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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Agora e Sempre / Danielle Stel
Agora e Sempre / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Agora e Sempre

 

          

 

O tempo estava magnífico. Um dia ensolarado, azul e claro, com nuvens nitidamente delineadas no céu. O verão perfeito. E tão quente. O calor tornava tudo lento e sensual. E era totalmente di­verso de San Francisco. Esta era a melhor parte. Ian sentava-se a uma pequena mesa de mármore rosado, o seu lugar de costume, no restaurante Enrico, na Broadway. O tráfego passava célere por ele, enquanto os casais da hora do almoço andavam lentamente. O calor era delicioso.

Ian cruzou as longas pernas tranquilamente sob a mesa. Três margaridas balouçavam num copo, e o pão era fresco e macio. Os dedos quase magros demais, porém graciosos, separaram cuidado­samente uma fatia de pão das outras. Duas mocinhas o observa­vam, e deram risadinhas. Ele não era “engraçadinho”, era sexy. Até mesmo elas o sabiam. E lindo. Bonitão. Elegante. Tinha classe. Alto, magro, louro de olhos azuis, com maçãs do rosto altas e per­nas intermináveis, mãos que a gente notava, um rosto que não dava vontade de parar de olhar... um corpo que chamava aten­ção. Ian Clarke era um belo homem. E ele o sabia, de uma maneira displicente. Ele sabia. A mulher dele sabia. E daí? Ela também era linda. Não era algo a que realmente dessem importância. Mas as outras pessoas, sim. Elas adoravam olhar para eles, com aquele jeito esfaimado com que se fita as pessoas excepcionalmente atraen­tes, querendo saber o que estão dizendo, aonde estão indo, quem conhecem, o que comem... como se um pouco daquilo pudesse passar para elas. Nunca passa. A gente tem que nascer com isso. Ou gastar um dinheirão para simular. Ian não simulava. Ele era assim.

A mulher com o grande chapéu de palha de cor natural e ves­tido rosa também o notara. Fitava-o por entre o trançado da palha. Observava-lhe as mãos que mexiam com o pão, e a boca enquan­to ele bebia. Podia até ver os pêlos louros nos seus braços, ex­postos ao sol com as mangas enroladas. Estava a várias mesas de distância, mas podia ver. Como já o tinha visto ali antes. Porém ele nunca a vira. Por que veria? Ela viu tudo, depois parou de olhar. Ian nem sabia que ela estava viva. Estava entretido com o resto da vista.

A vida era incrivelmente boa. Madura e dourada e fácil. Era dele, bastava colhê-la. Tinha trabalhado no terceiro capítulo do seu romance a manhã toda, e agora os personagens estavam ga­nhando vida, igual às pessoas que caminhavam pela Broadway.. passeando, rindo, divertindo-se. Os seus personagens já eram total­mente reais para ele. Conhecia-os intimamente. Era o seu pai, seu criador, seu amigo. E eles eram seus amigos. Era uma sensação tão gostosa começar um livro. Ele povoava a sua vida. Todas aquelas caras novas, cabeças novas. Podia senti-las nas mãos enquanto me­tralhava as teclas da máquina de escrever. Até mesmo tocar o te­clado dava-lhe prazer.

Ele tinha tudo, uma cidade que amava, finalmente um novo ro­mance, e uma mulher com quem ainda ria e brincava e tinha pra­zer em fazer amor. Sete anos, e tudo que dizia respeito a ela ainda lhe agradava: a sua risada, seu sorriso, a expressão dos seus olhos, o modo como se sentava nua no estúdio, encarapitada na velha ca­deira de balanço de vime, tomando uma bebidinha fraca, e lendo o trabalho dele. Tudo estava bem, e agora melhor, com o romance começando a florescer. E Jessie estava voltando para casa. Tinham sido três semanas produtivas, mas de repente se sentiu solitário e excitado como o... Jessie.

Ian fechou os olhos e abafou os ruídos do tráfego que passa­.....das pernas graciosas, do cabelo louro como cetim, dos olhos verdes com pintinhas douradas... comendo manteiga de amendoim e geléia de abricó com pão de passas às duas da manhã, perguntando-lhe o que achava da sua linha de primavera para a loja...

- Quero dizer sinceramente, Ian, fale a verdade, detestou as coisas de primavera, ou estão legais? Do ponto de vista masculino... seja .......

Como se realmente importasse o ponto de vista masculino. Aqueles grandes olhos verdes perscrutando o rosto dele, como que a perguntar se ela também era legal, se ele a amava, se... ele amava.

Sorvendo o seu gim-tônica, pensou em Jessie e sentiu-se nova­mente em dívida para com ela. Aquilo lhe dava uma sensaçãozi­nha de aperto na boca do estômago. Mas era parte da coisa: ele lhe devia muito. Ela suportara muito. Empregos de professor que pagavam uma ninharia, de professor-substituto que pagavam ainda menos, um emprego numa livraria, que ela detestava porque achava que o diminuía. Então, ele se despedira. Tentara até o jornalismo, por pouco tempo, depois que o seu primeiro romance fora um fra­casso. E então a herança de Jessie resolvera tantos dos problemas deles. Deles, mas não necessariamente dele.

- Sabe, Sra. Clarke, um dia desses a senhora vai ficar cheia do estar casada com um escritor morto de fome.

Observara atentamente o seu rosto, enquanto ela sacudia a ca­beça e sorria ao sol de um dia de verão, há três.....

- Você não me parece estar morto de fome. - Deu uma palmadinha na barriga dele e beijou-o suavemente nos lábios. - Eu o amo, Ian.

- Você deve ser maluca. Mas eu também a amo.

Fora um verão duro para ele. Há oito meses que não ganhava um tostão. Porém Jessie tinha o dinheiro dela, É claro. Merda.

- Por que sou maluca? Porque respeito o seu trabalho? Por­que acho que é um bom marido embora não esteja mais trabalhan­do na Madison Avenue? E daí, Ian? Quem está dando a mínima para a Madison Avenue? Você está? Sente tanta falta dela, ou vai apenas usá-la para atormentar-se pelo resto da vida? - Havia um leve toque de amargura na sua voz, misturada à raiva. - Por que não pode curtir o que é?

- E o que sou?

- Um escritor. E dos bons.

- Quem falou?

- Os críticos, quem mais?

- Os meus royalties não “falavam”.

- Fodam-se os seus royalties.

Ela estava com uma cara tão séria que ele não pode deixar de rir.

- Eu ia ter um trabalhão tentando... não têm tamanho nem para a gente fazer cócegas neles, que dirá fodê-los.

- Ora, cale a boca... seu chato... às vezes você me deixa com tanta raiva.

Um sorriso começou a aquecer o rosto dela de novo, e ele se Inclinou para beijá-la. Ela correu o dedo de leve pela parte interna da coxa dele, observando-o com aquele seu sorriso tranquilo, e ele ficou todo arrepiado...

Ainda se lembrava. Perfeitamente.

- Mulher malvada, eu a adoro. Venha, vamos para casa.

Tinham saído da praia de mãos dadas, como duas crianças, partilhando o seu sorriso íntimo. Nem tinham esperado até che­gar em casa. Alguns quilómetros adiante, Ian tinha visto um cór­rego estreito a curta distância da estrada, e eles tinham estacionado ali e feito amor sob as árvores, perto do córrego, com os sons do verão em volta. Ainda se lembrava de ficar deitado na terra macia com ela, depois, apenas de camisa, deixando os dedos dos pés brincarem com as pedrinhas e a grama. Ainda se lembrava de pensar que jamais compreenderia totalmente o que a prendia a e..... por que mais? Ninguém no seu juízo perfeito fazia essas perguntas. Porém ele se sentia tentado a fazê-las. As vezes temia que o que o prendia a ela fosse a fé que tinha na sua capacidade de escrever. Não queria pen­sar que fosse isso, mas isso certamente era parte do seu pensamento.

Todas aquelas noites de discussão com café e vinho no estúdio dele. Ela sempre tinha tanta certeza! Quando ele precisava que ti­vesse. Este era o melhor momento.

- Sei que você vai conseguir, Ian. É só. Simplesmente sei que vai.

Tanta certeza ela tinha! Fora por isso que fizera com que ele largasse o emprego na Madison Avenue, porque tinha tanta certeza. Ou seria porque queria torná-lo dependente dela? As vezes ficava se questionando.

- Mas como você pode saber, droga? Como pode saber que vou conseguir? É um sonho, Jessie. Uma fantasia. O grande roman­ce americano. Sabe quantos imbecis estão por aí, escrevendo merda, pensando “é este”?

- Estou me lixando para eles. Não são você.

- Quem sabe são.

Certa vez ela jogara uma taça de vinho em cima dele quando dissera isso, e ele rira. Tinham acabado de fazer amor no tapete espesso de pele enquanto o vinho pingava do queixo dele nos seios dela, e os dois riram juntos.

Por isso tudo ele precisava escrever um bom romance agora. Precisava. Por ela. Por si mesmo. Precisava, desta vez. Seis anos de trabalho tinham produzido um romance desastroso o um belo livro de fábulas que os críticos tinham aclamado como um clássico. Ven­dera menos de 700 exemplares. O romance nem sequer se saíra tão “bem”. Mas esse ia ser diferente. Sabia disso. Era a sua realização, comparável à dela, Lady J.

Lady J era a butique de Jessie. E Jessie fizera dela um sucesso absoluto. Os toques exactos, a bossa certa, a linha adequada na hora certa. Ela era uma dessas pessoas que lançam um encanto em tudo o que tocam. Uma vela, um lenço, uma jóia, um lampejo de cor, um vislumbro de sorriso, um brilho do calor, um toque de audácia, um naco de classe. Um barril de classe. Jessie nascera com classe, transpirava classe. Nua em pêlo o de olhos fechados, tinha classe.

Com o jeito que entrava pelo estúdio dele adentro na hora do almoço, a cabeleira loura esvoaçando, um sorriso nos olhos, um beijo no pescoço dele, e de repente uma fantástica rosa cor de salmão largada em cima dos jornais. Uma rosa perfeita, ou uma tulipa amarela num vaso de cristal ao lado da xícara de café dele algumas fatias do presunto, um pouco de melão, uma lasquinha do Brie... The New York Times... ou Le Figaro. Era dela esse dom de trans­formar tudo o que tocava em algo mais, algo melhor.

O facto de pensar nela fez Ian sorrir de novo enquanto observa­va as pessoas nas outras mesas. Se Jessie estivesse ali estaria usando algo levemente escandaloso, um vestido de verão com as costas de fora, mas que cobria os braços, ou algo totalmente coberto mas com uma fenda que dava a quem passasse uma rápida visão das pernas, ou um chapéu extremamente lindo que permitiria que tivessem um vislumbre de um fascinante olho verde, enquanto o outro fler­tava, depois se escondia. O facto de pensar nela desse jeito chamou a sua atenção para a mulher de chapéu de palha a algumas mesas de distância. Não a vira antes. E achava que ela definitivamente valia a pena ser vista. Numa tarde quente e ensolarada com dois gins-tônicas no bucho. Mal podia enxergar-lhe o rosto. Apenas a ponta do queixo.

Tinha braços esbeltos e mãos bonitas, sem anéis. Ficou olhan­do enquanto ela tomava uma bebida espumante de canudinho. Sen­tiu uma excitação familiar enquanto pensava na mulher e observava a moça do chapéu. Era mesmo uma pais que Jessie não estivesse em casa. Era um dia para se ir à praia, e nadar, e suar, e ficar todo coberto de areia, e esfregar as mãos umas nas outras, besun­tadas de óleo para bronzear. O jeito como a mulher de chapéu de palha mexia com a boca no canudinho perturbava-o. Fazia com que desejasse Jessie. Agora.

O cannelloni chegou, mas a escolha não fora boa. Cremoso demais, quente demais, quantidade demais. Devia ter pedido uma salada. E sentia-se relutante em pedir o café depois de algumas gar­fadas do almoço. Era um dia gostoso demais para bancar o duro consigo mesmo. Era bem mais fácil soltar-se, ou soltar os pensamentos, pelo menos. Isso não fazia mal. Estava se divertindo. Sem­pre se divertia, no Enrico. Podia relaxar ali, observar os estranhos, encontrar escritores que conhecia, e admirar as mulheres.

Por nenhum motivo especial, deixou que o garçom lhe trou­xesse uma terceira bebida. Raramente tomava outra coisa além de vinho branco, mas o gim era fresco e agradável. E uma terceira dose não o mataria. Havia alguma coisa que mexia com a gente nos dias quentes num clima geralmente fresco... a gente ficava um pouco maluco.

A multidão no Enrico fluía e refluía, amontoando-se atrás das mesas nas calçadas, rejeitando os reservados vermelhos lá dentro. Empresários livravam-se das gravatas, modelos se exibiam, artistas rabiscavam, músicos de rua tocavam, poetas pilheriavam. Até mes­mo os ruídos do tráfego ficavam abafados pela música e pelas vo­zes. Aquilo o fazia lembrar do último dia de aula. E os bares topless que ladeavam o restaurante estavam silenciosos, as luzes a neon apa­gadas até o cair da noite. Isso era muito melhor que o neon. Era real. Era jovem e vivo e tinha o sabor de um jogo.

A garota do chapéu não revelou o rosto enquanto Ian se retirava, mas o observava, e depois deu de ombros silenciosamente e pediu a conta. Sempre podia voltar, ou quem sabe... ora, e daí....

Ian estava pensando nela enquanto se dirigia para o carro, li­geiramente tonto, mas não tanto que deixasse aparecer. Estava in­ventando versos de uma “Ode a Uma Beldade Sem Rosto”. Ria con­sigo mesmo enquanto deslizava para trás do volante do carro de Jessie, desejando que estivesse deslizando para dentro de Jessie. Estava totalmente aceso de desejo.

Guiava o pequeno Morgan vermelho de Jessie. E estava curtin­do adoidado. Fora uma beleza de presente, reflectiu, enquanto pu­xava o afogador. Uma beleza de presente. Para uma beleza de mulher. Comprara-o para ela com o seu adiantamento pelas fábulas. O cheque inteiro pelo carro. Uma loucura. Porém ela o adorara. E ele a adorava.

Voltou a entrar na Broadway e parou num sinal vermelho, pas­sando de novo pelo Enrico a caminho de casa, quando um sussurro de rosa perpassou pelo seu olho direito. Ela agora girava o chapéu num dos dedos enquanto o rosto fitava o céu, o traseiro ondulando livremente enquanto caminhava com sandálias brancas de salto alto. O vestido rosa apertava-lhe os quadris, mas não escandalosamente, e o cabelo ruivo emoldurava-lhe o rosto em cachos soltos. Ela fi­cava tão bonita de rosa, e tão danada de sensual. Tão redonda e madura e jovem... Vinte e dois anos... vinte e três? Sentiu de novo a mesma fome sexual ao olhar para ela. O seu cabelo cor de cobre reflectia o sol. Teve vontade de tocá-lo. De arrancar-lhe o cha­péu da mão e fugir, para ver se ela iria atrás. Estava com vontade de brincar, e não tinha ninguém com quem brincar.

Passou por ela guiando devagar, e ela ergueu os olhos e depois enrubesceu, afastando o olhar, como se não esperasse vê-lo de novo, e agora aquilo tivesse mudado tudo. Virou a cabeça e olhou para ele novamente, a surpresa substituída por um sorriso lento e um dar de ombros que mal era visível. O destino. Hoje fora o dia, afinal. Ela se vestira para isso. E agora estava contente. Parecia não estar disposta a prosseguir, sob o calor do olhar dele. Ele não seguira em frente. Ficara simplesmente sentado ali, enquanto ela parara na es­quina e o observava. Não era tão jovem quanto ele pensara. Vinte e seis... vinte e sete? Mas ainda cheia do frescor. Frescor suficiente, copos do três gins-tônicas e pouca comida.

Os olhos dela perscrutaram o rosto dele, um pouco insistentes demais, porém, cautelosos, e então, enquanto ele observava, ela se aproximou, mostrando os seios fartos em vivo contraste com o for­mato juvenil dos braços.

- Eu o conheço?

Ela ficou ali, segurando o chapéu, repentinamente cruzando os tornozelos; os ossos dos quadris ficaram salientes, e as calças de Ian, instantaneamente, justas demais.

- Não, acho que não.

- Estava me olhando.

- É... desculpe. Eu... gostei do seu chapéu. Reparei nele na hora do almoço.

O rosto dela se suavizou, e ele retribuiu-lhe o sorriso, embora desapontado. Ela era mais velha do que Jessie, talvez até um ou dois anos mais velha do que ele. Maquiada para parecer exótica a nove metros de distância, a dois metros a ilusão se destroçava. E o cabelo ruivo deixava ver uma linha fina de raízes pretas. Mas ele estivera olhando, ela tinha razão.

- Sinto muitíssimo. Quer uma carona?

Por que não? Ela não podia estar indo para muito longe; pro­vavelmente para um escritório a alguns quarteirões de distância.

- Quero sim. Obrigada. Está quente demais para andar.

Sorriu de novo e lutou com a maçaneta do carro. Ian soltou-a pelo lado de dentro, e ela se aboletou no assento, mostrando uma quantidade reconfortante de busto. Pelo menos isso era verdadeiro.

- Para onde quer que a leve?

Ela fez uma pequena pausa, depois sorriu.

- Market com a Décima. Tiro você do seu caminho?

- Não, tudo bem. Não estou com pressa.

Mas estava surpreso com o endereço. Era um lugar estranho para se trabalhar, um lugar ruim para morar.

- Tirou o dia de folga?

Olhava para ele, indagadoramente.

- Mais ou menos. Trabalho em casa.

Geralmente não era tão expansivo, mas ela o deixava constran­gido, fazia com que sentisse que devia conversar. Usava um perfu­me forte, e a saia tinha subido bastante nas coxas. Ian estava com fome. Mas de Jessie. E ela ainda estava a dez horas de distância.

- O que você faz?

Por um estranho momento teve vontade de dizer que era um gigolô, sustentado pela mulher. Debateu esse ponto mentalmente, en­quanto franzia a testa.

- Sou escritor.

A resposta foi seca.

- Não gosta do que faz?

- Adoro. Por que fez essa pergunta?

Desta feita ficou surpreso.

- Pelo jeito com que começou a franzir a testa. Você é um cara bonito, quando sorri.

- Obrigado.

- De nada. Também dirige um carro bonito. - Ela já tinha feito a sua avaliação. A camisa St. Tropez bem talhada, os sapatos Gucci sem meias. Não sabia que eram Gucci, mas sabia que eram caros. - Que marca é? Um MG?

- Não. Um Morgan. - E é da minha mulher... As palavras ficaram entaladas na garganta. - O que você faz?

Elas por elas.

- No momento sou garçonete no Condor, mas queria ver como era a vizinhança à luz do dia. Foi por isso que vim almoçar aqui. É um pessoal totalmente diferente. E a essa hora está todo mundo bem mais sóbrio do que quando chega às nossas mãos, mais tarde.

O Condor não era conhecido por ter uma clientela cheia de decoro. Era o berço do “Original Topless” e Ian imaginou que a mulher servia às mesas seminua. Ela deu de ombro e depois dei­xou o rosto suavizar-se num sorriso. Parecia quase bonita de novo, mas havia uma tristeza no fundo dos seus olhos. Uma espécie de pesar, obcecante e longínquo. Lançou-lhe um olhar estranho, uma ou duas vezes. E novamente Ian sentiu que ela o deixava cons­trangido.

- Você mora na Market com a Décima?

Era alguma coisa para falar.

- É. Num hotel. E você? - Esta era uma parada para res­ponder. O que podia dizer? Porém ela preencheu a pausa por ele.

- Deixe que eu adivinhe. Pacifie Heights?

O olhar dela não estava mais animado, e a pergunta parecia amarga e acusadora.

- Por que diz isso?

Tentou soar divertido e parecer falsamente magoado, mas não se saiu bem. Olhou para ela quando pararam num trecho engarra­fado da Montgomery Street. Ela parecia ser a secretária de alguém, ou uma garota fazendo figuração num filme. Não parecia vulgar. Parecia cansada. E triste.

- Meu bem, você cheira a Pacifie Heights. Está na cara.

- Não deixe que as fragrâncias a enganem. “Nem tudo que reluz....”

Riram juntos e ele brincou com o afogador enquanto o engar­rafamento diminuí a. Virou com o carro na Market.

- Casado? – Ele fez que sim com a cabeça. – Que pena. Os bons sempre são.

- Isso atrapalha?

Era uma loucura dizer isso, mas perguntou mais por curiosida­de do que outra coisa, e além disso os gins-tônicas estavam come­çando a fazer efeito.

- As vezes topo os homens casados, às vezes Não. Dependo do sujeito. No seu caso... quem sabe? Gosto de você.

- Estou lisonjeado. Você é uma mulher bonita, também. Como se chama?

- Margaret. Maggie.

- Que nome simpático. - Ela sorriu de novo. - É esse aqui, Maggie?

Era o único hotel no quarteirão, e não era nenhuma beleza.

- É. é esse. Lar doce lar. Lindo, não é?

Tentou disfarçar o seu embaraço com irreverência, e ele teve pena dela. O hotel tinha um ar desolador e deprimente.

- Quer subir e tomar uma bebida?

Ele percebeu pelo seu olhar que ficaria magoada se não fosse. E, que diabo, não estava em condições de ir para casa trabalhar. E ainda tinha que esperar nove horas e meia até chegar a hora de ir para o aeroporto. Mas também sabia o que podia acontecer se acei­tasse o convite de Maggie. E deixar que aquilo acontecesse era uma coisa nojenta de se fazer com Jessie, no dia em que estava voltando para casa. Ele aguentara firme, durante três semanas. Por que não mais uma .......

Mas a garota parecia tão só, tão mal-amada, e o gim e o sol estavam girando no cérebro dele. Sabia que não estava com vontade de voltar para casa. Nada ali dentro era dele, dele de verdade, excepto cinco gavetas de arquivos sobre os seus escritos, e a nova máqui­na de escrever Olivetti que o Jornal. lhe dera. O rei gigolô. O consorte de Jessie.

- Claro. Tenho tempo para uma bebida, contanto que seja um café. O que faço com o carro?

- Acho que pode estacioná-lo em frente da porta. Aqui não é zona proibida, e não há perigo de ser rebocado.

Ele estacionou o carro na frente do hotel e Maggie observou atentamente a traseira do carro enquanto ele o encostava ao meio-fio. Era uma placa fácil de guardar. Soletrava o que ela pensava ser o nome dele. Jessie.

 

Jessica ouviu o trem de aterrissagem descendo da barriga e sorriu. O cinto estava amarrado, a luz do teto apagada, e ela sentia o coração bater mais forte enquanto o avião rodeava pela última vez. Tinha uma visão nítida das luzes.

Olhou para o relógio. Conhecia Ian tão bem. Age procurando desesperadamente um lugar para estacionar na garagem do aeroporto, apavorado de estar atrasado e não encontrá-la no portão. Acharia uma vaga, e correria feito um doido para o terminal, e estaria ofegante e sorridente, os nervos à flor da pele visse. Mas chegaria a tempo. Sempre chegava. Aquilo transformava o chegar em casa em algo especial.

Sentia-se como se tivesse passado um ano fora, mas tinha comprado coisas muito boas. A linha de primavera seria linda. Pasteis suaves, lis macias cortadas de viés, xadrezes claros, blusas de seda com mangas fartas e umas camurças maravilhosas. Não conseguia resistir às camurças. Seria uma primavera fantástica na boutique. As coisas que tinha encomendado só começariam a chegar dali a três ou quatro meses, mas ela já estava excitada só de pensar nelas. Tinha tudo decorado. A linha de primavera estava definida. Gostava de planejar antecipadamente. Gostava de saber o que estava por vir. Gostava de saber que tinha a sua vida, e o seu trabalho, todo organizados. Podia haver quem achasse isso uma chateação, mas não era o caso de Jessie.

Ela e Ian estavam planejando uma viagem a Carmel em Outubro. O Dia de Acção de Graças seria passado com amigos. Quem sabe o Natal esquiando no Lago Tahoe, e depois um pulinho até o México para tomar sol, depois do Ano Novo. E então a linha de primavera começaria a chegar. Era tudo perfeitamente planejado. Como as suas viagens, as suas refeições, o seu guarda-roupa. Ela tinha o que era necessário para fazer planos... um negócio que funcionava, um marido a quem amava e com quem sempre podia contar, e gente de confiança à sua volta. Muito pouco era variável e ela gostava que fosse assim. Perguntava-se se seria por isso que nunca quisera um bebé: ele seria uma variável. Uma coisa que não poderia planejar totalmente. Não sabia como seria a aparência dele, como agiria, ou exactamente quando nasceria, ou o que faria com ele depois de tê-lo. A idéia de um bebé a perturbava. E a vida era tão mais simples assim. Apenas Jessie e Ian. Sozinhos. E assim não havia rivais para o afecto de Ian. Jessie não gostava de competir, não pelo Ian. Ele era tudo o que lhe restava agora.

As rodas tocaram a pista e ela fechou os olhos... Ian... senti­ra saudades dele nas últimas semanas. Os dias tinham sido cheios e as noites ocupadas, no entanto ela geralmente ligava para ele quando chegava no hotel, à noite. Mas não pudera estender a mão e tocá-lo, ou ser abraçada. Não pudera rir dentro dos seus olhos, ou fazer-lhe cócegas nos pés, ou ficar ao lado dele no chuveiro, perseguindo as gotas d’água nas suas costas sardentas com a língua. Esticou as lon­gas pernas à frente enquanto esperava que o avião parasse total­mente.

Era difícil ser paciente. Queria que a viagem estivesse termina­da. Queria correr ao encontro dele. Nesse momento. Nunca tinha havido outros homens. Erra difícil acreditar, mas não tinha. Ela che­gara a pensar na possibilidade, uma ou duas vezes, mas nunca pare­cera valer a pena. Ian era tão melhor do que qualquer outra pessoa, aos olhos. dela. Mais sensual e mais inteligente e mais bondoso e mais carinhoso. Ian compreendia tão bem o que ela precisava, e preenchia tantas necessidades. Nos sete anos em que estavam casa­dos, ela perdera contacto com a maioria das suas amigas íntimas em Nova York, e não as substituíra por outras em San Francisco. Não precisava de amigas, de uma confidente, de uma “melhor” amiga. tinha o Ian. Ele era o seu melhor amigo, seu amante, até mesmo seu irmão, agora que Jake estava morto. E o que é que tinha se de vez em quando Ian tinha um “casinho”? Não acontecia com frequência, e ele era discreto. Aquilo não a incomodava. Os homens faziam essas coisas quando precisavam, quando as mulheres estavam longe. Ele não fazia estardalhaço, não jogava na cara dela. Jessie sim­plesmente suspeitava que ele os tinha. Era só isso. Ela compreendia. Contanto que não tivesse que saber. Ela imaginava, o que era diferente de saber.

Os pais dela tinham tido um casamento desses, e haviam sido felizes durante anos. Observando-os, Jessie aprendera sobre as coisas que não se mencionavam, não se usavam, não se aproveitavam para ferir um ao outro. Um bom casamento dependia de consideração, e as vezes ficar calada e deixar o outro em paz era consideração... amor. Os pais dela estavam mortos; já não eram jovens quando ela nascera. A mãe tinha 30 e poucos anos, o pai 45. E Jessie estava com quatro anos quando Jake nasceu. Porém, pelo facto de casar tarde, eles se haviam respeitado mais do que a maioria dos casais. Não se sentiam inclinados a modificar um ao outro. Isso ensinara muito a Jessie.

Mas todos eles estavam mortos, agora. Já fazia três anos. Quase exactamente. Os pais tinham morrido com diferença de meses um do outro. Jake morrera um ano antes deles, no Vietnã, no auge dos seus 20 anos. Todos mortos. Só sobrara Jessica. Porém ela tinha o Ian. Graças a Deus que havia o Ian. Quando pensava assim, sentia arrepios na espinha... o que faria sem o Ian? Morreria... como o pai morrera sem a mãe... morreria... não poderia viver sem o Ian. Ele agora era tudo. Abraçava-a tarde da noite, quando ti­nha medo. Fazia com que risse quando algo a emocionava demais e a deixava triste. Lembrava-se dos momentos que importavam, conhecia as coisas que ela amava, compreendia a sua linguagem pessoal, ria das suas piores piadas. Ele sabia. Era a mulher dele, e a sua garotinha. Era disso que precisava. Do Ian. Portanto, que mal fazia se havia indiscrições ocasionais das quais nem tomava conhecimento? Contanto que ele estivesse presente na hora certa. E sem­pre estava.

Ouviu as portas sendo abertas; as pessoas começaram a se apertar nos corredores. O voo de cinco horas tinha terminado. Esta­va na hora de ir para casa. Jessie alisou o vinco das calças com uma das mãos e pegou o casaco com a outra. Era um casaco alaranjado de camurça que usava com calças de camurça bege e uma blusa estampada de seda em tons de caramelo. Os olhos verdes brilha­vam no rosto bronzeado e o cabelo louro oscilava solto e espesso além dos seus ombros. Ian adorava vê-la de alaranjado, e ela com­prara o casaco em Nova York. Sorria consigo mesma, imaginando o quanto ele o adoraria... quase tanto quanto o blazer Pierre Car­din que comprara para ele. Era gostoso mimar o Ian.

Três empresários e um bando de mulheres saíram na frente dela, mas era alta o bastante para enxergar por cima das cabeças das mulheres tagarelas. Ian estava lá no portão, e ela acenou enquan­to ele dava um amplo sorriso, acenando de volta, e depois moveu-se rapidamente na sua direcção, abrindo caminho por entre as pessoas que estavam na frente dela. E então alcançou-a e tomou-a nos braços.

- Não via a hora de você chegar em casa... e bonita desse jeito, vai ter sorte se eu não estuprá-la aqui mesmo.

Ele parecia tão satisfeito. E então a beijou. Ela estava em casa.

- Ande. Me estupre. Quero ver. - Porém ficaram parados onde estavam, saboreando um ao outro, dizendo tudo com os olhos. Jessie não podia deixar de sorrir, ou de tocar-lhe o rosto com as mãos. - Está tão gostoso.

Adorava a maciez e o cheiro de limão forte da pele dele.

- Jessie, se você soubesse a falta que senti...

Ela concordou, com a cabeça. Sentira pelo menos tanta falta quanto ele.

- Como vai o livro?

- Bom. - Falavam com as breves banalidades daqueles que se conhecem mais do que bem. Não precisavam de muitas pala­vras. - Bem, mesmo. - Ele apanhou do chão a sacolona de couro marrom que ela largara para beijá-lo. – Vamos, lady sexy, vamos para casa.

Enlaçou o braço no dele e juntos caminharam com passadas longas e iguais, o cabelo de Jessie roçando o ombro dele, cada movimento seu um complemento para o dele.

- Trouxe um presente para você.

Ele sorriu. Ela sempre trazia.

- Comprou um para você, também, estou vendo. É um casaco e tanto.

- Gostou? Ou é horrível? Estava com medo de ser exagerado demais.

Era caramelo queimado, quase cor de chama.

- Em você fica bem. Tudo fica.

- Puxa, mas você está sendo bonzinho comigo! O que foi que fez? Bateu com o carro?

- Ora, mas isso é lá coisa que se diga? Pergunto só: isso é coisa que se diga?

- Bateu?

Mas ela estava rindo, e ele também.

- Não, troquei-o por uma motocicleta Honda. Achei que você talvez gostasse mais.

- Mas que idéia genial! Puxa, querido, estou emocionada. Ago­ra vamos, conte a verdade. O carro ficou muito estragado?

- Estragado? Quero que saiba que ele não apenas está em condições impecáveis, mas limpo, condição na qual não estava quan­do você foi embora. Aquele pobre carrinho estava imundo!

- É, eu sei.

Ela deixou pender a cabeça, e ele riu.

- Você é uma vergonha, Sra. Clarke, mas eu a amo.

Beijou-lhe a ponta do nariz, e ela envolveu-lhe o pescoço com os braços.

- Adivinhe só.

- Quantas chances eu tenho?

- Uma.

- Você me ama?

- Adivinhou!

Ela deu uma risadinha e beijou-lhe o pescoço.

- O que eu ganho de prémio por ter acertado?

- Eu.

- Fantástico. Aceito.

- Puxa, mas como estou feliz por estar em casa.

Soltou um pequeno suspiro e ficou aninhada dentro do círculo formado pelos braços dele, enquanto esperavam que as malas dela aparecessem na esteira rolante. Podia ver o alívio nos olhos de Jessie. Detestava ter que viajar, detestava andar de avião, tinha medo de morrer, tinha medo que ele morresse num desastre de carro enquanto estava fora. Desde que os pais e o irmão... tantos terrores. Não que tivessem morrido de morte violenta. A mãe já estava idosa. Velha o bastante, 68 anos. O pai estava na casa dos 70. Ele morrera de saudade menos de um ano mais tarde. Mas Jessie não estava preparada para a dupla perda, e foi terrível ver como aquilo a afectou. Nunca havia se recuperado totalmente da morte do irmão, e depois dos pais... Ás vezes, Ian duvidava que ela su­perasse a crise. Os terrores, a histeria, os pesadelos. Sentia-se tão sozinha e assustada. Ás vezes nem parecia a pessoa que ele conhe­cia. Ficou subitamente tão dependente dele, tão diferente da an­tiga Jessie. E parecia querer estar certa de que ele fosse igualmen­te dependente dela... Fora nessa época que ela o convencera a largar o emprego e ficar escrevendo em horário integral. Ela tinha meios para manter aos dois. Mas, de alguma forma, ele não tinha certeza de que aquilo era certo. Porém, na maior parte do tempo, era o ideal para os dois. E o facto de sustentá-lo fazia com que Jessie se sentisse segura. Ele realmente era tudo o que tinha, agora.

Ergueu de novo os olhos para ele, e sorriu.

- Espere só até eu a pegar em casa, Sra. Clarke.

- Tarado.

- Sou. E você adora.

- É Adoro.

As pessoas os observavam, mas eles nem reparavam. Davam às pessoas uma coisa bonita de se olhar, para a qual sorrir, com a qual se sentir bem, pela qual torcer. E algo para desejar, também. Eram duas lindas pessoas que tinham tudo. Isso geralmente desper­tava uma miscelânea de emoções naqueles que os observavam.

Foram até a garagem para pegar o Morgan e Jessie abriu um sorriso de orgulho quando o viu.

- Oh, mas está lindo. O que fez com ele?

- Mandei lavar. Você devia experimentar isso, de vez em quando. Vai adorar o efeito.

- Ora, cale a boca.

Deu um soco nele, de brincadeira, e Ian se abaixou, pegando-lhe o braço enquanto ela ria.

- Antes que você me bata, amazona, entre no carro.

Deu-lhe uma palmada no traseiro e destrancou a porta.

- Não me chame de amazona, seu peste miserável! Seu meti­do a gostosão!

- O quê? Será que ouvi você me chamar de metido a gostosão? - Fez um ar de chocado e voltou para onde ela estava. - Moça, como ousa me chamar duma coisa dessas? - E, dizendo isso, tomou-a no colo e colocou-a no banco do carro. - Pronto. E deixe que eu lhe diga, com uma dona do seu tamanho, isso não é café pequeno!

- Ian, você é uma besta. - Mas ele sabia que ela não tinha complexos do seu tamanho. Ambos gostavam dele. - Além disso, acho que estou encolhendo.

- É? Baixou para 1,86m, foi?

Deu uma risadinha abafada enquanto terminava de prender as malas no bagageiro do carro. Ainda estava com a capota arria­da e ela o observava com um sorriso.

- Vá à merda. Sabe perfeitamente que só tenho 1,80m, porém me medi no outro dia e deu só 1,78m.

- Você devia estar sentada.

Entrou no carro, ao lado dela, e virou-se para olhá-la nos olhos.

- Alô, Sra. Clarke, bem-vinda ao lar.

- Alô, meu amor. É bom estar de volta. - Compartilharam um longo sorriso enquanto ele dava partida no carro, e ela tirava o casaco novo e enrolava as mangas da blusa. - Fez calor aqui, hoje? Ainda está um pouco quente.

- Esteve fervendo e maravilhoso e ensolarado. E se amanhã fizer um dia igual, você pode ligar para a boutique e dizer-lhes que ficou presa em Chicago por causa da neve. Nós vamos à praia.

- Presa por causa da neve, em setembro? Você está maluco. Mas, querido, eu realmente não posso.

Ela gostou da idéia, e ele percebeu.

- Pode, sim. Nem que eu tenha que sequestrá-la.

- Quem sabe eu possa chegar mais tarde.

- Agora, sim!

Riu vitorioso enquanto puxava o afogador.

- Foi mesmo tão gostoso, hoje?

- Gostosíssimo. E teria sido ainda melhor se você estivesse em casa. Fiquei meio de porre no Enrico e não sabia o que fazer para passar o tempo, o resto do dia.

- Estou certa de que encontrou alguma coisa.

Porém não havia malícia no tom de voz dela, e nenhuma ex­pressão no rosto dele.

- Não. Nada de especial.

 

- Jessie, você é sem sombra de dúvida a mulher mais bonita que conheço.

- É inteiramente mútuo.

Ela estava deitada de bruços, sorrindo para ele, o odor dos seus corpos pesando no ar, os cabelos despenteados. Não estavam acordados há muito tempo. Apenas o tempo suficiente para fazer amor.

- Não pode ser muito, boba. Não sou uma mulher bonita.

- Não, mas é um homem magnífico.

- E você é adoravelmente cafona. Deve morar com um es­critor.

Ela sorriu de novo e ele correu o dedo suavemente pela sua espinha.

- Vai se meter em encrencas de novo, querido, se fizer isso.

Aceitou uma baforada do cigarro que compartilhavam e soltou a fumaça por cima da cabeça dele antes de sentar-se para beijá-lo outra vez.

- A que horas vamos à praia, Jessie, meu amor?

- Quem disse que vamos à praia? Pombas, querido, tenho que ir para a loja. Estive fora durante três semanas.

- Então fique fora mais um dia. Você falou que ia à praia comigo, hoje.

Parecia-se levemente com um garotinho emburrado.

- Não falei.

- Falou, sim senhora. Bem, quase. Eu disse que ia sequestrá-la e você pareceu gostar da idéia.

Ela riu, correndo os dedos pelos cabelos dele. Era impossível, um menino grande. Mas um menino tão bonito. Não conseguia re­sistir-lhe.

- Sabe de uma coisa?

- O quê?

Parecia satisfeito enquanto olhava para o rosto dela. Era linda, pela manhã.

- Você é doido de doer, isso é o que você é. Tenho que tra­balhar. Como posso ir à praia?

- Facilmente. Ligue para as garotas, avise que só vai poder ir trabalhar amanhã, e lá vamos nós. Como pode desperdiçar um dia como esses, pela madrugada?

- Ganhando a vida.

Esses eram os comentários de que ele não gostava. Insinuavam que ele não ganhava a vida.

- E se eu for de manhã e encerrar o expediente mais cedo?

- É. E sair da boutique na hora da neblina. Jessica, você é uma desmancha-prazeres. Desmancha-prazeres de primeira classe.

Mas ela já se dirigia para a cozinha, para fazer café, e res­pondeu-lhe por cima do ombro enquanto entrava nua na cozinha.

- Prometo que sairei da loja à uma hora. Que tal?

- Melhor do que nada. Caramba, eu adoro seu bumbum. E você emagreceu.

Ela sorriu e jogou-lhe um beijo.

- Uma hora, prometo. E podemos almoçar aqui.

- Isso quer dizer o que eu estou pensando? - Ele sorria de novo, e ela fez que sim com a cabeça. - Então eu pego você ao meio-dia e meia.

- Negócio fechado.

 

A Lady J se aninhava no andar térreo de uma bem-cuidada casa em estilo vitoriano, numa transversal à Union Street. A casa era pintada de amarelo com acabamentos brancos, e uma pequena pla­ca de latão na porta dizia LADY J. Jessie mandara instalar uma ampla vitrina e ela mesma a decorava, duas vezes por mês. Era simples e eficaz, e enquanto parava o Morgan na entrada da gara­gem, ergueu os olhos para ver o que tinham feito com a vitrina, na sua ausência. Uma saia de tweed marrom, uma blusa de colarinho alto cor de camelo, miçangas cor de âmbar, um chapéu de tricô, e uma pequena jaqueta de pele de raposa jogada sobre uma cadeira de veludo verde. Estava excelente, e era coisa certa para o outo­no... embora não para o verão. Mas isso não importava. Nin­guém fazia compras para o verão. Compravam para o outono.

As coisas que tinha comprado em Nova York passaram rapidamente pela sua cabeça enquanto tirava a pasta do carro e subia correndo os poucos degraus que levavam até a porta. Ela estava aberta; as garotas sabiam que chegaria cedo.

- Ora, vejam só quem chegou! Zina! A Jessie voltou! - Uma moça minúscula de delicadas feições orientais bateu palmas e se pós de pé, correndo para Jessie com uma expressão de conten­tamento. - Você está fantástica!

As duas formavam um par impressionante. A beleza loura e longilínea de Jessie contrastava vivamente com a graça delicada da japonesinha. O cabelo dela era negro e lustroso e pendia num corte enviesado da nuca até a ponta do queixo.

- Kat! Você cortou o cabelo!

Jessie ficou momentaneamente atónita. Apenas um mês antes o cabelo da moça chegava até a cintura... quando ela não o usava num coque apertado no alto da cabeça. O nome dela era Katsuko, que significava paz.

- Enjoei de usá-lo preso. Gostou?

Fez uma rápida pirueta num pé só e deixou o cabelo balançar livremente enquanto sorria. Estava vestida de preto, o que era fre­quente, e aquilo acentuava a sua esbeltez e flexibilidade. Era a sua graça felina que lhe dera o apelido que Jessie usava.

- Adorei. Muito chique.

Sorriram uma para a outra e foram rapidamente interrompidas por um grito de guerra de alegria.

- Aleluia! Você voltou para casa! - Era Zina. Cabelos aver­melhados, olhos castanhos, sensual, sulista. Tinha o busto farto en­quanto as outras tinham seios pequenos e elegantes, e uma boca que dizia que adorava risos e homens. Os seus cabelos dançavam junto à cabeça num pequeno halo de cachos, e possuía pernas es­pectaculares e sensuais. Os homens se desmanchavam quando ela se mexia, e ela adorava provocar. - Viu o que a Kat fez com o ca­belo? - Disse “cabelo” como se a palavra não fosse nunca terminar. - Eu teria chorado um ano inteiro. - Sorriu, deixando as palavras deslizarem pela boca. Transformava cada uma delas numa malícia. - Que tal estava Nova York?

- Linda, maravilhosa, terrível, feia e quente. Curti adoidado. E esperem só até ver o que comprei!

- Que espécie de cores?

Para uma moça que quase sempre usava branco ou preto, Kat tinha uma bossa para as cores quentes. Sabia como comprá-las, mis­turá-las, contrastá-las, juntá-las. Tudo, excepto usá-las.

- Tudo pastel e lindo de morrer. - Jessica percorreu o carpete bege e grosso do chão da Lady J. Era gostoso estar de volta aos seus domínios. - Quem arrumou a vitrina? Está óptima.

- Zina. - Kat apressou-se a deixar o elogio para a amiga. - Aquela cadeira verde como contraste não foi um belo toque?

- Está fantástico. E estou vendo que nada mudou por aqui. Vocês duas ainda estão ligadas como gémeas siamesas. Ganhamos algum dinheiro enquanto estive fora?

Sentou-se na sua poltrona favorita do couro bege, uma bem funda que dava bastante espaço para as suas pernas. Era nessa poltrona que os homens geralmente se sentavam, enquanto espe­ravam.

- Ganhamos muito dinheiro. Nas duas primeiras semanas, pelo menos. Esta semana tem sido meio devagar; o tempo está bom demais.

Kat apressou-se a responder, e a última parte da resposta lem­brou a Jessie. que só tinha quatro horas para trabalhar, antes que Ian viesse roubá-la para irem à praia.

Zina entregou-lhe. uma xícara do café enquanto ela olhava ao seu redor. O que viu fora linha de outono que comprara há cinco meses, a maioria na Europa, e que, de encontro às lãs e couros mar­rons e beges da decoração subtil da loja, ficava realçada. Duas pare­des eram de espelhos e havia uma selva de plantas em cada canto. Mais plantas pendiam do teto, realçadas por uma iluminação subtil.

- Como vai indo a linha dinamarquesa?

Os dinamarqueses tinham carregado a mão no vermelho... saias, suéteres, três estilos diferentes de blazers um maravilhoso casaco envelope cor de cereja que, ao seu modo, fazia uma mulher sentir-se tão exótica e sexy como se estivesse usando peles. Era um casaco fantástico. Jessie encomendara um para si mesma.

- Vai indo muito bem - aparteou Zina, com o seu sotaque arrastado de Nova Orleans. - Como vai o Ian? Há semanas que não o vejo.

Ele aparecera uma vez para descontar um cheque, no dia se­guinte à partida de Jessie.

- Está trabalhando no novo livro.

Zina sorriu calorosamente e meneou a cabeça. Gostava dele.

Kat não tinha tanta certeza disso. Ajudava na contabilidade, por­tanto sabia como ele gastava os lucros de Jessie. Porém Zina estava na loja há muito mais tempo e aprendera a conhecer o Ian e apre­ciá-lo. Kat era mais nova e ainda usava o manto Irritável de Nova York sobre o coração. Fora compradora de roupas esporte ali até que se cansara das pressões e resolvera se mudar para San Fran­cisco. Conseguira o emprego na Lady uma semana após a sua chegada, e sentia-se tão afortunada por estar trabalhando lá quanto Jessie se sentia por tê-la na loja. Conhecia o ramo. Totalmente.

As três mulheres passaram meia hora batendo papo e tomando café, enquanto Katsuko mostrava a Jessie alguns recortes de artigos que tinham saído nos jornais, mencionando a boutique. Contavam com duas freguesas novas que tinham praticamente liquidado com o estoque da loja. E conversaram tranquilamente sobre o que Jessie tinha aprontado para o outono. Ela queria fazer um show de moda aantes de viajar para Carmel, em outubro. Kat podia começar a bo­lar idéias.

A loja ficava viva com a presença dela, e juntas faziam um trio poderoso. Todas as três tinham algo a oferecer. Isso ficava evidente no facto de que a boutique não tinha sofrido enquanto ela estivera ausente. Não podia se dar ao luxo de que isso acontecesse, e tampouco o teria tolerado. As duas moças sabiam disso, e adora­vam o seus empregos. Ela pagava bem, tiravam com desconto rou­pas maravilhosas, e era uma mulher razoável para quem trabalha­vam, o que era raro. Kat trabalhara seguidamente para três megeras em Nova York, e Zina fugira de uma longa fila de homens tesudos que queriam que ela dactilografasse, taquigrafasse e fodesse, não ne­cessariamente nessa ordem. Jessica contava com muitas horas de tra­balho duro, mas trabalhava assim igualmente, ou mais. Fizera da Lady J um sucesso, e esperava que elas a ajudassem a mantê-lo. Não era uma tarefa difícil. Punha vida nova na loja a cada estação, e a sua clientela adorava. Lady J era sólida como uma rocha. Como a própria Jessica, e tudo que a cercava.

- E agora, vocês duas, é melhor eu dar uma espiada na correspondência. Muita coisa?

- Não. - Zina respondeu - às coisas chatinhas. As cartas das mu­lheres texanas que estiveram aqui em março e querem saber sobre aquela blusa de gola role amarela ainda está em liquidação. Esse tipo de coisa... ela respondeu a todas.

- Zina, adoro você.

- às ordens.

Ela fez uma profunda reverência e a frente da túnica verde-viva que usava com calças brancas balançou com o peso dos seus seios. Mas as outras duas já tinham parado de implicar com ela há muito tempo. Cada uma estava contente consigo mesma, e todas as três tinham bons motivos para estar.

- Tem um homem aí que quer vê-la, Jessie. Disse que é urgente.

Parecia quase preocupada. Ele não era um dos fregueses habi­tuais, e não tinha vindo ali para comprar.

- Quer me ver? Sobre o quê?

- Não disse. Mas pediu que eu lhe desse o seu cartão.

Zina passou-lhe o pequeno rectângulo de papel-cartão, e Jessie olhou nos olhos dela.

- Algum problema? - Zina deu de ombros, demonstrando ignorância, e Jessie leu o nome: “William Houghton. Inspector. Po­lícia de San Francisco.” Não compreendeu, e voltou a olhar para Zina, buscando pistas. - Aconteceu alguma coisa enquanto estive fora? Fomos roubadas?

E pombas, não seria bem típico delas não preocupá-la a prin­cípio, mas esperar e contar-lhe uma ou duas horas depois!

- Não, Jessie. Juro. Nada aconteceu. Não tenho idéia do que se trata.

O sotaque ficava infantil, quando Zina estava preocupada.

- Nem eu. Por que não o traz aqui? É melhor falar logo com ele.

William Houghton apareceu, acompanhando Zina com algum interesse. As calças ajustadas nos quadris esbeltos contrastavam vi­vamente com a fartura na frente única. O inspector parecia estar com fome.

- Inspector Houghton? - Jessie ficou de pé, com toda a sua altura, e Houghton pareceu impressionado. As três formavam um grupo interessante; Katsuko não escapara do seu olhar atento. - Sou Jessica Clarke.

- Gostaria de falar-lhe a sós por um minuto, se for possível.

- Pois não. Aceita uma xícara de café? - A porta se fechou às costas de Zina, e ele sacudiu a cabeça enquanto Jessie indicava uma cadeira perto da sua mesa, e depois voltava a se sentar na sua. Girou a cadeira para olhar para ele. - Em que posso ajudá-lo, Inspector? A Srta. Nelson disse que era urgente.

- Sim, é sim. Aquele é o seu Morgan, lá fora?

Jessie balançou a cabeça, sentindo-se enjoada ante o olhar penetrante do homem. Estava se perguntando se Ian tinha esqueci­do de pagar as suas multas de novo. Já tivera que tirá-lo da cadeia uma vez, por causa de uma multa de 200 dólares. Em San Fran­cisco, não se brincava em serviço. Ou você pagava as suas multas, ou ia para a cadeia. Não ultrapasse o Siga e não recolha 200 dólares.

- Sim, é o meu carro. Meu nome está nas placas.

Sorriu de modo agradável e torcia para que a sua mão não tremesse enquanto acendia outro cigarro. Era absurdo. Não tinha feito nada de errado, mas havia algo naquele homem, na palavra “Polícia” que produzia culpa instantânea. Pânico. Terror.

- A senhora o estava guiando ontem?

- Não, eu estava em Nova York a negócios. Voltei de avião ontem à noite.

Como se ela tivesse que provar que estivera fora da cidade, e por um motivo legítimo isso era uma loucura. Puxa, se o Ian es­tivesse em casa! Ele sabia tratar das coisas tão melhor do que ela.

- Quem mais dirige o seu carro?

Há alguém mais?” porém “quem mais?”.

- O meu marido.

Sentiu um frio na barriga quando mencionou Ian.

- Ele o dirigiu ontem?

O Inspector Houghton acendeu um cigarro do seu maço e olhou-a de alto a baixo, como que a avaliá-la.

- Não sei ao certo. Ele tem o carro dele, mas estava guiando o meu quando me apanhou no aeroporto. Posso ligar para ele e perguntar.

Houghton balançou a cabeça e Jessica esperou.

- Quem mais dirige o carro? Um irmão? Um amigo? Um namorado?

Os olhos dele enterraram-se nos dela, com a última palavra, e finalmente ela sentiu raiva.

- Sou uma mulher casada, Inspector. E ninguém mais dirige o carro. Só meu marido e eu.

Conseguira ser bem clara, mas algo no rosto de Houghton lhe dizia que não fora uma vitória.

- O carro está registrado no nome do seu negócio? Tem pla­ne comerciais, e o endereço do registro é esta loja. - Loja! Bou­tique, sua besta, boutique! - Presumo que seja dona deste lugar?

- Exactamente. Inspector, de que se trata?

Soltou a fumaça e ficou olhando para ele enquanto sentia a mão tremer ligeiramente. Havia algo errado.

Gostaria de falar com o seu marido. Quer me dar o número do escritório dele, por favor?

Instantaneamente puxou uma caneta e ficou esperando, segurando-a acima das costas de um dos seus cartões.

- É sobre multas por estacionamento proibido? Sei que o meu marido... bem, ele é esquecido.

Sorriu para Houghton, mas o sorriso não colou.

- Não, não é sobre multas por estacionamento proibido. O endereço comercial do seu marido?

Os olhos dele pareciam gelo.

- Ele trabalha em casa. Fica a seis quarteirões daqui. Em Vellejo.

Teve vontade de oferecer-se para ir com ele, mas não teve co­ragem. Rabiscou o endereço num dos seus próprios cartões e entre­gou-o para ele.

- Obrigado. Me comunicarei com a senhora.

Mas a respeito do que, merda? Queria saber. Porém ele se pós de pé e estendeu a mão para a porta.

- Inspector, gostaria muito que o senhor me dissesse do que se trata. Eu...

Ele a olhou estranhamente de novo, com aquele seu olhar perscrutador que fazia perguntas, mas não as respondia.

- Sra. Clarke, eu mesmo não estou inteiramente certo. Quan­do estiver, eu a avisarei.

- Obrigada.

Obrigada? Obrigada por quê? Merda.

Mas ele já tinha ido embora, e enquanto ela se dirigia para a sala principal da boutique, viu quando ele entrou num sedã verde-oliva e partiu. Havia um outro homem ao volante. Eles andavam em pares. A antena na traseira do carro oscilava loucamente enquanto se dirigiam para Vallejo.

- Do que se tratava?

O rosto de Katsuko estava sério, e Zina parecia perturbada.

- E eu lá sei! Ele simplesmente me perguntou quem dirigia o carro e depois falou que queria conversar com o Ian. Droga, aposto que ele esqueceu de novo de pagar as multas por estacionamento proibido.

Mas não parecia ser isso, e Houghton dissera que não era... ou era? Jesus! Que bela recepção de volta ao lar.

Voltou para o escritório e ligou para a casa deles. Deu ocupa­do. E então Trish Barclay entrou na loja e Jessie ficou entretida com bobagens como a jaqueta de pele na vitrina, que Trish com­prara. Ela era uma das suas melhores freguesas e Jessie teve que manter as aparências pelo menos por algum tempo. Foi só 25 mi­nutos mais tarde que conseguiu voltar ao telefone para ligar para o Ian. Desta feita, não atenderam.

Era ridículo! Ele tinha que estar lá. Estava lá quando ela saíra para ir para a boutique. E a linha estava ocupada quando ligara da primeira vez... a polícia estava se dirigindo para lá. Deus, quem sabe era uma coisa séria. Quem sabe ele sofrera um acidente com o carro e não tinha contado para ela. Quem sabe alguém tinha fi­cado ferido. Mas ele teria dito alguma coisa. Ian não deixaria uma coisa dessas acontecer sem contar para ela. O telefone tocou interminavelmente, e ninguém atendeu. Quem sabe ele estava vindo para a boutique. Passava um pouco das 11.

Mas Nick Morria precisava de alguma coisa “fabulosa” para o aniversário da mulher; tinha se esquecido, e agora precisava de pelo menos 400 dólares em mercadoria para dar-lhe até o meio-dia. Ela era uma megera nojenta, e não valia isso, mas Jessie ajudou-o. Gostava de Nick, e antes de ele sair da loja carregado de caixas lus­trosas marrom e amarelo, Barbara Fuller apareceu, e Holly Jenkins, e depois Joan Wílcox, e... era meio-dia. E não tivera notícias do Ian. Tentou de novo o telefone e começou a entrar em pânico. Nenhuma resposta. Quem sabe agora ele estava a caminho. Tinha dito que viria buscá-la ao meio-dia e meia.

A uma hora ele não tinha aparecido ela estava à beira das lágrimas. Tinha sido uma manhã horrível. Gente, pressões, entre­gas, problemas. Bem-vindo ao lar. E nada do Ian. E aquele cretino do Houghton deixando-a nervosa com as misteriosas perguntas sobre o carro. Refugiou-se no escritório enquanto Zina saía para almoçar. Precisava ficar sozinha por um minuto. Para recobrar o fôlego. Para tomar coragem para fazer o que não queria fazer. Mas precisava saber. Seria um jeito fácil de descobrir, afinal, de contas. Pombas, só o que tinha a fazer era ligar para a delegacia e perguntar se ti­nham um Ian Powers Clarke e soltar um suspiro de alívio quando dissessem que não. Ou pegar o seu talão de cheques e ir correndo para lá e tirá-lo da cadeia se estivesse preso de novo por estacio­namento proibido. Nada de muito difícil. Mas foi preciso tomar mais um gole de café e fumar outro cigarro antes de conseguir levar a mão ao telefone.

Conseguiu o número com Informações. Palácio da Justiça. Prisão Municipal. Isso era ridículo. Sentia-se tola, e abriu um sorriso pensando no que Ian diria se ela estivesse ligando para a cadeia quando ele entrasse. Ia gozar com a cara dele durante uma semana. Uma voz forte ressoou no seu ouvido, do outro lado.

- Prisão Municipal. Fala Palmer.

Jesus. E agora? Bem, você telefonou, agora pergunte para o ho­mem, pateta.

- Eu... eu queria saber se vocês têm ai um... um Sr. Ian Clarke, Ian Powers Clarke, Sargento. Por estacionamento proibido.

- Como se escreve?

O sargento da recepção não estava achando graça. Multas por estacionamento proibido eram coisa séria.

- Clarke. Com um E no fim. Ian I-A-N C-L-A-R-K-E.

Deu outra tragada no cigarro enquanto esperava e Katsuko meteu a cabeça pela porta perguntando o que queria para o almoço. Jessica sacudiu a cabeça com veemência e fez sinal para que a ou­tra fechasse a porta. Os nervos dela tinham começado a ficar sensíveis há horas, com a chegada do Inspector Houghton.

A voz voltou ao telefone depois de uma pausa interminável.

- Clarke. É. Está aqui.

Bem, e daí? Jessica soltou um pequeno suspiro de alívio. Era desagradável, mas não o fim do mundo. E pelo menos agora ela sabia, e poderia tirá-lo de lá em meia hora. Perguntou-se quantas multas ele teria esquecido de pagar, desta vez. Mas, agora, ia dar-lhe a maior bronca. Deixara-a morta de medo. E isso era pro­vavelmente o que Houghton quisera fazer. E conseguira, sem dú­vida, não admitindo que o problema era multas por estacionamento proibido. Filho da mãe.

- Nós o autuamos faz uma hora. Estão falando com ele agora.

- Por causa de multas?- Que ridículo. Agora chegava. Jessica já estava mais do que farta.

- Não, dona. Não por causa de multas. Por causa de três acusações de estupro e uma de agressão.

Jessie pensou que podia sentir o tecto baixando sobre a sua cabeça enquanto as paredes a espremiam tirando-lhe o fôlego dos pulmões.

- Como?

- Três acusações de estupro. E uma de agressão.

- Meu Deus. Posso falar com ele?

As mãos dela tremiam tanto que precisou das duas para segu­rar o telefone e sentiu ânsias de vómito.

- Não. Ele pode falar com o advogado dele, e a senhora pode vê-lo amanhã. Entre as 11 e as duas. Ainda não estabeleceram a fiança. A citação será na quinta-feira.

O sargento da recepção desligou na cara dela, e ela estava segu­rando o fone mudo, com um olhar inexpressivo e as lágrimas come­çando a escorrer-lhe pelo rosto quando Katsuko abriu a porta, estendendo-lhe um sanduíche. Levou um momento para absorver o que estava vendo.

- Meu Deus. O que aconteceu?

Parou de chofre e fitou o tumulto dos olhos de Jessica. Jessica nunca se descontrolava, nunca chorava, nunca vacilava, nunca... Pelo menos, nunca tinham visto esse lado dela na loja.

- Não sei o que aconteceu. Mas foi uma porra de um erro incrível, horrível, ridículo!

Ela estava gritando e agarrou o sanduíche que Kat trouxera e arremessou-o para o outro lado da sala. Três acusações de estupro. E uma acusação de agressão. Que diabo estava acontecendo?

 

- Jessie? Aonde vai?

Ela passou por Zina, que retornava enquanto saía porta afora.

- Façam de conta que não voltei de Nova York. Vou para casa. Mas não liguem para mim.

Escancarou a porta do carro e entrou.

- Está doente? - perguntava Zina, do alto da escada, mas Jessica apenas sacudiu a cabeça, puxou o afogador, girou a chave na ignição e engrenou uma marcha à ré.

Zina entrou na boutique, confusa, mas Katsuko não pode dizer nada além do que ela presenciara. Jessie estava nervosa, mas Kat não sabia por que. Tinha algo a ver com a visita do policial, na manhã. As duas moças estavam preocupadas, mas Jessie dissera que não ligassem para a sua casa, e a parte da tardo na boutique estava atarefada demais para dar-lhes tempo para especular. Katsuko imaginou que tinha algo a ver com o Ian, mas não sabia o que. Zina ficou na ignorância total.

 

 

Quando chegou em casa, Jessica agarrou o telefone com uma das mãos e o caderno de endereços com a outra. Uma xícara semicheia do café estava em cima da mesa da cozinha. Ian estava no meio do seu desjejum quando eles o tinham levado, e algo no coração de Jessie lhe dizia que Houghton fora a pessoa que levara Ian preso. Ficou imaginando se os vizinhos tinham visto.

Uma pilha de páginas do novo livro jazia ao lado do café. Nada mais. Nenhum bilhete ou recado para ela. Ele devia ter ficado chocado. E obviamente era uma acusação absurda. Eles tinham pegado o homem errado. Dali a algumas horas o pesadelo teria acabado e ele estaria em casa. Ela recobrara a sanidade. Agora, só o que precisavam era do um advogado. Ela simplesmente não se permitiria entrar em pânico.

No seu caderno de endereços encontrou o nome que buscava, e teve sorte; ele estava desocupado quando ela ligou, e não na hora do almoço, como temera. Era um homem que ela e Ian respei­tavam, um advogado com boa reputação, sócio mais antigo da sua firma. Phillip Wald.

- Mas, Jessica, não faço advocacia criminal.

- Que diferença isso faz?

- Muitíssima, infelizmente. O que você precisa é de um bom advogado criminalista de defesa.

- Mas não foi ele, ora bolas! Só precisamos de alguém para acertar as coisas e livrá-lo dessa confusão.

- Já falou com ele?

- Não, não deixaram. Olhe, Phillip, por favor. Dê só um pulo até lá e fale com eles. Fale com o Ian. Essa história toda é absurda.

Do outro lado da linha, fez-se silêncio.

- Isso eu posso fazer. Mas não posso aceitar o caso. Não seria justo para nenhum dos dois.

- Que caso? Trata-se apenas de identificação errada.

- Sabe no que se baseia?

- Algo a ver com o meu carro.

- Eles têm o número da sua placa?

- Têm.

- Bem, então podem ter invertido a ordem dos números ou letras. - Ela ficou calada, mas era difícil inverter a ordem das le­tras de “Jessie” e dar o nome errado. Isso era a única coisa que a preocupava. A ligação com o carro. - Vou lhe dizer o que vou fazer. Vou até lá vê-lo, descobrir o que está acontecendo, e lhe indicarei alguns nomes de advogados de defesa. Comunique-se com eles, e depois que escolher um, diga-lhe que ligarei para ele mais tarde, contando o que descobrir. E diga a eles que mandei que você ligasse.

Ela soltou um suspiro profundo.

- Obrigada, Phillip. Isso já ajuda.

Ele deu-lhe os nomes e prometeu que daria uma passada na casa dela tão logo visse o Ian. E Jessie se acomodou com a xícara de café frio de Ian para telefonar para os amigos de Phillip. Todos advogados criminalistas. Os telefonemas não foram animadores.

O primeiro não estava na cidade. O segundo estaria ocupado no tribunal pelo menos durante a semana seguinte, e não podia ser incomodado com um novo caso. O terceiro estava ocupado demais para falar com ela. O quarto tinha saído. Mas o quinto passou algum tempo no telefone conversando com ela. Jessie detestou a sua voz.

- Ele tem ficha criminal?

- Não. Claro que não. Só multas de trânsito.

- Drogas? Problemas com drogas?

- Nenhum.

- Ele bebe?

- Não, apenas vinho, socialmente.

Cristo, o homem já pensava que fora o Ian. Isso estava bem claro.

- Ele conhecia essa mulher antes... ah... ele a conhecia anteriormente?

- Não sei de nada sobre a mulher. E presumo que tudo isso seja um erro.

- O que a faz pensar assim?

Filho da mãe. Jessie já o odiava.

- Conheço o meu marido.

- Ela o identificou?

- Não sei. O Sr. Wald pode dizer-lhe tudo isso depois que tiver visto o Ian.

Na cadeia... ah, Jesus... Ian estava na cadeia, e era para valer, e aquele maldito advogado ficava fazendo perguntas cretinas sobre se Ian conhecia ou não a mulher que o estava acusando de estupro. Quem se importava? Ela só o queria em casa, raios. Agora. será que ninguém entendia isso? Sentiu um aperto no peito e dificuldade em respirar enquanto tentava manter a voz calma para ocultar o pânico crescente nas suas entranhas.

- Bem, mocinha, deixe que lhe diga. A senhora e seu marido estão com um problemão. Mas é um caso interessante. - Diabo de homem. - Estou disposto a cuidar do caso para vocês. Mas há a questão dos meus honorários. Pagos adiantado.

- Adiantado? - exclamou, chocada.

- É. Vai descobrir que a maioria dos meus colegas, se não todos, age da mesma maneira. Eu realmente preciso cobrar antes de assumir um caso, porque, uma vez que apareça na Corte Superior representando o seu marido, passo a ser o advogado oficial dele e legalmente estou preso ao caso, quer vocês paguem os honorários, quer não. E se o seu marido for para a prisão, vocês simplesmente podem deixar de me pagar. Vocês têm bens?

O Ian ir para a prisão? Foda-se, cara.

- Sim, temos bens.

Mal podia descerrar os dentes.

- Que tipo de bens?

- Asseguro-lhe que posso pagar os seus honorários.

- Bem, gosto de ter certeza. Meus honorários por esse caso são de 15.000 dólares.

- O quê? Adiantados?

- Quero metade antes da citação. Creio que a senhora falou que será na quinta-feira. E a outra metade imediatamente após.

- Mas não tenho meios de transformar meus bens em dinheiro vivo em dois dias!

- Então infelizmente não posso cuidar do caso.

- Obrigada.

Tinha vontade de mandar que ele fosse se foder. Porém a esta altura estava começando a entrar em pânico de novo. Em nome de Deus, quem iria ajudá-la?

A sexta pessoa cujo nome Phillip lhe dera acabou sendo mais humana. Chamava-se Martin Schwartz.

- Parece que vocês estão com um problemão dos diabos, ou pelo menos o seu marido está. Acha que ele fez aquilo?

Era uma pergunta interessante, e ela gostou dele por presumir que havia alguma dúvida. Hesitou por apenas um minuto. O homem merecia uma resposta reflectida.

- Não, acho que não. E não apenas porque sou a mulher dele. Não acredito que fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Não é do feitio dele, e não tem necessidade de fazer isso.

- Está certo, aceitarei a sua resposta. Porém as pessoas fazem coisas estranhas, Sra. Clarke. Para o seu próprio bem, esteja prepa­rada para aceitar isso. O seu marido pode ter um lado da sua per­sonalidade que a senhora nem conhece.

Era possível. Tudo era possível. Mas ela não acreditava. Não podia.

- Gostaria de falar com o Phillip Wald depois que este o vir - continuou Schwartz.

- Agradeceria se o fizesse. Há uma coisa chamada citação marcada para quinta-feira. Vamos precisar de consultoria legal até lá, e o Phillip não se sente qualificado para aceitar o caso.

O caso... o caso.... o caso... já detestava a palavra.

- O Phillip é um bom homem.

- Eu sei. Sr. Schwartz... detesto ter que tocar no assunto, mas...

- Os meus honorários?

- Os seus honorários.

Soltou um profundo suspiro e sentiu um nó se apertar na barriga.

- Podemos discutir isso. Tentarei ser razoável.

- Vou lhe falar com franqueza, o homem com quem falei antes do senhor pediu 15.000 dólares até quinta-feira. É impossível para mim providenciar isso.

- A senhora tem bens?

Ah, Deus, vamos começar de novo.

- Sim, tenho. - O tom de voz dela ficou subitamente desagradável. - Tenho um negócio, uma casa e um carro. E meu marido também tem um carro. Mas simplesmente não podemos vender a casa, ou o meu negócio, em dois dias.

Ficou interessado no modo como ela disse “meu negócio”, não “nosso”. Perguntou-se qual seria o negócio “dele”, se é que havia.

- Não estava esperando que liquidasse os seus bens imediata­mente, Sra. Clarke. - O tom de voz dele era calmo, mas firme. Algo nele a acalmava. - Mas estava pensando que talvez pre­cisasse de alguma garantia para a fiança... se eles conseguirem manter a acusação, o que ainda veremos. A fiança pode ser bem alta. Vamos nos preocupar com isso mais tarde. Quanto aos meus honorários, acho que 2.000 dólares até o julgamento seria razoável. Se for a julgamento, 5.000 dólares adicionais. Mas isso ainda levará uns dois meses, e se a senhora é amiga do Phillip, eu não me preocuparei. - Ela ficou pensando que as pessoas que não eram “amigas do Phillip” estavam encrencadíssimas. Sentiu-se repentinamente agradecida. - Que tal lhe parece?

Balançou a cabeça, silenciosamente, consternada, mas aliviada. Era certamente bem melhor do que os honorários que tinham sido mencionados há alguns momentos. Ela teria que raspar a sua ca­derneta de poupança, mas pelo menos tinha os 2.000. Podiam se preocupar com os outros cinco mais tarde, se chegasse a ser neces­sário. Ela venderia o Morgan, se precisasse, sem pensar duas vezes. O destino de Ian estava em jogo, e ela precisava dele muitíssimo mais do que precisava do Morgan. E sempre havia as jóias da mãe dela. Mas estas eram sagradas. Até mesmo para o Ian.

- Daremos um jeito.

- Óptimo. Quando poderei vê-la?

- Quando quiser.

- Então, gostaria de vê-la amanhã no meu escritório. Falarei com o Wald hoje à tarde, e irei ver o Sr. Clarke pela manhã. Pode estar no meu escritório às dez e meia?

- Posso.

- Óptimo. Lerei os relatórios policiais e verei direitinho a quan­tas andamos. Que tal?

- Maravilhoso. Sinto de repente como se um peso enorme tivesse sido tirado das minhas costas. Juro, estive completamente desesperada. Não entendo nada disso. polícia, fiança, acusações disso e acusações daquilo, citações... nem sei que diabo está se passando. Nem sei que diabo aconteceu.

- Bem, vamos descobrir. Portanto, relaxe.

- Obrigada, Sr. Schwartz. Muito obrigada.

- Até amanhã.

Desligaram, e subitamente Jessica estava chorando de novo. Ele fora amável com ela. Finalmente alguém a tratara decentemente, em tudo isso. Desde inspectores de polícia que nada lhe contavam, até sargentos da recepção que anunciavam as acusações e desli­gavam na cara dela, até advogados que queriam 15.000 dólares em espécie nas suas mesas em 48 horas, até... Martin Schwartz, um, ser humano. E segundo Phillip Wald, Schwartz era um advogado competente. Tinha sido um dia incrível. E, Deus, onde estava o Ian? As lágrimas abriam uma trilha quente e húmida pelo seu rosto, de novo. Parecia que estivera chorando o dia todo. E precisava se controlar. Wald logo estaria chegando.

 

Phillip Wald chegou às cinco e meia. Tinha uma expressão de grave preocupação no rosto, e os olhos cansados.

- Você o viu?

Jessie podia sentir os olhos ardendo de novo e teve que lutar contra as lágrimas.

- Vi.

- Como está ele?

- Está bem. Abalado, mas bem. Estava muito preocupado com você.

- Disse a ele que estou bem?

As mãos dela tremiam violentamente e o café que bebera o dia todo só piorava as coisas. Parecia estar tudo, menos “bem”.

- Disse-lhe que estava muito nervosa, o que é muito natural, dadas as circunstâncias. Jessica, vamos nos sentar.

Ela não gostou do jeito que ele falou, mas quem sabe estava apenas cansado. Todos tinham tido um dia muito longo. Um dia interminável.

- Falei com o Martin Schwartz - disse. - Acho que vai aceitar o caso. E ele falou que ligaria para você hoje à tarde.

- Óptimo. Acho que vocês dois gostado dele. É um excelente advogado, e também um homem muito simpático.

Jessica levou Phillip para a sala de visitas, onde ele se sentou no comprido sofá branco que dava para a janela. Jessica escolheu uma poltrona de camurça bege que ficava ao lado de uma velha mesa de bronze que ela e Ian haviam descoberto na Itália, na sua lua-de-mel. Inspirou fundo, suspirou, e deixou os pés se enterrarem no tapete. Aquela era uma sala cálida, agradável, que sempre a acolhia. Um lugar onde se sentia em casa e podia se descontrair... excepto agora. Agora, sentia como se nada jamais fosse voltar a ficar bem de novo, e como se fizesse anos desde que estivera nos braços do Ian, ou vira a luz nos seus olhos.

Quase instintivamente, seus olhos se dirigiram a um pequeno quadro dele que pintara há anos. Pendia sobre a lareira, e sorria-lhe suavemente. Era de agoniar. Onde estava ele? Súbita e dolorosamente lembrou-se da sensação que tivera vendo as fotos de ginásio de Jake, quando estava separando as suas coisas, depois de terem recebido o telegrama da Marinha. Aquele sorriso depois que tudo acabara.

- Jessica? - Ergueu os olhos com uma expressão chocada, e Phillip ficou aflito. Ela parecia perturbada, confusa, como se esti­vesse meio fora de si. Ele a vira fitando a pequena tela a óleo, e por um momento exibira a expressão desolada de uma viúva so­fredora... o rosto que simplesmente não compreende, os olhos que se afogam na dor. Que coisa pavorosa. Olhou para a janela por um momento, depois voltou a olhar para ela, torcendo para que já tivesse se recomposto. Mas não havia nada para recompor. Os modos dela eram absolutamente controlados; era a expressão dos seus olhos que contava o resto da história. Não tinha certeza do quanto ela estava preparada para ouvir agora, mas precisava contar-lhe. Tudo. - Jessica, a coisa está feia.

Ela deu um sorriso cansado e limpou uma lágrima da face.

- Puxa, não diga! Quais as outras novidades?

Phillip ignorou a frágil tentativa de fazer graça e continuou. Queria acabar logo com aquilo.

- Realmente não creio que ele o tenha feito. Mas admite ter dormido com a tal mulher ontem à tarde. Quero dizer, ele... teve relações com ela.

Concentrou-se no seu joelho direito, tentando amontoar as palavras desagradáveis numa longa sílaba ininteligível.

- Entendo.

Mas não entendia. O que havia para entender? Ian tinha feito amor com alguém. E este alguém o estava acusando de estupro. Por que não conseguia sentir alguma coisa? Só havia essa dormência incrível que pousava em cima dela como se fosse um chapéu gigan­tesco. Nem raiva, nem nada, só dormência. E talvez pena do Ian. Mas, por que estava dormente? Talvez porque estivesse tendo que ouvi-lo da boca de Phillip, um estranho, afinal. Seu cigarro queimou até o filtro e apagou na sua mão, e ela ainda esperava que ele continuasse.

- Ele falou que bebeu demais ontem na hora do almoço e que você devia chegar à noite. Algo sobre você ter passado várias semanas fora e ele ser um homem... vou poupar-lhe essa parte. Ele reparou nessa moça no restaurante, e após alguns drinques ela não lhe pareceu tão má.

- E ele foi paquerá-la?

Sentia-se como se outra pessoa estivesse falando as palavras por ele. Podia ouvi-las, mas não podia sentir a boca se mover. Nada parecia estar funcionando. Nem a sua mente, nem o seu coração, nem a sua boca. Quase riu histericamente, perguntando-se o que aconteceria se tivesse que ir ao banheiro; sem dúvida mijaria toda a poltrona de camurça e nem se daria conta do que estava fazendo. Sentia-se como se tivesse tomado uma dose excessiva de Novocaína.

- Não, não foi exactamente assim. Saiu do restaurante para ir para casa trabalhar no seu livro, mas passou pelo Enrico de novo, no caminho, e ela simplesmente estava parada na esquina quando ele parou no sinal. E só de curtição ele lhe ofereceu uma carona. Ela não era lá grande coisa, vista de perto, era bem mais velha do que ele imaginara. Ela alega ter 30 anos, no relatório policial, mas ele disse que deve ter pelo menos 37 ou 38. Deu-lhe um endereço na Market de um hotel onde alegava residir, e Ian disse que sentiu pena dela quando o convidou para subir e tomar alguma coisa. Então ele subiu, tomou um drinque... havia meia garrafa de bourbon no quarto dela... e disse que ele lhe subiu à cabeça e ele... eles tive­ram relações. - Wald pigarreou, desviou os olhos, e continuou. O rosto de Jessica não demonstrava nenhuma expressão; o filtro do cigarro ainda estava na sua mão. - E ele falou que foi só isso. Falando às claras, vestiu as calças e foi para casa. Tomou um banho, tirou um cochilo, fez um sanduíche e foi receber você no aeroporto. Esta é toda a história. A história de Ian.

Mas ela podia perceber pela voz dele que havia mais.

- Parece uma coisa de muito mau gosto. Mas não me parece estupro. No que estão baseando as acusações?

- Na história dela. E é preciso que se lembre, Jessica, como o tópico de estupro é delicado, hoje em dia. Durante anos, as mu­lheres disseram ter sido estupradas e os homens faziam declarações difamatórias sobre essas mulheres nos tribunais. Detectives particula­res descobriam o facto supostamente espantoso de que a queixosa não era virgem, e instantaneamente os homens eram exonerados, os casos encerrados, e as mulheres caíam em desgraça. Por muitos motivos, agora não é mais assim. Não importa o que realmente tenha acontecido. Agora a polícia e os tribunais são mais cautelosos, mais inclinados a acreditar nas mulheres e dar à vítima uma oportu­nidade mais justa. É uma coisa muito certa, e estava mais do que na hora... excepto que, de vez em quando, aparece alguma mulher com uma pinimba, conta uma mentira e um sujeito decente entra pelo cano. Do mesmo modo que algumas mulheres decentes costu­mavam sair prejudicadas do jeito que as coisas eram no passado, agora alguns sujeitos decentes acabam levando no... – pigarreou - bem, se prejudicando.

Jessica não pode abafar um sorriso. Phillip era completa­mente certinho. Estava certa de que ele fazia amor com a mulher usando uma cueca samba-canção.

- Francamente, Jessica, acho que o que aconteceu aqui é que o Ian caiu nas mãos de uma mulher doente e infeliz. Dormiu com ele depois alegou que era estupro. Ian disse que ela bancou a sedu­tora e falou que era garçonete num bar topless, o que não é verdade­.. Mas ela podia estar fazendo um jogo psicológico muito anormal com ele. E Deus sabe quantas vezes já fez isso antes, de maneiras subtis, com ameaças e acusações. Aparentemente, contudo, nunca foi à polícia antes. Acho que vão ter um trabalhão provando que está mentindo. Certamente não sem um julgamento. O estupro é difícil de provar, mas também é difícil provar que não houve estupro. Se ela está insistindo que foi, então o promotor tem que restaurar processo. E aparentemente o inspector encarregado do caso acredita na história da mulher. Portanto, estamos entalados. Se eles decidirem que querem a cabeça do Ian, seja lá por que motivos, o caso terá que ir a julgamento.

Os dois ficaram calados durante longo tempo, depois Phillip soltou um suspiro e falou de novo:

- Li os relatórios policiais, e a mulher alega que ele a paquerou ­e ela lhe pediu que a levasse ao seu escritório. É secretária de um hotel na Van Ness. Ao invés disso, ele a levou para esse hotel na Market onde eles... onde tomaram aquele último drinque. Levando­ em conta essa parte da história, ele teve um bocado de sorte de não o terem acusado de rapto, também. De qualquer forma, ela alega que ele a forçou a ter relações normais e... a praticar actos anormais. É aí que entram a segunda e a terceira acusações de estupro, e a de agressão. Embora eu presuma que vão deixar de lado ....... não há prova médica dela.

Phillip parecia tão horrivelmente displicente ao falar nos detalhes­ que Jessica começou a se sentir mal. Sentia-se como se estivesse nadando num mar de melado, como se tudo à sua volta fosse lento e irreal. Tinha vontade de raspar as palavras da pele com “Actos anormais.” Que actos anormais?

- Pelo amor de Deus, Phillip, o que quer dizer com “anormais”? Ian é perfeitamente normal na cama.

Phillip enrubesceu. Jessica não. Não estava na hora de bancar a pudica.

- Cópula oral e sodomia. São delitos graves, sabe. - Jessica apertou os lábios e fez uma cara feia. A cópula oral não tinha nada de anormal. - Não havia provas claras da sodomia, mas não creio que desistam da acusação. Novamente, é a palavra dela contra a dele, e a estão escutando, e infelizmente antes da minha chegada o Ian admitiu ao inspector encarregado do caso que tinha tido relações sexuais com a mulher. Não confessou o coito oral ou a sodomia, mas nem devia ter admitido as relações sexuais. Foi uma pena incrível que o tenha feito.

- Isso vai prejudicar o caso?

- Provavelmente não. Podemos impedir a fita de aparecer nos tribunais alegando que ele estava perturbado na hora. Martin cuidará disso.

Jessica ficou sentada com os olhos fechados por um momento, sem acreditar no peso daquilo tudo.

- Por que ela está fazendo isso com a gente, Phillip? O que pode estar querendo dele? Dinheiro? Droga, se é isso o que ela quer, eu darei, não importa o quanto queira. Simplesmente não consigo acreditar que isso esteja realmente acontecendo.

Abriu os olhos e olhou para ele de novo, sentindo a onda de confusão e irrealidade já conhecida inundá-la outra vez.

- Sei que isso é muito difícil para você, Jessica. Mas agora está com um advogado excelente. Tenha fé nele; fará um bom ser­viço. Uma coisa que absolutamente não pode fazer, sejam quais forem as circunstâncias, é oferecer dinheiro a essa mulher. A polícia não desistirá do caso, mesmo que ela desista, e você estará acober­tando um delito grave, e sabe lá Deus o que mais, se tentar subor­ná-la. E estou falando sério... a polícia parece estar tomando um interesse especial pelo caso. Não é sempre que botam as mãos num caso de estupro em Pacific Heights, e tenho a impressão de que alguns deles acham que está mais do que na hora da classe superior receber o que merece. O Sargento Houghton, o inspector encarregado do caso, fez umas piadinhas muito desagradáveis sobre “certos ti­pos de pessoas que acham que podem sair impunes de qualquer situação a expensas de certas outras pessoas que não têm tantos meios . Não é uma bela conclusão, mas se é assim que ele pensa, deve ser tratado com luvas de pelica. Tive a impressão de que ele não gosta da aparência do Ian, ou do que viu de você. Quase me pergunto se ele não acha que vocês são dois tarados fazendo o que lhes der na telha como curtição. Quem sabe o que ele pensa... estou apenas dando a minha impressão... mas quero que tome muito cuidado, Jessica. E faça o que fizer, não dê dinheiro a essa mulher. Estará prejudicando o Ian, e a si própria, se tentar fazer isso. Se ela quiser dinheiro, se ligar parasi ..... deixe-a falar. Você poderá testemunhar a respeito mais tarde. Mas não lhe dê um tostão! - Foi enfático na última frase, e depois correu a mão pelos cabelos. - Odeio ter que lhe contar tudo isso, Jessica. Ian estava se sentindo péssimo, quanto a isso. Mas é óbvio que você tem que saber o que aconteceu. Mas não é bonito, e devo dizer que você está reagindo admiravelmente.

Mas as lágrimas afloraram de novo, ante as palavras dele, e teve vontade de suplicar-lhe para não ser gentil com ela, não parabenizá-la por estar reagindo bem. Podia aguentar a dureza, mas sabia que, se alguém a abraçasse, tivesse pena, se importasse... ou se Ian entrasse porta adentro naquele momento... ela soluçaria até morrer.

- Obrigada, Phillip. - Ele achou a voz dela estranhamente fria, como se estivesse querendo evitá-lo. - Pelo menos, obviamente não se trata de estupro, o que ficará claro no tribunal. Se o Martin Schwartz for bom.

- É, mas... Jessie, a coisa vai ser feia. Tem que estar prepa­rada para isso.

Os olhos dele buscaram os dela, e Jessie meneou a cabeça.

- Estou compreendendo.

Mas não estava. Não realmente. A coisa toda ainda nem come­çara a calar nela. Como poderia? Nada calara nela desde as 11 da manhã. Estava em estado de choque. Sabia apenas de duas coisas, e nem mesmo as entendia: que Ian sumira, que ela não podia vê-lo, senti-lo, escutá-lo, tocá-lo; que ele dormira com outra mulher. Tinha que enfrentar isso agora, também. Publicamente. O resto calaria nela

Não havia muito mais que Phillip pudesse fazer, e ele não conhecia Jessica bem o suficiente para dar-lhe algum conforto. Apenas Ian conhecia Jessica o suficiente para isso. E Jessie deixava Phillip nervoso. Permanecia tão calma. Sentia-se grato por ela ser discreta, mas aquilo o deixava frio em relação a ela, e confuso. Surpreendeu-se imaginando o que ela estava realmente pen­sando. Pensou na sua mulher e em como reagiria a uma coisa dessas, ou a sua irmã, ou qualquer das mulheres que conhecia. Jessie era uma raça inteiramente diferente. Controlada demais para o gosto dele... e no entanto havia algo esmagador nos seus olhos. Como duas janelas quebradas. Eram o único indício de que tudo não estava bem lá por dentro.

- Há alguma chance de que ele possa ligar para mim? Pensei que a pessoa tinha direito a um telefonema da cadeia.

Ele ligara da vez anterior, quando fora em cana por causa das multas.

- É. Mas entendi que ele não quis ligar para você, Jessie.

- Não quis?

Ela pareceu enfurnar-se mais dentro das suas reservas.

- Não. Disse que não tinha certeza de como você se sentiria. Disse que talvez essa fosse a última gota.

- Babaca.

Phillip desviou os olhos, e dali a alguns momentos se retirou. Fora um dia excessivamente desagradável. Sentiu-se grato por não praticar advocacia criminal. Não tinha estômago para isso. Não invejava ­Martin Schwartz por cuidar desse caso, não importa quanto dinheiro ganhasse com ele.

Jessie ficou sentada na sala de visitas ainda muito tempo depois da saída de Phillip. Esperava pelo toque do telefone... ou pelo ruído da chave de Ian na porta. Isso não podia estar acontecendo. Não de verdade. Ele viria para casa. Sempre vinha. Tentou fingir que a casa não estava quieta. Cantou pequenas canções e falou sozinha. Ele não podia deixá-la só... não!... às vezes ela ouvia a voz da mãe, tarde da noite... e do Jake... e do seu pai... mas nunca a Ian.... nunca o Ian... ....... Ele ligaria, tinha que ligar. Não podia deixá-la sozinha, assustada desse jeito, não faria isso com ela, prometera que jamais o faria, e Ian jamais quebrava as suas promessas... mas quebrara. Quebrara uma promessa agora. Lembrou-se disso enquanto ficava sentada no chão do corredor, no escuro, noite adentro. Assim escutaria a chave mais depressa, quan­do ele voltasse para casa. Voltaria para casa, mas tinha quebrado uma promessa. Dormira com outra mulher, e agora estava fazendo com que ela enfrentasse isso. Não podia ignorá-lo mais. Odiava-a... odiava-a... odiava... a mulher, mas não a ele. Ah, Deus... quem sabe o Ian não a amava mais... quem sabe estava apaixonado pela outra ....... quem sabe... por que não telefonava, porra? Por que ele não... por que ele... as lágrimas escorriam pelo seu rosto como a chuva quente do verão enquanto jazia sobre o piso macio de madeira do corredor e esperava pelo Ian. Ficou deitada no chão até de manhã. O telefone não tocou.

 

Os escritórios de Schwartz, Drewes e Jonas localizavam-se no Edifí­cio Banco da América, na Califórnia Street, um excelente ponto. Jessica subiu no elevador até o 44•o andar, com aparência recatada, elegante e cansada. Usava um par grande de óculos escuros e um costume azul-marinho severo. Era um traje reservado para encontros de negócios e enterros. A ocasião continha um pouco das duas coisas. Eram 10:25. Estava cinco minutos adiantada, mas Martin Schwartz estava esperando.

Uma secretária conduziu-a por um longo corredor atapetado, com uma vista impressionante da baía. Os escritórios ocupavam um canto do lado norte do prédio. Era evidentemente uma firma grande e próspera.

O gabinete de Martin Schwartz exibia duas paredes de vidro, mas a decoração era espartana e fria. Levantou-se de trás da sua mesa, um homem de estatura média com uma farta cabeleira grisalha. Usa­va óculos, e franzia a testa.

- Sra. Clarke?

A secretária a anunciara, mas ele a teria conhecido, do mesmo modo. Era do jeito que ele esperava - rica, elegante. Mas era mais jovem do que imaginara, e mais serena do que ousara esperar.

- Sim. Como está?

Estendeu a mão e ele se apercebeu de toda a sua altura. Era uma moça impressionante. Combinou-a mentalmente com o moço cansado, barbudo mas ainda assim bonito, que tinha visto na prisão municipal pela manhã. Deviam fazer um par e tanto, juntos. Também deviam ficar bem, no tribunal. Talvez bem demais - bonitos demais, jovens demais. Não estava gostando da cara desse caso.

- Não quer se sentar?

Ela meneou a cabeça, sentou na cadeira do outro lado da mesa, e recusou a oferta de café.

- Viu o Ian?

- Vi. E o Sargento Houghton. E a promotora assistente encar­regada do caso. E falei com Phillip Wald por mais de uma hora, ontem à noite. Agora quero falar com a senhora, e depois vamos ver que tipo de caso realmente temos. - Tentou dar um sorriso, e mexeu em alguns papéis na mesa. - Sra. Clarke, já tomou drogas?

- Não. E nem o Ian. Nada mais do que uns poucos baseados, de vez em quando. Mas acho que não fumamos maconha há mais do um ano. Nenhum de nós dois gosta muito. E não bebemos nada mais exótico do que vinho.

- Não vamos botar o carro adiante dos bois. Primeiro vamos falar dos tóxicos. Alguns dos seus amigos curte essa?

- Não que eu saiba.

- Alguma coisa desse tipo poderia aparecer nas investigações da sua pessoa ou do Sr. Clarke?

- Não, estou certa que não,.

- Óptimo.

Pareceu apenas ligeiramente aliviado.

- Por que pergunta?

- Ah, pressenti que o Houghton pode estar trabalhando em certos ângulos. Fez alguns comentários desagradáveis sobre a sua loja. Uma garota que trabalha lá que parece uma “dançarina do ventre”, aparentemente, e uma oriental “exótica” que ele mencio­nou. Também o facto de que o seu marido é escritor, e a senhora sabe o tipo de fantasias que as pessoas tecem a esse respeito. Hough­ton é um homem com uma imaginação muito viva, uma mentalidade tipicamente baixa classe média, e uma forte antipatia por qualquer coisa que venha da sua parte da cidade.

- Foi o que suspeitei. Ele veio falar comigo na loja antes de prender o Ian. E a “dançarina do ventre” sobre quem está tecendo fantasias é uma moça que tem a infelicidade de usar sutiã 48, bojo grande. E que vai à igreja duas vezes por semana.

Jessica não estava sorrindo. Mas Martin Schwartz estava.

- Ela parece um encanto.

Forçou um sorriso da parte dela, com algum esforço.

- E se o Sargento Houghton acha que parecemos ter dinheiro demais, também está enganado a esse respeito. Mas o que ele vê pode ser explicado pelo facto de que meus pais e meu irmão morre­ram há vários anos. Herdei o que eles tinham. Meu irmão não tinha mulher nem filhos, e não havia outros irmãos ou irmãs.

- Sei. - E depois de uma curta pausa, voltou a olhar para ela. - Deve ser solitária, sem nenhuma família.

Ela balançou a cabeça, silenciosamente, mantendo os olhos fitos na vista permitida pela janela de vidro.

- Tenho o Ian.

- Têm filhos?

Ela fez que não com a cabeça, e ele começou a compreender. O porquê de ela não estar zangada, de desejar tão desesperadamente que o marido voltasse para casa, sem uma palavra de crítica sobre as acusações. O porque da urgência quase assustadoras que pressentira na sua voz ao telefone, e agora novamente no seu escritório. O “Tenho o Ian” dizia tudo. Soube repentinamente que, no que dizia respeito a Jessica Clarke, isso era tudo que tinha.

- Suponho que não haja possibilidades de desistirem das acusações

- Nenhuma. Politicamente, não podem. A vítima nesse caso está fazendo a maior onda. Quer ver a caveira dele, se me perdoa a expressão. E acho que é razoável esperar que eles vão futricar ao máximo as suas vidas. Vão poder aguentar? - Jessie assentiu ele não lhe contou que Ian estava com medo de que ela não pudesse suportar a pressão. - Existe algo que eu deva saber? Alguma indis­crição da sua parte? Problemas com o casamento? Digamos algum “exotismo” sexual, orgias que tenham frequentado, ou coisas no género? - Ela sacudiu a cabeça de novo, com ar aborrecido. - Desculpe ter que perguntar, mas tudo virá à tona, de qualquer ma­neira. É melhor ser franca agora. E é claro que faremos a nossa própria investigação da moça. Tenho um homem muito bom. Sra. Clarke, vamos dar o nosso máximo pelo Ian.

Sorriu para ela de novo, e por um momento ela pensou que estava vivendo num sonho. Esse homem não era real, não estava lhe perguntando se já frequentara orgias, se usava tóxicos... Ian não estava realmente na cadeia... esse homem era amigo do pai dela e era tudo um grande jogo. Sentiu que ele a fitava, então, e teve que voltar à realidade. Pior ainda, à realidade de que Ian es­tava na cadeia.

- Podemos tirar Ian da cadeia antes do julgamento?

- Espero que sim. Mas isso provavelmente dependerá da se­nhora. Se as acusações fossem um pouco menos severas, talvez conseguíssemos libertá-lo sob a sua própria obrigação... em outras palavras, sem fiança a pagar. Mas ante acusações dessa natureza, estou quase certo de que o juiz insistirá em que se pague fiança, a despeito do facto de Ian não ter ficha criminal. E se ele sairá ou não vai depender da senhora poder pagar ou não a fiança. Estão falando em estipulá-la em 25.000 dólares. É uma fiança bem alta, e significa que a senhora terá que entregar 25.000 dólares em dinheiro aos cuidados da corte até que o julgamento esteja terminado, ou pagar 2.500 dólares a um fiador e dar-lhe garantia suficiente para cobrir a sua fiança. De um modo ou outro, é muito puxado. Mas vamos ver se conseguimos baixar isso para uma quantia mais ra­zoável.

Jessica soltou um profundo suspiro e distraídamente tirou os óculos escuros. O que ele viu então deixou-o chocado. Duas man­chas roxas e fundas jaziam sob os olhos dela, que estavam injectados e inchados e cheios de terror. Estava olhando para uma mulher com olhos de criança. Toda aquela pose era só fachada. Tinha tido tanta certeza de que ela era o “macho” da dupla, mas talvez sim, talvez não. Talvez fosse apenas o esteio, mas com o Ian como corda salva­-vidas. De alguma maneira, isso o fez sentir-se melhor em relação ao Ian. Ele estava em melhor forma do que ela, quanto a isso não havia dúvida.

Schwartz forçou-se a voltar o pensamento para a questão da fiança, enquanto os olhos de Jessica continuavam a fitá-lo. Parecia não se ter dado conta do quanto lhe havia revelado.

- Acha que será capaz de pagar a fiança, Sra. Clarke?

Ela olhou cansadamente nos olhos dele e deu ligeiramente de ombros.

- Suponho que possa oferecer o meu negócio como garantia. Mas sabia que não poderia pagar a taxa do fiador se entregasse ao Schwartz o cheque de 2.000 dólares que trazia na bolsa. E não tinha escolha. Precisavam de um advogado antes que pudessem co­meçar a se preocupar com fiadores. Teria que conseguir um empréstimo com o carro como garantia. Ou com... alguma coisa. Que diabo. Isso agora não importava. Nada importava. Abriria mão até da casa, se fosse preciso. Mas, e se... precisava saber. - E se não pudermos pagar toda a fiança imediatamente?

- Aí não existe crédito, Sra. Clarke. Ou a senhora paga toda a taxa do fiador e oferece uma garantia satisfatória, ou eles simplesmente não deixam o Ian sair da cadeia.

- Até quando?

- Depois do julgamento.

- Deus. Então não tenho mesmo muita escolha, não é? Em que sentido?

- Tenho que dar como garantia o que for preciso.

Ele assentiu, com pena dela. Raramente sentia alguma coisa se mexer no seu coração por um cliente, e se ela tivesse esbravejado, choramingado e chorado, tê-lo-ia aborrecido. Ao invés disso, ganhara o seu respeito - e a sua piedade. Nenhum deles merecia esse tipo de encrenca. Aquilo fez com que se perguntasse de novo qual seria a verdadeira história das acusações de estupro. Sentia nas suas entranhas que não tinha sido um estupro. Mas a questão era, poder-se-ia prová-lo?

Passou mais dez minutos explicando o processo da citação: uma simples aparição no tribunal para registrar as acusações, esta­belecer a fiança, e marcar uma data para a aparição seguinte do Ian no tribunal, numa audiência preliminar. A vítima não estaria presente na citação. Jessica ficou aliviada.

- A senhora tem um telefone, Sra. Clarke, onde possa me comunicar ainda hoje, se precisar?

Ela fez que sim, e rabiscou o telefone da boutique. Era a primeira vez que pensava em ir trabalhar.

- Estarei aí depois que for ver o Ian. Vou até lá para vê-lo, agora. Sr. Schwartz, por favor, chame-me de Jessica, ou Jessie. Parece que nós dois vamos nos ver um bocado.

- É, vamos, sim. E quero-a de volta ao meu escritório na sexta-feira. Quero a ambos, se conseguir libertar o Ian sob fiança.

O que” fez correr um arrepio pela espinha dela. - Não, é me­lhor na segunda-feira. Se você realmente conseguir tirá-lo de lá, vocês dois vão merecer um tempinho de folga. E depois nos poremos trabalhar para valer. Não temos muito tempo.

- Quanto tempo?

Era como perguntar a um médico quanto tempo se tinha de vida.

- Saberemos melhor depois da citação. Mas o julgamento será provavelmente daqui a uns dois meses.

- Antes do Natal?

Ela lembrou-lhe novamente uma criança grande.

- Antes do Natal. A não ser que consigamos um adiamento, por qualquer motivo. Mas o seu marido me disse hoje de manhã que quer acabar com isso o mais rápido possível para poderem deixar tudo para trás e esquecer.

Esquecer? pensou Jessica. Quem jamais esqueceria?

Ele se levantou e estendeu a mão, tirando os óculos por um momento.

- Jessica, tente relaxar. Deixe as preocupações comigo, por enquanto.

- Farei o possível. - Ela também se levantou, apertou a mão dele, que ficou mais uma vez impressionado com a sua altura. - Obrigada, Martin, por tudo. Algum recado para o Ian? - pergun­tou, parada no vão da porta.

- Diga-lhe que falei que ele é um homem de sorte.

Os olhos dele a aqueceram e ela sorriu ante o elogio e saiu porta afora.

