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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JUBIABA/ Jorge Amado
JUBIABA/ Jorge Amado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

JUBIABA

 

Bahia de Todos os Santos e do Pai-de-Santo Jubiabá

   

    A multidão se levantou como se fora uma só pessoa. E conservou um silêncio. O juiz contou:

    – Seis..

    Porém antes que contasse sete o homem loiro se ergueu sobre um braço, com esforço, e juntando todas as forças se pôs de pé. Então a multidão se sentou novamente e começou a gritar. O negro investiu com fúria e os lutadores se atracaram em meio ao tablado. A multidão berrava:

    – Derruba ele! Derruba ele!

    O Largo da Sé pegara uma enchente naquela noite. Os homens se apertavam nos bancos, suados, os olhos puxados para o tablado onde o negro Antônio Balduíno lutava com Ergin, o alemão. A sombra da igreja centenária se estendia sobre os homens. Raras lâmpadas iluminavam o tablado. Sol dados, estivadores, estudantes, operários, homens que vestiam apenas camisa e calça, seguiam ansiosos a luta. Pretos, brancos e mulatos torciam pelo negro Antônio Balduíno que já derrubara o adversário duas vezes.

    Daquela última vez parecera que o branco não se levantaria mais. Porém antes que o juiz contasse sete ele se levantou e continuou a lutar. Houve entre a assistência pa lavras de admiração. Alguém murmurou:

    – O alemão é macho mesmo...

    No entanto continuaram a torcer pelo negro alto que era campeão baiano de peso pesado. Gritavam agora sem parar, desejosos de que a luta tivesse um fim, e que esse fim fosse com Ergin estendido no chão.

    Um homenzinho magro, cara chupada, mordia um cigarro apagado. Um negro baixote ritmava os berros com palmadas nos joelhos:

    – Der-ru-ba e-le. . . Der-ru-ba e-le...

    E se moviam inquietos, gritavam que se ouvia na Praça Castro Alves.

    Mas aconteceu que no outro round o branco veio com raiva em cima do negro e o levou às cordas. A multidão não se importou muito esperando a reação do negro. Realmente Balduíno quis acertar na cara sangrenta do alemão. Porém Ergin não lhe deu tempo e o soqueou com violência atingindo-o no rosto, fazendo do olho do negro uma posta de sangue. O alemão cresceu de repente e escondeu o preto que agora apanhava na cara, nos peitos, na barriga. Balduíno foi novamente às cordas, se segurou nelas, e ficou passivamente sem reagir. Pensava unicamente em não cair e se atracava com força às cordas. Na sua frente o alemão parecia um diabo a lhe martelar a cara. O sangue corria do nariz de Balduíno, o seu olho direito estava fechado, tinha um rasgão por baixo da orelha. Via confusamente o branco na sua frente, pulando, e ouvia muito longe os berros da assistência. Esta vaiava. Viu o seu herói cair e gritava:

    – Dá nele, negro!

    Isso no princípio. Aos poucos a multidão foi ficando silenciosa, abatida, vendo o negro apanhar. E quando voltou a gritar foi para vaiar.

    – Negro fêmea! Mulher com calça! Aí, loiro! Dá nele.

    Estavam com raiva porque o negro apanhava. Eles haviam pago os três mil-réis da entrada para ver o campeão baiano dar naquele branco que se dizia “campeão da Europa central”. E agora estavam assistindo era o negro apanhar. Não estavam satisfeitos, moviam-se inquietos e ora vivavam o branco ora o vaiavam. E respiraram aliviados quando o gongo soou dando fim ao round.

    Antônio Balduíno veio para o canto do ringue se segurando nas cordas. Aí o homem magro que mordia o cigarro inútil cuspiu e gritou:

    – Onde está o negro Antônio Balduíno que derrubava brancos?

    Aquilo Antônio Balduíno ouviu. Bebeu um gole da garrafa de cachaça que o Gordo lhe oferecia e virou para a assistência procurando o dono daquela voz. Voz que voltou metálica:

    – Quedê o derrubador de brancos?

    Desta vez parte da multidão acompanhou o homenzinho disse em coro:

    – Quedê? Quedê?

    Aquilo doeu a Balduíno como uma chibatada. Não sentia nenhum dos socos do branco mas sentia aquela censura dos seus torcedores. Disse ao Gordo:

    – Quando eu sair daqui dou uma surra neste sujeito. Marque ele.

    E quando soou o sinal de recomeçar a luta o preto se atirou em cima de Ergin. Pôs um soco na boca do alemão e em seguida um no ventre. A multidão reconhecia novamente seu campeão e gritou:

    – Aí, Antônio Balduíno! Aí, Baldo! Derruba ele..

    O negro baixo voltou a ritmar pancadas nos joelhos. O magro sorria.

    O negro continuava a dar e sentia uma grande raiva dentro de si.

    Foi quando o alemão voou para cima dele querendo acertar no outro olho de Balduíno. O negro livrou o corpo com um gesto rápido e como a mola de uma máquina que se houvesse partido distendeu o braço bem por baixo do queixo de Ergin, o alemão. O cai da Europa central descreveu uma curva com o corpo e caiu com todo o peso.

    A multidão, rouca, aplaudia em coro:

    – BAL-DO... BAL-DO... BAL-DO

    O juiz contava:

    – Seis... sete... oito...

    Antônio Balduíno olhava satisfeito o branco estendido aos seus pés.

    Depois passou os olhos pela assistência que o vivava procurando o homem que dissera que ele não era mais o derrubador de brancos. Como não o achasse sorriu para o Gordo. O juiz contava:

    – Nove... dez...

    Suspendeu o braço de Balduíno. A multidão berrava mas o negro só ouvia a voz metálica do homem do cigarro:

    – Aí negro, você ainda derruba brancos.

    Alguns homens saíram pelo portão largo e enferrujado. Porém a maioria se lançou para o quadrado de luz, onde estava o tablado, e levantou nos ombros o negro Antônio Balduíno. Um estivador e um estudante seguravam numa perna e dois mulatos na outra. Levaram assim o negro até o mictório público instalado no largo que era onde os lutadores mudavam a roupa.

    Antônio Balduíno vestiu a roupa azul, bebeu um trago de cachaça, recebeu os cem mil-réis a que tinha direito e disse aos admiradores:

    – O branco era fraco. . . Branco não se agüenta com o negro Antônio Balduíno... Eu cá sou é macho.

    Sorriu, apertou o dinheiro no bolso da calça e se dirigiu para a pensão da Zara, onde morava Zefa, cabrocha de dentes limados que viera do Maranhão.

   

Infância remota   

    Antônio Balduíno ficava em cima do morro vendo a fila de luzes que era a cidade embaixo. Sons de violão se arrastavam pelo morro mal a lua aparecia. Cantigas dolentes eram cantadas. A venda de Seu Lourenço Espanhol se enchia de homens que iam conversar e ler o jornal que o vendeiro comprava para os fregueses da pinga.

    Antônio Balduíno vivia metido num camisolão sempre sujo de barro, com o qual corria pelas ruas e becos enlameados do morro, brincando com os outros meninos da mesma idade.

    Apesar dos seus oito anos, Antônio Balduíno já chefiava as quadrilhas de molecotes que vagabundavam pelo Morro do Capa-Negro e morros adjacentes. Porém de noite não havia brinquedo que o arrancasse da contemplação das luzes que se acendiam na cidade tão próxima e tão longínqua. Se sentava naquele mesmo barranco à hora do crepúsculo e esperava com ansiedade de amante que as luzes se acendes sem. Tinha uma volúpia aquela espera, parecia um homem esperando a fêmea. Antônio Balduíno ficava com os olhos espichados em direção à cidade, esperando. Seu coração batia com mais força enquanto a escuridão da noite invadia o casario, cobria as ruas, a ladeira, e fazia subir da cidade um rumor estranho de gente que se recolhe ao lar, de homens que comentam os negócios do dia e o crime da noite passada.

    Antônio Balduíno, que só fora à cidade umas poucas vezes, assim mesmo às pressas, sempre arrastado pela tia, sentia àquela hora toda a vida da cidade. Vinha um rumor lá de baixo. Ele ficava ouvindo os sons confusos, aquela onda de ruídos que subia pelas ladeiras escorregadias do morro. Sentia nos nervos a vibração de todos aqueles ruídos, aqueles sons de vida e de luta. Ficava se imaginando homem feito, vivendo na vida apressada dos homens, lutando a luta de cada dia. Seus olhinhos miúdos brilhavam e por mais de uma vez ele sentiu vontade de se largar pelas ladeiras e ir ver de perto o espetáculo da cidade àquelas horas cinzentas. Bem sabia que perderia o jantar e que a surra o aguardaria na volta... Mas não era isso o que o impedia de ir ver de perto o barulho da cidade que se recolhia do trabalho, O que ele não queria perder era o acender das luzes, revelação que era para ele sempre nova e bela.

    Eis que a cidade já se envolve quase completamente nas trevas.

    Antônio Balduíno não enxerga mais nada. Vinha um vento frio com a escuridão. Ele nem o sentia. Gozava voluptuosamente os ruídos, o barulho que aumentava cada vez mais. Não perdia um só. Distinguia as risadas, os gritos, as vozes dos bêbados, as conversas sobre política, a voz arrastada dos cegos pedindo uma esmola pelo amor de Deus, o barulho dos bondes carregados de pingentes. Gozava devagarinho a vida da cidade,

    Um dia teve uma emoção enorme que o arrepiou todo. Chegou a ficar em pé, tremendo de prazer. É que distinguiu choro, choro de mulher e vozes que consolavam. Aquilo subia como um tropel por dentro dele, o arrastava numa vertigem de gozo. Choro... Alguém, uma mulher, chorava na cidade que escurecia. Antônio Balduíno escutou o choro doloroso até que se extinguiu com o ruído de um bonde que passava arranhando nos trilhos. Antônio Balduíno ainda ficou com a respiração suspensa vendo se conseguia ouvir mais alguma coisa. Porém deviam ter levado a mulher para longe da rua, pois ele não escutou mais nada. Neste dia não quis jantar e não correu à noite pelas ruas com os companheiros. Sua tia dissera:

    – Esse menino viu coisa... Isto é sonso como o não- sei-que-diga...

    Dias bons, também, aqueles em que sentia a campainha da assistência badalando na cidade. Era sofrimento que existia embaixo e Antônio Balduíno, menino de oito anos, gozava aqueles pedaços de sofrimento como o homem goza a mulher.

    Mas as luzes que se acendiam purificavam tudo. Antônio Balduíno se envolvia na contemplação das fileiras de lâmpadas, mergulhava os olhos vivos na claridade e sentia vontade de agradar os outros negrinhos do Morro do Capa- Negro. Se alguém se aproximasse dele naquele instante ele o acariciaria sem dúvida, não o receberia com os beliscões costumeiros, não diria palavrões que cedo aprendera. Passaria sem dúvida a mão sobre a carapinha do companheiro de brinquedos, recostaria ao peito do amigo. E talvez sorrisse. Mas os garotos estavam correndo pelo morro e não se lembravam de Antônio Balduíno. Ele ficava vendo as luzes. Distinguia vultos que passavam. Mulheres e homens que passeavam talvez. Por detrás, no morro, violas repinicavam, negros conversavam. A velha Luísa gritava:

    – Baldo, vem jantar.... Menino impossível.

    Sua tia Luísa fora-lhe pai e mãe. De seu pai Antônio Balduíno apenas sabia que se chamava Valentim, que fora jagunço de Antônio Conselheiro quando rapazola, que amava as negras que encontrava a cada passo, que bebia muito, bebia valentemente e que morreu debaixo de um bonde num dia de farra grossa. Coisas que ele ouvia da tia quando esta conversava com os vizinhos sobre o finado irmão. Ela concluía sempre:

    – Era um negro bonito de encher a boca d’água. Também brigão e cachaceiro como ele só.

    Antônio Balduíno ouvia calado e fazia do pai um herói. Com certeza vivera a vida da cidade na hora em que as luzes se acendem. Tentava às vezes reconstituir a vida de seu pai com os pedaços de aventuras que ouvia a velha Luísa contar. A imaginação se perdia logo em atos de coragem heróica. Ficava olhando o fogo, imaginando como seria seu pai. Tudo o que ouvia contar de grande e rocambolesco julgava logo que o pai fizera a mesma coisa ou coisa melhor. Quando ele e os outros negros do morro iam brincar de quadrilha, e o interrogavam sobre quem queria ser, ele, que não fora ainda ao cinema, não queria ser Eddie Polo, nem Elmo, nem Maciste.

    – Quero ser meu pai...

    Os outros faziam pouco:

    – O que foi que teu pai fez?

    – Muita coisa.

    – Ele não levantou um automóvel com um braço só como Maciste.

    – Ele suspendeu um caminhão...

    – Um caminhão?

    – E carregado.

    – Quem foi que viu, Baldo?

    – Minha tia viu... Pergunte a ela. E se não gostou diga ou dê seu jeito.

    Várias vezes brigou pela memória heróica do pai que não conhecera. Em verdade ele brigava pelo pai que imaginava, aquele que amaria se conhecesse.

    Da mãe, Antônio Balduíno não sabia nada.

    Andava solto pelo morro e ainda não amava nem odiava. Era puro como um animal e tinha por única lei os instintos. Descia as ladeiras do morro em louca disparada, montava cavalos de cabo de vassoura, era de pouca conversa mas de largo sorriso.

    Cedo chefiou os demais garotos do morro, mesmo os bem mais velhos do que ele. Era imaginoso e tinha coragem como nenhum. Sua mão era certeira na pontaria do bodoque e seus olhos faiscavam nas brigas. Brincava de quadrilha. Era sempre o chefe. E muitas vezes se esquecia que estava brincando e brigava seriamente. Sabia todos os nomes feios e os repetia a todo momento.

    Ajudava a velha Luísa a fazer o munguzá e o mingau de puba que ela vendia à noite no terreiro. Levava o ralo, trazia os apetrechos, só não sabia ralar coco. Os outros meninos no princípio levaram na troça dizendo que ele era cozinheira, mas se calaram no dia em que Antônio Balduíno rebentou a cabeça de Zebedeu com uma pedrada. Apanhou da tia e não conseguiu compreender por que apanhava. Porém perdoava rapidamente as surras que a velha lhe aplicava. Também poucas correadas o atingiam pois ele era agilíssimo e ficava que nem um peixe escorregando das mãos da tia, se furtando das chicotadas. Aquilo era até um divertimento, um exercício do qual muitas vezes ele saía rindo, vencedor, tendo conseguido que várias correadas não o atingissem. Apesar de tudo a negra Luísa dizia:

    – Este é o homem da casa

    A velha era conversadeira e envolvente. Os vizinhos vinham conversar com ela, ouvir as histórias que ela contava, histórias de assombrações, contos de fadas e casos da escravidão. Por vezes contava ou lia histórias em versos.

    Tinha uma que começava assim:

             “Leitores que caso horrível

             vou aqui vos relatar

             me faz o corpo tremer

             e os cabelos arrepiar

             pois nunca pensei no mundo

             existisse um ente imundo

             capaz de seus pais matar”.

    Era a história da filha maldita, caso que os jornais haviam relatado com grandes títulos e um poeta popular, autor de ABC e de sambas, rimara para vender a duzentos réis no mercado.

    Antônio Balduíno adorava esta história. Ficava pedindo para a velha contar de novo e fazia berreiro quando não era atendido. Gostava também de ouvir os homens contar casos de Antônio Silvino e Lucas da Feira. Nestas noites não ia brincar. Uma vez perguntaram:

    – Quando você crescer o que é que vai ser?

    Ele respondeu prontamente:

    – Jagunço...

    Não sabia de carreira mais bela e mais nobre, carreira que requeresse mais virtudes, saber atirar e ter coragem.

    – Você precisa é de ir para a escola – diziam.

    Ele perguntava a si mesmo para quê. Nunca ouvira dizer que jagunço soubesse ler. Sabiam ler os doutores e os doutores eram uns sujeitos moles. Ele conhecia o Dr. Olímpio, médico sem clientela que de vez em quando subia o morro à procura de clientes que não existiam, e o Dr. Olímpio era um sujeito fraco, magro, que não agüentava um tabefe bem dado.

    Também sua tia mal sabia ler e no entanto era respeitadíssima no morro, ninguém mexia com ela, ninguém tirava prosa. Quando a dor de cabeça a atacava, quem era besta de conversar com a velha Luísa? Essas dores de cabeça da velha negra atemorizavam Antônio Balduíno. De vez em quando sua tia era atacada, ficava como doida, berrava, os vizinhos acudiam e ela botava para fora dizendo que não que ria diabo nenhum ali, que fossem para o inferno.

    Um dia Antônio Balduíno ouviu duas vizinhas que estavam conversando quando o ataque pegou a velha Luísa.

    Uma negra velha dizia:

    – Ela tem dor de cabeça é de levar essas latas fervendo toda noite pro terreiro. Vai esquentando a cabeça.

    – Qual o quê, Sinhá Rosa! Aquilo é o espírito, não tá vendo logo? Espírito e dos bons. Dos que andam perdidos sem saber que já morreram. Andam vagando procurando um corpo de vivente pra se meter dentro. Espírito de condena do, Jesus Cristo me perdoe.

    As outras apoiavam. Antônio Balduíno é que ficava numa grande dúvida e num grande medo. Temia as almas do outro mundo. Mas não compreendia por que elas iam habitar a cabeça de sua tia.

    Nestes dias Jubiabá vinha à sua casa. Antônio Balduíno ia chamá-lo a mando de Luísa. Chegava na porta pequena da casa baixa e batia. A voz vinha de lá de dentro perguntando quem era.

    – Tia Luisa tá pedindo pra pai Jubiabá ir lá em casa que ela está atacada.

    E saía correndo. Tinha um medo doido de Jubiabá. Se escondia atrás da porta e pela greta ficava espiando o feiticeiro que vinha, a carapinha branca, o corpo curvo e seco, apoiado num bastão, andando devagarinho. Os homens paravam para cumprimentar.

    – Bom dia, pai Jubiabá...

    – Nosso Senhor dê bom.dia...

    Ia passando e abençoando. Até o espanhol da venda baixava a cabeça e recolhia a bênção. Os garotos desapareciam da rua quando viam o vulto centenário do feiticeiro. Diziam baixinho:

    – Jubiabá vem aí.

    E disparavam na carreira para se esconder nas casas.

    Jubiabá trazia sempre um ramo de folhas que o vento balançava e resmungava palavras em nagô. Vinha pela rua falando sozinho, abençoando, arrastando a calça velha de casimira em cima da qual o camisu bordado se oferecia ao capricho do vento como uma bandeira. Quando Jubiabá entrava para rezar a velha Luísa, Antônio Balduíno corria para a rua. Mas já sabia que a dor de cabeça da velha passaria.

    Antônio Balduíno não sabia o que esperar de Jubiabá. Respeitava.o mas com um respeito diferente do que tinha pelo Padre Silvino, por sua tia Luísa, pelo Lourenço da venda, por Zé Camarão e mesmo pelas figuras lendárias de Virgulino Lampião e Eddie Polo. Jubiabá passava encolhido pelos becos do morro, os homens o ouviam com respeito; recebia cumprimento de todos, e em sua porta paravam, de vez em quando, automóveis de luxo. Um dia um menino disse a Balduíno que Jubiabá virava lobisomem. Outro afirmou que ele tinha o diabo preso numa garrafa.

    Da casa de Jubiabá vinham em certas noites sons estranhos de estranha música. Antônio Balduíno se remexia na esteira, ficava inquieto, parecia que aquela música o chamava. Batuque, sons de danças, vozes diferentes e misteriosas. Luísa lá estava com certeza com sua saia de chita vermelha e de anágua. Antônio Balduíno nestas noites não dormia. Na sua infância sadia e solta, Jubiabá era o mistério.

    Eram bem gostosas as noites do Morro do Capa-Negro. Nelas o moleque Antônio Balduíno aprendeu na sua infância muita coisa e principalmente muita história. Histórias que homens e mulheres contavam reunidos em frente à por ta dos vizinhos nas longas conversas das noites de lua. Nas noites de domingo, quando não havia macumba na casa de Jubiabá muitos se reuniam no passeio da velha Luísa, que como era dia santificado não ia vender o seu mingau. Nas outras portas, outros grupos conversavam, tocavam viola, cantavam, bebiam um gole de cachaça que sempre havia para os vizinhos, mas nenhum era tão grande como o que se reunia na frente da porta da velha Luísa. Até Jubiabá aparecia em certos dias e também contava velhos casos, passados há mui tos anos, e misturava tudo com palavras em nagô, dava conselhos e dizia conceitos. Ele era como que o patriarca daquele grupo de negros e mulatos que morava no Morro do Capa-Negro em casas de sopapo, cobertas com zinco. Quando ele falava todos o escutavam atentamente e aplaudiam com a cabeça, num respeito mudo. Nessas noites de conversas Antônio Balduíno abandonava os companheiros de corridas e de brincadeiras e se postava a ouvir. Dava a vida por uma história, e melhor ainda se essa história fosse em verso.

    Era por isso que ele gostava tanto de Zé Camarão, um desordeiro que vivia sem trabalhar e que até já era fichado na polícia como malandro. Zé Camarão tinha duas grandes virtudes para Antônio Balduíno: era valente e cantava ao violão histórias de cangaceiros célebres. Tocava também coisas tristes, valsas e canções, nas festas dos casebres do Morro do Capa-Negro e em todas as outras festas pobres da cidade, nas quais era elemento indispensável. Era um mulato alto e amarelado, eternamente gingando o corpo, que criara fama desde que desarmara dois marinheiros com alguns golpes de capoeira. Havia quem não gostasse dele, quem o olhasse com maus olhos, porém Zé Camarão passava horas e horas ensinando aos garotos do morro o jogo da capoeira, tendo uma paciência infinita com eles. Rolava no chão com os moleques, mostrava como se aplicava um rabo-de-arraia, como se arrancava o punhal da mão de um homem. Era amado pela garotada que o queria como a um ídolo. Antônio Balduíno gostava de andar com ele, de ouvir o desordeiro contar casos da sua vida. E como já era o melhor aluno de capoeira que ria também aprender violão.

    – Você me ensina, Zé Camarão?

    – Deixa estar que eu ensino.

    Levava recados para as namoradas de Zé Camarão e o defendia quando falavam mal dele:

    – É meu amigo. Por que não vai dizer na frente dele? Tem medo, taí.

    Zé Camarão era dos certos na conversa em frente à porta da negra Luísa. Vinha gingando o corpo no seu jeitão malandro e ficava de cócoras pitando um cigarro barato. Ouvia os casos, as histórias, as discussões, sem falar. Porém quando alguém contava um caso que impressionava os ouvintes, Zé Camarão descansava o cigarro atrás da orelha e falava:

    – Hum! Hum! Isso não é nada comparado com um causo que passou-se comigo.

    E vinha uma aventura, uma história cheia de detalhes para que ninguém duvidasse da sua veracidade. E quando via nos olhos de algum dos assistentes um sinal de dúvida o mulato não se alterava:

    – Se duvida, seu mano, pergunte a Zé Fortunato que estava comigo.

    Sempre havia alguém que estivera com ele. Sempre uma testemunha ocular que não o deixava mentir. E em todas as coisas de barulho que aconteciam na cidade, Zé Camarão estava metido pelo que ele dizia. Se conversavam sobre um crime ele interrompia:

    – Eu estava bem pertinho...

    E contava a sua versão na qual ele tinha sempre um papel saliente. Mas quando era preciso, brigava de verdade. Que o dissesse o Lourenço da venda que tinha na cara dois talhos de navalha. Não quisera ele, espanhol sujo!, botar Zé Camarão para fora da sua venda? As cabrochas que ouviam as conversas olhavam para ele. Gostavam do seu jeito de desordeiro, da sua fama de corajoso, do modo imaginoso que ele tinha para contar um caso fazendo comparação com elas e com coisas delas, o sorriso, os olhos, a boca vermelha, e gostavam especialmente de vê-lo cantar ao violão com sua voz cheia.

    No meio das conversas quando alguém acabava de contar um caso e todos ficavam silenciosos uma cabrocha lembrava sempre:

    – Cante pra gente, Seu...

    – Ora, a conversa tá tão boa, moça – ele se fazia modesto.

    – Deixe disso, Seu Zé, cante...

    Mas eu deixei o violão em casa...

    – Não tem nada... Baldo vai buscar...

    Antônio Balduíno já estava correndo rumo ao casebre onde Zé Camarão morava. Mas este fazia-se rogar:

    – Hoje não tou com a voz boa... Me desculpe, moças.

    Agora todos pediam:

    – Cante, Zé Camarão.

    – Tá bom, vou cantar uma coisa só...

    Mas cantava muitas, tiranas, cocos, sambas, cantigas saudosas, canções tristes que enchiam os olhos d’água, e ABC aventurosos que deliciavam Antônio Balduíno:

             “Adeus Saco do Limão

             lugar onde eu nasci

             Eu vou preso pra Bahia

             levo saudades de ti”

    Era o ABC do cangaceiro Lucas da Feira, um dos heróis prediletos de Antônio Balduíno:

             “Entusiasmado eu carreguei

             pompa e muita grandeza

             pois no meu rancho eu tinha

             bote de rapé à princesa.

             Fui preso para a Bahia

             fizeram grande função

             Mas eu desci a cavalo

             e os guardas de pés no chão”.

    Faziam comentários baixinho:

    – Foi um danado esse Lucas.

    – Dizque tinha uma pontaria cruel.

    – Dizque era um homem bom...

    – Bom?

    – Só roubava rico... Pra ir buscar o dinheiro dos pobres...

             “Homem pobre nunca roubei

             pois não tinha o que roubar

             mas os ricos de carteira

             a nenhum deixei escapar.”

    – Não tava dizendo?

    – Macho bom de verdade.

             “Mulatas de bom cabelo

             cabrinhas de boa cor

             crioulinhas só por debique

             branquinhas não me escapou.”

    Aí Zé Camarão passava os olhos doces por sobre o grupo de cabrochas e sorria o seu melhor sorriso. Elas o admiravam como se ele fosse o próprio Lucas da Feira. Os homens soltavam gargalhadas. Depois vinha a fidelidade do cangaceiro à sua palavra e o seu heroísmo fanfarrão:

             “Não digo quem é meu sócio

             nem me convém a dizer

             se hoje me vejo perdido

             não deito os outros a perder.

             A grande tela redonda

             em toda aquela redondeza

             me chamavam capitão

             capitão sou com grandeza”.

    Porém tinha uma hora em que a voz de Zé Camarão era mais cheia e os seus olhos mais doces. Era quando cantava a letra U:

             “u é letra vogal

             com a, e, i, o, também

             Adeus Caldeirão da Feira

             adeus também mais alguém”.

    Olhava para a sua preferida e naquele momento ele era Lucas da Feira, o cangaceiro, o assassino, que no entanto amava alguém.

    Terminava debaixo de aplausos:

             “Zombei de moços e velhos

             zombei também de meninos

             hoje chegou o meu dia

             vou cumprir o meu destino”.

    Vinha mais um samba. Bem saudoso, cantado com a voz mais triste de Zé Camarão:

             “Vou-me embora desta terra

             que só tem mulher malvada...

             vou-me embora desta terra

             levando uma saudade...

    As mulheres gostavam:

    Ë tão bonito.

    – Triste de fazer dó.

    Uma mulher de barrigão, grávida de muitos meses, contava a outra a sua história, sobriamente:

    – Enquanto eu era bonita ele gostava de mim. Não havia presente que não me desse. Disse até que ia casar no padre e no juiz.

    – No juiz e no padre?

    – Sim, minha filha.. . Homem quando quer enganar é pior que o Sujo...

    “Prometeu um mundão de coisas... Eu feito besta acreditei nele... Levamos por aí uma vida ordinária... Me encheu desse jeito... Tive que trabalhar e amarelei, perdi a cor, ele foi embora com uma cabrocha vagabunda que vivia abrindo os dentes pra ele..”

    – Por que você não faz feitiço pra ele voltar?

    – Pra quê? Estou cumprindo o meu destino... O destino é Deus quem dá.

    – Pois olhe: eu se fosse você fazia feitiço pelo menos para dar doença na bicha que levou seu homem... Então vê lá... Uma mulher leva meu homem e fica assim... Igual a nada? Fica não, meu amor... Botava feitiço, dava lepra nela e ele voltava direitinho... E com pai Jubiabá que bota tão bem, feitiço tão forte.

    – Pra quê? Destino é coisa feita lá em cima – apontava para o céu. – A gente já vem com o seu para o mundo, tem de cumprir... Esse que está aqui dentro – mostrava a barriga enorme – já tem o dele prontinho.

    A velha Luísa apoiava:

    – Tem razão, minha filha. É isto mesmo.

    A conversa generalizava:

    – Pois olhe: você conhece Gracinha, uma morena que mora no Guindaste dos Padres?

    Uma mulherzinha conhecia:

    – Não é uma sem dentes, feia como uma jararacuçu?

    – Essa mesmo... Pois olhe: com aquela cara toda tomou o homem de Ricardina que é um mulherão... Feitiço forte que Jubiabá fez.

    – O feitiço ela fez na cama – riu um mulato.

    – Dizque também que Balbino morreu foi de feitiço,

    – Foi nada... Aquele morreu foi de ruim que era... Ruim como as cobras.

    Um negro velho gordo, que raspava a sola do pé com um canivete, contou em voz baixa:

    – Vosmecês sabem o que ele fez com o velho Zequiel? Pois foi coisa de arrepiar o cabelo... Vosmecês sabem que o velho era homem direito... Homem sério até ali. Eu conheci ele muito, trabalhamo junto de pedreiro. Um homem direito... Não havia dois na terra. Mas um dia teve a má sorte de defrontar com Balbino... O coisa-ruim se meteu de amigo do velho só pra levar a filha dele. Vosmecês se lembram da Rosa. Eu bem me lembro... Era a cabrocha mais linda que eu olhei com esses olhos que a terra há de comer. Pois Balbino se meteu de namoro com ela, só falava em casar.

    A mulher grávida disse:

    – Igualzinho ao que Roque fez comigo.

    – Chegaram a acertar o dia... Mas não vê que uma noite o velho Zequiel foi trabalhar. Nesse tempo ele estava no cais do porto... Tinha um vapor pra carregar... Balbino com a parte de noivo entrou pela casa adentro, levou a Rosa pra mostrar o enxoval que estava guardado no quar to do velho. Derrubou ela na cama e ela disse que gritava e não queria. De formas que ele deu nela até que a deixou toda rebentada mesmo cheia de sangue que nem assassinada. E ainda teve a calma para abrir a mala do velho e tirar o dinheiro que tinha lá, a miséria de cinqüenta mil-réis que era para a festa do casamento. Quando o velho chegou virou doído. Aí Balbino, que não era mesmo homem, só tinha era garganta, ficou com medo do velho. Passou escondido até que um dia reuniu mais dois e pegaram o Zequiel no escuro. Deram no velho de matar... Nem foi preso... Dizque tinha proteção de gente alta.

    – Dizque mesmo... Um dia um soldado deu nele e prendeu ele. Sabem que aconteceu? Balbino foi solto, o soldado comeu cadeia.

    – Dizque ele vivia dizendo onde tinha candomblé pra polícia fechar.

    Ninguém havia reparado a chegada de Jubiabá. O macumbeiro falou:

    – Mas ele morreu de morte feia.

    Os homens baixaram a cabeça, bem sabiam que eles não podiam com Jubiabá que era pai.de.santo.

    – Morreu de morte feia. Nele o olho da piedade vazou. Ficou só o da ruindade. Quando ele morreu o olho da piedade abriu de novo.

    Repetiu:

    – O olho da piedade vazou. Ficou só o olho da ruindade...

    Então um negro troncudo chegou para perto de Jubiabá:

    – Como é, pai Jubiabá?

    – Ninguém deve fechar o olho da piedade. É ruim fechar o olho da piedade... Não traz coisa boa.

    Disse em nagô então e quando Jubiabá falava nagô os negros ficavam trêmulos:

    – Õjú ànun fó ti iká, li ôkú.

    De súbito o negro se jogou aos pés de Jubiabá e contou:

    – Eu já fechei o olho da piedade, gente... Um dia eu fechei o olho da piedade...

    Jubiabá olhou o negro com os olhos apertados. Os outros, homens e mulheres, se afastaram.

    – Foi um dia lá no sertão alto. Estava tudo seco. Boi morria, homem morria, tudo morria. A gente fugiu, a gente era um bocado, mas foi tudo ficando pelo caminho. Depois só era eu e João Janjão. Um dia ele me carregou nas costas que eu já não podia mais com as pernas... Ele tinha o olho da piedade bem aberto e a gente tinha a garganta seca. O sol era ruim, gente... Cadê água naquele mundão sem fim? Ninguém sabia, não... Um dia a gente arranjou numa fazenda uma cabaça d’água pra continuar a viagem. João Janjão ia com ela, só dava água de ração. A gente ia morto de sede. Foi quando a gente encontrou outro homem, um branco que já estava quase morrendo de sede. João Janjão quis dar água, eu não deixei. Mas eu juro que só tinha um restinho, nem dava pra eu e ele... E ele ainda queria dar para o homem branco... Ele tinha o olho da piedade bem aberto... Mas o meu sede tinha secado. Tinha ficado somente o da ruindade... Ele quis dar água eu briguei com ele... E na raiva eu matei ele. Ele tinha me levado um dia todo nas costas...

    E o negro ficou olhando o negrume da noite No céu brilhavam estrelas inúmeras. Jubiabá estava com os olhos fechados.

    – Ele tinha me levado nas costas um dia todo... Ele tinha o olho da piedade bem aberto... Eu quero tirar ele da minha frente e não posso... Ele está ali, bem ali, olhando pra mim...

    Passou a mão nos olhos querendo afastar qualquer coisa. Mas não conseguia e olhava fixo.

    – Me levou um dia todo nas costas...

    Jubiabá repetiu monotonamente:

    – É ruim vazar o olho da piedade. Traz desgraça...

    Então o homem levantou e desceu o morro levando a sua história.

    Antônio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula proveitosa. Única escola que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim se educavam e escolhiam carreiras. Carreiras estranhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que não exigiam muita lição: malandragem, desordeiro, ladrão. Havia também outra carreira: a escravidão das fábricas, do campo, dos ofícios proletários.

    Antônio Balduíno ouvia e aprendia.

    Um dia um homem chegou de viagem e se aboletou na casa de Dona Maria, uma mulata gorda que diziam estar enriquecendo à custa dos clientes de Jubiabá. O homem vinha consultar o macumbeiro por causa de uma dor antiga e martirizante que tinha na perna direita. Os médicos já haviam desistido há muito. Falavam nomes complicados e davam remédios caros. E o homem indo para trás, a perna cada vez pior, ele sem poder trabalhar de tanta dor.

    Então resolveu fazer a viagem só para vir consultar o pai-de-santo Jubiabá que curava tudo na sua macumba do Morro do Capa.Negro.

    O homem vinha de Ilhéus, a cidade rica do cacau, e quase destrona Zé Camarão do lugar de honra que ocupava ante Antônio Balduíno.

    É que o homem, tendo se curado radicalmente em duas sessões na casa de Jubiabá, veio no domingo conversar na porta da velha Luísa. Todos o tratavam com grande deferência, pois contavam que ele era homem de dinheiro, homem que enriquecera no sul do Estado e que dera um conto de réis a Jubiabá. Vestia boa roupa de casimira e até uma carta que chegara para Sinhá Ricardina levaram para ele ler. Porém ele disse:

    – Eu não sei ler, dona.

    Era de um irmão dela que estava morrendo de fome no Amazonas. O homem de Ilhéus deu cem mil-réis. Assim todos ficaram calados quando ele chegou para o grupo que estava na porta de Luisa.

    – Se sente à vontade, Seu Jeremias – Luísa oferecia uma cadeira com a palhinha furada.

    – Obrigado, dona.

    E como o silêncio continuasse:

    – Estavam conversando de quê?

    – Pra falar a verdade – respondeu Luís Sapateiro – a gente estava aqui falando na fartura que há na sua zona. No dinheirão que um homem pode ganhar lá.

    O homem baixou a cabeça e só então viram que ele tinha a carapinha quase branca e grandes rugas no rosto.

    – Não é tanto assim... Se trabalha muito e o ganho é pouco.

    – Mas o senhor mesmo é homem de muitas posses...

    – Nada. Tenho uma rocinha e há trinta anos que estou naquela zona. Já tomei três tiros. Lá ninguém está livre de uma traição.

    – Os homens lá são valentes? – mas ninguém ouviu Antônio Balduíno.

    – Pois olhe que já havia muito homem aqui que queria ir com o senhor.

    – Os homens de lá têm coragem? – Antônio Balduíno insistiu.

    O homem passou a mão na carapinha do pretinho e falou para os outros:

    – Lá é uma terra braba... Terra de tiro e de morte...

    Antônio Balduíno estava com os olhos fixos no homem, esperando que ele contasse as coisas daquela terra.

    – Lá se mata para fazer aposta... Os homens apostam como é que um viajante vai cair: se do lado direito, se do canhoto. Casam dinheiro... E atiram só pra ver quem ganha a aposta.

    Olhou para os outros querendo ver o produzindo. Baixou a cabeça e continuou:

    – Tem um negro lá que já pintou o diabo... José Estique... Negro valente que só vendo. Coragem chegou ali e parou... Mas também malvado como ele só... Uma peste em figura de gente.

    – Jagunço?

    – Não é jagunço porque é fazendeiro rico... Zé Estique tem um mundão de fazendas, um nunca acabar de pés de cacau... Mas um número de mortes ainda maior.

    – Nunca foi preso?

    O homem espiou piscando os olhinhos:

    – Preso? – sorriu... – Ele é rico...

    O seu sorriso era um comentário sarcástico. Os outros se olharam admirados. Mas logo compreenderam e continuaram a ouvir silenciosamente o homem de Ilhéus.

    – Sabem o que ele faz? Ele entra em Itabunas montado, e quando passa por um graúdo salta e diz: abra o bolso que eu quero mijar dentro... Não tem homem que não abra... ZÉ Estique tem pontaria boa de verdade. Uma vez entrou em Itabunas e encontrou uma moça branca, filha do intendente. Sabe o que fez? Moça, segura aqui que eu quero mijar...

    “E era pra moça segurar nas coisas dele...”

    – E ela segurou? – Zé Camarão ria em gargalhadas altas.

    – Que jeito ela tinha, coitadinha.

    Agora os homens todos riam e simpatizavam com Zé Estique. E as cabrochas baixavam o rosto envergonhadas.

    – Matou, furtou; fez mal a um mundo de moças. Tinha coragem como doido.

    – Já morreu?

    – Morreu nas mãos de um gringo fraquinho de lá...

    – Como foi?

    – Um gringo apareceu por lá podando roça de cacau. Até ele chegar ninguém podava as roças. Ele fez dinheiro, comprou uma rocinha... Aí pegou e foi pra terra dele. Mas ele ia era casar. Voltou com uma branca tão alva, que até parecia uma boneca dessas de porcelana.

    “A rocinha do gringo era pertinho da fazenda de José Estique.

    “Um dia Estique passou e viu a gringa estendendo roupa no quaradouro. Pegou e disse pra Nicolau.

    – Quem é Nicolau?

    – O gringo... Pegou e disse pra ele: deixa essa boneca aí, moço, que de noite eu venho buscar ela. O gringo ficou com muito medo e foi contar pra um vizinho de roça. O vizinho disse que ele ou deixava ou morria porque Zé estique não era homem de duas palavras. Disse que vinha buscar, vinha mesmo. Não tinha mais tempo pra fugir, e fugir pra onde? O gringo voltou que não podia mais. Não queria dar a mulher tão bonita que ele tinha ido buscar na terra dele. Mas então tinha que morrer e Zé Estique ainda por cima ficava com a mulher.

    – O que foi que ele fez? – a assistência não se continha mais. Só Zé Camarão sorria como se conhecesse uma história mais impressionante que a do homem de Ilhéus.

    – De noite Zé Estique veio... Saltou do cavalo e, em vez de encontrar a mulher, encontrou mas foi o gringo atrás de um pau com um machado desta idade. Abriu a cabeça do negro meio a meio... - Uma morte desgraçada.

    Uma mulher disse:

    – Merecia... Bem feito.

    Outra se benzeu amedrontada. E o homem de Ilhéus se demorou contando histórias e mais histórias de mortes e tiros da sua terra heróica. E quando ele foi embora, curado, Antônio Balduíno sentiu uma tristeza de quem se separa de uma namorada. É que, nas conversas das noites de lua do Morro do Capa-Negro, o moleque Antônio Balduíno ouvia e aprendia. E antes de ter dez anos ele jurou a si mesmo que um dia havia de ser cantado num ABC, e as suas aventuras seriam relatadas e ouvidas com admiração por outros homens, em outros morros.

    A vida do Morro do Capa-Negro era difícil e dura. Aqueles homens todos trabalhavam muito, alguns no cais, carregando e descarregando navios, ou conduzindo malas de viajantes, outros em fábricas distantes e em ofícios pobres: sapateiro, alfaiate, barbeiro. Negras vendiam arroz-doce, munguzá, sarapatel, acarajé, nas ruas tortuosas da cidade, negras lavavam roupa, negras eram cozinheiras em casas ricas dos bairros chiques. Muitos dos garotos trabalhavam também. Eram engraxates, levavam recados, vendiam jornais. Alguns iam para casas bonitas e eram crias de famílias de dinheiro. Os mais se estendiam pelas ladeiras do morro em brigas, correrias, brincadeiras. Esses eram os mais novinhos. Já sabiam do seu destino desde cedo: cresceriam e iriam para o cais onde ficavam curvos sob o peso dos sacos cheios de cacau, ou ganhariam a vida nas fábricas enormes. E não se revoltavam porque desde há muitos anos vinha sendo assim: os meninos das ruas bonitas e arborizadas iam ser médicos, advogados, engenheiros, comerciantes, homens ricos. E eles iam ser criados destes homens. Para isto é que existia o morro e os moradores do morro. Coisa que o negrinho Antônio Balduíno aprendeu desde cedo no exemplo diário dos maiores. Como nas casas ricas tinha a tradição do tio, pai ou avô, engenheiro célebre, discursador de sucesso, político sagaz, no morro onde morava tanto negro, tanto mulato, havia a tradição da escravidão ao senhor branco e rico. E essa era a única tradição. Porque a da liberdade nas florestas da África já a haviam esquecido e raros a recordavam, e esses raros eram exterminados ou perseguidos. No morro só Jubiabá a conservava, mas isto Antônio Balduíno ainda não sabia. Raros eram os homens livres do morro: Jubiabá, Zé Camarão. Mas ambos eram perseguidos: um por ser macumbeiro, outro por malandragem. Antônio Balduíno aprendeu muito nas histórias heróicas que contavam ao povo do morro e esqueceu a tradição de servir. Resolveu ser do número dos livres, dos que depois teriam ABC e modinhas e serviriam de exemplo aos homens negros, brancos e mulatos, que se escravizavam sem remédio. Foi no Morro do Capa-Negro que Antônio Balduíno resolveu lutar. Tudo que fez, depois, foi devido às histórias que ouviu nas noites de lua na porta de sua tia. Aquelas histórias, aquelas cantigas tinham sido feitas para mostrar aos homens o exemplo dos que se revoltavam. Mas os homens não compreendiam ou já estavam muito escravizados. Porém alguns ouviam e entendiam. Antônio Balduíno foi destes que entenderam.

    Havia uma mulher chamada Augusta das Rendas que vivia no morro e morava pegado à casa de Luísa. Chamavam-na das Rendas porque ela passava o dia fazendo rendas que vendia, aos sábados, na cidade. Quando pensavam que ela estava olhando para uma determinada coisa, ela estava era com os olhos perdidos no céu, numa coisa invisível. Era das assíduas na macumba de Jubiabá e, se bem não fosse negra, gozava ante o pai-de-santo de um grande prestígio. Dava tostões a Antônio Balduíno, tostões que ele gastava comprando queimadas, ou fazendo vaca para comprar uma carteira de cigarro vagabundo, de sociedade com Zebedeu.

    Inventavam histórias sobre a vida de Augusta, pois ela aparecera um dia no morro sem dizer de onde vinha nem pra onde ia. Ficou. Ninguém sabia nada da sua vida. Mas, como ela tinha aquele olhar perdido e um riso triste, imaginavam coisas sobre ela, histórias de infelicidades amorosas, de aventuras tristes. Ela mesma, quando lhe perguntavam algo sobre sua vida, dizia somente:

    – Minha vida é um romance... É só escrever...

    Quando estava vendendo rendas (e ainda contava os metros por um processo muito rudimentar: juntando a renda e a mão direita por baixo do queixo e estendendo o braço esquerdo) não raro se atrapalhava:

    – Um... dois... três...– parava zangada e agitada – vinte o quê... Quem foi que disse que é vinte? Eu ainda estou em três...

    Olhava para a freguesa e explicava:

    – Ele me atrapalha que a senhora não imagina... Eu estou contando direito, ele começa a contar no meu ouvido depressa que faz medo. Quando eu ainda estou em três de já está em vinte.... Eu não posso com ele.

    E fazia súplicas:

    – Vá embora que eu quero vender minhas rendas direito... Vá embora...

    – Mas quem é ele, Sinhá Augusta?

    – Quem é, tá aí... Quem pode ser? E esse malvado que vive me acompanhando. Nem depois de morto deixa de me perseguir.

    Outras vezes o espírito resolvia se divertir e então enlinhava as pernas de Augusta. Ela parava no meio da rua e com uma paciência imensa começava a tirar as linhas que ele tinha passado nas suas pernas.

    – O que é que está fazendo, Sinhá Augusta? – perguntavam

    – Não está vendo? Estou tirando as linhas que aquele desgraçado pôs nas minhas pernas para eu não poder andar e não vender as minhas rendas... Ele quer que eu morra de fome...

    E continuava a tirar as linhas invisíveis. Mas se lhe perguntavam alguma coisa sobre quem teria sido aquele espírito, Augusta nada dizia. Ficava olhando ao longe e sorria seu sorriso triste. E as mulheres diziam:

    – Augusta é pancada porque sofreu muito... Vida triste a dela...

    – Mas o que foi que ela teve?

    – Cala a boca. Cada qual sabe da sua vida.

    Foi Augusta das Rendas quem primeiro viu o lobisomem que apareceu no morro. Era por uma noite sem lua, quando a escuridão dominava nos becos enlameados do morro e só raros fifós brilhavam nas casas. Noite assombrada, noite para ladrões e assassinos. Augusta vinha pela ladeira quando ouviu, no mato, um ronco de estremecer. Olhou e viu os olhos de fogo do lobisomem. Até não acreditava muito em histórias de lobisomem e mulas-de-padre. Mas daquela vez ela tinha visto com os seus olhos. Largou o cesto onde levava as rendas e disparou numa carreira até a casa de Luísa. Contou a novidade com grandes gestos de espanto, a voz ainda engasgada, os olhos desta vez esbugalhados, as pernas tremendo da carreira.

    – Beba um gole d’água – ofereceu Luisa.

    – É bom pra passar o susto... – agradecida.

    Antônio Balduíno ouviu e tratou de espalhar a notícia. Dentro em pouco todo o morro sabia que aparecera um lobisomem e na noite seguinte mais três pessoas viram o monstro: uma cozinheira que voltava do trabalho, Ricardo tamanqueiro e Zé Camarão, que jogara o punhal no bicho que deu uma grande gargalhada e se meteu nos matos. E nas noites que se seguiram os demais moradores do morro foram vendo a assombração que ria e fugia. E o medo tomou conta do morro, fechavam-se cedo as portas, as pessoas não saíam à noite. Zé Camarão propôs que fizessem uma batida para pegar o bicho, porém poucas pessoas tiveram coragem. Só mesmo o negrinho Antônio Balduíno exultou com a proposta e escolheu pedras pontiagudas para o seu bodoque. As notícias do lobisomem continuavam: Luísa viu sua sombra num dia em que voltara mais tarde, Pedro levara uma carreira do bicho. O morro vivia inquieto e só se falava naquilo. Até um homem do jornal apareceu e tirou fotografias. De tarde saiu a notícia, dizendo que não tinha lobisomem nenhum, que era invenção do pessoal do Morro do Capa-Negro. Seu Lourenço da venda comprou o jornal mas ninguém acreditou no que ele dizia porque tinham visto o lobisomem e lobisomem foi coisa que sempre existiu. Os meninos comentavam o caso nos intervalos das carreiras:

    – Mamãe me disse que é menino ruim que vira lobisomem... Menino que faz maldade.

    – É, sim. Crescem as unhas, depois vira lobisomem numa noite de lua grande.

    Antônio Balduíno se entusiasmou:

    – Vamos virar lobisomem?

    – Vira você que quer ir para o inferno.

    – Você é uma besta, um mofino.

    – Por que você não vira?

    – Pois vou virar, pronto. Como é?

    Havia um menino que sabia como era e contou:

    – Você deixa crescer as unhas, o cabelo, não se lava mais, toda noite vai ver a lua. Faça malcriação pra sua tia. Quando for ver a lua fique de quatro pés...

    – Quando você tiver de quatro pés me chame que eu meto..

    – Eu meto é o braço em você... Sua mãe está em casa por que não mete nela?

    O outro menino se levantou. Antônio Balduíno foi dizendo.

    – Não gostou dê seu jeito.

    – Pois dou mesmo – e largou a mão na cara do negrinho.

    Rolaram pelo chão. A garotada torcia. O menino era mais forte que Antônio Balduíno, porém este era o melhor aluno de Zé Camarão e derrubou logo o outro. E só pararam de brigar quando Seu Lourenço da venda pulou o balcão e desapartou:

    – Parece que não têm pai.

    O garoto foi para um canto e Antônio Balduíno com a roupa rasgada perguntou ao que sabia como era que se virava lobisomem:

    – É preciso mesmo andar de quatro pés?

    – É sim, pra se acostumar...

    – E depois?

    – Depois vai virando... Vai ficando cheio de cabelos, começa a dar pinotes como cavalo, a cavar a terra com as unhas. Chega um dia, está lobisomem. Sai correndo pelo morro, assombrando a gente.

    Antônio Balduíno se virou para o menino que tinha brigado com ele:

    – Quando eu virar lobisomem o primeiro que eu pego é você...

    Foi saindo. Mas do meio do caminho voltou para perguntar:

    – E para desvirar como é?

    – Ah! Isso não sei, não...

    De tarde, o menino que tinha brigado com ele se chegou e disse:

    – Olhe, Baldo, você devia começar era pegando o Joaquim que disse que você era fundo de futebol.

    – Ele disse mesmo?

    – Juro

    – Por Deus?

    – Por Deus.

    – Então ele me paga.

    O outro deu um pedaço de cigarro a Antônio Balduíno e fizeram as pazes.

    Antônio Balduíno tentou virar lobisomem. Fez malcriação à velha Luísa, levou duas boas surras, deixou crescer as unhas e não cortava mais a carapinha. Nas noites de lua ia para o fundo da casa e ficava de quatro, andando assim de um lado para outro. E não vierava. Ia se desiludindo, já andava aborrecido com as pilhérias dos garotos que todos os dias perguntavam quando era que ele virava lobisomem, quando pensou que não era bastante mau para virar o bicho. Resolveu então fazer uma maldade muito grande. Passou vários dias matutando o que faria, quando, uma tarde, viu Joana, uma pretinha mimada, brincando com as bonecas. Tinha muitas que Seu Eleutério trazia, feitas de pano, “bruxas” pretas e brancas, às quais dava nomes de conhecidos. Fazia vestidos para elas e passava o dia brincando na porta de casa. Realizava batizados e casamentos daqueles bonecos todos, e eram dias de festas para a garotada do morro.

    Ainda se lembravam da festa que Joana dera quando batizara a Iracema, uma boneca de porcelana, que seu padrinho lhe ofertara no dia de seu aniversário. Antônio Balduíno foi se aproximando com o plano já formado. E chegou com a voz amiga e doce:

    – O que é isto, Joana?

    – Minha boneca está namorando.

    – É bonita... Quem é o namorado?...

    O namorado era um polichinelo de pernas bambas.

    – Você quer ser o padre?

    Antônio Balduíno queria era pegar o polichinelo. Mas Joana disse que não e fez um biquinho de choro.

    – Não pegue que eu conto a mamãe... Vá embora...

    Antônio Balduíno adoçou mais a voz, sorriu, baixou os

    – Deixe, Joana. Deixe eu pegar nele.

    – Não, que você quer quebrar. – E segurou o boneco contra o peito.

    Antônio Balduíno se assustou como um ladrão pegado em flagrante.   

    Como ela teria adivinhado? Sentiu medo e quis recuar. Mas Joana fazia novamente o biquinho de choro, as lágrimas estavam a saltar dos olhos e ele não resistiu. Ficou como cego, como alucinado, atirou-se em cima dos bonecos e rebentou quantos pôde. Joana ficou ali mesmo parada, chorando sem gritos. As lágrimas pingavam, escorriam pelo rosto, se metiam na boca. Antônio Balduíno ficou espiando, também parado, mas achando Joana bonita com os olhos chorando. De repente a pretinha olhou as bonecas rebentadas e se largou num choro alto, cheio de gritos. Antônio Balduíno, que antes estava com pena e achava ela bonita, ficou com raiva. Ficou encostado, gozando o choro. Podia ter fugido e talvez se escondesse a tempo de evitar a surra, porque a velha Luísa, quando a raiva passava, achava graça e não batia mais. Porém ficou encostado gozando na sua raiva aquele choro sincero. Só saiu dali arrastado. Apanhou da porta de Joana até a cozinha de casa. Neste dia nem pretendeu furtar o corpo às chicotadas. Ainda tinha diante dos olhos a figura de Joana, as lágrimas caindo, entrando pela boca. Depois ficou amarrado no pé da mesa e aos poucos o gozo foi acabando. Então, como não tinha o que fazer, ficou brincando de matar formigas. Um vizinho disse:

    – Menino judeu... Esse acaba criminoso.

    Não virou lobisomem. Porém foi obrigado a lutar com uns dois garotos e a rebentar a cabeça de um terceiro para conseguir recuperar o seu prestígio entre os moleques do morro. Prestígio que ficara seriamente abalado com ele não ter conseguido se transformar em assombração. Também o outro lobisomem desapareceu, depois que Jubiabá fez uma reza forte na força da lua cheia, de cima do morro, acompanhado de quase todos os habitantes. Rezou com um ramo de folhas, mandou que o bicho fosse embora, depois jogou o ramo na direção em que o lobisomem fora visto e a assombração voltou para o lugar de onde viera e deixou em paz os moradores do Morro do Capa-Negro. Nunca mais o lobisomem voltou. Mas ainda hoje se fala dele nas conversas do morro.

    Jubiabá, que ninguém sabia quantos anos carregava no costado e que morava no Morro do Capa-Negro muito antes de lá haver qualquer outro daqueles habitantes, explicou a história do lobisomem:

    – Ele já apareceu muitas vezes. Já fiz ele ir embora um bocado de vez. Mas ele volta e tem de voltar enquanto não pagar os crimes que cometeu aqui embaixo. Ele há de voltar muitas vezes ainda.

    – Quem é ele, pai Jubiabá?

    – Ah! ocê num sabe... Pois ele é senhor branco que era dono de uma fazenda. Isso foi nos tempos passados, ns tempos da escravidão de negro. A fazenda dele ficava bem aqui onde nós mora agora. Bem aqui. Ocês não sabe por que esse morro chama do Capa-Negro? Ah! ocês não sabe... Pois é porque esse morro era fazenda desse senhor. E ele era homem malvado. Gostava que negro fizesse filho em negra para ele ganhar escravo. E quando negro não fazia filho ele mandava capar negro... Capou muito negro... Branco ruim... Por isso esse morro é do Capa-Negro e tem lobisomem nele. O lobisomem é senhor branco. Ele não morreu. Era ruim demais e uma noite virou lobisomem e saiu pelo mundo assustando gente. Agora ele vive procurando o lugar da casa dele que era aqui no morro. Ele ainda quer capar negro.

    – Deus t’esconjure.

    – Ele que venha me capar que ele vai ter – Zé Camarão ria.

    – Negro que ele capou era avô, bisavô de nós... Ele procura nós pensando que ainda somos escravo dele.

    – Mas negro não é mais escravo.

    – Negro ainda é escravo e branco também – atalhou um homem magro que trabalhava no cais. – Todo pobre é ainda escravo. Escravidão ainda não acabou.

    Os negros, os mulatos, os brancos baixaram a cabeça. Só Antônio Balduíno ficou com a cabeça erguida. Ele não ia ser escravo.

    Não era muito popular no morro o negrinho Antônio Balduíno. Não que fosse pior que os outros. Brincava com eles, jogava como eles futebol com bola feita de bexiga de boi, ia espiar as negras mijarem no areal que ficava por detrás da Baixa dos Sapateiros, furtava frutas nos tabuleiros, fumava cigarros baratos, dizia palavrões cabeludos. Porém não era por estas coisas que não gostavam dele. Não gostavam porque era quem pensava todas as maldades que os garotos faziam no morro; saíam da cabeça dele todas as idéias de brincadeiras esquisitas, de molequeiras inconfessáveis.

    Não fora dele a idéia de irem todos os moleques do morro assistir à festa do Bonfim? Saíram por volta das três horas da tarde e até as três da manhã ainda não haviam chegado. As mães corriam aflitas de casa em casa, algumas choravam, os pais saíram a procurar. Para os meninos é que a aventura foi admirável: andaram a cidade quase toda, gozaram a festa até o fim, brincaram ate cansar e só se lembraram de voltar quando já não agüentavam mais de sono. Haviam furtado tabuleiros de negras que vendiam doces, tinham beliscado muita coxa de moça, tinham brigado também. Quando voltaram, já dia claro, iam amedrontados na certeza da surra. E diziam aos pais:

    – Foi Balduíno quem me chamou...

    Porém neste dia a velha Luísa não bateu em Balduíno. Alisou a cabeça do sobrinho, dizendo:

    – Eles foram porque quis, não é, meu filho?

    Também Jubiabá gostava de Antônio Balduíno. Falava com ele como se ele fosse um homem. E o pretinho ia tomando amizade ao macumbeiro.

    Respeitava-o porque ele sabia tudo e solucionava todas as questões entre os homens do morro. E curava todas as doenças e fazia feitiços fortes e era livre, não tinha patrão nem horário de trabalho.

    Noite alta, certa vez, gritos dolorosos de socorro espantaram a paz do morro. As casas se abriram, homens e mulheres saíam para a rua com os olhos meio fechados de sono. Era na casa de Leopoldo. Mas os gritos já tinham acabado, apenas vinham gemidos baixinhos. Correram para lá. A porta de tábua de caixão estava aberta, a tramela rebentada, e dentro Leopoldo estrebuchava com duas facadas no peito. O sangue fazia poça em redor. Leopoldo se suspendeu e depois caiu para não levantar mais. Saiu uma golfada de sangue pela boca e alguém meteu na sua mão uma vela acesa. Falavam em voz baixa. Uma mulher começou a rezar uma oração de moribundos. E a casa se encheu aos poucos.

    Era a primeira vez que alguém entrava na casa de Leopoldo. Ele não queria ninguém lá. Homem de poucas relações, não tinha intimidade, e desde que se mudara para o morro, nunca visitara ninguém. Só uma vez foi à casa de Jubiabá e passou lá muitas horas. Mas ninguém soube o que ele disse ao pai-de-santo. Trabalhava de carpina e bebia muito. Quando bebia na venda de Seu Lourenço ficava ainda mais sorumbático e dava sem motivo socos no balcão. Antônio Balduíno tinha medo dele. E com mais medo ainda ficou quando o viu morto com duas facadas no peito. Nunca se soube quem foi o assassino. Porém, um ano depois, certo dia Balduíno estava correndo pela ladeira quando um homem de calça rasgada e chapéu furado, cara de doente, se aproximou e perguntou:

    – Ó menino, mora aqui um sujeito chamado Leopoldo? Um negro alto, sério.

    – Já sei... Não mora mais, não senhor.

    – Já se mudou?

    – Não. Morreu...

    – Morreu? De quê?

    – De facada.

    – Assassinado?

    – Foi, sim senhor.

    Olhou o homem:

    – O senhor era parente dele?

    – Quem sabe? Me diga, qual é o caminho da cidade?

    – O senhor não quer ir lá em cima saber mais nada? Titia pode lhe dizer... Eu lhe mostro a casa onde Seu Leopoldo morava... Agora é de Seu Zeca...

    O homem tirou da calça rota quinhentos réis e deu a Balduíno.

    – Olha, garoto: se ele não estivesse morto, morria hoje...

    E desceu a ladeira sem esperar resposta. Antônio Balduíno desceu correndo atrás do homem:

    – O senhor não quer saber o caminho da cidade?

    Mas o homem nem olhou para trás. Antônio Balduíno não contou este encontro a ninguém de tanto medo que ficou. E em sonhos a imagem do homem de chapéu furado o perseguiu muito tempo. Parecia que ele vinha de muito longe e estava cansado. Antônio Balduíno pensou que o olho da piedade daquele homem tinha vazado.

    Um, dois, três anos se passaram naquela vida do morro. Os habitantes eram os mesmos, a vida a mesma. Nada mudava. Só as dores de cabeça de Luísa aumentavam. Agora haviam passado a ser quase diárias, pegando a negra logo que ela voltava da venda noturna, do munguzá e do mingau. A negra ficava gritando, botava os vizinhos para fora, vinha Jubiabá e cada vez demorava mais para curar as dores de Luísa. A velha andava esquisita; chegava da rua furiosa, berrando, zangando por tudo, batia em Balduíno por qualquer nada que ele fazia, e depois quando a dor melhorava pegava no sobrinho, botava no colo, catava cafuné na carapinha, chorava baixinho, pedia perdão.

    Antônio Balduíno vivia apalermado, sem entender. Achava a tia incompreensível, com aqueles acessos de raiva e de carinho. E nas brincadeiras, de quando em vez, parava para pensar na tia, na dor de cabeça que a estava matando. Sentia que em breve a perderia e isso confrangia o seu pequeno coração, que, no entanto, já estava tão cheio de amor e de ódio.

    A tarde tinha sido sombria, cheia de nuvens negras. Com a noite veio um vento grosso, pesado, que apertava os homens no pescoço e assoviava nos becos. Enquanto as luzes não acenderam, o vento dominou a cidade, correu com os moleques pelas ladeiras, visitou as mulheres do Beco das Flores e do Beco de Maria Paz, levantou nuvens de pó, invadiu casas e quebrou moringas. Quando as luzes acenderam caiu uma chuva violenta, um temporal como há muito não havia. Os fifós apagavam, não se ouviam vozes nas casas. O morro se fechou nos casebres. Luísa estava se preparando para sair. Antônio Balduíno matava formigas num canto da sala. A tia pediu:

    – Ajuda aqui, Balduíno.

    Ele ajudou a botar uma lata em cima do tabuleiro, que Luísa suspendeu e colocou na cabeça. Passou a mão no rosto de Antônio Balduíno e se dirigiu para a porta. Antes de abrir a tramela, porém, sacudiu com o tabuleiro e as latas no chão, num gesto de raiva, e gritou:

    – Não vou mais.

    Antônio Balduíno ficou mudo de espanto.

    – Ah! Ah! Não vou mais, quem quiser que vá. Ah! Ah!

    – O que é, tia?

    O munguzá corria pelos tijolos do chão. Luísa ficou mais calma e em vez de responder, começou a contar uma historia muito comprida de uma mulher que tinha três filhos, um carpina, o outro pedreiro e o terceiro estivador. Depois a mulher ia ser freira e ela passou a contar a história dos três filhos. Mas a história não tinha pé nem cabeça. Apesar disto uma vez Antônio Balduíno não pôde deixar de rir. Foi quando o carpinteiro perguntou ao diabo:

    – Cadê o seu chifre?

    E o diabo respondia:

    – Dei pra seu pai.

    Foi quando Luísa, que estava no melhor da história atrapalhada, olhou para as latas de munguzá e mingau. Deu um pulo e cantarolou:

             “eu não vou mais...

             nunca mais...

             nunca mais...”

    Aí Antônio Balduíno teve medo de novo e perguntou se ela estava com dor de cabeça. Ela olhou para o sobrinho com uns olhos tão estranhos que Antônio Balduíno recuou até detrás da mesa.

    – Quem é você? Você quer roubar o meu mingau, moleque. Vou te ensinar.

    Correu atrás de Balduíno, que se despencou para a rua e só parou na casa de Jubiabá. A porta estava apenas encostada, ele empurrou e foi entrando. Jubiabá estava lendo um velho livro quando ele entrou.

    – O que é, Baldo?

    – Pai Jubiabá... Pai Jubiabá...

    Nem podia falar. Respirou e começou a chorar.

    – O que é, meu filho?

    – Tia Luísa está atacada.

    O temporal zunia lá fora. A chuva caía em grandes pingos. Mas Balduíno não ouvia nada, só ouvia a voz da tia a perguntar a ele quem era e os seus olhos estranhos, olhos que ele nunca tinha visto em pessoa alguma... E eles foram correndo sob o temporal, a chuva caindo, o vento zunindo. Iam silenciosos.

    Quando chegaram, a casa já estava cheia de vizinhos. Uma mulher dizia a Sinhá Augusta das Rendas:

    – Isso é de carregar aquelas latas na cabeça... Eu sei de uma mulher que também enlouqueceu por causa disto...

    Antônio Balduíno começou novamente a chorar. Augusta discordava da vizinha:

    – Nada disto, comadre. O que ela tem é espírito e do bom. Vai ver como Jubiabá acaba com isso num instante...

    Luísa cantava em voz alta, soltava gargalhadas e estava com Zé Camarão que apoiava tudo que ela dizia. Jubiabá se aproximou e começou a rezar Luísa. Levaram Antônio Balduíno para a casa de Augusta. Mas ele não dormiu, e em meio ao temporal, ao ruído do vento e da chuva, ouvia os gritos e as gargalhadas da sua tia. E soluçava alto.

    No outro dia veio um carro do hospício, dois homens pegaram a velha e a levaram. Antônio Balduíno se agarrou a ela. Não queria deixar que a levassem. Tentava explicar:

    – Não é nada, não. É só dor de cabeça que ela tem. pai Jubiabá cura... Não leva ela...

    Luísa cantarolava, indiferente a tudo.

    Mordeu a mão do enfermeiro e só o soltou quando o trouxeram à força para a casa de Augusta. Então todos foram muito bons com ele. Zé Camarão veio conversar com ele, falar em violão e capoeira, Seu Lourenço da venda lhe deu caramelos, Sinhá Augusta dizia “coitadinho, coitadinho”. Veio também Jubiabá que amarrou uma figa no pescoço de Antônio Balduíno:

    – Isto é para você ser forte e corajoso... Eu gosto de você.

