande colar de pérolas legítimas. Contemplou‑o, assustada, segurando‑o entre os dedos como uma cobra morta, enquanto o condutor replicava à avó:

‑ Não sonhe acordada, senhora. Os contrabandistas não existem.

‑ Ai, não ‑ disse a avó ‑, diga‑me isso a mim.

‑ Procure‑os e verá ‑ troçou o condutor, bem disposto.

‑ Toda a gente fala deles, mas ninguém os vê.

O carregador deu‑se conta de que Eréndira tinha tirado o colar, apressou‑se a tirar‑lho e meteu‑o outra vez no saco de arroz. A avó, que se tinha decidido a ficar, apesar da pobreza da povoação, chamou então a neta, para que a ajudasse a descer do camião. Eréndira despediu‑se do carregador com um beijo apressado, mas espontâneo e sincero.

A avó esperou, sentada no trono, no meio da rua, até que acabaram de descer a carga. A última coisa foi o baú com os restos dos Amadises.

‑ Isto pesa como um morto ‑ troçou o condutor.

‑ São dois ‑ disse a avó. ‑ Por isso, trate‑os com o devido respeito.

‑ Aposto que são estátuas de marfim ‑ troçou o condutor.

Pôs o baú com os ossos, de qualquer maneira, entre os móveis chamuscados e estendeu a mão aberta diante da avó.

‑ Cinquenta pesos ‑ disse. A avó apontou o carregador.

‑Já o seu escravo recebeu adiantado.

O condutor olhou, surpreendido, para o ajudante e este fez‑lhe sinal afirmativo. Voltou à cabina do camião, onde viajava uma mulher enlutada com um bebé de colo, que chorava de calor. O carregador, muito seguro de si, disse então à avó:

‑ Eréndira parte comigo, se a senhora não manda outra coisa. É com boas intenções.

A menina interveio, assustada.

‑ Eu não disse nada!

‑ Digo‑o eu, que fui quem teve a ideia ‑ disse o carregador.

A avó examinou‑o de corpo inteiro, sem o diminuir, mas tentando calcular o verdadeiro tamanho dos seus tomates.

‑ Por mim não há inconveniente ‑ disse‑lhe ‑, se me pagas o que perdi pelo seu descuido.

São oitocentos e setenta e dois mil e trezentos e quinze pesos, menos quatrocentos e vinte que já me pagou, ou seja, oitocentos e setenta e um mil oitocentos e noventa e cinco. O camião arrancou.

‑ Creia‑me que lhe daria esse montão de dinheiro se o tivesse ‑ disse o carregador com seriedade. ‑ A menina vale‑os.

À avó caiu‑lhe bem a decisão do rapaz.

‑ Pois volta quando o tiveres, filho ‑ replicou‑lhe num tom simpático ‑, mas agora parte, que, se voltamos a fazer as contas, ainda me estás a dever dez pesos.

O carregador saltou para a plataforma do camião, que se afastava. Daí disse adeus a Eréndira com a mão, mas ela estava ainda tão assustada que não lhe retribuiu.

No mesmo terreno baldio onde as deixou o camião, Eréndira e a avó improvisaram uma barraca para viver, com folhas de zinco e restos de tapetes asiáticos. Puseram duas esteiras no solo e dormiram tão bem como na mansão, até que o sol abriu buracos no tecto e lhes abrasou a cara.

Ao contrário de sempre, foi a avó quem nessa manhã se ocupou de arranjar Eréndira. Pintou‑lhe a cara com um estilo de beleza sepulcral que tinha estado na moda durante a sua juventude e arrematou‑a com umas pestanas postiças e um laço de organdi que parecia uma borboleta na cabeça.

‑ Achas‑te horrorosa ‑ admitiu ‑, mas assim é melhor: os homens são muito duros em assuntos de mulheres.

Ambas reconheceram, muito antes de vê‑las, os passos de duas mulas na secura do deserto. A uma ordem da avó, Eréndira deitou‑se na esteira, como o teria feito uma aprendiza de teatro no momento em que ia abrir‑se o pano de boca. Apoiada no bordão episcopal, a avó abandonou a barraca e sentou‑se no trono à espera da passagem das mulas.

Aproximava‑se o homem do correio.

Não tinha mais de vinte anos, embora estivesse envelhecido pelo ofício, e trazia um fato de caqui, polainas, capacete de cortiça, e uma pistola de militar no cinturão de cartucheiras. Montava uma boa mula e levava outra de cabresto, menos robusta, sobre a qual se amontoavam os sacos de lona do correio.

Ao passar em frente da avó, saudou‑a com a mão e continuou o caminho. Mas ela fez um sinal para que deitasse um olhar no interior da barraca. O homem deteve‑se, e viu Eréndira deitada na esteira com os seus adornos póstumos e um vestido de sanefas cor de amora.

‑ Agrada‑te? ‑ perguntou a avó.

O homem do correio não tinha compreendido até esse momento o que lhe estavam a propor.

‑ Em jejum não está mal ‑ riu levemente.

‑ Cinquenta pesos ‑ disse a avó.

‑ Ena! Deve tê‑la de ouro! ‑ disse ele. ‑ Isso é o que me custa a comida de um mês.

‑ Não sejas agarrado ‑ disse a avó. ‑ O correio aéreo tem melhor ordenado que um cura.

‑ Eu sou o correio nacional ‑ disse o homem. ‑ O correio aéreo é esse que anda numa camioneta.

‑ De qualquer maneira, o amor é tão importante como a comida ‑ disse a avó.

‑ Mas não alimenta.

A avó compreendeu que a um homem que vivia das esperanças alheias lhe sobejava demasiado tempo para regatear.

‑ Quanto tens? ‑ perguntou‑lhe.

O correio desmontou, tirou do bolso umas notas amarrotadas e mostrou‑as à avó. Ela apanhou‑as todas juntas, com uma mão de ave de rapina, como se fossem um novelo.

‑ Faço‑te um abatimento ‑ disse ‑, mas com uma condição: fazes propaganda por toda a parte.

‑ Até ao outro lado do mundo ‑ disse o homem do correio. ‑ É para isso que sirvo.

Eréndira, que não tinha podido pestanejar, tirou então as pestanas postiças e chegou‑se para um lado da esteira para deixar espaço ao noivo casual. Mal ele entrou na barraca, a avó fechou a entrada com um puxão enérgico na cortina de correr.

Foi um tratado eficaz. Atraídos pelas vozes do correio, vieram homens de muito longe, para conhecer a novidade de Eréndira. Atrás dos homens vieram mesas de jogos de azar e barracas de comida e atrás de todos veio um fotógrafo em bicicleta, que instalou em frente do acampamento um aparelho de cavalete, com manga de luto e uma tela de fundo com um lago de cisnes inválidos.

A avó, abanando‑se no trono, parecia alheia à sua própria feira. A única coisa que lhe interessava era a ordem na fila dos clientes que esperavam turno e a exactidão do dinheiro que pagavam adiantadamente para entrar na tenda de Eréndira. Ao princípio tinha sido tão severa que até chegou a repelir um bom cliente porque lhe faltavam cinco pesos. Mas, com o decorrer dos meses, foi assimilando as lições da realidade e acabou por admitir que completassem o pagamento com medalhas de santos, relíquias de família, anéis matrimoniais e tudo quanto fosse capaz de demonstrar, mordendo‑o, que era ouro de boa lei, embora não brilhasse.

Ao cabo de uma longa estadia naquela primeira povoação, a avó teve suficiente dinheiro para comprar um burro, e internou‑se no deserto em busca de outros lugares mais propícios para pagar‑se da dívida. Viajava numa padiola que tinham improvisado sobre o burro e protegia‑se do Sol imóvel com o guarda‑chuva desvaretado que Eréndira mantinha por cima da sua cabeça. Atrás delas caminhavam quatro índios de carga com os pedaços do acampamento: as esteiras de dormir, o trono restaurado, o anjo de alabastro e o baú com os restos dos Amadises. O fotógrafo perseguia a caravana na sua bicicleta, mas sem se aproximar, como se fosse para outra festa. Tinham passado seis meses desde o incêndio quando a avó pôde ter uma visão inteira do negócio.

‑ Se as coisas continuam assim ‑ disse a Eréndira ‑, ter‑me‑ás pago a dívida dentro de oito anos, sete meses e onze dias. ‑ Voltou a examinar os seus cálculos, com os olhos fechados, ruminando os grãos que tirava de uma fraldiqueira de bainha onde tinha também o dinheiro, e precisou: ‑ Claro que tudo isso é sem contar com os salários e a comida dos índios, e outros gastos menores.

Eréndira, que caminhava ao passo do burro, angustiada pelo calor e o pó, não fez nenhuma crítica às contas da avó, mas teve de conter‑se para não chorar.

‑ Tenho vidro moído nos ossos ‑ disse.

‑ Tenta dormir.

‑ Sim, avó.

Fechou os olhos, respirou a fundo uma baforada de ar escaldante e continuou a caminhar adormecida.

Uma camioneta carregada de jaulas apareceu, espantando chibos entre a poeirada do horizonte, e o alvoroço dos pássaros foi um jorro de água fresca na modorra dominical de San Miguel del Desierto. Ao volante ia um corpulento fazendeiro com a pele rachada pela intempérie e uns bigodes cor de esquilo que tinha herdado de algum bisavô. Seu filho Ulisses, que viajava no outro banco, era um adolescente dourado, de olhos marítimos e solitários, com a identidade de um anjo furtivo. Ao holandês chamou‑lhe a atenção uma barraca de campanha em frente da qual esperavam vez todos os soldados da guarnição local. Estavam sentados no solo, bebendo de uma mesma garrafa, que passavam de boca em boca, e tinham ramos de amendoeira na cabeça, como se estivessem emboscados para um combate. O holandês perguntou na sua língua:

‑ Que diabos venderão ali?

‑ Uma mulher ‑ respondeu‑lhe seu filho, com toda a naturalidade. ‑ Chama‑se Eréndira.

‑ Como o sabes?

‑ Toda a gente o sabe no deserto ‑ respondeu Ulisses.

O holandês desceu no hotelzinho da povoação. Ulisses ficou na camioneta, abriu com os dedos ágeis uma pasta de negócios que o seu pai tinha deixado no assento, tirou um maço de notas, meteu várias nos bolsos e tornou a deixar tudo como estava. Nessa noite, enquanto o seu pai dormia, saiu pela janela do hotel e foi meter‑se na bicha em frente da tenda de campanha de Eréndira.

