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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Album de Família / Danielle Stel
Album de Família / Danielle Stel

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Album de Família

 

          

 

1983

O sol estava tão forte que quase todos apertavam os olhos, embora fossem apenas onze horas da manhã. Uma brisa suave despenteava os cabelos das mulheres. O dia estava tão lindo que havia nele uma espécie de agonia, um silêncio assombroso, e só o que se ouvia no silêncio eram os passarinhos,  um gorjear tranqüilo, gritos repentinos e o perfume inebriante das flores... lírios-do-vale, gardênias, frésias, enterradas num tapete de musgo. No entanto, Ward  Thayer não via nada disso, e não parecia ouvir coisa alguma. Havia vários minutos que estava de olhos fechados; e quando os abriu, ficou olhando fixamente por muito  tempo, quase como um zumbi, parecendo pálido, tão diferente da imagem que todos tinham dele... e mantinham havia quarenta anos . Nessa manhã não havia nada de vistoso ou empolgante ou mesmo bonito no aspecto de Ward Thayer. Ele estava imobilizado, ao sol brilhante, sem olhar para nada, os olhos novamente fechados, quase apertando as pálpebras, e por um momento quis que seus olhos nunca mais se abrissem, como ela não abrira, como ela nunca mais abriria.

Havia uma voz falando baixinho a distância, dizendo alguma coisa, não parecendo diferente do zumbido dos insetos junto das  flores. E ele não sentia nada. Nada. Por quê? Por que não estava sentindo nada?, ele se perguntou. Não sentira nada por ela? Fora tudo uma mentira? Sentiu o pânico  invadi-lo... não se lembrava do rosto dela... como ela usava os cabelos... a cor de seus olhos... ele abriu os olhos de repente, separando as pálpebras como se  fossem mãos que estavam do bradas, uma pele que um dia fora enxertada. O sol o ofuscou por um instante e ele só viu um lampejo de luz e sentiu o perfume  das flores, enquanto uma abelha zumbia preguiçosa por perto e o pastor pronunciava o nome dela. Faye Price Thayer. Houve um pipocar abafado à sua esquerda e o  lampejo de uma câmara explodiu em seus olhos, enquanto a mulher a seu lado lhe apertava o braço.

Ele olhou para ela, os olhos se adaptando à luz de novo e, de repente, lembrou-se. Tudo de que se esquecera estava refletido nos olhos da filha. A moça se parecia tanto com ela, mas como eram diferentes. Nunca haveria outra mulher como Faye Thayer. Todos sabiam disso e ele sabia melhor que todos. Olhou para a loura bonitinha a seu lado, lembrando-se de tudo, e com uma saudade muda de Faye.

A filha era alta e sóbria. Era menos bonita do que o fora Faye. Os cabelos louros e lisos estavam puxados num coque, e ao lado dela estava um homem sério, que de vez em quando tocava no braço dela. Eles agora tinham de se haver sozinhos, cada qual diferente, separados, e no entanto parte de um todo maior, parte de Faye...e dele também.

Ela se teria ido mesmo? Parecia impossível, pensou, enquanto as lágrimas rolavam, solenes, por suas faces e uma dúzia de fotógrafos se adiantavam para gravar o seu sofrimento, e colocá-lo nas primeiras páginas do mundo todo. O viúvo enlutado de Faye Price Thayer. Ele pertencia a ela  agora, na morte, como pertencera em vida.

Eram todos dela. Todos. As filhas, o filho, os companheiros de trabalho, os amigos, e estavam todos ali para render homenagem à memória da mulher que nunca mais voltaria.

A família estava ao lado dele, na fila da frente. A filha Vanessa, o seu rapaz de óculos, e ao lado dele, a gêmea de Vanessa, Valerie, os cabelos de fogo, um rosto dourado, um vestido de seda preta que se colava a ela de modo espetacular, o sucesso estampado claramente nela, e ao lado dela um homem igualmente deslumbrante.

Eram um casal tão lindo que não se podia deixar de ficar olhando, e Ward gostava de ver como Val se parecia com Faye. Ele  nunca reparara tanto nisso, mas agora o via... e Lionel também se parecia com ela, embora mais discretamente. Alto, bonito e louro, sensual, elegante e delicado, mas ao mesmo tempo orgulhoso. Ele então ficou olhando para longe, lembrando-se dos outros que ele conhecera e amara... Gregory e John, o irmão perdido, amigo querido.

Pensou também em como Faye conhecera Lionel bem, talvez melhor do que qualquer outra pessoa. Ela o conhecera melhor do que ele mesmo se conhecia... e tão bem quanto ele conhecia Anne, ali de pé ao lado dele, mais bonita do que ela fora antes, tão mais confiante e ainda tão jovem, num contraste marcante com o homem grisalho de mãos dadas com ela.

Estavam todos ali, no fim. Tinham ido render homenagem ao que ela fora. Atriz, diretora, mito, esposa, mãe, amiga. Havia uns que a tinham invejado, os que ela forçara demais e de quem exigira demais. A família é que melhor sabia disso. Ela esperara tanta coisa deles, mas dera tanto em troca, se esforçara tanto, fora tão longe...

Ward se lembrou de tudo ao olhar para eles todos, voltando àquela primeira vez em Guadalcanal. E agora lá estavam eles, depois de uma vida, e cada qual se lembrando dela como ela fora, como ela foi um dia, como ela fora para eles. Era um mar de rostos ao sol forte de Los Angeles. Hollywood inteira comparecera por causa dela.

Uma última saudação, um último sorriso, uma lágrima de ternura, e Ward se virou para olhar para a família que ele construíra com ela, todos tão fortes e belos... como ela fora. Como ela se orgulharia de vê-los agora, pensou, as lágrimas novamente lhe ardendo nos olhos... como eles se orgulhavam dela... afinal. Levara muito tempo... e agora ela se fora... parecia impossível acreditar, quando ainda ontem... ontem eles estavam em Paris... o Sul da França... Nova York... Guadalcanal.

 

O calor da floresta era tão sufocante que ficar parado num lugar era quase como se a pessoa estivesse nadando no ar denso e espesso. Era uma presença que se podia sentir, cheirar e tocar e no entanto os homens avançavam, querendo vê-la... se aproximar... ver mais... Seus ombros estavam bem encostados uns aos outros, sentados ali, lado a lado, as pernas cruzadas no chão. Na frente, bem na frente, havia cadeiras desmontáveis, mas havia horas que não tinha mais cadeiras. Os homens estavam  sentados ali desde o anoitecer, torrando, suando, esperando. Parecia que já havia cem anos que estavam sentados ali nas florestas cerradas de Guadalcanal e eles não se importavam a mínima. Teriam esperado a metade da vida por ela. Ela representava tudo para eles, naquele momento... mães... irmãs... mulheres... namoradas que tinham deixado... mulheres... A Mulher. Quando anoiteceu havia um ruído surdo quase audível, enquanto eles ficavam ali sentados, falando, fumando, o suor escorrendo  por seus pescoços e costas; os rostos reluzindo, os cabelos molhados, as fardas grudadas na carne e todos tão jovens, quase crianças... e ao mesmo tempo, não eram mais crianças. Eram homens.

Em 1943, já estavam ali havia tanto tempo que nem queriam se lembrar, e todos se perguntavam quando a guerra terminaria e se um dia terminaria. Mas nessa noite ninguém pensava na guerra, só os homens de serviço é que tinham de se preocupar com isso. E a maior parte dos homens que agora esperavam por ela tinham conseguido a licença para aquela noite com todo tipo de moeda que puderam conseguir, tu do, desde barras de chocolate até cigarros, até dinheiro vivo - qualquer coisa... qualquer coisa para vê-la... fariam qualquer negócio para tornar a ver Faye Price.

Quando a banda começou a tocar, o ar não estava tão denso, mas abafado, o calor não mais opressivo, mas sensual e eles sentiram seus corpos vibrarem como não vibravam havia muito, muito tempo. Não era só ânsia que eles sentiam por ela, era algo mais profundo e mais terno, algo que os teria assustado se o sentissem por muito tempo.

Sentiram as primeiras emoções nessa hora, enquanto esperavam... esperavam... a cada momento havia um batimento compassado, enquanto um clarinete começava a gemer.

A música mexia com as entranhas deles e era quase dolorosa e cada rosto, cada homem prendia a respiração e ficava parado. O palco estava vazio, no escuro, e aí de  repente, vagamente, eles a viram, ou pensaram ver... não se podia ter toda a certeza, um refletor pequeno a procurava a distância. Encontrou seus pés e viu-se um  lampejo de prata, um brilho de longe, como estrelas cadentes num céu de verão... o fulgor do corpo dela, aproximando-se deles, fez suas entranhas doerem e de repente lá estava ela, diante deles. Uma perfeição ofuscante com um vestido de lamê prateado. Ouviu-se um suspiro dos homens que olhavam para ela, um misto perfeito de desejo, êxtase e sofrimento. A pele dela parecia o veludo rosa mais claro no reluzente vestido prateado, os cabelos louros e compridos eram quase da cor de pêssegos maduros e estavam soltos. Os olhos dela dançavam, a boca sorria, ela estendia as mãos para eles, enquanto cantava e sua voz era mais grave do que a de qualquer mulher de que se lembrassem. Ela era mais bonita do que qualquer outra que tivessem conhecido. Ela se moveu e o vestido revelou a carne infinda e rara, a perfeição rosada de suas coxas.

- Ah, Deus... - murmurou uma voz numa fila de trás, e, em volta dessa voz, cem rapazes sorriram.

Todos sentiam aquilo por ela, haviam sentido há anos. Nem tinham acreditado quando lhes disseram que ela ia fazer um show para eles. Ela andara fazendo shows desses em redor do mundo. No Pacífico, na Europa, nos Estados Unidos. Um ano depois de Pearl Harbor, um sentimento de culpa a dominara e ela já estava fazendo excursões havia mais de um ano. Recentemente, parara para fazer outro filme, mas agora voltara às viagens... e nessa noite estava ali... com eles.

A voz dela ficou triste, cantando para eles, e na fila de frente os homens, olhando bem, viam uma veia palpitante em seu pescoço. Ela estava viva... era humana... e se eles tivessem estendido a mão pelo palco improvisado, poderiam ter tocado nela... sentindo-a... cheirando sua carne. Vendo-a, ficavam ávidos, ela parecia olhar cada homem nos olhos, ao cantar: Faye Price não decepcionava ninguém.

Aos 23 anos, Faye Price já era lenda em Hollywood. Fizera o seu primeiro filme aos 19 anos, e dali em diante se precipitara para o sucesso. Ela era linda, espetacular  e fazia tudo danado de bem. Tinha uma voz que ia da lava derretida ao ouro fundido, cabelos que brilhavam como um pôr-do-sol dourado, olhos verdes como esmeraldas num rosto de marfim. Mas não eram as feições, nem a voz, nem a pele em seu corpo comprido e estreito que contrastava com os quadris suavemente arredondados e os seios cheios, era o calor que a iluminava por dentro, o brilho que lhe explodia dos olhos, o riso na voz quando ela não estava cantando que encantava o mundo. Era uma mulher, no sentido melhor e mais puro da palavra. Era uma pessoa a quem os homens queriam-se agarrar, para quem as mulheres queriam olhar, e as crianças adoravam contemplar. Era feita do material de que são feitas as princesas de sonho. De uma cidadezinha na Pensilvânia, ela conseguira chegar a Nova York depois de concluir o segundo grau, e fora ser modelo. Em seis meses estava ganhando mais que qualquer outra garota na cidade. Os fotógrafos todos a adoravam, seu rosto estava na capa de todas as revistas importantes do país, mas em segredo ela confiava aos amigos que estava entediada. Aquilo era tão pouco, dizia, bastava ficar plantada ali.

Ela tentou explicar o que sentia, e as outras garotas olhavam para ela como se estivesse maluca. Mas dois homens reconheceram o que ela era. O homem que mais tarde  seria seu agente e Sam Warner, o produtor, que conhecia uma mina de ouro quando via uma coisa daquelas. Ele já tinha visto as fotos dela nas capas das revistas e a achara bonita, mas só quando a conheceu é que se deu conta de como ela era fantástica. Seu jeito de se mover, seu modo de olhar nos olhos dele quando lhe falava, a voz, e ele viu logo que aquela ali não estava procurando alguém para ir para a cama. Não estava procurando coisa alguma, pelo menos não fora de si mesma, foi o que Sam imaginou, instintivamente. E tudo quanto Abe, seu agente, dizia dela era verdade. Ela era fantástica. Única. Uma estrela. O que Faye Price queria, queria de dentro de si. Queria um desafio, queria trabalhar muito, queria tentar tudo quanto a deixassem fazer, e ele deixou. Ele lhe deu a oportunidade que ela queria.

Abe não teve dificuldade em convencê-lo. Sam a levou a Hollywood e lhe deu um papel num filme. Era um papel pequeno, e como estava escrito, não era um papel que exigisse muito. Mas de algum modo ela conseguira penetrar na alma do escritor. Havia ocasiões em que ele confessava abertamente que ela o levava à loucura, mas ela conseguira o que queria do papel, e o que queria era muito, muito bom; bom para o filme e bom para ela. O papel era pequeno mas de fibra e uma luz brilhou no desempenho de Faye Price que deixou as pessoas assombradas. Havia algo mágico nela meio menina, meio mulher, de duende a sereia, e de volta, explorando toda a gama de emoções humanas, por vezes usando apenas suas expressões faciais e seus incríveis olhos verdes e profundos. Esse papel lhe valera mais dois e seu quarto filme lhe valera um Oscar. Quatro anos depois de seu primeiro papel, ela já fizera sete filmes e no quinto, Hollywood descobrira que ela sabia cantar. E era isso que ela estava fazendo agora, cantando com a alma para os soldados do outro lado do mundo. Ela dava suas entranhas, seu coração e sua vida por esses homens, assim como fazia com tudo o que tentava fazer. Faye Price não era pessoa de meias medidas e aos 23 anos não era mais uma "garota" aos olhos de ninguém, e sim uma mulher. E os homens que a viam no palco sabiam disso sobre ela. Ver Faye Price se movendo, ouvi-la cantar, vê-la à sua frente era sentir o que Deus pretendia ao criar as mulheres. Ela era o infinito... o máximo... e nessa noite todos os homens que a olhavam ansiavam por tocar nela, só por um instante... ansiavam por estar dentro do círculo de seus braços, os lábios colados de leve aos dela, as mãos nos cabelos louros e sedosos... queriam sentir seu hálito em seus ombros... ouvi-la gemer baixinho. Ouviu-se um gemido repentino de um dos rapazes que estava assistindo e seus camaradas riram dele.

Ele nem ligou.

- Puta merda... ela não é fantástica? - Os olhos do rapaz estavam iluminados como os de uma criança no Natal e os homens em volta dele sorriram. Por muito tempo  eles ficaram assistindo num silêncio total, mas depois da primeira meia hora não agüentavam mais. Gritavam, assobiavam, gritavam por ela, uivavam. E quando terminou a última canção, eles gritaram tanto e por tanto tempo que ela cantou mais cinco ou seis canções para eles; e eles não viram, mas quando ela saiu do palco, seus olhos estavam cheios de lágrimas. Era tão pouco o que fazia por eles, algumas canções, um vestido prateado, o vislumbre de pernas, uma sugestão de feminilidade partilhada por mil homens numa noite na floresta, a 8 mil quilômetros de casa. E quem sabia lá quantos deles conseguiriam voltar para casa com vida. Essa idéia sempre lhe dilacerava o coração. Por isso é que fora para lá, por isso é que tinha de fazer aquilo por eles. E nos meses em que o fez, ela se permitiu aparecer mais como sereia do que se permitia em sua terra. Em L.A. ela morreria antes de usar um vestido aberto quase até à virilha, mas se era isso o que eles queriam ali, e  era evidente que queriam, então era isso que ela lhes daria; qual o mal em lhes proporcionar um pouco de prazer de faz-de-conta, da segurança de um palco?

- Srta. Price? - Ela se virou depressa quando um dos ajudantes-de-ordens do oficial-comandante lhe falou, enquanto saía do palco. Ainda ouvia os homens gritando por ela, e mal percebia a voz do ajudante-de-ordens.

- Sim? - Ela parecia exultante e aturdida. Seu rosto e peito estavam molhados de transpiração e ele a achou a mulher mais bela que já vira. Não era só que suas feições  eram perfeitas, era que a pessoa tinha vontade de estender a mão e tocar nela .. abraçá-la... ela irradiava alguma coisa que ele nunca sentira, pelo menos não de tão perto. Uma espécie de mágica misturada com fascinação, uma sensualidade que dava vontade de beijá-la, sem nem parar para perguntar-lhe o nome. Ela já ia deixá-lo para voltar aos homens que imploravam a sua presença, e ele instintivamente estendeu a mão e tocou-a no braço. Sentiu que tudo dentro dele se eletrizava e depois sentiu-se tolo, diante de sua reação. Isso era ridículo. O que é que ela era, afinal? Só mais uma estrela de cinema, toda embonecada, e se tudo nela era tão convincente, era só porque ela era melhor do que algumas outras na arte que criava. Era tudo uma ilusão, não era?... Mas ele sabia que não, quando seus olhos encontraram os dela e ela sorriu para ele. Não havia nada de falso na mulher que estava ali. Ela era exatamente o que era. - Tenho de voltar para lá. - Ela fez um gesto para o barulho, pronunciando as palavras com cuidado, e ele fez que sim, e gritou o que tinha a dizer.

- O oficial-comandante gostaria que jantasse com ele.

- Obrigada. - Os olhos dela se afastaram dos dele antes de ela o deixar e voltar para dedicar mais meia hora aos soldados. Dessa vez, ela cantou canções que os divertiram, inclusive duas em que eles se juntaram a ela e, no final, uma balada que fez com que todos lutassem para controlar as lágrimas. E quando ela os deixou, foi com um olhar que parecia envolver cada um deles, como um beijo de boa-noite das mães... esposas... as garotas da terra deles... - Boa noite, amigos... Deus os abençoe.

- A voz dela estava rouca e de repente o barulho passou de barulho a silêncio. Quase ninguém falou ao sair dos lugares e voltar para a cama. As palavras dela ficaram ressoando nas cabeças deles, durante horas.

Eles tinham gritado e aplaudido, mas estavam preparados para quando ela os deixasse e agora queriam voltar para seus catres e pensar nela, deixando as canções vagar em suas cabeças... lembrando-se do rosto dela... seus braços... suas pernas... a boca que parecia beijá-los, depois explodia em risos e depois ficava séria de novo.

Todos se lembravam da expressão nos olhos dela quando ela os deixou, e se lembrariam durante meses. No momento, era só o que tinham. E Faye sabia disso. Era a sua dádiva para eles.

- Ela é uma mulher e tanto. - As palavras foram ditas por um sargento de pescoço grosso e não eram nada do feitio dele. Mas ninguém se espantou. Faye Price fazia aparecer algo especial em cada um deles. Suas entranhas, seus corações, suas esperanças.

- É... - Um eco repetido mil vezes naquela noite pelos homens que a tinham visto e os que não tinham, que tinham sido obrigados a prestar serviço, fingiram que não estavam se sentindo roubados. Mas, no final, não tiveram de fingir coisa alguma. O pedido dela era fora do comum, mas foi logo concedido, e o oficial-comandante evidentemente ficou surpreso ao saber. Chegou até a designar o ajudante para acompanhá-la. Ela pedira permissão para visitar a base e conhecer os homens que estavam de serviço naquela noite. À meia-noite, já tinha apertado as mãos de todos. Assim os homens que não tinham visto o seu espetáculo a tinham conhecido cara a cara, olhado dentro daqueles incríveis olhos verdes, sentido a mão forte e fresca que ela estendeu, sorrido sem jeito às palavras dela. E no, final, cada um achou que tinha sido especial... os que a tinham ouvido cantar e aqueles que ela havia ido procurar. De repente, alguns dos soldados tiveram pena de não terem estado de serviço, para ela ter ido vê-los. Mas, ao todo, todos ficaram contentes. E à meia-noite e meia ela se virou para o rapaz que a tinha acompanhado pela base e viu alguma coisa calorosa e simpática nos olhos dele. Ele não estava assim, a princípio. Mas aos poucos, ela o conquistara, como conquistara a todos. Ele tinha querido falar a respeito com ela a noite toda, mas o momento nunca parecera oportuno. A princípio, ele se mostrara tão cético quanto a ela, a fria srta. Faye Price, de Hollywood... quem é que ela pensava que era, vindo se exibir para os homens de Guadalcanal? Eles já tinham passado por muita coisa, já tinham visto tudo. Já tinham sobrevivido a Midway, ao Mar de Coral e às tremendas batalhas navais que tinham sido travadas para conquistarem e conservarem Guadalcanal. O que é que ela sabia daquilo, foi o que Ward Thayer se perguntou, logo que olhou para ela. Mas depois de tantas horas ao lado dela, começara a encará-la de modo diferente. Ela se interessava. E muito. Ele leu aquilo nos olhos dela. Vendo-a encontrar os olhares dos homens, inteiramente esquecida de seus próprios encantos, alcançando-os com uma coisa que eles nunca tinham sentido - isso o levou a se interessar por ela também.

Havia nela uma espécie de calor e compaixão que por sua vez acentuava-lhe o sex-appeal já incrível. Havia mil coisas que o jovem tenente queria lhe dizer, com o correr da noite, mas só depois que ela acabou as visitas é que pareceu tomar conhecimento dele. Ela se virou para ele, com um sorriso cansado, e por um momento ele quis tocar-lhe a mão, quase que para ver se ela era real. Quase queria consolá-la. Ela tivera uma noite comprida e dura. Mas também, eles tinham tido um ano comprido e duro... dois anos.

- Você acha que o seu oficial-comandante me perdoará se eu não for jantar com ele hoje? - Ela sorriu, cansada.

- Pode ser que fique desgostoso, mas há de sobreviver. - Na verdade, o tenente sabia que, uma ou duas horas antes, o oficial-comandante tinha sido convocado para uma reunião secreta com dois generais que tinham chegado de helicóptero naquela noite. Ele teria de deixar Faye, de qualquer forma. - Acho que ele ficará muito grato pelo que fez pelos homens.

- Isso significa muito para mim - disse ela, a voz suave, sentando-se numa grande pedra branca no ar quente da noite e olhando para ele, depois de sua última parada.

Havia alguma coisa tão mágica nos olhos dela, que ele sentiu algo apertá-lo por dentro ao olhar para ela. Chegava quase a doer, olhar para ela, e ela provocava sentimentos que ele quisera deixar para trás, nos Estados Unidos. Ali não havia lugar para aquilo, nem tempo, ninguém para partilhar os sentimentos com ele. Ali só havia morte, sofrimento e perda, e raiva às vezes, mas as emoções mais brandas agora eram dolorosas demais e ele desviou o olhar, enquanto ela ficava olhando para as costas da cabeça dele. Ele era um homem alto e bonito, louro, com ombros largos e olhos de um azul profundo, mas só o que ela via dele agora eram os ombros fortes e os cabelos cor de trigo. Havia nele alguma coisa que a fazia querer aproximar-se. Havia tanto sofrimento ali, eles eram tão solitários e tristes e jovens... e no entanto, bastava um pouco de simpatia, um toque, a mão na deles, e eles voltavam à vida, rindo e cantando...era isso que ela adorava nessas viagens, por mais estafantes que fossem. Era como levar vida nova a todos aqueles homens, mesmo àquele jovem tenente, tão alto e altivo ao se virar para encará-la de novo, obviamente se defendendo, ou procurando fazê-lo, contra tudo quanto ele sentia, e no entanto não conseguindo eliminá-la.

- Sabe, depois de ter passado a noite toda com você, ainda nem sei o seu nome - continuou ela, sorrindo de novo para ele... Ela só sabia o posto dele, e eles não tinham sido apresentados direito.

- Thayer. Ward Thayer. - O nome pareceu-lhe conhecido, vagamente, mas ela não sabia por quê e nem se importava. Ele sorriu para ela, e em seus olhos havia algo de cínico. Ele tinha visto coisas demais naquele último ano, e ela sentia isso claramente, nele. - Está com fome, srta. Price? Deve estar morta de fome. - Ela representara durante horas e estivera fazendo a volta da base, apertando as mãos do pessoal, durante mais de três horas. Ela então meneou a cabeça, com um sorriso encabulado.

- Estou, sim. Acha que poderíamos bater à porta do oficial-comandante e perguntar se não sobrou alguma coisa? - Os dois riram diante dessa idéia.

- Acho que consigo lhe arranjar alguma coisa em outro lugar. - Ele olhou o relógio e ela ficou olhando para ele. O que será que havia naquele homem? Havia nele algo que a fazia querer se aproximar, perguntar quem ele era de verdade, descobrir mais. Havia alguma coisa que não se podia saber, e no entanto se sentia nele. Mas ele sorriu para ela e pareceu jovem de novo. - Ficaria muito ofendida se fôssemos verificar a cozinha? Aposto que conseguiria lhe arranjar uma refeição de verdade lá, se quisesse.

Ela levantou a mão graciosa. - Um sanduíche seria ótimo.

- Vamos ver o que conseguimos. - Dirigiram-se para o jipe dele e foram depressa para a cabana metálica semicircular onde eram preparadas as refeições dos soldados, e vinte minutos depois ela es tava sentada num banco comprido diante de um prato de ensopado quente. Não era o que ela teria escolhido para uma noite quente na floresta, mas ela estava com tanta fome e a noite fora tão comprida que aquela comida quente chegou a lhe parecer gostosa, e Ward Thayer também comeu um prato. - Tal e qual o restaurante 21, hem? - Ele olhou para ela com o seu sorriso cínico de novo e deu uma risada.

- Mais ou menos... só que não é picadinho... - disse ela implicando, e ele fez uma careta.

- Ah, Deus, não pronuncie esta palavra. Se o cozinheiro ouvir, terá grande prazer em servi-la. - Os dois riram de novo e Faye de repente se lembrou de ceias à meia-noite depois de festas escolares, na sua cidadezinha, e começou a rir mais, olhando para ele, e ele ergueu a sobrancelha sobre os belos olhos azuis. - Ainda bem que está se divertindo. Esse lugar não me pareceu engraçado há bem mais de um ano. - Mas ele agora parecia estar mais feliz. Estava gostando da companhia dela e o mostrava, e, mastigando o ensopado, ela explicou.

- Sabe... como depois da festa de colégio... quando a gente vai fazer o desjejum numa lanchonete às cinco da manhã... isso é meio assim, não é? - Ela olhou em volta do rancho bem iluminado e os olhos dele acompanharam os dela e depois examinaram o rosto dela de novo.

- Onde é que você se criou? - Agora, já estavam quase amigos. Estavam juntos havia horas e havia alguma coisa em estarem juntos numa zona de guerra. Tudo era diferente ali. Mais rápido, mais pessoal, mais intenso. Não tinha importância fazer perguntas que nunca se fariam noutro lugar nem fazer uma aproximação de modo que nunca se faria em outro lugar.

Ela respondeu, pensativa: - Na Pensilvânia.

- Gostava de lá?

- Não muito. Éramos muito pobres. Eu só queria era dar o fora, o que fiz, logo que concluí o segundo grau.

Ele sorriu. Era difícil imaginá-la muito pobre em qualquer lugar, e ainda mais numa cidade do interior.

- E você? De onde é, tenente?

- Ward. Ou se esqueceu de meu nome de novo? - Ela corou, quando ele implicou com ela. - Eu me criei em Los Angeles. - Aparentemente não quis acrescentar mais nada, e ela não sabia bem por quê.

- Vai voltar para lá depois da... depois? - Ela detestava a palavra "guerra", e a essa altura ele também. Já lhe custara muito, demais, ele tinha ferimentos que nunca sarariam, mesmo que não fossem do tipo que ela pudesse ver. Mas, instintivamente, ela sabia que existiam.

- Acho que sim.

- A sua família está lá? - Ela estava curiosa a respeito dele; aquele rapaz triste e cínico, com os segredos que ele não queria revelar, enquanto comiam o seu ensopado no rancho feio e iluminado e Guadalcanal. Em todas as janelas havia duras cobertas do black-out de modo que a impressão que dava é que não havia janelas. Ambos já estavam acostumados a isso.

- Meus pais morreram. - Ele olhou para ela com calma, alguma coisa morta em seus próprios olhos. Já dissera essa palavra vez demais.

- Sinto muito.

- Não nos dávamos muito bem, mesmo. - Ainda assim... o olhos dela buscaram os dele de novo, quando ele se levantou. -Mais ensopado, ou algo mais exótico de sobremesa?

Me disseram que h uma torta de maçã escondida em algum lugar. - Os olhos dele sorriram e ela riu.

- Não, obrigada. Em fantasias como esta não há lugar para for tas de maçã. - Ela olhou para o vestido de lamê prateado, e, pela primeira vez, havia horas, ele também.

Já se estava habituando a vê-la assim. Era diferente de Kathy, claro... tão diferente no seu branco engomado... e, de vez em quando, o uniforme de faxina que ela usava.. Ele desapareceu um instante e depois voltou com um pratinho de frutas e um copo alto com chá gelado. Aquilo era mais precioso do que vinho, ali, pois era quase impossível fabricar gelo. Mas ele enchera o copo com os cubos preciosos, e ela já estivera em tantas excursões que sabia que aquele presente era uma raridade. Ela pareceu saborear cada gole da bebida gelada, enquanto alguns homens entravam e saíam fitando-a sem disfarçar. Mas ela não parecia importar-se. Estava acostumada àquilo. Sorria para eles com naturalidade, sempre olhando de volta a Ward e depois teve de conter um leve bocejo, e ele implicou com ela, parecendo se fazer de arrasado, e sacudindo a cabeça, zombando dela. Ele implicava muito, e havia alguma coisa engraçada nele. E ao mesmo tempo algo de triste.

- Engraçado, elas sempre fazem isso depois de conversarem comigo. Eu as faço dormir, todas as vezes. - Ela riu e tomou outro gole: do chá gelado.

- Se você tivesse levantado às quatro da manhã, também estaria bocejando. Imagino que vocês oficiais durmam até ao meio-dia, aqui. - Ela sabia que não era verdade, mas gostava de mexer com ele, arrancava um pouco da tristeza dos olhos dele e ela sentia que ele precisava disso. E ele então olhou para ela de um modo esquisito. - E o que é que a  leva a fazer isso, Faye? - De repente, ele ousou chamá-la pelo nome de batismo, sem nem saber por quê, mas soou bem em seus lábios e ela não pareceu importar-se. Em todo caso, não disse nada.

- Acho que alguma necessidade... para pagar todas as coisas boas que me têm acontecido. Nunca sinto que mereço mesmo tudo isso. E a gente tem de pagar nossos tributos na vida. - Era o tipo de coisa que Kathy teria dito e os olhos dele quase se encheram de lágrimas. Ele nunca sentira tal tipo de necessidade, de pagar "tributos",  ou pagar a alguém por ter tido sorte. E agora ele não se sentia mais com sorte, mesmo. Desde que...

- Por que é que as mulheres sempre sentem necessidade de pagar tributos?

- Isso não tem nada a ver com a coisa. Alguns homens também sentem. Você não sente, de certo modo? Não quer fazer alguma coisa boa para os outros, quando alguma coisa boa lhe acontece?

Os olhos dele ficaram duros como pedra ao olhar para ela.

- Há um bocado de tempo que nada de bom me acontece... pelo menos, desde que estou aqui.

- Você está vivo, não está, Ward? - A voz dela estava suave, sob as luzes fortes de onde estavam sentados, mas seus olhos penetravam nele.

- Isso às vezes não basta.

- Basta, sim. Num lugar como este, é um bocado. Olhe em volta, todo dia... olhe para os rapazes feridos e aleijados e mutilados... os que nunca vão voltar para casa...

- Alguma coisa no tom de voz dela penetrava fundo no coração dele e pela primeira vez em quatro meses ele teve de conter as lágrimas.

- Faço força para não olhar para tudo isso.

- Talvez devesse. Talvez fique feliz por estar vivo. - Ela queria alcançá-lo, tocar o lugar que dota tanto. Ela perguntou o que seria, quando ele se levantou devagar.

- Não me importa mais nada, Faye. Que eu viva ou morra, é tudo igual, para mim e para todo mundo.

- Isso é uma coisa terrível de se dizer. - Ela parecia estar chocada e quase magoada ao olhar para ele. - O que poderia ter levado você a sentir isso?

Ele olhou para ela por um momento interminável, em silêncio, implorando a si mesmo para não dizer mais nada e, de repente, querendo que ela se fosse dali. Mas, olhando para ela, ela não se mexeu de todo e de repente ele não se importava a quem falasse. Que diferença faria  naquele instante?

- Eu me casei há seis meses, com uma enfermeira do exército, e dois meses depois disso ela foi morta por uma merda de uma bomba japonesa. É meio difícil me sentir bem neste lugar, depois disso. Você sabe o que quero dizer?

Ela ficou ali gelada no lugar, e depois, devagar, meneou a cabeça. Então, era isso. Era o vazio que via nos olhos dele. Ela se perguntou se ele ficaria daquele jeito para sempre, ou se voltaria à vida. Um dia. Talvez.

- Sinto muito, Ward. - Não havia muita coisa a dizer. Havia outras histórias como aquela, algumas piores. Mas isso não era consolo para ele.

- Sinto muito. - Ele sorriu, um sorriso sossegado. Não adiantava nada descarregar aquilo sobre ela. Não era culpa dela. E ela era muito diferente de Kathy. Kathy  era bem quieta e simples e ele estava muito apaixonado por ela. E essa mulher era só beleza e brilho, mundana até à ponta da unha de esmalte brilhante. - Sinto muito, não queria te contar uma coisa dessas. Há mil histórias como esta por aqui. - Ela sabia disso e já tinha ouvido a maioria antes, mas isso não as tornava mais fáceis de serem ouvidas. Ela sentiu muito por ele, e, acompanhando-o devagar de volta ao jipe, ela ficou contente por não ter ido jantar com o oficial-comandante, afinal, e disse isso a ele, quando ele se virou para ela com aquele seu meio-sorriso que agradava a ela, sem ela saber por quê, mais do que qualquer outro sorriso que ela vira em Hollywood, pelo menos nos últimos dois anos.

- É simpático de sua parte dizer isso.

Ela teve vontade de tocar o braço dele, mas não ousou. Agora não era apenas Faye Price, a atriz, era ela mesma.

- Estou sendo sincera, Ward.

- Por quê? Não precisa ter pena de mim, Faye. Já estou grandinho. Sei me cuidar. Eu me cuido há muito tempo. - Mas ela viu mais do que aquilo. Viu o que Kathy vira e mais ainda. Viu como ele estava terrivelmente magoado, e solitário, e ainda chocado com a morte da bonita enfermeirazinha... mulher dele... acontecera no dia exato em que faziam dois meses do seu casamento, mas ele não contou esse detalhe amargo a Faye ao levá-la de volta à barraca que lhe fora destinada. - Continuo a achar que foi um bocado simpático de sua parte ter vindo aqui ver os homens.

- Obrigada.

Ele parou o jipe e eles ficaram se olhando por muito tempo, cada qual tendo muito mais o que dizer, mas sem poder dizê-lo ali. Por onde se começava? Como se começava?

Ele lera sobre o caso dela com Gable, anos antes, e se perguntou se teria terminado. Ela se perguntava por quanto tempo ele choraria pela enfermeira do exército,  que ele amara.

- Obrigada pelo jantar. - Ela disse aquilo com um sorriso encabulado e ele riu ao abrir a porta para ela.

- Já te disse... é tal e qual o 21...

- Da próxima vez, vou experimentar o picadinho. - Eles estavam brincando de novo e aquela parecia ser a única porta aberta para eles, mas ao acompanhá-la à porta  da barraca, puxando as abas para ela, havia mais alguma coisa nos olhos dele, alguma coisa tranqüila, profunda e viva, de modo que ele não estava, há algumas horas antes. - Desculpe te ter contado tudo aquilo. Não queria descarregar meus problemas em cima de você. - Ele estendeu a mão e tocou-lhe no braço, enquanto ela olhava para ele.

- Por que não, Ward? O que há de errado nisso? Com quem mais pode conversar aqui?

- Não falamos dessas coisa aqui. - Ele deu de ombros. - Em todo caso, todo mundo já sabia. - E, de repente, as lágrimas que ele lutara para conter voltaram a lhe encher os olhos e ele ia se virando, mas ela o agarrou e o fez voltar.

- Está tudo bem, Ward... tudo bem... - E quando ela viu, estava abraçando-o com força, e ambos estavam chorando, ele pela mulher morta, e ela por uma moça que nunca conhecera e mil homens que tinham morrido e continuariam a morrer muito depois que ela voltasse para casa. Choraram pela agonia e o desperdício e o pesar que era inevitável ali e então ele olhou para ela e, delicadamente, passou-lhe a mão pelos cabelos sedosos. Ela era a mulher mais linda que ele já vira e pareceu-lhe estranho que ele nem se sentisse culpado por pensar aquilo. Talvez Kathy compreendesse... talvez nem se importasse mais... ela nunca mais voltaria para ele... ele nunca mais a tocaria nem a abraçaria... e provavelmente nunca mais veria Faye, depois daquela noite. Também sabia disso e desejou poder ir para a cama com ela. Naquele instante.

Antes que ele morresse, ou ela, ou o tempo acabasse com aquela centelha que eles estavam sentindo, tão certamente quanto qualquer bomba.

Ela sentou-se devagar na única cadeira da barraca e olhou para ele e ele se sentou no saco de dormir dela, e, calados, ficaram de mãos dadas, toda uma vida de palavras  não pronunciadas mas tão sentidas, enquanto a floresta urrava com vida nalgum lugar distante.

- Nunca hei de te esquecer, Faye Price. Espero que saiba disso. - Eu também me lembrarei de você. Vou estar pensando em você, lá... vou saber que está bem, cada vez que pensar em você. - E ele acreditou mesmo nisso. Ela era esse tipo de garota, a despeito da fama e da fascinação e o vestido de lamê prateado. Ela o chamara de "fantasia", e para ela, era o que aquilo era, apenas. Essa era a sua beleza.

- Talvez eu te faça uma surpresa e vá te visitar no estúdio, quando voltar.

- Faça isso, Ward Thayer. - A voz dela estava serena e firme, os olhos ainda lindos depois das lágrimas.

- Vai mandar me expulsar? - Ele pareceu achar graça na idéia e ela pareceu se ofender.

- Claro que não!

- Posso mesmo tentar isso, sabe.

- Ótimo. - Ela sorriu para ele de novo, e ele viu como ela estava exausta. Ela dera tanto de si, naquela noite... para outros, para ele. E já passava das quatro.

Ela teria de se levantar em menos de duas horas, para poder seguir adiante, para fazer o próximo show. Já havia meses que ela vinha trabalhando sem parar. Dois meses de excursão e, antes disso, três meses sem um dia de folga, no seu maior filme, até então. E quando ela voltasse, havia outro filme aguardando-a. Era uma grande estrela e tinha uma grande carreira, mas ali nada disso parecia importar. Ela era apenas uma garota bonita com um coração grande e, com um pouco de tempo, ele poderia facilmente se apaixonar por ela.

Ele se levantou, quase com pesar, pegou os dedos dela nos seus e depois os levou aos lábios.

- Obrigado, Faye... se eu nunca mais te vir, obrigado por esta noite.

Ela deixou os dedos envoltos nos dele por longo momento, ao passo que os olhos prendiam os dele.

- Nós vamos nos encontrar de novo, um dia. - Ele não tinha tanta certeza assim, mas quis acreditar nas palavras dela. Então, o 24 peso daquele momento foi demais para ele, e ele teve de aliviá-lo. - Aposto que você diz isso a todos os caras.

Ela riu e se levantou enquanto ele se dirigia devagar à porta da barraca.

- Você é impossível, Ward Thayer.

Ele virou-se e olhou para ela por cima do ombro.

- Não é tão má assim, srta. Price. - Ela agora era apenas Faye para ele, em sua cabeça, era difícil se lembrar de quem mais ela era... Faye Price... a estrela de cinema... atriz... cantora... personalidade importante... para ele, naquela noite, ela era apenas Faye para ele. Então a fisionomia dele ficou séria. - Será que eu a verei de novo, antes de você partir? - De repente, aquilo era muito importante para ele, e para ela também, aliás, mais do que ele imaginava. Ela também queria tornar a vê-lo antes de partir.

- Quem sabe, possamos tomar um café rápido de manhã, antes que as coisas fiquem loucas demais. - Ela sabia que o pessoal provavelmente teria passado a noite em claro, fazendo o diabo com os sol dados ou as enfermeiras ou de preferência ambos, cantando e tocando os instrumentos da banda. Era a mesma coisa por toda parte em que iam, mas eles precisavam soltar a pressão e pareciam não se importar de passar a noite em claro. O aperto seria no dia seguinte, quando se tinham de organizar para partir, e então de repente tudo ficava uma loucura total, durante umas duas horas antes de tomarem o avião para a base seguinte. Ela passava por aquilo quase todos os dias, e depois, afinal, no avião, todos dormiam até à parada seguinte, e aí recomeçava a magia. Ela teria muita coisa a fazer antes de partir, ajudando todos a carregar as coisas, mas talvez, talvez... houvesse um momento para ele... - Eu te procuro.

- Estarei por aí.

Mas quando ela se juntou aos outros no rancho às sete da manhã, ele não estava lá. O oficial-comandante precisara dele e já eram quase nove horas quando Ward encontrou

Faye com os outros, esperando enquanto o avião esquentava os motores. Havia uma leve expressão de pânico nos olhos dela quando ele chegara com o jipe em disparada e saltara para ir falar com ela.

- Desculpe, Faye... o oficial-comandante... - O barulho da hélice abafou a voz dele, e havia ordens frenéticas dadas pelo contra-regra para o resto do grupo em volta dela.

- Tudo bem... - Ela lhe sorriu o seu sorriso deslumbrante, mas ele viu que ela estava cansada. Não podia ter dormido mais de duas horas e ele mesmo dormira a metade disso, mas já estava acostumado. Ela nesse dia estava com um conjunto vermelho com sandálias Anabela que o fizeram sorrir. A última moda para Guadalcanal... e então de repente o rosto de Kathy lhe apareceu e ele voltou a sentir aquela velha dor sua conhecida. Os olhos dele encontraram os de Faye quando alguém a distância gritou o nome dela. - Tenho de ir...

- Eu sei. - Os dois estavam gritando acima do barulho.

Ele agarrou a mão dela, um instante, e a apertou com força. Queria beijá-la nos lábios, mas não ousou.

- Eu te vejo no estúdio!

- O quê? - Ela parecia aflita, em todas as suas viagens entre os militares, ninguém pegara sua mão como aquele homem.

- Eu disse... te vejo no estúdio!

Ela sorriu para ele, de repente pensando se algum dia tornaria a vê-lo.

- Cuide-se bem!

- Claro. - Ali não havia garantias. Para ninguém. Nem mesmo para ela. O avião dela poderia ser derrubado a caminho da parada seguinte. Todos aceitavam isso, se davam conta disso, até que alguém de quem gostassem se ferisse... um colega, um companheiro de quarto, um amigo... Kathy... ele sacudiu a imagem de sua cabeça, de novo.

- Você também se cuide. - O que é que se dizia a uma mulher como ela? - Boa sorte. - Ela não precisava muito disso, já tinha tudo. Ou não? Ele se perguntou se havia um homem na vida dela, mas agora era tarde para perguntar. Ela já ia se afastando com os outros, olhando para trás e acenando para ele. O oficial-comandante chegara de repente para um último agradecimento e Ward a viu apertar a mão dele, a viu seguir e de repente ela estava no avião, de pé à porta por um último instante, acenando para ele, e aí o conjunto vermelho desapareceu de sua vida, provavelmente para sempre, pensou ele. Ele tomou coragem para nunca mais vê-la. Não era provável que a visse, disse consigo, mesmo enquanto Faye se dizia a mesma coisa. Ela se pilhou olhando para baixo, para ele, pensando por que ele a impressionara tanto. Talvez estivesse mesmo na hora de voltar para casa, talvez os homens que ela encontrava na viagem estivessem começando a atraí-la, e isso poderia ser perigoso... mas não era isso... era outra coisa nele... uma coisa que ela nunca sentira. Mas ela não podia se dar ao luxo de nutrir esses sentimentos, agora. Ele era um estranho para ela, e ela tinha uma vida a viver, ela se obrigou a lembrar. Uma vida que não o incluía. Ele estava lutando numa guerra. E ela já tinha muitas guerras suas... na excursão... em Hollywood... Adeus, Ward Thayer, murmurou consigo mesma... boa sorte... e então ela se recostou e fechou os olhos, enquanto o avião seguia... mas o rosto dele a perseguiu durante semanas... aqueles profundos olhos azuis... passaram-se meses até que ele saísse inteiramente de seus pensamentos. E aí ele saiu. Afinal.

 

Todos no set estavam num silêncio total, e a tensão pesava no ar. Tinham esperado quase quatro meses por aquele momento, e agora, que chegara, todos queriam que parasse, impedir que chegasse, fazer com que viesse em outro dia. Fora um desses filmes mágicos, em que quase tudo funcionara bem, onde se tinham formado o que pareciam ser amizades duradouras, em que todos eram loucos pela estrela e todas as mulheres estavam mais que meio apaixonadas pelo diretor. O galã era Christopher Arnold e todos diziam que ele era o maior astro de Hollywood. Era fácil ver por quê, o homem era um profissional. E agora todos estavam olhando para ele, na sua última cena, falando baixinho, com lágrimas nos olhos. Poderiam ter ouvido um alfinete cair até em Pasadena, e Faye Price saiu do set pela última vez, a cabeça baixa com lágrimas verdadeiras escorrendo-lhe pelas faces. Arnold olhava enquanto ela se ia, arrasado... era isso... a cena final... estava acabado.

- Concluído! - gritou a voz, e houve um instante de silêncio interminável, seguido de um grito e de repente todo mundo estava gritando, rindo, se abraçando, chorando.

Serviram champanha a todo o pessoal e aquilo logo se tornou uma festa ruidosa, todo mundo falando ao mesmo tempo, se desejando felicidades, não querendo ir embora. Christopher Arnold abraçou Faye com força e depois recuou para olhar bem nos olhos dela, ainda a segurando.

- Foi uma alegria trabalhar com você, Faye.

- Eu também gostei disso. - Eles trocaram um sorriso demorado e maroto. Tinham tido um caso há quase três anos antes e ela vacilara em fazer o filme, por causa disso. Mas tudo saíra às mil maravilhas. Desde o princípio ele se revelara o cavalheiro perfeito, e, além de um brilho de algo mais que um reconhecimento nos olhos dele no primeiro dia, aquele era o primeiro sinal de sua antiga ligação. Aquilo não atrapalhara nada durante os três meses em que  trabalharam no filme.

Ele sorriu para ela com carinho ao largá-la.

- Agora vou tornar a sentir falta de você. E eu que pensava que já tinha acabado com tudo isso. - Ambos riram.

- E eu também vou sentir sua falta. - Ela olhou para o resto das pessoas do elenco, felizes e fazendo muita onda e o diretor beijando apaixonadamente a cenografista, que por acaso também era mulher dele. Faye gostara de trabalhar com ambos. A direção sempre a fascinara, desde que começara a representar. - O que é que você vai fazer agora, Chris?

- Vou partir para Nova York daqui a uma semana e depois vou para a França, de navio. Quero passar alguns dias na Riviera antes que esse verão acabe de vez. Todo mundo me diz que ainda é cedo para ir à França, mas o que é que tenho a perder? Ouvi dizer que nada mudou, a não ser um pouco de racionamento. - Por um instante, ele sugeriu um ar libertino, piscando para ela. Era vinte anos mais velho do que ela, mas parecia só dez. Provavelmente era o homem mais bonitão da cidade e sabia disso..- Quer vir comigo? - Embora atraente, ele não a interessava mais.

- Não, obrigada. - Ela lhe lançou um sorriso afetado e depois o ameaçou com o dedo. - Não vai recomeçar com isso. Você se comportou muito bem durante todo o filme, Chris.

- Claro, aquilo era trabalho. Isso aqui é diferente.

- Ah, é mesmo? - Ela já ia dizendo alguma coisa para implicar com ele, mas de repente o caos em volta deles pareceu se acentuar e um mensageiro apareceu no set correndo,  berrando alguma coisa que Faye não conseguiu distinguir. Por um instante, o pânico se estampou em uma porção de rostos e depois vieram as lágrimas, e Faye continuava sem ouvir o que tinha acontecido. Ela puxou a manga de Chris Arnold, os olhos aflitos.

- O que é que ele disse?... o quê?... - Chris estava falando com alguém à sua direita, e Faye se esforçava por ouvir em meio ao barulho.

- Meu Deus... - Ele virou-se para ela com ar de assombro. E então, sem pensar, tornou a abraçá-la com força e ela ouviu a voz dele tremer, ao falar com ela. - Acabou tudo, Faye... acabou a guerra. Os japoneses se renderam.

- A guerra terminara na Europa há alguns meses antes e agora, afinal, estava tudo acabado. As lágrimas encheram os olhos dela e ela estava chorando ao abraçá-lo também. De repente, todos no set estavam chorando e rindo, outros tinham chegado e foram abertas mais caixas de champanha. Agora todo mundo gritava:

- Acabou! Acabou! - Não era mais o filme... mas a guerra. Pareceu que se tinham passado horas até que ela saísse do set para voltar à sua casa em Beverly Hills,  e o pesar de ter terminado o filme já passara, havia muito. Fora inteiramente eclipsado pela sua alegria com o término da guerra. Parecia espantoso. Ela estava com 21 anos quando Pearl Harbor fora bombardeada e agora estava com 25, adulta, uma mulher, no auge de sua carreira.

Tem de ser o auge, ela se dizia todos os anos. Não podia imaginar qualquer progresso além daquele ponto. De que modo? E houvera progressos. Os papéis foram-se tornando maiores e mais importantes, os elogios mais generosos, o dinheiro mais inacreditável a cada ano. O único senão fora a morte dos pais. Ela ficava triste ao pensar que os pais não estivessem mais vivos para gozar aquilo com ela. Ambos tinham morrido no ano anterior. O pai, de câncer; a mãe, num acidente de carro numa estrada gelada da Pensilvânia, perto de Youngstown. Ela tentara levar a mãe para morar com ela na Califórnia, mas a mãe não se quisera desfazer da casa. Assim, agora, ela não tinha mais ninguém. A casinha em Grove City, na Pensilvânia, fora vendida no ano anterior. Não tinha irmãos, e, além do casal fiel que trabalhava para ela na casa pequena, mas bonita, que ela comprara em Beverly Hills, Faye Price estava só. No entanto, ela raramente se sentia só, havia muita gente em volta dela. Gostava do trabalho e dos amigos. Mas era estranho não ter mais família. Ninguém a quem ela "pertencesse". Continuava surpresa por ver que tinha tido tanto sucesso e que sua vida se tornara tão próspera em tão pouco tempo. Mesmo aos 21 anos, quando irrompera a guerra, sua vida já era diferente. Mas agora, depois da última excursão da Organização dos Serviços Unidos, dois anos antes, as coisas se tinham acomodado. Ela comprara a casa, fizera seis filmes em dois anos e, embora pretendesse continuar a excursionar, nunca mais tivera tempo. A vida parecia ser uma série interminável de estréias, fotos para publicidade e festas para a imprensa. Quando ela não estava fazendo isso, estava se levantando às cinco da manhã para ir trabalhar num filme. O seu próximo filme deveria começar dali a cinco semanas, e ela já estava lendo o argumento durante horas, todas as noites antes de dormir e agora, que acabara o filme em que estava trabalhando, podia-se concentrar de verdade nesse trabalho. Esse novo filme lhe daria um Oscar, com certeza, garantira-lhe o agente. Mas ela sempre ria quando ele dizia isso... era uma idéia ridícula... só que ela já tinha ganho um, e já tinha sido citada duas outras vezes. Mas Abe insistia em dizer que esse filme seria um estouro, e Faye acreditava nele. Estranhamente, ele se tornara para ela a figura de pai.

Ela virou o carro à direita em Summit Drive, passando pela casa dos Chaplin e Pickfair e, um momento depois, chegou à sua casa e o homenzinho que passava os dias na casa do portão, abrindo-o para entregas e amigos ou a própria srta. Price, saiu correndo, com um sorriso para ela.

- Teve um bom dia, srta. Price? - Era velho, de cabelos brancos e grato por ter aquele emprego. Já estava trabalhando para ela havia mais de um ano.

- Tive, sim, Bob. Ouviu as notícias? - Ele pareceu não entender. - A guerra terminou! - Ela estava rindo para ele e os olhos dele se encheram de lágrimas. Ele já estava velho para combater na Primeira Guerra Mundial, mas perdera o filho único. E agora, nesta guerra, a cada dia ele se lembrava do sofrimento dele e da mulher, naquela época.

- Tem certeza, madame?

- Toda. Acabou mesmo. - Ela estendeu a mão e apertou a dele. - Graças a Deus. - A voz dele tremeu e ele virou a cabeça, para enxugar os olhos. Mas não se desculpou, quando tornou a olhar para aquele rosto lindo. - Graças a Deus. - Ela teve vontade de beijá-lo por tudo quanto os dois estavam sentindo, mas sorriu e esperou que ele abrisse os grandes e belos portões de metal que mantinha sempre reluzentes.

- Obrigada, Bob.

- Boa noite, srta. Price. - Mais tarde ele iria até a casa para jantar na cozinha com o mordomo e a empregada dela, mas Faye só o veria de novo quando saísse no dia seguinte. E se resolvesse ficar em casa, não o veria de todo. Ele só trabalhava de dia, e de noite o mordomo, Arthur, dirigia para ela e abria o portão com a chave dele. A maior parte do tempo, Faye preferia guiar, ela mesma. Tinha comprado um lindo Lincoln Continental conversível, num tom de azul-escuro e gostava muito de dirigir em Los Angeles. A não ser de noite, quando Arthur a conduzia no Rolls. A princípio, parecera chocante comprar um carro daqueles, e ela ficara quase encabulada de confessar que era dela, mas era uma coisa tão linda que ela não conseguira resistir. E ainda sentia certa emoção quando entrava nele,o cheiro rico do couro por toda parte, os tapetes cinza e grossos sob seus pés. Até mesmo as madeiras do carro magnífico eram inteiramente diferentes, e ela por fim resolvera, que diabo! Aos 25 anos, o seu sucesso não a constrangia mais como antes. Tinha direito a ele, "mais ou menos", dizia ela, implicando consigo mesma, e não estava prejudicando ninguém. Não tinha mais ninguém com quem gastar dinheiro e estava ganhando muito. Era difícil saber o que fazer com tudo aquilo. Investira uma parte, por conselho do agente, mas o resto estava ali parado, esperando ser gasto, e ela era muito menos perdulária do que a maioria das estrelas de seu tempo. A maior parte delas estava coberta de esmeraldas e brilhantes, comprando tiaras que não podiam pagar, para desfilar nas estréias dos filmes de outros, com casacos de marta, arminho e chinchila. Faye era muito mais discreta no que usava e fazia, embora tivesse roupas lindas, de que gostava, e dois ou três belíssimos casacos de pele. Havia um de raposa branca que ela adorava, parecia uma linda esquimó loura quando se enfiava nele numa noite fria. Ela o usara no inverno anterior em Nova York, e chegara a ouvir as pessoas suspirarem quando passava. Tinha uma marta escura, tom de chocolate, que ela comprara na França, e um vison discreto que ela guardava para "todo dia", pensou ela, com uma risada... é só o meu vison de todo dia, disse consigo mesma, rindo, parando o Lincoln junto à casa. Como a vida mudara desde que fora menina. Ela sempre quis ter mais um par de sapatos, para quando "se vestisse bem", mas naquele tempo os pais  eram pobres demais. A Depressão foi um golpe sério para eles e tanto o pai como a mãe passaram muito tempo desempregados. O pai acabou fazendo biscates e detestando a vida. A mãe, afinal, arranjou um emprego de secretária. Mas aquilo tudo parecia  tão sombrio para Faye... Por isso é que o cinema sempre lhe pareceu ter tal magia. Era a fuga perfeita, durante horas e horas. Ela poupava todas as moedas em que deitava os dedinhos e depois lá se ia ela, para sentar no escuro assombrada diante do que via. Talvez isso estivesse na sua cabeça, afinal, quando foi para Nova York procurar trabalho como modelo.. e agora cá estava ela, subindo os três degraus de mármore rosa de sua casa própria em Beverly Hills, enquanto um mordomo inglês de ar sé rio lhe abria a porta e não podia deixar de sorrir para ela. Ele não podia resistir à "jovem senhorita", como se referia a ela em particular com a mulher. Ela era a patroa melhor que eles já tinham tido, os d concordavam, e certamente, de longe, a mais jovem. E ela nunca adquirira o que eles chamavam de "modos de Hollywood". Ela não parecia se impressionar demais com o que era, e era sempre amável educada e tinha consideração com eles. Era um prazer dirigir aquela casa, e o serviço era bem pouco.

Faye recebia pouco e passava amai parte do tempo trabalhando, de modo que só o que eles tinham a fazer era manter as coisas arrumadas, limpas e funcionando bem para ela tarefa que tanto Arthur como Elizabeth apreciavam.

- Boa tarde, Arthur.

- Srta. Price - disse ele, parecendo extremamente aprumado notícias excelentes, não? - Ele supôs, corretamente, que ela já devia saber, e viu que sim quando ela lhe sorriu.

- Não há dúvida alguma. - Ela sabia que eles não tinham filhos com que se preocupar, mas ainda tinham parentes na Inglaterra que haviam sofrido muito com a guerra e Arthur sempre se preocupara muito com eles. Ele falava da RAF como de uma coisa quase divina. Também tinham conversado sobre a guerra no Pacífico, de vez e quando, mas agora não haveria mais guerra a mencionar. Quando ela foi para o seu pequeno escritório e se sentou à secretária inglesa para abrir sua correspondência, pensou quantos dos homens que tinha visto ainda estariam vivos, quantas das mãos que apertara não existiria mais. Ao pensar nisso, seus olhos se encheram de lágrimas e ela se virou para olhar o jardim tão bem cuidado e o pavilhão da piscina, ma além. Como era difícil imaginar o holocausto que lá houvera, os países que tinham sido destruídos, as pessoas que tinham morrido. E se perguntou, como perguntava muitas vezes, se Ward estaria entre eles Não mais tivera notícias dele, mas naqueles anos todos ele nunca lhe saíra inteiramente da cabeça. E, pensando nele, muitas vezes se sentia. culpada por não ter voltado a excursionar, mas nunca houvera tempo. Não mais. Desde a morte dos pais e as exigências contínuas de sua carreira.

Ela se virou de novo para a secretária, passando os olhos por uma pilha de correspondência de seu agente e várias contas, procurando afastar da cabeça os rostos do passado, mas no seu presente havia muito pouco que lhe ocupasse os pensamentos, além do trabalho. Ela tivera um caso sério com um diretor que tinha o dobro de sua idade no ano anterior, mas no final ela se dera conta de que amava mais o trabalho dele do que a ele. Ela adorava ouvir o que ele fazia, mas depois de algum tempo não restara mais muita empolgação. Eles afinal se afastaram e desde então não surgiu ninguém mais sério em sua vida. Ela não era dada aos casos costumeiros de Hollywood, e nunca se envolvera com alguém a não ser que realmente gostasse da pessoa. A maior parte do tempo não se misturava e evitava a publicidade o mais que podia. Para uma estrela importante, levava uma vida incrivelmente tranqüila, mas insistia em dizer ao seu amigo e agente Abe, quando ele ralhava com ela por se "esconder" demais, que ela não poderia trabalhar tanto quanto trabalhava se não ficasse em casa para estudar e se preparar para seus papéis, e era exatamente isso que estava pretendendo fazer nas cinco semanas seguintes, por mais que Abe lhe implorasse para sair, ser vista e se divertir com seus colegas.

Em vez disso, ela prometera ir a San Francisco para visitar uma amiga, por uns dias, uma atriz idosa, já aposentada, por quem fora ajudada no começo de sua carreira.

E, na volta para casa, pretendia parar para ver amigos em Pebble Beach. Depois disso, tinha concordado em passar um fim de semana com os Hearst em sua vasta propriedade rural, que tinha animais selvagens e um jardim zoológico, e daí ela voltaria para casa para repousar, relaxar, estudar e ler. Não havia nada de que gostasse mais do que ficar na sua piscina, tomando banho de sol, sentindo a fragrância das flores, ouvindo as abelhas. Ela então fechou os olhos, só de pensar nisso, e nem ouviu Arthur entrando na sala, de mansinho. Ela o ouviu pigarrear, ali perto, e abriu os olhos. Nunca se ouvia Arthur entrar num cômodo. Para um homem do seu porte e idade, ele andava com uma elegância de gato, e lá estava ele agora, a uns três metros da sua secretária, de fraque e calças listradas, colarinho virado e camisa bem engomada e gravata. Trazia uma bandeja de prata, com uma xícara de chá. Ela mesma comprara a louça em Limoges e gostava especialmente dela: era de um branco puro, com uma florzinha azul aqui e ali, como que postas ali ao acaso. Quando Arthur colocou a xícara em sua secretária, com um dos guardanapos de linho branco que ela comprara em Nova York - feitos na Itália antes da guerra -, ela viu que nesse dia Elizabeth também mandara uns biscoitinhos. Normalmente, Faye não os teria comido, mas afinal ela ainda tinha cinco semanas antes do próximo filme, e então, por que não? Ela sorriu a Arthur, ele fez uma mesura e saiu da sala em silêncio, enquanto ela olhava para as coisas que amava, as estantes cheias de livros, velhos e novos, alguns até muito raros, as jarras cheias de flores, as esculturas que ela começara a comprar há alguns anos antes, o lindo tapete Aubusson em rosas secos e azuis-claros, com flores espalhadas nele todo, os móveis ingleses que ela escolhera com tinto cuidado, as peças de prata que Arthur areava até reluzirem. Além do escritório ela via o lindo lustre de cristal francês pendurado à entrada, a sala de jantar com sua mesa inglesa e cadeiras Chippendale  e depois outro lustre. Era uma casa que todos os dias lhe dava prazer, não só devido à beleza de seus tesouros, como também pelo contraste com a pobreza miserável  em que ela se criara. Aquilo tornava cada objeto mais precioso, desde cada castiçal de prata e toalha de renda até cada peça antiga reluzente. Cada qual era um símbolo  de suas realizações e suas recompensas.

Também havia uma bela sala de estar, com uma lareira de mármore rosa e delicadas cadeiras francesas. Ela misturara o inglês com o francês, algumas peças modernas  com as antigas, dois quadros impressionistas, presentes de um amigo muito, muito querido. E uma escada pequena mas elegante levava ao andar de cima. Ali, o quarto dela era todo de espelhos e sedas brancas, como as fantasias que ela tivera quando menina, apaixonada pelo cinema. Na cama, havia uma colcha de raposa branca, almofadas de pele no sofá, a manta de pele branca na espreguiçadeira e uma lareira de mármore branco idêntica à de seu espelhado quarto de vestir. O banheiro era todo de mármore e azulejos brancos. E havia outra salinha íntima, que ela usava muitas vezes até tarde da noite quando estava estudando um argumento ou escrevendo cartas aos amigos.

E era só. Uma jóia pequena e perfeita. O tamanho certo para ela. Os quartos de empregados ficavam no andar térreo, atrás da cozinha e havia uma imensa garagem com um apartamento em cima onde morava Bob, o porteiro. Jardins amplos, uma piscina de bom tamanho com um pequeno pavilhão de piscina e bar e vestiário para os amigos.

Ali tinha tudo quanto queria, era um mundo em si, como ela dizia sempre. Ela agora quase não gostava mais de sair para lugar algum e estava quase com pena de ter prometido ir a San Francisco na semana seguinte, para visitar a velha amiga.

Mas, uma vez lá, ela se divertiu. A mulher, Harriet Fielding, tinha sido uma atriz famosa no palco da Broadway anos antes, e Faye tinha grande respeito por ela.

Harriet lhe ensinara muita coisa e Faye então lhe falou sobre o seu novo papel. Não havia dúvida, seria um desafio.

O galã era tido como difícil e com um temperamento dos piores, era o que diziam. Faye nunca trabalhara com ele e não estava antecipando prazer algum nisso. Esperava não ter cometido um engano ao aceitar o papel, e Harriet insistiu em dizer que não se enganara. O papel tinha mais conteúdo e exigia mais perícia do que qualquer coisa que Faye já fizera.

- É isso mesmo que me assusta! - Ela riu com a amiga, olhando pela baía. - E se eu me esborrachar? - Parecia até que ela ganhara uma mãe de novo, com quem podia conversar, se bem que Harriet fosse muito diferente da sua mãe. Era mais sofisticada, mais mundana, sabia mais sobre o trabalho de Faye. Margaret Price nunca chegara a entender nada sobre o que Faye fazia ou o mundo em que ela ingressara, mas certamente se orgulhava dela. Gabava-se para todos e Faye ficava comovida quando via o quanto a mãe dava importância a tudo aquilo, sempre que ela ia em casa. Mas agora não havia mais casa para onde voltar, ninguém que lhe interessasse em sua cidade natal. - Estou falando sério, e se eu for uma droga?

- Em primeiro lugar, não será. E em segundo lugar, se se esborrachar mesmo, e todos nós fazemos isso de vez em quando, vai-se aprumar e tentar de novo e da próxima vez se sairá melhor. Provavelmente muito melhor, até. O que é que há com você? Nunca foi covarde na vida, Faye Price. - A velha parecia estar aborrecida, mas Faye sabia que era tudo fingido. - Faça o seu dever de casa e vai se dar muito bem.

- Espero que tenha razão. - A velha resmungou qualquer coisa e Faye sorriu. Havia algo muito reconfortante em Harriet, em muitos sentidos. Elas passearam pelos morros de San Francisco, lado a lado, durante cinco dias e falaram sobre tudo, da vida, da guerra, de suas carreiras, dos homens. Harriet era uma das poucas pessoas com quem Faye realmente conversava. Era tão sábia, tão viva e engraçada... Era uma mulher rara, rara, e Faye sempre dava graças por a tê-la conhecido.

Quando a conversa passou para os homens, Harriet lhe perguntou - e não pela primeira vez - por que ela nunca parecia fixar-se num homem.

- Acho que nunca é o homem certo.

- Alguns devem ser. - Harriet olhou para a jovem amiga, examinando-a. - Você tem medo?

- Talvez. Mas acho mesmo que nenhum deles foi o certo. Posso conseguir tudo deles, orquídeas, gardênias, champanha, noites exóticas, noites fabulosas, presentes caros, mas nunca foi isso o que eu realmente desejei. Nada disso me parece real. Nunca pareceu.

- Graças a Deus. - Esse era um dos motivos por que Harriet gostava dela. - Não é real. Você sempre foi bastante esperta para ver isso. Mas em L.A. existem outros homens, não são só os impostores e simuladores e os playboys. - Embora ambas soubessem que por causa da beleza de Faye e o seu status ela atraísse hordas do que Harriet gostava de chamar de "glutões de brilho".

- Talvez eu nunca tenha tido tempo para conhecer os certos. - E o engraçado é que ela nunca se poderia imaginar fixando-se com algum daqueles homens, nem mesmo Gable.

O que ela queria era uma versão um pouco mais sofisticada dos homens que ela teria conhecido na sua cidadezinha, Grave City, o tipo de camarada que poderia limpar a neve numa manhã fria de inverno e cortar uma árvore de Natal para as crianças e dar longos passeios a pé com ela e ficar sentado junto à lareira, ou andar à beira de um lago com ela no verão... alguém real... outra pessoa com quem ela pudesse conversar... alguém que pusesse a ela e aos filhos acima de tudo o mais, até do seu trabalho... não alguém que estivesse querendo se agregar a uma estrela para conseguir um bom papel no filme de outra pessoa. Pensando nisso, ela voltou o pensamento para seu novo filme e tornou a perguntar a Harriet sobre alguma das sutilezas no argumento e as técnicas que ela queria experimentar. Ela gostava de se aventurar nos seus papéis, e ser criativa. Já que não estava criando um lar e uma família para alguém, o mínimo que poderia fazer seria concentrar todas as suas energias criadoras na sua carreira, e até então ela fizera isso com um sucesso imenso, como todo o mundo sabia. Mas Harriet assim mesmo tinha pena porque o homem certo não tinha aparecido.

Ela sentia que isso despertaria em Faye um potencial que ainda não fora tocado, que a enalteceria tanto como mulher quanto como atriz.

- Você não quer ir me ver no set? - Faye virou-se para ela com olhos suplicantes e, à mulher mais velha, parecia uma criança. Mas Harriet sorriu e sacudiu a cabeça.

- Você sabe como detesto aquele lugar, Faye.

- Mas preciso de você. - Havia algo de solitário nos olhos de Faye; era a primeira vez em que Harriet via aquilo e ela afagou o braço da jovem amiga, tranqüilizando-a.

- Eu também preciso de você, como amiga. Mas você não precisa de meus conselhos como atriz, Faye Price. Você tem mais talento do que eu jamais tive. Você há de se sair bem. Sei disso. E se eu estivesse no set, só iria te distrair. - Era a primeira vez, em muito tempo, que Faye sentia que estava precisando de apoio moral no set e ela ainda estava abalada com aquilo quando saiu da casa de Harriet em San Francisco, depois do que planejara, e começou a sua viagem pela estrada litorânea para o que os Hearst chamavam, modestamente, de sua "Casa", e durante todo o trajeto ficou pensando em Harriet.

Por algum motivo que ela mesma não entendia, estava se sentindo mais só do que se sentia, havia anos. Sentia falta de Harriet, sua velha casa na Pensilvânia, os pais. Pela primeira vez em anos, sentiu que estava faltando alguma coisa em sua vida, embora não imaginasse o quê. Tentou dizer a si mesma que só estava nervosa por causa do papel novo, mas era mais que isso. Nesse momento, não havia homem nenhum em sua vida, há tempos não havia, e Harriet tinha razão, era uma pena ela não se casar, mas com quem? Naquele momento ela não podia imaginar um único rosto que lhe agradasse, não havia ninguém que ela estivesse ansiosa por ver quando chegasse em casa e as festas em casa dos Hearst pareciam mais vazias do que nunca. Havia dezenas de convidados e, como sempre, uma porção de gente divertida, mas de repente parecia que não havia substância na vida que ela levava, ou nas pessoas que ela conhecia. A única coisa que tinha sentido era seu trabalho e as duas pessoas de quem ela mais gostava eram Harriet Fielding, que morava a 800 quilômetros de distância, e seu agente, Abe Abramson.

Afinal, depois de ter sorrido sem parar durante dias a fio, foi um alívio rumar para Los Angeles. E quando ela chegou e abriu a porta com sua chave e subiu para o esplendor branco de seu quarto, sentiu se mais feliz do que se sentia havia semanas. Era ótimo estar em casa. A seus olhos, era mais bonita do que a magnífica propriedade dos Hearst, e ela se deitou sobre a manta de raposa branca com um sorriso feliz, tirando os sapatos, olhando para o lustre bonito e pensando empolgada no seu papel novo. Estava se sentindo bem de novo. E daí, se não havia um homem em sua vida? Tinha seu trabalho, que a deixava muito, muito feliz.

No mês seguinte ela estudou dia e noite, aprendendo todas as falas do argumento, as dela e as dos outros também. Experimentou entonações diferentes, passou dias inteiros andando pelo terreno de sua casa, falando sozinha, experimentando, tornando-se a mulher que iria representar. No filme, ela seria levada à loucura pelo homem com quem se casara. Com o tempo, ele lhe tiraria o filho deles e ela tentaria se matar e depois a ele: Depois, devagar, aos poucos, ela se daria conta do que ele lhe fizera.

No final, ela o provaria, recuperaria o filho e afinal o mataria. Mas até mesmo esse ato final de violência e vingança era muito importante para Faye. Será que o público então deixaria de ter pena dela? Quem sabe a amassem mais? Iriam se importar? Será que ela conquistaria os corações deles? Aquilo era tudo para ela, e na manhã em que deveria começar a filmagem, Faye estava no estúdio na hora marcada, o argumento numa pasta de couro de crocodilo vermelho que tinha sempre consigo, seu estojo de maquiagem combinando, uma maleta cheia das coisas que ela sempre gostava de ter no set e ela entrou em seu camarim com um jeito tranqüilo, profissional, que era um prazer para alguns e o desespero de quem não conseguia competir com ela. Acima de tudo, e além de tudo, Faye Price era uma profissional e era também perfeccionista.

Mas nunca pedia nada de alguém que primeiro não pedisse a si mesma.

Uma empregada do estúdio estava designada para tomar conta de Faye, suas roupas e seu camarim. Algumas levavam suas próprias empregadas, mas Faye nunca conseguira imaginar Elizabeth ali e sempre a deixava em casa. As mulheres fornecidas pelo estúdio serviam bem Dessa vez, deram-lhe uma negra simpática, que já trabalhara com ela Era extremamente competente e Faye gostara dos comentários e observações dela, da outra vez. A mulher era esperta e já trabalhava no estúdio havia anos, e algumas das histórias que ela contava faziam Faye chorar de rir. Então, nesse dia elas ficaram contentes por se rever. Ela pendurou as roupas pessoais de Faye, tirou a maquiagem, nem tocou na pasta, pois uma vez já cometera esse engano e se lembrava de que Faye não gostava que outra pessoa pegasse no seu argumento. Ela lhe serviu o café com a quantidade exata e leite e às sete da manhã, quando o cabeleireiro chegou para pentear Faye, a mulher já lhe tinha levado um ovo quente e uma fatia de torrada. Ela era conhecida por fazer milagres no set e de tomar conta maravilhosamente bem de "suas estrelas", mas Faye nunca se aproveitava e Pearl gostava disso.

- Pearl, você vai me estragar para toda a vida. - Ela olhou para a outra com gratidão, enquanto o cabeleireiro começava a trabalhar nos seus cabelos.

- É isso mesmo que se quer, srta. Price. - A mulher sorriu para ela. Gostava de trabalhar com aquela moça. Era das melhores, e Pearl adorava falar dela às amigas.

Faye tinha uma espécie de dignidade difícil de descrever, mas também tinha carinho e espírito e, pensou ela sorrindo sozinha, pernas espetaculares.

Em duas horas ela estava penteada, os cabelos exatamente como deviam estar, e ela vestira o vestido azul-marinho que lhe fora destinado. A maquiagem foi feita exatamente como determinara o diretor e Faye estava de pé nos bastidores. Começara a agitação de sempre. As câmaras estavam sendo empurradas por ali, as moças da continuidade estavam atentas, o diretor falando com os homens das luzes e quase todos os atores já tinham chegado, a não ser o outro astro. Faye ouviu alguém murmurar "como sempre" e pensou se seria assim que ele sempre trabalhava e, com um suspiro, sentou-se numa cadeira, discretamente. Se fosse necessário, passariam a uma cena em que ele não aparecesse, mas aquilo não era bom presságio para os próximos meses, ele se atrasar no primeiro dia. Ela estava olhando para os sapatos azuis e matronais que a encarregada do guarda-roupa lhe destinara quando de repente teve a sensação esquisita de que alguém a estava observando, e levantando os olhos, olhou para o rosto muito bronzeado de um homem impressionantemente bonito, com cabelos azuis e profundos olhos azuis. Ela imaginou que ele fosse um dos atores do filme e talvez ele quisesse cumprimentá-la antes de começarem. Ela sorriu para ele, com naturalidade, mas o rapaz não sorriu.

- Não se lembra de mim, não é, Faye? - Por um momento, ela teve aquela sensação de desânimo que todas as mulheres têm quando diante de um homem que dá a impressão de que a conhece bem, embora ela não se lembre dele de todo. Será que conheci mesmo esse homem? Esqueci do rosto dele? Será isso?... mas não podia ter sido sério...

Ele ficou ali fitando-a, desesperadamente atento, quase assustando-a. Ela sentia uma vaga sensação de recordação bem no fundo de sua mente, mas não conseguia situar aquele homem. Já teria representado com ele? - Não creio que haja algum motivo por que se lembre. - A voz dele era sossegada e calma, os olhos tão sérios olhando para ela, como que decepcionado por ela não o ter reconhecido logo, e ela estava ficando cada vez mais constrangida. - Nós nos conhecemos em Guadalcanal, há dois anos. Você fez um show para nós, e eu era o ajudante-de-ordens do oficial-comandante. - Ah, Deus... ela arregalou os olhos... e de repente aquilo tudo lhe voltou... o mesmo rosto bonito, sua conversa demorada, a jovem enfermeira com quem ele se casara e que fora morta... os dois se olharam enquanto as recordações os inundavam.

Como ela poderia ter-se esquecido dele? O rosto dele a perseguira durante meses. Mas ela não esperava tornar a vê-lo. Quando ela se levantou e estendeu-lhe a mão, ele sorriu para ela. Por tanto tempo ele se perguntara se ela se lembraria dele...

- Seja bem-vindo de volta, tenente.

Ele lhe fez uma continência alegre, como fizera havia tanto tempo, com uma leve mesura, a malícia aos poucos voltando aos seus olhos. - Major, agora, obrigado.

- Desculpe. - Ela estava aliviada ao ver que ele ainda estava vivo. - Você está bem?

- Claro que estou. - Ele respondeu tão depressa que ela se perguntou se ele estaria mesmo, mas ele parecia estar bastante bem, aliás estava fantástico, e, olhando para ele, ela se deu conta de onde eles estavam, e que o filme já ia começar, se o seu colega galã chegasse. - O que está fazendo aqui?

- Moro em Los Angeles. Lembra-se? Eu te contei isso... - Ele sorriu. - Eu também disse que ia aparecer no estúdio, um dia. - Ela sorriu, em resposta. - Eu em geral cumpro as minhas promessas, srta. Price. - Era fácil acreditar nisso. Ele estava mais bonitão do que ela se lembrava. E havia nele algo de muito ousado e, no entanto, controlado. Como um garanhão magnífico, preso com rédea curta. Ela sabia que ele devia estar com 28 anos, e perdera o seu aspecto de rapazinho. Era um homem feito.

Mas ela estava pensando em outras coisas... como o astro que ainda não aparecera. Era constrangedor tornar a vê-lo ali, pela primeira vez.

- Como é que conseguiu entrar aqui? - Ela se lembrava do nome dele, e sorriu para ele com brandura, fazendo a pergunta. De repente aquele brilho malicioso voltou ao olhar dele e ele sorriu, feliz.

- Andei convencendo uns caras aí, disse que era um velho amigo seu... a guerra... condecorações... Guadalcanal... sabe, a coisa de sempre. - Ela agora estava rindo dele. Ele subornara o pessoal para entrar, mas por quê? - Eu te disse que gostaria de tornar a te ver. - Mas ele não disse quantas vezes pensara nela, naqueles dois anos. Mil vezes quisera lhe escrever, mas não tivera coragem. E se jogassem fora a sua "correspondência de fãs", e para onde mandaria a carta? Faye Price, Hollywood, EUA? Ele resolvera esperar até voltar para casa, se algum dia voltasse, e havia ocasiões em que duvidava disso. Muitas e muitas vezes. E agora, lá estava ele. Parecia um sonho, estar ali, olhando para ela, escutando-a falar. Ele se lembrava da voz dela em todos os seus sonhos, uma voz grave e sensual que ficara em sua cabeça por dois anos.

- Quando é que você chegou?

Ele tornou a rir. Resolveu ser sincero com ela.

- Ontem. Queria vir ontem mesmo, mas tive de tratar de umas coisas primeiro. - Ver os advogados dele, preencher papelada, a casa que ainda lhe parecia grande demais. 

Estava hospedado num hotel.

- Está tudo bem, eu compreendo. - Mas de repente ela estava contente por ele estar ali, contente por estar vivo, contente por ter voltado para casa. Ele parecia o exemplo vivo de todos os homens que ela conhecera nas excursões. Estava ali diante dela como alguém num sonho distante, alguém que ela conhecera numa floresta há dois anos antes... e agora lá estava ele, sorrindo-lhe, sem farda, como qualquer outro, só que havia alguma coisa especial nele, coisa que ela nunca encontrara.

E então, de repente, o galã chegou e tudo explodiu no set. O diretor começou a berrar com todo mundo e ela teve de fazer a sua primeira cena com o seu galã.

- É melhor você ir, Ward, tenho de trabalhar. - De repente, pela primeira vez na vida, ela se sentiu dividida entre seu trabalho e um homem.

- Não posso assistir? - Ele parecia uma criança desapontada, e ela sacudiu a cabeça.

- Desta vez, não. O primeiro dia é meio difícil para todos nós. Daqui a umas semanas, quando todos estivermos mais descontraídos. - Ele gostou daquilo. Ambos gostaram...

"daqui a algumas semanas"... como se tivessem todo o tempo no mundo, e um futuro a partilhar. Quem era aquele homem?, ela se perguntou de repente, enquanto ele olhava bem para ela. Afinal, não passava de um estranho.

- Quer jantar comigo hoje? - Ele murmurou as palavras no escuro e ela ia dizendo alguma coisa e sacudindo a cabeça, e aí o diretor tornou a berrar e Ward tentou falar mas ela levantou a mão. O olhar dele encontrou o dela e ela sentiu a força daquele homem. Ele lutara numa guerra, voltara para casa, perdera a mulher e fora procurá-la. Talvez ela só precisasse saber isso sobre ele. Pelo menos, por enquanto.

- Está bem - murmurou ela, de volta, e ele perguntou onde ela morava. Ela sorriu, rabiscou seu endereço para ele, encabulada porque ele ia ver como ela vivia luxuosamente.

Não era nada tão opulento quanto poderia ser, mas certamente, pelos padrões dele, ele ficaria meio pasmo. Mas não havia tempo para arrumar outro local de encontro; Ela entregou o papel a ele e o despachou do set com um sorriso e cinco minutos depois estava recebendo instruções e sendo apresentada ao seu galã. Era um homem forte, interessante e muito bonito. Mas, depois de trabalharem juntos por várias horas, Faye se deu conta de que lhe faltava alguma coisa. Calor... encanto... ela tentou definir aquilo a Pearl, na privacidade de seu camarim, mais tarde.

- É, sei o que quer dizer, srta. Price. Tem duas coisas que ele não tem. Coração e miolo - De repente, dando uma risada, Faye percebeu que ela estava com a razão.

Era isso que havia de errado nele, ele não era inteligente. Também era terrivelmente cheio de si, o que afinal era cansativo. Havia uma batelada de camareiros, secretários e mensageiros para atender a todas as suas necessidades no set, desde cigarros até o gim, E quando eles terminaram o trabalho do dia, Faye viu que ele a estava despindo com os olhos. Depois ele a convidou para jantar naquela noite.

- Sinto muito, Vance, já tenho compromisso para hoje. - Os olhos dele se iluminaram como uma árvore de Natal, e ela teve vontade de se chutar. Não importava se ela não tivesse compromisso para os dez anos seguintes, ela nunca teria saído com ele.

- Amanhã, então?

Ela sacudiu a cabeça e se afastou dele, com calma. Não ia ser fácil trabalhar com Vance St. George, mas houvera momentos em que ela achara que o desempenho dele era realmente muito bom.

E na verdade não era em Vance que ela estava pensando quando voltou depressa ao seu camarim, naquela tarde. Já eram seis horas e ela já estava no set há doze, mas estava acostumada com isso. Depois de trocar de roupa, ela deu boa-noite a Pearl e saiu depressa para onde tinha estacionado o carro. Dirigiu-se para Beverly Hills o mais depressa que pôde. Bob ainda estava no portão quando ela chegou. Abriu o portão para ela entrar e ela entrou correndo, deixando o carro na frente da casa, nem perdendo tempo para levantar a capota. Olhou para o relógio, de novo. Ele murmurara oito horas e já eram quinze para as sete.

Arthur lhe abriu a porta e ela correu para cima.

- Um cálice de xerez, senhorita? - Ele lhe falou, e ela parou na escada um instante, com o sorriso que sempre comovia o coração dele. Ele tinha loucura por ela, mais do que teria confessado a Elizabeth.

- Vem uma pessoa tomar drinques às oito horas.

- Muito bem, senhorita. Quer que mande Elizabeth subir para lhe preparar o banho? - Ela poderia lhe levar um cálice de xerez agora. - Ele sabia como ela ficava exausta no set, por vezes, mas agora nem parecia estar cansada.

- Não, obrigada, está tudo bem.

- Quer receber o seu convidado na sala, senhorita? - Era uma pergunta supérflua, sabia que sim, e ele ficou espantado quando ela sacudiu a cabeça.

- No meu escritório, por favor, Arthur. - Ela sorriu de novo e desapareceu, mais uma vez se maldizendo por não ter combinado para se encontrar com Ward nalgum lugar na cidade. Que ridículo bancar a estrela de cinema com ele, coitado: Bom, pelo menos ele tinha sobrevivido à guerra. Isso é que era importante, disse ela consigo, correndo para o quarto de vestir, abrindo as portas de todos os armários e depois correndo para o banheiro de mármore branco para pôr o banho. Escolheu um vestido de seda branca simples, que lhe ia às mil maravilhas e não era espalhafatoso demais. O vestido tinha um casaco de seda cinza combinando e ela escolheu um par de brincos cinza da caixa de jóias, sapatos de seda cinza e uma bolsa de seda cinza e branca. Em conjunto, ficou um pouco mais vistoso do que ela pensara, mas ela também não queria ofendê-lo, vestindo-se com displicência. Afinal, ele sabia quem ela era. O único problema é que era ela que não sabia nada a respeito dele. Ela parou um minuto, olhando para o vazio, lembrando-se dele, ao fechar a torneira. Era uma boa pergunta. Quem era Ward Thayer, afinal?

 

Exatamente às cinco para as oito horas Faye estava no andar de baixo, em seu escritório, esperando por Ward. Estava com o vestido de seda branco e o casaco combinando estava jogado nas costas de uma cadeira. Ela ficou andando de um lado para outro, lamentando de novo não ter combinado encontrar-se com ele em outro lugar, mas tivera um tal choque, vendo-o lá no set daquele modo, depois de seu breve encontro em Guadalcanal, dois anos antes. Como era estranha a vida. Lá estava ele de novo, e iam jantar juntos, e seu coração estava acelerado e era mister ela confessar que estava empolgada com aquilo. Era um homem muito atraente e havia nele algo de misterioso.

A campainha da porta interrompeu o seu devaneio e, enquanto Arthur ia atender, Faye respirou fundo e procurou se controlar. De repente, estava novamente olhando dentro dos profundos olhos de sa fira e sentiu uma exultação que não sentia havia anos. Só de olhar para ele, parecia que estava andando numa montanha russa. Ela procurou parecer calma, ao oferecer-lhe um drinque e notou que ele ficava muito bem, à paisana. Ele estava com um terno simples, cinzento, de risca de giz, mas que lhe assentava perfeitamente nos ombros e o fazia parecer ainda mais alto do que antes. Ela ainda estava se sentindo meio estranha ali com ele, aquele soldado de uma guerra que afinal acabara. Mas era um gesto simpático, e se eles não tivessem nada em comum, ela não era obrigada a tornar a vê-lo. Ela continuava impressionada com o fato de que ele subornara o pessoal do estúdio para poder entrar para vê-la, e esse homem tinha um encanto positivo. Mas isso ela já sentira há muito tempo, quando o conhecera em Guadalcanal.

- Sente-se, por favor. - O silêncio entre eles estava constrangedor, e ela estava procurando alguma coisa para falar quando o viu sorrir. Ele estava olhando em volta,  com prazer evidente, e parecia notar todos os pequenos detalhes da sala, as pequenas esculturas, o tapete Aubusson, chegou a se levantar para olhar para a coleção de livros raros que ela comprara em leilão, há tempos, e ela notou o brilho no olhar dele.

- Onde você conseguiu isso, Faye?

- Num leilão, há vários anos. Essa coleção é toda de primeiras edições e me orgulho muito delas. - Aliás, ela se orgulhava de quase tudo quanto tinha. Tudo fora conquistado com esforço e lhe significava mais por causa disso.

- Posso pegar? - Ele olhou para ela por cima do ombro e parecia mais à vontade quando Arthur entrou na sala com uma bandeja de prata e os drinques. Um gim-tônica para Faye e uísque com gelo para Ward, nos bonitos copos de cristal da Tiffany, em Nova York. - Claro, dê uma olhada. - Faye ficou observando-o de onde estava sentada, enquanto ele retirava dois livros, com cuidado, largava um e abria outro, examinando a guarda e depois as últimas páginas da antiga edição encadernada em couro.

Ela o viu sorrir e depois ele a olhou com uma expressão divertida.

- Era o que eu pensava. Isso era do meu avô. Eu os teria conhecido em qualquer lugar. - Ele sorriu e passou um dos livros a ela, apontando um interessante logotipo impresso a mão no verso. - Ele punha isso em todos os livros dele. Eu tenho vários. - As palavras dele lembraram a ela como sabia pouco sobre ele, e procurou puxar por ele, ao conversarem enquanto bebiam. Mas Ward continuava vago, falando sobre o interesse do avô por navios, verões passados no Havaí e ela só soube que a mãe dele nascera lá. Ele não falou muito do pai e ela não conseguiu saber de mais nada. - E você, você é do leste, não é, Faye? - Ele parecia sempre levar a conversa de volta a ela, como se achasse que os detalhes de sua vida não fossem importantes. Quase parecia que estivesse resolvido a permanecer um mistério para ela. Bonitão, equilibrado, havia nele algo terrivelmente experiente e de repente ela estava louca para saber mais. Ela teria de puxar por ele ao jantar. Ele a estava observando com expressão de admiração. - Sou da Pensilvânia, mas parece que já estou aqui há séculos.

Ele riu.

- Parece que Hollywood faz isso. É difícil imaginar ter outra vida. - Ele recusou um segundo drinque, olhou para o relógio e se levantou, pegando o casaco dela.

- Acho melhor irmos andando. Reservei a mesa para as nove. - Ela ia perguntar aonde iam jantar, mas não queria parecer estar forçando as coisas, e deixou que ele a ajudasse a vestir o casaco, enquanto iam para a entrada, devagar. Ele tornou a olhar em volta: - Você tem coisas lindas, Faye. - Parecia compreender a beleza e a história de tudo o que via e reconheceu facilmente uma bela mesa inglesa que estava perto da porta. O que ele não sabia era o motivo por que aquela casa significava tanto para ela, devido à pobreza que houvera antes.

- Obrigada, eu mesma é que comprei tudo isso.

- Deve ser divertido. - Mas tinha sido mais que divertido. Na ocasião, significara tudo para ela. Agora os objetos em sua vida pareciam menos importantes, menos reais. Agora ela estava mais segura.

O olhar dele encontrou o dela e ele chegou à porta e a abriu, antes que Arthur pudesse ajudar. Ele sorriu para o mordomo inglês e não pareceu se incomodar com o olhar reprovador do outro. Arthur achava que não ficava bem o rapaz abrir a porta, mas Ward parecia feliz e despreocupado quando saíram da casa. A noite estava amena e ele desceu correndo os degraus de mármore para o carro que estacionara à frente. Era um Ford conversível vermelho forte, com alguns arranhões, mas tinha um aspecto audacioso, o que a divertiu.

- Que carro ótimo, Ward.

- Obrigado. Eu o pedi emprestado por hoje. - O que era verdade. - O meu ainda está nos cavaletes, e só espero que consiga fazê-lo funcionar de novo.

Ela não perguntou que carro era, e entrou no Ford enquanto ele segurava a porta para ela. O carro pegou logo e seguiu para o portão que Arthur já fora abrir para eles. Ward passou com um aceno amigável.

- A senhora tem um empregado muito sério, madame. - Ele riu para ela e ela sorriu. Arthur e Elizabeth eram tão bons para ela que ela não os largaria por nada no mundo.

- Acho que sou mimada. - Ela parecia um tanto constrangida, quando ele sorriu para ela.

- Não há mal nenhum nisso, Faye. Você devia aproveitar.

- E aproveito. - Ela disse as palavras depressa e depois corou quando o vento desmanchou seus cabelos louros e espessos, e ambos riram quando ela tentou contê-los.

- Quer que eu abaixe a capota? - perguntou ele, quando se dirigiam para a cidade.

- Não, não... estou bem... - Estava. Estava gostando de estar ali no carro, ao lado dele, disparando. Havia alguma coisa maravilhosamente antiquada no que estavam fazendo. Como um encontro de sábado à noite em Grove City. Sentada ali ao lado dele, ela não se sentia nada uma estrela cinematográfica. Sentia-se apenas uma garota e estava gostando daquilo, mais do que imaginara. A única coisa que a preocupava era que teria de se levantar às cinco horas no dia seguinte e não queria ir dormir muito tarde.

Ele parou o carro no Ciro's, no strip, e saltou com agilidade quando o porteiro se aproximou dele. Era um negro alto e bonitão e o rosto dele se iluminou ao ver Ward.

- Sr. Thayer! O senhor está de volta!

- Se estou, John, e pode crer, não foi mole! - Eles se deram um aperto de mãos demorado e caloroso e um sorriso de simpatia. Aí, de repente, o negro mais velho olhou horrorizado para o carro.

- Sr. Thayer, o que aconteceu com o seu carro?

- Está nos cavaletes, desde a guerra. Espero tê-lo de volta na semana que vem.

- Graças a Deus... pensei que tivesse trocado por essa droga aí. - Faye ficou um tanto espantada diante do comentário grosseiro sobre o carro e também porque pareciam conhecê-lo tão bem no Ciro's, mas lá dentro foi a mesma coisa. O maitre quase chorou ao apertar a mão de Ward, felicitando-o por sua volta, e parecia que todos os garçons da casa o conheciam e foram falar com ele. Deram-lhes a melhor mesa da casa e, depois de pedir as bebidas, ele a levou para dançar na pista.

- Você é a garota mais linda aqui, Faye. - A voz dele era suave nos ouvidos dela e ela sentia seus braços fortes envolvendo-a.

Ela sorriu para ele.

- Nem preciso perguntar se você era freqüentador assíduo daqui. Ele riu do comentário dela e a fez girar pela pista, com perícia. Era o par melhor que ela já tivera e, a cada momento, ela ficava mais curiosa para saber quem ele seria. Apenas um jovem playboy de L.A.? Alguém importante? Um ator cujo nome ela não conhecera, antes da guerra? Era evidente que Ward Thayer era "alguém" e ela estava começando a se perguntar seriamente quem ele seria. Não porque quisesse alguma coisa dele, mas era estranho estar saindo com alguém que ela mal conhecia e que conhecera num lugar tão distante, de modo tão anônimo.

- Alguma coisa me diz que o senhor anda me escondendo uns segredos, sr. Thayer.

Os olhos dela procuraram os dele e ele sacudiu a cabeça, rindo. - Em absoluto.

- Muito bem, então, quem é você?

- Você já sabe disso. Já lhe disse. Ward Thayer, de L.A. - Ele foi dizendo o seu posto e número de série e eles se riram de novo. - Isso não me diz coisa alguma e você sabe disso. E sabe o que mais? - Ela se afastou um pouco para olhar para ele de novo. - Você está gostando disso, não está? Me fazendo de boba, bancando o homem misterioso. De repente, tenho a impressão de que todos na cidade sabem quem você é, menos eu, Ward Thayer.

- Não, só os garçons... é isso... eu era garçom... - Mas, de repente, quando ele disse aquilo, houve um tumulto na porta e entrou uma mulher com um vestido preto muito colante, os cabelos, uma explosão de um vermelho de fogo. Era Rita Hayworth e estava ali, como sempre, com o marido bonitão. Ela e Orson Welles iam dançar pela pista para ele poder exibi-la e era fácil ver por que ele se orgulhava tanto dela. Faye achou logo que ela era a mulher mais espetacularmente bela que ela já vira. Já a tinha visto uma ou duas vezes, embora só a distância, e quando ela passou por eles, naquele instante Faye prendeu a respiração, de tão impressionada.

E então, como se a mulher a tivesse sentido, parou sobressaltada e se virou. Faye corou muito, sob a sua cabeleira cor de pêssego, e já se ia desculpando por ser mal educada quando de repente Rita Hayworth pareceu saltar para os seus braços e quando ela se deu conta, Ward tinha sido puxado de junto dela e ele e Rita estavam se abraçando na pista. Orson estava ali a alguns passos, olhando, interessado, e, ao ver Faye, Rita gritou de prazer, afastando-se de Ward.

- Meu Deus, Ward, você conseguiu! Seu desgraçadinho, todos esses anos e nem uma palavra para dizer se estava vivo ou morto. Todo mundo perguntava e eu nunca sabia o que dizer... - Ela tornou a abraçá-lo, os olhos fechados, a boca sorrindo aquele sorriso que fazia os homens crescidos chorar de desejo, enquanto Faye olhava, assombrada. Rita nem sequer a via, de tão feliz que estava por ver Ward.

- Seja bem-vindo, seu danadinho. - Ela riu e olhou para Faye, cumprimentou-a, reconhecendo-a, e depois mostrando interesse, enquanto olhava para Ward de novo. - Ah, estou vendo... - implicou ela. - Alguém já sabe dessa novidade, sr. Thayer?

- Ora, vamos, Rita, pelo amor de Deus... Só voltei há dois dias. - Andou depressa. - Ela riu para ele e sorriu muito para Faye. - Prazer em tornar a vê-la. - Palavras vazias, educadas. As duas nunca tinham sido amigas. - Cuide bem do meu amigo aqui. - Ela o afagou no rosto e depois foi ter com Welles, que cumprimentou Ward com um sorriso, de longe e, quando eles se dirigiram a uma mesa do outro lado da sala, Faye quase explodiu. Ward a levou de volta à mesa e tomou um gole de sua bebida, enquanto Faye lhe agarrava o outro braço.

- Muito bem, major. Pronto. A verdade. - Ela o estava fitando, fingindo-se furiosa, e ele se riu muito, largando o copo. - Antes que eu faça um papel de idiota total, quero que me diga o que está acontecendo. Quem é você? Um ator? Diretor? Gângster... era dono desse lugar?

Ambos estavam rindo e ele estava se divertindo com a brincadeira muito mais do que ela.

- Que tal gigolô? Que tal?

- Isso é besteira, é o que é. Vamos, raios, conte. Primeiro que tudo, como é que você conhece Rita Hayworth tão bem assim?

- Eu jogava tênis com o marido dela. Aliás, eu os conheci aqui. - Como garçom, certo? - Ela agora estava achando graça. Esse soldado anônimo que ela conhecera em Guadalcanal tinha um bocado de espírito. Mas ela estava louca para saber mais. Ela o obrigou a encará-la e tentou ficar séria. - Vamos, pare com isso. Cá estou eu com pena de você por me levar para jantar, constrangida por você ver a minha casa e você conhece muito mais gente importante do que eu. - Não foi isso que me disseram, beleza.

- Ah, é? - Ela corou e sacudiu a cabeça. - E o Gable? - Ela corou mais ainda.

- Não deve acreditar em tudo o que dizem os jornais.

- Só algumas coisas. E isso eu soube por meus bons amigos. - Eu não o vejo há anos. - Ela procurou parecer displicente e Ward era cavalheiro demais para insistir.

E de repente ela olhou de novo nos olhos dele. - Não tente me despistar, diabos. Quem é você? Ele se inclinou até ela e cochichou-lhe ao ouvido.

- O Cavaleiro Solitário. - Ela riu dele e o maitre se aproximou da mesa com uma imensa garrafa de champanha e os menus.

- Seja bem-vindo de volta, sr. Thayer. É bom tê-lo aqui.

- Obrigado. - Ele pediu o jantar para ambos, fez um brinde com o champanha e passou a provocá-la o resto da noite, até que afinal estavam sentados no Ford aberto junto à porta da casa dela e ele ficou sério e segurou a mão dela. - Sério, Faye, sou um militar desempregado. Não tenho emprego, nem tinha antes de partir. Nem mesmo tenho um apartamento, eu o entreguei quando fui convocado. E eles me conhecem no Ciro's porque eu ia muito lá antes da guerra. Não quero bancar o importante.

Não sou importante. Você é que é a estrela e estou louco por você desde o dia em que a conheci, mas estaria mentindo se fingisse ser alguém que não sou. Sou apenas quem você pensa que sou, Ward Thayer... um homem sem casa, sem emprego e com um carro emprestado.

Ela sorriu para ele, delicadamente. Se fosse verdade, ela não se importava a mínima. Havia anos que não passava uma noite tão agradável. Gostava de estar com ele.

Era esperto, divertido e bonitão. Dançava divinamente e havia nele algo tão terno, viril e emocionante... Ele entendia de assuntos com que ela nunca sequer sonhara, e era diferente de todos os homens que ela conhecera até então. Não tinha aquela superficialidade vazia de Hollywood, se bem que todo mundo certamente parecesse conhecê-lo.

- Pois eu me diverti muito, seja você quem for. - Já eram quase duas horas e ela nem queria pensar como se sentiria de manhã. Teria de se levantar dali a menos de três horas.

- Amanhã à noite, então? - Ward estava com um ar esperançoso e de repente muito jovem, quando ela lhe sorriu e sacudiu a cabeça. - Não posso, Ward. Sou uma moça que trabalha. Tenho de me levantar às quinze para as cinco todos os dias.

- Até quando?

- Até terminarmos o filme.

Ele pareceu ficar abatido. Talvez afinal ela não se tivesse divertido. E depois de passar dois anos sonhando com ela, queria muito que ela se divertisse quando estivesse com ele. Queria levá-la para sair to das as noites, jantar e tomar vinho com ela e arrebatá-la como ela nunca o fora. Não queria ficar esperando pacientemente enquanto ela acabava o seu filme.

- Droga, não vou esperar tanto tempo. Que tal você amanhã dormir bem e depois de amanhã sairmos de novo? - Ele olhou para o relógio. - E da próxima vez não a prendo até tão tarde. Eu não me dei conta de como estava ficando tarde. - Os olhos dele procuraram os dela e sua voz estava grave e branda. - Foi maravilhoso, Faye. - Ele estava completamente apaixonado por ela, e mal a conhecia.

Mas passara os dois últimos anos sonhando com ela, como um garoto com suas ilusões, e prometera a si mesmo que a procuraria quando voltasse para casa. E agora que procurara, não ia largá-la até que ela estivesse igualmente apaixonada por ele. E o que Faye não sabia é que Ward conseguia o que queria. Quase sempre.

Naquele instante os olhos dele suplicavam a ela e ela não conseguiu resistir.

- Está bem. Mas você tem de me levar para casa à meia-noite, senão eu viro uma abóbora. Combinado?

- Juro por Deus, Gata Borralheira... - Ele ficou ali fitando-a, louco para beijá-la, mas não ousava. Era muito cedo. Ele não queria que fosse como todo outro encontro que ela tivera, quando alguém a agarrava por ela ser quem era. Para ele, era muito mais que isso. Ele saltou do carro e deu a volta para abrir a porta para ela e ela saltou agilmente, a mão na dele.

- Foi muito gostoso, obrigada. - Ela olhou para ele e ele a acompanhou pela escada de mármore rosa. Ela ficou meio tentada a convidá-lo a entrar para tomar alguma coisa, mas aí não dormiria de todo e estava precisando, pelo menos, de algumas horas de sono antes de voltar ao set. Ele ficou ali à porta, olhando para ela, parecendo um garoto qualquer da vizinhança, e os lábios dele roçaram-lhe o alto da cabeça de leve, quando ele levantou-lhe o queixo com uma das mãos, para poder olhar de novo dentro daqueles preciosos olhos de esmeraldas. Vou sentir falta de você, nesses dois dias.

E então, sem nem pretender dizer as palavras, ela meneou a cabeça. - Também vou sentir falta de você, Ward... - Como ela sentira no começo, depois de Guadalcanal.

Ele tinha um jeito de se meter na alma dela, depois desses poucos encontros, como nenhum homem jamais tivera. Aquilo a teria assustado, só que ela estava se divertindo demais para se assustar. Especialmente com Ward Thayer.

 

Faye chegou ao set na hora, na manhã seguinte, e Pearl lhe levou três xícaras de café preto bem forte.

- Depois disso, acho que meus cabelos vão ficar eriçados o resto do dia.

- É, benzinho, mas se não tomar, pode até dormir nos braços daquele canastrão, numa cena de amor.

- Isso pode acontecer mesmo. - As duas riram. Não era segredo para elas: já no segundo dia no set, elas não tinham boa opinião do co-protagonista dela: Ele chegara atrasado de novo e se comportara como um idiota total. O camarim dele era quente e quando instalaram uns ventiladores para ele, reclamou porque havia uma corrente de ar. Não gostou do cabeleireiro nem do maquilador que lhe designaram e ainda estava reclamando das luzes e do guarda-roupa quando, em desespero, o diretor mandou que todos parassem para almoçar. Quando ela voltou ao seu camarim, Pearl lá estava com o jornal aberto para ela. Hedda Hopper em sua coluna lhe contava tudo quanto ela quisera saber na noite da véspera. Ela leu as palavras com cuidado e depois ficou olhando para elas, como que para digeri-las, enquanto Pearl ficava olhando, pensando no que se estaria passando com ela.

"...o playboy herdeiro dos milhões do Estaleiro Thayer, Ward Cunningham Thayer IV, está de volta da guerra, são e salvo, e, disseram, retornou aos velhos hábitos.

No Ciro's, ontem à noite, onde teve uma acolhida calorosa de Rita Hayworth e maridinho. E parece que anda rebocando uma linda dama, Faye Price, que tem um Oscar e uma porção de namorados bonitões a seu crédito, entre os quais um de nossos favoritos (e de vocês também), como todos sabemos. Aliás, estávamos pensando se o viúvo solitário não voltaria para repetir a dose agora, mas parece que Thayer está correndo por dentro. Bom trabalho, Ward. E ele só voltou há três dias! Por falar nisso, Faye está trabalhando num novo filme com Vance Saint George e o diretor Louis Bernstein não vai ter mãos a medir com essa combinação, e não por causa de Faye, podemos acrescentar... e boa sorte, Ward! Aliás, boa sorte para vocês dois. E teremos casamento à vista? Vamos esperar para ver!..."

- Puxa, mas como andam depressa, hein? - Ela sorriu para Pearl, achando certa graça, meio intrigada... "playboy herdeiro dos milhões do Estaleiro Thayer"... Ela agora reconhecia o nome, claro, se bem que antes não tivesse feito a ligação. Herdeiro playboy... ela não sabia bem se gostava daquilo. Não queria que ele pensasse que ela estava atrás do dinheiro dele, e nem pretendia ser mais uma conquista de um playboy famoso. De repente, ele lhe pareceu um pouco menos atraente do que na noite da véspera, um pouco menos comum, um pouco menos "real". Afinal, ele não era igual aos homens de Grove City. Aliás, era extremamente diferente. Aquilo a perturbou mais do que ela queria confessar, e depois de mencionar o fato uma vez só, Pearl entendeu e não falou mais no assunto. De qualquer forma, o dia tinha sido difícil. Vance Saint George criara casos o dia todo e quando todos saíram do set, às seis da tarde, Faye estava inteiramente exausta. Não tirou a maquiagem, vestiu umas calças marrons e um suéter de cashmere bege, os cabelos cor de milho esvoaçando pelo rosto, e ligou o Lincoln Continental - quando ouviu uma buzina insistente atrás de si. Olhando pelo espelho retrovisor, viu um carro vermelho conhecido e suspirou. Não estava disposta a conversar com ninguém, muito menos com um "playboy milionário". Era uma moça que trabalhava e tinha dormido só duas horas na véspera e queria que a deixassem em paz - e isso incluía Ward Thayer. Por mais atraente que ele fosse, ela precisava levar a sua vida. E agora ele não passava de um "playboy".