    Ficou uns dias na casa de Augusta. Uma manhã, porém, ela o vestiu com a melhor roupa e o levou pela mão. Ele perguntou para onde iam.

    – Você agora vai morar numa casa bonita. Vai morar com o Conselheiro Pereira. Ele vai lhe criar.

    Antônio Balduíno não disse nada, mas pensou logo em fugir. Quando já iam perto da ladeira encontraram Jubiabá. Antônio Balduíno beijou a mão do feiticeiro que disse:

    – Quando crescer venha cá. Quando tiver homem.

    Os meninos estavam todos parados na rua, espiando. Balduíno deu adeus com tristeza. Desceu.

    Lá de baixo ainda via a figura de Jubiabá sentado num barranco do morro, o camisu agitado pelo vento, folhas de ervas na mão.

 

Travessa Zumbi dos Palmares

    Velha rua de casas sujas e de sobrados de cor indefinida. Vinha numa reta sem desvios. Os passeios das casas é que eram desencontrados, uns altos, outros baixos, alguns avançando para o centro da rua, outros medrosos de se afastarem da porta. Rua mal calçada de pedras desarrumadas, plantada de capim.

    O silêncio e o sossego desciam de tudo e subiam de tudo. Vinham do mar distante, dos montes lá atrás das casas sem luz, das luzes mesmo dos raros postes, das pessoas, baixavam do ar sobre a gente e envolviam a rua e as criaturas. Parecia que a noite chegava mais cedo para a Travessa Zumbi dos Palmares que para o resto da cidade.

    Nem o mar que batia nas pedras, ao longe, acordava o sono da rua que seria uma velha solteirona à espera do noivo que partira para as capitais distantes e se perdera na confusão dos homens apressados. A rua era triste. Uma travessa agonizante. A calma da rua pesava com um ar de agonia. Agonizava tudo em redor: as casas, o morro, as luzes. O silêncio era duro e fazia sofrer. A Travessa Zumbi dos Palmares agonizava.

    Como estavam velhas as casas, como saltavam as pedras do calçamento!

    Tão velha como a negra anciã que morava na casa mais negra e dava, aos moleques, com gestos maternais, tostões para comprar cocada, e passava o dia pitando um cachimbo de barro, murmurando palavras que ninguém entendia.

    A rua encurvara e as casas ruiriam breve. O silêncio é de morte. Desce do morro, sobe as pedras.

    A Travessa Zumbi dos Palmares agonizava! Uma vez um casal de noivos veio ver uma casa para alugar! Casa confortável e quieta. A noiva disse, porém:

    – Não. Não quero. Essa rua parece um cemitério...

    Dois sobrados na esquina, um defronte do outro. O resto da rua era formado por casinhas baixas, escuras, e um ou outro sobrado que já tinha perdido a cor e nos quais morava uma legião de homens trabalhadores.

    Os sobrados da esquina, se bem antigos, eram, no entanto, grandes e formosos. No da direita morava uma família que tinha um desgosto muito grande, a perda de um filho que morrera assassinado. Viviam recolhidos, não apareciam nunca nas janelas, que estavam eternamente trancadas, e traziam sempre luto fechado. Quando, por acaso, uma janela se abria, podia-se ver na sala de visitas um quadro enorme que era o retrato de um jovem loiro, fardado de tenente. Trazia um sorriso provocador nos lábios finos e uma flor na mão alva. O sobrado tinha uma varanda e nesta varanda uma moça loira vestida de preto. Lia um livro de capa amarela e jogava níqueis para Antônio Balduíno.

    Todas as tardes vinha um moço bonito e passava em toda a extensão da rua. Assoviava baixinho até que a moça o via. Então ela se levantava e vinha para o gradeado da varanda de onde ficava sorrindo. O rapaz elegante passava várias vezes, cumprimentava, sorria, e antes de ir embora tirava um cravo da botoeira e, após beijá-lo, jogava-o na varanda. A moça o apanhava rápida, um sorriso nos lábios, o rosto escondido na mão livre. Metia o cravo vermelho no livro de versos e dava um adeusinho com a mão. O moço ia embora e voltava no outro dia. Ela jogava um níquel para o negrinho que estava lá embaixo e que era a única testemunha desse amor.

    Defronte ficava o sobrado do comendador. Gansos passeavam no jardim florido e mangueiras cresciam na alameda que ficava ao lado da casa.

    O comendador comprara aquilo barato nos bons tempos, “uma verdadeira pechincha”, como dizia aos domingos depois que dava a volta no jardim e ia deitar no quintal ao fundo. Morava ali há muitos anos, desde que começara a enricar, e talvez gostasse daquela casa velha de tantos quartos na travessa sem movimento.

    Antônio Balduíno é que ficou espantado com o tamanho da casa. Nunca vira coisa igual. No Morro do Capa-Negro as casas eram pequenas, de barro batido, portas de caixão, cobertas de zinco. Tinham duas divisões apenas: a sala de jantar e o lugar onde dormiam. Mas o sobrado do comendador, não. Como era grande, quantos quartos tinha, alguns até fechados, um quarto de hóspedes sempre mobiliado esperando alguém que nunca vinha, salas enormes, cozinha bonita, a latrina melhor que qualquer casa do morro!

    Quando Augusta, das Rendas chegou com o negrinho, cansados ambos da caminhada longa do Morro do Capa-Negro até a Travessa Zumbi dos Palmares, estavam almoçando na casa do comendador. A comida de tempero português cheirava. O Comendador Pereira em manga de camisa presidia a familiar festa que era o almoço. Quando Augusta entrou, levando pela mão o negrinho, Antônio Balduíno ergueu os olhos e viu logo Lindinalva.

    Na cabeceira da mesa o comendador era um português de grandes bigodes e grandes garfadas. Ao lado a esposa quase tão gorda quanto ele. E Lindinalva numa cadeira direita da mãe, magríssima e sardenta, os cabelos vermelhos e a boca pequena, fazia o contraste mais ridículo do mundo. Mas Antônio Balduíno, que estava acostumado com as negrinhas sujas do morro, achou Lindinalva parecida com as figuras das folhinhas que Seu Lourenço distribuía entre os fregueses pelo Natal.

    Ela era um pouco mais alta que o negrinho, se bem fosse mais velha três anos. Antônio Balduíno baixou os olhos e ficou espiando o assoalho envernizado, cheio de desenhos complicados.

    Dona Maria, a esposa, convidou:

    – Sente, Sinhá Augusta.

    – Estou bem, Dona Maria.

    – Já almoçou?

    – Ainda não.

    – Então venha.

    – Não. Depois eu como na cozinha... – Augusta sabia o seu lugar e quanto havia de pura gentileza no convite.

    Quando o comendador acabou de mastigar a comida que tinha na boca, arriou o talher em cima do prato vazio e gritou para os fundos da casa:

    – Traz o doce, Amélia!

    Enquanto esperava virou-se para Augusta:

    – Então, Augusta?

    – Vim trazer o menino que falei com o senhor.

    O comendador, a mulher e a filha olharam para Antônio Balduíno.

    – Ah! é esse... Venha cá, Benedito – chamou o comendador.

    Antônio Balduíno se aproximou medroso, concertando já uma fuga das mãos gordas do homem. Porém o comendador não lhe queria fazer mal algum. Perguntou:

    – Como te chamas?

    – Meu nome é Antônio Balduíno...

    – É um nome muito grande. De agora em diante teu nome é Baldo.

    – No morro meu apelido era este...

    Lindinalva ria...

    – Baldo parece balde.

    Augusta falou para o comendador:

    – Então o senhor fica sempre com ele para criar?

    – Fico, sim.

    – É uma caridade tão grande que o senhor faz... O pobrezinho não tem pai nem mãe... Só tinha um parente que era a tia. Ficou doida, coitada.

    – Por quê?

    – Acho que espírito que deu nela... Espírito dos brabos. Não larga tão cedo. Eu conheço muito desse negócio de espírito...

    Antônio Balduíno fazia um biquinho de choro. O comendador alisou a sua carapinha e disse:

    – Não tenha medo que ninguém vai lhe comer.

    Dona Maria perguntou a Augusta:

    – Por falar em espírito, como vai você com o seu?

    – Ah! Dona Maria, nem me fale. Cada vez me persegue mais. Agora deu pra ficar bêbado e cai em cima de meu ombro. É um peso tão grande que eu não agüento. Já vivo cansada.

    – Por que não vai a uma sessão?

    – Ah! Eu vou sim. Todo sábado vou. Pai jubiabá tira ele mas ele volta de novo. Sempre foi teimoso...

    – Mas isso é macumba. Você precisa ir é a uma sessão de verdade. Na Ladeira São Miguel tem uma muito boa.

    – Nada, Dona Maria. Se pai Jubiabá não tira ele, quem é que vai tirar? E eu até nem me importo. Só que ele me atrapalha muito. E agora deu pra beber. Não tá vendo? Eu estou aqui mas estou tão cansada que a senhora não imagina. Ele está trepado no meu cangote, pesado que faz medo...

    Virou-se para o comendador:

    – Deus lhe paga, comendador, essa caridade que o senhor está fazendo com o menino... Deus lhe paga dando saúde a todos desta casa.

    – Obrigado, Sinhá Augusta. Agora leve o menino lá pra dentro e diga à Amélia para dar comida a ele.

    E o comendador atacou o prato de doces de caju. Dona Maria acrescentou:

    – E você, Augusta, coma alguma coisa.

    Na cozinha Amélia fez uns pratos bem avantajados para eles. E ficaram comendo os três enquanto Augusta contava à cozinheira a história de Antônio Balduíno com grande comoção. A cozinheira limpava as lágrimas no avental e Antônio Balduíno, quando ouviu falar na loucura da tia, deixou de comer para soluçar.

    Após vender rendas Augusta se despediu de Antônio Balduíno:

    – De vez em quando eu venho lhe ver.

    Só então o negrinho compreendeu que estava separado do morro, que o haviam arrancado do lugar onde nascera e se criara, onde aprendera tanta coisa, e que o haviam jogado, a ele, o mais livre dos moleques do morro, na casa de um senhor.

    Desta vez não chorou. Ficou espiando a casa, pensando na fuga.

    Mas como Lindinalva veio chamá-lo para brincarem, ele se esqueceu de fugir. Construiu uma casa para o gato angorá que era a paixão de Lindinalva, correu com ela pelo quintal, deu salto e subiu até o galho mais alto da goiabeira para ir buscar as goiabas de vez que ela gostava. Ficaram amigos desde aquele dia.

    Depois vieram os aborrecimentos. Foi pegado fumando, tomou uma surra da cozinheira. Revoltou-se. Da tia ele não se importava de apanhar. Mas da cozinheira não. Também quando soltava palavrões, e os soltava a cada momento, Amélia dava-lhe um tapa na boca com toda força. Ele foi ficando com ódio daquela portuguesa de cabelos compridos (fazia duas tranças que ficava a admirar no espelho) e dava-lhe língua quando ela estava de costas.

    No entanto o comendador era bom para ele. Até o botou na escola pública, uma que funcionava no Largo de Nazaré com uma professora ranzinza de palmatória em punho. Antônio Balduíno chefiou as malandragens que os alunos da escola fizeram naquele ano. Cedo foi expulso como incorrigível. Amélia disse a Dona Maria:

    – Negro é uma raça que só serve para ser escravo. Negro não nasceu para saber.

    Mas Antônio Balduíno já sabia o suficiente. Já sabia ler perfeitamente um ABC de qualquer dos cangaceiros célebres e os crimes que os jornais noticiavam. E quando estava de bem com Amélia era ele quem lia à noite, nos jornais, a história dos crimes que iam acontecendo pelo mundo.

    Assim ia correndo a sua vida, entre brincadeiras com Lindinalva a quem cada vez mais admirava, e brigas com Amélia, que diariamente fazia queixa a Dona Maria das “molecagens deste negro sujo” e lhe dava, às escondidas, surras ferozes.

    Tinha notícias do morro por intermédio de Augusta, que todo mês vinha vender rendas a Dona Maria. Sentia saudades da vida solta do morro e voltava a pensar em fugir.

    Num domingo Jubiabá veio à casa do comendador. Conversaram na sala e ordenaram a Antônio Balduíno que vestisse a roupa mais nova.

    Saiu com Jubiabá, tomaram um bonde e o negrinho foi revendo a cidade e aspirando com força o ar das ruas, a liberdade que estava gozando. Nem se lembrava de perguntar a Jubiabá para onde iam. Também ele confiava inteiramente no pai-de-santo, que naquele domingo estava vestido com um fraque velho e trazia um chapéu ridículo no alto da carapinha. Afinal saltaram do bonde, entraram por uma rua larga e arejada e penetraram num amplo portão guardado por um homem fardado. Antônio Balduíno pensou que ia ser soldado e riu. Gostaria de ser soldado, usar farda, passear com mulatas nos jardins públicos. Mas logo se desiludiu. Não viu soldados no pátio do casarão que era cinzento, de janelas gradeadas como uma cadeia. Viu foi homens e mulheres, trajando todos uma roupa igual, que passeavam com ares apalermados, uns falando sozinhos, outros desenhando gestos no ar. E Jubiabá o levou para o lugar onde estava a velha Luísa que dizia com voz fraca:

             “eu não vou mais...

             nunca mais...

             nunca mais...”

    Antônio Balduíno quase não a conheceu. Estava magra e ossuda, os olhos pulados para fora do rosto que andava chupado. Beijou a mão da velha que o olhou com ar indiferente.

    – Titia, sou Balduíno.

    – Sabe de uma coisa: os moleques querem roubar o meu mingau. Você veio para roubar, não foi? – foi se enfurecendo.

    Mas sorriu logo e continuou sua cantiga.

             “eu não vou mais...

             nunca mais...

             nunca mais...”

    Jubiabá o levou de volta. Balduíno ainda ficou espiando o casarão lúgubre que parecia cadeia. No bonde Jubiabá perguntou se ainda tinha a figa que lhe dera. Antônio Balduíno puxou de dentro do pescoço e mostrou.

    – Tá bem, meu filho. Guarde sempre. Dá sorte...

    Antes de saltar deu dez tostões a Balduíno.

    Só voltou ao hospício uma vez. Foi novamente com Jubiabá para acompanhar o enterro da velha Luísa. Diante do caixão, pobre e negro, encontrou quase todos os conhecidos do morro. Novamente foram todos muito bons para ele e lhe deram abraços. Algumas pessoas choravam. Foram assim até o cemitério, onde deram uma pá para Balduíno atirar terra em cima do corpo. Depois o corpo da velha ficou lá e só Antônio Balduíno guardou com amor a sua lembrança no seu pequeno coração que já estava tão cheio de ódio.

    Foi no dia do enterro da velha Luísa que Jubiabá para distraí-lo contou, na volta do cemitério, a história de Zumbi dos Palmares.

    – O nome daquela rua é Zumbi dos Palmares, não é?

    – É, sim senhor...

    – Você não sabe quem foi Zumbi?

    – Eu não. – Balduíno vinha triste, pensando mais uma vez em fugir, e a princípio prestou pouca atenção à história, apesar de ser Jubiabá que estava contando:

    – Isso foi há um mundão de tempo... No tempo da escravidão do negro.

    “Zumbi dos Palmares era um negro escravo. Negro escravo apanhava muito... Zumbi também apanhava. Mas lá na terra que ele tinha nascido ele não apanhava. Porque lá negro não era escravo, negro era livre, negro vivia no mato trabalhando e dançando.”

    – E por que vinham para cá? – Balduíno já estava interessado.

    – Os brancos iam lá buscar negro. Enganavam negro que era tolo, que nunca tinha visto branco e não sabia da maldade dele. Branco não tinha mais olho da piedade. Branco só queria dinheiro e pegava negro pra ser escravo. Trazia negro e dava em negro com chicote. Foi assim com Zumbi dos Palmares. Mas ele era um negro valente e sabia mais que os outros. Um dia fugiu, juntou um bando de negro e ficou livre que nem na terra dele. Aí foi fugindo mais negro e indo pra junto de Zumbi. Foi ficando uma cidade grande de negros. E os negros começaram a se vingar dos brancos. Então os brancos mandaram soldados pra matar os negros fugidos. Mas soldado não se agüentava com os negros. Foi mais soldado. E os negros deram nos soldados.

    Antônio Balduíno tinha os olhos abertos e tremia de entusiasmo.

    – Aí foi um mundão de soldados mil vezes maior que o número de negros. Mas os negros não queriam mais ser escravos e quando viu que perdiam, Zumbi pra não apanhar mais de homem branco se jogou de um morro abaixo. E os negros todos se jogaram também... Zumbi dos Palmares era um negro valente e bom. Se naquele tempo tivesse vinte igual a ele, negro não seria escravo.

    Antônio Balduíno, naquele dia em que morrera sua tia, encontrou um amigo para substituir a velha Luísa no seu coração: Zumbi dos Palmares. Ele foi daí em diante o seu herói predileto.

    Tinha algumas consolações aquela vida atrapalhada pelas encrencas de Amélia. Havia em primeiro lugar Lindinalva que brincava com Antônio Balduíno. Ele era capaz de passar horas e horas parado, olhando para o rosto de santa que ela possuía. Depois tinha o cinema que foi para ele uma revelação. E ao contrário de todos os meninos, sempre torcia nas fitas de cowboy pelo índio mau contra o mocinho branco, O sentido de raça e de raça oprimida ele o adquirira à custa das histórias do morro e o conservava latente. Tinha também Zé Camarão que agora vinha ensinar violão a uns rapazes que moravam no sobrado velho do fim da rua e que também dava aulas a Balduíno.

    O trabalho na casa do comendador não era grande: copeirava, lavava os pratos, ia às feiras, fazia recados, O comendador até pensava em levá-lo para trabalhar na sua casa comercial.

    – Quero fazer alguma coisa por este negro – dizia. Este preto é esperto, esse diabo...

    Com as surras Antônio Balduíno aprendera a ser dissimulado. Agora fumava escondido, dizia palavrões em voz baixa, mentia descaradamente.

    Pois foi aquela idéia do comendador de melhorar a sorte de Antônio Balduíno, dando-lhe um emprego na sua casa comercial com ordenado e possibilidade de fazer alguma coisa na vida, que obrigou o negro a fugir. Nesta época Antônio Balduíno já tinha quinze anos e já há três suportava o ódio de Amélia.

    O caso que deu lugar à sua fuga passou-se assim: quando o comendador anunciou num domingo que no outro mês Antônio Balduíno começaria a trabalhar no armazém, Amélia teve um acesso de raiva. Ela tinha verdadeiras crises de ciúme, não podia compreender por que os patrões protegiam aquele negro e queriam fazer dele gente.

    – Negro é raça ruim – repetia sempre. – Negro não é gente...

    E começou a pensar um meio de desmoralizar completamente o molecote. Foi quando um dia viu Antônio Balduíno sentado na escada da cozinha espiando com uns olhos religiosos para Lindinalva que, já com dezoito anos, costurava na varanda. Bateu no ombro dele:

    – Aí, hein, negro sem-vergonha! Olhando as coxas de Dona Lindinalva.

    Balduíno não estava olhando coisa alguma, estava era recordando o tempo bom em que eram menores e ele e Lindinalva brincavam no quintal da casa. Mas se assustou como se estivesse de fato espiando as coxas da moça.

    Aquilo caiu nos ouvidos do comendador. Todos acreditaram. Até Lindinalva, que nunca mais olhou para Antônio Balduíno senão com medo e com nojo.

    O comendador se era um homem bom, sabia na hora da raiva ser ruim.

    – Então, moleque descarado, eu lhe crio como a um filho, lhe ajudo e você fica fazendo molecagem aí...

    Amélia ajuntava:

    – Esse negro é safado que faz medo. Quando Dona Lindinalva ia tomar banho ele espiava pelo buraco da fechadura.

    Lindinalva saiu quase chorando. Balduíno quis dizer que era mentira, mas como estavam acreditando em Amélia não disse nada. Apanhou uma surra medonha, que o deixou estendido, o corpo todo doendo. Mas não era só o corpo que doía. Doía-lhe o coração porque não tinham acreditado nele. E como aqueles eram os únicos brancos que ele estimava, passou a odiá-los e com eles a todos os outros.

    No entanto nessa noite sonhou com Lindinalva. Ele a viu nua e acordou. Então se lembrou dos vícios que os moleques do morro praticavam e ficou sozinho. Não, não ficou sozinho. Dormiu com Lindinalva que sorria para ele com seu rosto de figura de folhinha, e para ele abria as coxas alvas e lhe ofertava os seios duros de criança. E daí por diante, dormisse com que mulher dormisse, era com Lindinalva que o negro Antônio Balduíno estava dormindo.

    Pela madrugada fugiu da Travessa Zumbi dos Palmares.

 

Mendigo

    Antônio Balduíno agora era livre na cidade religiosa da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiabá. Vivia a grande aventura da liberdade. Sua casa era a cidade toda, seu emprego era corrê-la. O filho do morro pobre é hoje o dono da cidade.

    Cidade religiosa, cidade colonial, cidade negra da Bahia. Igrejas suntuosas bordadas de ouro, casas de azulejos azuis, antigos sobradões onde a miséria habita, ruas e ladeiras calçadas de pedras, fortes velhos, lugares históricos, e o cais, principalmente o cais, tudo pertence ao negro Balduíno. Só ele é dono da cidade porque só ele a conhece toda, sabe de todos os seus segredos, vagabundeou em todas as suas ruas, se meteu em quanto barulho, em quanto desastre aconteceu na sua cidade. Ele fiscaliza a vida da cidade que lhe pertence. Esse é o seu emprego. Olha todos os seus movimentos, conhece todos os valentes da cidade, vai às festas líricas, recebe e embarca os viajantes de todos os navios. Sabe o nome de todos os saveiros e é amigo dos canoeiros que pousam no Porto da Lenha. Come a comida dos restaurantes mais caros, anda nos automóveis mais luxuosos, mora nos mais novos arranha-céus. E pode se mudar a qualquer momento. E como é dono da cidade não paga a comida, nem o automóvel, nem o apartamento.

    Solto na cidade velha de sobrados enormes ele a dominou e se tornou o seu dono. Os homens que passam não sabem disso, com certeza. Nem olham para o negrinho esfarrapado que fuma cigarro barato e traz um boné em cima dos olhos. As mulheres elegantes, que lhe dão um níquel, o evitam, para não se sujarem ao seu contato.

    Mas na verdade o negro Antônio Balduíno é o imperador da cidade negra da Bahia. Um imperador de quinze anos, risonho e vagabundo. Talvez nem o próprio Antônio Balduíno o saiba.

    Traz um boné em cima dos olhos e fuma um cigarro barato. Uma calça de casimira preta rasgada e cheia de manchas, e um paletó enorme, herdado de alguém muito mais alto que ele, paletó que no inverno é travesseiro e sobretudo, tal é a vestimenta do imperador da cidade. E aqueles outros negros que o rodeiam são seus súditos mais queridos, a sua guarda de honra. Guarda que não tem farda especial, veste trapos, calça chinelos abandonados nas latas do lixo, mas que sabe lutar como nenhuma outra guarda do mundo.

    O imperador tem uma grande figa amarrada no pescoço. E ele e os moleques da sua guarda trazem escondidos no cós da calça navalhas, punhais e canivetes.

    Antônio Balduíno se adianta:

    – Uma esmola, pelo amor de Deus.

    O homem gordo mede o negro de cima a baixo com os olhos ávidos de um homem de negócios, abotoa o paletó, balança a cabeça ironicamente:

    – Um pedaço de homem desse a pedir esmola! Vá trabalhar, vagabundo... Não tem vergonha... Vá trabalhar...

    Antônio Balduíno primeiro passa os olhos espertos pela rua. Está muito movimentada. Então diz:

    – Eu cheguei de fora, meu senhor... Vim me batendo por este sertão de Deus que está seco, sem um pingo de chuva. Estou aqui sem trabalho... Mas estou procurando... Quero um níquel para tomar café... Tá se vendo que o senhor é um homem direito...

    Espia o efeito do discurso. Mas o homem vai andando:

    – Já estou muito acostumado com essas mentiradas... Vá trabalhar...

    – Juro pelo sol que tá nos alumiando que não é mentira. Vim debaixo de um solão de fazer medo... Se o senhor tem um trabalho eu peço... Não tenho medo de trabalho... Mas desde ontem que não como... Estou aqui... caindo de fome. O senhor é um homem direito...

    O homem faz um gesto aborrecido, mete a mão no bolso e joga um níquel.

    – Não me aborreça mais... Vá embora...

    Mas o negrinho ainda acompanha o homem. É que o charuto que ele fuma já está a mais de meio. E Antônio Balduíno é doido por uma ponta de charuto. O homem vai pensando em tudo que o negro disse. Será então verdade o que esses pedintes todos dizem pela cidade? O homem vê a cara zangada de todos eles. De repente tem medo, joga o charuto fora, abotoa o paletó novamente e entra num botequim para beber e criar coragem. Antônio Balduíno se apossou da ponta de charuto e abre a mão onde está o níquel jogado pelo homem. É uma prata de dois mil.réis. O negro a atira para o ar, apara na mão rápida e sai correndo para junto dos outros que estão conversando sobre futebol.

    – Adivinhe quanto, negrada...

    – Quinhentos réis...

    Antônio Balduíno ri às gargalhadas altas:

    – Uma água...

    – Dois mil-réis...

    – Caiu como um patinho. – Antônio Balduíno faz um gesto de desprezo. – Eu cá sei cantar...

    Agora riem todos em risadas claras e soltas. Os homens que passam vêem apenas um grupo de meninos negros, brancos e mulatos, que mendigam. Mas na verdade é o imperador da cidade e a sua guarda de honra.

    Quando vinham grupos de mulheres elegantes, vestidas de seda cara, rostos pintados espalhando sorrisos, Antônio Balduíno soltava um assovio especial e o grupo se juntava todo. Ficavam em fila. O Gordo desta vez ia na frente porque tinha uma voz triste de esfomeado. E uma cara parada de idiota. O Gordo botava as mãos no peito, fazia uma cara muito compungida e se dirigia ao grupo de mulheres. Parava diante delas, impedindo que continuassem o passeio, os negros as cercavam e o Gordo cantava:

             “Esmola pra sete ceguinhos.

             Eu sou o mais velho,

             esse é o segundo,

             os outros estão em casa,

             Papai é aleijado,

             Mamãe é doente,

             me dê uma esmola

             pra sete orfãozinhos,

             são todos ceguinhos.

    O Gordo quando acabava estava quase chorando, muito contrito, uns olhos tristes, parecendo mesmo um ceguinho com seis irmãos ceguinhos, a mãe doente, o pai aleijado, sem ter comida na casa pobre. E não parava:

             “Esmola pra sete ceguinhos. ..

             Eu sou o mais velho...”

    Esticava o dedo para o que estava mais perto:

             “esse é o segundo...”

    No fim estendia as mãos gordas abrangendo o grupo e berrava:

             “...sete orfãozinhos

             são todos ceguinhos...”

    Os outros faziam coro:

             “tão todos ceguinhos...”

    O Gordo balançava as banhas e estendia a mão suja, esperando a esmola que quase sempre vinha farta. As mulheres davam sempre, umas por piedade daqueles filhos da rua pensando nos filhos que estavam no aconchego das casas. Outras davam para se livrar do cerco dos moleques sujos que valiam como uma acusação. As mais corajosas pilheriavam:

    – Então, como é... São sete e tem aí mais de dez... São órfãos e têm pai e mãe doente... Ceguinhos e vêem tudo... Como é isto?

    Eles não respondiam. Apertavam mais o cerco e o Gordo voltava a cantar a cantiga monótona:

             “Esmola pra sete ceguinhos.

    Nenhuma resistia. Os moleques iam se aproximando cada vez mais, e perto do rosto elegante e pintado das mulheres ficava o rosto sujo e feio dos meninos. E era horroroso quando todos abriam a boca para o coro. O Gordo parecia um professor e não parava a cantilena. As bolsas se abriam e as esmolas caíam na mão que o Gordo retirava do peito. Abriam o cerco e o Gordo agradecia:

    – A senhora vai ganhar um noivo bonito que vem num navio...

    Muitas sorriam, outras ficavam tristes. E nas ruas e becos estreitos ressoava a gargalhada dos moleques, gargalhada livre e feliz. Depois compravam maços de cigarros e bebiam tragos de pinga.

    Tinha um loiro. Era o mais moço. Talvez não tivesse ainda dez anos. Um rosto redondo de santo de andor, o cabelo encaracolado, as mãos ossudas, olhos azuis. Chamava- se Felipe e foi apelidado de Felipe, o Belo. Não possuía nenhuma história a não ser a que a mãe fazia a vida nos bordéis da Rua de Baixo, francesa velha que um dia se apaixonara por um estudante. Formado, ele fora para a Amazônia. O filho se perdeu na rua e a mãe no álcool.

    No dia que ingressou no grupo houve frege grande. É que enquanto dormiam espremidos na porta de um arranha-céu, deitados em folhas de jornal, o Sem Dentes quis arriar as calças de Felipe, o Belo. O Sem Dentes era um mulato forte de seus dezesseis anos. Cuspia por entre os cacos de dentes, fazendo um ruído especial, e acertava este cuspe onde queria. Sua grande qualidade era esta. Pois o Sem Dentes, moleque malvado, abraçou Felipe e começou a puxar-lhe as calças. Felipe se estrebuchou e gritou. Acordaram todos. Antônio Balduíno esfregou os olhos e perguntou

    – Que frege é este?

    – Ele tá pensando que eu sou xibungo... Mas não sou não. – Felipe queria chorar.

    – Por que você não deixa o menino em paz?

    – Não é da sua conta. Eu faço o que quero... Acho ele um bombonzinho.

    – Pois olhe, Sem Dentes, quem bulir no menino bole comigo.

    – Você quer é comer o menino sozinho... Assim não está direito.

    Antônio Balduíno se virou para os outros garotos que estavam na dúvida.

    – Vocês sabem que eu nunca quis comer ninguém. Eu só gosto de mulher. Se o menino fosse xibungo tá direito. Mas aí não ficava com a gente que a gente não quer fresco aqui... O menino é macho, ninguém bole nele.

    – E se eu bulir?

    Antônio Balduíno sentia que os moleques estavam todos do seu lado:

    – Pois bula...

    Levantou-se. O Sem Dentes também. Pensava que se vencesse Antônio Balduíno chefiaria os moleques. Ficaram olhando um para o outro.

    – Bata – disse o Sem Dentes.

    Antônio Balduíno arrumou o soco. O Sem Dentes vacilou mas não caiu. Se atracaram, a molecada torcendo. O Sem Dentes estava por baixo mas deu um jeito e se pôs de pé. Um soco de Antônio Balduíno o pôs no chão novamente. Quando o Sem Dentes se levantou vinha com um canivete aberto, brilhando no escuro.

    – Covarde! Não sabe brigar como homem...

    O Sem Dentes veio com o canivete, mas Antônio Balduíno tinha aprendido capoeira com Zé Camarão no Morro do Capa-Negro. Jogou as pernas, o Sem Dentes se estatelou no chão, o canivete voou longe.

    Antônio Balduíno concluiu:

    – Se bulir no menino bole comigo... De outra vez tomo o canivete...

    O Sem Dentes dormiu sozinho numa porta. Felipe, o Belo, ficou definitivamente no grupo.

    Era especialista em velhas. Mal aparecia uma no princípio da rua, ele consertava o laço da gravata velha que nunca abandonava, jogava fora a ponta de cigarro, metia as mãos nos bolsos furados, escondia a navalha e se aproximava muito triste. Falava baixinho:

    – Bom dia, senhora. Eu sou um menino abandonado, sem pai, sem mãe. Não tenho ninguém por mim... Tenho fome... Estou com tanta fome...

    Começava a chorar. Possuía um talento especial para chorar na hora que queria. As lágrimas caíam, soluçava alto:

    – Fome... mamãe... a senhora tem filho... tenha pena... mamãe...

    Ficava lindo chorando, rostinho redondo e alvo cheio de lágrimas, os lábios tremendo. Não havia mulher que não dissesse:

    – Coitadinho... Tão pequenininho... Já sem mãe...

    Davam-lhe largas esmolas. Três vezes foi convidado a morar em casas ricas de senhoras ricas. Mas amava a liberdade das ruas e permanecia fiel ao grupo onde já era elemento respeitadíssimo, pois dos mais eficientes. Até o Sem Dentes o tratava com respeito quando ele voltava de junto de uma velha:

    – Caiu um cincão...

    A gargalhada dos moleques estrugia pelas ruas, ladeiras e becos da cidade da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiabá.

    O mais estranho de todos eles era, porém, Viriato, o Anão. O apelido fora-lhe dado devido a ser baixinho, mais baixo mesmo que Felipe, apesar de três anos mais velho. Baixote e pesadão, possuía uma força prodigiosa para a sua idade. Mesmo quando tomava banho dava a impressão de sujeira e de miséria. Quando o grupo se formou já ele mendigava através das ruas da cidade. A sua cabeça chata metia medo. E para causar maior impressão andava curvo, o que o fazia parecer mais baixo ainda e corcunda. Custava arrancar de Viriato uma palavra. E enquanto os outros riam em gargalhadas soltas ele apenas sorria.

    Mas não aborrecia ninguém, nunca reclamava quando o grupo pouco fazia, e se contentava com o que havia para comer e com pontas de cigarros para fumar. Antônio Balduíno gostava dele, sujeitava à sua opinião muitas resoluções, dava-lhe o maior prestígio.

    Durante o dia Viriato, o Anão, pouco se movia com o grupo. Ficava parado na Rua Chile, as pernas encolhidas, todo curvo, a cabeça chata acachapada sobre o pescoço. Estendia sem uma palavra o chapéu aos que passavam. Parecia fazer parte da porta onde se sentava como uma escultura trágica, um monstro de igreja. A sua féria era sempre gorda. Pelo fim da tarde se encontrava com o grupo e depositava nas mãos de Antônio Balduíno o resultado do trabalho do dia. Depois de feitas as contas e de haver recebido a sua parte ia para um canto, comia, fumava, dormia. Acompanhava os outros nos passeios malandros pelas ruas da cidade, nas caçadas a criadinhas nos areais, nas brigas, nas festas, sem nenhum entusiasmo. Acompanhava por acompanhar. Era o único, do grupo de moleques que mendigavam, que levava a sério a profissão.

    No fim da tarde Antônio Balduíno se sentava no chão, reunia os moleques em torno de si, e ia recolhendo o dinheiro ganho durante o dia. Eles remexiam os bolsos das velhas calças, puxavam níqueis e algumas pratas e depositavam na mão do chefe.

    – E você, Gordo, quanto?

    O Gordo contava o dinheiro:

    – Cinco mil e oitocentos.

    – E o Belo?

    Felipe atirava com um gesto de superioridade a sua féria:

    – Dezesseis mil-réis.

    Não era preciso chamar Viriato:

    – Doze e cem.

    Os outros iam chegando. O boné de Balduíno se enchia aos poucos de pratas e níqueis. Por último Antônio Balduíno vasculhava os bolsos e juntava a sua féria.

    – Fiz pouco... Sete mil-réis.

    Somava tudo, geralmente pelos dedos. Com a ajuda de Viriato fazia a divisão:

    – Somos nove... Seis e seiscentos para cada um.

    E interrogava:

    – Está certo, gente?

    Estava certo. Iam passando em frente a Balduíno que dava a cada um o que lhe pertencia. Por vezes o troco faltava.

    – O Sem Dentes lhe dá quinhentos réis.

    – Olhe lá... De outra vez você bateu três toes meus...

    Iam comer e depois se estendiam pela cidade em correrias procurando mulatas para levar para o areal do cais, penetrando em festas pobres dos morros distantes, bebendo cachaça nos botequins da Cidade Baixa.

    Um dia, no entanto, algo de anormal aconteceu. Quando Zé Casquinha ia entregar a sua féria sorria um sorriso enigmático. Antônio Balduíno disse:

    – Três mil-réis...

    Zé Casquinha sorriu:

    – E mais isto...

    Jogou no boné do negro um anel onde uma pedra brilhava à luz do poste. Uma pedra grande cercada por uma dúzia de pedrinhas. Antônio Balduíno levantou os olhos e afirmou:

    – Você roubou isso, Zé Casquinha.

    – Juro que não... A moça me deu uma esmola e foi embora... Quando eu vi, esse anelão estava junto de mim. Eu ainda corri atrás mas não vi mais a moça.

    – Mentindo em cima de mim...

    Os moleques olhavam a pedra que passava de mão em mão. Nem ligaram para a conversa de Balduíno e Zé Casquinha:

    – Conte como foi, Zé.

    – Não tou mentindo, não, Baldo. Foi assim mesmo...

    – E você foi atrás dela.

    – Isso é mentira mesmo... Mas o resto é verdade, eu juro...

    – Tá direito. E agora o que é que a gente vai fazer com isso?

    Felipe riu:

    – Me dá pra mim... Nasci pra usar anel...

    Riram todos. Mas Antônio Balduíno perguntou

    – O que é que a gente faz disso?

    Viriato, o Anão, murmurou:

    – Prego. Dá dinheiro muito...

    Felipe pilheriou de novo:

    – Faço uma roupa nova...

    – Basta ir buscar nas latas de lixo.

    – Mas no prego não pode, Viriato. O gringo não tá vendo que não acredita que o bruto seja de nós... Chama a polícia, tá tudo na cadeia.

    – É mesmo.

    – Me dá pra eu usar – pediu Felipe.

    – Não chateie...

    – Eu acho que o melhor é a gente guardar ele um bocado de tempo. Quando a dona já tiver se esquecido dele a gente resolve.

    E Antônio Balduíno amarrou o anel junto à figa que trazia no pescoço.

    Antônio Balduíno se aproximou do homem que estava de sobretudo no verão, O grupo ficou espiando da esquina:

    – Uma esmola pelo amor de Deus...

    – Vá trabalhar, malandro.

    Desta vez a rua estava deserta. Ninguém passava por aquele beco. E o homem de sobretudo ia apressado. Levava uma flor vermelha na lapela. Antônio Balduíno se aproximou mais, O grupo também:

    – Me dá um níquel...

    – Te dou mas é um tabefe aqui, moleque...

    O grupo veio pela frente:

    – O senhor é rico. Pode dar uma prata...

    O homem não disse mais nada, porque agora estava cercado pelo grupo.

    O rosto de Antônio Balduíno estava bem perto do seu rosto. E o negrinho tinha uma mão escondida. Apareceu uma navalha:

    – Uma nota...

    – Ladrões, hein? – o homem teve coragem de dizer. – Começam assim meninos, vão longe.

    Antônio Balduíno riu. Abriu a navalha. Os outros cercavam o homem de sobretudo.

    – Tomem, ladrões.

    – Olhe que a gente pode se encontrar um dia...

    – Amanhã vou à polícia.

    Mas eles já estavam acostumados com a ameaça e não ligaram. Antônio Balduíno pegou os dez mil-réis, guardou a navalha e o grupo todo abriu na carreira, se espalhando pelas ruas próximas. Faziam estas violências quando estava próximo o carnaval, a festa do Bonfim, as festas do Rio Vermelho.

    Um dia Rozendo caiu doente. Uma febre alta, delirava à noite, não comia nada. Na primeira noite ria, dizia:

    – Não vai ser nada... Isso passa.

    Os outros o olhavam e riam também. Mas na segunda noite Rozendo começou a ter medo. Quando não delirava, ficava a gemer em voz baixa. E pedia aos outros:

    – Eu vou morrer... Vão chamar mamãe... Mamãe...

    Os outros espiavam sem saber o que fazer, inquietos, uma tristeza nos olhos alegres. Balduíno perguntava:

    – Onde mora sua mãe?

    – Sei lá. Quando fugi morava no Porto da Lenha. Mas já se mudou... Procure ela, Baldo... Procure, eu quero mamãe.

    – Vou procurar, Rozendo...

    Viriato era quem tratava do doente. Dava-lhe remédios estranhos que só ele sabia. Arranjou, ninguém sabia onde, um cobertor para estender na porta onde Rozendo dormia. E contava histórias ao doente, casos engraçados, mais engraçados ainda porque contados por Viriato, o Anão, que raramente falava e quase nunca ria.

    Viriato perguntou:

    – Como é o nome de sua mãe?

    – Ricardina... É amigada com um carroceiro... É uma negra gorda, ainda moça, bem conservada.

    O doente se agitou falando da mãe:

    – Quero mamãe, quero ela... Eu vou morrer...

    – Deixe estar que eu e Baldo amanhã trazemo ela.

    Felipe chorava e desta vez suas lágrimas não eram fabricadas. O Gordo rezava, misturando pedaços de orações, e Antônio Balduíno apertava a figa que trazia no pescoço.

    No outro dia Balduíno ficou com Rozendo no mais escuro da escada. Pensava em chamar Jubiabá à noite. Mas, pelo meio da tarde, Viriato, o Anão, trouxe uma preta gorda. Rozendo delirava e não a reconheceu. Ela se abraçou com ele e o levou. Foram num automóvel. Antônio Balduíno perguntou:

    – Tem dinheiro, sinhá dona?

    – Pouco, mas dá com a ajuda de Deus...

    Aí Antônio Balduíno se lembrou do anel que trazia no pescoço:

    – A gente dá isso pra Rozendo... Pro médico...

    Os outros olhavam com os olhos longos. A preta perguntou:

    – Vocês roubaram isto? Vocês são ladrão? Meu filho estava com ladrão?

    – A gente achou isso na rua...

    A negra pegou o anel. Antônio Balduíno ainda perguntou:

    – A senhora quer eu levo Jubiabá em sua casa, ele cura Rozendo...

    – Você leva Jubiabá?

    – Levo sim. Ele é meu amigo...

    – Ah! leve, meu bem. Leve...

    Rozendo foi gritando no carro, dizendo que queria a mãe dele, que ia morrer.

    Antônio Balduíno perguntou a Viriato:

    – Como foi que você encontrou ela?

    – O mais difícil é que ela não tava mais amigada com um carroceiro. Agora é um carpina...

    Ficou olhando a rua que se movimentava. De repente disse a Balduíno:

    – E se eu ficar doente? Eu não tenho mãe, nem pai, nem ninguém...

    Antônio Balduíno botou a mão no ombro de Viriato, o Anão. O Gordo tremia.

    Jubiabá foi e curou Rozendo. Numa manhã de muito sol o grupo apareceu para visitar o companheiro. Rozendo já estava sentado numa cadeira que o padrasto construíra e riram muito recordando as aventuras do grupo. Rozendo contou que não ia mais mendigar, que agora ia ser um homem e trabalhar de carpina com seu padrasto. Antônio Balduíno sorriu. Viriato, o Anão, ficou sério.

    O imperador da cidade come nos melhores restaurantes, anda nos automóveis mais luxuosos, mora nos arranha-céus mais novos. E sem pagar nada. Depois do meio-dia vai com seu grupo a um restaurante e diz qualquer coisa a um garçom. Este bem sabe que não é negócio brigar com estes moleques. Dá as sobras de comida embrulhadas em jornais. Certas vezes até sobra comida que eles jogam nas latas de lixo. E velhos mendigos comem as sobras das sobra

    Fica a esperar que passe o automóvel que lhe agrada. Porque o imperador da cidade não anda em autos vagabundos. Quando vê um bem luxuoso, ponga na traseira e viaja bairros inteiros. E se passa outro mais bonito, Antônio Balduíno despede o primeiro, monta no segundo e continua seu passeio pela cidade que conquistou.

    E ele e a sua guarda de honra só dormem nas portas dos mais novos arranha-céus, onde os empregados sabem que todos aqueles moleques têm navalhas, punhais, canivetes.

    Isso quando não preferem dormir no areal do cais do porto, olhando os navios enormes, as estrelas no céu, o verde mar misterioso.

   

Moleque

    O mar é a sua paixão mais velha. Já de cima do Morro do Capa-Negro ele ficava a namorá-lo, estudando as variações do seu dorso que era azul, verde-claro e logo verde- escuro, tentado pela sua vastidão e pelo mistério que ele percebia existir nos grandes navios que descansavam no cais, nos pequenos saveiros que a maré balançava. O mar traz a seu coração um sossego que a cidade não lhe dá. No entanto da cidade ele é o dono e do mar ninguém é dono.

    Vem vê-lo à noite. Quase sempre vem só e se estende na areia alva do pequeno cais dos saveiros. Ali sonha e ali dorme o seu melhor sono de vagabundo. Certas vezes traz o grupo todo. Então é para o grande cais dos transatlânticos que se dirigem. Vão ver os homens que embarcam à noite, misteriosamente, levando sob o braço sobretudos e embrulhos; vão ver os homens que trabalham na descarga dos navios. São negros e parecem formigas que levassem enormes fardos. Andam curvos como se em vez de sacos de cacau carregassem sobre as costas o seu próprio destino desgraçado. E os guindastes, como monstros gigantescos que rissem dos homens, levantam fardos incríveis que ficam balançando no ar. E rangem e gritam e andam sobre trilhos, guiados pelos homens de macacão que estão trepados dentro dos cérebros dos guindastes.

    Ainda outras vezes Antônio Balduíno vai acompanhado, mas não do grupo de moleques. É quando ele leva alguma pretinha da sua idade, ou pouco mais velha que ele, para dormir sem sonhar nas areias do cais do porto. Então não vai ver nem a paz dos saveiros nem o mistério dos transatlânticos e guindastes. Se dirige para cantos que somente ele e alguns negros conhecem, lugares de onde só a vastidão verde do mar é enxergada. Antônio Balduíno gosta que o mar veja as suas amantes e saiba que ele, apesar dos seus quinze anos, já é homem, já derruba uma cabrocha na areia que é macia como um colchão.

    Mas, sozinho ou acompanhado, ele olha sempre o mar como um caminho de casa.

    Do mar, ele tem certeza que lhe virá um dia qualquer coisa que ele não sabe o que é, mas que espera.

    O que faltará ao negrinho Antônio Balduíno que tem apenas quinze anos e já é imperador da cidade negra da Bahía? Ele não sabe nem ninguém sabe. Mas falta alguma coisa, que para ele achar terá ou que cruzar o mar, ou que esperar que o mar lhe traga no bojo de um transatlântico, ou no porão de um navio, ou mesmo preso ao corpo de um náufrago.

    Certa noite no cais os homens pararam de repente o trabalho e correram para a borda onde o mar batia. Havia uma lua clara e estrelas tão brilhantes que nem se via a luz da lâmpada de um botequim que se chamava Lanterna dos Afogados. Os homens encontraram um paletó velho e um chapéu furado. Alguns negros caíram na água. Voltaram com um corpo. Fora um preto velho, um daqueles raros pretos de carapinha branca, que se jogara ao mar. Antônio Balduíno ficou pensando que ele entrara pelo caminho de casa, que ele também vinha ao caís todas as noites. Porém um estiva dor explicou:

    – Ë o velho Salustiano, coitado... Tava sem trabalho desde que saiu daqui das docas...

    Olhou pros lados, cuspiu com raiva.

    – Disseram que ele já não dava conta do serviços... Já não tinha força... Andava agora passando fome, cortando uma dureza. Coitado...

    Outro ajuntou.

    – É sempre assim... Matam a gente de trabalho e depois mandam embora. Quando a gente já não pode fazer outra coisa senão se jogar no mar...

    Era um mulato magro. Um negro forte disse:

    – Comem nossa carne e depois não querem roer os ossos. No tempo da escravidão, pelo menos, roíam os ossos...

    Soou um apito e eles foram voltando aos fardos e aos guindastes

    Mas antes, alguém cobriu o rosto do velho com o velho paletó.

    E depois vieram mulheres e soluçaram.

    Os homens negros do cais do porto pararam o trabalho em outra ocasião. Desta vez a noite era sem estrelas e sem lua. Do violão de um cego na Lanterna dos Afogados vinham cantigas de escravo. Foi quando um homem trepou num caixão e começou a falar. Os outros cercaram-no, foram chegando todos para perto. Quando Antônio Balduíno e o seu grupo chegaram, já o homem gritava apenas vivas a que a massa correspondia:

    – Viva!

    Antônio Balduíno e os de seu grupo gritavam com força:

    – Viva!

    Ele não sabia o que estava vivando mas gostava de vivar. E ria porque também gostava de rir.

    O homem que estava em cima do caixão e que pelo jeito era espanhol, jogou um punhado de papéis que foram disputados. Antônio Balduíno pegou um que deu ao estivador Antônio Caroço que era seu amigo. Foi quando alguém gritou:

    – Lá vem a polícia...

    A polícia veio e agarrou o homem que discursava. Ele falava da miséria em que o povo vivia e prometia uma pátria nova em que todos tivessem pão e trabalho. Por isso foi preso e como os outros não compreendessem que fosse preso só por isso, protestaram:

    – Não pode! Não pode!

    Antônio Balduíno também gritava “não pode!” E esta era mesmo a coisa de que ele mais gostava. Afinal levaram o homenzinho, mas os outros guardaram os papéis jogados e aqueles que não tinham conseguido pegar um tomavam o do companheiro emprestado. Era um grupo de mãos estendidas contra os soldados que levavam o orador. Um grupo de caras negras e fortes e as mãos estendidas lembravam um gesto de rebentar grilhetas. Vinham cantigas escravas da Lanterna dos Afogados.

    O apito tocava inutilmente. Um homem gordo de guarda-chuva e rosto rosado dizia:

    – Canalhas...

    Quem sabe se não será pelo corpo de um suicida que o mar indicará a Antônio Balduíno o caminho de casa? Ou pela prisão de um homem que fala em pão e o gesto de outros que protestam?

    Foram anos bons, anos livres, aqueles em que ele e seu grupo dominaram a cidade, mendigando nas suas ruas, brigando nos becos, dormindo no cais. O grupo era unido e os moleques se estimavam talvez. Apenas sabiam mostrar essa estima dando socos nas costas dos outros e dizendo nomes feios. Xingar com voz doce a mãe do companheiro era o maior carinho que qualquer daqueles negros risonhos sabia fazer

    Eram unidos, sim. Quando um brigava todos brigavam. E tudo que ganhavam era fraternalmente dividido entre todos. Tinham o seu amor-próprio e amavam a fama do grupo. Um dia esfacelaram outro bloco de moleques que pedia esmolas na cidade.

    Quando este bloco apareceu, chefiado por um negrinho de seus doze anos, Antônio Balduíno procurou entrar em relações. Mandou ao terreiro, onde eles estavam, um emissário. Foi Felipe, o Belo, que tinha lábia. Porém o menino nem pôde se aproximar. Foi escorraçado miseravelmente, vaiado, e voltou com os olhos cheios de lágrimas de raiva. Contou tudo a Antônio Balduíno:

    – Isso não foi porque você foi pra lá contar vantagem, Belo?

    – Eu nem cheguei perto... Eles foram logo xingando minha mãe... Mas eu pego um cara daqueles e rebento... – Antônio Balduíno ficou pensativo:

    – Vou mandar o Gordo lá...

    O Sem Dentes se afrontou:

    – Mandar outro? Pra quê? A gente deve ir é logo rebentando a cara deles... Dá uma lição... Eles vêm tirar nosso pão e você ainda quer fazer paz... Nem devia ter mandado o Belo... A gente passou foi vergonha... Vamos logo lá...

    Os outros apoiavam:

    – O Sem Dentes falou direito... Vamos lá...

    Mas Antônio Balduíno atalhou:

    – Nada disso... Vou mandar o Gordo lá... Quem sabe se eles não tão passando fome... Se eles quiser ficar só com o pedaço da Baixa dos Sapateiros, eu deixo eles em paz...

    O Sem Dentes riu:

    – Parece que você tá com medo, Baldo...

    Antônio Balduíno pegou na navalha, mas se conteve:

    – Você nem se lembra mais Sem Dentes do dia que a gente pegou você e Cici morrendo de fome na cidade de Palha... Se a gente quisesse podia também acabar com vocês... Mas a gente não quis...

    O Sem Dentes baixou a cabeça e ficou assoviando baixinho. Não pensava mais nos negros que estavam no terreiro, e agora pouco lhe importava que Antônio Balduíno acabasse com eles, ou os deixasse em paz. Pensava naqueles dias de fome, seu pai desempregado, bebendo nos botequins o dinheiro que a mãe arranjava lavando roupa. Se recordava da surra que levara no dia que se metera entre a velha e o pai quando este queria tomar o dinheirinho a pulso. E o choro da sua mãe... O pai que repetia: merda... merda.

    Depois a fuga. Os dias com fome na cidade. O encontro com Antônio Balduíno e o grupo. E a vida de depois... Onde andaria sua mãe? E seu pai já teria arranjado trabalho? Quando ele estava trabalhando não bebia nem batia na mãe. Era carinhoso e trazia presentes... Mas havia pouco trabalho e, desempregado, o velho matava as mágoas na garrafa de cachaça. O Sem Dentes pensava nisso tudo. E sentiu um nó na garganta e um ódio terrível do mundo e dos homens.

    O Gordo foi em comissão, debaixo dos sorrisos de Felipe, o Belo.

    – Se eu não arranjei nada quanto mais você...

    Viriato, o Anão, murmurou:

    – Fale direito, Gordo. A gente não quer brigar... Quer é viver cada um pra seu lado...

    Ficaram esperando na Rua do Tesouro. O Gordo se benzeu e se dirigiu para o terreiro.

    Demorou a voltar. Viriato, o Anão, disse:

    – Não estou gostando...

    O Belo riu:

    – Ele tá numa igreja rezando...

    Cici achava que ele estava acertando as coisas, mas todos estavam desconfiados que algo acontecera ao embaixador. E acontecera mesmo. Quando o Gordo voltou, chorava:

    – Me pegaram e me deram uma surra... E jogaram fora o santo que tava no meu pescoço...

    – E você náo fez nada?

    – Eles são uns cinqüenta e eu um só...

    E o Gordo contou:

    – Eu cheguei lá eles tava tudo se rindo, gozando a carreira do Belo... Foram logo me xingando, me chamando de porco. Lá vem o porco, era o que eles gritavam...

    – Ora, que vantagem... – disse Felipe. – Eles xingaram minha mãe...

    – Mas eu não me importei... Fui chegando e quis falar. Eles nem deram tempo. Me pegaram, eu dizia que era de paz... Me deixaram desse jeito... São mais de vinte...

    – Tá bem. Eles querem brigar, vamos brigar e é agora mesmo...

    Se levantaram e iam alegres, apertando os canivetes, conversando sobre coisas as mais diversas.

    Os moleques que estavam no terreiro desapareceram para muito longe, depois da briga, se separaram com certeza, ficaram malandreando avulsamente, mas a verdade é que nunca mais apareceram em grupo. O grupo de Antônio Balduíno voltou radiante, menos o Gordo, que não conseguira encontrar o santo que o Padre Silvino lhe dera.

    O Gordo era muito religioso.

    Foi por isso que o Gordo se benzeu e ficou todo tremendo naquele dia que Antônio Balduíno viu Lindinalva. Nesse dia ele percebeu tudo e, se bem não dissesse nada a Antônio Balduíno, se sentiu ainda mais ligado ao negro.

    Eles estavam na Rua Chile, quando viram um casal. Se prepararam em fila, o Gordo na frente, e se dirigiram para o casal, que parecia de namorados. E casal de namorados dá sempre esmolas. O Gordo botou as mãos nos peitos e foi logo cantando:

             “Esmola pra sete ceguinhos.

    Cercaram o casal. Mas quando Antônio Balduíno olhou, viu que era Lindinalva e um rapaz de anel vermelho no dedo. Um jazz tocava blues numa confeitaria. Lindinalva também enxergou Antônio Balduíno e se apertou no peito do namorado com um gesto de medo e de nojo. O Gordo cantava, ninguém percebia a cena. Antônio Balduíno gritou:

    – Pare com isso... Vamos embora!

    Saiu correndo. Ficaram mudos de espanto. Lindinalva tinha os olhos fechados, O rapaz perguntou;

    – O que foi, querida?

    Ela mentiu:

    – Que coisa horrorosa esses meninos...

    O rapaz então riu, superior.

    – Você é uma medrosa, querida...

    Jogou um níquel para os garotos. Mas eles já estavam longe, cercando Antônio Balduíno que escondia o rosto nas mãos. Viriato, o Anão, perguntou:

    – O que é, Baldo?

    – Nada. Eu conheço aquela gente.

    O Sem Dentes voltou e apanhou o níquel. O Gordo compreendeu tudo, se benzeu e depois ficou junto de Antônio Balduíno contando história de Pedro Malazarte. O Gordo contava muita história e sabia contar muito bem. Só tinha que a história, por mais alegre que fosse, virava triste na boca do Gordo e ele metia sempre anjos e diabos no conto. Mas narrava bonito, inventava sempre, mentia muito e depois acreditava em todas as mentiras que contava.

    Viveram a mesma vida solta dois anos. Dois anos correndo pela cidade, assistindo partidas de futebol e lutas de boxe, brigando, penetrando no Cinema Olímpia, ouvindo as histórias que o Gordo contava sem notar que estavam crescendo, ficando homens, e que a cantiga que falava em sete ceguinhos não servia mais para eles que já estavam uns negros fortes, enormes, derrubando mulatas no cais, malandreando na cidade religiosa da Bahia. Começavam a fazer poucas esmolas e um dia foram presos como malandros e desordeiros.

    Um mulato de chapéu de palha e uns papéis debaixo do braço, que era tira da polícia, juntou uns soldados e os levaram.

    Primeiro estiveram na delegacia, onde não lhes disseram nada. Depois foram levados para um corredor soturno. Penetrava um raio de sol por uma fresta. Eles ouviram a voz dos presos que cantavam. Vieram soldados e traziam chibatas de borracha. E eles foram espancados sem saber por quê, pois nada lhes disseram. Ganharam assim a sua primeira tatuagem. Felipe, o Belo, ficou marcado na cara. O mulato que os prendera ria, puxando fumaça de um cigarro. Os presos cantavam lá embaixo, ou lá em cima, ninguém sabia onde. Diziam na sua canção que lá fora havia liberdade e sol. E a borracha zunia nas costas dos moleques. O Sem Dentes gritava e xingava todo mundo. Antônio Balduíno tentava dar pontapés e Viriato, o Anão, mordia os lábios com raiva. Não adiantava o Gordo rezar, mas ele rezava em voz alta:

    – Padre nosso que estais no céu...

    E a chibata zunia. Até que correu sangue do corpo dos moleques eles não pararam de bater. Os presos cantavam tristemente.

    Passaram oito dias na cadeia, foram fichados e enfim soltos numa manhã clara de muito sol. Voltaram para a vagabundagem da cidade.

    Mas demorou pouco essa volta. O grupo foi se dissolvendo. O primeiro a ir embora foi o Sem Dentes que ingressou numa quadrilha de batedores de carteira. De vez em quando eles o viam. Passava vestido de calça e paletó, calçado com uns sapatos velhos, um lenço amarrado no pescoço, assoviando baixinho como era seu costume. Também Cici foi embora, e nunca souberam para onde. Jesuíno foi trabalhar numa fábrica, casou, teve um mundão de filhos, Zé Casquinha engajou como marinheiro.

    E Felipe, o Belo, morreu debaixo de um automóvel. Era também uma manhã clara e Felipe estava cada vez mais lindo. Mesmo a marca de chicote que lhe ficara na cara lhe dava um ar aventureiro. Arranjara uma gravata nova e comemorava seu décimo terceiro aniversário. Os outros riam e brincavam. Foi quando no asfalto da rua brilhou qualquer coisa como um diamante. Balduíno enxergou e disse:

    – Parece um brilhante...

    Felipe, o Belo, se alvoroçou:

    – Ah! vou apanhar para usar no meu dedo. É meu presente de aniversário... – Correu para o meio da rua. Viriato ainda chegou a gritar para avisar da vinda do auto móvel. Felipe olhou rindo e foi seu último sorriso. Ficou feito um monturo, um bolo de carnes que ainda gemia. Morreu com o sorriso que fizera agradecendo o aviso de Viriato. O rosto não fora atingido e era belo, radioso, rosto de príncipe. O corpo foi levado para o necrotério. Veio uma mulher pintada e velhusca que dizia entre lágrimas:

    – Mon chéri... Mon chéri...

    E beijava o rosto de Felipe, o Belo. Mas ele não via mais nada e não sabia que era sua mãe que estava ali. Não sabia também que o grupo se reuniu de novo para o seu enterro. Veio o Sem Dentes, veio Jesuíno, até Cici veio ninguém sabe de onde. Só não veio Zé Casquinha que era marinheiro e estava viajando. A mãe de Felipe e as mulher da Rua de Baixo levaram flores. E os moleques o vestiram com uma roupa de casimira, comprada a um turco que vendia roupas feitas a prestação.

    Somente Viriato, o Anão, que cada vez estava menor e mais curvo, ficou mendigando. Os outros se distribuíram pela cidade em ofícios diversos, operários de fábricas, trabalhadores da rua, carregadores do cais. O Gordo foi vender jornais porque tinha uma boa voz. Antônio Balduíno voltou ao Morro do Capa-Negro, e ficou malandreando com Zé Camarão, jogando capoeira, tocando violão nas festas, indo às macumbas de Jubiabá.

    Ia ao cais todas as noites e ficava espiando no mar o caminho de casa.

   

Lanterna dos Afogados

    Quando Seu Antônio comprou a Lanterna dos Afogados à viúva de um marinheiro que a montara há muitos anos, ela já tinha esse nome, e em cima da porta ostentava aquela tabuleta mal pintada, na qual uma sereia salva um afogado. O marinheiro que montara o botequim desembarcara um dia de um cargueiro e ancorara ali, naquela velha sala negra do sobrado colonial.

    Amara uma mulata escura que fazia arroz-doce para os fregueses e fornecia bóia aos trabalhadores do cais do porto.

    Por que chamara ao botequim de Lanterna dos Afogados ninguém sabia. Sabiam porém que ele naufragara três vezes e que correra o mundo todo. Antes de morrer casou com a amásia para que ela pudesse herdar o já afreguesado café. Ela o vendeu a Seu Antônio, que de há muito estava de olho nele, devido ao ponto que era ótimo. Antônio não gostava do nome do botequim. Não via razão para aquele título esquisito. E dias após a realização do negócio, a tabuleta apareceu mudada. A nova trazia o desenho malfeito de uma caravela da época das descobertas portuguesas e por baixo um nome: “Café Vasco da Gama”.

    Porém aconteceu que os fregueses olhavam espantados o novo nome do botequim e não entravam. Com aquela tabuleta nova e a limpeza que havia sido feita dentro da sala, eles não reconheciam o seu sujo porto de descanso, onde bebiam cachaça e conversavam nas noites do cais.

    Seu Antônio era supersticioso. E no dia seguinte foi buscar nos fundos da casa a velha tabuleta que voltou ao seu lugar. Guardou a que tinha uma caravela portuguesa para quando possuísse um café no centro da cidade. Com a tabuleta de Lanterna dos Afogados, voltou também a mulata escura que fora amante do marinheiro e que continuou a fazer arroz-doce para os fregueses e bóia para os estivadores e a dormir na mesma cama que antigamente. Só que agora dormia com um português conversador, em vez um marinheiro silencioso. Quando Seu Antônio montasse um café no centro da cidade e botasse nele o nome de Vaso da Gama e uma tabuleta com caravelas descobridoras, ela ficaria na Lanterna dos Afogados, fazendo arroz-doce para os fregueses, bóia para os estivadores e dormiria na mesma cama com o novo proprietário.

    Os fregueses voltaram para a Lanterna dos Afogados. Lá discutiam longos cruzeiros marinheiros loiros e negros. Mestres de saveiros conversavam sobre as feiras do Recôncavo para onde levariam os seus barcos cheios de frutas. Tocavam violão, cantavam sambas, contavam histórias de arrepiar nas noites imensas de estrelas. E mulheres desciam da Ladeira do Taboão para a Lanterna dos Afogados.

    Antônio Balduíno, Zé Camarão e o Gordo eram dos mais assíduos. E até Jubiabá aparecia às vezes.

    Se no jogo da capoeira o negro Antônio Balduíno fora o melhor discípulo de Zé Camarão, no violão cedo ele bateu o mestre e se tornou tão célebre quanto ele.

    Muitas vezes, quando andava pelas ruas da cidade nos seus passeios malandros, ele começava a bater no chapéu de palha uma música que inventava e ia cantando uma letra, tudo tirado da sua cabeça. Depois cantava o samba novo para os amigos do morro:

             “Vida de negro é bem boa, mulata...

             tem festa todos os dias

             baticum lá no terreiro

             morena para a folia...”

    Fazia sucesso nas festas:

             “Senhor do Bonfim é meu santo

             ele faz feitiço forte,

             eu sou é malandro, mulata

             e você minha desgraça...”

    Não havia cabrocha que não se apaixonasse.

    Uma tarde um homem muito bem vestido apareceu no morro e perguntou por Antônio Balduíno. Mostraram o negro que conversava num grupo. O homem se aproximou, raspando o chão com a bengala:

    – É você que é Antônio Balduíno?

    Balduíno pensou que fosse alguém da polícia:

    – Por que pergunta?

    – Não é você que faz sambas? – o homem apontava com a bengala.

    – Invento umas coisinha.

    – Quer cantar um para eu ouvir?

    – Se mal lhe pergunto, que interesse tem isso?

    – Pode ser que eu compre.

    Antônio Balduíno estava bem preciso de dinheiro para comprar um sapato novo que vira na Feira de Água dos Meninos. Foi buscar o violão e cantou vários sambas. O homem gostou de dois.

    – Quer me vender estes?

    – Para que o senhor quer?

    – Porque gostei...

    – Vendo.

    – Dou vinte mil.réis pelos dois...

    – Tá bem pago... Quando quiser mais...

    O homem fez Antônio Balduíno assoviar as músicas e tomou nota num papel cheio de risquinhos. Escreveu as letras:

    – Depois eu volto aqui para comprar mais...

    Desceu com a bengala arrastando. Os moradores do morro ficaram olhando. Antônio Balduíno se estendeu na porta da venda e botou as duas notas de dez mil-réis em cima da barriga nua. Ficou pensando no sapato novo que ia comprar e no corte de chita que levaria para Joana.

    O homem de bengala que adquirira os sambas disse de noite num café do centro da cidade:

    – Fiz dois sambas formidáveis.

    Cantou batendo os dedos na mesa. Os sambas depois apareceram em discos e foram cantados no rádio, tocados ao piano. Os jornais diziam:

    “O maior sucesso deste carnaval foram os sambas do poeta Anísio Pereira, que são de enlouquecer”.

    Antônio Balduíno não lia jornais, não ouvia rádio, não tocava piano. Continuou a vender sambas ao poeta Anísio Pereira.

    Joana trazia os cabelos soltos, cabelos que ela espichava cuidadosamente, e os perfumava com um perfume que tonteava Antônio Balduíno. Ele enfiava o nariz chato no cangote dela, suspendia o cabelo e ficava aspirando aquele perfume. Ela dizia rindo:

    – Tira o focinho do meu pescoço...