A festa estava no seu esplendor. Os recrutas, embriagados, dançavam sós, para não desperdiçar a música grátis, e o fotógrafo tirava retratos nocturnos com auxílio de magnésio. Enquanto controlava o negócio, a avó contava notas no solo, repartia‑as em maços iguais e arrumava‑as dentro de um cesto. Não havia nessa altura mais do que doze soldados, mas a bicha da tarde tinha crescido com clientes civis. Ulisses era o último.

O turno correspondia a um soldado de aparência lúgubre. A avó não só lhe impediu a passagem, como evitou o contacto com o seu dinheiro.

‑ Não, filho ‑ disse‑lhe ‑, tu não entras, nem por todo o ouro do mundo. És ave de mau agouro.

O soldado, que não era daquelas terras, surpreendeu‑se.

‑ Que é isso?

‑ Que contagias a má sombra ‑ disse a avó. ‑ Basta olhar‑te para a cara.

Afastou‑o com a mão, mas sem lhe tocar, e deu passagem ao soldado seguinte.

‑ Entra tu, valentão ‑ disse‑lhe, com boa disposição. ‑ E não te demores, que a pátria precisa de ti.

O soldado entrou, mas tornou a sair imediatamente, porque Eréndira queria falar com a avó. Ela pendurou no braço o cesto de dinheiro e entrou na tenda de campanha, cujo espaço era estreito, mas ordenado e limpo. No fundo, numa cama de tela, Eréndira não podia reprimir o tremor do corpo, estava maltratada e suja de suor de soldados.

‑ Avó ‑ soluçou ‑, estou a morrer.

A avó tocou‑lhe na testa e, ao constatar que não tinha febre, tentou consolá‑la.

‑Já não faltam mais de dez militares ‑ disse.

Eréndira desatou a chorar, com uns grunhidos de animal sobressaltado. A avó então soube que tinha transposto os limites do horror, e, acariciando‑lhe a cabeça, ajudou‑a a acalmar‑se.

‑ O que sucede é que estás fraca ‑ disse‑lhe. ‑ Anda, não chores mais, lava‑te com água de sálvia, para que se te restaure o sangue.

Saiu da tenda quando Eréndira começou a ficar serena e devolveu o dinheiro ao soldado que esperava. «Acabou‑se por hoje», disse‑lhe. «Volta amanhã e dou‑te o primeiro lugar.» A seguir, gritou aos da fila:

‑ Acabou‑se rapazes. Até amanhã, às nove.

Soldados e civis romperam fileiras com gritos de protesto. A avó enfrentou‑os de bom grado, mas brandindo a sério o bordão devastador.

‑ Malcriados! Ordinários! ‑ gritava. ‑ O que é que imaginam, que essa criatura é de ferro? Bem gostaria eu de vê‑los na situação dela. Pervertidos! Apátridas de merda!

Os homens replicavam‑lhe com insultos mais grosseiros, mas ela acabou por dominar a revolta e manteve‑se de guarda com o bordão, até que levaram as mesas de fritadas e desmontaram as tendas de jogos. Dispunha‑se a voltar à tenda quando viu Ulisses de corpo inteiro, só, no espaço vago e escuro onde antes estivera a fila de homens. Tinha uma aura irreal e parecia visível na penumbra pelo fulgor próprio da sua beleza.

‑ E tu ‑ disse‑lhe a avó ‑, onde deixaste as asas?

‑ Quem as tinha era o meu avô ‑ respondeu Ulisses, com a sua naturalidade ‑, mas ninguém o acredita.

A avó voltou a examiná‑lo com uma atenção enfeitiçada. «Pois eu, sim, acredito», disse. «Trá‑las postas amanhã.» Entrou na tenda e deixou Ulisses a arder no seu sítio.

Eréndira sentiu‑se melhor depois do banho. Tinha vestido uma combinação curta e bordada e estava a secar o cabelo para deitar‑se, mas ainda fazia esforços para reprimir as lágrimas. A avó dormia.

Por trás da cama de Eréndira, muito devagar, Ulisses assomou a cabeça. Ela viu os olhos ansiosos e diáfanos, mas, antes de dizer alguma coisa, esfregou a cara com a toalha, para ter a prova de que não era uma ilusão. Quando Ulisses pestanejou pela primeira vez, Eréndira perguntou‑lhe em voz muito baixa:

‑ Quem és tu?

Ulisses mostrou‑se até aos ombros. «Chamo‑me Ulisses», disse. Mostrou‑lhe as notas roubadas e acrescentou:

‑ Trago o dinheiro.

Eréndira apoiou as mãos em cima da cama, aproximou a sua cara da de Ulisses e continuou a falar com ele como numa brincadeira de escola primária.

‑ Tinhas de te pôr na bicha ‑ disse.

‑ Esperei toda a noite ‑ disse Ulisses.

‑ Pois agora tens de esperar até amanhã ‑ disse Eréndira. ‑ Sinto‑me como se me tivessem dado com trancas nos rins.

Nesse instante a avó começou a falar adormecida.

‑ Vai fazer vinte anos que choveu a última vez ‑ disse.

‑ Foi uma tormenta tão terrível que a chuva veio de mistura com água do mar e a casa amanheceu cheia de peixes e de conchas, e o teu avô Amadís, que em paz descanse, viu uma manta luminosa a navegar pelo ar.

Ulisses voltou a esconder‑se por detrás da cama. Eréndira teve um sorriso divertido.

‑ Fica sossegado ‑ disse‑lhe. ‑ Sempre fica como louca quando está adormecida, mas não acorda nem com um tremor de terra.

Ulisses mostrou‑se de novo. Eréndira contemplou‑o com um sorriso travesso, e até um pouco carinhoso, e tirou da esteira o lençol usado.

‑ Vem ‑ disse‑lhe ‑, ajuda‑me a mudar o lençol. Então Ulisses saiu de trás da cama e segurou o lençol por

uma ponta. Como era um lençol muito mais grande que a esteira, eram necessários vários tempos para o dobrar. No fim de cada dobra, Ulisses estava mais perto de Eréndira.

‑ Estava doido por ver‑te ‑ disse subitamente. ‑ Toda a gente diz que és muito bela, e é verdade.

‑ Mas vou morrer ‑ disse Eréndira.

‑ A minha mãe diz que os que morrem no deserto não vão para o céu, mas para o mar ‑ disse Ulisses.

Eréndira pôs de lado o lençol sujo e cobriu a esteira com outro, limpo e engomado.

‑ Não conheço o mar ‑ disse.

‑ É como o deserto, mas com água ‑ disse Ulisses.

‑ Então não se pode andar.

‑ O meu papá conheceu um homem que sim, que podia ‑ disse Ulisses ‑, mas há muito tempo.

Eréndira estava encantada, mas queria dormir.

‑ Se vens amanhã bem cedo, pões‑te no primeiro lugar‑ disse.

‑ Parto com o meu papá pela madrugada ‑ disse Ulisses.

‑ E não voltam a passar por aqui?

‑ Sabe‑se lá quando ‑ disse Ulisses. ‑ Agora passámos por acaso, porque nos perdemos no caminho da fronteira. Eréndira olhou, pensativa, para a avó adormecida.

‑ Bem ‑ decidiu ‑, dá‑me o dinheiro.

Ulisses deu‑lho. Eréndira deitou‑se na cama, mas ele permaneceu trémulo no seu sítio: no instante decisivo, a sua determinação tinha fraquejado. Eréndira tomou‑o pela mão, para que se apressasse, e só então reparou na sua tribulação. Ela conhecia esse medo.

‑ É a primeira vez? ‑ perguntou‑lhe.

Ulisses não respondeu, mas teve um sorriso desolado. Eréndira tornou‑se diferente.

‑ Respira devagar ‑ disse‑lhe. ‑ É sempre assim ao princípio, e depois nem dás por isso.

Deitou‑o ao seu lado, e, enquanto lhe tirava a roupa, foi‑o apaziguando com recursos maternos.

‑ Como é que te chamas?

‑ Ulisses.

‑ É nome de gringo ‑ disse Eréndira.

‑ Não, de navegante.

Eréndira descobriu‑lhe o peito, deu‑lhe beijinhos órfãos, farejou‑o.

‑ Pareces todo de ouro ‑ disse ‑, mas cheiras a flores.

‑ Deve ser a laranjas ‑ disse Ulisses.

Já mais tranquilo, teve um sorriso de cumplicidade.

‑Andamos com muitos pássaros, para despistar ‑ acrescentou ‑, mas o que levamos para a fronteira é um contrabando de laranjas.

‑ As laranjas não são contrabando ‑ disse Eréndira.

‑ Estas sim ‑ disse Ulisses. ‑ Cada uma custa cinquenta mil pesos.

Eréndira riu‑se pela primeira vez, desde havia muito tempo.

‑ O que mais gosto de ti ‑ disse ‑, é a seriedade com que inventas os disparates.

Tinha‑se tornado espontânea e loquaz como se a inocência de Ulisses lhe tivesse mudado não só o humor, como também a índole. A avó, a tão curta distância da fatalidade, continuou a falar adormecida.

‑ Por esses tempos, em princípios de Março, trouxeram‑te para casa ‑ disse. ‑ Parecias uma lagartixa envolvida em algodões. Amadís, teu pai, que era jovem e bonito, estava tão contente naquela tarde que mandou buscar cerca de vinte carroças carregadas de flores, e chegou gritando e atirando flores pela rua, até que todo o povoado ficou doirado de flores como o mar.

Delirou várias horas, em altos gritos, e com uma paixão obstinada. Mas Ulisses não a ouviu, porque Eréndira o tinha amado tanto, e com tanta sinceridade, que tornou a amá‑lo pela metade do seu preço, enquanto a avó delirava, e continuou a amá‑lo sem dinheiro até ao amanhecer.

 

Um grupo de missionários com os crucifixos levantados tinham‑se fincado ombro a ombro no meio do deserto. Um vento tão bravo como o da desgraça sacudia os seus hábitos de canhamaço e as suas barbas agrestes, e mal lhes permitia manterem‑se de pé. Atrás deles estava o edifício da missão, um promontório colonial com um campanário minúsculo sobre os muros ásperos e caiados.