Ele saltou do carro vermelho, bateu a porta e correu para ela com um sorriso, os braços cheios de angélicas, gardênias e uma garrafa de champanha. Ela sacudiu a cabeça e riu para ele, quase em desespero.

- Não tem nada melhor a fazer na vida, sr. Thayer, senão perseguir as pobres atrizes que acabam de trabalhar?

- Escute, Gata Borralheira, não se exalte. Sei que deve estar morta, mas pensei que isso aqui poderia te animar um pouco, a caminho de casa... a não ser, claro, que eu te pudesse raptar para o Beverly Hills

Hotel para beber alguma coisa... alguma possibilidade? - Ele estava com um ar de menino esperançoso, e ela quase gemeu.

- Quem é o seu agente de publicidade, afinal? - Ela parecia um pouco aborrecida, e nos olhos dele surgiu uma expressão preocupada, enquanto ele a observava.

- Imagino que foi Rita quem fez aquilo. Desculpe... você se importa muito? - Não era segredo que Hedda Hopper não gostava de Orson, mas sempre simpatizara com Rita.

E com Ward, mas Faye não sabia disso.

Ela sorriu. Era impossível ficar aborrecida com ele. Ele era tão simples e generoso e parecia tão feliz por vê-la que era mister reconhecer que, mesmo sabendo que ele era um playboy, ainda assim tinha um fascínio extraordinário. Havia algo de extremamente atraente nele. Mesmo em Guadalcanal houvera. E agora, no seu meio, ele estava ainda mais atraente. Irradiava confiança e sex-appeal, e Faye estava longe de ser imune a ele.

- Pelo menos, agora sei quem você é. Ele deu de ombros, rindo.

- Nada daquela bobagem significa muita coisa, nem é muito exato, como você sabe. - Ele não mencionou os "namorados" citados na notícia, mas sorriu para ela de um modo que lhe tocou o coração. Ele tinha jeito para isso. - Vamos seguir a sugestão dela, Faye? - Havia algo esquisito nos olhos dele e ela ainda não o conhecia bastante para saber se ele estava falando sério ou brincando.

- Que sugestão? - Ela estava tão cansada que nem conseguia mais pensar, e ele observou os olhos dela com cuidado ao responder. - Lembra-se do pedaço de "casamento à vista"... podíamos dar uma surpresa e tanto a eles e nos casar.

- Mas que ótima idéia - disse ela, zombando, olhando para o relógio e apertando os olhos. - Vamos ver... são seis e vinte e cinco... que tal às oito horas da noite, assim podia aparecer nos jornais da manhã.

- Ótima idéia. - Ele correu para o outro lado do carro e antes que ela pudesse se opor, sentou-se ao lado dela. - Muito bem, vamos andando, criança. - Ele se recostou, com toda a naturalidade, e de repente ela também achou graça nele. Esqueceu que estava cansada.

Na verdade, estava contente por vê-lo. Mais do que pretendia estar. - Quer dizer que espera que eu dirija? Que tipo de casamento é esse?

- Você leu no jornal. Dizia que eu sou um playboy. Os playboys não dirigem, são levados por aí.

- Isso são os gigolôs. Não é a mesma coisa, Ward Thayer. - Os dois estavam rindo e ele chegara mais para perto dela no banco, mas ela não se importou.

- Por que é que um playboy também não pode ser levado? Estou cansado. Tive um dia cansativo hoje. Almocei com três amigos e bebemos quatro garrafas de champanha.

- Estou morrendo de pena de você, seu preguiçoso. Estou trabalhando desde as seis da manhã e você passa o dia bebendo champanha! - Ela tentou se fazer de zangada, mas só conseguiu rir, enquanto uma limusine enorme chegou para apanhar Vance Saint George.

- É disso que você precisa, Faye. - Ele estava quase parecendo sério e ela riu dele.

- Um carro como esse? Não seja ridículo. Gosto de dirigir eu mesma.

- Não fica bem para uma senhora. - Ele adotou uma expressão afetada e olhou para ela de relance. - Depois, não fica bem para a vítima de um playboy.

- Então, eu sou sua vítima, sou?

- Espero que sim. - Ele olhou para o relógio e depois de novo para ela. - Então, a que horas vamos nos casar? Você disse que era às oito... é bom nos apressarmos... ou prefere parar para um drinque, afinal?

Ela sacudiu a cabeça, mas estava menos convicta do que antes. - Não. Prefiro voltar para casa, sr. Thayer. Lembra-se de mim, sou a moça que trabalha, e acontece que estou exausta.

- Não posso imaginar por quê. Você provavelmente ontem foi dormir às dez da noite.

- Não. - Ela cruzou os braços e sorriu para ele. - Saí com um playboy milionário. - Agora que ela falara, ambos estavam se divertindo com aquilo. Tudo parecia inteiramente absurdo, como uma pia da com os dois, e Faye se recusava a levar a coisa mais a sério do que ele.

- Não é possível! - Ele tentou parecer escandalizado. - Com quem?

- Não consigo me lembrar do nome dele. - Ele era simpático?

- Mais ou menos. Muito mentiroso, claro, mas todos são. - Bonitão?

Ela olhou bem nos olhos dele. - Muito.

- Agora você pegou o macete dele, mentindo de novo. Vamos, tenho uns amigos que você tem de conhecer. - Ele passou o braço em volta dela e ela sentiu o perfume pungente da loção de barba dele, masculina e sexy. - Vamos beber alguma coisa. Prometo que hoje eu a levo para casa cedo.

- Não posso, Ward. Eu dormiria na mesa. - Não se preocupe, eu a belisco.

- Você estava falando sério, de conhecer uns amigos? - Era a última coisa que ela queria fazer naquela noite. Só queria era ir para casa. Tinha de estudar umas falas novas no argumento e, como Saint George estava representando tão mal, ela se achava na obrigação de trabalhar com mais afinco ainda, para compensar por ele. Senão, eles iam estragar o filme todo.

Ward sacudiu a cabeça.

- Eu estava brincando, nada de amigos. Só nós dois. Eu a levaria à minha casa, se você quisesse ir, mas é que não tenho casa. - Ele riu. - Isso torna as coisas meio difíceis.

- Como não.

- Eu ia ficar em casa dos meus pais, mas está fechada e é grande demais. Tomei um chalé no Beverly Hills Hotel até arranjar uma coisa de que eu goste, de modo que no momento acho que só o que lhe posso oferecer é o bar do hotel. - Teria sido muito impróprio sugerir que ela fosse ao chalé dele para beber alguma coisa, e ele nem pensaria em sugerir isso. Ela não era esse tipo de garota, por mais estrela que fosse, ou por mais namorados que tivesse tido. Nela ainda restava mais que vestígios da mocinha bem educada e ele gostava dela assim. O jornal não estava tão longe da verdade, quanto a suas intenções. - Então, que tal? Meia hora e depois eu a levo para casa. Está bem?

- Está bem, está bem... puxa, mas você é duro de convencer. Ainda bem que não trabalho para você, Ward Thayer.

- Ah, minha florzinha - disse ele, beliscando o rosto dela -, isso se poderia arrumar. Agora passe para cá e deixe que eu dirijo. - Ele saltou do carro e se postou no lugar da direção.

- Não vai precisar do seu carro?

- Pego um táxi e venho buscá-lo depois que a levar em casa. - Não é muito incômodo para você, Ward?

Ele olhou para ela, achando graça.

- Em absoluto, gracinha. Por que não põe a cabeça para trás e descansa, a caminho do hotel? Parece cansada. - Ela gostou do tom da voz dele, do olhar dele... de sentir a mão dele encostando na sua... ela o ficou observando pelos olhos meio cerrados enquanto eles seguiam - Como vai o trabalho?

- Vance Saint George é um chato de galocha. Nem sei como é que ele conseguiu chegar onde está. - Ward sabia, mas não disse nada a ela. O ator dormira com tudo o que se mexesse, mulher ou homem, e devia favores a todo mundo, mas aquilo um dia ia acabar. - E ele trabalha bem?

- Trabalharia, se parasse de se preocupar com correntes de ar e quanta maquiagem ele usa e estudasse as falas, para variar. É difícil trabalhar com ele, nunca está preparado, e isso nos atrasa horas. - Ela se sentou reta e olhou para fora, quando se aproximaram do hotel.

- Ouvi dizer que a senhora é muito boa profissional, srta. Price. - Ele olhou para ela com admiração.

Ela sorriu.

- Quem te disse isso?

- Estive com Louis B. Mayer hoje no almoço. Ele disse que você é a melhor atriz da cidade, e, claro, eu concordei.

- Você é mesmo muito entendido. - Ela riu. - Esteve fora quatro anos e perdeu todos os meus melhores filmes. - Ela fungou, empertigada, e ele riu. Sentia-se feliz com ela. Mais feliz do que se sentia havia anos.

- É, mas não se esqueça, eu te vi em Guadalcanal. - Olhou para ela com ternura e tocou na mão dela de novo. - Quantos são os que se podem gabar disso? - E aí de repente eles dois riram, pensando nos milhares de soldados para quem ela já representara. - Está bem, não importa... - Ele parou defronte ao hotel cor-de-rosa, e saltou, enquanto um porteiro corria para ajudar, murmurando o nome de Ward. E ele foi abrir a porta para Faye; ela saltou e olhou para baixo, para as calças.

- Posso entrar assim?

- Faye Price? - Ele riu. - Podia entrar de maiô e eles beijariam os seus pés.

- Será mesmo? - Ela sorriu para ele. - Ou será que é só porque estou com Ward Thayer?

- Que tolice, essa. - Mas, como sempre, o maitre deu a ele a melhor mesa. E dessa vez três pessoas pediram o autógrafo dela e, quando saíram do hotel, uma hora depois, ela teve o aborrecimento de ver que alguém avisara os jornalistas, e um flash de câmara lampejou no seu rosto, quando iam saindo do hotel.

- Raios, detesto esse negócio. - Ela parecia aborrecida quando eles se refugiaram no carro dela e o fotógrafo os acompanhou até lá. - Por que não podem nos deixar em paz? Por que têm de fazer uma onda dessas? - Ela gostava de sua privacidade e a mesma coisa já lhe acontecera. E dessa vez ela ainda nem sequer estava envolvida

com Ward. Era apenas o seu segundo encontro.

- Você é notícia, criança. Não se pode evitar. - Ele ficou matutando se ela estava aborrecida por aparecer em público com ele, se havia outra pessoa. Ele não tinha pensado nisso antes, mas fazia muito sentido. E, voltando para casa, ele tocou no assunto, delicadamente. - Isso não... não vai atrapalhar nada para você, Faye?

- Ele parecia preocupado e ela sorriu ao ver a expressão nos olhos dele.

- Não no sentido em que você fala. Mas é que não gosto de andar por aí anunciando como passo minhas horas privadas. - Ela ainda parecia contrariada e também cansada.

- Então, vamos ter de ser discretos quanto aos lugares onde formos. - Ela meneou a cabeça, mas os dois pareceram esquecer-se disso na noite seguinte, quando ele foi apanhá-la de carro, um Duesenberg feito sob encomenda que ele comprara antes da guerra e deixara nos cavaletes em sua garagem. Era o carro a que se referira o porteiro do Ciro's, e Faye entendeu por quê. Era o carro mais lindo que ela já vira.

Nessa noite ele a levou ao Mocambo, e Charlie Morrison, o proprietário grisalho, correu para eles e quase beijou Ward, abraçando-o e lhe apertando o braço. Como todos, ele estava feliz ao ver que Ward voltara são e salvo e mais uma garrafa magnum de champanha apareceu, enquanto Faye olhava em volta da sala, se perguntando

quem estaria lá. Ela já estivera lá, claro, e era o lugar mais elegante da cidade, com toda uma parede de pássaros vivos esvoaçando, enquanto os pares dançavam, e grandes estrelas cinematográficas entravam e saíam. como ela estava entrando com Ward.

- Imagino que não vamos passar despercebidos hoje. Pode ser até que o próprio Charlie chame os jornalistas, sabe. - Ward parecia preocupado. - Você se importa muito, Faye? - Ele desconfiava de que ela não ficara muito satisfeita com a fotografia que aparecera na página quatro do Times de L.A. naquele dia, mostrando-os saindo do Beverly Hills Hotel depois do coquetel na véspera e correndo para o carro.

Mas ela se limitou a sorrir para ele.

- Tenho a impressão, Ward, de que você não sabe se tornar invisível. - Ambos sabiam que era verdade. - E aliás, não sei bem se me importo. Nenhum de nós tem nada a esconder. E teria sido gostoso conservar a nossa privacidade, mas parece que isso não é para nenhum de nós dois. - Ela pensara muito nisso na noite da véspera e chegara à conclusão de que era melhor deixar pra lá, eles nada tinham a esconder.

- Nunca me preocupei muito com isso. - Ele bebericou a champanha borbulhante. Sempre bebia litros de champanha, parecia ser quase uma marca registrada dele. – As coisas são assim mesmo... - Quando se é herdeiro de uma fortuna de armadores navais, pensou ela, e se dirige um Duesenberg de carroceria especial... E de repente ela riu. - Eu estava longe de imaginar, quando conheci aquele simpático tenente em Guadalcanal, que ele era mimado até os ossos, e estava acostumado a freqüentar uma porção de lugares chiques e beber rios de champanha... - Ela implicou com ele e ele pareceu não se importar, era tudo verdade, e no entanto havia muito mais na personalidade dele. Sob certos aspectos, ele sabia que a guerra lhe fizera bem. Tinham sido os quatro anos mais difíceis de sua vida e ele provara alguma coisa a si mesmo, que conseguiria sobreviver a quase tudo - privações, perigo, sofrimento, desconforto. Durante os quatro anos, ele nunca se valera de suas relações ou de seu nome, se bem que, claro, havia quem soubesse quem ele era.

E depois, houvera a garota com quem ele se casara. A princípio, ele pensara que nunca iria se refazer, quando ela morrera. Foi uma realidade que ele nunca enfrentara, e um sofrimento quase insuportável. E agora havia Faye, com toda a sua magia e fascínio e, por baixo disso, o seu forte sentido de realidade e seu talento imenso.

Ele estava contente com o fato de Faye não ter sabido quem ele era, a princípio. Ela poderia ter sentido algo de diferente se soubesse, poderia ter achado que ele era leviano. E por vezes ele era frívolo mesmo, gostava de se divertir. Mas também era capaz de ser sério, como Faye estava começando a descobrir. Havia tantas facetas naquele homem, como havia nela. E juntos eram uma combinação e tanto. Cada qual gostava do outro pelo que era, e não pelo que possuía. Combinavam bem em muitos sentidos, como Hedda Hopper e Louella Parsons notara, logo.

- Quais são os seus objetivos na vida, srta. Price? - perguntou Ward, provocando-a, na quarta taça de champanha, se bem que ele não parecesse estar sentindo efeito algum; mas Faye sabia que teria de ir mais devagar, senão ficaria embriagada, e isso era coisa que ela não fazia nunca. - O que vai querer estar fazendo daqui a dez anos? - Ele parecia estar falando sério e ela franziu a testa e olhou para ele. Era uma pergunta interessante.

- Está falando sério? - Claro.

- Não tenho certeza. Quando penso nessas coisas, sempre vejo duas possibilidades, como duas estradas com dois destinos muito diversos, e nunca tenho certeza quanto a qual vou seguir.

- E aonde é que vão essas duas estradas? - Ele estava intrigado com o que ela dissera, agora ficava intrigado com tudo sobre ela, mais ainda do que antes.

- Uma estrada representa tudo isso - ela olhou em volta da sala, rapidamente, antes de olhar de novo para ele -, a mesma gente, lugares, coisas... minha carreira... mais filmes... mais fama - ela estava sendo muito sincera com ele -, mais da mesma coisa, eu acho... - A voz dela sumiu.

- E a outra estrada? - Ele pegou a mão dela, delicadamente. - Aonde vai a outra, Faye? - A sala desapareceu em volta deles, enquanto ele falava e ela olhava dentro dos olhos dele. Havia alguma coisa que ela desejava muito, e ela ainda não tinha certeza do que fosse. - A outra estrada...?

- Vai para um lugar muito diferente... um marido... filhos... uma vida longe, longe de tudo isso... mais como a vida que eu levava em menina. Não posso imaginar direito, mas sei que a possibilidade existe, se eu quisesse preferir essa opção. Mas é uma escolha difícil - Ela olhou para ele com franqueza.

- Você não acha que poderia ter ambas? Ela balançou a cabeça.

- Duvido muito. As duas não se misturam. Veja como eu trabalho. Me levanto às cinco horas, saio às seis. Só chego em casa às sete da noite, ou oito. Qual o homem que havia de agüentar isso? E há anos que vejo os casamentos de Hollywood começarem e acabarem. Nós todos sabemos o que é isso. Não é isso que desejo, se eu me casar. - O que é que você deseja, Faye... se você se casar, quero dizer? Ela sorriu para ele. Era uma conversa estranha, para terem na terceira vez em que se encontravam. Mas ela estava começando a achar que o conhecia muito bem. Eles se tinham visto três vezes em três dias e alguma coisa estranha lhes acontecera em Guadalcanal, havia tanto tempo. Era como se um laço se tivesse formado e se fortalecido em silêncio através dos anos, e continuasse entre eles agora, prendendo-os, aproximando-os mais do que estariam se acabassem de se encontrar. Ela pensou de novo nas palavras dele.

- Acho que eu havia de querer estabilidade, um casamento que durasse anos e anos, com um homem que eu amasse e respeitasse, e filhos, claro.

- Quantos? - Ele riu para ela e ela riu de novo.

- Ah, uns doze, pelo menos.  Ela agora estava implicando. - Tudo isso, santo Deus... que tal uns cinco ou seis?

- Pode ser.

- Isso me parece uma boa vida.

- A mim também, mas ainda não a posso imaginar. - Ela suspirou.

- A sua carreira é assim tão importante para você?

- Não tenho certeza. Venho trabalhando muito nela há seis anos. Pode ser difícil desistir... ou talvez não... - De repente ela riu. - Se houver muitos filmes como este que estou fazendo, talvez eu desista num...

Ela estalou os dedos e ele tornou a pegar a mão dela.

- Eu gostaria de ver você largar tudo isso, um dia. - De repente o rosto dele estava tão sério que ela se assustou.

- Por quê?

- Porque estou apaixonado por você e gosto daquela segunda estrada que você descreveu. Essa é que a vai satisfazer. A primeira é o caminho para a solidão. Mas acho que você já sabe disso. - Ela meneou a cabeça, devagar, e olhou para ele. Ele a estaria pedindo em casamento? Não podia ser. Ela não sabia bem o que dizer, e puxou a mão, devagar.

- Você acabou de voltar para casa, Ward. Tudo está diferente para você neste momento. Você vai passar por um período muito emocional... - Ela queria desencorajá-lo.

Era justo. Ele estava andando depressa demais... pelo amor de Deus, ela mal o conhecia, e no entanto aquilo parecia um momento que poderia nunca se repetir e eles estavam os dois ainda sob o feitiço de ele ter sobrevivido à guerra. A magia do tempo de guerra continuava ali para os dois, e no entanto aquilo era muito real. E muito especial.

Ele segurou a mão dela e beijou-lhe as pontas dos dedos.

- Estou falando sério, Faye. Nunca senti isso na minha vida. E soube disso no minuto em que te conheci em Guadalcanal, mas não sabia o que te dizer lá. Ao que eu soubesse, podia estar morto no dia seguinte. Mas não morri, estou de volta e você é a mulher mais incrível que já conheci...

- Como você pode dizer uma coisa dessas? - Ela parecia estar perturbada e ele teve vontade de abraçá-la, mas não ousou, ali no meio do restaurante, os fotógrafos possivelmente por ali à espreita e todos loucos para contarem o que viam. - Você nem me conhece, Ward. Você me viu representar por duas horas em Guadalcanal... depois conversamos por meia hora... nos vimos duas vezes depois que você voltou... - Ela queria desencorajá-lo agora, antes que fosse tarde, mas nem sabia por quê. Só que tudo parecia estar se passando tão depressa, e no entanto ela estava com aquela sensação incrível quanto a ele, como se ela pudesse ter partido com ele para o pôr-do-sol naquela tarde, de mãos dadas, e tudo desse certo, o resto da vida deles. Mas as coisas não aconteciam assim. Aconteciam? Não podia ser... ou talvez sim... talvez fosse isso "o grande lance" de que todo mundo fala. - É muito cedo, Ward.

- Cedo para o quê? - Ele parecia prático. - Cedo para te dizer que eu te amo? Bem, talvez seja. Mas o fato é que é verdade, Faye. Há anos que eu te amo.

- Isso é ilusão.

- Não é, não. Você é exatamente a pessoa que senti que era. É esperta, realista e prática. É modesta, simpática, espirituosa e linda. Não liga a mínima para o que os jornalistas dizem que você é. No que te diz respeito, você gosta do que faz, e trabalha muito. É a mulher mais digna que já conheci, e, o que é mais, você é competente, graças a tudo o que eu já disse... e se não te arrancar daqui e te beijar daqui a cinco minutos, vou ficar alucinado, Faye Price, de modo que você se cale, senão vou beijá-la aqui mesmo!

O olhar dela estava preocupado, mas ela não pôde deixar de sorrir para ele.

- E se daqui a seis meses você descobrir que me detesta?

- Por que haveria de?

- Provavelmente tenho hábitos que você detesta. Ward, estou te dizendo, você não sabe quem eu sou. E nem eu te conheço.

- Ótimo. Então vamos passar a nos conhecer. - Mas ele já mostrara o jogo e não se importava. - Mas eu vou me grudar em você e deixar você maluca, até dizer que sim.

- Ele parecia estar muito satisfeito com o que acabara de dizer e bebeu sua taça de champanha com uma expressão satisfeita, depois largou-a e olhou para ela. - Está de acordo?

- Faria diferença se eu dissesse que não?

- Nenhuma. - Era o sorriso que ela já passara a amar, o brilho de malícia nos profundos olhos azuis. Era difícil resistir a ele e ela nem sabia que o desejava. Só queria que os dois fossem sensatos. Ela já tivera romances com outros homens, embora reconhecesse que nenhum fosse igual a ele. Mas ela não queria ser uma dessas mulheres de quem a imprensa está sempre falando, apaixonada por este, noiva daquele, e no final elas acabavam gastas, como fatigadas prostitutas de Hollywood. Ela ainda se importava com coisas assim, o que era outra coisa que ele apreciava nela. Aliás, ele estava convencido de que gostava de tudo nela, e ela desconfiava o mesmo sobre ele, mas não ia ceder assim, certamente não depois de três dias apenas.

- Você é impossível.

- Eu sei. - Ele pareceu estar satisfeito consigo mesmo, e depois de repente preocupado, e inclinou-se para ela. - Você se importa com o fato de eu não trabalhar?

- Talvez fosse isso, a ética do trabalho talvez a estivesse preocupando.

- Acho que não, se você consegue viver sem isso. Mas você não se enche, Ward? - Ela estava curiosa para saber o que ele fazia nas suas horas de lazer. Ela trabalhava tanto, e isso havia tantos anos, que era difícil imaginar uma pessoa que apenas jogasse tênis e saísse para almoçar. Aquilo lhe parecia o fim, mas ele não parecia infeliz com essa vida.

- Faye... - Ele se recostou e olhou para ela. - Gosto da minha vida. Levo uma boa vida desde que eu era menino. E quando o meu pai morreu... eu disse comigo... jurei que nunca iria me matar de trabalhar como ele fez. Ele estava com 46 anos quando morreu, de um ataque cardíaco. Minha mãe estava com 43. Acho que ela morreu de aflição por causa dele. Eles nunca perderam um minuto para fazer o que queriam, para se divertirem, que diabo, nunca nem passavam tempo comigo. E eu jurei comigo mesmo que se um dia eu tivesse filhos, e muito antes disso, não levaria uma vida assim. Não há motivo para isso. Nem que eu quisesse, não conseguiria gastar todo aquele dinheiro, para falar vulgarmente. - Ele raramente era vulgar, como Faye sabia, mas estava sendo sincero com ela e ela prezava isso.

Aquilo a fazia entendê-lo bem melhor. - O meu avô fez a mesma besteira, morreu aos 56 anos, de excesso de trabalho. E daí? Quem é que se importa com o quanto você trabalhou quando você morre. Eu quero gozar a vida enquanto estou aqui e estou gozando. Quem quiser falar que fale. Podem me xingar do que quiserem. Não pretendo cair morto do coração aos 45 anos, nem ser um estranho para a minha mulher e filhos. Vou estar bem ali, gozando a vida com eles, sabendo quem eles são, deixando que me conheçam. Eu nunca sequer soube quem era o meu pai, Faye. Era um estranho para mim. Como você, vejo a vida dividida em duas estradas. A vida que eles levavam, que eu nunca vou querer viver, e a que estou vivendo agora, e esta me agrada muito. E espero ardentemente que não te desagrade. - Ele olhou bem nos olhos dela e respirou fundo. - Claro, se você quiser, eu posso arranjar um trabalho.

Ela olhou para ele, em choque, antes de responder. Ele estava falando sério, nisso tudo. Mas como, depois de apenas três dias?

- Você não precisa arranjar um trabalho, por mim, Ward. Que direito posso ter, para pedir isso? - E se ele podia levar aquele tipo de vida, porque havia de fazer as coisas de modo diferente? Ele não estava prejudicando ninguém, com o seu modo de vida. Ela olhou para ele e falou baixinho: - Não posso acreditar que você esteja falando sério. - Eles se olharam por muito tempo, até que ele meneou a cabeça e depois, sem dizer nada, a levou para a pista e eles dançaram por muito tempo, sem dar uma palavra. E quando ele a levou de volta à mesa, ficou olhando para ela, pensando se a teria contrariado e rezando para que não fosse isso.

- Você está bem, Faye? - De repente, ela ficou muito pensativa e ele estava preocupado pensando se a teria assustado, dizendo o que estava pensando.

- Não sei. - Ela olhou para ele, com franqueza. - Acho que você me deixou perturbada com tudo isso.

- Bom. - Ele passou o braço em volta dela e apertou-lhe o ombro, admirando de novo o vestido de cetim azul-marinho, frente única, que ela estava usando. Ela vestia-se com gosto, com uma sensualidade sutil que lhe agradava imensamente e ele estava louco para comprar-lhe roupas, jóias e peles.

Durante o resto da noite eles falaram sobre assuntos mais leves, Faye tentando se iludir de que ele ainda não tinha aberto seu coração para ela e ele parecia ainda mais feliz do que antes, sabendo que ela sabia o que ele sentia por ela. Depois do jantar, ele a levou para casa e dessa vez ela o convidou para tomar um conhaque, embora estivesse quase com medo de fazê-lo. Ela agora sabia o que ele pensava e se perguntou se seria perigoso deixá-lo entrar. E então, servindo a bebida, ela riu de si mesma. Que diabo, ele não iria estuprá-la. Ela lhe entregou o cálice e ele não entendeu o sorriso dela.

- Você é tão linda, Faye... mais ainda do que o que eu me lembrava.

- Você tem de mandar examinar os seus olhos. - Os elogios dele por vezes a deixavam constrangida, eram muito pródigos, e sua adoração estava escrita muito claramente em seus olhos. Ele era um homem despreocupado, feliz, com poucas desilusões e nenhuma aflição no momento, e era evidente que estava muito apaixonado. - O que vai fazer amanhã? - Ela disse aquilo só por dizer e ele riu.

- Vou te dizer uma coisa que eu não vou fazer. Não vou trabalhar. - De certo modo, ele dizia aquilo sem pudor, e isso a divertia. Ele certamente lhe contara tudo sobre o assunto ao jantar, mas chegava a parecer que ele se orgulhava por não trabalhar. Nem se importava em ser chamado de "milionário playboy". - Quisera que você não estivesse trabalhando num filme no momento, Faye. Podíamos sair e nos divertir. - Ela imaginava bem as encrencas em que se meteriam. Tardes preguiçosas na praia, dias de compras caras, talvez uma ou duas viagens. Ela era obrigada a reconhecer que a perspectiva era quase atraente, mas ela não se podia permitir nem pensar nisso agora. - Uma dessas noites eu gostaria de levar você ao cassino em Avalon Bay, mas teríamos de passar a noite na Ilha Catalina. Quem sabe você não tenha um fim de semana de folga?

Com pesar, ela sacudiu a cabeça.

- Só quando acabar o filme. - Ela sorriu para ele por sobre os cálices de conhaque, sentindo o aroma inebriante e pensando em todas as coisas divertidas que os esperavam.

- Há uma porção de lugares aonde eu gostaria de te levar... Paris... Veneza... Cannes... Agora que a guerra terminou, podemos ir aonde quisermos.

Ela riu diante das palavras dele e sacudiu a cabeça, largando seu cálice.

- Você é mesmo mimado, amigo, não é? Pelo menos um de nós tem de trabalhar. Não posso partir para o outro lado do mundo. - Por quê?

- O estúdio não me permitiria. Depois deste filme, o meu agente vai renovar o meu contrato e tenho certeza de que eles vão me manter ocupada por muito, muito tempo.

Os olhos de Ward se iluminaram como uma árvore de Natal e ele fitou Faye fixamente.

- Quer dizer que depois deste filme, o seu contrato acaba? - Ela meneou a cabeça em assentimento, achando graça na reação dele. - Aleluia, benzinho! Por que não tira um ano de folga?

- Está maluco? Mais vale eu desistir de vez, Ward. Não posso fazer isso.

- Não vejo por quê. Você é uma das maiores estrelas que eles têm, pelo amor de Deus. Não acha que poderia tirar um ano de folga e recomeçar exatamente de onde largou?

- Duvido.

- Não pense nisso nem por um segundo, Faye Price. Você poderia se ausentar e voltar para o ponto exato de onde largou.

- É um risco e tanto, Ward. Eu não gostaria de brincar assim com a minha carreira.

Ele a observou com olhos sérios. As coisas estavam acontecendo muito mais depressa do que qualquer dos dois esperara.

- É a encruzilhada de novo, não é, Faye?... Qual a estrada que você realmente deseja tomar? A antiga? Ou a outra de que falamos... casamento e bebês... estabilidade... e uma vida de verdade... - Ela se afastou dele e olhou para o jardim sem dizer nada. Quando ela se virou, ele viu que havia lágrimas em seus olhos. Mas, mais que tudo, ela parecia zangada, e ele ficou sobressaltado.

- Quero que você pare com isso, Ward.

- Pare com o quê? - Ele não pretendera contrariá-la e estava chocado com a reação dela.

- Pare de me torturar com essa tolice. Nós mal nos conhecemos. Somos estranhos. Ao que eu saiba, na semana que vem você estará metido com alguma estrelinha ou Rita

Hayworth ou outra pessoa. Trabalhei como touro para chegar aonde estou, e ainda não estou disposta a desistir. Talvez nunca esteja. Mas certamente não o farei por algum ex-pracinha que acabou de voltar da guerra, que pensa que passou dois anos apaixonado por mim porque conversou um pouco comigo numa de minhas excursões. A gente não joga fora a vida assim, Ward Thayer. E não me importa a mínima a sua fortuna toda, nem a sua despreocupação, nem que nunca tenha trabalhado na vida. Pois eu trabalhei. Trabalhei todos os dias de minha vida desde os 18 anos e não pretendo parar agora. Cheguei aonde estou e pretendo ficar aqui até saber que é seguro me retirar. - Ele se interessou pela palavra que ela escolhera... "seguro"... e ela estava com a razão. Ela trabalhara duro para chegar aonde quisera e agora que estava ali, teria sido loucura jogar tudo fora. Mas com o tempo ele lhe mostraria que estava falando tudo aquilo a sério... se ela lhe desse ouvidos. - Não quero mais saber dessa história. - As lágrimas agora lhe escorriam pelas faces. - Se você quiser me ver de novo, ótimo. Pode me levar para jantar, dançar comigo, me fazer rir. Mas não me peça para jogar fora a minha carreira por um estranho por mais que eu goste dele, por mais que eu me interesse... - E com um soluço, ela se virou para ele  de novo, os ombros sacudidos naquele lindo vestido de noite, de Trigère. Ele foi depressa para junto dela e passou-lhe os braços em volta, apertando-a, por trás contra o peito dele, com o rosto junto aos cabelos sedosos dela.

- Você sempre estará segura comigo, benzinho... sempre... prometo. Mas entendo o que você está dizendo. Não queria te assustar É só que fiquei tão emocionado...

Não pude evitar. - Virou-a devagar para ela olhar para ele, e seu coração se dilacerou ao ver o rosto dela molhado de lágrimas. - Ah, Faye... - Ele a apertou e depois comprimiu os lábios dela aos dele, e, em vez de resistir, ela se atirou toda para ele. Ela precisava do conforto que ele lhe oferecia, precisava de alguma coisa que via nele, desejando-o mais do que jamais desejara qualquer homem.

Ficaram se beijando durante o que pareceram horas, as mãos dele acariciando as costas dela, os lábios dele buscando-lhe a boca, o rosto, os olhos, as mãos dela no pescoço dele e depois, tocando no rosto dele ao beijá-lo, sentindo alívio do medo e da raiva que tivera momentos antes. Era louca por aquele homem, e ainda não sabia bem por quê. Só que talvez ela acreditasse nas palavras dele, de que ela estaria segura com ele... sempre... ele lhe oferecia uma proteção que ela nunca tivera.

Nem com os pais, durante a Depressão, nem por si, nem com os outros homens que conhecera. E não era só o dinheiro. Era o modo de ver dele, seu estilo de vida, sua certeza de viver num mundo perfeito, sem cuidados. E era evidente que ele a adorava. Uma hora depois, eles tiveram de se arrancar um dos braços do outro, a fim de evitar um incidente que nenhum dos dois desejava, por enquanto. Ele sabia que Faye ainda não estava preparada, e sempre se arrependeria de ter cedido a ele cedo demais. E ele teve de deixá-la, com medo de perder o controle. Queria possuí-la ali mesmo no chão do escritório, em frente à lareira, ou no andar de cima em seu quarto de seda branco, ou na banheira... na escada... em qualquer lugar... todo o corpo dele ansiava por ela, mas ele sabia que não a poderia possuir tão cedo. E quando eles se encontraram na noite seguinte, a agonia foi ainda mais doce e seus lábios se encontraram logo, e passaram uma hora no Duesenberg junto aos portões dela, beijando-se como crianças, e depois rindo enquanto ele a levava para o Biltmore Bowl.

Lá havia uma grande festa e os fotógrafos ficaram loucos quando os viram. Dessa vez, porém, Faye não pareceu resistir. Em quatro dias ela já aprendera que não adiantava fugir de Ward Thayer. Não sabia aonde seu romance levaria, mas ela não ia mais lutar contra isso. Ela pusera o seu casaco de raposa branco até o chão, para a festa, sobre um vestido de cetim branco e preto. Ela estava positivamente maravilhosa quando entraram, a mão dela enfiada no braço de Ward. Ela olhou para ele com carinho, por um instante, e ele sorriu para ela, no momento em que os fotógrafos se aproximaram deles. E estes se divertiram com Ward e Faye, o resto da noite. Mas, conforme prometera, ele a levou para casa cedo. As noites mal dormidas estavam começando a deixá-la cansada de manhã. Mas Vance Saint George chegava tão tarde no set que ela em geral tinha tempo para dar um cochilo.

- Você se divertiu? - Ele olhou para ela, e ela pousou a cabeça no ombro dele, enquanto voltavam para casa. - Não achei má a festa. - Fora para promover um novo filme e todas as grandes personalidades estavam lá.

- Eu também achei divertido. - Ela estava começando a gostar ainda mais dos encontros deles do que a princípio. - Se eu ao menos não tivesse de trabalhar nesse raio de filme, podia me divertir de verdade.

Ele riu e puxou-lhe uma mecha dos cabelos dourados.

- Está vendo, foi por isso que eu te disse para não renovar o seu contrato, naquela noite. Isso é divertido, não é?

- Isso vicia. Mas eu sou uma moça que trabalha, Ward. – Ela tentou olhar para ele com uma expressão reprovadora, mas os dois se riram.

- Trabalha porque quer, mas pode ter outra opção à hora que quiser. - Ele olhou para ela com sérias intenções, ela não respondeu e quando chegaram à casa dela, ele a beijou apaixonadamente nos lábios de novo e dessa vez teve de lutar consigo para não carregá-la para cima. - Já vou indo. - Disse isso com uma voz de angústia e desespero e ela o beijou de novo, na porta. Aquela tortura deliciosa continuou durante semanas até que, afinal, numa tarde de domingo em outubro, um mês depois de começar o namoro deles, eles estavam passeando pelo jardim dela, conversando sobre a guerra e outros assuntos. Ela tivera a tarde de folga das filmagens e Arthur e Elizabeth também estavam de folga, nesse fim de semana. Havia uma sensação de paz entre eles. Ela estava contando sobre sua infância, os pais, o desespero dela ao querer sair da Pensilvânia, a empolgação inicial de ser modelo em Nova York e, por fim, o tédio. Depois, confessou que por vezes ainda sentia tédio, agora.

- É como se houvesse mais alguma coisa que eu poderia estar fazendo... com a minha cabeça... não só o meu rosto ou minhas falas. Não quero apenas decorar o que os outros escreveram, o resto da minha vida.

Era uma confissão interessante e ele ficou curioso.

- O que é que você preferia fazer, Faye? Escrever? - Como sempre, ele estava louco pelo corpo dela, mas não havia nada a fazer a respeito. Pelo menos, estavam a sós, para variar. Ela não estava cor rendo para o trabalho, nem voltando correndo. Arthur não estava pairando à porta com a bandeja na mão e eles não iam a nenhuma festa. Estavam ansiosos por ficarem a sós algum tempo e ela se prontificara a fazer um jantar para ele, nessa noite. Tinham passado uma tarde deliciosa, sem fazer nada, à beira da piscina, passeando depois pelo jardim. - Você gostaria de escrever um roteiro? - Ele virou-se para ela e sorriu ao ver a expressão dela. Parecia assustada e sacudia a cabeça. - Não creio que pudesse fazer isso.

- Então, o quê?

- Dirigir... um dia... - Ela mal pronunciou as palavras. Era uma ambição e tanto para uma mulher e ele não sabia de nenhuma que já tivesse dirigido um filme.

- Você acha que permitiriam isso? Ela sorriu e sacudiu a cabeça.

- Duvido muito. Ninguém acredita que uma mulher possa fazer isso. Mas sei que eu poderia. Por vezes, quando vejo Saint George no set, sinto vontade de gritar, sei o que eu queria que ele fizesse... como o dirigiria... as instruções que lhe daria. Ele é um pateta tão tolo que é preciso a gente reduzir as coisas ao tipo de emoção que ele entende e, pode crer - e aí ela olhou para Ward com pesar e revirou os olhos -, são bem poucas.

Ward sorriu para ela e colheu uma flor vermelha viva que enfiou atrás da orelha dela.

- Tenho te dito, ultimamente, que acho você assombrosa?

- Há pelo menos uma hora que não me diz isso. - Ela sorriu para ele, agradecendo. - Você me estraga, sabe. Ninguém jamais foi tão bom para mim quanto você. - Ela parecia estar sinceramente feliz e ele não resistiu à tentação e implicou com ela. Eles se sentiam bem à vontade e ambos gostavam daquilo.

- Nem mesmo o Gable?

- Pare com isso. - Ela lhe fez uma careta e correu fugindo dele. Ele a perseguiu e, de repente, a apanhou e a agarrou. Estavam se beijando numa pérgula e, num momento, toda a emoção que os dois sentiam os dominou. Ward sentiu que não conseguia mais afastar suas mãos ou lábios dela. Quando afinal conseguiu se afastar, foi quase doloroso.

- Não é fácil, sabe. - Ele parecia angustiado, quando eles voltaram para casa devagar, e ela concordou com a cabeça. Para ela também não era fácil. Mas ela não queria cometer erro algum com Ward. Desde o princípio ele deixara suas intenções bem claras e era perigoso demais brincar com aquilo. Ele queria tudo dela, sua carreira, seu corpo, seus filhos, sua vida. Queria que ela desistisse de tudo por ele... e por vezes isso quase a tentava. Havia pouco tempo, ela chegara a dizer a seu agente para não se apressar a fazer o próximo contrato, e ele achou que ela estava maluca. Mas ela disse que precisava de tempo para pensar e quando Ward estava perto dela, estava ficando cada vez mais difícil pensar.

- Você também me deixa alucinada, sabe - murmurou ela, quando subiram a escada de mármore rosa e foram para o escritório dela. Mas, ali, tudo parecia tão frio, tão abafado e muito cerimonioso. Ela foi preparar um chá para eles e depois sugeriu que fossem à sua salinha no andar de cima. Era pequena e aconchegante e Ward acendeu a lareira, embora não fosse realmente necessário. Mas ficou bonito e eles se sentaram lado a lado, admirando as chamas. - Tive uma proposta para fazer um filme maravilhoso - disse ela, mas em sua voz não havia entusiasmo e ela nem tinha certeza se queria mesmo fazê-lo. Aliás, o agente ficara furioso diante da indecisão dela.

- Quem mais vai representar?

- Ainda não é certo, mas tem possibilidades excelentes.

- Você tem vontade de fazê-lo? - Ele não parecia estar decepcionado, só estava perguntando, mas ela custou muito a responder, enquanto olhava para o fogo.

- Não sei mesmo. - Ela olhou para ele, sentindo-se contente e em paz com a vida. - Você me faz sentir muito preguiçosa, Ward. - E o que é que há de errado nisso?

- Ele enfiou o rosto no pescoço dela e começou a beijá-la, e quando uma das mãos envolvia o seio dela, com volúpia, ela tocou de leve a mão dele, querendo empurrar-lhe os dedos, mas estava bom demais. Não tinha desejo algum de repeli-lo, nem tivera, desde que se tinham conhecido, mas parecia mais sensato... mais prudente... de repente, só o que ela sentiu foram aqueles dedos ardentes e deliciosos, suas bocas se encontraram e em ambos surgiu uma paixão difícil de dominar. Eles pareceram nem precisar de respirar, enquanto a saia dela foi subindo acima dos joelhos e a mão dele encontrou-lhe as coxas. Todo o corpo dela estava tremendo enquanto a mão dele subia, e aí ele de repente se afastou. Ofegante, angustiado, olhou para ela e segurou-lhe o rosto em ambas as mãos. - Faye... não consigo... tenho de ir embora...

- Ele não podia mais se conter, desejando-a demais, havia tanto tempo. Ele olhou para ela com lágrimas nos olhos e depois a beijou, só mais uma vez, e foi esse momento que decidiu os futuros dos dois. Pelo modo como ela o beijou, ele viu que ela não queria que ele se fosse e então, calada, ela se levantou e o levou pelo corredor para o quarto branco espetacular e, sem esperar mais um momento, ele a fez deitar-se na cama coberta de raposa branca. Despiu-a, devorando sua carne, murmurando para ela, enquanto os dedos dela o livravam de suas roupas, delicadamente. Momentos depois, os dois estavam deitados lado a lado, nus, envoltos pela espessa pele branca e de repente estavam mergulhados um no corpo do outro, e nenhum dos dois pensou mais em resistir ou ser sensato. Faye gritava por ele com uma paixão que a assombrou e Ward ficou ali dentro dela, sua excitação inteiramente descontrolada. Eles se exauriram numa coisa que pareceria uma agonia a estranhos, e que era a paixão mais pura que qualquer um dos dois jamais sentira.

E quando ela afinal ficou deitada quieta, os braços dele em volta dela, a colcha de pele macia debaixo deles, ele a contemplou com um amor que nunca sentira antes.

- Faye, eu te amo mais que a própria vida.

- Não diga isso... - Por vezes a paixão dele a assustava. Ele a amava tanto... e se um dia aquilo acabasse? Ela não o poderia suportar. Agora sabia disso.

- Por quê? É verdade.

- Eu também te amo. - Ela olhou para ele com um sorriso saciado e ele se curvou para beijá-la de novo e ficou assombrado ao ver como seu corpo logo a desejou de novo e com que voracidade ela se agarrou a ele... E eles fizeram amor na cama dela durante horas, nunca se saciando, para compensar os anos que tinham passado sem se possuírem. Era como se tivessem esperado por aquilo por tempo demais.

- E agora, meu amor? - À meia-noite ele se sentou à beira da cama dela, sorrindo-lhe enquanto ela se levantava devagar, se espreguiçava e sorria para o homem a quem amava tão profundamente.

- Que tal um banho? - E aí de repente ela se lembrou e tapou a boca, com uma expressão horrorizada. - Ah, meu Deus, eu me esqueci do jantar!

- Não se esqueceu, não. - Ele a puxou para si de novo. - Isso me serviu muito bem. - Ela corou um pouco e ele alisou-lhe os cabelos louros e compridos afastando-os do rosto dela. Acompanhou-a, de pois, ao banheiro de mármore branco, ela encheu a banheira de água morna e espumosa e eles entraram juntos. Os pés dele faziam-lhe cócegas em locais sutis enquanto ele lhe mordiscava os dedos dos pés. - Ainda há pouco eu te fiz uma pergunta.

Ela franziu a testa, sem se lembrar. - O que foi?

- Perguntei: "E agora?"

Ela sorriu para ele, misteriosa. - E eu respondi: "Um banho".

- Engraçadinha. Mas você sabe o que quero dizer. Não quero apenas ter um caso com você, Faye. - Ele parecia meio perturbado, e ao mesmo tempo muito satisfeito com a noite que tinham passado juntos na cama dela. - Se bem que eu deva reconhecer que é uma coisa tentadora. Mas acho que você merece mais. - Ela não disse nada. Ficou olhando para ele, o coração batendo mais rápido. - Quer se casar comigo, srta. Price?

- Não. - De repente, ela se levantou e ele pareceu ficar chocado. Foi uma recusa rápida, enquanto ela saía da banheira.

- Aonde vai?

Ela se virou para olhá-lo, magnífica em sua beleza nua, no centro do banheiro de mármore branco.

- Nunca direi aos meus filhos que o pai deles me pediu em casamento na banheira. Como é que poderei lhes dizer uma coisa dessas? - Ele começou a rir, olhando para ela, achando graça.

- Não há problema. - Ele saiu logo da banheira, pegou-a nos braços e a depositou pingando água na colcha de raposa branca, de novo; ajoelhou-se aos pés dela e contemplou-a com uma adoração flagrante. - Por favor, quer casar-se comigo, meu amor?

Ela riu para ele, travessa, feliz, e no entanto apavorada com o que estava fazendo. Mas sabia que agora não tinha mais opção. Não só porque fora para a cama com ele, mas era o que ela desejava, "a outra estrada"... a boa vida... casamento e filhos com ele... e, com ele, ela teria a coragem de fazê-lo. Para ela, significava desistir de tudo, mas ela não se importava.

- Quero. - Foi um leve murmúrio, e ele a beijou nos lábios antes que ela pudesse mudar de idéia e, quando puderam respirar, os dois estavam rindo de prazer e entusiasmo.

- Está falando sério, Faye? - Ele tinha de ter certeza... tinha... antes de ficar inteiramente louco e dar-lhe o mundo inteiro.

- Estou, sim... sim... sim... sim!...

- Eu te amo. Ah, Deus, como te amo. - Ele a abraçou com força e ela sorriu. Estava mais feliz do que jamais fora e aí de repente ele olhou para ela, ela sorria, os cabelos louros despenteados, os olhos do tom da safira mais pura. Ele também sorria. - Diga uma coisa, vai ter de contar aos seus filhos como estava vestida quando eu a pedi em casamento? Porque, se tiver, vai estar em apuros, srta. Thayer.

- Ah, Deus... nem pensei nisso - Ela riu quando ele a abraçou e um momento depois ele estava ao lado dela na cama, de novo. Depois de horas, eles voltaram à banheira e tiveram de enchê-la com mais água quente. A essa altura, já eram quase quatro horas da madrugada e Faye sabia que não ia dormir antes do trabalho. Em vez disso, ficaram sentados na banheira por uma hora, falando de seus planos, suas vidas, seus segredos, e quando iam fazer a comunicação. Riram-se ao pensar em como todos iam ficar chocados, não por eles se casarem, mas por ela abandonar a carreira. E quando ela disse aquilo, sentiu um tremor, mas era mais de entusiasmo do que de pânico. Ela agora se dava conta de que em seu íntimo tinha pensado muito naquilo. Sempre soubera o que Ward queria dela e quanto lhe queria dar. Ela não se arrependia de nada, agora, e achava que nunca se arrependeria. Ao que é que ela estava renunciando? A uma carreira de que gostara, mas que já chegara ao auge. Conquistara um Oscar, uma unanimidade considerável e fizera uma dúzia de filmes interessantes. Estava na hora de ir-se. Tinha outra vida a viver. Uma vida que ela desejava mais do que fazer filmes. Ficou ali deitada na banheira, olhando para o seu futuro marido, sentindo coisas que nunca sentira. Confiança, paz, a certeza de ter escolhido o caminho certo.

- Tem certeza de que não vai se arrepender? - Ele estava vagamente preocupado, mas mais feliz do que outra coisa. Queria começar a procurar casa com ela naquela mesma tarde, mas ela lhe mostrou que teria de trabalhar, pelo menos por mais um mês, aproximadamente. - Não vou me arrepender nunca. - Ela estava bem segura. - Quando pensa acabar esse filme9

- Imagino que lá pelo dia primeiro de dezembro, se Saint George não atrapalhar demais antes disso.

- Então, nos casamos dia 15. Onde vamos passar a lua-de-mel? México? Havaí? Europa? Aonde você tem vontade de ir? - Ele sorriu-lhe e o coração dela inchou com o amor que sentia por ele.

- Como é que tive a sorte de encontrar você, afinal? - Ela nunca fora tão feliz na vida quanto se sentia agora. Com ele.

- Eu é que tive a sorte.

Eles se beijaram e saíram do banho, com relutância e alguns minutos depois, ela desceu, furtivamente. Fez um café para ambos e o levou para cima, lembrando-se de deixar as xícaras vazias na salinha quando saíram. E ele a levou ao trabalho no Duesenberg, enquanto ambos quase gritavam de alegria. Os dois meses seguintes seriam difíceis para eles, mas teriam muito o que fazer... muito por que esperar... tanta coisa a planejar para o futuro...

 

BEVERLY HILLS 1946-1952

O casamento realizou-se na Igreja Presbiteriana de Hollywood, em North Gower Street, perto do Hollywood Boulevard, e Faye entrou pela nave com um lindo vestido de cetim cor de marfim. Era incrustado com perolinhas em desenhos delicados e ela se movia com uma graça pausada, a cabeça bem erguida, os cabelos empilhados numa coroa sedosa, cor de marfim, incrustada com as mesmas perolinhas, um véu vaporoso flutuando em volta dela por quilômetros, ao que parecia. Os cabelos pareciam ouro em fios, cascateando sobre os lados da coroa incrustada de pérolas, e no pescoço brilhava um colar de brilhantes da altura de seu pescoço de cisne. Fora presente de casamento de Ward e uma jóia favorita da sua avó materna.

Faye descera a nave de braço com o seu agente, e Harriet comparecera para ser madrinha, a despeito de seus protestos enérgicos. Mas Faye os vencera e a velha amiga lá estava, com lágrimas a lhe escorrer pelas faces, quando Abe entregou Faye a Ward no altar. O jovem casal sorriu, radiante, mais lindo do que qualquer casal no cinema. E quando saíram da igreja de braços dados, havia centenas de pessoas do lado de fora para cumprimentá-los. Fãs atirando pétalas de rosa e arroz, mocinhas gritando pedindo um autógrafo a Faye, mulheres chorando e até mesmo homens sorrindo com ternura, contemplando-os. O casal desapareceu no novo Duesenberg que Ward comprara, semanas antes, para comemorar o casamento, como uma espécie de presente de núpcias para si e sua noiva, e eles seguiram para a recepção no Biltmore, onde foram recebidos por Abe, Harriet e quatrocentos amigos que tinham convidado. Foi o dia mais feliz da vida de Faye e os jornais fizeram uma festa com as fotos deles.

Mas três meses depois houve ainda mais cobertura, quando voltaram da lua-de-mel em Acapulco. Faye fez a comunicação do que já deliberara há dois meses antes, mas, sabiamente, decidira guardar a notícia até então, e até mesmo Abe ficou chocado quando ela lhe contou. As manchetes naquela tarde contaram tudo em poucas palavras:

"Faye Price Renuncia à Carreira por Marido Milionário." Era abrupto e o artigo exagerado, mas em essência essa fora sua decisão, não tanto devido aos "milhões" de Ward, se bem que isso evidentemente eliminasse a necessidade de ela trabalhar, mas ela sentia que tinha "feito aquilo" e agora queria dedicar-se inteiramente ao marido e aos futuros filhos. E Ward certamente não estava reclamando da sua decisão. Estava empolgado por tê-la só para si, ficar na cama com ela até ao meio-dia, fazendo amor à hora que entendessem, tomar o café da manhã em seu próprio quarto, e até mesmo almoçar, se quisessem, dançar a noite toda no Ciro's, no Mocambo ou nas casas dos amigos. E Ward estava se divertindo muito fazendo compras com ela, comprando-lhe roupas fabulosas, para acrescentar ao seu guarda-roupa já copioso.

Seus três casacos de peles pareciam uma ninharia em comparação às maravilhas que ele lhe comprou - dois casacos de marta zibelina até ao chão, de tons e feitios um pouco diferentes, uma raposa prateada fantástica, uma raposa vermelha e um raccoon prateado. Ela possuía todas as peles imagináveis e mais jóias do que imaginara poder usar na vida. Quase não se passava um dia em que ele não desaparecesse por uma ou duas horas e voltasse com uma caixa de uma peleteria, ou loja de roupas, ou joalheria. Todos os dias pareciam dia de Natal e Faye estava assombrada com a generosidade dele e o amor que ele lhe demonstrava constantemente.

- Você vai ter de parar com isso, Ward! - Ela estava rindo, sentada ali, nua com o novo casaco de raposa vermelha e um novo colar de pérolas enormes no pescoço e mais nada no lindo corpo jovem, que ele tanto adorava.

- Por quê? - Ele sentou-se para olhar para ela, com um sorriso feliz, e uma taça de champanha. Ele parecia beber rios de champanha, mas nunca parecia embebedar-se, de modo que Faye não se importava. E ela então sorriu-lhe com ternura.

- Você não tem de fazer tudo isso. Eu o amaria numa choupana, mesmo que tivéssemos de usar jornais para nos aquecer

- Que idéia mais horrorosa... - Ele fez uma careta e depois apertou os olhos, olhando para os membros compridos e bem-feitos. - Mas pensando bem... você ia ficar fabulosa usando a página esportiva e mais nada.

- Bobo. - Ela correu para beijá-lo de novo e ele a puxou para o colo e largou a taça. - Você pode mesmo gastar tudo isso, Ward? Não devíamos estar gastando todo esse dinheiro, quando nenhum de nós dois trabalha. - Ela ainda se sentia um tanto culpada por não trabalhar mais, mas era tão divino passar o tempo todo com Ward que ela nunca sentiu mesmo falta da carreira. Conforme ela disse aos jornais quando se afastou, ela "tomara sua decisão". Mas olhou para Ward com uma expressão preocupada.

Ele gastara uma verdadeira fortuna com ela nos três meses em que estavam casados.

- Querida, podemos gastar dez vez mais do que isso. - Era uma idéia generosa, embora não exatamente o que os seus advogados lhe tinham dito. Mas ele sabia como eles eram conservadores. Não tinham gosto, nem estilo, nem senso de aventura. Ele ficava aborrecido ao ter de ouvir suas advertências para ser mais cauteloso. Ele sabia como sua fortuna era vultosa, e havia muita margem para se divertir um pouco. Ele podia se dar ao luxo de gastar o que gastava, pelo menos por algum tempo, até eles se instalarem numa vida mais "sensata", e nenhum dos dois jamais teria de trabalhar. E aos 28 anos, não tinha intenção de começar. Estava se divertindo demais, sempre se divertira, e agora sua vida com Faye era a perfeição total. - Aonde quer ir jantar?

- Não sei... - Ela não queria confessar, mas adorava a decoração exótica e piegas do Cocoanut Grove, com suas palmeiras e as projeções de navios se cruzando a distância.

Aquilo sempre a fazia sentir como se eles estivessem viajando, e as palmeiras lhe lembravam vagamente Guadalcanal, onde ela conhecera Ward.

- O Grove de novo, ou você já está farto de lá?

Ele riu de novo e chamou o mordomo para mandar reservar uma mesa. Eles tinham contratado um exército de empregados novos para tomar conta da casa.

No final, Ward resolvera não irem morar na velha mansão dos pais. Em vez disso, ele comprara para Faye uma fabulosa propriedade nova que pertencera a uma rainha do cinema mudo. O terreno quase se poderia chamar de parque, um lago com cisnes, vários repuxos lindos, alamedas compridas e uma casa que parecia um chateau francês.

Lá poderia facilmente ter os ler filhes que ele sempre ameaçava querer. Tinham enchido a casa com as belas antiguidades da casa de Faye, que fora vendida quase no dia em que ela a pusera à venda, e tinham ficado com as peças de que mais gostaram da casa dos pais dele. O resto, compraram juntos, em leilões e lojas de antiguidades em Beverly Hills. A casa nova já estava quase toda mobiliada, e Ward estava falando de pôr à venda a casa dos pais. Era grande demais, escura e antiquada para o gosto deles e não havia mais sentido em conservá-la. Os advogados dele sempre insistiam para que ele a conservasse mais um pouco, para o caso de ele a querer quando se casasse, e ele era meio sentimental a respeito, mas era evidente que agora eles nunca iriam morar lá. E os advogados agora estavam querendo que ele se livrasse dela. Queriam que ele reinvestisse o dinheiro em alguma coisa que lhe desse mais renda para si e para a esposa, se bem que Ward não se preocupasse muito com isso.

Nessa tarde, ele e Faye deram um passeio pelo jardim e ficaram sentados junto ao lago, se beijando e conversando. Parecia que nunca se cansavam um do outro e aqueles foram dias dourados, em que conversavam sobre a venda da casa dos pais dele e uma dezena de outros assuntos. Faye olhou para cima com um sorriso sonhador, quando Arthur lhes levou um bandeja com duas taças de champanha. Ela estava contente por Ward ter permitido que ela conservasse Elizabeth e Arthur, e eles pareciam estar felizes com sua nova vida. Arthur parecia aprovar a pessoa de Ward, de modo geral, se bem que por vezes não havia como negar que ele se comportasse como um garoto maluco. Um dia chegara a lhe comprar uma carruagem e quatro cavalos brancos para passearem pela propriedade, e havia seis carros novos e reluzentes na garagem, que estavam constantemente sendo polidos por um de seus dois motoristas. Era um estilo de vida que Faye nunca vira, quanto mais vivera, e por vezes ela se sentia bastante culpada. Mas Ward fazia de tudo um tal prazer que nada parecia impróprio, apenas divertido, e os dias foram passando tão depressa que ela nem podia contá-los.

- Você não está bebendo o seu champanha - disse Ward, sorrindo para ela. Ela nunca fora mais bonita do que estava agora, nem no auge de sua carreira. Tinha engordado uns quilinhos e havia um brilho em sua face e seus olhos estavam do verde mais brilhante que ele já vira, especialmente ao sol. Ele adorava beijá-la no jardim... no quarto... passeando de carro. Adorava beijá-la a todas as horas... em qualquer lugar. Adorava sua mulher e ela era louca por ele.

Mais que tudo, ela estava satisfeita, e isso aparecia em sua fisionomia, quando ela olhou para ele e recusou o champanha que lhe ofereciam.

- Acho que prefiro uma limonada.

- Argh! - Ele fez uma careta horrorosa e ela riu e, de mãos dadas, eles voltaram para casa devagar, para se amarem preguiçosamente antes de tomarem banho e se vestirem para a noite. Era uma vida idílica e, de certo modo, Faye sabia que esses dias nunca mais voltariam. Um dia, teriam filhos e eles mesmos teriam de ficar adultos, não podiam passar a vida toda brincando. Mas era divertido, enquanto podiam, e aquilo parecia fazer os dias de sua lua-de-mel durarem para sempre.

Naquela noite, no Grove, ele deu a ela um anel magnífico, com três imensas esmeraldas em forma de pêra, e Faye soltou uma exclamação ao vê-lo.

- Ward! Deus do céu... mas... - Ele sempre adorava ver o assombro dela, seu prazer com as coisas que ele lhe comprava.

- É pelo nosso terceiro aniversário, sua boba. - Naquele dia fazia três meses e tinham sido os meses mais felizes da vida de Faye, e da de Ward. Não havia uma única nuvem no horizonte para aborrecê-los. Ele colocou o anel no dedo dela e eles dançaram horas, mas ele notou que ela parecia meio cansada quando voltaram para a mesa.

Havia várias noites que dormiam tarde, vários meses, alias, reconheceu ele, com um sorriso, mas era a primeira vez que ele notava que ela o estivesse sentindo. - Está se sentindo bem, amor?

- Estou ótima. - Ela sorriu, mas comeu pouco, não bebeu nada e às onze horas estava bocejando, coisa que não era do seu feitio. - Bem, acho que é isso. A lua-de-mel acabou. - Ward fingiu que estava arrasado. - Você está começando a ficar cheia de mim. - Não... que horror... desculpe, amor... é só que...

- Eu sei... não faz mal. Não precisa explicar. - Ele implicou com ela sem piedade até chegarem em casa e quando voltou do banheiro para se despir e escovar os dentes, encontrou-a dormindo pro fundamente, bem aconchegada à sua cama de casal enorme e parecendo muito sedutora em sua camisola de cetim rosa. Mas ele não conseguiu excitá-la, ela estava morta para o mundo, e na manhã seguinte viu-se por quê. Ela acordou e logo depois do café da manhã teve um enjôo horrível. Era a primeira vez que ele a via doente, e ficou aflitíssimo, insistindo em chamar o médico, a despeito dos protestos dela.

- Pelo amor de Deus... é só uma gripe ou coisa assim. Você não pode fazer o pobre coitado vir até aqui. Estou bem. - Mas não estava se sentindo bem.

- Pois sim, que está. Está positivamente verde. Vá para a cama e fique lá até o doutor chegar. - Mas quando ele chegou, não viu motivo algum para que a sra. Thayer ficasse de cama, a não ser que pretendesse ficar de cama nos oito meses seguintes. Segundo os cálculos dele, o bebê deveria nascer em novembro. - Um bebê? Um bebê! O nosso filho! - Ward ficou inteiramente louco de entusiasmo e alívio e Faye riu dele enquanto ele dançava pelo quarto, depois que o médico se foi. Ele foi logo para junto dela, implorando para ela lhe dizer o que queria, precisava, ou o que ele poderia fazer para ela se sentir melhor. Ela ficou encantada com a notícia e a reação dele, e, claro, assim que a notícia foi revelada, apareceu nas manchetes. "Rainha Aposentada do Cinema Espera Primeiro Filho". Nada na vida deles ficava em segredo por muito tempo, mas Ward não teria mesmo podido guardar segredo disso. Contou a todo mundo que quisesse ouvir e passou a tratar Faye como um vidro delicado, e se antes a cobrira de presentes, não foi nada comparado com o que ele passou a fazer por ela. Não havia gavetas nem caixas de jóias que bastassem para guardar todos os enfeites escandalosamente caros que ele lhe comprava.

- Ward, você tem de parar com isso! Nem tenho lugar para guardar essas coisas todas.

- Então,vamos construir uma cabana só para as suas jóias. - Ele riu, com malícia, e não adiantou nada ela ralhar com ele. Quando não lhe estava comprando jóias, estava comprando carrinhos de bebê e charretes e saquinhos de dormir de vison e ursinhos de pelúcia. Mandou até construir um carrossel em tamanho natural na propriedade. Em outubro, quando Faye foi ver o brinquedo, ele deixou que ela andasse nele, devagar.

Ela estava se sentindo muito bem, depois dos primeiros meses de enjôo, e sua única queixa era que se sentia tão grande que parecia um balão prestes a voar.

- Bastava prenderem uma cesta aos meus calcanhares e podiam me alugar para passeios turísticos sobre L.A. - disse ela a uma amiga, um dia, e Ward ficou indignado.

Ele a achava linda, mesmo em seu estado inchado e estava tão entusiasmado que mal agüentava esperar o mês que faltava. Faye tinha reserva no melhor hospital da cidade e estava sendo atendida pelo médico de maior renome.

- Tudo do melhor para a minha querida e o meu bebê - era o que ele sempre dizia, tentando enchê-la de champanha, mas ela não gostava mais da bebida e havia ocasiões em que preferiria que ele também não gostasse. Não que ele se embriagasse quando bebia, era só porque ele bebia muito, e parecia beber o dia todo, passando ao uísque quando saíam de noite. Mas ela detestava reclamar. Ele era tão bom para ela, em tantos sentidos, como ela poderia se opor a uma coisa dessas? E ela sabia que ele tinha boas intenções, quando pediu que mandassem uma caixa de sua champanha preferida para o hospital, de antemão, para estar esperando por eles quando chegasse o grande momento. - Espero que a guardem gelada. - Ele mandou que Westcott, o mordomo, ligasse para o hospital para dizer exatamente como deviam gelá-la, e Faye achou graça.

- Imagino que eles devam ter algumas outras coisas em que pensar, meu amor. - No entanto, a casa de saúde para onde ela iria estava acostumada com esse tipo de pedido, pois era onde todas as grandes estrelas davam à luz seus filhos.

- Não posso imaginar isso - disse ele. - O que há de mais importante do que gelar o champanha para o meu amor?

- Ah, posso imaginar algumas coisas... - Os olhos dela lhe diziam tudo o que ele queria saber e ele a abraçou com ternura e se beijaram como sempre. Ele a desejava mesmo naquele instante, mas o médico dissera que eles não podiam mais ter relações. E Faye mal podia esperar até que pudessem de novo. Parecia a espera de uma eternidade, e as mãos dele passavam sobre sua barriga, noite após noite, gostando até disso, e desejando-a desesperadamente.

- Isso é quase tão ruim quanto antes de nos amarmos pela primeira vez - reclamou ele, com um sorriso de ironia, ao se levantar da cama uma noite, bem tarde, e se servir de uma taça de champanha. A data marcada era dali a três dias, mas o médico os prevenira que o bebê poderia se atrasar várias semanas. Os primeiros filhos muitas vezes se atrasavam, de modo que eles se prepararam para um parto tardio, e aquilo estava começando a parecer-lhes uma eternidade.

- Sinto muito, amor. - Ela agora parecia estar cansada e nos últimos dias qualquer movimento a deixava exausta. Naquela tarde, ela nem quisera passear pelo jardim com ele, e quando ele lhe contou sobre o pônei miniatura que ele comprara, nem isso a levara a sair. - Estou cansada demais para me mexer. - E nessa noite ela disse que estava cansada demais até para jantar. Tinha ido para a cama às quatro horas da tarde e agora, às duas da madrugada, ainda estava ali, parecendo um gigantesco balão de seda rosa, com plumas de marabu na gola.

- Quer um pouco de champanha, amorzinho? Pode ajudar você a dormir. - Ela sacudiu a cabeça. Estava com dor nas costas e nas últimas horas estava se sentindo estranha. Ainda por cima achava que podia estar se gripando.

- Acho que não há mais nada que me ajude a dormir. - Havia uma coisa que poderia ajudar, sugeriu ela, com um ar de libertina, um minuto depois, mas isso estava proibido.

- Você provavelmente vai estar grávida de novo antes de sair da casa de saúde. Acho que não vou poder me afastar de você por mais de uma hora, depois que nascer esse bebê.

Ela riu da idéia.

- Pelo menos é uma coisa boa em que pensar. - Pela primeira vez em nove meses ela parecia estar tristonha e ele a beijou com carinho e foi apagar as luzes, mas nisso ouviu um grito agudo da cama e virou-se, espantado, vendo o rosto dela contorcido de dor. Depois, de repente, a dor passou e ambos se olharam espantados.

- O que foi isso?

- Não sei bem. - Ela lera alguns livros, mas ainda não sabia bem como começava o trabalho de parto. E todos lhe tinham avisado que nas últimas semanas haveria vários alarmas falsos, de modo que ambos sabiam que não era provável que tivesse chegado a hora. Mas a dor fora forte mesmo, e Ward resolveu deixar as luzes acesas, para ver se voltaria. Mas depois de vinte minutos, como não voltasse, ele foi apagar as luzes de novo, e aí ela soltou outro grito agudo e dessa vez ela pareceu se contorcer na cama e ele notou que o rosto dela estava suado, quando se aproximou dela.

- Vou chamar o médico. - Ele sentia o seu coração disparado no peito, e as palmas das mãos estavam úmidas. De repente, ela parecia muito pálida e muito assustada.

- Deixe de ser bobo, amor, estou bem. Não podemos chamar o pobre coitado todas as noites, no próximo mês. Provavelmente só será daqui a várias semanas.

- Mas o prazo era para daqui a três dias.

- É, mas até ele disse que o bebê provavelmente viria atrasado. Vamos descansar e esperar até de manhã.

- Quer que eu deixe as luzes acesas? - Ela fez que não e ele as apagou e se deitou ao lado dela, com cuidado, como se tivesse medo de sacudir demais a cama, fazendo com que ela explodisse e tivesse o bebê ali mesmo. Ela deu uma risada no escuro e, de repente, ele ouviu que ela prendia a respiração. Ela procurou a mão dele e a apertou. Estava quase sem ar quando a dor passou e se sentou na cama.

- Ward... - Ele estava deitado muito parado, sem saber o que fazer, e o som da voz dela o comoveu até às entranhas. Ela parecia muito vulnerável e assustada e instintivamente ele a tomou nos braços. - Amor, vamos chamar o médico.

- Eu me sinto tola, incomodando-o a essa hora.

- Isso é o trabalho dele. - Mas ela insistiu para que esperassem até de manhã. Porém, às sete horas, Ward não tinha mais dúvida alguma. Tinha de ser a hora. E ele não se importava a mínima com o que lhe tivessem dito sobre alarmas falsos, pois as dores estavam vindo a cada cinco minutos e ela estava lutando para não gritar a cada pontada. Desesperado, ele saiu do quarto e ligou para o médico que tinham tratado. Este pareceu ficar satisfeito com o que ouviu e sugeriu que Ward a levasse logo para a casa de saúde.

- Provavelmente ainda vai demorar um pouco, daqui por diante, sr. Thayer, mas é boa idéia interná-la logo.

- Não pode lhe dar alguma coisa para a dor? - Ward estava muito aflito, depois de a ter visto sofrer nas últimas cinco horas. - Terei uma idéia melhor depois que a examinar. - O médico se mostrou esquivo.

- Que diabo quer dizer com isso? Pelo amor de Deus, ela agora mal consegue se controlar... tem de lhe dar alguma coisa... - Ward estava louco para beber alguma coisa, e mais forte do que champanha, dessa vez.

- Faremos o que pudermos por ela, sr. Thayer. Fique calmo e leve-a para a casa de saúde assim que puder.

- Ela estará lá daqui a dez minutos, cinco se eu conseguir.

O médico não disse nada, mas não pretendia chegar ao hospital antes de se passar uma hora. Tinha de tomar banho e fazer a barba, ainda não acabara de ler o jornal e entendia de obstetrícia o suficiente para saber que o parto só se daria dali a algumas horas, talvez só dali a um dia, de modo que não adiantava nada sair correndo, por maior que fosse o pânico do jovem pai. Ele lhe daria todas as coisas certas quando chegasse, e depois disso as enfermeiras o manteriam a distância. Na semana anterior, um homem chegara a entrar à força na sala de parto, mas o pessoal da segurança o tinha arrastado para fora, ameaçando prendê-lo se ele não se comportasse. Mas ele não previa problemas com Ward Thayer.

E o médico estava satisfeito por fazer o parto dela. Era mais um trunfo para ele ser o obstetra de Faye Price Thayer.

Ward, porém, ficou horrorizado quando voltou para o quarto deles e a encontrou dobrada sobre uma poça d'água no chão de mármore branco do banheiro, com uma expressão de choque misturada com dor

- A minha bolsa d'água rompeu-se. - A voz dela estava mais rouca do que de costume, os olhos arregalados e com medo.

- Ah, meu Deus, vou chamar uma ambulância. - Mas diante das palavras dele ela riu e sentou-se à borda da banheira.

- Nem ouse. Estou bem. - Mas ela não lhe pareceu assim tão bem, e parecia assustada, quase tão assustada quanto ele estava. - O que é que o médico disse?

- Para levar você já para lá.

- Bom - ela olhou para os olhos do marido -, vou dizer uma coisa. Não creio que seja um alarma falso. - Ela estava parecendo um pouco mais sossegada e ele a abraçou e a levou de volta ao quarto de vestir. - O que vou vestir? - Ela olhou para os armários abertos e ele gemeu.

- Ora, Faye, pelo amor de Deus... qualquer coisa... mas ande depressa. Que tal roupão?

- Não seja ridículo. E se houver fotógrafos lá? Ward olhou para ela e sorriu.

- Não se preocupe com isso. Venha. - Ele pegou um vestido do armário, ajudou-a a vesti-lo e a levou para baixo, com cuidado. Queria carregá-la, mas ela insistiu em dizer que podia andar. E, dez minutos depois, ela estava confortavelmente instalada no Duesenberg, a manta de marta cobrindo suas pernas, sentada sobre um monte de toalhas. Dez minutos depois, o motorista parou defronte à casa de saúde e Ward a ajudou a saltar. Ela foi logo posta numa cadeira de rodas e levada. Ele, o deixaram andando pelos corredores nas seis horas seguintes. Seus pedidos para ver o médico assim que ele chegasse foram em vão, até que afinal, às duas e meia, ele o viu andando pelo corredor, ainda de gorro cirúrgico, com uma bata azul, a máscara pendurada frouxa ao pescoço. Ele foi ter com Ward com a mão estendida.

- Parabéns, o senhor tem um filho gordo e bonito! - O médico sorriu e Ward pareceu estar chocado, como se não estivesse esperando por aquilo, mesmo depois daquelas horas em que ficara quase alucinado, andando pelos corredores. Era fácil agora entender o pai que o médico dissera ter invadido a sala de parto. Ele pensava que não agüentaria esperar mais meia hora. - O garoto pesa 3.900kg e sua mulher está bem.

- Posso vê-la? - Ward sentiu todo o corpo ficar frouxo, ao ouvir a notícia. Estava tão aliviado ao ver que estava tudo acabado, que Faye estava passado bem, o bebê também.

- Daqui a umas horas. Ela agora está dormindo. É um trabalho duro, sabe, trazer esses sujeitinhos ao mundo. - O médico sorriu de novo. Não contou a ele como tinha sido difícil para Faye, ou que quase tivera de fazer uma cesariana. E ele não quisera dar a anestesia até que a cabeça saísse. Eles tinham esperado até o fim e depois a anestesiaram, depois de nascido o bebê. Fora mais fácil para ele fazer as suturas e não havia motivo para ela ser acordada naquele momento. O trabalho dela estava terminado.

- Obrigado, doutor. - Ward apertou a mão dele com força e só faltou sair do hospital correndo. Tinha um presente esperando por ela em casa, um imenso broche de brilhante com uma pulseira e anel combinando, tudo num estojo de veludo azul da Tiffany's. Ele queria buscar aquilo mas, mais importante, estava precisando beber alguma coisa.

Estava louco por isso, aliás. Mandou que o chofer o levasse em casa o mais depressa possível e quase correu para dentro. Que dia incrível fora aquele. Tomando um uísque duplo direto, ele se sentou e descansou, respirou fundo e afinal se deu conta de que tinha um filho. Estava tão feliz que tinha vontade de proclamar aquilo para o mundo inteiro ouvir, e mal podia esperar para ver a mulher. Acabou de beber o seu uísque e se serviu de um segundo, antes de subir correndo para olhar o presente que estava esperando por ela. Ele sabia que ela ia ficar satisfeita, mas mais que tudo ele estava satisfeito com ela... um filho homem!... Um filho!... seu primogênito.

Enquanto Ward tomava um banho, fazia a barba e se vestia para voltar para ver Faye na casa de saúde, ele pensou em tudo o que ia fazer com ele, um dia, as viagens que fariam, as diabruras em que se meteriam. O pai dele nunca estivera disposto a fazer coisa alguma com ele, mas com ele e o filho tudo ia ser diferente. Iam jogar tênis, pólo, fariam pescaria de alto-mar no Pacífico Sul, viajariam juntos, se divertiriam a valer. Estava todo sorridente, quando chegou de volta à casa de saúde às cinco horas e pediu à enfermeira vara levar o champanha para o quarto de Faye. Mas quando lá entrou, nas pontas dos pés, encontrou-a ainda cochilando, dopada. Ela abriu os olhos e a princípio não pareceu saber quem ele fosse, e depois sorriu, os cabelos louros parecendo um halo em volta de sua cabeça. Ela parecia quase etérea, olhando para ele, sonolenta.

- Oi... é menino ou menina? - A voz dela sumiu e ela fechou os olhos de novo, enquanto Ward lhe beijava o rosto e falava baixinho.

- Quer dizer que ainda não te disseram? - Ele pareceu estar chocado e a enfermeira saiu do quarto, discretamente. Faye sacudiu a cabeça. - Um menino! Um menino!

- Ela sorriu para ele, sonolenta, e recusou o champanha. Não parecia conseguir se sentar e ainda lhe parecia meio pálida e ele estava muito preocupado com ela, embora as enfermeiras garantissem que estava tudo bem. Ele ficou ali sentado muito tempo, a mão dela na dele. - Foi... muito... difícil, amor? - Ele tropeçou nas palavras e alguma coisa nos olhos dela lhe disse que tinha sido horrível, mas ela sacudiu a cabeça, valente. - Você já o viu? Com quem se parece?

- Não sei... não o vi... espero que se pareça com você. - Depois disso, ele deixou que ela voltasse a dormir. Ele lhe mostrara o presente espetacular que lhe comprara, e ela parecera ficar devidamente impressionada, mas positivamente, não estava no seu normal e ele desconfiava de que ela estivesse com muita dor, mas não queria confessá-lo a ele. Ele foi pelo corredor, nas pontas dos pés, sozinho, para ver o filho, que a enfermeira pegou ao colo para ele ver por trás da parede de vidro do berçário.

O bebê não se parecia com ele, e sim com Faye, era grande, rechonchudo e lindo, com um tufo de cabelos louros como os de Faye. E enquanto Ward estava olhando, ele soltou o que parecia um grito saudável e Ward pensou que nunca sentira tanto orgulho na vida. Saiu se pavoneando do hospital e entrou no Duesenberg. Foi jantar sozinho no Ciro's, sabendo que ia encontrar todos os amigos. Gabou-se para todos, distribuiu charutos e ficou muito bêbado com champanha, enquanto em seu quarto no hospital Faye dormia, tentando se esquecer dos momentos horríveis por que passara.

Ela saiu da casa de saúde em menos de uma semana, e quando chegou em casa já estava mais no seu normal. Queria amamentar o bebê, mas Ward a convencera de que não era prático. Ela precisava dormir. Eles tinham contratado uma ama, que tomou conta do bebê enquanto Faye se refazia, mas em duas semanas Faye já recuperara suas forças, e ficava a maior parte do tempo com o bebê ao colo, e mais linda do que nunca, dizia Ward.

Deram o nome de Lionel ao bebê e o batizaram no dia de Natal na igreja em que se casaram.

- Ele é o presente de Natal mais perfeito. - Ward sorriu para o filho enquanto o segurava ao colo, na volta para casa, e Faye sorriu. Lionel já estava com quase dois meses. - Ele é lindo, amor, e se parece tanto com você...  

- Ele é uma gracinha, seja com quem for que se pareça. - Ela olhou feliz para o menino adormecido. Quase não chorara durante a cerimônia breve. E quando chegou em casa, acordou e não pareceu se importar quando o passaram de mão em mão. Todos queriam olhá-lo. Estavam presentes todas as celebridades de Hollywood, todos os grandes astros do cinema, produtores, diretores da antiga vida de Faye, e os amigos de sociedade de Ward. Era uma lista de nomes estonteante e todo o pessoal de Hollywood implicava com Faye, por ter abandonado a carreira por "tudo aquilo"...

- Vai continuar a ter bebês a vida toda, Faye? - Ela respondia que sim e Ward ficou ao lado dela, sorridente. Estava muito prosa por causa de Faye e de Lionel, e o champanha corria como o Sena, o tempo todo. E nessa noite Ward e Faye foram dançar no Biltmore Bowl. Ela tivera uma recuperação notável. Já estava em forma fisicamente e se sentia bem. E Ward achava que ela nunca estivera tão linda, no que os fotógrafos concordavam.

- Disposta a recomeçar tudo outra vez? - implicou Ward. - Ela não sabia bem se estava. A recordação de toda aquela dor ainda pairava sobre ela, mas era louca por Lionel. Ela então pensou que tal vez não fosse tão terrível fazer aquilo de novo, se bem que semanas antes teria gritado diante dessa idéia. - Que tal uma segunda lua-de-mel no México? - propôs ele, e ela adorou a idéia. Eles partiram logo depois do Ano-Novo e se divertiram à grande em Acapulco, durante três semanas. Encontraram uma porção de amigos, mas passaram a maior parte do tempo sozinhos, até alugaram um iate e passaram dois dias pescando, felizes. Foram férias perfeitas, e teriam sido mais ainda se na última semana Faye não começasse a se sentir mal. Ela pôs a culpa nos peixes, no calor, no sol, e não podia imaginar o que fosse. Mas quando ela voltou, Ward insistiu para que ela fosse ao médico se consultar e quando ela o foi, ficou pasma. Estava grávida de novo. Ward ficou empolgado e ela também. Era exatamente isso o que eles sempre tinham desejado e dessa vez todos implicaram com eles, sem piedade.

- Você não pode deixar a coitada em paz, Thayer?... O que é que há com você? Será que ela não pode nem pentear os cabelos? Mas os dois ficaram felizes com aquilo e dessa vez fizeram amor quase até o fim, e os conselhos do médico que fossem para o inferno! Ward disse que se ela ia passar nove meses, em cada dez, grávida, não ia desistir dela, e quase não se privou. Ela entrou em trabalho de parto com cinco dias de atraso, e dessa vez foi mais fácil. Ela reconheceu melhor os sintomas do parto, que começaram numa tarde quente de setembro. Eles mal tiveram tempo de chegar à casa de saúde, as dores vieram muito fortes e depressa, e Faye estava cerrando os dentes e com os punhos fechados quando chegaram ao hospital. O bebê nasceu menos de duas horas depois e quando Ward a viu, tarde da noite, não ficou tão aflito ao perceber como estava sonolenta. Ele lhe comprara uns brincos de safira com um anel de 30 quilates. Era outro menino, e lhe deram o nome de Gregory. Faye se refez com a mesma rapidez que antes, mas dessa vez ela resolveu ter um pouco mais de cuidado, pelo menos "por algum tempo".

Quando o bebê estava com três meses, ela e Ward foram à Europa no Queen Elizabeth para uma longa viagem. Levaram a ama e os dois meninos, com um camarote separado para eles, e imensas suítes em cada cidade onde paravam. Londres, Paris, Munique, Roma. Foram até Cannes, passar alguns dias em março, o tempo estava ameno e agradável, e finalmente voltaram a Paris e dali para casa. Foi uma viagem maravilhosa para todos, e Faye estava feliz com tudo, com o marido que ela adorava e os dois filhos.

Uma ou duas vezes a fizeram parar para pedir autógrafos, mas isso agora acontecia muito mais raramente. As pessoas mal sabiam quem ela era. Continuava linda, mas estava um pouco diferente. Mais matrona, talvez, um pouco menos glamourosa, a não ser quando saía de noite com Ward. Mas ela ficava perfeitamente satisfeita em usar calças e um suéter e um lenço nos cabelos dourados e sair com os dois filhinhos. Não podia imaginar uma vida mais perfeita e Ward se mostrava muito orgulhoso deles.

Encontraram tudo bem, quando chegaram de volta, mas os mexericos em Hollywood estavam feios, nessa época. A Lista Negra de Hollywood saíra há alguns meses antes e inúmeros atores, diretores, escritores e outros conhecidos deles não conseguiam mais arranjar trabalho. De repente, a palavra "comuna" estava nos lábios de todos e havia dedo-duro por todo canto, até amigos contra amigos. Foi uma época triste para muita gente e, de certo modo, Faye ficou contente por não fazer mais parte daquilo. O mais triste de tudo era que os que tinham sido postos na lista negra, de repente, se viram sem amigos, bem como sem trabalho. As pessoas tinham medo de serem vistas com eles.

A Warner Bros tinha colocado um cartaz enorme do lado de fora do estúdio: "Combinando Bons Filmes com a Boa Cidadania", o que dizia a todos de que lado estavam.

A Comissão da Câmara para Investigação de Atividades Antiamericanas já estava em funcionamento havia dez anos, mas nunca se levara tão a sério e em outubro de 1947 os "Dez de Hollywood" foram condenados à prisão por se recusarem a depor. Era como se a cidade toda tivesse enlouquecido e Faye ficou desgostosa ao ouvir as histórias que se contavam sobre os velhos amigos, pessoas que todos conheciam. Em 1948, pessoas talentosas, queridas de todos eles estavam sendo obrigadas a sair de Hollywood para arranjar trabalho como encanadores, carpinteiros, o que pudessem. Seus dias de Hollywood estavam encerrados, e Faye ficava triste cada vez que falava sobre isso com Ward.

- Fico contente por estar fora de tudo isso. Nunca pensei que chegasse a esse ponto.

Ward olhou para ela com cuidado. Tinha de reconhecer que ela parecia feliz com sua vida atual, mas ele se perguntava se ela às vezes não sentia falta dos velhos tempos de sua carreira no cinema.

- Tem certeza de que não sente falta, benzinho?

- Nem por um instante, meu amor. - Mas ele notara que ultimamente ela parecia inquieta, como se estivesse precisando fazer mais alguma coisa. Ela começara a trabalhar como voluntária num hospital local e passava muito tempo com os meninos. Lionel já estava com quase dois anos e Gregory com dez meses, um bebê delicioso com um sorriso feliz e cachinhos. Mas Faye ficou felicíssima quando, dias antes do primeiro aniversário de Greg, comunicou a Ward que estava grávida de novo.

E dessa vez foi mais difícil para ela. Sentiu-se menos bem do que antes, desde o princípio, e ficou muito mais cansada. Parecia nunca querer sair, e Ward reparou que dessa vez ela estava muito maior. Se bem que o resto do corpo parecesse até mais magro, a barriga estava imensa, quase de repente, e no Natal o médico desconfiou do motivo.

Ele a examinou atentamente e quando ela se sentou, ele sorriu para ela.

- Acho que o coelhinho da Páscoa poderá ter uma surpresa e tanto para você desta vez, Faye, se é que vai esperar até lá.

- O que é? - Parecia que ela mal conseguia se mexer, e ainda faltavam três meses.

- Tenho uma desconfiança, muito vaga, de que podem ser gêmeos. - Ela o fitou espantada; a possibilidade nunca lhe ocorrera. Pensava só que estava mais cansada dessa vez, mas, pensando bem, também estava muito maior.

Tem certeza?

- Não. Poderemos tirar uma radiografia daqui a pouco, e certamente saberemos na hora do parto. - E foi o que se fez. Duas garotinhas lindas saíram de dentro dela, com nove minutos de diferença, e Ward ficou tão fora de si ao ver as nenenzinhas que ficou inteiramente alucinado. Dessa vez foram pulseiras de rubis e brilhantes.

Dois anéis de rubis. Brincos de rubis e brilhantes, dois de cada coisa. E até mesmo Greg e Lionel ficaram espantados quando eles voltaram para casa com dois bebês em vez de um.

- Uma para cada um de vocês - disse Ward, com carinho, pondo um embrulhinho no colo de cada menino.

As gêmeas foram um grande sucesso com todos. Não eram idênticas tecnicamente, mas bem poderiam ser, pois eram muito parecidas. Deram o nome de Vanessa à mais velha,  que era incrivelmente parecida com Faye. Os mesmos olhos verdes, os mesmos cabelos louros, as mesmas feições pequenas e perfeitas, e no entanto, ela era a quietinha.

Era a gêmea mais moça que gritava mais forte sempre que queria mamar, foi ela quem sorriu primeiro. O mesmo rostinho perfeito, e imensos olhos verdes, mas Valerie tinha cabelos ruivos como fogo, desde que nascera, e uma personalidade condizente.

- Meu Deus, onde é que ela foi arranjar isso? - Ward pareceu ficar chocado quando os cabelos ruivos começaram a crescer, mas à medida que ela ia crescendo, os cabelos, como toda ela, iam ficando mais lindos. Era uma menina de uma beleza espantosa e as pessoas muitas vezes ficavam paradas contemplando-a. Por vezes, Faye se preocupava porque Valerie fazia sombra à irmã. Vanessa era bem mais tranqüila e parecia aceitar viver à sombra da irmã gêmea, que ela adorava. Vanessa também era uma criança bonita, mas mais sossegada, mais etérea, ficava contente olhando os livros com figuras, ou vendo Valerie atormentar os meninos. Lionel sempre tinha uma paciência especial com ela e Greg agarrava punhados daqueles cabelos ruivos. Aquilo ensinou a Valerie a arte de autodefesa na mais tenra idade, quando mais não fosse. Mas, de modo geral, as crianças se divertiam juntas e todos diziam que eram as crianças mais lindas que já se tinha visto. Duas meninas lindas, passeando pelos jardins, brincando com o pônei miniatura que o comprara vários anos antes e os dois garotos fazendo travessuras por toda parte, trepando em árvores e alegremente estraçalhando suas lindas camisas de seda.

Agora todos gostavam do carrossel, os passeios no pônei, todas as coisas boas que o pai lhes comprara. E ele adorava brincar com eles. Aos 32 anos, mal parecia ser mais que um garoto, e Faye estava contente com sua família. Quatro filhos pareciam ser o ideal para ambos. Ela não queria ter mais, e Ward se contentou com os quatro, se bem que por vezes implicasse com ela, dizendo que ainda queria os dez. Mas Faye revirava os olhos quando se falava nisso. Já estava bastante ocupada assim como estava e gostava de passar horas com todos eles. Faziam passeios maravilhosos, Ward tinha comprado uma casa em Palm Springs no ano anterior e lá eles passavam parte de todo inverno. Faye gostava muito de ir a Nova York com ele, visitar os amigos. Tinham uma vida boa, em todos os sentidos possíveis, bem, bem diferente da pobreza da infância dela e da solidão dos anos de menino que ele passara.

Com o tempo, ele contara tudo a ela. Em criança, ele levara a vida do "pobre menino rico". Tinha tido tudo quanto era de material, mas os pais nunca estavam presentes. O pai trabalhava o tempo todo, a mãe sempre estivera metida em vários comitês, como voluntária, e entre uma coisa e outra eles faziam viagens prolongadas, mas sempre deixavam Ward em casa. Conseqüentemente, ele jurara não fazer o mesmo com sua família. Ele e Faye levavam os quatro filhos para toda parte, para os fins de semana em Palm Springs, nas viagens, até ao México.

Gostavam da companhia das crianças e estas estavam viçosas, com a atenção que lhes era dada, cada um a seu modo. Lionel tinha tendência para ser sossegado, sensível, sério e apegado a Faye. Por vezes, a seriedade dele enervava Ward, o menino era menos desordeiro e travesso do que Greg, que passava horas jogando futebol com Ward no gramado. Greg se parecia mais com ele, quando menino, displicente, atlético, despreocupado... ou mais como ele teria sido, se lhe tivessem dado a mesma atenção.

E Valerie estava ficando cada dia mais linda. Era a mais exigente dos quatro, a mais consciente de seus encantos, e devido a isso Vanessa parecia não exigir coisa alguma. Valerie pegava suas bonecas, seus brinquedos, suas roupas favoritas e Vanessa nem parecia notar. Gostava de ceder tudo à sua gêmea.

Apreciava outras coisas, a expressão dos olhos da mãe, uma palavra carinhosa de Ward, uma ida ao jardim zoológico, de mãos dadas com Lionel, e sua vida secreta de sonhos, enquanto olhava um livro ilustrado ou para o céu, deitada embaixo de uma árvore. Ela era a sonhadora da família. Passava horas deitada na grama, olhando para o céu, absorta em seus pensamentos, por vezes entoando uma cançãozinha para si, enquanto Faye lhe sorria.

- Eu era assim quando tinha a idade dela - disse Faye baixinho para Ward, quando ele olhou para a lourinha bonitinha.

- E com que é que você sonhava, meu amor? - Ele beijou o pescoço dela e lhe segurou a mão, os olhos quentes como o sol da manhã. - Sonhava em ser uma estrela de cinema?

- Às vezes, mas aí eu já era bem mais velha. - A pequenina Vanessa nem sabia o que era um filme.

Ele sorriu para a mulher, feliz.

- E agora, com o que é que você sonha? - Ele era muito feliz com ela. Ela tirara toda a solidão de sua vida. E era divertida, o que era importante para ele. Os pais dele nunca pareciam estar se divertindo. O pai só fazia trabalhar, ao que Ward soubesse, e a mãe fazia o mesmo com suas caridades infindáveis. Havia muito tempo que ele jurara consigo mesmo que nunca iria viver daquele jeito. Queria gozar a vida. Seu pai e sua mãe tinham morrido moços, sem jamais se terem divertido mesmo.

Não era o caso de Ward e Faye. Eles se divertiam à grande. Ele tornou a olhar para ela, então, tão serena e tão linda, quase parecia um quadro, enquanto pensava na pergunta dele.

- Sonho com você, meu amor... e as crianças. Tenho tudo o que quero neste mundo... e mais ainda.

- Bom. É assim que quero que seja sempre. - E ele estava falando sério enquanto as crianças iam crescendo e o tempo ia passando. Ward continuava a beber champanha demais, às vezes, mas era inofensivo e tinha bom humor, e Faye o amava muito, mesmo com suas fraquezas de rapaz, de vez em quando, querendo se divertir demais ou beber um pouco demais. Não havia mal nisso.

Os advogados iam procurá-lo mais do que antes, sobre os bens do pai e o que restava deles, mas ela não se preocupava com aquilo.

Afinal, o dinheiro era dele e ela já tinha bastante ocupação com Lionel, Gregory, Vanessa e Val. Mas na época em que as gêmeas completaram dois anos, ela notou que Ward andava bebendo mais, e era menos champanha do que uísque, o que a deixou preocupada.

- Aconteceu alguma coisa, querido?

- Claro que não. - Ele sorriu, fingindo-se despreocupado, mas ele andava com uma expressão assustada nos olhos e ela se perguntou o que seria. Mas ele insistia em dizer que não havia nada, e os advoga dos continuavam a ir lá e telefonavam muitas vezes. Ela se perguntava o que diriam a ele. E então, de repente isso pareceu sem importância de novo. A decisão anterior foi esquecida uma noite, bem tarde e, nos extremos da paixão, depois de terem ido assistir à distribuição dos Prêmios da Academia, em abril de 1951, eles mandaram a prudência passear e em fins de maio Faye teve a certeza.

- Mais uma vez? - Ward pareceu ficar espantado, mas não contrariado, se bem que dessa vez parecesse menos entusiasmado. Estava com muitas outras preocupações, embora não dissesse isso a Faye.

- Está zangado comigo? - Ela estava preocupada, e ele a abraçou com um vasto sorriso.

- Só se não for meu, sua bobinha. Claro que não estou zangado. Como poderia me zangar com você?

- Imagino que cinco filhos seja muito... - Dessa vez também ela estava meio na dúvida. A família parecia tão perfeita como estava... - E se eu tiver gêmeos de novo...

- Então serão seis! A mim me parece ótimo. Um dia desses poderemos até alcançar a nossa meta original de dez. - Mas no que ele disse isso, todos os quatro filhos que eles já tinham entraram na sala correndo, gritando, entusiasmados, caindo uns por cima dos outros, rindo e berrando e puxando os cabelos uns dos outros, e Faye gritou para ele por sobre aquela algazarra:

- Deus nos livre! - Ele sorriu para ela e tudo correu bem e em janeiro nasceu Anne Ward Thayer, a filha menor que Faye já tivera, parecendo tão pequenina e frágil que Ward se recusou a pegá-la ao colo, mas pareceu estar satisfeito com ela. Dessa vez, ele comprou para Faye um enorme pingente de esmeralda, mas parecia menos entusiasmado do que antes e Faye disse consigo mesma que ela não podia propriamente esperar que ele contratasse uma banda de música para comemorar o quinto filho.

Não obstante, ela ficou desapontada ao ver que ele não parecia estar mais satisfeito.

Mas alguns dias depois ela viu exatamente por quê. Dessa vez os advogados nem tentaram falar com Ward. Falaram com ela, achando que já era mais que hora de ela saber o que se passava... Sete anos depois do fim da guerra, os Estaleiros Thayer não viam um só lucro há quatro anos, quase. Havia anos que estava funcionando no vermelho, a despeito de todos os pedidos que eles tinham feito a Ward para dar alguma atenção ao negócio, a reduzir a escala de operações, e encarar o que estava acontecendo.

E ele se recusara terminantemente, ignorando as súplicas deles e não só permitira que o estaleiro se arruinasse, como ainda arruinara os bens todos. Ele insistira em dizer que não pretendia estragar sua vida trabalhando noite e dia. Queria estar com a família. E agora não restava mais nada, e isso já havia quase dois anos.

E de repente, sentada ali num silêncio chocado, Faye se recordou de quando ele parecera começar a ficar preocupado, a beber mais, mas ele nunca confessara nada a ela. E nos dois últimos anos, sem dizer uma palavra, ele tinha funcionado com o tanque "vazio". Não sobrara dinheiro algum, apenas dívidas monumentais que ele acumulara com o seu estilo de vida perdulário. Faye Price Thayer ficou ali escutando o que eles tinham a lhe dizer, o rosto pálido, as feições tensas, uma ruga na testa, parecendo estar em estado de choque. De certo modo, estava mesmo. Ela saiu da sala quase cambaleando, depois que eles se foram. E quando Ward chegou em casa, nessa tarde, encontrou-a sentada reta numa cadeira na biblioteca, aguardando-o, calada.

- Oi, benzinho. O que está fazendo aqui embaixo a essa hora? Não devia estar repousando? - Repousando? Repousando? Como é que ela podia repousar quando eles não tinham mais dinheiro, quando ela devia estar na rua procurando um emprego? Só o que tinham eram dividas, e, quando ela levantou os olhos para olhar para ele, ele viu que acontecera algo de horrível. - Faye?... Querida, o que é que há? - Os olhos dela estavam cheios de lágrimas e ela nem sabia por onde começar. As lágrimas saltaram para as faces e ela começou a soluçar. Como é que ele podia ter feito esse jogo? O que é que estava pensando? Quando ela pensou em todas as jóias que ele comprara, os carros, as peles, a casa de Palm Springs, os cavalos de pólo... era um nunca acabar... e só Deus sabia a quanto montavam as dívidas. - Querida, o que é que há? - Ele se ajoelhou ao lado dela e ela só conseguia soluçar, até que afinal respirou fundo e tocou no rosto dele, delicadamente. Como ela poderia detestar aquele homem? Ela nunca encarara o fato até então, mas ele não passava de uma criança, se fazendo de gente grande. Aos 35 anos, era menos maduro do que o seu filho de seis. Lionel já era prático e esperto... mas Ward... Ward... havia toda a tristeza de uma vida acabada nos olhos de Faye quando ela procurou se acalmar e falar com ele sobre o que soubera aquela tarde.

- Bill Gentry e Lawson Burford estiveram aqui esta tarde, Ward. - Não havia nada de sinistro na voz dela, apenas a tristeza, por ele e por todos eles, e Ward ficou logo aborrecido. Girou e foi ao bar, servindo-se de uma bebida forte. Ele se divertira naquela tarde, até aquele momento. Olhou por cima dos ombros para a mulher, procurando os olhos dela.

- Não deixe que aqueles dois a aborreçam, Faye. Ambos são uns chatos. O que A que eles queriam?

- Dar um pouco de juízo a você, parece.

- E o que é que isso quer dizer? - Ele olhou para ela, nervoso, sentando-se. - O que eles disseram?

- Eles me contaram tudo, Ward. - O rosto dele ficou branco, como o dela ficara horas antes. - Eles me disseram que você não tem mais um só centavo. O estaleiro tem de ser fechado, esta casa tem de ser vendida para pagar as nossas dívidas... tudo vai ter de mudar, Ward. Vamos ter de ficar adultos e parar de fingir que vivemos num país de fadas e que não estamos sujeitos às mesmas pressões que as outras pessoas do mundo. - A única diferença entre eles e as outras pessoas era que ele nunca trabalhara na vida e eles tinham cinco filhos para sustentar. Se ela ao menos tivesse sabido, nunca teria tido aquela última filha. E ela nem se sentiu culpada por pensar isso, por mais adorável que fosse o novo bebê. Suas próprias vidas estavam em jogo agora e ela sabia no íntimo que Ward não ia tomar a menor providência a respeito. Ele não era capaz disso, mas ela era. E já que ele não podia remar para levar o barco até à terra firme, ela o faria, e pronto. - Ward... temos de conversar sobre isso...

Ele se levantou de um salto e foi para o outro lado da sala. - Numa outra hora, Faye, estou cansado. - Ela se levantou logo, sem se importar por ainda sentir-se fraca. Tudo aquilo estava esquecido, agora. Era um luxo. Outro luxo que eles não podiam mais ter.

- Dane-se! Escute aqui: por quanto tempo ainda quer brincar comigo? Até te meterem na cadeia, por dívidas? Até nos despejarem desta casa? Segundo Lawson e Bill, não nos resta um centavo. Ou muito poucos, na melhor das hipóteses. - Os dois tinham sido de uma franqueza brutal com ela. Eles teriam de vender tudo o que possuíam só para saldar as dívidas. E depois? Era isso que ela se perguntava. Ward então a encarou.

- E o que é que você sugere que eu faça, Faye? Começar a vender os meus carros? Mandar as crianças trabalharem? - Ele parecia estar horrorizado: o seu mundo se estava desmoronando e ele não estava preparado para outro modo de vida diferente do seu.

- Temos de encarar a realidade, por mais assustadora que seja. - então se aproximou dele devagar, os olhos acesos como fogo, mas não estava zangada com ele. Passara a tarde toda pensando naquilo e compreendia como ele estava, mas não podia deixar que ele fingisse para si mesmo, nem para ela. Ele teria de encarar as modificações que teriam de ser feitas. - Temos de fazer alguma coisa, Ward.

- Como o quê, por exemplo? - Ele caiu sentado numa poltrona, devagar, como um balão que perde o ar. Já pensara naquilo, e estava além de suas faculdades. Talvez ele tivesse errado, escondendo tudo dela, mas como lhe poderia contar como as coisas andavam desesperadoras? Nunca tivera coragem, e em vez disso sempre lhe comprara mais uma jóia, e a burrice é que ele sabia que ela não dava assim tanto valor a essas coisas. Ela amava os filhos e a ele... ela o amava, não? Isso era o que o assustava, quando pensava em contar a ela. E se ela o abandonasse? Ele não suportava essa idéia. E agora, afinal, ele estava olhando para ela, e ele viu a esperança nos olhos dela. Ela não o abandonaria, afinal. De repente, as lágrimas encheram-lhe os olhos e ele enterrou o rosto no colo dela, soluçando ao pensar no que fizera. Ela afagou os cabelos dele e lhe falou baixinho durante o que pareceram horas e quando ele parou ela ainda estava ali. Ela não ia embora, afinal, pelo menos por enquanto, mas também não ia deixar que ele continuasse fugindo daquilo.

- Ward, temos de vender a casa.

- Mas para onde vamos? - Ele parecia uma criança assustada e ela sorriu para ele.

- Vamos para outro lugar. Despedimos os empregados. Venderemos a maior parte dessas coisas raras, os livros raros, minhas peles e as jóias. - Ela sofria ao pensar nisso, só porque ele é que lhe dera tudo aquilo, e tudo em ocasiões importantes da vida deles. Era sentimental quanto a isso mas também sabia que as jóias valiam muito e eles agora não podiam mais se agarrar a nada. - Em quanto é que você avalia as dívidas?

- Não sei. - O rosto dele estava enterrado nas coxas dela e ela o puxou para junto do rosto dela.

- Vamos ter de descobrir. Juntos. Estamos nisso juntos, querido, mas agora temos de sair dessa.

- Acha mesmo que poderemos? - Era aterrador encarar aquilo, mesmo com ela.

- Tenho certeza. - Pelo menos foi o que ela disse a ele, mas não tinha mais certeza de nada.

Ele sentiu um grande alívio ao ouvir o tom de voz dela. Uma ou duas vezes, entre uma e outra caixa de champanha, ele chegara a pensar no suicídio. E ele sabia exatamente a que ponto era fraco. Estava inteiramente despreparado para enfrentar o que tinha de enfrentar agora. Sem Faye, não poderia ter enfrentado aquilo, de todo. Mesmos com ela, era pouco mais fácil. Faye o obrigou a ir com ela aos advogados, no dia seguinte. O médico lhe recomendara que não saísse ainda, mas ela não deu a menor importância a isso. Depois do quinto filho, não se impressionava com tudo aquilo como se poderia ter impressionado depois do primeiro, e não ia deixar que Ward se safasse da situação. Ela o apoiava integralmente, mas nesse ponto foi inclemente. Aquilo teria de ser encarado por ambos e eles o encararam. Segundo os advogados, a dívida era de três milhões e meio. Ela quase desmaiou ao ouvir aquelas palavras, e o rosto de Ward, ao ouvir, ficou de um branco leitoso. Os advogados explicaram que eles teriam de vender tudo e, se tivessem sorte, lhes sobraria um pouco de dinheiro, que poderiam investir, mas não poderiam mais viver daquilo como viviam antes.

Aliás, e aí Bill Gentry olhou bem para Ward, eles teriam de trabalhar, ou pelos menos um deles teria. Eles não sabiam se Faye havia de querer voltar à sua carreira, mas já se haviam passado sete anos desde que ela fizera o seu último filme, ninguém mais lhe pedia autógrafos, e os jornais não publicavam mais manchetes sobre ela, como faziam antes. Ela já era reminiscência, e aos 32 anos certamente poderia voltar ao cinema se quisesse, mas não seria a mesma coisa. Em todo caso, não era o que tinha em mente. Ela estava com outra idéia, mas era fácil demais pensar nisso.

- E o estaleiro? - As perguntas dela eram inteligentes e francas e Ward ficou aliviado por não ter de perguntar. Ele estava constrangido e sentiu uma necessidade terrível de beber, enquanto Faye continuava. Os advogados foram firmes.

- Vocês vão ter de declarar a falência.

- E a casa? Quanto pensam que poderá dar?

- Meio milhão, se encontrarem alguém que se apaixone por ela. Em termos realistas, é provável que dê menos.

- Está bem, já é um começo... depois, há a casa de Palm Springs... - Ela puxou uma lista da bolsa. Na noite da véspera, depois que Ward fora dormir, ela fizera uma lista de tudo quanto eles possuíam, até o cachorro. Calculou que com um pouco de sorte poderiam conseguir cinco milhões de dólares por tudo quanto tinham. Ou pelo menos quatro.

- E depois? - Ward olhou para ela com amargura, pela primeira vez. - Vestimos as crianças com trapos e vamos mendigar na rua? Temos de morar em algum lugar, Faye. Precisamos de empregados, roupas, carros.

Ela sacudiu a cabeça.

