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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TEMPO FECHADO / Ken Follett
TEMPO FECHADO / Ken Follett

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TEMPO FECHADO

 

Na véspera de Natal, uma forte nevasca desce do norte e várias pessoas se reúnem em uma remota casa de família. Stanley Oxenford, diretor de pesquisa de uma empresa de pesquisas médicas, está empenhado em desenvolver uma droga para debelar um vírus mortal. Porém, ele não é o único: seus filhos adultos estão muito interessados nos lucros que a nova droga trará.

Toni Gallo está apostando sua carreira na segu­rança dessa droga. Um repórter da televisão local, visando a promoção, resolve publicar a história, mes­mo que para isso tenha de deturpar os fatos. E um violento trio de malfeitores está prestes a roubar a droga para um cliente — embora a pretensão do cliente seja algo que a todos chocará.

À medida que a tempestade de neve fica mais forte, as emoções se acendem — ciúmes, descon­fiança, atração sexual, rivalidades — e tomam cor­po. Segredos desesperados são revelados. Surgem traidores escondidos e heróis inesperados.

 

Os dois homens, exaustos, olharam para Antonia Gallo com ressentimento e hostilidade. Queriam ir para casa, mas ela não os libe­rava. E o pior é que sabiam que Antonia estava certa.

Os três trabalhavam no departamento de pessoal da Oxenford Medical. Antonia, conhecida como Toni, era diretora das instalações e sua principal responsabilidade era com a segurança. A Oxenford era uma pequena empresa farmacêutica — uma companhia “butique”, no jargão do mercado de ações — que fazia pesquisas com vírus letais. Segurança ali era questão de vida ou morte.

Toni tinha feito uma verificação dos suprimentos e descobrira que faltavam duas doses de uma droga experimental. Por si só, isto já era bastante ruim: a droga, um agente antiviral, era ultra-secreta e o valor de sua fórmula, incalculável. Podia ter sido roubada para ser vendida a uma empresa concorrente. Mas foi outra possibilidade, ainda mais assustadora, que trouxe uma expressão de raiva e ansieda­de ao rosto sardento de Toni, desenhando olheiras escuras sob seus olhos verdes. O ladrão poderia ter roubado a droga para uso pessoal. E havia uma única razão para isso: alguém fora infectado por um dos vírus letais usados nas pesquisas da Oxenford.

Os laboratórios ficavam localizados em uma mansão do século XIX, construída para um milionário vitoriano passar suas férias na Escócia. Todos a chamavam de Kremlin, por causa da dupla fileira de cercas, do arame farpado, dos guardas uniformizados e do avançado sistema de segurança eletrônica. No entanto, a construção mais parecia uma igreja, com suas ogivas góticas e uma torre, além das fileiras de gárgulas ao longo do telhado.

O escritório do departamento de pessoal fora instalado em um dos espaçosos quartos de dormir. Ainda tinha janelas góticas e as paredes revestidas de tecido, mas agora havia nele arquivos em vez de guarda-roupas, e escrivaninhas com computadores e telefones onde antes havia penteadeiras cheias de frascos de cristal e escovas de prata.

Toni e os dois homens estavam ao telefone, ligando para todas as pessoas que tinham acesso ao laboratório de segurança máxima. Havia quatro níveis de biossegurança. No mais alto, o BSL4, os cientistas trabalhavam vestindo trajes espaciais, manipulando vírus para os quais não havia vacina ou antídoto. Por ser o local mais seguro do prédio, as amostras das drogas experimentais eram guardadas ali.

Nem todo mundo tinha acesso ao nível BSL4. O treinamento de biossegurança era obrigatório, inclusive para os homens da manutenção que entravam para trocar os filtros de ar ou consertar as autoclaves. A própria Toni se submetera a esse treinamento para poder ter acesso ao laboratório e fazer o seu trabalho.

Só vinte e sete pessoas do quadro de oitenta funcionários da companhia tinham acesso ao BSL4. No entanto, a maioria já havia saído para o feriado de Natal, o que não impediu que Toni e os dois funcionários rastreassem todos com obstinação.

Toni conseguiu falar com um resort em Barbados conhecido por Le Club Beach e, depois de muita insistência, persuadiu o subgerente a procurar uma jovem técnica de laboratório chamada Jenny Crawford.

Enquanto esperava, deu uma olhada no seu reflexo no vidro da janela. Estava inteira ainda, considerando o adiantado da hora. O conjunto marrom de risca de giz ainda estava apresentável, o cabelo farto estava no lugar e o rosto não denunciava o cansaço que sentia. Seu pai era espanhol, mas ela tinha a pele clara e o cabelo avermelha­do como a mãe escocesa. Era alta e parecia em boa forma. Nada mal, pensou, para quem tinha trinta e oito anos.

— Deve ser mais de meia-noite aí! — exclamou Jenny, quando por fim atendeu ao telefone.

— Descobrimos uma discrepância nos registros do BSL4 — expli­cou Toni.

Jenny tinha bebido um pouco.

— Já aconteceu antes — disse, descuidadamente. — Mas ninguém fez drama por isso.

— É porque eu não estava trabalhando aqui — disse Toni, rispida­mente. — Quando foi a última vez que você entrou lá?

— Terça, eu acho. Não é o que diz o computador?

Era, mas Toni queria saber se a história de Jenny ia bater com o registro do computador.

— E quando foi a última vez que você acessou o cofre? — O cofre era um refrigerador trancado que ficava no BSL4.

O tom de voz de Jenny começou a demonstrar irritação.

— Eu realmente não me lembro, mas deve estar gravado.

O teclado que devia ser digitado para a porta do cofre abrir ativava uma câmera de segurança que funcionava o tempo todo em que a porta estivesse aberta.

— Você se lembra da última vez em que usou o Madoba-2? — Este era o vírus com que os cientistas vinham trabalhando.

Jenny ficou chocada.

— Que diabo, é ele que está faltando?

— Não, não é. Assim mesmo...

— Nunca lidei com um vírus de verdade. Eu praticamente só tra­balho com culturas de tecidos.

Isto batia com a informação que Toni tinha.

— Você se lembra de algum de seus colegas se comportando de um modo estranho, ou diferente, nas últimas semanas?

— Isto está parecendo um interrogatório da Gestapo — disse Jenny.

— Pode ser, você notou...

— Não, não notei.

— Só mais uma pergunta. Sua temperatura está normal?

— Porra, você está querendo dizer que eu posso estar infectada com o Madoba-2?

— Você está resfriada ou com febre?

— Não!

— Então está bem. — A esta altura, onze dias depois de ter deixa­do o país, se houvesse algo de errado, já teria apresentado sintomas parecidos com os de um resfriado. — Muito obrigada, Jenny. Prova­velmente é apenas um erro no registro, mas temos que nos assegurar.

— Bem, você estragou minha noite — Jenny desligou.

— Que pena — ironizou Toni. Recolocou o fone no lugar e disse, em voz alta: — Jenny Crawford está fora. Ela pode ser uma grossa, mas é correta.

O diretor do laboratório chamava-se Howard McAlpine. Usava uma barba grisalha densa que lhe cobria as maçãs do rosto e deixava a pele em torno dos olhos parecendo uma máscara cor-de-rosa. Era meticuloso, sem exageros, e Toni normalmente gostava de trabalhar com ele, mas agora ele estava mal-humorado. Recostou-se na cadei­ra e cruzou as mãos atrás da cabeça.

— Há uma forte possibilidade de que o material que está faltan­do tenha sido usado de modo perfeitamente legítimo por alguém que simplesmente se esqueceu de fazer o registro.

Era evidente que estava irritado: já dissera aquilo duas vezes.

— Espero que você tenha razão — disse Toni, sem revelar o que pensava. Ela se levantou e foi até a janela. A sala dava para um anexo construído para abrigar o laboratório BSL4. O prédio novo pare­cia com o resto do Kremlin, com chaminés cor de âmbar e uma tor­re com relógio; deste modo, seria difícil para uma pessoa estranha adivinhar, à distância, onde o complexo de laboratórios de seguran­ça máxima ficava localizado. Mas as janelas em ogiva eram opacas, as portas de carvalho entalhado não se abriam e câmeras de segurança tudo observavam de dentro dos olhos das cabeças monstruosas das gárgulas. Uma fortaleza de concreto sob disfarce vitoriano. O anexo tinha três andares. Os laboratórios ficavam no térreo. Havia um espaço para pesquisa e armazenamento e também uma instalação para isolamento e tratamento médico intensivo, para o caso de alguém se infectar com algum vírus perigoso. Nunca fora usada. No andar de cima, ficava o equipamento destinado ao controle do ar. Uma maquinaria sofisticada esterilizava todo refugo proveniente do prédio. Dali nada saía vivo, exceto seres humanos.

— O fato é que estamos aprendendo muito com este exercício — disse Toni, num tom de voz apaziguador. Encontrava-se em uma posição delicada, pensou, ansiosa. Tanto pelo cargo que ocupavam na empresa quanto pela idade, os dois homens lhe eram superiores — ambos tinham por volta de cinqüenta anos.

Embora não tivesse o direito de lhes dar ordens, insistira para que ambos tratassem a discrepância encontrada como uma crise. Os dois gostavam dela, mas Toni sabia que estava se aproveitando da sua boa vontade ao máximo. Ainda assim, sentia que escolhera o caminho certo. Em jogo estavam a segurança pública, a reputação da companhia e sua carreira.

— No futuro vamos precisar ter os telefones de contato de todos que tiverem acesso ao BSL4, onde quer que possam estar, para que possamos localizá-los rapidamente numa emergência. E precisamos examinar o registro das entradas mais de uma vez por ano.

McAlpine deixou escapar um muxoxo. Como diretor do laboratório, a responsabilidade por aquilo era sua. Ele é quem devia ter descoberto a discrepância e aí se encontrava o verdadeiro motivo do seu mau humor. A eficiência de Toni o deixara mal.

Ela virou-se para o outro homem, diretor de recursos humanos.

— Quanto avançamos em sua lista, James?

James Elliot levantou os olhos da tela do monitor. Vestia-se como um corretor da bolsa, com um terno caro e gravata estampa­da, como se quisesse diferenciar-se dos cientistas com seus paletós de tweed. Parecia considerar as regras de segurança uma burocracia cansativa, talvez porque nunca tivesse trabalhado em contato direto com os vírus. Toni o achava arrogante e infantil.

— Falamos com todas as vinte e sete pessoas, menos uma das que têm acesso ao BSL4 — respondeu ele. Falava com uma precisão exa­gerada, como um professor entediado explicando algo ao aluno mais burro da classe. — Todos disseram a verdade a respeito da última vez que entraram no laboratório e abriram o cofre. Ninguém notou um colega se comportando estranhamente. E ninguém está com febre.

— Quem está faltando?

— Michael Ross, técnico de laboratório.

— Conheço Michael — disse Toni. Era um homem tímido e inte­ligente, cerca de dez anos mais novo que Toni. — Na verdade, estive na casa dele. Mora a uns vinte e cinco quilômetros daqui.

— Trabalha para a companhia há oito anos, sem um ponto nega­tivo na ficha.

McAlpine passou o dedo numa folha impressa pelo computador e disse:

— A última vez em que entrou no laboratório foi há três domingos, para uma verificação de rotina nos animais.

— E o que ele está fazendo todo esse tempo? Férias de quanto tempo? Três semanas?

Elliot interveio.

— Devia ter voltado hoje — ele consultou o relógio. — Ontem, melhor dizendo. Segunda-feira de manhã. Mas não apareceu.

— Alegou doença?

— Não.

Toni ergueu as sobrancelhas.

— E não conseguimos entrar em contato com ele?

— Ninguém atende ao telefone da sua casa e tampouco ao celular.

— Não acha estranho?

— Que um homem solteiro estique suas férias sem comunicar o empregador? Quase tão estranho quanto chover no deserto.

Toni voltou-se para McAlpine.

— Mas você disse que Michael tem uma ficha boa.

O diretor do laboratório parecia preocupado.

— Ele é muito consciencioso. É de espantar que tenha esticado suas férias sem licença.

— Quem estava com Michael na última vez em que ele entrou no laboratório?

Toni sabia que Michael só podia ter entrado acompanhado, por­que havia uma regra impondo que a entrada no BSL4 se desse exclu­sivamente em duplas: por causa do perigo, ninguém podia trabalhar sozinho lá.

McAlpine consultou sua lista.

— Dra. Ansari, bioquímica.

— Não sei se a conheço.

— Chama-se Monica.

Toni pegou o telefone. — Qual é o número dela?

Monica Ansari falava com sotaque de Edimburgo e pelo jeito estava dormindo um sono profundo.

— Howard McAlpine já me ligou, sabia?

— Desculpe por incomodá-la de novo.

— Aconteceu alguma coisa?

— É o Michael Ross. Não conseguimos localizá-lo. Segundo os registros, você esteve com ele no BSL4 umas duas semanas atrás.

— Sim, só um minuto, vou acender a luz.

Houve uma pausa.

— Meu Deus, este relógio está certo?

Toni continuou a pressionar.

— Michael saiu de férias no dia seguinte.

— Ele me disse que ia visitar a mãe em Devon.

Aquilo fez cair a ficha. Toni se lembrou do motivo pelo qual fora à casa de Michael Ross. Cerca de seis meses atrás ela mencionara, num papo informal na cantina, o quanto apreciava os quadros de Rembrandt que retratavam mulheres idosas, com cada ruga cuidadosamente representada. Era possível assegurar, dissera, só de ver aquilo, o quanto Rembrandt devia ter amado sua mãe. Michael se entusiasmara e revelara que tinha reproduções de diversos quadros de Rembrandt, recortados de revistas e catálogos de casas de leilões. Foi até a casa dele depois do trabalho para ver sua coleção de gravuras de mulheres idosas, emolduradas com bom gosto e cobrindo uma parede da salinha de estar. Toni receara que ele pudesse querer dar um tom romântico àquele encontro — gostava dele, mas não des­se modo — mas, para seu alívio, não aconteceu nada. Michael só que­ria mesmo mostrar sua coleção. Tratava-se, concluiu Toni, de um sujeito que não tinha os interesses rotineiros de um homem.

— Isto ajuda — disse Toni a Monica. — Espere um instante. — Virou-se para James Elliot. — Temos algum número de contato com a mãe dele em nossos arquivos?

Elliot clicou no mouse.

— Está registrada como seu parente mais próximo, tem um número aqui. — Ele pegou o telefone.

Toni voltou a falar com Monica.

— Michael parecia normal naquela tarde?

— Totalmente.

— Vocês entraram no BSL4 juntos?

— Entramos. Depois vestimos os trajes espaciais. Em vestiários separados, claro.

— Quando você entrou no laboratório propriamente dito, ele já se encontrava lá?

— Sim, Michael se vestiu mais rápido do que eu.

— Você trabalhou junto com ele?

— Não. Eu fui para outro laboratório, o de cultura de tecidos. Ele ficou verificando os animais.

— Vocês saíram juntos de lá?

— Ele saiu um pouco antes.

— Então, ele pode ter tido acesso ao cofre sem que você tivesse visto.

— Facilmente.

— Qual sua impressão de Michael?

— Ele é legal... Inofensivo, acho eu.

— É, esta é uma boa palavra para descrevê-lo. Sabe se tem namo­rada?

— Acho que não.

— Você o acha atraente?

— Ele é bonitinho, mas não é sexy.

Toni sorriu.

— Exatamente. Alguma coisa estranha nele, segundo sua experiência?

— Não.

Toni sentiu certa hesitação e permaneceu em silêncio, dando tempo à outra mulher. Ao seu lado, Elliot falava com alguém, perguntando por Michael Ross ou sua mãe.

Após um momento, Monica disse: — Quer dizer, o fato de morar sozinho não significa que seja meio pancada, não é?

Elliot estava dizendo ao telefone: — Isso é estranho. Peço descul­pas por tê-la incomodado tão tarde da noite.

A curiosidade de Toni foi despertada pelo que tinha conseguido ouvir da conversa de Elliot. Despediu-se de Monica, dizendo:

— Mais uma vez obrigada, Monica. Espero que consiga dormir de novo.

— Meu marido é médico — disse ela. — Estamos acostumados com telefonemas no meio da noite.

Toni desligou.

— Michael Ross teve tempo de sobra para abrir o cofre — disse. — E mora sozinho.

Ela olhou para Elliot.

— Conseguiu ligar para a casa da mãe dele?

— É um asilo de idosos — disse Elliot. Ele parecia assustado. — E a mãe morreu no inverno passado.

— Que merda! — exclamou Toni.

 

As poderosas luzes de segurança iluminavam as torres e as empenas do Kremlin. A temperatura era de vinte abaixo de zero, mas o céu estava claro e não havia neve. O prédio dava para um jardim vitoriano, com árvores adultas misturadas com arbustos. A lua quase cheia lançava uma luz prateada sobre as ninfas nuas que enfeita­vam os chafarizes secos, enquanto os dragões de pedra montavam guarda.

O silêncio foi quebrado pelo ronco dos motores de duas vans que saíram da garagem. Ambas exibiam o símbolo internacional de biorrisco, quatro círculos negros incompletos sobre um fundo amarelo vivo. O guarda do portão já havia levantado a cancela. As vans saíram e viraram para o sul, seguindo em perigosa velocidade.

Toni Gallo ia ao volante do veículo da frente, dirigindo como se fosse o seu Porsche, usando toda a largura da rua, acelerando constantemente, disparando nas curvas. Temia estar atrasada. Na van de Toni iam três homens treinados em descontaminação. A outra era uma unidade móvel de isolamento com um paramédico ao volante e uma médica, Ruth Solomons, no banco do carona.

Toni temia estar errada, mas, ao mesmo tempo, sentia pavor de que pudesse estar certa.

Ela ativara o alerta vermelho com base unicamente em suas sus­peitas. A droga pode ter sido usada legitimamente por um cientista que apenas se esquecera de fazer o registro, como acreditava Howard McAlpine. Michael Ross podia mesmo ter esticado as férias sem per­missão e a história de sua mãe talvez não passasse de um mal-entendido. Se assim fosse, com certeza diriam que Toni tinha exage­rado — como uma típica histérica, acrescentaria James Elliot. Talvez encontrasse Michael Ross dormindo seguramente em sua cama e com o telefone desligado. Toni estremecia só de pensar no que seu chefe e dono da Oxenford Medical, Stanley Oxenford, lhe diria pela manhã.

Mas seria muito pior se porventura ela estivesse certa.

Um funcionário ausente sem licença, que mentira a respeito do seu destino nas férias, somado ao desaparecimento de amostras de uma droga nova no cofre, podia significar algo terrível. Será que Michael Ross fizera alguma coisa que o pusera em risco de contrair uma infecção letal? A droga ainda estava em fase experimental e não era eficaz contra todos os vírus, mas ele podia ter pensado que seria melhor do que nada. O que quer que estivesse querendo, ele fizera questão de se assegurar de que ninguém o procurasse em casa por duas semanas; por isso forjara uma viagem a Devon para visitar a mãe — já falecida.

Monica Ansari perguntara: O fato de morar sozinho não significa que seja meio pancada, não é? Era uma dessas frases que significam exatamente o oposto do que se diz. A bioquímica sentira algo de estranho em Michael, muito embora, por ser cientista, hesitasse em confiar na própria intuição.

Já Toni acreditava que a intuição nunca devia ser ignorada.

Mal conseguia pensar nas conseqüências caso o vírus Madoba-2 houvesse, de alguma forma, escapado. Era um vírus de alto poder infeccioso, que se espalhava rapidamente por via aérea, através de tosse e espirros. O pior é que era fatal. Um arrepio de medo cruzou seu corpo e ela imprimiu mais força ao acelerador.

Com a estrada deserta, foram precisos apenas vinte minutos para chegar à casa isolada de Michael Ross. A entrada não era sinalizada claramente, mas Toni se lembrava do itinerário. Virou numa ruazinha que dava em uma construção pequena e baixa, revestida de pedra, atrás de um jardim protegido por um muro. Tudo às escuras. Toni parou a van perto de um Golf, presumivelmente o carro de Michael, e buzinou uma vez.

Nada aconteceu. Nenhuma luz foi acesa, ninguém abriu uma porta ou janela. Ela desligou o motor. Silêncio.

Se Michael viajara, por que seu carro estava ali?

— Vamos vestir os trajes protetores, por favor, pessoal — disse.

Todos vestiram os trajes espaciais cor de laranja, inclusive a equi­pe médica da segunda van. Os trajes eram feitos de um plástico pesado, que não dobrava ou cedia facilmente, e fechavam com um zíper que os isolava por completo. Ajudaram-se mutuamente a prender as luvas aos punhos com fita adesiva prateada. Por fim calçaram as botas de borracha.

Os trajes de proteção eram completamente lacrados. O usuário respirava através de um filtro HEPA — um filtro de partículas de alta eficiência — cujo ventilador era acionado por uma bateria carregada no cinto. O filtro mantinha do lado de fora todas as partículas respiráveis que pudessem carregar germes ou vírus. O mesmo acontecia com os odores, exceto os mais fortes. O ventilador fazia um ruído constante que algumas pessoas consideravam bastante desagradável. Um fone de ouvido instalado nos capacetes permitia a comunicação entre eles e com a mesa de controle no Kremlin, através de um canal de rádio equipado com misturador de vozes.

Quando estavam prontos, Toni olhou de novo para a casa. Se alguém olhasse pela janela agora e visse sete pessoas em trajes espaciais cor de laranja, julgaria estar vendo extraterrestres vindos de um OVNI.

Mas se houvesse alguém lá dentro, com certeza não estaria olhando por qualquer das janelas.

— Eu vou na frente — disse Toni.

Caminhando desajeitadamente por causa do traje pesado, ela seguiu até a porta da frente, pressionou a campainha e bateu na por­ta. Após alguns momentos em que nada aconteceu, contornou a casa. No jardim bem cuidado do quintal havia um galpão de madei­ra. Toni descobriu que a porta dos fundos da casa estava aberta e entrou. Lembrou-se de ter estado na cozinha, de pé, enquanto Michael fazia chá. Percorreu rapidamente a casa, acendendo as luzes. Os Rembrandts ainda podiam ser vistos na mesma parede da sala. A casa estava limpa, arrumada e vazia.

— Não tem ninguém em casa — informou aos demais. Ela perce­beu o tom de frustração de sua própria voz.

Por que ele teria deixado a casa aberta? Só se pensava em não voltar.

Aquilo era um golpe terrível. Se Michael tivesse sido encontrado em casa, o mistério poderia ser resolvido rapidamente. Agora precisava haver uma busca. E Michael podia estar em qualquer lugar do mundo. Não havia como calcular o tempo que seria preciso para encontrá-lo. Ela pensou com pavor nos dias ou mesmo semanas de ansiedade que podia ter pela frente.

Voltou para o jardim. Para fazer uma inspeção, experimentou a porta do galpão de madeira. Também estava destrancada. Quando a abriu, captou resquícios de um cheiro desagradável e vagamente familiar. Tinha que ser muito forte para passar pelo filtro do traje. Sangue, pensou. O galpão fedia como um matadouro. — Oh, meu Deus — murmurou.

Ruth Solomons, a médica, ouviu e perguntou o que era.

— Um minuto só. — O interior do pequeno galpão estava escuro e não havia janelas. Toni apalpou a parede e encontrou um interrup­tor. Quando a luz acendeu, deixou escapar um grito.

Todos os outros falaram ao mesmo tempo, perguntando o que havia de errado.

— Venham depressa! — disse Toni. — Aqui no galpão do jardim. Ruth primeiro.

Michael Ross estava caído no chão, o rosto virado para cima. Sangrava por todos os orifícios do corpo: olhos, narinas, boca, ouvidos, no meio de uma poça de sangue que encharcava o chão de tábuas. Toni não precisava que a médica lhe dissesse que o quadro in­dicava uma grave hemorragia múltipla — sintoma clássico do Madoba-2 e de infecções similares. O corpo de Michael, transforma­do em uma bomba cheia do vírus mortal prestes a explodir, não podia ser mais perigoso. Mas ele estava vivo. Seu peito subia e descia e saía de sua boca um borbulhar quase inaudível. Ela abaixou-se, ajoelhan­do na poça pegajosa de sangue fresco, e o encarou atentamente.

— Michael! — gritou, para ser ouvida através do capacete de plás­tico. — É Toni Gallo, do laboratório!

Viu um brilho de consciência em seus olhos congestionados. Ele murmurou alguma coisa.

— O quê? — gritou Toni, abaixando-se mais.

— Não tem cura — disse Michael. E depois vomitou. Um jato de líquido negro explodiu de dentro de sua boca, respingando na máscara protetora de Toni. Ela quase caiu para trás e gritou, alarmada, mesmo sabendo que o traje a protegia.

Toni afastou-se e Ruth Solomons inclinou-se sobre Michael.

— O pulso está muito fraco — disse a médica. Abriu a boca de Mi­chael e usou os dedos enluvados para limpar um pouco do sangue e do vômito na sua garganta. — Preciso de um laringoscópio, depressa!

Segundos depois, um paramédico apareceu com o instrumento. Ruth o enfiou na boca de Michael, limpando a garganta para que ele pudesse respirar com mais facilidade.

— Tragam a maca do isolamento o mais depressa possível! — ordenou. Depois abriu o estojo médico e pegou uma seringa já cheia — com morfina e um coagulante, presumiu Toni. Enfiou a agulha no pescoço de Michael e comprimiu o êmbolo. Quando retirou a serin­ga, Michael ficou sangrando copiosamente pelo pequeno orifício.

Toni foi invadida por uma onda de pesar. Ao se lembrar dele sentado em sua casa, tomando chá, conversando animadamente sobre gravuras, a visão daquele corpo arruinado tornou-se ainda mais penosa e trágica.

— Pronto — disse Ruth. — Vamos tirá-lo daqui.

Dois paramédicos pegaram Michael e o carregaram até uma maca com rodas que ficava dentro de um abrigo de plástico transparente. Em seguida atravessaram com a maca o jardim de Michael.

Antes de entrarem na ambulância, tinham que descontaminar a si próprios e a maca. Um dos elementos da equipe de Toni já apanhara uma banheira rasa de plástico que lembrava uma piscina infantil. Um de cada vez, a dra. Solomons e os paramédicos ficaram de pé na pequena banheira e foram pulverizados com um forte desinfetante que destruía qualquer vírus, oxidando sua proteína.

Toni observava a cena, sabendo que cada segundo de espera diminuía as chances de sobrevivência de Michael, mas sabendo também que os procedimentos de descontaminação tinham que ser rigorosamente seguidos para prevenir outras mortes. Sentia-se abala­da por constatar que um vírus letal escapara do seu laboratório. Nunca ocorrera fato semelhante na história da Oxenford Medical. O fato de ter tomado a decisão certa, ao insistir na apuração do desa­parecimento das drogas, e de seus colegas terem errado ao afirmar que o incidente não tinha importância não servia de consolo. Seu trabalho era impedir que aquilo acontecesse e ela falhara. O pobre Michael morreria em conseqüência da sua falha? Outras pessoas morreriam?

Os paramédicos colocaram a maca dentro da ambulância. A dra. Solomons pulou na parte de trás, junto com o paciente. Eles bate­ram as portas e o veículo saiu com o motor roncando no silêncio da noite.

— Ruth, pode me dizer o que está acontecendo? — perguntou Toni. — Use o fone do capacete.

A voz de Ruth já estava ficando mais fraca com a distância.

— Ele entrou em coma — disse a médica. Acrescentou mais algu­ma coisa, mas já estava fora do raio de alcance do rádio e suas pala­vras não foram captadas. Logo em seguida, fez-se silêncio.

Toni sacudiu-se para se livrar do torpor sombrio que se abatera sobre ela. Havia muito trabalho pela frente.

— Vamos limpar tudo — disse.

Um dos homens pegou um rolo de fita amarela que sinalizava a área de contaminação e começou a isolar toda a propriedade, casa, galpão e jardim, além do carro de Michael. Por sorte não havia outras casas por perto com que se preocupar. Se ele morasse em um prédio de apartamentos com tubos de ventilação comuns, já seria tarde demais para a descontaminação.

Os outros membros da equipe de Toni pegaram rolos de sacos de lixo, pulverizadores de jardim já cheios de desinfetante, caixas de panos para limpeza e grandes tambores de plástico branco. Objetos mais difíceis ou preciosos, como jóias, seriam lacrados nos tambores e levados para serem descontaminados em uma autoclave no Kremlin. Tudo o mais seria posto em sacos duplos e destruído no incinerador que ficava embaixo do BSL4.

Toni pediu a um deles para limpar o vômito negro de Michael do seu traje e a borrifar com desinfetante. Teve que conter o impul­so de arrancar o traje sujo.

Enquanto os homens trabalhavam na limpeza, foi dar uma olha­da em volta da casa, procurando uma pista para descobrir por que aquilo havia acontecido. Como temera, Michael roubara a droga experimental porque sabia ou suspeitava de que tinha sido infectado pelo Madoba-2. Mas por que se expusera ao vírus?

No galpão havia uma caixa de vidro com um extrator de ar, feito um gabinete de biossegurança improvisado. Não vira aquilo antes porque estava concentrada em Michael, mas percebeu agora um coelho morto no seu interior. Parecia ter morrido da mesma doença que infectara Michael. Teria vindo do laboratório?

Ao lado havia uma tigela de água com o nome “Joe”. O que era um detalhe significativo. O pessoal do laboratório raramente batiza­va as cobaias com que trabalhava. Todos tratavam bem os objetos de suas experiências, mas não se permitiam afeiçoar-se a animais que iam ser mortos. Michael, no entanto, dera ao coelho uma identida­de e o tratara como um animal de estimação. Será que se sentia culpado pelo trabalho que executava?

Toni saiu. Uma radiopatrulha parava ao lado da van. Ela estava mesmo esperando a polícia. De acordo com o plano de resposta a incidentes críticos formulado pela própria Toni, os guardas de segu­rança do Kremlin haviam telefonado automaticamente para a cen­tral de polícia em Inverburn, notificando-a do alerta vermelho. Agora alguém viera avaliar as dimensões exatas da crise.

Toni fora uma policial até dois anos atrás e durante quase toda sua carreira na polícia fora considerada a garota de ouro. Promovida rapidamente e exibida na mídia como exemplo do novo estilo de policial moderno, Toni tinha tudo para ser a primeira mulher na polícia da Escócia a assumir um cargo de chefia. Só que um dia bateu de frente com o seu chefe por conta de uma questão delicada — o racismo na polícia. Ele sustentava que o racismo na polícia não era institucionalizado. Ela por sua vez disse que os policiais rotineiramente escondiam os incidentes raciais, ou seja, o problema era próprio da instituição. A discussão vazou e chegou ao conhecimen­to de um jornal. Toni se recusou a negar aquilo em que acreditava e foi obrigada a demitir-se.

Nesta época vivia com Frank Hackett, outro detetive. Estavam juntos havia oito anos, embora nunca tivessem se casado. Quando ela caiu em desgraça, ele a deixou. Isso ainda doía nela.

Dois jovens policiais saltaram da radiopatrulha, um homem e uma mulher. Toni conhecia a maior parte dos policiais locais da sua geração e alguns dos veteranos se lembravam ainda do seu falecido pai, o sargento Antonio Gallo, inevitavelmente chamado de Tony, o Espanhol. Não reconheceu, contudo, aqueles dois. Pelo fone de ouvido, pediu a um de seus auxiliares:

— Jonathan, a polícia chegou. Quer fazer o favor de se descontaminar e falar com eles? Basta dizer que confirmamos a fuga de um vírus do nosso laboratório. Vão chamar o Jim Kincaid e eu passarei as informações completas para Jim quando ele chegar.

O superintendente Kincaid era responsável pelo que chamavam de CBRN — incidentes químicos, biológicos, radiológicos e nucleares. Ele havia colaborado com Toni na formulação do seu plano. Os dois elaborariam uma resposta cautelosa e discreta àquele incidente.

Toni gostaria de dispor de algumas informações sobre Michael Ross para dar a Kincaid quando ele chegasse. Ela entrou na casa. Michael transformara o segundo quarto em escritório. Em cima de uma mesinha de canto havia um porta-retrato com três fotos de sua mãe: adolescente esbelta com um suéter apertado; adulta feliz, segurando nos braços um bebê que parecia Michael, e nos seus sessenta anos, com um gato preto-e-branco no colo.

Toni sentou-se à escrivaninha e leu os e-mails dele, operando o teclado do computador desajeitadamente por causa das luvas de borracha. Ele havia comprado pela Internet um livro intitulado Ética animal. Também andara pesquisando sobre cursos de filosofia moral em universidades. Verificou o navegador e descobriu que ele visitara recentemente sites de direitos dos animais. Era evidente que andava preocupado com a ética do seu trabalho. Mas tudo indicava que ninguém na Oxenford Medical se dera conta de que Michael Ross se sentia infeliz.

Toni solidarizava-se com ele. Cada vez que ela via um cachorro ou um hamster deitado em uma gaiola, inoculados com uma doen­ça que os cientistas estavam estudando, sentia um aperto no coração. Mas depois se lembrava da morte do pai. Ele tivera um tumor no cérebro aos cinqüenta e poucos anos e morrera desorientado, humilhado e sofrendo muitas dores. Sua doença um dia talvez tivesse cura graças às pesquisas realizadas com cérebro de macacos. A pesquisa em animais era uma triste_ necessidade, em sua opinião.

Michael guardava seus papéis em uma caixa de papelão grosso, com as divisórias etiquetadas cuidadosamente: “Contas”, “Ga­rantias”, “Extratos Bancários”, “Manuais de Instruções”. Na etique­ta “Associações”, Toni encontrou um recibo da subscrição paga a uma organização chamada Os Animais Livres. Tudo começava a ficar claro.

O trabalho acalmou Toni. Sempre fora boa nos procedimentos de investigação e sua saída forçada da polícia representara um duro golpe para ela. Era ótimo poder colocar em prática suas técnicas e verificar que ainda tinha talento.

Encontrou uma caderneta de endereços e a agenda de Michael em uma gaveta. A agenda não indicava nada nas duas últimas semanas. Quando ia abrir a caderneta, uma luz azul do outro lado da janela chamou sua atenção e ela virou-se para ver um sedã Volvo cinza com um sinalizador da polícia no teto. Devia ser Jim Kincaid.

Ela saiu e pediu que um membro da equipe a descontaminasse. Depois tirou o capacete para falar com o superintendente. Só que o homem no Volvo não era Jim. Quando o luar iluminou-lhe o rosto, viu que se tratava do superintendente Frank Hackett — seu ex. Sentiu um aperto no coração. Embora a separação tivesse sido ini­ciativa de Frank, ele agia como se fosse a parte ofendida.

Resolveu agir com calma e profissionalismo.

Frank saltou do carro e dirigiu-se para Toni, que pediu:

— Por favor, não ultrapasse a faixa. Eu vou até aí.

Na mesma hora percebeu que cometera um erro tático. Era ele o policial, ela era uma civil — ele poderia achar que ela estava queren­do dar as ordens ali. Pelo jeito como fechou a cara, viu que ele sen­tiu o golpe. Tentando ser mais amável, cumprimentou-o:

— Como vai, Frank?

— O que está acontecendo aqui?

— Parece que um técnico do laboratório contraiu um vírus. Acabamos de levá-lo em uma ambulância de isolamento. Estamos agora descontaminando a casa. Onde está Jim Kincaid?

— Ele está de férias.

— Onde? — Toni tinha esperanças de que Jim pudesse ser conta­tado e chamado para atender àquela emergência.

— Portugal. Ele e a mulher têm direito a alguns dias de descanso juntos.

Uma pena, pensou Toni. Jim era familiarizado com situações de biorrisco e Frank não.

Adivinhando o que Toni estava pensando, Frank disse:

— Não se preocupe. — Ele tinha em mãos um documento volumoso. — Tenho a cópia do protocolo de vocês aqui.

Era o plano de segurança que Toni havia elaborado de comum acordo com Kincaid. Frank obviamente o estivera lendo enquanto esperava.

— Minha primeira tarefa é isolar a área.

Toni já havia feito isso, mas nada disse. Frank precisava se asse­gurar ele mesmo.

Ele chamou os dois policiais uniformizados que tinham vindo na radiopatrulha.

— Vocês dois! Coloquem o carro na entrada da casa e não deixem ninguém se aproximar sem meu conhecimento.

— Boa idéia — disse Toni, pensando que na verdade aquilo não fazia a menor diferença.

Frank referia-se ao documento.

— Depois temos que nos assegurar de que ninguém abandone a cena.

Toni balançou a cabeça, concordando. — Não há ninguém aqui, exceto minha equipe, e todos estão vestindo trajes de proteção.

— Não gosto deste protocolo, ele põe civis no controle da cena do crime.

— O que o faz pensar que isto é uma cena de algum crime?

— Amostras de uma droga foram roubadas.

— Não daqui.

Frank não discutiu.

— Como foi que o seu funcionário pegou o vírus, afinal? Vocês usam esses trajes no laboratório, não usam?

— O conselho de saúde tem que verificar isso — disse Toni, evitando uma resposta direta. — Não adianta especular.

— Havia animais aqui quando você chegou?

Toni hesitou, o que foi suficiente para Frank, que era um bom detetive justamente por não deixar passar nenhum sinal.

— Quer dizer que um animal fugiu do laboratório e infectou o técnico quando ele não estava usando o traje protetor?

— Não sei o que foi que aconteceu e não quero ver circulando por aí teorias sem fundamento. Poderíamos por ora nos concentrar na segurança pública?

— Claro. Mas você não está preocupada apenas com o público. Quer proteger a companhia e o seu precioso professor Oxenford.

Toni imaginou por que ele teria dito “precioso”, mas antes que pudesse responder, ouviu um sinal eletrônico vindo do capacete.

— Estou recebendo um telefonema — disse para Frank. — Com licença.

Ela retirou o fone de ouvido de dentro do capacete e o ajeitou na cabeça. Ouviu novamente o mesmo sinal de antes, depois um silvo quando a conexão foi estabelecida e aí então entrou a voz do segu­rança que ficava na mesa telefônica do Kremlin.

— Dra. Solomons chamando a srta. Gallo.

— Alô? — disse Toni.

Desta vez a médica já estava na linha.

— Michael morreu, Toni.

Toni fechou os olhos.

— Oh, Ruth, que pena!

— Ele teria morrido mesmo que o tivéssemos socorrido vinte e quatro horas antes. Tenho quase certeza de que foi infectado pelo Madoba-2.

A voz de Toni estava embargada pelo pesar.

— Fizemos tudo o que podíamos.

— Tem alguma idéia de como aconteceu? — perguntou a médica.

Toni não queria dar muitas explicações na frente de Frank.

— Ele estava muito perturbado com a questão da crueldade com os animais. E eu acho que a morte da mãe, um ano atrás, pode ter colaborado para desequilibrá-lo.

— Pobre rapaz.

— Ruth, estou com a polícia aqui. Falo com você mais tarde.

— Tudo bem. — A ligação foi interrompida. Toni tirou os fones da cabeça.

— Então ele morreu — disse Frank.

— Seu nome era Michael Ross e parece que contraiu um vírus chamado Madoba-2.

— Que tipo de animal era?

Impulsivamente, Toni decidiu preparar uma pequena armadilha para Frank.

— Um hamster — disse. — Chamado Fofinho.

— Outras pessoas podem ter sido infectadas?

— Esta é a questão mais importante. Michael morava sozinho. Não tinha família e era homem de poucos amigos. Quem quer que o tenha visitado antes de ele adoecer está em segurança, a menos que tenha havido um contato extremamente íntimo, como compartilhar uma agulha hipodérmica. Se alguém veio aqui e apresentou os sintomas da doença transmitida pelo vírus, com certeza terá chamado um médico. Assim, há uma boa chance de que ele não tenha conta­minado ninguém.

Toni procurava, deliberadamente, reduzir a importância do acontecido. Se o seu interlocutor fosse Kincaid, teria sido muito mais sincera, sabendo com certeza que ele não faria um escândalo. Mas Frank era diferente. Completou:

— É óbvio, no entanto, que nossa prioridade maior é entrar em contato com quem possa ter estado com Michael nos últimos dezesseis dias. Encontrei a caderneta de endereços dele.

Frank tentou outra abordagem.

— Ouvi você dizer que ele estava perturbado com a questão da crueldade com os animais. Sabe se pertencia a algum grupo?

— Sim, um grupo chamado Animais Livres.

— Como sabe?

— Estive verificando o material dele.

— Este é um trabalho para a polícia.

— Concordo. Mas você não pode entrar na casa.

— Eu poderia vestir um desses trajes.

— Não é só o traje. É todo um treinamento em biossegurança á que você tem que se submeter antes de vestir um destes trajes.

Frank estava ficando irritado novamente.

— Então traga tudo para mim aqui fora — disse ele.

— Posso pedir a alguém da minha equipe para lhe passar todos os documentos de Michael por fax. Poderíamos também transferir todos os arquivos existentes no disco rígido do seu computador.

— Quero os originais! O que é que você está escondendo aqui?

— Nada, eu lhe garanto. Mas tudo o que existe dentro da casa tem que ser descontaminado, seja com desinfetante, seja com vapor de alta pressão. Ambos os processos destroem papéis e são capazes de danificar um computador.

— Vou querer modificar este protocolo. Só queria saber se o che­fe de polícia tomou conhecimento de tudo que Kincaid permitiu que ficasse por sua conta.

Toni sentia-se esgotada. Passava da meia-noite, era preciso resol­ver uma crise complicada e tinha que se preocupar em não ferir os sentimentos de um ex-amante ressentido.

— Oh, Frank, pelo amor de Deus, pode ser que você tenha razão, mas por ora é isso o que temos para regular nossos procedimentos... será que dava para tentar esquecer o passado e trabalhar em equipe?

— Sua idéia de trabalho em equipe é todo mundo fazendo o que você manda.

Ela riu.

— Pode ser. O que acha então que devemos fazer agora?

— Informarei ao conselho de saúde do acontecido. Ele é o órgão máximo em um caso desses, de acordo com o plano de segurança. Uma vez que o conselho convoque seu consultor de biossegurança, vai querer marcar uma reunião para amanhã cedo. Até lá, podemos começar a tentar entrar em contato com todo mundo que possa ter sido visto com Michael Ross. Mandarei uma dupla de detetives ligar para todos os nomes da caderneta de endereços. Sugiro que você interrogue todos os funcionários do Kremlin. Seria útil que tivéssemos feito isso antes da reunião com o conselho de saúde.

— Está certo — Toni hesitou. Tinha algo a perguntar a Frank. O melhor amigo dele era Carl Osborne, um repórter da televisão local que valorizava mais o sensacionalismo do que a precisão da notícia. Se Carl ficasse sabendo daquela história, era confusão na certa.

Ela sabia que a única forma de conseguir qualquer coisa de Frank era parecer natural, sem dar a impressão de estar precisando muito ou de querer mandar nele.

— Há um parágrafo do protocolo que tenho que mencionar — começou Toni. — Diz que não devem ser dadas declarações à imprensa sem que o assunto seja antes discutido pelas principais partes interessadas, ou seja, a polícia, o conselho de saúde e a companhia.

— Sem problema.

— A razão por que menciono isto é que este incidente não deve causar pânico. Tudo indica que não há ninguém correndo perigo.

— Ótimo.

— Não queremos sonegar nenhuma informação, mas a publicidade do caso deve ser calma e ponderada. Ninguém precisa entrar em pânico.

Frank deu uma risada.

— Você está com medo de ler nos tablóides escandalosos uma matéria sobre hamsters assassinos à solta nas montanhas da Escócia?

— Você me deve uma, Frank. Espero que não tenha esquecido.

Ele fechou a cara. — Eu lhe devo uma?

Toni abaixou a voz, embora não houvesse ninguém por perto.

— Você se lembra de Johnny Kirk, o Fazendeiro.

Kirk era um traficante de cocaína em escala internacional. Nascido em Garscube Road, um bairro perigoso de Glasgow, nunca tinha visto uma fazenda em toda sua vida mas ganhara o apelido por causa das enormes botas verdes de borracha que usava para minorar a dor dos seus calos. Frank montara todo o processo de acusação para pegar Johnny. Durante o julgamento, por acaso, Toni desco­briu provas que teriam ajudado a defesa. Relatou a Frank, mas este não comunicou ao tribunal. Johnny era culpado como o demônio e Frank conseguira sua condenação — mas se a verdade um dia viesse à tona, a carreira dele estaria acabada.

— Você está ameaçando divulgar isso se eu não fizer o que quer? — perguntou Frank, irado.

— Não, só estou lembrando uma ocasião em que você precisou que eu me omitisse a respeito de um determinado assunto e eu o fiz.

A atitude dele mudou de novo. Por um momento tinha se mostrado meio assustado, mas agora voltava à velha e costumeira arro­gância.

— Todos nós temos que violar as regras de vez em quando. É a vida.

— Sim. E eu estou lhe pedindo para não deixar vazar esta histó­ria para o seu amigo Carl Osborne ou para qualquer outra pessoa da imprensa.

Frank forçou uma risada.

— Ora, Toni — ele disse, num tom de falsa indignação. — Eu nun­ca faço coisas desse tipo.

 

Kit Oxenford acordou cedo, ansioso e angustiado ao mesmo tempo. Era uma sensação estranha.

Hoje ele iria roubar a Oxenford Medical.

A idéia o enchia de entusiasmo. Seria o golpe do século. Quem sabe até não virasse livro, com o título de O crime perfeito. Melhor ainda, ele se vingaria do pai. Seria o fim da empresa e Stanley Oxenford ficaria arruinado financeiramente. O fato de que o velho jamais saberia quem tinha feito aquilo melhorava ainda mais a história. Seria uma satisfação secreta que Kit guardaria consigo pelo res­to da vida.

Mas ele se sentia angustiado também. Aquilo não era comum. Por natureza, não era do tipo que se preocupava. Fosse qual fosse a encrenca em que se metesse, geralmente conseguia se safar. Raramente planejava algo.

Mas aquele roubo fora detalhadamente planejado. Talvez fosse este o problema.

Ficou na cama com os olhos fechados, pensando nos obstáculos que teria que vencer.

Primeiro, a segurança física em torno do prédio: a dupla fileira de cercas, o arame farpado, os holofotes, os alarmes contra intrusos. Estes alarmes, além de protegidos por interruptores que detectavam arrombamentos, sensores de choque e sistemas contra curtos-circuitos, eram conectados diretamente com a central de polícia de Inverburn, através de uma linha telefônica que tinha sua operacionalidade constantemente verificada pelo sistema.

Nada disso protegeria o laboratório de Kit e seus colaboradores.

Depois havia os guardas, observando as áreas importantes pelo circuito interno de televisão, patrulhando as instalações a cada hora. Seus monitores eram dotados de dispositivos de alta segurança capa­zes de detectar substituição de equipamentos, como, por exemplo, se uma câmera passasse a ser alimentada por uma fonte de vídeo diferente.

Kit pensara em uma maneira de contornar isso.

Finalmente havia um elaborado esquema de controle do acesso às instalações: os passes eram cartões de plástico, cada um exibindo a foto do usuário autorizado e suas impressões digitais armazenadas em um chip.

Derrotar o sistema seria complicado, mas Kit sabia como fazer.

Além de formado em informática e de ter sido um dos melhores da faculdade, ele tinha uma outra vantagem ainda mais importante. Ele criara o software que controlava toda a segurança do Kremlin. Tudo obra sua. Tinha feito um trabalho fantástico para o ingrato do seu pai e o sistema era praticamente impenetrável para alguém de fora. Não para Kit, que conhecia seus segredos.

Por volta da meia-noite, ele entraria no local mais importante do Kremlin, o laboratório BSL4, talvez o local mais seguro em toda a Escócia. Junto com ele estaria seu cliente, um sujeito de Londres tranqüilo, mas ameaçador, chamado Nigel Buchanan e dois colaboradores. Uma vez lá dentro, abriria o cofre com uma senha simples de quatro dígitos. E aí Nigel roubaria amostras da valiosa droga anti­viral nova de Stanley Oxenford.

Não ficaria com as amostras por um período muito longo. Nigel dispunha de pouco tempo. Tinha que entregar as amostras a um comprador às dez horas da manhã do dia seguinte, dia de Natal. Kit não sabia a razão deste prazo. Também não sabia ao certo quem era o cliente, mas podia adivinhar: devia ser alguém que trabalhava para uma das multinacionais farmacêuticas. Ter em mãos uma amostra para analisar economizaria anos de pesquisa. Seria possível pôr no mercado sua própria versão da droga, em vez de pagar milhões à Oxenford pela licença para a sua fabricação.

Era desonesto, claro, mas os homens sempre encontram descul­pas para a desonestidade quando há muito dinheiro em jogo. Kit podia imaginar o distinto diretor da empresa, com seu cabelo prateado e terno elegante, dizendo, hipocritamente: “Você pode me assegurar categoricamente de que nenhum funcionário da nossa organização violou a lei para obter esta amostra?”

Para Kit, a melhor parte do plano era que a invasão só seria per­cebida muito tempo depois que tivessem deixado o Kremlin. Hoje era terça-feira, véspera de Natal. Amanhã e depois seriam feriados. O mais cedo que o alarme poderia soar seria na sexta-feira, quando um ou dois cientistas mais aficionados aparecessem para trabalhar. Mas havia uma boa chance de o roubo não ser descoberto nem na sexta-feira nem no fim da semana, dando um prazo até segunda-feira da semana seguinte para Kit e o seu bando cobrirem os rastros deixados.

Então, por que estava com medo? O rosto de Toni Gallo, a chefe da segurança de seu pai, surgiu na sua mente. Era uma ruiva mui­to atraente, sardenta e musculosa, embora tivesse uma personalida­de forte demais para o gosto de Kit. Seria ela a razão do seu medo? Já a subestimara uma vez — com resultados desastrosos.

Mas o plano era genial.

— Genial! — exclamou em voz alta, tentando se convencer.

— O quê? — perguntou uma voz de mulher ao seu lado.

Ele resmungou algo ininteligível, espantado. Tinha se esquecido de que não se encontrava só. O apartamento estava escuro como breu.

— O que é genial? — insistiu ela.

— O seu jeito de dançar — respondeu Kit, improvisando. Ele a conhecera numa boate na noite anterior.

— Você também não é nada mau — disse ela, com um forte sota­que de Glasgow.

Kit forçou a memória para lembrar o nome dela.

— Maureen — ele disse por fim. Devia ser católica, com um nome desse. Ele rolou na cama e passou o braço em torno dela, tentando se lembrar de sua aparência. As formas eram sedutoramente arre­dondadas. Kit não gostava de mulheres magras demais. Ela chegou mais para junto dele, sensualmente. Loura ou morena? Devia ser interessante fazer sexo com uma garota sem saber qual era sua apa­rência. Kit já ia acariciar-lhe os seios quando se lembrou do que tinha a fazer naquele dia e seu tesão evaporou.

— Que horas são? — perguntou.

— Hora de dar uma rapidinha — respondeu Maureen, ardorosa­mente.

Kit rolou para longe dela. O relógio digital marcava 07:10.

— Tenho que me levantar — disse ele. — Muito trabalho pela frente.

Kit queria estar na casa do pai na hora do almoço. Para todos os efeitos passaria lá o feriado de Natal, mas na verdade precisava pegar algo lá para o roubo daquela noite.

— Como é que você pode trabalhar na véspera de Natal?

— Talvez eu seja o Papai Noel.

Ele se sentou na beirada da cama e acendeu a luz.

Maureen ficou desapontada.

— Bem, esta fadinha aqui vai ficar na cama até tarde, se Papai Noel não se importa — disse ela, irritada.

Kit olhou para ela, mas a mulher já havia puxado o edredom por cima da cabeça. Continuou sem saber como era sua fisionomia.

O loft onde morava era dividido em dois espaços grandes: a sala de estar, onde funcionava a cozinha, e o quarto de dormir ao lado. A sala era cheia de aparelhos eletrônicos: uma televisão de tela plana, um sofisticado sistema de som e uma pilha de computadores e aces­sórios ligados por um monte de cabos. Kit sempre gostara de violar as defesas dos computadores dos outros. Para tornar-se especialista em softwares de segurança era indispensável ser um hacker.

Enquanto trabalhava para o pai, projetando e instalando a segu­rança do laboratório BSL4, conseguira levar a cabo um de seus melhores esquemas fraudulentos. Com a ajuda de Ronnie Sutherland, que na época era o chefe de segurança da Oxenford Medical, imaginara um meio de desviar dinheiro da companhia. Alterou o programa de contabilidade para que, ao somar uma série de faturas de fornecedores, o computador simplesmente acrescentasse um por cento ao total e transferisse depois esse um por cento para o banco de Ronnie, em uma transação que jamais apareceria em qualquer relatório. O esquema dependia de um único detalhe — que ninguém verificasse as contas no computador — e ninguém tinha verificado mesmo, até o dia em que Toni Gallo viu a mulher de Ronnie estacionando um Mercedes novinho em frente a uma loja de departamentos em Inverburn.

Kit tinha ficado atônito e apavorado ante a persistência encarni­çada com que Toni investigara o caso. Havia uma discrepância e ela decidiu que tinha que descobrir uma explicação. Não desistiu por um instante. Pior ainda, quando descobriu o que era, nada no mun­do a demoveu de contar ao chefe, o pai de Kit. Ele suplicara para que ela não angustiasse o velho. Tentou convencê-la de que Stanley Oxenford ia ficar com tanta raiva que a despediria e não a Kit. Por fim, passou levemente a mão nos seus quadris, dirigiu-lhe seu melhor sorriso de menino travesso e disse, com voz de cama: “Você e eu devíamos ser amigos e não inimigos.” Nada funcionara.

Kit não arranjou mais emprego desde que foi despedido pelo pai. Lamentavelmente, continuou se dedicando ao jogo. Ronnie o levara a um cassino ilegal onde Kit teria crédito, sem dúvida porque seu pai era um cientista milionário e famoso. Tentou não pensar em quanto devia: o número total o deixava apavorado e com vergonha ele só queria sumir. Mas a recompensa pelo trabalho daquela noite cobriria tudo e ainda permitiria um novo começo.

Tomou o café no banheiro e olhou-se no espelho. Houve uma época em que integrara a equipe britânica das Olimpíadas de Inver­no e passava todos os fins de semana esquiando ou treinando. Na­quele tempo era magro como um galgo. Via agora que seu perfil estava um pouco arredondado.

— Você está engordando — disse a si mesmo. Mas ainda tinha uma cabeleira castanha farta que caía adoravelmente sobre a testa. O rosto parecia tenso. Tentou fazer cara de Hugh Grant, cabeça timidamente baixa, olhando pelo canto dos olhos azuis com um sorriso vitorioso. Sim, ainda era capaz. Toni Gallo podia ser imune, mas Maureen caíra por ele na noite passada.

Enquanto se barbeava, ligou a TV do banheiro e sintonizou em um programa de notícias local. O primeiro-ministro britânico chegara ao seu distrito eleitoral escocês a fim de passar o Natal. O Glasgow Rangers pagara nove milhões de libras por um atacante chamado Giovanni Santangelo. “Eis aí um bom e velho nome escocês”, pensou Kit. O tempo ainda permanecia frio, mas com o céu claro. Uma forte tempestade de neve no mar da Noruega se desloca­va para o sul, mas esperava-se que passasse a oeste da Escócia. Em seguida veio uma notícia que congelou o sangue de Kit.

Ouviu a voz familiar de Carl Osborne, uma celebridade da TV escocesa famoso por adorar reportagens sensacionalistas. Virando-se para a tela, viu o prédio que planejava roubar à noite. Osborne fala­va ao vivo, diretamente da Oxenford Medical. Ainda estava escuro, mas os holofotes da segurança iluminavam a ornamentada arquite­tura vitoriana do prédio.

— Que merda aconteceu? — perguntou Kit, preocupado.

Osborne disse: — Experiências científicas com alguns dos mais perigosos vírus do mundo acontecem aqui mesmo na Escócia, neste prédio que vocês estão vendo, chamado de “Castelo do Frankenstein” pela população local.

Kit jamais ouvira aquela expressão. Osborne estava inventando. O apelido do prédio da Oxenford era Kremlin.

— Mas hoje, no que parece ser uma vingança da natureza à intro­missão do homem, um jovem técnico morreu vítima de um desses vírus.

Kit deixou o aparelho de barbear em cima da bancada. Aquilo seria uma publicidade tremendamente negativa para a Oxenford Medical, percebeu imediatamente. Num dia normal ele exultaria com o problema do pai, mas hoje o efeito dessa publicidade sobre seus planos o preocupava.

— Michael Ross, trinta e um anos, morreu vítima de um vírus chamado Ebola, cujo nome foi tirado da aldeia africana onde foi identificado pela primeira vez. A doença causada pelo Ebola faz surgirem dolorosas vesículas em toda a extensão do corpo da vítima.

Kit tinha certeza de que Osborne estava equivocado, mas o público não sabia disso. A televisão mais parecia um tablóide. Será que a morte do tal Michael Ross poria em risco o roubo planejado por Kit?

— A Oxenford Medical sempre alegou que suas atividades de pesquisa não representavam uma ameaça à população local ou da nossa zona rural, mas a morte de Michael Ross vem lançar sérias dúvidas sobre isso.

Osborne, que usava um anoraque e um chapéu de lã, dava a impressão de que não dormira muito na noite anterior. Alguém deve tê-lo acordado de manhã bem cedo com uma informação especial.

— Ross pode ter sido mordido por um animal que roubou do laboratório e levou para sua casa, a poucos quilômetros — continuou Osborne.

— Oh, não! — exclamou Kit. Aquilo estava piorando cada vez mais. Será que seria forçado a abandonar seu plano logo agora? Aquilo era demais.

— Terá Michael Ross agido sozinho ou será que fazia parte de um grupo maior que ainda pode tentar libertar mais animais infectados com vírus letais cultivados nos laboratórios secretos da Oxenford Medical? Será que estamos diante da possibilidade de ver cães e coe­lhos de aparência inofensiva vagando em liberdade pela paisagem escocesa, espalhando por onde quer que passem os vírus letais com que foram infectados? Por ora não há quem esteja em condições de responder a esta pergunta.

Quer respondessem ou não, Kit sabia o que o pessoal estaria fazendo no Kremlin: intensificando as medidas de segurança ao máximo. Toni Gallo estaria cuidando de tudo pessoalmente, acompanhando os procedimentos, verificando alarmes e câmeras, dando instruções aos guardas, apertando o cerco. Era, sem dúvida, a pior notícia possível para Kit, que ficou furioso.

— Por que tenho tanto azar? — disse, em voz alta.

— Seja como for — prosseguiu Carl Osborne —, Michael Ross parece ter morrido por amor a um hamster chamado Fofinho.

Seu tom era tão trágico que Kit achou que o repórter fosse enxu­gar uma lágrima a qualquer instante.

A âncora do noticiário, uma loura atraente com o cabelo artisticamente esculpido, apareceu na tela, com uma pergunta:

— Carl, a Oxenford Medical fez algum comentário sobre o incidente?

— Fez. — Carl consultou seu bloco de anotações. — Disseram que lamentam muito e estão profundamente abalados com a morte de Michael Ross, mas tudo indica que ninguém mais será afetado pelo vírus. Mesmo assim, querem falar com qualquer pessoa que tenha estado com Ross nos últimos dezesseis dias.

— Pode-se presumir então que quem teve contato com ele pode ter sido contaminado pelo vírus?

— Correto e também contaminado outras pessoas. Deste modo, a declaração da empresa de que ninguém mais deve ser infectado mais parece uma esperança piedosa que uma previsão científica.

— Uma história muito preocupante — disse a âncora para a câme­ra. — E agora notícias do futebol.

Num acesso de fúria, Kit golpeou o controle remoto, tentando desligar a televisão, mas estava agitado demais e apertava os botões errados. Acabou puxando o fio da tomada. A vontade que tinha era de jogar o aparelho pela janela. Aquilo era uma catástrofe.

A previsão apocalíptica de Osborne sobre a disseminação do vírus podia não ser verdadeira, mas uma conseqüência absolutamente certa era que a segurança do Kremlin passaria a ser hermética. Aquela noite seria o pior momento possível para roubar o laborató­rio: se tivesse uma boa mão, estaria disposto a apostar tudo, mas sabia que quando as cartas estavam contra ele, era melhor desistir.

Pelo menos não terei que passar o Natal com meu pai, pensou, amargurado.

Talvez pudesse fazer o serviço algum outro dia, quando a repercussão tivesse passado e a segurança voltasse ao nível normal. Talvez o cliente pudesse ser persuadido a dilatar o prazo de entrega. Kit estremeceu quando pensou na dívida enorme que continuaria sem ser paga. Mas não adiantava insistir e seguir em frente quando o fra­casso era quase certo.

Quando saiu do banheiro viu no relógio do aparelho de som que eram 07:28. Cedo para dar um telefonema, mas aquilo era urgente. Pegou o aparelho e discou.

Atenderam prontamente. Voz de homem.

— Sim?

— Aqui é o Kit. Ele está aí?

— O que você quer?

— Preciso falar com ele. É importante.

— Ele ainda não acordou.

— Merda. — Kit não queria deixar recado. E, pensando bem, não queria que Maureen ouvisse o que tinha a dizer.

— Diga-lhe que mudei de idéia.

Ele desligou sem esperar resposta.

 

Toni Gallo achou que sairia do trabalho na hora do almoço.

Deu uma olhada na sala. Não fazia muito tempo que viera traba­lhar ali. Agora é que começara a arrumar as coisas do seu jeito. Em cima da mesa havia uma foto sua com a mãe e a irmã Bella, tirada alguns anos antes, quando a mãe ainda não tinha problemas de saú­de. Ao lado do porta-retrato estava o dicionário bastante surrado — nunca fora capaz de escrever sem erros de ortografia. Foi nesta arru­mação recente que tinha pendurado na parede um retrato seu, jovem e entusiasmada, tirado dezessete anos atrás, em uniforme da polícia.

Mal podia acreditar que tivesse perdido aquele emprego.

Sabia agora o que Michael Ross fizera. Ele planejara uma forma inteligente de furar todos os seus esquemas de segurança. Encon­trara os pontos fracos e os explorara. Não havia ninguém a culpar, a não ser a si mesma.

Não sabia disso duas horas atrás, quando telefonara para Stanley Oxenford, presidente e acionista majoritário da Oxenford Medical.

Estava apavorada quando falou com ele. Tinha que lhe dar a pior notícia possível e assumir a culpa. Preparou-se para enfrentar seu desapontamento, indignação ou talvez raiva.

— Você está bem? — perguntara Stanley.

Toni quase chorou. Não esperava que o primeiro pensamento dele fosse com o bem-estar dela. Não merecia tanta bondade.

— Estou bem — respondeu. — Todos nós vestimos os trajes prote­tores antes de entrarmos na casa.

— Mas deve estar exausta.

— Tirei um cochilo lá pelas cinco.

— Ótimo — disse Stanley, prosseguindo logo em seguida. — Sei quem é Michael Ross. Um sujeito caladão, cerca de trinta anos, deve estar conosco há alguns anos... um técnico experiente. Como isso pôde acontecer?

— Encontrei um coelho morto dentro do galpão que ele tinha no jardim. Acho que levou para casa um animal do laboratório e foi mordido.

— Duvido. É mais provável que tenha se cortado com uma faca contaminada. Até mesmo profissionais experientes às vezes se descuidam. O coelho provavelmente era um animal de estimação nor­mal que morreu de fome depois que Michael adoeceu.

Toni gostaria de poder fingir que acreditava naquilo, mas a obri­gação dela era apresentar os fatos a seu chefe.

— O coelho estava dentro de um gabinete de biossegurança improvisado.

— Continuo duvidando. Michael não podia trabalhar sozinho no BSL4. Mesmo que o colega não estivesse olhando, há câmeras de vídeo em todas as salas. Michael não poderia roubar um coelho sem aparecer nos monitores. Depois tinha que passar por diversos seguranças, que teriam notado se estivesse carregando um coelho. Final­mente, os cientistas que trabalhassem no laboratório teriam percebi­do imediatamente que faltava um coelho. Eles podem não saber diferenciar um coelho do outro, mas certamente sabem quantos ani­mais estão envolvidos na experiência.

Mesmo àquela hora da manhã, o cérebro dele tinha disparado, co­mo o potente motor da sua Ferrari, pensou Toni. Mas estava errado.

— Fui eu que instalei todas aquelas barreiras de segurança — dis­se ela. — E estou lhe dizendo que nenhum sistema é perfeito.

— Você tem razão, claro. — Com bons argumentos, ele era capaz de recuar com uma rapidez alarmante. — Imagino que tenhamos a fita da última vez em que Michael esteve no BSL4, não?

— Próximo item da minha lista.

— Estarei aí lá pelas oito horas. Tenha algumas respostas para mim, por favor.

— Mais uma coisa. Assim que o pessoal for chegando, os boatos vão se espalhar. Posso dizer que o senhor vai fazer uma declaração?

— Boa idéia. Falo com todo mundo no saguão às, digamos, nove e meia.

Sendo o maior aposento do prédio, o saguão situado na entrada da velha casa era sempre usado para reuniões maiores.

Assim que desligou, Toni chamou Susan Mackintosh, da equipe de segurança, uma bela garota nos seus vinte anos com um corte de cabelo de menino e um piercing na sobrancelha. Ela notou imedia­tamente a fotografia na parede.

— Você fica bem de uniforme — disse.

— Obrigada. Sei que já está quase na sua hora de saída, mas pre­ciso de uma mulher para fazer este trabalho.

— Sei como é que é — disse Susan, levantando uma das sobrance­lhas sedutoramente.

Toni não pôde deixar de se lembrar da festa de Natal da empresa, na última sexta-feira, em que Susan tinha se vestido como John Travolta em Nos tempos da brilhantina, com o cabelo cheio de gel, calça jeans muito apertada e sapatos de sola macia de borracha. Susan havia tirado Toni para dançar. Toni sorrira calorosamente e dissera: “Não, acho que não.” Um pouco mais tarde, após uns drinques, Susan perguntara se ela dormia com homens. “Não tanto quanto eu gostaria”, foi a resposta de Toni.

Toni ficou lisonjeada por ver uma pessoa tão bonita e tão jovem sentir-se atraída por ela, mas fingiu não perceber.

— Preciso que intercepte todos os funcionários da empresa quan­do chegarem. Coloque uma mesa no saguão e não deixe que nin­guém vá para o seu local de trabalho antes de falar com você.

— O que devo dizer?

— Diga que houve uma falha no sistema de segurança e que o professor Oxenford vai explicar tudo ainda hoje de manhã. Fale com calma e tranqüilize todos, mas não entre em detalhes. Melhor deixar esta parte com Stanley.

— Tudo bem.

— Depois pergunte quando cada um deles viu Michael Ross pela última vez. Alguns tiveram que responder a esta pergunta pelo tele­fone durante a noite, mas só os autorizados a entrar no BSL4, e não faz mal verificar duas vezes. Se alguém o tiver visto algum dia depois que ele saiu daqui no domingo, duas semanas atrás, passe-me a informação imediatamente.

— Positivo.

Toni tinha uma pergunta delicada para fazer. Primeiro hesitou, mas acabou se decidindo:

— Você acha que Michael era gay?

— Não assumidamente.

— Tem certeza?

— Inverburn é uma cidade pequena. Há dois pubs para gays, dois restaurantes, uma igreja... Conheço todos esses lugares e nunca o vi em qualquer um deles.

— OK. Espero que você não se incomode porque presumi que você saberia, porque...

— Tudo bem. — Susan sorriu e encarou Toni. — Você vai ter que se esforçar muito mais para me ofender.

— Obrigada.

Isso se passara há quase duas horas. De lá para cá Toni passara quase todo o tempo vendo a fita gravada da última visita de Michael Ross ao BSL4. Tinha agora as respostas que Stanley queria. Ia lhe con­tar o que acontecera e provavelmente ele pediria que se demitisse.

Relembrou a primeira vez em que se encontraram. Estava na época na pior fase de sua vida. Quis ser consultora de segurança autônoma, mas não conseguira clientes. O companheiro de oito anos a abandonara. E a esclerose de sua mãe só fazia se agravar com a idade. Toni sentia-se como Jó depois de abandonado por Deus.

Stanley a convocara ao seu escritório e lhe oferecera um contra­to de trabalho temporário. Tinha inventado uma droga tão valiosa que temia ser alvo de espionagem industrial. Queria que ela verifi­casse tudo. Toni não disse a ele que aquela era sua primeira missão na verdade.

Depois de vasculhar as instalações da companhia de alto a baixo, procurando por dispositivos de escuta, tentou descobrir se havia algum funcionário em posição-chave que vivesse acima dos próprios recursos. Acabou descobrindo que ninguém agia como espião na Oxenford Medical, mas, para seu espanto, encontrou provas de que Kit, o filho de Stanley, desviava dinheiro da empresa.

Ficou chocada. Kit tinha lhe parecido ao mesmo tempo encantador e nada confiável, mas que tipo de homem rouba o próprio pai? “O velho canalha pode arcar com o prejuízo, tem dinheiro demais”, dissera Kit, despreocupadamente. E, Toni sabia, após tantos anos na polícia, que não havia nada de profundo na iniqüidade — os crimi­nosos não passam de uma gente vazia e ambiciosa, que acumula des­culpas esfarrapadas para tudo.

Kit tentara persuadi-la a deixar aquilo de lado. Prometeu nunca mais fazer nada se Toni guardasse segredo. Ela até que se sentiu ten­tada: não lhe agradava a idéia de contar a um homem recentemente viúvo que seu filho não prestava. Mas esconder o que descobrira teria sido desonesto.

Foi assim que acabou por contar tudo, com grande temor, a Stanley.

Jamais se esqueceria da expressão no rosto dele. Ele ficou pálido, fez uma careta e deixou escapar um gemido, como se estivesse sen­tindo uma súbita dor no peito. Naquele momento, enquanto Stanley lutava para dominar sua emoção, Toni viu tanto a sua força quanto a sua sensibilidade e sentiu-se fortemente atraída por ele.

Falar a verdade acabou sendo a decisão correta. Sua integridade foi recompensada. Stanley demitiu Kit e deu a Toni um emprego de tempo integral. Motivo pelo qual ela lhe devia, para sempre, lealda­de absoluta. Custe o que custasse, Toni haveria de fazer jus à sua confiança.

E a vida melhorou. Stanley rapidamente a promoveu de chefe da segurança para diretora das instalações e lhe concedeu um aumento. Ela comprou um Porsche vermelho.

Quando mencionou uma vez, em conversa, que tinha integrado a seleção de squash da polícia, Stanley desafiou-a para uma partida na quadra da empresa. Ela ganhou, mas por pouco, e começaram a jogar toda semana. Stanley encontrava-se em perfeita forma física e tinha mais envergadura, mas ela era vinte anos mais jovem e tinha reflexos rápidos. Stanley ganhava de vez em quando, quando Toni se desconcentrava, mas normalmente era ela quem ganhava.

E passou a conhecê-lo melhor. Seu jogo era inteligente, ele gostava de lances arriscados, o compensava. Embora fosse um homem competitivo, era bem-humorado quando perdia. O raciocínio rápi­do de Toni combinava com o ritmo do cérebro dele e ela gostava de discussões animadas. Quanto melhor o conhecia, mais gostava dele. Até que um dia percebeu que não era só “gostar”. Era mais do que isso.

Sentia agora que o pior de perder o emprego seria o fato de não poder vê-lo mais.

Estava prestes a descer para o saguão, a fim de encontrar-se com ele no caminho, quando seu telefone tocou.

— Aqui é Odette — disse uma voz de mulher com sotaque do sul da Inglaterra.

— Oi!

Toni ficou feliz. Odette Cressy era detetive na polícia metropolitana de Londres. Tinham se conhecido em um curso em Hendon, cinco anos atrás. Eram da mesma idade. Odette era solteira e, desde que Toni se separara de Frank, as duas já tinham passado juntas as férias por duas vezes. Se não morassem tão longe uma da outra, seriam inseparáveis. Costumavam se falar pelo telefone a cada duas semanas.

— É sobre a sua vítima do vírus — disse Odette.

— Por que está interessada? — Toni sabia que Odette integrava a equipe antiterrorista. — Suponho que eu não deva perguntar.

— Isso mesmo. Só lhe direi que o nome Madoba-2 acionou uma campainha de alarme aqui. Deixo o resto por sua conta.

Toni franziu a testa. Como ex-policial, podia adivinhar o que estava acontecendo. Odette dispunha de informações indicando a existência de algum grupo interessado no Madoba-2. Um suspeito podia ter mencionado seu nome em um interrogatório ou o vírus fora citado em uma conversa grampeada ou alguém, cujas linhas telefônicas estivessem sendo monitoradas, havia digitado o nome numa ferramenta de busca da internet. A partir daí, a qualquer momento que uma quantidade qualquer do vírus fosse desviada, a unidade antiterrorista suspeitaria de que tivesse sido roubada por fanáticos.

— Não acho que Michael Ross fosse terrorista — disse Toni. — Acho que ele simplesmente afeiçoou-se a algum animal do laboratório.

— O que me diz dos amigos dele?

— Encontrei sua agenda de endereços e neste instante a polícia de Inverburn está checando os nomes.

— Você guardou uma cópia?

Estava em cima da mesa de Toni.

— Posso mandar agora mesmo para você por fax.

— Obrigada, isso economizará meu tempo.

Odette ditou um número que Toni anotou.

— Como é que está se saindo com o seu chefe bonitão? — pergun­tou ela.

Toni não contara a ninguém como se sentia a respeito de Stanley, mas Odette era telepata.

— Não gosto de misturar sexo com trabalho, você sabe disso. De qualquer modo, a mulher dele faleceu recentemente...

— Dezoito meses, se estou bem lembrada.

— O que não é muito tempo, considerando quase quarenta anos de vida em comum. E ele é devotado aos filhos e netos, que prova­velmente odiarão quem quer que tente substituir sua mãe e avó.

— Você sabe por que é bom fazer sexo com um homem mais velho? Ele se preocupa tanto por não ser mais jovem e vigoroso que se esforça em dobro para satisfazer a parceira.

— Vou ter que aceitar a sua palavra nesta matéria.

— E o que mais? Ah, sim, quase me esqueci, rá, rá, ele é rico. Vou lhe dizer o seguinte: se você resolver que não quer ele, eu quero. Enquanto isso, me liga se descobrir algo de novo a respeito de Michael Ross.

— Claro. — Toni desligou e olhou pela janela. A Ferrari F50 azul-escura de Stanley Oxenford estava estacionada na vaga da diretoria. Ela pôs a cópia da agenda de Michael Ross no fax e digitou o núme­ro de Odette.

Em seguida, sentindo-se como uma criminosa na hora da sentença, foi encontrar-se com o chefe.

 

O saguão lembrava a nave de uma igreja. Por suas altas janelas em arco entravam os raios do sol, formando desenhos no piso de pedra. Grandes vigas aparentes de madeira, de desenho irregular, atravessavam o imenso vão, sustentando o telhado. No meio desse belo espaço e em completa desarmonia com ele, havia um balcão oval de recepção, moderno, alto, com uma mulher uniformizada sentada em um banco.

Stanley Oxenford era um homem alto, de sessenta anos, com cabelos grisalhos e olhos azuis. Não tinha o estereótipo do cientista — nada de calvície no alto da cabeça, ombros recurvados ou óculos. Toni achava que ele parecia mais um desses atores veteranos que representam generais da Segunda Guerra Mundial no cinema. Vestia-se bem, sem exageros. Estava com um terno de tweed cinza, colete, camisa azul-clara e — talvez por respeito ao morto — uma gra­vata preta. Susan Mackintosh colocara uma mesinha perto da porta da frente e falou com Stanley quando ele entrou. Stanley respondeu rapidamente e virou-se para Toni.

— Foi uma boa idéia pegar todo mundo no início do expediente para perguntar quando viram Michael pela última vez.

— Obrigada — agradeceu Toni, pensando que pelo menos uma coisa certa ela tinha feito.

Stanley prosseguiu: — E o pessoal que está de férias?

— O departamento pessoal vai ligar para todos ainda esta manhã.

— Excelente. Descobriu o que aconteceu?

— Descobri. Eu estava certa e você errado. Foi o coelho.

A despeito das circunstâncias trágicas, ele sorriu. Gostava que o desafiassem, especialmente mulheres atraentes.

— Como você sabe?

— Pela fita de vídeo. Quer ver?

— Quero.

Percorreram um amplo corredor com revestimento de carvalho e viraram numa passagem lateral que dava na estação central de monitoramento, normalmente chamada de sala de controle. Era o centro de segurança. Já fora uma sala de bilhar, mas as janelas haviam sido fechadas com tijolos por motivos de segurança e o teto rebaixado servia para esconder os cabos. Uma das paredes tinha uma série de monitores de vídeo mostrando as áreas mais importantes da casa, inclusive cada aposento do BSL4. Em cima de uma mesa com­prida ficavam as telas sensíveis ao toque que controlavam os alarmes. Milhares de pontos de controle eletrônico monitoravam a tempera­tura, umidade e os sistemas de regulagem do ar em todos os labora­tórios — se uma porta ficasse aberta tempo demais, soaria um alarme. Um guarda uniformizado ficava na estação de trabalho que dava acesso ao computador central de segurança.

— Isto ficou arrumado e limpo depois que saí daqui — disse Stanley, surpreso.

Quando Toni assumira a segurança, a sala de controle era uma bagunça, cheia de copos de café sujos, jornais velhos, esferográficas quebradas e quentinhas vazias. Agora tudo estava limpo e arrumado, sem nada em cima da mesa a não ser o arquivo que o guarda estava lendo. Ela ficou satisfeita por ver que Stanley notara a diferença.

Ele deu uma olhada na sala de equipamento ao lado. Outrora sala das armas, agora estava repleta de equipamentos e instrumentos de apoio, inclusive a unidade central de processamento do sistema telefônico. Era fortemente iluminada. Cada um dos milhares de cabos tinha uma etiqueta não-removível com instruções fáceis de ler, para minimizar alguma falha técnica que ocorresse. Stanley balan­çou a cabeça, em sinal de aprovação.

Aquilo era ótimo para Toni; só que Stanley já sabia que ela era uma organizadora eficiente. A parte mais importante do seu traba­lho era assegurar-se de que nada de perigoso escapasse do laborató­rio BSL4 — e nisto havia falhado.

Havia ocasiões em que Toni não sabia o que Stanley estava pen­sando — e aquela era uma. Estaria pesaroso por causa da morte de Michael Ross, com medo do futuro de sua empresa ou furioso com a falha na segurança? Voltaria sua cólera contra ela, o falecido Michael Ross ou Howard McAlpine? Quando mostrasse o que Michael fizera, ele a elogiaria por ter resolvido o problema com tanta rapidez ou a despediria por ter deixado que acontecesse?

Os dois sentaram-se lado a lado diante de um monitor e Toni digitou os comandos necessários para que fossem exibidas as imagens que queria ver. A gigantesca memória do computador armaze­nava as imagens por quatro semanas antes que fossem apagadas. Intimamente familiarizada com o programa, navegou por ele com facilidade.

Sentada ao lado de Stanley, lembrou-se nitidamente de certa ocasião, quando tinha catorze anos, em que fora ao cinema com um garoto da sua idade e que deixara que ele pusesse a mão por cima do seu suéter. A lembrança deixou-a envergonhada e ela sentiu que sua nuca ficava vermelha. Torceu para que Stanley não percebesse.

No monitor, mostrou Michael chegando ao portão principal e mostrando seu passe.

— Data e hora aparecem na parte de baixo da tela — explicou.

Eram 14h27 do dia 8 de dezembro. Mais algumas teclas digitadas e apareceu um Golf verde parando numa das vagas do estaciona­mento da firma. Um homem franzino saltou e pegou uma bolsa de lona na parte de trás do carro.

— Preste atenção à bolsa — disse Toni.

— Por quê?

— Tem um coelho dentro dela.

— Como ele conseguiu que o coelho ficasse quieto?

— Acho que deve ter sido sedado e provavelmente estava bem amarrado. Lembre-se de que ele trabalhava com animais de laboratório há anos. Sabia o que fazer.

A tomada seguinte mostrava Michael apresentando novamente seu passe na recepção. Uma bela mulher paquistanesa, de cerca de quarenta anos, entra no saguão.

— É Monica Ansari — disse Stanley.

— Foi ela que fez dupla com ele. Precisava trabalhar na cultura de tecidos e Michael estava fazendo sua verificação de rotina dos animais, o que acontece todo fim de semana.

Os dois seguiram pelo mesmo corredor por onde Toni e Stanley tinham vindo, mas passaram direto pela sala de controle e continuaram até a porta no fim. Ela se parecia com todas as outras portas do prédio, com quatro painéis rebaixados e uma maçaneta de cobre, só que era feita de aço. Na parede ao lado da porta havia o símbolo internacional de biorrisco em preto e amarelo.

A dra. Ansari passou o cartão de plástico pela leitora ótica e depois colocou o indicador da mão esquerda sobre uma telinha. Houve uma pausa enquanto o computador verificava as informa­ções contidas no microchip do cartão inteligente, o que assegurava que cartões extraviados ou furtados não fossem usados por pessoas não autorizadas. Enquanto a dra. Ansari esperava, ela encarou a câmera e bateu uma continência de brincadeira. Em seguida a porta abriu e ela entrou, seguida por Michael.

Outra câmera mostrou os dois em uma saleta. Uma seqüência de mostradores na parede monitorava a pressão atmosférica no laboratório. Quanto mais a pessoa avançava pelo BSL4, mais baixa a pressão. Este gradiente descendente garantia que qualquer vazamento de ar ocorresse para dentro. Daquela saleta eles foram para os ves­tiários, que eram separados, masculino e feminino.

— Foi nesta hora que ele tirou o coelho da bolsa — disse Toni. — Se o seu parceiro nesse dia tivesse sido um homem, o plano não fun­cionaria. Mas ele entrou com Monica e, claro, não há câmeras nos vestiários.

— Mas que droga, não se pode ter câmeras de segurança em ves­tiários — disse Stanley. — Ninguém trabalharia aqui.

— Isso mesmo — concordou Toni. — Teremos que pensar em outra solução. Observe isto agora.

As imagens que se seguiram foram feitas por uma câmera no inte­rior do laboratório. Mostrava gaiolas convencionais para coelhos iso­ladas por uma cobertura de plástico claro. Toni congelou a imagem.

— Você poderia me explicar o que exatamente os cientistas estão fazendo nesse laboratório?

— Claro. Nossa nova droga é eficaz contra muitos vírus, mas não contra todos. Nesta experiência ela estava sendo testada contra o Madoba-2, uma variante do vírus Ebola que causa uma febre hemorrágica letal tanto em coelhos quanto em seres humanos. Dois grupos de coelhos foram estimulados pelo vírus.

— Estimulados?

— Desculpe, é a palavra que usamos. Significa que foram infectados. Depois foi aplicada a droga em um dos grupos.

— O que descobriram?

— A droga não combate o Madoba-2 em coelhos. Ficamos um pouco desapontados. Quase certamente não será capaz também de curar esse tipo de vírus em seres humanos.

— Mas vocês não sabiam disso dezesseis dias atrás.

— Correto.

— Neste caso, acho que entendo o que Michael se propôs a fazer — disse Toni, voltando ao teclado para descongelar a imagem. Apareceu na tela um vulto usando um traje espacial de plástico azul-claro, com um capacete transparente, que parou junto à porta para calçar as botas de borracha. Em seguida esticou o braço, puxou uma mangueira amarela de ar pendurada no teto e conectou-a a uma entrada no cinto. Quando o ar entrou, o traje dele ficou inflado, deixando-o parecido com o homenzinho da propaganda da Michelin.

— Este é o Michael — lembrou Toni. — Trocou de roupa mais de­pressa do que a Monica, portanto estava sozinho neste momento.

— O que não deveria acontecer — disse Stanley — mas acontece. A regra de acesso permitido somente para duas pessoas juntas é obede­cida, mas não minuto por minuto. Merda.

Na tela, Michael foi até a gaiola dos coelhos, movendo-se com lentidão. Tinha as costas viradas para a câmera, e, por alguns momentos, o traje inflado ocultou o que estava fazendo. Em segui­da afastou-se e deixou qualquer coisa em cima de um banco de aço inoxidável.

— Notou alguma coisa? — perguntou Toni.

— Não.

— Os guardas que estavam de olho nos monitores também não notaram — Toni defendeu o seu pessoal. Se Stanley não conseguiu ver o que aconteceu, dificilmente poderia culpá-los. — Mas olhe de novo.

Ela voltou a fita um pouco e congelou na imagem de Michael entrando de novo no campo de visão da câmera.

— Um coelho naquela gaiola do alto, à direita.

— Estou vendo.

— Examine Michael com mais atenção. Ele tem algo debaixo do braço.

— Tem sim, embrulhado no tecido azul de plástico do traje.

Ela avançou a fita, parando de novo quando Michael afastou-se da gaiola.

— Quantos coelhos há na gaiola superior da direita?

— Dois, droga! — Stanley parecia perplexo. — Pensei que sua teo­ria fosse de que Michael tivesse levado um coelho do laboratório. Mas você acaba de demonstrar que, ao contrário, ele trouxe um para o laboratório!

— Um substituto. De outro modo os cientistas teriam dado pela falta de um animal.