 

Martin Schwartz sentou-se, girou a cadeira para ficar de frente para a janela, mordiscou a haste dos óculos e sacudiu a cabeça. Esse caso ia ser um abacaxi daqueles. Tinha certeza de que o Ian não tinha cometido estupro, mas os dois iam ser um problema e tanto no tribunal. Jovens, felizes, belos e ricos. O júri se ressentiria por ele andar chifrando uma mulher como a Jessie; as mulheres no tribunal detestariam Jessie; os homens antipatizariam com Ian por­que não acreditariam que escrever era trabalho. E eles pareciam ter dinheiro demais, não importa que a explicação da herança de Jessie fosse razoável. Simplesmente não estava gostando da cara desse caso. E a vítima era obviamente uma mulher estranha, tal­vez doente. A sua única esperança era descobrir coisas suficiente sobre ela para destruí-la. Era um jogo feio, mas a única chance de Ian.

 

Jessica parou no saguão para ligar para a boutique. A voz de Zina estava preocupada ao ouvi-la.

- Jessie, você está bem?

Finalmente haviam ligado para a casa dela às dez e meia da manhã, mas ela já havia saído.

- Estou bem. - Mas Zina não gostou do som da sua voz. - Tudo bem aí com vocês?

- Claro, tudo bem. Você vem trabalhar?

- Depois do almoço. Até logo mais.

Desligou antes que Zina pudesse fazer mais perguntas e foi tirar o Morgan da garagem. Ia para o Palácio da Justiça ver o Ian.

Estava 2.000 dólares mais pobre, mas agora se sentia melhor. Deixara o cheque num envelope azul com a secretária na recepção. A primeira parte dos honorários de Martin Schwartz. Cumprira a sua palavra. Agora tinham apenas 181 dólares na sua caderneta de poupança conjunta, mas o Ian tinha um advogado. Que preço iam pagar por uma trepada!

Tentou não pensar enquanto guiava para o outro lado da cidade. Não estava exactamente com raiva, mas confusa. O que acontecera? Quem era aquela mulher? Por que estava fazendo isso com eles?

O que tinha contra o Ian? Depois de falar com Martin Jessie es­tava mais certa do que nunca de que Ian não tinha feito nada de errado... excepto escolher a mulher errada para uma tarde de pra­zer. Ah, Jesus, e como escolhera a mulher errada!

Achou uma vaga na Bryant Street, oposta a uma longa fileira de escritórios de fiadores, iluminados a gás neon. Descobriu-se pen­sando com qual deles estaria barganhando, amanhã à tarde. Todos pareciam tão vulgares; não gostaria de entrar num daqueles lugares nem para fugir do frio, que dirá para fazer negócios. Entrou rapida­mente no Palácio da Justiça onde um detector de metal a vistoriou, enquanto um guarda revistava a sua bolsa. Teve que parar para obter um passe para a cadeia, mostrar a carteira de motorista e Identificar-se como mulher de Ian. Havia muita gente formando fila, mas esta movia-se rapidamente.

Era uma parte da humanidade desalinhada, amarfanhada, e ela estava deslocada, de modo impressionante. A sua altura destacava-a do resto das mulheres e da maioria dos homens, e o costumo azul-marinho parecia absurdo. Havia mulheres brancas de calças imitan­do couro, usando jaquetas de pele de leopardo sintética, cabelos bolo-de-noiva e sandálias brancas tipo chinelo. Homens negros ves­tindo cetim castanho-avermelhado, e garotas negras usando o que pareciam ser camisolas ou pijamas de cetim barato. Era um grupo interessante, mas para um filme, não para a vida. Não pode deixar de pensar se a mulher com quem Ian dormira se parecia com uma dessas. Esperava que não... não que isso importasse, a esta altura. Os joelhos dela já estavam trémulos e não sabia o que diria para ele. O que podia dizer?

Sua mão tremia enquanto apertava o botão do elevador para o sexto andar. Sentia uma sensação alternada de descida e subida na barriga, enquanto se perguntava como seria a cadeia. Vira-a rapida­mente daquela vez em que pagara as multas, mas nunca houve tempo para uma visita, graças a Deus. Simplesmente descera e apanhara-o. Desta vez era tudo tão diferente.

O elevador deixou-a no sexto andar, e só o que sabia era que queria ver o Ian. Subitamente soube que poderia rastejar por entre qualquer quantidade de medo e raiva, por cima de mil cafetões ves­tidos de cetim, só para chegar até o Ian.

Os visitantes esperavam em fila indiana diante de uma porta do forro e um guarda os deixava entrar na sala .que ficava do outro lado, em grupos de cinco ou seis. Saiam por outra porta na extremi­dade da porta da sala. Mas, para Jessie, parecia que estavam sendo engolidos para nunca mais serem vistos.

Um momento mais tarde, Jessica estava lá dentro. A sala era quente e abafada, sem janelas e iluminada com luz fluorescente. Havia longas vidraças nas paredes interiores com pequenas prateleiras de cada lado, contendo telefones. Deu-se conta então que o veria através de um vidro. Não tinha pensado nisso. O que se podia dizer ao telefone?

O rosto dele apareceu num dos vidros mais longínquos enquanto ela se perguntava a qual deles devia se dirigir, e ficou parado ali, olhando para ela enquanto Jessie sentia as lágrimas queimando-lhe os olhos. Não se podia deixar ... não a... não podia... não podia! Dirigiu-se devagar para o telefone, sentindo um torno apertar-lhe o coração e as pernas virarem palha, mas estava cami­nhando, um pé depois do outro, e ele não podia ver suas mãos tremendo enquanto ela acenava, hesitante. E então, subitamente, estava frente a frente com ele, e segurava o telefone. Observaram-se brevemente, calados. E então ele falou primeiro.

- Você está bem?

- Estou. Como vai você?

Ficou calado de novo por um momento, depois balançou a cabeça com um sorriso pequeno e retorcido.

- Fantástico. - Mas o sorriso desapareceu rapidamente. - Ah, querida, sinto tanto fazer você passar por isso. É tudo tão maluco, tão... Acho que só o que quero lhe dizer, Jess, é que a amo e que não sei como toda merda aconteceu. Eu não tinha Certeza de como você reagiria.

- O que imaginou? Que eu fugiria? Alguma vez fiz isso?

Parecia tão magoada que ele teve vontade de desviar os olhos. Era difícil olhar para ela. Muito difícil.

- Não, mas este não é exactamente um problema corriqueiro como um saque a descoberto de 30 dólares no banco. Quero dizer, isto é... Jesus, o que posso dizer, Jessie?

Ela lhe deu um sorrizinho, em resposta.

- Já disse. E eu o amo também. É só o que importa. Vamos resolver tudo isso.

- É... mas... Jess, não está parecendo que vai ser fácil. A mulher está mantendo as acusações e esse cara, o Houghton, age como se achasse que está com o estuprador local nas mãos.

- Adorável, não é?

- Ele falou com você?

Ian parecia surpreso.

- Pouco antes de ir à nossa casa ver você.

Ian empalideceu.

- Ele lhe contou do que se tratava? - Ela sacudiu a cabeça e desviou os olhos. - Ah, Jess... que coisa pavorosa para fazer você suportar. Nem posso acreditar.

- Nem eu. Mas vamos sobreviver. - Deu-lhe o seu melhor sorriso de garota corajosa. - O que pensa do Martin?

- Schwartz? Gosto dele. Mas isso vai lhe custar uma nota violenta, não vai? - Jessie tentou parecer neutra, e começou a dizer alguma coisa, mas ele a interrompeu. - Quanto?

Havia uma expressão momentânea de amargura nos seus olhos.

- Isso não é importante.

- Talvez não para você, Jessie, mas é para mim. Quanto?

- Dois mil agora, e mais cinco se for a julgamento.

Não havia como driblar aquela expressão nos olhos dele. Tinha que contar-lhe.

- Está brincando!

Ela sacudiu a cabeça, como resposta.

- O homem com quem falei antes dele queria 15 mil, em espécie, até o final desta semana.

- Santo Deus, Jessica... é uma loucura. Mas eu lhe devol­verei o dinheiro do Schwartz.

- Você está me chateando, querido

- Eu a amo, Jess.

Trocaram um olhar longo e terno e Jessica sentiu novamente as brasas quentes por trás dos olhos.

- Por que não ligou para mim ontem à noite?

Não contou para ele que ficara deitada no chão a noite toda, esperando, assustada, quase histérica, mas cansada demais para se mexer. Sentira como se o corpo estivesse paralisado enquanto a cabeça corria a mil por hora.

- Como poderia ligar para você, Jess? O que poderia dizer?

- Que me ama... - Acho que estava em estado de choque. Ficava ali sentado, atónito. Não conseguia compreender.

Então por que trepou com ela, merda? Mas o lampejo de raiva deixou os seus olhos de novo tão logo olhou para ele. Estava tão infeliz quanto ela. Mais ainda.

- Por que será que ela o acusou de... de...

- Estupro? - Falou como se fosse uma sentença de morte. - Não sei. Quem sabe ela é doente ou maluca, ou está puta da vida com alguém, ou quem sabe queria apenas dinheiro. E eu lá vou saber? Fui um idiota de fazer aquilo, de qualquer maneira. Jessie, eu... - Desviou o olhar e depois voltou a fitá-la, com lágri­mas aflorando nos cantos dos olhos. - Como vamos viver com isso? Como você vai viver com isso, Jessie? Sem me odiar? E... simples­mente não vejo...

- Pare com isso! - Cuspiu as palavras no fone, num sussurro.

- Pare já com isso! Vamos superar essa coisa e ela vai acabar e ficar resolvida e nunca mais vamos ter que pensar nisso de novo.

- Mas você não vai? Sinceramente, Jessie, você não vai? Cada vez que olhar para mim, não vai me odiar um pouco por ela, e pelo dinheiro que isso lhe custou e... merda.

Correu as mãos pelo cabelo e meteu a mão no bolso para pegar um cigarro. Jessie fitava-o, e subitamente reparou nas suas calças. Estava usando calças de pijama de hospital de algodão branco.

- Santo Deus, o que houve com as suas calças? Não lhe deram tempo para se vestir?

Os olhos dela se arregalaram enquanto visualizava o Sargento Houghton a arrastá-lo de casa de bunda de fora e algemas.

- Adoráveis, não? Levaram minhas calças para o laboratório para fazer o teste de esperma. - Era tudo de tanto mau gosto, tão feio, tão... - A propósito, vou precisar de um par de calças para o tribunal, amanhã de manhã. - E então ele ficou pensativo por um momento e deu uma longa baforada no cigarro. - Não dá para entender. Sabe, se ela quisesse dinheiro, tudo o que tinha a fazer era telefonar e fazer chantagem comigo. Disse a ela que era casado.

Que amor... e então, sem que pudesse imaginar o motivo, olhou para Ian, para o seu pijama amarrotado de algodão branco, para o rosto juvenil e o cabelo louro despenteado, para aquela gente de hospício ao seu redor, e começou a rir.

- Você está bem?

Ficou subitamente assustado. E se ela ficasse histérica? Mas Não parecia histérica, parecia genuinamente divertida.

- Sabe de uma coisa louca? Estou bem. E amo você, e isso é ridículo, porra, portanto quer fazer o favor de vir para casa... e sabe o que mais? Você fica uma graça de pijama.

Era a mesma risada que ele escutara um milhão de vezes às duas da manhã, quando ela implicava com ele por estar andando pela casa lendo o seu trabalho, nu em pêlo, e com um lápis atrás de cada orelha. Era a risada de jogar água um no outro sob o chuveiro, de fazer cócegas nele quando entrava na cama. Era Jessie, e isso o fez sorrir subitamente, como não sorrira desde o começo desse pesadelo.

- Dona, a senhora é absolutamente pinel, mas eu a adoro. Por favor, quer me tirar desse lugar de bosta para eu poder ir para casa e...

Parou de chofre e ficou subitamente pálido.

- E me estuprar? Por que não?

E então eles sorriram de novo, mas discretamente. Ela agora es­tava bem. Tinha o Ian bem à sua frente, e sabia que era amada, estava segura e protegida. Com o Ian subitamente desaparecido e aquele silêncio incrível, era como se ele estivesse morto. Mas ele não estava morto. Estava vivo. Sempre estaria vivo, e era todo dela. Subitamente teve vontade de dançar, ali na cadeia, no meio de cafetões e ladrões, teve vontade de dançar. Tinha o Ian de volta.

- Sr. Clarke, como é que eu o amo tanto?

- Porque você é retardada mental, mas eu a amo desse jeito. Ei, senhora, quer ficar séria por um instante?

O rosto dele demonstrava que falava a sério, mas Jessie ainda exibia o riso nos olhos cansados e injectados.

- O que é?

- Não estava brincando quando falei que ia lhe pagar. Vou pagar.

- Não se preocupe com isso.

- Mas eu vou. Está na hora de eu voltar a pegar algum tipo de emprego, de qualquer maneira. Não funciona desse jeito, Jessie, e você também está sabendo.

- Funciona, sim, O que quer dizer com “não funciona”?

Parecia assustada, de novo.

- Quero dizer que não gosto de ser sustentado, mesmo que seja para o bem da minha carreira de escritor. É péssimo para o meu ego, e pior ainda para o nosso casamento.

- Babaquice.

- Não é babaquice. Falo a sério. Mas agora não é o lugar ou a hora de estarmos falando nisso. Só quero que saiba, contudo, que seja qual for a quantia que gastar com isso, a receberá de volta. Fui claro? - Ela fez um ar evasivo, e a voz de Ian ficou mais alta no seu ouvido. - Não estou brincando. Não me sacaneie com isso. Você não vai ter que pagar.

- Tá legal.

Olhou para ele significativamente, e nesse momento um guarda bateu-lhe no ombro. A visita tinha acabado. E ainda tinham tanto a se dizer.

- Vá com calma, querida, vejo-a amanhã no tribunal.

Ele percebera a expressão angustiada no seu rosto.

- Pode ligar para mim hoje à noite?

Ele fez que não com a cabeça.

- Agora não vão me deixar.

- Ah.

Mas eu preciso ouvir ....... preciso de você, Ian... eu...

- Tenha uma boa noite de sono antes do negócio no tribunal, amanhã. Promete? - Ela balançou a cabeça, parecendo uma criança, e ele sorriu para ela. - Eu a amo tanto, Jess. Por favor, cuide-se, por mim.

Ela balançou a cabeça de novo.

- E você também? Ian... eu... morreria sem você.

- Não pense assim. Agora, vá, vejo-a amanhã. Jess... obrigado. Por tudo.

- Eu o amo.

- Eu também a amo.

Com as últimas palavras, os telefones subitamente emudeceram nas suas mãos, e ela acenou para ele enquanto acompanhava o bando de visitantes para dentro do elevador. Estava sozinha de novo com eles. Ian se fora. Mas agora era diferente. Sentia-se plena da fisionomia dele, da sua voz, da cor do seu cabelo e até do cheiro da sua pele. Ele agora estava vivido de novo. Ainda estava. com ela.

 

Tanto Zina quanto Katsuko estavam ocupadas com fregueses quando Jessica entrou, e ela teve um momento para se recompor no escri­tório antes de juntar-se a elas. Era uma loucura, na verdade. Adivinhem onde estive? Visitando o Ian na cadeia. Da prisão municipal à Lady J num rápido salto. Loucura.

As moças estavam servindo duas mulheres que queriam vesti­do. para PaIm Springs. Elas tinham excesso de peso, eram exage­radas no vestir, mandonas e não muito simpáticas. E Jessica estava achando quase impossível trabalhar. Ficava pensando no Ian, na cadeia, em Martin Schwartz, no Inspector Houghton. Os olhos do inspector pareciam persegui-la.

- E o que o seu marido faz? - perguntou-lhe uma das mulheres, enquanto examinava um mostruário de saias de veludo. Eram duma bela cor bordo, com debruns em cetim preto. Cópias de St Laurent.

- Meu marido? Ele estupra... quero dizer, escreve!

As mulheres acharam aquilo hilariante, e até Zina e Kat tiveram que rir. Jessica riu por entre as lágrimas.

- O meu marido também era assim... até que começou a jogar golfe.

A segunda mulher achou o intervalo encantador, e decidiu-se por duas saias e uma blusa, enquanto a primeira voltava a exa­minar as calças compridas.

Foi um longo dia, mas evitou que tivesse que conversar com Zina e Kat. Eram quase cinco horas quando se sentaram para tomar um café.

- Jess, está tudo bem agora?

- Muito melhor. Tivemos alguns problemas, mas tudo estará resolvido até amanhã.

Pelo menos então ele estaria em casa, e poderiam resolver tudo juntos. Contanto que ele voltasse para casa!

- Estávamos preocupadas às pampas com você. Que bom que tudo está bem.

Zina parecia satisfeita, mas Katsuko continuava a perscrutar os olhos de Jessie. Alguma coisa não cheirava bem.

- Você está muito bem, Jessica Clarke.

- Lisonjas, lisonjas. É só esse costume severo.

Olhou ao seu redor, perguntando-se se devia vestir alguma coisa da linha de outono da loja apenas para levantar o ânimo. Mas já era tarde e ela estava cansada e não tinha a energia para entrar ou sair de qualquer coisa. Dali a uns dez ou 15 minutos Zina estaria trancando as portas da loja.

Jessica se levantou, se espreguiçou e sentiu dor nas costas e no pescoço devido à longa noite maluca que passara no chão. Senão falar na tensão do dia. Estava arqueando as costas cuidadosamente, tentando aliviar as cãibras, quando uma mulher entrou na boutique Jessie, Kat e Zina entreolharam-se rapidamente, decidindo dispor-se a servi-la, mas foi Jessie quem se virou para a mulher com um sorriso. A mulher parecia simpática, e fazia bem a Jessie com as clientes. Só assim não pensava em si mesma.

- Pois não?

- Só quero dar uma olhadinha. Uma amiga me falou da boutique, e vocês têm umas coisas lindas na vitrina.

- Obrigada. Chame se precisar de ajuda.

Jessica e a mulher trocaram um sorriso sereno, e a cliente começou a olhar as roupas esporte. Era elegante, parecia ter cerca de 35 anos, talvez até 40, mas era difícil dizer. Usava um terninho preto simples, uma blusa de linho creme, um lenço no pescoço, e uma boa quantidade de jóias de ouro obviamente caras - uma bela pulseira, uma corrente, vários anéis de aparência muito sólida - e um impressionante par de brincos de ónix e diamantes que chamara a atenção de Jessie quando ela entrara na boutique. A mulher significava dinheiro. Mas o rosto dela demonstrava algo mais... como se curtisse as coisas bonitas que estava usando, mas compreendesse que havia outras coisas na sua vida que importavam mais.

Jessie observava-a enquanto ia de porta-cabides em porta-cabides. Parecia contente, feliz. E tinha uma espécie de graça que tornava agradável olhá-la. O rosto era jovem, o cabelo louro-acizentado mechado de grisalho. De uma maneira estranha, ela lembrava Jessie uma gata siamesa, especialmente os olhos de porcelana azul-pálido. Havia algo nela que fazia a gente querer saber mais.

- Desejava alguma coisa em especial? Temos algumas novas lá atrás.

A mulher sorriu para Jessie e deu de ombros.

- Deviam me dar um tiro pela minha extravagância, quanto àquele casaco de camurça ali? Tem tamanho 40?

Tinha um ar de culpa, como uma criancinha que estivesse comprando mais chiclete de bola do que devia, mas também parecia estar se divertindo. E também parecia poder pagar um montão de chiclete de bola, ou outra coisa qualquer.

- Vou dar uma olhada.

Jessie desapareceu na sala de estoque, perguntando-se se teriam mesmo aquele casaco em tamanho menor.

Não tinham. Mas tinham um parecido que custava 40 dólares a mais. Jessica retirou a etiqueta com o preço e levou o casaco para a mulher. Era uma cor quente de canela, com um corte suave e ajustado. Na verdade era um casaco mais bonito que o primeiro e a mulher reparou nisso imediatamente.

- Droga. Estava torcendo para detestá-lo.

- É um casaco difícil de detestar. E fica bem na senhora.

Ficaram vendo a mulher rodopiar graciosamente no casaco de camurça marrom. Ficava-lhe estupendamente bem, e ela sabia disso. Era um prazer ver roupas em alguém assim. Afinal, ela podia estar usando o tapete, e ficaria fabulosa.

- Quanto custa?

- Trezentos e dez.

Zina e Kat trocaram um olhar indagador, mas não eram bobas de questionar o preço em voz alta. Jessie sempre tinha um método para a sua loucura, e geralmente tinha razão. Quem sabe esta era uma pessoa especial que Jessie buscava atrair para a loja. Ela certamente tinha o jeito de alguém que se devia reconhecer. E a mulher não pareceu impressionada com o preço do casaco.

- Tem as calças combinando?

- Tinha, mas já foram vendidas.

- Que pena. - Mas ela deu um jeito de reunir descuidada­mente três suéteres, uma blusa e uma saia de camurça para com­binar com o casaco antes de concluir que já fizera estragos bastante por um dia. Foi uma bela venda para a loja, o uma venda fácil. Pegou o talão de cheques, num invólucro de camurça verde-esmeralda, e olhou para Jessie com um sorriso. - E se eu aparecer aqui em menos de uma semana, pode me jogar porta afora.

- Preciso? - brincou Jessie, com ar de pesar simulado.

- É uma ordem, não um pedido!

- Que pena.

as duas mulheres acharam graça e a compradora preencheu o cheque. Era de bem mais de 500 dólares. Mas ela não parecia preocupada. O nome dela era Astrid Bonner, e o seu endereço era na Vallejo, a apenas um quarteirão da casa de Jessie.

- Somos quase vizinhas, Sra. Bonner.

Jessie deu-lhe o seu endereço, e Astrid Bonner ergueu os olhos com um sorriso.

- Conheço a casa! É aquela azulzinha e branca, aposto, com todas aquelas flores fabulosas na frente!

- Dá para ver a gente num raio de quilómetros?

- Não se desculpe; vocês fazem maravilhas por aquela área! E você tem um carrinho esporte vermelho?

Jessie apontou pela janela.

- Eu mesma. - Elas riram juntas e Zina trancou discretamen­te as portas. Eram quinze para as seis. - Quer tomar alguma coisa?

Guardavam uma garrafa de Johnnie Walker nos fundos. Algu­mas das freguesas ficavam até mais tarde batendo papo. Era um outro toque simpático.

- Adoraria, mas não vou aceitar. Você provavelmente está querendo ir para casa.

Jessie sorriu e Katsuko colocou as compras da Sra. Bonner em duas grandes e lustrosas caixas marrons cheias de papel fino ama­relo e laranja e amarrou-as com fita xadrez.

- A loja é sua? - Jessie fez que sim. - Tem coisas Lindas. E eu precisava daquele casaco como preciso de outro buraco na cabeça. Mas... não tenho força de vontade. É o meu maior problema.

- Às vezes uma extravagância faz bem à alma.

Astrid Bonner balançou a cabeça suavemente, ante o comentá­rio, e as duas mulheres trocaram um longo olhar. Jessie sentia-se muito confortável com ela. Lamentou que Astrid Bonner não qui­sesse ficar para tomar o drinque. Jessie não tinha pressa de ir para casa, e gostaria de poder conversar com ela. Ficou imaginando qual das casas no quarteirão seguinte seria a dela. E então teve uma idéia.

- Posso dar-lhe uma carona até em casa? Já estou de saída. Aquilo também a pouparia das perguntas que Zina e Kat po­diam ter guardado para despejar em cima dela depois do expediente. Ainda não tinha forças para isso. E Astrid Bonner lhe daria um salvo-conduto. Ela ainda não lhes contara que não viria trabalhar na manhã seguinte, quando compareceria à citação.

- Uma carona seria fantástico. Obrigada. Geralmente vou a pé, estando assim tão perto de casa, mas com essas duas caixas... maravilha!

Ela sorriu e pareceu ainda mais moça. Jessie ficou imaginando quantos anos teria realmente.

Jessica pegou o casaco, a bolsa e acenou para as outras duas.

- Boa noite, senhoras. Vejo-as amanhã, a qualquer hora. Não virei trabalhar de manhã.

As quatro sorriram entre si, Jessie destrancou a porta para Astrid, Zina trancou-a de novo às suas costas, e as duas se puseram a caminho. Nada de perguntas, nem de respostas, nem de mentiras.

Jessie ficou enormemente aliviada. Não se tinha dado conta do quan­to estivera temendo isso, a tarde toda.

Destrancou a porta do carro e Astrid entrou, as caixas empi­lhadas no colo, e lá se foram para casa.

- A loja deve mantê-la ocupada.

- É verdade, mas eu adoro. A propósito, sou Jessica Clarke. Acabo de perceber que não tinha me apresentado. Desculpe. - Tro­caram outro sorriso e a brisa nocturna farfalhou pelo cabelo de As­trid, recém-saída do cabeleireiro. - Quer que suba a capota?

- Claro que não. - Riu de repente e olhou para Jessie. - Não sou assim tão velha e cheia de história, pelo amor de Deus. E deixe que lhe diga, tenho inveja da sua loja: Eu trabalhava numa revista, em Nova York. Isso foi há dez anos, e ainda sinto falta de moda, de qualquer espécie.

- Nós também viemos de Nova York. Há seis anos. O que a trouxe para cá?

- Meu marido. Bem, na verdade foi uma viagem de negócios. Depois fiquei conhecendo o meu marido aqui. e nunca mais voltei.

­Pareceu satisfeita ante a lembrança.

- Nunca? Eles ainda estão esperando que volte?

As duas mulheres riram em meio ao crepúsculo suave.

- Não, voltei durante três semanas. Dei aviso prévio, e fim do papo. Eu era o tipo de mulher de carreira, jamais ia me casar, toda essa história... e então conheci o Tom. E pronto, fim da carreira.

- Alguma vez se arrependeu?

Era uma coisa estupidamente pessoal de se perguntar, mas ela parecia convidar as pessoas a ficarem à vontade com ela. E Jessie ficou.

- Não. Nunca. Tom mudou tudo. Jessica teve vontade de dizer “que coisa horrível”, e depois se perguntou por quê. Afinal de contas, Ian também mudara as coisas para ela, mas não daquele jeito. Não lhe custara uma carreira, não a forçara a sair de Nova York. Ela quisera se mudar para San Francisco, mas jamais conce­beria desistir da Lady J. - Não, nunca me arrependi nem por um momento. Tom era um homem notável. Faleceu no ano passado.

- Ah, sinto muito. A senhora tem filhos?

Astrid riu e sacudiu a cabeça.

- Não. Tom estava com 58 anos quando casei com ele. Tive­mos dez anos esplêndidos... sozinhos. Foi como uma lua-de-mel.

Jessie lembrou-se da sua vida com Ian, e sorriu.

- Nós pensamos mais ou menos da mesma forma. Os filhos interferem com tanta coisa.

- Não é o que a gente quer. Mas nós dois achávamos que éramos velhos demais. Eu estava com 32 anos quando casei com ele, e não era do tipo maternal. Nunca nos arrependemos. Excepto que a vida é um bocado quieta, agora.

Então Astrid tinha 42 anos. Jessie ficou surpresa.

- Por que não arruma um emprego? - falou.

- E fazendo o que? Trabalhei para o Vogue, mas por aqui não há nada igual. E nem o Vogue me quereria mais, depois de dez anos. A gente fica enferrujada, e estou enferrujadíssima. E além do mais, não tenho a menor intenção de voltar para Nova York. jamais.

- Arranje um emprego num campo relacionado à moda.

- Como por exemplo?

- Uma boutique.

- O que nos traz de volta ao começo, minha querida. Estou verde de inveja da sua boutique.

- Não fique invejosa demais. Tem seus problemas.

- E suas recompensas, aposto. Vocês voltam com frequência a Nova York?

- Cheguei de lá faz dois dias.

E ontem meu marido foi preso por estupro. A frase estava na ponta da sua língua, mas Astrid teria ficado horrorizada. Qualquer pessoa ficaria. Soltou um profundo suspiro, esquecendo por um mo­mento que não estava só.

- A viagem foi assim tão ruim? - Astrid perguntou, sorrindo.

- Que viagem?

- A viagem para Nova York. Você falou que tinha voltado de Nova York faz dois dias, e depois soltou um suspiro como se a sua melhor amiga tivesse morrido.

- Desculpe. Tive um longo dia.

Tentou sorrir, mas de repente tudo ficou pesado de novo; o pe­sadelo voltara para tomar conta dela. Houve uma pausa momen­tânea, e então Astrid olhou para ela por cima das caixas marrons no seu colo.

- Algum problema?

Era um olhar profundo e perscrutador, difícil de ser respondido com uma mentira.

- Nada que não possa ser resolvido em breve.

- Posso ajudar em alguma coisa?

Que mulher simpática, eram estranhas completas, e estava perguntando a Jessie sobre os seus problemas. Jessie sorriu e diminuiu a marcha do carro na esquina.

- Não, tudo está bem, juro. E a senhora já ajudou. Terminou o meu dia com uma bela dose de luz do sol. Bem, qual é a casa?

Astrid sorriu e apontou.

- Aquela. E você foi um anjo em me trazer.

Era uma sóbria mansão de tijolos com persianas pretas e mol­duras brancas e sebes bem-comportadas à volta. Jessie teve von­tade de assobiar. Ela e Ian tinham reparado na casa com frequência e imaginado quem vivia ali. Desconfiavam que os donos viajavam muito, porque a casa frequentemente parecia estar fechada.

- Sra. Bonner, gostaria de retribuir-lhe o elogio feito à minha casa. Há anos que invejamos a sua.

- Estou lisonjeada. E me chame de Astrid. Mas a sua casa parece tão mais divertida, Jessica. Esta é tão... bem... - Soltou uma risadinha. - De gente grande, imagino que seja a expressão certa. Tom já a possuía quando nos casamos, e tinha umas coisas muito bonitas. Você precisa vir tomar café comigo um dia desses. Ou um drinque.

- Adoraria.

- Então, que tal agora?

- Eu... adoraria, mas para falar a verdade estou exausta. Tem sido uma roda-viva desde que cheguei, e me esfalfei à beça em Nova York. Posso deixar o convite para outro dia?

- Pois não. Obrigada de novo pela carona.

Ela saiu do carro e acenou enquanto subia os degraus que a levavam à casa. Jessie acenou também. Puxa, mas que casa! E es­tava satisfeita em ter conhecido Astrid Bonner. Uma mulher en­cantadora.

Jessica entrou com o carro na sua casa, pensando em Astrid e no que fora dito. Parecia que tinha desistido de muita coisa pelo marido. E parecia contente com isso.

Jessie entrou na casa às escuras, tirou os sapatos e sentou no sofá sem acender as luzes. Estava recordando o dia. Tinha sido Incrível. Tudo, desde o encontro com Martin Schwartz, até esvaziar a. suas economias nos bolsos dele, até visitar Ian na cadeia, até as amenidades civilizadas com Astrid Bonner..... quando a vida ficaria real de novo?

Pensou em preparar um drinque, mas não conseguia arranjar a energia para se mexer. A sua cabeça corria a mil por hora, mas o corpo se transformara em pedra. A maquinaria simplesmente não mexia mais. Mas a sua cabeça... ficava pensando na visita ao Ian. Estava em casa de novo. Sozinha, quando ele sempre esperava por ela à noite. A casa estava tão insuportavel­mente quieta... do jeito que o apartamento de Jake estivera quando da voltara a ele... depois da sua morte.... por que ficava pensando no Jake agora? Por que ficava comparando-o ao Ian? Ian não es­tava morto. E estaria em casa amanhã... não estaria? Estaria. Mas e se... ela não podia parar. A campainha da porta tocou e ela nem escutou, até que finalmente o barulho insistente arrancou a sua atenção do carrossel dos seus pensamentos. Precisou recorrer à sua última gota de energia para levantar e ir atender à porta.

Ficou parada de meias na escuridão do corredor e falou através da porta. Estava cansada demais até para adivinhar quem era.

- Quem é?

A voz mal penetrou através do lado oposto. Mas o homem a ouviu. Olhou por cima do ombro para o companheiro e fez um gesto de cabeça. O segundo homem caminhou devagar de volta ao carro verde.

- Polícia.

O coração de Jessie disparou violentamente ao ouvir a palavra, e se apoiou trémula contra, a parede. E agora?

- Sim?

- É o Inspector Houghton. Quero falar com a Sra. Clarke.

Mas já sabia que era ela. E, do outro lado da porta, Jessica sentiu-se tentada a dizer-lhe que a Sra. Clarke não estava em casa. Mas o carro dela estava bem visível na frente, e ele ficaria ali, esperando. Não havia mais como escapar deles. Eram donos da vida dela, e do Ian.

Jessie destrancou a porta lentamente e ficou parada no corredor escuro. Mesmo sem sapatos, era uns três centímetros mais alta do que o inspector. Eles se fitaram nos olhos por um longo momento. Todo o ódio que não podia sentir pela traição de Ian ela derramou sobre o Inspector Houghton. Ele era fácil de se odiar.

- Boa noite. Posso entrar?

Jessica afastou-se para o lado, acendeu as luzes, e depois precedeu-o­ na direcção da sala de visitas. Ficou parada no centro da sala, de frente para ele, e não o convidou a sentar-se.

- E então, Inspector? Agora é o que?

O tom de voz dela nada escondia.

- Pensei que podíamos ter uma conversinha.

- É? isso é comum?

Estava com medo, mas com mais medo ainda de demonstrá-lo. E se ele quisesse estuprá-la? Um estupro real, desta vez. E se... é Deus... onde estava o Ian?

- É perfeitamente comum, Sra. Clarke.

Pareciam rodear-se com os olhos, inimigos de nascença. Uma jibóia e a sua presa. Ela não gostava do seu papel. Tinha medo dele, mas não ia deixar transparecer. Ele a achava linda, mas também não deixava transparecer. Ele odiava o Ian por vários motivos. Isso era evidente.

- Incomoda-se se eu me sentar?

Sim. Muitíssimo.

- Absolutamente.

Jessie indicou-lhe o sofá e sentou na sua poltrona do costume.

- Linda casa a sua, Sra. Clarke. Mora aqui há muito tempo?

Ele olhou ao seu redor, parecendo captar todos os detalhes, «quanto ela fantasiava mandar que ele fosse se foder e arrancar-lhe os olhos com as unhas. Mas agora sabia que aquilo não era real. Você pode odiar os caras, mas não deixa a sua hostilidade transparente. Ela era inocente, Ian era inocente, mas estava apavorada.

- Inspector, este é um interrogatório formal ou uma visita so­cial? Nosso advogado me disse hoje que não preciso falar com ninguém a não ser que ele esteja presente.

Ela estava observando a perna da calça marrom e a meia castanha, perguntando-se se ele ia tentar estuprá-la. Usava uma gravata lustrosa cor de mostarda. Ela estava começando a sentir-se nauseada, e subitamente entrou em pânico, perguntando-se se tomara pílula pela manhã. E então subitamente olhou para ele e soube que o mataria se ele tentasse. Teria que fazê-lo.

- Não, a senhora não precisa falar com ninguém a não ser que seu advogado esteja presente, Sra. Clarke, mas tenho algumas perguntas, e achei que seria mais agradável para a senhora respondê-las.

Grande favor!

- Acho que prefiro respondê-las no tribunal.

Mas ambos sabiam que ela não tinha que responder nada no tribunal. Ela era a mulher do réu. Legalmente, não tinha que teste­munhar.

- Como queira. - Levantou-se para ir embora, depois parou junto ao bar. - A senhora também bebe?

A pergunta deixou-a furiosa.

- Não bebo, e nem o meu marido.

- É, foi o que pensei. Ele alega que estava de porre quando levou a vítima para o hotel. Mas eu imaginei que estivesse mentindo. Não me parece um beberrão.

O coração de Jessie afundou dentro do peito e seus olhos ficaram cheios de ódio. Aquele filho da puta estava tentando enredá-la.

- Inspector, estou lhe pedindo que saia. Agora.

Houghton então virou-se para ela e perscrutou-lhe os olhos com ar de bondade fingida. Mas os seus próprios olhos reflectiam a raiva de Jessie. A sua voz mal era audível, enquanto ficava parado a 30 centímetros dela.

- O que você está fazendo com um vagabundo molenga da­queles?

- Saia da minha casa!

A voz dela era tão baixa quanto a dele e todo o seu corpo tremia.

- O que vai fazer quando ele for em cana? Arrumar outro namorado gigolô feito ele? Pode crer, irmã, não se preocupe. eles estão por aí, aos montes.

- Saia daqui!

As palavras eram como dois murros na cara dele, que deu meia-volta e caminhou até a porta. Parou por um momento e voltou a olhar para ela.

- Tchau.

A porta fechou-se às suas costas e pela primeira vez na vida Jessie teve vontade de matar.

Ele voltou às dez da noite, com dois policiais à paisana e um mandado de busca, para procurar armas e tóxicos.

Desta feita Houghton estava sério e estritamente profissional, e evitou o olhar dela durante a hora inteira que passaram lá, remexendo em armários e gavetas, desdobrando a roupa de baixo de Jessica, jogando as suas bolsas sobre a cama, esvaziando caixas de sabão em pó e espalhando as roupas e os papéis de Ian por toda a sala de visitas.

Não encontraram nada, e Jessie nunca falou disso ao Ian. Nun­ca. Ela levou quatro horas e meia para arrumar tudo e mais duas para parar de soluçar. Os seus temores tinham sido justificados. Eles a haviam violentado. Não do modo como temera, mas do outro. Fotos da mão dela jaziam espalhadas em cima da escriva­ninha, as suas pílulas anticoncepcionais estavam jogadas na cozinha, metade delas levadas pelos policiais para serem testadas no laboratório. A sua vida inteira estava espalhada por toda a casa. Agora era a sua guerra, também. E estava pronta para lutar. Aquela noite modificara tudo. Agora eles eram o inimigo dela, também, não ape­nas do Ian. E pela primeira vez em sete anos, Ian não estava lá para defendê-la. Não apenas isso, mas fora ele que a colocara cara a cara com o inimigo. Ele arranjara esse problema para ela, além de para ele. E estava indefesa. Era culpa do Ian. Agora ele era o inimigo, também.

 

Jessica esperou com Martin Schwartz nas filas de trás do tribunal até depois das dez. O rol das causas era imenso, e a corte estava atra­sada. Jessie achou muito enfadonho os processos a que assistiu. A maioria das acusações era enunciada por número, as fianças eram estipuladas arbitrariamente, e entravam caras novas. Ian finalmente chegou por uma porta que vinha da cadeia, ladeado por dois guar­das.

Martin se dirigiu para a frente da sala e, misericordiosamente, as acusações foram enunciadas por número, não por descrição. Per­guntaram ao Ian se entendia do que estava sendo acusado, e ele respondeu, solene e afirmativamente.

A fiança foi estipulada em 25.000 dólares. Martin pediu para que fosse reduzida e o juiz ficou pensando no assunto enquanto uma assistente do promotor se pós de pé e objectou. Achava que o assunto em questão merecia uma fiança mais pesada. Mas o juiz mão concordou. Baixou-a para 15.000, bateu o martelo, e mandou que entrasse outro homem. A audiência preliminar foi marcada para dali a duas semanas.

- E agora, o que fazemos? - sussurrou Jessica para Martin, quando ele voltou para o seu lugar. Ian já tinha saído do tribunal e estava de volta à cadeia.

- Agora você arranja 1.500 dólares para pagar a um fiador e lhe entrega algo no valor de 15.000 como garantia.

- Como é que faço isso?

- Vamos... eu mesmo a levo.

Mas, Jesus... 15.000? Agora, de repente, sentiu o choque. Quinze mil. Era uma quantia enorme. Será que alguma coisa valia tanto dinheiro? Sim. O Ian.

Desceram até o saguão e cruzaram a rua até um dos escritórios de fianças iluminados a neon, que ficavam um ao lado do outro. Não pareciam lugares simpáticos, e aquele em que entraram não diferia dos demais. Fedia a fumaça de charuto, os cinzeiros trans­bordavam, e dois homens dormiam num sofá, aparentemente espe­rando. Uma mulher com cabelo louro eriçado perguntou-lhes o que desejavam e Martin explicou. Ela ligou para a cadeia e tomou nota das acusações, enquanto olhava longamente para Jessie. Esta tentou não crispar o rosto.

- Terá que dar a garantia. Tem casa própria?

Jessie fez que sim, e explicou a hipoteca.

- E também sou dona do meu negócio.

Deu à mulher o nome e o endereço da boutique, o endereço da casa deles e o nome do banco onde tinham a hipoteca.

- Quanto acha que vale o seu negócio? O que é, afinal? Uma loja de roupas?

Jessie assentiu, sentindo-se degradada, de alguma forma, em­bora sem saber ao certo por quê. Talvez fosse porque agora a mu­lher sabia quais eram as acusações.

- É, é uma loja de roupas. E temos um estoque bem grande.

Por que queria impressionar aquela mulher idiota? Mas então soube que era porque a mulher estava com a chave para a fiança de Ian nas mãos. Martin Schwartz estava parado a um canto, obser­vando o que se passava.

- Teremos que ligar para o seu banco. Volte às quatro horas.

- E depois podem pagar-lhe a fiança?

Ah, Deus, por favor, podem pagar-lhe a fiança? O pânico es­tava voltando de novo na sua garganta, espesso e doce e amargo, como bile.

- Pagaremos a fiança dele dependendo do que o seu banco disser sobre a casa e a loja - declarou, secamente. - Usa o mesmo banco para as duas? - Jessie concordou, com o rosto sombrio. - Óptimo. Isso poupará tempo. Traga os 1.500 com a senhora quando voltar. Em dinheiro.

- Em dinheiro?

- Dinheiro ou cheque administrativo. Nada de cheque pessoal.

- Obrigada.

Voltaram para a rua e Jessie inspirou fundo o ar puro. Parecia que há anos não sentia ar puro. Inspirou de novo e olhou para Martin.

- O que acontece às pessoas que não têm dinheiro?

- Não saem sob fiança.

- E daí?

- Ficam sob custódia até o veredicto.

- Mesmo se forem inocentes? Ficam na cadeia todo esse tempo?

- Não se sabe se são inocentes até o julgamento.

- Que diabo aconteceu ao “inocente até que seja provada a culpa”?

Ele deu de ombros e desviou os olhos, ficando calado. Ficara deprimido no escritório do fiador. Raramente ia aos fiadores com os clientes. Mas o Ian lhe pedira, e ele tinha prometido. Parecia estranho tratar uma mulher tão alta e com cara de independente como se fosse frágil e indefesa. Mas ele suspeitava que o Ian estava certo; por baixo daquela couraça, Jessica escondia uma vulnerabili­dade aterradora. Perguntou-se se a couraça racharia antes dessa guerra terminar. Era só o que lhes faltava.

- Como é que os pobres arranjam advogados?

Bolas! Já tinha dores de cabeça de sobra sem bancar o assis­tente social.

- Conseguem defensores públicos, Jessica. E nós já temos mui­to em que pensar agora sem ficar nos preocupando com os pobres, não acha? Por que não vai logo para o banco e acaba com isso?

- Está bem. Desculpe.

- Não precisa. O sistema é um nojo, eu sei. Mas não foi feito para o conforto dos pobres. Sinta-se agradecida por não ser um deles, e deixe para lá.

- É difícil fazer isso, Martin.

Ele sacudiu a cabeça e deu-lhe um sorrizinho.

- Vai ao banco?

- Sim, senhor.

- Óptimo. Quer que vá com você?

- Claro que não. O serviço de ama-seca faz sempre parte do negócio, ou o Ian o forçou a isso?

- Eu... não... ora, pela madrugada. Vá logo ao banco. E avise-me quando eu puder tirá-lo de lá. Ou antes disso, se houver algo que possa fazer.

Que tal nos emprestar 1.500 mangos, meu chapa? Ela sorriu, se despediu e caminhou devagar até o carro. Ainda não tinha idéia de como ia arranjar o dinheiro. E que diabo ia dizer ao banco? A verdade. E suplicaria, se fosse preciso. Quinze mil..., parecia o alto do Monte Everest.

 

Depois de seis cigarros e meia hora de conversa angustiante com o gerente do banco, Jessica tirou um empréstimo pessoal de 1.500 dólares dando o carro como garantia. E eles lhe asseguraram que tudo estaria em ordem quando o escritório do fiador telefonasse. Durante toda a conversa havia um ar de espanto no rosto do ge­rente do banco, embora ele tentasse desesperadamente ocultá-lo. Sem êxito. E Jessica nem lhe contara quais eram as acusações, ape­nas que Ian estava na cadeia. Rezava para que do escritório do fiador também não revelassem quais as acusações, e que, se o fi­zessem, ele ficasse de boca fechada. Já tinha jurado para ela que providenciaria para que tudo fosse confidencial. E pelo menos tinha os 1.500 dólares... tinha o dinheiro.. tinha o dinheiro! E a casa e o negócio valiam dez vezes a garantia de que precisava. Mas, de alguma forma, ela ainda não sentia que fosse o suficiente. E se ainda não quisessem soltar o Ian? E foi então que teve a idéia. O cofre individual.

- Sra. Clarke? - Ela não respondeu. Ficou ali sentada. - Sra. Clarke? Mais alguma coisa?

- Desculpe. Eu... estava pensando numa coisa. É, eu... acho que gostaria de ver o meu cofre, hoje.

- Está com a chave? - Fez que sim com a cabeça. Guardava-a no chaveiro. Enfiou a mão na bolsa e passou-a para ele. - Man­darei a Srta. Lopez abrir o cofre para a senhora.

Jessie acompanhou-o, pensativa, e depois seguiu a Srta. Lopez, a quem não conhecia. E logo depois estava parada diante do seu cofre individual e a Srta. Lopez olhava para ela, com a caixa nas mãos. Era um cofre grande.

- Quer levá-lo para uma sala?

- Eu... eu... quero. Obrigada.

Não devia ter feito isso. Não precisava. Era um erro... não.... mas, e se a casa e a Lady J não fossem o suficiente? Sabia que agora não estava fazendo sentido. Estava entrando em pânico. Mas era melhor ter certeza... ter... pelo Ian. Mas era tudo tão dolo­roso. E agora tinha que enfrentá-lo sozinha.

A Srta. Lopez conduziu-a a uma salinha deserta com uma mesa de fórmica marrom e uma cadeira de vinil preto. Na parede havia uma feia gravura de Veneza que parecia ter sido recortada da parte de cima de uma caixa de chocolates. E ela ficou sozinha com o cofre. Jessie abriu-o com cuidado e tirou de dentro três grandes caixas de couro marrom e dois estojos de jóias de camurça verme­lha desbotada. Havia outra caixa menor no fundo, de um azul des­botado. A caixa azul estava cheia dos poucos tesouros de Jake. As abotoaduras que o pai lhe dera no seu 21° aniversário, o seu anel de colégio, o anel da Marinha. Na sua maioria, nada de valor, mas muito ao jeito de Jake.

As caixas de couro marrom continham os verdadeiros tesouros. Cartas que os pais tinham escrito um para o outro ao longo dos anos. Cartas que tinham trocado quando o pai servia na guerra. Poemas que a mãe escrevera para o pai. Fotos. Cachos dos cabelos dela e de Jake. Tesouros. Todas as coisas que tinham tido impor­tância. Agora, todas as coisas que mais machucavam.

Abriu a caixa azul primeiro, e sorriu por entre um véu de lá­grimas enquanto via os enfeites sem valor de Jake jogados ao acaso sobre a camurça bege. Ela ainda guardava o mais leve indício do cheiro de Jake. Lembrava-se de ter implicado com ele sobre o anel de ginásio. Dissera-lhe que era um mostrengo, e ele tinha tanto orgulho dele. E agora, lá estava ele. Botou-o no dedo. Ficava enor­me nela. Também ficaria enorme no Ian. Jake media quase 1,95 m.

Virou-se a seguir para as caixas marrons. Conhecia-lhes o toque tão bem. Tinham gravadas as iniciais dos pais dela, letrinhas dou­radas no canto inferior direito. As duas caixas idênticas. Eram uma tradição familiar. Na primeira caixa ela achou um retracto dos qua­tro tirado num domingo de Páscoa. Ela teria uns 11 ou 12 anos; Jake, sete. Era mais do que podia suportar. Fechou suavemente a caixa e voltou-se para o verdadeiro motivo que a trouxera ali.

Os estojos de jóias de camurça vermelha. Era incrível, na ver­dade. Ia mesmo levar consigo as jóias da mãe. Eram tão preciosas para ela, tão sagradas, tão parte da mãe, ainda, que Jessie não usara nenhuma delas durante todos esses anos. E agora estava dis­posta a deixá-las nas mãos de estranhos. Pelo Ian.

Abriu os estojos com cuidado e olhou para a fileira de anéis. Um rubi num engaste antigo que pertencera à avó. Dois lindos anéis de jade que o pai trouxera do Extremo Oriente. O anel de esme­raldas que a mãe desejara tanto, e ganhara no seu 50° aniversário. O anel de noivado de brilhantes... e o anel de casamento, o de “verdade”, a aliança fina de ouro que sempre usara, sempre prefe­rira à aliança de esmeraldas e brilhantes que o pai de Jessie com­prara para fazer jogo com o anel de esmeraldas. Havia também duas pulseiras simples de ouro. Um relógio de ouro com minúsculos dia­mantes ao redor do mostrador. E um grande broche de safiras e diamantes que também pertencera à avó de Jessie.

No segundo estojo havia três fios de pérolas perfeitamente com­binadas, brincos de pérolas e um pequeno par de brincos de bri­lhantes que ela e Jake tinham comprado juntos para a mãe no ano anterior à sua morte. Estava tudo ali. O estômago de Jessie ficou revolto ao olhar para as jóias. Sabia que não teria coragem de deixá­-las com o fiador, mas pelo menos ficaria com elas, para o caso de precisar. Dois dias antes nem sequer pensaria numa coisa dessas, mas agora...

Botou o resto das caixas de novo no cofre de metal e saiu da sala quase duas horas depois de ter entrado. Estava quase na hora do banco fechar.

Quando voltou para Bryant Street, a mulher estava comendo um cheeseburger, deixando pingar o molho em cima do jornal da tarde.

- Trouxe o dinheiro?

Ergueu os olhos e falou com Jessica com a boca cheia.

Jessica fez que sim com a cabeça.

- Falou com o banco sobre a garantia?

Já estava chateada, e ter passado pela agonia que representara mexer no cofre individual fora o limite. Queria que o pesadelo terminasse. Agora.

- Que banco?

O rosto da mulher tinha uma expressão inesperadamente vaga, e Jessie apertou as mãos com força para se impedir de gritar.

- O Banco Califórnia Union Trust. Quero tirar o meu marido da cadeia ainda hoje.

- Quais foram as acusações?

Por Deus, o que essa mulher estava tentando fazer com ela? Lembrava-se que Jessica devia voltar trazendo dinheiro... como po­dia ter-se esquecido do resto? Ou estava fazendo um jogo? Se es­tava, que fosse se foder.

- As acusações foram estupro e agressão.

Quase berrou as palavras.

- Tem alguma propriedade?

Ah, merda.

- Pelo amor de Deus, já vimos tudo isso hoje à tarde, e vocês iam ligar para o meu banco sobre o meu negócio e a hipoteca. Estive aqui com o nosso advogado, preenchi os papéis e...

- Tudo bem. Como se chama?

- Clarke. Com “E”.

- Pronto. Está aqui. - Pegou o formulário com dois dedos engordurados. - Mas não posso pagar a fiança dele agora.

- Por que não?

O estômago de Jessie deu voltas de novo.

- Tarde demais para ligar para o banco.

- Merda. E agora?

- Volte amanhã de manhã.

Claro, enquanto o Ian passava outra noite na cadeia. Que mara­vilha. Lágrimas de frustração sufocaram-lhe a garganta, mas não havia nada que pudesse fazer excepto ir para casa e voltar pela ma­nhã.

- Quer falar com o patrão?

O rosto de Jessie se iluminou.

- Agora?

- É. Ele está aqui. Nos fundos.

- Fabuloso. Diga a ele que estou aqui.

Ah, Deus, por favor... por favor, deixe que ele seja humano... por favor.

O homem surgiu da sala dos fundos palitando os dentes com um dedo sujo que exibia um pequeno anel de ouro com um grande brilhante rosado. Na outra mão trazia uma lata de cerveja. Usava jeans e camiseta, e tinha um bocado de cabelo preto e crespo nos braços e no colarinho da camiseta, O penteado era quase black­power. E não era muito mais velho do que Jessie. Abriu um sorriso quando a viu, deu uma última catucada nos dentes, depois tirou a mão da boca e estendeu-a para ela apertar. Jessie o fez, mas com dificuldade.

- Como vai? Sou Jessica Clarke.

- Barry York. Em que posso ajudá-la?

- Estou tentando libertar o meu marido sob fiança.

- Do que? Quais são as acusações? Ei... espere ai. Vamos para o meu escritório. Quer uma cerveja?

Para falar a verdade, queria. Mas não com ele. Estava can­sada, com calor e com sede, chateada e com medo, mas não queria beber nada com Barry York, nem água.

- Não, obrigada.

- Café?

- Não, verdade. Obrigada, de qualquer maneira.

Ele estava tentando ser decente. Era preciso dar-lhe crédito por isso. Levou-a até um escritório pequeno e sujo com fotos de mulheres peladas nas paredes, sentou-se numa cadeira giratória, botou uma viseira verde na cabeça, ligou o som, e abriu um sorriso para ela.

- Não vemos muitas pessoas como a senhora, Sra. Clarke.

- Eu... não... obrigada.

- Então, qual é o galho do seu homem? Andou dirigindo embriagado?

- Não, é estupro.

Barry soltou um longo assobio enquanto Jessie fitava a barriga dele. Pelo menos, era honesto sobre o que pensava.

- Isso é fogo. De quanto é a fiança?

- Quinze mil.

- Isso é mau.

- Bem, é por isso que estou aqui. - É bom para você, Barry, meu chapa; quem sabe até possa comprar um palito de ouro, depois disso, com ponta de brilhante. - Falei com a moça lá fora hoje, mais cedo, e ela disse que ia ligar para o meu banco, e...

- E?

O rosto dele endureceu ligeiramente.

- Ela esqueceu.

Barry sacudiu a cabeça.

- Não esqueceu. Não cuidamos de fianças tão altas.

- Não?

Ele sacudiu a cabeça de novo.

- Não de um modo geral. - Jessica pensou que ia chorar. - Acho que ela não teve coragem de lhe dizer.

- E então eu perdi um dia, meu marido ainda está na cadeia, e o meu banco está contando em receber notícias suas, e... e agora, Sr. York? Que diabo vou fazer agora?

- Que tal jantar comigo?

Diminuiu o volume do som e deu uma palmadinha na mão dela O seu hálito recendia a alho e carne condimentada. Ele fedia.

Jessica simplesmente olhou para ele, e se levantou.

- Sabe, o meu advogado deve estar completamente equivocado sobre este lugar, Sr. York. E eu tenho toda a intenção de dizer-lhe isso.

- Quem é o seu advogado?

- Martin Schwartz. Esteve aqui comigo hoje de manhã.

- Olhe, Sra.... como se chama, mesmo?

- Clarke.

- Sra. Clarke. Por que não se senta e vamos falar de negócios?

- Agora ou depois do jantar? Ou depois de escutarmos mais alguns discos?

Ele sorriu.

- Gostou dos discos? Achei que foi um toque simpático.

Aumentou de novo o estéreo, e Jessie não sabia se achava graça, chorava ou gritava. Era óbvio que jamais iria tirar o Ian da cadeia. Não desse jeito. - Quer jantar?

- Quero, Sr. York. Com o meu marido. Quais são as chances do senhor tirar o meu marido da cadeia para eu poder jantar com ele?

- Ainda hoje? Nem sonhando. Primeiro preciso falar com o seu banco.

- Foi exactamente assim que ficamos acertados ao meio-dia e meia de hoje.

- É, bem, desculpe. E eu vou cuidar disso pessoalmente ama­nhã de manhã, mas não posso fazer nada depois do expediente ban­cário, não com uma fiança do tamanho dessa que a senhora quer. O que vai oferecer como garantia?

- Meu negócio e/ou minha casa. Cabe ao senhor decidir. Estou resolvida a dar um ou a outra como garantia, ou ambos. Ou estava. Mas tenho outra idéia. - Era uma loucura, era uma burrice, era imoral, era errado, mas ela estava tão cheia, afinal, que tinha que fazê-lo. Meteu a mão na bolsa, tirou de lá os dois estojos com as jóias da mãe. - E quanto a estas?

Barry York sentou-se muito suavemente e não disse palavra por quase dez minutos.

- Bonitas.

- Mais do que isso. Os anéis de esmeralda e brilhantes são de pedras muito boas. E o broche de safira vale uma nota. As péro­las também.

- É. É provável. Mas o problema é que não sei de nada até levá-las a um joalheiro. Ainda não posso livrar o seu marido hoje. - O marido... cretino. - Mas são jóias muito bonitas. Onde as arranjou?

Nós as roubamos.

- São da minha mãe.

- Ela sabe que o seu marido está em cana?

- Isso seria muito difícil, Sr. York. Ela morreu.

- Ah. Sinto muito. Escute, vou levá-las ao avaliador logo amanhã cedo. Ligarei para o seu banco. Vamos livrar o seu homem até o meio-dia. Juro, se o material for bom. Antes disso, não há nada que eu possa fazer. Mas, ao “meio-dia, tudo estiver em ordem. Tem a minha taxa?

Sim, querido, em centavos.

- Tenho.

- Tudo bem, então estamos acertados.

- Sr. York, por que não fica com todas as jóias agora e deixa que ele vá para casa? Ele não irá a parte alguma e nós acertaremos toda a parte financeira amanhã? Se a sua assistente tivesse ligado para o banco quando disse que ligaria...

Ele sacudia a cabeça, limpando os dentes de novo e espalmando a outra mão.

- Gostaria muito. Mas não posso. É isso aí. Meu negócio está em jogo. Cuidarei disso logo de manhãzinha. Juro. Esteja aqui às dez e meia e acertaremos tudo.

- Muito bem.

Pôs-se de pé, sentindo como se o peso do mundo estivesse apoiado nos seus ombros. Fechou os dois estojos de camurça e co­locou-os na bolsa, novamente.

- Não vai deixá-las comigo?

- Não. Isso era só se eu pudesse libertá-lo ainda hoje. Pensei que o senhor reconheceria o valor delas. Caso contrário, prefiro muito mais dar a casa e o negócio como garantia.

- Tá legal. Tudo bem. - Mas não parecia satisfeito. - É uma fiança danada de grande, a senhora sabe.

Ela meneou a cabeça, cansadamente.

- Não se preocupe. É uma bela casa, um bom negócio, e ele é um homem decente. Não fugirá, deixando-o na mão. O senhor não perderá um tostão.

- A senhora ficaria surpresa ao ver quem foge.

- Eu o verei às dez e meia, Sr. York.

Ela estendeu a mão e ele a tomou, sorrindo de novo.

- Tem certeza quanto ao jantar? Está com cara de cansada. Quem sabe um pouco de comida lhe faria bem. Um pouco de vinho, dançar... que diabo, divirta-se um pouco antes do seu marido voltar para casa. E encare a coisa por esse prisma, se ele está em cana por estupro, a senhora está sabendo que ele não estava se divertindo com os amigos.

- Boa noite, Sr. York.

Ela saiu discretamente porta afora, foi até o carro e voltou para casa.

Meia hora mais tarde estava dormindo no sofá, e só acordou às nove da manhã seguinte. Quando acordou, sentiu como se tivesse morrido na véspera. E teve um terrível ataque de tremedeira.

Os efeitos estavam começando a se fazer sentir. As olheiras cada vez mais profundas agora pareciam irreparáveis, os olhos em si pareciam estar encolhendo, e ela notou que começava a emagrecer. Fumou seis cigarros, tomou duas xícaras de café, brincou com um pedaço de torrada e ligou para a boutique avisando que não podiam contar com ela de novo naquele dia. Chegou de volta em Yorktowne Bonding às dez e meia. Em ponto.

Havia dois funcionários novos na recepção - uma moça com cabelos negros tingidos da cor de botas militares, que ficava estourando chiclete de bola, e um rapaz barbudo com sotaque mexicano Desta feita, Jessie pediu para falar com o Sr. York imediatamente.

- Ele está me esperando.

Os dois funcionários ergueram os olhos como se nunca tivessem escutado essas palavras antes.

Ele apareceu dois minutos mais tarde, usando shorts brancos sujos e uma camiseta azul-marinho, segurando um exemplar Playboy e uma raquete de ténis.

- A senhora joga?

Ah, Jesus.

- Às vezes. Falou com o banco?

Ele sorriu, com ar satisfeito.

- Venha para o meu escritório. Café?

- Não, obrigada.

Estava começando a sentir como se o pesadelo nunca fosse terminar. Iria simplesmente passar o resto da vida ricocheteando os Inspectores Houghtons e os Barry Yorks, os tribunais e os bancos e... era interminável. Sempre que parecia que ia surgiria outra porta falsa. Não havia saída. Tinha quase certeza disso agora. E o Ian não passava de um mito. Alguém que tinha inventado e jamais conhecera. O guardião do Santo GraaL

- Sabe, está com cara de cansada. Está comendo direito?

- Esplendidamente. Mas o meu marido está na cadeia, Sr. York, e eu gostaria muito de tirá-lo de lá. Quais são as chances disso, num futuro imediato?

- Excelentes. - Abriu um amplo sorriso. - Falei com o banco e tudo está em ordem. A senhora dá a casa como garantia e concorda com um penhor dos seus rendimentos na boutique se ele não se apresentar. E nós guardamos o anel de esmeraldas e o broche de safira para a senhora.

- Como? - ele falara com a naturalidade de quem estivesse pedindo um almoço para ela, mas chamara a sua atenção quando falara nas jóias da mãe. - Acho que o senhor não entendeu, Sr. York. A casa e a boutique são só o que estou penhorando. Disse-lhe ontem à noite que só lhe estava oferecendo as jóias da minha mãe se pudesse libertá-lo na hora, sem o senhor ter que ligar para o banco e tudo o mais. Como uma espécie de garantia.

- É. Bem, eu me sentiria melhor com a mesma garantia agora.

- Pois bem, eu não.

- Como o seu marido se sentiria continuando na cadeia?

- Sr. York, não existo uma lei contra os fiadores pedirem garantias excessivas?

Martin lhe falara nisso.

- Está me acusando de ser desonesto?

Ah, Deus, ela ia botar tudo a ....... ah, não...

- Não. Olhe, por favor...

- Olhe, boneca, não vou fazer negócio com nenhuma dona que me chame de desonesto. Faço-lhe um favor e arrisco o pescoço pelo seu velho com uma fiança de 15.000 dólares e você me chama de ladrão. Quero dizer, escute, não tenho que aturar essa merda de ninguém.

- Desculpe.

As lágrimas queimavam-lhe os olhos de novo. Estava come­çando a se perguntar se suportaria tudo isso, sem morrer. E então ele olhou para ela e deu de ombros.

- Está certo. Vamos lá, eu fico só com o anel. Você pode levar o broche. Está melhor?

- Está óptimo.

A Casa e a boutique e o carro e o anel de esmeraldas. Nada importava. Nem mesmo importava que o Ian fugisse e eles lhe tomassem a casa e a boutique e o carro e o anel de esmeraldas. Nada importava.

York deu um jeito de fazer o preenchimento dos formulários durar o dobro do tempo necessário, e de escorregar a mão pelo seio dela enquanto pegava outra caneta. Ela olhou-o na cara e ele sorriu e disse que ela seria bonita se comesse direito e que ele tivera uma namorada alta no ginásio. Uma garota chamada Mona. Jessica apenas meneou a cabeça e continuou assinando o seu nome. Final­mente, toda a papelada ficou pronta. Ele cortou com os dentes a ponta de um charuto longo e fino, e pegou o telefone para avisar a cadeia.

- Mandarei que a Bernice a acompanhe, Jessica. - Resolvera chamá-la pelo nome de baptismo. - E olhe, se precisar de alguma ajuda, basta telefonar. Não perderei o contacto com você.

Ela rezava para que perdesse, mas apertou-lhe a mão antes de sair do escritório. Sentia como se fosse tropeçar enquanto se retirava. Tinha chegado ao seu limite. Há dias.

Quando Barry York mandou a funcionária mascadora de chiclete levar Jessie para o outro lado da rua para retirar o Ian da cadeia, já era quase meio-dia. Para Jessie, era como se fosse meia-noite. Estava confusa e exausta e tudo estava começando a ficar borrado. Estava vivendo num mundo irreal cheio de gente malvada e debo­chada.

A mulher que ele chamara de Bernice tomou conta dos papéis, folheou-os por um momento. Depois cruzou a rua com Jessie para entrar no Palácio da Justiça. Enfiou a pilha de papéis que Jessie e Barry York tinham assinado pela abertura de um guichê no se­gundo andar, depois virou-se para olhar para Jessica por um momento.

- Vai aguentar as pontas do seu velho?

- Como disse?

- Vai ficar ao lado do seu marido?

- Sim... claro... por quê?

Estava se sentindo confusa de novo. E por que essa mulher estava lhe perguntando isso?

- É uma encrenca das bravas, irmã. E o que é que uma garota bonita como você quer com um perdedor como ele? Vai lhe custar uma nota essa brincadeira.

Sacudiu a cabeça e estourou duas bolas de chiclete.

- Ele vale a pena.

A garota deu de ombros e indicou os elevadores.

- Pode subir para a cadeia, agora. Já acabamos.

Não, moça, eu já acabei. É diferente. A moça se afastou, estourando mais uma bola de chiclete, e desceu uma escadaria.

Jessica chegou na cadeia alguns momentos mais tarde e teve que apertar uma pequena campainha para trazer um guarda até a porta.

- Sim? Ainda não é hora de visita.

- Estou aqui para libertar o meu marido sob fiança.

- Como é o nome dele?

- Ian Clarke. - Sabe, o famoso estuprador. - A Yorktowne Bonding acabou de ligar para cá.

- Vou verificar.

Verificar? Verificar o quê? Com a casa, a boutique, o anel de esmeraldas de minha mãe empenhados, você vai verificar, meu chapa? Ora, foda-se. E a Yorktowne Bonding... e o Inspector Houghton... e... o Ian também? Não tinha mais certeza. Não sabia o que sentia. Estava com raiva de Ian, mas não pelo que tinha feito, e sim por não estar ao seu lado quando precisava tanto dele.

Esperou diante da porta por quase meia hora, entorpecida, atordoada, encostada à parede e sem saber direito por que. E se nunca mais o visse? Porém subitamente a porta se abriu e lá estava ele, fitando-a. Estava com a barba grande, sujo, seboso, e exausto. Mas estava livre. Tudo que ela possuía agora estava empenhado nele. E ele estava livre. Caiu devagarinho nos braços dele com um choramingar que não lhe era comum, e ele a conduziu meigamente para o elevador.

- Tudo bem, querida... está tudo bem. Vai ficar tudo bem, Jessie... psiu... - Era o Ian. Era o Ian de verdade, em carne e osso. E segurava-a com tanta meiguice e quase a carregava até o carro. Ela não aguentava mais, e ele sabia. Não conhecia todos os detalhes do que acontecera, mas quando viu os papéis da fiança e leu a menção ao anel de esmeraldas da mãe dela, compreendeu muito mais do que ela poderia dizer-lhe. - Tudo bem, querida... tudo vai dar certo. - Ela se agarrou cegamente a ele enquanto ficavam parados ao lado do carro, as lágrimas a lhe escorrerem pelas faces, o rosto num ríctus de choque e desespero, os mesmos ruídos de choramingo se lhe escapando por entre os soluços. - Jessie... meu bem... eu a amo.

Ele a abraçou com força, depois levou-a em silêncio para casa.

 

- O que vai fazer hoje, querido? - Jessie serviu a Ian uma segunda xícara de café e olhou para o relógio. Eram quase nove horas e há dois dias que não aparecia na boutique. Sentia como se estivesse sumida há um mês, existindo numa zona crepuscular toda sua. Um pesadelo interminável, mas que agora acabara. Ian estava em casa. Passara a maior parte do dia anterior dormindo nos seus braços. E ele se parecia de novo com o Ian. De barba feita, limpo, um pouco mais descansado. Usava calças cinzentas e uma blusa de gola role cor de vinho. Todas as vezes que olhava para ele tinha von­tade de tocá-lo para ver se era real. - Vai escrever hoje?

- Ainda não sei. Acho que talvez passe o dia me sentindo bem.

Mas não pediu a ela para fazer gazeta com ele. Sabia que ela tinha que trabalhar. Já fizera o bastante por ele nos últimos dias. Não podia pedir-lhe mais.

- Gostaria de poder ficar em casa com você.

Olhou para ele com olhar comprido por cima da beirada da xícara e ele deu uma palmadinha na sua mão.

- Pego você para irmos almoçar.

- Tenho uma idéia. Por que não fica lá pela boutique, hoje?

Fitou os olhos dela e soube o que estava pensando. Depois que Jake morrera, ela passara meses desse jeito. Aquele terror de que, se saísse das suas vistas, desapareceria.

- Você não iria conseguir trabalhar, meu amor. Mas eu estarei por perto. Estarei aqui em casa a maior parte do tempo. - Mas, e quanto ao resto do tempo. Ela estendeu o braço e segurou a mão dele. Nada foi dito. Não havia o que dizer. - Pensei em falar com umas duas pessoas sobre um emprego.

- Não! - Ela retirou a mão e seus olhos faiscaram. - Não, Ian! Por favor.

- Jessica, seja razoável. Já pensou no que esse desastre está nos custando? Custando a você, para ser mais preciso? E agora é uma hora tão boa quanto outra qualquer para arranjar um emprego. Nada de exótico, apenas um emprego para fazer entrar algum dinheiro.

- E o que acontece quando você tiver que começar a aparecer no tribunal? E durante o julgamento? Acha que vai servir para alguém, nessas condições?

Segurou com força a mão dele de novo e ele viu a dor nos seus olhos. Ia levar meses até que o desespero passasse.

- Bem, o que exactamente você espera que eu faça, Jess?

- Acabe o livro.

- E deixe que você pague a conta por toda essa confusão?

Ela fez que sim com a cabeça.

- Mais tarde a gente pode acertar tudo, se você quiser. Mas eu estou me lixando, para falar a verdade. O que importa quem esteja assinando os cheques?

- Para mim, importa. - Sempre importara, sempre importara. Mas ele sabia, também, que jamais seria capaz de concentrar-se em alguma coisa com aquele caso pendendo sobre a sua cabeça. O julgamento... o julgamento... não conseguia pensar em outra coisa. Enquanto ela dormira todas aquelas horas, na tarde anterior, aquilo não lhe saía da cabeça.... o julgamento. Não estava mesmo em condições de arranjar emprego. - Veremos.

- Eu o amo.

Ela estava com lágrimas nos olhos de. novo, e ele torceu-lhe a ponta do nariz.

- Se ficar de olhos molhados de novo, Sra. Clarke, vou arrastá-la de volta para a cama e dar-lhe um motivo de verdade para chorar.

Ela riu, em resposta, e serviu-lhe mais café.

- Não consigo acreditar que você está em casa. Foi tão incrivelmente horrível quando esteve fora... foi... foi com...

As palavras ficaram entaladas na sua garganta.

- Foi provavelmente paz e quietude, para variar, e você foi boba de não aproveitar. Que diabo, não estava pensando que Ian Ia ficar lá para sempre, estava? Quero dizer, mesmo para um escritor aquele tipo de pesquisa viva cansa, depois de um certo tempo.

- Palhaço.

Mas agora ela estava sorrindo; não tinha nada a temer.

- Quer que a leve até o trabalho?

- Para falar a verdade, adoraria.

Abriu um sorriso enquanto punha as xícaras na pia e tirava o casaco de camurça alaranjado das costas de uma cadeira. Usava-o por cima de jeans bem talhados e uma suéter de cashmere bege. Parecia de novo a velha Jessie... excepto ao redor dos olhos. Enfiou os óculos escuros e sorriu para ele. - Acho melhor não me des­grudar deles por uns dois dias. Ainda estou com cara de quem curtiu um porre de duas semanas.

- Você está com uma cara linda, e eu a amo. - Beliscou o traseiro dela enquanto saíam pela porta da frente e ela debruçou-se para trás para beijá-lo desajeitadamente por cima do ombro. - Até mesmo está com um cheiro bom.

- Nada além do melhor. Eau de Mille Pieds.

Ela falou com um amplo sorriso, e ele gemeu.

- Puta que o pariu!

Era uma das piadas mais antigas deles. Água de mil pés.

Ela lhe indicou a casa de Astrid enquanto se dirigiam para a boutique, e contou-lhe sobre a sua visita à loja.

- Parece um amor de mulher. Muito serena e agradável.

- Porra, eu também seria sereno e agradável, com toda essa grana.

- Ian!

Mas sorriu para ele e correu a mão pelos seus cabelos. Como era gostoso estar sentada ao lado dele de novo, olhando para o seu perfil enquanto guiava, sentindo-lhe a pele do pescoço com a boca enquanto o beijava. Acordara uma dúzia de vezes durante a noite para se certificar de que ele ainda estava ali.

- Venho buscá-la por volta do meio-dia. Está bem?

Olhou para ele por um momento, antes de assentir.

- Vem mesmo? De verdade?

- Ah, meu bem... venho sim. Prometo. - Tomou-a nos braços e ela o apertou tanto que chegou a doer. Sabia que ela estava pensando no dia em que fora preso e não aparecera para buscá-la para almoçar. - Seja uma mocinha.

Ela abriu um sorriso e saltou do carro e jogou-lhe um último beijo antes de subir correndo a escadinha da loja.

Ian acendeu um cigarro enquanto se afastava, e deu uma olhada nos navios na baía. Era um belo dia. O verão estava passando, e não fazia tanto calor quanto há alguns dias, mas o céu era azul claro, e havia uma leve brisa. Aquilo o fez pensar naquele dia, cinco dias atrás. Parecia que eram cinco anos ele ainda não con­seguia compreender.

Parou num sinal, e outro pensamento veio-lhe à cabeça. O anel de esmeraldas que Jessie dera para fiança. Ainda estava atónito. Sabia como ela se sentia em relação às coisas da mãe. Nem sequer queria usá-las. Eram sagradas, as últimas relíquias de um santuário há muito demolido. E o anel significava mais para ela do que qualquer das outras peças. Certa vez vira quando o colocara no dedo, e a sua mão começara a tremer descontroladamente. Pusera o anel de volta no estojo, e nunca mais mexera no cofre. E agora entregara-o a um fiador, por causa dele. Aquilo lhe dizia algo que mais nada dissera. Era uma loucura, mas sentia que a amava mais agora do que antes de tudo aquilo começar, e, quem sabe, Jessie também aprendera alguma coisa. Quem sabe, agora eles sabiam o que tinham. Quem sabe, deviam tomar melhor conta do que tinham. De uma coisa ele estava certo. Os seus dias de encontros discretos tinham terminado. Para sempre. Subitamente sentia que tinha uma mulher. Uma mulher mais fabulosa do que pensara ter. O que mais podia querer? Um filho, talvez, mas já tinha se resignado à ausência de filhos. Estava suficientemente feliz apenas com Jessie.

 

- Bom dia, senhoras.

Jessie entrou na loja com um Sorriso sereno no rosto. E Katsuko ergueu os olhos da sua mesa de trabalho

- Ora, ora, vejam só quem chegou. E num sábado! Estávamos pensando que você tinha arranjado um emprego melhor.

- Quem sou eu.

- Tudo bem?

- Tudo bem.

Jessica balançou a cabeça, lentamente, e Katsuko soube que era verdade. Jessie voltara a ser o que era.

- Que bom.

Katsuko passou-lhe uma xícara de café e Jessie encarrapitou-se num canto da mesa de vidro e cromado.

- Cadê a Zina?

- Lá atrás, verificando o estoque. A Sra. Bonner apareceu procurando você, ontem. Comprou uma das novas saias de veludo vinho.

- Deve ter ficado linda nela. Experimentou-a com a camisa de cetim creme?

- Hã-hã. Comprou as duas, e o novo terninho verde de veludo. O dinheiro daquela mulher deve abrir buracos nos seus bolsos.

É. E a solidão deve abrir buracos no seu coração. Jessie pro­vara-a recentemente. Conhecia-a.

- Ela vai voltar - acrescentou Katsuko.

- Espero que sim. Mesmo que não compre nada. Gosto dela. Tem alguma coisa alinhavada para o desfile de modas?

- Tive algumas idéias ontem, Jessie. Tomei algumas notas e deixei-as na sua mesa.

- Vou dar uma olhada.

Espreguiçou-se e foi para o seu gabinete, levando o café. Era uma manhã sem movimento, e ela se sentia como se estivesse voltan­do depois de uma longa ausência, uma doença prolongada, quem sabe. Sentia-se lenta e cuidadosa e frágil. E tudo parecia diferente, subitamente. A loja parecia um amor, as moças tão bonitas... Ian tão lindo... o céu tão azul... tudo parecia melhor e em mais quantidade.

Leu a sua correspondência, pagou contas, mudou a vitrina, e discutiu o desfile de modas com Katsuko enquanto Zina atendia os fregueses. A manhã voou, o Ian chegou cinco minutos antes do meio-dia. Com uma braçada de rosas. Da cor delicada de salmão que Jessie mais gostava.

- Ian! São fabulosas!

Eram umas três dúzias, e ela podia ver um volume quadrado deformando-lhe o bolso do paletó. Ele a estava mimando, e ela adorava. Sorriu para ela e dirigiu-se para o seu escritório.

- Pode me atender por um minuto, Sra. Clarke?

- Pois não, senhor. Por três dúzias de rosas posso atendê-lo durante várias semanas!

As duas moças riram e Jessie acompanhou Ian até o escritório. Ele fechou a porta suavemente e abriu um sorriso para ela.

- A sua manhã foi boa?

- Trouxe-me a este local isolado para perguntar se a minha manhã foi boa? - Ele sorria e ela estava começando a dar risadi­nhas. - Ande, conte a verdade. É maior do que um cesto de pão?

- O quê?

- A surpresa que você trouxe para mim, é claro.

- Que surpresa? Comprei-lhe rosas e você quer mais! Sua safa­dinha gananciosa - Mas ele estava com um ar tão satisfeito consigo mesmo que não convencia Jessie. - Ora, vá lá.

Tirou a caixa do bolso e sorriu amplamente. Era uma pulseira sólida de ouro, e na parte de dentro estava gravado TODO O MEU AMOR, IAN. Passara a manhã toda literalmente pendurado em cima dos joalheiros enquanto eles faziam a gravação. Não era a hora de estar gastando dinheiro, mas percebera que ela estava precisando do uma coisa assim, e tivera consciência disso quando estava sentando para começar a trabalhar. Era uma bela pulseira, e as proporções eram exactas para a mão dela. Custara-lhe o restinho das suas economias particulares.

- Ah, querido.... é linda. - Colocou-a no pulso e ficou segu­rando-a. - Puxa. É perfeita! Ah.... você é maluco.

- Acontece que estou loucamente apaixonado por você.

- Estou começando a achar que descobriu petróleo. Gastou uma fortuna hoje de manhã. - Mas a voz dela não estava irritada, só satisfeita, e Ian deu de ombros. - Espere só até eu mostrar às garotas! - Pespegou-lhe um beijo no centro da boca, abriu a porta e esbarrou em Zina, que ia passando para ir ao depósito. - Olhe só para a minha pulseira!

- Ora, vejam só! isso quer dizer que ficou noiva do bonito com as rosas?

Deu uma risadinha e piscou para ele.

- Ora, cale a boca. Não é um barato?

- Fantástica. E só o que quero saber é onde a gente encontra outro como ele.

- Experimente no Departamento de Elencos.

Ian olhou por cima do ombro de Jessie, com um sorriso.

- Acho que é o que vou fazer.

Zina desapareceu dentro do depósito e, com um ar de vitória, Jessie mostrou a sua nova pulseira para Katsuko. Alguns minutos mais tarde, ela e Ian estavam saindo para almoçar.

- Puxa, mas adorei a minha pulseira! - Parecia uma criança com um brinquedo novo, e levantou o braço para olhar para a jóia na luz. - Querido, é maravilhosa! E como conseguiu que fizesse a gravação tão depressa?

- Sob a mira de um revólver, é claro. De que outro jeito?

- Ora, pela madrugada... sabe, você tem mesmo um bocado de classe.

- Para um estuprador.

Mas sorria enquanto falava.

- Ian!

- Sim, meu amor?

Beijou-a e ela riu enquanto entrava no carro. Ele tinha mais classe do que qualquer homem que conhecia.

Foram ao cinema à noite, e dormiram até tarde no domingo de manhã. Era mais um dia quente e azul, com nuvens estufadas, parecendo coladas no céu, que passavam rolando, como se fosse um cenário pintado.

- Quer ir à praia, Sra. Clarke?

Ele se espreguiçou no seu lado da cama e depois virou-se para ela e a beijou. Ela gostava de sentir o seu começo de barba contra a face. Era áspera, mas não chegava a machucar.

- Adoraria. Que horas são?

- Quase meio-dia.

- Está mentindo. Devem ser nove horas.

- Não estou. Abra os olhos e dê uma espiada.

- Não posso. Ainda estou dormindo.

Mas ele mordiscou-lhe o pescoço e fez com que ela risse e os seus olhos se abriram.

- Pare com isso!

- Não paro. Levante-se e faça o meu café.

- Feitor de escravos. Nunca ouviu falar no movimento de libertação da mulher?

Ficou deitada de costas, e bocejou.

- O que é isso?

- Movimento de libertação da mulher. Diz que os maridos têm que preparar o café aos domingos... mais... por outro lado. - Olhou para a pulseira de novo, com largo sorriso. - Não diz que é preciso dar à mulher uma jóia tão linda. Então, quem sabe, eu vou preparar o café.

- Coração de Ouro, não se esforce demais.

- Pode deixar. Que tal ovos fritos?

Acendeu um cigarro e se Sentou na cama.

- Tenho uma idéia melhor.

- Ir comer no Fairmount?

Sorriu para ele e agitou a pulseira de novo.

- Não. Eu ajudo. Você está ocupada demais agitando a sua pulseira na minha cara para fazer um desjejum decente para nós. Que tal uma omelete de queijo e ostras defumadas?

Parecia encantado com a combinação, e Jessie fez uma careta terrível.

- Epa! Não dá para deixar de lado as ostras defumadas?

- Por que não deixar de lado o queijo?

- Que tal deixar de lado a omelete?

- Então, é café no Fairmount?

- Ian, você é maluco... mas eu o amo.

Mordiscou a coxa dele e ele correu a mão pela maciez da espinha dela.

Foi só dali a uma hora que saíram da cama. Até mesmo faziam amor de modo diferente, agora. Havia uma estranha mistura de desespero e gratidão, do “Ó, Deus, eu o amo” misturado com “Vamos fingir que tudo está melhor do que o normal”. Não estava, mas o fingimento ajudava. Um pouco. Os motores deles ainda estavam correndo um pouco depressa demais.

- Afinal, vamos ou não vamos à praia hoje?

Ele sentou na cama, o cabelo louro despenteado como o do um garotinho.

- Por mim, tudo bem, mas ainda não fui alimentada hoje.

- Ah... pobrezinha. Você não quis a minha omelete de ostras defumadas.

Jessie puxou um cacho do cabelo dele.

- Prefiro o que tive, ao invés da omelete.

- Que vergonha.

Ela lhe mostrou a língua, saiu da cama e foi para a cozinha.

- Aonde vai, de rabo de fora, desse jeito?

- À cozinha, preparar o café. Alguma objecção?

- Neca. Está precisando de ajuda de um voyeur?

Um minuto mais tarde ela ouviu a porta do jardim bater e depois viu que ele reaparecia na cozinha, usando um cobertor ao redor da cintura. segurando um buquet das suas petúnias.

- Para a dona da casa.

- Desculpe, ela saiu. Será que posso ficar com elas?

Beijou-o suavemente e tirou as flores da sua mão e pousou-as no corredor enquanto ele a tomava nos braços e deixava o cobertor cair no chão.

- Querida, eu a amo loucamente, mas se você não parar, o bacon vai queimar e nós nunca chegaremos na praia.

- Você se importa?

Ambos sorriam, e o bacon pulava furiosamente enquanto os ovos começavam a borbulhar.

- Não. Mas é melhor comermos assim que estiver pronto. Merda.

Deu uma palmada no traseiro dela e Jessie apagou o gás e serviu ovos mexidos, bacon, torrada, suco de laranja e café. Ainda nus, sentaram-se para comer o desjejum.

 

Quando chegaram à praia eram quase três horas, mas ainda era um lindo dia e o sol continuou quente até as seis. Jantaram peixe em Sausalito, no caminho para casa, e ele comprou-lhe um cachorrinho bobo feito de conchas.

- Adorei. Agora estou me sentindo como uma turista.

- Achei que você devia ter alguma coisa realmente cara como lembrança dessa noite.

Estavam animadíssimos enquanto cruzavam a ponte para ir para casa, mas as palavras dele soaram-lhe estranhas. Subitamente lá estavam eles comprando souvenirs e agarrando-se a lembranças.

- Ei, querido, que tal está indo o livro?

- Melhor do que eu quero admitir. Não me pergunte ainda.

- Jura?

- Juro.

Olhou para ele, satisfeita. Parecia quase orgulhoso de si mesmo, e com um pouco de medo de estar.

- Já mandou alguma parte para o seu agente?

- Não, quero esperar para terminar mais alguns capítulos antes de fazê-lo. Mas acho que este é bom. Talvez até muito bom.

Falou com uma gravidade que a emocionou. Há anos que não falava desse jeito sobre o seu trabalho. Não desde as fábulas, e elas tinham sido muito boas. Não muito lucrativas, mas definitiva­mente boas. Os críticos tinham elogiado, embora o público não.

No caminho para casa, pararam diante do iate clube perto da ponte e desligaram as luzes e o motor. Era gostoso ficar ali sentado vendo a água lamber uma pequena extensão de praia enquanto as sirenas de nevoeiro soavam suavemente a distância. Os dois esta­vam estranhamente cansados, como se cada dia fosse uma jornada interminável. Aqueles poucos dias traumáticos tinham lhes custado muito. Ela notava isso pelo sono pesado que ele tinha, agora, e ela própria se sentia cansada o tempo todo, não importa o quão feliz estivesse novamente. Havia uma nova paixão, também. Uma nova necessidade, uma nova fome um do outro, como se fosse preciso estocar para um inverno longo e vazio à sua frente. Um período difícil os esperava. Este era apenas o começo.

- Quer ir tomar um sorvete de casquinha?

Havia uma expressão inquieta nos seus olhos.

- Sinceramente? Não. Estou estourada.

- É. Eu também. E quero ler um pouco ainda hoje. O capí­tulo que terminei.

- Posso ler um pouco, também?

- Claro.

Parecia satisfeito enquanto ligava o motor e se dirigia para casa. Era engraçado como nenhum deles queria ir para casa. A parada perto do iate clube, o convite para o soverte... qual o demónio à espreita que temiam encontrar em casa? Jessica se perguntava, mas sabia quem era o seu demónio particular. O Inspector Houghton. Esperava constantemente que ele fosse saltar de algum canto e levar o Ian de novo sob custódia. Pensara nisso o tempo todo, na praia, imaginando se saltaria de trás de alguma duna e tentaria levar Ian embora. Não dissera nada a Ian. Nenhum dos dois agora falava na prisão dele. Era só no que conseguiam pensar, e a única coisa sobre a qual se recusavam a falar.

Ele estava espichado diante do fogo lendo o seu manuscrito quando ela decidiu que era preciso lembrar-lhe. Detestava ter que falar no assunto, mas alguém tinha que fazê-lo.

- Não se esqueça de amanhã, amor.

Falou suave e pesarosamente.

- Hã?

Ele estava imerso no seu trabalho.

- Falei: não se esqueça de amanhã.

- O que é que tem amanhã?

Tinha uma expressão vaga.

- Temos um encontro às dez horas com Martin Schwartz.

Tentou fazer com que parecesse ser uma hora marcada no ca­beleireiro, mas não teve muito êxito. Ian ergueu os olhos para ela e não disse palavra. Seus olhos diziam tudo.

 

A reunião com Martin Schwartz mexeu com eles. Sentados ali com ele, tendo que discutir as acusações, não podiam mais se esconder. Jessica sentia-se mal enquanto escutava. Agora era real. Sentia-se até mal pensando em tudo que tinha empenhado. Dava-se conta agora de que tinha arriscado tudo. A casa. Os lucros da loja. Até o anel de esmeraldas. Tudo... Jesus.... e se o Ian entrasse em pânico e fugisse? E se... meu Deus... ela perderia tudo. Olhou para ele, sentindo um bolo na garganta, e tentou concentrar-se no que estava sendo dito. Quase não conseguia escutar. Ficava só pen­sando no facto de que precisava de um homem tão desesperadamen­te que dera tudo por ele. E agora, o que aconteceria?

Martin explicou-lhes como seria a audiência preliminar e eles concordaram em contratar um investigador para ver o que se po­deria descobrir sobre a “vítima”. Um bocado, esperavam, e tudo condenável. Não iam ser bondosos com a Srta. Margaret Burton. Destruí-la era a única saída de Ian.

- Mas tem que haver um motivo para isso, Ian. Pense com cuidado. Maltratou-a de alguma forma? Sexualmente? Verbalmente? Humilhou-a? Machucou-a? - Martin olhou para Ian significativamente, e Jessie desviou o olhar. Detestava a expressão constrangida no rosto de Ian. - Ian? - E então Martin olhou para ela. - Jessie, talvez você deva nos deixar discutir isso a sós por alguns minutos.

- Claro.

Era um alívio sair da sala. Ian não ergueu os olhos quando ela saiu. Agora estavam enfrentando a verdade nua e crua. De quem tinha feito o que com quem, onde, como, por quanto tempo e quantas vezes. Morria só de pensar no que Jessie iria ouvir no tribunal, durante o julgamento.

Ela percorreu os corredores acarpetados, olhando para as gra­vuras na parede, fumando, sozinha com os seus pensamentos, até que achou uma pequena poltrona macia perto de uma janela com a mesma vista esplêndida que se tinha do escritório de Martin. Tinha muita coisa em que pensar.

Uma secretária veio buscá-la meia hora mais tarde e acompa­nhou-a de volta ao escritório de Martin. Ian parecia atormentado e Martin estava de cara fechada. Jessie tentou levar a coisa na brincadeira.

- Perdi todas as partes interessantes?

Mas o sorriso dela era forçado, e eles não tentaram retribui-lo.

- Segundo o Ian, não houve partes “interessantes. Deve ser algo relacionado a algum ressentimento pessoal.

- Contra o Ian? Por quê? Você a conhecia?

Virou-se para o marido, com ar de surpresa. Ao que lhe cons­tava, a tal mulher era uma estranha para ele.

- Não. Eu não a conhecia. Mas o que o Martin quer dizer que ela estava resolvida a ferir alguém, qualquer um, quem sabe simplesmente um homem, e eu cheguei na hora errada.

- Ora se chegou.

- Só espero que possamos prová-lo, Ian. O Green deve desco­brir alguma coisa sobre ela.

- É o que espero, a 20 mangos por hora.

Ian franziu a testa de novo e olhou para Jessie, que balançou a cabeça quase imperceptivelmente. Agora não era a hora de ser pão-duro. Arranjariam o dinheiro onde fosse possível, mas não po­diam economizar nisso.

Martin explicou-lhes a preliminar mais uma vez para certificar-se de que tudo estava claro. Era uma espécie de minijulgamento no qual a queixosa/vítima e o réu contariam as suas versões da história, e o juiz decidiria se o caso deveria ser arquivado ou ir para uma instância superior para uma decisão ....... nesse caso, a um julgamento. Martin não tinha esperanças de que o caso seria ar­quivado. As histórias conflitantes eram igualmente veementes, as circunstâncias nebulosas. Nenhum juiz se meteria a decidir um caso desses no estágio preliminar. Não ajudava nada o facto da mulher estar no mesmo emprego há anos, e ser respeitada no seu local de trabalho. E havia certos aspectos psicológicos do caso que deixa­vam Martin Schwartz tremendamente pouco à vontade: o facto de que Ian era virtualmente sustentado pela mulher e que não tinha um livro de sucesso em anos, embora estivesse escrevendo há quase seis, podia ter criado um certo ressentimento contra as mulheres; pelo menos, um bom promotor podia fazer com que parecesse as­sim. O investigador iria conversar com Ian à tarde, ou na manhã seguinte.

Jessie e Ian desceram no elevador em silêncio, e Jessie final­mente falou quando chegaram à rua.

- Então, bem, o que você achou?

- Nada de bom. Parece que, se não descobrirmos alguma sujeira sobre ela, estou preso pelos colhões. E segundo o Schwartz em tribunais não gostam desse tipo de assassino de carácter, hoje em dia. Mas, nesse caso, é a nossa única esperança. É a versão dela contra a minha, e claro, o testemunho médico também, mas esse é bem fraco. Podem dizer se houve relação sexual, mas ninguém pode dizer se houve estupro. A acusação de agressão já foi aban­donada. Agora estamos limitados ao facto em si e às minhas “aberrações ­sexuais”.

Jessica assentiu e ficou calada.

Foi uma viagem silenciosa até a boutique. Ela pensava com temor na audiência. Não queria ver a tal mulher, mas não havia como fugir. Tinha que vê-la, tinha que ouvir, tinha que manter a posse, pelo, bem de Ian, não importa o quanto o negócio se tor­nasse feio.

- Quer que deixe o carro com você, amor? Posso ir a pé para casa.

Ian preparou-se para saltar depois de tê-la levado até a loja.

- Não querido, eu... para falar a verdade, vou precisar dele hoje, isso o atrapalha?

Estava tentando parecer agradável, mas acabar de pensar numa coisa. Precisava do carro hoje, e ia ficar com ele, quer o atrapa­lhasse, quer não.

- Não tem problema. Tenho a bomba sexual sueca, se precisar.

Estava se referindo ao seu Volvo, e ela sorriu.

- Quer entrar e tomar um café?

Mas nenhum dos dois estava com muita disposição para con­versar. A entrevista da manhã deixara-os pensativos e distantes um do outro.

- Não. Vou deixá-la trabalhar. Quero passar um pouco de tempo sozinho.

Era inútil perguntar-lhe se estava perturbado. Ambos estavam.

- Tudo bem, amor. Até logo mais.

À porta da boutique separaram-se com um beijo rápido.

Ela se refugiou rapidamente no seu escritório e marcou hora para uma e meia. Era a única coisa na qual podia pensar. Ian fi­caria arrasado, mas que escolha tinha ela? E ele não estava em posição de fazer objecções.

 

- Bem, o que acha?

Odiou a aparência do homem, e já o estava detestando. Era gordo, seboso e astuto.

- Nada mau. Um carrinho jóia. Que tal está debaixo do capô?

- Impecável.

Ele estava examinando o Morgan vermelho como se fosse um pedaço de carne num supermercado ou uma prostituta num bordel. Jessie estava toda arrepiada; parecia que estava vendendo o filho deles, à escravidão branca. Para aquele homem gordo e nauseante.

- Está com pressa de vender?

- Não. Só curiosa quanto ao preço que posso conseguir por ele.

- Por que quer vendê-lo? Precisa da grana?

Examinou Jessie dos pés à cabeça.

- Não. Preciso de um carro maior.

Mas era tudo muito doloroso. Ainda se recordava do seu es­panto e alegria no dia em que Ian tinha aparecido no Morgan e entregado as chaves para ela, com um amplo sorriso no rosto. Vi­tória. E agora, seria como vender o coração dela. Ou o dele.

- Bem, vou lhe fazer uma oferta.

- Quanto?

- Quatro mil... não... quem sabe, como um favor para a senhora, 4.500.

O negociante olhou-a de alto a baixo e esperou.

- Isso é ridículo. Meu marido pagou sete por ele, e está em melhores condições agora do que quando o comprou.

- É o máximo que posso fazer. E acho que é o máximo que poderá conseguir, assim em cima do lance. Precisa de uma ajeitada.

Não precisava, e ambos sabiam disso, mas ele tinha razão quanto a ser em cima do lance. O Morgan era um belo carro, mas muito poucas pessoas queriam ter um, ou podiam se dar ao luxo de ter um.

- Eu o avisarei se quiser vender. Obrigada.

Sem mais comentários entrou no carro e foi embora. Merda. Que coisa triste ter que pensar em se desfazer dele. Mas tinha o resto dos honorários do Schwartz para pagar, e agora o investigador, a casa e a loja já estavam comprometidas com a Yorktowne Boa­ding, e já tinha contraído um empréstimo com o carro como ga­rantia. Teria sorte se o banco deixasse que ela o vendesse. Mas eles a conheciam bem. Podiam deixar. E a despeito da bravata de Ian de ir procurar emprego, não fizera nada. Estava atolado no livro, e não ia a parte alguma excepto ao estúdio com um lápis enfiado atrás da orelha. Artístico, mas nada lucrativo, a essa altura. E mesmo que arranjasse emprego, quanto ganharia no mês ou dois antes do julgamento, servindo mesas ou bancando o barman en­quanto escrevia à noite? Quem sabe o livro venderia bem. Sempre havia essa esperança. Mas Jessie sabia por experiência própria que isso levava tempo, e muitas vezes eles já se haviam apegado inutil­mente a essa ténue esperança. Agora ela não era mais boba. Teria que ser o Morgan. Mais cedo ou mais tarde.

Ficou Isolada o resto do dia, e foi uma surpresa agradável quan­do Astrid Bonner entrou na loja, pouco antes das cinco. Poderia trazer alívio das tensões do dia.

- Puxa, Jessica, mas como é difícil encontrar você!

Mas ela estava de muito bom humor. Acabara de comprar um novo anel de topázio, um belo trabalho de ourivesaria, 32 quilates engastados numa pequena fortuna em ouro, e ela “não conseguira resistir. Em outra pessoa qualquer seria vulgar, em Astrid tinha classe. Mas o coração de Jessie doeu outra vez ao pensar no Mor­gan. O topázio com as baguetes estreitas de brilhantes provavel­mente tinham custado a Astrid duas vezes a quantia de que ela estava precisando.

- A vida tem sido uma loucura desde que voltei de Nova. York. E esse é um anel e tanto, Astrid!

- Se algum dia me cansar dele sempre posso usá-lo como maçaneta. Ainda não consegui concluir se é fabuloso ou pavoroso, e sei que ninguém jamais vai me dizer a verdade.

- É fabuloso.

- Jura?

Olhou para Jessie, com ar de troça.

- Tanto que estou verde de inveja desde que você entrou.

- Que legal! Foi mesmo uma coisa chocantemente auto-indul­gente a que eu fiz. É surpreendente o que um pouco de tédio pode provocar na gente.

Riu com coqueteria, e Jessie sorriu. Que problema simples. Tédio.

- Quer uma carona até em casa ou veio fazer compras?

- Nada de compras, e tenho o carro, obrigada. Passei por aqui a caminho de casa para convidar você e seu marido para jantar.

As garotas tinham lhe dito que Jessie era casada.

- Que idéia gentil. Adoraríamos. Quando quer que a gente vá?

- Que tal amanhã?

- Combinado.

Trocaram um sorriso de satisfação, e Astrid caminhou à von­tade pelo escritório pequeno e alegre de Jessie.

- Sabe, Jessica, estou me apaixonando por este lugar. Um dia desses posso dar um jeito de torná-lo de você.

Riu maliciosamente e observou os olhos de Jessica.

- Não desperdice as suas energias tentando tomá-lo de mim. Eu posso até dá-lo a você. Do jeito que estou agora, posso até em­brulhá-lo para presente.

- Está me fazendo babar.