- Um carro. Não carros. E se não pudermos ter isso, andamos de ônibus. - Alguma coisa na expressão dele, de repente, a assustou. Ela se perguntou se ele conseguiria suportar aquela mudança. Mas se ria obrigado a isso, eles não tinham opção e ela ia ajudá-lo a fazer aquilo. A única coisa a que não estava disposta a renunciar era a ele. Ao cabo de duas horas, os advogados se levantaram e apertaram as mãos deles, mas Ward estava com uma cara séria. Parecia ter envelhecido dez anos naquelas duas horas e mal disse uma palavra quando voltaram para casa no Duesenberg. Estava quase chorando ao se dar conta de que poderia ser a última vez que andavam nesse carro. Quando chegaram em casa, a enfermeira do bebê estava esperando por eles. Anne estava com febre. A enfermeira estava certa de que ela apanhara um resfriado de Val e estava preocupada. Aflita, Faye foi ao telefone e chamou o médico para ir vê-la, mas não pegou o bebê ao colo. E quando a ama quis dar-lhe o bebê mais tarde, Faye a dispensou com uma expressão meio desesperada e palavras bruscas, nada do seu feitio.

- Não tenho tempo. - Estava pensando em outras coisas, sendo que "outras coisas" significava a extinção do seu atual modo de vida. Ficava exausta só de pensar no que a esperava. Mas era a coisa que tinha de ser feita e ela é que teria de fazer tudo. Ward não saberia lidar com aquilo. Ela teria de fazer tudo e ele ficou-lhe grato quando ela começou a tratar do assunto no dia seguinte. Ela ligou para todos os corretores de imóveis da cidade e marcou hora para eles irem ver a casa. Tornou a ligar para os advogados, marcou hora em vários antiquários e começou a fazer listas das coisas que pretendiam guardar e do que pretendiam vender. Ward, bestificado, a olhou, sentada à sua secretária ao meio-dia do dia seguinte, prática, eficiente, a testa franzida, e sacudiu a cabeça, nervoso com tudo aquilo.

Ela olhou para ele, ainda de testa franzida, mas não significava desaprovação.

- O que vai fazer hoje?

- Vou almoçar no clube. - Isso era outra coisa que teria de acabar, todos os clubes dele, mas ela não lhe disse nada nessa hora. Apenas meneou a cabeça e pouco depois ele saiu do quarto. Só voltou às seis da tarde e de Muito bom humor. Passara a tarde toda jogando gamão e ganhara 900 dólares de um amigo. Mas e se você perdesse?

Faye pensou, calada, e não disse nada; subiu com calma. Não queria vê-lo brincando com as gêmeas, sabendo que estava bêbado, sabendo tudo quanto sabia agora. E havia muito por fazer. No dia seguinte, ela teria de começar a despedir os empregados... ainda tinham de vender os carros... e, depois de tudo feito, ainda havia a casa de Palm Springs... seus olhos se encheram de lágrimas ao pensar em tudo aquilo, não tanto de pesar, mas mais do ônus de tudo aquilo e o ônus estava todo sobre ela.

Não havia como evitar isso. Parecia um pesadelo, ou um sonho muito, muito estranho. Em 24 horas toda a vida deles se desmoronara e ela mal se permitia pensar naquilo.

Se pensasse, poderia gritar. Era tão estranho, há apenas alguns dias sua cabeça estava cheia de outras coisas... o bebê nascendo... mais um presente espetacular de Ward. Eles estavam pensando em passar uns dias em Palm Springs e agora de repente estava tudo acabado... para sempre... desaparecera. Era inteiramente incrível.

Quando subiu a escada, preocupada, pensando no que fariam, a ama a abordou de novo, como já fizera várias vezes naquele dia. Mas Faye agora não tinha tempo para o bebê. Estava ocupada demais. A mulher de branco estava no alto da escada olhando para Faye de mau humor, uma mamadeira na mão, o bebê recém-nascido ao colo, embrulhado numa manta rosa bordada, que Faye comprara para as gêmeas.

- Gostaria de dar a mamadeira ao bebê agora, sra. Thayer? - A ama inglesa de luxo a fitou maldosamente, ou pelo menos foi assim que Faye a encarava agora, pensando no ordenado dela e também em como ela tentara levá-la a se sentir culpada, o dia todo.

- Não posso, sra. McQueen, sinto muito... - Ela se virou, sentindo a faca da culpa cortar-lhe o coração. - Estou muito cansada... - Mas não era isso. Queria examinar suas jóias antes que Ward subisse. Tinha marcado hora com Frances Klein no dia seguinte e teria de resolver agora o que queria lhes vender. Sabia que deles conseguiria um preço justo. E agora não havia como recuar... e tampouco havia tempo para a pequenina Anne, a menina fragilzinha. - Talvez amanhã de noite - murmurou ela para a ama, enquanto se apressava para seu quarto, evitando os olhos dela. Seria mais fácil se ela não visse a criança com tanto pouco tempo de nascida. Uma semana antes, era só em que ela precisava pensar. Mas não mais... não agora... as lágrimas jorravam de seus olhos e ela foi depressa para o quarto, e fechou a porta, enquanto a sra. McQueen a observava, sacudia a cabeça e se dirigia para o quarto das crianças no andar de cima.

 

A firma Christie's buscou a mobília em fevereiro. Levaram todas as antiguidades preciosas, os seis aparelhos de bela porcelana antiga que Faye e Ward tinham comprado nos últimos sete anos, todos os lustres de cristal, os tapetes persas. Levaram quase tudo, menos o que era realmente essencial. E Faye arrumou as coisas de modo que as crianças estivessem em Palm Springs com a ama, e insistiu para que Ward também fosse.

- Está querendo se ver livre de mim? - Ele olhou para ela com irritação, por cima da taça de champanha que parecia ter sempre à mão, só que as taças eram maiores.

- Você sabe que não. - Ela sentou-se ao lado dele, com um suspiro. Passara o dia todo pondo etiquetas nos móveis. Etiquetas vermelhas para tudo a ser vendido, azul para o que ia ficar, e disso não havia muita coisa. Ela quis vender tudo quanto eles tinham de valioso. As coisas mais simples poderiam usar quando se mudassem.

Era deprimente para todos, mas tinha de ser feito. Eram palavras que Ward passara a detestar, mas ela não tinha pena. Agora que sabia da verdade, não ia mais permitir que ele se escondesse dela. Ela estava fazendo tudo quanto podia para ajudar, mas não ia permitir que ele mentisse a si ou a ela. Agora era Faye quem tratava diretamente com os advogados, e, intimamente, isso a preocupava. Sabia que o que estava fazendo o estava castrando, de algum modo oculto. Mas o que poderia fazer? Deixar que ele continuasse a viver aquela mentira? Contraindo mais dívidas? Ela estremeceu, ao pensar nisso. Para ela, parecia melhor encarar o problema agora e depois reconstruir uma nova vida. Eles ainda eram bem jovens. Tinham um ao outro e aos filhos. De vez em quando, ela ficava tão apavorada quanto Ward. Era como escalar uma montanha íngreme, mas ela raramente se permitia olhar para baixo. Esse era outro luxo que eles não podiam mais se permitir. Tinham de passar adiante.

- Ontem vendi o carrossel. - Era o único assunto sobre o qual eles conversavam, agora, o que fora vendido e o que não fora. A casa ainda não o fora, e aquilo estava começando a deixá-la preocupada. - Vendi para um hotel, por um preço decente.

- Que ótimo. - Ele se levantou de repente e foi tornar a encher a taça. - Tenho certeza de que as crianças vão ficar felizes com essa notícia.

- Não posso evitar isso... - mas você poderia ter evitado, pensou ela, de repente, e então forçou as palavras para fora de sua cabeça. Não era por culpa dela que estavam perdendo tudo. Mas ela também não queria culpar Ward. Ele nunca conhecera outro tipo de vida. Ninguém lhe ensinara a ser responsável. E ele sempre fora maravilhoso com ela. A despeito de tudo, ela ainda amava aquele homem, mas por vezes ficava difícil não culpá-lo pelo que estava acontecendo. Fora tudo falso, por tanto tempo... Se ao menos ela tivesse sabido... Ela viu que ele a estava fitando, uma expressão de desespero nos olhos, a taça na mão. Por um instante, só um instante, ela vislumbrou o que ele seria quando ficasse muito velho. A maior parte do tempo ele ainda parecia um rapazinho, muito bonito, despreocupado e displicente, mas agora, de repente, nos dois últimos meses, ele parecia estar carregando o mundo às costas e aquilo o estava envelhecendo. Ela até notara alguns fios de cabelos brancos misturados aos louros e havia novas rugas em volta de seus olhos. - Ward... - Ela olhou para ele, pensando no que poderia dizer para mitigar-lhe o sofrimento, para fazer com que ambos convivessem melhor com a verdade. E as perguntas e os pavores invadiam suas mentes como trens. Aonde vamos, agora? O que vamos fazer? O que vai acontecer quando vendermos a casa?

- Quisera nunca ter arrastado você para isso. - Ele sentou-se, sentindo pena de si, culpado diante dela. - Eu não tinha o direito de me casar com você. - Mas ele a desejara e precisara dela tão desesperadamente, especialmente depois da guerra, depois da morte da primeira esposa, dois meses após ele se casar com ela... e Faye fora tão notável. E ainda o era. Aquilo tornava as coisas ainda mais difíceis, agora. Ele detestava o que estava lhe fazendo.

Ela foi para junto dele, devagar, e se sentou ao braço da poltrona dele. Ela estava mais magra do que antes de Anne nascer, mais magra do que ele a via, havia anos.

Mas estava trabalhando muito, levantando de manhãzinha, embalando caixas, escolhendo montanhas de coisas. Fazia parte das tarefas domésticas, com uma das duas empregadas que conservaram. O pessoal doméstico numeroso estava reduzido a duas mulheres que cozinhavam e faziam a limpeza, a ama que cuidava das crianças nesses seis anos, desde que Lionel nascera, e a enfermeira que fora contratada para cuidar de Anne. Faye pretendia reduzi-las ainda mais, para duas só, mas naquele momento ainda estava precisando daquelas, para ajudá-la a arrumar as coisas e depois fechar a casa. O restante do pessoal já tinha ido embora, havia tempos. Arthur e Elizabeth se tinham retirado aos prantos cerca de seis semanas antes, deixando Faye depois de tantos anos. Ambos os choferes tinham sido despedidos, além do mordomo e meia dúzia de empregadas. Com o tempo talvez nem precisassem de ninguém, se arranjassem uma casa bem pequena. Ela ainda nem começara a tratar disso. Primeiro, teria de vender aquela. E Ward estava deixando que ela fizesse tudo sozinha.

- Você não prefere pedir um divórcio? - Ele a fitou fixamente, a taça novamente vazia na mão. Mas não por muito tempo. Nunca mais por muito tempo.

- Não. - Ela disse aquilo bem alto e com clareza na sala meio vazia. - Não prefiro, não. Se me lembro bem, o padre disse "para melhor ou pior", e se as coisas estão difíceis no momento, tudo bem, a vida tem dessas coisas.

- "Tem dessas coisas?" Estão carregando os tapetes debaixo de nossos pés, tirando o teto de cima de nossas cabeças, os nossos advogados estão nos emprestando dinheiro para comprar comida e pagar as empregadas, e você nem está ligando? E como é que acha que vamos comer, depois disso? - Ele se serviu de mais bebida e ela teve de lutar consigo mesma para não lhe pedir que parasse. Ela sabia que ele havia de parar, no fim. Tudo voltaria ao normal, um dia. Talvez. - Vamos dar um jeito, Ward. Que opção é que temos?

- Não sei. Imagino que você acha que vai voltar para a sua carreira no cinema, mas você não é mais um brotinho, né? - Ela viu, pelo modo como ele estava começando a arrastar as palavras, que já estava bêbado, mas não se importou com o que ele disse.

- Sei disso, Ward. - A voz dela estava dolorosamente calma. Já vinha pensando nisso havia semanas. - Havemos de arranjar alguma coisa.

- Para quem? Para mim? - Ele avançou para ela com um ar ameaçador, o que não era nada jeito dele. Mas os dois estavam sob tal tensão que agora tudo era possível.

- Merda, nunca trabalhei na vida. O que você pensa que vou fazer? Arranjar um emprego no Saks, vendendo sapatos para suas amigas?

- Ward, por favor... - Ela se virou, para ele não ver as lágrimas em seus olhos, mas ele a agarrou pelo braço e a puxou para trás, com violência.

- Vamos, me conte seus planos, dona Realidade. É você que andou tão ocupada, nos levando a encarar tudo de frente. Porra, se não fosse você, ainda estaríamos vivendo como antes. - Então era isso, ele estava culpando a ela, e não a si, ou talvez apenas quisesse fazê-lo. Ela o conhecia bem, mas isso não impediu que ela o atacasse.

- Se estivéssemos, estaríamos devendo cinco milhões de dólares, em vez de quatro.

- Nossa... você está igualzinha àquelas duas bichonas, Gentry e Burford. Não sabem de nada. E daí, se estamos devendo? - Ele berrou as palavras e se afastou dela.

- Levávamos uma vida decente, não é? - Ele olhou para ela furioso do outro lado da sala, mas era uma fúria contra si, e não contra ela, e de repente ela gritou com ele. - Era uma puta mentira! Era uma questão de tempo até que tirassem a casa e nós dentro dela e levassem os móveis daqui.

Ward riu-se amargamente.

- Ah, sei. E o que é que você pensa que está acontecendo agora? - Nós a estamos vendendo nós mesmos, Ward. E se tivermos sorte, teremos algum dinheiro ainda. Dinheiro que podemos investir, se tivermos juízo, e talvez viver dele por algum tempo. E sabe o que mais? O que importa mesmo é que ainda nos temos um ao outro e temos as crianças.

Mas ele não queria ouvir o que ela tinha a dizer. Saiu da sala batendo a porta, que tremeu no caixilho. Depois que ele saiu ela ficou ali, as mãos tremendo, por meia hora, mas continuou a arrumar as coisas deles. E três semanas depois eles venderam a casa. Foi um dia tenebroso para eles, mas foi a única saída. Conseguiram menos do que esperavam, mas os compradores sabiam da situação deles e a casa não estava tão bonita quanto antes. Os jardineiros tinham todos ido embora e o terreno já estava um pouco descuidado, e o desaparecimento do carrossel deixara marcas feias. Todos os móveis realmente bons já tinham sumido e as salas imensas pareciam despidas sem os lustres e cortinados. Conseguiram um quarto de milhão de dólares pela casa, de um ator conhecido e a mulher. Ele não foi muito amável com Faye e eles nem sequer conheceram Ward. Passearam pela casa comentando com o corretor de imóveis deles, como se Faye nem estivesse presente. A proposta foi feita no dia seguinte e levaram uma semana negociando para chegarem ao preço final. E Burford, Gentry e Faye, todos pressionaram Ward para concordar. Insistiram, dizendo que ele não tinha opção e per fim, em desespero, ele concordou, assinou o contrato e depois se trancou no escritório com duas garrafas de champanha e uma de gim.

Ficou ali sentado olhando para as fotografias dos pais na parede e chorando, sem fazer barulho, pensando na vida do pai e na vida que agora o aguardava. Faye nem o viu mais, até tarde da noite, quando ele afinal subiu. Ela não ousou falar com ele quando ele entrou no quarto. Ficou olhando o rosto dele e sentindo vontade de chorar. Era o fim de todo o seu modo de vida e de repente ela ficou assustada por ele, pensando se ele sobreviveria à mudança. Ela já fora pobre, se bem que há muito não o fosse mais, mas ainda se lembrava das realidades daquilo. E para ela não era tão apavorante quanto o era para Ward. Ela agora se sentia como se estivesse correndo há meses, e se perguntou se ia conseguir parar, se iam conseguir se encontrar de novo. Aquilo parecia o pior pesadelo de sua vida e todos os seus momentos de idílio se tinham ido. Eles ficaram com o choque da realidade, a tragédia do que ele tinha feito e a melancolia feia do resto de suas vidas. Mas ela se recusava a deixar que fosse assim, recusava-se a deixar que ele entregasse os pontos e se tornasse um bêbado contumaz.

Ele ficou ali olhando para ela, como que lendo seus pensamentos, e parecia que estava de coração partido quando entrou no quarto e se sentou.

- Desculpe ter sido filho da puta, Faye. - Ele ficou olhando para ela, os olhos cheios de lágrimas, enquanto ela tentava sorrir para ele.

- Tem sido difícil para nós todos.

- Mas foi tudo minha culpa... isso é que é o pior. Não sei se eu poderia ter mudado a sorte, mas poderia ter amainado as coisas um pouco.

- Você nunca poderia ter reanimado uma indústria agonizante, Ward, por mais que tentasse. Não se pode culpar por isso. - Ela deu de ombros e se sentou à beirada a cama. - Quanto ao resto... - ela sorriu para ele, com pesar -, foi bom, enquanto durou.

- E se passarmos fome? - Parecia um menino assustado. Para um homem que vivera de crédito durante tantos anos, era uma pergunta espantosa. Mas ele afinal enfrentara esses pensamentos, nessa noite, e a única coisa que percebera era que, por mais raivoso que estivesse, precisava dela desesperadamente. E ela não lhe faltou, nesse momento. Ela parecia calma quando falou com ele, bem mais calma do que se sentia. Mas queria dar-lhe uma coisa que sabia que ele não tinha. Fé. Confiança. Era o melhor que ela podia fazer por ele, agora. E, para ela, era isso que significava ser sua mulher.

- Não vamos passar fome, Ward. Você e eu podemos enfrentar isso. Eu nunca passei fome na vida, embora por vezes chegasse bem perto. - Ela riu para ele, cansada.

Todo o seu corpo estava dolorido de arrumar as coisas e empurrar os móveis.

- Vocês não eram sete.

- Não. - Ela olhou para ele com carinho pela primeira vez em várias semanas. - Mas fico contente por sermos sete agora.

- É mesmo, Faye? - O seu próprio sofrimento o deixara sóbrio, horas antes. Parecia que nessa noite ele não conseguia ficar embriagado, e agora estava contente por isso. - Você não tem medo de nos ter a todos agarrados a suas saias, e eu, mais que todos, estou mais assustado do que as crianças. - Ela se dirigiu para ele devagar e tocou-lhe os cabelos louros e espessos. Estranho, como ele se parecia com Gregory, como eram iguais, e por vezes ele ainda parecia mais moço do que o filho deles.

- Vai dar tudo certo, Ward... eu te prometo. - Ela falou baixinho, beijando o alto da cabeça dele. Quando ele levantou a cabeça para ela, as lágrimas escorriam-lhe devagar pela face, e ele teve de engolir um soluço.

- Eu agora vou ajudar você, benzinho, prometo... Vou fazer tudo o que puder... - Ela fez que sim e ele puxou-lhe a cabeça para junto da dele e, pela primeira vez no que parecia ter sido um ano, ele a beijou nos lábios e logo depois a acompanhou até a cama, mas ali não aconteceu nada. Já fazia muito tempo. Estavam com coisas demais na cabeça. Mas pelo menos o amor ainda estava ali, machucado mas não sumido. Era tudo quanto lhes restava. Tudo o mais se fora.

 

Deixaram a casa em maio. As lágrimas escorriam-lhes pelas faces. Sabiam que estavam deixando um mundo e uma vida que nunca mais voltariam. Lionel e Gregory também estavam chorando. Já tinham idade para entender que estavam saindo da casa de vez. Fora o lar de sua infância e era linda, segura e aconchegante. E havia algo de assustador na expressão dos olhos dos pais. De repente, tudo estava diferente, mas as crianças não sabiam bem como. Somente Vanessa e Val. pareciam estar menos afetadas pela mudança. Só tinham três anos e não pareciam estar se importando tanto, se bem que também sentissem o nervoso dos outros. Achavam que era empolgante irem todos para a casa de Palm Springs.

Ward levou a todos no único carro que lhes restava. Era uma antiga camionete Chrysler que tinham guardado para os empregados, mas agora estava prestando bons serviços.

Os Duesenbergs já se tinham ido, o cupê Bentley de Faye, o Cadillac e o resto da frota de carros que eles tinham.

Para Faye e Ward, foi como deixar para trás de vez a sua juventude. A casa de Palm Springs teria de ficar vaga até junho. Mas, enquanto isso, dava a Faye e Ward um lugar onde deixar as crianças, por algumas semanas. Faye tinha opções de várias casas para alugar, e a mobília ia ficar num depósito, até então. Ela iria a Palm Springs com a família e depois voltaria a Los Angeles sozinha para procurar uma casa, enquanto Ward supervisionaria a arrumação da casa de Palm Springs. Ele insistia em dizer que era o mínimo que ele poderia fazer, depois de ela ter tratado de tudo sozinha em L.A. Dessa vez, ela não teria de fazer coisa alguma, apenas encontrar um lugar decente para eles morarem. E ela sabia que isso não seria fácil. Com a venda do estaleiro, a casa em Beverly Hills, toda a mobília, objetos de arte, a coleção de livros raros, os carros e a casa de Palm Springs com quase tudo o que continha, eles teriam justo o suficiente para pagar todas as dívidas, restando-lhes cerca de 55 mil dólares que, investidos com cuidado, mal dariam o suficiente para sustentá-los a todos. Iam alugar uma casa e Faye tinha esperanças de encontrar alguma coisa barata. E assim que estivessem instalados e as crianças voltassem ao colégio, no outono, ela iria tratar de arranjar um emprego. Claro, Ward estava falando de arranjar um trabalho também, mas ela acreditava mais na sua capacidade de encontrar um trabalho, e para ela seria mais fácil. Já trabalhara antes, e, embora tivesse 32 anos, certamente não estava decrépita, para o que pretendia fazer. E Lionel entraria para a primeira série, Greg ia começar o jardim-de-infância, as gêmeas estariam na escola maternal e ela teria bastante tempo livre. Só ia ficar com a ama, para tomar conta de todos e do bebê também, cuidar da casa e cozinhar.

Anne, o bebê, estava com quatro meses e ainda não dava muito trabalho. O momento era perfeito para Faye sair de casa. E, pensando nisso, na ida para Palm Springs, de repente, ela teve de novo um sentimento de culpa por causa do bebê. Os outros todos tinham passado bastante tempo com ela, nessa idade, mas dessa vez ela não tivera um momento para dedicar-se à filhinha. Mal via a menina, desde que nascera. Mas o desastre sobreviera tão em cima do seu nascimento, que era impossível pensar nela a não ser de vez em quando, já que estava com tantas outras coisas na cabeça. Ward a observou diversas vezes, durante a viagem, notou que estava de testa franzida e lhe afagou a mão. Ele prometera que ia beber menos, quando chegassem a Palm Springs e ela esperava que ele cumprisse a promessa. Lá a casa era menor e as crianças perceberiam muito mais se ele bebesse o tempo todo. Depois, tinha muito o que fazer e Faye tinha esperanças de que isso o ocupasse.

Ela voltou a Los Angeles dois dias depois, de trem e, ao chegar, hospedou-se num quarto pequeno no Hollywood Roosevelt Hotel. As casas que viu eram deprimentes demais, em bairros ruins, com quintais pequenos e quartos pequenos e feios. Ela pesquisou os jornais todos, ligou para todas as agências e por fim, em desespero, no princípio da segunda semana, encontrou uma casa que não era tão feia quanto as outras e que era bastante grande para eles. Tinha quatro quartos e bom tamanho num dos andares. Ela já resolvera pôr os meninos juntos, e as gêmeas também e a ama e Anne também podiam ficar no mesmo quarto, e o outro seria para ela e Ward. Embaixo, havia uma sala grande, meio sombria, com painéis de madeira baratos, uma lareira que não funcionava, havia anos, uma sala de jantar que dava para um jardinzinho despido e uma grande cozinha antiquada, onde caberia uma boa mesa de cozinha.

As crianças certamente ficariam mais perto dela do que jamais tinham ficado e ela procurou se convencer de que isso seria bom para elas, que Ward não detestaria a casa e não se recusaria a morar lá, e que as crianças não iam chorar quando vissem os quartos tristes. A melhor coisa da casa era o aluguel, que eles podiam pagar. E ficava num bairro residencial em Monterey Park, que era bem, bem diferente de sua vida antiga em Beverly Hills. Não se podia enganar ninguém quanto a isso, e quando ela voltou para Palm Springs, nem o tentou. Disse a todos que seria uma coisa "provisória", que era uma aventura que eles iam partilhar, que todos teriam suas tarefas para fazer e eles podiam plantar flores bonitas no jardim, que logo cresceriam. E quando Ward a enfrentou, quando ficaram a sós, ele a fitou com franqueza e disse o que ela temia:

- É muito ruim mesmo, Faye?

Ela respirou fundo. A única coisa que podia fazer seria dizer-lhe a verdade. Ele descobriria logo, de qualquer forma. Não adiantava mentir para ele.

- Comparada com o que tivemos? - Ela fez que sim. - É triste. Mas sem olhar para trás, se passarmos algum tempo fazendo um esforço para não olhar para trás, não é tão má assim. Está pintada de novo, e razoavelmente limpa. Os poucos móveis que nos restam vão caber lá. E podemos enfeitá-la um pouco com cortinas e flores alegres.

E ela tornou a respirar fundo, procurando não notar a expressão arrasada no rosto dele. - Pelo menos temos um ao outro. Vai dar tudo certo. - Ela sorriu para ele, mas ele lhe deu as costas.

- Você só fica dizendo isso. - Estava zangado com ela de novo, como se a culpa fosse dela. E, em seu íntimo, ela estava começando a achar que era mesmo. Talvez ela não o devesse ter forçado a encarar tudo aquilo. Talvez devesse ter deixado que ele continuasse a viver devendo até não poderem mais. Mas teriam de encarar tudo, mais cedo ou mais tarde mesmo... não? Ela nem sabia mais as respostas. Pelo menos, ele cumpriu a palavra e arrumou a casa de Palm Springs, e só recomeçou a beber quando ela voltou. Aí ele sabia que ela assumiria e ele poderia relaxar. Pelo menos por algum tempo... até se mudarem..

Quando eles fecharam a casa e voltaram para Los Angeles, todos juntos numa tarde de terça-feira, parecia que estavam a mil graus. Faye já preparara um pouco a casa de Monterey Park antes de ir ter com eles em Palm Springs. Tinha desembalado o que podia sozinha, pendurou alguns quadros em todos os quartos, encheu jarras com flores e fez as camas com lençóis limpos. Fizera tudo o que era possível para dar o aspecto de um lar. As crianças ficaram curiosas quando chegaram, como cachorrinhos cheirando a nova casa, e ficaram felizes quando encontraram seus quartos com seus brinquedos e suas caminhas. Faye ficou olhando, esperançosa, mas Ward parecia que ia desmaiar, quando entrou na sala escura e feia, com seus lambris de madeira. Ele não disse uma palavra, enquanto Faye observava-lhe o rosto, e lutou para não chorar.

Olhou para o jardim, os olhos apertados, olhou pela sala de jantar, notou uma mesa que tinha guardado, de uma sala íntima do andar de cima da outra a casa, e instintivamente olhou para cima, esperando ver um lustre conhecido que fora vendido meses antes. Depois, sacudiu a cabeça, olhando para Faye. Ele nunca tinha visto uma coisa assim. Nunca chegara a estar numa casa assim tão pobre, e aquilo logo o deixou arrasado.

- Está vista. Espero que pelo menos seja barata. - Novamente ele teve o sentimento de culpa pelo que estava fazendo com ela e com todos eles.

Os olhos dela estavam brandos e eles ficaram se olhando em sua nova casa.

- Não é para sempre, Ward. - Era o que ela se dissera, anos antes, quando sonhava em fugir da pobreza da casa dos pais. Mas aquilo fora muito pior do que isso. E isso também não seria para sempre. Dessa vez, ela estava certa. De alguma maneira, eles iriam encontrar a saída. Ward olhou em volta outra vez, com pesar.

- Creio que não vou conseguir agüentar muito. - Diante dessas palavras ela sentiu uma raiva explodir dentro de si pela primeira vez, havia meses, e quando falou, foi aos gritos.

- Ward Thayer, todos nesta família estão se conformando com isso, e é bom mesmo que você também se conforme, droga! Não posso fazer o relógio andar para trás para você. Não posso fingir que esta é a nossa casa antiga. Mas este é o nosso lar, nosso, meu, das crianças e seu também. - Ela estava tremendo, ali diante dele e ele olhou dentro dos olhos dela. Ela estava resolvida a fazer o possível naquela situação, e ele a respeitava por isso, mas ele não sabia se teria forças para tanto e quando foi para a cama naquela noite, estava quase certo de que não teria. O quarto tinha cheiro de coisa podre e velha, como se as vigas estivessem úmidas há anos, a casa toda tinha um cheiro de mofo e as cortinas que Faye pendurara eram de seus antigos quartos de empregada e não serviam direito. Parecia que estavam passando a ser empregados em sua própria casa, parecia um sonho incrível, surrealista e feio. Mas a casa era deles e era real e ela sabia que tinham de se conformar com aquilo. Ele se virou para lhe dizer alguma coisa, desculpar-se por estar aceitando aquilo tão mal, mas ela já estava dormindo profundamente, enroscada numa bolinha, encolhida no seu lado da cama, como criança assustada, e ele se perguntou se ela também estaria assustada. Ele agora passava a maior parte do tempo apavorado, nem mesmo a bebida ajudava mais e ele se perguntava o que aconteceria com o resto de suas vidas. Seria para sempre? Eles certamente não poderiam pagar mais que o que pagavam, e ele pensou se algum dia poderiam, de novo. Ela dizia que era apenas um degrau, um lugar provisório, que um dia eles passariam adiante, mas quando, como e onde? Nem nos seus sonhos mais loucos, deitado ali naquele quarto feio, mofado, pintado de verde-claro, ele conseguia imaginar.

 

HOLLYWOOD... 1952-1957

Já se haviam passado seis anos desde que ele a representara, e a mão dela tremia, ao discar o telefone dele. Era bem possível que ele se tivesse aposentado, ou talvez não tivesse tempo para falar com ela. Ele lhe ligara quando Lionel nascera, e tentara convencê-la mais uma vez a reassumir sua carreira antes que se passasse tempo demais e fosse tarde. E agora certamente era tarde, seis anos depois de ela ter largado a carreira. Ela não precisava dele para saber disso. Mas estava precisando de seus conselhos. Ela esperara até o mês de setembro. As crianças estavam todas no colégio, conforme planejado, com exceção de Anne, claro. E Ward tinha saído, procurando os velhos amigos, procurando emprego, dizia ele, mas a maior parte do tempo parecia passar apenas em almoços prolongados em seus restaurantes e clubes favoritos, "fazendo contatos", dizia ele, quando chegava em casa. Talvez estivesse, mas ela estava vendo aquilo se prolongar durante anos, sem levar a nada, semelhante àquele telefonema... se ele não quisesse atendê-la. Ela rezou para que ele falasse com ela, e deu o nome à secretária. Houve uma espera interminável, disseram-lhe para esperar na linha, e de repente lá estava ele... tal e qual antigamente, muito antes daquilo.

- Meu Deus... uma voz do passado distante. Ainda está viva? - A voz dele ressoou em seus ouvidos, como fazia, anos antes, e ela riu, nervosa. - É você mesma, Faye Price? - De repente, ela se arrependeu de não o ter visto mais, durante aqueles anos, mas estava muito feliz com Ward e os filhos, e Hollywood fazia parte de uma outra vida.

- Sou eu, a mesma Faye Price Thayer, já com alguns cabelos brancos.

- Pode-se dar um jeito nisso, se bem que imagino que não seja por isso que me ligou. A que devo a honra desta surpresa... e já tem os seus dez filhos? - Abe parecia tão simpático quanto antes e ela ficou como vida ao ver que ele ainda tinha tempo para falar com ela. Eles já tinham sido tão amigos... Tendo sido seu agente durante todos os anos de sua carreira de estrela, ele desaparecera de sua vida e ela agora estava batendo à porta dele, de novo. Mas ela sorriu diante do que ele falou.

- Não tenho dez, Abe, só cinco. Estou na metade do caminho.       

- Meu Deus, mas que loucos! Vi logo, pelos seus olhos, que você estava falando sério, naqueles dias, e foi quando desisti de você. Mas você foi esplêndida enquanto durou, Faye. E poderia ter ficado lá no alto por muito, muito tempo. - Ela não tinha certeza se concordava com ele, mas era gostoso ouvir aquilo. Ela provavelmente teria começado a decair, um dia. Todos caíam, com o tempo, e Ward lhe poupara isso, mas agora... ela teve de tomar coragem para pedir a ele o que queria, se bem que ele já estivesse desconfiado, assim que ouviu o nome dela. Ele lia os jornais, como todo mundo, e soubera dos problemas deles. A casa vendida, os bens leiloados, o estaleiro fechado. Fora uma queda rápida, como acontecia com alguns astros dele. Mas isso nunca mudava o que Abe sentia pelas pessoas de quem gostava e ele agora estava com pena de Faye, sem dinheiro, um marido que nunca trabalhara na vida e cinco filhos para sustentar.

- Sente saudades dos velhos tempos, Faye? Ela sempre fora sincera com ele.

- Para dizer a verdade, nunca senti. - Pelo menos até então, e mesmo aí ela estava pensando em outra coisa.

- Imagino que você não tenha tempo, cuidando de cinco filhos. - Mas ela teria de voltar a trabalhar, agora. Ele sabia disso bem demais e resolveu abordar o assunto e lhe poupar o constrangimento de se arrastar diante dele.

- A que devo a honra e o prazer desse telefonema, sra. Thayer? - Embora ele pudesse adivinhar... um papel numa peça, um pequeno papel num filme. Ele a conhecia bastante bem e sabia que não lhe pediria o impossível.

- Quero lhe pedir um favor, Abe.

- Diga. - Ele sempre fora franco com ela e, se pudesse, a ajudaria agora.

- Posso ir falar com você, um dia desses? - Ela estava parecendo uma ingênua de novo, e ele sorriu.

- Claro, Faye. Quando quiser. - Amanhã?

Ele levou um susto ao ver a pressa dela. Então, estavam bem desesperados.

- Ótimo. Vamos almoçar no Brown Derby.

- Seria ótimo. - Por um instante, ela pensou nos velhos tempos com saudade. Havia anos que não pensava naquilo. E depois que desligou, ela subiu a escada com um sorriso secreto. Só esperava que ele não lhe dissesse que ela estava maluca. Mas quando ela se encontrou com ele no dia seguinte, ele não disse isso, e ficou sentado muito quieto, pensando no que ela pedira. Ficara chocado ao ouvir os detalhes do que acontecera com a vida deles, e que estava morando em Monterey Park. Era tão diferente daquilo com que tinham começado, aliás, a anos-luz de distância, mas ela parecia estar se agüentando. Era uma mulher com uma fibra danada, sempre fora, e era bastante esperta para conseguir fazer o que tinha em mente. Ele só se perguntava se alguém lhe daria essa oportunidade.

- Li em algum lugar que Ida Lupino dirigiu um filme para a Warner Brothers, Abe.

- Eu sei. Mas não é todo mundo que te vai dar essa chance, Faye. - Ele foi sincero com ela. - Alias, há pouca gente que daria. - E depois: - O que é que o seu marido acha de tudo isso?

Ela respirou fundo e olhou bem nos olhos de seu antigo agente. Ele não mudara muito, naqueles anos. Continuava rechonchudo, grisalho, esperto, exigente, mas bondoso e honesto em exagero. E, melhor que tudo, ela sentiu logo que ele continuava a ser seu amigo. Ele a ajudaria, se pudesse.

- Ele ainda não sabe, Abe. Achei melhor falar com você primeiro.

- Acha que ele vai se opor a sua volta a Hollywood?

- Não assim. Poderia se opor se eu quisesse voltar a representar. Mas a verdade é que já estou velha para isso e me ausentei por muito tempo.

- Aos 32 anos, isso é uma besteira. Não está velha, mas seria difícil começar de novo depois de tantos anos. As pessoas se esquecem. E hoje os brotos têm os seus astros especiais. Sabe - ele se recostou à cadeira e ficou fumando o charuto, pensativo -, gosto muito mais dessa sua idéia. Se conseguirmos convencer algum estúdio, seria mesmo outra coisa.

- Vai tentar?

Ele apontou o charuto para ela.

- Está me convidando para voltar a ser seu agente, Faye? - Estou. - Ela encontrou o olhar dele e sorriu.

- Então, aceito. Vou vasculhar por aí e ver o que consigo. - Mas ela o conhecia bem: sabia que ele ia revirar todas as pedras até encontrar alguma coisa para ela, e se ele não encontrasse nada é que não havia nada mesmo. E ela estava certa. Ele passou seis semanas sem ligar para ela, e quando telefonou, foi para pedir que ela voltasse a ir vê-lo. Ela nem ousou perguntar nada pelo telefone. Pegou o ônibus de Monterey para Hollywood, onde foi sacolejando, nervosa, e depois subiu correndo a escada para o escritório dele. Ela estava ofegante quando chegou, mas ainda estava linda, notou ele quando ela se sentou. Estava com um sensacional vestido de seda vermelha com um casaco preto de lã leve. Conservara algumas roupas dos seus bons dias e estava linda. Ela estava quase tremendo, enquanto ele observava o seu rosto, e ele estendeu a mão por sobre a mesa e pegou a mão dela. Sabia como ela estava aflita.

- E então?

- Sossegue. Não é nada de fabuloso, mas é um começo. Talvez. Se te agradar. É um emprego de assistente de diretor, com um ordenado triste, na MGM. Mas o meu amigo Dore Schary gostou da idéia. Quer ver o que você pode fazer. E sabe bem o que a Lupino está fazendo na Warner Brothers. Gosta da idéia de também ter uma mulher na sua escuderia. - Havia muito tempo que Schary tinha a reputação de ser o mais progressista dos chefes de estúdio, e também era o mais jovem de todos.

- Ele vai poder saber se eu presto, se eu estiver trabalhando para outra pessoa? - Ela ficou preocupada com isso, mas, por outro lado, sabia que ninguém a deixaria dirigir sozinha pela primeira vez. Abe fez que sim.

- O diretor é um camarada que tem um contrato com ele, Dore sabe que ele não presta. Se o filme sair mais ou menos bom, tudo terá sido obra sua. E o cara é tão preguiçoso e bebe tanto que nem vai estar no set, a metade do tempo. Você vai ter carta branca, o que não vai ter é muito dinheiro nem muita glória com isso. Isso virá da próxima vez, se você se sair bem desta.

Ela meneou a cabeça. - O filme é bom?

- Poderia ser. - Ele estava sendo sincero com ela de novo, e descreveu o argumento e disse quem seriam os protagonistas. - Faye, é uma chance e é isso que você quer. Se você está falando sério, acho que devia experimentar. O que você tem a perder?

- Não muito, acho. - Ela olhou para ele, pensando em tudo o que ele dissera e gostando da idéia. - Quando é que eu começaria? - Ela queria tempo para estudar o roteiro e quase que Abe se engasgava. Ele sabia que ela gostava de trabalhar, como era atenta e estudiosa. Ele sorriu, debilmente.

- Na semana que vem.

Faye revirou os olhos, gemendo.

- Meu Deus. - Aquilo também não lhe dava muito tempo para preparar o espírito de Ward para aquela idéia. Mas era isso o que ela queria, era só o que ela sabia fazer, e nem tinha certeza se sabia como fazê-lo, mas queria muito experimentar. Havia meses que vinha pensando nisso, em segredo. Olhou bem nos olhos de Abe Abramson e meneou a cabeça. - Aceito.

- Eu não te disse quanto vai ganhar. - Aceito de qualquer maneira.

Ele disse quanto era e ambos sabiam que era ridículo, mas o importante era que lhe estavam dando uma chance.

- Você vai ter de estar no set às seis da manhã todos os dias, até mais cedo, se quiserem. Pode ser que trabalhe até às oito ou nove da noite. Não sei como vai se arranjar com as crianças. Talvez Ward possa ajudar. - Se bem que Abe não imaginasse que Ward fosse esse tipo de homem. Estava acostumado demais a ter um exército de empregados para servi-lo em tudo. E Abe se perguntou até que ponto ele estaria ajudando Faye, agora.

- Ainda tenho uma mulher para me ajudar.

- Bom. - Ele se levantou. Pareciam os velhos tempos... quase... mais ou menos... ela sorriu.

- Obrigado, Abe.

- Não há de quê. - Os olhos dele diziam que estava com pena dela, mas que a respeitava. Ela ainda havia de se safar. Ele sabia que ela era esse tipo de moça. - Volte amanhã para assinar o contrato, se puder. - Aquilo significava mais uma viagem de ônibus para a cidade, mas nada que se comparasse com o trajeto que ela teria de fazer todos os dias, agora, atravessando a cidade toda de leste a oeste, até Culver City e a MGM. Mas ela teria pisado em vidro moído para conseguir aquele trabalho, ou por Abe. Ela sabia que ele ganharia 10% dela, e 10% do que ela ganharia nem valia a pena ele considerar, mas ele não parecia estar-se importando. Nem ela. Estava empolgada.

Tinha um emprego! Ela teve vontade de gritar quando desceu a escada, e ficou sorrindo sozinha o tempo todo no ônibus e entrou na casa correndo, como faria um de seus filhos. Encontrou Ward na sala, evidentemente sentindo os efeitos de mais um almoço e champanha com um ,dos amigos, e ela se atirou ao colo dele e passou os braços por seu pescoço.

- Adivinhe o que aconteceu!

- Se me disser que está grávida de novo, eu me mato... mas só depois de matar você! - Ele riu dela e ela sacudiu a cabeça com um olhar complacente que ele nunca tinha observado nela.

- Não. Tente de novo.

- Desisto. - Ele estava com os olhos injetados e a fala arrastada, mas nessa hora ela nem se importou com isso.

- Consegui um emprego! - Ele pareceu ficar chocado, e ela continuou: - Como assistente de diretor num filme que começa na semana que vem, na MGM. - Ele se levantou tão depressa que ela teve de se equilibrar para não cair no chão, enquanto ele a fitava.

- Está maluca? Para que foi fazer uma coisa dessas, porra! Era isso que você andava fazendo? Procurando um emprego? - Ele parecia estar horrorizado e ela se perguntou como é que ele achava que eles iam se sustentar. Os 55 mil dólares em títulos não iam bastar para sustentar dois adultos, cinco crianças e uma empregada. - Para que foi fazer uma coisa dessas? - Ele estava gritando com ela e as crianças estavam olhando para eles, da escada.

- Um de nós tem de trabalhar, Ward.

- Já te disse, estou fazendo contatos todos os dias.

- Ótimo. Então breve você vai arranjar alguma coisa. Mas enquanto isso, quero fazer esse trabalho. Pode ser uma experiência maravilhosa.

- Para o quê? É isso que você quer? Hollywood, de novo? - Só assim, não como antigamente. - Ela lutou para manter a voz calma, e queria ser sincera com ele. Também queria que as crianças subissem e parassem de olhar para eles, mas quando fez sinal para que se fossem, elas nem se mexeram, e Ward não lhes deu atenção alguma, nunca dava, agora. - Acho que devemos falar disso a sós. - Porra nenhuma! Vamos falar é agora.

- A beleza dele parecia desaparecer, quando ficava furioso. - Por que não me perguntou, antes de fazer isso?

- Apareceu de repente.

- Quando? - Ele estava atirando as palavras a ela como pedras. - Hoje.

- Ótimo. Então diga que você mudou de idéia. Que você não está interessada.

De repente, uma coisa rebentou dentro dela e ela sentiu a fúria se avolumando dentro de si.

- Por que eu havia de fazer uma coisa dessas? Ward, quero esse emprego. Não me importa a mínima que seja mal remunerado, nem o que você pensa. É isso o que eu quero fazer. E um dia você ainda há de se alegrar que eu o tenha feito. Alguém tem de nos safar dessa encrenca em que estamos. - Ela se arrependeu logo das palavras. - E esse alguém é você, certo?

- Pode ser. - Mais valia ela continuar agora, o mal estava feito. - ótimo. - Os olhos dele faiscaram, quando ele pegou o paletó das costas de uma cadeira. - Então, não precisa de mim por aqui, não é?

- Claro que sim, eu... - Mas antes que ela acabasse de falar ele já tinha saído, batendo com a porta, e Valerie e Vanessa começaram a chorar. Gregory olhou para ela, triste.

- Ele vai voltar?

- Claro que sim. - Ela foi para junto das crianças, de repente, sentindo-se cansada. Por que é que ele tinha de tornar tudo tão difícil? Por que levava tudo tão pessoalmente? Provavelmente porque bebia demais, pensou, com um suspiro, enquanto beijava Lionel e desmanchava os cabelos de Greg e depois se abaixava para pegar as meninas ao colo. Era forte e conseguia carregar as duas ao mesmo tempo. Tinha força suficiente para fazer uma porção de coisas. Talvez fosse esse o problema com Ward. Ele não gostava de saber disso e cada vez ficava mais difícil esconder isso dele. Ela queria perguntar por que ele lhe estava fazendo isso, mas sabia a resposta.

Ele não podia enfrentar o que lhes acontecera e suas opções eram culpar a ela ou a si mesmo. De qualquer forma, ela é que pagava o pato. Como o fez naquela noite, acordada até as quatro da madrugada, esperando que ele chegasse em casa, rezando para que ele não tivesse arrebentado o carro e se ferido. Ele chegou às quatro e quinze, fedendo a gim e mal conseguindo se deitar na cama, no quarto escuro. Não adiantava nada falar com ele àquela hora. Ela ia esperar até de manhã e contar seus planos a ele. Mas quando o fez, ele não se impressionou.

- Pelo amor de Deus, Ward, escute. - A ressaca dele era tal que ele mal podia enxergar e ela estava com pressa para ir a Hollywood, assinar o contrato e pegar o argumento.

- Não quero saber dessa merda. Você está tão maluca quanto eu era antes. Delirando, é o que está. Você enlouqueceu: sabe dirigir um filme tanto quanto eu, que não sei coisa alguma disso. - Ele olhou para ela, furioso.

- Realmente não sei. Mas vou aprender. É isso que é importante nesse trabalho, e talvez o seguinte... talvez nos próximos dez filmes, ao que eu saiba. Mas depois disso pelo menos saberei alguma coisa e o que estou sugerindo não é assim tão louco.

- Bosta!

- Ward, escute. Os produtores são gente com uma porção de contatos, que conhecem outras pessoas com dinheiro. Eles não têm de ter um centavo, eles mesmos, e nem mesmo têm de gostar do filme, se bem que ajude quando fingem gostar. São intermediários, Arranjam o negócio. Qual o melhor negócio para você? Veja as pessoas que você conhece, os contatos que tem. Alguns dos seus amigos adorariam investir em filmes e se envolver um pouco com Hollywood. E um dia, se fizermos isso direito, poderemos ser uma equipe. Você produz, eu dirijo. Ele olhou para ela como se ela estivesse louca.

- Por que não nos arranja um contrato para um vaudeville? Você está doida varrida e vai fazer papel de idiota. - Por fim, ela se afastou dele. Ele ainda não queria ter esperanças. Não conseguia sequer começar a ver as possibilidades, mas ela via. Via tudo, se ele ao menos resolvesse se mexer e tentar. Ela pegou o casaco e a bolsa e olhou para ele.

- Pode rir de mim à vontade, Ward Thayer. Mas um dia você há de reconhecer que eu tinha razão. E se um dia você resolver ter a fibra e ser um homem de novo, pode até tentar a minha idéia. Não é tão louca quanto você quer achar. Pense nisso um dia, se tiver tempo, entre um drinque e outro. - E dizendo isso, ela saiu do quarto e fechou a porta.

Durante os dois meses seguintes, ela mal viu Ward. Ele estava sempre dormindo a sono solto quando ela saía de casa para o longo percurso de ônibus, para ir ao trabalho todos os dias. Tinha de sair de casa pouco depois das quatro da manhã e o ônibus levava uma eternidade para chegar à Metro. E quando ela chegava em casa de noite, já passava das dez, as crianças estavam dormindo e em geral Ward tinha saído. Ela nunca lhe perguntava aonde ele ia, de noite. Caía na cama depois de um banho quente, um lanche e uma olhada no argumento, e no dia seguinte recomeçava tudo. Era de matar, mas ela não ia desistir. O diretor para quem ela estava trabalhando detestava tudo quanto ela fazia e a fazia passar por um mau pedaço sempre que ela se encontrava no set, mas felizmente ele quase nunca aparecia lá. E ela não se importava a mínima com o que ele fazia, havia uma magia entre ela e os atores e ela conseguia deles coisas que ninguém conseguia. Aquilo aparecia nos copiões e, mais que isso, transparecia na cópia que eles afinal mostravam a Dore Schary. Em fins de janeiro, uma semana depois que eles acabaram o filme e ela voltara para casa para ver que Ward desaparecera por vários dias, Abe lhe telefonou.

Ward dissera à empregada que ia ao México, "visitar uns amigos", e ela não tivera qualquer notícia dele. Sentiu um calafrio na espinha quando recebeu o recado, mas forçou-se a pensar que estava tudo bem e a se concentrar nos filhos, que ela mal vira desde que começara a trabalhar no filme. Mas o seu tempo com eles foi novamente interrompido, desta vez por um telefonema de Abe, numa manhã em que ela estava brincando com Anne.

- Faye? - A voz tão conhecida ressoou em seus ouvidos e ela sorriu.

- Olá, Abe.

- Tenho boas notícias. - Ela prendeu a respiração. Por favor, Deus, faça com que gostem do meu trabalho. Ela estava numa agonia por aquilo, esperando para saber.

- Schary diz que você é fantástica. - Ah, Deus... - Seus olhos se encheram de lágrimas.

- Quer lhe dar outra oportunidade. - Por minha conta, dessa vez?

- Não. Ainda como assistente de direção, mas ganhando mais. E dessa vez quer que você trabalhe com alguém que seja bom. Acha que você poderá aprender muita coisa com ele. - Ele mencionou o nome que deixou Faye sem fôlego. Já tinha dirigido a própria Faye, havia anos, e ela sabia que Dore Schary estava certo, ela podia aprender muita coisa com aquele homem. Mas ela queria dirigir um filme ela mesma. Sabia que teria de ter paciência, por enquanto. Obrigou-se a pensar nisso enquanto Abe descrevia o novo trabalho e ele lhe pareceu muito bom. - O que você acha?

- A resposta é sim. - Eles estavam mesmo precisando do dinheiro, e só Deus sabia onde estava Ward. Essa viagem ao México era realmente a gota d'água e ela pretendia lhe dizer isso quando ele voltasse. Isso e muitas outras coisas. Queria contar a ele sobre o novo trabalho. Era uma maravilha, e não havia mais ninguém a quem ela pudesse contar. Ela se sentira tão desesperadamente só, sem ele... - Quando é que começo?

- Daqui a seis semanas.

- Bom, assim terei um pouco mais de tempo com as crianças. Ele notou que ela não falara de Ward, e havia tempos que nem o mencionava, mas não se espantava com isso.

Não apostaria 10 centavos na possibilidade de que o casamento deles sobrevivesse. Aparentemente, Ward não se estava adaptando às circunstâncias, a julgar pelo pouco que Faye dissera, e , mais cedo ou mais tarde, Faye haveria de vencer e deixá-lo para trás. Era fácil ler o que estava escrito, ou pelo menos era o que Abe pensava.

Sem família ou muitos amigos íntimos, e tendo largado a sua vida antiga como estrela por ele e os filhos, ela passara anos dependendo inteiramente dele, e ainda dependia. Ela precisava dele, como ele precisava dela, ou pelo menos era o que ela pensava. E ela teve um choque imenso quando o viu na volta do México. Ele estava bronzeado, saudável, feliz, com um comprido charuto cubano entre os dentes, uma valise de couro de crocodilo na mão e usando um de seus velhos ternos de linho branco.

Tinha o ar de quem ainda tinha um Duesenberg estacionado lá fora, era só procurar. E ele pareceu ficar ligeiramente encabulado ao olhar para ela, quando entrou em casa. Esperava que ela estivesse na cama, àquela hora. Já passava da meia-noite, mas ela estava estudando o novo argumento.

- Fez boa viagem? - O frio da voz dela escondia toda a solidão e o sofrimento que ela sentira desde que ele partira. Mas era orgulhosa demais para deixar que ele percebesse... por enquanto.

- Fiz... desculpe não ter escrito...

- Imagino que você não tenha tido tempo. - Alguma coisa no rosto dele a fez sentir uma raiva súbita dele. Havia sarcasmo na voz dela, e amargura. Ele não estava arrependido por ter ido. Ela viu aquilo num instante e logo sentiu por quê. - Com quem você estava?

- Uns velhos amigos. - Largou as malas e sentou-se à frente dela, no sofá, sentindo que aquilo era mais delicado do que ele imaginara.

- Interessante. Engraçado que você não tenha falado nada, antes de partir.

- Foi uma coisa que apareceu bem de repente. - Uma expressão maldosa nos olhos dele. - E você estava ocupada com o seu filme. - Essa é que era a verdade, a vingança dele por ela ter arranjado um emprego e ele não, e ela também sabia disso, mas não era justo. - Sei. Claro, agora compreendo. Da próxima vez que você se ausentar por três semanas, pode experimentar me ligar para o trabalho, antes de partir. Vai ver como sou fácil de ser alcançada pelo telefone.

- Não sabia disso. - Ele estava empalidecendo sob o bronzeado. - Imagino. - Ela olhou bem nos olhos dele e viu a verdade. Só não sabia como confrontá-lo. Mas, no dia seguinte, os jornais tornaram as coisas fáceis para ela. Estava tudo lá. Ela só teve de jogar o jornal para ele, por cima da cama. - O seu agente de imprensa deve ser bem bom, e o seu agente de viagens também. Só não acho grande coisa é seu gosto em matéria de mulheres, ou o seu critério quanto a quem levar consigo quando viaja. - Ela sentiu como se lhe cravassem uma faca nas entranhas e que ela morreria ali mesmo. Mas se recusava a deixar que ele percebesse isso. Não queria que ele soubesse quanto a fizera sofrer, com aquele caso escandaloso. E ela sabia que era o jeito de ele suportar o que lhes acontecera, fingindo que ainda fazia parte do mundo que acabara de perder. Mas por mais que ele fingisse tudo isso, estava tudo acabado para eles... a não ser que ele voltasse àquele mundo outra vez.

Ward ficou pasmo ao ler as palavras. "Milionário falido Ward Thayer IV e Maisie Abernathie devem estar voltando do México a qualquer momento. Passaram três semanas se divertindo no iate dela ao largo de San Diego e foram ao México, ver amigos e brincar de pescar. Parecem muito felizes e todos se perguntam o que ele fez com sua rainha do cinema aposentada..." Faye o fitou com pavor e ódio nos olhos, pela primeira vez na vida.

- Pode dizer a eles que eu dei o fora. Não vai aparecer nas manchetes, mas pelo menos vai facilitar as coisas para você e a srta. Abernathie, seu filho da puta. É assim que você vai encarar o que nos aconteceu? Andando com gente como ela? Vocês dois me enojam. - Maisie Abernathie era uma herdeira mimada e egoísta que já fora para a cama com quase todos os homens que eles conheciam... "a não ser eu", dizia ele antes, de gozação. E agora a lista o incluía também. Faye saiu do quarto e bateu a porta e quando ele desceu viu que ela saíra para levar os quatro filhos ao colégio. Havia semanas que ela passava a maior parte do tempo com eles, para compensar os meses que trabalhara e o tempo que ainda passaria trabalhando agora. Ela sentia uma falta louca deles quando trabalhava, mas não estava pensando neles quando voltou para casa e encontrou Ward esperando por ela no andar de baixo, com um roupão de seda azul que comprara em Paris, anos antes.

- Tenho de conversar com você. - Ele parecia apavorado quando se levantou, mas ela passou por ele na direção da escada. Ia ler na biblioteca pública.

- Não tenho nada a te dizer. Você tem liberdade para ir onde bem entender. Vou arranjar um advogado e ele pode se comunicar com Burford. - Ela estava começando a se convencer de que Maisie Abernathie não só era verdade, como também definitiva.

- É assim tão simples, é? - Ele agarrou-lhe o braço quando ela passou por ele, evitando encará-lo. Mas agora ela o encarou bem e ele quase se assustou. Nunca vira um tal desprezo, e muito menos se senti ra objeto disso, e seu coração quase se despedaçou quando ele se deu conta do que fizera. - Faye, escute... foi tudo um erro besta. Eu tinha de sair daqui... as crianças gritando o tempo todo... você fora de casa... esta casa deprimente... foi demais para mim.

- Bom. Então você está livre disso para sempre. Pode voltar para Beverly Hills com Maisie. Tenho certeza de que ela terá prazer em te acolher.

- Como o quê? - Ele olhou para a mulher com amargura. - Chofer dela? Porra, pelo amor de Deus. Não consigo nem arranjar um emprego e você trabalha o tempo todo, como é que vai saber o que eu sinto? Não suporto esta vida. Não fui criado para isso... não sei... - Ele largou a mão de Faye e ela o fitou, sem pena alguma. Dessa vez ele se excedera.

A bebida, a autocomiseração, a incapacidade de trabalhar, as mentiras quando estava gastando o resto do dinheiro antes de ela descobrir, tudo isso ela poderia lhe perdoar, mas aquilo não. Era o fim. Mas assim mesmo ele olhou para ela, com pesar. - Não é minha culpa. Você é mais forte do que eu. Tem uma coisa dentro de você que eu não tenho. Não sei o que é.

- Chama-se fibra. E você também tem, era só se dar a oportunidade e ficar sóbrio por tempo suficiente para se pôr de pé.

- Talvez eu não possa. Já te ocorreu isso? A mim, já. Todos os dias, aliás, até eu ir embora. E talvez isso seja uma coisa que eu deva fazer de vez.

- O quê? - Ela manteve uma expressão neutra, mas sentiu o pavor lhe arrepiar a espinha de novo.

Ele agora parecia estranhamente mais calmo, como se soubesse o que tinha a fazer.

- Quero dizer, sair de sua vida, Faye.

- Agora? Isso seria uma coisa nojenta. - Ela estava horrorizada, não queria perder aquele homem. Ainda o amava. Ele e os filhos eram só o que lhe importava. - Como nos pode fazer uma coisa dessas? - Os olhos dela estavam cheios de lágrimas e ele se obrigou a não olhar para ela, daquele jeito como se obrigara a não pensar nela nas últimas semanas. Não podia mais suportar a culpa. O que acontecera fora tudo culpa dele e não havia nada que ele pudesse fazer para ajudar. Não tinha nada a lhe oferecer e ela parecia estar se dando bem, sozinha. Pelo menos, era o que ele se dissera e o que estava se dizendo agora, sem olhar para ela. Se olhasse, veria que os olhos dela estavam cheios de agonia. - Ward, o que está acontecendo conosco? - A voz dela estava grave e rouca e ele soltou um suspiro profundo, atravessou a sala e foi olhar pela janela para a vista inexistente da casa sem pintura do vizinho e o lixo no quintal.

- Acho que está na hora de eu dar o fora daqui, arranjar um emprego para mim e deixar que você se esqueça de que eu algum dia existi.

- Com cinco filhos? - Ela teria rido, só que estava com vontade de chorar. - Pretende se esquecer deles também? - Ela olhou para a nuca dele, sem poder acreditar.

Aquilo não podia estar acontecendo com eles, mas estava. Parecia um pesadelo ou um argumento muito ruim.

- Eu te mandarei tudo o que puder. - Ele se virou devagar, para encará-la do outro lado da sala.

- É Maisie? Você está levando isso a sério? - Era difícil acreditar naquilo, mas agora tudo era possível. Talvez ele estivesse muito desesperado mesmo por seu antigo modo de vida, e Maisie certamente fazia parte dele. Mas Ward sacudiu a cabeça.

- Não é isso. É só que acho que tenho de sair daqui, por uns tempos. - Ele parecia estar quase amargurado, ao dizer aquilo. - Sinto que devo deixar você sozinha, para reconstruir a sua vida. Provavelmente você poderia acabar se casando com algum astro de cinema de sucesso.

- Se eu quisesse isso, poderia tê-lo feito há anos. Mas não queria isso. Queria você.

- E agora? - Ele sentiu o primeiro lampejo de coragem que sentia, havia anos. Agora estava tudo às claras. Não havia outro lugar aonde ir, só para cima. Não tinha mais nada a perder, se de fato ele a perdera.

Ela o fitou com os olhos tristes e vazios.

- Não sei mais quem você é, Ward. Não compreendo como pôde ir ao México com ela. Talvez seja melhor voltar para ela. Eram palavras de uma bravata falsa, mas ele mordeu a isca. - Talvez faça isso. - Então subiu a escada, furioso, e pouco depois ela o ouviu batendo com as coisas no quarto deles, arrumando suas malas. Ela ficou sentada na cozinha, olhando às cegas para uma xícara de café, pensando nos últimos sete anos e chorando amargamente, até chegar a hora de ir buscar as crianças no colégio.

E quando ela voltou para casa, ele já se fora. As crianças nem se deram conta de que ele tinha voltado, de modo que ela não teve nada a explicar. Nessa noite ela arrumou o jantar para elas, costeletas de cordeiro cozidas demais, batatas assadas que pareciam pedras e espinafre que deixou queimar. Não era perita em cozinhar para os filhos, mas pelo menos tentava e nessa noite só conseguia pensar em onde ele estaria, com Maisie Abernathie, sem dúvida, e se ela estava errada por brigar com ele. Naquela noite, ela ficou deitada pensando no passado, em Guadalcanal, até, e os bons tempos que tinham passado juntos... a ternura, os sonhos, e ela chorou pela noite afora e afinal adormeceu chorando, com saudades dele.

O segundo filme em que Faye trabalhou foi bem mais difícil do que o primeiro, o diretor estava sempre presente, exigindo coisas dela, dando-lhe ordens, criticando o que ela fazia. Havia ocasiões em que ela sentia muita vontade de esganá-lo, mas no final das contas, ele lhe deu uma dádiva muito rara e especial. Ensinou-lhe todos os truques que ela precisava muito saber para seu novo ofício, exigia o máximo dela e recebia bem mais que isso e por vezes deixava que ela pegasse as rédeas e depois a corrigia. Quando terminaram o filme, ela aprendera mais do que aprenderia normalmente em dez anos e ela lhe estava agradecida. Antes de se retirar do set pela última vez ele lhe fez um elogio imenso e ela estava com lágrimas nos olhos, ao vê-lo se afastar.

- O que foi que ele te disse? - perguntou um dos técnicos da maquinaria, e Faye sorriu.

- Disse que gostaria de voltar a trabalhar comigo, mas que sabe que eu não vou trabalhar com ele... que da próxima vez estarei dirigindo um filme, pessoalmente.

- Ela suspirou e olhou para os atores, se abraçando e beijando e comemorando o fim de seu trabalho árduo. - Espero que tenha razão. - E tinha. Dois meses depois, Abe lhe ofereceu o seu primeiro trabalho como diretora, ainda na MGM, sem ser assistente de ninguém. Dore Schary lhe dera a sua grande oportunidade e ela correspondera.

- Parabéns, Faye. - Obrigada, Abe. - Você merece tudo isso. - O novo filme começaria no outono.

Era um desafio imenso e ela estava satisfeita. A essa altura as crianças estariam de volta ao colégio. Lionel ia para a segunda série, Greg para a primeira, as gêmeas ainda estavam no maternal, nesse último ano, e Anne ainda não tinha completado dois anos, andando atrás dos outros, aflita por alcançá-los, mas sempre sobrepujada por eles. Faye sempre pretendia passar algum tempo com ela, mas nunca tinha tempo suficiente. Os outros pediam muito dela. Agora, ela teria de estudar o argumento e lê-lo durante vários meses. Por fim, teria de dirigir o filme. Era difícil parar tudo e tornar a passar o tempo com um bebê. Anne era diferente dos outros, não só mais moça, mas também muito menos capaz de se comunicar. Era sempre mais fácil deixá-la com a ama, que tanto a adorava, e Lionel sempre fora especialmente agarrado a ela.

Faye estava empolgada com o novo filme, era uma oportunidade que a entusiasmava, só que todos os dias ela ainda pensava em Ward e se perguntava onde ele estaria.

Desde o dia em que ele partira, nunca mais tinham tido notícias dele. Ela lera uma noticia sobre ele na coluna de Louella Parsons, mas não lhe revelava nada. Pelo menos, não mencionava Maisie Abernathie.

Diante disso, o filme lhe dava o que fazer. Ela estava aflita para manter a cabeça ocupada desde que acabara o outro filme. Vários meses antes, ela pedira a Abe o nome de um advogado, mas nunca chega ra a ligar para ele, embora resolvesse fazê-lo. Sempre aparecia alguma coisa e as recordações a dominavam de novo.

E então, de repente, num dia de julho, Ward apareceu à sua porta. As crianças estavam brincando no quintal onde todos tinham plantado flores com muito carinho e a ama lhes fizera um balanço. Todos orgulhosos de seus feitos e habilidade, e de repente lá estava ele, de terno de linho branco, uma camisa azul, mais bonitão do que antes. Por um instante, ela sentiu a antiga atração por ele, mas lembrou-se de que ele a abandonara, e só Deus sabia com quem estaria metido agora. Ela se sentiu encabulada olhando para ele, e abaixou os olhos antes de tornar a fitá-lo.

- Sim?

- Posso entrar?

- Para quê? - Ela o fitou, nervosa, ele estava constrangido, mas era evidente que ele não iria embora até que ela o deixasse falar com ela. - As crianças vão ficar perturbadas se te virem aqui. - Havia pouco que elas tinham parado de perguntar por ele e ela supunha que Ward pretendia desaparecer de novo.

- Há quase quatro meses que não vejo os meus filhos. Não posso ao menos lhes dar um olá? - Enquanto ela hesitava, viu que ele estava mais magro, o que o fazia mais jovem do que parecia há anos. Ela não queria reconhecer como ele era bonito. Não adiantava nada se apaixonar por ele de novo. - E então? - Ele não ia desistir e ela por fim recuou e abriu a porta de tela para ele. A casa pareceu a ela ainda mais feia do que normalmente, ao vê-la pelos olhos dele, quando ele entrou e olhou em volta. - Bem, nada mudou por aqui. - Era uma simples declaração de um fato e aquilo a irritou logo.

- Imagino que você esteja morando em Beverly Hilis de novo. - Na voz dela havia uma aspereza que o cortou como faca, como ela pretendia que acontecesse. Ele a magoara terrivelmente ao partir, e provavelmente só estava voltando para atormentá-la de novo. Ela imediatamente supôs o pior.

Ele se virou para ela com calma.

- Não estou morando em Beverly Hills, Faye. Acha mesmo que eu deixaria vocês todos num lugar como esse e voltaria sozinho para Beverly Hills? - Parecia estar horrorizado e Faye ficou olhando para ele. Era exatamente o que ela achara.

- Não sei o que você faria, Ward. - Ela certamente não vira chegar algum cheque da parte dele, mas eles se tinham agüentado com a renda do seu pequeno fundo e o ordenado dela. Na verdade, ela ficou matutando de que é que ele vivera naqueles últimos meses, mas não queria perguntar.

Àquela altura, as crianças entraram correndo e Lionel parou na porta que dava para o jardim, levando um choque ao vê-lo ali. Depois, adiantou-se até ele, devagar, com os olhos arregalados. Mas quando Greg viu Ward, passou correndo por Lionel e se atirou aos braços do pai. As gêmeas o imitaram e Anne ficou ali olhando para ele, sem saber de quem se tratava. Não se lembrava dele, olhou para Faye e levantou as mãos, para que a mãe a pegasse ao colo, coisa que ela fez, vendo os outros se agarrarem a Ward, rindo e gritando, enquanto ele lhes fazia cócegas. Somente Lionel parecia mais cauteloso do que os outros e ficou olhando para Faye, várias vezes, como que querendo saber o que ela achava daquilo.

- Tudo bem, Lionel - disse ela, com brandura -, pode brincar com o seu pai. - Mas ele ficou de longe, observando. E, afinal, Ward convenceu a todos de que fossem se lavar e arrumar, prometendo levá-los para almoçar hambúrguer e sorvete.

- Você se importa? - perguntou ele, depois que as crianças subiram.

- Não - disse ela, olhando para ele com cuidado. Estava nervosa, encarando-o agora, mas ele também estava. Quatro meses era muito tempo. Mais uma vez, eles pareciam quase estranhos.

- Arranjei um emprego, Faye. - Disse aquilo como se esperasse que houvesse um toque de clarins, e ela resistiu à vontade de sorrir.

- Ah, é?

- Num banco... não é um trabalho importante. Arranjei com um dos amigos do meu pai. Fico sentado o dia todo a uma mesa e no fim da semana recebo um cheque. - Ele parecia surpreso, como se esperasse que fosse mais doloroso, como uma cirurgia.

- Ah, é?

- Bom, não vai dizer nada, porra! - Ficou zangado com ela de novo. De repente, era tão difícil agradar-lhe, e ela nunca fora daquele modo. Talvez a volta ao trabalho a estivesse sacrificando. Ele sabia que ela não ficava sentada a uma mesa o dia todo, esperando o seu cheque na sexta-feira. Ele respirou fundo e tentou de novo.

- Você está trabalhando, no momento? - Ele sabia que não podia estar, senão não estaria em casa brincando com as crianças, pelo menos não fora assim quando ele estava ali.

- Não, só daqui a um mês. Dessa vez vou dirigir um filme meu. - Ela logo ficou aborrecida consigo mesma por ter falado demais. Não era mais da conta dele o que ela fazia, mas em todo caso ela gostou de contar a ele. Sempre gostara de lhe contar tudo.

- Que ótimo. - Ele parecia estar nervoso, observando-a, sem saber bem o que dizer. - Há algum astro importante no filme? - Alguns.

Ele acendeu um cigarro. Nunca tinha fumado. - Ainda não tivemos notícias do seu advogado.

- Ainda não tive tempo de tratar disso. - Mas isso não era bem verdade. Havia vários meses que ela estava livre, mas ele não podia saber disso. - Mas vai ter.

- Ah.

E então as crianças desceram, num atropelo só. Ele levou as quatro mais velhas para almoçar, oferecendo-se para levá-las no carro novo, um Ford 1949. Parecia bem novo e Ward sorriu para ela, como se desculpando.

- Não é propriamente um Duesenberg, mas serve para me transportar ao trabalho. - Ela resistiu à vontade de lhe dizer que continuava a andar de ônibus. A camioneta afinal acabara no mês anterior, deixando-os sem qualquer transporte.

- Quer vir almoçar conosco, Faye?

Ela ia recusando, mas as crianças imploraram num tal alarido que foi mais fácil ceder e ir, e uma parte dela estava curiosa para saber por onde ele tinha andado, o que fizera, onde estava morando agora. Perguntou-se ele ainda estaria tendo um caso com Maisie Abernathie, mas disse a si mesma que não se importava mais e quase se convenceu, até ver o modo como a garçonete olhava para ele e sentir-se corar. Ele ainda era um rapaz muito bonito e as mulheres certamente pareciam dar atenção a ele mais do que os homens davam a ela. Mas também, ela continuava a usar a sua aliança e onde quer que fosse, carregava as cinco crianças consigo.

- Eles estão maravilhosos. - Ele a elogiou na volta para casa, enquanto os quatro guris se empurravam e acotovelavam no assento traseiro do Ford azul-escuro. - Você fez um bom trabalho com eles.

- Você não passou dez anos fora, Ward, pelo amor de Deus. - Às vezes até parece. - Ele ficou calado um pouco e depois olhou para ela, quando pararam num sinal vermelho.

- Sinto muita falta de vocês todos.

Ela teve vontade de dizer "E nós de você", mas obrigou-se a não dizer coisa alguma e ficou surpresa ao sentir a mão dele sobre a sua. - Nunca deixei de me arrepender do que fiz, se é que isso conta alguma coisa. - Ele estava falando tão baixinho que as crianças não podiam ouvir e elas estavam fazendo uma tal algazarra que não teriam ouvido, mesmo. - E nunca mais fiz aquilo. Não saí com outra mulher desde o dia em que saí de nossa casa. - "Nossa casa", palavras estranhas de ele pronunciar, com referência àquele lugar horroroso, e o que ele disse comoveu o coração dela, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas e ela se virava para olhar para ele.

- Eu te amo, Faye. - Eram palavras que ela ansiara por ouvir durante quatro meses e instintivamente ela estendeu os braços para ele. A essa altura já tinham chegado em casa e as crianças saltaram do carro, aos tropeções. Ward disse para elas entrarem, que ele ia logo. - Benzinho... eu te amo mais do que você imagina.

- Eu também te amo. - De repente, ela começou a soluçar e se afastou, olhando para ele com os olhos arrasados. - Tem sido tão horrível sem você, Ward...

- Foi igualmente terrível para mim. Pensei morrer sem você e as crianças. De repente, eu me dei conta de tudo quanto tínhamos, mesmo sem a nossa vida antiga e uma casa grande...

- Não precisamos de tudo isso. - Ela fungou e sorriu. - Mas precisamos de você.

- Não tanto quanto eu preciso de vocês, Faye Thayer. - Ele olhou para ela, hesitando. - Ou será Faye Price de novo?

Ela riu, no meio das lágrimas.

- De modo nenhum! - E ao mesmo tempo ela notou que ele ainda estava de aliança e nesse exato momento Greg o estava chamando, de dentro de casa.

- Já vou, filho! Um instante - ele gritou de volta. Ainda havia tanta coisa a falar, mas Faye saltou do carro, devagar.

- Vá indo. Eles também sentiram falta de você.

- Nem a metade do que eu senti. - E então, com uma expressão de desespero nos olhos, estendendo a mão e agarrando o braço dela: - Faye, por favor... podemos tentar de novo? Faço o que você quiser. Deixei de beber assim que parti. Eu me dei conta de como tinha sido um traste total. Tenho uma droga de emprego, mas pelo menos é alguma coisa... Faye... - Os olhos dele se encheram de lágrimas e de repente ele não conseguiu mais conter o que sentia por ela. Abaixou a cabeça e começou a chorar, e depois de um instante olhou para ela, com franqueza. - Eu não sabia o que fazer da minha vida, quando você começou a trabalhar. Senti como se não fosse mais homem... como se nunca tivesse sido... mas, ah, Deus, não quero perdê-la, Faye... por favor... ah, benzinho, por favor... - Ele a puxou para seus braços e Faye sentiu como se seu coração tivesse encontrado seu lar de novo. Ela nunca chegara a desistir dele, de verdade. Nem sabia se algum dia poderia fazer isso. Ela pousou a cabeça nos ombros dele e as lágrimas começaram a jorrar de novo.

- Teve vezes que eu te detestei tanto... ou pelo menos quis... - Eu também quis detestar você, mas sabia que eu é que estava errado.

- Talvez eu também estivesse. Talvez não fosse direito eu voltar a trabalhar, mas eu não sabia o que mais podia fazer.

Ele sacudiu a cabeça.

- Você estava certa - e depois sorriu para ela, no meio de suas próprias lágrimas -, você e suas idéias malucas de me fazer produtor, um dia... - Ele sorriu para ela com ternura. Que mulher boa ela era, que sorte a dele, tê-la de volta em seus braços, mesmo por uma ou duas horas.

Ela estava sacudindo a cabeça para ele.

- Não foi uma idéia maluca. É possível, Ward. Eu lhe poderia ensinar tudo quanto precisa saber. Você podia ficar no set, durante esse próximo filme. - Ela estava esperançosa, mas dessa vez ele sacudiu a cabeça.

- Não posso. Agora sou um homem que trabalha. Nove às cinco e tudo o mais.

Ela riu.

- Está bem, mas ainda assim você poderia ser um produtor um dia, se for isso que quiser.

Ele suspirou e abraçou a mulher. - Isso me parece delírio, amiga.

- Talvez não seja. - Ela olhou para ele, pensando no que lhes traria a vida. Pelo menos o levara de volta à sua casa.

Ele ficou ali na porta da casa feia de Monterey Park, olhando-a. - Vamos tentar de novo?... Não... mais corretamente, você me dá mais uma chance, Faye?

Ela olhou bem para ele e aos poucos um sorriso se formou em seus olhos. Era um sorriso nascido da experiência, da decepção e do sofrimento. Não era mais uma mocinha.

A vida não era mais o que fora há anos antes. Todo o seu mundo estava de pernas para o ar e ela sobrevivera. E agora aquele homem lhe estava pedindo para andar a seu lado de novo. Ele a magoara, a abandonara, lhe mentira, a traíra. E no entanto, no fundo, ela sabia que ele era seu amigo, que ele a amava e ela a ele, e sempre amaria. Ele não tinha os mesmos instintos que ela e não estava nada tão bem equipado para sobreviver. Mas talvez, lado a lado, de mãos dadas... talvez... podia ser... aliás, ela estava segura. Mais importante, estava segura dele de novo.

- Eu te amo, Ward. - Ela sorriu para ele, de repente sentindo-se jovem de novo. Passara meses intermináveis sem ele. Nunca mais queria passar por aquilo. Ela conseguiria sobreviver a tudo, menos a isso, até mesmo à miséria.

Ele então a beijou, enquanto as crianças olhavam e de repente todos começaram a rir e Greg apontou para eles, rindo mais que todos, quando Ward e Faye também começaram a rir. A vida era doce de novo, como fora há muito tempo antes, só que agora era melhor. Ambos tinham passado pelo inferno e estavam de volta, e em certos aspectos não era diferente de Guadalcanal. Mas tinham vencido a guerra. Por fim. E agora a vida poderia recomeçar. Para todos eles.

 

Ward largou o seu quarto mobiliado em West Hollywood, sem nunca mais pousar lá, e se mudou de volta para a casa feia de Monterey Park, que ele tanto detestava, sem que, dessa vez, sequer notasse como era triste. Pareceu-lhe maravilhosa, quando carregou suas malas para o quarto deles, no andar de cima.

Tiveram três semanas de idílio antes de as crianças voltarem para o colégio e Faye começar o seu novo filme. E quando ela voltou ao trabalho, ele insistiu para que ela levasse o carro, o que lhe poupava horas no ônibus às quatro e cinco horas da manhã, e ela ficou grata por isso. Ele a estava tratando melhor do nunca. E se não havia mais pingentes de esmeraldas e broches de rubi, havia jantares que ele preparava para ela com as próprias mãos e depois os conservava quentes até ela chegar em casa, presentinhos que ele lhe comprava quando recebia o ordenado, como um livro, um rádio ou um suéter quente para ela usar no set. Eram massagens que ele lhe fazia quando ela estava tão cansada que sentia vontade de chorar, e os banhos quentes que ele preparava com o óleo de banho que ele comprara. Ele era tão bom para ela que por vezes ela até tinha vontade de chorar. Mês após mês ele provou-lhe o quanto a amava e ela provou o mesmo a ele. Das cinzas da vida antiga deles surgiu um relacionamento mais forte do que jamais tinham tido, e os meses feios começaram a se apagar. No entanto, raramente se permitiam recordar os tempos idos. Ainda era doloroso demais para ambos.

Em muitos sentidos, Faye gostava de sua nova vida. Seu primeiro trabalho como diretora foi muito bom e em 1954 lhe deram três filmes para fazer, todos com astros importantes. Todos foram grandes sucessos de bilheteria. Ela começara a fazer um nome para si em Hollywood, de novo, não como um rostinho bonito ou uma grande estrela, mas como diretora de boa cabeça, grande talento e um poder espantoso com seus astros. Abe Abramson dizia que ela conseguia um desempenho comovente de uma pedra, e Dore Schary não discordava dele. Ambos se orgulhavam dela e quando surgiu a sua primeira oferta em 1955, Faye pediu o que vinha querendo deles, havia anos. Ela o estivera treinando desde que ele voltara, e sabia que agora estava preparado. Seu agente quase caiu da cadeira quando ela explicou o que era.

- E você quer que eu diga isso a Dore? - Ele parecia chocado. O camarada não entendia nada de filmes e Faye estava maluca, no que lhe dizia respeito. Ele já a achara louca quando o recebera de volta. Era a primeira vez em que ele discordava dela, mas nunca lhe dissera o que achava. Não naquela ocasião. Mas agora disse. - Você está maluca! Nunca hão de concordar com isso. Ele não tem experiência alguma. O camarada está com 38 anos, Faye, entende tanto do que é ser produtor quanto o meu cachorro.

- Você está dizendo uma coisa nojenta e não me importo a mínima com o que você pensa. Ele aprendeu alguma coisa sobre finanças nesses dois últimos anos, é inteligente e tem amigos influentes. - Mas, mais importante, Ward afinal ficara adulto e Faye estava imensamente orgulhosa dele.

- Faye, eu não posso mesmo vender uma idéia dessas. - Abe estava certo daquilo.

- Então, também não pode ser meu agente, Abe. São as minhas condições. - Ela parecia dura como pedra e Abe teve vontade de se debruçar sobre a mesa e esganá-la.

- Você está cometendo um grande erro. Vai estragar tudo. Se você se estrepar nesta, ninguém vai voltar a procurá-la. Sabe muito bem que foi difícil à beça promover você como diretora, para começo de conversa. E todo mundo está esperando que você caia de cara no chão. Ninguém mais te dará a oportunidade que Dore te deu, isso não acontecerá de novo... - Os argumentos dele se estavam acabando, e ela levantou a mão, sem anéis, só com a aliança de ouro simples que não tirara desde o dia do casamento. Todas as outras jóias que Ward lhe dera já tinham sido vendidas, havia muito. Ela nem sentia mais falta delas. Fazia parte de outra vida, outros tempos.

- Já sei de tudo isso, Abe. E você sabe o que é que eu quero.

- Ela se levantou e olhou para ele. - Você pode conseguir isso, se quiser. Depende de você. Mas essas são as minhas condições.

- Depois que ela saiu, ele teve vontade de atirar uma coisa na porta.

No entanto, ele ficou ainda mais surpreso quando a MGM aceitou as condições dela.

- Eles estão ainda mais loucos do que você, Faye.

- Concordaram? - Ela estava em estado de choque, agarrada ao telefone.

- Vocês dois começam no mês que vem. Pelo menos, ele. Ele primeiro e depois entra você, quando iniciar a produção do filme.

Produtor, diretora, com seus escritórios na MGM. - Ele ainda não se tinha refeito e ficou ali sentado à sua escrivaninha, sacudindo a cabeça. - Boa sorte... e escute, é bom vocês dois darem um pulo até aqui para assinar os contratos já, antes de eles tomarem juízo e mudarem de idéia.  Vamos hoje à tarde.

- Certo - disse ele, grunhindo. E quando eles foram, Faye pode se orgulhar de Ward de novo.

Era terrível reconhecer aquilo, mas as provações tinham feito bem a ele. Agora ele estava com ar mais maduro e tranqüilo, e inteligente. Abe começou a achar que ele talvez pudesse conseguir o que queria afinal, e sabia que ela faria tudo para ajudar. Ele acabou apertando as mãos de ambos e beijando o rosto de Faye, desejando-lhes felicidades e sacudindo a cabeça de novo, quando saíram. Nunca se sabe... era possível... talvez...

O filme foi grande sucesso de bilheteria e a carreira deles alçou vôo depois disso, e produziam e dirigiam de dois a três filmes por ano. Em 1956, afinal, conseguiram se mudar da casa que Ward tanto detestara, se bem que agora nenhum dos dois tivesse tempo para reparar nela. Alugaram outra casa, por dois anos. E em 1957, cinco anos depois de terem partido, estavam novamente em Beverly Hills. Não com o esplendor que haviam conhecido, mas numa casinha bonita, bem tratada, com um jardim na frente e outro atrás, cinco quartos de dormir, o que lhes permitia ter um escritório em casa, e uma piscina modesta. As crianças ficaram encantadas e Abe Abramson ficou feliz por eles, mas não tão feliz quanto Ward e Faye Thayer. Tinham conseguido voltar. Parecia que estavam novamente voltando da guerra, e se agarraram a suas carreiras com tenacidade, apreciando cada momento.

 

BEVERLY HILLS... NOVAMENTE 1964-1983

O escritório dele na MGM não dava para nada em especial e ele olhou para fora, sem interesse, enquanto ditava. Quando Faye entrou, olhou para o perfil do marido, do outro lado da sala, e sorriu para si. Aos 47 anos de idade, estava, talvez, tão bonito quanto fora há 20 anos antes. Talvez mais, pois os cabelos estavam brancos e os olhos conservavam o mesmo azul profundo e maravilhoso. O rosto estava enrugado, mas o corpo continuava comprido, esguio e musculoso e ele estava com um lápis na mão, enquanto pesava as palavras. Estava tratando do próximo filme deles, programado para entrar em produção dali a três semanas, e dessa vez quase no prazo.

Ele era terrível sob esse aspecto. A Ward Thayer Productions apresentava as coisas a tempo e esperava-se que também começasse pontualmente. E que Deus ajudasse aqueles que não colaboraram com ele. Nunca mais trabalhavam para ele. Ele aprendera muita coisa naqueles últimos dez anos. Faye estava com a razão. Ele era um gênio em matéria de produção de filmes, mais do que as pessoas pensavam, a princípio. Aprendeu a fazer os orçamentos com bastante antecedência, e arranjava o dinheiro de investimento de fontes que deixavam todo mundo espantado. A princípio, recorreu aos recursos dos amigos, mas depois disso demonstrou habilidade, procurando fundos em companhias, conglomerados que queriam se diversificar. Conforme Abe Abramson disse a respeito de Ward, "Ele era um feiticeiro" e o demonstrara repetidamente. Durante meses ele e Faye tinham trabalhado até tarde da noite, calculando tudo juntos, nos primeiros anos. Mas depois da primeira meia dúzia de filmes, Ward já estava agindo por si. Ela se restringiu à sua direção. Compunha os pacotes muito antes de ela se envolver com a direção, e juntos produziram sucessos e mais sucessos. Muita gente os chamava de Equipe Dourada de Hollywood. E, embora tivessem seus fracassos, a maior parte das vezes não erravam.

Faye tinha tal orgulho de Ward, e isso já havia tempo. Ele deixara de beber e não houvera outras mulheres na sua vida, desde aquele episódio distante, quando eles se tinham separado em 1953. Ele trabalhara muito, se dera bem e ela estava feliz com ele. Mais feliz ainda do que eles haviam sido naqueles primeiros anos de conto de fada. Aqueles anos não pareciam mais reais, para ela, e era raro Ward mencioná-los. Ela sabia que ele continuava a sentir falta daquela vida, a vida fácil, as viagens, a propriedade, dezenas de empregados... Os Duesenbergs... mas eles agora tinham uma vida boa. Quem se podia queixar? Gostavam do seu trabalho e os filhos já estavam quase crescidos.

Ela sorriu para Ward, com calma, e olhou para o relógio. Teria de interrompê-lo dali a pouco. E, como se tivesse sentido a presença dela na sala, ele se virou e sorriu-lhe, os olhos de ambos se encontra ram e se fixaram de um jeito que as pessoas ainda invejavam, depois de tantos anos. Havia uma coisa muito especial em Ward e Faye Thayer, um amor que ainda ardia fortemente e era invejado por todos os amigos. A vida deles não fora fácil, mas também houvera ricas recompensas.

- Obrigado, Angela, podemos terminar o resto, de tarde. - Ele se levantou e foi beijar a mulher. - Está na hora de ir? - Beijou a face de Faye e ela sorriu para ele. Ainda usava a mesma loção de bar ba, depois de tantos anos, e aquilo sempre parecia anunciar que Ward estivera na sala. Se ela fechasse os olhos, ainda evocava as mesmas imagens românticas de antigamente, mas nesse dia não havia tempo para isso. Lionel ia se formar no 2? grau na escola de Beverly Hills. Eles deveriam estar lá em meia hora e os outros filhos estavam esperando que eles os apanhassem em casa.

Faye olhou para o lindo relógio Piaget de ouro com safiras que ele lhe dera no ano anterior

- Acho bom irmos, meu bem. O pessoal miúdo já deve estar histérico a essa altura.

- Não - disse ele, rindo para ela, e pegando o paletó, seguindo-a pela porta -, só Valerie. - Os dois riram. Conheciam bem os filhos, ou pensavam que conheciam. Valerie era de longe a mais tensa, efervescente e excitável, com o pior gênio aliado às exigências mais clamorosas. Correspondia aos cabelos ruivos, a maior parte do tempo, contrastando vivamente com a gêmea serena. E Greg também tinha muita energia, mas a usava de modo diferente, só pensava em esporte e ultimamente em garotas. E havia Anne, sua "filha invisível", conforme Faye a chamava, às vezes. Ela passava a maior parte do tempo no quarto, lendo ou escrevendo poesia. Sempre parecia isolada dos outros. Sempre fora assim. Só quando estava com Lionel é que aparecia um aspecto diferente de sua personalidade e ela ria, brincava e implicava com os outros, mas se eles a forçassem muito, ela se isolava de novo. Parecia a Faye que vivia perguntando aos outros "Onde está Anne?" e por vezes eles até se esqueciam de perguntar. Era difícil conhecer a menina e ela nunca sabia bem se a conhecia, o que parecia estranho, com relação à sua própria filha, mas certamente parecia se aplicar a Anne.

Ward e Faye estavam esperando pelo elevador na MGM. Agora tinham o seu conjunto de salas, lindamente decoradas em branco, azul vivo e cromados. Faye redecorara tudo ela mesma, dois anos antes, quando a Thayer Productions Inc. se instalou em escritórios permanentes na MGM. No princípio, eles tinham tido escritórios provisórios ali, depois se tinham instalado quase do outro lado da cidade, e conseqüentemente passavam a metade do tempo no carro, indo a reuniões com o pessoal da MGM. Mas agora ambos eram independentes e ao mesmo tempo faziam parte da MGM, com subcontratos com o grupo por dois anos de cada vez, trabalhando em seus projetos particulares, bem como os que empreendiam para a MGM. Era uma situação ideal e Ward estava satisfeito com o rumo que as coisas tinham tomado, embora em particular achasse que tudo era devido a Faye. Ele dizia isso consigo e uma vez o confessou a ela, se bem que ela discordasse violentamente, insistindo em dizer que ele não apreciava o próprio valor. E ele não apreciava mesmo. Ela sempre fora mais a estrela, sempre esteve mais de posse do controle de tudo. Ela conhecia todos na indústria, havia anos, e eles a respeitavam. Mas agora também respeitavam a ele, quer reconhecesse isso ou não, e Faye desejava que ele o fizesse. Era difícil convencê-lo de que ele era importante. Por algum motivo, ele nunca tinha muita certeza disso. Mas, por outro lado, isso fazia parte do encanto dele, aquela ingenuidade infantil que o acompanhara à meia-idade e ainda lhe dava o aspecto e a doçura da juventude.

O carro deles estava parado no estacionamento, um Cadillac preto conversível que já tinham havia dois anos. Tinham ainda uma imensa caminhonete, para quando saíam com os filhos, e Faye tinha um pequeno Jaguar verde-garrafa que adorava dirigir. Mas, mesmo assim, parecia que os carros nunca bastavam. Agora que Lionel e Greg já dirigiam, estavam sempre brigando pela caminhonete, coisa que ia acabar naquela tarde, sem que Lionel o soubesse. Como presente conjunto de formatura e aniversário, eles iam lhe dar um dos novos Mustangs que tinham acabado de ser lançados. Era um conversível vermelho vivo, com banda branca e forração vermelha. Faye ficara ainda mais entusiasmada do que Ward quando eles o tinham ido apanhar na véspera, e eles o esconderam na garagem do vizinho. Mal podiam esperar para dá-lo ao rapaz naquela tarde, depois que todos fossem almoçar no Polo Longe, para comemorar. À noite, davam uma festa para ele em casa.

- Parece incrível, não? - Faye olhou para Ward, enquanto iam para casa e ela sorriu, com nostalgia. - Ele vai fazer dezoito anos... se formando no segundo grau... parece ontem, não é, que ele era uma coisinha aprendendo a andar? - As palavras dela evocaram imagens dos velhos tempos e Ward ficou pensativo, enquanto iam seguindo para casa. Tudo aquilo mudara para sempre há doze anos antes, e ele ainda ficava triste, às vezes, quando pensava no assunto. Fora uma vida muito boa, mas esta também o era, e a outra nem parecia mais real. Era um mundo perdido e ele então olhou para Faye.

- Você não mudou nada desde então, Faye. - Ele sorriu para ela, admirando-a. Ainda era linda, os cabelos continuavam quase do mesmo tom de louro-pêssego e ela tingia os fios grisalhos, para não aparecerem. Aos 44 anos, ainda tinha um corpo bom, a pele era boa e macia e os olhos verdes ainda dançavam com um fogo de esmeraldas.

Ele agora parecia bem mais velho do que ela, mas isso devido aos cabelos brancos. Os cabelos louros tinham encanecido depressa, mas aquilo lhe ficava bem. Fazia um contraste forte com o seu rosto jovem e ela muitas vezes pensava que gostava mais dele assim. Parecia mais maduro. Ela se inclinou para beijar-lhe o pescoço, enquanto ele dirigia.

- Você mente lindamente, meu amor. A cada ano pareço mais velha, mas você ainda está espetacular.

Ele deu uma risada, parecendo constrangido, e a puxou para perto de si.

- Você vai ser bonitinha daqui a trinta anos, sabia? Me bolinando enquanto eu dirijo... talvez dando uma paradinha e beijando no assento de trás... - Ela riu daquilo e ele notou o pescoço comprido e gracioso que ele sempre adorara, espantosamente ainda sem rugas. Muitas vezes pensara que ela devia ter ficado nos filmes. Ainda teria sido linda, e ela sabia muito daquela arte. Ele se lembrava disso cada vez que a via dirigir, mas ela também o fazia bem. Havia muito pouca coisa que Faye Thayer não soubesse fazer. A princípio, essa idéia o aborrecia, mas agora se orgulhava dela. Era uma dessas pessoas que sabem fazer muitas coisas bem-feitas. Mas o estranho é que ele também era assim, embora não o reconhecesse, e discutia muitas vezes quando Faye lhe dizia isso. Ele não tinha a confiança em si que ela possuía, mesmo então, nem a energia ou a segurança que lhe permitia lançar-se a qualquer coisa, com a certeza da sua realização.

Ela tornou a olhar para o Piaget.

- Estamos atrasados? - Ward franziu a testa, olhando para ela. Não queria decepcionar Lionel. Não era tão íntimo dele quanto o era de Greg, mas Li, afinal, era o seu filho mais velho e aquele era um grande dia para ele. Quando ele visse o carro... Ward tornou a sorrir. - Ainda não estamos atrasados, e de que você está sorrindo?

- Faye olhou para ele, curiosa.

- Eu só estava pensando na cara de Li quando ele vir o carro. - Deus, mas ele vai morrer! - Ela riu sozinha de novo, e Ward também. Ela era tão louca por aquele garoto, sempre fora, quase demais, pensava ele às vezes, e o protegia demais. Nunca quis que ele se arriscasse fisicamente, como Greg se arriscava, ou que se expusesse a tantas coisas quanto o irmão. Ele não tinha a força física de Greg, era o que ela dizia sempre, nem sua capacidade de suportar os baques, emocionais ou não. Mas Ward não tinha tanta certeza. Talvez tivesse sido mais duro, se Faye lhe tivesse dado a oportunidade. E, em outros sentidos, ele se parecia muito com ela, era tão calmamente obstinado quanto Faye sempre o fora, tão resoluto quanto ao que queria fazer, a todo preço, tão seguro... Ele até se parecia com ela. Se a pessoa apertasse bem os olhos eles poderiam quase ter sido gêmeos, e o eram em espírito, por vezes, com exclusão de todos os outros. Se Ward fosse sincero nesse ponto, teria tido ciúmes do rapaz em certas ocasiões. Ela era tão íntima dele, enquanto criança, eles se confiavam tanta coisa que deixavam todos de fora, especialmente Ward, que se ressentia disso. Lionel era sempre educado com ele, agradável, mas nunca se dava o trabalho de procurá-lo ou ir a algum lugar com ele... não era como Greg, que se lançava em cima de Ward todas as noites quando ele chegava em casa, naqueles últimos 16 anos ou, em todo caso, desde que aprendera a andar. Ward por vezes até o encontrava dormindo ao lado dela na grande cama de casal, quando chegava em casa. O pai era tudo para o garoto, e Ward tinha de reconhecer que esse tipo de aprovação apaixonada era difícil de ultrapassar, e isso tornava a reserva tímida de Lionel ainda mais difícil de penetrar. Para que sequer tentar, quando tinha um filho como Gregory, ávido, a seus pés? Mas ele sabia que devia alguma coisa ao filho mais velho. Nunca soubera ao certo o que era.

Até mesmo o carro fora idéia de Faye. Facilitaria bastante a ida dele à Universidade da Califórnia, bem como ao seu emprego de verão. Ele estava empregado na loja Van Cleef & Arpels, os joalheiros, em Rodeo Drive, como mensageiro e fazendo trabalhos avulsos, e estava empolgado. Não era o tipo de trabalho que Ward gostaria para ele, e Greg detestaria fazer uma coisa daquelas, mas Lionel conseguira o emprego sozinho, comparecera à entrevista com os cabelos bem cortados, com o seu melhor terno e evidentemente causara boa impressão, a despeito de sua idade, ou talvez, quem sabe, soubessem de quem ele era filho. Mas fosse o que fosse, ele conseguira o emprego, e quando comunicou isso à família, naquela noite, fora uma das raras ocasiões em que ele parecera quase infantil no seu entusiasmo, em vez de mais controlado e amadurecido. Greg pareceu ficar perplexo, e as gêmeas não mostraram muito entusiasmo diante da notícia. Mas Faye ficara especialmente satisfeita por ele. Sabia o quanto ele desejara o emprego, e o conseguira por si. Ela insistira para que Ward também o felicitasse, e ele o fizera, mas tinha de reconhecer que não estava assim tão contente.

- Tem certeza de que você não prefere ir a Montana com Greg, em agosto? - Greg ia trabalhar numa fazenda durante umas seis semanas e antes disso ia acampar no Parque Yellowstone com um grupo de rapazes e professores do colégio. Mas isso era exatamente o tipo de coisa que o irmão mais velho mais detestava.

- Eu ficaria muito mais satisfeito aqui, pai. Verdade... - Os olhos dele eram grandes e verdes como os de Faye, e de repente se mostraram apavorados ao pensar que poderiam não o deixar aceitar o em prego, e ele se esforçara tanto... mas o pai recuara logo, ao ver a expressão dele.

- Achei que devia perguntar.

- Obrigado, pai. - Lionel desaparecera na solidão de seu quarto. Ward aumentara a casa, vários anos antes, eles não tinham mais quarto de hóspedes, e a empregada dormia num pequeno apartamento construído sobre a garagem, mas agora cada um dos filhos tinha o seu próprio quarto na casa principal, até mesmo as gêmeas, que tinham ficado contentes quando afinal puderam dormir separadas, embora não o confessassem à princípio.

Ward e Faye entraram no caminho dos carros em Roxbury Drive e as gêmeas já estavam esperando no gramado da frente. Vanessa, de vestido de linho branco, com uma fita azul nos cabelos compridos e louros. Estava de sandálias novas e com uma bolsa de palha branca e ambos, pai e mãe, pensaram logo em como ela estava bonita, assim como Val, mas muito mais vistosa. Val vestia um vestido verde forte, tão curto que ficava mais perto da virilha do que dos joelhos. Era bem decotado nas costas e marcava bem o seu corpo cheio e ela, ao contrário da gêmea, não parecia em absoluto ter só 15 anos. Já usava maquiagem a maior parte do tempo, as unhas estavam feitas de novo e calçava bonitos sapatos de saltinho carretel, verdes: Faye suspirou e olhou para Ward, quando ele parou o carro.

- Lá vamos nós de novo... nossa sereia-residente, novamente em campanha...

Ward sorriu, complacente, e afagou a mão da mulher. - Deixe pra lá, benzinho. Não brigue com ela hoje.

- Adoraria vê-la tirar um pouco daquela porcaria da cara antes de sairmos.

Ward olhou para ela, apertando os olhos, admirando-a, ainda do carro e depois riu.

- Diga às pessoas que ela é sua sobrinha. - Depois olhou para a mulher, com brandura. - Ela vai ser uma beldade, um dia.

- A essa altura já estarei velha e senil demais para poder apreciar.

- É só deixá-la em paz. - Sempre falava isso. Era sua solução para tudo, a não ser Lionel, claro. No caso de Lionel, era sempre preciso dizer as coisas a ele, repreendê-lo, obrigá-lo a agir de acordo. Ward esperava tudo dele. Sempre demais, segundo Faye. Ward nunca conseguira entender como o rapaz era diferente, criativo, sensível, como suas necessidades eram inteiramente outras. Mas Val... esta era outra coisa... obstinada, exigente, brigona. Certamente era a filha mais difícil... ou seria Anne, sempre tão reservada?... por vezes Faye nem sabia qual era a pior. Mas quando ela saltou do carro, Vanessa foi correndo para junto dela, com aquele sorriso límpido e fácil e nesse dia ela resolveu dar graças pela filha fácil. Era mais simples assim. Ela disse à garota que ela estava linda, passou o braço em volta dela e beijou seu rosto.

- O seu irmão vai se orgulhar tanto de você...

- Quer dizer, essa Alice no país das maravilhas, aqui? - Val se aproximou, fervilhando por dentro ao ver o braço da mãe em volta de sua irmã gêmea, e ela tinha observado bem quando a mãe beijara a face de Vanessa. - Você não acha que ela está um pouco velha para esse ar aí? - Valerie era tudo que era moderno e, em contraste, Vanessa parecia a inocência em pessoa. E agora, mais de perto, Faye via um traço preto e grosso na pálpebra superior de Val, que a fez se encolher, fisicamente.

- Amorzinho, por que você não tira um pouco dessa maquiagem antes de sairmos? Ainda está um pouco cedo para tudo isso, não? - Era mais fácil culpar a hora do dia do que a idade dela. Para Faye, quinze anos parecia um pouco cedo demais para olhos de Cleópatra, e esse tipo de coisas nunca fora estilo dela, de toda a forma.

Mas Valerie não adotara nenhum dos costumes da mãe, nem de Ward. Parecia ter idéias próprias sobre tudo e só Deus sabia de onde as tirava, certamente não de alguém da família, disse ela consigo. A garota parecia ter saído direto de um filme de adolescente sobre Hollywood, com exagero de alguns de seus piores aspectos e chegava a levar a mãe a ter vontade de gritar. Mas nesse momento Faye tentou permanecer calma, enquanto Val se postava diante dela e visivelmente fincava no chão os seus saltinhos verdes.

- Levei muito tempo para pôr isso no rosto, mãe, e não vou tirar nada. - "Quero ver me obrigar" foram as únicas palavras que ela se esqueceu de acrescentar e Faye não sabia bem se ela conseguiria obrigar a menina.

- Seja razoável, amor. Parece um pouco exagerado. - Quem foi que disse?

- Anda, sua chata, vá tirar essa merda! - Greg aparecera, aos saltos, com calças cáqui e uma camisa de algodão trançado azul, uma gravata um pouco mais do que ligeiramente torta e com um ar de ter passado vários anos debaixo da cama. Os mocassins estavam surrados e os cabelos não estavam assentados como ele queria. Mas a despeito do seu contraste evidente com o estilo muito mais jovial do pai, ele era evidentemente uma cópia dele, e Faye sorriu quando ele olhou para Val e deu de ombros: - Parece uma pateta mesmo. - Mas as palavras dele só atiçaram mais a garota.

- Trate da sua vida... você não passa de um bolha, mesmo. - Bom, vote te dizer uma coisa. Eu não saía com uma garota com toda essa gosma na cara. - Ele a examinou toda e ficou evidente que ele não aprovou o que viu. - E o seu vestido está muito apertado, faz seus peitos saltarem. - Ela corou um pouco mas logo ficou furiosa com ele. Era o que ela pretendera fazer, mas não queria que o diabo do irmão o observasse. - Você fica parecendo uma piranha. - Ele disse aquilo com naturalidade, mas ela arregalou os olhos e armou um soco nele, no momento em que Ward estava saindo de casa de novo e gritou para os dois:

- Ei, vocês dois aí! Comportem-se! É dia da formatura do irmão de vocês!

- Ele me chamou de piranha! - Valerie estava furiosa com ele e Vanessa parecia estar aborrecida. Eles estavam sempre fazendo aquilo, e em seu íntimo ela achava que ele estava com a razão, não que isso tivesse alguma influência sobre Valerie. Ela era bem obstinada e resolvida, faria exatamente o que quisesse mesmo, ou então iria infernizar as vidas deles o resto do dia. Todos já tinham passado por isso, pelo menos dez mil vezes, com ela.

- Ela está com cara, não está, pai? - Greg estava se defendendo contra os golpes ferozes dela e, ali perto, Faye ouviu a camisa azul amarrotada rasgar.

- Parem com isso! - Era inútil, e eles a deixavam exausta quando se portavam daquela maneira. Em geral, faziam isso quando ela estava extenuada, depois de um dia difícil no set. Estavam acabados os tempos em que ela poderia ficar tranqüila lendo histórias para eles junto da lareira, mas também ela não passara muito tempo assim em casa, para isso. As empregadas e baby-sitters tinham tomado o lugar dela através dos anos e ela por vezes se perguntava se aquele seria o preço que ela pagara por isso. Havia ocasiões em que eles ficavam inteiramente fora do seu controle, como agora. Mas Ward se intrometeu e agarrou o braço de Val, falando com ela com firmeza, num tom que a fez aquietar-se.

- Valerie, vá lavar o rosto. - Não havia ambigüidade alguma no que ele falou, nenhuma margem para discussão e ela vacilou um instante, enquanto ele olhava para o relógio de pulso. - Vamos sair daqui a cinco minutos, com você ou sem você, mas acho que você devia estar presente. - E com isso ele lhe deu as costas e olhou para Faye. - Onde está Anne? Não consegui encontrá-la lá em cima. - Ela sabia tanto quanto ele, tinha voltado do trabalho com ele.

- Ela estava aqui, quando telefonei. Van? Sabe aonde ela foi? Vanessa deu de ombros. Era impossível controlar aquela guria, ela ia e vinha, não falava com ninguém, passava a maior parte do tempo lendo no quarto.

- Pensei que ela estivesse lá em cima. Greg pensou um pouco.

- Acho que vi quando ela atravessou a rua.

- E para onde ia? - Ward estava começando a se impacientar com todos eles. Estava começando a se lembrar daquelas insuportáveis férias em família que tiravam, em locais como Yosemite, até que afinal puderam ter os recursos para mandá-los para acampamentos e terem um pouco de sossego. Não que ele não gostasse da família, mas havia ocasiões em que eles todos o deixavam alucinado, e aquela era uma dessas. - Viu para onde ela foi? - Ele notou, sem dizer nada, que Val tinha desaparecido para dentro de casa, e ele esperava que fosse para tirar parte da maquiagem, ou talvez até mesmo o vestido, se bem que isso fosse esperar demais, e foi mesmo. Ela voltou quando eles ainda estavam procurando por Anne, e a linha preta grossa nas pálpebras tinha diminuído um pouco, mas o vestido estava igualmente justo e verde.

- Valerie, sabe para onde é que foi Anne? - Ele olhou para ela irritado, com vontade de matar a todos.

- Sei, foi à casa dos Clark. - Simples. Finalmente. Aquela menina estava sempre se perdendo. Ele se lembrou do dia em que coe passara três horas de aflição procurando-a no Macy's, em Nova York, e a encontrou do lado de fora, dormindo a sono solto no assento de trás de sua limusine alugada.

- Poderia fazer o favor de ir buscá-la? - Ele estava vendo que a rainha do moderninho já ia protestar, mas depois de olhar para a cara do pai, ela não teve coragem.

Concordou com a cabeça e correu para o outro lado da rua, a minissaia justa agarrada ao seu traseiro bem-feito. Ele olhou para Faye, com um gemido. - Ela podia até ser presa, com uma roupa dessas.

Faye sorriu para ele.

- Vou ligar o carro. - E, pelo canto do olho, viu Valerie acompanhando a caçula de volta. Esta estava vestida mais corretamente do que os outros, com um bonito vestido chemisier rosa, muito bem passado, do comprimento certo.