— Então, qual era a motivação dele? Para salvar um coelho tinha que condenar outro à morte?

— Considerando que ele fosse minimamente racional, imagino que sentisse que havia algo de peculiar no coelho que salvou.

— Pelo amor de Deus, um coelho é igual ao outro.

— Não para Michael, imagino.

Stanley balançou a cabeça, concordando.

— Você tem razão. Quem saberia dizer como estava funcionando sua mente a essa altura?

Toni deixou correr a fita.

— Ele fez seu trabalho de sempre, verificando a comida e a água nas gaiolas, certificando-se de que os animais estavam vivos e ticando em uma lista de verificação as tarefas realizadas. Monica entrou, mas foi para um outro setor tratar de suas culturas de tecidos, de modo que não podia vê-lo. Ele saiu por uma outra porta para o labo­ratório maior a fim de cuidar dos macacos. E voltou logo. Agora, observe.

Michael desconectou a mangueira de ar, o que era normal quan­do uma pessoa se desloca de um laboratório para outro — o traje con­tinha três ou quatro minutos de ar puro, e quando começava a faltar o visor ficava embaçado, alertando o usuário. Entrou na sala onde ficava o cofre, um refrigerador trancado destinado à armazenagem de amostras de vírus. Sendo o local mais seguro em todo o prédio, continha também os estoques das preciosíssimas drogas antivirais. Digitou uma senha no teclado. Uma câmera de segurança dentro do refrigerador mostrou-o selecionando duas doses da droga, já medi­das e dentro de seringas descartáveis.

— A dose menor para o coelho e a maior presumivelmente para ele próprio — disse Toni. — Como você, Michael esperava que ela funcionasse contra o Madoba-2. Planejava curar o coelho e imunizar-se.

— Os guardas podiam tê-lo visto pegando a droga.

— Mas não suspeitariam de nada. Ele estava autorizado a lidar com esses materiais.

— Podiam ter notado que ele não escreveu nada no registro.

— Podiam, mas é bom lembrar que cada segurança observa trin­ta e sete telas e não tem treinamento de prática laboratorial.

Stanley gemeu.

Toni continuou:

— Michael deve ter imaginado que a discrepância não seria nota­da antes do balanço anual e mesmo assim a culpa seria imputada a um erro burocrático. Ele não sabia que eu estava planejando uma verificação in loco.

Na tela, Michael fechou o cofre e voltou ao laboratório dos coelhos, reconectando a mangueira de ar.

— Ele terminou com a sua rotina — explicou Toni. — Agora retor­na às gaiolas dos coelhos.

Mais uma vez as costas de Michael escondiam da câmera o que ele estava fazendo.

— É agora que ele pega seu coelho favorito e tira da gaiola. Acho que aí o coloca dentro do traje em miniatura, provavelmente feito de partes aproveitadas de algum traje velho.

Michael virou para a câmera seu lado esquerdo. Quando se diri­giu para a saída, parecia ter algo debaixo do braço direito, mas era difícil de dizer.

Para sair do BSL4, todo mundo tinha que tomar um banho quí­mico que descontaminava o traje e depois tomar um banho comum.

— O traje teria protegido o animal do banho químico — disse Toni. — Meu palpite é que Michael depois jogou o traje-miniatura no incinerador. O banho de água não teria feito mal ao coelho. No vestiário ele o colocou dentro da bolsa. Quando saiu do prédio, os seguranças o viram com a mesma bolsa com que tinha entrado e não desconfiaram de nada.

Stanley recostou-se na cadeira.

— Nossa! Eu seria capaz de jurar que isso era impossível.

— Michael levou o coelho para casa. Pode ser que o tenha mordido quando injetou a droga nele. Injetou também em si próprio e pensou que assim ficasse a salvo. Mas estava enganado.

Stanley pareceu abatido.

— Pobre rapaz — disse. — Que tolice!

— Agora você sabe tudo o que eu sei — disse Toni, olhando para ele, à espera do veredicto. Será que esta fase de sua vida tinha acaba­do? Estaria desempregada no Natal?

Stanley virou-se para ela.

— Há uma precaução óbvia que podíamos ter tomado e que teria prevenido isso.

— Eu sei. Uma revista de todos que entrassem e saíssem do BSL4.

— Exatamente.

— Instituí isto hoje.

— Ou seja, botamos tranca nas portas depois de a casa ser arrom­bada.

— Sinto muito — disse ela.

Stanley queria vê-la pelas costas, tinha certeza.

— Você me paga para eu impedir que essas coisas aconteçam. Falhei. Imagino que gostaria que eu apresentasse minha demissão.

Ele pareceu irritar-se.

— Se eu quiser despedi-la, você saberá na hora.

Toni fitou-o, espantada. A punição fora adiada?

A expressão dele abrandou-se.

— Tudo bem, você é conscienciosa e se sente culpada, mesmo que nem você nem ninguém pudesse ter antecipado o que aconteceu.

— Eu poderia ter instituído a revista antes.

— E eu provavelmente teria vetado a idéia, achando que revolta­ria o pessoal.

— Oh.

— Preste atenção agora, porque só vou lhe dizer isto uma vez. Desde que você veio trabalhar aqui, a nossa segurança melhorou e atingiu uma qualidade que nunca teve antes. Você é excelente e meu objetivo é conservá-la na empresa. Assim, por favor, chega de auto-piedade.

De repente ela se sentiu fraca, tamanho foi seu alívio.

— Muito obrigada — disse.

— Agora, temos muito que fazer. Vamos começar.

Stanley saiu e Toni fechou os olhos, feliz. Fora perdoada. Muito obrigada, repetiu, mentalmente.

 

Miranda Oxenford pediu um cappuccino vienense, com uma pirâmide de creme chantili por cima. A seguir pediu também um pedaço de bolo de cenoura. Enfiou o troco no bolso da saia e carregou seu desjejum para a mesa onde a irmã Olga estava sentada com sua magreza diante de um expresso duplo e um cigarro na mão. O lugar era decorado com guirlandas de papel colorido recortado e uma árvore de Natal cintilava acima do forno onde eram aquecidos os panini. Só que alguém, com fino senso de ironia, pusera os Beach Boys no sistema de som e a música que se ouvia era “Surfin’ USA”.

Miranda quase sempre se encontrava com Olga para o café da manhã na rua Sauchiehall, centro de Glasgow. As duas irmãs trabalhavam perto uma da outra: Miranda era diretora administrativa de uma agência de recrutamento especializada em pessoal de tecnologia da informação e Olga, advogada. Ambas gostavam de uma pausa de cinco minutos para ordenar seus pensamentos antes de seguirem para o trabalho.

Não pareciam irmãs, pensou Miranda, vislumbrando seu reflexo no espelho. Ela era baixa, com o cabelo louro cacheado e sua silhueta era... fofinha. Já Olga era alta como o pai, mas tinha as mes­mas sobrancelhas pretas da falecida mãe, italiana de nascimento e conhecida como Mamma Marta. Olga vestia um costume cinza-escuro e sapatos de bico pontiagudo. Podia muito bem representar o papel de Cruela Cruel. Provavelmente aterrorizava os júris.

Miranda tirou o casaco e o cachecol. Usava uma saia pregueada e um suéter bordado com florezinhas. Vestia-se para seduzir e não para intimidar. Quando se sentou, Olga perguntou:

— Vai trabalhar na véspera de Natal?

— Só por uma hora — respondeu Miranda. — Para me certificar de que não ficou nada por fazer durante o feriado.

— Como eu.

— Soube da notícia? Um técnico do Kremlin morreu de um vírus.

— Oh, meu Deus, isso vai estragar o nosso Natal.

Olga podia parecer não ter coração, pensou Miranda, mas na verdade não era uma pessoa má.

— Deu no rádio. Não falei ainda com papai, mas parece que o pobre sujeito tomou-se de amores por um hamster do laboratório e levou-o para casa.

— Para fazer o quê, sexo com o hamster?

— Ele provavelmente foi mordido. Como morava sozinho, não teve ninguém para pedir socorro. Pelo menos isso significa que não deve ter contaminado ninguém. Assim mesmo, é horrível para o papai. Ele não vai demonstrar, mas com certeza vai se sentir responsável.

— Devia ter escolhido um ramo menos perigoso da ciência como, por exemplo, pesquisa de armas nucleares.

Miranda sorriu. Sentia-se especialmente satisfeita por ver Olga naquele dia, por ter uma chance de trocar uma palavrinha a sós com a irmã. Toda a família ia se reunir em Steepfall, a casa do pai, para celebrar o Natal. Ela levaria Ned Hanley, seu noivo, e queria se assegurar de que Olga o trataria bem. Mas abordou o assunto com um rodeio.

— Espero que isso não estrague a festa. Ficou sabendo que o Kit vai?

— Fico profundamente sensibilizada com a honra que nosso irmãozinho nos dispensa.

— Ele não ia, mas eu o convenci a mudar de idéia.

— Papai ficará muito satisfeito — disse Olga, com uma pontada de sarcasmo.

— Ficará mesmo — contestou Miranda, em tom de reprovação. — Você sabe que ele ficou arrasado por ter que despedir o Kit.

— O que sei é que nunca o vi tão furioso. Pensei que fosse matar alguém.

— Mas depois ele chorou.

— Eu não vi.

— Nem eu. Foi Lori quem me contou.

Lori era a governanta de Stanley.

— Mas agora ele quer esquecer e perdoar — completou Miranda.

Olga apagou o cigarro.

— Eu sei. A magnanimidade de papai é ilimitada. Kit já arranjou emprego?

Não.

— Você não consegue arranjar nada para ele? Ele é do seu ramo de trabalho, e é bom.

— O mercado está parado... e todo mundo sabe que Kit foi despedido por papai.

— Ele parou de jogar?

— Deve ter parado. Pelo menos prometeu a papai que ia parar. E não tem dinheiro.

— Papai pagou as dívidas dele, não pagou?

— Não creio que seja da nossa conta.

— Deixa disso, Mandy — contestou Olga, usando o apelido de infância de Miranda. — Quanto?

— Você devia perguntar a papai. Ou ao Kit.

— Dez mil libras?

Miranda desviou o olhar.

— Mais do que isso? Vinte mil?

— Cinqüenta — sussurrou Miranda.

— Meu Deus do céu! Aquele filho-da-mãe jogou fora cinqüenta mil libras da nossa herança? Espere só até eu me encontrar com ele.

— De qualquer modo, chega de falar em Kit. Você vai conhecer Ned muito melhor este Natal. Quero que o trate como um membro da família.

— Ned já devia ter entrado para a família a esta altura. Quando é que vocês vão casar? Os dois são velhos demais para um noivado longo. Ambos já foram casados e você não precisa economizar para comprar um enxoval.

Esta não era a resposta que Miranda esperava. Queria que Olga considerasse Ned com afeto.

— Oh, você sabe como é o Ned — disse, na defensiva. — Fica per­dido no seu mundinho particular.

Ned era editor de uma respeitada publicação voltada para política e cultura chamada The Glasgow Review of Books e não tinha o menor senso prático.

— Não sei como você agüenta. Não suporto gente indecisa.

A conversa não estava se desenrolando do modo como Miranda queria.

— Pode acreditar em mim, Olga, Ned é uma bênção depois do Jasper.

O primeiro marido de Miranda era um sujeito agressivo e tirano. Ned era o oposto dele e esta era uma das razões pelas quais ela o amava.

— Ned jamais será organizado o bastante para me dar ordens, como Jasper. Em geral ele nem sabe dizer em que dia estamos.

— Mesmo assim, você conseguiu viver sem homem perfeitamen­te bem durante cinco anos.

— É verdade, me sinto orgulhosa por isso, especialmente quando a economia esfriou e pararam de me pagar aquelas gordas bonificações.

— Então, para quê você quer outro homem?

— Bem, você sabe...

— Sexo? Faça-me o favor, Mandy. Nunca ouviu falar de vibradores?

Miranda deu uma risadinha.

— Não é a mesma coisa.

— Não é mesmo. O vibrador é maior, mais duro e mais confiável. Além disso, quando você está satisfeita, pode guardá-lo de volta na mesinha-de-cabeceira e esquecer.

Miranda começou a se sentir acuada, como freqüentemente acontecia quando conversava com a irmã.

— Ned é muito legal com Tom — disse. Tom era seu filho de onze anos de idade. — Jasper raramente falava com o menino, exceto para lhe dar ordens. Ned se interessa por ele, faz-lhe perguntas e ouve suas respostas.

— Por falar em crianças, como o Tom se dá com a Sophie? — Sophie, a filha do primeiro casamento de Ned, tinha catorze anos.

— Ela também vai a Steepfall. Vou pegá-la daqui a pouco. Tom olha para Sophie como os gregos olhavam para os seus deuses: seres sobrenaturais perigosos, a menos que sejam pacificados por sacrifícios constantes. Está sempre tentando lhe dar doces, mesmo que ela prefira cigarros. E magra como um varapau e, se for preciso, está dis­posta a morrer para manter seu peso.

Miranda lançou um olhar acusador para o maço de Marlboro Lights de Olga.

— Todas nós temos nossas fraquezas — disse Olga. — Por que não come mais um pedaço de bolo?

Miranda largou o garfo e tomou um gole de café.

— Sophie pode ser difícil, mas a culpa não é dela. Sua mãe ressente-se de mim e a criança tende a assumir a mesma atitude.

— Aposto como Ned deixa o problema por sua conta.

— Não me importo.

— Agora que mora no seu apartamento, ele lhe paga aluguel?

— O dinheiro dele não chega. A revista paga uma merreca. E Ned ainda tem que pagar a hipoteca da casa onde a ex mora. Mas não se sente à vontade por ser financeiramente dependente, pode acreditar em mim.

— Não posso imaginar o motivo pelo qual ele não se sentiria à vontade. Pode trepar quando lhe der na telha, tem você para tomar conta de sua filha problemática e mora sem pagar aluguel.

Miranda ficou magoada.

— Dessa vez você pegou pesado, Olga.

— Você não devia ter deixado ele se mudar sem marcar uma data para o casamento.

O mesmo pensamento ocorrera a Miranda, mas ela não ia admitir.

— Ele só acha que todo mundo precisa de um pouco mais de tempo para se acostumar com a idéia de um novo casamento.

— Quem é todo mundo, então?

— Bem, Sophie, para começar.

— E como ela reflete a atitude da mãe, o que na verdade você está dizendo é que Ned não se casará com você antes que sua ex lhe dê permissão.

— Olga, por favor, tire a beca de advogada quando falar comigo.

— Alguém tem que lhe dizer essas coisas.

— Você simplifica tudo. Sei que é o seu trabalho, mas sou sua irmã e não uma testemunha hostil.

— Desculpe ter falado.

— Fico satisfeita por você ter falado, porque isso é o tipo de coisa que eu não quero que você diga a Ned. Afinal, é o homem que amo e com quem quero me casar, de modo que estou pedindo para que seja gentil com ele no Natal.

— Farei o melhor que puder — prometeu Olga, sem muito entu­siasmo.

Miranda queria que a irmã compreendesse como aquilo era importante.

— Preciso que ele sinta que podemos construir juntos uma nova família, por nós mesmos e pelas duas crianças. Estou pedindo a você que me ajude a convencê-lo.

— Está bem. OK.

— Se este fim de semana tudo sair bem, acho que ele concordará em marcar uma data para o casamento.

Olga pôs a mão sobre a mão de Miranda.

— Captei a mensagem. Sei o quanto significa para você. Serei boazinha.

Miranda conseguira o que queria. Satisfeita, voltou seus pensamentos para outra área de atrito.

— Espero que tudo corra tranqüilamente entre papai e Kit.

— Eu também, mas não há muito que possamos fazer a respeito.

— Kit me telefonou pouco tempo atrás. Por alguma razão, está ansioso para dormir no chalé de hóspedes em Steepfall.

Olga se ofendeu.

— Por que ele iria ficar com o chalé só para si? Isto significa que você e Ned e eu e o Hugo vamos ter que nos espremer dentro de dois quartinhos apertados da casa velha!

Miranda havia esperado a resistência de Olga.

— Reconheço que não se justifica, mas falei que por mim estava tudo bem. Foi muito difícil persuadi-lo a ir e não quis pôr um obs­táculo no caminho.

— Ele é um egoísta filho-da-mãe. Qual foi a razão que deu a você?

— Não perguntei o motivo.

— Pois eu vou perguntar. — Olga pegou o celular na bolsa e pres­sionou uma tecla.

— Não vá criar caso à toa — pediu Miranda.

— Só quero fazer uma pergunta. Alô, Kit? — Olga foi direto ao assunto. — Que negócio é esse de você dormir no chalé? Não acha que é um pouco... — Ela fez uma pausa. — Oh. Por que não?... Entendo... Mas por que você não...

Ela calou-se abruptamente, como se ele tivesse batido com o telefone na sua cara.

Miranda pensou, tristemente, que sabia o que Kit dissera.

— O que foi?

Olga guardou o celular na bolsa.

— Não precisamos discutir por causa do chalé. Ele mudou de idéia. Não vai mais a Steepfall.

 

A Oxenford Medical estava sitiada. Repórteres, fotógrafos e equipes de televisão se acotovelavam diante dos portões, perturbando os funcionários que chegavam para trabalhar, cercando seus car­ros e bicicletas, encostando câmeras e microfones nos seus rostos, berrando perguntas. Os seguranças tentavam desesperadamente isolar o pessoal da imprensa do tráfego normal da rua, a fim de preve­nir acidentes, mas não conseguiam ter a menor cooperação dos jor­nalistas. Para piorar as coisas, um grupo de defensores dos direitos dos animais aproveitara a oportunidade para conseguir um pouco de publicidade e realizava uma manifestação, exibindo faixas e entoan­do canções de protesto. Tendo pouco para filmar, os cinegrafistas registravam a manifestação. Toni Gallo tudo observava, furiosa e impotente.

Ela se encontrava na sala de Stanley Oxenford, um amplo aposento que fora um dia o quarto principal da casa. Stanley trabalhava com o velho e o novo à sua volta: o computador ficava sobre uma mesa de madeira toda arranhada que ele tinha havia trinta anos. Em uma mesa de canto ficava um microscópio dos anos 60 que ele ain­da gostava de usar de vez em quando e que agora estava cercado de cartões de Natal, um deles de Toni. Na parede, uma gravura vitoria­na da tabela periódica dos elementos, ao lado de uma fotografia de uma jovem de cabelo negro, impressionantemente linda, de vestido de noiva — sua falecida mulher, Marta.

Stanley a mencionava com freqüência. “Frio como uma igreja, Marta costumava dizer... Quando Marta era viva, nós sempre íamos à Itália... Marta adorava flores.” Mas ele tinha falado a respeito de seus sentimentos por ela apenas uma vez. Toni elogiara a beleza de Marta e Stanley respondera, dizendo: “A dor diminui, mas não passa. Acho que vou sentir a falta dela pelo resto de minha vida.” O que fez com que Toni se perguntasse se algum homem um dia iria amá-la do modo como Stanley tinha amado Marta.

Ele colocou-se ao lado de Toni na janela, os ombros dos dois quase se tocando. Os dois observavam, horrorizados, cada vez mais carros estacionando na grama e a multidão ficando, a cada minuto, mais barulhenta e agressiva.

— Sinto muito por tudo isto — disse Toni, desolada.

— A culpa não é sua.

— Eu sei que você disse que não queria saber mais de autopiedade, mas deixei que um coelho furasse o meu cordão de isolamento e o filho-da-mãe do meu ex deixou vazar a história para Carl Osborne, o repórter da televisão.

— Dá para ver que você não se dá bem com o seu ex.

Toni nunca se abrira com Stanley a esse respeito, mas Frank ago­ra havia invadido sua vida profissional e ela ia aproveitar a oportuni­dade para explicar umas coisas.

— Eu sinceramente não sei por que o Frank me odeia. Nunca o rejeitei. Foi ele quem me deixou e isto num momento em que eu precisava de ajuda e apoio. Parecia que estava querendo me punir. E agora age assim.

— Sei como é. Você é uma prova viva da fraqueza dele. Toda vez que a vê, ele se lembra de como foi fraco e covarde quando você mais precisava do seu apoio.

Toni nunca pensara em Frank deste modo e agora o comportamento dele passou a fazer um certo sentido. Sentiu-se invadida por uma cálida onda de gratidão. Com todo cuidado para não demons­trar toda a emoção que sentia, respondeu:

— Precisa a sua interpretação.

Ele deu de ombros.

— Nunca perdoamos aqueles a quem prejudicamos.

Toni sorriu com o paradoxo. Stanley era inteligente no que se referia aos seres humanos assim como no que dizia respeito aos vírus.

Ele pôs a mão levemente sobre seu ombro, num gesto para tranqüilizá-la — ou significaria algo mais? Stanley raramente estabelecia contato físico com seus funcionários, porém com Toni tinham sido exatamente três vezes naquele ano, desde que o conhecera. Um aperto de mão quando lhe dera o contrato inicial, outro quando a empregara na empresa e um terceiro quando a promovera. Na festa de Natal, dançara com sua secretária, Dorothy, uma gorducha aten­ciosa que fazia o gênero mãezona. Não dançou com mais ninguém. Toni pensara em chamá-lo para dançar, mas teve medo de expor seus sentimentos. Depois se arrependeu, desejando ter sido mais ousada, como Susan Mackintosh.

— Pode ser que Frank não tenha vazado a história só para abor­recer você — disse Stanley. — Suspeito de que ele o teria feito de qual­quer maneira. Imagino que Osborne demonstrará sua gratidão dan­do uma cobertura favorável à polícia de Inverburn, particularmente ao superintendente Frank Hackett.

A mão de Stanley aqueceu a pele de Toni através da seda da blu­sa. Teria sido um gesto casual, impensado? Mais uma vez ela sofreu a frustração de não saber o que se passava na mente dele. Perguntou-se se não estaria sentindo a alça do seu sutiã e torceu para que ele não pudesse perceber o quanto gostara de sentir o toque de sua mão.

Não poderia garantir que Stanley estivesse certo a respeito de Frank e Carl Osborne.

— É generosidade sua pensar assim — disse ela. De qualquer modo, decidiu que, fosse como fosse, daria um jeito para que a empresa não viesse a ser prejudicada com o que Frank fizera.

Bateram à porta e Cynthia Creighton, a relações-públicas da empresa, entrou. Stanley tirou rapidamente a mão do ombro de Toni.

Cynthia era uma mulher franzina de cerca de cinqüenta anos vestindo saia de tweed e meias de tricô. Idealista sincera, Toni uma vez fizera Stanley rir ao dizer que Cynthia era o tipo de pessoa que fazia em casa sua própria granola. Normalmente hesitante, encontrava-se agora à beira de um ataque histérico. Descabelada, respirava com dificuldade e falava depressa demais.

— Essa gente me empurrou — disse. — São uns verdadeiros ani­mais! Onde está a polícia?

— Uma radiopatrulha está a caminho — respondeu Toni. — Deve chegar em dez ou quinze minutos.

— Deviam prender esses jornalistas!

Toni percebeu então, desesperada, que Cynthia era incapaz de lidar com uma crise. Suas principais obrigações eram gerir um pequeno orçamento de caridade, patrocinando alguns atletas e equipes de futebol de estudantes além de assegurar-se de que o nome da Oxenford Medical aparecesse com freqüência no Inverburn Courier em reportagens que nada tivessem a ver com vírus ou experiências com animais. Era um trabalho importante e Toni sabia disso, por­que o leitor acreditava na imprensa local e se mostrava cético em relação aos periódicos de circulação nacional. Conseqüentemente, o trabalho discreto de Cynthia imunizava a companhia contra os rela­tos assustadores divulgados pela grande imprensa e que podiam des­truir qualquer empreendimento científico. Só que Cynthia nunca tivera que lidar com a matilha de chacais que era a imprensa britâni­ca e estava angustiada demais para tomar boas decisões.

Stanley pensava a mesma coisa.

— Cynthia, quero que você trabalhe neste assunto com a Toni. Ela tem experiência em lidar com a mídia, do tempo em que trabalhou para a polícia — ele disse.

Cynthia pareceu sentir-se aliviada e grata.

— É mesmo?

— Passei um ano na assessoria de imprensa, embora nunca tenha lidado com algo tão sério quanto o que temos aqui.

— O que acha que devemos fazer?

— Bem... — Toni não se sentia qualificada para assumir o contro­le, mas tinham que lidar com uma emergência e tudo indicava que ela era a melhor opção disponível. O jeito era recorrer aos princípios básicos. — Há uma regra simples para lidar com a imprensa. —Aquilo poderia ser demasiado simples para aquela situação, mas não conhe­cia outra coisa. — Primeiro, é preciso decidir qual a mensagem que vamos passar. Segundo, temos que nos assegurar de que ela é verda­deira, para que nunca sejamos obrigados a nos desdizer. Por último, é indispensável repeti-la sempre.

— Hum... — Stanley fez um ar cético, mas não devia ter sugestão melhor.

— Não acha que deveríamos nos desculpar? — quis saber Cynthia.

— Não — apressou-se a responder Toni. — Será interpretado como uma confissão de culpa. Vão pensar que fomos descuidados, o que não é verdade. Ninguém é perfeito, mas nossa segurança é de pri­meira classe.

— Esta é a nossa mensagem? — indagou Stanley.

— Eu diria que não. Demasiadamente defensiva.

Toni pensou por um momento.

— Devíamos começar afirmando que realizamos aqui um trabalho que é vital para o futuro da humanidade. Não, isso é apocalípti­co demais. Realizamos aqui uma pesquisa médica que salvará vidas, assim fica melhor. Pode ter seus riscos, mas nossa segurança é tão boa quanto é possível planejar e executar. Tem mais: muita gente morrerá desnecessariamente se interrompermos o nosso trabalho.

— Gostei — aprovou Stanley.

— E é verdade? — perguntou Toni.

— Sem dúvida nenhuma. Todo ano aparece um vírus novo vindo da China e mata milhares de pessoas. Nossa droga salvará suas vidas.

Toni balançou a cabeça, satisfeita.

— Perfeito. Mensagem simples e significativa.

Stanley ainda parecia preocupado.

— Como a transmitiremos? — indagou.

— Acho que você deveria marcar uma coletiva para daqui a duas horas. Lá pelo meio-dia as redações estarão à procura de um novo desdobramento, de modo que vão gostar da oportunidade de conse­guir algo conosco. E os repórteres que estão aí fora irão embora logo depois que conseguirem. Ficará evidente depois disso que não have­rá novidades e eles vão querer passar o Natal em casa como todo mundo.

— Espero que você tenha razão — disse Stanley. — Cynthia, pode providenciar os detalhes, por favor?

Cynthia ainda não tinha se recuperado totalmente.

— O que devo fazer?

Toni encarregou-se de responder:

— Vamos dar a coletiva no saguão. É o único espaço com o tama­nho necessário e as cadeiras já estão sendo colocadas para o nosso pessoal ouvir o que o professor Oxenford vai dizer, às nove e meia. A primeira medida que você deverá tomar será avisar às pessoas que estão aí fora o que será feito. Assim terão alguma coisa para dizer a seus editores e pode ser que se acalmem. Depois telefone para a Press Association e a Reuters e peça que divulguem a notícia, para que os jornalistas que não estão aqui sejam informados.

— Certo — disse Cynthia, hesitante. — Certo.

Ela virou-se para ir embora e Toni comprometeu-se consigo Própria a ir, o mais cedo possível, verificar o que Cynthia fizera.

Quando Cynthia saiu, Dorothy contatou com Stanley pelo interfone e avisou que Laurence Mahoney, da embaixada dos Estados Unidos em Londres, estava na linha.

— Lembro-me dele — disse Toni. — Esteve aqui há alguns meses e eu o levei para conhecer nossas instalações.

As forças armadas americanas financiavam grande parte das pes­quisas realizadas pela Oxenford Medical. O Departamento de Defesa estava vivamente interessado na nova droga antiviral de Stanley, que prometia ser uma ferramenta poderosa no campo da guerra biológica. Stanley precisara de dinheiro para custear o longo processo dos testes e o governo americano mostrara-se ansioso para investir. Laurence Mahoney, da embaixada, mantinha-se a par de tudo em nome do Departamento de Defesa.

— Um minuto só, Dorothy — disse Stanley, sem pegar o telefone e virando-se para Toni.

— Mahoney é mais importante para nós do que toda a mídia bri­tânica. Não quero falar com ele assim de repente. Preciso saber o que está pensando para decidir como proceder.

— Quer que eu ganhe tempo?

— Veja se consegue sondar seu estado de espírito.

Tony pegou o aparelho e pressionou um botão.

— Olá, Larry, aqui é Toni Gallo, nós nos conhecemos em setem­bro, quando esteve aqui. Como vai?

Mahoney era assessor de imprensa da embaixada e Tony achava sua voz parecida com a do Pato Donald.

— Estou preocupado — disse ele.

— E por quê?

— Eu estava querendo falar com o professor Oxenford — respon­deu ele, sem esconder sua irritação.

— Ele também está ansioso para falar com você na primeira oportunidade — disse Toni, com tanta sinceridade quanto conseguiu simular. — Mas neste exato momento ele está reunido com o diretor do laboratório.

Na verdade ele estava sentado na beirada da mesa, olhando para ela com uma expressão no semblante que tanto podia ser carinhosa quanto meramente interessada. O olhar de Toni encontrou o dele, que desviou o rosto.

— Ele vai lhe telefonar assim que tiver o quadro completo — pros­seguiu ela. — O que certamente ocorrerá antes do meio-dia.

— Como vocês deixaram uma coisa dessas acontecer?

— O rapaz furtou um coelho do laboratório. Já instituímos uma revista obrigatória na entrada do BSL4 para nos certificar de que não acontecerá de novo.

— Minha preocupação é com a publicidade negativa que isto tra­rá para o governo americano. Não queremos ser responsabilizados por soltar vírus mortais na Escócia.

— Não há perigo disso — garantiu Toni, cruzando os dedos.

— Algum dos repórteres locais explorou o fato de que sua pesqui­sa é financiada pelos Estados Unidos?

— Não.

— Vai acontecer, mais cedo ou mais tarde.

— Nós certamente estaremos preparados para responder a perguntas a esse respeito.

— A hipótese mais perigosa de ser aventada para nós, e conseqüentemente para vocês, é a de que a pesquisa é feita aqui porque os americanos acham que é muito perigosa para ser feita nos Estados Unidos.

— Obrigada pelo aviso. Acho que temos uma resposta muito convincente para isto. Afinal, a droga foi inventada aqui na Escócia pelo professor Oxenford, de modo que é natural que seja testada aqui.

— Só não quero que, para provar nossa boa vontade, tenhamos de ser forçados a transferir a pesquisa para Fort Detrick.

Toni ficou chocada, em silêncio. Fort Detrick, situado na cida­de de Frederick, Maryland, era o Instituto de Pesquisa de Doenças Infecciosas do Exército dos Estados Unidos. Como a pesquisa poderia ser transferida para lá? Significaria o fim do Kremlin. Só respon­deu após um longo silêncio:

— Estamos longe, muito longe de uma situação dessas.

Toni gostaria de ter sido capaz de imaginar uma resposta mais incisiva.

— Assim espero — disse Mahoney. — Diga ao Stanley para me ligar.

— Obrigada, Larry. — Ela desligou e virou-se para Stanley: — Eles não podem transferir a sua pesquisa para Fort Detrick, podem?

Ele ficou lívido.

— Não há, tenho certeza absoluta, uma cláusula no contrato que preveja essa possibilidade — foi a resposta de Stanley. — Mas a potên­cia mais poderosa do mundo pode fazer o que bem entender. Qual seria minha reação? Entrar com um processo? Eu passaria o resto dos meus dias no tribunal, mesmo que pudesse sustentar financeiramen­te a briga.

Toni ficou abalada ao ver a vulnerabilidade de Stanley. Ele era sempre a pessoa calma que tranqüilizava os outros e sabia resolver os problemas. Agora parecia amedrontado. Teve ímpeto de tomá-lo nos braços.

— Eles fariam isso? — perguntou ela.

— Tenho certeza de que os microbiologistas de Fort Detrick pre­feriam estar fazendo essa pesquisa lá, se dependesse deles.

— E como isto deixaria você?

— Falido.

— O quê? — Toni ficou apavorada.

— Investi tudo o que tinha no laboratório novo — esclareceu Stanley, muito sério. — Tenho uma dívida pessoal de um milhão de libras. Nosso contrato com o Departamento de Defesa cobriria o custo do laboratório em quatro anos. Mas se eles puxarem o tapete agora, não vou ter como pagar as dívidas — tanto as da companhia quanto as minhas.

Toni ouviu aquilo estupefata. Como o futuro de Stanley — e o seu próprio — podiam estar tão ameaçados assim de uma hora para outra?

— Mas a droga nova vale milhões — disse ela.

— Valerá, um dia. Não tenho dúvidas quanto à parte científica da pesquisa e foi este o motivo pelo qual contraí uma dívida tão grande. Só não previ que o projeto pudesse ser destruído meramen­te pela publicidade negativa.

Toni pôs a mão no braço dele.

— E tudo porque um bobalhão da TV precisa de histórias de ter­ror — disse. — Não dá para acreditar!

Stanley deu um tapinha afetuoso na mão que ela pusera sobre o seu braço, retirou-a e se levantou.

— Não adianta ficarmos nos lamentando. Temos que descobrir um modo de sair desta.

— Tem razão. Está pronto para falar com os funcionários?

— Estou. — Eles saíram juntos da sala. — Será um bom treinamen­to para a entrevista coletiva.

Quando passaram pela mesa de Dorothy, ela fez um gesto para que parassem.

— Um momento, por favor — disse, ao telefone. Ela apertou um botão e falou com Stanley. — É o primeiro-ministro da Escócia — dis­se. — Pessoalmente — acrescentou, evidentemente impressionada. — Quer dar uma palavrinha.

— Vá lá para baixo, Toni — disse Stanley —, e segure o pessoal. Serei tão rápido quanto for possível.

Com isso, voltou para a sua sala.

 

Kit Oxenford esperou Harry McGarry por mais de uma hora.

McGarry, conhecido também como Harry Mac, nasceu em Govan, um bairro operário de Glasgow. Fora criado em uma casa de cômodos perto de Ibrox Park, a sede dos Rangers, o time de futebol dos protestantes da cidade. Com o lucro que obteve traficando drogas, explorando o jogo ilegal, o roubo e a prostituição, tinha se mudado para Dumbreck — a menos de dois quilômetros em termos de geografia, mas que representavam uma distância social muitíssimo maior. Morava agora em uma casa nova recém-construída, com piscina.

A casa era decorada como se fosse um hotel caro, com mobília de luxo e quadros na parede, mas sem toques pessoais: nada de fotos da família, enfeites, flores ou animais de estimação. Kit aguardou nervosamente no hall espaçoso, com os olhos fixos no papel de pare­de amarelo de listras e nos pés compridos e finos das mesas, observa­do por um guarda-costas gordo que vestia um terno preto barato.

O império de Harry Mac compreendia toda a Escócia e o norte da Inglaterra. Ele trabalhava com a filha, Diana, apelidada de Daisy — ironicamente, porque era na verdade uma brutamontes violenta e sádica.

Harry era dono do cassino ilegal onde Kit jogava. Os cassinos licenciados na Grã-Bretanha sofrem todo tipo de regulamentação, o que limita seus lucros: nada de percentagem para a casa, nada de cobrar pelo tempo passado na mesa de pôquer, nada de gorjetas, nada de beber nas mesas, além de ser preciso associar-se ao cassino no prazo de no mínimo vinte e quatro horas antes de poder começar a jogar. Kit gostava da atmosfera pecaminosa do jogo clandestino.

A maioria dos jogadores era burra, Kit acreditava. E as pessoas que dirigiam cassinos não eram muito mais inteligentes. Um joga­dor inteligente devia ganhar sempre. No vinte-e-um havia um modo correto para jogar todas as mãos possíveis — o sistema chamado de Básico — que Kit sabia de cor e salteado. E ainda melhorava suas chances se decorasse as cartas que saíam. Começando de zero, acres­centava um ponto a cada carta baixa que saía — dois, três, quatro, cin­co e seis — e subtraía um ponto de cada carta alta — dez, valete, dama, rei e ás, ignorando de sete a nove. Quando o número em sua cabeça era positivo, havia mais cartas altas do que baixas a serem dadas, de modo que ele tinha uma chance maior de tirar um dez. Se o número fosse negativo, eram maiores as chances de tirar uma carta baixa. O cálculo das probabilidades lhe dizia quando apostar mais alto.

Mas Kit teve uma maré de azar e, quando a dívida chegou a cin­qüenta mil libras, Harry quis receber o dinheiro.

Kit procurou o pai e pediu socorro. Foi humilhante, claro. Quando Stanley o despedira, ele acusara amargamente o pai de não se importar com ele. Agora admitia a verdade: na verdade o pai o amava, faria praticamente qualquer coisa por ele e Kit sabia disso perfeitamente bem. Sua pretensão sofreu um colapso vergonhoso. Mas valeu a pena toda aquela humilhação: Stanley pagou.

Kit prometeu que nunca mais jogaria de novo e estava falando sério. Só que a tentação era grande demais. Uma loucura, uma doença, uma coisa vergonhosa e humilhante. Mas era também o que havia de mais excitante no mundo e ele não foi capaz de resistir.

Quando a nova dívida atingiu outra vez a casa das cinqüenta mil libras, voltou ao pai, mas dessa vez Stanley não arredou pé: “Não tenho esse dinheiro. Talvez pudesse conseguir cinqüenta mil libras emprestadas, mas de que ia adiantar? Você perderia de novo e voltaria para pegar mais até que nós dois estivéssemos falidos.” Kit acusou-o de avarento e sem coração, chamou-o de pão-duro e jurou que nunca mais falaria com ele. As palavras magoaram — Kit sempre seria capaz de magoar o pai e sabia disso —, mas Stanley não mudou de idéia.

Neste ponto, Kit deveria ter deixado o país.

Seu sonho era ir para a Itália, morar em Lucca, a cidade da mãe. A família fora lá diversas vezes, quando ele era criança. Era uma bela cidade, com o perímetro delimitado por um muro, antiga e pacífica, com pracinhas onde se podia beber um excelente expresso à sombra. Ele sabia um pouco de italiano — Mamma Marta usava sua língua pátria para falar com os filhos quando eles eram pequenos. Podia alugar um quarto em um dos velhos sobrados e arranjar um empre­go ajudando as pessoas com problemas em seus computadores, tra­balho fácil. Achava que podia ser feliz, vivendo assim.

Só que, em vez de ir para a Itália, tentou ganhar no jogo o dinheiro que devia.

Sua dívida subiu para um quarto de milhão de libras.

Por tanto dinheiro, Harry Mac o perseguiria até os confins do pólo Norte. Kit pensou em se matar e até andou dando uma espia­da nos edifícios mais altos do centro de Glasgow — talvez conseguis­se subir ao terraço de um deles para se jogar para a morte.

Três semanas antes fora chamado àquela casa. Ficara apavorado, doente de tanto medo. Tinha certeza de que iam espancá-lo. Quando o conduziram para a sala, com seus sofás forrados de seda amarela, perguntou-se como iam impedir que o sangue respingasse no estofamento.

— Há um cavalheiro aqui que quer lhe fazer uma pergunta — dis­sera Harry. Kit não podia imaginar que pergunta qualquer um dos amigos de Harry podia lhe fazer que não fosse: Onde está a porra do dinheiro?

O cavalheiro era Nigel Buchanan, um sujeito calado, com seus quarenta e tantos anos, usando roupas caras, embora informais: casaco de cashmere, calça preta e camisa aberta no pescoço. Falando com discreto sotaque de Londres, ele perguntou:

— Você pode me pôr dentro do laboratório de nível quatro da Oxenford Medical?

Havia duas outras pessoas na sala amarela. Uma era Daisy, musculosa, com cerca de vinte e cinco anos, nariz quebrado, pele ruim, um piercing no lábio inferior e usando luvas de couro. À outra pes­soa era Elton, um belo rapaz negro, da mesma idade que Daisy, e que devia ser assecla de Nigel.

Kit sentiu-se tão aliviado por não levar a surra que estava prevendo que teria concordado com qualquer coisa.

Nigel ofereceu-lhe trezentas mil libras por uma noite de trabalho.

Kit mal pôde acreditar na sua sorte. Poderia pagar o que devia e ainda sobrava para deixar o país, ir para Lucca e realizar seu sonho. Sentiu-se radiante. Seus problemas tinham sido resolvidos de uma só tacada.

Mais tarde, Harry lhe falou a respeito de Nigel em tom reverente. Nigel era um ladrão profissional e roubava apenas por encomen­da, mediante um preço preestabelecido.

— É o maior de todos — disse Harry. — Você quer um quadro de Michelangelo? Sem problema. Uma ogiva nuclear? Ele lhe trará, des­de que você tenha o dinheiro para lhe pagar. Lembra de Shergar, o cavalo de corridas que foi seqüestrado? Foi Nigel.

Depois de uma pequena pausa ele acrescentou que Nigel morava em Liechtenstein, como se Liechtenstein fosse um local mais exótico para alguém morar do que Marte.

Kit passou as três semanas seguintes planejando o roubo da dro­ga antiviral. Sentia uma pontada de remorso enquanto aperfeiçoava o esquema para roubar o pai, mas a maior parte do tempo sentia um júbilo delirante ao pensar que se vingaria do homem que o despedi­ra e que se recusara a salvá-lo dos gângsteres. Seria o mesmo que um soco bem colocado no olho de Toni Gallo.

Nigel examinara todos os detalhes juntamente com ele, perguntando tudo. De vez em quando consultava Elton, que seria o encar­regado do equipamento, especialmente dos carros. Kit teve a impressão de que Elton era um especialista e que já havia trabalhado com Nigel antes. Daisy iria com eles, em tese para assegurar uma dose extra de músculos caso fosse necessário, embora Kit suspeitasse de que seu objetivo real era arrancar os duzentos e cinqüenta mil das mãos dele assim que recebesse o dinheiro.

Kit sugeriu que se encontrassem em um aeroporto abandonado perto do Kremlin. Nigel consultou Elton com um olhar.

— É uma boa — aprovou Elton, que falava com acentuado sota­que londrino. — Poderíamos nos encontrar com o comprador lá mes­mo, pode ser que ele queira vir num jatinho.

No final, Nigel classificara o plano de genial, o que deixara Kit entusiasmado.

E agora Kit teria de dizer a Harry que o plano estava cancelado. Sentia-se infeliz: desapontado, deprimido e apavorado.

Finalmente foi convocado à presença de Harry. Nervoso, seguiu o guarda-costas pela lavanderia da casa até o pavilhão da piscina, que ficava nos fundos. Era construído à semelhança de uma estufa eduardiana para plantar laranjeiras e arbustos exóticos, com ladrilhos vitrificados e cores sombrias. A própria piscina exibia um tom desagradável de verde-escuro. Algum decorador propusera aquilo, imaginou Kit, e Harry concordara sem ver os desenhos.

Harry era um homem corpulento de cinqüenta anos, com a pele acinzentada de quem fumara a vida inteira. Estava sentado a uma mesa de ferro batido, vestindo um roupão de tecido atoalhado de cor púrpura. Bebia café puro em uma xícara pequena e lia o Sun, aberto na página dos horóscopos. Daisy estava na água nadando incansavelmente de um lado para outro da piscina. Kit espantou-se ao ver que estava nua, exceto pelas luvas de mergulho. Ela sempre usava luvas.

— Não preciso ver você, rapazinho — disse Harry. — Não quero ver você. Não sei coisa alguma a seu respeito e nem o que vai fazer hoje à noite. E nunca vi um sujeito chamado Nigel Buchanan. Deu pra entender?

Ele não ofereceu café a Kit.

O ar estava quente e úmido. Kit envergava seu melhor terno, de mohair azul-escuro, com a camisa branca aberta no peito. Ele ofegava e suava desconfortavelmente. Percebeu que tinha violado uma regra da etiqueta dos criminosos ao entrar em contato com Harry no dia do roubo, mas não teve outra alternativa.

— Eu tinha que falar com você — explicou-se Kit. — Não viu o noticiário?

— E se eu tiver visto?

Kit conteve a irritação que sentiu. Homens como Harry não eram capazes de admitir não saber de algo, por mais trivial que fosse.

Houve um problema danado na Oxenford Medical — disse Kit. — Um técnico morreu por causa de um vírus.

— O que você quer que eu faça? Que envie uma coroa de flores?

— Eles já devem ter reforçado a segurança. Esta é a pior hora para roubar o laboratório. De qualquer modo, já é bastante difícil de um jeito ou de outro, com o sofisticado sistema de alarme que eles têm instalado lá. E a encarregada é durona, pior que um bife de borracha.

— Como você é chorão.

Kit não fora convidado a se sentar, por isso apoiou-se nas costas de uma cadeira, contrafeito.

— Temos que cancelar a operação — disse.

— Deixe-me explicar uma coisinha a você — retrucou Harry, ao mesmo tempo em que pegava um cigarro no maço e o acendia com um isqueiro de ouro. Tossiu na mesma hora, uma tosse antiga de fumante que vinha das profundezas do pulmão. Quando o espasmo passou, cuspiu na piscina e bebeu um gole de café. Só então retomou o fio da conversa.

— Por uma simples razão vai acontecer, porque eu disse que ia acontecer. Pode ser que você não saiba, por ser tão bem-nascido, mas quando um homem diz que alguma coisa vai acontecer e depois ela não acontece, ele é um idiota.

— Sim, mas...

— Nem sonhe em me interromper.

Kit calou a boca.

— Em segundo lugar, Nigel Buchanan não é nenhum adolescen­te drogado querendo roubar uma loja em Govan. O homem é uma lenda viva e, mais importante, tem ligações com pessoas de Londres que são altamente respeitadas. Ao tratar com uma pessoa assim, nem mesmo você vai querer bancar o idiota.

Ele fez uma pausa, como que desafiando Kit a contestá-lo. Kit nada disse. Como pôde se meter com aquela gente? Havia entrado na caverna dos lobos e agora se sentia paralisado, esperando a hora em que seria feito em pedaços.

— E, em terceiro lugar, você me deve duzentas e cinqüenta mil li­bras. Ninguém jamais me deveu tanto dinheiro por tanto tempo sem ter que andar com a ajuda de muletas. Espero que isto esteja claro.

Kit concordou, balançando a cabeça silenciosamente. Sentia tanto medo que tinha vontade de vomitar.

— Pois então não me diga que temos que cancelar nada. — Harry pegou o Sun de novo, dando a conversa por terminada.

Kit obrigou-se a falar.

— Eu estava querendo dizer que tínhamos que adiar e não cance­lar a operação — conseguiu dizer. — Podemos fazer depois, quando as coisas tiverem se acalmado.

Harry sequer levantou a cabeça.

— Às dez horas da manhã do dia de Natal, foi o que Nigel disse. E eu quero o meu dinheiro.

— Não adianta nada fazer no dia marcado se formos apanhados! — insistiu Kit, aflito. Harry não respondeu. — Todo mundo pode  

esperar um pouco, não pode? — Foi o mesmo que falar com uma parede. — Antes tarde do que nunca.

Harry virou-se para a piscina e fez um gesto, chamando alguém. Daisy devia estar de olho nele, pois na mesma hora saiu de dentro da água. Não tirou as luvas. Seus ombros e braços eram poderosos. Os seios pequenos nem balançavam quando ela andava. Kit viu que tinha uma tatuagem em um dos seios e um piercing no outro. Quando chegou mais perto, viu que era totalmente depilada. Não tinha a menor barriga e as coxas também eram esbeltas. O monte de Vênus era proeminente. Cada detalhe do seu corpo era visível, não apenas para Kit como também para seu pai, se ele quisesse olhar. Kit achou aquilo muito estranho.

Harry não parecia tomar conhecimento desses detalhes.

— Kit quer nos fazer esperar pelo nosso dinheiro, Daisy.

Ele se levantou e ajeitou o roupão, antes de completar a frase:

— Explique a ele como nos sentimos a este respeito, estou cansa­do demais.

Com isto, pôs o jornal debaixo do braço e retirou-se.

Daisy agarrou Kit pela lapela do paletó do seu melhor terno.

— Olha — ele suplicou. — Só quero me assegurar de que tudo não termine sendo um desastre para todos nós.

Daisy jogou Kit para um lado e ele teria caído no chão se ela não o tivesse segurado; depois jogou-o dentro da piscina.

Foi um choque, mas, se o pior que ela fosse fazer era arruinar seu terno, podia considerar-se com sorte. Mas depois, quando tirou a cabeça de dentro da água, ela pulou em cima dele, batendo com os joelhos em suas costas. Doeu tanto que Kit soltou um grito e engo­liu água quando sua cabeça afundou de novo.

Os dois se encontravam no lado mais raso da piscina. Quando sentiu que seus pés tocavam o chão, ele lutou para ficar em pé, mas Daisy passou um braço pela sua cabeça, desequilibrando-o de novo e segurando-o com o rosto mergulhado na água.

Kit prendeu a respiração, esperando que ela fosse socá-lo ou algo assim, mas Daisy permaneceu imóvel. Precisando respirar, começou a lutar, tentando se libertar, mas ela era forte demais. Furioso, debateu-se frouxamente, sacudindo braços e pernas. Parecia uma criança tendo um ataque de raiva, debatendo-se impotente nos bra­ços da mãe.

Sua necessidade de ar tornou-se desesperada e ele teve que con­ter o pânico que o fazia querer abrir a boca. Percebeu que Daisy mantinha sua cabeça presa sob seu braço esquerdo e estava ajoelhada sobre o joelho direito, com a cabeça logo acima da superfície da água. Decidiu tentar outra coisa e ficou imóvel, para que seus pés afundassem. Podia ser que ela pensasse que havia desmaiado. Seus pés tocaram no fundo. Mas Daisy não afrouxou a chave-de-braço. Kit firmou os pés no fundo e aplicou toda a sua força em um súbito arranco, numa tentativa para se libertar. Daisy praticamente não se moveu, limitando-se a segurá-lo com mais força. Era o mesmo que ter o crânio esmagado por tenazes de aço.

Kit abriu os olhos debaixo da água e viu que seu rosto estava sen­do comprimido contra as costelas de Daisy. Girou a cabeça alguns centímetros e mordeu-a. Sentiu que ela se encolhia e que a gravata afrouxava um pouco. Tentou aumentar a força da mordida, arrancar fora aquela dobra de pele. Mas aí sentiu sua mão enluvada no rosto e os dedos procurando furar-lhe os olhos. Ato reflexo, tentou recuar, e involuntariamente afrouxou a mandíbula deixando que ela esca­passe.

Kit ficou em pânico. Não podia mais prender a respiração. Seu corpo, precisando desesperadamente de oxigênio, forçou-o a abrir a boca e a água invadiu seus pulmões. Tossiu e vomitou ao mesmo tempo e depois de cada espasmo entrava mais água pela sua garganta. Não havia dúvida — em pouco tempo estaria morto se aquilo con­tinuasse.

Neste momento ela pareceu ceder e sacudiu a cabeça dele para fora da água. Kit abriu bem a boca, sugou o bendito ar e tossiu, soltando a água que estava nos seus pulmões num jato. Mas antes que pudesse respirar de novo, Daisy mergulhou outra vez sua cabeça, fazendo com que, em vez de ar, ele inalasse água.

O pânico transformou-se em algo pior. Debateu-se, louco de medo. O terror lhe deu forças e Daisy lutou para segurá-lo, mas ele não conseguiu levantar a cabeça. Não tentou mais manter a boca fechada, deixando que a água o invadisse. Quanto mais cedo se afogasse, mais cedo aquela agonia teria fim.

Daisy puxou sua cabeça para cima outra vez.

Kit vomitou água e sugou um precioso hausto de ar. Aí sua cabe­ça foi submergida de novo.

Gritou, mas nenhum som foi produzido. Foi parando de lutar. Sabia que Harry não podia querer que Daisy o matasse, pois aí não haveria o roubo — mas era evidente que ela era maluca e tudo indicava que iria longe demais. Kit decidiu que preferia morrer. Seus olhos abertos lhe mostravam apenas uma grande mancha verde; depois sua visão começou a escurecer, como se a noite estivesse caindo.

Por fim desmaiou.

 

Ned não dirigia, por isso Miranda assumiu o volante do Toyota. Tom, o filho dela, ia sentado atrás com o seu Game Boy. O bagageiro estava atulhado com uma pilha de presentes embrulhados em papel vermelho e dourado com fitas verdes.

Quando se afastaram do prédio na Great Western, onde Miranda tinha seu apartamento, começou a cair um pouco de neve. Havia uma nevasca no mar mais ao norte, mas os meteorologistas diziam que ia se desviar da Escócia.

Sentia-se contente, conduzindo os dois homens da sua vida para a festa de Natal com a família na casa do pai. Lembrou-se do tempo em que pegava o carro na universidade e ia para casa nos feriados, ansiosa por comer de novo a comidinha caseira e reencontrar o luxo dos banheiros muito limpos, roupa de cama bem passada e a sensa­ção de ser amada.

Primeiro, contudo, seguiu para o bairro afastado onde a ex-esposa de Ned morava. Iam pegar a filha dele, Sophie, antes de irem para Steepfall.

O joguinho de Tom tocou uma melodia decrescente, provavelmente indicando que sua espaçonave caíra ou que ele fora decapita­do por algum gladiador. O menino suspirou e disse:

— Vi um anúncio em uma revista de automóveis de umas telas muito legais instaladas na parte de trás dos encostos de cabeça, para que as pessoas sentadas no banco de trás possam ver filmes e coisas assim.

— Um acessório indispensável — ironizou Ned, com um sorriso.

— Deve ser muito caro — comentou Miranda.

— Não custam tanto assim — retrucou Tom.

Miranda olhou para ele pelo espelho retrovisor.

— Bem, quanto é que custam? — perguntou.

— Não sei, mas não pareciam caras, sabe?

— Por que você não descobre o preço e nós vemos se podemos comprar?

— Legal! Se for muito cara para você, eu peço ao vovô.

Miranda sorriu. Era só pegar o vovô de bom humor que ele dava qualquer coisa.

Sempre tivera esperanças de que Tom herdasse o gênio científico do avô mas ainda não chegara a uma conclusão. O desempenho escolar do menino era excelente, mas não assombroso. Ademais, Miranda não saberia dizer ao certo qual era o talento do pai. Claro que ele era um microbiologista brilhante, mas havia algo mais. Tinha que levar em conta também sua capacidade de antever a dire­ção que o progresso seguiria, assim como o seu espírito de liderança, que o permitia fazer com que um grupo de cientistas trabalhasse em equipe. Como poderia saber se um garoto de onze anos tinha essas qualidades? Por enquanto, nada atraía tanto a imaginação de Tom quanto um jogo eletrônico novo.

Ela ligou o rádio. Um coro cantava uma canção de Natal.

— Se eu ouvir “Noite feliz” mais uma vez vou cometer suicídio me empalando com uma árvore de Natal — disse Ned.

Miranda mudou de estação e encontrou John Lennon cantando “War Is Over”. Ned gemeu e revirou os olhos. Miranda riu. Após um minuto encontrou uma estação de música clássica tocando música para piano.

— Que tal isto?

— Haydn, perfeito.

Ned não via com bons olhos a cultura popular. Fazia parte do papel de intelectual refinado que ele representava o tempo todo, como não saber dirigir. Miranda não se importava: ela também não gostava de músicas pop, novelas de televisão e de reproduções baratas de quadros famosos. Mas gostava de canções de Natal.

Miranda também gostava das idiossincrasias de Ned, mas a lem­brança da sua conversa com Olga no café a incomodou. Será que ele era um fraco? Às vezes desejava que fosse mais positivo. Não como Jasper, seu ex-marido, que era positivo demais. Mas às vezes ela ansiava pelo tipo de sexo que tinha com Jasper. Ele era egoísta na cama, rude e só pensava no próprio prazer — e Miranda, para sua vergonha, sentia-se liberada e gostava. Só que com o tempo o prazer foi desaparecendo e ela se cansou daquele egoísmo e por ele ser desatencioso com tudo o mais. Mesmo assim, gostaria que Ned pudesse ser como Jasper de vez em quando.

Seus pensamentos voltaram-se para Kit. Ficara desesperadamen­te desapontada quando o irmão cancelou sua ida. Tinha se esforça­do muito para persuadi-lo a juntar-se à família na festa de Natal. Mas como a princípio ele recusara e depois cedera, dificilmente Miranda poderia se surpreender com o fato de ter mudado de idéia de novo. Assim mesmo, foi um golpe doloroso, pois desejava arden­temente ver todos reunidos, como na maioria dos natais desde que Mamma morrera. A briga entre papai e Kit a assustava. Ocorrendo tão pouco tempo depois da morte de Mamma, tornava a família perigosamente frágil. E, se até a família era vulnerável, sentia-se inse­gura em relação a todo o resto.

Entrou em uma rua de velhas casas de pedra, originalmente des­tinadas a operários, e parou diante de uma maior que as demais, que talvez tivesse sido ocupada por um supervisor. Ned havia morado ali com Jennifer até a separação, dois anos atrás. Antes, tinham moder­nizado a casa com enorme despesa e os pagamentos dessa reforma ainda oneravam o bolso dele. Toda vez que Miranda passava por aquela rua, sentia-se furiosa por causa da quantidade de dinheiro que pagava a Jennifer.

Puxou o freio de mão, mas deixou o motor ligado. Ficaria no carro com Tom, enquanto Ned ia buscar Sophie. Miranda nunca entrava. Embora Ned tivesse saído de casa antes de conhecer Miranda, Jennifer era tão hostil como se Miranda houvesse sido a responsável pela separação. Jennifer evitava encontrá-la, falava com ela laconicamente ao telefone e — segundo Sophie deixou escapar — referia-se a Miranda como “aquela puta gorda” quando conversava com as amigas. Jennifer, por sua vez, era magra como um passarinho e seu nariz adunco lembrava um bico.

A porta foi aberta por Sophie, uma adolescente de catorze anos, vestindo uma calça jeans e suéter curto. Ned beijou-a e entrou.

O rádio do carro tocava uma das danças húngaras de Dvorak. No banco de trás, o Game Boy de Tom soava um bip com interva­los irregulares. Pequenos flocos de neve, agitados pelo vento, caíam em torno do carro. Miranda aumentou um pouco o aquecimento e neste instante Ned saiu da casa, parecendo aborrecido.

Ele aproximou-se da janela de Miranda.

— Jennifer não está — disse. — E Sophie ainda nem começou a se aprontar. Você quer entrar e ajudá-la a fazer a mala?

— Oh, Ned, acho que eu não devia — respondeu Miranda, angus­tiada. Não gostava da idéia de entrar na ausência de Jennifer.

Ned entrou em pânico.

— Para falar a verdade, não sei direito de que uma garota precisa.

Miranda acreditou, claro. Afinal, Ned considerava um desafio arrumar a própria mala, o que jamais fizera no tempo em que esteve casado com Jennifer. Quando ele e Miranda saíram de férias pela primeira vez — uma viagem para visitar os museus de Florença — ela se recusara, por uma questão de princípios, a arrumar sua mala e Ned se vira forçado a aprender. No entanto, em viagens posteriores — um fim de semana em Londres, quatro dias em Viena — verificara sua bagagem e, a cada vez, descobria que ele tinha se esquecido de algo importante. Assim, fazer as malas para outra pessoa era algo que estava além das possibilidades dele.

Ela suspirou e desligou o motor.

— Tom, você vai ter que ir também.

A casa era bem decorada, pensou Miranda quando pôs o pé no hall. Jennifer tinha estilo. Combinara a mobília simples e rústica com tecidos bem coloridos, da mesma forma como a esposa de um supervisor, orgulhosa de sua casa, poderia ter feito cem anos atrás. Havia cartões de Natal em cima da lareira, mas não havia árvore.

Estranho pensar que Ned havia morado ali. Que tinha voltado noite após noite para aquela casa, exatamente como fazia agora, ao voltar para o apartamento de Miranda. Ouvira as notícias pelo rádio, sentara-se para jantar, lera romances russos, escovara automaticamente os dentes e fora para a cama abraçar uma outra mulher.

Sophie estava na sala, deitada em um sofá na frente da televisão. Tinha um piercing no umbigo, com uma jóia barata. Miranda sen­tiu cheiro de cigarro.

— Sophie — disse Ned. — Miranda vai ajudar você a se aprontar, certo, boneca?

Havia um tom de súplica na voz de Ned que fez Miranda estremecer.

— Estou vendo um filme — respondeu Sophie, emburrada.

Miranda sabia que Sophie atenderia a um tratamento firme e não a súplicas. Pegou o controle remoto e desligou a televisão.

— Mostre-me seu quarto, Sophie — disse, bruscamente.

A expressão da menina era de rebeldia.

— Depressa, não temos tempo.

Sophie levantou-se com relutância e saiu vagarosamente da sala. Miranda seguiu-a ao andar de cima até um quarto todo desarruma­do, decorado com pôsteres de rapazes com penteados no mínimo peculiares e ridículas calças jeans baggy.

— Vamos passar cinco dias em Steepfall, de modo que você pre­cisa de dez calcinhas, para começar.

— Não tenho dez calcinhas.

Miranda não acreditou, mas disse:

— Então levamos o que você tiver e lá você pode ir lavando as que usar.

Sophie permaneceu parada no meio do quarto, com uma expressão de rebeldia no rosto bonito.

— Vamos — disse Miranda. — Não sou sua empregada. Pegue as calcinhas.

Encarou a menina, que não conseguiu sustentar seu olhar. Baixou a cabeça, virou-se e abriu a gaveta de cima da cômoda. Estava cheia de roupa de baixo.

— Ponha cinco sutiãs na mala — ordenou Miranda.

Sophie começou a pegar as coisas na gaveta.

Terminou a crise, pensou Miranda, abrindo a porta do armário.

— Você vai precisar de dois vestidos para usar à noite — disse. Pegou um vestido vermelho com tiras finas nos ombros, sexy demais para uma garota de catorze anos. — Este é bonito — mentiu.

Sophie amoleceu um pouco. — É novo.

— Vamos ter que embrulhar para que não amarrote. Onde posso achar papel de seda?

— Na gaveta da cozinha, eu acho.

— Vou buscar. Enquanto isso, pegue uma calça jeans limpa.

Miranda desceu, sentindo que começava a estabelecer um relacionamento com a proporção correta de amizade e autoridade com Sophie. Ned e Tom estavam na sala, assistindo à televisão. Miranda entrou na cozinha e perguntou em voz alta:

— Ned, sabe onde encontro papel de seda?

— Sinto muito, mas não sei.

— Pergunta burra — resmungou ela, começando a abrir gavetas.

Acabou encontrando no fundo de um armário com material de costura. Teve que se ajoelhar no chão de cerâmica para puxar o paco­te, que estava atrás de uma caixa de fitas. O esforço foi tanto que sentiu o rosto congestionado. Isto é ridículo, pensou. Só tenho trin­ta e cinco anos, devia ser capaz de me abaixar sem fazer força. Tenho que perder uns cinco quilos. Nada de batatas assadas com o peru de Natal.

Tinha acabado de pegar o papel quando ouviu a porta dos fundos da casa se abrir e em seguida os passos de uma mulher. Levantou a cabeça para ver Jennifer.

— Que diabos você pensa que está fazendo? — perguntou ela. Era uma mulher pequena, mas conseguia parecer enorme e impunha respeito com sua testa alta e nariz adunco. Trajava com elegância um casaco evidentemente feito sob medida e botas de salto alto.

Miranda pôs-se de pé, ofegando um pouco. Para sua mortificação, sentiu que suava no pescoço.

— Eu estava procurando papel de seda — explicou.

— Sei disso. Só quero saber o que você está fazendo na minha casa.

Ned apareceu na porta da cozinha.

— Oi, Jenny, não ouvi você chegando — disse ele.

— É óbvio que não dei tempo para que você soasse o alarme — respondeu ela sarcasticamente.

— Desculpe — disse ele —, mas pedi a Miranda para entrar e...

— Pois não devia! — interrompeu Jennifer. — Não quero suas mulheres dentro da minha casa.

Ela falava como se Ned tivesse um harém. Na verdade ele saíra apenas com duas mulheres depois de se separar de Jennifer. O relacionamento com a primeira se resumira a um único encontro e a segunda fora Miranda. Mas dizer isso agora seria uma infantilidade.

— Eu só estava tentando ajudar Sophie — disse Miranda.

— Eu cuido de Sophie. Por favor, deixe a minha casa.

— Desculpe se a assustamos, Jenny — disse Ned —, mas...

— Não se dê ao trabalho de pedir desculpas. Só quero que dêem o fora daqui.

Miranda ficou intensamente ruborizada. Ninguém jamais fora tão rude com ela.

— É melhor eu sair — disse.

— É mesmo — disse Jennifer.

— Trarei Sophie de volta assim que puder — disse Ned.

Miranda estava tão furiosa com Ned quanto com Jennifer, embora naquele momento não soubesse ao certo o motivo. Virou-se na direção da sala.

— Pode usar a porta dos fundos — disse Jennifer.

Miranda hesitou. Olhou para Jennifer e viu no seu rosto a suges­tão de um sorriso arrogante, o que lhe deu uma pitada de coragem.

— Acho que não — disse, baixinho. E continuou rumo à porta da frente.

— Tom, venha comigo! — ela exclamou, chamando o filho.

— Um minuto só! — ele gritou de volta.

Miranda entrou na sala. Tom estava vendo televisão. Agarrou-o pelo pulso, levantou-o à força e o arrastou para fora da casa.

— Tá me machucando! — protestou o menino.

Ela bateu a porta da frente.

— Na próxima vez venha quando eu chamar.

Estava quase chorando quando entrou no carro. Agora tinha que ficar ali sentada, esperando, como uma criada, enquanto Ned permanecia dentro da casa, com a ex-mulher. Será que Jennifer tinha planejado todo aquele drama só para humilhá-la? Era possível. Ned não tinha jeito mesmo. Sabia agora por que estava tão furiosa com ele. Deixara que Jennifer a insultasse sem pronunciar uma só palavra. A única coisa que fizera fora pedir desculpas. Desculpas por quê? Se Jennifer tivesse feito a mala da filha ou mandado a garota fazer, Miranda não se veria obrigada a entrar na casa. E, pior que tudo, não teria descontado sua raiva no filho. Devia ter gritado com Jennifer e não com Tom.

Olhou para ele pelo retrovisor.

— Tommy, desculpe por ter machucado seu pulso.

— Tudo bem — disse ele, sem tirar os olhos do Game Boy. — Desculpe não ter atendido quando você chamou.

— Todos desculpados, então — finalizou ela. Uma lágrima rolou pelo seu rosto e ela a limpou rapidamente.

 

— Os vírus matam milhares de pessoas — disse Stanley Oxenford. — De dez em dez anos, mais ou menos, uma epidemia de influenza mata por volta de vinte e cinco mil pessoas, só no Reino Unido. A gripe de 1918 matou mais gente do que toda a Primeira Guerra Mundial. Em 2002 três milhões de pessoas morreram de AIDS, que se deve a um vírus que causa deficiência imunológica. Os vírus par­ticipam em dez por cento dos casos de câncer.

Toni ouvia atentamente, sentada ao lado dele no saguão, sob as vigas de madeira envernizada do teto medieval. Stanley parecia cal­mo e controlado, mas ela o conhecia bem o suficiente para reconhe­cer o quase inaudível tremor na sua voz causado pela tensão. Ele fica­ra chocado e apavorado com a ameaça de Laurence Mahoney, o fun­cionário da embaixada americana em Glasgow. A expressão tranqüi­la quase não disfarçava o medo que sentia de perder tudo.

Stanley examinou os rostos dos jornalistas reunidos à sua frente. Estariam ouvindo o que ele dizia? Compreenderiam a importância do seu trabalho? Stanley conhecia diversos jornalistas. Uns eram inteligentes, muitos outros eram bobos. Alguns poucos acreditavam em dizer a verdade; a maioria limitava-se a escrever a reportagem mais sensacionalista possível. Ela se sentia indignada porque podiam ter em suas mãos o destino de um homem como Stanley. Sim, o poder dos tablóides escandalosos era um fato brutal da vida moder­na. Se um número suficiente deles decidisse retratar Stanley como um cientista maluco em seu castelo de Frankenstein, os americanos podiam se sentir desconfortáveis a ponto de retirar o financiamento.

O que seria uma tragédia — não apenas para Stanley, mas para o mundo. Claro que uma outra pessoa poderia terminar o programa experimental para a droga antiviral, mas um Stanley arruinado e fali­do nunca mais descobriria curas milagrosas. Furiosa, Toni percebeu que gostaria de estapear os jornalistas e dizer: “Acordem, isto diz res­peito ao futuro de vocês também!”

— Os vírus são um fato da vida, mas não temos que aceitar este fato passivamente — prosseguiu ele.

Toni admirava o modo como Stanley falava. Sua voz era comedida, mas tranqüila. Ele usava o mesmo tom quando dava explica­ções a colegas mais jovens, um tom de conversa.

— Os cientistas podem vencer os vírus. Antes da AIDS, o grande assassino era a varíola, até que um cientista inventou a vacinação, em 1796. Agora a varíola desapareceu. Da mesma forma, a pólio foi erradicada em grandes áreas do planeta. Com o tempo, haveremos de derrotar a gripe, a AIDS e até mesmo o câncer e isso será feito por cientistas como nós, trabalhando em laboratórios como este.

Uma mulher levantou o braço e o interrompeu.

— Exatamente em que vocês estão trabalhando aqui?

— Poderia se identificar, por favor? — pediu Toni.

— Edie McAllan, correspondente de ciências, Scotland on Sunday.

Cynthia Creighton, sentada do outro lado de Stanley, fez uma anotação.

— Estamos desenvolvendo uma droga antiviral — respondeu Stanley. — O que é raro. Há uma gama numerosa de drogas antibióticas, que matam bactérias, mas poucas atacam vírus.

— Qual é a diferença? — perguntou um homem, apresentando-se em seguida: — Clive Brown, Daily Record.

O Record era um tablóide. Toni estava satisfeita com a direção que as perguntas estavam tomando. Queria que a imprensa se concentrasse na parte científica. Quanto melhor entendessem o que faziam ali, menores as chances de publicarem bobagens prejudiciais.

— Bactérias ou germes — disse Stanley — são criaturas minúsculas que podemos ver com um microscópio normal. Cada um de nós hospeda bilhões dessas criaturas no organismo. Muitas são úteis, como, por exemplo, as que nos ajudam a digerir a comida ou livram o nosso corpo das células mortas. Algumas dessas bactérias causam doenças e há as que podem ser tratadas com antibióticos. Os vírus são menores e mais simples que as bactérias. É preciso um microscópio eletrônico para que possamos vê-los. O vírus não pode se repro­duzir sozinho, em vez disso seqüestra o instrumental bioquímico de uma célula viva e a obriga a produzir cópias dele. Não se conhece um único vírus que seja útil aos seres humanos. E dispomos de pou­cos remédios para combatê-los. Estas são as razões que fazem de uma nova droga antiviral uma notícia tão boa para a humanidade.

— Contra que tipo ou tipos específicos de vírus sua droga atua? — perguntou Edie McAllan.

Era outra pergunta científica e Toni começou a pensar que a entrevista resultaria em tudo que ela e Stanley queriam. Conteve o otimismo com algum esforço, embora soubesse, graças à sua experiência na polícia como assessora de imprensa, que os jornalistas podem fazer perguntas sérias e inteligentes, voltar para a redação e escrever um monte de lixo sensacionalista. Mesmo que o autor da matéria faça um texto ponderado e sensato, ela pode ser reescrita por um ignorante irresponsável.

— Esta é a pergunta que estamos tentando responder — respon­deu Stanley. — Estamos testando a droga contra uma variedade de vírus a fim de determinar seu alcance.

— Isso inclui vírus perigosos? — perguntou Clive Brown, o homem do tablóide.

— Sim — respondeu Stanley. — Ninguém está interessado em dro­gas para vírus seguros.

A platéia riu. Foi uma resposta inteligente e bem-humorada a uma pergunta estúpida. Mas Brown pareceu ficar aborrecido e Toni sentiu um aperto no coração. Um jornalista humilhado não se deteria diante de nada para se vingar.

Ela interveio rapidamente.

— Muito obrigada por sua pergunta, Clive — disse, tentando reparar o dano. — Aqui na Oxenford Medical nós adotamos os mais altos padrões de segurança que existem, usando materiais de primeira linha. No laboratório de nível quatro de biossegurança, mais conhecido como BSL4, o sistema de alarme conecta-se diretamente com a central de polícia de Inverburn. Há guardas de segurança vinte e quatro horas por dia e ainda esta manhã dobrei o número da guarda. Como uma precaução a mais, os guardas não podem entrar no BSL4, mas monitoram o laboratório por um circuito interno de televisão.

Brown não ficou satisfeito.

— Se vocês têm uma segurança perfeita, como foi que o hamster saiu?

Toni estava preparada para aquela pergunta.

— Deixe que eu esclareça três pontos. Primeiro, não era um hams­ter. Vocês tiveram esta informação através da polícia e está errada.

Ela dera a Frank aquela informação falsa de propósito e ele caíra na armadilha, denunciando-se como a fonte do vazamento.

— Por favor, confiem em nós no que diz respeito aos fatos que acontecem aqui. Era um coelho e não se chamava Fofinho.

Todos riram e até mesmo Brown abriu um sorriso.

— Segundo, o coelho foi retirado do laboratório dentro de uma bolsa e hoje nós decretamos uma revista obrigatória de bolsas na entrada do BSL4, a fim de nos assegurar de que o mesmo fato não se repita. Terceiro, eu não disse que tínhamos uma segurança perfeita e sim que adotávamos os padrões mais altos possíveis. É só o que nós, seres humanos, somos capazes de fazer.

— Você admite então que o seu laboratório é um perigo para ino­centes cidadãos escoceses?

— Não. Todos nós estamos mais seguros aqui do que se estivésse­mos dirigindo na M8 ou pegando um avião no aeroporto interna­cional de Prestwick, em Glasgow. Os vírus matam muita gente todos os dias, mas uma única pessoa morreu com um vírus do nosso labo­ratório e não era um inocente cidadão: era um funcionário nosso que, deliberadamente, violou as regras e, sabendo o que estava fazen­do, colocou-se em uma situação de risco.

Tudo considerado, a coletiva estava indo bem, pensou Toni enquanto aguardava a pergunta seguinte. As câmeras de televisão continuavam filmando, os flashes pipocando aqui e ali, e Stanley ia aparecendo como o que realmente era, um cientista brilhante com forte senso de responsabilidade. Mas ela temia que os noticiários da TV abandonassem as cenas nada dramáticas da entrevista coletiva em favor do coro de jovens no portão, entoando palavras de ordem sobre os direitos dos animais. Queria poder imaginar algo mais interessante para os cinegrafistas apontarem suas lentes.

Carl Osborne, o amigo de Frank, falou pela primeira vez. Era um homem de boa aparência, mais ou menos da idade de Toni, com feições de astro de cinema e o cabelo um pouquinho amarelo demais para ser louro natural.

— Exatamente que perigo esse coelho representa para a população?

Foi Stanley quem respondeu.

— O vírus não se propaga entre espécies diferentes. Para que tenha infectado Michael, achamos que o coelho deve tê-lo mordido.

— E se o coelho tivesse fugido?

Stanley olhou pela janela. Caía um pouco de neve.

— Teria morrido congelado.

— Suponha que outro animal o tivesse devorado. Uma raposa, por exemplo, poderia ter sido infectada?

— Não. Os vírus são adaptados a certo número de espécies, geral­mente uma, às vezes duas ou três. Estamos falando de um vírus que não seria transmitido a raposas ou qualquer outra forma de vida sil­vestre escocesa, tanto quanto se saiba. Apenas seres humanos, um tipo determinado de macaco das Índias Orientais e certos tipos de coelho.

— Michael poderia ter transmitido o vírus para outras pessoas?

— Sim, podia transmitir pelo espirro. Foi esta possibilidade que mais nos alarmou. No entanto, Michael parece não ter visto nin­guém durante o período crítico. Já entramos em contato com seus colegas e amigos. Mesmo assim, ficaríamos muito gratos se vocês pudessem usar seus jornais e programas de televisão e fazer um ape­lo pedindo para que todo aquele que tenha tido contato com ele nos telefone imediatamente.

— Não estamos tentando minimizar o acontecido — apressou-se a intervir Toni. — Estamos profundamente preocupados e, conforme expliquei, já tomamos medidas mais estritas de segurança. Mas, ao mesmo tempo, devemos ter cuidado para não exagerar.

Dizer a jornalistas para não exagerarem era mais ou menos como dizer a advogados para não discutirem, pensou ela, ironicamente.

— A verdade é que a população não correu perigo.

Osborne não tinha terminado.

— Suponha que Michael Ross tivesse dado o coelho para um amigo, que o tivesse dado para outra pessoa... Qual teria sido o número de mortos?

— Não podemos fazer esse tipo de especulação — disse Toni. — O vírus não se espalhou. Uma única pessoa foi vitimada. O ideal é que não tivesse morrido ninguém, mas nem por isso vamos começar a falar nos Quatro Cavaleiros do Apocalipse.

Mordeu a língua. Que frase idiota: podia facilmente ser citada fora do contexto, transmitindo a impressão de que estava prevendo desgraças.

— Pelo que sei — disse Osborne —, o trabalho de vocês é financia­do pelo Exército americano.

— Departamento de Defesa, sim — disse Stanley. — É natural que haja da parte deles interesse nos meios de combater a guerra biológica.

— Não é verdade que os americanos mandam fazer esse trabalho na Escócia porque acham perigoso demais realizá-lo nos Estados Unidos?

— Ao contrário. Grande parte deste tipo de pesquisa é realizada lá. No Centro de Controle de Doenças de Atlanta, na Geórgia, e no Instituto de Pesquisa de Doenças Infecciosas do Exército, em Fort Detrick.

— Então por que a Escócia?

— Porque a droga foi inventada aqui na Oxenford Medical.

Toni decidiu finalizar enquanto estava na frente.

— Não quero apressar o fim da entrevista, mas sei que alguns de vocês têm que entregar a matéria ao meio-dia — disse ela. — Todos devem ter recebido um pacote de informações e quem quiser um exemplar extra, pode pegar aqui com a Cynthia.

— Mais uma pergunta — disse Clive Brown, do Record. — Qual a sua reação à manifestação lá fora?

Toni deu-se conta de que ainda não imaginara algo mais interes­sante para as câmeras da televisão.

Stanley disse: — Eles oferecem uma resposta simples a uma ques­tão ética complexa. Como todas as respostas simples, a deles está errada.

Era a resposta certa, mas parecia um pouco severa demais, por isso Toni acrescentou: — E esperamos que eles não apanhem um resfriado.

Enquanto todos riam, Toni se levantou, indicando que a coletiva tinha terminado. Então teve uma inspiração. Fez um sinal para Cynthia Creighton se aproximar. Dando as costas para os outros, falou com voz baixa e urgente.

— Vá depressa à cantina — ela disse. — Peça a dois ou três funcio­nários da cantina para levarem café e chá aos manifestantes lá fora.

— Que idéia generosa — disse Cynthia.

Toni não estava sendo generosa — na verdade, estava sendo cínica —, mas não tinha tempo para explicar isso.

— Deve ser feito dentro de dois minutos — ela disse. — Agora, vá!

Cynthia saiu apressadamente.

Toni voltou-se para Stanley e disse: — Bom trabalho. Você se saiu muito bem.

Ele tirou do bolso um lenço de bolinhas vermelhas e enxugou o rosto discretamente.

— Espero que tenha dado certo.

— Vamos saber ao ver o noticiário da tarde na televisão. Agora você deve sair daqui, do contrário vão atacá-lo para uma entrevista exclusiva. — Ele estava sob pressão e Toni queria protegê-lo.

— Boa idéia. De qualquer modo preciso mesmo ir para casa. — Ele morava em uma casa de fazenda num penhasco a oito quilômetros do laboratório. — Quero estar em casa quando minha família chegar.

Isso a desapontou. Estava ansiosa para rever a entrevista coletiva com ele.

— Tudo bem — ela disse. — Vou monitorar a reação.

— Pelo menos ninguém fez a pior pergunta.

— Qual?

— O índice de sobrevivência ao Madoba-2.

— O que quer dizer isso?

— Por mais letal que seja a infecção, sempre há alguns indivíduos capazes de sobreviver a ela. O índice de sobrevivência é a medida da sua periculosidade.

— E qual é o índice de sobrevivência ao Madoba-2?

— Zero — disse Stanley.

Toni olhou para ele, satisfeita por não ter sabido disso antes.

Stanley fez um sinal com a cabeça por sobre o ombro dela.

— Lá vem o Osborne.

— Eu o levo embora. — Adiantou-se para interceptar o repórter e Stanley saiu por uma porta lateral. — Olá, Carl. Espero que tenha tudo de que precisa.

— Acho que sim. Eu gostaria de saber qual foi o primeiro suces­so de Stanley.

— Ele fazia parte da equipe que desenvolveu o acyclovir.

— O que é?

— O creme que se usa para queimaduras de frio. O nome comer­cial é Zovirax. É um antiviral.

— É mesmo? Muito interessante.

Toni não teve a impressão de que Carl estivesse genuinamente interessado. Tentou imaginar o que ele procurava realmente.

— Podemos confiar em você para escrever um artigo sensato que reflita os fatos e não exagere os perigos?

— Quer saber se vou falar sobre os Quatro Cavaleiros do Apocalipse?

Ela fez uma careta.

— Bobagem minha ter dado um exemplo com o tipo de hipérbole que eu estava tentando desencorajar.

— Não se preocupe, não vou citar você.

— Obrigada.

— Não devia agradecer a mim. Eu usaria essa referência com muito prazer, mas quem estivesse ouvindo não teria a mínima idéia do que se trata. — Ele mudou de assunto. — Quase não a tenho visto depois que você se separou de Frank. Quanto tempo faz isso?

— Ele me deixou no Natal, há dois anos.

— Como você tem passado?

— Tive momentos difíceis, se quer saber a verdade. Mas as coisas estão melhorando. Pelo menos estavam, até hoje.

— Precisamos nos encontrar e botar os papos em dia.

Toni não tinha a menor vontade de sair com Osborne, mas disse delicadamente: — Claro, por que não?

Ele a surpreendeu dizendo rapidamente: — Gostaria de jantar?

— Jantar? — Toni perguntou.

— Sim.

— Assim como um jantar romântico com você?

— Sim, outra vez.

Era a última coisa que ela esperava.

— Não! — ela disse. Então lembrou do quanto aquele homem podia ser perigoso e tentou amaciar a rejeição: — Desculpe, Carl, você me pegou de surpresa. Eu o conheço há tanto tempo que não penso em você desse modo.

— Talvez eu mude seu modo de pensar. — Ele parecia um garoto vulnerável. — Dê-me uma chance.

A resposta era ainda não, mas ela hesitou por um momento. Carl era bonito, charmoso, ganhava bem, uma celebridade local. Muitas mulheres solteiras, perto dos quarenta, não deixariam passar a oportunidade. Mas ela não sentia a mínima atração por ele. Mesmo que não estivesse envolvida com Stanley, não se sentiria ten­tada a sair com Carl. Por quê?

Toni não precisou mais de um segundo para saber a resposta. Carl não tinha integridade. Um homem capaz de distorcer a verda­de para conseguir uma reportagem sensacionalista seria igualmente desonesto em outros aspectos da vida. Ele não era um monstro. Havia muitos homens iguais a ele e algumas mulheres também. Mas Toni não podia pensar em se tornar íntima de alguém tão superfi­cial. Como era possível beijar, contar segredos, perder toda inibição e abrir o corpo com alguém que não era confiável? A idéia era revoltante.

— Estou lisonjeada — ela disse. — Mas, não.

Ele não estava pronto para desistir.

— A verdade é que eu sempre gostei de você, mesmo quando ain­da estava com Frank. Você deve ter percebido.

— Você costumava me paquerar, mas fazia isso com quase todas as mulheres.

— Não era a mesma coisa.

— Você não está saindo com aquela moça da previsão do tempo? Se não me engano vi uma foto no jornal.

— Marnie? Aquilo nunca foi sério. Eu fiz mais para publicidade.

Ele pareceu irritado com a lembrança e Toni imaginou que Marnie devia ter dado o fora nele.

— Lamento — ela disse, solidária.

— Mostre sua compaixão em atos, não em palavras. Jante comi­go esta noite. Tenho até uma mesa reservada no La Chaumière.

Era um restaurante chique. Ele devia ter feito a reserva havia algum tempo — provavelmente para Marnie.

— Esta noite estou ocupada.

— Você não está ainda apaixonada por Frank, está?

Toni riu com amargura.

— Estive por algum tempo, tolice minha, mas agora superei. Superei mesmo.

— Outra pessoa, então?

— Não estou saindo com ninguém.

— Mas está interessada em alguém. Não é o velho professor, é?

— Não seja ridículo — Toni disse.

— Você não está corando, está?

— Espero que não, mas qualquer mulher sujeita a esse tipo de interrogatório tem direito de corar.

— Meu Deus, você gosta de Stanley Oxenford. — Carl não sabia aceitar a rejeição e seu rosto crispou-se de ressentimento. — É claro, Stanley é viúvo, não é? Filhos crescidos. Todo aquele dinheiro e só vocês dois para gastar.