O missionário mais jovem, que comandava o grupo, apontou com o indicador uma greta natural no solo de argila vidrada.

‑ Não passem essa risca ‑ gritou.

Os quatro carregadores índios que transportavam a avó num palanquim de tábuas detiveram‑se ao ouvir o grito.

Apesar de ir mal sentada no soalho do palanquim e de ter o ânimo entorpecido pelo pó e o suor do deserto, a avó mantinha‑se na sua altivez. Eréndira ia a pé. Atrás do palanquim havia uma fila de oito índios de carga, e por fim o fotógrafo na bicicleta.

‑ O deserto não é de ninguém ‑ disse a avó.

‑ É de Deus ‑ disse o missionário ‑, e violais as suas santas leis com o vosso tráfico imundo.

A avó reconheceu então a forma e a dicção peninsulares do missionário e iludiu o encontro frontal, para não se sair mal contra a sua intransigência. Voltou a ser ela mesma.

‑ Não entendo os teus mistérios, filho. O missionário indicou Eréndira.

‑ Essa criatura é menor de idade.

‑ Mas é minha neta.

‑ Ainda pior ‑ replicou o missionário. ‑ Põe‑na debaixo da nossa custódia, às boas, ou teremos de recorrer a outros métodos.

A avó não esperava que chegassem a tanto.

‑ Está bem ‑ cedeu, assustada. ‑ Mas mais tarde ou mais cedo passarei, hás‑de ver.

Três dias depois do encontro com os missionários, a avó e Eréndira dormiam numa povoação próxima do convento, quando uns corpos sigilosos, mudos, rastejando como patrulhas de assalto, deslizaram para dentro da tenda de campanha. Eram seis noviças índias, fortes e jovens, com os hábitos de tela crua que pareciam fosforescentes nos lampejos de Lua. Sem fazer um único ruído, cobriram Eréndira com um toldo de mosquiteiro, levantaram‑na, sem a acordar, e levaram‑na embrulhada como um peixe grande e frágil capturado numa rede lunar.

Não houve um recurso que a avó não tivesse intentado para resgatar a neta da tutela dos missionários. Só quando lhe falharam todos, desde os mais direitos aos mais torcidos, recorreu à autoridade civil, que era exercida por um militar. Encontrou‑o no pátio da sua casa, com o torso nu, disparando com um rifle de guerra contra uma nuvem escura e solitária no céu ardente. Tentava perfurá‑la, para que chovesse, e os seus disparos eram encarniçados e inúteis, mas fez as pausas necessárias para escutar a avó.

‑ Eu não posso fazer nada ‑ explicou‑lhe, quando acabou de ouvi‑la ‑, os padrezinhos, de acordo com a Concordata, têm direito a ficar com a menina até que seja maior de idade. Ou até que se case.

‑ E então para que o têm a si como alcaide? ‑ perguntou a avó.

‑ Para que faça chover ‑ disse o alcaide.

A seguir, vendo que a nuvem se tinha posto fora do seu alcance, interrompeu os seus deveres oficiais e ocupou‑se completamente da avó.

‑ O que a senhora precisa é de uma pessoa de muita influência que responda por si ‑ disse‑lhe. ‑ Alguém que garanta a sua moralidade e os seus bons costumes, com uma carta assinada. Não conhece o senador Onésimo Sánchez?

Sentada sob o sol puro num tamborete demasiado estreito para as suas nádegas siderais, a avó respondeu com uma raiva solene:

‑ Sou uma pobre mulher isolada na imensidade do deserto.

O alcaide, com o olho direito torcido pelo calor, contemplou‑a com dó.

‑ Então não perca mais tempo, senhora ‑ disse. ‑ Levou‑a o Diabo.

Não a levou, é de supor. Instalou a tenda em frente do convento da missão e sentou‑se a pensar, como um guerreiro solitário que mantivesse em estado de sítio uma cidade fortificada. O fotógrafo ambulante, que a conhecia muito bem, carregou os seus utensílios na grade da bicicleta e dispôs‑se a partir só, quando a viu em pleno sol, os olhos fixos no convento.

‑ Vamos a ver quem se cansa primeiro ‑ disse a avó ‑, eles ou eu.

‑ Eles estão ali há trezentos anos, e ainda aguentam ‑ disse o fotógrafo. ‑ Eu vou‑me embora.

Só então a avó viu a bicicleta carregada.

‑ Para onde vais?

‑ Para onde me leve o vento ‑ disse o fotógrafo, e foi‑se embora. ‑ O mundo é grande.

A avó suspirou.

‑ Não tanto como tu pensas, desmerecido.

Mas não moveu a cabeça, apesar do rancor, para não apartar a vista do convento. Não a apartou durante muitos dias de calor mineral, durante muitas noites de ventos perdidos, durante o tempo da meditação, em que ninguém saiu do convento. Os índios construíram um alpendre de palmas junto da tenda, e ali instalaram as suas redes, mas a avó velava até muito tarde, cabeceando no seu trono e ruminando os cereais crus da sua fraldiqueira com a indolência invencível de um boi deitado.

Uma noite passou muito perto dela uma fila de camiões tapados, lentos, cujas únicas luzes eram umas grinaldas de focos de cores que lhes davam um tamanho espectral de altares sonâmbulos. A avó reconheceu‑os imediatamente, porque eram iguais aos camiões dos Amadises. O último do séquito atrasou‑se, deteve‑se e um homem desceu da cabina para arranjar alguma coisa na plataforma da carga. Parecia uma réplica dos Amadises, com um barrete de aba revirada, botas altas, duas cartucheiras cruzadas no peito, um fuzil militar e duas pistolas. Vencida por uma tentação irresistível, a avó chamou o homem.

‑ Não sabes quem sou? ‑ perguntou‑lhe.

O homem iluminou‑a sem piedade, com uma lanterna de pilhas. Contemplou durante um momento o rosto estragado pela vigília, os olhos apagados de cansaço, o cabelo desbotado da mulher que, mesmo com a idade que tinha, teria podido dizer que tinha sido a mais bela do mundo. Depois de a examinar suficientemente, para se convencer de que não a tinha visto nunca, apagou a lanterna.

‑ A única coisa que sei com toda a certeza ‑ disse ‑, é que você não é a Virgem dos Remédios.

‑ Exactamente o contrário ‑ disse a avó, com uma voz doce. ‑ Sou a Dama.

O homem pôs a mão na pistola, por puro instinto.

‑ Qual dama?

‑ A de Amadís, o Grande.

‑ Então não é deste mundo ‑ disse ele, tenso. ‑ O que é que quer?

‑ Que me ajudem a resgatar a minha neta, neta de Amadís, o Grande, filha do nosso Amadís, que está presa nesse convento.

O homem dominou os seus receios.

‑ Enganou‑se na porta ‑ disse. ‑ Se pensa que somos capazes de contrariar os desígnios de Deus, você não é a que diz que é, nem sequer conheceu os Amadises, nem tem a mais pura ideia do que é o contrabando.

Nessa madrugada a avó dormiu menos que nas anteriores. Passou‑a a ruminar, envolvida numa manta de lã, enquanto o tempo da noite lhe confundia a memória e os delírios reprimidos lutavam por sair, embora estivesse acordada, e tinha de apertar o coração com a mão para que não a sufocasse a recordação de uma casa de praia com grandes flores coloridas, onde tinha sido feliz. Assim se manteve até que tocou o sino do convento e se acenderam as primeiras luzes nas janelas e o deserto se encheu do cheiro a pão quente das matinas. Só então se abandonou ao cansaço, enganada pela ilusão de que Eréndira se tinha levantado e estava a procurar a maneira de escapar‑se para voltar para ela.

Eréndira, em contrapartida, não perdeu nem uma noite de sono desde que a levaram para o convento. Tinham‑lhe cortado o cabelo com umas tesouras de podar, até lhe deixarem a cabeça como uma escova, vestiram‑lhe o rude balandrau de tela das reclusas e entregaram‑lhe um balde de água de cal e uma escova, para que caiasse os degraus das escadas cada vez que alguém os pisasse. Era um trabalho de mula, porque havia um subir e descer incessante de missionários cobertos de barro e noviças de carga, mas Eréndira sentiu‑o como um domingo de todos os dias depois da galera mortal da cama. Além disso, não era ela a única esgotada quando anoitecia, pois aquele convento não estava consagrado à luta contra o Demónio, mas à luta contra o deserto. Eréndira tinha visto as noviças indígenas desbravando as vacas com pancadas no pescoço, para ordenhá‑las nos estábulos, saltando dias inteiros sobre as tábuas para espremer os queijos, assistindo as cabras num parto difícil. Tinha‑as visto transpirar como estivadores curtidos tirando a água do poço, regando à mão uma horta temerária que outras noviças tinham lavrado com enxadões para plantar legumes no pedernal do deserto. Tinha visto o inferno terrestre dos fornos do pão e os alojamentos de pranchas. Tinha visto uma freira a perseguir um porco pelo pátio, viu‑a escorregar com o porco chimarrão agarrado pelas orelhas e rebolar‑se num barrocal sem o largar, até que duas noviças com aventais de couro a ajudaram a dominá‑lo e uma delas o degolou com uma faca de magarefe e todas ficaram empapadas de sangue e de lodo. Tinha visto no pavilhão afastado do hospital as freiras tísicas, com os seus camisões de mortas, que esperavam a última ordem de Deus bordando lençóis matrimoniais nos terraços, enquanto os homens da missão predicavam no deserto. Eréndira vivia na sua penumbra, descobrindo outras formas de beleza e de horror que nunca tinha imaginado no mundo estreito da cama, mas nem as noviças mais bravias nem as mais persuasivas tinham conseguido que dissesse uma palavra desde que a levaram para o convento. Uma manhã, quando estava misturando a cal com a água num balde, ouviu uma música de cordas que parecia uma luz mais diáfana na luz do deserto. Cativada pelo milagre, assomou a um salão imenso e vazio de paredes nuas e janelas grandes, por onde entrava a jorros e ficava detida a claridade deslumbrante de Junho, e no centro do salão viu uma freira bela que ainda não tinha visto, tocando uma oratória de Páscoa no clavicórdio. Eréndira escutou a música sem pestanejar, com a alma num fio, até que tocou o sino para a refeição. Depois do almoço, enquanto branqueava a escada com a broxa de esparto, esperou que todas as noviças acabassem de subir e descer, ficou só, aonde ninguém a pudesse ouvir, e então falou pela primeira vez desde que tinha entrado no convento.