- Guarde a sua saliva. Posso convencê-la a tomar um drinque? Não sei quanto a você, mas um bem forte me cairia muito bem.

- Ainda aqueles problemas que mencionou no outro dia?

- Mais ou menos.

- O que quer dizer não se meta onde não é chamada. Muito justo.

Sorriu serenamente; não sabia que Jessica tinha passado o dia tentando esquecer que Bany York tinha penhorado a sua loja. Jessica se sentia mal só de pensar nisso, e enquanto isso Ian ficava fora do mundo, trabalhando naquele maldito livro dia e noite. Jesus. Precisava de alguém com quem conversar. E por que ele tinha que começar a sair do ar justo agora? Sempre ficava assim quando estava imerso num livro. Mas agora?

- Tenho uma idéia Jessica.

Jessie ergueu os olhos, espantada. Por um momento tinha se esquecido totalmente de Astrid.

- Que tal tomar o drinque na minha casa?

- Sabe do que mais? Adoraria. Tem certeza de que não é muito trabalho?

- Não é trabalho algum; será divertido. Vamos lá, vamos indo.

Jessie despediu-se rapidamente das garotas e ficou aliviada em sair da boutique. Antigamente não era assim. Costumava sentir-se bem só de entrar pela porta de manhã, e satisfeita consigo e a vida ao sair, à noite. Agora detestava pensar na loja. Era chocante como as coisas podiam se modificar em tão pouco tempo.

Jessie seguiu atrás de Astrid no seu carro. A mulher mais velha dirigia um sedã Jaguar preto de dois anos atrás. Era perfeito para ela, vistoso e elegante como ela. Essa mulher vivia cercada de coisas bonitas. Inclusive a sua casa.

Era uma mistura de tirar o fôlego de delicadas antiguidades francesas e inglesas, Luís XV, Luís XVI, Heppelwhite, Sheraton. Mas nada opressivo. A casa era leve. Muito amarelo e branco, de­licadas cortinas de organdi, sedas finíssimas e, no andar de cima, estampados de flores em cores vivas, e uma magnífica colecção de quadros. Dois Chagall, um Picasso, um Renoir, e um Monet que dava uma sensação de noite de verão à sala de jantar.

- Astrid, mas que fabuloso!

- Tenho que admitir que adoro isso. Tom tinha coisas tão ma­ravilhosas. E são coisas felizes de se conviver. Compramos algumas peças juntos, mas a maioria já era dele. Mas fui eu mesma que escolhi o Monet.

- É uma beleza.

Astrid parecia orgulhosa. Tinha todo o direito de estar.

Até mesmo os copos nos quais serviu o uísque eram lindos... cristal fino como papel, com uma tonalidade de arco-íris que ficava visível quando eles eram erguidos à luz do fim de tarde. E havia uma vista impressionante da Ponte Golden Gate e da baía. Da biblio­teca do andar superior, onde se acomodaram com as suas bebidas.

- Deus, que casa magnífica. Nem sei o que dizer.

Era esplêndida. A biblioteca era em lambris e cheia de livros antigos. Numa das paredes havia uma tela de um homem com ar sério, e um Cezanno encaixando a pequena lareira de mármore marrom. A tela representava Tom. Jessie podia facilmente imaginá­-los juntos, a despeito da grande diferença de idade. Havia uma luz cálida nos seus olhos; pressentia-se que o riso vinha chegando. Enquanto olhava para o quadro, Jessie subitamente se deu conta de como Astrid devia estar se sentindo só, agora.

- Era um belo homem.

- É, e combinávamos tanto! Perdê-lo foi um golpe terrível. Mas tivemos sorte. Dez anos é um bocado, quando são dez anos como os que tivemos.

Mas Jessie podia ver que Astrid ainda não resolvera o que fazer da sua vida. Flutuava... de lojas de roupas e joalheiros para peleiros e viagens. Não tinha nada para ancorá-la. Tinha a casa, o dinheiro, as telas, as roupas... mas não, tinha mais o homem. E ele era a chave. Sem Tom nada realmente significava coisa alguma. Jessie podia imaginar como seria. E ficava gelada só de pensar.

- Como é o seu marido, Jessica?

Jessie sorriu.

- Fantástico. É escritor. E... bem, é meu melhor amigo. Acho que é maluco e maravilhoso e brilhante e bonito. É a única pessoa com quem posso realmente conversar. É alguém muito especial.

- Isso diz tudo, não é?

Havia uma luz suave nos olhos de Astrid, enquanto falava, e Jessie subitamente sentiu-se culpada. Como podia exaltar as quali­dades do Ian tão abertamente para essa mulher que havia perdido o homem que significava para ela tanto quanto o Ian significava para Jessie?

- Não, Jessica, não fique com essa cara. Sei o que está pen­sando, e está errada. Deve mesmo sentir-se assim. Deve dizê-lo exactamente com esta maravilhosa expressão de vitória no rosto. Era assim que eu me sentia em relação ao Tom. Acalente o seu senti­mento, exiba-o, curta-o, jamais peça desculpas por ele, e seguramen­te não para mim.

Jessica balançou a cabeça, pensativa, enquanto sorvia o seu drinque, e depois ergueu os olhos para Astrid.

- Estamos tendo uns problemas bem feios, agora.

- Um com o outro?

Astrid estava surpresa. Não era visível no rosto de Jessica. Algo havia, mas não problemas com o marido... ela parecia feliz demais quando o descrevera. Quem sabe problemas financeiros. Os jovens tinham esses problemas. Porém havia algo mais. Vinha à tona nos momentos mais inesperados. Um sussurro de medo, quase temor. Doença, quem sabe? A perda de um seio? Astrid estava curiosa, mas não queria se intrometer.

- Acho que pode chamar de uma crise. Até mesmo uma gran­de. Mas o problema não é um com o outro, não nesse sentido.

Olhou para a baía e ficou calada.

- Estou certa de que vocês o resolverão.

Astrid sabia que Jessie não queria conversar a respeito.

- Espero que sim.

A conversa delas passou inesperadamente para negócios, então, para como a loja era gerida e que tipo de clientes tinha. Astrid fê-la rir-se contando algumas histórias dos seus tempos de Vogue em Nova York. Eram quase sete horas quando Jessie se levantou para ir para casa. E não estava com a mínima vontade de ir.

- Até amanhã. Às sete e meia?

- Estaremos aqui impreterivelmente. Mal posso esperar para mostrar a casa ao Ian. - E então, teve uma idéia. - Astrid, gosta de balé?

- Adoro.

- Quer vir ver o Joffrey com a gente na semana que vem?

- Não... eu...

Houve uma tristeza momentânea nos seus olhos.

- Qual é, não seja chata. Ian adoraria nos levar, às duas. Deus, o que isso fará ao seu ego.

Riu, e Astrid pareceu hesitar. Depois fez que sim, com um sorrizinho de garota.

- Não posso resistir. Detesto segurar vela... passei por isso quando o Tom morreu, e é a coisa mais triste do mundo. e até bem mais fácil ficar sozinha. Mas adorava ir com vocês, se o Ian não se importar.

Separaram-se como duas novas colegas de escola que têm a sorte de descobrir que moram na mesma quadra. E Jessie correu para casa para contar ao Ian sobre a casa que visitara.

Ele ia adorá-la, e a Astrid. Ela lembrava a Jessie a sua própria pessoa, como gostaria de ser. Todo o equilíbrio do mundo, e tão meiga, tão aberta, tão bem-humorada. Podia estar incerta quanto ao rumo que a sua vida ia tomar, mas há muito que acertara os ponteiros consigo mesma, o que era evidente. Irradiava carinho e paz, não mais tentava agarrar a vida, como Jessie. Mas Jessie não tinha inveja dela. Ainda tinha o Ian, e Astrid não mais tinha o Tom. E, enquanto se dirigia para casa, Jessica pegou-se dobrando-se toda na entrada para carros, ansiosa para ver o Ian, não apenas a sua imagem pintada.

 

Enquanto se acercava da porta da frente, viu um homem que se afastava da casa e se dirigia para um carro estranho estacionado na entrada para carros. Deu-lhe um longo olhar avaliador, e depois balançou a cabeça. E Jessie sentiu o terror inundá-la. A polícia... a polícia estava de volta....... o que estavam fazendo agora? O terror chegou-lhe aos olhos enquanto ficava parada ali, grudada ao chão.

O pesadelo recomeçara. Pelo menos ele não era o Inspector Hough­ton. E onde estava o Ian? Tinha vontade de gritar, mas não podia. Os vizinhos podiam ouvir.

- Sou Harvey Green. Sra. Clarke? - Ela meneou a cabeça e ficou parada, ainda olhando-o com horror. - Sou o investigador a quem. Martin Schwartz entregou o seu caso.

- Ah, sei. Já falou com o meu marido?

Sentiu subitamente a brisa fresca no rosto, mas ainda levaria algum tempo para o seu coração deixar de bater loucamente.

- Sim, já falei.

- Há mais alguma coisa que queira que eu acrescente?

Além do dinheiro.

- Não. Temos tudo sob controle. Eu me comunicarei com vocês.

Fez uma continência simulada, junto ao cabelo descorado e continuou o caminho para o seu carro. Era bege ou azul-claro, Jessie não tinha certeza ao crepúsculo. Quem sabe era branco. Ou verde-claro. Como ele, era totalmente indeterminado. Tinha olhos desagradáveis e um rosto fácil de esquecer. Sumiria no meio de uma multidão. Parecia não ter idade, as suas roupas estariam fora de moda em qualquer década. Era perfeito para o papel.

- Querido, cheguei! - Mas agora a voz dela tinha uma ento­nação nervosa, como tinha a dele quando respondeu. - Querido?... Fomos convidados para jantar amanhã.

Não que nenhum deles estivesse interessado. Subitamente Har­vey Green parecia muito mais importante do que Astrid.

- Convidados? Por quem?

Ian estava se servindo de uma bebida na cozinha. E não era o costumeiro vinho branco. Era bourbon ou scotch, que ele raramente bebia, excepto quando tinham convidados de Nova York.

- Pela nova freguesa que conheci na loja. Astrid Bonner. Ela é um amor; acho que vai gostar dela.

- Quem?

- Você sabe. Já lhe contei. A viúva que mora no palácio de tijolos ali na esquina.

- Está bem. - Tentou forçar um sorriso, mas estava difícil. - Encontrou com o Green, quando estava chegando?

Ela fez que sim.

- Pensei que ele era um tira. Dei um pulo de mais de um metro.

- Eu também. Divertido, não é, viver desse jeito?

Ela tentou ignorar o comentário e sentou-se na sua cadeira habitual.

- Quer me preparar um também?

- Uísque com água?

- Por que não?

Seria o seu terceiro.

- Está bem. A viúva deve ter uma casa e tanto.

Mas ele não parecia realmente estar interessado. Colocou o gelo num outro copo.

- Você a verá amanhã. E Ian... convidei-a para nos fazer companhia no balé. Importa-se?

Passou-se um momento e dois goles antes que ele a olhasse nos olhos e respondesse e, quando o fez, ela não gostou do que viu.

- Meu bem, a esta altura, eu estou me lixando.

Tentaram fazer amor naquela noite depois do jantar, e pela pri­meira vez desde que se tinham conhecido, Ian Não conseguiu. Tam­bém se lixou para o facto. Parecia o começo do fim.

 

- Já está pronto? - Jessica podia ouvir Ian fazendo barulho no quarto em que trabalhava, e ela acabara de escovar o cabelo. Usava calças de seda branca e uma suéter de croché cor de turquesa, e ainda Não tinha certeza de estar adequadamente vestida. Provavel­mente Astrid estaria usando algo fabuloso, e parecia que Ian ficara submerso no estúdio. - Ian, está pronto?

O barulho cessou, e ela ouviu passos.

- Mais ou menos.

Sorria para ela do vão da porta do quarto e ela olhou nos seus olhos enquanto se dirigia para ele.

- Sr. Clarke, o senhor está absolutamente lindo.

- A senhora também.

Usava o novo blazer azul-escuro de Cardin que ela trouxera de Nova York, camisa creme e gravata de linho, com calças de gabardina bege que ela comprara na França. Esculpiam-lhe as per­nas longas e graciosas.

- Está terrivelmente alinhado e terrivelmente lindo e acho que estou terrivelmente apaixonada por você, querido.

Ele fez uma bela reverência e abraçou-a quando ela chegou perto dele.

- Nesse caso, então que tal ficarmos em casa?

Tinha um brilho malicioso nos olhos.

- Ian, não me toque! Astrid ficaria tão desapontada se nós não fôssemos. E você vai adorá-la.

- Promessas, promessas.

Porém ofereceu-lhe o braço enquanto ela pegava a jaqueta de seda branca que deixara na cadeira do corredor. Ele ia ao jantar para agradá-la. Estava preocupado com outras coisas.

Jessica tocou a campainha e eles esperaram. Por um momento, ninguém veio atender.

- Quem sabe ela resolveu que não quer a gente.

- Ora, cale a boca. Você está é querendo ir para casa trabalhar no seu livro.

Porém sorria para ele, e então ouviram passos.

A porta se abriu um segundo mais tarde, e lá estava Astrid, resplendente num longuinho preto de malha e um comprido fio de pérolas. O cabelo estava preso num coque frouxo na nuca e os olhos brilhavam enquanto os levava para dentro. Estava ainda mais linda do que Jessica a achara antes. E Ian estava obviamente estupefacto. Esperava uma viuva de meia-idade, e concordara com o jantar mais como concessão a Jessie. Não tivera idéia de que ia encontrar esta visão de negro com a cinturinha de bibelô de Dresden e o pescoço longo e elegantemente arqueado... e aquele rosto. Gostava do rosto. E da expressão dos olhos dela. Esta não era nenhuma senhora de idade. Era uma mulher.

As duas mulheres se abraçaram e Ian ficou de lado por um momento, observando-as, fascinado pela mulher mais velha que ainda não conhecia, e pela casa fantástica que começava a vislumbrar por cima do ombro dela. Era impossível não olhar fixamente, quer olhasse para a casa ou para ela.

- E este é o Ian.

Obedeceu ao chamado, sentindo-se como um garotinho sendo apresentado pela mãe - “Cumprimente a senhora, querido” - e estendeu a mão.

- Como vai?

Subitamente ficou satisfeito por ter usado o novo paletó Cardin e a gravata. Este não ia ser simplesmente mais um jantar. E ela provavelmente era uma esnobe dos quatro costados. Tinha que ser, num ambiente desses. E viúva, ainda por cima. Nouveau-riche como o diabo... mas uma desconfiança murmurada dizia-lhe que não era assim. Ela não tinha os olhos do peixe-morto de uma esnobe, ou as sobrancelhas altivas. Tinha olhos simpáticos, num rosto simpá­tico. Parecia uma pessoa.

Astrid ria alegremente enquanto os conduzia para o andar de cima, para a biblioteca, e Ian e Jessica trocaram olhares enquanto passavam por esboços e gravuras delicados nas paredes Picasso... Renoir... Renoir de novo... Manet... Klimt... Goya... Cassalt... Tinha vontade de assobiar, e Jessica sorria para ele como uma conspiradora que o ajudara a entrar na casa mal-assombrada da vizinhança. Ele ergueu as duas sobrancelhas e ela mostrou-lhe a língua. Astrid estava na frente deles, e já descia o corredor. Tinha vontade de sussurrar, Jessie de dar risadinhas, mas não podiam. Pelo menos até chegarem em casa. Mas ela estava curtindo adoidado a expressão do rosto dele. Fazia-a sentir-se subitamente arteira.

Beliscou-o delicadamente no traseiro enquanto passava por ele para entrar na biblioteca.

Astrid tinha um prato de canapés e um patê esperando por eles. Um fogo ardia na lareira. Ian aceitou uma fatia de patê num pedacinho de torrada e depois riu para Astrid.

- Sra. Bonner, nem sei como dizer isso, e sinto-me como se tivesse 14 anos, mas estou embasbacado com a sua casa.

E com a minha anfitriã. Deu aquele sorriso cativante que Jessie adorava, e Astrid riu junto com ele.

- Estou encantada, é um lindo elogio, mas chamar-me de “Sra. Bonner” não é. Você pode sentir-se com 14 anos, mas está fazendo com que eu me sinta com 400. Experimente “Astrid” - espalmou as duas mãos, com ar travesso - ou eu posso ter que botá-lo porta afora. E não “Tia Astrid”, também, pelo amor de Deus! - Os três acharam graça e ela tirou os sapatos e dobrou as pernas sob o corpo numa poltrona ampla e confortável. - Mas fico muito contente que você goste da casa. Ela às vezes é embaraçosa, agora que o Tom não está mais aqui. Eu a adoro, mas ocasionalmente sinto como se não tivesse estatura para tudo isso. Quero dizer, ela é tão... tão... bem, como se ela devesse ser da minha mãe, e eu estivesse apenas tomando conta. Quero dizer, de verdade, eu? Nisso tudo? Que ridículo!

Excepto que não era nada ridículo. Combinava com ela perfei­tamente. Ian se perguntava se ela sabia o quão perfeitamente, ou se realmente estivera falando a sério. Imaginava que Tom tivesse cons­truído a casa para complementá-la, incluindo os quadros e a vista.

- Combina com você muito bem, sabe?

Ian fitava-a nos olhos, e Jessica observava o diálogo.

- É, combina, de algumas maneiras, e não combina, de outras. Às vezes afugenta as pessoas. O estilo de vida. A opulência. A... acho poder-se-ia chamar de aura. Um bocado dela é o Tom, e parte é apenas... ah... coisas. - Fez um gesto vago indicando a sala, abrangendo rapidamente uma fortuna em objectos de arte. Coisas. E parte dela sou eu. - Ian gostava do facto que ela admitia isso. - As pessoas esperam que você seja muita coisa, quando se vive desse jeito. Às vezes esperam que eu seja algo que não sou, ou vão embora sem ver o que sou. Já lhe disse, Jessie, trocaria esta casa pela sua jóia de casa a qualquer hora. Mas... - Ela sorriu como uma gata espreguiçando-se ao sol. - .. .Aqui também não é um mau lugar para se morar.

- Me parece um lugar danado de bom para morar, se quer a minha opinião, Sra.... Astrid. - Trocaram rápidas risadas pelo deslize. - Mas duvido que quisesse fazer a troca pela nossa “jóia”, quando ligasse o secador de cabelo e a máquina de lavar pifasse ou quando o encanamento despencasse até o porão. O nosso can­tinho tem as suas mazelas.

- Parece divertido.

Era evidente que nada desse tipo acontecia ali, e Jessie estava dando um amplo sorriso, lembrando da última vez em que todos os fusíveis tinham queimado e Ian tinha se recusado a tomar providências; tinham passado resto da noite à luz de velas.... até que ele precisou da máquina de escrever eléctrica para trabalhar. Olhou para ela encabulado, sabendo o que estava pensando.

- E então, crianças? Querem conhecer toda a casa?

Astrid interrompeu os seus pensamentos. Jessie não tinha ainda visto tudo, e Ian concordou rapidamente.

Ela desceu descalça o corredor acarpetado, acendendo inter­ruptores sob arandelas de bronze, abrindo portas, acendendo mais luzes. Havia três dormitórios no andar de cima. O dela era todo estampado de flores, em cores amarelas-vivas, com uma grande cama de armação e a mesma vista esplêndida da bala. Tinha um pequeno quarto de vestir todo espelhado e um banheiro de mármore branco, que era repetido em verde-claro do outro lado do corredor, para combinar com um quarto discretamente elegante cheio de pe­quenas antiguidades franco-provincianas.

- Minha mãe dorme aqui quando vem à cidade, e o quarto combina perfeitamente com ela. Entenderão o que quero dizer quando a virem. Ela é muito cheia de vida e pequenina e engraçada, e gosta de flores por toda parte.

- Mora no Leste?

Ian estava curioso, e lembrava-se apenas de que Jessie tinha dito que Astrid viera originariamente de Nova York.

- Não, mamãe mora numa estância aqui perto, imaginem só. Comprou-a há alguns anos, e está adorando. Para espanto nosso, está se dando bem lá. Pensávamos que estaria cheia dela em seis meses, mas não está. Ela é muito independente, anda muito a cavalo e adora bancar o cowboy. Aos 72 anos, vejam só. Faz a gente pensar um pouco em Colette.

Jessie sorriu ao pensar numa mulherzinha de cabelos brancos e roupa de vaqueiro metida nesse quarto todo delicado. Mas, se ela fosse em algo semelhante à filha, tiraria de letra. Com botas de vaqueiro feitas sob encomenda no Gucci e chapéu de Adolfo.

O quarto ao lado de Astrid era mais severo e tinha aparente­mente pertencido ao seu marido. Jessie e Ian trocaram um rápido olhar... eles tinham quartos separados? Mas Jessie se lembrou da diferença de idade. Havia um escritório pequeno e elegante ao lado do  quarto, todo em couro vermelho, com uma bela escrivaninha aluga coberta de fotos de Astrid.

Esta passou rapidamente pelo quarto e voltou ao corredor, fechando a porta do quarto de hóspedes verde enquanto Jessie e Ian a seguiram.

- É uma casa magnífica - suspirou Jessie. Era o tipo de casa que dava vontade da gente aparecer para o próximo convite para jantar trazendo todos os pertences nos braços. Dava vontade de ficar ali para sempre. Agora os dois entendiam por que não fechava a casa e procurava algo menor. Ela contava uma história de gente que gostava... de beleza, um do outro, de viver bem.

- E vocês viram a parte de baixo? Não é muito excitante, mas é bonita.

Jessie se perguntava por que não havia sinal de criados. A gente ficava esperando pelo menos uma empregada de avental branco, ou um mordomo, mas ela parecia morar sozinha.

- Vocês gostam de siri? Eu devia ter telefonado e perguntado, mas esqueci.

Parecia levemente encabulada.

- Adoramos sim - respondeu Jessie pelos dois.

- Ah, que óptimo! Parece que toda vez que quero servi-lo aos amigos, e esqueço de perguntar antes, alguém é alérgico ou coisa parecida. Eu adoro!

Foi um banquete fora do comum. Astrid empilhou uma mon­tanha de siris desmembrados e partidos numa imensa travessa no centro da mesa da sala de jantar, trouxe uma jarra grande de vinho branco, acrescentou uma salada e pãezinhos quentes, e convidou as visitas a porem mãos à obra. Enrolou as mangas do vestido preto de malha, convidou Ian a tirar o paletó e ficou sentada ali como uma criança, disputando as garras com quem as via primeiro.

- Ian, você é um monstro. Vi essa primeiro, você sabe!

Bateu de leve com a garra nos dedos dele enquanto ficava com ela, dando risadinhas e sorvendo o seu vinho. Tinha razão... pa­recia mesmo uma garotinha cuja mãe tinha saído e deixado que ela convidasse amigos para jantar, “contanto que todos se comportem bem”. Ela era encantadora, e tanto Jessie quanto Ian se apaixonaram por ela.

Foi uma noite descontraída; pareciam três pessoas sem nenhum problema - só gostos dispendiosos, uma queda para o prazer. Já passava da meia-noite quando Ian se levantou e estendeu a mão para Jessie.

- Astrid, eu podia ficar aqui até as quatro da manhã, mas tenho que levantar cedo para trabalhar no livro, e se Jessie não dorme o suficiente, vira um monstro. - Mas era evidente que todos compartilhavam do pesar pelo término da noite. - Virá connosco ao balé na semana que vem?

- Com prazer. E: deixe que lhe diga que Jessie tinha me dito que eu o adoraria e estava absolutamente cem por cento certa. Não posso imaginar outras duas pessoas para quem gostaria mais de segurar vela.

- Óptimo. Só que com você não se trata de segurar vela, ora.

Todos riram e Astrid abraçou os dois quando saíram, como se os conhecesse há anos. Sentiam como se fosse assim, vendo-a de pé à porta, descalça, acenando antes de fechar a porta preta lustrosa com a aldrava de bronze representando uma cabeça de leão.

- Puxa, Jess, mas que noite gostosa. E que mulher maravi­lhosa. Ela é um espanto.

- Não é? Mas deve se sentir solitária como o diabo. Há algo no jeito com que convida as pessoas a entrarem na sua vida, como se tivesse muito amor sobrando e ninguém para dá-lo, de um modo geral.

Jessie bocejou, dizendo as últimas palavras, e Ian concordou. Conversar sobre os acontecimentos da noite era sempre a melhor parte. Ela já não conseguia se lembrar mais de quando Ian Não estava por perto para partilhar segredos e opiniões e perguntas. Ele estivera com ela desde sempre.

- Como você acha que era o marido dela, Jess? Desconfio que não era tão divertido quanto ela.

- Por que está achando isso? - O comentário surpreendeu-a. Não havia nada para sugerir que Tom Bonner tivesse sido menos divertido do que a mulher. E então Jessica riu, adivinhando o que Ian quis dizer. - Os quartos separados? - Ele deu um sorriso maroto e ela o beliscou. - Você é um monstro.

- Não sou, não. E deixe que lhe diga uma coisa, madame, não me importo se eu estiver com noventa anos, a senhora nunca me tirará do seu quarto.... ou da nossa cama!

Parecia intransigente e muito satisfeito consigo mesmo enquanto a apertava mais junto a si na curta caminhada até em casa.

- Isso é uma promessa, Sr. Clarke?

- Por escrito, se quiser, Sra. Clarke.

- Olhe que eu quero! - Pararam por um momento e se beija­ram antes de dar os últimos passos na direcção de casa. - Que bom que você gostou da Astrid, amor. Eu a curto de verdade. Gos­taria de conhecê-la melhor. Ela é uma pessoa boa de se conversar. Sabe, eu... bem, quase tive vontade de contar-lhe o que está acon­tecendo com a gente. Começamos a conversar no outro dia, e... - Jessie deu de ombros. Era difícil verbalizar, e Ian estava começando a fechar a cara. - Ela me dá uma vontade de contar-lhe a verdade.

Ian parou de andar e olhou para ela.

- Contou?

- Não.

- Óptimo. Porque acho que está se enganando, Jess. Ela é uma mulher simpática, mas ninguém vai entender o que está acontecendo com a gente agora. Ninguém. Como é que a gente conta para alguém que vai a julgamento por estupro? Faça-nos um grande favor, meu bem, e não fale nisso. Temos que torcer para que toda essa confusão acabe logo para que possamos esquecê-la. Se contarmos às pessoas, isso poderia nos perseguir durante anos.

- Foi o que resolvi. E ei, qual é... confie em mim um pouqui­nho, tá legal? Não sou burra. Sei que seria difícil para a maioria das pessoas entender.

- Então não peça para que elas o façam.

Jessica não respondeu, e Ian foi andando na frente para abrir a porta da casa. Pela primeira vez que Jessie podia se lembrar, a sua separação do resto do mundo feita por escolha, quase uma sociedade secreta, agora parecia um isolamento solitário. Não podia falar com mais ninguém, excepto o Ian. Ele proibira. No passado sempre fora uma questão de escolha.

Jessie entrou atrás dele e deixou a jaqueta no corredor da entrada.

- Quer uma xícara de chá antes de ir para a cama, amor?

Botou uma chaleira d’água no fogo e ouviu-o ir para o estúdio.

- Não, obrigado.

Ficou parada à porta do estúdio por um momento e sorriu para ele enquanto se sentava à mesa. Tinha um cálice de conhaque ao lado e uma pequena pilha de papéis à frente, na mesa de trabalho. Afrouxou a gravata, recostou-se e olhou para a mulher.

- Olá, linda senhora.

- Oi. - Trocaram o mais subtil dos sorrisos por um momento, depois Jessie inclinou a cabeça para o lado. - Está pretendendo trabalhar?

- Só um pouquinho.

Ela meneou a cabeça e foi tirar a chaleira do fogo; estava assobiando feito doida. Preparou uma xícara de chá, apagou o resto das luzes e foi suavemente para o quarto. Sabia que Ian levaria horas até vir para o quarto. Não poderia vir antes. Não poderia tentar fazer amor com ela hoje. Não depois da véspera. O gosto amargo do fracasso permanecera com eles. Como o resto do que lhes estava acontecendo, era novo, doloroso, cru.

 

A noite do balé com Astrid foi um sucesso tão grande quanto o jantar na casa dela. Chegaram ao teatro pouco antes da hora do pano subir, e Jessie preparara uma ceia que os esperava quando chegassem em casa. Bife tártaro, aspargos frios, uma variedade de queijos e pão francês, e um bolo de chocolate feito em casa. A um canto uma tigela grande de morangos frescos e creme batido, uma vasilha de cristal cheia de Schlag à moda vienense para os moran­gos ou o bolo. Era um banquete, e a plateia aprovou.

- Minha cara menina, não há nada que você não saiba fazer?

- Um bocado.

Mas Jessie estava muito satisfeita com o elogio.

- Não acredite nela. Pode fazer qualquer coisa.

Ian complementou o elogio com um beijo enquanto servia uma rodada de vinho de Bordéus. Chateau Margaux 55. Era uma ocasião especial, e ele estava servindo um dos seus vinhos preferidos.

A esta altura os três formavam um trio, contando piadas, parti­lhando histórias, sentindo-se à vontade. Já estavam no meio da segunda garrafa de vinho quando Astrid se levantou e olhou para o relógio.

- Santo Deus, crianças, são duas horas. Não que eu tenha algo para fazer amanhã, mas vocês têm. Sinto-me muito culpada deixando-os acordados até esta hora.

Ian e Jessica trocaram um olhar penetrante; tinham mesmo que acordar cedo no outro dia. Mas Astrid não viu o olhar. Estava procurando a sua bolsa.

- Não seja boba. Noites como esta são um presente para nós.

Jessie sorriu para a amiga.

- Não podem ser para vocês tanto quanto o são para mim. Não tem idéia do quanto adorei tudo isso. E o que vai fazer amanhã, Jessica? Posso tentá-la a almoçar comigo no Villa Taverna?

- Eu... desculpe, Astrid, mas não posso ir almoçar amanhã. - Outro olhar foi lançado para o lado do Ian. - Temos que ir a uma reunião de negócios de manhã, e não sei a que horas estaremos livres.

- Então por que nós três não vamos almoçar? - Encontrara a bolsa e estava pronta para sair. - Podem ligar para mim quando acabar a reunião.

- Astrid, embora eu lamente muito, acho melhor deixarmos para outro dia.

Ian estava pesaroso, mas firme.

- Acho que vocês dois são uns malvados.

Mas agora estava sentindo algo entre eles, uma tensão que não tinha estado lá antes. Algo estava um pouco fora do tom, ela não sabia dizer o que, e ficou se lembrando do problema que Jessie mencionara quando tinham se conhecido. Ele nunca fora mencionado de novo, e Astrid continuara imaginando que fosse um problema de dinheiro. Era difícil de acreditar, mas obviamente não podia ser mais nada. Não era saúde, nem problemas com o casamento, sem dúvida... havia abraços demais, e contactos, beijos, palmadinhas nas costas, rápidos apertões quando estavam lado a lado. Havia demais de tudo isso para que alguém pudesse acreditar que aquele casamento estivesse encrencado.- Quem sabe podemos ir todos ao cinema no fim de semana – Ian olhou as duas mulheres e tentou aliviar o momento quieto demais. - Não é tão classe A. quanto o balé, mas há um novo thriller francês passando na Union. Alguém interessado?

- Ah, vamos!

Jessie bateu palmas e olhou para Astrid, que abriu um sorriso e fez um ar cauteloso.

- Só se vocês absolutamente me jurarem que vão me comprar um quilo de pipoca.

- Juro.

Ian ergueu a mão solenemente num juramento formal.

- Por tudo que é mais sagrado?

- Por tudo que é mais sagrado - repetiu, e os três começa­ram a rir. - Você é mesmo exigente.

- Tenho que ser. Sou viciada em pipoca. Com manteiga! - Olhou para ele com ar severo e ele lhe deu um abraço fraterno. Astrid retribuiu o abraço e inclinou-se para dar um beijo no rosto de Jessie. - E agora vou dar boa-noite a ambos. E deixar que durmam um pouco. Sinto muito que tenha ficado tão tarde.

- Não sinta. Nós não estamos sentindo.

Jessica acompanhou-a até a porta e Astrid foi embora com uma sensação curiosa, quase sinistra. Não era nada que pudesse ver ou tocar ou estar absolutamente certa da existência, mas algo parecia pairar no ar, bem acima das cabeças deles... como um bloco de concreto.

A audiência preliminar estava marcada para a manhã seguinte.

 

Jessie entrou no tribunal em miniatura apertando com força a mão de Ian. Usava o costume azul-marinho e os óculos escuros de novo, e Ian parecia cansado e pálido. Não dormira muito, e estava com dor de cabeça por causa do vinho da véspera. Os três juntos tinham tomado as duas garrafas de Margaux.

Martin Schwartz estava esperando por eles no tribunal. Estava examinando uma pasta numa mesinha a um canto da sala, e fez-lhes sinal para se reunirem a ele lá fora.

- Vou pedir uma audiência a portas fechadas. Achei que deviam saber, para não ficarem surpresos.

Parecia terrivelmente profissional, e ambos sentiram-se confusos. Ian falou primeiro, com uma ruga de preocupação na testa.

- O que é uma audiência a portas fechadas?

- Acho que a vítima poderá falar mais livremente se não houver observadores no tribunal. Apenas você, ela, a promotora assistente, o juiz e eu próprio. É uma precaução sensata. Se trouxer amigos, vai querer que pensem que é pura como a neve. E pode reagir mal à presença de Jessica.

Sem entender o motivo, Jessica crispou-se involuntariamente ao som do próprio nome.

- Escute, se eu posso aguentar, ela também pode.

Jessica estava insuportavelmente nervosa, e com pavor de ver a tal mulher. Queria estar em qualquer lugar, menos ali. Cada fibra do seu ser gritava ante a perspectiva do que estava por vir. A inimi­ga. Tanta coisa a enfrentar num ser humano. A infidelidade de Ian, a sua própria insuficiência, a ameaça ao futuro deles, a lembrança da montanha quase inescalável de tentar libertá-lo sob fiança. Tudo isso condensado naquela mulher.

Martin podia ver como ambos estavam tensos. Sentia pena deles e suspeitou acertadamente do que estava causando o nervosismo de Jessie: Margaret Burton.

- Confie em mim, Jessie. Acho que uma audiência a portas fechadas será melhor para todos os implicados. Daqui a alguns mi­nutos devemos começar. Por que vocês dois não vão dar um passeio pelo corredor? Não se afastem muito, e eu virei dar um sinal quando o juiz estiver pronto para começar.

Ian concordou com um movimento tenso de cabeça e Martin voltou para dentro. O braço de Ian parecia ter um peso de chumbo pendendo dele. Jessie.

Não tinham nada para dizer enquanto caminhavam pelo corre­dor, viravam no fundo, e voltavam pelo mesmo caminho. Jessica deixou o pensamento vagar para as lembranças de outros corredores de mármore... a Prefeitura, onde ela e Ian tinham tirado a certi­dão de casamento... a espera diante do gabinete do director, no giná­sio... a casa funerária em Boston, quando Jake ....... e depois, de um a um, os pais.

- Jessie?

- Hã?

Franzia a testa de modo estranho enquanto olhava para ele, como se tivesse dificuldades em voltar para o presente.

- Tudo bem?

Parecia preocupado; ela apertava o braço dele com força demais e andava cada vez mais depressa enquanto caminhavam pelo cor­redor. Tivera que sacudir-lhe o braço para chamar-lhe a atenção.

- Está Tudo bem. Só estava pensando.

- Bem, pare de pensar. Vai dar tudo certo. Relaxe.

Ela começou a dizer alguma coisa, e ele pode ver pela expressão dos seus olhos que não ia ser agradável. Estava nervosa demais para ser cautelosa ou bondosa.

- Eu... desculpe... este é um dia tão esquisito. Não lhe pa­rece esquisito? Ou será que é só para mim?

Ela começou a se perguntar se estaria ficando maluca.

- Não, não me parece esquisito. Uma merda, mas não esqui­sito. - Tentou sorrir, mas ela não estava olhando para ele. Tinha o olhar perdido na distância, sonhador de novo. Estava começando a deixá-lo assustado. - Escute aqui, caramba, se não se controlar já, já, vou mandá-la para casa.

- Para quê? Para que eu não a veja?

- Droga, é isso que a está preocupando? Vê-la? É só isso. Merda. Minha sorte está em jogo e você está preocupada em vê-la. Estou cagando para ela. E se revogarem a minha fiança?

- Não revogarão.

- E como é que você sabe?

- Eu... eu... é, Ian, não sei. Eles não podem, é só. Por que revogariam?

Nem sequer pensara nisso. Agora era mais uma coisa com que se preocupar.

- Por que não revogariam?

- Bem, quem sabe se eu tivesse seduzido o Inspector Houghton, ou Barry York, o nosso bem-amado fiador, talvez não o fizessem. Mas como não o .fiz, pode ser que revoguem a fiança.

O tom de voz dela era amargo e assustado.

- Vá para casa, Jessica.

- Vá à merda.

E então Ian parou de falar e olhou para além dela. O tempo pareceu parar enquanto Jessica se virava para olhar, também. Era Margaret Burton.

Usava o mesmo chapéu. Mas com um costume bege comportado Estava até mesmo usando luvas brancas. As roupas eram baratas, mas arrumadinhas e discretas. Parecia muito enfadonha. Como o estereótipo da professora primária ou da bibliotecária, alguém terri­velmente séria e assexuada. O cabelo estava repuxado num coque na nuca e mal era visível sob o chapéu. As raízes negras não eram visíveis. Não usava maquilhagem e os sapatos eram baixos e desele­gantes. Era óbvio que uma mulher como essa só faria amor sob a mira de um revólver.

Ian não disse nada, mas olhou por um longo momento, depois virou o rosto. Jessica fitava-a, com uma expressão de ódio no rosto que ele nunca vira antes. Estava grudada no chão.

- Jess... vamos, meu bem. Por favor.

Pegou-a pelo cotovelo e tentou descer o corredor com ela, mas ela não se mexia. Margaret Burton desapareceu no tribunal sem ter deixado transparecer que o vira. E mesmo assim Jessica não se mexia. O Inspector Houghton entrou rapidamente atrás da Srta. Bur­ton, e Martin Schwartz apareceu e fez sinal para Ian, enquanto Jessie simplesmente ficava parada, olhando fixo.

- Escute, Jessie, sente-se naquele banco por alguns minutos. Volto logo que eu puder.

Ela estava em péssimo estado, e ele já tinha o bastante com que se preocupar.

- Ian? - Virou-se e olhou para ele com uma expressão ferida nos olhos, e ele sentiu as entranhas transformarem-se em areia. - Não estou entendendo mais nada.

Nem havia lágrimas nos olhos dela. Apenas dor.

- Nem eu. Mas tenho que entrar, agora. Você ficará bem aqui, ou quer ir para casa?

Não tinha certeza de que confiava em deixá-la sozinha. A expressão nos seus olhos estava ficando familiar demais.

- Estarei aqui.

Não fora isso que lhe perguntara, mas não tinha tempo para discutir. Desapareceu no tribunal e Jessie sentou-se sozinha no banco de mármore frio. Ficou vendo pessoas indo e vindo. Gente de aparência comum. Homens com pastas de executivo. Mulheres segurando com força lenços de papel. Criancinhas maltrapilhas com sapatos de saltos completamente gastos e calças curtas demais para as perninhas magricelas. Meirinhos, advogados, juizes, vitimas, réus, testemunhas.... gente. Iam e vinham enquanto Jessie ficava sentada pensando em Margaret Burton. Quem era ela? Por que fizera aquilo? Parecia tão orgulhosa, tão dona da verdade enquanto entrava no tribunal. O tribunal...

Subitamente, seus olhos foram atraídos para a porta. Era de madeira escura e muito encerada, com maçanetas de bronze e duas janelinhas de vidro, como olhos, olhando para fora... olhando para fora... olhando para dentro... dentro... tinha que estar lá, do lado de dentro... para vê-la... para ouvir... para descobrir por que... precisava entrar.

Um pequeno cartaz pendia meio torto de uma das maçanetas - FECHADO - e um meirinho de uniforme cinzento estava parado a um canto, ligeiramente afastado, olhando com desinteresse para quem passava. Jessica empertigou-se toda, alisou a saia, e subitamente se sentiu muito calma. Afixou um pequeno sorriso no rosto. Havia o mais leve dos tremores no canto do seu olho direito, as convulsões de uma borboleta, mas quem iria notar? Parecia muito auto-suficiente, e deu um leve sorriso para o meirinho enquanto se dirigia para a porta e segurava a maçaneta.

- Desculpe, minha senhora. O tribunal está fechado.

- Sim, eu sei. - Parecia quase satisfeita com a notícia, como amola fosse a responsável e estivesse contente por ver suas ordens cumpridas. - Estou acompanhando o caso.

- Advogada?

Ele começou a sair da frente. O tremor no olho dela ameaçava querer arrancar-lhe a pálpebra.

Ela moveu a cabeça, suavemente.

- Sim.

Ah, Jesus. Não. E se ele pedisse as suas credenciais? Ou entrasse e fosse falar com o juiz? Ao invés disso, abriu a porta para ela com um sorriso, e Jessie entrou serenamente na sala. A cena fora tipicamente ao estilo de Jessica. Ninguém jamais a questionava Mas, e agora? E se o juiz interrompesse o andamento do processo? E se mandasse botá-la para fora? E se...

O juiz era pequeno e nada impressionante, de óculos e ca­belos louro-acinzentados. Ergueu os olhos momentaneamente, sem se alterar com a chegada dela, e alçou uma sobrancelha na direcção de Martin Schwartz. Depois de um olhar penetrante para Jessica, Schwartz balançou a cabeça, com relutância, depois lançou um rápi­do olhar à promotora-assistente, que deu de ombros. Tudo bem, fora aceita.

O Inspector Houghton estava sentado perto do assento do juiz, fazendo algum tipo de declaração. A sala era em lambris, com cadeiras cobertas de couro na primeira fila, e cadeiras de espaldar teto nas demais. Era pouco maior do que o escritório de Martin Schwartz, mas havia uma aura de tensão tremenda no ar. Ian e Martin sentavam-se juntos a uma mesa, ligeiramente à esquerda. E a curta distância deles sentavam-se a Srta. Burton e a promotor assistente. Jessie ficou muito contrariada ao verificar que era uma mulher. Jovem, com aparência de durona, cabelo cheio de laquê e excesso de pó-de-arroz nas faces carnudas demais. Usava um vestido verde matronal e um fio de pérolas bem-comportado, e nos cantos da sua boca tinham-se formado os vincos duros da raiva. Transpirava uma indignação virtuosa pela sua cliente.

A jovem advogada virou-se para olhar para Jessica, e esta calculou que ela tivesse mais ou menos a sua idade, 30 e poucos anos. As duas mulheres trocaram um olhar de gelo. Mas Jessica viu o desprezo no rosto da outra mulher e então compreendeu o que isso ia ser. Uma guerra de classes. Ian, grande, malvado, de nível superior, morador em Pacific Heights, estuprara a pobre secretariazinha, de classe baixa, abusada, incompreendida, e que ia ser defendida pela jovem advogada de classe média, limpa, durona, pura, devotada. Jesus. Era só o que lhes faltava. Subitamente, Jessica perguntou-se se tinha usado a roupa errada. Mas mesmo de calça e blusa Jessica tinha o tipo de classe que aquelas mulheres odiariam. Que coisa louca até ter que pensar no que estava usando.

A Srta. Burton não tinha visto Jessica entrar, ou pelo menos não dera sinal disso. Nem o Ian. Ela sentou-se sem fazer barulho numa cadeira de espaldar recto atrás dele, e então, de repente, como se tivesse sido esbofeteado, ele ergueu a cabeça e rodopiou na cadeira, um ar de choque no rosto quando a viu atrás de si. a sacudir a cabeça, depois debruçou-se na direcção dela como se quisesse dizer alguma coisa, mas os olhos de Jessie estavam inflexíveis. Ela apertou ligeiramente o ombro dele, e Ian desviou olhar; era inútil discutir. Mas, enquanto se virava, os seus ombros largos pareceram se curvar.

O Inspector Houghton levantou-se da cadeira de onde estava dirigindo ao juiz, agradeceu ao tribunal, e voltou para uma cadeira do outro lado de Margaret Burton. E agora? O coração de Jessie batia com força. De repente não teve mais tanta certeza de que queria estar ali. O que iria ouvir? Será que aguentaria? E se desabasse? Ficasse maluca... começasse a gritar...?

- Srta. Burton, aproxime-se, por favor.

Enquanto Margaret Burton saía lentamente da sua cadeira, o coração de Jessie parecia desatinado de vontade de libertar-se. Seu corpo. Suas têmporas latejavam e ela se perguntou se ia de enquanto ficava olhando para as mãos trémulas. A Srta. Burton fez o juramento e Jessica ergueu os olhos, e todo o seu corpo tremia, agora. Por que ela? Era tão sem graça, tão feia, tão... vulgar. Mas, não, ela não era realmente feia. Havia algo nela, uma graça no modo como cruzava as mãos sobre os joelhos, o vestígio de beleza num rosto que agora estava duro demais para ser atraente. Algo... talvez. Jessie se perguntava como Ian se sentiria, sentado bem diante dela. Parecia estar a mil quilómetros de distância. Mar­garet Burton parecia muito, muito mais perto. Jessica sentia como se pudesse ver cada poro, cada cabelo, as narinas levemente dila­tadas, a trama do costume bege sem graça. Teve vontade louca de correr até ela, tocá-la, quem sabe esbofeteá-la, sacudi-la para que dissesse a verdade. Conte-lhes o que aconteceu, porra! A verdade! Jessica perdeu o fôlego e tossiu, tentando desanuviar a cabeça.

- Srta. Burton, queira explicar o que aconteceu no dia em questão, desde o momento que a senhora viu o Sr. Clarke pela pri­meira vez. Conte-nos simplesmente, com suas próprias palavras. Isso não é um julgamento. É meramente uma audiência preliminar para determinar se o assunto merece uma atenção maior do tribunal.

O juiz falava como se estivesse lendo um rótulo de suco de laranja - palavras que já falara mil vezes antes, e que nem escutava mais. Mas era o convite que Margaret Burton estava esperando. Pigarreou com uma pequena expressão de importância e o mais leve dos  sorrisos. O Inspector Houghton franziu a testa, olhando para ela, e a promotora-assistente parecia estar de olho no juiz.

- Srta. Burton?

O juiz olhava para o vazio, enquanto falava, e todos esperaram.

- Sim, senhor. Meritíssimo.

Jessica achava que a “vítima” não parecia suficientemente per­turbada. Vitoriosa, talvez, mas não perturbada. Não violada. Satis­feita? Mas isso era uma loucura. Por que deveria estar satisfeita? Mas Jessie não conseguia afastar essa impressão enquanto fitava a mulher que alegava que o seu marido a estuprara. E então começou o recital.

- Almocei no Enrico e depois comecei a subir a Broadway. - Tinha uma voz inexpressiva e desagradável. Um pouco estridente de mais. Um pouco alta demais. Uma voz excelente para reclamar e chatear. E estava alta demais para estar doendo. Doendo por dentro. Jessica se perguntou se o juiz estaria escutando mais do que as simples palavras. Não estava com cara disso. - Eu estava andando pela Broadway - continuou ela - e ele me ofereceu uma carona.

- Ele a ameaçou, ou apenas ofereceu uma carona?

Ela sacudiu a cabeça, quase com pesar.

- Não, ele não ameaçou. Não de verdade.

- O que quer dizer com “não de verdade”?

- Bem, acho que ele poderia ter ficado zangado se eu recusasse a carona, mas estava fazendo calor e não havia um só ónibus à vista e. ... - Ergueu os olhos para o juiz, e o rosto dele estava inexpressivo. - Bem, eu disse a ele onde trabalhava.

Parou por um momento, baixou os olhos para as mãos, e soltou um suspiro. Jessie teve vontade de torcer-lhe o pescoço. Aquele suspirozinho patético. Enterrou a mão no ombro de Ian, sem sentir, e ele deu um salto e virou-se para olhá-la com ar preocupado. Ela forçou um ténue sorriso e ele deu-lhe uma palmadinha na mão antes de voltar a olhar para Margaret Burton.

- Continue - instou o juiz. Ela parecia ter perdido o fio da meada.

- Desculpe, Meritíssimo. Ele.. ele não me levou para o escritório. e... bem, sei que foi uma loucura aceitar a carona. Mas, era um dia tão bonito e ele parecia um homem simpático. Pensei... nunca imaginei...

Inesperadamente, uma pequena lágrima escorreu de um olho, depois de outro; o aperto de Jessie no ombro de Ian ficou quase insuportável. Ele pegou a mão dela e segurou-a suavemente, até que ela a retirou, nervosa.

- Por favor continue, Srta.... Srta. Burton.

Verificou o nome nos papéis sobre a mesa, tomou um gole d’água e levantou os olhos. Jessie lembrou-se de que essa audiência não passava da rotina diária, para ele; parecia totalmente isolado do drama que absorvia o resto deles.

- Eu... ele me levou... a um hotel.

- A senhora foi com ele?

Mas não havia julgamento na voz dele; era apenas uma pergunta.

- Pensei que ele estava me levando ao meu escritório.

De repente, ela soava estridente e zangada. As lágrimas tinham desaparecido.

- E quando viu que ele não a tinha levado ao seu escritório, por que não saltou, então?

- Eu... não sei. Pensei que seria... ele só queria tomar um drinque, foi o que disse, e não era desagradável, só bobo. Pensei que era inofensivo e que seria mais fácil ir levando... quero dizer tomar o drinque... e então...

- Havia um bar no hotel quando entraram? - Ela sacudiu a cabeça. - Um encarregado da recepção? Alguém os viu entrar? Podia ter pedido ajuda? Não creio que o Sr. Clarke lhe estivesse apontando uma arma, ou qualquer coisa no género, não é? - Ela enrubesceu e sacudiu a cabeça, relutante. - Bem, alguém os viu?

- Não. - A palavra era quase inaudível. - Não havia ninguém ali. Parecia... uma espécie de apart-hotel.

- Lembra-se onde ficava?

Ela sacudiu a cabeça de novo e Jessica sentiu Ian mexer-se inquieto à sua frente, e quando ela olhou viu raiva no seu rosto. Finalmente. Parecia vivo de novo, ao invés de enterrado sob a dor e a descrença.

- Pode dizer-nos a localização do hotel, Srta. Burton?

Novamente, a negativa com a cabeça.

- Não. Eu... eu estava tão perturbada que... não notei. Mas ele... ele... - Subitamente o rosto dela se transformou de novo. Os olhos se iluminaram e quase brilharam com tal ódio e fúria que por um instante Jessie quase acreditou nela, e viu Ian ficar subitamente imóvel. - Ele pegou a minha vida e a jogou fora! Ele a arruinou! Ele... - Soluçou por um momento, depois inspirou fundo enquanto o brilho deixava os seus olhos. - Quando entramos, ele simplesmente me agarrou, e me arrastou para um elevador, e até um quarto e...

O silêncio dela dizia tudo, enquanto pendia a cabeça, derro­tada.

- Lembra-se do número do quarto?

- Não.

Manteve os olhos baixos.

- Reconheceria o quarto de novo?

- Não. Acho que não.

Não? Por que não? Jessie não podia imaginar alguém não se lembrar do quarto onde fora estuprada. Ficaria gravado na mente pra sempre.

- Reconheceria o hotel?

- Não tenho certeza. Mas creio que não.

Ainda não erguera os olhos, e Jessie duvidou mais ainda da sua história... e então se deu conta do que estava acontecendo: se estava duvidando da história era porque tinha havido uma hora em que acreditara nela. Naquela única explosão de lágrimas e fúria a mulher os convencera a todos. Ou chegara bem perto disso. Até mesmo a Jessica. Quase. Virou-se para olhar para o Ian e viu que ele a observava, os olhos molhados de lágrimas. Ele também sabia que estava acontecendo. Jessica pegou a mão dele de novo, desta feita suavemente e com vigor. Tinha vontade de beijá-lo, abraçá-lo, dizer-lhe que tudo ficaria bem, mas agora não tinha tanta certeza. Só tinha certeza de uma coisa.. do quanto odiava Margaret Burton.

Martin Schwartz também não estava com uma cara muito satisfeita. Se a tal Burton alegava não se lembrar de onde ficava o hotel, perdiam o último vestígio de esperança de encontrar uma testemunha que os pudesse ter visto lá. Ian também não conseguia localizar o hotel. Estava bêbado o bastante para a sua memória ficar embaçada, e o endereço de que julgava lembrar-se era errado; era o de um depósito. Havia muitos pequenos hotéis residenciais de segunda na área e Martin fizera Ian entrar em dúzias de saguões antes da audiência preliminar. Nada lhe parecia familiar. Portanto ia con­tinuar sendo um caso da palavra dele contra a dela, sem ninguém para corroborar nenhum dos lados. Schwartz estava gostando cada vez menos do aspecto do caso. Ela era uma testemunha tremendamente antipática. Errática, emotiva, num momento dura como pedra, no seguinte tocante e chorosa. O juiz iria mandá-los a julgamento, sem dúvida alguma, nem que fosse para evitar que ele próprio tivesse que cuidar daquilo.

- Pois bem, Srta. Burton - falou o juiz, brincando com um lápis e fitando a parede oposta - o que aconteceu naquele quarto de que não se lembra?

O tom de voz dele era seco e desinteressado.

- O que aconteceu?

- O que o Sr. Clarke fez depois de tê-la arrastado para aquele quarto? A senhora disse que ele a arrastou? - Ela meneou a ca­beça. - E não estava usando uma arma?

Ela sacudiu a cabeça e finalmente levantou os olhos para a plateia.

- Não. Apenas... apenas as mãos. Esbofeteou-me várias vezes e disse que me mataria se não fizesse o que ele queria.

- E o que era?

- Eu... ele... ele me forçou a... ter... coito oral com ele... a... bem, a... fazer aquilo nele.

Puxa, como você faz parecer isso doloroso... Jessica teve von­tade de esbofeteá-la de novo.

- E a senhora o fez?

- Fiz.

- E então? Ele... o Sr. Clarke teve um orgasmo? - Ela balançou a cabeça. - Por favor, responda às perguntas.

- Sim.

- E então?

- E então ele praticou sodomia comigo.

Falou numa voz seca, monótona, e Jessie pode sentir Ian crispar-se. Ela própria sentia-se cada vez mais constrangida. Tinha contado com drama, não com essa recitação lenta e arrastada. Deus, como isso era humilhante. Como era seco e feio e horrível. As pa­lavras, os actos, os pensamentos, todos tão velhos e tristes.

- Ele gozou de novo?

- Eu... não sei.

Ela teve o bom gosto de enrubescer.

- E a senhora?

Ela arregalou os olhos, e Houghton e a jovem promotora observaram-na tensamente.

- Eu? Ma como poderia? Ele... eu... ele me estuprou.

- Algumas mulheres apreciam isso, Srta. Burton, mesmo a con­tragosto. E a senhora? - repetiu o juiz.

- Claro que não!

- Quer dizer que não sentiu gozo.

Jessica estava começando a apreciar o embaraço da outra mu­lher.

- Não, é claro que não! Não!

Estava quase berrando, parecendo acalorada, zangada e nervosa.

- Pois bem. E depois?

O juiz parecia terrivelmente entediado e nada impressionado com aindignação da Srta. Burton.

- Depois ele me estuprou de novo.

- Como?

- Ele... simplesmente me estuprou. Sabe... da maneira de costume, desta vez.

Jessica quase teve vontade de rir. Um estupro “da maneira de costume”!

- Ele a machucou?

- Sim, claro que sim.

- Muito?

Mas ela estava olhando para baixo de novo, distante e pensativa e triste. Era nesses momentos que se deveria sentir pena dela. E por um instante Jessica se perguntou sobre as próprias reacções. Sob qualquer outra circunstância, a história que estava ouvindo a teria emocionado. Talvez até muito. Mas agora... agora, como podia deixar que a emocionasse? Não acreditava naquela mulher. Mas, e se o juiz acreditasse? Não tinha havido resposta à última pergunta dele.

- Srta. Burton, perguntei se o Sr. Clarke a machucou muito?

- Sim. Muito. Eu... ele... não se importou comigo. Simples­mente... simplesmente... - As lágrimas escorriam silenciosas pelo seu rosto e era como se ela estivesse falando de outra pessoa, não do Ian, um estranho completo que a estuprara. Por que se importaria com ela, se a estivesse estuprando? - Não se importou que eu ficasse grávida, nem... nem nada. Simplesmente... simplesmente foi embora. - E agora as lágrimas viravam raiva de novo. - Conheço esse tipo, eles brincam com moças pobres como eu! Moças sem dinheiro, sem família chique, e então eles... fazem o que ele fez.. vão embora... - A sua voz voltou a ser um sussurro, en­quanto ela fitava cegamente o próprio colo. - Ele foi embora, e voltou para ela.

- Quem? - O juiz parecia confuso, e a Srta. Burton ergueu os olhos de novo, com um ar ligeiramente atordoado no rosto. - Para quem ele voltou?

- Para a mulher.

Ela falou claramente, mas sem olhar para Jessica.

- Srta. Burton, já conhecia o Sr. Clarke de algum lugar, antes disso? Já esteve romanticamente envolvida com ele, antes?

Com que então o juiz também o percebera... uma leve suges­tão de que Ian não era um estranho, afinal de contas.

- Não, nunca.

- Então, como soube da mulher dele?

- Ele parecia casado. de alguma maneira, ele me contou.

- Sei. E ele simplesmente a deixou no hotel, depois? - Ela fez que sim com a cabeça, novamente. - O que fez, então? Chamou a polícia? Foi a um médico? Chamou um táxi?

- Não. Andei, durante algum tempo. Sentia-me confusa. E de­pois fui para casa e me lavei. Sentia-me péssima.

Agora dava-se para acreditar nela, de novo.

- Foi a um médico?

- Depois que chamei a polícia.

- E quando fez isso? Não foi imediatamente, foi?

- Não.

- Por que não?

- Estava com medo. Tinha que pensar no assunto.

- E tem certeza da sua história, agora, Srta. Burton? Esta é toda a verdade? A história que contou originariamente à polícia era um pouco diferente desta, não era?

- Não sei o que contei a eles, então. Estava confusa. Mas esta agora é a verdade.

- Está sob juramento agora, Srta. Burton, portanto espero que esta seja a verdade.

- É - disse ela, balançando a cabeça, o rosto sem expressão os olhos sem vida.

- Não há nada que queira modificar?

- Não.

- E tem certeza que isso não foi um engano, uma paquera que deu errado?

E então subitamente o ódio chamejou nos olhos dela de novo, e ela os apertou com força, fechando-os.

- Ele arruinou a minha vida.

Sibilou as palavras na sala silenciosa.

- Pois bem, Srta. Burton. Obrigado. Sr. Schwartz, alguma pergunta?

- Algumas apenas, Meritíssimo. E serei rápido. Srta. Burton, algo parecido já lhe aconteceu antes?

- Como assim?

- Quero dizer, já foi estuprada alguma vez, mesmo de brinca­deira, como se fosse um jogo, por um amante, um namorado, um marido?

- Claro que não.

Ela parecia encolerizada.

- Já foi casada, alguma vez?

- Não.

- Noiva?

Novamente não houve hesitação.

- Não.

- Nenhum noivado rompido?

- Não.

- Algum amor sério que não deu certo?

- Nenhum.

- Está namorando agora?

- Não.

- Obrigado, Srta. Burton. E quanto a interlúdios românticos? Já saiu com um estranho que paquerou na rua, antes?

- Não.

- Então a senhora concorda que paquerou o Sr. Clarke?

- Não! Eu... ele me ofereceu uma carona, e...

- E a senhora aceitou, embora não o conhecesse. Acha que é sensato, numa cidade como San Francisco?

A sua voz era educadamente preocupada, e Margaret Burton parecia zangada e confusa.

- Não, eu... é que... não, nunca saí com nenhum paquera de rua antes. E achei que... ele parecia ser legal.

- O que quer dizer com legal, Srta. Burton? Ele estava bêbado, não estava?

- Um pouco alegre, talvez, mas não de porre. E ele parecia, um cara simpático.

- Quer dizer rico? Ou elegante? Ou o quê? Como um diplo­mado por Harvard?

- Não sei. Parecia um cara legal.

- E bonito? Acha que ele é bonito?

- Não sei.

Estava olhando para o colo.

- Pensou que ele talvez fosse se envolver com a senhora? Apaixonar-se? É uma suposição justa. A senhora é uma mulher bonita, por que não? Um dia quente de verão, um sujeito bonitão, mulher solitária... quantos anos tem, Srta. Burton?

- Trinta e um.

Mas ela se atrapalhara.

- A senhora disse à polícia que tinha 30. Não será na verdade 38? Não é possível que...

- Objecção!

A promotora estava de pé, a cara furiosa, e o juiz concordou

- Aceita a objecção. Sr. Schwartz, não estamos num julgamento, e o senhor pode bem guardar as suas tácticas de pressão para mais tarde. Srta. Burton, não precisa responder a isso. Já acabou Sr. Schwartz?

- Quase, Meritíssimo. Srta. Burton, o que estava usando no dia do seu encontro com o Sr. Clarke?

- O que eu estava usando? - Parecia nervosa e confusa. El a estava bombardeando com perguntas difíceis. - Eu... não sei.. eu...

- Era algo parecido com o que está usando agora? Um costume? Ou algo mais leve, mais revelador? Algo provocante, quem sabe?

A promotora estava de cara fechada de novo, e Jessica estava começando a curtir a situação. Gostava do estilo de Martin. Até mesmo Ian parecia entretido, quase satisfeito.

- Eu... não sei. Acho que devia estar usando um vestido de verão.

- De que tipo? Decotado?

- Não, não uso roupas desse tipo.

- Tem certeza, Srta. Burton? O Sr. Clarke disse que estava usando um vestido rosa muito curto e decotado, com um chapéu.. estava usando este mesmo chapéu? É um chapéu muito bonito.

Subitamente ela se viu dividida entre o elogio e a insinuação.

- Não uso rosa.

- Mas o chapéu é rosa, não é?

- É mais de uma cor neutra, mais um bege.

Mas havia uma tonalidade rosa no chapéu. Era óbvio a todos os olhos.

- Sei. E quanto ao vestido? Também tinha uma tonalidade bege?

- Não sei.

- Está bem. Vai sempre ao Enrico?

- Não, só estive lá umas duas vezes. Mas sempre passo por lá.

- Já tinha visto o Sr. Clarke lá antes?

- Não. Não me lembro de tê-lo visto.

Ela estava recobrando a pose. Essas perguntas eram fáceis.

- Por que disse a ele que era garçonete topless na Broadway?

- Nunca lhe disse isso.

Agora estava com raiva de novo, e Martin balançou a cabeça, com ar quase preocupado.

- Está certo, obrigado, Srta. Burton. Obrigado, Meritíssimo.

O juiz olhou com um ar indagador para a promotora assistente, que sacudiu a cabeça. Não tinha nada a acrescentar. Ele fez sinal para Margaret Burton descer, depois falou as palavras que Jessica temia.

- Sr. Clarke por favor, aproxime-se.

Ian e Margaret Burton passaram a centímetros um do outro, as fisionomias sem expressão. Apenas alguns momentos atrás, ela dissera que ele tinha arruinado a sua vida, agora, no entanto, olhava para ele como se não o enxergasse. Jessica sentia-se mais confusa do que nunca com aquela mulher.

O juramento foi feito, o juiz olhou por cima dos óculos para Ian.

- Sr. Clarke, quer nos dar a sua versão do que aconteceu?

O juiz parecia excessivamente entediado, enquanto Ian contava os acontecimentos daquele dia. O almoço, os drinques, a carona, o modo provocante como ela se vestia, a sua história de que era gar­çonete topless, a viagem até Market Street para um endereço que ela lhe dera, mas de que não se recordava mais. E, finalmente, o convite dela para irem até o seu quarto, onde tinham tomado um drinque e feito amor.

- De quem era o quarto?

- Não sei. Imaginei que fosse dela. Mas estava meio vazio. sei. Eu tinha bebido muito na hora do almoço, não estava pensando com muita clareza.

- Mas com clareza suficiente para subir com a Srta. Burton?

Ian enrubesceu. Sentia-se como um colegial travesso chamado ao gabinete do director... Ian, você levantou a saia da Maggie? Ora, ora! Mas não era nada disso. O que estava em jogo era alto demais para ser considerado uma brincadeira de criança.

- Minha mulher estava fora, já havia três semanas.

O coração de Jessica batia com força de novo. Então, era culpa dela? Era isso o que insinuava? Era o que pensava, o que ele sentia? Ela era a responsável pelos sentimentos de insuficiência dele?

- E o que aconteceu depois que tudo acabou?

- Fui-me embora.

- Sem mais nem menos? Pretendia ver a Srta. Burton de novo?

Ian fez que não com a cabeça.

- Não. Não pretendia vê-la de novo. Já me sentia culpado como o diabo pelo que tinha acontecido.

Martin franziu a testa ante a resposta, e Jessie se crispou. e também percebera a palavra.

- Culpado?

- Quero dizer, por causa da minha mulher. Não costumo fazer esse tipo de coisa.

- Que tipo de coisa, Sr. Clarke? Estupro?

- Não, pelo amor de Deus, não a estuprei! - Berrara a sua negativa e gotículas de suor brilhavam-lhe na testa. - Quero dizer eu me sentia culpado por estar traindo a minha mulher.

- Mas o senhor forçou a Srta. Burton a subir para o quarto de hotel?

- Eu, não. Ela me levou lá para cima. Era o quarto dela, não meu. Ela me convidou a subir.

- Para quê?

- Para tomar um drinque. E provavelmente para exactamente o que teve.

- Então, por que supõe que ela alega que a estuprou?

- Não sei.

Ian parecia confuso e exausto, e o juiz sacudiu a cabeça e correu os olhos pela sala.

- Senhoras e senhores, nem eu. O propósito dessa audiência é determinar se houve algum mal-entendido, se o problema pode ser resolvido simplesmente aqui e agora, determinar se realmente ocorreu um estupro, e se o caso merece atenção judicial posterior. É minha função decidir se arquivo a acção ou a envio para uma instância superior para ser julgada. Para tomar a decisão de arquivar o caso, tenho que estar absolutamente certo de que claramente aí houve um estupro.

“No caso de me sentir incapaz de decidir, do assunto não estar claro, então não tenho opção excepto enviá-lo para um tribunal superior, e possivelmente um júri, para a decisão. E me parece que este caso que se nos apresenta não é simples. As histórias das duas partes são amplamente divergentes. A Srta. Burton diz estupro, o Sr. Clarke diz que não. Não há provas nem num sentido, nem no outro. Portanto, temo que este caso terá que passar a uma instância superior, presumivelmente com um julgamento por júri. Simplesmente não podemos arquivar o assunto. Sérias alegações foram feitas. Proponho que o assunto seja encaminhado à Corte Superior, e que o Sr. Clarke seja citado na Corte Superior daqui a duas semanas no tribunal do Juiz Simon Warberg. A sessão está encerrada.

Sem mais delongas, levantou-se e saiu da sala. Jessica e Ian se levantaram e se entreolharam, confusos, enquanto Martin remexia em alguns papéis, por um momento. Margaret Burton foi retirada da sala pelo Inspector Houghton.

- E agora? - Jessica perguntou a Ian, num sussurro.

- Você ouviu o homem, Jess... vamos a julgamento.

- É.

Olhou por um último momento para as costas em retirada da tal Burton, um ódio renovado a encher-lhe a alma por essa mulher que estava inexplicavelmente destruindo-lhe as vidas. Ela não sabia agora mais do que há três horas. Por quê?

- Bem, Martin? - Jessica agora virava-se para Martin. Ele estava com ar muito sério. - O que você acha?

- Vamos discutir no meu escritório, mas estou farejando uma coisa que não me agrada. Não posso ter certeza, mas tive um caso assim uma vez, há muitos anos. Um caso maluco com uma queixosa maluca. Tinha a ver com vingança. Não contra o cara que ela disse que a tinha estuprado, mas contra alguém que a tinha estuprado quando era adolescente. Esperara 22 anos para tirar vingança contr­a um homem inocente. Não sei lhes dizer por que, não passa de pressentimento, mas este caso me faz lembrar o outro.

Falara num murmúrio quase inaudível. Jessica debruçou-se para ele para escutar, e ficou intrigada pela sua idéia. Também tivera uma estranha impressão a respeito da tal Burton. Ian ainda estava abalado demais para reagir a qualquer coisa. Então, fitou Jessie com irritação estampada nos olhos.

- Disse-lhe que esperasse lá fora.

- Não pude.

- É. Tive um pressentimento que você acabaria aqui dentro. Divertido, não foi?

Parecia amargo e cansado. Eram as únicas pessoas no tribunal, olhou ao seu redor como se estivesse acordando de um sonho ruim. Tinha sido uma sessão exaustiva, e até mesmo Jessica sentia como se tivesse envelhecido cinco anos durante a manhã.

- Quando será o julgamento? - perguntou a Martin. Não sabia direito o que dizer a Ian; havia tanto a dizer; coisas demais.

- Daqui a seis semanas. Ouviu o juiz dizer que a citação da Corte Superior é daqui a duas. O julgamento será quatro semanas depois dela. E vamos ter que trabalhar muito depressa. - Martin estava com um ar de intensa sobriedade, e Jessica estava louca para perguntar-lhe como se saíra o outro cliente, aquele que fora acusado de estupro pela mulher que queria vingança, mas tinha medo de saber. Ian também não fizera a pergunta, e Martin não oferecera a informação. - Quero o Green no caso dia e noite, e vocês dois disponíveis para reuniões sempre que eu os chamar.

A sua voz era severa.

- Estaremos disponíveis. - Jessie falou primeiro, tentando não transparecer lágrimas na voz. - Vamos ganhar, não vamos,

Ainda sussurrava, mas não sabia ao certo por quê. Não era mais necessário.

- Acho que vai ser um caso difícil, É a palavra dela contra a sua, Ian. Mas, sim, devemos ganhar.

Mas não soava confiante o bastante, aos ouvidos de Jessie, e o peso integral da situação pousou de novo sobre o seu coração. Como tudo acontecera? Onde começara? Será que fora mesmo ape­nas porque ela ficara em Nova York tempo demais? Fora apenas uma questão de necessidade sexual? Fora azar? Seria a tal Burton uma espécie de lunática que andava atrás de qualquer um, ou o Ian fora realmente escolhido? De quem era a culpa? E quando aquilo tudo terminaria?

- Eles vão revogar a fiança do Ian?

Aquele tinha sido o seu terror constante. E do Ian.

- Podem revogar, mas não vão. Não há motivo para isso, enquanto ele continuar a aparecer no tribunal, e o juiz não tocou no assunto. Mas nenhum dos dois pode fazer qualquer viagem agora. Nem viagens de negócios, nem pequenos sumiços, nem vi­sitas à família no Leste. Fiquem por aqui mesmo; vou precisar de vocês. Certo?

Balançaram a cabeça, com ar solene, e enquanto Martin os acompanhava lentamente para fora do tribunal, Jessie pensou no que ele dissera. Família? Que família? Os pais de Ian eram tão velhos e fraquinhos que seriam as últimas pessoas a quem procurariam. Ela e Ian já tinham concordado com isso. Os pais dele eram tão certinhos e meigos, e velhos demais para entender o que se passava. Era o seu único filho, e isso sem dúvida os mataria. Além disso, por que contar-lhes? Tudo ia dar certo. Tinha que dar.

Ian e Jessie apertaram a mão de Martin e ele os deixou de lado de fora da sala. Fora uma manhã interminável.

- Temos um minuto para dar uma parada no banheiro?

Jessica olhava nervosamente para Ian. Sentia-se estranha e pouco à vontade com ele, como se alguém acabasse de lhes contar que ele estava com câncer. Não tinha certeza se devia chorar, encorajá-lo, ou simplesmente sair correndo e se esconder. Não tinha nem mesmo certeza do que estava sentindo.

- Claro. Acho que fica no corredor. Eu também estou precisando ir. - Não conseguiam conversar com naturalidade. Ia ser difícil achar o caminho de volta. Mas, enquanto desciam o corredor ele a reteve subitamente e virou-se para olhar para ela, segurando-a pelo braço. - Jessie, não sei o que dizer. Não fiz aquilo, mas estou quase me perguntando se realmente tem importância. Não aguento ver o que isso está fazendo a você. Eu fui um imbecil completo por duas horas, e você é quem está pagando o preço.

Ela deu um sorriso cansado, como resposta.

- E quanto a você? Por acaso está curtindo isso? Meu bem, estamos metidos nisso, agora, e temos que continuar andando até poder sair. É isso aí. E, por amor de Deus, não vá desistir.

Estava olhando para ele com uma ternura que ele não vira o dia todo. Abraçou-o enquanto ficavam parados no longo corredor de mármore e ele a tomou nos braços sem dizer palavra. Precisava dela desesperadamente, e ela sabia disso.

- Vamos lá, meu gato, tenho que mijar. - Ela falou com voz rouca sensual, e Ian sorriu para ela enquanto desciam o corredor, de mãos dadas. Havia algo muito especial entre eles. Sempre hou­vera e sempre haveria... se pudessem sobreviver ao que lhes estava acontecendo agora. - Volto num segundo.

- Deu-lhe uma beijoca no pescoço, apertou-lhe a mão e desapa­receu no toalete das senhoras.

Lá dentro, entrou num dos reservados e trancou a porta. Havia mulheres dos dois lados do reservado. Um par de sapatos de plataforma vermelhos e calças azul-marinho à esquerda, tornozelos esguios e sapatos pretos simples de entrada baixa à direita. Jessica. endireitou as meias, alisou a saia e destrancou a porta no mesmo momento que os sapatos pretos saíam da porta à direita. Lançou um olhar despreocupado naquela direcção enquanto se dirigia para a pia, e aí ficou imobilizada, grudada ao chão, fitando o rosto de Margaret Burton.... fitando-o de cima para baixo, na verdade, devido­ à diferença de altura... o chapéu rosa-pálido apenas obscurecendo levemente a sua visão do rosto da inimiga.

Margaret Burton ficou muito quieta, fitando-a também, e Jessica sentiu as suas entranhas ficarem frias. Ela estava bem ali à sua frente... ao alcance das suas mãos... agarre-a... bata nela... mate-a... mas não conseguia se mexer. Ouviu-se apenas o som de uma inspiração rápida enquanto a Burton voltava a si do choque e saía correndo para a porta, o chapéu voando suavemente e caindo aos pés de Jessie. Levara apenas alguns segundos, mas pareciam horas, dias, anos... e ela sumiu, enquanto Jessie ficava ali parada, impotente, as lágrimas começando a escorrer pelo seu rosto. Abaixou-se muito lentamente e pegou o chapéu, antes de caminhar va­garosamente até a porta. Podia ouvir alguém batendo nervosa e deses­peradamente. Era Ian. Tinha visto Margaret Burton sair voando porta afora quando saía do banheiro dos homens, do outro lado do corredor. E, subitamente, ficou apavorado. O que acontecera? O que Jessica tinha feito?

Ela apareceu silenciosamente, o chapéu na mão, as lágrimas no rosto.

- O que aconteceu? - Jessica apenas sacudiu a cabeça, agar­rada ao chapéu. - Ela fez alguma coisa? - Sacudiu a cabeça de novo. - E você? - Outro não silencioso. Ah, meu bem. - Tomou-a­ nos braços e tirou-lhe o chapéu da mão, jogando-o num banco próximo. - Vamos dar o fora daqui e ir para casa.

Na verdade, ele ia tirá-la da cidade. Para o inferno com o que Martin dissera, eles precisavam sair dali. Carmel, quem sabe. Qualquer lugar. Perguntava-se por quanto tempo mais Jessica agiu a pressão. Por quanto tempo ele aguentaria. O chapéu no banco parecia olhar para ele acusadoramente enquanto ele tomava a mulher nos braços, e ele estremeceu. Era o chapéu que ela tinha usado naquele dia no Enrico. Aquele dia... o dia pelo qual iria pagar durante anos, de um modo ou de outro. Manteve um braço ao redor dos ombros de Jessica e conduziu-a devagar para o elevador. Tinha vontade de derramar a alma dentro da dela, mas nem mesmo estava certo se tinha o bastante para si mesmo, que diria para outra pessoa. Queria que aquele horror estivesse terminado, mas apenas começando.

Quando o elevador chegou, ela entrou nele, silenciosamente. Os seus olhos estavam grudados na porta, e Ian teve vontade de sacudi-la. Estava vendo que ela fugia de novo; já tinha visto essa máscara antes.

O elevador cuspiu-os para o caos do saguão. Estava cheio de policiais e inspectores, advogados particulares e promotores assistentes e gente esperando na fila para obter passes para a cadeia. Ian e Jessica fundiram-se nesse mar de gente. E aqui e ali via-se um rosto comum, despreocupado, alguém que vinha pagar uma multa ou preencher um formulário para registro de carro. Mas eram tão poucos que se misturavam ao resto, e foi por esse motivo que nem Jessica nem Ian viram Astrid, que vinha buscar um novo adesivo para substituir o que tinha caído das suas placas quando o carro fora lavado. Eles estavam a curta distância, e nem a viram. Mas ela os viu, e ficou horrorizada com a expressão no rosto deles. Passaram a menos de dois metros dela, e ela os deixou ir. Era a mesma expressão que ela ostentara quando os médicos lhe haviam dito da gravidade do caso de Tom.

 

Na manhã seguinte, Ian se decidiu. Jessica precisava ir para fora. Ambos precisavam. E enquanto ela fazia o café, ele se deu até ao trabalho de consultar Martin, por telefone. Martin concordou, e anunciou a Jessie como um fait accompli (facto consumado).

- Nós vamos fazer o quê? - perguntou incrédula, descalça de robe, parada na cozinha.

- Vamos para Carmel daqui a meia hora. - Desta feita ele sorriu, quando falou. - Arrume as suas coisas, meu amor.

- Você está maluco. Martin falou...

- ... para mandar-lhe um cartão-postal.

Ian sorriu vitoriosamente enquanto Jessica dava uma risadinha abafada.

- E quando foi que falou isso? Ainda agorinha.

- Você ligou para ele?

Ainda parecia dubitativa, mas divertida.

- Acabo de desligar. Portanto, bem-amada - aproximou-se dela devagar, com um ténue sorriso - ponha logo esse belo rabinho para andar antes que a gente perca o dia.

- Você é biruta. - Beijou-a, e ela sorriu para ele de olhos fechados. - Mas um amor de biruta.

Chegaram em Carmel em duas horas, com Ian ao volante do Morgan. O ar estava mais fresco nessa manhã do que em muitas semanas, e o dia esteve brilhante e ensolarado, durante toda a viagem. ­Arriaram a capota do Morgan e chegaram despenteados e mais felizes. Era quase como se o vento constante na auto-estrada houvesse varrido a preocupação das suas mentes. A viagem não tinha sido uma idéia tão má, afinal de contas, e depois dos primeiros 80 quilómetros Jessie parou de imaginar que o Inspector Houghton os estava seguindo. Ela vivia constantemente atormentada por ele, mas quem sabe agora isso ia parar. Era só que ele parecia omnipotente embora, mas depois podia voltar, com um mandado de busca, revólver, um amigo, uma expressão nos olhos... um crispar de boca... ele a aterrorizava, e não ousava contar a Ian o quanto. Nunca tocava no nome dele. Também estava preocupada com o custo da viagem, mas Ian insistira que tinha dinheiro o sufi­ciente na sua conta para cobrir as despesas. Ele lhe ordenara que cuidasse da sua vida, e avisara que desta vez iam fazer tudo economicamente, nada de acomodações de luxo. Sentia-se culpada, duvidando das suas afirmações, mas agora estava obcecada com as finanças deles, e a futura despesa imensa do julgamento. E Ian era tão estranho quando se tratava de dinheiro, talvez por que nun­ca tivesse tido nenhum. Costumava comprar-lhe presentes fabulosos e criar momentos magníficos quando estavam nitidamente sem fundos. Pegava o restinho do que tinha e jogava pela janela, em alto estilo. Antigamente, essa característica a divertia. No momento, não divertia mais.

Mas sentia-se agradecida pela viagem a Carmel. Sabia o quanto estava precisando dela. Os seus nervos estavam à beira de um colapso. E sabia que os de Ian também estavam, não importa o quanto ele tentasse disfarçar.

Astrid lhes falara de um hotelzinho onde se hospedara na pri­mavera anterior, e que Insistia que era muito em conta. Assim, dei­xaram de lado as delícias de luxo do familiar Del Monte pela at­mosfera aconchegante de xadrez e pinho do L’Auberge. Era diri­gido por um casal francês de meia-idade, e entre os seus prazeres constava um “Café Complèt” na cama, pela manhã. O Café Complèt consistia em croissants e brioches feitos em casa com café au lait fumegante.

Andaram até a praia e vasculharam as lojas e no sábado fizeram um piquenique na beira de um rochedo que dava para o mar.

- Mais vinho, amor?

Ian fez que sim e afastou uma longa mecha de cabelos louros dos olhos dela. Estavam deitados lado a lado, e ela fitava o céu enquanto ele se apoiava num cotovelo e olhava para ela. Alisou-lhe o rosto com os dedos e beijou-a suavemente nos lábios, nos olhos, na ponta do nariz.

- Se fizer isso, jamais vou me levantar e pegar o seu vinho, meu amor. - Ele sorriu de novo e ela lhe jogou um beijo. - Sabe de uma coisa, Ian?

- O quê?

- Você me faz muito feliz. - O rosto dele se anuviou enquan­to ela falava, e ela segurou-lhe o queixo e forçou-o a olhar para ela. - Falo a sério. Faz, mesmo.

- Como pode dizer isso agora?

- Porque agora não é diferente de outra hora qualquer, Ian Você faz coisas lindas comigo. Me dá o que eu preciso, e preciso de muito. Às vezes se paga um preço por isso. E está certo, agora está dureza, mas logo vai acabar. Não pode continuar para sempre. Levando tudo em consideração, acho que temos um bocado de sorte.

Ela se sentou e olhou-o de frente, e ele finalmente desviou os olhos.

- Sorte, hein? Acho que é uma maneira de se encarar a coisa.

Parecia amargo, e ela tomou-lhe a mão.

- Não se sente mais com sorte?

- Eu me sinto. Mas, e você, Jessie, de verdade? Seja sincera.

Olhou de novo para ela com uma expressão desconhecida nos olhos, uma espécie de franqueza que a assustava: como se estivesse questionando tudo. Ela. Ele próprio. Eles. A vida. Tudo.

- Sim, sinto-me com sorte.

A voz dela era um sussurro ao vento fresco do dia ensolarado de outubro.

- Jessica, meu amor, fui infiel a você. Fiz amor com outra mulher. Uma vagabunda neurótica, mas outra mulher. Há quase seis anos que você me sustenta. Não sou um escritor bem-sucedido. E estou prestes a ser julgado por estupro, posso ir para a prisão, e mesmo que não vá, esta vai ser a coisa mais feia pela qual já tive que passar. E você se sente com sorte? Como consegue essa proeza?

Ela olhou para as mãos por longo tempo, depois ergueu-as para o rosto dele.

- Ian, não me importo se você fez amor com outra mulher. Não gosto, mas não me importo. Não muda nada. Não para mim. Não vá você deixar que mude qualquer coisa. Não suponho que tenha sido a primeira vez, mas não quero saber. Não é este o ponto o que interessa é, e daí? Com que então você fez amor com outra e dai? Com que então você tocou uma punheta, e daí? Não me importo. Isso faz algum sentido para você? Não me importo. Importo-me com você, connosco, com nosso casamento, com a sua carreira. E eu não o “sustento”. A Lady J sustenta a nós dois. Temos sorte em tê-la, e um dia desses você vai vender um livro, um filme e outro livro e uma pilha de trabalhos brilhantes e ga­nhar uma fortuna. Portanto, qual é o problema?

- Jessica, você é maluca.

Ele sorria para ela, mas seus olhos ainda estavam sérios.

- Não, não sou. E falo a sério. Você me faz feliz. Você me luminosa, faz com que me importe comigo, faz com que saiba que sou amada, está sempre ali para mim. Sabe quem sou e o que sou e por que sou, melhor até mesmo do que eu. Ian, isso é tão raro. Olho para as outras pessoas e elas não parecem ter o que temos.

Os olhos dela agora pareciam arder, estavam da cor do jade.

- Não sei o que dizer, Jessie... eu a amo. E preciso de você, também. Não apenas para me sustentar enquanto escrevo. Preciso... ah, que diabo sorriu, mais para si mesmo do que para ela - preciso de você sentada de bunda de fora e ar solene às duas da manhã, me dizendo por que o meu quarto capitulo não está dando certo. Preciso do jeito com que você entra pela porta adentro com aquele ar de “Ah, puxa!” no rosto... do jeito com que sabe, do jeito com que... me respeita, mesmo quando eu não me respeito.

- Ah, Ian.

Deslizou para os braços dele de novo e fechou os olhos enquanto ele a segurava.

- Preciso muito de você, meu bem. Mas... alguma coisa vai ter que mudar.

Os olhos dela se abriram devagar. Ele acabara de dizer uma coisa importante. Ela o sabia pela mudança no jeito com que ele a segurava, mais do que pelas palavras.

- O que quer dizer?

- Ainda não sei. Mas alguma coisa tem que mudar, depois de sobrevivermos a esse holocausto que vamos ter que enfrentar nos próximos dois meses.

- Como assim, porra? Mudar o quê?

A sua voz ficou inesperadamente estridente, e ela se afastou um pouco dele para poder ler em seus olhos.

- Vá com calma, Jessie. É só que acho que está na hora de uma revisão. Não sei, quem sabe está na hora de arquivar as mi­nhas idéias fantásticas sobre uma carreira de escritor. Ou alguma coisa. Não podemos é continuar exactamente assim. De certa forma, não dá certo.

- Por que não?

- Por que me sinto inibido. Você paga as contas, ou a maioria delas, e eu já não posso viver desse jeito. Sabe o que é a gente não ter renda? Sentir-se culpado cada vez que mete a mão na “cai­xinha”, na nossa “conta conjunta”, para comprar um par de camisetas? Tem alguma idéia de como me sinto vendo você pagar a conta por esse desastre que está acontecendo? Vendo-a pagar pelo meu pretenso “estupro”? Jesus, Jessie, isso me sufoca. Está me ins­tando. Por que afinal acha que tenho estado impotente? Porque estou tão encantado comigo pelo jeito com que ando dirigindo a minha vida?

- Você não pode levar isso a sério. Está sob uma tensão incrível actualmente.

Ela queria deixar o assunto de lado, mas ele não estava dis­posto a isso.

- Tem razão. Estou sob forte tensão. Mas parte da tensão é porque não acertamos as coisas como devem ser acertadas. Já pensou no que aconteceria se você não tivesse a Lady J, ou se seus pais não lhe tivessem deixado dinheiro?

- Eu estaria trabalhando para outra pessoa, você estaria tra­balhando em publicidade, e detestando. Parece divertido?

- Não. Mas, e se você não trabalhasse, e eu estivesse trabalhando em outra coisa?

- No que, por exemplo?

O rosto de Jessie pareceu petrificar-se, ao dizer essas palavras.

- Não sei. Essa parte ainda não resolvi.

- Ian, você está maluco. Nunca o vi trabalhar tanto num livro como tem trabalhado nesse, nunca o ouvi ter tanta certeza a res­peito de qualquer coisa que tenha escrito. E agora quer desistir?

- Não disse isso. Ainda não. Mas talvez. O que estou dizendo o que aconteceria connosco, com o nosso casamento, se você não nos sustentasse, Jessie, mas, sim eu? E se guardássemos o seu di­nheiro apenas como investimento?

- E o que eu faria o dia todo? Croché? Jogar bridge?

- Não. Eu estava pensando em outra coisa Quem sabe para mais tarde.

Havia algo suave e distante nos olhos dele, enquanto falava.

- Que outra coisa?

- Bem... que tal se finalmente tivéssemos filhos... depois que toda essa confusão tiver acabado, é claro. Há muito tempo que não falamos nisso. Não desde antes... - Ela sabia o que ele queria dizer com “antes”. Antes das coisas terem mudado. Antes dos pais dela terem morrido. Antes dela ter herdado o dinheiro deles... antes. Esta única palavra dizia tudo. Ambos o sabiam. – Jessie, meu bem... quero tomar conta de você. Além disso, você

- Por quê?

- Como assim, por quê?

Ele ficou momentaneamente confuso.

- Por que devemos remexer em tudo agora? Por que você deve de repente ficar com a carga toda? Eu adoro trabalhar; para mim não é carga. É divertimento.

- As crianças também não podem ser divertidas?

- Eu não disse isso.

O rosto dela estava retesado como um tambor.

- Mas?

- Oh, por Deus, Ian, por que temos que começar com isso agora?

Há anos que não se tocava nesse assunto.

- Eu não falei que era agora. Estávamos apenas conjecturando.

- Isso é ridículo. É como fazer brincadeirinhas.

Virou-se, e de repente sentiu a mão de Ian no seu braço. Com força.

- Não estou fazendo brincadeirinhas. Falo a sério, Jessie. Virei uma porra de um gigolô, nesses últimos seis anos. Sou um fra­casso como escritor e agora trepei com uma vagabunda barata e estou sendo falsamente acusado de estupro. Estou tentando equacio­nar o que significa alguma coisa na minha vida, e o que não signi­fica, e o que precisa ser mudado. E talvez parte do que precisa ser mudado seja nós dois. Não é talvez. Sei que precisa. Agora, vai escutar, e falar comigo, ou não? - Ela ficou calada, olhando para ele. Mas sabia que não tinha escolha. Soltou o braço dela e serviu mais duas taças de vinho. - Desculpe. Mas isso é importante para mim, Jess.

- Está bem. Vou tentar. - Ela pegou a taça de vinho e soltou um profundo suspiro enquanto erguia os olhos para o céu. - Tudo isso porque eu lhe disse que você me faz feliz? era essa... devia ter ficado de boca fechada!

Sorriu para ele, que a beijou de novo.

- Eu sei. Sou um filho da mãe. Mas Jessie... eu quero que dê certo com a gente. Quero que seja melhor. Não quero continuar a trepar com outras mulheres, ou a me odiar ou... Isso importa. Importa de verdade. E ainda bem que a faço feliz, você também me faz feliz. Muito feliz. Mas ainda pode ser melhor do que isso, sei que pode. Tenho que me sentir como seu marido, como um ho­mem, sentir que carrego o fardo, ou pelo menos a maior parte dele, nem que isso signifique vender a casa e morar num outro lugar em que eu possa pagar o aluguel. Mas preciso fazer essas coisas para você. Estou cansado de tê-la “cuidando” de mim. E não estou que­rendo parecer ingrato, Jess, mas... simplesmente preciso, porra.

- Tudo bem. Mas por quê? Por que agora? Por causa daquela mulher idiota? Margaret Burton? Por causa dela você tem que parar de escrever e fazer a gente ir morar em algum barraco onde você possa pagar o aluguel?

Ela agora estava ficando felina, e ele não estava gostando. O comentário acertara em cheio.

- Não, meu bem. Margaret Burton é apenas um sintoma, como as 100 ou 200 trepadas antes dela. É assim que você quer discutir, Jessie? Com grosseria ou civilizadamente? pode escolher. Estou dis­posto a seguir a sua deixa.

Ela engoliu o resto do vinho de uma só vez e deu de ombros.

- Não estou entendendo onde quer chegar.

- Vai ver que aí está o ponto. Como quando eu falo em ter­mos um filho. Você também não entende onde quero chegar nesse caso, não é? isso não significa alguma coisa para você, Jessie?

Ela sacudiu a cabeça com ar solene, olhando para baixo, evitando-lhe os olhos. Ele continuou:

- Não compreendo isso. Por quê? Olhe para mim, porra. Isso é importante para mim. Para nós dois.

Mas, quando ela ergueu os olhos, ele ficou surpreso.

- Isso me assusta.

- Um bebé? - Jamais o admitira antes para ele. Geralmente ficava irritada e encerrava o assunto rapidamente. Aquilo o fazia sentir ternura por ela. Assustada? - Fica assustada fisicamente?

Pegou a mão dela com carinho e a segurou.

- Não. Ele... eu teria que compartilhar você, Ian, e... não posso. - Os seus olhos estavam cheios de lágrimas e o queixo tremia quando olhou para ele. - Não posso mesmo compartilhar você, Ian. Não posso, nunca. Você é tudo que tenho. Você é....

- Ah, meu bem... - Tomou-a nos braços e embalou-a sua­vemente, as lágrimas aflorando-lhe aos olhos, também. - Que coisa maluca de se pensar. Um bebé não é desse jeito. Jamais seria. Nós somos especiais. Um bebé seria algo a mais, não menos.

- É, mas seria seu. Família de verdade.

E então ele compreendeu. Ele, tinha os pais, é claro, mas esta­vam tão distantes, tão velhos. Quase nunca os via. Mas um bebé era tão presente, tão real.

- Você é a minha família de verdade, boba. Sempre será a minha família de verdade.

Quantas vezes tinha lhe dito isso, depois, da morte dos pais dela? Mil vezes? Dez mil? Era estranho voltar a pensar naqueles dias, Jessica era tão ferozmente independente e autoconfiante, quan­do se casara com ela. Mas amava os pais e adorava o irmão; escutá-la falando deles era como ouvir reminiscências de amigos mui­to queridos que tinham se divertido muitíssimo juntos. E ficar junto com eles era uma experiência extraordinária... quatro pessoas tremendamente bem-apessoadas, com inteligência viva, riso fácil e disse incomensurável. Tinham sido fora de série. E quando morreram, parte dela foi junto. Não uma parte evidente. Ainda tinha muito espírito, muita vida, muita classe, mas subitamente, na sua alma, era órfã. Amava Ian antes, mas não precisava dele da mesma forma. Depois se tornara uma criança amedrontada numa zona de perra, abalada, assustada, vagueando dos escombros de uma recordação para a outra. Perdida e solitária. A tentativa de suicídio viera depois de Jake. E deixara-a diferente. Dependente. Fora Ian quem a conduzira para a segurança depois disso. Foi então que começou a referir-se a ele como “família de verdade”. A intimidade deles antes era uma malha de trama solta e brilhante, mas de re­pente deixou de ser solta, e com o correr dos anos ficara apertada além da conta. E agora não sobrava espaço no seu coração nem para uma criança. Há muito tempo que ele sabia disso, mas pensara que o pânico terminaria por ceder. Não cedera, agora estava certo disso. As necessidades dela ainda eram muito intensas, e pro­vavelmente sempre seriam. Era uma coisa amarga para ele aceitar.

- Ó, Deus, Ian, eu o amo tanto e tenho tanto medo... tenho um medo fodido.

Ele a sentiu nos braços de novo, voltou a concentrar-se nela, fugindo dos próprios pensamentos. Ela inspirou fundo e abraçou-o com força enquanto ele alisava devagar o seu cabelo, pensando no que agora compreendia e tinha que aceitar. Tinha. Nada jamais iria mudar isso. Sim, algumas coisas mudariam, e ele ia se propor a fazer as mudanças, mas ela jamais conseguiria ficar plantada nos dois pés de novo, não inteiramente, não o bastante para os dois tentarem ter um filho.

- Eu também estou com medo, Jess. Mas vai dar tudo certo.

- Como pode dar certo se você vai mudar tudo depois de passarmos por isso? Quer que eu venda a loja, tenha um bebé, e você vai parar de escrever e arranjar um emprego e fazer a gente mudar de casa e... ah, Ian, parece horrível!

Soluçou nos braços dele de novo e ele riu baixinho enquanto a abraçava. Quem sabe ela era tudo o que ele precisava. Quem sabe até não era normal para um homem desejar um filho tanto quanto ele desejava. Quem sabe era só para satisfazer o seu ego. Afastou essas idéias da cabeça.

- Puxa vida, e eu falei que ia mudar tudo isso? Tem razão, parece uma barra. Talvez devamos apenas escolher duas coisas, como eu ter um bebé e você arranjar um emprego, e... Desculpe, meu bem, não pretendia jogar em cima de você dez mil coisas a uma. Só sei que alguma coisa está precisando de conserto.

- Mas, tudo isso?

- Não, provavelmente não tudo isso. E a não ser que você concorde comigo. Caso contrário, não daria certo. Ambos temos que querer.

- Mas você faz parecer como se a nossa vida jamais fosse ser a mesma de novo.

- Talvez não seja, Jessie. Talvez não deva ser. Alguma vez pensou nisso?

- Não.

- E nem vai pensar, não é? Olhe só para você, toda encolhida feito uma squaw índia, tentando não escutar nada do que estou lhe dizendo, com uma formiga subindo pelo braço...

Esperou. Levou meio segundo. Ela se pós de pé com um salto, gritando:

- Uma o quê?

- Ora... ora... como pude me esquecer? £ mesmo, você tem medo de formigas.

Passou a mão de leve na manga dela enquanto se punha de pé, ao seu lado, e ela o socava no peito.

- Puta que o pariu, Ian Clarke! Estamos tendo uma conversa séria, e como você pode fazer isso comigo! Não havia nenhuma formiga, havia? Havia?

- E eu iria mentir para você?

- Eu o odeio!

Ainda estava tremendo com uma mistura confusa de emoções, terror e fúria e medo por causa da formiga, e as emoções muito mais reais de momentos antes. Ele inventara a formiga para aliviar a tensão. Ian tinha jeito para isso.

- Como assim, me odeia? Você disse que eu a fazia feliz.

Era a própria imagem da inocência, enquanto a abraçava.

- Não me toque! - Mas estava frouxa nos seus braços, e tentando com esforço disfarçar um sorriso. - Sabe... - a voz dela estava macia de novo - às vezes me pergunto se você me ama de verdade.

- Às vezes todo mundo se pergunta essas coisas, Jess. Não Se pode ter as garantias firmes que você deseja, meu bem. Eu a amo tanto quanto os seus pais a amaram, tanto quanto o Jake amou, tanto quanto... qualquer um. Mas não sou eles. Sou eu, seu marido, um homem, assim como você é a minha mulher, não a minha mãe. E talvez um dia você enjoe de mim e desapareça ao pôr-do-sol com outro sujeito. As mães não fazem isso com os filhos, mas as mulheres às vezes fazem. Tenho que aceitar isso.

- Está tentando me dizer alguma coisa?

Ficou subitamente rígida nos braços dele.

- Não, boba, apenas que a amo. E que apenas posso ser e fazer até um certo ponto. Acho que estou tentando dizer-lhe para não ser tão insegura e não se preocupar tanto. Às vezes acho que esse é o motivo pelo qual você aguenta tanta merda da minha parte, e paga as contas e todo o resto, porque assim você sabe que me tem. Mas vou lhe contar um segredo... assim você não me tem. Na verdade, você me tem, mas por todos os outros motivos.

- Como, por exemplo?

Ela estava sorrindo de novo.

- Ah... como o jeito lindo que tem de costurar.

- Costurar? Eu não sei costurar.

Olhou para ele de modo estranho, depois começou a rir.

- Não sabe?

- Neca.

- Eu ensino.

- Você é adorável.

- Por falar nisso, madame, a senhora também é. O que me lembra de uma coisa. Enfie a mão no meu bolso.

As sobrancelhas dela se arquearam, com interesse, e sorriu maliciosamente para ele.

- Uma surpresa para mim?

- Não, a minha conta da lavanderia.

- Nojento.

Mas ela enfiava a mão com cuidado no bolso do paletó dele enquanto falavam, os olhos brilhando de entusiasmo. Foi fácil achar a caixinha quadrada. Tirou-a com um amplo sorriso e agarrou-a com força.

- Não vai abrir?

- Esta é a melhor parte.