— Isso é realmente grosseiro, Carl.

— A verdade quase sempre é. Você gosta realmente de quem voa alto, não é? Primeiro Frank, o detetive que subiu mais depressa do que qualquer outro na polícia escocesa. E agora um empresário e cientista milionário. Você só come celebridades, Toni!

Ela tinha de acabar com aquilo antes de perder a paciência.

— Muito obrigada por vir à coletiva — ela disse. Estendeu a mão e ele a apertou automaticamente. — Adeus. — Ela deu meia-volta e saiu da sala.

Toni tremia de raiva. Ele fazia com que suas mais profundas emoções parecessem sem valor. Tinha vontade de estrangulá-lo, não de sair com ele. Tentou se acalmar. Precisava administrar uma grave crise na empresa e não podia deixar que suas emoções interferissem.

Foi até a mesa da recepção e falou com o supervisor da seguran­ça, Steve Tremlett.

— Fique aqui até todos saírem e não permita que ninguém dê um passeio não-oficial por aí. Um bisbilhoteiro teimoso poderia tentar entrar nas áreas de segurança máxima “grudando” em alguém, espe­rando alguém com um passe e entrando atrás.

— Deixa comigo — Steve disse.

Toni começava a se acalmar. Vestiu o casaco e saiu. A neve caía agora mais pesadamente, mas ela podia ver a manifestação lá fora. Foi até a guarita do portão. Três funcionários da cantina distribuíam bebidas quentes. Os manifestantes sorriam e conversavam, tendo parado provisoriamente de cantar e de agitar suas faixas.

E todas as câmeras os fotografavam.

Tudo saíra com perfeição, Toni pensou. Então por que estava deprimida?

Voltou ao escritório. Fechou a porta e ficou parada, grata por estar sozinha por um minuto. Tinha controlado a entrevista coletiva muito bem, pensou. Protegera seu chefe de Osborne. E a idéia de dar bebida quente aos manifestantes funcionou como um encanto. Não seria sensato comemorar antes de ver a cobertura da mídia, é claro, mas ela sentia que todas suas decisões tinham sido corretas.

Então por que se sentia tão desanimada?

Em parte por causa de Osborne. Qualquer encontro com ele podia arrasar uma pessoa. Mas principalmente, ela sabia, era Stanley. Depois de tudo que Toni tinha feito por ele naquela manhã, Stanley foi embora, mal agradecendo. Era isso que significava ser chefe, ela supunha. E havia muito tempo sabia o quanto a família era impor­tante para ele. Toni, ao contrário, era apenas uma colega: valiosa, querida, respeitada — mas não amada.

O telefone tocou. Toni olhou para ele por um momento, chateada com seu toque insistente, sem vontade de falar. Então atendeu.

Era Stanley, telefonando do carro.

— Por que você não passa lá em casa dentro de uma hora mais ou menos? Podemos assistir ao noticiário juntos e ficaremos sabendo do nosso destino.

Tudo melhorou imediatamente. Era como se o sol tivesse apare­cido.

— É claro — ela disse. — Será um prazer.

— Acho que será melhor sermos crucificados um ao lado do outro.

— Seria uma honra.

 

A nevasca piorava enquanto Miranda dirigia para o norte. Flocos grandes e brancos batiam no pára-brisa do Toyota Previa e eram jogados para os lados pelos limpadores. Ela diminuiu a marcha quando a visibilidade piorou. A neve parecia tornar o carro à prova de som e só o ruído dos pneus competia com a música clássica do rádio.

A atmosfera dentro do carro era calma. No banco traseiro, Sophie ouvia sua música nos fones de ouvido e Tom estava absorto no mundo dos bipes do Game Boy. Ned quieto, ocasionalmente conduzia a orquestra, sacudindo um dedo no ar. Enquanto ele olhava a neve e ouvia o concerto de Elgar para violoncelo, Miranda observava o rosto barbado e tranqüilo, convencida de que ele não tinha idéia do quanto a tinha decepcionado.

Ned percebeu o descontentamento dela.

— Sinto muito por aquela explosão de Jennifer — ele disse.

Miranda olhou no retrovisor e viu Sophie acompanhando a música no seu iPod, balançando a cabeça. Certa de que a menina não podia ouvir, disse:

— Jennifer foi extremamente grossa.

— Eu sinto muito — ele repetiu. Obviamente não achava necessá­rio se desculpar por seu papel no incidente.

Miranda tinha de destruir aquela ilusão confortável.

— Não é o comportamento de Jennifer que me incomoda — ela disse. — É o seu.

— Vejo agora que foi um erro convidar você sem avisar antes.

— Não é isso. Nós todos cometemos erros.

Intrigado e irritado, ele perguntou: — O que é então?

— Ora, Ned! Você não me defendeu!

— Pensei que você podia se defender muito bem sozinha.

— Não é essa a questão. É claro que posso tomar conta de mim. Não preciso ser protegida. Mas você devia ser meu defensor.

— Um cavaleiro de armadura brilhante.

— Isso mesmo!

— Achei mais importante acalmar as coisas.

— Muito bem, pois achou errado. Quando o mundo se torna hostil, não quero que você analise a situação racionalmente, quero que esteja do meu lado.

— Lamento, mas não sou do tipo combativo.

— Eu sei. — Os dois ficaram em silêncio.

A estrada estreita acompanhava a praia de um braço de mar. Passaram por pequenas fazendas com alguns cavalos pastando, agasalhados com suas mantas de inverno, e atravessaram vilarejos com igrejas pintadas de branco e fileiras de casas de frente para a praia. Miranda estava deprimida. Embora sua família tivesse aceitado Ned, como ela havia pedido, será que queria casar com um homem tão passivo? Ela sonhava com alguém gentil, culto e inteligente, mas agora se dava conta de que queria também que fosse forte. Seria esperar muito? Pensou no seu pai. Ele era sempre bondoso, raramen­te se zangava, nunca foi rabugento — mas ninguém jamais o conside­rou fraco.

Miranda se animou outra vez quando se aproximaram de Steepfall. Chegava-se à casa por uma longa trilha que atravessava o bosque. Saindo do meio das árvores, a trilha subia uma colina com uma escarpa que descia até o mar.

A garagem apareceu primeiro. Ao lado da trilha, era um antigo estábulo reformado, com três portas de puxar. Miranda passou pela garagem e pela frente da casa.

A visão da velha casa de fazenda de frente para a praia, com seus largos muros de pedra, as janelas pequenas e o telhado em ponta, trouxe-lhe de volta uma sensação da infância. A primeira vez que estivera ali Miranda tinha cinco anos e cada vez que voltava por alguns minutos ela era uma menina pequena de meias brancas, sentada nos degraus de granito, ao sol, brincando de professora de uma turma de três bonecas, duas cobaias em uma gaiola e um cachorro velho e sonolento. A sensação foi intensa mas passageira: de repente ela se lembrou exatamente de como era ter cinco anos, mas captar a lembrança foi como tentar pegar fumaça.

A Ferrari azul-escura do seu pai estava na frente da casa, onde ele sempre a deixava para Luke, o empregado, guardar. O carro era peri­gosamente veloz, escandalosamente belo e ridiculamente caro para sua viagem de oito quilômetros até o laboratório. Estacionado ali, no alto do rochedo árido, parecia tão deslocado quanto uma cortesã de saltos altos no pátio enlameado de uma fazenda. Mas ele não tinha iates, nem adegas, nem cavalos de corrida. Não esquiava em Gstaad nem jogava em Monte Cario. A Ferrari era sua única extra­vagância.

Miranda estacionou o Toyota. Tom entrou rapidamente na casa. Sophie o seguiu mais devagar: nunca estivera ali antes, embora tives­se conhecido Stanley na festa de aniversário de Olga, havia alguns meses. Miranda resolveu se esquecer de Jennifer por enquanto. Se­gurou a mão de Ned e entraram juntos.

Entraram, como sempre, pela porta da cozinha, no lado da casa. Havia um vestíbulo com um armário onde eram guardadas as botas de borracha, de pesca, depois uma segunda porta dava para a cozi­nha espaçosa. Para Miranda, aquilo era sempre como voltar para casa. Sentia os odores familiares: assados do jantar, café torrado e maçãs, um traço persistente dos cigarros franceses que Mamma Marta fumava. Na alma de Miranda nenhuma outra casa havia tomado o lugar daquela como seu lar. Nem o apartamento em Camden Town, onde fizera suas loucuras de adolescente; nem a casa moderna no bairro residencial, onde tinha morado durante seu bre­ve casamento com Jasper Casson, e nem o apartamento em Georgian Glascow, onde criara Tom, primeiro sozinha, depois com Ned.

Uma poodle grande e preta, chamada Nellie, os recebeu alegremente sacudindo a cauda e lambendo todos. Miranda cumprimen­tou Luke e Lori, o casal filipino que preparava o almoço. Lori disse: — Seu pai acaba de chegar, está lavando as mãos.

Miranda mandou Tom e Sophie arrumarem a mesa. Não queria que as crianças se instalassem na frente da TV durante toda a tarde.

— Tom, você pode mostrar a Sophie onde ficam as coisas. — E ter algo para fazer ajudaria Sophie a se sentir parte da família.

Na geladeira havia várias garrafas do vinho branco favorito de Miranda. Seu pai não bebia muito, mas Mamma sempre tomara vinho e ele fazia questão de ter sempre bastante em casa. Miranda abriu uma garrafa e serviu um copo para Ned.

Era um bom começo, ela pensou. Sophie feliz, ajudando Tom a pôr garfos e facas na mesa, e Ned satisfeito, tomando Sancerre. Talvez isso, e não a cena com Jennifer, determinasse o tom do feriado.

Se Ned ia fazer parte da vida de Miranda, tinha de amar aquela casa e a família que crescera nela. Ele estivera ali antes, mas nunca com Sophie e nunca tinha passado a noite, portanto aquela era sua primeira visita importante. Miranda queria tanto que ele se divertis­se e se desse bem com todos.

O ex-marido de Miranda, Jasper, jamais gostou de Steepfall. No começo ele se esforçou para agradar a todos, mas nas últimas visitas ficava retraído o tempo todo e irritado depois que iam embora. Parecia não gostar de Stanley e queixava-se, dizendo que ele era autoritário, o que era estranho, uma vez que Stanley raramente dizia às pessoas o que deviam fazer — ao passo que Marta era tão mandona que às vezes eles a chamavam de Mamma Mussolini. Tempos depois Miranda entendeu que o domínio de Jasper sobre ela era ameaçado pela presença de outro homem que a amava. Jasper não tinha liberdade para intimidá-la na presença do pai.

O telefone tocou. Miranda atendeu na extensão ao lado da geladeira.

— Alô?

— Miranda, é Kit.

Ela ficou satisfeita.

— Alô, irmãozinho. Como vai?

— Na verdade, um pouco quebrado.

— O que aconteceu?

— Caí numa piscina. É uma longa história. Como vão as coisas em Steepfall?

— Estamos sentados, bebendo o vinho de papai, desejando que você estivesse aqui.

— Bem, eu estarei, afinal.

— Ótimo. — Ela resolveu não perguntar o que o tinha feito mudar de idéia. Provavelmente ele diria outra vez que era uma longa história.

— Estarei aí daqui a uma ou duas horas. Mas, ouça, ainda posso ficar no chalé?

— Tenho certeza de que sim. Depende de papai, mas eu falo com ele.

Quando Miranda desligou, seu pai entrou na cozinha. Vestia o colete e a calça do terno mas o punho da camisa estava dobrado. Trocou um aperto de mãos com Ned e beijou Miranda e as crianças. Ele estava muito elegante, Miranda pensou.

— Você está emagrecendo? — ela perguntou.

— Tenho jogado squash. Quem era no telefone?

— Kit. Ele vem, afinal. — Olhou para o pai, ansiosa para ver sua reação.

— Só acredito quando ele estiver aqui.

— Ora, papai! Devia demonstrar mais entusiasmo.

Stanley bateu de leve na mão dela.

— Nós todos amamos Kit, mas sabemos como ele é. Espero que ele apareça, mas não estou contando com isso. — Seu tom era despreocupado, mas Miranda via que ele tentava esconder a mágoa.

— Ele quer dormir no chalé.

— Ele disse por quê?

— Não.

Tom entrou na conversa.

— Deve ser porque vai trazer uma mulher e não quer que a gen­te ouça os gritinhos de prazer.

A cozinha ficou em silêncio. Miranda estava atônita. De onde tinha saído aquilo? Tom tinha onze anos e nunca falava sobre sexo. Depois de um momento, todos caíram na gargalhada. Tom disse, embaraçado: — Li isso em um livro. — Provavelmente tentava parecer adulto na frente de Sophie, Miranda decidiu. Era ainda um garoto, mas não seria por muito tempo.

Stanley disse: — Seja como for, não me importa onde vocês dor­mem, sabem disso. — Olhou distraidamente para o relógio. — Tenho de assistir ao noticiário da tarde na televisão.

— Sinto muito pela morte do seu funcionário. Por que ele fez aquilo?

— Nós todos temos idéias esquisitas, mas uma pessoa solitária não tem ninguém que a convença a não ser louca.

A porta se abriu e Olga entrou. Como sempre, chegou falando.

— Esse tempo é um pesadelo! Tem gente derrapando por toda parte. Isso que estão bebendo é vinho? Preciso de um pouco para não explodir. Nellie, por favor, não fareje tanto, é considerado falta de educação pela sociedade humana. Olá, papai, como vai você?

— Nella merde — ele disse.

Miranda reconheceu uma das expressões de sua mãe. Significava “na merda”. Mamma Marta imaginava que se falasse palavrões em italiano as crianças não entenderiam.

Olga disse: — Ouvi falar do cara que morreu. É muito ruim para você?

— Veremos quando assistirmos ao noticiário.

O marido de Olga, Hugo, a acompanhava, um homem baixi­nho com charme malicioso. Quando beijou Miranda, seus lábios se demoraram no rosto dela um segundo a mais.

Olga disse: — Onde Hugo pode pôr as malas?

— Lá em cima — disse Miranda.

— Suponho que você tenha se apossado do chalé.

— Não. Kit vai ficar nele.

— Ora, por favor — Olga protestou. — Aquela cama de casal enor­me, um belo banheiro e quitinete, tudo para uma pessoa só, enquan­to nós quatro temos de usar o banheiro minúsculo lá em cima.

— Foi um pedido especial.

— Muito bem, eu faço um pedido especial.

Miranda ficou irritada com a irmã.

— Pelo amor de Deus, Olga, pense em outra pessoa que não seja você para variar. Sabe que Kit não vem aqui desde... toda aquela confusão. Só quero ter certeza de que ele vai ficar bem.

— Então, ele fica com o melhor quarto porque roubou o papai. Essa é a sua lógica?

— Você está falando outra vez como uma advogada. Deixe isso para seus colegas de profissão.

— Muito bem, vocês duas — disse Stanley, como se estivesse falan­do com duas meninas pequenas. — Neste caso acho que Olga tem razão. E egoísmo de Kit pedir o chalé só para ele. Miranda e Ned podem dormir lá.

Olga disse: — Assim ninguém fica com o que quer.

Miranda suspirou. Por que Olga estava criando caso? Todos conheciam seu pai. Na maioria das vezes concederia qualquer coisa que quisessem. Mas quando ele dizia não, o caso estava encerrado. Ele podia ser indulgente, mas nunca intimidado.

Então ele disse: — Isso vai ensinar vocês a não brigarem.

— Não, não vai. Há trinta anos você nos impõe esses julgamentos de Salomão e ainda não aprendemos.

Stanley sorriu.

— Tem razão. Meu método com filhos teimosos tem sido errado todo esse tempo. Devo começar tudo de novo?

— Tarde demais.

— Graças a Deus por isso.

Miranda esperava que Kit não ficasse ofendido e fosse embora. A discussão terminou com a chegada de Caroline e Craig, os filhos de Hugo e Olga.

Caroline, com dezessete anos, carregava uma gaiola com vários ratos brancos. Nellie farejou os ratos com entusiasmo. Caroline se relacionava com animais como um meio de evitar as pessoas. Era uma fase pela qual muitas meninas passavam mas, Miranda pensou, aos dezessete anos, ela devia ter superado isso.

Craig, quinze anos, carregava duas sacolas de plástico cheias de presentes caprichosamente embrulhados. Ele tinha o sorriso malicioso de Hugo mas era alto como Olga. Pôs as sacolas no chão, cum­primentou a família friamente e foi direto para Sophie. Tinham se conhecido, Miranda lembrou, na festa de aniversário de Olga.

— Você pôs um piercing no umbigo — Craig disse para Sophie. — Legal! Doeu muito?

Miranda percebeu então que havia uma estranha na sala. A recém-chegada estava parada na porta do hall, portanto devia ter entrado pela frente. Era alta, muito bonita, maçãs do rosto salientes, nariz aquilino, exuberantes cabelos louros avermelhados e maravilhosos olhos verdes. Vestia um tailleur marrom risca de giz, um pou­co amarrotado, e a maquiagem perfeita não escondia os sinais de cansaço sob os olhos. Observava, divertida, a cena animada na cozi­nha cheia de gente. Miranda imaginou por quanto tempo ela estaria assistindo em silêncio.

Os outros perceberam sua presença e aos poucos a cozinha ficou silenciosa. Stanley olhou para trás.

— Ah, Toni! — ele disse, saltando da cadeira e Miranda percebeu a satisfação dele. — Muita bondade sua aparecer. Meninos, esta é minha colega de trabalho Antonia Gallo.

A mulher sorriu como se não achasse nada mais maravilhoso do que uma família briguenta. Tinha um sorriso largo e generoso e lábios cheios. Era a ex-policial que surpreendera Kit roubando da companhia, Miranda lembrou. Apesar disso, Stanley parecia gostar dela.

Stanley os apresentou e Miranda notou o orgulho em sua voz.

— Toni, esta é minha filha Olga, seu marido Hugo e seus filhos, Caroline com seus ratos de estimação e Craig, o mais alto. Minha outra filha Miranda, seu filho Tom, seu noivo Ned e a filha de Ned, Sophie. — Toni olhou para cada membro da família, cumprimentando-os amavelmente com um movimento da cabeça, parecendo extremamente interessada. Era difícil guardar oito nomes de uma vez mas Miranda teve a impressão de que Toni se lembrava de todos. — Aquele ali, descascando cenoura, é Luke e Lori está no fogão. Nellie, a moça não quer um pedaço do seu osso de couro, embora esteja comovida com sua generosidade.

Toni disse: — Estou muito contente por conhecer vocês todos. — Parecia sincera, mas também parecia tensa.

Miranda disse: — Deve ter tido um dia difícil. Sinto muito pela morte do técnico.

Stanley disse: — Foi Toni quem o encontrou.

— Meu Deus!

Toni fez que sim com a cabeça.

— Temos certeza de que ele não infeccionou mais ninguém, gra­ças a Deus. Agora estamos esperando que a imprensa não nos cruci­fique.

Stanley olhou para o relógio de pulso.

— Com licença — ele disse para a família. — Vamos ver o noticiá­rio no meu escritório. — Segurou a porta aberta para Toni passar.

As crianças começaram a tagarelar outra vez e Hugo comentou alguma coisa com Ned sobre o time escocês de rúgbi. Miranda voltou-se para Olga, a discussão esquecida.

— Mulher atraente — ela disse, pensativa.

— Sim — Olga disse. — Deve ter o quê? Mais ou menos a minha idade?

— Trinta e sete, trinta e oito, acho. E papai emagreceu.

— Eu notei.

— Uma crise compartilhada aproxima as pessoas.

— Não é mesmo?

— Então, o que acha?

— O mesmo que você.

Miranda acabou de tomar o vinho do copo.

— Foi o que pensei.

 

Toni ficou encantada com a cena na cozinha. Adultos e crianças, empregados e bichos de estimação, bebendo vinho, preparando comida, discutindo e rindo de piadas. Era como entrar em uma fes­ta muito boa onde não conhecia ninguém. Ela queria fazer parte, mas sentiu-se excluída. Aquela era a vida de Stanley, pensou. Ele e a mulher tinham criado aquela família, aquele lar, aquele calor. Ela o admirava por isso e invejava seus filhos. Provavelmente não tinham idéia do quanto eram privilegiados. Toni ficou parada ali por vários minutos, atônita mas fascinada. Não admirava que ele fosse tão ligado à família.

Aquilo a encantou e ao mesmo tempo desanimou. Ela podia se permitir a fantasia de fazer parte daquele grupo, ao lado de Stanley, como sua mulher, amando-o e aos seus filhos, aquecendo-se no conforto da sua união. Mas reprimiu esse sonho. Era impossível e não devia se torturar. A força dos elos que uniam aquela família a deixa­va de fora.

Quando finalmente eles a notaram, ela percebeu os olhares seve­ros das duas filhas, Olga e Miranda. Era um exame atento, detalha­do, sem pedido de desculpas, hostil. Tinha recebido o mesmo olhar de Lori, a cozinheira, embora mais discreto.

Toni compreendia a reação das filhas. Marta governara aquela cozinha durante trinta anos. Teriam se sentido desleais a ela se não fossem hostis. Qualquer mulher de quem Stanley gostasse podia vir a ser uma ameaça. Ela podia provocar a desunião da família. Podia mudar as atitudes do pai, desviando sua afeição. Ela podia dar filhos a ele, meios-irmãos que não dariam a mínima importância à história da família original, que não estariam ligados a eles pelos elos indissolúveis de uma infância comum. Ela tomaria parte na sua herança, talvez toda. Stanley estaria percebendo essas possibilidades? Ao acompanhá-lo até o escritório, ela sentiu outra vez a irritante frustra­ção de não saber o que Stanley pensava.

O escritório era um ambiente masculino, com uma mesa vito­riana de pedestal, uma estante cheia de livros de microbiologia e um sofá de couro, muito usado, na frente da lareira. O cachorro foi atrás deles e deitou na frente da lareira, como um tapete negro de pêlo crespo. Sobre a lareira havia a foto de uma adolescente de cabelos escuros com uniforme de tênis — a mesma da foto da noiva, na parede do escritório dele no laboratório. O short curto mostrava pernas longas e atléticas. A maquiagem pesada dos olhos e a faixa em volta da cabeça diziam que a foto fora tirada na década de 1960.

— Marta também era cientista? — Toni perguntou.

— Não. Era formada em inglês. Quando a conheci, ensinava ita­liano em um colégio de Cambridge.

Toni ficou surpresa. Tinha imaginado que Marta devia ter compartilhado a paixão de Stanley por seu trabalho. Então, ela pensou, você não precisa de um doutorado em biologia para casar com ele.

— Ela era bonita.

— De arrasar qualquer um — Stanley disse. — Bonita, alta, sexy, estrangeira, um demônio na quadra, de partir corações fora dela. Fui atingido por um relâmpago. Cinco minutos depois de conhecê-la eu estava apaixonado.

— E ela por você?

— Isso demorou mais. Ela vivia rodeada de admiradores. Os homens caíam como moscas. Nunca compreendi por que ela me escolheu. Ela costumava dizer que não conseguia resistir a um intelectual.

Nenhum mistério nisso, Toni pensou. Marta gostou do que Toni gostava, a força de Stanley. Você sabia imediatamente que ali estava um homem que faria o que dizia e era o que parecia ser, um homem no qual se podia confiar. Stanley tinha outros atrativos tam­bém. Era caloroso e inteligente e até se vestia bem.

Ela queria dizer. Mas o que você sente agora? Ainda está casado com a lembrança dela? Mas Stanley era seu chefe. Não tinha direito de perguntar sobre seus sentimentos mais profundos. E ali estava Marta sobre a lareira, brandindo a raquete de tênis como uma arma.

Sentada no sofá, ao lado de Stanley, Toni tentou deixar de lado suas emoções e se concentrar na crise que enfrentavam.

— Você telefonou para a embaixada americana? — ela perguntou.

— Sim. Tranqüilizei Mahoney por enquanto, mas ele estará assis­tindo ao noticiário como nós.

Muita coisa dependeria dos próximos minutos, Toni pensou. A empresa poderia ser destruída ou salva, Stanley podia ir à falência, ela podia perder o emprego e o mundo perderia o trabalho de um grande cientista. Não entre em pânico, ela pensou, seja prática. Tirou da bolsa a tiracolo um bloco de anotações. Cynthia Creighton estava gravando o noticiário em videoteipe, no escritório, por isso Toni poderia assistir outra vez, mais tarde, mas queria anotar agora alguma idéia que lhe ocorresse.

O noticiário escocês veio antes do boletim do Reino Unido.

A morte de Michael Ross era ainda a matéria principal, mas a notícia foi apresentada por um repórter da emissora, não por Carl Osborne. Isso era um bom sinal, Toni pensou, esperançosa. Não haveria os dados científicos ridículos e incorretos de Carl. O vírus foi chamado corretamente de Madoba-2. O âncora teve o cuidado de chamar a atenção para o fato de que a morte de Michael seria investigada pelo xerife em um interrogatório judicial.

— Por enquanto tudo bem — Stanley murmurou.

Toni disse: — Tenho a impressão de que algum editor importan­te do jornal examinou a reportagem descuidada de Osborne e resol­veu melhorar a cobertura do caso.

A imagem passou para os portões do Kremlin. “Os participantes da campanha pelos direitos dos animais tiraram vantagem da tra­gédia para organizar um protesto no lado de fora do Oxenford Medical”, o âncora anunciou. Foi uma surpresa agradável para Toni. Essa frase era mais favorável do que ela esperava. Implicava que os manifestantes eram cínicos manipuladores da mídia.

Depois de uma breve imagem da manifestação, a reportagem passou para o saguão. Toni ouviu a própria voz, mais escocesa do que ela esperava, descrevendo o sistema de segurança do laboratório. Ela percebeu que aquilo não foi muito producente: apenas uma voz falando monotonamente sobre alarmes e guardas. Teria sido melhor ter deixado que filmassem a câmara de ar comprimido da entrada do BSL4, com seu sistema de reconhecimento pela impressão digital e portas de submarino. Imagens sempre são melhores do que palavras.

Então apareceu Carl Osborne perguntando: “Exatamente que perigo esse coelho representa para a população?”

Toni se inclinou para a frente no sofá.

Transmitiram a conversa de Carl e Stanley, com Carl sugerindo cenários de desastres e Stanley dizendo o quanto eram improváveis. Aquilo não era bom, Toni sabia. Os espectadores se lembrariam da idéia de que os animais selvagens podiam ser infectados, embora Stanley tivesse assegurado categoricamente que isso não era possível.

Na tela, Carl disse: “Mas Michael poderia ter transmitido o vírus para outras pessoas.”

Stanley respondeu gravemente: “Sim, podia transmitir pelo espirro.”

Infelizmente eles cortaram o diálogo nesse momento.

Stanley resmungou: — Diabos.

— Não acabou ainda — Toni disse. Podia ficar melhor — ou pior.

Toni esperava que mostrassem sua intervenção apressada, quan­do tentou desfazer a impressão de complacência quando disse que a Oxenford Medical não estava tentando subestimar o risco. Porém, em vez disso, mostraram Susan Mackintosh ao telefone, com uma voz em off explicando que a empresa estava pedindo que todos os seus funcionários comunicassem se tiveram algum contato com Michael Ross. Isso era bom, Toni pensou com alívio. O perigo era admitido, mas mostravam que a empresa estava tomando providências positivas.

A imagem final da entrevista coletiva foi um close-up de Stanley, parecendo responsável, dizendo: “Daqui a algum tempo, derrotare­mos a gripe, a AIDS e até o câncer — e isso será feito por cientistas como nós, trabalhando em laboratórios iguais a este.”

— Isso é bom — Toni disse.

— Será que impressionará mais do que o diálogo com Osborne sobre a infecção dos animais selvagens?

— Acho que sim. Você parece muito tranqüilo.

Em seguida mostraram uma imagem dos funcionários da canti­na distribuindo bebidas quentes para os manifestantes na neve.

— Ótimo! Eles usaram isso — Stanley disse. — Foi idéia de quem?

— Minha.

Carl Osborne aproximou o microfone do rosto de uma funcionária e disse: “Estas pessoas estão se manifestando contra sua empre­sa. Por que está dando café para elas?”

— Porque está frio aqui fora — a mulher respondeu.

Toni e Stanley riram, encantados com o humor da resposta e como isso refletia positivamente na companhia.

O âncora reapareceu e disse: “O primeiro-ministro da Escócia declarou esta manhã: ‘Hoje falei com representantes da Oxenford Medical, com a polícia de Inverburn e com a autoridade regional de saúde de Inverburn e me certifiquei de que está sendo feito todo o possível no sentido de garantir que não haja nenhum perigo para o público.’ E agora, outras notícias.”

— Meu Deus, acho que salvamos o dia — disse Toni.

— Oferecer café foi uma grande idéia. Quando você pensou nisso?

— No último minuto. Vamos ver o que diz o noticiário do Reino Unido.

No boletim principal, a notícia sobre Michael Ross foi apresentada em segundo lugar, depois de um terremoto na Rússia. A repor­tagem usou parte da mesma filmagem, mas sem Carl Osborne, que era conhecido apenas na Escócia. Mostraram Stanley dizendo: “O vírus não é muito infeccioso de uma espécie para outra. No caso de Michael, acreditamos que tenha sido mordido pelo coelho.” Veio em seguida uma declaração discreta do ministro britânico do Meio Ambiente, em Londres. A reportagem continuou no mesmo tom contido do noticiário escocês. Toni sentiu-se extremamente aliviada.

Stanley disse: — É bom saber que nem todos os jornalistas são como Carl Osborne.

— Ele me convidou para jantar. — Toni se perguntou por que tinha dito isso.

Stanley ficou surpreso.

— Ha la faccia peggio del culo! — ele disse. — Uma coragem dos diabos.

Ela riu. O que ele tinha dito realmente foi: “A cara dele é pior do que seu traseiro”, presumivelmente uma das expressões de Marta.

— Ele é um homem atraente — Toni disse.

— Você não acha mesmo, acha?

— Ele é bonito pelo menos. — Toni percebeu que estava tentan­do provocar ciúmes. Não faça esse joguinho, ela pensou.

— O que você disse? — Stanley perguntou.

— Eu recusei, é claro.

— Sim, é o que eu acho também — Stanley acrescentou, parecen­do embaraçado. — Não que seja da minha conta, mas ele não mere­ce você, nem por um ano-luz. — Voltou a atenção para a televisão e passou para um canal de noticiário geral.

Viram as vítimas do terremoto na Rússia e as equipes de resgate durante alguns minutos. Toni sabia que tinha sido tola ao falar sobre o convite de Osborne, mas estava satisfeita com a reação de Stanley.

Viram em seguida outra notícia sobre Michael Ross também em tom discreto. Stanley desligou a televisão.

— Muito bem, escapamos da crucificação pela TV.

— Amanhã, dia de Natal, não teremos jornal — Toni observou. — Na quinta-feira, será passado. Acho que estamos livres, a não ser que haja algum acontecimento inesperado.

— Sim. Se perdermos outro coelho, estaremos encrencados outra vez.

— Não vai haver mais nenhum incidente com a segurança no laboratório — Toni disse com firmeza. — Eu me certifiquei disso.

Stanley assentiu, balançando a cabeça.

— Devo dizer que você lidou com tudo extraordinariamente bem. Sou muito grato a você.

Toni se iluminou.

— Dissemos a verdade e eles acreditaram em nós — ela disse.

Trocaram um sorriso. Foi um momento de feliz intimidade. Então o telefone tocou.

Stanley estendeu o braço por sobre a mesa e pegou o aparelho.

— Oxenford — ele disse. — Sim, passe a ligação para cá, por favor. Quero falar com ele. — Ergueu os olhos para Toni e disse, apenas com um movimento dos lábios: — Mahoney.

Toni se levantou, nervosa. Ela e Stanley estavam convencidos de ter controlado muito bem a publicidade — porém o governo dos Estados Unidos concordaria com isso? Ela observou o rosto de Stanley.

Ele falou ao telefone.

— Alô, Larry, você viu o noticiário?... Fico satisfeito ouvindo isso... Evitamos a reação histérica que você temia... Você conhece minha diretora de segurança, Antonia Gallo, ela controlou a imprensa... Um ótimo trabalho, concordo... Absolutamente certo, devemos manter uma rigorosa segurança daqui por diante... sim. Foi bondade sua telefonar. Até logo.

Stanley desligou e olhou para Toni com um largo sorriso.

— Estamos livres. — Num gesto exuberante, ele a abraçou com força.

Toni apertou o rosto contra o ombro dele. O tweed do colete era surpreendentemente macio. Ela sentiu o cheiro discreto e quente e lembrou que há muito tempo não ficava tão perto de um homem. Toni retribuiu o abraço, apertando os seios contra o peito dele.

Toni teria ficado assim para sempre, mas depois de alguns segundos, ele soltou o abraço, embaraçado, como para restaurar a formalidade. Stanley apertou a mão dela.

— Todo o crédito para você — ele disse.

O breve momento de contato físico a deixou excitada. Meu Deus, ela pensou, estou molhada, como foi possível acontecer tão depressa?

Ele disse: — Quer ver a casa?

— Eu adoraria — ela disse, satisfeita. Um homem raramente se oferecia para mostrar a casa. Era outro tipo de intimidade.

Os dois cômodos que ela já havia visto, cozinha e escritório, ficavam nos fundos, dando para um pátio cercado por construções anexas. Stanley levou Toni para a frente da casa e entraram na sala de jantar com vista para o mar. Essa parte parecia uma extensão nova da velha casa de fazenda. Em um canto havia um armário com portas de vidro, com taças de prata.

— Os troféus de tênis de Marta — Stanley disse com orgulho. — O backhand de Marta parecia um lançador de foguete.

— Até onde ela chegou no tênis?

— Foi classificada para Wimbledon, mas não competiu porque engravidou de Olga.

No outro lado do corredor, também dando para o mar, havia uma árvore de Natal. Os presentes se espalhavam pelo chão. Um quadro de corpo inteiro mostrava Marta aos quarenta anos, com um pouco mais de peso e a linha do queixo mais suave. Era uma sala de estar quente e agradável, mas estava vazia e Toni se convenceu de que o coração da casa era a cozinha.

A disposição era simples. Sala de estar e sala de jantar na frente, cozinha e escritório no fundo.

— Lá em cima não há muita coisa para ver — Stanley disse, mas assim mesmo começou a subir a escada e Toni o seguiu. Ele estaria mostrando a ela seu futuro lar?, Toni pensou. Era uma fantasia idio­ta e ela a afastou rapidamente. Stanley estava apenas sendo gentil.

Mas ele a tinha abraçado.

Na parte mais antiga da casa, em cima do escritório e da sala de estar havia três quartos e um banheiro. Existiam ainda sinais das crianças criadas ali. Um pôster do Clash em uma parede e um velho taco de críquete com o punho descascado, num canto, a coleção completa de As crônicas de Narnia em uma estante.

Na parte nova havia uma suíte com quarto de vestir e banheiro. A grande cama de casal estava feita e tudo muito arrumado. Toni sentiu-se excitada e ao mesmo tempo desconfortável por estar no quarto de Stanley. Porém, havia outra foto de Marta no criado-mudo, uma foto colorida de Marta com cinqüenta e poucos anos. O cabelo era grisalho e o rosto magro, sem dúvida por causa do câncer que a tinha vitimado. Era uma foto pouco lisonjeira. Toni pensou no quanto Stanley devia amá-la ainda, para guardar até mesmo uma lembrança infeliz.

Toni não sabia o que esperar em seguida. Ele tentaria alguma coisa, com a mulher observando do criado-mudo e os filhos lá embaixo? Porém, pensou, não era seu estilo. Ele podia estar pensando nisso, mas não se jogaria para uma mulher assim de repente. Devia sentir que a etiqueta exigia que ele a conquistasse antes, como de hábito. Para o diabo com o jantar e o cinema, Toni queria dizer; apenas me agarre, pelo amor de Deus. Mas não disse nada e depois de mostrar o banheiro de mármore, ele a levou de volta para baixo.

A visita à casa fora um privilégio, é claro, e devia aproximá-la de Stanley, mas na verdade ela se sentia excluída, como se tivesse espia­do pela janela uma família sentada à mesa, uns absortos nos outros e auto-suficientes. Era uma sensação de anticlímax.

No corredor, a poodle empurrou Stanley com o focinho.

— Nellie quer ir lá fora — ele disse. Olhou pela pequena janela ao lado da porta. — A neve parou de cair. Que tal tomarmos um pouco de ar?

— Claro.

Toni vestiu seu casaco com capuz e Stanley apanhou um velho anoraque. Saíram e encontraram o mundo pintado de branco. O Porsche Boxter de Toni estava ao lado da Ferrari F50 de Stanley e de dois outros carros, todos cobertos de neve como bolos com glacê. O cachorro foi diretamente para o penhasco, com certeza seu caminho habitual. Stanley e Toni o seguiram. Toni percebeu então que o animal tinha uma vaga semelhança com a falecida Marta, com aquele pêlo negro crespo.

Seus pés deslocavam a neve, revelando a relva áspera da praia. Atravessaram um longo relvado. Algumas árvores raquíticas erguiam-se em ângulos, curvadas para o lado pelo vento incansável. Encontraram dois dos netos de Stanley que voltavam do penhasco, o garoto mais velho com o sorriso atraente e a menina calada com o piercing no umbigo. Toni lembrou os nomes deles: Craig e Sophie. Quando Stanley apresentou todos, na cozinha, ela memorizou avidamente cada detalhe. Craig esforçava-se arduamente para impres­sionar Sophie, Toni percebeu, mas a menina andava com os braços cruzados, olhando para o chão. Toni invejou a simplicidade das escolhas deles. Eram jovens e desimpedidos, no limiar da idade adul­ta, sem outra coisa para fazer que não fosse abraçar a aventura da vida. Ela queria dizer a Sophie para não se fazer de difícil. Segure o amor enquanto pode, ela pensou, talvez nunca mais venha a você com tanta facilidade.

— Quais são seus planos para o Natal? — Stanley perguntou.

— Tão diferentes dos seus quanto posso imaginar. Vou a um spa com alguns amigos solteiros ou casais sem filhos, para um Natal de adultos. Nada de peru, nada de meias, nem de Papai Noel. Apenas conversa de adultos, calma e estimulante.

— Parece maravilhoso. Pensei que você passasse o Natal sempre com sua mãe.

— Passei nos últimos anos. Mas este Natal ela vai passar na casa de minha irmã Bella, para minha grande surpresa.

— Surpresa?

Toni fez uma careta.

— Bella tem três filhos e acha que isso a libera de outras respon­sabilidades. Não sei se é justo, mas amo minha irmã, por isso aceito.

— Você quer ter filhos, algum dia?

Toni prendeu a respiração. Era uma pergunta profundamente íntima e ela se perguntou qual resposta ele preferia ouvir. Não sabia, por isso disse a verdade.

— Talvez. Foi a única coisa que minha irmã sempre quis. O dese­jo de ter filhos dominou sua vida. Eu não sou assim. Invejo você por ter uma família. Eles obviamente o amam, respeitam e gostam de estar com você. Mas não quero necessariamente sacrificar tudo o mais que há em minha vida para ter filhos.

— Não sei se teria de sacrificar tudo — Stanley disse.

Você não sacrificou, Toni pensou, mas e a chance de Marta em Wimbledon? Mas disse algo diferente.

— E você? Você pode começar outra família.

— Oh, não — ele disse, rapidamente. — Seria muito inconvenien­te para meus filhos.

Toni ficou um pouco desapontada com a certeza dele.

Chegaram ao penhasco. A esquerda, a faixa de terra descia dire­tamente para o mar. Naquele lado, a borda era protegida por uma forte cerca de madeira com um metro e meio de altura, o bastante para deter crianças pequenas sem obstruir a vista. Eles se inclinaram sobre a cerca e olharam para as ondas a cem metros lá embaixo. Eram marolas grandes e profundas, que subiam e desciam como o peito de um gigante adormecido.

— Que belo lugar — Toni disse.

— Quatro horas atrás pensei que fosse perdê-lo.

— Seu lar?

Ele balançou a cabeça, assentindo.

— Tive de dar a casa como garantia de um saque a descoberto. Se eu falir, o banco fica com a casa.

— Mas sua família...

— Ficaria inconsolável. E agora que Marta morreu, ela é tudo com que me preocupo.

— Tudo? — ela perguntou.

Stanley deu de ombros.

— No fim das contas, sim.

Toni olhou para ele. Sua expressão era séria mas não sentimen­tal. Por que Stanley estava dizendo aquilo? Era um recado, ela supôs. Não era verdade que os filhos eram sua única preocupação — ele esta­va profundamente envolvido com o seu trabalho. Mas queria que ela compreendesse o quanto a unidade da família era importante para ele. Tendo visto todos juntos na cozinha, Toni podia compreender isso. Mas por que ele escolhera aquele momento? Talvez tivesse medo de ter dado a ela uma impressão errada.

Toni precisava saber a verdade. Muita coisa tinha acontecido nas últimas horas, mas tudo era ambíguo. Stanley a tocara, a abraçara, mostrou sua casa e perguntou se ela queria ter filhos. Isso significava alguma coisa ou não? Precisava saber.

— Você está me dizendo que nunca fará nada que prejudique o que eu vi na cozinha, a união da sua família.

— Sim, eles todos retiram sua força dessa união, quer saibam dis­so ou não.

Toni olhou diretamente nos olhos dele.

— E isso é tão importante para você que jamais formará outra família?

— Sim.

O recado era claro, Toni pensou. Stanley gostava dela, mas não ia passar disso. O abraço no escritório fora um gesto espontâneo de triunfo. O passeio pela casa, um momento descuidado de intimida­de, e agora ele estava recuando. A razão prevalecia. Toni sentiu as lágrimas subindo aos olhos. Horrorizada com a idéia de revelar seus sentimentos, virou para o lado e disse: — Este vento...

Foi salva pelo jovem Tom, que chegou correndo na neve chamando: “Vovô! Vovô! O tio Kit chegou!”

Voltaram para casa com o menino, em silêncio, ambos embaraçados.

Uma nova fila dupla de marcas de pneus ia até um cupê Peugeot negro. Não era um grande carro, mas parecia elegante — o carro cer­to para Kit, Toni pensou sombriamente. Ela não queria se encontrar com ele. Não teria nenhum prazer nisso na melhor das ocasiões, mas no momento estava magoada demais para suportar um encontro difícil. Mas sua bolsa estava na casa e ela foi obrigada a entrar.

Kit estaria na cozinha, sendo recebido pela família como o filho pródigo, Toni pensou. Miranda o abraçou, Olga o beijou, Luke e Lori sorriram beatificamente e Nellie latia procurando chamar a atenção. Toni ficou na porta, vendo Stanley cumprimentar o filho. Kit parecia cauteloso. Stanley era um misto de satisfação e mágoa, como quando falava de Marta. Kit estendeu a mão, mas o pai o abraçou.

— Estou muito contente por você ter vindo — Stanley disse. — Muito contente mesmo.

Kit disse: — Acho melhor eu pegar minha mala no carro. Ficarei no chalé, certo?

Miranda disse nervosa: — Não, você fica lá em cima.

— Mas...

Olga interrompeu.

— Não crie caso. Papai resolveu e a casa é dele.

Toni viu um lampejo de pura raiva nos olhos de Kit, mas ele dis­farçou rapidamente.

— Tudo bem — ele disse. Tentava dar a impressão de que não sig­nificava nada, mas aquele lampejo dizia o contrário e Toni imaginou que plano secreto o fazia querer tanto dormir fora da casa naquela noite.

Ela seguiu discretamente para o escritório de Stanley. A lembrança daquele abraço voltou com toda a força. Era o mais próximo que ia conseguir de fazer amor com ele, ela pensou. Enxugou os olhos na manga.

Seu bloco de anotações e a bolsa estavam na mesa antiga. Guardou o bloco na bolsa, passou a alça no ombro e voltou ao corredor.

Olhando para dentro da cozinha ela viu Stanley falando com a cozinheira. Toni acenou para ele. Stanley interrompeu a conversa e foi até ela.

— Toni, obrigado por tudo.

— Feliz Natal.

— Para você também. — Ela saiu rapidamente.

Kit estava lá fora, abrindo a mala do carro. Toni viu algumas cai­xas cinzentas na mala, uma espécie de equipamento de computador. Kit era especialista em tecnologia da informação mas para que pre­cisava trazer o equipamento para a casa do pai no Natal?

Ela esperava passar por ele sem falar, mas quando abria a porta do seu carro, ele ergueu a cabeça e seus olhos se encontraram.

— Feliz Natal, Kit — ela disse delicadamente.

Ele tirou uma maleta da mala e bateu a tampa.

— Vá a merda, sua vaca — ele disse, entrando na casa.

 

Craig estava feliz por rever Sophie. Ficara encantado com ela na festa de aniversário de sua mãe. Ela era bonita, com olhos e cabelos negros e, embora fosse pequena e frágil, seu corpo tinha curvas suaves — mas o que o seduzira não foi a aparência, mas sua atitude. Ela não dava a mínima para nada e isso o fascinava. Nada a impressio­nava, nem a Ferrari F50 do avô, nem a habilidade de Craig no fute­bol — ele jogava pela Escócia, na equipe de juniores — ou o fato de sua mãe ser advogada do conselho da rainha. Sophie vestia o que queria, ignorava avisos de “Proibido fumar” e, se alguém a entediava, ela ia embora sem esperar que a pessoa acabasse de falar o que estava dizendo. Na festa, ela estava discutindo com o pai sobre pôr um piercing no umbigo — o que ele proibia terminantemente — e ali estava ela com o piercing no umbigo.

Isso fazia dela uma pessoa difícil. Ao mostrar Steepfall para ela, Craig viu que nada a agradava. Parecia que para ela o silêncio era a reação mais próxima de um elogio. Fora isso, limitava-se aos adjetivos “vulgar”, “idiota” ou “esquisito”. Mas ela não o deixou para trás, por isso Craig sabia que não a estava aborrecendo.

Ele a levou ao celeiro. Era a construção mais antiga da propriedade, erguida no século dezoito. O seu avô tinha instalado aqueci­mento, eletricidade e encanamento, mas via-se ainda a estrutura antiga de madeira. O térreo era uma sala de jogos com mesa de bilhar, um bar e uma grande TV.

— Este é um bom lugar para passar o tempo — ele disse.

— Bem legal — Sophie observou, a coisa mais entusiástica que tinha dito até então. — O que é aquilo?

— Um palco.

— Para que precisam de um palco?

— Minha mãe e a tia Miranda costumavam montar peças de tea­tro quando eram pequenas. Certa vez produziram Antônio e Cleópatra com um elenco de quatro pessoas, neste celeiro.

— Estranho.

Craig apontou para duas camas de campanha.

— Tom e eu vamos dormir aqui — ele disse. — Vamos subir e eu mostro seu quarto.

Uma escada de madeira levava ao segundo andar, o antigo palheiro. Não havia parede, apenas um corrimão para segurança. Duas camas de solteiro estavam arrumadas. O único móvel era um trilho para pendurar casacos e um espelho de corpo inteiro. A mala de Caroline estava aberta no chão.

— Não tem muita privacidade — Sophie disse.

Craig não havia notado isso. Aquela disposição das camas pare­cia a ele cheia de promessas. Sua irmã mais velha, Caroline, e seu jovem primo, Tom, estariam presentes, é claro, mas mesmo assim ele sentia, excitado, que tudo podia acontecer.

— Aqui está. — Ele abriu um velho biombo de dobrar. — Se você for tímida, pode se despir atrás disto.

Os olhos dela fuzilaram com ressentimento.

— Não sou tímida — disse, como se a sugestão fosse uma ofensa.

Craig achou excitante aquela reação.

— Estava só perguntando. — Ele se sentou em uma das camas. — É bastante confortável. Melhor do que nossas camas de acampamento.

Sophie deu de ombros.

Na sua fantasia ela agora se sentava na cama, ao seu lado. Em uma versão, ela o empurrava para trás, fingindo uma luta, e depois acabavam se beijando. Em outro cenário, ela segurava sua mão e dizia o quanto sua amizade representava para ela e então o beijava. Porém agora, na vida real, Sophie não parecia disposta a começar uma luta de brincadeira nem parecia sentimental. Ela deu as costas para ele e olhou em volta com desdém e Craig teve certeza de que beijar não fazia parte do seu pensamento. Sophie cantarolou em voz baixa: “Estou sonhando com um Natal de merda.”

— O banheiro é lá embaixo, atrás do palco. Não tem banheira mas o chuveiro funciona bem.

— Quanto luxo. — Sophie se levantou da cama e foi para a escada, sempre cantando sua obscena adaptação do clássico de Bing Crosby.

Muito bem, ele pensou, estamos aqui apenas há algumas horas e terei cinco dias inteiros para conquistá-la.

Os dois desceram. Havia mais uma coisa que podia animá-la.

— Tenho outra coisa para mostrar. — Ele a levou para fora.

Entraram em um pátio grande e quadrado, com um prédio de cada lado: a casa principal, o chalé dos hóspedes, o celeiro do qual acabavam de sair e a garagem para três carros. Seguiram pelo lado da casa, até a frente, evitando a cozinha, onde podiam dar tarefas para eles. Quando entraram, Craig viu os flocos de neve presos no cabe­lo escuro dela. Ele parou e olhou, encantado.

Ela perguntou: — O que foi?

— Neve no seu cabelo — ele disse. — É lindo.

Ela sacudiu impacientemente a cabeça e os flocos desapareceram.

— Você é bizarro — ela disse.

Tudo bem, Craig pensou, então você não gosta de elogios.

Ele a levou para cima. Na parte superior da casa havia três pequenos quartos e um banheiro antigo. A suíte do seu avô ficava na outra ala. Craig bateu na porta, para o caso de o avô estar no quar­to. Ninguém respondeu e ele entrou.

Andando depressa, ele passou pela grande cama de casal e entrou no quarto de vestir. Abriu a porta de um closet e empurrou para o lado uma fileira de ternos, risca de giz, tweeds e xadrez, a maioria cinza e azul. Craig ajoelhou-se e bateu na parede do closet. Uma portinhola se abriu e Craig passou pela abertura.

Sophie foi atrás. Craig estendeu o braço para trás, fechou a porta do closet, depois a portinhola. Tateando no escuro, achou o interrup­tor e acendeu a luz, uma lâmpada pendia de uma viga do telhado.

Estavam em um sótão. Sophie viu um grande sofá antigo rasga­do, o forro escapando de buracos no estofamento. No chão havia uma pilha de álbuns de fotografia embolorados. Várias caixas de papelão e caixas de chá que Craig havia encontrado em outras visi­tas continham os boletins escolares de sua mãe e romances de Enid Blyton, onde estava escrito com letra infantil: “Isto pertence a Miranda Oxenford 9 anos e meio”, e uma coleção de feios cinzeiros, tigelas e vasos, presentes não desejados ou compras equivocadas. Sophie passou os dedos nas cordas de uma velha guitarra desafinada.

— Aqui você pode fumar — Craig disse. Maços vazios de cigarros de marcas esquecidas — Woodbines, Players, Senior Service —, o faziam pensar que tinha sido ali que sua mãe adquiriu o vício. Havia também papel de barras de chocolate. Talvez a gorducha tia Miranda fosse responsável por eles. E Craig supunha que a coleção de revistas como Men Only, Panty Play e Barely Legal pertencesse ao tio Kit.

Craig esperava que Sophie não visse as revistas, mas elas chama­ram sua atenção imediatamente.

— Bacana, veja, é pornô — ela disse, de repente mais animada do que estivera toda a manhã. Sophie sentou no sofá e começou a folhear as revistas.

Craig olhou para o outro lado. Tinha visto todas as revistas, mas estava pronto para negar isso. Pornografia era coisa de garoto e estri­tamente íntima. Mas Sophie estava lendo Hustler bem na sua frente, prestando atenção a cada página como se fosse fazer uma prova sobre o assunto.

Para distraí-la, ele disse: — Toda esta parte da casa era destinada aos laticínios quando isto era uma fazenda. Meu avô a transformou na cozinha, mas o telhado era alto demais, por isso ele pôs um teto e usou este espaço para depósito.

Ela nem ergueu os olhos da revista.

— Todas estas mulheres estão depiladas! — ela disse, embaraçando-o mais ainda. — Eca!

— Daqui pode-se ver a cozinha — ele insistiu. Craig deitou no chão e olhou pelo buraco largo entre as tábuas do assoalho e uma coluna de metal. Ele podia ver toda a cozinha: a porta do corredor, no fundo, a mesa comprida de pinho, os armários dos dois lados, as portas laterais que davam para a sala de jantar e para a lavanderia, o fogão com uma porta de cada lado, uma que dava para uma grande despensa e a outra para o vestíbulo, onde eram guardadas as botas, e a entrada lateral. A irmã de Craig, Caroline, estava dando comida para seus ratos, Miranda servia o vinho, Ned lia o Guardian, Lori refogava um grande salmão em uma frigideira longa de peixe.

— Acho que a tia Miranda está ficando bêbada — Craig disse.

Isso captou o interesse de Sophie. Ela largou a revista e deitou ao lado de Craig para espiar.

— Eles não podem nos ver? — Sophie perguntou em voz baixa.

Craig olhou atentamente para ela. O cabelo puxado para trás da orelha, a pele do rosto incrivelmente macia.

— Quando estiver na cozinha, dê uma olhada — ele disse. — Vai ver uma lâmpada pendendo do teto bem atrás da abertura, o que dificulta a visibilidade de quem está lá embaixo, mesmo para quem sabe da existência deste lugar.

— Então quer dizer que ninguém sabe que você está aqui

— Bem, todos sabem que há um sótão. E cuidado com Nellie. Ela olha para cima e inclina a cabeça para o lado, atenta ao menor movimento aqui em cima. Ela sabe quando tem alguém aqui e quem olhar para ela vai saber também.

— Mesmo assim, é legal. Veja o meu pai. Finge ler o jornal mas está namorando Miranda com os olhos. Aaargh! — Sophie virou de lado, apoiada no cotovelo e tirou um maço de cigarros do bolso do jeans. — Quer um?

Craig balançou a cabeça.

— Quem encara seriamente o futebol não pode fumar.

— Como pode encarar seriamente o futebol? É só um jogo.

— Os esportes são mais divertidos para quem é bom neles.

— Tem razão. — Soltou uma baforada de fumaça. Craig olhou para os lábios dela. — Provavelmente por isso não gosto de esportes. Não tenho muito controle motor.

Craig sentiu que tinha vencido uma espécie de barreira. Sophie estava falando com ele, finalmente. E o que ela dizia era inteligente. — Em que você é boa? — ele perguntou.

— Não em muita coisa.

Depois de hesitar por um momento, ele disse: — Certa vez, em uma festa, uma garota me disse que eu beijo muito bem. — Craig prendeu a respiração. Precisava quebrar o gelo de algum modo, mas seria muito cedo?

— É mesmo? — Ela parecia academicamente interessada. — O que você faz?

— Posso mostrar.

Craig viu o pânico no rosto dela.

— De jeito nenhum! — Sophie ergueu a mão como que para afastá-lo, embora ele não tivesse feito nenhum movimento.

Craig compreendeu que fora muito impetuoso. Merecia uns pontapés.

— Não se preocupe — ele disse, sorrindo para esconder o desapontamento. — Não vou fazer nada que você não queira, prometo.

— É que eu tenho namorado.

— Ah, compreendo.

— Sim. Mas não conte para ninguém.

— Como ele é?

— Meu namorado? Ele estuda. — Virou o rosto semifechando os olhos por causa da fumaça.

— Está na Universidade de Glasgow?

— Está. Tem dezenove anos. Pensa que eu tenho dezessete.

Craig não sabia se devia acreditar.

— Que curso ele faz?

— Sei lá? Alguma coisa entediante. Direito, eu acho.

Craig olhou pela abertura outra vez. Lori salpicava salsa picada em uma vasilha com batatas. De repente ele sentiu fome.

— O almoço está pronto — ele disse. — Vou mostrar a outra saída.

Foi até os fundos do sótão e abriu uma janela larga. Havia uma saliência estreita a quatro metros acima do pátio. Em cima da jane­la, na parte externa do prédio, havia uma roldana por meio da qual o sofá e a arca tinham chegado ao sótão. Sophie disse: — Não posso pular daqui.

— Não precisa. — Craig tirou a neve da saliência, andou por ela até o fim e desceu sessenta centímetros para o telhado do corredor. — Fácil.

Ele voltou pela saliência, para fechar a janela, e voltou para o lado de Sophie. Seguiram cautelosamente pelo telhado escorregadio. Craig deitou de bruços, saiu da saliência e saltou a pequena distância até o chão.

Sophie fez o mesmo. Quando estava deitada no telhado com as pernas dependuradas, Craig a segurou pela cintura com as duas mãos e a pôs no chão. Ela era leve.

— Obrigada — ela disse. Parecia triunfante, como se tivesse passa­do por uma experiência difícil.

Não foi tão difícil assim, Craig pensou quando entraram na casa para almoçar. Talvez ela não seja tão confiante quanto quer parecer.

 

O Kremlin era uma visão deslumbrante. A neve cobria gárgulas e espirais, batentes de portas e beirais das janelas, destacando em branco a ornamentação vitoriana. Toni estacionou o carro e entrou. Tudo estava quieto. A maioria das pessoas tinha ido embora, temendo ficar presas na neve — não que precisassem de muita desculpa para sair cedo na véspera de Natal.

Ela se sentia magoada e vulnerável. Acabara de sofrer um impac­to emocional. Porém tinha de tirar da cabeça os pensamentos de amor. Mais tarde, talvez, quando estivesse na cama, pensaria no que Stanley disse e fez, mas agora tinha muito o que fazer.

Tinha conseguido um sucesso triunfante — por isso Stanley a abraçou — porém, mesmo assim, algo a preocupava. As palavras dele ecoavam em sua mente: Se perdermos outro coelho, estaremos encren­cados outra vez. Era verdade. Outro incidente igual traria a história de volta, mas dez vezes pior. Nenhum trabalho de relações públicas poderia abafar o caso. Não haverá mais nenhum incidente de seguran­ça no laboratório, Toni tinha dito. Eu me encarrego disso. Agora pre­cisava fazer com que suas palavras se tornassem realidade.

Foi para sua sala. A única ameaça que podia imaginar era a dos ativistas dos direitos dos animais. A morte de Michael Ross podia inspirar outros atentados para “libertar” animais de laboratório. Ele talvez estivesse trabalhando com ativistas que tinham outros planos. Podia até ter fornecido a eles informações sigilosas que os ajudariam a vencer a segurança do Kremlin.

Toni ligou para a central de polícia de Inverburn e pediu para falar com o detetive superintendente Frank Hackett, seu ex.

— Conseguiu se safar, não foi? — ele disse. — Sorte dos diabos. Você devia ter sido crucificada.

— Nós dissemos a verdade. A honestidade é a melhor defesa, você sabe disso.

— Você não me disse a verdade. Um hamster chamado Fofinho! Você me fez parecer um idiota.

— Foi maldade, admito. Mas você não devia ter vazado a história para Carl. Podemos dizer que estamos quites?

— O que você quer?

— Você acha que mais alguém estava envolvido com Mark Ross no roubo do coelho?

— Não tenho opinião a respeito.

— Eu dei a você a agenda de endereços dele. Suponho que tenha verificado seus contatos. O que me diz da Animais Livres, por exem­plo? São manifestantes pacíficos ou podem fazer alguma coisa mais perigosa?

— Minha investigação ainda não está completa.

— Ora, vamos, Frank. Estou só pedindo alguma orientação. Até que ponto devo me preocupar com a possibilidade de outro incidente?

— Lamento, não posso ajudá-la.

— Frank, nós já tivemos um relacionamento. Ficamos juntos por oito anos. Tem de ser deste modo?

— Está usando nosso passado em comum para me convencer a dar informação confidencial?

— Não. Dane-se a informação. Posso conseguir em outro lugar. Só não quero ser tratada como inimiga por alguém que já amei. Há alguma lei que diga que não podemos ser gentis um com o outro?

Um estalo e o sinal de discar. Frank tinha desligado.

Toni suspirou. Será que ele ia ceder algum dia? Toni desejava que ele arrumasse outra namorada. Talvez assim se acalmasse.

Ligou para Odette Cressy, sua amiga na Scotland Yard.

— Eu vi você no noticiário — Odette disse.

— Que tal?

— Muito séria — Odette riu. — Como se você nunca tivesse ido a uma boate com um vestido transparente. Mas eu sei das coisas.

— Só não conte para ninguém.

— Seja como for, seu incidente com o Madoba-2 parece não ter conexão com... meu tipo de interesse.

Ela queria dizer terrorismo.

— Ótimo — Toni disse. — Mas diga-me uma coisa, falando em tese.

— É claro.

— Terroristas podem conseguir amostras de um vírus como o Ebola com relativa facilidade em um hospital na África Central, onde a única segurança é um tira de dezenove anos aboletado no saguão, fumando um cigarro. Então por que se lançariam na missão extrema­mente difícil de roubar um laboratório de segurança máxima?

— Por duas razões. Primeira, eles simplesmente não sabem como é fácil conseguir o Ebola na África. Segunda, o Madoba-2 não é igual ao Ebola. É pior.

Toni lembrou do que Stanley tinha dito e estremeceu.

— Índice de sobrevivência Zero.

— Exatamente.

— E o que me diz da Animais Livres? Você os investigou?

— Claro. São inofensivos. O pior que podem fazer é bloquear uma rua.

— Boa notícia. Só quero ter certeza de que não haverá outro inci­dente desse tipo.

— Na minha opinião, é pouco provável.

— Obrigada, Odette. Você é uma amiga e isso é uma coisa rara.

— Você parece um pouco desanimada.

— Bem, meu ex está sendo difícil.

— É só isso? Você está acostumada com ele. Aconteceu alguma coisa com o professor?

Toni não podia enganar Odette, nem mesmo pelo telefone.

— Ele me disse que considera a família a coisa mais importante do mundo e que jamais faria algo para perturbá-la.

— Filho-da-puta.

— Quando você encontrar um homem que não seja um filho-da-puta, pergunte se ele tem um irmão.

— O que você vai fazer no Natal?

— Vou a um spa. Massagens, tratamento de pele, manicure, lon­gas caminhadas.

— Sozinha?

Toni sorriu.

— É muita bondade sua se preocupar comigo, mas não estou tão triste assim.

— Com quem você vai?

— Uma porção de gente. Bonnie Grant, uma velha amiga, colega da universidade, as únicas duas mulheres da faculdade de enge­nharia. Ela se divorciou recentemente. Charles e Damien, você conhece. E dois casais que você não conhece.

— Os rapazes vão animar você. Os gays são muito divertidos.

— Tem razão. — Quando Charlie e Damien ficavam à vontade, podiam fazer Toni rir até as lágrimas. — E você?

— Não sei ainda. Sabe como detesto planejar com antecedência.

— Muito bem, divirta-se com a espontaneidade.

— Feliz Natal.

Desligaram e Toni chamou Steve Tremlett, o supervisor da segu­rança.

Toni tinha se arriscado com Steve. Ele era amigo de Ronnie Sutherland, o ex-chefe de segurança que havia conspirado com Kit Oxenford. Não havia nenhuma evidência de que Steve soubesse da fraude. Mas Toni temia que ficasse ressentido por ela ter despedido seu amigo. Resolveu dar a Steve o benefício da dúvida e o fez supervisor. Steve recompensou sua confiança com lealdade e eficiência.

Ele chegou em menos de um minuto. Era um homem baixinho e aprumado, de trinta e cinco anos, o cabelo com calvície incipiente cortado no estilo brutalmente curto da moda. Ele trazia uma pasta de papelão. Toni apontou para uma cadeira e ele sentou.

— A polícia não acha que Ross estava trabalhando com outras pessoas — ela disse.

— Eu sempre o considerei um lobo solitário.

— Mesmo assim, precisamos isolar muito bem o local esta noite.

— Sem problema.

— Vamos nos certificar disso. Você tem a escala de serviço de hoje?

Steve deu a ela uma folha de papel. Normalmente havia três guardas de segurança de serviço durante a noite, nos fins de semana e feriados. Um deles ficava na guarita do portão, outro na recepção e o terceiro na sala de controle, vigiando os monitores. Se algum deles precisasse deixar seu posto, tinham extensões da rede geral de telefones sem fio. De hora em hora, o guarda da recepção dava uma volta pelo prédio principal e o do portão fazia a volta no lado de fora. A princípio, Toni achou que três seriam muito pouco para uma operação de alta segurança, mas a tecnologia sofisticada era a verdadeira segurança e os seres humanos, meros reforços. Mesmo assim, ela dobrou a vigilância para os feriados de Natal, de modo que have­ria dois guardas em cada posto e a ronda seria feita de meia em meia hora.

— Vejo que está trabalhando esta noite.

— Preciso de horas extras.

— Muito bem. — Os guardas de segurança regularmente trabalha­vam em turnos de doze horas e não era incomum fazerem turnos de vinte e quatro horas, quando estavam com falta de pessoal ou quan­do, como nesta noite, havia uma emergência. — Deixe-me ver sua lis­ta de chamadas de urgência.

Steve deu a ela uma folha plastificada que tirou da pasta. Era uma lista dos números para as quais ele devia ligar em caso de incên­dio, inundação, falta de energia, falha no computador, falha no sis­tema de comunicação telefônica e outros problemas.

Toni disse: — Quero que telefone para cada um desses números na próxima hora. Apenas pergunte se estarão de plantão nos feriados de Natal.

— Tudo bem.

Ela devolveu a folha.

— Não hesite em chamar a polícia de Inverburn se estiver preocupado com alguma coisa, por menor que seja.

Ele assentiu, inclinando a cabeça.

— Meu cunhado Jack está de serviço esta noite. Minha mulher levou as crianças para passar o Natal na casa deles.

— Quantas pessoas estarão na central de polícia esta noite, você sabe?

— No turno da noite? Um inspetor, dois sargentos e seis policiais. E haverá um superintendente de plantão.

Era um pequeno complemento, mas não podiam fazer mais nada, uma vez que os bares estavam fechados e os bêbados já em casa.

— Por acaso você sabe quem é o superintendente?

— Sei. É o seu Frank.

Toni não fez nenhum comentário.

— Estarei com meu celular ligado dia e noite e não espero estar fora de área em nenhum momento. Quero que você me telefone assim que acontecer alguma coisa fora do comum, independente da hora, certo?

— É claro.

— Não me importo de ser acordada no meio da noite. — Estaria dormindo sozinha, mas não disse isso para Steve, que podia considerar uma confidência embaraçosa.

— Eu compreendo — ele disse. E talvez compreendesse mesmo.

— Isso é tudo. Vou embora dentro de alguns minutos. — Consultou o relógio de pulso, eram quase quatro horas. — Feliz Natal, Steve.

— Para você também.

Steve saiu. A noite chegava e Toni viu o próprio reflexo na janela. Parecia amassada e cansada. Desligou o computador e trancou o arquivo.

Tinha de ir embora. Precisava voltar para casa, trocar de roupa e ir para o spa, a quinze quilômetros dali. Quanto mais cedo pegasse a estrada, melhor. A previsão era de que o tempo não ia piorar, mas previsões podem falhar.

Relutava em deixar o Kremlin. A segurança do prédio era seu trabalho. Tomara todas as precauções imagináveis, mas detestava delegar responsabilidades.

Toni se obrigou a levantar da cadeira. Seu trabalho era de diretora das instalações, não de guarda de segurança. Se tinha feito todo o possível para salvaguardar o prédio, podia ir embora. Do contrá­rio, era incompetente e devia pedir demissão.

Além disso, ela sabia a verdadeira razão por que queria ficar. Assim que desse as costas ao trabalho, teria de pensar em Stanley.

Pôs no ombro a alça da bolsa a tiracolo e saiu do prédio.

A neve caía inclemente.

 

Kit estava furioso com o arranjo das acomodações.

Sentou-se na sala de estar com seu pai, seu sobrinho Tom, seu cunhado Hugo e o noivo de Miranda, Ned. Mamma Marta olhava para ele do seu retrato na parede. Kit sempre achou que ela parecia impaciente naquele quadro, como se mal pudesse esperar para tirar o vestido de baile, pôr o avental e começar a fazer lasanha.

As mulheres da família preparavam o jantar de Natal do dia seguinte e os adolescentes estavam no celeiro. Os homens assistiam a um filme na TV. John Wayne, o herói, era um valentão intoleran­te, um pouco como Harry Mac, Kit pensou. Estava tenso demais, achando difícil acompanhar o enredo.

Ele havia dito especialmente a Miranda que precisava ficar no chalé. Ela foi tão sentimental com Kit, praticamente implorou para que ele se juntasse à família no Natal. Mas depois que ele concor­dou, Miranda não atendeu à sua única condição. Típico de mulher.

Mas seu velho pai não era sentimental. Seu coração era como o de um policial de Glasgow em uma noite de sábado. Evidentemente seu pai tinha convencido Miranda, com a ajuda de Olga. Kit pensou que suas irmãs deviam se chamar Goneril e Regan, como as predadoras filhas do rei Lear.

Kit precisava sair de Steepfall naquela noite e voltar na manhã seguinte, sem que ninguém soubesse que tinha saído. Se estivesse no chalé seria mais fácil. Podia fingir que ia para a cama, apagaria a luz e sairia silenciosamente. Seu carro já estava na garagem da frente, longe da casa, e ninguém ouviria o motor. Ele estaria de volta de manhã, antes que acordassem, e poderia voltar para o chalé e ir ino­centemente para a cama.

Agora seria muito mais difícil. Seu quarto ficava na parte antiga da casa principal, onde a madeira estalava, perto do quarto de Olga e Hugo. Teria de esperar que todos estivessem dormindo. Quando a casa estivesse em silêncio, teria de sair do quarto na ponta dos pés, descer a escada e sair da casa sem um ruído. Se alguém abrisse uma porta — Olga, por exemplo, atravessando o corredor para ir ao banheiro — o que ele diria? “Vou só tomar um pouco de ar fresco.” No meio da noite, na neve? E o que faria de manhã? Era quase cer­to que alguém o veria entrar. Teria de dizer que saíra para uma cami­nhada ou um passeio de carro. E então, mais tarde, quando a polícia estivesse fazendo perguntas, será que alguém se lembraria do seu estranho passeio matinal?

Kit tentou afastar essa preocupação da mente. Tinha um proble­ma mais imediato. Precisava roubar o cartão inteligente que seu pai usava para entrar no BSL/4.

Ele podia ter comprado quantos cartões quisesse de um fornece­dor da segurança, mas cartões inteligentes vinham com um código específico garantindo que funcionariam apenas em um lugar. Cartões comprados de um fornecedor teriam o código errado para o Kremlin.

Nigel Buchanan o tinha interrogado persistentemente sobre o roubo do cartão.

— Onde seu pai guarda o cartão?

— Geralmente no bolso do paletó.

— E se não estiver lá?

— Na carteira ou na pasta, eu espero.

— Como você pode pegar o cartão sem ser visto?

— É uma casa grande. Vou roubar quando ele estiver tomando banho ou sair para caminhar.

— Ele não vai dar pela falta do cartão?

— Não até precisar dele, o que só acontecerá na sexta-feira. Mas a essa altura eu já terei devolvido.

— Tem certeza?

Nesse ponto Elton os interrompeu. Com seu forte sotaque londrino, ele disse: — Que merda, Nigel! Estamos contando com Kit para entrar no laboratório de segurança máxima, que é supervigiado. Se ele não puder roubar o cartão do seu maldito pai, estamos fodidos.

O cartão de Stanley teria o código correto mas o chip tinha os dados da sua impressão digital, não os de Kit. Porém, ele tinha pensado em um modo de resolver isso.

O filme se aproximava do clímax: John Wayne ia começar a matar gente. Era uma boa hora para um movimento clandestino. Kit se levantou, resmungou alguma coisa sobre ir ao banheiro e saiu da sala. No corredor, olhou para a cozinha. Olga recheava um peru grande e Miranda lavava couves-de-bruxelas. Em uma das paredes havia duas portas, uma para a lavanderia, a outra para a sala de jan­tar. Nesse momento Lori saiu da lavanderia com uma toalha de mesa dobrada nas mãos e a levou para a sala de jantar.

Kit entrou no escritório do pai e fechou a porta.

O lugar mais provável para encontrar o cartão seria um dos bol­sos do paletó, como tinha dito a Nigel. Esperava encontrar o paletó no gancho atrás da porta ou no espaldar da cadeira, mas viu imedia­tamente que não estava ali.

Resolveu verificar outras possibilidades. Era arriscado — alguém podia entrar e o que ele ia dizer? Mas tinha de arriscar. A alternati­va era não roubar, era não ganhar trezentas mil libras, era não ir para Lucca — e, o pior de tudo, a dívida com Harry Mac não seria paga. Lembrou o que Daisy tinha feito com ele naquela manhã e es­tremeceu.

A pasta do seu pai estava no chão, ao lado da mesa. Kit a revistou rapidamente. Continha um arquivo de gráficos, todos sem sen­tido para Kit, um exemplar do Times daquele dia com as palavras cruzadas pela metade, meia barra de chocolate e um pequeno caderno com capa de couro, onde Stanley anotava o que tinha de fazer. Pessoas velhas sempre fazem listas, Kit tinha notado. Por que tinham tanto medo de se esquecer de alguma coisa?

A mesa estava em ordem e Kit não viu nenhum cartão ou alguma coisa dentro da qual pudesse estar, apenas uma pequena pilha de pastas, um suporte para lápis e um livro intitulado Sétimo relatório do Comitê Internacional sobre Taxonomia de Vírus.

Kit começou a abrir as gavetas, com a respiração e o coração ace­lerados. Mas, se fosse apanhado, o que eles podiam fazer? Chamar a polícia? Pensou então que não tinha nada a perder e continuou a busca com mãos trêmulas.

Havia trinta anos que seu pai usava aquela mesa e era enorme o acúmulo de coisas sem utilidade. Chaveiros de lembranças, canetas sem tinta, uma calculadora antiga, uma lista com códigos de telefone antigos, vidros de tinta, manuais de softwares obsoletos — havia quan­to tempo não se usava mais o PlanPerfect? Porém, nada do cartão.

Kit saiu do escritório. Ninguém o viu entrar e ninguém o viu sair.

Ele subiu a escada rapidamente. Seu pai não era desordeiro e raramente perdia coisas. Não teria deixado descuidadamente sua carteira em algum lugar absurdo como o armário das botas. A única possibilidade que faltava era seu quarto.

Kit entrou e fechou a porta.

A presença de sua mãe desaparecia gradualmente. Na última vez em que Kit esteve no quarto, as coisas dela estavam ainda por toda parte, um bloco de papel de cartas, um conjunto de escovas de pra­ta que tinham pertencido à mãe de Marta, uma foto de Stanley numa moldura antiga. Tudo isso tinha desaparecido. Mas as cortinas e o estofamento dos móveis eram os mesmos, azul e branco, típico do gosto teatral de sua mãe.

De cada lado da cama havia um criado-mudo vitoriano, de mogno pesado. Seu pai sempre dormia do lado direito da grande cama de casal. Kit abriu as gavetas naquele lado. Encontrou uma lanterna, provavelmente para o caso de falta de luz, e um livro de Proust, provavelmente para insônia. Examinou as gavetas do lado de sua mãe, mas estavam vazias.

A suíte tinha três cômodos: o quarto de dormir, o quarto de ves­tir e o banheiro. Kit foi até o quarto de vestir, um quadrado com closets, alguns pintados de branco, outros com portas de espelhos. Lá fora era quase noite, mas ainda dava para ver bem, e Kit não acen­deu a luz.

Abriu a porta do armário de ternos do pai. Em um cabide estava o paletó do terno que Stanley usava naquele dia. Kit tirou do bol­so do paletó uma carteira grande e negra de couro, velha e muito usada. Continha um pequeno maço de notas e uma porção de cartões plastificados. Um deles era o cartão de acesso ao Kremlin.

— Bingo — Kit disse em voz baixa.

A porta do quarto se abriu.

Kit não tinha fechado a porta do quarto de vestir e assim pôde ver sua irmã Miranda entrar no quarto, carregando um cesto de plástico cor de laranja, com roupa lavada.

Kit estava no campo de visão de Miranda, parado na porta aber­ta do closet da suíte, mas ela não o viu imediatamente à luz do anoi­tecer e ele se escondeu rapidamente atrás da porta do quarto de ves­tir. Se espiasse pelo lado da porta, ele podia vê-la refletida no grande espelho de parede do quarto de dormir.

Ela acendeu a luz e começou a tirar a roupa da cama. Obviamente, Miranda e Olga estavam se encarregando de algumas das tarefas de Lori. Kit resolveu esperar.

Por um momento foi acometido por um sentimento de autodesprezo. Ali estava ele, agindo como um intruso na casa da própria família. Estava roubando do pai e se escondendo da irmã. Como tinha chegado a isso?

Kit sabia a resposta. Seu pai era o culpado. No momento em que ele precisou de ajuda, Stanley disse não. Essa era a causa de tudo.

Muito bem, ele deixaria todos para trás. Começaria uma nova vida em um outro país. Desapareceria na rotina da vida da pequena cidade de Lucca, comendo tomates e macarrão, tomando vinho toscano, jogando cartas com apostas modestas, à noite. Seria como uma figura de fundo em um grande quadro, o homem que passa sem olhar para o mártir agonizante. Estaria em paz.

Miranda começou a arrumar a cama com lençóis limpos e naquele momento Hugo entrou no quarto.

Ele vestia agora um pulôver vermelho, calça de veludo verde e parecia um duende. Hugo fechou a porta. Kit franziu a testa. Hugo teria segredos para discutir com a irmã de sua mulher?

Miranda disse cautelosamente: — Hugo, o que você quer?

Com um sorriso cúmplice, Hugo disse: — Pensei em ajudar você. — Foi para o outro lado da cama e começou a prender o lençol.

Kit estava atrás da porta do quarto de vestir com a carteira do pai em uma das mãos e o cartão na outra, mas não podia se mover sem arriscar ser descoberto.

Miranda jogou uma fronha limpa para ele.

— Aí está — ela disse.

Hugo pôs a fronha no travesseiro. Juntos estenderam a colcha.

— Parece que não a vejo há séculos — Hugo disse. — Senti sua falta.

— Não diga bobagem — Miranda disse, friamente.

Kit estava intrigado mas fascinado.

O que estava acontecendo ali?

Miranda passou a mão na colcha para alisar. Hugo passou para o lado dela. Miranda pegou o cesto de roupa e pôs na frente do cor­po como um escudo.

Com um sorriso maroto, Hugo disse: — Que tal um beijo, pelos velhos tempos?

Kit ficou atônito. De que velhos tempos ele estaria falando? Hugo estava casado com Olga havia quase vinte anos. Ele a teria beijado quando Miranda tinha catorze anos?

— Pare com isso agora mesmo — Miranda disse com firmeza.

Hugo agarrou o cesto de roupa e o empurrou. Miranda bateu na cama com a parte de trás das pernas. Involuntariamente ela sentou. Soltou o cesto e usou as mãos para se equilibrar. Hugo jogou o ces­to longe, inclinou-se sobre ela e a empurrou para trás, ajoelhando na cama com uma perna de cada lado de Miranda. Kit estava perplexo. Sempre achou que Hugo era uma espécie de Lotário porque ele paquerava todas as mulheres atraentes, mas nunca tinha imaginado isso com Miranda.

Hugo puxou para cima a saia pregueada de Miranda, revelando o quadril e as coxas pesadas. Ela vestia calcinhas pretas e uma cinta-liga e para Kit isso foi a revelação mais surpreendente de sua vida.

— Saia de cima de mim agora mesmo! — ela disse.

Kit não sabia o que fazer. Não era da sua conta, por isso achava que não devia interferir, mas não podia ficar ali parado, assistindo. Mesmo que virasse de costas, ouviria o que estava acontecendo. Seria possível passar por eles enquanto estavam lutando? Não, o quarto era muito pequeno. Lembrou da portinhola no fundo do closet que ia dar no sótão, mas não podia chegar lá sem se arriscar a ser visto. No fim ele apenas ficou ali, paralisado, assistindo.

— Só uma rapidinha — Hugo disse. — Ninguém vai saber.

Miranda levou o braço para trás e esbofeteou com força o rosto dele. Depois, ergueu o joelho e o atingiu na virilha. Girou o corpo, empurrou Hugo para trás e ficou de pé num salto.

Hugo continuou deitado na cama.

— Isso doeu — ele protestou.

— Ótimo — Miranda disse. — Agora escute. Nunca mais faça isso.

Hugo fechou o zíper da calça e se levantou.

— Por que não? O que você vai fazer? Contar para o Ned?

— Eu devia ter contado, mas não tive coragem. Dormi com você uma vez quando estava solitária e deprimida e me arrependi amargamente para toda a vida.

Então, era isso, Kit pensou: Miranda tinha dormido com o marido de Olga. Ficou chocado. O comportamento de Hugo não o surpreendia. Comer a irmã da própria mulher era o tipo de cenário confortável que atraía muitos homens. Mas Miranda era uma moralista severa. Kit garantiria que ela nunca dormiria com o marido de ninguém, muito menos com o da sua irmã.

Miranda continuou:— Foi a coisa mais vergonhosa que fiz na vida e não quero que Ned descubra jamais.

— Então, está ameaçando fazer o quê? Contar para Olga?

— Ela se divorciaria de você e nunca mais falaria comigo. Nossa família implodiria.

Podia não ser tão grave, Kit pensou, mas Miranda estava sempre ansiosa para manter a união da família.

— Isso a deixa um pouco indefesa, não? — Hugo disse, satisfeito. — Uma vez que não podemos ser inimigos, por que não me beija gentilmente e ficamos amigos?

— Porque você me dá nojo — ela disse com voz gelada.

— Ah, muito bem. — Hugo parecia resignado, mas não envergo­nhado. — Pois então, me odeie. Continuo adorando você. — Com o sorriso mais encantador ele saiu do quarto, mancando um pouco.

Quando a porta bateu, Miranda disse: — Filho-da-puta.

Kit nunca a ouvira xingar daquele modo.

Miranda apanhou o cesto de roupa e então, em vez de sair, andou na direção dele. Ela devia estar trazendo toalhas limpas para o banheiro, Kit pensou. Não tinha tempo de sair do lugar. Com três passos ela chegou à porta do quarto de vestir e acendeu a luz.

Kit só teve tempo de guardar o cartão no bolso da calça. Um segundo depois ela o viu e gritou, assustada.

— Kit! O que está fazendo aqui? Me pregou um susto! — Ficou pálida e acrescentou: — Você deve ter ouvido tudo.

— Desculpe. — Ele deu de ombros. — Não tive intenção.

A palidez se transformou em rubor intenso.

— Não vai contar, vai?

— Claro que não.

— Falo sério, Kit. Não deve contar nunca. Seria horrível. Podia arruinar dois casamentos.

— Eu sei, eu sei.

Ela viu a carteira na mão dele.

— O que está arrumando agora?

Ele hesitou, então teve uma inspiração.

— Eu precisava de dinheiro. — Mostrou as notas na carteira.

— Oh, Kit. — Miranda estava constrangida, não zangada. — Por que você sempre quer dinheiro fácil?

Ele engoliu uma resposta indignada. Miranda acreditou na sua história, era isso que importava. Ficou calado e tentou parecer envergonhado.

Ela continuou: — Olga sempre diz que você prefere roubar um penny a ganhar uma libra honestamente.

— Tudo bem, não precisa tripudiar.

— Você não devia roubar da carteira de papai. É vergonhoso.

— Estou um pouco desesperado.

— Posso dar dinheiro para você. — Ela largou o cesto de roupa. Sua saia tinha dois bolsos. Tirou de um deles um maço de notas amassadas, separou duas de cinqüenta, alisou-as e as deu para Kit. — É só me pedir. Nunca vou negar.

— Obrigado, Mandy — ele disse, usando o apelido de infância de Miranda.

— Mas você não deve nunca roubar de papai.

— Tudo bem.

— E, pelo amor de Deus, não conte a ninguém sobre mim e Hugo.

— Prometo — ele disse.

 

Toni dormia profundamente havia uma hora quando o desperta­dor a acordou.

Viu que ainda estava vestida. O cansaço era tanto que nem tira­ra o casaco e os sapatos. Mas o sono a tinha descansado. Estava acos­tumada a dormir em horários estranhos desde o tempo em que tra­balhava na polícia e podia dormir em qualquer lugar e acordar ime­diatamente.

Morava em um andar da casa vitoriana. Tinha um quarto de dormir, sala de estar, uma pequena cozinha e um banheiro. Inverburn tinha uma estação de barcas, mas dali ela não avistava o mar. Não gostava muito da sua casa. Foi para onde fugiu quando acabou o relacionamento com Frank e não tinha lembranças felizes. Morava ali havia dois anos, mas ainda a considerava provisória.

Toni levantou da cama. Tirou o tailleur que estava usando por dois dias e uma noite e o jogou no cesto de roupa suja. Com um roupão sobre a roupa de baixo, movimentando-se rapidamente pelo apartamento, arrumou uma mala para cinco dias no spa. Tinha planejado fazer a mala na noite anterior e sair ao meio-dia, portanto estava com um pouco de pressa.