Os cabelos estavam bem limpos e reluzentes, os olhos brilhantes, os sapatos vermelhos engraxados. Era um prazer olhar para ela, contrastando com a irmã mais velha, muito mais vistosa. Ela entrem na caminhonete, tomando o assento mais afastado, não porque estivesse zangada com alguém, mas porque era onde gostava de se sentar.

- O que é que você estava fazendo lá? - perguntou Greg, quando entrou no carro, na frente dela, uma das gêmeas de cada lado. Anne estava sentada sozinha, se bem que em geral ou Lionel ou Vanessa se sentassem ao lado dela. Não era segredo para ninguém que ela não se dava bem com Val, e não tinha muita coisa em comum com Greg.

Era Lionel que ela adorava e Vanessa quem tomava conta dela quando não havia mais ninguém. Faye sempre mandava: "Vanessa, cuide de Anne."

- Eu queria ver uma coisa. - Não falou mais nada, mas ela o tinha visto... o presente de formatura... o lindo Mustang vermelho... e ela estava tão feliz por ele...

Ela não falou nada com ninguém até chegar à escola. Queria que fosse surpresa e quando saltaram do carro, Faye se perguntou se ela saberia. Mas ela não disse nada, apenas acompanhou os outros ao auditório e se sentou na ponta da fila. Era um dos dias mais felizes da vida dela, e também um dos mais tristes. Ela estava feliz por ele, mas triste por si. Sabia que no outono Lionel ia se mudar para um apartamento em que ia morar com amigos, no campus da UCLA. A mãe achara que ele ainda era muito jovem para isso, mas o pai dissera que podia fazer bem a ele. Ela sabia por que ele tinha dito aquilo, porque tinha ciúmes por ver que Li era tão agarrado à mãe. Mas aí ele iria embora. Ela nem imaginava como seria não morar mais com ele. Era a única pessoa com quem ela podia conversar. Sempre fora. Era sempre Li quem tomava conta dela, fazia até a merenda dela para a escola, e com coisas que ela gostava de comer, não um salame seco e velho ou sobras de queijo podre. Era isso que Vanessa ou Valerie teriam feito. Mas Lionel lhe preparava coisas como sanduíches de salada de ovo, ou rosbife, ou galinha ou peru. Ele lhe comprava livros que ela adorava ler. Conversava com ela até tarde da noite, lhe explicava as lições de matemática. Era o seu melhor amigo. Sempre fora... e a punha na cama de noite quando a mãe e o pai estavam trabalhando. Ele fora mais mãe e pai para ela do que os pais jamais foram. E, de repente, quando ela o viu no palco, com borla e capelo e beca brancos, ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Foi como se o visse se casando... quase... tão ruim, de certo modo. Ele estava se casando com uma nova vida. E muito breve ele a deixaria.

Greg, olhando-o com inveja, desejou ser ele o diplomando naquele ano, se é que se formaria um dia. As notas dele não tinham sido boas, em todo o ano letivo,  mas ele prometera ao pai que no ano seguinte seriam melhores... sujeito de sorte... ir para a universidade... se bem que Greg não gostasse muito da escola dele. Achava a UCLA uma universidade idiota. Queria ir para um lugar como a Georgia Tech, onda ele poderia ser um grande astro do futebol, embora o pai falasse de um lugar como Yale, e se ele conseguisse entrar, claro que poderia jogar futebol lá... e quase se babava ao pensar nisso... e as garotas!...

Valerie estava olhando para um garoto na terceira fila. Lionel o convidara para a casa deles, algumas semanas antes, e ele era o cara mais bonito que ela já vira na vida. Com cabelos negros e lisos, olhos escuros, era alto, tinha pele clara e dançava divinamente. Também tinha uma namorada fixa, alguma diplomanda boba também, mas Val sabia que era muito mais bonita do que ela: se ao menos pudesse falar com ele umas vezes... mas claro que Li não quis dar uma ajudinha. Nunca arrumava ninguém para ela. E depois havia John Wells, o melhor amigo de Greg. Era engraçadinho, mas tão encabulado... corava cada vez que ela falava com ele. E ele também ia para a UCLA, depois. Seria realmente um sucesso conseguir namorar um universitário, mas até então o seu único sucesso tinha sido com três garotos na sua classe do segundo ano, e eram todos uns chatos, só queriam pegar nos seus peitos. Ela estava guardando o resto para um universitário! Como aquele cara na terceira fila...

Vanessa estava observando a gêmea, quase lendo seus pensamentos. Ela a conhecia bem demais. Sabia até quais os rapazes de quem ela gostaria. Era mesmo uma chatura ver como a menina tinha mania de garotos, e era assim desde o sétimo ano do primeiro grau. Vanessa também gostava dos garotos, mas para ela não era uma obsessão; estava mais interessada em escrever poesia e ler livros. Os garotos eram divertidos, mas ainda não tivera ninguém de especial. E ela estava começando a pensar se Val já não se teria entregue a alguém. Esperava que não. Aquilo estragaria a vida dela. Claro, havia a pílula... mas não se conseguia obtê-la se não se tivesse mais de dezoito anos, ou se se fosse noiva. Ela sabia que uma das garotas da penúltima série conseguira obter a pílula fingindo que tinha 21 anos, mas ela não se imaginava fazendo uma coisa daquelas, nem sequer desejando fazê-lo.

Faye ficaria aliviada se pudesse ler os pensamentos dela. Também ela pensava nessas coisas. Mas não estava pensando em Greg, em Anne ou nas gêmeas, estava inteiramente concentrada no filho mais velho, ali tão lindo, inocente e alto, cantando o hino da escola, o diploma na mão, o sol batendo na sala. Ela olhou para ele, sabendo que aquele momento nunca mais retornaria, ele nunca mais seria assim tão jovem ou puro. Para ele, a vida estava apenas começando e ela desejava muitas coisas para ele; as lágrimas escorriam por sua face e Ward, calado, lhe passou o lenço. Ela se virou e olhou para ele com um sorriso acridoce. Como tinham progredido, e como todos lhe eram queridos... especialmente Ward... e aquele menino... ela queria tanto protegê-lo contra todo o sofrimento da vida... todas as desilusões, os sofrimentos, e, instintivamente, Ward passou o braço em volta dos ombros dela e a puxou para mais perto dele. Ele se orgulhava do filho, mas queria coisas bem diferentes para ele.

- Ele está tão lindo - ela murmurou para Ward. A seus olhos, ele ainda era um menino.

Ward cochichou de volta:

- Ele está um homem. - Ou pelo menos, ele esperava que um dia fosse assim. No momento, ainda tinha o ar um tanto efeminado da juventude, e por vezes Ward se perguntava se sempre seria assim. Ele se parecia tanto com ela... e, no momento em que ele pensou isso, viu que Lionel olhava para o auditório, até encontrar o olhar de Faye e os dois se olharam com amor, excluindo todos os outros. Aquilo fez Ward desejar puxá-la, por ela tanto quanto pelo rapaz, mas os dois estavam além do alcance de qualquer pessoa. Eles sempre tinham partilhado alguma coisa que ninguém mais podia tocar.

- Ele é um garoto tão maravilhoso...

Ward estava duplamente feliz por saber que Li se mudaria no outono. Ele precisava se afastar da mãe. E ele teve ainda mais certeza disso quando, logo depois da cerimônia, Lionel correu para abraçar Faye. Os outros garotos estavam todos por ali, de mãos dadas com garotas encabuladas.

- Estou livre, mãe! Não sou mais um colegial do segundo grau! - Ele só enxergava a ela e ela estava muito empolgada por ele.

- Parabéns, amor. - Ela o beijou no rosto e Ward apertou a mão dele.

- Parabéns, filho.

Ficaram todos por ali um pouco, e depois foram almoçar no Polo Lounge no Beverly Hills Hotel. E, como Anne já sabia, ele se sentou com ela no último assento da caminhonete, no trajeto para o restaurante. Ninguém achou aquilo estranho, havia anos que ele se sentava atrás com ela, assim como Faye e Ward se sentavam na frente e Greg e as gêmeas no meio.

O pessoal no Polo Lounge era o mesmo de sempre ao almoço, vistoso, com roupas de seda e correntes douradas e minissaias, diretores, escritores e astros do cinema, pessoas pedindo autógrafos e os telefones sendo levados às pressas de uma mesa a outra, enquanto as pessoas fingiam que recebiam chamados importantes. A certa altura, Faye chamou Lionel para ir lá fora, para felicitá-lo, e todos se riram, menos Ward. Eles às vezes pareciam amantes, e aquilo sempre o deixava aborrecido. Mas, assim mesmo, o grupo barulhento se divertiu bem. E depois do almoço foram todos para casa tomar banho de piscina. Alguns dos amigos dos garotos também, e ninguém notou quando Ward e Faye se ausentaram furtivamente e foram à casa dos Clark, do outro lado da rua. Ward levou o carro quase até à beirada da piscina, buzinando freneticamente, enquanto Faye ria, sentada numa toalha no banco da frente, de maiô molhado, e os filhos os fitavam sem entender nada, a princípio, pensando que os pais estavam malucos.

E então Ward saltou, foi para junto do filho e lhe entregou as chaves, enquanto os olhos do rapaz se enchiam de lágrimas e ele lançava os braços em volta do pescoço do pai, rindo e chorando ao mesmo tempo.

- Quer dizer que é meu?

- Parabéns pela sua formatura, filho. - Os olhos de Ward também estavam cheios de lágrimas. Ele estava comovido com o prazer do rapaz, era um momento especial que nunca mais voltaria. Com um grito, Lionel o abraçou, enquanto Anne, de lado, o observava e sorria, feliz.

Ele convidou todo mundo para entrar no carro e Ward e Faye se afastaram quando toda a garotada entrou, sentados uns por cima dos outros, nos assentos, na capota arriada.

- Vá com calma, Li - advertiu Faye, e Ward pegou a mão dela e a fez recuar um pouco.

- Pode deixar, amor. Eles estão bem.

E por um instante, um instante, apenas, antes de ligar o carro e partir, Lionel parou e encontrou o olhar do pai, talvez de um modo diferente,  pela primeira vez, e os dois homens trocaram um sorriso. Não houve necessidade de maiores agradecimentos, aquilo já bastava. E quando se afastaram, Ward sentiu que afinal tinha estabelecido contato com o filho pela primeira vez.

 

Nessa noite, havia cem pessoas, a maioria de garotos, convidados para comemorarem a formatura de Lionel com um churrasco. E Ward e Faye tinham contratado um conjunto de rock para tocar sob uma barraca no jardim dos fundos. Era a maior festa que davam, havia anos, e toda a família estava entusiasmada. Greg vestia uma camiseta listrada amassada e jeans. Os cabelos louros estavam despenteados e estava descalço. Faye já ia mandá-lo de volta para cima mas ele fugiu e quando ela falou alguma coisa com Ward, a resposta veio, como sempre: - Deixe-o em paz, amor, ele está bem.

A mulher o contemplou com ar reprovador.

- Para um homem que antigamente trocava de camisa três vezes por dia e usava ternos de linho branco, você não parece esperar grande coisa da parte de seu filho.

- Talvez seja por isso mesmo. Isso foi há vinte anos. As pessoas não vivem mais assim, Faye, e mesmo na época já estava fora de moda. Nós éramos praticamente dinossauros, embora com sorte. Greg tem coisas mais importantes na cabeça.

- Como o quê, por exemplo? Futebol? Garotas? Praia? - Ela esperava mais de Greg, como o tipo de coisas que Lionel fazia. Mas Ward parecia mais contente com o seu atleta do que com o filho mais intelectual. Aquilo não fazia sentido, para ela, e sempre lhe parecia injustiça ele esperar tão menos de Greg e nunca dar valor às realizações importantes de Lionel. Mas esse assunto não se podia resolver numa noite, era uma divergência que eles sempre tinham tido, e por vezes se tornava clamorosa. Era um dia especial, aquele, e ela não queria brigar com ele. Estranho, eles agora brigavam raramente, mas de vez em quando, com relação aos filhos, discordavam violentamente e trocavam palavras ásperas... em especial sobre Lionel... mas não nessa noite... por favor, não nessa noite, pensou ela, e resolveu ceder, no caso de Greg. - Está bem... não tem nada, não...

- Deixe que ele se divirta hoje. Não importa o que esteja usando. - Espero que pense o mesmo sobre Val. - Mas para ambos, foi um verdadeiro desafio não dizer nada a ela. Estava com um vestido míni de couro branco, ultrajusto, com saia franjada e botas condizentes, que aparentemente pedira emprestadas a uma amiga.

Ward se debruçou e cochichou para Faye, enquanto lhe servia um drinque no bar:

- Em que esquina é que a amiga trabalha? Ela falou? - Faye riu e sacudiu a cabeça. Parecia que ela já estava lidando com adolescentes há tanto tempo que não havia quase mais nada que a espantas se. Aquilo era um bom preparo para suas relações com os atores na MGM. Nenhum conseguia ser mais impossível, mais difícil, mais imprevisível e altercador do que um adolescente, se bem que muitos o tentassem.

- Acho que a coitada da Vanessa procura neutralizar o efeito de Val - disse Ward a Faye. Ela estava com um vestido de festa rosa e branco que parecia mais próprio a uma menina de dez anos, sapatilhas rosas, e os cabelos novamente com um penteado à Alice no país das maravilhas. As duas não podiam estar mais diferentes, e Faye achava que não era por engano. E reparando em todos: Lionel com um terno leve de verão, castanho, bonito e distinto, camisa listrada azul claro e uma gravata do pai, tentando parecer muito adulto, o carro novo estacionado em lugar de destaque no gramado da frente; Greg com suas roupas amarrotadas... Valerie com o vestido de couro branco... Vanessa com roupas infantis... cada um certamente com sua personalidade e isso fez novamente Faye se lembrar de alguma coisa: ela olhou para Ward, por sobre o copo que ele lhe entregou. - Você viu Anne por aí?

- Ela estava perto da piscina com umas amigas, há pouco. Ela está bem. Lionel toma conta dela. - Sempre fazia isso, mas aquela noite era importante para ele, e Ward até olhara para o lado quando o vira servir-se de um cálice de vinho branco. Tinha de deixar que o rapaz se largasse, uma vez na vida, e se ele tomasse um pifa daqueles na noite da formatura, que mal havia nisso? Poderia alterar a sua imagem impecável, e isso também lhe poderia fazer bem. Bastava ele manter Fayer ocupada, para ela não o vigiar demais, e dali a pouco ele a convidou para dançar. Valerie olhou para eles, horrorizada, Vanessa achou graça e, depois, Lionel os interrompeu e também dançou com Faye. Ward foi conversar com amigos e verificar se os outros garotos não estavam abusando demais. Alguns estavam bem bêbados, mas eram todos da idade de Lionel, e aquela também era sua noite de formatura. Ward achava que eles tinham o direito de ficar meio loucos, contanto que nenhum fosse embora dirigindo, e ele dera instruções severas aos manobreiros. Ninguém receberia as chaves do carro se parecesse estar ligeiramente embriagado, e isso se aplicava tanto aos adultos quanto aos rapazes.

Ele viu Anne sentada junto à piscina, conversando com John Wells, o melhor amigo de Greg. Era um garoto simpático, que idolatrava Greg, e Ward desconfiava de que Anne gostasse dele, mas não era provável que ele retribuísse os sentimentos dela, já que ela só tinha doze anos. Tinha ainda de crescer um bocado, se bem que Lionel a tratasse como se já fosse mocinha. Era incrível como ela podia parecer madura, por vezes. Muito mais do que as gêmeas, ou mesmo Greg, às vezes. Ele se perguntou o que ela estaria dizendo a John, mas ela era tão esquiva e encabulada que ele não ousou se aproximar deles nessa hora, com medo de assustá-la e afastá-la... e ela parecia estar se divertindo. Pouco depois, Lionel foi ter com eles e Ward viu que John levantava os olhos com um sorriso. Sua admiração por Li parecia igualar-se à de Anne. o assombro dos meninos... Ward sorriu para si e foi buscar Faye no meio de um grupo de vizinhos e amigos. Queria dançar com ela de novo. Continuava a achar que ela era mais bonita do que qualquer mulher presente. E isso se via em seus olhos, enquanto ele passava o braço pela cintura dela.

- Quer dançar? - Ele bateu-lhe no ombro e ela riu quando viu quem era.

- Claro.

O conjunto era bom. Os garotos estavam todos se divertindo, e Anne estava se divertindo com Lionel e John. Ambos a tratavam como a uma pessoa adulta, o que era mais do que faziam os outros garotos. Ela era alta, para a idade, e tinha os mesmos cabelos cor de pêssego maduro que Faye tivera quando jovem. Um dia seria uma garota linda, mas nunca se sentia assim. Achava que não era tão bonita quanto Faye, nem tão espetacular quanto Val, e achava que Vanessa tinha uma beleza serena e distinta. Mas Lionel sempre lhe dizia que ela era a mais bonita de todas e ela lhe dizia que ele estava maluco. Ela mostrava seus joelhos nodosos e os cabelos que ela chamava de "crespos e esquisitos", porque emolduravam seu rosto num tufo suave. Seus seios estavam começando a surgir e ela também se sentia constrangida com isso. Sentia-se desajeitada com tudo, a não ser quando estava com Lionel. Ele a fazia sentir-se ótima com relação a tudo.

- Você gosta do seu carro novo? - John estava sorrindo para o irmão mais velho do seu amigo, admirando em segredo o laço bem dado da gravata. Adorava as roupas do outro, mas nunca teria coragem de lhe dizer isso.

- Está brincando? - Lionel sorriu, como um menino. - Estou maluco por ele. Mal posso esperar para pegá-lo amanhã e dar um giro bom. - Ele sorriu para o amigo de Greg. John já freqüentava a casa, havia anos, e ele sempre gostara do garoto. Era mais interessante do que a maioria dos amigos atletas de Greg, se bem que tivesse descoberto isso por acaso, num dia em que conversara com John, quando Greg tinha saído. A maior parte do tempo, John fingia que era igual aos outros, mas Lionel adivinhou corretamente que aquilo era uma camuflagem que ele usava, e ele se interessava por muitas outras coisas além de futebol e corrida e o mais, coisas que nunca tinham interessado muito a Lionel. - Vou começar a trabalhar na semana que vem e vai ser ótimo ter o meu carro.

- Onde é que vai trabalhar? - John pareceu estar interessado e Anne ficou assistindo à conversa, sem dizer nada, como sempre, mas ouvindo o irmão e olhando para o rosto de John. Ela sempre achara que ele tinha olhos lindos.

- Na Van Cleef & Arpels. É uma joalheria em Beverly Hills. - Ele sentiu necessidade de explicar ao outro. Nenhum dos amigos de Greg teria alguma idéia do que isso fosse.

Mas John achou graça e, olhando para ele,  Anne sorriu.

- Sei disso. Minha mãe vai sempre lá. Eles têm coisas bonitas. - Lionel pareceu ficar espantado e satisfeito. John não se chocara com a idéia de Lionel trabalhar lá. - Parece um bom trabalho.

- É mesmo, estou ansioso por começar. - Ele sorriu, olhando para o carro. Especialmente agora.

- E a UCLA no outono. Você tem sorte mesmo, Li. Eu já estou farto do colégio.

- Agora falta pouco. Só te falta um ano.

- Parece uma eternidade. - John gemeu e Lionel sorriu - E então, o que você vai fazer?

- Ainda não sei. - Aquilo não era raro, a maioria de seus amigos ainda não sabia o que pretendia fazer.

- Eu vou fazer cinema. - Parece ótimo.

Lionel deu de ombros, com modéstia. Vinha ganhando prêmios por fotografias desde os catorze anos e dois anos antes começara a se meter no cinema. Estava preparado para tudo quanto a LICLA lhe pudesse oferecer e estava entusiasmado para entrar para lá, a despeito do que o pai dissera. O pai queria que ele fosse para uma faculdade de renome na Costa Leste, e ele estava qualificado, em matéria de notas. Mas aquilo não o atraía em absoluto. Ele podia tentar isso com o Greg.

Olhou para John com um sorriso amigo.

- Vá me procurar na universidade, um dia desses. Você pode dar uma olhada, enquanto se resolve quanto às faculdades.

- Eu gostaria muito disso. - John olhou bem para ele e, por um instante, os olhares dos rapazes se encontraram e se fixaram. Então, depressa, John se virou e pouco depois avistou Greg. Aí pareceu querer deixá-los, e Lionel convidou Anne para dançar. Ela corou muito diante dessa idéia e se recusou a dançar com ele, mas depois de ele insistir um pouco, ela cedeu e o acompanhou à pista.

- O que é aquilo? - O garoto que entrara na casa com Val a acompanhara à sala íntima e estava decidido a enfiar a mão por baixo da saia dela, o que não lhe parecia muito difícil. Mas um objeto cobiçado, enfiado numa prateleira do bar, chamou sua atenção. - Aquilo é o que penso? - Ele estava impressionado. Era a primeira casa em que ele estivera que tinha um daqueles, embora em L. A. se ouvisse falar muito deles.

- É, e daí? Grande coisa.

- Se é. - Ele ficou olhando, com respeito, depois esticou a mão para tocar nele, para poder contar ao pai quando fosse buscá-lo. - De quem é? Da sua mãe ou do seu pai?

Pareceu ser difícil para ela confessar aquilo a ele.

- Da minha mãe. Quer uma cerveja, Joey? - Aí ele quase desmaiou. Havia mais um. Tinham dois!

- Meu Deus! Ela tem dois! Pelo que foi?

- Ah, pelo amor de Deus, não me lembro! Então, quer uma cerveja ou não?

- Quero, sim, está bem. - Mas ele estava muito mais interessado em saber por que trabalho a mãe dela ganhara os Oscars. O pai ia lhe perguntar isso, e a mãe também, mas Val não parecia querer falar a respeito. - Ela era atriz, não era? - Ele sabia que ela agora era diretora. E o pai dela era grande produtor da MGM. Mas Valerie não falava muito sobre isso. Estava mais interessada pela bebida e os garotos. Pelo menos, essa era a sua reputação, e ele quase podia ver tudo debaixo da saia de couro branco, quando ela se sentava. Mas, na verdade, ele só viu um bom pedaço de coxa.

- Você já fumou maconha? - Ele nunca fumara, mas não queria confessar isso a ela. Estava com quinze anos e meio e a conhecera no colégio, naquele ano, mas nunca saíra com ela, nunca tivera coragem. Ela era linda e assustadoramente madura.

- Já. Uma vez. - E aí não se conteve, teve de perguntar de novo. - Vamos falar da sua mãe.

Pronto. Ela se levantou de um salto, os olhos lampejando de raiva.

- Não vamos, não!

- Deixe de ser tão nervosa, pelo amor de Deus, só estou curioso, mais nada.

Val olhou para ele com desprezo, indo para a porta.

- Então, pergunte a ela, seu nojento. - E, sacudindo a cabeleira vermelha, ela se foi e ele ficou olhando para o vão da porta vazio e murmurou para si:

- Merda.

- Ah? - Greg enfiou a cabeça pela porta para ver quem estava ali e o garoto corou e se levantou de um salto.

- Desculpe... eu estava descansando aqui... já vou lá para fora. - Tudo bem, faço a mesma coisa o tempo todo. Não esquenta. - Sorriu e desapareceu, perseguindo uma garota de cabelos escuros, e Joey voltou para fora. E acabaram todos dentro da piscina, nessa noite, bem tarde, de maiô, de roupa, de tênis e descalços e de sapatos.

Divertiram-se à grande e já eram três da madrugada quando o último convidado se retirou. Depois que todos se foram, Lionel subiu com Ward e Faye e os três bocejaram, com sono, enquanto Faye sorria. - Mas que turma animada... mas foi uma boa festa, não foi?

- Foi o máximo. - Lionel sorriu e deu um beijo de boa-noite na mãe, e quando se sentou à cama, com o roupão de toalha que pusera por cima do calção, ficou olhando para a parede por um instante, pensando no dia que tivera... o diploma... a beca branca... o carro... os amigos... e a música... e, engraçado, ele se pilhou pensando em John, e que garoto simpático ele era. Gostava mais dele do que de alguns de seus próprios amigos.

 

O dia depois da festa de formatura começou como qualquer outro dia de trabalho para Faye e Ward. Os filhos podiam dormir até ao meio-dia, mas o casal tinha de estar no estúdio às nove horas. O seu próximo filme ia começar em breve e os dois tinham pilhas de trabalho em suas mesas. Parecia sempre que era preciso tanta disciplina para continuar, para trabalhar, por mais cansados que estivessem, especialmente quando Faye estava dirigindo o filme. Aí ela sempre chegava ao estúdio antes das seis da manhã, muitas vezes antes de chegarem os atores. Mas ela precisava estar ali, respirar o ar, sentir as coisas. Aliás, quando estavam filmando, era sempre difícil para ela se forçar a ir para casa, e por vezes em ia. Às vezes dormia num camarim, comendo, dormindo e pensando o argumento, fazendo-o tornar-se quase parte de si, até conhecer cada personagem como se ela tivesse nascido na pele dele em alguma outra vida. Era isso que a tornava tão exigente com os atores que trabalhavam com ela, mas lhes ensinava uma espécie de disciplina que eles nunca esqueciam e a maior parte dos atores de Hollywood falava de Faye Thayer com respeito. O seu tipo de talento era um dom, e ela estava tão mais feliz do que quando ela mesma representava. Aquilo era a realização que estava procurando e Ward adorava ver aquela luz em seus olhos, a luz que só aparecia quando ela pensava em seu trabalho. Ele às vezes ficava com certo ciúme, pois gostava do que fazia, mas não com a mesma determinação, o mesmo ardor, que ela parecia sentir. Ela parecia respirar a própria alma no seu trabalho. E ele estava pensando nisso agora. Dali a algumas semanas, ele ia perdê-la para o seu novo filme, mas ambos achavam que era o melhor que jamais tinham feito. Ambos estavam extremamente empolgados com ele, e mais de uma vez Faye dissera que sentia muito que Abe Abramson não estivesse mais vivo. Ele teria adorado aquele filme. Porém morrera dois anos antes. Vivera o suficiente para vê-la ganhar o segundo Oscar de sua vida, este pela direção. Mas depois disso morrera, e ela ainda sentia falta dele, como nessa ocasião. Ela se recostou ao assento, olhando para Ward e pensando na noite da véspera.

- Fico contente que os garotos se tenham divertido.

- E eu também. - Ele sorriu para ela, mas estava com uma bruta ressaca e agora aquilo era raro. Muitas vezes se perguntava como é que podia ter bebido tanto quanto bebia antigamente. Não agüentava mais aquilo, sem pagar um preço muito alto. A juventude... ele sorriu para si... muita coisa mudava quando a gente juntava uns cabelos brancos e alguns anos... e outras coisas não mudavam. A despeito da ressaca, ele e Faye tinham tido relações naquela manhã, depois que ele saíra do chuveiro. Isso era sempre um bom começo de dia para ele, e ele então pôs a mão de leve na coxa dela. - Você ainda me deixa alucinado, sabe...

Ela corou de leve e pareceu ficar satisfeita. Ainda estava apaixonada por ele. Isso já durava dezenove anos, mais se se contasse o tempo em que se conheceram em Guadalcanal, em 43... seriam 21 anos... - Isso é recíproco, você sabe.

- Que bom. - Ele parecia pensativo, ao entrar no estacionamento da MGM. O guarda do portão tinha sorrido para eles e mandado que entrassem. A gente podia botar a mão no fogo por aqueles dois, pensou... gente boa... com filhos bons... e trabalhavam um bocado, era preciso reconhecer. - Talvez devêssemos pôr uma porta comunicando os nossos escritórios e uma tranca na minha porta.

- Parece boa idéia - murmurou ela, no ouvido dele, e deu uma bicada de brincadeira no pescoço dele, antes de saltar. - O que é que você vai fazer hoje, amor?

- Não tenho assim tanta coisa. Acho que está quase tudo arrumado. E você?

- Vou ter um encontro com três dos astros - ela disse quais eram -, e acho que vou ter de falar muito com eles todos antes de começarmos, para estarem todos preparados. Para que todos saibam aonde vamos com esse negócio. - Aquele filme era o maior desafio que ela já encontrara. Era sobre quatro soldados durante a Segunda Guerra Mundial e não era um filme bonito, nesse sentido. Era brutal e doloroso e dilacerava as entranhas das pessoas, e a maioria dos chefes dos estúdios teria designado um diretor homem para o filme, mas Dore Schary ainda confiava nela e ela não ia decepcioná-lo. Nem a Ward. Não fora fácil a Ward arranjar o dinheiro para aquele filme, a despeito da fama dos dois. As pessoas tinham receio de que ninguém havia de querer ver um filme deprimente. Depois do assassinato de Kennedy, no ano anterior, todo mundo queria alívio, uma distração, uma comédia, e não um filme sério, mas tanto Ward como Faye tinham concordado logo, ao lerem o argumento, que era um filme e tanto. Era brilhante, o roteiro era magnífico, como fora o livro original, e Faye estava resolvida a fazer jus a ele. Ward sabia que ela conseguiria, mas sabia também como ela estava nervosa.

- Vai dar tudo certo. - Ele sorriu para ela junto à porta do escritório dela. Ambos sabiam disso, mas ele também sabia que ela precisava da segurança dele, e viu isso com mais certeza ainda quando ela lhe respondeu.

- Estou apavorada.

- Sei que está. Mas relaxe e aproveite. - Ela, porém, só fez isso quando começaram as filmagens, e então ela mergulhou ainda mais profundamente do que o normal.

Nunca chegava em casa antes da meia noite ou da uma hora, saía de novo às cinco da manhã e muitas vezes nem voltava para casa de todo. Ward sabia que as coisas seriam assim por meses e prometera a ela que ficaria de olho nos filhos, e tentava fazê-lo. Ela sempre trabalhara assim, quando estava dirigindo um filme: ficava totalmente envolvida e quando terminava passava a vida dobrando camisas, lavando roupa, dirigindo em revezamento. Tinha um orgulho especial em fazer essas coisas, mas naquele momento, até mesmo os filhos estavam bem longe de seus pensamentos.

Ward voltou ao estúdio para apanhá-la, numa noite, bem tarde, pois não confiava nela para dirigir quando estava cansada daquele jeito, ou tão absorta no trabalho.

Receava que ela acabasse batendo numa árvore na estrada, de modo que foi buscá-la e ela caiu no banco da frente do carro dele como uma bonequinha de trapos, quando ele se debruçou e lhe beijou o rosto. Ela abriu um dos olhos, sonolenta, e sorriu para ele.

- Pode ser que eu não sobreviva a este filme... - A voz dela estava grave e rouca. Bebera litros de café o dia todo, falara sem cessar, instigando o pessoal, implorando que dessem mais e seus atores não a tinham decepcionado.

Ela olhou para Ward e ele sorriu.

- Vai ser formidável, benzinho. Andei olhando os copiões, a semana toda.

- O que é que você achou? - Ela também os vira, e só via o que estava errado e nunca o que estava certo, mas nos dois últimos dias tinha vislumbrado um raio de esperança.

Os atores estavam mesmo trabalhando muito, tanto quanto ela, para dar tudo o que tinham. - Acha que vai dar certo? - Ela parecia apavorada, perguntando aquilo.

O julgamento dele era melhor do que o de qualquer outra pessoa que conhecesse e ela confiava nele implicitamente, mas ele estava sorrindo para ela.

- Vai dar certíssimo, amor. E aquele Oscar vai voar para as suas mãos de novo.

- Isso não importa. Só quero que seja bom, que tenhamos orgulho do filme.

- E teremos. - Ele tinha certeza disso, e sempre se orgulhava dela, assim como ela se orgulhava dele. Tinha progredido tanto, para um homem que nunca trabalhara na vida até aos 35 anos... Era milagroso o que ele fizera consigo e ela nunca se esquecia disso. Sempre se orgulhava dele, mais do que ele pensava. Muito, muito mais. Ela tornou a pousar a cabeça no encosto.

- Como estão as crianças?

- Estão bem. - Ela não precisava ouvir as irritaçõezinhas agora. A faxineira estava ameaçando ir embora, Anne e Val tinham tido uma briga e tanto, e Greg amassara o carro. Mas tudo isso eram problemas secundários, que ele sabia resolver. Não obstante, ele sempre se sentia aliviado quando ela acabava um filme e voltava a dirigir a casa. Muitas vezes ele se perguntava como é que ela suportava a irritação diária de tudo aquilo. Sempre ficava alucinado, embora não o dissesse a ela. - Estão todos ocupados. As gêmeas estão fazendo trabalho de baby-sitter todo dia, Greg vai para a fazenda na semana que vem. - Ela não disse em voz alta "Graças a Deus".

Pelo menos, a casa ficaria mais tranqüila sem o telefone tocando, as portas batendo e meia dúzia de amigos de Greg jogando bola com um jarro favorito. - Quase nem vemos Lionel, agora que ele está empregado.

- Ele está gostando? - Ela abriu os olhos. Teria perguntado a ele ela mesma, mas havia semanas que não o via.

- Acho que sim. Pelo menos, não tem reclamado.

- Isso não quer dizer muita coisa. Li nunca se queixa. - E depois ela pensou noutra coisa. - Eu devia ter arrumado alguma coisa para Anne. Não pensei que começássemos tão cedo. - Mas o dinheiro aparecera, o set estava livre. Tudo se arrumara e, em vez de começarem em fins de setembro, tinham começado em junho. Isso era fora do comum, e Faye não quis criar problemas, dizendo que não estava livre para começar, mas significava abandonar os filhos durante o verão e Anne se recusara terminantemente a ir para um acampamento.o que é que ela faz, o dia todo?

- Ela está bem. A sra. Johnson fica lá até eu chegar em casa. Ela convida as amiguinhas e elas ficam na piscina. Eu disse a elas que as levaria à Disneylândia na semana que vem.

- Você é um santo. - Ela bocejou e sorriu para ele ao mesmo tempo, e se apoiou bem nele quando entraram em casa. As meninas ainda estavam acordadas. Val estava com o cabelo enrolado em rolos gigantes e com um biquíni que teria feito Faye soltar uma exclamação de horror se ela tivesse forças para isso. Ela fez uma anotação mental para falar a Val no dia seguinte, se tivesse tempo e visse a menina. Ela estava ouvindo música na salinha e Vanessa estava de camisola conversando com uma amiga ao telefone, sem ligar para o barulho que Val estava fazendo.

- Onde está Anne? - Faye perguntou a Val, e esta deu de ombros, pronunciando a letra da canção. Ela teve de perguntar de novo até que Valerie lhe respondesse.

- Lá em cima, eu acho. - Está dormindo?

- É provável. - Mas Vanessa sacudiu a cabeça. Ela possuía o dom estranho de ouvir várias conversas ao mesmo tempo, e muitas vezes fazia isso. Faye subiu para dar boa-noite à filha caçula. Já sabia que Greg tinha saído com amigos e Lionel estava jantando com um pessoal do trabalho dele, dizia um bilhete na cozinha, de modo que estavam todos controlados. Ela gostava de saber onde estavam os filhos todos, e muitas vezes se preocupava com eles, lá no set. Ward era mais descansado do que ela em matéria de deixar que eles fizessem o que queriam, e ela queria que os levasse de rédea curta, mas ele nunca fazia isso. Teria enlouquecido se o fizesse, além de dirigir a casa.

Ela abriu a porta de mansinho, e, ao subir a escada, podia jurar que tinha visto uma luz no quarto de Anne, mas agora o quarto estava às escuras. Anne estava enroscada na cama, de costas para a porta, e Faye ficou ali por um momento. Depois, foi para junto dela e tocou-lhe de leve o halo suave dos cabelos.

- Boa noite, criança - murmurou ela, e depois se debruçou para beijar-lhe o rosto. Fechou a porta e foi para seu quarto com Ward, voltando a falar do filme e mergulhando num banho quente antes de se deitar. Alguns minutos depois, ouviu as meninas subirem. Bateram à porta, gritaram boa-noite, e ela não viu quando Vanessa foi ao quarto da irmãzinha. A luz estava acesa de novo e Anne estava lendo... E o vento levou.

- Você viu a mãe? - Vanessa examinou o rosto da outra e viu alguma coisa estranha nos olhos dela, algo oculto e distante que quase sempre estava ali, a não ser com Li. Anne sacudiu a cabeça. - Como assim? - A menina não quis confessar que tinha apagado a luz e fingido estar dormindo, mas Vanessa adivinhou. - Você fingiu que estava dormindo, não foi? - Houve uma hesitação demorada e depois a menina deu de ombros. - Por quê?

- Eu estava cansada.

- Bosta! - Ela ficou zangada. Era irritante e típico de Anne. - E não é legal Ela perguntou por você no minuto em que entrou. - O rosto de Anne não se modificou em nada e seus olhos nada revelavam. - Acho isso babaquice de sua parte. - Ela virou-se e já ia saindo do quarto quando a voz de Anne a alcançou, à porta.

- Não tenho nada a dizer a ela. - Vanessa olhou para ela e saiu do quarto, sem compreender a verdade que Lionel compreendia tão bem. Anne tinha medo de que a mãe não tivesse nada a lhe dizer. Nunca dissera nada. Nunca estivera por perto, quando Anne era menina. Eram sempre amas ou baby-sitters ou um dos irmãos tomando conta dela enquanto a mãe trabalhava ou saía ou fazia outra coisa. Ela sempre estava "cansada" ou "preocupada" ou "tinha de ler aquele argumento", ou "tinha de falar com o Pai". Então, o que restara para dizer agora? Quem é você? Quem sou eu? Era mais fácil conversar com Lionel e evitá-la... assim como ela evitara Anne por tanto tempo. Agora ela teria de pagar por isso.

 

Faye ainda estava metida no filme quando Lionel se mudou para um apartamento com quatro amigos, e começou as aulas na UCLA. Na semana seguinte ele foi visitá-la no set, só para estar um pouco com a mãe. Ele ficou esperando ali em pé, paciente, até haver um intervalo. Sempre gostava de assistir ao trabalho dela e, afinal, depois de uma hora de três retomadas de uma cena muito sangrenta, ela dispensou a todos para o almoço e, levantando os olhos, viu o filho. Estava tão absorta antes que nem o vira chegar e o prazer logo iluminou-lhe a fisionomia, quando foi depressa beijá-lo.

- Como vão as coisas, amor? Como vai o apartamento, e os estudos? - Parecia que não o via há anos e de repente ela sentiu saudades de todos eles, ele em especial.

Ainda não tinha recebido em cheio o golpe da ausência dele. Estava tão acostumada a tê-lo perto de si, a ter aquelas conversas maravilhosas com ele, e agora ele se fora. Mas estava tão ocupada trabalhando que nem tivera tempo de notá-lo, ainda. - Gosta do seu apartamento?

Os olhos dele se iluminaram, entusiasmados.

- É bem bonzinho, e os outros caras são bem arrumados. Graças a Deus, nenhum deles é igual a Greg. - Ele se riu e ela também, pensando no caos conhecido do quarto de Greg. Nada mudara.

- Já esteve em casa, desde que se mudou?

- Só uma ou duas vezes, para apanhar algumas coisas. Vi o pai e ele disse que você estava bem.

- Estou sim.

- Parece formidável. - Fez um gesto em direção ao palco que ela acabava de deixar e ela ficou contente. Como o pai, ele tinha bom olho para os filmes de sucesso.

Ela ficava por demais atada aos detalhes para poder enxergar o todo e eles eram melhores nisso. Podiam recuar e ver a coisa de modo diferente. - Foi uma cena e tanto. Ela sorriu.

- Estamos trabalhando nela há uma semana. - Quando ela falou, o grande astro deles, de quem era a tal cena, se aproximou, olhando para Lionel, e para Faye mais seriamente.

Era tão perfeccionista quanto ela e ela adorava trabalhar com ele. Era o segundo filme que faziam e ela estava muito satisfeita com ele. Era um dos astros promissores de Hollywood, Paul Steele, e sentou-se ao lado de Faye.

- O que é que você achou?

- Acho que acertamos, da última vez.

- Eu também. - Ele estava contente por ver que ela achava o mesmo. - Eu ontem já estava ficando preocupado, pensei que nunca ia conseguir fazer essa cena direito. Passei a noite em claro trabalhando nela.

Como sempre, ela ficou impressionada com ele.

- Deu para notar. Obrigada, Paul. Esse tipo de dedicação é o que faz as coisas darem certo. - Mas havia muito poucos atores dispostos a trabalharem assim. E ele estava. Então se levantou e olhou para Lionel com um sorriso.

- Você deve ser o filho de Faye. - As pessoas adivinham sempre, e tanto Faye quanto Lionel riram.

- Como é que adivinhou? Steele apertou os olhos, rindo.

- Ah, vamos ver... os cabelos... o nariz... os olhos... Olha, garoto, só falta o mesmo penteado e um vestido, e vocês podiam ser gêmeos.

- Não sei bem se eu aprovaria isso - disse Faye, rindo -, aliás, posso dizer logo que não aprovaria.

- É isso aí. - Paul riu.

- Fiquei muito impressionado com sua última cena, sr. Steele. - Lionel o tratou com muito respeito e Steele se comoveu.

- Obrigado. - Faye os apresentou formalmente e Paul apertou a mão do rapaz. - A sua mãe é a diretora mais durona da cidade, mas é tão boa que vale todo o sangue, suor e lágrimas.

- Meu Deus, mas quanto elogio. - Os três se riram e Faye olhou depressa para o relógio. - Temos mais ou menos uma hora, cavalheiros. Posso convidá-los para almoçar na cantina?

Paul fez uma careta.

- Nossa, mais torturas. Não podemos fazer coisa melhor? O convite é meu. Meu carro está bem aí fora do estúdio. - Mas todos sabiam que não havia muita coisa fora do estúdio e não tinham muito tempo. - Está bem, está bem, eu desisto. Indigestão, lá vamos nós. - Não é tão mau assim. - Faye tentou defender a cantina, mas não adiantou: Paul e Lionel discordaram dela violentamente, e os três se dirigiram para lá. Paul perguntou se Lionel estava estudando, e ele explicou que acabara de entrar para a UCLA, para estudar cinematografia.

- Foi lá que eu estudei. Já teve tempo de saber se gosta?

- Parece ótimo. - Lionel sorriu, feliz, e Paul achou graça. Ele era muito jovem, mas na conversa, ao almoço, ficou evidente que era um garoto inteligente. Era esperto e sensível e sabia muita coisa sobre o ramo que escolhera. Conversou muito com Paul e Faye até Faye dizer que tinham de voltar. E depois que voltaram, Lionel pareceu ficar por ali, querendo absorver a atmosfera. Paul o convidou para ir ao seu camarim, enquanto se maquilava de novo e o cabeleireiro fazia alguma coisa diferente com seus cabelos. Na cena seguinte, ele era prisioneiro de guerra e Lionel estava louco para ficar ali, mas tinha de voltar para a universidade. Ainda tinha mais três aulas naquela tarde.

- Que pena. Gostei de conversar com você. - Paul olhou para ele com um sorriso sincero. Estava com pena de vê-lo ir embora. Gostara do rapaz... talvez demais... mas não ia deixar que isso aparecesse, por respeito a Faye, e esse rapaz tão jovem. Não estava acostumado a corromper ninguém, e virgens não eram o seu tipo. Mas, para espanto de Paul, Lionel pareceu estar querendo tornar a vê-lo.

- Eu gostaria de voltar para assistir mais. Tenho uma tarde livre no final da semana. - Ele olhou para Paul Steele com esperanças, como uma criança esperando por Papai Noel, e Paul não sabia bem se era pelo filme que estava empolgado, ou se era outra coisa. Assim, agiu com cuidado. - Talvez eu possa voltar então. - Os olhos de Lionel pesquisaram os dele e Paul não sabia mais ao certo o que estava vendo, se era o rapaz ou o homem.

- Isso é lá com a sua mãe. É ela quem dirige esse negócio. Também é minha chefe.

Ambos riram e Lionel concordou.

- Vou perguntar o que é que ela acha. - Paul por um momento ficou preocupado, achando que ela pensaria que ele é que tinha inventado aquilo. Ele não fazia segredo de suas preferências. - Eu te vejo na sexta-feira, espero... - Lionel olhou para ele, esperançoso, e Paul se virou. Não queria começar nada... queria... mas não era direito... e ele era filho de Faye Thayer... Cristo, a vida às vezes ficava complicada. Ele acendeu um baseado, na esperança de se acalmar, mas aquilo só lhe avivou o desejo.

Quando voltou ao set, sentia uma fome e solidão que chegava quase a doge aquilo apareceu no filme. Dessa vez, conseguiram a cena na primeira tomada, uma vitória quase inédita, e Faye o felicitou. Mas ele se mostrou frio para com ela, e ela se perguntou por que seria. Ela não deu importância alguma ao fato de se ter mostrado gentil com Lionel. Conhecia Paul bastante bem e sabia que não tinha nada a temer da parte dele. Era um homem decente, e fizesse o que fizesse com o seu tempo de folga, não ia se aproveitar do filho dela. Disso, tinha certeza e não se aborreceu quando viu Lionel de novo no set na tarde de sexta-feira. Quando ele era menor, muitas vezes ia ali para ver o trabalho dela. Ultimamente, não tinha assim muito tempo, mas não era segredo que ele gostava do cinema. E agora ia fazer carreira nisso. Ela ficou até contente por vê-lo ali, e, embora ele a princípio não o demonstrasse, Paul Steele também ficou.

- Oi, Paul. - Lionel disse as palavras hesitando, e no momento em que as pronunciou, pensou se deveria ter chamado o outro de sr. Steele. Paul só tinha 28 anos, mas todos o respeitavam muito, na indústria. E Lionel tinha dezoito e se sentia como um guri, junto dele. - Oi. - Paul parecia displicente, ao passar por ele, a caminho do camarim de outra pessoa, rezando para que seus caminhos não se cruzassem de novo. Mas no fim da tarde, quando fizeram uma pausa, Faye lhe ofereceu um cálice de vinho. Lionel estava ali, evidentemente embasbacado, e Paul não resistiu ao impulso de sorrir para ele.

- Prazer em rever você, Lionel. Como vão as aulas? - Talvez se ele fingisse para si mesmo que o rapaz era uma criança, a coisa fosse mais fácil. Mas nada era fácil quando ele olhava naqueles olhos. Era impossível resistir a eles. Eram muito parecidos com os dela, mas mais profundos, mais compulsivos, mais tristes e mais sábios, em alguns sentidos, como se ele guardasse dentro de si algum segredo terrível. E, instintivamente, Paul sabia qual era esse segredo. Com a idade do outro, ele mesmo tinha guardado um segredo igual. Era muita solidão, até que alguém estendesse a mão. Até acontecer isso, a pessoa era uma aberração, vivendo num inferno solitário, assustada com os próprios pensamentos e com o que os outros diriam, se soubessem. - O que achou da tomada de hoje? - Não adiantava tratá-lo como criança: era um homem. Ambos sabiam disso. E Paul olhou bem nos olhos dele.

- Achei muito, muito boa.

- Gostaria de ver os copiões, comigo? - Paul gostava de vê-los sempre que podia, para poder corrigir seus erros. Isso era importante para o trabalho dele e Lionel ficou lisonjeadíssimo ao ver que Paul o convidava para participar de um mundo tão especial. Arregalou os olhos, assombrado, e Faye e Paul se riram. - Mas escute, se ficar com essa cara, não vou deixar que assista. Você tem de entender que a maior parte do que vai ver é uma merda. Uma merda constrangedora, mas é assim que a gente aprende.

- Eu gostaria muito de ver os copiões com você.

Eles assistiram às cenas por volta das seis da tarde e quando se sentaram e as luzes se apagaram, Paul sentiu a perna de Lionel sem querer encostar no seu joelho.

Ele sentiu uma onda de emoção que foi quase doloroso combater. Mas, com cuidado, ele afastou a perna e se obrigou a se concentrar no que estava na tela e depois, quando as luzes se acenderam, Lionel comentou com ele o que tinham visto e o espantoso foi que ambos acharam as mesmas coisas sobre as mesmas cenas. O rapaz era brilhante em matéria de filmes, inteligente, intuitivo, e tinha instinto para o estilo e a técnica. Não era propriamente de surpreender, pois ele se criara naquilo.

No entanto, Paul ficou impressionado. Estava louco para conversar mais com ele, quando Faye se aprontou para largar o set. Nessa noite ela precisava sair cedo. Para ela, sete e meia ainda era o meio da tarde e ela olhou para os dois, achando graça na conversa deles.

- Você está de carro, amor? - perguntou Faye ao filho, e nessa noite ela parecia estar cansada. Mas tinha de ir para casa e se descontrair: a semana fora extenuante e eles iam filmar uma cena ao amanhecer, no dia seguinte. Ela teria de se levantar antes das três da manhã. - Estou, mãe, vim de carro.

- Bom, então vou deixar que vocês esgotem o assunto. Esta velha senhora vai para casa, antes que caia de cara no chão, de tão exausta. Boa noite, cavalheiros. - Beijou o rosto de Lionel, acenou um adeus a Paul e saiu depressa para pegar o seu carro. Ward já fora na frente, para jantar com os filhos. Depois disso, Paul ficou pasmo quando olhou para o relógio. Já eram quase nove horas e eles eram os últimos no set. Não tinha comido nada desde o almoço e pelo que ouvira Lionel dizer, sabia que este também estava sem comer. Que mal poderia haver em irem comer alguma coisa?

- Quer ir comer um hambúrguer? Você deve estar morto de fome. - O convite lhe pareceu inofensivo, e o filho de Faye ficou satisfeito.

- Gostaria muito, se você não tiver outro compromisso. - Era tão jovem e humilde que chegava a ser constrangedor, e Paul sorriu e passou o braço pelos ombros dele,  quando foram para seus carros. Não havia mais ninguém ali, de modo que não poderia haver más interpretações.

- Pode crer, conversar com você foi a coisa mais interessante que faço há algumas semanas, talvez até meses...

- É simpático de sua parte dizer isso. - Sorriu para Paul quando chegaram ao carro dele. Paul tinha um Porsche prata e Lionel estava com o Mustang vermelho, de que tanto se orgulhava.

- Que ótimo carro!

- Ganhei de presente de formatura, em junho.

- Um presente e tanto! - Paul parecia impressionado. Com aquela idade, tinha comprado um calhambeque por 75 dólares, mas seus pais não eram Ward e Faye Thayer e nem ele morava em Beverly Hills. Chegara à Califórnia vindo de Buffalo aos 22 anos, e desde então a vida fora linda especialmente nos últimos três anos. A carreira dele tivera um lançamento meteórico, a princípio graças a um romance fortuito com um importante produtor de Hollywood. Mas depois disso as oportunidades que teve foram devidas a seu próprio valor e capacidade. Não havia como negar isso, e poucos o negavam. Não importava a opinião que se tivesse sobre Paul Steeie, era danado de bom. Mas a maior parte das pessoas que tinham trabalhado com ele não falavam mal dele. Era um homem decente, bom companheiro de trabalho, mostrava-se reservado a maior parte do tempo, e quando se chegava a conhecê-lo bem, ele sabia ser divertido. Entre dois filmes, por vezes ele fazia loucuras, por vezes fumando muita erva, cheirando cocaína, tomando bolinhas e falava-se de orgias em casa dele e taras sexuais, mas ele não abusava de ninguém, ninguém era prejudicado e, trabalhando tanto, ele tinha de fazer alguma coisa para se desafogar: afinal, ainda era bem jovem.

Ele levou Lionel ao Hamburger Hamlet, no Sunset, e disse para o rapaz o seguir, no carro dele, dirigindo com cuidado. Por algum motivo, estava preocupado com o rapaz.

Não queria que ele se machucas se, nem fisicamente nem de outro modo. Gostava dele, há tempos não gostava assim de alguém. Era uma pena que só tivesse dezoito anos, uma pouca sorte danada. Era tão lindo e tão jovem, porra. Paul não conseguia tirar os olhos de cima de Lionel, enquanto comiam, e depois ficaram lá fora, Lionel nem sabendo como agradecer a honra e o convite, Paul louco para convidá-lo para a casa dele, mas com medo do efeito que isso poderia ter, de modo que ficaram ali sem jeito, Paul olhando para ele. Queria saber o que é que Lionel sabia sobre si mesmo, mas ainda não tinha certeza disso. Se o rapaz soubesse, talvez fosse diferente, mas se ele ainda nem desconfiasse... só de olhar para ele, Paul tinha certeza, mas Lionel também teria? Então, de repente, ali no estacionamento, Paul viu que tinha de atacar a coisa de frente. Talvez até chegasse a perguntar a ele. Talvez estivesse enganado. Talvez pudessem ser amigos. Mas não podia deixar que ele se fosse... ainda não... não agora... não tão cedo.

- Sei que parece tolice, mas você gostaria de ir à minha casa, beber alguma coisa? - Ele ficou quase encabulado ao dizer aquilo, mas Lionel arregalou os olhos, de prazer.

- Gostaria muito. - Talvez ele soubesse mesmo... Paul estava ficando alucinado, tentando adivinhar, e não havia como.

- Eu moro em Malibu. Quer me seguir de novo, ou deixar o seu carro aqui? Eu poderia trazer você depois.

- Não seria muito trabalho? - Malibu ficava a uma hora dali. - Não, em absoluto. Nunca me deito muito cedo. E hoje pode ser que não vá para a cama de todo. Começamos a filmar às quatro da manhã e eu trabalho melhor nesse horário quando não durmo.

- O meu carro vai estar seguro? - Olharam em volta e acharam que sim. A casa de hambúrguer ficava aberta a noite toda, de modo que as pessoas entravam e saíam e ninguém ousaria arrombar o carro com gente por perto. Resolvido isso, Lionel se sentou na frente do Porsche de Paul e sentiu logo que tinha morrido e ido para o céu. Parecia que tinha sido levado para um outro mundo, sentado ali no banco de couro preto macio, o painel parecendo o painel de um avião e eles decolaram, Paul fazendo as mudanças e ligando o rádio, a música de Roger Miller cantando King of the Road enchendo os ouvidos deles. O trajeto até Malibu foi quase uma experiência sensual. Paul estava louco por um baseado, mas não queria queimar fumo na frente do rapaz e tinha certo receio do que poderia fazer se fumasse, de modo que se absteve e eles conversaram um pouco no percurso, ouviram a música enquanto seguiam em disparada e quando chegaram à casa na praia, Lionel estava inteiramente à vontade com seu novo amigo.

Paul enfiou a chave na fechadura, eles entraram e a casa fez perdurar o mesmo estado de espírito. Havia uma bela vista do oceano, com luzes baixas, uma sala rebaixada cheia de sofás e almofadas macias, plantas imensas e luzes embutidas que destacavam alguns objetos de arte que Paul adorava. Havia um bar bonito, uma parede de livros e um som que parecia encher o mundo inteiro com música suave, enquanto Lionel se sentava e olhava em volta. Paul jogou seu casaco de couro ao sofá, serviu um cálice de vinho branco para cada um e foi se sentar junto dele.

- Então - disse ele, sorrindo -, gostou? - Ele tinha de confessar que se orgulhava da casa. Para um rapaz pobre de Buffalo, tinha progredido muito mesmo, e estava feliz.

- Meu Deus... é tão lindo...

- É mesmo, não é? - Ele não discordou. Eles podiam olhar para a praia, o mar. O mundo inteiro parecia estar a seus pés, e quando terminaram o vinho, Paul sugeriu que fossem andar um pouco. Ele gostava de andar na praia tarde da noite, e só eram 11 horas. Tirou os sapatos, Lionel fez o mesmo, e foram para a areia lisa e branca e Lionel achou que nunca se sentira tão feliz. Sentiu uma coisa que nunca sentira na vida, e sentia aquilo cada vez que olhava para aquele homem. E aquilo o estava deixando confuso. Ele se calou um pouco, e quando estavam voltando, Paul parou e se sentou na areia. Olhou para o mar, depois para Lionel, e de repente as palavras saíram por si: - Você está confuso, não está, Li? - Ele ouvira a mãe chamá-lo assim e se perguntou se ele se importaria com essa intimidade, mas o rapaz não pareceu se importar; apenas meneou a cabeça, quase aliviado ao confessar o que sentia para aquele homem que se estava tornando seu amigo.

- Estou... - Ele queria ser sincero com ele, aí talvez compreendesse o que ele mesmo estava sentindo. Sentia-se ao mesmo tempo muito velho e muito jovem. - Estou, sim.

- Eu também me sentia assim. Antes de vir de Buffalo para cá. - Ele suspirou, no ar noturno. - Eu detestava aquilo lá.

Lionel sorriu.

- Deve ser bem diferente disso aqui. - Ambos riram e quando ficaram sérios Paul olhou para ele.

- Quero ser sincero com você. Eu sou gay. - De repente, ele ficou apavorado. E se Lionel o detestasse por isso?... E se se levantasse e fugisse? Havia anos que não sentia esse medo por esse tipo de rejeição, e aquilo o deixou assustado. Era como dar um gigantesco passo atrás... de volta a Buffalo... apaixonado pelo sr. Hoolihan nos treinos de beisebol na primavera, sem poder fazer nada a respeito... só olhar para ele no chuveiro, desejando desesperadamente tocar no rosto dele... o braço... a perna... tocar nele, em qualquer parte... tocá-lo ali... ele se virou para Lionel com os olhos assustados. - Sabe o que isso quer dizer?

- Sei, claro.

- Não estou dizendo apenas que sou homossexual, supunha que você entendesse isso. Quero dizer: sabe o tipo de solidão especial que isso pode significar para um homem?

- Paul pôs toda a alma nos olhos e Lionel fez que sim, sem tirar os olhos de cima dele. - Acho que você sabe, Lionel... acho que já sentiu as mesmas coisas que eu. Não é? As lágrimas escorreram devagar pela face de Lionel, enquanto ele meneava a cabeça, e de repente não agüentou mais olhar naqueles olhos: enfiou a cabeça nas mãos e começou a chorar. Mil anos de solidão o invadiram e Paul o abraçou e o prendeu até que ele parasse e depois Paul levantou o queixo dele até ele tornar a olhar em seus olhos.

- Estou me apaixonando por você. E não sei o que fazer a respeito. - Ele nunca se sentira tão livre quanto nessa hora. Foi maravilhoso contar aquilo a ele, e Lionel sentiu todo o seu corpo se incendiar. De repente ele entendeu coisas que nunca entendera antes, sobre si ... coisas que nunca quisera saber... ou em que tinha medo de pensar... e soube de tudo ao olhar nos olhos daquele homem. - Você é virgem, não é?

Lionel fez que sim e sua voz estava rouca.

- Sou, sim. - Também ele estava se apaixonando pelo outro, mas ainda não sabia como dizê-lo. Rezou para poder dizê-lo, com o tempo, e que Paul não o mandasse embora... que o deixasse ficar sempre com ele...

- Já foi para a cama com uma garota? - Ele sacudiu a cabeça, calado. Fora assim que ele descobrira. Nunca tivera vontade, jamais. Não existia isso para ele. - Nem eu. - Paul suspirou e se deitou na areia, pegando a mão de Lionel, com brandura, e lhe beijando a palma vezes e mais vezes. - Talvez assim seja mais fácil. A opção foi tomada por nós há muito tempo. Eu sempre acreditei nisso, quanto a pessoas como nós. Sei que não temos nada a ver com essa opção, e existe mesmo quando a pessoa é bem criança. Acho que eu já sabia desde então, mas tinha medo de saber.

Lionel estava se sentindo com mais coragem.

- E eu também... tinha medo que alguém descobrisse... soubesse... lendo os meus pensamentos... o meu irmão é bem atlético e o meu pai queria que eu fosse assim. E eu não conseguia ser... não conseguia... - As lágrimas lhe encheram os olhos de novo e Paul apertou bem a mão dele.

~ Alguém na sua família desconfia? Lionel sacudiu a cabeça, depressa.

- Nem eu mesmo jamais reconheci isso, até hoje. - Mas agora ele sabia. Sabia com certeza. Queria que fosse assim. Com Paul. E mais ninguém. Tinha esperado por ele a vida toda e não ia perdê-lo agora. Paul, porém, o observava com cuidado.

- Tem certeza de que você está preparado para reconhecer isso agora? Você nunca mais poderá voltar atrás. Não poderá mudar de idéia, de verdade... parece que alguns mudam, mas sempre me pergunto até que ponto estarão convencidos... não sei... - Olhou para Lionel, deitado ao seu lado, na areia. Ele estava apoiado no cotovelo, olhando para o outro, e não havia ninguém por ali, numa distância de quilômetros. As casas estavam acesas atrás deles, como jóias, mil anéis de noivado que ele lhe estava oferecendo... uma coroa... - Não quero fazer nada para o que você não esteja preparado.

- Estou... sei que estou, Paul... eu era tão só, até agora... não me deixe lá fora de novo... - Paul o tomou nos braços e o abraçou com força e não pôde mais suportar.

Ele fizera o que era direito. Oferecera-lhe uma opção. Nunca se aproveitara de ninguém, e não ia começar agora, com aquele rapaz.

- Venha, vamos para casa. - Ele se levantou da areia, com graça, e estendeu a mão para Lionel, que se levantou de um salto, com facilidade, e, com um sorriso natural e despreocupado, Lionel o acompanhou de volta à casa, de mãos dadas com ele e eles conversaram, mais animados. De repente, Lionel se sentiu como se lhe tivessem tirado de cima um peso de mil quilos. Sabia quem e o que era, e para onde ia agora, e de repente estava tudo bem. Não era mais assustador. Pouco depois, chegaram em casa e entraram, sentindo-se revigorados pelo ar da noite. Paul serviu outro cálice de vinho a cada um, tomou um gole do dele e acendeu o fogo na lareira; depois desapareceu em outro quarto, deixando Lionel com seus pensamentos e seu vinho, e quando voltou, as luzes estavam fracas, a sala no escuro, o fogo aceso, e ele se postou nu no centro da sala, chamando Lionel.

Não disse coisa alguma e Lionel nem hesitou. Levantou-se e o acompanhou.

 

Paul levou Lionel de volta para pegar o carro dele na casa dos hambúrgueres às quatro da manhã, e eles ficaram ali no estacionamento, se olhando. Parecia estranho estarem na lanchonete de volta. Acontecera tanta coisa, desde que tinham comido ali. Era incrível. Lionel sentia-se como se tivesse asas. Fora a noite mais linda de sua vida, e ele estava sentindo um alívio que nunca experimentara. Por fim, sabia o que era, e Paul fizera tudo parecer certo... mais que isso, fizera aquilo parecer lindo. E Lionel não sabia como lhe agradecer.

- Nem sei o que dizer... como te agradecer... - disse ele, pisando num pé e depois noutro, sorrindo encabulado para o amigo. - Não se preocupe. Quer me ver hoje à noite?

Lionel mal podia respirar, e sentiu-se excitado de novo. Não sabia como era incrível, mas com Paul, fora isso mesmo.

- Gostaria muito.

Paul apertou os olhos, pensando num lugar onde se poderiam encontrar.

- Que tal se encontrar comigo aqui mesmo, por volta das oito horas? Espere no seu carro e depois pode me acompanhar até em casa. Se eu não estiver muito extenuado, podemos preparar alguma coisa para comer, ou parar no caminho. Que tal? - Não era assim que ele gostava de cortejar seus homens, mas naquele momento estava trabalhando num horário puxado no filme.

- Ótimo. - Lionel sorriu e depois bocejou, com sono, enquanto Paul se ria e lhe despenteava os cabelos.

- Vá para casa dormir um pouco... garoto de sorte. Vou ter que sentar o rabo no trabalho o dia inteiro.

Lionel olhou para ele, com pena.

- Dê lembranças à minha mãe. - E de repente ele ficou chocado ao ver o que dissera.

Paul riu.

- Acho melhor eu não fazer isso, por enquanto. - Ou nunca. Ele não sabia em absoluto como é que Faye ia reagir ao saber que o filho mais velho era bicha. - Se ela perguntar, digo que comemos um hambúrguer e você foi para casa. Está bem?

Lionel fez que sim. E se ele tivesse um deslize? E se ele mesmo dissesse alguma coisa a alguém, um dia desses? Era uma idéia assustadora, não era? Ou não?... Com o tempo, as pessoas teriam de ficar sabendo. Ele não queria viver escondido o resto da vida. Mas, por outro lado, não queria contar a ninguém, por enquanto... ainda não... queria que fosse um segredo dele e Paul.

- Tenha um bom dia... - Ele teve vontade de beijá-lo bem ali, no estacionamento, mas não ousou, e Paul tocou na face dele, delicadamente, com carinho nos olhos.

- Cuide-se, hoje... descanse um pouco, amor.

Lionel sentiu a força do amor dele nas palavras, e seu coração sentiu uma pontada ao vê-lo partir. Acenou quando o Porsche prata se afastou e tomou o seu carro, com seus pensamentos. Mal podia esperar até que chegasse a noite e, quando chegou, ele estava esperando no carro, de camisa limpa e suéter, calças de camurça impecáveis, os cabelos bem penteados e uma loção de barba nova, que comprara naquela tarde. E Paul reconheceu todos os preparativos ao saltar do carro, e ficou comovido. Não tivera tempo nem para tomar uma chuveirada antes de sair do set, mas não queria se atrasar. Passou o braço em volta de Lionel e eles se abraçaram; era evidente que o rapaz estava contente por tornar a vê-lo. Li estava empolgado.

- Como foi o seu dia, Paul?

Ótimo, graças a você. - Ele sorriu, generoso, e o rapaz ficou feliz. - Lembrei-me de todas as minhas falas, fiz tudo direito, mas trabalhamos como mouros, esta tarde.

- Ele olhou para si: ainda usando a roupa de faxina do set, mas ninguém dissera nada quando ele partira. - Vamos para casa, para eu poder me limpar e trocar de roupa. - Tinha vontade de ir a um bar gay depois, para jantar, ou pelo menos tomar um drinque, mas não estava disposto a apresentar Lionel ao mundo gay. Instintivamente, sentia que Lionel ainda não estava preparado para isso. Queria que aquilo fosse especial, uma coisa que só existisse entre eles, e Paul estava disposto a acompanhá-lo por algum tempo, afastando-se de seus amigos habituais para ficar a sós com o rapaz. Lionel resolveu ir no carro dele de novo, e eles pararam num mercado a caminho de Malibu. Compraram meia dúzia de cervejas, vinho, ingredientes para uma salada, frutas frescas e dois bifes. Era um jantar saudável para dois e Lionel disse que sabia cozinhar.

Revelou-se bom cozinheiro e quando Paul saiu do chuveiro, com uma toalha enrolada na cintura, Lionel lhe deu um cálice de vinho, com um sorriso.

- O jantar vai estar pronto dentro de cinco minutos.

- Ótimo, estou morto de fome. - Mas aí Paul largou o cálice e se debruçou para dar um beijo em Lionel. Quando se separaram seus olhos se prenderam e o coração de Lionel deu um salto. - Senti falta de você.

- Eu também de você.

A toalha foi escorregando devagar da cintura de Paul, e ele murmurou enquanto o rapaz desafivelava o cinto, ávido.

- Os bifes vão queimar, se esperarem? - Não que ele se importasse... no momento, não se importava com nada a não ser aquela carne jovem... Lionel era um dos amantes mais excitantes que ele já tivera, havia tempos. Era tão entusiasmado e novo, cada centímetro dele tinha um cheiro bom, seu corpo era tão jovem e firme... Ele puxou as calças de camurça para baixo até encontrar o que queria e Lionel gemeu quando a boca de Paul o encontrou ali. E um momento depois estavam emaranhados no piso úmido, o jantar esquecido, os corpos presos na sua paixão.

 

O caso continuou durante o outono e Lionel nunca se sentira tão feliz. Estava indo bem nos estudos e Paul continuava a trabalhar no filme dos Thayer. De vez em quando, Lionel ia ao set, mas era muito difícil fingir, com Paul bem ali. Ele tinha de fazer força para desviar o olhar, e receava que a mãe percebesse tudo.

- Ela não sabe tudo - disse Paul um dia, implicando com ele. - Mesmo sendo sua mãe. E acho que ela agüentaria se soubesse. Lionel suspirou.

- Também acho... - Mas aí ele pensou em Ward... - Mas o meu pai não. Nunca compreenderia.

Paul concordou com ele.

- Acho que nisso você tem razão. Acho que é difícil os pais aceitarem os filhos.

- Os seus pais sabiam a seu respeito? Paul sacudiu a cabeça.

- Continuam sem saber. E ainda sou bastante jovem, de modo que eles entendem porque continuo solteiro aqui. Mas daqui a dez anos, vão me atormentar mesmo.

- Talvez que a essa altura você já esteja casado e com cinco filhos. - Os dois riram diante dessa possibilidade absurda. Aquilo não atraía Paul em absoluto. Não tinha qualquer tendência bissexual. As mulheres nunca o haviam excitado. Mas Lionel o excitava. Passavam a maior parte das noites fazendo amor na cama imensa, ou no sofá diante da lareira... ou no chão... ou na praia. Era um relacionamento inteiramente sensual e erótico e tudo neles excitava o outro. Lionel agora tinha a chave da casa de Malibu, e às vezes ia diretamente para lá, depois das aulas.

Ou ia para o apartamento e depois ia se encontrar com Paul em Malibu, quando este acabava de trabalhar, mais tarde. Mas havia meses que não passava uma noite no apartamento, e os companheiros de quarto implicavam com ele a cada oportunidade que aparecia.

- Então, Thayer... quem é a dona? Como se chama? Quando é que vamos vê-la, ou será uma dessas bonecas que você esconde dos amigos e só passa o tempo trepando?...

- Muito engraçado. - Ele tentava despistar, aturava as piadas deles, sua admiração, sua inveja, pensando no que diriam se soubessem da verdade. Mas sabia qual seria a resposta. Eles o chamariam de viadinho nojento e provavelmente o expulsariam.

- Você contou a algum de seus amigos? - perguntou Paul, uma noite, quando estavam deitados nus diante da lareira, tendo acabado de trepar.

Lionel sacudiu a cabeça.

- Não. - Só conseguia pensar nos rapazes que partilhavam o apartamento com ele. Típicos calouros atléticos, ou jovens intelectuais, todos loucos para trepar e se esforçando por isso o tempo todo. Suas vidas sexuais eram bem menos ativas do que a de Lionel, mas num estilo totalmente diferente. Teriam ficado horrorizados se o vissem naquele momento. E no entanto ele estava muito feliz assim. Olhou para Paul com ternura. O outro o observava com atenção, como que tentando ler seus pensamentos.

- Val se esconder a vida toda, Li? É uma merda. Eu mesmo fiz isso por muito tempo.

- Ainda não estou preparado para aparecer. - Ambos sabiam disso.

- Eu sei. - E Paul não insistira. Não o levava a lugar algum, se bem que o rapaz fosse uma beleza e os amigos todos teriam babado de inveja, mas ele não queria que a notícia se espalhasse. Quando ele saísse com o garoto, seria só uma questão de tempo até as pessoas descobrirem quem ele era. Filho de Faye Thayer... e aí é que ia dar um rolo danado. Paul queria poupar isso a ambos, e parecia sensato. Em especial para Paul, cuja carreira poderia correr risco caso Faye ou Ward ficassem furiosos ao saber da história, como bem poderiam. Afinal, o rapaz só tinha dezoito anos e Paul tinha feito 29. Podia haver um escândalo e tanto e isso não faria bem algum a Paul. O seu relações-públicas ainda ligava o nome dele a atrizes, sempre que podia. O público gostava desses negócios e ninguém queria saber que o seu ídolo fosse bicha.

Lionel passou o Dia de Ação de Graças com a família, e agora sentia-se separado, adulto, estranho e diferente deles. Ao ouvi-los, descobriu que não tinha nada a dizer. Greg era tão infantil, e as garotas pareciam que eram de um outro mundo. Ele agora não podia mais conversar com os pais e só Anne é que lhe foi suportável, enquanto esperava que o dia fosse passando, tão devagar. Ficou aliviado quando, afinal, depois do jantar, pôde sair e voltar para junto de Paul. Tinha dito aos pais que ia para Lake Tahoe com amigos, embora, claro, ia passar o fim de semana sossegado com Paul. Só faltava mais uma semana de filmagem para Paul, e os dois estavam descontraídos.

Parecia que o Natal chegara minutos depois. Lionel fez todas as suas compras de Natal, assim que começaram as férias, e uma tarde foi ao set, enquanto Paul estava no camarim.

Não viu os pais em lugar algum, de modo que foi entrando no quartinho que já conhecia tão bem e se sentou numa cadeira. Paul estava fumando um baseado e ofereceu a Li, mas este nunca o apreciou tanto quanto Paul dizia gostar. Tirou uma baforada rápida e o devolveu e os dois se recostaram e sorriram um para o outro, e Paul tocou na coxa de Lionel.

- Se não estivéssemos aqui, eu teria uma boa idéia. - Os dois sorriram. Sentiam-se tão à vontade um com o outro que por vezes se esqueciam de que tinham alguma coisa a esconder. Paul se debruçou e eles se beijaram.

E nenhum dos dois ouviu a porta abrir ou o passo de alguém, mas Lionel teve certeza de ouvir uma exclamação e quando se afastou do outro, viu Faye ali, o rosto congelado do choque e os olhos cheios de lágrimas. Lionel se levantou de um salto e Paul se levantou mais devagar, e os três se fitaram.

- Mãe, por favor... - Lionel estendeu a mão para ela, e seus olhos se encheram de lágrimas. Ele se sentia como se tivesse cravado uma faca dentro do coração dela, mas não se mexeu, nem ela. Ela só olhou para os dois e depois sentou-se devagar. Parecia que suas pernas não a agüentariam mais.

- Não sei o que dizer. Há quanto tempo isso vem acontecendo? - Ela olhou de Lionel para Paul.

Paul não queria piorar as coisas para qualquer deles e foi Lionel quem falou, deixando cair as mãos, com ar derrotado.

- Há uns meses... sinto muito, mãe... - Começou a chorar e o coração de Paul se desfez por ele. Paul se levantou e foi para o lado dele, olhando para Faye. Tinha obrigação de dar apoio ao garoto ago ra, mas sabia o que isso lhe poderia custar. Ela poderia destruir sua carreira, se quisesse... fora loucura meter-se com o filho dela, e ele agora se arrependia, mas já era tarde, muito tarde. O mal já estava feito.

- Faye. Ninguém foi prejudicado. E ninguém sabe. Nunca fomos a lugar algum. - Ele sabia que ela ficaria aliviada ao saber disso e ela gatão levantou os olhos e olhou para ele.

- Isso foi idéia sua, Paul? - Ela teve vontade de matá-lo, mas uma parte de si lhe dizia que ela estava enganada, que a culpa não fora toda dele. Ela olhou com pena para o rosto do filho, cheio de lágrimas.

- Lionel... isso vem... já aconteceu antes? - Ela nem sabia bem que perguntas fazer, ou se tinha o direito de saber, afinal. Ele era um homem, e se Paul fosse garota, ela teria perguntado os detalhes? E os fatos daquele caso a deixavam assustada. Ela sabia muito pouco sobre a homossexualidade, e queria saber menos ainda. Havia muita bicha em Hollywood, mas ela nunca tratara saber exatamente quem fazia o quê a quem, e agora, de repente, era o filho dela ali... Seu filho acabara de beijar um homem... Ela enxugou as lágrimas do rosto e olhou para eles de novo, enquanto Lionel suspirava e se sentava na cadeira defronte dela.

- Mãe, foi a primeira vez... quero dizer, com Paul. E a culpa não é dele. Sempre fui assim. Acho que no meu íntimo já sei disso há anos, só não sabia o que fazer, e ele... - ele balbuciou, olhando para Paul quase com gratidão, e Faye pensou que ia enjoar - ele me iniciou em tudo isso com tanta delicadeza... não posso fazer nada. É isso que sou. Pode não ser o que você queria, e pode ser que nunca mais possa - ele engoliu um soluço - me amar de novo... mas espero que sim... - Ele foi para junto dela e a abraçou, enterrando o rosto no vestido dela. Nos olhos de Paul, também havia lágrimas, e ele virou o rosto. Nunca estivera metido em nada parecido, mesmo com sua própria família. Lionel então olhou de novo para Faye. - Eu te amo, mãe... sempre amei... e sempre vou amar... mas também amo Paul... - Era o momento mais adulto de toda a vida dele, e talvez ele nunca mais tivesse de ser tão adulto. Mas naquele momento ele tinha de ficar firme no que era e quem era, por mais que a fizesse sofrer. Ela abraçou o filho, beijando-lhe os cabelos e por fim pegou o rosto dele nas mãos e olhou bem para ele.

Para ela, era o mesmo menino que fora naqueles dezoito anos e ela o amava igualmente.

- Eu te amo como você é, Lionel Thayer. E sempre amarei. Lembre-se disso. - Ela olhou bem no fundo dos olhos dele. - Seja o que for que te aconteça, ou o que você faça, estou com você e não abro. - Ela olhou para Paul e Lionel sorriu, no meio das lágrimas. - Só quero que você seja feliz, mais nada. E se for esta a sua vida, eu a aceito. Mas quero que você tenha cuidado e seja prudente no que fizer, com quem estiver, no seu modo de agir. Você escolheu uma vida difícil, não se iluda quanto a isso. - Ele já desconfiava disso, mas era menos difícil com Paul, e menos difícil do que se esconder de si mesmo, como fizera todos aqueles anos. Ela se levantou de novo e ficou olhando para Paul, os olhos brilhando com as lágrimas.

- De você, só quero uma coisa. Não conte isso a ninguém. Não estrague a vida dele. Pode ser que ele um dia mude de idéia, dê-lhe essa chance. - Paul meneou a cabeça, calado, e ela olhou de novo para o filho. - E não diga nada sobre isso a seu pai. Ele não há de compreender.

Lionel engoliu em seco.

- Sei disso... eu... nem posso acreditar que você foi tão formidável, mãe... - Mais uma vez ele enxugou as lágrimas e ela sorriu para ele, através das suas.

- Aconteceu que eu te amo muito. E o seu pai também. - Ela suspirou, com pesar, e olhou para os dois. Era difícil alguém compreender. Os dois eram tão bonitos, tão viris, tão jovens. Era um desperdício terrível, dissessem o que dissessem, e ela nunca achara que fosse uma vida feliz. Certamente não para o filho dela. - O seu pai nunca há de entender, por mais que o ame. - Ela então desferiu o golpe pior de todos. - Isso vai deixá-lo desesperado.

Lionel quase se engasgou de novo. - Eu sei.

 

Eles concluíram o filme cinco dias depois da véspera de Ano-Novo e a festa de encerramento foi a melhor que Paul já vira. Foi um grande acontecimento e durou quase a noite toda e no final todos se despediram com os costumeiros beijos, abraços e lágrimas. Quanto a ele, estava aliviado. Por mais compreensiva que fosse Faye, fora difícil trabalhar com ela naquelas últimas semanas e ele sabia que a tensão aparecera na qualidade de seu trabalho, embora a maioria das cenas mais importantes já estivessem gravadas e nas latas, havia tempo.

Achava que também ela sentira a tensão e se perguntou, nervoso, como já se perguntara várias vezes, recentemente, se ela tornaria a dar-lhe um papel. Gostava muito de trabalhar para ela, mas sentia que a tinha traído, dessa vez. E talvez tivesse mesmo. Talvez devesse ter se afastado do garoto, mas ele era tão danado de lindo, tão saudável e jovem e ele se convencera de que estava se apaixonando por ele. Agora sabia que não. Era um garoto bonzinho, mas era jovem demais para ele. Nada sofisticado, ingênuo, dentro de dez anos seria fabuloso, mas naquele momento não havia substância para um homem da idade de Paul. Ele passava a maior parte do tempo se sentindo pai dele, e estava sentindo falta dos velhos amigos, o pessoal gay, as festas e orgias a que ia para descarregar a tensão, de vez em quando. Era uma vidinha terrivelmente pacata ficar em casa noite após noite, olhando para o fogo. E o sexo era bom, especialmente ultimamente, com o auxílio de um pouco de nitrato de amila. Mas ele sabia que isso não duraria muito. Nunca durava, para ele. E aí ele teria de viver com aquela culpa. A vida às vezes era um bocado complicada, pensou ele, quando voltava para casa, mas quando encontrou Lionel, parecendo um deus adormecido, enroscado em sua cama, ele pensou melhor quanto a terminar aquilo, pelo menos por muito, muito tempo. Tirou as roupas, de mansinho, isentou-se à beirada da cama, passando um dedo pelas pernas compridas de Lionel, que se mexeu, e por fim abriu um olho.

- Você parece um príncipe adormecido... - Foi um murmúrio no quarto escuro, só iluminado pelo luar da praia, e Lionel sorriu e lhe estendeu os braços, sonolento.

Era mais do que qualquer homem poderia desejar, pensou Paul, entregando-se aos prazeres da carne, e no dia seguinte eles dormiram até tarde. E depois foram dar uma longa caminhada pela praia. E conversaram sobre a vida. Mas era nesses momentos que ele se dava conta de novo de como Lionel era jovem. Sorriu para ele de um certo jeito seu e Lionel pareceu aborrecer-se. - Você pensa que eu sou um bebê, não é?

- Não, penso, não. - Mas estava mentindo; pensava, sim. - Pois não sou, e já vi muita coisa.

Paul deu uma risada e Lionel ficou ainda mais irritado e por fim aquilo levou a uma de suas raras brigas e nessa noite Lionel voltou ao seu apartamento. Deitando-se na sua cama, pela primeira vez em várias semanas, pensou se as coisas iam ser muito diferentes, agora que Paul não estava trabalhando. Ele estaria livre o tempo todo, e Lionel tinha de ir às aulas. Era estudioso, apesar de seu caso com Paul.

E, nas semanas seguintes, tornou-se evidente que as coisas estavam se complicando um pouco. Paul se mostrava irrequieto a maior parte do tempo, estava levando argumentos, procurando resolver o que queria fazer em seguida, continuava nervoso com relação a Faye e quando chegou a primavera, já estava farto de seu amor de colegial. Aquilo não lhe bastava. Durara seis meses, o que era muito para ele. E Lionel sentiu a coisa antes que Paul dissesse qualquer coisa. Foi doloroso para ambos, quando terminou, mas Lionel afinal enfrentou Paul com a verdade. Não estava mais agüentando os silêncios tensos entre eles, e de repente a casa de Malibu pareceu oprimir os dois.

- Está acabado, Paul, não está? - Não parecia mais tão jovem, mas era, Paul se obrigou a pensar. Não tinha nem dezenove anos. Cruzes! Havia onze anos de diferença entre eles. Onze anos. E ele acabara de conhecer um homem de 42 anos que o deixara de pernas bambas. Ele nunca tivera um amante mais velho e estava louco para passar uns tempos com ele, mas não podia, sempre preso com Lionel. Então olhou para o rapaz e não se arrependeu do que tinham feito. Pensou se Lionel sentiria remorso, mas não parecera sentir, durante todos aqueles meses. Parecia ter encontrado o seu lugar na vida. Estava feliz, suas notas melhoraram muito. Parecia ter se encontrado. Talvez tivesse valido a pena, afinal. Paul sorriu para ele, com pesar.

Estava na hora de ser sincero e dar o basta.

- Acho que sim, amigo. A vida às vezes é assim mesmo. E tivemos bons momentos, não acha?

Lionel fez que sim, parecendo estar triste. Não queria acabar. Mas havia tempos que as coisas não iam bem, a não ser na cama. Aí era sempre bom, mas os dois eram saudáveis e jovens, não havia motivo para que não fosse. E agora ele queria saber a verdade.

- Há outra pessoa? Paul foi sincero com ele. - Ainda não.

- Mas breve haverá...

- Não sei. E não se trata disso. - Paul se levantou e andou pela sala. - Só sei que preciso ficar livre por uns tempos. - Ele virou-se e olhou para Lionel. - Isso não é como no outro mundo, Li. As pessoas não se apaixonam e se casam e vivem felizes para sempre, com treze filhos. Para gente como nós, é bem raro as pessoas ficarem juntas por muito tempo. Acontece, claro, mas a maior parte do tempo é só por uma vez, ou alguns dias, ou mesmo uma semana, ou, quando se tem sorte, seis meses, como nós... e depois, não há para onde ir, e é isso aí.

- Isso não basta. - Lionel parecia perturbado. - Quero mais que isso.

Paul sorriu. Conhecia o seu tipo de vida.

- Felicidades. Pode ser que encontre, mas a maior parte do tempo, não será assim.

- Por quê?

Paul deu de ombros.

- Talvez não seja do nosso estilo. Nós todos nos interessamos demais pela beleza, corpos bonitos, uma bundinha apertada, um corpo jovem como o seu... e nós todos sabemos que um dia não seremos mais jovens. - Ele já estava começando a sentir isso. Por vezes sentia inveja de Lionel, o que o tornava malvado com ele. Mas aquele homem mais velho o fazia sentir-se belo e jovem, como Lionel era para ele.

- O que você quer fazer agora?

- Não sei. Talvez viajar um pouco. Lionel meneou a cabeça.

- Posso tornar a te ver, de repente?

- Claro... - Depois olhou para o rapaz. - Foi maravilhoso para mim, Lionel... espero que você saiba disso...

Mas Lionel olhou para ele com muito mais intensidade.

- Nunca vou me esquecer de você, Paul... nunca... o resto da vida... - Foi para junto do outro e se beijaram. E Lionel dormiu, ali, naquela noite. Mas no dia seguinte Paul o levou em casa e, sem precisar que lhe dissessem, Lionel sabia que não o veria de novo. Pelo menos, por muito tempo.

 

Em junho de 1965, toda a família Thayer estava sentada na mesma fileira do auditório do Colégio de Beverly Hills, como estivera no ano anterior. Mas dessa vez era para a formatura de Greg e, tipicamente, faltava a solenidade que teve na formatura de Lionel, um ano antes. Dessa vez, Faye não chorou, se bem que tanto ela quanto Ward parecessem estar muito comovidos e Lionel estivesse presente, parecendo muito adulto, com outro terno novo. Estava começando o segundo ano da UCLA e adorando.

E as gêmeas estavam parecendo muito mais gente grande do que aos quinze anos. Vanessa desistira de parecer menininha: estava com uma minissaia vermelha, salto alto, uma blusa vermelha e branca que Faye lhe comprara em Nova York, uma bolsinha de verniz vermelho a tiracolo e parecia jovem e saudável com os cabelos lhe caindo pelas costas, numa cortina dourada. Somente Valerie fizera um comentário negativo sobre a roupa dela, mas isso ela fazia sempre, resmungando que ela estava ótima, se gostava de parecer um pirulito. Val resolvera parecer mais discreta, na opinião dela, e também estava de minissaia, mas a dela era preta e o suéter mais uma vez era justo demais. Havia nela um ar de maturidade espantoso. O corpo voluptuoso, a maquiagem agora mais sutil, os cabelos ruivos num penteado impressionante que eclipsava tudo o mais, menos a roupa. Estava mesmo muito bonita, ou estaria, propriamente, para um coquetel no Beverly Hills. Era um pouco exagerado para um auditório de colégio às nove da manhã, mas todos já estavam acostumados com isso, àquela altura. Faye dava graças que ela não tivesse querido usar uma roupa com um decote muito cavado e a minissaia era uma de suas mais discretas, o que era de espantar.

- Demos graças a Deus pelas pequeninas coisas - murmurara ela a Ward quando eles entraram no carro, e ele sorrira. Eram uma turma e tanto, e estavam todos crescendo.

Até mesmo Anne tinha amadurecido. Estava com seios redondos bonitos, e quadris suavemente arredondados, já com treze anos, e felizmente nesse ano não tinha desaparecido antes de eles partirem para a cerimônia. Mas o presente de formatura de Greg não fora surpresa. Ele os importunara tanto que Ward cedera e o entregara com um gesto grandioso uma semana antes. Era um Corvette Stingray conversível amarelo e ele estava mais empolgado ainda do que Lionel se mostrara com o dele, se possível. Na verdade, era um carro mais luxuoso do que o pequeno Mustang vermelho de Lionel, mas aquele fora idéia de Ward- E Greg ficava disparando pela rua, de um lado para outro e depois desaparecia para apanhar todos os amigos para passear. Ward estava certo de que ele ou teria um acidente ou seria preso dali a uma hora. Mas, sem se saber como, todos tinham sobrevivido e nove de seus amigos mais íntimos tinham chegado berrando e dando vivas, disparados pela rua, queimando os pneus ao entrarem no caminho dos carros e aí todos tinham saltado do carro junto da casa e ido direto para a piscina, enquanto Ward se perguntava se não teria cometido um erro terrível.

Certamente Greg não tinha o jeito calmo de Lionel, e Ward rezava para que dirigisse com juízo quando fosse para a Universidade de Alabama. Ele conseguira uma bolsa pelo futebol e mal podia esperar para ir. Ia voltar para a fazenda em Montana, para trabalhar por mais um mês, mas depois ia para a universidade a primeiro de agosto, para começar os treinos do futebol, com o time e seu famoso treinador "Bear". E Ward mal podia esperar para ir até lá, de avião, para vê-lo no primeiro jogo. Faye sabia que ia fazer isso muitas vezes, naquele ano, mas não se importava. Tinha prometido ir sempre que pudesse, se bem que no outono eles estariam completando um filme, e iriam começar outro logo depois do princípio do ano, mas ela ia ver o que poderia fazer.

Eles assistiram a Greg receber o seu diploma, como Lionel recebera no ano anterior, mas Greg ficou sorrindo, encabulado, bem diferente do irmão, mais equilibrado.

Acenou à família e aos amigos e depois tornou a sentar-se, os ombros largos quase derrubando os colegas dos assentos. Era o grande herói do colégio, por ter conseguido uma bolsa por futebol, e Ward estava tão orgulhoso dele que mal enxergava as coisas. Contara o fato a todos seus conhecidos, e tinha olhado para Lionel quase com uma expressão de reprovação, quando soubera da nova. No momento Lionel estava fazendo um filme experimental sobre o balé e dança e havia ocasiões em que Ward se perguntava o que se passaria na cabeça do rapaz. Certamente era bem diferente do seu filho mais moço, mas pelo menos estava indo bem nos estudos. E Faye parecia almoçar com ele muitas vezes. Ele mesmo não tinha tido muito tempo. Estava preparando o pacote para outro grande filme e tinha muita coisa na cabeça. Mas o rapaz parecia estar bem. Pelo menos, nenhum de seus filhos tinha ficado biruta com aquele negócio de hippies, e geração paz e amor, e nenhum tomava drogas, se bem que ele freqüentemente avisasse Faye para ficar de olho em Valerie. Aquela garota era sedutora demais e parecia ter mania de andar com rapazes mais velhos. Em maio, ela aparecera com um camarada que confessara ter 24 anos, mas ele acabara logo com aquele romance.

Mas não se podia negar que ela fosse difícil de controlar. Em cada família havia um elemento assim, diziam, e Val era o deles. Mas até então, a despeito das roupas malucas, a maquiagem e os garotos mais velhos, ela parecia ter se conservado dentro dos limites de certas convenções.

A festa que eles ofereceram para Greg naquela noite foi inteiramente diferente da festa de Lionel, um ano antes. À meia-noite todos estavam não só bêbados, com cerveja, mas a maioria estava dentro da piscina, todos despidos. Faye queria mandar expulsar a todos, mas Ward conseguiu convencê-la a deixar que se divertissem. Quis que ela mandasse Anne e as gêmeas para a cama, e Faye disse que isso seria impossível. Ou tinham de acabar com tudo, ou deixar a garotada livre, mas a polícia tomou a decisão por eles, pouco depois das 2 horas. Disseram que parassem com a música e diminuíssem a algazarra. Todos os vizinhos da rua tinham reclamado, especialmente o casal vizinho, quando uma turma de doze rapazes musculosos apareceu no seu gramado da frente e depois mergulhou na piscina. Ward achara aquilo divertido, mas também achava graça em quase tudo quanto Greg fazia. Faye achou menos graça. Mas na festa de Lionel, no ano anterior, não houvera reclamação alguma. Quando a polícia chegou,  Greg estava esparramado numa espreguiçadeira, uma toalha em volta da cintura nua, o braço em volta da namorada, ambos embriagados de cerveja e dormindo a sono solto.

Nenhum dos dois acordou quando o resto dos convidados pariu, comentando aquela grande festa. Faye só dava graças porque nenhum deles entrara na casa. Só um casal tinha entrado e estavam namorando à solta no quarto de Greg, mas Faye os vira entrando nas pontas dos pés e lhes pedira para sair imediatamente. Encabulados, eles saíram e depois se retiraram cedo com alguns outros, que queriam namorar a sério, antes de ir para casa.

Mas, em sua maioria, estavam mais interessados em se empurrar para dentro da piscina e consumir tanta cerveja quanto pudessem, antes de terem de ir embora.

E quando o último convidado foi embora, Lionel e John Wells ainda estavam sentados a certa distância da piscina, num confortável sofá-balanço, debaixo de uma árvore.

Estavam conversando sobre a UCLA e Lionel estava dizendo quais as matérias de que mais gostava e sobre seus projetos para filmes. John conseguira o seu sonho de muitos anos e também fora aceito lá.

O balanço oscilava devagar, para lá e para cá, enquanto eles observavam os foliões. Lionel se esquivara bem antes e John o encontrara sentado ao balanço.

- Andei pensando muito em belas-artes - disse John. Oficialmente, ele ainda era o melhor amigo de Greg, mas naquele último ano pareciam ter passado cada vez menos tempo juntos. John continuava no time de futebol, mas não era tão entusiasta quanto Greg e estava aliviado por estar livre dele agora. Nunca mais queria jogar futebol, por mais que tivesse jeito para aquilo. Greg lhe dissera que ele estava maluco. Tinham-lhe oferecido uma bolsa por futebol na Georgia Tech e ele a recusara. E, estranhamente, a amizade depois disso não fora mais tão íntima. Greg não conseguia entender por que ele havia de recusar uma oportunidade daquelas. Fitara o amigo de infância com desagrado e descrença e agora, cada vez que se encontravam, John achava que tinha de dar novas explicações, como se tivesse cometido um pecado imperdoável. E, aos olhos de Greg, tinha mesmo. Mas Lionel não parecia se importar. E sempre gostara de John.

- Lá tem um bom departamento de belas-artes. E um ótimo de teatro, claro. - Lionel sabia que o outro ainda não tinha escolhido a sua especialização.

- Não creio que seja do meu feitio. - John sorriu para o rapaz mais velho, encabulado. Sempre o admirara.

- Vai morar no campus, no ano que vem? John pareceu vacilar.

- Ainda não sei. Minha mãe acha que eu devia morar no dormitório, coisa que não me agrada muito. Acho que prefiro morar em casa.

Lionel parecia estar pensativo, enquanto se balançavam, de leve. - Acho que um de meus companheiros de casa vai se mudar. - Olhou para John, pensativo, perguntando-se se ele se adaptaria. Era muito garoto, mas era bom rapaz. Não fumava, não bebia, não parecia fazer onda demais, certamente nada de parecido com o Greg. Parecia-se muito com os colegas de Li, e este gostava da maioria deles. De vez em quando, ficavam barulhentos, nas noites de sábado, mas não eram inteiramente alucinados e, ao contrário de muitos outros calouros e alunos do segundo ano, não gostavam de viver como porcos. Mantinham o apartamento razoavelmente limpo, dois tinham namoradas que muitas vezes dormiam lá, mas não incomodavam ninguém, e Lionel entrava e saía à vontade. Ninguém lhe fazia mais muitas perguntas. Por vezes, ele pensava se saberiam, mas ninguém dizia nada nem perguntava nada. Era uma turma boa e John Wells poderia se encaixar bem, como o quinto. - Você se interessaria, John? O aluguel é bem barato. - Olhou para John. - O que os seus pais achariam de você morar fora do campus no primeiro ano? Na verdade, é do outro lado da rua, mas não é nos dormitórios.

- Ele riu e estava a cara de Faye, rindo. Nesse ano, ele passara de rapaz a homem e era um homem muito bonito. As pessoas muitas vezes olhavam para ele na rua, admirando o seu corpo gracioso, membros compridos, grandes olhos verdes e cabelos dourados. E ele usava roupas discretas, que realçavam sua beleza de modo displicente. Poderia ter entrado para o cinema como ator, se quisesse, mas esse lado da câmara nunca o atraíra. Então olhou para John e o rapaz mais moço sentiu alguma coisa se agitar dentro dele. - O que você acha?

Os olhos de John se iluminaram com uma emoção contida quando olhou para Lionel.

- Puxa, eu adoraria arranjar um lugar assim. Vou perguntar aos meus pais amanhã bem cedo.

Lionel sorriu.

- Não há pressa. Vou dizer aos outros que conheço uma pessoa que está interessada. Acho que ninguém está se preocupando com isso, por enquanto.

- Quanto é o aluguel? O meu pai vai querer saber. - Os pais de John viviam bem, mas eram cautelosos. Ele era o mais velho de cinco filhos, e eles iam mandar quatro para a universidade nos quatro anos seguintes, assim cromo os Thayer, se bem que o pai de Lionel se preocupasse menos do que o de John. Mas Ward produzia dois outros três filmes de sucesso por ano, e o pai de John, não. Era cirurgião-plástico em Beverly Hills e a mãe dele fazia decoração para os amigos, quando tinha tempo. Mas era bem bonita. No ano anterior, tinha operado os olhos, vários anos antes melhorara o nariz e naquele verão ia fazer enxertos nos seios. Além disso, ficava muito bem de maiô. E as irmãs dele também eram bem bonitinhas, ele achava. Greg já tinha andado com duas delas e uma delas estava de olho em Lionel, havia anos. Mas ele nunca parecera se interessar, e John nunca se perguntara por quê.

- Dividido por cinco, o aluguel vai ser de 60 dólares por mês, John. É uma casa de cinco quartos de dormir, em Westwood, e a senhoria não nos incomoda muito. Não tem piscina e só há duas vagas na garagem. Você teria um quarto de bom tamanho, dando para a frente, e dividiria um banheiro com mais dois caras. O quarto tem cama e secretária. O resto você teria de arrumar sozinho, a não ser que Thompson queira vender o que tem. Ele vai passar os próximos dois anos em Yale, no leste.

- Puxa! - Os olhos de John estavam acesos de entusiasmo. - Espere só até eu contar ao meu pai!

Lionel sorriu.

- Quer ir até lá amanhã, para dar uma olhada? Neste verão só vamos ficar dois lá, o que vai tornar o aluguel meio pesado. Mas dá muito trabalho me mudar para cá outra vez - ele deu de ombros, com um ar vago -, e, não sei... é mais fácil, depois que a gente sai, acho que seria difícil voltar a morar aqui em casa de novo.

- Especialmente no caso dele, lhe fariam tantas perguntas, e agora ele não tinha de enfrentar nada disso. E ele gostava da liberdade que tinha. E, só restando outro rapaz ali no verão, era quase como se a casa fosse dele. Estava gostando dessa idéia.

- É, sei... posso ir vê-la amanhã. - Era um sábado e Lionel não tinha programa. Só ia dormir até tarde e lavar umas roupas, e de noite fora convidado para uma festa, mas tinha todo o dia livre.

- Claro.      

- As nove horas?

John parecia um garotinho de cinco anos esperando por Papai Noel, e Lionel riu.

- Que tal ao meio-dia?

- Ótimo. - Então se levantaram do balanço e Lionel deu condução a John até à casa dele. E depois de o ter deixado na mansão francesa em miniatura, em Bel Air, onde ele morava, com os costumeiros Cadillac e Mercedes estacionados do lado de fora, para todo mundo ver, ele foi para casa devagar, pensando em John. Estava sentindo alguma coisa que não podia negar, mas não sabia se era apropriada, naquele caso. Achava que não, e não tinha a menor intenção de se aproveitar do outro. O oferecimento do quarto na república fora sincero. Não estava instalando John lá, mas tinha de reconhecer que o fato de ele estar tão perto poderia ser difícil, ou... e, enquanto seus pensamentos flanavam, quando parou o carro defronte à casa que dividia com mais quatro rapazes, de repente se perguntou se Paul sentira o mesmo com relação a ele. Havia uma estranha responsabilidade, na aproximação de uma pessoa como John... especialmente se fosse a primeira vez... e Lionel desconfiava que fosse... Aí quase se sacudiu. O que é que estava pensando?

E se John não sentisse nada disso? Ele seria louco de tentar alguma coisa com ele. Ele se obrigou a se lembrar disso várias vezes, enquanto escovava os dentes e ia para a cama. Era louco sequer de pensar nisso, disse ele consigo, deitado ali no escuro, tentando não pensar no outro. Mas o rosto jovem e inocente de John ficava lhe aparecendo constantemente... as pernas musculosas... ombros largos... quadris estreitos... ele estava ficando excitado, só de pensar nele...

- Não! - disse ele, em voz alta, no escuro, e se virou, instintivamente se tocando, enquanto tentava expulsar John de sua cabeça, mas era impossível, e todo o corpo dele estremeceu de desejo, pensando em John mergulhando na piscina, naquela noite... e durante toda a noite Lionel sonhou com ele... correndo numa praia... nadando num mar tropical profundo... beijando-o... deitado ao lado dele... Acordou com uma dor surda que se recusava a desaparecer e pegou sua bicicleta e saiu para um longo passeio, antes que os outros acordassem, esperando ansiosamente pelo meio-dia e jurando a si mesmo que ia dizer a John que o quarto já fora alugado por outra pessoa.

Era a única saída. Podia ter telefonado, mas não quis fazê-lo. Diria a ele quando ele fosse à casa, ao meio-dia... diria... seria o melhor... dizer na cara dele... era o único jeito.

 

Quando Greg acordou, na manhã depois de sua festa de formatura, estava com a pior ressaca de sua vida e já tivera algumas. A cabeça latejava, o estômago estava revirado.

Acordara duas vezes durante a noite e vomitara uma vez, no chão do banheiro, e quando tentou se pôr de pé, às 11 horas, pensou morrer. Mas o paio viu descer, cambaleando, e lhe deu uma xícara de café preto, uma torrada e um copo de suco de tomate com um ovo cru dentro. Só olhar para tudo aquilo o fez ficar enjoado de novo, mas o pai insistiu para que ele tomasse tudo.

- Faça um esforço, filho. Há de lhe fazer bem.

Ele parecia falar por experiência própria, e Greg confiava nele, de modo que se esforçou e ficou pasmo ao ver que se sentia um pouco melhor, depois. Ward lhe deu duas aspirinas para a dor de cabeça e ele as engoliu, e ao meio-dia estava se sentindo quase humano: foi se esticar ao sol, junto à piscina. Olhou para Val, o corpo cheio metido num biquíni que Faye não gostava que ela usasse quando havia gente de fora, mas em família era permitido. Era pouco mais que um barbante, mas Greg teve de reconhecer que nela ficava ótimo.

- Uma Festa e tanto, hein, mana?

- Foi. - Ela abriu um olho e olhou para ele. - Você estava bêbado que nem um gambá.

Ele não ligou.

- A mãe e o pai ficaram zangados?

- Acho que a mãe estava querendo se danar, mas o pai ficou dizendo que era a noite da sua formatura. - Ela riu. - Também tinha bebido muita cerveja, e a música estava boa. Todos tinham dançado muito, antes de saírem de órbita.

- Espere só até chegar a sua vez. Você vai ficar pirada.

- A próxima, será a minha vez. - Só que ela teria de partilhar aquilo com Van. Era isso que ela detestava, nesse negócio de gêmeas, sempre tinha de dividir tudo com outra pessoa. E Faye nunca entendera que ela queria ser separada, fazer as coisas por si, ter suas amigas e amigos seus. A mãe sempre as tratava como se fossem uma só e Valerie passara a vida toda lutando contra isso, fazendo questão de mostrar como elas eram diferentes, a todo preço. E assim mesmo ninguém compreendia.

Estragava tudo. Mas não seria por muito tempo. Só mais dois anos em casa e aí ela se ia mudar. Vanessa dizia que ela ia à universidade no leste, mas Val sabia perfeitamente o que pretendia fazer. Ia estudar para ser atriz. Não a escola de teatro na UCLA, mas a coisa real, do tipo que os atores que trabalhavam freqüentavam entre seus trabalhos, e ela ia começar a procurar emprego. Ia ter um apartamento seu. Não ia perder tempo na universidade. Quem é que precisava daquilo? Ia ser uma atriz, e mais famosa do que a mãe jamais fora. Anos antes ela estabelecera essa meta para si, e jamais se desviara desse desejo.

- Por que está com esse ar tão tenso? - Greg a estivera observando, enquanto ela pensava, e ela estava com a testa franzida, um sinal sinistro. Em geral ficava assim quando estava tramando alguma contra um pobre coitado por quem estivesse entusiasmada. Mas ela então só sacudiu a cabeleira ruiva e deu de ombros. Não tinha contado a ninguém o que pretendia fazer, só iam implicar com ela. Greg ia tentar convencê-la a ser fisioterapeuta, ou acrobata, ou a arranjar uma droga de bolsa de atletismo nalgum lugar, Vanessa ia tentar convencê-la a estudar no leste com ela, Lionel teria alguma outra idéia burra, como ir para a UCLA porque ele estava lá. A mãe faria discursos sobre a educação. O pai diria como a maquiagem faz mal à pele e Anne olharia para ela como se ela fosse uma aberração. Ela os conhecia a todos muito bem, depois de conviver com eles por dezesseis anos.

- Eu só estava pensando na festa de ontem - disse ela, mentindo, e ele se deitou de novo ao sol quente.

- É... foi a maior. - Aí ele pensou em perguntar o que tinha acontecido com o par dele.

- O pai a levou em casa. Ela quase vomitou no carro dele. - Val riu e ele também.

- Puxa, ele nem disse nada.

- Uma sorte que não foi um de nós, ele teria um ataque. - Os dois riram e Anne passou por eles, com um livro na mão, a caminho do balanço.

- Aonde é que vai, guria? - Greg olhou para ela, apertando os olhos no sol, reparando como ela estava ficando de corpo bonito, de maiô. A cintura dela parecia estar ficando cada hora mais fina e cabe ria nas suas duas mãos e os seios estavam quase do tamanho dos de Val. A irmãzinha estava ficando gente grande, mas ela não era o tipo de garota a quem se pudesse dizer algo a respeito. Era a mais retraída de todos e nunca dava a impressão de que gostasse muito deles, a não ser de Lionel, claro. Parecia a Greg que eles mal a tinham ouvido falar desde que o irmão mais velho saíra de casa. - Aonde é que vai, garota? - Ele repetiu a pergunta, quando ela passou por eles, sem expressão. Ela nunca tinha muita coisa a dizer a Greg. Não gostava de esportes e sempre achava as namoradas dele burras. E tinha as piores brigas com Val, que agora a fitou de cara fechada. Estava achando que o maiô de Anne se parecia suspeitamente com um dos seus, mas não tinha toda a certeza e Anne sentia os olhos da irmã sobre si.

- Para lugar nenhum. - Ela passou por eles sem dizer mais uma palavra, agarrada ao livro, e Greg cochichou para Val, depois que ela passou.

- É uma garota esquisita, não é, Val?

- É, parece. - Val não estava interessada. Tinha visto que o maiô não era o dela: o dela não tinha uma listra amarela dos lados.

- Mas está crescendo muito. Já viu aqueles peitinhos? - Ele riu. - Quase do tamanho dos seus.

- É? E daí? - Val encolheu a barriga já chatinha ao se levantar e empinou os seios. - De qualquer forma, ela tem pernas curtas. - E ela não se parecia com nenhum deles. Ela nunca fora espetacular como os outros quatro. Mas Val então olhou para suas próprias pernas, querendo resolver se já bastava de tomar sol, por um dia.