Deu nova risadinha, e ele sorriu para ela.

- Juro que não é o diamante Hope.

- Não?

- Ora, qual é!...

E então ela subitamente abriu a caixa. E ele ficou observando.

- Ah... a... ó, Ian! Seu biruta! - Deu uma risada ruidosa e olhou de novo para a caixa. - Em nome de Deus, onde o conseguiu?

- Eu o vi, e soube que tinha que ser seu.

Ela riu de novo, e começou a colocar a jóia. Era um cordãozi­nho fino de ouro com um pingente de ouro em forma de um feijão-lima. A coisa que ela mais detestava no mundo quando era criança.

- Santo Deus, nunca pensei que chegaria o dia em que usaria uma droga dessas. E de ouro, ainda por cima.

Riu de novo, beijou-o, e baixou o queixo para olhar para o pequeno berloque de ouro na corrente.

- Na verdade, está muito elegante. Se você não soubesse o que era, jamais adivinharia. Eu podia escolher entre um feijão comum, um feijão-lima e um outro tipo de feijão. São todos feitos pelo mesmo artista chique, deixe que lhe diga.

- E você o viu numa vitrina?

- É. E pensei que se você tem fé como um grão de mostarda, pode mover montanhas, e coisa e tal. Portanto, porra, se você tem fé como um feijão-lima provavelmente pode mover metade do mundo.

- Qual metade?

- Qualquer uma, dona boa. Venha, vamos voltar para o hotel.

- Feijão-lima... meu bem, você é maluco. Posso lhe pergun­tar qual a porção da sua fortuna que este feijão-lima sensacional lhe custou?

Notara que era ouro 18 quilates e que a caixa era de uma loja muito extravagante.

- De modo algum. Como pode perguntar uma coisa dessas?

- Curiosidade.

- Bem, não seja curiosa. E faça-me um favor. Não o coma.

Ela riu de novo e mordeu-lhe o pescoço enquanto ele estendia a mão para pegar o resto do vinho.

- Meu bem, nisso você pode apostar. Nunca na minha vida vou comer feijão-lima. Nem mesmo de ouro.

E então os dois desataram na risada, porque isso fora exacta­mente o que ela lhe dissera da primeira vez em que ele preparara um jantar para ela na casa dele, oito anos antes.

Preparara carne de porco assada, puré de batatas e feijão-lima. Ela devorara a carne e as batatas, mas ele a descobrira enfiando rapidamente o feijão-lima dentro da bolsa quando chegara da cozinha trazendo o copo d’água que ela pedira. Erguera os olhos para ele, espalmara as mãos, desatara a rir e dissera:

“- Ian, nunca na minha vida vou comer feijão-lima. Nem que seja de ouro puro.”

E este era exactamente de ouro puro. Durante uma pequena fracção de segundo, o estômago dela se revirou, ao pensar na despesa. Mas assim era o Ian. Iam entrar pelo cano em alto estilo. Com piqueniques e paixão e ouro.

 

O resto do fim de semana foi passado com espírito de férias. Jessica exibia o seu feijão-lima de ouro em todas as oportunidades possíveis, e eles implicavam um com o outro, e se abraçavam e beijavam. L’Auberge fez a vida amorosa deles retornar ao que sempre fora. Jantaram à luz de velas no quarto... um banquete de galinha frita para viagem de um restaurante próximo, devorado com uma pequena garrafa de champanha que haviam comprado ao irem para o hotel. Riam como crianças e brincavam como um casal em lua-de-mel, e as ameaças da manhã foram esquecidas. Tudo foi esquecido, excepto Ian e Jessie. Eram as únicas pessoas que contavam.

­A única tristeza, e era oculta, era a esperança de Ian de ter um filho, agora posta de lado. Insana e desesperadamente tinha vontade de gerar um filho agora, antes do julgamento, antes... e se... quem sabia o que estava por vir? Dali a um ano Ian poderia estar na prisão, ou morto. Não era uma maneira alegre de encarar as coisas, mas as realidades estavam começando a dar-lhe medo. E as possibi­lidades ainda eram mais apavorantes quando ele se permitia pensar nelas. Um bebé seria a grama nova nascendo em meio às cinzas. Mas agora que entendia o pânico que Jessie ainda sentia, o assunto era encerrado. Os livros dele eram os seus filhos. Simplesmente teria que se esforçar muito mais no novo livro.

No domingo, Jessie comprou para Ian um chapéu de Sherlock Holmes e um cachimbo de espiga de milho. Racharam um banana split de almoço, depois alugaram uma bicicleta para dois e andaram por porto do hotel, rindo da sua falta de precisão. Jessica desabou quando se viu de cara com um morro.

- Como assim, “não”? Vamos Jessie, força!

- Força, porra nenhuma. Faça você. Eu vou andando.

- Nojenta.

- Olhe para aquele morro. O que acha que sou? Tarzan?

- Puta que o pariu, olhe para as suas pernas. São compridas o bastante para subirem aquele morro correndo e me carregando, que dirá andando de bicicleta.

- Cavalheiro, o senhor é um monstro.

- Ei... olhe para aquela aranha na sua perna.

- Eu... o quê?... Aaahhh... Ian! Onde? - Mas ele estava rindo dela, e quando ergueu os olhos, compreendeu. - Ian Clarke, se fizer isso comigo mais uma vez, Eu... - Ela gaguejava e ele ria com mais força do que nunca. - Eu... - Ela lhe deu um baita soco no ombro, derrubando-o da bicicleta e fazendo-o cair na grama alta junto da trilha. Mas ele estendeu a mão e agarrou-a enquanto ria dele, e puxou-a para junto de si. - Ian, aqui não! Provavelmente há cobras aqui! Ian! Que merda! Pare com isso!

- Nada de cobras. Juro.

Enfiava a mão na blusa dela com uma expressão lasciva que a fez achar graça.

- Ian... estou falando a sério... Não! Ian...

Esqueceu das cobras quase imediatamente.

 

- Bem, que tal acharam o meu esconderijo favorito Carmel?

Com um sorriso, Astrid enfiou a cabeça pela porta do escri­tório de Jessica.

- Adoramos. Vá entrando. Que tal um pouco de café?

O sorriso de Jessie dizia tudo. Os dois dias em Carmel tinham sido uma ilha de paz num mar turbulento.

- Vou deixar o café para outra hora, obrigada. Vou para a cidade falar com os advogados do Tom. Talvez eu passe por aqui de novo na volta para casa.

Jessica mostrou-lhe o feijão-lima de ouro, contou-lhe resumidamente o fim de semana, e jogou um beijo para Astrid quando ela se foi. Durante o resto do dia, a Lady J foi uma loucura completa.

Havia entregas, novos clientes, fregueses antigos que queriam uma roupa nova, mas que precisavam dos ajustes “imediatamente”, facturas que se perderam e dois carregamentos de que Jessie preci­sava desesperadamente nem sequer apareceram. E Katsuko não podia ajudar, porque estava atolada nos detalhes para o desfile de modas. Então, Zina fazia malabarismos com os fregueses enquanto Jessie tentava resolver os problemas. E as contas. As duas semanas seguidas foram semelhantes.

Harvey Green apareceu duas vezes na boutique para discutir coisas de pouca monta com Jessie, tais como os hábitos de Ian e dela própria, mas ela teve pouco para lhe contar. O mesmo com o Ian. Viviam uma vida simples e nada tinham a ocultar. As duas moças na boutique ainda não sabiam o que estava acontecendo, e as semanas desde os sumiços frenéticos e erráticos de Jessie da loja tinham sido turbulentas demais para perguntas. Imaginaram que o problema, fosse qual fosse, tivesse se resolvido. E Astrid cuidava de não se intrometer.

Ian estava perdido no seu novo livro, e as duas aparições subse­quentes no tribunal correram muito bem. Como Martin previra, a fiança não foi revogada. Nem sequer se tocou no assunto. Jessica fez companhia a Ian nas duas vezes em que foi ao tribunal, mas nada houve para ver. Ele se dirigia para a frente da sala com Martin, resmungavam por alguns momentos diante do juiz e depois iam todos embora. A esta altura aquilo já era uma parte comum da rotina das duas vidas; tinham outras coisas em que pensar. Jessie estava preocupada com parte da linha de outono que não tinha vendido, outro carregamento que não aparecera, e o dinheiro que escorria feito água da sua conta bancária. Ian estava preocupado com o capítulo nove, e incoerente sobre qualquer outro assunto. Era isso de que tratava a vida real deles, não de aparições mecâ­nicas diante de um juiz entediado.

Um mês mais tarde, Harvey Green apresentou a primeira parte da sua conta: 1.800 dólares. A conta foi mandada para a boutique, como ela pedira, e Jessica soltou uma exclamação abafada quando a abriu. Sentiu-se quase mal. Mil e oitocentos dólares. Por nada. ele não descobrira coisa nenhuma, excepto o nome de um homem com quem Margaret Burton tinha ido jantar duas vezes, e com quem nunca dormira. Peggy Burton parecia estar limpa. Os seus colegas do trabalho achavam que era uma mulher decente, não muito sociável, mas digna de confiança, e agradável de se lidar. Vários menciona­ram que ela ocasionalmente ficava distante e sorumbática. Não tinha casos de amor tórridos no passado, nenhum problema com tóxicos, nenhum vício de beber digno de nota. Jamais voltara para qualquer hotel em Market Street desde que Green começara a vigiá-la, nem recebera qualquer homem no seu apartamento desde o começo da vigilância. Ia para casa sozinha todas as noites depois do trabalho; fora a três cinemas num mês, novamente sozinha; e uma tentativa de paquerá-la num ónibus falhara totalmente. Um assistente de Green lançara-lhe olhares durante várias quadras, tendo recebido um olhar encorajador como resposta, dissera ele, mas depois recebera um firme “Não, obrigada, meu chapa” quando a convidara para ir tomar um drinque. Falou que ela até parecia puta com ele por tê-la convidado. Na pior das hipóteses, estava confusa... Na melhor, só perdia em pureza para a Virgem Maria, e o caso de Ian ia ficar muito sem substância, no tribunal. Tinham que encontrar algo. Mas não encontraram. E agora Harvey Green queria 1.800 dólares. E eles nem podiam dispensá-lo. Martin dissera que a tal Burton teria que ser vigiada até a hora do julgamento, possivelmente até durante est, embora tanto ele quanto Green admitissem que a polícia provavelmente lhe tinha dito que se comportasse. A Promotoria não queria que o seu caso entrasse pelo cano por causa de uma trepada ocasio­nal que a Srta. Margaret Burton pudesse dar algumas semanas antes do julgamento.

Green nem conseguira levantar alguma sujeira no seu passado. Ela fora casada uma vez, aos 18 anos, e o casamento fora anulado alguns meses depois. Mas ele não sabia por que, ou com quem se tinha casado. Nada. E não havia registro dele, e fora provavelmente por esse motivo que ela não admitira o casamento na audiência preliminar. (O que ele apurara, soubera por uma mulher com quem Burton trabalhava.) Jessie estava pagando era por um ates­tado de ficha limpa daquela mulher.

Jessie ficou sentada à escrivaninha, fitando a conta de Green, e abriu o resto da sua correspondência. Uma demonstração de conta de Martin pelos 5.000 que ainda deviam, e nove demonstrações de contas de Nova York pelas suas compras para a linha de primavera. A conta pelo check-up de Ian há dois meses, ainda por pagar, de 242 dólares, e o seu próprio raio X de tórax, de 40, assim como uma conta de 74 dólares de uma loja de discos onde se esbaldara antes de ir para Nova York. Enquanto se sentava ali, perguntava-se o que a fizera pensar que 74 dólares em discos não era uma barbari­dade. Ainda se lembrava de dizer isso ao Ian, na época. É... não duma barbaridade se de repente você não se depara com 10.000 dó­lares em contas de advogados e ....... e a florista... e a lavanderia... e a farmácia... sentiu o estômago contrair-se enquan­to tentava não somar as quantias. Estendeu a mão para o telefone, olhou para o cartão no caderninho de endereços e telefonou.

Ligou para o banco antes de se dirigir ao encontro marcado, e teve sorte, mais ou menos. Baseado no comportamento anterior da sua conta, o banco estava disposto a deixar o empréstimo sem a cobertura da garantia. Podia vender o carro. Secretamente, torcia para que eles não fossem deixar. Mas, agora, não tinha escolha. Vendeu o Morgan às duas da tarde. Por 5.200 dólares. O sujeito deu-lhe “uma colher de chá”. Depositou o cheque no seu banco antes dele fechar, e mandou um cheque seu para Martin Schwartz pelos 5.000 dólares. Ele estava pago. Aquilo já estava resolvido. Agora podia respirar. Há semanas que vinha tendo pesadelos com uma coisa lhe acontecendo e ninguém podendo ajudar o Ian com as contas... fantasias horríveis de Ian suplicando o dinheiro para Katsuko, e sendo recusado porque ela queria o dinheiro para comprar quimonos para a loja, enquanto Barry York ameaçava arrastar Ian de volta à cadeia. Agora, estavam salvos. Os honorários do advogado estavam pagos. Se alguma coisa lhe acontecesse. Ian estava amparado.

A seguir, tomou emprestado 1.800 dólares da conta comercial de Lady J para pagar os honorários de Green. Estava de volta à sua mesa às três e meia... com uma dor de cabeça de rachar. Astrid apareceu às quatro e meia.

- Não está com uma cara muito boa, Lady J. Alguma coisa errada?

Astrid era a única que a chamava assim, e ela deu um sorriso cansado.

- Você acreditaria que tudo está errado?

- Não. Mas... há alguma coisa especial que queira me contar?

Astrid sorvia o café que Zina lhe servira, e Jessie suspirou e balançou a cabeça.

- Não há muito que contar. A não ser que você tenha umas 600 horas sobrando para escutar, e eu não tenho tantas para lhe contar, de qualquer maneira. Que tal foi o seu dia?

- Melhor do que o seu. Mas não me arrisquei. Levantei às 11 horas e passei a tarde no cabeleireiro.

Jesus. Como poderia lhe contar? Como é que a Astrid poderia entender?

- Vai ver que foi aí que errei. Eu mesma lavei o cabelo ontem à noite.

Deu um sorriso torto para a amiga, mas Astrid não sorriu. Estava preocupada. Há semanas que Jessie parecia cansada e perturbada, e não havia nada que pudesse dizer.

- Por que não encerra as suas actividades e vai para casa para junto do seu lindo maridinho? Que diabo, Jessica, se ele fosse meu nem por um decreto eu ficava aqui.

- Sabe de uma coisa? Acho que tem razão - Foi o primeiro sorriso de verdade que Jessica deu o dia todo. - Está indo para casa? Quer me dar uma carona?

- Cadê o seu bebé?

- O Morgan? - Tentou desconversar. Não queria mentir. mas... Astrid fez que sim, e Jessie sentiu uma dor no coração. - Eu... está na oficina.

- Tudo bem. Eu lhe dou uma carona.

 

Ian viu Astrid deixá-la em casa da janela do estúdio, e uma cara intrigada. De qualquer maneira, estava na hora de dar uma paradinha... estivera trabalhando corrido desde as sete da manhã. Abriu a porta para Jessie antes que ela pegasse a sua chave.

- Cadê o carro? Deixou-o na boutique?

- Ë... eu... - Ergueu os olhos para ele e quase pode ver a cor sumir do rosto. Tinha que contar-lhe. - Ian, eu... eu o vendi.

Crispou-se ante a expressão no rosto dele. Tudo parou.

- Você o quê?

Era pior do que ela temia.

- Eu o vendi. Querido, foi preciso. Todo o resto está comprometido. E precisávamos de quase 7.000 dólares nas próximas duas semanas para os honorários de Martin e a primeira metade da comi do Green, e Green vai nos cobrar o restante daqui a duas semanas. Não havia mais nada que eu pudesse fazer.

Estendeu a mão para tocá-lo e ele a afastou.

- Podia ao menos ter falado comigo! Me perguntado, dito algu­ma coisa... pelo amor de Deus, Jessica, não me consulta mais sobre nada? Eu lhe dei aquele carro de presente. Significava alguma coisa para mim!

Cruzou a sala em largas pegadas e agarrou o uísque. Derramou um pouco num copo, enquanto ela olhava.

- Acha que não significava para mim? - A voz dela tremia, não ouvia, e ela ficou vendo enquanto engolia o meio copo de uísque puro. - Querido, sinto.. não tinha outra...

Ficou calada, com lágrimas nos olhos. Lembrava-se tão bem do dia em que ele o trouxera para ela. Agora...

Ele terminou de engolir a bebida e vestiu o paletó.

- Aonde vai?

- Sair.

O rosto dele parecia de mármore cinzento.

- Ian, por favor, não faça nenhuma loucura.

Estava assustada com a expressão nos olhos dele, mas ele apenas ficou ali parado, e sacudiu a cabeça.

- Não preciso fazer nenhuma loucura. Já fiz.

A porta bateu às suas costas, um momento mais tarde.

 

Ele voltou à meia-noite, silencioso e submisso, e Jessica não lhe perguntou onde estivera. Tinha medo de perguntar: quem sabe o inspector Houghton iria fazer-lhes outra visita. Mas odiou-se por ter pensado assim quando viu Ian tirar os sapatos. Dois morrinhos de areia saíram de dentro deles, e ela olhou para o seu rosto. Parecia melhor. Sempre haviam feito isso juntos... ido à praia de noite conversar, ou para pensar, ou apenas para caminhar juntos, tranquilamente. Ele a levara para lá quando Jake morrera. Para a praia deles. Sempre juntos. Agora ela estava com medo até mesmo de estender a mão e tocá-lo, mas queria, precisava fazê-lo. Ele olhou para ela em silêncio, entrou no banheiro e fechou a porta. Jessie apagou a luz e enxugou duas lágrimas do rosto. Sentiu o pingente do feijão-lima na garganta e tentou forçar um sorriso, mas conseguiu. Já não conseguiam mais rir do um feijão-lima, ago­ra, não conseguiam mais rir de nada, e quem sabe... um dia ela também poderia vender o berloque de ouro. Odiou-se enquanto fazia escuro.

Ouviu a porta do banheiro se abrir, e depois as passadas suaves de Ian, e depois a cama vergar na outra ponta. Ficou sentado ali pelo que parecia um longo tempo, fumando um cigarro. Encostou-se na cabeceira da cama e esticou as longas pernas. Conhecia todos os movimentos dele sem olhar, e ficou muito quieta, querendo que ele pensasse que estava dormindo. Não sabia o que lhe dizer.

- Tenho uma coisa para você, Jess.

A voz dele era áspera e baixa na quietude do quarto.

- Como um soco na boca?

Ele riu e colocou a mão no quadril de Jessie quando ela se deitou de lado, dando-lhe as costas.

- Não, boboca. Vire-se.

Ela sacudiu a cabeça feito criança, depois espiou por cima do ombro.

- Não está zangado comigo, Ian?

- Não, estou zangado comigo. Não havia mais nada que você pudesse fazer. Sei disso. É só que me odeio por ter metido nós dois nessa enrascada, e preferia ter vendido um monte de outras coisas, menos o Morgan.

Ela balançou a cabeça, ainda sem saber o que dizer.

- Sinto muito.

- Eu também. - Debruçou-se e beijou-a de leve na boca depois colocou algo leve e arenoso na mão dela. - Tome. Achei-a no escuro.

Era um perfeito dólar de areia, uma concha branca-leitosa com uma marca de fóssil pequenina bem no centro.

- Ah, querido, que linda.

Sorriu para ele, segurando-a na palma da mão aberta.

- Eu te amo.

E então, com um sorriso lento e meigo, tomou-a nos braços deixou que os seus lábios seguissem uma trilha deliciosa até as suas coxas.

 

As duas semanas seguintes voaram loucamente. Horas na loja, almoços demorados em casa, discussões violentas sobre quem não estava molhando as plantas, e depois fazer as pazes e fazer amor, e insónia, e dormir demais, e esquecer de comer, e depois comer demais, e indigestões constantes e terror quanto às contas, segui pela compra de uma carteira Gucci caríssima para o Ian ou saia de camurça de outra loja para Jessie, quando podia tê-la conseguido a preço de custo na sua própria, e bobaginhas e bagulhos, tudo a crédito, é claro, como se o dia do ajuste de contas jamais fosse chegar. Uma loucura completa. Nada daquilo fazia sentido. Jessie se sentia há semanas como se estivesse ricocheteando das paredes, e que jamais ficaria parada de novo. Ian tinha a impressão de que estava se afogando.

Foi na véspera do julgamento que tudo finalmente parou. Jessie tomara providências na loja para tirar uma semana de folga, duas, se fosse necessário. Saiu da boutique cedo e foi dar uma longa cami­nhada antes de ir para casa para o Ian. Encontrou-o sentado numa cadeira, pensativo, olhando a paisagem. Era a primeira vez que não o via trabalhando furiosamente no novo romance. Era só o que parecia fazer agora, quando não estava gastando dinheiro, ou pos­suindo o corpo dela, silenciosa e urgentemente. Conversavam menos do que nunca, agora. Até mesmo as refeições eram desastres mudos. ou frenéticas e desesperadas... nunca normais.

Mas, naquela noite, acenderam a lareira e ficaram conversando até tarde. Sentia como se não o visse há meses. Finalmente estava conversando com o Ian de novo, o homem a quem amava, seu ma­rido, seu amante, seu amigo. Havia sentido falta da sua amizade, mais do que tudo, nessas semanas solitárias e intermináveis. Tinha sido a primeira vez em que não tinham conseguido de verdade tocar um ao outro e ajudar. Agora, partilharam um jantar tranquilo, metidos no chão diante da lareira. A paz que sentiam fazia o julgamento parecer menos apavorante. E a realidade da coisa tinha se diluído nas semanas desde que Ian fora libertado da prisão. A prisão tinha sido a realidade. Entregar o anel de esmeraldas da mãe tinha sido a realidade. Mas, o que era o julgamento? Uma mera formalidade. Uma troca verbal entre dois actores pagos, o deles e o do Estado, com a assistência de um árbitro de vestes negras, e ao fundo, num canto qualquer, uma mulher que ninguém conhecia chamada  Margaret Burton. Uma semana, talvez duas semanas, e depois tudo acabaria. Essa era a única realidade.

Ela se deitou de costas no tapete diante da lareira e sorriu para ele com ar de sono, enquanto se inclinava para beijá-la. Foi um beijo longo e profundo que trouxe de volta a ternura que haviam tido e fez o corpo dela suplicar para corresponder, e dentro de alguns minutos estavam fazendo amor esfaimadamente. Foi uma das raras noites em que corpos e almas se misturavam e pegavam e ardiam durante horas. Falaram pouco, mas fizeram amor às vezes. Estava quase alvorecendo quando Ian depositou Jessica, ­sonolenta, na cama deles.

- Eu a amo, Jessie. Vá dormir, agora. Amanhã vai ser um dia comprido.

Sussurrou as palavras e ela sorriu para ele enquanto pegava no sono. Um longo dia? Ah... era verdade... o desfile de modas... ou será que iam voltar de novo para a praia?... Não conseguia se lembrar... um piquenique? O que era?

- Eu também o amo...

A voz dela foi sumindo enquanto adormecia ao seu lado, abraçada a ele como uma criancinha. Alisou o braço dela suavemente enquanto ficava deitado ao seu lado, fumando um cigarro, e depois olhou para o seu rosto, mas não estava sorrindo. Nem estava com sono. Amava Jessie mais do que nunca, mas havia coisas demais na sua cabeça.

Passou o resto da noite numa vigília solitária. Observando a mulher, pensando os seus pensamentos, ouvindo-a respirar e murmurar, imaginando o que viria a seguir.

Na manhã seguinte, iria a julgamento por estupro.

 

O tribunal na Prefeitura era bem diferente da pequena sala onde fora realizada a audiência preliminar. Esse parecia um tribunal de cinema. Dourados, lambris de madeira, longas fileiras de assentos, a cadeira do juiz instalada numa plataforma, e a bandeira americana bem à vista de todos. A sala estava cheia de gente, e uma mulher chamava nomes, de um em um. Parou quando chegou aos 12. Estavam escolhendo os jurados.

Ian sentava-se com Martin na frente da sala, na mesa destinada A defesa. A pouca distância deles sentava-se um promotor-assistente diferente, com o Inspector Houghton a seu lado. Margaret Burton não estava à vista.

Os doze jurados tomaram assento e o juiz explicou a natureza do julgamento. Algumas das mulheres pareceram surpresas e lançaram olhares para Ian, e um dos homens meneou a cabeça. Martin tonou notas rápidas e observou atentamente os jurados em perspec­tiva. Ele tinha o direito de excluir dez pessoas do júri, e o promotor­-assistente podia fazer o mesmo. Os rostos pareciam inócuos, como aqueles das pessoas que a gente vê num Ónibus.

Martin contara a Ian e Jessie de manhã cedo a natureza do júri que desejava. Nada de “solteironas” que ficariam chocadas com acusação de estupro, ou que poderiam se identificar com a vítima. No entanto, talvez fosse bom se apegarem a umas donas-de-casa de classe média que poderiam condenar a Burton por deixar que Ian paquerasse na rua. Os jovens poderiam ter simpatia pelo Ian, e a um tempo podiam se ressentir da aparência do casal, confortável demais para a sua idade. Estavam andando numa corda bamba.

Jessie fitou os 12 homens e mulheres da sua cadeira na primeira fila, perscrutando os seus rostos e o do juiz. Mas logo que Martin levantou para interrogar o primeiro jurado em perspectiva, o juiz deu um recesso para o almoço.

Foi um processo lento; só no final do segundo dia é que o júri tinha sido escolhido. Os jurados tinham sido interrogados pelos dois advogados quanto aos seus sentimentos sobre o estupro, seus empregos e companheiros, seus hábitos e o número de filhos que tinham. Martin explicara que pais de mulheres da idade da Srta. Burton também não seriam uma boa escolha; sentir-se-iam muito protectores em relação à vítima. Precisava-se considerar muitas coisas e alguma base inevitavelmente ficaria a descoberto. Mesmo agora havia duas pessoas no júri que não contavam com a aprovação integral de Martin, mas ele já se utilizara de todas as suas chances, e agora tinham que torcer pelo melhor. Martin usara um estilo de brincadeira tranquila para tratar com os jurados, e de vez em quando alguém rira de uma resposta tola ou de uma piada.

Finalmente, o júri fora escolhido. Cinco homens, três aposenta­dos e dois jovens, e sete mulheres, cinco de meia-idade e conforta­velmente casadas, duas jovens solteiras. Isso fora um golpe de sorte. Esperavam que contrabalançasse dois dos aposentados de que Martin não gostara. Mas, de um modo geral, ele estava razoavelmente satisfeito, e Ian e Jessie imaginavam que tinha razão.

Enquanto todos se retiravam do tribunal no final do segundo dia, Jessie sentia como se pudesse recitar a história das vidas dos jurados durante o sono, enumerar as suas profissões e a dos seus companheiros. Teria reconhecido seus rostos numa multidão de mi­lhares, e se recordaria deles pelo resto da vida, mesmo que jamais os visse de novo depois daquele dia.

Receberam o primeiro choque no terceiro dia. O promotor-assistente tranquilo que substituíra a irritante promotora da audiência preliminar não apareceu no tribunal. Relatou-se à corte que tivera apendicite aguda durante a noite e que fora operado de apendicite supurada de manhã cedo. Estava descansando confortavelmente no Hospital Mt. Zion, o que Jessica achou ser de pouco consolo. As notícias foram trazidas ao juiz por um dos colegas do homem doente, que estava cuidando de um caso no tribunal adjacente. Mas o Meritíssimo podia ficar descansado porque uma substituta fora escolhida e chegaria a qualquer momento. Os corações de Jessie e Ian caíra lhes aos pés. A mulher da audiência preliminar voltaria ao caso. Parecera-lhes uma boa sorte incomensurável quando ela não aparecera na abertura do julgamento, e agora...

Martin inclinou-se para sussurrar qualquer coisa no ouvido de Ian enquanto o juiz anunciava um pequeno recesso para esperar a chegada da nova promotora-assistente. Todos ficaram de pé, o juíz saiu da sala, e muita gente começou a se dirigir para os corredores Ainda era cedo, e até mesmo uma xícara de café de uma das máquinas do corredor saberia bem. Era algo para fazer. Jessica podia sentir a depressão pesando-lhe sobre os ombros enquanto segurava a pequena xícara de papel de café fumegante e de aparência malévola. Só conseguia pensar naquela maldita promotora e em como a sua presença podia causar danos ao caso deles. Lançou um olhar a Ian, mas ele estava calado. E Martin tinha sumido.

Ele lhes havia dito para não discutirem o caso no corredor durante os recessos ou o almoço, e de repente ficou difícil encontrar banalidades com as quais romper o silêncio. E assim eles ficaram calados, mantendo-se bem juntos, com o ar de refugiados que esperavam um trem chegar, mas sem entender direito o que lhes estava acontecendo.

- Mais café?

- Hã?

Os pensamentos dela estavam no limbo.

- Café. Quer mais café? - tentou Ian de novo. Mas ela apenas sacudiu a cabeça com uma vaga tentativa de esboçar um sorriso. - Não se preocupe tanto, Jess. Vai dar tudo certo.

- Eu sei.

Palavras. Só palavras. Sem sentido. Nada mais tinha sentido. Tudo era confuso, impossível de compreender. O que estavam fa­zendo? Por que estavam parecendo convidados desajeitados num enterro? Jessica esmagou um cigarro no piso de mármore e olhou o tecto. Era adornado e bonito, e ela o odiava. Era enfeitado demais. Fazia-a lembrar-se de onde estava. Na Prefeitura. O julgamento. Acendeu outro cigarro.

- Acabou de apagar um, Jess.

A voz dele era baixa e triste. Também sabia o que estava acon­tecendo.

- Hã?

Olhou para ele com olhos apertados por entre a chama do isqueiro.

- Nada. Vamos voltar?

- Claro. Por que não?

Tentou dar um sorriso brejeiro enquanto jogava a xícara de varia num grande cinzeiro de metal cheio de areia.

Voltaram para o tribunal lado a lado, mas sem se tocar. Ian dirigiu-se devagar para a mesa que os isolava, a ele e a Martin, dos outros E Jessica o acompanhava com os olhos, observando-o, obser­vando Martin rabiscar rapidamente anotações num comprido bloco amarelo. O advogado perfeito, a imagem reflectida numa poça de sol espalhada bravamente sobre o piso de mármore trabalhado. Fitou a luz por um minuto, sem pensar em nada, desejando apenas estar em lugar qualquer, e depois olhou distraídamente para a mesa reservada à promotora-assistente.

Lá sentava-se ela. Matilda Howard-Spencer, alta, magra; tudo nela parecia cortante. Tinha uma cabeça estreita com cabelos louros e curtos cortados à navalha, e mãos longas e magras e ágeis que pareciam prontas a apontar dedos acusadores. Usava um sóbrio costume cinza e camisa de seda cinza-pálida, e seus olhos quase combinavam com o costume. Eram de um cinza-azulado, e duros e frios. Pernas longas e magricelas e a única jóia que usava era uma aliança de ouro fina. Era casada com o Juiz Spencer, cujo nome incorporara ao seu, e era o terror do escritório do promotor. Os seus melhores casos eram os estupros. Nem Ian nem Jessie sabiam nada disso, mas Martin sabia, e sentira vontade de chorar quando a vira entrar no tribunal. Ela tinha a delicadeza e o encanto de uma machadinha acertando na mosca nos colhões. Já a enfrentara num outro caso antes, e não vencera. Ninguém vencia. O seu cliente cometera suicídio nove dias depois de iniciado o julgamento. Teria feito isso de qualquer maneira, provavelmente, mas mesmo assim... Matilda, querida Matilda. E tudo o que Ian e Jessie sabiam eram o que viam e o que sentiam.

Ian viu uma mulher que o deixou nervoso enquanto parecia estar de tocaia dentro de uma jaula ao redor da sua mesa. Jessie viu uma mulher entalhada em gelo, e pressentiu algo que a encheu de medo. Agora não era um jogo. Era uma guerra completa. O simples modo como a mulher olhava para o Ian lhe dizia isso. Ela olhou feio para ele uma vez, e depois através dele diversas vezes, como se não fosse uma pessoa a quem se devesse prestar atenção, e consi­deravelmente menos do que um homem. Falou com Houghton num fluxo rápido de palavras, e ele balançou a cabeça várias vezes, depois levantou-se e afastou-se. Estava bem claro quem estava no coman­do. Jessica amaldiçoou o homem com apendicite. Essa mulher era um azar de que não estavam precisando.

- Levantem-se todos...

O juiz estava de volta ao seu lugar, e a tensão enchia os ares. Demonstrou um prazer óbvio ao ver a nova adição à cena, e cumprimentou-a respeitosamente. Fantástico.

Matilda Howard-Spencer fez alguns comentários rápidos e amistosos para o júri, e todos pareceram reagir bem a eles. Podia inspirar confiança, assim como modo. A sua voz e o seu jeito transpiravam autoridade e não correspondiam à sua idade: não devia ter mais do que 42 ou 43 anos. Era alguém com quem se podia contar, alguém que cuidaria dos negócios, cuidaria de você, cuidaria para que tudo funcionasse. Essa era uma mulher que podia lutar uma guerra, liderar um exército, e ainda dar um jeito de providenciar para que as crianças estudassem latim e álgebra. Mas ela não tinha filhos. Estava casada há menos de dois anos. A lei era seu amante. O marido era o único amigo dela, e era um homem de 60 e pouco anos.

A luta começou com uma das testemunhas menos interessantes. O médico que examinara a Burton subiu ao banco das testemunhas e não disse nada que prejudicasse Ian, nada que ajudasse Margaret Burton. Declarou apenas que a tinha examinado, que tinha havido relações sexuais, mas que nada mais podia ser determinado além disso. A despeito da insistência de Matilda Howard-Spencer, ele se manteve fiel à sua afirmativa de que não havia provas de que tivesse sido empregada a força. As objecções de Martin à insistência excessiva dela foram logo abafadas, mas o testemunho era muito sem graça para fazer qualquer diferença. Tudo pareceu muito tedioso a Jessica, e depois de uma hora ela concentrou a sua atenção na listra de nylon vermelha do meio da bandeira. Era alguma coisa para fitar enquan­to tentava flutuar para longe de onde estava... aquelas palavras soando interminavelmente... “crime infame contra a sodomia... estupro... coito... recto... vagina... esperma... era como um guia infantil para a fantasia. Todas aquelas palavras terríveis que a gente procurava no dicionário aos 14 anos, e que nos deixava excitados. Agora, ela tinha a chance de experimentar cada uma delas. Vagina. A promotora parecia gostar desta. E estupro. Dizia-a com um “E” maiúsculo.

O dia finalmente terminou e eles foram para casa tão silencio­samente quanto o haviam feito durante a semana. Era exaustivo apenas ficar ali, mantendo as aparências para aqueles observadores do júri, ou para qualquer um que pudesse estar prestando atenção. Se você franzisse a testa, o júri poderia pensar que estava com raiva - raiva do Ian - ou nervosa. Nervosa? Não, querida, claro que não! Se sorrisse, significava que não estava levando a sério o pro­cesso. Se usasse a roupa errada, parecia rica. Algo muito alegre, e parecia irreverente. Sensual num tribunal? Num julgamento de es­tupro? Nem pensar. Vagina? Onde? Não, claro que não tenho. Não era mais nem assustador, apenas exaustivo. E aquela maldita mulher era implacável, espremendo até a última gota cada palavra pensamento das testemunhas. E Martin era tão cavalheiro, droga. Mas, agora, o que importava? Se eles conseguissem se manter acordados e aparecessem no tribunal sempre, logo tudo acabaria. Logo... mas parecia que tinha apenas começado. Ainda havia vidas inteiras para continuar. Mal trocaram palavra durante o jantar, naquela noite, e Jessica estava ferrada no sono de roupão de banho antes que o Ian tivesse saído do chuveiro. Ainda bem; ele estava cansado demais para dizer qualquer coisa. E o que havia para dizer?

Ela se espreguiçou sonolenta no carro na manhã seguinte, e sorriu cansadamente para a luz matinal contra os prédios.

- Do que está sorrindo, Jess?

- Uma idéia maluca. Estava pensando que está parecendo quando saíamos juntos para o trabalho em Nova York.

Parecia pensativa, mas ele não sorriu.

- Não exactamente.

- Não. Temos tempo de parar para um cafezinho rápido?

Não tinham tido tempo de tomar café em casa, e já estava tarde.

- É melhor nos contentarmos com o café da máquina lá mesmo, Jess. Não quero chegar atrasado. Podem considerar isso desrespeito, e revogar a minha fiança.

Jesus. E tudo por causa de uma xícara de café.

- Tudo bem, amor.

Tocou suavemente no ombro dele e acendeu um novo cigarro. O único lugar em que não fumava agora era no tribunal.

Enfiou a mão pelo braço dele enquanto subiam os degraus da Prefeitura, e tudo parecia alegre e brilhante e novo. Era esse tipo de manhã, não importa os horrores que estavam acontecendo na vida deles. Quase parecia que Deus não estava sabendo. Continuava com o sol e os dias bonitos.

Chegaram ao corredor diante do tribunal três minutos antes da hora, e Jessica saiu correndo para a máquina de café.

- Quer um pouco?

Começou a dizer que não, mas depois fez que sim com a ca­beça. A azia dele não podia ficar muito pior do que já estava e que importância isso tinha? Tirou a xícara da mão dela; tremia tanto que ela quase derramou o café.

- Meu bem, vai levar um ano para a gente ficar em forma de novo, depois disso.

- Está se referindo aos meus adoráveis tremores?

Ele sorriu para ela, também.

- Já viu os meus?

Estendeu a mão e ambos riram.

- Riscos da profissão, acho eu.

- De estuprador?

Ela tentara parecer irreverente, mas ele não.

- Qual é, Ian, corta essa.

Aquilo encerrou a breve conversa entre eles, e Jessica notou um movimento inusitado perto de uma porta sem nada escrito. Gente que ia e vinha. Quatro homens, uma mulher, o som de vozes, como se alguém de importância estivesse chegando.

A movimentação chamou a atenção de Jessie, mas foi Ian quem ficou com cara estranha, a cabeça inclinada para o lado, escutando atentamente. Queria perguntar-lhe o que estava acontecendo, mas não tinha certeza se devia. Ele parecia estar totalmente absorvido pelos sons e pelas vozes. E então ouviu-se uma porta batendo rapi­damente, e uma mulher usando um vestido simples de lã branca dobrou a esquina. Jessica soltou uma exclamação abafada. Era Margaret Burton.

A boca de Ian se abriu e fechou, mas nenhum deles se mexeu. Jessica ficou paralisada, sentindo-se abalada e fria, os olhos fitando penetrantemente Margaret Burton, que dera uma parada rápida, um ligeiro passo atrás, e depois se detivera com uma expressão de espanto no rosto, enquanto os três ficavam parados ali. Parecia que o prédio inteiro tinha ficado em silêncio, e eles eram as três únicas pessoas que restavam no mundo. Nada se mexia... excepto o rosto de Margaret Burton. Lenta, muito lentamente, como uma másca­ra de cera se derretendo ao sol, o rosto dela se moldou num sorriso incrível. Era um ríctus de vitória, apenas para os olhos de Ian. Jessica observava-a, horrorizada, e então, como se o seu corpo se movesse de moto próprio, lançou-se atabalhoadamente à frente e brandiu para a Burton a bolsa agarrada firmemente na mão.

- Por quê? Por que, merda, por quê?

Era um gemido lancinante de dor vindo do coração de Jessica. A mulher recuou um passo, parecendo espantada, como que acor­dando de um sonho, enquanto no mesmo momento Ian se lançava para a frente para agarrar Jessie. Algo terrível podia ter acontecido. Ela estava com assassinato estampado nos olhos. E aquele grito de “Por quê?” ecoou repetidas vezes pelos corredores enquanto Margaret Burton fugia, os saltos dos sapatos batendo ruidosamente no corredor de mármore enquanto Jessie soluçava nos braços de Ian.

Um bando de homens apareceu correndo rapidamente, depois se afastou ao ver apenas Ian e Jessie parados ali. Não havia briga para separar, nada além de marido e mulher discutindo, e a mulher numa boa choradeira. Mas Martin também ouvira os gritos, e por algum motivo, quando já ia entrar na sala, algo lhe dissera que seguisse os sons. E então, vendo Margaret Burton entrar apressada por uma porta perto da sala do tribunal, soube que algo tinha acontecido. Encontrou Jessie tremendo sentada num banco, enquanto Ian tentava acalmá-la.

- Ela está bem? - Ian fez um ar sombrio, em resposta, e ficou calado. - O que aconteceu?

- Nada. Ela... nós... acabamos de ter um encontro ines­perado com a ilustre Srta. Burton.

- Ela fez alguma coisa a Jessie?

Martin rezava para que tivesse feito. Seria a melhor coisa que podia acontecer ao caso deles.

- Ela sorriu.

Jessie parou de soluçar o tempo suficiente para explicar.

- Sorriu? - indagou Martin, intrigado.

- Foi. Como alguém que tivesse acabado de matar outra pes­soa e estivesse contente.

- Vamos, Jess...

Ian tentava acalmá-la, mas sabia que ela estava certa. Fora exactamente assim que Margaret Burton parecera, mas eles eram os únicos que tinham visto.

- Sabe muitíssimo bem que era assim que ela estava parecendo.

Tentou explicar para Martin, mas ele não fez nenhum comen­tário.

- Você está bem, agora?

Ela balançou a cabeça, lentamente, e inspirou fundo.

- Estou bem.

- Óptimo. Porque temos que entrar no tribunal. Não queremos chegar atrasados.

Jessica levantou-se, tropegamente, com os dois homens fitan­do-a com ar preocupado. Inspirou fundo de novo e fechou os olhos. Que manhã pavorosa.

- Jessie...

- Não. Deixe-me em paz e ficarei bem.

Sabia o que Ian ia dizer. Queria que ela fosse para casa.

Enquanto entravam no tribunal, notou algumas cabeças se vi­rando e se perguntou quem tinha ouvido os gritos dela quando a Burton fugira pelo corredor. Tornou-se rapidamente claro quem ouvira. Mal haviam dado alguns passos para dentro da sala quando o Inspector Houghton se postou beligerantemente à frente deles, com uma expressão zangada no rosto, dirigida para Jessie.

- Se fizer isso de novo, mando prendê-la e revogarem a fiança de Ian tão depressa que os dois vão ficar tontos.

Ian parecia agoniado, e Jessica soltou uma exclamação abafada quando Marthin se meteu diante deles.

- Fazer exactamente o que, Inspector?

- Ameaçar a Srta. Burton.

- Jessica, você ameaçou a Srta. Burton?

Martin olhava para ela como um pai olharia, perguntando à sua filhinha de cinco anos se tinha derramado o perfume da mamãe na privada.

- Não. Eu... eu gritei...

- O que foi que gritou?

- Não sei.

Ela falou “Por quê?”. Foi só o que falou - completou Ian.

- Isso não me parece uma ameaça, Inspector. E ao senhor? Para falar a verdade, ouvi a Sra. Clarke gritando essa palavra pelo corredor, e foi isso que me atraiu até o local.

- Considera isso uma ameaça.

Eu o considero um babaca. Jessie estava morrendo de vontade de dizê-lo.

- Na minha terra, Inspector, “por quê” é uma pergunta, não uma ameaça. A não ser que o facto de fazermos tal pergunta os ameace.

E então, sem mais uma palavra, Houghton girou nos calcanhares e voltou para a cadeira ao lado de Matilda Howard-Spencer. Mas não estava com uma cara muito boa, nem tampouco o Ian. Jessie podia senti-lo tremendo ao seu lado.

- Vou matar aquele filho da puta antes disso terminar.

Mas a expressão assumida por Martin deteve a ambos. Era aterradora.

- Não, porra, vocês vão ficar sentados aqui parecendo o Sr. e a Sra. América nem que isso os mate. E imediatamente. Fui claro? Para ambos? Jessica, isso quer dizer você, também. Sorriso, um belo sorriso. Qual é! Melhor do que isso. E segure o braço dela, Ian. Pombas, só o que nos falta agora é o júri pensar que há problemas. Não há. Ainda. Não se esqueçam disso.

E, com isso, dirigiu-se para a mesa na frente da sala com um ar de gravidade, mas não de preocupação. Sorriu para a promotora, e abrangeu a sala com um ar benevolente. Jessie e Ian não se saíram tão bem quanto ele, embora tentassem. E ainda tinham que suportar assistir o testemunho da Burton. Mas, estranhamente, depois daquele sorriso demoníaco, ouvi-la falar não foi tão ruim quanto temiam.

Ela contou a história agora tão familiar enquanto se sentava comportadamente no banco das testemunhas. O vestido branco pa­recia terrivelmente puro, tremendamente refinado. Sentava-se tão recatadamente que as pernas pareciam ter sido soldadas uma na outra pouco antes de entrar na sala, e Jessica notou que o seu cabelo agora estava tingido mais de castanho do que de vermelho. Se estava usando maquilhagem, era imperceptível, e se tinha busto, tinha feito coisas notáveis para fazê-lo desaparecer. Não parecia ter um corpo que chamasse atenção alguma.

- Srta. Burton, quer nos contar o que aconteceu?

A promotora-assistente estava usando um vestido negro extre­mamente sóbrio, um contraste perfeito com o branco da testemunha. Era como uma cena tirada de um filme de segunda.

A recitação que se seguiu parecia mesmo muito familiar. No final da história da sua cliente, a promotora perguntou:

- Alguma coisa parecida já lhe aconteceu antes?

A testemunha deixou pender a cabeça e mal conseguiu sussurrar:

- Não.

Era um som suave, como o de uma folha caindo ao chão. e Jessie sentiu que as suas unhas se enterravam na palma das mãos. Era a primeira vez na vida que odiava tanto uma pessoa. E sentada ali, fitando-a, tendo que escutá-la, teve vontade de matar aquela mulher.

- Como se sentiu depois que ele a deixou ali naquele hotel de segunda?

Ah, Jesus.

- Com vontade de me matar. Pensei nisso durante algum tempo. Foi por isso que demorei tanto a chamar a polícia.

Que actuação! Quase pedia uma ovação de pé e um coro de bravos. Mas estava longe de ser divertido. Jessie sabia que Margaret Burton estava ganhando as simpatias do júri com o seu jeitinho recatado.

O que Martin podia fazer agora? Se a fizesse em pedaços, o júri o odiaria. Reinquiri-la seria como andar de patins por um campo minado.

Depois de mais de uma hora de testemunho, Matilda Howard-Spencer tinha terminado o seu interrogatório, e chegou a hora de Martin começar. Jessica sentiu o estômago subir e depois cair ra­pidamente. Tinha vontade de segurar o Ian. Não estava mais aguentando. Mas tinha que aguentar. E ficou imaginando o que ele estava sentindo, enquanto se sentava isolado do mundo. O acusado.

O estuprador. Jessica estremeceu.

- Srta. Burton, por que a senhora sorriu para o Sr. Clarke hoje de manhã, do lado de fora desta sala?

A primeira pergunta de Martin chocou a todos no tribunal, até mesmo a Jessie. O júri parecia atónito, enquanto Houghton fumegava e sussurrava algo para a promotora.

- Sorrir?... Eu... ora... eu não... não sorri para ele

Enrubescera e estava com ar absolutamente furioso, que não tinha nada a ver com a virgem de um momento antes.

- Então o que foi que fez?

- Eu... nada, porra... eu... quero dizer.... ah, não sei o que fiz... - A virgem apareceu de novo, e ainda por cima inde­fesa. - Foi só que fiquei tão chocada ao vê-lo ali, e a mulher dele me chamou de um nome. Ela...

- Foi? Do que ela a chamou? - Martin parecia imensamente divertido, e Jessie se perguntou se realmente estaria. Era difícil saber, com ele. Estava aprendendo isso mais a cada dia que passava.

- Vamos, Srta. Burton, não seja tímida. Conte-nos do que ela a chamou. Mas não se esqueça de que está sob juramento.

Sorriu para ela e assumiu uma atitude de expectativa.

- Não me lembro do que ela me chamou.

- Não? Ora, se foi um encontro tão traumático, a senhora não se lembraria do que ela a chamou?

- Objecção, Meritíssimo!

Matilda Howard-Spencer estava de pé, com cara irritada. Muito.

- Aceita.

- Está bem. Mas só uma coisinha... não é verdade que a senhora olhou de soslaio para o Sr. Clarke, quase como se...

- Objecção!

A voz da promotora poderia ter quebrado concreto, enquanto Martin sorria angelicamente. Conseguira o seu objectivo.

- Aceita.

- Desculpe, Meritíssimo. - Mas foi um bom começo. E o resto da história continuou monotonamente, depois disso. Como ela fora degradada, abusada, usada, humilhada, violada. As palavras estavam se tornando quase risíveis. - O que a senhora esperava exactamente do Sr. Clarke?

- O que quer dizer?

A testemunha parecia altiva, mas confusa.

- Bem, a senhora pensou que ia pedi-la em casamento naquele quarto de hotel, ou tirar um anel de noivado do bolso, ou... bem, o que esperava?

- Não sei. Eu... ele... pensei que ele só queria tomar um drinque. Já estava mesmo meio bêbado.

- Achou-o atraente?

- Claro que não.

- Então por que quis tomar um drinque com ele?

- Porque... ah, não sei. Porque achei que era um cavalheiro.

Parecia encantada com a sua resposta,  como se ela dissesse tudo.

- Ah! Então foi isso, hein? Um cavalheiro. Será que um cava­lheiro a levaria a um hotel na Market Street?

- Não.

- O Sr. Clarke a levou para um hotel na Market Street... ou a senhora o levou?

Ela enrubesceu furiosamente, depois escondeu o rosto nas mãos, murmurando algo que ninguém escutou, até que o juiz mandou que ela falasse mais alto.

- Não o levei a parte alguma.

- Mas foi com ele. Mesmo não o achando atraente. Estava com uma vontade especial de tomar aquele drinque com ele?

- Não.

- Então o que queria fazer?

Uau. A pergunta quase fez Jessie sorrir. Linda.

- Queria... queria... fazer amizade.

- Amizade?

Martin parecia ainda mais divertido. Ela estava fazendo papel de idiota.

- Não, amizade não. Ah, não sei. Queria voltar ao trabalho.

- Então por que concordaria em ir tomar um drinque com ele?

- Não sei.

- Estava com tesão?

- Objecção!

- Reformule a sua pergunta, Sr. Schwartz.

- Há quanto tempo não tinha relações sexuais, Srta. Burton?

- Tenho que responder a isso, Meritíssimo?

Ela olhou com ar de súplica para o juiz, que fez que sim com a cabeça.

- Tem, sim.

- Não sei.

- Mais ou menos - insistia Martin.

- Não sei.

A voz dela estava sumindo.

- Aproximadamente. Muito tempo? Não muito? Um mês... dois meses... uma semana? Alguns dias?

- Não.

- Não? Como assim, não?

Martin estava começando a parecer irritado.

- Quero dizer, não, não alguns dias.

- Então quanto tempo? Responda à pergunta.

- Algum tempo. - O juiz olhou feio para ela, e Martin co­meçou a chegar mais para perto. - Está bem, muito tempo - falou, finalmente. - Talvez um ano.

- Talvez mais?

- Talvez.

- Foi com alguém especial, da última vez?

- Eu... não me lembro... eu... foi!

Quase berrou a última palavra.

- Alguém que a magoou de alguma forma, Srta. Burton? Alguém que não a amou como deveria, alguém que...

A voz dele era tão suave que teria ninado um bebé, e então a promotora-assistente se pós de pé e quebrou o encanto.

- Objecção!

Martin levou mais duas horas para terminar a reinquirição, e Jessica sentia como se fosse derreter e formar uma pequena mancha invisível quando ela terminou. Não conseguia sequer imaginar como Margaret Burton estaria se sentindo, enquanto era retirada, choran­do, do banco das testemunhas. Foi assistida pelo Inspector Houghton enquanto Matilda Howard-Spencer rearrumava os seus papéis. Jessica teve a impressão de que a austera promotora estava interessada no caso, não na vítima.

O juiz anunciou um recesso e dispensou-os até segunda-feira. Por um momento ficaram todos parados no tribunal, entorpecidos; estava apenas na hora do almoço, mas Jessie tinha vontade de cair na cama e dormir durante um ano. Nunca se sentira tão cansada na vida. Desgastada. E Ian parecia cinco anos mais velho do que pela manhã.

Quando deixaram o tribunal, com Martin a segui-los, Margaret Burton não estava à vista. Saíra pela sala do juiz, e Martin imaginou que seria retirada por alguma outra saída mais discreta, para evitar novo encontro como o daquela manhã. Tinha um pressentimento de que Houghton também não tinha muita confiança na mulher, e que não queria mais encrencas desnecessárias.

Quando saíram para o sol, Jessie se sentiu como se não o visse há anos. Sexta-feira. Era sexta-feira. O fim de uma semana inter­minável, e agora dois dias inteiros só para eles. Dois dias e meio. E só o que ela queria era ir para casa e esquecer aquele local rococó do inferno onde as vidas deles pareciam estar chegando ao fim nas mãos de uma louca. Era como uma peça grega... e o júri podia ser o coro.

- No que está pensando?

Ian ainda estava preocupado com ela, depois da explosão da manhã. Agora mais do que nunca. O testemunho fora deprimente.

- Não sei. Não estou certa de que ainda possa pensar. Estava só divagando.

- Bem, vamos indo para casa, está bem?

Conduziu-a suavemente até o carro, abriu a porta para ela, e Jessie se sentiu com 200 anos de idade enquanto deslizava para o banco do Volvo. Mas era familiar, era uma coisa deles. Precisava disso agora mais do que qualquer outra coisa. Tinha vontade de varrer da alma aquela manhã inteira.

- O que está achando, amor?

Olhou para Ian por entre uma nuvem de fumaça de cigarro. enquanto ele guiava devagar para casa.

- Como assim?

Tentou fugir da pergunta.

- Quero dizer, como acha que está indo o caso? O Martin falou alguma coisa?

- Não muito. Ele é muito reservado. - Ela meneou a cabeça, de novo. Não tinha dito muita coisa ao saírem, excepto que queria vi-los no seu escritório no sábado. - Mas acho que tudo vai indo bem.

Claro que sim. Tinha que ir.

- É o que me parece, também.

Pois sim! Cristo, parecia horrível. Mas tinha que parecer. Não é.

- Gostei do jeito do Martin.

- Eu também.

Ambos ainda achavam que iam vencer, mas agora estavam co­meçando a se dar conta do preço que teriam que pagar. Não em termos de dinheiro, ou carros, mas de carne, entranhas, e alma.

 

No sábado de manhã, Ian foi até o escritório de Martin para dis­cutir o seu testemunho, já que iria depor na semana seguinte. Jessica ficou em casa, com enxaqueca. Como um favor, Martin veio vê-la em casa à noite, para discutir o seu próprio testemunho.

E no domingo à tarde Astrid telefonou, quando estavam senta­dos feito dois zumbis, vendo filmes antigos na televisão.

- Alô, crianças. Que tal comer um espaguete na minha casa hoje à noite?

Pela primeira vez, Jessie foi brusca com a amiga.

- Desculpe, Astrid, mas não podemos.

- Ora, vocês dois. Ocupados, ocupados, ocupados. Tenho ten­tado falar com você a semana toda, mas você não apareceu na loja.

Merda.

- Pois é. Tive algum trabalho para fazer por aqui e estou aju­dando o Ian a... fazer a correcção final do seu livro.

- Parece divertido.

- É. Mais ou menos. - Mas a sua voz não dava substância à mentira. - Ligo para você na semana que vem. Mas obrigada pelo convite.

Mandaram-se beijos e desligaram e Jessica admirou-se do facto de ninguém estar sabendo o que estava acontecendo. Parecia incrí­vel que os jornais não o tivessem noticiado, mas ela finalmente se deu conta de que o que lhes estava acontecendo não era absolutamente extraordinário. Havia uma dúzia de casos como esse diaria­mente. Era novidade para eles, mas não para a imprensa. E havia casos bem mais suculentos do que o deles para se explorar... exceto, é claro, pelo ângulo de Pacific Heights e da boutique exclusiva de Jessie. Se isso saísse nos jornais, destruiria o seu negócio. Mas não parecia haver perigo disso. Nenhum membro da imprensa tinha aparecido, até então, e não se demonstrara nenhum interesse por eles. Era algo para se agradecer. E ela estava grata. E Martin prometera que, se algum repórter desgarrado “pintasse” no tribunal, ele ligaria para o jornal e pediria que fossem discretos. Tinha certeza de que cooperariam com ele. Já o tinham feito antes.

Jessie sentia-se mal por ter dado uma cortada em Astrid. Há algum tempo que não a viam, e não viam os outros amigos há dois meses. Teria sido difícil enfrentar qualquer um. Estava ficando di­fícil até enfrentar a Astrid. E teria sido impossível encarar as moças da loja nessa semana. Jessie não tinha a menor intenção de chegar perto do local. Estava com medo de que lessem demais no rosto dela. Pelos mesmos motivos, Ian estava se mantendo longe de todos que conhecia, desde que fora preso. E contentava-se em se apro­fundar no livro. Os personagens que inventara lhe faziam compa­nhia.

E nesse meio tempo, as contas continuavam a crescer. Zina veio trazer a correspondência de Jessie todos os dias durante o julgamento, e na maior parte eram contas, inclusive a segunda de Har­vey Green, de mais 900 dólares. E, mais uma vez, por nada. Fora dinheiro “para o caso de” - para o caso de Margaret Burton ter feito alguma coisa que não devia, para o caso de surgir alguma coisa, para o caso de... mas nada surgira. Ele conseguira não desencabar absolutamente coisa alguma. Até domingo à noite, logo depois que Jessie conversara com Astrid.

O telefone tocou, e era Martin. Ele e Green queriam vir ime­diatamente à casa deles. Ela acordou Ian, e eles estavam esperando, tensos, quando os dois homens chegaram. Estavam morrendo de vontade de saber o que o Green descobrira.

O que ele tinha era um retracto. Do marido de Margaret Burton do casamento rapidamente anulado de quase 20 anos antes. O retracto poderia ser do Ian. O homem da foto era alto, louro, de olhos azuis, com um rosto risinho. Estava parado ao lado de um MG; era de um ano muito anterior ao Morgan, mas mesmo assim ainda havia muita semelhança entre os carros, como entre os homens. Se a gente apertasse os olhos um pouquinho, pareciam Ian e o Morgan. O cabelo do homem era mais curto do que o de Ian, seu rosto era um pouco mais comprido, o carro era preto, ao invés de ver­melho... os detalhes diferiam, mas não muito. Era um choque simplesmente olhar a foto. Contava toda a história. Agora eles sa­biam por quê. E a primeira desconfiança de Martin estivera certa. Devia ter sido vingança.

Os quatro ficaram sentados na sala de visitas em completo silêncio. Green conseguira a foto com uma prima da Srta. Burton, uma pista de última hora que decidira seguir, por palpite. E um palpite danado de bom, afinal de contas.

Schwartz soltou um suspiro que parecia ser de alívio e se re­costou na cadeira.

- Bem, agora sabemos. A prima testemunhará?

Mas Green sacudiu a cabeça.

- Diz que invocará a Quinta Emenda, recusando-se a teste­munhar, ou mentirá. Não quer se envolver. Falou que a Burton a mataria. Sabe, essa mulher, quero dizer, a prima, quase parece ter medo da tal Burton. Disse que ela é a pessoa mais vingativa que conhece. Você vai intimá-la?

- Não se ela vai invocar a Quinta. Ela lhe contou por que a Burton anulou o casamento?

Martin mordiscava pensativo um lápis, ao fazer as perguntas, enquanto Jessica e Ian escutavam atentamente. Ian ainda segurava a foto, que o deixava excessivamente nervoso. A semelhança era espantosa.

- Peggy Burton não anulou o casamento. Foi o marido.

Martin ergueu rapidamente as sobrancelhas.

- É?

- A prima acha que Margaret estava grávida... só um palpite - continuou Green. - Ela acabara de terminar o curso secun­dário e estava trabalhando no escritório do pai do sujeito, uma firma de advocacia. Nada menos do que Hillman e Knowles. - Ian ergueu os olhos e Martin assobiou. - Ela se casou com o filho de Knowles. Um rapazinho chamado Jed Knowles. Estava estudando direito, na época, e passou o verão trabalhando no escritó­rio do pai. É o rapaz da foto. - Green fez um gesto vago na direcção da foto que ainda estava na mão de Ian. - Bem, de qualquer forma, eles se casaram às pressas, mas muito discretamente, no fim do verão. E o pai exigiu veementemente que nada fosse tornado público, nenhum comunicado do casamento, nada. Os pais da jovem Burton moravam no Meio-Oeste, portanto ela não tinha família al­guma por aqui, excepto a prima, que nem tem certeza se eles mora­ram juntos. Simplesmente se casaram, e a próxima coisa de que se lembra é de Margaret passando duas semanas num hospital. Acha que ela deve ter tido um aborto espontâneo complicado, qualquer coisa no género. Knowles requereu anulação do casamento logo em seguida, e Margaret ficou sem marido, sem emprego e provavel­mente sem o bebé. Ela teve uma espécie de esgotamento nervoso, e passou três meses num asilo católico. Fui verificar o tal asilo, mas foi derrubado há 12 anos, e as irmãs da ordem estão agora distri­buídas por Kansas, Montreal, Boston e Dublin. Não é muito pro­vável que encontremos registros da internação, e mesmo que encon­trássemos, seriam secretos.

- E quanto ao jovem Knowles? O que descobriu sobre ele?

- Bem... - Green não parecia satisfeito. - Ele se casou com uma debutante com grande estardalhaço, no Dia de Acção de Graças daquele mesmo ano. Festas, chás-de-panela, comunicados em todos os jornais. Os recortes do Chronicle dizem que eles já estavam noivos há um ano, e foi obviamente por esse motivo que O Papai Knowles não quis nenhuma publicidade quando o filhotinho se ca­sou com a jovem Burton.

- Conversou com o Knowles?

Green balançou a cabeça, tristonhamente.

- Ele e a esposa morreram num desastre de bimotor 17 meses mais tarde. O pai morreu de ataque cardíaco este verão e a mãe está viajando pela Europa, ninguém sabe direito onde.

- Fantástico. - Martin fechou a cara e recomeçou a morder o lápis. - Algum irmão ou irmã? Amigos que podem saber o que aconteceu? Alguém?

- É um beco sem saída, Martin. Nenhum irmão ou irmã. E quem iria se lembrar, entre os seus amigos? Jed Knowles está morto há 18 anos. É um bocado de tempo.

- É tempo demais para se guardar uma raiva. Merda. Temos o caso todo resolvido e não temos porra nenhuma. Nada.

- Como assim, nada? - Era a primeira vez que Ian abria a boca, desde que vira a foto. Estivera escutando atentamente o diá­logo dos dois homens. - Parece-me que temos tudo.

- É. - Martin esfregou os olhos devagar com uma das mãos, e depois os abriu de novo. - E nada que possamos usar nos tribu­nais. É tudo adivinhação. É só o que é. O que temos aqui é indubi­tavelmente a verdade, e explicação integral de por que Margaret Burton o acusou de estupro. Você se parece exactamente com o fi­lho de um ricaço que a engravidou, casou com ela, provavelmente fez com que ela abortasse, e depois a abandonou e casou com a sua namorada da alta sociedade, algumas semanas mais tarde. A Srta. Burton encontrou o belo príncipe e depois ele cagou nela. De volta à Cinderela. E há 20 anos que ela tenta se vingar dele. O que provavelmente é o motivo pelo qual não tentou extorquir dinheiro de vocês. Não quer dinheiro. Quer vingança. Provavelmente ganhou algum dinheiro com a coisa, da primeira vez. O dinheiro é fácil demais, para certas pessoas.

Jessica revirou os olhos, ante o comentário, e Ian fez-lhe sinal para ficar quieta.

- A verdade é que ela prefere vê-lo ir para a cadeia do que arrancar-lhe alguns dólares. Na sua cabeça, você não passa de um Outro Jed Knowles, e vai pagar o pato por ele. Você se parece com ele de modo assustador, o seu carro parece com o dele, você pro­vavelmente até fala como ele, pelo que sabemos. E ela provavel­mente o notou no Enrico há meses. Você é freguês habitual. Ela bem pode ter planejado a coisa toda do começo ao fim. Mas o problema é que não podemos provar isso num tribunal. - Voltou-se para Green. - Tem certeza de que a prima não virá testemunhar de bom grado?

- Absoluta.

Green foi incisivo e enfático. Martin sacudiu a cabeça.

- Maravilha. E é por isso, Ian que não podemos provar coisa alguma no tribunal. Porque uma testemunha hostil que invoque a Quinta Emenda o arruinará mais depressa do que se não a chamarmos para depor. E além disso, mesmo que ela quisesse depor, não poderíamos provar nada disso. Só o que podemos provar é que Burton se casou com Knowles, e que logo a seguir este conseguiu anular o casamento. O resto é pura conjectura, adivinhação. palpite. Isso não tem validade nos tribunais. Ian, não, sem provas sólidas A promotoria iria arrasar com toda a teoria em dez minutos. Você e eu agora sabemos o que provavelmente aconteceu, mas jamais o poderíamos provar ao júri, não sem alguém para testemunhar que a Burton estava grávida quando Knowles casou com ela, que teve um aborto, que teve um esgotamento nervoso, e que alguém a ouviu jurar que se vingaria. E como vamos provar tudo isso, mesmo que a prima queira depor? O que temos aqui, infelizmente, é a verdade. sem meios de ser provada.

Jessica sentia as lágrimas ardendo nos olhos enquanto escutava e Ian estava mais pálido do que ela jamais o vira. Estava quase cinzento.

- Então, o que faremos agora?

- Fazemos uma tentativa, e rezamos. Vou interrogar a Burton de novo, e ver o quanto ela vai admitir. E o quanto vão deixar que nós insinuemos. Mas não vai ser muito, Ian. Não conte com nada.

Green foi embora alguns minutos mais tarde, com um aperto de mão discreto para Martin e um aceno de cabeça.

- Lamento.

Martin assentiu, e partiu alguns momentos mais tarde.

O julgamento continuou na segunda-feira, e Martin voltou a chamar Margaret Burton para depor. Ela fora casada com Já Knowles? Sim. Por quanto tempo? Dois meses e meio. Dez semanas? Sim. Dez semanas. Era verdade que tivera que se casar com ele porque estava grávida? De modo algum. Teve um esgotamento nervoso., objecção!... negada!... teve um esgotamento nervoso depois que o casamento foi anulado? Não. Nunca. O réu não tinha uma semelhança impressionante com o Sr. Knowles? Não. Não que ela tivesse notado. O Sr. Knowles não se casara de novo imediatamente após... objecção! Aceita, com uma advertência ao júri para não levar em conta a linha anterior de interrogatório. O juiz advertiu a Martin quanto a estar fazendo perguntas irrelevantes e atormentando a testemunha, e Jessica notou que Margaret Burton estava calada e pálida, mas totalmente controlada. Quase que demais. Pegou-se rezando para que a mulher perdesse o controle, e desintegrasse no banco de testemunhas e berrasse e se esganiçasse e se destruísse admitindo que queria destruir o Ian porque ele se parecia com Jed Knowles. Mas Margaret Burton não fez nenhuma dessas coisas. Foi dispensada do banco de testemunhas. E Jessica jamais a viu de novo.

 

No final daquela tarde Martin pediu a Ian que arranjasse dois amigos para dar testemunho do seu carácter e moral. Assim como o testemunho de Jessica, seria considerado parcial, mas testemunhas de carácter não faziam mal a ninguém. Ian concordou em pedir a duas pessoas, mas havia uma expressão de desespero nos seus olhos que matava Jessica só de ver. Como se Margaret Burton já tivesse vencido. Ela simplesmente se mandara. Largara a sua bomba e se fora, deixando-os com uma foto como explicação.

Ian detestava ter que explicar a alguém o que estava aconte­cendo, e nos últimos anos não tinha estado tão ligado aos seus amigos quanto no passado. Escrever parecia devorar cada vez mais do seu tempo, sua energia, sua devoção. Queria terminar outro livro, vendê-lo, fazer sucesso antes de voltar a frequentar os bares com os velhos companheiros; precisava fazer alguma coisa, ser alguma coisa, construir alguma coisa primeiro. Estava cansado de ex­plicar sobre rejeições e agentes e textos reescritos. Assim, parou de explicar. Parou de vê-los. E o resto do tempo, passava com Jessie. Ela tinha um jeito de fazer-se exclusiva. Não gostava de partilhar o tempo que sobrava do estúdio.

Naquela noite, ele ligou para um escritor que conhecia e um colega de faculdade, um corretor que também se mudara para o Oes­te. Ficaram atónitos com as acusações, e logo se dispuseram a aju­dar. Nenhum deles morria de amores por Jessie, mas sentiam-se mal por ambos. O escritor achava que Jessie queria demais do Ian, que era “grudenta” demais e não lhe deixava espaço para escrever. O amigo de faculdade sempre achara Jessie muito voluntariosa. Ela não era o seu tipo de mulher.

Mas os dois homens foram testemunhas simpáticas e agradá­veis. O escritor, usando tweeds, atestou que recentemente ganhara um prémio e publicara três histórias no The New Yorker e um ro­mance. Era respeitável, como o podia ser um escritor. E falou bem, no banco. O amigo da faculdade causou uma impressão igualmente agradável, num estilo diferente. Sólido, classe média superior, pai de família respeitável, “conhecia o Ian há anos”, hip-hip-hurrah. Ambos fizeram o que era possível, o que não era grande coisa.

Na terça à tarde o juiz os dispensou a todos cedo, e Ian e Jessie foram para casa relaxar.

- Como está se sentindo, meu bem? Não posso dizer que an­damos com boa cara, ultimamente. - Ele deu um sorriso pesaroso e abriu a geladeira. - Quer uma cerveja?

- Quero uma caixa. - Chutou fora os sapatos e se esticou. - Diacho, estou cheia dessa merda. Continua e continua e continua... e eu me sinto como se não me sentasse e conversasse com você há um ano. - Tirou a cerveja das mãos dele e foi deitar-se no sofá.

- Além do que, as minhas roupas comportadas estão acabando.

Estava usando um costume feio de tweed marrom que possuía desde os tempos de faculdade, no Leste.

- Eles que se fodam. Apareça usando um biquini, amanhã. A esta altura, o júri merece alguma coisa para olhar.

- Sabe, pensei que o julgamento seria bem mais dramático. É gozado que não seja.

- O caso não é assim tão dramático. A palavra dela contra a minha quanto a quem fodeu quem e por que, onde e como. A esta altura, nem me sinto mais constrangido com você presente, escutan­do os testemunhos.

Agora que Margaret Burton não estava mais no tribunal.

- A mim também não incomoda muito, excepto que tenho von­tade de rir quando alguém se refere a “um crime infame contra a natureza”. Parece tão exagerado.

Riram descontraidamente pela primeira vez em muito tempo. Enquanto relaxavam no encanto familiar da sua sala, o julgamento parecia uma piada de mau gosto. A piada de mau gosto de outra pessoa.

- Quer ir ao cinema, Jessie?

- Sabe de uma coisa? Adoraria. - A tensão estava começando a se escoar. Tinham resolvido que eram os vencedores, mesmo sem provas sólidas de que Margaret Burton era uma biruta buscando vingança contra um homem que estava morto há quase 20 anos. E daí? Ian era inocente. No final, era simplesmente isso. - Quer levar a Astrid com a gente, querido?

- Claro. Por que não? - Sorriu e debruçou-se para beijá-la.

- Mas só a chame daqui a uma meia hora.

Jessie retribuiu o sorriso e correu o dedo devagar pelo braço dele.

 

Astrid ficou encantada com o convite, e os três foram ver um filme que os fez chorar de tanto rir. Era justo o que Ian e Jessie estavam precisando.

- Estava começando a pensar que jamais veria vocês dois de novo. Faz semanas! O que andaram fazendo? Ainda trabalhando no livro?

Eles balançaram a cabeça, em uníssono, mudaram de assunto e foram tomar um café.

Foi uma noite agradável que fez bem a todos. E Astrid sentia-se melhor, agora que os vira. Ian parecia abatido, Jessica parecia cansada, mas pareciam felizes de novo. Quem sabe o problema que os estava incomodando tinha sido resolvido.

Astrid contou que estivera na boutique quase que diariamente, e que o desfile de modas fora um estouro. Katsuko fizera um belo trabalho. Astrid chegara a comprar quatro ou cinco coisas do des­file, o que Jessie achou uma bobagem.

- Que ridículo. Não compre mais quando eu não estiver pre­sente. Eu lhe darei um desconto quando estiver. Pelo menor preço de atacado. E algumas coisas posso até lhe vender pelo preço de custo.

- Que besteira, Jessica. Por que iria vender as coisas mais baratas para mim? Pelo menos pode partilhar da riqueza!

Abriu bem os braços, exibindo as jóias, e os três acharam gra­ça.

Levaram-na para casa de Volvo, e quando ela perguntou sobre o Morgan, Jessica alegou que o motor dava muita mão-de-obra. Os três concordaram que era uma pena.

- Que noite fabulosa! - Jessica entrou na cama com um sor­riso, e Ian bocejou, balançando a cabeça, feliz. - Que bom que saímos.

- Também acho.

Ela lhe massageou as costas e ficaram falando à toa; era o tipo de conversa que sempre partilhavam no final da noite. Comentários despreocupados sobre o filme, pensamentos sobre Astrid, Jes­sie notou um pequeno machucado na perna dele, perguntou-lhe co­mo acontecera, ele lhe disse que jamais cortasse o cabelo. Papo de fim de noite. Como se nada de incomum jamais lhes tivesse acon­tecido. Chegaram até a dormir direitinho, o que era notável, já que Ian iria depor no dia seguinte.

 

O testemunho de Ian sob interrogatório directo durou duas horas. O júri parecia um pouco mais interessado do que nos últimos dias, mas não muito. E foi apenas durante a meia hora final que pareceu realmente acordar. Era a vez de Matilda Howard-Spencer interrogá-lo. Ela parecia andar compassivamente à frente de Ian, como se estivesse pensando em outra coisa, enquanto todos os olhares no tribunal se concentravam nela, especialmente os de Ian. E finalmen­te parou, bem na frente dele, cruzou os braços e inclinou a cabeça para o lado.

- O senhor é do Leste?

A pergunta surpreendeu-o, assim como o olhar amistoso no seu rosto.

- Sim. De Nova York.

- Onde estudou?

- Em Yale.

- Boa universidade. - Ela sorriu para ele, que retribuiu o sorriso. - Tentei entrar na faculdade de Direito deles, mas infelizmente não consegui. - Ela fora para Stanford, ao invés de Yale, mas Ian não podia saber, e subitamente ficou confuso, indeciso entre dizer “que pena”, ficar calado ou sorrir. - Fez algum tra­balho de pós-graduação?

Não o chamava de Ian, nem de Sr. Clarke. Falava com ele como se o conhecesse, ou tivesse vontade sincera de fazê-lo. Uma parceira de jantar interessada, numa soirée agradável.

- Sim, tirei o meu mestrado.

- Onde?

Inclinou a cabeça de novo com uma expressão de interesse. Esta não era absolutamente a linha de interrogatório para a qual Martin o havia preparado. Era muito mais fácil lidar com esta.

- Em Colómbia. Faculdade de Jornalismo.

- E depois?

- Fui trabalhar em publicidade.

- Com quem? - Ele deu o nome de uma grande firma em Nova York. - Bem, todos certamente sabemos quem são. - Sor­ riu de novo para ele e olhou pensativa pela janela. - Saiu com alguém em especial, quando estava na faculdade?

Ah, aí vinha a bomba, mas ela ainda soava suavemente inda­gadora.

- Algumas pessoas.

- Por exemplo?

- Umas garotas, é só.

- De colégios vizinhos? Quem? Pode dar-nos alguns nomes?

Que coisa ridícula. Ian não podia entender o motivo para aquilo.

- Viveca Harreford. Maddie Whelan. Fifi Estabrook.

Ela não as conhecia. Por que perguntar?

- Estabrook? De Estabrook e Lloyd? São os maiores corre­tores de títulos da Wall Street, não é?

Ela parecia realmente satisfeita por ele, como se ele tivesse feito uma coisa maravilhosa.

- Não sei.

O comentário dela deixara-o constrangido. Claro que eles eram os Estabrook de Estabrook e Lloyd, mas esse não fora o motivo pelo qual saíra com elas, Ora essa.

- E me parece que Maddie Whelan também soa familiar. Algo me diz que era alguém importante. Deixe ver, Whelan... ah, sei, a loja do departamentos em Fénix, não é?

Ian estava até mesmo enrubescendo, mas Matilda Howard-­Spencer ainda sorria angelicamente, parecendo estar curtindo as amenidades sociais.

- Não me lembro.

- Claro que lembra. Mais alguém?

- Não que eu me lembre. - Esta era uma linha de interrogató­rio ridícula e ele não entendia aonde estava levando, excepto a fazê-lo passar por idiota. Era mesmo tão simples assim?

- Está certo. Quando conheceu a sua mulher?

- Há uns oito anos. Em Nova York.

- E ela tem um bocado de dinheiro, não é mesmo?

O tom de voz da promotora era quase encabulado, como se tivesse feito uma pergunta indiscreta.

- Objecção!

Martin estava lívido; sabia exactamente aonde isso estava levan­do, quer Ian soubesse ou não. Mas agora Ian estava começando a perceber; fora levado directo a uma armadilha.

- Aceita. Reformule a pergunta.

- Desculpe, Meritíssimo. Pois bem, então: ao que me consta a sua mulher tem uma boutique muitíssimo bem-sucedida aqui em São Francisco. Possuía uma também em Nova York?

- Não. Quando a conheci, era a coordenadora de modas e estilista na agência de publicidade onde eu trabalhava.

- Fazia isso para se divertir?

Agora a voz dela era meio áspera.

- Não. Pelo dinheiro.

Ian estava ficando Irritado.

- Mas ela não precisava trabalhar, não é mesmo?

- Nunca perguntei.

- E agora não precisa trabalhar, não é?

- Eu...

Olhou para Martin, em busca de ajuda, mas não a encontrou.

- Responda à pergunta. Ela precisa trabalhar, agora, ou a sua renda é suficiente para sustentá-lo,  ao senhor, num estilo de vida bem luxuoso?

- Não luxuoso, não.

Santo Deus. Jessie e Martin crisparam-se simultaneamente. Que resposta. Mas as perguntas eram atiradas em cima dele como bolas de uma máquina, e não havia como desviar-se delas.

- Mas a renda dela é suficiente para sustentar os dois?

- É.

Ele agora estava muito pálido. E com muita raiva.

- O senhor trabalha?

- Sim.

Mas ele respondeu baixo demais, e ela sorriu.

- Desculpe, não ouvi a sua resposta. Trabalha?

- Sim!

- Num emprego?

- Não. Em casa. Mas é trabalho. Sou escritor.

Pobre, pobre Ian. Jessie tinha vontade de correr para ele abraçá-lo. Por que tinha que passar por tudo aquilo? Aquela cadela.

- Vende muito o que escreve?

- O bastante.

- Bastante para que? Para viver disso?

- Não no momento.

Não havia como se esconder dela.

- Isso o deixa com raiva?

A pergunta era quase uma carícia. A mulher era uma

- Não, não me deixa com raiva. É só um dos factos da por enquanto. Jessica compreende.

- Mas o senhor a engana. Ela compreende isso?

- Objecção!

- Negada!

- Ela compreende isso?

- Não a engano.

- Ora, ora. O senhor mesmo admitiu que foi para a cama de bom grado com a Srta. Burton. Isso é uma ocorrência normal na sua vida?

- Não.

- Essa foi a primeira vez?

Os olhos dele estavam grudados nos joelhos.

- Não consigo me lembrar.

- O senhor está sob juramento; responda à pergunta.

A voz dela deslizava como uma cobra ameaçando o bote.

- Não.

- O quê?

- Não. Essa não foi a primeira vez.

- Engana a sua mulher com frequência?

- Não.

- Com que frequência?

- Não sei.

- E que tipo de mulheres usa... do seu próprio tipo, ou de outros tipos, mulheres “inferiores”, mulheres de classe baixa, prosti­tutas, moças pobres, seja lá o que for?

- Objecção!

- Negada!

- Não “uso” ninguém.

- Sei. Enganaria a sua mulher com Fifi Estabrook, ou ela é uma moça direita?

- Há anos que não a vejo. Dez, 11 anos. Não era casado quando saía com ela.

- Quero dizer, enganaria a sua mulher com alguém como ela, ou apenas dorme com mulheres “vulgares”, mulheres que provavel­mente não encontrará no seu próprio círculo social? Poderia ser embaraçoso, afinal de contas. Pode ser bem mais simples manter  suas aventuras o mais longe de casa possível.

- Sim.

Ah, Deus. Não, Ian... não... Martin fitava a parede, procurando não deixar nada transparecer na fisionomia, e Jessie press­entira que o desastre estava próximo.

- Sei. Então dorme com mulheres vulgares para manter a coisa o mais longe possível de casa? Considerou a Srta. Burton uma mulher “vulgar”?

- Não.

Mas considerara, e o seu “não” fora fraco.

- Mas ela não era do seu meio social, era?

- Não sei.

- Era?

As palavras agora fechavam-se sobre ele.

- Não.

- Pensou que ela chamaria a polícia?

- Não. - E depois, como uma reflexão tardia, ergueu os olhos, apavorado, e acrescentou: - Não tinha motivos para isso.

Mas era tarde demais. O mal tinha sido feito.

Dispensou Ian do banco, acrescentando que poderia querer chamá-lo de novo, mais tarde. Porém praticamente já o tinha ma­tado.

Ian deixou o banco quietamente e sentou-se pesadamente ao lado de Martin. E cinco minutos mais tarde o juiz anunciou um recesso para o almoço.

Saíram lentamente do tribunal, com Ian sacudindo a cabeça com ar sombrio, até o trio chegar na rua.

- Meti mesmo os pés pelas mãos.

Jessie nunca o vira com aparência pior.

- Não pode fazer nada. É assim que ela trabalha. A mulher é letal. - Martin soltou um suspiro e deu-lhes um sorriso fraco e frio. - Mas o júri também enxerga isso. E o júri também não é todo purinho feito a neve. - Não havia por que fazer Ian  se sentir pior, mas Martin estava preocupado. O que o incomodava mais de tudo era o conflito de classes, não as escapadelas do Ian.

- Vou chamar Jessica para depor hoje à tarde. Pelo menos, assim, acaba tudo logo.

- É, ela pode massacrar a nós dois no mesmo dia.

Ian parecia cansado e derrotado, e Jessica parecia tensa.

- Não seja burro.

- Acha que é pior para ela?

Ian parecia sarcástico e amargo.

- Por que não?

- Digo-lhe por que não. Porque se resolver enfrentá-la, perderá. - Martin meteu-se rapidamente na conversa. - Terá de ser a mulherzinha mais meiga, doce e calma do mundo. Se chegar botando banca, ela quebra você em dois no banco de testemunhas Repassamos tudo nesse fim de semana. Sabe o que tem que fazer. - Jessica balançou a cabeça solenemente e Ian soltou um suspiro. Martin também repassara tudo com ele, mas aquela maldita mulher não fizera nenhuma das perguntas certas. E sabe lá Deus o que perguntaria a Jessie. - Certo?

- Certo.

Jessica sorriu suavemente e eles largaram Martin perto da prefeitura. Ele precisava voltar ao seu escritório, e eles tinham resolvido ir para casa e se descontrair. Jessica queria um tempinho para tomar conta de Ian. Ele precisava disso, depois do que passara de manhã, e aquilo evitaria que ela pensasse no que teria que dizer à tarde.

Quando chegaram em casa, fez com que ele se deitasse no sofá, tirou-lhe os sapatos, afrouxou-lhe a gravata e correu a mão macia pelos seus cabelos. Ele ficou ali por alguns minutos, deitado, apenas olhando para ela.

- Jess...

Ele nem sabia o que dizer, mas ela entendeu.

- Nada disso. Fique aí deitado e relaxe. Vou fazer o almoço.

Desta feita, ele não discutiu; estava cansado demais para fazer outra coisa que não fosse ficar largado ali.

Quando ela voltou com uma vasilha coberta de sopa fumegante e um prato cheio de sanduíches, ele estava dormindo. Tinha o ar exausto da tragédia. O ar pálido e amarrotado que se tinha quando morria  alguém, quando havia uma criança terrivelmente doente, um negócio fora à falência. Aquelas épocas em que os horários são rompidos, e a pessoa se vê de repente em casa, com roupas que raramente usa, com ar terrivelmente cansado e temeroso. Ela ficou olhando-o por um momento e sentiu uma onda de pena por ele invadi-la. Por que se sentia tão protectora em relação a Ian? Por que sentia como se ele não pudesse aguentar a barra, mas ela pudesse? Por que não estava zangada? Por que não estava com aquela cara, agora? Estivera assim, quando ele estava na cadeia, agora ele estava aqui, podia tocá-lo e abraçá-lo e tomar conta dele. O resto não era real. Era terrível, mas não ia durar. Ia doer, e ia abalá-lo e humilhá-lo e fazer todo o tipo de coisas desagradáveis, ­mas não ia matá-lo. E não ia levá-lo embora. Enquanto se sentava sossegadamente ao lado dele, e punha a sua mão no colo, sabia que nada jamais o levava para longe dela. Nem Margaret Burton, nem promotora, nem tribunal, nem mesmo uma cadeia Margaret Burton iria sumir, Matilde Howard-Spencer passaria a cuidar de outro caso, assim como Martin e o juiz, e tudo acabaria. Era apenas uma questão de se manterem à tona até que o temporal passasse. E ela precisava de Ian desesperadamente demais para deixar que qualquer coisa, até mesmo os seus próprios sentimentos, pudesse pôr em risco o que tinham. Não ia se deixar ficar zangada. Não se podia permitir esse luxo.

Sentiu um curto lampejo de amargura enquanto olhava para a baía lá fora, e pensava no pai. Ele não teria feito uma coisa dessas, e não teria deixado a mãe passar por tudo isso, também. Teria protegido a mulher mais do que Ian a estava protegendo. Mas isso era o pai dela. E esse era o Ian. As comparações agora não serviam para nada. Tinha o Ian. Era isso ai. Exigia um bocado dele, portanto tinha que dar muito também. Estava disposta. E agora era a vez dela dar.

Olhando para ele, enquanto dormia ali em cima da sua saia cinza, parecia-se com um garotinho muito cansado. Tirou o cabelo dele de cima da testa, e respirou fundo, pensando naquela tarde. Agora era a vez dela. E não Ia perder. Resolvera isso depois daquela manhã desastrosa, O caso ia ser ganho. E fim de papo. Era uma loucura que já tivesse ido tão longe. Mas não ia muito mais adiante. Jessie já estava farta.

Ian acordou pouco antes das duas e ergueu os olhos, surpreso.

- Peguei no sono?

- Não. Bati na sua cabeça com o sapato e você desmaiou.

Ele sorriu para ela e bocejou na saia dela.

- Você tem um cheiro delicioso. Sabia que cada peça de roupa que você tem cheira ao seu perfume?

- Quer um pouco de sopa?

Estava sorrindo do elogio. Ele os metera numa encrenca dos diabos, mas uma coisa era certa: o quanto ela o amava. Não apenas precisava dele, mas o amava. Como podia ficar zangada? Como teria coragem de pedir-lhe o braço esquerdo quando o destino já lhe tirara o direito? Já tinham sofrido o bastante. Agora estava na hora de acabar.

- Está com uma cara resoluta, O que andou aprontando?

- Não andei aprontando nada. Quer a sopa?

Olhou-o sedutoramente enquanto segurava uma xícara de Limoges numa das mãos e a melhor concha de sopa da sua mãe na outra.

- Puxa, mas que elegância. - Sentou-se, beijou-a e olhou para a bandeja. - Sabe de uma coisa, Jessica, você é a mulher mais notável que conheço. E a melhor.

Ela teve vontade de Implicar com ele e perguntar se era melhor do que Fifi Estabrook, mas não teve coragem. Desconfiava que as feridas da manhã ainda estavam em carne viva.

- Para o senhor, milord, nada senão o melhor.

Serviu a sopa de aspargos com cuidado na xícara e acrescentou dois pequenos sanduíches de rosbife ao prato. Havia também uma salada fresca.

- Você é a única mulher que conheço que sabe fazer um almoço de sanduíche parecer um jantar formal.

- É só que o amo.

Envolveu o pescoço dele com os braços e mordiscou-lhe a orelha, depois ficou de pé.

- Não vai comer?

- Já comi. - Estava mentindo, mas não conseguiria comer nada antes de subir ao banco das testemunhas, em menos de uma hora. Olhou para o relógio e dirigiu-se para o quarto. - Vou dar um jeito na cara. Temos que sair daqui a dez minutos.

Ele acenou feliz, em meio ao almoço, e ela desapareceu dentro do quarto.

- Pronta? - Ele entrou no quarto, cinco minutos mais tarde, ajeitando a gravata e olhando para o cabelo despenteado no espelho - Santo Deus, estou com cara de quem dormiu o dia todo.

- Para falar a verdade, querido, está mesmo.

E estava satisfeita. A curta hora de sono lhe fizera bem. O tem­po que passaram em casa tinha feito bem aos dois. Jessie se sentia mais forte do que não se sentia há semanas. Margaret Burton não ia tocá-los. Como poderia? Jessie decidira ignorá-la, tirar-lhe os seus poderes. E era como se Ian sentisse o renascimento da sua mulher.

- Sabe de uma coisa? Sinto-me melhor. Eu estava mesmo um lixo, depois de hoje de manhã. - E odiava pensar no que Jessie teria que enfrentar à tarde, mas ela parecia pronta para isso. - Trocou de roupa?

- Achei que esta era mais apropriada. - Era um vestido ma­ravilhosamente refinado, do tipo que usaria para um chá. Era de seda cinzenta, com mangas fartas e femininas, e um cinto do mesmo tecido. Toda a linha do vestido era suave e elegante, e sem ser rebuscado gritava “classe”. - Já que vão nos cobrar por sermos tão classe superior, é melhor que nos apresentemos decentes. Estou tão cheia daquelas drogas de saias de tweed, que vou queimar todas elas nos degraus de entrada, no dia em que isso acabar.

- Você está um estouro.

- Bem vestida demais?

- Perfeita.

- Óptimo.

Calçou sapatos pretos de pelica de entrada baixa, colocou brincos de pérolas, pegou a bolsa, e dirigiu-se para o armário para pegar o casaco preto. Ian achava mesmo que ela estava um estouro. Tinha tanto orgulho dela. Não apenas pela sua aparência, mas pelo jeito como estava enfrentando tudo aquilo.

Martin, contudo, não ficou igualmente satisfeito quando eles entraram no tribunal. Notou o casaco preto de Jessica, e o vislumbre de seda cinzenta. Era exactamente o que ele não queria. Tudo nela parecia caro. Era como se ela tivesse resolvido provar tudo aquilo que Matilda Howard-Spencer sugerira. Credo! Onde eles estavam com a cabeça? Garotos malucos, não se davam conta do que estava acontecendo. Pareciam extremamente autoconfiantes enquanto se sentavam, como se já tivesse se acertado tudo e não houvesse mais com que se preocupar. Não era uma boa hora para darem demonstração de força, não importa o quão subtil fosse. E, no en­fio, talvez fosse bom que eles se sentissem um pouco mais confiantes. Ambos pareciam tão derrotados pela manhã.

Esse novo ar de confiança realçava o elo que os unia. Sempre se tinha consciência disso, dos dois como um par, não como Ian ou Jessie, mas ambos. Era assustador pensar no que aconteceria a ambos se alguém tentasse partir esse elo. Se eles perdessem.

Jessica parecia admiravelmente calma enquanto se dirigia para o banco de testemunhas. O vestido cinza acompanhava graciosamente os seus movimentos, as mangas fartas suavizando a sua estatura impressionante. Ela fez o juramento e olhou para Ian por um mínimo instante, antes de voltar a sua atenção para Martin.

As perguntas dele construíram uma imagem de um casal dedi­cado e de uma mulher que respeitava demais o marido para duvidar que não estivesse dizendo a verdade. Ficou satisfeito com o jeito calmo e digno de Jessica, e quando entregou a testemunha à pro­motora teve que abafar um sorriso. Gostaria de ver essas duas mu­lheres enrolarem as mangas e se perseguirem pela sala. Elas eram uma para a outra. Pelo menos, é o que esperava.

Com Jessica, Matilda Howard-Spencer não ia perder tempo.

- Diga-nos, Sra. Clarke, tinha consciência de que seu marido a enganava, antes disso?

- Indirectamente.

- Como assim?

A promotora parecia intrigada.

- Quero dizer que imaginava haver uma possibilidade, mas que não era nada sério.

- Sei. Apenas um divertimentozinho sem consequências?!

 Ela estava de volta à trilha de novo, mas Jessica previra o ataque.

- Não. Nada disso. Ian não trata nada com irreverência. É um homem sensível. Mas eu viajo muito. E o que tem que acontecer, acontece.

- Acontece com a senhora também?

Agora os olhos da advogada brilhavam de novo. Te peguei!

- Não, não acontece.

- A senhora está sob juramento, Sra. Clarke.

- Sei disso. A resposta é não.

Ela pareceu surpresa.

- Mas não se importa que o seu marido tenha as suas virações?

- Não necessariamente. Depende das circunstâncias.

Jessica era uma dama da cabeça aos pés, e Ian estava incrivelmente orgulhoso dela.

- E quanto a estas circunstâncias em particular, Sra. Clark, como se sente?

- Confiante.

- Confiante? - A Interrogadora de Jessica pareceu espantada, e Martin ficou nervoso. - Como pode estar confiante, e a respeito do que?

- Estou confiante de que a verdade sobre este assunto virá à luz, que meu marido será absolvido.

Martin observava o júri. Gostava dela. Mas tinha que gostar de Ian, também. E, mais do que isso, o júri tinha que acreditar muito.

- Admiro o seu optimismo. Está pagando as contas por tudo isto?

- Não, não verdadeiramente. - Ian quase fez uma careta. Ela estava mentindo, sob juramento. - Meu marido fez um óptimo investimento quando vendeu o seu último livro. Colocou-o a meus cuidados, e nós resolvemos vendê-lo para custear as despesas do julgamento. Portanto, não posso dizer que eu esteja pagando as contas.

Bravo! O Morgan! E ela estava dizendo a verdade! Teve vontade de pular e abraçá-la.

- A senhora diria que tem um bom casamento?

- Sim.

- Muito bom?

- Extremamente bom.

Jessica sorriu.

- Mas o seu marido dorme com outras mulheres?

- Presumivelmente.

- Ele lhe contou sobre Margaret Burton?

- Não.

- Contou-lhe sobre qualquer das suas mulheres?

- Não. E não creio que tivessem sido muitas.

- A senhora o encoraja a dar as suas voltinhas?

- Não.

- Mas, contanto que fossem umas “marias-ninguém”, a senhora não se importava, é isso?

- Objecção!

- Aceita. Está influenciando a testemunha.

- Desculpe, Meritíssimo. - Voltou-se mais uma vez para Jessie. - O seu marido alguma vez foi violento com a senhora?

- Não.

- Nunca?

- Não.

- Ele bebe muito?

- Não.

- Tem problemas com a sua virilidade, porque a senhora paga contas?

Que pergunta!

- Não.

- A senhora o ama muito?

- Sim.

- Protege-o?

- Como assim?

- Quero dizer, evita-lhe os aborrecimentos?

- Claro, faria tudo o que tivesse que fazer para evitar-lhe aborrecimentos. Sou a mulher dele.

O rosto de Matilda Howard-Spencer se cristalizou num sorriso de satisfação.

- Inclusive mentir nos tribunais para protegê-lo?

- Não!

- A testemunha está dispensada.

A promotora-assistente girou nos calcanhares e voltou para a sua cadeira enquanto Jessica ficava no banco de testemunhas, de boca aberta. A maldita mulher conseguira seu propósito de novo.

 

Todos estavam de volta aos seus lugares na manhã seguinte para o. sumário dos dois advogados ao júri. Ian e Jessica ficaram satisfeitos com os comentários de Martin e o seu estilo de se dirigir aos jurados, e acharam que criara uma onda real de simpatia pela defesa. Tudo estava sob controlo. E então Matilda Howard-Spencer se le­vantou. A promotora-assistente mostrou-se demoníaca. Pintou um quadro de uma mulher brutalmente abusada, destruída, perturbada, coração partido - Peggy Burton, trabalhadora e de hábitos sadios. Também enfatizou por todos os meios que homens como Ian Clarke não deviam ter o direito de brincar onde lhes desse na bolha, usar quem desejassem, estuprar quem escolhessem, para depois jogar as mulheres de lado e voltar para casa para as mulheres que o sustentavam, e que fariam “qualquer coisa para protegê-los”, como a própria Jessie havia dito. Martin objectou, e a objecção foi aceita. Mais tarde, ele explicou que era raro ter que fazer objecção a uma exposição final, mas que essa mulher cuspia fogo à simples menção do nome de Ian. E Jessie ainda estava fumegando quando houve o recesso para o almoço.

- Vocês ouviram o que aquela miserável falou?

A voz dela era alta e estridente e Martin e Ian tentaram abran­dá-la rapidamente com um olhar.

- Fale baixo, Jess - suplicou Ian. Não resolveria nada anta­gonizar alguém agora, muito menos o júri, que ia passando por eles a caminho do almoço. Tinha visto dois dos jurados olharem para Jess, quando ela começou a falar.

- Estou me lixando. Aquela mulher...

- Cale a boca. - E então ele a envolveu com o braço e deu-lhe um apertão. - Falastrona. Mas eu a amo mesmo assim.

Ela deu um suspiro alto e depois sorriu.

- Merda, aquilo me deixou fula da vida.

- A mim também. Agora, vamos esquecer essa bosta por algum tempo e comer alguma coisa. Combinado? Sem falar sobre o caso?

- Está legal.

Mas ela concordou de má vontade, enquanto desciam o corredor.

- Nada de “está legal”, quero uma promessa solene. Recuso-­me a ter o meu almoço estragado por causa disso. Faça de conta que estamos no júri e não podemos conversar sobre o assunto.

- Você acha mesmo que eles cumprem isso?

Ele deu de ombros, com indiferença, e puxou uma mecha dos cabelos da mulher.

- Não me importa o que façam. Só quero saber se você me dá sua promessa. Nada de falar sobre o caso. Certo?

- Certo, prometo, seu chato.

- É isso aí. Sou o típico marido chato.

Parecia muito nervoso enquanto desciam correndo as escadas para a rua, e no entanto surpreendentemente bem-humorados.

Foram almoçar em casa e Jessie deu uma olhada na correspondência enquanto Ian folheava o Pubilshers Weekly e passava a ler o jornal enquanto comia os sanduíches que ela tinha preparado.

- Você hoje está uma companhia espectacular.

Ela estava mastigando um sanduíche de peru e bateu no centro do jornal dele, com um amplo sorriso.

- Hein?

- Disse que a sua braguilha está aberta.

- O que? - Olhou para baixo, e depois fez uma careta. - Ora, pela madrugada!

- Pois então fale comigo, que droga, estou me sentindo só.

- Leio o jornal durante cinco minutos. e você se sente só?

- É. Quer um pouco de vinho com o almoço?

- Não, eu passo. Tem Coca-Cola em casa?

- Vou ver. - Ela foi ver e ele estava lendo o jornal de quando voltou com Coca-Cola em lata gelada. - Olhe aqui, seu...

- Psiu...