    Ele ria também:

    – Que bodum gostoso...

    Jogava a negra de costas na cama. A voz dela vinha de longe:

    – Seu cão...

    No dia em que apareceu com os sapatos novos, levando debaixo do braço o corte de chita para um vestido, Joana estava também cantando um dos sambas que ele vendera ao homem de bengala. Antônio Balduíno disse:

    – Sabe de uma coisa, Joana?

    – O que é?

    – Vendi esse samba.

    – Vendeu como? – ela não sabia como se vendia um samba.

    – Apareceu um homenzinho no morro, e comprou dois sambas por vinte mil-réis. Bem bom.

    – Mas para que ele queria?

    – Eu sei lá... Acho que ele é doido.

    Joana ficou pensando. Mas Antônio Balduíno lhe deu o corte de fazenda:

    – Com o dinheiro comprei isto para você...

    – Que beleza!

    – Olhe a prosopopéia de meu sapato novo...

    Ela olhou e se jogou no pescoço de Antônio Balduíno, que ria alto, satisfeito da vida, bem contente com o negócio que fizera. E enquanto cheirava o cangote de Joana, ela cantava o seu samba. Foi a única pessoa que cantou aquele samba sabendo quem em verdade o fizera.

    Antônio Balduíno avisou:

    – Nós hoje vai à macumba na casa de Jubiabá. É dia do teu santo, meu bem.

    Iam à macumba e depois se estendiam no areal, onde se amavam raivosamente, Antônio Balduíno vendo no corpo de Joana o corpo de Lindinalva.

    Apareciam sempre na Lanterna dos Afogados, se bem Joana não gostasse de ir lá.

    – Um lugar onde vai tanta vagabunda... São capazes de pensar que eu também sou.

    Joana copeirava numa casa da Vitória e morava num quartinho nas Quintas. Gostava de ir amar no cais, mas só ia à Lanterna dos Afogados para satisfazer o capricho de Antônio Balduíno. Quando iam os dois, ele ficava sozinho com a cabrocha numa mesa, bebendo cerveja, sorrindo pata os outros que cumprimentavam. Ele expunha a amante e depois saía rindo, piscando os olhos como a dizer que agora se dirigiam para o areal do cais.

    Quase todos os dias, porém, Antônio Balduíno ia era com o Gordo, com Joaquim com Zé Grandão. Bebiam cachaça, contavam aventuras, riam como só os negros sabem rir. Na noite do aniversário do Gordo, Viriato, o Anão, apareceu. Tinha mudado muito nestes últimos anos. Não que estivesse mais alto ou mais forte. É que estava andrajoso, vestido de molambos, apoiado numa bengala tosca.

    – Vim beber à sua saúde, Gordo...

    O Gordo mandou vir cachaça. Antônio Balduíno perguntou:

    – Como vão as coisas, Viriato?

    – Assim, assim...

    – Você está doente?

    – Não. Isso é para arranjar mais esmolas – e riu seu sorriso apertado.

    – Por que nunca mais você apareceu?

    – Por aí, sabe... Jogado... Nem vontade...

    – Me disseram que você tinha tado doente.

    – Estive mesmo, maleita braba... A assistência me pegou... Passei o diabo. Se eu cair doente outra vez prefiro morrer na rua...

    Aceitou o cigarro que Joaquim oferecia:

    – Fiquei largado lá, sem ninguém se importar com eu. Sabe como é?

    O Gordo não sabia, mas estava com medo.

    – De noite vinha a febre. Eu pensava que ia morrer... Me lembrava que não tinha ninguém... Ninguém pra me velar...

    Ficou calado.

    – Mas ficou bom – disse Balduíno.

    – Bom, não. Maleita volta. Um dia destes morro na rua como um cachorro...

    O Gordo botou a mão negra em cima da mesa em direção a Viriato:

    – Morre nada, mano...

    Joaquim tentou rir:

    – Vaso ruim não quebra...

    Mas Viriato continuou:

    – Você se lembra, Antônio Balduíno, de Rozendo? Ele ficou doente mas teve a mãe dele que veio buscar ele. Foi até eu que descobri ela. E Felipe, o Belo, quando morreu teve também a mãe dele que veio pro enterro. Trouxe aquelas flores e veio muita mulher...

    – Tinha uma com cada coxão – atalhou Joaquim.

    – Todo mundo tem pai, tem mãe, tem uma pessoa. Eu não tenho ninguém.

    Atirou para um canto o cigarro, pediu outro copo de pinga:

    – De que vale a vida da gente? Você se alembra da vez que a gente apanhou como cachorro na polícia? Pra que eles fez aquilo com a gente? A vida da gente não presta pra nada... A gente não tem ninguém...

    O Gordo tremia. Antônio Balduíno olhava para dentro do copo de cachaça. Viriato, o Anão, se levantou:

    – Estou chateando vocês... Mas eu fico só e fico matutando...

    – Já vai? – perguntou Joaquim.

    – Vou pegar a saída do cinema.

    Saiu se arrastando na bengala, curvo, coberto de farrapos.

    – Ele já se acostumou a andar assim – disse Joaquim.

    – Por que é que ele só conversa coisas tristes? – O Gordo não sabia, mas tinha pena porque era muito bom.

    – Ele sabe mais do que a gente – afirmou Antônio Balduíno.

    Na outra mesa um mulato de pastinha explicava a um negro:

    – Moisés mandou parar o mar e atravessou com os cristão todos...

    – Eu converso é para me divertir – falou Joaquim.

    O Gordo se queixou:

    – Ele não devia ter feito isso hoje que era dia do meu aniversário...

    – O quê?

    – Contar coisa triste... Tirou toda a graça.

    – Nada. Vamos fazer uma farra na casa de Zé Camarão. A gente arranja umas morenas – convidou Antônio Balduíno.

    O Gordo pagou as despesas. Na outra mesa o mulato contava a história do Rei Salomão que tinha seiscentas mu latas.

    – Macho bom – disse Antonio Balduíno soltando uma gargalhada.

    Fizeram a farra, se entupiram de cachaça, amaram umas cabrochas bem bonitas, mas não conseguiram esquecer Viriato, o Anão, que não tinha ninguém para tratar da sua maleita.

    Joana fazia cenas por causa de outras mulatas, que eram amadas igualmente por Antônio Balduíno. Mulata que aparecesse na sua frente era mulata amigada com ele. Na força dos seus dezoito anos fortes e malandros criara um grande prestígio entre as cabrochas da cidade, empregadas, lavadeiras, negrinhas que vendia acarajé e abará. Ele sabia conversar com elas e terminava sempre por levá-las para o areal, onde se enroscavam sem sentir a areia que entrava pela carapinha.

    Ele as amava e não as via mais. Passavam pela sua vida como aquelas nuvens que passavam pelo céu, e que serviam para ele fazer as comparações com elas:

    – Os olhos de você de tão pretos parecem aquela nuvem...

    – Xi! vai chover...

    – Então vamos para casa... Eu sei um lugar onde a gente fica bem abrigado.

    Porém Joana tinha aquele perfume no cangote. Se agarrava a ele, brigava quando sabia que o negro dera em cima de uma cabrocha qualquer, dizem até que fez feitiço para que ele não a abandonasse. Tinha amarrado numa cueca do amante penas de galinha preta, e uma farofa de azeite-de-dendê onde cinco vinténs de cobre apareciam. Pôs tudo isso na porta de Antônio Balduíno numa noite de lua cheia.

    Na festa da casa de Arlindo, em Brotas, fizera um escarcéu danado, só porque Antônio Balduíno dançara algumas vezes com Delfina, uma mulata sarará. Quisera dar na outra, chegou a arrancar o sapato do pé. Antônio Balduíno ria alto, gozando a disputa das duas.

    Em casa Joana perguntou:

    – O que foi que você achou de bonito naquela peste?

    – Você tá com ciúme dela?

    – Eu? Vê lá... Daquele couro... uma bruaca velha caindo de podre... Não sei o que é que você viu nela.

    – Isso é que você não sabe... Ela tem seus segredos...

    Antônio Balduíno ria e rolava com ela na cama cheirando o seu cangote perfumado.

    Lembrava-se de quando a conhecera. Fora numa festa no Rio Vermelho. Dera em cima dela de longe, tocando coisas no violão. Ela ficou toda caída. No outro dia, que era um domingo, se encontraram e foram à matinê do Olímpia. Ela lhe contara uma história muito comprida para provar que era donzela e ele acabara acreditando. Ficou desinteressado mas foi ao encontro marcado para quinta-feira porque não tinha o que fazer naquela noite. Ficaram passeando no Campo Grande, ele sem ter conversa porque ela era donzela e donzelas não interessam ao negro. Perto da hora de voltar para o emprego ela contou:

    – Olhe, eu vi que você é bonzinho mesmo e respeitador... Pois eu vou falar a verdade para você. Eu não sou donzela, não...

    – Ah! não é, não?

    – Foi meu tio, um tio que morava lá em casa. Faz três anos. Eu estava sozinha, mamãe tinha ido trabalhar...

    – E seu pai?

    – Nunca conheci... Meu tio se aproveitou, me pegou e foi a pulso...

    – Que desgraçado... – no fundo Antônio Balduíno simpatizava com o tio.

    – Nunca mais conheci homem nesses três anos... Agora gostei de você...

    Antônio Balduíno desta vez estava conhecendo que era tudo invenção da cabrocha, mas não disse nada. Não deixou ela voltar para o emprego naquela noite, e, como não tinha para onde a levar, foi mesmo para o cais do porto, para diante dos navios e do mar.

    Depois alugaram aquele quartinho nas Quintas, onde diariamente Joana mentia e ciumava.

    O negro não acreditava mas começava a se aborrecer.

    Estava na Lanterna dos Afogados, certa noite de temporal, quando o Gordo entrou afobado. Joaquim, que conversava com Antônio Balduíno, avisou:

    – Lá vem o Gordo..

    – Vocês sabem o que aconteceu?

    – Os estivadores acharam um defunto no cais.

    Aquilo era comum e eles não se impressionaram. Mas o Gordo acrescentou:

    – Era Viriato.

    – Quem?

    – Viriato, o Anão.

    Saíram correndo. Lá estava na borda do cais. Um grupo de homens cercava o corpo. Devia ter passado uns três dias na água, pois inchara e crescera. Os olhos muito abertos pareciam fitar o grupo. O nariz já andava meio comido pelos peixes e sentia-se dentro do corpo siris que faziam um barulho esquisito.

    Pegaram o corpo e levaram para a Lanterna dos Afogados. Juntaram duas mesas e o botaram em cima. Os siris faziam barulho por debaixo da pele do cadáver. Pareciam chocalhos tocando. Seu Antônio trouxe uma vela do balcão para enfiar na mão que já não abria. Joaquim disse:

    – Só cresceu depois de morto.

    O Gordo estava rezando:

    – Coitado!... Não tinha ninguém por ele.

    Uns homens que bebiam cachaça vieram ver. As mulheres olhavam e se afastavam com medo. Seu Antônio ainda segurava a vela, pois ninguém tinha coragem de ir botar na mão do defunto. Antônio Balduíno pegou a vela e se aproximou do morto. Abriu a mão grossa do afogado e meteu a vela dentro. Falou:

    – Ele era sozinho, gente... Ele tava procurando acertar com o caminho de casa e entrou pelo mar.

    Ninguém entendia. Alguém perguntou onde ele morava.

    Jubiabá que vinha chegando quis saber:

    – Boa noite pra ocês todos. O que foi?

    – Ele tava, pai Jubiabá, procurando o olho da piedade. Mas ele não achou nunca e se matou. Ele não tinha nem pai nem mãe, nem ninguém pra cuidar dele. Morreu porque não encontrou o olho da piedade.

    Ninguém entendia mas tremeram quando Jubiabá disse:

    – Ôjú ànun fó ti iká, ôkú.

    O Gordo contava com muitos detalhes e de uma maneira muito triste a história de Viriato, o Anão, a um dos homens que bebiam cachaça. Segundo o Gordo, uma vez Viriato vira três anjos e uma mulher vestida de roxo que era sua mãe e o estava chamando para o céu.

    Aí se jogara na água.

    De repente, no meio de toda aquela gente, Antônio Balduíno se sentiu só com o cadáver e teve medo. Um medo doido. Ficou tremendo, batendo os queixos. Se lembrou de todo mundo: sua tia Luísa que enlouquecera, Leopoldo que fora assassinado, Rozendo doente gritando pela mãe, Felipe, o Belo, debaixo do automóvel, o velho Salustiano se suicidando no cais, o corpo de Viriato, o Anão, cheio de siris que chocalhavam.

    E pensou que eram todos eles muito infelizes, vivos e mortos. E os que nasceriam depois também. Só não sabia por que eram tão infelizes.

    O temporal apagou a luz da Lanterna dos Afogados.

   

Macumba

    Foi feito despacho de Exu, para que ele não viesse perturbar a boa marcha da festa. E Exu foi para muito longe, para Pernambuco ou para a África.

    A noite caía pelos fundos das casas e era aquela noite calma e religiosa da Bahia de Todos os Santos. Da casa do pai-de-santo Jubiabá vinham sons de atabaque, agogô, chocalho, cabaça, sons misteriosos da macumba que se perdiam no pisca-pisca das estrelas, na noite silenciosa da cidade. Na porta, negras vendiam acarajé e abará.

    E Exu, como tinham feito o seu despacho, foi perturbar outras festas mais longe, nos algodoais da Virgínia ou nos candomblés do Morro da Favela.

    Num canto, ao fundo da sala de barro batido, a orquestra tocava. Os sons dos instrumentos ressoavam monótonos dentro da cabeça dos assistentes. Música enervante, saudosa, música velha como a raça, que saía dos atabaques, agogôs, chocalhos, cabaças.

    A assistência apertada em volta da sala, junto à parede, estava com os olhos fitos nos ogãs que ficavam sentados em quadrado no meio da sala. Em torno dos ogãs giravam as feitas. Os ogãs são importantes, pois eles são sócios do candomblé, e as feitas são as sacerdotisas, aquelas que podem receber o santo. Antônio Balduíno era ogã, Joaquim também, mas o Gordo ainda não o era e estava no meio da assistência; bem junto de um homem branco e magro, calvo, que espiava a cena muito atento, procurando acompanhar a música monótona com pancadas nos joelhos. Do outro lado um jovem negro de roupa azul estava envolvido pela música e pelos cânticos, esquecido de que tinha vindo observar. O resto da assistência era formada por homens pretos, homens mulatos, que se apertavam de encontro a negras gordas, vestidas com anáguas e camisas decotadas e colares no pescoço. As feitas dançavam lentamente sacudindo o corpo.

    De repente uma negra velha que estava encostada parede da frente, perto do homem calvo, e que de há muito tremia nervosa com a música e com os cânticos, recebeu o santo. Foi levada para a camarinha. Mas como ela não era feita na casa, ficou lá até que o santo a abandonou e foi pegar uma negrinha moça que também entrou para o quarto das sacerdotisas.

    O orixalá era Xangô, o deus do raio e do trovão, e como desta vez ele tinha pegado uma feita, a negrinha saiu da camarinha vestida com roupas do santo: vestido branco e contas brancas pintalgadas de vermelho, levando na mão um bastãozinho.

    A mãe do terreiro puxou o cântico saudando o santo:

             “Edurô dêmin lonan ô yê!’

    A assistência cantou em coro.

             “A umbó k’ó wá jô!”

    E a mãe do terreiro estava dizendo no seu cântico nagô:

             “Abram alas para nós, que viemos dançar”.

    As feitas rodavam em torno dos ogãs e a assistência reverenciava o santo pondo as mãos para ele, os braços em ângulos agudos, as palmas das mãos voltadas para o orixalá:

    – Ôkê!

    Todos gritavam:

    – Ôkê! Ôkê!

    Os negros, as negras, os mulatos, o homem calvo, o Gordo, o estudante, toda a assistência animava o santo:

    – Ôkê! Ôkê!

    Então o santo penetrou no meio das feitas e dançou também. O santo era Xangô, o deus do raio e do trovão, e trazia contas brancas pintalgadas de vermelho sobre o vestido branco. Veio e reverenciou Jubiabá que estava no meio dos ogãs e era o maior de todos os pais-de-santo. Deu outra volta dançando e reverenciou o homem branco e calvo que estava ali por convite de Jubiabá. O santo reverenciava curvando-se três vezes diante da pessoa, depois a abraçava, apertando-lhe os ombros, e punha a cara ora de um lado ora de outro da do reverenciado.

    A mãe do terreiro cantava agora:

   

             “Iya ri dê glê ô

             Afi dé si ómón lôwô

             Afi ilé si ómón lérun.”

    e ela estava dizendo que:

             “A mãe se enfeita de jóias,

             Enfeita de contas o pescoço dos filhos

             E põe novas contas no pescoço dos filhos...”

    E os ogâs e a assistência faziam o coro pronunciando uma onomatopéia que indicava o ruído das contas “que estavam todas a trincar”:

             “Ômirô wónrón wónrón wónrón ômirô”.

    Foi quando Joana, que já dançava como se estivesse em transe, foi possuída por Omolu, a deusa da bexiga.

    E saiu da camarinha vestida de roupa multicor, onde predominava o vermelho-vivo, as calças parecidas àquelas velhas ceroulas, as pontas bordadas aparecendo sob a saia. O tronco estava quase nu, um pano branco amarrado nos peitos. E o tronco de Joana era perfeito de beleza, os seios duros e pontiagudos furando o pano. Mas ninguém via nela a negrinha Joana. Nem Antônio Balduíno via a sua amante Joana, que dormia sem sonhar no areal do cais do porto. Quem estava ali, de busto despido, era Omolu, a deusa terrível da bexiga. Da mãe do terreiro vinha a voz monótona saudando a entrada do santo:

             “Edurô dêmin lonan é yê!”

    Sons de atabaque, agogô, cabaça, chocalho. Música que não mudava, que se repetia sempre, mas que excitava doida- mente. E o coro da assistência:

             “A umbó k’ó wá jô!”

    Reverenciavam o santo:

    – Ôké! Ôkê!

    E Omolu, que dançava entre as feitas, veio e reverenciou Antônio Balduíno. Depois reverenciou pessoas da assistência que podiam entrar para a casa. Reverenciou o Gordo, reverenciou o estudante negro que era geralmente simpatizado, reverenciou o homem calvo, reverenciou Roque e vários outros.

    Agora todos estavam excitados e todos queriam dançar. Omolu vinha e tirava mulheres da assistência para dançar. Antônio Balduíno movia o tronco como se estivesse remando. Estiravam os braços saudando o santo. Um ar de mistério se espalhava pela sala e vinha de toda parte, dos santos, da música, dos cânticos e, principalmente, de Jubiabá, centenário e pequenino.

    Cantavam em coro outra canção de macumba:

             “Êôlô  biri ô b’ajá gbá kó a péhindá.”

e estavam dizendo que “o cachorro quando anda mostra o rabo”. Também Oxossi, o deus da caça, veio para a festa da macumba do pai Jubiabá. Vestia de branco, verde e um pouco de vermelho, um arco distendido com a sua flecha, pendurado de um lado do cinto. Do outro lado conduzia uma aljava. Trazia daquela vez, além do capacete de metal com casco de pano verde, um espanador de fios grossos. E não é sempre que Oxossi, o deus da caça, o grande caçador, traz o seu espanador de fios grossos.

    Os pés descalços das mulheres batiam no chão de barro, dançando. Requebravam o corpo ritualmente, mas esse requebro era sensual e dengoso como corpo quente de negra, como música dengosa de negro. O suor corria e todos estavam tomados pela música e pela dança. O Gordo tremia e não via mais nada senão figuras confusas de mulheres e santos, deuses caprichosos da floresta distante. O homem branco batia com os sapatos no chão e disse para o estudante:

    – Eu caio já na dança...

    Jubiabá era reverenciado pelo santo. Braços em ângulos agudos saudavam Oxossi, o deus da caça. Havia quem apertasse os lábios e mãos que tremiam, corpos que tremiam no delírio da dança sagrada. Foi quando, de súbito, Oxalá, que é o maior de todos os orixás, e que se divide em dois – Oxodian, que é o moço, Oxolufã, que é o velho, apareceu derrubando Maria dos Reis, uma pretinha de seus quinze anos, de corpo virgem e roliço. Ele apareceu, Oxolufã, Oxalá velho alquebrado, arrimado a um bordão com lantejoulas. Quando saiu da camarinha vinha totalmente de branco e recebeu a saudação da assistência que se curvou ainda mais

    – Okê! Okê!

   

    Foi só então que a mãe do terreiro cantou:

             “Ë inun ójá 1’á á ló, inun li a ô lô”.

    Ela estava avisando:

    “O povo da feira que se prepare. Vamos invadi-la”.

    E a assistência em coro:

              “Êrô ôjá é pará món, é inun ójá li a ô ló”

    “Povaréu, cuidado, entraremos na feira.”

    Sim, eles entrariam na feira, porque estavam com Oxalá, que é o maior de todos os orixás.

    Oxolufã, que era Oxalá velho, só reverenciou Jubiabá. E dançou entre as feitas até que Maria dos Reis caiu estremunhando no chão, assim mesmo sacudindo o corpo no jeito da dança, espumando pela boca e pelo sexo.

    Na sala estavam todos enlouquecidos e dançavam todos ao som dos atabaques, agogôs, chocalhos, cabaças. E os santos dançavam também ao som da velha música da África, dançavam todos os quatro entre as feitas ao redor dos ogãs. E eram Oxossi, o deus da caça, Xangô, deus do raio e do trovão, Omolu, deusa da bexiga, e Oxalá, o maior de todos, que se espojava no chão.

    No altar católico, que estava num canto da sala, Oxossi era São Jorge; Xangô, São Jerônimo; Omolu, São Roque e Oxalá, o Senhor do Bonfim, que é o mais milagroso dos santos da cidade negra da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiabá. É o que tem a festa mais bonita, pois a sua festa é toda como se fosse candomblé ou macumba.

    Na sala tinham oferecido pipocas à assistência e lá dentro foi servido xinxim de bode e de carneiro com arroz-de-hauçá. Nas noites de macumba os negros da cidade se reuniam no terreiro de Jubiabá e contavam as suas coisas. Ficavam conversando noite afora, discutindo os casos acontecidos nos últimos dias. Mas naquela noite eles estavam meio encabulados por causa do homem branco que tinha vindo de muito longe só para assistir à macumba de pai Jubiabá. O homem branco comera muito xinxim de bode e lambera os beiços com o arroz-de-hauçá. Antônio Balduíno soubera que este homem fazia ABC e andava correndo o mundo todo No princípio pensara que ele fosse marinheiro. O Gordo afirmava que ele era andarilho. Fora aquele poeta que comprava os seus sambas quem lhe trouxe o homem branco. O homem queria ver as macumbas e o poeta disse que só Antônio Balduíno tinha prestígio para conseguir que ele penetrasse na macumba de Jubiabá. Mas apesar dos elogios, Antônio Balduíno não se sentira muito disposto a falar com Jubiabá. Isso de levar brancos, e principalmente desconhecidos, para as macumbas, não dava certo. Podia ser um polícia que ia só para prender todo mundo. Uma vez tinham metido Jubiabá na chave, o pai-de-santo passara a noite lá e tinham levado Exu. Foi preciso que Zé Camarão, que era finório como ele só, fosse buscar o Orixá-lá na própria sala do delegado, nas barbas do soldado. Quando o malandro chegara com Exu debaixo do casaco foi uma festa. E houve uma macumba que durou a noite toda para desagravar Exu que estava furioso e poderia perturbar as outras festas depois.

    Era por isso que Antônio Balduíno não queria levar o branco. E só falou com Jubiabá quando o estudante negro, que se dava com ele, veio pedir:

    – Eu garanto pelo homem... É como se fosse eu.

    Aí o negro quis saber toda a vida do branco. Quando soube que ele vivia correndo o mundo vendo as coisas todas, se entusiasmou. Quem sabe se um dia aquele homem não escreveria seu ABC?

    O branco se despediu depois de dizer a Jubiabá que aquilo fora a coisa mais bonita que ele já vira. O estudante foi com ele e os negros como que respiraram. Agora podiam conversar, discutir suas coisas, falar no que gostavam, mentir à vontade.

    O Rosado falou para Antônio Balduíno:

    – Você já viu a tatuagem nova que eu fiz?

    – Não.

    O Rosado era um marinheiro que passava na Bahia de quando em vez e que um dia trouxera notícias de Zé Casquinha que navegava em mares distantes, e que até já falava língua de gringo. O Rosado trazia as costas inteiramente tatuadas com nomes de mulheres, um vaso de flores, um punhal e um chicote.

    Ficou rindo, Antônio Balduíno admirou com uma certa inveja:

    – Tá bonito...

    – Tem um americano no navio que tem um mapa nas costas. Uma beleza, rapaz...

    Antônio Balduíno se lembrou do homem branco. Ele devia ver aquilo. Mas ele fora embora e parecia que ia fugindo porque os negros estavam com vergonha dele. Antônio Balduíno vai mandar fazer uma tatuagem nas costas. Mas não sabe ainda o que vai mandar botar. Pelo seu gosto botaria o mar e o retrato de Zumbi dos Palmares. Tem um negro no cais que traz tatuado em toda a extensão das costas o nome de Zumbi.

    Damião, um negro velho, sorri.

    – Ocês quer ver costa marcada?

    Jubiabá faz um gesto para ele não mostrar. Mas ele já arrancou a camisa e aparecem a costas. Todos vêem que a sua carapinha já é branca. Nas costas estão as marcas do chicote. Fora surrado nas fazendas, andara nos troncos no tempo da escravidão. Antônio Balduíno viu logo abaixo das chicotadas uma marca de queimadura:

    – Que foi isso, meu tio?

    Quando Damião compreende que ele fala da queimadura, fica de repente envergonhado e cobre as costas. Fica sem falar, olhando a cidade iluminada lá embaixo. Maria dos Reis sorri para Antônio Balduíno. Também os velhos que foram escravos podem ter um segredo.

    Como Joana tivesse ido embora, sozinha, cheia de ciúmes, e Maria dos Reis também se retirasse para a casa de sua mãe, Antônio Balduíno desceu com o Gordo e Joaquim. Levava o violão para fazer uma farra.

    Mas o Gordo foi logo embora, pois morava longe com a sua avó, uma velha octogenária, de cavanhaque, que há muito tempo perdera a noção da realidade e vivia num mundo diferente, contando casos que atrapalhava com outros, misturando as figuras, sem chegar jamais ao fim da história. Em verdade ela não era avó do Gordo coisa nenhuma. O Gordo é que tinha inventado aquilo com vergonha de ter recolhido e de sustentar aquela velha que antes andava solta na cidade. Mas fazia como se ela fosse sua avó, levando-lhe comida, conversando horas e horas com ela, se recolhendo cedo para que a velha não ficasse sozinha. Às vezes encontravam o Gordo com um corte de fazenda e pensavam que ele ia levar para alguma cabrocha faceira.

    – É pra minha avó, coitadinha... Ela gasta muita roupa porque se deita no chão sujo. Já está caduca...

    – Ela é sua avó por parte de pai ou de mãe, Gordo?

    O Gordo se atrapalhava. Os outros bem sabiam que o Gordo nunca conhecera pai e mãe. Mas o Gordo tinha uma avó e muitos deles o invejavam.

    Depois que o Gordo se despediu, Antônio Balduíno e Joaquim vieram descendo a Ladeira da Montanha, assoviando um samba. A ladeira estava deserta e silenciosa. Unicamente numa janela pobre, iluminada por um fifó, uma mulher estendia fraldas de recém-nascido. E ouviam a voz de um homem que falava dentro do quarto:

    – Filhinho... Filhinho...

    Joaquim disse:

    – Aquele amanhã vai dormir no trabalho... Tá fazendo de ama-seca.

    Antônio Balduíno não respondeu nada. Joaquim continuou:

    – Não adianta... Pra quê?

    – O quê?

    – Nada... nada...

    Antônio Balduíno perguntou:

    – Você já reparou como o Gordo é bom?

    – Bom? – Joaquim não tinha reparado...

    – Bom, sim. É um sujeito bom. Ele tem o olho da piedade bem aberto. – Chegou a vez de Joaquim ficar calado. Logo após soltou uma gargalhada:

    – é mesmo... O Gordo é um sujeito bom...

    – E de que você tá rindo?

    – Nada. É que agora eu vi que o Gordo é um sujeito bom.

    Continuaram a descida calados. Antônio Balduíno revia a cena da macumba, o homem calvo que viajara o mundo todo. O homem tinha ido embora, a verdade é que o homem tinha fugido. Antônio Balduíno pensava que aquele homem fosse Pedro Malazarte. Mas ele tinha fugido quando vira que os negros estavam envergonhados. Lembrou-se de Zumbi dos Palmares. Se tivesse havido outro Zumbi, aquele negro velho não teria sido chicoteado. Seria um lutador. Então não precisaria se envergonhar de homem branco. O homem saíra num gesto de solidariedade, e não voltaria jamais. Porém, um dia aquele homem iria escrever o ABC de Antônio Balduíno, um ABC heróico, onde cantaria as aventuras de um negro livre, alegre, brigão, valente como sete.

    Pensando nisso Antônio Balduíno se alegrou de novo e riu:

    – Sabe de uma coisa, Joaquim? Eu acabo tirando o cabaço daquela negrinha...

    – De qual? – Joaquim se interessou vivamente.

    – Maria dos Reis. Ela tá toda caída pro meu lado...

    – Qual é?

    – Aquela que Oxalá pegou. Aquela novinha...

    – Aquilo é coisa fina, Baldo. Baldo, ela é noiva de um soldado do exército. Você vai se meter em funduras...

    – Quem disse... Ela tá caidinha pelo degas... Tenho nada com soldado. Chamo a morena nos peitos, isto sim... O soldado que se dane. – Joaquim bem sabia que Antônio Balduíno amaria a mulata sem se importar com o soldado. Mas ele não gostava de barulho com soldado do exército e aconselhou:

    – Deixe a morena em paz, Baldo...

    Esquecera que Antônio Balduíno quando morresse ia ser cantado num ABC e que todos os heróis de ABC amam donzelas com quem se amigam romanticamente pelo espaço de uma noite e brigam com soldados do exército.

    Andaram a Cidade Baixa que estava dormindo. Não encontraram ninguém para fazer uma farra. A Lanterna dos Afogados estava fechada. Ninguém pelas ruas, nem uma cabrocha para levarem para o areal. Nem uma venda onde bebessem um rabo-de-galo. Foram andando ao léu, Joaquim abrindo a boca com sono. Entraram por um beco e viram, então, um casal de mulatos que conversavam como namorados recentes. Joaquim avisou:

    – Uma mulata, seu mano...

    – Aquela, Joaquim, tá ali, está comida.

    – Tá com um macho, Baldo.

    – Você vai ver as minhas artes.

    E de um pulo Antônio Balduíno se aproximou da mulata. Deu-lhe um empurrão com força, a mulher caiu na rua.

    – Então, sinhá cachorra, eu fico trabalhando e você vem se esfregar com um macho... Sem-vergonha, vai ver a surra que vai levar. – Virou-se para o mulato. Mas antes que dissesse alguma coisa este perguntou:

    – Ela é sua amásia? Eu não sabia.

    – Minha amásia? É minha mulher, casada no padre, ouviu? No padre...

    Avançava para o homem.

    – Eu não sabia. O senhor me desculpe... Ela não me disse nada.

    Saiu de costas e na primeira curva desapareceu. Antônio Balduíno ria como um perdido. Joaquim que tinha ficado afastado, porque um homem é para um homem, se aproximou:

    – Deu certo, hein?

    Riram os dois em gargalhadas alegres que despertavam a cidade adormecida. Veio um riso do chão. Era da mulherzinha que se levantava. Uma mulata desdentada, bem clara, que nem valera a pena tanto esforço. Mas como não havia mesmo outra mulher o jeito que tiveram foi levar a desdentada para o areal. Antônio Balduíno foi primeiro, depois foi Joaquim.

    – Ela não tem dente, mas é bem boa – disse Joaquim.

    – Não pagou a pena – fez Balduíno.

    Deitou no cais, pegou do violão e começou a tocar. Joaquim meteu os pés na água. A mulher, que estava acabando de endireitar o vestido, chegou para perto deles e ficou cantando a cantiga que Antônio Balduíno tocava ao violão. Primeiro baixinho, mas logo depois em voz alta, e ela tinha uma voz bonita e esquisita, quase masculina. E encheu o cais com a sua voz, até que os homens dos saveiros acordaram, os marinheiros apareceram na amurada dos navios e o dia clareou sobre o mar.

    Quando o dia clareou, naquela janela pobre do sobrado da Ladeira da Montanha, a mulher acordou o homem. Ele ia para uma fábrica distante e tinha que acordar cedo. Disse para a mulher apontando o filhinho:

    – Essa coisinha à-toa não me deixou dormir... Tou morto de sono.

    Sacudiu água na cara, olhou a manhã clara, bebeu o café ralo. A mulher avisou:

    – Não tem pão por causa do leire para a criança.

    O homem fez um gesto de resignação, beijou o filho, bateu no ombro da mulher, puxou um cigarro vagabundo:

    – Mande a bóia ao meio-dia.

    Quando desceu, na manhã que estava ficando azulada, para a Ladeira da Montanha, em caminho da fábrica, se encontrou com Antônio Balduíno e Joaquim que vinham com a desdentada atrás. Balduíno gritou:

    – Jesuíno, é você?

    Era Jesuíno que fora mendigo e moleque como eles. Estava quase irreconhecível de tão magro.

    Joaquim riu:

    – Você tá malzinho, mano...

    – Nasceu um filhinho meu, Baldo. Quero que você seja o padrinho. Um dia lhe levo para conhecer minha patroa...

    Foi embora, ladeira abaixo, para a fábrica que ficava em Itapagipe. E ele tinha que ir a pé por causa do leite do filhinho. A mulher estendia fraldas na janela e também era magra e pálida. Para ela não .tinha ficado nem pão nem café.

 

Lutador

        A casa de Jubiabá era pequena mas bonita. Ficava num centro de terreno no Morro do Capa-Negro, um grande terreiro na frente, um quintal se estendendo nos fundos.

    A sala espaçosa ocupava a maior parte da casa. Uma mesa com um banco de cada lado, onde jantavam Jubiabá e as suas visitas, e uma cadeira espreguiçadeira, virada para a porta do quarto em que o pai-de-santo dormia. Nos bancos, em redor da mesa, negros e negras conversavam. Estavam também dois espanhóis e um árabe. Nas paredes retratos inúmeros, emoldurados em conchas brancas e rosas, mostravam parentes e amigos do pai-de-santo. No nicho um orixá-lá negro confraternizava com um quadro do Senhor do Bonfim. O quadro representava o santo salvando um navio de um naufrágio. Porém, o ídolo era muito mais bonito, pois era uma negra de belo corpo, segurando com uma das mãos o seio pujante e bem-feito, num gesto de oferecimento. E era Iansã, deusa das águas, que os brancos chamam Santa Bárbara.

    Jubiabá saiu do quarto, vestido num lindo camisu bordado nos peitos. O camisu se estendia até aos pés e ele não trazia outra roupa. Um negro se levantou da mesa e ajudou o pai-de-santo a se sentar.

    Os negros vieram e beijaram a mão de Jubiabá. Também os espanhóis e o árabe. Um dos espanhóis estava com o queixo inchado, um pano amarrado por baixo. Chegou para perto do pai-de-santo e disse:

    – Pai Jubiabá, yo estou com um dente danado pra doer. Caramba! Não me deixa trabajar, nem hacer nada. Caramba! Já gastei um dinheirão com o dentista e nada. Não me resta nada a hacer!

    Tirou o pano do queixo. Apareceu uma inchação enorme. Jubiabá medicou.

    – Bote chá de malva e reze assim:

    “São Nicodemos, sarai esse dente!

    Nicodemos, sarai esse dente!

    sarai esse dente!

    esse dente!

    dente!”

    Completou:

    – Vosmecê faz a oração na praia. Escreve na areia e vai apagando de cada vez uma palavra, não sabe? Depois vai pra casa e bota o chá. Mas sem a oração não presta.

    O espanhol deixou cinco mil-réis e foi aplicar o remédio.

    Depois veio um negro que queria fazer um despacho. Falou em voz baixa, próximo ao ouvido de Jubiabá. O pai-de-santo se levantou e ajudado pelo negro penetrou no quarto. Voltaram minutos depois e no dia seguinte apareceu um feitiço forte, farinha misturada com azeite-de-dendê, quatro mil-réis em pratas de dez tostões, dois vinténs de cobre e um urubu novinho ainda vivo, na porta de Henrique Padeiro que pegou uma doença misteriosa e morreu dela tempos após. Uma negra também queria um feitiço, mas esta não falou em voz baixa nem entrou para o quarto. Foi dizendo:

    – Aquela sem-vergonha da Marta tomou meu homem. Eu quero que ele venha de novo pra casa. – A negra estava revoltada. – Eu tenho filhos, ela não tem...

    – Você arranje uns cabelos dela e traga que eu faço tudo – respondeu Jubiabá.

    E desfilaram ante o pai-de-santo todos aqueles negros que queriam fazer despachos. Alguns foram rezados com ramos de mastruço. Era assim que a cidade se enchia na madrugada seguinte de coisas-feitas que entulhavam as ruas e das quais os transeuntes se afastavam receosos. Vinha muitas vezes gente rica, doutores de anel, ricaços de automóvel.

    Quando Antônio Balduíno entrou na sala, era um soldado quem estava falando com o pai-de-santo. Ele procurava falar baixo, mas estava emocionado e todos ouviram a sua voz:

    – ... parece que não gosta mais de mim... deu pra não ouvir o que eu digo... acho que tá embeiçada por outro... mas eu não quero, pai... eu quero ela pra mim... eu gosto dela... sou doido por ela...

    A voz do soldado estava chorosa. Jubiabá perguntou qualquer coisa e ele respondeu

    – Maria dos Reis.

    Antônio Balduíno estremeceu e logo sorriu. Começou a prestar atenção à conversa. Mas Jubiabá estava despedindo o soldado.

    – Só trazendo uns cabelos de sovaco dela e uma ceroula sua. Eu faço que ela nunca mais largue vosmecê... Fica amarrada como cachorro.

    O soldado saiu de cabeça baixa, sem olhar para os presentes, procurando não ser visto.

    Antônio Balduíno chegou para perto de Jubiabá, sentou no chão.

    – Parece que ele gosta mesmo dela.

    – Você conhece ela, Baldo?

    – Não é aquela que Oxalá pegou na festa?

    – O soldado gosta dela, vai fazer despacho... Tome cuidado, Baldo...

    – Não tenho cagaço de soldado...

    – Mas ele gosta dela...

    – Parece mesmo, gente...

    Ficou esgravatando o chão com um pedaço de pau. Andava pelos dezoito anos mas parecia ter vinte. Era forte e alto como uma árvore, livre como um animal e possuía a gargalhada mais clara da cidade.

    Largou Joana, nunca mais viu aquela desdentada que tinha uma voz masculina e cantava os seus sambas, não quis mais saber de cabrochas que iam para o areal.

    Rondava em companhia do Gordo a casa de Maria dos Reis. Fez um samba para ela, um samba que dizia assim:

             “Eu gosto é de você, Maria.

             Você tem meu coração,

             eu fui malandro um dia

             mas agora é você quem me judia...”

    Esse samba ele não quis vender. Cantou numa festa em que ela estava, olhando para ela. O soldado já andava desconfiado e não tinha ainda arranjado os cabelos do sovaco da noiva para levar a Jubiabá. Maria dos Reis se contentava em sorrir. Olhava para o soldado com os olhos tristes por que sabia que o soldado gostava dela e que por ela mataria um. Lembrava-se da carta que ele enviara para a sua madrinha, Dona Branca Costa, pedindo a afilhada em casamento. Ela guardara em casa, bem no fundo do baú. Dizia a carta:

“Exma. Sra. Dona Branca

   

      Saudações cordiaes

    Hoje e como nunca sinto-me transportado para um sincerio e confortavel paraiso ahonde para mim sorena intenções intimas e favoravel pelias quaes obriga-me adeclarar-me sinceriamente a sua Exlla que amo com um amor puro e santo a tua estimada Maria.

    Amor que jamais se apagará, e sim pella evolução dos tempos e conjuntamente com a vossa attençiossima bondade fará duplicar eternamente entre nós um amor nos á de conduzir aos paramos da verdadeira felicidade. E com estas intimas intenções aproveito esta mas radiante oportunidade para pedir a V. Esclla. em casamento á tua gentil e encantadora Maria.

    Que sera aminha maior aventura possuir esta brilhantissima prenda do vosso confortavel coração. Pella quar esforcarei-me para muito breve dar a V. Eclla. e aos demais da vossa nobre familia esta Brilhantissima sartifação.

    Serto de que V. Exclla. não furtar-se-á ao meu pedido aguardo uma resposta favoravel. Retero-me aprezentando a V. Exlla. os meus protestos de ellevada estima e considerações.

                                Sub. O.S.

                          Osorio, soldado do 19”.

    A madrinha não queria que ela casasse com um soldado, mas ela fez pé firme e ficou noiva, se bem tivesse de deixar a casa da madrinha, O casório já estava marcado para agosto, logo depois que ele pegasse as divisas de cabo que o capitão já lhe havia prometido, quando Maria dos Reis conheceu na macumba de Jubiabá o negro Antônio Balduíno que era malandro e fazia sambas. Ele não mandara cartas, não falara em casamento.

    Lhe dera quando passavam para a sala de jantar na festa de Ribeirinho um cartão assim:

DOBRANDO ESTE CANTO              DOBRANDO ESTE CANTO

         SERÁ O SIM                    SERÁ O NÃO

POR SI MINHA ALMA SOFFRE

E FELIZ SERIA SE A SRTA. ACCEITASSE OS MEUS PROTESTOS DE AMOR.

Devolvendo o cartão intacto dará uma esperança

   

    Escondeu o cartão no seio. Fugiu para o quarto da mulher de Seu Ribeirinho, onde estavam os chapéus dos homens e o violão de Antônio Balduíno. Cândida fora com ela e viu o cartão:

    – De quem é, mulher?

    – Adivinhe...

    – Sei lá... Pere aí que eu digo... – pensou. – Não sei, não...

    – De Antônio Balduíno...

    – Xi! Aquilo não é gente... É o sujo em figura de gente... Não tem mulher que ele não pranche... Tome cuidado, dos Reis...

    – Não sei por quê.

    – E Osório?

    Osório era o soldado. Maria dos Reis ficou triste e em vez de dobrar o canto que dizia sim entregou o cartão intacto. Para Antônio Balduíno foi como se ela tivesse dobrado o canto que dizia sim.

    Agora ia conversar com ela na porta da casa no fim de Brotas nos dias em que o soldado não aparecia. E o soldado só aparecia nas quintas-feiras, sábados e domingos. O resto da semana era de Antônio Balduíno que já sentira com as mãos o calor e a dureza daquele corpo virgem. Numa terça-feira houve festa do Cabula e Maria dos Reis foi com umas amigas. Encontraram Antônio Balduíno no largo. O negro estava muito elegante de sapatos vermelhos e camisa vermelha. Fumava um charuto barato. Ficaram conversando. Numa barraca Antônio Balduíno comprou um número para ver a sorte de Maria dos Reis. Foram abrir o papel enroladinho e era o número 41. O dono da barraca, um espanhol gordo, foi ver ao que correspondia. Gritou:

    – 41 – uma caixa de pó-de-arroz.

    Em cima vinha um papelzinho com uns versos. Era a sorte.

   

             “Vai haver muito choro,

             muita desgraça, muita briga,

             tudo por causa de namoro

             só por causa de intriga.”

    Antônio Balduíno riu. Mas Maria dos Reis ficou triste:

    – E se Osório aparecesse, bem?

    Nem que fosse de propósito. Osório vinha fardado em direção ao grupo. Foi logo dizendo:

    – Eu já tava desconfiado... Mas não queria dar crédito de verdade. Nunca pensei que você fizesse isso...

    A sua voz tinha aquele tom choroso de canto de igreja. Osório falou enquanto Maria dos Reis escondia o rosto nas mãos. As amigas riam, inquietas, dizendo “Seu Osório, não faça isso’’.

    – Dê seu jeito... – Balduíno encolheu os ombros.

    O soldado abriu a mão na cara de Antônio Balduíno, mas o negro já estava por baixo, as pernas batendo nas do soldado que caiu. Se levantou com o sabre na mão. Antônio Balduíno abriu a navalha:

    – Venha se é homem!

    – Não tenho medo de macho...

    Maria dos Reis gritava:

    – Baldo, pelo amor de Deus...

    As amigas diziam:

    – Seu Osório... Seu Osório...

    – Eu não respeito farda – e Antônio Balduíno foi arrancando o sabre do soldado que já levava uma navalhada no rosto.

    Depois que desarmou o soldado largou a navalha e esperou Osório na escuridão. Vinha gente, homens e guardas e mais soldados. Osório se atirou em cima de Balduíno e recebeu um daqueles socos pesados do negro. Ficou estatelado no chão. Um gringo que apreciava a luta puxou Antônio Balduíno:

    – Vá embora que vem muito soldado aí. Bom soco... Depois eu quero encontrar com você...

    O negro levantou a navalha e abriu para os lados da casa de Maria dos Reis. Estava em tempo, pois de todos os cantos iam chegando soldados que ao ver o companheiro ferido começaram a distribuir socos. E o barulho generalizou-se.

    Maria dos Reis escondeu Antônio Balduíno no seu próprio quarto, sem que a mãe, que dormia, visse. E quando pela madrugada o negro saiu, o corpo da dos Reis ainda era macio e quente, mas não era mais virgem. Tinha sido melhor que Oxalá, o maior dos santos,

    Foi na Lanterna dos Afogados que dias após, o negro Antônio Balduíno encontrou o gringo que o ajudara a fugir. Ia entrando com o Gordo quando ouviu aquele psiu! Era o gringo:

    – Estou lhe procurando há muito tempo. Desde aquele dia. Andei por todo o canto sem o achar. Onde se meteu?

    Puxava cadeiras, oferecia cigarros. Sentaram-se. Balduíno agradecia:

    – Se não fosse o senhor naquele dia, eu levava uma surra danada dos soldados.

    – Bom soco aquele... Belo soco...

    O Gordo que não tinha estado presente perguntou:

    – Que soco?

    – O que ele deu no soldado... Per la Madonna, que foi um belo soco.

    Pediu cerveja.

    – Você já lutou boxe?

    – Não. Eu sei é capoeira...

    – Pois você se quiser pode ser um campeão...

    – Campeão?

    – Per la Madonna, eu juro... Aquele soco... Formidável...

    Ficou olhando para as mãos enormes do negro. Apalpou os ombros, os braços de Antônio Balduíno:

    – Um campeão... um campeão...

    Falava como quem tinha saudades de outros tempos.

    – Basta querer...

    Antônio Balduíno queria.

    – Como?

    – Pode até lutar no Rio depois e talvez na América do Norte...

    Bebeu o copo de cerveja:

    – Eu já fui treinador, há muito tempo... Fiz boxeadores que hoje são campeões no mundo todo... Mas nenhum agüentava aquele soco. Bonito.

    Quando saíram do botequim Antônio Balduíno estava contratado por Luigi, o treinador, e o Gordo iria com eles como ajudante Saíram todos um pouco embriagados. No outro dia Antônio Balduíno disse à dos Reis:

    – Agora não sou mais malandro... Sou jogador de boxe... Vou ser um campeão... Depois vou para o Rio, para a América do Norte...

    – Você vai embora?

    – Lhe levo, meu bem.

    Era melhor que Oxalá, o maior dos santos.

    Os jornais anunciaram a primeira luta meses depois. Agora ele era Baldo, o negro. Luigi dava entrevistas e um jornal até publicou um retrato de Antônio Balduíno com o braço estendido para dar um soco, a outra mão numa atitude de defesa. Maria dos Reis colou o retrato na parede do quarto.

    O adversário chamava-se Gentil, e dizia-se campeão de peso pesado da armada. Na verdade era um estivador do cais do porto.

    No Largo da Sé estavam todos os amadores das lutas de boxe e mais freqüentadores da Lanterna dos Afogados, inclusive Seu Antônio, os moradores do Morro do Capa-Negro, os amigos todos de Antônio Balduíno. Primeiro entrou no tablado o juiz, um sargento do exército que estava à paisana. Falou:

    – Vamos ver uma luta braba. Peço ao público muito respeito e aplausos.

    Chegou o Gordo trazendo um balde e uma garrafa. Veio também um amarelo com as mesmas coisas e ficou do outro lado. Aí apareceu Antônio Balduíno acompanhado de Luigi. O pessoal do morro, da Lanterna dos Afogados, dos saveiros e das canoas, gritou:

    – Antônio Balduíno! Antônio Balduíno!

    O juiz apresentou:

    – Baldo, o negro.

    Entrava o outro boxeur que era aplaudido pela assistência:

    – Gentil, campeão de todos os pesos da gloriosa armada – gritou o juiz.

    Palmas e gritos da assistência. O pessoal do morro, dos saveiros e do botequim olhava o mulato com olhos irônicos:

    – Vai levar uma surra.

    Antônio Balduíno também olhava o seu adversário e sorria. Luigi dava conselhos:

    – Soqueie com força. Na boca e nos olhos. Bem forte...

    O Gordo estava nervoso e rezava para que o amigo vencesse. Mas se lembrou que a luta de boxe era pecado e parou de rezar, amedrontado.

    Soou um sinal e os lutadores avançaram um para o outro. Atrás a multidão gritava.

    O negro Antônio Balduíno foi desclassificado por ter aplicado um golpe de capoeira no meio da luta, que estava renhida, mostrando todas as grandes qualidades de Baldo, o boxeur. A assistência não se conformou com o resultado, vaiou o juiz que saiu garantido pela policia.

    Os jornais publicaram o retrato de Antônio Balduíno novamente, e um vendeu muito porque trouxe a sua biografia. Foi assim que descobriram que eram feitos por ele os sambas do poeta Anísio Pereira, fato que provocou escândalo nos meios sociais e literários da cidade.

    Concederam-lhe a revanche. Teve um grande público e desta vez não foi aplaudido somente pelo pessoal do morro, dos saveiros, da Lanterna dos Afogados (Seu Antônio apostara vinte mil na vitória do negro) quando o juiz disse:

    – Baldo, o negro.

    Toda a assistência vivou longamente.

    No quinto round o mulato Gentil não era mais campeão da armada. Estava estendido no tablado, sem movi mentos. O Gordo enxugava o suor de Antônio Balduíno. Depois foram todos beber na Lanterna dos Afogados os vinte mil que Seu Antônio ganhara.

    Quem viajou foi Maria dos Reis. Sua madrinha tivera outro filho e o marido que era funcionário público foi transferido para o Maranhão. Maria dos Reis foi com eles. Antônio Balduíno teve saudades porque ela não lhe recordava Lindinalva pálida e sardenta.

    Tomou um porre nessa noite e pensou em engajar como marinheiro olhando o navio que a conduzia. Ela levou o seu retrato com uma mão estendida para dar um soco, sorrindo pela boca e pelos olhos.

    Derrubou todos os adversários que se interpunham entre ele e o campeão da Bahia, um boxeur chamado Vicente, que deixara de lutar por falta de jogadores. Depois da aparição de Antônio Balduíno, porém, com seus sucessivos triunfos, Vicente começou a treinar rigorosamente vendo no negro um perigo para o seu título.

    Uma semana antes já a cidade estava cheia de cartazes. O desenho de dois homens que se soqueavam:

    VICENTE

    O CAMPEÃO BAIANO DE TODOS OS PESOS

    x

    BALDO – O NEGRO

    EM DISPUTA DO CAMPEONATO BAIANO

    NO LARGO DA SÉ – DOMINGO

    Vicente deu uma entrevista aos jornais declarando que venceria no sexto round. Antônio Balduíno respondeu, no dia seguinte, que no sexto round o campeão baiano já estaria dormindo no tablado. Trocaram-se desaforos e o público se animou. Houve muita aposta e Antônio Balduíno era o franco favorito.

    Antes do sexto round, Vicente dormia realmente no tablado e Baldo, o negro, era campeão baiano de todos os pesos.

    Concedeu a revanche a Vicente. Venceu novamente. Luigi andava feito maluco e só falava em vir para o Rio. Entabulara negociações com empresários da capital do país. Antônio Balduíno amava mulatas no areal, bebia na Lanterna dos Afogados, ia às macumbas de Jubiabá, ria nas ruas da cidade a sua gargalhada clara.

    Apareceu por lá um campeão carioca de boxe. Desafiou todo mundo, fez um barulho enorme. Acertaram uma luta com Antônio Balduíno. Houve um grande interesse na cidade pelo choque dos dois campeões.

    Na véspera da luta Antônio Balduíno conversava na Lanterna dos Afogados quando foi procurado pelo empresário do campeão carioca.

    – Boa noite...

    – Boa noite...

    Antônio Balduíno ofereceu cerveja.

    – Eu queria falar com você em particular.

    O Gordo e Joaquim foram para outra mesa.

    – É o seguinte: você sabe, Cláudio não pode perder...

    – Não pode perder?

    – Pelo seguinte: ele está me custando muito dinheiro. Se ele perder de você não pode lutar mais aqui... Não é?

    – É...

    – Mas se ele ganhar luta de novo e luta com outros... Paga a despesa.

    – E daí?

    – Eu lhe dou cem mil-réis para você perder. Depois você tem a revanche.

    Antônio Balduíno levantou a mão, mas a largou em cima da mesa.

    – Você já falou com Luigi?

    – Luigi é um trouxa... Ele nem precisa saber disso.

    Sorriu:

    – E depois, antes da gente ir embora você tem a revanche... Está bem?

    – O dinheiro está aí?

    – Lhe dou depois da luta.

    – Não. Eu não vou nisso. Se quiser dar hoje...

    – E se você não perder?

    – E se depois de eu perder e me esculhambar você não me pagar?

    Antônio Balduíno tinha levantado. O Gordo e Joaquim espiavam da outra mesa.

    – Não é preciso brigar – disse o empresário. – Sente...

    Olhou para o negro que emborcava o cálice de cachaça:

    – Acredito em você... Pegue aqui por baixo da mesa...

    Antônio Balduíno pegou o dinheiro. Viu que era cinqüenta mil-réis:

    – Você falou em cem!...

    – Dou os outros cinqüenta depois...

    – Assim não...

    – Não tenho agora, é sério...

    – Se quiser é agora...

    Recebeu os cinqüenta que faltava e foi para a mesa do Gordo. Quando o empresário saiu, Antônio Balduíno riu até ficar com a barriga doendo.

    No dia seguinte, depois da luta e da sensacional derrota do campeão carioca, o empresário veio procurar Antônio Balduíno na Lanterna dos Afogados. Vinha com uma cara dos diabos:

    – Você é um tratante...

    Antônio Balduíno ria.

    – Eu quero meu dinheiro...

    – Quem rouba ladrão tem cem anos de perdão...

    Vou aos jornais, vou à polícia...

    – Vá...

    – Você é um ladrão... Um ladrão...

    Antônio Balduíno botou também o empresário no chão. O pessoal do botequim, que não esperava essa nova luta, aplaudia.

    – Ele quis me comprar, gente... Me deu cem mil-réis para eu perder para. aquele raquítico... Eu disse que perdia... É pra ele não querer comprar homem... Eu só me vendo por amizade, gente... Agora vamos beber o dinheiro dele...

    A Lanterna dos Afogados ria. Antônio Balduíno saiu e foi levar para a Zefa, uma cabrocha que viera do Maranhão e trouxera um beijo da dos Reis para o amante (em vez de dar um dera muitos), o colar de contas vermelhas que comprara naquele dia com o dinheiro do empresário do campeão carioca.

    Luigi falava seriamente em ir para o Rio.

    Sua carreira de boxeur terminou no dia em que Lindinalva ficou noiva. Nos jornais que anunciavam a sua luta com o peruano Miguez, Antônio Balduíno leu a notícia do noivado de “Lindinalva Pereira, filha do capitalista Comendador Pereira, desta praça, com o jovem advogado Gustavo Barreiros, rebento glorioso de uma das mais ilustres famílias baianas, poeta de versos rutilantes, orador primoroso”.

    Tomou um porre mãe, foi derrotado no terceiro round  porque já não podia lutar, apenas recebia os socos que Miguez, o peruano, lhe aplicava. Correu que ele estava comprado. Ele não explicou a ninguém o seu fracasso. Nem a Luigi que chorava nessa noite, arrancando os cabelos e praguejando, nem ao Gordo que olhava com aqueles olhos de quem espera sempre uma desgraça. Nunca mais voltou ao tablado.

    Naquela noite fria da sua derrota, como não quisesse ir beber na Lanterna dos Afogados, foi para o Bar Bahia. Sentou numa mesa dos fundos com o Gordo e bebia silenciosamente quando um homem veio para eles e pediu que pagassem um trago. Balduíno olhou:

    – Eu conheço esse sujeito... Não sei de onde, mas conheço.

    O homem tinha os olhos vidrados e passava a língua nos beiços:

    – Um mata.bicho... Paga, camarada...

    Foi quando Antônio Balduíno viu o talho que ele tinha no rosto:

    – Aquilo é obra minha...

    Ficou pensando, bateu a mão na testa:

    – Você não é Osório?

    O Gordo acrescentou:

    – Um que era soldado...

    – É, eu já fui sargento...

    Puxou uma cadeira e sentou:

    – Já fui sargento... – passava a língua nos beiços.

    – Um mata.bicho...

    Balduíno ria. O Gordo tinha pena.

    – Depois veio uma mulher, uma mulher, ouviu? Bonita... Xi! bonita... Só vendo... Era minha noiva, viu... Eu tava esperando ser cabo...

    – Mas você não era sargento?

    – É isso mesmo; nem me lembro, eu acho que tava esperando ser capitão. O capitão tinha me prometido, ouviu... O capitão... Me dá outro mata-bicho? Menino, traz outro mata-bicho que é o amigo aqui quem paga... Marcamos o casório... Ia ser um festão... Ela era bonita... Bonita... Mas foi com outro...

    – E esse talho?

    – Ah! Foi o tal... Mas eu deixei ele com as tripas de fora... Ela era uma beleza... Beleza...

    – Era sim...

    – Você conheceu ela?

    – Você não se lembra?

    Beberam até o fim da noite e saíram abraçados, muito amigos, dando gargalhadas, esquecidos de Maria dos Reis e de que tinham sido soldado e boxeur.

    De repente o homem disse:

    – Você era o tal.

    E se afastou de Antônio Balduíno.

    – Mas também perdi tudo...

    Se abraçaram de novo e foram cambaleando pela rua:

    – Ela era uma lindeza...

    Antônio Balduíno confundia a negra Maria dos Reis com a branca Lindinalva.

   

Cais

    Grandes canoas imóveis sobre a água patada.

    Os saveiros, velas arriadas, dormiam na escuridão. Assim mesmo davam idéia de partida, de viagens por pequenos portos do Recôncavo com as suas grandes feiras. Mas agora os saveiros dormiam, os nomes pitorescos grava dos perto da proa: Paquete Voador, O Viajante sem Porto, Estrela da Manhã, O Solitário. Pela manhã sairiam rápidos, atirados pelo vento, as velas soltas, cortando a água da baía.

    Iriam se abarrotar de verduras, de frutas, de tijolos, ou telhas. Correriam as feiras todas. Voltariam depois carregados de abacaxis cheirosos, O Viajante sem Porto é pintado de vermelho e corre como nenhum. Mestre Manuel dorme na proa. É um mulato velho que nasceu nos saveiros e morou sempre nos saveiros.

    Antônio Balduíno sabe a história de todos estes saveiros e de todas estas canoas. Desde menino gosta de vir deitar aqui no areal do caís, a carapinha no travesseiro de areia, os pés metidos dentro d’água. A água é morna e gostosa, a estas horas da noite. Balduíno, às vezes, fica pescando, silencioso, o rosto se abrindo em sorrisos quando fisga um peixe. Porém, em geral olha somente o mar, os navios, a cidade morta lá atrás.

    Antônio Balduíno tem vontade de sair, de viajar, de correr terras desconhecidas, de amar em areias desconhecidas mulheres desconhecidas. Miguez veio do Peru e lhe deu uma surra.

    Um navio apita no quebra-mar. Vai saindo iluminando a noite. É um navio sueco. Ainda há pouco os marinheiros andavam pela cidade, bebendo cerveja nos bares, amando nos braços das mulatas da Barroquinha. Agora estão no mar escuro, amanhã estarão nalgum porto longínquo com mulheres brancas ou amarelas. Um dia Antônio Balduíno há de engajar e correr mundo. Sempre sonhou com isso. Enquanto deitado na areia, olha os saveiros e as estrelas.

    O navio está desaparecendo.

   

    A cidade estendia os braços das igrejas para o céu. Do cais ele via as ladeiras, as casas velhas e enormes. As luzes brilhavam lá em cima e nuvens alvas corriam pelo céu como bandos de carneiros. Pareciam também com os dentes de Joana. Antônio Balduíno toda vez que arranja uma cabrocha diz a ela:

    – Seus dentes parecem nuvens...

    Mas agora que ele apanhou, que perdeu a luta, que cabrocha olhará para ele? Andam dizendo que ele se vendeu.

    Ele se perdia olhando o casario negro da cidade. Havia uma estrela bem em cima da sua cabeça. Não sabia qual era, mas estava bonita, grande, brilhando num pisca-pisca. Ele nunca havia visto aquela estrela. A lua apareceu muito grande e derrubou pelos fundos das casas uma luz tão esquisita que ele não conheceu mais a cidade. Pensou que era um marinheiro e havia chegado a um porto estrangeiro. Um porto longínquo como estes que ele vê nos sonhos todas as noites. Porque todas as noites Antônio Balduíno sonha que desembarca em terras de outros países. As nuvens corriam pelo céu. Eram carneiros. Alvos, enormes carneiros. Na Cidade Baixa não havia ninguém. Também era a primeira vez que ele sonhava assim acordado. A Bahia já não era a Bahia e ele não era mais o negro Antônio Balduíno, Baldo, o boxeur, que ia às macumbas de Jubiabá e que apanhara de Miguez, o peruano. Que cidade seria aquela e ele quem seria? Para onde teria ido toda gente conhecida? Olhou para o porto e viu o navio. Naturalmente já estava na hora de recolher, a bordo o esperavam.

    Olhou a roupa do marinheiro, fez um bamboleio com o corpo e disse em voz alta:

    – Vou para bordo.

    Aí uma voz gritou:

    – Hein?

    Mas ele não ouviu e fitou de novo a cidade banhada pela luz alva da lua. Se lembrou da luta de boxe.

    De repente vieram lá de cima do morro uns sons de batuque.

    Uma nuvem escura cobriu a lua. Se apalpou, a roupa de marinheiro tinha desaparecido, ele estava metido na calça branca com camisa de listras vermelhas.

    O tantã aumentava no morro. Vinha como uma súplica, como um grito de angústia. Ele viu, então, que a cidade era novamente a Bahia, bem a Bahia, que ele conhecia toda, ruas, ladeiras e becos, e não um porto perdido de uma ilha perdida na vastidão do mar. Era a Bahia onde de apanhara.

    Agora não olhava mais as estrelas, nem as nuvens. Não enxergava mais bandos de carneiros no céu. Para onde teriam ido os saveiros que fugiram para longe dos olhos de Antônio Balduíno?

    Apenas ouvia.

    Eram sons de batuque que desciam de todos os morros, sons que do outro lado do mar haviam sido sons guerreiros, batuques que ressoavam para anunciar combates e caçadas. Hoje eram sons de súplica, vozes escravas pedindo socorro, legiões de negros de mãos estendidas para os céus. Alguns daqueles pretos que já tinham a carapinha branca guardavam nas costas marcas de chicote. Hoje as macumbas e os candomblés enviavam aqueles sons perdidos.

    Era como uma mensagem a todos os negros, negros que na África ainda combatiam e caçavam, ou negros que gemiam sob o chicote do branco. Sons de batuque que vinham do morro. Se dirigiam também angustiosos e confusos, sons religiosos, sons guerreiros, sons de escravos, a Antônio Balduíno que estava e tendido na areia do cais. Os sons lhe entravam pelos ouvidos e buliam com o ódio surdo que vivia dentro dele.

    Antônio Balduíno se rojava na areia desesperado. Nunca tivera uma angústia tamanha. Ódio que se revolvia dentro dele. Via filas de negros, via aquele marcado nas costas que ele conhecera na casa de Jubiabá. Via mãos calosas, batendo no chão, via negras terem filhos mulatos de senhores brancos. Via Zumbi dos Palmares transformar o batuque de escravos em batuque de guerreiros. Jubiabá, nobre e sereno, dizendo conceitos ao povo escravo. Via a si próprio se levantando contra o homem branco. Mas ele perdera a luta, tomara uma surra de Miguez, como um vendido.

    Mas não via nada porque voltou a claridade perturbadora da lua e os sons morriam nas ladeiras, nos becos sem iluminação, nas ruas calçadas de pedra.

    Com os últimos sons de batuque e o brilho atordoante do luar, ele se achou diante do rosto sardento e branco de Lindinalva.

    Estava linda e sorria. Fazia desaparecer o batuque e o ódio.

    Antônio Balduíno passou a m pelo rosto para afastar a visão que o acovardava e olhou fixo para o outro lado. Enxergou novamente as luzes dos saveiros e Mestre Manuel que andava pelo cais. Mas no meio das luzes estava Lindinalva bailando. Tudo porque ele perdera a luta e estava desmoralizado.

    Fechou os olhos e quando os abriu só conseguiu ver a luz da triste, da pequena lâmpada da Lanterna dos Afogados.

 

Uma toada triste vem do mar

    A luz da Lanterna dos Afogados brilha como um convite. Antônio Balduíno deixa o cais, levanta-se da areia que o acaricia e se dirige em grandes passadas para o botequim. A lâmpada de poucas velas mal ilumina a tabuleta que traz o desenho de uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros. Por cima uma estrela pintada com tinta vermelha derrama sobre o corpo virgem da sereia uma luz clara que a torna misteriosa e difusa. Ela retira da água um suicida. E por baixo o nome:

“LANTERNA DOS AFOGADOS”

    De dentro vem um grito:

    – É você, Baldo?

    – Sou eu mesmo, Joaquim!

    Lá estão numa das mesas sebentas o Gordo e Joaquim. Joaquim grita da mesa, as mãos postas em cima dos olhos para ver melhor à luz vacilante do poste:

    – Entra. Jubiabá está aqui.