Se tomasse demais, ficaria tostada, se bem que tivesse mais tolerância do que a maioria das ruivas. Ela notou que Greg já estava começando a ficar frito. - É bom você tomar cuidado. Está ficando vermelho.

- Vou entrar daqui a pouco. John disse que viria aqui e quero ir à cidade para comprar mais tapetes para o meu carro.

- E Joan? - Era a lourinha que o pai tivera de levar em casa na véspera. Tinha os peitos maiores que Val já vira, chegavam a ser vulgares, e todos no colégio diziam que era uma garota fácil. O que parecia convir perfeitamente a Greg.

- Vou estar com ela hoje à noite. - Ele vinha dormindo com ela naqueles dois últimos meses, desde que tinham sabido da bolsa de futebol na Universidade de Alabama.

- Val sair com John? - Ela sabia que ele não tinha namorada fixa, e estava sempre esperando ser convidada para fazer par com ele, mas Greg nunca o sugerira e nem John.

Não, ele disse que tinha outro programa. - Olhou para Val. - Por quê? Está interessada nele, maninha? - Ele era o mais implicante de todos, e durante os anos passados eles tinham tido brigas quase mortais. Ele adorava implicar com ela, e ela sempre caía, como estava para cair agora.

- Porra, não, só estava perguntando. Tenho programa - ela mentiu de novo.

- Com quem? - Ele a conhecia muito bem. - Não é da sua conta.

- Era o que eu pensava. - Ele se deitou de novo, rindo, e ela teve vontade de esmagá-lo.

Anne os observava, calada, de seu esconderijo no velho balanço. - Você não tem programa com ninguém, esperta!

- Não tenho, o cacete! Tenho um compromisso com Jack Barnes. - Porra nenhuma. Ele está de namoro firme com a Linda Hail. - Bom - o rosto dela estava vermelho vivo e não era do sol, e, a distância, Anne estava vendo que ela estava mentindo... ela os conhecia muito bem, a todos, melhor do que a conheciam -, talvez ele a esteja passando pra trás.

Greg se sentou e olhou bem para a irmã.

- Não, a não ser que você esteja dando que nem ela, mana. A propósito... está?

O rosto de Val parecia estar em fogo.

- Vá se foder! - Ela girou e foi para dentro de casa, com um arremesso, e ele riu de novo, deitando-se ao sol. Ela era danada, a sua maninha, ele soubera por uns amigos cujos irmãos mais moços tinham saído com ela. Mas supostamente ela fazia tudo menos o principal. Ele sabia que ela ainda era virgem, pelo menos pensava que fosse, e também sabia que ela mentira sobre Jack Barnes. Também desconfiava de que ela gostasse de John Wells, mas John nunca parecera se interessar por ela, e ele achava isso bom. Era um pouco de intimidade demais para o gosto dele, e ela não era o tipo de John. Ele gostava de garotas mais sossegadas, menos espetaculares. Ele ainda era muito tímido e Greg tinha quase certeza de que ele também ainda não fizera a coisa. Coitado. Era bom se apressar. Provavelmente ele era o único garoto da turma deles que ainda não tivera uma garota, de fato, pelo menos era o que diziam. E Greg estava achando constrangedor ter um amigo assim. Droga, as pessoas iam começar a achar que John era fresco e, pior ainda, se eles andassem juntos, iam dizer isso dele. Mas aí ele riu sozinho. Com as coisas que ele tinha feito com a Joan, não havia perigo disso.

- Rapaz, mas que lugar simpático. - John estava olhando a casa de Westwood em êxtase, como se fosse Versalhes, ou um set de Hollywood, em vez de uma modesta república de estudantes junto à UCLA. - Meu pai achou o aluguel barato. E a mãe ficou meio nervosa quanto a eu não morar no dormitório, mas o pai disse que, já que você estava aqui, podia me controlar. - Ele corou, achando-se tolo pelo que tinha dito. - Quero dizer...

- Tudo bem. - Lionel estava lutando para controlar seus sonhos da véspera e tinha a sensação mais estranha, de estar revivendo um filme que já tinha visto, só que dessa vez ele fazia o papel de Paul. Era como uma variação de déjà vu, e parecia que ele não podia fugir a seus pensamentos enquanto mostrava a casa a John. O quarto de Lionel ficaria do outro lado do corredor, defronte ao de John, mas ele tinha certeza de que, se estivesse disposto a ceder o único quarto da casa que tinha seu próprio chuveiro, poderia ficar com o quarto contíguo ao de John. Os outros caras teriam matado para ficarem com seu quarto, e ele estaria disposto a cedê-lo, se... ele tirou a idéia da cabeça, obrigando-se a se concentrar em John, e na visita à casa. - Há uma máquina de lavar roupa na garagem. O pessoal passa semanas sem usá-la, e aí de repente todo mundo quer usá-la na mesma noite. - Lionel sorriu.

- A mãe disse que eu podia levar a roupa para lavar em casa. - Lionel não pôde deixar de pensar em como ele era diferente de Greg, era muito estranho que fossem amigos, só que tinham sido colegas durante treze anos e achava que era mais hábito do que outra coisa. Se John pensasse nisso, reconheceria que ele tinha razão.

Ele e Greg não tinham muita coisa em comum, naqueles últimos dois anos, especialmente nos últimos meses. Pareciam discordar sobre tudo, desde a bolsa por futebol até a puta da turma com quem Greg dormia. John não a suportava, e em conseqüência estava cada vez se distanciando mais de Greg. Estava passando mais tempo sozinho e foi quase um alívio poder conversar com Lionel, uma pessoa sensata, que estava até na mesma universidade que ele cursaria. - Gostei mesmo desse lugar, Li. É formidável. - Poderia ter sido um celeiro, que ele se apaixonaria pelo lugar. Era tudo tão adulto, tão universitário, e tão calmo, e era um conforto saber que Lionel estaria lá. Ele era tímido, pensando em cominar a estudar num lugar novo, e tinha detestado a idéia do dormitório, depois de ter passado dezoito anos em casa com quatro irmãs. Tudo ia ser tão estranho para ele... mas não agora, não ali, não com Lionel.

- Gostaria de passar o verão aqui, John? Ou vir no outono, antes de começarem as aulas? - Lionel sentiu seu coração disparar, e se sentiu irritado consigo mesmo.

Que diferença faria, o dia em que o garoto se mudasse? Deixa o menino em paz, ele queria gritar, e de repente se arrependeu de ter sugerido aquilo, de todo. Só ia dificultar as coisas para ele. Fora uma idéia estúpida, mas agora ele não podia recuar. Já tinha falado com dois dos rapazes naquela manhã, antes de John chegar, e eles tinham ficado satisfeitos por ele ter encontrado alguém. Aquilo lhes poupava o trabalho de colocar um anúncio ou de ligar para amigos.

- Posso vir na semana que vem? Lionel ficou chocado, por um momento. - Tão cedo assim?

- Ah, não... - John corou, nervoso - não, se for incômodo para vocês. Só pensei que, já que terça-feira é dia 1?, seria mais fácil, do ponto de vista do aluguel... e tenho um emprego de verão no Robinson's. Eu poderia morar aqui, enquanto trabalho lá. - Era uma loja de departamentos e Lionel se lembrou vagamente do seu emprego no ano anterior na Van Cleef & Arpels. Ele gostara daquilo e estava com pena de não poder tornar a trabalhar lá, mas, esse ano, queria trabalhar no cinema. Fazia mais sentido para ele e, se tivesse sorte, poderia ter créditos na UCLA pelo trabalho, se o projeto desse certo.

- Não, não... tem razão, John. Eu não tinha pensado nisso. E o quarto estará livre. Só pensei que você ia querer pensar nisso um pouco... - Era tarde: oferecera quarto a John e o rapaz agora o queria. Ele teria de viver com o que tinha feito, custasse o que custasse.

- Não preciso pensar, Li. Acho o quarto ótimo. - Que merda.

Lionel fitou o rapaz de cabelos escuros, com o corpo bem-feito, que o atormentara na noite anterior, e não havia mais nada a dizer.

- Ótimo. Vou dizer aos outros. Vão ficar felizes. Isso poupa a eles uma porção de dores de cabeça. - E então, tentando melhorar as coisas - Quer ajuda, na sua mudança?

- Não quero incomodar... pensei em pedir emprestado o carro do pai e trazer umas coisas amanhã.

- Vou te buscar. - O rosto de John se iluminou de novo, como o de uma criança.

- Fico muito grato mesmo, Li. Tem certeza de que não é muito incômodo?

- Em absoluto.

- A mãe disse que tinha um colcha e uns abajures e outros troços.

- Ótimo. - Lionel sentiu seu coração se apertar, pensando na enrascada em que se metera, enquanto John olhava para ele com admiração.

- Posso te convidar para jantar hoje, Li, para te agradecer por tudo isso?

De repente, Lionel ficou constrangido com a sinceridade do garoto e ficou comovido.

- Tudo bem, John. Não precisa fazer nada disso. Fico contente que tenha dado certo. - Mas não estava contente, estava assustado. E se ele perdesse o controle? E se fizesse alguma besteira? E se John descobrisse que ele era bicha? Mas de repente ele sentiu a mão de John em seu braço e sentiu um calafrio na espinha. Teve vontade de dizer a John para não tocar nele de novo, mas o garoto ia pensar que ele estava maluco.

- Nem sei como te agradecer, Li. Parece uma vida inteiramente nova. - Ele estava tão aliviado por se livrar dos garotos do colégio de Beverly Hills... Não se sentia mais igual a eles. Havia anos que não se sentia daquele jeito, e tinha escondido aquilo por bastante tempo. Agora podia começar uma vida nova, noutro lugar. Não teria de se esforçar tanto, nem escutar os atletas, nem fugir das garotas, ou fingir que se embriagava nas noites de sábado... até mesmo o vestiário se tornara um

pesadelo para ele... todos aqueles garotos... todos aqueles atletas... até mesmo o Greg... ele, em especial... e ele sabia que era diferente dos outros. E, no entanto, com Lionel, não sentia que houvesse alguma coisa errada com ele. Li era tão sossegado e compreensivo, e ele se sentia tão à vontade com ele... Mesmo que nunca o visse, na casa nova, era bom saber que ele estava ali, de vez em quando, que seus caminhos se cruzariam, que ele por vezes conversaria com ele. Olhou nos olhos do outro e teve vontade de chorar de alívio. - Eu detestava tanto o colégio, Li, mal posso esperar para sair.

- Lionel ficou espantado.

- Pensei que gostasse, John. Você é um grande astro no futebol. - Eles foram à cozinha e Lionel deu-lhe uma Coca, que ele aceitou, agradecido. Ficou ainda mais agradecido ao ver que não era cerveja, e teria sido, se fosse Greg ali.

- Detestei a escola nesse último ano. Estou farto de toda aquela merda. - Ele tomou um gole da Coca-Cola e suspirou, com alívio. Era mesmo todo um novo modo de vida.

- Detestei todos os momentos que passei naquele bosta de time de futebol. Lionel ficou pasmo.

- Por quê?

- Não sei. É só que eu nunca liguei a mínima para aquilo. Acho que era bom de jogo, mas não me interessava mesmo. Sabe que eles chegavam a chorar no vestiário quando perdiam um jogo? Às vezes o treinador também chorava. Como se isso tivesse essa importância. É só uma porção de caras grandalhões se surrando num campo. Aquilo nunca me empolgou.

- Então, por que é que você jogava?

- Significava muita coisa para o meu pai. Ele jogava na universidade, antes de ir para a medicina. E sempre dizia que se me esmagassem a cara, ele a consertaria, de graça. - John pareceu ficar enojado ao pensar nisso. - Coisa que não me atraiu muito mais. - Ele sorriu para Lionel - Estar aqui vai parecer um sonho.

Lionel sorriu para ele.

- Fico contente que tenha gostado do quarto. Val ser bom ter você aqui, embora eu não fique muito em casa. Mas se houver alguma coisa que eu possa fazer...

- Você já fez muita coisa, Li.

Lionel cumpriu a palavra: no dia seguinte, foi buscá-lo, abaixou a capota do pequeno Mustang vermelho e fez três viagens para ajudá-lo a levar suas coisas. Ele parecia ter milhões de coisas, mas fez milagres e Lionel mal reconheceu o quarto, no domingo à noite. Parou no vão da porta e ficou olhando.

- Meu Deus, que é que é isso? - John tinha pregado tecido numa das paredes, pendurado plantas, pendurado cortinas simples e um quadro bonito sobre a cama. Dois abajures davam uma luz boa, havia posters nas outras paredes. Parecia um apartamento de revista e no chão havia um pequeno tapete branco. - Foi a sua mãe que fez isso para você?

Lionel sabia que ela era decoradora, e não podia imaginar que John fizesse tudo aquilo em poucas horas. Havia até caixotes de laranja com o mesmo tecido pregado neles, com revistas em cestas, e almofadas dando a impressão de um assento de janela. Era um pequeno abrigo, e Lionel ficou incrivelmente impressionado, e o demonstrou.

- Fui eu mesmo que fiz. - Ele pareceu ficar satisfeito ao ver a reação de Lionel. Todos diziam que ele tinha jeito para decoração de interiores, ele sempre pudera pegar um cômodo e modificá-lo dentro de algumas horas, usando o material que tivesse à mão. Até mesmo a mãe dizia que ele devia aproveitar esse dote nato, ele era melhor do que ela, dizia. Ela levava meses para conseguir os efeitos que desejava. - Gosto de fazer essas coisas.

- Quem sabe um dia desses você possa usar a sua varinha mágica no meu quarto? Ainda parece uma cela de prisão, e já estou morando lá há um ano.

John riu.

- Quando quiser. - Olhou em volta. - Na verdade, eu tinha duas plantas a mais, ia perguntar se você as queria.

Lionel sorriu para ele.

- Claro. Mas elas provavelmente vão morrer na primeira vez que eu pisar no quarto. Não tenho propriamente o dedo verde.

- Tomo conta delas para você. Posso regá-las quando regar as minhas

Os dois se sorriram e Lionel olhou o relógio de pulso. Eram sete horas.

- Quer sair para comer um hambúrguer? - As próprias palavras tinham novamente um tom de déjà vu, e ele se lembrou de Paul. Foi mais incrível ainda quando John aceitou e sugeriu irem ao mesmo lugar aonde fora com Paul da primeira vez. Aquilo deixou Lionel macambúzio e calado, durante a primeira parte da refeição. Estava pensando naquela primeira noite em que fora a Malibu com Paul. Havia meses que não tinha notícias dele, e o vira passar de carro uma vez, no Rodeo Drive, no banco de passageiro de um Rolls-Royce bege e marrom, dirigido por um homem bonitão e mais velho. Quando Lionel olhou, os dois estavam conversando animadamente, sorrindo um para o outro e Paul tinha rido de alguma coisa que o outro dissera. E agora lá estava ele de novo, com John... o melhor amigo de seu irmão mais moço. Era esquisito. Mais ainda quando eles voltaram para a casa que agora partilhavam. Os dois outros rapazes que moravam lá iam dormir em casa das namoradas, naquela noite, e os outros já se tinham mudado, no final do ano letivo.

- Obrigado pelo jantar - disse John, sorrindo para ele, enquanto eles

Se instalavam confortavelmente na sala e Lionel punha um disco para tocar. Havia duas lâmpadas queimadas no lustre da sala e a luz estava fraca, por acaso. John acendeu uma vela na mesinha defronte do sofá e olhou em volta. - Esta sala também podia ser um pouco melhorada.

Lionel riu.

- Você dava jeito nessa sala num instante, mas acho que os outros caras vão te desanimar um bocado. Quando eles estão aqui, parece sempre que alguém acabou de atirar uma bomba.

John também riu.

- Os quartos das minhas irmãs também são assim. - Aí ficou mais sério. - Nunca morei com homens, a não ser o pai, claro. Estou tão acostumado a ter garotas em volta de mim o tempo todo que acho que isso vai ser meio estranho, a princípio. - Depois sorriu. - Isso deve te parecer coisa de doido.

- Não parece, não. Tenho três irmãs.

- Mas você também tinha o Greg. Eu sempre fui tão ligado à mãe e às meninas que aposto que vou sentir falta delas, por enquanto. - É um bom treino para quando você se casar, ter tantas mulheres assim em volta. - Lionel sorriu de novo e se perguntou se o estaria testando. E disse consigo que isso não era justo. John era um garoto... mas era da mesma idade que ele tinha quando conhecera Paul... mas Paul era tão mais experiente... e ele agora é que era o experiente. Não tanto quanto Paul, mas mais do que esse garoto. Mas por onde se começava? Como se perguntava uma coisa dessas a alguém? Ele se procurou lembrar do que Paul lhe dissera, mas as palavras lhe fugiram... ele se lembrou de que tinham ido para uma longa caminhada na praia... e Paul lhe perguntara alguma coisa sobre ele estar confuso. Mas ali não havia praia e John não lhe parecia confuso. Era meio tímido e muito menos desordeiro do que Greg, mas era um rapaz feliz e agradável... e no entanto, Lionel não se lembrava de jamais o ter visto namorando a sério.

Eles bateram um papo e por fim Lionel se levantou e disse que ia tomar um banho de chuveiro. John disse que faria o mesmo. Dez minutos depois, John bateu à porta do banheiro e se desculpou, gritando para onde Lionel estava, procurando não pensar nele, enquanto os riachos de água quente purificavam-lhe a mente e a carne.

- Desculpe, Li... mas tem xampu aí? Esqueci do meu.

- O quê? - Lionel puxou a cortina, para poder escutar, e viu John ali despido, só com uma toalha em volta da cintura. Sentiu que ficava excitado e puxou a cortina do chuveiro para que John não o visse.

- Perguntei se você tinha xampu aí.

- Tenho. - Ele já o usara e seus cabelos estavam molhados e limpos. - Tome. - Ele entregou o vidro a John, que desapareceu com um sorriso, agradecendo, e dali a pouco voltou com ele, de toalha de novo, os cabelos molhados e escuros, o corpo mostrando os músculos que o futebol lhe dera, e Lionel estava andando pelo quarto, nu, guardando coisas e cantarolando. Estava com o rádio ligado e Lennon e McCartney estavam cantando Yesterday, quando John lhe entregou o xampu de volta.

- Obrigado. - Ficou ali à porta, e Lionel virou de costas, querendo que o outro se fosse. Não queria começar coisa alguma e não queria magoar ninguém. O seu modo de vida era coisa dele e não que ria arrastar ninguém consigo, quando de repente sentiu a mão de John em suas costas, e foi como se todo o seu corpo estivesse eletrizado.

Seria uma agonia ter o garoto por ali e esconder o segredo dele. Sem se virar, ele pegou um roupão de toalha de um prego na parede, enfiou-o e se virou, mas nunca tinha visto um rosto mais belo que o de John. Nele, havia pesar, sofrimento e sinceridade. E seus rostos estavam a centímetros um do outro, quando John olhou para ele. - Tenho de ter contar uma coisa, Li. Já devia ter contado antes. - Havia angústia nos olhos do rapaz e Lionel sofreu por ele, se perguntando o que seria. - Algum problema?

O garoto mais moço fez que sim e se sentou devagar à beira da cama, olhando para ele com tristeza.

- Sei que eu devia ter contado antes de me mudar para cá, mas tive medo de que você não... de que você ficasse aborrecido. - Olhou para Lionel, assustado mas sincero.

Foi direto ao assunto. - Acho que você deve saber que eu sou gay. - Ele estava com o ar de quem acaba de confessar que matou o melhor amigo, e Lionel ficou de boca aberta de tão pasmo. Como fora tudo tão simples. Como ele era valente, de falar, sem saber o que Lionel diria, ou faria. O seu coração se abriu para o amigo e ele se sentou à cama ao lado dele e começou a rir. Riu até ficar com lágrimas nos olhos e John olhou para ele, nervoso. Talvez estivesse histérico, ou talvez achasse aquilo tão nojento que chegava a ser ridículo. Foi um alívio quando afinal parou de rir e pode falar, e ele ficou pasmo quando Lionel pôs as mãos nos ombros dele.

- Se você soubesse as coisas que eu andei me dizendo desde que você se mudou para cá... Andei me torturando... - Era evidente que John não estava entendendo. - Benzinho, eu também sou.

- Você é homossexual? - John pareceu estar apavorado e Lionel recomeçou a rir. – Você é? Mas nunca imaginei... - No entanto, isso não era verdade, naquele último ano houvera entre eles uma corrente vaga, hesitante, e no entanto nenhum dos dois podia aceitar a possibilidade de que o outro compreendesse. Falaram a respeito disso durante as duas horas seguintes, deitados na cama de Lionel, amigos afinal. Lionel lhe contou sobre Paul e John confessou a respeito de dois casos breves e terríveis. Não houvera amor em nenhum dos dois, para ele, apenas um alívio sexual terrível, angustiado, torturado, cheio de culpa, um com um professor do colégio dele, que o ameaçara de morte se falasse, o outro com um estranho, homem mais velho, que o apanhara na rua. E os dois casos só serviram para lhe mostrar o que ele era. Já vinha desconfiando, havia muito tempo, mas sempre achara que era a pior coisa que lhe poderia acontecer. Gente como Greg Thayer nunca mais falaria com ele.

Mas Lionel era bem diferente, compreendia tudo, e agora Lionel olhou para o rapaz com compreensão, na sua posição mais vantajosa de seus dezenove anos. E John estava curioso quanto a uma coisa.

- Greg sabe?

Lionel sacudiu a cabeça, depressa.

- Só a minha mãe. Ela descobriu no ano passado. - Contou a John como fora, e ainda sofria ao pensar em como ela ficara chocada. Mas desde então ela fora maravilhosa com ele, compreensiva, com padecida, aceitando-o como ele era. - Todo mundo devia ter uma mãe assim. - Ela ultrapassara seus sonhos e esperanças.

- Não creio que a minha mãe pudesse aceitar isso... e o meu pai... - Ele quase se encolheu, pensando naquilo. - Ele sempre quis que eu fosse um atleta. Eu jogava futebol por causa dele e ficava pensando, vão me arrebentar os dentes por fazer isso, e eu o detesto, detesto. - Os olhos dele .se encheram de lágrimas e ele olhou para Li. - Fiz isso por ele.

- Eu não fui tão bom quanto você. Mas o meu pai tinha Greg, em quem realizar os sonhos dele. Eu sempre deixei ele levar a bola, por assim dizer. - Sorriu um pouco para o novo amigo que ele já conhecia há tantos anos. - Aquilo me aliviou um pouco, mas acho que paguei um preço. O meu pai nunca me aprovou muito. E se ele soubesse... morreria. - Eles tinham tantas culpas, de tantos anos, pelo que não eram, pelo que nunca poderiam ser, e, no último ano, pelo que tinham feito. Por vezes chegava a ser demais. E Lionel pensou nisso agora, olhando nos olhos de John: - Você sabia a meu respeito? John sacudiu a cabeça.

- Acho que não. Mas às vezes desejava muito que fosse assim. -Ele sorriu para Li, sendo sincero, e os dois acharam graça e Lionel despenteou os cabelos pretos e úmidos que emolduravam o rosto do outro.

- Seu merdinha. Por que não falou nada?

- Pra você me esmurrar ou chamar os tiras, ou pior ainda... contar a Greg? - Ele estremeceu diante dessa idéia e depois pensou em outra coisa. - Todos os caras desta casa são bichas?

Lionel sacudiu a cabeça.

- Nenhum deles é, e estou bem certo disso. A gente sente isso, quando mora com as pessoas. E todos trazem as namoradas aqui, freqüentemente.

- Eles sabem de você? Lionel olhou bem para ele.

- Tomo cuidado para que eles não desconfiem, e é bom você fazer o mesmo, senão nos põem os dois para fora.

- Vou tomar cuidado, juro.

Lionel começou a pensar de novo em trocar de quarto, tomando o que dividia o banheiro com John, mas se esqueceu do quarto e em vez disso olhou para John, deitado atravessado na sua cama, e de re pente sentiu um alívio com uma onda de desejo e lembrou-se de seus sonhos da véspera. Estendeu as mãos para tocar em John, deitado ali na cama, esperando pelos lábios de Li e suas mãos e seu toque, a carne jovem se arrepiando de tesão e implorando por ele, e Lionel o encontrou com a boca, e sua língua parecia dançar num fogo ardente nas coxas de John, enquanto este gemia e nas mãos de Lionel descobria uma coisa que nunca tivera na vida. Dessa vez não havia nada de clandestino, nem de assustador, nem de constrangedor no carinho que Lionel lhe dedicou nas horas seguintes, até que, satisfeitos e em paz, eles ficaram deitados, abraçados, e dormiram. Cada qual encontrara algo que vinha procurando, havia muito, muito tempo, sem nem mesmo saber.

 

As aulas começaram no outono, sem novidades. Lionel e John nunca tinham sido mais felizes, e ninguém na casa sabia de nada. Lionel trocou de quarto antes de os outros voltarem de seus programas de verão e tudo funcionou às mil maravilhas. Tanto John como Lionel trancavam as portas de noite e ninguém tinha idéia de quem passava a noite na cama de quem, enquanto eles andavam de um lado para o outro nas pontas dos pés, cochichando até tarde da noite e controlando seus gemidos de êxtase. Só nas raras noites em que não havia ninguém na casa, quando estavam dormindo nas casas das garotas ou esquiando num fim de semana comprido, é que eles se permitiam um pouco mais de liberdade. Mas tinham cuidado para que ninguém soubesse e, uma vez na vida, Lionel não falou nada nem mesmo com Faye. Dizia apenas que os estudos iam indo bem. Não deu qualquer notícia romântica, e ela não quis se intrometer, se bem que desconfiasse que havia alguém na vida dele, a julgar por seu olhar feliz.

Ela só esperava que fosse alguém decente, que não acabasse por torná-lo infeliz. Pelo que ela sabia do mundo dos homossexuais, parecia haver muita infelicidade, promiscuidade e infelicidade, não era uma vida a que ela gostasse de ver condenado o seu filho mais velho. Mas sabia que para ele não havia alternativa, e o aceitava.

E em novembro ela o convidou para a estréia de seu filme mais recente. Ele aceitou com prazer e ela não se espantou ao ver John Wells com ele na estréia. Ela sabia que John tinha alugado um quarto na mesma casa que Lionel, e que também estava estudando na UCLA. Mas no final da noite, quando foram para o Chasen's, cear e tomar champanha com as gêmeas e vários colegas e amigos, de repente ela se perguntou se não via alguma coisa especial se passar entre os olhares deles. Não estava muito certa, mas sentiu alguma coisa, e achou que John estava muito mais amadurecido do que estava em junho, como se tivesse crescido muito nos últimos meses. Desconfiou de alguma coisa, mas claro que não disse nada a ninguém, e ficou espantada quando Ward a interrogou, quando estavam se despindo, naquela noite. Ela estava falando com ele animadamente sobre o filme, a reação do público, as críticas favoráveis que esperavam obter, e ficou pasma quando ele a interrompeu com a cara preocupada, ali, só de calças, o peito nu.

- Você acha que John Wells é fresco?

- John? - Ela se fez de espantada, mas em seu íntimo sabia que estava querendo ganhar tempo. - Meu Deus, Ward, que coisa de você dizer... claro que não, por quê?

- Não sei. De repente, ele me pareceu diferente. Não notou alguma coisa nele, esta noite?

- Não - mentiu ela.

- Não sei... - Ele foi ao armário, devagar, e pendurou o paletó, ainda preocupado. - Tenho uma sensação estranha, em relação a ele. - Faye sentiu seu corpo todo gelar. Ela se perguntou se ele tinha as mesmas desconfianças quanto ao filho. E, como Lionel, ela não sabia se ele poderia sobreviver àquela verdade, se bem que talvez fosse preciso, um dia. Enquanto isso, ela fazia tudo para ocultar a verdade dele. - Talvez eu devesse dizer alguma coisa ao Lionel. Preveni-lo... ele pode pensar que estou maluco, mas se eu estiver certo, um dia poderá me agradecer. Greg achou que havia alguma coisa errada com ele quando ele recusou aquela bolsa na Georgia Tech. Talvez ele estivesse certo. - Esse era o seu critério máximo, para pesar de Faye.

De repente, Faye ficou aborrecida.

- Só porque ele não quer jogar futebol, isso não quer dizer que ele é bicha, pelo amor de Deus. Talvez ele se interesse por outras coisas.

- A gente nunca vê ele com garotas.

Também não viam Lionel com garotas, mas Faye não comentou isso. E ela sabia que Ward supunha que Lionel guardasse para si a sua vida amorosa. Ele não supunha que o filho estivesse andando com homens, só porque não via as garotas. Mas ela não lhe disse isso.

- Acho que você está sendo injusto. Parece até uma caçada às bruxas, puxa vida.

- É só que eu não quero que o Lionel viva com um merda de um fresco, sem saber.

- Tenho certeza de que ele já tem idade para saber por si. Se for o caso.

- Talvez não. Está tão tarado por aqueles filmes doidos dele. Às vezes eu acho que ele está inteiramente perdido no seu mundo. - Bom, pelo menos ele notava isso no filho mais velho, disse ela consigo.

- Ele é um rapaz incrivelmente criativo. - Ela estava aflita para mudar de assunto, não deixar que Ward continuasse falando de John. E Faye tinha de reconhecer que nessa noite havia algo de diferente nele, mas instintivamente sentiu necessidade de protegê-lo. Ela desconfiava que o filho estivesse metido com John, só que Lionel ainda não parecia o que era, e John estava começando a parecer, e falara muito sobre decoração. Talvez estivesse na hora de ela falar alguma coisa sobre ele com Lionel. - Você viu o último filme de Li, amor? É lindo.

Ward suspirou e sentou-se na cama, de cueca. Ele ainda era um belo homem, e aos 48 anos era tão bem-feito quanto os filhos.

- Cá entre nós, Faye, tenho de te dizer que não é do meu gênero.

- É toda uma nova onda, amor.

- Ainda assim, não é coisa que eu compreenda.

Ela sorriu para ele. Ele era tão bom no ramo dele, mas raramente estava aberto para idéias novas. Armava os pacotes para os filmes dela mas não se interessava pelas tendências novas e mais exóticas nos filmes. Ele detestara o festival de cinema de Cannes, naquele ano. Mas adorava os Prêmios da Academia e ficara decepcionado quando ela não ganhara outro. Para compensar, comprara-lhe um lindo anel de esmeralda e aquilo lhe lembrou os tempos antigos, antes de 1952, quando tudo mudara para eles.

- Você devia dar uma chance aos filmes de Li, amor. Um dia desses ele ainda vai te dar uma surpresa e tanto e ganhar um prêmio com um desses filmezinhos esquisitos.

- Estava convencida disso, mas Ward não parecia estar impressionado.

- Tomara. Teve notícias de Greg hoje? Ele disse que ia ligar dizendo em qual fim de semana quer que a gente vá lá.

- Ele não ligou, não, e nem sei se vou poder ir. Tenho reuniões com o novo roteirista, todo dia, nas próximas três semanas.

- Tem certeza?

- Mais ou menos. Por que não convida Lionel para ir com você?

Ward não sabia se fazia isso ou não, mas afinal convidou o filho, e aproveitou a oportunidade para lhe perguntar a respeito de John, quando fez o convite.

- Você não acha que ele é bicha, acha, Li?

Lionel se obrigou a conservar a expressão neutra. Detestava aquela palavra e teve de usar todo o seu controle para não revidar em defesa do amigo.

- Pelo amor de Deus, por que é que diz uma coisa dessas? Ward sorriu.

- Você está igualzinho a sua mãe, dizendo isso. - Mas depois a fisionomia dele ficou séria. - Não sei. De repente ele me pareceu diferente e ele só fala de decoração.

- Isso é ridículo, não quer dizer que ele seja gay.

- Não, mas se perseguir homens, então é que é. Cuidado para ele não ir atrás de você. E se você sentir alguma coisa esquisita nele, ponha-o pra fora daquela casa. Você não deve nada a ele. - Pela primeira vez na vida, Lionel teve de lutar contra a vontade de dar um soco no pai, mas conseguiu manter a calma até sair da casa dos pais, e voltou para casa dirigindo a 120km por hora, querendo matar alguém, de preferência o pai. Quando chegou em casa, bateu a porta da frente e um momento depois bateu a porta do quarto e a trancou. Foi uma das raras ocasiões em que seus companheiros de casa o viam descontrolado e quase todos ficaram chocados. Pouco depois, John foi para o quarto dele e também trancou sua porta. Ele passou depressa pelo banheiro que ligava os dois quartos.

- O que é que houve, amor? - Lionel olhou para John com os olhos ardendo, e teve de reconhecer que John estava começando a parecer fresco. A despeito do físico musculoso, havia em seu rosto alguma coisa lisa e pura, ele estava com um penteado diferente e as roupas dele eram quase perfeitas demais, na moda demais, arrumadas demais, mas ele amava o rapaz, amava o talento dele, seu coração generoso, seus modos cativantes, seu corpo, sua alma, amava tudo nele, e se ele fosse uma garota, eles já estariam noivos e ninguém se teria surpreendido. Mas não era, de modo que todos o chamavam de fresco. - O que é que há? - Sentou-se numa cadeira, com calma e ficou esperando que Lionel desabafasse.

- Nada. Não quero falar a respeito.

John olhou para o teto e depois para o amigo.

- É burrice se trancar assim. Por que não desabafa? - E então, de repente, suspeitou que tivesse algo a ver com ele. - Fiz alguma coisa que o aborrecesse, Li? - Ele estava tão preocupado e magoado que Lionel foi para junto dele e tocou o rosto dele, de leve.

- Não... não tem nada a ver com você... - Mas tinha, e ele não sabia como explicar ao outro. - Não é nada. O meu pai que me espinafrou.

- Ele disse alguma coisa sobre nós? - Ele sentira, corretamente, que Ward o estava fitando muito, a outra noite. - Ele desconfia? Lionel queria ser vago, mas John era muito esperto.

- Pode ser. Acho que ele está tateando.

- O que é que você disse? - Jonh estava preocupado. E se ele dissesse alguma coisa a sua família? Eles tinham tanta coisa a esconder. E se o prendessem, ou mandassem embora, ou... era aterrador, pensar naquilo tudo, mas Lionel beijou o pescoço dele e lhe falou acalmando-o. Sabia como ele se preocupava.

- Sossegue. Ele só está falando sem saber. Não sabe de nada. John estava com lágrimas nos olhos.

- Quer que eu me mude?

- Não! - Lionel só faltou gritar a palavra - Só se eu for também. Mas não teremos de fazer isso.

- Você acha que ele vai dizer alguma coisa ao meu pai?

- Deixe de ser tão paranóico. Ele só disse umas piadas e me espinafrou, mais nada. E não é o fim do mundo. - No entanto, para apaziguar Ward, Lionel foi a Alabama com ele, para ver Greg jogar bola, e foi o fim de semana mais cacete que ele já passara na vida. De testava futebol quase tanto quanto John e não tinha assunto com Greg Pior ainda, houve silêncios dolorosos e intermináveis com o pai, que ficou maluco ao assistir ao jogo, quando um dos melhores jogadores se machucou e o treinador pôs Greg no lugar dele, bem a tempo de Greg marcar um tento nos últimos segundos, dando a vitória ao seu time. Lionel tentou fingir o mesmo entusiasmo que Ward estava sentindo, mas não conseguiu e ficou incrivelmente aliviado na volta de avião, quando falou de cinema com ele e tentou explicar em que estava trabalhando. Mas, assim como sentiu que mais valia estar na lua, ao ver Greg jogar, assim também é que o pai olhou para ele quando ele descreveu o seu último filme avant-garde.

- Você acha mesmo que vai poder ganhar dinheiro com uma coisa dessas, um dia?

Lionel olhou para ele, estupefato: era uma meta que nunca lhe passava pela cabeça. Eles estavam experimentando técnicas novas, expandindo a linguagem dos filmes ao máximo. Quem é que se importava em fazer dinheiro? Isso era muito mais importante, e os dois se encararam numa confusão e descrença, cada qual convencido de que o outro era um idiota, e no entanto sentindo o peso de fingir que respeitavam suas idéias respectivas. Foi uma tensão terrível para ambos e os dois ficaram aliviados ao verem Faye os esperando no portão. Ward falou sem cessar sobre o tento extraordinário de Greg, ficou triste por ela não ter assistido pela TV, e Lionel olhou para ela como se não pudesse ter suportado nem mais um minuto.

Ela riu para si, conhecendo-os a ambos tão bem e sabendo como eram diferentes, mas amava a ambos, como amava o outro filho e as filhas. Eram apenas pessoas muito diferentes, que precisavam de coisas diferentes.

Ela foi primeiro levar Ward em casa e disse que ia levar Lionel e voltar a tempo de tomar um drinque com o marido. Aquilo lhe dava alguns minutos para conversar com o filho mais velho e mostrar a pena que sentia por ele ter passado um fim de semana tão maçante.

- Foi muito ruim, meu bem? - Ela sorriu ao ver a expressão dele e ele gemeu, encostando a cabeça no assento, depois que deixaram o pai em casa. Nunca se sentira tão exausto na vida.

- Foi pior. Foi como ir a um outro planeta e tentar falar a língua deles durante todo o fim de semana. - Ela pensou se teria sido só o tédio do esporte ou o esforço de fingir que era machão, mas não perguntou.

- Coitadinho. Como estava Greg?

- O mesmo. - Ele não precisava dizer mais nada, ela sabia como tinham pouca coisa em comum. Por vezes, era difícil acreditar que fossem ambos seus filhos. E ela então lhe fez a pergunta que a atormentara todo o fim de semana.

- O seu pai perguntou sobre o John?

O rosto de Lionel ficou tenso e ele se sentou reto.

- Não, por quê? Ele te disse mais alguma coisa? - Procurou os olhos dela, ainda não tinha confessado nada a ela, mas sabia que ela sabia sem ele ter de falar e não sabia ao certo o que ela pensava daquilo. Sentia que ela achava que era uma coisa muito perto da família, e em certo sentido, ela estava com a razão.

- Acho que você deve ter cuidado, Li.

- E tenho, mãe. - Ele parecia muito jovem e o coração dela se enterneceu por ele.

- Você o ama? - Era a primeira vez em que ela perguntava e ele fez que sim, os olhos sérios.

- Amo.

- Então tome cuidado, por vocês dois. Os Wells sabem sobre John?

Lionel sacudiu a cabeça, e Faye sentiu um arrepio na espinha, de medo, quando voltou para casa sozinha. Um dia tudo viria a público e alguém poderia se machucar... talvez muita gente... John, Lionel... os Wells... Ward... ela não se importava tanto com John e a família dele, embora gostasse deles... mas estava apavorada com o que isso faria a Ward... e a Lionel...

Pensava que Lionel provavelmente conseguiria agüentar a tempestade. Ele estava crescendo, inconscientemente se preparava para enfrentar isso um dia, não só de parte do pai, mas de todos. Lionel não era o tipo de homem para ficar escondido o resto da vida. Mas Faye não sabia como Ward ia sobreviver ao choque. Aquilo destruiria uma parte dele, ela sabia, e ficava apavorada. Mas não via nada que ela pudesse fazer. Lionel prometera ser discreto. E nesse momento, ele tinha acabado de trancar a porta do quarto, e estava beijando John, suspirando ao lhe contar como o fim de semana fora solitário.

 

No dia de Natal, Lionel foi para a casa dos pais, para o tradicional jantar de família. Greg estava em casa, por alguns dias, embora tivesse de voltar logo para outro jogo, e Ward ia com ele. E depois disso, iam de avião para o Campeonato Nacional. Ward queria que Lionel também fosse mas ele disse que tinha outro programa e Ward ficou aborrecido, mas Faye os distraiu com um imenso peru e champanha para todos. Valerie bebeu um pouco demais e todos implicaram muito com Van. Ela estava positivamente linda, com um novo penteado e um vestido novo. Estava apaixonada pela primeira vez, por um rapaz que conhecera numa festa do colégio, algumas semanas antes, e de repente parecia adulta. Até mesmo Anne mudara muito, naquele ano. Nos últimos meses, tinha desabrochado, e estava da altura das gêmeas, embora ainda não tivesse chegado ao seu auge, mas estava chegando lá. Ao fazer um brinde a ela, Lionel lembrou a todos que ela faria catorze anos dali a algumas semanas, e ela corou. E depois do jantar, Lionel e Anne se sentaram junto á lareira e ficaram conversando. Agora a via menos do que gostaria, não tanto por ele estar morando fora de casa, mas devido ao seu trabalho no filme, mas era evidente que ele ainda a adorava, e era mútuo. E então ela o espantou, perguntando por John, e estava com uma expressão estranha nos olhos, ao fazê-lo, como se ela gostasse dele e Lionel ficou espantado ao ver que nunca percebera aquilo. Mas tudo nela era tão oculto e tão clandestino que não era de surpreender que ele não tivesse notado.

- Ele ainda está morando na mesma casa que você, não está? Vi Sally Wells outro dia e ela disse que ele estava adorando morar lá. - Sally Wells era da idade de Anne, mas era muito madura e ele torceu para que Sally não tivesse entendido o negócio e contado a Anne, mas não parecia que isso tivesse ocorrido.

Anne ainda tinha nos olhos aquela luz de inocência e esperança.

- É, ele continua lá.

- Não o vejo há muito tempo. - Ela olhou para Lionel com melancolia e ele teve vontade de rir, ela estava tão engraçadinha, mas ele não disse nada.

- Vou dizer a ele que você mandou lembranças. - Ela fez que sim e os outros entraram na sala. Ward acendeu a lareira e todos ficaram felizes com seus presentes.

Ward e Faye se olharam por cima das cabeças dos outros e sorriram. Fora um bom ano, de modo geral.

Lionel foi o primeiro a sair, como John em casa dos Wells. Os outros rapazes todos tinham ido passar as festas fora. A república era só deles, de modo que não tinham de se esconder nem trancar as por tas dos quartos. Era uma delícia poderem se descontrair e serem eles mesmos. Era um esforço, ter de tomar cuidado o tempo todo, especialmente para John, que a cada dia parecia estar ficando mais obviamente efeminado. Ele agora podia encher a casa com flores e passar horas e horas na cama com Lionel todas as tardes, pois Li estava de folga do seu filme, nos feriados. Os dois davam longos passeios a pé e conversavam muito e voltavam para casa para cozinhar e tomar grogues quentes ou vinho branco junto ao fogo.

Era quase como ser adulto, dizia John, implicando, tanto que eles nem se davam ao trabalho de trancar a porta da frente e nem ouviram o pai de Lionel entrar na casa, no dia depois do dia de Natal. Ele passara por lá para ver se convencia Lionel a ir ao sul com ele de avião e ver Greg jogar, antes de irem os três ao Campeonato Nacional. Mas essa idéia saiu logo de sua cabeça quando, como ninguém atendesse à sua batida na porta, ele entrou sem fazer barulho e encontrou os dois rapazes deitados junto da lareira, vestidos, mas a cabeça de John aninhada no colo de Lionel, que estava abaixado, lhe dizendo alguma coisa terna. Ward parou e soltou um grunhido quase animalesco, e os dois rapazes levantaram os olhos. O rosto de Lionel ficou branco. Os dois se levantaram às pressas, e, sem pensar, Ward avançou para cima de John e lhe deu um soco violento, fazendo o nariz dele sangrar logo, e depois quis bater em Lionel, mas este agarrou o braço dele e parou o golpe antes que seu rosto fosse atingido. Ele estava com lágrimas nos olhos e o pai estava chorando de raiva, berrando obscenidades para ambos.

- Seu filho da puta!... seu puto!... - As palavras eram para John, mas ele as berrava para o filho, também, os olhos cegos pela fúria e as lágrimas. Ele não podia acreditar no que acabara de ver. Ele queria que eles se retratassem, que lhe dissessem que não era verdade, mas era, e agora não havia como fugir daquilo. Lionel estava se sentindo mal fisicamente, mantendo o pai afastado de si, e John começara a chorar. Era uma onda de pesadelo e Lionel estava tentando manter acalma. Sentia-se como se toda a sua vida estivesse em pauta agora e ele tivesse de explicar tudo ao pai. Talvez ele entendesse... ele tinha de explicar, em seu desespero, como ele sempre fora tão diferente de Greg... de todos eles... o que ele sentira... nem sentia as lágrimas lhe escorrendo pela face, nem a pancada quando o pai afinal livrou as mãos e lhe deu um tapa na cara. - Pai, por favor... quero falar com você... Eu...

- Não quero saber de nada! - Ele estava tremendo da cabeça aos pés e de repente Lionel ficou apavorado de que ele tivesse um ataque do coração. - Nunca mais quero ver você! Seus dois putos, via dos! - Ele olhou para os dois. - Seus nojentos! - E depois para Lionel. - Você não é mais meu filho, sua bichinha. Nunca mais quero ver você na minha casa. Não vou dar nem mais um centavo para o seu sustento. De hoje em diante, você saiu da minha vida, entendeu? E afaste-se da minha família! - Ele estava soluçando e gritando e tornou a avançar para cima de John, com um ar ameaçador. Todos os seus sonhos se tinham desfeito de um golpe. O filho mais velho era homossexual. Aquilo era mais do que podia suportar, mais do que ter perdido a fortuna anos antes, ou a ameaça de perder a mulher, pouco depois... aos olhos dele, isso era ainda pior do que a morte. Era uma perda que ele nunca havia de compreender e de certa maneira uma perda que ele mesmo estava se infligindo, mas ele não se dava conta disso. - Acabou, entendeu? - Lionel meneou a cabeça, calado e aturdido, e Ward, indo aos tropeções para a porta por onde entrara momentos antes, quase caiu às cegas pela escada, ao sair. O choque foi demais para ele. Foi ao bar mais próximo, tomou quatro uísques puros, e às oito horas Faye ligou para Lionel, a voz preocupada. Não queria incomodá-lo, mas não estava entendendo. Eles estavam esperando visitas às seis e Ward não tinha voltado para casa. Disseram que ele saíra do estúdio cedo, naquela tarde, e ela não podia imaginar onde ele teria ido.

- Querido, o seu pai ligou para você hoje? - Lionel ainda estava aturdido. John passara horas soluçando no sofá, horrorizado com o que fora dito, o resultado final, e o medo de que Ward também contasse aos pais dele. Lionel tentara acalmá-lo e o obrigara a pôr uma compressa de gelo na face e no nariz inchados, e estava sentindo no coração uma angústia que ninguém podia aliviar. Ainda estava com a voz trêmula quando atendeu ao telefone e a princípio não conseguiu responder à mãe. E então, com um arrepio, ela se deu conta de que alguma coisa acontecera. - Li... filhinho, você está bem?

- Eu... uh... eu... - As palavras eram ininteligíveis e de repente ele também começou a soluçar, enquanto John se sentava e olhava para ele. Ele se mostrara tão calmo, tão forte, e de repente estava se desmoronando. - Mãe... eu... não posso...

- Ah, meu Deus... - Alguma coisa terrível lhe acontecera... talvez Ward estivesse ferido e tivessem ligado para ele. Ela sentiu o pânico apertar sua garganta. - Calma. Vamos... conte o que aconteceu...

- O pai passou... por aqui... - No peito dele havia soluços terríveis, presos e pedindo para serem soltos. - Ele... eu... - E de repente ela entendeu.

- Ele encontrou você com John? - Ela imaginou o pior, que ele os tivesse encontrado na cama e ela se sentiu fraca, pensando naquilo. Nem ela mesma teria gostado dessa cena, por mais tolerante que fosse com o filho. E Lionel não conseguia tranqüilizá-la quanto ao que o pai tinha visto.

Ele só conseguiu se forçar a dizer mais uma palavra antes de ter um colapso total, ao telefone.

- É... - Passaram-se alguns momentos até ele conseguir falar de novo. - Ele disse que nunca mais queria me ver... que eu não era filho dele...

- Ah, meu Deus... querido, acalme-se. Você sabe que nada disso é verdade, e ele vai acabar caindo em si. - Ela ficou falando com ele por mais de uma hora, pois os convidados já tinham ido para casa pouco antes, depois de vários drinques. Ela se prontificou a ir conversar com ele, mas ele queria ficar a sós com John, e ela sentiu um alívio. Queria estar em casa quando Ward chegasse.

Quando Ward entrou em casa, ela ficou horrorizada com o estado dele. Ele passara em vários bares, depois do primeiro, estava embriagado e cambaleando, mas ainda assim se lembrava de ter visto Lionel e John e o que agora sabia sobre eles, e olhou para Faye com ódio e desespero. Também se virara contra ela.

- Você sabia, não é?

Ela não queria mentir para ele, mas não queria que ele pensasse que houvesse uma conspiração para manter segredo durante anos. - Eu desconfiava de John.

- Porra de filho da puta... - Ele cambaleou em direção a ela e ela viu que havia sangue na camisa dele. Tinha caído e cortado a mão, ao sair do último bar, mas não quis que ela se aproximasse dele. - Quero dizer, você sabia do nosso filho... ou devo chamá-lo de filha, agora? - Ele estava fedendo a bebida e ela recuou quando ele se aproximou e a agarrou pelo braço. - É isso que ele é, sabia? Sabia?

- Ward, ele é nosso filho, faça o que fizer. É um ser humano decente e um bom rapaz... não é culpa dele, se é assim.

- De quem é a culpa, então? Minha? - Era isso que realmente o estava preocupando. Por que Lionel ficara assim? Ele se torturara com isso de um bar para outro e não gostava de nenhuma das respostas que lhe ocorreram... ele deixara o menino muito entregue a Faye... não passara bastante tempo com ele... ele o assustara... não o amara bastante... sempre preferira Greg... as recriminações eram inúmeras, mas tudo chegava à mesma coisa. O filho era homossexual. Onde aprendera aquilo? Como acontecera? Como podia acontecer com ele? Era uma afronta pessoal à sua própria virilidade... o filho era viado... as palavras o queimavam como fogo e ele olhou nos olhos de Faye com lágrimas nos olhos, de novo.

- Pare de se culpar, Ward. - Ela passou o braço em volta dele e o levou para a cama, onde se sentaram lado a lado.

- A culpa não é minha. - Era o ganido de uma criança assustada e ela teve pena dele. Ela também se fizera as mesmas perguntas, um ano antes, mas talvez fosse mais difícil para ele. Ela sempre soube ra que seria. Ele não era tão forte quanto ela, nem tão seguro de si, nem do que dera aos filhos.

- Não é culpa de ninguém, nem sua, nem minha, nem dele, nem mesmo de John. É a maneira de ele ser. Devemos aceitar. - Mas quando ela disse isso, ele a empurrou e se levantou, vacilando, agarrando o braço dela até ela fazer uma careta.

- Nunca hei de aceitar isso. Nunca! Entendeu? Foi o que disse a ele. Ele não é mais meu filho.

- Ah, mas é, sim! - Ela agora estava furiosa e arrancou o braço da mão dele. - Ele ë nosso filho, seja ele aleijado ou mutilado ou defeituoso, surdo ou mudo ou doente mental ou assassino ou seja o que for... e graças a Deus que é homossexual, pelo amor de Deus. Ele é meu filho até o dia da minha morte ou da dele, e é seu filho também até lá, quer você queira ou não, ou quer aprove ou não. - Ela agora também estava chorando e Ward ficou chocado ao ver a veemência com que ela lhe falava. - Você não o pode banir de sua vida, nem da minha. Ele não vai a lugar algum. É nosso filho, e é bom você aceitá-lo como ele é, ou então pode ir para o inferno, Ward Thayer. Não vou deixar que você faça aquele menino sofrer mais do que já sofreu. Já é bem duro para ele, assim como é.

Os olhos de Ward a penetraram, ardentes.

- É por isso que ele é o que é. Porque você o protegeu a vida toda. Inventa desculpas para ele, deixa que se esconda debaixo de suas saias. - Ele se sentou numa cadeira e recomeçou a chorar, olhando para ela. - E agora está usando as suas saias, porra! Ainda temos sorte de ele não estar andando por aí de vestido, pelo amor de Deus. - A maneira de ele falar do filho a feriu de tal modo que ela estendeu a mão e deu-lhe um tapa no rosto, com força. Ele não se mexeu de onde estava. Ficou olhando para ela com os olhos tão frios e duros que a assustaram. - Nunca mais quero vê-lo nesta casa. E se ele vier aqui, eu mesmo o ponho pra fora. Disse isso a ele e estou lhe dizendo e direi a todo mundo, e se um de vocês discordar, também pode ir embora. Lionel Thayer não existe mais. Está bem claro? - Ela estava sem fala, de tanta raiva, e teve vontade de matá-lo com as próprias mãos. Pela primeira vez na vida, mesmo diante de tudo quanto lhes acontecera antes, pela primeira vez ela se arrependia de ter se casado com ele, e lhe disse isso antes de sair do quarto, batendo a porta.

Naquela noite ela dormiu no quarto de Lionel e na manhã seguinte, ao café, Ward tornou a deixá-la desesperada. Parecia que ele tinha envelhecido dez anos naquela noite e ela então se lembrou do que dissera a Lionel, antes de tudo isso. Ela receara que a verdade matasse Ward, e agora estava parecendo que isso poderia acontecer, mas quando ela acabou o desjejum, desejou que acontecesse mesmo. Ele tomou uma xícara de café, olhou para o jornal sem o pegar e depois falou para todos eles com uma voz surda, sem expressão. Estranhamente, era a primeira vez que todos tomavam o café da manhã juntos, havia meses. É que Greg estava em casa por mais um dia, antes de voltar para o seu grande jogo, as gêmeas estavam ambas de pé, o que era um milagre, e Anne descera minutos depois delas. E todos ficaram ali então olhando fixamente para Ward, enquanto ele lhes dizia que, para ele, Lionel não existiria mais a partir daquele dia, que ele era homossexual e tinha um caso com John Wells. As meninas ficaram ali sentadas, fitando-o horrorizadas e Vanessa começou a chorar, mas Greg parecia que ia vomitar. Levantou-se de um salto, berrando com o pai, enquanto Faye se agarrava à cadeira.

- É mentira! - Ele disse aquilo mais em defesa do seu velho amigo, db que do irmão, que, de certa forma, parecia um estranho para ele. - Não é verdade. - O pai parecia que poderia bater nele e apontou para a cadeira.

- Sente-se e cale-se. É verdade. Eu os encontrei ontem. - O rosto de Anne parecia de cinzas, e Faye se sentiu como se toda a sua família, toda a sua vida estivesse sendo destruída. E odiou Ward por isso, pelo que ele estava fazendo com todos eles, mas sobretudo ao seu primogênito. - Lionel não é mais bem-vindo nesta casa. Ao que me diz respeito, ele não existe mais. Está claro? Estão todos proibidos de o ver de novo, e se eu descobrir que o viram, também poderão sair desta casa. Todos entenderam bem? - Todos menearam as cabeças, sem expressão, e todos os olhos estavam úmidos. Um momento depois ele se foi. Pegou o carro e foi à casa de Bob e Mary Wells, enquanto Faye estava sentada à mesa do café, olhando para todos eles, e eles olhavam para ela. Greg estava lutando para não chorar, pensando no que diriam os amigos quando descobrissem. Era a pior coisa que podia imaginar, e sentiu vontade de morrer. Mais que tudo, queria matar John Wells, o merdinha fingido... já devia saber, quando ele se recusou a aceitar a bolsa para a Georgia Tech... fresco arrombado... ele cerrou os punhos e olhou para todos, indefeso, enquanto Vanessa procurava os olhos de Faye.

- Você também está de acordo, mãe? - perguntou Vanessa. Não adiantava perguntar se era verdade, por mais incrível que fosse. O pai dissera que os encontrara e nenhum deles podia imaginar nada de pior. Parecia misterioso, assustador e terrível, e todos imaginaram atos obscenos se passando diante dos olhos dele, em vez de dois rapazes diante de uma lareira, a cabeça de um no colo do outro. Mas tudo ficara bem claro, e agora não havia o que discutir.

Faye olhou para todos e depois de novo para Vanessa. Falou com uma voz calma e pausada e pensou que nunca sofrera tanto. Ele destruíra tudo o que ela construíra durante quase vinte anos. O que ia acontecer com aquelas crianças agora? O que pensariam de Lionel? De si mesmos? Do pai, por banir o irmão mais velho das vidas deles, da mãe, por permitir isso?... Ela precisava falar. Ward que fosse se foder.

- Não. Não é isso o que eu sinto. Eu amo Lionel, como sempre amei, e se assim ele se sentir e se assim ele for, e ele é um homem decente e direito, sejam quais forem suas tendências sexuais - era o momento de ser sincera com os filhos -, eu sempre estarei do lado dele. E quero que vocês todos saibam disso agora. Façam o que fizerem, onde quer que vão, sejam quais forem os erros que cometam ou o que quer que se tornem, seja bom ou mau, uma coisa que eu aprove ou não, sempre serei mãe e amiga de vocês. Sempre poderão me procurar. Sempre terão um lugar em meu coração e em minha vida e minha casa para vocês. - Então se levantou e beijou cada um enquanto os quatro choraram pelo irmão que tinham perdido às mãos do pai, pela desilusão que todos sentiam, o choque do segredo revelado. Estava tudo um pouco além da compreensão deles, mas a mensagem da mãe estava clara.

- Você acha que o papai vai mudar de idéia? - A voz de Val estava baixa e ninguém notou que Anne saíra da sala um minuto antes.

- Não sei. Vou falar com ele. E suponho que, com o tempo, ele vai cair em si, mas no momento ele não consegue compreender. - Bem, nem eu. - Greg deu um murro na mesa e se levantou. - Acho que é a coisa mais nojenta que já ouvi.

- O que você sente, Greg, é lá com você. Não me importa a mínima o que eles fizeram. Contanto que não prejudiquem ninguém, já que são o que são, eu os aceito como são. - Ela olhou nos olhos do filho e então viu a distância entre eles. Ele parecia demais com Ward. A mente dele estava fechada, e agora o coração também. Ele correu para cima e bateu a porta. E depois que ele saiu Faye notou que Anne também desaparecera. Ela sabia o golpe que aquilo seria para a menina e resolveu subir para falar com ela, mas quando foi, a porta do quarto estava trancada e a filha não quis responder. As gêmeas também foram para seus quartos e toda a família agia como se alguém tivesse morrido. Faye telefonou para Lionel, pouco depois, e a essa altura eles já sabiam que Ward tinha ido à casa dos Wells.

Estavam todos histéricos e Mary e Bob Wells tinham telefonado. Houve rios de lágrimas e depois do telefonema John tinha ido ao banheiro e vomitado. Mas, apesar de toda a gritaria e recriminações que fizeram aos dois rapazes, queriam que John soubesse que ele ainda era filho deles, que não partilhavam da opinião de Ward Thayer, que ainda o amavam e também aceitavam Lionel. Os olhos de Faye se encheram de lágrimas quando ela soube disso e ficou intimamente satisfeita quando Lionel lhe disse que Bob Wells tinha expulso Ward da casa deles.

Naquela tarde Faye foi visitar os dois rapazes. Queria confirmar a Lionel que ela o apoiava fortemente e mãe e filho ficaram abraçados por muito tempo. Depois, ela se virou e abraçou John. Não era fácil aceitar aquilo, e não teria sido o que ela escolheria para o filho, mas era assim que ele era. E ela também queria que ele soubesse que sempre seria bem-vindo em casa deles, que ainda fazia parte da família, dissesse o que dissesse o pai, e que daquele momento em diante ela é que iria custear os estudos e as despesas dele. Se o pai queria deserdá-lo, isso era lá com ele, mas Faye sempre estaria ali para ele. Ela assumiria a responsabilidade agora e Lionel chorou, quando ela lhe contou, e prometeu arranjar um emprego para ajudá-lo a se sustentar. E John fez o mesmo. Os pais já lhe tinham dito antes que continuariam a sustentá-lo até ele acabar os estudos, e que nada mudaria para ele.

Ward, porém, ficou firme, quando voltou para casa de noite. Desaparecera o dia todo e Faye viu, pelo estado em que chegou, que ele passara o dia todo bebendo. Naquela noite, ao jantar, ele lembrou a todos que Lionel não era mais persona grata na casa dele, que estava morto, no que lhe dizia respeito, e quando ele disse aquilo, Anne se levantou e o fitou com ódio nos olhos.

- Sente-se! - Era a primeira vez que ele falava a ela com aspereza e, para espanto de todos, ela o enfrentou. Foi uma ocasião que ninguém naquela família esqueceria tão cedo.

- Não sento. Você me causa náusea.

Ele deu a volta à mesa e a agarrou pelo braço, obrigando-a sentar-se mas ela não tocou a comida e no final da refeição se levantou, olhou bem para ele e disse, em tons pausados:

- Ele é melhor do que você. - Então, saia de minha casa.

- Saio mesmo! - Ela atirou o guardanapo ao prato, intacto, e dali a pouco desapareceu no quarto. Eles ouviram o carro de Greg sair em disparada pouco depois. Ele estava tendo dificuldades em aceitar aquilo tudo, e Vanessa e Valerie se olharam, preocupadas. Ambas estavam assustadas por Anne, e o efeito que aquilo teria sobre ela. Naquela noite ela saiu de casa, furtivamente, e conseguiu uma carona até à casa de Lionel. Tocou a campainha, bateu à porta, viu luzes no andar de cima, mas não responderam; foi à esquina e ligou do telefone público, ninguém atendeu. Tinham ouvido a campainha, e estavam sentados quietos na sala, mas aquelas 24 horas tinham sido um tal pesadelo para eles que não agüentavam mais. John pensou que talvez devessem atender à porta, mas Lionel não concordou.

- Se for um dos rapazes chegando mais cedo, todos têm a chave. Provavelmente é o meu pai, bêbado de novo. - Já tinham sofrido bastante, ambos concordavam nesse ponto.

Nem olharam pela janela para ver quem era. E lá embaixo ela pegou um lápis do bolso do casaco, rasgou um pedaço de jornal da lata de lixo e escreveu um bilhete para Lionel. "Eu te amo, Li. Sempre hei de amar." As lágrimas encheram seus olhos. Ela quisera revê-lo antes de ir embora, mas talvez isso não importasse mais... Pôs o bilhete na caixa do correio. Era só o que ele precisava saber. Não queria que pensasse que ela também se virara contra ele. Tinha de saber que ela nunca faria

isso. Mas ela não estava agüentando mais. A vida já tinha ficado insuportável quando ele saíra de casa, e agora ia ficar pior ainda. Ela nunca o veria. Só tinha uma opção, e ficou espantada ao ver como se sentia aliviada.

Naquela noite, quando todos estavam dormindo, ela arrumou uma mochila com suas coisas e saiu pela janela do quarto, como fizera quando saíra para ir ver Li. Na parede da casa havia apoios seguros para os pés, e ela já o fizera uma porção de vezes. Agora desceu, em silêncio, de tênis e jeans, os cabelos numa comprida trança loura, e um agasalho comprido, com capuz. Ela sabia que devia estar fazendo frio, lá em cima. E pusera tudo do que gostava naquela pequena mochila. Nem olhou para trás, quando saiu da casa. Não ligava a mínima para qualquer deles, como eles não ligavam para ela. Foi andando furtivamente pela rua e em Los Angeles pediu uma carona indo para o norte. Ficou espantada ao ver como foi fácil. Disse ao primeiro motorista que estava estudando em Berkeley e tinha de voltar depois das férias do Natal. Ele não perguntou mais nada e a levou até Bakersfield, antes de largá-la.

A essa altura, Faye tinha encontrado o bilhete dela. Ela deixara a porta destrancada e o bilhete na cama. "Agora você está livre de dois de nós, pai. Adeus, Anne." Nenhuma palavra para mais ninguém. Nada para Faye. Faye sentiu o coração quase parar ao encontrar o papel largado na cama de Anne e logo chamaram a polícia. Ela também ligou para Lionel, e ele já tinha encontrado o pedaço de jornal.

Foi o pior momento de sua vida, que Faye se lembrasse, e ela se perguntou se conseguiria sobreviver àquilo, enquanto esperava que a polícia chegasse. Ward estava sentado no escritório, aturdido, o bilhete ainda na mão.

- Ela não pode ter ido muito longe. Provavelmente está em casa de alguma amiga.

Mas Valerie destruiu aquela esperança.

- Ela não tem amigas. - Era triste dizer isso, mas todos sabiam que era verdade. Seu único amigo fora Lionel, e o pai o banira. Faye ficou ali sentada olhando para ele com uma raiva muda, quando a campainha tocou. Era a polícia. Ela rezou para que encontrassem Anne antes que alguma coisa lhe acontecesse. Não se podia saber para onde ela teria ido, e ela já se fora, havia horas.

 

Depois que o primeiro motorista que lhe deu condução a deixou em Bakersfield, Anne levou várias horas para conseguir outra carona, mas esta a levou direto a Fremont e dali ela arranjou outra com facilidade. Levou no total 19 horas para chegar a San Francisco, mas, de modo geral, ficou espantada ao ver como era tudo fácil e todos simpáticos com ela. Pensavam que ela era apenas outra universitária, uma hippie, como tinham dito dois deles, implicando com ela. Nenhum adivinhou que ainda faltavam algumas semanas para ela completar catorze anos. E quando ela chegou a San Francisco, desceu a Haight Street, achando que as ruas eram calçadas de ouro. Havia gente jovem por toda parte, com roupas alegres, feitas em casa. Havia Hare Krishnas com vestes laranja, suaves, e cabeças raspadas, garotos com os cabelos até à cintura e garotas com flores trançadas nos cabelos. Todo mundo parecia feliz e satisfeito com a vida. Havia gente partilhando de comida nas ruas, e alguém lhe ofereceu uma pílula de ácido de graça, mas ela sorriu, encabulada, e recusou.

- Qual é o seu nome? - perguntou alguém, e ela murmurou baixinho:

- Anne. - Era esse o lugar onde ela desejava estar, havia anos, livre dos estranhos com quem tinha parentesco e que detestara por tanto tempo. De certo modo, ela estava contente que as coisas tivessem chegado àquele ponto. Lionel agora tinha John e talvez em breve ela também teria alguém. Lionel saberia que ela o amava, acontecesse o que acontecesse, e quanto aos outros... ela não se importava. Esperava nunca mais vê-los. Indo para o norte, pensara seriamente em mudar de nome, mas uma vez nas ruas de Haight-Ashbury, ela se deu conta de que ninguém se importaria. Havia outras que pareciam ainda mais jovens do que ela e ninguém havia de suspeitar que ela teria ido para lá. Nunca dissera nada a ninguém. E uma garota chamada Anne era o mais anônimo possível. Seu rosto era comum, os cabelos de um louro normal, diferente do cabelo dourado claro de Vanessa ou de Val, que parecia uma chama. As gêmeas nunca poderiam ter conseguido aquilo, mesmo que quisessem. Mas ela sabia que ela podia. Podia desaparecer no meio de qualquer grupo. Há anos vinha fazendo isso mesmo, em casa. Ninguém sabia quando ela estava presente, quando não estava, quando chegava ou quando desaparecia, e ela estava tão acostumada a ouvir todos perguntarem "Onde está Anne?", que sabia que era fácil fazer o mesmo ali.

- Está com fome, irmã? - Ela olhou para cima e viu uma garota com uma coisa que parecia um lençol branco enrolado no corpo magro, e um agasalho surrado por cima.

A garota estava lhe sorrindo e lhe ofereceu uma fatia de bolo de cenoura.

Anne pensou que podia estar temperado com ácido ou alguma outra droga e a outra a viu hesitar.

- Não tem nada, pode comer. Você parece ser nova aqui.

- E sou, sim.

A garota do bolo de cenoura tinha dezesseis anos e já estava lá há sete meses, tendo vindo de Filadélfia em fins de maio. Os pais ainda não a tinham encontrado, embora ela tivesse visto os anúncios deles na seção "Pessoais", mas ela não estava disposta a responder. Havia um padre que fazia a ronda das ruas, oferecendo conselhos, e para entrar em contato com os pais deles, se quisessem. Mas não eram muitos os que queriam, e Daphne não era dessas.

- Meu nome é Daff. Tem onde dormir hoje? Hesitando, Anne sacudiu a cabeça.

- Ainda não.

- Há um lugar lá no Waller. Pode ficar o tempo que quiser. Basta manter o lugar limpo e ajudar a cozinhar a comida nos dias que eles mandarem. - Também tinham tido dois surtos de hepatite, recentemente, mas Daphne não lhe disse isso. Por fora, tudo era lindo e carinhoso, ali. Os ratos, os piolhos, os garotos que morriam de abuso de drogas não eram coisas para se discutir com uma neófita. E, depois, essas coisas aconteciam por toda parte, não é? Aquela era uma época especial na história.

Um período de paz e amor e alegria. Uma onda de amor para compensar as mortes inúteis no Vietnã. O tempo parara para todos eles e só o que importava era o aqui e agora, e amor e paz, e amigos como aqueles. Daphne beijou as faces dela, delicadamente, e pegou-lhe a mão, levando-a para a casa na rua Waller.

Havia umas trinta ou quarenta pessoas morando lá, a maioria de roupa indiana em tons de arco-íris, embora também houvesse outros de jeans remendados e trajes com penas e lantejoulas pregadas. Anne se sentiu como um passarinho feio com seus jeans e um velho suéter marrom de gola virada, que usara para a viagem, mas uma garota que a recebeu à porta ofereceu-lhe um vestido emprestado e de repente ela se viu com uma roupa de seda rosa desbotada. Era de uma loja barata da rua Divisadero e ela enfiou os pés em sandálias de borracha, soltou os cabelos, prendeu duas flores neles, e de tarde já se sentia e parecia membro do grupo. Comeram um prato indiano e alguém tinha feito um pão; ela tirou umas baforadas do baseado de alguém e se deitou num saco de dormir sentindo-se cheia, quente e contente, olhando para os novos amigos, sentindo um calor e uma aceitação que nunca sentira. E sabia que seria feliz ali. Era toda uma vida de distância da casa em Beverly Hills, as ordens zangadas do pai contra Lionel... as perfídias das pessoas que ela conhecia... a estupidez de Gregory... o egoísmo das gêmeas... a mulher que se dizia sua mãe, que ela nunca entendera... era ali o seu lugar, agora. Ali na rua Waller, com seus novos amigos.

E quando eles a iniciaram, três dias depois que ela chegou, tudo pareceu apropriado, certo e carinhoso. Foi um ato supremo de amor num aposento cheio de incenso, um fogo ardendo na lareira, e a alucinação a levou do céu ao inferno e de volta. Ela sabia que seria uma pessoa diferente quando acordasse de novo. Disseram-lhe isso quando ela comeu os cogumelos, seguidos por um pequeno comprimido de LSD absorvido por um torrão de açúcar. Custou um pouco a se apoderar da mente dela, mas quando isso se deu, havia ali espíritos amigos e um quarto cheio de gente que ela conhecia. Depois, houve aranhas e morcegos e coisas apavorantes, mas eles seguraram-lhe as mãos enquanto ela uivava e gritava.

E quando sentiu o corpo dilacerado de dor, eles lhe cantaram canções e a ninaram como a mãe nunca fizera... nem Lionel jamais lhe fizera uma coisa assim... ela atravessou um deserto de quatro e então afinal chegou a uma floresta encantada, cheia de duendes, e sentia suas mãos sobre si e sentia os espíritos novamente cantando para ela. Então, os rostos que tinham passado a noite pairando sobre ela, esperando que ela se libertasse, avançaram para ela. Já se sentia purificada e sabia que era parte do grupo. Os espíritos do mal tinham sido mortos, a tinham deixado e ela agora estava pura... agora poderiam completar o ritual com ela Com brandura, tiraram-lhe as roupas e a lavaram com óleo, cada qual fazendo uma massagem suave em sua carne tenra... ela fora longe, naquela noite, e partes de seu corpo estavam doloridas, mas as mulheres lhe faziam massagens delicadas, aprontando-a então, penetrando-a devagar e estirando-a, enquanto ela gritava. A principio, ela lutou contra elas, mas elas lhe sussurravam tão brandamente, e ela agora ouvia a música. Elas a fizeram beber alguma coisa quente e lhe puseram mais óleos, enquanto suas guardiãs faziam massagens em seu lugar mais secreto e ela se contorcia sob as mãos delas, uivando de agonia e prazer, e então vieram os seus novos irmãos, os espíritos que agora lhe pertenceriam, para substituir os outros que ela deixara, e cada um se ajoelhou ao seu lado, enquanto as irmãs cantavam baixinho e, um por um, os irmãos a penetraram, enquanto a música ia ficando mais forte e os pássaros voavam ao alto... por vezes havia pontadas agudas de dor, e ondas de êxtase e vezes e mais vezes eles penetravam nela e a prendiam e a deixavam, até que as irmãs voltaram, beijando-a e tocando-a bem, bem no fundo até que ela não sentiu mais nada, nem ouviu som algum. A música parara. O quarto estava escuro. Sua vida passada desaparecera. Ela se mexeu, pensando se teria sido tudo um sonho, mas quando se sentou e olhou em volta, ela os viu ali, esperando por ela. Ela estivera fora de si por muito, muito tempo, e se espantou ao ver quanta gente estava ali. Mas reconheceu cada um deles e, chorando, estendeu os braços e eles foram ter com ela, abraçando-a. Ela era uma mulher em toda sua plenitude e a sua irmandade estava garantida. Eles lhe deram outro comprimido de ácido, como recompensa, e dessa vez ela se alçou com eles, como parte do rebanho, vestida com um vestido branco e quando os irmãos e irmãs a procuraram de novo, ela dessa vez fazia parte deles, beijando-os também... tocando nas irmãs como elas a haviam tocado. Agora ela possuía esse privilégio, explicaram-lhe, e era uma expressão do amor dela por eles e deles por ela. Nas semanas seguintes, ela participaria muitas vezes desse ritual e quando aparecia uma cara nova na casa da rua Waller, era Flor do Sol quem a recebia, com os cabelos louros cheios de flores e seu sorriso suave... Flor do Sol, que um dia fora Anne... vivia sobretudo de LSD, e nunca se sentira tão feliz na vida.

E três meses depois que se juntara a eles, um dos ir mãos a tomou para ser sua. Chamava-se Moon, e era alto, magro e lindo, com cabelos prateados e olhos brandos. Ele a levava para a cama com ele todas as noites e a ninava e, de certo modo, lhe lembrava Lionel. Ela ia à toda parte com ele, e muitas vezes ele se virava para ela com seu sorriso místico.

- Flor do Sol... venha para mim... - Ela agora sabia a magia do que agradava a ele, era quem melhor sabia aquecer as poções de ervas que ele bebia, quando lhe devia levar as drogas, quando tocar na sua carne. E agora, quando chegava um novato e eles realizavam o ritual, era Flor do Sol quem primeiro se aproximava das irmãs, despejando o óleo sobre elas, delicadamente, dando-lhe as boas-vindas à sua tribo e deixando que seus dedos ágeis as preparassem para o resto da tribo. Moon sempre se orgulhava muito dela, e por causa disso lhe dava mais comprimidos de ácido. Era estranho como a vida agora era diferente do que fora. Era cheia de cores vivas e pessoas que ela amava, pessoas que também a amavam. Não restava nada da feiúra solitária de sua vida. Ela se esquecera de todos eles. E quando, na primavera, Moon tocou em sua barriga e lhe disse que estava grávida e não poderia mais participar do ritual, ela chorou.

- Não chore, amorzinho... você tem de se preparar para um ritual muito maior do que esse. Estaremos todos ali com você quando esse raiozinho de luar traspassar os céus e te chegar, mas até então... - Ele reduziu o ácido para ela, embora a deixasse fumar toda a maconha que quisesse. E riu dela, ao ver que isso aumentava seu apetite. O bebê estava começando a aparecer num dia em que, andando pela Hight Street, ela viu um rosto que sabia que reconhecia, do passado, mas não tinha certeza de quem fosse. Ela voltou para Moon, na casa da rua Waller, com um ar pensativo.

- Vi uma pessoa que conheço.

Aquilo não o preocupou muito. Todos eles viam pessoas que conheciam, por vezes, na mente e no coração, e de vez em quando de modos mais concretos. A mulher e o filho dele tinham morrido num acidente de barco pouco antes de ele sair de casa, em Boston, e ir para lá. Ele os via mentalmente muitas vezes, especialmente durante o ritual. O fato de Flor do Sol ver alguém que ela conhecesse agora não o espantou em nada. Era sinal de que ela estava passando a um estágio mais elevado e isso lhe agradava. Aquele filho, que em parte era dele, a elevaria mais ainda antes de nascer.

- Quem era, filha?

- Não sei bem. Não me lembro do nome dele. - Na noite da véspera ele a deixara tomar um dos raros comprimidos de ácido que lhe permitia, e o nome Jesus estava ocorrendo à sua cabeça, mas ela estava certa de que não era isso.

Moon sorriu para ela. Depois poderia tomar mais cogumelos e ácido, mas tinha de permanecer pura para aquela criança que viria: poderia tomar apenas o suficiente para se manter num estado iluminado. Mas não se podia alçar alto demais agora, para não assustar a criança. E, afinal, aquele bebê pertencia a todos eles. Todos tinham participado naquilo, os irmãos e as irmãs. Moon tinha certeza de que fora concebido a primeira noite, quando ela fora o centro do ritual. A criança seria especialmente abençoada e quando ele lhe lembrou isso, o nome John lhe veio à cabeça, claramente, e aí de repente ela se lembrou dele.

 

- Tem certeza? - Lionel olhou para ele, sem acreditar. John já fizera isso duas vezes. Os dois tinham largado os estudos, três meses antes, para desespero geral, e tinham ido a San Francisco, procurar Anne. Ward se recusara a saber disso por Faye, e Bob Wells estava com medo de que eles estivessem usando aquilo como pretexto para largar os estudos, irem para San Francisco e se meterem com os homossexuais que lá viviam tão livremente.

Mas Lionel insistia em dizer que Anne iria para lá. Era um refúgio para os garotos que fugiam de casa e, embora ele não dissesse isso aos pais, tinha certeza de que os fugitivos poderiam viver lá anos sem serem reconhecidos ou entregues. Eram milhares, morando apertados em apartamentos pequenos, ou como formigas nas casas de Haight- Ashbury, casas pintadas numa orgia de cores, com flores, tapetes, incenso, drogas e sacos de dormir por toda parte. Era um lugar e um período que nunca mais voltariam e Lionel sentia instintivamente que Anne estava fazendo parte daquilo. Sentira isso desde o momento em que chegara lá. Era apenas uma questão de encontrá-la, se conseguissem. Ele e John vasculharam as ruas durante meses, sem sucesso, e não lhes restava muito tempo. Tinham prometido voltar para a universidade até junho, para a sessão de verão, para compensar o tempo perdido.

- Se vocês não a encontrarem dentro de três meses - dissera Bob Wells -, vão ter de desistir. Não podem procurar a vida toda. Ela poderia estar em Nova York, ou Havaí, ou Canadá. - Lionel, porém, sabia que estava enganado. Ela iria para lá, em busca do amor que sentia nunca ter recebido deles. E John concordava com ele, e agora estava certo de a ter visto andando, atordoada, perto de Ashbury, embrulhada num lençol roxo, com uma coroa de flores nos cabelos, os olhos tão vidrados que ele quase se perguntou se ela o tinha visto, de todo. Mas por um instante, apenas um instante, ele teve a certeza de que ela sabia quem ele era, e aí ela passara adiante. Ele a seguira até uma casa decrépita que parecia abrigar toda uma colônia de gente que obviamente era drogada e fugitiva. O cheiro de incenso se podia sentir da rua, e devia haver vinte deles, na escada, entoando um canto indiano, de mãos dadas, cantando e rindo baixinho e acenando para os amigos. E, quando ela chegou à escada, separaram-se como o mar Vermelho para ela, ajudando-a a subir a escada no meio deles, enquanto um homem grisalho esperava-a à porta e depois a carregava para dentro, enquanto John ficava olhando. Foi a coisa mais estranha que ele já vira e tentou explicar a Lionel, descrevendo-a de novo.

- Realmente, parece ser ela. - No entanto, as outras que John encontrara também pareciam ser ela. Todos os dias eles se separavam e andavam por Haight-Ashbury, procurando-a.

Se estivesse ali, era de espantar que ainda não a tivesse encontrado. E de noite voltavam para o quarto de hotel que tinham tomado com o dinheiro que Faye emprestara a Lionel. Em geral, comiam um hambúrguer nalgum lugar sossegado e nunca iam a um bar de viados. Mantinham-se isolados. E de manhã, recomeçavam tudo.

Era um trabalho de amor como Faye nunca vira igual. Ela fora até lá de avião várias vezes para ajudar nas buscas deles, mas, como Lionel afinal explicou, ela só fazia atrapalhar. Ela se destacava naquele mundo de hippies, suas blusas eram engomadas, as jóias, reduzidas a um mínimo, ainda eram em demasia, seus jeans eram limpos demais. Ela parecia ser exatamente o que era, mãe de uma fugitiva de Beverly Hills à procura da filha e eles fugiam dela como o diabo da cruz. Por fim, Lionel lhe dissera francamente:

- Vá para casa, mãe, nós ligamos se virmos alguma coisa. Prometo. - Ela então voltara, para trabalhar num filme. Insistira com Ward para tomar um co-produtor nesse filme, pois ele estava bebendo muito, e as coisas entre eles estavam indo de mal a pior. Ele continuava a se recusar a sequer falar com Lionel. E quando este telefonou a Faye para contar o que tinham visto no Haight-Ashbury, no momento em que Ward ouviu a voz dele, desligou o telefone. Aquilo dificultava enormemente as comunicações entre Lionel e Faye, e Faye ficou furiosa. Ela acabou instalando um telefone separado, pelo qual Lionel lhe pudesse falar mas notou que os outros filhos também o evitavam, tinham medo do que o pai faria se falassem com ele. As gêmeas nunca atendiam ao telefone pelo qual Lionel lhe falava, como se Ward pudesse saber se falassem com ele. Eles tinham acreditado no que o pai dissera e Lionel estava abandonado por todos, menos Faye, que o amava mais que nunca, por compaixão, a sua própria solidão e pelo que ele estava fazendo para encontrar Anne. Ela falava com Mary Wells sempre que podia, exprimindo sua gratidão pela ajuda de John. Eles pareciam ter aceito a situação dignamente. Amavam o filho e também aceitavam o dela. Era muito mais do que se poderia dizer de Ward, que nunca mais falara com os Wells, desde a manhã em que Bob o expulsara da casa, no dia em que ele lhes dera a notícia.

E as coisas não estavam mais as mesmas entre Ward e Faye, tampouco. Ele chegara a ir ao Campeonato Nacional com Greg, a despeito da fuga de Anne. Insistia em dizer que a polícia acabaria por encontrá-la e quando a encontrassem ele a castigaria e a prenderia durante os dez anos seguintes, se isso fosse preciso para lhe dar um pouco de juízo. Mas parecia que ele não era mais capaz de enfrentar coisa alguma, e se foi com Greg e divertiu-se muito no Campeonato. Pareceu se espantar ao saber que a polícia não a tinha localizado, ao voltar, e nas semanas seguintes começou a andar de um lado para outro, de noite, e atender ao telefone no momento em que tocava. Por fim, entendeu que o caso era sério e a polícia lhes dissera francamente que era possível que a filha estivesse morta, ou, se estivesse viva, eles poderiam nunca mais a encontrar. Aquilo foi como se perdessem dois filhos ao mesmo tempo e Faye já sabia que nunca se iam refazer do golpe. Para aliviar o sofrimento, ela se enterrara no trabalho, mas de nada adiantara, e passava todo o seu tempo de folga com as gêmeas, quando estavam livres. Mas elas também estavam sentindo. Vanessa estava mais quieta do que jamais fora, o seu grande romance acabara pouco depois de começar, e até Valerie estava mais sossegada. Quase nem usava mais maquiagem para sair, as minissaias eram menos propositadamente escandalosas, o seu guarda-roupa não aumentara. Era como se todos estivessem esperando saber de alguma coisa que poderiam nunca chegar a saber e a cada dia que se passava Faye tinha mais medo de que a sua caçula tivesse morrido.

Ela começou a freqüentar a igreja, coisa que não fazia, havia anos, e não dizia nada a Ward quando ele não ia dormir em casa. A princípio, ele chegava em casa à uma ou duas horas da manhã, quando os bares fechavam, e era fácil saber onde tinha andado. Mas, depois, ele começou a não voltar mais para casa. Da primeira vez que aconteceu, Faye teve certeza de que ele tinha morrido. Mas quando ele chegou às seis da manhã, nas pontas dos pés e com o jornal debaixo do braço, havia no rosto dele uma expressão que a deixou assustada. Não estava bêbado, nem de ressaca; não deu qualquer explicação e, de repente, ela se lembrou de um nome no qual não pensava, havia anos... Maisie Abernathie... lembrou-se de quando Ward fora com ela para o México, por cinco dias, catorze anos antes. Faye sabia que evidentemente não era a mesma garota, mas era a mesma expressão na fisionomia dele... o mesmo jeito de evitar o olhar dela, e ela de repente se retraiu dele por completo. Ele passou a ir em casa cada vez menos, mas ela estava tão aturdida pelo sofrimento e a tragédia que não sentia mais nada. Mal conseguia se agarrar ao seu juízo. Enchia os dias com o trabalho, as noites, com a culpa e nos intervalos fazia o que podia pelas gêmeas, mas toda a família se tinha desintegrado em breves momentos.

Por fim, ela ouviu os mexericos na MGM. Ele estava de caso com a estrela de um importante programa de TV vespertino e, segundo os boatos, o caso era sério. Ela torceu para que não aparecesse nas colunas, para ela não ter de dar explicações às meninas. Já estava com problemas suficientes nas mãos, naquele momento, e quando achava que não agüentaria mais, Lionel lhe telefonou à noite. Naquela tarde ele saíra com John e seguira a garota que John tinha tanta certeza de ser Anne e ele agora também estava certo de que era. Ela aparentava estar drogada, inteiramente atordoada e mais pesada do que era, embrulhada no que parecia ser um sari roxo, mas ambos tinham certeza de que era Anne.

As lágrimas escorreram pelas faces de Faye, ao ouvir aquilo. - Tem certeza?

Lionel disse que tinham quase toda a certeza, tanto quanto poderiam ter. Ela estava com um ar tão aturdido e tão embrulhada na sua roupa estranha, rodeada pelos membros de sua seitazinha esquisita, que fora difícil chegar perto para ver se era mesmo Anne. Não podiam propriamente gritar "Anne" e esperar que ela lhes acenasse.

E Lionel não queria despertar as esperanças da mãe e depois desiludi-la.

- Não, não temos toda a certeza, mãe. E queremos saber o que você quer que a gente faça agora.

- A polícia disse que os avisássemos. - E se não for ela?

- Parece que isso acontece sempre. Ela provavelmente há de ser outra fugitiva que eles devem estar procurando. Eles disseram para não deixar de avisar se pensarmos que sabemos onde ela está, e lá há um padre Paul Brown, que conhece todos os garotos de lá. Ele os ajuda sempre. - Os rapazes sabiam quem era e concordaram em entrar em contato com ele, além da polícia. - Acha que devo ir para aí hoje à noite? - Ela não tinha mais o que fazer, agora, quando largava o trabalho. Nunca via Ward.

Ele quase nem mantinha as aparências de ir em casa de noite, e parecia que estava esperando que ela o confrontasse, mas ela não tinha forças para tal. Pensava se os boatos eram verdade, se era sério. Parecia incrível eles se divorciarem depois de tantos anos, mas agora parecia muito provável... se ao menos conseguissem encontrar Anne... e levar Lionel de volta à universidade, primeiro... aí ela podia tratar do caso de Ward... e um divórcio... naquela noite o seu telefone particular para Lionel tocou à meia-noite e ela viu que só podia ser ele. Ward nunca mais avisava para dizer que não ia dormir em casa e ligaria para o telefone geral.

Ela pegou o fone e prendeu a respiração. - Li?

- A polícia também acha que é ela. Nós a mostramos a eles hoje. Eles têm uns tiras disfarçados trabalhando nos grupos de entorpecentes lá, e procurando os fugitivos.

E foram falar com o padre Brown. Parece que o nome dela é Flor do Sol. Ele sabe quem ela é, mas não acha que ela seja tão mocinha quanto Anne. - Anne a essa altura estaria com quatorze anos e meio, mas sempre parecia mais velha do que era, como todos sabiam, especialmente agora. Ele também não contou a Faye o resto do que o padre Brown dissera, que ela estava vivendo numa seita dada a estranhas práticas sexuais e eróticas, com sexo em grupo. Todos já tinham sido expostos várias vezes, mas parecia impossível provar o que acontecia lá, ou que alguns membros de fato fossem menores. Todos diziam que tinham mais de 18 anos e era impossível provar que não. O padre também dissera que havia muito LSD nas coisas que eles faziam, bem como "cogumelos mágicos" e mescalina também. E o pior de tudo era que aquela garota que eles estavam seguindo estava grávida. Mas ele não ousou contar isso a Faye, por enquanto. Se fosse a garota errada, não adiantava preocupá-la com isso. - Mãe, quer que ela seja presa, ou apenas interrogada?

Eles nunca tinham chegado tão perto, e Faye sentiu seu coração apertado, pensando na filha. Havia cinco meses que não a via e só Deus sabia o que lhe tinha acontecido, nesse ínterim. Ela não ousava pensar a respeito, e obrigou-se a se concentrar sobre o que Lionel perguntara. - Não podem apenas levá-la embora e deixarem vocês olharem bem para ela?

Lionel suspirou. Já tinha falado de tudo isso com a policia. Podem, se for mesmo a Anne. Mas se não for, e se a garota não for fugitiva, e for maior, ela os pode processar por prisão ilegal. A maioria desses hippies não faria isso, mas a polícia é bem cautelosa nesse ponto. Acho que já tiveram más experiências. - Ele parecia tão cansado que ela teve pena dele e Faye suspirou. Queria ter Anne de volta, a todo preço.

- Diga para fazerem o que for preciso, amor. Temos de saber se é ela.

Ele concordou.

- Vou me encontrar com os agentes secretos às dez da manhã. Vão cercar a casa e segui-la de novo. Se conseguirmos falar com ela, falaremos. Se não, vão prendê-la por estar sob a influência de entorpecentes, ou coisa assim.

Faye pareceu ficar chocada. - Ela está tomando drogas?

Lionel hesitou e olhou para John. Ambos estavam fartos de Haight-Ashbury, da imundície, das drogas, os refugos, as coisas escusas, os hippies. Já estavam a ponto de desistir, mas agora... se fosse ela...

- É, mãe, parece que sim. Se for Anne. Não está muito bem.

- Ela está machucada? - Havia uma tal angústia na voz de Faye que ele sentiu uma pontada no coração.

- Não. Só muito doida. E está morando num lugar bem esquisito. É um tipo de seita oriental.

- Ah, Cristo... - Talvez ela tivesse raspado a cabeça. Faye nem podia imaginar. Tudo aquilo estava além de sua compreensão, quando ela fora lá antes ter com Lionel e John para procurar a filha. Ela chegara a se sentir aliviada quando eles a mandaram embora. Mas agora queria voltar. De repente, sentiu que podia ser Anne, dessa vez, e também queria estar presente. Ainda a via como era no dia em que nascera. Era difícil pensar que isso já se passara ha tanto tempo.

- Nós ligamos amanhã, mãe. Assim que soubermos alguma coisa. - Vou passar o dia todo no escritório. - E depois: - Devo fazer uma reserva num avião da tarde, por via das dúvidas?

Ele sorriu.

- Agüenta a mão. Ligo para você de qualquer maneira, seja Anne ou não.

- Obrigada, amor. - Era o filho mais querido que uma mãe poderia ter. E daí, se era homossexual? Era melhor filho do que Greg jamais fora, embora ela amasse a ambos.

Mas Greg não tinha a sensibilidade dele. Nunca teria largado os estudos por três meses para procurar Anne. Aliás, quando estivera em casa para a Páscoa, dissera que achava que Lionel estava pirado. Mas Ward o fitara furioso, no ato, por ter pronunciado aquele nome proibido, e ela tivera de se controlar para não espinafrá-lo na frente de Greg. Ela já não agüentava mais e talvez fosse até um alívio se divorciar dele. Mas agora não podia pensar nisso. Só podia pensar em Anne.

Ficou ali deitada acordada, depois de desligar, pensando em Anne quando menina, as coisas que ela fazia, as coisas engraçadas que dizia, como ela se escondia a maior parte do tempo, como se agarrava a Lionel... O momento do nascimento dela fora muito infeliz, Faye se dava conta disso agora, mas isso não era culpa de ninguém, O desastre semanas depois de seu nascimento, e Faye estava ocupadíssima, vendendo a casa, as antiguidades, as jóias, fazendo a mudança para aquela casinha horrorosa em Monterey Park, e depois Ward abandonando-os, e ela tentando sustentar a todos sozinha. Anne se perdera naquela confusão toda. Os outros tinham idade suficiente  para não precisarem tanto dela, e antes disso ela lhes dedicara todo o seu tempo. Mas não a Anne... nunca a Anne... ela passara a trabalhar desde então e Anne ficara embaralhada com os outros. Faye agora se lembrava de momentos em que a ama a procurara, meses depois do nascimento de Anne, perguntando se ela queria pegar a menina, ou lhe dar a mamadeira, e Faye lhe dizia: "Agora não... não tenho tempo." Ela a afastara vezes e mais vezes e Anne pagara o pato. Como dizer a uma menina assim que ela de fato gostava dela, sempre gostara, mas que não tivera tempo... que direito tinha de ter um filho, se não tinha tempo para ele? E, no entanto, quando Anne fora concebida, a vida deles era tão fácil e ela tinha todo o tempo do mundo. Má cronometragem, pouca sorte... má mãe, disse ela consigo, vezes e mais vezes, deitada na cama grande e vazia, pensando em Anne, e perguntando-se se seria tarde, se Anne a odiaria o resto da vida. Era possível, ela agora reconhecia isso. Havia coisas que nunca mais podiam ser consertadas como o seu relacionamento com Ward... e com aquela filha... e o dele com Lionel... a trama de sua família parecia ter sido rompida inexoravelmente, nos últimos meses, e aquilo lhe pesava como chumbo, quando se levantou às seis da manhã, sem ter dormido nada a noite toda. Mas não conseguia dormir agora, pensando se a menina que Lionel vira era mesmo Anne.

Ela se levantou, tomou uma chuveirada e se vestiu; esperou que as gêmeas fossem para o colégio e depois foi para seu escritório na MGM. Ficava espantada ao ver que Ward nem procurava manter as aparências. Não lhe telefonava nem tentava explicar onde passara a noite. De vez em quando, ia em casa e ela não lhe perguntava nada. E agora, quando aparecia, dormia no quarto de Greg e eles não se falavam mais.

Naquela manhã, ela o avistou passando pelo corredor, mas não falou com ele. Ainda não queria dizer nada sobre Anne. De nada adiantava, até ter certeza de que ela fora encontrada, e ainda não era nada certo. Até o momento em que ela recebeu o telefonema logo depois do meio-dia e seu coração só faltou parar. A secretária lhe disse que Lionel estava na linha e ela apertou depressa o botão de seu aparelho. - Li?

- Está tudo bem, mãe, sossegue. - Ele estava tremendo da cabeça aos pés, mas não queria que ela soubesse disso. Tinha sido muito duro conseguir tirá-la daquele antro, mas a polícia tratara de tudo e ninguém se machucara, nem mesmo Anne. Ela estava meio aturdida, mas nem pareceu aborrecer-se por ser levada de lá, embora o velho ficasse. Ele brandira um cajado para eles, dizendo que os deuses iam puni-los por lhe roubarem a filha. Mas ela deixara que a levassem embora e sorrira para Lionel, e agora parecia saber quem ele era. Mas também estava muito alta, de drogas, e era possível que quando voltasse a si ficasse furiosa. Eles estavam preparados para isso. Os tiras estavam acostumados a isso e havia um médico de prontidão.

Faye prendeu a respiração, e aí suas palavras explodiram no telefone.

- É Anne? - Ela fechou os olhos.

- É, sim, mãe. E está bem. Mais ou menos... - Mas, afinal, a haviam encontrado. Ele olhou para John de novo. Aqueles últimos meses tinham formado um laço entre eles que, sabiam, duraria o resto de suas vidas. Era como se agora estivessem casados. Mas Lionel obrigou-se a pensar na mãe, do outro lado do fio. - Ela está bem, mãe. Estamos na Bryant Street, com a polícia, e eles farão a prisão preventiva dela em minha custódia, se você quiser Vou levá-la para casa daqui a uns dias, depois que ela puder se readaptar.

- Readaptar ao quê? - Ele tinha muita coisa a dizer a ela, coisas que ainda não lhe podia contar. Pelo menos, pelo telefone. Seria preciso prepará-la.

- Ela esteve longe de nós por muito tempo, mãe. É preciso um pouco de adaptação para se acostumar de novo ao mundo real. Ela tem levado uma vida muito diferente, nesses últimos meses. - Ele es tava procurando dizer aquilo com tato, mas esperava que ela nunca ouvisse as histórias que a polícia lhe contara. Conheciam bem a seita, e seus rituais. Ela teria morrido se soubesse tudo pelo que Anne passara embora Anne não parecesse ter sofrido muito com isso. Aliás, Lionel achava que ela estava com um ar muito mais feliz do que antes, só que a maior parte provavelmente se devia às drogas e ela provavelmente não ficaria nada feliz quando o efeito acabasse. A polícia falara na possibilidade de acusá-la do uso de entorpecentes, mas já que ela só tinha quatorze anos e provavelmente fora coagida, resolveram não fazer acusação alguma. Queriam saber se os Thayer queriam processar os membros da seita por seqüestro e sedução, e Lionel sabia que os pais iam ter de decidir isso.

Faye ainda estava tentando decifrar o que o filho lhe estava contando.

- Ela está drogada?

Ele hesitou, mas era preciso dizer a verdade. - Eu diria que sim.

- Drogas fortes? Como heroína... - Faye empalideceu. A vida dela estaria liquidada se fosse esse o caso, as pessoas nunca se curavam da heroína, mas Lionel logo a tranqüilizou.

- Não, não, é mais a maconha e provavelmente LSD e outros alucinógenos. - Ele estava ficando muito entendido em tudo aquilo e Faye suspirou.

- A polícia vai detê-la?

- Não. Achei melhor levá-la para o nosso hotel e deixar que ela tome um banho e descanse... - (isto é, volte a si...).

- Vou para aí no primeiro avião.

Lionel cerrou os dentes. Queria desesperadamente fazer com que ela melhorasse dos efeitos tóxicos antes que Faye chegasse, e o "primeiro avião" não lhe dava muito tempo, e havia outra coisa que Faye teria de saber, agora estava bem visível.

- Mãe, há uma coisa que você deve saber... - Instintivamente, ela sabia que havia outra coisa que ele não lhe estava contando.

Anne se machucara... alguma coisa...

- Mãe?

- O que é, Li?

- Ela está grávida, mãe.

- Ah, meu Deus. - Nisso, Faye rompeu em prantos. - Ela tem catorze anos.

- Eu sei. Sinto muito, mãe... - Pegaram o rapaz?

Ele não teve coragem de lhe dizer que a criança provavelmente fora gerada não por um "rapaz", mas pelos trinta e tantos membros masculinos da seita. Mostrou-se vago e disse que teriam de deixar isso com Anne, mas foi difícil para ela conseguir se controlar depois disso, e ela rabiscou depressa no bloco do escritório "Ligar para o dr. Smythe", ele providenciaria um aborto para ela. Ele tomara conta da estrela de um de seus filmes no ano anterior e, se não quisesse tratar de uma menina da idade de Anne, ela a levaria a Londres ou á Tóquio. Não teria de sofrer isso até ao fim. Provavelmente fora estuprada. Sem ela saber por quê, a idéia de que Anne estivesse grávida era mais terrível do que todo aquele caso horrível, e ela teve de se forçar á dar graças por terem encontrado a menina. Ainda estava chorando, quando desligou o telefone, e enterrou o rosto nas mãos, por um momento, antes de respirar fundo, assoar o nariz e ir pelo corredor à procura de Ward. Ele tinha de ser informado. Anne também era filha dele, por menos que tivessem em comum agora. Ela pensou de que modo fariam a divisão de suas vidas profissionais. Até então, continuavam como antes, mas também isso não poderia continuar para sempre. E agora que Anne fora encontrada, Lionel voltaria para casa. E ela não tinha mais pretextos  para não enfrentar Ward. Ela parou do lado de fora do escritório dele e a secretária se levantou, nervosa.

- O sr. Thayer está aí? - Mas ela sabia que estava, ela o tinha visto minutos antes.

A secretária olhou para ela, aflita, deixou cair um lápis no chão e depois tentou desviar o olhar.

- Não... não está, não...

- É mentira. - Faye não estava disposta a escutar besteiras de ninguém. - Acontece que sei que ele está. - Era um palpite, mas deu certo.

- Ele não... bem, está, mas pediu para não ser incomodado. - Trepando de novo no sofá do escritório? - Os olhos de Faye estavam em fogo. Ela sabia perfeitamente o que estava acontecendo, e ainda por cima nos escritórios deles. Ele tinha um topete. - Não pensei que usássemos tanto assim o sofá para o elenco, aqui. - Ela avançou para o gabinete dele e a secretária soltou uma exclamação quando Faye se virou para ela. - Não se preocupe, digo a ele que eu a venci à força. - E dizendo isso, abriu a porta e entrou. A cena com que deparou foi razoavelmente decorosa. Ele e Carol Robbins, estrela da novela de matinê, Follow My World, estavam ambos vestidos e conversando, cada um de um lado da secretária, mas ele estava segurando a mão dela e tudo neles sugeria que eram muito íntimos. Ela era uma loura bonita de pernas compridas e peitos enormes. Fazia papel de enfermeira no programa e os homens adoravam ver os botões da roupa dela quase estourarem. Faye, porém, olhou diretamente para Ward e ele largou a mão da moça e olhou para a mulher, nervoso. Ela nem tomou conhecimento da presença da outra e ficou olhando diretamente para ele.

- Anne foi encontrada. Achei que você gostaria de saber.

Ele arregalou os olhos e era evidente que ele se interessava muito. Por um momento, esqueceu-se inteiramente da garota na sala e só olhou para a mulher.

- Ela está bem?

- Está. - Ela não contou da gravidez. Não queria que a moça soubesse, pois Hollywood inteira saberia, até à hora do jantar. - Está ótima.

- Quem a encontrou? A polícia? Faye sacudiu a cabeça.

- Lionel. - Havia um ar de triunfo em seus olhos, ao ver o rosto dele ficar tenso. - Vou para lá daqui a duas horas. Se puder, eu a trago para casa hoje à noite. Pode passar por lá para vê-la amanhã, depois que ela dormir um pouco.

Ele pareceu se espantar com o que ela falou.

- Há algum motivo para eu não ir para casa hoje à noite? Faye sorriu um sorriso amargo, e por fim permitiu que seus olhos pousassem sobre a garota peituda diante  dele.

- Isso é lá com você. Parece-me que amanhã dá bem tempo. - Ela então tornou a olhar para ele e ele corou, sob sua cabeleira branca. Olhando para ele, ela viu o quanto ele envelhecera naqueles últimos seis meses. Ele ia fazer cinqüenta anos, mas parecia mais velho. Passara os cinco últimos meses farreando com aquela mulher e bebendo muito, antes disso tivera dois choques graves. Tudo isso o derrubara, mas ela não sentia pena dele. Também envelhecera, e ele não fizera nada por ela. Ele a abandonara e procurara se consolar com aquela pequena. Ela quase sentia pena de não ter feito também algo de semelhante, mas estava preocupada demais com Lionel e Anne. Teria gostado de ter um caso, naquele momento. Mas agora teria bastante tempo para isso e, aos 46 anos, não estava ainda inteiramente senil. Ela então olhou para ele com um desprezo total. - Digo a Anne para te ligar quando voltarmos, se é que ela vá querer falar. - Ele pareceu ficar horrorizado diante do tom da voz e do jeito de olhar dela, e olhou nervoso para a loura roliça, enquanto Faye saía do escritório e fechava a porta. Lá fora, a secretária dele estava rasgando um lenço Kleenex, esperando que ele saísse e a matasse, mas Faye parecia muito calma quando saiu, cumprimentou-a e continuou pelo corredor. Tinha de estar no aeroporto em uma hora e estava pondo na bolsa uma escova de dentes que guardava na secretária quando Ward entrou na sala, de supetão.

- O que é que você quer dizer com toda essa merda? - Estava todo vermelho e ela não podia adivinhar que ele tinha acabado de dizer a Carol para ela ir para casa.

Ela o deixara aos prantos, acusando o de lhe dar o fora, coisa em que ele estava pensando seriamente. Ao que soubesse, ainda estava casado com Faye, se bem que ela preferisse se esquecer disso. E aquele caso começara supostamente para ele se "divertir", e nas últimas semanas ele perdera o controle.

Faye olhou para ele, sem interesse. Parte era representação, mas parte era de verdade.

- Não tenho tempo para falar com você. O meu vôo é às três horas. - Bom, então podemos conversar no avião. Vou com você. - Não preciso do seu auxílio. - Os olhos dela estavam frios e tristes.

- Nunca precisou. Mas ela também é minha filha. - Faye, no momento, não teve resposta para aquilo.

Afinal, ela olhou para ele, não podendo resistir à vontade de feri-lo de novo; ele já a magoara tanto, nos últimos tempos...

- Vai levar a sua amiguinha? Ele olhou para a mulher.

- Vamos ter de conversar a respeito disso, um dia desses. - Ela também sabia disso, e concordou com a cabeça, mas eles não estavam pensando exatamente a mesma coisa.

- Eu queria resolver os problemas de Anne e Lionel, antes de tratar disso com você. Mas imagino que daqui a umas semanas tudo voltará ao normal, tanto quanto possível. Aí vou ter tempo de falar com um advogado.

- Você já se resolveu? - Parecia estar deprimido, mas não espantado. Não fizera nada para impedir que ela resolvesse aquilo e agora provavelmente já era tarde. Sentia-se  derrotado pela vida. O casamento liquidado, o filho era homossexual, a filha fugira de casa e só Deus sabia o que lhe teria acontecido desde então. Era arrasador contemplar aquilo tudo, mas Faye parecia não se ter abalado. Ela era notável. Nunca se afogava. Continuava a nadar até alcançar a margem de novo e parecia que era o que tinha acontecido. Ele ficava contente por ela. - Sinto que tenha chegado a isso.

Ela falou com calma, se levantando. Estava pronta para partir - E eu também. E seria de supor que você também tivesse chegado a isso. Você nem telefona mais, inventando desculpas. Simplesmente não volta para casa, e pronto. Nem sei como é que ainda não levou suas roupas. Cada vez que chego em casa de noite, imagino que suas coisas não estejam mais lá.

- Nada chegou a esse ponto, Faye.

- Não vejo como você pode dizer isso. Você já saiu de casa: só que ainda não se deu ao trabalho de explicar. - Parecia errado estarem brigando, quando Anne acabava de ser encontrada. Deviam estar soltando gritos de alegria, só que agora havia tanta amargura entre eles... E eles se tinham evitado por tanto tempo...

- Eu não sabia o que te dizer, Faye.

- É o que parece. Você apenas saiu de nossas vidas.

Ele sabia que era verdade e era a segunda vez que fizera isso, mas não tinha a força que ela possuía. E aí aparecera Carol, e aquilo o fizera sentir-se homem de novo. Suavizou o golpe de ver o filho ser homossexual... não era mais um reflexo dele... ele estava ótimo... mas nisso, ele passara por cima dela. Agora via isso. Mas como explicar a ela? Não havia meios, e ela passou por ele, em direção à porta.

- Ligo para você assim que chegarmos.

Ward olhou para ela, encabulado.

- Eu também tenho uma reserva para o vôo das três horas. Imaginei que fosse o seu vôo.