Ele fez um gesto impaciente na sua direcção e continuou e Havia algo no seu rosto, na expressão dos seus olhos enquanto parecia chocado.

- O que foi?

Ele a ignorou, acabou o artigo, e finalmente ergueu-se com ar de derrota.

- Leia isto.

Apontou para as quatro primeiras colunas na página O coração de Jessie deu uma reviravolta ao ler a manchete:

- É HORA DE ENDURECER. O artigo falava da reunião um comité de justiça criminal realizado na véspera para discutir atuais punições dos estupradores. Falava-se no artigo de sentenças mais pesadas, nada de sursis, sugestões para tornar mais menos humilhante a denúncia de um estupro. Fazia qualquer pessoa acusada de estupro parecer que devia ser enforcada sem mais delonga. Jessie largou o jornal e fitou Ian. Fora um azar que isso saísse no jornal no dia em que o júri ia se reunir para deliberar.

- Será que vai ter algum efeito, Ian? O juiz falou para eles não se influenciarem por...

- Ora, que besteira, Jessica. Se eu lhe disser alguma coisa e outra pessoa lhe disser para fingir que não ouviu, afinal você terá ouvido ou não? Vai se lembrar ou não? Eles são apenas humanos, ora essa. Claro que são influenciados pelo que ouvem. E você também, e eu também, e o juiz também.

Correu a mão pelos cabelos, afastando o prato do almoço. Jessica dobrou o jornal e jogou-o sobre a pia.

- Está bem, então pode ser que tenham lido o jornal hoje, pode ser que não, mas não podemos fazer coisa nenhuma a respeito. tio, por que não deixa isso para lá, querido? Esqueça. Não po­demos tentar fazer isso? Foi você quem me fez prometer não discutir o caso, lembra-se?

Sorriu meigamente para ele. Os olhos dele pareciam safiras, escuros e brilhantes e preocupados.

- Sim, mas Jessie... pelo amor de... está certo. Você tem razão. Desculpe.

Mas foi uma refeição tensa, depois disso, e nenhum dos dois terminou os seus sanduíches.

Fizeram calados a viagem de carro até a Prefeitura, e Jessica escutou o eco dos seus saltos no piso de mármore enquanto entra­vam. O coração dela parecia estar batendo com força igual e acom­panhando o eco, como um dobro de finados.

O juiz falou ao júri durante menos de meia hora, e os jurados saíram em fila indiana, calados, e foram trancados numa sala do outro lado do corredor enquanto um meirinho ficava de guarda do lado de fora.

- E agora, cavalheiros?

Martin e Ian tinham vindo juntar-se a Jessie na sua cadeira.

- Agora esperamos. O juiz dará um recesso se eles não tive­rem chegado a uma decisão até as cinco horas. Então, eles voltarão amanhã de manhã.

- É só isso? - perguntou Jessie, surpresa.

- Sim, é só.

Que estranho. Estava tudo acabado. Quase. Todo aquele falatório e tédio misturados à tensão o drama repentino. E então, acaba. As duas equipes fazem os seus debates, o juiz faz um pequeno discurso para o júri, este vai se trancar numa sala, conversa entre si, escolho um veredicto, todo mundo vai para casa e o julgamento acabou; Era uma coisa estranha. Como um jogo. Ou uma dança. Tudo terrivelmente organizado e ritualístico. Um rito tribal. A idéia deu-lhe vontade de rir, mas Ian e Martin estavam com uma cara séria demais. Ela sorriu para o marido e o advogado olhou para ela com ar preocupado. Ela não estava mesmo entendendo. E ele não estava certo que o Ian também entendia. Talvez fosse o melhor.

- O que você acha, Martin?

Ian virou-se para ele com a pergunta, mas Martin tinha a sen­sação de que ele estava perguntando mais pela Jessie do que por si próprio.

- Não sei. Viram o jornal de hoje de manhã?

O rosto de Ian ficou ainda mais sério.

- Sim. Na hora do almoço. Aquilo não ajudou, não é? - O advogado sacudiu a cabeça. - Bem, pelo menos fizemos o que podíamos.

- Poderíamos ter feito ainda mais se o Green pudesse ter apresentado algo sólido em relação à Burton e ao Jed Knowles. Eu sei que isso é que foi o ponto crucial da questão.

Martin sacudiu a cabeça com raiva, e Ian deu-lhe uma palmadinha no ombro.

- Ela vai voltar para ouvir o veredicto?

Jessie estava curiosa.

- Não. Não vai voltar ao tribunal.

- Sacana.

Foi uma palavra dita em voz baixa, saída das suas entranhas.

- Jessie!

Ian apressou-se a silenciá-la, mas ela não queria ser silenciada.

- E não é? Ela arrasa com a nossa vida, nos deixa pratica­mente falidos, sem falar no que fez com os nossos nervos, e depois simplesmente some na direcção do pôr-do-sol. O que espera que sinta por ela? Gratidão?

- Não, mas não há motivo para...

- Por que não? - Jessie estava começando a falar alto de novo, e Ian sabia o quanto estava nervosa. - Martin, não pode processá-la depois que ganharmos o caso?

- Sim, suponho que sim, mas o que conseguiria com isso? Ela não tem nada.

- Então, vamos processar o Estado.

Não tinha pensado nisso antes.

- Escutem, por que não vão os dois dar um passeio pelo corredor? - Lançou a Ian um olhar significativo e este balançou a cabeça. - Deve custar ainda um pouco antes do júri voltar, provavelmente vai demorar. Mas fiquem por perto. Não saiam do prédio.

Jessie concordou e se levantou, buscando a mão de Ian. Martin os deixou e voltou para a mesa. Era aterrador o modo como Jessica não aceitava a possibilidade de que podiam perder.

- Gostaria que pudéssemos ir tomar um drinque.

Ela caminhou devagar até o corredor e se apoiou contra uma parede enquanto Ian acendia os seus cigarros. As pernas dela tremiam e se perguntou por quanto tempo poderia manter a pose de Madame Serenidade. Tinha vontade de cair ao chão e agarrar-se aos joelhos de Ian, em desespero. Tinha que dar certo. Tinha... tinha... sentia vontade de esmurrar a porta da sala do júri... de...

- Logo vai acabar, Jess. Aguente as pontas.

- É.

Forçou um meio sorriso e deu o braço ao marido enquanto começavam a descer o corredor.

Ficaram calados por muito tempo, e Jessie deixou a sua mente viajar por onde queria, divagando e dardejando, flutuando por entre pensamentos enquanto fumava e caminhava, e se agarrava ao Ian. Levou quase uma hora, mas finalmente o seu cérebro parou de rodopiar, provavelmente de exaustão. Sentia-se solitária, cansada e triste, mas não mais sentia como se estivesse funcionando na veloci­dade errada. Pelo menos era alguma coisa.

Resolveu ligar para a boutique, só para ver como estavam indo  as coisas. Era uma hora estranha para ligar, mas de repente teve vontade de se relacionar com algo familiar, de saber que o mundo simplesmente não havia encolhido, ficado do tamanho de um cor­redor interminável pelo qual ela e Ian estavam condenados a cami­nhar a vida inteira, num silencio apavorante. Sentia falta da agitação da boutique, das trivialidades, dos rostos.

As moças lhe contaram o que estava se passando, e ela se sentiu melhor. Era como ir ao cinema com Astrid. Normalidade. Diminuía as proporções do que lhes estava acontecendo a um tamanho que ela podia suportar por mais algum tempo.

Por volta das quatro horas Ian também tinha relaxado, e eles estavam fazendo jogos de palavras. Às quatro e meia começaram a trocar piadas velhas.

- O que foi que um muro falou para o outro?

- E eu lá sei?

Ela já estava rindo.

- Encontre-me na esquina.

Ian riu, satisfeito com a sua piada. Eram como alunos do segundo ano que tinham sido mandados para o corredor.

- Está certo, sabichão. Como é que você pode saber se as calças caíram?

Ela veio logo com o troco, e ele começou a rir, mas então Martin apareceu a fazer sinal, insistentemente, do final do corredor. As piadas subitamente chegaram ao fim. Ian pôs-se de pé primeiro e olhou para o rosto de Jessica. Ela sentiu-se empalidecer, enquan­to o terror a acometia. Sentia-se pálida e oca, como se o seu corpo fosse se quebrar. Agora estava acontecendo. Nada mais de jogos para fingir que jamais Iria acontecer... tinha chegado. Ah, Deus.... não!

- Jessie, nada de pânico! - Podia ver a expressão no rosto dela, e tomou-a rapidamente nos braços e segurou-a com quantas forças tinha. – Eu a amo. Isso é tudo. Eu a amo. Basta saber disso, e que nada jamais mudará isso, e que você está bem, está sempre bem. Entendeu? - Ela balançou a cabeça, mas seu queixo tremia quando ele a olhou. - Você está bem. E eu a amo.

- Você está bem, e você se ama... quero dizer me...

Soltou uma risada aguada e ele a abraçou apertado, novamente

- Você está bem, boba. Mas eu não estou bem.

- Você não está bem?

Agora estava melhor. Sempre estava, quando ele a abraçava.

- Ah, Jessie.. uma coisa eu lhe digo. Gostaria demais que as minhas calças nunca tivessem caído. - Os dois riram então ele a afastou de si novamente. - Tudo vai dar certo. Agora, vam indo.

- Eu o amo, querido. Gostaria que você soubesse quanto o amo.

As lágrimas a cegavam enquanto caminhava rapidamente ao lado dele, tentando dizer-lhe coisas demais em tempo de menos.

- Você está aqui. Isso me diz tudo. Agora, pare de ser tão dramática e tiro o rímel do rosto.

Ela riu nervosamente de novo e correu as mãos pelas faces. Quando parou, as palmas estavam cheias de riscas pretas.

- Eu devo estar uma coisa.

- Fantástica.

E então chegaram lá. Na porta do tribunal.

- Tudo bem?

Olhou para ela longa e intensamente, parados um de frente para o outro. O meirinho os olhou, depois desviou os olhos.

- Tudo bem.

Ela balançou a cabeça suavemente e sorriram um para o outro.

Entraram na sala e o júri já estava sentado; o juiz estava de volta ao seu assento. Mandaram que o réu se levantasse e Jessica quase se levantou da cadeira junto com ele, e teve que forçar-se a não fazê-lo. Ficava repetindo silenciosamente para si mesma: “Tudo bem... tudo bem... tudo bem...” Enterrou os dedos no assento da cadeira e fechou os olhos, esperando. Ficaria tudo bem, só que era tão terrível a espera. Pensou que devia ser como ter uma bala arrancada do braço. Não matava a gente, mas Deus como era horrível de retirar.

Pediu-se ao primeiro jurado que desse o veredicto, e Jessica prendeu a respiração, desejando estar ao lado de Ian. Era isso aí.

- Qual o veredicto do júri quanto à acusação de sodomia, um crime infame contra a natureza?

Estavam começando com a acusação de menor importância, e partiriam daí para cima... ela esperou.

- Culpado, Meritíssimo.

Ela escancarou os olhos e viu Ian crispar-se, como se a ponta da um chicote houvesse atingido o seu rosto. Mas ele não se virou para olhar para ela.

- E quanto à acusação de coito oral à força?

- Culpado, Meritíssimo.

- E quanto à acusação de estupro à força?

- Culpado, Meritíssimo.

Jessica ficou sentada ali, estupefacta. Ian não se mexera.

Martin olhou para ela, que sentiu as lágrimas começarem a escorrer pelo seu rosto enquanto o júri era dispensado e deixava a sala. Ian agora tinha se sentado, e ela se dirigiu para ele, que tinha os olhos inexpressivos, quando Jessica olhou para o seu rosto. Não pode pensar em nada para dizer-lhe, e viu duas lágrimas soli­tárias escorrendo pelo seu rosto em direcção ao queixo.

 

- Não fiz aquilo, Jessie. Não ligue para o rosto, mas você tem que saber. Não a estuprei.

- Eu sei.

Era pouco mais de um sussurro, e ela se agarrou à mão dele enquanto a promotora-assistente pedia vivamente que o réu ficasse sob custódia, até ser dada a sentença.

Tudo acabou em cinco minutos. Eles o levaram embora e Jessica ficou sozinha no tribunal, agarrada a Martin. Estava sozinha no mundo, agarrada a um homem que mal conhecia. Ian se fora. Ela se fora. Tudo se fora. Era como se alguém tivesse pegado um folo e estilhaçado a vida dela. E ela não sabia dizer o que era espelho e o que era vidro, e o que era Ian e o que era Jessie.

Não podia se mexer, não podia falar, mal podia respirar, Martin a levou lenta e cuidadosamente para fora do tribunal. Essa mulher moça, grande, alta, de ar sadio, tinha se transformado subitamente num zumbi. Era como se Jessie não tivesse mais entranha e como se todo o seu ser estivesse se esvaziando. Mantinha os olhos grudados na porta pela qual tinham levado Ian, como se, se a fitasse com força suficiente, pudesse fazer com que ele voltasse aquela porta. Martin não tinha idéia de como lidar com ela. Jamais ficara sozinho com uma cliente em tal estado. Ficou pensando se devia chamar a sua secretária, ou a sua mulher. O tribunal estava deserto, excepto pelo meirinho, que estava esperando trancar as portas. O juiz olhara pesaroso para ela ao se retirar, mas Jessie nem notara. Nem mesmo tinha visto Houghton sair, após o Ian. Ainda bem. E tudo o que ouvia era o eco da palavra que ficava se repetindo na sua cabeça vezes sem conta. Culpado.. culpado... culpado...

- Jessie, eu a levo para casa.

Conduziu-a suavemente pelo braço e ficou grato porque ela seguia. Não tinha certeza completa de que ela sabia quem era ou para onde estavam indo, mas ficou feliz por ver que não lutava contra ele. E então ela parou e olhou para ele com ar vago.

- Não, eu... vou esperar aqui pelo Ian. Eu quero... pre­ciso do Ian. - Ficou parada ao lado do advogado e chorou feito criança, o rosto enterrado nas mãos, os ombros se sacudindo. Martin Schwartz fez com que sentasse numa cadeira no corredor, entregou-lhe um lenço e deu-lhe palmadinhas no ombro. Ela segurava a carteira, o relógio e as chaves do carro na mão como tesouros que lhe tivessem legado. Ian tinha partido de bolsos vazios e olhos secos. Algemado. - O que... vão fazer... com ele agora? - Ela gaguejava por entre as lágrimas. - Ele... ele... pode vir para casa?

Martin sabia que Jessica estava prestes a ficar histérica, e não podia nem de longe saber a verdade. Simplesmente deu-lhe nova palmadinha no ombro e ajudou-a a se pôr de pé.

- Deixe-me levá-la para casa primeiro. E depois eu vou ver o Ian.

Pensou que aquilo a confortaria, mas apenas a deixou mais excitada de novo.

- Eu também. Também quero ver o Ian.

- Hoje, não, Jessica. Vamos para casa.

Era o tom de voz certo para usar. Ela se levantou, tomou o braço dele e acompanhou-o para fora do prédio. Caminhar com ela era como caminhar com uma boneca de pano mecânica.

- Martin?

- Sim?

Estavam agora ao ar livre, e ela inspirou fundo enquanto ele olhava para ela.

- Podemos apelar?

Ela agora estava mais calma. Parecia estar flutuando para dentro e ­para fora da racionalidade, mas sabia o que estava acontecendo.

- Falaremos sobre isso.

- Agora. Quero falar sobre isso agora.

Parada nos degraus da Prefeitura, desesperada e histérica, às seis da tarde. Era difícil acreditar que esta mulher destroçada fosse a confiante e sofisticada Jessica Clarke.

- Não, Jessica, agora não. Quero falar com Ian primeiro. E quero levá-la para casa. Ian vai ficar muito chateado se eu não a levar para casa.

Ah, Deus. E ela ia tornar cada centímetro do caminho uma dificuldade. O simples acto de levá-la até o carro estava demorando uma eternidade.

- Quero ver o Ian. - Ficou parada no topo da escada como uma criança birrenta, irracional de novo. - Eu... preciso do Ian...

E as lágrimas começaram a escorrer de novo. Aquilo tornou mais fácil fazê-la entrar no carro. Até que ela se lembrou de que tinha que levar o Volvo para casa. Era do Ian.

- Mandarei que o levem para você amanhã, Jessica. Basta me dar o papelucho da garagem. - Ela entregou e ele ligou motor do novo Mercedes cor de chocolate. Observava-a atentamente enquanto guiava o carro até a casa dela. Parecia assustadoramente vaga e descomposta, e Martin ficou pensando se deveria chamar o médico para ela quando chegassem ao seu destino. Falou-lhe sobre isso, e ela objectou com veemência. - E quanto a uma amiga? Há alguém que queira que eu chame? - Detestava a idéia de deixá-la sozinha, mas ela apenas balançou a cabeça, calada, com uma expressão estranha nos olhos. Estava pensando no júri... em Margaret ....... no Inspector Houghton... queria matá-los a todos.... tinham roubado o Ian... - Jessica? Jessica?

Virou-se para olhar para ele, vagamente. Estavam diante da casa em Vallejo.

- Ah. - Balançou de novo a cabeça e abriu a porta com cuidado do seu lado. - Eu... vai ver o Ian agora?

- Vou. Há alguma coisa que queira que eu lhe diga?

Ela balançou a cabeça rapidamente e tentou falar normalmente.

- Só que... que...

Mas não conseguia falar por causa das lágrimas.

- Direi que o ama. - Ela concordou, agradecida, e olhou nos olhos dele com um ar de quem estava quase voltando àquela confusão histérica parecia estar sumindo. O que ele agora era choque, o dor. - Jessica, eu... lamente muitíssimo.

- Eu sei.

Então ela se virou, fechou a porta e caminhou devagar para sua casa. Movia-se como uma mulher muito velha, e o Mercedes comprido e marrom se afastou devagar. Parecia errado observá-la. Era mais generoso deixá-la sofrer em particular. Mas ele jamais esqueceria do jeito dela, caminhando devagar pela estradinha de tijolos, a cabeça baixa, os cabelos desfeitos, com as coisas de Ian nas mãos. Era uma visão insuportável.

Ela ouviu o carro se afastar e olhou vagamente para os canteiros de flores enquanto se acercava da casa. Era esta a casa em que viera almoçar com Ian pela manhã? Era essa a casa onde morava? Olhou para ela como se jamais a tivesse visto antes e parou como se não pudesse mais andar. Ergueu um pé devagarinho e subiu degrau baixo. Mas o outro pé era pesado demais para erguer. Não podia fazê-lo. Não queria fazê-lo. Não podia entrar naquela casa! Não sem o Ian. Não sozinha... ..... desse jeito...

- Ah, Deus, não!

Caiu de joelhos no primeiro degrau e soluçou de cabeça baixa com as mãos cheias do que tinha estado nos bolsos de Ian. Uma voz chamou o seu nome e ela não se virou. Não era o Ian. Para que se dar ao trabalho de responder... não era Ian... ele agora se fora! Todos se foram. Sentia como se ele tivesse morrido no tribu­nal... ou talvez ela tivesse. Não tinha muita certeza. A voz chamou o seu nome de novo, e ela sentiu como se estivesse afundando pelo tijolo. O conteúdo da sua bolsa jazia espalhado no degrau, a malha da sua saia tinha enganchado no tijolo, e o seu cabelo cobria o rosto como um véu de viúva, claro.

- Jessie? Jessica? - Ouviu os passos rápidos às suas costas, mas não conseguiu se virar. Não tinha forças. Estava tudo acabado. - ..Jessie... querida, o que foi? - Era Astrid. Jessica se virou para olhar no rosto dela, e as lágrimas continuaram a escorrer. - O que aconteceu? Me conte! Tudo vai dar certo. Fique calma. - Alisou o cabelo de Jessie como se ela fosse uma criança, e enxugou as lágrimas do rosto, que teimavam em continuar vindo. - É o Ian Diga-me, querida, é o Ian?

Jessie balançou a cabeça afirmativamente com uma expressão de dor e perturbação no rosto e Astrid sentiu o coração parar... ah, não, não o Ian... não como o Tom. Não!

- Foi condenado por estupro. - As palavras saíram como saíssem da boca de outra pessoa, e Astrid parecia ter sido esbofeteada. - Ele está na cadeia.

- Santo Deus, Jessica, não!

Mas era verdade. Soube disso enquanto Jessica balançava a cabeça e deixava que a amiga a conduzisse meigamente para dentro  e a pusesse na cama. As pílulas que Astrid lhe deu fizeram com que apagasse quase instantaneamente. Astrid ainda as trazia consigo... desde a morte de Tom.

 

Eram três e meia da madrugada quando Jessie acordou. A casa estava quieta. Podia ouvir o tique-taque do relógio. Estava escuro no quarto, mas havia luzes na sala. Tentou escutar os ruídos de Ian... a máquina de escrever, a cadeira rangendo no chão do estúdio. Sentou-se na cama, sem ouvir nada, e a sua cabeça rodou. Então lembrou-se das pílulas. E de Astrid. E de como tudo começara. Virou-se na cama e estendeu a mão trémula para os cigarros. Ainda usando a sua suéter e meias e combinação. A jaqueta e a saia dobradinhas sobre uma cadeira. Não se lembrava de ter ido para a cama. Só o que se lembrava era do som da voz. Astrid, arrulhando meigamente, dizendo coisas que ela não entendia enquanto pegava no sono. Mas tinha havido alguém ali... agora não havia ninguém. Estava sozinha.

Ficou ali fumando na escuridão do quarto, de olhos secos, leve­mente nauseada e ainda entorpecida com as pílulas, e subitamente estendeu a mão para o telefone. Conseguiu o número com a telefo­nista de informações, e telefonou.

- Prisão Municipal. Fala Langdorf.

- Gostava de falar com Ian Clarke, por favor.

- Ele trabalha aqui?

O sargento da recepção parecia surpreso.

- Não. Foi preso ontem. Depois de um julgamento.

Ela não disse qual a natureza da condenação. E ficou surpresa com a firmeza da própria voz. Não se sentia firme, mas sabia que, se pudesse se forçar a parecer calma, eles poderiam dar-lhe o que desejava. Só o que tinha a fazer era parecer terrivelmente calma e colocar um pouco de autoridade na voz e...

- Ele deve estar na cadeia municipal, dona, não aqui. E não pode falar com ele, de qualquer maneira.

- Entendo. Tem o número de lá?

Pensou em dizer-lhes que era uma emergência, mas melhor não fazê-lo. Tinha medo de mentir para eles. O sargento da recepção do presídio deu-lhe o número da cadeia municipal do Palácio da Justiça e ela discou rapidamente. Mas não deu certo. Disseram-lhe que podia visitar o marido dali a dois dias, e que não lhe era permitido atender telefonemas. A seguir, desligaram na cara dela.

Ela deu de ombros, e acendeu uma lâmpada. Estava frio quarto. Jessie vestiu um robe de banho por cima da suéter e combinação e foi até a sala, apenas de meias. Ficou parada no da sala e olhou ao seu redor. A sala estava ligeiramente desarrumada, mas não demais, apenas o bastante para fazê-la lembrar-se. impressões na maciez do sofá, uma marca onde as costas da cabeça dele tinham apertado uma almofada, o livro que estivera lendo último fim de semana... os mocassins sob a cadeira... as... sentiu um soluço subir à garganta e ficar entalado ali, enquanto se virava e ia até a cozinha para tomar alguma coisa... chá... café... uma Coca... alguma coisa... a sua boca estava seca e a cabeça mas todo o resto estava tão claro. Encontrou os pratos do almoço dentro da pia, e o jornal sobre o mármore onde ela o jogara, o artigo sobre o estupro em destaque. Era como se ele acabasse de estar no aposento, como se tivesse ido dar uma volta no quarteirão, como se... sentou-se à mesa da cozinha, baixou a cabeça e chorou.

O estúdio era igualmente ruim. Pior. Escuro e vazio e parecia esperar a presença dele, mas ter levado um “bolo”. Precisava dele para ter vida. Ian era a alma viva do aposento. E dela. A alma de Jessie. Precisava mais dele do que seu estúdio. Surpreendeu-se passando do um pé para o outro, como uma criança perturbada parada nos vãos de entrada, alisando os livros dele, ou as suas camisas, segurando ao peito sues mocassins, e dando um salto quan­do via uma sombra estranha. Estava sozinha. Na casa, na noite, no mundo. Sem ninguém para ajudá-la, ou cuidar dela, ou ligar coisa nenhuma para ela, ou... abriu a boca para gritar, mas não saiu nenhum som. Simplesmente desabou devagarinho até o chão, com os mocassins nos braços, e esperou. Mas ninguém veio. Estava sozinha.

 

 

Eram nove e meia da manhã e ela estava sentada na tentando lutar contra uma onda de histeria quando a campainha da porta tocou. Estava tudo bem. Tudo bem. Tudo ia ficar bem. ali no banho por mais algum tempo e depois tomaria uma chávena de chá, comeria alguma coisa, se vestiria e iria para a boutique. quem sabe, passaria o dia na cama. Ou... mas estava tudo bem. Primeiro o banho quente, e depois... mas não podia ligar para Ian. Não podia falar com ele. E precisava falar com ele. Inspirou fundo de novo e depois prestou atenção. Parecia a campainha da porta, ou quem sabe era apenas a água corrente enganando os ouvidos.. Mas não era. A campainha continuava tocando. Mas não precisava atender. Só o que tinha a fazer era continuar rendo e ficar calma, e deixar a água quente relaxá-la. Ian lhe ensinara a se manter calma daquele jeito e não ficar histérica quando... quando a mãe.... e Jack.... mas a campainha. Subitamente deu um salto e saiu da banheira, agarrou uma toalha e correu a porta. E se fosse o Ian? Ela estava com as chaves dele. E se... correu para a porta da frente, pingando água pelo caminho, meio sorriso na boca, os olhos subitamente grandes e brilhantes, a toalha cobrindo inadequadamente o seu tórax. Escancarou a porta sem se lembrar de perguntar quem estava lá, e depois deu um passo para trás, espantada. Surpresa demais para fechar a porta e Simplesmente ficou parada ali, o coração batendo forte de medo.

- Bom dia. Se fosse a senhora, não me habituaria a porta desse jeito.

Ela baixou rapidamente os olhos e apertou a toalha contra o corpo. O visitante era o Inspector Houghton.

- Eu... como vai. O que deseja?

Esticou-se até o máximo da sua altura e ficou parada regiamente no vão da porta, a despeito da toalha.

- Nada. Simplesmente quis ver como estava passando.

Tinha nos olhos uma expressão de vitória irónica, a expressão que ela não vira na véspera. Deu-lhe vontade de arrancar fora os olhos dele.

- Estou bem. - Seu filho da mãe nojento. - Alguma coisa

- Tem café feito, Sra. Clarke?

Vindas da parte dele as formalidades eram quase abusivas.

- Não, Inspector Houghton, não tenho. E tenho que ir trabalhar daqui a pouco. Se tiver algum assunto a discutir comigo, sugiro que vá comprar uma xícara de café na Union Street e depois me procure no meu escritório, daqui a uma hora.

- Nervosinha, hein? Mas deve ter tido um choque bem feio, ontem.

Ela fechou os olhos, lutando contra a onda de náusea que subiu à sua garganta. O homem era um sádico. Mas ela não podia desmaiar agora. Não podia. Escutou a voz de Ian dizendo “Tudo bem?” com aquele seu jeitinho especial, e balançou a cabeça imperceptivelmente e pensou “Tudo bem”.

- É foi um choque. O senhor curte isso, Inspector? Quero dizer ver outras pessoas infelizes.

- Não vejo a coisa desse modo.

Pegou um maço de cigarros e ofereceu-lhe um. Ela sacudiu a cabeça. Ele estava curtindo a coisa, sem dúvida.

- Suponho que não. A Srta. Burton deve ter ficado satisfeita.

- Muito.

 Sorriu para ela em meio à fumaça do cigarro e ela teve de lutar contra si mesma para não esbofeteá-lo ou agredi-lo. Foi preciso mais controle para isso do que para não vomitar.

- E o que acontece à senhora, agora?

Então era disso que se tratava.

- Como assim?

- Algum plano?

- Sim, trabalhar. E ver o meu marido amanhã. E ir jantar com amigos na semana que vem, e...

Ele sorriu de novo, mas não parecia divertido.

- Se ele for para a prisão, isso poderá destroçar o seu casa­mento, Sra. Clarke.

A voz dele era quase meiga.

- Possivelmente. Quase tudo pode destroçar um casamento, se a gente permitir. Depende do quanto o seu casamento é bom, e do quanto você está disposta a lutar para conservá-lo assim.

- E o seu casamento é bom?

- Excelente. E do fundo do coração, Inspector Houghton, eu lhe agradeço pela sua preocupação. Sem dúvida que a mencionarei tanto ao meu marido quanto ao nosso advogado. Sei que o Sr. Clarke ficará profundamente emocionado. Sabe, Inspector, o senhor é um homem verdadeiramente sensível... ou será que tem uma queda para conselheiro matrimonial? - O olhar dele deitou chamas, mas era tarde demais. Tinha metido os pés pelas mãos. Tinha vindo à casa dela, tocado a campainha e cometido os seus próprios erros naquela manhã. - Sabe, por falar nisso, sou até capaz de ligar para o seu superior para lhe contar que homem maravilhosamente gentil o senhor é. Imagine, preocupar-se com o estado do meu casamento.

Ele enfiou o maço de cigarros de volta no bolso, e o seu sorriso já tinha sumido há muito.

- Está certo, já entendi.

- Já? Puxa, mas como o senhor é vivo, Inspector.

- Puta - resmungou, por entre os dentes cerrados.

- Como disse?

- Disse “puta”, e pode dizer isso também ao meu superior. Mas se fosse você, boneca, não me daria ao trabalho de ligar. Já tem problemas de sobra, e não vai ver o seu velho por aqui durante muito tempo. É melhor ir se acostumando, irmã. Você e aquele seu vagabundozinho literário estão acabados.. Portanto, quando se cansar de ficar sentada aqui no escuro, sozinha, trate de começar a procurar. Tem gente melhor por aí do que aquele seu cara.

- É, não diga? E suponho que o senhor seja um bom exemplo?

Agora tremia de fúria, e a sua voz estava se levantando se igualar à dele.

- Escolha quem quiser, mas vai sair por aí procurando. Não lhe dou dois meses para estar lá no Jerry’s com o resto do pessoal.

- Saia daqui, Inspector. E se puser o pé perto desta casa de novo, com ou sem mandado de busca, ligarei para o juiz, o prefeito,  e o corpo de bombeiros. Ou talvez não ligue para ninguém. Talvez apenas atire no senhor da minha janela.

- Tem uma arma, é?

Ergueu uma sobrancelha, Interessado.

- Ainda não, mas vou ter. Aparentemente, estou precisando de uma.

Ele abriu a boca para dizer alguma coisa, e ela deu um passo atrás, graciosamente, e bateu-lhe com a porta na cara. Tacticamente, foi uma má jogada, mas fez com que se sentisse melhor. Por momentos. Quando voltou para dentro de casa, vomitou na cozinha. Levou duas horas para parar de tremer.

 

Astrid chegou às 11. Trazia flores, uma galinha assada para Jessie beliscar, e uma sacola cheia de frutas. E um pequeno frasco de pílulas amarelas. Mas depois de 20 minutos tocando mais insistentemente a campainha, ainda não havia resposta. Astrid sabia que Jessie estava em casa porque tinha ligado para a boutique para certificar. Finalmente, começou a ficar seriamente preocupada e bateu nas janelas da cozinha com os anéis. Jessie espiou cuidadosamente por entre as cortinas e depois deu um salto de 15 centímetros quando viu Astrid. Estava pensando que era o Houghton de novo.

- Santo Deus, menina, pensei que tinha acontecido alguma coisa. Por que não atendeu à porta? Está preocupada com a im­prensa?

- Não, não há problema quanto a isso. É que... oh... não sei.. - E então ficou com os olhos cheios de lágrimas de novo e estava parada ali parecendo uma criança grande demais e con­tando a Astrid sobre a visita de Houghton. - Não dá para aguentar. Ele ...... tão malvado, e está tão feliz com o que aconteceu. E  falou que o nosso... nosso casamento.

Chorava demais para poder continuar, e Astrid fez com que se sentasse.

- Por que não vem ficar comigo por algum tempo, Jessica? Podia ficar com o quarto de hóspedes e se afastar daqui por alguns dias.

- Não! - Jessie se pós de pé num salto e começou a andar de um lado para o outro da sala, tocando as cadeiras por onde passava, pegando um objecto e depois o largando de novo. Era uma série de estranhos gestos sobressaltados, mas Astrid os reconhecia. Reagira do mesmo jeito quando o Tom morrera. - Não. Obrigada, Astrid, mas quero ficar aqui. Com... com...

 Hesitou, sem saber direito o que queria dizer.

- Com as coisas do Ian. Eu sei. Mas talvez não seja uma coisa tão boa. E vale o preço de ser atormentada por gente como aquele policial? E se aparecerem outros procedendo da mesma maneira­? Quer ter que enfrentar isso?

- Não abro a porta.

- Não pode viver desse jeito, Jessica. Ian não vai querer isso.

- Vai, sim. Juro. Verdade.... eu... ó, Deus, Astrid, estou maluca, não posso... não sei o que fazer sem o Ian.

- Mas você não está sem o Ian. Você o verá. Ainda não sei o que aconteceu, mas quem sabe vocês podem dar um jeito. Ele não se foi, Jessica. Não está morto, pelo amor de Deus. Pare de agir como se estivesse.

- Mas ele não está aqui. - A voz dela era lamente-se. – Preciso dele aqui. Vou ficar maluca sem ele, vou... vou,..

- Não, não vai. A não ser que queira ficar maluca, ou se ficar. Controle-se, Jessica, e sente-se. Agora. Vamos, sente-se. - Jessica tinha estado sentando e levantando das cadeiras como caixa de surpresas nos últimos cinco minutos. A sua voz estava uma tonalidade alta e desesperada. - Já tomou café? - Jessica sacudiu a cabeça e começou a dizer que não queria nada, mas levantou a mão e sumiu dentro da cozinha. Apareceu cinco minutos mais tarde, com torrada, geléia, as frutas frescas que tinha trazido e uma xícara do chá fumegante. - Será que prefere mesmo o café?

Jessie sacudiu a cabeça e fechou os olhos momentaneamente.

- Simplesmente não consigo acreditar que isso está acontecendo, Astrid.

- Não pense no assunto ainda. Não consegue fazer sentido de nada, portanto não tente. Quando vai poder ver o Ian?

Os olhos de Jessie se abriram e ela soltou um suspiro, ante pergunta.

- Amanhã.

- Está bem. Então só o que tem a fazer é tentar ficar calma até amanhã. pode fazer isso, não pode?

Jessica fez que sim com a cabeça, mas não tinha muita certeza. Aquilo significava um dia, e uma noite, e uma manhã. E a noite seria o pior. Cheia de fantasmas e vozes e ecos e terrores. Tinha 24 horas para sobreviver até ver o Ian.

Mas havia uma coisa que ela queria fazer. Agora. Antes do Ian. Era falar com Martin sobre um recurso. Ele estava no seu escritório quando ela ligou, e parecia muito brando.

- Você está bem, Jessica?

- Tudo bem. Como vai o Ian?

A voz dela fraquejou nas palavras, e na outra extremidade Martin franziu a testa. Estava se lembrando de como ela estava na véspera, quando a deixara em casa.

- Está se aguentando. Mas ficou tremendamente chocado.

- Posso imaginar. - Disse-o suavemente, com um sorriso absorto. Chocado. Ambos estavam. - Martin, liguei porque quero lhe perguntar uma coisa agora, imediatamente, antes de ver o Ian amanhã.

- O quê?

- Quero saber o que se pode fazer quanto a um recurso, como fazemos, se você o pede, tudo isso.

E como diabo vamos pagá-lo? Essa era outra coisa.

- Bem, podemos falar sobre isso depois de darem a sentença,. Jessica. Se ele obtiver sursis, não há necessidade de pedir recurso, excepto para limpar a ficha do Ian do delito. Ele pode querer apenas isso. Mas acho que devem esperar até ser dada a sentença para tomar uma decisão. Há um tempo limitado para se entrar com um recurso, mas ainda terão tempo de sobra depois da sentença.

- Quando vai ser dada a sentença?

- De amanhã a quatro semanas.

- Mas por que esperar até depois dela?

- Porque, Jessie, vocês não sabem o que vai acontecer. Se eles o mandarem para casa sob sursis, Ian pode não ter vontade de gastar o último tostão dele, ou o seu, num recurso. Não é como se ele estivesse numa posição delicada, profissionalmente, em que o prejudicaria ter uma coisa dessas na sua ficha. Está certo, pode prejudicá-lo - reconsiderou - mas não demais, na profissão dele. E se ele estiver livre, o que lhe importa?

- Como assim, se ele estiver livre?

Jessica estava se sentindo confusa de novo.

- Pois bem, a alternativa é que, se não lhe derem sursis, o mandarão para a prisão. Nesse caso, então é melhor entrar com um recurso. Mas só o que o recurso vai conseguir para vocês, Jessie, é um novo julgamento. Terão que passar por toda essa provação de novo. Não há uma migalha de prova que não tenhamos apresentado. Nada mudaria. Portanto, vocês teriam que passar por tudo de novo, talvez sem proveito algum. Acho que, no momento, o que temos que fazer é pressionar para o sursis. E podemos pensar num recurso depois de vermos o que acontece ao ser dada a sentença. Está certo?

Jessica concordou, relutante, e desligou. O que ele queria dizer com “se” libertassem o Ian? O que era o “se”?

 

- Tudo bem?

- Tudo bem. - Ela sorriu e instintivamente levou a mão ao feijão-lima de ouro na garganta, e brincou com ele por um momento enquanto olhava para Ian. Sobrevivera às 24 horas, e Houghton não tinha voltado. - Eu o amo, Ian.

- Querida, eu a amo também. Você está mesmo bem?

Parecia tão preocupado com ela.

- Estou bem. E você?

Os olhos dele contavam a sua história. Desta feita estava na cadeia municipal, usando o macacão nojento que lhe tinham dado. Tinham enfiado as roupas dele numa sacola de compras e devolvido-as para Martin. Ele as mandara para Jessie na noite anterior, juntamente com o Volvo. Depois disso, ela tomara as duas pílulas que Astrid tinha deixado com ela.

- Martin falou que podem conceder-lhe sursis.

Mas ambos se lembravam do artigo que tinham lido no dia do julgamento. Era favorável à abolição do sursis nos casos de estupro. O público não estava com disposição indulgente, no momento.

- Vamos ver, Jessie, mas não conte com isso. Vamos tentar. - Ele sorriu e Jessie lutou contra as lágrimas. O que aconteceria se ele não conseguisse o sursis? Ainda nem começara a enfrentar isso. Mais tarde. Outro “mais tarde” como o julgamento, e o veredicto. - Tem se comportado bem? Nada de pânico, nada de chiliques?

Ele a conhecia bem demais.

- Tenho estado óptima. E Astrid está tomando conta de mim como de uma criança.

Não lhe contou sobre o Houghton. Ou sobre a noite de semiloucura que tivera que preencher com pílulas só para sobreviver. Tinha se arrastado por aquela noite como se fosse um campo minado.

- Ela está aqui com você? Olhou ao redor, mas não a viu.

- Está, mas esperou lá embaixo. Estava com medo que você fosse se sentir constrangido. E imaginou que iríamos querer con­versar.

- Diga-lhe que a amo. E estou feliz por você não estar aqui sozinha. Jessie, tenho estado doente de preocupação por sua causa. Prometa-me que não vai fazer nenhuma loucura. Por favor. Pro­meta.

Seus olhos suplicavam.

- Prometo. Juro, querido, estou bem.

Mas não estava com cara de quem estava bem. Ambos estavam com uma cara péssima. Devastados, chocados, exaustos, e no caso do Ian uma barba de dois dias não ajudava em nada.

Durante meia hora trocaram as banalidades sem nexo de pessoas ainda em estado de choque. Jessie se manteve ocupada tentan­do não chorar, e conseguiu não fazê-lo até se reunir a Astrid lá embaixo. Eram lágrimas de raiva e dor.

- Eles o botaram lá em cima numa maldita jaula, como um animal!

E aquela maldita mulher estava provavelmente no seu escritório, fazendo o seu trabalho, vivendo a sua vida. Tinha conseguido sua vingança e agora podia ficar feliz. Enquanto Ian apodrecia na cadeia, e Jessie enlouquecia, sozinha, à noite.

Astrid levou-a para casa, preparou-lhe o jantar e esperou até ela estivesse semi-adormecida. Foi uma noite mais fácil para principalmente porque estava exausta demais para se tortu­rar pensando, para ficar vagando. Simplesmente dormiu. E Astrid estava de volta na manhã seguinte, bem cedo, com morangos fres­cos, um exemplar do The New York Time: e um Women’s Wear Daily novo em folha, como se aquilo ainda tivesse importância.

- Moça, o que eu faria sem você?

- Dormiria até mais tarde, provavelmente. Mas eu estava acordada, portanto achei que devia vir até cá.

Jessie sacudiu a cabeça e abraçou a amiga enquanto ela servia xícaras de chá. Ia ser uma parada e tanto, e Astrid era um presente dos deuses. Ainda faltavam 27 dias para ser dada a sentença. E só Deus sabia o que aconteceria depois.

Jessie também precisava pensar na loja, mas não se sentia ainda pronta para isso. Foi levando, com telefonemas cada vez mais raros e uma grande dose de fé em Katsuko. Astrid levou-a consigo para a sua hora no cabeleireiro, mais para ficar de olho nela do que outra coisa qualquer. Jessie podia ver Ian apenas duas vezes por semana, e havia uma falta de objectivo assustador na sua vida, nesse meio tempo. Começava a dizer coisas e depois as esquecia, tirava objectos da bolsa e depois esquecia o motivo pelo qual os pegara; escutava Astrid falar e olhava através dela como se não a pudesse ver ou ouvir. Não fazia muito sentido. Parecia do jeito que se sentia, como uma criança perdida longe de casa agarrando-se dose desperadamente a uma nova mãe. Astrid. Mas sem Ian nada fazia sentido. Muito menos viver. E sem contacto, era difícil lembrar a si mesma que ele ainda existia. Astrid estava apenas tentando mantê-la à tona até a próxima vez em que pudesse vê-lo.

Tinha saído um pequeno artigo na última página do jornal no dia seguinte ao veredicto. Mas ninguém tinha telefonado, apenas os dois amigos que tinham testemunhado em favor de Ian no tribunal Estavam chocados com a notícia. Astrid atendeu os telefonemas e Jessica escreveu uma cartinha para cada um deles. Não queria falar com ninguém agora.

Na segunda-feira voltou ao trabalho e Zina e Katsuko estavam muito discretas. Kat tinha visto o artigo, mas não o mencionara ao telefone. Quisera esperar até poder dizer qualquer coisa para Jessie em pessoa. E soubera pela voz dela ao telefone que Jessie não queria que elas soubessem. Foi um momento doloroso quando ela e Astrid entraram na loja. Leu prontamente nos seus rostos que sabiam, e Zina ficou logo com lágrimas nos olhos. Jessie abraçou as duas.

Agora as duas moças sabiam por que Houghton tinha vindo à  loja, por que Jessie estava tão desesperada, por que o Morgan tina sido vendido. Finalmente compreendiam.

- Jessie, podemos fazer alguma coisa?

Katsuko falava em nome das duas.

- Só uma coisa. Não falem sobre isso de agora em diante. Não há nada mais que eu possa dizer. Falar não ajuda.

- Como está o Ian?

- Sobrevivendo. É o melhor que se pode dizer.

- Tem alguma idéia do que vai acontecer?

Ela sacudiu a cabeça e sentou-se quietamente na sua cadeira de sempre.

- Neca. Nenhuma idéia. Isso responde às perguntas de todas?

Olhou para o rosto das duas mulheres, e já se sentia cansada.

- Precisa de alguma ajuda em casa, Jessie? - Zina finalmente se manifestara. - Deve estar muito sozinha. E não moro longe.

- Obrigada, querida. Se precisar, eu falo. - Deu um apertozinho na moça enquanto se dirigia para o escritório, com Astrid grudada nos calcanhares. A última coisa que queria era passar noites com Zina cheia de comiseração. Seria pior do que os terrores de ficar sozinha. Virou-se à porta do escritório com uma expressão séria no rosto. - Só uma coisa. Não vou estar muito por aqui nas próximas semanas. Tenho coisas a fazer para o Ian. Gente que procurar sobre a sentença, e um monte de coisas com que me preocupar. Virei para cá sempre que puder, mas vocês duas podem ir contando em levar o barco para mim. Como têm feito. Tá legal? - Katsuko bateu continência e Jessie sorriu. - Duas birutas. É bom estar de volta.

- E se eu der uma mãozinha?

Astrid olhava para ela com interesse, enquanto se sentava.

- Para dizer a verdade, preciso mais de você em todo canto, excepto a loja. Kat tem isso aqui sob controle. O problema verdadei­ro sou eu. Manhãs, começos de noite, fins de noite... sabe como é.

Astrid sabia. Tinha visto o seu rosto às oito e meia da manhã, tinha ouvido a sua voz às duas da madrugada. Contavam perfeita­mente a história do que eram as suas noites. O terror de que o dia não chegasse mais. Que Ian jamais voltasse para casa. Que o mundo a engolisse e não a cuspisse mais para fora. Que Houghton ar­rombasse a sua porta e a estuprasse. Temores reais e temores irreais, demónios da sua própria criação e homens que não eram dig­nos desse nome... todos emaranhados na sua mente.

- Tem idéia de quando vai estar livre do trabalho? Virei bus­cá-la. Podemos jantar hoje na minha casa, se se sente disposta.

- Você é boa demais para mim.

E era espantoso, levando-se em conta o pouco tempo que se conheciam. Mas Astrid sabia como era. Tinha um profundo respeito por aquilo pelo que Jessie estava passando.

 

A maioria dos esforços de Jessie se concentrava na sentença de Ian. Duas vezes foi ver o funcionário encarregado dos casos de sursis, e que fora destacado para o caso de Ian, e não deixava Martin em paz, dia e noite. O que estava fazendo? O que pretendia fazer? Já falara com o funcionário destacado para o caso de Ian? Quais eram as impressões do sujeito? Será que Martin devia falar com os superiores dele? Ela foi até mesmo falar com o juiz, certo dia, na hora do almoço. Ele foi compreensivo, mas não queria ser pressionado quanto à sentença. Jessie teve a impressão distinta que, se tivesse sido um pouco menos refinada, o juiz teria sido um pouco mais simpático na sua recepção. Mesmo assim, não foi exageradamente gentil. Também colectou cartas de diversos amigos discretos, atestando o bom carácter de Ian. Conseguiu até mesmo uma carta do agente dele, esperando demonstrar que Ian tinha que estar livre para completar o seu livro, e que a ida para a prisão destruiria a sua carreira.

O Dia de Acção de Graças veio e se foi, como outro dia qual­quer. Ou pelo menos Jessica tentou se assegurar de que fosse assim. Tratou-o como qualquer outro dia em que não estivesse trabalhando. Não se permitiu pensar em Dias de Acção de Graças do passado. Recusou-se a deixar que fosse festivo, de qualquer maneira. Aquilo seria demais para ela. Passou o dia com Astrid, e Ian passou-o na cadeia. Não era permitido visitas na cadeia municipal, naquele dia. Ele comeu sanduíches de galinha com gosto azedo e leu uma carta de Jessie. Ela comeu filés com Astrid, que fez tudo para ignorar o feriado, nesse ano, chegando a sacrificar um fim de semana pro­longado na estância da mãe. Mas o sacrifício valeu a pena. Estava preocupada com Jessie, que agora sempre parecia estar atordoada, parando e se sobressaltando, com os nervos à flor da pele, num extremo ou no outro: entorpecida e cheia de pílulas ou agitadíssima por causa do excesso de café.

E trabalhava dia e noite. Resolvendo o que fazer em prol da sentença, e subitamente derramando a sua energia na Lady J, como não o fazia há anos. Recomeçou a trabalhar aos sábados. Em casa fazia qualquer coisa, tudo - limpou o porão, ajeitou a garagem, arrumou todos os seus armários, botou o estúdio em ordem - qual­quer coisa, tentando não pensar. E quem sabe, quem sabe, se ela fizesse tudo com perfeição, quem sabe no fim do mês ele viria para casa. Quem sabe eles lhe dariam o sursis, quem sabe... ela se mo­via como um pé-de-vento, mas tinha que fazê-lo; o martelar da sua mente a estava ensurdecendo. E havia o medo constante. Não esca­pava dele, nunca. Um terror puro, cru, interminável. Para além das proporções humanas. Mas ela não era mais humana. Mal co­mia, pouco dormia. Não se permitia sentir. Não ousava ser humana. Os seres humanos se despedaçavam. E isso era o que ela mais temia. Despedaçar-se. E depois ser incapaz de reunir os pedaços. Ian sabia disso, mas não podia impedir, agora. Não podia tocá-la, abraçá-la, senti-la, fazê-la sentir. Não podia fazer nada excepto olhar para ela através de um vidro e falar com ela pelo telefone da cadeia enquan­to ela mexia nervosa no fio e ficava abrindo e fechando os brincos, distraídamente.

E ele continuava com uma aparência cada vez pior – sem se barbear, sem se lavar, mal alimentado, e com olheiras escuras que pareciam cada vez mais escuras sempre que ela o via.

- Você não dorme aqui?

A voz dela agora era diferente, mais alta, mais estridente, mais assustada. Ele tinha pena dela, mas não podia ajudá-la agora. Ambos sabiam disso, e ele se perguntava quanto tempo ela ia levar, para odiá-lo por isso. Por ter-lhe falhado. Ele vivia apavorado que chegasse o dia em que não pudesse mais manter o bicho-papão longe dela, e então ela se viraria contra ele. Jessie esperava muito. Porque precisava de tanto.

- Durmo de vez em quando. - Tentou sorrir. Tentou não pensar. - E quanto a você? Parece que estou vendo muita maquilhagem debaixo dos seus olhos, amor. Estou certo?

- E quando está errado?

Ela sorriu de volta e deu de ombros, mexendo nos brincos de novo. Tinha perdido cinco quilos e meio, mas estava dormindo um pouco melhor. Só que não parecia. Mas as novas pílulas vermelhas estavam ajudando. Eram melhores do que as amarelas, ou mesmo azuizinhas, que Astrid permitira que tomasse depois delas. Eram mesmo tipo, só que mais fortes. Já as vermelhas eram outra histó­ria. Não discutiu o assunto com o Ian. Ele iria...criar caso. E ela era cuidadosa. Mas as pílulas eram a melhor parte do seu dia. Os dois momentos luminosos com o Ian eram as únicas partes supor­táveis da semana, e entre um e outro ela tinha que passar os dias. As pílulas faziam isso por ela. E Astrid as distribuía de uma em uma, recusando-se a deixar o vidro com ela.

Ian teria ficado desesperado se soubesse.. Ela lhe prometera solenemente­ depois da morte de Jack.... nada mais de pílulas. Ele tinha passado a noite toda ao lado dela enquanto faziam a lavagem estomacal, e depois ela prometera. Pensava nisso, às vezes, quando olhava as pílulas. Mas tinha que tomá-las. Tinha, mesmo. Ou mor­ria, de qualquer forma. De um jeito ou de outro. Preocupava-se com coisas como saltar da janela, mesmo sem querer. Com demoniozinhos agarrando-a e forçando-a a fazer coisas que não queria. Não podia mais conversar com os fregueses na loja. Ficava na parte dos fundos porque tinha medo do que diria. Não estava mais no controle. De nada. Jessica não estava mais no seu banco de motorista. Ninguém estava.

 

As quatro semanas entre o veredicto e a sentença arrastaram-se como um pesadelo permanente, mas o dia da sentença finalmente chegou. O pedido de sursis foi ouvido pelo juiz, e desta feita Jessie estava ao lado de Ian, enquanto esperavam. Agora era menos assustador, contudo, e ela ficava tocando a mão dele no seu rosto. Era a primeira vez num mês que o tocava. Não cheirava bem, e tinha as unhas compridas. Tinham lhe dado um barbeador eléctrico na cadeia, e ele arrebentara o seu rosto. Mas era Ian. Era, finalmente, um toque familiar num mundo que se tornara completamente estranho ­para ela. Agora podia ficar ao lado dele. Ser dele. Quase se esqueceu da seriedade da sentenciação. Mas as formalidades do tribunal a trouxeram de volta. O meirinho, o estenógrafo, a bandeira. Era a mesma sala, o mesmo juiz. E era tudo muito real, agora.

Não foi concedido o sursis a Ian. O juiz achava que as acusações eram sérias demais. E Martin explicou mais tarde que, com o clima político como estava, o juiz não poderia mesmo ter feito outra coisa. Ian recebeu uma sentença de quatro anos de prisão no presídio estadual, e teria que cumprir pelo menos um quarto da sentença mínima: um ano.

O meirinho o levou embora, e desta feita Jessie não chorou.

 

Três dias mais tarde, Ian foi transferido da cadeia municipal para o presídio estadual. Ele foi, como todos os prisioneiros homens do norte da Califórnia, para as Instalações Médicas da Califórnia em Vacaville para “avaliação”.

Jessica foi até lá dois dias depois, com Astrid, no Jaguar preto, e com duas pílulas amarelas no bucho. Astrid falou que essas eram as últimas que lhe daria, mas sempre dizia isso. Astrid tinha pena dela.

Excepto pela torre com a metralhadora espiando por cima do portão principal e o detector de metais que as revistou em busca de armas, a prisão em Vacaville parecia inócua. Do lado de dentro, uma loja de presentes vendia artigos feios feitos na prisão, e a mesa de recepção bem podia ser a entrada de um hospital. Tudo era vidro e cromado e linóleo. Mas, do lado de fora, parecia uma garagem moderna. Para pessoas.

Elas pediram para ver o Ian, preencheram vários formulários e foram convidadas a sentar na sala de espera ou passear pelo sa­guão. Dez minutos mais tarde um guarda apareceu para destrancar a porta que dava para um pátio interno. Instruiu-as para que atravessassem o pátio e entrassem por outra porta, que encontrariam destrancada.

Os presidiários no pátio usavam jeans, camisetas e uma variedade de calçados, desde botas até ténis, e Astrid alçou uma sobrancelha ­para Jessie. Não parecia uma prisão. Todos estavam despreocupadamente mexendo em máquinas automáticas para a venda de refrigerantes, ou conversando com namoradas. Parecia uma escola secundária na hora do recreio, com a excepção ocasional de um rosto sóbrio ou de uma mãe com olhos cheios d’água .

O que viu deu alguma esperança a Jessie. Poderia visitar Ian no pátio, poderia tocá-lo de novo, rir, ficarem de mãos dadas. Era uma loucura estar regredindo até isso depois de sete anos de casados, mas seria uma melhoria da situação de cachorrinho-na-vitrina das visitas na cadeia municipal.

Infelizmente, não havia melhoria. Ainda faltavam meses para Ian poder receber visitas no pátio, se é que ele ia ficar naquele presídio mesmo, afinal de contas. Sempre havia Folsom ou San Quentin para causar-lhes preocupação. Qualquer coisa era possível. E por enquanto tinham que se contentar de novo com mais visitas através de uma vidraça, como falar pelo telefone. Jessica sentia ímpetos de jogar o fone pela vidraça, destroçando-a, enquanto ten­tava sorrir para ele. Ansiava pelo toque do seu rosto, o contacto dos seus braços, o cheiro do seu cabelo. E ao invés disso só o que tinha nas mãos era um telefone de plástico azul. Ao lado dela havia um cor-de-rosa, mais adiante um amarelo. Alguém com senso de humor instalara telefones estilo princesa em tons pastéis por toda a sala de visitas. Como um berçário, com a janela de vidro. E os presos podiam conversar com os queridos bebéss pelo telefone. O que ela precisava era do marido, não alguém para bater papo ao telefone.

Mas ele parecia melhor... mais magro, mas limpo, pelo menos. Até mesmo fizera a barba, na esperança de uma visita. Começaram a contar algumas das suas piadas antigas, e Astrid partilhava o telefone com Jessica, de vez em quando. Era tudo tão estranho, sen­tados ali, batendo papo com uma parede de vidro a separar as duas mulheres e Ian. A tensão era evidente nos olhos dele, e o humor das suas brincadeiras tinha sempre uma ponta de amargura..

- Mas que harém. Para um estuprador.

Riu nervosamente da própria piada de mau gosto.

- Quem sabe vão pensar que você é um cafetão.

A risada deles era áspera. cortante.

A realidade era que ele estava ali. Pelo menos por um ano Jessie se perguntava quanto tempo ela aguentaria. Mas talvez fosse preciso. Talvez os dois não precisassem aguentar. Queria falar com ele a respeito do recurso.

- Falou com o Martin sobre isso?

- Falei. E não vai haver nenhum recurso.

Ele respondeu-lhe solenemente, mas com certeza na voz.

- O quê?

A voz de Jessie ficou subitamente estridente.

- Você me ouviu. Sei o que estou fazendo. Nada mudaria de uma segunda vez. Martin pensa do mesmo jeito. Por mais cinco ou dez mil dólares, nos endividaríamos ainda mais, e quando chegasse a hora do segundo julgamento, não teríamos nada de diferente para dizer. As suspeitas que temos sobre o marido dela são inadmissíveis com as provas frágeis de que dispomos. Só o que temos é uma foto antiga, e um bocado de idéias extravagantes. Ninguém quer testemunhar. Não temos nada em que nos agarrar, excepto uma esperança cega. Fizemos isso uma vez, mas não tínhamos escolha. Não vamos passar por aquilo de novo. Um novo julgamento teria exacta­mente o mesmo resultado, e só faria aquela gente ficar com raiva. Martin acha que para mim é melhor passar por isto aqui, ser um bom sujeito, e eles provavelmente me darão logo a liberdade con­dicional. De qualquer forma, já tomei a minha decisão, e estou certo.

- Quem diz que você está certo, droga, e por que ninguém me consultou?

- Porque estamos falando da minha pena aqui, não da sua. A decisão é minha.

- Mas afecta a minha vida, também.

Os olhos dela ficaram cheios de lágrimas. Queria um recurso, nova chance, alguma coisa, qualquer coisa. Não podia aceitar ficar esperando até que ele obtivesse livramento condicional. Falava-se em modificar as leis da Califórnia para se ter uma sentença determinada, mas quem tinha tempo de esperar por isso? E mesmo então, Martin dissera certa vez que Ian poderia ter que cumprir dois anos de pena. Dois anos? Jesus. Como sobreviveria? Mal podia falar enquanto segurava o telefone.

- Jessie, confie em mim. Tem que ser assim. Não há razão para o recurso.

- Podíamos vender alguma coisa. A casa. Qualquer coisa.

- E poderíamos perder de novo. E daí? Vamos cerrar os dentes e acabar com isso. Por favor, Jessie, por favor, por favor, tente. Não posso fazer nada por você no momento, excepto amá-la. Você tem que ser forte. E não vai ser por muito tempo. Provavelmente não  será mais do que um ano.

Tentava parecer animado, pelo bem dela.

- E se for mais de um ano?

- Vamos nos preocupar com isso na hora. - Como resposta, as lágrimas escorreram pelo rosto dela. Como podiam ter decidido isso sem consultá-la? E por que não estavam dispostos a tentar de novo? Talvez pudessem vencer... talvez... ergueu os olhos e deparou com Ian trocando um olhar com Astrid e balançando a ca­beça. - Meu bem, você precisa reagir.

- Para que?

- Por mim.

- Estou bem.

 Sacudiu a cabeça e olhou para ela.

- Quem me dera estivesse.

Graças a Deus ela tinha Astrid.

Continuaram a conversar por algum tempo, sobre os outros homens que estavam lá, sobre alguns testes que ele tivera que fazer, sobre as suas esperanças de ser mantido ali, ao invés de ser enviado para outra prisão. Vacaville pelo menos parecia civilizada, e ele esperava poder trabalhar no seu livro depois de estar ali por algum tempo, e ter se acalmado. Jessie disse a si mesma que se sentiu melhor por ver que ele ainda estava interessado no livro. Pelo menos ainda estava vivo mental e espiritualmente. Mas descobriu não lhe importava, na verdade. E quanto a ela? Depois da explosão por causa do recurso, sentiu-se ainda mais só. Tentou bombear um pouco de vida para o seu sorriso, mas doía tanto não ser capaz de estender as mãos para ele, ou ficar nos seus braços.

Ele observou o rosto dela por um longo momento, e desejou apenas poder tocá-la. Até mesmo ele não encontrava mais palavras, e caíam em períodos de silêncio.

- Como vai indo a loja?

- Tudo bem. óptimo, na verdade. Os negócios estão a vapor.

Mas era mentira. Os negócios estavam longe de ir a todo vapor. Nunca estiveram piores, em todos os anos, desde que abrira a Lady J. Mas o que poderia dizer-lhe, o que havia para ser dito sem verbalizar recriminações angustiantes, e acusações, e gritos de ultraje e desespero? O que sobrava? Sempre havia a verdade que os negócios estavam na pior e que ele devia estar em casa trabalhando para ajudar a pagar as contas... a verdade que ele não devia na prisão... a verdade que ele estava com uma cara terrível e que o seu corte de cabelo fazia com que parecesse velho e cansado... a verdade é que ela até mesmo se preocupava, agora, que ele fosse se tornar homossexual na cadeia - ou pior, que alguém o matasse... a verdade é que ela não sabia mais como pagar as contas e tinha medo de não sobreviver às noites ....... a verdade é que ela tinha vontade de morrer... a verdade que ele nunca deveria ter trepado com Margaret Burton... a verdade que ele era um filho da puta e que ela estava começando a odiá-lo porque ele não estava mais  lá... ele se fora. Mas ela não podia lhe dizer a verdade. Havia verdade demais, agora, e sabia que aquilo o mataria.

Ele estava falando de novo; ela precisava erguer os olhos e prestar atenção.

- Jess, quero que faça uma coisa para mim quando for para casa hoje. Tire xerox do livro, ponha a cópia no banco e mande o o original. Estou conseguindo permissão especial para trabalhar nele, e quando o manuscrito chegar aqui eu já estarei com a papelada pronta deste lado. Mas não se esqueça. Tente mandá-lo para mim ainda hoje.

O verão estava de novo nos olhos dele enquanto falava, mas Astrid ficou intrigada com a expressão da fisionomia de Jessica. Ela estava atónita. Ele acabara de ser condenado à prisão e estava se preocupando com o seu livro?

A visita foi encerrada depois de pouco mais de uma hora. Houve um monte de adeuses atropelados ao telefone, despedidas animadas de Astrid, uns últimos abraços verbais de Ian, e um mo­mento de pânico que Jessie pensou ia cerrar-lhe a garganta. Não podia nem mesmo dar-lhe um beijo de despedida. Mas, e se prec­isasse abraçá-lo? Será que eles não entendiam que tudo que possuía no mundo era o Ian? E se...

Ficou vendo enquanto ele se afastava devagar, relutando em ir embora, mas ostentando um grande sorriso juvenil, enquanto ela também tentava sorrir. Mas ela agora estava funcionando com o tanque vazio, e secretamente estava satisfeita porque a visita termi­nara. Custava-lhe mais cada vez que o via, agora. Era mais duro aqui do que fora na cadeia municipal. Tinha vontade de quebrar o vidro com um murro, de gritar, de... qualquer coisa, mas deu-lhe um último sorriso, e acompanhou Astrid de volta ao carro, atordoamento.

- Tem mais alguma daquelas pilulazinhas mágicas, fada ma­drinha?

- Não, não tenho. Não as trouxe.

Astrid não disse mais nada, mas tocou-lhe o braço meigamente e deu-lhe um abraço antes de destrancar o carro. Não havia mais nada que pudesse dizer. E ela deixou a Jessie a dignidade de não enxergar as suas lágrimas enquanto rodavam em silêncio para casa, rádio tocando baixinho entre elas.

 

- Quer que eu a deixe em casa, para você poder relaxar um pouco?

Sorriu enquanto davam uma parada na Broadway onde a auto-estrada as devolvia para o tráfego da cidade. Duas quadras depois passaram pelo Enrico.

- Neca. E foi aí que tudo começou.

- O quê?

Astrid não tinha notado, e se virou para ver Jessica fitando as mesas amontoadas na calçada sob os aquecedores. Agora fazia frio, mas umas poucas almas corajosas ainda se sentavam do lado de fora.

- No Enrico. Foi ai que ele a conheceu. O que será que ela estará fazendo agora?

Havia um ar atormentado no rosto de Jessica, e ela falou quase sonhadoramente.

- Jessie, não pense nisso.

- Por que não?

- Porque não há motivo para isso, agora. Acabou. Agora você tem que olhar para adiante, para outra extremidade. Você tem que continuar atravessando o túnel, e antes que perceba...

- Ora, merda! Você faz parecer como se fosse um conto de fadas, puxa vida! Como é que você acha que a gente se sente olhando para o marido através de uma janela de vidro, sem poder tocá-lo, ou... é, Deus. Desculpe. Não aguento, Astrid. Não aceito, não quero isso acontecendo com a minha vida, não quero ficar sozinha.. Preciso dele.

Acabou a frase baixinho, com a garganta grossa de lágrimas.

- E ainda o tem. De todas as maneiras que importam. Está bem, ele está atrás de um vidro, mas não vai ficar lá para sempre. O que você acha que senti quando olhei para Tom naquela caixa fedorenta? Ele jamais iria falar comigo de novo, me abraçar de novo, precisar de mim de novo, me amar novamente. Jamais, Jessie Jamais. Com você e o Ian é apenas um intervalo. A única coisa que você não tem é a presença dele em casa todas as noites. Tem todo o resto.

Mas era isso o que ela precisava. A presença dele. Que “resto havia? Não conseguia se lembrar mais. Havia um “resto”? Tinha havido, alguma, vez?

- E tem que parar de tomar essas pílulas, Jessie.

O tom de voz de Astrid trouxe-a ao presente de novo. Já estavam a poucos quarteirões da casa dela.

- Por quê? Não fazem nenhum mal. Só... só ajudam, nada mais.

- Daqui a pouco não vão ajudar. Só a deprimirão mais, se é que você já não entrou nessa. E se não tomar cuidado vai ficar dependente delas que vai ter um problema de verdade. Eu fiquei, e foi uma coisa para me livrar do vício. Passei semanas na estância da mamãe tentando me libertar sozinha. Faça a si mesma um favor... desista delas agora.

Jessie ignorou a sugestão e tirou um pente da bolsa.

- É. Talvez eu vá directo para a loja.

- Por que não passa pelo menos cinco minutos em casa se descontrair um pouco? Que tal lhe parece?

Nojento. doloroso.

- Está bem. Se você vier tomar um café comigo. - Não queria ficar sozinha ali. - Tenho que pegar o livro do Ian e tirar o xerox que ele pediu. Quer recomeçar a trabalhar.

Astrid notou o tom de voz tenso. Será que estava com ciúme? Parecia quase impossível. Mas, hoje em dia, qualquer coisa era possível com Jessie.

- Pelo menos vão permitir que ele trabalhe no livro.

- Aparentemente.

Jessie deu de ombros, enquanto Astrid dobrava na entrada para automóveis.

- Vai lhe fazer bem.

Jessica deu de ombros de novo e saltou.

Havia um ar de leve desordem no corredor da frente, de jaque­tas e casacos experimentados e postos de lado antes da sua visita a Ian pela manhã. Astrid notou os casacos de Ian empurrados para um dos cantos do armário, e a bagunça predominantemente feminina aqui e ali, agora. Ele estava fora há apenas cinco semanas, no entanto estava começando a parecer uma casa de mulher. Pergun­tou-se se Jessie teria notado a mudança.

- Café ou chá?

- Café, obrigada. - Astrid sorriu e se acomodou numa cadei­ra para espiar a paisagem. - Precisa de ajuda? - Jessica sacudiu a cabeça e Astrid tentou relaxar. Era difícil estar com Jessica, agora. Era óbvio que havia tanta dor, e tão pouco que se pudesse fazer para ajudar. Excepto estar presente. - O que vai fazer no Natal?

Jessica apareceu com duas xícaras floridas e deu uma risada

- Quem sabe? Talvez este ano eu me enforque, ao invés de pendurar as meias.

- Jessica, não tem graça.

- E alguma coisa tem?

Astrid soltou um suspiro profundo e largou a xícara que Jessie lhe dera.

- Jessie, você tem que parar de sentir pena de si mesma. De alguma forma, em algum lugar você tem que encontrar algo a que se apegar. Pelo seu próprio bem, não apenas pelo dele. A loja, um grupo de amigos, eu, uma igreja, seja lá o que for que precise, mas tem que se agarrar a alguma coisa. Não pode viver desse jeito. Não apenas o seu casamento não sobreviverá, mas, o que é muito pior, você não sobreviverá. - Era isso que estava dando medo a Ian; Astrid sabia. Uma ou duas vezes ele olhara para ela, e Astrid com­preendera. - Isso não é para sempre, sabe. Você terá de volta o que tinha antes. Não acabou.

- Não? E como você sabe? Eu não sei nem mesmo isso. Nem mesmo sei, a esta altura, que diabo a gente tinha, ou se vale a pena querê-lo de volta. - Estava chocada com as próprias palavras, mas agora não podia se deter. Juntou com força as mãos trémulas. - O que tínhamos? Eu sustentando o Ian e ele me odiando por isso, tanto que tinha que sair e foder um bando de outras mulheres para se sentir como um homem. Lindo retracto de um casamento, não é, Astrid? Exactamente aquilo com que sonha toda garotinha.

- É assim que você está se sentindo, agora? - Astrid notou a mágoa no rosto de Jessica, e ficou condoída. - Pelo que tenho visto, o seu casamento é muito mais do que isso.

Tinham parecido tão jovens e felizes quando os conhecera, agora se dava conta de que havia um bocado de coisas que sabia. Tinha que haver. Olhou Jessica nos olhos e sofreu por ela. Jessica tinha que descobrir um bocado de coisas, nos meses que se seguiriam.

- Não sei, Astrid. Sinto como se tivesse feito tudo errado antes, e quero fazer certo agora. Mas é tarde demais. Ele se foi. E não me importa o que você diga, sinto dentro de mim que não vai mais voltar. Invento jogos comigo mesma, fico esperando o som dos seus passos, ando pelo seu estúdio... e depois nós vamos vê-lo, como um macaco enjaulado. Astrid, ele é meu marido, e eles o trancaram como a um animal!

As lágrimas e a confusão inundaram-lhe os olhos.

- É isso o que realmente a está incomodando, Jessie?

Pareceu irada ante a pergunta.

- Claro que é! O que você acha?

- Acho que isso a incomoda, mas penso que outras coisas incomodam tanto quanto isso. Acho que você está com medo que tudo vá se modificar. Que ele vá se modificar. Ele está querendo o seu livro, agora, e isso a assusta.

- Não me assusta, me irrita.

Pelo menos isso era sincero. Ela o admitia.

- Por que a irrita?

- Porque fico aqui sozinha, enlouquecendo, lidando com a realidade, e o que ele faz? Rabisca o seu livro, como se nada tivesse acontecido. E... ah... não sei, Astrid, é tão complicado. Não compreendo mais nada. Está tudo me deixando maluca, não Simplesmente não aguento.

- Você pode aguentar, e o Ian também. Já passou pela pior parte. O julgamento deve ter sido um inferno.

Jessie concordou, solenemente.

- É, mas isso é pior. Isso dura para sempre.

- Claro que não. Jessie, você pode aguentar muito mais que imagina. E o Ian também.

Enquanto pronunciava as palavras, torcia para estar certa.

- Como pode ter tanta certeza? Lembre-se de como ele hoje, Astrid. Por quanto tempo acha que pode suportar tudo aquilo? Ele é mimado, mimado às pampas, e acostumado a uma vida confortável com gente civilizada. Agora está lá dentro. Nós não sabemos exactamente como é, mas o que você acha que vai acontecer se alguém puxar uma faca para ele, ou um cretino qualquer quiser fazer amor com ele? E daí? Acha mesmo que ele vai saber segurar a barra, Astrid? - A voz dela estava ficando histérica. - E sabe qual é a verdadeira piada de toda essa confusão? Que ele está lá por minha causa. Não por causa de Margaret Burton. Por minha causa. Por minha causa. Porque eu o castrei tão completamente que ele precisava dela para provar alguma coisa. A culpa foi minha. Foi como se eu mesma tivesse posto as algemas nele.

A tragédia era que Astrid sabia que ela acreditava naquilo. Dirigiu-se para ela e tentou abraçá-la enquanto Jessica soluçava.

- Jessica, não... não, meu bem. Você sabe...

- Eu sei. É verdade! Eu sei. E ele sabe E até mesmo aquela sacana daquela mulher sabia. Devia ver como ela olhou para mim, no tribunal. Sabe lá Deus o que ele lhe contou. Mas olhei para ela com ódio, e ela olhou para mim com pena. Que merda, Astrid, por favor me dê algumas daquelas pílulas.

Ergueu os olhos para Astrid, com o rosto desfeito, mas a amiga balançou a cabeça.

- Não posso.

- Por que não? Estou precisando delas.

- Você está é precisando pensar, agora. Com clareza. Não num estado de entorpecimento. O que você acabou de me dizer é uma loucura completa, e um bocado do que está pensando também é provavelmente uma loucura. É melhor que você ajeite as coisas na sua cabeça agora, e fim de papo. As pílulas não vão ajudar.

- Elas vão me fazer superar isso.

Estava suplicando, agora.

- Não, não vão. Você perdeu todo o senso de perspectiva quanto ao que aconteceu, e elas apenas tornarão as coisas piores. E posso lhe dizer uma coisa, com certeza. Se você não corrigir o seu modo de pensar agora, ele vai apenas piorar, e você não terá um casamento quando o Ian for libertado. Acabará por odiá-lo, talvez até tanto quanto está se odiando no momento, se é que isso é possível. Você deve a si mesma pensar com seriedade, Jessica.

- Então, você vai providenciar para que eu o faça, certo?

Agora a voz de Jessica estava amarga.

- Não, não posso fazer isso. Não posso forçá-la a pensar. Mas também não vou lhe dar mais nada para turvar os seus pensamentos. Não posso fazer isso, simplesmente não posso, Jessica.

Jessica sentiu um impulso quase irresistível de se erguer e bater a Astride e então soube que devia estar enlouquecendo. Querer bater em Astrid era uma coisa muito louca. Mas também muito real. Ela queria aquelas malditas pílulas.

- Você terá que enfrentar isso mais cedo ou mais tarde, de qualquer forma.

E então, subitamente, as lágrimas afloraram aos olhos de Jessie de novo.

- Mas, e se eu ficar maluca? Quero dizer, maluca de verdade?

- E por que ficaria?

- Porque não consigo controlar a situação. Simplesmente não consigo.

Astrid sentiu-se incapaz e ficou imaginando como a mãe a tinha aguentado quando estivera em situação semelhante, depois da morte de Tom. Aquilo lhe deu uma idéia.

- Jessie, por que não vem comigo para a fazenda no Natal? Mamãe iria adorar, e faria bem a você.

Jessica sacudiu a cabeça mesmo antes de Astrid ter acabado a frase.

- Não posso.

- Por que não?

- Tenho que passar o Natal com o Ian.

Parecia lamentar a idéia.

- Você não “tem que”.

- Está bem, eu quero.

Natal sem o Ian? Nem pensar.

- Mesmo com o painel de vidro entre vocês? - Jessica fez que sim com a cabeça. - Por que, pelo amor de Deus? Como penitência para absolvê-la da culpa que anda empilhando sobre a sua ca­beça? Jessica, não seja ridícula, O Ian provavelmente adoraria saber que você está fazendo uma coisa agradável, como ir para a fazenda. - Jessica não respondeu, e depois de uma pausa, Astrid falou o que realmente estava pensando. - Ou prefere torturá-lo deixando que veja o quanto você sofre no Natal?

Os olhos de Jessica se arregalaram de novo ao ouvir isso.

- Meu Deus, você faz com que pareça que estou tentando socá-lo.

- Talvez esteja. Acho que você simplesmente não consegue decidir no momento quem odeia mais... ele ou você mesma. E acho que vocês dois já foram castigados de sobra, Ian nas mãos do Estado, você nas suas próprias. Não pode começar agora a ser boa para si mesma, Jessica? E então, quem sabe, será capaz de ser boa para ele.

Havia mais verdade nas palavras de Astrid do que Jessie estava preparada para enfrentar.

- Você pode cuidar de si, Jessie. E Ian cuidará de você, mesmo a distância. Seus amigos a ajudarão. Porém, principalmente, você precisa enxergar que é muito mais capaz do que imagina.

- Como é que sabe?

- Eu sei. Você está com medo, e tem direito de estar. Mas se apenas se acalmasse um pouco, e se auto-avaliasse, com bondade, ficaria com muito menos medo. Mas terá que parar de correr para fazer isso.

- E parar de tomar as pílulas?

Astrid fez que sim com a cabeça, e Jessie continuou calada. Ainda não estava pronta para fazer isso. Sabia mesmo antes de tentar.

Mas tentou. Astrid foi embora sem lhe deixar pílula alguma, e Jessica foi até o banco com o manuscrito de Ian, com mãos e joelhos trémulos, mas sem tomar mais pílulas. De lá foi ao correio, e de lá para a loja. Não aguentou ficar na Lady J nem uma hora, e depois voltou para casa para ficar andando de um lado para o outro. Passou a noite encolhida numa poltrona da sala, nauseada, tremen­do, olhos arregalados, usando uma suéter de Ian. Ainda cheirava à sua água-de-colónia, e ela podia senti-lo consigo. Podia senti-lo a observá-la enquanto se sentava diante da lareira. Ficava vendo rostos no fogo... de Ian, da mãe, do Jake, do pai. Chegaram tarde da noite. E então pensou ter ouvido sons estranhos na garagem. Teve vontade de gritar, mas não pode. Queria tomar as pílulas, mas não tinha nenhuma. Passou a noite toda sem ir para a cama, e às sete da manhã ligou para o médico. Este deu-lhe tudo o que queria.

 

No Natal, Astrid passou três semanas na fazenda com a mãe. Jessica estava atolada na boutique. Estava agora caindo numa rotina com as visitas ao Ian. Ia de carro até lá duas manhãs por semana, e aos domingos. Estava rodando 520 quilómetros por semana no carro dele, e o Volvo não ia aguentar o desgaste por muito tempo. Ela quase se perguntava se ela e o carro morreriam juntos, simplesmente emborcariam no acostamento e morreriam. No caso do Volvo, seria de velhice; no de Jessie, de tensão e exaustão. Isso e pílulas em excesso. Mas ela agora funcionava bem com elas. A maioria das pessoas ainda não percebia. E Ian ainda não a encostara na parede sobre elas. Imaginou que ele simplesmente não quisesse ver o que estava acontecendo. Por ela, tudo bem.

Não pôde mandar-lhe um presente de Natal, nesse ano. Permitiam-lhe receber apenas dinheiro, portanto ela lhe enviou um cheque. E esqueceu de comprar presentes de Natal para as duas moças da loja. Só no que pensava era botar gasolina no carro, sobreviver às visitas com o Ian do lado oposto da janela de vidro, e mandar repetir as suas receitas. Nada mais parecia importar. E a pouca energia que lhe sobrava ela gastava fazendo contas. Estava fazendo algum progresso com elas, e acordava de manhã calculando como cobriria tal conta, se tomasse emprestado daqui, se não pagasse ali até... estava torcendo para que os lucros de Natal a tirassem do vermelho. Mas a Lady J estava tendo seus próprios problemas. Algo estava fora de esquadro, e ela não conseguia se forçar a se importar tanto quanto antes. Lady J agora era apenas um veículo não mais uma alegria. Era um meio de pagar as contas, e um lugar aonde ir durante o dia. Podia se esconder naquele escritoriozinho no fundo da loja e fazer malabarismo com as contas. Agora, raramente saia para atender aos fregueses. Depois de alguns minutos, a onda familiar de pânico crescia dentro dela, chegava-lhe à garganta, e tinha que pedir licença... uma pílula amarela... uma azul... um rápido gole de uísque... alguma coisa... qualquer coisa para matar o pânico. Era mais fácil apenas ficar sentada lá atrás e deixar as moças cuidarem dos fregueses. De qualquer forma, estava ocupada demais. Com as contas. E tentando não pensar. Era um esforço muito grande não pensar, especialmente no final da noite, ou logo de manhãzinha. Subitamente, pela primeira vez em anos, lembrou-se perfeitamente da voz da mãe, da risada do pai. Tinha se esquecido deles por tanto tempo, e agora estavam de volta. Diziam coisas... um sobre o outro... sobre ela... o Ian... e tinham razão. Queriam que ela pensasse. Jake chegou a dizer alguma coisa, certa vez. Mas ela não queria pensar. Ainda não estava na hora. Não tinha que pensar... não queria... não podia... eles não podiam forçá-la...

 

O Natal não caiu num dia de visitas, portanto não pode passá-lo com o Ian, afinal de contas. Passou-o sozinha, com três pílulas vermelhas e duas amarelas. Só acordou às quatro horas da tarde seguinte, e então pode voltar para a loja. Queria remarcar alguns artigos para uma liquidação. Tinham perdido dinheiro no Natal, e era preciso compensar. Uma liquidação bem gorda daria conta do recado. Ela mandaria cartõezinhos para os seus melhores fre­gueses. Isso os traria em bandos... esperava ela.

Trabalhou nos livros de contabilidade durante todo o Ano Novo, e finalmente lembrou-se de dar cheques para Zina e Kat, ao invés dos presentes de Natal que esquecera. Jessie ganhara três presentes, e um poema de Ian. Astrid lhe dera uma pulseira de ouro simples e linda, o Zina e Kat lhe deram coisas pequenas e carinhosas. Uma miscelânea feita em casa num lindo pote francês, de Zina, e um pequeno desenho a bico de pena numa moldura de prata, de Katsuko. E ela lera o poema de Ian repetidas vezes na véspera de Natal. O papel logo ficou enrugado, e jazendo na sua mesinha-de-cabeceira.

Levara-o para o escritório, e agora o carregava na bolsa, tirando-o para lê-lo durante o dia. Sabia-o de cor no dia seguinte ao du recebimento.

Katsuko e Zina se perguntavam o que ela ficava fazendo o dia todo no escritório, agora. Aparecia para tomar café, ou para pro­curar qualquer coisa no estoque, mas raramente falava com elas, e nunca mais fizera brincadeiras. Os dias de fofocas gostosas e camara­dagem que tinham compartilhado agora pertenciam ao passado. Era como se Jessie tivesse desaparecido quando Ian desapareceu. Aparecia à porta do pequeno escritório no final do dia, às vezes com um lápis enfiado no cabelo, um ar distraído, uma pequena pilha de contas na mão, e às vezes com olhos injectados e inchados. Agora falava bruscamente com as pessoas com mais facilidade, e perdia a paciência com mais frequência por coisa de pouca importância. E sempre presente estava aquele ar morto nos olhos. Aquele ar que revelava que passava as noites acordada. A expressão que dizia que estava com mais medo do que queria que elas soubessem. E a turvação dos olhos inconfundível, das pílulas.

Apenas os dias em que visitava o Ian eram um pouco diferentes. Então ela estava viva. Algo brilhava por trás do muro quê construíra entre si mesma e o resto do mundo. Algo diferente acontecia então nos seus olhos, mas ela não partilhava com ninguém. Nem mesmo com Astrid, que estava passando cada vez mais tempo na loja, e aprendendo a conhecer Zina e Katsuko. Num certo sentido, Astrid substituíra Jessie. Tinha o jeitão descontraído que Gessie tivera antes. Curtia a loja, as pessoas, as roupas, as garotas. Tinha tempo para conversar e rir. Tinha novas idéias. Adorava o lugar, e isso era evidente. As moças tinham se afeiçoado a ela. Astrid até aparecia na loja nos dias em que Jessie estava com o Ian.

- Sabem, as vezes acho que fico sentada aqui é para saber quando ela está de volta. Fico preocupada até com ela dirigindo.

- Nós também - disse Katsuko, sacudindo a cabeça.

- Ela me falou outro dia que faz a viagem no “piloto automático”. - As palavras de Zina não serviam de conforto. - Dia que às vezes nem se lembra de onde está e do que está fazendo até ver o sinal.

- Fantástico.

Astrid tomou um gole de café e sacudiu a cabeça.

- Horrível, não é? Fico me perguntando quanto tempo ela vai aguentar. Não pode continuar se arrastando desse jeito. Tem que ir a algum lugar, ver gente, sorrir ocasionalmente, dormir. - E ficar sóbria. Katsuko não falou, mas todas pensaram a mesma coisa. - Ela nem sequer parece mais a mesma mulher. Como será que ele está se saindo?

- Um pouco melhor do que ela, na verdade. Mas não o vejo há algum tempo. Acho que ele tem menos medo.

- Então é esse o problema com ela? - Zina parecia atónita. - Pensei que era simplesmente exaustão.

- Isso, também. Mas é medo.

Astrid parecia hesitante em discutir o assunto.

- E pressões. A Lady J tem dado dores de cabeça a ela, ultimamente.

- É? Parece bastante movimentada.

Katsuko sacudiu a cabeça, relutando em dizer mais alguma coisa. Tinha recebido telefonemas de pessoas a quem Jessie estava devendo.

Pela primeira vez a loja estava em dificuldades, e não havia dinheiro ao qual recorrer. Jessie sangrara cada último centavo do dinheiro de reserva para o Ian. Portanto, agora a Lady J também estava pagando o preço de Ian.

Foi então que Jessie entrou na loja, e a conversa cessou. Pare­cia abatida e magra, mas havia algo mais animado nos seus olhos, aquele quê indefinido que Ian devolvia à sua alma. Vida.

- Bem, senhoras, como a vida tratou a todas no dia de hoje? Estava gastando o seu dinheiro aqui de novo, Astrid?

Jessie sentou-se e tomou um gole do café frio de alguém. Mal deu para se notar que enfiara na boca uma pequena pílula amarela, ao mesmo tempo. Mas Astrid notou.

- Neca. Não estou gastando um níquel, hoje. Só dei uma paradinha para tomar um café e ter companhia. Como vai o Ian?

- Bem, acho eu. Cheio de novidades sobe o livro. Que tal o qualquer movimento, hoje?

Não parecia querer falar sobre Ian. Raramente falava agora de qualquer coisa importante para ela. Até mesmo com Astrid.

- Meio parado, hoje.

Katsuko contou-lhe o que se passara na loja, enquanto Zina observava o ligeiro tremor da mão de Jessie.

- Formidável. Um negócio morto e um carro morto. O Volvo deu o seu último suspiro.

Parecia despreocupada, como se realmente não lhe importasse e tivesse 12 outros carros em casa.

- Quando vinha para casa?

- Naturalmente. Peguei carona com dois garotos em Berkeley. Numa camioneta Studebaker 1952. Era rosa com debruns verdes e eles a chamavam de Melancia. E rodava feito uma.

Tentou falar com pouco caso, enquanto as três mulheres a observavam.

- E onde está o carro?

- Num posto de gasolina em Berkeley. O dono me ofereceu 75 dólares por ele, e concordou em não cobrar o reboque.

- Você o vendeu?

Até mesmo Katsuko parecia atónita.

- Neca. Não posso. É do Ian. Mas acho que vou vender. O carro já era. - E eu também. Ela não falou isso, mas todas. captaram na sua voz. - Entra fácil, sai fácil. Vou comprar alguma coisa barata para as minhas viagens para ver o Ian.

Mas, com quê? De onde sairia o dinheiro?

- Eu levo você.

A voz de Astrid era suave e estranhamente calma. Jessica ergueu os olhos para ela e concordou. Não havia por que protestar. Precisava de ajuda e sabia disso, e não apenas com as viagens de carro.

Dali em diante, Astrid levava Jessica para ver Ian três vezes por semana. Poupava a Jessie o trabalho de esperar para tomar as duas pílulas amarelas quando chegasse lá. Desse modo, podia tomar duas pela manhã e outras duas depois de vê-lo. Por vezes até incluía uma verde e preta. Qualquer bocadinho ajudava.

E Astrid não conseguia mais conversar com ela. Nem fazia sentido tentar. Só o que podia fazer era dar apoio e ficar por perto para quando o tecto finalmente desabasse. Se desabasse, quando desa­basse, onde e como. Jessica se dirigia para um muro de pedra com o máximo de velocidade possível. Nada menos do que isso iria detê-la. E Ian também não podia alcançá-la. Astrid enxergava isso claramente, agora. Ele não podia enfrentar o que estava aconte­cendo com Jessie, porque não podia ajudar. E se não podia ajudar, não queria ver. E cada vez que Jessie chegava parecendo mais tortu­rada, mais exausta, mais frágil, mais arraigada na dor e enfeitada de bravata, aquilo apenas machucava o Ian mais. Ele sentia maior culpa, maior dívida, maior dor pessoal. Os seus olhos agora rara­mente se encontravam. Simplesmente falavam. Ele do livro, ela da Butique. Nunca do passado ou do futuro ou das realidades do pre­sente. Nunca falavam dos seus sentimentos, mas apenas exclamavam “Eu te amo” a intervalos regulares, como pontuação. Era uma coisa horrível de se ver, e Astrid odiava essas visitas. Tinha vontade de dar uma sacudidela nos dois, de falar, de deter o que estava vendo. Ao invés disso, eles apenas continuavam a morrer quietamente dos lados opostos da parede de vidro, nos seus infernos particulares, Ian com a culpa dele, Jessica com a dela, e cada um deles com a sua cegueira sobre si mesmo e o outro. Enquanto Astrid olhava, muda e horrorizada.

Se ao menos pudessem se abraçar, poderiam ter sido reais. Mas não podiam, e não eram. Astrid sabia disso enquanto os observava. Podia vê-lo nos olhos de Jessie, agora. Havia dor cons­tante, mas também havia a expressão de uma criança que não com­preende. O seu marido se fora, mas o que era um marido e aonde fora? As pílulas tinham permitido que ela submergisse num mar de imprecisão, e raramente voltava à tona. Estava muito perto de se afogar, e Astrid não tinha certeza absoluta de que Ian já não tivesse se afogado. Astrid gostaria de não ter que comparecer às visitas. Mas, agora, estavam todos trancafiados nos seus papéis: marido, mulher e amiga.

 

O mês de janeiro passou sangrando para fevereiro e depois claudicou para março. A boutique fez uma liquidação de duas semanas que teve pouquíssimo movimento. Todos estavam ocupados ou viajando ou se sentindo pobres. O restinho da linha de inverno deles não tinha vendido nada bem; a economia estava fraca, e os luxos estavam indo para o brejo com ela. A Lady J não era uma butique que atendesse às necessidades comuns. Servia a uma clientela selecta dos internacionalmente chiques. E os maridos das suas clientes esta­vam mandando que elas cortassem essa despesa. O mercado estava ruim. Eles já não achavam mais graça numa “sueterzinha” ou numa saia “boba” que lhes custava ao todo perto de 200 dólares.

- Meu Deus, o que vamos fazer com toda essa droga?

Jessica andava de um lado para o outro, abrindo um maço novo de cigarros. Tinha visto o Ian de manhã. Mais uma vez, através do vidro. Sempre através do vidro. Tinha visões de finalmente poder tocá-lo de novo quando estivessem os dois com 97 anos de idade. Nem sonhava mais com a vinda dele para casa. Apenas com poder tocá-lo.

- Vamos ter um problema de verdade, Jessie, quando a linha de primavera chegar.

 Katsuko olhou ao seu redor, pensativa. -

- É, os filhos da mãe. Devia ter chegado na semana passada, está atrasada.

Entrou na sala de estoque para ver o que havia ali. Agora estava sempre irritada. A dor se mostrava de modo diferente. Agora, der-se não era o suficiente; estava sendo preciso mais para ar as suas vozes interiores.

- Sabe, estive pensando.

Katsuko a seguira até a sala de estoque e a observava.

- E doeu? - Jessie ergueu os olhos, deu um sorriso constrangido, ­depois deu de ombros. - Desculpe. No que esteve pensando.

Agora parecia a antiga Jessie. Mas isso era raro.

- Sobre a linha do próximo outono. Você vai a Nova York por esses dias?

De quê? Cabo de vassoura?

- Ainda não sei.

- O que vamos usar como linha de inverno se não for?

Katsuko estava preocupada. Quase não havia dinheiro para uma linha, e ainda havia contas a pagar espalhadas por toda a mesa Jessie.

- Não sei, Kat. Vou ver.

Entrou no seu escritório e bateu a porta, a boca numa linha Zina e Kat trocaram um olhar. Zina atendeu o telefone, tocou. Era para Jessie, de uma loja de discos. Tocou avisando Jessie, e esperou que ela pegasse no aparelho. A luz no telefone Zina atenderá só se apagou dali a alguns momentos.

E no seu escritório, as mãos de Jessie tremiam enquanto brinca­va com um lápis sobre a mesa. Tinha sido outro daqueles telefonemas. Eles estavam certos de que fora um esquecimento, sem dúvida ela não se lembrara de mandar um cheque para a quantia que vencera... pelo menos esses tinham sido educados. Do consultório do médico tinham ligado ontem, ameaçando processá-la. Por causa de 50 dólares? Um médico iria processá-la por causa de 50 dólares... E um dentista por causa de 98... e ainda havia a conta da loja de bebidas pelo vinho de Ian, de 145... e devia 26 ao tintureiro e 33 à farmácia e a conta do telefone era 41... e I. Magnin... e o velho clube de ténis de Ian... e plantas novas para a loja e conta do electricista quando as luzes pifaram pelo Natal... e uma conta de bombeiro da casa... e assim por diante, interminavelmente, e o Volvo não existia mais, e a Lady J estava entrando pelo cano, e Ian estava na prisão e tudo só ficava pior, ao invés de melhorar. Havia quase uma satisfação na coisa, como num jogo de “vamos ver até onde as coisas podem ficar ruins”. E enquanto isso Astrid comprava suéteres dela a preço de custo, e pulseiras de ouro “divertidas” no Shreve’s, e ia ao cabeleireiro de três em três dias, a 25 dólares por vez. E agora tinha que pensar na linha de outono. Trezentos dólares de passagem de avião, e mais a conta do hotel, sem falar no custo do que teria que comprar. Aquilo a afundaria mais em dívidas, mas não tinha escolha. Sem uma linha de outono, era melhor fechar as portas da Lady J no Dia do Trabalho. Mas a coisa estava chegando a tal ponto que ela estava ficando com medo de entrar no banco para descontar um cheque. Estava sempre certa de que seria detida na saída e levada até o gerente. Durante quanto eles aguentariam os cheques a descoberto, os problemas, toda merda? E ela, por quanto tempo aguentaria?

Enquanto estava tentando calcular o custo da viagem a Nova York, o intercomunicador tocou avisando que havia uma ligação para ela. Pegou o telefone distraída, sem perguntar a Zina quem era.

- Oi, boneca, que tal jogar um pouco de ténis?

A voz era jovial, e já parecia de alguém suado.

- Quem é?

Desconfiou de uma ligação obscena, e já ia desligar quando homem do outro lado tomou um grande gole de alguma presumivelmente cerveja.

- Barry. E como tem passado?

- Barry o quê?

Recuava do telefone como se fosse uma cobra. Não conhecia essa pessoa.

- Barry York. Sabe, da Yorktowne Bonding.

- O quê?

Sentou-se erecta, como se alguém a tivesse esbofeteado.

- Falei...

- Sei o que falou. E está me ligando para jogarmos ténis?

- É. Você não joga?

Parecia surpreso, como um garotinho que foi severamente desa­pontado.

- Sr. York, estou entendendo direito? Quer jogar ténis co­migo?

- É. E daí?

Deu um arroto discreto ao telefone.

- Está bêbado?

- Claro que não. Você está?

- Não, não estou. E não compreendo por que ligou para mim.

A voz dele vinha directa do Circulo Árctico, via interurbano.

- Bem, você é uma mulher bonitona, eu ia jogar ténis, achei que talvez quisesse jogar. Mas, tudo bem. Se não curto o ténis, podemos ir jantar em algum lugar.

- Está maluco? Em nome de Deus, o que o faz pensar que tenho alguma vontade de jogar ténis, brincar de amarelinha, jantar, ou fazer qualquer outra coisa com o senhor?

- Ora, vejam só a zangadinha. Qual é, boneca. Para que ficar tão nervosa?

- Acontece que sou uma mulher casada.

Estava aos berros, e Zina e Kate podiam ouvir o seu tom d voz através da porta. Perguntavam-se quem teria telefonado. Kat ergueu uma sobrancelha, e Zina foi atender uma freguesa. Lá dentro, a conversa continuava.

- É, acontece que você é uma mulher casada. E acontece que o seu homem está com a bunda grudada numa cela de cadeia. O que é uma pena, mas deixa você aqui fora com o resto de nós, seres humanos, que gostamos de jogar ténis, brincar de amarelinha. jantar e trepar.

Agora sentia-se genuinamente nauseada. Estava se lembrando dos cabelos negros e grossos dele, do seu cheiro, e do anel feio com a pedra cor-de-rosa. Era incrível. Aquele homem, aquele porco re­pulsivo, aquele estranho completo estava ligando para ela e falando em trepar. Ficou ali sentada, pálida e trémula, com as lágrimas arden­do por trás das pálpebras, novamente. Era engraçado. Sabia que, de alguma forma, isso era engraçado. Mas não lhe dava vontade de rir. Dava-lhe vontade de chorar, de ir para casa, de... Isso fora o que Ian lhe deixara. Os Barry Yorks da vida, e gente ligando sobre cheques que ela tinha se “esquecido” de mandar, e que continuava a esquecer durante pelo menos seis ou sete ou nove ou dez semanas, e quem sabe anos. A tal ponto que sentia medo até de entrar no florista e comprar um buquet de margaridas, porque provavelmente também lhe devia dinheiro. Devia dinheiro a todo mundo. E agora aquele animal ao telefone queria dar uma trepada.

- Eu... Sr..... eu estou...

Lutou para expulsar as lágrimas da voz, e engoliu com força.

- Qual é, querida, as mulheres casadas em Pacific Heights não ficam com tesão, ou você já tem um namorado?

Jessica ficou olhando para o telefone, o queixo tremendo, a mão tremendo, as lágrimas escorrendo pelo rosto, e fazendo beicinho como se fosse uma criança cuja boneca preferida tivesse sido feita em pedaços. Finalmente, percebera tudo. Fora isso o que acontecera à sua vida. Sacudiu a cabeça devagar e desligou suavemente o tele­fone.

 

- Até logo mais, Ela pegou a bolsa e começou a sair da loja. Estavam no início de abril, numa bela manhã quente de sexta-feira. A primavera parecia estar em toda parte.

- Aonde você vai, Jessie?

Zina e Kat ergueram os olhos, surpresas.

- Ver o Ian. Tenho outras coisas para fazer amanhã, assim achei melhor ir hoje.

- Dê lembranças nossas.

Sorriu para as duas moças e saiu da loja quietamente. Andava muito quieta de novo, ultimamente. Estranhamente quieta. A irrita­bilidade parecia estar passando, desde o telefonema de Barry York, há três semanas. Não contara ao Ian. Mas a degradação transpare­cia no seu rosto.

York, Houghton, gente reclamando de contas a pagar, realmente não tinha importância. Era tudo culpa dela. Fizera aquilo consigo mesma. A grande Jessica Clarke. A toda-poderosa, oniscien­te, grande-pagadora Sra. Jessica Clarke e seu maravilhoso marido, Sr. Jessica Clarke. Enxergava tudo, agora. As noites sem dormir estavam começando a dar resultados. Não podia mais fugir a isso. Estava começando a pensar, a lembrar, a compreender. Es­tava tudo como se fosse velhas fitas tocadas na escuridão da noite. Não tinha mais nada para fazer, excepto lembrar... inciden­tes, momentos, trivialidades, vozes. Não mais a voz da mãe. Ou a do Jake. Mas a sua própria, e a de Ian.