‑ Sou feliz ‑ disse.

De maneira que, para a avó, se tinham acabado as esperanças de que Eréndira se escapasse para voltar para ela, mas manteve o seu assédio de granito, sem tomar nenhuma decisão, até ao Domingo de Pentecostes. Por essa época os missionários percorriam o deserto à procura de concubinas grávidas, para as casar. Iam até às povoações mais esquecidas numa camionetazinha decrépita, com quatro homens da tropa bem armados e um arcaz com géneros de pacotilha. O mais difícil daquela caça de índios era convencer as mulheres, que se defendiam da graça divina com o argumento verídico de que os homens se sentiam com direito a exigir às esposas legítimas um trabalho mais pesado que às concubinas, enquanto eles dormiam esparramados nas redes. Era preciso seduzi‑las com recursos de engano, dissolvendo‑lhes a vontade de Deus no xarope do seu próprio idioma, para que a achassem menos áspera, mas até as mais manhosas acabavam por se convencer com umas arrecadas de ouropel. Aos homens, em troca, uma vez obtido o assentimento da mulher, tiravam‑nos com coronhadas das redes e levavam‑nos amarrados na plataforma de carga, para casá‑los à força.

Durante vários dias a avó viu passar em direcção do convento o camiãozinho carregado de índias grávidas, mas não reconheceu a sua oportunidade. Teve‑a no próprio Domingo de Pentecostes, quando ouviu os foguetes e o repenicar dos sinos, e viu a multidão miserável e alegre que passava para a festa, e viu que entre as multidões havia mulheres grávidas com véus e coroas de noiva, levando pelo braço os maridos de acaso para torná‑los legítimos na boda colectiva.

Entre os últimos do desfile passou um rapaz de coração inocente, de cabelo índio cortado como uma íotuma(1) e vestido com andrajos, que levava na mão um círio pascal com um laço de seda. A avó chamou‑o.

‑ Explica‑me uma coisa, filho ‑ perguntou‑lhe, com a sua voz mais terna. ‑ Que vais fazer com essa cumbiambal(2)

O rapaz sentia‑se intimidado com o círio e tinha dificuldade em fechar a boca, por causa dos seus dentes de burro.

‑ É que os padrezinhos vão dar‑me a primeira comunhão ‑ disse.

‑ Quanto te pagaram?

‑ Cinco pesos.

A avó tirou da fraldiqueira um rolo de notas, que o rapaz olhou assombrado.

 

1. Espécie de abóbora americana que, depois de seca, serve para conter líquidos. (N. da T.)

2. Dança da América do Sul em que os bailarinos levam um círio na mão. (N. da T.)

 

‑ Eu vou dar‑te vinte ‑ disse a avó. ‑ Mas não para que faças a primeira comunhão, e sim para que te cases.

‑ E isso com quem?

‑ Com a minha neta.

Foi assim que Eréndira se casou no pátio do convento, com o balandrau de reclusa e uma mantilha de renda que lhe ofereceram as noviças, e sem saber sequer como se chamava o esposo que a sua avó lhe tinha comprado. Suportou com uma esperança incerta o tormento dos joelhos no solo de salitre, a pestilência de couro de cabrito das duzentas noivas grávidas, o castigo da Epístola de São Paulo martelada em latim sob a canícula imóvel, porque os missionários não encontraram recursos para opor‑se à artimanha da boda imprevista, mas tinham‑lhe prometido uma última tentativa para a manter no convento. Não obstante, no fim da cerimónia, e em presença do prefeito apostólico, do alcaide militar que disparava contra as nuvens, do seu esposo recente e da sua avó impassível, Eréndira sentiu‑se de novo sob o encantamento que a tinha dominado desde o seu nascimento. Quando lhe perguntaram qual era a sua vontade livre, verdadeira e definitiva, não teve nem um suspiro de hesitação.

‑ Quero ir‑me embora ‑ disse. E esclareceu, apontando para o esposo: ‑ Mas não vou com ele, e sim com a minha avó.

 

Ulisses tinha perdido a tarde a tentar roubar uma laranja na plantação de seu pai, pois este não lhe tirou a vista de cima enquanto podavam as árvores doentes e a sua mãe vigiava‑o de casa. De maneira que renunciou ao seu intento, pelo menos por aquele dia, e ficou de má vontade a ajudar o seu pai, até que acabaram de podar as últimas laranjeiras.

A extensa plantação era discreta e escondida e a casa, de madeira com tecto de latão, tinha redes de cobre nas janelas e um terraço grande suportado por estacas, com plantas primitivas de flores intensas. A mãe de Ulisses estava no terraço, deitada numa cadeira de balanço vienense, com folhas esfumaçadas nas têmporas, para aliviar a dor de cabeça, e o seu olhar de índia pura seguia os movimentos do filho como um feixe de luz invisível até aos lugares mais esquivos do laranjal. Era muito bela, muito mais jovem que o marido, e não só continuava a vestir‑se com o camisão da tribo, como também conhecia os segredos mais antigos do seu sangue.

Quando Ulisses voltou a casa com os ferros de podar, sua mãe pediu‑lhe o medicamento das quatro, que estava numa mesinha próxima. Mal ele lhes tocou, o copo e o frasco mudaram de cor. A seguir tocou por simples travessura numa jarra de cristal que estava na mesa com outros copos, e também a jarra se tornou azul. A sua mãe observou‑o enquanto tomava o remédio, e quando teve a certeza de que não era um delírio da sua dor perguntou‑lhe em língua guajira:

‑ Há quanto tempo te acontece?

‑ Desde que voltámos do deserto ‑ disse Ulisses, também em guajiro. ‑ É só com as coisas de vidro.

Para o demonstrar, tocou um a seguir aos outros nos copos que estavam na mesa, e todos mudaram de cores diferentes.

‑ Essas coisas só acontecem por amor ‑ disse a mãe. ‑ Quem é?

Ulisses não respondeu. O seu pai, que não sabia a língua guajira, passava nesse momento pelo terraço com um cacho de laranjas.

‑ De que falam? ‑ perguntou a Ulisses em holandês.

‑ De nada de especial ‑ respondeu Ulisses.

A mãe de Ulisses não sabia o holandês. Quando o seu marido entrou em casa, perguntou ao filho em guajiro:

‑ Que te disse?

‑ Nada de especial ‑ disse Ulisses.

Perdeu o seu pai de vista quando ele entrou em casa, mas tornou a vê‑lo, por uma janela, dentro do escritório. A mãe esperou até ficar a sós com Ulisses, e então insistiu:

‑ Diz‑me quem é.

‑ Não é ninguém ‑ respondeu Ulisses.

Respondeu distraído, porque estava pendente dos movimentos do seu pai dentro do escritório. Tinha‑o visto pôr as laranjas sobre a caixa forte para compor a chave do segredo. Mas, enquanto ele vigiava seu pai, a sua mãe vigiava‑o a ele.

‑ Há muito tempo que não comes pão ‑ observou ela.

‑ Não me agrada.

O rosto da mãe adquiriu de repente uma vivacidade insólita. «Mentira», disse. «É porque estás a padecer de amor, e os que estão assim não podem comer pão.» A sua voz, como os seus olhos, tinha passado da súplica à ameaça.

‑ Mais vale que me digas quem é ‑ disse ‑, ou dou‑te à força uns banhos de purificação.

No escritório, o holandês abriu a caixa forte, meteu lá as laranjas e tornou a fechar a porta blindada. Ulisses afastou‑se então da janela e respondeu à sua mãe com impaciência:

‑Já te disse que não é ninguém. Se não me acreditas, pergunta‑o ao meu pai.

O holandês apareceu na porta do escritório, acendendo o cachimbo de navegante e com a sua Bíblia carcomida debaixo do braço. A mulher perguntou‑lhe em castelhano:

‑ Quem conheceram no deserto?

‑ Ninguém ‑ respondeu‑lhe o seu marido, um pouco nas nuvens. ‑ Se não me acreditas, pergunta‑o a Ulisses.

Sentou‑se no fundo do corredor a chupar o cachimbo, até que se lhe esgotou o tabaco. Depois abriu a Bíblia ao acaso e recitou fragmentos salteados durante quase duas horas, num holandês fluido e retumbante.

À meia‑noite, Ulisses continuava a pensar com tanta intensidade que não podia dormir. Revirou‑se na rede mais uma hora, tentando dominar a dor das recordações, até que a própria dor lhe deu a força que lhe fazia falta para decidir. Então vestiu as calças de vaqueiro, a camisa de quadrados escoceses e as botas de montar e saltou pela janela e fugiu de casa na camioneta carregada de pássaros. Ao passar pela plantação arrancou as três laranjas maduras que não tinha podido roubar durante a tarde.

Viajou pelo deserto o resto da noite, e, ao amanhecer, perguntou pelas povoações e povoados qual era o rumo de Eréndira, mas ninguém lhe dava notícias. Por fim informaram‑no de que ia atrás da comitiva eleitoral do senador Onésimo Sánchez, e que este devia encontrar‑se naquele dia em Nueva Castilla. Não o encontrou ali, mas na povoação seguinte, e já Eréndira não andava com ele, pois a avó tinha conseguido que o senador engolisse a sua moralidade com uma carta escrita pela sua mão, e ia‑se abrindo com ela as portas melhor trancadas do deserto. No terceiro dia encontrou‑se com o homem do correio nacional, e este indicou‑lhe a direcção que procurava.

‑ Vão para o mar ‑ disse‑lhe. ‑ E apressa‑te, que a intenção da fodida velha é passar para a ilha de Aruba.

Nesse rumo, Ulisses divisou ao cabo de meia jornada a capa ampla e maltratada que a avó tinha comprado a um circo em falência. O fotógrafo errante tinha tornado ajuntar‑se a ela, convencido de que, com efeito, o mundo não era tão grande como pensava, e tinha instalado cerca da barraca os seus panos de fundo idílicos. Uma banda de músicos de charanga cativava os clientes de Eréndira com uma valsa taciturna.