    Na sala pequena, quase envolta na escuridão, cinco ou seis mesas onde canoeiros, mestres de saveiros e marinheiros bebem. Copos grossos cheios de cachaça. Um cego toca num violão mas ninguém o ouve. Numa mesa marinheiros alvos e loiros, alemães de um cargueiro que carrega no porto, bebem cerveja e cantam embriagados. Duas ou três mulheres, que nesta noite desceram da Ladeira do Tabuão para a Lanterna dos Afogados, estão com eles. Riem muito mas têm um ar espantado, pois não entendem a canção. Os marinheiros estão abraçados e beijam as mulheres. Embaixo da mesa inúmeras garrafas de cerveja vazias. Antônio Balduíno passa junto deles e cospe. Um marinheiro levanta um copo, Antônio Balduíno se prepara para brigar. Num canto o cego geme no violão e ninguém o escuta. Antônio Balduíno se lembra que Jubiabá está no botequim, baixa o braço, e vai se sentar junto do Gordo e de Joaquim.

    – Cadê Jubiabá?

    – Está lá dentro com Seu Antônio rezando a mulher dele.

    Seu Antônio é um português velho, amigado com uma mulata com cara furada de bexiga. Um garoto pálido serve as mesas, correndo. Cumprimenta Antônio Balduíno:

    – Boa noite, Seu Baldo.

    – Traz uma pinga.

    O Gordo está atento à canção dos marinheiros:

    – É bonito...

    – E você entende?

    – Não, mas me bole cá dentro.

    – Lhe bole? – Joaquim não entende.

    Mas Antônio Balduíno entende e já não sente vontade de brigar com os alemães. Agora ele gostaria é de cantar com os marinheiros e rir com as mulheres. Bate os dedos na mesa e assovia. Os marinheiros estão cada vez mais bêbados e um deles já não canta. Arriou a cabeça em cima da mesa. O cego toca violão num canto na escuridão. Ninguém o ouve, exceto o garoto pálido que serve o botequim. Entre as carreiras com copos de cachaça ele espia o cego com admiração. E sorri.

    Mas de longe, do escuro do mar, vem uma voz que canta. Apesar das estrelas não se vê de quem é, nem de onde vem, se das canoas, se dos saveiros, se do forte velho. Mas vem do mar esta toada triste. Uma voz forte, longe.

    Antônio Balduíno espia. Tudo negro em redor. Só há luz das estrelas e no cachimbo de Mestre Manuel. Os marinheiros já não cantam, as mulheres já não riem, o cego parou de chorar no violão para tristeza do garoto pálido que serve o botequim.

    Jubiabá voltou para a mesa e Seu Antônio para o balcão. O vento, que invade o botequim como uma carícia, traz a tristura da voz. De onde virá ela? O mar é tão grande e tão misterioso que não se sabe de onde vem essa velha valsa triste. Mas é um negro que está cantando. Porque só os negros cantam assim. Mestre Manuel está mudo. Será que ele pensa na carga de sapotis que seu saveiro vai pela madrugada receber em Itaparica? Não. Ele ouve a toada da valsa. Ele se volta para o lado de onde parece vir a voz que enche o mistério do mar. O Gordo está com os olhos perdidos. Naturalmente a valsa bole com ele. Ele e todos se voltam para o lado do mar: De onde virá a voz do negro?

              “Senhor, daí tréguas aos meus ais...”

    Será que ele está no forte velho e é um velho soldado? Será que ele está numa canoa e é um camponês moço que vende laranjas na Feira de Água dos Meninos? Será de um canoeiro que está na sua canoa no Porto da Lenha? Virá de um rápido saveiro a sua voz, de um marinheiro negro que esqueceu a amada num porto distante?

             “Senhor, dai tréguas aos meus ais...

             Mata-me esta dor

             De eu não vê-la mais...”

    De onde virá a toada triste que atravessa os saveiros, as canoas, o quebra-mar, o cais, a Lanterna dos Afogados, a baía toda, e que vai se perder nas ladeiras da cidade?

    O Gordo bem vê que Antônio Balduíno ouve nervoso. Ele pensa em Lindinalva e julga que o preto canta unicamente para ele que está tão só. Mas o negro canta para todo o mundo, não é só para Antônio Balduíno. Canta para o Gordo, para o Mestre Manuel, para os marinheiros alemães, para todos os negros dos saveiros e das canoas, para todos os alvos marinheiros dos navios suecos, para o mar também.

    As luzes da cidade brilham no morro. Ainda há pouco vinha do morro um baticum de candomblés e macumbas. Porém, agora a cidade está longe e o brilho das estrelas está muito mais perto deles que as lâmpadas elétricas. Antônio Balduíno vê a brasa do cachimbo de Mestre Manuel. A voz do negro vem para dentro dele, de repente se afasta, foge pelo mar afora. Mas volta e fica vibrando no botequim. Uma tristeza baixa sobre tudo:

             “Tão só que hei de fazer

             mais do que gemer...

             mais do que gemer...”

    Não falam. Os marinheiros alemães escutam. Jubiabá estende as mãos na mesa. O Gordo está tremendo e Antônio Balduíno vê Lindinalva, branca, pálida, sardenta, nas águas, no céu, nas nuvens, no copo de cachaça, nos olhos do garoto tísico que serve o botequim

    Aquela lua amarela descambou de novo sobre a Lanterna dos Afogados. A voz que vem em surdina trazida pelo vento. O Gordo treme. Mestre Manuel fuma devagar. A voz parou no botequim e gira com a brisa:

             “Até que de mim tenha dó

             volve o teu olhar

             o teu sagrado amor

             para mim...”

    Foi embora a toada triste, O cego a procura com os olhos sem luz.

    Jubiabá resmunga palavras que ninguém ouve.

    Joaquim pergunta:

    – Tem um cigarro, mulato?

    Fuma em grandes tragadas. Os marinheiros bebem cerveja. As mulheres têm os olhos puxados para o mar. Jubiabá estira as pernas magras e espia a noite. A lua amarelou tudo, prateou o mar e o céu. Mas eis que volta a velha valsa. A voz do negro está perto, muito mais perto:

              “MATA-ME ESTA DOR

              DE EU NÃO VÊ-LA MAIS”.

    A voz se aproxima cada vez mais. Mestre Manuel volta ao cachimbo que brilha como uma estrela. Um saveiro atravessou o mar lá ao longe. Vai silencioso também ouvindo a toada triste que vem com o vento.

    Antônio Balduíno tem vontade de dizer:

    – Boa viagem, amigos...

    Porém, fica calado, ouvindo. A voz foi embora levada pelo vento. Voltou em surdina, baixinho:

             “de eu não vê-la mais...”.

    A lua entrou pelo botequim. Os marinheiros ouvem como se entendessem a valsa do negro. As mulheres que agora entendem não riem mais. Joaquim fala:

    – De que vale voltar?

    O Gordo se assustou:

    – O que foi que você disse?

    Antônio Balduíno diz para Jubiabá:

    – Pai Jubiabá, eu hoje tive um sonho esquisito, deitado no areal.

    – O que foi que você sonhou?

    Jubiabá está murcho e pequenino na cadeira. O Gordo pensa em quantos anos terá Jubiabá. Cento e quantos? Antônio Balduíno está forte e enorme. Não diz qual foi o sonho, mas fala:

    – Vi aquele negro com as costas marcadas, pai Jubiabá...

    A voz canta bem no botequim:

    “Senhor

             “Tão só que hei de fazer

             mais do que gemer

             mais do que gemer...”

    Antônio Balduíno fala:

    – ... gemendo, pai, gemendo... Aquele negro chicoteado nas costas... Eu vi no sonho... Estava horroroso. Eu tenho vontade de bater naqueles marinheiros.

    O Gordo se espanta:

    – Por quê?

    – O negro malhado... malhado...

    Jubiabá se levanta na cadeira. Está com o rosto enrugado aberto em ódio. Todos o ouvem:

    – Aconteceu há muito tempo, Baldo...

    – O quê?

    – A história que eu estou contando... O pai de seu pai era menino.

    “Numa roça de um senhor branco e rico lá no Corta-Mão...

    Uma toada triste, uma velha valsa que um negro canta não se sabe onde, domina tudo:

             “dai trégua aos meus ais...”

    Jubiabá está contando:

    – A gente era um montão de negros... A gente tinha desembarcado e não sabia a fala do senhor branco... Foi há muito tempo isso... Lá em Corta-Mão...

    – O que foi que teve?

    – Senhor Leal não tinha feitor... Mas tinha um casal de gorilas, uns macacões negros, amarrados numa corrente enorme. O senhor chamava o macho de Catito e a fêmea de Catita. O macho andava com um copo amarrado na corrente e um chicote na mão... Era o feitor.

    Que foi feito da velha valsa triste que não enche mais coração destes negros, que os deixa sozinhos com a história de Jubiabá? Onde está a voz do negro que cantava? Agora só o cego geme no violão e todos o ouvem. O menino pálido e tísico recolhe num prato de flandres moedas para o cego que é seu pai. Um homem diz:

    – Não dou, não. O velho não sabe tocar.

    Porém, todos o olham com tais olhos que ele bota um níquel no prato:

    – Tava brincando, meu bem.

    A voz de Jubiabá:

    – A macaca Catita matava galinhas, andava pelas casas. O macaco levava nóis pra roça e sentava no cepo. Quando negro não trabalhava ele surrava negro. Às vezes surrava sem motivo. Ele matou negro com o chicote...

    As luzes tremem na Lanterna dos Afogados. O cego toca um baticum no violão.

    – Senhor Leal gostava de soltar Catito em cima das negras.... Catito matava elas pra gozar nelas... Um dia o senhor soltou Catito em cima de uma negra nova, casada com um negro novo. Senhor Leal tinha visitas...

    O Gordo está tremendo todo. Volta ao longe a toada triste... Cessa o violão do cego que conta os níqueis recolhidos.

    – Catito se jogou em cima da negra e o negro em cima de Catito...

    Jubiabá olha ao longe a noite. A lua está amarela.

    – Senhor Leal atirou no negro que já tinha dado duas facadas no macaco... A negra também morreu. Ficou um bocado de sangue no lugar. As visitas ficou tudo rindo muito alegre. Menos uma mocinha branca, que ficou doida de noite vendo o macaco e o negro...

    A valsa triste canta perto.

    – Mas de noite um irmão do negro matou Senhor Leal. O irmão do negro eu conheci. Foi ele quem me contou a história.

    O Gordo está junto de Jubiabá. O cachimbo de Mestre Manuel brilha como uma estrela. No escuro do mar uma voz canta uma toada triste:

              “Mata-me esta dor

             de eu não vê-la mais.

    A voz canta alto, sonora, saudosa.

    Jubiabá diz:

    – Eu conheci o irmão...

    Antônio Balduíno segura o punhal na altura do peito.

 “Ôjú ànun fó ti iká, li ôkú”

   

        Jubiabá dizia:

    – Ôjú ànun fó ti iká, li ôkú.

    Sim, Antônio Balduíno beà sabia que o olho da piedade já vazara e que ficara somente o olho da ruindade. Na noite misteriosa do cais, cheia de músicas diversas, ele quis soltar a sua gargalhada alta, que era o seu grito de liberdade. Mas ele a havia perdido. Estava desmoralizado. Já não era imperador da cidade, já não era Baldo, o boxeur. Agora a cidade o apertava como corda no pescoço de suicida. Diziam que ele tinha se vendido. E o mar batendo nas pedras, os navios que saíam iluminados, os saveiros que partiam com uma lanterna e um violão valiam como chamados irresistíveis. Ali estava o caminho de casa. Viriato, o Anão, entrara por ele, por ele entrara o velho Salustiano, outros entraram também. No peito de Antônio Balduíno estavam tatuados um coração, um L enorme e um saveiro.

    Pegou o Gordo e fugiu pelo mar num saveiro. Ia procurar nas feiras, nas cidades pequenas, no campo, no mar, a sua gargalhada, o seu caminho de casa.

 

Diário de um negroem fuga

Saveiro

    O Viajante sem Porto corta a água que reflete as estrelas. Ele é todo pintado de vermelho e traz uma lanterna que espalha em torno uma luz amarela como a luz da lua que apareceu nesse momento, saindo de uma nuvem. Gritam de outro saveiro que atravessa a baía:

    – Quem vem lá?

    – Boa viagem! Boa viagem!

    A estrada do mar é larga. As águas passam murmurando. Um peixe salta na luz da lanterna. Mestre Manuel vai no leme. O Gordo vai sem compreender. Antônio Balduíno está estirado no saveiro olhando o espetáculo do mar. Do porão vem um cheiro de abacaxis maduros.

    Passa um vento suave e uma estrela clara brilha no céu. Na cabeça do negro Antônio Balduíno aparece um samba que vem se bater nos seus joelhos em palmadinhas compassadas. Agora vai assoviando e em breve encontrará novamente a sua gargalhada perdida. O samba vai saindo e fala em mulher, em malandragem, em negro livre, nas estrelas do céu, na estrada larga do mar.

    Pergunta:

             “Aonde vai parar essa estrada, Maria?”

    E diz:

           “As estrelas dos teus olhos estão no céu..

           o barulho do teu riso está no mar...

           você está na lanterna do saveiro”...

    Falava assim o samba. Dizia mais que o negro Antônio Balduíno amava somente duas coisas: malandragem e Maria. Malandragem na língua que ele fala quer dizer liberdade. E Maria quer dizer mulata.

    Onde irá parar essa estrada? Para Mestre Manuel, que é um velho marinheiro, ela não tem mistérios.

    – Aqui – avisa ele – é onde o mar ama o rio...

    Terminou a barra. Entraram no rio Paraguaçu. Nas margens, velhos castelos feudais, ruínas de engenhos de bangüê, de riquezas passadas, têm sombras descomunais, parecendo fantasmas. Bem diz o Gordo:

    – Parece mula-de-padre.

    Esse barulho que a água faz agora é o amor do mar e do rio. É o barulho que vem da mata Já atrás deve ser de alguma amante de padre, que morreu e virou mula-sem-cabeça e anda vagando por esses matos escuros que cobriram os túmulos dos negros escravizados.

    O saveiro corre suavemente na água mansa do rio. No leme Mestre Manuel fuma cachimbo. Aponta as coroas negras de pedra. A estrada não tem mistérios para ele. Antônio Balduíno acabou de cantar o seu samba que o Gordo já sabe de cor. Ele acha que é o samba mais bonito que Antônio Balduíno já fez, pois fala em mulher, em malandragem, em estrelas. Pede:

    – Não venda mais samba, Baldo.

    O negro ri. O saveiro vai pelo rio, correndo:

    – Ninguém se pega com ele – diz Mestre Manuel acariciando o barco como se acariciasse uma mulher.

    Vem um vento que empina as velas e refresca os homens. Do porão sobe um cheiro de abacaxis maduros.

    Mestre Manuel possui saveiro há muitos anos. Antônio Balduíno era menino e foi naquela época que o conhecera e ao Viajante sem Porto. No entanto muito antes Mestre Manuel já viajava com o seu saveiro pelos portos do Recôncavo, levando frutas para as feiras, trazendo tijolos e telhas para as construções da cidade nova.

    Aparenta trinta anos. Ninguém lhe dará os cinqüenta que traz no costado. Todo ele é de uma cor só, um bronze escuro, e é difícil dizer se Mestre Manuel é branco, negro ou mulato. É um marinheiro cor de bronze, isso sim, um marinheiro que raramente fala, e que é respeitado em toda a zona do cais do porto da Bahia, da Feira de Água dos Meninos, dos botequins do cais, dos botequins de todos os pequenos portos onde pára o seu saveiro. O Gordo corta o seu silêncio com uma pergunta:

    – Você já salvou afogado, mestre?

    Mestre Manuel abandona o cachimbo, estira as pernas:

    – Um dia de temporal, na boca da barra, um saveiro virou. O vento apagou as lanternas todas. Foi um dia terrível, parecia dia de Juízo...

    O Gordo se certifica que a noite em que vão está clara e amiga.

    – Eu vinha navegando também nesta noite, me agüentando no temporal. Minha lanterna também tinha se apagado e ninguém enxergava tiquinho na frente dos olhos.

    Antônio Balduíno gosta da vida dos mestres de saveiro. Sorri. Mas Mestre Manuel está sério. Puxou uma fumaça do cachimbo

    – A gente via luz da Bahia. Parecia bem pertinho, mas estava longe cada vez mais: A gente nunca chegava pra perto dela. Nessa noite o mar andava brabo, tinha brigado com o rio.

    Fez uma cara séria:

    – É ruim quando o mar está zangado com o rio...Dá em tempestade...

    – E o saveiro?

    Mestre Manuel parecia ter esquecido o saveiro:

    – Ia levando uma família que vinha das festas de Cachoeira. Eles tinha pressa em chegar e não ficaram para o navio que só tinha no outro dia. Os jornais falavam nisso...

    Puxou outra fumaça:

    Eles tinha pressa e ficou tudo no mar... A gente só salvou os corpos. Assim mesmo, dois nunca ninguém encontrou.

    O Viajante sem Porto vai rápido, todo virado de um lado, contornando o rio que é cheio de curvas, se abrindo de repente em bacias, se fechando depois em canais estreitos.

    – Me lembro da água que fazia gluglu junto do saveiro virado.

    Mestre Manuel imitava a água:

    – Gluglu... parecia que estava comendo alguma coisa.

    – Não tinha uma mulher gritando pelo noivo? Nem o anjo da guarda dos afogados? – perguntou o Gordo que tremia.

    – Tava tudo morto quando a gente chegou.

    – Nem o anjo da guarda tinha escapado – riu Balduíno..

    – Afogado não tem anjo da guarda. A mãe-d’água leva tudo que ela é mesmo uma tentação.

    O Gordo havia inventado o negócio do anjo e da noiva mas afirmou que tinha visto nos jornais

    – Mas você não tinha nascido ainda.

    – Então foi de outra vez... Você não assistiu?

    O Gordo pensa que é uma estrela nova e grande que está brilhando um pouco atrás. Grita na alegria da descoberta

    – Olhe que estrela nova e bonita... É minha, é minha... – Ele está com medo que alguém a roube, a tome dele que a descobriu.

    Os outros olham. Mestre Manuel escarnece:

    – Estrela nada. Aquilo é o Paquete Voador que vem vindo... Ele tava em Itaparica quando a gente passou, vem aí pra pegar a gente... Quer pegar carreira com você. – Mestre Manuel agora está falando com o Viajante sem Porto e o acaricia

    Olha os companheiros.

    – O barco corre, Guma é bom no leme... Mas com este ninguém se pega, vão ver.

    O Gordo está triste porque perdeu a sua estrela.

    Antônio Balduíno pergunta:

    – Como é que você sabe que é o Paquete Voador, Manuel?

    – Pela luz da lanterna.

    Mas a luz é igual a todas as lanternas dos saveiros e Antônio Balduíno só não pensa como o Gordo que ela é uma estrela nova porque se move a todo o momento. Porém, duvida que seja o Paquete Voador. Pode ser qualquer um dos rápidos saveiros do porto. Fica esperando. O Gordo olha o céu para ver se descobre outra estrela que substitua a que ele perdeu. Porém, as que brilham já são todas conhecidas e todas já têm dono. O saveiro se aproxima. Mestre Manuel vai devagar, esperando.

    É mesmo o Paquete Voador. Guma grita:

    – Vamos pegar uma carreira, Manuel?

    – Pra onde você vai?

    – Maragogipe..

    – Eu vou pra Cachoeira mas a gente corre até Maragogipe... Tá valendo cincão...

    – Tá valendo.

    Antônio Balduíno aposta também. Guma pega do leme:

    – Vamos.

    Os saveiros vão inteiramente de lado e o Paquete Voador ganha distância. Balduíno avisa:

    – Olhe os meus dez mil que estão no fogo, Manuel.

    O mestre sorri:

    – Deixa ele correr.

    Grita para o fundo:

    – Maria Clara!

    A mulher que dorme e sonha, desperta e aparece. Mestre Manuel apresenta:

    – Minha patroa...

    A surpresa deles é tão grande que não dizem nada. Ela também está calada e mesmo que fosse feia, seria bela assim em pé no saveiro que se inclina, o vestido levantado pelo vento, os cabelos voando. Um cheiro de mar se mistura ao cheiro de abacaxis. O cangote dela, os lábios dela – pensa Antônio Balduíno – devem cheirar a mar, a água salgada. E sente um desejo repentino. O Gordo pensa que ela é um anjo da guarda e quer rezar uma oração. Porém, ela não é nada disso; é a mulher de Mestre Manuel que avisa:

    – Tou correndo com Guma. Cante uma canção...

    A canção ajuda o vento e ajuda o mar. São segredos que só um velho marinheiro sabe, segredos que se aprendem no convívio do mar.

    – Vou cantar o samba que aquele moço estava cantando.

    Estão todos penetrados dela. Ninguém sabe se ela é bela ou feia, mas todos a amam nesse momento. Ela é a música que compra o mar. Está de pé e seus cabelos esvoaçam abandonados ao vento. Canta:

             “Aonde vai parar essa estrada, Maria...

    O Viajante sem Porto corre fazendo um ruído na água. Já se vê novamente o Paquete Voador que é um ponto luminoso na noite

           “As estrelas dos teus olhos estão no céu...

    Aquilo branco é a vela do Paquete Voador que está mais perto.

             “O barulho do teu riso está no mar...

    Aonde irão eles nessa carreira louca? Não se baterão numa coroa de pedras negras e não irão dormir no fundo do mar? Mestre Manuel vai de olhos fechados no leme. Antônio Balduíno estremece gozando a mulher que canta. Para o Gordo ela é um anjo. E ele reza.

    “Você está na lanterna do saveiro.

    Passam junto da lanterna do Paquete Voador, Guma sacode um embrulho de dinheiro dentro do Viajante sem Porto. Quinze mil-réis. Mestre Manuel mete os cinco no bolso da calça e grita:

    – Boa viagem, Guma. Boa viagem.

    – Boa viagem – a voz vem lá de trás.

    Antônio Balduíno pega os dez mil-réis que ganhou:

    – Compre um vestido pra ela, Manuel. Foi ela que ganhou..

    “A estrada do mar é larga, Maria.

    Antônio Balduíno pensa onde andará o homem branco e calvo que naquele dia apareceu na macumba de jubiabá. Onde ele estará, onde estará o homem que Antônio Balduíno julga ser Pedro Malazarte, o aventureiro? É preciso que ele não esqueça essa viagem de saveiro, quando escrever o ABC do negro Antônio Balduíno valente e brigão, que ama a liberdade e o mar.

    Mestre Manuel entregou o leme a Antônio Balduíno agora que o rio é largo. Foi com a mulher para o fundo do saveiro. Estão escondidos atrás da camarinha. Mas se ouvem os ruídos dos corpos no amor. Vêm gemidos em voz baixa, súplicas de beijos. Vem uma onda alta que cobre os aman tes. Eles riem entre beijos. Nesse momento estarão molhados e o amor ainda será melhor.

    Antônio Balduíno imagina jogar o saveiro sobre as pedras do rio. Morreriam todos e os gritos e beijos se extinguiriam no mar. O Gordo, que perdeu nessa noite uma estrela e um anjo, fala:

    – Ele não devia ter feito isso.

   

Cheiro doce de fumo

    Cheiro doce de fumo! Cheiro doce de fumo! Invade as largas narinas do Gordo que entontece. O saveiro ficou no porto unicamente os dias das feiras das cidades vizinhas: Cachoeira e São Félix. Depois partiu para outros portos pequenos, Maragogipe, Santo Amaro, Nazaré das Farinhas, Itaparica, levando Seu Manuel e a mulher que cantava durante a noite e cheirava a mar. Abriu as velas e partiu na manhã saudosa. Valia como uma despedida

    Antônio Balduíno e o Gordo ficaram na cidade velha de Cachoeira, medindo o comprimento das ruas numa vagabundagem forçada. Sentiam a cidade pelo cheiro. Era aquele cheiro adocicado de fumo que vinha de São Félix defronte, das fábricas brancas que tomavam quarteirões inteiros e que eram gordas como os seus donos. Cheiro que tonteava, que fazia pensar em coisas distantes, que obrigava o Gordo a contar longas histórias inventadas ou repetidas. Nas fábricas de charutos não havia trabalho. Ali quase só mulheres pálidas e macilentas, mulheres de olhos compridos, fabricavam charutos caros para fins de banquetes ministeriais. Os homens não tinham jeito, possuíam as mãos grossas demais para aquele trabalho que, no entanto, era pesado e difícil.

    Na tarde chuvosa do dia da chegada, eles atravessaram o rio Paraguaçu que separava as cidades. No fundo a ponte enorme. O Gordo ia contando uma história, que o Gordo nascera mesmo para poeta e se soubesse escrever e ler poderia ganhar a vida fazendo ABC e histórias em versos. Mas o Gordo nunca fora a escola e se contentava em narrar com a sua voz baixa e sonora os casos que ouvia, as velhas lendas que aprendera na cidade, e as histórias que inventava quando bebia. Se não fosse a sua mania de meter os anjos em todas as histórias, ainda seria melhor. Mas o Gordo era muito religioso também.

    A canoa evitava as pedras. O rio estava seco e homens de calças arregaçadas e dorsos nus pescavam o jantar, o Gordo ia contando:

    – Então Pedro Malazarte, que era um bicho sabido, disse ao homem: “é um rebanho enorme de porcos... tem mais que quinhentos... que quinhentos que nada... tem é mais de mil... dois mil... três mil... de tantos que tem até já perdi a conta...” O homem de panela só via os rabos enterrados na areia. Era um mundo de rabos pretos que o vento remexia. Eles ficava tudo bulindo que nem que tivesse porco mesmo, vivo de verdade, enterrado na areia. E Pedro Malazarte foi dizendo: “e esses porcos são mágicos... Quando eles obra sai é dinheiro. É tudo nota de cinco mil-réis... Quando vão crescendo só sai nota de dez e até de conto de réis eles bota quando já tão velho. Eu troco tudo isso por sua panela...”

    – E o homem não desconfiou? – interrompeu o canoeiro.

    – Nada, o homem era um tolo e estava com os olhos cheios dos porcos. Pegou e trocou a panela com carne e feijoada pelo rebanho. Pedro Malazarte avisou: “Vosmicê deixe eles enterrados até de manhã. De manhã eles sai e vão obrar dinheiro”. E o homem ficou esperando que os porcos aparecesse. Passou a tarde, passou a noite, passou o outro dia e até hoje o homem está lá esperando... Se quiser é só ir ver..

    O canoeiro ria, Antônio Balduíno queria agora ouvir a aventura da panela. Amava as histórias de Pedro Malazarte, malandro que sabia enganar os demais e levava uma vidinha gozada. Imaginava-o vivo, correndo o mundo, sabendo coisas de todos os países, pois até no céu Pedro Malazarte já fora levar dinheiro para o marido da viúva rica que estava passando miséria num hotel vagabundo do paraíso. E tinha quase certeza que aquele homem calvo que aparecera na macumba de Jubiabá não era outro senão Pedro Malazarte, disfarçado. Aquele homem não correra o mundo todo e não vira todas as coisas?

    – Eu penso na minha cabeça que aquele homem careca que foi na macumba de pai Jubiabá era Pedro Malazarte.

    – Quem? – o Gordo não se lembrava.

    – Naquele dia que Oxalá pegou dos Reis...

    – Ah! Já sei... Mas não era não. Aquele branco era andarilho e escrevia ABC. Eu sei a história dele... Ele fugiu um dia num cavalo alazão da fazenda do pai dele, que era criador de cavalos, e correu o mundo todo no seu cavalo alazão, escrevendo os ABC dos homens mais corajosos que encontrou, das mulheres mais malvadas que viu...

    – Ele vai escrever meu ABC...

    – O seu?

    – O homem mais valente que ele já viu foi o negro Antônio Balduíno. Eu sou é macho para qualquer um... Ele mesmo me disse...

    O Gordo ficou admirando o amigo. Antônio Balduíno trazia dois punhais embaixo do casaco, um de cada lado. A canoa encostou na lama do cais.

    Das fábricas vem esse cheiro que entontece. Os homens que pescavam estão se recolhendo e conduzem peixes para o jantar magro. Das fábricas sai ao mesmo tempo um apito fino, prolongado. É o fim da jornada do dia. Antônio Balduíno foi para arranjar uma mulher, uma mulata a quem amar no meio das operárias das fábricas. E ficou na esquina, rindo a sua gargalhada para as histórias do Gordo, esperando a passagem das mulheres.

    Mas eis que elas saem e são tristes e cansadas. Elas vêm tontas daquele cheiro doce de fumo que já se impregnou nelas, que está nas suas mãos, nos seus vestidos, nos seus corpos, nos seus sexos. Saem sem alegria e são muitas, é uma legião de mulheres que parecem todas doentes. Algumas fumam charutos baratos, depois de terem fabricado charutos caríssimos. Quase todas mastigam fumo. Um homem loiro conversa com uma mulatinha que ainda não perdeu a cor nas fábricas. Ela ri e ele murmura:

    – Lhe melhoro de condição.

    Antônio Balduíno diz ao Gordo:

    – Aquela é a única que é comível... Mas já está com o gerente.

    As mulheres passam silenciosas como se estivessem bêbadas do cheiro de fumo, entram pelas ruas estreitas que já escurecem e rumam para os becos sem iluminação do fundo da cidade. Vão tristes assim, conversando em voz baixa, ainda com medo das multas por causa das conversas nas fábricas. Passa uma grávida, a barriga estendida para a frente, e adiante pára e beija um homem que traz peixes na mão. Agora seguem de braço e ela conta a multa que sofreu por que parou num momento que a barriga pesava e doía. De repente diz:

    – E os dias que eu vou perder quando tiver o menino... Quantos dias...

    A sua voz é trágica e angustiada. O homem baixou a cabeça e fechou as mãos. Antônio Balduíno ouviu e escarrou.

    O Gordo está tremendo. Passam as mulheres das fábricas de charutos. Vêem-se os grandes cartazes com os títulos. E num botequim um anúncio: – os melhores charutos do mundo... Para banquetes, jantares, almoços. Passam as mulheres que fabricam os charutos. Vão tristes que ninguém diria que vão para o lar, para o marido, para os filhinhos. O Gordo disse:

    – Parece acompanhamento de enterro.

    A mulatinha bonita vai com o alemão. A mulher grávida chora no braço do marido.

    No hotel de Cachoeira, que é cômodo e mesmo suntuoso, moços alemães bebem uísque e jantam jantares feitos especialmente para eles. Mulheres vieram da Bahia para dormir com esses moços loiros e simpáticos. São filhos dos donos daquelas fábricas de onde saíram as mulheres operárias. Conversam em meio às bebidas e falam na salvação da Ale manha pelo hitlerismo na próxima guerra mundial que eles vencerão. E quando a bebida tiver subido para as cabeças, cantarão hinos guerreiros. Uma criança interrompe o jantar e diz:

    Uma esmola que minha mãe está morrendo.

    Mas a lua cheia, que saiu dos morros e está sobre o rio, não é vista pelos loiros alemães. Na beira do rio os maridos das operárias cantam ao violão e as mulheres apresentam crianças à lua:

“Bênção dindinha lua

Tome bebezinho pra você

e me ajude a criar”.

    No fim da tarde chuvisquenta o canoeiro chegou para perto de Antônio Balduíno e do Gordo:

    – Então camarada... Não vai boiar...

    – Nós vai, sim...  

    – Se quer ir boiar lá em casa... E comida de pobre... Só tem peixe, mas se come e é oferecido de boa vontade.

    Virou-se para o Gordo:

    – Você conta uns casos pra minha velha ouvir. Ela deve tá chegando da fábrica... Tenho cinco meninas e dois meninos...

    Sorri esperando a resposta. Entram por um beco que vai dar numa rua enlameada que lembra a Antônio Balduíno o Morro do Capa-Negro.

    Dentro das casas brilha a luz vermelha dos fifós. Crianças brincam nas portas fazendo bonecos e bois com o barro preto do massapê.

    – É aqui – diz o canoeiro.

    As paredes são sujas de fumaça. Um quadro com Senhor do Bonfim, um violão pendurado. Um garoto dorme estendido numa cama de tábuas. Terá três meses quando muito. Acordou com o beijo do homem e estendeu as mãozinhas, rindo com a boquinha negra. Um que mal está andando se agarra às saias da mãe. Já possui a barriga estofada como os outros que estão fazendo bonecos de barro lá fora.

    O canoeiro faz as apresentações:

    – Dois amigos. Este aqui – aponta o Gordo – sabe contar história que é uma beleza... Você vai ver.

    A mulher masca fumo. Tem os beiços arrebitados e uma cara amarela de quem sofre maleita. Pega os peixes que o homem traz e vai para a cozinha. Ouvem a sua voz chamando os filhos.

    Antônio Balduíno pegou o violão. O Gordo pergunta:

    – A vida aqui é difícil?

    – Trabalho é difícil, é... Aqui só tem trabalho pra mulher, os homens ficam pescando, ou arranjando uns vinténs com as canoas.

    – E as patroas ganham bem?

    – Nada... Que bem... E ainda tem as multas, tem as faltas por causa das crianças, doenças, e ficam logo velhas, acabadas... A gente corta fino aqui, seu mano...

    – É triste...

    – Triste? – o homem ri. – Tem gente que passa fome que é uma beleza... Quando uma mulher sai de uma fábrica, não arranja emprego na outra. Eles têm uma combinação... E não é todo dia que tem peixe, não.

    Um rapaz negro está na porta, silencioso. Aprova com a cabeça. O Gordo se sente culpado de ter puxado aquela conversa triste:

    – Mas Deus vai ajudando..

    – Dando doença, só se for assim. Minha patroa tem esse quadro aí mas eu até nem acredito mais... Já curti fome dura. Uma noite nem comida pro mais pequeno que era aquela – mostra uma mulatinha de cinco anos – não tinha. Deus se esqueceu dos pobres.

    A mulher apareceu na porta do fundo e cuspiu uma saliva escura:

    – Não diga heresia, homem. Deus castiga.

    O rapaz da porta fala:

    – Mas no meu coração eu não acredito também. Só da boca para fora. Quer saber? Pois o alemão cachorro tá dando em cima da Mariinha... Fala que melhora ela... Onde tá Deus?

    O Gordo reza em voz baixa. Pede a Deus que não deixe o alemão levar Mariinha e que não faça faltar comida na mesa do canoeiro. Antônio Balduíno sabe que o Gordo está rezando e que é inútil. Diz:

    – Pode ser heresia, minha gente... Mas a vontade que esse negro que está aqui tem é matar os brancos todos... Matava e não tinha pena.

    O peixe está servido na mesa. O rapaz negro desapareceu e meses depois foi condenado a trinta anos porque matou o alemão que deixou Mariinha com um filho e sem emprego. A comida é pouca para tantas bocas e os garotos reclamam mais. A luz vermelha do fifó torna as sombras enormes.

    O Gordo contou a história da panela de Pedro Malazarte e as crianças dormiram. Uma delas ainda traz fechado na pequena mão negra um boneco de barro, aleijado de um braço. E no seu sonho o boneco preto de barro é uma boneca loira de louça que diz “mamãe” e fecha os olhos para dormir. Saíram para o lado do rio. Os homens cantam à lua cheia. Mulheres de vestido remendado andam na amurada. O rio passa e desaparece embaixo da ponte.

    O Gordo canta a Cantiga do Vilela que Antônio Balduíno acompanha ao violão. Os homens estão todos atentos à luta histórica do cangaceiro Vilela com o “alferes negreiro”. A cantiga é heróica. O alferes foi um herói; Vilela foi mais heróico ainda:

             “O Alferes foi valente

             E de valente enforcou-se!

             Mais valente foi Vilela:

             Morreu, foi santo e salvou-se

    – Bonito – fala um homem.

    Nunca vi dizer que jagunço virasse santo – atalha uma mulherzinha magra.

    – Tem muito jagunço que merece ser santo mesmo... – o homem que explica bate os dedos na amurada do cais. – Vocês já viu jagunço roubar pobre? Jagunço é pobre como a gente... Jagunço tem coração como a gente... Jagunço... eu gosto de jagunço.

    – T’esconjuro, sujo! Parece que não viu o que eles fizeram com o Coronel Anastácio... Deixou o homem sem as orelhas... sem o nariz... até as coisas dele arrancou... Ficou parecendo um bicho, Deus me perdoe...

    Riem se lembrando de como ficara o homem. Mas o que está batendo na amurada do cais diz:

    – Mas vosmecê não se lembra do que o Coronel Anastácio fez com as filhas do Simão maneta... Eram quatro, ele não deixou uma... Papou todinhas... O velho ficou feito doido... Mais tivesse e mais o coronel chamava aos peitos. Jagunço é quem vinga a gente...

    Virou-se para o Gordo:

    – Cante outra modinha, camarada.

    Mas foi Antônio Balduíno quem passou a cantar sambas e modinhas que fizeram as mulheres tristes.

    Do sino da igreja vêm as batidas das nove horas.

    – Vamos ao samba da casa do Fabrício, minha gente? – convida um negro forte.

    Vai um grupo. Os demais se dirigem para as casas ou ainda demoram no cais olhando a lua, o rio, a ponte, cinema que eles têm.

    Fabrício recebia os convidados com o copo de cachaça na mão:

    – Não quer matar o jejum?

    Todos queriam e o copo passava de boca em boca, um copo grosso que Fabrício enchia conscienciosamente até trans bordar.

    O canoeiro apresentava Antônio Balduíno e o Gordo:

    – Dois amigos...

    – Vá entrando... Vá entrando... A casa é dos amigos – e distribuía grandes abraços.

    Eles foram entrando. Um mulato de bigodinho tocava harmônica Os pares rodopiavam pela sala. Antônio Balduíno não sentiu o cheiro característico de negro. Até ali, no bairro distante, o cheiro doce de fumo dominava. Os pares rodavam, o homem da harmônica se abaixava e se levantava e no fim da música, de tão excitado, ele tocava de pé e dançava também, roçando os pares que passavam ao alcance da sua mão.

    Quando a música parou o canoeiro gritou:

    – Meu povo, esse negro aqui toca violão como um santo... E esse gordo sabe cada história linda.

    Antônio Balduíno disse ao Gordo:

    – Eu estou pensando na minha cabeça que vou arranjar mulher aqui...

    Foi lá dentro beber cachaça com o dono da casa e quando voltou, ante a insistência das negras, tocou ao violão seus melhores sambas que o Gordo cantou. O homem da harmônica estava ressentido mas não dizia nada, Quanto Antônio Balduíno acabou disse pra ele:

    – Vamos tomar um trago, mano? Você toca bem de verdade...

    – Eu arranho... Você é um bamba...

    Indicou mulheres para Antônio Balduíno:

    – Aquela ali topa... Olhe aqui, a minha mulata tem uma amiga... Por que você não topa com ela?

    O homem voltou a tocar harmônica. Agora toda a sala rodava. Os pés batiam no chão, os umbigos batiam nos umbigos, as cabeças se tocavam, estavam todos embriagados, uns de cachaça, outros de música. Ouvia-se um baticum que os homens acompanhavam com as mãos. Os corpos se uniam pelas cinturas e depois se soltavam, giravam sozinhos e voltavam a se encontrar, barriga com barriga, sexo com sexo.

    – Aí, meu bem.

    O baticum continuava, os homens dos instrumentos estavam entre os dançarinos, a sala estava de cabeça para baixo, estava de lado, de repente estava certa, logo depois não estava mais, eles estavam era no teto. Os fifós ainda atrapalhavam mais. Dançavam sombras também e elas dançavam na parede, gigantescas, espantosas. O chão desaparecera, os pés não sentiam mais, só se sentia o corpo que era tocado e trazia uma faísca de desejo. As mulheres eram de mola, quebravam o corpo todo no mexido, as ancas aumentavam, as nádegas remexiam sozinhas, como se tivessem uma vida à parte do corpo. Dançavam os homens, as mulheres, as sombras e a luz do fifó. Desaparecera a sala, desaparecera a luz, não se via mais nada. Só ficara o baticum, o cheiro doce do fumo e os umbigos que se encontravam, Desapareceu também o desejo, desapareceu tudo, e agora é pura dança.

    Antônio Balduíno escreveu na areia do rio um nome: Regina. A mulher que estava a seu lado, deitada no cansaço do amor, sorriu satisfeita e beijou o negro. Mas veio uma onda pequena e apagou o nome que tinha sido escrito com a ponta do punhal. Antônio Balduíno soltou a sua gargalhada que estremeceu tudo. A mulher teve raiva e chorou.

 

Mão

    O campo de fumo se estendia pelo morto e parecia não ter fim. Primeiro era aquela planície que depois subia pelo morro e descambava lá atrás, campo verde inacabável, de plantas baixas, de folhas largas

    O vento balançava as folhas e, se não fosse a sacola protetora de pano, espalharia as sementes do fumo numa plantação inútil.

    As mulheres que estavam curvadas colhendo as folhas com gestos cansados levantaram o corpo e se agitaram. Foram as últimas a largar o trabalho e uma delas era velha e enrugada, enquanto a outra, que fumava um charuto de cinqüenta réis, era uma mulherona moça e forte, Os homens já iam adiante e pareciam todos corcundas. Conduziam montes de folhas de fumo que dependuravam na frente das casas, resguardando do sol muito forte e da chuva. As folhas que já estavam secas cediam lugar às folhas recém-chegadas que faziam aquela cortina em frente das casas dos trabalhadores.

    Existiam quatro casas em bloco, formando um quadrado no centro do qual os homens se reuniam para conversar e tocar violão. A mulher velha entrou numa das casas onde o companheiro prestava atenção ao feijão que cozinhava. A moça ficou tirando dois dedos de prosa com os homens que estavam no “terreiro”, que era como eles chamavam o quadrado que ficava entre as casas.

    O Gordo estava com saudades da avó e falava:

    – Ficou sozinha, com Deus somente... Quem dá comida a ela.

    – Deixa estar que ela não morre de fome, não...

    – Não tou falando nisso – o Gordo se atrapalhava. – Eu estou dizendo...

    A mulher botou as mãos nas cadeiras para ouvir mais comodamente:

    – Entonce o que é?

    – Não sabe? Ela está velha e acabada. . . Só come dando na boca...

    A mulher riu, os homens fizeram pilhérias:

    – Isso parece mais uma mulata que você tem... Esse negócio de dar comida na boca... É bonita?

    – Juro que é minha avó... Juro... Ela não tem mais dente e já anda pancada...

    Outros homens iam chegando. Antônio Balduíno se estendeu no meio do terreiro, a barriga nua para cima:

    – Tou cansado, gente...

    O Gordo perguntou:

    – Não é verdade que eu tenho uma avó? Ela não come dado por mim na boca?

    Os homens riram. A moça atalhou:

    – Tua mulher é tão velha assim, Gordo, que você chama ela de avó?

    Vieram gargalhadas que aumentaram a confusão do Gordo:

    – Juro. .. Juro... – beijava os dedos em cruz.

    – Manda buscar ela pra cá, Gordo. Eu dou comida na boca dela, me caso com ela...

    – Ela é minha avó, juro..

    – Não faz mal... Mesmo velha serve...

    Antônio Balduíno se levantou em cima do braço:

    – Eu tô maginando aqui dentro – batia na cabeça – que vocês são tudo uns bestas... o Gordo tem uma avó, é mesmo... E o Gordo tem um anjo da guarda... O Gordo tem coisa que ninguém tem... O Gordo é bom, vocês não sabe...

    O Gordo se atrapalhava. Os homens estavam calados e a moça olhava agora com espanto.

    – O Gordo é bom, a gente é ruim... O Gordo...

    Ficou olhando as plantações de fumo que se perdiam de vista.

    Ricardo murmurou:

    – Mesmo velha eu comia...

    Mas a mulher, antes de entrar na casa, chegou para perto do Gordo e pediu:

    – Você reza pra mim? Reza pro anjo fazer Antônio arranjar uns cobres pra gente ir pras fazenda de cacau. – Olhou as folhas de fumo. – Lá tem dinheiro de fazer medo...

    Ricardo disse:

    Esse ano o trabalho está pesado... A safra é grande e Seu Zequinha não bota mais gente... Nem sei como botou vocês dois...

    – A gente tava quase morto de fome em Cachoeira. Por isso a gente veio...

    – Para ganhá deztões por dia...

    Um jumento zurrou no campo. Antônio Balduíno disse pro velho que vinha da casa comendo:

    – Cumprimenta teu pai, velho, que está reclamando...

    – E tu não pede a bênção a teu avô? Olha, que eu conheci tua mãe...

    Riram. Antônio Balduíno baixou a voz:

    – Deixe lá que Sinhá Totonha é um pedaço...

    – Se meta com ela pra ver... Antônio tem quatro morte no costado... Ele não brinca nem erra fogo...

    – Eu sei é que tou seco... Dois meses sem mulher...

    O velho riu. Ricardo olhou com raiva:

    – Você ri porque é casado... Tem mulher... Pode ser um couro mas é mulher... E eu que já faz quase um ano que não vejo uma égua na cama...

    – Tou rindo não é disso, não. Quando eu vim para essas bandas colher fumo já era assim. Eu passei uma dureza... Até que peguei a Celeste que vivia aí quase menina... Hoje tá um couro mas naquele tempo era uma tentação... Negro dava em cima que nem urubu em carniça. Mas tudo tinha medo do velho João que era feroz. Ele tinha dito que negro que roubasse a filha dele tava morto. Mas, homem, eu não via cheiro de mulher fazia dois ano... Disse que morrer era besteira, que a gente só morre quando chega o tempo. Numa noite tava um chuvisquinho eu chamei a Celeste para conversar. O velho tava dentro de casa, limpando a repetição. Ainda falou comigo, se rindo... Eu não tinha ainda medo, tive naquela hora... Mas Celeste já vinha, eu não pude mais. Ali mesmo, nuns mato que tinha perto, derrubei a bicha.

    Os homens estavam com os olhos baixos. Antônio Balduíno riscava o chão com um punhal. Ricardo batia as mãos uma na outra impaciente... O velho continuou:

    – Fazia dois ano que eu não sabia o que era mulher... Ela ficou com o vestido todo rasgado... Eu fugi por esse mato de Deus, esperando o velho pra me matar.

    – E depois?

    – No outro dia tomei coragem, fui lá falar com o velho João... Ele tava limpando a repetição e quando me viu encostou a bicha no chão. Eu sabia que ele me matava, mas eu queria andar com a Celeste de novo... Peguei e disse a ele tudo. Falei que queria casar, que era um homem direito e trabalhador... Aí o velho fechou a cara, eu pensei que tivesse chegado minha hora. Mas ele não fez nada, só disse: “Isso tinha que acontecer... Aqui não tem mulher e homem precisa de mulher. Leve ela pra sua casa mas se case com ela”. Eu fiquei sem acreditar e João disse ainda: “Gostei que você veio contar tudo. Homem faz é assim”. Depois chamou a Celeste e mandou que ela fosse comigo. E ficou limpando a repetição. Mas quando eu saí eu juro que ele tava chorando...

    Os homens ficaram calados. O vento balançava os pés de tabaco, as folhas largas lembravam sexos estranhos de mulheres. Ricardo engoliu em seco e disse:

    – Não sei como a gente pode trabalhar sem ter mulher... Aqui só tem essas duas casadas...

    – E a filha de Sinhá Laura?

    – Eu casava com ela se ela quisesse... – disse Ricardo.

    Antônio Balduíno enfiou o punhal na terra. Um negro alto afirmou:

    – Um dia eu chamo ela aos peitos, ela deixe ou não deixe...

    – Mas é uma menina de doze anos – se espantou o Gordo.

    Os montes atrás, cobertos de neblina. A estrada de ferro que passava longe. De vez em quando um trem que apitava com mulheres que davam adeus nas portinholas. A estrada onde os homens passavam levando sacos de frutas para as feiras, conduzindo burros carregados, levando bois para vender em Feira de Santana. Ora seguravam sacos enormes com as mãos calosas, ora tangiam os burros ou conduziam os bois. Passavam enormes boiadas, os vaqueiros cantando tristemente:

    – Ouuuuuu booiiiii.

    E as mãos que se abaixavam para a terra, mãos grandes e calosas que colhiam as folhas cheirosas de tabaco. As mãos se baixavam e se levantavam num certo ritmo sempre igual. Pareciam pessoas que choravam. E aquele trabalho dava uma dor nas costas, dor fina e prolongada que ficava pela noite adentro, magoando. Zequinha passava olhando o serviço, dando ordens, brigando. Montes de folhas de fumo se juntavam e, quando a tarde vinha, as mãos dos homens haviam ganho dez tostões que eles não viam, porque já deviam ao patrão quantias desconhecidas.

    Com as mãos calosas e feias acenavam adeuses aos trens que passavam apitando.

    Na casa de taipa moravam quatro: Ricardo, o negro, Filomeno, Antônio Balduíno e o Gordo. Filomeno só falava em tiros e mortes, isso quando falava, porque geralmente estava calado ouvindo. Ricardo tinha em cima das tábuas em que dormia, colado na parede, o retrato de uma atriz de cinema, toda nua, com um leque apenas cobrindo o sexo. Havia pregado o retrato na parede com muito cuidado, retrato que lhe dera o filho do patrão, há uns três anos, quando viera à fazenda. E colocava o fifó de tal jeito que a luz vermelha dava bem em cima da atriz que parecia nua como um convite. O Gordo tinha um santo em cima da cama, santo que “trocara” por quinhentos réis nas festas do Bonfim. Antônio Balduíno juntava nos pés do jirau a figa que Jubiabá lhe dera e os punhais que trazia no cinto, O negro Filomeno não tinha nada.

    Vinham para o terreiro após o jantar e eles que não tinham cinema, nem teatro, nem cabarés, tocavam violão e cantavam ao desafio. As mãos brutas dos homens negros tiravam das cordas sonoridades que enchiam de alegria e de tristeza os camponeses todos das plantações de fumo. Cantavam cantigas tristes, sambas alegres, e no desafio Ricardo era perito. As suas mãos corriam pelas cordas do violão e não eram mais aquelas mãos calosas da enxada e da terra. Eram mãos de artista, rápidas e certas, que levavam ao coração dos homens a história de amores e de lutas. As mãos que antes davam o pão, davam agora a alegria na terra sem mulheres. Os violões repinicavam noite afora e era o cinema, o teatro, o cabaré. As mãos rápidas corriam pelas cordas e a música se espalhava entre as plantações de fumo que, à luz da lua, apresentavam aspectos estranhos.

    Quando o silêncio baixava sobre tudo, quando não se ouvia mais o som das violas e os homens já estavam estirados nos jiraus, o fifó apagado, Ricardo olhava o retrato da atriz nua com um leque cobrindo o sexo. Estava com os olhos fitos nela e eis que ela se move. Porém agora está vestida e eles não estão mais nas plantações de fumo. Estão numa grande cidade, numa cidade que Ricardo nunca viu, cidade iluminada, cheia de automóveis e de avenidas, maior que Cachoeira e São Félix reunidas. Deve ser a Bahia e talvez seja até o Rio de Janeiro. Passam mulheres loiras, mulheres morenas e todas sorriem para Ricardo que está elegante, vestido de casimira, com uns sapatos vermelhos como os que ele vira numa loja de Feira de Santana. As mulheres riem e todas o querem, mas ele está com a atriz que conheceu num teatro e que se dependura no braço dele de uma maneira que roça os seios no seu peito. Agora vão cear num restaurante chique, de mulheres decotadas, onde bebem vinhos caros. Ele já beijou repetidas vezes a mulher que sem dúvida o ama, pois consente que ele lhe machuque os seios e suspenda por baixo da mesa o seu vestido de seda. Mas, agora, ela está novamente no quadro, com o leque em cima do sexo, porque o jirau está balançando muito e Antônio Balduíno se moveu na sua cama de tábua, no outro lado da sala. Ricardo espera com raiva que tudo fique calmo de novo. Puxa a coberta esburacada até o queixo. Volta com a mulher ao restaurante para, logo depois, tomarem um automóvel e se deixarem ficar num quarto onde há cama e perfumes. Ele a despe devagarinho gozando os seus encantos um a um. Pouco lhe importa agora que o jirau ranja e que Antônio Balduíno se mova. Não, não é a sua mão calosa que ele tem em cima do sexo. É o sexo alvo da atriz loira, que não está com vestido nem com leque e que ama Ricardo, trabalhador das plantações de fumo. Acorde quem quiser, porque ele não está fazendo nada de mais, está amando uma mulher bonita, de seios duros e de ventre redondo. A sua mão é uma mulher.

    A atriz voltou para o quadro, o sexo tapado com o leque. Na estrada brilha a luz de um fifó que ilumina as plantações de fumo. Ricardo deita a cabeça sobre as tábuas do jirau e dorme.

    Num domingo Ricardo disse que ia pescar nas águas do rio. Tinha comprado uma bomba e com ela esperava matar muito peixe. Convidou os outros. Somente o Gordo se resolveu a ir. Conversaram o caminho todo. Na margem do rio ele tirou a camisa, o Gordo se deitou na relva. As plantações de tabaco se estendiam lá atrás. Passava um trem. Ricardo preparou a bomba e acendeu a mecha. Sorria. Estendeu as mãos para a frente, mas antes que jogasse a bomba ela estourou levando-lhe as mãos e os braços, encharcando o rio de sangue. Ricardo olhou os cotos dos braços e era como se houvesse se suicidado.

 

Sentinela

    Arminda, a filha de Sinhá Laura, que ao terminar o trabalho corria pelos campos a sua meninice de doze anos, não corre mais e trabalha com o rosto angustiado. Até uma vez pediu licença a Zequinha para ir em casa. É que, há uma semana, Sinhá Laura está estendida em cima de uma cama, inchando com uma doença desconhecida. Antes Arminda era alegre e tomava banho no rio, nadando como um peixe, excitando os homens com o espetáculo do seu corpo de menina. Agora apenas trabalha porque se não trabalhar morre de fome.

    Na terça-feira nem no trabalho apareceu. Totonha, que veio da casa da doente, avisou:

    – A velha esticou as canelas...

    Os homens pararam o trabalho por um minuto. Um disse:

    – Já estava na idade...

    – Está inchada que nem um boi... Faz até medo...

    – Que doença mais esquisita.

    – Ninguém me tira que aquilo foi espírito ruim...

    Zequinha vinha chegando. Os homens se curvaram de novo sobre as folhas de fumo. Totonha falou com ele e depois avisou:

    – Eu vou ficar com a menina. De noite tem senti nela...

    O negro Filomeno segredou para Antônio Balduíno:

    – Quem me dera ser eu. Sozinho com ela, era um Deus nos acuda.

    O Gordo bebeu um trago de cachaça porque tinha muito medo de defunto. E, na hora do almoço, ficaram relembrando histórias de defuntos conhecidos, contando casos de doenças e de mortes. O negro Filomeno não falava. Estava com um plano na cabeça. Pensava em Arminda, na frescura da sua carne moça

    Os fifós pareciam andar. A luz vacilante se aproximava da casa de taipa. Não se viam as pessoas. Somente aquela luz vermelha que bruxuleava e mudava de lugar como uma alma penada. Na porta, Totonha recebia as visitas que vinham fazer a sentinela da morta. E distribuía abraços e recebia pêsames como se fosse parente de Sinhá Laura. Estava com os olhos úmidos e narrava os sofrimentos da defunta:

    – Coitada, gritava tanto... Também com aquela doença danada...

    – Aquilo era espírito...

    – Deu de inchar, ficou com a barriga estofada...

    – Agora descansou...

    Uma mulher se benzeu, O negro Filomeno perguntou:

    – E Arminda?

    – Tá lá dentro chorando... Coitadinha, ficou sem ninguém no mundo...

    Ofereceu cachaça que todos tomaram.

    No único cômodo da casa dois bancos se alinhavam ao lado de uma parede. Alguns homens e mulheres, de pés descalços e cabeças descobertas, velavam a morta. Do outro lado da sala uma cadeira velha onde Arminda sentada chorava um choro sem lágrimas, intercalado de soluços altos. Tinha os olhos tapados com um lenço vermelho. Os recém-chegados foram até onde ela estava e apertaram-lhe a mão sem que ela se movesse. Não diziam palavra.

    E no meio da sala, estendido em cima de uma mesa, que era nos dias comuns cama e mesa de jantar, estava o cadáver, inchado, parecendo querer estourar. Uma coberta de chitão, de grandes flores amarelas e verdes, cobria o corpo, deixando do lado de fora o rosto enrugado com a boca torcida e os pés enormes e achatados de dedos abertos. Os homens ao voltar espiavam o tosto da morta e as mulheres se benziam. Uma vela estava colocada perto da cabeça da defunta e despenhava a sua luz baça sobre o rosto parado, ainda torcido numa expressão de sofrimento. E aqueles olhos parados pareciam olhar fixamente os homens e as mulheres, que agora estavam todos sentados nos bancos e cochichavam. Uma garrafa de cachaça passou de mão em mão. Bebiam pelo gargalo em grandes tragos. Dois homens saíram para fumar lá fora. Zequinha chegou e passou a mão na cabeça de Arminda. Então começaram as orações puxadas pelo Gordo:

“Senhor, tomai essa alma”.

    Os presentes respondiam em coro:

    “Orai por ela”.

    A garrafa de cachaça corria pela roda. Bebiam pelo próprio gargalo. A vela brilhava sobre o rosto da morta, que cada vez inchava mais. O coro vinha como um lamento:

    “Orai por ela”.

    Antônio Balduíno levantou os olhos e espiou Arminda. Ela chorava no outro lado da sala. Mas o rosto inchado da defunta impede que ele veja direito.

    Também o negro Filomeno olha para a órfã. Antônio Balduíno bem vê que os olhos do negro estão pousados nos seios de Arminda que sobem e descem com os soluços que lhe sacodem o colo. E Antônio Balduíno tem raiva. Murmura para o vizinho:

    – Miserável do negro nem respeita os mortos.

    Mas ele também olha os seios que se movimentam por baixo do vestido. De repente, o negro Filomeno desvia o olhar e espia as pessoas que estão na sala. Ele está com medo, todos estão vendo. De que será que tem medo o negro Filomeno?, pensa Antônio Balduíno. E olha quase risonho o decote do vestido de Arminda. A luz do fifó bate em cima do começo dos seios. E quer entrar... Sim, a luz do fifó quer entrar pelos seios de Arminda como uma mão. Lá está ela tentando... Antônio Balduíno segue a cena com os olhos brilhantes. Afinal, parece que a luz conseguiu entrar pelo decote. Naturalmente agora está amassando os seios que sobem e descem. Antônio Balduíno sorri e quase murmura:

    – Conseguiu, a peste...

    Mas agora ele também retira o olhar e está tremendo. Pois não é que a morta fixou nele os olhos parados com uma expressão de ódio? Antônio Balduíno olha o chão, espia as mãos grossas, mas sente que o olhar raivoso da defunta o acompanha. Pensa:

    – Por que o diabo desta velha não toma tento com o peste do Filomeno que quer comer a filha dela?

    Se recorda que ele também tem más intenções e foge do olhar da velha. Olha para o Gordo cuja boca se abre e se fecha cantando as rezas de defuntos.

    Quer ver se pensa numa mosca entrando na boca Gordo. Mas a morta está olhando para ele e Filomeno está espiando os seios de Arminda.

    – Diabo de velha que ainda tá tomando conta da filha... Não já morreu...

    – Hein? – fez o vizinho...

    – Não disse nada...

    O Gordo está cantando. Antônio Balduíno repete como todo mundo:

    “Orai por ela’

    Aquela mosca é capaz de entrar na boca do Gordo. Ia entrando, o Gordo fechou a boca. Lá vai ela de novo. Parou no nariz. Está esperando que o Gordo abra novamente a boca. É agora. Mas a mosca levantou vôo e foi pousar em Arminda, no outro lado, O negro Filomeno se remexeu na cadeira. Antônio Balduíno fica imaginando como serão os seios de Arminda fora do vestido. Olhe que bicos grandes que eles têm. Chegam a formar uma bola no vesti do. A mosca está sentada bem em cima de um deles, exatamente no esquerdo. Ela não usa porta-seios, está logo se vendo. Os seus seios serão duros e carnudos... Por que será que ela chora? – pensa Antônio Balduíno... Tem uns olhos grandes, pestanudos. Com o soluço que agitou seu peito o seio quase pula fora do vestido. E a mosca fugiu. Foi pousar em cima do rosto da defunta. Como ela inchou! Quase não cabe mais na mesa. E o rosto então está enorme, a pele esverdeada e os olhos esbugalhados. Mas por que ela olha para Antônio Balduíno? O que é que ele está fazendo? Ele nem está olhando para Arminda. O negro Filomeno sim que não tira os olhos dela. Então por que a morta não o larga, não o deixa sossegado, olhando para onde quiser? E como está inchada, disforme. A mosca sentou em cima do nariz. Serão bagas de suor que brilham no rosto da defunta? Naturalmente ela quer oração. Antônio Balduíno, em vez de estar rezando com os outros, está é espiando a filha dela. E o negro faz coro:

    “Orai por ela”

    Foi gozado porque ele disse tão alto que assustou Filomeno que repetiu tardiamente

 “Orai por ela”.

    Não era a hora. O Gordo já estava dizendo outra coisa. passa a garrafa de cachaça. Antônio Balduíno tomou um gole grande e tentou espiar novamente Arminda. Mas a morta está implicando com ele. Agora incharam tanto os olhos que quando Balduíno espia não consegue ver mais que metade do rosto de Arminda. Vê bem, vê muito bem mesmo, os olhos da defunta que o acompanham com ódio. Será que ela adivinhou que ele vai pedir água à Arminda só para que ela vá com ele para a outra sala, onde ele poderá agarrá-la? Os mortos sabem tudo. Ela já soube com certeza e não o larga mais. Ele está vendo o rosto medonho da velha morta. Ninguém tem um rosto daquele. O rosto de Arminda é risonho. Mesmo quando ela está chorando, como agora, tem um rosto alegre. Por que será que existem pessoas assim? O rosto da defunta está verde e cheio de bagas de suor. Está pegajoso. Antônio Balduíno esfrega as mãos uma na outra, querendo se livrar da visão. Espia para o teto. Mas sente que os olhos da morta estão fitos nele. Ficou muito tempo espiando as traves e as telhas pretas. De repente baixou a vista e olhou os seios de Arminda. Sorriu satisfeito: tapeou a velha morta. Mas foi pior, foi muito pior: ela ficou com a boca torcida de raiva, esbugalhou ainda mais os olhos. Tem uma mosca pousada na sua boca. Parece uma ponta de cigarro, preta da saliva. Antônio Balduíno tenta acompanhar as orações. E quando pensa que a morta não está mais olhando para ele, abre a boca para pedir água a Arminda. Mas lá estão os olhos da defunta bem postos em cima dos seus, num ar de desafio. Reza de novo. Bebe cachaça. Quantas vezes já teria passado por ele a garrafa? Essa está no finzinho. Quantas terão ainda que abrir? Numa sentinela se gasta muita cachaça... E agora que a morta não está espiando, Antônio Balduíno se levanta devagarinho, circunda a mesa onde está o cadáver, toca no ombro de Arminda:

    – Venha me dar um gole d’água.

    Ela se levanta. Vão para o quintal, no fundo onde está uma tina d’água e um caneco. Arminda se curvou para encher o caneco e pelo decote do vestido Antônio Balduíno vê os seios. Então segurou nos braços da menina e girou com ela que ficou de frente para ele, olhando-o espantada. Mas ele não vê nada a não ser aquela boca e aqueles seios que estão na sua frente. Vai apertar o abraço e a sua boca se dirige para a boca de Arminda, que ainda não compreende, quando os olhos da defunta chegam e se colocam entre os dois. A velha Laura deixou seu lugar em cima da mesa e se meteu entre eles. Ela está tomando conta da filha. Os mortos sabem tudo e ela sabia o que Antônio Balduíno pretendia fazer. Está ali entre os dois olhando o negro. Ele solta Arminda, põe as mãos nos olhos, derruba o caneco com água e entra na sala como um cego. A morta inchou ainda mais na mesa.

    O negro Filomeno ri como quem compreendeu a idéia de Antônio Balduíno ao pedir água. Ele vai fazer o mesmo com certeza. Que besta – pensa Balduíno – ele está julgando que vai levar alguma vantagem. Quando chegar lá encontra a finada espiando para ele. A finada sabe de tudo, ela adivinha tudo... Porém os olhos da morta não acompanharam Filomeno. Será que ela vai deixar aquele negro imundo tocar em Arminda? Ele se levantou e pediu água a Arminda e a morta não fez nada. Antônio Balduíno murmura para o rosto impassível:

    – Vá! Vá! Não está vendo aquilo? Não está vendo? Aquele negro é malvado.

    Mas a morta não atende ao aviso. Parece até que ela está rindo. Ouve-se um ruído lá dentro. Arminda volta para a sala e agora chora um choro diferente. O vestido está machucado no lugar dos seios. O negro Filomeno entra sorrindo. Antônio Balduíno torce as mãos com raiva, levanta e diz alto para o Gordo:

    – Você não disse que ela é uma menina de doze anos? Cadê? Cadê a morta que não fez nada...

    Zequinha diz:

    – Tá bêbado..

    Alguém cerra os olhos da morta.

   

Fuga

    No cinto, por baixo do paletó, Antônio Balduíno traz dois punhais.

    Zequinha correu para cima dele com a foice na mão. Se atracaram e rolaram no barro duro da estrada. Zequinha caiu e a foice voou longe. Quando ele se levantou e correu novamente para Antônio Balduíno, viu o punhal na mão do negro. Parou irresoluto. Ficou calculando o golpe. Depois deu um pulo. Antônio deu um passo para trás, a sua mão se abriu e o punhal caiu. Zequinha riu com os olhos e rápido como um gato se abaixou para apanhar a arma do inimigo. E enquanto ele se abaixa, Antônio Balduíno tira do cinto o outro punhal que finca nas costas de Zequinha. Antônio Balduíno traz sempre dois punhais no cinto... E a sua gargalhada assusta os homens mais que a luta, que a punhalada e o sangue.

    Era de noite e o negro ganhou o mato.