Mal podia esperar para chegar ao spa. Era justamente o que pre­cisava. Sua angústia desapareceria com a massagem, a eliminação das toxinas pelo suor da sauna, pintaria as unhas, cortaria o cabelo e cur­varia os cílios. O melhor de tudo, jogaria e contaria histórias com um grupo de velhos amigos e se esqueceria de suas preocupações.

A essa altura sua mãe já devia estar na casa de Bella. Era uma mulher inteligente, que aos poucos perdia a razão. Fora professora de matemática do ensino fundamental e sempre se dispôs a ajudar Toni nos estudos, mesmo no seu último ano do curso de engenharia. Agora não era capaz sequer de conferir o troco quando fazia compras. Toni a amava intensamente e via com extrema tristeza aquele declínio.

Bella era um pouco desmazelada. Limpava a casa quando tinha vontade, cozinhava quando tinha fome e às vezes esquecia de mandar os filhos para a escola. Seu marido, Bernie, era cabeleireiro, mas trabalhava irregularmente por causa de uma vaga doença respirató­ria. “O médico recomendou mais quatro semanas de repouso”, ele dizia, geralmente quando alguém perguntava: “Como vai?”

Toni esperava que sua mãe ficasse bem na casa de Bella. Bella era descuidada mas gentil e sua mãe nunca parecia se importar com o seu desleixo. Sempre parecia feliz quando visitava a casa de Glasgow açoitada pelo vento e comia batatas fritas semicruas com os netos. Mas estava agora nos primeiros estágios da senilidade. Seria filosófi­ca como sempre em relação ao desleixo de Bella? Bella conseguiria lidar com a crescente instabilidade da mãe?

Certa vez, quando Toni deixou escapar uma observação irritada sobre Bella, sua mãe disse secamente: “Ela não se esforça tanto como você, por isso é mais feliz.” O discurso da mãe vinha se tornando pouco diplomático, mas suas observações podiam ser dolorosamen­te corretas.

Depois de fazer a mala, lavou a cabeça e tomou um banho para aliviar a tensão dos dois últimos dias. Adormeceu na banheira. Acordou assustada, mas o sono fora apenas de um minuto — a água ainda estava quente. Toni saiu da banheira e se enxugou vigorosamente.

Na frente do espelho de corpo inteiro, Toni pensou, Tenho tudo que tinha vinte anos atrás, exceto as três polegadas a menos. Uma das coisas boas de Frank, pelo menos no começo, era o prazer que ele sen­tia com seu corpo. “Você tem belos seios”, ele dizia. Toni os achava grandes demais para seu corpo, mas Frank os adorava. “Nunca vi uma xoxota dessa cor”, ele disse certa vez, quando estava entre as per­nas dela. “Parece um biscoito de gengibre.” Ela imaginou quando alguém iria se maravilhar outra vez com a cor dos seus pêlos púbicos.

Vestiu calça jeans bege e um suéter verde-escuro. Quando fecha­va a mala, o telefone tocou. Era sua irmã.

— Oi, Bella — Toni disse. — Como está mamãe?

— Ela não está aqui.

— O quê? Você devia tê-la apanhado há uma hora!

— Eu sei, mas Bernie estava com o carro e eu não pude ir.

— E ainda não saiu? — Toni olhou para o relógio. Eram cinco e meia da tarde. Ela imaginou a mãe na casa de repouso, sentada no saguão, de casaco e chapéu, a mala ao lado da cadeira, hora após hora, e ficou furiosa. — Onde você está com a cabeça?

— O problema é que o tempo está péssimo.

— Está nevando em toda a Escócia, mas não demais.

— Bem, Bernie não quer que eu dirija noventa quilômetros no escuro.

— Não precisaria dirigir no escuro se a tivesse apanhado quando prometeu.

— Meu Deus, você está irritada. Eu sabia que isso ia acontecer.

— Não estou irritada... — Toni fez uma pausa. Sua irmã já tinha usado esse truque antes. Logo elas estariam falando sobre Toni ter de controlar sua irritação, em vez de sobre o fato de Bella ter quebrado uma promessa. — Não se importe com o que estou sentindo — Toni disse. — Você não acha que mamãe vai ficar desapontada?

— Claro que vai, mas não posso fazer nada com relação ao tempo.

— O que você vai fazer?

— Não posso fazer nada.

— Então vai deixar que ela passe o Natal na casa de repouso?

— A não ser que ela vá para sua casa. Você está apenas a dezesseis quilômetros de lá.

— Bella, fiz reserva em um spa. Sete amigos me esperam para passar cinco dias. Paguei um depósito de quatrocentas libras e estou precisando muito de um descanso.

— Isso me parece um pouco de egoísmo.

— Espere um pouco. Eu sempre trouxe mamãe para cá no Natal e eu sou a egoísta?

— Você não sabe como é difícil com três filhos e o marido doente demais para trabalhar. Você tem dinheiro e ninguém mais com quem se preocupar.

E não sou bastante idiota para casar com um preguiçoso e ter três filhos com ele, Toni pensou, mas não disse.

— Então está me pedindo para cancelar minha programação do feriado, ir até a casa de repouso, pegar mamãe e tomar conta dela no Natal?

— Você resolve — Bella disse, em um tom de piedade. — Deve fazer o que sua consciência mandar.

— Obrigada pelo conselho, ajudou muito. — A consciência de Toni dizia para ficar com a mãe e Bella sabia que ela não ia deixar a mãe passar as festas na instituição, sozinha em um quarto, comendo peru sem gosto e legumes mornos na cantina ou recebendo um presente barato, embrulhado em papel vulgar, da administradora vesti­da de Papai Noel. Ela nem precisava pensar nisso. — Tudo bem, vou buscá-la agora.

— Só lamento que você não possa fazer isso com mais boa vonta­de — disse sua irmã.

— Ora, vá se foder, Bella — Toni disse e desligou o telefone.

Deprimida, ela telefonou para o spa, cancelou sua reserva e pediu para falar com uma pessoa do seu grupo. Depois de alguma demora, Charlie atendeu ao telefone, com seu sotaque de Lancashire.

— Onde você está? — ele perguntou. — Estamos todos na Jacuzzi. Está perdendo o melhor!

— Não posso ir — ela disse tristemente e explicou.

Charlie ficou ofendido.

— Não é justo. Você precisa de um descanso.

— Eu sei, mas não posso suportar a idéia de minha mãe sozinha naquele lugar enquanto os outros estão com as famílias.

— Além disso, você teve problemas no trabalho hoje.

— Sim, é muito triste, mas acho que a Oxenford Medical se saiu bem, a não ser que aconteça mais alguma coisa.

— Eu vi você na televisão.

— O que achou?

— Divina, mas gostei mais do seu chefe.

— Eu também gosto, mas ele tem três filhos adultos e não quer magoá-los, portanto acho que é uma causa perdida.

— Uau, você teve um dia péssimo, amiga.

— Desculpe por desapontar vocês todos.

— Não vai ser a mesma coisa sem você.

— Preciso desligar, Charlie. Acho melhor apanhar minha mãe o mais cedo possível. Feliz Natal. — Desligou o telefone e ficou olhan­do para ele. — Que vida miserável — disse em voz alta. — Que merda de vida miserável.

 

O relacionamento de Craig com Sophie progredia aos poucos.

Tinha passado toda a tarde com ela. Ganhou dela no pingue-pongue e perdeu no bilhar. Tinham concordado sobre música — os dois gostavam de bateria e baixo. Os dois liam livros de terror, mas ela preferia Stephen King e ele, Anne Rice. Ele falou sobre o casamento dos pais, tempestuoso, mas apaixonado, e ela falou sobre o divórcio rancoroso de Ned e Jennifer.

Mas Sophie não o encorajou de modo algum. Não tocou casualmente no braço dele, não olhou atentamente para seu rosto enquan­to ele falava, nem levou a conversa para assuntos como namorados e sexo. Em vez disso, falou de um mundo que o excluía, um mundo de boates — como tinha entrado com catorze anos — e de amigos que usavam drogas e de outros que tinham motocicletas.

A hora do jantar estava chegando e ele começava a se desesperar. Não queria passar cinco dias perseguindo Sophie para só ganhar um beijo no fim. Sua idéia era conquistá-la até o fim do primeiro dia e passar os feriados conhecendo-a realmente. Evidentemente isso não estava na agenda de Sophie. Craig precisava descobrir um atalho para o coração dela.

Aparentemente ela não o considerava digno de qualquer apreciação romântica. Toda aquela conversa sobre os mais velhos mos­trava que ele era só um garoto, embora fosse um ano e alguns meses mais velho do que ela. Precisava descobrir um meio de provar que era tão maduro e interessante quanto Sophie.

Não seria a primeira garota que ele beijava. Tinha namorado sua colega Caroline Stratton durante seis semanas, mas, embora ela fos­se bonitinha, Craig ficou entediado. Lindy Riley, a irmã gorducha de um parceiro de futebol, foi mais excitante e o levou a fazer muitas coisas que nunca tinha feito antes, mas depois ela se envolveu com o tecladista de uma banda de Glasgow. E havia várias outras garotas que Craig beijara uma ou duas vezes.

Mas isto era diferente. Depois de conhecer Sophie no aniversário de sua mãe, pensara nela todos os dias durante meses. Tinha colocado no papel de parede do computador uma das fotos tiradas por seu pai na festa, que mostrava Craig gesticulando e Sophie rindo. Ainda olhava para outras garotas, mas sempre as comparava com Sophie, achando uma pálida demais, outra muito gorda, outra ain­da comum demais e todas tediosamente convencionais. Não impor­tava que ela fosse difícil — estava acostumado com mulheres difíceis, sua mãe era uma delas. O problema era que alguma coisa em Sophie atingia direto seu coração.

Às seis horas da tarde, afundado no sofá do celeiro, Craig resol­veu que tinha assistido à MTV bastante por um dia.

— Quer ir até a casa? — ele perguntou.

— Para quê?

— Eles devem estar sentados em volta da mesa da cozinha.

— E daí?

Bem, Craig pensou, é gostoso. A cozinha é quente e a gente sen­te o cheiro do jantar sendo preparado, meu pai conta histórias engraçadas e a tia Miranda serve vinho e a gente se sente bem. Mas ele sabia que isso não ia impressionar Sophie, por isso disse: — Podem servir bebidas.

Ela se levantou.

— Ótimo. Eu quero um drinque.

Continue sonhando, Craig pensou. Seu avô não ia servir bebida forte para uma garota de catorze anos. Se estivessem tomando cham­panhe, ela teria direito a meia taça. Mas Craig não a desiludiu. Vestiram os casacos e saíram.

Estava completamente escuro, mas o pátio era iluminado pelas luzes externas. A neve rodopiava densa no ar e o chão estava escorre­gadio. Atravessaram o pátio na direção da porta dos fundos da casa. Antes de entrar, Craig olhou pelo canto da casa e viu a Ferrari do avô ainda estacionada na frente, com quatro centímetros de neve no arco do aerofólio traseiro. Luke certamente estava muito ocupado e não teve tempo de guardar o carro na garagem.

— A última vez que estive aqui meu avô me deixou colocar o car­ro na garagem.

— Você não sabe dirigir — Sophie disse com ceticismo.

— Não tenho carteira, mas isso não quer dizer que não saiba diri­gir. — Sabia que estava exagerando. Tinha dirigido o Mercedes do pai duas vezes, na praia e em uma pista de pouso abandonada, mas nun­ca na estrada ou na rua.

— Tá legal, então leve o carro para a garagem agora — Sophie disse.

Craig sabia que precisava pedir permissão. Mas se dissesse isso, ia parecer que queria desistir. De qualquer modo, seu avô podia dizer não e Craig perderia a oportunidade de provar a Sophie o que estava dizendo. Por isso disse: — Tudo bem.

A porta do carro não estava trancada e ele viu a chave na ignição.

Sophie encostou na parede da casa, ao lado da porta dos fundos com os braços cruzados, como quem diz: Muito bem, mostre. Craig não ia deixar que ela saísse daquela vitoriosa.

— Por que não vem comigo? — ele perguntou. — Ou está com medo?

Entraram no carro.

Não era fácil. Os bancos eram baixos, quase no nível da soleira das portas, e Craig teve de pôr uma perna dentro do carro e passar o corpo por cima do braço do banco. Ele bateu a porta.

O câmbio era estritamente utilitário, apenas uma haste reta de alumínio com uma bola na ponta. Craig verificou se estava em pon­to morto e ligou a ignição. O motor pegou com um ronco que mais parecia um 747.

Craig quase desejou que o barulho fizesse Luke sair correndo da casa, com os braços erguidos em protesto. Porém, a Ferrari estava na frente da casa e a família na cozinha, nos fundos. O ronco do motor não atravessou as grossas paredes de pedra da velha casa de fazenda.

O carro pareceu estremecer como em um terremoto quando o grande motor pegou com preguiçosa potência. Craig sentiu a vibração através do banco de couro.

— Isto é demais — Sophie disse, excitada.

Craig acendeu os faróis. Dois cones de luz surgiram na frente do carro, iluminando o jardim cheio de flocos de neve. Ele pôs a mão no câmbio, tocou o pedal da embreagem e olhou para trás. A entrada de veículos ia em linha reta até a garagem, depois começava a fazer uma curva para o alto do penhasco.

— Vá então — Sophie disse. — Dirija.

Craig tentou parecer casual para disfarçar sua relutância.

— Relaxe — ele disse, soltando o freio de mão. — Aproveite o pas­seio. — Soltou a embreagem, levou o câmbio para a ré. Tocou com o pé no acelerador, o mais levemente possível. O motor roncou amea­çadoramente. Craig foi soltando a embreagem um milímetro de cada vez. O carro começou a andar lentamente para trás.

Craig segurou a direção de leve, sem virar para nenhum lado, e o carro seguiu em linha reta. Com a embreagem toda solta, ele tocou outra vez no acelerador. O carro saltou para trás e passou da garagem. Sophie gritou, assustada. Craig passou o pé do acelerador para o freio. O carro patinou na neve, mas para seu alívio não desviou da linha reta. Quando finalmente parou, Craig lembrou, no último instante, de pisar na embreagem para o motor não morrer.

Craig ficou satisfeito. Não perdera o controle, embora fosse por pouco. Melhor ainda, Sophie tinha se assustado, enquanto ele parecia calmo. Talvez assim ela parasse de bancar a superior.

A garagem fazia um ângulo reto com a casa e agora as portas estavam na frente e à esquerda da Ferrari. O carro de Kit, um cupê Peugeot preto, estava estacionado na frente da garagem, na outra extremidade. Craig encontrou um controle remoto debaixo do pai­nel e apertou o botão. A porta da garagem, a mais distante das três, levantou.

O quadrado de concreto na frente da garagem estava coberto por uma macia camada de neve. Havia uma moita de arbustos no canto da casa e uma árvore grande na outra extremidade do concreto. Tudo que Craig tinha de fazer era evitar os arbustos e a árvore e conduzir o carro para dentro da garagem.

Mais confiante agora, ele engatou a primeira, apertou levemente o acelerador e soltou a embreagem. O carro moveu-se para a fren­te. Ele virou a direção que era pesada a pouca velocidade e a Ferrari virou obedientemente para a esquerda. Ele soltou o acelerador um milímetro e o carro ganhou velocidade, o suficiente para ser excitante. Craig virou para a direita, para a porta aberta, mas estava indo muito depressa. Pisou no freio.

Foi um erro.

O carro movia-se rapidamente na neve, com as rodas da frente viradas para a direita. Assim que ele pisou no freio, as rodas de trás perderam a tração. Em vez de continuar para a direita, na direção da porta aberta, o carro derrapou para o lado, na neve. Craig sabia o que estava acontecendo, mas não tinha idéia do que devia fazer. Virou a direção mais para a direita, mas isso piorou a derrapagem e o carro deslizou inexoravelmente na superfície escorregadia como um barco açoitado pelo vento forte. Craig pisou no freio e na embreagem ao mesmo tempo, mas não fez nenhuma diferença.

A entrada da garagem saiu do campo de visão do pára-brisa. Craig pensou que fosse bater no Peugeot de Kit, mas para seu alívio a Ferrari passou raspando. Perdendo impulso, o carro diminuiu a marcha. Por um momento ele pensou que tinha conseguido se safar. Porém, pouco antes de parar completamente, o carro bateu de lado na árvore.

— Isso foi formidável! — Sophie disse.

— Não, não foi porra nenhuma. — Craig pôs o câmbio em ponto morto, tirou o pé da embreagem e saltou do carro. Deu a volta pela frente da Ferrari. O impacto tinha parecido leve mas, para seu horror, Craig viu, à luz das lâmpadas da garagem, o amassado na porta azul brilhante. — Merda — ele disse, furioso.

Sophie saiu do carro e olhou.

— Não amassou demais — ela disse.

— Não diga besteira. — O tamanho não importava. A lataria esta­va amassada por sua culpa. Craig sentiu náusea. Belo presente de Natal para o avô.

— Talvez eles nem notem — Sophie disse.

— É claro que vão notar — ele disse, furioso. — Meu avô vai ver assim que olhar para o carro.

— Bem, isso pode demorar. Ele certamente não vai sair com este tempo.

— Que diferença faz? — Craig disse, impaciente. Sabia que estava sendo rabugento, mas não se importava. — Tenho de dizer que fui eu.

— Acho melhor você não estar aqui quando a merda bater no ventilador.

— Não vejo como... — Parou. Sim, ele via. Se confessasse agora, estragaria o Natal. Mamma Marta teria dito: Vai haver um bordello, significando uma gritaria. Se Craig não dissesse nada até mais tarde, talvez a confusão fosse menor. De qualquer modo, a perspectiva de adiar a revelação por alguns dias era tentadora.

— Tenho de pôr o carro na garagem — ele disse, pensando em voz alta.

— Estacione com o lado amassado virado para a parede — Sophie sugeriu. — Assim não será visto por quem passar por perto.

A idéia de Sophie fazia sentido, Craig pensou. Havia mais dois carros na garagem, um utilitário Toyota com tração nas quatro rodas, que seu avô usava quando o tempo estava como o dessa noi­te, e o velho Ford Mondeo de Luke, com o qual ele e Lori iam da casa até seu chalé a dois quilômetros. Certamente Luke ia entrar na garagem essa noite para pegar o carro e ir para casa. Se o tempo pio­rasse, talvez pegasse emprestado o Toyota, deixando seu Ford. De qualquer modo, ele tinha de entrar na garagem. Mas se a Ferrari esti­vesse com o lado amassado virado para a parede, ninguém veria.

O motor estava ainda ligado. Craig entrou no carro. Engatou a primeira e seguiu devagar para a frente. Sophie correu para a garagem e ficou na frente dos faróis. Quando Craig entrou na garagem, ela o ajudou com gestos a calcular a distância da parede.

Na primeira tentativa ele não chegou a menos de dezenove centímetros da parede. Não era bastante. Tinha de tentar de novo. Olhou nervosamente para o retrovisor mas não viu ninguém. Agradeceu ao mau tempo por fazer com que todos ficassem aquecidos, dentro de casa.

Na terceira tentativa conseguiu posicionar a Ferrari a nove ou doze centímetros da parede. Saiu do carro e viu que era impossível ver o amassado de qualquer ângulo.

Fechou a porta e os dois foram para a porta da cozinha. Craig se sentia ansioso e culpado, mas Sophie estava de ótimo humor.

— Foi impressionante — ela disse.

Craig viu então que a tinha impressionado finalmente.

 

Kit instalou seu computador no quartinho de guardados ao qual só se podia chegar atravessando seu quarto. Ligou o laptop, uma lei­tora de impressões digitais e um dispositivo de leitura/gravação de cartões inteligentes comprado de segunda mão por 270 libras pela Internet.

O quarto de guardados sempre fora seu refúgio. Quando era pequeno, a casa tinha apenas três quartos: Mamma e papai ficavam no quarto principal, Olga e Miranda, no outro e Kit, em uma cama de campanha no cubículo de guardados ao lado do quarto das meni­nas. Quando foi construída a extensão e Olga foi para a universida­de, Kit ficou com um quarto e com o cubículo, mas este continuou sendo seu esconderijo.

Ainda era mobiliado como o quarto de estudos de um garoto, com uma mesa velha, uma estante de livros, um pequeno aparelho de TV e uma poltrona que se abria, formando uma cama de solteiro que muitas vezes foi usada por colegas da escola que passavam a noi­te em sua casa. Sentado à mesa, Kit se lembrou das horas tediosas que tinha passado ali, estudando geografia e biologia, reis medievais e verbos irregulares, Ave, César! Aprendera tanta coisa e tudo estava esquecido.

Pegou o cartão roubado do pai e o inseriu no dispositivo de leitura/gravação. A parte de cima onde se lia “Oxenford Medical”, ficou visível. Kit esperava que ninguém entrasse ali. Estavam todos na cozinha. Lori preparava osso bucco, seguindo a famosa receita de Mamma Marta — Kit sentia o cheiro do orégano. Seu pai abrira uma garrafa de champanhe. A essa altura estariam contando histórias que começavam com “Vocês lembram quando...?”.

O chip do cartão continha dados da impressão digital do seu pai. Não era uma simples imagem, pois seria muito fácil falsificar — a foto de um dedo podia enganar um scanner normal. Kit tinha construído um dispositivo que media vinte e cinco pontos de uma impressão digital, usando pequenas diferenças elétricas entre os sulcos e os vales. Também bolara um programa que armazenava esses dados em um código. No seu apartamento tinha vários protótipos da leitora de impressões digitais e naturalmente tinha uma cópia do software criado por ele.

Ajustou o laptop para ler o cartão inteligente. O único perigo era que alguém da Oxenford Medical — Toni Gallo, talvez — tivesse modificado o software de tal modo que o programa de Kit não pudesse rodar. Por exemplo, se exigisse um código de acesso para que o cartão fosse lido. Era pouco provável que alguém se desse a tanto trabalho e despesa para evitar uma possibilidade que parecia remota — mas era possível. E ele não tinha informado Nigel sobre essa possibilidade.

Kit esperou poucos e ansiosos segundos, olhando para a tela.

Finalmente a imagem tremeu e exibiu uma página de código: os dados das impressões digitais de Stanley. Kit respirou aliviado e sal­vou o arquivo.

Sua sobrinha Caroline entrou carregando um rato.

Ela estava vestida como uma criança, um vestido de flores estampadas e meias curtas, brancas. O rato tinha pêlo branco e olhos cor-de-rosa. Caroline sentou na poltrona acariciando o rato.

Kit conteve-se para não praguejar. Não podia dizer a ela que estava fazendo uma coisa secreta e preferia ficar sozinho. Mas não podia continuar enquanto ela estivesse ali.

Caroline sempre fora um saco. Desde pequena ela adorava seu jovem tio Kit. Ainda garoto, ele logo ficou farto da adoração e da presença constante da sobrinha atrás dele. Mas não era fácil se livrar de Caroline.

Ele tentou ser gentil.

— Como vai o rato? — Kit perguntou.

— O nome dele é Leonard — ela respondeu num tom de leve cen­sura.

— Leonard. Onde você o arranjou?

— Na Paradise Pets da rua Sauchiehall. — Ela soltou o rato que correu pelo braço dela e se aboletou no seu ombro.

Para Kit, a menina era maluca, carregando um rato por toda parte, como se fosse uma criança. Caroline era parecida com a mãe, Olga, com cabelo escuro comprido e sobrancelhas escuras, mas enquanto Olga era seca e severa, Caroline era molhada como um fevereiro chuvoso. Tinha só dezessete anos, podia ainda amadurecer.

Kit esperava que ela estivesse absorta demais em si mesma e no rato para notar na leitora o pedaço do cartão onde estava escrito “Oxenford Medical”. Até mesmo Caroline deveria saber que Kit não devia ter um cartão de acesso ao Kremlin, nove meses depois de ter sido despedido.

— O que você está fazendo? — ela perguntou.

— Trabalhando. Preciso acabar isto hoje. — Kit queria tirar o car­tão da leitora, mas temia chamar a atenção dela.

— Não vou atrapalhar. Continue seu trabalho.

— Não está acontecendo nada lá embaixo?

— Mamãe e a tia Miranda estão enchendo as meias de presentes na sala de estar, por isso me mandaram embora.

— Ah... — Ele voltou para o computador e clicou em “ler”. Seu próximo passo devia ser escanear sua própria impressão digital, mas não podia deixar Caroline ver isso. Ela podia não compreender o significado, mas podia facilmente mencionar para alguém que compreendesse. Kit fingiu estudar a tela, procurando um meio de se livrar dela. Depois de um minuto, teve uma inspiração. Fingiu um espirro.

— Saúde — ela disse.

— Obrigado. — Kit espirrou outra vez. — Quer saber, nosso que­rido Leonard está fazendo isto comigo.

— Como pode? — ela perguntou indignada.

— Sou um pouco alérgico e este lugar é tão pequeno.

Caroline se levantou.

— Não queremos fazer as pessoas espirrarem, queremos, Lennie? — Ela saiu do quarto.

Kit, agradecido, fechou a porta, sentou-se e pôs a mão direita sobre o vidro da leitora de impressões digitais. O programa leu suas impressões digitais e codificou os dados. Kit salvou o arquivo.

Por fim, transferiu os dados de suas impressões digitais para o cartão inteligente, cobrindo os do seu pai. Ninguém mais poderia ter feito isso, a não ser que tivesse uma cópia do software de Kit, além do cartão inteligente de Stanley com o código correto. Se ele tivesse de modificar o sistema, não se daria ao trabalho de fazer com que os cartões não pudessem ser lidos ou gravados. Mas Toni Gallo pode ter feito isso. Olhou ansioso para a tela, quase esperando uma mensagem de erro dizendo ACESSO NEGADO.

Mas a mensagem não apareceu. Dessa vez Toni não tinha sido mais esperta do que ele. Kit releu os dados do chip para ter certeza de que o procedimento fora bem-sucedido. Sim, o cartão tinha ago­ra as impressões digitais de Kit, não de Stanley.

— Beleza! — ele disse em voz alta, triunfante.

Tirou o cartão do dispositivo e o guardou no bolso. Agora tinha acesso ao BSL4. Quando ele inserisse o cartão na leitora e encostasse o dedo na tela sensível ao toque, o computador leria os dados do cartão, compararia com as impressões, veria que combinavam e abri­ria a porta.

No dia seguinte, quando voltasse do laboratório, reverteria o processo, apagando do chip os dados das suas impressões e regravando as de Stanley antes de devolver o cartão. O computador do Kremlin registraria que Stanley Oxenford tinha entrado no BSL4 nas primeiras horas do dia 25 de dezembro. Stanley protestaria, dizendo que estava em casa, na cama, e Toni Gallo diria à polícia que ninguém poderia ter usado o cartão de Stanley por causa da checagem das impressões digitais. “Fácil, fácil”, ele pensou. Gostava de imaginar como todos ficariam intrigados.

Alguns sistemas biométricos de segurança comparavam as impressões digitais com os dados contidos em um computador central. Se o Kremlin tivesse usado essa configuração, Kit teria precisa­do de acesso ao banco de dados. Mas os funcionários tinham uma aversão natural à idéia de ter seus dados pessoais armazenados em computadores da companhia. Os cientistas, especialmente, sempre liam o Guardian e ficavam histéricos com ameaças aos seus direitos civis. Kit tinha resolvido armazenar os dados num cartão inteligen­te, não no banco de dados central, para fazer com que a nova confi­guração de segurança fosse mais aceitável para os funcionários, sem prever que um dia estaria tentando derrotar o próprio sistema que implantou.

Ficou satisfeito. O primeiro estágio estava completo. Tinha um passe para o BSL4. Mas antes de poder usá-lo, precisava entrar no Kremlin.

Tirou do bolso o celular e ligou para o celular de Hamish McKinnon, um dos guardas de segurança de plantão naquela noite no Kremlin. Hamish era o traficante de drogas da empresa, fornecendo maconha para os jovens cientistas e Ecstasy para os fins de semana das secretárias. Não trabalhava com heroína nem crack, sabendo que um viciado em drogas pesadas mais cedo ou mais tarde poderia traí-lo. Kit pedira para Hamish trabalhar como olheiro nes­sa noite, certo de que ele não o delataria, pois precisava guardar os próprios segredos.

— Sou eu — Kit disse quando Hamish atendeu. — Pode falar?

— E um feliz Natal para você também, Ian, seu velho malandro — Hamish disse alegremente. — Só um segundo, vou lá para fora... Assim é melhor.

— Está tudo bem?

Hamish disse, agora com voz séria.

— Tudo bem, mas ela dobrou a guarda e Willie Crawford está comigo.

— Onde vocês estão?

— Na guarita do portão.

— Perfeito. Está tudo calmo?

— Como um cemitério.

— Quantos guardas ao todo?

— Seis. Dois aqui, dois na recepção e dois na sala de controle.

— Muito bem. Podemos encarar isso. Avise se acontecer alguma coisa.

— Tudo bem.

Kit desligou e ligou para o número de acesso ao sistema compu­tadorizado de telefones do Kremlin. O número era usado pela Hibernian Telecom, a empresa que havia instalado os telefones para diagnóstico remoto de falhas. Kit tinha trabalhado de perto com a Hibernian porque os alarmes instalados por eles usavam as linhas telefônicas. Mais um momento de tensão, temendo que o número ou o código tivessem sido trocados nove meses depois de sua saída. Mas ainda eram os mesmos.

Seu celular estava ligado ao laptop por uma conexão sem fio que funcionava a distâncias de mais ou menos quinze metros e meio — mesmo através de paredes, o que podia ser útil mais tarde. Depois usou o laptop para acessar a unidade central de processamento do sistema telefônico do Kremlin. O sistema tinha detectores de inva­são — mas estes não soavam o alarme se a linha telefônica ou o códi­go da própria empresa fossem usados para o acesso.

Primeiro ele desligou todos os telefones do local, exceto o da mesa de recepção.

Em seguida desviou todas as chamadas de fora e de dentro do Kremlin para seu celular. Seu laptop já estava programado para reco­nhecer os números mais prováveis, como o de Toni Gallo. Ele pode­ria atender às chamadas, usar mensagens gravadas ou até mesmo redirecionar as chamadas e ouvir as conversas.

Finalmente fez cada telefone do prédio tocar por cinco segundos, só para chamar a atenção dos guardas de segurança.

Depois desligou e se sentou na beirada da cadeira, esperando.

Kit tinha certeza do que ia acontecer. O guarda tinha uma lista das pessoas para quem devia telefonar nos casos de diferentes emergências. O primeiro movimento deles agora seria ligar para a com­panhia telefônica.

Não teve de esperar muito. Seu celular tocou. Kit deixou tocar, observando o laptop. Depois de um momento apareceu uma mensagem na tela que dizia: “Kremlin chama Toni.”

Não era o que Kit esperava. Deviam ter ligado para a Hibernian primeiro. Mas mesmo assim, estava preparado. Acionou rapidamen­te uma mensagem gravada. O guarda de segurança que tentava ligar para Toni Gallo ouviu uma voz feminina dizendo que o celular chamado devia estar desligado ou fora de área e aconselhando a tentar mais tarde. O guarda desligou.

Seu telefone tocou outra vez, quase imediatamente. Kit esperava que os guardas estivessem ligando para a companhia telefônica, mas foi desapontado outra vez. A tela dizia: “Kremlin chama QG.” Os guardas estavam ligando para a central de polícia de Inverburn. Kit gostou da idéia de a polícia ser informada. Redirecionou a cha­mada para o número correto e escutou.

— Aqui fala Steven Tremlett, supervisor da segurança da Oxenford Medical, ligando para relatar um incidente fora do comum.

— Qual é o incidente, sr. Tremlett?

— Não é uma grande emergência, mas temos um problema com nossas linhas telefônicas e não tenho certeza de que os alarmes vão funcionar.

— Vou anotar. Pode mandar consertar seus telefones?

— Vou chamar uma equipe de consertos, mas só Deus sabe quan­do chegará aqui hoje, véspera de Natal.

— Quer que eu mande uma radiopatrulha?

— Seria bom, se não estiverem muito ocupados.

Kit esperava que a polícia fizesse uma visita ao Kremlin. Daria mais convicção ao seu plano.

O policial disse: — Vão estar ocupados mais tarde, quando os bares fecharem, mas agora está tudo tranqüilo.

— Certo. Diga que darei a eles uma xícara de chá.

Desligaram. O celular de Kit tocou pela terceira vez e a tela disse: “Kremlin chama Hibernian.” Finalmente, ele pensou, aliviado. Era o que estava esperando. Apertou um botão e disse no seu telefone: “Hibernian Telecom, posso ajudar?”

A voz de Steve disse: — Aqui é da Oxenford Medical, temos um problema com nosso sistema de telefones.

Exagerando o sotaque escocês para disfarçar a voz, Kit disse: — Está falando da Greenmantle Road, em Inverburn?

— Correto.

— Qual o problema?

— Todos os telefones estão desligados, exceto este. O local está vazio, é claro, mas o problema é que o sistema de alarme usa as linhas telefônicas e precisamos ter certeza de que estão funcionando perfeitamente.

Então o pai de Kit entrou no quarto.

Kit gelou, paralisado de medo, apavorado, como se fosse outra vez um garoto. Stanley olhou para o computador e para o celular e ergueu as sobrancelhas. Kit se controlou. Não era mais um garoto com medo de uma reprimenda. Tentando se acalmar, ele disse ao telefone: “Ligo para você daqui a alguns minutos.” Apertou uma tecla do laptop e a tela escureceu.

— Trabalhando? — seu pai perguntou.

— Uma coisa que preciso terminar.

— No Natal?

— Eu disse que entregaria este software no dia vinte e quatro de dezembro.

— A esta hora seu cliente deve ter ido para casa, como todas as pessoas sensatas.

— Mas o computador dele vai registrar que enviei o programa por e-mail antes da meia-noite da véspera de Natal, assim não poderá dizer que me atrasei.

Stanley sorriu, concordando.

— Fico feliz por ver que está sendo consciencioso. — Ficou calado por alguns segundos, obviamente querendo dizer mais alguma coisa. Como um cientista típico que era, pausas longas na conversa não queriam dizer nada para ele. O importante era a precisão.

Kit esperou, tentando disfarçar a impaciência. Então seu celular tocou.

— Merda. Desculpe — ele disse para o pai. Olhou para a tela. Não era uma chamada desviada do Kremlin, mas de Hamish McKinnon, o guarda de segurança, para o seu celular. Kit não podia ignorar. Apertou o fone contra o ouvido para que a voz do guarda não fosse ouvida pelo pai. — Sim?

Hamish disse, nervoso: — Todos os telefones daqui pifaram!

— Tudo bem. Era de se esperar, faz parte do programa.

— Você disse para avisar se alguma coisa de anormal...

— Sim, fez bem em me telefonar, mas tenho de desligar agora. Obrigado. — Desligou o telefone.

Seu pai falou: — Nossa briga está mesmo esquecida agora?

Kit se ressentia com esse tipo de conversa. Sugeria que os dois deviam ser igualmente culpados. Mas estava desesperado para voltar ao telefone, por isso disse: — Acho que sim.

— Sei que você acha que foi tratado injustamente — o pai disse, lendo sua mente. — Não vejo a sua lógica, mas aceito que você acre­dite nela. E eu acho que também fui injustiçado. Mas temos de esquecer isso e voltar a ser amigos.

— É o que Miranda também acha.

— E não estou muito certo de que você tenha esquecido. Sinto que há alguma coisa que não está dizendo.

Kit tentou ficar impassível para não demonstrar sua culpa.

— Estou fazendo o melhor possível — ele disse. — Não é fácil.

Stanley pareceu satisfeito.

— Bem, não posso pedir mais do que isso. — Pôs a mão no ombro de Kit. Inclinou-se e beijou o alto da cabeça dele. — Vim avisar que o jantar está quase pronto.

— Estou acabando. Desço em alguns minutos.

— Ótimo — Stanley disse e saiu do quarto.

Kit relaxou na cadeira. Tremia, com um misto de vergonha e alí­vio. Seu pai era astuto e difícil de ser iludido — porém ele sobreviveu ao interrogatório. Mas foi duro enquanto durou.

Quando suas mãos ficaram suficientemente firmes, ligou outra vez para o Kremlin.

Atenderam ao telefone imediatamente. A voz de Steve Tremlett disse: — Oxenford Medical.

— É da Hibernian Telecom. — Kit lembrou de mudar a voz. Não conhecia bem Tremlett e havia nove meses saíra da Oxenford Medical, portanto era pouco provável que Steve lembrasse da sua voz, mas não queria arriscar. — Não posso acessar sua unidade central de processamento.

— Não é de admirar. Essa linha também deve estar muda. Tem de mandar alguém aqui.

Era o que Kit queria, mas teve a cautela de não parecer ansioso.

— Vai ser difícil conseguir uma equipe de manutenção no Natal.

— Não me venha com essa! — A voz de Steve traía um começo de irritação. — Vocês garantiram assistência técnica vinte e quatro horas, todos os dias do ano. É para isso que estamos pagando. Agora são cinco para as oito da noite e estou anotando esta chamada.

— Tudo bem, fique calmo. Vou mandar uma equipe o mais depressa possível.

— Por favor, dê-me uma estimativa do tempo.

— Vou fazer o possível para que esteja aí até a meia-noite.

— Obrigado, estaremos esperando. — Steve desligou.

Kit pôs o celular na mesa. Estava suando. Enxugou o rosto com a manga. Até ali tudo estava indo às mil maravilhas.

 

Stanley lançou a bomba durante o jantar.

Miranda estava relaxada. O ossobucco estava ótimo e seu pai abri­ra duas garrafas de Brunello di Montepulciano para acompanhar. Kit estava inquieto e subia correndo a escada cada vez que seu celu­lar tocava, mas todos os outros estavam tranqüilos. As quatro crian­ças comeram e se retiraram rapidamente para o celeiro e assistiam no DVD ao filme Scream 2, deixando os seis adultos em volta da mesa da sala de jantar: Miranda e Ned, Olga e Hugo, papai na cabeceira e Kit na outra ponta. Lori serviu café enquanto Luke punha os pratos na máquina de lavar.

Então Stanley disse: — Como vocês iam se sentir se eu começas­se a namorar outra vez?

Todos ficaram quietos. Até Lori reagiu. Parou de servir o café e ficou imóvel, olhando para ele, chocada.

Miranda tinha pressentido, porém, mesmo assim era inquietante ouvir seu pai confirmar.

— Suponho que estejamos falando de Toni Gallo — ela disse.

Parecendo surpreso ele disse: — Não.

Olga disse: — Ora, não venha com essa.

Miranda também não acreditou, mas preferiu não contradizê-lo.

— De qualquer modo, não estou falando de ninguém em particular, mas de um princípio geral — ele continuou. — Mamma Marta morreu há um ano e meio, que descanse em paz. Por quase quatro décadas ela foi a única mulher da minha vida. Mas tenho sessenta anos e provavelmente mais vinte ou trinta de vida. Posso não querer passar esses anos sozinho.

Lori olhou para ele magoada. Ele não estava sozinho. Tinha ela e Luke.

Olga disse, mal-humorada: — Então por que nos consultar? Não precisa de nossa permissão para dormir com sua secretária ou com outra pessoa qualquer.

— Não estou pedindo permissão. Quero saber como se sentiriam se acontecesse. E, a propósito, não seria com minha secretária. Dorothy é muito bem casada.

Miranda falou, mais para evitar que Olga dissesse alguma coisa inconveniente.

— Acho que seria difícil para nós, papai, ver você com outra mu­lher nesta casa. Mas queremos que seja feliz e acredito que faremos o melhor possível para aceitar quem você ama.

Stanley olhou para ela, descontente.

— Não é exatamente um aval entusiástico, mas obrigado por ten­tar ser positiva.

Olga disse: — Pois não terá nem isso de mim. Pelo amor de Deus, o que espera que a gente diga? Está pensando em casar com essa mulher? Pretende ter mais filhos?

— Não estou pensando em casar com ninguém — ele disse, abor­recido. Olga o estava irritando, recusando-se a discutir o assunto racionalmente. Mamma sempre conseguia irritá-lo desse modo. Ele acrescentou: — Mas não estou descartando nenhuma possibilidade.

— É ultrajante — Olga explodiu. — Quando eu era pequena, mal via você. Estava sempre no laboratório. Mamma e eu ficávamos em casa com Mandy ainda bebê das sete e meia da manhã até as nove da noite. Éramos uma família sem pai e tudo por sua carreira, para que você pudesse inventar um antibiótico novo, um remédio para úlce­ra ou um anticolesterol para ficar famoso e rico. Muito bem, eu que­ro uma recompensa por meu sacrifício.

— Você teve uma educação extremamente dispendiosa — Stanley disse.

— Não basta. Quero que meus filhos herdem o dinheiro que você ganhou e não quero que dividam nada com uma ninhada de crian­ças de alguma pistoleira que só sabe tirar vantagem de um viúvo.

Miranda deixou escapar uma exclamação de protesto.

Hugo, embaraçado, disse: — Não faça rodeios, Olga querida, diga o que está pensando.

Zangado, Stanley disse: — Eu não estava pensando em sair com uma pistoleira.

Olga percebeu que tinha ido longe demais.

— Eu não quis dizer essa última parte. — Para ela isso valia por um pedido de desculpas.

Kit disse, com irreverência: — Não será muito diferente. Mamma era alta, atlética, nada intelectual e italiana. Toni Gallo é alta, atlética, nada intelectual e espanhola. Garanto que sabe cozinhar.

— Não seja burro — Olga disse. — A diferença é que nos últimos quarenta anos Toni não fez parte da família, portanto não é um de nós, é uma estranha.

Kit revidou.

— Não me chame de burro, Olga. Pelo menos sei ver o que está debaixo do meu nariz.

O coração de Miranda se apertou. Do que ele estava falando?

Olga fez a mesma pergunta.

— O que está debaixo do meu nariz que não sei ver?

Miranda olhou de soslaio para Ned. Temia que mais tarde ele perguntasse o que Kit quis dizer. Ele quase sempre se interessava por essas coisas.

Kit recuou.

— Ora, pare de me interrogar. Você é um saco.

— Não está preocupado com seu futuro financeiro? — Olga per­guntou. — Sua herança está ameaçada tanto quanto a minha. Será que você tem tanto dinheiro que não se importa?

Kit riu sem humor.

— Sim, está bem.

Miranda disse para Olga: — Você não está sendo um pouco mer­cenária?

— Bem, papai perguntou.

Stanley disse: — Pensei que não gostariam de ver a mãe de vocês substituída por outra pessoa. Nunca me ocorreu que a única preocu­pação de vocês fosse com meu testamento.

Miranda sentia por seu pai. Porém estava mais preocupada com Kit e com o que ele podia dizer. Quando era pequeno, ele nunca conseguia guardar segredos. Ela e Olga eram obrigadas a esconder tudo dele. Se faziam alguma confidência, ele contava para Mamma em cinco minutos. Agora ele sabia o segredo mais tenebroso de Miranda. Não era mais criança, mas por outro lado, Kit jamais crescera realmente. Aquilo era perigoso. Seu coração parecia um tambor. Talvez se tomasse parte na conversa teria oportunidade de controlar o que diziam.

— O importante — ela disse a Olga — é manter a família unida. Seja o que for que papai venha a decidir, não devemos deixar que nos separe.

— Não me faça sermão sobre a família — Olga disse, zangada. — Fale com seu irmão.

Kit disse: — Larguem do meu pé!

Stanley disse: — Não quero ouvir tudo isso outra vez.

Olga insistiu: — Mas foi ele quem chegou mais perto de destruir a família.

— Vá se foder, Olga — Kit disse.

— Calma — Stanley disse com firmeza. — Podemos ter uma dis­cussão acirrada sem precisar apelar para insultos e palavrões.

— Ora, papai — Olga disse. Ela estava furiosa por ter sido chama­da de mercenária e precisava contra-atacar. — O que pode ser mais ameaçador para a união da família do que um de nós roubar dos outros?

Kit estava vermelho de fúria e vergonha.

— Pois vou lhe dizer — ele retrucou.

Miranda sabia o que vinha agora. Apavorada, ela estendeu o bra­ço para Kit com a mão aberta num sinal de Pare.

— Kit, acalme-se, por favor — ela disse urgentemente.

Ele não estava ouvindo.

— Vou dizer o que pode ser mais ameaçador para a família.

— Cale a boca! — Miranda gritou para ele.

Stanley percebeu que havia algo nas entrelinhas que ele ignora­va e olhou para os filhos, intrigado.

— Do que vocês dois estão falando?

Kit disse: — Estou falando de alguém...

Miranda ficou de pé: — Não!

— ...alguém que dorme...

Miranda pegou um copo com água e jogou no rosto de Kit. De repente fez-se silêncio.

Kit enxugou o rosto com o guardanapo. Com todos olhando para ele em silêncio, ele disse: — ...dorme com o marido da irmã.

Olga ficou atônita.

— Isso não faz sentido. Nunca dormi com Jasper ou com Ned.

Miranda segurou a cabeça entre as mãos.

— Não estou falando de você — Kit disse.

Olga olhou para Miranda. Miranda desviou os olhos.

Lori ainda ali parada segurando o bule de café, deixou escapar uma exclamação abafada de repentina compreensão.

Stanley disse: — Meu Deus, eu nunca imaginei isso.

Miranda olhou para Ned. Ele estava horrorizado.

— Você fez isso? — Ned perguntou.

Miranda não respondeu.

Olga virou-se para Hugo.

— Você e minha irmã?

Ele tentou um sorriso de garoto levado. Olga ergueu o braço e o esbofeteou com força. O tapa soou solidamente, mais como um soco.

— Ai! — ele gritou caindo para trás na cadeira.

Olga disse: — Seu ordinário mentiroso... — Procurou as palavras. — Seu verme. Seu porco. Maldito filho-da-mãe, seu podre nojento. — Voltou-se para Miranda. — E você!

Miranda não podia olhar nos olhos dela. Olhou para baixo, para a mesa. Uma xícara de café estava na sua frente. Era de fina porcela­na com uma faixa azul, o aparelho favorito da Mamma.

— Como pôde? — Olga disse para ela. — Como pôde fazer isso?

Miranda teria tentado explicar, um dia, mas qualquer coisa que dissesse naquele momento ia parecer uma desculpa. Apenas balançou a cabeça.

Olga se levantou e saiu da sala.

Hugo parecia embaraçado.

— Acho melhor eu... — ele disse e saiu atrás de Olga.

De repente Stanley se deu conta de que Lori estava ali parada, ouvindo cada palavra. Tarde demais, ele disse: — Lori, acho melhor você ajudar Luke na cozinha.

Ela se sobressaltou como quem é acordado de repente.

— Sim, professor Oxenford — ela disse.

Stanley olhou para Kit.

— Isso foi desumano. — Sua voz tremia de raiva.

— Ah, muito bem, ponha a culpa em mim — Kit disse, agressivo. — Eu não dormi com Hugo, dormi? — Jogou o guardanapo para lon­ge e saiu da sala.

Ned estava mortificado.

— Uumm, com licença — ele disse e saiu também.

Só Miranda e o pai ficaram na sala. Stanley se levantou, aproximou-se da filha e pôs a mão no ombro dela.

— Todos vão se acalmar depois de algum tempo — ele disse. — Isto é ruim, mas vai passar.

Miranda apertou o rosto contra a fazenda macia do colete dele.

— Oh, papai, eu sinto tanto... — E começou a chorar.

 

O tempo estava piorando. A viagem de Toni à casa de repouso foi lenta e a volta, mais lenta ainda. Havia uma fina camada de neve na estrada, com fundas marcas de pneus, congelada demais para derreter. Motoristas nervosos seguiam lentamente, atrasando todos os outros. O Porsche Boxster vermelho de Toni era o carro ideal para ultrapassar carros lentos, mas não estava nas melhores condições quanto à segurança contra derrapagens e ela podia fazer muito pouco para abreviar o tempo da viagem.

Sua mãe estava satisfeita ao lado dela, com um casaco verde de lã e chapéu de feltro, nem um pouco zangada com Bella. Isso desa­pontou Toni e ela ficou envergonhada por estar com tanta raiva da irmã. Na verdade, ela queria que a mãe estivesse tão furiosa com Bella quanto ela. Seria uma vingança. Mas sua mãe parecia pensar que a espera de tantas horas era culpa de Toni. Toni tinha dito, irritada: — Você sabe que Bella devia ter ido buscá-la horas atrás?

— Sim, minha querida, mas sua irmã tem uma família para cuidar.

— E eu tenho um emprego de grande responsabilidade.

— Eu sei, é seu substituto para filhos.

— Então tudo bem que Bella desaponte você, mas não eu.

— Isso mesmo, querida.

Toni tentou seguir o exemplo da mãe e ser magnânima. Mas não podia esquecer dos amigos no spa, sentados na Jacuzzi, brincando de mímica ou bebendo café na frente da lareira. Charles e Damien fica­riam cada vez mais soltos e engraçados com o passar das horas, à medida que relaxavam. Michael contaria histórias sobre sua mãe irlandesa, uma lendária encrenqueira em Liverpool, sua cidade natal. Bonnie relembraria seus tempos de universidade, os problemas por que ela e Toni passaram como as duas únicas mulheres numa faculdade de engenharia com trezentos alunos. Eles estariam se divertindo, enquanto Toni dirigia na neve, ao lado da mãe.

Disse a si mesma para deixar de ser patética. Sou uma adulta, ela pensou, e adultos têm responsabilidades. Além disso, mamãe pode não viver muito mais, portanto devo ficar satisfeita por estar com ela enquanto posso.

Achava mais difícil ver o lado positivo quando pensava em Stanley. Naquela manhã sentira-se tão perto dele e agora o abismo entre os dois era maior que o Grand Canyon. Imaginava constantemente se havia forçado demais a barra. Se o tinha levado a escolher entre a família e ela. Talvez se tivesse recuado não o teria forçado a uma decisão. Mas, na verdade, não tinha se atirado para ele e a mulher deve dar ao homem algum encorajamento, do contrário ele pode nunca dizer o que sente.

Não adiantava remorso, ela pensou. Perdera Stanley e era isso.

Viu as luzes de um posto de gasolina.

— Mamãe, você precisa ir ao banheiro? — ela perguntou.

— Sim, por favor.

Toni entrou no posto e parou ao lado da bomba de gasolina. Encheu o tanque e depois levou a mãe para dentro. Ela foi ao banheiro enquanto Toni pagava. Quando voltou para o carro, seu celular tocou. Pensando que pudesse ser do Kremlin, ela atendeu apressadamente.

— Toni Gallo.

— Stanley Oxenford.

— Oh — exclamou surpresa. Não esperava que ele telefonasse.

— Talvez eu não esteja telefonando em uma hora muito boa — ele disse, gentilmente.

— Não, não, não — ela disse rapidamente, entrando no carro e sentando na frente da direção. — Pensei que fosse do Kremlin e fiquei preocupada. Podia estar acontecendo alguma coisa. — Fechou a por­ta do carro.

— Pelo que sei, tudo está ótimo. Como está seu spa?

— Não estou no spa. — Contou o que tinha acontecido.

— Que desapontamento terrível — ele disse.

Seu coração disparou, sem nenhum motivo.

— E você? Está tudo bem? — Imaginou por que ele teria telefona­do. Ao mesmo tempo vigiava a pequena cabine. Sua mãe iria demo­rar para sair do banheiro.

— O jantar de família acabou mal. Não é exatamente algo incomum, às vezes brigamos.

— O que aconteceu?

— Provavelmente eu não devia contar a você.

Então por que me telefonou?, ela pensou. Era fora do comum Stanley dar um telefonema para não dizer nada. Era tão concentra­do no que fazia que parecia ter sempre na frente uma lista dos assun­tos que precisavam ser tratados.

— Resumindo, Kit contou que Miranda dormiu com Hugo, o marido da irmã.

— Meu Deus! — Toni imaginou cada um deles: o belo e malicioso Kit, a gorducha e bonita Miranda; Hugo, esbanjando sedução, e Olga, a formidável. Era uma história picante, porém o mais sur­preendente era Stanley contar para ela, Toni. Mais uma vez ele a tra­tava como se fossem íntimos. Mas ela desconfiava dessa impressão. Se permitisse alguma esperança, ele as destruiria outra vez. Mesmo assim, ela não queria terminar a conversa. — Como você se sentiu? — perguntou.

— Bem, Hugo sempre foi um pouco leviano. A esta altura, depois de quase vinte anos de casamento, Olga o conhece bem. Ela está humilhada e danada da vida... posso ouvir seus gritos neste momento. Mas acho que vai perdoá-lo. Miranda me explicou as circunstâncias. Não teve um caso com Hugo, só dormiu com ele uma vez, quando estava deprimida depois do fracasso do seu casamento e sente-se envergonhada desde então. Acho que, daqui a algum tem­po, Olga a perdoará também. — Ele continuou com voz tristonha. — Eu sempre quis que meu filho fosse corajoso e tivesse bons princí­pios e crescesse como um homem correto que merecesse o respeito de todos, mas ele é dissimulado e fraco.

De repente Toni sentiu que Stanley estava falando com ela como teria falado com Marta. Depois de uma confusão daquelas, os dois teriam ido para a cama e falariam sobre o papel de cada um dos seus filhos. Ele sentia falta da mulher e usava Toni como substituta. Mas essa idéia não a entusiasmava mais. Muito pelo contrário, deixou-a ressentida. Stanley não tinha o direito de usá-la daquele modo. Toni se sentiu explorada. E realmente precisava saber como ia sua mãe no banheiro do posto de gasolina.

Ia começar a falar, quando ele disse: — Mas não devo aborrecer você com tudo isso. Telefonei para dizer outra coisa.

Isso era mais parecido com Stanley, ela pensou. E sua mãe fica­ria bem por mais uns poucos minutos.

Ele continuou: — Depois do Natal, quer jantar comigo uma noite?

O que é isso agora, ela pensou, e disse: — Claro. — O que signifi­cava aquilo?

— Você sabe que desaprovo homens que saem com suas subordi­nadas no trabalho. Isso as deixa em uma posição muito difícil, podem achar que, se recusarem, estarão prejudicando sua carreira.

— Não tenho medo disso — ela disse, um pouco friamente. Ele estava dizendo que o convite não era uma investida romântica e por isso Toni não precisava se preocupar? Ela ficou com falta de ar e procurou parecer normal. — Terei muito prazer em jantar com você.

— Estive pensando na nossa conversa esta manhã no penhasco.

Eu também, Toni pensou.

Ele continuou: — Eu disse uma coisa da qual me arrependi.

— O que... — Toni mal conseguia respirar — ...o que foi?

— Que eu nunca poderia criar outra família.

— Não quis dizer isso?

— Eu disse porque tive... medo. Estranho, não é? Ter medo na minha idade.

— Medo do quê?

Depois de uma longa pausa, ele disse: — Dos meus sentimentos.

Toni quase deixou cair o telefone. Sentiu um calor subir do pes­coço para o rosto.

— Sentimentos — ela repetiu.

— Se esta conversa a estiver deixando terrivelmente embaraçada, é só dizer, que nunca mais toco no assunto.

— Continue.

— Quando me contou que Osborne a tinha convidado para sair, me dei conta de que você não vai ficar solteira para sempre, prova­velmente não por muito tempo. Se estou sendo um completo idio­ta, diga logo e acabe com este sofrimento.

— Não... — Toni engoliu em seco. Certamente aquilo era extremamente difícil para ele. Por quarenta anos não falava assim com uma mulher. Ela devia ajudá-lo, deixar claro que não estava ofendi­da. — Não, não está sendo idiota, de modo algum.

— Esta manhã pensei que você talvez sentisse alguma coisa por mim e isso me assustou. Faço bem em dizer tudo isto? Eu queria ver seu rosto.

— Estou muito satisfeita — ela disse, em voz baixa. — Muito feliz.

— De verdade?

— Sim.

— Quando posso ver você? Quero falar um pouco mais.

— Estou com minha mãe num pequeno posto de gasolina. Vejo que ela acaba de sair do banheiro. — Toni saiu do carro, com o celular no ouvido. — Vamos conversar amanhã de manhã.

— Não desligue ainda. Tenho tanta coisa para dizer...

Toni acenou para a mãe e disse em voz alta: “Aqui!” A mãe a viu e caminhou para o carro. Toni abriu a porta e a ajudou a entrar, dizendo: — Estou quase terminando este telefonema.

Stanley perguntou: — Onde você está?

Ela fechou a porta do lado da mãe.

— Apenas a 16 quilômetros de Inverburn, mas o trânsito está lento demais.

— Quero me encontrar com você amanhã. Nós dois temos obrigações de família, mas temos direito de algum tempo para nós.

— Vamos dar um jeito. — Ela abriu a porta do lado do motorista. — Preciso ir. Mamãe está com frio.

— Até logo — ele disse. — Ligue a qualquer hora que tiver vonta­de. Qualquer hora.

— Até logo. — Ela fechou o celular e entrou no carro.

— Que grande sorriso — sua mãe disse. — Você se alegrou. Quem era ao telefone? Alguém interessante?

— Sim, mamãe. Alguém muito interessante mesmo.

 

Kit esperou impacientemente no quarto que todos se recolhes­sem. Tinha de sair o mais depressa possível, mas tudo estaria arrui­nado se alguém o visse, por isso se obrigou a esperar.

Sentou-se à velha mesa no quarto de guardados. Seu laptop esta­va ainda ligado para conservar a bateria. Ia precisar dele mais tarde, naquela noite. O celular estava no seu bolso.

Tinha interceptado três ligações do Kremlin. Dois foram telefonemas inofensivos para os guardas e ele os deixou passar. O terceiro foi do Kremlin para Steepfall. Kit supôs que Steve Tremlett, quando não conseguiu falar com Toni Gallo, quis avisar Stanley do proble­ma das linhas telefônicas. Ele usou uma mensagem gravada dizendo que a linha estava com defeito.

Enquanto esperava, ouvia impaciente os sons da casa. Ouviu Olga e Hugo brigando no quarto ao lado do seu, Olga agressiva, disparando perguntas e afirmações como uma pistola, Hugo ora infeliz, implorando, ora persuadindo e zombando, depois infeliz outra vez. Lá embaixo, Lori e Luke bateram panelas e louças na cozinha durante meia hora, depois a porta da frente bateu quando saíram para sua casa a dois quilômetros dali. As crianças estavam no celeiro e Miranda e Ned provavelmente tinham ido para o chalé de hóspe­des. Stanley foi o último a subir para o quarto. Foi primeiro ao escri­tório, fechou a porta e deu um telefonema — era possível saber quan­do alguém usava o telefone na casa porque a luz que indicava linha ocupada se acendia em todas as extensões. Depois de algum tempo, Kit o ouviu subir a escada e fechar a porta do quarto. Olga e Hugo foram ao banheiro e depois ficaram quietos, reconciliados ou exaustos. Nellie, o cachorro, devia estar na cozinha, deitado perto do fogão, o lugar mais quente da casa.

Kit esperou um pouco mais, dando a todos tempo para adorme­cerem.

A briga na família era uma vingança para ele. O erro de Miranda provava que ele não era o único pecador. Eles o culpavam por reve­lar um segredo, mas era melhor falar claramente dessas coisas. Por que suas transgressões podiam ser mencionadas abertamente e as de Miranda discretamente ocultadas? Ele gostou de ver Olga esbofetear Hugo. Minha irmã mais velha não deixa por menos, ele pensou, divertido.

Imaginou se ousaria sair naquele momento. Estava pronto. Tirara o anel de sinete e substituíra seu elegante relógio de pulso Armani por um Swatch comum. Vestia calça jeans e um suéter negro espesso. As botas levaria na mão até depois de descer a escada.

Kit se levantou — então ouviu bater a porta dos fundos. Praguejou, frustrado. Alguém acabava de entrar — um ou dois dos meninos, provavelmente, para assaltar a geladeira. Esperou para ouvir a porta outra vez, indicando que tinham saído, mas o que ouviu foram passos subindo a escada.

Um momento depois ouviu abrir a porta do seu quarto e Miranda entrou no cubículo. Estava com botas de borracha e um casaco por cima da camisola e carregava um lençol e um cobertor. Sem dizer uma palavra, ela foi para a poltrona de dormir e estendeu o lençol.

Kit ficou furioso.

— Pelo amor de Deus, o que você quer?

— Vou dormir aqui — ela respondeu calmamente.

— Não pode! — ele disse, em pânico.

— Não sei por quê.

— Você devia estar no chalé.

— Briguei com Ned, graças a sua revelação no jantar, seu espião de merda.

— Não quero você aqui!

— Não dou a mínima para o que você quer.

Kit tentou ficar calmo. Consternado, viu Miranda se preparando para deitar na poltrona. Como ia sair do quarto sem que nin­guém visse com Miranda ali, ouvindo tudo? Ela estava agitada e podia demorar horas para dormir. E então, de manhã certamente se levantaria antes de ele voltar. Seu álibi entrava em colapso.

Kit tinha de sair dali. Fingiria que estava mais furioso do que realmente se sentia.

— Foda-se — ele disse. Desligou o laptop e fechou a tampa. — Não vou ficar aqui com você. — Foi para o quarto.

— Para onde você vai?

Sem que ela visse, ele apanhou as botas.

— Vou ver TV na sala.

— Mantenha o volume baixo. — Ela bateu a porta do cubículo.

Kit saiu do quarto.

Na ponta dos pés atravessou o corredor e desceu a escada. A madeira rangia, mas aquela casa estalava constantemente e ninguém notava os barulhos estranhos. A luz fraca da varanda entrava pela pequena janela ao lado da porta da frente fazendo halos em volta do cabide de chapéus, do corrimão da escada e da pilha de listas sobre a mesa do telefone. Nellie saiu da cozinha e ficou ao lado da porta, sacudindo a cauda, esperando com irrepressível otimismo canino ser levada para um passeio.

Kit se sentou na escada e calçou as botas, atento ao som de alguma porta lá em cima. Era um momento perigoso e ele sentiu um arrepio de medo enquanto amarrava os cordões da bota. Sempre tinha alguém andando pela casa no meio da noite. Olga podia que­rer água, Caroline podia vir do celeiro à procura de um comprimido para dor de cabeça, Stanley podia ter uma inspiração científica e des­cer para seu computador.

Amarrou os cordões e vestiu um casaco preto. Estava quase fora de casa.

Se alguém o visse agora, ele simplesmente iria embora. Ninguém o deteria. O problema seria no dia seguinte. Sabendo que ele saíra, podiam imaginar aonde tinha ido e parte do seu plano era que ninguém compreendesse o que tinha acontecido.

Empurrou Nellie para o lado e abriu a porta, que nunca era trancada. Stanley acreditava que, naquele lugar afastado, intrusos eram pouco prováveis e o cachorro era o melhor alarme contra ladrões.

Kit saiu. Fazia muito frio e a neve caía pesadamente. Empurrou o focinho de Nellie para dentro e fechou a porta com um leve estalido.

As luzes em volta da casa ficavam acesas a noite toda, porém mesmo assim ele mal podia ver a garagem. A neve no chão tinha vários centímetros de altura. Suas meias e a bainha da calça ficaram encharcadas em poucos minutos. Devia estar usando uma bota Wellington de borracha.

Seu carro estava na outra extremidade da garagem, coberto por uma capa de neve. Kit esperava que o motor pegasse. Entrou no carro e pôs o laptop no banco do passageiro, ao seu lado, para poder continuar monitorando os telefonemas do Kremlin. Virou a chave. O carro engasgou, mas depois de alguns segundos o motor começou a funcionar.

Kit esperava que ninguém ouvisse.

A neve pesada era ofuscante e ele teve de acender os faróis, rezando para que não houvesse ninguém em uma das janelas.

Engatou a primeira. O carro deslizou ameaçadoramente na neve espessa. Ele seguiu em frente, tendo o cuidado de não virar a direção muito depressa. Levou o carro para a saída, manobrou cuidadosa­mente, deu a volta na faixa estreita de terra, entrou no bosque e se­guiu a trilha até a estrada principal.

Ali a neve não estava intocada. Havia marcas de pneus nas duas direções. Kit seguiu para o norte, afastando-se do Kremlin, e pegou a trilha feita pelos pneus dos outros carros. Depois de dez minutos pegou a estrada lateral que seguia pelas montanhas. Não havia nenhuma marca de pneus e ele diminuiu mais ainda a marcha, dese­jando que o carro tivesse tração nas quatro rodas.

Finalmente viu uma tabuleta que dizia: “Escola de Aviação Inverburn” e ele seguiu para a entrada da escola. Os portões duplos estavam abertos. Kit entrou. Seus faróis iluminaram um hangar e uma torre de controle.

O lugar parecia deserto. Por um momento, Kit quase desejou que os outros não aparecessem e ele pudesse desistir de tudo. A idéia de acabar de repente com aquela tensão terrível era tão tentadora que ele começou a se sentir deprimido. Procure se controlar, ele pen­sou. Esta noite será o fim de todos os seus problemas.

A porta do hangar estava meio aberta. Ele entrou devagar. Não havia aviões lá dentro — o campo funcionava só nos meses de verão — mas ele viu imediatamente um Bentley Continental de cor clara. Era o carro de Nigel Buchanan. Ao lado dele estava uma van da Hibernian Telecom.

Os outros não estavam visíveis, mas ele notou uma luz fraca que vinha da escada. Levando seu laptop, Kit subiu a escada da torre de controle.

Nigel estava sentado a uma mesa de trabalho, com um suéter cor-de-rosa de gola alta e um casaco esporte, parecendo calmo, com um celular no ouvido. Elton estava encostado na parede com a gola do casaco bege levantada e uma grande sacola de lona aos pés. Daisy, sentada confortavelmente em uma cadeira, apoiava os pés no para­peito da janela. Calçava luvas justas de suede bege que pareciam absurdamente elegantes.

Nigel falava ao telefone com sua voz suave de londrino: — Está nevando muito aqui, mas a previsão é de que o pior da tempestade vai passar longe... Sim, você vai poder voar amanhã de manhã, sem problema... estaremos aqui bem antes das dez... Estarei na torre de controle para falar com você quando chegar... Não vai haver nenhum problema, desde que esteja com todo o dinheiro em notas diferentes, como combinado.

À menção do dinheiro Kit sentiu um arrepio de excitação. Trezentas mil libras em suas mãos, dentro de doze horas e alguns minutos. Tinha de dar grande parte para Daisy imediatamente, mas ficaria com cinqüenta mil. Imaginou quanto espaço ocupariam cinqüenta mil libras em notas diferentes. Poderia guardar nos bolsos? Devia ter trazido uma maleta...

— Obrigado — Nigel dizia. — Até logo. — Virou-se para os outros. — Oi, Kit. Você chegou bem na hora.

— Quem era ao telefone? — ele perguntou. — Nosso comprador?

— O piloto dele. Deve chegar de helicóptero.

Kit franziu a testa.

— O que diz seu plano de vôo?

— Saída de Aberdeen e chegada a Londres. Ninguém vai saber que fez uma conexão fora do plano, na Escola de Aviação de Inverburn.

— Ótimo.

— Fico feliz com sua aprovação — Nigel disse com um toque de sarcasmo. Kit sempre o questionava sobre suas áreas de responsabili­dade, temendo que Nigel, embora experiente, não fosse tão culto ou tão inteligente quanto ele. Nigel respondia às perguntas com um ar de afetada ironia, obviamente achando que Kit, como amador, devia confiar nele.

Elton disse: — Vamos nos preparar? — Tirou da sacola vários maca­cões com “Hibernian Telecom” escrito nas costas e todos vestiram.

Kit disse para Daisy: — As luvas parecem estranhas com o macacão.

— É uma pena — ela disse.

Kit olhou para ela por um momento, depois abaixou os olhos. Ela era um problema e ele desejou que não estivesse ali naquela noite. Kit a temia mas também a odiava e estava resolvido a diminuí-la, para estabelecer sua autoridade e para se vingar do que ela fizera naquela manhã. Logo haveria o confronto e Kit tanto o temia quan­to desejava.

Em seguida, Elton distribuiu crachás falsos de identidade que diziam “Equipe de Manutenção da Hibernian Telecom”. O crachá de Kit tinha uma foto de um homem mais velho que em nada se parecia com ele. O homem usava óculos, tinha cabelo escuro até a metade das orelhas, num corte que jamais Kit usou, além de um bigodão mexicano.

Elton então tirou da sacola uma peruca e bigode negros, óculos com lentes grossas, um espelho de mão e um tubo de cola. Kit colou o bigode e pôs a peruca. Seu cabelo era castanho-claro e cortado curto de acordo com a moda. Olhou no espelho e viu que o disfarce alterava radicalmente sua aparência. Um bom trabalho de Elton.

Kit confiava em Elton. Seu humor disfarçava uma eficiência cruel. Ele faria o que fosse necessário para terminar esse trabalho, Kit pensou.

Nessa noite Kit pretendia evitar os guardas que trabalhavam no Kremlin quando ele estava lá. Porém, se precisasse falar com algum deles, nenhum o reconheceria. Desfizera-se das jóias que usava sempre e mudaria a voz.

Elton também tinha um disfarce para Nigel, para Daisy e para si mesmo. Ninguém no Kremlin os conhecia, portanto não havia perigo de reconhecimento imediato, porém mais tarde os guardas des­creveriam os intrusos para a polícia e os disfarces garantiriam que as descrições não tivessem nada a ver com seus rostos verdadeiros.

Kit viu que Nigel também tinha uma peruca. Seu cabelo era cor de areia e curto mas o da peruca era meio grisalho e descia até a altu­ra do queixo, fazendo com que o elegante Nigel parecesse um Beatle idoso. Também tinha óculos, com enormes armações fora de moda.

Daisy tinha uma peruca loura comprida na cabeça raspada. Lentes de contato coloridas transformavam em azul-claro o casta­nho dos olhos. Estava mais horrível do que nunca. Kit às vezes imaginava a vida sexual dela. Certa vez conheceu um homem que afir­mava ter dormido com ela, mas tudo que ele dizia era: “Ainda tenho as marcas no corpo que ela me deixou.” Kit a viu tirar os piercings das sobrancelhas, do nariz e do lábio inferior. Agora ela parecia um pouco menos esquisita.

O disfarce de Elton era mais sutil. Apenas duas dentaduras, superior e inferior que o faziam parecer dentuço — o suficiente para transformá-lo completamente. O sujeito bonitão tinha desapareci­do, deixando em seu lugar um perfeito idiota.

Finalmente ele deu a todos bonés de beisebol com “Hibernian Telecom” escrito na frente.

— A maioria das câmeras da segurança fica no alto — ele explicou. — Um boné com pala comprida garantirá que não poderão ver seus rostos.

Estavam prontos. Houve um momento de silêncio, enquanto olhavam uns para os outros. Então Nigel disse: — Hora do espetáculo.

Saíram da torre de controle e desceram para o hangar. Elton sen­tou na frente do volante da sua van. Daisy saltou para dentro e se sentou ao lado dele. Nigel se sentou à janela. Não havia mais lugar na frente. Kit teria de se sentar no chão, atrás com as ferramentas.

Enquanto ele olhava para eles sem saber o que fazer, Daisy che­gou mais perto de Elton e pôs a mão no joelho dele.

— Você gosta de louras? — ela perguntou.

Elton continuou a olhar para a frente com o rosto inexpressivo.

— Eu sou casado com uma mulher branca — ele disse, tirando a mão dela da sua perna.

Kit resolveu que aquele era o momento de dar um jeito nela. Com o coração na boca, ele disse: — Daisy, passe para trás.

— Vá se foder — ela respondeu.

— Não estou pedindo, estou mandando. Passe para trás.

— Tente me obrigar.

— Muito bem.

— Vá em frente — ela disse, com um largo sorriso. — Estou louca para isso.

— A operação está cancelada — Kit disse, respirando com dificul­dade, cheio de medo, mas conseguiu falar com voz calma. — Des­culpe, Nigel. Boa noite para todos. — Afastou-se da van com pernas trêmulas.

Entrou no seu carro, ligou o motor, acendeu os faróis e esperou.

De onde estava via a frente da van. Eles estavam discutindo. Daisy gesticulava. Depois de um minuto, Nigel saiu da van e segu­rou a porta aberta. Daisy continuou a protestar. Nigel foi para trás da van, abriu a porta e voltou para a frente.

Afinal Daisy desceu. Parou por um instante, olhando com ódio para Kit. Então entrou na parte de trás da van e bateu as portas.

Kit voltou para a van e se sentou na frente. Elton saiu da garagem e parou. Nigel fechou a porta grande do hangar e entrou na van. Elton resmungou: — Espero que a previsão do tempo esteja certa. Vejam esta porra de neve. — Passaram pelo portão.

O celular de Kit tocou. Ele abriu a tampa do laptop. Na tela estava escrito: “Toni chamando Kremlin.”

 

A mãe de Toni adormeceu assim que saíram do posto de gasolina. Toni parou o carro, reclinou o banco e usou uma echarpe como travesseiro. Sua mãe dormia como um bebê. Toni achou estranho estar tomando conta da mãe como se ela fosse uma criança. Isso a fazia sentir-se velha.

Mas nada podia deixá-la deprimida depois da conversa com Stanley. Com seu estilo discreto característico, ele havia declarado o que sentia. Abraçada a essa revelação, ela seguiu na neve, quilômetro após quilômetro, para Inverburn.

Sua mãe dormia profundamente quando chegaram à periferia da cidade. Ainda havia pessoas comemorando o Natal. O trânsito man­tinha as ruas da cidade livres da neve e Toni conseguiu ir em frente sem temer derrapar a qualquer momento. Aproveitou a oportunida­de e ligou para o Kremlin, só para verificar como iam as coisas.

Steve Tremlett atendeu ao telefone.

— Oxenford Medical.

— É Toni. Como vai tudo?

— Oi, Toni. Temos um pequeno problema, mas estamos tratando de resolver.

Toni sentiu um arrepio.

— Que problema?

— Quase todos os telefones estão mudos. Só este está funcionan­do, na recepção.

— Como aconteceu?

— Não tenho idéia. A neve, provavelmente.

Toni balançou a cabeça, atônita.

— Nosso sistema de comunicação custou quase um milhão de libras. Não devia enguiçar por causa do tempo. Podemos consertar?

— Sim. Chamei uma equipe da Hibernian Telecom. Devem chegar dentro de alguns minutos.

— E os alarmes?

— Não sei se estão funcionando ou não.

— Droga. Informou a polícia?

— Sim. Uma radiopatrulha passou por aqui. Os policiais deram uma olhada e não viram nada de anormal. Já foram embora para prender os bêbados do Natal na cidade.

Um homem passou cambaleando pela frente do carro e Toni desviou rapidamente.

— Posso ver por quê — ela disse.

Depois de uma pausa, ele perguntou: — Onde você está?

— Inverburn.

— Pensei que fosse a um spa.

— Eu ia, mas surgiu um problema de família. Depois diga-me o que a equipe de manutenção achou, certo? Ligue para o meu celular.

— Certo.

Toni desligou. Merda, ela pensou. Primeiro mamãe, agora isto.

Seguiu pela teia de ruas residenciais na encosta da montanha, dando para o porto. Quando chegou ao seu prédio, estacionou mas não saiu do carro.

Tinha de ir ao Kremlin.

Se estivesse no spa, nem pensaria em voltar — era muito longe. Mas estava em Inverburn. Ia demorar um pouco com aquele tempo — pelo menos uma hora, em vez dos dez ou quinze minutos habituais — mas era perfeitamente possível. O único problema era sua mãe.

Toni fechou os olhos. Precisava mesmo ir? Mesmo que Michael Ross estivesse trabalhando para a Animais Livres, parecia pouco provável que tivesse algo a ver com a pane no sistema telefônico. Não era fácil sabotar aquele sistema. Por outro lado, ela já havia dito que era impossível roubar um coelho do BSL4.

Ela suspirou. Só podia tomar uma decisão. Resumindo, a segurança do laboratório era sua responsabilidade e não podia ficar em casa e ir para a cama enquanto estava acontecendo algo de estranho na Oxenford Medical.

Sua mãe não podia ficar sozinha e Toni não podia pedir aos vizi­nhos para ficarem com ela àquela hora da noite. Sua mãe simples­mente tinha de ir com ela ao Kremlin.

Quando ela engatou a primeira, um homem saiu de um Jaguar claro estacionado alguns carros à sua frente. Havia alguma coisa de familiar nele, ela pensou, e hesitou para sair da vaga. Ele caminhou pela calçada na direção dela. Pelo andar, Toni pensou que ele devia estar um pouco alto, mas perfeitamente controlado. Ele chegou na janela do carro e Toni reconheceu Carl Osborne, o repórter da televisão. Ele tinha alguma coisa nas mãos.

Toni pôs o carro em ponto morto e abaixou o vidro da janela.

— Olá, Carl. O que está fazendo aqui?

— Esperando por você. Estava pronto para desistir.

A mãe de Toni acordou e disse: — Olá, esse é seu namorado?

— Este é Carl Osborne e não é meu namorado.

Com sua habitual e precisa falta de tato, ela disse: — Talvez ele queira ser?

Toni voltou-se para Carl que sorria.

— Esta é minha mãe, Kathleen Gallo.

— É um privilégio conhecê-la, sra. Gallo.

— Por que estava me esperando? — Toni perguntou.

— Eu trouxe um presente — ele disse, mostrando o que tinha nas mãos, um cachorrinho. — Feliz Natal — ele disse e pôs o cachorro no colo dela.

— Carl, pelo amor de Deus, não seja ridículo. — Ela pegou o animalzinho peludo e tentou devolver.

Carl recuou e levantou a mão.

— É seu.

O cachorrinho era macio e quente em suas mãos e uma parte dela queria continuar a segurá-lo, mas sabia que tinha de se livrar dele. Desceu do carro.

— Não quero um bichinho de estimação — ela disse com firmeza. — Sou uma mulher solteira, com um emprego que exige todo o meu tempo e uma mãe idosa, e não posso dar a um cachorro o cuidado e a atenção necessários.

— Você dará um jeito. Como vai chamá-lo? Carl é um belo nome.

Toni olhou para o animalzinho. Era um sheepdog, branco com pintas cinzentas, com mais ou menos oito semanas. Ela podia segurá-lo com uma das mãos. O cachorrinho a lambeu com a língua áspera e fitou nela os olhos suplicantes. Toni endureceu o coração. Foi até o carro de Carl e pôs o cachorro no banco da frente.

— Você dá um nome para ele. Eu já tenho muito em que pensar.

— Bem, pense a respeito — ele disse, desapontado. — Fico com ele esta noite e telefono para você amanhã.

Toni voltou para seu carro.

— Não telefone, por favor. — Engatou a primeira.

— Você é uma mulher insensível — ele disse, vendo o carro de Toni se afastar.

Por alguma razão aquilo a magoou. Não sou insensível, ela pen­sou. Lágrimas inesperadas encheram seus olhos. Tive de enfrentar a morte de Michael Ross e uma alcatéia de repórteres, fui xingada por Kit Oxenford, minha irmã me deixou na mão e cancelei o descanso que esperava tão ansiosamente. Sou responsável por mim, por minha mãe e pelo Kremlin e não posso imaginar um cachorrinho também, esse é o caso.

Então lembrou de Stanley e percebeu que não dava a mínima para o que Carl Osborne pensasse.

Enxugou os olhos com as costas da mão e olhou para a frente — para os flocos de neve que giravam no ar. Saindo da sua rua vitoria­na, seguiu para a rua principal, para fora da cidade.

Sua mãe disse: — Carl parece interessante.

— Na verdade, ele não é muito interessante, mamãe. Ele é super­ficial e desonesto.

— Ninguém é perfeito. Não deve haver muitos homens disponíveis para alguém da sua idade.

— Quase nenhum.

— Você não vai querer acabar sozinha.

Toni sorriu mentalmente.

— Acontece que acho que não vou acabar sozinha.

O trânsito ficou mais livre quando saiu do centro da cidade e a camada de neve que cobria a estrada era espessa. Ao manobrar cuida­dosamente pelas ruas sinuosas notou que estava sendo seguida de per­to por um carro. Olhou pelo retrovisor e identificou o Jaguar claro.

Carl Osborne estava atrás dela.

Toni parou no acostamento e ele parou bem atrás dela.

Toni saiu do carro e foi até a janela dele.

— O que é agora?

— Sou um repórter, Toni — ele disse. — É quase meia-noite da vés­pera de Natal, você está tomando conta de sua mãe, mas está indo diretamente para o Kremlin. Isso deve dar uma boa matéria.

— Oh, merda — Toni disse.

 

O Kremlin parecia saído de um conto de fadas com a neve espessa caindo em volta dos telhados e torres iluminados por holofotes. Quando a van da Hibernian Telecom se aproximou do portão principal, por um momento Kit se viu como o Cavaleiro Negro chegan­do para sitiar o castelo.

Era um alívio chegar finalmente. A neve estava se tornando uma verdadeira tempestade, contrariando as previsões, e a jornada do aeroporto até lá levou mais tempo do que esperavam. A demora o preocupou. Cada minuto aumentava as probabilidades de alguma coisa dar errado, arruinando seu plano tão caprichado.

O telefonema de Toni Gallo o preocupava. Ele a conectou com Steve Tremlett temendo que se desse uma mensagem falsa ela pudes­se ir ao Kremlin para ver o que estava acontecendo. Mas, ao ouvir a conversa, Kit percebeu que ela iria de qualquer modo. Era falta de sorte Toni estar em Inverburn e não no spa, a oitenta quilômetros de distância.

A primeira das duas barreiras foi erguida e Elton se adiantou ficando ao lado da guarita. Havia dois guardas na cabine, como Kit esperava. Elton abaixou o vidro da janela. Um guarda se inclinou para fora e disse: — Estamos contentes por ver vocês, rapazes.

Kit não conhecia o homem mas, se lembrando de sua conversa com Hamish, concluiu que devia ser William Crawford. Olhando mais à frente ele viu Hamish.

Willie disse: — É bondade sua virem no Natal.

— Tudo parte do trabalho — Elton disse.

— São três, certo?

— Mais a Cachinhos Dourados aqui atrás.

Uma voz rosnou: — Cuidado com a língua, seu merda.

Kit reprimiu um gemido. Como podiam brigar num momento tão crucial?

Nigel murmurou: — Parem com isso vocês dois.

Aparentemente Willie não tinha ouvido a conversa. Ele disse: — Preciso ver a identificação de todos, por favor.

Eles tiraram do bolso os crachás falsos. Elton os fizera baseado na lembrança que Kit tinha dos crachás da Hibernian Telecom. Os telefones raramente enguiçavam, por isso Kit imaginou que nenhum guarda se lembraria de como era um crachá verdadeiro. Agora, enquanto o guarda examinava os crachás como se fossem notas falsas de cinqüenta libras, ele prendeu a respiração.

Willie anotou o nome que constava em cada um e depois os devolveu sem nenhum comentário. Kit desviou os olhos e respirou.

— Vá até a entrada principal — Willie disse. — Vai encontrar, se ficar entre os postes de luz. — A rua na frente estava invisível, cober­ta de neve. — Na recepção vai encontrar o sr. Tremlett, que pode dizer aonde vocês devem ir.

A segunda barreira foi erguida e Elton seguiu em frente.

Estavam dentro.

Kit sentiu náusea de tanto medo. Já havia cometido outro crime antes, o golpe que resultou na sua demissão, mas sem sentir que era um crime, era mais como roubar em um jogo de cartas, uma coisa que ele fazia desde os onze anos. Mas aquilo era definitivamente um roubo e ele podia parar na cadeia. Engoliu em seco e tentou se con­centrar. Pensou na enorme quantia de dinheiro que devia a Harry Mac. Lembrou-se do terror cego que sentira naquela manhã quando Daisy segurou sua cabeça debaixo da água e ele pensou que iria mor­rer. Tinha de seguir em frente.

Nigel disse em voz baixa para Elton: — Tente não provocar Daisy.

— Foi só uma brincadeira — Elton disse, defensivamente.

— Ela não tem senso de humor.

Se Daisy ouviu, não demonstrou.

Elton estacionou na entrada principal e todos saíram da van, Kit com seu laptop. Nigel e Daisy tiraram duas caixas da van. Elton levava uma pasta de couro vermelha, muito fina, com fecho de metal — típica do seu gosto, mas um pouco estranha para um técnico de telefonia, Kit pensou.

Passaram entre os leões de pedra do pórtico e entraram no saguão. Luzes baixas de segurança acentuavam a aparência de igreja da arquitetura vitoriana: as janelas com quadrados de vidro, os arcos em ponta e a madeira compacta do telhado. A pouca luz não fazia diferença para as câmeras de vigilância que, Kit sabia, funcionavam com luz infravermelha.

No moderno balcão de recepção, no meio do saguão, havia mais dois guardas. Um deles era uma mulher jovem e atraente que Kit não conhecia e o outro, Steve Tremlett. Kit ficou um pouco atrás, para que Steve não o visse muito de perto.

— Vocês devem querer ir para a unidade central de processamen­to — Steve disse.

— O lugar certo para começar — Nigel respondeu.

Steve ergueu a sobrancelha ao ouvir o sotaque londrino, mas não fez nenhum comentário.

— Susan mostrará o caminho. Eu tenho de ficar perto do telefone.

Susan tinha cabelo curto e sobrancelha em ponta. Vestia uma camisa com dragonas, gravata, calça escura de uniforme e sapatos pretos. Com um sorriso amistoso ela os levou por um corredor de paredes forradas de madeira escura.