Ulisses esperou o seu turno para entrar, e a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a ordem e a limpeza no interior da barraca. A cama da avó tinha recuperado o seu esplendor vice‑real, a estátua do anjo estava no seu lugar, junto ao baú funerário dos Amadises, e havia, além disso, uma banheira de estanho com patas de leão. Deitada no seu novo leito de dossel, Eréndira estava nua e plácida e irradiava um fulgor infantil sob a luz filtrada da barraca. Dormia com os olhos abertos. Ulisses deteve‑se junto dela, com as laranjas na mão, e reparou que o estava a olhar sem vê‑lo. Então passou a mão diante dos seus olhos e chamou‑a pelo nome que tinha inventado para pensar nela:

‑ Arídnere.

Eréndira acordou. Sentiu‑se nua diante de Ulisses, soltou um guincho surdo e tapou‑se com o lençol até à cabeça.

‑ Não olhes para mim ‑ disse. ‑ Estou horrível.

‑ Estás toda cor de laranja ‑ disse Ulisses. Pôs as frutas à altura dos seus olhos, para que ela comparasse. ‑ Olha.

Eréndira destapou os olhos e constatou que, com efeito, as laranjas tinham a sua cor.

‑ Agora não quero que fiques ‑ disse.

‑ Só entrei para mostrar‑te isto ‑ disse Ulisses. ‑ Repara. Abriu uma laranja com as unhas, partiu‑a com as duas

mãos, e mostrou a Eréndira o interior: cravado no coração da fruta, estava um diamante legítimo.

‑ Estas são as laranjas que levamos à fronteira ‑ disse.

‑ Mas são laranjas vivas! ‑ exclamou Eréndira.

‑ Claro ‑ sorriu Ulisses. ‑ Semeia‑as o meu pai. Eréndira não o podia acreditar. Destapou a cara, pegou no

diamante com os dedos e contemplou‑o, assombrada.

‑ Com três assim damos a volta ao mundo ‑ disse Ulisses. Eréndira devolveu‑lhe o diamante, com um ar de desalento. Ulisses insistiu.

‑ Além disso, tenho uma camioneta ‑ disse. ‑ E ainda... Olha!

Tirou de baixo da camisa uma pistola arcaica.

‑ Não posso ir‑me embora antes de dez anos ‑ disse

Eréndira.

‑ Irás ‑ disse Ulisses. ‑ Esta noite, quando adormecer a baleia branca, eu estarei lá fora, piando como a coruja.

Fez uma imitação tão perfeita do piar da coruja que os olhos de Eréndira sorriram pela primeira vez.

‑ É minha avó ‑ disse.

‑ A coruja?

‑ A baleia.

Ambos se riram do engano, mas Eréndira retomou o fio.

‑ Ninguém pode partir para nenhuma parte sem a autorização da sua avó.

‑ Não é preciso dizer‑lhe nada.

‑ De todas as maneiras, virá a sabê‑lo ‑ disse Eréndira. ‑ Ela sonha as coisas.

‑ Quando começar a sonhar que te vais embora, já estaremos do outro lado da fronteira. Passaremos como os contrabandistas... ‑ disse Ulisses.

Empunhando a pistola com um à‑vontade de bandido de cinema, imitou o som dos disparos, para animar Eréndira com a sua audácia. Ela não disse nem que sim nem que não, mas os seus olhos suspiraram, e despediu Ulisses com um beijo. Ulisses, comovido, murmurou:

‑ Amanhã veremos passar os navios.

 

Naquela noite, pouco depois das sete, Eréndira estava a pentear a avó quando voltou a soprar o vento da sua desgraça. Ao abrigo da barraca estavam os índios carregadores e o director da charanga esperando o pagamento do seu salário. A avó acabou de contar as notas de um arcaz que tinha cerca de si, e, depois de consultar um caderno de contas, pagou ao chefe dos índios.

‑ Aqui tens ‑ disse‑lhe ‑, vinte pesos por semana, menos oito pela comida, menos três pela água, menos cinquenta centavos pelo tratamento das camisas novas, são oito e cinquenta. Conta‑os bem.

O índio chefe contou o dinheiro, e todos se retiraram com uma reverência.

‑ Obrigado, branca.

O seguinte era o director dos músicos. A avó consultou o caderno de contas e dirigiu‑se ao fotógrafo, que estava a tentar remendar o fole da máquina com emplastros de guta‑percha.

‑ Em que ficamos ‑ disse‑lhe ‑, pagas ou não pagas a quarta parte da música?

O fotógrafo nem sequer levantou a cabeça para responder.

‑ A música não se vê nos retratos.

‑ Mas desperta nas pessoas a vontade de tirar retratos ‑ replicou a avó.

‑ Pelo contrário ‑ disse o fotógrafo ‑, faz‑lhes recordar os mortos, e depois ficam nos retratos com os olhos fechados.

O director da charanga interveio.

‑ O que faz fechar os olhos não é a música ‑ disse ‑, são os relâmpagos de tirar retratos à noite.

‑ É a música ‑ insistiu o fotógrafo.

A avó pôs fim à discussão. «Não sejas estúpido», disse ao fotógrafo. «Repara como as coisas correm bem ao senhor Onésimo Sánchez, e é graças aos músicos que leva.» A seguir, de uma maneira dura, concluiu:

‑ De maneira que pagas a parte que te corresponde ou continuas só com o teu destino. Não é justo que essa pobre criatura acarrete com todo o peso dos gastos.

‑ Sigo só o meu destino ‑ disse o fotógrafo. ‑ Ao fim e ao cabo, eu o que sou é um artista.

A avó encolheu os ombros e ocupou‑se do músico. Entregou‑lhe um maço de notas, de acordo com a cifra escrita no caderno.

‑ Duzentas e cinquenta e quatro peças ‑ disse‑lhe ‑, a cinquenta centavos cada uma, mais trinta e duas nos domingos e feriados, a sessenta centavos cada uma, são cento e cinquenta e seis e vinte.

O músico não recebeu o dinheiro.

‑ São cento e oitenta e dois e quarenta ‑ disse. ‑ As valsas são mais caras.

‑ E isso porquê?

‑ Porque são mais tristes ‑ disse o músico. A avó obrigou‑o a pegar no dinheiro.

‑ Pois então esta semana tocas‑nos duas peças alegres por cada valsa que te devo, e ficamos em paz.

O músico não compreendeu a lógica da avó, mas aceitou as contas enquanto desenredava o enredo. Nesse momento, o vento espavorido quase desenraizou a barraca, e, no silêncio que deixou na sua passagem, ouviu‑se lá fora, nítido e lúgubre, o piar do mocho.

Eréndira não soube como fazer para dissimular a sua perturbação. Fechou a arca do dinheiro e escondeu‑a debaixo da cama, mas a avó reparou‑lhe no tremor da mão quando lhe entregou a chave. «Não te assustes», disse‑lhe. «Há sempre corujas nas noites de vento.» Contudo, não deu mostras da mesma convicção quando viu sair o fotógrafo com a câmara às costas.

‑ Se queres, fica até amanhã ‑ disse‑lhe ‑, a morte anda à solta esta noite.

Também o fotógrafo reparou no piar da coruja, mas não mudou de ideias.

‑ Fica, filho ‑ insistiu a avó ‑, quando por mais não seja, pelo carinho que te tenho.

‑ Mas não pago a música ‑ disse o fotógrafo.

‑ Ah, não ‑ disse a avó. ‑ Isso não.

‑ Está a ver? ‑ disse o fotógrafo. ‑ Você não gosta de ninguém.

A avó empalideceu de raiva.

‑ Então põe‑te a andar ‑ disse. ‑ Filho da puta! Sentia‑se tão ultrajada que continuou a disparatar contra ele enquanto Eréndira a ajudava a deitar‑se. «Filho de má mãe», resmungava. «O que saberá esse bastardo do coração alheio.» Eréndira não lhe prestou atenção, pois a coruja chamava‑a com uma insistência tenaz nas pausas do vento e estava atormentada pela incerteza. A avó acabou de deitar‑se com o mesmo ritual que era de rigor na mansão antiga, e, enquanto a neta a abanava, conseguiu sobrepor‑se ao rancor e tornou a respirar os seus ares estéreis.

‑ Tens de madrugar ‑ disse então ‑, para me ferveres a infusão do banho antes que cheguem as pessoas.

‑ Sim, avó.

‑ Com o tempo que te sobre, lava a muda suja dos índios, e assim teremos alguma coisa mais para descontar‑lhes na semana que entra.

‑ Sim, avó ‑ disse Eréndira.

‑ E dorme devagar, para não te cansares, que amanhã é quinta‑feira, o dia mais longo da semana.

‑ Sim, avó.

‑ E pões a comida à avestruz.

‑ Sim, avó ‑ disse Eréndira.

Deixou o leque na cabeceira da cama e acendeu duas velas de altar diante do altar dos seus mortos. A avó, já adormecida, deu‑lhe a ordem atrasada.

‑ Não te esqueças de acender as velas dos Amadises.

‑ Sim, avó.

Eréndira sabia nessa altura que não acordaria, porque tinha começado a delirar. Ouviu os ladridos do vento em volta da barraca, mas também dessa vez não tinha reconhecido o sopro da sua desgraça. Saiu para a noite, até que voltou a piar a coruja, e o seu instinto de liberdade prevaleceu finalmente contra o feitiço da avó.

Não tinha dado cinco passos fora da barraca quando encontrou o fotógrafo, que estava a amarrar os seus aparelhos na grade da bicicleta. O seu sorriso cúmplice tranquilizou‑a.

‑ Eu não sei nada ‑ disse o fotógrafo ‑, não vi nada, nem pago a música.

Despediu‑se com uma bênção universal. Eréndira correu então em direcção do deserto, decidida para sempre, e perdeu‑se nas trevas do vento, onde piava a coruja.

Dessa vez a avó recorreu imediatamente à autoridade civil. O comandante do piquete de prevenção local saltou da rede às seis da manhã, quando ela lhe pôs diante dos olhos a carta do senador. O pai de Ulisses esperava na porta.

‑ Porra, como quer que a leia ‑ gritou o comandante ‑, se não sei ler?!

‑ É uma carta de recomendação do senador Onésimo

Sánchez ‑ disse a avó.

Sem mais perguntas, o comandante despendurou um rifle que tinha perto da rede e começou a gritar ordens aos seus agentes. Cinco minutos depois estavam todos dentro de uma camioneta militar, voando em direcção à fronteira, com um vento contrário que apagava os rastos dos fugitivos. No assento da frente, junto do condutor, viajava o comandante. Atrás estava o holandês, com a avó, e em cada estribo ia um agente armado.