- Não adianta irmos os dois. - Na verdade, ela não queria que ele fosse. Já tinha problemas demais, especialmente quando Lionel lhe dissera que Anne podia estar tomando drogas, e a gravidez, de que se teriam de livrar logo que possível. Não queria ter de aturar Ward se desculpando pelas besteiras que fizera. Não queria saber disso agora. Não era o momento. Olhou para ele, irritada, e ele implorou-lhe com os olhos.

- Não a vejo há cinco meses, Faye.

- Não pode esperar mais um dia? - Ele não se mexeu e ela olhou para ele e suspirou. Ele só estava tornando as coisas mais difíceis. De repente, ela pareceu resignar-se.

- Tudo bem. Tenho um carro do estúdio lá embaixo. - Ela se virou e saiu do escritório e ele a acompanhou. Ele não lhe disse uma palavra no caminho para o aeroporto e era evidente que ela não desejava falar com ele. Os lugares deles não eram juntos, no vôo, e quando o funcionário do balcão quis prestar um favor e mudar outras pessoas, ela agradeceu mas o dispensou. Quando tomaram o avião, separadamente, Ward não tinha dúvidas de que seu casamento com Faye estava acabado. E o diabo é que a outra mulher não era nada para ele. Fora apenas um meio de confirmar a sua própria masculinidade e de aliviar a dor, mas era tarde para tentar explicar isso a Faye. Ela concordou em tomar o mesmo táxi que ele para o hotel de Lionel, mas olhou bem nos olhos dele e lhe ditou as regras do jogo.

- Só quero deixar as coisas bem claras para você, Ward. Esses dois garotos dedicaram cinco meses das vidas deles para procurá-la. Desistiram de um período na universidade e foram procurá-la todos os dias. Se dependesse da polícia, ainda não saberíamos onde ela estava. Portanto, se você disser uma palavra desagradável a qualquer dos dois, nunca mais vou vê-lo e hei de processá-lo por todo centavo que você tem, só para me desforrar. Se quiser um divórcio amigável, amigo, seja decente para com o seu filho e John Wells. Está bem claro? - Os olhos dela estavam duros como pedra e os dele tinham a mesma expressão de pesar que ela vira neles o dia todo. Ele estava parecendo um homem vencido, mas, quanto a ela, a culpa era só dele.

- E se eu não quiser um divórcio amigável?

- Então, nem tente ir para a cidade comigo, Ward.

Ela levantou o braço para chamar um táxi para si, e ele o puxou para baixo com mais força do que pretendia, mas agora estava desesperado.

- Não era isso que eu queria dizer. Por que você tem tanta certeza de que eu quero um divórcio? Nem sequer concordei com isso. Não disse nada a respeito disso.

Ela riu com amargura, lá fora do terminal aéreo.

- Não seja ridículo. Quase nem vi você, nesses quatro meses, você não vai dormir em casa e espera que eu continue casada com você? Deve me achar ainda mais tola do que sou. - Além disso, ele causara danos que, ao ver dela, nunca mais poderiam ser reparados.

- Não é você que é tola, Faye, eu é que sou.

- Concordo plenamente. Mas este não é nem o lugar nem o momento para falar sobre isso. - Ela olhou para ele com uma irritação desmedida. - Não sei mesmo para o que é que você veio.

- Para ver Anne... e conversar com você... faz tanto tempo, Faye...

- Não é por minha culpa.

- Sei disso. A culpa é minha. - Ele parecia estar perfeitamente disposto a assumir a culpa, como se afinal tivesse caído em si. Mas era tarde. Para ambos.

Ela então olhou para ele com ceticismo.

- O que é que houve, a sua enfermeirazinha de novela deu o basta hoje quando encontrei vocês no seu escritório?

- Não. Para dizer a verdade, eu é que dei. - Mais ou menos. Ela saíra de lá furiosa porque ele tinha dito que ia a San Francisco com Faye, e dissera que conversaria com ela quando voltasse. Mas tinha intenção de lhe dizer que estava tudo acabado entre eles, quer Faye quisesse ou não continuar casada com ele. A moça tinha 22 anos e ele estava começando a se sentir ridículo com ela. Estava tudo acabado. Tinha sido tolo e insensato, mas era disso do que ele estava precisando no momento.

Agora precisava era de Faye, e sabia que sempre precisara, mas ela estava tão fechada no seu próprio sofrimento que ele não conseguia mais alcançá-la. Durante algum tempo, eles não tinham tido nada para dar um ao outro, mas agora ele só queria uma outra chance - se ela lhe desse ouvidos, mas ela não estava dando qualquer mostra disso. Ela chamara um táxi, abrira a porta e o estava fitando.

- Você vem, Ward?

- Ouviu o que eu disse? Está acabado o romance com aquela mulher.

- Não me importa a mínima.

- Ótimo. É só para você saber como estamos.

- E só para você saber como estamos, Ward, estamos acabados. Fim de papo. liquidado. Está bem claro? - Ela deu o endereço ao chofer e se recostou no assento.

- Acontece que não concordo com você.

Ela estava tão furiosa que tinha vontade de dar-lhe um soco, mas teve de se controlar. Tentou abaixar a voz, para que o chofer não a ouvisse, e continuou a discutir com ele.

- Você tem uma audácia danada. Passa a metade do ano nos abandonando, cagando em cima de mim, fazendo um papel ridículo com uma mulher quase trinta anos mais moça do que você, e agora, magnânimo, resolve voltar. Pois vá se foder, Ward Thayer. Eu quero o divórcio. - Ele viu o chofer olhar pelo espelho retrovisor, mas Ward não fez caso dele.

- Quero continuar casado com você.

- Você é um filho da puta.

- Sei disso. Mas estamos casados há 21 anos e não quero dar o fora agora.

- Por quê? Você não hesitou em dar o fora há cinco meses. - Mas os dois sabiam por quê. O choque por causa de Lionel fora demais para ele. Ela sempre soubera disso, e agora sentia um pouco de pena dele.

- Você sabe o motivo daquilo.

- Não era desculpa para me largar.

- Eu não tinha outro meio de tornar a provar a minha virilidade. - Esse é um pretexto vil.

- Mas acontece que é verdade. - Ele olhou pela janela e depois de novo para ela. - Você nunca poderá saber o que foi aquilo, para mim.

- E agora? Você vai continuar a castigá-lo?

- Dou graças que ele tenha encontrado Anne. - Mas a voz dele contava a sua história.

- Mas você nunca há de perdoá-lo, não é?

- Nunca poderei esquecer o que ele é.

- Ele é seu filho, Ward. E meu.

- Para você, é diferente.

- Talvez. Mas eu o amo assim mesmo. Ele é um rapaz extraordinário.

Ward suspirou.

- Sei disso... nem sei mais o que sinto. Há tanto tempo que ando sofrendo, confuso, que agora não é fácil saber... e há Anne... - Faye franziu a testa, pensando no que Lionel contara. Pensou se deveria avisar Ward, se isso também seria um choque grande demais para ele.

Pela primeira vez, depois de meses, a voz dela estava branda quando falou com ele de novo.

- Lionel acha que ela andou tomando drogas. Ele olhou logo para ela, preocupado.

- Que tipo?

- Ele não sabe bem. Maconha, LSD...

- Imagino que poderia ser pior.

- E é. - Faye continuou. - E ela também está grávida. Ward fechou os olhos, depois os abriu e olhou para ela.

- O que é que nos aconteceu nesses seis meses? Toda a nossa vida se desmoronou.

Ela sorriu para ele, mansamente. O que ele dissera era verdade. Mas, com o tempo, eles haviam de consertá-la de novo, iam sair dessa. Já o tinham feito. Ele olhou para ela e segurou sua mão.

- Nós dois passamos por um inferno. - Ela não discordou dele, nem puxou a mão. Agora precisavam um do outro, nem que fosse nas próximas horas, e de repente ela ficou contente por ele ter ido com ela. Mesmo que nunca mais se vissem, depois.

O táxi seguiu para a cidade, enquanto ambos ficavam ali, perdidos em seus pensamentos, pensando na filhinha.

 

Chegaram ao San Marco Hotel pouco depois das cinco horas. Era um hotel pequeno e despretensioso, junto a Divisadero Street, e durante mais de quatro meses servira de casa para John e Lionel. Faye olhou para o prédio, um instante, antes de entrar depressa, Ward logo atrás. Ela sabia que o quarto deles era no terceiro andar, pela sua última viagem, e foi logo subindo pela escada, antes que o porteiro pudesse lhe dizer qualquer coisa. Ela agora não queria falar com ninguém. Só queria ver Anne. Chegou a esquecer que Ward estava com ela, quando bateu à porta, de mansinho. Um momento depois, Lionel apareceu. Olhou para ela pela fresta, pareceu vacilar e abriu a porta devagar. E, de onde estava, Faye viu o vulto parado, deitado de costas para ela. Ela usava o roupão de banho de Lionel, os cabelos estavam compridos e por um instante Faye pensou que ela estivesse dormindo, mas aí ela se virou devagar, para ver quem era. O rosto estava marcado de lágrimas, os olhos, imensos e com olheiras, no rosto que de repente parecia tão estreito. Faye teve um choque, mas nada quis demonstrar.

Anne mudara inteiramente nos cinco meses que se tinham passado. Estava mais magra, mais adulta, e havia algo tão diferente no rosto dela que Faye nem tinha certeza se a teria reconhecido. Tinha certeza de que não a reconheceria por uma foto, e ficou grata a John por tê-lo conseguido.

- Olá, amor. - Faye dirigiu-se devagar para a cama, quase com medo de fazê-la fugir, assustada, como pássaro ferido, e Anne gemeu baixinho e se encolheu ainda mais, como bola, virando-se de novo. Estava se refazendo dos alucinógenos que tinha tomado intermitentemente por tanto tempo. Lionel e John lhe davam suco de laranja e barras de chocolate para que ela mantivesse as forças. Pouco antes, a tinham obrigado a comer um hambúrguer que tinham levado para ela. Ela vomitara logo depois de comer, mas já estava melhor, pelo menos para John e Li. Eles tinham visto o aspecto dela quando a polícia a apanhara várias horas antes e Lionel estava apavorado que a mãe a visse daquele jeito. Então olhou dela para os pais, e ficou chocado com a expressão nos olhos da mãe. Não ousou olhar diretamente para Ward. Era a primeira vez em que o via depois daquele dia terrível em que o pai o encontrara com John. Mas, pelo menos, ele estava ali, se não por eles, pelo menos por Anne.

- Ela não está se sentindo muito bem, mãe. - Ele falou baixinho e Anne não se virou quando John lhe deu outra barra de chocolate e ela a pegou, com a mão trêmula. - Ela estava se sentindo com fome e enjoada ao mesmo tempo, e não queria estar ali. Queria voltar para eles... para o Haight... para Moon... o ritual... ela lhes pertencia... As lágrimas a engasgaram, quando tentou engolir um pedaço da barra, e ela se virou fechando os olhos.

- Ela está doente?

Falavam dela como se ela não estivesse presente, e Lionel estava detestando ter de explicar tudo.

- Ela está se refazendo das coisas que andou tomando. Daqui a uns dias vai ficar boa.

- Podemos levá-la para casa hoje? - Faye estava aflita para levá-la para casa, para ser examinada pelo médico que cuidara dela durante anos, e para levá-la ao dr. Smythe, antes que fosse tarde para ele tomar conta do caso. Ela ainda não tinha visto Anne de frente e não sabia se estava muito adiantado, mas supunha que não fosse tarde. Não havia motivo para pensar que o fosse. Mas Lionel estava sacudindo a cabeça, respondendo ao que ela dissera, e Faye franziu a testa.

- Acho que ela ainda não está em condições de poder viajar, mãe. Dê-lhe uns dias para se adaptar.

- Adaptar ao quê? - Faye pareceu ficar chocada. - A nós?

Ward se adiantou pela primeira vez e evitou os olhos do filho, enquanto lhe falava.

- Ela já foi examinada por um médico? - Lionel sacudiu a cabeça. - Acho que devia ser. - Deu a volta na cama e olhou para sua filha caçula. Ainda estava imunda, cheia de sujeira, o rosto manchado de lágrimas, e os olhos pareciam enormes no rosto; ele se sentou, de mansinho, e alisou-lhe os cabelos, sentindo as lágrimas arderem nos olhos. O que levara aquela menina àquilo? Como ela podia ter fugido deles? - É tão bom ver você de novo, Anne. - Ela não recuou da mão dele, mas ficou olhando para ele como um bichinho assustado, e ele deixou seus olhos percorrerem o corpo dela, devagar, parando no meio e passando adiante. Ele tentou não demonstrar o choque que teve. Era muito tarde para tomar alguma providência. Ele se virou para Faye com uma expressão de desespero, depois se levantou e olhou para Lionel, de relance. - Conhece algum médico aqui?

- A polícia nos deu o nome de um. Acharam que ele devia examiná-la, em todo o caso. E querem falar com você e a mãe. - Ward meneou a cabeça; pelo menos conseguia falar com o filho, mas não conseguia forçar-se a olhar para John. A única cama no quarto, uma cama de casal que nem parecia ter essa largura, em que Anne estava deitada, falava por si, e ele procurou não pensar naquilo. Um drama já bastava e ele agora queria falar com a polícia. Pegou a caneta e anotou os nomes dos homens que tinham colaborado na busca e em especial os dois que a tinham apanhado. Lionel disse que eles tinham todos os detalhes e Ward estremeceu diante da idéia de saber deles. Mas sabia que eles teriam de se inteirar, afinal.

Faye foi sentar-se à cama ao lado de Anne, como Ward o fizera, mas dessa vez a menina recuou. Era como ter uma filha gravemente doente e ir visitá-la no hospital.

Os olhos de Faye estavam pregados ao rosto de Anne, e a menina começou a chorar.

- Vá embora... não quero ficar aqui...

- Eu sei, amor... mas vamos todos para casa, daqui a pouco... para a sua casa... a sua caminha...

- Quero voltar a Moon e a meus amigos. - Ela soluçou. Era uma garota de quatorze anos e parecia que tinha cinco. E Faye não perguntou quem era Moon. Supôs que fosse o pai da criança. E, pensando nisso, olhou para a barriga de Anne, supondo que ainda estivesse chata, e soltou uma exclamação de choque ao ver como estava saliente.

Por experiência, Faye sabia que ela estava grávida de quatro ou cinco meses, e resolveu perguntar logo, para aborrecimento de Ward. Ele ainda não queria forçar a menina. Lionel estava com a razão. Ela precisava de tempo para se adaptar a todos eles, de novo. Ela fora para muito, muito longe e já estava longe deles, havia muito tempo.

- Com quantos meses de gravidez você está, Anne? - Ela quis que sua voz soasse branda, mas viu logo que não soava, estava nervosa, áspera e dura e Lionel olhou para eles, em desespero.

- Não sei quantos meses - respondeu Anne, de olhos fechados. Ela se recusou a olhar para a mãe. Detestava-a. Sempre a detestara. E agora mais que nunca. Era culpa dela terem ido buscá-la, culpa dela não a deixarem voltar para lá. Ela sempre estragava tudo, para todos eles, mandando neles, fazendo tudo ao jeito dela. Mas, dessa vez, não faria. Podiam levá-la aonde quisessem, ela fugiria de novo. Agora sabia como era fácil.

- Você já consultou um médico? - Faye parecia chocada. Anne sacudiu a cabeça em negativa de novo, os olhos fechados. Depois abriu-os, devagar.

- Meus amigos tomaram conta de mim.

- Há quanto tempo foi a sua última menstruação? - Era tal e qual falar com a polícia, só que pior. Pelo menos eles não lhe faziam perguntas como essa. Ela sabia que não era obrigada a responder, mas respondia sempre. Faye tinha esse jeito, como se esperasse que todos fizessem o que ela dizia, e Anne obedeceu.

- Quando saí de casa.

Faye sabia muito bem que isso fora há cinco meses, e ela estremeceu diante dessa idéia. Devia ter acontecido quase assim que ela saíra de casa. - Você sabe quem é o pai? - Era uma pergunta chocante, e Lionel olhou para Ward, querendo que ele impedisse a mãe de perguntar aquelas coisas.

Anne não estava preparada para ser forçada, e ele tinha medo de que ela tornasse a fugir antes mesmo que a levassem para casa. E talvez dessa vez não a encontrassem. Lionel estava com medo disso, mas Anne só sorriu, recordando.

- Sei.

- É Moon?

Anne deu de ombros. Mas Faye não estava de todo preparada para o que se seguiu:

- É. São todos eles.

Faye prendeu a respiração. Não podia ser. Tinha de haver algum engano.

- Todos? - Ela olhou, sem entender, para aquela criança que não era mais criança. Agora era uma mulher, torcida, alquebrada, mas assim mesmo não era mais uma menina e estava esperando um filho seu. E, de repente, Faye entendeu, e em seus olhos surgiu uma expressão de horror. - Está querendo me dizer que toda a comunidade gerou essa criança?

- É. - Anne olhou para ela com um ar suave e se sentou pela primeira vez, e nisso o quarto pareceu girar e ela procurou Lionel, para ajudá-la. Ele a acudiu e a sustentou, enquanto John lhe dava um copo de suco de laranja. Os dois rapazes já estavam desconfiando de alguma coisa assim, pelo que a polícia dissera sobre a seita, mas Faye e Ward não estavam preparados para aquilo, e agora que Anne estava sentada, parecia ainda mais grávida do que quando deitada.

Ward então tomou conta da situação, pensando no que tinha acontecido com sua filha inocente. Olhou para Lionel com firmeza, sem dar atenção a Anne.

- Vou já falar com esses inspetores. - Ele tinha toda a intenção de meter aqueles filhos da puta na cadeia, e Faye estava chorando baixinho quando eles saíram do quarto. Ela se agarrou a Ward quando chegaram embaixo, e não se importava que a estivessem olhando.

- Meu Deus, Ward, ela nunca mais será a mesma. - Ele estava com tanto medo quanto ela, mas recusou-se a confessar isso. Ia ajudá-la agora, assim como Faye o ajudara, havia tanto tempo, dando-lhe uma carreira que ele nunca teria encontrado por si, ensinando-lhe tudo o que sabia até ele poder voar por si. Ele faria tudo o que pudesse, e se depois ela ainda quisesse o divórcio, ele o aceitaria com dignidade. Faye tinha esse direito, depois do que ele fizera. E ele ainda se sentia mal, olhando para Lionel e John, mas não se podia permitir pensar nisso agora. Os dois tinham de parar de se culpar, ele pela homossexualidade de Lionel, e Faye pelo que acontecera a Anne. Ele sabia que ambos estavam cheios de culpa, mas para quê? Não adiantava nada para nenhum dos filhos.

- Ela vai ficar bem, Faye. - Ele desejou poder acreditar em suas palavras, mas acima de tudo queria convencê-la.

- Ela tem de se livrar dessa criança, e, com as drogas que ela tem tomado, só Deus sabe o que será. Há de ser um vegetal.

- É provável. Você acha que é tarde para um aborto? - Olhou para a mulher, com esperanças, e ela se riu com amargura, por entre as lágrimas.

- Você olhou para ela, Ward? Está no quinto mês da gravidez, pelo menos. - De repente, ela pensou que ela poderia até já estar grávida quando saiu de casa. Não achava que estivesse, mas com Anne, ninguém sabia de mais nada.

Eles foram logo à delegacia da Bryant Street e depois subiram para falar com as autoridades encarregadas de delinqüência juvenil. Parecia que agora havia centenas de casos como aquele. As crianças estavam migrando de todas as partes do país, indo para Haight-Ashbury, e algumas faziam coisa bem pior do que perder a virgindade - perdiam as vidas. Havia casos de crianças de onze anos tomando excesso de heroína ou saltando de janelas por causa do LSD. Havia filhos ilegítimos nascidos de meninas de treze, catorze e quinze anos, nascidos nos corredores enquanto os amigos cantavam. Uma garota tinha morrido de hemorragia seis semanas antes, e ninguém chamara uma ambulância. Ao ouvirem tudo aquilo, Faye deu graças por terem encontrado a filha, e preparou-se para ouvir a história que contaram da seita em que Anne estava vivendo. Ela teve vontade de matar a todos depois que ouviu tudo, e Ward insistiu em dizer que queria ver toda a seita na cadeia, mas a polícia o desencorajou.

Seria difícil indiciar todos eles, e era impossível acusar uma tribo inteira de estupro numa só garota. E, mais que tudo, era isso que queriam para Anne? Não seria mais fácil levá-la para casa, conseguir um bom tratamento psiquiátrico e deixar que ela se esquecesse de tudo, em vez de sujeitá-la a um julgamento prolongado, que nem se daria dentro de um ou dois anos, se tanto, e que eles provavelmente não ganhariam? A essa altura os rapazes já teriam desaparecido, e as famílias deles, muitas com dinheiro e influência, haviam de pagar as fianças dos filhos. Aquilo não fazia sentido. Dentro de um ou dois anos, tudo pareceria um sonho distante, disse a polícia. Um pesadelo que ela logo esqueceria.

- E a gravidez dela? E esse tal de Moon? - Faye quis saber. E lhe disseram que não podia provar nada de concreto contra ele. Ele não mantinha ninguém lá contra a vontade, e nenhum dos membros da seita jamais deporia contra ele. Duvidavam que a própria Anne o fizesse, e mais tarde isso se revelou verdade.

Anne tinha um amor irracional pelo homem e se recusou a falar sobre ele com quem quer que fosse, mesmo Lionel. Era um caso sem esperanças, foi a conclusão a que chegaram Faye e Ward.

E, embora parecesse errado, talvez a polícia tivesse razão. O melhor era levá-la para casa, conseguir-lhe ajuda, assisti-la para que ela desse à luz em segurança aquela criança monstruosa e deixar que ela se esquecesse de tudo, se estivesse disposta. Lionel achava que sim, com o tempo, e John não disse absolutamente nada. Ainda estava apavorado com o sr. Thayer, com medo de que o outro tornasse a bater nele, se bem que Lionel jurasse que não deixaria que isso acontecesse de novo, e Ward não desse mostras de estar descontrolado, a não ser quando falava de Moon ou num daqueles. Para alívio de John, a raiva dele agora se dirigia para cima deles.

Naquela noite, todos se revezaram para ficar com Anne, e na manhã seguinte os três Thayer combinaram a viagem para casa, enquanto John ficava com ela. Faye estava aflita para levá-la de volta e talvez interná-la numa casa de saúde, se bem que Lionel achasse que deveriam esperar uns dias. Ela agora estava razoavelmente lúcida, mas extremamente paranóica. Ele achava que ela devia ter mais uns dias para se refazer. Ward concordava com Faye, mas não via como ela pudesse embarcar num avião de carreira naquele estado desorientado e desgrenhado. Por fim, chegaram a um acordo. Ward ligou para a MGM e fretou o avião do estúdio para todos. O avião os apanharia em San Francisco às seis daquela tarde e os levaria de volta a Los Angeles. Ele ainda queria falar mais uma vez com a polícia, e depois disso conversou com seu advogado, que, basicamente, concordou com eles. Não fizeram acusação nenhuma e às quatro e meia da tarde Faye embrulhou Anne num roupão que comprara para ela na Union Street e tomaram um táxi para o aeroporto, a menina soluçando o tempo todo. Os quatro se sentiram como seqüestradores, enquanto o motorista do táxi olhava para eles, muito zangado. Quase não disseram palavra e ela não tinha forças para andar. Ward a carregou para dentro do avião, e, pela primeira vez em dois dias, ele tomou um drinque forte depois que embarcaram, e os dois rapazes e Faye tomaram um cálice de vinho cada. Foi uma viagem difícil para todos, e Lionel e John estavam sentindo a tensão de estarem na presença de Ward. Ele nunca falava diretamente com eles. Sempre que possível, dirigia-se a Faye e deixava que ela desse o recado, como se tivesse medo de se contaminar falando diretamente a um deles. Quando a limusine da MGM deixou os rapazes na casa deles, a caminho da casa dos Thayer, John soltou um imenso suspiro de alívio.

- Não sei mesmo o que dizer a ele. - Respirou fundo e olhou para Lionel, como se desculpando, e o amigo entendeu perfeitamente. - Não se preocupe, eu também não sei. Mas ele se sente igualmente pouco à vontade conosco. - Fora uma trégua difícil, e Lionel tinha certeza de que o pai não mudara de idéia e não revogaria a proscrição familiar sobre eles. Lionel sentiu que seria tão mal recebido na casa da família quanto há três ou quatro meses antes, e estava com a razão.

- Ele age como se a gente ser homossexual fosse uma doença contagiosa que ele tivesse medo de apanhar.

Lionel sorriu. Era bom estar em casa, ou foi o que pensou. Faye continuara a pagar os quartos deles na casa da UCLA durante aqueles meses, e eles não viam os colegas desde que tinham largado os estudos, em janeiro. Mas não podiam ir para casa dos pais de Lionel, nem para a dos Wells, que teriam ficado perturbados com as histórias de Anne. Assim, subiram a escada, em casa pela primeira vez, havia meses, aflitos para desfazer as malas e se instalar.

Os dois estavam falando de começar as sessões de verão dali a umas semanas. Agora podiam voltar à vida real, fosse o que fosse, mas ambos se tinham esquecido do que era fingir e se esconder e, de repente, ao entrarem numa sala cheia de alunos de segundo ano e calouros, tomando cerveja, os dois se lembraram da agonia que tinham esquecido, depois de cinco meses morando no hotel enquanto procuravam Anne. Agora tinham de tornar a se esconder, e isso os deprimiu, enquanto guardavam suas coisas. Lionel foi ao quarto de John e eles trocaram um olhar. De repente, se perguntaram se todos já sabiam a respeito deles. Achavam que estava claro, e Lionel nem sabia ao certo se se importava mais. Sim, ele amava John. Ele assumiu um ar quase truculento quando foi à cozinha e se serviu de uma cerveja, mas ninguém disse nada. E os que sabiam ficaram contentes por ele ter encontrado Anne. Um dos outros também tinha uma irmã que tinha fugido, uma garota de doze anos, e ainda não a tinham encontrado. Os pais receavam que estivesse morta e o irmão estava convencido de que também ela estivesse em San Francisco. Conversaram sobre aquilo um pouco, e Lionel achou que havia uma expressão esquisita nos olhos do rapaz, como se quisesse perguntar-lhe alguma coisa, mas não ousasse.

Na casa dos Thayer, todos estavam deprimidos. As gêmeas ficaram chocadas quando viram Ward chegar carregando Anne ao colo. Não se tinham dado conta de que ela poderia estar tão mal e quando ela se pôs de pé, nas pernas bambas, e elas viram a barriga estufada, Vanessa soltara uma exclamação e Valerie mal podia acreditar no que via.

- O que é que ela vai fazer? - perguntaram a Faye mais tarde, e ela, achando que nunca se sentira tão cansada na vida, não sabia a resposta.

No dia seguinte, levaram-na ao médico e ficaram aliviados ao saber que não fora encontrada qualquer prova de violência física nela. O que ela fizera, o fizera voluntariamente, e não havia marcas nem cicatrizes. O médico calculou que o bebê deveria nascer a 12 de outubro e sugeriu que ela ficasse se restabelecendo por umas seis semanas depois disso, supondo que o bebê nascesse a tempo, podendo ela estar de volta ao colégio depois das férias de Natal. Ela teria perdido exatamente um ano, desde que se ausentara, e poderia terminar a oitava série depois de o bebê nascer e passar ao segundo grau no ano seguinte. Faziam tudo parecer bem fácil, ali, com Anne olhando para eles e o médico ao lado, e Faye abordou o assunto sobre o qual já lhe tinha falado. Era tarde para um aborto, claro, o que teria sido a solução mais fácil para ela, supondo que ela concordasse, mas Faye trataria disso. E era impossível dizer exatamente quantos entorpecentes ela tomara antes de conceber, ou o efeito que teriam. Mas mesmo que o bebê tivesse pequenas deficiências, devido a isso, havia muitos casais sem filhos que haviam de querer adotar a criança, mesmo com algum pequeno defeito. A cultura de Haight-Ashbury tinha sido propícia para eles. Agora havia dezenas de bebês a serem adotados, bebês de garotas que nunca teriam engravidado, alguns anos antes. Eram em sua maioria garotas de famílias de classe média que dormiam com garotos do mesmo tipo, nas comunas que tinham surgido. E, uma vez nascidas as crianças, eles não tinham interesse em conservá-las. Algumas tinham, claro, mas a maioria não. Queriam ser livres, gozar os seus dias de sol, paz e amor sem as responsabilidades. E o médico teria prazer em ajudar, disse ele. Só em Los Angeles ele conhecia quatro casais que gostariam de ter uma dessas crianças. Todos dariam um bom lar para o bebê e aquilo seria uma bênção para Anne. Ela poderia voltar à vida de uma garota de catorze anos e se esquecer do que acontecera. Faye e o médico sorriram e Anne olhou para eles horrorizada, lutando para não gritar.

- Vocês querem dar o meu bebê? - Ela começou a chorar e Faye tentou abraçá-la, mas ela a repeliu. - Nunca hei de fazer isso! Nunca! Estão ouvindo?

Mas Faye não tinha dúvida alguma. Eles a obrigariam a dar a criança. Ela não precisava arrastar algum mongoloidezinho atrás de si o resto da vida, lembrando-lhe um pesadelo que todos queriam esquecer. Não, de jeito nenhum. Ela e o médico trocaram um olhar significativo. Ainda tinham quatro meses e meio para convencê-la do que era melhor para ela.

- Mais tarde você não vai pensar assim, Anne. Val ficar contente por ter desistido da criança. E, em todo o caso, pode ser que não seja normal. - Faye tentou manter a voz natural, mas por dentro estava em pânico. E se ela fugisse de novo? Se insistisse em conservar a criança? Aquele pesadelo não acabava nunca e no caminho de volta a casa Anne ficou encolhida do outro lado do carro, olhando pela janela, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. Quando Faye parou o carro em casa, tentou pegar a mão dela, mas Anne a puxou e se recusou a olhar para a mãe.

- Benzinho, você não pode ficar com essa criança. Isso estragaria a sua vida. - Faye tinha certeza disso, e ela sabia que Ward concordava com ela.

- A sua vida ou a do pai? - Ela então olhou para a mãe, furiosa. - Vocês estão é vexados porque eu engravidei, só isso. E querem destruir a prova. Bom, e o que é que vão fazer comigo, nos próximos quatro meses? Esconder-me na garagem? Podem fazer o que quiserem comigo, mas não me podem tirar o meu bebê. - Ela saltou do carro e correu e Faye se descontrolou, gritando com ela. Aqueles últimos dias tinham sido demais para ela. Os últimos meses, aliás.

- Podemos, sim! Podemos fazer o que quisermos! Você não tem nem quinze anos! - Ela se odiou por dizer essas palavras, e de tardinha, Anne tinha desaparecido de novo.

Mas dessa vez ela só foi à casa de Lionel, e ficou lhe contando a história, aos soluços, a ele e John. - Não vou deixar que tirem o bebê de mim!... não vou... não vou! - Ela mesma parecia um bebê, era difícil imaginá-la com uma criança. E, embora tivesse ficado adulta no Haight, ainda era muito mocinha. Lionel não sabia como lhe falar, mas concordava com a mãe. E John também. Eles tinham conversado a respeito na véspera, deitados na cama, cochichando, para que os outros rapazes não ouvissem.

No hotel as coisas tinham sido tão melhores, mas eles agora tinham de enfrentar a vida real, como Anne.

- Benzinho - disse Lionel, olhando para ela, com pena e segurando-lhe a mão, e ele estava a cara da mãe, ao fazer isso, mas Anne nunca queria ver a semelhança entre eles. Se visse, poderia amá-lo menos do que amava. O fato de ele se parecer tanto com Faye era a única coisa que o aproximava um pouco de Ward, se bem que ultimamente nem tanto. - Talvez tenham razão. Seria uma responsabilidade terrível, sabe, e não é justo impor isso ao pai e à mãe.

Ela nem pensara nisso.

- Então vou arranjar um emprego e eu mesma tomo conta disso. - E quem vai olhar a criança enquanto você trabalha? Está vendo o que quero dizer? Benzinho, você não tem nem 15 anos... Ela começou a chorar.

- Você até parece um deles falando... - E ele nunca tinha parecido. Ela não suportava aquilo, da parte dele, também, e olhou para ele com uma expressão desesperada.

- Li, o bebê é meu... não posso desistir dele.

- Um dia você terá outros.

- E daí? - Ela parecia horrorizada. - E se tivessem dado você porque um dia eles teriam tido a mim?

Ele teve de rir diante desse exemplo, e olhou para ela com muita ternura.

- Acho que devia pensar um pouco nisso. Não precisa resolver agora.

Ela concordou com aquilo, pelo menos, mas quando chegou em casa, meteu-se numa bruta briga com Val, que exigiu que ela ficasse dentro de casa quando as amigas dela fossem visitá-la.

- Todos vão se rir de mim no colégio, quando souberem que você está grávida. E já que você também vai para lá daqui a um ano, não vai querer que todo mundo saiba disso.

Naquela noite Faye ralhara com ela por ter sido desnecessariamente cruel, mas já era tarde. Depois do jantar, Anne fora para seu quarto e arrumara as malas e às dez da noite estava de novo na sala de Lionel.

- Não posso mais morar com eles. - Ela contou por quê, e ele suspirou. Sabia como era difícil para ela, mas não podia fazer muita coisa por ela. Naquela noite ele lhe cedeu sua cama e disse que no dia seguinte iam pensar numa solução. Ligou para Faye, para dizer onde ela estava. Ela já tinha ligado para Ward, e Lionel teve a impressão de que ele ia passar a noite em casa, mas não perguntou nada. E ele disse aos colegas de casa que ia dormir no chão, mas claro que dormiu com John, e lembrou a Anne para tomar cuidado com o que falasse, pois os companheiros de casa não sabiam que eles eram homossexuais. E no dia seguinte, quando os três saíram para andar um pouco, ele ficou constrangido diante das perguntas que ela fez, mas procurou ser sincero com ela. - Você e John dormem juntos todas as noites?

Ele ia dizendo alguma coisa, depois mudou de idéia. - Dormimos, sim.

- Como marido e mulher?

Pelo canto do olho, Lionel viu que John estava corado. - Mais ou menos.

- Que esquisito. - Ela não disse por mal e Lionel se riu. - Deve ser, mas é assim que é.

- Não sei por que as pessoas ficam tão aborrecidas com isso, quero dizer, como o pai. Se vocês se amam, o que importa o que sejam, quero dizer, homem e mulher ou duas garotas ou dois homens? – Ele se perguntou exatamente o que ela teria visto na comuna e se lembrou do que a polícia dissera. Ela provavelmente já tivera muitas experiências homossexuais também, mas ele não lhe perguntou sobre isso, e as dela teriam sido provavelmente provocadas pelas drogas e como parte de um grupo grande, em vista dos costumes da seita.

E Lionel não queria perguntar. Ela podia nem se lembrar do que tinha feito. Era muito diferente do que ele e John partilhavam, que era um caso de amor sincero. Mas ele então olhou para ela. Era estranho como ela flutuava entre mulher e criança.

- Nem todos pensam assim, Anne. Para algumas pessoas, é assustador.

- Por quê?

- Porque é diferente do normal. Ela suspirou.

- Como eu estar grávida aos quatorze anos?

- Talvez. - Essa era dura. E o fez pensar no que iriam fazer com ela. Ele e John tinham passado a metade da noite falando nisso, e tinham tido uma idéia. Lionel tinha falado com Faye a respeito. De certo modo, também seria mais fácil para Faye e Ward.

E Lionel tinha razão, claro. Ele sempre fora um menino intuitivo, e dessa vez não estava enganado. Ward passara a noite em casa. O pai atendeu ao telefone mas não falou uma palavra com Lionel, estavam de novo nos antigos termos, ele não existia na vida dos Thayer. Agora que ele encontrara Anne, podiam passar sem ele de novo, ou pelo menos Ward podia. Ele passou o fone a Faye e ela propôs a idéia a Ward, quando desligou.

- Lionel quer saber o que achamos de eles tomarem um apartamento perto da universidade e deixar que Anne fique com eles até nascer o bebê. Depois ela pode se mudar para cá e eles arranjam um colega para alugar o quarto dela. O que é que você acha? - Ela olhou para ele, com atenção, enquanto tomavam café. De certo modo, era bom tê-lo de volta, mesmo por uma ou duas noites. Mas ele lhe dava apoio, naquele momento difícil. Ele então franziu a testa, pensando na sugestão de Lionel.

- Já imaginou ao que ela estaria exposta, com aqueles dois? - A idéia o deixava doente e Faye se irritou logo.

- Já imaginou o que é que ela mesma não fez, naquela comuna nojenta, Ward? Vamos ser honestos, nisso.

- Está bem, está bem, Não é preciso se falar nisso. - Ele não queria pensar nessas coisas relacionadas com sua filhinha. Tampouco a queria com Lionel e John, num ninho de bichas nalgum lugar. Mas era evidente que ela não pretendia voltar para casa e isso poderia aliviar um pouco a tensão sobre ele e Faye. Os únicos filhos que ficavam em casa agora eram as gêmeas, que nunca estavam presentes. Estavam sempre saindo com amigos, especialmente Val. Ele olhou para Faye. - Vou pensar a respeito.

Ela ainda não sabia bem se gostava daquela idéia, mas quanto mais pensava, mais tinha de reconhecer que não era má idéia. E os rapazes ficaram aliviados quando Faye lhes disse isso. Eles se tinham dado conta de que era impossível conviver com os outros rapazes na casa antiga e nenhum dos dois queria mais fingir. Aos vinte anos, Lionel estava disposto a reconhecer que era homossexual, e John também.

Faye os ajudou a arranjar um apartamento pequeno, mas simpático, em Westwood, não longe de onde moravam com os outros amigos, e ofereceu-se para decorá-lo para eles, mas John operou a sua magia numa questão de dias, e Faye mal pôde acreditar quando viu como ficara bonito. Ele comprara metros de flanela cinza-clara e seda rosa e transformou o apartamento, pregando o tecido nas paredes, forrando dois sofás que eles compraram por 50 dólares, de segunda mão, arranjando gravuras em ruas escondidas, reanimando plantas que pareciam em estado desesperador. O apartamento estava com um ar sofisticado, feito por um decorador profissional, e John ficou feliz com os elogios deles. E a mãe de John ficou ainda mais orgulhosa dele e lhes comprou um lindo espelho para pendurarem à lareira. Ela estava com pena da pequenina Anne, e grata por não ter sido uma de suas filhas.

E Anne, com eles, se sentiu mais feliz do que jamais o fora na vida. Mantinha o apartamento limpo para eles. Era melhor ainda do que a comuna, disse ela, uma noite, e ela aprendeu a fazer pato assado com John. Ele era um excelente cozinheiro, e preparava o jantar para eles todas as noites. Lionel voltara às aulas de cinematografia para o período do verão, para compensar o tempo perdido, e no outono já estava em dia. Mas John tinha tomado uma grande resolução. Sabia que não queria ir para a UCLA. Largou os estudos de vez e arranjou um emprego com um decorador conhecido em Beverly Hills. O cara estava louco por ele e era um saco ter de rejeitar as propostas dele todo dia, mas a experiência em decoração que ele obteve foi fabulosa. Fazia todo o trabalho e não recebia nenhum crédito por isso, mas gostava das casas onde ia trabalhar e toda noite contava aos outros dois as suas experiências do dia. Já estava trabalhando desde julho e em fins de agosto o cara afinal entendera e o deixara em paz. Ele contara ao outro sobre Lionel, e que era um caso muito sério, e o homem mais velho se rira, sabendo que era apenas uma questão de tempo. "Garotos", disse ele, rindo. Mas estava satisfeito com o trabalho de John, de modo que o deixou em paz.

Faye ia visitá-los de vez em quando. Ward tinha voltado para casa e eles estavam tentando juntar os pedaços, de novo. Ela falou a respeito com Lionel, quando estavam a sós, mas não defronte de Anne, e ela indagou se ele tinha feito algum progresso para convencê-la a deixar o.bebê, quando nascesse. Faltavam menos de dois meses e a coitadinha estava enorme. Ela se sentia mal com o calor, e o apartamento não tinha ar-condicionado, mas John comprara ventiladores para todos. Ele insistia em pagar a metade do apartamento, agora que estava trabalhando, e Lionel estava estudando, e Faye ficou comovida ao ver como John cuidava bem de todos eles. Um dia, ela olhou para o filho com ternura.

- Você está feliz, não está, Li? - Para ela, era importante saber disso. Ele significava tanto para ela... E ela gostava de John, sempre gostara, mas agora mais, depois da ajuda dele para encontrarem Anne.

- Estou, sim, mãe. - Ele amadurecera maravilhosamente, embora não fosse o que ela e Ward esperavam que fosse. Mas talvez aquilo não importasse mesmo. Ela às vezes se fazia uma porção de perguntas a respeito, mas ainda era impossível conversar sobre isso com Ward. - Fico contente. E quanto a Anne? Ela vai desistir do bebê?

- O médico tinha um casal que estava positivamente interessado. Ela estava com 36 anos e ele, 42, os dois eram estéreis e as agências diziam que eram muito velhos para poderem adotar uma criança. Ela era judia e ele católico, e com tudo isso não havia esperança alguma para os dois, a não ser daquele modo. Eles nem se importavam com o risco dos possíveis defeitos que o bebê pudesse ter por causa dos entorpecentes. Estavam desesperados e insistiam em dizer que o amariam de qualquer forma.

Em setembro, Faye insistiu para que Anne pelo menos os conhecesse, para lhes dar uma chance. Eles estavam muito nervosos, foram muito simpáticos e chegaram quase a implorar para que ela lhes desse o bebê. Prometeram que ela poderia ir visitá-lo às vezes, se bem que o médico e o advogado deles desencorajassem isso. Esse tipo de coisa já provocara incidentes terríveis, uma ou duas vezes, e uma vez um seqüestro, depois de assinados os papéis. Era melhor um rompimento de vez, diziam eles, mas o casal teria concordado com qualquer coisa.

A mulher tinha cabelos pretos e lustrosos e lindos olhos castanhos, um corpo bonito e era inteligente. Era advogada, tendo vindo de Nova York, e o marido era oftalmologista, com feições parecidas às de Anne. O bebê podia até parecer-se com eles, se se parecesse com Anne, e não com o resto da comuna, pensou Faye. Eram pessoas encantadoras e Anne ficou com pena deles.

- Por que é que eles não podem ter filhos? - perguntou Anne, quando foram embora e a mãe a levou de volta à casa de Lionel. - Não perguntei. Só sei que não podem.

- Faye estava rezando para que ela fosse razoável. Queria que Ward também falasse com ela, mas ele estava fora. Ele pedira a Faye para ir com ele, achava que eles estavam precisando de uma "lua-de-mel", como dizia ele, agora que estavam juntos de novo. E ela ficara comovida, mas não se sentiria bem deixando Anne, até nascer o bebê. Se alguma coisa lhe acontecesse, e se o parto fosse prematuro, coisa que, segundo o médico, acontecia às adolescentes... e ele avisou que as garotas nessa idade passavam mal, pior ainda do que mulheres da idade dela, e ela se espantou. Ela já estava com 46 anos e bebês eram a última coisa em que ela estava pensando.

Mas ficou com medo de que Anne passasse mal e não quis viajar com Ward. Eles tiveram algum tempo juntos entre filmes, mas ela estava procurando passar o máximo de tempo possível com Anne. E, em vez disso, Ward foi à Europa com Greg. Faye achou que seria bom para os dois saírem dali um pouco.

Anne não concordara com coisa alguma, quando chegou o momento de nascer a criança. Estava tão enorme que parecia que ia ter gêmeos, e Lionel morria de pena dela.

Ela parecia passar o tempo todo com dores e ele desconfiava de que ela estivesse com medo. Ele não a culpava, ele mesmo teria ficado apavorado. E esperava estar em casa quando o bebê começasse a querer nascer. Se não, John tinha prometido pegar um táxi para ir em casa buscá-la e levá-la ao hospital. Era muito mais fácil alcançar a ele do que Lionel. Ela tivera uma idéia maluca de ter o bebê em casa, como faziam na comuna, mas eles tinham acabado com aquilo, e Faye os fizera jurar que a chamariam imediatamente. Lionel prometera, mas Anne implorara que ele não o fizesse.

- Ela vai roubar o meu bebê, Li. - Os grandes olhos azuis suplicavam a ele. O coração dele se enterneceu. Ela agora passava o tempo todo assustada com tudo.

- Ela não vai fazer nada disso. Só quer estar lá com você. E ninguém vai roubar o bebê. Você é que tem de se resolver. - Mas ele continuava a tentar influir sobre ela. Achava que a mãe tinha razão. Aos quatorze anos e meio, ela não podia arcar com o fardo de uma criança. Ela mesma era uma criança. E ele teve a maior certeza disso ainda na noite em que ela começou a sentir as dores do parto. Ela entrou em pânico e se trancou no quarto, soluçando histericamente, enquanto ele e John, se alternando, ameaçavam arrombar a porta. Afinal, enquanto ele lhe falava, com brandura, John subiu ao telhado, entrou pela janela e destrancou a porta, deixando o irmão entrar no quarto. Ela estava deitada na cama, soluçando histericamente, numa convulsão de dor, e havia água espalhada por todo o quarto. A bolsa tinha-se rompido uma hora antes e as dores estavam fortes. Mas ela se agarrou ao pescoço de Lionel e soluçou, agarrando-se mais a cada sinal de dor.

- Ah, Li, estou com tanto medo... tanto medo... - Ninguém lhe dissera que ia doer tanto. A caminho da casa de saúde, no táxi, ela gemeu e cravou as unhas na mão dele e se recusou a ir com a enfermeira. Agarrou-se a ele e implorou para ele ficar com ela, mas quando o médico chegou, ele lhe disse para ser boazinha e duas enfermeiras a levaram de maca, enquanto ela berrava.

Lionel estava visivelmente abalado e John estava pálido quando falaram com o médico.

- Não pode lhe dar um sedativo?

- Acho que não. Pode atrapalhar o trabalho de parto. Ela é jovem, depois esquece. - Parecia difícil acreditar naquilo e ele sorriu para eles, com compreensão. - É difícil para mocinhas da idade dela, não estão mesmo preparadas para darem à luz, nem física nem mentalmente. Mas vai dar tudo certo e ela vai ficar bem. – Lionel não tinha nenhuma certeza disso. Ainda ouvia os gritos dela pelo corredor e perguntou-se se devia estar com ela. - Já avisaram à mãe dela? - Li sacudiu a cabeça, nervoso. Eram 11 horas da noite e ele não sabia se eles estariam dormindo. Mas sabia que ela ficaria furiosa se eles não a chamassem, de modo que ligou para o número de sua antiga casa, com as mãos trêmulas. Ward atendeu e Lionel falou logo.

- Estou na casa de saúde com Anne.

Ward não perdeu tempo e não passou o fone a Faye. Uma vez na vida, ele falou diretamente com Lionel.

- Vamos já para aí. - E, de fato, em 10 minutos eles estavam no Centro Médico da UCLA, meio amarfanhados, mas bem despertos. E o médico abriu uma exceção e deixou que Faye ficasse com Anne, pelo menos enquanto ela ficou na sala de parto. Nenhum deles estava preparado para uma grande demora. Nem mesmo o médico sabia, se bem que em geral fosse bom nas previsões, mas, no caso de adolescentes, nada era certo, ela podia ter um parto rápido e súbito ou podia levar três dias. Ela estava tendo boa dilatação, mas parava em cada estágio durantes horas, implorando alívio, drogas, qualquer coisa, agarrando a mão da mãe, tentando sentar-se para sair dali e caindo com a dor arranhando as paredes e implorando para as enfermeiras a soltarem. Foi a pior coisa que Faye jamais vira e ela nunca se sentira tão desamparada na vida. Não havia nada que pudesse fazer para ajudar a menina, e só a largou uma vez, para ir lá fora dizer alguma coisa a Ward. Queria que ele ligasse para o advogado logo de manhã cedo, para o caso de Anne concordar em desistir do bebê depois que este nascesse. Eles a fariam assinar os papéis imediatamente. Teriam de revê-los de novo dentro de seis meses, para torná-los permanentes mas, a essa altura, o bebê já se teria ido, e esperava que ela já tivesse recomeçado uma vida normal. Ward concordou em ligar para o advogado de manhã e ela sugeriu que ele fosse para casa. Aquilo podia levar horas, e os três homens concordaram. Ward deixou Lionel e John em casa, sem falar muito com eles, e os dois rapazes subiram. Ficaram espantados ao ver que já eram quatro da madrugada e Lionel nem chegou a dormir, aquela noite.

Levantou-se da cama furtivamente e ligou para a casa de saúde várias vezes, mas não havia notícias de Anne. Ainda estava na sala de parto e o bebê ainda não tinha nascido. E ela continuava ali na tarde seguinte, quando John voltou do trabalho, e encontrou Lionel ainda sentado junto do telefone. Eram seis horas da tarde e ele ficou pasmo.

- Meu Deus, ela ainda não teve esse bebê? - Ele não imaginava que pudesse demorar tanto. Ela entrara em trabalho de parto às oito da noite anterior e já estava com dores atrozes quando a levaram para a casa de saúde. - Ela está bem?

Lionel estava pálido. Parecia que já tinha ligado mil vezes para a casa de saúde e até fora lá por algumas horas, mas a mãe nem quis sair para falar com ele. Não queria deixar Anne. Ele viu um casal aguar dando, nervosamente, na sala de espera com o advogado dos Thayer, e adivinhou quem eram. Ainda estavam mais aflitos para o bebê nascer do que estavam os Thayer. E o médico achava que agora só faltavam mais algumas horas. Já estavam vendo a cabeça e ela estava pronta para forçar, mas ainda ia demorar. E se até às oito ou nove horas da noite não houvesse algum progresso, ele ia fazer uma cesária.

- Graças a Deus - disse John, e os dois viram que não conseguiam comer nada. Estavam preocupados demais com ela. Às sete horas, Lionel chamou um táxi. Ia voltar à casa de saúde.

- Quero estar lá. John meneou a cabeça.

- Eu também vou. - Eles tinham passado cinco meses procurando por ela, e outros cinco morando com ela. John sentia que ela também era sua irmãzinha, e a casa não parecia a mesma sem as roupas dela, seus livros e discos espalhados por todo canto. Ele uma vez ameaçara castiga-la se ela não arrumasse suas roupas e ela se rira e implicara com ele, dizendo que ia contar a toda vizinhança que ele era bicha. E ele agora estava com uma pena louca da menina. Parecia uma provação terrível e quando viu o rosto de Faye Thayer, pouco depois das nove, pôde imaginar o que a menina tinha sofrido.

- Não conseguem tirá-lo - disse Faye a Ward, que também estava de volta à casa de saúde. - E ele não quer fazer uma cesariana numa menina de idade dela a não ser que seja indispensável. - Mas aquilo por que ela estava passando era pior do que qualquer coisa que Faye já tivesse visto, ela estava gritando e implorando, meio delirante com dor. Não havia absolutamente nada que pudessem fazer por ela e o pesadelo ainda continuou por mais duas horas, enquanto Anne pedia que a matassem... ao bebê... qualquer coisa... e afinal a cabecinha saiu e quando o resto se seguiu, devagar, dilacerando a mãe perversamente e lhe causando a maior agonia até ao fim, todos entenderam por que Anne sofrera tanto. A criança era imensa, pouco mais de quatro quilos e meio, e Faye não podia imaginar um castigo maior para aquele corpinho estreito. Era como se cada homem que a tivesse penetrado tivesse contribuído para aquela criança, e ela aparecera já crescida, um composto de todos eles.

Faye ficou olhando para o bebê, as lágrimas nos olhos, lágrimas pelo sofrimento que ele causara a Anne, e pela vida que nunca mais tocaria na deles. Horas antes, Anne concordara em desistir dele. Naquele momento ela teria concordado com tudo.

E agora o médico lhe colocava uma máscara de anestésico. Ela nem viu a criança, nem soube como era grande, nem sentiu que a costuravam e Faye saiu da sala de parto, calada, com pena da filha, da dor que ela suportara, a experiência que provavelmente nunca esqueceria, o filho que nunca conheceria, ao contrário dos seus, que lhe tinham dado alegrias e sofrimentos através dos anos, mas os quais nunca se arrependera de ter tido. E agora o seu primeiro neto ia ser dado e ela nunca mais o veria.

Ele foi colocado numa cesta de polietileno e levado para o berçário, para ser lavado e entregue a outra pessoa.

Meia hora depois, quando ela e Ward saíram do hospital, ela viu a mulher de cabelos escuros com o bebê ao colo, as lágrimas escorrendo por suas faces e uma expressão de amor nos olhos. Eles tinham esperado quatorze anos por ele, e o aceitavam como ele era, sem saber quem era o pai ou que malefícios as drogas lhe podiam ter causado.

Aceitavam-no com um amor incondicional, e Faye apertou bem a mão de Ward quando saíram, respirando o ar da noite. O médico dissera que Anne ia dormir durante várias horas. Agora estava bem dopada, graças a Deus, e naquela noite, deitada à cama, Faye chorou nos braços de Ward.

- Foi tão horrível... ela gritou tanto... - Ela então soluçou, sem se controlar. Fora quase insuportável ver aquilo, mas agora estava tudo acabado. Para todos. Menos para o casal com o bebê de Anne. Para eles, estava apenas começando.

 

Eles fizeram Anne ficar na casa de saúde durante uma semana, procurando fazer com que as feridas sarassem, tanto as físicas quanto as mentais. O médico tinha dito a Faye que sarariam, com o tempo. Davam-lhe Valium e Demerol, para dor. Ela fora rasgada pela cabeça do bebê, que era muito grande. Mas, mais do que isso, eles sabiam que ela teria cicatrizes emocionais, por aquilo. Um psiquiatra ia conversar com ela todo dia, mas ela não lhe dizia nada, ficava ali na cama olhando para o teto ou a parede e todo dia, depois de uma hora, ele ia embora. Ela não falava nada com Faye, nem com Ward ou as gêmeas, nem mesmo com Lionel quando ele e John iam lá, com cuidado, em horas diferentes de Faye e Ward. Lionel lhe levou um enorme urso de pelúcia, e esperou que não lhe lembrasse o filho perdido. O bebê fora levado da casa de saúde três dias depois de nascido. Os pais o levaram vestido com uma roupa complicada azul e branca, de Dior, e duas mantas que sua nova avó tinha feito.

Tinham mandado um enorme arranjo de flores para Anne, mas ela o dera a outra pessoa. Não queria se lembrar deles. Ela se odiava pelo que tinha feito, mas naquelas primeiras horas depois que acordou, estava se sentindo tão mal que nem o queria ver Só depois que ele se fora é que ela desejou poder ter visto o rosto dele, só uma vez... para poder lembrar-se dele... Pensando nisso, seus olhos se encheram de lágrimas. Todos diziam que ela fizera o que era certo, mas ela detestava a todos, e a si mais que todos e ela então disse isso a Lionel, enquanto John lutava para conter as lágrimas. Se ela fosse sua irmã, ele teria dado a vida por ela, e ele então tentou animar Anne. Mesmo que as piadas fossem de mau gosto, eram sinceras. Ele sentia imensamente por ela.

- Podíamos refazer o seu quarto de preto. Tenho um ótimo veludo de algodão preto na loja... podíamos pôr filó preto nas janelas, com umas aranhazinhas pretas aqui e ali. - Ele apertou os olhos, com um jeito de artista, e ela riu pela primeira vez naquela semana. Mas na hora de ir para casa, Ward e Faye é que foram buscá-la.

Nesse dia eles tinham falado com Lionel, ou pelo menos Faye falara, explicando que eles agora iam levar Anne para casa. Ele e John podiam alugar o quarto dela a algum amigo ou fazer o que quisessem com ele. Aquilo já servira ao seu propósito e agora Anne tinha de voltar para casa para retomar sua vida com eles.

Anne ficou ainda mais deprimida quando soube disso, mas no momento não tinha forças para discutir com eles. Nas semanas seguintes, ficou sentada no quarto, a maior parte do tempo sem querer comer nada, mandando as gêmeas para o diabo quando elas queriam ir falar com ela, coisa que, aliás, elas faziam raramente, se bem que Vanessa tentasse mais de uma vez. Ela tentou comunicar-se com Anne, com discos e livros e um ramo de flores, uma ou duas vezes. Anne, porém, se recusava terminantemente a ser conquistada pelos presentinhos. Estava de coração fechado para todos eles. E foi só no Dia de Ação de Graças que ela se juntou a eles para jantar. Lionel fez-se notar pela ausência, e Greg tampouco estava lá, pois estava jogando sua partida importante na universidade. Anne voltou para o quarto assim que pôde. Não tinha nada a dizer a qualquer deles, nem mesmo a Vanessa, que tanto se esforçava, e Faye, cujo pesar ainda aparecia em seus olhos. Anne os detestava a todos. Só pensava no bebê que abandonara. Ele estava exatamente com cinco semanas. Ela pensou se passaria o resto da vida se lembrando exatamente da idade dele, o tempo todo. Ela agora já estava quase conseguindo se sentar, o que pelo menos era alguma coisa, conforme comentou Lionel, quando foi vê-la, numa hora em que tinha certeza de que o pai não estava em casa. Ward sabia que ele ia visitar Anne, mas não disse nada, contanto que ele mesmo não fosse obrigado a vê-lo, nem a John. Ele não mudara de idéia a respeito disso, e no Natal, quando Faye lhe pediu para convidar Lionel para ir jantar com eles, Ward se recusou a ceder.

- Já tomei minha posição, e pretendo ficar firme nela. Reprovo o modo de vida dele e quero que o resto da família saiba disso, Faye. Mostrou-se inteiramente intratável e ela discutiu com ele sobre isso noite e dia. Não fora propriamente um santo, já a traíra duas vezes. Mas ficou indignado ao ver que ela ousava comparar suas indiscrições heterossexuais com o homossexualismo de Lionel.

- Só estou querendo mostrar que você também é humano.

- Ele é fresco, porra! - Ele ainda tinha vontade de gritar quando pensava naquilo.

- Ele é gay.

- Ele é um doente e não o quero na minha casa. Está bem claro, de uma vez por todas?

Não adiantava mesmo. Ela não conseguiu demovê-lo. E por vezes ela quase tinha remorso de ele ter voltado para casa. O casamento deles não era em absoluto o que já fora e o caso de Lionel não ajudava em nada. Era uma fonte constante de desespero e atrito entre eles. Felizmente, tinham começado um outro filme e ela passava a maior parte do tempo fora de casa. E ficava grata a Lionel por ir lá. Alguém tinha de conversar com Anne. Ela passara por tal provação, e Lionel sempre conseguira falar com ela. Mas parecia-lhe tão errado fechar a porta para o filho... Ela detestava Ward por fazer isso e então olhou para ele com raiva. No entanto, logo abaixo da raiva, estava o amor que ela sempre sentira por ele. Ward Thayer tinha sido o seu mundo e sua vida por tanto tempo que, pecador ou santo, ela não podia imaginar a vida sem ele.

E no dia de Natal, Lionel não estava lá e assim que a família se levantou da mesa, Anne saiu e foi à casa deles. Os Wells tinham inventado uma desculpa para não convidarem Lionel, embora gostassem de ver o filho, mas convidar o amante dele tornava a coisa real demais, mesmo para eles. E Lionel e John tinham resolvido comemorar o Natal sozinhos. Ao jantar tiveram a companhia não só de Anne, mas também de uns amigos do trabalho de John e um amigo gay de Li da universidade.

Anne se viu cercada por uma dúzia de rapazes gay, e não se sentiu nada encabulada. Sentia-se muito mais à vontade com eles do que com o resto de sua família. E já estava mais parecida com o seu normal. Per dera todos os quilos que aumentara e os olhos estavam um pouco mais animados. Parecia mais velha do que era e muito mais madura. Ia completar quinze anos dali a umas semanas, e ia voltar para o antigo colégio, para terminar a oitava série. Estava com medo disso. Ela teria mais um ano e meio do que os outros, mas Lionel disse que ela precisava cerrar os dentes e ir em frente e, de certo modo, ela ia fazer isso por ele.

Eles a deixaram beber meia taça de champanha e ela ficou com eles até depois das nove. Ela havia economizado e comprado um cachecol de cashmere para Li e uma linda caneta de prata da Tiffany's para John. Eram os melhores amigos que possuía e os únicos membros da família de quem ela gostava. Naquela noite John a levou em casa no seu Fusca de segunda mão, enquanto Lionel ficava com os amigos. Ela sabia que a festa não ia acabar tão cedo, mas Lionel tinha querido que ela fosse para casa.

Achava que não ficava bem ela participar daquelas noitadas, eles às vezes falavam muito desabridamente e alguns dos amigos não eram tão discretos quanto eram John e Li. Ela abraçara o irmão antes de sair e beijou o rosto de John ao saltar do carro.

- Feliz Natal, amor. - Ele sorriu para ela.

- O mesmo para você. - Ela o abraçou depressa e saltou, correndo para cima, para o quarto, para experimentar seus presentes que eles lhe tinham dado. Eram um lindo suéter angorá rosa, macio, de Li, com echarpe condizente, e brinquinhos de pérola de John. Ela mal podia esperar para pô-los e, quando o fez, ficou se admirando à frente do espelho, com um sorriso feliz. Estava tão contente com seus presentes que nem viu a irmã entrar no quarto. Era Val, que ficou olhando enquanto ela se admirava. Val estava aborrecida e de muito mau humor. Greg prometera levá-la para sair com os amigos dele e à última hora dera o bolo. Vanessa tinha um compromisso com um namorado sério que tinha e Val ficou em casa, sobrando. Até mesmo Ward e Faye tinham ido tomar um drinque em casa de amigos e Valerie e Anne estavam sozinhas.

Val ficou olhando para ela.

- Onde é que você arranjou esse suéter e essa echarpe? - Ela queria experimentá-los, mas sabia que Anne nunca os ofereceria. Ela usava a maior parte das roupas de Vanessa, mas Anne ficava com a porta trancada a maior parte do tempo e nunca lhes oferecia coisa alguma, nem lhes pedia nada. Ela se mantinha isolada, como sempre fizera, e agora mais ainda.

- Foi Li quem me deu.

- Agradando a queridinha, como sempre.

Anne ficou magoada com essas palavras, mas não demonstrou nada. Nunca demonstrava. Ela era um gênio para esconder o que sentia. - Você e ele nunca foram muito íntimos.

Era um comentário de adulto e a sinceridade daquilo pegou Valerie de surpresa.

- O que é que isso tem a ver? Ele é meu irmão, não é?

- Então, faça alguma coisa por ele, um dia.

- Ele não se interessa por mim. Está todo absorto nos viadinhos dele.

- Saia do meu quarto! - Anne avançou para ela, com ar ameaçador, e ela recuou. Havia vezes em que a intensidade dos olhos de Anne a assustava.

- Está bem, está bem, não precisa brigar.

- Saia do meu quarto, sua puta! - Mas ela dissera a coisa errada. Val parou de repente e olhou para Anne com maldade.

- Eu tomaria cuidado, se fosse você. Não fui eu que engravidei e tive de vender meu filho.

Aquilo foi mais do que Anne conseguiu suportar. Ela armou um soco na cara de Val mas não acertou, e Valerie lhe agarrou o braço e bateu com ele na porta. Ouviu-se um estalo forte e as duas garotas pareceram ficar chocadas, mas Anne livrou o braço e tornou a mirar a cara de Val. Dessa vez ela não errou. Deu um soco na cara de Val e ficou olhando para ela, segurando o braço.

- Da próxima vez que você falar comigo, vou te matar, sua vaca, entendeu? - Ela atingira um nervo tão exposto que quase poderia ter falado a verdade, e nesse momento Faye e Ward chegaram. Viram o rosto de Val, viram Anne agarrando o braço e viram logo que as duas tinham brigado. Ralharam com ambas e Ward fez compressas de gelo para as duas, mas Faye insistiu em levar Anne ao hospital, para tirar uma radiografia. Viram que o braço estava luxado mas não rachado, afinal, e o enfaixaram. À meia-noite estavam de volta em casa e mal entraram, o telefone tocou. Era Mary Wells e ela estava histérica. A princípio, Faye não conseguiu entender o que ela estava falando... alguma coisa sobre um incêndio... uma árvore de Natal... e então sentiu um arrepio na espinha... seria em casa deles ou na casa de John? Ela começou a gritar no telefone, tentando saber o que tinha acontecido, mas aí Bob pegou o fone. Ele estava chorando francamente e Ward pegou a extensão e eles ouviram as palavras ao mesmo tempo.

- A árvore dos garotos pegou fogo. Deixaram acesa quando foram se deitar. John está... - Ele mal conseguiu continuar e eles ouviram a mulher dele soluçando, no fundo, e nalgum lugar bem longe havia cantos de Natal. Estavam recebendo amigos quando tiveram a notícia, e ninguém se lembrara de desligar a música. - John está morto. - Ah, meu Deus... não... e Li? - Faye murmurou as palavras no telefone, enquanto Ward fechava os olhos.

- Está muito queimado, mas está vivo. Achamos que deviam saber... Ligaram para nós agora... a polícia disse...

Faye não conseguiu ouvir o resto e caiu numa cadeira, enquanto Anne a olhava, os olhos apavorados. Eles se tinham esquecido dela e ela agora estava fitando a mãe.

- O que aconteceu?

- Houve um acidente. Li se queimou. - Ela mal podia absorver tudo, e sua respiração estava ofegante. Isso nunca lhe acontecera, mas por um momento ela pensara que iam lhe dizer que Li estava morto... mas era John... John... pobre menino...

- O que aconteceu? - Agora Anne estava chorando e as gêmeas tinham ido para o alto da escada. Faye olhou para elas, sem poder acreditar. Não era possível. Ela falara com ele há algumas horas.

- Não sei... a árvore de Li e John se queimou... John morreu... Lionel foi levado para o hospital... - Ela se levantou de um salto, enquanto as meninas começavam a chorar, Vanessa instintivamente abraçando Anne, e esta deixando. E Faye se virou e viu Ward chorando baixinho, tornando a pegar as chaves do carro. Eles saíram um momento depois, deixando Anne deitada ao sofá, soluçando, e Vanessa lhe afagando os cabelos com uma das mãos e segurando a mão de Val com a outra.

E no hospital, Faye e Ward encontraram Lionel sendo tratado de graves queimaduras nos braços e nas pernas. Ele estava soluçando, sem se controlar, e tentou explicar as coisas a Faye.

- Tentei... mãe, tentei... Ah, Deus, mãe... mas a fumaça era tanta... eu não conseguia respirar... - Os dois soluçando, ele contou da fumaça, e que ele tentara fazer respiração boca-a-boca em John depois de o arrastar para fora, mas que era tarde e ele mesmo mal conseguia respirar. Os bombeiros tinham chegado quando ele caiu desfalecido e ele acordou no hospital, onde uma enfermeira inadvertidamente lhe contou que John morrera, intoxicado pelos gases. - Nunca hei de me perdoar, mãe... foi por minha culpa... Esqueci de apagar as luzes da árvore... - A enormidade de sua perda tornou a dominá-lo, e Faye ficou ali sentada e chorou com ele, tranqüilizando-o, abraçando-o como pôde, com as ataduras e pomadas, mas ele não parecia estar ouvindo coisa alguma. Estava tão histérico por causa de John que nem sentia a dor das queimaduras. Ward ficou ali, sem saber o que fazer, enquanto Faye e o rapaz choravam e, pela primeira vez depois de muitos meses, sentiu alguma coisa pelo filho.

Olhou para ele com brandura e de repente se lembrou dele como era há tanto tempo... correndo pelo gramado... brincando com a charrete de pônei na casa velha, antes de tudo mudar... era o mesma garoto que ele estava vendo agora, só que ele se tornara um homem e eles não se compreendiam mais. Mas era difícil se lembrar disso quando o via ali deitado na cama agitando os braços enfaixados, e afinal Ward o abraçou, as lágrimas lhe escorrendo pelas faces, enquanto Faye olhava para os dois, desolada com o que tinha acontecido com John e sentindo-se culpada por ver como estava grata por não ter sido o seu filho.

 

O enterro foi devastador. Foi a coisa mais dolorosa que Faye já vira. Mary Wells estava histérica e Bob chorava mais ainda do que ela. As quatro irmãs de John pareciam estar em choque e quando levaram embora o caixão, Mary tentou atirar-se sobre ele, tendo de ser contida. Lionel estava tão alto, magro e abatido, com seu terno escuro que Faye nem sabia que ele possuía, que ela pensou que ele fosse desmaiar ali mesmo. E na mão esquerda, que não estava enfaixada, ela notou pela primeira vez, chocada, que ele usava uma aliança de ouro estreita. Ela não sabia se Ward notara aquilo, mas sabia o que significava e sabia o que John significara para ele. Era a maior perda que ele já tivera na vida e possivelmente uma das piores que jamais teria de suportar.

Anne se postou o mais perto dele possível. Chorava baixinho num lenço, e olhava para ele para ver se estava bem. E não havia dúvida quanto ao que aconteceria depois

- Ward e Faye tinham conversado a respeito, na véspera: Lionel ia voltar para casa, para passar uns tempos com os pais. Depois do enterro, ele e Ward foram dar uma caminhada. Greg tinha fugido quase no momento em que chegaram em casa. John fora seu amigo durante a maior parte da vida, mas ele agora não parecia estar sentindo tanto aquela perda.

- O que é que eu posso dizer? - disse ele a Val, depois do enterro, dando de ombros. - O cara era uma bicha escrota. - Mas também fora seu amigo, e Val se lembrava da paixonite que tivera por ele, sem resultado. Agora todos sabiam por quê.

Faye ficou discretamente vigiando Anne, ela passara por muita coisa naqueles últimos meses, mas agora parecia estar bem... diferente de Lionel, que estava andando ao lado do pai, duro, sem poder pensar em nada senão sua luta no meio das chamas, não conseguindo chegar até John. Ele pensara naquilo vezes e mais vezes, naqueles últimos três dias, desde que John morrera. Nunca se permitiria esquecer... nunca... era tudo culpa sua... ele se esquecera de apagar as luzes da árvore de Natal quando tinham ido para a cama... tinham bebido vinho demais... e aquelas desgraçadas de luzinhas de pisca-pisca... por que ele não se lembrara... era tudo sua culpa... bem poderia ter matado o amigo com as próprias mãos.

Ele disse isso mesmo ao pai, então. Não tinha mais nada em comum com Ward, mas tinha de falar com alguém. Estava se perguntando se os pais de John o culpavam.

- Deviam me culpar, sabe. - Ele olhou para o pai, com aqueles olhos desolados e Ward sentiu seu coração se enternecer pelo rapaz que ele tentara tanto detestar, naquele ano que se passara. E agora um deles estava morto, e o caso tivera de acabar. Faye tinha razão. Tinham tido sorte de não ter sido Li. Aqueles momentos ali com ele pareciam uma dádiva.

- Nós culpamos vocês dois por muita coisa, nesse ano que passou. E estávamos enganados. - Ward suspirou e olhou para as árvores, enquanto iam andando. Era mais fácil do que olhar nos olhos do filho, coisa que ele não fazia há mais de um ano, mesmo depois que Li e John salvaram Anne. - Eu não compreendia o que é que fez você ser como é. Pensei que a culpa fosse minha, e então descarreguei em cima de você... e eu estava errado... - Ele olhou para Lionel e viu as lágrimas escorrendo devagar pela face dele, lágrimas iguais às suas. - Eu estava errado, me culpando. Assim como você está errado, culpando-se agora. Você não poderia ter feito nada, Li... - Pararam de caminhar e ele segurou as mãos do rapaz. - Sei como você deve ter tentado - disse ele, a voz entrecortada. - Sei o quanto amava John. - Ele não queria saber, mas sabia. E então ele puxou Lionel para junto de si, seus rostos se tocando, seus corações batendo um contra o outro em seus peitos, as lágrimas de um caindo nos ombros do outro enquanto choravam e Lionel olhou para ele, parecendo de novo um menininho.

- Eu tentei, papai... tentei... não consegui tirá-lo dali a tempo... - Estava soluçando muito e Ward o abraçou com força, como que para protegê-lo de algum mal.

- Sei disso, filho... sei disso... - Não adiantava dizer a ele que estava tudo bem. Para John, nada estaria bem de novo. E Lionel se sentia como se nunca pudesse se refazer daquilo. Foi uma perda que nenhum deles jamais esqueceria, uma lição aprendida a duras penas. E quando voltaram para casa, os outros estavam à espera deles. O jantar foi sossegado, naquela noite, e depois cada um foi para seu quarto. Quase tudo quanto Lionel possuía tinha sido destruído pelo fogo, a não ser algumas coisas que tinha esquecido em casa dos pais, algumas peças de jóias que tinham sido enegrecidas pela fumaça mas não destruídas, e o carro, que agora estava estacionado lá fora. Ele dormiu no seu quarto antigo. Sem alarde, no dia seguinte, Faye foi fazer umas compras para ele, algumas coisas que ela sabia que ele havia de precisar, e ele ficou comovido. Ward lhe emprestou alguma coisa e os dois passaram juntos mais tempo do que haviam passado em muitos meses.

Greg voltou para a universidade e, no dia de seu aniversário, Anne também voltou ao colégio, depois de um ano de ausência. Era doloroso e difícil, mas era o que precisava fazer. Em todo caso, aquilo a distraiu. E algumas semanas depois Lionel pôde tirar as faixas dos braços. As cicatrizes ficaram, marcas que todos podiam ver, diferentes das internas. E ninguém comentou o fato de que ele não voltara para a universidade. Ainda não estava preparado para isso.

Um dia, ele espantou a todos, convidando Ward para almoçar. Olhou para o pai do outro lado da mesa no Polo Lounge e parecia bem mais velho do que era; Ward o observava, calado. Não compreendia o modo de vida do filho mais do que compreendera antes, e lamentava que fossem essas as preferências dele, mas agora o respeitava. Gostava da noção de valores que ele tinha, suas opiniões e raciocínio, e ficou ainda mais decepcionado quando Lionel lhe comunicou que não ia voltar para a universidade.

- Andei pensando muito nisso, pai. E queria que você fosse o primeiro a saber.

- Mas por quê? Só te falta um ano e meio, não é tão mau assim. É que você no momento está perturbado. - Pelo menos ele esperava que fosse isso, mas Lionel sacudiu a cabeça, em negativa.

- Não posso voltar, pai. Não pertenço mais àquilo. Tive uma proposta para trabalhar num filme, e quero fazer isso agora.

- E depois, daqui a três meses, isso acaba e você está desempregado de novo? -Era um negócio que ele conhecia bem.

- Tal e qual você, hein, pai? - disse ele, implicando, e Ward sorriu, mas continuava a não estar satisfeito com a notícia, embora o respeitasse por. lhe dizer aquilo de homem para homem. - Os estudos para mim acabaram. Tenho de voar com minhas asas.

- Você só tem vinte anos, qual é a pressa? - Mas ambos sabiam que o rapaz tinha vivido muito, para a idade dele, em parte por causa de John. Ele sofrera e perdera uma pessoa muito querida. Não podia voltar a ser criança, por mais que Ward o desejasse, e, embora resistindo, Ward também sabia disso. A morte de John mudara todos eles, permitira que ele formasse de novo um laço com o filho. Mas Lionel nunca mais seria tão jovem ou despreocupado quanto o fora antes. Talvez tivesse razão em parar de estudar, mas assim mesmo Ward o sentia. - Sinto ver você fazer isso, filho.

- Eu sabia disso, pai.

- Quem te ofereceu o trabalho? Lionel sorriu.

- A Fox. - Os concorrentes, claro. E Ward riu e levou a mão ao coração, como se tivesse levado um tiro.

- Que golpe. Sempre quis que você ficasse fora desse raio de negócio.

Ele estava falando sério, mas Lionel deu de ombros. - Você e a mãe parecem gostar bem disso.

- E às vezes ficamos de saco cheio, também. - Estava sentindo isso há algum tempo, e queria convencer Faye a fazer uma viagem com ele. Ela terminara um filme e estaria livre por uns tempos e agora não tinha mais pretextos. Então, olhando para Lionel, ele teve uma idéia. - Você não vai se mudar já, vai?

- Pensei em começar a me organizar um dia desses e procurar um lugar para morar. Não quero atrapalhar vocês.

- Em absoluto. - Ward sorriu, como se desculpando, lembrando-se de como fora duro com o filho. - Você estaria disposto a ficar por mais um mês e controlar as meninas?

- Claro. - Lionel parecia surpreso. - Por quê?

- Quero levar a sua mãe numa viagem. Ela precisa de uma folga e eu também. - Não tinham tido nem cinco minutos a sós, desde que ele terminara o caso e voltara para casa, nove meses antes, e já era mais que hora de fazerem uma viagem juntos. Lionel sorriu diante da idéia.

- Terei prazer em fazer isso, pai. Faria bem a vocês dois.

Ward sorria quando deixaram o restaurante. Eram amigos de novo. Amigos como nunca tinham sido. De homem para homem... por estranho que parecesse. E naquela noite Ward contou seus planos a Faye.

- E não quero saber de discussão. Nada de desculpas. Nada sobre o trabalho ou os filhos ou os atores com quem tenha de conversar sobre o argumento. Vamos partir daqui a duas semanas. - Ele já reservara as passagens naquela tarde. Iam a Paris, Roma e Suíça, e em vez de discutir, os olhos dela se iluminaram.

Está falando sério? - Olhou para ele, achando graça, e o abraçou.

- Estou. E se você não for de bom grado, eu a seqüestro. Vamos passar três semanas fora, talvez quatro. - Naquela tarde ele, em segredo, verificara o programa de produção dela e sabia que ela se poderia ausentar por esse período.

De noite, ela o acompanhou para o andar de cima com o passo mais leve e fez piruetas, de camisola, enquanto ele implicava com ela sobre Paris e Roma.

- Já faz tempo demais que não fazemos uma coisa dessas, Faye. - Eu sei. - Ela se sentou à cama, quieta, e olhou para ele. Quase já se tinham perdido, por uma ou duas vezes, quase tinham perdido dois filhos... uma filha... e um filho... abandonado um neto e o amante do filho morrera. Não fora fácil para nenhum dos dois. E há um ano atrás, se alguém perguntasse a ela se seu casamento poderia ser salvo, teria dito que não. Mas agora, olhando para ele, ela sabia que ainda amava aquele homem, com todos os seus defeitos, seus casos, as vezes em que ele lhe falhara, mesmo com a angústia que ele causara ao filho deles. Ela amava Ward Thayer. Ela o amava, havia anos, e provavelmente sempre amaria. Depois de 22 anos, tinha poucas ilusões a respeito dele, mas amava o homem que era. E naquela noite, quando foram para a cama, se amaram como se tinham amado anos e anos antes.

 

Paris estava maravilhosa naquela primavera, e eles passearam pelo Sena, foram ao Les Halles tomar sopa de cebola, passearam pelos Champs Elysées, foram à Dior e, depois, almoçar no Fouquet, jantar no Maxim's e na Brasserie Lipp. Tomaram drinques no Café Flore e Deux Magots e riram e se agradaram, se beijaram e se abraçaram comendo queijo e bebendo vinho. Foi exatamente o que Ward desejava que fosse: uma segunda lua-de-mel, um lugar onde podiam se esquecer de todas as tristezas do ano que passara, os filhos, os filmes, as responsabilidades... e, quando chegaram a Lausanne, Faye sentou-se para contemplar o Lac Leman e sorriu para ele.

- Sabe, fico contente por ter me casado com você. - Ela disse aquilo num tom displicente, enquanto tomava o café e comia um croissant, e ele riu.      

- Fico muito feliz por saber disso. O que te levou a essa conclusão?

- Bom - disse ela, pensativa, olhando para o lago -, você é um homem simpático. Às vezes faz uma trapalhada danada, mas é bastante esperto e bastante decente a ponto de voltar atrás e endireitar as coisas. - Ela estava pensando em Lionel, e estava aliviada ao ver que ele e o rapaz eram amigos de novo. E ela também estava pensando no caso dele.

- Eu me esforço. Por vezes não sou tão esperto quanto você, Faye.

- Besteira.

- Você está parecendo a Val. - Olhou para ela com reprovação e ela riu.

- Bom, não sou mais esperta do que você. Só sou mais teimosa, às vezes.

- Nem sempre tenho a coragem de persistir, como você tem. Às vezes tenho vontade de fugir.

Ele já tinha feito isso duas vezes, mas ela sempre o recebera de volta e ele era grato por isso. Mas se espantou diante do que ela disse em seguida.

- Eu às vezes também tenho vontade de fugir, sabe? Mas aí fico preocupada com o que aconteceria se eu fugisse... quem ficaria de olho na Val... quem ia ver se Anne estava bem... Vanessa... Greg... Li... - Sorriu para ele. - Você. Não sei por quê, mas sou tão danada de egocêntrica que acho que nada daria certo se eu desaparecesse, o que não é verdade, mas faz com que eu persista.

- Fico contente. - Sorriu para ela e segurou-lhe a mão. Ainda tinham um clima de romance, depois de tantos anos. - Porque você tem razão: nada daria certo se você desaparecesse, e fico contente por você não ter desaparecido.

- Talvez um dia eu faça isso. Talvez eu fuja e tenha um caso louco com um técnico da maquinaria do set. - Ela riu dessa idéia, mas Ward não pareceu achar graça.

- Eu às vezes me preocupo com isso. Há alguns atores com quem você trabalha que não me deixam assim muito feliz. - Era a primeira vez que ele confessava isso e ela ficou comovida.

- Eu sempre me comporto.

- Eu sei. É por isso que fico sempre de olho em você.

- Ah, é assim, é? - Ela puxou-lhe a orelha e ele a beijou e pouco depois eles entraram, esquecendo-se do Lac Leman e os Alpes, os filhos e as carreiras. Só pensaram um no outro, durante o restante de seus dias de viagem, e ambos estavam pesarosos quando embarcaram no avião para casa. - Foram férias deliciosas, não foram, amor?

- Foram. - Ele sorriu para ela e ela enfiou a mão no braço dele e encostou a cabeça nele.

- Um dia eu queria passar a vida fazendo isso.

- Não queria, não - disse ele, rindo. - Você ficaria louca da silva. Na semana que vem, você vai estar afundada no seu novo filme, e me dizendo que todos são uma droga, que nenhuma das roupas está certa, o cenário é um nojo, as locações não prestam, e ninguém sabe as falas. Val estar arrancando seus belos cabelos louros. Sem isso, você ficaria tão de saco cheio que não suportaria mais a vida... não é verdade? - Ela se riu diante dessa descrição precisa de sua vida profissional.

- Bem, talvez eu ainda não esteja preparada para me aposentar já, mas um dia desses...

- É só falar comigo.

- Falarei. - Parecia que falaria mesmo.

Mas ele estava com a razão. Duas semanas depois, a vida estava exatamente conforme ele descrevera: ela estava ficando inteiramente louca, a estrela principal criava problemas, duas outras estavam tomando drogas, outro bebia no set e aparecia bêbado todo dia depois do almoço, um set inteiro se incendiara totalmente, os sindicatos estavam ameaçando se retirar. A vida voltara ao normal, mas ambos estavam refeitos, depois da viagem. Quando voltaram, Lionel estava controlando bem as meninas.

Anne parecia ter-se acomodado na escola, as gêmeas estavam se comportando mais ou menos bem, as notícias de Greg eram boas e um mês depois Lionel se mudou de novo.

Tinha arranjado um apartamento para si e embora Faye soubesse que ele se sentiria só, sem John, achou que isso poderia ser bom para ele. Ele estava fazendo o filme para o Fox, e disse que estava indo bem, quando telefonou para casa. O único problema era Anne, que tinha querido ir morar com ele. Lionel a desencorajara. Disse que ela agora não se encaixava na vida dele, que ele tinha de levar a sua vida e ela a dela, que tinha dado certo durante algum tempo, mas não mais. Ela agora tinha de voltar a fazer uma vida para si no colégio, fazer novas amizades, reviver as antigas, se quisesse. Mas ela devia ficar com Ward e Faye, ele lhe disse.

Ele se mudou numa tarde de sábado, e Anne ficou olhando para ele, em prantos, e passou o resto do dia no quarto. Mas, no dia seguinte, ela foi ao cinema com uma amiga e Faye achou que havia esperanças para ela. Há muito tempo que ela não falava na sua gravidez, e nunca falava no bebê que entregara e Faye rezava para que ela se esquecesse de tudo, se fosse possível.

Faye também tentou esquecer, mergulhando no seu filme, só parando para a entrega dos Prêmios da Academia, que naquele ano era no Auditório Cívico de Santa Monica.

Ela convenceu Lionel e as gêmeas a irem. Achava que Anne era menina demais, de modo que ela ficou em casa num isolamento solitário, como sempre, recusando-se a sequer assistir ao espetáculo pela TV.

Faye não achava que ia ganhar, e ficou dizendo a Ward, enquanto se vestia, que era ridículo ficarem empolgados com aquilo, não significava mais nada... nada parecido com quando ela era jovem... quando estava representando... quando fora a primeira vez.

- E afinal de contas - disse ela, olhando para ele enquanto punha o colar de pérolas -, já ganhei dois.

- Exibida - disse ele, implicando e ela corou.

- Não era isso que eu queria dizer. - Ela estava espetacular com um vestido de veludo preto que acentuava os seios, ainda firmes e perfeitamente redondos, e ele enfiou a mão por dentro do vestido, e ela o enxotou. Queria estar perfeita, na noite. Todas estariam tão lindas e jovens... e ela já estava com 47 anos... 47... como é que tudo acontecera tão depressa? Parecia que era o ano passado que ela estava com 22 anos... e depois 25... e loucamente apaixonada por Ward Thayer... e eles dançavam toda noite no Mocambo. Ela olhou para Ward com uma expressão sonhadora, lembrando-se do passado distante, e ele a beijou no pescoço, delicadamente.

- Você hoje está linda, meu amor. E acho que vai vencer.

- Não diga isso! - Ela nem queria pensar naquilo. Mas as coisas entre eles andavam às mil maravilhas, desde que tinham voltado da viagem. Havia uma aura de romance que por vezes excluía to do mundo, mas ela não se importava com isso. Adorava estar a sós com ele, a despeito dos filhos que eles tanto amavam. Por vezes, só precisavam um do outro. E quando saíram de casa, naquela noite, com as gêmeas, todas vestidas de longo e o colar de pérolas que Faye emprestara a cada uma, Faye viu Anne, de pé no quarto dela e entrou para lhe dar um beijo de boa noite. Ela parecia uma criança só e perdida, e Faye ficou com pena de não a ter convidado também, mas ela era tão menina, só 15 anos... e afinal era uma noite de segunda-feira, dissera ela a Ward. Anne tinha colégio no dia seguinte. No entanto, estava-se recriminando por não levá-la. - Boa noite, amor. - Ela beijou o rosto da caçula, nervosa, e a menina olhou para ela ainda com aquele ar intrigado que parecia estar perguntando quem ela era. Ela havia alimentado a esperança de que, depois de ter apoiado a filha durante o parto, elas poderiam ser amigas, mas isso não se dera. Em seu íntimo, Anne a culpava por tê-la feito largar a criança e assim que ela voltara da casa de saúde, as portas se fecharam de novo. Não havia como alcançar a garota. A não ser Lionel, claro. Ele era pai e mãe para ela.

- Boa sorte, mãe - disse ela quando saíram, sem se interessar, e depois foi comer alguma coisa.

Apanharam Lionel no caminho. Ele estava muito bonito, com um velho smoking, de Ward, e foi tagarelando com as gêmeas no banco de trás do Jaguar Te Faye, e Ward reclamando que o carro não estava funcionando bem, não sabia o que ela fazia com ele. Foi uma dessas noites nervosas, em que as pessoas fingem que não estão pensando no que estão, de fato. Todo o mundo estava presente, Richard Burton e Liz, ambos candidatos ao prêmio, com o trabalho em Virginia Woolf, e ela estava com um brilhante do tamanho de um punho. As irmãs Redgrave estavam presentes, ambas também indicadas... Audrey Hepburn, Leslie Caron, Mel Ferrer. Faye tinha de enfrentar Antoine Lebouch, Mike Nichols e mais outros, como melhor diretora. Anouk Aimée, Ida Kaninska, as Redgraves e Liz Taylor competiam como melhor atriz. Scofield, Arkin, Burton, Caine e McQueen como melhor ator. Bob Hope divertiu a todos como mestre-de-cerimônias e aí de repente pareceu que estavam chamando o nome de Faye... Ela ganhara de novo como melhor diretora, e voou para o palco, os olhos cheios de lágrimas, ainda sentindo o beijo de Ward nos lábios. E de repente lá estava ela, olhando para todos, a estatueta dourada nas mãos, como a segurara, havia tanto tempo, quando pela primeira vez a ganhara, como melhor atriz, em 1942... há cem anos, parecia e parecia que era ontem... 25 anos... e a emoção ainda era forte, para ela.

- Obrigada... vocês todos... meu marido, minha família, meus colegas, meus amigos... obrigada. - Saiu radiante do palco e mal se lembrou do que aconteceu no resto da noite.

Afinal, chegaram em casa às duas da madrugada, e ela sabia que era muito tarde para as gêmeas chegarem em casa, mas era uma noite especial. Eles tinham ligado para Anne, do Moulin Rouge, mas ela não atendera ao telefone. Val sugeriu que ela devia estar dormindo, mas Lionel sabia que não. Era o meio que ela adotara para excluí-los, de se desforrar deles por não a incluírem. E, como a mãe, ele sabia que tinham errado, não a levando.

Bem mais tarde, deixaram Lionel em casa e ele tornou a beijar a mãe. As gêmeas estavam estranhamente caladas, no restante do caminho de casa. Vanessa estava quase dormindo e Val não tinha dado uma palavra com Faye a noite toda. Estava furiosa com o prêmio da mãe. Lionel e Vanessa viam perfeitamente, mas Faye parecia não se dar conta de como Val tinha inveja dela.

- Vocês se divertiram, meninas? - Faye se virou para olhar para elas no carro, pensando no Oscar que ganhara. Eles o tinham levado para ser gravado, mas ela ainda sentia sua presença, como se ainda ó tivesse nas mãos. Era impossível acreditar que aquilo lhe acontecera de novo. Ela agora possuía três Oscars. Sorriu para Val e teve um sobressalto ao ver uma expressão fria nos olhos dela, uma coisa que ela até então nunca reconhecera claramente. Dessa vez não era só raiva, era inveja.

- Foi bom. Você deve estar muito satisfeita consigo mesma. - Eram palavras antipáticas e mais ninguém pareceu ouvi-las do jeito que Faye as ouviu, mas eram dirigidas direto ao seu coração e acertaram o alvo.

- É muito empolgante, acho que sempre é. Val deu de ombros, olhando para ela.

- Ouvi dizer que às vezes dão os prêmios por compaixão. - A observação foi tão ultrajante que Faye começou a rir.

- Não me considero tão caquética assim, embora você nunca saiba. - E claro que era verdade, às vezes preteriam a pessoa e no ano seguinte compensavam, só que negavam que fosse isso, mas todos achavam que era. - É isso que você acha que foi, Val? - A mãe examinou os olhos dela. - Compaixão?

- Quem sabe? - Ela deu de ombros, indiferente, e olhou pela janela de novo, quando estavam chegando em casa. Estava irritada porque Faye tinha ganho o troféu e não escondia seus sentimentos. Foi

a primeira a sair do carro, a ir para o quarto, a fechar a porta e nunca mais mencionou o Oscar, nem mesmo a Anne, no dia seguinte. Nem quando as amigas o mencionaram no colégio, e a felicitaram. O prêmio lhe parecia estranho, ela não tinha nada a ver com aquilo, afinal, e o que lhe importava, mesmo? Portanto, ela apenas dava de ombros e dizia:

- É, e daí? Grande coisa. - E mudava de assunto, falando de coisa que lhe interessasse, como as Supremes. Ela já estava farta de ouvir falar de Faye Thayer. Não era nada de mais. E um dia ela havia de mostrar a todos eles, ela ia ser uma atriz que ia deixar Faye Price Thayer no chinelo. Só lhe faltavam alguns meses para poder chegar lá e mostrar do que era capaz, e mal podia esperar. Ela ia mostrar a todos. A mãe que se danasse... três Oscars? E daí?

 

As gêmeas diplomaram-se no segundo grau, dois meses depois de Faye receber o Prêmio da Academia e Greg voltou para casa para passal o verão a tempo de comparecer à cerimônia no seu antigo colégio.

Naquele ano, todos estavam de olhos enxutos. No meio da cerimônia, Ward se inclinou para Faye e disse:

- Acho que a essa altura eles é que nos deviam dar um diploma. - Faye deu uma risada baixinho e revirou os olhos. Ele tinha razão, e eles estariam ali de volta dali a quatro anos, para Anne. Aquilo pare cia não acabar nunca. E dali a dois anos Greg estaria se diplomando pela Universidade de Alabama. Parecia que eles passavam a metade das vidas assistindo aos jovens se enfileirar de beca e capelo. Mas, apesar de já terem visto aquilo tantas vezes, foi comovente ver as gêmeas ganharem seus diplomas. Estavam com vestidos brancos simples, sob as becas - o de Vanessa inteiramente liso, de decote fechado e uma bainha bordada, o de Val um organdi um pouco exagerado, com sapatos de saltos muito altos e sexy, que acentuavam suas pernas. Mas os sapatos não eram o que Faye mais desaprovava nela. Valerie se recusara terminantemente a se candidatar a qualquer universidade, do Leste ou do Oeste. Ia ser modelo, atriz, e nas horas de folga ia tomar aulas de teatro, não no departamento de teatro da UCLA, mas no tipo em que os "atores de verdade" iam entre seus desempenhos, para aperfeiçoar suas habilidades. Ela estava certa de que estaria nas turmas de Dustin Hoffman e Robert Redford e estava igualmente segura de que ia atear fogo ao mundo, a despeito de tudo quando Ward e Faye lhe diziam.

Aquela fora uma discussão acalorada, que durara vários meses e ela era mais obstinada do que qualquer dos dois. Em desespero de causa, Ward lhe dissera que não a sustentaria mais se ela não fosse estudar e ela pareceu não se importar. Alguém lhe contara de um grupo de jovens atrizes de Hollywood: por apenas 11 dólares por mês, ela poderia ter uma vaga num quarto. Duas das atrizes tinham trabalho nas novelas, uma fazia filmes pornô - se bem que isso Val não contasse aos pais -, outra fora estrela importante num filme de terror no ano anterior, e havia mais quatro que eram modelos. Aquilo parecia um bordel, a Faye, e ela disse isso a Val, mas àquela altura as gêmeas já estavam com quase dezoito anos, coisa que Val estava sempre lhe lembrando. Era uma discussão que não podiam vencer. Uma semana depois, souberam que ela ia se mudar. Vanessa fizera exatamente o que planejara. Candidatara-se a um punhado de universidades do Leste, fora aceita por todas e ia para Barnard, no outono. Ia ficar em casa até fins de junho e depois seguiria para Nova York, para trabalhar dois meses antes de começarem as aulas. Tinha conseguido um emprego de recepcionista numa editora e estava toda entusiasmada. Enquanto isso, Greg ia para a Europa, com amigos. Naquele ano, só Anne ficaria em casa. Eles tinham querido convencê-la a ir para um acampamento, mas ela dizia que estava velha para isso e queria fazer um acampamento com Lionel, por uma ou duas semanas. Mas ele estava trabalhando num novo filme para a Fox e não tinha tempo. Ward e Faye também estavam começando um filme importante. Desde o Prêmio da Academia, as propostas estavam surgindo com maior freqüência ainda. Faye já tinha três projetos engatilhados, um depois do outro, para o ano seguinte, e não tinha folga alguma. Ward lembrou a ela que tinha sido bom eles terem feito aquela viagem à Europa naquela ocasião, e ela concordou.

A festa de formatura das gêmeas foi a mais animada de todas e Faye olhou para Ward exausta quando o último convidado se retirou, às quatro da manhã.

- Talvez estejamos ficando velhos para esse tipo de coisa.

- Fale por si. Quanto a mim, acho que as garotas de dezessete anos são bem mais interessantes do que eram antes.

- Cuidado com isso. - Ela o ameaçou com o dedo e se deitou na cama, antes de sair para o trabalho, às cinco. Ela queria armar uma grande cena e Ward ia passar o dia com Lionel e Anne. Val tinha um programa importante e Vanessa tinha seus planos. Só Deus sabia onde estava Greg, ou com quem, mas sem dúvida estava metido com esportes, cerveja ou garotas, e ele parecia ser relativamente capaz de se cuidar; assim, Faye foi trabalhar, feliz, na hora em que Ward adormeceu. E o verão pareceu passar num ai. Valerie mudou-se para o apartamento de que tanto gostara, e naquele momento havia nove moças morando lá. Era uma casa imensa e a metade das camas não tinha lençóis. Na cozinha havia seis garrafas de vodca, dois limões, três garrafas de soda e nada de comida na geladeira, e ela quase nunca via as outras garotas. Elas tinham suas vidas, seus namorados, algumas tinham telefones próprios e Val nunca se sentira tão feliz na vida, disse ela a Vanessa, antes de partir.

- Isso é exatamente o que eu sempre quis fazer.

- Que tal as aulas de teatro? - perguntou Vanessa, pensando como é que elas duas podiam ter saído do mesmo ventre, tido a mesma vida, o mesmo lar. Não podia haver duas pessoas mais diferentes. Val deu de ombros.

- Ainda não tive tempo de me matricular. Estive ocupada dando umas olhadas por aí. - Mas, em agosto, ela deu sorte. Vanessa já tinha partido há tempos, estava hospedada no Barbizon em Nova York e procurando um apartamento com uma colega do trabalho. O emprego na Parker Publishing era bem monótono e ela passava o tempo atendendo ao telefone, mas estava com esperanças de gostar de Barnard. Uma noite, tarde, Valerie ligou para ela para contar que tinha um papel secundário num filme de terror.

- Não é formidável?

Eram três da madrugada e Vanessa bocejou, mas não quis desanimar Val. Estava contente porque a gêmea lhe ligara.

- O que é que você faz?

- Ando pelo set, o sangue jorrando de meus olhos, nariz e ouvidos.

Vanessa conteve um gemido.

- Que ótimo. Quando começa? - Na semana que vem.

- Bom, já contou à mãe?

- Não tive tempo, vou ligar esta semana. - Mas ambas achavam que Faye não ficaria muito empolgada, se bem que não o dissessem. Parecia que ela nunca entendia nada do que Val fazia, ou era o que Val achava, e nunca ficava satisfeita por ela, e provavelmente também não ficaria com isso. Mas ela também começara por baixo. Diabo, tinha feito anúncios de sabão em Nova York durante um ano antes de ser descoberta. E Val estava entrando direto nos filmes, como ela disse a Van, que não lhe lembrou que a mãe não tivera de andar por um set sangrando pelo nariz, os olhos e os ouvidos. - Como vai o seu emprego, Van? - Ela estava se sentindo magnânima, em geral não ligava para ninguém, só para ela, como Vanessa sabia muito bem.

- É regular. - Vanessa bocejou de novo. - Na verdade, é um saco. Mas conheci uma garota legal, de Connecticut. Pensamos em arranjar um apartamento juntas perto de Colúmbia. Ela também vai estudar lá.

- Ah. - Valerie já estava parecendo aborrecida e resolveu desligar. - Eu te ligo para contar como vão as coisas.

- Obrigada. Cuide-se.

Elas eram estranhamente íntimas, e no entanto não eram, eram ligadas uma à outra mas sem nada em comum. Era um laço que Vanessa sempre sentira mas nunca entendera bem. Ela invejava outras irmãs que pareciam se dar bem. Não era ligada a nenhuma das suas, e sempre ansiara por uma irmã com quem pudesse conversar, em quem pudesse confiar, e era isso que era tão bom na garota de Connecticut.

E na Califórnia, Anne também estava descobrindo isso. Um dia encontrara uma garota andando por Rodeo Drive, comendo uma casquinha de sorvete e girando uma bolsinha rosa. Parecia um anúncio de revista e sorrira para Anne. Anne achara que ela era linda e uma hora depois a vira almoçando no Daisy, sentada sozinha, quando Anne foi lá comer um hambúrguer. A mãe lhe dera dinheiro para comprar dois pares de sapatos e ela estava passeando por Rodeo Drive, vendo as pessoas andando ao sol forte.

O dia estava quente, mas havia uma boa brisa e ela se sentou na mesa ao lado da garota da bolsinha rosa. Elas se sorriram de novo e começaram a conversar. A garota tinha cabelos castanhos macios, quase até à cintura e grandes olhos castanhos e devia ter seus dezoito anos, pensou Anne, mas ficou espantada ao saber que elas eram da mesma idade, quase exatamente.

- Olá, eu sou Gail.

- Eu sou Anne. - Se dependesse dela, a conversa teria parado aí, mas Gail parecia ter muito assunto. Disse que tinha visto uma saia legal no Giorgio's, de couro branco, macia mesmo, e também tinham botas. Anne ficou impressionada com os lugares onde a outra andara e contou dos sapatos que tinha visto naquela rua. Falaram sobre os Beatles, Elvis, jazz, e por fim de colégios.

- Vou para Westlake no ano que vem. - Ela não parecia estar impressionada, e Anne arregalou os olhos.

- Vai mesmo? E eu também! - Era outra coincidência feliz, além das idades. Ela contou a Anne com franqueza que tinha tido mononucleose e depois uma crise de anorexia e que tinha perdido um ano letivo. Já estava com 15 anos e atrasada um ano, mas deu de ombros e Anne pensou que parecia que pela primeira vez a sorte lhe sorria. Ela também foi sincera com a garota, até certo ponto, havia certas coisas que nunca pretendia contar a ninguém, como o bebê que ela abandonara, mas havia outras coisas que ela podia contar.

- Larguei os estudos um ano e também estou atrasada um ano. - Isso é fantástico. - Gail parecia empolgada e Anne sorriu. Ninguém jamais reagira assim e ela viu logo que gostava daquela garota. Estava disposta a fazer amizade, e ficava de saco cheio, os dias inteiros na piscina dos Thayer, sozinha. Talvez Gail gostasse de ir lá, um dia. - O que é que você fez, quando largou a escola? - A menina parecia fascinada com sua nova amiga aventureira e Anne procurou parecer blasée.

- Fui passar uns tempos em Haight-Ashbury. Gail arregalou os olhos.

- Foi mesmo? Puxa! Tomou drogas?

Anne hesitou um instante e depois sacudiu a cabeça.

- Aquele negócio não é nenhuma maravilha. - Ela sabia que não era isso, mas também sabia o preço que se pagava e sabia que essa garota não conhecia nada sobre aquela vida. Parecia direita, arruma da e bonitinha, bem vestida e um pouco mimada. Era o que algumas pessoas descrevem como uma princesa judia americana, e Anne se interessou por ela. Todas as garotas de seu colégio eram tão chatas e quase ninguém tinha falado com ela, quando ela voltou de Haight, mas aquela não era nada igual a elas.

Tinha classe e beleza, e evidentemente tinha uma personalidade forte e elas logo se sentiram atraídas uma pela outra. No final do almoço, estavam dando risadas e se divertindo muito e o madre as estava olhando de mau humor, por estarem prendendo duas mesas do lado de fora, até que Gail sugeriu que fossem dar uma volta por Rodeo Drive.

- Vou te mostrar as botas do Giorgio's, se você quiser. - Anne ficou ainda mais impressionada quando viu que Gail tinha conta lá e que todos pareciam querer ajudá-la a comprar alguma coisa. Em geral, quando mocinhas entram num lugar assim, os vendedores querem se ver livres delas, mas não no caso de Gail. Todos a chamavam pelo nome e até ofereceram uma Coca-cola do bar a Anne. Elas se divertiram muito, embora Gail afinal resolvesse que não gostava assim tanto das botas, e elas estavam rindo quando saíram.

- Vou te mostrar os sapatos na loja onde fui. - Havia anos que ela não se divertia tanto, as duas tinham se dado bem e estavam tendo uma tarde ótima, sem terem o que fazer. - A sua mãe deve comprar muita coisa no Giorgio's, para eles nos tratarem tão bem.

Gail ficou calada, um pouco, olhando para nada, e depois olhou para Anne.

- Minha mãe morreu de câncer, há dois anos. Tinha 38 anos. - Aquelas palavras foram tão chocantes que Anne ficou olhando fixamente para a outra. Era a pior coisa que ela já ouvira, muito pior do que tudo o que já lhe acontecera, de certo modo. Embora ela e Faye não fossem muito ligadas e ainda houvesse ocasiões em que Anne a detestasse, ainda assim, se ela morresse daquele jeito seria terrível, e ela ainda via a dor nos olhos de Gail.

- Você tem irmãos?

- Não, só tenho o meu pai. - Ela olhou para Anne com franqueza enquanto elas iam andando. - É por isso que ele me mima um pouco, eu acho. Parece que eu sou só o que restou para ele. Procuro não me aproveitar disso, mas às vezes é difícil. - Ela sorriu e Anne notou que o rosto tinha uma porção de sardas. - Gosto de fazer o que quero e ele fica tão aflito quando eu choro... Anne riu. - Coitado. - Como é que são os seus pais?

Anne detestava até falar deles, mas depois da confidência de Gail, pareceu justo partilhar alguma coisa com ela.

- São normais.

- Você se dá bem com eles?

Anne deu de ombros. A verdade é que não se dava, e nunca se dera bem com eles.

- Às vezes. Não foi nenhuma maravilha para eles quando fugi de casa.

- E agora, eles confiam em você? - Acho que sim.

- Você faria isso de novo?

Gail estava curiosa sobre a nova amiga.

Mas Anne sacudiu a cabeça. - Não faria, não.

- Você tem irmãos? - Elas tinham chegado à sapataria e estavam andando por ela, enquanto Anne fez que sim.

- Dois irmãos e duas irmãs.

- Puxa! - Gail sorriu o seu sorriso deslumbrante. Ela poderia ter sido atriz-criança, se quisesse, mas o pai se teria preocupado demais. - Que sorte a sua!

- É o que você pensa! - Anne é que sabia e revirou os olhos. - Como é que eles são?

- Lionel, o meu irmão mais velho, é legal. Vai fazer 21 anos. - E ela não disse a Gail que ele era bicha. - Ele também largou os estudos e está fazendo filmes para a Fox. - Ela falou a coisa como uma profissional e Gail ficou impressionada de novo. - O meu outro irmão é atleta e está na Universidade do Alabama, com uma bolsa de futebol. Está no segundo ano. E minhas irmãs são gêmeas. Uma foi para Leste, para Barnard, e a outra está tentando ser atriz, aqui.

- Puxa, mas que legal!

- Lionel é... sempre fomos muito ligados... os outros são... bem... - ela deu de ombros de novo, deixando-os de lado com um gesto -, um pouco estranhos, às vezes.

- Era o que diziam dela, também, mas ela não se importava com o que dissessem, agora. Já tinha uma nova amiga sua.

Gail comprou dois pares dos mesmos sapatos em cores diferentes, e pouco depois olhou o relógio de pulso.

- O meu pai vai me apanhar às quatro, defronte do Beverly Wilshire. Você quer condução para algum lugar?

Anne hesitou. Tinha ido de táxi, mas seria divertido ir de carro com Gail.

- Será que ele não ia se incomodar?