Uma calma estranha pareceu descer sobre Kit. Estava dentro, conduzido por uma guarda de segurança, prestes a assaltar o laboratório. Pensou com fatalismo: as cartas estão na mesa, ele havia feito sua aposta, não havia nada mais a fazer senão jogar, perdendo ou ganhando.

Entraram na sala de controle.

O lugar estava mais limpo e arrumado do que Kit lembrava, com todos os cabos em ordem e os livros de registro alinhados em uma prateleira. Kit supôs que era influência de Toni. Ali também havia dois guardas em vez de um, sentados à mesa comprida, vigiando os monitores. Susan os apresentou como Don e Stu. Don era indiano, de pele morena e com um forte sotaque de Glasgow, e Stu era um ruivo sardento. Kit não conhecia nenhum dos dois. Um guarda a mais não era grande coisa, ele pensou. Apenas outro par de olhos dos quais esconder as coisas, outro cérebro para ser distraído, outra pessoa para ser embalada até a apatia.

Susan abriu a porta da sala de equipamento.

— A CPU fica aí.

Um segundo depois Kit estava dentro da sala secreta. Fácil assim!, ele pensou, embora tivesse exigido semanas de preparação. Ali estavam os computadores e outros aparelhos responsáveis pelo funcionamento não só do sistema telefônico, como também da iluminação, das câmeras de vigilância e dos alarmes. Só o fato de ter chegado ali já era um triunfo.

Ele disse para Susan: — Muito obrigado. Daqui por diante é por nossa conta.

— Se precisarem de alguma coisa, vão à recepção — ela disse e saiu da sala.

Kit pôs o laptop em uma prateleira e o ligou ao computador do sistema telefônico. Puxou uma cadeira e virou o laptop de modo que a tela não pudesse ser vista por quem estivesse na porta. Sentiu que Daisy o observava, desconfiada e malévola.

— Vá para a sala ao lado — Kit disse para ela. — Fique de olho nos guardas.

Ela olhou furiosa para ele por um momento e depois obedeceu.

Kit respirou fundo. Sabia exatamente o que tinha de fazer. Precisava trabalhar rapidamente mas com cautela.

Primeiro acessou o programa que controlava as imagens de trinta e sete câmeras do circuito interno de televisão. Olhou para a entrada do BSL4 que parecia normal. Verificou a mesa de recepção e viu Steve, mas não Susan. Examinou as imagens de outras câmeras e localizou Susan, patrulhando outra parte do prédio. Consultou a hora.

A gigantesca memória do computador armazenava as imagens das câmeras durante quatro semanas antes de apagá-las. Kit sabia como usar o programa, pois ele o havia instalado. Localizou as imagens das câmeras do BSL4, gravadas na noite anterior, naquela mes­ma hora. Queria se certificar de que nenhum cientista maluco esti­vera trabalhando no laboratório no meio da noite, mas as imagens mostraram salas vazias. Ótimo.

Nigel e Elton observavam seu trabalho num silêncio tenso.

Em seguida, Kit transferiu as imagens gravadas para os monito­res que os guardas observavam.

Agora qualquer pessoa podia passear pelo BSL4 sem ser vista pelos guardas.

Os monitores possuíam computadores especiais que detectavam qualquer substituição do equipamento, por exemplo se a imagem viesse de uma fonte de vídeo diferente. Porém, essas imagens não vinham de uma fonte externa, mas diretamente da memória do computador da empresa — portanto, não detonou o alarme.

Kit entrou na sala principal de controle. Daisy estava refestelada em uma cadeira, com o casaco de couro por sobre o macacão da Hibernian Telecom. Kit olhou atentamente para a fila de monitores. Todos pareciam normais. O guarda moreno, Don, olhou interrogativamente para ele. Para disfarçar, Kit disse: — Algum telefone daqui está funcionando?

— Nenhum — disse Don.

Na parte inferior de cada tela uma linha de texto indicava a data e a hora. A hora era a mesma das telas que mostravam as imagens da véspera — Kit tinha providenciado isso. Mas as imagens da véspera mostravam a data da véspera.

Kit podia apostar que ninguém jamais olhava a data. Os guardas examinavam as telas à procura de atividade, não liam textos que diziam o que eles já sabiam.

Kit esperava estar certo.

Don ficou intrigado com o interesse de um técnico de telefones por monitores de vídeo.

— Podemos fazer alguma coisa por você? — ele disse num tom desafiador.

Daisy rosnou e se mexeu na cadeira, como um cão sentindo ten­são entre os humanos.

O celular de Kit tocou.

Ele voltou para a sala de equipamento. A mensagem no seu lap-top dizia: “Kremlin chamando Toni.” Ele imaginou que Steve queria informá-la que a equipe de manutenção tinha chegado. Resolveu liberar o telefonema. Steve podia tranqüilizar Toni e desencorajá-la de ir ao laboratório. Apertou uma tecla e ouviu no seu celular.

— Toni Gallo. — Ela estava no carro. Kit ouvia o motor.

— É Steve, no Kremlin. A equipe de manutenção da Hibernian Telecom chegou.

— Eles solucionaram o problema?

— Apenas começaram a trabalhar. Espero não ter acordado você.

— Não. Não estou na cama. Estou indo para aí.

Kit praguejou. Era isso que ele temia.

— Na verdade, não é preciso — Steve disse.

Kit pensou: Isso mesmo!

— Provavelmente não — Toni respondeu. — Mas assim me senti­rei melhor.

Kit pensou: Quando vai chegar aqui?

Steve teve a mesma idéia.

— Onde você está agora? — ele perguntou.

— A poucos quilômetros, mas as estradas estão péssimas e não posso passar de vinte ou trinta quilômetros por hora.

— Está no seu Porsche?

— Estou.

— Estamos na Escócia, você devia ter comprado um Land Rover.

— Eu devia ter comprado um maldito tanque.

Ora vamos, Kit pensou, em quanto tempo?

Toni respondeu a essa pergunta.

— Vou levar pelo menos meia hora, talvez uma hora.

Eles desligaram e Kit praguejou em voz baixa.

Pensou então que uma visita de Toni não seria fatal. Não havia nada indicando que o Kremlin estivesse sendo roubado. Nada deve­ria parecer estranho por alguns dias. Tudo que saberiam era que tinha havido um problema com o sistema de telefones e uma equipe de manutenção resolvera. Até os cientistas voltarem ao trabalho ninguém perceberia que o BSL4 fora assaltado.

O maior perigo era Toni perceber o disfarce de Kit. Ele estava completamente diferente, sem suas jóias, e podia facilmente alterar a voz, acentuando o sotaque escocês. Mas Toni era uma filha-da-mãe muito esperta e Kit não queria correr riscos. Se Toni aparecesse, ele procuraria ficar o mais longe possível dela deixando Nigel falar. Mesmo assim, o risco de alguma coisa dar errado aumentaria dez vezes.

Mas ele não podia fazer nada a não ser se apressar.

O próximo passo seria fazer Nigel entrar no laboratório sem que nenhum dos guardas visse. O maior problema eram as patrulhas. De hora em hora, um guarda da recepção fazia a ronda no prédio. A patrulha seguia um roteiro preestabelecido e levava vinte minutos. Depois de passar pela entrada do BSL4, o guarda só voltaria uma hora depois.

Kit vira Susan patrulhando alguns minutos atrás, quando conectou seu laptop ao programa de vigilância. Agora ele verificava a imagem da recepção e a viu sentada à mesa com Steve, sua ronda concluída. Kit consultou o relógio. Tinha trinta minutos antes da próxima patrulha.

Kit já alterara as câmeras do laboratório, mas havia outra no lado de fora que mostrava a entrada do BSL4. Ele novamente substituiu a imagem na tela pela imagem gravada no dia anterior. Precisava de meia hora sem que ninguém passasse na tela. Parou a fita no ponto em que aparecia o guarda em patrulha. Começando quando o guarda desaparecia, ele passou a imagem gravada para o monitor na sala ao lado. Don e Stu veriam apenas um corredor vazio durante a próxima hora ou até Kit fazer o sistema voltar ao normal. A tela mostraria a hora e a data erradas, mas outra vez Kit esperava que não notassem.

Olhou para Nigel: — Vamos.

Elton ficou na sala de equipamento para garantir que ninguém mexesse no laptop.

Passando pela sala de controle, Kit disse a Daisy: — Vamos apa­nhar o nanômetro na van. Você fica aqui. — Não havia nanômetro nenhum, mas Don e Stu não sabiam disso.

Daisy resmungou e olhou para o outro lado. Ela não era muito boa no seu papel. Kit esperava que os guardas simplesmente achassem que ela fosse rabugenta.

Kit e Nigel seguiram rapidamente para o BSL4. Kit sacudiu o cartão do pai na frente da leitora, depois encostou o dedo indicador da mão esquerda na tela. Esperou o computador central comparar a informação da tela com a do cartão. Notou que Nigel estava com a elegante pasta de couro de Elton.

A luz acima da porta continuava teimosamente vermelha. Nigel olhou ansioso para Kit. Kit disse a si mesmo que aquilo tinha de funcionar. O chip continha os detalhes codificados da sua impressão digital — ele tinha verificado. O que podia sair errado?

Então uma voz de mulher atrás deles disse: — Lamento, mas vocês não podem entrar aí.

Kit e Nigel viraram para trás. Susan parecia amável mas ansiosa. Ela devia estar na recepção, Kit pensou, em pânico. Sua ronda só começaria dali a trinta minutos...

A não ser que Toni Gallo tivesse dobrado o número de rondas como dobrara a guarda.

Ouviram um som como de campainha da porta. Os três olharam para a luz acima da porta. Estava verde e a porta pesada se abriu lentamente nas dobradiças motorizadas.

Susan disse: — Como você abriu a porta? — Agora sua voz traía o medo.

Involuntariamente Kit olhou para o cartão roubado na sua mão.

Susan acompanhou o olhar.

— Você não devia ter um passe — ela disse, incrédula.

Nigel se aproximou dela.

Susan se virou e correu.

Nigel foi atrás, mas tinha o dobro da idade dela. Ele nunca vai alcançá-la, Kit pensou. Deu um grito de raiva. Como tudo podia dar errado tão de repente?

Então Daisy apareceu na passagem que levava à sala de controle.

Kit nunca pensou que podia ficar satisfeito por ver aquela cara feia.

Ela não pareceu surpresa ao ver a cena: Susan correndo para ela, Nigel atrás, Kit paralisado. Kit imaginou que ela estivera observan­do os monitores na sala de controle. Devia ter visto Susan deixar a recepção e ir para o BSL4. Compreendeu o perigo e tratou de resol­ver o problema.

Susan viu Daisy, hesitou e depois continuou a correr aparentemente resolvida a passar por ela.

A vaga sugestão de um sorriso tocou os lábios de Daisy. Levou o braço para trás e desfechou um soco no rosto de Susan. O som do golpe parecia o de um melão caindo no chão ladrilhado. Susan caiu como se tivesse batido em uma parede. Daisy esfregou as juntas da mão fechada, parecendo satisfeita.

Susan ficou de joelhos, soluçando, o sangue cobrindo o nariz e a boca. Daisy tirou do bolso do casaco um cassetete flexível com mais ou menos vinte centímetros de comprimento, feito de, Kit imaginou, bolas de aço dentro de uma cobertura de couro. Ela ergueu o braço.

Kit gritou: — Não!

Daisy bateu com a arma na cabeça de Susan. A guarda desmoro­nou sem um som.

Kit gritou: — Deixe-a em paz!

Daisy ergueu o braço outra vez, mas Nigel se adiantou e segurou o pulso dela.

— Não precisa matá-la — ele disse.

Daisy recuou relutantemente.

— Sua vaca psicopata! — Kit exclamou. — Nós todos seríamos acu­sados de homicídio.

Daisy olhou para a luva marrom-claro em sua mão direita. Viu o sangue na parte que cobria as juntas. Ela lambeu o sangue cuidadosamente.

Kit olhou para a mulher inconsciente no chão. A visão do corpo espancado era revoltante.

— Isto não devia ter acontecido — ele disse, alarmado. — Agora o que vamos fazer com ela?

Daisy ajeitou a peruca loura.

— Amarrar e esconder em algum lugar.

O cérebro de Kit começou a voltar ao normal depois do choque com a violência imprevista.

— Certo — ele disse. — Nós a levaremos para o BSL4. Os guardas não podem entrar lá.

Nigel disse para Daisy: — Leve a moça para dentro. Vou procurar alguma coisa para amarrá-la. — Ele foi para um escritório ao lado.

O celular de Kit tocou. Ele não atendeu.

Kit usou o cartão para reabrir a porta que se fechara automatica­mente. Daisy pegou um extintor de incêndio vermelho e usou para manter a porta aberta.

Kit disse: — Não pode fazer isso, vai disparar o alarme. — E tirou o extintor.

Daisy disse, cética: — O alarme dispara se você mantiver a porta aberta?

— Isso mesmo! — Kit disse, impaciente. — Há sistemas movidos a ar aqui. Eu sei porque instalei os alarmes. Agora cale a boca e faça o que foi mandado!

Daisy passou os braços em volta do peito de Susan e a arrastou no tapete. Nigel voltou com um grande fio elétrico. Entraram no BSL4. A porta se fechou automaticamente.

Estavam em um pequeno saguão que dava para o vestiário. Daisy encostou Susan na parede debaixo de uma autoclave que permitia que os instrumentos esterilizados fossem retirados do labora-tório. Nigel amarrou as mãos e pés dela com o fio elétrico.

O celular de Kit parou de tocar.

Os três saíram do laboratório. Não era preciso um passe para sair, a porta se abria quando um botão verde na parede era acionado.

Kit tentava desesperadamente pensar no que fazer. Todo seu pla­no estava arruinado. Não era mais possível o roubo passar desperce­bido.

— Logo vão dar pela falta de Susan — ele disse, tentando ficar cal­mo. — Don e Stu notarão que ela desapareceu dos monitores. Mesmo que não notem, Steve será alertado quando ela não voltar da patrulha. De qualquer modo, não temos tempo de entrar no laboratório e sair antes que dêem o alarme. Merda, tudo saiu errado!

— Fique frio — Nigel disse. — Podemos resolver isso, desde que você não entre em pânico. Temos só de cuidar dos outros guardas, como cuidamos dela.

O telefone de Kit tocou outra vez. Ele não podia saber quem era sem seu computador.

— Provavelmente é Toni Gallo — ele disse. — O que faremos se ela aparecer? Não podemos fingir que não há nada de errado se todos os guardas estiverem amarrados!

— Trataremos disso se e quando ela chegar.

O celular de Kit continuava tocando.

 

Toni dirigia a quinze quilômetros por hora, inclinada para a fren­te sobre a direção, tentando ver a estrada através da neve espessa. Seus faróis não faziam mais do que iluminar uma nuvem de grandes e macios flocos de neve que pareciam encher o universo. Estava por tanto tempo se esforçando para ver que seus olhos ardiam, como se estivessem cheios de sabão.

Seu celular, instalado em um suporte do painel do Porsche, não precisava ser levado ao ouvido. Tinha ligado para o Kremlin e agora ouvia o telefone tocar e tocar.

— Acho que não tem ninguém aqui — disse sua mãe.

Os técnicos devem ter derrubado todo o sistema, Toni pensou. Os alarmes estavam funcionando? E se tivesse acontecido alguma coisa séria quando as linhas estavam mudas? Preocupada e frustrada, ela apertou um botão para terminar o telefonema.

— Onde estamos? — sua mãe perguntou.

— Boa pergunta. — Toni conhecia bem a estrada porém mal podia vê-la. Parecia que estava dirigindo havia séculos. Olhava para o lado uma vez ou outra, à procura de alguma sinalização. Pensou reconhecer um chalé de pedra com um portão de ferro batido. Ficava a poucos quilômetros do Kremlin, ela lembrou, animada. — Chegaremos em quinze minutos, mamãe — ela disse.

Olhou pelo retrovisor e viu os faróis que a seguiam desde Inverburn, o chato do Carl Osborne no seu Jaguar, incansável, seguindo-a na mesma marcha lenta. Em qualquer outro dia ela teria tido pra­zer em se livrar dele.

Estaria perdendo tempo? Nada a deixaria mais satisfeita do que chegar ao Kremlin e encontrar tudo calmo: os telefones consertados, os alarmes funcionando, os guardas entediados e sonolentos. Então poderia voltar para casa, ir para a cama e pensar em ver Stanley no dia seguinte.

Pelo menos teria o prazer de ver a cara de Carl Osborne quando desse conta de que tinha dirigido na neve, no Natal, no meio da noi­te, para cobrir uma ocorrência de telefones enguiçados.

Toni teve a impressão de estar em uma reta e ousou aumentar a velocidade. Mas a estrada não ficou reta por muito tempo e quase imediatamente ela chegou a uma curva para a direita. Não podia usar o freio, temendo derrapar, por isso engatou a marcha mais lenta e manteve o pé no acelerador enquanto fazia a curva. A parte de trás do Porsche queria se libertar, Toni sentiu, mas os largos pneus da traseira ficaram colados ao chão.

Toni viu faróis vindo na sua direção e, por uma bem-vinda mudança, ela conseguiu abrir uma distância de cem metros entre os dois carros. Não havia muita coisa para ver. A camada de neve no solo devia ter uns vinte centímetros, um muro de pedra à esquerda, uma colina branca à direita.

O carro vinha rapidamente na sua direção, ela notou nervosa.

Lembrou-se daquele trecho da estrada. Era uma curva aberta e longa de noventa graus em volta do sopé da montanha. Ela começou a fazer a curva, mantendo a mão.

Mas o outro carro não fez o mesmo.

Toni o viu sair do sulco na neve para o meio da estrada e pensou: Imbecil, você freou na hora errada e vai derrapar.

No momento seguinte, viu com horror que o carro deslizava diretamente para cima dela.

O carro avançou pelo meio da estrada e foi para cima de Toni de lado. Era uma caminhonete com quatro homens. Eles riam e, na fra­ção de segundo em que Toni pôde vê-los, percebeu que eram jovens se divertindo, bêbados demais para compreender o perigo.

— Cuidado! — ela exclamou inutilmente.

A frente do Porsche estava prestes a se chocar com a traseira do outro carro. Toni agiu por reflexo. Sem pensar, ela virou a direção bruscamente para a esquerda. O nariz do seu carro virou. Quase ao mesmo tempo, ela pisou no acelerador. O carro saltou para a frente e derrapou. Por um momento, o outro carro ficou a poucos centí­metros do Porsche.

O Porsche estava virado para a esquerda, formando um ângulo com a estrada e deslizando para a frente. Toni virou a direção para corrigir a derrapagem e pisou de leve no acelerador. O carro se endireitou e os pneus se firmaram no chão.

Ela pensou que a caminhonete ia bater no seu pára-lama trasei­ro da direita, depois pensou que ia só passar raspando, então ouviu uma batida barulhenta mas superficial e compreendeu que seu pára-choque fora atingido.

Não foi uma pancada forte, mas desestabilizou o Porsche e a tra­seira virou para a esquerda, outra vez fora de controle. Toni virou desesperadamente a direção para a esquerda, derrapou, mas, antes que pudesse corrigir, o carro chocou-se contra o muro de pedra no lado da estrada. Foi uma batida forte e os vidros estilhaçaram. Então o carro parou.

Toni olhou preocupada para a mãe. Ela olhava para a frente, com a boca aberta, atônita — mas ilesa. Toni sentiu alívio por um momento — então pensou em Osborne.

Olhou temerosa pelo retrovisor, pensando que a caminhonete tinha batido no Jaguar de Osborne. Viu as luzes traseiras da caminhonete e os faróis brancos do Jaguar. A traseira da caminhonete derrapou, o Jaguar virou para o lado da estrada, a caminhonete endi­reitou e passou por ele.

O Jaguar parou e o carro cheio de jovens embriagados desapare­ceu na noite. Provavelmente ainda estavam rindo.

Sua mãe disse com voz trêmula: — Ouvi uma batida... aquele carro bateu em nós?

— Bateu — Toni disse. — Escapamos por sorte.

— Acho que você deve dirigir com mais cuidado — sua mãe disse.

 

Kit lutava contra o pânico. Seu plano brilhante havia desmoro­nado. Agora, de modo algum o roubo passaria despercebido até o pessoal voltar ao trabalho depois dos feriados. Podia ficar secreto no máximo até as seis horas da manhã, quando chegassem os guardas do outro turno. Mas se Toni Gallo ainda estivesse a caminho do Kremlin, esse tempo seria mais curto ainda.

Se seu plano tivesse funcionado, não haveria violência. Mesmo agora, ele pensou com frustração, não fora necessário. A guarda Susan teria sido capturada e amarrada, ilesa. Infelizmente Daisy não podia perder uma oportunidade de ser violenta. Kit esperava que os outros guardas pudessem ser capturados sem nenhum derramamento de sangue.

Agora, correndo para a sala de controle, Daisy e Nigel empunhavam armas.

Kit estava horrorizado.

— Combinamos que não haveria armas — ele protestou.

— Ainda bem que ignoramos você — Nigel disse.

Chegaram à porta. Kit olhou consternado para as armas, pistolas automáticas com grandes coronhas.

— Isso faz da operação um assalto à mão armada, vocês sabem.

— Só se formos apanhados. — Nigel virou o trinco e abriu a por­ta com um pontapé.

Daisy entrou correndo, gritando a plenos pulmões: — No chão! Agora! Os dois!

Houve apenas um momento de hesitação, quando os dois guardas passaram do choque e do espanto para o medo e então jogaram-se no chão.

Kit sentiu-se impotente. Pretendia entrar na sala primeiro e dizer: Por favor, fiquem calmos e obedeçam, assim não serão machuca­dos. Mas perdera o controle. Não podia fazer nada agora a não ser acompanhar os dois e garantir que nada saísse errado.

Elton apareceu na porta da sala de equipamento. Imediatamen­te compreendeu o que estava acontecendo.

Daisy berrou para os guardas: — Cara no chão, mãos atrás das costas, olhos fechados! Depressa, depressa ou atiro nas suas bolas.

Os guardas obedeceram, mas mesmo assim ela chutou o rosto de Don com a bota pesada. Ele gritou e se encolheu, mas continuou de bruços.

Kit ficou na frente de Daisy.

— Chega! — ele exclamou.

Elton balançou a cabeça, admirado.

— Ela é completamente maluca!

A malévola satisfação de Daisy assustou Kit, mas ele se obrigou a olhar para ela. Tinha muita coisa em jogo para deixar que ela arrui­nasse tudo.

— Ouça aqui — Kit gritou. — Ainda não estamos no laboratório e desse jeito nunca chegaremos lá. Se quiser encontrar nosso cliente às dez horas com as mãos vazias, continue assim. — Ela deu as costas para o dedo que ele apontava, mas Kit foi atrás dela. — Chega de violência!

Nigel o apoiou.

— Vá com calma, Daisy — ele disse. — Faça o que ele está mandan­do. Veja se é capaz de amarrar esses dois sem chutar a cabeça deles.

— Vamos levá-los para onde está a garota — disse Kit.

Daisy amarrou as mãos dos guardas com fio elétrico, depois ela e Nigel os levaram sob a mira das armas. Elton ficou para trás, vigiando os monitores e Steve na recepção. Kit acompanhou os prisioneiros ao BSL4 e abriu a porta. Puseram Don e Stu no chão, ao lado de Susan, e amarraram seus pés. Don sangrava de um corte fun­do na testa. Susan parecia consciente, mas atordoada.

— Só falta um — Kit disse quando saíram do BSL4. — Steve, no saguão. E nada de violência desnecessária!

Daisy rosnou, descontente.

Nigel disse: — Kit, tente não dizer mais nada sobre o cliente e o encontro das dez horas na frente dos guardas. Se contar muita coisa para eles, teremos de matá-los.

Só então Kit percebeu, consternado, o que tinha feito. Uma idiotice.

Seu celular tocou.

— Deve ser Toni — ele disse. — Deixe-me verificar. — Voltou apres­sadamente para a sala de controle. A tela do seu laptop dizia: “Toni chamando Kremlin.” Ele transferiu a chamada para o telefone na mesa da recepção e ouviu a conversa.

— Oi, Steve, é Toni. Alguma novidade?

— A equipe de manutenção ainda está aqui.

— Fora isso está tudo em ordem?

Com o fone no ouvido, Kit foi para a sala de controle e ficou atrás de Elton, vendo Steve no monitor.

— Sim, acho que sim. Susan Mackintosh devia ter concluído sua ronda, mas talvez tenha ido ao banheiro.

Kit praguejou.

Toni disse, ansiosa: — Quanto ela está atrasada?

Steve consultou seu relógio de pulso.

— Cinco minutos.

— Dê mais cinco minutos e então vá procurá-la.

— Tudo bem. Onde você está?

— Não muito longe, mas tivemos um acidente. Um carro cheio de bêbados bateu de leve na traseira do Porsche.

Kit pensou: Eu queria que tivessem matado você.

Steve disse: — Você está bem?

— Estou, mas meu carro não. Felizmente outro carro estava me seguindo e vai me dar uma carona.

E quem poderia ser?

— Merda — Kit disse em voz alta. — Ela e mais um cara.

— Quando estará aqui?

— Dentro de vinte minutos, talvez trinta.

Kit sentiu as pernas fracas. Cambaleou e se sentou em uma das cadeiras dos guardas. Vinte minutos, trinta no máximo. Levariam trinta minutos para se preparar para entrar no BSL4.

Toni despediu-se e desligou.

Kit atravessou correndo a sala de controle e saiu para o corredor.

— Ela estará aqui em vinte ou trinta minutos — ele disse. — E tem alguém com ela, não sei quem. Temos de nos apressar.

Eles correram pelo corredor. Daisy, na frente, entrou no saguão e gritou: — No chão, agora!

Kit e Nigel entraram atrás dela e pararam de repente. O lugar estava vazio.

— Merda — Kit disse.

Steve estava na mesa de recepção havia vinte segundos. Não podia ter ido longe. Kit olhou em volta do saguão pouco iluminado, para as cadeiras onde os visitantes se sentavam para esperar, para a mesa de centro com revistas científicas, a estante com folhetos sobre o trabalho da Oxenford Medical, a vitrine com a mostra de molécu­las complexas. Olhou para cima, para o esqueleto escuro do telhado, como se Steve pudesse estar escondido entre as costelas de madeira.

Nigel e Daisy começaram a correr pelos corredores que davam no saguão, abrindo portas.

Kit notou duas portas com figuras, uma de homem, outra de mulher. Os banheiros. Atravessou correndo o saguão. Um corredor curto levava aos banheiros feminino e masculino. Kit entrou no masculino.

Parecia vazio.

— Sr. Tremlett? — Abriu as portas de todos os cubículos. Ninguém.

Quando saiu do banheiro, viu Steve voltando à recepção. O guarda devia ter estado no banheiro feminino, à procura de Susan, Kit imaginou.

Ouvindo Kit, Steve olhou para trás.

— Estava me procurando?

— Sim. — Kit sabia que precisava de ajuda para dominar Steve. Era mais jovem e mais atlético do que ele, mas o guarda era um homem de trinta e poucos anos, em forma, e provavelmente não se deixaria vencer sem luta.

— Quero perguntar uma coisa — Kit disse, para ganhar tempo. Acentuou o sotaque escocês para garantir que Steve não reconheceria sua voz.

Steve levantou a portinhola do balcão e entrou no espaço oval da mesa.

— E do que se trata?

— Espere um minuto. — Kit virou para trás e chamou Nigel e Daisy. — Ei, voltem para cá!

Steve pareceu preocupado.

— O que está acontecendo? Vocês não deviam estar andando por todo o prédio.

— Explico em um minuto.

Steve olhou atentamente para ele e franziu a testa.

— Você esteve aqui antes?

Kit engoliu em seco.

— Não, nunca.

— Há alguma coisa de familiar em você.

Kit sentiu a boca seca e mal podia falar.

— Eu trabalho com a equipe de emergência. — Onde estavam os outros?

— Não estou gostando disso. — Steve pegou o fone da mesa.

Onde estavam Nigel e Daisy? Kit gritou outra vez: — Voltem para cá, vocês dois!

Steve digitou o número e o celular no bolso de Kit tocou. Steve ouviu. Intrigado, pensou por um momento e então compreendeu, chocado.

— Você desligou os telefones!

Kit disse: — Fique calmo e não vai se machucar. — Assim que aca­bou de falar compreendeu seu erro. Tinha confirmado as suspeitas de Steve.

O guarda agiu rapidamente. Saltou agilmente por sobre a mesa e correu para a porta.

Kit gritou: — Pare!

Steve tropeçou, caiu e se levantou outra vez.

Daisy entrou correndo, viu Steve e virou para a porta principal, para impedir a passagem dele.

Vendo que não podia alcançar a porta, Steve correu para o corredor que levava ao BSL4.

Daisy e Kit foram atrás dele.

Steve correu pelo longo corredor. Havia uma saída para os fundos do prédio, Kit lembrou. Se Steve conseguisse sair, eles nunca o pegariam.

Daisy estava muito na frente de Kit, os braços bombeando como uma atleta e Kit se lembrou dos fortes ombros dela na piscina. Mas Steve corria como um coelho e se distanciava deles. Ia escapar.

Então, quando Steve chegou à porta da sala de controle, Elton entrou no corredor na frente dele. O guarda corria com muita velocidade para ter tempo de uma ação evasiva. Elton estendeu um pé, passou uma rasteira e Steve voou.

Quando Steve bateu no chão, com o rosto para baixo, Elton caiu em cima dele com os dois joelhos nas suas costas e encostou o cano da pistola na cabeça do guarda.

— Não se mexa ou leva um tiro na cara — ele disse, com voz cal­ma mas convincente.

Steve ficou imóvel.

Elton se levantou, sem desviar a arma de Steve.

— É assim que se faz — ele disse para Daisy. — Nada de sangue.

Daisy olhou para ele com desdém.

Nigel chegou correndo.

— O que aconteceu?

— Deixa pra lá — Kit gritou. — Não temos mais tempo!

— E os dois guardas do portão? — Nigel disse.

— Esqueça! Eles não sabem o que aconteceu aqui e não podem descobrir. Ficam na guarita a noite toda. — Apontou para Elton. — Apanhe meu laptop na saía de equipamento e espere por nós na van. — Voltou-se para Daisy. — Leve Steve para o BSL4, amarre bem e vá para a van. Temos de entrar no laboratório, agora!

 

No celeiro, Sophie apareceu com uma garrafa de vodca.

A mãe de Craig mandou que apagassem as luzes à meia-noite, mas não voltou para verificar e os jovens estavam sentados na frente da televisão, assistindo a um velho filme de terror. A irmã esquisita de Craig, Caroline, acariciava um rato branco fingindo achar o filme muito bobo. Seu pequeno primo Tom comia chocolate e tentava ficar acordado. A sexy Sophie fumava cigarros, calada. Craig alternadamente pensava na Ferrari amassada e em como ia beijar Sophie. De algum modo, o clima não era exatamente romântico. Mas será que ia melhorar?

A vodca o surpreendeu. Pensava que toda aquela conversa de beber era só para se mostrar. Mas ela subiu a escada para o quarto de dormir no antigo palheiro, onde estava sua mochila, e voltou com meia garrafa de Smirnoff na mão.

— Quem quer um pouco? — ela perguntou.

Todos quiseram.

Os únicos copos que tinham eram de plástico decorados com bichinhos de desenho animado. Havia uma geladeira com refrigerantes e gelo. Tom e Caroline misturaram a vodca com Coca-Cola. Craig, sem saber bem o que fazer, imitou Sophie e tomou a bebida pura, com gelo. O gosto era amargo, mas o calor que desceu por sua garganta foi bom.

O filme estava chato. Craig disse a Sophie: — Você sabe o que vai ganhar de Natal?

— Dois decks e um mixer, assim posso ser DJ. E você?

— Férias de snowboarding. Alguns conhecidos meus vão a Val d’Isere na Páscoa, mas é muito caro. Pedi o dinheiro. Então você quer ser DJ?

— Acho que eu seria boa nisso.

— Isso é tipo um plano de carreira?

— Não sei — Sophie disse, com desdém. — Qual seu plano de car­reira?

— Não resolvi ainda. Eu gostaria de jogar futebol profissionalmente. Mas é uma carreira que só dura até um pouco antes dos qua­renta anos. Além disso, talvez eu não seja bastante bom. Na verdade, gostaria de ser cientista, como vovô.

— Um pouco chato.

— Não! Ele descobre novos medicamentos fantásticos, é autôno­mo, ganha montes de dinheiro e dirige uma Ferrari F-50. O que há de chato nisso?

Ela deu de ombros.

— Para mim, o carro vai bem. — Ela riu. — A não ser pelo amassado.

A lembrança do que tinha feito no carro do avô não o deprimia mais. Sentia-se agradavelmente relaxado e sem problemas. Pensou em beijar Sophie naquele instante, ignorando os outros. O que o impediu foi a idéia de que podia ser rejeitado na frente da irmã, o que seria humilhante.

Craig gostaria de entender as mulheres. Ninguém dizia nada. Seu pai provavelmente sabia tudo que precisava saber. As mulheres pareciam atraídas por Hugo imediatamente, mas Craig não enten­dia por que e, quando perguntou, Hugo apenas riu. Em um raro momento de intimidade com sua mãe ele perguntara o que atraía as mulheres num homem. “Bondade”, ela disse. Isso era evidentemen­te uma bobagem. Quando garçonetes e vendedoras de lojas sorriam para seu pai, corando, afastando-se com um rebolado, não era porque pensavam que ele seria bondoso com elas, pelo amor de Deus. Mas então, o que era? Os amigos de Craig tinham teorias sobre a atração sexual e todas diferentes. Um acreditava que as mulheres gostavam de um cara dominador que dissesse a elas o que deviam fazer. Outros afirmavam que elas só se interessavam por um físico atlético ou beleza ou dinheiro. Craig tinha certeza de que eles esta­vam errados, mas não tinha nenhuma outra hipótese.

Sophie esvaziou o copo.

— Outra dose?

Todos tomaram outra.

Craig começou a ver que o filme era, na realidade, hilário.

— Esse castelo é tão obviamente feito de madeira compensada — ele disse, rindo.

Sophie disse: — E todos têm maquiagem e penteados dos anos 60, embora a história se passe na Idade Média.

De repente, Caroline disse: — Oh, Deus, estou com tanto sono. — Levantou-se, subiu a escada com alguma dificuldade e desapareceu.

Craig pensou: Uma já foi, faltam dois. Talvez o clima ficasse romântico, afinal.

A velha bruxa do filme tinha de tomar banho com sangue de uma virgem para rejuvenescer. A cena da banheira era hilariante e tosca e Craig e Sophie riram o tempo todo.

— Eu vou vomitar — Tom disse.

— Oh, não! — Craig se levantou de um salto. Sentiu-se tonto por um segundo, depois se recuperou. — Banheiro, depressa — ele disse. Segurou o braço de Tom e o levou para o banheiro.

Tom começou a vomitar um segundo fatal antes de chegar ao banheiro.

Ignorando a sujeira no chão, Craig o levou para o vaso. Tom vomitou mais. Craig segurou os ombros dele, tentando não respirar. Lá se vai a atmosfera romântica, ele pensou.

Sophie apareceu na porta.

— Ele está legal?

— Está — Craig disse, com o ar de um professor esnobe. — Uma combinação imprudente de chocolate, vodca e sangue de virgem.

Sophie riu. Então, para surpresa de Craig, pegou um pedaço de papel higiênico, ajoelhou e começou a limpar o chão.

Tom endireitou o corpo.

— Acabou? — Craig perguntou.

Tom fez que sim com a cabeça.

— Tem certeza?

— Certeza.

Craig deu a descarga.

— Agora, escove os dentes.

— Por quê?

— Para não ficar cheirando mal.

Tom escovou os dentes.

Sophie jogou o papel no vaso e pegou mais.

Craig levou Tom para fora do banheiro e para a cama de campa­nha, no chão.

— Tire a roupa — ele disse. Abriu a pequena mala de Tom e encontrou um pijama do Homem-Aranha. Tom o vestiu e foi para a cama. Craig dobrou a roupa dele.

— Desculpe ter vomitado — Tom disse.

— Acontece com as melhores famílias — Craig disse. — Esqueça. — Puxou o cobertor até o queixo de Tom. — Bons sonhos.

Voltou ao banheiro. Sophie o tinha limpado com surpreendente eficiência e estava pondo desinfetante no vaso. Craig lavou as mãos e ela fez o mesmo, ao lado dele. Era uma cena de camaradagem.

Em voz baixa e divertida, Sophie disse: — Quando você o mandou escovar os dentes, ele perguntou por quê.

Com um largo sorriso Craig olhou para ela no espelho.

— Acho que ele não pretendia beijar ninguém esta noite.

— É mesmo.

Ela parecia mais bonita do que nunca, Craig pensou, quando Sophie sorriu para ele no espelho, os olhos escuros brilhando, divertidos. Ele pegou uma toalha e deu uma ponta para ela. Os dois enxugaram as mãos. Craig puxou a toalha, levando Sophie para perto dele e a beijou na boca.

Ele murmurou: — Vamos voltar para o sofá? Jamais gostei de bei­jar no banheiro.

Ela riu e saiu na frente.

Craig pensou: Não tenho tanto senso de humor quando estou sóbrio.

Ele se sentou muito perto de Sophie no sofá e passou o braço pelos ombros dela. Assistiram ao filme por um minuto e então ele a beijou outra vez.

 

Uma porta de submarino, hermeticamente fechada, levava à zona de biorrisco. Kit girou a roda com quatro raios e abriu a porta. Tinha estado no laboratório antes, quando não havia vírus perigo­sos, mas jamais entrara no BSL4 — não era treinado para isso. Sentindo que arriscava sua vida, passou pelos chuveiros. Nigel o seguiu, carregando a pasta vermelha de Elton. Elton e Daisy espera­vam na van.

Kit fechou a porta. As portas eram eletronicamente ligadas, de modo que a seguinte não se abria enquanto a anterior não estivesse fechada. Seus ouvidos estalavam. A pressão do ar era reduzida em estágios, à medida que se entrava no BSL4, o que evitava a saída de agentes perigosos pelo ar.

Passaram por outra porta para uma sala onde estavam os trajes espaciais azuis, pendurados em ganchos. Kit tirou os sapatos.

— Encontre um do seu tamanho e vista — ele disse para Nigel. — Temos de ignorar as precauções de segurança.

— Não gosto disso.

Kit também não gostava, mas não tinha escolha.

— O procedimento normal é muito demorado — ele disse. — Você tem de tirar toda a roupa, inclusive a roupa de baixo, todas as jóias e vestir roupas esterilizadas por baixo dos trajes espaciais. — Tirou um traje do gancho e começou a vestir. — Para sair é mais demorado ain­da. Você tem de entrar no chuveiro com o traje, primeiro água com uma solução descontaminadora, em um ciclo predeterminado de cinco minutos. Então tira-se o traje e a roupa esterilizada e fica-se nu debaixo do chuveiro durante cinco minutos. Você limpa as unhas, assoa o nariz, tosse e cospe. Então se veste. Se fizermos tudo isso, metade da polícia de Inverburn estará aqui quando sairmos. Vamos ignorar os chuveiros, tirar os trajes e fugir.

Nigel pareceu preocupado.

— Qual é o perigo? — ele perguntou.

— É como dirigir um carro a duzentos quilômetros por hora, você pode ser morto, mas provavelmente não será, desde que não faça disso um hábito. Ande depressa, pegue um maldito traje. — Kit fechou seu capacete. — O visor de plástico distorcendo um pouco a visão. Fechou o zíper diagonal na frente do traje, depois ajudou Nigel.

Kit resolveu que podiam passar sem as luvas cirúrgicas. Usou um rolo de fita adesiva para prender as manoplas aos punhos circulares rígidos do traje de Nigel, depois Nigel fez o mesmo para ele.

Da sala dos trajes passaram para o chuveiro de descontaminação, um cubículo com torneiras dos lados e em cima. Sentiram outra queda da pressão do ar — vinte e cinco ou cinqüenta pascais de um cubículo para o outro, Kit lembrou. Do chuveiro foram para o labo­ratório propriamente dito.

Kit teve um momento de puro medo. Alguma coisa no ar, ali dentro, poderia matá-lo. Toda aquela conversa de reduzir as precauções de segurança e de dirigir a duzentos quilômetros agora parecia tolice, ele pensou. Posso apanhar uma doença e ter uma hemorragia tão grave que o sangue vai jorrar dos meus ouvidos, dos meus olhos e do meu pênis. O que estou fazendo aqui? Como pude ser tão idiota?

Respirou devagar, procurando se acalmar. Você não está exposto à atmosfera do laboratório. Nenhum vírus pode penetrar este traje. Está muito mais seguro de infecção do que na classe econômica lota­da de um 747, voando para Orlando. Trate de se controlar.

Mangueiras de ar pendiam do teto, Kit segurou uma e a prendeu ao cinto de Nigel. O traje começou a inflar. Prendeu outra ao seu cin­to e ouviu a entrada de ar dentro do traje. Seu pânico diminuiu.

Havia uma fileira de botas de borracha ao lado da porta. Kit a ignorou. A finalidade principal das botas era proteger os pés dos trajes e evitar que se gastassem.

Examinou o laboratório, orientando-se, tentando esquecer o perigo e se concentrar no que tinha de fazer. A sala brilhava vagamente por causa da tinta epóxi usada para fazer as paredes à prova de ar. Nas bancadas de aço inoxidável estavam os microscópios e os computadores. Havia um fax para enviar as notas dos cientistas para fora do laboratório — não se podia levar papel para os chuveiros nem passá-lo pelas autoclaves. Kit viu refrigeradores para guardar amos­tras, gabinetes de biossegurança para materiais de risco e uma fila de gaiolas com coelhos, cobertas com um plástico. A luz vermelha aci­ma da porta piscava quando o telefone tocava porque era difícil ouvir de dentro dos trajes. A luz azul avisava uma emergência. Monitores de vídeo cobriam cada canto da sala.

Kit apontou para uma porta.

— Acho que o cofre fica lá dentro. — Atravessou a sala, sua man­gueira de ar se estendendo quando se movia. Abriu a porta de uma sala não maior do que um closet, contendo uma geladeira vertical com fechadura de segredo. As teclas da fechadura não eram em seqüência, de modo que a ordem dos números era diferente da usada anteriormente. Isso tornava impossível detectar-se o código olhando o movimento dos dedos no teclado. Mas Kit tinha instalado a fecha­dura e sabia a combinação — a não ser que tivesse sido trocada.

Ele digitou os números e puxou a alça.

A porta se abriu.

Nigel olhou por cima do ombro dele.

Doses medidas de um precioso antivírus eram guardadas em seringas descartáveis, prontas para o uso. As seringas estavam em pequenas caixas de papelão. Kit apontou para a prateleira. Ergueu a voz para que Nigel pudesse ouvir através dos trajes.

— Esta é a droga.

Nigel disse: — Eu não quero a droga.

Kit se perguntou se tinha ouvido mal.

— O quê? — ele gritou.

— Eu não quero a droga.

Kit ficou atônito.

— Do que está falando? Por que estamos aqui?

Nigel não respondeu.

Na segunda prateleira estavam as amostras de vários vírus pron­tos para serem usados nos animais. Nigel examinou atentamente os rótulos, depois escolheu amostras do Madoba-2.

Kit disse: — Para que diabo você quer isso?

Sem responder, Nigel pegou todas as outras amostras do mesmo vírus, doze caixas ao todo.

Uma era suficiente para matar alguém. Doze podiam causar uma epidemia. Kit relutaria em tocar nas caixas, mesmo com o tra­je espacial. Mas o que Nigel estava tramando?

Kit disse: — Pensei que você trabalhasse para um conglomerado farmacêutico.

— Eu sei.

Nigel podia pagar a Kit trezentas mil libras pelo trabalho daque­la noite. Kit não sabia quanto Elton e Daisy iam receber, porém, mesmo que fosse uma quantia pequena, Nigel teria de gastar algo perto de um milhão. Para que isso valesse a pena, ele devia estar rece­bendo um milhão do comprador, talvez dois. A droga valia isso. Mas quem pagaria um milhão de libras pela amostra de um vírus mortal?

Assim que fez essa pergunta, Kit soube a resposta.

Nigel levou as caixas com as amostras para o outro lado do labo­ratório e a deixou em um gabinete de biossegurança.

O gabinete de biossegurança era uma caixa de vidro com uma pequena abertura na frente pela qual o cientista podia colocar o braço para fazer uma experiência. Uma bomba garantia que o fluxo de ar viesse de fora para dentro da caixa. Não era considerada necessá­ria uma vedação perfeita quando o cientista usava o traje.

Em seguida Nigel abriu a pasta de couro cor de vinho. Na parte de cima havia pequenas sacolas azuis de plástico para conservar alimentos no freezer. Amostras de vírus deviam ser mantidas a baixas temperaturas, Kit sabia. A parte de baixo da pasta estava cheia de bolas de isopor, usadas para acondicionar objetos pequenos. Sobre o isopor, como uma jóia preciosa, estava um vidro vazio comum de spray de perfume. Kit reconheceu o vidro. Era de um perfume cha­mado Diablerie que sua irmã Olga usava.

O vidro logo ficou enevoado com a condensação quando Nigel o pôs no gabinete.

— Eles disseram para desligar o extrator de ar — ele disse. — Onde fica o interruptor?

— Espere! — Kit exclamou. — O que está fazendo? Tem de me dizer!

Nigel encontrou o interruptor e desligou.

— Meu cliente quer o produto de modo que possa ser usado ime­diatamente — ele disse com um ar de paciência indulgente. — Estou transferindo as amostras para este vidro no gabinete porque é perigoso fazer isso em outro lugar qualquer. — Tirou a tampa do vidro de perfume e abriu uma das caixas de amostra. Dentro havia um pequeno frasco de vidro graduado. Trabalhando desajeitadamente com as manoplas do traje, Nigel desatarraxou a tampa do frasco e derramou o líquido no vidro de Diablerie. Tampou outra vez o fras­co e pegou outro.

Kit disse: — As pessoas para quem vai vender, você sabe para que elas querem isso?

— Posso imaginar.

— Vai matar gente — centenas, talvez milhares.

— Eu sei.

Um spray de perfume era o perfeito mecanismo de dispersão. Era um meio simples de criar aerossol. Cheio do líquido que continha o vírus, parecia completamente inocente e passaria sem ser notado por todos os sistemas de segurança. Uma mulher podia tirar o frasco da bolsa, em público, e parecer inocente enquanto enchia o ar com o vapor fatal para quem o inalasse. Ela se mataria também — os terroristas sempre faziam isso. Ela mataria mais gente do que um homem-bomba. Horrorizado, Kit disse: — Você está falando de assassinato em massa!

— Sim. — Nigel olhou para Kit. Seus olhos azuis eram intimida-dores mesmo por detrás das placas duplas na frente do capacete. — E você está nessa agora e é tão culpado quanto qualquer um de nós, portanto cale a boca e deixe que eu me concentre.

Kit gemeu. Nigel estava certo. Kit jamais tinha pensado que se envolveria em algo mais do que um roubo. Ficou horrorizado quan­do Daisy espancou Susan com o cassetete. Isto era mil vezes pior — e ele não podia fazer nada. Se tentasse impedir o roubo agora, provavelmente Nigel o mataria — e se alguma coisa desse errado e o vírus não fosse entregue ao comprador, Harry McGarry mandaria matá-lo por não saldar sua dívida. Tinha de ir até o fim e receber seu paga­mento. Do contrário seria morto.

Precisava também se certificar de que Nigel manipulasse o vírus corretamente, se não estaria morto de qualquer modo.

Com o braço dentro da caixa de biossegurança, Nigel esvaziou o conteúdo de todos os frascos de amostras no vidro de perfume e o tampou. Kit sabia que o lado de fora do vidro estava agora certamente contaminado — mas deviam ter dito isso a Nigel, pois ele levou o vidro para o tanque entre as duas salas, que estava cheio de fluido de descontaminação e o retirou no outro lado. Enxugou o vidro de perfume, depois tirou da pasta dois invólucros Ziploc. Pôs o vidro em um deles, fechou o zíper e pôs um dentro do outro. Finalmente colocou dentro da pasta o vidro envolvido nos dois invólucros e a fechou.

— Acabamos — ele disse.

Saíram do laboratório, Nigel com a pasta. Passaram pelo chuvei­ro descontaminador sem usá-lo — não tinham tempo. Livraram-se dos incômodos trajes espaciais de plástico e calçaram os sapatos. Kit ficou longe do traje de Nigel — as luvas certamente estavam contami­nadas com minúsculas partículas do vírus.

Passaram pelo chuveiro normal, também sem usar, pelo vestiário e entraram no saguão. Os dois guardas de segurança estavam amarrados, encostados na parede.

Kit consultou o relógio. Havia trinta minutos tinha escutado a conversa de Toni Gallo com Steve.

— Espero que Toni não esteja aqui.

— Se estiver, nós a neutralizaremos.

— Ela é uma ex-policial, não vai ser tão fácil dominá-la como fizemos com os guardas. E ela pode me reconhecer, mesmo com este disfarce.

Apertou o botão verde que abria a porta. Os dois correram pelo corredor até o saguão. Para grande alívio de Kit, estava vazio: Toni Gallo ainda não tinha chegado. Conseguimos, ele pensou. Mas ela pode chegar a qualquer momento.

A van estava na frente da porta principal, com o motor ligado, Elton na direção, Daisy atrás. Nigel e Kit entraram gritando: — Vá! Vá! Vá!

Elton deu partida antes de Kit ter tempo de fechar a porta.

A neve espessa cobria o chão. A van imediatamente derrapou e deslizou para o lado, mas Elton conseguiu colocá-la reta. Pararam no portão.

Willie Crawford se inclinou para fora da janela da guarita.

— Tudo consertado? — ele perguntou.

Elton abaixou o vidro da janela.

— Não completamente — ele disse. — Precisamos de algumas peças. Voltaremos logo.

— Vai demorar, com esse tempo — o guarda disse descontraidamente.

Kit rosnou, impacientemente. Lá de trás, Daisy disse em voz baixa: — Devo dar um tiro no cretino?

Elton disse, calmo: — Voltaremos o mais depressa possível. — E fechou o vidro.

Depois de um momento a barreira se ergueu.

Então viram os faróis. Um carro se aproximava, vindo do sul. Kit viu que era um Jaguar de cor clara.

Elton virou para o norte e se afastou do Kremlin.

Toni Gallo, Kit pensou. Por um minuto, tarde demais.

 

Toni estava no banco do carona, ao lado de Carl Osborne, quan­do ele parou ao lado da guarita do Kremlin. Sua mãe estava atrás.

Ela entregou seu cartão para Carl e a identificação da mãe.

— Dê isso ao guarda com sua identidade de jornalista — ela disse. Todos os visitantes tinham de apresentar identificação.

Carl abaixou o vidro e entregou os documentos.

Toni olhou para fora e viu Hamish McKinnon.

— Oi, Hamish, sou eu — ela disse. — Tenho dois visitantes comi­go hoje.

— Olá, sra. Gallo — disse o guarda. — A senhora no banco de trás tem um cachorro no colo?

— Não pergunte — ela disse.

Hamish anotou os nomes e devolveu os documentos. — Vai encontrar Steve na recepção.

— Os telefones estão funcionando?

— Ainda não. A equipe de manutenção acaba de sair para apanhar algumas peças. — Ele levantou a barreira e Carl entrou com o carro.

Toni conteve a irritação. Em uma noite como aquela o pessoal da Hibernian Telecom devia levar todas as peças de que podiam precisar. O tempo continuava a piorar e as estradas talvez logo ficassem intransitáveis. Duvidava de que conseguissem voltar antes da manhã seguinte.

Isso alterava seu pequeno plano. Toni esperava telefonar para Stanley de manhã para dizer que houvera um pequeno problema no Kremlin naquela noite, mas que fora resolvido, e depois se preparar para o encontro com ele mais tarde. Agora aparentemente seu relatório não podia ser perfeito.

Carl parou na frente da entrada principal.

— Espere aqui — Toni disse, saindo do carro antes que ele pudes­se protestar. Não queria Carl no prédio, se pudesse evitar. Subiu cor­rendo os degraus entre os leões de pedra e entrou. Surpresa, não viu ninguém na recepção.

Toni hesitou. Um dos guardas devia estar fazendo a ronda, mas não os dois. Podiam estar em qualquer parte do prédio — e não havia nenhum na porta.

Foi para a sala de controle. Os monitores mostrariam onde eles estavam.

Atônita viu que a sala estava vazia.

Seu coração gelou. Aquilo era péssimo. Quatro guardas faltando — não era apenas falha no procedimento. Alguma coisa estava errada.

Olhou outra vez para os monitores. Todos mostravam salas vazias. Se havia quatro guardas no prédio, um deles devia aparecer no monitor dentro de segundos. Mas não havia movimento em lugar algum.

Então algo chamou sua atenção. Olhou mais de perto a imagem do BSL4.

A data era 24 de dezembro. Toni consultou o relógio. Passava da uma da manhã. Hoje era o dia de Natal, 25 de dezembro. Ela estava vendo uma imagem antiga. Alguém tinha alterado a transmissão.

Toni se sentou na frente do computador e acessou o programa. Em três minutos verificou que todos os monitores do BSL4 mostravam imagens do dia anterior. Corrigiu o erro e olhou para as telas.

No saguão de entrada do vestiário, quatro pessoas estavam sen­tadas no chão. Toni olhou horrorizada para o monitor. Por favor, Deus, ela pensou, não permita que estejam mortos.

Uma das pessoas se moveu.

Toni olhou mais de perto. Eram guardas, todos com uniformes escuros e as mãos nas costas, como se estivessem amarradas.

— Não, não! — ela disse em voz, alta.

Mas não podia evitar a conclusão terrível de que o Kremlin fora invadido.

Toni sentiu como se estivesse perseguida por uma maldição. Primeiro Michael Ross, agora isto. Em que ela havia errado? Tinha feito todo o possível para fazer do Kremlin um lugar inviolável — e falhara completamente. Acabara de desapontar Stanley.

Virou-se para a porta. Seu primeiro instinto foi correr para o BSL4 e libertar os prisioneiros. Então seu treinamento de policial entrou em cena. Pare, analise a situação, planeje uma reação. Quem tinha feito aquilo podia ainda estar no prédio, embora ela tivesse quase certeza de que os culpados eram os homens da Hibernian Telecom que acabaram de sair. Qual a sua tarefa mais importante? Certificar-se de que não era a única pessoa que sabia disso.

Apanhou o telefone da mesa. Estava mudo, é claro. O defeito no sistema provavelmente era parte do plano deles. Tirou o celular do bolso e ligou para a polícia.

— Aqui é Toni Gallo, chefe da segurança da Oxenford Medical. Houve um incidente aqui. Quatro dos meus guardas de segurança foram atacados.

— Os criminosos ainda estão no local?

— Acho que não, mas não tenho certeza.

— Alguém ferido?

— Não sei. Assim que desligar, vou verificar, mas quis primeiro comunicar à polícia.

— Tentaremos mandar uma radiopatrulha, mas as estradas estão horríveis. — Parecia um policial jovem e inseguro.

Toni tentou transmitir a idéia de urgência.

— Isto pode ser um incidente com riscos biológicos. Um funcionário morreu ontem com um vírus que escapou daqui.

— Faremos o melhor possível.

— Acho que Frank Hackett está de serviço esta noite. Será que ele está no prédio?

— Está de plantão em casa.

— Recomendo que telefone urgentemente para a casa dele, tire Frank da cama e comunique o que aconteceu aqui.

— Vou anotar sua sugestão.

— Nossos telefones estão com defeito, provavelmente provocado pelos invasores. Por favor, anote o número do meu celular. — Ela ditou o número. — Peça a Frank para me ligar imediatamente.

— Registrei a mensagem.

— Posso perguntar seu nome?

— Policial David Reid.

— Obrigada, policial Reid. Estaremos à espera de sua viatura — Toni desligou. Estava certa de que o policial não tinha compreendido a importância do telefonema, mas certamente passaria a informa­ção a um superior. Fosse como fosse, ela não tinha tempo para dis­cutir. Saiu rapidamente da sala de controle e correu pelo corredor que levava ao BSL4. Passou o cartão na leitora, encostou o dedo na tela e entrou.

Lá estavam Steve, Susan, Don e Stu enfileirados contra a parede, com as mãos e os pés amarrados. Susan parecia ter se chocado con­tra uma árvore, com o nariz inchado e sangue no queixo e no peito. Don tinha um corte feio na testa.

Toni ajoelhou e começou a desamarrá-los.

— Que diabo aconteceu aqui? — ela perguntou.

 

A van da Hibernian Telecom seguia penosamente sobre os trinta centímetros de neve. Elton dirigia a dez quilômetros, em segunda, para evitar derrapagens. Os flocos de neve bombardeavam o veículo. Formavam duas cunhas na parte inferior do pára-brisa que cresciam aos poucos de modo que os limpadores descreviam um arco cada vez menor, até Elton ter de parar para limpar a neve.

Kit estava apavorado. Pensou estar envolvido em um roubo que em nada o prejudicaria. Seu pai perderia dinheiro, mas por outro lado Kit ia poder pagar Harry Mac, uma dívida que seu pai devia ter saldado, logo não era injusto. Mas a realidade era outra. Só podia haver um motivo para comprar o Madoba-2. Alguém queria matar um grande número de pessoas. Kit jamais tinha imaginado que poderia ser culpado disso.

Tentou adivinhar quem seria o cliente que Nigel representava. Japoneses fanáticos. Muçulmanos fundamentalistas, uma facção do IRA, palestinos suicidas ou um grupo de americanos paranóicos com rifles de grande potência, que viviam em cabines remotas em Montana? Não importava. Quem tivesse o vírus o usaria e muita gente morreria com sangue escorrendo dos olhos.

Mas o que ele podia fazer? Se tentasse deter o roubo para levar as amostras do vírus de volta ao laboratório, Nigel o mataria ou deixa­ria Daisy fazer o trabalho. Kit pensou em abrir a porta e saltar da van. Estavam indo bem devagar. Podia desaparecer na tempestade de neve antes que pudessem apanhá-lo. Mas eles continuariam com o vírus e ele ainda deveria um quarto de milhão de libras a Harry.

Tinha de ir até o fim. Talvez quando acabasse, conseguisse enviar uma mensagem anônima para a polícia, dando os nomes de Nigel e Daisy e esperar que descobrissem o vírus antes de ser usado. Ou talvez fosse mais prudente seguir seu plano e desaparecer. Ninguém ia querer começar uma epidemia em Lucca.

Talvez o vírus fosse espalhado no seu avião para a Itália e ele pagaria. Justiça seria feita.

Olhando para a frente, através da neve, ele viu o anúncio luminoso de um motel. Elton saiu da estrada. Uma luz estava acesa aci­ma da porta e havia oito ou nove carros no estacionamento. O motel estava aberto. Kit imaginou quem passaria o Natal em um motel. Hindus, talvez, homens de negócios impedidos de prosseguir via­gem por causa da tempestade e casais de amantes.

Elton parou ao lado de um Astra.

— A idéia era deixar a van aqui — ele disse. — É um carro facil­mente identificável. Deveríamos voltar para o aeroporto naquele Astra, mas não sei se vamos conseguir.

Lá de trás, Daisy disse:

— Seu burro idiota, por que não trouxe um Land Rover?

— Porque o Astra é um dos carros mais populares e menos nota­dos da Inglaterra e a previsão do tempo não foi de neve, sua vaca horrorosa.

— Parem com isso, vocês dois — Nigel disse calmamente. Tirou a peruca e os óculos. — Tirem os disfarces. Não sabemos quando aque­les guardas darão nossa descrição para a polícia.

Os outros obedeceram.

Elton disse: — Podemos ficar aqui, alugar quartos, esperar.

— Perigoso — Nigel respondeu. — Estamos a poucos quilômetros do laboratório.

— Se não podemos nos deslocar, a polícia também não pode. Assim que o tempo melhorar, damos o fora.

— Temos hora marcada com nosso comprador.

— Ele não vai sair de helicóptero com essa droga de tempo.

— Isso é verdade.

O celular de Kit tocou. Ele verificou no laptop. Era um telefonema regular, não desviado do sistema do Kremlin. Ele atendeu.

— Sim?

— Sou eu. — Kit reconheceu a voz de Hamish McKinnon. — Estou no meu celular. Tenho de falar rápido, enquanto Willie está no banheiro.

— O que está acontecendo?

— Ela chegou logo depois que vocês saíram.

— Eu vi o carro.

— Encontrou os outros guardas amarrados e chamou a polícia.

— Eles podem chegar aí, com este tempo?

— Disseram que iam tentar. Ela acaba de vir ao portão para dizer que devemos esperá-los. Quando chegarem... desculpe, tenho de desligar.

Kit guardou o telefone no bolso.

— Toni Gallo encontrou os guardas — ele informou. — Ela chamou a polícia e eles estão a caminho.

— Isso resolve o caso — Nigel disse. — Vamos no Astra.

 

Quando Craig pôs a mão debaixo do suéter de Sophie, ele ouviu passos. Afastou-se um pouco e olhou em volta.

Sua irmã, de camisola, descia a escada do antigo palheiro.

— Estou me sentindo um pouco esquisita — ela disse, seguindo para o banheiro.

Frustrado, Craig voltou a atenção para o filme da TV A bruxa ve­lha, transformada em uma bela mulher, seduzia um belo cavaleiro.

Caroline saiu do banheiro dizendo: — Esse banheiro cheira a vômito. — Subiu a escada e voltou para a cama.

— Nenhuma privacidade aqui — Sophie disse em voz baixa.

— É como tentar fazer amor na estação central de Glasgow — Craig disse, mas a beijou novamente. Dessa vez ela abriu os lábios e deixou que sua língua encontrasse a dele. Craig gemeu de prazer.

Ele pôs a mão outra vez dentro do suéter e sentiu o seio dela, pequeno e quente. Sophie estava com um sutiã de algodão fino. Ele apertou delicadamente e ela gemeu baixinho de prazer.

Ouviram a voz de Tom.

— Querem parar de rosnar? Não consigo dormir.

Pararam de se beijar. Craig tirou a mão de dentro do suéter dela, pronto para explodir de frustração.

— Eu lamento muito — ele disse.

— Por que não vamos a outro lugar? — Sophie sugeriu.

— Aonde?

— Que tal o sótão que você me mostrou?

Craig se entusiasmou. Ficariam completamente a sós e ninguém os perturbaria.

— Boa idéia — ele disse e se levantou.

Vestiram os casacos, calçaram os sapatos e Sophie pôs um pequeno gorro de lã cor-de-rosa com um pompom em cima, que a fazia parecer engraçadinha e inocente.

— Um pacote de prazer — Craig disse.

— O que é um pacote de prazer?

— Você.

Ela sorriu. Um pouco antes Sophie o teria chamado de “tedioso” por dizer aquilo. O relacionamento dos dois tinha mudado. Talvez fosse a vodca. Mas Craig achava que o ponto crítico da mudança acontecera no banheiro quando, juntos, trataram de Tom. Talvez Tom, por ser uma criança indefesa, os tivesse obrigado a agir como adultos. Depois daquilo era difícil voltar a ser frio e distante.

Craig jamais teria imaginado que o caminho para o coração de uma mulher fosse limpar vômito.

Ele abriu a porta do celeiro. Um vento frio borrifou confetes de neve nos dois. Craig saiu depressa, segurou a porta aberta para Sophie e depois fechou.

Steepfall parecia impossivelmente romântico. A neve cobria o telhado íngreme, acumulava-se nos parapeitos das janelas, formava uma camada de trinta centímetros nos pátios. As lanternas nas paredes tinham halos de luz dourada repletos de flocos de neve esvoaçan­tes. A neve cobria um carrinho de mão, uma pilha de lenha e uma mangueira de jardim, transformando tudo em escultura de gelo.

Sophie arregalou os olhos.

— É um cartão de Natal — ela disse.

Craig segurou a mão dela. Atravessaram o pátio, enfiando os pés na neve como pássaros pernaltas. Deram a volta na casa e chegaram à porta dos fundos. Craig tirou uma camada de neve de cima de uma lata de lixo, subiu na lata e depois no telhado baixo do pequeno cor­redor onde eram guardadas as botas.

Ele olhou para trás. Sophie hesitava.

— Segure — ele sibilou, estendendo a mão.

Ela segurou a mão dele e subiu. Com a outra mão, Craig agarrou na beira do telhado para se firmar, depois ajudou-a a subir. Por um momento ficaram lado a lado, deitados na neve, como amantes na cama. Então Craig se levantou.

Subiu na saliência debaixo da porta do sótão, empurrou com o pé quase toda a neve e abriu a porta grande. Então se voltou para Sophie.

Sophie ficou de quatro, mas quando tentou se levantar suas botas de borracha escorregaram e ela caiu. Parecia assustada.

— Segure em mim — Craig disse, ajudando-a a se levantar. O que estavam fazendo não era muito perigoso e ela estava exagerando, mas Craig não se importava, pois isso dava a ele a oportunidade de ser forte e protetor.

Segurando a mão dela, Craig ficou de pé na saliência do telhado. Sophie, ao seu lado, o abraçou pela cintura. Craig teve vontade de ficar ali, assim abraçado, mas continuou, andando de lado até a porta aberta, depois ajudou Sophie a entrar.

Craig fechou a porta e acendeu a luz. Era perfeito, ele pensou, satisfeito. Estavam sozinhos no meio da noite e ninguém os perturbaria. Podiam fazer o que quisessem.

Ele deitou e olhou a cozinha pelo buraco no chão. Uma única luz estava acesa, Nellie estava deitada na frente do fogão, a cabeça erguida, as orelhas empinadas, escutando. Ela sabia que os dois esta­vam ali.

— Volte a dormir — ele sussurrou. Quer tivesse ouvido ou não, ela pôs a cabeça entre as patas e fechou os olhos.

Sophie estava sentada no sofá, tremendo de frio.

— Meus pés estão congelando.

— Está com as botas cheias de neve. — Craig ajoelhou-se na fren­te dela e tirou as botas de borracha. As meias de Sophie estavam encharcadas e ele as tirou também. Os pés dela, pequenos e brancos, pareciam ter saído da geladeira. Craig tentou aquecê-los com as mãos. Então, inspirado, desabotoou seu casaco, levantou o suéter e apertou as solas dos pés dela contra o peito nu.

— Meu Deus, como isso é bom — Sophie disse.

Em suas fantasias Sophie dizia isso muitas vezes para ele, Craig pensou, mas não exatamente nas mesmas circunstâncias.

 

Toni se sentou na sala de controle, olhando para os monitores.

Steve e os guardas tinham contado tudo que acontecera, desde que a “equipe de manutenção” entrou no saguão até o momento em que dois deles saíram do laboratório BSL4, passaram pelo pequeno saguão e desapareceram — um deles levando uma pasta fina de couro cor de vinho. Don disse, enquanto Steve fazia um curativo na sua testa, que um dos homens tinha tentado fazer pararem as agressões. As palavras dele ficaram gravadas em sua mente: Se quer encontrar nosso cliente às dez horas com as mãos vazias, continue assim.

Evidentemente tinham roubado alguma coisa do laboratório e a levavam naquela pasta. Toni teve a terrível sensação de saber o que era.

Ela estava vendo as imagens gravadas do BSL4 desde 0:55h até 1:15h. Embora os monitores não tivessem mostrado essas imagens naquele espaço de tempo, o computador as tinha armazenado. Agora Toni estava vendo os dois homens dentro do laboratório, com os trajes protetores.

Tony congelou a imagem.

A câmera estava acima da porta e apontada sobre o ombro do homem na geladeira, com as mãos cheias de pequenas caixas brancas. Toni digitou algumas teclas e a imagem foi ampliada. Ela podia ver o símbolo internacional de biorrisco nas caixas. O homem esta­va roubando amostras de vírus. Ela ampliou mais e melhorou a imagem. Lentamente as palavras escritas nas caixas começaram a apare­cer: Madoba-2.

Era o que Toni temia, mas a confirmação a atingiu como o frio vento da morte. Ficou olhando para a tela, gelada de pavor, seu coração batendo como um sino de funeral. Madoba-2 era o vírus mais mortal que se podia imaginar, um agente infeccioso tão terrível que tinha de ser guardado com múltiplas camadas de segurança e tocado apenas por pessoal altamente treinado com trajes protetores. E ago­ra estava nas mãos de uma quadrilha de ladrões, em uma maldita pasta de couro.

Podiam bater com o carro, podiam entrar em pânico e jogar fora a pasta, o vírus podia cair nas mãos de pessoas que não sabiam o que era — os riscos eram terríveis. E mesmo que não o soltassem por aci­dente, o “cliente” o faria deliberadamente. Alguém planejava usar o vírus para assassinar centenas de milhares de pessoas, talvez para pro­vocar uma epidemia que podia exterminar toda a população da terra.

E tinham obtido por meio dela a arma assassina.

Em desespero, ela passou outra vez a fita e viu em pânico um dos invasores derramar o conteúdo dos frascos num vidro de perfume onde estava escrito “Diablerie”. Aquele seria sem dúvida o meca­nismo de dispersão. O vidro de perfume, de aparência comum, era agora uma arma de destruição em massa. Ela o viu pôr cuidadosa­mente o líquido dentro de dois invólucros de plástico e acondicionar tudo no isopor.

Toni já vira o bastante. Sabia o que devia se feito. A polícia tinha de se preparar para uma operação maciça — rapidamente. Se agissem com rapidez, podiam ainda pegar os ladrões antes que o vírus fosse entregue ao comprador.

Ela voltou os monitores à posição anterior e saiu da sala de con­trole.

Os guardas de segurança estavam no saguão, sentados nos sofás que normalmente eram usados pelos visitantes, tomando chá, pen­sando que a crise tinha acabado.

Toni resolveu fazer uma pausa de alguns segundos para se con­trolar.

— Temos um trabalho importante — ela disse. — Stu, vá para a sala de controle e volte ao seu trabalho, por favor. Steve, volte para o bal­cão. Don fique onde está. — Don tinha um curativo provisório no corte da testa.

Susan Mackintosh, agredida com o cassetete, estava deitada em um dos sofás. O sangue do seu rosto fora lavado mas ela estava grave­mente machucada. Toni ajoelhou-se ao lado dela e a beijou na testa.

— Como está se sentindo?

— Bastante zonza.

— Lamento que isso tenha acontecido.

Com um sorriso fraco, Susan disse: — Valeu a pena, pelo beijo.

Toni bateu de leve no ombro dela.

— Você está começando a melhorar.

A mãe de Toni estava sentada ao lado de Don.

— Aquele rapaz gentil, Steve, me fez uma xícara de chá — ela dis­se. Ela deu um biscoito para o cachorrinho, sentado num jornal aberto a seus pés.

— Obrigada, Steve — Toni disse.

Sua mãe observou: — Ele seria um bom namorado para você.

— Ele é casado — Toni disse.

— Hoje em dia isso não parece fazer muita diferença.

— Faz para mim. — Toni voltou-se para Steve. — Onde está Carl Osborne?

— No banheiro.

Com um gesto afirmativo, Toni pegou seu celular. Estava na hora de chamar a polícia.

Lembrou o que Steve Tremlett tinha dito sobre o pessoal de plantão na central de Inverburn nessa noite: um inspetor, dois sargentos, seis policiais e um superintendente de plantão em casa. Não era suficiente para enfrentar uma crise daquela magnitude. Toni sabia o que faria se fosse encarregada. Chamaria vinte ou trinta policiais. Pediria removedores de neve, mandaria bloquear as estradas e prepararia um esquadrão de oficiais armados para fazerem a prisão. E faria isso tudo depressa.

Sentiu-se revigorada. O horror do que tinha acontecido começava a desaparecer de sua mente enquanto se concentrava no que devia fazer. A ação sempre a animava e o trabalho da polícia era o melhor tipo de ação.

Telefonou outra vez para David Reid. Quando Toni se identificou, ele disse: — Enviamos um carro, mas eles voltaram. O tempo...

Toni ficou apavorada. Pensava que a polícia estivesse a caminho.

— Fala sério? — ela disse, erguendo a voz.

— Já viu as estradas? Tem carros abandonados por toda parte. Não adianta nada uma radiopatrulha atolada na neve.

— Cristo! Que tipo de moleirões a polícia está recrutando hoje em dia?

— Não precisa falar desse modo, senhora.

Toni se controlou.

— Tem razão. Desculpe. — Lembrou-se dos seus tempos de poli­cial. Quando a resposta da polícia a uma crise dava errado, isso geralmente se devia a uma identificação errônea do perigo nos primeiros minutos, quando alguém inexperiente como o policial Reid recebia o primeiro chamado. Sua primeira tarefa era garantir que ele tivesse a informação certa para passar ao seu superior.

— A situação é a seguinte. Um: os ladrões roubaram uma boa quantidade de um vírus chamado Madoba-2, letal para seres humanos, portanto é uma emergência de risco biológico.

— Risco biológico — ele disse, evidentemente escrevendo.

— Dois: os ladrões são três homens, dois brancos e um negro, e uma mulher branca. Estão em uma van da Hibernian Telecom.

— Pode me dar uma descrição mais detalhada?

— Daqui a um minuto mando o supervisor da guarda telefonar para você com essa informação, ele os viu, não eu. Três: temos dois feridos aqui, uma espancada com cassetete e o outro levou um pontapé na cabeça.

— Pode dizer qual a gravidade dos ferimentos?

Toni pensou que já tinha dito isso, mas ele parecia estar fazendo perguntas de uma lista.

— A guarda agredida com um cassetete precisa de um médico.

— Certo.

— Quatro: os ladrões estão armados.

— Que tipo de armas?

Toni voltou-se para Steve, que entendia de armas.

— Você identificou as armas deles?

Steve fez que sim com a cabeça: — Três deles estavam com pisto­las automáticas Brownie nove milímetros. Pareciam do exército. — Toni repetiu a descrição para Reid.

— Assalto a mão armada, então — ele disse.

— Sim... porém, o mais importante é que eles não podem estar longe e aquela van é fácil de se identificar. Se agirmos depressa, podemos pegá-los.

— Ninguém pode se deslocar depressa esta noite.

— Obviamente vocês precisarão de removedores de neve.

— A polícia não tem removedores de neve.

— Deve haver vários na área. Temos de remover a neve todos os invernos.

— Tirar a neve das estradas não é função da polícia, é responsa­bilidade das autoridades locais.

Toni estava a ponto de gritar de frustração, mas mordeu a língua,

— Frank Hackett está aí?

— O superintendente Hackett não está disponível no momento.

Ela sabia que Frank estava de plantão. Steve tinha dito.

— Se você não quiser acordá-lo, eu mesma o farei — ela disse. Desligou e ligou para a casa dele. Steve era um policial consciencioso, devia estar dormindo ao lado do telefone.

Ele atendeu: — Hackett.

— Toni. A Oxenford Medical foi roubada de uma quantidade de Madoba-2, o vírus que matou Michael Ross.

— Como você deixou isso acontecer?

Era a pergunta que Toni fazia a si mesma, mas foi contundente vinda de Frank. Ela respondeu: — Se você é tão esperto, invente um modo de pegar os ladrões, antes que eles consigam fugir.

— Não mandamos um carro há uma hora?

— Não chegou aqui. Seus policiais durões viram a neve e ficaram com medo.

— Muito bem, se estamos presos pela neve, os ladrões também estão.

— Vocês não estão presos pela neve, Frank. Podem chegar aqui com um removedor de neve.

— Não temos removedores de neve.

— O conselho municipal tem vários, telefone para lá.

Depois de uma longa pausa, ele disse: — Acho que não.

Toni podia ter matado Frank naquele momento. Ele gostava de usar de forma negativa sua autoridade. Isso o fazia se sentir poderoso. Gostava especialmente de desafiá-la. Toni sempre fora por demais segura de si, para Frank. Como tinha conseguido viver com ele por tanto tempo? Ela conteve a resposta que tinha na ponta da língua e disse: — O que você está pensando, Frank?

— Não posso mandar homens desarmados atrás de um bando armado. Precisamos reunir nossos policiais treinados, levá-los ao arsenal e dar a eles coletes, armas e munição. Isso vai levar umas duas horas.

— Enquanto isso os ladrões estão indo embora com um vírus que pode matar milhões!

— Vou mandar um alerta para deter a van.

— Eles podem trocar de carro. Podem ter um jipe esperando em algum lugar.

— Mesmo assim, não irão longe.

— E se tiverem um helicóptero?

— Toni, controle sua imaginação. Não há ladrões com helicópte­ros na Escócia.

Mas não eram bandidos locais fugindo com jóias ou dinheiro, porém Frank jamais compreendera o que era uma situação de risco biológico.

— Frank, use sua imaginação. Essa gente quer desencadear uma epidemia!

— Não venha me dizer como fazer meu trabalho. Você não é mais uma policial.

— Frank... — ela parou. Ele tinha desligado. — Frank, você é um filho-da-puta idiota — Toni disse ao telefone mudo e desligou.

Ele fora sempre assim? Toni tinha a impressão de que quando viviam juntos Frank era mais sensato. Talvez ela fosse uma boa influência. Sem dúvida ele estava disposto a aprender com ela. Lembrou-se do caso Dick Buchan, um estuprador e assassino serial, que se recusou a dizer a Frank onde estavam os corpos, apesar de horas de intimidação e dos gritos e ameaças de violência. Toni falou calmamente sobre a mãe dele e obteve a informação em vinte minutos. Depois disso, Frank pedia seu conselho sobre qualquer interro­gatório importante. Mas desde a separação, ele parecia ter regredido.

Toni olhou para o telefone, em busca de idéias. Como detonaria Frank? Tinha um trunfo contra ele. A história de Johnny Kirk. Se as coisas piorassem, podia usar isso para chantageá-lo. Porém, antes precisava tentar mais um telefonema. Procurou na memória do seu celular e encontrou o número da casa de Odette Cressy, sua amiga da Scotland Yard.

Atenderam ao telefone depois de uma longa espera.

— É Toni — ela disse. — Desculpe se a acordei.

Odette falou para alguém: — Desculpe, querido, é trabalho. Toni ficou surpresa: — Eu não esperava que você estivesse com alguém.

— É só o Papai Noel. Quais as novidades?

Toni contou.

Odette disse: — Meu Deus, era disso que tínhamos medo.

— Não posso acreditar que deixei acontecer.

— Alguma coisa pode nos dar uma idéia de quando e como eles pretendem usar o vírus?

— Duas coisas — Toni disse. — Eles não roubaram o vírus apenas, eles o puseram em um spray de perfume. Está pronto para ser usa­do. O vírus pode ser disseminado em qualquer lugar onde haja mui­ta gente — um cinema, um avião, em uma loja de departamentos como a Harrods. Ninguém vai saber o que está acontecendo.

— Um spray de perfume?

— Diablerie.

— Bom trabalho. Pelo menos sabemos o que estamos procuran­do. O que mais?

— Um guarda os ouviu falar em encontrar o cliente às dez horas.

— Às dez. Trabalham rápido.

— Exatamente. Se entregarem o material ao comprador às dez horas esta manhã, o vírus pode estar em Londres esta noite. Podem liberar no Albert Hall amanhã.

— Bom trabalho, Toni. Meu Deus, eu queria que você nunca tivesse saído da polícia.

Toni ficou mais animada.

— Obrigada.

— Mais alguma coisa?

— Quando saíram daqui seguiram na direção norte, eu vi a van. Mas há uma tempestade de neve e as estradas estão ficando intransi­táveis. Portanto, provavelmente não estão longe daqui.

— Isso quer dizer que temos uma chance de pegá-los antes que entreguem o vírus.

— Sim, mas não consegui convencer a polícia local da urgência do caso.

— Deixe comigo. Terrorismo é assunto do governo. Os seus poli­ciais caipiras vão receber um telefonema da Scotland Yard. Do que você precisa, helicópteros? Nossa base fica a uma hora daí.

— Ponha todos em alerta. Acho que um helicóptero não pode sobrevoar nesta tempestade e se pudesse não enxergaria o que está no solo. O que preciso é de um limpa-neve. Devem limpar a estrada desde Inverburn até aqui e a polícia deve fazer da Oxenford Medical sua base. Então podemos começar a procurar os ladrões.

— Eu me encarrego disso. Continue em contato, está bem?

— Obrigada, Odette. — Toni desligou.

Virou para a porta. Carl Osborne estava bem atrás dela, toman­do notas.

 

Elton dirigia o Astra devagar sobre mais de um metro de neve nova e macia. Nigel, sentado ao lado dele, segurava a pasta de couro vinho com o conteúdo mortal. Kit estava atrás com Daisy. Olhava constantemente por sobre o ombro de Nigel, para a pasta, imaginando um acidente no qual ela fosse amassada, o vidro quebrado e o líquido se espalhasse no ar como champanhe envenenado, matando todos.

Ele fremiu de impaciência quando a velocidade do carro diminuiu. Queria chegar o mais depressa possível ao pequeno aeroporto e pôr a pasta em lugar seguro. Cada minuto que passavam na estra­da aberta era perigoso.

Mas não tinha certeza de que chegariam lá. Desde que deixaram o estacionamento do motel Dew Drop Inn não tinham visto nenhum outro carro. Mais ou menos de quilômetro em quilômetro passavam por um carro ou um caminhão abandonado, alguns no acostamento, outros bem no meio da pista. Um deles era um Ranger Rover da polícia, virado de lado.

De repente um homem surgiu na frente dos faróis, agitando os braços freneticamente. Vestia terno e gravata, estava sem chapéu e casaco. Elton olhou para Nigel, que murmurou: — Nem sonhe em parar. — Elton seguiu diretamente para cima do homem que desviou no último momento. Quando passavam por ele, Kit viu rapidamen­te uma mulher vestida a rigor, com um xale fino nos ombros, ao lado de um grande Bentley. Parecia desesperada.

Passaram pela entrada para Steepfall e Kit desejou ser um garo­tinho outra vez, na cama, na casa do pai, sem saber coisa alguma sobre vírus, computadores ou suas chances com as cartas.

A neve era tanta que pouco se enxergava pelo pára-brisa, a não ser brancura. Elton estava quase cego, dirigindo por adivinhação, otimismo e olhando pela janela do carro. Diminuía a velocidade cada vez mais. Kit desejou ter um carro mais apropriado para a oca­sião. No Toyota Land Cruiser Amazon do seu pai, a poucos quilô­metros de onde estavam agora, teriam melhor chance.

Em uma subida os pneus começaram a escorregar na neve. Aos poucos o carro perdeu tração. Parou e então, para horror de Kit, começou a deslizar para trás. Elton tentou frear, mas isso só serviu para apressar o deslizamento. Ele virou a direção. A traseira virou para a esquerda. Elton virou para o outro lado e o carro parou, atravessado na pista.

Nigel praguejou.

Daisy se inclinou para a frente e disse para Elton: — Para que você fez isso, seu cretino?

Elton disse: — Saia e empurre, Daisy.

— Vá se foder.

— Falo sério — ele disse. — O fim da subida fica a poucos metros. Posso chegar lá se alguém der um empurrão no carro.

Nigel disse: — Nós todos empurramos.

Nigel, Daisy e Kit saíram do carro. Lá fora estava um gelo e os flocos de neve faziam arder os olhos de Kit. Foram para trás do car­ro. Só Daisy tinha luvas. O frio do metal era como fogo, queiman­do as mãos de Kit. Elton soltou a embreagem lentamente e eles começaram a sentir o peso. Os pés de Kit logo ficaram encharcados. Mas os pneus firmaram na neve. Elton seguiu para o topo da colina.

Eles subiram a pé, escorregando na neve, resfolegando, tremen­do de frio. Teriam de fazer isso em todas as subidas dos próximos dezessete quilômetros?

Nigel pensou a mesma coisa. Quando voltaram para o carro, ele disse: — Este carro vai nos levar até o aeroporto?

Kit tomou uma decisão: — Sei onde há um utilitário, com tração nas quatro rodas, um Toyota Land Cruiser.

— Podemos ficar atolados — Daisy disse. — Lembra do Range Rover da polícia, virado de lado?

Nigel disse: — Tem de ser melhor do que o Astra. Onde está esse carro?

— Na casa do meu pai. Para ser exato, na sua garagem cuja porta não pode ser vista da casa.

— A que distância?

— Dois quilômetros para trás e outro quilômetro e meio da entrada.

— O que você sugere?

— Estacionamos no bosque perto da casa, pegamos o Land Cruiser emprestado e vamos para o aeroporto. Depois Elton leva o Land Cruiser de volta e pega o Astra.

— Mas então será dia. E se alguém o vir quando estiver pondo o carro na garagem do seu pai?

— Eu não sei, terei de inventar uma história, mas não pode ser pior do que ficarmos presos aqui.

Nigel perguntou: — Alguém tem uma idéia melhor?

Ninguém tinha.

Elton virou o carro e desceram a colina em segunda. Depois de alguns minutos, Kit disse: — Vá por aquela estrada secundária.

Elton parou o carro.

— De jeito nenhum — ele disse. — Veja a neve lá, tem vinte centí­metros de altura e há horas não passa nenhum carro por ela. Não vamos conseguir andar nem cinqüenta metros.

Kit teve a mesma sensação de pânico de quando perdia no jogo, de que um poder superior estava dando a ele as cartas erradas.

Nigel disse: — A que distância estamos da casa do seu pai?

— Um pouco... — Kit engoliu em seco. — Pouco menos de um quilômetro e meio.