Muito próximo da povoação detiveram uma caravana de camiões cobertos com lona impermeável. Vários homens que viajavam escondidos na plataforma da carga levantaram a lona e apontaram para a camioneta com metralhadoras e rifles de guerra. O comandante perguntou ao condutor do primeiro camião a que distância tinha encontrado uma camioneta de fazenda carregada de pássaros.

O condutor arrancou, antes de responder.

‑ Nós não somos chibos ‑ disse, indignado ‑, somos contrabandistas.

O comandante viu passar muito perto dos seus olhos os canos enegrecidos das metralhadoras, levantou os braços e sorriu.

‑ Pelo menos ‑ gritou‑lhes ‑, tenham a decência de não circular em pleno sol.

O último camião levava um letreiro no pára‑choques posterior: «Penso em ti Eréndira».

O vento ia‑se tornando mais árido à medida que avançavam para o norte, e o sol era mais forte com o vento, e era difícil respirar, por causa do calor e do pó, dentro da camioneta fechada.

A avó foi a primeira que avistou o fotógrafo: pedalava no mesmo sentido em que eles voavam, sem outro amparo contra a insolação que um lenço amarrado na cabeça.

‑ Lá está ‑ apontou‑o ‑, esse foi o cúmplice. Filho da puta.

O comandante ordenou a um dos agentes do estribo que se encarregasse do fotógrafo.

‑ Agarra‑o e esperas‑nos aqui ‑ disse‑lhe. ‑Já voltamos.

O agente saltou do estribo e deu duas vozes de parar ao fotógrafo. O fotógrafo não o ouviu, pelo vento contrário. Quando a camioneta o ultrapassou, a avó fez‑lhe um gesto enigmático, mas ele confundiu‑o com uma saudação, sorriu e disse‑lhe adeus com a mão. Não ouviu o disparo. Deu uma cambalhota no ar e caiu morto em cima da bicicleta, com a cabeça destroçada por uma bala de rifle que nunca soube de onde lhe veio.

Antes do meio‑dia começaram a ver as penas. Passavam no vento, e eram penas de pássaros novos, e o holandês conheceu‑as, porque eram as dos seus pássaros depenados pelo vento. O condutor corrigiu o rumo, carregou a fundo no pedal, e antes de meia hora avistaram a camioneta no horizonte.

Quando Ulisses viu aparecer o carro militar no espelho do retrovisor, fez um esforço para aumentar a distância, mas o motor não dava para mais. Tinham viajado sem dormir e estavam estragados de cansaço e de sede. Eréndira, que dormitava no ombro de Ulisses, acordou assustada. Viu a camioneta que estava quase a alcançá‑los e com uma determinação cândida pegou na pistola do porta‑luvas.

‑ Não serve ‑ disse Ulisses. ‑ Era de Francis Drake.

Puxou‑lhe o gatilho várias vezes e atirou‑a pela janela. A patrulha militar ultrapassou a destrambelhada camioneta carregada de pássaros depenados pelo vento, fez uma curva forçada e barrou‑lhe o caminho.

 

Conheci‑as por essa época, que foi a de mais grande esplendor, apesar de que não viria a esquadrinhar os pormenores da sua vida senão muitos anos depois, quando Rafael Escalona revelou numa canção o desenlace terrível do drama e me pareceu que era bom para contar. Eu andava a vender enciclopédias e livros de medicina pela província de Riohacha. Álvaro Cepeda Samudio, que andava também por esses rumos a vender máquinas de cerveja gelada, levou‑me na sua camioneta pelas povoações do deserto, com a intenção de falar‑me de não sei quê, e falámos tanto de nada e tomámos tanta cerveja que sem saber quando nem por onde atravessámos o deserto inteiro e chegámos até à fronteira. Ali estava a barraca do amor errante, sob as telas com letreiros penduradas: «Eréndira é melhor», «Vá e volte, Eréndira espera‑o», «Isto não é vida sem Eréndira». A bicha interminável e ondulante, composta por homens de raças e condições diferentes, parecia uma serpente de vértebras humanas que dormitava através de solares e praças, por entre bazares coloridos e mercados barulhentos, e saía das ruas daquela cidade fragorosa de traficantes de passagem. Cada rua era uma casa de jogo pública, cada casa uma taberna, cada porta um refúgio de desertores. As numerosas músicas indecifráveis e os pregões lançados formavam um só estrondo de pânico no calor alucinante.

Entre a multidão de desertores e fura‑vidas estava Blacamán o Bom, encarrapitado numa mesa, pedindo uma cobra verdadeira para demonstrar em carne própria um antídoto da sua invenção. Estava a mulher que se tinha convertido em aranha por desobedecer aos seus pais, que por cinquenta centavos se deixava tocar para que vissem que não havia engano e respondia às perguntas que quisessem fazer‑lhe sobre a sua desventura. Estava um enviado da vida eterna que anunciava a chegada iminente do pavoroso morcego sideral, cujo ardente ofego de enxofre havia de transtornar a ordem da natureza e faria vir à superfície os mistérios do mar.

O único asilo de sossego era o bairro de tolerância, aonde unicamente chegavam os restos do fragor urbano. Mulheres vindas dos quatro quadrantes da rosa náutica bocejavam de tédio nos abandonados salões de dança. Tinham feito a sesta sentadas, sem que ninguém as despertasse para amá‑las, e continuavam esperando o morcego sideral sob os ventiladores de cruzes atarraxadas no céu limpo. De repente uma delas levantou‑se e foi a um balcão de amores‑perfeitos que dava para a rua. Por ali passava a bicha dos pretendentes de Eréndira.

‑ Vamos a saber ‑ gritou‑lhes a mulher. ‑ Que é que tem essa que nós não temos?

‑ Uma carta de um senador ‑ gritou alguém. Atraídas pelos gritos e gargalhadas, outras mulheres vieram debruçar‑se ao balcão.

‑ Há dias que essa bicha está assim ‑ disse uma delas. ‑ Calcula, a cinquenta pesos cada um!

A que tinha ido primeiro decidiu:

‑ Pois eu vou ver o que é que tem de ouro essa sete-mesinha.

‑ Eu também ‑ disse outra. ‑ Será melhor do que estar aqui a aquecer gratuitamente o assento.

Pelo caminho, juntaram‑se outras, e quando chegaram à tenda de Eréndira tinham formado uma comparsaria buliçosa. Entraram sem anunciar‑se, espantaram com almofadas o homem que encontraram gastando o melhor que podia o dinheiro que tinha pago e carregaram com a cama de Eréndira e levaram‑na em andor para a rua.

‑ Isto é um insulto ‑ gritava a avó. ‑ Cáfila de desleais! Covardes! ‑ E a seguir, contra os homens da bicha: ‑ E vocês, medricas, onde têm os testículos, que permitem este abuso contra uma pobre criatura indefesa. Maricas!

Continuou a gritar até onde lhe chegava a voz, distribuindo pancadas com o bordão sobre os que se punham ao seu alcance, mas a sua cólera era inaudível entre os gritos e os assobios de troça da multidão.

Eréndira não pôde escapar ao escárnio porque lho impediu a corrente de cão com que a avó a acorrentava a uma barra da cama desde que tentou fugir. Mas não lhe fizeram nenhum mal. Mostraram‑na no seu altar de dossel pelas ruas de mais estrépito, como o passeio alegórico da penitente acorrentada, e por fim puseram‑na em câmara‑ardente no centro da praça maior. Eréndira estava enroscada, com a cara escondida, mas sem chorar, e assim ficou no sol terrível da praça, mordendo de vergonha e de raiva a corrente de cão do seu mau destino, até que alguém lhe fez a caridade de tapá‑la com uma camisa.

Essa foi a única vez que as vi, mas soube que tinham permanecido naquela cidade fronteiriça sob o amparo da força pública, até que rebentaram as arcas da avó, e que então abandonaram o deserto em direcção do mar. Nunca se viu tanta opulência junta por aqueles reinos de pobres. Era um desfile de carroças puxadas por bois, sobre as quais se amontoavam algumas réplicas de pacotilha do mobiliário luxuoso desaparecido com o desastre da mansão, e não só os bustos imperiais e os relógios raros, mas também um piano em segunda mão e uma grafonola com os discos da nostalgia. Uma recua de índios ocupava‑se da carga e uma banda de músicos anunciava nas povoações a sua chegada triunfal.

A avó viajava num palanquim com grinaldas de papel, ruminando os cereais da fraldiqueira, à sombra de um pálio de igreja. O seu tamanho monumental tinha aumentado, porque trazia vestido debaixo da blusa um colete de lona de veleiro, no qual guardava os lingotes de ouro como se metem as balas num cinturão de cartucheiras. Eréndira estava junto dela, vestida com tecidos vistosos e com franjas de estopa penduradas, mas sempre com a corrente de cão no tornozelo.

‑ Não te podes queixar ‑ tinha‑lhe dito a avó, ao sair da cidade fronteiriça. ‑ Tens roupa de rainha, uma cama de luxo, uma banda de música particular e catorze índios ao teu serviço. Não te parece magnífico?

‑ Sim, avó.

‑ Quando eu te faltar ‑ prosseguiu a avó ‑, não ficarás à mercê dos homens, porque terás a tua própria casa numa cidade de importância. Serás livre e feliz.

Era uma visão nova e imprevista do futuro. Em contrapartida, não tinha voltado a falar da dívida de origem, cujos pormenores se retorciam e cujos prazos aumentavam, à medida que se tornavam mais complicadas as despesas do negócio. Não obstante, Eréndira não emitiu um suspiro que permitisse vislumbrar o seu pensamento. Submeteu‑se em silêncio ao tormento da cama nos charcos de salitre, na madorna das povoações lacustres, na cratera lunar das minas de talco,

enquanto a avó lhe cantava a visão do futuro, como se a estivesse a decifrar nos baralhos. Uma tarde, no fim de um desfiladeiro opressivo, sentiram um vento de loureiros antigos, e escutaram farrapos de diálogos de Jamaica, e sentiram umas ânsias de vida, e um nó no coração, e era que tinham chegado ao mar.

‑ Aí o tens ‑ disse a avó, respirando a luz de vidro do Caribe ao cabo de meia vida de desterro. ‑ Não te agrada?

‑ Sim, avó.