- Nada. Ele adora fazer essas coisas. - Dar carona a estranhas? Anne se riu. Gail era ingênua, em certos sentidos, mas ela gostava disso na outra. Elas atravessaram o Wilshire Boulevard e ficaram em frente do hotel suntuoso, esperando chegar o carro, e Anne ficou impressionada ao ver o carro dele. Era um Rolls cinza em dois tons, e Gail acenou os braços, freneticamente, quando ele ia parando. A princípio, Anne pensou que fosse brincadeira dela, por causa do carro tão luxuoso. Mas um homem troncudo, de ombros largos, com feições parecidas às dela, se debruçou e abriu a porta e Gail pulou para dentro e chamou Anne, depois explicou logo para o homem na direção do Rolls. - Olá, papai, fiz uma nova amiga. Ela vai à mesma escola que eu, no ano que vem. - Ele não pareceu se importar que ela estivesse pegando uma carona, e apertou-lhe a mão com simpatia. Não era um homem bonito, mas tinha uma cara boa, resolveu Anne. Chamava-se Bill Stein, e Anne deduziu que ele era advogado no mundo das diversões e ela estava certa de que ele devia saber quem eram seus pais, mas não disse os nomes deles. Ela era apenas Anne.

Ele as levou a Will Wright's, no Sunset Boulevard, para tomar sorvete. E tinha uma surpresa para Gail naquela noite, disse. Eles iam jantar no Trader Vic's e depois iam ao cinema com amigos. E o mais engraçado é que o filme era de Ward e Faye, mas Anne só disse que já o tinha visto e tinha gostado muito, e depois eles conversaram sobre outros assuntos. E, o tempo todo, ela sentiu os olhos dele sobre si, como se ele estivesse querendo descobrir quem ela era, mas mais como se estivesse querendo puxar por ela. E o estranho é que ela se sentia segura com ele, e à vontade, de um modo que era raro para ela. Quando a deixaram em casa, ela ficou com pena de se separar deles, e ficou olhando o Rolls cinzento desaparecer, querendo rever Gail. Ela dera o número de seu telefone à menina, no trajeto para casa, e Gail prometera ligar no dia seguinte e ir lá tomar banho de piscina com ela. Anne mal podia esperar. Ficou pensando se o sr. Stein iria levar a amiga. E ficou espantada ao ver o pai em casa, ao entrar, até olhar para o relógio e ver que já eram quase seis horas.

- Olá, amor. - Ele levantou os olhos do cálice de vinho que estava servindo para si. Faye ainda não chegara e só iam jantar dali a umas horas. Ele queria descansar, assistir ao noticiário, talvez nadar um pouco, e tomar o seu vinho. Ele não bebia mais muito, só vinho. E ficou espantado ao ver Anne parecendo tão satisfeita consigo mesma, e nem podia imaginar por que seria. A maior parte do tempo, ela ficava escondida no quarto. - O que é que você fez hoje?

Ela olhou bem para ele e depois deu de ombros.

- Nada de mais. - E aí desapareceu no andar de cima, como sempre, e fechou a porta do quarto, dessa vez com um sorriso, pensando na nova amiga.

 

O Barbizon para Mulheres tinha sido um lar agradável para Vanessa, desde que ela chegara a Nova York. Lá só moravam mulheres, ficava num bairro bom, na Rua 63 com Lexington, havia uma piscina e uma lanchonete embaixo. Satisfazia a todas as suas necessidades e, além disso, ela quase não parava ali. Louise Matthison também morava lá. Elas iam passar fins de semana em Long Island, com conhecidos de Louise, e afinal encontraram um apartamento para dividir. Ficava na Rua 115 no West Side, e ela sabia que os pais teriam um ataque se vissem a vizinhança. Mas ficava perto de Colúmbia, e todos os estudantes moravam por lá. Ela não gostou tanto quanto do Barbizon, mas ali havia mais liberdade. Elas se mudaram um mês antes do início das aulas, e se revezavam nas compras de casa e tarefas domésticas.

Um dia, era a vez de Vanessa e ela estava subindo a escada com um saco de compras em cada braço. Havia um elevador antigo, que nunca funcionava, e ela receava ficar presa nele. Era mais fácil lutar para subir a escada para o terceiro andar, mas nisso, numa tarde quente de agosto, depois do trabalho, ela viu uma pessoa olhando para ela, lá de cima. Ele era alto e tinha cabelos castanhos, um rosto agradável e estava de short e camiseta, com um maço de papéis na mão.

- Precisa de ajuda? - Ela olhou para ele e já ia recusar, mas gostou da cara dele. Tinha alguma coisa de prático e inteligente, que logo lhe agradou. Era o tipo de homem que ela esperara encontrar na Parker, quando se empregara lá. Mas nunca conhecia ninguém que a interessasse e aquele rapaz ali tinha alguma coisa que a atraía. Ela não sabia bem o que seria, talvez apenas o maço de papéis na mão dele. Parecia um manuscrito, e ela não estava muito enganada. Era exatamente o que era, explicou ele, ao colocar seus sacos de compra junto à porta dela.

- Acabou de se mudar? - Ele nunca a vira e já morava lá havia anos. Mudara-se para lá quando fora para seus estudos de pós-graduação, e os terminara no ano anterior.

Mas tinha preguiça de se mudar, tinha papéis demais espalhados. Estava fazendo pesquisas para uma tese de filosofia e estava pensando em escrever uma peça, mas se esqueceu de tudo isso ao olhar para aquela garota esguia com os cabelos louros e compridos. Ela respondeu à pergunta dele com um gesto de cabeça e pegou a chave de dentro da bolsa.

- Eu me mudei para cá, com uma amiga, há duas semanas. - Val começar os estudos de pós-graduação no mês que vem? - Ele conhecia o tipo. Havia anos que saía com elas.

Estava na Colúmbia desde 1962, e cinco anos é muito tempo, quase seis, aliás. Mas ela estava sorrindo para ele, achando graça. Ultimamente as pessoas tinham começado a achar que ela era mais velha do que era. Era uma mudança agradável, depois de passar anos em que as pessoas a achavam menos sofisticada e muito mais moça do que sua gêmea.

- Não. Ainda não me formei, mas obrigada pelo elogio.

Ele sorriu, um sorriso sincero. Tinha dentes bonitos e um sorriso atraente.

- De nada. Bom, nós nos vemos por aí.

- Obrigada de novo pela ajuda. - Ele desceu a escada com o manuscrito na mão e Vanessa ouviu uma porta bater no segundo andar. Nessa noite, ela o mencionou a Louise, que sorriu enquanto enrolava o cabelo, para ir trabalhar no dia seguinte.

- Ele parece engraçadinho. Quantos anos você acha que ele tem?

- Não sei. Velho, eu acho. Disse que estava trabalhando na tese dele, e estava com um manuscrito na mão.

- Talvez ele só estivesse brincando com você.

- Acho que não. Ele deve ter quase seus 25 anos. - Louise logo perdeu o interesse por ele: acabava de completar dezoito anos e achava que dezenove já era bem velho. E 25 não tinha nem graça. Só queriam ir para a cama logo de saída e Louise ainda não estava pronta para isso.

Afinal, Vanessa estava certa, ou quase. Ele tinha 24 anos e eles se encontraram de novo num domingo de noite, quando as garotas estavam voltando de um fim de semana em Quogue. Elas estavam equilibrando valises e raquetes de tênis, o chapelão de Louise e a câmara de Van e estavam saltando do táxi que as levara da Estação Penn, até ali. Ele estacionara o seu MG surrado do outro lado da rua e as estava observando. Achou que Vanessa tinha pernas lindas, com os short e sandálias que estava usando. Ela se parecia muito com Yvette Mimieux, até o narizinho arrebitado, e tinha lindos olhos verdes, ele notara isso naquele dia na escada. Ele atravessou a rua, de novo de short e camiseta e mocassins sem meias.

- Oi. - Eles não se tinham apresentado, e ele não sabia o nome dela, mas se prontificou a ajudar com as bagagens. Estava equilibrando as duas raquetes de tênis, uma valise em cada mão e sua própria pasta, o que não era pouco, e Vanessa estava tentando desajeitadamente ajudar e agradecer a ele, quando tudo caiu no chão defronte à porta delas e ele olhou para ela. - Vocês carregam um bocado de coisas por aí. - E depois, baixinho, quando Lou entrou em casa. - Quer descer para tomar um cálice de vinho? - Vanessa ficou tentada, mas teve a impressão de que ele estava querendo se aproveitar dela. Ela não costumava ir aos apartamentos de homens, e nem sabia quem ele era. Poderia ser o estrangulador de Boston, ao que ela soubesse. Mas ele pareceu ler os pensamentos dela. - Não vai ser estuprada, juro. Só se concordar. - Ele a examinou, e ela corou, enquanto ele se perguntava exatamente que idade ela teria. Parecia ter 21 anos, mas ela dissera que ainda era estudante de universidade.

Talvez tivesse vinte, ou até dezenove anos. Tinha um ar calmo e tranqüilo, e toda aquela beleza loura que o atraía. Ele estava louco para passar algum tempo com ela.

Em vez de descer com ele, ela o convidou para entrar e tomar uma cerveja com sua amiga e ela. Não era o que ele teria preferido, mas já que não tinha escolha, ele aceitou de bom grado, pôs o resto da bagagem dentro do vestíbulo, fechou a porta e olhou para ver o que elas tinham feito com o apartamento. Estava tudo pintado de amarelo claro e havia plantas e revistas e muita palhinha e umas gravuras indianas e uma fotografia de uma grande família na parede. Um grupo maciço, junto de uma piscina. Aquilo lhe pareceu muito californiano e ele indagou quem eram; e de repente reconheceu Van, junto de Valerie, e Lionel ao seu lado.

- É a minha família. - Ela disse aquilo com simplicidade e ele não indagou quem eram e de repente Louise riu, passando por eles com uma lata de cerveja na mão.

- E não vai perguntar quem é a mãe dela?

Vanessa corou até à raiz dos cabelos e teve vontade de esganar a amiga. Ela detestava falar naquilo, mas Louise ficara impressionada desde que descobrira que a mãe dela era Faye Thayer. Tinha visto todos os filmes dela, inclusive aqueles em que ela representara, anos antes.

- Muito bem - e o rapaz alto de cabelos castanhos olhou para ela com um sorriso obediente. - Quem é a sua mãe?

- Drácula, e a sua?

- Engraçadinha.

- Quer outra cerveja?

- Claro. - Gostava de ver os olhos dela dançando quando ela sorria e agora estava curioso e olhou de novo para a foto. Havia algo de conhecido neles todos, mas ele não se lembrou de nada em especial, e olhou de novo para Vanessa. - Vai me contar, ou vou ter de adivinhar.

- Muito bem, grande coisa. Minha mãe é Faye Thayer. - Era mais fácil acabar com aquilo do que se fazer de rogada. Não era assim tão importante para ela e ela não se gabava disso desde a terceira série. Aliás, ela aprendera a se calar a maior parte do tempo. Não era fácil ser filha de uma celebridade, quanto mais de uma que tinha ganho três Oscars. Aquilo fazia as pessoas esperarem mais dela, ou então as levava a criticarem mais. E Vanessa gostava de levar a vida na calma. O rapaz agora estava olhando para ela, os olhos apertados, e meneou a cabeça.

- Muito interessante. Gosto dos filmes dela. Alguns.

- E eu também. - Sorriu. Pelo menos, ele não tinha ficado todo empolgado, como algumas pessoas. - Como é mesmo que você se chama? - Ele não chegara a dar o nome. Tudo fora bem natural, quando ele carregara a bagagem delas para cima.

- Jason Stuart. - Sorriu para ela. Ela não parecia mesmo convencida por ser quem era. A amiga estava muito mais impressionada. Ele tornou a olhar para a fotografia.

- Quem são todos os outros garotos?

- Meus irmãos e irmãs.

- Um bocado de gente. - Ele estava impressionado. Era filho único e as famílias numerosas nunca o tinham atraído muito. Gostava de sua vida como ela era. Os pais eram mais velhos e se tinham retira do para New Hampshire e um dia tudo seria dele. Não que fosse muita coisa. O pai era advogado, e agora tinha uma pequena clientela do interior, embora não se interessasse muito por isso, e fazia o menos possível. Jason pensara que também gostaria de ser advogado, mas, quando pensava a sério sobre o assunto, escrever lhe interessava muito mais. Depois de completada a sua tese ele ia escrever uma peça, disse a Vanessa, quando tomavam a terceira cerveja. Não que ele gostasse tanto de beber, mas o calor estava de matar. O prédio inteiro parecia estar assando, depois de um dia quente, e depois que Louise foi se deitar, eles saíram para tomar um pouco de ar. Andaram um pouco por Riverside Drive, ele contando sobre a Nova Inglaterra, ela falando de Beverly Hills.

- Eu diria que são dois mundos, você não? - Sorriu para ela, de novo. Ela parecia amadurecida, para sua idade, pacata e simples. Pouco depois, ela riu e lhe contou sobre sua gêmea.

- Nós também estamos em mundos diferentes. A única coisa que ela quer fazer é ser uma grande estrela. Acabou de conseguir um papel num filme de terror, com o sangue lhe jorrando pelos ouvidos. - Ele fez uma careta e os dois se riram. - Eu gostaria de escrever um roteiro, um dia, mas nunca seria atriz na vida. - E então, sem motivo, ela pensou em Lionel, e teve a impressão de que ele gostaria daquele homem e de que Jason gostaria dele. Ambos eram sinceros, despretensiosos e inteligentes.

- O meu irmão também está fazendo filmes.

- Vocês devem ser uma turma e tanto. - Soberbos, pelo menos.

- Imagino que sim. Já estou acostumada. E todos seguem os seus caminhos. Agora só ficou uma em casa. - A coitadinha da Anne, com sua fuga para Haight e o bebê que tivera de dar. Vanessa às vezes tinha pena dela, se bem que não a compreendesse melhor do que antes.

Todos pareciam tão distantes agora, como se fizessem parte de um outro mundo. Ela se perguntava quando se reuniriam de novo, e se isso aconteceria. Parecia pouco provável agora, se bem que ela tivesse prometido que ia tentar ir passar o Natal em casa, naquele ano. Mas quem sabia o que podia acontecer até lá, ou onde estariam Lionel, Greg ou Val.

- Você gosta da sua família?

- De alguns deles. - Sem nenhum motivo em especial, ela estava sendo sincera com ele, mas também não tinha motivo para não ser, contanto que não falasse demais, como sobre Lionel ou Anne, e ela não tinha intenção de fazer isso. - Sou mais ligada a uns do que a outros. O meu irmão mais velho é muito legal. - Ela passara a respeitá-lo cada vez mais por se afirmar como era. Sabia o quanto tudo fora difícil para ele.

- Quantos anos ele tem?

- Tem 21 anos e se chama Lionel; o meu outro irmão, Greg, tem 20, depois vem Val, minha gêmea, e obviamente está com 18 anos, e Anne tem 15 anos.

- O seu pessoal não perdeu tempo. - Ele sorriu e Vanessa também e eles foram andando de volta devagar, o rio correndo ali perto. Ele a acompanhou até à sua porta.

- Quer almoçar comigo amanhã?

 - Não posso, tenho de trabalhar.

- Eu poderia ir ao centro. - Essa idéia não lhe agradava muito, ele queria ficar ali e escrever, mas ela lhe agradava e muito.

- Isso não seria muito trabalho para você?

- Seria. - Ele olhou para ela, com franqueza. - Mas gosto de você. Posso perder uma ou duas horas.

- Obrigada. - Então ela o deixou.

Ele a apanhou na portaria da Parker's no dia seguinte e eles foram dar um passeio a pé e acabaram comendo sanduíches de abacate num restaurante natural que ele conhecia.

Ele tinha uma conversa interessante, levava-se a sério, em certas coisas, e achava que Vanessa também devia fazer o mesmo. Ele achava que escrever roteiros era tolice e sugeriu que ela pensasse em escrever uma peça séria.

- Por quê? Porque é isso que você quer fazer? Os filmes não precisam ser drogas, sabe? - Ele gostou do jeito dela, de o enfrentar, e a convidou para jantar também, mas ela recusou. - Prometi a Louise que ia me encontrar com ela e uns amigos. - Ele estava louco para ir também, mas não o demonstrou. Pensou se haveria outro homem no caso, e havia. Mas o rapaz era par de Louise. Vanessa é que não queria parecer muito fácil para ele, mas gostou dele tanto quanto ele gostou dela. E pensou nele a noite toda, enquanto comiam espaguete e mariscos em Houston Street e pareceu que se passaram horas até eles voltarem para casa. E quando chegaram, ela notou que a luz dele ainda estava acesa. Ela se perguntou se ele estaria escrevendo ou apenas ali à toa, e fez bastante barulho, subindo a escada ruidosamente e batendo a porta, na esperança de que ele lhe ligasse. Mas ele passou dois dias sem procurá-la. Tinha resolvido ir com calma, e quando a procurou, ela estava fora, naquele fim de semana. Só se encontraram no meio da semana seguinte, quando ele a viu voltando do trabalho, uma noite, parecendo estar com calor e cansada, depois de um trajeto interminável no ônibus.

- Como tem passado? - Ele sorriu e ela pareceu ficar contente, pensava que ele a tivesse esquecido.

- Bem, como vai a sua peça?

- Ainda não fiz coisa alguma, andei trabalhando naquela desgraçada de tese a semana toda. - E ele ia lecionar como substituto num colégio de meninos, naquele outono, para ajudar as despesas. Não estava muito entusiasmado, mas isso lhe daria bastante tempo para escrever e era isso que mais lhe importava. Vanessa ficou impressionada ao ver como ele era sério.

Mas era sério sobre muitas coisas, e estava se interessando seriamente por ela.

E daquela vez, quando a convidou para sair, ela estava livre. Eles foram a um restaurantezinho italiano, ali perto, tomaram muito vinho tinto e conversaram até quase uma hora. Depois, voltaram para casa a pé, com vagar, Vanessa olhando para trás de vez em quando, esperando que não fossem assaltados. Ela ainda não estava habituada a Nova York, e aquele bairro não era dos melhores. Mas Jason passou o braço forte em volta dela, sentindo seus temores, e ela se sentiu segura com ele. Ele a acompanho,t devagar pela escada e pareceu hesitar no segundo andar, mas ela continuou subindo e ele tocou de leve no braço dela.

- Quer entrar e tomar alguma coisa? - Ela já tinha bebido bastante e desconfiava das intenções dele. Já eram quase duas da madrugada e ela estaria se expondo muito se fosse à casa dele. Ela ainda não estava disposta a se comprometer assim, com ninguém, nem mesmo com ele, apesar de gostar bem dele.

- Hoje não, Jason, mas obrigada. - Ele pareceu ficar decepcionado, ao acompanhá-la à sua porta e ela se sentiu igualmente desapontada, quando entrou em casa. Pela primeira vez na vida, estava realmente desejando um homem. Antes, sempre se divertira brincando com os rapazes, mas não era igual a Val. Não precisava de conquistas, nem morria de desejo por alguém. Havia rapazes de quem ela gostava, mas nunca tanto quanto desse. Até então. De repente, ela percebeu, pelas emoções desconhecidas que sentiu, que queria ir para a cama com ele.

Nos dias seguintes, ela procurou se distrair. Saiu com Louise e os amigos dela. Chegou a almoçar com o patrão, da Parker, e viu que ele estava interessado nela, mas não suportava nem a mão dele no seu braço. Quando ela voltava para casa, de tardinha, só pensava no rapaz alto de cabelos castanhos do segundo andar e naquele fim de semana foi quase um alívio quando ela esbarrou nele. Ela estava indo lavar suas roupas na Laundromat e Louise tinha ido para Quogue de novo, e ela estava só, para variar. Mas não contou isso a Jason: não queria encorajá-lo.

- Como tem andado, garota? - Ele procurou fazer com que ela parecesse muito jovem, e se envergonhar por não ir para a cama com ele. E ela de fato sentiu isso, mas não o demonstrou.

- Bem, como vai a peça?

- Bem. Está meio quente para trabalhar. - Ela viu que ele estava bronzeado, e provavelmente tinha passado umas horas no terraço. Os pais dele tinham querido que ele fosse passar uns dias em New Hampshire, mas ele gostava mais de Nova York. Lá as coisas eram tão monótonas, e a cidade agora tinha mais uma atração. Ele quase podia sentir uma vibração, por estar no mesmo prédio que ela. Havia muito tempo que ninguém o excitava tanto e ele estava quase ressentido com isso, o que o levou a ser brusco com ela, naquele momento. - Tchau, garota. - Era fácil saber aonde ela estava indo, e ele calculou quanto tempo ela passaria lá, e quando ele ouviu um passo na escada, uma hora depois, abriu logo a porta. E adivinhara certo. Ela estava levando uma sacola de roupa lavada para cima e se virou para olhar para ele,  quando ouviu a porta dele se abrir. - Olá, quer almoçar?

Ela sentiu seu coração disparar ao encontrar o olhar dele, perguntando-se se seria só isso que ele queria, ou se estava pretendendo mais...

- Eu... está bem... claro... - Ela estava com medo de recusar de novo, ele podia não a convidar mais. Não era fácil ser jovem e estar em Nova York pela primeira vez, e pior ainda quando se era virgem e o homem era mais velho, com 24 anos. Ela o acompanhou para dentro do apartamento e deixou o saco de roupas perto da porta, contente por ter posto suas peças íntimas no fundo, de onde não cairiam e ele não pudesse vê-las.

Ele preparou sanduíches de atum para ambos e limonada gelada, e ela gostou. E ficou espantada ao ver como estava descontraída, enquanto eles ficavam ali conversando e comendo batata frita do saquinho.

- Você gosta de Nova York? - Ela sentia os olhos dele penetrando dentro dela e teve de se concentrar nas palavras dele. Estava acontecendo uma coisa tão intensa entre eles, mas, estranhamente, aquilo não a assustou. Parecia que ela estava quase flutuando numa onda dos pensamentos dele, o ar embaixo dos dois estava macio, quente e sensual e em volta deles estava de uma quietude mortal e naquela tarde estava se armando uma tempestade, mas o único mundo que parecia existir estava naquela sala, entre eles.

- Gosto muito de Nova York.

- Por quê? - Os olhos dele lhe penetravam a alma, como se ele estivesse procurando alguém, alguma coisa que ela levara consigo e ela então encontrou o olhar dele.

- Ainda não sei bem. Só fico contente por estar aqui.

- E eu também. - A voz dele estava suave e sensual, e ela se sentiu fisicamente atraída para ele, sem saber que as mãos dele a puxavam para junto dele, as mãos procuravam suas coxas, tocando nelas, acariciando-a, esfregando sua carne. De repente, ela sentiu os lábios dele nos seus e as mãos dele em seus seios e o desejo explodindo de sob suas pernas, enquanto os dedos dele se moviam ali, habilmente. Ela ficou ofegante e eles se deitaram no sofá e, de repente, ela estava pedindo que ele parasse. Ele se espantou e se sentou, olhando para ela, deitada ali.

- Não, por favor... - Ele nunca estuprara ninguém, e não pretendia começar agora. Parecia estar quase magoado, e não estava entendendo o que estava acontecendo, e viu que ela estava com lágrimas nos olhos. - Eu não... nunca... - E no entanto, ela o desejava e ele de repente entendeu e a abraçou muito e ela sentiu o calor dele e sentiu o perfume doce da carne dele, um cheiro de limão e ela não sabia se era sabonete ou água-de-colônia, mas gostava do perfume e sabia que gostava dele.

Ele agora a olhava com brandura, tendo entendido tudo, mas aquilo só o levou a desejá-la mais ainda.

- Eu não sabia... - Ele se afastou dela, dando-lhe espaço para respirar e pensar. Não queria forçá-la, assim, da primeira vez. - Você prefere esperar? - Ela ficou encabulada, com sua sinceridade, mas sacudiu a cabeça, devagar. Não queria esperar, não, e um minuto depois ele a estava carregando para a cama, como se ela fosse uma bonequinha de trapos, e a deitou delicadamente e tirou as poucas roupas que ela estava usando, o short, a blusa sem mangas, as calcinhas, o sutiã. Ela se sentiu uma menina sob as mãos dele e ele se deitou na cama ao lado dela, depois de ter tirado as roupas, de modo a não assustá-la. Pensou em tudo e a tocou em todas suas partes e ela ficou ali na cama com ele, em êxtase, enquanto surgiam o trovão e os raios e ela não sabia ao certo se a tempestade era de verdade ou parte do que ele a fazia sentir. Mas, depois de esgotados, ele ficou deitado ao lado dela e a chuva batia na vidraça e ela sorriu para ele. Os lençóis estavam manchados de sangue, mas ele não se importou, ficou repetindo o nome dela e tocou o rosto dela com as mãos e o corpo dela com os lábios e depois tornou a abrir as pernas dela e deixou sua língua mexer com ela até ela gritar e depois a penetrou de novo e dessa vez a tempestade não era no céu, mas na cabeça dela, enquanto ela gritava o nome dele, em êxtase, e ela se sentiu arrebatada naqueles braços possantes.

 

- Ação! - gritou o diretor, pela décima primeira vez, e Valerie teve de correr de novo pelo set com tinta vermelha lhe escorrendo pelos ouvidos e pelas faces e do nariz. E cada vez tinha de lavar-se, para poder recomeçar. Era a coisa mais cacete que ela já fizera na vida, só que depois disso ela seria uma estrela... ela sabia disso... alguém a descobriria... e ela acabaria representando um papel com Richard Burton ou Gregory Peck ou Robert Redford... até mesmo Dustin Hoffman não seria mau... O diretor gritou "Ação" pela décima nona vez e ela fez aquilo de novo. A tinta escorria para os cabelos dela e ele gritava com o maquilador que a consistência estava errada. E quando ele gritou "Corte" de novo, Faye saiu do set nas pontas dos pés. Valerie nem sabia que ela estava lá e Faye estava constrangida por ela.

Era um papelzinho patético, como ela disse a Ward, mais tarde. Aliás, era mais que isso, era constrangedor.

- Eu queria que ela fizesse alguma coisa decente na vida, como ir estudar.

- Talvez ela consiga alguma coisa, Faye. Você conseguiu.

- Isso foi há quase trinta anos, pelo amor de Deus. Os tempos mudaram. Ela nem sabe representar.

- Como se pode saber, num papel desses? - Ele estava tentando ser justo e achava que Faye estava sendo dura demais.

- Digamos assim, ela nem sabe andar direito num palco.

- Você saberia, tendo bolinhas de tinta enfiadas no nariz e ouvidos? Eu por mim acho que ela está aturando tudo muito bem.

- Eu acho que ela é uma idiota.

Mas assim que Vai completou o primeiro papel, conseguiu outro igual, e ficou empolgada, se bem que Faye se preocupasse com aquilo. Procurou perguntar, com diplomacia, se ela estava satisfeita, fazendo aquele tipo de filme, mas Valerie tomou aquilo como um insulto e em seus olhos havia ódio ao responder à mãe.

- Você começou com sabão em pó e cereais, eu estou começando com sangue, mas basicamente é a mesma coisa. E um dia, se eu quiser, posso estar bem onde você está.

- Era uma meta ambiciosa, e Ward, vendo as duas discutirem teve pena de Val. Ela queria tanto competir com Faye que às vezes se esquecia de ser ela mesma. Ao contrário de Anne, que afinal parecia ter se encontrado, naqueles últimos meses. Parecia mais sossegada, mais amadurecida e parecia estar adorando o colégio novo. Tinha uma nova amiga, com quem estava sempre, menina que tinha perdido a mãe alguns anos antes, e as duas iam a toda parte juntas. O pai adorava a filha e parecia disposto a levá-las aonde quisessem, a todo tipo de programa e jogo, deixá-las, apanhá-las. Aquilo era uma bênção, para Ward e Faye. Desde o último prêmio da Academia, eles não tinham nenhuma folga.

Estavam gratos a Bill Stein por tomar tão bem conta de Anne. Ward sabia vagamente quem ele era, seus caminhos se tinham cruzado uma ou duas vezes, mas de modo estritamente amigável. Ele parecia ser um bom sujeito e, se queria mimar a filha, era compreensível - só tinha aquela e não tinha esposa. Não tinha mais ninguém a quem mimar, a não ser agora Anne e, claro, Gail.

Ele estava sempre dando coisas bonitas a Anne, um suéter quando comprava um para Gail, uma bolsinha Gucci vermelha, um guarda-chuva amarelo da Giorgio's, num dia em que houve uma chuvarada, e não queria nada em troca. Sentia o quanto ela era só e como Faye e Ward passavam pouco tempo com ela. Ficava feliz por fazer coisinhas por ela, como fazia por Gail.

- Você é sempre tão bom para mim, Bill... - Ele deixava que ela o chamasse de Bill, aliás, quis que ela o fizesse, disse isso várias vezes, e ela afinal o fez, ainda se sentindo meio encabulada com ele.

- Por que eu não haveria de ser? Você é uma boa pessoa, Anne. Gostamos de sua companhia.

- Eu também amo vocês dois. - As palavras jorraram de sua almazinha esfaimada e o coração dele se enternecia com ela, às vezes. Ele desconfiava que ali houvesse uma tristeza de que não se soubesse e ele não sabia o que seria, mas nunca estava ausente dos olhos dela, por mais que eles lhe dessem amor. Sabia que ela havia fugido para Haight, havia quase dois anos, e se perguntava se teria sido alguma coisa que lá acontecera. Uma vez, perguntou a Gail a respeito, mas ela não parecia saber.

- Ela nunca fala nisso, pai. Não sei... acho que os pais dela não são muito bons para ela.

- Eu também desconfiava disso. - Ele sempre fora sincero com Gail.

- Não é que sejam maus com ela, ou coisa assim. É só que nunca estão presentes. Ninguém está. Os irmãos e irmãs estão todos crescidos e saíram de casa e ela está sempre sozinha lá, com uma empregada. - A maioria das noites ela jantava só, e já estava acostumada com isso.

- Pois não precisa mais ficar sozinha. - Os Stein resolveram cuidar dela e Anne se regalava com o calor do amor que lhe davam. Ela parecia uma florzinha em pleno viço e Bill adorava vê-la brincando com Gail. Elas faziam os deveres de casa juntas, às vezes, ou ficavam sentadas conversando e às vezes mergulhavam na piscina e passavam horas dando risadas de alguma piada particular. Ele gostava de lhes comprar presentinhos bonitos e fazê-las sorrir. A vida era curta, ele aprendera isso quando a mulher morrera, e um dia ele estava pensando nela, sentado junto à piscina com Anne. Era um dia quente de outono e Gail tinha entrado em casa para preparar alguma coisa para eles comerem.

- Você às vezes- parece tão séria, Anne. - Ela agora se sentia à vontade com ele, e não se assustava com o que ele dizia, se bem que por vezes se assustasse, a princípio, como se tivesse medo de que ele lhe perguntasse alguma coisa que ela não quisesse contar. - Em que é que fica pensando, nessa horas?

- Em várias coisas... - O amigo do meu irmão, que morreu... o bebê que dei... aos 15 anos, já havia espectros que a atormentavam, mas ela não lhe contou nada disso.

- Os tempos que você passou no Haight? - Ele tinha pensado nisso, e ela não fugiu dele. Os olhos dela encontraram os dele e ele viu ali alguma coisa que lhe comoveu o coração. Havia nela um sofri mento que ninguém poderia alcançar, e ele tinha esperanças de conseguir isso, um dia. Ela era como uma outra filha para ele, e se espantava ao ver o quanto ela passara a significar para eles, em poucos meses Estavam muito agarrados a ela e ela a eles. Além de Lionet e John, eles eram as primeiras pessoas que tinham tomado conta dela, ou se interessado por ela, ou era o que ela pensava.

- Mais ou menos... - E então ela se surpreendeu, abrindo-se mais do que pretendera. - Renunciei a uma coisa de que gostava muito... eu às vezes penso nisso, embora não mude nada. - Os olhos dela estavam cheios de lágrimas, e ele estendeu a mão e tocou na dela, também com os olhos cheios d'água.

- Eu não renunciei a nada, mas perdi uma pessoa que amava muito. Talvez seja mais ou menos a mesma coisa. Um tipo de perda. Talvez seja até pior, quando a gente renuncia por sua própria vontade. Ele pensou que ela se referisse a alguém que ela tivesse amado e se perguntou como é que uma pessoa tão jovem poderia ter amado tanto. Nunca lhe ocorreu que ela tivesse renunciado a um filho. Ela e Gail ainda lhe pareciam tão inocentes, e ele prezava isso. Mas então os olhos dela o contemplaram com uma sabedoria muito além de sua idade.

- Deve ter sido terrível para você, quando ela morreu.

- E foi. - Ele ficou surpreso ao ver que podia falar as palavras, para ela com tanta facilidade. Mas ela parecia tão compreensiva; sentada ali junto à piscina, de mãos dadas com ele, como velhos amigos

- Foi a pior coisa que já me aconteceu.

- Foi parecido com o que me aconteceu. - Ela teve uma necessidade súbita de contar a ele sobre o bebê a que ela renunciara, mas teve medo de que ele nunca mais deixasse Gail se aproximar dela. Havia coisas que era melhor não contar, e ela então se deteve.

- Foi terrível, meu bem?

- Pior que isso. - E todos os dias ela se perguntava onde ele estaria, e se ela fizera o que era direito. Talvez estivesse doente, ou tivesse morrido, ou as drogas que ela tomara o tivessem afetado, afinal, se bem que, ao nascer, não houvesse sinais disso, disseram... Ela então encontrou o olhar de Bill e ele a contemplou com muita tristeza. - Sinto muito, Anne. - Apertou bem a mão dela e ela se sentiu quente e segura e dali a pouco Gail apareceu com o almoço para os três. Ela achou que Anne estava meio quieta, mas ela ficava assim mesmo, às vezes. Era assim mesmo, e naquele dia ela não viu nada de diferente nos olhos do pai. Mas depois disso ele pareceu vigiar Anne muito, ela o notou às vezes, e um dia em que eles ficaram sozinhos, esperando que Gail voltasse da casa de uma amiga, ela teve nova oportunidade de falar com ele. Ela chegara um pouco antes da hora combinada com Gail e Bill tinha acabado de sair do chuveiro, e estava de roupão. Ele disse que ela ficasse à vontade e ela se esticou no escritório, com uma revista, mas aí o viu olhando para ela e largou a revista e sentiu tudo o que tinha reprimido por tanto tempo. Sem dizer uma palavra, ela se levantou e foi para junto dele. Ele a abraçou e a beijou muito e depois se obrigou a se afastar dela.

- Ah, Deus, Anne, desculpe... não sei o que... - Mas ela o fez calar-se e o beijou de novo e ele ficou pasmo. Viu, instintivamente, que ela não era novata naquilo e quando as mãos dela o procuraram por baixo do roupão ele viu que havia segredos que ninguém sabia, sobre Anne. Com brandura, ele puxou as mãos dela e beijou-lhe as pontas dos dedos. O corpo dele ansiava por ela, e ela o acariciava de modo tão sedutor, ele estava quase alucinado, mas não tanto a ponto de deixar que ela fizesse alguma loucura ou se magoasse. Aos olhos dele, ela era uma criança. E ele sabia que aquilo era errado. Ela era uma garota de quinze anos, quase dezesseis, mas assim mesmo... - Temos de conversar sobre isso. - Ele sentou-se no sofá ao lado dela, virou-se para ela, puxando bem o roupão, e olhou nos olhos dela. - Não sei o que é que me aconteceu.

- Pois eu sei. - Ela falou as palavras tão baixinho que ele pensou estar sonhando. - Eu te amo, Bill. - Era verdade, e ele também a amava. Era loucura, para eles.  Ele estava com 49 anos e ela com 15. Era errado... não era? Ele teve de se lembrar disso, olhando para ela, e não pôde se conter. Ele a beijou de novo torturado pelas ondas de paixão que sentia e segurou a mão dela.

- Eu também te amo, mas não vou permitir que isto nos aconteça. - Parecia angustiado ao dizer aquilo, e Anne estava com lágrimas nos olhos. Ela estava apavorada que ele a mandasse embora, talvez até de vez. E isso ela não suportaria. Já perdera demais em sua vida. - Por quê? O que há de errado nisso? Acontece com os outros, também.

- Mas não entre a sua idade e a minha.

Havia 33 anos de diferença entre eles e ela não era nem maior. Talvez, se ela tivesse 22 e ele 55, e não fosse pai de sua melhor amiga, mas Anne estava sacudindo a cabeça, frenética. Não queria perdê-lo agora. Ela se recusava. Já perdera coisas demais na sua vida curta, e não queria perdê-lo também, dissesse o que dissesse.

- Isso não é verdade. Acontece com outras pessoas, iguais a nós.

Ele sorriu para ela. Ela era tão séria e tão suave e ele a amava tanto... Ele agora se dava conta disso.

- Eu não me importaria nem que você tivesse cem anos. Eu te amo, só isso. Não vou renunciar a você. - O melodrama da afirmativa o fez sorrir de novo e ele a beijou nos lábios, para fazê-la calar-se. Uns lábios tão doces... e a pele dela em suas mãos parecia veludo. Mas isso era errado. Tecnicamente, era estupro, mesmo com o consentimento dela. Ele sabia disso e então olhou para ela.

- Você já fez isso, Anne? Sinceramente, não me zango com você. - Ele tinha um jeito brando de conseguir a verdade, e para ela era sempre fácil ser sincera com ele.

Ela sabia o que ele queria dizer, mais ou menos. E ambos estavam gratos pelo atraso de Gail.

- Assim, não. Quando eu estava no Haight... - Seria tão difícil explicar a ele, mas agora ela o queria. - Eu... - Ela suspirou, um suspiro terrível, e ele se arrependeu de ter perguntado.

- Não precisa me contar nada que não queira, Anne.

- Quero que saiba. - Ela tentou contar a coisa resumida e clinicamente, mas lhe pareceu terrível. - Eu morava numa comuna e tomei LSD. Também tomei outras coisas, mas sobretudo isso, a mescalina... muitas drogas, mas sobretudo ácido. E o grupo com quem eu vivia tinha costumes estranhos...

Ele pareceu ficar horrorizado. - Você foi estuprada?

Devagar, ela sacudiu a cabeça, sem deixar de olhar nos olhos dele, tinha de ser sincera com ele, a todo custo.

- Fiz aquilo porque queria... e acho que fiz com todos eles. Não me lembro mais de muita coisa. Era como estar hipnotizada e não sei mais o que é recordação e o que é sonho... mas eu estava grávida de cinco meses quando os meus pais me trouxeram de volta. Tive um bebê há treze meses. - Ela agora sabia que se lembraria dessa data o resto da vida. Podia ter dito a Bill quantos dias além dos treze meses. Cinco, exatamente. - E os meus pais me obrigaram a renunciar a ele. Era um menino, mas nem o vi. Foi a pior coisa por que já passei na vida. - Não havia meio de poder descrever a ele aquilo por que ela havia passado. - E renunciar a ele foi o pior erro que já cometi na vida. Nunca hei de me perdoar. Todos os dias eu me pergunto onde ele estará, e se está bem.

- Isso teria estragado a sua vida, amor. - Com meiguice, ele afagou o rosto dela com uma das mãos, com uma pena imensa dela e o sofrimento por que ela passara. Ela era tão diferente de Gail. Já vira tanta coisa na vida. Demais, para a idade dela.

- É isso que os meus pais disseram - disse ela, suspirando. - Não creio que estejam certos.

- O que você faria com um bebê agora?

- Cuidaria dele... como qualquer outra mãe... - Os olhos dela estavam cheios de lágrimas e ele a abraçou. - Eu nunca devia ter renunciado a ele. Ele teve vontade de dizer que um dia lhe daria outro bebê, mas parecia uma coisa chocante falar isso, e aí eles ouviram a chave de Gail na fechadura. Bill se afastou dela, com um último olhar, um desejo dolorido, puxou bem o roupão e os dois sorriram para Gail.

E nos dois meses seguintes, Anne se encontrava com ele sempre que podia, só para conversar com ele, passear a pé, partilhar seus pensamentos com ele. Gail não sabia de nada e Anne esperava que nunca soubesse. Era um fruto proibido para ambos e no entanto, eles não conseguiam se conter. Já se precisavam demais um do outro. Ele também confiou nela. O relacionamento era casto, mas eles não agüentaram muito tempo mais e quando a avó de Gail a convidou para passar com ela as festas de Natal, eles fizeram um plano. Anne diria aos pais que ia passar as festas com eles, e do Dia de Natal até a volta de Gail, ficaria com ele. Tudo foi planejado com antecedência.

Quase como uma lua-de-mel.

 

Há tempos que Louise já sabia o que estava acontecendo entre sua amiga e o homem do segundo andar. Ela não reprovava, embora o achasse velho para Van. Vinte e quatro anos, já era ser homem. E ela sentia pena por não estar mais tanto com Vanessa, mas também tinha suas amizades, e Barnard as mantinha mais que ocupadas com tarefas e projetos e trabalhos de casa e provas. Os meses voaram e era difícil acreditar que já estavam nas férias de Natal. O tempo estava frio e pouco depois do Dia de Ação de Graças, tinha nevado pela primeira vez..

Vanessa estava encantada com aquilo, e ela e Jason se atiraram bolas de neve no Riverside Park. Havia sempre tanta coisa para fazer, os Cloisters, o Metropolitan, o Guggenheim, o Museu de Arte Moderna, a ópera, o balé, os concertos no Carnegie Hall e sempre a atração do teatro fora da Broadway para ele. Jason levava uma rica vida cultural e agora sempre levava Vanessa consigo. Ela não vira um filme com ele desde que tinha chegado, a não ser uns antigos num festival do Museu de Arte Moderna.

Ele continuava a não aprovar tudo aquilo, e trabalhava em sua tese enquanto ela estudava para os exames. Ela gostava da seriedade dele, o purismo de suas filosofias.

Para ela, isso não o tornava rígido, mas mais adorável.

- Vou sentir muita falta de você nos feriados. - Ela estava deitada no sofá dele com um livro no colo, olhando para ele. Ele estava muito sério, de óculos, e espiou por cima deles, com um sorriso.

- Provavelmente vai ser um alívio voltar para a Terra dos Plásticos. - Era assim que ele se referia a Los Angeles. - Aí pode ir ao cinema todo dia com suas amigas e comer tacos e batata frita - ele também tinha horror dessas coisas -, antes de ser obrigada a voltar para cá. - Ela riu diante das visões que ele tinha de Los Angeles. Segundo ele, as pessoas viviam correndo para toda parte, com hambúrgueres e tacos e pizzas nas mãos, de rolos nos cabelos, dançando ao som de rock e assistindo a filmes horríveis. Ela riu mais ainda pensando na opinião que ele teria de Val. Ela estava representando em outro filme de terror e nesse ela ficava coberta de um lodo verde, o que não era propriamente a idéia que ele fazia do que deveria ser o bom cinema. Mas também seria divertido rever a família toda. Ela às vezes achava que Jason se levava a sério demais, mas estava gostando do caso deles e dissera a verdade. Sentiria saudades dele naqueles dias de feriado.

- O que é que você vai fazer? - Ele ainda não tinha resolvido, da última vez em que eles tinham falado do assunto. Ela achava que ele devia ir em casa, mas ele não parecia estar animado com essa idéia. Ela observara que os pais dele nunca lhe telefonavam e que ele raramente os mencionava. Ela também não ligava muito para casa, mas ainda se considerava bem ligada a todos eles. Mas, levantando os olhos, Vanessa viu que Jason estava sorrindo para ela. Havia nele um aspecto de ternura que ela adorava e estava vendo isso agora. Ela estendeu a mão para onde ele estava sentado, à sua secretária, e ele a beijou sorrindo.

- Também vou ter saudades de você. E provavelmente levarei semanas para endireitá-la de novo.

- Um dia desses, você vai ter de ir à Califórnia comigo. - Mas nenhum dos dois estava preparado para isso. A família dela parecia apavorante a ele, e a idéia de levá-lo em casa também a assustava. Isso significaria que o caso era sério, ou era o que os pais pensariam, e não era. Era apenas um delicioso primeiro caso de amor.

Ela não esperava mais que isso, ou pelo menos era o que dizia para si mesma. - Ligo para você, Jase.

Ela lhe repetiu exatamente as mesmas palavras quando estavam no aeroporto, no dia 23 de dezembro. Ele resolvera não ir em casa, mas ficar trabalhando na tese - e a ela pareceu uma maneira solitária de passar as festas de Natal. Mas ele disse que estaria bem e ela prometeu-lhe telefonar todos os dias. Ele a beijou demoradamente antes de ela embarcar e aí ela se foi, pelos ares, no pássaro prateado, e ele enfiou as mãos nos bolsos, enrolou o cachecol ao pescoço e voltou para o ar frio. Estava nevando de novo. E ele ficou assustado ao ver como se apaixonara por ela. Queria que fosse um caso comum, e até a comodidade de morarem no mesmo prédio lhe agradara. E agora, isso não tinha nada mais a ver com a história. Ele gostava de tudo nela, ela era séria, inteligente, linda, boa e ótima na cama e o apartamento dele pareceu um túmulo quando ele destrancou a porta, sentou-se à sua secretária e ficou olhando para nada. Talvez ele devesse ter ido em casa, afinal, mas isso o deprimia muito. A vida naquela cidade pequena era tão limitada e os pais sempre o abafavam tanto que ele não agüentava mais aquilo. Por mais que os amasse, queria ser livre. E o pai bebia demais. A mãe envelhecera tanto, ele sabia que ficaria muito deprimido, e estaria mais feliz sozinho em Nova York. Ele achara quase impossível explicar isso a Vanessa, antes de ela se ir. A família dela era muito diferente da dele. Ela estava até feliz em voltar. E ele ouviu isso na voz dela, quando ligou para ele, naquela noite. Ela telefonou quase logo que desembarcou do avião

- Bom, e como vai a terra dos plásticos? - Ele procurou parecer menos melancólico do que estava e ela riu.

- A mesma de sempre. Só que você não está aqui, e esse o problema. - Ela gostava de L.A., mas agora também passara a gostar de Nova York. Por causa dele. - Da próxima vez tem de vir também. - Ele quase estremeceu diante dessa idéia. Não podia enfrentar uma família como aquela, de alta voltagem, brilhante, inteiramente absorta no mundo do cinema. Ele imaginava Faye preparando o café da manhã de saltos altos e lamê e essa idéia o fez rir, enquanto falava com Van.

- Como vai a sua gêmea?

- Ainda não a vi. Vou ver se passo lá hoje à noite. Aqui são só oito horas.

- Isso é porque aí não sabem ver as horas - disse ele implicando, e nisso o rosto dele pareceu jovem e triste. Ele sentia tanta falta dela... As duas semanas seguintes iam ser insuportáveis

- Dê lembranças a ela. - Eles já se tinham falado pelo telefone várias vezes e ela parecia ser divertida, embora inteiramente diferente de Van.

- Darei.

- Avise se ela ficou verde. - Ela contara a ele sobre o filme com o lodo verde e ele implicara com ela sem piedade, dizendo que era típico de Hollywood, e provavelmente o melhor que podiam fazer. Só que Vanessa ficara sentida com isso. A mãe fizera uns filmes lindos e um dia eles provavelmente figurariam nos arquivos do Museu de Arte Moderna também. Ela tinha ainda dezoito anos e era a família dela, e depois disso ele se moderou.

Mas Vanessa pensou que ele ficaria horrorizado se visse o lugar onde Val estava morando.

Ela pedira emprestado o carro ao pai e fora até à casa onde Val morava, com pelo menos mais uma dúzia de outras garotas. E Vanessa achou que nunca tinha visto um tal caos e sujeira na vida. Havia comida velha largada nos pratos na sala, desde só Deus sabia quando, e camas por fazer em todos os quartos, algumas até sem lençóis, uma garrafa de tequila vazia no chão, meias de todos os feitios e tons penduradas nos banheiros, e por toda parte o cheiro rançoso de perfumes demais. E no meio de tudo aquilo estava Val, feliz, fazendo as unhas e contando a Vanessa sobre o seu papel no filme.

- E aí eu saio desse pântano... estendo os braços, assim - ela o fez, quase derrubando um abajur -, e grito... - Ela demonstrou isso também e Vanessa tapou os ouvidos.

Aquilo pareceu durar horas e ela ficou impressionada, e riu para a gêmea. Era bom tornar a vê-la, mesmo ali.

- Você se desenvolveu bem nisso, nesses últimos meses. Val riu.

- Faço bastantes exercícios, todos os dias. Vanessa olhou em volta de novo.

- Como é que você agüenta este lugar? - Com aquele cheiro, a sujeira, a desordem e as garotas, Vanessa sabia que teria enlouquecido em dois dias, mas Valerie não parecia estar ligando, parecia feliz ali, bem mais feliz do que se sentira em casa, e ela disse isso à gêmea. - Aqui eu posso fazer o que quiser.

- E o que é que isso inclui? - Vanessa estava curiosa para saber o que a outra andava fazendo, naqueles últimos três meses. Val sabia de Jason, embora Vanessa não tivesse entrado em detalhes sobre o caso, e nem pretendesse fazê-lo agora. - Alguma paixão violenta, desde que fui embora?

Valerie deu de ombros. Havia uma porção de homens na vida dela, um de quem ela gostava e três com quem ela dormia, mas ela sabia que a irmã ficaria escandalizada, de modo que não disse nada. Não significava muita coisa para ela. Um pouco de drogas, um pouco de bebida, uma boa trepadinha no apartamento ou quarto alugado de algum rapaz. Havia tanta coisa acontecendo em Hollywood que não parecia tão terrível fazer parte daquilo, e todas naquele apartamento distribuíam a pílula, como balas de hortelã depois do jantar. Havia sempre uma caixa aberta em algum lugar da casa e alguém lhe dissera para não misturar as marcas, mas pareciam funcionar assim mesmo. E, se houvesse um deslize, ela podia se livrar daquilo. Não era tão burra quanto a irmãzinha, Anne.

- E você? - Valerie retrucou, começando a fazer as unhas da outra mão. - Como é que é esse cara com quem você passa o tempo todo?

- Jason? - Vanessa se fez de tola e Val riu. - Não, o King Kong. É engraçadinho?

- Pro meu gosto, é, mas para o seu provavelmente não.

- Isso quer dizer que ele tem lábio leporino e um pé torto, mas é engraçadinho e você acha que ele é sério.

- Mais ou menos. Está trabalhando na tese de doutorado dele. - Vanessa parecia orgulhar-se dele e Valerie a fitou. O rapaz lhe parecia um horror. Ela detestava os intelectuais, gostava de todos os tipos de Hollywood, especialmente o tipo de garoto de praia da Califórnia, de cabelos compridos e camisa aberta.

Ela olhou para Vanessa, desconfiada. - Que idade tem esse cara?

- Ele tem 24 anos.

- Você acha que ele quer se casar com você? - Aquilo a deixou horrorizada, mas Vanessa logo sacudiu a cabeça.

- Ele não é desse tipo, nem eu. Quero acabar os meus estudos e voltar para cá, para escrever roteiros. - Ela e Jason discutiam sobre isso o tempo todo. Ele achava que ela era talentosa demais para escrever "porcarias", mas ela insistia em dizer que alguns filmes eram muito bons.

- Por enquanto, está sendo gostoso, só isso.

- Bom, tome cuidado para não engravidar. Está tomando a pílula? - Vanessa ficou encabulada com a franqueza da gêmea, e sacudiu a cabeça. Ela nem sequer confessara que estava dormindo com Jason, mas Val a conhecia melhor do que ninguém. - Não está? - Valerie estava pasma com a ingenuidade dela.

- Jason cuida disso. - Ela corou muito e Valerie riu, quando uma garota com uma tanga de cetim vermelho passou pela sala. E nisso, Vanessa olhou de novo para Val.

- A mãe já viu este lugar? - Ela não podia imaginar isso, pois a mãe provavelmente teria feito Valerie sair dali em duas horas, ou talvez menos.

- Só uma vez. E nós fizemos uma boa limpeza antes de ela vir. Naquele dia não havia ninguém aqui.

- Ainda bem. Ela a teria arrasado por isso, minha cara. - Mas isso se aplicaria a qualquer coisa que Val fizesse, naqueles dias, desde as pitadas de cocaína, até aos cachimbos cheios de haxixe, aos homens com quem andava experimentando até aos papéis que ela representava nos filmes de terror. Conforme ela disse a Van, com amargura, "Ela nunca quer que eu me divirta". E alguém lhe propusera o seu primeiro papel pornô, mas ela recusara. Estava apavorada que a mãe soubesse disso. Mas, ao voltar para casa, Vanessa teve a impressão de que Valerie estava indo mal. Estava bem descontrolada, e só tinha dezoito anos. Mas ela a conhecia bem e sabia que não havia meio de impedi-la. Estava disparando morro abaixo e tudo terminaria nalgum lugar. Vanessa esperava que ela não se machucasse pelo caminho.

- Como estava Val? - O pai olhou para ela, quando ela entrou, e leu em seus olhos algo que ela não lhe teria dito.

- Está bem.

- Aquele lugar é muito horrível? - Eles não podiam nem imaginar como era horrível mesmo, mas ela se perguntou se eles saberiam de outras coisas. Hollywood era uma cidade pequena, e se ela andava dando por ali, eles deviam ter ouvido alguma coisa.

- Não é tão ruim assim. É só uma porção de garotas andando por ali fazendo bagunça e deixando pratos sujos pelo chão. - Isso era o mínimo, mas ela sentia que não fazia mal em contá-lo. Por Valerie, ela procurou fazer a coisa parecer melhor do que era. - É só uma versão ampliada de nossos quartos.

- Tão ruim assim? - Ele riu e disse que Greg ia chegar no dia seguinte. E pouco depois Anne chegou, com um brilho nos olhos que Vanessa nunca tinha visto.

- Oi, garota. - Ela se levantou e beijou o rosto da irmã, e podia jurar que sentira o cheiro de uma loção de barba de homem nos cabelos dela, mas não tinha toda a certeza. A pequena Anne estava ficando adulta. Ia fazer dezesseis anos depois das festas, e Vanessa reparou que ela estava ficando linda. O vestido era curto e as pernas eram compridas e esguias, e ela estava com lindos sapatinhos vermelhos e uma fita no cabelo. Vanessa sorriu para a imagem que se desenvolvera em três breves meses. - Desde quando é que você ficou tão adulta? - Ward também olhou para ela com admiração. Ela se assentara lindamente naqueles últimos meses e tinha feito novas amizades na escola nova. Especialmente Gail Stein, que parecia ser uma ótima menina, embora um pouco mimada. E daí, se usava bolsas de Vuitton e sapatos Jourdan? Era uma garota simpática, decente, sadia, e o pai cuidava bem dela. Era uma mudança agradável daquela agonia com o que se passara em Haight e tanto ele como Faye davam graças por isso.

Anne não passou muito tempo com eles, desaparecendo logo no quarto. E no dia de Natal, ela fez a mesma coisa, depois que comeram, mas todos estavam acostumados com isso. Havia anos que Anne se escondia no quarto, mas naquela noite estava arrumando suas coisas, pois no dia seguinte iria para a casa de Bill, passar os feriados.

 

Semanas antes, Anne explicara à mãe que Gail a convidara para passar dez dias com eles antes de voltarem à escola, e a princípio Faye resistira. Anne, porém, provocara-lhe espertamente seus instintos maternais, lembrando-lhe que Gail era filha única, não tendo nem mesmo mãe que lhe fizesse companhia, e que desde a morte da mãe, essas festas eram difíceis para ela. Isso, afinal, convencera Faye.

- Ela mora a poucos quilômetros daqui, Anne. Por que é que vocês duas não podem ficar aqui? Por que você tem de dormir na casa dela?

- As coisas aqui são muito confusas. E, em todo caso, você e o pai passam o tempo todo fora. Que diferença faz? - Havia pânico nos olhos dela, e Ward também viu isso. Eles não queriam que ela voltasse a fazer alguma loucura. Todos já tinham suportado bastante, dois anos antes. Talvez fosse melhor ceder a ela, em coisinhas assim. - Deixe que ela vá, benzinho. Não há mal nisso. O pai de Gail parece tomar conta dela que nem uma galinha choca. Elas estarão bem, e ela sempre pode voltar para casa, se você quiser.

- Vai haver mais alguém lá? - Faye nunca confiava em ninguém, quando se tratava dos filhos e dessa vez estava com a razão.

- Só a faxineira e a cozinheira. - Ele também tinha um jardineiro, mas isso não contava, ela sabia. E aliás, nenhum dos outros contava. As duas mulheres iam sair de férias assim que ele embarcasse Gail no avião para ir para a casa da avó, em Nova York. Mas Faye não podia saber disso. E quando Anne saiu de casa, sua pequena valise estava cheia de suas roupas mais lindas e as camisolas mais enfeitadas, inclusive duas novas que ela comprara para aquilo. Ela chamou um táxi, depois que todos saíram, e deixou um bilhete. "Até o dia 3. Estarei em casa de Gail." Dez minutos depois o táxi parou na Charing Cross Road, em Bel-Air, e Anne sentiu o coração disparado.

Ele estava esperando por ela na sala. Gail partira duas horas antes e as empregadas se tinham ido. Afinal, estavam a sós. Vinham planejando aquilo, havia meses, e agora de repente estavam ambos apavorados. Ele passara a manhã toda se perguntando se estava louco. Estaria praticamente estuprando uma garota de quinze anos e já estava resolvido a levá-la para casa assim que ela chegasse.

Ele tentou explicar-lhe, sentados ali na sala íntima e aconchegante. Havia uma pele de tigre no chão e, nas paredes, fotos que ele tinha tirado de Gail, através dos anos, Gail, na primeira série... Gail com um chapéu engraçado... Gail comendo uma casquinha de sorvete aos quatro anos... mas agora os olhos dele estavam pregados em Anne e não viam nada na sala. Ela só via a ele, o homem que ela amava profundamente, e que agora queria mandá-la embora.

- Por que tenho de ir?... Por quê? Planejamos isso há semanas.

- Mas é errado, Anne. Eu sou um velho e você é uma garota de quinze anos. - Ele pensara naquilo a noite toda, se revirando na cama, e afinal tomara juízo. Não ia deixar que ela o fizesse mudar de idéia naquele instante.

- Já estou com quase dezesseis. - Ela estava com lágrimas nos olhos e ele sorriu, ao alisar-lhe os cabelos. Mas apenas esse ligeiro contato o deixara eletrizado de novo. Aquilo era um fruto proibido dos mais doces e ele não ia deixar que ela ficasse nem por uma hora, senão não se responsabilizaria pelo que fizesse. Conhecia-se bem demais e nunca se sentira assim, com ninguém. Era uma das peças cruéis da vida, ela só ter quinze anos. - Não sou nem virgem, Bill. - Disse aquilo com pesar, os olhos desolados. Ela o amava tanto; ele era tudo o que ela queria da vida. Era a recompensa por toda a solidão e sofrimento por que passara.

- Isso não interessa, amor. As suas outras experiências não contam. Foram sonhos provocados por drogas e alucinógenos. Você nem precisa mais pensar nisso. Tudo isso já passou. Não é como tomar a decisão de se envolver com um homem. Isso é coisa que nenhum de nós dois poderia manejar por muito tempo. E depois, o que fazer? Alguém ia se machucar, e eu não haveria de querer que fosse você. - Não disse que também poderia ser ele, e que ele poderia acabar na cadeia por dormir com ela, se os pais dela descobrissem. E poderiam fazer isso, por mais cuidadosos que fossem os seus planos. Ela dissera a Gail para não lhe ligar para casa, pois ela não poderia conversar mesmo, com todos os irmãos e irmãs em casa para as festas.

E ela mesma ia ligar para Gail todos os dias, de modo que a outra não teria motivos para lhe telefonar. Tinham pensado em tudo e ele agora lhe estava despedaçando o coração. Ela não se importava se se machucasse, podia até morrer, contanto que ficasse com ele.

Olhou para ele, os olhos fundos e tristes.

- Se você me fizer ir embora, vou fugir de novo. Você é toda a minha razão de viver, Bill. - Eram palavras terríveis, e mexeram com o coração dele. Ela passara por tanta coisa e era tão jovem e em certos sentidos... De certa forma, tinha razão: era muito mais amadurecida do que a maioria das garotas de sua idade, certamente mais do que Gail; mas também fora exposta a mais coisas. Haight-Ashbury, a comuna, o bebê que ela tivera, seus problemas com os pais. Parecia injusto feri-la de novo, mas aquilo era para o bem dela, disse ele consigo, ao se levantar, a mão dela na dele. Ele ia levá-la para casa em pessoa, mas ela não se mexeu. Ficou ali sentada, olhando para ele, com aquela expressão desolada, os olhos comoventes...

- Benzinho, por favor... não pode ficar...

- Por quê?

Ele sentou-se no sofá ao lado dela. Só conseguiria lutar até certo ponto, e se ela não fosse logo... não era justo para ele... afinal, ele era homem.

- Porque eu te amo demais. - Ele a tomou nos braços delicadamente, e a beijou, com toda a intenção de levá-la para casa depois. Mas sua resolução férrea começou a fraquejar quando sentiu a lava fundida da língua dela penetrando em sua boca e instintivamente ele enfiou a mão entre as pernas dela. Havia semanas que eles estavam ficando cada vez mais ousados, cada vez que se viam a sós. - Eu te desejo tanto, criança... - ele murmurou no pescoço dela, a voz rouca - ...mas não podemos... por favor...

- Podemos, sim - murmurou ela, de volta. Ela estava se afundando no sofá, puxando-o para baixo consigo, e todos os argumentos dele começaram a se dissolver... talvez só aquela vez... só uma vez... nunca mais o fariam... e aí de repente ele caiu em si e se afastou dela. Suas pernas tremiam ao fazer isso, mas ele sacudiu a cabeça e parou.

- Não. Não vou fazer isso com você, Anne.

- Eu te amo com todo o coração. - Ela parecia uma criança surrada.

- E eu também. Esperarei por você os dois próximos anos, se for isso que tivermos de fazer. E depois me casarei com você. Mas não vou estragar a sua vida.

De repente ela se riu, uma risada de uma meninazinha, ao beijar o rosto dele.

- Eu te amo tanto... Quer dizer que se casaria mesmo comigo? - Estava pasma, encantada e mais feliz do que se sentia, havia muito tempo.

- Casaria. - Ele sorriu para ela, com brandura. Fora um momento difícil para ele, para ambos, mas mais para ele, e ele não dormira a noite toda. Mas estava falando sério. Já pensara naquilo. Pensou até q Gail poderia aprovar, um dia. Outros homens já se tinham casado com garotas com menos da metade da idade deles. Não era a pior coisa que ele poderia fazer. - Isto é, se você fosse louca a ponto de se casar comigo. Dentro de dois anos, você terá dezoito anos e eu 51. - Parece ótimo - disse ela, rindo.

- Que tal quando você tiver trinta e eu 63? - Ele agora a estava pondo à prova e vigiando os olhos dela. Falava a sério, sobre o casamento com ela. Não havia nada na vida que ele quisesse mais, mas não havia motivo para eles não terem as duas coisas, a felicidade dele e a dela. Ele queria tomar conta dela, protegê-la do sofrimento pelo resto da vida. Sentia que os pais dela tinham feito bem pouco por ela, desde o dia em que ela nascera, certamente menos do que ele fizera por Gail. Mas Gail era filha única, e Anne era a última de cinco filhos e, ao que ele tinha sabido, ela nascera num momento difícil das vidas deles. No entanto, isso não era desculpa.

E ele passaria o resto da vida compensando as coisas para ela. Tudo, mesmo o bebê a que ela renunciara.

- Isso me parece ótimo. - Ela estava respondendo à sua segunda pergunta quanto à diferença nas idades deles e parecia realmente indiferente. - Eu também sei fazer contas, sabe? E quando eu tiver sessenta, você terá 93. Que tal lhe parece? Tem certeza de que a essa altura não vai querer alguém mais jovem? - Ela agora estava mexendo com ele e os dois riram e ele começou a se descontrair. A manhã fora de pesadelo, cheia de pavor e sentimento de culpa, mas agora as coisas estavam mais como os momentos fáceis que ele já conhecera com ela, se bem que ele nunca tivesse chegado a pedi-la em casamento. - Então, vamos dizer que está resolvido? Estamos noivos? - Ele sorriu para ela e ela para ele, e depois se debruçou para beijá-la de novo. - Estamos noivos, e eu te amo de todo coração. - Ele a beijou com tanta ternura, em resposta ao que ela dissera, que seus corpos pareciam se tornar quase um só e ele teve de se lembrar para se afastar de novo, mas na verdade não o queria mais. . e se ia se casar com ela, um dia... não estaria certo, agora... só uma vez?... para selar o compromisso, por assim dizer. Ele se sentou, olhando nos olhos dela, sabendo que não conseguia mais pensar direito.

- Você me deixa maluco, sabe?

- Que bom. - Parecia uma mulher, ao pronunciar essas palavras, e seus olhos penetraram nos dele. - Posso ficar aqui, um pouco? Não havia mal naquilo. Já tinham feito aquilo antes, quando Gail tinha outros programas e as empregadas saíam, nos fins de semana. A única diferença é que das outras vezes eles sabiam que todos iam acabar voltando e agora estavam inteiramente a sós. Ele se ofereceu para aquecer a piscina, para poderem nadar, e ela achou ótima idéia. Não se deu ao trabalho de vestir o maiô, e mergulhou lindamente do trampolim, enquanto ele olhava o veludo macio de sua carne se esticar sobre seus membros compridos e graciosos. Era uma moça linda, se bem que ninguém na família dela parecesse ter notado isso, ainda. Era apenas a "pequenina Anne", a quietinha que se escondia no quarto. Mas agora não se estava escondendo, e ele tirou a roupa e mergulhou atrás dela e eles nadaram como botos sob a superfície da piscina e depois saltaram para o alto, agarrando-se pela cintura, e devagar ele a puxou para si. Ele não agüentava mais. desejava-a demais. Seus corpos se encontraram e se prenderam, enquanto ele lhe acariciava as costas e pescoço e a beijava com ternura, levando-a para fora da piscina, embrulhando-a numa toalha depois a carregando para dentro de casa. Não restava mais nada a dizer. Ele não podia mais lutar contra aquilo, e ela parecia uma princesa delicada, quando ele a colocou na cama e sorriu para ela, o corpo dele ainda firme, os músculos rijos, as pernas fortes. Um dia, eles teriam filhos lindos, pensou ele, mas naquele momento não estava pensando em bebês. Só pensava nela, ao tocar em todos os centímetros de seu corpo, acariciando-a e beijando-a e deixando sua língua dançar em cima dela, e, de alguma parte distante dela mesma, ela se lembrou de um tipo de amor que antes nunca conhecera de fato, e o acariciou delicadamente até ele não conseguir mais suportar e seus corpos se uniram. Todo o corpo dela se arqueou de prazer ao contato com ele e eles pareceram dançar juntos durante horas, alteando-se ao céu, até que afinal explodiram como o sol.

 

Os dias que passaram juntos foram os mais idílicos que qualquer dos dois jamais tivera. Dessa vez, não havia drogas, nem alucinógenos, nem rituais, nem faz-de-conta, somente Bill e a ternura e beleza que ele levava à vida dela e a alegria que ela levava à dele. Durante dez dias, eles se permitiram esquecer como seriam difíceis os dois anos seguintes. Restringiram-se à casa e ao terreno dele, mas correram e brincaram, ouviram música e ele lhe deu uma taça de champanha, só uma, no que chamou de sua noite de núpcias. Tomaram banhos prolongados na banheira dele e ele leu para ela. De noite, diante da lareira, penteava os cabelos dela e a amava de maneiras que ela nunca fora amada. Era o tipo do amor paternal que ele sempre tivera por Gail, acentuado agora pelo amor que ele um dia tivera pela mulher, mas que passara vários anos sem ter com quem partilhar. Despejou sua alma para Anne, e ela deu a sua a ele. E nunca fora tão feliz na vida. Na última noite, ela chorou. Telefonara para Gail todos os dias, e a amiga dizia que estava se divertindo em Nova York. Mas Anne nunca se deu ao trabalho de ligar para casa. Eles sabiam que ela estava bem, e sabiam onde ela estava. Não tinham idéia do que estava fazendo, mas isso agora era um segredo dela e eles teriam de viver com ele nos dois anos seguintes.

- E se Gail descobrisse? - perguntou ela, quando estavam deitados na cama. Ela quase nem usara roupas, naqueles últimos dez dias, eles passavam o tempo todo fazendo amor, e parecia que ele nunca se fartava dela. Ele fizera mais amor em dez dias do que nos últimos dez anos. Ele então suspirou, pensando no que ela perguntara. - Não sei. A princípio, acho que ela ficaria escandalizada, mas acho que com o tempo ela havia de aceitar. Acho que o melhor será se ela não descobrir até daqui a um ano mais ou menos, aí ela estará mais velha e mais amadurecida e mais capaz de aceitar o que sentimos. - Anne meneou a cabeça, concordando com ele. Concordava com ele em quase tudo. - Acho que o mais importante é que ela venha a saber, com o tempo, que o nosso amor também pode ser partilhado com ela, que não a excluirá. Eu a amo como sempre amei, mas agora também amo você. Afinal, tenho o direito de me casar de novo, um dia... ela só vai ficar espantada ao saber que é com uma de suas amigas. - De repente, Anne se viu de véu branco, tendo Gail como dama de honra e ela sorriu.

Era um sonho lindo, mas ainda estava muito, muito longe. Muita coisa podia acontecer em dois anos. Ela sabia disso melhor do que ninguém. Contara a ele sobre Lionel e John, que eram homossexuais, e que a tinham abrigado até nascer o bebê, e como tinham sido bons... e que John morrera no incêndio e como Li ainda estava desesperado. Já se passara um ano e ele ainda não estava no seu normal. Morava sozinho e, a não ser para trabalhar, não saía nunca. Levava-a para almoçar fora, de vez em quando, mas estava tão calado que ela estava assustada. Bill entendeu o que ela estava descrevendo. Ele se sentira assim quando a mulher morrera, mas, claro, tinha Gail para animá-lo. Começou a sentir que agora conhecia tudo sobre Anne, todos os seus segredos, seus receios, como ela se sentia em relação a Faye - ela estava convencida de que os pais nunca a haviam amado, realmente, e ele ficava triste por ela.

- Vamos ter de ter muito cuidado, criança. Não só com Gail, mas com todos.

- Sei disso. Já tive meus segredos. - Ela fez um ar misterioso e ele riu e beijou a ponta do seio dela, que endureceu logo.

- Não assim, espero.

- Não - disse ela, sorrindo, e alguns minutos depois fizeram amor de novo. Ele nem se sentia mais culpado. Aquilo era o que era e era dele e ele não ia perdê-la agora. Nunca desistiria dela. Ia ficar ao lado dela o resto de suas vidas, juntos, e prometeu isso quando a levou em casa, na tarde seguinte. Os dois estavam cansados, tinham passado a noite toda acordados, se amando e conversando e ele teria de apanhar Gail no aeroporto dali a duas horas e nessa noite as empregadas estariam de volta. A lua-de-mel de conto de fadas acabara, agora teriam de agir com cuidado, de mãos dadas, para o que seria suas vidas nos dois anos seguintes. Mas teriam momentos como aquele, de novo. Feriados, fins de semana roubados, uma noite aqui e ali. Ele lhe prometera isso, e os olhos dela ainda estavam iluminados pelo amor quando ela entrou em casa, levando a valise numa das mãos.

Ela parou, escutando, enquanto o Rolls-Royce dele se afastava, num ronco.

- Você está com um ar cansado. - A mãe olhou para ela quando ela entrou. Naquele dia eles não tinham filmado. Era uma tarde de domingo e ela olhou para os olhos de Anne. A menina parecia bem feliz. - Divertiu-se, amor?

- Hum, hum...

- Provavelmente foi uma prolongada festa de pijamas que durou dez dias. - Ward sorriu. - Não sei o que é que há com as garotas da sua idade, parece que nunca se querem vestir. - Ela sorriu e desapareceu no quarto, sem dizer nada, mas quando Vanessa olhou para ela, viu uma coisa a mais do que os pais e não sabia ao certo o que fosse. Ficou inquieta quanto à menina, e teve vontade de falar com ela antes de partir. Mas não houvera tempo para isso. Anne voltou às aulas no dia seguinte,

havia uns amigos que Vanessa ainda queria ver e na noite seguinte ela teve de arrumar as malas. Depois se foi, sem descobrir o que é que tinha iluminado os olhos de Anne daquele jeito.

 

Todos voltaram a suas vidas, Val à sua vida com seus filmes de terror, um pouco de drogas, um homem novo na cama sempre que possível, e Vanessa de volta à universidade em Nova York. Greg estava tendo problemas com as notas, mas prometia melhorar, e Anne não dava trabalho a ninguém. Passava a maior parte do tempo em casa da amiga, mas todos já estavam acostumados a isso. Nunca mais a viam. Ela completara dezesseis anos e mal teve uma noite para comemorar com a família. Gail e o pai a tinham levado ao Bistro para comemorar, no dia seguinte, mas Faye não viu mal nisso. Eles eram muito simpáticos com ela e ela lembrou a Anne para comprar um presente para Gail, de vez em quando, só para mostrar que ela era grata.

Em fevereiro, Lionel ligou para Faye no estúdio e perguntou se podia almoçar com ela e Ward. Era raro que ele fizesse uma coisa dessas, e ela esperava que isso significasse uma boa notícia na vida dele, como um filme empolgante ou mesmo mudança de trabalho, ou a comunicação de que ia voltar a estudar. Mas nenhum dos dois estava preparado para o que ele lhes comunicou.

Ele pareceu hesitar, como se não quisesse fazê-los sofrer, e de repente Ward se sentiu mal. Talvez ele lhes fosse dizer que estava apaixonado por outro homem e ele não queria saber disso. Mas Lionel resolveu falar logo, não havia como mitigar as palavras.

- Fui convocado. - Os dois o fitaram fixamente. Não era momento para isso. A guerra do Vietnã estava em pleno auge e estava na cabeça de todos. Ward estava horrorizado.

Por mais que amasse a sua pátria, não queria sacrificar os filhos por uma guerra fedorenta, num lugar que não lhe dizia coisa alguma, e Faye ficou de queixo caído ao ouvir a primeira coisa que ele disse.

- Diga a eles que você é gay. - Era a primeira vez que ele usava a palavra e Lionel sorriu e sacudiu a cabeça.

- Pai, não posso.

- Não seja tímido, pelo amor de Deus. Pode ser que lhe salve a vida. - Era exatamente o que ele dissera a Greg, para melhorar as notas dele. Só faltava mesmo era ele ser expulso da universidade e mandado para o Vietnã. Mas Lionel tinha a desculpa perfeita. Ele não estava preocupado com ele. - Seja razoável, rapaz. Ou isso ou vá para o Canadá.

- Não quero fugir, pai. Não seria legal.

- E por que não, pelo amor de Deus? - Ele esmurrou a mesa, na cantina, mas ninguém olhou. Ali havia tanto movimento e barulho que ninguém reparava em ninguém, fosse o que fosse que usassem ou fizessem ou dissessem. A pessoa poderia entrar ali despida, berrando em altos brados, e todos pensariam que estava ensaiando para algum papel. Mas Ward falou sério com ele. - Você tem de sair dessa, Li. Não quero que você vá.

Com lágrimas nos olhos, Faye estava escutando os dois falarem. - E nem eu, amor.

- Eu sei, mãe. - Ele tocou na mão dela, de leve. - Eu também não fico feliz com isso, mas não me parece que tenha alguma opção. Falei com eles ontem e acho que sabem o que sou, e também conhecem o meu trabalho em filmes, e vão querer que eu faça alguma coisa com filmes. - Ward e Faye pareceram ficar aliviados.

- Sabe onde seria? Ele respirou fundo.

- Provavelmente no Vietnã por um ano e depois disso talvez no Europa, no ano seguinte.

- Ah, meu Deus. - O rosto de Ward ficou branco e Faye começou a chorar. Passaram-se duas semanas tristes, enquanto Lionel resolvia os detalhes de sua vida, entregava o apartamentozinho que ocupava, deixava o emprego e se mudava para a casa dos pais por alguns dias, antes de partir para o campo de treinamento para recrutas. Eles deram graças por terem esse tempo com ele e ambos saíam cedo do trabalho, todos os dias. Mas a última noite foi difícil. Todos choraram, ao brindá-lo. E, no dia seguinte, todos ficaram no hall, acenando para ele às seis da manhã, quando o táxi se afastou com ele, enquanto Faye desmoronava nos braços de Ward e soluçava. Receava nunca mais vê-lo e, abraçando-a, Ward chorou igualmente. Foi um momento de desolação para todos e, num passeio bem demorado com Bill, Anne disse a ele o que os pais temiam dizer, que ele nunca se refizera da morte de John e que talvez tivesse ido para o Vietnã para ser morto. Era uma idéia que dava o que pensar.

- Não deve ser isso, amor. Ele só está fazendo o que acha que tem de fazer. Eu também estive na guerra, sabe? Nem todos são mortos. E se ele estiver trabalhando num filme, tenho certeza de que estará bem seguro. - Aquilo não era bem verdade. Ele sabia que aqueles rapazes muitas vezes eram atingidos, andando baixo nos helicópteros, para conseguirem as melhores tomadas. Só rezava para que o irmão dela fosse sensato e que a avaliação que ela fizera de seu estado psicológico estivesse errada.

Mas Ward e Faye, em segredo, também temiam o mesmo.

Somente Val tinha certeza de que ele estaria bem. Ela estava tão absorta na sua própria vida que era difícil pensar em mais alguma coisa. Acabara de conseguir um papel num filme de monstros sendo ro dado perto de Roma. Era um elenco internacional e tudo estava sendo dublado, mas assim mesmo, ela falava alguma coisa. No filme havia vários astros antigos, todos bem envelhecidos e desempregados, havia tempos.

- Não é ótimo? - Ela telefonara para Vanessa para dizer que ia passar por Nova York. Só por uma noite, mas seria divertido, em todo caso. Vanessa a convidara para ficar lá e conhecer o seu "amigo".

Valerie saltou do avião com uma saia de couro vermelho e meias roxas, uma pele roxa e botas de camurça que pareciam luzes néon. O suéter era decotado quase até à cintura e os cabelos continuavam a mesma juba selvagem. De repente, quando Vanessa olhou para Jason ainda com seus verdes e cinzas discretos, ela tossiu e se perguntou o que tinha feito.

- Meu Deus, ela é de verdade? - cochichou ele a Van, mas a beleza dela era inegável, por mais ridículas que fossem às roupas, e Vanessa riu.

- A terra dos plásticos no seu auge.

Ela se atirou nos braços de Vanessa e beijou Jason com um pouco de carinho demais, para a primeira vez. O perfume dela era forte demais, e Vanessa sentiu o cheiro de maconha nos cabelos dela. Naquela noite, eles foram ao Greenwich Village, ouvir jazi, e depois voltaram e conversaram no apartamento de Jason até às quatro da manhã. Ele serviu tequila até acabar o estoque e Valerie puxou uma caixa de baseados.

- Sirvam-se. - Ela acendeu um com perícia, enquanto Jason olhava; e ele a acompanhou, enquanto Vanessa hesitava. Só experimentara aquilo uma vez e não achava grande coisa. - Vamos, mana, deixa de ser careta. - Vanessa concordou, para não ser estraga-prazer, e insistiu em dizer que não via efeito algum, só que eles passaram a pesquisar as Páginas Amarelas procurando uma pizzaria que ficasse aberta a noite toda, e afinal resolveram esvaziar as geladeiras de Louise e Van, rindo muito, enquanto Jason olhava para Val fixamente. Não se conformava em ver como ela era diferente de Van e continuava a fitá-la quando ela tomou o avião no dia seguinte, daquela vez com um costume de couro verde-limão que os pais nunca tinham visto. Ela tomara emprestado para a viagem um bocado de roupas das garotas com quem morava e ninguém parecia se importar. Ninguém sabia mais o que pertencia a quem, e ela só ia passar algumas semanas fora, a não ser que arranjasse trabalho, uma vez lá.

- Tchau, caras. Cuidem-se bem. - Depois ela piscou para Van. - Ele é legal.

- Obrigada. - As duas se beijaram e Jason acenou quando ela embarcou. Parecia que tinham sido atingidos por um furacão, por dois dias. - Como é que ela foi sair assim, você sendo do jeito que é? - Não conseguia entender e Van riu dele. Ele parecia estar em choque. - Não sei. Acho que somos todos diferentes, apesar de sermos da mesma família.

- É o que parece.

- Quer me trocar por Val? - Ela estava sempre com medo disso. Valerie era tão mais espetacular, e escandalosa, com sua caixa de baseados, sua moral frouxa, seus cabelos ruivos e selvagens. Vanessa tinha a impressão de que a irmã teria dormido com Jason de bom grado, se Vanessa tivesse desaparecido, mas Van conhecia bem a irmã e teve cuidado. Ela já perdera namorados demais em todos aqueles anos para poder confiar nela de novo com um homem, mas não lhe queria mal por isso. Era o modo de ser de Val e não significava nada para ela.

- Ainda não. - Jason parecia imensamente aliviado por ter conhecido a gêmea mais sossegada.

Mas ele não pareceu ficar aliviado quando Vanessa fez uma sugestão, vários meses depois disso. O caso deles estava continuando sem problemas. Aliás, ela se mudara para o apartamento dele, e Louise arranjara outra companheira de quarto, sem perda de tempo. E a combinação que fizeram foi de que se os pais dela ligassem, elas iam pedir para esperarem, iriam ao andar de baixo e bateriam na porta, para ela poder correr para cima e falar com eles. Mas era raro eles ligarem. E se fossem a Nova York, Vanessa teria se mudado de volta por uns dias, mas até então não tinham ido lá. Estavam muito ocupados com seu último filme. Lionel ainda estava no Vietnã, mas, milagrosamente, até então estava tudo bem, e Valerie ainda não voltara de Roma. Conseguira outro bico, uma vez lá, dessa vez num filme de cowboy, o que era novidade para ela. E tinha feito trabalho de modelo algumas vezes em Milão, disse ela ao telefone, mas o que não disse a Faye é que tinha sido sem roupa.

Fosse como fosse, eles estavam espalhados pelo mundo todo, e a única que restava em L.A. era Anne. Ward quis alugar uma casa em Lake Tahoe por duas semanas e queria saber se Van poderia ir para lá. Lionel estaria de licença, Greg teria terminado o seu emprego de verão, Val disse que estaria de volta de Roma nessa ocasião, e Anne disse que iria se pudesse levar Gail. O que ele queria era uma promessa de Vanessa, que queria levar Jason consigo, mas este ficou horrorizado com a idéia.

- À terra dos plásticos? Por duas semanas?

- Vamos, até lá você já terá terminado a sua tese e Lake Tahoe é de verdade. Depois, quero que você conheça a minha família. - Era exatamente isso que ele receava.

Imaginava que todos fossem como Val e ele seria devorado pelo inimigo. Ele era um rapaz de cidade pequena e não tinha defesas contra eles.

- Você já conhece Val, de modo que nem todos lhe serão estranhos.

- Ah, Deus. - Ele fez tudo para dissuadi-la, nas semanas seguintes, mas ela se recusou terminantemente. Ela arranjara um emprego de verão numa livraria no centro, e todo dia quando voltava para casa ela o importunava.

- Será que não há outro assunto? Robert Kennedy foi morto, a política nesta terra é um nojo, o seu irmão está no Vietnã. Será que temos de falar em férias agora?

- Temos. - Ela sabia que ele estava com medo mas não podia imaginar de quê. A família era uma turma inofensiva, pelo menos aos olhos dela. - Vamos conversar a respeito, até você concordar em ir.

- Merda! - Ele gritara com ela porque a amava de verdade. - Está bem, eu vou!

- Nossa, mas que grande coisa! - Só levara dois meses. E quando ela ligou para os pais, eles ficaram pasmos. Além da amiguinha de Anne, Gail, Vanessa era a primeira a pedir para levar "alguém".

- Quem é ele, amor? - Faye procurou parecer natural, enquanto olhava para sua secretária de testa franzida, na MGM. De repente, ela ficou com medo de que ele não fosse bastante bom, ou não se interessasse devidamente por Vanessa. Como é que ela podia saber se o camarada era decente ou não, e Vanessa ainda tão inocente em tudo. Na semana anterior, ela encontrara Valerie com uma pessoa que parecia um cabeleireiro e que estava tão bêbado que Val quase o estava segurando para ele ficar de pé. Ela ia ter de conversar com aquela garota. Desde que estivera em Roma, estava inteiramente alucinada, e Faye estava começando a ouvir boatos de que não estava gostando nada, em especial sobre as pessoas com quem Val andava. Mas ela mesma sabia que era quase impossível controlar Val. Ela então voltou sua atenção novamente a Vanessa e esse amigo misterioso que ela queria levar, sabendo que o gosto de Vanessa em matéria de homens era muito mais conservador do que o de Val. Ela nem sabia o que Ward diria, se bem que a casa que ele alugara fosse bastante grande. Havia uma dúzia de quartos e ficava bem no lago. Na verdade, também lhe parecia boa idéia e seria maravilhoso estarem todos juntos de novo. - Quem é mesmo o rapaz? Está em Colúmbia? - Ela não queria ser ranzinza, mas sabia que provavelmente era o que parecia, para a filha.

- Não está mais. Está acabando o doutorado.

- Que idade tem esse rapaz? - Faye agora estava mesmo preocupada.

- Uns 65 anos. - Ela não resistiu e implicou com a mãe, mas Faye não estava achando graça. - Vamos, mãe, sossegue. Só tem 25 anos. Por quê?

- Não é um pouco velho para você? - Ela estava tentando manter a voz natural, mas sem conseguir.

- Não que eu notasse. Ainda anda bem direitinho, sabe dançar... andar de bicicleta...

- Pare de gracinhas. O caso é sério? Por que quer trazê-lo aqui com você? Até que ponto está envolvida com esse homem? - As perguntas eram feitas mais depressa do que Van podia responder, e ela ficou contente por ter ligado numa hora em que Jason não estivesse lá. - Não é sério, não. É só um bom amigo. - ...Moro com ele, mãe... Ela ficaria mesmo empolgada com isso. - Por que não vai fazer essas perguntas a Val e me deixa em paz? - Por que é que era sempre ela quem tinha de pagar o pato? Sempre tinham feito isso com ela. Deixavam os rapazes fazer o que quisessem, não conseguiam controlar Val, e Anne nem falava com eles, se bem que desconfiasse de que todos tinham segredos piores do que o dela. Greg andava trepando com tudo o que usasse saia nos três últimos anos, só Deus sabia o que Val estava fazendo agora, e Anne estava com aquela expressão secreta... mas eles não os perseguiam, e sim a ela, porque ela os tratava bem. Não era justo.

Mas a brandura na voz da mãe a comoveu, na pergunta seguinte.

- Você o ama, benzinho? Vanessa hesitou.

- Não sei. Gosto muito dele, e achei que ele se daria bem com todo mundo.

- É seu namorado firme?

Vanessa sorriu diante desse termo, e elas estavam amigas de novo. - Mais ou menos, eu acho.

- Bom, vou falar a respeito com o seu pai e ver o que é que ele diz. - E ele, depois de fazer menos perguntas do que Faye, claro, disse que sim, e disse a Faye que sossegasse, o que era fácil para ele. Ela ainda tinha de pensar nos cinco filhos e, para ela, eles ainda eram crianças.

 

Todos chegaram em Lake Tahoe separadamente. Ward queria passar alguns dias a sós com Faye e a casa que tinham alugado era ainda melhor do que imaginavam. Havia uma pequena torre em cada extremidade, um living imenso embaixo, uma mesa de jantar com dezoito lugares numa sala de jantar com lambris de madeira com uma lareira imensa.

E no andar de cima havia doze quartos, o que era mais que suficiente para todos. A decoração era rústica e aconchegante, com colchas e chifres de veado e pratos de estanho por toda parte. Havia cestas de índios e peles de urso pelo chão, e ao chegar lá com Faye, Ward viu que era exatamente o que tinha em mente. Eles se apossaram do que era evidentemente a suíte principal, com um imenso banheiro antiquado e um quarto de vestir. E no dia seguinte ficaram olhando para o lago, de mãos dadas e se lembrando de suas férias na Suíça, há mais de um ano atrás.

Faye estava melancólica, pensando naquilo, e depois se virou para ele.

- Um dia eu gostaria de me aposentar e vir morar num lugar como esse.

- Meu Deus, você? - Ele sorriu. Não podia imaginar nada mais incongruente do que sua mulher linda, mundana, elegante, detentora de três Prêmios da Academia e mais ou menos pioneira de tendências, desistindo de tudo para ficar sentada olhando para um lago nos quarenta anos seguintes. Afinal, ela só tinha 48 anos e ele não podia imaginar uma coisa dessas. - Você ficaria louca de pedra em três dias, se não fossem dois.

- Não é verdade, amor. Um dia desses vou te surpreender e desistir de tudo. - Havia tão pouca coisa que ela não tivesse feito, e que linda quisesse fazer. Naquele momento, ela estava pensando com uma freqüência cada vez maior que poderia gostar de largar tudo. Já estava dirigindo filmes há mais de quinze anos e isso era quase o suficiente. E ele ficou espantado ao ver como ela estava séria.

- Você é muito jovem para se aposentar, amor. O que você faria?

Ela sorriu e beijou o pescoço dele.

- Passaria o dia todo com você na cama.

- Ótima idéia. Talvez devesse mesmo se aposentar, se é nisso que está pensando. - E depois sorriu, pensando nas duas semanas que teriam pela frente. - Você acha que vai conseguir as duas semanas com a nossa ninhada? - Ele estava esperando aquilo com prazer, especialmente o tempo que passaria com Lionel e Greg. Fazia tempo que não passava momentos ao ar livre com os filhos e estava bastante aliviado ao ver que Lionel estava sobrevivendo no Vietnã. Dois dias depois, quando Li saltou do carro alugado, ele estava com lágrimas nos olhos. Lionel foi o primeiro a chegar e Ward o abraçou com força. - Meu Deus, mas como você está alto e bronzeado, rapaz. - E ele achou o filho maravilhoso.

E parecia que tinha amadurecido de um dia para outro. Com quase 22 anos, parecia cinco ou seis anos mais velho, e Ward não pôde deixar de notar que não tinha o menor jeito de gay. Pensou se talvez ele não tivesse mudado de idéia, mas isso seria esperar demais e quando insinuou isso, mais tarde, Lionel se riu dele. Era a primeira vez que eles conversavam como amigos, havia anos. Mas Ward tinha respeito pelos filmes que ele estava fazendo no Vietnã e o perigo constante que ele corria.

- Não, pai. - Ele disse aquilo com muita brandura, os olhos bondosos. - Não "mudei de idéia". - Ward ficou encabulado e Lionel sorriu. - Isso não funciona assim.

Mas não houve ninguém de pois de John, se era isso que queria saber. - A fisionomia dele ficou séria, pensando no seu amor perdido. Já fazia um ano e meio, e ele continuava a sentir uma falta terrível do outro. De certo modo, era mais fácil estar no Vietnã. Não tinha de ver sempre os lugares em que eles tinham estado. Era toda uma vida nova. E Ward via como aquilo ainda era penoso para ele.

Eles passaram agradavelmente um dia e meio, antes que os outros começassem a chegar. Primeiro, Jason e Vanessa, de Nova York. Foram de avião a Reno e lá alugaram um carro, chegando à casa de tardinha. Vanessa saltou e se espreguiçou, enquanto Jason olhava em volta, espantado ao ver como o lugar era lindo. E quando Lionel atravessou o gramado para recebê-los, Jason se surpreendeu. Viu logo o que era o irmão de Van, e se perguntou por que ela não lhe dissera que ele era homossexual.

- Olá. - Ele tinha olhos ternos e se parecia um pouco com Van. - Sou Lionel Thayer.

- Jason Stuart. - Os dois se apertaram as mãos, comentando a beleza do lugar. A vista do lago era espetacular e um minuto depois Faye e Ward chegaram da praia, de maiô e calção. Ele tinha uma vara de pescar, mas nenhum resultado visível e Faye estava implicando com ele, com um maiô preto que salientava seu corpo ainda lindo.

E Jason então viu onde estava a verdadeira semelhança. Lionel era a cara de Faye. E, embora Jason não o confessasse a Van, ficou impressionado ao conhecê-la. Ela era linda e inteligente e seus olhos dançavam com milhões de idéias. Fazia todos rirem e tinha uma voz grave e sexy. Achou que ela era uma das mulheres mais interessantes que ele já havia conhecido, quando eles ficaram conversando muito, naquela noite. Ela o estava interrogando sobre seus planos, sua tese, suas idéias, e de repente ele se deu conta de como devia ter sido difícil se criar com ela. Era tão bonita e inteligente que teria sido impossível competir com ela e agora ele entendia por que Vanessa era tão quieta e discreta e a gêmea tão estabanada. Van evidentemente resolvera não competir de todo, e Val continuava a lutar com ela a cada passo, mas de um modo que garantia que certamente não venceria. Estava tentando ser mais espetacular, mais bonita, estava tentando vencê-la em seu território, e aí só poderia sair perdendo. Lionel entrara para o cinema, mas num espírito totalmente diferente, e agora estava curioso para conhecer os dois outros. O próximo a chegar foi Greg, falando o tempo todo de jogar bola, tomar cerveja e conquistar as garotas. Era quase exaustivo estar na mesma sala que ele, mas sempre que Jason via Ward falar com ele, via seus olhos se iluminarem. Aquele era seu filho adorado, seu herói, seu atleta. E pôde começar a imaginar o sofrimento que isso devia ter causado a Lionel, na maior parte de sua vida. Tentou conversar com Greg por uma ou duas vezes, no dia em que ele chegou, mas ele nunca tinha muito a dizer, e parecia estar sempre pensando em outra coisa.

E então, afinal, chegaram Val, e Anne. Val ficara na cidade o máximo que pudera, e concordara em levar a irmã, embora não estivesse disposta a sair da cidade naquele momento. Estavam escolhendo o elenco para um novo filme de terror, e ela não queria ficar de fora. Mas não podia fazer tudo, e sabia que um outro estava planejado para dali a duas semanas. Esses filmes já eram quase uma especialidade, para ela, e ela não se importava com as caçoadas dos amigos. Estava trabalhando quase o tempo todo, e ganhando dinheiro com regularidade.

- Vamos - disseram todos, quando todos já tinham chegado, e Lionel apagou as luzes do living -, vamos ouvir, Val, o famoso grito de Valerie Thayer. - Àquela altura ela já tinha feito isso dezenas de vezes, e todos pediram, enquanto ela ria, e afinal, postando-se junto ao fogo, no escuro, ela começou a agarrar a garganta, fez uma careta medonha e soltou um grito prolongado e lancinante. Era tão convincente que todos ficaram olhando para ela, horrorizados, pensando logo que ela estava sufocada, e depois se dando conta do que ela fizera. Estava fazendo aquilo para eles, e pareceu continuar por horas e aí de repente desmoronou. A platéia ficou empolgada e bateu palmas e deu vivas, Jason mais que todos. Ele e Van tinham ido passear de canoa com ela de tarde, e ela estava divertidíssima. Ele estava rapidamente se tornando um de seus fãs mais ardorosos. E para provar que isso era mútuo, ela calmamente deu a ele uma rã, na volta para casa. Ele deu um pulo, Van gritou e Val chamou os dois de ridículos.

- Porra, trabalhei com duzentas rãs de uma vez, no filme que fiz em Roma. - E aí de repente os três começaram a rir e apostaram corrida até em casa. Era como se fossem crianças de novo. Lionel, Ward e Greg tinham ido pescar nalgum lugar, naquele dia, e voltaram com várias trutas, e tentaram convencer Faye para que ela as cozinhasse, mas ela declarou que a idéia era deles. Lionel achou que Greg estava meio calado, e se perguntou se havia algum problema. Mas, de modo geral, todos estavam se divertindo. Faye tinha passado uma tarde sossegada, deitada na praia com Anne, que não tinha querido ir passear de canoa com Jason e as gêmeas, nem ir pescar com os rapazes. Faye nem sabia ao certo se ela estaria disposta a ficar na praia com ela. Mas não tinha o que fazer e ficou ali, lendo um livro. Na última hora, a amiga Gail resolvera não ir com ela. Não queria se intrometer numa reunião de família e, em vez disso, fora a San Francisco com o pai, deixando Anne sozinha de novo. Ela escreveu uma carta e, a certa altura, entrou em casa, e Faye a viu ao telefone. Faye achou que ela estava na idade em que não queria largar as amigas, e que não estava entusiasmada com aquele passeio, mas estava fazendo bem a todos. Na segunda semana, estavam todos descansados e bronzeados. Ward e Jason tinham feito uma boa amizade, as gêmeas havia anos não se davam tão bem, e Greg afinal parecia estar descontraído. Até mesmo Anne estava se divertindo, e um dia foi dar um longo passeio com Vanessa, quando Jason teve de levar Faye à cidade. Vanessa olhou para ela, pensando de novo como ela parecia adulta. Ela estava com dezesseis anos e meio, mas suas experiências pareciam tê-la feito amadurecer muito mais Mo que a idade que tinha.

- Gostei do seu amigo. - Ela disse aquilo com tranqüilidade, e Van se lembrou de como ela sempre fora reservada.

- Jason? Eu também. É um bom rapaz.

- Acho que ele também gosta muito de você. - Ambas concordaram, era evidente que ele gostava, e que até já estava gostando da família dela. Ele antes estava bastante assustado com o que fariam com ele. Afinal, ele confessara que pensara que ia ser como estar numa fila, sendo interrogado por todos eles e, em vez disso, todos tinham seus pontos fracos e traços bizarros. E ele gostou de todos, até da tímida Anne, que agora fitava a irmã mais velha com curiosidade. - Você acha que vai se casar com ele?

Vanessa sabia que todos estavam pensando nisso, ela estava só com dezenove anos e não queria cogitar disso. Só dali a alguns anos. - Nunca falamos a respeito.

- Por quê? - Anne pareceu se espantar.

- Ainda tenho muita coisa a fazer. Quero acabar os estudos... fazer o que quero... tentar escrever...

- Isso pode levar anos.

- Não tenho pressa.

- Mas aposto que ele tem. É bem mais velho do que você. Isso não te incomoda, Van? - Ela pensou o que a irmã acharia dos 33 anos entre ela e Bill. A diferença entre ela e Jason não era nada, em comparação.

- Às vezes, por quê?

- É só curiosidade. - Elas se sentaram numa pedra e ficaram mergulhando os pés na água.

Anne estava olhando para a água, os olhos sonhadores, e Vanessa viu em seus olhos algo que a fez pensar no que se estaria passando na cabeça da garota. A diferença entre elas era de apenas três anos, mas às vezes parecia que eram dez, e parecia que Anne era a mais velha, quase como se tivesse vivido demais e sofrido demais. Então ela se virou para Vanessa, como que lendo os pensamentos dela.

- Eu me casaria com ele, se fosse você, Van. - Ela parecia idosa e sábia e Vanessa sorriu.

- Por quê?

- Porque você pode não encontrar outro tão bom quanto ele. Um homem bom vale tudo.

- É isso o que você pensa? - Vanessa olhou para ela, vendo de novo alguma coisa ilegível, e de repente sentiu que havia um homem na vida dela, e talvez fosse um homem importante. Era difícil dizer, com Anne. Ela revelava tão pouca coisa, mas ali havia algo que era mais do que qualquer mocinha soubesse, e ela então virou o rosto, co mo que para impedir que Vanessa visse o que era. - E você? Alguém especial na sua vida? - Ela procurou manter a voz leve e parecer natural, mas Anne logo deu de ombros, quase depressa demais.

- Não, nada de mais.

- Ninguém mesmo?

- Não.

Van sabia que ela estava mentindo, mas não havia nada a dizer, e elas afinal calçaram os tênis e voltaram para casa, mas uma noite ela disse alguma coisa a Li. Ele a conhecia tão bem...

- Acho que Anne está metida com alguém.

- Por que você diz isso? - Ele não estava mais a par das atividades dela. Passara seis meses no Vietnã e ela agora não lhe fazia mais confidências.

- É só uma impressão... não sei dizer por quê... mas ela está diferente... - Ela não podia precisar a coisa e o irmão riu e olhou bem nos olhos dela.

- E você, mana? O seu namoro com esse cara é sério? - Ela pensou se todos iriam lhe perguntar isso antes de partirem, e sorriu. - Sossegue. Anne me perguntou a mesma coisa hoje. Eu disse que era provisório. - Estava sendo bastante sincera com ele. Como poderia saber o que o futuro traria?

- Uma pena. Acho que ele é bom sujeito.

Ela olhou para ele e riu, implicando com ele pela primeira vez, havia anos.

- Você não pode ficar com ele, ele é meu. Ele estalou os dedos e riu.

- Ora, merda.

Greg apareceu por trás deles e olhou de Lionel para Van.

- O que é que está havendo? - Vanessa, porém, não explicou. Disse alguma coisa com displicência e foi procurar o seu amigo tão falado e aparentemente querido. Encontrou-o com Val, que estava implicando com ele sem piedade, sobre o quanto ele era careta. Ward e Faye estavam na varanda, bebendo vinho e Anne estava de novo ao telefone, falando com alguma amiga.

- Provavelmente é com Gail. - A mãe dela sorriu para Ward e ele deu de ombros. Estava tudo bem. Não era preciso investigarem. Estavam gozando bem da companhia dos filhos e ele estava contente por poder dizer que gostava de todos. Nem todos estavam saindo conforme planejara. Ele tivera outras esperanças para Lionel, claro, e gostaria de ver Val estudando em vez de aprendendo a gritar, mas Anne estava de volta, no caminho certo, e Vanessa estava se dando bem e Greg era o astro, claro.

Se bem que menos do que Ward pensava, conforme ele mesmo estava confessando a Lionel naquele momento mesmo, lá perto da praia, os dois sentados num tronco de árvore, vendo o sol se pôr. Lionel, afinal, descobrira o que estava preocupando Greg desde que chegara. A coisa caíra, como compras de cem dólares, de um saco de papel rasgado.

- Nem sei o que dizer ao pai, Li... se me expulsarem do time... - Fechou os olhos, sem conseguir concluir seu pensamento, mas a fisionomia de Lionel estava séria.

Aquilo seria uma decepção terrível para Ward, mas era mais grave do que isso, como ele bem sabia. Todos os dias ele via rapazes como Greg mortos ao chão, as tripas saindo por ferimentos de bala enquanto sua câmara girava.

- Por que, porra, você foi fazer uma coisa burra dessas? - Na primavera ele tinha sido pilhado queimando fumo e o tinham posto na reserva, sem o conhecimento de Ward, que pensava que ele tivesse machucado o pé. Mas as notas dele eram tão más que era possível até que não o readmitissem ao time.

- Deus, podiam até me expulsar da universidade, se quisessem. - Ele estava com lágrimas nos olhos, mas era bom falar disso, afinal Aquilo o vinha matando, havia semanas.

Sem pensar, Lionel agarrou-lhe o braço e olhou bem nos olhos dele.

- Você não pode deixar que isso aconteça. Tem de voltar e trabalhar como mouro para melhorar essas notas. Tome um professor se precisar, faça qualquer negócio...

- Ele sabia do que estava falando e Greg não tinha idéia do que se passava lá fora. Mas em todo caso estava apavorado.

Greg olhou para ele no maior desespero. - Posso ter de colar.

Lionel gemeu e sacudiu a cabeça.

- Não, seu babaca. - Era como se fossem guris de novo, e pelo menos era bom sentir a confiança entre eles. Nunca tinham sido amigos de verdade, havia anos, desde que começaram a crescer e Lionel sentira a diferença em sua pessoa. E certamente não desde que Greg soubera da verdade sobre ele. Mas o engraçado é que agora ele procurara justamente Lionel. Passara dias querendo falar com ele. Não conhecia Jason bastante bem, e não podia contar ao pai, e tinha de contar a alguém o que lhe estava acontecendo. Mas agora Lionel o fitava furioso. Se você colar, seu corno, aí mesmo é que te expulsam. Você tem de fazer tudo segundo as regras, porque se não fizer e te expulsarem, vão te agarrar tão depressa para o Vietnã que a sua cabeça vai girar. Você é exatamente o que eles precisam. Jovem, saudável, forte e burro.

- Obrigado.

- Estou falando sério. E quando digo burro, quero dizer muitas coisas. Quero dizer que você não tem idade para estar lá na selva, preocupado com a mulher e filhos. Vai ficar vendo os seus companheiros morrerem e vai querer ir lá e matar o Charlie Cong. E você é jovem e sadio... - Os olhos de Lionel se encheram de lágrimas. - Eu lá vejo os garotos como você morrerem todo dia. - Ele detestava a idéia de voltar, mas dali a algumas semanas voltaria, e Greg então olhou para ele com um novo respeito. De algum modo, ele estava sobrevivendo, e se tornara um homem, se é que se podia usar esse termo. Ele ainda estava confuso quanto à questão de Lionel ser o que era, mas lhe dava ouvidos. Sabia que o irmão tinha razão, e estava apavorado.

- Tenho de voltar para aquele time.

- Consiga notas melhores, para não te expulsarem da universidade.

- Vou tentar, Li. Juro que vou.

- Bom. - Ele despenteou os cabelos do irmão, como fazia quando eles eram garotos, e os dois sorriram, enquanto o sol se punha. Greg passou o braço em volta dos ombros de Lionel, e aquilo lhe lembrou seus dias de acampamento.

- Mas naqueles tempos eu te detestava - disse Greg, e os dois se riram das recordações. - E eu detestava mesmo Val e Van. - Ele aí começou a rir. - Acho que eu detestava todo mundo. Tinha ciúmes de todos vocês. Queria ser filho único.

- E era, de certo modo Você sempre foi o mais ligado ao pai. - Greg meneou a cabeça, sem o negar. - Mas naquela época eu nem esquentava. - Greg ficou impressionado ao ver como Lionel se mostrava filosófico quanto àquilo. Nos últimos anos, aquele agarramento com Ward por vezes o deixara constrangido e ele então mudou logo de assunto.

- Pelo menos, nunca detestei Anne. Lionel sorriu.

- Nenhum de nós a detestava. Ela era pequena demais para isso. - Mas agora ela não era mais pequenina. Já estava crescida, ou quase.

E ela acabara de desligar, depois de falar com Bill de novo. Era uma agonia estar longe dele, e ela ligava para ele, a cobrar, três vezes por dia. Todos o notavam, mas pensavam que ela estivesse ligando pa ra Gail. Somente Vanessa continuava a achar que Anne estava envolvida com um homem, mas não havia como descobrir, e ela não contava a ninguém.

Ao todo, eles se divertiram muito, e na última noite Valerie se sentou ao chão junto à sua porta, esperando Jason e Van. Todas as noites ela ouvia Van correndo pelo corredor para ir para o quarto dele, e naquela noite, quando ouviu os passinhos, esperou dois minutos e depois correu e bateu à porta do quarto de Jason. Ouviu uma risada, depois uma exclamação, e depois a voz de barítono de Jason disse:

- Entre. - Ela entrou e avançou para ele com um ar amoroso e quando ele olhou para ela, espantado, ela pulou na cama, quase matando a gêmea, que gritou. E aí de repente eles viram que ela estava brincando com eles e todos riram e ficaram conversando até bem tarde. Acabaram indo procurar Lionel e Greg e todos desceram para assaltar a geladeira e beber cerveja. Foi o fim perfeito para férias perfeitas, e no dia seguinte, quando cada qual seguiu o seu caminho, levaram consigo a recordação de quanto fora divertido.

 

Para espanto de Vanessa, ela conseguiu convencer Jason a passar alguns dias em L.A.; tendo conhecido sua família e sabendo como eram, ele não tinha nada a temer da parte deles, e estava curioso para ver o lugar que vinha difamando há tanto tempo. Ele só concordou em ficar lá dois dias, e Valerie fez tudo para que ele se divertisse bastante. Levou-o a toda parte, todos os estúdios, todas as festas, todos os restaurantes da moda, todos os sem Vanessa nunca vira tanta coisa em Hollywood quanto naqueles dois dias.