Daisy disse: — É muito chão nesta merda de tempo.

— A alternativa é esperar que um veículo passe por aqui e seqüestrá-lo — sugeriu Nigel.

— Podemos ter de esperar tempo demais — Elton disse. — Desde que saímos do laboratório não vimos nenhum carro.

— Vocês três podem esperar aqui enquanto vou pegar o Land Cruiser — Kit sugeriu.

Nigel sacudiu a cabeça.

— Pode acontecer alguma coisa com você. Pode ficar atolado na neve sem que a gente possa encontrar você. É melhor ficarmos juntos.

Havia outro motivo, Kit pensou. Nigel não confiava nele sozinho. Provavelmente temia que Kit tivesse outra idéia e chamasse a polícia. Nada estava tão longe de sua mente, mas Nigel talvez não tivesse certeza disso.

Houve um longo silêncio. Ficaram imóveis, relutando em deixar o calor do carro. Então Elton desligou o motor e todos saíram.

Nigel estava agarrado à pasta de couro, a razão pela qual estavam passando por tudo aquilo. Kit levava o laptop. Podia ter de intercep­tar telefonemas do Kremlin. Elton encontrou uma lanterna no porta-luvas e deu para Kit.

— Você vai na frente — ele disse.

Sem dizer nada Kit começou a andar, enterrado até os joelhos na neve. Ouvia resmungos e gemidos dos outros, mas não olhava para trás. Eles o acompanhariam ou seriam deixados para trás.

O frio era doloroso. Nenhum deles estava vestido para aquilo. Esperavam estar o tempo todo dentro de carros. Nigel vestia um paletó esporte; Elton, uma capa de chuva, e Daisy, um casaco de couro. Kit calçava botas de lenhador e Daisy, botas de motociclista, mas Nigel e Elton usavam sapatos comuns.

Kit ficou logo transido de frio. Suas mãos doíam, embora ele evitasse tirá-las dos bolsos. A neve encharcava sua calça jeans até os joelhos e derretia nas suas botas. Suas orelhas e seu nariz pareciam congelados.

A estrada estreita e familiar por onde tantas vezes tinha passado a pé ou de bicicleta quando era pequeno, estava invisível, enterrada na neve e logo Kit ficou confuso, sem saber ao certo onde estava. Era uma área rural da Escócia e nada marcava o lado da estrada, como em outras partes da Grã-Bretanha. A terra nos dois lados não era cultivada e ninguém via motivo para cercá-la.

Achou que talvez tivesse saído da estrada. Parou e cavou a neve com a mão.

— O que é agora? — Nigel perguntou, irritado.

— Espere um minuto. — Kit encontrou relva congelada. Isso que­ria dizer que tinha saído do asfalto. Mas, para onde? Assoprou as mãos geladas para aquecer. O terreno à direita parecia subir. Kit ima­ginou que a estrada devia ficar daquele lado. Caminhou alguns metros naquela direção, depois cavou a neve outra vez. Então encon­trou asfalto. — Por aqui — ele disse com mais confiança do que sentia.

Logo a neve derretida que encharcava sua calça e suas meias começou a congelar e agora Kit tinha gelo sobre a pele. Depois de terem andado meia hora, Kit teve a impressão de que caminhavam em círculos. Seu senso de orientação não estava funcionando. Em uma noite normal, as luzes no lado de fora da casa deviam ser visíveis à distância, mas nessa noite, nada brilhava no meio da neve que caía para servir de farol. Não havia nenhum som, nenhum cheiro do mar, que ficava a oitenta quilômetros de distância. Se se perdessem, ele pensou, morreriam congelados. Kit estava realmente apavorado.

Os outros o seguiam exaustos e em silêncio. Até Daisy parou de implicar. Estavam ofegantes e tremiam de frio, sem energia para se queixar.

Finalmente Kit sentiu que uma escuridão mais profunda o envolvia. A neve parecia ter diminuído. Ele quase se chocou com o tronco de uma grande árvore. Estavam no bosque perto da casa. O alívio foi tanto que teve vontade de ajoelhar-se e agradecer. A partir daquele ponto, ele sabia o caminho.

Seguindo a trilha sinuosa entre as árvores, ouvia os dentes de alguém batendo como tambor. Esperava que fossem os de Daisy.

Não sentia mais os dedos das mãos e dos pés, mas ainda podia mover as pernas. A camada de neve no chão não era tão espessa ali sob o abrigo das árvores e ele podia andar mais depressa. Um brilho fraco à frente anunciava as luzes da casa. Finalmente Kit saiu do bos­que, foi direto para a luz e chegou à garagem.

As portas grandes estavam fechadas, mas havia uma porta lateral que sempre ficava aberta. Kit a encontrou e entrou. Os outros três foram atrás.

— Graças a Deus — Elton disse sombriamente. — Pensei que fos­se morrer nesta maldita Escócia.

Kit apontou a lanterna. Lá estava a Ferrari azul do seu pai com suas curvas voluptuosas, estacionada junto da parede. Ao lado estava o velho Ford Mondeo branco de Luke. Isso foi uma surpresa. Luke normalmente ia para casa com Lori no fim do dia. Teriam ficado na casa essa noite ou...

Ele apontou a lanterna para a outra extremidade da garagem, onde o Toyota Land Cruiser geralmente ficava.

A vaga estava vazia.

Kit teve vontade de chorar.

Compreendeu imediatamente o que tinha acontecido. Luke e Lori moravam em um chalé no fim de uma estrada de terra a mais de dois quilômetros dali. Por causa do tempo, Stanley os deixara levar o carro com tração nas quatro rodas. Tinham deixado o Ford, que não era melhor do que o Astra.

— Oh, merda — Kit disse.

Nigel perguntou: — Onde está o Toyota?

— Não está aqui — Kit disse. — Puta que pariu, agora estamos fodidos.

 

Carl Osborne falava ao celular.

— Já tem alguém na editoria do jornal? Ótimo, me ponha em contato.

Toni atravessou o saguão até onde Carl estava sentado.

— Espere, por favor.

Ele cobriu o fone com a mão.

— O que foi?

— Por favor, desligue e ouça. Só por um momento. Carl disse no telefone.

— Prepare-se para gravar. Retorno dentro de dois minutos. — Apertou a tecla de espera e olhou interrogativamente para Toni.

Ela estava desesperada. Carl podia causar prejuízos incalculáveis com uma reportagem sensacionalista e assustadora. Ela detestava pedir, mas tinha de detê-lo.

— Isto pode acabar comigo — ela disse. — Eu deixei Michael Ross roubar um coelho e agora deixamos uma quadrilha roubar amostras de vírus.

— Desculpe, Toni, mas este é um velho mundo cruel.

— Pode arruinar a empresa também — ela insistiu. Estava sendo mais sincera do que gostaria, mas tinha de fazê-lo. — A repercussão disso pode assustar nossos... investidores.

Carl não perdia nenhuma oportunidade.

— Quer dizer os americanos?

— Não importa quem. A questão é que a empresa pode ser destruída. — Assim como Stanley, ela pensou, mas não disse. Tentava ser racional e não emocional, mas sua voz estava prestes a desmoronar. — Eles não merecem isso!

— Quer dizer que seu adorado professor Oxenford não merece isso.

— Tudo que ele está fazendo é tentar descobrir curas para a humanidade, pelo amor de Deus!

— E ganhar dinheiro ao mesmo tempo.

— Como você, quando leva a verdade aos espectadores da televi­são escocesa.

Carl Osborne olhou atentamente para Toni, sem saber ao certo se ela estava sendo sarcástica.

— Uma reportagem é uma reportagem. Além disso, é certo que logo todos vão saber. Se eu não publicar, outro qualquer publica.

— Eu sei. — Ela olhou pelas janelas do saguão. O tempo não pare­cia disposto a melhorar. Na melhor das hipóteses, talvez melhorasse um pouco com a luz do dia. — Dê-me três horas — ela disse. — Fale com o jornal às sete.

— Que diferença isso vai fazer?

Possivelmente nenhuma, ela pensou, mas era sua única chance.

— Talvez a essa hora possamos dizer que a polícia capturou os ladrões ou pelo menos que está na pista e espera uma prisão a qualquer momento. Talvez a empresa e Stanley possam sobreviver à cri­se se agirmos depressa.

— Nada feito. Alguém pode saber da história nesse intervalo. Assim que a polícia souber, torna-se do conhecimento público. Não posso correr o risco. — Ele digitou o número no celular.

Toni olhou para ele, zangada. A verdade já era péssima. Vista através das lentes distorcidas da televisão sensacionalista, seria uma catástrofe.

— Grave isto — Carl disse no celular. — Pode transmitir com uma foto minha falando ao telefone. Está pronta?

Toni teve vontade de matá-lo.

— Estou falando das instalações da Oxenford Medical, onde um segundo incidente de risco biológico em dois dias atingiu esta companhia farmacêutica escocesa.

Como posso impedir que ele continue? Tinha de tentar. Olhou em volta. Steve estava sentado à mesa da recepção, Susan deitada no sofá, muito pálida, mas Don estava de pé. Sua mãe dormia. O cachorrinho também. Tinha dois homens para ajudá-la.

— Com licença — ela disse para Carl.

Ele tentou ignorá-la.

— Amostras de um vírus mortal, o Madoba-2...

Toni pôs a mão sobre o telefone dele.

— Lamento, não pode usar isso aqui.

Ele virou de costas e tentou continuar: — Amostras de um...

Toni pôs a mão entre o telefone e a boca do repórter.

— Steve! Don! Aqui, agora!

Carl disse no telefone: — Estão tentando me impedir de ditar a reportagem, está gravando isso?

Toni disse em voz alta para ser ouvida no telefone: — Celulares podem interferir no funcionamento do delicado equipamento eletrônico dos laboratórios, portanto não devem ser usados aqui. — Não era verdade, mas servia de pretexto. — Por favor, desligue.

Carl se afastou dela e disse em voz alta: — Me larga!

Toni fez um sinal para Steve, que tirou o telefone da mão de Carl e desligou.

— Você não pode fazer isso! — Carl exclamou.

— Claro que posso. Você é um visitante e sou encarregada da segurança.

— Mentira. Isso não tem nada a ver com segurança.

— Pense o que quiser, eu faço as regras aqui.

— Então vou lá fora.

— Vai morrer congelado.

— Não pode me impedir de sair. Toni deu de ombros.

— Verdade. Mas não vou devolver seu telefone.

— Isso é roubo.

— Estou confiscando por motivo de segurança. Mandaremos pelo correio.

— Encontrarei um telefone público.

— Boa sorte. — Não havia um telefone público em um raio de oito quilômetros.

Carl vestiu o casaco e saiu. Das janelas, Toni e Steve o viram se afastar. Ele entrou no carro e ligou o motor. Saiu do carro e raspou vários centímetros de neve do pára-brisa. Os limpadores começaram a funcionar. Carl entrou e partiu.

Steve disse: — Ele deixou o cachorro.

A neve não estava tão densa. Toni resmungou baixinho. Certamente o tempo não ia melhorar na hora errada?

Uma montanha de neve apareceu na frente do Jaguar quando começou a subida. A uns cem metros do portão, o carro parou.

Steve sorriu: — Não pensei que ele fosse tão longe.

A luz interna do carro acendeu. Toni franziu as sobrancelhas, preocupada.

Steve disse: — Talvez ele vá ficar emburrado ali, com o motor ligado, o aquecimento no máximo, até a gasolina acabar.

Toni forçou a vista, tentando ver melhor através da tempestade de neve.

— O que ele está fazendo? — Steve disse. — Parece que está falan­do sozinho.

Com um aperto no coração, Toni entendeu o que estava acontecendo.

— Merda, ele está falando, mas não sozinho. — O quê?

— Ele tem outro telefone no carro. Carl é repórter, tem equipamento de reserva. Diabo, eu nem pensei nisso.

— Devo correr até lá e impedir que ele fale?

— Tarde demais. Quando você chegasse lá, ele já teria dito o sufi­ciente. Merda. — Nada estava dando certo. A vontade de Toni era desistir, ir embora, encontrar um quarto escuro, deitar e fechar os olhos. Mas ela se controlou. — Quando ele voltar, saia sem ser percebido e veja se ele deixou as chaves no contato. Se deixou, apanhe, assim pelo menos ele não poderá telefonar outra vez.

— Tudo bem.

O celular de Toni tocou.

— Toni Gallo.

— Aqui fala Odette. — Ela parecia abalada.

— O que aconteceu?

— Novas informações. Um grupo terrorista chamado Scimitar esteve procurando comprar o Madoba-2.

— Scimitar? Um grupo árabe?

— Parece, mas não temos certeza. O nome pode ser intencional­mente enganador. Mas achamos que seus ladrões trabalham para eles.

— Meu Deus! Sabem mais alguma coisa?

— Eles pretendem espalhar o vírus amanhã, no Boxing Day [Dia dos Presentes]. Será em algum lugar público da Grã-Bretanha.

Toni e Odette tinham pensado nessa possibilidade, mas a confirmação era chocante. As pessoas ficavam em casa no dia de Natal, depois saíam no Boxing Day. Em toda a Grã-Bretanha, famílias iam a jogos de futebol, corridas de cavalos, ao teatro e ao boliche. Muitos viajavam para estações de esqui e para as praias do Caribe. As opor­tunidades eram infinitas.

— Mas onde? — Toni perguntou. — Durante qual evento?

— Não sabemos. Portanto temos de pegar esses ladrões. A polícia local está a caminho daí com removedores de neve.

— Isso é ótimo. — Toni se animou. Se os ladrões fossem apanha­dos, tudo mudaria. Não só o vírus seria recapturado e o perigo evi­tado, como também a Oxenford Medical não pareceria tão mal na imprensa e Stanley estaria salvo.

Odette continuou: — Alertei também as forças policiais da sua vizinhança e de Glasgow, mas acho que a ação se desenrolará em Inverburn. O encarregado de Inverburn chama-se Frank Hackett. O nome não me é desconhecido. Não é seu ex?

— Sim, é. Isso foi parte do problema. Ele não gosta de colaborar comigo.

— Bem, vai encontrar um homem mais cordato. Recebeu um telefonema do chanceler do Ducado de Lancaster. Parece engraçado, mas ele é encarregado da sala de relatórios do Gabinete, que chamamos de COBRA. Em outras palavras, é a autoridade máxima do anti-terrorismo. Seu ex deve ter pulado da cama como se o quarto estives­se pegando fogo.

— Não desperdice sua simpatia, ele não merece.

— Depois disso, o meu chefe deu uma prensa nele, outra experiência de vida notável. O pobre coitado está a caminho com um removedor de neve.

— Prefiro ter o removedor de neve sem Frank.

— Ele passou por um mau pedaço, seja boa com o pobrezinho.

— Está bem — Toni disse.

 

Daisy tremia tanto de frio que quase não conseguia segurar a escada. Elton subiu com uma tesoura de jardim na mão congelada. A luz das lâmpadas externas era filtrada pela neve que caía. Kit, na porta da garagem, com os dentes batendo de frio, observava. Nigel, na garagem, abraçava a pasta de couro vinho.

A escada estava apoiada na parede. Fios de telefone visíveis iam do canto da casa, na altura do telhado, até a garagem. De lá, Kit sabia que se conectavam com uma tubulação subterrânea que ia até a estrada principal. Cortando os cabos ali, cortariam todo o contato telefônico da casa. Era só uma precaução, mas Nigel insistiu e Kit encontrou a tesoura e a escada na garagem.

Kit estava vivendo um pesadelo. Sabia que o trabalho daquela noite seria perigoso, mas nem nos piores momentos imaginou que estaria no lado de fora da casa de sua família vendo um bandido cortar as linhas telefônicas enquanto outro segurava com força a pasta com um vírus que podia dizimar todos eles.

Elton tirou a mão esquerda da escada, equilibrando-se cuidado­samente, e segurou a tesoura com as duas mãos. Inclinou-se para a frente, prendeu o cabo entre as lâminas, apertou para cortar e a tesoura caiu de suas mãos.

A tesoura caiu com as pontas para baixo na neve, a poucos cen­tímetros de Daisy, que gritou de susto.

— Silêncio — Kit disse em voz baixa.

— Ele podia ter me matado — Daisy protestou.

— Você vai acordar todo mundo!

Elton desceu da escada, pegou a tesoura e subiu outra vez. Tinham de ir à casa de Luke e Lori pegar o Land Cruiser, mas Kit sabia que não podiam ir imediatamente. Estavam caindo de exaustão. Pior ainda, Kit não tinha certeza de poder encontrar a casa de Luke. Tinha quase se perdido para chegar a Steepfall. A neve caía mais intensamente do que nunca. Se tentassem ir agora, iam se perder, morreriam de frio ou as duas coisas. Tinham de esperar até a tempestade de neve amainar ou até que a luz do dia desse uma melhor chance de encontrar o caminho. E para garantir que nin­guém os encontraria ali, estavam cortando as linhas telefônicas.

Dessa vez Elton conseguiu cortar os fios. Quando ele desceu da escada, Kit pegou as pontas do cabo solto, enrolou e encostou na parede da garagem, onde ficariam menos visíveis.

Elton levou a escada para a garagem e a jogou no chão. A madei­ra bateu ruidosamente no cimento.

— Tente não fazer muito barulho — Kit disse.

Nigel olhou para as paredes nuas do antigo estábulo.

— Não podemos ficar aqui.

Kit disse: — Melhor aqui do que lá fora.

— Estamos molhados e com frio e aqui não tem aquecimento. Podemos morrer.

— Absolutamente certo — Elton disse.

— Podemos ligar os motores dos carros — Kit disse. — Isso aque­cerá o lugar.

— Não seja burro — Elton disse. — O gás dos escapamentos nos mataria antes de nos aquecer.

— Podemos levar o Ford para fora e ficar dentro dele.

Daisy disse: — Que se foda tudo. O que eu quero é uma xícara de chá, comida quente e um trago. Vou entrar na casa.

— Não! — A idéia daqueles três na casa de sua família horrorizou Kit. Seria como levar cachorros raivosos para dentro de casa. E a pas­ta com o que ela continha? Como podia deixar que levassem aquilo para a cozinha?

— Estou com ela — Elton disse. — Vamos entrar na casa.

Kit desejou amargamente não ter dado a idéia de cortar os fios.

— Mas como vou explicar a presença de vocês?

— Estão todos dormindo.

— E se ainda estiver nevando quando eles acordarem?

— Você vai dizer o seguinte — Nigel resolveu. — Você não nos co­nhece e nos encontrou na estrada. Nosso carro atolou na neve a pou­cos quilômetros daqui. Você ficou com pena e nos trouxe para cá.

— Eles não devem saber que eu saí.

— Diga que foi beber alguma coisa.

Elton disse: — Ou se encontrar com uma mulher.

— Afinal, quantos anos você tem? — Daisy perguntou. — Precisa pedir ao papai para sair à noite?

Kit ficou furioso com a condescendência daquela assassina.

— É uma questão do que eles vão acreditar, seu monstro sem cére­bro. Quem seria bastante idiota para sair com uma tempestade de ne­ve e dirigir quilômetros por uma bebida, quando tem muita na casa?

Ela respondeu: — Alguém idiota o bastante para perder um quar­to de um milhão de libras no jogo.

— Você vai pensar em uma história plausível, Kit — Nigel disse. — Vamos entrar antes que nossos malditos pés caiam congelados.

— Vocês deixaram os disfarces na van. Minha família verá seus rostos.

— Não importa. Somos apenas desafortunados motoristas presos na neve. Deve haver centenas iguais a nós, os jornais vão noticiar. Sua família não nos ligará às pessoas que roubaram o laboratório.

— Não gosto disso — Kit disse. Estava com medo de desafiar aqueles criminosos, mas bastante desesperado para arriscar. — Não vou levar vocês para dentro de casa.

— Não estamos pedindo permissão — Nigel disse, com desprezo. — Se não nos mostrar o caminho, acharemos sem sua ajuda.

O que eles não compreendiam, Kit pensou, era que toda sua família era muito inteligente. Nigel, Elton e Daisy teriam dificulda­de para enganá-los.

— Vocês não parecem um grupo de pessoas inocentes que ficou presa na neve.

— Como assim? — Nigel perguntou.

— Não são uma família escocesa padrão — Kit explicou. — São londrinos, Elton é negro e Daisy, uma maldita psicopata. Minhas irmãs podem notar isso.

— Seremos educados e não vamos falar muito.

— Não dizer nada seria o melhor plano. Qualquer grosseria ou violência e vai tudo por água abaixo.

— É claro. Queremos que pensem que somos inofensivos.

— Especialmente Daisy. — Kit virou-se para ela. — Fique com as mãos quietas.

Nigel concordou com Kit: — Isso mesmo, Daisy, tente não revelar todo o maldito jogo. Aja como uma mulherzinha só por algumas horas, está bem?

Ela disse: — Está bem, está bem. — E deu as costas para eles.

Kit percebeu que, em algum ponto da discussão, ele havia cedido.

— Merda — ele disse. — Lembrem-se de que precisam de mim para mostrar onde está o Land Cruiser. Se causarem algum mal à minha família, podem esquecer isso.

Com a sensação fatalista de impotência, da incapacidade de ir de encontro ao desastre, ele os fez dar a volta na casa até a porta dos fundos que, como de hábito, não estava trancada. Kit a abriu, dizendo: — Tudo bem, Nellie, sou eu — para Nellie não latir.

Quando entrou no pequeno saguão, o ar quente o envolveu como uma bênção. Atrás dele, ouviu Elton dizer: — Oh, meu Deus, agora está melhor.

Kit virou para trás e sibilou: — Falem baixo, por favor. — Sentia-se como um professor tentando fazer crianças descuidadas falarem baixo em um museu. — Quanto mais tempo estiverem dormindo, será mais fácil para nós, não entendem isso? — Ele os levou para a cozinha. — Seja boazinha, Nellie — ele disse em voz baixa. — Eles são amigos.

Nigel acariciou a cabeça de Nellie e ela sacudiu o rabo. Tiraram os casacos. Nigel pôs a pasta na mesa da cozinha e disse: — Ponha a chaleira no fogo, Kit.

Kit deixou o laptop na mesa, voltou-se para o pequeno aparelho de TV, ligou, encontrou um noticiário e encheu de água a chaleira.

Uma locutora bonitinha disse: “Uma mudança inesperada no vento trouxe uma tempestade de neve a quase toda a Escócia.”

Daisy disse: — Não diga!

A locutora tinha uma voz sedutora, como se estivesse convidan­do o espectador para um drinque em sua casa. “Em alguns lugares, a neve atingiu mais de trinta centímetros de altura.”

— Eu concordo com trinta centímetros em alguns lugares — dis­se Elton.

Eles começavam a relaxar, Kit notou, mais tenso ainda.

A apresentadora falou dos acidentes de carro, das estradas bloqueadas e dos veículos abandonados.

— Para o diabo com isso — Kit disse, furioso. — Quando vai parar?

— Faça o chá, Kit — disse Nigel.

Kit tirou as canecas do armário, um açucareiro e uma jarra de leite. Nigel, Daisy e Elton se sentaram em volta da mesa de pinho, como uma família. A chaleira ferveu. Kit fez um bule de chá e uma cafétière de café.

A imagem da televisão mudou e apareceu o homem do tempo na frente de um mapa. Todos ficaram quietos. “Amanhã cedo a tempestade irá embora tão depressa quanto chegou”, ele disse.

— Beleza! — Nigel disse, triunfante.

— A neve começará a derreter antes do meio-dia.

— Seja mais preciso — Nigel disse, exasperado. — Quando antes do meio-dia?

— Ainda podemos conseguir — Elton disse, servindo-se de chá com leite e açúcar.

Kit compartilhou do otimismo.

— Sairemos quando amanhecer — ele disse. Ver o caminho adian­te o animou.

— Espero que seja possível — Nigel disse.

Elton tomou um gole de chá.

— Nossa, assim é melhor — ele disse. — Lázaro deve ter se sentido assim quando foi ressuscitado.

Daisy se levantou. Abriu a porta da sala de jantar e olhou para dentro.

— Que sala é esta?

Kit disse: — Aonde pensa que está indo?

— Preciso de uma alguma bebida com este chá. — Ela acendeu a luz e entrou. Logo depois Kit ouviu uma exclamação de triunfo e a porta do armário de bebidas sendo aberta.

O pai de Kit entrou na cozinha, vindo do corredor, com pijama cinza e um roupão preto de cashmere.

— Bom dia — ele disse. — O que significa isto?

— Olá, papai — Kit disse. — Deixe-me explicar.

Daisy entrou na cozinha, vinda da sala de jantar, com uma gar­rafa cheia de Glenmorangie na mão enluvada. Stanley ergueu as sobrancelhas.

— Você quer um copo de uísque? — ele perguntou.

— Não, obrigada — Daisy respondeu. — Tenho uma garrafa intei­ra aqui.

 

Toni ligou para a casa de Stanley logo que teve um momento livre. Ele não podia fazer nada, mas ia querer saber o que estava acontecendo. E Toni não queria que ele soubesse pela televisão.

Ela temia a conversa. Tinha de dizer que era responsável por uma catástrofe que podia arruinar a vida dele. Como Stanley se sentiria depois disso?

Ela digitou o número e ouviu o som do telefone desligado. O telefone de Stanley devia estar enguiçado. Talvez a neve tivesse derrubado as linhas. Toni ficou aliviada por não ter de dar a notícia.

Stanley não usava celular mas tinha um telefone na sua Ferrari. Toni ligou e deixou uma mensagem: “Stanley, é Toni. Más notícias, um roubo no laboratório. Por favor, ligue para meu celular assim que for possível.” Ele podia não ouvir a mensagem antes que fosse tarde demais, mas pelo menos tinha tentado.

Toni olhou impaciente pelas janelas do saguão. Onde estava a polícia com o limpa-neve? Eles viriam do sul, de Inverburn, pela estrada principal. Ela calculou a velocidade do limpa-neve em vinte e cinco quilômetros por hora, dependendo da profundidade da neve que teria de remover. A viagem levaria vinte ou trinta minutos. Já devia ter chegado. Vamos, vamos!

Ela esperava que eles saíssem imediatamente da Oxenford Medical para seguir as pistas da van da Hibernian Telecom. A van era fácil de ser vista, com o nome em grandes letras brancas sobre um fundo escuro.

Mas os ladrões podiam ter pensado nisso, ela pensou de repente. Provavelmente planejavam trocar de veículo assim que deixassem o Kremlin. Era o que ela faria. Escolheria um carro comum, como um Ford Fiesta parecido com uma dezena de outros modelos, e o deixaria no estacionamento de um supermercado ou de uma estação de trem. Os ladrões iriam diretamente ao estacionamento e, poucos minutos depois de deixar a cena do crime, estariam em outro veículo.

Essa idéia a desanimou. Como então a polícia identificaria os ladrões? Teria de verificar todos os carros e ver se os ocupantes eram três homens e uma mulher.

Agitada, Toni tentou pensar no que podia fazer para acelerar o processo. Supondo que eles tivessem trocado de carro perto dali, quais seriam as possibilidades? Precisavam de um lugar onde um car­ro pudesse ficar estacionado durante horas sem chamar a atenção. Não havia estações de trem nem supermercados ali perto. O que havia nas vizinhanças? Ela foi até a mesa da recepção e apanhou um bloco de notas e uma caneta. Fez uma lista.

• Inverburn Golf Club

• Dew Drop Inn

• Happy Eater

• Greenfingers Garden Center

• Scottish Smoked Fish Products

• Williams Press (Printing & Publishing)

Toni não queria que Carl Osborne soubesse o que ela estava fazendo. Carl tinha voltado do carro para o calor do saguão e estava ouvindo tudo. Sem que ele soubesse, não podia mais telefonar do carro. Steve tinha saído e tirado a chave da ignição — mas, mesmo assim, ela não queria arriscar.

Ela disse para Steve, em voz baixa: — Vamos fazer um pouco de trabalho de detetive. — Rasgou em dois a folha do bloco e deu meta­de para ele. — Telefone para esses lugares. Todos estão fechados, é claro, mas pode encontrar um zelador ou um segurança. Diga que fomos roubados, mas não diga o que eles levaram. Diga que o carro da fuga pode ter sido abandonado perto dali. Pergunte se podem ver uma van da Hibernian Telecom no estacionamento deles.

— Idéia inteligente. Talvez a gente possa descobrir a pista e adiantar o trabalho da polícia — Steve concordou.

— Exato. Mas não use o telefone da mesa. Não quero que Carl ouça. Vá para a outra extremidade do saguão, onde ele não pode ouvir. Use o celular que tirou dele.

Toni foi para bem longe de Carl com o celular. Ligou para o serviço de informações e conseguiu o número do clube de golfe. Ligou e esperou. O telefone tocou por mais de um minuto, então uma voz sonolenta atendeu.

— Sim? Inverburn Golf Club. Alô?

Toni se apresentou e contou a história.

— Estou tentando localizar uma van da Hibernian Telecom. Ela está no seu estacionamento?

— Ah, entendi, o veículo da fuga, sim.

O coração dela pulou uma batida.

— Está aí?

— Não, pelo menos não estava quando entrei de serviço. Mas tem alguns carros aqui, deixados por cavalheiros que relutaram em dirigir no fim do almoço de ontem, sabe o que quero dizer?

— A que horas entrou de serviço?

— Sete horas da noite.

— Uma van pode ter estacionado aí desde então. Talvez mais ou menos às duas da manhã?

— Bem, talvez... não posso dizer.

— Pode dar uma olhada?

— Sim, posso olhar! — Falou como se fosse uma idéia de espanto­sa originalidade. — Espere um minuto. — Toni ouviu o fone bater na mesa.

Ela esperou. Passos se afastaram e depois voltaram.

— Não, não acho que tenha uma van lá fora.

— Tudo bem.

— Os carros estão todos cobertos de neve, por isso a gente não pode ver bem. Nem tenho certeza de qual é o meu.

— Sim, muito obrigada.

— Mas uma van, bem, seria mais alta do que o resto, certo? Então ia se destacar. Não, não tem nenhuma van aqui.

— Você ajudou muito. Eu agradeço.

— O que eles roubaram?

Toni fingiu não ouvir a pergunta e desligou. Steve estava ao tele­fone e aparentemente ainda não encontrara a mina de ouro. Toni ligou para o Dew Drop Inn.

Um jovem muito bem-disposto atendeu ao telefone.

— Vincent falando, em que posso ajudar?

Toni pensou que ele parecia o tipo de empregado de hotel que parece ansioso para agradar até o hóspede pedir alguma coisa. Ela repetiu a história.

— Tem uma porção de veículos no nosso estacionamento. Estamos abertos no Natal — Vincent informou. — Estou olhando pelo circuito interno de televisão, mas não vejo nenhuma van. Infelizmente, a câmera não filma todo o estacionamento.

— Será que se importaria de ir até a janela e olhar bem? É realmente muito importante.

— Na verdade, estou bastante ocupado agora.

A esta hora da noite?, Toni pensou mas não perguntou. Em tom docemente atencioso, ela disse: — Vai poupar tempo de um interro­gatório de polícia, você compreende.

Isso funcionou. Ele não iria querer que sua noite tranqüila fosse perturbada por radiopatrulhas e detetives.

— Espere um minuto. — Ele se afastou e depois voltou.

— Sim, está aqui.

— De verdade? — Toni estava incrédula. Parecia que por muito tempo não tinha tanta sorte.

— Van Ford Transit, azul com Hibernian Telecom escrito em letras grandes brancas no lado. Não deve estar aqui há muito tempo porque não está tão coberta de neve quanto os outros carros. Por isso posso ver o que está escrito.

— Isso é uma grande ajuda, obrigada. Suponho que não notou se está faltando algum carro? Possivelmente o carro que eles deixaram aí?

— Não, sinto muito.

— Tudo bem, obrigada outra vez! — Toni desligou e olhou para Steve. — Encontrei o carro da fuga!

Ele indicou a janela com um movimento da cabeça.

— E o limpa-neve está aqui.

 

Daisy tomou todo o chá e encheu a xícara de uísque.

Kit estava insuportavelmente tenso. Nigel e Elton podiam manter a desculpa de serem viajantes inocentes acidentalmente presos na neve, mas Daisy não tinha jeito. Parecia uma marginal e agia como uma criminosa.

Quando ela pôs a garrafa na mesa, Stanley a pegou.

— Não vá se embriagar, mocinha — ele disse suavemente, tampando a garrafa.

Daisy não estava acostumada a que dissessem o que devia fazer. Em geral, as pessoas ficavam com medo dela. Olhou para Stanley como se fosse matá-lo. Ele estava elegantemente vulnerável com o pijama cinza e o roupão preto. Kit esperou a explosão.

— Um pouco de uísque faz você se sentir melhor, mas muito, faz você se sentir pior — Stanley disse, guardando a garrafa no armário. — Meu pai dizia isso e ele gostava muito de uísque.

Daisy tentava controlar a raiva. O esforço era visível para Kit. Ele temia o que podia acontecer se ela perdesse o controle. Então a tensão foi aliviada por sua irmã Miranda, que entrou na cozinha com uma camisola cor-de-rosa estampada.

Stanley disse: — Olá, meu bem. Levantou cedo hoje.

— Não consegui dormir. Fiquei na velha poltrona de Kit. — Olhou para os estranhos. — É cedo para visitas de Natal.

— Esta é minha filha Miranda — Stanley disse. — Mandy, estes são Nigel, Elton e Daisy.

Alguns minutos atrás Kit os tinha apresentado ao pai e antes de perceber o erro, dera os nomes verdadeiros.

Miranda os cumprimentou com uma inclinação da cabeça.

— Foi o Papai Noel quem os trouxe?

Kit explicou: — O carro deles morreu na estrada principal, perto da entrada para nossa casa. Eu dei uma carona e então meu carro morreu também e fizemos a pé o resto do caminho. — Ela acredita­ria nisso? E ia perguntar o que tinham na pasta cor de vinho que estava na mesa da cozinha, como uma bomba?

Ela questionou um aspecto diferente da história.

— Eu não sabia que você tinha saído. Aonde foi no meio da noi­te, com este tempo?

— Ora, sabe como é... — Kit tinha pensado em como responderia a essa pergunta e agora disse com um sorriso embaraçado: — Não podia dormir, senti-me sozinho, fui procurar uma ex-namorada em Inverburn.

— Qual delas? A maioria das moças de Inverburn foi sua namo­rada.

— Acho que você não conhece. — Ele pensou em um nome rapi­damente. — Lisa Fremont. — Depois quase mordeu a língua. Era o nome da personagem de um filme de Hitchcock.

Miranda não reagiu ao nome.

— Ela ficou contente de ver você?

— Ela não estava em casa.

Miranda virou para trás e apanhou o bule de café.

Kit imaginou se ela tinha acreditado. A história, na verdade, era fraca. Porém Miranda não podia de modo algum saber por que ele estava mentindo. Ia supor que estava envolvido com uma mulher e não queria que ninguém soubesse — provavelmente uma mulher casada.

Enquanto Miranda se servia de café, Stanley disse para Nigel: — De onde você é? Não parece escocês. — Parecia uma conversa sem conseqüências mas Kit sabia que o pai estava sondando.

Nigel respondeu com a mesma calma: — Moro em Surrey, traba­lho em Londres. Meu escritório é em Canary Wharf.

— Trabalha no mundo financeiro.

— Forneço sistemas de alta tecnologia para o Terceiro Mundo, especialmente o Oriente Médio. Um jovem xeque quer ter uma discoteca particular e não sabe onde comprar o equipamento. Então ele me procura e resolvo seu problema. — Parecia legítimo.

Miranda levou seu café para a mesa e sentou na frente de Daisy.

— Que belas luvas — ela disse. As luvas de suede bege, que pare­ciam caras, estavam encharcadas. — Por que não as enxuga?

Kit ficou tenso. Qualquer conversa com Daisy era arriscada.

Miranda não viu o olhar hostil de Daisy e insistiu: — Precisa encher as luvas com alguma coisa para não perderem a forma — ela disse. Pegou um rolo de toalha de papel de cima da bancada. — Tome, use isto.

— Eu estou bem — Daisy resmungou zangada.

Miranda levantou as sobrancelhas, surpresa.

— Eu disse alguma coisa que a ofendeu?

Kit pensou: Oh, lá vem merda.

Nigel entrou na conversa.

— Não seja tola, Daisy, você não vai querer estragar suas luvas. — A insistência na voz dele fazia com que as palavras parecessem mais uma ordem do que uma sugestão. Ele estava tão preocupado quan­to Kit. — Faça o que a senhora está dizendo, ela está sendo amável com você.

Outra vez Kit esperou a explosão. Mas, para sua surpresa, Daisy tirou as luvas. Atônito, Kit viu que as mãos dela eram pequenas e limpas. Nunca notara isso. O resto dela era animalesco: a maquia­gem negra dos olhos, o nariz quebrado, o casaco com zíper fechado, as botas. Mas as mãos eram bonitas e obviamente Daisy sabia disso, pois as unhas eram limpas, bem manicuradas, com esmalte rosa páli­do. Kit ficou confuso. Em algum lugar dentro daquele monstro exis­tia uma mulher comum, ele pensou. O que tinha acontecido com ela? Fora criada por Harry Mac, era isso.

Miranda a ajudou a encher as luvas com papel.

— Qual a ligação entre vocês três? — ela perguntou para Daisy. Seu tom era convencionalmente delicado, como se estivessem conversando em um jantar, mas Miranda estava sondando também. Como Stanley, não tinha idéia do perigo.

Daisy entrou em pânico. Fez Kit pensar em uma aluna sendo questionada sobre o trabalho de casa que tinha esquecido de fazer. Kit queria preencher o silêncio embaraçoso, mas ia parecer estranho se ele respondesse por ela. Nigel falou: — O pai de Daisy é um velho amigo meu.

Isso era bom, Kit pensou, mas Miranda devia estar se perguntando por que Daisy não podia ter explicado.

Nigel acrescentou: — E Elton trabalha para mim.

Miranda sorriu para Elton.

— Braço-direito?

— Motorista — ele respondeu bruscamente.

Kit pensou: Ainda bem que Nigel é apresentável, tinha de ter charme suficiente para os três.

Stanley disse: — Bem, é uma pena que o tempo tenha ficado assim para seu Natal na Escócia.

Nigel sorriu.

— Se eu quisesse tomar sol, teria ido para Barbados.

— Você e o pai de Daisy devem ser bons amigos, para passar jun­tos o Natal.

Nigel assentiu: — Somos amigos há muito tempo.

Para Kit parecia óbvio que Nigel estava mentindo. Seria porque ele sabia a verdade? Ou era tão aparente para Stanley e Miranda tam­bém? Kit não podia agüentar aquilo por muito tempo mais, a tensão era insuportável. Levantou-se de repente.

— Estou com fome — ele disse. — Pai, posso fazer uns ovos mexi­dos para todos?

— É claro.

— Eu ajudo — Miranda disse e pôs uma fatia de pão na torradeira.

Stanley disse: — Seja como for, espero que o tempo melhore logo. Quando planejavam voltar para Londres?

Kit tirou um pacote de bacon da geladeira. Seu pai estava desconfiado ou apenas curioso?

— Pretendíamos voltar no Boxing Day — Nigel disse.

— Uma curta visita de Natal — Stanley comentou, ainda desafian­do delicadamente a história.

Nigel deu de ombros.

— Muito trabalho, sabe como é.

— Talvez tenham de ficar mais tempo do que esperavam. Não acredito que as estradas estejam limpas amanhã.

A idéia aparentemente deixou Nigel ansioso. Puxou para cima a manga do suéter cor-de-rosa e consultou o relógio.

Kit se deu conta de que precisava fazer alguma coisa para mostrar que não estava com Nigel e os outros dois. Começando a fazer o café da manhã, resolveu não defender ou desculpar os estranhos. Muito pelo contrário, devia questionar Nigel com ceticismo, como se desconfiasse da história. Podia desviar a suspeita de si mesmo fin­gindo que também duvidava deles.

Antes que tivesse tempo de pôr em prática essa resolução, Elton de repente começou a falar.

— O que me diz do seu Natal, professor Oxenford? Com toda a família reunida, parece. Quantos filhos, dois?

— Três.

— Com mulheres e maridos, é claro.

— Minhas filhas têm parceiros. Kit é solteiro.

— E netos?

— Sim.

— Quantos? Se não se importa que eu pergunte.

— Não, não me importo. Tenho quatro netos.

— Todos estão aqui?

— Estão.

— Isso é ótimo para o senhor e a sra. Oxenford.

— Minha mulher morreu há dezoito meses — ele disse tristemente.

— Meus sentimentos.

— Obrigado.

O que significava aquele interrogatório?, Kit pensou. Elton sorria, inclinado para a frente como se as perguntas fossem motivadas por nada mais do que curiosidade amistosa, mas Kit percebia que era uma charada e imaginou, ansioso, se isso também ficara eviden­te para seu pai.

Elton não tinha terminado.

— Esta deve ser uma grande casa, para dormir, quantas, dez pessoas?

— Temos alguns anexos.

— Oh, muito conveniente. — Ele olhou pela janela, embora a neve não deixasse ver quase nada. — Chalés para hóspedes, esse tipo de coisa?

— Temos um chalé e um celeiro.

— Muito útil. E alojamentos de empregados, suponho?

— Nossos empregados têm um chalé a uns dois quilômetros daqui. Duvido que apareçam hoje.

— Oh. E uma pena. — Elton ficou em silêncio outra vez, depois de calcular cuidadosamente quantas pessoas estavam na casa e fora dela.

Kit imaginou se alguém mais tinha notado isso.

 

O removedor de neve era um caminhão Mercedes com uma lâmi­na acoplada a sua dianteira. Tinha luzes piscantes cor de laranja em cima, mas para Toni parecia uma carruagem alada descida dos céus.

A lâmina estava em um ângulo que permitia empurrar a neve para os lados da estrada. A neve do caminho que ia do portão até a entrada principal do Kremlin foi retirada imediatamente, a lâmina subindo automaticamente para evitar colisões. Quando o caminhão chegou à entrada do Kremlin, Toni vestiu o casaco, pronta para ir. Os ladrões tinham saído havia quatro horas, mas se tivessem ficado presos na neve, ainda poderiam ser alcançados.

O removedor de neve era acompanhado por três carros da polícia e uma ambulância. A equipe da ambulância desceu primeiro. Deitaram Susan na maca, embora ela dissesse que podia andar. Don recusou-se a ser levado.

— Se um escocês fosse para o hospital toda vez que leva um pon­tapé na cabeça, os médicos não dariam conta do recado — ele disse.

Frank entrou com terno escuro, camisa branca e gravata. Tinha até achado tempo para fazer a barba, provavelmente no carro. Toni viu a expressão do rosto dele e percebeu, desanimada, que Frank estava louco por uma briga. Sem dúvida se ressentia por ter sido for­çado por seus superiores a fazer o que Toni queria. Ela resolveu ser paciente e evitar uma cena.

A mãe de Toni acariciava o cachorrinho. Ergueu os olhos e disse: — Olá, Frank! Que surpresa. Você e Toni vão voltar a viver juntos?

— Não hoje — ele murmurou.

— É uma pena.

Frank estava acompanhado por dois detetives com duas pastas grandes — uma equipe de reconstituição do crime, Toni supôs. Frank cumprimentou Toni com uma inclinação da cabeça e Carl Osborne com um aperto de mãos, mas falou só com Steve.

— Você é o supervisor da guarda?

— Sou. Steve Tremlett. Você é Frank Hackett, já nos encontramos antes.

— Fui informado de que quatro guardas foram rendidos.

— Eu e três outros, sim.

— Todas as agressões foram no mesmo lugar?

O que Frank estava fazendo?, Toni se perguntou, impaciente. Por que aquelas perguntas triviais, quando precisavam sair imediatamente atrás dos ladrões?

Steve respondeu: — Susan foi atacada no corredor. Eu fui derru­bado mais ou menos no mesmo lugar. Don e Stu foram rendidos e amarrados na sala de controle.

— Mostre-me os dois lugares, por favor.

Toni estava atônita.

— Precisamos ir atrás deles, Frank. Por que não deixa isso para sua equipe?

— Não me diga como fazer meu trabalho — ele respondeu. Parecia satisfeito por ela ter dado a ele uma oportunidade de chamar atenção dela. Toni gemeu interiormente. Aquela não era hora de reencenar seus conflitos conjugais. Ele voltou-se outra vez para Steve: — Vá na frente.

Reprimindo um palavrão, Toni os seguiu, e Carl Osborne também.

Os detetives estenderam a fita isolante de reconstituição do crime no corredor onde Steve fora derrubado e Susan, espancada com o cassetete. Foram então para a sala de controle onde Stu vigiava os monitores. Frank passou a fita na porta.

Steve disse: — Nós quatro fomos amarrados e levados para o BSL4. Não para o laboratório propriamente dito, só para a saleta de entrada.

— Onde eu os encontrei — Toni acrescentou. — Mas isso foi há quatro horas e os ladrões estão se afastando a cada minuto.

— Vamos dar uma olhada nesse lugar.

— Não, não vão — Toni disse. — É uma área restrita. Podem ver no monitor dezenove.

— Se não é o laboratório, suponho que não haja perigo.

Ele estava certo, mas Toni não ia deixá-lo perder mais tempo.

— Ninguém pode entrar sem ser treinado em biossegurança. É o protocolo.

— Para o diabo com seu protocolo. Eu estou no comando aqui.

Toni percebeu que, sem querer, acabava de fazer o que tinha jurado evitar: provocara um confronto com Frank. Tentou superar o problema.

— Eu o levo até a porta.

Foram até a porta. Frank olhou para a leitora de cartão e disse para Steve:

— Estou ordenando que me dê seu passe.

Steve disse: — Eu não tenho um passe. Os guardas de segurança não têm permissão para entrar aí.

Frank voltou-se para Toni.

— Você tem um passe?

— Tenho treinamento em biossegurança.

— Dê-me seu passe.

Ela entregou o cartão. Frank o passou na leitora e empurrou a porta, que continuou fechada. Ele apontou para a pequena tela na parede.

— O que é isso?

— Uma leitora de impressões digitais. O passe não funciona sem a impressão correta. E um sistema que instalamos para evitar que imbecis entrem com cartões roubados.

— Isso não deteve os ladrões esta noite, certo? — Tendo marcado um ponto, Frank deu meia-volta e se afastou da porta.

Toni o seguiu. De volta ao saguão Toni viu dois homens com casacos de alta visibilidade e botas de borracha, fumando. Pensou a princípio que fossem operadores do removedor de neve, mas, quan­to Frank começou a dar instruções a eles, viu que eram policiais.

— Examinem todos os veículos que encontrarem — ele disse. — Passem por rádio o número da placa e nós verificamos se foi rouba­do ou alugado. Informem quando houver alguém nos carros. Sabem o que estamos procurando — três homens e uma mulher. De modo nenhum aproximem-se dos ocupantes. Os caras estão armados e vocês não, portanto façam somente reconhecimento. Uma unidade armada está a caminho. Se pudermos localizar os ladrões, nós a enviaremos. Está claro?

Os dois homens inclinaram a cabeça, assentindo.

— Sigam para o norte e entrem na primeira estrada. Acho que eles foram para o leste.

Toni sabia que ele estava errado. Relutava provocar outro confronto com Frank, mas não podia deixar a equipe de reconhecimen­to ir para o lado errado. Ele ficaria furioso, mas tinha de fazer. Ela disse: — Os ladrões não foram para leste.

Frank a ignorou.

— Isso os levará à estrada principal para Glasgow — ele disse.

Toni repetiu: — Os ladrões não foram para leste.

Os dois policiais ouviam com interesse, olhando de Frank para Toni, de Toni para Frank, como espectadores em uma partida de tênis.

Frank ficou rubro.

— Ninguém pediu sua opinião, Toni.

— Eles não foram por esse caminho — ela insistiu. — Continua­ram para o norte.

— Suponho que tenha chegado a essa conclusão por intuição feminina?

Um dos policiais riu.

Por que você é tão teimoso, ela pensou.

— O veículo da fuga — ela disse calmamente — está no estaciona­mento do Dew Drop Inn, nesta estrada, oito quilômetros ao norte.

Frank ficou mais vermelho, embaraçado porque ela sabia algo que ele desconhecia.

— E como você conseguiu essa informação?

— Trabalho de detetive. — Eu fui uma policial melhor do que você e ainda sou, ela pensou, mas não disse. — Telefonei. Melhor do que intuição. — Você pediu isso, seu miserável.

O policial riu outra vez, mas parou quando Frank olhou para ele.

Toni acrescentou: — Os ladrões podem estar no motel, porém é mais provável que tenham trocado de carro e continuado a viagem.

Frank controlou a fúria.

— Vão para o motel — ele disse para os dois policiais. — Receberão mais ordens quando estiverem a caminho. Vão agora.

Eles saíram apressadamente. Afinal, Toni pensou.

Frank chamou um detetive à paisana de um dos carros e mandou seguir o removedor de neve até o motel, verificar se a van esta­va lá e saber se alguém viu alguma coisa.

Toni começou a pensar no próximo passo. Ela queria ficar perto da operação policial. Mas não tinha carro. E sua mãe ainda estava com ela.

Viu Carl Osborne falando com Frank em voz baixa. Carl apontou para seu Jaguar, ainda atolado entre o portão e a casa. Frank assentiu com a cabeça e disse alguma coisa para um policial unifor­mizado, que saiu e falou com o motorista do limpa-neve. Iam desatolar o carro de Carl, Toni concluiu.

Toni disse para Carl: — Você vai com o limpa-neve.

Ele disse, com ar superior: — É um país livre.

— Não se esqueça de levar o cachorro.

— Eu pretendia deixá-lo com você.

— Eu vou com você.

— Está louca.

— Preciso ir à casa de Stanley. Fica nessa estrada, oito quilôme­tros depois do Dew Drop Inn. Você pode me deixar lá com minha mãe. — Depois de informar Stanley, ela podia pedir a ele um carro emprestado, deixar sua mãe em Steepfall e seguir o limpa-neve.

— Você quer que eu leve sua mãe também? — Carl perguntou, incrédulo.

— Quero.

— Esqueça.

— Avise-me se mudar de idéia — Toni disse.

Carl estranhou aquela aceitação tão pronta da sua recusa, mas Toni sacudiu a mão para ele, dando a conversa por encerrada.

Carl foi para a porta.

Toni disse: — Não se esqueça do cachorrinho.

Ele pegou o cachorro e foi para seu carro.

Pela janela Toni viu o comboio partir. O removedor limpou a pilha de neve na frente do Jaguar de Carl, depois subiu em direção ao portão. Um carro da polícia o seguiu. Carl ficou sentado no seu carro por um momento, depois saiu e voltou ao saguão.

— Onde estão as minhas chaves? — ele perguntou, furioso.

Toni sorriu docemente.

— Mudou de idéia a respeito de me levar?

Steve tilintou as chaves no bolso.

Carl disse, zangado: — Entre no maldito carro.

 

Miranda tinha uma sensação estranha a respeito dos três, Nigel, Elton e Daisy. Seriam mesmo o que diziam? Alguma coisa neles a fazia desejar não estar de camisola.

Miranda tivera uma péssima noite na desconfortável poltrona de Kit. Cochilava e acordava, sonhando com seu estúpido e vergonhoso caso com Hugo e acordou ressentida com Ned por ter falhado outra vez de ficar ao seu lado. Ele devia ter ficado zangado com Kit por trair seu segredo, mas em vez disso disse apenas que segredos são revelados mais cedo ou mais tarde. Tinham repetido a discussão daquela manhã no carro. Miranda esperava que os feriados fossem a oportunidade de a família aceitar Ned, mas começava a pensar que talvez fosse o momento de rejeitá-lo. Ned era fraco demais.

Ficou aliviada quando ouviu vozes lá embaixo, pois significava que podia se levantar. Agora estava perturbada. Será que Nigel não tinha mulher, família ou uma namorada que quisesse estar com ele no Natal? E Elton? Miranda tinha certeza de que Nigel e Elton não eram um casal gay. Nigel tinha olhado insistentemente para sua camisola, com os olhos de um homem que queria ver o que havia por baixo.

Daisy pareceria esquisita em qualquer companhia. Tinha idade para ser namorada de Elton, mas eles pareciam não gostar um do outro. Então, o que ela estava fazendo com Nigel e seu motorista?

Nigel não era amigo da família de Daisy, Miranda percebeu. Não havia nenhum calor entre eles. Pareciam mais como pessoas que tinham de trabalhar juntas, embora não se dessem muito bem. Mas se eram colegas de trabalho, por que mentir?

Seu pai parecia tenso também. Ela imaginou se ele também sus­peitava de alguma coisa.

A cozinha se encheu de cheiros deliciosos, bacon frito, café fres­co e torrada. Cozinhar era uma das coisas que Kit fazia bem, Miranda lembrou. Sua comida tinha sempre uma apresentação atraente. Ele podia fazer uma refeição de espaguete parecer um banquete real. Aparência era importante para seu irmão. Ele não conseguia se man­ter em um emprego nem administrar a conta no banco, mas estava sempre bem-vestido e tinha um carro sofisticado, mesmo se estivesse coberto de dívidas. Aos olhos do seu pai, ele aliviava realizações frívolas com graves fraquezas. A única vez que Stanley ficou feliz com Kit foi quando ele tomou parte nas Olimpíadas de Inverno.

Kit preparou para todos um prato com bacon torrado, rodelas de tomate fresco, ovos mexidos, salpicados com ervas picadas e triângulos de torrada quente com manteiga. A tensão aliviou um pouco. Talvez, Miranda pensou, fosse isso que Kit queria. Ela não estava com fome, mas comeu uma garfada de ovos, temperados com queijo parmesão e com um delicioso sabor picante.

Kit começou a conversa.

— Então, Daisy, o que você faz para ganhar a vida? — ele pergun­tou com um sorriso encantador. Miranda sabia que ele só estava sen­do delicado. Kit gostava de mulheres bonitas e Daisy não era uma delas.

Ela demorou um longo tempo para responder.

— Trabalho com meu pai — ela disse.

— E qual é a linha dele?

— A linha dele?

— Quero dizer, que tipo de trabalho ele faz?

Ela pareceu embaraçada com a pergunta.

Nigel riu e disse: — Meu velho amigo Harry faz tanta coisa que é difícil dizer.

Kit surpreendeu Miranda ao insistir. Com tom de desafio ele disse para Daisy: — Muito bem, dê um exemplo de uma das coisas que ele faz, então.

Ela se animou e como que inspirada disse: — Ele trabalha com propriedades. — Parecia repetir alguma coisa que ouvira.

— Parece que ele gosta de possuir coisas.

— Desenvolvimento de propriedades.

— Nunca tive certeza, do significado de desenvolvimento de pro­priedades.

Não era do feitio de Kit interrogar alguém agressivamente, Miranda pensou. Talvez ele também achasse a história deles difícil de acreditar. Ela ficou aliviada. Isso provava que eram estranhos. Miranda, quase inconscientemente, temia que Kit estivesse envolvi­do em algum negócio escuso com eles. Com Kit, nunca se sabia.

Havia impaciência na voz de Nigel quando ele falou.

— Harry compra um velho armazém de tabaco, consegue permissão para transformá-lo em um condomínio luxuoso e vende com lucro a um construtor.

Mais uma vez, Miranda notou, Nigel estava respondendo por Daisy. Kit aparentemente pensou a mesma coisa, pois disse: — E como exatamente você ajuda seu pai nesse trabalho, Daisy? Eu diria que você é uma boa vendedora.

Daisy parecia mais encarregada de despejar inquilinos.

Com um olhar hostil para Kit, ela disse: — Faço várias coisas. — E ergueu o queixo como o desafiando a achar alguma falta nessa res­posta.

— E tenho certeza de que faz com charme e eficiência — Kit disse.

O elogio de Kit sugeria sarcasmo, Miranda pensou, ansiosa. Daisy não era sutil, mas podia perceber quando estava sendo insultada.

A tensão estragou o café da manhã de Miranda. Precisava falar nisso com seu pai. Ela engoliu, tossiu e fingiu estar com alguma coisa presa na garganta. Tossindo, ela se levantou da mesa.

— Desculpem — ela disse, engasgada.

Seu pai pegou um copo e o encheu com água da torneira.

Ainda tossindo, Miranda saiu da cozinha. Como esperava, o pai foi com ela. Miranda fechou a porta da cozinha e com um sinal indicou o escritório. Ela tossiu outra vez, para efeito, quando entraram.

Ele ofereceu o copo com água e Miranda recusou.

— Eu estava fingindo. Queria falar com você — ela disse. — O que você acha dos nossos visitantes?

Stanley pôs o copo sobre o couro verde da mesa.

— Um grupo estranho. Imaginei se não seriam amigos de Kit em alguma coisa ilegal, até ele começar a interrogar a moça.

— Eu também. Mas eles estão mentindo sobre alguma coisa.

— Mas o quê? Se planejam nos roubar, estão demorando para agir.

— Eu não sei, mas estou me sentindo ameaçada.

— Quer que eu chame a polícia?

— Pode haver uma reação violenta. Mas eu gostaria que alguém soubesse que estão aqui.

— Muito bem, vamos pensar. Para quem podemos telefonar?

— Que tal o tio Norman? — O irmão do seu pai, um bibliotecário da universidade, que morava em Edimburgo. Os irmãos se amavam de modo distante, contentando-se em se encontrar uma vez por ano.

— Sim. Norman compreenderá. Conto o que aconteceu e peço a ele para me telefonar daqui a uma hora para saber se estamos bem.

— Perfeito.

Stanley pegou o telefone e o encostou no ouvido. Franziu a testa, desligou e pôs no ouvido outra vez.

— Está mudo — ele disse.

Miranda ficou com medo.

— Agora, quero mesmo telefonar para alguém.

Stanley digitou algumas teclas do computador.

— Nenhum e-mail também — ele disse. — Provavelmente é esse tempo. Neve pesada às vezes derruba as linhas.

— Mesmo assim...

— Onde está seu celular?

— No chalé. Você não tem um?

— Só na Ferrari.

— Olga deve ter.

— Não precisa acordá-la. — Stanley olhou pela janela. — Visto um casaco e vou até a garagem.

— Onde estão as chaves?

— No armário das chaves.

O armário das chaves ficava na parede do corredor ao lado da cozinha.

— Eu apanho para você.

Saíram para o corredor. Stanley foi até a porta da frente e apanhou suas botas. Miranda pôs a mão na maçaneta da porta e hesi­tou. Ouviu a voz de Olga na cozinha. Miranda não falava com a irmã desde a noite anterior, em que Kit traíra seu segredo. O que ia dizer para Olga ou Olga para ela?

Abriu a porta. Olga estava encostada na bancada, com um roupão de seda negra que fez Miranda lembrar uma toga de advogado. Nigel, Elton e Daisy estavam sentados à mesa, com Kit pairando ansioso atrás deles. Olga, em pose de tribunal, interrogava os estra­nhos. Ela disse para Nigel: — O que vocês estavam fazendo fora de casa tão tarde? — Como se ele fosse um adolescente delinqüente.

Miranda notou um volume retangular no bolso do robe de seda. Olga nunca ia a lugar algum sem seu celular. Miranda ia voltar e dizer ao pai que não precisava ir à garagem, mas o espetáculo de Olga a fascinou.

Nigel franziu a testa desaprovadoramente, mas respondeu.

— Estávamos indo para Glasgow.

— Onde estavam? Não há muita coisa ao norte daqui.

— Em uma grande casa de fazenda.

— Provavelmente conhecemos os donos? Quem são?

— O nome é Robinson.

Miranda esperava a oportunidade de pedir o celular para Olga.

— Robinson não me lembra nada. Quase tão comum quanto Smith e Brown. Qual era a ocasião?

— Uma festa.

Olga levantou as sobrancelhas escuras.

— Você vem à Escócia passar o Natal com seu amigo e depois sai com a filha dele para uma festa, deixando o pobre homem sozinho?

— Ele não estava se sentindo muito bem.

Olga voltou-se para Daisy.

— Que tipo de filha é você para deixar seu pai doente sozinho em casa na véspera de Natal?

Daisy olhou para ela furiosa e em silêncio. De repente Miranda teve medo de que Daisy reagisse violentamente. Kit certamente pensou a mesma coisa, pois ele disse: — Pega leve, Olga.

Olga o ignorou.

— Muito bem — ela disse para Daisy. — Não tem nada a dizer em seu favor?

Daisy pegou suas luvas. Por alguma razão Miranda achou aqui­lo ameaçador. Daisy calçou as luvas e disse: — Não tenho de respon­der a suas perguntas.

— Acho que tem. — Olga olhou para Nigel. — Vocês três, comple­tos estranhos, sentados na cozinha do meu pai, fartando-se com sua comida e com uma história perfeitamente implausível. Eu acho que precisam se explicar.

Kit disse, ansiosamente.

— Olga, isso é realmente necessário? São apenas pessoas que ficaram atoladas...

— Tem certeza? — ela perguntou. Olhou outra vez para Nigel.

Nigel antes parecia relaxado mas agora a indignação apareceu quando ele disse: — Não gosto de ser interrogado.

— Se não gosta pode ir embora — Olga disse. — Mas se quiser ficar na casa do meu pai tem de arranjar uma história melhor do que essa baboseira.

— Não podemos ir embora — Elton disse, indignado. — Olhe pelas janelas, está nevando pra caralho.

— Por favor, não use essa palavra nesta casa. Minha mãe sempre proibiu palavrões, exceto em língua estrangeira, e mantivemos essa regra depois de sua morte. — Olga estendeu a mão para o bule de café, depois apontou para a pasta vinho. — O que é isso?

— É minha — Nigel disse.

— Muito bem, não deixe isso na mesa. — Estendeu a mão e pegou a pasta. — Não há muita coisa nela... ai! — Olga gritou quando Nigel agarrou seu braço. — Está me machucando! — ela exclamou.

A máscara de civilidade de Nigel desapareceu. Ele falou em voz baixa mas clara: — Largue a pasta. Agora.

Stanley apareceu ao lado de Miranda de casaco, luvas e botas.

— Que diabo pensa que está fazendo? — disse para Nigel. — Tire a mão de minha filha.

Nellie latiu alto. Com um movimento rápido, Elton segurou a coleira dela.

Olga teimosamente continuou a segurar a pasta.

Kit disse: — Largue a pasta, Olga.

Daisy agarrou a pasta. Olga tentou evitar que ela a tirasse de sua mão e a pasta se abriu, espalhando o isopor em cima da mesa. Kit deu um grito de pavor e Miranda se perguntou por que ele estava tão assustado. De dentro da pasta caiu um vidro de perfume dentro de dois invólucros de plástico.

Com a mão livre Olga esbofeteou Nigel.

Nigel retribuiu na mesma moeda. Todos gritaram ao mesmo tempo. Com um rosnado de raiva, Stanley empurrou Miranda para o lado e avançou para Nigel.

Miranda gritou: — Não...

Daisy se pôs na frente de Stanley. Ele tentou empurrá-la. Houve um movimento confuso e Stanley gritou e caiu, com sangue escor­rendo da boca.

Então, de repente, Nigel e Daisy estavam empunhando armas.

Todos ficaram quietos, exceto Nellie, que latia freneticamente. Elton torceu a coleira, sufocando-a, até ela parar de latir. Tudo ficou em silêncio.

Olga disse: — Quem são vocês afinal?

Stanley olhou para o vidro de perfume na mesa e perguntou, assustado: — O que vocês têm nesse vidro dentro do plástico?

Miranda saiu de mansinho da cozinha.

 

Kit olhou apavorado para o vidro de Diablerie na mesa da cozi­nha. Mas o vidro não estava aberto. A tampa não tinha saído, os dois invólucros de plástico estavam intactos. O fluido letal continuava seguro dentro do seu frágil recipiente.

Mas agora que Nigel e Daisy empunhavam armas, não podiam mais passar por vítimas inocentes da tempestade. Assim que fossem veiculadas as notícias do laboratório, seriam associados ao roubo do vírus.

Nigel, Daisy e Elton podiam escapar, mas a posição de Kit era diferente. Não havia dúvida de quem ele era. Mesmo que escapasse hoje, seria um fugitivo da justiça para o resto da vida.

Pensava furiosamente, tentando descobrir uma saída.

Então, enquanto todos olhavam, imóveis, para as pequenas pis­tolas ameaçadoras, Nigel moveu sua arma uma fração de centímetro, apontando-a para Kit e Kit teve uma inspiração.

Ainda não tinham nenhum motivo para suspeitar dele, Kit pensou. Podia ter sido enganado pelos três fugitivos. Sua história de que eles eram completos estranhos ainda estava de pé.

Mas como fazer com que essa idéia ficasse clara?

Lentamente ele levantou as mãos, no tradicional gesto de rendição.

Todos olharam para ele. Houve um momento em que Kit pensou que seus comparsas o trairiam. Nigel franziu a testa. Elton pare­cia surpreso. Daisy sorriu com desprezo.

Kit disse: — Papai, lamento muito ter trazido essas pessoas para dentro de casa. Eu não tinha idéia...

Stanley olhou demoradamente para ele e depois assentiu com um gesto.

— Não foi sua culpa — ele disse. — Estranhos não podem ser igno­rados em uma tempestade de neve. De modo nenhum você podia saber... — olhou para Nigel com desprezo — ...que espécie de pessoas eles são.

Nigel compreendeu imediatamente e se apressou em reforçar o plano de Kit.

— Lamento retribuir sua hospitalidade desse modo... Kit, não é esse seu nome? Sim... Você salvou nossas vidas na neve, agora estamos apontando armas para você. Este velho mundo nunca foi justo.

O ar de espanto de Elton sumiu quando ele compreendeu o plano.

Nigel continuou: — Se sua irmã mandona não tivesse metido o nariz, teríamos ido embora pacificamente e você nunca saberia que tipo de pessoas somos. Mas ela continuaria insistindo.

Daisy finalmente entendeu e virou o rosto com uma expressão desdenhosa.

Ocorreu a Kit que Nigel e os outros podiam simplesmente matar sua família. Estavam dispostos a roubar um vírus que mataria milhões, por que hesitariam em fuzilar os Oxenford? Era diferente, é claro. A idéia de matar milhões com um vírus era um tanto abstra­ta, ao passo que matar adultos e crianças a sangue-frio seria mais difícil. Mas eles podiam fazê-lo, se fosse necessário. Podiam matar Kit também, ele pensou estremecendo. Por sorte ainda precisavam dele. Kit sabia o caminho para o chalé de Luke e para o Toyota Land Cruiser. Eles jamais o achariam sem sua ajuda. Kit resolveu lembrar Nigel disso na primeira oportunidade.

— O que está nesse vidro vale muito dinheiro, só isso — Nigel ter­minou.

Para reforçar a cena, Kit disse: — E o que é?

— Não interessa — disse Nigel.

O celular de Kit tocou.

Ele não sabia o que fazer. Provavelmente era Hamish. Devia ter acontecido alguma coisa no Kremlin e o cúmplice achava que Kit devia saber. Mas como falar com Hamish sem se trair para sua família? Ele ficou paralisado, enquanto todos ouviam seu celular tocar a nona sinfonia de Beethoven.

Nigel resolveu o problema.

— Me dê isso — ele disse.

Kit entregou o celular e Nigel atendeu.

— Sim, é Kit — ele disse com uma boa imitação do sotaque escocês.

A pessoa no outro lado da linha aparentemente acreditou, pois Nigel ouviu em silêncio por algum tempo.

— Entendi — ele disse. — Obrigado. — Desligou e guardou o tele­fone no bolso. — Alguém avisando você de que há três bandidos peri­gosos soltos nas vizinhanças — ele disse. — Aparentemente a polícia está vindo atrás deles com um limpa-neve.

 

Craig não entendia Sophie. Num momento ela era dolorosamente tímida, no outro, ousada a ponto de ser embaraçosa. Ela deixou que ele pusesse as mãos dentro do seu suéter e até abrir o fecho do sutiã. E ele pensou que ia morrer de prazer quando segurou os dois seios dela — mas depois não permitiu que Craig olhasse para eles à luz da vela. Ele ficou mais excitado ainda quando Sophie desabotoou sua calça como se fizesse esse tipo de coisa por anos, mas não parecia saber o que fazer em seguida. Craig imaginou se haveria algum códi­go de comportamento que ele não conhecia. Ou ela seria tão inex­periente quanto ele? Fosse como fosse, Sophie estava ficando melhor na arte de beijar. No princípio foi hesitante, mas depois de algumas horas de prática ficou entusiasmada.

Craig era como um marinheiro na tempestade. Durante toda a noite subiu e desceu em ondas de esperança e desespero, desejo e desapontamento, ansiedade e prazer. Em dado momento ela murmurou: “Você é tão bom. Eu não sou boa. Sou má.” E quando ele a beijou outra vez, o rosto dela estava molhado de lágrimas. O que você deve fazer, ele pensou, quando uma garota começa a chorar quando sua mão está dentro da calcinha dela? Craig começou a tirar a mão, achando que devia ser o que ela queria, mas Sophie agarrou seu pulso e não deixou. “Eu acho que você é boa”, ele disse, mas isso parecia fraco demais, e Craig acrescentou: “Acho você maravilhosa.”

Embora confuso, Craig estava também intensamente feliz. Nunca se sentira tão perto de uma garota. Ele ardia de amor, de ternura e de alegria. Quando ouviu o barulho na cozinha, estavam resolvendo até onde deviam ir.

Ela disse: — Você quer ir até o fim?

— E você?

— Eu quero se você quiser.

Craig assentiu balançando a cabeça.

— Na verdade, eu quero.

— Você tem camisinhas?

— Tenho. — Ele tirou o pequeno embrulho do bolso da calça.

— Então você planejou isto?

— Eu não tinha nenhum plano. — Era quase verdade. Ele não tinha um plano concreto. — Mas tinha esperança. Desde que a conheci tenho pensado em..., bem, ver você outra vez e tudo o mais. E pensei nisso hoje o dia inteiro...

— Você foi tão persistente.

— Eu só queria estar assim com você.

Não era muito eloqüente, mas parecia ser o que ela queria ouvir.

— Tudo bem, então. Vamos fazer.

— Tem certeza?

— Tenho. Agora. Depressa.

— Ótimo.

— Meu Deus, o que foi aquilo?

Craig tinha percebido a presença de pessoas na cozinha. Ouviu vagamente o murmúrio de vozes, depois o barulho de uma frigidei­ra e o cheiro de bacon frito. Não sabia ao certo a hora, mas parecia cedo para o café da manhã. Porém, não deu importância, certo de que ninguém os interromperia ali no sótão. Agora os sons não podiam ser ignorados. Primeiro ouviu o avô gritar — o que não era comum. Nellie começou a latir como um demônio; ouviu um grito que parecia de sua mãe, depois várias vozes masculinas gritando ao mesmo tempo.

Sophie disse, assustada: — Isso é normal?

— Não — ele respondeu. — Eles discutem, mas não fazem concur­so de gritos.

— O que está acontecendo?

Craig hesitou. Uma parte dele queria esquecer o barulho e agir como se estivesse com Sophie em um universo só deles, deitados no velho sofá, cobertos com seus casacos. Ele podia ter ignorado um terremoto para se concentrar na pele macia, na respiração quente e nos lábios úmidos. Mas outra parte sentia que a interrupção não era completamente indesejada. Tinham feito quase tudo. Talvez até fos­se agradável adiar o final, assim haveria algo para esperar, mais pra­zer a ser antecipado.

Lá embaixo a cozinha ficou em silêncio tão de repente quanto tinha explodido em som.

— Estranho — ele disse.

— Sinistro.

Sophie parecia assustada e isso fez Craig se resolver. Beijou mais uma vez os lábios dela e se levantou. Ergueu a calça e atravessou o sótão na direção do buraco no chão. Deitou e olhou para baixo entre as tábuas do assoalho.

Viu sua mãe, de pé, com a boca aberta, parecendo chocada e assustada. Seu avô limpava o sangue do queixo. Tio Kit estava com os braços levantados. Três estranhos estavam na cozinha. A princípio ele achou que eram todos homens, mas então viu que um deles era uma garota feia, com a cabeça raspada. O jovem negro segurava a coleira de Nellie, puxando com força. O homem mais velho e a garota empunhavam armas.

Craig murmurou: — Merda, o que está acontecendo lá embaixo?

Sophie estava deitada ao lado dele. Depois de um momento, com uma exclamação abafada, ela murmurou: — Aquelas coisas são armas?

— São.

— Oh, meu Deus, estamos fodidos.

Craig pensou por um momento.

— Temos de chamar a polícia. Onde está seu celular?

— Deixei no celeiro.

— Droga.

— Meu Deus, o que podemos fazer?

— Pense. Pense. Um telefone. Precisamos de um telefone — Craig hesitou.

Ele estava assustado. Tudo que queria era ficar deitado imóvel e fechar os olhos com força. Teria feito isso se não fosse pela garota ao seu lado. Ele não conhecia todas as regras, mas sabia que um homem tinha de mostrar coragem quando uma mulher estava assustada, especialmente quando eram amantes, ou quase. E, se não estivesse se sentindo corajoso, devia pelo menos fingir.

Onde ficava o telefone mais próximo?

— Há uma extensão ao lado da cama do vovô.

Sophie disse: — Estou tão assustada que não posso fazer nada.

— Acho melhor você ficar aqui.

— Tudo bem.

Craig ficou de pé. Abotoou a calça, afivelou o cinto e foi até a portinhola. Respirou fundo e abriu-a. Arrastou-se para dentro do closet do avô, empurrou a porta e saiu no quarto de vestir.

As luzes estavam acesas. Os sapatos de couro estavam lado a lado no tapete e a camisa azul que ele tinha usado na véspera, em cima da pilha no cesto de roupas sujas. Craig entrou no quarto de dormir. A cama estava desfeita, como se seu avô tivesse acabado de se levantar. No criado-mudo havia uma revista American Scientific, aberta — e o telefone.

Craig nunca ligara para o 999, o número de emergência policial. O que devia dizer? Tinha visto só na televisão. Devia dizer seu nome e sua localização, ele pensou. Depois o quê? “Tem uns homens armados na nossa cozinha.” Parecia dramático, mas provavelmente todos os telefonemas para o 999 eram dramáticos.

Ele pegou o telefone. Estava mudo.

Bateu com o dedo no gancho e escutou outra vez. Nada.

Ele desligou. Por que os telefones estavam mudos? Era apenas um defeito ou os estranhos tinham cortado as linhas?

Seu avô tinha um celular? Craig abriu a gaveta do criado-mudo. Viu uma lanterna e um livro, mas nada de telefone. Então lembrou, seu avô tinha um telefone no carro, mas não um celular.

Ouviu um barulho no quarto de vestir. A cabeça de Sophie apa­receu na porta do closet. Ela parecia assustada.

— Vem vindo alguém — ela murmurou.

Logo depois Craig ouviu passos pesados no patamar.

Ele correu para o quarto de vestir. Sophie pôs a cabeça para den­tro do closet. De joelhos, Craig entrou no closet no momento em que ouviu abrir a porta do quarto. Não teve tempo de fechar a por­ta do closet. Passou pela portinhola e a fechou silenciosamente.

Sophie murmurou: — O homem mais velho mandou a moça revistar a casa. Ele a chamou de Daisy.

— Eu ouvi as botas dela no patamar.

— Conseguiu falar com a polícia?

Ele balançou a cabeça.

— O telefone está mudo.

— Não!

Ouviu os passos pesados de Daisy no quarto. Ela ia ver a porta do closet. Descobriria a portinhola atrás dos ternos? Só se olhasse com muita atenção.

Craig escutou. Ela estaria olhando para dentro do closet naque­le momento? Ele estremeceu. Daisy não era grande — dois ou quatro centímetros mais baixa do que ele — mas parecia absolutamente ater­rorizadora.

O silêncio continuou. Craig pensou ouvir Daisy entrar no banheiro. Depois de uma curta pausa, as botas atravessaram o quarto de vestir e se afastaram. A porta do quarto bateu.

— Oh, meu Deus, estou com tanto medo — Sophie disse.

— Eu também — disse Craig.

 

Miranda estava no quarto de Olga, com Hugo.

Quando saiu da cozinha não sabia o que fazer. Não podia sair da casa de camisola e descalça. Subiu correndo a escada pensando em se trancar no banheiro, mas logo compreendeu que isso era inútil. Ficou parada no patamar da escada, nervosa. Estava com tanto medo que sentia náuseas. Tinha de ligar para a polícia, esta era a prioridade.

O celular de Olga estava no bolso do roupão, mas Hugo provavelmente tinha outro.

Assustada como estava, Miranda hesitou por uma fração de segundo fora da porta. A última coisa que queria era ficar em um quarto com Hugo. Então ouviu alguém sair da cozinha para o corredor. Abriu a porta, entrou e a fechou silenciosamente.

Hugo estava na frente da janela, olhando para fora, despido e de costas para a porta.

— Dê uma olhada nessa droga de tempo — ele disse, obviamente pensando que sua mulher tinha voltado.

Miranda ficou atônita por um momento com o tom casual dele. Evidentemente Olga e Hugo tinham feito as pazes depois de gritar um com o outro quase a noite inteira. Olga já teria perdoado o marido por fazer sexo com sua irmã? Parecia rápido demais, mas talvez já houvessem tido outra briga por causa de outras mulheres. Miranda muitas vezes tentava imaginar o acordo entre Olga e seu marido infiel, mas a irmã nunca tocava no assunto. Talvez tivessem um rotei­ro: infidelidade, descoberta, reconciliação e, de novo, infidelidade.

— Sou eu — Miranda disse.

Ele virou rapidamente, espantado, então sorriu.

— E num déshabillé. Que bela surpresa. Vamos para a cama, depressa.

Miranda ouviu passos pesados na escada e ao mesmo tempo notou que a barriga de Hugo estava muito maior do que quando fora para a cama com ele — parecia um duende redondo — e ela se perguntou como podia ter achado Hugo atraente.

— Você tem de telefonar para a polícia agora mesmo — ela disse.

— Onde está seu celular?

— Bem aqui — ele disse, apontando para a mesa-de-cabeceira. — Qual é o problema?

— Tem gente armada na cozinha, ligue para a polícia, rápido!

— Quem são?

— Não importa. — Ela ouviu passos no corredor. Ficou gelada, com medo de que a porta se abrisse, mas os passos passaram pela frente do quarto. Sua voz era uma espécie de grito em baixo volume.

— Provavelmente estão me procurando, ande com isso!

Hugo saiu do choque. Pegou o celular, derrubou-o no chão, apanhou-o e apertou a tecla para ligar.

— Esta maldita coisa demora a vida toda — ele disse frustrado. — Você disse armados?

— Disse!

— Como eles entraram?

— Disseram que ficaram atolados na neve. O que há com esse telefone?

— Procurando o sinal — ele disse. — Vamos, vamos!

Miranda ouviu os passos outra vez do lado de fora do quarto. Dessa vez ela estava pronta. Jogou-se no chão e deslizou para debaixo da cama de casal no momento em que a porta se abriu violenta­mente.

Ela fechou os olhos e tentou se fazer bem pequena. Sentindo-se tola, abriu os olhos. Viu os pés descalços de Hugo, os tornozelos cabeludos e um par de botas de motoqueiro com pontas de metal. Ouviu Hugo dizer: “Olá, belezinha quem é você?”

Seu charme não funcionou com Daisy. Ela disse: — Me dá esse telefone.

— Eu estava só...

— Agora, seu idiota gordo.

— Tome, aqui está.

— Agora venha comigo.

— Deixe-me vestir alguma coisa.

— Não tenha medo, não vou arrancar seu pintinho com os dentes.

Miranda viu Hugo se afastar de Daisy. Ela se aproximou rapida­mente dele, depois ouviu o som de um golpe e Hugo gritou. Os dois pares de pés foram juntos para a porta. Miranda não os via mais e um momento depois, os ouviu descer a escada.

Miranda pensou: “Oh, Deus, o que eu faço agora?”

 

Craig e Sophie estavam deitados no assoalho do sótão, olhando para baixo, para a cozinha, quando o pai de Craig, nu, chegou arras­tado por Daisy.

Craig ficou chocado e perturbado. Era uma cena de pesadelo ou um quadro antigo mostrando pecadores sendo arrastados para o inferno. Ele mal podia acreditar que aquela figura humilhada e indefesa fosse seu pai, o dono da casa, a única pessoa que havia quinze anos determinava as regras para ele. Sentiu-se desorientado e sem peso, como se a gravidade tivesse sido desligada e ele não soubesse onde era o chão.

Sophie começou a chorar baixinho.

— Isso é horrível — ela murmurou. — Nós todos vamos ser mortos.

A necessidade de confortá-la deu forças a Craig. Passou o braço em volta dos ombros estreitos. Ela tremia.

— É horrível, mas ainda não estamos mortos — ele disse. — Podemos pedir socorro.

— Como?

— Onde exatamente está seu telefone?

— Deixei no celeiro, lá em cima, ao lado da cama. Acho que o guardei na mala quando troquei de roupa.

— Temos de ir lá e usar o telefone para chamar a polícia.

— E se essa gente horrível nos descobrir?

— Ficaremos longe das janelas da cozinha.

— Não podemos, a porta do celeiro fica bem em frente.

Sophie tinha razão, Craig sabia, mas tinham de correr o risco.

— Provavelmente não vão olhar para fora.

— Mas e se olharem?

— Mal dá para ver o outro lado do pátio, com toda essa neve.

— Eles podem ver a gente!

Craig não sabia mais o que dizer.

— Temos de tentar — ele disse.

— Eu não posso. Vamos ficar aqui.

Era tentador, mas Craig sabia que se se escondesse sem fazer nada para ajudar sua família, ia ficar envergonhado.

— Você pode ficar, se quiser, eu vou até o celeiro.

— Não... não me deixe sozinha!

Craig tinha calculado que ela ia dizer isso.

— Então tem de ir comigo.

— Eu não quero.

Ele apertou de leve os ombros de Sophie e a beijou no rosto.

— Vamos. Seja corajosa.

Ela enxugou o nariz com a manga.

— Vou tentar.

Craig se levantou, calçou os sapatos e vestiu o casaco. Sophie ficou imóvel, olhando para ele à luz das velas. Tentando pisar de leve para não ser ouvido lá de baixo, ele encontrou as botas de borracha dela, ajoelhou e as calçou nos pés pequeninos. Ela cooperou passivamente, em estado de choque. Craig gentilmente a ajudou a se levan­tar e a vestir o agasalho com capuz. Fechou o zíper, puxou o capuz cobrindo a cabeça dela e empurrou o cabelo para trás. O capuz a fazia parecer um moleque e por um breve momento ele pensou no quanto ela era bonita.

Ele abriu a janela grande e comprida. Um vento gelado levou uma rajada de neve para dentro do sótão. A lâmpada acima da por­ta formava um pequeno círculo de luz, mostrando a camada de neve no chão, mais alta do que nunca. A tampa da lata de lixo parecia o chapéu de Ali Babá.

Havia duas janelas na extremidade da casa, uma da despensa e outra do vestíbulo. Os estranhos sinistros estavam na cozinha. Se tivesse pouca sorte, um deles podia entrar na despensa ou no vestíbulo justamente na hora errada, Craig pensou, mas as possibilidades eram a seu favor.

— Vamos — ele disse.

Sophie ficou ao lado dele e olhou para baixo.

— Você vai primeiro.

Craig se inclinou para a frente. A luz do vestíbulo estava acesa, mas não a da despensa. Alguém poderia vê-lo? Sozinho, ele talvez ficasse apavorado, mas o medo de Sophie lhe dava coragem. Limpou a neve da saliência na parede depois foi até o telhado vertical do vestíbulo. Limpou uma parte do telhado, ficou de pé e estendeu a mão para ela. Segurou a mão de Sophie enquanto ela andava na saliência do telhado.

— Você está indo muito bem — ele disse baixinho. Não era difícil, a saliência tinha trinta centímetros de largura, mas ela estava tre­mendo. Finalmente ela desceu para o telhado. — Muito bem — Craig disse.

Então ela escorregou.

Seus pés fugiram de baixo do corpo. Craig segurava ainda a mão dela, mas não conseguiu mantê-la de pé e Sophie caiu sentada com um baque surdo que devia ter ecoado lá embaixo. Ela caiu de mau jeito, inclinada para trás e deslizou sentada no gelo.

Craig estendeu a mão e puxou-a pelo casaco, tentando deter o escorregão, mas seus pés estavam na mesma superfície escorregadia e acabou sendo arrastado para baixo com ela. Ele deslizou telhado abaixo atrás dela, esforçando-se para manter o corpo ereto e tentando diminuir a velocidade da queda de Sophie.

Quando seus pés chegaram à calha na beirada do telhado, Sophie parou, mas estava com a metade do traseiro na parte inclinada da saliência. Seu corpo balançou, Craig segurou com mais força o casaco e a puxou para ele e para ela ficar segura — mas ele escorre­gou outra vez. Largou o casaco dela, sacudindo os braços para se manter de pé.

Com um grito, Sophie caiu do telhado.

Despencou três metros e aterrissou na neve nova e macia, atrás da lata de lixo.

Craig se inclinou na saliência do telhado. Havia pouca luz naquele canto e ele mal podia vê-la.

— Você está bem? — ele perguntou. Nenhuma resposta. Ela esta­ria inconsciente? — Sophie!

— Estou bem — ela disse, com voz trêmula.