    Abre caminho pelo mato. Corre entre as árvores que se fecham. Há bem três horas que ele corre assim como um cão perseguido pelos garotos malvados. No silêncio do mato os grilos se fazem ouvir. Corre sem rumo, perdido, varando o mato, com os pés doidos evitando as estradas, se rasgando nos espinhos. A sua calça de mescla está lanhada de cima a baixo. Ele nem viu quando ela se rasgou. E o mato sem fim se estende na sua frente. Não vê nada na escuridão. Agora pára. Ouve ruídos de matos quebrados. Quem vem lá? Já o perseguirão? Fica atento, a mão na navalha, única arma que lhe resta. Está atrás de uma árvore e é difícil que seja visto. Sorri pensando que o perseguidor que passar primeiro dormirá para sempre. A navalha está aberta em sua mão. E rápido como uma visão passa na frente um habitante daqueles matos. Que bicho teria sido? Antônio Balduíno não o reconheceu sequer e ri do medo que teve. Continua a caminhada, abrindo caminho com as mãos. Cai sangue do seu rosto. O mato é implacável para com os que o violam. Um espinho rompeu o rosto do negro Antônio Balduíno. Mas ele não vê nada, não sente nada. Sabe apenas que deixou um homem caído nas plantações de fumo. E nas co’stas deste homem estava um punhal que era seu, que fora manejado pela sua mão. Antônio Balduíno não tem remorsos do que fez. Zequinha foi o único culpado. Foi ele quem fez tudo para aquela briga. Ele o perseguia muito. Aquilo tinha que acontecer... E se ele não viesse com a foice na mão, Antônio Balduíno não puxaria o punhal.

    O mato é ralo mais adiante. Através das folhas o negro vê as estrelas que brilham. O céu está claro. Farrapos de nuvens brancas correm. Se estivesse ali uma mulata, Antônio Balduíno diria que os dentes dela se pareciam com as nuvens brancas do céu. Ele pára e admira o céu da noite estrelada. Senta. Está numa clareira e não se recorda mais da briga. Se dos Reis estivesse ali... Mas dos Reis foi com uma família para São Luís do Maranhão. Foi pelo mar, num navio negro cheio de luzes. Se ela estivesse ali eles se amariam no silêncio do mato. O negro olha as estrelas. Quem sabe se dos Reis não está olhando estas mesmas estrelas? Estrela está em todo lugar. Serão as mesmas? – pensa Antônio Balduíno. Dos Reis está vendo esta estrela e Lindinalva também. Quando pensa em Lindinalva se aborrece. Por que está pensando nela? Ela é branca, tem sardas no rosto, e não dá ousadia a um negro como ele. É melhor pensar em Zequinha, estendido no barro com um punhal nas costas, que pensar em Lindinalva que odeia o negro. Se ela soubesse que ele estava fugido, sem dúvida contaria a polícia. Dos Reis o esconderia, mas Lindinalva não. Antônio Balduíno abre os lábios grossos num sorriso porque se lembra que Lindinalva não sabe de nada e não poderia denunciá-lo. Fica irritado contra as estrelas que o fazem pensar em Lindinalva. Viriato, o Anão, tinha raiva das estrelas. Uma vez lhe dissera. Quando? Antônio Balduíno não se recordava. Viriato quase que só conversava sobre a sua tristeza de ser sozinho. E um dia entrou pelo caminho do mar, como aquele outro velho que foi retirado da água numa noite em que os homens do cais carregavam um navio sueco. Será que Viriato encontrou sua casa? O Gordo diz que quem se mata vai para o inferno. Mas o Gordo é maluco, não sabe o que diz. Antônio Balduíno está com saudades do Gordo. O Gordo também não sabe de nada, não sabe que ele matou Zequinha com uma punhalada nas costas. Fazia já quinze dias que o Gordo se fora, cheio de saudades da avó que não tinha na Bahia quem lhe desse comida na boca. O Gordo é muito bom, é incapaz de dar uma punhalada em alguém. Nunca foi homem para uma briga. Antônio Balduíno se lembra perfeitamente dos dias de infância mendigando na Bahia. O Gordo sabia pedir esmolas como nenhum. Mas para brigar não servia. Felipe, o Belo, ria dele. Era bonito Felipe, o Belo. Quando ele morreu debaixo do automóvel, no dia do seu aniversário, todo mundo chorou. O seu enterro pareceu enterro de rico. As mulheres da Rua de Baixo levaram flores. Uma francesa velha chorava. Era a mãe de Felipe. E tinham vestido nele uma roupa bonita de casimira e tinham posto uma gravata nova. Felipe devia ter ficado contente. Ele era elegante, gostava de uma gravata... Antônio Balduíno brigou por causa dele uma vez. Sorri ao se recordar do fato. Fora uma surra bonita que dera no Sem Dentes. Sem Dentes também viera com um canivete em cima dele e ele não puxara arma nenhuma. Com Zequinha ele puxara o punhal. Agora ele está certo que não gostava de Zequinha, que implicara com aquela cara desde o primeiro dia. E se não fosse ele que o apunhalasse, outro o apunhalaria. O negro Filomeno também tinha uma sede danada em Zequinha. E tudo aquilo por causa de Arminda. Para que Zequinha se amigou com ela? Eles tinham chegado antes. Na noite da sentinela Antônio Balduíno só não a levou para casa porque a morta não o largava com aqueles olhos inchados. E o negro Filomeno não tinha amassado os peitos dela? Então para que Zequinha se meteu e levou a menina? Era uma menina de doze anos, o Gordo sempre disse. Uma menina de doze anos. O Gordo queria dizer que ela não era mulher ainda, que fazer aquilo com ela era uma malvadez. Mas Zequinha fez, bem que merecia uma punhalada... Ë verdade que se ele não fizesse o negro Filomeno faria ou mesmo Antônio Balduíno. Sim, ele sabe que não foi por isso que cravou o punhal nas costas de Zequinha. Ela era uma menina de doze anos... Mas ele matou o capataz foi porque ele ficou com ela quando o negro a queria no seu jirau. Ela tinha doze anos mas já era mulher... Já seria mesmo? E se o Gordo tivesse razão? Se ela fosse uma menina e aquilo uma malvadez? Então Zequinha não faria mais, porque estava estendido no barro com um punhal nas costas. Porém de que valeu? Agora o negro Filomeno já a levou para casa, com certeza. Essa é a lei das plantações de fumo. Mulher é bicho raro e quando uma fica sem homem encontra logo outro que a leva para casa. A não ser que ela prefira ir para as ruas de mulheres da vida em Cachoeira, em São Félix, em Feira de Santana. Aí sim que seria uma malvadez. Porque ela é uma menina de doze anos e todos a quererão. Depois ela ficará velha e tomará cachaça, não lavará mais os cabelos, seus seios murcharão, terá doenças ruins, terá quarenta anos no dia que completar quinze. Talvez tome veneno. Outras se jogam no rio nas noites escuras... Era melhor que ela ficasse com Zequinha, colhendo fumo nos campos. Mas Zequinha está apunhalado... Antônio Balduíno ouve vozes através do mato. Se aproxima mais para ouvir. Ainda é um ruído indistinto. Serão homens que passam na estrada? Mas a estrada está longe, está do outro lado, o que existe ali é uma simples picada. Antônio Balduíno se aproxima mais. Agora ouve. Os homens estão próximos, separados dele apenas por uma fita de mato. São os homens da fazenda. Estão todos com repetições e fumam sentados na picada. Estão atrás do negro Antônio Balduíno que apunhalou o capataz. E não sabem que o negro está ali junto deles, quase rindo. Porém treme quando ouve os homens dizerem que ele está cercado na capoeira e que ou morrerá de fome, ou sairá para ser preso. Antônio Balduíno se afasta vagarosamente, evitando os ruídos, e se interna novamente no mato. Do outro lado tem a estrada. Mas nela haverá homens também como em volta de toda a capoeira. Ele está cercado, está acuado como um cão danado. Ou morrerá de fome, ou será preso como assassino. Os grilos irritam com o seu ruído. Na casa de Zequinha está havendo sentinela. E o negro Filomeno – pensa Antônio Balduíno – o negro Filomeno estará ali armado de repetição ou estará na sentinela olhando para Arminda pronto para levá-la para casa. Se ele pudesse apunhalar também o negro Filomeno... Mas ele está cercado como um cão danado, está acuado na capoeira e começa a sentir fome e a sentir sede...

    Os pés estão doídos da caminhada. Ele poderia ter dado uma surra unicamente em Zequinha. Pois ele não era Baldo, o boxeur? Não derrubara tantos outros no Largo da Sé na Bahia?.. Sim, ele poderia ter derrubado Zequinha a socos. Mas ele viera com uma foice. O homem não briga de foice e traição se paga com traição... Por isso puxara o punhal e o deixara cair para cravar o outro nas costas de Zequinha. E quem ganhara com tudo isso fora Filomeno, que agora devia estar na sentinela olhando para Arminda... Ele mataria Filomeno se pudesse ir até a casa de Zequinha. O cadáver estaria estendido no jirau com a ferida nas costas. Filomeno pôs, com certeza, seu punhal no cinto e depois porá Arminda na sua casa. Ele devia ter matado era Filomeno. Agora estava acuado na capoeira, cercado de todos os lados. Se não fosse a sede que sentia tudo iria bem... Mas a sua garganta está seca. Não lhe importam os pés doídos, o rosto que sangra rasgado pelos espinhos, a roupa retalhada, Só lhe importa a garganta que arde de sede. Gostaria de comer também. Naquele mato não tem frutas. Não é época de goiabas, as goiabeiras não têm um só fruto. Uma cobra passa silvando. Os grilos fazem um ruído insuportável. Agora ele não vê mais as estrelas que o mato é cerrado. E a sede aumenta. Fuma. Felizmente os cigarros e os fósforos estavam no bolso da calça. Que horas serão? Meia-noite talvez, talvez seja mais tarde. O cigarro faz esquecer a sede e a fome. Desde quando ele fuma? Nem se recorda mais. Ainda no Morro do Capa-Negro ele já fumava. Apanhou por causa disto. Se sua tia Luísa o visse agora, que diria? Ela dava.lhe surras mas gostava dele. Enlouqueceu, coitada, de tanto carregar mingau e munguzá para vender no terreiro. Na frente da sua casa, no morro, homens se reuniam para conversar. Um dia veio aquele ho mem de Ilhéus que contou histórias de jagunços corajosos. E hoje Antônio Balduíno estava acuado como se fosse também um jagunço célebre. Se o homem de Ilhéus o visse com certeza o admiraria também e juntaria a sua história àquelas que contava pelas noites adentro. Ele também quisera ter um ABC. Pensava que aquele homem calvo, que aparecera na macumba de Jubiabá, escreveria um dia o seu ABC. O Gordo disse que a vida do homem calvo era escrever os ABC dos homens mais corajosos que conhecia e que para isso vivia correndo o mundo montado num cavalo alazão. Antônio Balduíno já merecerá um ABC? Ele não o sabe. Talvez que o homem de Ilhéus conte um dia a sua história a homens e meninos de outro morro que o admirarão e pensarão em ser como ele. Ah! mas se ele sair desta capoeira, onde está cercado por homens armados de repetição, merecerá ser cantado num ABC. Quantos serão os perseguidores? Se vieram todos da fazenda fazem mais de trinta. Mas não vieram todos com certeza. O negro Filomeno não veio, ficou lá com Arminda, dizendo mentiras, prometendo coisas. Ele conhece aquele negro... Negro que quase não fala é negro ruim... Aperta a navalha. Com aquela arma somente, ele atacaria Filomeno se o visse agora. Diriam isso também no seu ABC. Somente com uma navalha atacou e matou um jagunço que trazia uma repetição.

    Atira fora o cigarro inútil. Diabo, a garganta está seca, o estômago arde, e sente uma dor violenta no rosto. Passa a mão e toca na ferida feita pelo espinho. Agora que o sangue deixou de correr ela está doendo. É um talho grande, lanhou todo o seu rosto. Também seus pés sangram, as mãos estão em feridas. E a sede que o tortura, os homens que o cercam, os grilos que fazem ruído... Vê novamente as estrelas agora no mato ralo. Se ainda houvesse água.

    Se chovesse... Mas não há nuvens negras no céu. Somente farrapos de nuvens brancas que o vento carrega. E a lua que saiu, a grande lua alva que está bonita como nunca. Que vontade que ele tem de estar no cais da Bahia com o seu violão, com aquela mulher que tinha uma voz masculina, cantando uma valsa, uma coisa bem velha que falasse em amor... Depois rolariam na areia do cais, os corpos embolados... Ah! como era bom. Aquela estrela parece a lua da Lanterna dos Afogados. Beberia um trago, ouviria a música do velho cego que canta ao violão, conversaria com o Gordo e Joaquim. Talvez até Jubiabá aparecesse e ele lhe pediria a bênção. Pai Jubiabá também não sabe que ele está acuado na capoeira. Não sabe que ele matou Zequinha. Mas Jubiabá compreenderia e passaria a mão na sua cabeça e depois falaria em nagô. Não, ele não diria que o olho da piedade vazou, que ficou somente o olho da ruindade... Por que ele havia de dizer isso? Antônio Balduíno ainda tem bem aberto o olho da piedade. Matou Zequinha, matou... Mas foi porque ele estava andando com uma me nina de doze anos... Uma menina, não era mulher feita... Que pergunte ao Gordo se quiser. Uma menina, tão menina que a mãe quando morreu tomava conta dela... Pergunte ao Gordo, se quiser... Mas é inútil mentir a pai Jubiabá. Ele sabe tudo, que ele é pai-de-santo e tem força junto a Oxalá... Sabe tudo como a velha defunta... Não, ele matou porque queria Arminda para ele... Ela tinha doze anos, mas já era mulher... O Gordo não entende destas coisas... Como é que alguém pode acreditar no Gordo... O Gordo não entende nada de mulheres, o Gordo só entende de rezas. E depois o Gordo é muito bom, não tem olho da ruindade. Pai Jubiabá deve é fazer um feitiço para matar o negro Filomeno... O negro Filomeno é ruim, ele vazou também o olho da piedade... Um feitiço para matar ele, um feitiço forte que tenha cabelo de sovaco de mulher e penas de urubu... Por que será que pai Jubiabá balança a cabeça? Ah! ele está dizendo em nagô que Antônio Balduíno também vazou o olho da piedade... Ele está dizendo, sim... Antônio Balduíno puxa a navalha com a garganta seca de sede. Se Jubiabá repetir ele o matará também. E depois passará a navalha no próprio pescoço. Vê, no céu azul, o negro velho. Não é a lua, não. É Jubiabá. Ele está repetindo, ele está repetindo... E Antônio Balduíno se precipita de navalha em punho e quase bate nos perseguidores que estão conversando na estrada. Jubiabá desapareceu. Balduíno tem sede. E volta correndo para o mato cerrado, onde não vê a lua, não vê as estrelas, não vê o cais da Bahia com a Lanterna dos Afogados. Se estira no chão, estende as mãos para o lado onde está a estrada:

    – Amanhã eu mostro se não fujo... Eu sou é macho...

    O rosto dói e ele tem sede. Mas quando cerra os olhos dorme logo e não tem sonhos.

    Acorda com os passarinhos que trinam. Olha tudo em redor e não compreende como se encontra ali e não num jirau nas plantações. Mas a sede que aperta a sua garganta e o talho que dói no rosto lembram-lhe os fatos da véspera. Ele está acuado numa capoeira, ele matou um homem na véspera. E está com sede, uma sede doida. O rosto inchou durante a noite. Passa a mão no talho:

    – Espinho venenoso Ainda essa porcaria...

    Fica de cócoras pensando no que fazer. Talvez tenham deixado pouca gente no cerco durante o dia... O rosto dói. Tem sede. Sai de mansinho, evitando outros espinhos e evitando de fazer barulho. Agora com a claridade do dia se orienta melhor. A estrada está à sua direita. Mas ele se dirige para a picada onde deve ter menos gente. Se não fosse a sede ele não se importaria. Não sente fome agora. Só que o estômago está doendo. Mas é suportável. A sede é que é ruim, parece que aperta a garganta como uma corda. Não, ele precisa passar nem que seja para ser preso. Já não pode de sede. Pode lutar até que lhe dêem um tiro que acabe com aquilo. Engraçado é que ninguém gostava de Zequinha e todos gostavam dele, Mas o patrão mandou, com certeza, e quem não for cercar o criminoso será despedido do trabalho... Se tiver gente na picada vai haver briga... Ele vai morrer mas levará um:

    – Um vai com eu.

    Ri tão alto que parece alegre. E está alegre, sim, porque resolveu acabar com aquilo e lutar pela vida. A coisa que ele mais ama é brigar. Só agora é que o sente. Nasceu para brigar, para matar e um dia morrer de um tiro nas costas, de uma punhalada no peito, de uma navalhada talvez. Os que voltarem contarão que ele morreu como um homem macho de verdade, com a navalha na mão. E quem sabe se não contarão aos filhos e aos amigos a história do Antônio Balduíno, que foi mendigo, boxeur fazedor de sambas, desordeiro, que matou um homem por causa de uma menina, e que morreu na frente de vinte, mas se defendendo? Quem sabe?

    Depara com a poça de água, bebe em grandes goles e lava a ferida do rosto.

    Água! Água! E ele que nunca tinha reparado como a água era gostosa! Melhor que cerveja, melhor que vinho, melhor mesmo que cachaça. Que o cerquem agora, que o deixem acuado como um cão. Que lhe importa! Tem água para beber e para lavar a ferida do rosto que dói e está inchado. Se estira à beira da poça, e descansa confiante, sorridente, feliz. Durante a noite, com a escuridão, ele não vira as poças de água. São várias. Água barrenta, suja, mas gostosa como quê. Passa muito tempo deitado, matutando. Quando fugir para onde irá? Poderá entrar pelo sertão, se acoitar numa fazenda, tratar de bois. Tem tanto assassino por aí... Se o perseguissem muito entraria num bando de cangaceiros e iria viver aquela vida que ele sempre admirou. O pior é que agora está sentindo fome. Talvez encontre alguma fruta como encontrou água. Sai pelo mato examinando as árvores. Não encontra nada. Mas pelo correr do dia talvez mate um animal e o coma. Ele tem fósforo, fará fogo. Não, não fará fogo que isso chamaria a atenção dos homens que estão na estrada a tocaiá-lo. Lembra-se então de ver se ficaram muitos. Toca a mão no rosto que cada vez dói mais. Está feio aquilo. Com certeza era espinho venenoso.

    Pai Jubiabá sabe remédios milagrosos para feridas assim. São folhas, folhas do mato. Ali deve ter destas folhas. Ele olha o chão. Mas quais servirão? Só pai Jubiabá sabe, que ele sabe tudo... Chega perto do mato que o separa da picada. Espia. Lá estão os homens. Estão todos, nenhum foi trabalhar... O patrão está mesmo disposto a liquidar o negro Antônio Balduíno. Deu folga aos trabalhadores. Eles comem carne-seca e conversam. Antônio Balduíno volta devagar. Botou a navalha no cinto novamente. Vai pensativo mas de repente ri:

    – Comigo não levam vantagem...

    O pior é não ter o que comer. E de noite ficar sozinho. Ele nunca teve medo de ficar sozinho. Mas hoje ele não quer. Fica pensando besteiras, vendo os mortos conhecidos, vendo pai Jubiabá, os lugares por onde andou e vendo Lindinalva. Se ele não visse Lindinalva não tinha nada. Fica também pensando em Arminda que deve estar amigada com o negro Filomeno. Mas o negro não tem culpa. Se ele não ficar com Arminda outro qualquer ficará. Não há mulheres nas plantações de fumo. Por isso era que Ricardo agitava tanto o jirau durante as noites. Como se arranjará ele agora que não tem mãos? Vive em Cachoeira pedindo esmola. Terá mulher? Quem sabe se não terá uma que trate dele... Ele bem que merecia, era um mulato bom, camarada para tudo... Se ele estivesse na fazenda estaria cercando Antônio Balduíno? Tem uma névoa em frente aos seus olhos. Isso é fome, ele já ouviu dizer. E sai desesperado em busca de comida...

    Quando a noite chegou ele fumava o último cigarro e quase não via na frente dos olhos. O rosto inchado doía de enlouquecer.

    Anda para o lado das poças d’água cambaleando como um bêbado. Está com o almoço da véspera, pois nem havia jantado na hora da briga. Vai cambaleando e vão com ele muitos conhecidos. Onde foi que ele á viu aquele homem magro que está gritando:

    – Quedê Baldo, o derrubador de brancos?

    Está gritando e está rindo. Onde foi que ele o viu? Agora se recorda. Foi naquela luta de boxe contra um alemão que ele batera. Sorri. Já uma vez aquele homem disse isso e no entanto ele vencera o branco, o deixara estendido no tablado. Poderá atravessar o cerco também e alcançar a liberdade. Mas por que é que o Gordo está rezando a oração de defunto? Ele não morreu ainda... Por que então todos respondem?

“Orai por ele.”

    Por que respondem? Não vêem que aquilo faz mal ao negro Antônio Balduíno que está com fome e traz no rosto um talho feio onde os mosquitos pousam? Continuam. Antônio Balduíno deitou junto de uma poça d’água. Bebeu. Depois ficou olhando o cortejo que o acompanha. Estende as mãos. Está pedindo que eles se afastem, que o deixem morrer em paz.

    – Vão embora! Vão embora!

    Eles não vão. A velha Laura, mãe de Arminda, chegou neste momento. Veio com os olhos inchados, o corpo inchado, a língua de fora. Ficou rindo dele.

    – Vá para o inferno! Vá para o inferno!

    Levanta. Vão todos atrás dele. Até o Gordo que era tão seu amigo. Jubiabá diz que ele vazou o olho da piedade. É verdade sim, é verdade. Mas que o deixem em paz que já vai morrer e quer morrer como um homem e assim não pode, e assim não pode.

    Rezam as orações de defuntos... Ele tropeça numa raiz e cai.

    Deixou-se ficar estendido. E quando se levanta traz uma resolução no olhar.

    A estrada está à sua direita. Marcha para lá a pés firmes. Vai ereto como se não tivesse fome, como se há dois dias não estivesse sem ver vivos, vendo fantasmas somente, e leva a navalha na mão:

    – Um vai com eu...

    Porém a sua aparição súbita na estrada põe os homens atônitos. Ele ainda tem força para derrubar um que está na sua frente. E atravessa o grupo com a navalha brilhando na mão.

    Desaparece na escuridão. Ouvem-se tiros ao acaso.

   

Vagão

    – Já tava criando bicho.

    O velho tratava do rosto de Antônio Balduíno, que inchara com o talho e aparecia disforme e vermelho como uma maçã. Botou em cima da ferida ervas misturadas com terra. Jubiabá faria o mesmo.

    – Obrigado, meu velho... Você é bom...

    – Vai fechar num instante. Essa folha é santa, faz milagre...

    O negro chegara ali extenuado da corrida pela mata que margeava a estrada, fugindo das plantações de fumo. O velho morava num casebre imundo, perdido no mato, com uns pés de mandioca na frente. Deu-lhe comida, deu-lhe cama, tratou da ferida e depois explicou que Zequinha não morrera por um triz, mas que o patrão queria pegar Balduíno para dar uma surra que ficasse para exemplo.

    Antônio Balduíno riu:

    – Comigo fia fino, meu tio... Eu tenho o corpo fechado...

    Bebeu um caneco de água:

    – Agora vou me botar no mundo Se um dia puder lhe pago, meu velho.

    – Se botar no mundo pra quê? Assim o talho não seca, homem de Deus... Pode se arriar... Fique acoitado aqui... Ninguém desconfia, eu sou homem pacato...

    Antônio Balduíno ficou três dias esperando o talho fechar. Comia da carne do velho, bebia a sua água, dormiu no seu jirau

    Despede-se do velho:

    – Você é bom...

    Toma o leito da estrada de ferro. Quando chegar a Feira de Santana arranjará um caminhão que o levará para a Bahia. E vai feliz por causa da aventura que teve, da luta que sustentou, do cerco que furou. Ele é invencível... É o homem mais corajoso daquelas bandas. Ali no céu estão as estrelas que foram testemunhas de como ele lutou. E se os homens que o cercavam não tivessem ficado apalermados com a sua coragem ele levaria um consigo para as estrelas, para o grande céu azul. Brilharia lá com a sua navalha na mão... Seria visto por dos Reis, pela mulher de voz masculina, por Lindinalva, e possivelmente seria descoberto pelo Gordo que sempre quis ter uma estrela... Enganaria Mestre Manuel que havia de pensar que era a luz de um saveiro que queria pegar corrida com o Viajante sem Porto... Ouviria Maria Clara cantar seus sambas. Tudo isso aconteceria se os homens não tivessem ficado bestificados quando ele apareceu na estrada com a navalha na mão e um talho no rosto. Cairiam em cima dele e ele levaria um. Talvez furassem todo o seu corpo com tiros... Mas os homens que morrem lutando e que levam um consigo viram estrelas no céu e têm um ABC na terra que canta os seus feitos... Ele seria uma estrela vermelha com uma navalha na mão. Jubiabá sempre disse que os homens corajosos viram estrelas... E o negro Antônio Balduíno solta a sua gargalhada que silencia os grilos e assusta os animais nas tocas. Um cheiro de folhas se espalha na noite silenciosa. Passa um vento que anuncia chuva. As folhas se dobram e exalam perfume. Mais adiante na estrada há qualquer coisa negra e uma lanterna que brilha. Vozes de homens discutem. É um trem que parou. Naturalmente leva para Feira de Santana os passageiros do navio que chegou hoje em Cachoeira vindo da Bahia. Os homens examinam uma roda. Antônio Balduíno contorna pelo outro lado e chega perto de um vagão de carga. Se a porta estiver aberta irá de trem. Empurra a larga porta com toda a força e ela cede. Está aberta, sim. Pula como pulam os animais, rápido e sutil. Fecha a porta por dentro e só então nota que amedrontou uns vultos que se escondem no fundo do vagão entre os rolos de fumo:

    – Ué, gente... Eu sou de paz... Também não gosto de pagar passagem.

    E ri.

    A mulher estava grávida. A barriga ainda não estofara muito mas se notava perfeitamente a gravidez. Um dos dois homens era velho e segurava um bordão. Fumava quase dormindo. Na escuridão do carro quando a brasa do cigarro iluminava, o bordão parecia uma cobra pronta para o bote. O outro vestia calças de soldado e um paletó velho de casimira. Não tinha barba mas tentava ostentar um bigode com raros fios que nasciam em cima do lábio. Passava constantemente a mão no bigode imaginário enquanto conversava. “Um menino”, pensou Antônio Balduíno.

    O trem estava parado, era por isso que eles se conservavam em silêncio. Houvera um desarranjo qualquer, coisa comum naqueles trens. E eles há meia hora que se conservavam em silêncio esperando que o trem partisse. As vozes poderiam ser ouvidas lá fora e o chefe do trem havia de encrencar com aqueles viajantes clandestinos. O velho abriu o olho e disse a Antônio Balduíno quando ele falou:

    – Cala o bico, negro, se quiser viajar... Se não jogam a gente aí na estrada.

    E mostrou com os olhos a mulher grávida. Antônio Balduíno ficou pensando se ele seria o marido ou pai dela. A idade era de pai, mas bem que podia ser marido. Calcule aquela mulher com a barriga grande andando a pé para Feira de Santana. Paria antes de chegar lá... E o negro riu baixinho. O rapaz com calças de soldado olhava para ele. E torcia o bigode. Parecia não estar muito satisfeito com o aparecimento de Antônio Balduíno. Foi quando ouviram vozes que se aproximaram. Era o chefe do trem que explicava aos passageiros de primeira classe o atraso:

    – Um desarranjo tolo... Agora vamos embora...

    – Mas perdemos quase uma hora...

    – Isso acontece em qualquer estrada...

    – Esta é uma esculhambação...

    Logo depois um apito, fino, prolongado e doloroso anunciou a partida. Mesmo escondido no vagão de portas fechadas Antônio Balduíno deu adeus.

    – Deixa saudades? – perguntou o velho.

    – Só se for das cobras – riu o negro.

    Mas baixou a cabeça e falou sem olhar ninguém:

    – Uma menina... Uma menina mesmo...

    – Bonita? – fez o rapaz torcendo o bigode.

    – Cutuba, menino... Parecia até da cidade...

    – E você deixou ela?

    – Ela era de outro... E ele não morreu...

    – Eu sei de um homem que roubou uma mulher – contou o velho.

    – Eu sei de um que deu uma facada noutro por causa de uma bruaca... Depois passou dois dias com fome escondido no mato... – Antônio Balduíno contava sua própria história.

    – Com medo?

    – Cala a boca, menino... Tu sabe de nada... Ele tava mas era cercado de todo jeito... Se quer ver se ele é homem ou não te atira em cima de mim.

    – Entonce... foi você?... – e o rapaz olhou com mais respeito.

    A mulher guardava silêncio. Mas, quando ela gemeu, o velho disse:

    – Bem que o homem disse que isso era uma esculhambação... Se na primeira classe é assim, pobre de nós que viaja de favor, escondido.

    – Eu paguei dois mil-réis ao rapaz das malas pra me pôr aqui – gemeu a mulher.

    – Quando eu era soldado viajava de primeira classe e gratuites – vangloriou.se o rapaz.

    – De primeira? – Antônio Balduíno duvidava.

    – De primeira, sim senhor... Entonce você não sabe que soldado tem regalia... Você mora nesse cu-de-judas, não sabe de nada...

    – Eu não sou daqui não, faxineiro... Eu tou aqui é de passeio... Só pra me divertir... Eu nasci foi na Bahia. Você já ouviu falar num lutador chamado Baldo? Pois é esse seu criado...

    – Ah! é você? Eu vi você brigar com Chico Moela...

    – Foi uma surra boa, não foi? – o negro sorriu.

    – Foi braba, foi... E eu não paguei entrada... Soldado tem regalia.

    – E por que você largou a farda?

    – Terminou meu tempo... E depois...

    O velho abriu o olho:

    – O que foi que teve?

    – Um cabo... Só porque tinha uma dragona... Cabo e merda é a mesma coisa... Mas ele pensava que não...

    – Embirrou com você – o velho apoiava o braço no bastão.

    – Foi mesmo... A mulata gostava era de mim. Ele pegou fez intriga, eu só vivia na chave... Tudo pra eu não sair nos dias de folga... Vá ver como tá a cara dele...

    – Tou gostando de você, menino. .. Quantos anos você tem?

    – Dezenove...

    – Tu não viu nada ainda, menino... Eu tou cansado da vida – amargurou-se o velho.

    – Cansado, meu pai, por quê? – interrogou Antônio Balduíno.

    – Menino, eu já fui tudo, eu já corri isso tudo. Aqui todo mundo conhece Augusto da Cerca... Da Cerca por causa de uma briga que eu tive... O que foi que ganhei?... Doença só... Mais nada...

    O ex-soldado ofereceu cigarros. Antônio Balduíno acendeu um. Na luz do fósforo viu o rosto da mulher que espiava o céu pela frincha da porta. Ela tinha um ar cansado de quem já viveu muito. O velho continuava a falar:

    – Eu já tive muito gado que trazia para Feira de Santana... Um mundão de gado de encher o olho... Já tive roça de fumo antes dos alemães vir para aqui... Já tive terra... Muita coisa, mesmo...

    Parou. Parece que está dormindo, mas volta a falar com a voz abafada:

    – Eu já tive até família... Parece?... Nem parece... Mas eu tive duas filhas que até botei no colégio. Era umas gracinha... Tomaram tudo, ouviu... Tudo. O gado se foi... Um branco botou feitiço numa, carregou com ela nem sei pra onde... A outra vive aí em Cachoeira, parecendo uma doida com os cabelos cortados, fazendo a vida... Essa eu sei onde tá e a outra?

    A mulher desviou os olhos da porta:

    – Vosmecê tem muita raiva das mulheres da vida?

    – Umas perdidas... Tudo de cabelo cortado e vermelhão na cara...

    – Vosmecê não sabe o que é a vida delas... Vosmecê não sabe nada... O que é que vosmecê sabe?

    O velho ficou atrapalhado. Então o ex-soldado falou:

    – Eu já tive uma amante que era mulher da vida. Ela fazia a vida até meia-noite, depois eu ia pra casa dela e ficava até de manhã... Era bom...

    – E você por que tá falando?

    – Eu não tava dizendo nada...

    – Não tava... – fez a mulher com raiva. – Vocês falam sem saber... Fala por falar... Eu que estou aqui só não morri de fome nesta vida porque Deus não quis.

    Antônio Balduíno ficou espantado dela estar grávida. Mas não perguntou nada.

    O velho abriu os olhos e disse:

    – Eu não digo nada, Deus me perdoe. E mesmo se não fosse minha filha de que é que vivia? É ela que me sustenta... E ela me respeita muito, isso sim... Quando eu vou lá bota os homens para fora... Se ela não tivesse cortado o cabelo

    A mulher riu. Antônio Balduíno falou:

    – A vida de pobre é vida desgraçada... Pobre é mesmo que escravo...

    O ex-soldado contou:

    – Eu conheci um cabo que dizia o mesmo...

    – Era o que tomou sua mulher?

    – Não. Era outro. E Romão não tomou ela, não... Ela gostava era de mim...

    – Mas andava era com o outro... – riu Balduíno.

    – Você não conheceu ela... Era bonita de verdade... Não tinha mulher que chegasse perto dela...

    O trem parou numa estação. O silêncio voltou ao vagão. Homens caminhavam perto, do lado de fora. Alguém disse: “adeus, adeus E outra pessoa: “dê lembranças a Josefina”. Perto cochichavam:

    – Você vai se esquecer.

    Era uma voz doída de mulher. Um homem protestava que não, que não esqueceria.

    – Não vá deixar de escrever...

    Um beijo e o apito da máquina cortando as despedidas. Agora o ruído das rodas nos trilhos. O ex-soldado explicou:

    – A máquina está dizendo “vou com Deus, vou com o Diabo”. Olhe só como é igualzinho...

    – Parece mesmo...

    – Foi minha mãe que me disse quando eu era de colo. Outra máquina, uma grande que carregava muito carro, fazia diferente. Era assim: “café com leite, pão com manteiga”. Igualzinho, não é?

    Ficou se recordando.

    – Você tem mãe? – perguntou a mulher.

    – Vou ficar com ela... Ela chorou quando eu engajei... Você sabe como é mulher... A velha pensa que eu ainda sou menino... – e retorcia um bigode que não existia.

    – Tudo é o mesmo – disse a mulher. – Você viu – se dirigia a Antônio Balduíno – aquela que tava na estação pedindo ao homem para escrever?

    – Eu ouvi conversando...

     Nunca mais ela vê ele... Eu também – e calou-se.

    – O quê? O velho abriu os olhos.

    – Nada... Besteira... – começou a assoviar uma música.

    – Esse mundo é ruim – cuspiu o velho com raiva. – Nós nasce pra sofrer.

    – A vida é boa, velho... Você fala porque tá incongruado... – o ex.soldado riu.

    – A vida é boa pra quem tem dinheiro – afirmou a mulher.

    – Então tu tem uma mãe? – perguntou Antônio Balduíno virando-se para o soldado. – Eu nunca vi minha mãe. Minha tia maluqueceu... E o Gordo tem uma avó...

    – Quem é esse Gordo?

    – Um sujeito que você não conhece. Um sujeito bom..

    – Bom? – escarneceu o velho. – Não há ninguém bom... Quem é que é bom nesse mundo.

    – O Gordo é bom...

    Mas o velho parecia dormir novamente. Foi a mulher quem respondeu:

    – Tem gente boa, sim... Pobre é que é desgraçado de nascença... A pobreza faz a gente ruim.

    O trem vai rápido. O ex-soldado se estendeu no vagão. Ele está espiando o rosto da mulher. Ela está muito envelhecida e a barriga já está feia.

    Mas assim mesmo Antônio Balduíno percebe o sorriso nos seus lábios. Ela olha o céu pela frincha da porta:

    – Ë a pobreza, sabe?... É por isso que eu não amaldiçôo ele... Ele me deixou de barrigão.

    – Seu marido? – perguntou o ex-soldado, gentil.

    – Eu sou mulher da vida... Nunca fui casada...

    – Pensei.

    – O que é que ele podia fazer? Ele não tinha dinheiro mesmo... Como é que ia criar o filho... Fugiu de noite como um ladrão... Deixou as coisas todas lá em casa... E eu sei que ele gostava de mim...

    – Fugiu? Quando viu que você ia parir?

    – Foi... Eu tinha deixado a vida para morar com ele, sabe... Eu ficava lavando roupa, a gente até parecia casada... Ele era bom... Era bom mesmo... Podia estar num altar...

    – Você gostava dele um pedaço...

    – É verdade que eu tou dizendo... Era um santo... Um dia eu falei muito alegre que ia ter um filho... Ele ficou assim feito besta com a cara no ar... Depois riu muito, me beijou... Era tudo tão bom...

    – Eu tenho uma namorada na minha terra – falou o ex-soldado. – Ela é uma tentação. Nós vai se casar um dia destes.

    Quem o visse agora diria que ele estava morto. Com os olhos fechados, a boca sorrindo, o belo rosto redondo feliz como o de um morto.

    A mulher balançou a cabeça. Ela viveu muito com certeza porque tem um ar de cansado no rosto ainda jovem. E agora ela tem pena do ex-soldado. Ele é tão bonito e viveu tão pouco. Ele vai casar... Mas Antônio Balduíno perguntou:

    – E depois?...

    Ela continua:

    – Foi porque ele era pobre... Mal a gente vivia num buraco... O dinheiro, dele, junto com o que eu ganhava lavando roupa, não dava... Foi por isso.

    Ela está com pena do ex-soldado que levantou a cabeça no braço e escuta ansioso.

    – Ele numa noite arribou. Eu nem vi... Deixou as coisas todas, soube que fugiu para não ver depois o menino passar fome.

    – E agora?

    – Dizque ele tá em Feira de Santana trabalhando. Eu vim pra junto dele.

    O soldado está triste. Ele agora pensa em dinheiro para sustentar a mulher quando casar e os filhos depois:

    – Mas ela é tão bonita... E depois eu trabalho. Não tenho medo de trabalho.

    A mulher o anima:

    – É, sim...

    Mas ele está duvidando, todos vêem. Antônio Balduíno diz à mulher:

    – Eu vou ser padrinho de seu filho...

    – Eu fiz uma touca para ele... Uma velha deu uns cueiros velhos... E só o que ele tem... Já nasce sofrendo...

    O ex-soldado falou:

    – é melhor não casar... Tão bonita...

    Aqui é a Estação de São Gonçalo. Saltam passageiros. A cidade dorme cheia de jardins. O barulho do trem acordou uma criança numa casa próxima. Ouve.se o choro. A mulher sorri, feliz.

    – Agora vai ser bom para você – diz Balduíno – vai ter um... De noite chora...

    – Quero que seja menino.

    Com o apito do trem que parte o velho acordou:

    – Tem gente boa, sim... Eu tava mentindo... Minha filha é boa... Eu tou falando de Maria... Zefa, não.. Ela é ruim... Nunca deu notícia... Quem sabe se morreu? Mas Maria é boa, me dá dinheiro... Só que briga porque eu bebo... Mas eu bebo é por causa da Zefa, que não sei onde está... Maria é boa...

    E o velho descamba novamente a cabeça e volta a dormir. O ex.soldado fala para a mulher.

    – É pancada, tá se vendo... Entonce você quer um menino? Eu também quero um menino quando casar... Dizque tem homem que sofre as dores quando a mulher pare...

    Está novamente feliz e olha a mulher sem nenhum desejo. Seu coração está puro e ele pensa com uma ternura imensa em Maria das Dores que está em Lapa a esperá-lo. Sorri porque pensa na surpresa dela ao vê-lo. Que pena que o bigode não houvesse crescido mesmo... Está tão pequeno ainda... Ela no primeiro momento não o reconheceria...

    – Será que ela vai me conhecer?

    – Quem? – se espanta Antônio Balduíno.

    – Nada. Tou pensando...

    O velho acordou. Treme de frio. Volta o vento que anuncia temporal. Envolve o trem que balança nos trilhos.

    – Essa desgraça acaba virando com a gente – fala Antônio Balduíno.

    – Pobre tem que sofrer... Uns nasce pra gozar: são os ricos. Outros pra sofrer: são os pobres. Isso é assim desde o princípio do mundo.

    Agora é o ex-soldado quem dorme feliz. Ronca surda- mente. Não ouve o vento que passa assoviando.

    – Vai ter chuva grossa... – o velho se arrastou até a porta por onde espia.

    – Eu vim de um lugar, meu tio, onde o povo era muito desgraçado... Ganhava deztão por dia...

    – Nas roças de fumo?

    – Ali mesmo, velho..

    – Tu não sabe, negro... Eu sou velho aqui... Já vi coisa de arrepiar... Quer saber? – há um brilho estranho nos seus olhos e ele afasta o bordão para se levantar. – Pobre é tão infeliz que quando merda der dinheiro, cu de pobre aperta.

    Antônio Balduíno riu. O velho não se equilibra e rola em cima dos fardos de fumo. A mulher acode:

    – Se machucou?

    O soldado ronca. A mulher ficou próxima de Antônio Balduíno e diz em voz baixa:

    – Eu não disse só pra ele não ficar triste... – aponta o ex-soldado. – Mas pra falar direito eu nem sei por que foi que Romualdo foi embora. Talvez por causa de pobreza mesmo... Eu é que penso assim... Uma mulher lá de junto disse que ele foi por causa de outra, uma tal Dulce... E se foi? – alteia a voz. – Mas não foi, não. Ele não ia me deixar assim.

    O soldado dorme feliz como um morto.

    – Assim... Com um filho na barriga... Mas para que foi embora?...

    Antônio Balduíno risca um fósforo e na luz vê que a mulher chora, sacudindo os ombros. O negro fica confuso, procura o que dizer e murmura:

    – Não se importe. .. Vai ser um menino..

   

Circo

    O encontro com Luigi fora inteiramente casual. Antônio Balduíno passara o resto da noite vagando pela cidade. O ex-soldado tomara logo a estrada para Lapa, o velho tinha onde ficar e a mulher foi procurar uma amiga. Pela manhã Antônio Balduíno tratou de arranjar um caminhão que o levasse à Bahia, de graça. Chegou para perto de um que carregava e foi dizendo ao chofer como quem não queria nada:

    – Vai pra Bahia, mano?

    – Vou sim – respondeu o chofer que era um mulato esguio e sorridente. Quer mandar uma encomenda?

    – Quero mas é mandar esse negro que tá aqui – e batia no peito rindo.

    – Xi! Que a Bahia tá danada de boa agora com as festas, rapaz...

    Antônio Balduíno acocorou junto do chofer, aceitou o cigarro:

    – Eu ando com uma saudade, mano... Faz quase um ano que vim embora...

    O chofer cantou:

             “A Bahia é boa terra,

             ela lá e eu aqui..”

    – Não diga... A Bahia é boa mesmo... Tou seco pra voltar.

    – Quer ir hoje no caminhão? Eu vou depois da bóia...

    – Mas é que tou limpo, rapaz...

    – As mulheres gastou as economia... – riu o chofer.

    – Quem sabe? – e Balduíno piscou o olho.

    – Não tem nada... Eu tou sem ajudante... Você vai no lugar dele.

    – Tá certo.

    – Se eu tiver de fazer força você ajuda...

    Que hora sai mesmo?

    – Depois da bóia... Uma hora, hora e meia.

    – Então até já...

    – Para onde vai?

    – Vou ver os amigos.

    – Uma hora aqui...

    – Tá certo...

    Antônio Balduíno ficou passeando pela cidade. Não tinha nenhum amigo a visitar mas não queria que o chofer soubesse que ele não ia almoçar. Porém, jantaria na Bahia, ou com o Gordo ou com Joaquim ou mesmo com Jubiabá. Ia pensando nestas coisas e no meio de arranjar um cigarro quando ouviu um grito:

    – Per la Madonna! É Baldo.

    Voltou.se. Na sua frente estava Luigi com uma roupa muito sovada e os raros cabelos:

    – Luigi...

    Luigi pegou nos seus ombros, virou-o em torno de si e disse alegre:

    – Magnífico...

    – Que é que você tá fazendo aqui, Luigi?

    – Ventos maus, menino... Ventos maus...

    – Que diabo é que tem o vento com isso?

    – Depois que você desistiu da carreira, Baldo, nunca mais as coisas correram bem para mim...

    Olhava o negro com tristeza:

    – Uma carreira tão bonita que você estava fazendo. Uma pena... Largou de repente sem dizer para onde ia...

    – Fiquei danado com aquela surra...

    – Besteira... Besteira... Qual é o lutador que não apanha uma vez?... Demais você estava bêbado como um porco...

    – Mas que diabo você tá vendo aqui, Luigi? Tem algum lutador novo?

    – Lutador? Nunca mais aparece um como você...

    Antônio Balduíno riu satisfeito e deu um soco no peito de Luigi.

    – Nunca mais... Agora estou com um circo...

    – Circo?

    – Um negócio desgraçado. . . Nem lhe conto.

    Entraram num botequim. Luigi pediu café. Antônio Balduíno disse:

    – Pede uns cigarros pra mim... Tou a nenhum, Luigi...

    Sabia que com Luigi podia conversar francamente. Lembrou-se de qualquer coisa e disse:

    – Você foi o único que não me apareceu quando eu estava cercado na mata, quase morto.

    – Mas se eu não sabia, menino... Como foi?...

    – Nada... Eu tava era com fome e quase morto. Vi todo mundo, sabe, Luigi... Vi todo mundo que vinha me aporrinhar cantando coisa de defunto... Só você não veio...

    Luigi ainda não tinha compreendido direito. Antônio Balduíno narrou a briga com Zequinha, a fuga pela mata, as visões. Falou sombriamente, sem detalhes, porque estava doido para saber do negócio do circo:

    – Que negócio é este?

    Luigi balançou a cabeça tristemente:

    – Um negócio da desgraça... Quando você foi embora, eu fiquei sem ter o que fazer...

    – Ficou na mão..

    – Isso mesmo. Foi quando apareceu por lá um circo... Grande Circo Internacional. De um patrício meu, chamado Giusepe... Fez dinheiro na Bahia. Mas ele tava muito atrapalhado, devendo o que não tinha. Eu peguei, entrei para sócio... Um sócio desgraçado... Temos andado por todos os buracos... Per la Madonna! O circo não dá nada... Tem um despesão cachorro... Dinheiro não entra. Está quase falido.

    Luigi abanou as mãos e contou detalhes. Antônio Balduíno disse:

    – Tá o diabo...

    Mas Luigi mirava-o novamente e falava:

    – Mas eu tenho uma idéia que é capaz de mudar as coisas... Preciso de você.

    – De mim, velho? Eu nunca fui artista de circo.

    – Também não era jogador de boxe e eu te fiz...

    Sorriam ambos relembrando os tempos passados. E quando se levantaram da mesa do café, Antônio Balduíno estava contratado pelo Grande Circo Internacional como lutador. O negro passou junto do chofer e avisou:

    – Não me boto mais para a Bahia, mano.

    – As mulher não deixa... – riu o chofer.

    – Quem sabe? – e o negro piscou o olho.

    O contrato verbal que fizera com Luigi afirmava que ele teria casa, comida e dinheiro quando houvesse dinheiro. Mas dinheiro era coisa que não fazia falta ao negro Antônio Balduíno.

    A tabuleta ainda estava estendida no chão. Lia.se em grandes letras azuis:

“GRANDE CIRCO INTERNACIONAL”

    E ao lado da tabuleta Giusepe dormia como um porco. Luigi avisou:

    – Tá bêbado... Anda sempre assim...

    Empurrou-o com o pé. Ele murmurou palavras incoerentes:

    – Peço silêncio... É hora do salto mortal... Uma palavra e o grande trapezista... perderá... a.... vida...

    Homens abriam buracos no chão. Outros montavam as arquibancadas. Trabalhavam todos, artistas, empregados, mata-cachorros. Luigi levou o negro Antônio Balduíno para sua barraca. E a primeira coisa que o negro viu foi o seu retrato em posição de lutador como saíra num jornal da Bahia.

    Luigi arriou-se em cima da cama (que não passava de um divã que também entrava em cena com o Homem-Cobra) e continuou a explicar a Antônio Balduíno:

    – Cinco contos pra quem ganhar... Não aparece ninguém, você vai ver...

    – Mas tem que ter luta senão o pessoal fica danado...

    – Mas quem disse que não tem? A gente contrata um sujeito qualquer por vinte mil-réis. Não falta quem queira. Você dá uma surra mestre.

    – E se aparecer um sujeito metido, disposto mesmo a brigar?.

    – Aparece nada...

    – E se aparecer?

    Luigi apontou o retrato na parede:

    – Você não é mais lutador, rapaz?

    Antônio Balduíno fez que sim com a cabeça. Passou a mão sobre o retrato, assoviou. Luigi comentou:

    – Você já tem saudades? Então está envelhecendo...

    – Naquele tempo eu não tinha esse talho no rosto...

    – Isso é bom pra impressionar.

    Batiam na porta. Luigi abriu. Era uma mulherzinha que viera reclamar o salário atrasado de mês e meio:

    – Assim não trabalho... Não conte comigo amanhã...

    – Amanhã você recebe, mulher de Deus...

    – Todo dia isso, todo dia isso “Amanhã você recebe...” Há dois meses que não ouço outra coisa... Tou cansada... Não conte comigo amanhã....

    – Mas amanhã recebe mesmo... Você não sabe o que vai acontecer... – Virou para Balduíno: – Esta é Fifi, a trapezista... Ela está um pouco zangada...

    A mulherzinha olhou para o negro.

    – Este aqui é o célebre Baldo... Você já ouviu falar nele com certeza...

    A mulher nunca tinha ouvido mas balançou a cabeça dizendo que sim. Luigi falava depressa para impressionar a mulher:

    – Pois é... O maior lutador do Brasil... No Rio não teve homem que se agüentasse com ele... Chegou hoje da Bahia que eu mandei contratar... Tomou um automóvel, se bateu para aqui...

    A mulher desconfiava:

    – Com que dinheiro você contratou este fenômeno, Luigi? Está me cheirando que é falso... Como coisa que eu já não vi este negro guiando um caminhão aqui... Olhe aqui, rapaz, se você deixou o caminhão pensando que vai ganhar dinheiro está enganado... Dinheiro é coisa que não tem aqui...

    Deu um repelão no corpo e se dirigiu para a porta. Mas Antônio Balduíno foi mais rápido e pegou-lhe no braço, com raiva:

    – Pere aí, dona... Eu sou lutador mesmo... Fui campeão baiano de todos os pesos. Tá vendo aquele ali na parede? É esse seu criado...

    A mulher olhou e se convenceu:

    – Se é assim... Mas por que veio se meter aqui? Aqui não tem dinheiro...

    – Vim para servir um amigo... – bateu no ombro de Luigi – um amigo certo...

    – Ah! só se for assim...

    – E amanhã você vai ver dinheiro a rodo...

    A mulher se confundia em desculpas:

    – Tem um chofer que é ver sua cara... Igualzinho...

    Da porta ainda sorriu. Antônio Balduíno olhou para Luigi:

    – Aquela conversa de Rio não pegou, mano...

    Luigi redigia o anúncio para circular no dia seguinte. Balduíno lia por cima dos ombros:

    – Meu nome eu quero em letras bem grandes. Aquelas deste tamanho.

    E abria os braços mostrando o tamanho.

    Giusepe quando ficava bom dos porres tornava-se ativo e resoluto. Parecia que ia salvar tudo, resolver a situação difícil do circo, pagar os salários dos artistas e dos mata-cachorros. Mas a sua atividade ficava nos gestos, nas palavras que ele gastava com largueza:

    – Vamos ver isso! Isto não anda! Esse galinheiro já devia estar de pé. Eu que me afobe. Sem mim isso não vai para diante!

    E quando um artista reclamava:

    – Também você só sabe pedir dinheiro... E a arte não vale nada? No meu tempo a gente trabalhava pela arte, pelos aplausos, pelas flores. Flores, está ouvindo? Flores... Eram as moças que jogavam flores. Lenços bordados... Eu podia ter uma coleção se quisesse... Mas eu não ligo para estas coisas. Naquele tempo se pensava na arte. Um trapezista era um trapezista...

    Virava-se para Fifi:

    – Uma trapezista era uma trapezista...

    A trapezista ficava com raiva. Ele continuava:

    – Hoje o que é que se vê? Uma trapezista como você, que até dá para a coisa, só fala em dinheiro, como se as palmas não valessem nada.

    – Eu não como palmas...

    – Mas é a glória... Nem só de pão vive o homem. Foi Cristo quem disse.

    – Cristo não era trapezista...

    – Hoje... No meu tempo, não... Palmas, flores, lenços, lenços, compreendeu, tudo isso tinha o seu valor... Você quer dinheiro, não é? Pois bem, amanhã terá seu dinheiro... Pagarei tudo... Tudo...

    Mas terminava sempre pedindo:

    – Você sabe, Fifi, que a gente tá mal... Que é que eu posso fazer, desgraçado de mim... Eu sou um artista velho... Corri a Europa toda... Eu tenho os álbuns lá na barraca... Agora estou aqui mas me conformo... Você pensa que eu tenho dinheiro? Só tenho dívidas... Tenha paciência, Fifi. Você é uma menina boa..

    – Mas, Giusepe, eu não tenho mais roupa. O saiote verde já está uma vergonha. Não posso aparecer mais com ele...

    – Garanto que o primeiro dinheiro que arranjar é para você.

    E saía para dar ordens inúteis, reclamar contra o serviço atrasado, olhar tudo que Luigi tinha feito, discordar de tudo e terminar num botequim, contando aos desconhecidos, que pagavam cachaça, as suas glórias de trapezista.

    Naquela noite, quando voltava cambaleando para a barraca do circo, depois de ter marcado com um carvão a testa de vários meninos para que entrassem de graça no espetáculo, encontrou Antônio Balduíno que aparentava. olhar as estrelas enquanto espiava para a barraca onde estava Rosenda Rosedá, a bailarina negra, o número de maior sucesso do Grande Circo Internacional. Era que à luz da vela, ele vira a negra que começava a mudar de roupa e mostrava umas costas que nem veludo, O negro cantava um dos seus sambas de maior sucesso:

              “Minha mulata é de veludo.

              Chega até a arrepiar.

    Quando viu que Giusepe vinha fez que olhava as estrelas. Qual seria Lucas da Feira? Uma vez haviam lhe mos trado a estrela que Zumbi dos Palmares tinha virado. Mas ela não está brilhando aqui. Só brilha na Bahia, nas noites de macumba, quando os negros festejam Oxossi, o deus da caça. Ele toma conta dos negros, brilha quando eles estão alegres, se apaga quando eles estão tristes. Teria sido o Gordo quem lhe contou aquela história? Não, foi pai Jubiabá, numa noite no cais. Se fosse o Gordo ele botaria um anjo na história. Pai Jubiabá é que sabia coisas de Zumbi dos Palmares e de outros negros grandes e valentes. Bem que ele pode dar outra espiada, agora, para a barraca de Rosenda Rosedá, porque Giusepe vem cambaleando tanto que não chegará tão cedo. Mas não é que ela desapareceu e apagou a luz? Se não fosse Giusepe – aquele bêbado! – ele a teria visto nua. Era um peixão... Podia não haver dinheiro, mas enquanto ela ficasse no circo Antônio Balduíno ficaria... Que negra bonita... Aquilo na Lanterna dos Afogados seria um sucesso danado. Ficariam todos de queixo caído.

    Giusepe chegou. Quando quis cumprimentar o negro, quase perde o equilíbrio.

    – Estou cansado... Esse trabalho aqui me mata. Trabalho como um cachorro...

    – Tá se vendo...

    Ele passou. Levou perto de meia hora para chegar à sua barraca.

    – Ë capaz de tocar fogo na barraca quando riscar o fósforo para acender a vela – pensa Antônio Balduíno que se aproxima. Mas ele já acendeu a vela e agora está sentado perto de uma mesinba de pé rebentado. Em cima estão uns livros ricamente encadernados, mas estragados pelo tempo. A curiosidade absorve o negro que espia como um ladrão. Que haverá naqueles livros para Giusepe acariciá-los com tanto amor? Está fazendo o mesmo que o negro faz com a carne das coxas das mulatas. Passando a mão muito de leve, com cuidado, luxuriosamente. Mas ele se virou e Antônio Balduíno viu os olhos. Tem sujeitos que quando bebem ficam assim tristes. Outros ficam alegres, riem e cantam... Mas tem os que ficam tristes e dão para chorar. Giusepe é dos que ficam tristes. Antônio Balduíno não resiste e entra na barraca de Giusepe que ficou triste de tanto beber.

    Foi na Itália e era na primavera. Aquele ali no álbum, o de bigodões, era seu pai. Toda a sua família tivera circos. Na fotografia mais velha, a que está amarelada pelo tempo, aparece o seu avô fardado. Não era general, não... Era dono de um circo... O Grande Circo Internacional... Mas naquele tempo era um circo de verdade... Só leões tinha para mais de trinta. Vinte e dois elefantes... Tigres... Todos os bichos...

    – Bebi uns tragos, mas não estou mentindo, não...

    Antônio Balduíno acredita.

    Os bigodes de seu pai faziam sucesso. Ele era menino e assim mesmo se lembrava. Quando o velho subia no trapézio parecia que o circo vinha abaixo de tantas palmas. Um delírio. Também os saltos que ele dava de trapézio para trapézio, o salto-mortal dado no ar, três voltas sem segurar em nada... Era de fazer os corações pararem. Sua mãe andava no arame. Vestia de azul e parecia uma fada... Ia com a sombrinha japonesa, se equilibrando. Ele era de uma família de gente de circo. Herdou tudo quando o pai morreu. Só leões tinha não sei quantos. Cavalos ensinados. Pagava uma fortuna de salário a artistas. Os mais famosos da Europa...

    – E todos recebiam no sábado. Nunca nenhum se atrasou.

    Um dia o rei, o próprio rei, viera ao seu circo. Que dia aquele... Antônio Balduíno não estava acreditando, com certeza, porque o estava vendo ali, bêbado e mal vestido. Mas ele fora aplaudido pelo rei... O rei só, não. Toda a família real que estava num camarote de luxo. Foi em Roma e era na primavera. Quando ele apareceu, que coisa, meu Deus. Nunca se viu coisa igual.

    – Pensei que as palmas não acabavam mais. Estava ali no álbum o seu retrato naquele tempo. Vestido de casaca, sim. Era como ele entrava na arena. Depois tirando a roupa aos poucos. A casaca, as calças, o peito duro. Ficava vestido com uma roupa de meia, assim como estava naquela outra fotografia. E era bonito. Nem parecido com hoje... Hoje está um esqueleto. Mas naquele tempo as mulheres se apaixonavam. Houve uma que era condessa. Loira. Cheia de jóias. Marcara uma entrevista com ele.

    – E você chamou aos peitos? – o negro se interessava.

    – Um cavalheiro não conta estas coisas.

    O rei estava lá no seu camarote de luxo. Toda a família real. Ele deu o duplo salto.mortal e – pode não acreditar – o rei não se conteve e levantou.se para aplaudir. Que noite aquela... Também Rísoleta estava bonita como nunca estivera. E quando pulou com ele foi um sucesso... Ela vendia o retrato dos dois aos espectadores, aquele retrato que estava bem no meio da página do centro do álbum e no qual se via uma mulher em atitude de quem agradece as palmas, a mão segura por um homem vestido de uma espécie de roupa de banho. Olhando bem se via que o homem era Giusepe.

    – Um mulherão... – falou Antônio Balduíno.

    – Era minha mulher...

    Ela vendia aquele retrato aos espectadores e não havia quem não comprasse. Pois não era primavera e ela tão linda como as flores da primavera? Era uma flor da primavera e todos os romanos queriam uma lembrança da estação que se ia. Ficavam com o retrato dela. Naquele outro retrato ela estava em cima do cavalo com uma perna levantada. Era Júpiter o nome daquele cavalo e valia um bom dinheiro. Ficou com um credor da Dinamarca numa das vezes que o circo andara lá. Aquele retrato de Risoleta em cima do cavalo fora tirado poucos dias antes dela cair. Andava tão bonita naquela primavera, tão moça que ninguém diria que ia acontecer aquela coisa estúpida. Giusepe nunca pensara sequer que aquilo pudesse se dar. – Pois ela caiu. Tinha tanta gente naquela noite no circo que parecia um mar. Eles eram o grande sucesso daquela primavera. Todos falavam em I Diavoli, nome por que eram conhecidos. Quando Risoleta aparecia na rua as mulheres paravam para vê-la. Imitavam os seus vestidos, que ela sabia ser elegante, não era bonita somente no circo, pulando no trapézio. Os homens viviam doidos por ela. Eles eram o sucesso da primavera que estava florida em Roma. Naquela noite tinha muita gente no circo. Este retrato é dela vestida com trajes de sair.

    Giusepe olha o retrato. Caminha até a cama e traz uma garrafa de cachaça.

    – Pinga de Santo Amaro, hein? – riu Balduíno.

    Assim Giusepe está bebendo demais. Não tira os olhos da mulher. Também Antônio Balduíno vê que ela tinha o rosto triste de mulher presa. Giusepe bem sabia que ela não gostava daquela vida de circo, que aspirava a andar na sociedade, bem vestida, elegante, fazendo furor entre os homens. Mas quem diria que ela ia cair naquela noite? Não haviam quebrado nenhum espelho... Eles entraram na arena, foi aquele mundo de palmas. Ela cumprimentou sorrindo e subiram. No princípio tudo correu bem. Mas no salto mortal... Nunca tinha acontecido aquilo. O trapézio balançou menos... Ela não alcançou as pernas de Giusepe para se segurar. Ficou uma posta de carne no chão. Quando Rex, o leão, pegou John, aquele domador inglês, e o estraçalhou, não ficou tão feio. Porque Risoleta tinha virado uma posta de carne sem rosto, sem braços, sem nada. Ele não sabe como não caiu também, como teve forças para descer. Lá fora era primavera e passavam casais. Depois o palhaço disse que ele tinha feito de propósito porque soubera que ela tinha um amante. Chegaram a fazer um inquérito que resultou em nada... Desde esse dia começou a decadência do Grande Circo Internacional.

    – Dava um romance – afirmou Balduíno – bastava escrever... Vou contar ao Gordo.

    – Mas você acredita que ela tivesse um amante?... Disseram, mostraram ele, mostraram cartas dele para ela que estavam no meio das coisas dela... Mas era mentira, não era? Gente de circo é ruim... Você não se fie em gente de circo. É gente invejosa... Ela lá podia ter um amante!... Eles tinham era inveja do sucesso que ela fazia. O que me dá raiva e me faz beber é pensar que ela podia ter mesmo um amante. Tinha as cartas. Mas ela era tão boa. Gostar daquela vida não gostava, não. Mas não era mulher para ter amante. Mas tinha as cartas. Falava em encontros... Eu só queria ela viva para me dizer que era mentira, que era tudo inveja. Você não acha que era?

    Será que ele vai chorar? Apertou a cabeça nas mãos e cerrou os olhos. Agora é Antônio Balduíno quem vira a garrafa de cachaça e bebe um trago enorme. Lá fora está uma noite de primavera também.

    – E o palhaço o que é?

    – É ladrão de mulher...

    – Olha a negra na janela...

    – Com cara de panela...

    O palhaço Bolão vai montado de costas num jumento. No fundo da cidade o circo a domina. Cheio de bandeiras, com dois anúncios na porta. De noite a música tocará ali e negras venderão cocada. A cidade só fala no circo, nos artistas, na negra que dança quase nua e principalmente no negro Baldo que desafia os homens de Feira de Santana. Os homens na grande feira comentam. Luigi esperou a segunda-feira para estrear. É que neste dia há feira de gado e vêm homens de toda a redondeza vender os seus bois. O palhaço está atravessando o Largo da Feira:

    – Hoje tem espetáculo?

    – Tem, sim senhor...

    Os meninos, que vieram das fazendas trazer rapadura e requeijão para vender, olham com inveja os moleques da cidade que acompanham o palhaço e entrarão de graça no circo. Um camponês diz a outro:

    – Xi. Eu gosto de circo que me acabo...

    – Já vi um, menino, um chamado Europeu que era batuta...

    – Dizque esse é bom...

    – Que é grande é... Se o palhaço for de verdade...

    – Eu vou dormir aqui só pra ir...

    – Dizque não tem mais lugar. Tá tudo vendido.

    Moleques combinavam entrar por baixo do pano. O palhaço continuava a sua passeata gloriosa por entre os camponeses. Das casas comerciais os empregados espiavam. No meio da feira o palhaço parou e pediu silêncio:

    – Respeitável público Baldo, campeão mundial de luta livre, boxe e capoeira, que veio do Rio de Janeiro expressamente (carregava no expressamente) para trabalhar no Grande Circo Internacional, ganhando três contos por mês, casa, comida e roupa lavada.

    – Upa! – murmurou um camponês.

    – ... tem o prazer de desafiar qualquer homem desta heróica cidade para uma luta na arena do circo nesta noite, ou durante a estada do circo. Se houver um homem que vença Baldo, o circo dará a este herói a quantia de cinco contos de réis. Cinco contos de réis – repetia gritando. – E Baldo aposta mais um conto como não perderá. Não há quem aproveite esta oportunidade? Adianto ao respeitável público que dois homens já foram ao escritório do circo para desafiar o grande campeão Baldo, que aceitou os desafios. Quem quiser lutar é só aparecer no Grande Circo Internacional esta noite. As lutas terminarão com a morte de um dos lutadores. Com a morte.

    E, como se não estivesse cansado do discurso, continuou o seu passeio pela cidade, montado de costas, o jumento empacando de quando em vez, ele fazendo que caía, se segurando no rabo do animal, fazendo a cidade toda rir, fazendo o mesmo discurso onde havia gente reunida.

    Toda a cidade comentava a luta de morte que haveria e já se sabia que um chofer, um empregado no comércio e umcamponês gigantesco estavam dispostos a aceitar o desafio de Baldo, o gigante negro, e a disputar os cinco contos. A cidade anoiteceu nervosa.

    Quando o camponês entrou, um rapaz que fazia piadas no galinheiro gritou:

    – José, do casal de guaribas que você encomendou, o macho já chegou – e apontou o camponês.

    Todo mundo riu. O camponês quis se zangar mas acabou rindo também. Um gigante, aquele camponês de alpercatas e de bordão. Ele se ria porque pensava nos cinco contos que ia ganhar lutando com aquele tal de Baldo. Na roça ele derribava árvores com poucas machadadas e carregava troncos enormes através de enormes distâncias. E quando se sentou tinha um sorriso vitorioso, se bem fosse modesto e desconfiado.

    Entravam negros carregando cadeiras que eram para as famílias que vinham para os camarotes. O circo não tinha cadeiras. Os espectadores traziam.

    – É por isso que eu só venho pro galinheiro... É mais barato e a gente não tem que trazer nada. Só o corpo.

    – Lá vem o empregado do juiz..

    O negro entrou, colocou as cadeiras no camarote e foi lá fora buscar mais e depois se aboletou na arquibancada.

    Vaiavam um sujeito que foi para um camarote:

    – Aí! Chico Peixeiro. De camarote, hein? Quem foi Naninha...