- Fábulas, querido? Elas vendem?

Como se aquilo fosse a única coisa que importasse. Ele dera atropeladamente uma meia dúzia de motivos, explicações – como se as devesse a ela - e as fábulas tinham sido lindas. Mas isso não importava, ela as tinha matado no nascedouro. Com uma frase. “Elas vendem?” Quem ligava que vendessem? Fora provavelmente por este motivo que ele lhe comprara o Morgan com o adiantamento do seu editor. Era o meio mais alto que ele podia imaginar para responder.

E outras vezes.

- A ópera, benzinho? Por que a ópera? É tão caro.

- Mas nós gostamos. Você não gosta, Jessie? Pensei que gos­tava.

- Gosto, mas... ora, que diabo. Tiro do dinheiro das des­pesas da casa.

- Ah, é isso? - Fizera-se uma longa pausa. - Já comprei os ingressos, Jess. Com o “meu” dinheiro.

Mas, afinal de contas, ele resolvera não ir. Resolvera trabalhar, no último minuto. Não fora a uma ópera da temporada.

Momentos minúsculos, frases diminutas que rasgavam os corações como golpes de machadinha, deixando cicatrizes numa vida, num casamento, num homem. Por quê? Quando precisava tanto dele? Ou será que era isso? Que ela precisava dele e sabia que ele não precisava dela da mesma forma?

- Mas ele também precisava de mim.

A sua voz soava alto no isolamento do carro. Não podia per­mitir que Astrid lhe servisse de chofer três vezes por semana, tanto que agora alugava um carrinho para ir vê-lo. Outra despesa que mal podia pagar. Mas, enquanto ia guiando, ficava se questionando. Por que as farpas? Os pequenos cutucões, ao longo dos anos? Para cortar-lhe as asas para que não pudesse voar e ir embora? se ele tivesse ido embora, ela não teria sobrevivido. E a grande piada era que ele tinha voado e ido embora. Por uma tarde, e talvez mil tardes antes daquela, mas por uma tarde que lhes custara tudo. Ele precisara de uma mulher que não falasse certas coisas que o não humilhasse. Alguém que não precisasse dele, não o amasse, o magoasse.

Era uma loucura, na verdade. Fosse lá o que tivesse feito, ela o fizera por medo de perdê-lo. E agora, olhe só onde se encontravam. Estava tão entretida nos seus pensamentos que quase perdeu a entrada para o presídio, e ainda estava pensativa enquanto esperava que ele aparecesse à janela.

Mesmo depois da chegada do Ian, parecia estar mais concentrada no passado do que no presente. E ele também parecia perdido nos seus pensamentos. Ergueu os olhos para ele e tentou sorrir. Estava com uma dor de cabeça de rachar, e cansada. Ficava vendo o seu reflexo na vidraça que os separava. Aquilo fazia com que sentisse que estava falando consigo mesma.

- Não está muito tagarela hoje, Sr. Clarke. Algum problema?

- Não, só estava pensando no livro, acho. Estou chegando ao ponto em que é difícil me relacionar com qualquer outra coisa. Estou completamente envolvido com ele.

Notou um brilho estranho nos olhos dela quando terminou a frase, e começou a falar-lhe do livro. Ela deixou que falasse por alguns minutos, depois interrompeu.

- Sabe de uma coisa? Você é um espanto. Venho até aqui para saber como você está e dizer-lhe o que está acontecendo na minha vida. E você me fala do livro.

- E o que há de errado nisso? - Parecia intrigado, fitando-a do outro lado do vidro. - Você me fala da Lady J.

- Isso é diferente, Ian. Isso é real, pelo amor de Deus.

Estava com voz estridente, e aquilo o irritou.

- Bem, o livro é real para mim.

- Tão real que não pode nem tirar uma hora do seu precioso tempo para conversar comigo? Caramba, você está sentado ai feito um zumbi durante a última hora, falando do maldito livro. E cada vez que começo a falar de mim, você vai desaparecendo aos pou­cos.

- Isso não é verdade, Gessie. - Parecia nervoso, e pegou um cigarro. - O livro vai indo bem de verdade, e eu queria contar-lhe a respeito. Acho que nunca tive uma fase tão boa para escrever, é só isso. - Soube que tinha dito a coisa errada no momento em que as palavras saíram da sua boca. A expressão do rosto dela era incrível. - Jessie, mas que diabo há de errado com você? Está pa­recendo que alguém acaba de enfiar um ferro quente no seu tra­seiro.

- É, ou quem sabe esbofeteou a minha cara. Meu Deus, você fica sentado aí e me diz que está escrevendo brilhantemente, que nunca “teve uma fase tão boa para escrever”, como se estivesse aí tirando uma porra de umas férias. Sabe o que está acontecendo na minha vida?

Inspirou fundo e ele sentiu como se estivessem derramando veneno em cima dele, através do telefone. Ela perdera o controle, e não estava disposta a parar, agora.

- Quer saber mesmo o que está acontecendo comigo enquanto você está tendo “uma fase tão boa para escrever”? Bem, querido, vou lhe contar. Lady J está indo à falência, tem gente ligando noite dia para mim mandando que eu pague as nossas contas, e ameaçado me processar. O seu carro caiu de podre, meus nervos já eram, tenho pesadelos com o Inspector Houghton todas as noites, e o fia­dor telefonou me convidando para sair com ele, há três semanas. Achou que eu estava precisando de uma trepada. E pode ser que o filho da puta tenha razão, mas não com ele. Há não sei quantos meses nem toco na sua mão, e estou ficando louca de pedra. A mi­nha vida podre está indo para o brejo, e você está numa fase boa para escrever. E sabe o que mais é fantástico, querido? - O veneno pingava no ouvido dele, e as outras pessoas na sala observavam, enquanto ele ficava sentado ali, incrédulo. Ela não estava guardando segredos de ninguém. - O que é absolutamente maravilhoso, Ian, meu querido, é que vim guiando até aqui hoje culpando-me pela décima milésima vez por tudo que fiz de errado no nosso casamento, pelas pressões que exerci sobre você, pelas coisas nojentas que falei. Será que você se dá conta que, a esta altura, representei de novo cada merda de cena do nosso casamento, tudo o que fiz de errado para você ter vontade de ir para a cama com uma bosta como aquela Margaret Burton? Venho me culpando desde que aconteceu. Até mesmo me culpei por sustentar a sua carreira de escritor, achando que tinha roubado a sua virilidade. E enquanto estava me crucificando, sabe o que você está fazendo? Tendo a melhor fase de escritor da sua vida. Bem, sabe de uma coisa? Você me dá nojo. Enquanto fica sentado aqui nesta colónia para escritores glorificada que chamam de prisão, a minha vida inteira está aos pedaços, e você não está fazendo coisa nenhuma a respeito, meu bem. Nada. E vou lhe dizer mais uma coisa, estou cheia até dizer chega desse vidro nojento, de ter que me retorcer toda enxergar você, e não um reflexo de mim mesma. Estou cheia de ficar de mãos suadas e orelhas suadas e cérebro suado, só de estar com você neste maldito telefone... estou cheia até aqui de toda essa maldita situação!

Berrava tão alto que toda a sala agora estava prestando atenção, mas nenhum dos dois notou. Aquilo vinha se acumulando há meses.

- E suponho que você acha que curto isso aqui?

- É, acho que curte sim. Uma colónia para escritores gigolôs,

- É isso aí, benzinho. É isso o que aqui é. E só o que aqui é escrever. Nunca penso na minha mulher, ou em como vim parar aqui, ou por que, e naquela maldita mulher, ou no julgamento. Nunca tenho que me desviar à força de algum cara querendo me comer.

“Escute, moço, se acha que esta é a minha idéia de como viver, pode enfiá-la no rabo. Mas vou lhe dizer mais uma coisa. Se acha que o nosso casamento é a minha Idéia de como viver, enfiá-la no mesmo lugar. Pensei que tínhamos um casamento. Pensei que tínhamos alguma coisa. Bem adivinhe uma coisa, Sra. Clarke. Não tínhamos droga nenhuma. Nada. Nem filhos, nem sinceridade, e duas carreiras de merda. Duas pessoas de merda, na minha opinião actual. E você passou a maior parte dos últimos seis  anos tentando não crescer e bancando a aleijada, depois que perdeu os seus pais. Não apenas isso mas me fazendo sentir culpado, sabe lá Deus por que motivo, para eu ficar por perto segurando a sua mão. E fui burro o bastante para engolir tudo isso porque era burro o bastante para amá-la e queria ter a minha carreira de escritor, também. Bem, o resultado foi nojento, minha generosa senhora. E pode ficar com ele. Acontece que preciso de uma mulher, não do um banqueiro ou de uma criança neurótica. Talvez seja por isso que eu esteja feliz agora, acredite se quiser, embora este lugar seja uma bosta. Estou escrevendo, e você não está me sustentando. Que tal lhe parece, boneca? Você não está pagando as contas e eu não lhe devo coisa alguma excepto o facto de que você segurou a mi­nha mão durante cada centímetro do julgamento, e que foi mara­vilhosa. Mas vou lhe pagar todas as contas dessa época, algum dia. E se agora a sua idéia é me fazer sofrer o mínimo possível, me fazer sentir o mais culpado possível pelo quão fodida você está, o quanto as contas estão altas, e como o meu carro caiu aos pedaços rapidamente, então dane-se. Não posso fazer nada sobre coisa algu­ma, aqui dentro. Só o que posso fazer é ligar para você, ficar grato porque vem me ver, e terminar a porra do meu livro. E se você não curte vir me ver, faça-me um grande favor e não venha mais. Posso muito bem viver sem isso.

Jessica sentiu o aperto do pânico tão familiar no peito enquanto olhava para o rosto dele. Mas desta vez era pior. Nunca tinham dito coisas como essa um para o outro. E agora ela não podia parar. Ainda podia sentir a bile espumando na sua alma.

- Por que não quer que eu venha vê-lo, querido? Encontrou outro amor aí dentro? Será que é isso, anjo? Será que o grande machão arranjou outro machão para amar? - Ian se pós de pé e olhou para ela como se fosse bater nela, através da janela de vidro, a fascinação da multidão agora silenciosa, de ambos os lados da vidraça. - É isso, querido? Virou gay?

- Você me dá nojo.

- Ah, é verdade, esqueci. Você não gosta de “crimes infames contra a natureza”. Ou gosta? - Parecia intoleravelmente meiga enquanto erguia as sobrancelhas, e seu coração batia violentamente dentro do peito. - Quem sabe estuprou aquela mulher, no final das contas.

- Dona, se eu não estivesse aqui, enfiaria a mão na sua cara.

Agigantava-se acima dela, com o véu de vidro a separá-los, os ainda nas mãos, e vagarosamente Jessica ergue-se para enfrentá-lo. Sabia que o momento tinha chegado e não podia acreditar. Ainda não conseguia parar.

- Enfiar a mão na minha cara? - Agora as vozes deles es­tavam suaves. Ele falara com o tom de voz calculado de um ho­mem que está quase acabado, e ela falava com o sussurro prateado do uma víbora prestes a dar o último bote. - Enfiar a mão na minha cara? - Repetiu as palavras de novo, com um sorriso. - Mas, por que agora, querido? Nunca teve colhão para isso antes. Não é, amor?

Ele respondeu em menos do que um sussurro, e o coração dela quase parou quando viu a expressão dos seus olhos.

- Não, Jess, não tive. Mas agora não tenho nada a perder. Já perdi. E isso torna tudo mais fácil.

Deu um sorriso leve e estranho que a deixou gelada, olhou para ela pensativo por um breve momento, largou o fone e se afastou Não olhou para trás nem uma vez, e Jessica sentiu que ficava de boca aberta de espanto. O que ele acabara de dizer? Queria que ele voltasse para poder perguntar-lhe de novo para que... o que ele queria dizer com “isso torna tudo mais fácil”? O que... o filho da puta... ele a estava abandonando, não tinha o direito de fazer isso, não podia, ele... e o que ela tinha dito? O que tinha feito? Afundou-se na cadeira como se estivesse em estado de cho­que, e vagarosamente o ruído de vozes à sua volta retornou ao normal. Há muito que Ian desaparecera pela porta, não estava mais visível. Ela estivera errada. Ele tinha colhão. E tinha feito aquilo que ela mais temia. Ele a tinha abandonado.

 

O pára-choque dianteiro do carro alugado roçou as sebes frente da sua casa, quando dobrou na entrada para automóveis. Baixou a cabeça sobre o volante e sentiu perder o fôlego. Havia um soluço entalado ali, em algum canto, mas estava preso, não conseguia sair. O peso da sua cabeça fez disparar a buzina, e o som parecia estar estourando a tampa da sua cabeça. Estava gostoso. Não tirava a cabeça de cima do volante. Ficou ali até que homens que passavam entraram rapidamente na entrada para e a pé. Bateram na janela e ela virou a cabeça lentamente para o lado, olhou para eles e riu, uma risada alta e histérica. Os homens se entreolharam indagadoramente, abriram a porta do carro e colocaram o corpo de Jessie no banco, direitinho, com suavidade. Ela olhou para um e outro, riu histericamente de novo e então a risada transformou-se num soluço, que se arrancou da sua garganta e se tornou um lamento longo, triste, solitário. Sacudia a cabeça lentamente e dizia uma única palavra repetidas vezes, por entre os soluços:

- Ian.

- Moça, está bêbada?

O mais velho dos dois homens parecia agitado e pouco à vontade. Pensara que ela estava ferida, ou doente, com a cabeça em cima do volante, daquele jeito, e fazendo tal zorra com a buzina. Mas ela estava era bêbada, ou maluca, ou drogada. Não contara com isso. O homem mais moço olhou para ela, deu de ombros e abriu um sorriso.

Jessie sacudia a cabeça lentamente de um lado para o outro, e dizia a única palavra em que conseguia se concentrar:

- Ian.

- Irmã, está drogada? - Ela não respondeu e o homem mais moço deu de ombros de novo e riu. - Devo ser coisa da boa.

- Ian.

- Quem é Ian? Seu namorado?

Outra sacudidela cega da cabeça.

Os dois homens se entreolharam de novo e fecharam a porta do carro. Pelo menos a buzina não estava soando mais, e ela só ia ficar sóbria dali a horas. Foram se afastando, o mais moço divertido, o mais velho nem tanto.

-  Tem certeza de que está drogada? Para mim me pareceu meio confusa. Quero dizer, doente-confusa. Meio maluca.

- Piradona isso sim.

O mais moço riu, bateu na barriga e abraçou o amigo justo. Astrid ia passando de carro e percebeu que saíam da casa de Jessica, rindo e parecendo satisfeitos. Parou o carro e franziu a testa enquanto um arrepio de medo lhe corria pela espinha. Não pareciam ser da polícia, mas... notaram que ela os observava e o mais moço acenou, enquanto o mais velho sorria. Astrid não en­tendia o que estava acontecendo, mas eles entraram num sedã ver­melho e pareciam não ter pressa. Não havia nada de furtivo ou do nos seus movimentos, e então Astrid reparou em Jessie no seu carro alugado. Tudo estava bem. Astrid buzinou. Mas Jessie se virou. Buzinou de novo, e mais uma vez, e os dois homens desataram a rir, ruidosamente.

- Não, você também, irmã! A mulher naquele carro está tão pirada que tivemos que arrancá-la de cima do volante só para fazer com que largasse a buzina.

Fizeram um gesto vago na direcção da entrada para carros da casa de Jessie, deram partida no seu carro e se arrancaram da vaga enquanto Astrid saltava do veículo e subia correndo a entrada para carros.

Jessie ainda estava sentada lá, chorando e soluçando e mantendo a sua única palavra na boca: “Ian”. Astrid não estava tão certa que estivesse drogada. Um pouco talvez, mas não tanto quanto parecia. Em estado de choque, talvez. Alguma coisa se rompera.

- Jessica? - Envolveu-a com o braço e falou suavemente en­quanto Jessie se largava ligeiramente para a frente. - Oi Jessie, sou eu, Astrid. - Jessica olhou para ela e balançou a cabeça. Os dois homens já tinham ido embora. Todos tinham ido embora. Até mesmo o Ian.

- Ian - falou, com mais clareza, agora.

- O que há com o Ian?

- Ian.

Astrid enxugou o seu rosto suavemente com um lenço.

- Fale-me do Ian. - O coração de Astrid batia forte e ela estava tentando manter a mente desanuviada e observar os olhos de Jessica. Não achava que fosse uma dose excessiva de pílulas. O mais provável era uma dose excessiva de problemas. Jessie fi­nalmente chegara ao seu limite.

- E quanto ao Ian, amor? Me conte. Ele estava doente, hoje? - Jessica sacudiu a cabeça. Pelo menos ele não estava ferido. Astrid pensara nisso a princípio, com as histórias de horrores nas pri­sões publicadas nos jornais correndo instantaneamente pela sua cabeça. Mas Jessica fizera sinal de que não. - Algum problema?

Jessica inspirou fundo e fez que sim com a cabeça. Inspirou fundo de novo e se recostou um pouco no banco.

- Nós... tivemos... uma briga.

As palavras mal eram inteligíveis, mas Astrid assentiu com a cabeça.

- Por causa de quê?

Jessica deu de ombros, parecendo confusa de novo.

- Ian.

- Por causa do que vocês brigaram?

- Eu... não... sei.

- Lembra-se?

Jessica deu de ombros de novo, e fechou os olhos.

- Por causa de tudo... acho. Ambos... dissemos... coisas terríveis. Acabou.

- O que acabou?

Mas achava que sabia.

- Acabou. Acabou mesmo.

- O que acabou mesmo, Jessie?

A voz dela era tão meiga, e as lágrimas escorriam pelo de Jessica com força redobrada.

- O nosso casamento... acabou... mesmo. - Sacudiu a cabeça, mudamente, depois fechou os olhos de novo. - Ian. .

- Não acabou tudo, Jessie. Vamos, fique calma. Vocês provavelmente tinham muita coisa para botar para fora. Enfrentaram problemas muito desgastantes, ultimamente. Muitos choques. Tinha que vir para fora.

- Não, acabou. Eu... fui tão horrível com ele. Sempre... fui horrível com ele. Eu...

Mas então não pode falar mais.

- Por que não entramos e você se deita um pouquinho? - Jessica sacudiu a cabeça e não se mexeu, e Astrid lutou para cha­mar a sua atenção. - Jessie, me escute por um minuto. Quero levá-la a um lugar. - Os olhos da moça se arregalaram de terror.

- Um lugar muito agradável, você vai gostar. Iremos juntas.

- Um hospital?

Astrid sorriu pela primeira vez em cinco minutos.

- Não, boba. A fazenda da minha mãe. Acho que lhe faria bem, e...

Jessica sacudiu a cabeça, teimosamente.

- Não... eu...

- O quê? Por que não?

- Ian.

- Bobagem. Vou levá-la até lá, e você vai ter um belo des­canso. Acho que você já aguentou o que pode, por enquanto. Não acha? - Jessica sacudiu a cabeça, calada, de olhos fechados de novo. - Jessie, tomou muitas pílulas hoje? - Ela começou a sa­cudir a cabeça, depois parou e deu de ombros. - Quantas? Con­te-me.

- Não sei... não tenho certeza.

- Me dê uma idéia aproximada. Duas? Quatro? Seis? Dez?

Rezou para que não fossem tantas.

- Oito... não sei... sete... nove...

Jesus.

- Estão na sua bolsa? - Jessica fez que sim. E Astrid pegou suavemente a bolsa de cima do banco. - Vou tirá-las, Jessie, está bem?

Jessica sorriu, então, pela primeira vez, e inspirou fundo. Qua­se parecia a velha Jessie de novo.

- Tenho... opção?

As duas mulheres riram uma tonta, a outra nervosamente, e Jessica deixou que a amiga a ajudasse a entrar. Estava menos drogada ­do que esgotada. Deixou-se deslizar lentamente para uma ca­deira na sala de visitas e nem se mexeu enquanto escutava os ruídos de Astrid movendo-se activamente no quarto e no banheiro. Ia ser tão bom se afastar de tudo aquilo, até mesmo da visão de Ian por trás da janela de vidro. Soube então que jamais o veria ali de novo. Resolveria o resto depois, mas isso ela já sabia. Soltou um profundo suspiro e pegou no sono na cadeira até que Astrid a acordou e a levou até o Jaguar.

As suas malas tinham sido arrumadas, a casa estava trancada, e Jessie sentia-se como se fosse uma criancinha de novo, bem-cuida­da e muito amada.

- E quanto ao carro? - perguntou.

- O que você alugou? - Ainda estava parado, todo torto, na entrada. Jessica fez que sim. - Mandarei alguém vir buscá-lo mais tarde. Não se preocupe. - Jessica não se preocupava. Era parte da felicidade de se ter dinheiro. Ter “alguém que viesse bus­cá-lo mais tarde”. Rostos e mãos anónimos para fazer esse tipo de serviço. - E telefonei para as moças na loja e falei que você ia viajar comigo. Pode ligar para elas amanhã e dar-lhes instruções.

- Quem vai... quem ..... sabe, gerir a loja?

Tudo ainda estava misturado na cabeça de Jessica, e Astrid sorriu e deu uma palmadinha suave na sua face.

- Eu vou. E mal posso esperar. Que barato, férias para você e um emprego para mim.

Jessica sorriu, e pareceu mais normal de novo.

- E a linha de outono?

Astrid ergueu uma sobrancelha, surpresa, enquanto dava par­tida no carro.

- Você deve estar melhorando. Mandarei Katsuko, com a sua permissão. Cuidarei da parte financeira, e você me pagará depois.

Jessica sacudiu a cabeça e voltou a olhar para a amiga. A ligeira soneca a deixara mais sóbria.

- Não posso pagar-lhe depois, Astrid. A Lady J está lutando apenas para sobreviver. Este é um dos motivos pelos quais ninguém ainda foi para Nova York.

- A Lady J aceitaria um empréstimo meu?

Jessica sorriu.

- Não sei, mas a mãe dela talvez. Posso pensar no assunto?

- Claro. Depois que Katsuko voltar. Tenho novidades para você. Não lhe é permitido tomar decisões durante as próximas duas semanas. Nenhuma. Nem mesmo o que vai comer no café da manhã. Faz parte das regras básicas dessas suas férias. Adiantarei o dinheiro para a linha de outono, e acertaremos tudo mais tarde. Estou precisando de um meio de desvalorização fiscal, de qualquer maneira.

- Eu... mas...

- Cale a boca.

- Sabe de uma coisa? - Jessie olhou para ela com um pequeno sorriso e olhos cansados e inchados. - Vou aceitar. Preciso da linha de Outono ou a loja vai fechar, de qualquer forma. Que diabo, Katsuko ficou feliz em ir?

- O que você acha? - As duas mulheres sorriram de novo e Astrid parou o carro diante da própria casa. - Você consegue subir as escadas? - Jessica fez que sim, e seguiu Astrid lentamente para dentro de casa. - Preciso só de umas coisinhas, vou apenas passar a noite lá. Quero estar trabalhando amanhã.

Resplandecia com as palavras. E 15 minutos mais tarde es­tavam de volta no carro, dirigindo-se para a auto-estrada. Jessie ainda sentia como se uma bomba tivesse atingido a sua vida, agora tudo estava se movendo depressa demais.

As palavras trocadas com Ian voltaram à sua mente enquanto rodavam em silêncio. Tinha fechado os olhos e Astrid pensava que estava dormindo. Mas estava bem desperta. Desperta demais. E mais do que estivera em muito tempo. Precisava de outra pí­lula, e Astrid jogara todas no vaso e dera a descarga, na casa. Todas elas. As vermelhas, as azuis, as amarelas, as pretas e verdes. Não sobrara nada. Excepto o seu próprio coração, batendo com as palavras de Ian... e o seu rosto... e... por que tinham feito aquilo um com o outro? Por que o veneno, o ódio, a raiva? Não fazia sentido para ela. Nada fazia. Quem sabe sempre se tinham dado. Quem sabe até os bons tempos tinham sido uma mentira. Era tão difícil destrinçar tudo isso, agora. E era tarde demais, de qualquer forma. Procurara as respostas era como procurar o dedal de prata da sua avó nos destroços da sua casa, depois que ela fora incendiada. Juntos, ela e Ian tinham tocado fogo no seu casamento, e dos lados opostos de uma vidraça tinham-no visto queimar, atiçando as chamas, recusando-se a partir até que a última viga tivesse desaparecido.

 

Astrid tocou-lhe o ombro de novo e ela acordou, assustada e confusa quanto a onde estava, O efeito das pílulas agora tinha passado de verdade e ela se sentia irritada.

- Calma, Jessie, você está na fazenda. É quase meia-noite tudo está bem.

Jessica se espreguiçou e olhou ao seu redor. Estava escura mas as estrelas brilhavam lá em cima. O ar tinha um cheiro fresco e ela podia ouvir o relincho de cavalos a distância. E bem à sua direita ficava uma grande casa de pedra com persianas amarelas-vivas. A casa estava bem iluminada e havia uma porta aberta,

Astrid tinha entrado por um momento para falar com a mãe antes de acordar Jessie. A mãe não ficou chocada, ou sequer surpresa. Já tinha enfrentado crises antes, com Astrid, com amigos, com a família, anos atrás. as coisas aconteciam às pessoas, elas ficavam abaladas por algum tempo, mas a maioria sobrevivia, algumas não, mas a maioria sim, E a fazenda era um bom lugar para se recuperar.

- Vamos, dorminhoca, minha mãe está com chocolate quente e sanduíches à nossa espera, e não sei quanto a você, mas eu estou morta de fome.

Astrid estava parada junto ao carro aberto, e Jessica penteou o cabelo com um sorriso pesaroso.

- Ela tem pílulas?

- Não. - Astrid olhou perscrutadoramente para Jessie. - Está ruim?

Jessica fez que sim, depois deu de ombros.

- Mas não vou morrer. Chocolate quente, hein? Como se compara ao Seconal?

Astrid fez uma careta para ela, e depois tirou a mala dela mala do carro.

- Passei pela mesma coisa depois da morte do Tom. Cheguei aqui e a minha mãe jogou tudo fora. Todas as pílulas. E eu reagi com muito menos bom humor do que você, hoje à tarde.

- Eu estava drogada demais para reagir. Você teve sorte. E deixe que eu carregue isso. - Estendeu a mão para a mala e Astrid deixou que ficasse com ela. - O Ian sempre diz que uma amazona como eu...

E então ela parou e a sua voz foi sumindo. Astrid observou-lhe a cabeça baixa enquanto ela caminhava quietamente até a casa. Estava contente por tê-la trazido, e apenas lamentava não tê-lo feito antes. Perguntava-se qual o grau de seriedade da briga com Ian. Algo lhe dizia que era para valer, mas era impossível saber ao certo.

Os sapatos delas faziam barulho no caminho de cascalho que levava à casa, e o cheiro de grama fresca e de flores estava por toda parte. Jessie notou que o lugar parecia alegre, mesmo no escuro. Flores multicoloridas cercavam todo o prédio de pedra, e reuniam em grande profusão junto à porta. Sorriu enquanto passava por elas e subia o único degrau.

- Cuidado com a cabeça! - avisou Astrid quando Jessie bateu com ela na porta, e as duas mulheres chegaram lado a lado no hall de entrada. Lá havia um pequeno piano, pintado de vermelho-vivo, um espelho comprido, várias escarradeiras de bronze, e uma parede de chapéus exóticos e coloridos. Logo além do hall ficavam pisos de pinho e tapetes feitos à mão, sofás confor­táveis e uma cadeira de balanço junto ao fogo. Havia quadros a óleo aconchegantes e uma longa parede de livros. Era uma estranha­ combinação de moderno bom, vitoriano encantador, simplesmente confortável e agradavelmente antigo, mas funcionava. Plantas e uma antiga vitrola pintada de vermelho, como o piano, alguns livros em primeira edição, o um belíssimo sofá moderno forrado de cor clara. Cortinas de ronda pendiam das janelas, e num canto ficava um grande fogão de azulejos. A sala parecia feliz e cálida, com um surpreendente elemento chique.

- Boa noite. - Jessica virou-se ao som da voz e viu uma mulher minúscula de pé à porta da cozinha. tinha os mesmos ca­belos louro-acinzentados da filha, e olhos muito azuis que brilha­vam e riam. As simples palavras “boa noite” pareciam diverti-la. lentamente para Jessica e estendeu a mão. - Que óptimo tê-la aqui, minha querida. Imagino que Astrid já lhe avisou que sou uma velha rabugenta e que a fazenda é uma chatura. Mas estou encantada que tenha vindo.

A luz nos seus olhos dançava feito chama.

- Não a avisei de nada disso, mamãe. Teci os maiores elogios ao lugar, portanto é melhor você se comportar bem.

- Santo Deus, que horror. Agora vou ter que guardar todos os meus livros pornográficos e cancelar a vinda dos rapazes, é? Que tristeza.

Apertou as mãos juntas, como se estivesse grandemente perturbada, e depois explodiu numa risada juvenil. Fez um gesto con­fortável na direcção do sofá e as duas mulheres foram se sentar junto com ela ao pé do fogo. O chocolate quente prometido estava esperando numa baixela de porcelana de Limoges, com padrão da flores delicadas.

- Que bonito, mamãe. É novo?

Astrid serviu-se de uma xícara de chocolate quente e olhou para a porcelana.

- Não, querida, é muito velho ... 1880, creio eu.

As duas mulheres trocaram um olhar divertido. Dava-se facilmente para ver que não eram apenas mãe e filha, mas também amigas. Jessica sentiu uma pontada de inveja enquanto olhava para elas, mas também o brilho do calor reflectido.

- Quero dizer, é novo para você?

Astrid tomou um gole de chocolate quente.

- Ah, foi isso que quis dizer! É, para falar a verdade, é sim.

- Danadinha, e você sabia que eu ia notar e usou-o hoje para se mostrar.

Mas parecia satisfeita com o elogio implícito, e a mãe achou graça

- Tem toda razão! Bonito, não é?

- Muito.

Os olhos das duas mulheres dançavam felizes, e Jessica observando a cena. Ficou surpresa com a aparência jovem da mãe de Astrid. E com a elegância que a acompanhara a despeito da passagem dos anos e da vida no rancho. Usava calças de gabardine cinza muito bem talhadas e uma bela blusa de seda que Jessie sabia devia ter vindo de Paris. Era em tons de azul que a favoreciam, realçando a cor dos seus olhos. Usava-a com pérolas e vários anéis de ouro grandes e elegantes, um deles com um brilhante razoavelmente grande. Ela parecia mais de Nova York Connecticut do que uma fazendeira. Jessie quase nu alto lembrando-se da imagem que Astrid pintara da mãe há meses, em trajes de vaqueiro. Não era nada disso que Jessica estava vendo.

- Chegou na hora certa, Jessica. A zona rural é tão fértil e linda nessa época do ano. Macia e verde e quase peluda. Comprei a fazenda nessa época do ano, e foi provavelmente por esse motivo que entreguei os pontos. A terra é tão sedutora na primavera.

Jessica riu.

- Eu não planejei exactamente que fosse assim, Sra. Williams. - Mas meu marido foi para a prisão e eu fiquei viciada em com­primidos para dormir e tranquilizantes e sabe, me esforcei muito para ter um esgotamento nervoso e tivemos essa briga horrível hoje de manhã e... riu de novo e sacudiu a cabeça. - Não planejei mesmo. E a senhora foi muito gentil em me receber assim sem aviso prévio.

- Não é problema. - Ela sorriu, mas seus olhos não per­diam nada. Notou que Jessica não estava comendo nada, e apenas sorvia o chocolate quente. Já estava fumando o segundo cigarro, nos poucos momentos desde a chegada das duas mulheres. Des­confiava de que Jessica tinha adquirido o mesmo problema que Astrid tivera depois da morte de Tom. Pílulas. - Sinta-se como estivesse em casa, minha querida, e fique o tempo que quiser.

- Posso ficar para sempre.

- Claro que não. Vai ficar chateada numa semana.

Os olhos da senhora idosa brilharam maliciosos de novo, e Astrid riu.

- Você não fica chateada aqui, mamãe.

- Ah, fico, sim, mas então vou para Paris ou Nova York Los Angeles, ou vou visitá-la naquele seu mausoléu pavoroso...

- Mamãe!

- É um mausoléu, e você sabe disso. Um mausoléu muito bonito, mas apesar disso... sabe o que penso. Disse-lhe no ano passado que achava que devia vendê-lo e comprar uma casa nova. Uma coisa menor e mais nova e mais alegre. Nem eu sou velha o bastante para morar lá. Disse isso ao Tom quando ele estava e não sei por que não posso dizer a você, agora.

- A Jessica tem o tipo de casa que você iria adorar.

- É? Uma choça de grama no Taiti, sem dúvida.

As três mulheres riram e Jessica fez uma tentativa de comer um sanduíche. O estômago dela estava dando cambalhotas, mas esperava que, se comesse alguma coisa, as mãos parassem de tremer. Suspeitava que dois dias bastante difíceis a esperavam, mas menos a companhia seria boa. Já estava apaixonada pela mãe sem papas na língua de Astrid.

- Ela mora naquela maravilhosa casa azul e branca a uma quadra da minha. Aquela cheia de flores na frente. 

- Lembro-me dela, mais ou menos. Bonita, mas um pouco a, não é?

Muito - disse Jessica, por entre mordidas. O sanduíche era de requeijão e presunto com agrião fresco e fatias finíssimas de tomate.

- Eu mesma não suporto mais a cidade. Excepto por uma visita. Mas, depois de algum tempo, fico feliz de voltar para casa. As sinfonias me entediam, as pessoas se vestem com exagero, os restaurantes são medíocres, o tráfego é assustador. Aqui, eu ando a cavalo de manhã, caminho no bosque, e a vida parece uma aven­tura a cada dia. Estou velha demais para a cidade. Você anda a cavalo?

O jeito dela era tão vivaz que era difícil acreditar que tinha mais de 55 anos. Jessica sabia que, na realidade, tinha 72. Sorriu à pergunta.

- Há anos que não monto, mas gostaria.

- Então, pode. Faça o que quiser, quando quiser. Faço o café às sete, mas você não precisa se levantar. O almoço é uma proposta free-lance, e o jantar é às oito. Não gosto dos horários da roça. É embaraçoso jantar às cinco ou seis horas. E só sinto fome mais tarde, mesmo. E a propósito, a minha filha me apresentou como Sra. Williams, mas meu nome é Bethanie. Eu o prefiro.

Ela era uma pimentinha, mas os olhos azuis eram meigos, e a boca parecia sempre prestes a rir.

- É um belo nome.

- Serve. E agora, senhoras, dou-lhes boa-noite. Quero cavalgar amanhã cedinho.

Deu um sorriso caloroso para a hóspede, beijou a filha no topo da cabeça e subiu animada as escadas que levavam ao quarto, tendo assegurado a Jessie que Astrid a deixaria escolher o seu quarto. Havia três para escolher, e estavam prontos para receber hóspedes. Astrid explicou que as pessoas vinham visitar Bethanie com frequência. Era rara a semana em que ninguém ficava na fazenda. Amigos da Europa a incluíam nos seus itinerários elabora outros amigos vinham de Nova York até a Costa Oeste, depois alugavam carros para vir vê-la, e ela tinha alguns amigos em Los Angeles. E Astrid, é claro.

- Astrid, isso é simplesmente fabuloso. - Jessica ainda estava um pouco atordoada com aquilo tudo. A casa, a mãe, a hospitalidade, a sinceridade de tudo, o carinho apimentado da anfitriã. - E a sua mãe é notável.

Astrid sorriu, satisfeita.

- Acho que o Tom se casou comigo só para não perder contacto com ela. Ele a adorava, e ela a ele.

Astrid sorriu de novo, satisfeita com a expressão do rosto de Jessie.

- Dá para se ver por que ele a adorava. Ian ia ficar completamente apaixonado por ela.

O tom de voz dela mudou enquanto falava, e pareceu divagar. Só dali a um momento a sua atenção retornou a Astrid.

- Acho que vai lhe fazer bem ficar aqui, Jessie.

Jessica concordou lentamente.

- Parece bobagem, mas já me sinto melhor. Um pouco trémula - estendeu a mão para mostrar os dedos trémulos, e abriu um sorriso encabulado - mas melhor, mesmo assim. É um alívio tão grande não ter que passar outra noite sozinha naquela casa. Sabe, é uma loucura. Sou uma mulher adulta. Não sei por que me afecta tanto, mas é horrível, Astrid. Quase chego a torcer para que o maldito lugar se incendeie enquanto eu estiver fora.

- Não diga isso.

- Falo a sério. Acabei por detestar aquela casa. Fui tão feliz lá, e agora acho que a odeio o dobro do que fui feliz. E o estú­dio... é como um lembrete de todas as minhas piores falhas.

- Você acha honestamente que fracassou, Jessica?

Jessica balançou a cabeça lenta mas firmemente.

- Sozinha?

- Quase.

- Espero que você venha a se dar conta do absurdo disso.

- Sabe o que dói mais? O facto de que eu pensava que tínhamos um casamento fantástico, O melhor. E agora... tudo pa­rece tão diferente. Ele engolia os seus ressentimentos. Eu fazia as coisas à minha moda. Ele me chifrava e não me contava; eu adivinha­va, mas não queria saber. Está tudo tão confuso. Vou precisar de tempo para esclarecer tudo.

- Pode ficar aqui o tempo que quiser. Mamãe nunca vai se cansar de você.

- Pode ser que não, mas não gostaria de abusar da hospitalidade. Acho que, se ficar uma semana, terei não apenas como serei eternamente grata.

Astrid apenas sorriu enquanto tomava o seu chocolate quente. As pessoas costumavam dizer que iam ficar alguns dias ou uma semana, e cinco semanas mais tarde ainda estavam lá. Bethanie não se importava, contanto que não a atrapalhassem. Ela tinha seus próprios programas, seus amigos, sua jardinagem, seus livros, seus projectos. Gostava de seguir o seu caminho, e deixar que os outros fizessem o mesmo, o que era parte do seu charme e grande su­cesso como anfitriã. Era excessivamente independente e tinha um respeito muito grande pelo isolamento das pessoas, inclusive o seu. Astrid mostrou a Jessica os quartos que podia escolher, e ela se decidiu por um quarto cor-de-rosa pequeno e aconchegante com um edredon antiquado na cama e panelas de cobre penduradas so­bre a lareira. Tinha um tecto alto e inclinado, alto o bastante para ela não bater com a cabeça quando saísse da cama. Havia uma linda janela panorâmica com assento no vão interno, e uma cadeira de balanço ao pé da lareira. Jessie soltou um profundo suspiro e sentou na cama.

- Sabe, Astrid, pode ser que eu nunca vá para casa.

Isso foi dito entre um sorriso e um bocejo.

- Boa noite, gatinha. Trate de dormir. Vejo você na hora do café.

Jessica balançou a cabeça e bocejou de novo. Deu um aceno enquanto Astrid fechava a porta, depois disse um último e sonolento obrigado.

Teria que escrever ao Ian pela manhã, para dizer-lhe onde estava. Para lhe dizer alguma coisa. Mas ia se preocupar com isso amanhã. No momento, estava a um mundo e meio afastada dos seus problemas. A boutique, Ian, contas, aquela insuportável nela em Vacaville. Nada daquilo era mais real. Agora estava em casa. Era assim que se sentia, e sorriu à idéia enquanto acendia o fogo e punha uma acha na lareira, antes de enfiar a camisola. minutos mais tarde, estava dormindo. Pela primeira vez em quatro meses, sem comprimidos.

 

Bateram à porta do quarto de Jessie minutos após ela ter fechado os olhos. Mas, quando os abriu, a luz do sol entrava por entre as cortinas de organdi branco, e um gato malhado e gordo bocejava sonolento numa nesga de sol na sua cama. O relógio dava dez e quinze.

- Jessie? Está acordada?

Astrid enfiou a cabeça pela porta. Estava carregando uma Imensa bandeja de vime branco cheia de guloseimas.

- Ah, não! Café na cama! Astrid, você vai me estragar sempre!

As duas mulheres riram e Jessie sentou-se na cama, o cabelo louro caindo pelos ombros num tumulto de cachos soltos. Parecia uma garotinha, e surpreendentemente descansada, agora.

- Está com uma cara tremendamente saudável esta madame.

- E morta de fome. Dormi feito uma pedra. Uau! - Deparou com waffles, bacon, dois ovos fritos e uma caneca de café, tudo servido em porcelana delicadamente florida. Havia um vaso no canto da bandeja, com uma única rosa amarela. – Sinto como se fosse o meu aniversário, ou qualquer coisa assim.

- Eu também! Mal posso esperar para chegar na loja! - Astrid soltou uma risadinha e sentou na cadeira de balanço enquanto Jessie atacava o desjejum. - Devia ter deixado você dormir mais um pouquinho, mas queria voltar para a cidade. E mamãe decidiu que você precisava de café na cama no primeiro dia.

- Estou encabulada. Mas não encabulada demais para comer tudo isso. - Soltou uma risadinha abafada e mergulhou no waffles. - Estou morrendo de fome.

- E devia estar. Não jantou, ontem.

- O que a sua mãe está fazendo, agora de manhã?

- Sabe lá Deus. Saiu para andar a cavalo às Oito, voltou para trocar de roupa e saiu de carro há alguns minutos. Ela segue o seu caminho, e não dá chance para a gente fazer perguntas.

Jessica sorriu e se recostou na cama, com a boca cheia de waffles.

- Sabe, eu devia estar me sentindo culpada, como o diabo, sentada aqui com o Ian onde está, mas, pela primeira vez em cinco meses, não me sinto assim. Só me sinto bem. Fabulosa, a propó­sito. - E aliviada. Era um alívio tão grande não ter que fazer na­da. Não ter que estar na loja, ou indo visitar Ian, ou abrindo conta­s, ou atendendo telefonemas. Estava em outro mundo, agora. Es­tava livre. - Sinto-me tão legal, Astrid.

Sorriu, espreguiçou-se e bocejou, com um esplêndido café da manhã no bucho e o sol iluminando-lhe a cama.

- Então, aproveite. Precisava de alguma coisa desse tipo. Quis trazê-la aqui pelo Natal, lembra-se?

Jessica assentiu, pesarosa, lembrando-se do que tinha feito, em vez de vir. Tinha apagado o Natal com um punhado de pílulas.

- Se eu tivesse sabido.

Ela acariciou o gato malhado e ele lhe lambeu os dedos, en­quanto Astrid ficava sentada na cadeira de balanço, balançando-se suavemente e observando a amiga. Uma boa noite de sono, e já estava com  outra cara. Mas ainda tinha muito a resolver. Não in­vejava a Jessica a tarefa que a esperava.

- Por que não fica aqui por uns dois dias, Astrid?

Astrid soltou um brado e sacudiu a cabeça.

- E perder toda a diversão de dirigir a boutique? Está maluca. Não poderia me segurar aqui nem que me amarrasse a um poste. Há anos que não sei o que é me divertir assim!

- Astrid, você é pinel, mas eu a amo. Se não fosse por você, não poderia estar sentada aqui feito uma dondoca. Portanto, vá divertir-se com a Lady J. É toda sua! - E então, Jessie ficou melancólica. - Quase me dá vontade de não ter que voltar.

- Quer me vender a Lady J?

Alguma coisa na voz de Astrid fez Jessica erguer os olhos.

- Está falando a sério?

- Muito. Quem sabe até mesmo uma sociedade, se você não quiser vender integralmente. Mas tenho pensado muito nisso. Só não sabia como abordar o assunto com você.

- Como o fez agora. Mas eu nunca tinha pensado nisso. Po­dia ser uma idéia. Deixe-me cozinhá-la em banho-maria. E veja o quanto se diverte enquanto estou ausente. Talvez odeie o lugar até o final da semana.

Mas Astrid podia notar pelo som da voz dela que Jessica não tinha a menor intenção de desistir da Lady J. Ainda havia aquele orgulho de posse na sua voz. A Lady J era dela, não importa o quanto estivesse cheia dela no momento.

- A propósito, falava a sério quando disse que ia mandar Katsuko para Nova York?

Jessie ainda estava atordoada com tudo que tinha acontecido em apenas 24 horas.

- Sim. Disse a ela que fizesse planos para viajar amanhã. Assim, você pode lhe dar as instruções que desejar. Podemos acertar a parte financeira mais tarde. Muito mais tarde. Portanto, não acrescento isso à sua pilha de preocupações. E quanto à linha de outono? Idéias, ordens, pedidos, advertências, ou lá o que for?

- Nenhum. Confio nela implicitamente. Tem melhor senso para compras do que eu, e está no mercado varejista há tempo suficiente para saber o que está fazendo. Depois da temporada que tivemos, não tenho certeza de ter condições de fazer as compras para a loja, de qualquer forma.

- Todo mundo pode ter uma temporada ruim.

- É. Em todos os sentidos.

Jessie sorriu e Astrid olhou para a amiga com carinho no olhar.

- Bem, é melhor eu ir levantando a bunda da cadeira. Tenho uma longa viagem à minha frente. Algum recado para o pessoal?

- Sim, um. - Jessica sorriu, depois jogou a cabeça para trás e riu. – Adeus.

- Palhaça. Aproveite bem aqui. Este lugar já me consertou, uma vez.

- E você me parece muito bem. - Jessie saltou lentamente da cama, espreguiçou-se de novo e deu um último abraço em Astrid. - Faça uma boa viagem e dê lembranças minhas às garotas.

Ficou vendo enquanto ela se afastava, e acenou da janela do quarto. Jessie agora estava sozinha em casa, exceptuando o gato, desfilava lentamente pelo assento do vão da janela. Havia ruídos rurais vindos do lado de fora, e um silêncio delicioso à sua volta, na casa arejada e ensolarada. Ela desceu descalça o longo corredor do andar superior, espiando para dentro dos quartos, abrindo livros, fazendo piruetas aqui e ali, olhando para os quadros, correndo atrás do gato, e depois desceu para fazer a mesma coisa. Estava livre! Livre! Pela primeira vez em sete anos, dez anos, 50 anos, sempre, estava livre. De fardos, responsabilidades e terrores. Na véspera ti­nha chegado ao fundo do poço. O último esteio do seu alicerce de­teriorado tinha desabado, ruidosamente... e ela não caíra junto com ele. Astrid a sustentara, e a levara embora.

Mas a melhor parte de tudo era que ela não tinha tido um co­lapso. Lembrar-se-ia o resto da vida daquele momento em que dois estranhos a tinham retirado de cima do volante, quando ela estava apertando a buzina. Tinha resolvido se deixar enlouquecer, então, deslizar simplesmente para um lago de esquecimento, para jamais re­tornar à terra dos feios e moribundos e maus, a terra dos “vivos”. Mas não enlouquecera. Sofrera. Mais do que jamais sofrera na vida. Mas não enlouquecera. E cá estava ela, andando descalça por uma encantadora casa na roça, de camisola, com a barriga forrada por um imenso café da manhã, e um sorriso no rosto.

E a coisa mais espantosa era que não precisava de Ian. Sem ele, o tecto não tinha desabado. Era uma nova idéia para Jessie, e não sabia direito o que fazer com ela. Aquilo mudava tudo.

 

Foi no fim da tarde do seu primeiro dia na estância que Jessica re­solveu sentar-se e escrever ao Ian. Queria que ele soubesse onde es­tava. Ainda sentia que tinha que dar explicações. Mas era difícil explicar-lhe por que estava ali. Tendo mantido uma fachada por tanto tempo, era difícil contar-lhe exactamente em que condições se encontrava, por trás dela. Tinha estourado na véspera, mas agora precisava sentar-se e contar-lhe serenamente. Isso transformava todo “tudo bem” que sempre lhe dissera numa mentira. E a maioria de­les tinha mesmo sido mentira. Não estivera disposta a admitir para si mesma quão longe estava de sentir-se bem, e agora tinha que fazer as duas coisas... admiti-lo para si mesma e para ele. Não ti­nha mais acusações a jogar em cima dele, mas também não tinha explicações que quisesse dar.

As palavras não vinham com facilidade. O que se podia dizer? Eu o amo, querido, mas também o odeio... sempre tive medo de perdê-lo, mas agora já não tenho tanta certeza... se mande... sor­riu à idéia, mas depois tentou ficar séria. Por onde começar? E havia perguntas. Tantas perguntas. De repente teve vontade de saber quantas outras mulheres houvera. E por quê. Porque era inadequada, ou porque ele era esfomeado, ou porque ele precisava provar coisas, ou... por quê? Os pais dela nunca se tinham feito perguntas, mas estavam errados, ou pelo menos errados para ela. Tinha o exemplo deles, mas agora queria respostas, ou achava que queria. Mas reconhecia a possibilidade de que as respostas que fossem as suas próprias. Será que amava o Ian? Ou apenas precisava dele? Precisava dele, ou apenas de alguém? E como se anos de perguntas em meia página de carta... você me respeita? Por quê? Como pode? Não tinha certeza se amava ou respeitava Ian e a própria Jessica a esta altura.

Queria sair pela tangente e simplesmente contar-lhe sobre estância e a Sra. Williams, mas aquilo parecia desonesto. E ela levou duas horas para escrever a carta. Foi uma carta de uma página. Disse-lhe que o dia de ontem lhe mostrara que precisava de descanso. Astrid dera uma sugestão maravilhosa, a fazenda da mãe dela.

 

É precisamente o tipo de lugar onde posso finalmente re­laxar, voltar a mim, respirar de novo, ser eu mesma. Eu mesma sendo, hoje em dia, uma estranha combinação de quem eu costumava ser, alguém que fui forçada violentamente a ser durante os últimos seis meses, e em quem estou viran­do. Tudo isso me assusta mais do que um pouco. Mas até mesmo isso está mudando um tanto, Ian. Estou cansada de viver sempre com tanto medo. Meus constantes temores de­vem ter sido uma grande carga para você, todo esse tempo. Mas estou crescendo, agora. Talvez ficando “adulta”; não sei ainda. Fique firme no livro, você tem razão, e lamento mui­to por causa de ontem. Vou me arrepender toda a vida de que tenhamos suportado isso com tanta dignidade e autocontrole. Talvez se tivéssemos berrado, guinchado, chutado, gritado, e arrancado os cabelos na sala do tribunal... talvez ambos estivéssemos em melhores condições do que agora. Tinha que vir tudo para fora, mais cedo ou mais tarde. Estou trabalhando nisso, agora. Certo? Bem, querido, eu o amo. J.

 

Hesitou longo tempo com a carta nas mãos, depois dobrou-a com cuidado e colocou-a num envelope. Havia muita coisa que não dissera. Mas ainda não sentia vontade de dizer. E escreveu cuidadosamente o nome dele no envelope. Mas não o seu próprio. Ficou .imaginando se ele pensaria que a falta do endereço do remetente era um esquecimento. Não era..

Jessica juntou-se à mãe de Astrid na sala de visitas para um drinque após o jantar.

- Não tem idéia do quanto você deixou a Astrid feliz, querida. Ela precisa ter alguma coisa para fazer. Ultimamente só o que tem feito é gastar dinheiro. Isso não é saudável. A aquisição constante de bens materiais sem significado, só para passar o tem­po. Ela não curte isso, age assim apenas para preencher o vazio. Mas a sua boutique vai preencher o vazio de uma forma bem melhor.

- Eu a conheci através da boutique, a propósito. Ela foi en­trando, certo dia, e nós gostamos uma da outra. E ela tem sido tão boa para mim. Espero que ela realmente goste da loja esta semana. Estou aliviada por estar longe dali.

- Astrid mencionou que você tem enfrentado uma fase difícil, ultimamente. - Jessica concordou, brandamente. - No final das contas, você vai crescer com tudo isso. Mas como a vida pode ser desagradável enquanto a gente vai crescendo! - Riu enquanto tomava o seu Campari, e Jessie sorriu. - Sempre tive uma antipatia solene por situações forjadoras do carácter. Mas, afinal, elas têm o seu valor, imagino.

- Não estou certa se deveria dizer que a minha situação tem valor. Suspeito que vai ser o fim do meu casamento.

Havia um ar de tristeza avassaladora nos olhos de Jessica, mas ela estava quase certa de que agora sabia o que queria. Simples­mente não o tinha querido admitir para si mesma, até então.

- É isso o que quer agora, filha? Liberdade do seu casamento?

Estava sentada sossegadamente ao pé do fogo, observando aten­tamente o rosto de Jessica.

- Não, não a minha liberdade, verdadeiramente. Nunca tive problemas com a minha “liberdade”. Adoro ser casada. Mas acho que chegamos a uma fase em que estamos simplesmente nos des­truindo mutuamente, e vai apenas piorar. Olhando para trás, agora, me pergunto se sempre não nos destruímos mutuamente. Mas agora é diferente. Estou enxergando. E não há desculpa para deixar a coisa continuar, depois que a gente enxerga.

- Suponho que terá que tomar providências, então. O que o seu marido pensa disso?

Jessie fez uma pausa momentânea.

- Não sei. Ele... ele está na cadeia, actualmente. - Não podia pensar em outra pessoa a quem pudesse contar, e não sabia que Astrid já tinha contado para a mãe, só via que Bethanie parecia aceitar a notícia com naturalidade. - E tivemos que nos ver sob condições tão tensas que tem sido difícil conversar. Tem sido di­fícil até pensar. A gente se sente obrigada a ser tão forte e corajosa e nobre que não ousa admitir nem para si mesma, que dirá para o outro, que simplesmente já está cheia.

- Você está “cheia”? - Sorriu meigamente, mas Jessie não retribuiu o sorriso, enquanto balançava a cabeça. - Deve ser muito duro para você, Jessica. Levando-se em conta a culpa que se sente ao deixar alguém que está numa situação difícil.

- Acho que é por isso que não me permiti pensar. Não além de um certo ponto. Porque não ousava traí-lo, nem em pensamento. E porque queria pensar em mim mesma como nobre e sofredora. E porque eu estava... com medo, também. Tinha medo que, se me soltasse, nunca mais acharia o caminho de volta.

- O gozado é que sempre achamos. Somos todos muito mais durões do que pensamos.

- Acho que estou começando a compreender, agora. Le­vou um tempo terrivelmente longo. Mas ontem tudo se desfez. Ian e eu tivemos uma briga para valer em que ambos partimos para a jugular um do outro com tudo o que dizíamos, e eu simplesmente me larguei depois. Quase tentei o destino a me destruir. E... - Espalmou as mãos para cima com um dar de ombros filosófico. – Cá estou eu. Ainda inteirinha.

- Isso a surpreende?

A velha senhora estava divertida.

- Muito.

- Nunca passou por crises antes?

- Já. Meus pais morreram. E meu irmão foi morto no Viet­name. Mas... eu tinha o Ian. Ian amortecia todos os golpes. Ian desempenhava dez mil papéis e representava milhões de pessoas diferentes para mim.

- Isso é muita coisa para se pedir de alguém.

- Não é muito. É demais. O que provavelmente é o porquê dele estar na prisão.

- Sei. Você se culpa?

- De certa forma.

- Jessica, por que não deixa Ian ter o direito de cometer os próprios erros? O que fez com que fosse para a prisão, não im­porta o quanto se relacione com você... será que ele não tem o direito de assumir esse erro, seja lá qual foi?

- Foi estupro.

- Sei. E você cometeu o estupro por ele.

Jessica riu nervosamente.

- Não, claro que não. Eu...

- Você o quê?

- Bem, eu o fiz infeliz. Pressionei-o muito, pagava as con­tas roubei-lhe a virilidade...

- Fez tudo isso com ele? - A mulher mais velha sorriu, e Jessica sorriu também. - Não acha que ele poderia ter dito não?

Jessica pensou um pouco, depois fez que sim com a cabeça.

- Mas quem sabe não conseguia dizer não. Quem sabe sen­tia medo.

- Ah, mas então a responsabilidade não é sua, não é mesmo? Por que precisa se culpar tanto? Gosta disso?

A mulher mais jovem sacudiu a cabeça e desviou o olhar.

- Não. E o absurdo da coisa é que ele não comentou o estu­pro. Sei disso. Mas a chave de tudo é o porquê dele estar numa posição que sequer lhe permitisse ser acusado de estupro. E eu não o me absolver.

- Pode absolver a mulher, seja ela quem for?

- Claro, eu... - E então Jessica ergueu os olhos, atónita. perdoado Margaret Burton. Em alguma virada do caminho, ela a perdoara. A guerra com Margaret Burton tinha acabado. Era um peso a menos no seu coração. - Não tinha pensado nisso antes, não ultimamente.

- Sei. A propósito, estou curiosa por saber como você lhe roubou a virilidade.

- Eu o sustentava.

- Ele não trabalhava?

Não havia julgamento na voz de Bethanie, apenas uma per­gunta

- Trabalhava, e muito. Ele é escritor.

- Editado?

- Diversas vezes. Um romance, um livro de fábulas, vários artigos, poemas

- Ele é bom?

- Muito... só que não teve muito êxito financeiro. Ainda. Mas vai ter.

O orgulho na sua voz a surpreendeu, mas não a Bethanie.

- Então, que horrível da sua parte encorajá-lo. Que coisa chocante para se fazer.

Bethanie sorriu enquanto sorvia o seu Campari.

- Não, eu... é só que acho que ele me odeia por tê-lo sustentado.

- E provavelmente odeia. Mas também provavelmente a ama por isso. Como você sabe, toda moeda tem dois lados, Jessica. Estou certa que ele também sabe disso. Mas ainda não entendi direito por que você está querendo sair fora do casamento.

- Não falei isso. Só disse que achei que o nosso casamento ia acabar.

- Por si mesmo? Sem ninguém para dar uma mãozinha? Minha querida, que extraordinário!

As duas mulheres riram e depois Bethanie esperou. Era hábil no manejo das suas perguntas. Astrid sabia disso, e não avisara Jessica de propósito. Bethanie fazia uma pessoa pensar.

Jessica ergueu os olhos depois de uma longa pausa e buscou o âmago dos olhos de Bethanie. Olhou bem dentro deles.

- Acho que o casamento já acabou. Por si mesmo. Ninguém o matou. Simplesmente deixamos que morresse. Nenhum de nós foi corajoso o bastante para matá-lo, ou salvá-lo. Apenas o usamos para nossos próprios fins e depois deixamos que expirasse. Como um cartão de biblioteca de uma cidade em que a gente não mora mais .

- Era uma boa biblioteca?

- Excelente. Na época.

- Então não jogue o cartão fora. Você pode querer voltar, e pode mandar renovar o cartão.

- Não creio que tivesse vontade.

- Ele a faz infeliz, então?

- Pior. Eu o destruiria.

- Ora, pelo amor de Deus, menina. Que coisa incrivelmente cacete da sua parte.... está sendo nobre. Pare de pensar nele e pense em si mesma. Estou certa de que é o que ele está fazendo. Pelo menos espero que sim.

- Mas, e se eu não sou e nunca fui boa para ele e... se odeio a vida que levo agora, esperando por ele? - Agora esta­vam chegando à raiz da coisa. - E se eu estiver com medo de ape­nas tê-lo usado e nem mesmo tenho certeza se ainda o amo? Talvez eu apenas precise de alguém, e não especificamente do Ian.

- Então está precisando pensar em algumas coisas. Tem saído com outros homens, desde a prisão dele?

- Não, claro que não.

- Por que não? - Jessica pareceu chocada, e Bethanie riu.

- Não me olhe desse jeito, minha querida. Eu posso ser muito ve­lha, mas ainda não estou morta. Digo a Astrid a mesma coisa. Não sei o que há de errado com a sua geração. Deviam ser todos tão liberados, e não terrivelmente certinhos. Pode ser apenas que você precise ser amada. Não precisa se vender numa esquina, mas pode encontrar um amigo agradável.

- Não creio que conseguisse fazer isso, e ficar com o Ian.

- Então talvez devesse deixá-lo por algum tempo, e ver o que quer. Talvez ele seja parte do seu passado. A coisa principal é não desperdiçar o presente. Nunca desperdicei, e é por isso que sou uma velha feliz.

- E não é “velha”.

Bethanie fez uma careta, ante o elogio.

- Lisonjas não vão adiantar de nada! Pareço extremamente velha aos meus olhos, quando me olho no espelho, mas pelo menos me diverti pelo caminho. E não estou dizendo que fui liber­tina. Não fui. Estou simplesmente dizendo que não me tranquei num armário e depois me vi odiando alguém por algo que eu mes­ma optei por fazer comigo mesma. É isso o que você está fazendo agora. Está castigando o seu marido por algo que ele não pode evi­tar, e me parece que ele está sendo suficientemente punido, e injus­tamente, além disso. O que você precisa pensar, e com grande seriedade, é se consegue ou não aceitar o que aconteceu. Se puder, então talvez tudo se ajeite. Mas se vai tentar obter restituição dele pelo resto das suas vidas, então é melhor mesmo desistir agora. Pode fazer uma pessoa se sentir culpada apenas por um certo tempo. Um homem não aguenta muito disso, e a reacção dele será bem desagradável.

- Já foi.

Jessica estava pensando na discussão de Vacaville, enquanto olhava sonhadora para o fogo.

- Nenhum homem aguenta isso por muito tempo. E nenhuma mulher também. Quem quer se sentir culpado eternamente? A gente comete erros, pede desculpas, paga um preço e fim de papo. Não pode pedir a ele para pagar e pagar e pagar de novo. Ele vai ter­minar odiando você por isso, Jessica. E quem sabe você não o es­teja fazendo sofrer apenas pelo presente. Quem sabe está usando isso como oportunidade para cobrar uma dívida antiga. Posso estar errada, mas todos fazemos isso, às vezes.

Jessica concordou, sobriamente. Era exactamente o que andava fazendo. Fazendo-o pagar pelo passado, pelas fraquezas dele, e as dela própria. Pelas suas inseguranças e incertezas. Estava pensando no assunto quando a voz de Bethanie intrometeu-se suavemente nos seus pensamentos, de novo.

- Talvez você deva me mandar ir cuidar da minha vida.

Jessica sorriu e acomodou-se na cadeira de novo.

- Não, acho que você provavelmente está certa. Não tenho olhado para isso com muita perspectiva. E o que você disse faz um bocado de sentido. Mais do que me dá vontade de admitir, mas mesmo assim...

- Você é uma boa ouvinte, menina.

As duas mulheres sorriram uma para a outra de novo e a mais velha se pós de pé e se espreguiçou delicadamente, os anéis de bri­lhante reluzindo à luz do fogo. Usava calças pretas e uma suéter de cashmere azul da cor dos olhos, e enquanto Jessica a observava não pode deixar de pensar novamente que ela devia ter sido uma beleza quando jovem. Ainda era notavelmente bonita de um jeito maduro, com um leve véu de feminilidade a suavizar qualquer coisa que fizesse ou dissesse. Na verdade era mais linda do que a filha. Mais suave, mais cálida, mais bonita... ou quem sabe fosse apenas que estava mais viva.

- Sabe, se me dá licença, Jessica, acho que vou para a cama. Quero ir andar a cavalo amanhã cedo, e não vou lhe pedir que me faça companhia. Levanto-me em horas nada civilizadas.

O riso dançava nos seus olhos enquanto se inclinava para beijar a testa de Jessica, e esta rapidamente ergueu os braços para abraçá-la.

- Sra. Williams, eu a adoro. E é a primeira pessoa que faz sentido para mim, há muito tempo.

- Nesse caso, querida, faça-me a honra de não me chamar de “Sra. Williams”, que eu abomino. Será que não pode me cha­mar de “Bethanie”, ou “Tia Beth”, se preferir? Os filhos das mi­nhas amigas ainda me chamam assim, e alguns dos amigos de As­trid.

- Tia Beth Que lindo.

E subitamente Jessica sentiu como se tivesse uma nova mãe. Família. Fazia tanto tempo que não tinha uma, excepto o Ian. Tia Beth. Sorriu e sentiu um calorzinho na alma.

- Boa noite, querida. Durma bem. Até amanhã.

Trocaram mais um abraço e Jessica subiu meia hora mais tar­de ainda pensando em algumas coisas que Bethanie tinha dito. Sobre punir o Ian... ficou conjecturando. Exactamente quanta raiva tinha de Ian? E por quê? Porque a tinha chifrado? Ou porque agora. lutava na prisão e não estava mais por perto para protegê-la? Por­que tinha sido “pego” dormindo com Margaret Burton? Teria im­portado tanto se ela não tivesse sido forçada a enfrentar a situação? Ou seriam as outras coisas? Os livros que não vendiam, o dinheiro que apenas ela ganhava, a paixão dele por escrever? Não tinha certeza.

 

O café da manhã estava esperando por Jessica quando desceu na manhã seguinte. Um bilhetinho alegre assinado “Tia Beth” disse-lhe que havia brioches quentinhos no forno, fatias torradinhas de bacon e uma bela vasilha de morangos. O bilhete sugeria que desse um passeio de jipe pelas montanhas, à tarde.

Assim o fizeram, e se divertiram à grande. Tia Beth contou-lhe histórias sobre as pessoas “horrendas” que haviam morado na linda fazenda antes e que tinham deixado a casa principal em “condições bárbaras”.

- Aposto que o homem era primo-irmão de Atila, o Huno, e os filhos deles eram simplesmente pavorosos!

Há anos que Jessica não na tão fácil e simplesmente, e en­quanto cruzavam as montanhas no jipe, deu-se conta de como estava passando bem sem as pílulas. Nada de tranquilizantes, nem comprimidos para dormir, nada. Estava sobrevivendo com a compa­nhia da Tia Beth, muito sol, e muito riso. Prepararam o jantar tas naquela noite, queimaram o molho hollandaise do aspargo, deixaram o rosbife cru, e riram juntas a cada novo engano. Era mais como ter uma companheira de quarto da mesma idade do que ser hospede da mãe de uma amiga.

- Sabe, meu primeiro marido sempre dizia que eu acabaria por envenená-lo um dia, se ele não tomasse cuidado. Eu era uma cozinheira de lascar não que seja muito melhor agora. Não tenho muita certeza se os aspargos estão cozidos.

Mordeu com cuidado um dos talos, mas pareceu satisfeita com o que achou.

- Você foi casada duas vezes?

- Não. Três vezes. Meu primeiro marido morreu quando eu .estava com 20 e poucos anos, o que foi uma pena muito grande. Era um amor de rapaz. Morreu num acidente de caça dois anos após o nosso casamento. E então me diverti bastante durante certo tempo - ela se animou um pouco, depois continuou - e me casei com o pai de Astrid quando estava com 30 anos. E o pai dela morreu quando ela estava com 14. E meu terceiro marido era gentil, mas terrivelmente monótono. Divorciei-me dele há cinco anos, e a vida tem sido bem mais interessante desde então.

Examinou outro talo de aspargo e comeu-o enquanto Jessie ria.

- Tia Beth, você é uma bola. Como era o último?

- Já morreu e não sabe. Gente velha pode ser tão dolorosamente cacete. Foi muito embaraçoso divorciar-me dele. O pobrezinho ficou chocadíssimo. Mas superou o choque. Eu o visito quando vou a Nova York. Ainda continua um chato, coitado.

Sorriu angelicamente e Jessica desatou a rir de novo. Tia Beth não fora tão leviana quanto gostava de parecer, mas também não levara uma vida monótona.

- E agora? Nada mais de maridos?

Agora eram amigas. Podia perguntar.

- Na minha idade? Não seja ridícula. Quem ia querer uma velha? Estou perfeitamente satisfeita como estou, porque curti a vida quando era mais jovem. Não há nada pior do que uma velha fingindo não o ser. Ou uma moça fingindo que é velha. Você e As­trid se saem muito bem nisso.

- Eu não era assim.

- Nem ela, quando o Tom era vivo. Está na hora dela encontrar outra pessoa e queimar aquela tumba de mansão. Acho que é estarrecedora.

- Mas é tão bonita, Tia Beth. Mais do que bonita.

- Os cemitérios também são bonitos, mas eu nem sonharia  em morar num deles... até que não tivesse outra opção. Enquanto a pessoa tem a opção, deve usá-la. Mas ela está chegando lá. Acho que a sua loja pode fazer-lhe algum bem. Por que não a vende para ela?

- E então o que eu iria fazer?

- Alguma coisa diferente. Há quanto tempo tem a loja?

- Seis anos faz nesse verão.

- É tempo suficiente para qualquer coisa. Por que não tenta outra coisa?

Tempo suficiente para um casamento, também?

- Ian queria que eu ficasse em casa e tivesse um filho. Pelo menos era o que estava dizendo recentemente. Há alguns anos ele esteve perfeitamente feliz com as coisas do jeito que estavam.

- Talvez você tenha encontrado uma das respostas que anda procurando.

- Tal como?

Jessica não compreendia.

- Que há alguns anos ele estava “perfeitamente feliz com as coisas do jeito que estavam”. Quanto mudou nesses poucos anos? Talvez você tenha se esquecido de fazer mudanças, Jessica, de crescer.

- Crescemos...

Mas como? Não tinha certeza se tinham crescido mesmo.

- Creio que não quis ter filhos.

- Não, não é que eu não queira ter tido, é só que ainda não era a hora. Era cedo demais e nós estávamos felizes sozinhos.

- Não há nada errado em não se ter filhos. - Tia Beth olha­va para ela diretamente, um pouco diretamente demais. - Astrid também jamais quis. Disse que não era para ela, e acho que tinha razão. Creio que nunca se arrependeu. Além disso, o Tom já era meio velhinho quando se casaram. O seu marido é moço, não é, Jessica? - Esta assentiu. - E quer filhos. Bem, minha querida, você sempre pode continuar a tomar a pílula e dizer a ele que está tentando, não pode?

Os olhos da mulher mais velha caçavam os de Jessie. Jessica desviou ligeiramente o olhar; ficou pensativa.

- Eu não faria isso.

- Não, é? Que bom.

E então os olhos de Jessica voltaram a fitar os da Tia Beth.

- Mas já pensei nisso.

- Claro que sim. Tenho certeza de que muitas mulheres pen­saram. E muitas delas provavelmente fizeram mais do que apenas pensar. Sensato, em alguns casos, imagino. Parece uma pena ter que ser tão desonesta. Sabe, nunca tive muita certeza de que queria ter filhos. E Astrid foi uma surpresa. - Tia Beth quase enrubesceu, mas não completamente. Foi mais um enternecimento dos olhos enquanto olhava para o passado e parecia esquecer de Jessica por um momento. - Mas acabei por gostar dela de verdade. Ela foi uma doçura, quando pequenina. E simplesmente horrível, durante alguns anos posteriores. Mas ainda uma doçura, de um jeitinho cati­vante. Eu a curti muito, para falar a verdade. - Fazia Astrid pa­recer mais uma aventura do que uma pessoa, e Jessie sorriu, olhan­do para o seu rosto. - Foi muito boa para mim, quando o pai morreu. Pensei que o mundo tinha acabado, excepto por Astrid.

Jessie quase a invejava, enquanto escutava. Fazia parecer que a vida era menos solitária por causa de Astrid, ao invés de ainda mais.

- Sempre tive, bem, medo, acho. Medo de ter filhos porque achava que seriam um obstáculo entre mim e Ian. Achava que isso me faria solitária.

Bethanie sorriu e sacudiu a cabeça.

- Não, Jessica. Não se seu marido a ama. Então, ele apenas a amará ainda mais por causa da criança. É um elo adicional en­tre vocês, uma extensão de ambos, uma mistura do que amam mais e detestam mais e precisam mais e acham mais graça entre vocês dois. É uma coisa muito linda. Posso pensar em vários bons motivos para se sentir medo de ter filhos, mas este não deve ser um deles. Você não pode amar mais de uma pessoa?

Era uma boa pergunta, e Jessica decidiu ser sincera.

- Acho que não, Tia Beth. Não mais. Há muito tempo que não amo outra pessoa que não o Ian. Portanto acho que não con­sigo imaginá-lo amando alguém além de mim... mesmo um filho. Sei que deve parecer muito egoísta, mas é assim que me sinto.

- Não parece egoísta. Parece assustada, mas não realmente egoísta.

- Quem sabe um dia eu mude de idéia.

- Por quê? Porque acha que deve fazê-lo? Ou porque quer? Ou para poder punir ainda mais o seu marido? - Tia Beth não tinha papas na língua. - Aceite o meu conselho, Jessica. A não ser que realmente queira um filho, não o encomende. São uma cha­tura, e estragam mais os móveis do que os gatos. - Falou com a maior cara de pau, enquanto alisava o gato malhado sentado ao seu colo. Jessica ficou surpresa, ante o comentário. - Quando se trata de bichos de estimação, prefiro os cavalos. A gente pode deixá-los do lado de fora sem se sentir culpada. - Ergueu os olhos com outro dos seus sorrisos de santa, e Jessica abriu um sorriso. - Não me leve sempre a sério. E ter filhos é mesmo questão de esco­lha pessoal. Faça o que fizer, não se deixe pressionar pelo que ou­tras pessoas pensem ou digam... excepto o seu marido. E ora, ora, você não é uma moça de sorte, tendo a mim para deitar falação quando as outras pessoas fazem cerimónia?

As duas mulheres riram e passaram para outros assuntos. Mas Jessica ficou surpresa ao se dar conta da profundidade dos tópicos que haviam abordado. Surpreendia-se revelando segredos e sentimentos para Tia Beth que anteriormente só teria compartilhado com Ian. Parecia estar constantemente mostrando a Tia Beth um pedaço ou outro de seu íntimo, puxando-o para fora para exibi-lo, tirando-lhe o pó, questionando; mas estava começando a se sentir inteira de novo.

Os dias na fazenda eram encantadores e relaxantes, cheios de ar fresco e manhãs agradáveis passadas a cavalo em meios-galopes solitários pelas montanhas, ou em caminhadas ociosas. E as noites passavam voando, rindo na companhia de Tia Beth. Jessica desco­briu-se tirando sonecas à tarde, lendo Jane Austen pela primeira vez desde a escola secundária, e fazendo pequenos esboços num ca­derno. Fez até alguns esboços secretos que podiam ser transformados num retracto informal da Tia Beth. Sentia-se encabulada de pedir à nova amiga que posasse para um retracto. Mas era o primeiro que tinha vontade de pintar desde o do Ian, há anos. O rosto da Tia Beth se prestaria muito bem para esse tipo de coisa, e daria um belo presente para Astrid... que apareceu, para grande contrarie­dade de Jessica, duas semanas mais tarde.

- Quer dizer que tenho que voltar para casa, agora?

Astrid parecia cansada mas feliz, e Jessica teve a sensação de desalento que tinha quando era criança e a mãe chegava cedo demais para apanhá-la numa festa de aniversário.

- Não ouse voltar para casa, Jessica Clarke! Vim só ver como mamãe estava passando.

- Estamos nos divertindo muito.

- Óptimo. Então não pare agora. Vou ficar infeliz quando você voltar para a cidade e me roubar o meu brinquedo.

Contou a Jessie sobre a viagem de Katsuko a Nova York, e a linha de primavera estava tendo mais êxito do que Jessie ousara esperar. Parecia que fazia anos desde que comprara aqueles pastéis, anos desde que viera para casa e Ian fora preso, séculos desde o julgamento. O choque de tudo aquilo estava finalmente começando a se desvanecer. As cicatrizes mal apareciam. Ganhara dois quilos e pouco, e parecia descansada. Astrid trouxe-lhe uma carta dele, que ela só abriu mais tarde.

 

... Não posso acreditar, Jess. Não posso acreditar que diria aquelas coisas para você Talvez esse desastre esteja final­mente fazendo sentir as suas consequências. Você está bem? O seu silêncio é estranho, agora, a sua ausência mais estra­nha. E descubro que realmente não sei o que quero: que você            reapareça ou que aquele maldito vidro entre nós desapareça. Sei o quanto você o odeia, querida, eu o odeio com igual in­tensidade. Mas podemos superar isso. E como vão indo as férias? Fazendo maravilhas, estou certo. Você as mereceu. Suponho que seja por isso que eu não estou recebendo notícias suas. Está “ocupada descansando”. O que é óptimo, provavelmente. Como sempre, estou envolvidíssimo com o livro. Está indo incrivelmente bem, e estou esperando que...

 

O resto era todo sobre o livro. Rasgou a carta pelo meio e a jogou no fogo.

Mais tarde, Tia Beth interrogou-a sobre a carta, depois que Astrid tinha ido para a cama. Entre elas havia agora uma espécie de conspiração que excluía até mesmo Astrid.

- Ah, ele diz que me ama e que o livro vai indo bem, tudo no mesmo fôlego.

Tentou parecer contente, e só conseguiu ser um pouco menos amarga.

- Ah-ah! Então você tem ciúmes do trabalho dele!

Os olhos de Tia Beth refulgiam. Agora via algo que não tinha visto antes, pelo menos com clareza. Estava tudo entrando foco.

- Não tenho ciúme do trabalho dele. Que ridículo!

- Concordo inteiramente. Mas por que se ressente do trabalho dele como escritor? O que aconteceria, Jessica, se você não tivesse mais que sustentá-lo? Então não teria controle sobre ele, não é mesmo? E se ele realmente tivesse êxito? Então, o que faria você!

- Ficaria radiante por ele.

Mas não soava convincente, nem mesmo aos ouvidos de Jessica.

- É mesmo? Acha que conseguiria enfrentar isso? Ou tem tanto ciúme que nem consegue tentar?

 - Que absurdo.

Não estava gostando da teoria de Beth.

- É, é absurdo. Mas acho que você ainda não sabe disso, Jessica. O facto é que ou ele a ama ou não a ama. Se não ama não poderá ficar com ele. E se a ama, provavelmente não poderá perdê-lo. E se você insistir em sustentá-lo para sempre, minha querida, ele acabará por encontrar alguém a quem possa sustentar, que o deixe sentir-se um homem. Alguém que poderá até dar-lhe filhos. Escute o que estou lhe dizendo.

Jessica ficou calada, e foram para a cama. Mas as palavras de Tia Beth tinham atingido o alvo. O próprio Ian lhe dissera a mesma coisa, ao seu modo. Em Carmel, dissera-lhe que as coisas teriam que mudar. Bem, iam mudar. Mas não do jeito que Ian imaginava.

 

- Bom dia, Tia Beth... Astrid.

Havia um ar de determinação no rosto de Jessica enquanto se sentava para tomar o café da manhã com elas. Aquela expressão era nova para as amigas.

- Santo Deus, menina, o que está fazendo acordada a essa hora?

Raramente se levantava antes das dez, desde que estava na fazenda, e Tia Beth ficou surpresa.

- Bem. - Olhou cautelosamente para Astrid, sabendo o quanto ela ia se sentir desapontada. - Quero aproveitar o meu último dia. Resolvi ir para casa com você hoje à noite, Astrid.

A amiga exibiu um ar desalentado, ante as palavras de Jessica.

- Ah, não, Jessie! Por quê?

- Porque tenho coisas para fazer na cidade, e já fui preguiçosa­ o bastante, querida. Além disso, se não voltar agora, provavelmente até nunca mais voltarei.

Tentou usar um tom despreocupado enquanto se servia de torrada ­com canela, mas sabia que as suas palavras eram um golpe para Astrid. E se sentia chateada de estar indo embora da fazenda, também. Apenas Tia Beth não pareceu perturbada pela notícia.

- Contou à mamãe antes de contar para mim, Jessie?

Astrid notara a expressão do rosto da mãe.

- Não contou, não. - Tia Beth apressou-se a responder. – Mas eu senti ontem à noite que isso ia acontecer. Jessica, acho que provavelmente está certa em voltar agora. Não fique com essa cara, Astrid, vai ficar com rugas. O que estava achando? Que ela nunca mais ia voltar para a sua própria loja? Não seja tola. Alguma de vocês duas vai andar a cavalo comigo agora de manhã? Passou manteiga na torrada com naturalidade e Astrid desfranziu a testa como uma criança apagando mensagens escritas na areia. A mãe tinha razão quanto a Jessie ter que voltar, é claro. Mas ela tinha curtido a Lady J até mais do que tinha imaginado.

Jessie estivera observando o rosto da amiga, e agora parecia quase com remorso.

- Sinto de verdade, querida. Detesto ter que fazer isso com você.

As duas mulheres mais moças ficaram caladas e Tia Beth sa­cudiu a cabeça.

- Como vocês duas são chatas. Vou andar a cavalo. Se quiserem, podem ficar se lastimando aqui. Uma, sentindo-se ridicula­mente culpada, a outra sentindo-se infantilmente roubada, e as duas fazendo papel de boba. Fico surpresa ao ver que ambas têm tempo a perder com tanta bobagem.

Jessica e Astrid começaram a rir e resolveram ir cavalgar com a mulher mais idosa e sensata.

Foi um passeio agradável e um dia simpático, e Jessie despediu-se de Tia Beth com pesar. Jurou voltar tão logo pudesse, e lutou para achar as palavras que exprimissem o quanto aquelas duas semanas tinham significado.

- Elas me restauraram.

- Você se restaurou a si mesma. Agora não vá desperdiçá-la voltando para a cidade e fazendo uma bobagem. - Então ela Era espantosa. Não havia nada que se pudesse esconder dela. Não vou aprovar se você fizer uma besteira, menina. E não tenho certeza se estou gostando do seu olhar.

- O que é isso, mamãe!

Astrid notou o desconforto de Jessie, e Bethanie não prosseguiu no assunto, depois da interrupção. Simplesmente deu-lhes um de maçãs, uma lata de biscoitos feitos em casa e alguns sanduíches.

- Isso deverá mantê-las bem alimentadas até chegarem casa. - A sua expressão se suavizou de novo, e ela envolveu com meiguice a cintura da Jessica. - Volte breve. Vou sentir falta sabe.

Abraçou suavemente a cintura dela, ficou com os olhos de carinho, e Jessica inclinou a cabeça para beijar-lhe a face.

- Voltarei logo.

- Óptimo. E Astrid, querida, dirija com cuidado.

Acenou para elas da porta até que o elegante Jaguar preto dobrou uma curva e sumiu de vista.

- Sabe, detesto mesmo ter que ir embora daqui. As duas últimas semanas foram as melhores que passei há anos.

- Sempre me sinto assim quando vou embora.

- Por que você não se muda para cá, Astrid? Eu o faria, se ela fosse a minha mãe, e é uma região tão bonita.

Jessica acomodou-se no banco para a longa viagem, reflectindo sobre as duas preciosas semanas, e os últimos momentos de conversa com Tia Beth.

- Santo Deus, Jessica, eu morreria de tédio aqui. Você não, depois de algum tempo?

Jessica sacudiu a cabeça devagar, uma ruga pequena e pen­sativa entre os olhos.

- Não, acho que não ficaria entediada. Nem pensei nisso.

- Bom, eu pensei. A despeito da minha mãe. Não há nada aqui para fazer excepto andar a cavalo, ler, fazer caminhadas. Ainda preciso da agitação louca da cidade.

- Eu não. Quase sinto raiva de ter que voltar.

- Então devia ter ficado.

Durante uma fracção de momento, a garotinha mimada estava presente de novo na voz de Astrid.

- Não poderia ficar, Astrid, tenho que voltar. Mas sinto­-me feito um rato, retomando a loja, se é que se pode falar assim. Você me proporcionou as férias mais maravilhosas.

Astrid sorriu às palavras de Jessie.

- Não se sinta mal. As duas semanas foram um lindo presente.

Astrid soltou um suspiro suave e acompanhou a estrada ru­ral serena. O sol acabara de se pôr atrás das montanhas, e havia um cheiro de flores no ar. Num campo distante podiam ver os ca­valos ao crepúsculo.

Jessie lançou um longo olhar à paisagem agora familiar, e se afundou no banco com um pequeno sorriso particular. Ela volta­ria. Tinha que voltar. Estava deixando um pedaço da alma ali, e uma nova amiga.

- Sabe de uma coisa, Sra. Bonner?

Astrid abriu um sorriso, em resposta.

- O que, Sra. Clarke?

- Adoro a sua mãe.

- Eu também. - As duas mulheres sorriram e Astrid lançou um olhar de esguelha para Jessie. - Ela foi boazinha para você? Ou foi durona? Ela sabe ser, quando quer, e eu estava com medo que fosse se espalhar com você. Foi dura?

- Não de verdade. Sincera, mas não dura. E nunca mesquinha. ­Apenas franca. Às vezes dolorosamente franca. Mas estava de um modo geral. E fez com que eu pensasse muito. Salvou a minha vida. - Pois, nem sou mais viciada! - Jessica riu o mor­dida das maçãs. - Quer uma maçã?

- Não, obrigada. E fico feliz por tudo ter se acertado. A pro­pósito, como parecia o Ian na carta que eu trouxe para você? Já era para lhe ter perguntado, mas esqueci.

O rosto de Jessica ficou duro ante a pergunta, mas Astrid estava com os olhos fitos na estrada, e não viu.

- É por isso que estou voltando.

- Algo errado?

Astrid lançou um rápido olhar de esguelha para Jessica.

- Não, ele está bem. - Mas a sua voz estava estranhamente fria.

- Vai voltar para vê-lo, Jessie?

Astrid estava um tanto confusa.

- Não. Para ver Martin.

- Martin? O advogado de Ian? Então tem alguma coisa errada.

- Não, não... desse jeito. - E então desviou o rosto e ficou vendo as montanhas passando pela janela. - Vou voltar para me divorciar.

- Você o quê? - Ela diminuiu a marcha do carro e virou-se para olhar para Jessie, atónita. - Jessica, não! Você não quer isso! Quer?

Jessica fez que sim, segurando o miolo da maçã com a trémula.

- Quero, sim.

Ficaram caladas durante os 150 quilómetros seguintes. Astrid não conseguia pensar em nada para dizer.

 

Martin estava livre para recebê-la quando Jessica o procurara na manhã seguinte. Ela foi directo para o escritório dele, e conduziram-na pelo corredor dolorosamente familiar. Parecia-lhe nunca estava lá para nada, excepto para os momentos críticos e dramáticos da sua vida.

Como de costume, ele estava sentado à sua mesa com os óculos empurrados para cima da testa, e a carranca-padrão. Desde dezembro que ela não o via.

- Então, .Jessica, como tem passado?

Olhou-a de alto a baixo enquanto se levantava e estendia a mão. Ainda lhe dava uma sensação de desalento vê-lo. Ao seu modo, era um lembrete tão doloroso quanto o Inspector Houghton.  Era parte de uma era. Mas essa era estava finalmente chegar ao fim.

- Bem, obrigada.

- Está com uma cara muito boa. - tão boa que o surpreendia. - Sente-se. E me diga, o que a traz aqui? Recebi uma carta do Ian na semana passada. Ele parece estar suportando a situação.

Um lampejo de alguma coisa passou pelos olhos de Martin. Remorso? Tristeza? Culpa? Ou talvez Jessie apenas tivesse do que tivesse vontade e que tivesse passado. Por que ele não fora capaz de manter o Ian livre? Por que não o convencera a impetrar um recurso e depois ganhá-la? Se o tivesse feito, ela agora não estaria no seu escritório. Ou talvez estivesse.

- É, acho que ele está sobrevivendo.

- Mencionou que acha que vai vender o livro. Falou que estava esperando mais notícias do seu agente.

- Ah. - isso era novidade. - Espero que venda mesmo. Faria um grande bem a ele.

Especialmente agora. Mas era só isso o que Ian queria, de qualquer forma. Outro livro, e desta feita um de peso, um que vendesse bastante. Não precisaria dela se tivesse um livro. Nem sentiria a sua falta.

- E então? Ainda não me disse o que a traz aqui.

As amenidades estavam agora oficialmente encerradas. Jessica inspirou e olhou bem nos olhos dele.

- O que me traz aqui, Martin, é um divórcio.

Mas ele não deixou transparecer nada no rosto.

- Um divórcio?

- Sim. Quero me divorciar do Ian.

Alguma coisa dentro dela tremeu àquelas palavras, revirou-se e soltou uma exclamação abafada, e tentou se agarrar ao velho galho conhecido. Mas ela não permitiu. Não fazia mal se caísse num abismo sem fundo; tinha que fazer isso. E sabia agora que sobreviveria ao abismo sem fundo. Já estivera ali.

- Jessica, está cansada de esperar por ele? Ou há outra pessoa?

As perguntas pareciam indiscretas, mas talvez ele precisasse saber.

- Não, nem uma coisa nem outra. Bem, talvez um pouco cansada de esperar. Mas apenas porque acho que não teremos mais um casamento quando ele sair. Portanto, para que esperar?

- Vocês tinham um casamento antes?

Ele sempre se perguntara isso, nunca tivera certeza absoluta. Parecia que tinham um elo forte e um compromisso firme, mas nunca se sabe, do lado de fora.

Jessica sacudiu a cabeça ante a pergunta dele, depois desviou os olhos, as mãos apertadas no colo.

- Pensei que tínhamos um casamento. Mas... eu contava a mim mesma muitos contos de fadas, na época.

- Tais como?

Ela se perguntava por que tinham que discutir tudo isso, agora.

- Como o facto de pensar que éramos felizes. Isso era uma mentira, entre outras mentiras. Ian nunca foi realmente feliz comigo. Coisas demais se metiam no caminho. Minha loja, o trabalho dele, outras coisas. Ele nunca teria ido atrás daquela mulher se fosse feliz.

- Acredita mesmo nisso?

- Não sei. A princípio não acreditava. Mas agora começo a ver o que não dei a ele. Amor-próprio, para começo de con­versa. E o meu tempo... minha fé, talvez. Quero dizer, fé verda­deira em que ele poderia ter um grande êxito com outro livro.

- Você não o respeitava?

- Não tenho certeza absoluta. Precisava dele, mas não sei se o respeitava. E jamais quis que soubesse o quanto precisava dele. Sempre quis que Ian pensasse que era ele quem precisava de mim. Lindo, não?

- Não. Mas também não é incomum. Então, por que o di­vórcio? Por que não limpar a imagem e ficar com o que tem? Ainda é melhor do que a maioria, e você tem sorte... enxerga os erros; a maioria, não. Ian enxerga tudo com a mesma clareza que você?

- Não tenho idéia.

- Não falou com ele sobre isso? - Pareceu chocado, en­quanto ela sacudia a cabeça. - Ele não sabe que você quer o divórcio?

Ela sacudiu a cabeça de novo e depois olhou-o diretamente no rosto.

- Não, não sabe. E... Martin, é assim que eu quero. É tarde demais para “limpar a imagem”. Pensei muito no assunto e sei que esta é a maneira certa. Não temos filhos e, bem... esta é uma hora tão boa quanto outra qualquer.

Ele balançou a cabeça, mordiscando a haste dos óculos.

- Posso entender o seu modo de pensar, Jessica, e você é uma mulher jovem. Pode ser um fardo muito grande ser casada com um homem que foi mandado para a prisão por estupro. Talvez você deva agora ser livre para começar uma nova vida.

- É o que eu acho.

Mas por que parecia ser uma traição tão grande ao Ian? Que coisa nojenta de se fazer... mas precisava fazê-lo. Precisava. queria isso para si mesma. Tinha resolvido. Mas ficava escutando a voz da Tia Beth pouco antes de ter saído da fazenda, na véspera: “Não vou aprovar se você fizer uma besteira.” Mas isso não era besteira. Era certo. Mas o que diria o Ian?... E por que isso lhe importaria agora? Excepto que se importava. Importava, merda.

- A sua decisão seria afectada de alguma forma se ele vendesse esse novo livro, Jessica?

Ela pensou por um momento, depois sacudiu a cabeça.

- Não, não afectaria. Porque nada se alteraria. Ele voltaria para casa, amargurado com o tempo passado na prisão, e ainda mais amargurado comigo porque eu logo o estaria sustentando de novo, e nada teria se alterado. Adiantamentos de livros não duram muito, excepto se o livro for um sucesso.

- Não acha que ele seja capaz de escrever um sucesso?

O tom da voz de Martin encheu-a de vergonha, e ela baixou os olhos de novo.

- Não quis dizer isso. E o importante não é isso, de qual­quer modo. Tudo ainda seria a mesma coisa. Eu ainda teria a loja, a conta bancária.... não, Martin. É isto o que eu quero, estou absolutamente certa.

- Bem, Jessica, você tem idade suficiente para tomar as suas próprias decisões. Quando vai contar ao Ian?

- Pensei em escrever-lhe hoje à noite. E - hesitou, mas tinha que pedir-lhe - estava esperando que você fosse lá vê-lo.

- Para dar a notícia? - Martin parecia muito cansado enquanto perguntava. Ela balançou lentamente a cabeça. - Franca­mente, Jessica, normalmente não trato de assuntos domésticos. Como sabe, o direito marital não é a minha especialidade. - E esse caso ia ser muito delicado. Mas Ian era seu cliente. E a mulher do seu cliente estava sentada diante dele, olhando-o como se fosse sua culpa que ela estivesse querendo o divórcio, como se ele lhe houvesse custado o seu casamento. E, que diabos, por que sempre se sentia culpado se as coisas não saíam exactamente certas?

- Ah, está bem, suponho que posso cuidar disso para você. Vai ser uma coisa complicada?

- Não. Terrivelmente simples. A loja é minha. A casa é dos dois, e eu a venderei, se ele quiser, e porei a sua parte do dinheiro numa conta em seu nome. Não há mais nada. Eu fico com a custódia das plantas e ele com os seus arquivos do estúdio. Fim de um momento.

As únicas coisas que deixara de fora tinham sido os móveis, a que nenhum dos dois dava importância, excepto as poucas peças que tinham sido dos pais dela, e que lhe pertenciam, obviamente. Tão simples. Tão miseravelmente simples após sete anos.

- Você faz parecer tão rápido e fácil.

Mas ele parecia incerto, e triste pelos dois.

- Talvez rápido, mas não, não muito fácil. Irá vê-lo em breve.

- Até o final da semana. Você irá vê-lo, também?

Ela sacudiu a cabeça, cuidadosamente. Tinha visto Ian pela última vez... naquele dia pavoroso em que ele tinha se levantado e se afastado e ela ficara olhando por trás de uma janela de vidro com um telefone mudo nas mãos. Seus olhos ficaram cheios de lágrimas à lembrança, e Martin Schwartz desviou os olhos. Odiava esse tipo de coisa. Parecia-lhe um desperdício.

Jessica ergueu os olhos para Martin, contendo as lágrimas. A sua voz mal passava de um sussurro.

- Não, Martin, não vou vê-lo mais.

Ele lhe disse que estaria divorciada em seis meses. Em setembro. Um ano depois que Ian fora preso, o fim do casamento deles começara.

 

Havia uma carta de Ian à sua espera quando deu uma passadinha em casa para buscar a correspondência, a caminho da boutique. Era apenas um bilhetinho. E um poema. Leu-o com olhos dilatados e tristes, depois rasgou-o cuidadosamente ao meio e jogou-o fora. Mas ele ficara espetado na sua mente, de alguma maneira. Como um espinho de cetim. Foi a última carta de Ian que abriu. O poema fê-la decidir-se.

 

 

Você é a comemoração explosiva

das minhas alvoradas

todas as manhãs,

 

Você é o sussurro

no fim tardio

das minhas noites,

 

Você é a sinfonia nos meus crepúsculos,

Você é o esplendor e a glória

da aurora

da minha vida.

 

A alvorada da vida dele tinha passado, com ela, pelo menos. Mas sentia-se como se tivesse matado sozinha o alvorecer. E o cancelado e mandado embora. Feito com que chorasse. Quebrado alguma coisa sagrada. Ele, e ela própria, e a coisa que era eles dois. A coisa que ela agora acreditava jamais existira. Mas sabia tinha que fazer o que estava fazendo.

 

A butique estava em grande forma. Havia novos mostruários espalh­ados por toda a sala principal, e a vitrina parecia uma visão de primavera. A própria Astrid a decorara. E os pastéis e beges e tonalidades delicados que Jessie comprara em Nova York há mais de seis meses ficavam bem em exibição. Havia duas plantas novas seu escritório, com flores amarelas-vivas em pleno viço, e havia ar arrumado, jeitoso, na loja, do qual ela já se tinha quase esquecido. Passara apenas duas semanas fora, mas a Lady J renascera, assim como ela. Estava do jeito que era quando Jessie abrira a loja, naqueles dias em que estivera loucamente apaixonada por ela, e pusera alma e coração no seu nascimento. Agora ela mostrava ­os sinais do entusiasmo e do amor recentes de Astrid. Não modificara nada radicalmente, apenas dera um jeito em tudo. Até mesmo o Katsuko e Zina pareciam mais felizes.

- Como foi de férias?

Katsuko ergueu os olhos, encantada em vê-la, mas nem precisa­va ter perguntado. Jessie parecia-se com Jessie de novo, só que melhor.

- Era exactamente o que eu estava precisando. E olhe só para este lugar? Parece que vocês o pintaram, ou coisa parecida. Tão alegre e bonito.

- É apenas a nova linha. Está um barato.

- Que tal está vendendo?

- Feito cachorro-quente. E espere só para ver o que escolhi para outono. Tudo é laranja ou vermelho. Um bocado de preto, e umas malhas prateadas espectaculares para a Ópera.

Os castanhos do inverno anterior já tinham sido esquecidos. No ano seguinte seria vermelho. Alegre, movimentado, vivo, talvez fosse um bom sinal para a sua nova vida... nova vida. Jesus. Ainda não queria pensar nisso. E haveria tanta gente para contar... para explicar... para...

Jessica se acomodou no seu escritório, olhou ao redor com prazer e curtiu a sensação de ter voltado para casa. Aquilo suavizava o fardo da manhã, o encontro com Martin. Tentou não pensar nele. Escreveria para o Ian naquela noite. Pela última vez. Não queria trocar muitas cartas com ele. Era bom demais no assunto. As cartas seriam... demais. Poderiam acertar tudo através do advogado. Quanto menos dissessem um para o outro, mesmo por carta, melhor. Ela já se resolvera. Agora estava feito, era para o melhor. Agora tinha que olhar para a frente e se forçar a não olhar para  trás, para os anos vividos com Ian. Estavam acabados, agora. Uma parte do seu passado, como roupas fora de moda. Jessica e Ian eram passé.

- Jessie? Tem um minutinho?

Zina enfiou a cabecinha encaracolada pela porta e Jessie ergueu os olhos e sorriu. Sentia-se mais velha, mais quieta, porém já não cansada. E sentia-se forte. Pela primeira vez em meses, as noites sozinhas não a aterrorizavam. A casa não estava mais assombrada. A sua vida não estava mais infestada de fantasmas. A primeira noite de volta à casa fora até tranquila. Finalmente.

Forçou a sua atenção a voltar-se para Zina, que ainda esperava no vão da porta.

- Claro, Zina, tenho tempo de sobra.

O ritmo mais lento da roça ainda estava com ela. Não sentia atropelada, e estava adorando.

- Está com uma cara óptima.

Zina sentou-se numa cadeira perto da mesa de Jessie, e parecia ligeiramente constrangida. Fez algumas perguntas sobre as férias de Jessie, e parecia hesitar cada vez que havia uma pausa. Finalmente, Jessie resolveu tomar a iniciativa.

- Então, moça, o que há?

- Não sei o que dizer, Jessie, mas...

Ergueu os olhos, e subitamente Jessie o pressentiu. Os meses difíceis tinham afectado todo mundo, não apenas ela. E ficou quase surpresa de que nenhuma das duas o tivesse feito antes. Provavelmente não o tinham feito porque eram muito leais. Inspirou fundo e olhou dentro dos olhos de Zina.

- Está se despedindo?

Zina fez que sim com a cabeça.

- Vou me casar.

Falou quase como quem pedia desculpas.

- Vai?

Jessie nem sabia que Zina tinha um namorado. Não tinha, da última vez que tinham conversado.... mas quando fora isso? No mês passado? Há dois meses? Provavelmente há seis. Desde então ela estivera ocupada demais com os próprios problemas para perguntar, ou se importar.