A porta da cozinha abriu. Craig se abaixou e sentou.

Um homem saiu. Craig só podia ver o cabelo escuro. O homem olhou para o lado. A luz que saía da porta aberta mal iluminava Sophie. Seu casaco cor-de-rosa desaparecia na neve, mas a calça jeans escura era visível. Ela ficou imóvel. Ele não podia ver seu rosto.

Uma voz lá de dentro perguntou: — Elton. Quem está aí?

Elton moveu a lanterna de um lado para o outro, mas o feixe de luz não mostrou nada além de flocos de neve. Craig se encostou no telhado.

Elton virou para a direita, para o lado oposto ao de Sophie e deu alguns passos na tempestade, com a lanterna apontada para a frente.

Craig recuou no telhado, esperando que Elton não olhasse para cima. Então lembrou que a janela do sótão ainda estava aberta. Se Elton virasse a lanterna para aquele lado, não podia deixar de ver a janela e iria investigar, o que seria desastroso. Craig deslocou-se devagar, alcançou a janela e empurrou-a de leve. A janela se moveu vagarosamente. Craig deu um último empurrão e se deitou rapidamente outra vez. A janela fechou com um clique.

Elton virou para trás. Craig ficou imóvel. Viu a luz da lanterna passar pelo beiral e pela janela do sótão.

Outra vez a voz lá de dentro chamou: — Elton?

A luz da lanterna se afastou do telhado.

— Não posso ver nada — Elton gritou, irritado.

Craig arriscou mover a cabeça para olhar. Elton andava para o outro lado, na direção de Sophie. Parou ao lado da lata de lixo. Se ele dirigisse a lanterna para o canto, ele a veria. Quando isso acontecesse, Craig decidiu, ele mergulharia do telhado sobre a cabeça de Elton. Provavelmente levaria uma surra, mas Sophie poderia escapar.

Depois de um longo momento, Elton virou para o outro lado.

— Nada aqui além da maldita neve — ele disse, entrando na casa e fechando a porta.

Craig suspirou de alívio. Percebeu que estava tremendo. Tentou se acalmar. Pensar em Sophie ajudava. Saltou do telhado para o lado dela. Inclinando-se, ele disse: — Você se machucou?

Sophie se sentou.

— Não, mas estou com medo.

— Tudo bem. Pode ficar de pé?

— Tem certeza de que ele foi embora?

— Eu o vi entrar e fechar a porta. Eles devem ter ouvido seu gri­to ou talvez o baque de quando escorregou no telhado, mas nesta tempestade, provavelmente não têm certeza do que podia ter sido.

— Oh, meu Deus, espero que não tenham mesmo. — Ela se levantou.

Craig se concentrou, pensando. Os bandidos estavam evidentemente alertas. Se ele e Sophie atravessassem o pátio diretamente para o celeiro, podiam ser vistos por alguém que estivesse olhando pela janela da cozinha. O melhor seria passar pelo jardim, dar a volta no chalé e se aproximar do celeiro pela parte de trás. Ainda se arrisca­riam a ser vistos quando chegassem à porta, mas esse desvio minimi­zaria a possibilidade de serem descobertos.

— Por aqui — ele disse. Segurou a mão dela e Sophie o acompa­nhou docilmente.

Sentiram o vento soprando com mais força. A tempestade vinha do mar. Fora do abrigo da casa, a neve não caía mais em rajadas esparsas, mas agressiva e pesadamente, num ângulo inclinado, quei­mando seus rostos e entrando nos seus olhos.

Quando Craig não podia mais ver a casa, virou para a direita. O progresso era lento. A camada de neve tinha sessenta centímetros de altura, dificultando seus passos. Ele não podia mais ver o chalé. Medindo os passos, Craig atravessou o que pensou ser a largura do pátio. Agora, completamente às cegas, achou que devia estar na altura do celeiro e virou outra vez. Contou os passos até onde devia encontrar a parede de madeira.

Mas não havia nada.

Tinha certeza de não ter se enganado. Medira meticulosamente as distâncias. Deu mais cinco passos. Temia estar perdido, mas não queria que Sophie soubesse. Controlando a sensação de pânico, virou outra vez e seguiu de volta para a casa. Na escuridão comple­ta, Sophie não podia ver seu rosto, portanto, felizmente não podia ver o quanto estava assustado.

Estavam fora de casa havia menos de cinco minutos mas suas mãos começavam a congelar. Craig compreendeu que corriam gran­de perigo. Se não conseguissem encontrar abrigo, morreriam de frio.

Sophie não era boba.

— Onde estamos?

Craig procurou se mostrar mais confiante do que estava de fato.

— Chegando ao celeiro. Só mais alguns passos.

Não devia ter feito uma previsão tão apressada. Depois de mais dez passos, estavam ainda em completa escuridão.

Craig imaginou que devia ter se afastado dos prédios mais do que havia calculado. Assim, a distância da volta fora muito curta. Virou para a direita outra vez. Depois de tantas voltas não tinha mais certeza dos ângulos corretos. Deu mais dez passos e parou.

— Estamos perdidos? — Sophie perguntou, temerosa.

— Não podemos estar longe do celeiro! — Craig disse, irritado. — Demos apenas poucos passos no jardim.

Ela o apertou em um abraço.

— A culpa não é sua.

Ele sabia que era, mas ficou grato a ela por isso.

— Podemos gritar — ela sugeriu. — Caroline e Tom podem ouvir e responder.

— Aquela gente na cozinha pode ouvir também.

— Isso é melhor do que morrer de frio.

Ela estava certa mas Craig não queria admitir. Como era possível se perder em tão poucos metros? Craig se recusava a acreditar.

Ele retribuiu o abraço, desesperado. Julgara-se superior a Sophie porque ela estava com mais medo do que ele e até poucos momen­tos atrás sentia-se muito másculo, muito protetor, mas agora os dois estavam perdidos. Grande homem, ele pensou, grande protetor. O namorado dela, estudante de direito, se existisse, teria se saído melhor.

Ele viu a luz com o canto dos olhos.

Virou para ela e a luz desapareceu. Seus olhos registraram ape­nas escuridão. Ilusão?

Sophie percebeu a tensão.

— O que foi?

— Pensei ter visto uma luz. — Quando virou para ela, teve a impressão de ver a luz novamente com o canto dos olhos. Mas quando olhou outra vez, tinha desaparecido.

Craig lembrou-se vagamente de alguma coisa da biologia que dizia que a visão periférica registra coisas imperceptíveis à visão direta. Havia uma razão para isso, que tinha a ver com o ponto cego da retina. Virou-se outra vez para Sophie. A luz reapareceu. Dessa vez ele não se voltou para aquela direção, mas se concentrou no que podia ver sem mover os olhos. A luz era bruxuleante, mas estava lá.

Craig virou-se para ela e a luz desapareceu outra vez, mas agora ele sabia a direção.

— Por aqui.

Seguiram na neve. A luz não reapareceu imediatamente, e Craig imaginou se tinha sido uma alucinação, como a miragem de um oásis no deserto. Então ela apareceu tremeluzindo e desapareceu imediatamente.

— Eu vi! — Sophie exclamou.

Continuaram a andar. Dois segundos depois, a luz voltou a apa­recer e dessa vez ficou. Craig suspirou aliviado e se deu conta de que por um momento tinha realmente pensado que ia morrer, levando Sophie com ele.

Quando chegaram mais perto da luz, ele viu que era a que ficava acima da porta dos fundos. Tinham andado em círculo e agora estavam de volta ao ponto de partida.

 

Miranda ficou imóvel por um longo tempo. Morria de medo de que Daisy voltasse, mas não conseguia pensar no que faria. Ima­ginava Daisy entrando no quarto com suas botas de motoqueiro, ajoelhando no chão e olhando para baixo da cama. Miranda podia ver o rosto abrutalhado dela — a cabeça raspada, o nariz quebrado e os olhos escuros que o delineador negro fazia parecerem machuca­dos. Essa visão era tão amedrontadora que Miranda às vezes fechava os olhos com força, até ver fogos de artifício atrás das pálpebras.

No fim, foi a lembrança de Tom que a fez se mover. De algum modo tinha de proteger seu filho de onze anos. Mas como? Não podia fazer nada sozinha. Miranda estaria disposta a pôr o corpo entre os bandidos e seus filhos, mas não ia adiantar. Seria jogada para o lado como um saco de batatas. Pessoas civilizadas não sabem lidar com a violência. É isso que as torna civilizadas.

A resposta era a mesma de antes. Tinha de encontrar um telefo­ne e conseguir ajuda.

Isso significava que tinha de ir ao chalé. Precisava sair de baixo da cama, deixar o quarto e descer a escada, esperando não ser ouvida pelos bandidos na cozinha, rezando para que nenhum deles fosse até o hall de entrada e a visse. Precisava de um casaco e de botas, pois estava descalça e praticamente despida, só de camisola, e sabia que não poderia andar nem dez metros daquele jeito em uma tempestade de neve. Então teria de dar a volta na casa, ficando bem longe das janelas, chegar ao chalé e pegar o celular que deixara na bolsa, no chão, ao lado da porta.

Tentou reunir toda sua coragem. Do que tinha medo? Da tensão, ela pensou, a tensão era paralisante. Mas não o seria por muito tempo. Meio minuto para descer a escada, um minuto para vestir o casaco e calçar as botas, talvez três para caminhar na neve até o cha­lé. Menos de cinco minutos, isso era tudo.

Miranda começou a ficar revoltada. Como se atreviam a fazer com que ela tivesse medo de andar na casa do seu pai? A indignação lhe deu coragem.

Tremendo, ela saiu de debaixo da cama. A porta do quarto esta­va aberta. Ela espiou para fora, viu que o caminho estava livre e saiu para o corredor. Ouvia vozes vindas da cozinha. Olhou para baixo.

Havia um cabide de chapéus no pé da escada. A maior parte dos casacos e botas da família era guardada em um closet no vestíbulo ao lado da porta dos fundos, mas seu pai sempre deixava os seus no hall e ela viu o velho abrigo dele com capuz pendurado no cabide e, debaixo dele, as botas de borracha forradas de couro que mantinham seus pés aquecidos quando levava Nellie para passear. Deviam ser suficientes para evitar que ela morresse congelada a caminho do cha­lé. Levaria apenas alguns segundos para vestir o casaco, calçar as botas e correr para a porta.

Se tivesse coragem.

Miranda começou a descer a escada na ponta dos pés.

As vozes na cozinha ficaram mais altas. Estavam discutindo. Ouviu Nigel dizer: “Muito bem, veja outra vez, então!” Isso queria dizer que alguém ia revistar a casa? Miranda voltou correndo e subiu a escada de dois em dois degraus. Quando chegou ao patamar, ouviu as botas pesadas no hall — Daisy.

Não adiantava se esconder outra vez debaixo da cama. Se Daisy fora mandada de volta, dessa vez certamente olharia com mais aten­ção. Miranda entrou no quarto do seu pai. Havia um lugar onde podia se esconder, o sótão, seu refúgio quando tinha dez anos. Todas as crianças tinham feito isso em épocas diferentes.

A porta do closet estava aberta.

Ouviu os passos de Daisy no patamar da escada.

Miranda ajoelhou, entrou no closet e abriu a portinhola que dava no sótão. Virou para trás e fechou a porta do closet. Entrou de costas no sótão e fechou a portinhola.

Então compreendeu imediatamente que tinha cometido um erro que podia ser fatal. Daisy revistara a casa mais ou menos quin­ze minutos atrás. Devia ter visto a porta do closet aberta. Será que lembraria e deduziria que alguém a tinha fechado depois disso? E seria bastante inteligente para adivinhar por quê?

Miranda ouviu passos no quarto de vestir. Prendeu a respiração quando Daisy entrou no banheiro e saiu. Ouviu o som das portas do closet sendo abertas. Mordeu o polegar para não gritar de medo. Ouviu quando Daisy procurava entre ternos e camisas. Era difícil ver a portinhola a não ser que a pessoa se ajoelhasse para olhar debai­xo das roupas nos cabides. Daisy seria tão minuciosa?

Houve um longo momento de silêncio.

Então os passos de Daisy voltaram para o quarto de dormir.

Miranda teve vontade de chorar de alívio, mas se controlou. Tinha de ser corajosa. O que estava acontecendo na cozinha? Lembrou-se do buraco no chão. Arrastou-se lentamente para espiar.

 

Hugo parecia tão patético que Kit quase sentia pena. Ele era um homem pequeno e gorducho. Tinha o peito gordo com mamilos cabeludos e a barriga caída sobre os genitais. As pernas finas, sob o corpo redondo, o faziam parecer uma boneca malfeita. Parecia mais trágico ainda comparado com o que era sempre. Gostava de fazer pose e mostrar-se seguro, usava ternos elegantes que favoreciam sua figura e paquerava com a confiança de um astro de cinema. Agora parecia tolo e mortificado.

A família estava reunida em uma extremidade da cozinha ao lado da porta da despensa, longe das saídas. Kit, sua irmã Olga com o robe negro, seu pai com os lábios inchados, golpeados por Daisy, e o marido de Olga, Hugo, completamente nu. Stanley, sentado, segurava Nellie para mantê-la calma, temendo que ela levasse um tiro se atacasse os estranhos. Nigel e Elton estavam no outro lado da mesa e Daisy revistava o segundo andar.

Hugo deu um passo à frente.

— Tem toalhas e outras coisas na lavanderia — ele disse. A lavan­deria ficava ao lado da cozinha, no lado da sala de jantar. — Deixe-me pegar alguma coisa para me cobrir.

Daisy ouviu isso quando voltava da busca. Pegou um pano de prato.

— Experimente isto — ela disse, batendo com o pano no pênis dele. Kit se lembrou das brincadeiras nos chuveiros da escola e de como aquilo doía. Hugo soltou um grito. Virou de costas e ela bateu outra vez, agora nas nádegas. Hugo fugiu para o canto e Daisy riu. Ele estava completamente humilhado.

Era desagradável ver aquilo e Kit ficou um pouco nauseado.

— Pare de brincar — Nigel disse, zangado. — Quero saber onde está a outra irmã, Miranda. Ela deve ter saído sem que víssemos. Para onde ela foi?

Daisy disse: — Revistei a casa duas vezes. Ela não está aqui.

— Pode estar escondida.

— E pode ser a porra da mulher invisível, mas eu não posso achar.

Kit sabia onde ela estava. Um minuto atrás ele tinha visto Nellie inclinar a cabeça e erguer uma orelha negra. Alguém entrara no sótão e só podia ser Miranda. Kit imaginou se seu pai tinha visto a reação de Nellie. Miranda não era uma grande ameaça lá em cima, sem telefone, só de camisola. Mesmo assim Kit tentou pensar em um modo de avisar Nigel.

Elton disse: — Talvez ela tenha saído. O barulho que ouvimos provavelmente era ela.

A resposta de Nigel traía exasperação.

— Então como você não a achou quando saiu para ver o que era?

— Porque está uma escuridão filha-da-puta. — Elton começava a se irritar com o tom prepotente de Nigel.

Kit imaginou que o barulho lá fora devia ter sido as crianças brincando. Tinham ouvido um baque surdo depois um grito, como uma pessoa ou um animal caindo contra a porta dos fundos. Um vea­do podia ter se chocado contra a porta mas veados não gritam, eles fazem um som parecido com o mugido dos bois. Um pássaro grande podia fazer um barulho semelhante a um grito. Porém, Kit pensou, o mais provável era que fosse o filho de Miranda, o jovem Tom. Tom tinha onze anos, a idade certa para sair de casa de noite para brincar.

Se Tom tivesse olhado pela janela e visto as armas, o que ele faria? Primeiro iria procurar a mãe, mas não a encontraria. Então acordaria a irmã, talvez, ou Ned. Fosse como fosse, Nigel não tinha muito tempo. Precisava capturar o resto da família antes que alguém conseguisse telefonar. Mas Kit não podia fazer nada sem se delatar, por isso ficou firme, de boca fechada.

— Ela estava só de camisola — Nigel disse. — Não pode ter ido longe.

Elton disse: — Está bem, vou verificar lá fora, certo?

Daisy disse: — Isso mesmo, como eu disse.

— Tiramos os celulares de três deles, de Kit, do duende nu e da irmã mandona. E temos certeza de que não há mais nenhum na casa.

— Isso mesmo. — Daisy tinha procurado celulares quando revis­tou a casa.

— Então é melhor revistar lá fora.

— Certo — Elton disse. — Há um chalé, um celeiro e uma garagem, foi o que o velho disse.

— Verifique a garagem primeiro. Pode haver telefones nos carros. Depois o chalé e o celeiro. Reúna o resto da família e traga para cá. Certifique-se de que todos tragam os celulares. Nós os manteremos aqui por uma ou duas horas, depois fugimos.

Não era um mau plano, Kit pensou. Enquanto toda a família estivesse no mesmo lugar, sem telefone, não poderia fazer nada. Ninguém ia aparecer à porta na manhã de Natal — nenhum leiteiro, nenhum carteiro, nenhuma van de entrega, portanto não haveria perigo de levantar suspeitas em alguém de fora.

O bando podia esperar até o nascer do dia.

Elton vestiu o casaco e olhou a neve pela janela. Seguindo seu olhar, Kit notou que mal se podia ver o chalé e o celeiro no outro lado à luz das lâmpadas externas. A neve continuava a cair pesada­mente.

Daisy disse: — Eu revisto a garagem, se Elton revistar o chalé.

Elton disse: — Acho melhor irmos andando. Alguém pode estar ligando para a polícia neste momento.

Daisy guardou a arma no bolso e fechou o zíper do casaco.

— Antes de irem, prendam estes aqui em algum lugar onde não possam criar problema — ordenou Nigel.

Foi então que Hugo se lançou sobre Nigel.

Foi uma surpresa para todos. Kit e os outros três já tinham des­cartado Hugo como uma possível ameaça. Mas ele saltou para a frente com energia furiosa, desferindo socos seguidos no rosto de Nigel, com as duas mãos. Tinha escolhido bem o momento, pois Daisy acabava de guardar a arma e Elton não chegara a tirar a sua do bolso, portanto Nigel era o único com uma arma na mão e estava tão ocupado tentando evitar os golpes que não podia usá-la.

Nigel cambaleou para trás e bateu na bancada da cozinha. Hugo foi para cima dele como um demônio, socando o rosto e o corpo, gritando alguma coisa incompreensível. Em poucos segundos desfe­riu uma saraivada de golpes, mas Nigel não largou a arma.

Elton foi quem reagiu mais depressa. Agarrou Hugo e tentou tirá-lo de cima de Nigel. Nu como estava, Hugo era difícil de ser segurado e por um momento Elton não conseguiu firmar as mãos que escorregavam nos ombros nus.

Stanley soltou Nellie que latia furiosamente e o cão se atirou sobre Elton, mordendo suas pernas. Nellie era velha e tinha a boca delicada, mas servia de distração.

Daisy levou a mão ao bolso para tirar a arma. O cano pareceu prender no forro do casaco. Então Olga pegou uma travessa e atirou nela. Daisy desviou e a travessa passou raspando por seu ombro.

Kit se adiantou para segurar Hugo, mas parou a tempo.

A última coisa que ele queria era que a família dominasse os bandidos. Embora chocado pelo verdadeiro objetivo do roubo que havia organizado, sua sobrevivência vinha em primeiro lugar. Fazia menos de vinte e quatro horas que Daisy quase o tinha matado na piscina e ele sabia que se não pagasse o que devia ao pai dela, teria uma morte tão dolorosa quanto a morte pelo vírus no vidro de perfume. Interviria a favor de Nigel, contra sua família, se fosse neces­sário — mas seria necessário? Kit queria ainda manter a história de que nunca tinha visto Nigel antes dessa noite. Por isso ficou assistin­do à luta, sem fazer nada, enquanto impulsos conflitantes se choca­vam dentro dele.

Elton passou os braços em volta de Hugo com um poderoso abraço de urso. Hugo tentou se livrar, mas era menor e com menos preparo físico e jamais poderia escapar das mãos de Elton. Elton ergueu Hugo no ar e recuou, tirando-o de cima de Nigel.

Daisy deu um chute certeiro nas costelas de Nellie com sua bota pesada e a cachorra fugiu ganindo para um canto.

O sangue escorria do nariz e da boca de Nigel e havia marcas vermelhas em volta dos seus olhos. Olhando com ódio para Hugo, ele ergueu a mão direita que ainda segurava a arma.

Olga deu um passo à frente, gritando: — Não!

Imediatamente Nigel virou a arma para ela.

Stanley a puxou para ele dizendo: — Não atire, por favor, não atire.

Nigel continuou a apontar a arma para Olga.

— Daisy — ele disse. — Você ainda tem aquele cassetete?

Satisfeita, Daisy tirou a arma do bolso.

Nigel indicou Hugo com a cabeça: — Dê uma lição nesse filho-da-puta!

Vendo o que o esperava, Hugo procurou em vão se livrar das mãos de Elton.

Daisy levou o braço direito para trás e golpeou o rosto de Hugo com o cassetete, atingindo o osso com um barulho de coisa esmagada. Hugo gritou e soltou um berro de dor. Daisy o golpeou outra vez e o sangue esguichou da sua boca, escorrendo pelo peito nu. Com um sorriso maldoso, Daisy olhou para os genitais dele e o chutou na virilha. Usou o cassetete outra vez, agora na cabeça e Hugo ficou inconsciente. Mas isso não fez diferença para Daisy e ela bateu no nariz dele, depois chutou sua virilha outra vez.

Com um grito de dor e de raiva, Olga soltou-se das mãos do pai e se lançou contra Daisy.

Daisy brandiu o cassetete contra ela, mas Olga estava perto demais e o golpe passou raspando por trás de sua cabeça.

Elton soltou Hugo no chão de ladrilho e estendeu o braço para agarrar Olga.

Olga alcançou o rosto de Daisy e a arranhou.

A arma de Nigel estava apontada para Olga, mas ele hesitou em atirar, sem dúvida temendo acertar Elton ou Daisy, ambos lutando contra Olga.

Stanley virou para o fogão e pegou a pesada frigideira na qual Kit fizera doze ovos mexidos. Ergueu o braço e abaixou, em cima de Nigel, procurando acertar na cabeça. No último instante Nigel viu o perigo e desviou. A frigideira atingiu seu ombro direito. Nigel deu um grito de dor e a arma voou de sua mão.

Stanley tentou pegar a arma, mas não conseguiu. A pistola caiu na mesa da cozinha, a poucos centímetros do vidro de perfume. Ricocheteou para uma cadeira de pinho, rolou e caiu no chão aos pés de Kit.

Kit se inclinou e pegou a arma.

Nigel e Stanley olharam para ele. Percebendo a mudança dramá­tica, Olga, Daisy e Elton pararam de lutar e olharam para Kit.

Kit hesitou, na agonia da decisão.

Todos olharam para ele por um longo momento de imobilidade.

Finalmente ele virou a arma, segurando pelo cano, e a devolveu para Nigel.

 

Finalmente Craig e Sophie encontraram o celeiro.

Tinham esperado alguns minutos na porta dos fundos, hesitan­tes, mas então se deram conta de que morreriam de frio se ficassem ali indefinidamente. Reunindo toda a coragem, atravessaram o pátio, rezando para que ninguém olhasse pela janela da cozinha. Os vinte passos de um lado ao outro pareceram durar uma eternidade na neve espessa. Então acompanharam a parede da frente do celeiro, sempre à vista da cozinha. Craig não ousava olhar naquela direção, com medo do que podia ver. Quando afinal chegaram à porta, ele arriscou um olhar rápido. No escuro, ele não podia ver a casa, só as janelas iluminadas. A neve dificultava mais ainda a visão e ele só via vultos vagos lá dentro. Não viu nenhum sinal de alguém olhando pela janela na hora errada.

Craig empurrou a porta grande. Entraram e ele a fechou, agradecido. O ar quente o envolveu. Ele tremia de frio e os dentes de Sophie batiam como castanholas. Ela tirou o abrigo coberto de neve e se sentou em um dos grandes radiadores tipo hospital. Craig gostaria de se aquecer por um minuto, mas não tinha tempo para isso — precisava conseguir ajuda rapidamente.

O celeiro estava fracamente iluminado por uma luz noturna ao lado da cama de campanha onde Tom dormia. Craig olhou para o garoto, pensando se devia acordá-lo. Ele parecia ter se recuperado dos efeitos da vodca de Sophie e dormia pacificamente com seu pijama de Homem-Aranha.

Algo no chão, ao lado do travesseiro chamou a atenção de Craig. Era uma fotografia. Craig a apanhou e ergueu contra a luz. Parecia ter sido tirada no aniversário de sua mãe e mostrava Tom com Sophie, o braço dela em volta dos seus ombros. Craig sorriu. Não fui o único cativado por ela naquela tarde, ele pensou. Pôs a foto onde estava antes e não disse nada para Sophie.

Não valia a pena acordar Tom, Craig resolveu. O menino não podia fazer nada e ia ficar apavorado. Melhor ficar dormindo.

Craig subiu a escada que levava ao quarto de dormir no antigo palheiro. Em uma das camas estreitas podia ver o monte de cobertores que cobria sua irmã Caroline. Ela parecia profundamente ador­mecida. Como Tom, estava melhor assim. Se acordasse e descobris­se o que estava acontecendo, ficaria histérica. Craig decidiu não acordá-la.

A segunda cama não fora usada. No chão, ao lado dela, viu uma mala aberta. Sophie tinha dito que deixara o celular em cima das roupas. Craig atravessou o quarto cuidadosamente na semi-obscuridade. Quando se inclinou ouviu, muito perto, um leve ruído e o chiado de alguma coisa viva e, com o coração disparado, deixou escapar uma exclamação abafada antes de ver que eram os malditos ratos de Caroline movendo-se na gaiola. Empurrou a gaiola para o lado e começou a revistar a mala de Sophie.

Tateando no escuro, começou a procurar. Em cima estava uma sacola de compras de plástico com um embrulho de papel de presente. O resto era quase tudo roupas, bem dobradas. Alguém tinha aju­dado Sophie a fazer a mala, ele imaginou, pois não tinha a impres­são de que ela fosse muito ordeira. Depois de momentaneamente distraído por um sutiã de seda, sua mão se fechou em volta da forma oblonga do celular. Abriu o aparelho, mas nenhuma luz acendeu. No escuro ele não podia ver a tecla Power ligar.

Desceu rapidamente a escada com o celular na mão. Ao lado da estante de livros havia uma lâmpada de leitura. Ele acendeu e pôs o celular sob a luz. Encontrou a tecla e apertou, mas não aconteceu nada. Frustrado, Craig teve vontade de chorar.

— Não consigo fazer esta coisa funcionar — ele murmurou.

Sophie estendeu a mão, sem se levantar do radiador, e Craig deu o telefone para ela. Ela apertou a mesma tecla, franziu a esta, aper­tou outra vez, depois várias vezes. Finalmente ela disse: — A bateria está descarregada.

— Merda. Onde está o carregador?

— Eu não sei.

— Na sua mala?

— Acho que não.

Craig disse, irritado: — Como é possível que você não saiba onde está o carregador do seu telefone?

Sophie disse, timidamente: — Acho que deixei em casa.

— Jesus Cristo! — Craig se controlou com esforço. Queria dizer que ela era uma tola estúpida, mas isso não ajudaria em nada. Ficou calado por um momento. A lembrança dos beijos voltou e ele não conseguiu continuar zangado. A raiva evaporou e ele a abraçou. — Tudo bem — ele disse. — Não tem importância.

Sophie encostou a cabeça no peito dele.

— Desculpe.

— Vamos pensar em outra coisa.

— Deve haver outros celulares ou um carregador que possamos usar.

Craig balançou a cabeça.

— Caroline e eu não temos celulares, minha mãe não deixa. Ela não vai nem ao banheiro sem o dela, mas diz que nós não precisamos.

— Tom também não tem. Miranda acha que ele é muito novo ainda.

— Merda.

— Espere! — Ela se afastou dele. — Não tinha um no carro do seu avô?

Craig estalou os dedos.

— Na Ferrari... tem razão! E ele deixou as chaves no carro. Tudo que temos a fazer é ir até a garagem e telefonar para a polícia.

— Está dizendo que temos de sair outra vez?

— Você pode ficar aqui.

— Não. Eu quero ir.

— Não ficará sozinha... Tom e Caroline estão aqui.

— Quero ficar com você.

Craig tentou não demonstrar sua satisfação.

— Então acho melhor vestir o casaco outra vez.

Sophie se levantou do radiador. Craig apanhou o casaco dela do chão e a ajudou a vesti-lo. Sophie ergueu os olhos para ele e Craig tentou um sorriso encorajador.

— Pronta?

Com uma leve sugestão do seu antigo espírito, ela disse: — Estou. Afinal, o que pode acontecer? Podemos ser mortos, nada mais. Vamos.

Saíram. Ainda estava completamente escuro e a neve caía como raiadas de chumbo em vez de nuvens de borboletas. Outra vez, Craig olhou nervosamente para a casa no outro lado do pátio, mas não podia enxergar mais do que antes, o que significava que os estra­nhos provavelmente também não o viam. Segurou a mão de Sophie. Guiando-se pelas luzes do pátio, ele a levou para a extremidade do celeiro, para longe da casa, depois atravessou o pátio, rumo à garagem.

Como sempre, a porta lateral não estava trancada. Fazia tanto frio lá dentro quanto fora. Não havia janelas, por isso Craig arriscou acender a luz.

A Ferrari do avô estava onde Craig a havia deixado, perto da parede, para esconder o amassado. Como num flash ele se lembrou da vergonha e do medo que sentira doze horas atrás, depois de bater com o carro na árvore. Parecia estranho agora ter ficado tão ansioso e com tanto medo por algo tão trivial quanto um amassado no car­ro. Lembrou-se da sua ansiedade para impressionar Sophie e fazer com que ela gostasse dele. Não fazia muito tempo, mas parecia num passado remoto.

O Ford Mondeo de Luke também estava na garagem. O Toyota Land Cruiser não estava. Luke devia tê-lo levado emprestado.

Ele foi até a Ferrari e puxou a maçaneta. A porta não abriu. Tentou outra vez, mas a porta estava trancada.

— Porra — ele disse, furioso.

— O que aconteceu?

— O carro está trancado.

— Oh, não!

Craig olhou para dentro da Ferrari.

— E as chaves desapareceram.

Como isso aconteceu?

Frustrado, Craig bateu com a mão fechada na capota do carro.

— Luke deve ter visto que o carro estava aberto a noite passada, quando saiu. Deve ter tirado as chaves da ignição, trancado o carro e levado as chaves para a casa, para meu avô.

— E o outro carro?

Craig tentou a porta do Ford. Estava trancada também.

— De qualquer modo, duvido de que Luke tenha telefone no carro.

— Podemos pegar as chaves da Ferrari?

Craig fez uma careta: — Talvez.

— Onde elas ficam?

— Na caixa das chaves, no vestíbulo.

— Nos fundos da cozinha?

Craig assentiu carrancudo.

— A uns dois metros daquela gente armada.

 

O limpa-neve movia-se lentamente na estrada de duas pistas, no escuro. O Jaguar de Carl Osborne seguia atrás, dirigido por Toni, que se esforçava para enxergar enquanto os limpadores lutavam para retirar a neve que caía. A visão pelo pára-brisa não mudou. Bem na frente estavam as luzes do removedor de neve e ao lado do carro, a pilha de neve retirada por ele. No outro lado, neve virgem na estra­da até onde os faróis alcançavam.

A mãe de Toni dormia com o cachorrinho no colo. Ao lado de Toni, Carl estava quieto, cochilando ou emburrado. Tinha dito que detestava que outra pessoa dirigisse seu carro, mas ela insistiu e ele teve de ceder. Toni estava com as chaves.

— Você nunca cede um milímetro, não é mesmo? — ele resmun­gou, antes de mergulhar no silêncio.

— Por isso era uma boa policial — ela respondeu.

Do banco de trás, sua mãe tinha dito: — Por isso não tem marido.

Isso foi mais de uma hora atrás. Agora, Toni se esforçava para ficar acordada, lutando contra o movimento hipnótico dos limpadores de pára-brisa, o calor do aquecimento e a monotonia da paisagem. Ela quase desejou ter deixado Carl dirigir. Mas precisava ficar no controle.

Tinham encontrado o veículo da fuga no Dew Drop Inn. Dentro dele estavam as perucas, os bigodes falsos e óculos com vidros sem grau, obviamente material de disfarce, mas nenhuma pis­ta de para onde tinham ido. O carro da polícia ficou lá enquanto os policiais interrogavam Vincent, o jovem funcionário do hotel com quem Toni tinha falado ao telefone. Seguindo as instruções de Frank, o removedor de neve foi para o norte.

Toni concordou com Frank, por uma vez. Fazia sentido os ladrões trocarem de carro num trecho do caminho que pretendiam seguir e não atrasar sua fuga tentando despistar os perseguidores. É claro que sempre havia a possibilidade de anteciparem o pensamen­to da polícia e deliberadamente escolherem um local que pudesse despistá-la. Mas, pela sua experiência, os bandidos não eram tão sutis. Quando tinham o produto do roubo nas mãos, queriam fugir o mais depressa possível.

O limpa-neve não parava quando passava por veículos estacionados. Dois policiais que iam na frente com o motorista tinham ins­truções estritas para apenas observar, pois não estavam armados e os ladrões estavam. Alguns carros estava abandonados, outros tinham uma ou duas pessoas dentro, mas até então nenhum com três homens e uma mulher. A maioria dos carros seguia atrás do remove-dor de neve, na estrada limpa. Agora havia um pequeno comboio atrás do Jaguar.

Toni começava a ficar pessimista. Esperava a essa altura já ter avistado os ladrões. Afinal, quando eles saíram do Dew Drop Inn, as estradas estavam intransponíveis. Até onde podiam ter ido?

Teriam algum esconderijo ali por perto? Parecia improvável. Ladrões não gostam de se esconder perto da cena do crime — muito pelo contrário. Quanto mais o comboio seguia para o norte, mais Toni achava que estava errada e que eles deviam ter ido para o sul.

Viu uma tabuleta familiar sinalizando “Praia” e imaginou que deviam estar perto de Steepfall. Estava na hora de pôr em ação a segunda parte do seu plano. Tinha de ir até a casa para informar Stanley.

Toni temia fazer isso. Seu trabalho era prevenir esse tipo de aci­dente. Tinha feito várias coisas corretamente: sua vigilância garantiu que os ladrões fossem descobertos mais cedo, obrigou a polícia a levar a sério o risco biológico e sair em perseguição dos ladrões e Stanley certamente ficaria impressionado pelo fato de ela ter conse­guido chegar até ele na tempestade. Mas ela queria poder dizer-lhe que os ladrões tinham sido apanhados e que não havia mais emer­gência. Em vez disso, ela iria relatar seu fracasso. Não seria um encontro alegre, Toni pensou.

Frank estava no Kremlin. Usando o telefone do carro de Carl Osborne, Toni ligou para o celular dele.

A voz de Frank soou nos alto-falantes do Jaguar.

— Superintendente detetive Hackett.

— Toni falando. O limpa-neve está se aproximando da entrada para a casa de Stanley Oxenford. Eu gostaria de informá-lo do que aconteceu.

— Você não precisa da minha permissão.

— Não consigo falar com ele pelo telefone, mas a casa fica apenas a dois quilômetros, em uma estrada secundária...

— Esqueça. Tenho uma equipe armada aqui agora, munida de grande poder de fogo e ansiosa para entrar em ação. Não vou atrasar a captura do bando.

— O removedor de neve levará cinco minutos para limpar a estrada para a casa e você fica livre de mim. E da minha mãe.

— Por mais tentador que seja, não estou disposto a atrasar a cap­tura em cinco minutos.

— Stanley talvez possa ajudar na investigação. Afinal ele é a vítima.

— A resposta é não — Frank disse e desligou.

Osborne ouviu os dois lados da conversa.

— Este carro é meu — ele disse. — Eu não vou a Steepfall. Quero ficar com o limpa-neve. Não quero perder nada.

— Você pode ficar com ele. Deixa nós duas, eu e minha mãe, na casa e volta para a estrada com o limpa-neve. Quando eu tiver infor­mado Stanley, peço um carro emprestado e alcanço vocês.

— Bem, Frank não deu permissão para isso.

— Eu ainda não joguei meu trunfo. — Ela ligou outra vez para Frank.

Ele atendeu com voz brusca.

— O que é?

— Lembre-se de Johnny, o Fazendeiro.

— Vá para o inferno.

— Estou usando o viva-voz e Carl Osborne está ao meu lado, ouvindo nossa conversa. Quer repetir para onde quer que eu vá?

— Pegue a porra do telefone.

Toni levou o fone ao ouvido para que Carl não pudesse ouvir Frank.

— Ligue para o motorista do limpa-neve, Frank, por favor.

— Sua filha-da-puta, você sempre usa o caso do Johnny para con­seguir o que quer. Você sabe que ele era culpado.

— Todo mundo sabe disso. Mas só você e eu sabemos o que você fez para conseguir com que ele fosse condenado.

— Você não contaria a Carl.

— Ele está ouvindo tudo que eu digo.

Frank disse com voz moderada: — Suponho que não adiante falar em lealdade com você.

— Não desde o momento em que você falou com Carl sobre o hamster Fofinho.

O tiro acertou o alvo. Frank passou para a defensiva:

— Carl não publicaria a história de Johnny. Ele é meu amigo.

— Sua confiança é profundamente tocante... considerando que ele é um jornalista e tudo o mais.

Houve um longo silêncio.

Toni disse: — Resolva de uma vez, Frank, estamos perto da entra­da. Ou o limpa-neve entra nela ou passo a próxima hora contando para Carl tudo sobre Johnny, o Fazendeiro.

Ela ouviu um estalo e um zumbido quando Frank desligou.

Toni pôs o telefone no lugar.

Carl disse: — Do que vocês estavam falando?

— Se passarmos a próxima entrada, eu conto.

Alguns minutos depois o limpa-neve entrou na estrada que leva­va a Steepfall.

 

Hugo sangrava, deitado no chão de ladrilho, inconsciente, mas respirando.

Olga chorava. Seu peito subia e descia com soluços incontroláveis. Estava quase histérica.

Stanley Oxenford estava pálido, em choque. Parecia um homem que acaba de saber que está morrendo. Olhou para Kit, com desespero, espanto e raiva contida. Sua expressão dizia: Como pôde fazer isso conosco? Kit tentava não olhar para ele.

Kit estava furioso. Tudo estava saindo errado. Agora sua família sabia que estava mancomunado com os ladrões e de modo nenhum mentiriam sobre isso, o que significava que a polícia mais cedo ou mais tarde saberia de toda a história. Estava condenado a viver como fugitivo da lei. Mal podia conter sua fúria.

Estava também com medo. A amostra do vírus no vidro de perfume continuava na mesa da cozinha, protegida apenas pelos invó­lucros de plástico transparente. O medo de Kit aumentava sua fúria.

Nigel mandou Stanley e Olga deitarem de bruços no chão ao lado de Hugo, ameaçando-os com a arma. Estava tão furioso com o ataque de Hugo que teria acolhido alegremente um pretexto para puxar o gatilho. Kit não o teria impedido. Do modo como se sentia era capaz de matar também.

Elton procurou cordas improvisadas: fios de aparelhos domésti­cos, um pedaço de varal e um rolo de barbante.

Daisy amarrou Olga e o inconsciente Hugo com mãos e pés atrás das costas. Puxou bem as cordas, para que penetrassem na car­ne, e apertou os nós, para garantir que ficassem firmes. Fez tudo com o sorrisinho cruel de sempre.

Kit disse para Nigel: — Preciso do meu celular.

— Para quê? — Nigel perguntou.

Kit disse: — Para o caso de algum telefonema para o Kremlin que eu tenha de interceptar.

Nigel hesitou.

Kit disse: — Que diabo, eu devolvi a arma para você!

Nigel deu de ombros e entregou o celular.

— Como pode fazer isso, Kit? — Olga perguntou, enquanto Daisy estava ajoelhada nas costas do seu pai. — Como pode ver sua família tratada desse jeito?

— A culpa não é minha — ele disse zangado. — Se vocês tivessem se comportado decentemente comigo, nada disto teria acontecido.

— Não é culpa sua? — seu pai disse, atônito.

— Primeiro você me despediu, depois se recusou a me ajudar financeiramente e acabei devendo dinheiro para bandidos.

— Eu o despedi porque você me roubou!

— Sou seu filho... devia ter me perdoado!

— Eu perdoei.

— Tarde demais.

— Oh, meu Deus.

— Fui obrigado a fazer isto.

Stanley falou com o desprezo autoritário que Kit conhecia desde a infância.

— Ninguém é obrigado a fazer uma coisa dessas.

Kit detestava aquele tom de voz. Era sempre sinal de que ele tinha feito alguma coisa especialmente estúpida.

— Você não compreende — ele disse.

— Acho que compreendo muito bem.

Era típico dele, Kit pensou, seu pai sempre achava que sabia mais. Bem, agora ele parecia bastante idiota, com Daisy amarrando suas mãos nas costas.

— Afinal, o que significa tudo isto? — Stanley perguntou.

— Cala essa boca nojenta — Daisy disse.

Ele a ignorou.

— O que, em nome de Deus, você está fazendo com essa gente, Kit? E o que tem no vidro de perfume?

— Eu disse para calar a boca! — Daisy chutou o rosto de Stanley.

Ele gemeu de dor com o sangue saindo da boca.

Isso vai ensinar você, Kit pensou com selvagem satisfação.

Nigel disse: — Ligue a TV. Vamos ver quando essa maldita neve vai parar.

Assistiram aos comerciais: liquidações de junho, férias de verão, empréstimos a juros baixos. Elton puxou Nellie pela coleira e a pren­deu na sala de jantar. Hugo se mexeu, parecendo que estava voltan­do a si e Olga falou com ele em voz baixa. Um apresentador apare­ceu com chapéu de Papai Noel. Kit pensou com amargura nas outras famílias acordando para comemorar um dia de Natal normal. “Uma tempestade de neve assolou a Escócia esta noite, trazendo a surpresa de uma manhã de Natal branca em quase todo o país”, disse o apresentador.

— Merda — Nigel disse enfaticamente. — Até quando vamos ficar presos aqui?

“A tempestade que deixou milhares de motoristas atolados na neve a noite toda deve amainar com o nascer do dia e a neve deve estar derretida lá para o meio da manhã.”

Kit se animou. Ainda podiam chegar a tempo para o encontro.

Nigel pensou a mesma coisa.

— A que distância está aquele veículo com tração nas quatro rodas, Kit?

— Dois quilômetros.

— Sairemos daqui à primeira luz do dia. Você tem o jornal de ontem?

— Deve haver algum. Por quê?

— Veja a que horas é o nascer do sol.

Kit foi ao escritório do pai e encontrou The Scotsman numa estante de revistas. Levou o jornal para a cozinha.

— Às oito horas e quatro minutos — ele disse.

Nigel consultou o relógio de pulso.

— Menos de uma hora. — Pareceu preocupado. — Depois teremos de andar dois quilômetros na neve e dirigir mais dezesseis. Temos de nos apressar. — Tirou um celular do bolso. Começou a digitar o número e parou. — Bateria descarregada — ele disse. — Elton, dê-me seu telefone. — Pegou o celular de Elton e fez a ligação. — Sim, sou eu, o que acha deste tempo? — Kit supôs que ele estivesse falando com o piloto do comprador. — Sim, deve melhorar dentro de uma ou duas horas... Eu posso chegar lá, mas será que você pode? — Nigel estava fingindo mais confiança do que sentia realmente. Assim que a neve parasse, um helicóptero podia levantar vôo e ir a qualquer lugar, mas não era tão fácil para os três, viajando por terra. — Ótimo. Então vejo você na hora marcada. — Guardou o telefone no bolso.

O apresentador na TV disse: “No auge da tempestade, ladrões as­saltaram os laboratórios da Oxenford Medical, perto de Inverburn.”

A cozinha ficou silenciosa.

É isso, Kit pensou, a verdade apareceu.

“Roubaram amostras de um vírus perigoso.”

Stanley falou com os lábios feridos: — Então é isso que está no vidro de perfume... Vocês estão loucos?

“Carl Osborne da cena do crime.”

A tela mostrou uma foto de Osborne com o telefone no ouvido e sua voz vinda do telefone.

“O vírus mortal que matou o técnico de laboratório Michael Ross ontem, está agora nas mãos de bandidos.”

Stanley não podia acreditar.

— Mas por quê? Vocês pensam que podem vender o vírus?

Nigel disse: — Eu sei que posso.

Pela televisão, Osborne dizia: “Em um golpe meticulosamente planejado para a véspera de Natal, três homens e uma mulher derrotaram o sofisticado esquema de segurança da empresa e invadiram o laboratório de nível quatro de biossegurança, onde a companhia guarda estoques de vírus incuráveis em um refrigerador trancado.”

Stanley disse: — Mas, Kit, você não os ajudou a fazer isso, ajudou?

— É claro que sim — Olga disse com desprezo.

“O grupo armado rendeu os guardas de segurança, ferindo dois, um gravemente. Mas muitos mais morrerão se o vírus Madoba-2 for disseminado entre a população.”

Stanley virou o corpo com esforço e sentou. Seu rosto estava ferido, um olho começando a fechar e havia sangue na parte da frente do seu pijama, mas mesmo assim ele parecia a pessoa com maior autoridade na cozinha.

— Ouçam o que esse homem está dizendo pela televisão — ele disse.

Daisy deu um passo para Stanley, mas Nigel a deteve com a mão erguida.

— Vocês vão se matar — Stanley disse. — Se vocês realmente têm o Madoba-2 naquele vidro que está na mesa, não existe antídoto. Se deixarem o vidro cair e quebrar e o líquido vazar, estarão mortos. Mesmo que vendam para alguém e esse alguém o espalhe depois que vocês forem embora, o vírus se espalha tão rapidamente que vocês podem ser facilmente infectados e morrer.

Através da tela, Osborne disse: “Acredita-se que o Madoba-2 seja mais perigoso do que a Peste Negra que devastou a Grã-Bretanha em... no passado.”

Stanley ergueu a voz para ser ouvido acima do repórter.

— Ele está certo, mesmo que não saiba de que século esteja falan­do. Na Grã-Bretanha, em 1348 a Peste Negra matou uma pessoa a cada três. Isto pode ser pior. Certamente nenhum dinheiro vale esse risco...

— Eu não estarei na Grã-Bretanha quando o vírus for liberado — disse Nigel.

Kit ficou chocado. Nigel nunca tinha mencionado isso. Elton também teria planos para estar fora do país? E Daisy e Harry Mac? Kit pretendia estar na Itália. Mas agora imaginava se seria suficientemente distante.

Stanley voltou-se para Kit.

— Você não pode achar que isso faz sentido.

Ele estava certo, Kit pensou. A coisa toda chegava às raias da insanidade. Mas, afinal, o mundo era louco.

— De qualquer modo, serei morto se não pagar minhas dívidas.

— Ora, vamos, eles não vão matá-lo por causa de uma dívida.

Daisy disse: — Oh, vamos sim.

— Quanto você deve?

— Duzentas e cinquenta mil libras.

— Meu Deus!

— Há três meses eu lhe disse que estava desesperado, mas você não quis me ouvir, seu miserável.

— Como conseguiu fazer uma dívida tão... Não, deixa pra lá, esqueça que eu perguntei.

— Jogando a crédito. Meu sistema é bom... só tive uma longa maré de azar.

Olga disse: — Sorte? Kit, acorde... você caiu em uma armadilha! Essa gente emprestou o dinheiro depois tratou de garantir que você perdesse porque eles precisavam que você os ajudasse a roubar o laboratório!

Kit não acreditava nisso. Ele disse, com desdém: — Como você pode saber de uma coisa dessas?

— Sou advogada. Conheço essa gente. Ouço suas desculpas ridí­culas quando são apanhados. Sei mais sobre eles do que gostaria de saber.

Stanley falou outra vez.

— Ouça, Kit, sem dúvida podemos arranjar um meio de sair des­sa sem matar pessoas inocentes.

— Tarde demais agora. Tomei minha decisão e tenho de ir até o fim.

— Mas pense nisso, rapaz. Quantas pessoas você vai matar? Dezenas? Milhares? Milhões?

— Vejo que quer que eu seja morto. Protege uma multidão de estranhos, mas se recusa a me salvar.

Stanley gemeu.

— Deus sabe que eu amo você e não quero que morra, mas tem certeza de que quer salvar sua vida a esse preço?

Quando Kit abriu a boca para responder, seu celular tocou.

Ele o tirou do bolso imaginando se Nigel confiaria nele para atender. Mas ninguém se moveu e ele levou o telefone ao ouvido. Ouviu a voz de Hamish McKinnon: — Toni está seguindo o limpa-neve e os convenceu a ir até sua casa. Deve chegar a qualquer minuto. E há dois policiais no caminhão.

Kit desligou e olhou para Nigel: — A polícia está vindo para cá, agora.

 

Craig abriu a porta lateral da garagem e espiou para fora. Três janelas estavam acesas na casa, mas as cortinas estavam fechadas, portanto nenhum observador casual podia vê-lo.

Olhou para onde Sophie estava. Ele tinha apagado a luz da garagem, mas sabia que ela estava no banco da frente, no lado do carona do Ford de Luke, com o casaco cor-de-rosa fechado para se proteger do frio. Acenou na direção dela e saiu.

Movendo-se o mais rapidamente possível, levantando muito os pés a cada passo na neve alta, seguiu pelo lado da garagem que não era visível da cozinha até chegar à frente da casa.

Craig ia apanhar as chaves da Ferrari. Teria de entrar no vestíbu­lo, atrás da cozinha, sem ser visto e tirá-las da caixa de chaves. Sophie queria ir também, mas ele a convenceu de que era mais perigoso para duas pessoas do que para uma só.

Ele sentia mais medo sem ela. Para Sophie tinha de fingir coragem e isso o fazia corajoso. Mas nesse momento teve um ataque de nervos. Hesitando no canto da casa, sentia as mãos trêmulas e as pernas estra­nhamente fracas. Podia ser pego facilmente pelos estranhos e então não saberia o que fazer. Nunca estivera em uma verdadeira luta desde os oito anos de idade. Conhecia garotos de sua idade com quem tinha brigado — do lado de fora de um bar, geralmente em noites de sábado — e nenhum deles, sem exceção, era inteligente. Nenhum dos três estranhos na cozinha era muito maior do que ele, mas, mesmo assim, Craig tinha medo. Tinha impressão de que eles saberiam o que fazer em uma briga e ele não tinha idéia. Além disso estavam armados. Podiam atirar nele. Será que levar um tiro era muito doloroso?

Ele olhou para a frente da casa. Teria de passar pelas janelas das salas de estar e de jantar, onde as cortinas estavam abertas. A neve não caía com tanta intensidade quanto antes e ele poderia ser visto facilmente por quem olhasse para fora.

Craig se obrigou a continuar.

Parou na primeira janela e olhou para a sala de estar. Luzinhas coloridas piscavam na árvore de Natal, iluminando fracamente os sofás, as mesas, a televisão e quatro enormes meias, penduradas na frente da lareira, cheias de caixas e embrulhos.

A sala estava vazia.

Ele seguiu em frente. A neve parecia mais alta ali, amontoada com mais força pelo vento do mar. Andar sobre ela era surpreendentemente cansativo. Craig quase teve vontade de se deitar. Lembrou que por vinte quatro horas não dormia. Sacudiu o corpo para afas­tar o cansaço e continuou. Passando pela porta da frente, quase esperava que ela se abrisse de repente e o londrino de suéter cor-de-rosa saltasse para fora e o agarrasse. Mas nada aconteceu.

Quando chegou à frente das janelas escuras da sala de jantar, foi surpreendido por um leve latido. Por um momento, seu coração bateu forte, mas viu então que era apenas Nellie. Eles com certeza a tinham prendido ali. O cão reconheceu o vulto de Craig e soltou um ganido de socorro. “Quieta, Nellie, pelo amor de Deus”, ele murmurou. Duvidava de que Nellie pudesse ouvi-lo, mas ela ficou quieta.

Passou pelos carros estacionados: o Toyota Previa de Miranda e a caminhonete Mercedes-Benz de Hugo. As laterais e as capotas de ambos estavam brancas e os carros pareciam feitos de neve, carros de neve para homens de neve. Craig deu a volta no canto da casa. Caute­losamente, espiou pelo canto do peitoril da janela. Viu o vestíbulo onde eram guardados casacos e botas. Uma aquarela de Steepfall, que devia ter sido pintada pela tia Miranda, e uma vassoura de jardim esta­vam em um canto — e a caixa de aço das chaves, pregada na parede.

Por sorte, a porta do corredor que dava para a cozinha estava fechada.

Ele escutou mas não ouviu nenhum som vindo da casa.

O que acontecia quando se dava um murro em alguém? Nos filmes eles apenas caíam, mas Craig tinha certeza de que na vida real não era assim. Mais importante: o que acontecia quando se levava um soco? Será que doía muito? E se fossem vários socos, um depois do outro? E como seria levar um tiro? Tinha ouvido dizer que a coisa mais dolorosa do mundo é uma bala na barriga. Craig estava absolutamente apavorado, mas se obrigou a seguir em frente.

Segurou a maçaneta da porta dos fundos, girou o mais silencio­samente possível e empurrou. A porta se abriu e ele entrou. O vestí­bulo era um aposento pequeno, com dois metros de comprimento, quase todo tomado pela velha chaminé de tijolos e pelo grande armário ao lado dela. A caixa das chaves estava na parede da chami­né. Craig estendeu a mão para abri-la. Havia vinte ganchos numera­dos, alguns só com uma chave e outros com molhos de chaves, mas ele reconheceu imediatamente as chaves da Ferrari. Ele as pegou e levantou, mas a corrente do chaveiro se prendeu no gancho. Ele sacudiu a corrente, lutando contra o pânico. Então alguém mexeu no trinco da porta da cozinha.

O coração de Craig deu um salto. Alguém tentava abrir a porta entre a cozinha e o corredor. Ele ou ela tinha virado a maçaneta, mas evidentemente não conhecia a casa e estava empurrando a porta ao invés de puxar. Aproveitando a demora momentânea, Craig entrou no armário grande e fechou a porta.

Fez isso sem pensar, largando as chaves. Assim que estava den­tro, se deu conta de que teria levado quase o mesmo tempo se saísse para o jardim pela porta dos fundos. Tentou lembrar se tinha fecha­do a porta. Achava que não. E será que havia neve ainda fresca no chão, caída das suas botas? Isso revelaria que alguém estivera ali nos últimos minutos pois do contrário a neve teria derretido. E tinha deixado aberta a porta da caixa de chaves.

Uma pessoa observadora veria essas pistas e saberia a verdade em um instante.

Craig prendeu a respiração e escutou.

 

Nigel sacudiu a maçaneta até perceber que a porta abria para dentro, não para fora. Escancarou a porta e olhou para o vestíbulo.

— Aqui não — ele disse. — Porta e uma janela. — Atravessou a cozi­nha e abriu a porta da despensa. — Aqui sim. Não tem outra porta e só uma janela que dá para o pátio. Elton, ponha todos aqui.

— Está frio aí — Olga protestou. A despensa tinha ar condicionado.

— Ora, pare com isso, vai me fazer chorar — Nigel disse, com sar­casmo.

— Meu marido precisa de um médico.

— Depois de me atacar ele tem muita sorte de não precisar de um agente funerário. — Nigel voltou-se outra vez para Elton: — Enfie alguma coisa na boca deles para que não façam barulho. Depressa, podemos não ter muito tempo!

Elton encontrou uma gaveta cheia de panos de prato limpos. Amordaçou Stanley, Olga e Hugo, já consciente, mas atordoado. Depois fez os prisioneiros ficarem de pé e os empurrou para a despensa.

— Ouça o que vou dizer — Nigel disse para Kit. Nigel estava superficialmente calmo, planejando e dando ordens, mas muito pálido e o rosto estreito e cínico mostrava preocupação. Sob a super­fície, Kit viu que ele estava tenso como uma corda de violino. — Quando a polícia chegar aqui, você vai até a porta — Nigel continuou. — Fale com eles amavelmente, tente parecer calmo, um cida­dão cumpridor da lei. Diga que não há nada de errado aqui e que todos, menos você, estão dormindo ainda.

Kit não sabia como ia parecer calmo quando se sentia prestes a enfrentar um pelotão de fuzilamento. Apoiou-se no espaldar de uma cadeira da cozinha para parar de tremer.

— E se eles quiserem entrar?

— Tente demovê-los. Se insistirem, traga-os para a cozinha. Estaremos naquele quartinho lá atrás. — Apontou para o vestíbulo. — Trate de se livrar deles o mais depressa possível.

— Toni Gallo está vindo com a polícia — Kit disse. — Ela é a che­fe de segurança do laboratório.

— Muito bem. Diga a ela para ir embora.

— Ela vai querer ver meu pai.

— Diga que não é possível.

— Ela pode não aceitar um não como resposta.

Nigel ergueu a voz: — Mas que merda, o que ela pode fazer? Derrubar você e passar por cima do seu corpo inconsciente? Trate de dizer a ela para ir se foder.

— Tudo bem — Kit disse. — Mas temos de manter minha irmã Miranda quieta. Ela está escondida no sótão.

— Sótão? Onde?

— Bem aqui em cima da cozinha. Procurem dentro do closet do quarto de vestir. Atrás dos ternos há uma portinhola que dá para o sótão.

Nigel não perguntou como Kit sabia que Miranda estava lá. Olhou para Daisy. — Cuide disso.

 

Miranda viu seu irmão falando com Nigel e ouviu quando ele a traiu.

Atravessou o sótão rapidamente e entrou no closet do quarto de vestir do seu pai. Mesmo ofegante, com o coração disparado, o ros­to em fogo, ela não entrou em pânico, não ainda. Saiu do closet e deu no quarto de vestir.

Por um esperançoso momento, quando ouviu Kit dizer que a polícia estava chegando, pensou que estavam salvos. Tudo que tinha a fazer era ficar firme até que os homens de uniforme azul entrassem na casa e capturassem os ladrões. Então viu com horror Nigel logo encontrar um meio de despistar a polícia. O que ela devia fazer se a polícia fosse embora sem prender ninguém? Tinha pensado em abrir uma janela do quarto e começar a gritar.

Agora, Kit tinha desfeito esse plano.

A idéia de se encontrar com Daisy a apavorava e só por pouco não entrou em pânico.

Podia se esconder no quarto de Kit, no outro lado do corredor, enquanto Daisy revistava o sótão. Isso não enganaria Daisy por mais de alguns segundos, mas podia ser o tempo necessário para Miranda abrir a janela e gritar por socorro.

Atravessou correndo o quarto de dormir do pai. Quando pôs a mão na maçaneta ouviu as botas pesadas na escada. Tarde demais.

A porta abriu violentamente e Miranda se escondeu atrás dela. Daisy atravessou apressadamente o quarto de dormir e entrou no quarto de vestir, sem olhar para trás.

Miranda saiu do quarto de mansinho. Atravessou o corredor e entrou no quarto de Kit. Correu para a janela e abriu a cortina, esperando ver carros de polícia com as luzes girando.

Não havia ninguém lá fora.

Ela olhou para o caminho que ia da estrada principal até a casa. Começava a clarear e podia ver as árvores carregadas de neve na entrada do bosque, mas nenhum carro. Miranda quase se desespe­rou. Daisy levaria apenas alguns segundos para dar uma olhada no sótão e se certificar de que ninguém estava lá. Então revistaria o res­to dos quartos do segundo andar. Miranda precisava de mais tempo. A que distância estaria a polícia?

Haveria um meio de trancar Daisy no sótão?

Miranda não parou nem um segundo para pensar nos riscos. Voltou correndo para o quarto do pai. Viu a porta do armário aber­ta. Daisy devia estar no sótão naquele instante, olhando em volta com aqueles olhos que pareciam ter levado um soco, imaginando se haveria algum lugar com tamanho suficiente para esconder uma mulher adulta e gorducha.

Outra vez, sem pensar, Miranda fechou a porta do closet.

A porta não tinha chave mas era de madeira sólida. Se pudesse prender a porta, Daisy levaria muito tempo para abrir, especialmen­te com dificuldade para se mover, confinada no pequeno espaço dentro do closet.

Havia um pequeno espaço entre a parte inferior da porta e o chão. Se ela conseguisse encaixar alguma coisa ali, ficaria presa, pelo menos por alguns segundos. O que podia usar? Precisava de um pedaço de madeira, papelão ou até mesmo uma folha de papel. Abriu a gaveta do criado-mudo do pai e encontrou o livro de Proust.

Miranda começou a arrancar as páginas.

 

Kit ouviu Nellie latir na sala de jantar.

Era o latido agressivo e alto de quando havia algum estranho na porta. Alguém estava vindo. Kit passou pela porta de vaivém da sala de jantar. Nellie estava com as patas da frente no peitoril da janela.

Kit foi até a janela. A neve caía agora em flocos leves e espalhados. Ele olhou para o bosque e viu, saindo do meio das árvores, um caminhão grande com uma luz cor de laranja piscando em cima e uma lâmina limpa-neve na frente.

— Eles chegaram! — ele gritou.

Nigel entrou na sala. Nellie rosnou e Kit disse: — Cala a boca. — O cachorro recuou para um canto. Nigel encostou na parede ao lado da janela e olhou para fora.

O limpa-neve abriu um caminho de dois metros e meio ou três de largura. Passou pela porta da frente e chegou o mais perto possível dos carros estacionados. No último momento virou, limpou a neve na frente do Mercedes de Hugo e do Previa de Miranda. Então voltou para o bloco da garagem, saiu do caminho que levava à casa e limpou uma parte do concreto na frente das portas da garagem. Nesse momento, um Jaguar, de cor clara, passou por ele, usando a trilha feita na neve e parou na frente da casa.

Uma mulher alta e esbelta, de cabelo curto, com um casaco de aviador forrado de pele de carneiro, saiu do carro. Na luz dos faróis, Kit reconheceu Toni Gallo.

— Livre-se dela — disse Nigel.

— O que aconteceu com Daisy? Ela está demorando muito...

— Ela dará um jeito na sua irmã.

— Acho bom.

— Confio em Daisy mais do que em você. Agora, vá até a porta. — Nigel recuou para o vestíbulo com Elton.

Kit foi até a porta da frente e a abriu.

Toni ajudava alguém a sair do banco detrás do carro. Ele viu que era uma senhora idosa com um casaco comprido de lã e chapéu de pêlo. Ele disse, em voz alta: — Que diabo...?

Toni segurou no braço da senhora e virou-se para a casa. Ficou desapontada quando viu quem estava à porta.

— Olá, Kit — ela disse. Ela e a mulher começaram a andar para a casa.

Kit perguntou: — O que você quer?

— Vim ver seu pai. Há uma emergência no laboratório.

— Meu pai está dormindo.

— Ele vai querer ser acordado para isto, pode estar certo.

— Quem é a velha?

— Esta senhora é minha mãe. Sra. Kathleen Gallo.

— E não sou uma velha — a mãe de Toni disse. — Tenho setenta e cinco anos e estou em ótima forma.

— Tudo bem, mamãe, ele não quis ser rude.

Kit ignorou as duas.

— O que ela está fazendo aqui?

— Eu explico para seu pai.

O removedor de neve virou na frente da garagem e voltou pelo caminho limpo, seguindo pelo bosque para a estrada principal. O Jaguar foi atrás.

Kit entrou em pânico. O que devia fazer? Os carros estavam indo embora, mas Toni continuava ali.

O Jaguar parou de repente. Kit esperava que o motorista não tivesse visto nada suspeito. O carro voltou para a casa. A porta do motorista se abriu e um pequeno volume caiu na neve. Parecia, Kit pensou, um cachorrinho.

A porta bateu e o carro foi embora.

Toni voltou e apanhou o pequeno volume. Era um cachorrinho, um filhote de sheepdog inglês.

Kit ficou atônito, mas resolveu não fazer perguntas.

— Você não pode entrar — ele disse.

— Não seja tolo — Toni respondeu. — A casa não é sua, é do seu pai e ele vai querer me ver. — Continuou a andar vagarosamente para ele dando um braço para a mãe e com o cachorrinho no outro.

Kit ficou paralisado. Esperava que Toni estivesse com seu carro e pretendia dizer a ela para voltar mais tarde. Por um momento, pensou em correr atrás do Jaguar e dizer ao motorista para voltar. Mas o homem certamente perguntaria por quê. E os policiais no removedor de neve podiam querer saber qual era o problema. Era muito arriscado. Kit não fez coisa alguma.

Toni ficou na frente de Kit, que bloqueava sua entrada.

— Alguma coisa errada? — ela perguntou.

Kit compreendeu que estava em uma enrascada. Se persistisse em obedecer às ordens de Nigel, podia trazer a polícia de volta. Era mais fácil lidar só com Toni.

— Acho melhor você entrar — ele disse.

— Obrigada. A propósito, o nome do cachorrinho é Osborne. — Toni e a mãe entraram no hall. — Mamãe, você precisa ir ao banheiro? — ela perguntou. — Fica logo ali.

Kit viu as luzes do removedor de neve e do Jaguar desaparecerem no bosque e ficou menos tenso. Estava com Toni nas mãos, mas tinha se livrado da polícia. Ele fechou a porta da frente.

Ouviram umas batidas fortes vindas do segundo andar, como um martelo batendo na parede.

— Que diabo foi isso? — Toni perguntou.

 

Miranda arrancou uma porção de páginas do livro, a dobrou, formando uma cunha, e a enfiou no espaço debaixo da porta do closet. Isso não deteria Daisy por muito tempo. Ela precisava de uma bar­reira mais sólida. Ao lado da cama havia uma arca antiga usada como mesa-de-cabeceira. Com esforço ela a arrastou pelo carpete, incli­nou-a em um ângulo de quarenta e cinco graus e a encostou na por­ta. Quase imediatamente ouviu Daisy empurrar a porta. Quando empurrar não resolveu, ela começou a bater.

Miranda imaginou que Daisy estava deitada com a cabeça no sótão e os pés no closet, chutando a porta com as solas das botas. A porta estremeceu mas não abriu. Porém, Daisy era decidida e encontraria um meio. Mas com isso Miranda ganhou alguns segundos.

Ela correu para a janela. Desapontada viu dois veículos — um caminhão e um sedã — afastando-se da casa.

— Oh, não! — ela disse em voz alta.

Os veículos iam depressa demais para que pudessem ouvir seus gritos. Teria chegado tarde demais? Saiu correndo do quarto.

Parou no alto da escada. Lá embaixo, no hall, uma mulher idosa que ela não conhecia ia para o banheiro.

O que estava acontecendo?

Em seguida reconheceu Toni Gallo, tirando um casaco de aviador e o pendurando no cabide.

Um cachorrinho branco e preto farejava os guarda-chuvas.

Então Kit apareceu. Outra pancada no quarto de vestir e Kit disse para Toni: — As crianças devem estar acordadas.

Miranda ficou atônita. Como era possível? Kit agia como se não houvesse nada de errado...

Ele deve estar enganando Toni, Miranda percebeu. Queria que ela pensasse que tudo estava bem. Então a convenceria a ir embora ou a dominaria e a amarraria com os outros.

Enquanto isso, a polícia estava indo embora.

Toni fechou a porta do banheiro depois que a mãe entrou. Ninguém tinha visto Miranda ainda.

Kit disse para Toni: — Acho melhor você vir para a cozinha.

Lá eles a dominariam, Miranda pensou. Nigel e Elton estariam esperando e a pegariam de surpresa.

Então ouviu um barulho de coisa quebrada vindo do quarto. Daisy tinha saído do closet.

Miranda agiu sem pensar.

— Toni! — ela gritou.

Toni olhou para cima e a viu.

Kit disse: — Merda, não...

Miranda gritou: — Os ladrões estão aqui, amarraram papai, estão armados...

Daisy explodiu para fora do quarto e deu um encontrão em Miranda, fazendo-a rolar escada abaixo.

 

Por um instante, Toni ficou imóvel.

Kit, ao lado dela, olhou com raiva para o alto da escada. Furioso, ele disse: — Pegue ela, Daisy!

Miranda despencava pela escada, a camisola cor-de-rosa enfunada em volta dela, revelando as coxas gordas e brancas.

Uma jovem muito feia, com a cabeça raspada, maquiagem gótica nos olhos, vestida de couro, corria para ela.

E sua mãe estava no banheiro.

Num instante, Toni compreendeu o que estava acontecendo. Ladrões armados estavam na casa, Miranda dissera. Não podia haver dois grupos iguais operando naquela área remota na mesma noite. Deviam ser os mesmos que tinham assaltado o Kremlin. A mulher careca no alto da escada devia ser a loura que Toni tinha visto no vídeo da segurança — a peruca fora encontrada na van da fuga. A mente de Toni estava a mil. Kit parecia estar mancomunado com eles — o que explicava como tinham passado pelo sistema de segurança...

Quando pensou nisso, Kit passou um braço por seu pescoço e a puxou, tentando erguê-la do chão. Ao mesmo tempo, ele gritou: — Nigel!

Toni desfechou uma forte cotovelada nas costelas dele e teve a satisfação de ouvir o gemido de dor. O braço no seu pescoço perdeu a força e ela conseguiu se virar e dar outro golpe, dessa vez um soco no diafragma com o punho esquerdo. Ele a atacou outra vez, mas Toni facilmente conseguiu se esquivar do golpe.

Toni levou o braço direito para trás para um soco violento mas antes que tivesse tempo de desferir o golpe, Miranda chegou ao pé da escada e bateu atrás das pernas dela. Como estava inclinada para trás, pronta para o ataque, Toni caiu. Um momento depois, a mu­lher vestida de couro passou uma rasteira em Miranda, Toni se cho­cou contra Kit e os quatro acabaram empilhados no chão lajeado.

Toni compreendeu que não podia vencer a luta contra Kit e a mulher que ele chamara de Daisy. E logo outros viriam. Tinha de se afastar daquela gente, tomar fôlego e pensar no que ia fazer.

Ela se libertou da confusão e rolou para o lado.

Kit estava caído de costas, Miranda enrolada como uma bola, parecendo machucada e sem fôlego, mas não gravemente ferida. Toni viu Daisy se levantar e, furiosa, dar um soco no braço de Miranda, com o punho estranhamente coberto por uma luva bege muito elegante.

Toni ergueu-se de um salto. Pulou por cima de Kit, chegou à porta da frente e a abriu. Kit agarrou seu tornozelo com uma das mãos, impedindo-a de continuar. Toni girou o corpo e chutou o braço dele com o outro pé, acertando o cotovelo. Kit gritou de dor e soltou seu tornozelo. Toni correu para fora e bateu a porta.

Virou para a direita e correu no caminho aberto pelo removedor de neve. Ouviu um tiro, uma pancada e o vidro da janela esfacelou perto dela. Alguém atirava nela de dentro da casa. Mas não acertou.

Toni correu para a garagem e chegou ao quadrado de cimento na frente das portas onde o removedor de neve abrira um espaço. Agora a garagem estava entre ela e a pessoa com a arma.

O removedor de neve, com os dois policiais, partira a velocidade normal na estrada limpa, com a lâmina erguida. Isso significava que àquela altura estava muito longe para ser alcançado a pé. O que ela ia fazer? Enquanto estivesse no trecho limpo, podia ser persegui­da por alguém da casa. Mas onde podia se esconder? Olhou para o bosque. Bastante abrigo entre as árvores, mas estava sem casaco — tinha tirado o casaco de aviador um pouco antes de Miranda dar o alerta — e assim não agüentaria muito tempo no frio. A garagem devia estar tão fria quanto ali fora.

Correu para a outra extremidade do prédio e olhou pelo canto. A poucos metros, viu a porta do celeiro. Se arriscaria a atravessar o pátio, podendo ser vista da casa? Não tinha outra escolha.

Quando estava pronta para sair, a porta do celeiro se abriu.

Ela hesitou. E agora?

Um menino apareceu com um casaco sobre o pijama de Homem-Aranha e botas de borracha grandes demais para ele. Não olhou em volta, mas virou para a esquerda e começou a caminhar na neve alta. Toni supôs que ele ia para a casa e imaginou se devia detê-lo. Porém logo viu que estava errada. Em vez de atravessar o pátio na direção da casa, ele foi para o chalé de hóspedes. Toni torceu para que ele corresse, que saísse do caminho, antes que começasse a confusão. Imaginou que ele ia procurar a mãe para perguntar se podia abrir seus presentes. Na verdade, sua mãe estava na casa principal, sendo espancada por uma marginal. Mas talvez seu padrasto estives­se no chalé. Toni achou mais prudente deixar que ele descobrisse. A porta não estava trancada e Tom desapareceu dentro do chalé.

Toni hesitava ainda. Será que havia alguém atrás de uma das janelas da casa, cobrindo o pátio com uma pistola Brownie automática, nove milímetros? Logo ia saber.

Ela começou a correr, mas, assim que chegou à neve alta, caiu. Ficou deitada por um segundo, esperando o tiro que não veio. Toni se levantou, o frio gelado da neve atravessando sua calça jeans e seu suéter, e continuou, com mais cuidado agora e mais devagar. Olhou com medo para a casa. Não via ninguém em nenhuma das janelas. Não precisaria mais de um minuto para atravessar o pátio, mas cada passo era uma eternidade. Finalmente chegou ao celeiro, entrou e fechou a porta, tremendo de alívio por ainda estar viva.

Uma pequena lâmpada iluminava uma mesa de bilhar, uma por­ção de sofás, uma televisão de tela grande e duas camas de campa­nha, ambas vazias. Parecia que não tinha ninguém ali, mas uma escada levava ao antigo palheiro. Esforçando-se para parar de tremer, Toni subiu a escada. Quando estava no meio, olhou para a parte de cima. Vários pares de pequenos olhos vermelhos a sobressaltaram. Os ratos de Caroline. Toni acabou de subir a escada. Viu mais camas lá em cima. O vulto adormecido em uma delas era Caroline. A outra não tinha sido usada.

Não demoraria para que os ladrões aparecessem à sua procura. Precisava pedir ajuda rapidamente. Levou a mão ao bolso, procurando o celular. Lembrou-se então de que não estava com ele.

Ergueu o punho fechado para o teto, frustrada. O telefone estava no bolso do casaco de aviador, agora pendurado no cabide do hall.

O que ia fazer agora?

 

— Temos de ir atrás dela — Nigel disse. — Ela pode estar telefonando para a polícia.

— Espere — Kit disse. Atravessou o hall até o cabide. Parou de esfregar o cotovelo chutado por Toni, para revistar o casaco dela. Triunfalmente tirou o celular de um dos bolsos. — Ela não pode chamar a polícia.

— Graças a Deus por isso — Nigel olhou para o hall. Daisy segu­rava Miranda com o rosto no chão e o braço dobrado nas costas. Elton estava na porta da cozinha. — Elton — Nigel disse —, vá buscar mais corda para Daisy amarrar esta vaca gorda. — Voltou-se para Kit: — Suas irmãs são mesmo uma maldita dupla.

— Não se preocupe com isso — Kit disse. — Podemos ir embora agora, não podemos? Não precisamos esperar amanhecer nem pegar o carro com tração nas quatro rodas. Podemos usar qualquer carro e seguir pelo caminho aberto pelo removedor de neve.

— Há tiras no removedor de neve.

— O único lugar que não vão procurar é bem atrás deles.

Nigel concordou.

— Muito esperto. Mas o removedor de neve não vai até... onde pre­cisamos estar. O que fazemos quando ele desviar do nosso caminho?

Kit dominou a impaciência. Tinham de sair de Steepfall de qualquer jeito, mas Nigel ainda não sabia como.

— Olhe pela janela — ele disse. — A neve parou. Logo começará a derreter, segundo a previsão.

— Ainda podemos atolar.

— Corremos maior perigo aqui, agora que a estrada está limpa. Toni Gallo pode não ser a única a aparecer.

Elton voltou com um pedaço de fio elétrico.

— Kit tem razão — ele disse. — Podemos chegar lá facilmente às dez horas, a não ser que haja algum acidente. — Deu o fio para Daisy e ela amarrou as mãos de Miranda nas costas.

— Muito bem — Nigel disse. — Mas antes temos de reunir todos, inclusive as crianças, e nos certificar de que não poderão pedir ajuda durante as próximas horas.

Daisy arrastou Miranda pela cozinha e a jogou na despensa.

Kit disse: — O telefone de Miranda deve estar no chalé, do contrário ela já o teria usado. Seu namorado, Ned, está lá.

Nigel disse: — Elton, vá ao chalé.

Kit continuou: — Tem um telefone na Ferrari. Sugiro que Daisy vá até a garagem para ter certeza de que ninguém o esteja usando.

— E o celeiro?

— Deixe por último. Caroline, Craig e Tom não têm celular. Não tenho certeza disso quanto a Sophie, mas ela só tem catorze anos.

— Muito bem — Nigel disse. — Vamos fazer isso o mais depressa possível.

A porta do banheiro abriu e a mãe de Toni Gallo saiu, ainda de chapéu.

Kit e Nigel olharam para ela por um momento. Kit tinha se esquecido dela.

Então Nigel disse: — Leve-a para a despensa com os outros.

— Oh, não — disse a velha senhora. — Acho que prefiro sentar ao lado da árvore de Natal. — Atravessou o hall e entrou na sala de estar.

Kit olhou para Nigel que deu de ombros.

 

Craig entreabriu a porta do armário do vestíbulo. Viu que o apo­sento estava vazio. Ia sair do armário quando um dos bandidos, Elton, entrou vindo da cozinha. Craig puxou um pouco a porta e prendeu a respiração.

Por cerca de quinze minutos era sempre assim.

Um dos ladrões sempre aparecia. O armário cheirava a agasalhos úmidos e botas velhas. Ele estava preocupado com Sophie, no frio da garagem, no Ford de Luke. Craig tentou esperar pacientemente. Sua oportunidade sem dúvida chegaria logo.

Poucos minutos atrás ouvira o latido de Nellie, o que podia significar que havia alguém na porta. Craig se animou, esperançoso, mas Nigel e Elton, a poucos centímetros dele, falavam em voz baixa alguma coisa que Craig não conseguiu ouvir. Deviam estar se escondendo dos visitantes, pensou. Sua vontade era sair do armário e cor­rer para a porta, gritando por socorro. Mas sabia que seria apanhado e silenciado assim que o descobrissem. Era terrivelmente frustrante.

Ouviu batidas vindas de cima, como se alguém estivesse tentan­do derrubar uma porta. Então, um ruído diferente, mais como fogos de artifício — ou o disparo de uma arma, seguido instantaneamente pelo som de vidros quebrados. Craig desanimou, assustado. Até aquele momento eles só tinham usado as armas para ameaçar. Agora que começavam a atirar, onde isso acabaria? A família corria um perigo terrível.

Ao ouvirem os tiros, Nigel e Elton foram embora, mas deixaram a porta aberta e Craig podia ver Elton na outra extremidade da cozinha, falando urgentemente com alguém no hall. Então Elton voltou, mas saiu pela porta dos fundos, deixando-a escancarada.

Finalmente Craig podia se mover sem ser visto. Os outros estavam no hall. Essa era sua chance. Ele saiu do armário.

Abriu a caixa das chaves e tirou as da Ferrari, que dessa vez saí­ram facilmente do gancho.

Com dois passos estava fora da porta.

A neve tinha parado. Em algum lugar atrás das nuvens o dia estava nascendo. À sua esquerda estava Elton, seguindo na neve para o chalé de hóspedes, de costas para Craig e sem tê-lo visto. Craig foi para o lado oposto e virou no canto de modo que a casa ficou entre ele e Elton.

Com um choque, viu Daisy a poucos metros dele.

Felizmente ela também se afastava dele. O trecho aberto, sem neve, significava que o removedor de neve passara ali enquanto estava escondido no armário. Daisy ia para a garagem... e para Sophie.

Craig abaixou atrás do Mercedes do seu pai. Espiando pelo lado, viu Daisy chegar ao fim do prédio, sair da trilha limpa e virar no canto da casa, desaparecendo.

Craig foi atrás. Movendo-se o mais depressa possível, seguiu junto à frente da casa. Passou pela sala de jantar, onde Nellie continuava com as patas da frente no peitoril, depois pela porta da fren­te, que estava fechada, então pela sala de estar com as luzinhas da árvore de Natal piscando. Espantado viu uma velha senhora sentada ao lado da árvore, com um cachorrinho no colo. Craig não parou para descobrir quem era ela.

Chegou ao canto e olhou em volta. Daisy ia direto para a porta lateral da garagem. Se ela entrasse, encontraria Sophie no Ford de Luke.

Ela tirou a arma do bolso do casaco de couro preto.

Craig, sem poder fazer nada, a viu abrir a porta.

 

Fazia frio na despensa.

O peru de Natal, grande demais para a geladeira da cozinha, estava em uma assadeira, na prateleira de mármore, recheado e temperado por Olga, pronto para o forno. Miranda se perguntou, desa­nimada, se viveria para saborear a ceia.

Ela, seu pai, sua irmã e Hugo, amarrados como o peru, amontoavam-se no pequeno espaço de um metro quadrado, rodea­dos de comida, vegetais, uma prateleira com vidros de macarrão, cai­xas de cereais para o café da manhã, latas de atum, tomates e feijões cozidos.

Hugo era quem estava em pior estado. Parecia consciente por alguns momentos e depois voltava à inconsciência. Estava encostado na parede, com Olga muito junto a ele para aquecer seu corpo nu. Stanley parecia atropelado por um caminhão mas com o corpo, ereto, alerta.

Miranda se sentia indefesa e infeliz. Era de partir o coração ver seu pai, um homem de personalidade tão forte, ferido e amarrado. Hugo era um patife, mas não merecia aquilo. Parecia ter sofrido danos permanentes. E Olga era uma heroína, tentando consolar o marido que a tinha traído.

Os outros tinham panos de prato enfiados na boca. Mas Daisy não se dera ao trabalho de amordaçar Miranda, talvez achando que não adiantava gritar, agora que a polícia tinha ido embora. Com uma chama de esperança, Miranda achou que talvez pudesse tirar as mordaças.

— Papai, incline-se para a frente — ela disse. Ele obedeceu, incli­nando o corpo alto, a ponta da mordaça pendendo da boca. Miranda virou a cabeça, como se fosse beijá-lo. Conseguiu pegar com os dentes a ponta do pano de prato e puxou uma parte para fora mas então, o pano escapou.

Miranda murmurou uma exclamação exasperada. Seu pai se inclinou outra vez incitando-a a tentar de novo. Repetiram o processo e dessa vez toda a mordaça saiu e caiu no chão.

— Obrigado — ele disse. — Estava horrível.

Miranda fez a mesma coisa com Olga, que disse: — Eu estava com vontade de vomitar, mas me controlei com medo de sufocar. Olga retirou a mordaça de Hugo do mesmo modo.

— Tente ficar acordado, Hugo — ela disse, urgentemente. — Vamos, fique com os olhos abertos.

Stanley perguntou para Miranda: — O que está acontecendo lá?

— Toni Gallo chegou com um removedor de neve e alguns policiais — ela explicou. — Kit abriu a porta como se tudo estivesse bem e a polícia foi embora, mas Toni insistiu em ficar.

— Aquela mulher é incrível.

— Eu estava escondida no sótão. Consegui avisar Toni.

— Muito bem!

— Aquela horrível Daisy me empurrou escada abaixo mas Toni fugiu. Não sei onde ela está agora.

— Ela pode telefonar para a polícia.

Miranda balançou a cabeça.

— Ela deixou o celular no bolso do casaco e Kit está com ele.

— Ela vai pensar em alguma coisa. Toni tem recursos notáveis. De qualquer modo, é nossa única esperança. Ninguém mais está solto, a não ser as crianças e Ned, é claro.

— Temo que Ned não seja grande ajuda — Miranda disse sombriamente. — Em uma situação como esta, a última coisa de que se pode precisar é de um especialista em Shakespeare. — Ela pensava na fraca reação dele, na véspera com sua ex, Jennifer, quando ela expul­sou Miranda da sua casa. Como esperar que um homem como esse enfrentasse três criminosos profissionais?

Miranda olhou pela janela da despensa. O dia estava clareando e não nevava mais, por isso ela podia ver o chalé onde Ned dormia e o celeiro onde estavam as crianças. Horrorizada viu Elton atravessar o pátio.

— Oh, Deus — ela disse. — Ele está indo para o chalé.

Stanley olhou para fora.

— Estão reunindo todos — ele disse. — Vão amarrar todos antes de partir. Não podemos deixar que levem o vírus. Mas como podemos impedir?

Elton entrou no chalé.

— Espero que Ned esteja bem — Miranda disse, de repente satisfei­ta por Ned não ser do tipo beligerante. Elton era durão, impiedoso e estava armado. A única esperança para Ned era obedecer sem reagir.

— Podia ser pior — Stanley disse. — Aquele homem é um bandi­do, mas não é psicopata. A mulher é.

— Ela comete erros porque é louca — Miranda disse. — No hall, há poucos minutos, ela estava me espancando quando devia estar atrás de Toni. Por isso Toni conseguiu escapar.

— Por que Daisy queria espancar você?

— Eu a tranquei no sótão.

— Você a trancou no sótão?

— Ela entrou lá procurando por mim e eu fechei e prendi a por­ta do closet. Por isso ela estava tão zangada.