    Fora era lindo de luzes e de cores. A tabuleta do circo – Grande Circo Internacional – brilhava em vermelho, azul e amarelo, as lâmpadas piscando. Negras de anágua e colares vendiam pipocas, acarajés, mingau, e munguzá. Todo o largo estava iluminado pela luz do circo. Moleques rondavam os lugares por onde podiam entrar de carona. Um homem vendia caldo de cana e um negro sorveteiro só queria era acabar logo a vasilha de sorvete para poder entrar pro galinheiro também. E dava grandes risadas antegozando o palhaço que era mesmo brincalhão. O povo comprimia-se na bilheteria da geral, onde Luigi esfregava as mãos de contente. E as velhas da cidade estão espantadas com aquele movimento na terra pacata que dorme às nove horas. É que o circo revolucionou tudo, o circo é a novidade, é viagem, são as feras dos outros países, é a aventura. Negros inventam histórias sobre os artistas.

    Eis que vem a música. Agora está dobrando a Rua Direita e já se ouve o som da marcha carnavalesca. No circo todos se levantam. Os que estão nos bancos mais altos da geral espiam por cima do pano. Os moleques que estão na porta do circo correm e acompanham a Euterpe 7 de Setembro que vem garbosa, marcial, vestida de verde e azul. Seu Rodrigo da farmácia é um bicho na flauta, O pistão atira sons que ficam vibrando no ar e vão se bater na cabeça de Antônio Balduíno que foge da barraca e vem olhar a música. Banda bonita. Estão bem vestidos como o diabo! Aquele que vai ali de costas é o maestro. Antônio Balduíno bem que trocava o seu lugar de lutador pelo homem magro que vai de costas dirigindo a Euterpe 7 de Setembro. Mas é bonito de verdade, pensa o negro. Como todas as mulatas olham para ele! Todo o povo. Ele é bem um herói da cidade, uma glória de Feira de Santana. Como o flautista também. São conhecidos de todos e cumprimentados por todos. O juiz tira o chapéu para eles e os rapazes do banco quando querem fazer uma farra convidam o flautista para ir com eles e pagam bebidas e o tratam de igual para igual contanto que ele leve a sua flauta. Mas Giusepe arranca Antônio Balduíno da contemplação da banda de música. O negro vai para a barraca levando no coração a vontade de dirigir uma euterpe. A 7 de Setembro vai entrando no largo do circo. Vem cercada de gente importante, cônscia do seu prestígio. Na porta do Grande Circo Internacional o maestro dá uma ordem e todos os músicos param. Na geral, nas cadeiras, nos camarotes, na barraca dos artistas, também, todos estão ouvindo o dobrado que a euterpe executa na porta do circo. E todos pensam que é divino e que Feira de Santana tem, sem dúvida, a melhor banda de música de todo o Estado. Acabado o dobrado entram no circo e vão se instalar por sobre a porta num tablado que ali está, especialmente para eles. Agora que a música já chegou os espectadores reclamam o início do espetáculo que está tardando.

    – Palhaço! Que saia o palhaço!

    A criançada grita, gritam os homens e até o juiz já consultou o relógio e disse para consorte:

    – Passam cinco minutos da hora. A pontualidade é uma grande virtude.

    Mas a consorte não se impressiona, que ela já se cansou dos conceitos do marido. No camarote vizinho, um grupo de empregados no comércio, que fizeram uma vaca, comentam a luta.

    – Será de morte mesmo?

    – A polícia não deixa.

    – Mas disse que esse Baldo é um bicho. Agripino viu o negro brigar na Bahia com um alemão. Disse que é um touro.

    Batem os pés na geral. Gente da geral é mal-educada – pensam os rapazes do comércio. Quem já viu espetáculo começar na hora? Gente da geral é mal-educada. Mas não é por má educação que eles estão batendo os pés. Os moços do comércio não sabem. Eles batem os pés, gritam e reclamam, porque assim se divertem mais. Circo sem piadas no galinheiro, sem gritos, sem reclamações não presta. Pois se aquilo é o melhor do circo. Ficar com a garganta rouca de tanto gritar, os pés doendo de tanto bater nas tábuas do galinheiro. Uma negra reclama:

    – Vá beliscar as coxas da que pariu.

    Há um princípio de sururu ao lado esquerdo. Bolinar mulher casada dá nisso. Um homem caiu do galinheiro. Mas levantou logo e voltou para o seu lugar debaixo de uma vaia tremenda. Na arena aparece Luigi vestido com o fardão de Giusepe que encornou num porre mãe. O silêncio baixou sobre o circo.

    – Respeitável público O Grande Circo Internacional agradece a vossa presença no seu espetáculo de estréia e espera que os seus grandes artistas mereçam os vossos gentis e benevolentes aplausos.

    Luigi forçava o seu sotaque italiano. Assim impressionava melhor. Os mata-cachorros entraram, estenderam um tapete velho e furado que atravessava a arena de lado a lado e então houve a apresentação da companhia que foi um delírio. Primeiro entrou Luigi que trazia pela mão o cavalo Furacão com uns arreios que brilhavam. Depois entrou Fifi, a trapezista, e os aplausos redobraram. Vestia um saiote de pano verde e mostrava as coxas aos olhos ávidos dos negros, dos empregados no comércio e do juiz. Cumprimentou suspendendo mais um palmo do saiote. Eles são capazes de rebentar as arquibancadas de tanto aplauso. O palhaço Boião entra fazendo piruetas:

    – Boa noite para todos ocês, minha gente,

    Gargalhadas. A bombacha é azul com estrelas amarelas e uma lua vermelha nas nádegas:

    – Estou vestido de céu e de todas as estrelas. Vestido que uma fada me deu.

    é tão engraçado o palhaço!... O Homem-Cobra parece mesmo uma cobra naquela roupa pegada ao corpo cheia de coisas que brilham. A roupa contorna o seu corpo e ele é assexuado, parece uma menina, parece um menino, e os homens dizem piadas. Mas pedem silêncio em altos brados. O homem que come fogo tem cabelos ruivos. O grande equilibrista Robert encanta as mulheres com a sua casaca sovada. Pelo nome ele é francês e também pelo cabelo bem alisado em cima da cabeça, aberto no meio, um encanto. Atira beijos com as mãos que são recolhidos nos seios das donzelas românticas. Uma solteirona velha suspira. “Sujeito bonito”, murmura alguém na geral. Juju quase passa despercebida porque todos olham para o macaco, para o urso. O leão está na jaula ao fundo e urra lugubremente. Lúgubre e ferozmente. Uma mulher explica a outra que não gosta de vir ao circo porque tem medo que o leão se solte. Leão da nervoso nela. Juju é meio velha, tem rugas que a pintura não encobre mais, porém, ainda assim, é dona de um corpo bem-feito. Rosenda Rosedá vem vestida de baiana:

    – Boa noite, meu povo...

    Corre em volta do circo, saltando, suspendendo a saia que faz a roda e que volteando com o vento parece até o pano do circo. Os homens esquecem Juju, Fifi, o grande equilibrista Robert, o urso, o leão, e até o palhaço, para só verem a negra Rosenda Rosedá que está vestida de baiana e sacode as ancas num remelexo. Os olhos estão cheios de luxúria. Os empregados no comércio esticam os corpos para a frente no camarote. O juiz botou os óculos. A sua mulher diz que é uma imoralidade. Os negros na geral estão roucos de tanto gritar. Rosenda conquistou o público. Só não aparece Baldo, o gigante negro, que lá dentro segura Giusepe bêbado que quer a pulso cumprimentar o público. Reclamam a presença do negro:

    – Que saia o lutador, que saia o lutador.

    – Tá se escondendo?

    Luigi explica que Baldo, o gigante negro, o grande lutador, campeão mundial de boxe, luta livre e capoeira, está dando os últimos treinos e só aparecerá no momento da luta que vai sustentar contra os campeões daquela heróica cidade. A companhia se retira e começa o espetáculo com Juju e o seu cavalo. O cavalo Furacão corre em galopes pela arena. Juju traz um chicote na mão e veste culote. Os peitos enormes apertados na blusa. Pula no cavalo. Vai em pé em cima das ancas do animal. Para ela é como se estivesse num automóvel. Dá um salto em cima de Furacão. Aplausos. Faz outras piruetas e se retira entre palmas.

    – Já vi coisa melhor – diz um homem que é examinado com admiração porque é viajado. Ele conta que esteve na Bahia e no Rio.

    – Isso é porcaria.

    Os homens que estão com vontade de aplaudir ficam encabulados. Mas depois perdem o medo e batem palmas com força. É que, depois da banda tocar um samba, o palhaço entrou dando cambalhotas. Discutiu com Luigi, pegou a mala aberta (via-se uma cueca que aparecia), o bengalão e quis se retirar. Depois que fez umas mágicas, Luigi perguntou:

    – Você esteve na escola, Bolão?

    – Se estive... Levei dez anos na jumentalidade... Eu sou formado em burro, ouviu? – o público ria de se acabar.

    – Então me diga: em quantos dias Deus fez o mundo?

    – Eu sei...

    – Então diga.

    – Eu sei mas não digo, pronto, que eu não quero.

    – Você não sabe.

    – Não sei... Quem lhe disse que eu não sei... Quem foi que eu vou dar uma surra nele.

    E foi assim, dizendo estas coisas, que o palhaço fez toda aquela gente feliz na noite da estréia do circo. Os empregados no comércio riam, o juiz ria, os negros da geral gargalhavam. Só o homem viajado achava que aquilo tudo era uma porcaria e os dez tostões jogados fora. Mas ele tinha perdido a pureza, há anos, nas grandes cidades onde fora estudante, antes do pai morrer e ele ter que pegar no metro da casa do Seu Abdula.

    O macaco dançou. O urso bebeu uma garrafa de cerveja. O Homem-Cobra era assexuado e se torcia todo. Dava nervoso. Botava a cabeça nos pés, virava o corpo para o lado, metia os pés na boca, ficava deitado em cima de uma caixa pequena só com o ventre que era de mulher, as pernas nas costas, a cabeça também. Trabalhava bem, mas irritava os homens porque não tinha sexo definido e eles ficavam angustiados sem saber se o deviam amar, pensar nele como em uma mulher, ou se deviam aplaudi-lo como se aplaude um homem macho. Só nos olhos do homem viajado brilhava uma luz estranha e criminosa. O Homem- Cobra agradeceu com seu rosto de anjo, jogou beijos como Robert, o grande equilibrista, curvou-se como Fifi, a trapezista célebre. As mulheres recolheram os beijos, os homens os cumprimentos. Só o homem viajado deixou o seu lugar porque o espetáculo estava acabado para ele. Levou a sua miséria no coração e nos olhos e não dormiu.

    O grande equilibrista Robert não estréia esta noite. As mulheres se entristecem. Em compensação ali está Rosenda Rosedá, a incomparável.

A INCOMPARÁVEL ROSENDA ROSEDÁ

SE NOS APRESENTA ORGULHOSA

EM FORMIDÁVEL TORMENTA EMOCIONAL

ATINGINDO O ÁUREO PORTO DA SUA

CARREIRA NO TABLADO

    A tormenta emocional é um maxixe emocionante. Será que por debaixo da larga saia da baiana ela não tem roupa nenhuma? Parece que não porque mostra as coxas até ao meio e não se vê pano algum. Em cima dos peitos traz colares de contas multicores. Faz grandes XX com as pernas.

    A mulher do juiz acha que decididamente é uma imoralidade e que a polícia não devia permitir. O juiz não concorda, cita a Constituição e o Código, diz que a mulher não é civilizada e não quer conversa, quer é espiar as coxas de Rosenda Rosedá, a incomparável. Mas agora todos têm coisa melhor para olhar. Ela rebola as ancas... Desapareceu toda, só tem ancas. As suas nádegas enchem o circo, do teto até a arena. Rosenda Rosedá dança. Dança mística de macumba, sensual como dança religiosa, feroz como dança da floresta virgem. Ela está mostrando o corpo todo mas o seu corpo é um segredo para os homens, porque mal aparece, a saia o cobre, o esconde. Eles estão irritados e fixam a vista, mas é inútil. A dança é rápida demais, é religiosa demais e eles são dominados pela dança. Não os brancos que continuam nas coxas, nas nádegas, no sexo de Rosenda Rosedá. Mas os negros sim. Eles estão nos movimentos, na cadência da dança ritmada e religiosa de macumba, maxixe brabo, e pensam que ela está possuída por um santo. Ela atinge o áureo porto da sua carreira quando descansa as nádegas nas pernas e recebe a manifestação estrondosa da assistência que está de pé e não ouve o dobrado que a banda começa a executar. E ela dança de novo a sua “tragédia emocional”, maxixe emocionante, dança religiosa dos negros, macumba, deuses da caça e da bexiga, a saia voando, os seios saltando sob os colares para os olhos do juiz. As pernas e nádegas dos negros dançam na geral que ameaça vir abaixo. Atingiu o áureo porto da sua carreira no tablado. O juiz se levantou para aplaudir. Parece até o rei com Giusepe. Rosenda tira de debaixo da saia flores, pétalas de rosa, que joga na cabeça calva do juiz. Uma idéia de Luigi. O momento é de emoção. Ela atingiu o áureo porto da sua carreira no tablado. E quando o espetáculo acabar virá um negro de alpercatas e apanhará uma daquelas pétalas de rosa que conserva o perfume do sexo de Rosenda Rosedá e a levará junto do coração para as plantações de fumo.

    O palhaço entra de novo e novamente os homens riem e se acalmam. Depois aparece Luigi que anuncia:

    – Respeitável público! Baldo, o gigante negro, que conheceis de nome, desafia qualquer homem desta cidade para uma luta que termine com a morte. A empresa dá cinco contos de prêmio ao vencedor e Baldo aposta um conto de réis na sua vitória.

    Há um sussurro na multidão. Luigi sai e entra com o negro Antônio Balduíno que traz sobre o corpo musculoso uma pele de tigre que é pequena para ele e lhe tolhe os movimentos. Cruza os braços sobre o peito e olha os espectadores com um olhar de desafio. Ele sabe que Rosenda está espiando e quer que apareça um homem para lutar de verdade. Ela vendeu retratos e na barraca contou os níqueis. Depois disse a ele que ia ver a luta. Porém, agora não aparece nenhum homem disposto a lutar com ele. Luigi explica ao respeitável público que os dois homens que haviam vindo ao escritório da empresa não apareciam. E se não aparecesse ninguém Baldo lutaria com o urso. Mas mal acabara de falar, o camponês que parecia um guariba se levantou e caminhou meio encabulado para a arena:

    – É verdade este negócio dos cinco contos?.

    – Verdade verdadeira – disse Luigi espantado.

    O camponês tirou as alpercatas, a camisa, e ficou somente de calça. Luigi olhou para Antônio Balduíno. O negro sorriu dizendo que estava bem. Trouxeram um colchão para o meio da arena e Antônio Balduíno tirou a pele de tigre e ficou somente com uma sunga no sexo. O talho do seu rosto brilhava à luz das lâmpadas. Os homens aplaudiam o camponês. Luigi se dirigiu novamente ao público pedindo um homem que entendesse de luta para ser o segundo juiz.

    Apareceu um dos empregados no comércio. Conversou com Luigi combinando as condições. O italiano explicou ao público:

    – A luta só terminará com morte ou com a desistência de um dos lutadores.

    Fez as apresentações:

    – Baldo, o gigante negro, campeão mundial de boxe, luta livre e capoeira, o desafiante.

    Perguntou alguma coisa ao camponês:

    – Totonho da Rosinha, que aceitou o desafio.

    Antônio Balduíno veio apertar a mão do adversário. Mas este pensou que já era começo da luta e quis se atracar com o negro. Luigi deu explicação e a coisa correu bem. Ficaram ambos em cima do colchão olhando um para o outro.

    Rosenda Rosedá olhava lá de trás o negro Antônio Balduíno. Não havia cinco contos, não havia nem salário, mas havia o corpo quente de Rosenda, a incomparável. E Balduíno se sentiu feliz. Se conseguisse ser chefe da euterpe estaria completamente feliz. O empregado no comércio contou:

    – Um... dois... três...

    O camponês veio em cima de Balduíno que ficou correndo em volta do colchão. A multidão vaiou o negro. Rosenda fez um muxoxo para todo mundo. Mas de repente Baldo se virou e acertou um soco no rosto de Totonho. Foi o mesmo que nada. O camponês nem pareceu sentir. Veio atrás do negro novamente e levou uma rasteira. “Aqui só capoeira”, pensou Balduíno. Se jogou em cima do camponês caído e soqueou a sua cara. Mas Totonho prendeu as pernas nas costas de Antônio Balduíno e o virou. Ficou por cima. Mas foi quando Antônio Balduíno viu que o adversário era canja. Ele não sabia sequer soquear, só tinha força bruta. Quando se levantaram o negro acertou vários socos no camponês que não sabia se livrar. Correram assim em volta do colchão até que Totonho pegou Antônio Balduíno pela cintura, suspendeu.o no ar e soltou o negro no chão com toda a força. O negro se estatelou. Levantou com raiva. Até ali ele estava brincando, mas agora ficara com raiva. Derrubou o camponês com um golpe de capoeira, pegou-lhe o braço e torceu rudemente. O adversário estava preso nas suas pernas e Baldo torcia-lhe o braço. A multidão aplaudiu. O camponês soltou um berro, desistiu da luta e dos cinco contos. Saiu entre vaias, pegando no braço que parecia quebrado. Antônio Balduíno cumprimentou e se retirou debaixo de palmas.

    – O negro é bom mesmo...

    Lá dentro perguntou a Rosenda

    – Gostou?

    Ela estava com os olhos úmidos de entusiasmo.

    Um mata-cachoro veio com uma tabuleta onde se lia:

“INTERVALO”

    Os homens saíram e foram beber caldo de cana. A banda executou dobrados e marchas.

    Robert era um dos sargentos, Antônio Balduíno o outro. O grande equilibrista ficava elegantíssimo na sua farda de sargento francês, Porém, a de Antônio Balduíno ficava pequena que fora feita para o engolidor de espadas que trabalhara no circo anos atrás. Apertava o negro todo e o sabre ficava ridículo de tão pequeno. Mas se fosse isso só, tudo estaria bem. O pior é que Fifi queria receber os seus salários atrasados antes de começar a segunda parte, na qual seria representada a célebre pantomina Os três sargentos. Luigi ainda não fizera as contas das despesas forçadas do circo e não queria pagar, a não ser no dia seguinte. Fifi não ia nisso:

    – Ou paga agora ou não entro em cena...

    Ela fazia o papel do terceiro sargento e ficara bela de roupa de homem. Vermelha de raiva, esticava o dedo, ameaçando. E fardada de sargento, berrando, gritando, acabou fazendo Luigi ter um ataque de riso:

    – A farda tomou conta de você... Você está pensando mesmo que é sargento.

    – Não deboche, ouviu?

    Giusepe veio bêbado lá de dentro falando em arte, em palmas e chorou. Luigi pediu a Fifi que esperasse, que ele ia fazer as contas e pagaria essa noite mesmo. Que não demorasse a continuação do espetáculo. Ouvisse: o público, lá dentro, já reclamava, batia os pés, impaciente. Luigi puxava os raros cabelos, num quase desespero. Rosenda Rosedá se comoveu:

    – Deixa de ser estraga-prazeres, mulher. O espetáculo hoje correu tão bem.

    Fifi sabia disto, sabia. E não gostava de ser estraga-prazeres tampouco. Sim, o espetáculo correu bem, foram muitos os aplausos, havia muita gente na platéia. Todos estavam satisfeitos e ela também. Mas junto do seu seio estava a carta da diretora do colégio. E ela devia ser forte, devia resistir, devia brigar. Fazia dois meses que não pagava o colégio da filha. Se não pagasse dentro de dez dias, a diretora mandaria a menina de volta para junto dela. E ela não queria sua filha no circo. Isso não. Devia ser forte, tinha que ser forte. Mas não pode espiar para os olhos de Luigi que roga. Luigi sempre fora bom para ela, a ajudara mesmo. Mas se ela não exigisse, após o espetáculo deixaria para o outro dia, no outro dia apareceriam as despesas forçadas e a menina viria se bater ali, e adeus todos os seus planos, todos os seus sonhos, acalentados durante estes longos quatro anos em que pagara com tanto sacrifício o colégio de Elvira. Quando a filha nasceu ela acabara de ler Elvira, a morta virgem. Agora nem dinheiro para comprar romances ela tinha. Mandava tudo para a diretora do colégio e assim mesmo mal dava. Já estava no fim. Se ela não fosse forte, se não resistisse, cairiam todos os seus castelos, alimentados à custa de tanto sacrifício.

    A cidade era pequena, menor ainda que Feira de Santana. Cadeira de professora de primeira classe é difícil de conseguir. Mas casa nesses lugares é barata. Teria um jardinzinho na frente onde ela cultivaria flores, cravos que eram a sua paixão, e onde haveria um banco para ler os seus velhos romances de capas amarelas. A escola funcionaria na própria casa. Elvira ensinaria às crianças e ela ajudaria a filha nos trabalhos domésticos, faria a comida, arrumaria a casa, botaria flores, cravos vermelhos, na mesa da professora. Seria uma avó para as crianças que aprenderiam com Elvira as primeiras letras. Conheceria toda a gente da cidade. Ninguém saberia que ela fora artista de circo, cantora nos teatros vagabundos de variedades, marafona nos dias maus. Os cabelos brancos lhe haviam de dar um ar maternal de senhora boa e pobre. Seria uma velhice feliz. Faria rendas – ainda se recordará? – para os vestidos das garotinhas mais novas. Seria amada por todos e principalmente por Elvira. Quando a velhice baixasse completamente sobre ela, Elvira a deitaria no colo e alisaria a sua cabeça como ela fazia com as crianças. A casa teria um jardim na frente com cravos vermelhos. Mas para isso tudo era preciso ser forte, passar por má, por estraga-prazeres.

    E, rubra de pudor, mostrou a carta da diretora do colégio, desvendou o seu segredo. Luigi ficou comovido, botou as mãos em seus ombros e prometeu:

    – Eu lhe garanto, Fifi, que depois da representação lhe pago. Nem que tenha que ficar sem dinheiro para a comida do leão.

    O público assoviava, vaiava os mata-cachorros, consultava relógios. A pantomina começou. Tinha uma hora que Antônio Balduíno beijava Rosenda Rosedá. O negro não sabia o seu papel direito, nunca dera para decorar as coisas, mas na hora do beijo se recordava perfeitamente. Sorria, piscava o olho para Rosenda que aparentava não dar pela coisa. Mas quando chegou a hora, o negro estalou um beijo na cara da dançarina e disse-lhe no ouvido:

    – Na boca é que é gostoso...

    A pantomina fez muito sucesso.

    Giusepe deve estar na sua barraca a rever aquele álbum de fotografias. Robert fora para o cabaré local para arranjar uma mulher de graça com o seu cabelo alisado. Fifi escrevia uma carta à diretora do colégio pedindo desculpas pelo atraso do pagamento e enviando o dinheiro dos dois meses. À luz da vela que aparecia na barraca distante, Antônio Balduíno via Luigi fazendo contas. Coitado, andava atrapalhado com aquele circo. Por mais sucesso que fizesse, as coisas já estavam tão encravadas que não havia santo que salvasse.

    Por que será que Rosenda demora tanto para mudar a roupa? Ele a espera encostado na porta do circo, a tabuleta de luzes apagadas bem por cima da sua cabeça. O leão urra. Deve ser fome. O leão anda magro, só tem ossos. O urso ainda é feliz porque bebe, todas as noites em que trabalha, uma garrafa de cerveja. Luigi já andou pensando em substituir a cerveja por água. Encheria a garrafa... Tapeou os espectadores mas não enganou o urso que se recusou a beber. O número fora um fracasso. Antônio Balduíno gozara quando Rosenda lhe contara aquela história. Ela demora a se vestir. Rosenda Rosedá, que nome esquisito... Ela se chama mesmo Rosenda. O Rosedá é que foi invenção do Luigi.

    Mulata despachada aquela, muito capaz de ir às fuças de qualquer um. Falava difícil, contava casos dos morros do Rio, Morro da Favela, Morro do Salgueiro, descrevia as festas de clubes de lá, o Ameno Jasmineiro, as Caprichosas da Estopa, o Lírio do Amor. Tinha um jeito elegante de rebolar as ancas quando caminhava, coisa mesmo de carioca. A verdade é que Antônio Balduíno gosta da negra. Ela é cheia de besteiras, de vaidades, se furtando sempre na hora em que Antônio Balduíno pensa que a tem às mãos, mas ele está gostando dela um pedaço. Será que ela acabou de se vestir? Por que fechou a luz e abre a cortina que serve de porta? Apareceu na claridade da luz:

    – Tava lhe esperando...

    – A mim? Gentes, quem houvera de dizer.

    Saíram passeando. Ele contando as suas aventuras por este mundão afora, ela escutando atenta. Ele se entusiasma quando conta a fuga através do mato, o cerco furado, os homens espantados dele aparecer com uma navalha na mão. Ela se encosta nele. Os seus seios estão tocando no braço do negro.

    – Noite bonita – diz ele.

    – Quantas estrelas...

    – Negro valente quando morre vai ser estrela no céu...

    – Eu ainda quero dançar num teatro grande de verdade... Como os do Rio...

    – Pra quê?

    – Gosto de dançar. Quando eu era menina juntava os retratos de artistas de teatro. Papai era português e tinha uma venda.

    O cabelo de Rosenda Rosedá é espichado a ferro. Fica liso parecendo cabelo de branca. Fica mais liso até.

    – Eta, negra cheia de bobagem... – pensa Antônio Balduíno.

    Mas como sente os seus seios no braço, diz que ela dançando é mesmo cutuba.

    – Você não viu? O pessoal parecia maluco... Era só palma...

    Ela se encosta mais. Ele convence:

    – Eu gosto de um maxixe bem dançado...

    – Eu quis entrar pro teatro.. . Um homem que morava perto de lá de casa conhecia um porteiro do Teatro Recreio. Mas papai não deixou. Ele queria me casar com um caixeiro que ele tinha, um maroto fedorento.

    – Mas você não se amarrou?

    – Eu sou lá besta! Eu não gostava mesmo dele, não tá vendo? Um portuga...

    Ficou como quem queria dizer qualquer coisa. Antônio Balduíno perguntou:

    – O que é?

    – Depois veio Emanuel. Papai dizia que era um vagabundo, sem eira nem beira.

    “E era mesmo. Não tinha do que viver. Assim como você, malandro... Se engraçou de mim, a gente dançou no Ameno e foi aquela desgraceira. O velho ficou danado, por causa do tal do portuga que gostava de mim um pedaço. Disse que eu era uma amaldiçoada e me botou no olho da rua.”

    – O que foi que você fez?

    – Primeiro fiquei no morro com Emanuel. Mas quando ele vinha pingado, gostava de dar em mulher. Logo da primeira vez eu arrumei minha trouxa e pulei fora. Depois andei roendo um osso. Trabalhei de cozinheira, de copeira, de ama-seca. Foi um palhaço de um circo no Rio que me meteu nesta vida. Pegamos um namoro, acabamos amigados. Um dia faltou uma artista, uma espanhola que ia dançar de castanholas, e eu entrei no lugar dela. Se você tivesse lá ia ver o sucesso. Mas me aborreci do palhaço e entrei para outro circo. Vim acabar neste. Tá aí.

    Antônio Balduíno só soube responder:

    – É mesmo.

    – Mas um dia eu entro pra um teatro de verdade. Assim mesmo negra. Que é que tem? Na Europa tem uma negra que os brancos vive atrás. Uma patroa que eu tive me contou.

    – Eu já ouvi falar.

    – Pois entro... Você ainda vai ver muita gente falar nesta negra.

    Antônio Balduíno sorri:

    – Você até parece a lua!

    – Por quê, meu Deus?

    – Parece que está perto mas está longe da gente.

    – Eu estou tão perto de você...

    O negro apertou a cintura de Rosenda Rosedá. Mas ela corre para a barraca.

    Agora está no cabaré triste da cidade. Hoje tem mais gente por causa do espetáculo do circo. Senão todo mundo teria ido dormir às nove horas quando batesse o sino da igreja. Robert está numa mesa, muito elegante, olhando uma mulher que dança. Antônio Balduíno se senta. Robert interroga:

    – Também veio arranjar mulher?

    – Não. Vim beber um trago...

    As mulheres são poucas e quase todas aquela para quem Robert espia é uma velha Estão espalhadas pelas mesas e sorriem para os homens.

    – Por que você não chama a mulher para a mesa?

    – Estou pronto.

    Mas no canto está a virgem. Por que será que aquela idéia se aboletou na cabeça de Antônio Balduíno? Ele já bebeu esta noite mas não se recorda de ter ficado bêbado com dois cálices de cachaça. Por que, então, pensa que a mulher de cabelos lisos e rosto pálido é virgem? Ela está num canto sem ver nada, sem olhar para ninguém, distante do cabaré, dos freqüentadores, do copo de bebida que está na sua frente. Se o Gordo estivesse ali Antônio Balduíno pediria que ele inventasse uma história de menina abandonada, sem anjo da guarda, nem ninguém no mundo. E se fosse Jubiabá quem estivesse ali ele pediria ao pai-de-santo para fazer feitiço contra o homem que está explorando a virgem, que a obriga a vir para o cabaré e a beber aquelas bebidas. Antônio Balduíno olha para Robert que pisca para a velha. Bem que pode não ser virgem... Mas quem é que não conhece logo que ela é virgem e que um homem a explora? Ela está no cabaré, bem na mesa do canto, mas os seus olhos não estão olhando para nada, estão perdidos para além da janela. Ela pensará nos irmãos sozinhos, pequenos, na mãe doente. O pai já morreu. Será por isso que ela está aqui?

    Ela veio vender a sua virgindade esta noite para comprar remédios. Pois a mãe não está doente, quase à morte e sem médico, sem um único vidro de remédio? Antônio Balduíno pensa em ir até ela e tem vontade de oferecer dinheiro. Em verdade está sem um níquel, mas furtará de Luigi. Um empregado no comércio a tirou para dançar. É um tango. Ela vai vender a virgindade a quem der mais dinheiro. Porém, que entende ela de dinheiro? E capaz de nem receber nada e a mãe morrer.

    Tudo é inútil. Sua mãe não se salvará, os irmãozinhos morrerão também de maleita, pois as barrigas são enormes e os rostos pálidos. Um homem virá – por que não Robert, o equilibrista? – e a explorará, venderá o seu corpo virgem e moço na feira. Venderá aos camponeses, aos choferes, a todos os homens. E ela se apaixonará pelo flautista, Robert lhe dará surras, ela morrerá um dia tuberculosa como a mãe. E não terá filha que se prostitua para arranjar dinheiro com que comprar remédio. Mas não é que ela vai sair com o em pregado no comércio? Não, o negro Antônio Balduíno não consentirá. Ele irá roubar o dinheiro de Luigi, dinheiro que é para a comida do leão, mas não deixará que ela perca a virgindade. Se atira para a frente e encosta a mão no ombro do rapaz:

    – Solte ela.

    – Vá se meter em sua vida.

    A mulher tem os olhos distantes.

    – Ela é donzela, você não sabe? Ela tá vendo se salva a mãe que vai morrer. Mas não adianta.

    O rapaz empurra o negro com a mão... Antônio Balduíno, de tão bêbado que está, cai por cima de uma mesa. Chora como uma criança. O rapaz sai com a mulher que lá fora diz:

    – A cachaça daquele deu pra me achar donzela.

    Mas por que é que o rapaz está rindo? Ela também quer rir, quer rir muito da cachaça do negro, mas não pode, tem um nó na garganta. Uma angústia repentina a toma toda e ela, sem explicações, abandona o homem que ainda ri sem compreender, e vai sozinha para o seu quarto, onde dorme um sono de virgem do qual não acordará mais porque tomou cianureto.

    No cabaré Antônio Balduíno cada vez mais bêbado canta entre aplausos e toma a velha de Robert, o equilibrista. Sai um princípio de barulho com o dono do cabaré porque eles não têm com que pagar as bebidas. Ao voltar para o circo entra na barraca de Rosenda Rosedá, que foi para isso mesmo que ele bebeu tanto.

    Luigi vive de lápis em punho fazendo contas. E leão berra tanto na sua jaula não é de ferocidade que tão manso como o cavalo Furacão.

    Ele berra assim é de fome, porque nem dinheiro para a sua comida o circo tem.

    Não adianta Luigi fazer tantas contas. Há dois dias que Giusepe não bebe, porque nem para uma pinga ele arranja dinheiro e ninguém lhe fia mais. E para Giusepe a vida é triste sem cachaça. A cachaça o transporta ao passado, traz para junto dele aquelas a quem ele amou e que já morreram. Sem bebida ele tem que tomar conhecimento das dificuldades do circo, da falta de dinheiro que torna os artistas brutos e preguiçosos. Nunca mais o circo pegou uma enchente como a da noite de estréia. Esses quinze dias em Feira de Santana têm sido maus. Em dois espetáculos o circo deu todos os números e em dois espetáculos toda a população veio ao circo, Só na outra segunda.feira ainda houve gente: alguns camponeses que ficaram da -feira. Assim mesmo poucos porque não havia luta e eles gostavam era de luta. Não tinha aparecido mais nenhum adversário para Antônio Balduíno. Não valera a pena a empresa aumentar para dez contos o prêmio ao vencedor, e Baldo, o boxeur, apostar dois contos na sua vitória. A fama do negro correra pela redondeza e ninguém queria passar pela vergonha de apanhar. Agora Antônio Balduíno suspendia marombas nos espetáculos pouco freqüentados do circo, lutava com o urso que se deixava vencer com a maior facilidade, e terminou acompanhando Rosenda Rosedá ao violão. Para ele pouco importava que existisse ou não dinheiro.

    Havia Rosenda. Não pensava noutra coisa. As noites passadas com Rosenda pagavam bem a maçada de suportar os porres de Giusepe, o silêncio de Robert, as queixas de Bolão que vivia se lastimando da vida.

    “Que abandonara o curso no segundo ano, tinha tirado até boas notas no exame, a não ser em direito civil que passara com simplesmente 4 por perseguição do professor, que não gostava dele desde a vaia na aula. O pai de Bolão parecia rico, toda a gente dizia que ele estava cheio do burro do dinheiro. O velho gastava como um homem de posses: morava numa casa de aluguel caro, piano para a filha, professores de francês e inglês, projetos de viagem à Europa. Era cardíaco e disso ninguém falava, nem ele sabia. Morreu de repente quando atravessava a rua. Foram ver, só tinha deixado dívidas. Fora assim que o Bolão terminara, usando o apelido que lhe tinham posto no colégio, no picadeiro de um circo vestido de azul com estrelas amarelas e uma lua vermelha nos fundilhos.”

    Repetia aquela história diariamente para terminar dizendo sempre:

    – Podia ter me formado. Me metia na política que sempre dei pra coisa e hoje era capaz de estar deputado.

    Fifi resmungava que a sorte é Deus quem dá. Antônio Balduíno escapava para a barraca de Rosenda onde esquecia Bolão, Fifi que queria ter uma velhice risonha, Giusepe que queria morrer, Luigi que fazia contas e Robert que não dizia nada nem reclamava o salário.

    Para o circo viajar para Santo Amaro venderam o cavalo Furacão e parte das tábuas das arquibancadas. Luigi fazia contas. Ninguém queria comprar o leão e o leão comia muito. Uma noite Robert desapareceu ninguém sabe para onde. Luigi pensou que ele tivesse roubado algum dinheiro, do pouco que o italiano tinha guardado na barraca para as despesas do dia seguinte. Mas Robert não levara nada. Devia ter ido no navio que partira naquela noite para a Bahia. Apareceu um homem para lutar com Balduíno, foi vencido no primeiro round e foi à custa desta luta que o circo se locomoveu para Cachoeira, passando novamente por Feira de Santana em dois caminhões. Quando chegara ocupara sete e assim mesmo por sovinice de Luigi que apertara tudo para caber tanta coisa em tão poucos carros. Agora iam em dois caminhões e chegava com sobra. Giusepe se recordava que quando viajaram para a França possuíam uma verdadeira frota, pois tinham dois barcos e por terra iam trinta e quatro carros enormes que levavam o pessoal. Giusepe bebeu e faz toda a viagem pensando nos grandes dias do Grande Circo Internacional. Luigi deposita esperanças em Cachoeira e São Félix. São duas cidades vizinhas e São Félix possui duas fábricas de charutos. Talvez até ele arme o circo em São Felix. Mas é interrompido por Fifi que pergunta como irá mandar dinheiro para o colégio da filha este mês. Luigi encolhe os ombros:

    – Nem sei como se vai comer.

    Bolão conta mais uma vez ao Homem-Cobra a sua vida. O Homem-Cobra ouve indiferente. No outro caminhão Antônio Balduíno e Rosenda Rosedá riem às gargalhadas. Antônio Balduíno pega do violão e canta um samba que começa assim:

“A vida é boa, mulata.

    Fífi pensa que não, Bolão também, Giusepe chora, Luigi se irrita. Somente o Homem-Cobra vai indiferente.

    Armaram o circo em São Félix. Circo é divertimento de gente pobre e São Félix uma cidade de operários. Apareceu um homem para lutar com Antônio Balduíno. Era um negro que já fora marinheiro. A luta foi vastamente anunciada. Luigi esfregava as mãos uma na outra, satisfeito da vida, e já ouvia sem se irritar os sambas de Antônio Balduíno. O palhaço correu a cidade, os homens comentaram, as mulheres riram. Na noite da estréia a frente do circo estava iluminada, veio a orquestra com os moleques atrás, pretas venderam munguzá na porta. As pessoas importantes trouxeram cadeiras e chegou muita gente de Cachoeira. Primeiro entrou Fifi (como a companhia estava reduzida, sem Robert e sem o cavalo Furacão, Luigi não fez apresentações) que andou no arame. Depois o palhaço divertiu os espectadores. Veio Rosenda Rosedá e dançou. Desta vez Antônio Balduíno não a acompanhou ao violão porque ele esta noite era Baldo, o gigante negro. Juju apresentou o macaco e o urso. Lá em cima estavam trapézios. Fifi faria outro número para encher o espetáculo. Estava na hora e os mata-cachorros prepararam os trapézios que ficaram balançando no ar. Todos olhavam para cima. Fifi apareceu de saiote verde, cumprimentou e subiu. Experimentava o trapézio quando uma figura invadiu o picadeiro vestida com uma roupa sovada de casimira e andando como bêbado. Era Giusepe. Luigi se precipitou atrás dele, mas como a multidão aplaudia pensando que fosse outro palhaço, deixou-o correndo pela arena e gritando para os espectadores:

    – Ela vai cair! Ela vai cair!

    O público ria. E riu ainda mais quando ele afirmou:

    – Eu vou salvar a pobrezinha.

    Ninguém conseguiu agarrá-lo mais. Subiu pela corda com uma agilidade que ninguém acreditaria possível nele, soltou o outro trapézio. Fifi do outro lado olhava assombrada, sem saber o que fazer. Os espectadores não percebiam nada. Luigi e dois mata-cachorros subiam para o trapézio. Giusepe deixou que eles se aproximassem e quando os sentiu bem perto voou com o trapézio, se soltou no ar, deu o mais belo salto-mortal de toda a sua carreira e procurou com as mãos aflitas o outro trapézio. Caiu no picadeiro e as suas mãos angustiadas, procurando o trapézio, pareciam dar adeus. Mulheres desmaiavam, pessoas corriam para a porta, outras se aproximavam do corpo. As mãos pareciam dar adeus.

 

“ABC de Antônio Balduíno”

 

Inverno

    O inverno lavou tudo. Lavou até as manchas de sangue que ficaram no lugar onde foi o picadeiro do Grande Circo Internacional. Luigi vendeu as tábuas da arquibancada, o pano grande, o macaco a um dos alemães das fábricas, distribuiu o dinheiro pelo pessoal e declarou o circo dissolvido. Juju partiu para a cidade de Bonfim por onde andava outro circo... Talvez arranjasse trabalho... Antes de partir disse aos outros:

    – Nunca vi um circo tão sem dinheiro... Mas eu gostava dele...

    Luigi juntou o leão e Fifi e foram peregrinar pelas cidades do interior, fazendo de barracões teatros, cobrando quinhentos réis de entrada. O Homem-Cobra deu um espetáculo em seu benefício no teatro local e desapareceu. Antônio Balduíno pensava que se ele fosse para as plantações de fumo seriam capazes de o tomar como a uma mulher. Ele às vezes parecia uma dama, outras vezes parecia um adolescente. Mas é que o negro não vira em Cachoeira um homem que um dia apreciara a estréia do circo em Feira de Santana. Um homem viajado, já estivera no Rio e na Bahia, e que se retirou do circo mal acabara o número do Homem-Cobra. Fugira num automóvel. Só depois é que se soube que a polícia procurava aquele homem que furtara todo o dinheiro de uma loja onde era empregado.

    Na divisão das coisas que Luigi não conseguira vender, o urso coubera a Antônio Balduíno e a Rosenda. Rosenda nem percebera que aquilo tinha sido combinado entre Antônio Balduíno e Luigi. O negro falou:

    – A gente não pode dividir o bicho... Para vender, a gente não acha quem dê um mil-réis de mel coado por ele.

    – O que é que a gente faz?

    – A gente leva ele pra Bahia. Tou pensando na minha cabeça que a gente pode ganhar dinheiro com ele na Feira de Água dos Meninos..

    – Ou no teatro... – arriscou Rosenda.

    – Também – o negro apoiava porque não quer discutir.

    No cais souberam que o saveiro de Mestre Man chegaria dois dias depois.

    Esperaram o Viajante sem Porto.

    Mas o inverno batia nas águas do rio. Chuvas grossas enfarruscavam a face das águas. O rio descia caudaloso e trazia troncos que arrancara nas plantações, cadáveres de animais, e passou até uma porta que a água tirara de uma habitação. As coroas de pedras haviam desaparecido e os homens não entravam mais pelo rio para buscar o peixe do almoço. O rio estava traiçoeiro e roncava como um animal dos matos. Grupos ficavam a espiá-lo de cima da ponte e ele passava embaixo como uma serpente. De cima vinha cheiro doce de fumo. O rio já engolira dois saveiros nesse inverno. Havia uma operária enlutada numa das fábricas.

    Caem grandes cargas-d’água durante a noite. Não há, por conseqüência, razão para Rosenda Rosedá sair esta noite da pensão de Dona Raimunda e inventar esta história de passeio. Foi para Cachoeira com certeza. Ela queria era deixá-lo ali como uma besta, tomando conta do urso, que andava impaciente com a chuva que desabava no telhado, com o ruído do rio, com o cheiro de fumo. Não podem deixar o urso sozinho, isso é verdade. Mas para que este passeio de noite? – e o negro Antônio Balduíno bate a mão fechada na mesa. Se ela pensa que ele é burro, que não entende, está enganada. Ela pensa que ele não viu aquele alemão atrás deles a noite em que Giusepe morreu? Nunca mais deixara de segui-los, de procurar conversa, de dizer coisa. Por duas vezes Antônio Balduíno quisera interrogá-lo, perguntar o que ele queria. Agora se lembrava bem que uma tarde dissera a Rosenda:

    – Eu vou perguntar a este gringo se ele nunca me viu...

    Rosenda achou que não valia a pena, que era besteira brigar, que com certeza o gringo nem estava olhando para eles. E o arrastou dali. Mulher quando quer tapa os olhos da gente. Mas agora ele estava com os olhos bem abertos e compreendia. Ela saíra para se encontrar com o branco. Andariam por qualquer parte, ela abrindo as coxas para ele. Negra sem-vergonha aquela! Que era gostosa era mesmo, mas ele não era homem de ser enganado assim. Sempre se gabara de largar as suas amantes e Rosenda queria brincar com ele. Onde andaria? Teriam se metido num hotel? Era bem capaz, que o gringo era sujeito de dinheiro. Mas ele os pegaria e daria uma lição. A chuva bate no telhado. Valerá a pena sair para procurá-los? Talvez seja melhor ficar em casa e trancar a porta do quarto. Ela que durma na rua. Porém, mal formula este pensamento, sente falta do corpo esguio e quente de Rosenda. Demais, ela quando dorme com um homem é como se dançasse. Sabe coisas aquela negra! Antônio Balduíno sorri. A noite é fria, a chuva cai com violência. Um gato se enrosca nas suas pernas procurando calor. A cama velha é macia. Bom colchão o daquele quarto. Em muita pensão cara não tem um colchão assim. E Rosenda em que cama estará com o gringo? Talvez seja um colchão duro. Ela merecia uma surra. Não vale a pena, um homem matar outro por causa de uma vagabunda como Rosenda. Ele esfaqueou Zequinha mas Arminda era uma menina de doze anos, que nada sabia da vida. Aquele negro, que há poucos dias foi condenado a dezoito anos de prisão, matou um gringo, mas Mariinha era donzela e noiva do negro. Ele devia era dar uma surra no alemão e largar Rosenda por aí. Mas como está frio! Bota o gato no colo. O bichano fica satisfeito, esfrega a cabeça nas suas pernas. Assim ele não sairá para procurá-los. O urso está inquieto. Talvez ele tenha medo da chuva, talvez tenha saudades de alguém. Mas urso lá pode ter saudades? Coitado daquele urso... Há quantos anos não vê uma fêmea? Antônio Balduíno não pode passar uma semana sem ter mulher – ri com satisfação. Talvez o urso seja capado. Vai examinar. O animal se encolhe zangado. Não é capado nem é macho. Ë fêmea, isso sim. Que irá fazer com aquele urso na Bahia?.

    Bom seria soltá-lo no Morro do Capa-Negro. Pensariam que era um lobisomem. A chuva melhorou. Ele se levanta. Irá procurar Rosenda. Sacode o gato longe. Mas Rosenda Rosedá acaba de entrar e vem rindo, os dentes brancos à mostra.

    Repara logo na cara zangada de Antônio Balduíno. Vem rindo para o negro.

    – Tá zangado, benzinho? Foi o urso?

    – Você faz de besta, negra. Então pensa que eu não sei que você foi se encontrar com aquele gringo?

    – Que gringo, meu Deus?

    Será verdadeira esta surpresa que se estampa no seu rosto? Mas Balduíno pensa que mulher é bicho ruim e traiçoeiro. Toda vez que ele pensa em mulher ruim se lembra de Amélia, a empregada da casa do comendador. Amélia mentia cinicamente, com a mesma cara de quem está a dizer a maior verdade do mundo. Bem que Rosenda pode estar mentindo para cima dele com aquela cara inocente:

    – Então onde era que você tava?

    – A gente nem pode ir dar um dedo de prosa na casa de uma vizinha, gentes?

    – Vizinha...

    – É só ir perguntar à mulher de Seu Zuca. Eu tava lá... Ela conheceu uns parentes meus que teve por estas bandas.

    O urso impacientava-se cada vez mais. Antônio Balduíno agora sente pouca vontade de discutir. Está disposto a aceitar todas as desculpas. O que ele quer é deitar no colchão fofo tendo junto de seu corpo o corpo quente de Rosenda. A chuva aumentou novamente e escorre pelos telhados. Tem. uma goteira no meio do quarto que vai fazendo um buraco no chão de barro batido, O urso andava em volta da corrente. Rosenda o agarra, passa a mão na sua pele. Mas o urso continua impaciente. De nada valem as carícias de Rosenda. Antônio Balduíno, estirado na cama, pensa num meio de fazer as pazes. Ele quer é Rosenda junto dele, o corpo junto do seu, o ventre dançando encostado à sua barriga. Talvez amanhã lhe dê uma surra e a abandone. Porém, hoje não. Ele precisa dela, do seu corpo, da sua quentura. O pior é que já brigou e não pode fazer as pazes assim de repente. Ela ainda está zangada e agrada o urso. Ele não sabe como começar. Fecha os olhos mas ela não vem para a cama. E no entanto chove lá fora, o vento passa na rua zunindo, entra pela frincha da porta. Será que ela não sente esse convite? Ela está muito zangada. Talvez tenha razão. Bem que ela podia estar com a vizinha, aquela mulher de Seu Zuca que sabe da vida de todo mundo. Ela tira o vestido. O vestido não está molhado. Se ela tivesse ido longe, se tivesse ido com o gringo, volveria encharcada, com certeza. Ele ficou sozinho, começou a pensar besteira. O gato se enroscou nos seus pés e faz um calor gostoso. Mas o resto do corpo esta abandonado ao frio. A chuva bate no telhado. Ele se lembra de uns versos que o Gordo sabe. Falam da música da chuva no telhado e de uma mulher que chega pela madrugada. Ele não tem bem certeza se ela vinha a cavalo ou a pé. Caiu a combinação de Rosenda Rosedá e agora os seios da negra encheram o quarto. É só o que vêem os olhos de Antônio Balduíno. Poucas donzelas terão os seios que ela tem, eretos e duros. Antônio Balduíno atira o cigarro fora. E fazendo um esforço enorme diz:

    – Você sabe que este urso é uma ursa?

    – O quê?

    – O urso é fêmea, negra.

    Os seios se despencam sobre o peito. E no cenário da chuva e do frio, do vento que zune na rua, Rosenda dança unicamente para ele. Empurra com o pé o gato que sai miando.

    O Viajante sem Porto entrou no cais debaixo do aguaceiro. Maria Clara prepara um café para eles. Partirão logo noite, mal o saveiro esteja carregado. O urso fica amarrado no porão. Mestre Manuel dá notícias do Gordo que voltou a vender jornais e enterrou a avó. Jubiabá continua vivo a fazer feitiços e a prestigiar macumbas. Joaquim é visto diariamente na Lanterna dos Afogados com Zé Camarão. Antônio Balduíno quer notícias de todos os conhecidos e também da cidade, do cais, dos navios que chegam e partem. Novamente ele vai para o mistério do mar. Quando ele fugiu (tinha apanhado uma surra tremenda do peruano Miguez) não sabia rir mais. Andava com a cabeça atravancada com as histórias de Jubiabá, com a vergonha da surra que tomara, com o fim da sua carreira de boxeur, com o noivado de Lindinalva. Agora sabia rir de novo e iria com certeza gostar das histórias trágicas de Jubiabá. Porque na sua fuga de dois anos vira muita miséria. A sua gargalhada tem hoje um tom cruel. E no seu rosto há um talho. Foram os espinhos da noite do cerco. Mestre Manuel pergunta pela história daquele talho. Maria Clara fica espiando no fundo. Antônio Balduíno conta e pensa no mar, nos guindastes do cais, nos navios negros que partem na noite.

    Foi numa noite assim de temporal que Viriato entrou pelo mar adentro. Os siris habitaram o seu corpo e chocalhavam. Também o velho Salustiano foi procurar no mar o caminho de casa. E uma mulher que se jogara na água com uma pedra no pescoço? O saveiro balança nas águas em cima das coroas de pedra. Hoje ninguém vê as coroas. As águas taparam tudo e Mestre Manuel não cederia o leme a ninguém.

    Seria rápido. O saveiro bateria numia coroa, acabaria a conversa entre Maria Clara e Rosenda Rosedá. (Maria Clara tem os cabelos em desordem atirados pelo vento e deles vem um perfume de mar. Talvez ela nunca tenha habitado numa casa, talvez seja filha do mar.) O cachimbo de Manuel se apagaria. E as águas do rio cobririam tudo que o rio está cheio e chega a fazer ondas como se fosse o mar. Mas Mestre Manuel não cede o leme a ninguém. O vento sacode as árvores nas margens. Muito ao longe brilha a lanterna de outro saveiro. Na escuridão dos matos os vaga-lumes piscam. O vento carrega o saveiro que voa sobre as águas como uma lancha a gasolina. Neste momento, no meio do temporal, eles estão bem perto da morte. Um desvio do leme e eles se jogarão sobre as coroas de pedra que estão invisíveis. Antônio Balduíno vai de papo para o ar, pensando estas coisas. No céu não vê nenhuma estrela, somente nuvens negras e carregadas correm açoitadas pelo vento. De Maria Clara vem este cheiro de maresia. E o mar está próximo. O saveiro está chegando na boca da barra. As margens do rio vão ficando para trás, os povoados dormem sem luz. Antônio Balduíno pensa que afinal a vida é besta, que não vale a pena viver. Viriato, o Anão, sabia destas coisas. E a estrada do mar é larga. Hoje é larga e revolta. O dorso verde do mar se agita. Também é um convite. Ele, negro valente e decidido, desde criança pensava em ter um ABC que contasse aos outros negros a sua história cheia de lances de coragem. Se ele fosse engolido agora pelas águas, não contariam a sua história. Um negro valente não se mata, a não ser para não se entregar à polícia. E um homem de vinte e seis anos ainda tem muito que viver, ainda tem que brigar muito para merecer um ABC. Mas o mar é um convite. Ali está o caminho de casa. Vem de Maria Clara um cheiro de maresia. Ela fala no mar, conta casos acontecidos com mestres de saveiros, histórias de naufrágios e de mortes. Fala em seu pai que foi pescador e desapareceu numa jangada no meio de um temporal. Dela vem o cheiro do mar. Nela o mar está sempre presente, é amigo e inimigo e já se incorporou nela. No negro Antônio Balduíno nada se incorporou. Já foi tudo e não é nada. Sabe que luta e que precisa lutar ainda mais. Porém, tudo isto aparece muito esfumaçadamente dentro dele. A sua luta é uma luta perdida. Ele o sente nos nervos que afrouxaram. Como se desse socos no ar. E agora o mar o chama, como na vinda o chamavam os lábios de Maria Clara. Mestre Manuel aponta. Ao fundo aparecem as luzes da Bahia. O vento voa em redor das suas cabeças. E traz todo o perfume de mar que está no corpo de Maria Clara. As luzes da Bahia faíscam como uma salvação.

    Rosenda Rosedá ficou na casa do Gordo. Jubiabá veio de noite e eles beijaram a sua mão, O negro velho se acocora a um canto. A luz do fifó bate em cheio na sua cara enrugada. Na casa do Gordo não tem luz elétrica. O Gordo sorri na alegria de rever o amigo. Todos ouvem as histórias de Antônio Balduíno. O urso dorme a um canto. E resolvem que no dia seguinte irão todos para a Feira de Água dos Meninos, para ver se ganham algum dinheiro com o trabalho do urso. Descem para a Lanterna dos Afogados, onde se embriagam. Depois Antônio Balduíno leva Rosenda Rosedá para o areal e a ama diante do mar. Mas ela se queixa da areia que dói no seu corpo e que se meteu no seu cabelo alisado a ferro. O negro ri com gosto. O vulto dos guindastes no cais.

    A Feira de Água dos Meninos começa na noite do sábado e se estende pelo domingo até ao meio-dia. Porém, na noite de sábado é que é bom. Os canoeiros atracam as suas canoas no Porto da Lenha, os mestres de saveiros deixam os seus barcos no pequeno porto, homens chegam com animais carregados, as negras vêm vender mingau e arroz doce. Bondes passam perto, cheios de gente. Todo mundo vem à Feira de Água dos Meninos. Uns vêm para comprar mantimentos para a semana, outros vêm pelo prazer do passeio, para comer sarapatel, para tocar violão, para arranjar mulher. A Feira de Água dos Meninos é uma festa. Festa de negro, com música, violas, risadas e brigas. As barracas se estendem em filas. Porém a maior parte das coisas não está nas barracas. Está em grandes cestos, em caçuás, em caixões. Camponeses de chapéu largo de palha, sentados ao lado, conversam animadamente com os fregueses. Raízes de macaxeira e de inhame, montes de abacaxis, laranjas e melancias. Tem todas as espécies de banana na Feira de Água dos Meninos. Tem de tudo na feira. Um homem que tira sorte com um periquito. Custa duzentos réis cada sorte. Rosenda Rosedá tirou a sua. Dizia o seguinte:

“SORTE

    Não confies em pessoas que te adulam porque tudo é falso. És ainda ingenua por julgares a todos por ti. Tendes um bom coração e não julgas ninguem máu. Mas tudo isso não inspira muito cuidado porque nascestes n’uma boa estrella. A sua mocidade será uma correnteza de amores e terás no amor muitas desavenças. Casarás por fim com um rapaz a quem menos importância darás no principio e por fim tomará posse no teu coração, que será o unico que amará a vida inteira com verdadeiro affecto. Darás luz a 3 lindos bebés, os quaes criarás com muito cuidado e te trarão verda deira paz ao coração.

    Viverá 80 annos. Terás sorte na Loteria com o n. 04554. – S.U.O”

    Rosenda riu, Antônio Balduíno avisou:

    – Você vai parir três vezes.

    – Uma cigana disse que eu ia ter oito filhos. E que ia fazer uma viagem grande. A viagem já fiz. Vim do Rio pra Bahia. Ela acertou.

    Mas Antônio Balduíno pensa no pedaço da “sorte” em que diz: “a sua mocidade será uma correnteza de amores e terás no amor muitas desavenças”. Decididamente ele está enrabichado pela negra. Até parece que ela fez mandinga com pai Jubiabá. Jubiabá não veio à feira. Ainda é cedo para ele. Hoje é sábado e vai muita gente procurar o pai-de-santo. Gente que sofre. Uns, doentes que querem remédios para o corpo: feridas, tuberculose, lepra, moléstia da vida. Jubiabá vai distribuindo folhas e rezas. Outros vêm porque sofrem traição de mulher, ou porque desejam uma mulher que não dá ousadia, vêm em busca de feitiços fortes, de mandinga, de coisa-feita. No domingo as ruas amanhecem cheias de mandinga. Pai Jubiabá protege amores, acaba amores, arranca mulher de cabeça de homem, bota homem na cabeça de mulher. Sabe segredos de graúdos, sabe da vida dos pobres, o que é que ele não sabe na sua casinha do Morro do Capa-Negro? Mais tarde ele virá arrimado ao bordão. Já curou gente, já acertou os negócios de muitas pessoas. Chegará ali onde eles param agora. O Gordo já chegou com o urso. Antônio Balduíno atrapalha sempre a vida do Gordo. O Gordo está muito bem, vendendo os seus jornais quando Balduíno chega e arranja outro negócio. Ele larga os jornais, segue o amigo. De repente tudo acaba e o Gordo volta a apregoar jornais com sua voz sonora e triste. Agora está com esse urso pra cima e pra baixo. Não princípio ele tinha medo do urso. Mas depois se acostumou com o bicho e, como sua avó já morreu, é todo carinhos com o urso que tem comida farta mesmo que o Gordo fique com fome. O urso está ali amarrado pelo focinho, pronto para ganhar a vida. Camponeses se reúnem em redor do Gordo que inventa uma história para o urso. Mas ele se encontra com uma dificuldade: urso terá anjo da guarda? Ele nunca ouviu dizer. Mas histórias sem anjos perdem a graça e o Gordo resolve dar um anjo ao urso, quando Balduíno chega e repete o que ouvia Luigi dizer acerca do leão:

    – Esse monstro que tá aqui, respeitável público, foi pegado nas selvas africanas. É três vezes assassino, já matou três denodados domadores. (Se lembra palavra por palavra do discurso que Luigi repetia todas as noites.) É um assassino... Pois ele irá trabalhar e todos podem observá-lo porém com cuidado. Não se esqueçam que ele já matou três...

    O Gordo olha para o focinho do urso e descobre que ele tem uns olhos meigos de criança e é incapaz de matar quem quer que seja. Não é direito que Balduíno o chame de assassino. Mas o urso está andando de cabeça para baixo e o grupo aumenta em torno. Rosenda lê a mão dos homens. Eles gostam porque ela faz uma cócega engraçada que dá uma comichão no corpo. Rosenda sabe ganhar dinheiro. Diz rindo para um mulato pachola:

    – Tem uma cabrocha que está doidinha por você...

    O mulato sorri para Rosenda. Bem que podia ser ela mesma. Ela vai guardando os níqueis de cruzado. O Gordo recolhe dinheiro para o urso no chapéu de palha. Antônio Balduíno, muito elegante com sapatos vermelhos e camisa vermelha, faz o elogio do bicho. A feira se movimenta em redor deles.

    Um automóvel está parado na rua. Enguiçou. O chofer se mete debaixo do carro a procurar o motivo da encrenca. Um homem explica ao grupo.

    – Não estou dizendo? Máquina não vale de nada... O cavalo Fogoso nunca encrencou. Vocês já viram um cavalo encrencar?

    Antes ele estava contando a história do cavalo Fogoso que seu cunhado possuía. Ele é contra o cavalo motor. Faz a apologia do cavalo animal, do carro de boi. Citava a Bíblia. Jubiabá ouve encolhido. Os outros cortam a conversa com sinais de aprovação. Quando Jubiabá chegou eles contaram o dinheiro que tinham ganho – cinqüenta e nove mil-réis, uma fortuna – e ficaram se divertindo na feira que está animada. O urso vai atrás deles. Em frente à barraca onde Joaquim bebe, eles todos param. E ficam ouvindo o homem que contava a história do cavalo Fogoso:

    – E naquele tempo, quando não tinha aquilo – aponta o auto encrencado – os homens viviam muito... Matusalém viveu novecentos anos... Tá na Bíblia...

    – Tá mesmo – apóia um mulato claro e velho.

    – Todo mundo vivia duzentos anos, trezentos. Cem então era besteira. Veja na Bíblia...

    – Dizque papagaio vive mais de cem anos...

    O homem olhou zangado para o aparteante. Mas quando viu que era Rosenda fez um sorriso.

    – Vivia mesmo. Noé viveu não sei quanto tempo. Naquele tempo era carro de boi.

    Bebeu a pinga. O mulato claro apoiou:

    – Era, sim.

    O mulato queria provar que também tinha conhecimentos. Um negro apoiava com a cabeça. Estava admirando o homem que citava a Bíblia.

    – Um homem saía de casa num carro de boi, sabia que chegava onde queria ir. Agora um sujeito sai num bicho destes – apontava o auto desmoralizado – e fica no meio do caminho... Falta gasolina. Em carro de boi nunca faltou gasolina. É por isso que hoje os homens morrem meninos. Máquina não é invenção de Deus. É coisa do diabo.

    O mulato claro apoiou. O homem continuou:

    – No tempo do carro de boi mulher dava à luz com cem anos...

    – Tá, nisso eu não acredito. Me desculpe, mas mulher parir com cem anos não me entra... – declarou Antônio Balduíno.

    Todos riram, menos o mulato claro.

    – Pois está na Bíblia... – fez o homem.

    Mas não havia jeito de Antônio Balduíno acreditar. “Mulher parir com cem anos?” Não, ele não ia nisso. Aquele homem estava fazendo eles de besta, bobeando todo mundo com aquelas histórias. E ele vai abrir a boca para dizer isto mesmo, quando Jubiabá fala:

    – No tempo do carro de boi tinha negro com fome. Hoje também tem. Pra negro é a mesma coisa.

    O mulato velho apóia:

    – Ah! Isso é mesmo – e alarga o conceito – para pobre.

    Mas a feira está vivendo atrás deles e, enquanto Jubiabá conversa com o homem que odeia os automóveis (ele agora está contando a história de uma doença que sofre há muitos anos), saem pela feira, sem rumo definido, parando nas barracas, conversando com os camponeses, comendo coisas. Um homem bêbado olha Rosenda e diz:

    – Eta! Mulata batuta...

    Antônio Balduíno se ofende mas Rosenda não o deixa

    – Não está vendo que o homem tá bêbado?

    – E ele não está vendo que você vai com um macho?

    Não, o homem não está vendo nada que ele bebeu muito em todas as barracas onde tem cachaça. Mas soube ver Rosenda, soube ver que ela é uma cabrocha bonita. Já afastado Antônio Balduíno ainda tem vontade de voltar e interrogar o homem.

    Mais adiante sai um barulho. Jubiabá vem dizer que vai embora. Atrás dele segue o homem que odeia os automóveis e que agora tem uma grande confiança de se curar com as rezas de Jubiabá. O barulho aumentou no outro lado da feira. Antônio Balduíno nota que o Gordo não está com eles. Pergunta:

    – Quedê o Gordo?

    – Deve estar aí com o urso.

    Joaquim só tem olhos para Rosenda. Se ela não estivesse amigada com Balduíno bem que ele lhe passaria uma cantada. Ele sabe lá onde anda o Gordo.

    – Aquela briga é com o Gordo – diz Antônio Balduíno que se afastou um pouco.

    – Com o Gordo? – Rosenda se espanta.

    Antônio Balduíno e Joaquim correm. Rosenda apressa os passos. O Gordo se defende das pancadas de um sujeito que puxa a corrente do urso. Os homens em torno gritam:

    – Deixa... Deixa ver.

    Antônio Balduíno atravessa o grupo, bota a mão no ombro do Gordo:

    – O que é que ele quer?

    – Quer enfiar o charuto no nariz do urso.

    – Só para ver o que é que ele faz... – ri o homem, mostrando o charuto aceso. O homem tem uma cicatriz no queixo e o bigode ralo em cima do lábio. – Ele tem uma cara tão engraçada. Vou botar...

    Riem em redor. Antônio Balduíno morde a mão. Joaquim está por detrás do homem, que ouve o que lhe dizem os dois mulatos. O homem de charuto resmunga:

    – Que nada... Besteira... Vou botar.

    – Pode botar – diz Antônio Balduíno.

    O homem se aproxima do urso. Levanta o charuto. O urso recua. Mas agora o charuto está junto do focinho do bicho e o Gordo vai gritar. O homem se estende no chão com o soco de Baldo, o boxeur. Os dois mulatos que estavam por detrás do homem avançam para o negro. Mas um deles fica nas mãos de Joaquim e o outro recebe na boca do estômago o pé de Antônio Balduíno. O Gordo quer dar uma pancada no homem do charuto que está se levantando. Mas acerta na cara de um negro que não tem nada com a história e que revida. O irmão do negro também entra na briga. Mestre Manuel, que vendia abacaxis, aparece, com ele vêm mais três. É Antônio Balduíno quem está brigando, então ele briga também. E os três rapazes que o acompanham entram com ele no barulho. Vários homens entram para desapartar e ficam metidos na briga. Um soldado puxa um sabre. Mas de que vale um sabre contra tantas navalhas que brilham? Um guarda apita inutilmente na rua. Antônio Balduíno soqueia com força um sujeito que ele não sabe quem é, um sujeito que não tinha nada a ver com o negócio, que só entrou para desapartar. O homem do charuto bate num dos que entraram de seu lado. O Gordo se afastou com o urso e aprecia a cena, Rosenda Rosedá morde os homens que atacam Balduíno, está com o vestido rasgado e tem na mão uma navalha que tirou da meia. Toda a Feira de Água dos Meninos briga. Briga por brigar, sem saber a causa, pelo prazer físico de se atracar com outro, e de rolar na areia trocando socos. Os negros esqueceram tudo, as raízes de inhame, os montes de tangerina, os abacaxis, e os beijus. Querem agora é brigar, que brigar é bom como cantar, como ouvir uma história, como mentir, como contemplar o mar da noite do cais.

    O Gordo furta uma garrafa de cerveja para o urso. Alguém grita:

    – Lá vem a cavalaria.