Ali instalaram a barraca. A avó passou a noite falando sem sonhar, e às vezes confundia as suas nostalgias com a clarividência do futuro. Dormiu até mais tarde que de costume e acordou sossegada pelo rumor do mar. Contudo, quando Eréndira lhe estava a dar banho, tornou a fazer‑lhe prognósticos sobre o futuro, e era uma clarividência tão febril que parecia um delírio de vigília.

‑ Serás uma proprietária senhorial ‑ disse‑lhe. ‑ Uma dama de linhagem venerada pelas tuas protegidas e contentada e honrada pelas mais altas autoridades. Os capitães dos barcos mandar‑te‑ão postais de todos os portos do mundo.

Eréndira não a escutava. A água tépida perfumada de orégão jorrava na banheira por um canal alimentado pelo exterior. Eréndira recolhia‑a com uma totuma impenetrável, sem querer respirar, e deitava‑a sobre a avó com uma das mãos, enquanto a ensaboava com a outra.

‑ O prestígio da tua casa voará de boca em boca desde o cordão das Antilhas até aos reinos de Holanda ‑ dizia a avó. ‑ E há‑de ser mais importante que a casa presidencial, porque nela se discutirão os assuntos do governo e se preparará o destino da nação.

De repente, a água extinguiu‑se no canal. Eréndira saiu da barraca para averiguar o que se passava e viu que o índio encarregado de deitar a água no canal estava a cortar lenha na cozinha.

‑ Acabou‑se ‑ disse o índio. ‑ Tem de se arrefecer mais água.

Eréndira foi até ao fogareiro, onde estava outra panela grande com folhas aromáticas fervidas. Envolveu as mãos num trapo e certificou‑se de que podia levantar a panela sem a ajuda do índio.

‑ Vai‑te embora ‑ disse. ‑ Eu deito a água. Esperou até que o índio saísse da cozinha. Então tirou do lume a panela fervente, levantou‑a com muito custo até à altura do canal, e já ia a deitar a água mortífera na conduta da banheira quando a avó gritou no interior da barraca:

‑ Eréndira!

Foi como se a tivesse visto. A neta, assustada pelo grito, arrependeu‑se no instante final.

‑ Já vou, avó ‑ disse. ‑ Estou a arrefecer a água.

Naquela noite esteve cismando até muito tarde, enquanto a avó cantava, adormecida, com o colete de ouro. Eréndira contemplou‑a da sua cama com uns olhos intensos, que pareciam de gato na penumbra. A seguir deitou‑se como um afogado, com os braços no peito e os olhos abertos, e chamou com toda a força da sua voz interior:

‑ Ulisses.

Ulisses acordou subitamente na casa do laranjal. Tinha ouvido a voz de Eréndira com tanta nitidez que a procurou nas sombras do quarto. Ao cabo de um instante de reflexão, fez um embrulho com as suas roupas e os seus sapatos e abandonou o quarto de dormir. Tinha atravessado o terraço quando o surpreendeu a voz de seu pai:

‑ Para onde vais?

Ulisses viu‑o, iluminado de azul pela Lua.

‑ Para o mundo ‑ respondeu.

‑ Desta vez não to vou impedir ‑ disse o holandês. ‑ Mas aviso‑te de uma coisa: seja aonde for que vás, perseguir‑te‑á a maldição de teu pai.

‑ Assim seja ‑ disse Ulisses.

Surpreendido, e até um pouco orgulhoso pela resolução do filho, o holandês seguiu‑o pelo laranjal enluarado, com um olhar que pouco a pouco começava a sorrir. A sua mulher estava atrás dele, com a sua maneira de estar de índia formosa. O holandês falou quando Ulisses fechou o portão.

‑ Há‑de voltar ‑ disse ‑, espancado pela vida, mais depressa do que tu pensas.

‑ És muito duro ‑ suspirou ela. ‑ Não voltará nunca.

Nessa ocasião Ulisses não precisou de perguntar a ninguém o rumo de Eréndira. Atravessou o deserto escondido em camiões de passagem, roubando para comer e dormir, e roubando muitas vezes pelo puro prazer do risco, até que encontrou a barraca noutra povoação do mar, da qual se viam os edifícios de vidro de uma cidade iluminada e onde ressoavam os adeuses nocturnos dos navios que levantavam ferro para a ilha de Aruba. Eréndira estava adormecida, acorrentada à barra e na mesma posição de afogado à deriva, em que o tinha chamado. Ulisses ficou a contemplá‑la um grande espaço de tempo sem a acordar, mas contemplou‑a com tanta intensidade que Eréndira acordou. Então beijaram‑se na obscuridade, acariciaram‑se sem pressa, despiram‑se até à fadiga, com uma ternura silenciosa e uma felicidade recôndita que se pareceram mais do que nunca com o amor.

No outro extremo da barraca, a avó adormecida deu uma volta monumental e começou a delirar:

‑ Isso foi pelos tempos em que chegou o barco grego ‑ disse. ‑ Era uma tripulação de loucos, que faziam felizes as mulheres e não lhes pagavam com dinheiro, mas com esponjas, umas esponjas vivas, que depois andavam a caminhar por dentro das casas, gemendo como doentes de hospital e fazendo chorar as crianças para beber as lágrimas.

Endireitou‑se com um movimento subterrâneo e sentou‑se na cama.

‑ Foi então que chegou ele, meu Deus ‑ gritou ‑, mais forte, mais grande e muito mais homem que Amadís.

Ulisses, que até àquele momento não tinha prestado atenção ao delírio, tentou esconder‑se quando viu a avó sentada na cama. Eréndira tranquilizou‑o.

‑ Fica descansado ‑ disse‑lhe. ‑ Sempre que chega a essa parte senta‑se na cama, mas não acorda.

Ulisses encostou‑se ao seu ombro.

‑ Eu nessa noite estava a cantar com os marinheiros e pensei que era um tremor de terra ‑ continuou a avó. ‑ Todos devem ter pensado o mesmo, porque fugiram a dar gritos, mortos de riso, e só fiquei eu sob o coberto de trepadeiras. Recordo como se tivesse sido ontem que eu estava a cantar a canção que todos cantavam naqueles tempos. Até os papagaios, nos pátios, cantavam.

Sem tom nem som, como só é possível cantar nos sonhos, cantou as linhas da sua amargura:

Senhor, Senhor, devolve‑me a minha antiga inocência, para gozar o seu amor outra vez desde o princípio.

Só então Ulisses se interessou pela nostalgia da avó.

‑ Lá estava ele ‑ dizia ‑, com um papagaio no ombro e um trabuco de matar canibais, como chegou Guatarral às Guianas, e eu senti o seu alento de morte quando se especou em frente de mim e me disse: «Dei mil vezes a volta ao mundo e vi todas as mulheres de todas as nações, de maneira que tenho autoridade para dizer‑te que és a mais altiva e a mais diligente, a mais formosa da Terra».

Deitou‑se de novo e soluçou na almofada. Ulisses e Eréndira permaneceram um grande momento em silêncio, embalados na penumbra pela respiração descomunal da anciã adormecida. De repente, Eréndira perguntou, sem uma fraqueza mínima na voz:

‑ Serias capaz de a matar?

Apanhado de surpresa, Ulisses não soube que responder.

‑ Quem sabe ‑ disse. ‑ Tu és capaz?

‑ Eu não posso ‑ disse Eréndira ‑, porque é minha avó. Então Ulisses observou outra vez o enorme corpo adormecido, como se estivesse a medir a sua quantidade de vida, e decidiu:

‑ Por ti sou capaz de tudo.

Ulisses comprou uma libra de veneno para ratazanas, misturou‑a com nata de leite e marmelada de framboesa e verteu aquele creme mortal dentro de uma empada, à qual tinha tirado o seu recheio de origem. Depois pôs‑lhe por cima um creme mais denso, arranjando‑o com uma colher até que não ficou nenhum vestígio da manobra sinistra, e completou o engano com setenta e duas velazinhas róseas.

A avó endireitou‑se no trono brandindo o bordão ameaçador quando o viu entrar na barraca com a empada de festa.

‑ Descarado ‑ gritou. ‑ Como te atreves a pôr os pés nesta casa!

Ulisses escondeu‑se por detrás da sua cara de anjo.

‑ Venho para lhe pedir perdão ‑ disse ‑, hoje, dia do seu aniversário.

Desarmada pela sua mentira certeira, a avó mandou pôr a mesa como para um jantar de boda. Sentou Ulisses à sua direi ta, enquanto Eréndira os servia, e, depois de apagar as velas com um sopro arrasador, cortou a empada em partes iguais. Serviu Ulisses.

‑ Um homem que sabe fazer‑se perdoar tem ganha a metade do céu ‑ disse. ‑ Deixo‑te o primeiro pedaço, que é o da felicidade.

‑ Não gosto de doce ‑ disse ele. ‑ Bom proveito.

A avó ofereceu a Eréndira outro pedaço de empada. Ela levou‑o para a cozinha e deitou‑o no caixote do lixo.

A avó comeu sozinha todo o resto. Metia os pedaços inteiros na boca e engolia‑os sem mastigar, gemendo de gozo e olhando para Ulisses do limbo do seu prazer. Quando não teve mais no seu prato, comeu também o que Ulisses tinha desprezado. Enquanto mastigava o último bocado, apanhava com os dedos e metia na boca as migalhas da toalha.

Tinha comido arsénico bastante para exterminar uma geração de ratazanas. No entanto, tocou piano e cantou até à meia‑noite, deitou‑se feliz e conseguiu um sono natural. O único indício novo foi um rastro pedregoso na sua respiração.

Eréndira e Ulisses vigiaram‑na da outra cama e só esperavam pelo seu estertor final. Mas a voz era tão viva como sempre, quando começou a delirar.

‑ Pôs‑me louca, meu Deus, pôs‑me louca! ‑ gritou. ‑ Eu punha duas trancas no quarto de dormir, para que não entrasse, punha o toucador e a mesa contra a porta e duas cadeiras sobre a mesa, e bastava que ele desse uma pancadinha com o anel para que as barricadas ruíssem, as cadeiras desciam por si mesmas da mesa, a mesa e o toucador afastavam‑se por si mesmos, as trancas saíam por si mesmas das argolas.

Eréndira e Ulisses contemplavam‑na com um assombro crescente, à medida que o delírio se tornava mais profundo e dramático e a voz mais íntima.