- Vou me casar daqui a três semanas.

- Zina, que notícia maravilhosa! Por que está com essa cara de pena, sua boba?

Jessie deu um amplo sorriso e Zina pareceu tremendamente aliviada

- Sinto-me mal em deixá-la. Vamos nos mudar para Memphis.

Jessica riu. Parecia um destino horrível, mas sabia que Zina não pensava assim, e agora que a notícia fora dada, Zina parecia radiante.

- Eu o conheci numa festa de Natal, e... oh, Jessie! Ele é o homem mais lindo do mundo, de todas as maneiras possíveis! E eu o amo! E vamos ter um monte de filhos! - Riu toda satisfeita, e .Jessica levantou-se de um salto e deu-lhe um abraço. - E olhe só  para o meu anel!

Era toda uma donzela sulista enquanto exibia um minúsculo brilhante.

- Você estava usando isso antes de eu entrar de férias?

Jessica estava começando a se perguntar quanta coisa teria perdido.

- Não. Ele só me deu na semana passada. Mas eu não queria escrever e contar para você, portanto resolvi esperar que voltasse. - E Astrid proibira todos os comunicados potencialmente perturbadores para Jessie. Como as notícias dos credores que ficavam telefonando sobre as contas que ela não havia pago. - É um anelzinho tão lindo, não é?

- É uma graça. E você é maluca, mas eu a adoro e estou tão feliz por você!

E então uma pontada de dor atingiu-a até o âmago. Zina ia se casar, e ela ia se divorciar. A gente vem, a gente vai, a gente começa, a gente termina, a gente tenta, a gente perde, e quem sabe mais tarde tem outra chance, um novo começo, e ganha desta vez. Quem sabe. Ou quem sabe não tinha realmente importância. Es­perava que Zina ganhasse na primeira tentativa.

- Sinto-me tão mal em dar um aviso-prévio tão curto, Jess. Mas nós só resolvemos agora. Juro.

Estava quase de cabeça baixa, mas o sorriso era grande demais para  ocultar.

- Pare de pedir desculpas, pelo amor de Deus! Ainda bem que eu voltei para casa. Onde vai ser o casamento?

- Em Nova Orleans, ou a minha mãe me mataria. Vou para casa daqui a duas semanas e ela já está maluca por causa do casamento. Também não a avisamos com antecedência. Ela ligou para mim quatro vezes, ontem à noite, e você devia ter escutado o papai!

As duas deram risadinhas, e Jessica começou a pensar.

—      Precisa de um vestido?

- Vou usar o da minha bisavó.

- Mas precisa de um enxoval, certo? E um vestido de via­gem, e...

- Ah, Jessie, é, mas... não... posso deixar que faça isso...

- Cuide da sua vida, ou eu a despeço!

Apontou o dedo para Zina e as duas recomeçaram a rir. Jessie escancarou a porta do escritório e conduziu Zina para a sala principal da loja, parando diante da espantada Katsuko.

- Kat, temos uma nova freguesa. VIP. Esta é a Srta. Nelson, e ela está precisando de um enxoval. - Katsuko ergueu os olhos, atónita, depois compreendeu e também começou a participar das risadinhas e sorrisos. Estava aliviada por tudo ter saído bem. Esti­vera preocupada por causa da Zina. Nos dois últimos meses fora assustador lidar com Jessie. Mas agora ela estava bem. Todos podiam ver isso. E agora estava esfuziante, falando do enxoval de Zina. - Vai ser perfeito com todas as cores da primavera. Kat, dê-lhe qualquer coisa que ela queira, a dez por cento abaixo do preço de custo, e eu vou lhe dar a roupa de viagem como presente de casamento. E por falar nisso... Sei exactamente qual é!

Os seus olhos brilhavam, e entrou na sala de estoque e trouxe de lá um costume de seda bege de Paris. Tinha uma saia pelo meio da barriga da perna, e uma jaqueta que disfarçaria subtilmente o busto exagerado de Zina. Pegou uma blusa verde-hortelã para acompanhar o conjunto, e Zina praticamente babou.

- Com sandálias bege finas e um chapéu... Zina, você vai ficar incrível!

Até os olhos de Katsuko brilharam ante o conjunto que Jessie exibia. Zina ficou chocada.

- Jessie, não! Você não pode! Este não!

Falou num sussurro. O preço de venda do costume era mais de 400 dólares.

- É, este sim. - A sua voz agora era meiga. - A não ser que haja outro que lhe agrade mais.

Zina sacudiu a cabeça gravemente, e Jessica deu-lhe um abraço carinhoso, e com um sorriso e uma última piscadela para Zina, voltou para o escritório. Tinha sido uma manhã espantosa, e agora ela teve outra idéia espantosa.

Conseguiu localizar Astrid no cabeleireiro.

- Alguma coisa errada?

Quem sabe Jessie detestara a vitrina, ou não gostara do jeito que ela arrumara o estoque. Estava preocupada, parada ali com o fixador pingando nos seus novos sapatos Gucci de camurça.

- Não, boba, não há nada errado. Quer um emprego?

- Está me gozando?

- Não, Zina acaba de se demitir. Vai se casar. E eu posso estar maluca, porque com você na loja seríamos três capazes de dirigir esta espelunca, mas se não se importa de ser o homem super-qualificado na base da pirâmide por algum tempo, o emprego é todo seu!

- Jessie! Aceito!

Abriu um amplo sorriso e se esqueceu do que estava fazendo com os sapatos.

- Então está contratada. Quer almoçar comigo?

- Vou já para ai. Não, droga, não posso, meu cabelo ainda está molhado... Oh... merda. - As duas riram e o sorriso de Astrid parecia mais amplo a cada minuto. - Estarei lá numa hora, Jessie.. obrigada. Adoro você.

As duas desligaram com sorrisos felizes e Jessica ficou contente por ter telefonado.

As quatro fecharam as portas da Lady J às cinco horas em ponto, ao invés de cinco e meia, e Jessica estourou uma garrafa de champanha que tinha encomendado de tarde. Zina resolvera sair do trabalho uma semana antes do combinado, agora que Jessica tinha Astrid para tomar o seu lugar. Acabaram com a garrafa em meia hora, e Astrid levou Jessica para casa de carro.

- Quer ir até a minha casa tomar um drinque? Ainda não comemorei meu novo emprego.

Jessie sorriu, mas sacudiu a cabeça. Estava começando a sentir os efeitos do dia... que começara com a sua visita a Martin para, tratar do divórcio. Era estranho como ficava se esquecendo disso. A manhã parecia anos-luz atrás dela. Gostaria que o divórcio também já pertencesse ao passado.

- Não, querida, obrigada. Hoje, não.

- Está com medo de confraternizar com os empregados?

- Não, boba, estou estourada, e já estou meio de porre com o champanha, e... tenho que escrever uma carta.

e O rosto de Astrid ficou sóbrio, enquanto escutava.

- Para o Ian?

Jessica concordou, gravemente, o riso agora totalmente desa­parecido dos seus olhos.

- É. Para o Ian.

Astrid deu uma palmadinha na sua mão e Jessica deslizou suavemente para fora com um aceno. Destrancou a porta e ficou parada por um momento no hall de entrada iluminado pelo sol. Estava tão quieto. Tão insuportavelmente quieto. Não mais assustador. Apenas vazio. Quem iria cuidar dela, agora? Era estranho dar-se conta de que ninguém sabia a que horas ela chegava em casa, ou saia, ou onde estava. Ninguém sabia, e ninguém se importava. Bem, havia Astrid, mas ninguém a quem prestar contas, dar explicações, para quem correr para casa, fazer favores, acordar, ligar o despertador, ninguém para quem comprar comida... uma sensação avassaladora de vazio a envolveu. As lágrimas lhe escorreram pelo rosto enquanto olhava à sua volta para a casa que já fora o lar deles. Agora era uma casca. Um pavilhão de lembranças. Um lugar para onde voltar à noite, depois do trabalho. Como tudo o mais, fora repentinamente arremessado para o passado. Tudo estava se movendo tão depressa. As pessoas estavam indo e se modificando e mudando para longe, novas pessoas tomavam os seus lugares, Zina se casando... Astrid na loja... Ian perdido... e dali a meses estaria divorciada. Jessica sentou-se na cadeira do hall de entrada ainda de casaco, a bolsa jogada sobre o ombro, enquanto sentia o gosto da palavra em voz alta. Divorciada.

Era quase meia-noite quando ela lambeu o selo e o colou na carta. Sentia-se com 100 anos de idade. Tinha forçado Ian a sair da sua vida, e não se desviaria da sua decisão. Mas agora não tinha ninguém, excepto a si mesma.

 

- Ora, olhe só para ela! O que está aprontando para hoje à noite?

Astrid parecia encabulada enquanto abotoava o casaco de vison. Estavam em maio, mas ainda fazia frio à noite, e o casaco de peles ficava bem nela.

Jessie acabara de trancar as portas da loja. O esquema estava funcionando bem. Ela, Katsuko e Astrid davam-se bem como se fossem irmãs, formavam uma equipe poderosa, quase poderosa demais, mas estavam gostando, e a boutique estava indo muito me­lhor. Os telefonemas dos credores eram raros. Dava para ver o alívio no rosto de Jessica.

- Está bem, enxerida - Astrid olhou para Jessica, que a observava divertida - acontece que vou sair com alguém.

Falou como se fosse uma garota de 16 anos, com um leve rubor nas faces, e Jessica desatou a rir.

- E já está com uma tremenda cara de culpada. Quem é o cara?

- Um idiota que conheci por intermédio de um amigo.

Parecia quase aflita.

- Quantos anos ele tem?

Jessie desconfiava da paixão de Astrid por homens maiores de 60 anos. Ela ainda estava procurando o Tom.

- Tem 45.

Com uma expressão virginal, terminou de abotoar o casaco.

- Pelo menos tem uma idade decente, para variar.

- Obrigada, Tia Jessie.

As duas mulheres riram e Jessica tirou um pente da bolsa.

- Por falar nisso, também vou sair com alguém.

Ergueu os olhos com um pequeno sorriso.

- É? Com quem?

A situação agora se invertera, e Astrid parecia estar gostando.

Jessie andava saindo bastante, nas últimas semanas. Com homens moços, velhos, um fotógrafo, um banqueiro, até mesmo um estudante de direito, certa vez. Mas nunca com escritores. E jamais falava no Ian. O assunto era proibido, e qualquer menção de Ian era recebida com silencio ou cara feia.

- Vou sair com o amigo de uma amiga de Nova York. Ele veio passar apenas uma semana em San Francisco. Mas, que diabo, por que não? Pareceu legal ao telefone. Um pouco metido a gostoso, mas pelo menos parece meio inteligente. Tem um senso de humor à flor da pele, pelo menos ao telefone. Só espero que se comporte.

Jessica soltou um suspiro leve, enquanto punha o pente de volta na bolsa. O seu cabelo descia até bem além dos ombros, num lençol louro acetinado.

- Você está se preocupando com o comportamento dele? Grande como você é, sempre pode dar-lhe uma surra.

- Desisti disso quando tinha nove anos.

- Por que?

- Encontrei um garoto maior do que eu, e me machuquei.

Ela sorriu e apoiou os pés na mesa.

- Quer uma carona até em casa, Jessie?

- Não, obrigada, querida. Ele vem me apanhar aqui. Penei em mostrar-lhe o movimento no Jerry’s.

Astrid assentiu, mas o Jerry’s não fazia o seu género. Em um bar local “da moda”, cheio de secretárias e publicitário. procurando transar uma trepada. Aquilo a fazia sentir-se solitária. Ia jantar no L’Etoile. Fazia muito mais o seu género. Seria também o género de Jessie, se ela permitisse. Mas ela ainda estava buscando o seu próprio nível. Um novo nível. Qualquer nível. Jessie sabia que o Jerry’s não era para ela, mas o movimento ali dava-lhe algo para observar, enquanto escutava as paqueras sendo transadas bar.

Jessie fez um aceno de despedida, e Astrid cruzou com um jovem nos degraus. Era um pouco mais alto do que Jessie e tinha cabelos escuros e fartos. Usava uma suéter de gola rolê cinzenta, e jeans. Bonitão, mas muito “peludo”, concluiu Astrid, enquanto sorria e seguia o seu caminho. Perguntou-se como Jessie os suportava; todos tinham a mesma cara, não importava a cor dos cabelos como se vestissem, todos pareciam famintos, com tesão e chateados. Subitamente, Astrid ficou contente por não ter mais 30 anos. Os homens de 30 anos ainda tinham um caminho tão longo a percorrer. Com um suspiro, entrou no Jaguar e ligou o motor. Imaginou como andaria o Ian. Há um mês que tinha vontade de escrever para ele, mas não tinha tido coragem. Jessica podia considerar uma traição. Astrid via as cartas fechadas rasgadas ao meio quando esvaziava as cestas de papel do escritório que agora partilhavam. Jessie sabia ser inflexível, quando queria. E agora estava querendo. A porta da loja se abriu e Astrid viu o rapaz entrar.

- Oi, Mário. Sou Jessie.

Imaginou que ele fosse o rapaz que estava esperando, e estendeu-lhe a mão. Ele a ignorou com um sorriso descuidado.

- Suponho que trabalhe aqui.

Nem um comprimento, uma apresentação, um aperto de mão, um olá. Estava examinando o local. E ela junto. Tudo bem, meu chapa, se é para ser assim.

- É. Trabalho aqui.

Resolveu não contar que era a dona. -

- É. Acho que cruzei com a sua patroa na escada. Uma coroa chique, de casaco de pele. Pronta?

Jessie já estava irritada. Astrid não era “uma coroa” e era sua amiga.

Pareceu chateado com o movimento do Jerry’s, mas tomou qua­tro copos de vinho tinto, mesmo assim. Explicou que era dramatur­go, ou estava tentando ser, e ensinava inglês, matemática e italiano como “bico”. Tinha crescido em Nova York, num bairro barra pesa­da do West Side. Pelo menos, era o que ele dizia. Mas Jessie achava que não. Parecia mais classe média do West Side do que barra pe­sada. Ou talvez até dos bairros elegantes da periferia. E agora crescera e passara a não se lavar, a ser inamistoso e grosseiro. Es­tava surpresa com os anigos que tinham dado o seu nome para ele. Gente que conhecia profissionalmente, mas mesmo assim... como podiam mandar-lhe isso?

- E que tal Nova York? Há algum tempo que não vou até lá.

- É? Quanto tempo?

- Quase oito meses.

- Ainda está lá. Fui a uma festa de cocaína espectacular na se­mana passada no St. Mark’s Pisco. Que tal as transas por aqui?

- Cocaína? Não sei.

Ela sorvia o seu vinho.

- Não faz o seu género? - Ele continuou a parecer entediado enquanto se esforçava à beça para parecer cínico. Garoto da cidade grande na província. Jessie estava desejando que ele caísse morto ali mesmo. Ou desaparecesse, ao menos. - Não gosta de cocaína? - insistiu ele.

- Não. Mas esta é uma boa cidade. É boa de se morar.

- Parece uma merda de chata.

Ela ergueu os olhos e sorriu animada, esperando desapontá-lo. Mário, o dramaturgo, estava se saindo um pé no saco dos mais legí­timos.

- Bem, Mário, não é tão excitante quanto o West Side de Nova York, mas temos os nossos locais de diversão.

- Ouvi dizer que é um deserto intelectual.

- Você também é, querido.

- Depende das pessoas com quem se conversa. Aqui há al­guns escritores. Bons escritores. Muito bons.

Estava pensando em Ian e tinha vontade de enfiá-lo pela goela daquele palhaço abaixo. Ian tinha classe. Ian era encantador. Ian era brilhante. Ian era bonito. O que ela estava fazendo saindo com esse porco? Esse grosseirão? Esse...

- É? Quem, por exemplo?

- O quê?

O seu pensamento passara de Mário para o Ian.

- Você falou que aqui há bons escritores e eu falei quem, por exemplo. Está se referindo a escritores de ficção científica?

Falou com nojo e com aquele sorriso cínico que fez Jessie sen­tir vontade de acertar com o cálice de vinho nos dentes dele.

- Não, não apenas escritores de ficção científica. Estou me referindo a ficção, ficção pura, não-ficção.

Começou a enumerar nomes e se deu conta de que eram todos amigos de Ian. Mário escutou, mas não fez comentários. Jessica estava fervendo de raiva.

- Sabe o que me deixa pasmo?

- O quê?

- Que uma mulher inteligente como você venda roupas numa loja. Não sei, imaginava que você fizesse algo criativo.

- Como escrever?

- Escrever, pintar, esculpir, alguma coisa significativa. Que tipo de existência é essa, vendendo roupas para coroas de casaco de pele?

- Bem, sabe como é, a gente faz o que pode. -- Jessie tes­tou impedir o seu lábio de se encrespar enquanto soma. - Que tipo de peça está escrevendo?

- Teatro novo. Um elenco só de mulheres em pêlo. Há uma cena fantástica tomando forma agora, para o segundo ato. Uma cena de amor homossexual depois de uma mulher dar à luz.

- Parece divertido. - Ele não percebeu o tom de voz irónico. - Já está com fome?

E ainda tinha que enfrentar um jantar com ele. Estava pen­sando em dizer-se acometida de um violento ataque de peste bubónica. Qualquer coisa para se ver livre dele. Mas sobreviveria. Já tinha sobrevivido a outros, antes. Com mais frequência do que gostaria de admitir.

- É. Até que curtiria uma boa refeição.

Ela deu várias sugestões e ele escolheu comida mexicana, por­que a boa cozinha mexicana era rara em Nova York. Pelo menos, tinha bom senso nesse aspecto. Ela o levou a um pequeno restau­rante na Lombard Street. A companhia era um lixo, mas a comida era boa, pelo menos.

Depois do jantar ela bocejou ruidosamente várias vezes, espe­rando que ele se mancasse, mas não se mancou. Queria ver um pouco da “vida nocturna”, se é que havia alguma. Havia, mas ela não ia participar dela. Não esta noite, e não com ele. Ela sugeriu um café na Union Street, perto de casa. Tomaria um cappuccino e se mandaria. Estava precisando do café, de qualquer maneira. To­mara três ou quatro copos de vinho durante o jantar. Mas Mário tomara pelo menos o dobro, depois do consumo anterior no Jer­ry’s. Estava começando a ficar com voz pastosa.

Acomodara-se no café, ele com um Irish coffee e ela com um cappuccino espumante, e ele a olhou com olhos apertados sobre a beirada do copo.

- Você não é uma guria feia.

Fazia com que parecesse uma análise química. O seu tipo sanguíneo é O positivo.

- Obrigada.

- Onde mora, afinal de contas?

- A uma ou duas ladeiras daqui.

Bebeu a espuma doce do leite da parte de cima do seu café e ocupou-se parecendo evasiva. Uma coisa que não estava pla­nejando fazer era partilhar com Mário o seu endereço. Já estava mais do que cheia.

- Ladeiras grandes?

- Médias. Por quê?

- Por que não quero subir porra nenhuma de ladeira grande a pé, irmã, só isso. Estou podre de cansado. E só um pouquinho bêbado.

Juntou o polegar e o indicador e deu um sorrizinho obsceno. Jessie quase sentiu ânsias de vómito ao olhar para ele.

- Não há problema, Mário. Podemos tomar um táxi e terei prazer em largá-lo onde você está hospedado.

- Como assim “onde você está hospedado”?

Havia uma pequena fagulha de raiva nos seus olhos, ardendo em confusão.

- Você é um rapaz esperto. O que lhe pareceu?

- Pareceu-me por um minuto que você estava sendo um pé no saco cheia de frescura. Imagino que vou ficar com você.

Por um momento teve vontade de dizer-lhe que era casada, mas não resolveria nada desse jeito. Além disso, como poderia ex­plicar o facto de ter ido jantar com ele?

- Mário - sorriu docemente para ele - você imaginou errado. Não fazemos as coisas desse jeito na província. Eu, pelo menos, não faço.

- O que quer dizer com isso?

Agora estava desabado na cadeira, com uma expressão desa­gradável no rosto.

- Quero dizer obrigada por uma linda noite.

- Começou a abotoar a jaqueta e se levantou com um olhar melancólico. Mas ele se debruçou sobre a mesa e agarrou-lhe o bra­ço. O aperto no pulso dela era surpreendentemente doloroso.

- Escute, sua putinha, jantamos juntos, não foi? Quero di­zer, porra, o que você acha...

Havia uma expressão no rosto dele que ela não queria ver nunca mais, e subitamente a conversa anterior com Astrid veio-lhe à men­te... “se ele se comportar mal, você pode bater nele”... e ela li­vrou o braço, e algo na sua fisionomia disse a ele que não insis­tisse.

- Não sei o que você acha, meu chapa. Mas sei o que eu acho. E acredito que você ficará extremamente arrependido se me tocar de novo. Boa noite.

Ela já tinha ido embora antes que ele pudesse reagir, e foram os garçons que lhe aguentaram a raiva, enquanto ele varria a mesa com o braço, derrubando as xícaras e os copos no chão. Foram precisos dois garçons para convencê-lo de que o que estava querendo era ar fresco.

A esta altura Jessica estava quase em casa. Enquanto subia sossegadamente a última ladeira que levava à sua casa, o ar nocturno era suave no seu rosto, e ela se sentia surpreendentemente calma. Tinha sido uma merda de noite, mas estava livre dele. E jamais teria que vê-lo de novo. Homens como aquele a deixavam toda ar­repiada de nojo, mas pelo menos sabia como lidar com eles. E con­sigo mesma. A princípio, noites como aquela a deixavam apavorada. Mas, a esta altura, já tinha saído com todos os tipos... todos os tipos desagradáveis na praça. Os bons estavam casados, ou escondidos em algum canto. E os que sobravam eram todos iguais: be­biam demais, riam demais, ou não riam, eram afectados ou neuróticos ou homossexuais limítrofes, curtiam tóxicos ou sexo grupal, ou queriam contar que não tinham uma erecção há quatro anos por causa do que as ex-mulheres tinham feito com eles. Ela estava começando a se perguntar se não se sentiria melhor ficando em casa sozinha. A vida libertina não era muito divertida.

 

 

- Que tal foi ontem à noite? - Jessie perguntou primeiro a Astrid, quando esta entrou na loja, na manhã seguinte. Estava es­perando driblar as perguntas de Astrid, desse jeito. Não tinha von­tade de falar sobre o Mário.

- Até que foi uma noite agradável. Não desgostei.

Parecia feliz e relaxada e quase surpresa. Ao contrário de Jessie, ela não esperava divertir-se quando saía com um homem. Aqui­lo a tornava mais fácil de agradar.

- Que tal foi a sua noite? Acho que cruzei com o seu galã quando ia saindo.

- É, acho que foi. Uma pena que você não o fez tropeçar.

- Foi tão ruim assim, é?

Astrid parecia estar com pena, o que ainda doía mais.

- Na verdade, consideravelmente pior. Foi o fim da picada. - Na opinião de Astrid, a cara dele não negava. - Bem, vamos voltar ao batente.

Jessie conseguiu dar um ligeiro sorriso enquanto folheava a cor­respondência, separando as contas das cartas. Parou apenas por um momento para olhar para o envelope branco, simples e comprido, antes de rasgá-lo ao meio e jogar os pedaços na cesta de papel. Outra carta do Ian. Astrid ficava magoada cada vez que via Jessie fazer isso. Parecia tão cruel, um desperdício tão grande. Perguntava-se se Ian saberia, ou suspeitaria, que Jessie não estava lendo as suas car­tas. Perguntava-se o que ele diria naquelas cartas.

- Não fique com essa cara, Astrid.

A voz de Jessica interrompeu os seus pensamentos.

- Que cara?

- Como se eu estivesse arrancando fora o seu coração cada vez que jogo fora as cartas dele.

Continuava a separar a correspondência, parecendo quase indiferente. Mas não totalmente. Astrid viu a mão dela tremer só um pouquinho.

- Mas por que você faz isso?

          - Porque não temos mais nada a nos dizer um ao outro. Não quero ouvir, nem ler, nem abrir nenhuma porta. Não daria certo. Não quero marcar bobeira de entrar num diálogo com ele.

- Mas não acha que devia dar-lhe uma chance de dizer o que pensa? Assim parece tão injusto.

Os olhos de Astrid eram quase súplicas, e Jessica voltou a olhar para a correspondência enquanto respondia:

- Não faz mal. Estou pouco me lixando para o que ele diga. Já me resolvi. Ele agora só conseguiria tornar as coisas mais difíceis. Não poderia modificar nada.

Tem certeza de que quer o divórcio?

Jessica ergueu os olhos antes de responder, e fitou Astrid den­tro dos olhos.

- Sim. Tenho certeza.

A despeito dos Mários, a despeito da solidão e do vazio, ainda estava certa de que o divórcio era a coisa certa. Mas isso não sig­nificava que não doesse.

Nesse momento, duas freguesas entraram na loja e pouparam a Jessica o dissabor de novas discussões. Katsuko tinha saído, e Astrid teve que se oferecer para ajudá-las. Jessica entrou no escritório e fechou a porta suavemente. Astrid sabia o que aquilo significava. O assunto estava encerrado. Sempre estava.

Depois disso, foi um dia cheio, uma semana cheia, um mês cheio. A loja agora estava em óptima forma, e o pessoal estava fazendo as compras de verão.

Recebiam de vez em quando postais de Zina, que já estava grávida, e Katsuko resolvera deixar o cabelo crescer de novo. A vida retornara aos detalhes triviais: quem ia para a Europa, qual seria o novo comprimento de bainha, se deviam ou não pintar a fachada da loja, o plantio de novos gerânios no pequeno jardim do apartamento de Katsuko. Jessie nunca cessava de sentir gratidão pelas trivialidades. A orquestração na sua vida tinha sido sombria por tempo demais; agora era Mozart e Vivaldi de novo. Simples e fácil o leve. E tendo tomado a decisão de pedir o divórcio, não sobravam grandes decisões.

Era quase como se a história de horror nunca tivesse acontecido. O anel de esmeraldas da mãe estava de volta ao banco, em segurança. Os títulos de propriedade da casa e da loja estavam livres e desimpedidos de novo. A loja estava firme, de novo. Mas tinha havido mudanças. Muito mais do que ela gostaria de admitir. E ela também se modificara. Estava mais independente, menos assustada, mais madura. A vida seguia o seu curso.

Estavam todos tomando café na boutique certa manhã, quando Jessie se pós de pé e começou a mexer nos vestidos de uma certa secção.

- Está planejando cortar dez ou 20 centímetros da sua altura? - indagou Astrid com um sorriso, vendo Jessie mexer nus tamanhos 40.

- Ora, cale a boca. - Olhou por cima do ombro com um sorriso, depois franziu a testa. - Kat, qual é o tamanho que a Zina costuma usar?

- Ah, Jesus, essa é dureza. Tamanho 38 nos quadris, e 48 na parte de cima.

- Fantástico. Então, que manequim você diria, para uma bata?

- Manequim 40.

- Era o que eu estava procurando. Lançou um olhar vi­torioso para Astrid. - Pensei que devíamos mandar-lhe um presente. O garoto com quem se casou não tem muito dinheiro, e vai ser difícil ela arranjar coisa que lhe sirva, agora que está grávida. O que acham desses?

Pegou três vestidos tipo bata da linha de primavera, em cores de sorvete e modelos discretos.

- Legal! - aprovou Kat instantaneamente, e Astrid pareceu emocionada.

- Que idéia gentil.

Jessie parecia quase encabulada enquanto sorria e os entregava para Katsuko.

- Ahhh... que babaquice. - As três riram e Jessie voltou a se sentar para tomar o seu café. - Mande-os para ela hoje mesmo, sim, Kat? Acha que devemos mandar alguma coisa para o bebé?

Não sabia por que, mas queria comemorar o bebé de Zina. Como se ele, ou ela, fosse alguém especial.

- Ainda não. Só vai chegar daqui a meses. Além disso, dá azar. - Astrid parecia pouco à vontade. - Por que todo esse interesse em artigos de maternidade?

- Resolvi que, se nunca vou ser mãe, vou curtir uma de tia. Além do mais, achei que, se começar a puxar o saco dela bem cedo, pode ser que me convide para madrinha.

Astrid riu e Katsuko dobrou os vestidos cuidadosamente numa caixa cheia de papel fino amarelo. Lançou um rápido olhar para Jessie, mas esta se levantou e se afastou. Sentia-se subitamente so­litária. Ansiando por um filho pela primeira vez na vida. E por que não? Concluiu que era apenas por que estava pronta para amar de novo.

- Ela vai adorá-los, Jessie. E quem falou que você nunca vai ser mãe?

Katsuko estava intrigada. Era a primeira vez que Jessie falava abertamente sobre filhos. Katsuko sempre desconfiara que Jessie de­via ter chegado a uma conclusão sobre filhos, mas era raro para ela abrir-se sobre qualquer assunto pessoal. Não era uma dessas mulheres que discutem a sua vida sexual e os seus sonhos mais caros no escritório. Mas Jessie parecia estar com uma disposição de tagarelar que lhe era incomum. E não tinha mais o Ian para fazer as suas confidências. Sentia muita falta de alguém com quem conversar, actualmente. Sentou-se mais uma vez, antes de replicar.

- Eu falei que nunca vou ser mãe. Quero dizer... Jesus, já viram o que anda dando sopa por aí? Se o que tenho visto é uma amostragem-padrão, não me interessa propagar a raça. Deviam ­estar pensando é em extingui-la! - As duas outras mulheres riram, e Jessie acabou o seu café. - Abobados, retardados, debilóides, im­becis. Sem falar naqueles que aniquilaram o cérebro com tóxicos, os filhos da puta que estão enganando as mulheres, e aqueles que não têm senso de humor. Vocês esperam que eu me case com um desses amoricos e vá ter um bebé? - E então a sua fisionomia ficou séria. - Além disso, sou velha demais.

- Não seja ridícula - manifestou-se Astrid.

- Não estou sendo. Estou sendo honesta. Quando chegar a hora de ter o bebé estarei com 34, talvez 35 anos. velha de­mais. A gente deve tê-lo na idade da Zina. Quantos anos ela tem? Vinte e seis? Vinte e sete?

Katsuko confirmou com a cabeça, e depois fez uma pergunta que balançou as estruturas de Jessie.

- Jessie.... você agora se arrepende de não ter tido filhos com Ian?

Fez-se uma longa pausa antes dela responder, e Astrid ficou com medo que ela fosse perder a paciência, ou a compostura, mas não perdeu.

- Não sei. Talvez me arrependa. Talvez apenas possa dizer isso porque nunca estive num raio de quilómetros de uma criança. Mas parece triste... mais do que triste, um desperdício, vazio... ter vivido tantos anos com um homem e não ter nada. Alguns livros, algumas plantas, alguns móveis, um carro estourado. Mas nada real, nada duradouro, nada que diga “somos”, mesmo que já não o sejamos mais, que diga “eu o amei”, embora não o ame mais. - Havia lágrimas nos seus olhos enquanto dava ligeiramente de ombros e se levantava. Evitou o olhar delas e fez um ar de ocupada enquanto se dirigia de novo para o seu pequeno escritório. – Bem, é isso ai. De volta ao trabalho, senhoras. E não se esqueça de mandar logo os vestidos para Zina, Kat.

Só voltaram a vê-la de novo na hora do almoço, e nem Astrid nem Katsuko ousaram comentar a conversa.

Mas estavam todas basicamente felizes. Jessie estava inquieta e cheia dos homens com quem andava saindo, mas não estava infeliz. Não havia mais traumas nem crises na sua vida. E Astrid ainda estava saindo com o mesmo homem do começo da primavera. E gostando mais do que queria admitir. Ele a levava muito ao teatro, coleccionava obras de escultores jovens e desconhecidos, e tinha uma pequena casa em Mendocino que Astrid finalmente admitiu já ter visitado. Estava passando os fins de semana ali, e por isso Jessie não tinha mais notícias dela de sexta até segunda.

Jessica também estava ocupada. Trabalhava aos sábados na Lady J, e sempre havia homens novos. O problema era que nunca havia homens “velhos”, homens que conhecia há algum tempo, e em cuja companhia se sentia à vontade. Era sempre a festa do aniversário, nunca os sapatos velhos. Ficava cheia das explicações constantes. Sim, esquio sim, jogo ténis. Não, não gosto de dar longas ca­minhadas. Sim, sei dirigir. Não, não sou alérgica a mariscos. Prefiro colchões duros, uso sapatos número tal, vestidos número tal, te­nho tanto de altura, gosto de anéis, adoro brincos, detesto rubis, ado­ro esmeraldas... tudo do que está citado acima, nada do que está citado acima. Era como se estivesse constantemente se candidatan­do a um novo emprego.

Estava tendo novamente dificuldades em dormir, mas tinha se mantido afastada dos comprimidos desde a sua temporada na fa­zenda. Sabia que não eram a solução, e algum dia... algum dinheiro.... alguém apareceria e ela ia ter vontade que ele ficasse. Talvez. Ou talvez não. Tinha até mesmo considerado a possibilidade de que ninguém aparecesse outra vez. Ninguém que pudesse amar. Era uma idéia horrível, mas admitia a possibilidade. Fora isso o que a fizera arrepender-se súbita e quase cruelmente de nunca ter tido filhos. Sempre pensara que tinha a opção. Agora as suas opções tinham desaparecido.

Mas talvez não importasse que ela nunca tivesse filhos, ou amasse outro homem, ou... talvez não importasse, afinal. Ficou Imaginando se já teria cumprido o seu destino. Sete anos com Ian, uma explosão no final, uma boutique, e alguns amigos. Quem sabe era só isso. A sua vida agora era toda igual, chocha, sem propósito, e isso a intrigava. Tudo o que tinha a fazer era se levantar, ir para o trabalho, ficar na loja o dia todo, fechá-la às cinco e meia, ir para casa e mudar de roupa, sair para jantar, dizer boa-noite, ir para a cama. E no dia seguinte, tudo recomeçaria de novo. Es­tava cansada, mas não deprimida. Não estava feliz, mas pelo me­nos não se sentia assustada ou solitária. Não estava nada. Estava entorpecida.

Ian mandara um recado, por intermédio de Martin, para que ela não vendesse a casa; compraria a parte dela, no futuro, se fosse preciso, mas não queria que a casa fosse vendida. Assim, ela continuava morando lá, mas agora não passava de uma casa. Mantinha-a arrumadinha, ela servia às suas necessidades, era confortável, era familiar. Mas pusera todas as coisas de Ian no estúdio e o tran­cara. E a casa perdera metade da sua personalidade quando ela agira assim. Agora era apenas uma casa. Lady J era apenas uma loja. Ela era apenas uma futura-divorciada no mercado.

 

- Bom dia, madame. Quer um encontro?

Astrid estava carregando lírios-do-vale quando entrou na loja, e largou um ramo junto à xícara de café de Jessie.

- Puxa, mas como você está com uma cara boa para esta hora da manhã!

Jessica tentou dar um sorriso e fez uma careta, arrependendo se da última garrafa de vinho branco da véspera. Mas deixava até a Jessie feliz ver Astrid daquele jeito, usando o cabelo solto e maioria das vezes, e com uma luz feliz nos olhos.

- OK., Srta. Raio de Sol. Que tipo de encontro?

Tentou outro sorriso, e era genuíno. Era impossível não sorrir para Astrid.

- Um encontro com um homem.

Parecia quase uma garotinha.

- É o que espero. Quer dizer um encontro às cegas?

- Não, eu não creio que ele seja cego, Jessica. Tem apenas 39 anos.

As duas riram do trocadilho e Jessica deu de ombros.

- Tá legal, por que não? Como é ele?

- Um amor, e só um pouquinho “não muito, alto”. - Astrid olhou cautelosamente para Jess. - Tem importância?

- Vou ter que debruçar para conversar com ele?

Astrid deu uma risadinha e sacudiu a cabeça.

- Não. E ele é realmente muito simpático. É divorciado.

- E todo mundo não é?

Jessie ficava constantemente espantada ao ver quantos casamentos falhavam. Não tinha consciência disso antes de pedir o próprio divórcio. Sempre lhe parecera que todo mundo que conhecia era casado. E agora todo mundo que conhecia era divorciado.

Tinham ido jantar os quatro naquela quinta-feira, e o namorado de Astrid era encantador. Elegante, divertido e bonitão. Na verdade era o primeiro homem que Jessie conhecia há muito tempo que atraía. Tinha o mesmo tipo gracioso de Ian, mas com cabelos prateados e uma barba estreita e bem aparada. Viajara extensivamente, entendia bastante de arte e música, era muito engraçado quanto contava algumas das suas experiências, e era maravilhoso para a Astrid. Jessica aprovou integralmente, mas o que mais agradou na noite toda foi ver a felicidade de Astrid. Realmente tinha encontrado o homem perfeito para ela.

O parceiro de Jessie para aquela noite era agradável, gentil, insuportavelmente monótono. Divorciado, com três filhos, trabalhava no departamento de fidelcomissos de um banco. Também media 1,70m, e Jessie tinha posto sapatos de salto alto. Ficava quase cabeça maior do que ele. Mas quando Astrid sugeriu que fossem dançar, Jessie não teve coragem de negar. Pelo menos este não a agarrou na porta de casa. Apertou-lhe a mão, disse que ligaria ela, enquanto ela tomava nota mentalmente para não esperar pren­dendo a respiração, e foi para casa sozinho. Ela estava certa de que na manhã seguinte, nem se lembraria do nome dele. Para que se incomodar?

Tirou a roupa e foi para a cama, mas só conseguiu pegar no sono dali a duas horas. Sentiu como se acabasse de fechar os olhos. quando o telefone tocou, na manhã seguinte. Era Martin Schwartz.

- Jessie?

- Não. Verónica Lake.

A sua voz era roufenha, e ainda estava semi-adormecida.

- Desculpe se a acordei.

- Tudo bem, tenho que ir trabalhar, de qualquer maneira.

- Tenho uma coisa para você.

- O meu divórcio?

Sentou-se na cama e pegou os cigarros. Não tinha certeza se estava preparada para este tipo de notícia.

- Não. Esse só daqui a quatro meses. Tenho uma outra coi­sa. Um cheque.

- Pombas, de quê?

Era tudo muito confuso.

- Dez mil dólares.

- Meu Deus. Mas, por quê? E de quem?

- Do editor do seu marido, Jessica. Ele vendeu o livro.

- Ah. - Ela expirou cuidadosamente e franziu a testa. - Bem, ponha-o na conta dele, Martin. Não é meu, pela madrugada.

- É, sim. Ele o endossou para você.

- Bem, então desendosse, merda. Não o quero.

As suas mãos agora tremiam, e a sua voz também.

- Ele falou que era para reembolsá-la dos meus honorários, dos honorários de Green, e diversas outras coisas.

- Que ridículo. Diga a ele que não quero. Paguei aquelas con­tas e ele não me deve nada.

- Jessica... ele passou o cheque para o seu nome.

- Estou me lixando. Risque o endosso. Rasgue o cheque. Faça. o que quiser com ele, mas eu não o quero!

A voz dela estava ficando mais alta, de nervosismo.

- Não pode fazer isso por ele? Parece significar tanto para ele. Acho que é uma questão de integridade. Ian realmente acha que lhe deve isso.

- Bem, está errado.

- Talvez eu esteja errado. - Martin podia sentir uma leve camada de suor a porejar-lhe a testa. - Pode ser que ele apenas esteja querendo dar-lhe um presente.

- Pode ser. Mas seja como for, Martin, eu não aceitarei o cheque. - A voz de Martin fora súplice, e ela sacudiu a cabeça com veemência, enquanto apagava o cigarro. - Olhe. É simples. Ele não me deve nada. Não quero nada. Não vou aceitar nada. Estou feliz porque vendeu o livro, acho que é maravilhoso para ele. Agora ele deve ficar com o dinheiro e me deixar em paz. Vai precisar de dinheiro quando sair da prisão, de qualquer forma. É isso aí, Martin. Não quero o cheque. Fim de papo. Certo?

- Certo.

Parecia derrotado, e eles desligaram. Na sua extremidade do fio, ela tremia; na dele, sentava-se espiando a paisagem, perguntando-se como contaria ao Ian. Seus olhos tinham estado tão cheios de vida enquanto falava em reembolsar Jessie. E agora Martin teria que contar-lhe isso.

O dia de Jessie começara mal. Queimou o café, o banho estava frio. Deu uma topada na cama, e o jornaleiro esqueceu de entregar o jornal da manhã. Estava com uma cara de meter medo quando chegou na loja. Astrid olhou para ela, encabulada.

- Está bem, está bem, eu sei, você o detestou.

- Detestei quem? - perguntou Jessie, subitamente sem tender.

- O cara que lhe apresentamos ontem à noite. Nunca me dera conta que era um chato.

- Bem, é, mas não é por causa disso que estou com raiva, portanto deixe pra lá. - E então ergueu os olhos e viu o rosto de Astrid, magoado e confuso, feito de uma criança. - Ah, Astrid, desculpe. Estou num mau humor fodido. Tudo já deu errado hoje. Schwartz telefonou de manhã.

- Sobre o quê?

O rosto de Astrid ficou instantaneamente preocupado.

- Ian vendeu o seu livro.

- E o que há de errado nisso?

A preocupação virou confusão de novo.

- Nada. Excepto que ele está tentando me dar o dinheiro, e eu não o quero, e é um pé no saco, só isso.

Serviu-se de uma xícara de café e se sentou. Mas o rosto de Astrid agora estava grave.

- Agora você sabe como ele costumava se sentir. Aceitando o seu dinheiro.

- Como assim?

- Às vezes é mais fácil dar do que receber.

- Você está parecendo a sua mãe.

- Ainda bem.

Jessie balançou a cabeça e entrou no escritório. Ficou lá até a hora do almoço.

Astrid bateu na porta fechada ao meio-dia e meia. Um sorriso estava lutando para escapar do seu rosto sério... espere só até Jessie vê-lo! Forçou as feições a reassumirem uma expressão de assunto oficial e pareceu quase solene quando Jessie abriu a porta.

- O que é?

- Temos um problema, Jessica.

- Não pode cuidar dele? Estou verificando as facturas.

- Lamento, Jessica, mas simplesmente não posso tratar disso.

- Formidável. - Jessie jogou a caneta na mesa às suas costas e entrou na sala principal. Astrid observava-a nervosamente. Tinha assinado a nota. Talvez Jessie a matasse, mas não se importava. Devia esse tanto ao Ian. Jessie olhou ao seu redor. Não havia nin­guém na loja, excepto Katsuko, que estava ao telefone. - Então? Quem está aqui? Qual é o problema?

Ela estava começando a parecer extremamente irritada.

- É uma entrega, Jessie. Lá fora. Fizeram “onda”, e disseram que não iam descarregar aqui dentro. Falaram que não são obriga­dos a fazer senão entregas de calçada, resmungaram sobre a guia, e foram embora.

- Mas que merda! Já tínhamos discutido isso no mês passado e eu lhe disse que se...

Escancarou a porta e saiu em largas passadas, os olhos fais­cando, procurando a entrega na calçada. E então ela o viu. Esta­cionado na entrada para carros, onde o Jaguar de Astrid estivera um pouco mais cedo.

Era um elegante Morgan de corrida verde, com frisos pretos e bancos de couro vermelho. A capota estava arriada. Era uma be­leza, e em condições ainda melhores do que o seu antigo Morgan. Jessica ficou atónita por um momento, depois olhou para Astrid e começou a chorar. Sabia que era do Ian.

 

Com Astrid enchendo a sua paciência dia e noite, ela resolveu ficar com o carro. “Como um favor para ele.” Ainda não queria admitir o quanto o estava adorando, e ainda não abria as cartas de Ian.

Em junho, resolveu tirar umas férias de cinco dias e ir visitar a Tia Beth na fazenda.

- Que diabo, Astrid, eu mereço. E vão me fazer bem.

Sentia-se vagamente embaraçada por estar indo, mas não tinha certeza por quê.

- Não precisa me dar desculpas. Vou tirar três semanas de férias em julho.

Astrid ia para a Europa com o namorado, mas não queria comentar o assunto. Mantinha a sua vida muito reservada, até mesmo para Jessie. Esta se perguntava se, quem sabe, a outra tivesse medo de que as coisas não dessem certo.

Jessica saiu cedo numa tarde de quarta-feira, no Morgan, num óptimo astral, a cabeleira esvoaçando atrás de si. Tia Beth ficara encantada ao saber que ela viria.

 

- Ora, ora, está de carro novo. Muito bonito.

Tinha escutado o barulho do carro de Jessica no caminho de cascalho, e viera recebê-la. O sol se punha atrás das montanhas

- Foi um presente do Ian. Ele vendeu o seu livro.

- Mas que belo presente. E como está você, minha querida?

Abraçou Jessica com carinho, e a mulher mais jovem inclinou-se para beijar-lhe a face. As suas mãos se encontraram e se apertaram com força. Estavam igualmente satisfeitas em se ver.

- Não poderia estar melhor, Tia Beth. E você está com uma cara maravilhosa!

- Mais velha a cada dia que passa. E mais braba, também ao que me dizem.

Deram risadinhas felizes e entraram na casa de braços dados.

A casa parecia a mesma de dois meses atrás, e Jessica deixou escapar um suspiro enquanto olhava ao seu redor.

- Sinto-me como se estivesse em casa.

Olhou para Tia Beth do outro lado da sala, e notou que seu rosto estava sendo cuidadosamente observado pelos olhos azuis pe­netrantes da outra mulher.

- Como tem estado, realmente, Jessica? Astrid conta muito pouco, e as suas cartas contam ainda menos. Fico me perguntando como as coisas se resolveram. Uma xícara de chá?

Jessica fez que sim, e a Tia Beth lhe serviu uma xícara de Earl Grey.

- Tenho estado bem. Pedi divórcio quando voltei, mas já tinha lhe contado isso na minha primeira carta.

Tia Beth sacudiu a cabeça, inexpressivamente, esperando o rosto.

- Arrependeu-se?

Jessica hesitou apenas uma fracção de segundo antes de respon­der, e depois sacudiu a cabeça.

- Não, não me arrependi. Mas me arrependo do passado a toda hora, mais do que me agrada admitir. Parece que estou sempre a revivê-lo, pensando “se isso tivesse sido assim” e “se a quilo ti­vesse sido assado”. Parece tão sem sentido.

Tinha um ar triste enquanto pousava a xícara de chá e olhava para Tia Beth.

- É sem sentido, minha querida. E não há nada mais doloroso do que ficar olhando para trás, para tempos felizes que não existem mais. Ou simplesmente para o passado. Tem notícias dele?

- Sim, de certo modo.

Jessica tentou parecer imprecisa.

- Como assim?

- Bem, ele me escreve e eu rasgo as cartas dele e jogo-as fora.

Tia Beth ergueu a sobrancelha.

- Antes ou depois de lê-las?

- Antes. Não as abro.

Sentia-se uma tola, e desviou os olhos de mulher idosa.

- Tem medo das cartas dele, Jessica?

Para a Tia Beth ela podia dizer a verdade. Balançou lentamente a cabeça.

- Tenho. Medo de recriminações e súplicas e poemas e pa­lavras que são perfeitamente criados para soarem do modo que ele sabe que quero ouvir. É tarde demais para isso. Está acabado. Encer­rado. Fiz a coisa certa, e não vou ficar discutindo a minha decisão com ele. Já vi outras pessoas fazerem isso, e não tem sentido. Ele apenas me faria sentir culpada.

- Você é que faz isso consigo mesma. Mas sabe, fico pensando. Se ele não estivesse na prisão, você ainda estaria insistindo no divórcio?

- Não sei. Talvez acabasse chegando a esse ponto, de qualquer forma.

- Mas você não está se aproveitando da situação, Jessica? Se ele fosse livre, poderia forçá-la a discutir o assunto com ele. Agora, só o que pode fazer é escrever, e você não lhe faz nem a cortesia de ler as suas cartas. Não sei se isso é grosseria, covardia, ou simplesmente maldade. - Eram palavras duras, mas seus olhos diziam que ela falava a sério. - E também não entendo o negócio do carro. Falou que ele lhe deu o carro novo. Aceitou-o... mas não as cartas dele?

Jessica crispou-se ante a insinuação.

- Isso é culpa da Astrid. Disse que eu devia ficar com o carro. Queria me reembolsar o dinheiro que gastei com o julgamento, e eu não quis aceitar o cheque do nosso advogado. Então, Ian mandou que ele me comprasse o carro. Suponho que ficou com o resto do dinheiro.

- E você não lhe agradeceu pelo carro?

Parecia direitinho uma mãe. O quê? Não escreveu um bilhete de agradecimento à sua anfitriã? Jessica quase riu.

- Não, não agradeci.

- Sei. E agora?

- Nada. O divórcio será homologado daqui a três meses. E fim de papo.

- E você nunca mais o verá? - Tia Beth parecia em dúvida mas Jessica sacudiu a cabeça com firmeza. - Acho que você vai se arrepender, Jessica. A gente precisa se despedir. Se não o fizer, de um modo satisfatório, nunca se tira direito as farpas da alma. Pode causar-lhe mais transtornos desse jeito. Não pode apagar sete anos da sua vida sem se despedir. Ou será que pode? Bem, de qualquer modo, você parece estar resolvida. - Ficou vendo a cabeça inclinada de Jessica, enquanto esta brincava com o gato malhado. - Está resolvida, não está?

Queria a verdade, nem que fosse apenas pelo bem de Jessie.

- Eu... é, bem... ah, droga, não sei, Tia Beth. Às vezes fico sem saber. Já me resolvi, e vou até o fim, mas de vez em quando, eu... ah, imagino que seja apenas pesar.

- Talvez não, filha. Talvez seja dúvida. Talvez não deseje mesmo se divorciar dele.

- Desejo, sim... mas... mas sinto uma falta tão grande dele. Sinto falta do jeito como a gente se conhece. Ele é a única pessoa no mundo todo que realmente me conhece. E eu o conheço igualmente bem. Sinto falta disso. E sinto falta do que costumávamos sonhar, do que eu pensava que éramos, do que eu queria que ele fosse. Mas talvez eu nem o conhecesse. Talvez apenas pensasse que co­nhecia. Talvez me enganasse o tempo todo. Talvez aquela mulher fosse namorada dele e o acusou de estupro apenas porque estava com raiva por algum motivo. Talvez ele me odiasse por pagar as contas, ou talvez só continuasse casado comigo por causa disso. Não sei mais nada. Excepto que sinto falta dele. Mas pode até ser que aquilo de que sinto falta jamais tenha existido.

- Por que não lhe pergunta? Não acha que ele contaria a verdade, agora? Ou será que está com medo de que ele possa real­mente contar a verdade?

- Talvez seja isto. Talvez a verdade seja algo que eu não queira nunca ouvir.

- Então fica rasgando cartas e se certificando de que nunca ouvirá. E o que vai fazer quando ele for solto? Mudar de cidade e trocar de nome?

Jessica riu da sugestão absurda.

- Talvez a essa altura ele também não queira falar comigo.

Mas não parecia acreditar no que dizia.

- Não conte com isso. Mas o mais importante, Jessica, você se dá conta do que está dizendo? Está dizendo que Ian provavelmente nunca a amou, que não havia nada em você que ele amava excepto a minha capacidade de pagar as contas dele. Não é isso?

- Pode ser. - Mas os seus olhos estavam ficando taciturnos. Já estava cheia daquela sondagem dolorosa. - Que diferença faz agora?

- Toda a diferença do mundo. Significa a diferença entre sa­ber que foi amada e pensar que foi usada. E se ele a usou, mas também a amava? Você também não o usou, Jessica? A maioria das pessoas que ama o faz, e não necessariamente de uma maneira ruim. Faz parte do acordo, para preencher as necessidades mútuas...  financeiras, emocionais, sejam lá quais forem.

- Nunca pensei nisso dessa maneira. E o gozado é que sem­pre achei que eu o estava usando. O Ian não tem medo de ficar sozinho. Eu sempre tive. Sentia-me tão perdida sem a minha fa­mília, depois que todos morreram. Não tinha ninguém, excepto o Ian. Eu podia tomar todas as decisões do mundo, fazer qualquer coisa que quisesse; sentir orgulho de mim mesma... contanto que tivesse o Ian. Ele me mantinha em pé para eu continuar enganando  o mundo, e a mim mesma, que era durona. Eu o usava para isso, eu nunca pensei que ele soubesse.

Parecia quase encabulada de admiti-lo.

- E se ele soubesse? E daí? Não é pecado ter fraquezas, ou usar a força da pessoa que você ama. Contanto que não a use mal­dosamente. E quanto a você, agora? Está mais forte?

- Mais forte do que eu pensava.

- E feliz?

Este é que era o âmago da questão.

Ela hesitou, depois sacudiu a cabeça.

- Não. Não estou. Minha vida é tão... tão vazia, Tia Beth. Tão morta. Às vezes sinto que não tenho motivo para viver. Para quê? Para mim mesma? Para me vestir todas as manhãs e trocar de roupa às seis da tarde? Para sair com um estranho idiota qualquer com mau hálito e sem alma? Para regar as minhas plantas? Para que estou vivendo? Uma boutique para a qual estou me lixando?.... Para quê?

Tia Beth acenou com a mão e ela parou.

- Não aguento isso, Jessica. Você está parecendo direitinho a Astrid de antigamente. E é tudo bobagem. Você tem todos os mo­tivos pelos quais viver, com ou sem rapazes de mau hálito. Mas na sua idade, acima de tudo, tem a si mesma para quem viver. Tem tudo à sua frente. Tem a juventude. E olhe só para mim, ainda encontro coisas pelas quais viver, muitas coisas, e não a contragosto. Curto integralmente a minha vida, mesmo na minha idade.

- Então, invejo-a. Acordo de manhã e, sinceramente, às ve­zes me pergunto por quê. O resto do tempo passo me movimen­tando feito um robô. Mas que diabo eu tenho?

- Você tem o que é.

- E o que é isso? Uma mulher divorciada de 31 anos, dona de uma boutique, metade de uma casa, várias plantas e um carro esporte. Não tenho filhos, nem marido, nem família, ninguém que me ame e ninguém para amar. Jesus, para que me importar?

Lágrimas quentes enchiam seus olhos enquanto continuava.

- Então encontre alguém para amar, Jessica. Não tentou? Ou­tros que não os sem alma e com mau hálito.

Os olhos de Tia Beth brilharam maliciosos e Jessica riu por entre as lágrimas, e depois deu de ombros.

- Você devia ver o que está dando sopa por aí. São um horror. - Agora as lágrimas começavam a escorrer pelo seu rosto. – São simplesmente um horror. E... nenhum me conhece.

Fechou os olhos com força ao dizer as últimas palavras, e inclinou a cabeça.

- Era isso o que Astrid costumava dizer, Jessica, e agora olhe só para ela. - Tia Beth deu a volta por trás da cadeira de Jessica e acariciou-lhe suavemente a cabeça. - Está badalando para aí feito uma escolar, fingindo ser “discreta” e se divertindo à grande. É tão discreta quanto o nascer do sol. Mas estou contente por ela. Está finalmente feliz. Encontrou alguém, e você também vai encontrar, minha querida. Leva tempo.

- Quanto tempo?

Jessie sentiu-se com 12 anos de novo, pedindo o impossível de uma mãe consciente.

- Isso depende de você.

- Mas como? Como? - Jessie virou-se na cadeira para olhar para a Tia Beth. - São todos tão horríveis. Rapazes que se acham formidáveis e querem ir para a cama com você e com qualquer outra mulher que encontram na rua, que querem deixar os ténis na mesa da sala de jantar e o seu suprimento de drogas na sua casa. Eles fa­zem a gente se sentir como um parquímetro. Colocam uma moeda e voltam mais tarde... talvez... se se lembrarem onde nos deixaram estacionadas. Fazem com que eu me sinta como um nada sem no­me. E os mais velhos também não são nada melhores; estão todos resolvidos a provar que são machos e fingem adorar o movimento de libertação da mulher, porque é o que se espera deles... mas o Ian nunca foi... ah, que merda. Tudo me chateia mortalmente. Tudo. As pessoas que conheço me chateiam, e as pessoas que não conheço me aborrecem. E...

Sabia que estava choramingando, mas não parecia chateada, e sim desesperada

- Jessie, querida, você me aborrece. Com todo esse lixo. Está certo, você está precisando de uma mudança.. Vamos concordar com isso. Então, por que não sair de San Francisco, por algum tempo? Já pensou nisso? - Jessie balançou a cabeça, tristemente, e Tia Beth lançou-lhe o olhar que reservava apenas para as crian­ças muito mimadas. - Está pensando em voltar para Nova York?

- Não... não sei. Isso seria pior. Quem sabe as montanhas, ou a praia ou a roça. Uma coisa assim. Tia Beth, estou tão cansada de gente.

Recostou-se com um suspiro, enxugou o rosto e estirou as per­nas. Tia Beth estava com uma cara irritada.

- Ora, cale a boca. Sabe qual é o seu problema, Jessica? Você é completamente mimada. Teve um marido que a adorava e a fazia sentir-se como uma mulher, e uma mulher muito amada, e tinha uma butique que curtia, e um lar que vocês partilhavam e também pa­reciam curtir. Bem, por escolha própria, você não tem mais o ma­rido, e espremeu o quanto pode da loja, e quem sabe a casa tam­bém já deu o que tinha que dar. Portanto, livre-se de tudo. E comece de zero. Foi o que fiz quando me divorciei, e estava com 67 anos. Jessica se eu posso fazê-lo, você também pode. Vim do Leste para cá, comprei esta propriedade, conheci gente nova, e tenho me diver­tido à grande, desde então. E se daqui a cinco anos eu começar a me cansar daqui, vendo tudo, e vou fazer outra coisa, se estiver viva. Mas se estiver vivo, então estarei viva. Mas não vivendo aqui, semimorta e não mais interessada no que estiver fazendo. Portanto, o que você vai fazer agora? Está na hora de fazer alguma coisa!

Os olhos da mulher idosa faiscavam.

- Ando pensando em me livrar da loja, mas não posso vender a casa. Metade é do Ian.

- Então, por que não a aluga?

Era uma idéia, e que nunca lhe ocorrera antes. E ficou um pouco chocada com o que tinha acabado de dizer. Vender a loja? Quando pensara nisso? Ou será que vinha pensando nisso o tempo todo? As palavras tinham simplesmente escapado.

- Terei que pensar nisso tudo.

- Aqui é um bom lugar para isso, Jessica. Que bom que você veio.

- Também acho. Estaria perdida sem você.

Foi para junto dela e abraçou-a. Tia Beth estava se tornando um sustentáculo para ela.

- Já está com fome?

- Estou ficando.

- Óptimo. Podemos queimar o jantar juntas.

Fizeram hambúrgueres e alcachofras com molho holandês, um dos favoritos de Tia Beth, e desta feita não queimaram nem talharam o molho. Foi uma refeição deliciosa, e ficaram acordadas até quase meia-noite, falando de assuntos mais amenos do que os discutidos antes do jantar.

Jessica estirou-se na cama do quarto rosa, agora familiar, e ficou vendo o fogo bruxulear enquanto o velho gato malhado se acomodava ao seu lado. Era bom estar de volta. Ali ela se sentia em casa. Era um lugar do qual não estava enjoada.

Tia Beth já tinha saído para andar a cavalo quando Jessie acordou na manhã seguinte, e havia um bilhete explicando qual cavalo que poderia montar, se estivesse com vontade. Já conhecia o terreno suficientemente bem, graças à visita anterior, para dar um passeio para  poder montanhas sozinha.

Pouco depois das 11, saiu montada numa simpática égua castanha. Usava um chapéu de palha de abas largas e tinha enfiado um livro e uma maçã no pequeno alforje. Sentia vontade de estar sozinha por algum tempo, e esta era a maneira perfeita de fazê-lo. Depois de uma cavalgada de meia hora, encontrou um pequeno riacho e amarrou o animal a um galho de árvore. A égua não pareceu fazer objecção, e Jessie tirou as botas e foi caminhar na água. Ria enquanto cantarolava, e desabotoou os punhos para enrolar as mangas. Sentia-se mais livre do que jamais se lembrava de ter es­tado. Foi então que viu um homem a observá-la.

Ergueu os olhos, sobressaltada, e ele pediu desculpas com um sorriso. Era assustador encontrar alguém de repente no que ela pensava ser o seu deserto particular, mas ele era alto e muito bem vestido um traje de montaria castanho-claro. Falava suavemente, e com um sotaque inglês.

- Desculpe. Pretendia dizer alguma coisa mais cedo, mas você parecia tão feliz. Não quis estragar a sua alegria.

Jessie ficou contente por não ter tirado a camisa, coisa que ti­nha pensado em fazer.

- Estou invadindo a sua propriedade?

Ela estava descalça no riacho, uma das mangas enroladas, o cabelo preso frouxamente num coque no alto da cabeça. Para ele, era uma visão. Uma deusa grega de cabelos dourados em roupas de montaria modernas. Não se via muitas mulheres assim... não ali, na “província”. Perdida numa encosta de morro, descalça num riacho. Era como uma cena de uma tela do século XVIII, e deu-lhe vontade de ir até lá e tocá-la. Beijá-la, talvez. A idéia fê-lo sor­rir de novo enquanto olhava para ela.

- Não, creio que o invasor sou eu. Vim dar um passeio hoje de manhã e não estou muito familiarizado com o território, limites de propriedades e coisas assim. Temo que seja um intruso.

O sotaque era puro inglês de colégio interno. Eton, quem sabe. O pretenso “intruso” era um cavalheiro da cabeça aos pés. En­quanto olhava para ele, ficou impressionada com a sua semelhança com Ian. Era mais alto, ombros um pouco mais largos, mas o ros­to... os olhos... a inclinação da cabeça... o cabelo dele era muito louro, mais louro do que o de Jessie. Mas havia algo de Ian nele, o suficiente para mexer com ela. Desviou os olhos e sentou-se enquanto vestir as botas, descendo as mangas com cuidado primeiro. Enquanto isso o desconhecido continuava a observá-la com um pe­queno sorriso.

- Não precisa ir embora por minha causa. De qualquer forma, já tenho que ir para casa. Mas, diga-me, mora por aqui?

Ela sacudiu a cabeça lentamente, soltou os cabelos, e ergueu os olhos para ele. Era muito bonitão.

- Não, sou hóspede de uma casa.

- Não diga! Eu também. - Mencionou o nome do pessoal com quem estava hospedado, mas ela não se lembrava de ter ouvido Tia Beth falar neles. - Vai se demorar muito por aqui?

- Alguns dias. Depois, tenho que voltar para casa.

- Onde?

Era muito perguntador. Quase irritantemente perguntador, só que era tão danado de bonito.

- San Francisco. Moro lá. - Ela evitara a pergunta seguinte, e agora era a sua vez. Por que não? - E você?

A idéia de interrogá-lo a divertia.

- Moro em Los Angeles. Mas devo me mudar para San Francisco daqui a um mês, na verdade.

Ela quase soltou uma risadinha, enquanto o ouvia falar. Pare­cia-se com todas as imitações que ela já ouvira de ingleses empo­lados. Era tããão britânico, de pé na colina no seu traje de montaria impecável, batendo com o chicote na palma da mão. Era mesmo uma parada.

- Falei alguma coisa engraçada?

- Não, senhor.

Com um meio-sorriso, ela começou a subir o morro na direcção dele. O seu cavalo estava amarrado perto de onde ele se encontrava.

- Minha firma está me transferindo para San Francisco. Vim de Londres para cá há três anos, e já me fartei de Los Angeles.

- Vai gostar de San Francisco. É uma cidade maravilhosa.

Era uma conversa totalmente maluca entre dois estranhos no meio do nada; estavam se comportando como se estivessem na Quinta Avenida, ou na Union Street, ou no Faubourg St. Honoré. Ela caiu na risada quando se achou ao lado dele.

- Parece que a divirto sem pretender fazê-lo.

Ela sorriu de novo e deu de ombros ligeiramente.

- Muitas coisas fazem isso.

- Sei. - Estendeu a mão para ela, e ficou com um ar meio solene, mas o sorriso ainda lhe dançava nos olhos. – Como vai? Sou Geoffrey Bates.

- Olá. Sou Jessica Clarke.

De pé sob a árvore, apertaram-se as mãos e ela sorriu para ele de novo. Visto de perto, ele não se parecia tanto com Ian. Mas muito bonitinho, por si mesmo, o Sr. Geoffrey Bates de Londres. ele estava pensando em como gostava do jeito que ela ficava quando sorria. E parecia sorrir um bocado.

Hesitou por um momento antes de fazer a próxima pergunta, mas finalmente cedeu. Queria saber.

- Onde está hospedada, a propósito?

A propósito? isso fez Jessica sorrir de novo, e depois risada.

- Com a mãe de uma amiga.

Foi imprecisa, e ele sorriu enquanto erguia a sobrancelha.

- E não quer me dizer quem? Prometo não fazê-la passar vergonha e aparecer para jantar sem ser convidado.

Ela riu de novo e sentiu-se boba, mas o rosto do inglês tinha ficado sério. Acabara de se dar conta de que ela bem podia estar viajando com um homem. Aquilo seria constrangedor. Olhara para a mão esquerda dela quase instantaneamente, e ficara aliviado ao ver que não tinha anéis, especialmente alianças de ouro. Mas não tinha olhado com atenção suficiente para notar a leve marca na carne ou a tira ligeiramente mais clara onde ela usara a aliança durante sete anos antes de tirá-la fazia alguns meses.

- Estou na casa da Sra. Bethanie Williams.

- Creio que já ouvi alguém falar no nome dela. - Parecia enormemente aliviado. - Quer uma ajuda?

Ela estava parada junto ao cavalo quando ele perguntou, e virou-se para ele com ar divertido.

- Não é necessário. Mas devo dizer que sim?

Pensou tê-lo Visto enrubescer enquanto subia com facilidade na meia. Era uma pergunta boba para ser feita para uma mulher alta como ela, mas foi então que notou a altura dele. Era pelo menos dez ou 12 centímetros mais alto do que o Ian... 1,95m? l,98m? Nem mesmo o Ian era alto assim... “nem mesmo”... por que ainda pensava nele daquele jeito? Como se ele fosse o máximo dos homens. O modelo de perfeição ao qual todos os ho­mens sempre seriam comparados, na mente dela.

- Posso procurá-la na casa da Sra. Williams?

Jessica balançou a cabeça, cautelosa de novo. Este era certa­mente um meio estranho de conhecer um homem, e ela não tinha a menor idéia de quem ou o que ele era.

- Não vou me demorar muito por aqui.

- Então terei que procurá-la logo, não é?

Filho da mãe insistente, não? Sorriu de novo, em dúvida. Mas ele não parecia um filho da mãe. Parecia ser um homem simpático. Trinta e tantos anos, olhos cinzentos meigos e cabelos sedosos. As roupas que usava pareciam caras. Também usava um pequeno anel de ouro no dedo mínimo da mão direita. Ela pensou ter visto um brasão riscado no ouro, mas não queria bisbilhotar. Tudo nele parecia formal e elegante. Junto com os culotes usava botas pretas engraxadas e uma camisa azul macia com uma gravata alta. A ja­queta de tweed castanho-claro pendia de um galho, e ele parecia um tanto estranho naquele ambiente agreste, mas ao mesmo tempo incrivelmente bonito. Mais e mais, enquanto ela o observava. O que era precisamente como ele se sentia a respeito dela, embora Jessica estivesse começando a se perguntar se o seu cabelo estava muito despenteado.

- Prazer em conhecê-lo.

Preparou-se para partir com um sorriso e um aceno.

- Você não respondeu à minha pergunta.

Segurava a brida do cavalo dela enquanto fitava os olhos de Jessica. Sabia o que ele queria dizer. E gostava do estilo dele.

- Sim. Pode me procurar.

Ele deu um passo atrás em silêncio, e com um sorriso radiante, fez-lhe uma reverência. Ela também gostava do sorriso dele. E foi rindo sozinha enquanto se dirigia de volta à fazenda.

 

- O passeio foi bom, querida?

- Muito. E conheci um homem muito estranho.

- Não diga! Quem?

Tia Beth parecia intrigada. Homens estranhos eram uma rari­dade nas proximidades da fazenda, excepto um capataz aqui e ali.

- É hóspede de alguém, e terrivelmente britânico. Mas é tam­bém muito bonitão.

Tia Beth sorriu à expressão no rosto dela.

- Ora, ora. Um estranho alto, moreno e bonito na minha fazenda? Santo Deus! Onde está? E quantos anos tem?

Jessica soltou uma risadinha.

- Eu o vi primeiro. E além disso, não é moreno. É louro, e muito mais alto do que eu.

- Então é seu, minha querida. Jamais gostei de homens altos.

- Eu os adoro.

Tia Beth olhou por cima dos óculos de leitura com ar solene.

- Você não tem muita escolha.

Ambas riram de novo e apreciaram um belo pôr-do-sol por trás das montanhas.

Foi mais uma noite serena, e Jessica se levantou às sete, na manhã seguinte. Tinha desejos de sair por aí, mas desta feita não na égua castanha. Preparou uma xícara de café - pela primeira vez tinha acordado antes da Tia Beth - e partiu no Morgan, fa­zendo o menos barulho possível. Nunca tinha rodado muito por ali, e estava louca de vontade de fazer uma exploração.

O sol ia alto no céu quando ela a encontrou. E estava em más condições. Mas era uma beleza. Parecia que alguém a havia perdido na grama alta e depois se cansara de procurá-la, há dé­cadas. E agora lá estava, sozinha e mal-amada, com um cartaz de ALUGA-SE muito inclinado de banda, perto dos degraus da en­trada. Era uma casa pequena em estilo vitoriano, mas perfeitamen­te proporcionada. Experimentou a porta da frente, mas estava tran­cada. E Jessica pegou-se sentada nos degraus da frente, abanando o rosto com o chapéu de palha de abas largas, sorridente. Não tinha certeza por que, mas sentia-se bem. E incrivelmente feliz.

Guiou de volta a 80 na estrada rural empoeirada e entrou na casa com um amplo sorriso. Tia Beth estava examinando a correspondência, e ergueu os olhos, surpresa.

- Bem, por onde andou? Saiu um bocado cedo.

Havia malícia naqueles olhos azuis e uma delicada desconfiança.

- Espere só até saber o que encontrei!

- Outro homem nas minhas terras? E desta vez um francês. Eu sabia. Minha querida, está tendo visões por causa do sol.

Tia Beth estalou a língua, compreensivamente, e Jessica estourou na risada e jogou o chapéu bem para o alto.

- Não, um homem não! Tia Beth, é uma casa! Uma em estilo vitoriano, incrível, linda, maravilhosa! E estou loucamente apaixonada por ela.

- Ah, Deus, Jessie, não é a que estou pensando? A velha casa dos Wheeling em North Road?

Sabia exactamente qual era.

- Não tenho a menor idéia, só sei que a adoro.

- E já a comprou e o seu decorador vai chegar de Nova York logo amanhã cedo.

Tia Beth recusava-se a falar a sério.

- Não. Não estou brincando. Ela é linda. Já ficou recuada olhando para ela? Eu já, durante uma hora hoje de manhã, e fiquei sentada nos degraus da frente quase o mesmo tempo. Como é que será por dentro? Estava trancada, droga. Cheguei a experimentar todas as janelas.

- Só Deus sabe como é por dentro. Há quase 15 anos ninguém mora nela. Na verdade, costumava ser muito linda, tem muito pouco terreno, portanto ninguém quer comprá-la. Mas agora provavelmente poderia ser adquirida com um pouco mais de terreno, porque os Parker que moram logo atrás resolveram que querem vender uma boa parte da terra deles. Quase 40 acres, se é que me lembro bem. Mas, ao que eu saiba, a casa dos Wheerling continua vazia. Ano após ano. Os corretores mostraram-na para mim quando vim comprar a estância, mas não me interessei pelo local. Casa demais, terreno de menos, e eu queria alguma coisa mais moderna. Por que cargas d’água você iria querer uma casa em estilo vitoriano no meio do fim do mundo?

- Mas Tia Beth, é tão linda!

Jessica parecia jovem e romântica enquanto sorria para a amiga.

- Ah, as ilusões da juventude. Talvez seja preciso ser jovem e estar apaixonada para querer uma casa daquelas. Eu queria uma coisa mais prática. Mas posso entender por que você gostou dela. - Estava notando o brilho nos olhos verdes da sua jovem amiga. - Jessica, exactamente o que está pretendendo? A sua voz agora era séria e quieta.

- Ainda não sei. Mas estou pensando. Sobre muitas coisas diferentes. Pode ser que sejam todas idéias malucas, mas tem algu­ma coisa fermentando.

Jessica parecia claramente satisfeita consigo mesma. Tinha si­do uma manhã maravilhosa e algo fantástico tinha acontecido na sua cabeça ou no seu coração, ela não tinha certeza, mas sentia-se viva e excitada e nova em folha de novo. Era mesmo uma loucura. Uma passagem da Bíblia que tinha aprendido na escola dominical tinha vindo à sua mente enquanto estava sentada olhando para a casa. “Vejam, as coisas velhas desapareceram. Todas as coisas es­tão ficando novas.” Ela ficara pensando naquilo, e sabia que era verdade. Todas as coisas velhas estavam sumindo da sua vida... até mesmo o horror do julgamento... até o Ian...

- Bem, Jessie, deixe-me saber o que você resolveu quando tudo estiver “fermentado”. Ou antes disso, se eu puder ajudar.

- Ainda não. Mas quem sabe mais tarde. - Tia Beth con­cordou e voltou para a sua correspondência, e Jessie subiu escada acima, cantarolando baixinho. E então parou e voltou a olhar para Tia Beth. - Como faço para ver a casa por dentro?

- Ligue para os correctores. Ficarão encantados. Não creio que mostrem a casa senão uma vez a cada cinco anos. Procure o telefone deles no catálogo. Imobiliária do Condado de Hoover. Um nome terrivelmente original.

Tia Beth estava começando a se admirar... mas não podia levar Jessie a sério. Isso devia ser um capricho passageiro, uma curtição. Mas manteria Jessie entretida. Só o facto de pensar em outra coisa que não no seu tédio lhe faria bem. Uma coisa era certa... não parecera entediada quando chegara. Não naquela manhã. E certamente não na noite anterior.

Geoffrey Bates telefonou naquela tarde enquanto Jessie estava fora, e ligou de novo por volta das cinco, quando ela acabara de voltar. Indagou cortesmente se podia “aparecer” para tomar um drinque, ou trazê-la para conhecer os seus anfitriões. Jessie optou pela vinda dele à casa da Tia Beth. E estava animadíssima.

Ele foi terrivelmente encantador, muito divertido, muito com­portado, e ficou fascinado pela Tia Beth, o que agradou a Jessie. Mas ficou ainda mais fascinado por Jessie, o que agradou a Beth. Parecia ainda mais esplêndido do que Jessie anunciara, de blazer e calças de gabardina cor de marfim, uma camisa azul Wedgewood e um plastrão azul-marinho ao pescoço. Terrivelmente elegante mas também muito atraente. E faziam um casal espectacular, ambos altos e louros, com uma graça natural. Teriam virado cabeças em toda parte, mesmo da maneira informal como se sentavam na sala de visitas da fazenda.

- Cavalguei pelas montanhas à sua procura hoje, Jessica, e tudo em vão. Onde estava se escondendo?

- Numa casa com uma banheira de 1,20 m de profundidade e uma cozinha que parece saída de um museu.

- Bancando a Cachinhos de Ouro, imagino. Os três ursos chegaram antes de você sair, e que tal estava o mingau?

- Delicioso.

Riu para ele e enrubesceu ligeiramente quando ele pegou na sua mão. Mas ele a segurou apenas por um segundo.

- Pensei que você era uma aparição ontem, nas montanhas. Parecia uma deusa.

- Tia Beth me acusou de estar tendo visões por causa do sol.

- É, mas ela pelo menos não pensou ter visto um deus.

Tia Beth deu-lhe um fora para ver como reagia, mas ele reagiu bem. Foi muito cortês, e foi embora pouco antes do jantar, não antes de convidá-las para almoçar na casa dos seus anfitriões, no dia seguinte. Tia Beth fugiu ao convite, alegando que teria coisas para tratar na fazenda, mas Jessica aceitou com prazer. Ele se afastou num Porsche cor de chocolate, e Jessica olhou para Beth um brilho juvenil nos olhos.

- Bem, o que acha?

- Exageradamente alto. - Tia Beth tentou parecer severa, mas falhou instantaneamente quando o seu rosto se abriu num sorriso. - Mas, fora isso, aprovo de coração. Ele é um amor, Jessica! Simplesmente um amor.

Tia Beth soava quase tão entusiasmada quanto Jessica se sentia. Estava tentando lutar contra isso, mas com dificuldade.

- Ele é simpático, não é? - Pareceu sonhadora por um momento depois fez uma pirueta num pé. - Mas não tanto quanto a minha casa.

- Jessica, você me confunde! Estou velha demais para esse tipo de jogo! Que casa? E como ousa comparar um homem a uma casa?

- É fácil, porque sou má. E estou falando da minha casa. Da que aluguei hoje, para todo o verão!

O rosto de Tia Beth ficou sério ao ouvir a notícia.

- Alugou a casa dos Wheeling para o verão, Jessica?

- Sim. E se gostar, ficarei mais tempo. Tia Beth, sinto-ma feliz aqui, e você tinha razão, está na hora de mudar.

- Sim, filha. Mas, para uma coisa como essa? Isso é vida para uma mulher velha, não para você. Não pode se trancafiar aqui na roça. Com quem irá conversar? O que irá fazer?

- Conversarei com você, e começarei a pintar de novo. Há anos que não pinto, e adoro! Posso até pintá-la.

- Jessica, Jessica! Sempre tão avoada! Às vezes você me preo­cupa. Da última vez, se pós de pé num salto e correu para casa para pedir o divórcio, e agora o que está fazendo? Por favor, que­rida, pense no assunto com cuidado.

- Pensei, e estou pensando, e vou pensar. Só a aluguei para o verão. Depois, disso, vamos ver. Não é uma mudança permanente. Vou experimentar. A única decisão permanente que tomei foi a de vender a loja.

- Santo Deus, mas como andou ocupada. Tem certeza disso tudo?

Tia Beth ficou mais do que ligeiramente desconcertada. Sugerira vender a loja, mas não tinha pensado que Jessica a levaria a sério. O que tinha feito?

- Certeza absoluta. Vou vender a Lady J para Astrid, ou pelo menos oferecê-la para ela, quando voltar.

- E ela vai comprar. Pode ter certeza disso, Jessica. Não posso dizer que lamento. Acho que seria bom para ela. Mas, você não vai se arrepender? A boutique parece significar muito para você, querida.

- Significou, mas isso agora faz parte do passado. Uma par­te da qual tenho que me livrar. Não creio que vá me arrepender.

- Espero que não. - Havia mudanças no ar de novo; as duas o pressentiam. Mas, pela primeira vez em longo tempo, Jessie­ sentia-se viva, e nem um pouco entediada. - A casa está habi­tável?

- Mais ou menos, com uma boa faxina. Uma faxina muito boa.

- E quanto aos móveis?

- Vou morar num saco de dormir.

Não parecia nem um pouco perturbada.

- Não seja ridícula. Tenho uns móveis sobrando no galpão, e outros no sótão. Sirva-se. Pelo menos estará confortável.

- E feliz.

- Jessie... espero que sim. E por favor, tente não fazer ne­nhuma coisa importante depressa demais. Vá com calma. Penso. Pese as suas decisões.

- É isso o que você faz?

Tia Beth não pode abafar o riso ante a pergunta.

- Não. Mas é o tipo de conselho que se espera que as mu­lheres velhas dêem às mocinhas. Eu sempre entro directo e faço o que quero, e conserto os estragos depois. E para falar a verdade, vou adorar tê-la aqui no verão.

A mulher mais velha sorriu suavemente e Jessica ficou pen­sativa.

- E se eu ficar após o verão?

- Ah, vou fechar as minhas portas para você e atirar em você das janelas da cozinha. O que imagina que faria? Ficaria en­cantada, é claro. Mas não a encorajaria a se mudar para cá por minha causa. Não faço isso nem com a Astrid.

Mas não pensava mesmo que Jessie se mudaria; no final do verão estaria cansada da falta de movimentação... e o inglês que ia se mudar para San Francisco parecia prometer muito.

Ele veio buscar Jessie para almoçar no dia seguinte, e ela vol­tou para casa de Tia Beth num óptimo astral. Gostara dos amigos dele, e estes tinham ficado encantados à idéia da mudança dela para lá durante o verão, e a convidaram para aparecer na casa deles sempre que tivesse vontade. Eram um casal na casa dos 50 que convidava amigos de Los Angeles para ficar com eles, com frequência. Geoffrey era um deles...

- Parece que vou passar um bocado de tempo aqui nesse verão - falou.

- É?

- É, e é uma viagem longa à beça de San Francisco para cá. Você podia ter escolhido um lugar mais próximo para o seu refugio de verão, Jessica. - Ainda não lhe tinha dito que estava pensando em se mudar de vez. Tinha olhado risonha nos olhos de Geoffrey enquanto ele a ajudava a sair do carro, na casa de Tia Beth. - Por falar nisso, Srta. Clarke, quando vai voltar para a cidade?

- Amanhã.

Mas a “Srta. Clarke” mexera com ela.. Srta.? Parecia estranho. Tão... tão vazio.

- Também vou voltar para Los Angeles amanhã. Mas, a propósito - olhou para ela quase astutamente, e definitivamente satisfeito consigo mesmo - estou planejando estar em San Francisco na quarta-feira. Que tal jantarmos juntos?

- Eu adoraria.

- Eu também.

Pareceu surpreendentemente sério enquanto caminhavam para a casa, e discretamente envolveu a mão dela com a sua.

 

Astrid ficou atónita com a oferta de Jessica, mas radiante. Desde. a primeira vez que vira a boutique que tivera vontade de comprá-la.

- Mas você tem certeza?

- Absoluta. Fique com ela. Vou lhe dar uma idéia do quanto vale o estoque, falar com o meu advogado, e acertaremos o preço.

Falou com Phillip Wald, e dois dias mais tarde eles deram o preço. Astrid não hesitou.

Pediu aos próprios advogados para prepararem os papéis. A Lady J seria sua pelo preço de 85.000 dólares. Tanto ela quanto Jessica ficaram satisfeitas com o preço. A única pontada que Jessica sentiu foi quando Astrid falou em trocar o nome da boutique para Lady A. O som em inglês era quase o mesmo, e não faria diferença para as clientes. Mas não seria mais a mesma coisa. Ela seria da Astrid. O fim de uma era finalmente chegara.

Estavam no escritório dos fundos discutindo os planos para a venda quando Katsuko apareceu à porta com um sorriso no rosto.

- Tem alguém aí procurando por você, Jessie. Alguém muito bonitinho, se me permite acrescentar.

- É? - Enfiou a cabeça pela porta e viu Geoffrey. - Ah! Alô.

Mandou que ele entrasse na sala e apresentou-o à Astrid, explicando que a Sra. Williams era a mãe dela.

- Conhece a minha mãe?

Astrid ficou surpresa. A mãe não conhecia ninguém como Geoffrey.

- Tive o prazer de conhecê-la no fim de semana, na fazenda. - As sobrancelhas de Astrid ergueram-se enquanto lançava um olhar de surpresa para Jessica, e Geoffrey acrescentou rapidamente:

- Eu estava lá visitando amigos.

E subitamente o rosto de Astrid falou que ela entendia por que Jessica estava planejando passar o verão ali, naquela velha casa alugada em estilo vitoriano. Astrid quase se perguntou se seria por esse motivo que ela estava vendendo a loja. Mas sentia como se tivesse perdido alguma pecinha da história. Será que Jessica andava guardando segredos? Olhou para Geoffrey e viu que este fitava Jessica carinhosamente. E Astrid prendeu as perguntas que estavam na ponta da língua. Como? Quando? E agora? Será que ele... ele iria... ele faria... Geoffrey interrompeu os pensamentos dela com outro sorriso incandescente.

- Posso convidar as duas lindas senhoras para almoçar?

Chegou mesmo a abranger suavemente Katsuko com um olhar de pesar; sabia que alguém precisava ficar cuidando da loja. Os modos dele eram impecáveis. E Astrid gostava disso. Sentiu-se quase tentada a aceitar o convite, de pura curiosidade, mas não queria fazer isso com Jessie. Mas Jessica rapidamente cortou o convite para o almoço.

- Nem nos tente, Geoffrey. Estávamos discutindo negócios, a venda da loja e...

- Ora, pelo amor de Deus, Jessica! - Astrid interrompeu os protestos conscenciosos de Jessica. - Não seja boba... podemos falar de negócios mais tarde. De qualquer forma, tenho algumas coisas a fazer. Preciso ir à cidade - olhou pesarosa Geoffrey - mas vocês dois tratem de ter um almoço gostoso. Encontro-a de volta aqui na loja por volta das duas, duas e meia.

- É melhor duas e meia, Sra. Bonner.

Geoffrey aproveitou rapidamente a deixa. E Jessica só olhando. Gostava do jeito como ele lidava com as coisas. Estava acostumado a exercer o poder, o que era evidente. Aquilo a faria sentir-se segura, mas não ameaçada. Agora que não sentia necessidade de que cuidassem dela, as suas atenções eram um luxo, não um plasma vital. Estava curtindo a diferença, e pegou-se perguntando como teria sido com o Ian, se as suas necessidades não fossem tão desesperadas, se tivesse tido mais confiança em si mesma. Mas afastou o pensamento da cabeça.

Almoçaram ali perto, num restaurante aberto na Union Street e foi uma refeição muito agradável. Ele era louco por cavalos, pilotava o próprio avião, estava planejando uma viagem para a África no inverno seguinte, e cursara Cambridge, depois de Eton. E estava evidente que estava muito impressionado com Jessie. E cada vez que ele sorria aquele seu sorriso encantador, ela se derretia toda.

- Você parece muito diferente aqui na cidade, Jessica.

- É impressionante a diferença que faz quando penteio o cabelo. - Ambos sorriram à lembrança do seu primeiro encontro. - Até mesmo uso sapatos, aqui.

- É mesmo? Que interessante. Deixe-me dar uma espiada. - Afastou jocosamente a toalha da mesa para dar uma olhada nos sapatos dela, e viu um belíssimo par de sapatos de camurça de Gucci, cor de canela. Eram quase exactamente da mesma cor da saia de camurça que estava usando, com uma blusa de seda cor de salmão. O tom de salmão era a cor favorita de Ian, e ela tivera que forçar-se a vestir a blusa naquela manhã. Então era a pre­ferida de Ian, e dai? Não havia motivo para largá-la de lado. Há meses que não usava a blusa, como se, por não fazê-lo, estivesse de alguma forma renunciando a ele. Agora parecia uma tolice. - Aprovo os seus sapatos. E, a propósito, está usando uma blusa muito bonita.

Enrubesceu ante o elogio, principalmente porque ele lhe fazia lembrar Ian. Havia algo no Geoffrey...

- No que estava pensando?

Tinha visto uma sombra passar rapidamente pelos olhos dela.

- Em nada.

- Que vergonha, contando mentiras. Alguma coisa séria lhe passou pela cabeça. Coisa triste?

Assim lhe parecera.

- Claro que não.

Estava encabulada porque ele tinha visto tanto. Demais. Era muito observador.

- Nunca se casou, Jessie? Parece incrível ter a sorte de en­contrar uma mulher como você, livre e sem compromissos. Ou será que estou fazendo pressuposições?

Porém desde que a conhecera que tinha vontade de saber.

- Está fazendo a pressuposição certa. Sou livre e sem com­promissos. E sim, já fui casada.

O senso de oportunidade dele era impressionante, era como se tivesse lido os pensamentos dela.

- Tem filhos?

Ergueu uma sobrancelha com um ar curioso.

- Não. Nenhum.

- Óptimo.

- Óptimo? - Que coisa esquisita de se dizer. - Não gosta de crianças, Geoffrey?

- Muitíssimo. Das outras pessoas. - Sorriu com naturali­dade. - Na verdade, sou um tão perfeitamente maravilhoso. Mas daria um pai perfeitamente terrível

- Por que diz isso?

- Circulo demais. Sou egoísta demais. Quando amo uma mu­lher, detesto compartilhá-la nas coisas importantes, e se você vai ser uma mãe como manda o figurino, tem que se dividir entre ma­rido e rebentos. Talvez eu mesmo seja um tanto criança, mas quero aproveitar noites longas e românticas, viagens inesperadas a Paris, esquiar na Suíça sem três filhotes de nariz escorrendo chorando dentro do carro... Posso lhe dar mil motivos horrivelmente egoís­tas. Mas todos sinceros. Isso a choca?

Não pedia desculpas pelo que estava dizendo, mas estava dis­posto a aceitar que ela não aprovasse. Há muito tempo que cessara de dar desculpas. Na verdade, ele tinha tomado as suas providên­cias para que não mais houvesse a possibilidade de um “escorre­gão”. Tinha se resolvido, e agora não havia como voltar atrás.

- Não, não me choca. Sempre senti a mesma coisa. Na ver­dade, exactamente a mesma coisa.

- Mas?

- O que quer dizer?

- Havia um “mas” na sua voz.

Ele o disse muito suavemente, e ela sorriu.

- É mesmo? Não tenho certeza. Costumava ter idéias muito definidas a esse respeito. Mas, não sei... mudei muito.

- Mudar é natural, se a gente se divorcia. Mas, de repente, você se pega desejando filhos? Imaginei que desejaria a liberdade permanente.

- Não necessariamente. E também não fiz nenhuma mudan­ça de política grandiosa sobre filhos. Só que comecei a me fazer um bocado de perguntas.

- Para falar a verdade, Jessie - segurava-lhe a mão meigamente, enquanto falava - acho que você seria mais feliz sem filhos. Você parece ser muito semelhante a mim. Resoluta, livre; aprecia o que faz; não consigo imaginá-la abandonando tudo isso por uma pessoinha chorona de fraldas.

Ela sorriu à idéia.

- Deus.

- Exactamente.

Riram por um momento e tomaram um gole de vinho enquan­to a segunda leva de fregueses para o almoço começou a chegar. Já estavam sentados ali há quase duas horas. Era estranho estar repentinamente conversando com ele sobre filhos. Teve a sensação de que o tópico era importante para ele, e que queria livrar-se dele logo. E sem dúvida partilhava das opiniões que Jessica tinha há uma década.

Ela estirou as pernas e acabou o vinho, perguntando-se se deveria voltar para a loja, e subitamente se lembrando que devia estar atrapalhando os compromissos dele, também. Mas as horas que es­tavam passando juntos eram tão agradáveis que era difícil dar-lhe um fim.

- Vou a Paris a negócios na semana que vem, Jessica. Posso trazer-lhe alguma coisa de lá?

- Que gentileza. Paris. - Os olhos dela dançavam à idéia. Paris. - Deixe ver... podia me trazer..... o Louvre..... SacreCro­ur... o Café Piore... a Brasserie Lipp..... o Champs Ely­sées... ah, e o Faubourg St. Honoré inteiro.

Deu uma risadinha ante a brincadeira.

- É disso que eu gosto. Uma mulher que sabe o que quer. A propósito, por que não vem comigo?

- Está brincando!

- Claro que não. Ficarei fora apenas três ou quatro dias. Você também pode se afastar daqui por tão pouco tempo, não pode?

Sim, mas com um estranho completo? Sabe lá Deus quem ele era.

- Eu estava pretendendo ir para Nova York para a loja, mas agora não preciso mais e... Paris?

Não sabia o que dizer. Depois de todos aqueles cretinos que tinham rastejado à sua volta, de repente pintava um homem per­feitamente divino, e queria levá-la para Paris.

- Nós não... - Parecia constrangido, mas era uma graça.

- Não precisamos partilhar o mesmo quarto. Se você ficaria mais confortável...

- Geoffrey! Você é um anjo. E pare com isso, se não aca­barei indo e negligenciando todas as coisas que preciso fazer aqui. Fico muito sensibilizada por você me ter convidado, mas não posso, de verdade.

- Bem, vamos esperar para ver. Você pode mudar de idéia.

Puxa. Geoffrey era mesmo um espanto. Paris. Quase teve von­tade de dizer sim, mas... por que não? Bolas, por que não? Paris... Deus, seria uma delícia, mas... que merda, por que se sentia como se estivesse enganando o Ian? Que diferença fazia agora? Estava livre. Ele nem saberia. Ela nem o via mais, mesmo. Mas... de alguma forma... ele estava ali... com uma expressão de dor nos olhos, como se não quisesse que ela fosse. Tentou afastar o rosto dele do pensamento, e sorriu para Geoffrey.

- Obrigada pela oferta.

- Gostaria que você viesse. Está vendo o que falei sobre gos­tar de viagens de improviso? Adoro esse tipo de coisa! Não é muito divertido se a gente tem que arrastar junto uma babá e qua­tro capetinhas, ou deixá-los em casa e se sentir culpado. Ser tio é realmente muito mais simples. Tem sobrinhos ou sobrinhas? - Ela balançou a cabeça, suavemente. - Irmãos ou irmãs?

- Não. Eu tinha um irmão, mas morreu na guerra.

Geoffrey pareceu intrigado, por um momento.

- Na segunda, ou na Coréia? De qualquer modo, devia ser bem mais velho.

- Não. No Vietnã.

- Claro. Mas que estupidez a minha. Que coisa horrível. Vo­cês eram muito chegados?

A pressão na mão dela aumentou um pouco, como que a dar-lhe apoio. A gentileza dele agradou muito a Jessie.

- Sim. Éramos muito chegados. Fiquei muito perturbada quando ele morreu.

Era a primeira vez que era capaz de dizer isso. Os últimos meses a tinham libertado de mais maneiras do que ela tinha cons­ciência.

- Sinto muito.

Ela balançou a cabeça e sorriu.

- E você, quantos irmãos e irmãs tem?

- Duas irmãs, e um irmão muito empolado. Minhas irmãs são loucas de pedra. Mas muito divertidas.

- Ainda passa muito tempo na Europa?

- Bastante. Alguns dias aqui, outros ali. Gosto muito, desse jeito. A propósito, Jessica, não está na hora de levá-la de volta à loja para seu encontro com Astrid?

- Cristo! Já tinha me esquecido. Tem razão!

Olhou pesarosa para o relógio e sorriu para ele de novo. Ti­nham sido umas horas deliciosas.

- Desconfio que também estou atrapalhando os seus com­promissos.

- É, eu... - Mas o riso tomou o lugar da seriedade, e ele olhou para ela com um sorriso malicioso. - Não, eu não tinha um só compromisso. Vim para cá exclusivamente para vê-la.

Recostou-se na cadeira e riu de si mesmo, como que muito satisfeito.

- Foi? - perguntou Jessica, espantada.

- Sem dúvida. Espero que não se importe.

- Não. Só estou surpresa.

Muito surpresa, e um pouco desconcertada. O que significava aquilo? Ele viera para vê-la.... e a sugestão da viagem a Paris.... que merda. Ele ia ser igual a todos os outros, esperando trocar uma refeição pelo corpo dela?

- Ah, mas a cara com que você está, Jessica!

- Que cara?

Havia riso e embaraço na voz dela. E se ele realmente soubesse o que ela estava pensando? Parecia fazer isso com frequência.

- Quer saber que cara?

- Quero. Vamos ver se você adivinha.

Era melhor não fazer charme.

- Bem, e se eu lhe disser que tenho um quarto no Huntington, você se sentirá melhor?

- Ora! Seu! - Bateu nele com o guardanapo. - Eu não estava..

- Estava, sim!

- Estava, mesmo!

Ambos riram e ele deixou uma nota de valor no prato do garçom e se levantou para ajudar Jessica a vestir a jaqueta.

- Peço desculpas pelos meus pensamentos.

Jessica deixou pender a cabeça, com amplo sorriso.

- E deve pedir, mesmo.

Mas ele lhe deu um abraço amistoso enquanto saíam do res­taurante, e foram brincando e rindo até chegarem na loja. Astrid os esperava com um sorriso descontraído, quando entraram. Ela ficava satisfeita em ver Jessie feliz de novo, e com um homem.

- Vou deixá-las agora com as suas reuniões e seus negócios e seus seja-lá-o-que-vocês-fazem. E Jessica, a que horas devo apa­nhá-la?

- Aqui?

Pareceu surpresa. Era estranho ser paparicada de novo, acom­panhada e cuidada, apanhada e entregue de volta. Há tanto tempo que não tinha isso, que já não sabia como se comportar de novo. Era como voltar a usar sapatos depois de meses andando descalça.

- Prefere que vá encontrá-la depois do trabalho?

- Como você quiser.

Olhou para ele toda feliz, e por um momento nenhum dos dois falou. Estivera prestes a oferecer-lhe o carro, mas não teve coragem. Não... não o Morgan. Sentia-se um lixo por não oferecê-lo, mas não podia.

- Por que não lhe deu tempo de ir para casa e descansar um pouco? Posso apanhar você lá?

Como ele já sabia que ela era um tanto arisca, os dois riram, mas ela concordou.

- Será óptimo.

- Digamos às sete? Jantar às oito.

- Jóia. - E então, subitamente, ela teve uma idéia. Ele já estava quase na porta da loja, quando ela se dirigiu rapidamente para junto dele. - Não conhece San Francisco muito bem, não é?

- Não muito. Mas desconfio que posso me virar.

Parecia divertido com a preocupação dela.

- Gostaria de uma excursão no final do dia?

- Com você?

- É claro.

- Que idéia esplêndida.

- Óptimo. Onde você estará por volta das cinco horas?

- Onde você mandar.

- Muito bem. Apanho você diante do Hotel St. Francis às cinco. Está bem?

- Está excelente.

Fez-lhe uma breve continência e desceu correndo os degraus da loja enquanto Jessica se voltava para Astrid.

Foi difícil para ela concentrar-se no que estavam dizendo enquanto discutiam a venda da Lady J.

- Certo, Jessie?

- Há? - Astrid exibia um largo sorriso quando ela ergueu os olhos. - Ora, merda.

- Não me diga que está se apaixonando.

- Nem de longe. Mas ele é um homem muito simpático. Não é?

Desejava a aprovação de Astrid.

- É o que parece, Jessie.

Jessica ergueu os olhos para a amiga e riu feito uma colegial. Pareceu levar horas até terem resolvido tudo, embora as duas mulheres tivessem ficado satisfeitas com os resultados. Jessica levan­tou-se radiante da sua mesa, fez uma pirueta sobre o salto de um dos lindos sapatos de Gucci, e olhou para o relógio.

- E agora, tenho que ir andando. - Pegou a bolsa, jogou um beijo para Astrid e parou feliz no vão da porta, por um momento.

- Daqui a 15 minutos tenho que apanhar o Ian.

Com um rápido aceno tinha saído porta afora e descido a escada... sem se dar conta do que tinha dito. Astrid sacudiu a cabeça e se perguntou se algum dia ela se esqueceria dele. Mais do que isso, perguntava-se como andaria o Ian. Sentia falta dele. E o facto de pensar nele diminuiu o seu entusiasmo quanto ao novo amigo de Jessie. Esta já estava dando marcha à ré com o carro para ir buscar Geoffrey.

 

- Estou atrasada?

Parecia preocupada quando estacionou diante do St. Francis. Tinha encontrado um trânsito inesperadamente congestionado rumo ao centro da cidade. Mas ele parecia feliz e descontraído, como um homem que está contente por ver alguém, não como um homem que ficou esperando.

- Ah, faz horas que estou aqui.

- Mentiroso.

- Céus! Mas que desaforo chamar um homem de mentiroso!