    Rápido como começou, o barulho acaba. Os homens voltam às suas barracas, os seus montes de frutas e beijus. A cavalaria não encontra mais nada, apenas um pouco de sangue no local. Um homem tapa o talho que tem no rosto com um lenço. As navalhas desapareceram. E os negros riem satisfeitos porque nesta noite já se divertiram. O homem do charuto diz a Antônio Balduíno

    – Foi um turumbamba dos diabos.

    Oferece cerveja, alisa a cabeça do urso. A chuva cai molhando os negros.

 

Criouléu

    O Liberdade na Bahia ficava na Rua do Cabeça, num segundo andar servido por uma escada estreita. É uma sala ampla, cadeiras em redor das paredes para as damas, um estrado onde ficava o jazz. Há ainda um pátio de cimento com mesas, onde é servida a bebida, pois é rigorosamente proibido beber na sala de baile. Ao lado a latrina, O quartinho onde as damas arranjam o cabelo é bem pequeno, mas tem um espelho grande, um banquinho para elas se sentarem. Tem também um pente e uma lata de brilhantina. Nos dias dos grandes bailes – quando o carnaval se aproxima ou se aproximam as festas do Bonfim – a sala fica engalanada com flores e com fitas de papel de todas as cores. Mas agora o que está próximo é o São João e do teto pendem balões inúmeros e inúmeras bolas cheias de vento. Vai ser uma festa de arrocho a de São João. O Liberdade na Bahia tem tradições a zelar e o seu baile de junho reunirá, sem dúvida, toda a criadagem das casas mais ricas, todas as mulatas que vendem doces na rua, os soldados do 19, os negros que estão espalhados na cidade. É o criouléu mais célebre da cidade. Na Bahia não são muitos os criouléus. Os negros preferem ir dançar nas macumbas a dança religiosa dos santos e só vêm aos criouléus nos dias de grande baile. Mas o Liberdade na Bahia conseguiu o apoio de Jubiabá que ficou sendo presidente honorário e assim prosperou. Demais tinha um jazz do barulho, que se formara ali, mas que andava ganhando dinheiro nas festas da cidade. Festa de gente rica sem o Jazz dos 7 Canários não prestava. E os negros até já vestiam smoking. Porém, eles davam tudo era na festa do Liberdade na Bahia. Não havia dinheiro que fizesse o jazz tocar em outra festa nos dias em que o criouléu dava baile. Ali eles dançavam, vestiam uma roupa qualquer, estavam entre amigos e havia discursos. O Liberdade na Bahia andava no auge e tinha tradições a zelar. Preparava-se o baile de São Joâo.

    Toda vez que Antônio Balduíno via o Jazz dos 7 Canários pensava em ser maestro de uma banda de música ou de um jazz. De uma banda de música seria melhor porque os seus componentes vão fardados e o maestro vai na frente, de costas, com uma batuta na mão. Antônio Balduíno amava as cores vistosas, as fardas rutilantes dos maestros de bandas de música. Os homens do jazz vestiam uma roupa qualquer ou envergavam (nas festas ricas) smokings que não tentavam o negro. Assim mesmo, na falta da banda de música ele se contentaria com ser o chefe do jazz, aquele que canta e sapateia.

    Há muito tempo que ele não fazia um samba. Também, nas plantações de fumo, ele não tinha tempo para nada. Porém, agora, mal voltara para a Bahia, fizera dois sambas que até no rádio tinham sido cantados e, mais do que isso, fizera o ABC de Zumbi dos Palmares, onde cantava a vida que imaginava para o seu herói. Pelo seu ABC nascera na África, brigara com leões, matara tigres e, um dia, enganado pelos brancos, entrou num navio que o trouxe escravo para as plantações de fumo. Mas ele não gostava de apanhar, fugiu, lutou junto com outros negros, matou muitos soldados e para não se deixar prender se jogou de uma montanha abaixo:

             “África onde eu vi a luz

             eu me alembro de ti

             vivia solto, caçando

             comendo fruta e cuscuz.

             Palmares onde eu briguei

             Lutei contra a escravidão

             Mil polícias aqui veio

             e nenhuma não voltou.

             Zumbi dos Palmares então

             do morro abaixo se jogou

             dizendo: meu povo, adeus, vou morrer

             porque escravo eu não sou”.

    O Gordo decorara logo o ABC e o recitava nas festas acompanhando ao violão.

    Antônio Balduíno procurou aquele poeta que lhe comprava os sambas para ver se ele queria ficar com o ABC. Mas o poeta só quis os dois sambas, disse que o ABC não valia nada, que os versos estavam quebrados e outras coisas que Balduíno não entendia. O negro se zangou porque achava o ABC muito bonito e, depois de ter recebido trinta mil-réis pelos dois sambas, disse um bocado de desaforos ao poeta que não reagiu. Com a alma leve Antônio Balduíno se retirou e cantou o ABC para Rosenda e Jubiabá que o acharam uma beleza. Jubiabá arranjou com Seu Jerônimo do mercado que o ABC saísse na Biblioteca do Povo (coletânea das melhores poesias sertanejas, trovas populares, histórias, modinhas, recitativos, orações, receitas úteis, anedotas, etc., ao preço de duzentos. réis). Saiu junto com a História do boi misterioso e com O caboclo e o recém-nascido e depressa foi decorado pelos estivadores do caís, pelos mestres de saveiros (que o levaram para os cegos das cidades do Recôncavo), pelos malandros da cidade, por todos os negros. Agora Antônio Balduíno só pensava em entrar para o Jazz dos 7 Canários.

    Era sócio do Liberdade na Bahia mas não aparecia muito por lá. Tinha sempre festas aonde ir e no Liberdade na Bahia a bebida era paga e bóia não havia. Só mesmo por. causa de uma mulata ele se abalava para o clube onde Seu Juvêncio, o secretário, um negro gordo que era também mestre-sala, lhe dizia invariavelmente:

    – Até que enfim, Seu Balduíno, deu essa honra ao clube. Parece que despreza a gente.

    Não desprezava nada. Mas no Liberdade na Bahia não podia dançar agarrado que era proibido, não podia ficar conversando com a dama no meio da sala, não se admitia gente bêbada. Tudo isso desagradava ao negro que não sabia se conter, que apertava as negras na dança, que muitas vezes ficava bêbado. Lembra-se bem da primeira vez que fora ao clube. Fazia muito tempo. Mal entrara tivera uma briga com Seu Juvêncio. O jazz estava tocando num entusiasmo delirante. Por sinal que era um dos seus sambas, dos primeiros que vendera ao poeta. Ele tirou uma mulata para dançar (a Isolina, com quem andava de namoro). Começaram a dançar pela sala e o negro apertou a mulata. Foi o que bastou para. Seu Juvêncio se meter:

    – Isso não pode... – Seu Juvêncio era um mestre-sala muito rigoroso.

    – Que é que não pode?

    – Isso aqui não é lugar para molecagem.

    – Quem é que está fazendo molecagem?

    – O senhor com esta dama.

    Balduíno mandou a mão na cara do secretário. Formou barulho, mas Jubiabá se meteu e desapartou. Seu Juvêncio explicou que tinha que manter a moral do clube. Se fosse permitir molecagem ali, as famílias não viriam mais e que haviam de dizer os pais das moças donzelas que confiavam no clube? Não importava que ninguém se gostasse. Isso não. Ele lá tinha nada com a vida dos outros! Mas dentro do clube, não. Ali queria respeito e muito respeito. Ali não era casa de mulher-dama. Era uma sociedade recreativa e dançante. Isso sim. Antônio Balduíno achou que ele tinha razão e fizeram as pazes. O negro continuou a dançar e a beber. Acontece que o Gordo veio também e ficaram muito alegres. Mas quase à uma hora da manhã um sargento do exército começou a dançar muito escandaloso com uma branca. Seu Juvêncio reclamou a primeira vez, o sargento nem ligou. Seu Juvêncio reclamou de novo. Na terceira vez disse que o sargento não podia continuar dançando. O sargento empurrou Seu Juvêncio. Antônio Balduíno se meteu, apoiando Seu Juvêncio, derrubou o sargento que saiu desmoralizado, ameaçando. Depois foi beber uma cerveja com o secretário. Mas não é que o sargento voltou com uma turma de soldados? E saiu um barulho feio. Foi uma pancadaria medonha. Houve quem se trancasse na latrina e até tiros os soldados dispararam. A festa acabou com cabeças quebradas e gente na cadeia. Antônio Balduíno conseguiu escapar. Ficou célebre no Liberdade na Bahia e quando aparecia, Seu Juvêncio fazia muita festa, mandava descer cerveja. Mas a verdade é que ele preferia as festas do Morro do Capa-Negro, das ruas de Itapagipe, do Rio Vermelho, aos bailes do Liberdade na Bahia. No carnaval, sim, é que gostava do clube porque saía vestido de índio, com penas vermelhas e verdes, cantando canções de macumba. No carnaval era bom. Mas no São João ele preferia ir para a festa que João Francisco dava na sua casa, no Rio Vermelho, com uma fogueira enorme na Porta, um mundo de balões, foguetes, muita canjica e licor de Jenipapo Mas esse ano teria que ir ao Liberdade na Bahia, pois Rosenda Rosedá fizera um vestido de baile e queria estrear na festa do clube. Era vaidosa aquela mulatas Ele bem preferia ir à festa de João Francisco.

    Antônio Balduíno vinha pensando que Rosenda Rosedá estava ficando insuportável. Queria mandar nele. Um dia destes ele dava-lhe um pontapé e a botaria para fora de casa. A negra vivia querendo coisas, fizera vender o urso para comprar um vestido de baile (podia comprar à prestação a um turco), naquele dia pedira um colar que vira numa casa da Rua Chile por doze mil-réis. Ele saíra para comprar mas se encontrara com Vicente e deu dez mil-réis para o enterro de Clarimundo, que morreu debaixo de um guindaste no cais do porto. O sindicato ia fazer o enterro mas os estivadores queriam arranjar algum dinheiro para a viúva e andavam fazendo uma coleta. Iam levar uma coroa também. O pobre morrera debaixo do guindaste, aquela bola de ferro batera na sua cabeça (ele carregava um fardo e não podia olhar para cima), e deixava a mulher com quatro filhos pequenos. Antônio Balduíno deu os dez mil-réis e ficou de falar com Jubiabá para ver se o pai-de-santo conseguia arranjar mais alguma coisa para a mulher. Balduíno conhecera muito o negro Clarimundo, sempre risonho, cantando, e que casara com uma mulata clara. “Uma tábua”, como dizia Joaquim. Um bom companheiro, que desapertava um amigo quando estava com dinheiro. Agora tinha morrido, a mulher ia viver do que os outros dessem. De que valia trabalhar, viver debaixo dos fardos carregando os navios? Depois morria e deixava os filhos sem ter de que viver. O velho Salustiano pegara e se jogara na água. E foi de tanto pensar nestas coisas que Viriam, o Anão, se matara numa noite de temporal. Antônio Balduíno não gosta de pensar nestas coisas. Ele gosta é de rir, de tocar violão, de ouvir as histórias bonitas do Gordo, as histórias heróicas de Zé Camarão. Mas hoje ele está aborrecido porque vai perder a festa de João Francisco. Tem que ir com Rosenda ao baile do Liberdade na Bahia. Antes passará na casa de Clarimundo que é no meio do caminho. Irá ver o morto que foi seu amigo. O melhor era não ir a festa nenhuma, era ficar fazendo sentinela ao morto. Ia falar com pai Jubiabá para que o feiticeiro fosse encomendar o cadáver. É bem capaz de Jubiabá estar em sua casa, conversando com o Gordo. A casa do Gordo fica perto do Morro do Capa-Negro e de vez em quando Jubiabá desce para conversar. Jubiabá não envelhece. Quantos anos ele terá? Já deve ter passado dos cem. Também sabe tanta coisa. Jubiabá aumenta a angústia que de quando em vez toma Antônio Balduíno. Jubiabá diz umas coisas que ficam dentro do negro e o fazem pensar no mar onde Viriato se jogou, onde o velho Salustiano esqueceu a fome dos filhos. Antônio Balduíno pensa que não é o mesmo, que não é tão alegre como antigamente. Agora pensa coisas tristes. E ali mesmo, na rua, o negro ri alegremente, alto. Transeuntes se voltam espantados. O negro continua a rir. Mas compreende que está rindo mais para irritar os outros que por alegria. Continua a andar com o passo mole apressado. Parece até que está correndo. Porém, quando chega a casa já ficou calmo, e pensa na roupa branca que vai botar no baile da noite.

    – Meu colar, benzinho?

    Antônio Balduíno olha para a mulata com uma cara desconsolada. Só agora se lembrou do colar de Rosenda. Também dez mil-réis ficaram com Vicente para a mulher do Clarimundo. A prata de dois mil-réis está no bolso. Rosenda faz um ar desconfiado:

    – Você não trouxe meu colar?

    – Você sabe quem morreu?

    Mas não adianta porque Rosenda não conhece Clarimundo.

    – Eu tanto queria e você não trouxe... Só de ruindade... Depois diz que gosta de mim. Mas deixe estar...

    É véspera de São João e todo mundo está alegre na rua. Antônio Balduíno gostaria também de estar alegre. Os homens passavam por ele com as fisionomias risonhas e as casas de fogos estavam cheias de fregueses. Todos se preparavam para uma noite feliz. Soltariam traques e estrelinhas. Os negros só conversavam sobre a festa de João Francisco e sobre o baile do Liberdade na Bahia. No entanto Antônio Balduíno não pode ficar alegre esta noite. Clarimundo morreu e ele só pensa no estivador. Rosenda está implicando, fazendo-se de besta. Não responde às perguntas da negra que começa a chorar. Vai até a porta. Na casa de Osvaldo levantam uma fogueira. Vai ser enorme. No sobrado de fronte, moças procuram o retrato do noivo numa bacia cheia d’água. Todos estão alegres hoje. Só ele está triste, está aborrecido. Também a viúva de Clarimundo deve estar chorando Mas ela tem um motivo. Perdeu o marido. Mas ele não tem motivo algum a não ser o aborrecimento de Rosenda, Assim mesmo isto era besteira. Podia dar um pontapé nela e ir à festa de João Francisco. Ela anda muito chata. Antônio Balduíno sai da porta. Rosenda chora no quarto e diz que não vai mais, O negro pega o chapéu e vai para a casa de Jubiabá, avisar o pai-de-santo da morte de Clarimundo.

    Quando voltou, depois de ter conversado com Jubiabá e o Gordo (o Gordo partiu logo para o velório), encontrou Rosenda de cara amarrada mas se preparando para o baile.

    – Sabe, Rosenda, a gente tem que passar um minuto na casa de Clarimundo

    – Quem é Clarimundo? – perguntou ela amuada.

    – Um estivador que morreu hoje. Foi pro enterro dele que dei o dinheiro do colar.

    – E o que é que a gente vai fazer lá?

    – Ver a mulher dele, coitada.

    – Assim de vestido de festa?

    – O que é que tem?

    Porém, Rosenda está furiosa com o negócio do colar e fica resmungando que não está direito ir na casa de um morto com vestido de baile. Enquanto isso vai se aprontando. Antônio Balduíno toma o café. As palavras de Rosenda vêm do quarto.

    – Visitar defunto... Quem já viu?

    Ela bem que merecia uma surra... Mulata vaidosa! Queria ir de colar para a festa, o pescoço enfeitado de contas azuis. Um colar de doze mil-réis... Dez tinham ido para a viúva de Clarímundo. Os outros dois estavam no seu bolso. Davam para uma cerveja. Um colar no pescoço de Rosenda ficava bonito. Mas vermelho ficava mais bonito que azul. Antônio Balduíno gosta é de vermelho. Aquela negra sabia ser mulher. Em cima de uma cama não havia coisa melhor. Mas fora dali era besta, cheia de chiquês, de dengues. Uma negra dengosa. Gostava que lhe catassem cafuné. E vivia falando em entrar para o teatro sem querer se empregar como copeira. Que não nascera para aquilo, era o que dizia. O café esfriou. E além disso estava ralo. Café só bem forte para prestar. Nem café Rosenda faz direito. A mulher de Clarimundo é que fazia um café gostoso. Se ela não arranjar um homem é capaz de passar fome. Os tempos estão ruins e lavar roupa não sustenta casa de ninguém. Demais ela não agüenta. É tão magra... A voz de Rosenda vem do quarto, irritada:

    – Você quer ir ou não?

    – Por quê?

    – Nunca mais vem mudar a roupa. Que hora quer chegar? Ainda vai passar em casa de defunto. Que despropósito, meu Deus. Visitar defunto de vestido de baile. Nunca vi em minha vida se dizer.

    Antônio Balduíno veste o branco, mas, como vai passar na casa de Clarimundo, não põe a gravata vermelha. Sai aborrecido da vida. Rosenda também. Vão afastados como se não se conhecessem. Sobem balões para o céu. Acenderam a fogueira na casa de Osvaldo. Estouram traques e busca-pés.

    Clarimundo não verá mais os balões deste São João! Na sua porta, nesta data, nunca deixou de arder uma grande fogueira, nem de espocar foguete. Os amigos vinham beber vinho de jenipapo e cachaça. Antônio Balduíno veio muitas vezes. Soltavam busca-pés que corriam atrás dos transeuntes descuidados. Certa vez fizeram subir um balão colossal, de seis metros, em forma de zepelim, que tinha três bocas. Fora uma beleza. Um jornal deu o retrato no dia seguinte. A sala ficava cheia. Hoje também ela está cheia mas a fogueira não arde na porta. Estendido no caixão, Clarimundo tem os olhos fechados. Os balões passam no céu. Clarimundo não os vê. Não vê a fogueira da casa de Osvaldo. Nos outros anos eles apostavam para ver quem fazia fogueira maior. Este ano a de Osvaldo foi maior porque na casa de Clarimundo só tem a vela que arde ao lado do defunto. A cara ficou irreconhecível. A bola de ferro do guindaste amassou a cabeça do estivador, rebentou os ossos, acachapou tudo aquilo. Hoje, soltaram um balão em forma de zepelim também. Todos correm para as janelas para ver. Vai cheio de luzes atravessando o céu azul. Só Clarimundo não vê porque o guindaste o matou no trabalho do cais. Os outros estivadores estão ali. O sindicato vai fazer o enterro. Daqueles que estão ali, muitos vão ao baile do Liberdade na Bahia. Jubiabá é que não irá, pois está encomendando o morto. Na mão tem folhas que balançam. O Gordo também não irá, com certeza O Gordo vai ficar velando Clarimundo, ajudando Jubiabá na encomendação. Passam balões na noite. Clarimundo, negro Clarimundo, esta noite não tem fogueira na frente de tua casa. Mas o negro Antônio Balduíno tomará um porre por causa da tua morte. E de agora em diante olhará os guindastes como inimigos.

    A voz da mulher de Clarimundo é resignada e como que liberta de uma opressão:

    – Isso tinha de acontecer. Toda vez que ele saía eu pensava que ele voltava nos braços, morto pelos guindastes...

    A filha mais velha, de dez anos, chora encostada na mesa. O menor, de três anos, espia os balões que passam no céu. Jubiabá encomenda o morto. Antônio Balduíno tomará um porre esta noite. Vem a música de um samba de uma casa próxima. Invade a casa do defunto.

    O Liberdade na Bahia está com o salão repleto. Gargalhadas vibram no ar. Um cheiro de suor enche a sala, mas ninguém o sente. O Jazz dos 7 Canários está delirante. Os pares quase não podem se mover na sala. Seu Juvêncio deixou as funções de mestre-sala para vir dizer a Antônio Balduíno:

    – Até que enfim deu essa honra ao clube...

    Seu Juvêncio está de roupa azul. Balduíno apresenta Rosenda que veio de vestido verde de baile. Ficam na entrada até que a música acaba. Os pares se soltam na sala e eles entram. As mulatas apontam para Rosenda Rosedá. O vestido verde faz sucesso. Os negros estão todos olhando para ela. Rosenda diz a Antônio Balduíno:

    – Parece que nunca viram gente...

    Mas em verdade está satisfeita, toda risonha. Se ela tivesse vindo com o colar é que estaria bonita de fato. Antônio Balduíno ficou vaidoso com a entrada da negra. Todos estão olhando para eles e cochicham. Rosenda Rosedá quando caminha balança as nádegas como se dançasse um samba. Param no meio da sala, bem debaixo das luzes. Rosenda vai até a camarinha para arranjar o cabelo esticado a ferro. Negros vêm falar com Antônio Balduíno. Joaquim já está meio bêbado:

    – A coisa tá boa, seu mano... Já andei bebendo por aí...

    – Eu tava pensando que você ia pra festa de João Francisco.

    – E vou mesmo... Mas primeiro vim dar um pulo aqui, para ver as coisas. Isso tá bom. A mulata tá cutuba, hein?

    – Rosenda? Quer ela pra você?

    – Não gosto de resto dos outros...

    Os negros riem. Um pergunta a Antônio Balduíno quando arranjou aquele talho no rosto. O negro mente, inventando a história de uma briga com seis homens. Zefa está no baile e espia Antônio Balduíno. Ele se aproxima e ela se queixa dizendo que “parece que não conhece mais os pobres”. Rosenda sai da camarinha e sorri. Os dentes são alvos. Zefa olha com inveja:

    – Lá vem tua patroa.

    Rosenda se senta junto de Zefa no lugar onde estava Antônio Balduíno, que foi beber um trago, lá dentro, com Joaquim e Seu Juvêncio. A dança está demorando porque os músicos estão bebendo um copo de cerveja. Mas de repente explode na sala a música de uma marcha carnavalesca. Da mesa Antônio Balduíno espia. São muitos os pares. Não vale a pena dançar esta vez. Olha os sapatos vermelhos e novos. Se se metesse na dança pisariam os seus sapatos no vos. Joaquim acha os sapatos muito bonitos. Antônio Balduíno diz que vai buscar Rosenda para beber uma cerveja. Quando se levanta, vê a negra dançando com um branco. Vira-se para Joaquim:

    – Quem é aquele cara? Qual?

    – Que está dançando com Rosenda.

    – É Carlos, um chofer. Metido a brigão...

    Onde foi que já se viu uma dama, que vem acompanhada para um baile, dançar com um desconhecido sem falar com o cavalheiro que a trouxe? Aquilo não está direito. Rosenda está  bobeando ele. Ela ficou danada com o negócio do colar e agora quer irritar o negro. Zefa não foi dançar. Vem para a mesa deles, aceita cerveja:

    – Tua mulata tá cutuba, Baldo, Olha como tá rindo para o branco. Seu Carlos é um danado...

    Joaquim tira Zefa para dançar. Zefa foi rindo, rindo de Antônio Balduíno. Todos pensam que ele está enrabichado por Rosenda, que ela fez feitiço para prender o negro. Antônio Balduíno pede cachaça ao garçom, um capenga que anda com uma perna de pau. Na mesa vizinha um homem quer brigar com todo mundo.

    As negras dançam na sala. O jazz se acaba de tanto entusiasmo. Rosenda está dançando. Carlos fala no seu ouvido. Isso é proibido. Por que é que Seu Juvêncio não reclama? Antônio Balduíno pensa:

    – Será que estou com dor-de-corno?

    Que mulata bonitinha a que ficou sem dançar junto daquela velha gorda. Tem uma cara que é um primor. Uns peitinhos pequenos. Rosenda passa perto da janela e ri. Por que é que Antônio Balduíno não pode pensar na mulatinha? Pede mais cachaça. Tudo por causa daquele colar. Mas ele havia de não dar o dinheiro a Vicente para a mulher de Clarimundo? Clarimundo morreu debaixo do guindaste. O colar era azul. Se ainda fosse vermelho! Rosenda passa outra vez se rindo. Ele acaba desfeiteando o chofer. Querem se rir dele? Parece que não conhecem o negro Antônio Balduíno. Sente o contato da navalha que está no cós da calça. Fica um lapo bonito na cara de um. Demais o colar azul não ficaria bonito com o vestido verde. Outro copo de cachaça. Se fosse um colar vermelho... Amanhã a mulher de Clarimundo começará a lavar roupa. Trabalho desgraçado. E ela é magra, acaba ficando tuberculosa. Rosenda merece uma surra. Nunca nenhuma negra fez aquilo com ele. A sala está cheia. As negras de vestido de baile dançam como mulheres elegantes. Poucas mulheres se vestem tão bem como a negra Joana. Mas hoje Rosenda está mais bonita. O chofer vai satisfeito, exibindo o par. O dinheiro do colar ele deu a Clarimundo. O jazz pára mas as palmas o obrigam a recomeçar. Na mesa vizinha um homem quer brigar seja com quem for. Balduíno se volta:

    – Tou com você, mulato.

    – Obrigado, patrício... Não vê que ninguém se mete comigo...

    E reclama contra o garçom, reclama do companheiro de mesa.

    – Eu hoje faço um frege aqui.

    Antônio Balduíno bem que podia pedir a Jubiabá que fizesse um feitiço para Rosenda ficar caidinha por ele. Um negro canta no jazz.

“Mulata, tu me desprezaste...”

    Mas ele não gostava de mulher arranjada com feitiço. E pouco se importava que Rosenda fosse embora. O que não admitia era um desrespeito daqueles. Então ele a trazia e ela ia dançar com outro sem lhe dar satisfação. Queria bobear o negro. As negras se rebolam no ritmo da marcha. Um preto velho conta uma história do outro lado. O homem que quer brigar interrompe com apartes. Um cheiro de suor se espalha. Um sujeito quer convencer uma mulata de sair com ele Naturalmente o chofer está pedindo a mesma coisa a Rosenda. Ela ri. Balduíno se levanta. O dinheiro fora para a mulher de Clarimundo. Chega junto do chofer, puxa o braço de Rosenda:

    – Venha dançar comigo.

    O chofer se ofende:

    – Esta dama está comigo.

    – Quem trouxe ela foi eu. Esse vestido foi eu quem deu. Ela queria um colar mas eu dei o dinheiro para a mulher de Clarimundo, que o guindaste matou.

    Puxa Rosenda que fica indecisa, com medo. Ela bem sabe que o negro Antônio Balduíno gosta de brigar. Mas o chofer é que não está disposto a ceder a dama. A música acaba e eles ficam no meio da sala discutindo. Seu Juvêncio vem dizer que não é permitido ficar no meio da sala parado. O chofer se amola:

    – Vá embora...

    Joaquim se aproxima:

    – O que é que há?

    Rosenda pega no braço de Joaquim:

    – Baldo quer brigar só porque eu estava dançando com este rapaz. Não deixe, não, Seu Joaquim.

    Agora quase todos estão olhando para eles. O homem bêbado que queria brigar põe os préstimos à disposição de Antônio Balduíno:

    – Precisa de mim, patrício?

    Seu Juvêncio diz que é uma besteira e pede música ao maestro. Vem um fox. Antônio Balduíno pega Rosenda. O chofer diz:

    – A gente se encontra.

    Rosenda fica dengosa. Agora que Balduíno a conquistou de outro, novamente ela fica terna e se aperta nos seus braços. O negro pensa que se ela estivesse com um colar vermelho no pescoço ficaria mais bonita. O homem que queria brigar conseguiu formar um barulho ao fundo. O chofer está na porta espiando. Desapartaram o barulho. A dança continua. Seu Juvêncio bate palmas na sala. Este fox parece música de defunto de tão triste que é. Clarimundo morreu e não verá mais balões de São João. Quando acabam de dançar Antônio Balduíno se aproxima do chofer:

    – Olhe, eu só queria era lhe mostrar que você não tomava mulher minha. Agora pode ficar com ela, que eu não quero esse couro nem pra me tocar bronha.

    O criouléu se despedaça na dança. E o negro termina a noite regendo o Jazz dos 7 Canários. O maestro ficou bêbado de cair. O chofer desapareceu com Rosenda. O criouléu cheira a suor, os negros riem, se despedaçam no maxixe.

   

Romance da Nau Catarineta

    Lindinalva lia na varanda poesias de amor, romances românticos. Gostava da Nau Catarineta.

             “Lá vem a Nau Catarineta

             Que tem muito que contar.”

    A Nau Catarineta podia lhe trazer um noivo, quem sabe. Uma vez um menino que pedia esmolas dissera que seu noivo viria no bojo de um navio cortando os mares. Ela o espera. E enquanto espera lê na varanda romances românticos, poesias de amor.

    Depois do casamento da moça do sobrado defronte, a Travessa Zumbi dos Palmares perdeu o que lhe restava de poesia. Nunca mais o rapaz cruzou a rua e atirou cravos na varanda. Os noivos foram morar numa rua movimentada e o sobrado fechou completamente as suas janelas, encobrindo o retrato do jovem militar que matara com a sua morte toda a alegria daquela família. Lindinalva se entristeceu quando eles se casaram. Ela ficava nos jardins do comendador a olhar o namoro da vizinha, e no cravo que o rapaz jogava para a namorada ela tinha uma parte. Aquele namoro era o motivo romântico da rua. Depois casaram e Lindinalva que nunca conversara com a vizinha se sentiu mais isolada, mais solitária. Amélia envelhecia na cozinha. Um ano depois de Antônio Balduíno ter fugido, Lindinalva chorou a morte da mãe. O comendador viúvo se dividia entre os negócios e amores fáceis que arranjava. Dera de beber (desgostoso, diziam os vizinhos) e Lindinalva vivia abandonada no casarão, onde os gansos haviam morrido e as flores murchavam. Lindinalva lia a história da Nau Catarineta e despetalava rosas. Um dia seu noivo chegaria num navio. Lindinalva sonhou tanto com isso que não teve surpresa quando soube que Gustavo (Dr. Gustavo Barreira, advogado, das melhores famílias da capital) chegara há pouco do Rio trazendo uma carta de bacharel e uma vontade decidida de fazer fortuna. Foi advogado do comendador num negócio e assim conheceu Lindinalva. As sardas do rosto, se não deixavam Lindinalva ser bonita, a tornavam esquisita. E o corpo magro de seios altos e pontudos tentava os olhos do advogado, O noivado correu risonho e a Travessa Zumbi dos Palmares adquiriu nova vida. Andavam de passeio de braço dado e ele dizia coisas românticas. Do grande sobrado defronte as papoulas se debruçavam no muro para ver os namorados. Papoulas vermelhas, carnudas como lábios. Ele disse uma vez:

    – As papoulas convidam ao pecado... – e a beijara.

    O vento balançava as papoulas. Lindinalva era tão feliz que esquecera o negro Antônio Balduíno com quem sonhava nas noites de pesadelo. Sonhava agora com o noivo, com uma casinha, um jardim com papoulas, muitas papoulas vermelhas como pecados.

    O comendador faliu (as mulheres comeram a casa – diziam os comerciantes). O noivo foi de uma dedicação rara. Trabalhou muito mas não conseguiu nada. O comendador passou a viver nas casas das mulheres mais baratas da vida e o noivo vinha ver Lindinalva toda a tarde. Um dia se mudaram do sobrado que ficou para os credores. Foram morar muito longe e era o noivo quem sustentava a casa.

    Num dia de temporal dormiu lá. O comendador andava na casa das mulheres. A porta do quarto de Lindinalva estava apenas encostada. Gustavo entrou. Ela se escondeu no lençol. Sorrindo.

    Porém Lindinalva não pensou que tudo mudasse assim tão de repente. Dormiram juntos várias vezes e no princípio tudo era muito bom. Noites doces de amor, beijos que magoavam os lábios, mãos que machucavam os seios como se desfolhassem papoulas. Mas aos poucos foi se afastando, se queixando dos negócios que não prosperavam, das dificuldades do casamento próximo que foi adiado três vezes. O comendador morreu na casa de uma mulher da vida. Os jornais deram. Gustavo se sentiu ofendido com aquilo, declarou que a sua carreira estava irremediavelmente comprometida e no dia do enterro não apareceu. Dias depois enviou duas notas de cem mil-réis. Lindinalva mandou dizer que queria vê-lo. Passou-se uma semana e ele veio. Veio tão sombrio e com tanta pressa que ela não chorou nem disse que estava grávida.

 

Cantiga de amigo

    Foi Amélia quem disse a Antônio Balduíno que Lindinalva estava na vida. Amélia ficara maternal e terna desde que a desgraça se abatera sobre a casa do comendador. Fora pai e mãe para Lindinalva. Mas, quando se mudaram, Lindinalva fez questão que ela procurasse outro emprego, que não os acompanhasse. Ela bem que quisera ir. Mas Lindinalva não deixara, se zangara mesmo. Amélia tivera que ir para a casa de Manuel das Almas, português rico que possuía uma confeitaria na cidade. Por esta época Antônio Balduíno andava pelas plantações de fumo. Quando Lindinalva dera à luz fora Amélia quem a ajudara. Abandonara o emprego para vir ficar com a menina, que era como ela chamava Lindinalva. Fora dela o dinheiro para o parto, ela fora enfermeira dedicada e boa. Tão boa que Lindinalva não sentia humilhação. Gustavo, que casara com a filha de um deputado, mandara cem mil-réis para a criança e um pedido angustioso de silêncio. Lindinalva respondeu que ele podia ficar descansado que ela nunca revelaria nada. Novamente fez Amélia procurar um emprego. E aceitou um convite de Lulu, uma caftina que possuía a pensão mais cara da cidade, para ir fazer a vida na Pensão Monte Carlo. Antônio Balduíno ouviu tudo isso de cabeça baixa, passando a mão no talho da cara. A noite lá fora era chuvosa.

    A criança, um menino forte como o pai e triste como a mãe, seguiu Amélia. Lindinalva naquela noite fez a sua estréia na Pensão Monte Carlo com um vestido de baile bem decotado. Lulu lhe havia dado instruções: pedir bastante bebida e bebida cara. Procurar de preferência os gordos coronéis que vinham das plantações de cacau, de fumo, de cana-de-açúcar. Ela tinha um tipo esguio de virgem que devia agradar aos velhos. E que explorasse o mais que pudesse. Era a vida.

    A música era uma valsa lenta quando ela entrou na sala da pensão. No seio levava a chave do quarto que devia entregar ao homem que a convidasse para a mesa. Com aquela chave abririam os segredos do seu corpo... Lindinalva não está com vontade de chorar. A música é que é triste. Pares se arrastam pela sala. Ainda é cedo e não tem muita gente na pensão. Apenas duas mulheres estão ocupa das numa mesa de rapazes que bebem cerveja.

    Lindinalva senta-se numa mesa de mulheres... Uma loira explica:

    – É a novata.

    As mulheres olham com indiferença para Lindinalva. Só a mulata que bebe um cálice de cachaça pergunta:

    – O que é que você veio fazer aqui?

    A música se arrasta com tristeza. A voz de Lindinalva

    – Não encontrei trabalho.

    Uma francesa oferece cigarros:

    – Quem me dera que o Coronel Pedro viesse hoje. Preciso de dinheiro.

    A mulata espia o cálice e de súbito solta uma gargalhada. As outras não se preocupam, pois já estão acostumadas com as maluquices de Eunice. Mas Lindinalva se assusta. Por que a música é tão triste? Bem que podiam tocar um samba alegre. Da rua vem um ruído confuso de vozes e de bondes. Um ruído de vida. A pensão parece um cemitério onde houvesse música. É o que Eunice está dizendo:

    – Nós tamos mortas e não sabemos. A vida acabou para a gente. Mulher.dama é quase defunto.

    A francesa espera o Coronel Pedro. Ela precisa de dinheiro, recebeu uma carta dos parentes que estão numa província da França. O irmãozinho está quase morto. E pedem que ela, que vai tão bem com a casa de modas no Brasil, mande mais algum dinheiro. Ela bate os dedos na mesa:

    – Casa de modas... Casa de modas...

    Eunice emborca o cálice:

    – Tudo morta... Tudo... Cemitério.

    – Estou bem viva... – retruca uma morena nova. – Essa Eunice tem cada idéia... – e sorri.

    Lindinalva olha para ela. É quase uma criança. Uma criança alegre de cabelos morenos. A loura é que é velha, tem rugas e um ar longínquo de quem vive em outras paragens. A música da valsa se extingue. Dois sujeitos entram na pensão e pedem misturas complicadas. A menina morena vai ficar com eles. Pegam nas coxas dela, pedem mais bebidas, falam coisas no ouvido. Lindinalva sente uma tristeza imensa e uma vontade imensa de acariciar a menina morena. Eunice pede um cigarro. Será que ela também tem pena da menina morena?

    – Mulher-dama é escarradeira de todo mundo... – Eunice pensa que está sorrindo.

    Agora é um tango que a orquestra toca. Fala em amor, em abandono, em suicídio. Entram homens ricos da cidade. Aquele comerciante Lindinalva conhece. Uma vez, quando os negócios do comendador iam prósperos, ele almoçou na sua casa. O comendador acabou assim nas pensões alegres e morreu no quarto de uma mulher. Quantas mulheres dali tinham conhecido o comendador? Quantas teriam se rido dele? Quantas o esperariam para pedir dinheiro? Agora Lindinalva espera também um comendador que lhe traga dinheiro, que gaste bebidas para que Lulu fique satisfeita e não a bote para fora, O tango fala em abandono. Na pensão, Lindinalva não quer se recordar do filho. Nesse momento ele estenderá os bracinhos para Amélia. Quando ele disser “mamãe” será para Amélia. Quando ele sorrir, Lindinalva não estará presente. Os dois rapazes cochicham com a menina morena. Que será que eles propõem? Ela diz que não. Mas o dia está mau, tem pouca gente na pensão. Eles insistem e ela vai com os dois para o quarto. Eunice cospe com força. Ela está com raiva. Lindinalva tem vontade de chorar. Lulu sorri e mostra Lindinalva aos comerciantes. Diz qualquer coisa em voz baixa. Eunice avisa:

    – Chegou sua vez...

    Aquele Lindinalva conhece. Comeu na mesma mesa onde comiam sua mãe e seu pai. Com aquele ela não quer ir. Prefere qualquer outro, prefere mesmo o negro Antônio Balduíno. Mas o homem a chama com o dedo gordo. A menina morena não vai com dois? Lindinalva se levanta. Lulu faz com a mão que ela se apresse. Eunice ergue o cálice de cachaça:

    – À sua estréia...

    A francesa faz um gesto com a mão. Que importa? Todas elas estão mortas, o tango está dizendo, Eunice já disse. Ela não é mais Lindinalva, a pálida Lindinalva que corria no Parque de Nazaré. Ela está morta, seu filho está com Amélia. Quando passa por Lulu, a caftina avisa que peça champanha. A menina morena volta do quarto com um ar espantado e lágrimas nos olhos. Os dois rapazes riem e trocam impressões. Lindinalva pede champanha. Depois no quarto, o comerciante (comera em sua casa) pergunta o que é que ela faz além do normal. Mas estão todas mortas, já morreram todas. Eunice bebe mais cachaça, o tango soluça. Foi assim a recepção de Lindinalva.

    Cedo ficou velha para as pensões caras. Os homens ricos não vão mais com ela. Agora sua boca conserva sempre um travo amargo de cachaça. Eunice já foi para a Rua de Baixo onde mulheres cobram cinco mil-réis. Hoje é Lindinalva que irá. Alugou o quarto na mesma casa que Eunice. Durante o dia foi ver o filho no quartinho onde Amélia mora. Gustavinho está lindo, os grandes olhos vivos, a boca carnuda como aquela flor vermelha de que Gustavo falava. Lindinalva nem se recorda o nome. Agora sabe palavras feias em francês e toda a gíria das mulheres da vida. Mas o menino diz “mamãe, mamãe”, e ela se sente pura como uma virgem. Conta histórias ao filho, histórias que ouvira de Amélia noutros tempos, quando ela era Lindinalva. Na casa onde vai morar a mulher disse que seu nome seria Linda de agora em diante. Conta ao filho a história de Maria Borralheira e fica feliz, muito feliz. (Que bom se o mundo acabasse naquele momento, se todos morressem.)

    Ficam na sala atrás das janelas semi-abertas. Homens passam na rua e elas chamam. Uns entram, outros dizem piadas, alguns passam apressados e levam embrulhos. Eunice está bêbada dizendo que já morreu, que todas estão no inferno. A polaca velha se queixa da sua falta de sorte. Na véspera não arranjara homem. Hoje tampouco. Talvez tenha que ir para a Ladeira do Tabuão onde as mulheres cobram mil e quinhentos, fazem tudo, e morrem depois. Lindinalva está longe dali, está com o filho no quarto pobre de Amélia. Este sorri e diz “mamãe”. Vontade doida de beijar os lábios carnudos do filho, de continuar a contar durante toda a vida a história de Maria Borralheira. A dona da pensão bota uma vitrola para tocar na sala de jantar. Os peitos moles de Eunice aparecem sob a combinação. Ela chama os homens da janela. Gustavinho quando ficar rapaz talvez passe nessas ruas. Quando isso se der, Lindinalva já terá morrido e ele não a encontrará atrás das janelas a chamar homens. De Lindinalva ele guardará a recordação de uma moça simples e bonita que contava histórias de Maria Borralheira.

    Eunice está dizendo que estão todas mortas. A polaca pede dois mil-réis emprestados. Um rapaz de cabeleira atende ao chamado de Lindinalva. Eunice diz:

    – Boa sorte, Linda – e suspende um cálice imaginário.

    No quarto o rapaz pergunta que nome ela tem, quer saber de toda sua vida, diz que é poeta, recita versos (conta a doença da mãe que está no sertão, diz que ela é linda como as acácias, compara os seus cabelos aos trigais, promete fazer um soneto sobre ela). A vitrola se desespera num samba na sala de jantar. O rapaz gosta é de um tango bem romântico. Pergunta a opinião de Linda sobre política

    – E uma nojeira, não é?

    Foi assim a recepção de Linda.

    Lindinalva desceu várias ladeiras. Foi ficar bem perto da Cidade Baixa, foi ficar na Ladeira do Tabuão. Da Ladeira do Tabuão as mulheres só saíam ou para o hospital ou para o necrotério. De qualquer maneira saíam de automóvel: ou na assistência ou no carro vermelho dos cadáveres.

    Na Ladeira do Tabuão as toalhas nas janelas e caras negras nas portas

    Lindinalva tinha ido ver Gustavínho que convalescia de sarampo. Ele estirou os braços e sorriu na alegria de rever a mãe:

    – Mamãe, mamãe.

    Depois faz uma cara séria e pergunta:

    – Quando é que tu vem morar com a gente, mamãe?

    – Mamãe vem, filhinho, um dia destes.

    – Quando você vier vai ser bom, mamãe.

    Lindinalva passou junto do velho elevador que liga as cidades Baixa e Alta. Sorriu para o sorriso do condutor de bonde e seguiu para o número 32, onde alugara o quarto.

    Gustavinho precisava engordar. Com o sarampo, emagrecera. Empurrou a porta colonial, pesada, com uma argolona. O número 32 estava escrito com tinta azul-clara, um número muito grande. Gritaram lá de cima:

    – Quem é?

    Lindinalva foi subindo as escadas sujas. Tinha os olhos quase fechados, o peito arfava. Passara a noite pensando. A princípio tentara dormir mas quando conciliou o sono teve pesadelos horríveis, onde via mulheres sifilíticas de dedos enormes, todas juntas na porta de um hospitalzinho minúsculo. Carregavam um carro de assistência... Não, não era um carro de assistência... Era o corpo do comendador que morrera na casa de uma mulher da vida... E depois era o corpo de Gustavinho que morrera de sarampo... De repente acabou tudo e ficou o negro Antônio Balduíno dando grandes gargalhadas de gozo, com uma nota de cinco mil-réis e uns níqueis na mão.

    Acordou suada, bebeu água.

    Noite horrível da sua vida. Lindinalva agora não pensava. Afinal era o destino... O destino era assim mesmo. Para uns, bom, para outros, miserável. Cada pessoa já nasce com o seu destino, ele não vem na Nau Catarineta. O destino dela era destino ruim, que jeito ela podia dar?

    Subia as escadas condenada. Na véspera a mulata que alugava os quartos do quinto andar fora franca:

    – Daqui, meu amor, ou para a assistência ou para o buraco.

    Olhou o céu pela janela:

    – Já vi sair tantas...

    Lindinalva sobe as escadas com o olhos distantes. Onde andará aquela Lindinalva que ria e brincava no Parque de Nazaré?

    Ela vai curvada e as suas faces magras levam lágrimas que rolam. Lindinalva chora, sim... Caem lágrimas dos seus olhos, lágrimas que lavam a sujeira da escada.

    Lindinalva vai curva, o rosto sardento e branco escondido no braço. Deslizam lágrimas pela sua face triste. Lindinalva tem um filho e gostaria de viver para ele. Mas da Ladeira do Tabuão as mulheres só saem para o cemitério.

    No quinto andar uma mulher diz a outra:

    – É a Sardenta que vem chegando. Nada de conversas porque a pobre vem chorando...

    Essa voz que fala tem uma piedade ardente.

    Foi assim a recepção da Sardenta.

 

Guindastes

    Irão para a Lanterna dos Afogados, para o cais onde a noite é bonita. Saem da Baixa dos Sapateiros e descem a Ladeira do Tabuão. Finalmente o Gordo descobriu uma estrela que nunca tinha visto:

    – Espie... Uma estrela nova. Aquela é minha.

    O Gordo ganhou uma estrela e vai satisfeito. Jubiabá diz que as estrelas são os homens valentes que morrem. Hoje deve ter morrido um homem valente, um homem que mereça um ABC, pois o Gordo descobriu uma estrela nova. Joaquim procura uma mas não encontra. Antônio Balduíno pensa em quem teria morrido esta noite. Tem gente valente em toda parte. Quando ele morrer brilhará no céu também. O Gordo descobrirá ou talvez seja descoberto por uma criança, por um moleque da rua que peça esmolas e tenha uma navalha no cós da calça. Eles gostam de passear assim pelas ruas desertas quando a lua é cheia e ilumina a cidade com a luz amarela. Não anda ninguém pelas ruas, as casas têm as janelas fechadas, os homens dormem. Eles são novamente donos da cidade como no tempo em que mendigavam. São os únicos homens livres da cidade. São malandros, vivem do que aparece, cantam nas festas, dormem pelo areal do cais, amam as mulatas empregadas, não têm horário de dormir e de acordar. Zé Camarão nunca trabalhou. Já está começando a envelhecer e sempre foi malandro, desordeiro conhecido, tocador de violão, jogador de capoeira. Antônio Balduíno foi o seu melhor discípulo. E foi além do mestre. Foi tudo na vida. Até trabalhador nas plantações de fumo, jogador de boxe e artista de circo. Porém vive é de fazer um samba de quando em vez e de cantá-lo nas festas dos negros da cidade. Joaquim trabalha três, quatro dias por mês, quando tem vontade. Carrega malas para outros carregadores que estão com muito serviço. O Gordo vende jornais quando Balduíno não está na Bahia. Balduíno chega, tudo acabou-se. Vai atrás do negro naquela vida gostosa de não fazer nada, de viver à solta pela cidade que dorme. Antônio Balduíno pergunta:

    – A gente vai ancorar na Lanterna dos Afogados?

    – Vai, sim...

    A Ladeira do Tabuão é silenciosa a estas horas da noite. O serviço do velho elevador já terminou e a torre se debruça sobre a cidade. Nas janelas mais altas brilham luzes. São as mulheres da vida que voltaram da rua e que despacham os últimos homens.

    Joaquim assovia um samba. Eles vão calados. Só o assovio de Joaquim corta o silêncio. Antônio Balduíno vai pensando no que Amélia lhe contou, na história de Lindinalva. Agora ela deve estar sem orgulho e ele na hora que quiser poderá possuí-la. Ela não é mais a sua patroa, a filha rica do comendador, é uma mulher da vida que está na Ladeira do Tabuão e se vende aos homens por qualquer dois mil-réis. Como as coisas mudam! No dia que ele quiser subirá as escadas do sobrado onde ela está e a terá nos seus braços. Basta pagar uma prata. Ele se recorda da fuga da Travessa Zumbi dos Palmares. Se Amélia não houvesse inventado aquelas mentiras ele continuaria com o comendador, vendo em Lindinalva uma santa, trabalharia na casa comercial, talvez impedisse a falência do patrão. Teria sido um escravo. Amélia tinha feito um bem em querendo fazer um mal. Ele era livre e até podia possuir Lindinalva na hora que quisesse. Era sardenta e tinha um rosto de santa. Ele nunca a olhara com olhos de desejo. Mas desde que Amélia inventou que ele a espiava quando ela tomava banho, Antônio Balduíno não possuiu outra mulher. Dormisse com quem dormisse era com Lindinalva que ele dormia. Mesmo dormindo com Rosenda Rosedá. Ele dera Rosenda ao chofer. Agora ela andava dançando num cabaré barato, fazendo a vida também, e já mandara pedir dinheiro emprestado. Rosenda era mulata vaidosa, estava tendo a paga. Lindinalva não era vaidosa mas ficara com ódio dele. Tivera a sua paga também. Andava na Ladeira do Tabuão onde vivem as mulheres mais baratas e mais gastas da cidade. Ele podia possuí-la no dia que quisesse. Então por que não fica alegre, por que se entristece e não olha mais o espetáculo da lua cheia? Ele não esperou toda a vida que chegasse o dia de possuir Lindinalva? Então por que não sobe até o quinto andar do sobrado número 32 da Ladeira do Tabuão e não bate na porta do quarto de Lindinalva? Ali está o sobrado. Eles vão passar defronte. A rua dorme no silêncio e ouve-se apenas o assovio do Joaquim. Que vento frio vem do mar e faz Antônio Balduíno tremer? Da porta do 32 uma mulher sai de súbito, os cabelos soltos. Mal ela aparece na porta, Antônio Balduíno tem certeza que é Lindinalva. Mas é um trapo humano, uma figura que perdeu o nome na Ladeira do Tabuão. Rosto sardento e encovado, as mãos finas tremendo, os olhos saltados e brilhantes. O vento sacode os cabelos da mulher. Ela pára diante dos homens, agita os braços e torce as mãos em gestos de súplica:

    – Dois mil-réis para beber uma cerveja... Dois mil- réis por amor de sua mãe.

    Os homens estão mudos de espanto. Ela pensa que eles não vão dar:

    – Então um cigarro... Um cigarro... Há dois dias que não fumo.

    Joaquim estende o cigarro. Ela o aperta nos dedos magros e ri.

    É Lindinalva, sim. Por isso Antônio Balduíno treme como se tivesse febre. Um vento frio vem do mar. Com a chegada da mulher um terror profundo o invadiu. Ele treme, ele está com medo, quer correr, fugir dali para o fim do mundo. Mas está preso ao solo olhando o rosto sardento e descarnado de Lindinalva. Ela não o reconhece nem o vê, sequer. Fuma o cigarro e pergunta com voz doce, voz que recorda aquela outra Lindinalva que corria no Parque de Nazaré e brincava com o negrinho Baldo:

    – E a cerveja? Vocês vão me dar, não vão?

    Antônio Balduíno consegue tirar os dez mil-réis do bolso. Entrega à mulher que ri e soluça. E tremendo de medo, tremendo de pavor, sai a correr ladeira acima e só tem descanso na casa de Jubiabá, chorando junto ao pai-de-santo que o acaricia como no dia em que Luísa enlouqueceu.

    Quando o pavor passou (e durou dias) ele voltou à casa de Lindinalva. No quarto, onde a cama de casal tomava o maior espaço, Lindinalva se acaba. Amélia contém as lágrimas. Ele entra devagar, como lhe recomendou a prostituta que soluça na porta. Amélia não se admira de o ver. Bota o dedo na boca num sinal de silêncio. E vem para junto dele, que pergunta:

    – Doente? – aponta Lindinalva com o dedo.

    – Morrendo.

    Com a morte que se aproxima ela tornou a ser a mesma Lindinalva da Travessa Zumbi dos Palmares. Seu rosto está sereno e belo. Seu rosto sardento, rosto de santa. As mãos que tocavam piano e machucavam as rosas são as mesmas. Nada resta da Lindinalva da Pensão Monte Carlo, da Linda da Rua de Baixo, da Sardenta da Ladeira do Tabuão. Ela agora é novamente a filha do comendador que morava na casa mais bonita da Travessa Zumbi dos Palmares e esperava um noivo na Nau Catarineta. Mas ela se move e aparece outra Lindinalva. Esta Antônio Balduíno não conheceu. Mas Amélia sabe qual é. É a noiva de Gustavo, é a amante de Gustavo, é a mãe de Gustavinho. Um rosto risonho de senhora jovem. Ela murmura qualquer coisa. Amélia se aproxima e pega-lhe na mão. Ela está dizendo que quer o filho, que o tragam que ela vai morrer. Amélia volta chorando. Antônio Balduíno pergunta:

    – E o doutor?

    – Não pôde fazer mais nada... Disse que agora é esperar a morte.

    Mas Antônio Balduíno não se conforma. Tem uma inspiração.

    – Vou buscar pai Jubiabá.

    – Passe em minha casa e traga a criança.

    E ele que veio ali para se vingar, para a possuir e depois jogar dois mil.réis no seu leito... Veio para insultá-la, para dizer que branca não vale nada, que um negro como ele faz o que quer. Agora vai buscar pai Jubiabá para ver se a salva. Se ela ficar boa ele desaparecerá. Mas se ela morrer, que poderá ele fazer na vida? Não lhe restará outro caminho se não o caminho do mar por onde entrou Viriato, o Anão, que também não tinha ninguém no mundo. Só então Antônio Balduíno compreende que se Lindinalva morrer ele ficará só, sem nenhum motivo para viver.

    Volta com o menino. Jubiabá não estava. Ninguém sabia por onde ele tinha ido e Antônio Balduíno o procurou inutilmente. Amaldiçoou o velho feiticeiro. A criança vem pela sua mão e se dá bem com ele. Tem o nariz de Lindinalva. As mesmas sardas na cara. Pergunta muita coisa, quer saber de tudo. Antônio Balduíno explica e se admira da paciência que tem.

    Carrega o menino na escada. Amélia avisa, abafando os soluços:

    – Entre... Ela está morrendo.

    Antônio Balduíno deposita a criança junto à cama. Lindinalva abre os olhos:

    – Filhinho...

    Quis sorrir, se torceu numa careta. A criança fica com medo e começa a chorar. Amélia a afasta depois de Lindinalva beijar-lhe as faces. Ela queria beijar os lábios carnudos do filho, os lábios que eram de Gustavo. Mas não pode.

    Agora chora e tem pena de morrer. Ela que pediu a morte tantas vezes. Pressente que há mais alguém no quarto. Pergunta a Amélia:

    – Quem é?

    Amélia fica confusa, sem saber se deve dizer. Mas Antônio Balduíno se aproxima com os olhos baixos. Se um dos amigos o visse agora talvez não compreendesse por que ele está chorando. Lindinalva procura sorrir quando o reconhece:

    – Baldo... Fui ruim com você...

    – Deixe disso...

    – Me perdoe.

    – Não diga isso... Não faça eu chorar...

    Ela passa a mão na carapinha do negro e morre dizendo:

    – Ajude Amélia a criar meu filho, Baldo... Olhe por ele.

    Antônio Balduíno se joga nos pés da cama como um negro escravo.

    Ele quer que o caixão seja branco, como um caixão de virgem. Mas ninguém o compreende, nem Jubiabá que sabe tanta coisa. O Gordo só concorda porque é muito bom, mas no fundo está espantado porque nunca viu caixão de prostituta ser branco. Apenas Amélia parece compreender:

    – Você gostava muito dela, não era? Eu fiz intriga. Andava com ciúmes dos patrões gostarem tanto de você. Há vinte anos que eu estava com eles. Eu criei a menina. Ela merecia um destino melhor... Tão boazinha.

    Então Antônio Balduíno estende as mãos e explica com aquela voz pesada que tem de quando em vez:

    – Ela era virgem, gente... Eu juro que era... Ninguém teve ela... Ela não foi de ninguém... Vivia disso mas não se dava... Só eu que tive ela... Só eu, gente... Quando eu andava com uma mulher tava com a cabeça nela... Quero um caixão branco para ela.

    Sim, ninguém a possuiu porque todos a compraram. Só o negro Antônio Balduíno, que nunca dormiu com ela, a possuiu e de todas as formas, no corpo virgem da dos Reis, nas ancas que dançavam de Rosenda Rosedá. Só ele a possuiu no corpo de todas as mulheres que dormiram com ele. Na maravilhosa ventura de amor do negro Antônio Balduíno e da branca Lindinalva esta foi branca, preta e mulata, foi também aquela chinesinha do Beco de Maria Paz, foi gorda e magra, teve uma voz masculina certa noite no cais, mentia como a preta Joana. Mas ela não pode ir vestida de virgem, Antônio Balduíno. Amélia está explicando que ela amou Gustavo, que a possuiu de verdade, sem a comprar. Mas Antônio Balduíno não quer escutar e pensa que aquilo é outra intriga de Amélia para o afastar de Lindinalva.

    Para ajudar o filho de Lindinalva o negro Antônio Balduíno entrou para a estiva no lugar de Clarimundo que o guindaste matara. Ia ter uma profissão, ia ser escravo da hora, dos capatazes, dos guindastes e dos navios. Mas se não o fizesse só lhe restaria entrar pelo caminho do mar.

    As sombras enormes dos guindastes aparecem no mar. E o mar verde e oleoso chama o negro Antônio Balduíno. Os guindastes fazem escravos, matam os homens, são inimigos dos negros e aliados dos ricos. O mar faz libertos. Será um mergulho só e terá tempo para soltar sua gargalhada. Mas Lindinalva acariciou sua cabeça e pediu que ele tomasse conta do seu filho.

 

Primeiro dia da greve

    Antônio Balduíno passara a noite descarregando um navio sueco que trazia material para a estrada de ferro e que nas noites seguintes seria abarrotado de cacau. Carregava um molho pesado de ferros, quando, ao passar junto de Severino, um mulato magricela, este lhe disse:

    – A greve do pessoal dos bondes rebenta hoje.

    Aquela greve era esperada há muito. Por diversas vezes o pessoal da companhia que dominava a luz, o telefone e os bondes da cidade tentara se levantar em parede pedindo aumento de salário. Chegaram a fazer uma greve anteriormente, mas foram tapeados com promessas que ainda estavam por se cumprir. E agora, há oito dias que a cidade esperava amanhecer sem bondes e sem telefone. Mas a greve não rebentava, sempre adiada. Por isso Antônio Balduíno não ligou muita importância ao aviso de Severino. Logo depois, porém, ouvia um negro alto dizer:

    – A gente devia aderir, ficar com eles.

    Os guindastes depositavam no cais enormes rolos de ferro. Os negros iam debaixo deles para os armazéns, parecendo monstros estranhos, e ainda assim conversavam. O apito do capataz dava ordens. Um branco passou o braço na testa e sacudiu longe o suor:

    – Será que eles conseguem alguma coisa?

    Voltaram correndo para junto dos rolos de ferro. Severino murmurou enquanto suspendia o fardo:

    – O sindicato deles tem dinheiro para agüentar a greve...

    Saiu correndo com o fardo. Antônio Balduíno levantava pedaços de trilhos:

    – Todo mês vai dinheiro pro sindicato. O sindicato tem de agüentar.

    O apito do capataz mandava a turma abandonar o tra balho. A turma do dia estava à espera e substituiu imediatamente a que saía. Os materiais para a estrada de ferro continuam a andar para o armazém das docas. Os guindastes rangiam.

    Saem em grupos e na porta Antônio Balduíno se recorda de um homem que foi preso ali quando fazia um discurso. Ele era moleque de rua mas se lembrava perfeitamente. Gritara, e com ele o grupo todo, protestando contra a prisão do homem. Gritara porque amava gritar, vaiar a polícia, jogar pedra em soldado. Hoje ele precisa de gritar novamente, como no tempo em que corria solto pela rua e não via os guindastes inimigos prontos a lhe rebentarem a cabeça.

    Antônio Balduíno vem sozinho pela rua. Tomou um copo de mingau de puba no terreiro. Junto da negra, homens conversavam sobre a greve.

    Antônio Balduíno sai cantando coisas de Lampião:

             “Minha mãe me dê dinheiro

             pra comprar um cinturâo

             pra fazer uma cartucheira

             pra brigar pra Lampião”.

    Um conhecido grita:

    – Alô, Baldo!

    O negro faz um gesto com a mão e continua a cantar:

             “A muié de Lampião

             quase morre de uma dor

             porque não fez um vestido

             da fumaça do vapor”.

    Agora canta em surdina, entre dentes:

          “É Lamp, é Lamp, é Lamp,

          é Lamp, é Lamp, é Lamp, Lampião”.

    Com a greve que paralisou os bondes a cidade ficou festiva. Tem um movimento desconhecido hoje. Passam grupos de homens que conversam animadamente. Rapazes empregados no comércio caminham rindo, gozando a cara do patrão que não poderá reclamar o atraso da chegada. Uma mocinha atravessa a rua apressada com medo de alguma coisa. A cidade está cheia de condutores de bonde, de operários das oficinas da companhia. Discutem com calor. Antônio Balduíno sente inveja deles porque estão fazendo alguma coisa (daquelas coisas que Antônio Balduíno gostava de fazer) e o negro não tem nada para fazer nesta manhã de tanto sol. Os grupos passam. Vão todos para o sindicato que fica numa rua ali atrás. Balduíno segue sozinho pela rua deserta. Ouve o ruído das conversas na outra rua. Parece que alguém está fazendo um discurso no sindicato Ele também é do sindicato dos estivadores. Por sinal que já lhe falaram em ser candidato à diretoria. Devem saber que ele é um negro valente. Mas um homem loiro, que mastiga um cigarro e que amanheceu bêbado, se atravessa na sua frente:

    – Tu também vai fazer greve, negro? Tudo por culpa da Princesa Isabel. Onde já se viu negro valer de nada? Agora o que é que se vê? Negro faz até greve, deixa os bondes parados. Devia era entrar tudo no chicote, que negro só serve para escravo... Vai pra tua greve, negro. Os burros não livraram essa cambada? Vá embora antes que eu te cuspa, filho de cão.

    O homem cospe no chão. Ele está bêbado mas Antônio Balduíno o empurra com força e ele se estatela no cimento. Depois o negro limpa as mãos e começa a pensar no motivo por que este homem insulta assim os negros. A greve é dos condutores de bondes, dos operários das oficinas de força e luz, da companhia telefônica. Tem até muito espanhol entre eles, muito branco mais alvo que aquele. Mas todo pobre agora já virou negro, é o que lhe explica Jubiabá.

    Do terreiro vem um rumor de brigas. São os trabalha dores das padarias que aderiram à greve. E os entregadores de pão derrubaram os cestos na rua. Os moleques caem em cima e até criadas de casas ricas vêm apanhar pão de graça.

    Vão encontrá-lo no quarto de Amélia, de gatinhas no chão, brincando com Gustavinho:

    – Eu sou o lobisomem...

    Se levanta de um pulo. Severino bota a mão no seu ombro e avisa:

    – A gente precisa de você, Balduíno.

    – Que é? – o negro pensa logo em brigar.

    – O sindicato vai se reunir.

    O negro Henrique enxuga o suor da cara.

    – Deu trabalho pra lhe achar.

    Eles estão olhando o menino branco que está sentado no chão. Antônio Balduíno explica meio confuso:

    – É meu filho.

    – A gente quer aderir à greve... A gente precisa do voto de você.

    Ele deixa Gustavinho com o Gordo e sai rindo, alegre, porque também vai fazer a sua greve. No sindicato há uma barulheira horrível. Todos falam ao mesmo tempo e ninguém se entende. A diretoria toma assento à mesa e pede silêncio. Um sujeito pálido diz a Balduíno:

    – Tem polícia aqui.

    Mas Balduíno não vê nenhum soldado. O pálido explica:

    – Disfarçado.

    Severino faz um discurso. Não são somente os operários da Circular que estão passando fome. Também eles, das docas, não têm o que comer. E demais têm um dever de solidariedade para com os operários da Circular. São todos irmãos. Eles devem aderir à greve. Os discursos se sucedem. Um dos capatazes (um homenzinho vermelho que nas horas de folga jogava dados com eles na Lanterna dos Afogados) recita um discurso dizendo que aquilo tudo era besteira, que não via motivos para greve, que tudo estava muito bem. Mas é aparteado e vaiado. O negro Henrique bate a mão na mesa e diz;

    – Eu sou um negro burro e não sei palavras bonitas. Mas sei que tem homens aqui que têm filhos com fome e mulher com fome. Aqueles galegos que dirigem os bondes também estão com fome. A gente é negro, eles são brancos, mas nesta hora tudo é pobre com fome...

    Foi votada a adesão à greve. A vitória foi dada pelo voto de Antônio Balduíno. Só depois se descobriu que votaram contra pessoas que nem eram da estiva, quanto mais do sindicato.

    Foi redigido um manifesto. E foi designada uma co missão para levar aos operários em greve a solidariedade dos estivadores. Antônio Balduíno fazia parte desta comissão e ia alegre porque ia brigar, entrar em barulho, gritar, fazer todas as coisas de que ele gostava.

    “COMPANHEIROS DA CIRCULAR

    Os estivadores reunidos em assembléia, no seu sindicato de classe, resolveram aderir ao movimento grevista dos seus companheiros da Companhia Circular. Vêm assim trazer o seu apoio incondicional aos grevistas na luta pelas reivindicações. Os companheiros da Circular podem contar com os estivadores. Pelo aumento de salários! Por oito horas de trabalho! Pela abolição das multas!

    a) A Diretoria.”

    Antônio Balduíno leu o manifesto entre aplausos. Os condutores de bondes se abraçavam. Já os padeiros haviam aderido. Agora eram os estivadores. A greve seria, sem dúvida, vitoriosa.

    Estavam parados todos os serviços de bondes e telefone. À noite não haveria luz elétrica. Os operários haviam enviado à alta direção da companhia um memorial com suas pretensões. A diretoria declarara que não concordava e recorrera ao governo. Por falta de energia elétrica não circularam jornais. Havia muita gente na rua e grupos de operários eram encontrados em todas as esquinas, conversando. Passavam patrulhas de cavalaria. Corriam boatos de que a Circular estava contratando os desempregados a peso de ouro para que furassem a greve. Um advogado – Dr. Gustavo Barreira – presidente de uma associação de operários procurou o governador e conversaram longamente sobre o assunto. Ao voltar declarou no sindicato que o governo achava justas as pretensões dos operários e que ia entrar em entendimentos com a direção da companhia. Houve muita palma. O jovem advogado estendia as mãos e parecia já colher os votos que o haviam de eleger deputado. Severino disse em voz alta:

    – Tapeação.