‑ Eu sentia que ia morrer, empapada em suor de medo, suplicando por dentro que a porta se abrisse sem abrir‑se, que ele entrasse sem entrar, que não partisse nunca, mas que também não voltasse jamais, para não ter de matá‑lo.

Continuou a recapitular o seu drama durante várias horas, até nos seus detalhes mais ínfimos, como se o tivesse voltado a viver no sonho. Pouco antes do amanhecer virou‑se na cama com um movimento de acomodação sísmica e a voz quebrou‑se‑lhe com a iminência dos soluços.

‑ Eu preveni‑o, e riu‑se ‑ gritava ‑, voltei a preveni‑lo e voltou a rir‑se, até que abriu os olhos aterrados, dizendo: «Ai rainha! Ai rainha», e a voz não lhe saiu pela boca, mas pela facada da garganta.

Ulisses, espantado com a tremenda evocação da avó, agarrou a mão de Eréndira.

‑ Velha assassina! ‑ exclamou.

Eréndira não lhe prestou atenção, porque nesse instante começou a despontar a alvorada. Os relógios bateram as cinco.

‑ Vai‑te embora! ‑ disse Eréndira. ‑Já vai acordar.

‑ Está mais viva do que um elefante ‑ exclamou Ulisses. ‑ Não pode ser!

Eréndira atravessou‑o com um olhar mortal.

‑ O que acontece ‑ disse ‑ é que tu não serves nem para matar ninguém.

Ulisses impressionou‑se tanto com a crueza da censura que se evadiu da barraca. Eréndira continuou a observar a avó adormecida, com o seu ódio secreto, com a raiva da frustração, à medida que se levantava o amanhecer e se ia despertando o ar dos pássaros. Então a avó abriu os olhos e olhou‑a com um sorriso plácido.

‑ Deus te salve, filha.

A única mudança notável foi um princípio de desordem nas normas quotidianas.

Era quarta‑feira, mas a avó quis pôr um vestido de domingo, decidiu que Eréndira não recebesse nenhum cliente antes das onze e pediu‑lhe que lhe pintasse as unhas de cor de romã e lhe fizesse um penteado pontifical.

‑ Nunca tinha tido tanta vontade de tirar um retrato ‑ exclamou.

Eréndira começou a penteá‑la, mas, ao passar o pente de desenredar, ficou entre os dentes um molho de cabelos. Mostrou‑o, assustada, à avó. Ela examinou‑o, tentou arrancar‑se outra mecha grande com os dedos, e outro arbusto de cabelos lhe ficou na mão. Deitou‑o ao chão e experimentou outra vez, e arrancou uma madeixa maior. Então começou a arrancar‑se o cabelo com as duas mãos, morta de riso, atirando os punhados ao ar, com um júbilo incompreensível, até que a cabeça lhe ficou como um coco pelado.

Eréndira não voltou a ter notícias de Ulisses até duas semanas mais tarde, quando ouviu fora da barraca o chamamento da coruja. A avó tinha começado a tocar piano e estava tão absorta na sua nostalgia que não se dava conta da realidade. Tinha na cabeça uma peruca de penas radiantes.

Eréndira acudiu ao chamamento e só então descobriu a mecha de detonante que saía da caixa do piano e se prolongava por entre a maleza e se perdia na escuridão. Correu na direcção em que estava Ulisses, escondeu‑se junto dele entre os arbustos, e ambos viram, com o coração oprimido, a chamazinha azul que se foi pela mecha do detonante, atravessou o espaço escuro e penetrou na barraca.

‑ Tapa os ouvidos ‑ disse Ulisses.

Ambos o fizeram, sem que fosse preciso, porque não houve explosão. A tenda iluminou‑se por dentro com uma deflagração radiante, estalou em silêncio e desapareceu numa tromba de fumo de pólvora molhada. Quando Eréndira se atreveu a entrar, pensando que a avó estava morta, encontrou‑a com a peruca chamuscada e a camisa em farrapos, mas mais viva do que nunca, tentando sufocar o fogo com uma manta.

Ulisses escapuliu‑se, ao abrigo da gritaria dos índios, que não sabiam que fazer, confundidos pelas ordens contraditórias da avó. Quando conseguiram, por fim, dominar as chamas e dissipar o fumo, encontraram‑se perante uma visão de naufrágio.

‑ Parece coisa do maligno ‑ disse a avó. ‑ Os pianos não estalam por acaso.

Fez toda a espécie de conjecturas para estabelecer as causas do novo desastre, mas as evasivas de Eréndira e a sua atitude impávida acabaram de confundi‑la. Não encontrou a mínima fissura no comportamento da neta, nem se lembrou da existência de Ulisses. Esteve acordada até de madrugada, tecendo suposições e fazendo cálculos dos prejuízos. Dormiu pouco e mal. Na manhã seguinte, quando Eréndira lhe tirou o colete das barras de ouro, encontrou‑lhe bolhas de fogo nos ombros e o peito em carne viva. «Razões tinha eu para dormir a dar voltas», disse, enquanto Eréndira lhe deitava claras de ovo nas queimaduras. «E, além disso, tive um sonho estranho.» Fez um esforço de concentração, para evocar a imagem, até que a teve, tão nítida na memória como no sonho.

‑ Era um pavão numa rede de balouço branca ‑ disse. Eréndira surpreendeu‑se, mas refez imediatamente a sua expressão quotidiana.

‑ É um bom anúncio ‑ mentiu. ‑ Os pavões dos sonhos são animais de longa vida.

‑ Deus te ouça ‑ disse a avó ‑, porque estamos outra vez como no princípio. É preciso começar de novo.

Eréndira não se perturbou. Saiu da barraca com a bandeja das compressas e deixou a avó com o torso embebido de claras de ovo e o crânio besuntado de mostarda.

Estava a deitar mais claras de ovo na bandeja, sob o alpendre de palmas que servia de cozinha, quando viu aparecer os olhos de Ulisses por detrás do fogão, como o viu a primeira vez por detrás da sua cama. Não se surpreendeu, mas disse‑lhe, com uma voz de cansaço:

‑ A única coisa que conseguiste foi aumentar‑me a dívida.

Os olhos de Ulisses turvaram‑se de ansiedade. Permaneceu imóvel, olhando para Eréndira em silêncio, vendo‑a partir os ovos com uma expressão fixa, de absoluto desprezo, como se ele não existisse. Ao cabo dum momento, os olhos moveram‑se, revistaram as coisas da cozinha, as panelas penduradas, réstias de escórdios, os pratos, a faca de esquartejar. Ulisses endireitou‑se, sempre sem dizer nada, entrou sob o alpendre e despendurou a faca.

Eréndira não se virou para o olhar, mas, no momento em que Ulisses abandonava o alpendre, disse‑lhe, em voz muito baixa:

‑ Tem cuidado, que já teve um aviso da morte. Sonhou com um pavão e uma rede de balouço branca.

A avó viu entrar Ulisses com a faca, e, fazendo um supremo esforço, endireitou‑se sem a ajuda do bordão e levantou os braços.

‑ Rapaz! ‑ gritou. ‑ Tornaste‑te louco.

Ulisses saltou‑lhe em cima e deu‑lhe uma facada certeira no peito desnudado. A avó lançou um gemido, atirou‑se‑lhe em cima e tentou estrangulá‑lo com os seus potentes braços de urso.

‑ Filho da puta ‑ grunhiu. ‑ Demasiado tarde reparo que tens cara de anjo traidor.

Não pôde dizer mais nada, porque Ulisses conseguiu libertar a mão com a faca e assentou‑lhe com uma segunda facada nas costas. A avó soltou um gemido recôndito e abraçou com mais força o agressor. Ulisses assentou um terceiro golpe, sem piedade, e um jorro de sangue expulso a alta pressão salpicou‑lhe a cara: era um sangue oleoso, brilhante e verde, igual ao mel de menta.

Eréndira apareceu na entrada, com a bandeja na mão, e observou a luta com uma impavidez criminosa.

Grande, monolítica, grunhindo de suor e de raiva, a avó aferrou‑se ao corpo de Ulisses. Os seus braços, as suas pernas, até o seu crânio pelado, estavam verdes de sangue. A enorme respiração de fole, transtornada pelos primeiros estertores, ocupava todo o ambiente. Ulisses conseguiu outra vez libertar o braço armado, abriu um talho na barriga, e uma explosão de sangue empapou‑o de verde até aos pés. A avó tentou apanhar o ar que já lhe fazia falta para viver e deixou‑se cair de bruços. Ulisses soltou‑se dos braços exaustos e, sem permitir‑se um instante de trégua, assentou no vasto corpo caído a facada final.

Eréndira pôs então a bandeja numa mesa, inclinou‑se sobre a avó, observou‑a bem, sem lhe tocar, e, quando se convenceu de que estava morta, o seu rosto adquiriu subitamente toda a madureza de pessoa adulta que não lhe tinham dado os seus vinte anos de infortúnio. Com movimentos rápidos e precisos, pegou no colete de ouro e saiu da barraca.

Ulisses permaneceu sentado junto do cadáver, esgotado pela luta, e quanto mais tentava limpar a cara mais a lambuzava com aquela matéria verde e viva que parecia fluir dos seus dedos. Só quando viu sair Eréndira com o colete de ouro tomou consciência do seu estado.

Chamou‑a, com gritos, mas não recebeu nenhuma resposta. Arrastou‑se até à entrada da barraca e viu que Eréndira começava a correr pela beira‑mar em direcção oposta à da cidade. Então fez um último esforço para persegui‑la, chamando‑a com uns gritos desgarrados que já não eram de amante, mas de filho, mas venceu‑o o terrível esgotamento de ter matado uma mulher sem a ajuda de ninguém.

Os índios da avó encontraram‑no deitado de bruços na praia, chorando de solidão e de medo.

Eréndira não o tinha ouvido. Ia a correr contra o vento, mais veloz que um veado, e nenhuma voz deste mundo a podia deter. Passou a correr, sem virar a cabeça, pelo vapor ardente dos charcos de salitre, pelas crateras de talco, pelo torpor das palafitas, até que se acabaram as ciências naturais do mar e começou o deserto, mas ainda continuou a correr, com o colete de ouro, mais além dos ventos áridos e dos entardeceres de nunca acabar, e jamais se voltou a ter a menor notícia dela nem se encontrou o vestígio mais ínfimo da sua desgraça.

 

                                                                                            Gabriel Garcia Márquez

 

 

                      

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