Seu pai parecia chocado.

— Menina corajosa — ele murmurou.

— Não sou corajosa — Miranda disse. A idéia era absurda. — Eu estava tão apavorada que faria qualquer coisa.

— Eu acho que você é corajosa. — Seus olhos encheram-se de lágrimas e ele virou o rosto.

Ned saiu do chalé. Elton estava logo atrás, com a arma encosta­da na cabeça dele. Com a mão esquerda Elton segurava o braço de Tom.

Miranda, chocada, deixou escapar uma exclamação abafada. Achava que Tom estivesse no celeiro. Ele devia ter acordado e saído à procura da mãe. Vestia o pijama de Homem-Aranha. Miranda se esforçou para não chorar.

Os três iam para a casa, mas então ouviram um grito e eles para­ram. Um momento depois Daisy apareceu, arrastando Sophie pelos cabelos. Sophie com o corpo curvado. Tropeçava na neve chorando de dor.

Daisy disse alguma coisa a Elton que Miranda não ouviu. Então Tom gritou para Daisy: — Deixe ela em paz. Você a está machucan­do! — Sua voz tinha um tremor infantil, mais estridente por causa do medo e da raiva.

Miranda lembrou que Tom tinha uma paixão pré-adolescente por Sophie.

— Fique quieto, Tommy — ela murmurou temerosa, embora ele não a pudesse ouvir. — Não importa que puxem o cabelo dela.

Elton riu. Daisy com um sorriso malévolo puxou com mais força o cabelo de Sophie.

Provavelmente foi por estarem rindo dele que Tom se descontrolou. De repente ele enlouqueceu. Livrou o braço da mão de Elton e atirou-se contra Daisy.

Miranda gritou: — Não!

Daisy ficou tão surpresa que, quando Tom se lançou sobre ela, caiu sentada na neve, soltando o cabelo de Sophie. Toni caiu em cima dela, esmurrando com os pequenos punhos cerrados.

Miranda gritava em vão: — Pare! Pare!

Daisy empurrou Tom para longe e se levantou. Tom se levantou de um salto, mas Daisy o atingiu no lado da cabeça com a mão enluvada e ele caiu outra vez. Daisy o ergueu e em fúria o segurou de pé com a mão esquerda, enquanto socava seu rosto e seu corpo com a direita.

Miranda gritou.

De repente, Ned se moveu.

Ignorando a arma que Elton apontava para ele, se pôs entre Daisy e Tom. Disse alguma coisa que Miranda não ouviu e segurou o braço de Daisy. Miranda ficou atônita. O fraco Ned enfrentando os criminosos!

Sem soltar Tom, Daisy deu um soco no estômago de Ned.

Ele dobrou o corpo, o rosto crispado em uma máscara de agonia. Mas, quando Daisy levou o braço para trás para bater em Tom outra vez, Ned endireitou o corpo e ficou na frente dela. Mudando de idéia no último momento, ela deu um soco na boca de Ned. Ned gritou e levou as mãos ao rosto, mas não se moveu.

Miranda estava profundamente agradecida por Ned ter desviado a atenção de Daisy do seu filho, mas por quanto tempo ele agüentaria aquele castigo?

Ned continuou a desafiar Daisy. Quando retirou as mãos do rosto, o sangue escorria-lhe da boca. Então Miranda viu Daisy dar-lhe um terceiro murro.

Miranda estava perplexa. Ned parecia uma parede. Simplesmente ficou ali de pé, recebendo os golpes. E fazia aquilo, não por um filho seu, mas por Tom. Miranda sentiu vergonha por ter pensa­do que ele fosse um fraco.

Nesse momento, a filha de Ned, Sophie, agiu. Ela estava imóvel, mesmerizada, desde que Daisy largara seu cabelo. Agora, ela virou e correu.

Elton tentou agarrá-la, mas Sophie escapou das mãos dele. Por um momento ele perdeu o equilíbrio e Sophie saiu correndo, atravessando a neve alta com saltos de balé.

Elton recuperou rapidamente o equilíbrio, mas Sophie tinha desaparecido.

Elton agarrou Tom e gritou para Daisy: — Não deixe aquela menina fugir! — Daisy virou, parecendo disposta a discutir. — Eu fico com estes dois. Vá, vá!

Com um olhar furioso para Ned e Tom, Daisy deu meia-volta e saiu atrás de Sophie.

 

Craig girou a chave na ignição da Ferrari. Atrás dele, o enorme motor V1 roncou e morreu.

Craig fechou os olhos.

— Não agora — ele disse em voz alta. — Não me deixe na mão agora.

Girou a chave outra vez. O motor pegou, quase morreu e então rugiu como um touro enraivecido. Craig bombeou o acelerador, por segurança, e o rugido se transformou em um uivo.

Ele olhou para o telefone. “Buscando...” Digitou o número 999, de emergência policial, sabendo que não adiantava antes que o telefone estivesse conectado à rede.

— Vamos — ele disse com urgência. — Não tenho muito tempo...

A porta lateral da garagem abriu e Sophie entrou cambaleando.

Craig ficou surpreso. Pensava que ela ainda estivesse nas mãos da medonha Daisy. Ele viu quando Daisy a arrastou para fora da gara­gem. Queria desesperadamente salvá-la, mas não acreditava que poderia vencer Daisy em uma luta, mesmo que ela estivesse desarmada. Com esforço conseguiu ficar calmo vendo Daisy arrastar Sophie pelos cabelos. Repetia para si mesmo que a melhor coisa a fazer por Sophie era continuar livre e avisar a polícia.

Agora ela parecia ter escapado sem nenhuma ajuda. Sophie solu­çava, em pânico, e Craig imaginou que Daisy devia estar atrás dela.

A porta do carona estava tão perto da parede que não podia ser aberta. Craig abriu a porta do motorista e disse: — Entre depressa, passe por cima de mim.

Sophie cambaleou para o carro e entrou.

Craig bateu a porta.

Ele não sabia como trancar as portas e estava com pressa demais para descobrir. Daisy não devia estar a mais de poucos segundos da garagem, ele pensou, enquanto Sophie passava por cima dele. Não tinha tempo para telefonar, tinham de sair dali. Enquanto Sophie desmoronava no banco, ele procurou debaixo do painel e encontrou o controle remoto que abria a porta da garagem. Apertou o botão e ouviu atrás dele o rangido de metal não lubrificado quando o meca­nismo funcionou. Olhou pelo retrovisor e viu a porta começar a subir lentamente.

Então Daisy entrou.

Seu rosto estava corado por causa do esforço e os olhos arregala­dos de raiva. Havia neve nas dobras da roupa de couro negro. Ela hesitou na porta, forçando a vista na pouca luz da garagem. Então seus olhos se fixaram em Craig sentado no carro, atrás da direção.

Ele pisou na embreagem e engatou marcha-a-ré. Nunca era fácil com a caixa de câmbio de seis velocidades da Ferrari. O câmbio resistiu e a engrenagem raspou, então alguma coisa foi para o lugar.

Daisy passou correndo pela frente do carro e chegou no lado do motorista. Sua mão enluvada agarrou a maçaneta.

A porta da garagem não estava ainda aberta de todo, mas Craig não podia esperar. Quando Daisy abriu a porta, ele soltou a embreagem e pisou no acelerador.

O carro saltou para trás como que atirado por uma catapulta. A capota bateu na parte inferior da porta de alumínio da garagem com um ruído de metal contra metal. Sophie gritou de medo.

O carro voou para fora da garagem como uma rolha de champa­nhe. Craig pisou no freio. O removedor de neve tinha limpado a camada espessa de neve na frente da garagem, porém mais neve havia caído depois e o quadrado de cimento estava escorregadio. A Ferrari deslizou para trás e parou quando bateu em uma pilha de neve.

Daisy saiu da garagem. Craig a via claramente à luz da manhã cinzenta. Ela hesitou.

De repente uma voz feminina disse ao telefone: — Você tem uma nova mensagem.

Craig engatou o que esperava que fosse a primeira. Soltou a embreagem e, para seu alívio, os pneus firmaram e o carro foi para a frente. Ele virou a direção para a saída. Se ao menos conseguisse chegar à entrada de veículos, poderia sair dali com Sophie e procurar ajuda.

Daisy devia ter pensado a mesma coisa, pois tirou a arma do bol­so do casaco.

— Abaixe-se! — Craig gritou para Sophie. — Ela vai atirar!

Quando Daisy ergueu a arma, ele pisou no acelerador e virou a direção, desesperado para fugir.

O carro derrapou, no cimento coberto de gelo. Além do medo e do pânico, Craig teve uma impressão de déjà-vu. Tinha derrapado com este mesmo carro, neste mesmo lugar, na véspera, uma vida atrás. Agora tentou controlar a Ferrari, mas o chão estava muito mais escorregadio depois de uma noite de neve constante e temperaturas abaixo de zero.

Virou a direção para dentro da derrapada e por um momento os pneus se firmaram outra vez, mas ele exagerou, o carro derrapou na outra direção e girou, fazendo um semicírculo. Sophie foi atirada de um lado para outro no banco do carona. Craig continuou esperando a explosão de um tiro mas não houve nenhuma. A única coisa boa, uma parte da mente apavorada de Craig dizia, era o fato de Daisy não poder fazer pontaria em um carro dirigido tão loucamente.

Por sorte, o carro parou no meio do caminho da entrada, de cos­tas para a casa. O caminho na frente de Craig tinha sido limpo pelo removedor de neve. Ele tinha uma estrada aberta para a liberdade.

Pisou no acelerador, mas nada aconteceu. O motor estava morto.

Com o canto dos olhos ele viu Daisy erguer a arma e apontar cuidadosamente.

Craig girou a chave e o carro saltou para a frente. Tinha esquecido de mudar a marcha. O carro salvou sua vida pois, no mesmo instante, ouviu a inconfundível explosão de uma arma, como fogos de artifício, só levemente abafada pela neve macia que cobria tudo. Então o vidro lateral do carro estilhaçou. Sophie gritou.

Craig pôs o câmbio em ponto morto e girou a chave. O ronco surdo encheu seus ouvidos. Ele viu Daisy fazer pontaria outra vez quando pisou na embreagem e engatou a primeira. Por sorte Craig se abaixou automaticamente, quando o carro se moveu, pois dessa vez o vidro quebrado foi o da sua janela.

A bala atravessou também o pára-brisa fazendo um pequeno buraco redondo e rachando completamente o vidro. Agora ele não enxergava nada na frente, apenas formas embaçadas de escuridão e luz. Mesmo assim manteve o pé no acelerador, fazendo o possível para não sair do caminho que levava à estrada principal, sabendo que estaria morto se não fugisse de Daisy e sua arma. Ao seu lado, Sophie estava enrolada como uma bola, com as mãos sobre a cabeça.

Com sua visão periférica, ele viu Daisy correndo atrás do carro. Outro tiro explodiu. O telefone do carro disse: “Stanley, é Toni. Más notícias — um roubo no laboratório. Por favor, ligue para meu celular assim que puder.”

Craig imaginou que aquela gente armada devia estar ligada ao roubo, mas não tinha tempo para pensar nisso agora. Tentava dirigir guiando-se pelo que via através do vidro lateral estilhaçado, mas pouco adiantava. Depois de alguns segundos, o carro saiu do caminho limpo e ele sentiu a resistência quando o motor perdeu veloci­dade. Uma árvore apareceu na frente do vidro rachado e Craig pisou no freio, mas tarde demais e o carro chocou-se contra a árvore com uma terrível pancada.

Craig foi atirado para a frente. Sua cabeça bateu no pára-brisa, soltando cacos de vidro, cortando a pele da sua testa. O volante machucou seu peito. Sophie foi atirada contra o painel e caiu sentada no chão com os pés no banco, mas com um palavrão ela tentou se levantar e Craig viu que estava bem.

O motor morreu outra vez.

Craig olhou pelo retrovisor. Daisy estava dez metros atrás deles, andando na neve na direção do carro, com a arma na mão enluvada. Instintivamente ele sabia que ela estava se aproximando para atirar com maior precisão. Ela ia matar os dois, ele e Sophie.

Restava apenas uma chance para Craig. Tinha de matá-la.

Ligou o motor outra vez. Daisy, a cinco metros agora diretamente atrás do carro, levantou a arma. Craig engatou marcha-a-ré e fechou os olhos.

Ouviu o impacto quando pisou no acelerador. O vidro traseiro esfacelou. O carro saltou para trás, direto em cima de Daisy. Um baque surdo, como se alguém tivesse deixado cair um saco de batatas no capô.

Craig tirou o pé do acelerador, o carro andou mais um pouco e parou. Onde estava Daisy? Ele empurrou o vidro rachado do pára-brisa e a viu. Atirada para o lado pelo impacto, estava deitada no chão com uma perna dobrada em um ângulo estranho. Craig olhou horrorizado para o que tinha feito. Então ela se mexeu.

— Oh, não! — ele exclamou. — Por que você não morre?

Ela estendeu o braço e pegou a arma caída na neve.

Craig engatou a primeira.

O telefone disse: “Para apagar esta mensagem digite três.”

Daisy olhou nos olhos dele e atirou.

Craig soltou a embreagem e pisou no acelerador.

O tiro reverberou acima do barulho do motor da Ferrari, mas passou longe. Ele manteve o pé no acelerador. Daisy tentou se arrastar para fora do caminho e Craig deliberadamente virou o carro na direção dela. Um instante antes do impacto ele viu o terror no rosto dela, a boca aberta num grito inaudível. Então o carro a atingiu com um baque surdo. Daisy desapareceu debaixo da frente curva. O chassis rebaixado raspou alguma coisa volumosa. Craig viu que esta­va indo direto para a árvore em que batera antes. Freou, porém tar­de demais. Outra vez o carro bateu na árvore.

O telefone da Ferrari, que explicava como salvar mensagens, parou de falar de repente. Ele tentou ligar o motor, mas nada aconteceu. Não se ouviu sequer o estalido de ignição quebrada. Craig viu que nenhum dos ponteiros estava funcionando e não havia luz no painel. O sistema elétrico tinha pifado. Não era de admirar, depois de tantas batidas.

Mas isso significava que ele não podia usar o telefone.

E onde estava Daisy?

Craig saiu do carro.

No caminho, atrás dele, viu uma pilha de couro negro rasgado, carne branca e sangue vermelho e brilhante.

Ela estava imóvel.

Sophie saiu do carro e ficou ao lado dele.

— Meu Deus! Isso é ela?

Craig estava nauseado. Não podia falar, por isso apenas inclinou a cabeça, assentindo.

Sophie murmurou: — Você acha que ela está morta?

Outra vez ele fez que sim com a cabeça e então a náusea cresceu. Craig virou para o lado e vomitou na neve.

 

Kit teve a sensação terrível de que tudo estava se descontrolando.

Devia ter sido uma coisa simples para três criminosos experien­tes como Nigel, Elton e Daisy reunir os membros espalhados de uma família de cidadãos cumpridores da lei. Mas as coisas começa­vam a dar errado. O pequeno Tom desfechara um ataque suicida contra Daisy, Ned surpreendera todo mundo protegendo Tom da vingança de Daisy e Sophie tinha escapado na confusão. E Toni Gallo estava desaparecida.

Elton levou Ned e Tom para a cozinha com a arma apontada para eles. Ned sangrava em vários lugares do rosto e Tom, machucado, chorava, mas os dois andavam com passo firme, Ned segurando a mão do menino.

Kit fez uma estimativa de quem ainda estava livre. Sophie tinha fugido e Craig não devia estar longe dela. Caroline provavelmente dormia ainda no celeiro. Então havia Toni Gallo. Quatro pessoas, três delas crianças. Certamente não demorariam a ser capturadas? Mas o tempo ficava cada vez mais curto. Kit e os outros três tinham menos de duas horas para chegar ao aeroporto com o vírus. O clien­te não ia esperar muito, ele imaginou. Se desconfiasse de que havia alguma coisa errada, ele iria embora, temendo uma armadilha.

Elton jogou o telefone de Miranda na mesa da cozinha.

— Encontrei em uma bolsa, no chalé — ele disse. — O cara parece que não tem nenhum. — O telefone caiu ao lado do vidro de perfu­me. Kit queria que chegasse logo o momento de entregar o vidro, para nunca mais vê-lo e receber seu dinheiro.

Esperava que as estradas principais estivessem limpas de neve no fim do dia. Planejava ir de carro para Londres, ficar em um peque­no hotel, pagando em dinheiro. Ficaria escondido por umas duas semanas, depois tomaria o trem para Paris com cinqüenta mil libras no bolso. De Paris seguiria descansadamente pela Europa trocando o dinheiro aos poucos, à medida que fosse precisando, até chegar a Lucca.

Porém, antes tinham de reunir todos em Steepfall para retardar a perseguição.

Elton fez Ned se deitar no chão e o amarrou. Ned estava quieto mas alerta. Nigel amarrou Tom, que ainda choramingava. Quando Elton abriu a porta da despensa para pôr os dois lá dentro, Kit viu, sur­preso, que os prisioneiros tinham conseguido se livrar das mordaças.

Olga foi a primeira a falar: — Por favor, tirem Hugo daqui. Ele está gravemente ferido e com muito frio. Tenho medo de que mor­ra. Apenas deixem que ele fique deitado no chão da cozinha, que é mais quente.

Kit balançou a cabeça, atônito. A lealdade de Olga ao marido infiel era incompreensível.

Nigel disse: — Ele não devia ter batido no meu rosto.

Elton empurrou Ned e Tom para dentro da despensa.

Olga disse: — Por favor, estou implorando!

Elton fechou a porta.

Kit esqueceu Hugo.

— Temos de encontrar Toni Gallo, ela é perigosa.

— Onde você acha que ela pode estar? — Nigel perguntou.

— Bem, não está na casa, nem no chalé que Elton acaba de revis­tar e nem na garagem, porque Daisy esteve lá. Portanto, está lá fora, onde não durará muito tempo sem casaco, ou no celeiro.

— Muito bem — Elton disse. — Eu vou ao celeiro.

 

Toni olhava pela janela do celeiro.

Tinha identificado três dos quatro assaltantes do Kremlin. Um deles era Kit, claro. Ele devia ter planejado tudo, dizendo a eles como burlar o sistema de segurança. Então havia a mulher que Kit chamara de Daisy... um nome de flor, irônico para alguém que certamente assustaria um vampiro. Alguns minutos atrás, no prelúdio da luta no pátio, Daisy chamara o negro de Elton, que podia ser nome próprio ou sobrenome. Toni não tinha visto ainda o quarto membro do grupo, mas sabia que se chamava Nigel, porque Kit o tinha chamado em voz alta no hall.

Toni sentia medo e expectativa ao mesmo tempo. Medo porque eles evidentemente eram criminosos profissionais que a matariam se fosse preciso e porque tinham o vírus. Expectativa porque ela era decidida também e tinha chance de se redimir, se os pegasse.

Mas como? O melhor plano seria conseguir ajuda, mas não tinha telefone nem carro. Os telefones da casa estavam mudos, provavelmente com os fios cortados pelos criminosos. Sem dúvida eles também tinham recolhido todos os celulares que encontraram. E os carros? Toni tinha visto dois estacionados na frente da casa e devia haver pelo menos mais um na garagem, mas não tinha idéia de onde podiam estar as chaves.

Isso significava que teria de pegar os ladrões sem esse recurso.

Pensou na cena que tinha visto no pátio. Daisy e Elton estavam reunindo a família. Mas Sophie tinha escapado e Daisy fora atrás dela. Toni tinha ouvido ruídos distantes vindos de trás da garagem, o motor de um carro, barulho de vidro quebrado e tiros, mas não podia ver o que estava acontecendo e hesitava em se expor saindo para investigar. Se fosse capturada, não haveria mais nenhuma esperança.

Imaginou se alguém mais estava em liberdade. Os ladrões deviam estar com pressa de partir, pois o encontro era às dez horas, mas iam querer saber onde estavam todos antes, para que ninguém pudesse chamar a polícia. Talvez começassem a entrar em pânico e cometessem erros.

Toni esperava ardentemente que isso acontecesse. As probabilidades contra ela eram assustadoras. Não podia enfrentar quatro de uma vez. Três estavam armados com pistolas Browning automáticas, segundo Steve. Sua única chance seria enfrentar um de cada vez.

Por onde começaria? Em determinado momento teria de entrar na casa. Pelo menos conhecia a disposição dos cômodos. Stanley tinha mostrado na véspera. Mas não sabia onde estavam todos e relutava em se arriscar no escuro. Estava desesperada por mais infor­mação.

Enquanto tentava descobrir um meio, sua iniciativa foi anulada. Elton saiu da casa e atravessou o pátio na direção do celeiro.

Ele era mais novo do que Toni, devia ter uns vinte e cinco anos. Era alto e parecia em boa forma. Tinha uma pistola na mão direita, apontada para o solo. Embora treinada em combate, Toni sabia que ele seria um adversário formidável, mesmo sem a arma. Se possível, ela devia evitar um embate físico com ele.

Apavorada, Toni não sabia onde se esconder. Olhou em volta. Não viu nenhum esconderijo possível. Além disso, não adiantava. Tinha de enfrentar os criminosos, ela pensou sombriamente, e quanto antes melhor. Esse estava vindo para ela sozinho, aparentemente certo de que não precisaria de ajuda para capturar uma mulher. Talvez esse viesse a ser seu erro mais crucial.

Infelizmente, Toni não tinha armas. Tinha poucos segundos para encontrar uma. Olhou apressadamente para tudo que havia ali. Pensou em um taco de bilhar, mas era leve demais. Um golpe de taco ia doer como o diabo mas não deixaria um homem inconsciente, nem mesmo o derrubaria.

Bolas de bilhar eram muito mais perigosas, pesadas, sólidas e duras. Toni pôs duas nos bolsos da calça jeans.

Desejou ter uma arma de verdade.

Olhou para cima, para o antigo palheiro. Altura era sempre uma vantagem. Toni subiu a escada. Caroline dormia profundamente. No chão, entre as duas camas estava uma mala aberta. Em cima da roupa ela viu uma sacola de compras de plástico. Ao lado da mala, uma gaiola com ratos brancos.

A porta do celeiro se abriu e Toni se deitou no chão. Ouviu o som de quem procura alguma coisa e viu as luzes se acenderem. Deitada como estava, Toni não podia ver lá embaixo, portanto não sabia exatamente onde Elton estava, mas ele também não podia vê-la e Toni tinha a vantagem de saber que ele estava ali.

Ela se esforçou para ouvir os passos dele mais alto que as batidas do seu coração. Ouviu um ruído estranho que, depois de alguns segundos, entendeu que Elton estava virando as camas para o caso de alguma criança estar escondida embaixo. Então ele abriu a porta do banheiro. Não havia ninguém. Toni já tinha verificado.

Só faltava agora procurar no palheiro. Ele ia subir a escada a qualquer momento. O que ela podia fazer?

Toni ouviu os guinchos desagradáveis dos ratos e teve uma idéia. Sempre deitada no chão, pegou a bolsa de compras da mala aberta e retirou o conteúdo, um embrulho para presente, com um cartão que dizia: “Para o papai, Feliz Natal de Sophie com amor.” Pôs o embru­lho na mala. Então abriu a gaiola dos ratos. Havia cinco.

Sentiu uma ameaçadora vibração no chão indicando que Elton começava a subir a escada.

Era agora ou nunca. Toni estendeu os dois braços para a frente e despejou os ratos no alto da escada.

Ouviu o rugido de choque e nojo de Elton quando cinco ratos vivos caíram em cima dele.

O berro acordou Caroline, que gritou e sentou na cama.

Então ouviram uma pancada quando Elton perdeu o equilíbrio e caiu da escada.

Toni se levantou rapidamente e olhou para baixo. Elton estava caído de costas. Não parecia gravemente ferido, mas gritava em pânico, tentando freneticamente tirar os ratos da roupa. Os animaizinhos, tão assustados quanto ele, tentavam desesperadamente se agarrar a alguma coisa.

Toni não viu a arma de Elton.

Hesitou apenas uma fração de segundo e saltou do palheiro.

Caiu com os dois pés no peito de Elton que soltou um rosnado de agonia quando todo o ar foi retirado dos seus pulmões. Toni aterrissou como uma ginasta, rolando para a frente, mas, mesmo assim, suas pernas doeram com o impacto.

Ouviu um grito vindo lá de cima.

— Meus bebês!

Toni ergueu os olhos e viu Caroline no topo da escada, com pijama cor de alfazema estampado com ursinhos amarelos. Toni estava certa de ter esmagado um ou dois dos bichinhos de estimação de Caroline quando caiu em cima de Elton, mas os ratos correram para todos os lados, aparentemente ilesos.

Desesperada para manter a vantagem, Toni se levantou, ignorando a pontada dolorosa em um tornozelo.

Onde estava a arma? Elton devia ter deixado cair.

Elton estava machucado, mas talvez não imobilizado. Toni pôs a mão no bolso para pegar a bola de bilhar, mas quanto tentou puxá-la para fora, a bola escorregou por entre seus dedos. Foi um momento de puro terror, uma sensação de que seu corpo não ia obedecer a seu cérebro e estava completamente indefesa. Então usou as duas mãos, uma para empurrar pelo lado de fora do bolso e a outra para pegar a bola.

Mas o atraso momentâneo permitiu que Elton se refizesse do choque dos ratos. Quando Toni ergueu a mão direita acima da cabeça, ele rolou para longe dela. Em lugar de bater com a bola pesada na cabeça dele, para deixá-lo inconsciente, Toni teve de mudar de idéia no último instante e atirou a bola de longe.

Não foi um arremesso muito forte e uma parte do seu cérebro ouviu seu ex-Frank dizer: Você não é capaz de arremessar uma bola nem que sua vida dependa disso. Agora sua vida dependia daquilo e Frank estava certo. O arremesso foi fraco demais. Ela acertou o alvo como provava o baque surdo quando a bola acertou a cabeça de Elton, fazendo-o rugir de dor. Mas ele não perdeu a consciência. Em vez disso, ficou de joelhos, com uma das mãos na cabeça machucada, e depois ergueu-se.

Toni pegou a segunda bola.

Elton olhou para o chão à sua volta, atordoado procurando a arma.

Caroline pulou do meio da escada para o chão. Abaixou e pegou um dos ratos escondido atrás de uma das pernas da mesa de bilhar. Virando para pegar outro, ela esbarrou em Elton. Ele pensou que fosse sua adversária e deu um soco na menina. Foi um golpe violen­to, no lado da cabeça, e ela caiu no chão. Mas machucou Elton tam­bém, pois Toni o viu fazer uma careta de dor e apertar o peito com os braços e imaginou que devia ter quebrado algumas costelas quan­do aterrissou em cima dele.

Alguma coisa tinha chamado a atenção de Toni quando Caroline estendeu a mão para pegar o rato debaixo da mesa de bilhar. Ela olhou outra vez e viu a arma sobre a madeira escura do assoalho.

Elton viu ao mesmo tempo. Ele se ajoelhou rapidamente.

Quando Elton estendeu a mão para debaixo da mesa, Toni ergueu o braço e bateu com a bola, com toda a força, na nuca dele. Elton desmoronou, inconsciente.

Toni se ajoelhou, física e emocionalmente esgotada. Fechou os olhos por um momento, mas tinha muito o que fazer para descansar agora. Pegou a arma. Steve estava certo, era uma Brownie automática do tipo usado pelo exército inglês em operações secretas. O pino de segurança ficava no lado esquerdo, atrás da coronha. Ela travou a arma e guardou-a no bolso da calça jeans.

Desligou a televisão, arrancou o fio da parte de trás do aparelho e amarrou as mãos de Elton nas costas.

Então ela o revistou, procurando um telefone, mas para seu grande desapontamento não encontrou nenhum.

 

Só depois de um longo tempo, Craig reuniu coragem e olhou outra vez para Daisy imóvel no chão.

Na primeira vez, o corpo estraçalhado, mesmo visto à distância, o fizera vomitar. Quando não tinha mais nada no estômago, tentou limpar a boca com um punhado de neve. Então Sophie se aproxi­mou e passou a mão pela cintura dele. Craig a abraçou com força, sempre de costas para Daisy. Ficaram assim até a náusea passar e ele virou para ver o que tinha feito.

Sophie disse: — O que vamos fazer agora?

Craig engoliu em seco. Ainda não tinha acabado. Daisy era ape­nas uma do bando de criminosos. E, então, havia o tio Kit.

— Acho melhor pegarmos a arma dela.

A expressão de Sophie dizia que detestava a idéia. Ela perguntou: — Você sabe usar?

— Não pode ser muito difícil.

Parecendo infeliz, ela disse apenas: — Se você acha.

Craig hesitou por mais um momento e então segurou a mão dela e os dois andaram na direção do corpo.

Daisy estava de bruços, com os braços debaixo do corpo. Embora ela tivesse tentado matar Craig, ele ainda achava horrível olhar para um ser humano tão desfigurado. As pernas eram o pior. A calça de couro estava em pedaços. Uma perna estava quebrada e a outra esmagada e cheia de sangue. O casaco de couro parecia ter protegido os braços e o corpo, mas a cabeça raspada estava coberta de sangue. O rosto estava escondido, enterrado na neve.

Eles pararam a dois metros dela.

— Não vejo a arma — Craig disse. — Deve estar debaixo dela.

Chegaram mais perto. Sophie disse: — Eu nunca tinha visto alguém morto.

— Eu vi Mamma Marta na funerária.

— Quero ver o rosto dela. — Soltando a mão de Craig, Sophie dobrou um joelho e estendeu a mão para o corpo ensangüentado.

Rápida como uma serpente, Daisy levantou a cabeça, agarrou o pulso de Sophie e tirou a mão direita de baixo do corpo com a arma.

Sophie gritou aterrorizada.

Craig sentiu como se tivesse sido atingido por um relâmpago. Gritou: “Cristo!” e saltou para trás.

Daisy encostou o cano da pequena pistola cinzenta na pele macia do pescoço de Sophie.

— Fique parada, menina! — ela gritou.

Craig ficou paralisado.

A cabeça de Daisy parecia coberta por um boné de sangue. Uma orelha quase completamente arrancada da cabeça pendia grotesca­mente presa por uma estreita tira de pele. Mas o rosto estava intacto e agora com uma expressão de puro ódio.

— Pelo que você fez comigo eu devia atirar na barriga dela e dei­xar você vê-la morrer de hemorragia, gritando de dor.

Craig estremeceu horrorizado.

— Mas preciso da sua ajuda — Daisy continuou. — Se quiser que eu salve a vida da sua namorada, trate de fazer imediatamente tudo que eu mandar. Hesite e ela morre.

Craig viu que ela falava sério.

— Venha aqui — ela disse.

Ele não tinha escolha. Chegou mais perto.

— Ajoelhe.

Craig se ajoelhou ao lado dela.

Daisy virou os olhos cheios de ódio para Sophie.

— Agora, sua vadiazinha, vou soltar seu braço, mas não tente se afastar ou eu mato você com muito prazer. — Tirou a mão esquerda do braço de Sophie, mas a arma continuou encostada no pescoço dela. Então passou o braço esquerdo pelo ombro de Craig. — Segure meu pulso, garoto — ela disse.

Craig segurou o pulso de Daisy pendurado sobre seu ombro.

— Você, garota, fique debaixo do meu braço direito.

Sophie mudou de posição devagar e Daisy pôs o braço direito sobre o ombro dela, o tempo todo com a arma apontada.

— Agora vocês vão me levantar e me carregar para a casa. Se me sacudirem pode doer e como reação posso acidentalmente puxar o gatilho. Portanto, vão com calma... e me levantem.

Craig segurou o pulso de Daisy com mais força e se levantou. Para diminuir o peso do lado de Sophie, ele pôs o braço direito em volta da cintura de Daisy, fazendo com que a maior parte do peso ficasse do seu lado. Os três lentamente ficaram de pé.

Daisy gemia de dor, pálida como a neve que os rodeava, mas, quando Craig olhou para o lado, viu que ela o observava atentamente.

Quando estavam de pé, Daisy disse: — Para a frente, devagar.

Começaram a se mover, Daisy arrastando as pernas.

— Aposto que vocês dois passaram a noite toda escondidos em algum lugar — ela disse. — O que estavam fazendo?

Craig não disse nada. Não podia acreditar que ela tivesse fôlego e maldade suficientes para provocá-los.

— Diga, garoto — ela zombou. — Você pôs o dedo na xoxotinha dela, hum? Seu miserável imundo, aposto que pôs.

Craig se sentiu sujo ouvindo aquilo. Daisy era capaz de sujar uma experiência que tinha sido espontânea. Ele a odiou por estragar a lembrança. Sua vontade era jogar Daisy no chão, mas tinha certe­za de que ela puxaria o gatilho.

— Esperem — ela disse. — Parem. — Eles pararam e ela apoiou par­te do peso do corpo na perna esquerda.

Craig olhou para o rosto horrível. Os olhos com o delineador negro estavam fechados num ríctus de dor.

Ela disse: — Vamos descansar um minuto, depois continuamos.

 

Toni saiu do celeiro. Agora podia ser vista. Por seus cálculos, dois deles estavam na casa — Nigel e Kit — e um deles podia olhar pela janela a qualquer momento. Mas tinha de arriscar. Atenta ao baru­lho do tiro que a mataria, Toni andou para o chalé o mais depressa possível, na neve. Chegou sem incidente e virou no canto, desaparecendo de vista.

Tinha deixado Caroline chorando, procurando os ratos. Elton estava amarrado debaixo da mesa de bilhar, com os olhos vendados e amordaçado, para garantir que quando voltasse a si não tentasse convencer a tola da Caroline a desamarrá-lo.

Toni deu a volta no chalé e se aproximou pelo lado da casa. A porta dos fundos estava aberta, mas ela não entrou. Precisava fazer um reconhecimento primeiro. Esgueirou-se pelos fundos da casa e espiou pela primeira janela.

Estava olhando para a despensa. Viu seis pessoas amontoadas lá dentro, com pés e mãos amarrados, mas de pé: Olga, Hugo, que parecia nu, Miranda, seu filho Tom, Ned e Stanley. Uma onda de felicidade a envolveu quando viu Stanley. Só então se deu conta de que, no fundo, temia que ele estivesse morto. Toni prendeu a respiração quando viu o rosto e o corpo feridos. Então ele a viu e arrega­lou os olhos, com surpresa e prazer. Stanley não parecia gravemente ferido, Toni viu com alívio. Ele abriu a boca para falar. Toni rapida­mente levou um dedo aos lábios, recomendando silêncio. Stanley fechou a boca e assentiu com a cabeça.

Toni foi para a janela dos fundos e olhou para a cozinha. Dois homens estavam sentados de costas para a janela. Um era Kit. Toni sentiu pena de Stanley, com um filho capaz de fazer uma coisa dessas com a família. O outro homem vestia um suéter rosa. Devia ser o que Kit chamara de Nigel. Assistiam ao noticiário em uma peque­na televisão. A tela mostrava um removedor de neve limpando uma rodovia à luz do amanhecer.

Toni mordeu o lábio, pensando. Tinha uma arma agora, mas mesmo assim seria difícil controlar os dois. Porém, não tinha escolha.

Enquanto ela hesitava, Kit se levantou e Toni se abaixou rapida­mente, para não ser vista.


8:45h

 

Nigel disse: — É isso aí. Estão limpando as estradas. Temos de ir agora.

— Estou preocupado com Toni Gallo — Kit disse.

— É uma pena. Se esperarmos mais, não chegaremos na hora marcada.

Kit consultou o relógio. Nigel tinha razão.

— Merda — ele disse.

— Levaremos o Mercedes para fora. Vá procurar as chaves.

Kit saiu da cozinha e subiu correndo a escada. No quarto de Olga, abriu as gavetas das duas mesas-de-cabeceira mas não encontrou as chaves. Pegou a mala de Hugo e esvaziou no chão, mas nada tilintou. Com a respiração entrecortada, fez o mesmo com a mala de Olga. Então viu o blazer de Hugo no espaldar de uma cadeira. Encontrou as chaves do Mercedes no bolso.

Desceu correndo para a cozinha. Nigel olhava pela janela.

— Por que Elton está demorando tanto? — Kit disse. Ouviu a nota de histeria na própria voz.

— Não sei — Nigel disse. — Procure ficar calmo.

— E que diabo aconteceu com Daisy?

— Vá ligar o motor do carro — Nigel disse. — Tire a neve do pára-brisa.

— Certo.

Quando Kit se virou para sair, viu de soslaio o vidro de perfume dentro dos dois invólucros de plástico em cima da mesa da cozinha. Num impulso, ele o apanhou e pôs no bolso do casaco.

Então saiu.

 

Toni espiou pelo canto da casa e viu Kit sair pela porta dos fundos. Ele foi na direção oposta, para a frente do prédio. Ela foi atrás e o viu abrir o Mercedes verde.

Lá estava sua chance.

Ela tirou a pistola de Elton do bolso e destravou. A arma tinha um pente de balas cheio, Toni já havia verificado. Ela segurou apon­tada para cima, como tinha sido treinada.

Respirou lenta e calmamente. Sabia como fazer aquilo. Seu coração batia como um tambor, mas suas mãos estavam firmes. Ela entrou correndo na casa.

A porta dos fundos dava num pequeno corredor. Uma segunda porta levava à cozinha. Toni a abriu e entrou. Nigel estava na janela, olhando para fora.

— Parado! — ela gritou.

Ele virou para trás rapidamente.

Toni apontou a arma para ele.

— Mãos para cima!

Ele hesitou.

A pistola de Nigel estava no bolso da calça. Toni via o volume do tamanho e com a forma de uma automática igual à que ela empunhava.

— Nem pense em tirar sua arma — ela disse.

Lentamente, ele levantou as mãos.

— No chão! Rosto para baixo! Agora!

Ele ajoelhou, com as mãos ainda levantadas. Então deitou, com os braços abertos.

Toni precisava tirar a arma dele. Transferiu a pistola para a mão esquerda e encostou o cano na nuca dele.

— A arma está destravada e eu estou nervosa — ela disse. Dobrou um joelho e pôs a mão no bolso da calça dele.

Nigel se moveu com grande rapidez.

Rolou para o lado e lançou o braço contra ela. Por uma fração de segundo, Toni hesitou em puxar o gatilho e então era tarde demais. Ele a fez perder o equilíbrio e Toni caiu para o lado. Para diminuir o impacto da queda, ela apoiou a mão esquerda aberta no chão e deixou cair a arma.

Nigel a chutou violentamente no quadril. Toni recuperou o equilíbrio e ficou de pé antes dele. Quando Nigel ajoelhou, ela o chutou no rosto. Ele caiu para trás levando a mão ao rosto, mas se refez rapidamente. Olhou para ela furioso e cheio de ódio, como se ofendido por Toni ousar revidar seu ataque.

Ela pegou a arma e apontou para ele. Nigel ficou imóvel.

— Vamos tentar outra vez — ela disse. — Desta vez você tira a arma do bolso. Bem devagar.

Ele levou a mão ao bolso.

Toni estendeu o braço para a frente.

— E, por favor, dê-me um pretexto para estourar sua mão.

Ele tirou a arma.

— Jogue no chão.

Nigel sorriu.

— Você realmente já atirou em um homem?

— Jogue... agora.

— Acho que nunca atirou.

Ele estava certo. Toni fora treinada para usar armas e nas opera­ções ia armada, mas nunca tinha atirado em nada que não fosse um alvo de madeira. A idéia de fazer um buraco em outro ser humano era revoltante para ela.

— Você não vai atirar em mim — ele disse,

— Você está a um segundo de descobrir.

Sua mãe entrou na cozinha com o cachorrinho no colo.

— Este pobre cachorro não tomou o café da manhã — ela disse.

Nigel ergueu a arma.

Toni atirou no ombro direito dele.

Ela estava apenas a dois metros e era boa atiradora, por isso não foi difícil acertar no lugar exato. Ela puxou o gatilho duas vezes, como a tinham ensinado. Os dois tiros ecoaram ensurdecedores na cozinha. Dois orifícios redondos apareceram no suéter rosa, um ao lado do outro, onde o braço se unia ao ombro. A arma caiu da mão de Nigel. Com um grito de dor ele cambaleou para trás e bateu na geladeira.

Toni estava chocada. Não acreditava realmente que podia fazer aquilo. Foi um ato repulsivo. Ela era um monstro. Ficou chocada.

Nigel gritou: — Sua vagabunda!

Como uma mágica, as palavras a fizeram recuperar a calma.

— Agradeça por eu não ter atirado na barriga — ela disse. — Agora, deite no chão.

Ele se atirou no chão com o rosto para baixo, ainda com a mão no ferimento.

A mãe de Toni disse: — Vou pôr a chaleira no fogo.

Toni apanhou a arma de Nigel e a travou. Pôs as duas armas no bolso da calça e abriu a porta da despensa.

Stanley perguntou: — O que aconteceu? Alguém levou um tiro?

— Nigel — ela disse calmamente. Tirou uma tesoura de cozinha do suporte de facas e cortou os pedaços de varal que prendiam o pés e as mãos de Stanley. Quando ficou livre, ele a abraçou com força.

— Obrigado — ele murmurou no ouvido dela.

Toni fechou os olhos. O pesadelo das duas últimas horas não tinha mudado os sentimentos dele. Ela retribuiu o abraço por um precioso segundo, desejando que durasse para sempre, e então ele a soltou. Toni deu a tesoura para ele e disse: — Você solta o resto. — Tirou uma das pistolas do bolso. — Kit não está longe. Deve ter ouvido os tiros. Ele tem uma arma?

— Não creio — Stanley disse.

Toni ficou aliviada. Isso facilitava as coisas.

Olga disse: — Por favor, nos tire deste lugar gelado.

Stanley se virou para cortar as cordas que a prendiam.

A voz de Kit ecoou na cozinha: — Parados!

Toni virou-se rapidamente e ergueu a arma. Kit estava na porta. Não tinha arma mas segurava na mão erguida um simples vidro de perfume. Toni reconheceu o vidro que tinha visto no vídeo da segu­rança, quando Nigel o enchia com o Madoba-2.

Kit disse: — Isto contém o vírus. Um pequeno borrifo e todos estão mortos.

Todos ficaram imóveis.

 

Kit olhou furioso para Toni. Ela apontava a arma para ele e ele apontava o spray para ela. Ele disse: — Se atirar em mim, deixo cair o vidro e ele se quebra nos ladrilhos.

— Se você borrifar isso em nós, vai se matar também.

— Pois então eu morro — ele disse. — Não me importo. Investi tudo nisto. Eu planejei, eu traí minha família e me tornei parte de uma conspiração para assassinar centenas de pessoas, talvez milhares. Depois de tudo isso, como posso fracassar? Prefiro morrer. — Enquanto falava, Kit se deu conta de que era verdade. Até o dinhei­ro diminuía de importância. Tudo que ele queria realmente era vencer.

Stanley disse: — Como você chegou a isso, Kit?

Kit olhou nos olhos do pai. Viu a raiva, como esperava, mas também a dor. Stanley estava como no dia da morte de Mamma Marta. Era uma pena, Kit pensou zangado, a culpa era toda dele.

— Agora é tarde demais para se desculpar — Kit disse.

— Eu não ia me desculpar — Stanley disse, tristemente.

Kit olhou para Nigel, sentado no chão, com a mão esquerda segu­rando o ombro direito. Isso explicava os dois tiros que tinham feito com que ele se armasse com o spray, antes de voltar para a cozinha.

Nigel se levantou.

— Ah, droga, isto dói — ele disse.

Kit disse: — Devolva as armas, Toni. Rápido ou eu aperto o spray.

Toni hesitou.

Stanley disse: — Acho que Kit fala sério.

— Na mesa — Kit disse.

Ela pôs as armas sobre a mesa da cozinha, ao lado da pasta que antes continha o vidro de perfume.

Kit disse: — Nigel, pegue as armas.

Com a mão esquerda Nigel pegou uma pistola e a pôs no bolso. Apanhou a segunda, sopesou e então, com repentina velocidade, bateu com ela no rosto de Toni. Ela gritou e recuou.

Kit ficou furioso.

— O que pensa que está fazendo? — ele exclamou. — Não temos tempo para isso. Precisamos ir embora.

— Não me dê ordens — Nigel disse, agressivo. — Esta vaca atirou em mim.

Kit olhou para Toni e viu que ela estava certa de que ia morrer. Mas não tinham tempo para vinganças.

— Essa vaca arruinou minha vida — Kit disse —, mas não vou per­der tempo me vingando dela. Pare com isso!

Nigel hesitou, olhando ferozmente para Toni.

Kit disse: — Vamos embora!

Finalmente Nigel se afastou de Toni.

— E Elton e Daisy?

— Para o inferno com eles.

— Devíamos amarrar seu velho e esta vagabunda.

— Seu cretino idiota, não entende que não temos tempo? Com um olhar furioso para Kit, Nigel disse: — Do que você me chamou?

Kit viu que ele queria matar alguém e naquele instante ele era a vítima escolhida. Foi um momento terrível. Kit ergueu o vidro de perfume no ar e olhou para Nigel, esperando pelo fim de sua vida.

Então Nigel desviou os olhos e disse: — Tudo bem, vamos sair daqui.

 

Kit correu para fora. O motor do Mercedes roncava e a neve no capô já começava a derreter com o calor. O pára-brisa e os vidros das janelas estavam parcialmente limpos, de onde ele tinha retirado a neve com as mãos. Saltou para dentro do carro e pôs o vidro de perfume no bolso do casaco. Nigel se sentou no lado do carona, rosnando de dor.

Kit engatou a marcha no câmbio automático e pisou de leve no acelerador. O carro pareceu tentar ir para a frente, mas não se moveu. O removedor de neve tinha parado a poucos metros dali e uma pilha de neve de um metro de altura se erguia na frente do pára-choque. Kit aumentou a pressão no pedal e o carro tentou remover a neve do caminho.

— Vamos — Kit disse. — Isto é um Mercedes, devia poder empur­rar alguns quilos de neve! Afinal, qual é a potência do seu motor? — Pisou com um pouco mais de força, mas não queria que as rodas perdessem a tração e começassem a derrapar. O carro se moveu alguns centímetros para a frente e a neve empilhada pareceu se que­brar e começar a se mover também. Kit olhou para trás. Seu pai e Toni, fora da casa, observavam. Não chegariam mais perto, Kit ima­ginou, porque sabiam que Nigel estava com as armas.

De repente o carro foi para a frente e a neve cedeu.

Com júbilo intenso, Kit acelerou no caminho que levava à estra­da principal. Steepfall tinha sido para ele como uma prisão de onde jamais escaparia, mas tinha escapado. Passou pela garagem... e viu Daisy.

Nigel disse: — Que diabo é isso?

Daisy andava para eles, apoiada por Craig de um lado e pela filha mal-humorada de Ned, Sophie, do outro. Daisy arrastava as pernas inúteis e sua cabeça era uma massa de sangue. Atrás deles estava a Ferrari de Stanley, as curvas sensuais amassadas e deforma­das, a pintura azul brilhante arranhada e lascada. Que diabo tinha acontecido ali?

— Pare e pegue Daisy! — Nigel disse.

Kit se lembrou de como Daisy o tinha humilhado e quase o afogara na piscina do pai dela, na véspera

— Ela que se foda — Kit disse. Ele estava na direção e não ia atra­sar a fuga por Daisy. Pisou no acelerador.

 

O longo capô verde do Mercedes pareceu se levantar, como a cabe­ça de um cavalo ansioso para correr, e saltou para a frente. Craig teve somente um segundo para agir. Agarrou o capuz do casaco de Sophie com a mão direita e o puxou para o lado da estrada, junto com ele. Como estavam sob os braços de Daisy, ela foi junto e os três caíram na neve macia, ao lado das marcas de pneus, Daisy gritando de dor e de raiva,

O carro passou velozmente, por pouco não os atropelando, e Craig viu o tio Kit na direção. Ficou atônito. Kit quase o tinha matado. Teria sido intencional ou Kit sabia que Craig teria tempo de sair da frente do carro?

— Seu miserável! — Daisy gritou para o carro e ergueu a pistola.

Kit acelerou, passou pela Ferrari batida e seguiu para a curva que levava ao topo do penhasco. Craig, paralisado, viu Daisy fazer pon­taria. Sua mão estava firme, apesar da dor. Ela atirou e Craig viu o vidro da janela traseira do Mercedes se espatifar.

Daisy acompanhou o movimento do carro com o braço e atirou repetidamente, as cápsulas vazias voando da arma. Uma linha de ori­fícios de bala apareceu no lado do carro, então ouviram uma explo­são diferente. Um pneu dianteiro estourou e uma tira de borracha voou no ar.

O carro continuou em linha reta por um segundo. Então deslizou para o lado e o capô mergulhou na neve empilhada ao lado da estrada, abrindo um grande leque branco. Craig ouviu o grito metá­lico de aço torturado.

O carro derrapou para o lado. Daisy continuou atirando e o pára-brisa rachou. O carro girou lentamente, inclinado para o lado, pareceu hesitar, então capotou. Deslizou alguns metros de cabeça para baixo e parou.

Daisy parou de atirar e caiu para trás, com os olhos fechados.

Craig olhou para Daisy. A arma caiu da mão dela. Sophie come­çou a chorar.

Craig estendeu o braço para Daisy, vigiando os olhos dela, apavorado com a idéia de que podiam se abrir a qualquer momento. Seus dedos se fecharam em volta da arma quente. Ele a ergueu do chão.

Craig segurou a arma com a mão direita com o dedo no gatilho. Apontou diretamente para um ponto entre os olhos de Daisy. Só se importava agora em fazer com que aquele monstro jamais o ameaçasse, nem a Sophie nem a sua família.

Lentamente, ele puxou o gatilho.

Com um estalido, o gatilho bateu no tambor vazio.

 

Ele estava deitado dentro do carro capotado. Todo seu corpo pare­cia ferido e o pescoço doía como se estivesse torcido, mas podia mover todos os membros. Conseguiu endireitar o corpo. Nigel, dei­tado ao lado dele, estava inconsciente, talvez morto.

Kit tentou sair do carro. Puxou o trinco e empurrou, mas a porta não se moveu. Alguma coisa a tinha prendido na batida. Em vão ele bateu furiosamente, com os punhos fechados. Apertou o botão dos vidros elétricos, mas nada aconteceu. Pensou freneticamente que ficaria preso ali até a chegada dos bombeiros e por um momen­to foi tomado de pânico e desespero. Então viu o pára-brisa comple­tamente rachado. Empurrou com a mão e tirou facilmente uma grande parte de vidro quebrado.

Kit se arrastou para fora pela abertura no pára-brisa. Não teve o cuidado de se proteger e um caco de vidro fez um corte profundo em sua mão. Ele gritou de dor e sugou o sangue do ferimento mas não podia parar. Arrastando-se, saiu de baixo do capô e ficou de pé. O vento do mar soprava violentamente no seu rosto. Kit virou de costas para o carro.

Seu pai e Toni Gallo corriam para ele.

 

Toni parou e olhou para Daisy. Ela parecia desmaiada. Craig e Sophie pareciam assustados, mas ilesos.

— O que aconteceu? — Toni perguntou.

— Ela estava atirando em nós — Craig respondeu. — Eu passei com o carro em cima dela.

Toni seguiu o olhar de Craig e viu a Ferrari de Stanley amassada na frente e atrás, com todas as janelas quebradas.

Stanley exclamou: — Meu Deus!

Toni procurou a pulsação no pescoço de Daisy. Encontrou, mas muito fraca.

— Ela ainda está viva. Por pouco.

Craig disse: — Estou com a arma de Daisy. Está descarregada.

Eles estavam bem, Toni decidiu. Olhou para o Mercedes capotado. Kit acabava de sair do carro. Ela correu para ele. Stanley correu logo atrás.

Kit começou a correr para o bosque, mas machucado e ainda atordoado corria sem direção certa. Toni viu que ele não ia conseguir. Depois de alguns passos, Kit cambaleou e caiu.

Aparentemente compreendeu que não conseguiria fugir daquele modo. Levantou-se com dificuldade, mudou de direção e correu para o penhasco.

Toni olhou para dentro do Mercedes quando passou. Nigel era um monte de roupa amassada, com o olhar vazio dos mortos. Era o terceiro criminoso liquidado, Toni pensou: um amarrado, um inconsciente e um morto. Só faltava Kit.

Kit escorregou no gelo, cambaleou, recuperou o equilíbrio e virou-se para eles. Tirou o vidro de perfume do bolso e o ergueu como se fosse uma arma.

— Parem ou mato nós todos — ele disse.

Toni e Stanley pararam.

O rosto de Kit era só dor e raiva. Toni viu um homem que tinha perdido a alma. Ele podia fazer qualquer coisa, matar sua família, se matar, destruir o mundo.

Stanley disse: — Não vai funcionar aqui, Kit.

Toni imaginou se era verdade. Kit pensou a mesma coisa e perguntou: — Por quê?

— Sinta este vento — Stanley disse. — As gotículas se dispersarão antes de poder causar qualquer mal.

— Para o diabo com tudo isso — Kit disse e jogou o vidro para cima. Então virou, saltou por cima do muro baixo e correu para a beira do precipício, a poucos metros.

Stanley foi atrás dele.

Toni pegou o vidro de perfume antes que caísse no chão.

Stanley saltou com os braços estendidos. Quase agarrou o ombro de Kit mas sua mão escorregou. Ele caiu no chão, mas conseguiu agarrar com força uma perna. Kit caiu com a cabeça e os ombros acima da beira do abismo. Stanley pulou para cima dele, segurando-o com seu peso.

Toni olhou para baixo, para o mar que parecia ferver a 30 metros da borda do penhasco entre as rochas aguçadas.

Kit lutou para se livrar, mas o pai o manteve seguro até ele ficar imóvel.

Stanley se levantou devagar e puxou Kit para cima. Kit estava com os olhos fechados. Tremia de emoção, como se fosse ter um ataque.

— Acabou — Stanley disse. Passou o braço em volta do filho. — Tudo acabou agora.

Ficaram assim, na beira do penhasco, com o vento nos cabelos até Kit parar de tremer. Então Stanley gentilmente o fez virar e o levou de volta para casa.

 

A família estava na sala de estar, aturdida e em silêncio, ainda sem certeza de que o pesadelo tinha acabado. Stanley falava ao celular de Kit com o serviço de ambulância de Inverburn, enquanto Nellie tentava lamber suas mãos. Hugo estava deitado no sofá, sob um cober­tor, e Olga limpava seus ferimentos. Miranda fazia o mesmo com Tom e Ned. Kit estava deitado de costas no chão, com os olhos fechados. Craig e Sophie conversavam em voz baixa num canto. Caroline tinha encontrado todos seus ratos e estava com a gaiola sobre os joelhos. A mãe de Toni estava ao seu lado com o cachorrinho no colo. A árvore de Natal piscava em um canto.

Toni ligou para Odette.

— A que distância você disse que estavam aqueles helicópteros?

— Uma hora — Odette respondeu. — Mas isso naquela ocasião. Assim que a neve parou, eu os trouxe para mais perto. Agora estão em Inverburn, esperando instruções. Por quê?

— Eu capturei todo o grupo e recuperei o vírus, mas...

— O quê, sozinha? — Odette perguntou, atônita.

— Deixe pra lá. O homem importante é o cliente, o que está ten­tando comprar isto e usar para matar pessoas. Precisamos encontrá-lo.

— Eu bem que gostaria.

— Acho que podemos, se agirmos depressa. Você pode me man­dar um helicóptero?

— Onde você está?

— Na casa de Stanley Oxenford, em Steepfall. Fica bem no penhasco, exatamente a vinte e cinco quilômetros de Inverburn. Há um pátio cercado por quatro construções e o piloto verá dois carros batidos no jardim.

— Meu Deus, você esteve ocupada.

— Preciso que o helicóptero me traga um rastreador, um radio­transmissor em miniatura, do tipo que colocamos numa pessoa que queremos seguir. Tem de ser suficientemente pequeno para caber em uma tampa de garrafa.

— Por quanto tempo o transmissor precisa operar?

— Quarenta e oito horas.

— Sem problema. A polícia de Inverburn deve ter um.

— Mais uma coisa. Preciso de um vidro de perfume. Diablerie.

— Isso a polícia não deve ter. Terão de procurar numa loja.

— Não temos muito tempo... Espere... — Olga estava dizendo alguma coisa. Toni olhou para ela e perguntou: — O que você disse?

— Posso lhe dar um vidro de Diablerie. É o perfume que eu uso.

— Obrigada. — Toni voltou para o telefone. — Esqueça o perfume. Já tenho um vidro. Em quanto tempo o helicóptero pode estar aqui?

— Dez minutos.

Toni olhou para seu relógio de pulso.

— Pode ser tarde demais.

— Para onde ele vai depois de apanhar você?

— Ligo depois, para dizer. — Toni desligou.

Ela se ajoelhou no chão ao lado de Kit. Ele estava pálido, com os olhos fechados mas não dormia.

— Kit — Toni disse. Ele não respondeu. — Kit, tenho de pergun­tar uma coisa. É muito importante.

Ele abriu os olhos.

— Vocês iam se encontrar com o comprador às dez horas, não iam?

Ele olhou para o outro lado.

— Kit, por favor.

Os lábios dele se abriram. Toni chegou mais perto. Ele murmurou: — Não.

— Pense — ela insistiu. — Você pode conseguir perdão.

— Nunca.

— Muito pelo contrário. Pouco dano foi causado, embora muito fosse pretendido. O vírus foi recuperado.

Kit olhou de um membro da família para o outro.

Adivinhando seu pensamento,Toni disse: — Você fez muito mal a eles, mas ainda não parecem prontos para abandoná-lo. Estão todos em volta de você.

Kit fechou os olhos.

Toni chegou mais perto ainda.

— Você pode começar a se redimir agora mesmo.

Stanley abriu a boca para falar mas Miranda o impediu, levantando a mão. Quem falou foi ela.

— Kit, por favor — Miranda disse. — Faça uma boa coisa depois de tanta maldade. Faça por você, para saber que não é de todo uma pes­soa má. Diga a Toni o que ela precisa saber.

Kit fechou os olhos com força e as lágrimas apareceram. Finalmente ele disse: — Escola de Aviação de Inverburn.

— Obrigada — Toni murmurou.

 

Toni estava na torre de controle da escola de aviação. Com ela na pequena sala estavam Frank Hackett, Kit Oxenford e um detetive da polícia local. No hangar, onde não podia ser visto, estava o helicóptero militar que os tinha levado até ali. O helicóptero estava perto mas conseguiu chegar um minuto antes da hora.

Kit segurava a pasta de couro vinho. Estava pálido, o rosto inex­pressivo. Obedecia às instruções como um autômato.

Todos olhavam pela grande janela. As nuvens começavam a se abrir e o sol brilhava na pista coberta de neve. Não viam nem sinal do helicóptero.

Toni segurava o celular de Nigel Buchanan, esperando que ele tocasse. As baterias tinham descarregado durante a noite e ela usava o carregador de Hugo, que era igual, ligado na tomada da parede.

— O piloto já devia ter ligado — ela disse, ansiosa.

Frank disse: — Ele pode estar alguns minutos atrasado.

Ela apertou a tecla e descobriu o último número para o qual Nigel tinha telefonado. Parecia um número de celular e a hora da chamada era 23:45 da véspera.

— Kit — ela disse. — Nigel telefonou para o comprador um pou­co antes da meia-noite?

— Para o piloto dele.

Ela se voltou para Frank.

— Este deve ser o número. Acho que devemos ligar para ele.

— Tudo bem.

Toni fez a ligação e deu o telefone para o detetive da polícia local, que o levou ao ouvido. Depois de alguns momentos, ele disse: — Sim, sou eu, onde você está? — Falou com sotaque londrino igual ao de Nigel. Por isso Toni o tinha levado com eles. — Tão perto? — ele disse, olhando para o céu pela janela. — Não vemos você...

Enquanto falava, um helicóptero saiu do meio das nuvens.

Toni ficou tensa.

O detetive desligou. Toni pegou seu celular e ligou para Odette que agora estava na sala de operações da Scotland Yard.

— Cliente à vista — Toni disse.

Odette não conseguiu dominar a excitação.

— Dê-me o número do aparelho.

— Só um minuto... — Toni olhou para o helicóptero até poder ver a marca do registro e leu as letras e os números para Odette. Odette repetiu e desligou.

O helicóptero desceu. As pás da hélice levantaram a neve do chão provocando uma pequena tempestade. Aterrissou a cem metros da torre de controle.

Frank olhou para Kit e inclinou a cabeça.

— Vá agora.

Kit hesitou.

Toni disse:

— Faça tudo como foi planejado. Diga: “Tivemos alguns problemas com o tempo, mas tudo acabou bem.” Você estará bem.

Kit desceu a escada, carregando a pasta.

Toni não tinha idéia se ele seguiria ou não as instruções. Kit não dormia havia mais de vinte e quatro horas, sofrera um acidente de carro e estava emocionalmente esgotado. Podia não fazer nada.

Havia dois homens no banco da frente do helicóptero. Um deles, supostamente o co-piloto, abriu uma porta e desceu carregando uma mala grande. Era atarracado, de altura mediana, com óculos escuros. Abaixou a cabeça e se afastou do helicóptero.

Um momento depois, Kit apareceu no lado de fora da torre e caminhou na neve, na direção do helicóptero.

— Fique calmo, Kit — Toni disse em voz alta. Frank rosnou.

Os dois homens se encontraram no meio do caminho. Conversaram brevemente. O co-piloto estaria perguntando onde Nigel estava? Kit apontou para a torre de controle. O que ele estava dizendo? Talvez: Nigel me mandou fazer a entrega. Mas também podia ser: A polícia está aqui, na torre de controle. Mais perguntas e Kit deu de ombros.

O celular de Toni tocou. Era Odette.

— O helicóptero está registrado em nome de Adam Hallan, um banqueiro londrino — ela disse. — Mas ele não está a bordo.

— É uma pena.

— Não se preocupe. Eu não esperava que estivesse. O piloto e o co-piloto são empregados dele. Deram entrada em um plano de vôo no Heliporto de Battersea, bem do outro lado do rio, na frente da casa do sr. Hallan, em Cheyene Walk.

— Então ele é o chefão?

— Pode estar certa. Há muito tempo estamos atrás dele.

O co-piloto apontou para a pasta vinho. Kit abriu e mostrou o vidro de Diablerie num ninho de bolas de isopor. O co-piloto pôs a mala no chão e a abriu, revelando pilhas de notas de cinqüenta libras, bem apertadas. Pelo menos um milhão de libras, Toni pen­sou, talvez dois milhões.

Seguindo as instruções, Kit tirou um dos maços de notas e folheou.

Toni disse para Odette: — Eles fizeram a troca. Kit está verifican­do o dinheiro.

Os dois homens no campo se entreolharam, inclinaram a cabeça ao mesmo tempo e trocaram um aperto de mãos. Kit entregou a pasta vinho e pegou a mala. Parecia pesada. O co-piloto voltou para o helicóptero e Kit voltou para a torre de controle.

Assim que o co-piloto entrou, o helicóptero levantou vôo.

Toni estava ainda ao telefone falando com Odette.

— Vocês estão recebendo o sinal transmitido pelo vidro de perfume?

— Alto e claro — Odette disse. — Pegamos os filhos-da-puta.

 

Fazia frio em Londres. Não tinha nevado, mas um vento gelado açoitava os prédios antigos e as ruas sinuosas e as pessoas curvavam os ombros e aconchegavam os cachecóis no pescoço enquanto cor­riam para o calor dos bares e restaurantes, hotéis e cinemas.

Toni Gallo estava no banco de trás de um Audi cinza com Odette Cressy e uma mulher loura da sua idade com um tailleur escuro e blusa escarlate. Dois detetives sentavam-se na frente, um dirigindo, o outro de olho num radiorreceptor que orientava o motorista para onde devia ir.

A polícia estava rastreando o vidro de perfume por trinta e três horas. O helicóptero descera, como era esperado, no sudoeste de Londres. O piloto tinha entrado em um carro que o esperava e atravessou a ponte Battersea para a casa de Adam Hallan, na margem do rio. Durante toda a noite da véspera o rádio ficara parado emitindo bips de algum lugar da elegante casa do século dezoito. Odette não queria prender Hallan ainda. Queria pegar o maior número de ter­roristas da rede.

Toni passou a maior parte do tempo dormindo. Quando se deitou no seu apartamento, um pouco antes do meio-dia do dia de Natal, estava tensa demais para dormir. Pensava no helicóptero atravessando a Grã-Bretanha e temia que o radiotransmissor falhasse. Apesar da ansiedade, adormeceu em poucos segundos.

No começo da noite, ela foi a Steepfall para ver Stanley. De mãos dadas, conversaram durante uma hora no escritório dele e depois ela voou para Londres. Dormiu profundamente a noite toda no apartamento de Odette, em Camden Town.

Além de rastrear o sinal do rádio, a Polícia Metropolitana tinha Adam Hallan, seu piloto e o co-piloto sob vigilância. De manhã, Toni e Odette juntaram-se à equipe que vigiava a casa de Adam Hallan.

Toni tinha alcançado seu objetivo principal. As amostras do vírus letal estavam outra vez no Kremlin. Mas ela esperava também capturar os responsáveis pelo pesadelo que acabava de viver. Toni queria justiça.

Hoje Hallan dera um almoço informal e cinqüenta pessoas de várias nacionalidades e idades tinham visitado a casa. Um dos convidados saíra levando o vidro de perfume. Toni, Odette e a equipe de vigilância rastrearam o sinal do rádio até Bayswater e durante toda a tarde vigiaram uma pensão para estudantes.

Às sete horas da noite, o sinal se moveu outra vez.

Uma jovem saiu da casa. À luz da rua, Toni viu que ela tinha belos cabelos negros, pesados e brilhantes. Levava uma bolsa a tiracolo. Levantou a gola do casaco e seguiu a pé pela calçada. Um dete­tive de calça jeans e casaco com capuz desceu de um Rover bege e a seguiu.

— Acho que é isso — Toni disse. — Ela vai usar o spray.

— Eu quero ver isso — Odette disse. — Para a promotoria preciso de testemunhas da tentativa de homicídio.

Toni e Odette perderam a jovem de vista quando ela entrou em uma estação do metrô. O sinal do rádio enfraqueceu alarmantemen­te por algum tempo, depois se moveu, talvez porque a mulher esti­vesse no trem. Eles seguiram o sinal fraco, temendo que desapareces­se e ela conseguisse despistar o detetive de capuz. Mas ela apareceu em Picadilly Circus, o detetive ainda atrás. Elas perderam contato visual por um minuto quando ela entrou em uma rua de mão única, então o detetive telefonou para o celular de Odette e informou que a mulher tinha entrado em um teatro.

Toni disse: — É lá que ela vai liberar o vírus.

Os carros de polícia à paisana seguiram para a frente do teatro. Odette e Toni entraram, seguidas por dois homens do segundo car­ro. A peça, um musical sobre fantasmas, era muito popular entre os turistas americanos. A jovem de belos cabelos estava na fila de ingressos pré-pagos.

Enquanto esperava, ela tirou da bolsa a tiracolo um vidro de perfume. Com um gesto rápido, que parecia completamente natu­ral, borrifou o perfume na cabeça e nos ombros. Ninguém prestou atenção. Sem dúvida ela queria estar perfumada para o homem com quem ia se encontrar, as pessoas certamente imaginaram, se é que pensaram em alguma coisa. Um cabelo tão bonito devia cheirar bem. O spray era curiosamente inodoro, mas ninguém pareceu notar.

— Ótimo — disse Odette. — Mas vamos deixar que ela faça outra vez.

O vidro continha água pura, mas mesmo assim Toni estremeceu quando respirou. Se não tivesse feito a troca, o vidro conteria o Madoba-2 e aquela única inalação a teria matado.

A mulher pegou seu ingresso e entrou no teatro. Odette falou com o lanterninha, mostrou a ele sua identificação e os detetives seguiram a mulher. Ela foi para o bar e borrifou o perfume outra vez. Fez o mesmo no banheiro. Finalmente sentou na fila da frente das poltronas e borrifou os cabelos outra vez. Toni imaginou que ela pretendia fazer isso várias vezes durante o intervalo e uma outra vez ainda nos corredores apinhados, quando os espectadores saíssem do teatro. No fim do espetáculo, quase todos no teatro teriam inalado as gotículas do seu vidro.

No fundo do teatro, Toni ouvia os sotaques à sua volta: uma mulher do sul dos Estados Unidos que tinha comprado um cachecol de cashmere maravilhoso; alguém de Boston dizendo onde estacionara o carro, um nova-iorquino que havia pago cinco dólares por uma xícara de café. Se o vidro de perfume contivesse o vírus como os criminosos tinham planejado, aquelas pessoas estariam agora infeccionadas com o Madoba-2. Voltariam para casa, se confraterni­zariam com familiares e vizinhos e voltariam ao trabalho, descreven­do para todos suas férias na Europa.

Dez ou doze dias depois, ficariam doentes. “Peguei um resfriado danado em Londres”, diriam. Espirrando, infeccionariam seus familiares e colegas de trabalho. Os sintomas se agravariam e os médicos diagnosticariam gripe. Quando começassem a morrer, os médicos ficariam convencidos de que era muito pior do que uma gripe. A medida que a infecção letal se espalhasse rapidamente de rua em rua e de cidade em cidade, os médicos começariam a compreender o que estavam enfrentando, mas aí seria tarde demais.

Agora nada disso ia acontecer, mas Toni estremeceu pensando no quanto tinham estado perto.

Um homem nervoso, de smoking, se aproximou delas.

— Sou o gerente do teatro — ele disse. — O que está acontecendo?

— Estamos prestes a efetuar uma prisão — Odette disse. — Seria bom o senhor atrasar o final da peça por um minuto.

— Espero que não haja nenhuma desordem.

— Acredite, eu também espero. — Os espectadores estavam senta­dos. — Muito bem — Odette disse para os detetives. — Já vimos o bas­tante. Peguem a mulher e procurem agir com calma.

Os dois homens do segundo carro seguiram pelas laterais e fica­ram um em cada extremidade da fileira em que a mulher estava. Ela olhou para um, depois para outro.

— Queira me acompanhar, por favor, senhorita — disse o que estava mais perto.

O teatro ficou em silêncio, todos esperando. Seria parte do espe­táculo?, pensavam.

A mulher continuou sentada, mas tirou o vidro de perfume da bolsa e borrifou outra vez. Um dos detetives entrou na fileira e foi até onde ela estava.

— Por favor, venha imediatamente — ele disse. Ela se levantou, ergueu o vidro e borrifou o ar. — Não se dê ao trabalho — ele disse. — É só água. — Então segurou o braço dela e a levou para o fundo do teatro.

Toni olhou para a prisioneira. Era jovem e atraente. Estava pronta para cometer suicídio. Toni se perguntou por quê.

Odete tirou o vidro de perfume da mão dela e o pôs no saquinho de provas.

— Diablerie — ela disse. — Nome francês. Você sabe o que significa?

A mulher sacudiu a cabeça.

— Trabalho do diabo. — Odete voltou-se para o detetive: — Algeme a prisioneira e leve-a daqui.

 

Toni saiu nua do banheiro e atravessou o quarto do hotel para atender ao telefone.

Stanley, da cama, disse: — Meu Deus, você está ótima.

Ela sorriu para o marido. Stanley estava com um roupão de banho azul pequeno demais para ele, que deixava à mostra as pernas longas e musculosas.

— Você também não está de todo mal — ela disse, pegando o tele­fone. Era sua mãe. — Feliz Natal — Toni disse.

— Seu ex-namorado está na televisão — sua mãe disse.

— Fazendo o quê? Cantando canções de Natal no coro da polícia?

— Está sendo entrevistado por aquele Carl Osborne. Está contando como capturou os terroristas no Natal passado.

— Ele capturou? — Toni disse, por um momento indignada. Mas então pensou, que se dane. — Bem, ele precisa da publicidade, está atrás de uma promoção. Como vai minha irmã?

— Ela está preparando o jantar.

Toni consultou o relógio. Naquela ilha do Caribe faltavam alguns minutos para as seis horas da tarde. Para sua mãe, na Inglaterra, eram mais de dez horas da noite. Mas as refeições eram sempre tarde na casa de Bella. — O que ela deu para você de Natal?

— Vamos comprar alguma coisa nas liquidações de janeiro, é mais barato.

— Você gostou do meu presente? — Toni tinha dado um cardigã de cashmere salmão.

— Lindo. Muito obrigada, minha querida.

— Osborne está bem? — Sua mãe tinha ficado com o cachorrinho, agora já crescido e todo peludo.

Ele tem se comportado muito bem e desde ontem não aprontou nada.

— E os netos?

— Correndo pela casa, quebrando os presentes. Preciso desligar agora, a rainha está na televisão.

— Até logo, mamãe. Obrigada por telefonar.

— Suponho que não temos tempo para um pouquinho de você sabe o que antes do jantar, não é? — Stanley perguntou.

Toni fingiu-se de chocada.

— Acabamos de ter um pouquinho de você sabe o quê!

— Isso foi há horas! Mas se você está cansada... sei que quando a mulher chega a uma certa idade...

— Uma certa idade? — Toni subiu na cama e montou nele. — Uma certa idade? — Bateu nele com o travesseiro.

Rindo as gargalhadas, Stanley pediu misericórdia. Ela parou e o beijou.

Toni esperava que Stanley fosse bom de cama, mas para sua sur­presa ele era perfeito. Ela jamais se esqueceria das primeiras férias que passaram juntos. Em Paris, na suíte do Ritz, ele vendou os olhos dela e amarrou as mãos na cabeceira da cama. Então, com Toni ali deitada, nua e indefesa, acariciou os lábios dela com uma pena, depois com uma colher de chá de prata, depois com um morango. Toni jamais estivera tão intensamente concentrada nas sensações do próprio corpo. Ele acariciou seus seios com um lenço de seda, com uma echarpe de cashmere e com luvas de couro. Era como se estives­se flutuando no mar, ao sabor das ondas de prazer. Ele beijou atrás dos joelhos dela, a parte interna das coxas, as axilas macias e o pes­coço. Stanley fez tudo lenta e calmamente, até Toni quase explodir de desejo. Tocou os mamilos dela com cubos de gelo e pôs óleo mor­no dentro dela. Ele continuou até ela implorar que a penetrasse e então a fez esperar um pouco mais. Depois ela tinha dito: — Eu não sabia, mas durante toda a vida desejei que um homem fizesse isso.

— Eu sei — ele disse.

Agora ele queria brincar.

— Vamos, só uma rapidinha. Deixo você ficar por cima.

— Oh, tudo bem. — Ela suspirou, fingindo estar fazendo uma obrigação, ajeitando-se em cima dele. — As coisas que uma mulher tem de fazer hoje em dia...

Bateram na porta.

— Quem é? — Stanley perguntou.

— Olga. Toni ia me emprestar um colar.

Toni viu que Stanley ia mandar a filha embora, mas cobriu a boca dele com a mão.

— Só um minuto, Olga — ela disse.

Saiu de cima de Stanley. Olga e Miranda estavam aceitando bem o fato de ter uma madrasta da sua idade, mas Toni não queria abu­sar da sorte. O melhor era não deixar que lembrassem que seu pai estava fazendo sexo.

Stanley foi para o banheiro. Toni vestiu um robe de seda verde e abriu a porta. Olga entrou, pronta para jantar com um vestido de algodão decotado.

— Você disse que ia me emprestar o colar negro.

— É claro. Vamos ver onde está.

O chuveiro foi aberto no banheiro.

Olga baixou a voz, um evento raro: — Eu queria perguntar... ele tem visto Kit?

— Tem. Visitou-o na prisão um dia antes de virmos para cá.

— Como vai meu irmão?

— Desconfortável, frustrado e entediado, como era de se esperar, mas não foi espancado, estuprado, nem está usando heroína. — Toni achou o colar e o pôs no pescoço de Olga. — Fica melhor em você do que em mim. Decididamente preto não é a minha cor. Por que você não pergunta sobre Kit para seu pai?

— Ele está tão feliz que não quero estragar esse estado de espíri­to. Você não se importa, não é?

— Nem um pouco. — Pelo contrário, Toni estava lisonjeada. Olga a estava usando como uma filha usa a mãe para saber do seu pai sem o incomodar com o tipo de pergunta que os homens não gostam. — Sabia que Elton e Hamish estão na mesma penitenciária?

— Não. Isso é horrível.

— Na verdade, não. Kit está ajudando Elton a aprender a ler.

— Elton não sabe ler?

— Muito mal. Sabe ler placas de sinalização. Kit está lhe ensinan­do o “O Ivo viu a uva”.

— Bem, as coisas acabam se ajeitando. Tem notícias de Daisy?

— Não.

— Ela matou outra prisioneira e foi julgada por homicídio. Uma jovem colega minha a defendeu, mas ela foi condenada. Recebeu sentença de prisão perpétua, além da que já estava cumprindo. Ficará presa até os setenta anos. Eu queria que fosse condenada à pena de morte.

Toni compreendia o ódio de Olga. Hugo jamais se recuperou completamente do que Daisy fizera com o cassetete. Ficou cego de um olho. Pior ainda, perdeu todo o entusiasmo pela vida. Ficou mais caladão e menos paquerador e não era mais tão engraçado. O sorriso malicioso raramente aparecia.

— Uma pena o pai dela ainda estar solto — Toni disse. Harry Mac fora acusado de cumplicidade, mas o testemunho de Kit não foi suficiente para condená-lo e o júri o declarou inocente. Ele voltou direto para a vida de crime.

Olga disse: — Tenho notícias dele também. Está com câncer. Começou nos pulmões, mas agora se espalhou. O prognóstico é de três meses de vida.

— Ora, ora — disse Toni. — Há justiça, afinal de contas.

 

Miranda separou a roupa de Ned para a noite: calça preta de linho e camisa xadrez. Ele não esperava esse cuidado, mas se Miranda não o fizesse, ele desceria distraidamente para jantar de short e camiseta. Ned não era incapaz, apenas descuidado. Miranda tinha aceitado isso.

Tinha aceitado muita coisa dele. Compreendeu que Ned jamais entraria numa briga, nem mesmo para protegê-la, mas, em compensação, ela sabia que em uma crise real ele era uma rocha. O modo pelo qual ele suportara os golpes de Daisy para defender Tom era prova disso.

Ela já estava pronta, com um vestido de algodão rosa com saia pregueada que fazia as cadeiras parecerem um pouco largas, mas afi­nal, na verdade suas cadeiras eram largas. Ned tinha dito que gosta­va dela assim.

Miranda entrou no banheiro. Sentado na banheira, Ned lia uma biografia de Molière em francês. Ela tirou o livro da mão dele.

— O criminoso é o mordomo — Miranda disse.

— Agora você estragou o suspense. — Ned ficou de pé na banheira.

Miranda deu a toalha para ele.

— Vou ver as crianças. — Antes de sair do quarto, ela apanhou um pequeno embrulho de cima da mesa-de-cabeceira e pôs na bolsa.

Os quartos do hotel eram cabanas individuais na praia. Uma brisa quente acariciava os braços nus de Miranda quando ela foi para a cabana onde estavam Tom e Craig.

Craig estava pondo gel no cabelo e Tom amarrava o cordão do sapato.

— Tudo bem com vocês? — Miranda perguntou. A pergunta era supérflua. Os dois estavam bronzeados de sol e felizes, depois de um dia de windsurf e esqui aquático.

Tom não era mais um garotinho. Nos últimos seis meses tinha crescido cinco centímetros e não contava mais tudo para a mãe. Isso a entristecia. Durante doze anos Miranda fora tudo para ele. Tom continuaria a depender dela durante mais alguns poucos anos, mas a separação estava começando.

Ela foi para a outra cabana, onde se hospedaram Sophie e Caroline. Mas Caroline já fora embora e Sophie estava sozinha. Vestindo roupa de baixo, estava na frente do guarda-roupa, escolhendo um vestido. Miranda viu com desaprovação o meia-taça pre­to e a calcinha fio-dental da mesma cor.

— Sua mãe já viu sua roupa? — Miranda perguntou.

— Ela me deixa usar o que eu quero — Sophie disse, mal-humorada.

Miranda se sentou em uma cadeira.

— Venha cá. Quero falar com você.

Relutante, Sophie se sentou na cama. Cruzou as pernas e olhou para longe.

— Eu preferia que sua mãe dissesse isso, mas já que ela não está aqui, eu tenho de dizer.

— Dizer o quê?

— Eu acho que vocês são muito novos para ter relações sexuais. Você tem quinze anos e Craig só dezesseis.

— Ele tem quase dezessete.

— Mesmo assim, o que vocês estão fazendo na verdade é ilegal.

— Não neste país.

Miranda tinha esquecido de que estavam no Reino Unido.

— Bem, de qualquer modo vocês são muito novos.

Sophie, aborrecida, revirou os olhos.

— Oh, meu Deus.

— Eu sabia que você não ia gostar, mas isso tinha de ser dito — Miranda insistiu.

— Muito bem, agora já disse — Sophie disse indelicadamente.

— Porém sei também que não posso obrigá-los a fazer o que eu digo.

Sophie pareceu surpresa. Não esperava concessões.

Miranda tirou o pequeno embrulho da bolsa.

— Assim, se preferirem me desobedecer, quero que usem estas camisinhas. — Estendeu o embrulho para Sophie.

Sophie pegou, sem saber o que dizer. Estava completamente atô­nita.

Miranda se levantou.

— Não quero que você fique grávida enquanto estiver sob meus cuidados. — Foi para a porta.

Quando saiu, ouviu Sophie dizer: — Obrigada.

 

O avô tinha reservado uma sala exclusiva no restaurante do hotel para a família Oxenford. Um garçom servia champanhe. Sophie estava atrasada. Esperaram um pouco por ela, então o avô se levantou e todos ficaram quietos.

— Temos filé para o jantar — ele disse. — Encomendei um peru, mas parece que ele fugiu.

Todos riram.

Ele continuou, mais sério: — No ano passado não tivemos um Natal de verdade, por isso achei que este deveria ser especial.

Miranda disse: — E obrigada por nos trazer, papai.

— Os últimos doze meses foram o pior ano da minha vida e o melhor — ele continuou. — Nenhum de nós vai superar completamente o que aconteceu em Steepfall um ano atrás.

Craig olhou para o pai. Ele certamente nunca se recuperaria. Um olho estava semifechado e o rosto ficara amavelmente inexpressivo. Atualmente ele parecia apenas desligado.

O avô continuou: — Se não fosse por Toni, só Deus sabe como tudo teria acabado.

Craig olhou para Toni. Ela estava maravilhosa, com um vestido castanho de seda que realçava o cabelo ruivo. Seu avô estava louco por ela. Deve se sentir quase do mesmo modo que me sinto com Sophie, ele pensou.

— Depois tivemos de reviver o pesadelo mais duas vezes — Stanley disse. — Primeiro com a polícia. A propósito, Olga, por que eles tomam depoimentos desse modo? Fazem perguntas e anotam as respostas, depois escrevem algo que não tem nada a ver com o que a pessoa disse, cheio de erros e que não soa como coisa de gente normal, e depois chamam isso de depoimento.

— A promotoria gosta de frases num certo padrão — respondeu Olga.

— “Eu prossegui na direção oeste”, coisas assim?

— Exatamente.

Stanley deu de ombros.

— Bem, então tivemos de reviver tudo durante o julgamento e ficamos lá sentados, ouvindo insinuações de que de algum modo éramos culpados por machucar pessoas que tinham invadido nossa casa, nos atacaram e nos amarraram. Depois tivemos de ler as mesmas insinuações nos jornais.

Craig jamais esqueceria. A advogada de defesa de Daisy insinuou que Craig tentou matar sua cliente porque a atropelou quan­do ela atirava nele. Era ridículo, mas por alguns momentos, no tri­bunal, pareceu quase plausível.

Stanley continuou: — Todo o pesadelo me fez lembrar que a vida é curta e compreendi que devia dizer a vocês todos o que eu sentia por Toni, sem perda de tempo. Não preciso dizer como somos feli­zes. Então minha nova droga passou nos testes e pode ser usada em seres humanos. O futuro da companhia foi garantido e pude com­prar outra Ferrari e ter aulas de direção com Craig.

Todos riram e Craig corou. Nunca tinha contado a ninguém sua primeira experiência com o carro. Só Sophie sabia. Craig sentia-se embaraçado e culpado cada vez que lembrava. Pensou em confessar quando ficasse velho, quando tivesse uns trinta anos ou coisa assim.

— Chega de passado — disse o avô. — Vamos fazer um brinde. Feliz Natal para todos.

Todos disseram: “Feliz Natal.”

Sophie chegou quando era servido o primeiro prato. Estava maravilhosa, com o cabelo penteado para cima e pequenos brincos de pingente. Parecia tão madura, com uns vinte anos no mínimo. Craig sentiu a boca seca ao lembrar que ela era sua namorada.

Quando passou pela cadeira de Craig, Sophie parou e murmurou no ouvido dele: — Miranda me deu algumas camisinhas.

Craig ficou tão surpreso que engasgou com o champanhe.

— O quê?

— Você ouviu — ela disse e sentou-se.

Craig sorriu para ela. Ele tinha um suprimento de camisinhas, é claro. Veja só, a velha tia Miranda.

Stanley disse: — Por que está rindo, Craig?

— Só estou feliz, vovô — ele disse. — Só isso.

 

                                                                                            Ken Follett

 

 

                      

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