    Antônio Balduíno já estava cansado de ouvir tanto discurso. Mas gostava. Aquilo era uma coisa nova para ele, uma das coisas que amaria fazer. Mas era bom. Ele tinha a impressão de que naquele momento eram donos da cidade. Donos de verdade. Eles não queriam, não havia luz, nem bondes, nem telefone para os namorados, o navio sueco não descarregaria os trilhos para a estrada de ferro nem carregaria os sacos de cacau que enchiam o armazém 3. Os guindastes estavam parados, vencidos pelos inimigos que eles sempre mataram. E os donos daquilo tudo, os homens que mandavam neles, se escondiam medrosos, sem coragem de aparecer. Antônio Balduíno sempre tivera um grande desprezo pelos que trabalhavam. E preferiria entrar pelo caminho do mar, se suicidar numa noite no cais, a trabalhar, se Lindinalva não lhe houvesse pedido que tomasse conta do filho. Mas agora o negro olhava com um outro respeito os trabalhadores. Eles podiam deixar de ser escravos. Quando eles queriam, ninguém podia com eles. Aqueles homens magros que vieram da Espanha e viviam nos estribos do bonde cobrando passagens, aqueles negros hercúleos que carregavam fardos no cais ou manejavam as máquinas nas oficinas de eletricidade eram fortes e decididos e tinham a vida da cidade nas mãos. No entanto passam rindo, mal vestidos, os pés no chão muitas vezes, e ouvem insultos dos que se acham prejudicados com a greve. Mas eles riem porque agora sabem que são uma força. Antônio Balduíno também descobriu isto e foi como se nascesse de novo.

    O homem do sobretudo se levantou da mesa do bar e interpelou o operário:

    – Por que esta greve?

    – Pra melhorar o salário...

    – Mas de que é que vocês precisam?

    – De dinheiro...

    – Querem ser ricos também?

    O operário ficou meio atrapalhado. Na verdade ele nunca pensara em ser rico. Queria era mais dinheiro para que a mulher não reclamasse tanto, para poder pagar uma visita do médico (a filhinha estava doente), para comprar outra roupa que aquela estava no fio.

    – Vocês querem muita coisa. Onde se viu operário precisar de tanta coisa?...

    O operário estava confuso. Antônio Balduíno chegou para perto deles. O homem de sobretudo continuava a falar:

    – Quer um conselho? Deixe desta besteira de greve. Isso são sujeitos que querem perturbar a ordem... Inventam coisas. Você vai acabar perdendo o emprego e esse dinheiro que ganha. Quer muito, acaba não tendo nenhum.

    O operário se lembrou da mulher reclamando, do filho doente. Baixou a cabeça. Antônio Balduíno insultou o homem de sobretudo:

    – Quem lhe pagou para você contar esta história?

    – Você é um dos tais, não é?

    – Sou é muito homem para lhe meter a mão no focinho..

    – Sabe com quem está falando?

    – Nem quero saber...

    Para que saber se a cidade era deles? Hoje ele podia dizer o que quisesse porque eles mandavam na cidade.

    – Pois eu sou o Dr. Malagueta, ouviu?

    – Médico da Circular, não é?

    Quem disse isso foi Severino que se aproximava. Vinham com ele vários outros operários. O negro Henrique era gigantesco. O homem de sobretudo dobrou a esquina. O operário que conversara com ele se reuniu ao grupo. Severino explicou:

    – Rapaz, greve é como esses colares que a gente vê nas vitrinas. É preso por uma linha. Se cortar a linha caem todas as contas. É preciso não furar a greve.

    O operário chamava-se Mariano: fez que sim com a cabeça.

    Antônio Balduíno foi com eles para o sindicato dos trabalhadores da Circular esperar a solução da conferência do governo com os diretores da companhia.

    Na mesa da diretoria do sindicato um negro acabava um discurso.

    – Meu pai foi escravo, eu também fui escravo, mas não quero que meus filhos sejam escravos.

    Há homens sentados e muitos estão em pé porque não há mais lugares vagos.

    Uma delegação de padeiros vem prestar seu apoio aos grevistas e lê um manifesto incitando todo o proletariado à greve. “Greve geral”, gritam na sala. Um investigador de polícia fuma. Está encostado na porta e não é o único. Mas nem prestam atenção a ele. Agora fala um rapaz de óculos. Diz que os operários são uma imensa maioria no mundo e os ricos uma pequena minoria. Então por que os ricos sugavam o suor dos pobres? Por que esta maioria trabalhava estupidamente para o conforto da minoria?

    Antônio Balduíno bate palmas. Tudo aquilo é novo para ele e o que estão dizendo é certo. Ele nunca o soube, porém sempre o sentiu. Por isso nunca quisera trabalhar. Os ABC diziam também aquelas coisas mas não diziam tão claramente, não explicavam. Como nas noites do Morro do Capa-Negro ele ouvia e aprendia. O rapaz desceu da cadeira de onde falou. O negro que falara antes fica bem junto de Antônio Balduíno que o abraça:

    – Eu também tenho um filho e não quero que ele seja escravo...

    O negro que discursava sorri. Está falando um representante dos estudantes, O sindicato dos estudantes de direito estava solidário com os grevistas. Dizia no seu discurso que todos os operários, os estudantes, os intelectuais pobres, os camponeses e os soldados se deviam unir na luta contra o capital. Antônio Balduíno não o entendeu muito bem. Mas o negro que discursou lhe explica que capital e ricos querem dizer a mesma coisa. Ele então apóia o orador. De repente sente vontade de subir numa cadeira e falar também. Ele também tem o que dizer, ele já viu muita coisa. Fura pela sala e trepa numa cadeira. Um operário pergunta a outro:

    – Quem é?

    – Um estivador... Um que já jogou boxe...

    Antônio Balduíno fala. Ele não está fazendo discurso, gente. Está é contando o que viu na sua vida de malandro. Narra a vida dos camponeses nas plantações de fumo, o trabalho dos homens sem mulheres, o trabalho das mulheres nas fábricas de charuto. Perguntem ao Gordo se pensarem que é mentira. Conta o que viu. Conta que não gostava de operário, de gente que trabalhava. Mas foi trabalhar por causa do filho. E agora via que os operários se quisessem não seriam escravos. Se os homens das plantações de fumo soubessem, também fariam greve.

    Quase é carregado. Não tomou ainda perfeito conhecimento do seu triunfo. Por que o aplaudem assim? Ele não contou nenhuma história bonita, não bateu em ninguém, não fez um ato de coragem. Contou somente o que viu. Mas os homens aplaudem e muitos o abraçam quando ele passa. Um investigador o fita procurando não esquecer aquela cara. Cada vez Antônio Balduíno gosta mais da greve.

    O rapaz de óculos se retira e um investigador o segue. Do palácio do governo telefonam para o sindicato. É o Dr. Gustavo Barreira avisando que a conferência se prolongará até a noite quando terão possivelmente uma solução.

    – Favorável? – pergunta o secretário do sindicato.

    – Honrosa... – responde o Dr. Gustavo do outro lado do fio.

    Os sinos batem seis horas. A cidade está às escuras.

 

Primeira noite da greve

    A noite é bela, não há nuvens no céu que está azul e cheio de estrelas. Parece uma noite de verão. No entanto os homens se recolhem e não sairão nesta noite a passear. É que a cidade está às escuras, nem uma limpada brilha nos altos postes pretos. Até a limpada da Lanterna dos Afogados se apagou.

    O cais nunca esteve tão silencioso. Os guindastes dormem porque nesta noite os estivadores não virão trabalhar. A marinhagem do navio sueco se estende pelas casas das mulheres da vida. Também nas ruas da cidade não há movimento. Os homens ficam receosos quando a luz falta. Dentro das casas a luz vermelha das lamparinas aumenta as sombras. E a luz baça das velas lembra sentinelas de mortos queridos. Antônio Balduíno se recorda das plantações de fumo enquanto caminha na rua. Um homem passa encostado na parede. Segura a carteira por cima do paletó. Quem o visse diria que ele vai segurando o cotação. A cidade é envolvida pelos sons de batuque que vêm da macumba de Jubiabá. Hoje esses sons de batuque soam aos ouvidos do negro Antônio Balduíno como sons guerreiros, como sons de libertação. A estrela que é Zumbi dos Palmares brilha no céu claro. Um estudante certa vez se riu do negro Antônio Balduíno e disse que aquela estrela não era estrela, era o planeta Vênus. Mas ele ri do estudante porque sabe que aquela estrela é Zumbi dos Palmares, negro valente que morreu para não ser escravo, é Zumbi que brilha no céu e vê o negro Antônio Balduíno lutando para que Gustavinho não seja escravo. Aquele dia de greve fora dos mais bonitos da sua vida. Tão bonito como a fuga através do mato furando o cerco dos capangas. Tão bonito como o dia em que ganhou o campeonato de boxe, derrubando Vicente. Mais bonito até. Ele agora sabe por que luta. E vai assim depressa para avisar todos os negros que estão na macumba de pai Jubiabá. Vai avisar a todos; ao Gordo, a Joaquim, a Zé Camarão, a Jubiabá. Ele não compreende por que Jubiabá ainda não lhe ensinara a greve, JubIabá que sabia tudo. Zumbi dos Palmares, que é o planeta Vênus, pisca para ele do céu.

   

    Será que Exu, Exu, o diabo, está perturbando a festa? Será que se esqueceram de fazer o despacho de Exu, se esqueceram de enviá-lo para bem longe, para outro lado do mar, para a costa d’África, para os algodoais da Virgínia? Exu está teimando em vir à festa. Exu quer que cantem e dancem em sua homenagem. Exu quer saudação, quer que Jubiabá se incline para ele e diga:

    – Ôkê! Ôkê!

    Quer que a mãe do terreiro peça passagem para o santo:

“Edurô démim lonan ô yê!”

    Quer que a assistência repita em coro;

“A umbó k’o wá Jô!”

    Exu não vai embora. É a primeira vez que aquilo acontece numa macumba de Jubiabá. Os sons do batuque escorregam pela ladeira e vão morrer lá embaixo nos becos da cidade grevista. As feitas dançam. Os ogãs olham espantados. Antônio Balduíno penetra de manso na festa. Ele é ogã e toma seu lugar dentro do círculo das feitas que dançam. E com a sua presença Exu vai embora. O Gordo diz que a festa é de Oxossi. Mas antes que o deus da caça venha dançar no corpo de uma feita, Antônio Balduíno fala;

    – Meu povo, vocês não sabe nada... Eu tou pensando na minha cabeça que vocês não sabe nada... Vocês precisam ver a greve, ir para a greve. Negro faz greve, não é mais escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar para Oxossi? Os ricos manda fechar a festa de Oxossi. Uma vez os polícias fecharam a festa de Oxalá quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia. Vocês se lembram, sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada, nem dançar para santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve, pára tudo, pára guindastes, pára bonde, cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes. Negro e branco pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. É só não querer, não é mais escravo. Meu povo, vamos pra greve que a greve é como um colar. Tudo junto é mesmo bonito. Cai uma conta, as outras caem também. Gente, vamos pra lá.

    E Antônio Balduíno sai sem ver os que os acompanham. O Gordo vai com ele, Joaquim e Zé Camarão também. Jubiabá estende as mãos e diz:

    – Exu pegou ele...

    No sindicato ainda não têm nenhum resultado da conferência no palácio. Severino repete para quem quiser ouvir:

    – Tapeação. Não está vendo que aquele doutor é um amarelo?

    Outros defendem. Ele é um advogado e sabe muito. A estas horas ele se baterá pelo direito dos operários explorados. Um fiscal de bonde faz um discurso elogiando o Dr. Gustavo. Há apoiados e vaias.

    No salão do palácio se realiza a conferência. Mas não chegam a uma conclusão. Gustavo pede em lindas tiradas oratórias que os operários sejam satisfeitos nas suas pretensões:

    – Não peço, exijo...

    Fala em humanidade, em homens que passam fome, que trabalham dezoito horas por dia, que morrem tuberculosos. Lembra o perigo da revolução social se este estado de coisas continuar.

    Os homens que representam a companhia (um americano moço e um senhor velho que é advogado da companhia e fora parlamentar noutros tempos) não cedem no entanto. O mais que podem fazer, declara o velho advogado, é ceder em cinqüenta por cento nas reivindicações dos operários Assim mesmo por amor ao povo, para que a cidade não fique privada dos bondes, da luz, do telefone. Para os operários a solução será ótima, declara. Mas dar tudo o que eles pedem, não. É melhor entregar de uma vez a companhia a eles. E os acionistas? Os operários só pensam em si, não se recordam dos estrangeiros que confiaram na nossa gente e empregaram seu dinheiro em empresas no Brasil. Que não dirão eles? Dirão que foram furtados pelos brasileiros e isto com certeza não é honroso para o nome do país. (O americano apóia com a cabeça e com yes.) Ele não quer acreditar que o Dr. Gustavo Barreira, que é um homem culto e inteligente (Gustavo se inclina), possa pensar tão impatrioticamente, que queira ver o nome do país arrastado à lama no estrangeiro. Que os operários não pensem nisso, é justo. São uns ignorantes que já têm mais que o devido e que são arrastados pelas invenções de homens alheios ao meio. Ele não quer se referir – frisa  bem – ao Dr. Gustavo Barreira, cuja honestidade conhece e cujo talento admira. (Gustavo se inclina novamente e murmura: “Eu nunca pensaria. Minha honra está acima de qualquer suspeita”.) A companhia, para não deixar o povo na falta de coisas essenciais à sua vida, concederia cinqüenta por cento do aumento pedido pelos operários. Além disso, nada feito.

    Chegara a hora do jantar. E a conferência termina sem resultados. O governador se retira. O americano oferece o automóvel para conduzir Gustavo. O advogado da companhia fala:

    – Vamos jantar juntos e de barriga cheia discutiremos melhor...

    Como é confortável aquele Hudson, pensa Gustavo ao recostar no automóvel entre o americano e o advogado. O americano oferece charutos. Vão algum tempo em silêncio. O automóvel é macio, o chofer fardado. Correm colados aos trilhos. O advogado pergunta ao americano:

    – E aquela idéia sua, Mister Thomas?

    – Ah! Yes...

    O advogado explica a Gustavo:

    – Veja o que é coincidência, doutor... Ainda há dias falávamos no senhor

    – Yes, yes – faz o americano, puxando uma fumaça do charuto.

    – Eu já me sinto cansado, estou velho.

    – Não diga isto.

    – Não digo que ainda não advogue, isso não. Mas o serviço da companhia é muito pesado para mim, Estivemos pensando, eu e Mister Thomas, em convidar alguém para ocupar o lugar de segundo advogado da companhia. A companhia comporta bem dois advogados. E pensamos no senhor... Não, não pense que é para lhe agradar. Não, senhor... (Gustavo suspende o gesto que dizia que a sua consciência não permitia cambalachos e afirma que não iria nunca pensar que o Dr. Guedes o quisesse comprar. Não era capaz de pensar tal coisa.) A companhia pensou no senhor, digo melhor dizendo que Mister Thomas e eu (Gustavo agradece) pensamos, devido às suas ligações com os sindicatos de trabalhadores da companhia. O senhor é advogado dos operários. Representaria na companhia o pensamento daqueles humildes trabalhadores. Seria uma ligação entre o operariado e a companhia. Os interesses dos operários seriam entregues ao senhor. O senhor é moço, tem uma bela carreira na sua frente. O Parlamento o espera. O país espera muito do seu talento. Veja bem que os intuitos da companhia são os mais nobres possíveis. Muita gente pensa que a companhia não se interessa pela sorte dos operários. Engano... A prova de que a companhia se interessa pela sorte dos seus operários está aí: convida o paladino deles para ser advogado da casa. Assim os operários terão na própria diretoria um defensor. E que defensor!... Por aí o senhor pode ver a boa-fé com que a companhia age.

    O automóvel é macio. Zuleíka vive pedindo um auto móvel. Com a companhia na mão ele chegará ao parlamento na próxima legislatura. O americano é prático:

    – Os honorários são de oito contos por mês, doutor.

    Mas Gustavo protesta que esta questão de dinheiro o interessa pouco, que só lhe interessa defender os operários que podem ser excessivos, ele não diz o contrário, mas que têm as suas razões. Se aceitar será para ser uma sentinela avançada dos direitos dos operários. É claro que não apóia excessos, isso é claro.

    Quando finda o jantar o Dr. Guedes diz:

    – Pois pode levar a boa nova aos operários, doutor. Que aquelas crianças (sim, são umas simples crianças – afirma Gustavo – fáceis de contentar) voltem amanhã ao trabalho. Terão cinqüenta por cento de aumento e devem isto à irradiante simpatia do Dr. Gustavo.

    Quando ele sai o americano cospe:

    – Já vi sujeitos nojentos.

    O velho Guedes ri e pede champanha para comemorar o fim da greve

    – Por conta da companhia, hein?..

    Um automóvel para a mulher, reputação, uma casa em Copacabana, possivelmente uma fazenda de cacau. Cinqüenta por cento de aumento era muita coisa. Cem por cento como queriam os operários era exigir demais. Além disso se pede cem para conseguir dez. Ele conseguira cinqüenta para os operários. Uma vitória, sim senhor. E ainda impedira que o nome da pátria fosse enxovalhado no estrangeiro.

    No sindicato o negro Antônio Balduíno faz o seu terceiro discurso do dia só para que o filho do Dr. Gustavo Barreira não seja escravo como ele é, como são todos os negros e brancos operários do cais, das padarias, da companhia de bonde, luz e telefone.

    Mariano entra em casa de cabeça baixa. Quando ele saiu a mulher ainda não sabia que a greve tinha sido declarada. E só à noite ele teve coragem de voltar para casa, de rever os olhos febris da mulher zangada, os olhos mortos da filha doente. Mal ele entra a mulher grita:

    – Você está metido nisso, Mariano?

    – Em quê?           

    – Olha a criancinha querendo se fazer de inocente. Tou falando desta maldita greve... Você está metido nisso, não está?

    – Maldita por quê, Guilhermina?... A gente quer ganhar mais, a gente quer ter um pouco mais de dinheiro. É remédio para Lila que eu quero. . . Maldita, não vejo por quê...

    – Quer dinheiro? Vocês quer mas é malandrear, não fazer nada, ficar bêbado pela rua, chegar em casa de madrugada. Pensa que eu não conheço vocês? Pensa que você me engana? Fica por aí vadiando e depois vem com esse verso em cima de mim... Quer remédio para Lila... Se você estivesse trabalhando direito, sem se meter nestas coisas, já era fiscal, já estava ganhando mais... Greve é coisa de demônio, Padre Silvino diz todo dia. Isso é coisa que o demônio mete na cabeça dos doidos como você... Se você não andasse se metendo nestas coisas já estava fiscal.

    Mariano ouve sem replicar. Quando a mulher termina e bota as mãos nas cadeiras esperando, Mariano apenas pergunta:

    – E Lila como vai?

    – E Lila como vai? – ela arremeda. – Vai no mesmo, como é que podia ir? Você pensa muito na sorte dela, se metendo em greves. Preferia que Deus me matasse que ver meu marido assim metido em invenção do diabo.

    Se afasta de Mariano como se ele fosse o próprio demônio. O operário vai até a cama e olha a filha. Ela está doente dos intestinos, o médico disse que foi terra que ela comeu. Nos dias que ele passou desempregado quase não havia comida em casa. É capaz do Dr. Gustavo resolver tudo com a companhia esta noite e amanhã eles voltarão ao trabalho. Poderá pagar outra consulta ao médico. Trará remédios da farmácia. E se não resolver? Se a greve durar oito, dez dias? Aí será trágico, faltará a comida, a menina morrerá por falta de remédios. Ele não quer que Lila morra. Mesmo quando Guilhermina está terrível, Lilá sorri para ele e beija seu rosto barbado. Mas a greve, Mariano, é um colar de contas ligado por um fio. Caindo uma conta, caem todas. Ele ouve a voz de Severino e afasta o pensamento ruim. Beija a filha. De longe, na rua, ainda escuta a voz zangada de Guilhermina.

    O negro Henrique palita os dentes com uma espinha de peixe. Bota o filho no colo e pergunta

    – Já sabe a lição d’amanhã, tição?

    O negrinho ri e, botando o dedo no nariz garante que sabe na ponta da língua. Ercídia vem da cozinha e avisa:

    – Amanhã vai ser arraia de novo.

    – Enquanto tiver arraia, tá tudo bom, negra.

    Henrique ri com o pretinho. Não é que o tiçãozinho sabe todas as lições, consegue até fazer contas?

    – Tá um bicho, hein, Ercídia?

    A negra sorri. O filho quer que ele conte uma história. O negro Henrique diz

    – Um preto batuta fez um discurso no sindicato dizendo que os filhos da gente não ia ser mais escravo... Tiçãozinho não vai mais ser escravo.

    – A greve ganha?

    – Ora, se ganha! Quem é que pode com a gente? Tá ali, tá ganha, você vai ver. Tá bonito... Tem um negro Balduíno que fala que é uma beleza.

    Conta à mulher os fatos do dia. Os seus músculos de gigante aparecem sob a camisa de listras. Depois pega o filho, põe em pé diante de si:

    – Tição, você não vai ser mais escravo... Você vai ser governador, tição. A gente é muito, eles são poucos. A gente acaba governando eles.

    Bate continência ao futuro governador. Ri em gargalhadas, certo de sua força, da razão da greve que está fazendo. A negra Ercídia sorri para o marido com ternura:

    – Amanhã tem arraia de novo...

    O dono da Padaria Dois Mundos, um espanhol baixote, conta os fatos do dia. A mulher estendida numa cadeira de balanço ouve em silêncio. A filha martela um samba com os dedos. O dono da Padaria Dois Mundos narra a história da greve, os principais fatos do dia. O candeeiro tem a luz vacilante. Miguel termina de contar e cerra os olhos. A mulher pergunta da cadeira de balanço:

    – Mas a padaria está dando, não está, MigueI?

    – Está, sim. Com esses dias de greve vai haver algum prejuízo mas o lucro compensa.

    – Então eu acho que eles têm razão. Eles passam uma miséria horrorosa.

    – Têm, sim. Eu por mim dava o aumento. Já disse na associação. Os outros, o Ruiz das Panificações, é que não querem. O Ruiz, então! Parece que não se contenta com nada aquele homem... Eu por mim dava.

    A filha interrompe:

    – Pra que dar, papai? Seu Ruiz tem razão... a gente precisa de tanto dinheiro. Eu quero uma barata, um rádio... O senhor me prometeu... Não se lembra mais? Agora quer dar para esses pretos sem-vergonha.

    – Quem quer tudo fica sem nada, minha filha – responde Miguel.

    A mulher pensa que a filha já nasceu numa casa confortável, não veio, como ela e o marido, das fábricas de Madri, na terceira classe de um navio, não passou fome nunca. Quer um auto, um rádio, quanta coisa mais. Os negros querem tão pouco. Repete para o marido:

    – Se bata pelo aumento, Miguel. Seu Ruiz é um avarento, só sabe amealhar dinheiro.

    A filha sonha com a baratinha que cortou a rua. O namorado se aproxima da janela:

    – Eu sou pela greve. Porque assim, só com a lua, você ainda é mais bonita.

    Quando ela tiver a baratinha não precisará namorar com um caixeiro de armarinho, ouvir frases românticas. Namorará um estudante, um acadêmico, e irá às festas elegantes.

    O Dr. Gustavo Barreira salta do táxi e sobe de dois em dois os degraus da escada do sindicato. Fazem silêncio quando ele entra. Senta à mesa no lugar que o presidente lhe cede. Pede a palavra.

    – Senhores, como vosso advogado trabalhei toda a tarde junto aos diretores da Companhia Circular. Testemunha melhor do meu trabalho e do meu esforço honesto é a grata nova que vos trago. Senhores, serei conciso. O caso foi solucionado completamente... (Os ouvintes se projetam para a frente. Assim ouvem melhor.) graças aos esforços empregados pelo vosso humilde patrono. Após discutirmos toda uma tarde chegamos à conclusão de que o caso ficaria perfeitamente liquidado, com honra para ambas as partes, se todos cedessem um pouco (ouve-se um zunzum na sala). – De um lado a companhia saía da sua intransigência que chegava ao ponto de não admitir nenhum entendimento com os operários enquanto eles se conservassem em greve, e não só entrara em entendimentos como chegara com ele, orador, a um acerto. Os operários cederiam em cinqüenta por cento das suas exigências e a companhia satisfaria os outros cinqüenta por cento começando as novas tabelas a vigorar no dia seguinte.

    – Isso é política de advogado ou de operário? – interrompeu Severino.

    – Essa é a melhor política... – Dr. Gustavo sorri seu sorriso mais caricioso – é a política de conquistar aos poucos aquilo que não pode ser conquistado de um só golpe. Se derdes ouvidos aos agitadores profissionais a luta será perdida para vós, pois se extremardes demasiado ela se voltará contra vós como um punhal de dois gumes, pois a fome baterá à vossa porta, a miséria habitará o vosso lar.

    – O sindicato tem dinheiro para garantir a greve.

    – Mesmo que ela se eternize?

    – Ela tem que acabar que a cidade não pode ficar sem luz e sem bonde. Eles têm que dar o que a gente quer! Não vamos desanimar, companheiros!

    O Dr. Gustavo está rubro de cólera:

    – Você não sabe o que diz. Eu sou um advogado, entendo destas coisas.

    – A gente é que sabe de quanto precisa para não morrer...

    – Bonito, negro – apóia Balduíno.

    Um rapaz pede a palavra. Começaram a bater palmas mal ele aparece na mesa.

    – Quem é? – pergunta Antônio Balduíno ao negro Henrique.

    – É um operário das oficinas. Se chama Pedro Corumba. Um homem escreveu o ABC da família dele que passou o diabo em Sergipe. Eu já li... Ele é um lutador velho, Grevista velho. Já fez greve em Sergipe, no Rio, em São Paulo. Eu conheço ele. Depois lhe apresento.

    – Quando eu saio de casa digo a meus filhos: vocês são irmãos de todas as crianças operárias do Brasil. Digo isso porque posso morrer e quero que meus filhos continuem a lutar pela redenção do proletariado. Companheiros, a gente está sendo traída. Essa não é a primeira vez que eu faço uma greve. Eu sei o que é traição. Operário não pode acreditar em ninguém que não seja operário mesmo. Os outros tapeiam, enganam. Esse que está aqui – aponta o Dr. Gustavo – é um amarelo, Quem sabe se já não tem um emprego na companhia, se não lhe deram dinheiro?...

    O Dr. Gustavo bate na mesa, protesta, diz que o orador o está insultando e que ele é capaz de reagir. Mas os operários têm os olhos em Pedro Corumba que continua:

    – Companheiros, a gente está sendo traída. A gente não pode aceitar esta proposta da companhia. Assim eles pensam que a gente está fraco, amanhã tira o aumento e deixa a gente na mão. A gente começou tem que levar até o fim. Eu prefiro morrer a abandonar a greve que já começou. A gente vai vencer. A gente tem que vencer. O proletariado é uma força e se souber se conduzir, se souber dirigir a sua luta, conseguirá o que quiser. Companheiros, tudo dentro da nossa proposta. Nada de tapeações. Abaixo Gustavo Barreira e a Companhia Circular! Viva o proletariado! Viva a greve!

    – Viva! – a multidão tem os olhos abertos. Mariano sorri, o negro Henrique mostra os dentes. Antônio Balduíno fala:

    – Os estivadores concordam com o que disse o companheiro Corumba. Eles não estão com o seu caso ainda resolvido. Eles apoiaram a greve dos operários da Circular e esperam que estes os apóiem. Eles não querem tapeação. Querem que as suas propostas sejam aceitas como estão e não pela metade.

    Propõe que Gustavo Barreira, que os estava traindo, seja expulso da mesa. Se Antônio Balduíno soubesse que ele fora o amante de Lindinalva ele não sairia vivo desta sala. O advogado se retira garantido pelos investigadores. Uma vaia o acompanha pela escada. Porém pedem silêncio. Severino fala e avisa que agora a luta vai ser mais cruel, mais difícil, pois os inimigos irão dizer que eles é que não querem acordo. Propõe que se lance um manifesto à população. Lê o manifesto que já redigiu e que é aprovado. O manifesto explica que eles foram traídos mas que sustentarão a luta até o fim e que só voltarão ao trabalho quando a companhia aceitar as condições pedidas desde o primeiro momento.

    Um sujeito moreno pede para ser ouvido. Ele é contra a continuação da greve. Acha que se deve aceitar o aumento de cinqüenta por cento. Já vai servindo. Quem quer muito de uma vez, acaba perdendo tudo. O Dr. Gustavo tinha razão. Qual é a força que operário tem? Operário não tem força nenhuma. A polícia podia acabar a greve na hora que quisesse.

    – Como? Como?

    – Ora, se podia. Eles deviam se dar por felizes com o aumento. Propõe que a assembléia aprove a terminação da greve e um voto de louvor ao Dr. Gustavo.

    Vozes gritam:

    – Vendido, vendido! Traidor, traidor!

    Outros pedem que ouçam o orador. Vários operários, Mariano entre eles, estão quase concordando com o rapaz moreno. Cinqüenta por cento já é alguma coisa. Depois podem perder tudo e será muito pior. Quando o rapaz desce, ganha alguns aplausos. Mas Antônio Balduíno grita mesmo do lugar onde está.

    – Gente, o olho da piedade de vocês já secou. Ficou somente o da ruindade? Vocês parece que nem se lembram da gente que apoiou vocês. Os estivadores, os trabalhadores da padaria. Se vocês querem ser traídos, sejam. Cada um é dono de sua cabeça. Mas se vocês são tão burros que querem perder tudo para ganhar uma porcaria, eu garanto que rebento a cabeça do primeiro que passar naquela porta. E eu fico na greve até vencer!

    Severino sorri. Mas vários se impressionam com o discurso de Balduíno. O Gordo que nunca viu uma coisa assim está tremendo. O negro que falou de tarde discursava novamente. Mostra que houve traição, que eles foram vendidos. Pedro Corumba fala também, cita exemplos das greves de São Paulo e do Rio quando confiaram em promessas de advogados que se diziam amigos do proletariado. Mas a assistência está indecisa, os homens conversam entre si e os que aceitam a proposta conquistam adeptos.

    O presidente vai pôr em votação Aqueles que concordam com a continuação da greve se levantem. Os que acham que devem aceitar a proposta da companhia, se conservem sentados. Porém, antes que a votação seja feita, um jovem operário invade o recinto e grita:

    – O companheiro Ademar foi preso quando saiu daqui de tarde. E a companhia está alugando gente para furar a greve.

    Pára e toma fôlego:

    – E dizque a polícia vai obrigar os padeiros a entregar pão amanhã.

    Então a assembléia se levanta toda e vota pela continuação da greve com os braços estendidos, os punhos fechados.

 

Segundo dia da greve

    Para que dormir nesta noite tão bonita? O negro Antônio Balduíno não vai dormir. Passa o resto da noite na companhia do Gordo e de Joaquim pregando manifestos pela cidade, o manifesto que Severino redigiu e que explica os motivos da continuação da greve. Todos os postes têm manifestos. Também nos muros do Ramos do Queirós, da Baixa dos Sapateiros, pregaram manifestos. Um grupo chefiado pelo negro Henrique foi para os lados do Rio Vermelho. Eles vão para a Estrada da Liberdade, outros seguem para a Calçada, outros estão na Cidade Baixa. A cidade se enche de manifestos e todos sabem as razões por que os operários continuam em greve. A companhia não é geralmente simpatizada e os pequenos comerciantes vêm de marinete para os seus negócios e olham os operários com simpatia. A companhia fez espalhar o boato de que se a greve vencesse os preços das passagens nos bondes, as assinaturas de luz e telefone subiriam. Mas o golpe falha, apenas traz maior animosidade contra a companhia. O tempo continua claro conservando o bom humor da população. E este bom humor é aliado dos operários.

    Antônio Balduíno (quanta coisa ele aprendeu naquele dia e naquela noite!) explica a greve ao Gordo e a Joaquim. E se espanta de Jubiabá não saber coisas de greve. Jubiabá sabia coisas de santos, histórias da escravidão, era livre mas nunca ensinara a greve ao povo escravo do morro. Antônio Balduíno não compreendia.

    Dos lados da Ladeira do Pelourinho vem um barulho, uma agitação. Homens passam correndo. Do sindicato ouvem o ruído de um tiro. Alguém que entra diz:

    – A polícia quer obrigar os padeiros a entregar pão.

    Saí um grupo do sindicato. Mas o barulho já se desfez e no chão jazem cestos onde estavam os pães envelhecidos que os donos de padaria queriam obrigar os cesteiros a entregar.

    Um cesteiro que está com o olho arroxeado de uma pancada explica:

    – Veio até soldado de cavalaria. Mas a gente não entregou mesmo.

    Um outro avisa que a Padaria Galega vai mandar entregar o pão dormido. Conta que eles foram contratar desempregados dando o duplo do salário. Demais, garantiam o emprego para o resto da vida.

    Um forneiro velho grita:

    – A gente não deve deixar.

    Tem muita gente nas janelas da Ladeira do Pelourinho. E do sindicato dos operários da Circular chegam a todo momento novos grupos. Vozes aplaudem o forneiro:

    – Vamos mostrar a eles que não se deve furar greve..

    Antônio Balduíno convida:

    – A gente rebenta a cara deles.

    – Nada disso – diz Severino. – Vamos lá e explicamos para eles que não devem servir de instrumento contra os operários como eles. Não é preciso barulho.

    – Mas para que tanto discurso quando a gente podia rebentar logo a cara destes amarelos?

    – Eles não são amarelos... Eles não sabem de nada. Nós vamos explicar... – Severino sabe o que está dizendo.

    Antônio Balduíno cala. Aos poucos ele vai aprendendo que na greve não é um homem que manda. Na greve eles todos fazem um corpo só. A greve é como um colar... Mas não sente tristeza de não ser o chefe da greve. Todos são chefes. Obedecem ao que está certo. Aquela luta é diferente da que ele sustentou em toda a sua vida. Mas desta que resultou? Resultou ele escravo aos guindastes, olhando o mar como um caminho. Na luta da greve, não. Eles iam perder um pouco da escravidão, ganhar mais alguma liberdade. Um dia fariam uma greve ainda maior e não seriam mais escravos. Jubiabá também não sabe nada desta luta... Os homens que vão entregar os pães não devem saber também. Severino tem razão. Não adianta dar pancada. Adianta é convencer. E o negro segue o grupo para a Padaria Galega que fica na Baixa dos Sapateiros.

    Os cesteiros vão saindo. Parecem figuras de carnaval com aqueles cestos na cabeça. Severino começa a falar trepado num poste ao qual se agarra com uma das mãos. Explica aos homens que devem ser solidários com os seus irmãos que pedem aumento. Que não devem servir aos interesses dos patrões. Que não devem entregar aquele pão, que não devem trair a classe a que pertencem.

    – Mas a gente não tem trabalho... – diz um deles.

    – E por isso vai tomar o lugar dos outros? É justo que você vá tomar o lugar de um companheiro que está lutando pelo bem de todos? É uma traição. ..

    Um cesteiro arria o cesto de pão. Outros acompanham. A massa grita de entusiasmo. Mesmo os mais recalcitrantes, aquele que dera o aparte, um que tem família a sustentar, largam os cestos ante o entusiasmo da multidão. Dois que querem sair para entregar os pães são impedidos pelos próprios companheiros. E entre os gritos de “viva a greve” vão todos para o sindicato dos padeiros.

    Mas, pela tarde, a coisa foi ficando feia para o lado dos padeiros. Foi o Gordo, que tinha ido comer e se demorara muito, quem trouxera a notícia. O dono das Panificações Reunidas havia mandado buscar forneiros e amassadores em Feira de Santana. Tinha feito os homens virem de automóvel e no dia seguinte já haveria pão, pois agora mesmo de tarde os homens começariam a trabalhar.

    Houve um começo de pânico entre os padeiros. Homens foram enviados aos sindicatos dos operários da Circular e dos estivadores. Se as Reunidas conseguissem botar pão na rua a greve dos padeiros podia ser dada como terminada e os grevistas teriam perdido, além do aumento pedido, o próprio emprego. E isso afetaria grandemente a greve dos operários da Circular e dos estivadores. Vencidos os padeiros a greve perdia um dos braços. Seria muito mais fácil contra os restantes. Começaram a chover os discursos no sindicato dos padeiros. Enquanto isso havia um comício na Praça Castro Alves pedindo a libertação do operário preso na véspera. No meio do comício alguém falou no caso dos padeiros, no furo que as Reunidas pretendiam fazer na greve. O comício tomou aí um caráter mais violento e desceram todos para o sindicato dos padeiros. Do sindicato dos estivadores já ia gente. O Gordo passou pelo dos operários da Circular para avisar.

    No sindicato dos padeiros (a sala era pequena para tanta gente) falaram os representantes dos trabalhadores das padarias, dos estivadores, dos condutores de bonde, dos estudantes. Falou também um operário de uma fábrica de sapatos que entraria em greve geral mal a situação exigisse. Cada vez chegava mais gente ao sindicato. Severino falou rouco, já quase sem voz. Foi lançado um manifesto concitando os operários à greve geral e ficou resolvido que iriam impedir o trabalho dos padeiros vindos de Feira de Santana.

    As Panificações Reunidas eram três grandes padarias. Uma ficava na Baixa dos Sapateiros, a outra no Corredor da Vitória e a terceira numa rua do centro. Os grevistas se reuniram em três grandes grupos e foram para a frente das padarias. Apenas Severino e uns poucos foram entrar em entendimentos com os operários de algumas fábricas e com os choferes de marinetes e de automóveis de praça. Preparavam a greve geral. A Companhia Circular e a companhia que explorava as docas não queriam sequer entendimentos com os grevistas. Só tomariam conhecimento das suas propostas quando eles voltassem ao trabalho. Os donos de padaria procuravam furar a greve.

    Foi fácil impedir que os operários contratados para as panificações do Corredor da Vitória e do centro da cidade trabalhassem. Eles tinham vindo com promessas formidáveis, mas de começo Ruiz, o proprietário, se negara a pagar metade do trabalho adiantado como prometera. Dissera que só no dia seguinte, o serviço feito, pagaria. Com apelos ao sentimento de solidariedade e com a certeza, que se lia no rosto dos grevistas, que não deixariam os outros trabalharem, os recém-vindos consentiram em voltar para Feira de Santana num automóvel. E se foram dando vivas à greve.

    Porém nas Reunidas da Baixa dos Sapateiros a coisa foi diferente. Quando os grevistas chegaram a polícia já se encontrava guarnecendo a padaria. Investigadores se envolviam entre os operários, a mão no revólver. O grupo ficou parado na rua esperando que os contratados chegassem. Quando o caminhão que os trazia desembocou na rua, um operário se postou na sua frente, impedindo-o de continuar a marcha. Imediatamente outro trepou num poste e começou um discurso mostrando aos padeiros de Feira de Santana qual a situação e o que os patrões queriam fazer. A rua estava cheia. Homens que não tinham nada com o caso paravam para ver em que dava aquilo. Um disse ao companheiro:

    – Aposto que eles voltam..

    – Cincão como ficam...

    Meninos e meninas que brincavam num beco próximo correram para apreciar o espetáculo. Achavam aquilo divertido como Antônio Balduíno achara divertida a prisão daquele agitador no caís do porto muitos anos atrás. Gritavam quando os operários gritavam. E se divertiam imensamente. Trepado no poste o operário continuava o seu discurso. Os padeiros de Feira de Santana escutavam e alguns estavam convencidos de voltar.

    De repente choveu bala. Os investigadores atiravam, a cavalaria investiu contra os operários. Houve correria, gente pisada, luta de homem contra homem. Antônio Balduíno já derrubara um quando viu o Gordo correndo na sua frente com os olhos esbugalhados e as banhas da cara balançando. O operário continuava o seu discurso mesmo entre balas. Antônio Balduíno agora vê o Gordo que levanta o cadáver de uma negrinha baleada e sai gritando pela rua:

    – Onde é que está Deus? Quedê Deus?...

    Os padeiros de Feira de Santana voltaram no mesmo caminhão. Estendidos na Baixa dos Sapateiros ficam dois grevistas. Um está morto mas o outro ainda pode sorrir.

    Quem é aquele negro que vai assim de braços estendidos pelas ruas calmas ou movimentadas da cidade? Por que ele blasfema, por que chora, por que pergunta onde está Deus? Por que ele leva os braços assim estendidos para a frente como se carregasse alguma coisa e passa sem ver nada, sem reparar nos homens e mulheres que reparam nele, sem olhar a vida que se movimenta em torno, sem ver o sol que brilha? Para onde ele vai alheio a tudo? Que levará ele nos braços, que coisa será essa que ele balança com tanto carinho? Que coisa será essa que olhos humanos não vêem e que ele aconchega ao peito suavemente? Que quererá esse negro gordo de olhos tristes que passa pelas ruas da cidade nas horas de maior movimento? Ele repete a todos que passam perto de si a mesma pergunta angustiada:

    – Onde está Deus? Onde está Deus?

    Sua voz é desolada e trágica. Quem é esse homem que impressiona todos que passeiam na cidade? Ninguém sabe.

    Os operários que fizeram a greve sabem que é o Gordo que enlouqueceu quando viu a bala do revólver de um investigador matar uma negrinha em frente de uma das padarias das Panificações Reunidas no dia de um comício.

    Sabem que ele carregara o cadáver da pretinha até a casa de pai-de-santo Jubiabá e que fora todo o tempo repetindo aquela mesma pergunta:

    – Onde está Deus?

    Ele era muito religioso e enlouqueceu. Agora anda com os braços estendidos como se ainda levasse a pretinha baleada. Não faz mal a ninguém, é um louco manso.

    Porém nem mesmo estes sabem de tudo. Eles não sabem que desde o dia do comício o Gordo carrega aquela pretinha certo que de um momento para outro Deus se lembrará dela, mostrará que é bom e a colocará em pé, a brincar com as outras crianças na Baixa dos Sapateiros. Nesse dia o Gordo deixará de repetir a sua pergunta, baixará as mãos e seus olhos não serão mais tristes. Mas se ele soubesse que ela tinha morrido, que seu caixão pobre fora enterrado há muito, então, ele morreria também porque até o olho da piedade de Deus, que é do tamanho do mundo, teria secado. Então ele não acreditaria mais e morreria desgraçado. Por isso é que ele vai assim como um louco manso, de braços estendidos, aconchegando ao peito o corpinho magro da criança negra que morreu no comício. Não importa que os homens não vejam o pequeno corpo baleado. Ele pesa nos braços do Gordo e ele sente a sua quentura quando o encosta ao coração.

   

Segunda Noite de Greve

    A cidade perdera aquele tom festivo. Desde o primeiro tiroteio que os boatos invadiram a cidade e aos poucos o movimento das ruas foi diminuindo. As marinetes corriam mas levaram raros passageiros, e estes, assim mesmo, se recolhiam a casa medrosos de brigas, de balas perdidas:

    – Bala não leva endereço.

    Dentro das casas, o ambiente entre as famílias era de quase terror. O encontro entre padeiros grevistas e a polícia na Baixa dos Sapateiros assumia proporções tremendas. Davam dezoito mortos, dezenas de feridos. Corria que os sindicatos iam ser atacados e os grevistas dissolvidos a bala. As senhoras tremiam e passavam trancas nas portas enquanto acendiam as velas e os candeeiros dentro de casa. A cidade estava intranqüila.

    Faltou o jantar na casa de Clóvis. Ele ficara de trazer qualquer coisa da cidade e Helena esperou por toda a tarde. Ele não apareceu. Corriam os boatos mais desencontrados. Quando ela soube do tiroteio na Baixa dos Sapateiros correu à rua. Mas foi informada que Clóvis não estava no momento do barulho, tinha sido do grupo que fora fechar a panificação do Corredor da Vitória. Voltou mais descansada e continuou a esperar o marido. Os filhos eram três, corriam pela porta, brincando de picula. Que iria dar às crianças para comer? O fogão parado esperava inútil na co zinha. Não havia nada. Até a farinha terminara naquele dia. Já para o almoço ela pedira comida às vizinhas e prometera pagar quando o marido voltasse, porque as pobres também precisavam, pois os homens que moravam naquele beco ou eram empregados de padaria ou estivadores e andavam em greve. Helena estava envergonhada. Que faria das crianças? Mandaria pedir mais comida? Eles estavam em greve e os homens diziam que era necessário que uns ajudassem os outros. Ela não era contra a greve, não. Achava que eles tinham razão, que o salário era muito pequeno e não dava. Eles estavam no seu direito de pedir mais, deixar de trabalhar até que os patrões aumentassem o salário. Mas temia os dias que iam se seguir. Não havia mais comida em casa, nas dos vizinhos faltaria logo e onde é que o sindicato arranjaria dinheiro para sustentar tanta gente? Se a greve demorasse mais alguns dias, a fome os derrubaria. Chega à janela. Na casa vizinha aparece Ercídia:

    – Seu Clóvis já chegou, Helena?

    – Ainda não, Sinhá Ercídia...

    – É capaz de não vir... Henrique me disse que eu não esperasse... A greve tá braba hoje e os homens precisam estar na rua.

    A negra sorria.

    – Acho que vou jantar sem ele..

    Sorriu novamente. Mas por que Helena não sorri, não acha graça? Ela está chorando. Ercídia saí e entra na casa da vizinha:

    – O que é, Helena?

    O fogão está parado na cozinha. A negra alisa a cabeça da outra:

    – Não se importe, menina, deixe de besteira. Lá em casa tem arraia que chegue. E depois eles ganham a greve e a gente tem mais dinheiro.

    Helena sorri entre lágrimas.

    Após acomodar as crianças, que ficaram dormindo, Helena bota um xale nos ombros e toma o caminho da Graça, onde mora Dona Helena Ruiz, esposa do patrão de seu marido. Ela fora lavadeira de Dona Helena, que era uma senhora sempre preocupada em fazer bem aos pobres e que a chamava sem nenhuma besteira de “xará”.

    – Veja lá, xará. Quero esta roupa bem alva.

    Apesar de riquíssima, Dona Helena continuava a tomar conta da sua casa. Dizia que quem não tem nenhuma ocupação se ocupa com pensamentos ruins. E se bem tivesse muitas festas a que ir, cinemas a assistir, passeios a dar, arranjava sempre tempo para zelar pela casa. O marido rogava que entregasse aquilo às criadas, que não estragasse seus vinte e dois anos risonhos, mas ela não dava ouvidos:

    – Se eu entregar isso a empregadas você nunca mais terá uma roupa que preste. E demais eu gosto.

    O marido a beijava no rosto e depois iam ao cinema muito unidos. Ele lhe contava os negócios, falava orgulhoso da prosperidade das Panificações Reunidas (pretendia abrir mais uma em Itapagipe), ela sorria satisfeita do marido que Deus lhe dera. Ele dizia:

    – Você é quem me dá coragem. Se não fosse você não sei o que seria de mim.

    Fora por intermédio de Dona Helena que Clóvis arranjou o emprego na padaria. A lavadeira pedira à patroa, no outro dia Clóvis tivera o lugar. A lavadeira ia. à casa da patroa (fazia dois anos que não a via, desde que Clóvis se empregara) pensando nisso tudo. Será que Dona Helena se recorda da xará?

    Dona Helena está na sala fazendo um bordado. O marido toma banho lá em cima, pois chegou da rua suado, depois de passar o dia todo em conferências, providenciando homens para trabalhar nas panificações.

    Mal sabe que a lavadeira está aí e quer falar, Dona Helena manda que ela entre. Larga o bordado que fazia à luz do candeeiro (o marido já reclama: você estraga sua vista, Helena...) e sorri para a mulher que tem os olhos no chão.

    – Então, xará, nunca mais veio nos ver?

    – Ocupada, Dona Helena. Os meninos não dão tempo para nada.

    – Sabe que nunca mais tive uma lavadeira como você, xará?

    Helena sorri meio encabulada. Dona Helena se recorda que ela veio falar:

    – O que é que você quer?

    Helena não sabe como começar. Agita as mãos, se atrapalha. Dona Helena pergunta:

    – O que é que você tem? Aconteceu alguma coisa com os meninos? ou com seu marido?

    – Acontecer não aconteceu, Dona Helena... É a greve.

    – Ah! A greve... Ruiz também anda aborrecido com esta greve.

    – Mas é só ele querer...

    Dona Helena não sabe de nada. A lavadeira conta a vida do beco, os homens ganhando uma miséria na padaria, sustentando as famílias com este salário de fome, os filhos doentes. Com a greve, greve justa para pedir uns tostões a mais, as famílias estavam sem ter o que comer. Os seus filhos só tinham comido naquele dia porque uma vizinha se compadecera. Mas tinha meninos passando fome.

    Dona Helena se agita num assombro. Sua voz é dolorosa:

    – Meninos passando fome? Não é possível, meu Deus...

    Passando fome, sim. E uma pretinha morrera num tiroteio esta tarde. Ainda fora feliz. As outras em casa pediam comida e choravam:

    – Se isto demorar a gente tem que pedir esmolas. E os homens querem tão pouco!

    Dona Helena se levanta emocionada. Com certeza Ruiz não sabe disso. Se ele soubesse desta situação já teria aumentado os salários dos seus operários. – Ele é tão bom...

    Dona Helena leva a lavadeira à cozinha. Faz um farnel para ela. Do que há de melhor. E ainda lhe dá vinte mil-réis em dinheiro. Quando a mulher sai, curva como uma escrava e chorando como uma escrava, Dona Helena lhe diz:

    – Vá descansada, xará. Agora mesmo vou falar com Ruiz. Ele ignora estas coisas. Mas eu vou contar e ele aumenta logo os homens. Você vai ver. Ele é tão bom.

    Antônio Ruiz, o proprietário das Panificações Reunidas, veste a camisa de seda quando a mulher entra no quarto. Olha espantado para o rosto dela:

    – O que é que você tem, minha filha?

    Se aproxima e beija novamente a esposa.

    – Está triste? Por que não vai ao cinema hoje?

    Ri:

    – A greve não deixa amorzinho ter cinema...

    – É sobre a greve mesmo que eu quero falar com você, Ruiz.

    – Está metida em política, filhinha?

    No outro quarto dorme a filha do casal entre bonecas num berço de fadas.

    Dona Helena se recorda das crianças que passam fome nos becos:

    – Você precisa concordar com os homens e dar o aumento...

    O marido se volta num salto.

    – Hein? – a sua voz tem uma brutalidade que Dona Helena não conhece.

    Mas ele se arrepende e diz com voz doce:

    – Você não sabe nada dessas coisas, meu amor.

    – Quem foi que lhe disse que eu não sei? Sei mais do que você... (Dona Helena tem diante dos olhos o quadro das crianças esfomeadas.) Sei de coisas que você não sabe.

    E narra ao marido, com emoção, o que lhe contou a sua lavadeira Helena. Por fim sorri vitoriosa:

    – Eu não lhe disse que sabia coisas que você não sabia? Sua mulherzinha anda informada.

    – Mas quem foi que lhe disse que não sei disso?

    – Você sabe... sabe... e...

    Bateram muito em Dona Helena. Deram-lhe marteladas na cabeça, deram-lhe tanto que ela perdeu a voz. O marido se aproxima:

    – O que é isso, Lena? Eu sei, sim.

    – E não faz nada? Não aumenta estes homens? Concorda com esse crime?

    – Que crime, Lena? – o espanto de Ruiz não é fingido.

    – Que crime? – Dona Helena vai de espanto em espanto. – Então você acha que não é um crime deixar esses homens, essas mulheres, essas crianças, Ruiz, crianças passarem fome.

    – Mas, minha filha, eu não digo nada. Desde o princípio do mundo que é assim... Sempre houve pobres e ricos...

    – Mas, Ruiz, são criancinhas passando fome... Você já pensou em Leninha passando fome? É horrível, meu Deus...

    Ruiz anda de um lado para o outro, agitado:

    – Para que você se mete nisso? Você não entende disso...

    – E você que é tão bom... Parecia...

    – Eu sou igual aos outros. Nem pior nem melhor.

    Há um silêncio no quarto. Ouvem a respiração forte que vem do quarto vizinho. Ruiz explica:

    – Você sabe o que é que eles querem?

    – Querem tão pouco...

    – Mas é preciso não dar nada. Se a gente der hoje esse aumento, amanhã, quererão outro, depois mais outro, e um dia quererão as padarias.

    – Sei é que tem crianças com fome. E eles ganham mesmo uma miséria. Você nunca me falou que sabia destas coisas. E eu não sabia. Se eu soubesse...

    Ruiz se irrita:

    – Se soubesse o que é que fazia? Você lá sabe de nada. Eu estou defendendo o seu automóvel, a sua casa, o colégio de Leninha. Você acha que eu devo trabalhar para esses canalhas?

    – Mas eles querem tão pouco, Ruiz. Não é possível que você goste de ver o sofrimento alheio.

    – Eu não gosto de nada. Mas aqui não é questão de sentimentalismo. É coisa mais séria. Eu não sou eu, não tenho nada com meus sentimentos. Eu sou o patrão, tenho que defender meus interesses. Se a gente ceder o pé, amanhã eles quererão a mão... Você quer ficar sem automóvel, sem casa, sem criadas para Leninha? Eu estou defendendo isso tudo, estou defendendo o que é nosso, nosso dinheiro... Defendendo o seu conforto!

    Anda pelo quarto. Pára diante da esposa:

    – Então você pensa, Lena, que eu sinto prazer em saber que tem gente passando fome? Não sinto, não. Mas na guerra como na guerra...

    A respiração da filha vem do outro quarto. Crianças passando fome, crianças sem ter o que comer, chorando pelo jantar. E o marido ali achando tudo tão natural. O marido que ela sabe que é bom, incapaz de fazer mal a uma formiga. Deve haver qualquer mistério nisso tudo, mistério que ela não entende. Mas as crianças estão passando fome. Quer dizer que se Ruiz não houvesse prosperado, seria Leninha quem estaria passando fome. Roga ao marido, entre lágrimas, que conceda o aumento.

    – É impossível, minha filha, impossível. A única coisa que não posso lhe fazer.

    E tenta explicar novamente que ali é uma guerra, que se ele der o pé eles tomarão a mão, um mês depois quererão outro aumento:

    – Hei de sujeitá-los pela fome...

    Vem para junto da esposa e estende a mão para alisar os seus cabelos:

    – Não chore, Lena...

    Passa os braços em torno dela. Crianças estão esfomeadas nos becos.

    – Não se aproxime de mim... Você é um miserável... Não se aproxime.

    E fica soluçando, fica desgraçada, com piedade de si, com piedade do marido e com inveja dos grevistas.

    E murmura no seu choro:

    – Crianças com fome... Crianças com fome.

    Clóvis ficou foi ouvindo os discursos no sindicato. A greve tomou um caráter novo depois dos tiroteios. Os homens estão agitados e querem reagir. Dá trabalho contê-los. São lançados manifestos exigindo a liberdade imediata para os grevistas presos. Correm notícias as mais desencontradas. Certa hora um operário entra correndo na sala e avisa que a polícia vem atacar o sindicato. Todos se preparam para reagir. Mas fora rebate falso. Em todo caso o ataque é esperado a qualquer momento. Às nove horas da noite o caso dos estivadores é resolvido com a vitória dos grevistas. Porém, em sessão realizada no seu sindicato, eles declaram que continuarão a parede até que sejam solucionadas as questões dos padeiros e dos operários da Circular. E vão todos para o sindicato dos últimos levar a sua resolução. Em meio aos discursos estoura uma notícia. A polícia prendera vários operários e queria obrigá-los a trabalhar debaixo de pancadas. O sindicato está agitado como um mar. Saem todos. Vão comissões conferenciar com os choferes das marinetes e dos carros de praça. Outros vão se entender com os operários de fábricas diversas. Um grupo grande marcha para os escritórios da Companhia Circular para fazer uma manifestação de desagrado. Os ânimos estão exaltados ao máximo. São dez horas da noite.

    Em frente aos escritórios da companhia está parado um automóvel. É o Hudson do diretor, um americano que ganha doze contos por mês. E ele vem de charuto na boca, descendo as escadas. O chofer prepara o carro. Antônio Balduíno, que vem no grupo de grevistas, grita:

    – Vamos prender ele, pessoal. Assim a gente também tem um preso.

    O diretor é cercado. Os guardas que garantiam o prédio correm. Antônio Balduíno o agarra por um braço e rasga a roupa branca. Gritam da multidão:

    – Lincha! Lincha!

    Antônio Balduíno levanta o braço para descarregar o soco. Mas uma voz se faz ouvir. É Severino quem fala:

    – Nada de bater no homem. Nós somos operários e não assassinos. Vamos levá-lo para o sindicato.

    Antônio Balduíno baixou o braço com raiva. Mas ele compreende que aquilo é necessário, que a greve não é feita por um, mas por todos. E entre gritos o americano é levado para o sindicato dos operários da Circular.

    A notícia da prisão do americano corre rápida pela cidade. A polícia quer que ele seja solto. O consulado americano se move. Os grevistas exigem que sejam postos em liberdade todos os presos políticos. E que não obriguem os operários a trabalhar. Às onze horas os que estavam presos aparecem no sindicato. Dizem que o cônsul americano pedira que a polícia os soltasse com medo que os operários matassem o diretor da companhia. Este vai em paz depois de ouvir alguns dichotes. No sindicato reina o maior entusiasmo. Antônio Balduíno diz ao negro Henrique:

    – Esse foi assim... Mas se aquele Dr. Gustavo cair em minhas mãos, ah!...

    E esfrega as mãos, satisfeito da vida. A greve é uma coisa boa.

    Meia hora depois é lido entre palmas um manifesto: Os choferes de marinetes e autos de praça, os operários de duas fábricas de tecidos, os de uma fábrica de cigarros se declararão em greve no dia seguinte se a questão dos padeiros e dos operários da Circular não for resolvida esta noite. Pedro Corumbá começa um discurso assim:

    – Os operários unidos podem dominar o mundo...

    Antônio Balduíno abraça um sujeito que nunca viu.

    No palácio do governo, à meia-noite, os representantes da Circular e dos donos de padarias comunicam à comissão de grevistas que resolveram conceder o que eles pedem. As novas tabelas vigorarão do dia seguinte em diante. A greve está terminada com a vitória integral dos grevistas.

    Antônio Balduíno vai para a casa de Jubiabá. Agora olha o pai-de-santo de igual para igual. E lhe diz que descobriu o que os ABC ensinavam, que achou o caminho certo. Os ricos tinham secado o olho da piedade. Mas eles podem, na hora que quiserem, secar o olho da ruindade. E Jubiabá, o feiticeiro, se inclina diante dele como se ele fosse Oxolufã, Oxalá velho, o maior dos santos.

 

Hans, o marinheiro

    Antônio Balduíno aperta no bolso da calça os cento e vinte mil-réis que ganhou esta tarde jogando no jacaré. A noite se estende pouco a pouco sobre a cidade. Há alguns dias as luzes não se acendiam. A greve paralisara tudo. Tudo, não. Porque – pensa Antônio Balduíno – a sua vida é que estava paralisada. Com a greve ele enxergava outra estrada e voltara a lutar. Passou-se mais um mês. No entanto, ainda hoje, ele vai cantando baixinho um samba intitulado A vitória da greve que apareceu no dia seguinte ao triunfo dos operários. Antônio Balduíno vai cantando e se recordando dos acidentes daqueles dois dias:

             “Um sindicato

             de operários

             se levantou em greve

             para aumentar os seus salários

             aderiu todas as classes

             para reforçar

             E houve uma forte corrente

             Contra a Circular”

    A letra é de Permínio Lírio. Canta-se com a música de É de amargar. Foi vendido copiosamente na cidade, e no dia seguinte ao do término da greve, era só o que se cantava nas ruas onde os bondes novamente circulavam. A greve fora novamente para o negro Antônio Balduíno uma verdadeira revelação. A princípio ele a amara como luta, como barulho e briga, coisas de que gostava desde criança. Porém, aos poucos, a greve começou a tomar para o ex-boxeur um aspecto novo. Era qualquer coisa mais séria que barulho, que briga. Era uma luta dirigida para um fim, sabendo o que queria, uma luta bonita. Ali na greve todos se amavam, se defendiam e lutavam contra a escravidão. A greve merecia um ABC. Não basta o samba que Antônio Balduíno canta enquanto pensa:

             “Não teve iuz

             e também não teve pão

             Ficou mudo o telefone

             sem ter comunicação

             Durante a greve

             não houve jornal

             também não teve bonde

             para nenhum ramal”.

    Verdade tudo aquilo que o samba dizia. Aqueles homens, que Antônio Balduíno sempre desprezara como escravos incapazes de reagir, paralisaram toda a vida da cidade. Antônio Balduíno pensava que ele e os seus malandros, desordeiros que viviam de navalha em punho, é que eram livres, fortes e donos da cidade religiosa da Bahia. E esta sua certeza fizera que ele ficasse triste e quase suicida quando teve que trabalhar nas docas. Mas agora ele sabe que não é assim. Os trabalhadores são escravos mas estão lutando para se libertar. Bem que o samba diz:

             “As fabricantes

             pararam um instante

             até que os operários

             saíssem triunfantes

             agora reina grande alegria

             Viva os operários

             da nossa Bahia”.

    Ele julgara que a luta, luta aprendida nos ABC lidos nas noites do morro, nas conversas em frente à casa de sua tia Luísa, nos conceitos de Jubiabá, na música dos batuques, era ser malandro, viver livre, não ter emprego. A luta não é esta. Nem Jubiabá sabia que a luta verdadeira era a greve, era a revolta dos que estavam escravos. Agora o negro Antônio Balduíno sabe. É por isso que vai tão sorridente, por que na greve recuperou a sua gargalhada de animal livre. Canta os dois últimos verses do samba em voz tão alta que assusta a pálida prostituta que parece uma virgem e que na janela da velha casa da Ladeira da Montanha rega um vaso de flores.

    A noite desceu e a lua sobe do mar junto das estrelas. O Gordo andará na Rua Chile, de braços estendidos, a perguntar onde está Deus. Zumbi dos Palmares é que brilha no céu. Para os homens brancos, é Vênus, o planeta. Para os negros, para Antônio Balduíno, é Zumbi, o negro que morreu para não ser escravo. Zumbi sabia aquelas coisas que só agora Antônio Balduíno aprendera. Os saveiros dormem. Apenas o Viajante sem Porto sai de lanterna acesa, carregado de abacaxis. Maria Clara vai em pé cantando. Dela vem um cheiro poderoso de mar. Ela nasceu no mar, o mar é seu inimigo e o seu amante. Antônio Balduíno também ama o mar. Sempre viu no mar o caminho de casa. E quando Lindinalva morreu, ele que pensava que seu ABC já estava perdido, que nada mais faria, quis entrar pela estrada do mar para ser feliz como um morto. Porém os homens do cais, os homens do mar, lhe ensinaram a greve. O mar lhe mostrou o caminho de casa. E ele olha para o mar verde, amarelado pela lua. De muito longe vem a voz de Maria Clara.

“A estrada do mar é larga, Maria...”

    Um velho no cais deserto toca realejo. A música vem em surdina e se espalha pelos saveiros, pelas canoas, pelos transatlânticos, pelo grande mar misterioso de Antônio Balduíno. Se não fosse a greve o mar engoliria o seu corpo numa noite em que a lua não brilhasse. Se não fosse a greve ele teria desistido de ser cantado num ABC, de ver Zumbi dos Palmares brilhando como Vênus. Um vulto passa ao longe. Será Robert, o equilibrista, que desapareceu misteriosamente do circo? Mas pouco importa. A música do realejo é plangente. A voz de Maria Clara se sumiu no mar. Mestre Manuel irá ao leme. Ele sabe todos os segredos do mar. E amará Maria Clara à luz da lua. As ondas do mar molharão os corpos e assim o amor ainda será melhor. A areia alva do cais prateada com a lua. A areia alva do cais onde o negro Antônio Balduíno amou tantas mulatas que eram todas Lindinalva, a sardenta. Se não fosse a greve o seu corpo de afogado seria depositado na areia e os siris chocalhariam como chocalharam no corpo de Viriato, o Anão. Brilha a luz de um saveiro. O vento levará até ele a melodia do realejo que o velho italiano toca? Um dia – pensa Antônio Balduíno – hei de viajar, hei de sair para outras terras.

    Um dia ele tomará um navio, um navio como aquele holandês que está todo iluminado, e partirá pela estrada larga do mar. A greve o salvou. Agora sabe lutar. A greve foi o seu ABC. O navio vai largar. Os marinheiros souberam da greve, contarão em outras terras que aqueles negros lutaram. Os que ficam dão adeuses. Os que vão limpam lágrimas. Por que chorar quando se parte? Partir é uma aventura boa, mesmo quando se parte para o fundo do mar como partiu Viriato, o Anão. Mas é melhor partir para a greve, para a luta. Um dia Antônio Balduíno partirá num navio e fará greve em todos os portos. Nesse dia dará adeus também. Adeus, minha gente, que eu .já vou. Zumbi dos Palmares brilha no céu. Sabe que o negro Antônio Balduíno não entrará mais pelo mar para a morte. A greve o salvou. Um dia ele dará adeus e agitará um lenço do tombadilho de um navio. A música do realejo chora uma despedida. Mas ele não dará adeus como estes homens e mulheres da primeira classe, que dão adeus para os amigos, para pais e irmãos, para esposas chorosas, para noivas tristes. Ele dará adeus como aquele marinheiro loiro que está no fundo do navio e agita o boné para a cidade toda, para as prostitutas do Tabuão, para os operários que fizeram a greve, para os malandros que estão na Lanterna dos Afogados, para as estrelas onde está Zumbi dos Palmares, para o céu e a lua amarela, para o velho italiano do realejo, para Antônio Balduíno também. Ele dará adeus como marinheiro. Adeus para todos, que ele fez a greve e aprendeu a amar a todos os mulatos, todos os negros, todos os brancos, que na terra, no bojo dos navios sobre o mar, são escravos que estão rebentando as cadeias. E o negro Antônio Balduíno estende a mão calosa e grande e responde ao adeus de Hans, o marinheiro. 

 

“ABC DE ANTÔNIO BALDUÍNO”

          “Este é o ABC de Antônio Balduíno

          Negro valente e brigão

          Desordeiro sem pureza

          mas bom de coração.

          Conquistador de natureza

          furtou mulata bonita

          brigou com muito patrão

          morreu de morte matada

          mas ferido a traição.”

                  (do ABC de Antônio Balduíno)

   

    O ABC de Antônio Balduíno, trazendo na capa vermelha um retrato do tempo em que o negro era jogador de boxe, é vendido no cais, nos saveiros, nas feiras, no Merca do Modelo, nos botequins, pelo preço de duzentos réis, a camponeses moços, marinheiros alvos, a jovens carregadores do cais do porto, a mulheres que amam os camponeses e os marinheiros e a negros tatuados, de largo sorriso, que trazem ou uma âncora, ou um coração e um nome gravado no peito.

 

                                                                                            Jorge Amado

 

 

                      

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