Mas pareceu encantado por vê-la, e permitiu-se inclinar-se pa­ra ela e dar-lhe uma beijoca na face. Ela gostou do gesto amistoso. Os abraços antes que a paixão entrasse em jogo. Os pequenos to­ques, o rápido beijo na face. As coisas ficavam menos assustadoras, assim. Estavam ficando amigos. Estava começando a gostar dele.

- Para onde está me levando?

- Para todo canto.

Olhou-o com prazer enquanto subiam Nob Hill.

- Que promessa. Bem, sei onde estamos agora, de qualquer forma. Aquele é o meu hotel.

Ela o ignorou, e ele abriu um sorriso.

- Aqui é Nob Hill.

E ela apontou para ele a Grace Cathedral, o Pacific Union Club e três dos hotéis mais luxuosos da cidade. De lá desceram pela California Street até o Embarcadero, o Ferry Building e uma rápida vista das docas. Subiram na direcção da Ghirardelli Square e do Cannery, onde ela mostrou a colmeia de boutiques logo depois de terem passado o Cais dos Pescadores (onde ela parou e com­prou para ele uma xícara bem cheia de camarões frescos e um naco grande de pão típico).

- Que excursão. Minha cara, estou fascinado.

E ela também estava se divertindo à grande.

De lá, seguiram para ver os velhos jogando bocha na orla da baía, depois foram até a bacia dos iates e o St. Francis Yacht Club. A seguir, deram um passeio tranquilo por quadras e mais quadras de mansões elaboradas. Depois disso refugiaram-se no Golden Gate Park. E o cálculo de tempo dela foi perfeito. Era quase hora do crepúsculo, e a luz nas flores e relvados era dourada e rosa e mui­to linda. Era a hora favorita do dia, para Jessica.

Passaram por canteiros intermináveis, por caminhos curvos, por pequenas quedas d’água , rodearam um pequeno lago, até que final­mente chegaram ao jardim de chá japonês.

- Jessica, a sua excursão é extraordinária.

- Às ordens, senhor.

Fez uma curvatura formal para ele, que envolveu seus om­bros num rápido abraço. Tinha sido um lindo dia, e ela estava co­meçando a sentir como se realmente o conhecesse.

Gostava das reacções dele, do seu modo de pensar, do seu sen­so de humor, do jeito meigo com que parecia preocupar-se com o que ela sentia. E parecia-se tanto com ela. Tinha o mesmo tipo do jeito livre e descuidado, o mesmo anseio de independência. Parecia gostar do seu trabalho e certamente não parecia estar em dificulda­des financeiras. Parecia o companheiro perfeito. Por algum tempo, ao menos. E era bonzinho para ela. Tinha aprendido a ser grata por isso, sem exigir demais dele.

- O que você mais gosta de fazer na vida, Jessica?

Estavam tomando chá verde e comendo pequenos biscoitos japoneses no jardim de chá.

- Mais do que tudo? Pintar, acho.

- Verdade? - Pareceu surpreso. - E pinta bem? Uma per­gunta idiota, mas a gente sempre se sente forçado a fazê-la, embora seja inútil. Os que pintam bem insistem em que são péssimos, e os pintam mal, é claro, dizem que são os melhores.

- E agora, o que digo? - Ambos riram e ela partilhou o último biscoito com ele. - Não sei se pinto bem ou não, só sei que adoro pintar.

- Que tipo de coisas você pinta?

- Depende. Gente. Paisagem. Qualquer coisa. Trabalho com aquarela e tinta a óleo.

- Terá que me mostrar, qualquer dia desses.

Mas parecia indulgente, e não como se a estivesse levando muito a sério. Tinha um jeito paternal e apaziguador, às vezes, que fazia com que ela se sentisse uma garotinha. Era estranho que, agora que ela se acostumara a ser adulta, aparecesse alguém que a deixaria continuar a agir como criança. Mas não tinha certeza se ainda queria ser criança.

Quando o jardim de chá fechou, voltaram a passos lentos para o carro. E Geoffrey pareceu vê-lo pela primeira vez.

- Sabe, Jessica, é mesmo uma beleza. Hoje em dia eles são quase artigos de coleccionador. Onde o arranjou?

- Não estou certa se se deve admitir esse tipo de coisa, mas foi um presente.

Parecia orgulhosa enquanto falava.

- Santo Deus, e que belo presente.

Ela balançou a cabeça, calada, e ele lhe lançou um olhar sem fazer a pergunta. Mas fosse quem fosse que lhe tivesse dado o carro, ele sabia que era alguém importante na vida dela, e provavelmente o marido. Jessica não era do tipo de mulher de aceitar presentes de valor de qualquer um. Isso ele já sabia a seu respeito. Era uma mulher de raça, de classe considerável.

- Já voou alguma vez? Quero dizer, você mesma pilotando? - Ela riu ante a idéia, e sacudiu a cabeça. - Quer experimentar?

- Está falando a sério?

- Por que não? Podemos voar no meu avião, qualquer hora dessas. Não é difícil pilotar. Você pode aprender brincando.

- Que idéia gozada.

Ele estava cheio de idéias gozadas, mas Jessie gostava delas. E gostava dele.

Partilharam uma noite maravilhosa. A comida no L’Etoile es­tava soberba, o piano no bar suave, e Geoffrey era uma companhia encantadora. Dividiram um chateaubriand com trufas e béarnaise, as­pargos brancos, palmitos com salada de endivida num delicado molho de mostarda, e uma garrafa de vinho Mouton-Rothschild, 1952, “um ano muito bom”, assegurou-lhe ele no seu jeito inglês conciso, mas aquecido por um sorriso produzido apenas para ela. Sempre conseguia criar uma atmosfera de intimidade sem fazê-la sentir-se pouco à vontade.

E depois do jantar foram dançar no Alexis. Foi uma noite bem diferente daquela que passara ali com o parceiro-surpresa que As­trid arranjara para ela. Geoffrey dançava que era uma beleza. Foi uma noite completamente diferente de qualquer uma que tivesse passado há anos. Havia nela luxo e romance e excitação. Detestou ter que ir para casa e vê-la terminar. Ambos detestaram.

Foram até a casa dela em silêncio, e ele a beijou meigamente à porta de entrada. Era a primeira vez que a beijava de verdade, e o beijo não estourou nenhum foguete na sua cabeça, mas puxou cordões pelas suas coxas acima. Geoffrey era um homem totalmente magnético. Afastou-se dela lentamente, com um sorriso mínimo re­puxando-lhe um dos cantos da boca.

- Você é uma mulher exótica, Jessica.

- Quer entrar e tomar qualquer coisa?

Não tinha certeza se queria que ele aceitasse, e o modo como fez o convite o revelava. Quase esperava que ele recusasse. Não queria... ainda não. Mas ele era tão atraente, e fazia tanto tempo.

- Tem certeza de que não está cansada demais? É muito tarde, mocinha.

Ele parecia tão meigo, tão cheio de consideração, tão parecido com... com Geoffrey. Forçou os seus pensamentos a voltarem para o presente, e sorriu fitando-lhe os olhos.

- Não estou cansada demais.

Mas enrijeceu um pouco, e ele o pressentiu. Sorriu para as costas dela enquanto a moça abria a porta com a sua chave. Não tinha nada a temer da parte dele. Queria muito mais do que ela podia dar-lhe numa noite. Não ia forçar a barra. Já sabia o que queria, e o que queria era para valer.

Ela abriu a porta e acendeu luzes, e ele acendeu as velas enquanto ela servia conhaque em dois belos cálices apropriados.

- Serve conhaque?

- Perfeito. E a vista também. É uma casa e tanto. - Mas não estava surpreso. Tinha esperado alguma coisa no género. - E que bela mulher você é... gosto... classe... elegância... beleza... inteligência... uma mulher de mil virtudes.

- E convencida, se você não parar agora. - Passou-lhe o cálice de conhaque e sentou-se na sua cadeira preferida. - É uma linda vista, daqui.

- É. Vou procurar uma coisa parecida, daqui a algumas se­manas.

- Vai mesmo? - Não pode resistir e deu uma risada. - Ou também inventou aquela história de se mudar para San Francisco?

Ele deu um sorriso juvenil.

- Não, isso era verdade. É muito difícil encontrar casas como esta?

- Está querendo comprar?

Tinha suposto que iria alugar.

- Depende.

Olhou-a nos olhos, depois fitou o copo de conhaque enquanto ela o observava.

- Quem sabe alugo esta casa para você durante o verão.

Ela estava brincando, e ele ergueu uma sobrancelha.

- Está falando a sério?

- Não. - Os olhos dela ficaram tristes enquanto fitava a vela, e falou: - Você não seria feliz aqui, Geoffrey.

E ela não o queria na casa “deles”. Aquilo a deixaria constrangida.

- Você é feliz aqui Jessica?

- Não penso na coisa desse jeito. - Voltou a fitar os olhos dele, que ficou surpreso ante a dor que viu ali à espreita. Fê-la su­bitamente parecer anos mais velha. - Para mim agora é somente uma casa. Um telhado, um amontoado de cómodos, um endereço. O resto já se foi.

- Então devia se mudar daqui. Quem sabe encontraremos... eu encontrarei..... um lugar maior. Você pensaria em vender este?

- Não, apenas em alugar. Não disponho dele para vender.

- Sei. - Tomou Outro gole do conhaque e depois sorriu para ela de novo. - Está na hora de eu ir embora, Jessica, ou você vai ficar terrivelmente cansada amanhã. Tem compromisso para o café da manhã?

- Não costumo ter - respondeu, rindo da idéia.

- Óptimo. Então por que não tomamos café num lugar diver­tido qualquer antes de eu pegar o avião para Los Angeles? Posso vir buscá-la de táxi.

Adorou a idéia de tomar café com ele. Teria preferido pre­parar a refeição para ele, e sentarem juntos e nus à mesa da co­zinha, ou misturar morangos e creme fresco e comer na cama. Mas quase se perguntava se a gente fazia aquele tipo de coisa com o Geoffrey. Ele parecia que decerto usaria robe e pijamas de seda. Mas havia nele também uma sensualidade patente.

- O que você come no café da manhã?

Era uma pergunta maluca, mas estava com vontade de saber. De repente aquilo tinha importância para ela. Tudo tinha.

- O que como? - Pareceu achar graça. - Geralmente al­guma coisa leve. Ovos pochê, torrada de centeio, chá.

- Só isso? Nem mesmo bacon? Nem waffles? Nem rabanadas? Nem mamão? Só ovos pochê e torrada de pão de centeio? Puxa!

Ele desatou a rir com a reacção dela e começou a curtir o jogo.

- E o que você come de manhã que é tão mais exótico, amor?

- Manteiga de amendoim e geléia de abricó com bolinhos in­gleses. Ou requeijão e geléia de goiaba com rosquinhas. Suco de la­ranja, bacon, omeletes, manteiga de maçã, bananas fritas...

Soltou a imaginação.

- Todos os dias?

- É claro.

Tentava ficar séria, mas estava difícil.

- Não acredito.

- Bem, tem razão... sobre a maior parte. Mas a parte da manteiga de amendoim e do requeijão é verdade. Gosta de manteiga de amendoim?

- Não. Tem gosto de cimente molhado.

- Já comeu muito disso?

Olhava para ele com interesse.

- De quê?

- Cimento molhado.

- Sem dúvida. É uma delícia com torradinhas finas. Agora, fa­lando sério, quer vir tomar café comigo amanhã? Estou certo que poderemos conseguir manteiga de amendoim com croissants. Serve?

- Perfeito. - Ela estava começando a ser a Jessie, agora, e isso o divertia. Gostava de tudo nela. A moça tirou os sapatos e puxou as pernas para cima da cadeira. - Geoffrey - tentou parecer solene - você lê história em quadrinhos?

- Claro. Especialmente o Super-Homem.

- O quê? Não lê o Batman?

- Claro que sim, mas o Super-Homem sempre foi o meu preferido. - Parou de brincar por um momento e fitou o seu copo. - Jessica... gosto de você. Gosto muito de você.

Surpreendeu-a com a franqueza das suas palavras, e ela ficou emocionada com o modo como as disse. O seu estilo era uma es­tranha mistura de formalismo e calor. Não imaginara que tal combi­nação fosse possível, mas aparentemente era.

- Também gosto de você.

Estavam sentados um em frente do outro, e ele não fez nenhum gesto para se aproximar dela. Não queria apressá-la. Era uma mulher de quem alguém se acercava aos poucos, depois de mui­to pensar.

- Você não falou muito a respeito, na verdade não falou nada, mas tenho a sensação de que você sofreu muito. Muitíssimo, até.

- O que o faz pensar assim?

- As coisas que você não diz. As vezes em que recua. A parede atrás da qual se esconde, de vez em quando. Não a magoarei, Jessica. Prometo que me esforçarei muito para não fazê-lo.

Ela ficou calada, olhando para ele e se perguntando quantas vezes as promessas viravam mentiras. Mas queria que ele provasse que estava errada, e ele queria tentar.

 

- Bem, e que tal foi a sua noite?

Astrid já estava na loja Quando Jessie chegou lá, no dia se­guinte. Jessie não estava mais chegando cedo. Não precisava. E nem queria.

- Maravilhosa. - Abriu um sorriso, mais encantada ainda com o café da manhã que tinham tomado juntos no Top of the Mark, mas não estava disposta a comentá-lo com Astrid. - Muito, muito agradável.

Parecia reservada e muito satisfeita consigo mesma.

- Eu diria que ele também é “muito, muito agradável”.

- Calma Mamãe. Não faça pressão.

As duas mulheres riram, e Astrid levantou a mão inocentemente, protestando.

- E quem precisa fazer pressão? Ele mesmo faz a sua própria propaganda. Está apaixonada por ele, Jessie?

Astrid parecia séria, e Jessica também.

- Sinceramente? Não. Mas gosto dele. Há muito tempo que não conheço um homem tão simpático.

- Então, quem sabe o resto virá depois. Dê-lhe uma chance.

Jessica meneou a cabeça e examinou a correspondência que lhe pertencia. Não mais gostava de dividir a loja. Agora era dife­rente. Era como prolongar o fim. Queria dizer adeus à Lady J e sair da cidade. Isso era parecido com mais um divórcio. E havia outra carta do Ian junto com o resto da sua correspondência. Ela a pegou e a deixou separada. Astrid reparou, mas ficou calada. Esta era a primeira vez que Jessie não rasgava uma das cartas dele. Ela notou o olhar de Astrid e deu de ombros enquanto se servia de mais uma xícara de café.

- Sabe, fico pensando que talvez devesse lhe escrever um bi­lhete agradecendo o carro. Parece o mínimo que eu posso fazer. A sua mãe e eu discutimos o assunto no fim de semana passado.

- O que foi que ela falou?

- Nada de especial.

O que significava que Jessie não estava disposta a contar.

No fim das contas, acabou jogando fora a carta que ele en­viara.

 

Reuniram-se com os advogados nas duas tardes subsequentes e tudo ficou acertado. No sábado de manhã, Jessie foi a três cor­retoras imobiliárias e colocou a sua casa no mercado de aluguel por temporada. Mas queria que os inquilinos fossem escolhidos a dedo; ia deixar todos os seus móveis na casa. E o estúdio de Ian perma­neceria trancado. Achava que devia isso a ele.

Era quase meia-noite de domingo quando ela se sentou para lhe escrever um bilhete sobre o carro. No final, rabiscou apenas cinco ou seis linhas, dizendo-lhe o quanto ficara satisfeita, como era lindo, e que ele não precisava ter feito aquilo. Queria cancelar a dívida entre eles. Ele não lhe devia nada. Mas ela levou quase quatro horas para compor o bilhetinho.

Dali a cinco dias a casa já fora alugada para o período de 15 de julho até 1.0 de setembro, e ela estava quase pronta para sair da cidade. Esperava ir embora dentro de uma semana. Geoffrey queria voltar à cidade para vê-la de novo, e até mesmo a convidara para passar um fim de semana em Los Angeles, mas ela estava ocupada demais. Tinha encontrado duas casas e um apartamento que talvez agradassem a ele, mas estava envolvida demais nos próprios afazeres. Não parecia sobrar lugar para Geoffrey, naquele momento, e ela queria que ele ficasse afastado até ela ter fechado a casa, cedido a loja, enterrado o passado. Queria ir para ele “limpa” e nova, se ele lhe desse tempo. Tinha que fazê-lo desse jeito. Ficar sozinha para cortar as últimas amarras por si mesma. Assim era mais difícil mas ele ainda não se encaixava na vida dela. Vê-lo-ia no interior, depois que estivesse instalada.

Raramente ia à loja agora, excepto para responder às perguntas de Astrid. Mas agora Astrid sabia bastante bem como tudo funcionava, e Katsuko era de grande ajuda. Ia continuar trabalhan­do na Lady J. E Jessie não tinha mais vontade de estar lá. Os operários estavam ocupados trocando o cartaz, os cartões estavam sendo enviados para todos os seus fregueses anunciando a pequena troca do nome. Aquilo ainda doía, mas Jessica disse a si mesma que todas as mudanças doíam, talvez especialmente aquelas que eram para melhor. Não ia se arrepender depois de ter deixado a cidade. Mas, então, o que iria fazer? Está bem, pintar... mas por quanto tempo? Não estava pronta para se tornar uma outra Vovó Moses. Mas algo surgiria... algo melhor. Geoffrey? Quem sabe ele era a resposta.

Jessica passou na loja pela última vez numa Sexta-feira à tarde. Partiria dali a dois dias, no domingo. Tinha guardado todos os pe­quenos tesouros que não queria partilhar com os seus inquilinos. E fotos do Ian. Tinha desenterrado tanta coisa, enquanto fazia as malas. Tudo agora doía. Parecia que cada momento estava pleno de lembretes dolorosos do passado.

Encostou o carro atrás do de Astrid, na entrada, e entrou dis­cretamente na loja. Ela já estava diferente. Astrid acrescentara al­gumas coisas, e um lindo quadro no que agora era o seu escritório. Agora era tudo de Astrid. E o dinheiro da venda era todo de Jes­sie. Era engraçado como isso agora pouco representava para ela. Há nove meses, sete meses, seis... ela teria implorado por um décimo daquele dinheiro... e agora... ele não tinha importância. As con­tas estavam pagas, Ian tinha ido embora, e do que ela precisava? De nada. Não sabia o que fazer com o dinheiro, e nem estava se importando. Ainda não se apercebera de que tinha ganho muito dinheiro vendendo a loja. Mais tarde ficaria satisfeita, mas ainda não. E ainda sentia como se tivesse vendido o seu único filho. Para uma boa amiga, mas mesmo assim... havia abandonado a única coisa que havia criado e ajudado a crescer.

- Correspondência para a senhora, madame.

Astrid entregou-lhe as cartas com um sorriso. Parecia feliz, actualmente, e até mesmo mais jovem do que quando Jessie a conhe­cera. Era difícil acreditar que tinha feito anos recentemente, e que chegara ao 43° aniversário. E em julho Jessie faria 32 anos. O tem­po estava passando. Rapidamente.

- Obrigada. - Jessica enfiou as cartas no bolso. Daria uma olhada nelas mais tarde. - Bem, estou com tudo arrumado e pronta para viajar.

- E já está com saudades.

Astrid adivinhara. Levou-a para almoçar e tomaram vinho bran­co demais, mas Jessie se sentiu melhor. Aquilo ajudou. Foi para casa sentindo-se bem melhor.

Abriu as janelas e sentou-se numa nesguinha de sol no chão, olhando ao seu redor para a sala em que tantas vezes se havia sen­tado com o Ian. Podia vê-lo esparramado no sofá, ouvindo-a falar da loja, ou contando alguma coisa brilhante que tinha dito num novo capítulo. Era isso o que estava faltando... aquele entusiasmo de partilhar as coisas que gostavam de fazer; de rir e serem duas crian­ças num dia de sol quente, ou numa tarde fria de inverno enquanto ele acendia o fogo. Um homem como Geoffrey a mimaria, a levaria aos melhores hotéis e restaurantes do mundo todo, mas não tiraria uma farpa do seu calcanhar ou coçaria as suas costas justo onde esta­va coçando... não arrotaria tomando cerveja enquanto assistia a um filme de terror na cama, ou pareceria um garotinho quando acor­dava de manhã. Seria muito atraente, e cheiraria à colónia que usa­ra naquele jantar.... e não tinha estado presente quando Jake morrera... ou os pais dela... mas Ian tinha. Não se podia substituir isso. Talvez nem se devesse tentar.

Ficou divagando enquanto fitava a baia, e depois se lembrou das cartas que Astrid lhe entregara antes do almoço. Voltou a elas agora, remexendo no bolso da jaqueta... esperava... não esperava... e esperava... e lá estava ela... uma carta de Ian. Seus olhos correram céleres pelas linhas. Ele recebera o bilhete dela sobre o carro.

 

...escrevo estas linhas agora para mim mesmo, pergun­tando-me apenas por um momento se você as lê. E então, de repente, algumas linhas nervosas e ligeiras da sua parte, mas você ficou com o carro. É só o que importava. Queria que você fi­casse com aquele carro mais do que pode imaginar, Jess. Obrigado por ficar com ele.

Imagino que não abra as minhas cartas... conheço você. Um rasgão, a lata de lixo e pronto.

 

Ela sorriu da imagem. E, é claro, ele estava certo.

 

Mas pareço ter necessidade de escrevê-las, de qualquer forma, como assobiar no escuro ou conversar com os meus botões. Com quem você conversa agora, Jessie? Quem segura a sua mão? Quem a faz rir? Ou a abraça quando chora? Você fica um horror quando chora, e Deus, como sinto falta disso Imagino-a agora, dirigindo o novo Morgan, e aquele bilhete do outro dia... parecia algo que você escreveria ao melhor amigo da sua avó. “Obrigada, caro Sr. Clarke, pela graça de carro. Precisava de um daquela cor para combinar com a minha melhor saia e minhas luvas e chapéu predilecto”. Querida, eu a amo. Só espero que você seja mais feliz agora. Seja com quem, onde. Você tem o direito. E sei que precisar de alguém. Ou será que tem o direito? Meu coração dói tanto só de pensar nisso, no entanto não consigo me batendo os pés e criando caso. Como teria coragem de dizer alguma coisa, depois de tudo isso? Nada, excepto boa sorte... e eu a amo.

Me deixa triste o facto de que, agora que o livro vendeu e dei uma reformulada na minha vida, você não esteja para curtir as mudanças. Eu cresci, aqui dentro. É uma escola dura onde se aprender, mas aprendi muito a seu respeito e a meu próprio. Não basta apenas ganhar dinheiro, Jessie. E estou me lixando para quem pague as contas. Quero pagá­-las, mas não creio que vá ficar mais com úlceras cada vez que você assinar um cheque. A vida é tão mais plena e simples do que isso, ou pode ser. De uma maneira estranha a minha vida é plena, agora, no entanto tão vazia sem você. Jessie que­rida e impossível, ainda a amo. Vá embora, saia dos meus pensamentos, me deixe em paz, ou volte. Ah, Deus, como eu gostaria que você fizesse isso. Mas não o fará. Eu compre­endo. Não estou zangado. Só me pergunto se teria sido dife­rente se eu não me tivesse afastado naquele dia, deixando-a ali com o telefone na mão. Ainda vejo o seu rosto naquele dia... mas não, não é tudo por causa daquele dia nojento. Estamos ambos pagando por pecados muito, muito antigos, agora... porque ainda acredito que ambos estamos sofrendo essa per­da. Ou você está livre dela, agora? Talvez já nem se importe mais. Nem posso lhe dizer a sensação de vazio que isto me dá, mas suponho que é o que acontecerá, com o tempo. Ne­nhum de nós dois estará se importando a mínima. Não é uma coisa que eu espere com ansiedade. Um bocado de bons anos “do pó para o pó”. Perdidos. E eu ainda a vejo e vejo e vejo. Toco os seus cabelos e sorrio para os seus olhos. Quem sabe você possa senti-lo, agora... meu sorriso nos seus olhos enquanto você segue o seu caminho. Vá em paz, Jessie querida, e cuidado com os lagartos e as formigas. Eles não a morderão, prometo, mas os vizinhos podem chamar a polícia­ quando você gritar. cuide-se. Sempre, seu Ian.

 

Riu por entre as lágrimas. enquanto lia a carta... lagartos e for­migas. As duas coisas de que tinha mais medo. Além da solidão. Mas já vivera com ela, agora, portanto quem sabe até se acostu­maria com lagartos e formigas... mas com a vida sem Ian? Seria tão mais difícil. Não se dera conta do quanto sentia falta da voz dele até ler a carta. Estava lá. As suas palavras, seu tom de voz, sua risada, sua mão desmanchando o cabelo dela enquanto falava. O olhar que lhe lançava e que fazia com que ela se sentisse segura.

Sem pensar, pôs-se de pé e foi até a escrivaninha. Ali ainda havia algum papel. Passou a mão na caneta e escreveu para ele, contando-lhe que havia vendido a loja, e falando da casa perto da estância da Tia Bethanie. Descreveu a casa até os mínimos detalhes, como ele lhe ensinara a fazer quando ela pensara que queria escrever. Não tinha jeito para escrever, mas aprendera a fazer descrições cuidadosas, para que quem as Jessie pudesse ver tudo o que ela via. Queria que ele visse a casa fanada em estilo vitoriano em todo o seu esplendor possível, agora aninhada no meio das ervas daninhas. Ia limpá-la e deixá-la bonita. Aquilo a manteria ocupada por algum tempo. Deu-lhe o endereço e mencionou que tinha alu­gado a casa, mas para um casal simpático sem filhos ou bichos de estimação. Eles cuidariam bem dela, e fez questão de dizer a ele que o estúdio estava trancado. Os arquivos dele estavam seguros. E ela tentaria se manter longe dos lagartos e das formigas. Tudo fluiu para a carta. Era como escrever para um melhor amigo que não se via há muito. Ele sempre fora isso. Colou um selo no en­velope e foi até a caixa colectora que havia na esquina, depositan­do-a ali. Foi então que reparou em Astrid, que ia passando a ca­minho de casa. Acenou, e Astrid parou o carro na esquina.

- O que vai fazer logo mais, Jessie? Quer jantar comigo?

- Quer dizer que não está ocupada, para variar, Sra. Bon­ner? Que espanto.

Jessica riu, sentindo-se feliz como há muito não se sentia. Es­tava ansiosa para partir. Durante as últimas semanas, quase se per­guntara se tinha feito a coisa errada. Era tudo tão brutal, tão defi­nitivo. Mas agora sabia que tinha agido certo, e estava contente. Sentia-se aliviada, e como se tivesse mantido contacto com a sua alma. Ian ainda vivia ali. Na sua alma. Mesmo agora. Jessica ten­tou afastar os pensamentos de Ian enquanto sorria para Astrid.

- Não, sabichona, não estou ocupada. E estou louca de de­sejo de comer espaguete. E as malas?

- Tudo pronto. O espaguete está óptimo.

Jantaram no barulho e caos do Vanessi’s, e depois foram para um café de calçada, tomar cappuccino. Viram os turistas começando a aparecer, a primeira onda de verão, e o ar estava surpreendentemente cálido.

- Bem, querida, como se sente? Assustada, infeliz ou contente?

- Quanto a ir-me embora? As três coisas. É um pouco como sair de casa para sempre...

Como deixar o Ian.... de novo. Enquanto empacotava os sem tesouros particulares e miscelâneas, tantos sentimentos tinham voltado à tona. Sentimentos que agora ficariam melhor enterrados. ela não desarrumaria aquelas caixas de novo, e tinha separado as suas coisas das de Ian. Agora seria muito fácil, se algum dia vendessem a casa. Os seus bens terrenos não estavam mais numa pilha só.

- Bem, aquela sua casa irá mantê-la ocupada. Mamãe falou que está uma bagunça.

- E está. Mas não por muito tempo.

Jessica parecia orgulhosa enquanto dizia as palavras. Já adorava o lugar. Era como um novo amigo.

- Vou tentar dar um pulo lá para vê-la antes de irmos via­jar, em julho.

- Eu gostaria muito.

Jessica sorriu, sentindo-se leve e feliz. Um peso que não con­seguia identificar direito tinha sido retirado dos seus ombros. Sen­tira a sua ausência a noite toda. Era como não sentir mais uma dor de dentes ou uma cãibra com a qual vivera durante meses, sem realmente ter consciência dela, mas sendo subtilmente prejudi­cada pela sua presença.

- Jessica, você parece feliz, agora. Sabe, eu me senti terrivelmente culpada durante algum tempo, por ter tirado a loja de você. Tinha medo que você me odiasse por isso.

Astrid parecia jovem e insegura, enquanto olhava no rosto de Jessie. Mas esta apenas sorriu e sacudiu a cabeleira loura.

- Não. Não precisa se preocupar com isso. - Deu uma palmadinha na mão da amiga. - Você não a tirou de mim, Astrid. Eu a vendi para você. Precisava fazê-lo. Para você, ou para outra pessoa qualquer, mesmo que tenha doído um pouco. E melhor que fosse para você Estou feliz que agora seja sua. Já tinha passado a minha fase, acho. Mudei muito.

Astrid concordou.

Sei que mudou. Espero que tudo dê certo.

- É, eu também.

O sorriso dela era quase pesaroso, e as duas mulheres termi­naram o seu café. Eram como dois soldados que passaram por uma guerra juntos e agora não têm mais nada para conversar excepto dar palpites ocasionais sobre a paz. Será que daria certo? Jessie esperava que sim. Astrid se questionava. As duas tinham percorrido um longo caminho, nos últimos meses. E Astrid sabia que agora tinha o que queria. Jessica ainda não tinha a mesma certeza.

- Alguma notícia de Geoffrey esta semana, Jessie?

- Sim. Ligou e disse que ia me ver no interior na semana que vem.

Fora sensível o bastante para saber que ela precisava ficar sozinha na cidade.

- Isso lhe fará bem.

Jessica fez que sim com a cabeça, mas não falou mais nada.

 

A campainha da porta tocou às nove e quinze da manhã seguinte. As suas malas já estavam prontas e Jessica estava lavando a louça do café pela última vez, de olho também na paisagem. Queria lembrar de tudo, ficar lá mais aquela hora, e depois ir embora. Rapidamente. Sentia-se quase como se sentira na manhã em que fora para a universidade, o passado empacotado com naftalina e uma nova vida à sua frente. Planejava voltar, pelo menos é o que dizia, mas será que voltaria? Não tinha muita certeza. Tinha a estranha sensação de que estava partindo por mais tempo do que um verão. Quem sabe para sempre.

A campainha tocou de novo e ela secou as mãos nos jeans e correu para a porta da frente, afastando os cabelos do rosto, bota calça, a camisa abotoada, mas não o bastante. Estava precisamente como quando Ian a adorava mais: pura Jessie.

- Quem é?

Ficou parada junto à porta da frente com um sorrizinho no rosto. Sabia que era provavelmente Astrid, ou Katsuko. Um último adeus. Mas desta feita ela ia rir, não chorar como tinham todas chorado na loja.

- É o Inspector Houghton.

Tudo dentro dela virou pedra. Com mãos trémulas, destrancou a porta e abriu-a. O alto astral tinha subitamente desaparecido, e pela primeira vez em meses havia terror nos seus olhos de novo. Era espantoso como tudo podia voltar de roldão. Meses de reconstruir lentamente os alicerces, e no espaço de tempo que se levava para tocar uma campainha, a vida dela estava aos pedaços de novo. Ou pelo menos era como se sentia.

- Sim?

Os olhos dela pareciam de ardósia verde-acinzentada, e o seu rosto estava feito uma máscara.

- Bom dia. Eu... bem.... esta não é exactamente uma visita oficial. Encontrei as calças do seu marido no outro dia na sala dos pertences e pensei em vir trazê-las e ver como está passando.

- Sei. Obrigada.

Entregou-lhe uma sacola de papel pardo com um sorriso sem graça. Jessie não retribuiu o sorriso.

- Vai viajar?

Os olhos dele dirigiram-se para as malas e caixas no hall, ela olhou por cima do ombro, e depois rapidamente de novo para ele. Filho da mãe. Que direito tinha de estar ali agora? Jessie balançou a cabeça em resposta à pergunta dele, e baixou os olhos para os pés. Era uma boa hora para acabar com a guerra, para estender a mão num gesto de paz, para ir embora suavemente. não conseguia. Ele lhe dava vontade de gritar de novo, de socá-lo de arranhar-lhe o rosto. Não suportava nem vê-lo. O terror e o ódio a inundaram como um macaréu, e ela teve o súbito desejo de escorregar de parede abaixo e se amontoar no chão e chorar. Sentia­-se como se tivesse sido carregada num furacão e depois lançada de lado pelas próprias emoções. Ergueu os olhos de repente para ele, com a dor nua estampada nos olhos.

- Por que veio aqui hoje?

No rosto dela havia o ar de uma criança que não compreende, e ele desviou os olhos para as mãos.

- Pensei que ia querer as calças do seu... - A sua voz foi sumindo e seu rosto endureceu. Ter vindo vê-la fora uma bobagem, agora estava certo disso. Mas há dias que estava com aquela von­tade. De vê-la. - As calças do seu marido estavam largadas lá na sala dos pertences. Pensei...

- Por quê? Por que pensou? Será que ele virá para casa e precisará delas num futuro imediato? Ou não estão mais usando calças de brim na prisão? Não estou sabendo direito. Faz algum tempo que não vou lá.

Lamentou instantaneamente ter dito as palavras. Os olhos dele demonstraram interesse e ficaram ligeiramente mais cálidos.

- É?

- Tenho estado ocupada.

Desviou os olhos.

- Problemas?

Urubu. E então ela fitou-lhe os olhos de novo.

- E o senhor não está se lixando?

Não conseguia desfitar os olhos dele. Tinha vontade de arran­cá-los fora.

- Talvez não esteja me lixando. Talvez... desculpe. Sabe, sempre senti pena da senhora, durante todo o caso. Parecia acre­ditar tanto nele. Mas estava errada. Sabe disso agora, não é?

Ela odiava o tom de voz dele.

- Não. Eu não estava errada.

- O júri disse que estava.

Parecia tão presunçoso, o filho da mãe, tão certo do “sistema”. tão certo de tudo, inclusive da culpa de Ian. Tinha vontade de ba­ter nele. O ímpeto agora estava quase incontrolável.

- O júri não fez com que eu estivesse errada, Inspector Houghton.

Agarrou com força o saco de papel pardo que ele lhe tinha dado e cerrou os punhos.

- Está... está livre agora, Sra. Clarke?

- Isso quer dizer, será que deixei o meu marido? - Ele fez que sim com a cabeça e tirou um maço de cigarros do bolso do casaco. - Por quê?

- Curiosidade.

- Foi para isso que voltou? Por curiosidade? Para ver se eu tinha deixado o meu marido? Isso o faria feliz? - Ela agora es­tava fervendo. - E por que não levou isto para a loja?

Estendeu o saco com as calças de Ian.

- Levei. Estive lá ontem. Disseram-me que não trabalha mais lá. Verdade?

Ela balançou a cabeça.

- É. E agora?

Fitou-o nos olhos de novo e de repente quase um ano de medo desapareceu. Ele poderia tentar fazer qualquer coisa que quisesse e ela o mataria. Com prazer. Era um alívio defrontá-lo. Olhou para ele de novo e seis meses de dor passaram dos olhos dela para os dele. Foi uma visão nua a que o inspector enxergou, de um ser humano profundamente marcado e ele deu uma longa tragada no cigarro e desviou o olhar.

- A que horas vai viajar? Tem tempo para almoçar?

Ah, Jesus. Era de se rir, só que ainda lhe dava vontade de chorar.

Sacudiu a cabeça devagar de olhos baixos, e então lentamente ergueu o olhar de novo enquanto as lágrimas enchiam-lhes os olhos e escorriam-lhe pelas faces. Agora estava tudo acabado. O restinho de raiva e de horror, do terror e da dor escorriam lentamente pelo rosto dela; o julgamento, o júri, o veredicto, a prisão e o Inspector Houghton, tudo se fundiu em lágrimas silenciosas, que se derramavam lentamente pelo seu rosto. Ele não suportava olhar para ela. Era muito pior do que uma bofetada na cara. Lamentava ter vindo. Lamentava muito.

Ela inspirou fundo, mas não fez nada quanto às lágrimas. Precisava delas para lavar toda a sujeira.

- Estou saindo desta cidade para me afastar de um pesadelo, Inspector. Não para comemorá-lo. Por que haveríamos de querer almoçar juntos? Para falar dos velhos tempos? Para ficar rememorando o julgamento? Para falar do meu marido? Para...

Um soluço ficou preso na sua garganta e ela se apoiou contra a parede de olhos fechados, ainda segurando o saco de papel. Tudo vinha de novo de roldão. Ele trouxera tudo de volta num saco de papel pardo. Levou a mão à testa, apertou com força os olhos, inspirou lentamente e depois abriu os olhos de novo. Ele tinha ido embora. Ouviu a porta do carro dele bater naquele exacto momento, e um momento mais tarde o sedã verde se afastou. O Inspector Houghton não olhou para trás. Ela fechou lentamente, a porta da frente e sentou-se na sala de visitas.

As calças que ela tirou do saco tinham buracos grandes cortados cuidadosamente nas virilhas, onde o laboratório da polícia tinha feito os testes de esperma. Enquanto olhava para elas, lem­brou-se da primeira vez em que vira Ian na cadeia, com as calças de pijama brancas. As calças eram um grande presente de despedida.

Porém agora ela sabia mais uma vez por que estava indo em­bora da cidade. E estava contente. Enquanto continuasse ali, tudo permaneceria com ela. De um jeito ou de outro. Sempre ficaria imaginando se Houghton iria aparecer de novo. Quando. Como. Onde. Agora ele tinha desaparecido. Para sempre. Assim como o pesadelo. E o julgamento. A coisa toda. Até mesmo o Ian. Mas ela tivera que abandonar tudo. Não havia mais como separar o joio do trigo. Era tudo ruim, corrupto, venenoso, canceroso. E de re­pente não estava mais com raiva de Ian. Nem do Inspector Hough­ton. Enxugou o rosto e olhou ao seu redor e se deu conta de uma coisa. Não era mais dela. Nada era. Nem as calças, nem os pro­blemas, nem o inspector, nem as lembranças más. Não mais lhe pertenciam. O seu lugar era no lixo junto com as calças que se­gurava. Estava partindo. Tinha partido.

Tudo agora tinha ficado para trás. Os papéis dele no estúdio. Os velhos canhotos dos cheques dela arquivados em caixas no po­rão. Estava abandonando tudo isso para sempre. O que estava le­vando com ela eram os belos momentos, as lembranças ternas do passado, o retracto de Ian que pintara logo que se casaram (não podia deixá-lo com os novos inquilinos), livros predilectos, tesouros de estimação. Apenas o que era bom. Resolvera que só tinha es­paço agora para eles. Para o diabo com o Inspector Houghton. Es­tava quase contente por ele ter vindo. Agora sabia que estava livre. Não querendo ser livre, ou tentando ser livre, ou se esforçando por ser livre. Mas livre.

 

Deixar San Francisco foi mais fácil do que ela imaginara. Não se permitia pensar. Simplesmente entrou na auto-estrada e continuou guiando. Ninguém viera acenar lenços ou chorar lágrimas amargas, e ela ficou contente.

Depois da visita do Inspector Houghton, tomara uma xícara de chá, terminara de lavar a louça, calçara os sapatos, verificara a casa e as janelas uma última vez, e fora embora.

A viagem para o sul foi linda, e ela se sentia jovem e aventu­reira quando chegou à sua casa decadente da velha North Road. E ficou emocionada quando entrou e viu o que Tia Beth tinha feito. A casa estava imaculadamente limpa, e o saco de dormir que dei­xara ali antes agora era desnecessário. Havia uma cama estreita no quarto, com uma alegre colcha de retalhos dobrada cuidadosa­mente ao pé da cama. Era a colcha do seu quarto na casa de Tia Beth. Uma escrivaninha vitoriana de mocinha ficava a um canto, e dois abajures davam luz ao quarto. A cozinha estava abastecida, e havia duas cadeiras de balanço e uma mesa grande na sala, e uma poltrona grande ao pé do fogo. Havia velas por toda parte e achas de lenha junto ao fogo. Tinha tudo de que precisava.

E o jantar com Tia Beth no dia seguinte foi uma ocasião jo­vial. Passara a primeira noite sozinha na nova casa. Quisera-o assim, e havia vagado de quarto para quarto como uma criança, não se sentindo sozinha, apenas excitada. Era como o começo de uma aventura. Sentia-se renascida.

- Então, o que está achando? Pronta para voltar para casa?

Tia Beth pilheriava enquanto tomavam chá.

- De jeito nenhum. Estou pronta para ficar aqui para sem­pre. E graças a você, a casa está muito aconchegante.

- Vai precisar mais do que isso para fazê-la aconchegante, minha querida.

Mas o que Jessica mandara em dois caixotes ajudou um pou­co. Retractos, jardineiras, uma pequena coruja de mármore, uma colecção de livros de estimação, dois quadros alegres e o retracto do Ian. Havia também cobertores e castiçais de latão e miscelâneas que ela adorava. E encheu a casa com plantas e flores vivas. No final da semana, tinha acrescentado aos seus velhos tesouros alguns novos adquiridos num leilão. Duas mesas baixas e toscas e um tapete oval feito à mão. Colocou-os na sala de visitas e deu um passo atrás, admirando-os. Parecia-se mais com um lar a cada dia que passava. Tinha mandado para lá os livros em malões, e os seus apetrechos de pintura estavam instalados num canto, mas ainda não tivera tempo de pintar nada. Estava ocupada demais com a casa.

O filho do capataz da estância da Tia Beth passou o fim de semana tirando ervas daninhas e aparando a grama, e eles tinham até descoberto um mirante caindo aos pedaços bem lá nos fundos. E agora ela estava querendo um balanço. Dois balanços. Um para ficar pendurado numa árvore alta perto do mirante, onde ela podia balançar-se bem alto e ver o pôr-do-sol nas colinas, e outro para ficar na frente da casa, do tipo em que os casais jovens se sentam para sussurrar “eu te amo” nas noites quentes do verão, rangendo lentamente para lá e para cá, certos de serem únicos no mundo.

A carta de Ian chegou no sábado de manhã. Ela estava na sua casa nova há seis dias.

 

E lá está você, garotinha engraçada, com poeira nos ca­belos e um sujinho na ponta do nariz, sorrindo com orgulho da ordem que está tirando do caos. Posso vê-la agora, des­calça e feliz, com um talo de trigo entre os dentes. Ou usan­do os seus Gucci e detestando tudo? Como é que está sendo? Posso ver a casa perfeitamente, embora não consiga imagi­ná-la feliz num saco de dormir no chão. Não me diga que virou tão primitiva! Mas parece formidável, Jessie, e irá lhe fazer bem. Embora eu tenha ficado chocado ao saber da loja. Não vai sentir falta dela? Mas me parece um preço danado de bom. O que vai fazer com o monte de grana? Por essas bandas de cá, estou ouvindo falar que vão fazer um filme do livro. Não prenda a respiração; eu não estou prendendo. Essas coisas nunca acontecem. Só se fala nelas. Embora, por outro lado, nunca pensei que você fosse vender a loja. Como se sente? Magoada, aposto, mas quem sabe aliviada? Tempo para fazer outras coisas. Viajar, pintar, limpar o palácio que arrumou para o verão... ou mais tempo? Ouvi qualquer coisa no tom da sua última carta. Parece amor pela casa, pela re­gião, e pela Tia Beth. Ela deve ser uma mulher notável. E como estão indo os lagartos e as formigas, até agora? Man­tendo-se afastados? Ou todos usando o seu melhor laquê e adorando?

 

Ela ria baixinho enquanto lia; certa vez tentara matar um la­garto no quarto de hotel deles na Flórida com o laquê de cabelo. Eles tinham tido que sair do quarto, asfixiados, mas o lagarto ti­nha adorado.

Terminou de ler a carta e foi se sentar à mesa grande que Tia Beth tinha dado. Queria contar a ele sobre as coisas que Tia Beth tinha posto na casa, e as maravilhas que encontrara no leilão. Não parecia justo deixar que pensasse que ela estava dormindo no chão.

A correspondência começou a ser trocada desse jeito simples, e sem a determinação da parada anterior de comunicação. Não pensava no que estava fazendo, simplesmente escrevia a Ian para dar as notícias. Era inofensivo, e ela estava satisfeita por ele quan­to ao filme. Quem sabe desta vez aconteceria. Esperava que sim, por ele.

Ficou surpresa com o tamanho da sua resposta. Cobria seis páginas escritas com letra apertada, e estava quase escuro quando ela selou o envelope e colou os selos. Preparou o jantar no velho fogão, foi para cama cedo e se levantou bem cedo na manhã se­guinte. Foi até a cidade, botou a carta no correio e deu uma pas­sadinha na casa de Tia Beth para tomar um café. Mas Tia Beth não estava, tinha ido cavalgar.

A tarde foi quieta e bonita. Jessie fez alguns esboços, sentada na varanda da frente, balançando os pés. Sentia-se como a irmã mais velha de Huck Finn, de macacão e camiseta vermelha e pés descalços. O sol queimara forte no seu rosto. Era um lindo dia, e o seu cabelo parecia fios de ouro presos em cachos frouxos no alto da cabeça.

- Boa tarde, mademoiselle.

Jessica deu um salto, e o bloco de desenho voou das suas mãos. Pensara que não havia ninguém nas proximidades da casa. Mas quando ergueu os olhos, deu uma risada. Era o Geoffrey.

- Meu Deus, você quase me mata de susto!

Mas ela pulou graciosamente da varanda enquanto ele pegava o bloco e o olhava, surpreso.

- Puxa vida, mas você sabe desenhar! Porém, o que é ainda mais interessante, você é um amor e eu a adoro! - Envolveu-a num grande abraço carinhoso e ela sorriu para ele, os pés descalços na grama alta que cercava a casa. Ainda não tinham conseguido ti­rar todas as ervas daninhas. - Jessica, você está absolutamente linda!

- Desse jeito?

Riu para ele, mas relutou em sair dos seus braços. Estava co­meçando a se dar conta do quanto sentira a falta dele.

- É, eu a adoro desse jeito. Da primeira vez que a vi, você estava descalça, e com o cabelo preso assim mesmo. Eu lhe disse que você parecia uma deusa grega.

- Céus!

- Bem, não vai me mostrar a casa toda, depois de ter-me mantido longe tanto tempo?

- Claro, claro! - Riu, encantada, e apontou majestosamente para a casa. - Não quer entrar?

- Daqui a pouco. - Mas primeiro tomou-a nos braços para um beijo longo e terno. - Agora estou pronto para ver a casa.

Riu para ele, depois parou e lançou-lhe um longo olhar.

- Não, não está.

- Não estou? - Parecia confuso. - Por que não?

- Primeiro trate de tirar a gravata.

- Agora?

- Claro.

- Antes de entrarmos?

Ela balançou a cabeça insistentemente, e, sorrindo para ela, ele tirou a gravata azul-marinho com bolinhas brancas, que ela adivinhou correctamente ser de Dior.

- É uma linda gravata, mas não precisa dela aqui. E prometo que não direi a ninguém que você a tirou.

- Promete?

- Solenemente. - Levantou a mão, e ele a beijou. A sen­sação no centro da palma foi deliciosa. - Ah, que gostoso.

- Você é uma provocadora. Está certo, então, estou pronto? - Ela o examinou de novo e sacudiu a cabeça. - O que é?

- Tire o paletó.

- Você é impossível. - Mas tirou o casaco, jogou-o sobre o braço e fez-lhe uma curvatura. - Satisfeita, milady?

- Perfeitamente.

Imitou o sotaque dele, e ele riu, enquanto, finalmente, a se­guia para dentro da casa.

Ela o levou de cómodo em cómodo, prendendo um pouco a respiração, com medo de que ele a detestasse. E queria que ele a adorasse. Era importante para ela. A casa significava tanto para ela. Era simbólico de tantas coisas que haviam mudado nela. E ainda estava um pouco vazia, mas gostava dela mesmo assim. Tinha espaço para crescer, e para coleccionar novas coisas. Sentia-se mais livre ali do que se sentira em San Francisco. Aqui, tudo era novo e fresco.

- Bem, o que achou?

- Não é exactamente superdecorado, é? - Sorriu enquanto ele dava uma risadinha baixa, mas queria que ele gostasse da casa, não debochasse dela. - Está certo, Jessica, não seja tão susceptível. É linda, e deve ser muito divertida para se passar um verão.

Mas, e para passar toda uma vida? Ainda não dissera nada para ele sobre ficar morando ali, porque não tinha certeza, por­tanto não havia motivo. E isso realmente não tinha importância. Se ele se apaixonasse por ela, poderia vir vê-la no seu avião particular. Aquilo lhe daria os dias úteis para, sozinha, pintar, cami­nhar, pensar e passar um tempinho com a Tia Beth, e os fins de semana com ele.

- No que afinal está pensando? - Ela deu um salto quan­do ele interrompeu os seus pensamentos. - Tinha o sorrizinho mais matreiro no rosto.

- É mesmo?

Mas ela não podia lhe dizer o que estava imaginando. Aquilo tinha que crescer lentamente, não podia fazer-lhe um esboço da situação antes do tempo.

- É, sim, e eu adorei a sua casa. É uma graça.

Mas ele fazia com que ela parecesse bobinha, e Jessie ficou desapontada. Ele tinha boas intenções, mas não compreendia.

- Quer uma xícara de chá?

Era um dia quente, mas Geoffrey parecia gostar de chá quen­te independente do clima. Chá, ou uísque. Ou martínis. Isso ela já sabia.

- Adoraria. E depois, .Jessica, meu amor, tenho uma surpresa para você.

- Tem mesmo? Adoro surpresas! Pode me dar agora.

Parecia uma garotinha de novo enquanto se largava ao sofá e esperava.

- Agora, não. Mas pensei que podíamos fazer alguma coisa especial hoje à noite.

- Por exemplo?

Ela também queria fazer uma coisa especial, o que era evi­dente no seu sorriso, mas ele deixou passar.

- Quero levá-la a Los Angeles. Vai haver uma festa no con­sulado. Pensei que você talvez gostasse

- Em Los Angeles?

Mas por que Los Angeles? Ela queria ficar ali mesmo.

- Vai ser uma festa muito boa. Claro, se você prefere não ir...

Mas o jeito que ele falou não lhe dava muita escolha.

- Não, não... eu adoraria... mas é que pensei...

- Bem, e o que faríamos aqui? Pensei que seria muito mais agradável dar um pulinho na cidade. E quero apresentá-la a alguns amigos meus.

Falou com tanto jeitinho que ela se sentiu mal pela sua relu­tância. Era só que estivera com vontade de partilhar uma noite tranquila com ele na nova casa. Mas haveria outras vezes. Muitas delas.

- Está certo. Parece formidável. - Ia entrar no espírito da coisa. - Que tipo de festa é?

- Gravata branca. Jantar tardio. E deve haver muita gente importante presente.

- Gravata branca? Mas isso significa casaca!

- Via de regra, sim.

- Mas Geoffrey, que diabo eu vou vestir? Não tenho nada aqui. Só um bocado de roupa de roça.

- Imaginei que seria esse o caso.

- Então, o que vou fazer?

Estava horrorizada. Gravata branca. Cristo. Nem sequer vira uma gravata branca desde todos aqueles ridículos bailes de debu­tante a que a mãe a obrigara a ir, 15 anos atrás. E não tinha nada nem remotamente possível de usar. Tudo que era sofisticado ainda estava em San Francisco.

- Jessica, se não vai ficar muito zangada comigo, tomei a liberdade de... - Nunca o vira tão nervoso. Sabia que ela tinha um gosto excelente, e estava apavorado com o que havia feito. - Espero que não vá ficar aborrecida, mas dadas as circunstân­cias.... quero dizer, eu...

- Mas afinal que está acontecendo?

Estava meio divertida, meio assustada.

- Comprei-lhe um vestido.

- Você fez o quê?

Estava atónita.

- Eu sei, foi uma coisa ridícula de se fazer, mas eu presumi que você provavelmente não tinha nada aqui e... - Mas ela esta­va rindo dele. Não estava zangada. - Não está aborrecida?

- Como poderia estar aborrecida? Ninguém nunca fez isso para mim antes. - Certamente não um homem que mal conhecia. Que homem espantoso ele estava se revelando! - Que coisa linda de se fazer. - Abraçou-o e riu de novo. - Posso vê-lo?

- Claro.

Saiu porta afora e voltou dali a cinco minutos, já que esta­cionara o carro a curta distância dali. Quisera fazer uma surpresa quando chegou, e o Porche não se prestava muito para surpresas. Mas estava de volta com uma caixa enorme nos braços, e uma sacola grande que parecia conter várias caixas menores.

- Mas o que foi que andou fazendo?

- Fui fazer compras.

Parecia satisfeito consigo mesmo, agora. Largou tudo em cima do sofá e deu um passo atrás com ar de prazer e expectativa.

Jessica abriu lentamente a caixa grande e soltou uma excla­mação abafada. O tecido era o mais delicado que já vira. Era um crepe de seda, o mais leve imaginável. Parecia flutuar por entro os seus dedos, e era uma cor cálida de marfim, que realçaria perfeitamente o bronzeado dela. Quando tirou o vestido da caixa, viu que ele parecia ficar preso num ombro, deixando o outro nu. E quando olhou para a etiqueta, esta explicou o modelo e o tecido. Geoffrey lhe comprara um vestido de alta costura, que devia ter. lhe custado no mínimo 2.000 dólares.

- Meu Deus, Geoffrey!

Ela estava sem fala.

- Você o detestou.

- Está brincando? É magnífico. Mas como pode me comprar isso?

- Você gostou, droga?

Ele não conseguia fazer sentido do que ela estava dizendo, e. aquilo o deixava nervoso, esperando para descobrir.

- Claro que gostei. Amei! Mas não posso aceitá-lo. É um vestido terrivelmente caro.

- E daí? Você precisa dele para logo mais.

Ela riu da lógica dele.

- Não exactamente. É como usar um carro novo.

E um Rolls, ainda por cima.

- Se você gosta, quero que o use. Será que serve?

Ela chegou a pensar em não experimentá-lo, mas estava morrendo de vontade de saber como ficava, como se sentiria com ele. Só por um momento.

- Vou experimentar. Mas não vou ficar com ele. De jeito algum.

- Bobagem.

Mas ela foi experimentar, e quando voltou estava sorrindo. A visão que ele captou fê-lo sorrir também.

- Santo Deus, você está linda, Jessica. Nunca vi ninguém vestir uma roupa desse jeito. - Parecia que tinha sido feito para ela. - Espere, tem que experimentá-lo com isto. - Meteu a mão na sacola e tirou de lá uma caixa de sapatos. Tirinhas finas de cetim de marfim sobre saltos delicados. Novamente, serviram na perfeição. Geoffrey sem dúvida sabia como fazer compras. Uma bolsi­nha de miçangas branca e prateada. Tudo junto, era de ofuscar. E os dois estavam igualmente embasbacados. Ele por olhar para ela, ela por estar usando aquilo. Estava acostumada com boas roupas, mas essas eram extravagantemente lindas. E escandalosamente caras.

- Bem, então está decidido. - Parecia resoluto, e satisfeito. - Cadê o meu chá?

- Não espera que eu vá servir chá usando isso, vai?

- Não. Tire-o.

- Sim, amor, e vai ficar tirado. É tão bonito, mas simples­mente não posso.

- Pode e vai, e eu não vou discutir mais. É isso ai.

- Geoffrey, eu...

- Quieta. - Ele a silenciou com um beijo e ela teve a sen­sação de que o assunto estava fora do seu alcance. Quando ele que­ria, era muito decidido. - Agora, vá buscar o meu chá.

- Você é impossível.

Ela tirou o vestido e foi preparar-lhe o chá, mas no final das contas ele venceu. Às seis horas ela saiu da banheira, maquiou-se, penteou-se e vestiu-se. Sentia-se ligeiramente como se estivesse se prostituindo. Um vestido de dois mil dólares não era um presenti­nho. Ele dera um jeito de fazer parecer com que fosse um lenço de cabeça ou de bolsa, mas isso não era um lencinho. Enquanto enfiava o vestido pela cabeça, estava praticamente babando.

E ele fez o mesmo quando a viu, 20 minutos mais tarde, à porta do seu novo quarto de dormir. A casa certamente não estava acostumada a essas idas e vindas grandiosas nos seus corredores. Geoffrey tinha ido trocar de roupa na casa dos amigos, e voltara Impecável, de casaca e gravata branca. O peito da sua camisa era perfeitamente engomado. Nada nele parecia se mexer. Parecia saído de um filme de 1932. E Jessica sorriu quando o viu.

- Está lindo, senhor.

- Madame, a senhora não tem idéia de como está extraordi­nária.

- Devo admitir que tudo isso está jóia. Mas sinto-me como a Gata Borralheira. Tem certeza de que não vou me transformar numa abóbora à meia-noite?

Ainda estava mais do que um pouco embaraçada por toda aquela extravagância, mas, por algum motivo, tinha se deixado le­var pela maré da insistência dele. E, tinha que admitir, era um ba­rato.

- Está pronta para ir, querida?

O “querida” era novidade, mas ela não se Importava. Podia acostumar-se com ele. Supunha que podia se acostumar com um bocado de coisas, se tentasse.

- Sim, senhor. - Olhou para as mãos nuas, e desejou ter jóias e luvas. Num acontecimento tão formal como esse obviamente seria, parecia que era imperativo usar luvas longas de pelica bran­ca, e jóias... jóias.... pensou numa coisa quando já estavam sain­do. - Espere um segundo, Geoffrey.

Trouxera-o com ela, e tinha se esquecido totalmente dele. Ti­nha-o escondido, por medida de segurança. Mas estaria perfeito.

- Algo errado?

- Não, não.

Sorriu misteriosamente e voltou correndo para o quarto, onde se debruçou cuidadosamente para procurar um pacotinho amarrado à parte inferior da cama. Fora o único lugar de que se lembrara. Mas quisera trazê-lo consigo. Não sabia por que, mas quisera. Tirou rapidamente a caixa do seu esconderijo e depois abriu-a, tirando o estojo de camurça da caixa, e depois derramando a jóia na mão. Era mais linda do que nunca, e por um momento, o seu coração parou ao vê-la. Trazia consigo tantas lembranças dolorosas, mas também tantas agradáveis. Podia vê-la na mão da mãe... e depois tirando a jóia por causa de Ian... recolocando-a quando o julgamento aca­bara. Era o anel de esmeraldas de sua mãe. Nunca conseguira se dispor a usá-lo como uma jóia, uma coisa, um enfeite. Mas esta era a noite para usá-lo como uma coisa de beleza e orgulho, como algo especial que lhe fora dado. Esta noite ele significava um novo começo na sua vida. Era perfeito. E os seus olhos ficaram cheios de lágrimas enquanto o colocava no dedo. Sentia a mãe aprovando.

- Jessica, o que está fazendo? Temos uma longa viagem até Los Angeles... apresse-se.

Sorriu consigo mesma enquanto o colocava na mão. Era exactamente o que precisava. Também tinha um par de brincos de pé­rolas que Ian lhe dera há anos. Fora a única jóia que trouxera, além do anel, que na verdade não tinha planejado usar. Deu uma última olhada no espelho e sorriu para si mesma enquanto saía ao encontro de Geoffrey.

- Já estou indo!

- Tudo bem?

- Maravilha.

- Pronta?

- Sim, senhor.

- Ah, a propósito, esqueci de dar-lhe isto.

“Isto” era mais duas caixas, uma comprida, chata e fina e um pequeno cubo.

- Mais? Geoffrey, você está maluco! O que está fazendo?

Era como o Natal. E por que estava fazendo isso? Ela nem queria os presentes, mas ele pareceu tão magoado quando ela re­cusou, que começou a abrir os pacotes. Nenhum homem jamais fizera isso com ela antes.

Quando ela começou com a caixa longa e fina, Geoffrey subitamente exclamou:

- Jessica, que lindo. Que jóia extraordinariamente bonita. - Estava admirando o anel da mãe dela e com a mão trémula, ela deixou que ele o examinasse. - Significa muito para você, não é? - Ela fez que sim com a cabeça, e depois de uma pausa, a voz dele se suavizou. - Foi o seu anel de noivado quando se casou?

- Não. - Olhou para ele gravemente. - Era da minha mãe.

- Era?... Ela...

Então era por isso que nunca falava da família. Tinha falado no irmão, mas nunca mencionara os pais. Agora ele compreendia.

- Sim, ela e meu pai morreram, com intervalo de poucos me­ses entre um e outro. Faz muito tempo, agora, suponho, embora não me pareça. Mas nunca... nunca usei o anel, como hoje.

- Sinto-me honrado que queira usá-lo comigo. - Puxou-lhe o rosto para junto do seu, suavemente, com a ponta do dedo, e bei­jou-a muito cuidadosamente. Aquilo deixou-lhe o corpo todo tinin­do. E então, ele deu um passo atrás e sorriu. - Ande. Acabe de abrir as suas coisas.

Tinha se esquecido das caixas, e agora voltou a elas.

A caixa longa e fina deixou ver as luvas em que tinha pensado quando estava se vestindo. Era como se ele lesse os seus pensamentos. De novo.

- Você pensa em tudo! - Elas a fizeram rir, mas estava en­cantada enquanto calçava uma delas. - Como sabia todos os meus números?

- Uma dama não deve nunca fazer uma pergunta dessas, Jessica. Insinua que tenho conhecimento em demasia das mulheres.

- Ah-ah! - A idéia a divertia. E ela passou à caixa seguinte. Era tão pequena que cabia na palma da sua mão. Geoffrey a ob­servava com interesse enquanto ela rasgava o papel e chegava à pequena caixa de couro azul-marinho. Era fechada com uma presilha, e Jessica abriu-a e soltou uma exclamação abafada. - Je­sus. Geoffrey! Não!

Ele não sabia dizer se Jessica estava zangada ou satisfeita, mas tomou suavemente a caixa da mão dela e tirou-as de dentro, segu­rando as lágrimas de brilhantes junto às orelhas dela.

- São exactamente o que você precisa. Coloque-os.

Era uma ordem suave, mas Jessica deu um passo atrás e olhou para ele.

- Geoffrey, não posso. Não posso mesmo. - Diamantes? Mal o conhecia. E os brincos não eram assim tão pequenos. Eram divinos, mas não uma coisa que ela pudesse aceitar. - Geoffrey. Sinto muito.

- Não seja boba. Use-os essa noite. Se não gostar, poderá devolvê-los.

- Mas imagine se eu perder um deles.

- Jessica, eles são seus.

Mas ela sacudiu a cabeça, calada, mantendo-se firme.

- Por favor. - Parecia tão desconsolado que sentia pena dele, mas não podia aceitar diamantes deste homem... já tinha aceitado a roupa que estava usando, e que já era um presente caro além da conta. Mas diamantes? Quem, em nome dos céus, era ele? Não im­porta quem, ela sabia quem ela era e o que podia e não podia fazer. Isso não podia. Não. Mas ele estava olhando-a com tanta tristeza que ela finalmente vacilou por um instante. - Experimente-os.

- Está certo, Geoffrey, mas não vou usá-los hoje, nem vou ficar com eles. Guarde-os. E quem sabe, algum dia...

Tentou fazer com que se sentisse melhor quanto aos brincos, enquanto erguia a mão para tirar um dos próprios brincos, e depois se lembrou de que estava usando as pérolas de Ian.

As pérolas eram muito menos grandiosas do que os diamantes, mas ela as adorava. Experimentou uma das lágrimas refulgentes de Geoffrey e ficou fantástica na sua orelha esquerda... mas na direita estava a pérola pequena e delicada do homem que a amara... de Ian...

- Não gosta deles.

Parecia arrasado.

- Adoro. Mas não para agora.

- Ainda há pouco parecia que alguma coisa a tinha deixado terrivelmente triste.

- Não seja ridículo. - Sorriu, entregou-lhe de volta o brinco, depois deu-lhe um beijo casto na face. - Nenhum homem jamais foi tão bom para mim, Geoffrey. Nem sei direito como agir.

- Relaxe e aproveite. Bem, lá vamos nós.

Ele não insistiu quanto aos brincos, e eles os deixaram cuida­dosamente escondidos na gaveta da escrivaninha. Sentiu-se aliviada por não os estar usando. Geoffrey tinha razão. Tirar as pérolas de Ian a teria deixado triste. Ainda não estava pronta para tanto. Com

O tempo, estaria. Ainda se agarrava a algumas das suas lembranças. Como o retracto dele, pendurado em cima da lareira.

A festa parecia saída de um filme multimilionário. GaIões de champanha, pelotões de mordomos de libré, exércitos de emprega­das de uniforme preto. Cada 60 centímetros do piso de mármore trabalhado parecia coberto pela sombra imponente de um imenso lustre de cristal. E pilastras e colunas e tapetes Aubusson e móveis Luís XV, e uma fortuna em diamantes e esmeraldas e safiras e cen­tenas de visons. Era o tipo de festa sobre a qual a gente lê, mas nem de leve imagina que poderia estar presente. E lá estava ela, com Geoffrey. Quase todos ali eram ou ingleses ou famosos, ou as duas coisas. E Geoffrey parecia conhecer todo mundo. Estrelas de ci­nema que Jessie conhecia apenas de jornal vinham correndo cumpri­mentá-lo, prometiam ligar para ele, ou deixavam marcas de batom na sua face. Embaixadores encurralavam-no perto do patê, ou ins­tavam Jessie a dançar. Empresários e diplomatas, gente da socieda­de e políticos, astros de cinema e celebridades de fama duvidosa.

Todo mundo estava lá. Era o tipo de festa para a qual você ba­talha anos para ver se arranja um convite. E lá estava ela, com Geoffrey, que se revelou ser não “Sr.”, mas “Sir.”

- Por que não me contou?

- Por quê? É uma bobagem. Não acha?

- Não. E é parte do seu nome.

- Então agora você sabe. Tem importância? - Parecia diver­tido, e ela sacudiu a cabeça. - Está certo, então. Agora, que tal dançar comigo, Lady Jessica?

- Sim, senhor. Sua majestade. Sua Graça. Sua Senhoria.

- Ora, cale a boca.

A festa continuou até as duas horas, e eles ficaram até o fim. Eram quase quatro horas quando chegaram de volta à pequena casa em estilo vitoriano enfiada no meio das colinas.

- Agora sei que sou a Gata Borralheira.

- Mas você se divertiu?

- Tive uma noite fabulosa.

Sentira-se um pouquinho como se ele a tivesse posto no mos­truário, como uma boneca nova e bonita, mas ele a havia apresen­tado a todo mundo, e como podia se queixar? Quantos acompa­nhantes dão às moças com quem saem vestidos de baile de 2.000 dólares e brincos de diamantes? Que noite. Olhou para o anel da mãe de novo enquanto saíam do carro. Sentia-se feliz por tê-lo usa­do. Não apenas porque era uma esmeralda, mas porque pertencera à mãe.

- Você esteve radiante, hoje, Jessica. Tive tanto orgulho de você.

- Foi apenas o vestido.

- Babaquice.

- O que? - Ela soltou uma risadinha cansada e olhou para ele, divertida. - Sir Geoffrey falou “babaquice”? Não pensei que você falasse esse tipo de coisa!

- Falo, e falo um bocado de outras coisas que você desco­nhece, minha cara.

- Parece interessante. - Trocaram um olhar de interesse mú­tuo diante da casa dela. - Não sei se devo oferecer-lhe conhaque, café, chá, ou aspirina. O que vai ser?

- Podemos resolver isso lá dentro.

Ela deslizou escada acima com a graça de uma borboleta, no magnífico vestido branco. Mesmo no final da noite, parecia uma visão, e mal parecia cansada. Agradava-o enormemente. Na verda­de, ele resolvera não esperar por muito mais tempo. Ela era tudo o que ele desejava, e estava na hora dele. Esperara por Jessie durante muito, muito tempo. Sabia que não estava completamente pronta, mas logo estaria. Ele a ajudaria a limpar as teias de aranhas do seu presente. De quando em vez ela via velhos fantasmas atormentando-lhe os olhos, mas estava na hora de abandoná-los. Ele precisava dela. E ela se saíra lindamente na festa. Todo mundo comentara.

- Vai a festas como essa com frequência?

Abafou um bocejo enquanto tirava as sandálias que ele lhe dera.

- Com frequência razoável. Gostou mesmo?

- E que mulher não gostaria, pelo amor de Deus? Geof­frey... desculpe, Sir Geoffrey.... - ela abriu um sorriso - é como ser rainha por um dia. E todas as pessoas do mundo inteiro esta­vam lá. Devo dizer que fiquei muito impressionada.

- E eles também.

- Com o quê?

- Com você. Era a mulher mais linda da festa.

Mas ela sabia que não era verdade, e que mais da metade da atenção que recebera fora por causa do vestido. Ele a equipara bem para o seu début, incluindo o vestido branco virginal. Mas algumas das grandes beldades do mundo estavam naquela festa. Ela não era propriamente páreo para elas. Não era esse tipo de mulher. Não do tipo que pinga brilhantes de orelha a orelha, enquanto arrasta atrás de si uma pele de chinchila, no último vestido de Givenchy. Aquelas mulheres eram de primeiríssimo time.

- Obrigada. - Era mais simples não discutir. - Chá?

- Não, obrigado.

Olhava para ela pensativamente, um tanto distraído.

- Quer que eu acenda a lareira?

Sentia vontade de sentar e bater papo com ele, como costu­mava fazer com... Não! Não podia deixar-se fazer isso.

- Quem é aquele? - Fez um gesto para o rosto juvenil que enciumava a lareira, e Jessica sorriu. - Seu irmão?

- Não. Outra pessoa.

- O Sr. Clarke? - Ela fez que sim, o rosto agora grave. - Ainda conserva o retracto dele no lugar?

- Fui eu que o pintei.

- Isso não é motivo. Ainda o vê?

Presumia que ela não o via, embora nunca tivessem tocado no assunto.

- Não. Não vejo mais.

- É o melhor. - E então ele fez uma coisa que fez o cora­ção de Jessica parar. Muito tranquilamente, sem pedir, sem dizer uma palavra, tirou o quadro de onde estava e pousou-o no chão, suavemente, perto da escrivaninha dela, de cara para a parede. - Acho que esta é uma boa hora para guardarmos isto, não é, querida?

Mas não havia pergunta na voz dele, e por um momento ela ficou atónita demais para falar. Ela o queria pendurado. Gostava dele. Trouxera-o especialmente de San Francisco. Ou será que ele tinha razão? Não havia mais lugar para aquilo? Não devia ter ha­vido, e ambos o sabiam.

- Quer chá?

Não pode pensar em mais nada para dizer, e a sua voz era apenas um grasnido.

- Não.

Com um sorriso meigo, sacudiu a cabeça e veio lentamente para junto dela. Parou à sua frente e deu-lhe um beijo cheio de desejo. Aquilo mexeu com ela até a ponta da alma. Agora precisava dele. Estava arrancando dela uma coisa de que precisara para sobre­viver, e agora estava começando a precisar dele. Não podia tirar  Ian dela, mas ia fazê-lo, e ela estava deixando. Ficaram ali jun­tos, as bocas descobrindo-se esfomeadas, e muito meigamente ele soltou o colchete no ombro do vestido dela. Quando ele se abriu, o vestido caiu-lhe frouxamente até a cintura, e ele baixou a boca len­tamente até os seios dela, enquanto todo o seu corpo parecia se estirar na direcção dele... mas alguma coisa dentro dela dizia não.

- Geoffrey... Geoffrey...

Ele continuava a beijá-la, e o vestido caiu lentamente ao chão. Todo aquele crepe de seda delicado amontoado aos seus pés, en­quanto, cuidadosa e implacavelmente, ele a despia.. Ela tentou tirar o peitilho branco engomado, mas não conseguiu. Só o que podia to­car era a saliência nas calças dele, mas até mesmo seu zíper pa­recia resistir-lhe. E dali a um momento ela ficou nua diante dele, ainda completamente vestido, de casaca e tudo.

- Meu Deus, Jessica, como você é linda, meu amor... linda, linda, meu pássaro elegante...

Levou-a devagar para o quarto, falando palavras de amor o tempo todo, e ela o acompanhou, como que em transe, até que ele a pousou cuidadosamente na cama e tirou devagar o paletó, ou quanto ela esperava. Parecia ronronar para ela, que se sentia fasci­nada por ele. Já tinha tirado o paletó, mas o peitilho engomado ain­da estava no lugar. Dava-lhe a aparência de um cirurgião, e en­quanto ela virava a cabeça no travesseiro, algo lhe beliscou a orelha. Ainda estava usando os seus brincos, e ergueu a mão para tirá-los e sentiu as pérolas caírem na sua palma. As pérolas... as pérolas de Ian... e cá estava esse homem se despindo na frente dela. Ele a tinha despido. Ela estava nua, e ele ia ficar, e ele tinha tirado o retracto de Ian da parede...

- Não!

Ela deu um salto e se sentou na cama, fitando-o como se ele tivesse jogado água fria no seu rosto.

- Jessica?

- Não!

Sentou-se ao lado dela e tomou-a nos braços, mas ela se livrou deles, ainda agarrada aos brincos de pérola.

- Não tenha medo, querida, eu serei delicado, prometo.

- Não, não!

As lágrimas vinham aflorando à sua garganta, e ela passou por ele, puxou a colcha da Tia Beth do pé da cama e cobriu-se com ela. Mas, o que havia de errado com ela? Por um momento pensou que estava maluca. Poucos minutos antes desejara-o tão desesperadamente, ou assim imaginara. E agora sabia que não. Não podia. Agora sabia de tudo.

- Jessica, que diabo está acontecendo?

Ela estava encolhida junto da janela, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto.

- Não posso ir para a cama com você. Desculpe... eu...

- Mas, o que aconteceu? Há um momento...

Pela primeira vez, ele estava totalmente atarantado. Isto nunca lhe acontecera. Não desse jeito.

- Eu sei. Desculpe. Deve parecer loucura, é só que...

- Que o que, diabos? - Estava parado diante dela, parecendo muito desconcertado pela experiência. O seu paletó jazia de modo estranho no chão, como se tivesse sido jogado ali. - O que lhe acon­teceu?

- É só que não posso.

- Mas, querida, eu a amo.

Foi para junto dela de novo e tentou abraçá-la, mas ela não deixou.

- Você não me ama.

Era uma coisa que ela sentia; não uma coisa que pudesse ex­plicar. E, o que era mais importante, ela não o amava. Queria amá­-lo. Sabia que devia amá-lo. Sabia que ele era o tipo de homem que se supõe que as mulheres devam amar, e implorar para terem como marido. Mas ela não o amava, e não podia, e sabia que jamais amaria.

- Como assim, eu não a amo? Que diabo, Jessica, quero casar com você. Que tipo de jogo acha que andei fazendo? Você não é o tipo de mulher que um homem toma como amante. Acha que a teria levado à festa hoje se não estivesse levando a coisa a sério? Não seja absurda.

- Mas você não me conhece.

Era um queixume que vinha do canto.

- Conheço o bastante.

- Não, não conhece. Não sabe de nada.

- Você não nega a classe.

Ah, Jesus.

- Mas, e quanto à minha alma? O que eu penso, o que sinto, o que sou, do que preciso?

- Aprenderemos isso um sobre o outro.

- Depois?

Ela parecia horrorizada.

- Algumas pessoas fazem desse modo.

- Mas eu não.

- Você não sabe que diabo faz. E se tiver um pingo de cére­bro, vai se casar com um homem que lhe diga o que fazer, e quando fazer. Será muito mais feliz assim.

- Não, esse é o problema. Eu costumava querer isso, Geoffrey, mas não quero mais. Quero dar, além de tomar, quero ser a adulta, além da criança. Não quero ser mandada e exibida e enfeitada. Foi isso o que você fez, hoje. Sei que teve boa intenção, mas não passei de uma boneca Barbie, e nunca passaria disso. Não! Como pode!

- Desculpe se a ofendi.

Abaixou-se e apanhou o paletó. Estava começando a se questio­nar quanto a ela; era quase como se fosse um pouco maluca.

Mas subitamente ela não estava se sentindo nada maluca. Estava se sentindo bem, e sabia que estava fazendo a coisa certa. Talvez ninguém mais pensasse assim, mas ela sabia.

- Você nem mesmo quer filhos.

Era uma acusação ridícula para se estar fazendo às cinco da manhã, enrolada numa colcha, conversando com um homem de ca­saca.

- E você quer filhos?

- Talvez.

- Bobagem. Essa coisa toda é uma bobagem, Jessica. Mas não vou ficar aqui discutindo com você. Sabe qual é a minha posição. Eu a amo e quero casar com você. Quando voltar ao seu juízo perfeito, de manhã, ligue para mim. - Olhou para ela significativamente, sacudiu a cabeça, foi até o canto, beijou-lhe o alto da cabeça e deu-lhe uma palmadinha no ombro. - Boa noite, querida. Vai se sentir melhor de manhã.

Ela não disso uma palavra enquanto ele se retirava, mas depois que ele se foi arrumou todos os presentes que ele lhe dera na caixa grande e branca do vestido. Pela manhã mandaria tudo para a casa em que ele estava hospedado. Talvez fosse uma loucura fazer isso, mas estava bem certa. Nunca estivera tão certa de uma coisa na vida.

Tinha posto os brincos de pérola na mesinha-de-cabeceira, e agora nem estava com sono. Ficou ali feliz e nua na sua sala de visitas, tomando um café preto fumegante, enquanto o sol nascia nas colinas. O retracto estava de volta à parede.

 

- E como vai o seu namorado?

Ela e Tia Beth estavam tomando chá gelado depois de um longo passeio a cavalo, e Jessica tinha estado muito quieta.

- Que namorado?

Mas não estava enganando ninguém.

- Sei. Vamos brincar de gato e rato, ou ele saiu do páreo?

Os olhos de Tia Beth perscrutaram os dela, e Jessie arriscou um sorriso. Gato e rato, ora essa!

- Ponto seu. Saiu do páreo.

- Algum motivo especial? - Daquela vez, ficou surpresa. -VI uma foto bastante espectacular de vocês dois, numa festa muito chique em Los Angeles.

- Que diabo, onde a viu?

Jessica não estava satisfeita.

- Ora, ora. Ele deve ter mesmo caído em desgraça! Vi a foto no jornal de Los Angeles. Uma festa num consulado, ou coisa assim, não é? Um bocado de gente ilustre parecia rondar vocês.

- Não notei.

Jessie parecia chateada.

- Estou impressionada. - E Jessie também estava. Mas não agradavelmente. Estava se perguntando quem mais teria visto a foto. Não havia razão para ter seu nome ligado ao de Geoffrey agora. Ora, bem... como tudo o mais, as fofocas acabariam por cessar. E era provavelmente bem mais difícil para o Geoffrey. ele tinha que viver com toda aquela gente. Ela, não. - Ele fez alguma coisa inconveniente, era simplesmente um chato, ou será que não devo me meter no que não é da minha conta?

- Claro que não. Não, eu simplesmente não pude, é a única maneira de me expressar. Queria forçar-me a amá-lo. Mas não pude. Ele era perfeito. Tinha tudo. Fazia tudo. Era tudo. Mas... eu... não consigo explicar, Tia Beth. Tinha a sensação de que ele ia tentar me transformar naquilo que queria

- É uma sensação desagradável.

- Eu ficava sentindo que ele estava me examinando como a um cavalo de corrida. Sentia-me tão... tão solitária, com ele. Não é uma loucura? E não havia motivo para isso. - Contou-lhe sobre o vestido e os brincos de diamantes. - Eu devia ter ficado entusiasma­da. Mas não fiquei. Aquilo me assustou. Era demais... não sei. Éramos uns estranhos.

- Qualquer um será um estranho, a princípio. - Jessica balan­çou a cabeça e terminou o seu chá gelado. - Ele parecia bem simpático, mas se aquele ingrediente especial não está presente, aquela magia especial... não há por que insistir.

Aquilo fez Jessica voltar o pensamento para aquela noite.

- Receio que não recuei com muita elegância. Fiquei doidona.

Sorriu à lembrança, e a mulher mais velha riu.

- Provavelmente fez bem a ele. Era tão certinho.

- Era mesmo. E estava usando casaca enquanto eu pirei e praticamente comecei a arremessar coisas. Mandei de volta todos os presentes no dia seguinte.

- Jogou-os pela janela?

Beth parecia muito divertida, e quase torcia para que ela o tivesse feito. Os homens precisavam de movimento.

- Não. - Enrubesceu por um momento. - Mandei um dos empregados da sua fazenda levá-los na casa dele.

- Então é assim que eles passam as tardes deles.

- Desculpe.

- Não se desculpe. Estou certa de que quem foi curtiu imensa­mente a coisa toda.

Ficaram sentadas por um momento com os copos de chá gelado, e Jessica estava de testa franzida.

- Sabe também o que me incomodou?

- Estou ansiosa para saber.

- Pare de implicar.... estou falando a sério. - Mas ela gostava das brincadeiras com a amiga. - Ele não queria ter filhos.

- E nem você. O que a incomodava nisso?

- É uma boa pergunta, mas tem alguma coisa acontecendo. Não acho que a idéia de ter filhos me assuste mais tanto. Fico pen­sando que... não sei, já estou muito velha, de qualquer jeito, mas fico pensando que...

Sabia que não era velha demais, mas queria que alguém lho dissesse.

- Quer um bebé? - Bethania estava espantada. - Está falando a sério?

- Não sei.

- Bem, certamente que não é tarde demais, na sua idade. Não tem nem 32 anos. Mas, deixe que lhe diga, estou surpresa.

- Por quê?

- Porque o seu medo era tão profundo. Não pensei que você algum dia tivesse a autoconfiança suficiente para suportar a compe­tição. E se tivesse uma filha bonita? Será que aguentaria? Pense nisso. Pode ser muito doloroso para uma mãe.

- E provavelmente muito compensador. Não parece uma cafo­nice dizer isso? Sinto-me feito uma besta. Já vem me incomodando há algum tempo, mas não tive coragem de contar para ninguém. Todo mundo tem tanta certeza de que sou o que sou. Mulher de carreira, de cidade grande, contra crianças, agora alegre e divorciada. Mesmo quando a gente pára de ser a mesma pessoa, parece que ninguém quer deixar que se retire os velhos rótulos.

- Então queime-os. Coisa que você certamente fez. Livrou-se do marido, da loja, da cidade. Não sobra muito para mudar. - Falou pesarosa, mas com afecto. - E para o diabo com os rótulos das outras pessoas. Existe muita coisa que não podemos mudar, mas se há coisas que você quer e pode mudar, vá em frente e aproveite.

- Imagine ter um bebé...

Ficou ali, sorrindo, saboreando a idéia.

- Imagine você. Eu nem mesmo me lembro, e não tenho muita certeza de que quero me lembrar. Nunca me senti muito romântica sobre esse assunto, mas amo a Astrid profundamente.

- Sabe, é como se eu tivesse vivido vários capítulos da minha vida de uma maneira, e agora esteja pronta para seguir em frente. Não jogar o passado pela janela, mas continuar. Como uma viagem. Já passamos tempo bastante num mesmo país; depois de algum tempo, é preciso seguir adiante. Acho que é o que aconteceu. Seguir em frente para lugares diferentes, necessidades diferentes. Sinto-me nova outra vez, Tia Beth. A única coisa triste é que não tenho ninguém com quem partilhar essa sensação.

- Mas você podia ter tido o Geoffrey. Pense só no que perdeu! – Mas a Tia Beth não achava que ela perdera grande coisa. Faltava fogo naquele homem, audácia e sonhos loucos. Ele viajava por um curso bem programado. Teria sido muito aborrecido, pelo menos. Sabia que Jessie tinha feito a coisa certa. Admirava-se apenas com a violência da reacção de Jessie. - Há outra coisa que também a está incomodando, ultimamente, não é?

- Não sei o que quer dizer.

- Sabe sim. Ora, se sabe. Sabe não apenas o que quero dizer, como todo o resto. Na verdade, aposto que foi esse o problema. com o Geoffrey, não foi? Teve muito pouco a ver com ele, afinal de contas.

Jessica estava rindo, mas não queria dizer nada.

- Você me conhece bem demais.

- É, e você finalmente está começando a se conhecer, também. E fico contente com isso. Mas agora o que vai fazer a respeito?

- Estava pensando em ir para fora durante uns dois dias.

- Não está querendo a minha permissão, está?

Tia Beth estava rindo, e Jessica sacudiu a cabeça.

 

Começou a viagem às seis da manhã seguinte, enquanto o sol metia o nariz por cima do morro da Tia Beth. Tinha um longo caminho a percorrer. Seis horas, talvez sete, e queria chegar a tempo. Vestira uma camisa leve para a viagem, e uma saia, que era mais fresca do que calças. Tinha levado uma garrafa térmica cheia de .café gelado, um sanduíche, um saquinho de maçãs, algumas nozes e biscoitos numa lata que o filho do capataz lhe trouxera alguns dias antes. Estava bem equipada. E resoluta. E também com medo. Há dois meses que vinham trocando cartas duas a três vezes por semana. Mas as cartas eram bem diferentes. Fazia quatro meses que não via o rosto de Ian. Quatro meses desde que ele lhe dera .as costas e se afastara, depois que ambos tinham jogado pedras que não deviam ter sequer apanhado do chão. E tanta coisa tinha mudado, agora. Ambos eram cautelosos nas suas cartas. Cuidadosos, temerosos, e no entanto alegres. Em cada página apareciam explosões de graça, comentários bobos, referências descuidadas, bobagens, e depois cautela de novo, como se cada um estivesse com medo de se mostrar demais para o outro. Mantinham-se presos aos assuntos seguros. A casa dela, e o livro dele. Ainda não havia novidade sobre o contrato de filmagem, mas o livro devia ser publicado no outono. Ela estava entusiasmada por ele. Tão entusiasmada quanto ele com a casa. Tomava sempre cuidado em chamá-la de “dela”, e o era. Por enquanto.

Agora eram pessoas separadas, não mais feitas do mesmo pe­daço de tecido. Tinham sido separados à força pelo que lhes aconte­cera, pelo que haviam feito um com o outro, pelo que não mais podiam fingir. Ela se perguntava se haveria jeito de voltar, depois de uma coisa daquelas. Talvez não, mas precisava saber. Agora, antes de esperarem mais tempo. E se ele esperasse nunca mais revê-la? Parecia ter quase aceitado o facto. Nunca pedia uma visita. Mas ia ter uma. Queria vê-lo, olhar no rosto dele e ver o que estava lá, não apenas escutar o eco da voz dele por carta.

Chegou ao prédio já familiar à uma e meia da tarde. Eles a examinaram minuciosamente, revistaram a sua bolsa, e depois ela entrou e escreveu o seu nome num formulário na recepção. Sentou-se e esperou uma meia hora interminável, os olhos dardejando inquietos entre o relógio de parede e a porta. O coração batia com muita força, agora. Estava ali. E estava apavorada. Por que viera? O que diria? Talvez ele nem quisesse vê-la, talvez fosse por isso que não tocasse no assunto visita. Foi uma loucura ter vindo... insanida­de... estupidez...

- Visita para Clarke... visita para Ian Clarke.

A voz do guarda anunciou monotonamente o nome dele, e Jessica levantou-se da cadeira de um salto, lutando para manter o andar normal enquanto se dirigia para o homem uniformizado que estava de sentinela na porta da área de visita. Era uma porta diferente daquela pela qual costumava passar antes, e quando olhou para além dela percebeu que Ian agora estava numa secção diferente. Quem sabe não haveria agora janelas de vidro entre eles.

O guarda destrancou a porta, examinou o pulso dela atrás do carimbo com que tinham marcado as costas da sua mão no portão principal, e depois se afastou para que ela passasse. A porta dava para um gramado pontilhado de bancos e emoldurado por canteiros, e não havia fronteiras aparentes, apenas uma longa faixa de grama bem cuidada mais além. Atravessou lentamente a soleira e viu casais andando por caminhos dos dois lados do gramado. E então viu Ian, na extremidade oposta, parado, olhando para ela, atónito. Era como uma cena de filme, e os pés dela pareciam de chumbo.

Ela ficou ali parada, e Ian também, até que um amplo sorriso começou a tomar conta do rosto dele. Parecia um garoto alto e desengonçado, olhando para ela e sorrindo, os olhos húmidos, porém não mais do que os dela. Era uma loucura... meia quadra de relva entre eles e nenhum dos dois se mexia... ela precisava... tinha vindo até aqui para vê-lo, para falar com ele, não apenas para ficar parada olhando-o com cara de boba e um sorriso. Começou a descer lentamente o passeio, e ele começou também a caminhar na direcção dela, o sorriso no rosto espalhando-se mais, e então, de re­pente, finalmente, ela estava nos seus braços. Era o Ian. O Ian que ela conhecia. Tinha cheiro de Ian, jeito de Ian, o queixo dela se encaixava no mesmo lugar no ombro dele. Estava em casa.

- O que aconteceu? Acabou o laquê ou os lagartos estão sendo demais para você?

- As duas coisas. Vim para cá para você me salvar.

Estava tendo um trabalhão para conter as lágrimas, mas ele também estava, e mesmo assim os sorrisos deles eram como o sol vivo numa chuva de verão.

- Jessie, você é maluca.

Abraçou-a com força, e ela riu.

- Acho que devo ser. - Estava agarrada a ele com força. Como era bom. Levou a mão à cabeça dele e sentiu a seda dos seus cabelos. Reconheceria aqueles cabelos de olhos vendados numa sala cheia de homens. Era o Ian. - Jesus, mas que gostoso tocar você.

Afastou-se dele para olhá-lo. Estava fabuloso. Magricela, um pouco cansado, um pouco bronzeado, e totalmente embasbacado. Fabuloso. Ele a puxou para junto de si de novo e apoiou a cabeça dela no seu ombro.

- Ah, meu bem, nem pude acreditar quando você começou a escrever. Já tinha perdido as esperanças.

- Sei. Sou uma bosta. - Sentiu-se mal, de repente, pelos longos meses de silêncio; agora, olhando bem no rosto dele, podia ver como eles o haviam magoado. Mas precisara fazê-lo. - Sou uma super bosta.

- É, mas uma super bosta tão linda. Está maravilhosa, Jessie. Até engordou um pouquinho.

Afastou-a um pouco de si e olhou-a da cabeça aos pés. Não queria soltá-la. Estava com medo de que ela fosse sumir de novo. Queria prendê-la, certificar-se de que era real. E que estava de volta. E que era sua. Mas, talvez... talvez ela tivesse vindo apenas fazer uma visita... dizer alô... ou adeus. Os seus olhos revelaram subitamente a dor do que estava pensando, e Jessica perguntou-se o que passaria pela sua cabeça. Mas ela não sabia o que dizer. Ainda não.

- A vida na roça está me deixando gorda.

- E feliz, pelo tom das suas cartas. - Abraçou-a de novo e depois deu-lhe um beliscão no nariz. - Vamos sentar. Meus joelhos estão tremendo tanto que mal posso ficar em pé.

Ela riu dele, e enxugou as lágrimas das próprias faces.

- Você está tremendo! Eu tinha medo de que você não me enxergasse!

- E deixar passar a chance de deixar os outros caras babando? Não seja ridícula.

Notou então que ela estava usando o feijão-lima de ouro, e tomou suavemente a mão dela na sua.

Encontraram um banco vazio junto ao relvado e se sentaram, ainda de mãos dadas. Ele a envolvia com um dos braços, e a mão dela tremia na dele. E então as palavras começaram a jorrar. Não podia mais se controlar. A represa finalmente cedera.

- Ian, eu o amo. É tudo tão nojento sem você.

Parecia uma cafonice, mas fora isso que viera dizer-lhe. Agora tinha certeza. Sabia o que queria. E agora era mais uma questão de querer do que precisar. Ainda precisava dele, mas de modo diferente. Agora sabia o quanto o queria.

- A sua vida não parece nojenta, meu bem. Parece boa. O interior, a casa... mas... - olhou para ela, com a gratidão inundando o seu rosto - ...que bom que sinta que é nojenta, mesmo que seja só um pouquinho. Ah, Jess... que bom.

Voltou a tomá-la nos braços.

- Ainda me ama um pouquinho?

Estava usando a sua voz de garotinha. Há muito tempo ninguém a ouvia, há muito tempo ele não a ouvia. Mas, e se ele não a quisesse mais? Então, o que faria? Voltaria para o Geoffreys da vida, e os dramaturgos cabeludos idiotas de Nova York? E o vazio de uma casa e um mirante e um balanço e um mundo feito para o Ian... mas sem ele? Voltar para o quê? Para fitar o retracto dele? Pensar na sua voz? Usar os brincos de pérola que ele lhe havia dado?

- Ei, moça, está sonhando. No que estava pensando?

- Em você. - Olhou-o directo nos olhos. Precisava saber. - Ian, ainda me ama?

- Mais do que posso lhe dizer, meu bem. O que você acha? Jessie, amo-a mais do que nunca. Mas você queria o divórcio e parecia justo. Não podia pedir-lhe que passasse por tudo isso.

Fez um gesto vago para a prisão às suas costas. Ela ficou com o olhar cheio de preocupação.

E você? Está sobrevivendo?

Afastou-se para olhar para ele de novo. Parecia muito mais magro. Saudável, mas muito mais magro.

- Estou me saindo bem melhor que imaginava. Desde que terminei o livro. estão deixando que eu dê aulas na escola, agora, e estou escalado... - Pareceu hesitar, olhou para alguma coisa por sobre a cabeça dela, e inspirou fundo. - Estou escalado para uma audiência em setembro. Poderão me soltar. Na realidade, é quase certo que soltem. Por algum milagre, acabaram com a famosa sentença indeterminada da Califórnia, desde a minha chegada aqui, e como réu primário a minha sentença pode estar quase acabando, se forem receptivos. Assim, parece que não devo demorar muito para voltar para casa.

- Quanto tempo?

- Talvez seis semanas. Talvez três ou quatro meses. No má­ximo seis meses. Mas não é aí que estou querendo chegar, Jessie. E quanto a todo o resto? E quanto a nós? O facto de eu estar na prisão não era o nosso único problema.

- Mas tanta coisa mudou.

Ele sabia que era verdade. Lera nas cartas dela, sabia pelo que ela fizera, e agora podia vê-lo no seu rosto. Ela era mais mulher do que jamais fora antes. Mas uma coisa mágica também lhe dizia que ainda era dele. Parte dela era. Parte dela agora pertencia apenas à Jessie, mas ele gostava desse jeito. Ela fora assim há muito, muito tempo. Mas estava melhor, agora. Mais rica, mais cheia, mais forte. Era íntegra. E se ainda o quisesse, agora, eles teriam realmente alguma coisa. E ele também tinha crescido muito.

- Acho que muita coisa mudou, Jess, mas um pouco não mudou e um pouco não mudará. E talvez seja mais do que você queira enfrentar. Você podia encontrar coisa melhor.

Olhou para ela, perguntando-se sobre a foto que vira no jornal. Tinha visto o mesmo artigo que Beth vira. E se ela podia ter Sir Geoffrey Sei-Lá-do-Quê, por que diabos ainda ia querê-lo?

- Ian, gosto do que tenho, se é que ainda o tenho. E não podia encontrar coisa melhor. Não quero encontrar coisa melhor. Você é tudo o que quero.

- Não tenho dinheiro.

- E daí?

- Escute, consegui um adiantamento de 10.000 dólares pelo livro, e metade disso foi para o seu carro novo. E os outros 5.000 não vão durar muito, quando eu sair. Lá vai você ter que me susten­tar de novo. E, querida, tenho que escrever. Sei realmente disso. É uma coisa que tenho que fazer, nem que precise bancar o garçom num boteco para me sustentar enquanto escrevo. Não vou desistir de escrever de jeito nenhum, para ser “respeitável”.

Parecia pesaroso, mas firme. E Jessie parecia impaciente.

- Quem está se lixando para a “respeitabilidade”? Ganhei uma fortuna vendendo a loja para Astrid. Que porra de diferença faz agora quem ganha o que, fazendo o que... e daí, bobão? O que acha que vou fazer agora com todo aquele dinheiro? Vesti-lo? Podíamos fazer tantas coisas legais com ele.

Estava pensando na casa. E em outras coisas.

- Tais como?

Sorriu ao som da voz dela, e abraçou-a mais forte.

- Ah, um monte de coisas. Comprar a casa no interior, um jeitinho nela... Ir para a Europa... ter um bebé...

Ergueu o rosto e sorriu para ele, nariz com nariz.

- O que foi que disse?

- Você me ouviu.

- Não tenho muita certeza. Está falando a sério?

- Acho que sim.

Sorriu misteriosamente e beijou-o.

- A troco do que, essa história?

- Um processo simples, querido. Fiquei adulta, depois da últi­ma vez que o vi. E é uma coisa em que tenho pensado, ultimamente. E me dei conta de mais uma coisa. Não quero apenas “um bebé”. Quero o seu bebé. Quero o nosso bebé. Ian... eu só quero você, com filhos, sem filhos, com dinheiro, sem... não sei de que outra maneira lhe dizer. Eu o amo.

Duas imensas lágrimas deslizaram pelo rosto dela e olhou para Ian com tanta intensidade que ele teve vontade de abraçá-la para sempre.

Jogou os braços à sua volta e abraçou-a com um amplo sorriso no rosto.

- Sabe o que vai acontecer, Jess? Qualquer minuto desses um cretino com uma lanterna eléctrica virá até junto de mim, serão duas horas da madrugada e eu acordarei, segurando o travesseiro. Porque isso não pode ser real. Sonhei demais com isso. Não está aconte­cendo. Quero que esteja, mas... diga que é verdade.

- É verdade... mas você está quase quebrando o meu braço esquerdo.

- Desculpe. - Afastou-a de si por um momento, e ambos riram. - Meu bem, eu a amo. Nem me importo mais se você quer um bebé, ou não. Eu a amo, naquela casa desconjuntada e vazia que você arranjou, ou num palácio, ou seja onde for. E, além disso, acho que você é pinel. Não sei o que a fez voltar, mas estou feliz às pampas que tenha voltado.

- Eu também. - Ela jogou os braços à volta dele, mordis­cou-lhe a orelha, e depois o mordeu. - Eu o amo - sussurrou na orelha dele, e Ian a beliscou. Fazia tanto tempo que não a tocava, a abraçava, a sentia. Até mesmo beliscões e mordidas eram uma gostosura. Era tudo um luxo, agora. - Puxa, Ian, o que há com você?

- Como assim?

Pareceu subitamente preocupado.

- Você nem gritou quando eu o belisquei. Sempre grita quando eu o belisco. Não me ama mais?

Mas os olhos dela dançavam, como não o faziam há anos. Talvez como nunca o tivessem feito antes, pensou Ian.

- Você veio até aqui para que eu gritasse com você?

- Claro. E para que eu pudesse gritar com você. E abraçá-lo e beijá-lo e implorar-lhe para dar logo o fora daqui e vir para casa, pelo amor de Deus. Então quer fazer o favor de vir, porra? Por favor!

Meu Deus. Doze horas atrás ela nem estivera certa de que ele ainda a queria. Mas queria! Graças a Deus, queria!

- Eu vou, eu vou. Que pressa é essa? O que é que tem lá naquele lugar, cobras? Aranhas? É por isso que você me quer, certo? O exterminador... conheço o seu tipo.

- Tolice. Nem aranhas, nem cobras, mas...

Abriu um largo sorriso.

- Ah!

- Formigas. Entrei na cozinha outro dia de noite para fazer um sanduíche de manteiga de amendoim, e berrei tão alto que... do que está rindo? Droga, do que está rindo?

E então de repente ela estava rindo também, e ele a abraçava e a beijava de novo, e ambos riam por entre as lágrimas. A guerra tinha acabado.

E oito semanas mais tarde, ele voltou para casa.

 

                                                                                            Danielle Stell

 

 

                      

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