Faye e Ward já estavam de volta ao trabalho, no preparo de um novo filme, e Anne desaparecera na sua vida íntima. Lionel voou de volta ao Vietnã, via Havaí e Guam.

E depois de dois dias, Jason e Van nessa tomaram o avião de volta a Nova York e todos retomaram suas vidas reais.

Vanessa voltou para Barnard, para o seu segundo ano, e Greg para Alabama, para o que deveria ser o seu último ano. Mas aquilo não durou muito. Assim que ele voltou, viu que o tinham tirado do time, e, depois de uma bebedeira de duas semanas, para se refazer do golpe, perdeu dois importantes exames de segunda época. No dia 15 de outubro, foi chamado para falar com o reitor. Estava sendo "convidado a se retirar". Estavam penalizados ao ver aquilo acontecer a um rapaz tão bom. Sugeriram que ele fosse para casa para pensar a respeito, o resto do ano letivo e, se depois disso ele estivesse disposto a se acomodar, eles teriam prazer em recebê-lo de volta. Mas seis semanas depois disso, depois de voltar para casa com o rabo entre as pernas, e ver a desolação nos olhos de Ward, o exército lhe fez um outro convite. Ele estava sendo convocado, o que era um convite certo para o Vietnã. Ele passou uma tarde toda sentado em casa, estupefato, e ainda estava ali sentado quando Anne chegou. Ela estava chegando em casa cada vez mais tarde, indo sempre para a casa de Gail depois das aulas, para fazer os deveres com ela, e aí Bill a trazia de volta, quando chegava do trabalho. Aquilo lhes dava alguns minutos a sós e era uma rotina com que ela contava. Em geral, quando ela voltava para a casa dos Thayer, de noite, Cão havia mesmo ninguém lá, a não ser a empregada. Mas desde que Greg voltara, as coisas tinham mudado um pouco. Ela entrou usando sua chave e o viu sentado ali, parecendo que alguém tinha morrido. Parou e olhou para ele. Ela estava alta e linda e gente grande agora, mas ele não notou nada. Olhou para ela, sem a ver.

- O que é que te aconteceu? - Nunca fora ligada a ele, mas estava com pena de ele ter sido expulso. Sabia o quanto significava o time de futebol para ele, e ele estava deprimido desde que voltara, mas naquele dia estava pior, e devia haver alguma coisa grave.

Ele olhou para ela, assustado.

- Hoje recebi a minha convocação.

- Ah, não... - Sentou-se defronte dele, percebendo logo o que significava aquilo. Já era bem ruim ter Li lá. E ainda estavam ali sentados, falando a respeito, quando Ward e Faye chegaram. Era cedo, para eles, e estavam de bom humor. As coisas iam bem e o elenco estava se revelando bem. Mas Ward parou e olhou-os assim que entrou na sala. Viu logo pela cara de Greg que havia alguma coisa e receou que fosse Lionel.

- Más notícias? - Falou aquilo o mais depressa que pôde, para lhe responderem com a mesma pressa.

Greg fez que sim.

- É. - Ele lhe entregou o aviso sem dizer nada e, depois de ler, Ward caiu numa poltrona e logo em seguida o passou a Faye. Tudo o que queriam era que Lionel terminasse o serviço no Vietnã e agora também teriam de se preocupar com Greg. Não parecia justo terem os dois lá.

Faye olhou para Ward.

- Não há nenhuma lei contra isso? - Ward sacudiu a cabeça e olhou de novo para Greg. A notificação dizia que ele teria de se apresentar dali a três dias. Não estavam mesmo perdendo tempo, e já estavam a primeiro de dezembro. Ele pensou de novo no Canadá. Porém isso parecia errado, estando Lionel lá longe. Como se ele pudesse arriscar a vida no Vietnã, mas Greg não. Era evidente que ele teria de ir.

Ele se apresentou em Fort Ord, como mandava o papel, no dia 4, e foi mandado para Fort Benning, na Georgia, para um treinamento básico, por seis semanas. Nem o deixaram ir em casa para a noite de Natal, e naquele ano as festas foram tristes. Val tinha ido para o México com um grupo de amigos, Vanessa afinal fora para New Hampshire, com Jason, Greg estava no treinamento, Lionel no Vietnã e Anne estava louca para sair correndo pela porta afora. Ela fizera a mesma combinação com Bill, naquele ano, e dali a algumas semanas teria dezessete anos, e só faltava mais um ano, como eles se diziam constantemente.

Greg foi embarcado a 28 de janeiro, diretamente para Saigon e dali para a Base Aérea Bien Hoa, ao norte de Saigon. Nem teve a oportunidade de estar com Lionel, que só tinha mais três semanas de serviço lá. Depois disso seria mandado para a Alemanha, e mal podia esperar. Já estava bem farto daquela guerra nojenta - se é que sobreviveria. Muitos homens que ele conhecera tinham sido mortos na véspera de embarcarem para casa. Ele ia prender a respiração até o avião pousar em Los Angeles, não antes. Mas também sabia que Greg estava no Vietnã e por várias vezes tentou entrar em contato com ele, mas não conseguiu. O oficial-comandante dele não perdera tempo e mandara todos os novos recrutas para as zonas de combate no dia em que chegaram a Bien Hoa. Um diabo de acolhida no Vietnã.

E ele passou ali exatamente duas semanas. No dia 13 de fevereiro, o Corpo do Exército 1 realizou várias ações e ataques de foguetes contra o Vietcongue, destruindo duas aldeias e tomando prisioneiros durante várias noites. Aí Greg provou pela primeira vez o sangue, a morte e a vitória. O melhor amigo que ele fizera no treinamento básico levou um tiro na barriga, mas os médicos disseram que ele ia sarar. A única coisa boa nisso era que ele ia voltar para casa. Dezenas de outros rapazes morreram, vários desapareceram, o que deixou todos assustados, e o próprio Greg teve a oportunidade de atirar em duas velhas e um cachorro, coisa que ele achou ao mesmo tempo assustadora e estimulante, como atravessar a linha do gol com a bola. E então, às cinco da madrugada, quando a selva estava acordando, os passarinhos gorjeando por toda parte, Greg foi mandado adiante, com uma turma de homens, e pisou numa mina. Depois disso, não havia nem mesmo um corpo a ser recuperado. Ele desapareceu numa nuvem de sangue, enquanto seus camaradas olhavam e a maioria deles estava coberta por pedaços dele ao voltarem para o campo. Eles chegaram trôpegos, dois gravemente mutilados, todos em estado de choque. E a notícia foi dada a Lionel mais tarde, no mesmo dia. Ele ficou olhando sem expressão para o papel que alguém lhe entregara. Lamentamos. Gregory Ward Thayer pisou numa mina hoje. Morto em combate. E depois apenas o nome do oficial-comandante.

Ele sentiu um arrepio na espinha, como acontecera quando ele olhara para o rosto de John junto do apartamento incendiado quando chegaram os bombeiros. Ele nunca amara Greg como amara John. Nunca mais amaria ninguém daquele jeito. Mas ele e Greg eram irmãos, e agora, de repente, ele desaparecera. Ele também pensou no sofrimento do pai quando recebesse a notícia, e de repente sentiu uma pontada de agonia.

- Filhos da puta! - Ele berrou as palavras do lado de fora do hotel, e depois se encostou à parede e chorou, até que chegou alguém e o levou dali. Era um bom rapaz, embora se soubesse o que ele era. Mas ele não incomodava ninguém. E agora estavam com pena dele. Todos sabiam que o irmão tinha sido morto naquele dia. Alguém vira o telegrama das linhas da frente, e as notícias se espalhavam depressa em Saigon. Todos sabiam de tudo o que acontecia. E dois rapazes passaram a noite em claro com Lionel, assistindo enquanto ele bebia e chorava. E na manhã seguinte o puseram no avião. Ele sobrevivera a um ano no Vietnã, fizera mais de quatrocentos filmes de curta-metragem para exibir nos Estados Unidos, muitos deles aparecendo nos noticiários no mundo inteiro. E o irmão só durara dezenove dias. Não era justo, mas não havia nada justo ali, nem os ratos nem as doenças nem as crianças feridas gritando por toda parte.

Lionel saltou do avião em L.A., parecendo que estava com traumatismo de guerra. Nunca mais veria o irmão. Tinha uma licença de três semanas antes de ter de partir para a Alemanha, e alguém o levou em casa, como ele se lembrou depois. Ele estava se sentindo como se sentira no dia em que John morrera, e isso se dera apenas há dois anos antes... 26 meses, aliás... e agora ele estava com a mesma sensação terrível de aturdimento.

Tocou a campainha, pois não tinha mais chave, e o pai apareceu, e ficou fitando-o. Tinham recebido a notícia na véspera, de noite. E estavam todos lá, menos Vanessa, que ia chegar de avião naquela tarde. Não haveria enterro, pois não o mandariam para casa. Não havia nada a mandar a não ser as merdas de telegramas. E Lionel ficou olhando para Ward, e o pai soltou um gemido de agonia e os dois caíram um nos braços do outro, em parte por alívio que Lionel ainda estivesse vivo, e pelo sofrimento da perda de Greg. Depois, Ward o levou para dentro e eles choraram juntos por muito tempo. Lionel o abraçou e o segurou como a uma criança, enquanto Ward chorava pelo filho que tanto amara, em quem depositara todas as suas esperanças, o seu astro do futebol. E agora ele se fora. E não havia nada para mandar para casa. Nada mesmo. Só tinham suas recordações.

Nos dias seguintes, eles se moveram como se fossem de madeira. Lionel sabia vagamente que Van estava lá, Val estava morando com eles, Anne... mas não o Greg... nunca mais haveria um Greg. Agora eram só quatro.

Fizeram um ofício em memória a ele, na Primeira Igreja Presbiteriana de Hollywood, e todos os seus professores do segundo grau estiveram presentes. Ward ficou sentado, pensando amargamente que se aqueles filhos da mãe de Alabama o tivessem deixado ficar no time, ou pelo menos o tivessem mantido na universidade, ele ainda estaria vivo. Mas esse ódio por eles não ia adiantar nada. A culpa era de Greg, por não passar nos exames. Mas de quem era a culpa pela morte dele? Tinha de ser culpa de alguém, não tinha? A voz do ministro continuou, dizendo o nome dele, e nada daquilo parecia real. E depois ficaram todos do lado de fora, apertando as mãos das pessoas.

Era difícil crer que Greg se fora, que nunca mais o veriam. E Ward olhou para Lionel mil vezes, como que para se certificar de que ele ainda estivesse ali. E as meninas também estavam. Mas as coisas nunca mais seriam iguais. Um deles se fora. Para sempre.

 

Alguns dias depois do ofício fúnebre, Vanessa voltou para Nova York e Val voltou para seu apartamento. E Lionel passava a maior parte do tempo sozinho na casa. Os pais e Anne nunca estavam em casa. Eles no trabalho, e ela no colégio, e ele sentia uma atração magnética e terrível pelo quarto de Greg. Lembrava-se dos dias em que ele e John eram amigos, e agora os dois se tinham ido... juntos de novo, nalgum lugar. Tudo parecia tão injusto, e ele tinha vontade de gritar, o tempo todo.

Saiu para dar uma volta de carro algumas vezes, só para tomar ar. O seu velho Mustang ainda estava na casa. Ele o deixara lá quando fora para o Vietnã. O carro de Greg também estava lá, mas ele não queria dirigi-lo agora. Era sagrado, e só de olhar para ele, sua alma lhe doía.

Numa tarde, uma semana antes do dia marcado para sua partida para a Alemanha, ele pegou o Mustang vermelho e foi dar uma volta; resolveu parar para comer um hambúrguer antes de voltar para casa. Parecia que havia semanas que não sentia fome e quando parou o carro e entrou, notou um Rolls-Royce de dois tons e pensou que achava já o ter visto nalgum lugar, mas não tinha certeza, e não estava interessado mesmo. Sentou-se ao balcão e pediu um hambúrguer e uma Coca, e depois olhou para o espelho à sua frente, e nisso sentou-se muito reto. Atrás dele, refletida no espelho à sua frente, estava sua irmã mais moça com um homem muito mais velho. Eles estavam de mãos dadas e tinham acabado de se beijar. Ela estava tomando um milk-shake e ele parecia estar implicando com ela. Eles estavam rindo, e aí ele viu que se beijavam de novo. Ele ficou horrorizado, o homem parecia ter a idade de Ward e ele queria olhar melhor, mas teve medo de se virar. E então, de repente, se lembrou quem ele era. Era o pai da amiga dela... como era o nome dela?... Sally?... Jane?... Gail! Era isso!

E quando o casal saiu, o homem tinha passado o braço em volta da menina e eles se beijaram de novo, do lado de fora, sem nem notar a presença dele: ficaram sentados muito tempo no carro, e Lionel viu seus lábios se encontrando de novo e por fim eles partiram e ele ficou olhando fixamente, esquecido do seu hambúrguer, sem apetite.

Deixou o dinheiro no balcão, e foi logo para casa. Quando chegou, ela estava em cima, a porta do quarto fechada, e Faye e Ward tinham acabado de chegar. Lionel parecia ter visto um fantasma, mas nenhum deles estava muito bem, naquele momento; estavam todos ainda chorando por Greg. Ward de repente parecia um velho, e se sentia como tal. Aos 52 anos, uma de suas esperanças mais vívidas se fora, e Faye estava pálida e cansada. Mas Lionel parecia estar pior do que qualquer dos dois, e Faye o notou quando ele entrou em casa. Estava se debatendo consigo mesmo se devia ou não contar-lhes.

Eles já estavam com bastantes problemas, mas ele não queria que ela voltasse a se meter em encrencas. Todos já tinham passado por isso, Anne em especial, e ela não podia se meter naquelas coisas de novo.

- Aconteceu alguma coisa, amor? - perguntou Faye, com brandura, quando ele se sentou na sala íntima. Mas naqueles dias, tudo era difícil. Ward olhou para ele, em desespero, e Lionel achou que não era justo dizer alguma coisa. Primeiro ia conversar com ela... mas e se ela tornasse a fugir? E daquela vez ele não poderia ficar para ajudar. Não podia passar cinco meses à procura dela, com John. Não havia tempo a perder. Ele suspirou muito e se recostou à poltrona, olhando para os dois e depois se levantou e fechou a porta. E quando se virou para olhar para eles de novo, ambos viram que havia alguma coisa. - O que é, Li? - Faye olhou para ele, os olhos assustados. Será que um deles se machucara? Vanessa, em Nova York?... Val, no set?... Anne?...

Ele resolveu ir direto ao assunto.

- É Anne. Hoje à tarde eu a vi... acompanhada... - O coração dele ficou apertado, quando pensou naquilo. O homem era mais velho do que Ward. E ele imaginava o que ele não estaria fazendo com a garota.

- Com Gail? - Faye pareceu ainda mais nervosa. Eles não tinham controlado muito aquela amizade. Ela parecia boazinha, e o pai parecia muito bom e as meninas iam ao mesmo colégio. Mas Lionel a deixou inteiramente estupefata com suas palavras seguintes.

- Não Gail, mãe, era o pai dela. Estavam numa lanchonete, onde eu fui, se beijando e de mãos dadas. - Ward parecia ter levado um soco. E agora não podia suportar muito mais. E Faye o fitou, não podendo acreditar.

- Mas isso não pode ser. Tem certeza de que era Anne? - Ele fez que sim, devagar. Não havia dúvidas. - Mas como é possível? - Talvez você deva perguntar isso a ela.

O coração de Faye pareceu parar, pensando em todas as vezes em que ela ficara lá, e eles nunca tinham tido dúvidas. E se Gail nem sequer estivesse lá? Ou, pior ainda, se estivesse... se o homem fosse mesmo doente... Faye começou a chorar. Não podiam suportar mais, especialmente com ela. Só Deus sabia qual o tipo de relacionamento dela com aquele homem. Faye se levantou de um salto.

- Vou já buscá-la.

Mas Ward segurou o braço dela.

- Talvez devamos nos acalmar primeiro. Pode ser que seja um engano. Talvez Lionel tenha interpretado mal o que viu. - Ele olhou para o filho, como se desculpando, mas é que não queria que fosse verdade. Não podia se haver com mais uma tragédia, e só Deus sabia em que a menina se metera agora. E ela estava com dezessete anos.

Seria mais difícil controlá-la do que quando ela estava com catorze anos, e aquilo já fora bem difícil.

Faye virou-se para o marido com uma expressão resolvida. - Acho que devemos falar com ela.

- Bom, então fale com ela, mas não a acuse. - E Faye estava com as melhores intenções do mundo quando bateu à porta do quarto de Anne, mas no momento em que Anne viu a cara dela, notou que houvera um desastre, e quando acompanhou a mãe até embaixo, ficou espantada ao ver o irmão ali na sala.

- Olá, Li. - Mas não havia nada de amigável no ar dos pais, nem mesmo no dele. Ele meneou a cabeça para ela e Ward logo tomou a palavra.

- Anne, vamos direto ao assunto, e ninguém a está acusando, mas queremos saber o que está se passando. Por você mesma, claro. - Ela teve um pressentimento de desastre, mas ficou firme e seus olhos não revelaram coisa alguma. Ficou examinando as fisionomias deles. Não podia acreditar que, mesmo que Lionel tivesse visto alguma coisa, ele a trairia, mas estava enganada. Para ela, era o que ele fizera. E ela nunca lhe perdoaria, foi o que ela disse consigo, depois. - O seu irmão acha que viu você hoje. Pode ser que nem tenha estado lá, amor. - Ele não queria ser obrigado a lidar com aquilo, a enfrentar um homem da sua idade e acusá-lo de estupro, que é o que era, no caso de uma garota de dezessete anos. - Foi numa lanchonete - ele se virou para Lionel -, onde é que foi, filho? - Lionel deu o endereço, e Anne sentiu como se o seu coração parasse. - Mas o importante é que ele acha que a viu com um homem.

- E daí? O pai de Gail me levou para tomar um milk-shake, na volta para casa. - Ela virou-se para Lionel, furiosa, e estava linda. Não era mais uma criança, já era uma mulher. E naquela tarde Lionel se dera conta disso, especialmente. Aquilo explicava tudo o que acontecera no ano que se passara, por que ela se adaptara tão bem à nova escola, por que nunca estava em casa. - Você tem uma cabeça nojenta. - Ela cuspiu as palavras na cara dele.

- Você o estava beijando.

Ela olhou furiosa para o rapaz que um dia lhe salvara a vida. - Então, pelo menos não sou gay. - Era uma coisa cruel, mas ele não se importou a mínima. Sem dizer uma palavra, ele estendeu a mão e agarrou o braço dela, enquanto os pais olhavam horrorizados. - Ele é trinta anos mais velho do que você, Anne.

- São 33, para ser precisa. - Os olhos dela estavam em brasa. Eles é que se fodessem todos. Não podiam mais lhe fazer coisa alguma. Já era tarde. Ela pertencia a Bill, e sempre pertenceria. E então ela se virou contra eles todos. - E não me importo a mínima com o que vocês pensem. Nenhum de vocês foi decente comigo nesses anos todos - ela vacilou um instante, olhando para Li -, a não ser você, mas isso já foi há muito tempo. Mas vocês - ela olhou para os pais, com ódio -, nunca estiveram presentes para mim. Nesses dois anos, ele esteve mais presente para mim do que vocês jamais estiveram, com os seus filmes e seus negócios e seu romance um como outro e seus amigos. Nunca sequer souberam quem eu era... e nem eu. Pois agora sei, e isso desde que conheci Bill e Gail.

- É um ménage à trois? - Lionel estava disposto a ser tão cruel quanto ela, enquanto os pais olhavam.

- Não é, não, Gail nem sabe de nada.

- Graças a Deus por isso. Você é uma idiota, Anne. É a amante de um velho. Não é nada diferente do que fez em Haight, a não ser os alucinógenos. É a puta de um velho.

- Lá também houvera um homem mais velho, Moon. Ela ainda se lembrava dele. Mas isso não era nada de parecido. Aí ela quis bater no irmão, mas ele a impediu, e de repente Ward e Faye estavam de pé, ao mesmo tempo e Faye estava gritando com eles.

- Parem! Isso é nojento. Pelo amor de Deus, parem, vocês dois!

- O que é que você vai fazer com ela, mãe? - Lionel estava furioso. Ela tornara a estragar a própria vida. Por que continuava a fazer isso? Mas ela estava inabalável.

- Vocês podem todos ir se foder. Vou fazer dezoito anos daqui a dez meses e aí não vão poder fazer porra nenhuma comigo. Podem me torturar o quanto quiserem, agora, podem até me impedir de vê-lo, mas daqui a dez meses, podem estar certos, vou estar casada com ele.

- Você está maluca, se pensa que ele vai se casar com você. Você para ele não passa de uma boa trepada. - O estranho era que era bom gritar com ela, como se ele pudesse gritar contra o destino que matara Greg e John. Pelo menos ele agora podia descarregar alguns de seus sentimentos, e além disso, ele estava furioso com ela.

- Vocês não conhecem Bill Stein. - Anne disse as palavras com um tom calmo e comedido, e Faye, olhando o rosto dela, de repente teve medo. Ela estava levando aquele homem a sério, e Faye não pôde deixar de lhe perguntar.

- Você não está grávida de novo, está? Ela olhou para a mãe com ódio.

- Não estou, não. Aprendi essa lição uma vez. Com dificuldade. - Ninguém discordou dela. E então Ward avançou, com o rosto sério e a testa franzida.

- Só quero que você saiba que nem daqui a dez meses nem daqui a dez anos você se casará com esse homem. Vou chamar o meu advogado e a polícia hoje mesmo e vou processá-lo.

- Baseado em quê? Por ele me amar? - Ela olhou para o pai com desdém. Não tinha respeito por nenhum deles. Eles não tinham feito nada por ela e ela sabia que ela não representava coisa alguma para eles. Talvez apenas estivessem zangados por verem que alguém a amava, disse ela consigo. Mas o pai passou a explicar seus planos.

- É estupro punido por lei ter relações sexuais com uma moça da sua idade, Anne. - A voz do pai estava fria. - Ele pode ser preso por isso.

- Eu testemunho contra vocês todos. - Ela agora parecia estar em pânico.

- Isso não vai mudar nada.

De repente ela ficou com medo, por Bill. E se o pai tivesse razão? Por que Bill nunca lhe dissera isso? Ela agora tinha de protegê-lo. Ela olhou para o pai, em desespero.

- Façam o que quiserem comigo, mas não o prejudiquem. Aquelas palavras foram um golpe para Faye: a filha gostava tanto daquele homem que estava disposta a se sacrificar por ele. Era assustador ver que ela o amava tanto. E se eles estivessem enganados? Mas não podiam estar. Era evidente que ele abusara dela. Mas Faye olhou para Ward.

 - Por que não conversamos com ele, primeiro e vemos o que ele diz. Se ele prometer que não vai tornar a vê-la, talvez seja mais simples não processá-lo judicialmente.

Foi difícil convencer Ward, mas afinal Faye o conseguiu e eles fizeram Anne ligar para ele e dizer que ele fosse lá imediatamente. Ela teve de lhe dizer por quê, e eles a ouviram chorando no telefone.

Ele entrou na casa dos Thayer e encontrou um tribunal improvisado esperando por ele. Ward o fez entrar e teve de se controlar para não o agredir ali mesmo. E Lionel estava ali, de prontidão. Bill reconheceu todos os personagens da peça, especialmente Faye. Ele chegara sozinho e viu Anne soluçando histericamente do outro lado da sala. Imediatamente ele foi para junto dela, alisou-lhe os cabelos, enxugou suas faces e aí se deu conta de que todos estavam olhando para ele.

Não tinha nenhuma desculpa a apresentar. Confessou tudo. Compreendia perfeitamente a atitude de Ward e disse que tinha uma filha da mesma idade, mas também tentou lhes dizer algumas coisas sobre Anne, como ela se sentia só, ficara marcada por renunciar ao filho, como tinha sentimentos de culpa pelo que acontecera em Haight-Ashbury.

Explicou que suas primeiras recordações da indiferença aparente deles remontavam à sua infância e que ela se sentia rejeitada por eles, a vida toda. Ele não apresentou desculpas para si, mas explicou a eles quem era Anne Thayer, e os pais dela ficaram ali, dando-se conta de que ela fora uma estranha para eles. E essa criança desconhecida, que por sua vez passara a rejeitá-los também, encontrara Bill Stein, e buscara tudo dele, e em sua própria solidão ele a alimentara. Talvez fosse errado, reconheceu ele, os olhos úmidos, mas era sincero. Ele repetiu exatamente o que Anne lhes dissera, se bem que em tom mais brando. Em menos de um ano, pretendia casar-se com ela, com ou sem o consentimento deles, ou mesmo de Gail, quando ela descobrisse. Ele preferia que todos estivessem de acordo, mas aquilo já durara muito e se ele pudesse ter se casado com ela antes, já o teria feito. Ela poderia continuar os estudos, poderia fazer o que quisesse, mas quando chegasse o seu décimo oitavo aniversário, ele estaria esperando por ela, quer eles lhe permitissem continuar a vê-la, quer não.

E, enquanto ele dizia essas palavras, com calma, ela ficou ali, olhando para ele, radiante. Não a decepcionara e estava disposto a arriscar tudo por ela. Era exatamente o que ela sempre acreditara que fosse e os três outros Thayer ficaram chocados, Ward mais que todos, e olhava para aquele homem de aspecto nada empolgante e não podia entender o que a filha via nele. Não era bonito, nem jovem, nem galante. Na verdade, era meio comum e seus traços eram sem graça. Mas ele oferecera à sua filha algo que os pais nunca tinham conseguido lhe dar. E, quer quisessem admiti-lo ou não, ela estava feliz com ele. Lá estava ela agora, radiosa, calma, ao sol do amor dele. Eles na verdade não se importavam com o que lhes acontecesse naquele ano. Ambos estavam dispostos a esperar e depois disso estava claro quais eram os planos deles. E, de repente, tanto Faye quanto Ward acreditaram que eles os realizariam. Não se podia lutar contra eles de uma forma ou de outra, por mais errado que fosse, ou por maior que fosse a diferença de idades, ou por mais que achassem que Anne fosse tola.

Depois que ele se retirou, eles passaram um sermão em Anne e depois Ward e Faye conversaram com calma no quarto deles. Não sabiam o que pensar dele e tinham dito a ela que não sabiam se iam processá-lo ou não. Bill fora para casa para confessar tudo a Gail e estaria pronto para conversar com eles a qualquer momento. Não se mostrou muito arrependido, diante deles. Depois de amá-la durante dois anos, ele achava que não tinha muito por que se desculpar. Não a magoara, nem a abandonara, nem a usara, nem fizera nada de muito errado. Ela agora já estava com quase dezoito anos e o caso não parecia mais escandaloso para os amantes. Ele achava que Gail a princípio ficaria aturdida, mas ela também se acostumaria à idéia. E eles tinham de levar suas vidas, Anne e Bill. Ambos tinham deixado isso bem claro para todos.

- O que é que você acha? - Faye estava sentada numa poltrona, olhando para Ward. Ele continuava a não entender o que é que a filha via no sujeito e ela só tinha dezessete anos Era uma coisa de confundir a cabeça.

- Acho que ela é uma idiota perfeita.

Faye suspirou. Aquilo era pior do que alguns dos filmes que ela fizera.

- E eu também, mas essa é a nossa opinião, e não a dela.

- É o que parece. - Ele se sentou defronte à mulher e pegou a mão dela. - Como é que eles se metem nessas enrascadas? Lionel com seus raios de gostos por algo que eu não entendo. Val com sua carreira louca, Vanessa vivendo com aquele rapaz em Nova York e pensando que não sabemos de nada. - Faye sorriu, pois já tinham comentado isso antes. Ela se achava tão exótica e fora do comum, e era tão transparente, todos sabiam o que se passava e não se importavam. Ela estava com vinte anos e ele era um bom rapaz. - E agora Anne com esse homem... Deus do céu, Faye, ele é 33 anos mais velho do que ela - Ele ainda não conseguia absorver aquilo.

- Eu sei. E nem é muito bonitão. - Faye sorriu. - Se fosse alguém parecido com você, eu pelo menos poderia entender. - Aos 52 anos, ele continuava bonito como era há vinte anos atrás, se bem que de um modo diferente. Mas ainda era alto e esguio e elegante, assim como ela. Aquele homem não tinha nada disso. Era difícil ver a atração dele, a não ser os olhos bondosos, e parecia gostar muito de Anne. Ela olhou para o marido. - Temos de concordar com isso, Ward? - Ela não queria se referir ao aspecto legal, e sim ao prático, durante os dez meses seguintes.

- Não vejo por quê.

- Talvez fosse mais sábio concordar. Não se pode lutar contra a maré. - Eles tinham aprendido isso, a duras penas com Lionel, com Val... Vanessa... e agora Anne.

Faziam o que bem entendiam... a não ser o coitado do Greg. E Ward então olhou para ela.

- Quer dizer, concordar que ela tenha um caso com ele, abertamente: - Ele parecia estar chocado. - Ela só tem dezessete anos. - Mas ambos sabiam que ela era muito mais velha do que isso, em espírito, que passara por muita coisa e isso a amadurecera.

- É o que ela vem fazendo há um ano e tanto, em todo caso. Ward olhou bem para a mulher.

- O que é que levou você ser tão liberal, de repente?

 Ela sorriu para Ward, com um ar cansado.

- Talvez eu esteja ficando velha.

- E sábia. - Ele a beijou de novo. - Eu te amo, benzinho.

- Eu também te amo, querido. - Eles combinaram pensar no caso por alguns dias e naquela noite jantaram com Lionel. Anne ficou no quarto e ninguém insistiu para que ela descesse.

Já estavam bastante tensos, e no final, resolveram ceder. Recomendaram-lhe com insistência que fosse discreta para não ficar falada. Bill Stein era conhecido, na indústria das diversões. Era um advogado respeitado e tinha vários clientes conhecidos, e eles tinham certeza de que também ele não queria publicidade. A idéia era manter o caso o mais discreto possível e depois eles se casariam, conforme planejado, depois do princípio do ano. Ele deu a ela um enorme anel de noivado, que ela só usava quando saía com ele. Um brilhante solitário em forma de pêra, que ela chamava de seu ovo da Páscoa. Era de dez quilates e meio e ela ficara constrangida quando o mostrara a Gail. E Gail fora muito boazinha com eles. A princípio, também fora um choque para ela, mas ela amava muito os dois. Queria o bem deles, e as duas resolveram fazer cursos no verão, para poderem formar-se antes das festas de Natal. Assim Anne não precisava mais voltar à escola, depois que se casasse com Bill. E Gail achava que devia deixá-los a sós, pelo menos por algum tempo. Depois, seria constrangedor morar com eles, a princípio. E ela queria ir para a Escola de Desenho Parson, em Nova York.

Lionel ainda estava zangado com Anne quando partiu para a Alemanha. Não aprovava o sujeito, dissessem o que dissessem.

- Você se safou com facilidade, se quer saber - disse ele, no dia em que partiu, e ela o fitou com frieza. Nunca o perdoaria por tê-la traído, disse ela.

- Logo você, julgando os outros.

- Ser gay não atrapalha a minha cabeça, Anne

- Não, mas talvez atrapalhe o seu coração.

Ele quase se perguntou se ela estaria com a razão, ao partir Não sentia mais a mesma coisa por nada, desde o Vietnã. Tinha visto gente demais morrer, tinha perdido gente demais de quem gostava - e duas pessoas que amava muito -, John e Greg. Era difícil imaginar amar alguém de novo. Na verdade, não tinha vontade alguma de amar, e ele se perguntava, no íntimo, se era por isso que estava tão zangado com ela. Ele não conseguia entender a felicidade dela, porque a dele se fora havia tempos, com John, e nunca mais voltaria, enquanto a vida se estendia diante dela, com promessas e entusiasmo e tanto brilho quanto o seu enorme anel de noivado.

 

No dia 18 de janeiro de 1970, Anne Thayer e Bill Stein compareceram ao Templo Israel, em Hollywood Boulevard, as famílias e um punhado de amigos assistindo. Anne nem quisera ir tão longe, mas Bill insistira.

- Vai ser mais fácil para os seus pais, amor, se você permitir que eles planejem alguma coisa. - Mas Anne não demonstrou o menor interesse por aquilo. Durante dois anos ela se considerara sua esposa, e agora não precisava de alarde algum . Gail achava isso tolo da parte dela. Era tão diferente das garotas da idade dela... Não queria vestido de noiva, nem véu.

Tudo parecia tão despido, pensou Faye, lembrando-se do esplendor de seu casamento. Anne estava com um vestido de lã branco, simples, sem decote e mangas compridas, sapatos lisos, o cabelo louro numa trança com gipsófila, e sem buquê. Ela ia para ele simples e desnuda, sem qualquer jóia a não ser o grande brilhante que ele lhe dera. E a aliança era um aro largo de brilhantes também. Parecia tão jovem e inocente que aquilo era quase uma incongruência em sua mão. Mas Anne não reparou em nada daquilo. Só via Bill. Era só o que ela queria, desde o dia em que eles se tinham conhecido, e agora ia para ele sossegada, de braços com o pai, e aí Ward recuou, sentindo de novo como eles todos a tinham conhecido pouco nos últimos dezoito anos. Era como se ela tivesse passado por suas vidas depressa demais, em silêncio demais, vivendo atrás de uma porta trancada, sempre desaparecendo. De repente, parecia que toda a recordação da infância dela estivesse dizendo: "Onde está Anne?"

Eles ofereceram um almoço íntimo em casa, e foi só o que Anne lhes permitiu fazer. Havia flores por toda parte e o champanha era muito bom. Faye estava discreta e controlada, com um costume de seda verde, que destacava seus olhos. Mas, sem saber por quê, ela não se sentia como a mãe da noiva. Tudo parecia uma representação, como se estivessem fazendo alguma brincadeira, e dali a pouco Gail iria para casa com o pai. Mas quando partiram no Rolls cinzento naquela noite, Anne foi com eles e se virou para despedir-se de Faye e Ward. Faye sentiu uma vontade avassaladora de perguntar-lhe se ela estava segura e, no entanto ao ver os olhos da filha, não viu dúvida alguma ali. Ela se entregara ao homem que amava e agora era mulher.

Gail estava mais quieta do que de costume, mas estava feliz por eles. As duas se tinham diplomado algumas semanas antes e agora eles iam a Nova York com ela, de avião. Ela ia para a Escola de Desenho Parsons e morar no Barbizon, como Vanessa já o fizera. E depois de a deixarem, Bill e Anne iriam seguir de avião para San Juan, depois para St. Thomas e St. Martin's, acabando em St. Croix. Passariam várias semanas fora e não tinham pressa em voltar. Mas, primeiro, Bill queria levá-la para fazer compras em Nova York. Havia vários joalheiros cujas peças ele queria que ela visse, como Harry Winston, David Webb e outros de que ele gostava, e também havia outras compras a fazer.

- Bergdorf's, Bendel's, Bloomingdale's! - gritaram as duas garotas em conjunto, naquela noite.

- Você me paparica demais! - Ela sorriu e beijou o pescoço dele. Não queria nada dele senão o seu amor, mas ele também queria comprar umas coisas bonitas para Gail.

- E então, sra. Stein, como se sente? - Ele sorriu para ela, naquela noite, quando estavam deitados na cama grande, dessa vez legalmente, depois de dois anos.

- Uma maravilha. - Ela riu como menina, ainda de trança, e agora numa camisola rendada, presente de casamento de Val, se bem que fosse evidente que Val não aprovasse aquele casamento. Ninguém aprovava, mas, mais que isso, não compreendiam. Nunca tinham compreendido... a não ser Li... um dia. Mas ele não comparecera ao casamento, ainda estava na Alemanha, esperando ser dispensado dali a algumas semanas. E Van estava de volta a Nova York, absorta no seu segundo ano. Anne não se importava com isso: a única pessoa que ela realmente queria ver presente era Bill e ela agora olhava para ele, feliz, pensando no passado. Era como se nada até então tivesse sido real, somente aquilo ali. - Eu me sinto como se tivesse passado a vida toda casada com você. - E o engraçado é que ele sentia a mesma coisa.

- E eu também. - Todos os amigos dele tinham feito comentários, mas com o tempo fingiram que compreendiam. Houve muitos tapinhas no ombro e nas costas, piscadelas disfarçadas.

- Anda desmamando os bebês, hein, meu velho? - Todos tinham inveja dele e alguns fizeram comentários desairosos na sua ausência, mas ele não estava ligando a mínima.

Ia passar o resto da vida tomando conta de sua joiazinha e ela, olhando para ele muito confiante, tinha certeza disso.

Naquela noite, eles dormiram abraçados, dando graças de novo por poderem fazer o que bem entendessem. Tomaram um café demorado com Gail, e naquela tarde todos arrumaram as malas e de noite foram de avião para Nova York, conforme planejado. Anne pensou em ligar para se despedir de Ward e Faye, mas não o fez. Não tinha mesmo nada a dizer a eles, disse ela a Bill, e o avião decolou.

- Você é muita dura com eles, amor. Ele fizeram o que podiam. É só que nunca compreenderam bem as coisas. - Aos olhos dela, aquilo era mesmo o mínimo que se poderia dizer. Eles lhe haviam roubado o filho, ameaçado processar Bill, passado por cima dela, a tinham deixado de lado e teriam destruído inteiramente a sua vida, se não fosse ele. Ela tornou a olhar para ele, com gratidão, enquanto eles voavam na primeira classe, ele com "suas duas garotas", como as chamava. Anne estava sentada no meio e enquanto Bill cochilava, durante o vôo, ela conversava com Gail. Elas estavam aguardando com prazer os dois dias que passariam juntas em Nova York, antes que Gail fosse se hospedar no Barbizon e eles seguissem para a sua lua-de-mel. Enquanto isso, iam ficar numa suíte no Pierre.

E nos dois dias seguintes, não fizeram outra coisa senão fazer compras. Anne nunca tinha visto tantas coisas bonitas na vida, a não ser nos filmes da mãe. Ele comprou para Gail um lindo casaquinho de vison, com um talho esportivo, e chapéu condizente. Disse a ela que ia precisar dele para se agasalhar, e comprou ainda uma pilha de roupas de esquiar, um novo par de esquis, meia dúzia de vestidos de Bendel, seis pares de sapatos de Gucci e uma pulseira de ouro que ele adorou, de Cartier, com uma chavezinha de fenda para colocá-la, que as garotas adoraram. Anne gostou tanto daquilo que ele lhe deu uma, também, de surpresa. Mas havia ainda mais delícias para a sua nova esposa, um casaco de vison comprido para a noite, um curto para o dia, vestidos e costumes e blusas e saias, caixas e caixas de sapatos lindos, botas italianas, um anel de esmeralda, um lindo broche de brilhante, imensos brincos de pérolas de Van Cleef, que ela adorou, e mais duas pulseiras de ouro que ela tinha admirado. No último dia da estada, ele lhe deu uma jóia magnífica de David Webb, um leão abraçando um cordeiro, numa peça só de ouro maciço, e era tão linda que as pessoas ficavam paradas olhando para aquilo, pendurado do braço dela.

- O que vou fazer com tudo isso? - Ela rodopiou pelo quarto do hotel, de roupas de baixo, mostrando as peles e roupas lindas penduradas por toda parte, as caixas de sapatos, as bolsas, os chapéus de pele, e em sua valise havia meia dúzia de caixas de jóias. Chegava a ser quase constrangedor, só que ele estava gostando muito daquilo. Ele também comprou algumas coisas para si, como uma capa de chuva forrada de pele e um novo relógio de ouro, mas estava muito mais interessado em fazer compras para ela. Até mesmo Gail achou divertido. Ela já tinha tantas coisas bonitas que ele lhe vinha dando, havia anos, que ela agora não tinha qualquer má vontade com Anne. Elas eram quase irmãs mesmo e o pai lhe compraria tudo o que ela quisesse, talvez agora ainda mais. Era generoso demais, disseram as duas, na sua última noite. Mas estavam aproveitando todos os minutos, e os olhos de Vanessa quase espocaram quando ela e Jason se encontraram com eles no Oak Room para drinques e Anne chegou deslizando pela sala elegantemente, de calças vermelhas de corte perfeito e uma blusa de seda creme, uma bolsa de crocodilo Hermes combinando e um casaco de vison que fazia as pessoas pararem para olhar, mesmo em Nova York. E, quando ela se aproximou, em suas mãos brilhavam os diamantes, via-se a pulseira de Webb em toda a sua glória no braço dela e tinha dois rubizinhos nas orelhas. Ela estava tão linda e elegante que Vanessa mal a reconheceu.

- Anne? - Ela estava quase boquiaberta para a irmã. Anne estava com o cabelo de novo numa trança simples, com tufinhos de cabelo louro lhe enquadrando o rosto; a maquiagem era simples e de bom gosto, mas tudo o que ela estava usando, desde as jóias até as botas, parecia ter saído das páginas de Vogue, e Vanessa não podia imaginá-la daquele jeito, enquanto ela ria e se sentava. Vanessa viu que Jason também estava impressionado.

- Andamos fazendo mil compras. - A voz de Anne continuava suave como sempre e ela olhou para Bill depressa, com uma expressão encabulada, e ele sorriu. - Ele andou me paparicando demais.

- Estou vendo.

Ela pediu um Dubonnet, a única bebida de que gostava, e Vanessa e Jason já tinham pedido uísque. Bill tomou um Martini com gelo e Gail bebeu vinho branco e eles conversaram amigavelmente sobre assuntos sem importância. Os jovens trocaram reminiscências sobre Lake Tahoe, quase dois anos antes, e Anne perguntou a Jason sobre o trabalho dele. Ele tinha cronometrado tudo com perfeição. Obtivera o seu diploma de doutor, Ph.D., semanas depois de completar 26 anos. Conseguira escapar da convocação durante mais de oito anos e agora tinha um emprego ensinando literatura na Universidade de Nova York. Aquilo não o empolgava muito, mas já estava naquilo havia um ano. Ainda estava trabalhando na peça, mas não estava conseguindo chegar a lugar algum.

- Vivo querendo fazer com que Vanessa colabore comigo, mas ela não quer.

- Eu mal consigo acompanhar os estudos - explicou ela a Bill, que ela achou simpático e paternal. Ainda lhe faltava mais um ano de estudos em Barnard, e ela só pensava naquilo, naquele momento. Que ria terminar e também arranjar um emprego. Parecia disposta a ficar em Nova York, mas Anne achava que era por causa dele. Já estavam juntos, havia dois anos e meio, e Anne se perguntou se ela ia acabar se casando com ele. Gail fez-lhe a mesma pergunta, depois do jantar, e Anne deu de ombros, pensativa.

Ela não entendia bem o relacionamento deles, tinha a impressão de que estavam apenas seguindo por caminhos paralelos, cada qual levando sua vida. Não desejavam um vínculo permanente, e, mais importante, não precisavam daquilo. E nenhum dos dois jamais falava em ter filhos. Só falavam de seus trabalhos, seus empregos, seus escritos, a peça dele.

- Eu acho isso tudo um saco - disse Gail -, mas pelo menos ele é engraçadinho. - E era, mas não era o tipo de Anne. Ela achava Bill o homem mais bonito do mundo.

Naquela noite, voltando para casa de táxi, Vanessa sacudiu a cabeça, comentando com Jason.

- Não compreendo aquela garota. É quase uma criança, e lá está ela, casada com aquele velho, andando por aí de brilhantes e casaco de vison.

- Talvez essas coisas sejam importantes para ela. - Jason também não entendia, mas sempre achara Anne uma boa menina. Não tão inteligente nem interessante quanto Van, mas talvez fosse difícil julgar isso. Ela era tão jovem e reservada que era difícil saber o que é que ela era.

Vanessa, porém, estava sacudindo a cabeça.

- Não creio que isso seja importante para ela. Não creio que ela ligue a mínima para essas coisas. É ele que quer dar a ela tudo isso, e ela provavelmente só usa para agradar a ele.

Nesse ponto ela estava certa, ela conhecia a irmã até aí, e a única da família que teria adorado as peles e o brilho seria Val, e Greg, se tivesse vivido, acabaria gostando de uma boa vida. Os outros tinham gostos mais simples e os pais agora também, diferentemente de sua vida anterior. Mas Van sabia que tudo isso não tinha mais importância para eles, havia anos.

- Não sei mesmo o que é que ela vê num homem daquela idade. - Ele é muito bom para ela, Van, não só materialmente. Quer fazer tudo por ela. Se ela está com sede, antes mesmo de pedir, já tem um copo d'água na mão, se está cansada, ele a leva para casa, se ela está aborrecida ele a leva para dançar, para a Europa, para ver amigos... isso é irresistível. - Ele sorriu para a garota que amava, e de repente desejou fazer mais por ela. - Um cara daquela idade pensa em tudo isso, não tem mais o que fazer - ele implicou, e ela riu.

- Isso não é desculpa. Quer dizer que eu não vou ganhar um anel de brilhante do tamanho de um ovo?

Ele olhou para ela sério enquanto entravam em casa. - É isso que você vai querer, um dia, Van?

- Não. - Ela parecia segura disso e estava mesmo. Queria outras coisas na vida. Como ele. Talvez uns filhos, um dia, dali a uns oito ou dez anos. Coisas assim.

- O que é que você quer?

Ela deu de ombros, pensativa, e jogou o casaco numa cadeira. - Talvez publicar um livro, um dia... uma boa crítica... - Ela não pensou em mais nada e não queria dizer a ele que poderia querer a ele e um ou dois filhos. Era muito cedo para pensar nisso, e quanto mais falar.

- Só isso? - Ele pareceu ficar decepcionado. Ela sorriu para ele, abrandando-se.

- Talvez você, também.

- Isso você já tem.

Ela se sentou ao sofá e ele acendeu o fogo. Sentiam-se bem, ali, com seus livros e papéis por toda parte, o Times de domingo, espalhado pelo chão, misturado aos tênis dele e os sapatos dela, os óculos dele na secretária.

- Acho mesmo que é só isso o que eu quero, Jase.

Ele demonstrou contentamento:

- Você tem gostos muito simples, minha cara. - Abraçou-a e depois: - Está falando sério do livro?

- Espero que sim. Depois que eu acabar os estudos e conseguir um emprego.

Ele suspirou.

- É tão difícil escrever. - Sabia disso bem demais. - Ainda acho que devíamos colaborar numa peça. - Olhou para ela, com esperanças, e ela sorriu. Ele sempre achara que os estilos deles se combinariam bem.

- Talvez um dia. - Eles se beijaram e ele a fez deitar no sofá e enfiou a mão dentro da blusa dela. Era bem diferente da cena entre Bill e Anne no Pierre. Ela estava deitada na colcha de cetim com um robe com penas de marabu, enquanto a língua dele percorria sua coxa, preguiçosamente, e os brilhantes na mão dela fulguravam à luz baixa, quando ele a tocou onde ela mais gostava e ela arqueou as costas com um gemido, enquanto ele lhe tirava o robe e o deslizava para o chão. Mas os sentimentos eram os mesmos. O amor, o desejo, o compromisso mútuo, houvesse o que houvesse. Era tudo o mesmo, de tênis ou de marabu.

 

Em maio, Bill e Anne voltaram para passar alguns dias em Nova York. Anne queria ver Gail e ele vinha a negócios. Ficaram no Pierre de novo e ele a levou aos joalheiros de que mais gostava e insistiu em comprar-lhe coisas novas. O tempo estava lindo e ela acabara de comprar um lindo vestido e casaco na Bendel's, que usou para almoçar com ele na Côte Basque, e ele sentiu muito orgulho dela, quando ela entrou na sala. Ela continuava inteiramente natural, movendo-se como uma corça ao se aproximar dele pela sala, sem ver as pessoas que a fitavam, vendo apenas os olhos dele sorrindo para ela. Mas ele também viu outra coisa, aquela mesma expressão vazia e nervosa que já via, havia meses. Ele esperava que acontecesse logo e sabia por que era tão importante para ela. Ele também queria um bebê, mas não tão desesperadamente quanto ela.

- Que tal estava a Bendel's hoje?

- Legal. - Ela às vezes ainda falava como criança, mas não parecia mais criança. Estava de cabelos soltos e ele mandara uma mulher de L.A. lhe ensinar a aplicar a maquiagem: de repente, ela parecia ter 25 anos e não mais dezoito. Gail também o notara e evidentemente aprovara. Ela arranjara um novo namorado e estava adorando Nova York. Bill ainda insistia para que ela ficasse no Barbizon, mas ela estava ameaçando se mudar no outono, para ter um apartamento seu, e incumbira Anne de convencê-lo.

- Comprei isso aqui hoje. - Ela mostrou o vestido e o casaco com a mão de unhas muito bem-feitas e ele notou que ela estava com as pérolas novas que ele acabara de lhe comprar em Hong Kong. Eram imensas e quase não pareciam verdadeiras. - Gostou?

- Adorei. - Ele a beijou de leve nos lábios e o garçom tomou os pedidos das bebidas. Ele tomou vinho, ela Perrier e ambos fizeram um almoço leve. Ela adorava as quenelles da Côte Basque, e ele pediu uma salada de espinafre e um filé. Eles não estavam fazendo justiça àquela cozinha requintada, mas ele tinha de ir a outra reunião e ela ia ao Bloomingdale's para depois se encontrar com Gail no colégio.

Bill se perguntava, às vezes, se ela também não deveria estar estudando: precisava ter mais o que fazer do que ir à manicure, fazer compras e ficar esperando que ele voltasse para casa de noite. Precisava fazer mais do que fazer o gráfico de sua temperatura todos os dias. Ela precisava pensar noutra coisa, mas ele tinha medo de lhe dizer isso. Ficava lhe garantindo que em breve aconteceria. Ambos já tinham tido um filho, de modo que sabiam que os dois eram capazes de procriar, era apenas uma questão de tempo, e o médico também lhe dissera isso.

- Você já ligou para a sua irmã, amor? - Ela sacudiu a cabeça, vagamente, brincando com o biscoito que pegara da bandeja. - Por que não? - Ela continuava evitando a maior parte da família Thayer, até mesmo Lionel, e ele sabia que ela antes o amara tanto. Era como se ela agora quisesse eliminá-los de sua vida. Ela tinha a ele e não queria mais nada, mas ele não achava isso direito. Ele teria ficado desolado se Gail lhe fizesse isso, se bem que soubesse que os Thayer nunca tivessem sido tão ligados a ela quanto ele era a Gail.

Anne deu de ombros.

- A mãe disse que ela estava em provas, quando falei com ela na semana passada. - Era evidente que ela não estava interessada em ligar para Van. E ela nunca ligava para Valerie, em L.A., não falava com ela há meses.

- Mas ainda pode ligar para ela. Ela pode ter tempo para um drinque rápido.

- Ligo hoje à noite. - Mas ele sabia que ela não ligaria. Ia ficar por ali, contando para diante e para trás... catorze dias depois... e na manhã seguinte ia acordar ao amanhecer e tomaria a temperatura de novo. Ele queria que ela parasse com aquilo e sossegasse. Ela estava ficando tão tensa que estava emagrecendo. Ele estava pensando em levá-la à Europa, em julho, para distraí-la e queria que Gail também fosse, mas a filha tinha um trabalho de verão com Pauline Trigère e se recusava a ir a qualquer lugar.

- O que é que você acha, amor? - Eles estavam passeando pela Madison Avenue, em direção ao local da reunião dele, e ele estava procurando interessá-la pela viagem à Europa. Tinha de interessá-la por alguma coisa. E se ela nunca tivesse aquele bebê, ou se levasse anos, ela não poderia passar a vida toda esperando tê-lo. Aquilo estava começando a diminuir o prazer que eles sentiam antes. Ela só pensava naquilo e por vezes só falava naquilo, como se pudesse substituir o bebê a que renunciara.

E ele não lhe ousava dizer que ela nunca o conseguiria, assim como ele não conseguiria substituir a esposa. Ele amava Anne com igual intensidade, mas agora tudo era diferente, e de vez em quando ainda sentia aquele vazio doloroso de sentir falta dela, assim como sabia que Anne sempre choraria por aquele filho. Sempre seria um vazio solitário para ela, que ninguém poderia preencher, nem marido, nem filho. Ele olhou para ela com ternura. - St. Tropez seria divertido. Podíamos alugar um barco. - Ela então sorriu para ele, ele fazia tanto por ela, e ela sempre tinha consciência disso.

- Eu adoraria isso. E desculpe por andar tão rabugenta. Acho que nós dois sabemos por quê.

- Sabemos, sim. - Ele parou bem ali na Madison Avenue e a abraçou. - Mas você tem de deixar que a natureza aja; e depois, é divertido tentar, não é?

- É. - Ela sorriu para ele. Mas ele ainda se lembrava de como ela chorara quando tivera a sua última menstruação e a cena violenta que tiveram quando ela dissera que era tudo culpa de Faye. Que se não fosse ela, ela teria um filho de três anos e meio, e Bill parecera ficar magoado... "É isso que você deseja?", ele perguntara, e ela gritara: "É, sim." Ele tivera tanta pena dela que até chegara a sugerir que eles adotassem um garoto de três anos, mas ela queria um que fosse deles. Queria ter o "seu bebê" de novo. Era inútil tentar-lhe dizer que ela nunca poderia substituir aquele que ela largara, e estava resolvida a ter um filho com Bill, naquele exato momento, se possível. A mãe desconfiou disso num dia em que elas almoçaram juntas e a expressão velada dos olhos dela acusou Faye, como a tinha acusado, havia anos. Ela nunca lhe perdoara, e provavelmente nunca o faria.

E agora, na Madison Avenue, ela olhou para Bill com tristeza. - Você acha que um dia isso vai acontecer? - Já fizera essa pergunta um milhão de vezes desde janeiro, e só estavam casados havia quatro meses. Até então eles tinham tomado cuidados, ou melhor, ele tinha, corro ele lhe lembrou várias vezes. Mas ele sabia por que ela queria ser negligente. Era a mesma coisa: a aflição para ter um filho, para encher o vazio, reviver o passado, dessa vez de modo diferente. Ela nunca se perdoara por ter largado aquele filho, nem a Faye por tê-la obrigado...

- Sim, acho que vai acontecer, amorzinho. Daqui a seis meses você vai estar andando por aí que nem uma baleia, me dizendo que está sofrendo e desconfortável e me detestando por isso. - Os dois acharam graça e ele a beijou de novo e foi para sua reunião e ela foi à Bloomingdale's. Seu coração ficou pequenino quando passou pelos cabides de roupas de criança. Parou por um momento, pegando neles com Wsteza, querendo comprar alguma coisa, só para dar sorte e, depois, com medo de que lhe desse azar. Lembrou-se de ter comprado sapatinhos cor-de-rosa da outra vez que engravidara. Estava tão convencida de que seria menina, que Lionel e John tinham implicado com ela a respeito.

Essa recordação ainda lhe doía, e, andando por ali, ela ficou triste ao pensar em John. Pensou em Lionel, em como estaria. Raramente se falavam, agora. As coisa nunca mais tinham sido as mesmas, de pois que ele contara aos pais sobre Bill, e ela agora parecia não ter nada a dizer-lhe. Da última vez que soubera dele, ainda estava procurando trabalho num dos estúdios, querendo voltar ao cinema. Ela suspirou e tomou a escada rolante para descer, e lá havia uma profusão de cores por toda parte, flores de seda, bolsas de verniz, cintos de camurça dos tons do arco-íris. Ela não resistiu e voltou para o hotel com sacolas cheias de coisas que, em sua maioria, ela sabia que nunca usaria, ao contrário da pulseira de brilhantes que Bill lhe dera naquela noite, para aliviar o pesar. Ele sabia como ela estava triste por ainda não estar grávida, mas tinha certeza de que ainda o conseguiria. Era jovem e sadia, e só se estava esforçando demais, o médico lhe dissera isso mesmo.

E tornou a dizê-lo na semana anterior a eles irem a St. Tropez.

- Sossegue e não pense nisso - disse ele, e era fácil dizê-lo. Estava com 51 anos e aprendera a ser mais filosófico na vida.

No seu íntimo, ela continuava contrariada, mas durante as três semanas que passaram se divertindo na praia, em St. Tropez, Anne parecia mais feliz do que jamais fora. Usava jeans e sandálias, biquínis e camisas de algodão em cores vivas e deixou os cabelos à vontade, numa nuvem loura descorada ainda mais clara pelo sol.

Estava linda. e ficando cada dia mais bela. Ele ficou contente ao ver que ela chegou a engordar um pouquinho. E quando foram fazer compras em Cannes, ela não coube no seu manequim de sempre, tendo de comprar um maior. Ele implicou com ela quando teve dificuldades em puxar o fecho ecler. Disse-lhe que ela estava ficando gorda, mas pensou numa coisa que nem ousou mencionar. E em Paris ele teve certeza, quando ela ficou cansada demais para andar ao longo do Sena, adormeceu no caminho para almoçar no Coq Hardi e ficou pálida quando ele sugeriu um Dubonnet. Ele não lhe disse palavra, mas protegeu-a como uma galinha a seu pintinho. Quando chegaram de volta a L.A., ele lembrou-se de que ela não ficara menstruada desde que tinham partido, há um mês antes. Pela primeira vez, em seis meses, ela nem pensara naquilo e de repente ficou de queixo caído: fez uns cálculos mentais rápidos e depois riu para ele, nervosa.

- Você acha...? - Nem ousou dizer as palavras, e ele sorriu para ela, com brandura. Não levara tanto tempo assim, afinal. Seis meses não era muito, só tinham parecido longos a ela, de tão aflita para conceber que estava.

- Acho, sim, criança. Já estou achando isso há semanas, mas não queria te dar esperanças, de modo que não disse nada. - Ela gritou e jogou os braços em volta do pescoço dele, enquanto ele procurava acalmá-la. - Vamos aguardar até termos certeza, e aí vamos comemorar.

No dia seguinte, ela foi fazer o exame, e quando ligou de tarde, ansiosa, para saber o resultado, era positivo. Ficou tão aturdida que permaneceu sentada ali, olhando para o telefone, e quando Bill chegou em casa ela ainda parecia pasma, e ele deu gritos de alegria. Ao vê-la andar por ali de maiô, notou que mudara de corpo, sutilmente.

Não estava tão angulosa, tudo parecia mais suave e mais arredondado.

- Estou... estou... estou... - Ela estava tão entusiasmada que dançou de alegria e ele a levou para comemorar no Beverly Hills Hotel, mas ela adormeceu logo, e ele ficou sonhando com o bebê que teriam. Também ele estava cativo da idéia, e estava pensando em transformar o quarto de hóspedes em quarto do bebê. Podiam instalar outro quarto de empregada sobre a garagem e pôr ali uma das empregadas... depois pôr a ama no atual quarto de empregada... as idéias dele giraram a noite toda, enquanto ela dormia. No dia seguinte, ele foi almoçar em casa, para ver como ela estava e para comemorar de novo. Aquilo não parecia atrapalhar em nada a vida sexual deles, e ela parecia estar mais feliz do que nunca. Falava constantemente do "filhinho" deles, como se tivesse de ser um menino, para substituir o que se fora... ele agora deveria estar com quase quatro anos, Bill sabia...

O fim de semana de feriados do trabalho foi passado com amigos. As pessoas agora estavam se habituando a ela, e embora tivessem inveja de Bill, não faziam mais tantas brincadeiras quanto antes. E ela parecia mais adulta do que nove meses antes. Especialmente agora, a gravidez lhe dera certa maturidade.

Estavam planejando ir a Nova York nas semanas subseqüentes, para ver Gail. O médico disse que Anne podia ir mas, na véspera da partida, ela começou a sangrar um pouco e ele a mandou ficar de repouso na cama. Ela ficou apavorada, pensando no que poderia significar, mas o médico explicou que era muito comum, muitas mulheres sangravam um pouco nos primeiros meses, não era nada de mais. Só que, depois de três dias, o sangramento não parara e Bill já estava ficando aflito. Chamou outro médico que conhecia, que disse a mesma coisa. Mas Anne estava de uma palidez estranha, sob o seu bronzeado, sobretudo de medo. Ela mal se levantava da cama, o dia todo, a não ser para ir ao banheiro. Bill ia almoçar em casa todo dia, para ver como ela estava, e saía mais cedo do escritório. Os dois médicos disseram que teriam de esperar para ver, mas nenhum dos dois estava preocupado, até que, depois de uma semana de sangramento constante, numa noite, bem tarde, ela começou a sentir cãibras terríveis. Acordou com um sobressalto e agarrou o braço de Bill. Mal conseguia falar, a dor era muito forte, e ela sentia como se um ferro em brasa a estivesse atravessando, empurrando tudo para baixo, para entre suas pernas e as costas. Bill chamou o médico, embrulhou-a aflito num cobertor e a levou para a casa de saúde. Os olhos dela estavam arregalados de medo e ela ficou apertando bem a mão dele, deitada ali no pronto-socorro. Implorou para ele não a deixar e o médico permitiu que ele ficasse, mas a cena não era bonita. Ela estava com muitas dores e sangrando muito. Em duas horas perdeu o bebê que tanto desejava, soluçando nos braços de Bill.

Foi anestesiada e levada de maca, para fazer uma dilatação e curetagem, e quando voltou a si, na sala de recuperação, Bill estava ali de novo, os olhos tristes cheios de preocupação, enquanto segurava a mão dela. O médico dissera que não havia explicação para aquilo, alguns fetos ficavam malformados e o corpo os eliminava. Era melhor assim, dissera ele. Mas Anne estava inconsolável e ficou de cama durante várias semanas, em casa. Disseram que ela podia se levantar, mas não tinha vontade alguma. Perdera seis quilos, estava com uma cara péssima e se recusava a falar com qualquer pessoa ou ir a qualquer lugar. Faye acabou sabendo do caso por vias indiretas. Lionel ligou para Anne para saber dela e Bill contou a ele que ligou para Faye, que por sua vez ligou para Anne para saber como ela estava.

Mas ela não queria falar com ninguém, disse Bill, em desespero. E se recusou terminantemente a ver Faye. Ficou histérica quando Bill a mencionou, gritando de novo que a culpa era dela, que se não a tivessem abrigado a dar o outro bebê, ela o teria agora. Ela estava com ódio de todos, até de Bill, às vezes, e só em novembro é que ele conseguiu convencê-la a viajar com ele de novo, ou ir a algum lugar. Gail ficou aflita ao ver como ela estava abatida, quando afinal ela foi a Nova York com Bill. - Ela está péssima.

- Eu sei. - Ele passava o tempo todo preocupado com ela, mas não havia nada que pudesse fazer a não ser tornar a engravidá-la, e isso poderia demorar. - Ela sofreu muito. - Já se haviam passado dois meses e ela nunca falava no assunto, mas era fácil ver como aquele malogro a tinha arrasado e nem as jóias que ele lhe comprara a entusiasmavam muito. Nada adiantava, nem mesmo a viagem a St. Moritz, no Natal.

Por fim, em janeiro, ela começou a se reanimar. Aquele fora um período terrível para ela e a depressão de seis semanas que o médico previra passara a durar três meses, mas pelo menos agora ela se refizera, de modo geral. Voltara à sua vida normal de compras e de visitas a amigos. Voltou a telefonar mais freqüentemente para Gail, em Nova York, e voltou a fazer os seus gráficos de temperatura e dessa vez foi recompensada em dois meses apenas. Viu que estava grávida no Dia dos Namorados, mas dessa vez o bebê só durou seis semanas, e ela o perdeu no dia primeiro de março, duas semanas depois de ter verificado a gravidez. Bill se preparou para a aflição por que ela passaria de novo, mas dessa vez ela teve mais calma. Calada, reservada, raramente mencionava o fato, mesmo para ele, e, de certo modo, aquilo o deixou mais preocupado. Preferia vê-la chorando o tempo todo, pelo menos assim ela desabafava. Em vez disso, em seus olhos havia alguma coisa fechada e morta. Ela guardou os gráficos de temperatura, jogou fora o termômetro basal e falou em redecorar o quarto de hóspedes de verde ou azul. Aquilo doeu no coração dele ainda mais que antes, mas não havia nada que ele pudesse fazer por ela. Uma noite, bem tarde, ela confessou a ele, no escuro, que pensava que podia ser devido a todas as drogas que ela tomara anos antes. Mas já se tinham passado cinco anos, ele lembrou a ela, e ele estava convencido de que não tinha nada a ver com o caso. Mas ela se agarrou a seus sentimentos de culpa e a seu arrependimento e à recordação do filho perdido. Era evidente que ela estava certa de que nunca mais teria um filho e ele nem ousava discutir com ela. Aquilo punha uma pressão terrível sobre ele, quando tinham relações, mas pelo menos ela agora não estava mais tomando a temperatura. Isso era um alívio.

Ela continuou a fugir dos pais como de uma praga, em especial de Faye, e Bill de vez em quando lhe dava notícias deles. Ele ouvira dizer que os pais dela estavam preparando um filme de vulto e estavam procurando uma estrela.

- Pode ser que dêem o papel a Val - disse ele, para distraí-la, num dia em que estavam almoçando junto à piscina. Mesmo que não lhe tivesse dado um filho, ela se lembrava constantemente, ele lhe dera uma vida linda e felicidade. Estava sendo tratada como nunca o fora. Ela é que fracassara com ele, ela achava, não lhe tendo podido dar um filho. Mas para ele isso não parecia ter tanta importância quanto para ela, e ela então se riu da sugestão dele de Val no filme dos pais.

- Só se estiverem fazendo um filme de terror e precisarem de uma estrela com um grito fantástico. - Descreveu-lhe o famoso grito de Val, e ele achou graça, ao ouvir.

Dessa vez, ela estava se refazendo mais depressa e ele estava aliviado.

Mas a sugestão que fizera à mulher era tão absurda quanto parecia. Em seus escritórios, Faye e Ward estavam com uns cem currículos espalhados e havia mais uma pilha grande de documentos rejeitados pelo chão. Já tinham pensado em todo mundo e não havia ninguém certo para o papel. Eles queriam alguém que fosse nova, jovial e linda.

Alguém que parecesse de verdade. E Ward olhou para Faye com a mesma idéia que Bill tivera, só que estava falando sério.

- Val? - Faye suspirou e olhou bem para Ward. - Não acho que seja boa idéia. - Ela nunca pusera nenhum de seus filhos em seus filmes. Durante dois decênios ela mantivera seus dois mundos isola dos, e agora eles ameaçavam se chocar. Depois, Val não era fácil e ela e Faye raramente se davam bem. Além disso, não tinha experiência com filmes de gabarito. No entanto, que dádiva para ela. - Não sei, Ward...

- Bem, já pensamos em todos os outros nomes desta cidade. E a não ser que você queira ir procurar na Europa ou em Nova York, temos de começar a procurar debaixo das pedras Por que não experimenta?

- E se não der certo? - Aí você a despede. - Minha própria filha? - Ela pareceu se escandalizar.

- Não creio que isso será necessário. - Ward não queria desistir de sua idéia. Isso poderia mudar toda a vida dela, Faye. Poderia ser a oportunidade de que ela precisa. O fato é que ela tem capacidade, só não teve ainda os meios.

Faye sorriu para ele, com melancolia.

- Você está parecendo agente dela. Benzinho, não faça isso comigo. Ela não é adequada para o papel. - Não era verdade, mas teria sido mais fácil se fosse.

- O que te faz dizer isso? - Ele pegou uma foto enquadrada de cima da mesa e a deu a Faye. - Ela tem exatamente o aspecto que você quer, não tem?

Faye sorriu para o marido.

- Está bem, eu entrego os pontos. - Mas ela estava mais feliz do que se sentia, havia tempos. Ward sorriu, em resposta. Orgulhava-se dela, e ambos sabiam que não seria fácil. Ele estava convencido de que aquilo era o certo, e faria todo o possível para ajudá-las.

E a verdade era que ele estava com a razão. Val tinha exatamente o aspecto que ela queria para a estrela, mas que desafio seria trabalhar com a própria filha. Por outro lado, seria uma oportunidade única. Para Val, pelo menos.

Faye se levantou, sorrindo, e Ward se aproximou dela.

- Você é um estouro, sabia disso? - Ele disse aquilo com um sorriso e Faye olhou para ele, meio melancólica. - Não deixe de dizer isso à sua filha.

 

- Você quer que eu faça o que? - berrou Val para seu agente pelo telefone. Ela estava em casa, fazendo as unhas, pensando se sairia para comer ou não, aquela noite.

Como sempre, não havia nada na geladeira, mas três garotas tinham falado em passar pela Chicken Delight no caminho para casa e Val não estava com vontade de sair.

E estava farta dos homens que vinha vendo, ultimamente, só queriam trepar. E depois de certo tempo, era tudo igual. Ela perdera a virgindade há seis anos e nem se lembrava mais de todos os homens com quem dormira.

- Quero que você faça um teste para Faye Thayer - repetiu o agente.

Ela começou a rir.

- Está sabendo para quem é que você ligou? - Era evidente que ele se enganara. - Aqui fala Val Thayer. - Ela queria acrescentar "seu idiota", mas se conteve. Ela ia fazer um teste para outro papel, naquela semana, num filme sobre drogas. Não era um grande papel, mas dava para pagar o aluguel e era alguma coisa a fazer. Ainda não estava disposta a se confessar derrotada. Já estava representando, havia quatro anos, e sabia que um dia teria uma grande oportunidade, se bem que não fosse num teste para a mãe. Era a coisa mais engraçada que ela já ouvira.

- Estou falando sério, Val. Acabaram de ligar do escritório de sua mãe.

- Você está maluco. - Ela largou o vidro de esmalte. – Isso é uma piada, acertei? Tudo bem, então, ha-ha. Então para que é que você me ligou?

- Estou dizendo por que é que liguei. - Ele estava começando a ficar aflito. Não era todo dia que do escritório de Faye Thayer ligavam para ele e isso também o deixava nervoso. Ele era um agente sem importância no Sunset Strip e fornecia atores e atrizes e modelos para filmes B e de terror, pornô moderado e programas topless ao vivo. Faye ficara furiosa quando Val lhe dissera que o contratara. - Ela está falando sério, Val. Querem você lá amanhã às nove horas.

- Para quê? - Ela sentiu que estava começando a suar. Por que haviam de ligar para o agente e não para ela?

- Querem que você leia sem ensaiar. - Ele se propusera a buscar o argumento, para que Val pudesse estudá-lo naquela noite, mas eles se tinham recusado, ou pelo menos a secretária recusara. E dissera que a sra. Thayer não podia atender. Val deveria ir lá no dia seguinte às nove horas e pronto. Estavam interessados, ou não? Ele aceitara logo, claro, mas agora tinha de convencer Val.

- O que é que eu tenho de ler?

- Eu só sei que é um papel no novo filme dela. - Aquilo era a coisa mais estranha que ela já ouvira e afinal concordou em ir no dia seguinte, mas não resistiu e telefonou para casa, naquela noite.

Acontece que os pais não estavam e a empregada devia estar de folga, pois não atendiam. Ela ficou triste, telefonando para casa, antes havia sempre tanta gente lá, e agora todos se tinham ido. Era a mesma coisa que Faye sentia, quando eles chegavam em casa tarde da noite. Mas naquela noite Val só conseguia pensar no papel misterioso que ela deveria ler no dia seguinte. Mal dormiu, a noite toda, e se levantou às seis horas, lavou e secou o cabelo, fez a maquiagem e verificou as unhas de novo.

Resolveu usar um vestido preto simples para o caso de eles estarem falando sério. Era um pouco sofisticado para as nove da manhã e era muito decotado, mas seus seios eram leitosos e cheios e suas pernas eram compridas. Era o tipo de roupa que ela usaria para um teste com qualquer outra pessoa, de modo que resolveu não fazer nada de diferente para Faye Thayer. Ao dirigir-se ao estúdio, ela tentou se convencer de que aquilo não era em nada diferente de fazer um teste para outra pessoa. Mas suas mãos estavam trêmulas ao abrir a porta e ela levara tanto tempo para retocar a maquiagem e refazer o penteado que chegou com meia hora de atraso. A secretária olhou para ela com ar de reprovação e ela viu que Faye olhava para o relógio de pulso quando ela entrou, e depois olhava para o decote, mas recebeu a filha com um sorriso e parecia estar tão nervosa quanto Val. Ward e mais dois homens estavam sentados noutra parte da sala, confabulando, cercados de mesas e fotos de outras atrizes que estavam verificando. Eles levantaram os olhos uma vez e ela viu que o pai piscava para ela. Mas agora ela teria de se concentrar na mãe. A mãe, a mulher contra quem ela sempre nutria um ressentimento, que afinal lhe estava dando a sua grande oportunidade.

- Olá, Valerie. - A voz dela estava branda e o seu jeito mais profissional do que aquele a que Valerie estava acostumada. Era como se ela estivesse querendo dizer a Val alguma coisa sem dizer as palavras, dando-lhe toda a animação possível. E, olhando para ela, Valerie começou a ficar calma. Obrigou-se a não pensar nos raios de três Oscars e a focalizar só o argumento em pauta. De repente, aquilo significava tudo para ela. Não tivera uma boa oportunidade, mas sabia que podia representar bem e ia fazer isso nem que morresse tentando. Faye Thayer observou o rosto dela e examinou-lhe todos os centímetros do corpo, desejando-lhe bem, quase rezando por ela. - Gostaríamos que você lesse um papel, Val - disse, entregando o argumento a ela.

- Foi o que o meu agente falou. Que tipo de papel é?

- É uma moça que... - Ela passou a descrever o papel e Val tornou a se perguntar por que a mãe a chamara. Teve vontade de perguntar isso, mas resolveu não dizer nada.

- Posso ter alguns minutos para estudá-lo? - Os olhos dela estavam intensos. Ela tinha tido tanta inveja de Faye, da beleza dela, de seu passado, seu sucesso, a carreira de atriz que ela abandonara tão jovem... E agora lá estava ela, lendo para a mãe. Era o fato mais estranho de toda a sua carreira. E a mãe então fez que sim. Val viu que ela estava envelhecendo. Estava só com 51 anos, mas os últimos anos a tinham acabado muito.

E de repente ela queria aquele papel, mais do que a tudo no mundo. Queria mostrar àquela mulher que sabia representar. Ela sabia que Faye não achava que ela pudesse, e se perguntou de quem teria sido a idéia de lhe dar uma oportunidade. Provavelmente do pai.

- Pode ficar dez minutos na outra sala e depois volte aqui. A voz estava simpática, os olhos preocupados. E se ela não fosse capaz daquilo? Val interpretou claramente a expressão da mãe. Aquele era um aspecto dela que os filhos nunca viam, a profissional consumada, a diretora que exigia fibra, coração e carne, a mulher que dedicara toda a vida ao seu trabalho. E de repente Val viu tudo, quem ela era, o que fazia, como podia ser exigente. Mas isso não a assustou. Ela estava certa de que corresponderia às exigências. Ficou quase hipnotizada ao estudar as falas, sentindo o papel, tornando-o parte de si. E quando voltou à sala, parecia uma pessoa diferente. Ward e os outros homens olharam para ela e a viram representar. Ela não leu. Ela esbravejou e vociferou e falou e não olhou uma vez para o papel. O coração de Ward se enterneceu com ela. Sabia como ela se esforçara e como devia querer aquele papel agora.

E quando Val acabou, as faces de Faye estavam cobertas de lágrimas de alegria e orgulho. As duas se olharam demoradamente. De repente, Val também começou a chorar e as duas mulheres se abraçaram, rindo e chorando enquanto Ward as contemplava. E então afinal, rindo no meio das lágrimas, Val olhou para os pais.

- E então? O papel é meu?

- É sim, porra! - Faye respondeu depressa, e ficou aturdida quando Val soltou o seu grito, já famoso.

- Aleluia!

 

Val começou no filme em maio e nunca trabalhara tanto na vida. A mãe trabalhava como uma moura e fazia com que os outros o fizessem com o mesmo afinco, exigindo o máximo deles, durante horas a fio, exigindo tudo o que Val tinha para dar. Mas não era mais do que exigia de si mesma, ou dos outros atores que trabalhavam para ela. Era assim que ela trabalhava e era por isso que seu trabalho era tão bom, era por isso que ela conquistara os prêmios de que Val escarnecera por tantos anos.

Mas ela agora não estava escarnecendo, estava adorando. Mal podia se arrastar para casa todas as noites e a maioria de seus dias terminava em prantos, no set. Aos 22 anos, ela nunca trabalhara tanto na vida e não sabia se jamais tornaria a trabalhar daquele jeito. E, se trabalhasse, seria porque havia de querer. Ninguém jamais exigira tanto dela... ou lhe ensinara tanta coisa..., ela também sabia disso. E estava feliz, orgulhosa e grata.

Ela já estava trabalhando há três semanas, quando o protagonista do filme, George Waterston, lhe ofereceu condução para casa. Ela já o tinha visto em Hollywood, e sabia que ele não ficara satisfeito quando soubera que ela é que ia contracenar com ele. Ele queria uma estrela de renome e Faye tivera muito trabalho para convencê-lo a dar uma chance a Valerie. O trato fora que, se ela não prestasse, seria dispensada. Val sabia de tudo isso, pelas fofocas no set, e percebeu isso naquele instante, quando ele olhou nos olhos dela. Ela se perguntou se ele seria seu inimigo ou seu amigo e concluiu que ela na verdade não se importava. Estava cansada demais para ligar e estava mesmo precisando de condução. O carro dela já estava na oficina há semanas, e ela fora para o trabalho de táxi. Assim, olhou para ele agradecida.

- Claro... obrigada... - Não teve nem energia para falar, na ida para casa, depois de lhe dar o endereço, e ficou horrorizada porque adormeceu e ele a acordou quando chegaram à casa dela. Ela teve um sobressalto quando ele tocou em seu braço e o fitou, vexada. - Eu dormi?

- Parece que não sou mais tão interessante quanto era. - Ele tinha cabelos castanhos e olhos azuis, um rosto forte e um tanto crestado. Tinha 35 anos, e Val o admirava havia anos. Tudo fazia parte do sonho em que se transformara sua vida, estrelar num filme com aquele homem. As pessoas já estavam falando que ela conseguira o papel por causa da mãe, mas ela não ligava a mínima. Ia provar a todos que estavam enganados. Ia arrasar a todos no papel de Jane Dare, a mulher que ela representava, e agora olhou para o seu colega com um ar de desculpas.

- Desculpe... estava tão cansada...

- No primeiro filme que fiz para Faye, eu também ficava assim. Uma vez cheguei a adormecer na direção do carro e acordei pouco antes de bater numa árvore. No final, eu estava até com medo de dirigir. Mas ela consegue da gente coisas que ninguém mais consegue, um pedaço da nossa alma, do coração... quando acaba, nem precisa mais puxar por você, você quer dar tudo espontaneamente. - Aquilo era exatamente o que Val estava começando a sentir, junto com um arco-íris de novos sentimentos de amor e respeito pela mãe.

- Eu sei... ainda não posso acreditar que ela me tenha dado o papel. - Olhou para ele com sinceridade. - Ela nunca apreciou nada do que eu já fiz, e nunca fiz grande coisa. Quero dizer, já tive vários papéis em filmes, mas nada igual a isso. - Ele já sabia disso, e pela primeira vez sentiu pena dela. A princípio, não gostara nada dela. Parecia uma vagabundazinha e ele pensou que Faye a estava protegendo, mas viu logo que estava enganado, e agora estava vendo que a pobrezinha estava com medo. Devia ter sido um inferno para ela trabalhar para Faye, e tendo a ele como galã. Ela estava num mundo de profissionais e ainda era uma garota, pensou ele então, sentindo algo inteiramente novo por ela.

- Ela antes me deixava apavorado. - Ele riu, descontraindo-se com Val. Ela não estava mais com uma cara tão vulgar quanto no principio. Quase não usava mais maquiagem e usava jeans e camisa de malha. Não adiantava usar nada de chique ou decotado, ela tirava a roupa no momento em que chegava, e ela estava começando a viver o papel de Jane Dare, que era inteiramente diferente de Val. - A sua mãe é outra coisa, Val. - Era a primeira vez que ele a chamava pelo nome e ela sorriu para ele.

- Sabe, eu me esqueço de que ela é minha mãe quando estou no set. Ela é só aquela mulher gritando comigo, me deixando tão furiosa que às vezes tenho vontade de matá-la.

- Isso é bom. - Ele estava aprovando. Conhecia Faye bem, e o que ela também o fazia sentir. - É isso que ela quer que você sinta. Val suspirou, sentindo-se à vontade naquele carro grande e espaçoso. Era um Cadillac conversível branco, com o estofamento em vermelho, e ela mal se sentia com forças para abrir a porta e entrar em casa, e então, nervosa, virou-se para ele.

- Quer entrar e tomar um drinque, ou alguma coisa? Não sei o que há para se comer, mas podemos mandar vir uma pizza, se quiser.

- Que tal irmos comer uma pizza em algum lugar? - Ele olhou para o relógio Rolex no pulso e depois para ela de novo. - Eu podia trazê-la de volta daqui a uma hora.

Quero tornar a estudar a cena de amanhã. - E então teve uma idéia: - Quer trabalhar nela junto comigo? Ela sorriu para ele, sem poder acreditar. Não podia ser verdade.

Ela estudando falas com George Waterston para um filme dos dois juntos? Tinha de ser um sonho. Ela resolveu responder depressa, antes que o sonho desaparecesse.

- Eu adoraria isso, George. Se é que não vou adormecer de novo. - Ele riu dela e cumpriu a palavra. Comeram uma pizza rapidamente, no caminho, e foram à casa dele em Beverly Hills, onde leram seus papéis juntos por duas horas, experimentando diversas entonações, diversos estados de espírito, até conseguirem um de que gostassem.

Dava a mesma impressão que as aulas de teatro de que ela tanto gostara, só que isso era de verdade. E, exatamente às 10 horas, ele a levou para casa. Ambos precisavam dormir para o dia seguinte. Ele lhe acenou um adeus displicente enquanto ela entrava em casa, flutuando numa nuvem. Era um prazer não ser agarrada por algum garoto, ou um camarada que parecesse um cáften. Ela se perguntou por que nunca conhecera ninguém como George. E depois riu de si mesma. A metade das mulheres do mundo deseja conhecer um homem como ele, e ela estava trabalhando com ele todos os dias.

O filme ia bem, e Val já tinha estudado em casa dele várias vezes. Ela o teria convidado à casa dela, mas lá o caos era demais. Ele lhe disse que achava que ela devia mudar-se e arranjar um lugar decente. Ele estava se tornando quase um irmão mais velho para ela, apresentando-a a seus amigos e ensinando-lhe as maneiras do alto escalão de Hollywood.

- Fica muito mal você morar num lugar desses, Val. - Ele agora podia lhe dizer qualquer coisa. Eles trabalhavam juntos durante doze horas por dia, e todas as noites estudavam por duas ou três horas. - Os caras vão pensar que você é ordinária. - Era exatamente o que lhe vinha acontecendo, havia anos, até aquela oportunidade.

- Eu nunca pude pagar nada melhor do que isso. - Ela estava dizendo a verdade, e ele pareceu se espantar. Os Thayer figuravam entre as pessoas mais importantes de Hollywood, e parecia estranho que não a ajudassem. Ele disse isso e ela sacudiu a cabeça. Não era do seu feitio. - Não recebo nada deles desde que saí de casa.

- Coisinha teimosa, não é? - Ele sorriu para ela, e ultimamente ela estava notando que havia uma ligação mais íntima entre eles. Estava passando a confiar nele.

Quase demais, ela se advertiu. O filme em que estavam trabalhando era um mundo irreal, e mais cedo ou mais tarde terminaria. Mas ele era uma pessoa tão fácil de conviver, tão simpático e caloroso, e sabia tanta coisa... Tinha até um filho de catorze anos, de quem ela gostava. Casara-se aos dezoito, se divorciara aos 21, e a ex-mulher se casara com Tom Grieves, o grande astro do beisebol. Ele via o filho nos fins de semana e de vez em quando nas noites de quarta-feira e convidara Val para sair com eles, algumas vezes. Ela se deu bem com o garoto, que se chamava Dan. Ele disse que tinha querido ter muitos filhos, e que nunca se casara de novo, se bem que ela soubesse, pelos falatórios da cidade, que ele já vivera com várias grandes estrelas. E foi em princípios de junho que eles apareceram juntos nos jornais pela primeira vez.

Faye também viu a notícia e a mostrou a Ward antes de saírem para o trabalho.

- Espero que ela não esteja se metendo com ele.

- Por quê? - Ward achava que havia um envolvimento entre os dois, e sempre gostara de George. Achava que o homem era uma das pessoas mais decentes da cidade.

Faye, porém, via a coisa sob outro aspecto. Quando trabalhava num filme, ficava com idéia fixa.

- Isso pode distraí-la do trabalho.

- Talvez não. Ele pode ensinar alguma coisa a ela. - Faye resmungou alguma coisa ininteligível e eles foram trabalhar. Como sempre, estava preocupada com Val. Ward estava certo, claro, ela estava fantástica no papel, se bem que Faye por enquanto não queria falar muito disso com Val, pois poderia atrapalhar. Ela estava quase arrependida por estarem todos indo à formatura de Vanessa, dali a algumas semanas. Não gostava de fazer vida social com seus astros e estrelas durante uma filmagem, mas naquele caso isso não podia ser evitado. Ela se manteria o mais afastada que pudesse, e esperava que Val compreendesse. Ela estava passando a amar a filha cada vez mais, mas naquele momento também era sua diretora. E isso era mais importante no momento.

Quando George soube que Val ia a Nova York, quis ir também. Não vou lá desde o ano passado. E, que diabo, podia levar o Dan. - Aquele relacionamento era o mais estranho. Eles agora iam a toda parte juntos e ele nunca tocara nela. Ela também estava preocupada com isso, mas não queria estragar tudo entre eles e estavam ficando amigos. - Eu podia levar o Danny, também. Em geral, me hospedo no Carlyle.

- Acho que a minha mãe vai ficar no Pierre com meu irmão, minha irmã e meu cunhado. - Bill sugerira isso a eles e Faye deixara que ele reservasse os quartos. Aos poucos estavam-se tornando amigos e Ward já jogara tênis com ele, algumas vezes.

Mas então George teve uma idéia.

- Que tal ficar no Carlyle conosco? Faye não vai querer ficar muito junto de você; mesmo.

Val sabia disso, e o pai já o explicara, de modo que a sugestão de George estava perfeita.

- Ela nunca conversa com os astros dela. Diz que fica confusa. Só pode lidar com uma identidade de cada vez. E, no momento, na cabeça dela você é Jane Dare, e ela nem quer ver Valerie Thayer ou George Waterston. - O personagem que ele representava chamava-se Sam, e Val concordou, entendendo melhor. E gostou da idéia de se hospedar no Carlyle com eles.

- Tem certeza de que Danny não vai se importar com que eu esteja lá?

- Claro que não. Ele é doido por você. - E parecia que era mesmo, quando os três foram de avião, primeira classe, para Nova York.

George assinou vários autógrafos enquanto Val e Danny olhavam, e eles acabaram implicando com ele, pedindo um também. Ela jogou cartas com Dan enquanto George dormia, e todos assistiram ao filme, se acotovelando ferozmente. Era um dos últimos filmes de George.

Havia uma limusine esperando por eles no aeroporto em Nova York, que os levou direto ao Carlyle, onde George tinha reservado uma suíte de três quartos. Havia uma kitchenette e um piano, e um living espaçoso com vista para o parque.     Ficava no trigésimo terceiro andar e Danny parecia estar empolgado com tudo aquilo. Eles pediram logo o serviço de copa e nessa noite foram jantar no "21".

- Então, garota - disse ele baixinho para ela, mais tarde, no bar, depois que Danny subiu para o quarto -, todo mundo vai dizer que você está de caso comigo. Acha que pode agüentar isso? - Ela se riu e disse que sim, e a loucura era que eram apenas amigos. E pouco depois eles ficaram escutando a magia de Bobby Short ao piano, no Carlyle, e depois subiram para seus quartos. Ela sabia que àquela altura o resto da família já estava em Nova York também, e na manhã seguinte Vanessa telefonou, querendo almoçar com ela. Estava entusiasmada com o filme de Val e queria saber de tudo. Eles tinham jantado com Faye e Ward na véspera e ela não tinha querido dizer nada. - Assim, você vai ter de contar tudo.

- Está bem. Posso levar George para o almoço? - Ela não se sentia bem, abandonando ele e o garoto, mas Vanessa não entendeu. - George, quem?

- George Waterston. - Ela disse aquilo com tanta displicência que Vanessa quase caiu da cadeira, do outro lado do fio.

- Está brincando? Ele está aqui com você?

- Está. Viemos juntos de avião, com o filho dele. Ele achou que seria divertido passar uns dias aqui, enquanto eu vejo a sua formatura. E por falar nisso, parabéns!

Agora pelo menos uma de nós tem cultura! - Mas naquele momento Vanessa não estava nada interessada por sua cultura.

- George Waterston! Val, não posso acreditar! - Ela tapou o fone com a mão e contou a novidade a Jason, e depois cochichou bem alto para Val: - Está de caso com ele?

- Não, somos apenas amigos. - Mas Vanessa não acreditou nada naquilo, como disse a Jason depois que desligou. Se ele tinha ido até Nova York com ela, eles tinham de ser mais que apenas amigos.

- Nunca se sabe. Vocês lá da terra dos plásticos são esquisitos. Eu sempre disse isso. - Ele sorriu para ela. Eles iam se mudar na semana seguinte. Tinham arranjado uma água-furtada em Soho e mal podiam esperar para se mudar para lá. Tinham prometido mostrar o lugar a Ward e Faye, e não disfarçavam mais onde é que Van morava. Ela morava com ele, e pretendia continuar a morar com ele. Faye a interrogara sobre o assunto na véspera, esperando que ela dissesse que eles pretendiam se casar um dia daqueles, mas não pareciam ter tal intenção, e Jason acusou Van de torturá-la, depois que os pais voltaram para o Pierre e ele e Vanessa ficaram a sós de novo.

- Coitada, ela está tão aflita para você ser respeitável. Podíamos pelo menos ficar noivos, sabe.

- Isso estragaria tudo. - Você está pirada.

- Não estou, não. Não preciso de um papel, com você. Há muita coisa que nós dois queremos fazer, primeiro. - Ela lhe lembrou a peça dele, o livro dela, e ela agora tinha de procurar um emprego. Mas ele já terminara os estudos e estava pensando em se acomodar. Vanessa não tinha pressa. Ainda era jovem e achava que tinha a vida toda pela frente. Muito embora estivesse com muita pressa de conhecer o amigo de Valerie.

Elas combinaram se encontrar para almoçar no PJ Clark's, e pontualmente à uma hora Valerie e George Waterston e seu filho Dan chegaram. George estava de jeans e camiseta e sapatos Gucci sem meias e Danny parecia um garoto qualquer, de qualquer lugar, de camisa azul e calças cáqui. Ele no momento andava se arrumando muito, desde que começara a se interessar pelas garotas, e tinha uma paixonite por Val, que estava de vestido de couro cigano vermelho. Mas Vanessa só tinha olhos para George e estava quase se babando. Valerie implicou com ela por isso quase o almoço todo. Jason e George estavam se dando às mil maravilhas e Jason conversou com Dan sem parar sobre esportes e prometeu levá-lo a um jogo dos Yankees antes de ele voltar para a Costa Oeste. Foi uma reunião extremamente cordial e Vanessa não pôde deixar de notar a diferença na sua gêmea. Estava mais calma, mais confiante, mais discreta, não tão berrante. Parecia em paz, feliz e realizada e era difícil acreditar que não estivesse apaixonada por aquele homem.

Ele certamente parecia estar apaixonado por ela e eles falaram um pouco sobre o filme. Valerie ainda não podia acreditar que lhe tivessem dado aquele papel, ao contar a Van a entrevista apavorante com a mãe e como ela estava com medo.

- Aquela mulher sempre me apavorou mortalmente. - Era a primeira vez em toda sua vida que ela confessava isso e Vanessa olhou para ela, espantada. Ela havia mudado mesmo. Era quase como se ela afinal tivesse ficado adulta e se tornado ela mesma, e Van viu que havia anos não gostava tanto da irmã.

- Eu sempre pensei que você tivesse inveja dela e não medo. - Ambos, eu acho. - Valerie suspirou, sorrindo para George. - Ela ainda me apavora muito no trabalho, mas não tenho tanto ressentimento dela. Vejo como ela trabalha duro. Acho que ela merece tudo quanto conseguiu. Antes eu nunca consegui reconhecer isso. - Estou impressionada. - Vanessa falou baixinho com ela e os dois homens trocaram um olhar. Era extraordinário pensar que aquelas duas eram gêmeas. Vanessa era tão sossegada, tão intelectual, tão ávida pelo sucesso num setor totalmente diferente... Nem sequer queria mais voltar para Los Angeles. A vida dela era em Nova York, com Jason e seus amigos, o mundo editorial em que ela queria se meter. Ela nem falava mais em escrever um filme, apenas o livro. E Valerie, com seu cabelo ruivo chamejante e beleza brilhante era tão parte do meio cinematográfico... mas agora o melhor meio de Hollywood, e não o lixo. Sem que ela mesma se desse conta, todo o seu aspecto mudara nos dois últimos meses. Os dias de gritos e lodo verde tinham sumido de vez. E já se sentia nela a aura da grande estrela. Faye também a via. Era a mesma aura que ela tivera um dia. Ou muito parecida. Na formatura, no dia seguinte, Faye olhou para todos eles, com calma. Anne, vestida tão impecavelmente com suas roupas caras, pequenos brilhantes faiscando nas orelhas, o braço dado com Bill; Vanessa tão bonita e séria com sua beca e capelo; Valerie tão incrivelmente linda que era de espantar, só que ela não parecia tomar conhecimento disso, o que era maravilhoso, e Lionel, parecendo mais feliz do que parecia, havia dois anos. Faye se perguntou se haveria um novo homem na vida dele, mas ela nunca queria perguntar, e claro que Ward também não. O que ele fazia era da conta dele, estava com 25 anos, afinal, e eles o aceitavam, como aceitavam a todos, se bem que parte dessa aceitação ainda fosse unilateral, como Faye sabia. Ela sabia que Anne ainda estava zangada com ela por causa do filho que tivera de dar.. Val ainda tinha inveja de seu sucesso... Vanessa agora se desenvolvera para longe dela... e Lionel tinha sua própria vida... o pobre Greg se fora. Ela sentia falta dele agora, como tantas vezes: aquela cabeleira ruiva, a paixão pelos esportes, as garotas que gostava de perseguir. Ele fora mais ligado a Ward do que a ela, mas também era seu filho e ela apertou mais a mão de Ward, sabendo que também ele estaria pensando no filho e que aquilo era doloroso para ambos.

Mas, naquela tarde, quando foram comemorar no Plaza, tudo era riso e alegria. Faye encomendara uma mesa coberta de flores claras na Sala Eduardiana e Vanessa ficou pasma e sem saber o que dizer quando Ward lhe entregou o presente de formatura deles para ela. Tinham discutido muito sobre o assunto e afinal resolvido incluir Jason também. Era um meio de eles darem sua aprovação ao modo de vida dela. Deram-lhe duas passagens para a Europa, com um gordo cheque para cobrir todos os divertimentos deles, e reservas em alguns dos melhores hotéis. Seria uma viagem fantástica para os dois e Faye ficou aliviada ao saber que Jason também podia ir, assim que se mudassem para Soho na semana seguinte. Ele largara o emprego para trabalhar na peça o tempo todo.

- Bem, vocês dois, isso deve impedir que se metam em encrencas por algum tempo. - Ward sorriu para eles. Ainda desejava que se casassem, mas isso não parecia provável.

Pelo menos, ainda não. E também estava pensando em George Waterston e Val. George se ausentara com o filho, naquela tarde, mas Ward sabia que Valerie estava hospedada com eles, e estava curioso para saber até que ponto os dois estavam envolvidos e não falara nada a respeito, o dia todo. E depois, claro, havia Bill e Anne. E ele parecia se dar muito bem com o resto do pessoal. Anne convidara Gail, e ela ficou conversando com Lionel. A garota estava louca por seus estudos de desenho, o seu emprego de verão com Bill Blass, naquele ano. E Lionel estava falando animadamente sobre o filme em que estava trabalhando. Todos estavam felizes e eram jovens.

Olhar para eles fazia bem à alma, como Ward disse a Faye, enquanto caminhavam de volta ao Pierre, devagar. Aí, de repente, ele enfiou o braço dela no seu, puxou-a para o lado, falou com um homem que estava junto de um fiacre e quando ela viu, estava passeando pelo Central Park, de mãos dadas com Ward. Ele a beijou de leve, uma ou duas vezes, e ela sorriu. Depois de uma vida inteira, ela ainda era louca por ele. - Devo dizer, nós temos uma turma e tanto. - Ele tornou a pensar neles todos, enquanto passeavam pelo parque de carro de cavalos e Faye não discordou dele. Ela não tinha falado muito com Val, e esperava que George explicasse as coisas a ela. Ele conhecia bem os seus métodos de trabalho. - Mas você é mais bonita do que todos eles, benzinho.

- Ah, meu amor. - Ela o beijou e sorriu. - Agora sei que você é tão louco quanto eu sempre achei.

- Só louco por você. - Ele aí a beijou de novo e eles ficaram de mãos dadas por muito tempo, felizes um com o outro e com suas vidas. Eles tinham percorrido um caminho muito, muito longo, lado a lado.

 

- Você quer sair para jantar hoje, amor?

Anne sacudiu a cabeça, deitada na cama no Pierre. As coisas tinham corrido bem, afinal, embora ela na verdade não quisesse ter ido, mas Bill achara que deviam, e era um bom pretexto para ver Gail, e fora isso que afinal a convencera. Ele chegou a lhe oferecer uma viagem à Europa, sendo Nova York uma parada no caminho, mas ela não estava disposta, e estava de novo tão cansada. Havia meses que vinha cansada, desde o primeiro aborto. Parecia que ela nunca chegara a se refazer mesmo, e Bill estava preocupado com ela.

- Por que não pedimos o jantar no quarto? - Ela sabia que Gail ia sair com Lionel. Ela gostava da companhia dele e tinha uma porção de amigos gay. Anne não tinha querido ir com eles, achava que Bill se cacetearia e ela sabia que ela também não acharia graça. Jason e Vanessa iam comemorar, Val tinha o seu astro do cinema e ela não tinha vontade de ver os pais. Uma vez por dia era mais que suficiente para ela. Mas Bill achava que era uma pena desperdiçar uma noite em Nova York.

- Tem certeza?

- Não estou mesmo me sentindo em condições de sair.

- Está se sentindo mal? - Aquilo estava começando a lembra a ele a época em que a mãe de Gail ficara doente e ele queria que Anne voltasse a consultar o médico.

Mas quando eles voltaram, na semana seguinte, ela resistiu.

- Não preciso consultar o médico, estou bem. - Ela olhou para ele, obstinada, mas dessa vez ele não cedeu. Havia coisas que eram importantes demais para ele, e ela era a mais importante de todas. Ele não queria perdê-la. Jamais.

- Você não está bem coisa nenhuma. Está péssima. Nem quis sair comigo em Nova York. - Ela pedira o serviço no quarto e tinha dormido direto, e estava fazendo quase a mesma coisa agora, todas as noites. E ele tinha a impressão de que ela também passava o dia dormindo. - Se você não vai marcar hora, eu marco por você, Anne. - E acabou fazendo isso mesmo. Marcou hora, fingiu que a pegava para irem almoçar e a levou para o médico em Beverly Hills. Ela ficou furiosa.

- Você mentiu para mim! - Era uma das poucas vezes em que ela gritara com ele, mas ele a levou para dentro como a uma menina e ela ficou olhando para os dois, furiosa.

Mas o médico não encontrou nada no organismo dela. As glândulas pareciam estar bem, o peito estava limpo, os glóbulos sangüíneos estavam com boa contagem e então, sem dizer nada a eles, o médico teve uma idéia. Fez o teste com o sangue que tirara do braço dela, e naquela noite ligou para Bill com o resultado. Bill ficou pasmo com o que ouviu. Pasmo, e empolgado e com medo. Ela estava grávida de novo. Dessa vez, ele nem pensara nisso. E estava com medo de fazê-la passar por mais um desastre.

- É só deixar que ela faça o que está fazendo agora. O corpo dela sabe de que precisa. Precisa de muito repouso, boa alimentação, o menos de tensão possível. Basta ela ficar quieta por uns meses e estará bem. - Bill agradeceu e foi para a outra sala para falar com ela. Ela estava assistindo à TV e pensando em ligar para Gail, e ele a animou a fazer isso, sorrindo.

- Acho que devia mesmo, amor.

- Como assim?

- Para dar a notícia.

- Que notícia? - Anne não entendeu.

Ele se debruçou sobre ela e a beijou ternamente nos lábios. - A notícia de que você está grávida de novo.

Ela arregalou os olhos. - Estou? Quem te disse?

- O médico, agora mesmo. acabou de ligar. Nem nos contou que ia fazer o teste, mas você está grávida, sim.

- Estou? - Ela pareceu ficar aturdida, e depois de repente o abraçou, contendo as lágrimas. - Ah, Bill...

Dessa vez, ela nem ousou falar as palavras. Nem contou a Gail. Não contou a ninguém, até passar o sinistro período de três meses, e dessa vez correu tudo bem. Em setembro, o médico não estava mais preocupado e o bebê devia nascer em fevereiro, talvez no Dia dos Namorados. O seu outro filho teria cinco anos e meio, a essa altura, se bem que nenhum dos dois mencionasse isso. Só falavam daquela criança e Bill sabia o quanto ela a desejava. Ele a tratava como se ela estivesse pisando em ovos. Eles não fizeram viagem alguma, quase não saíam, Anne ficava repousando o tempo todo, e Bill a mimou mais ainda do que antes.

Faye ligou para ela várias vezes, dizendo que esperava que tudo estivesse correndo bem, mas a voz de Anne era fria, ao telefone. Ela e a mãe já tinham passado por aquilo e ela se lembrava da pressão que a mãe fizera sobre ela antes. Agora tinha horror a falar com ela, porque se lembrava daquela outra vez. Detestava até falar com Lionel, porque se lembrava de ter morado com ele e John, esperando o nascimento do primeiro filho.

Gail telefonava para eles sempre que podia, de Nova York, e perguntava se Anne estava muito grande. Anne se ria e dizia que estava enorme e quando Val a viu um dia no Rodeo Drive, concordou, rindo. Já era o mês de novembro e eles já tinham terminado o filme havia um mês. Estava sendo montado dia e noite, pois Faye queria que fosse lançado nas festas de Natal. Àquela altura todos estavam trabalhando dobrado mas queriam que pudesse concorrer aos próximos Prêmios da Academia, de modo que tinha de ser lançado antes do fim do ano. E quando Anne encontrou Val, notou que George Waterston estava sentado em seu Cadillac, parado junto ao meio-fio, esperando por ela. Não pôde deixar de pensar se eles seriam ainda "apenas amigos", como dizia Val. Mas uma coisa era certa: Val estava mais linda do que antes, e estava escolhendo um vestido do Giorgio's para uma festa naquela noite. Anne fora lá escolher umas coisas para usar nas Festas. Bill queria que ela saísse um pouco e ela não cabia mais nas roupas, nem nas de gravidez.

- Como é que você está se sentindo? - perguntou Val, e parecia estar sinceramente interessada. Todos sabiam o que o bebê significava para ela, e por quê. E Anne então riu. Estava gostando da gravidez, apesar do desconforto.

- Estou me sentindo gorda.

- Está com uma aparência ótima.

- Obrigada. Como vão as coisas com você? - Elas raramente se telefonavam. Era difícil acreditar que tivessem sido criadas na mesma casa. Mas na verdade, não era assim. Val só recentemente é que acabara de se criar e Anne se criara em casa de Bill.

- Acabei de receber uma proposta para outro filme. - Não com a mãe de novo, é?

Val sacudiu a cabeça depressa. Trabalhar com a mãe fora uma experiência da qual ela nunca se esqueceria e seria sempre grata por isso, mas não queria repetir a dose tão cedo. A maior parte dos atores que trabalhavam para ela dizia isso, até mesmo George.

- Uma vez de três em três anos é bom, no caso dela - dissera ele, e Val achava que era verdade.

- Não, é com outra pessoa. - Disse o nome do diretor e os protagonistas e Anne ficou impressionada. - Ainda não resolvi. Há uns outros que eu poderia fazer. - Afinal a carreira dela se lançara, "de um dia para outro", após cinco anos de gritos. Anne ficou contente por ela. E aquela noite contou a Bill.

- Um dia ela vai ser o maior sucesso de Hollywood. Tal e qual a sua mãe já foi. - Era fácil acreditar nisso agora, ela tinha talento e beleza e aquele cheiro de sucesso. Via-se que ela era alguém quando ela saltava de um carro, e não como nos velhos tempos, de vestido preto justo e saltos altos, com lentejoulas, às dez da manhã. Ela progredira um bocado e Anne pensou que George era responsável pela felicidade que ela via nos olhos de Val.

- Eu acho que eles são mais que amigos, você não? - Ela estava tentando se acomodar numa cadeira, mas era impossível, até que ele colocou umas almofadas atrás e ela agradeceu-lhe, com um beijo.

- Eu também acho. Mas acho que eles têm razão em serem discretos. Ele é um grande astro, e eles não querem a dor de cabeça de toda a publicidade.

Na verdade, eles esconderam aquilo de todos, até mesmo de Dan, o mais que puderam. Mas acabaram tendo de contar a ele, e agora Val estava morando com eles, sossegadamente, nas colinas de Hollywood, numa casa linda inteiramente murada, rodeada de muitas árvores. Nem mesmo os paparazzi os tinham descoberto, e aquilo já durava três meses.

Val nunca se sentira tão feliz na vida. Quando voltaram de Nova York e foram trabalhar no filme, algo de diferente parecia ter acontecido a eles. Estavam tão ligados que compreendiam cada respiração, cada pausa, parecia uma magia no set, todo dia, e Faye também o sentiu e ficou empolgada com aquilo. Ela não se meteu com eles, apenas deixou que as coisas seguissem seu rumo, e em agosto, quando Dan foi embora com a mãe, Val tranqüilamente se mudou para a casa de George. Explicaram tudo a Danny quando ele voltou, e George estava até falando em se casarem, se bem que nenhum dos dois tivesse pressa. Queriam ter tempo, para terem a certeza. E Val estava certa de que aquilo ia se resolver um dia, breve, mas eles já estavam preparados. Aliás, estavam esperando por aquilo. - Você acha que agüentava morar aqui para sempre, com um velho e um garoto? - Ele estava beijando-lhe o pescoço na tarde em que ela encontrara Anne, e ela lhe contara como estava imensa. Me parece uma boa vida... claro - disse ela, com uma cara melancólica que enganou até a ele -, não é tão bonito quanto o lugar em que eu morava antes de vir para cá.

George deu uma gargalhada e despenteou-lhe os cabelos ruivos. - Quer dizer, aquele bordel cheio de piranhas? É de admirar que você não tivesse sido presa, só por morar ali!

- George, dizer uma coisa dessas!

- É verdade! - Ela afinal contara aos pais que estava vivendo com ele, e ficou aliviada ao ver que eles ficaram contentes. Já estava bem adulta agora mas essas coisas ainda eram importantes para ela, especialmente agora, depois de ter trabalhando com Faye. Ela nutria um novo respeito pela mãe, depois de ver o que viu, e pela primeira vez na vida achou que a mãe a respeitava. Faye até a ajudara a arranjar um novo agente e elas tiveram uma conversa demorada, um dia depois de concluído o filme.

- Val, você é muito, muito boa atriz. Sabe, o seu pai sempre achou isso. Ele me disse isso. Tenho de confessar, eu tinha minhas dúvidas, mas você é das melhores e vai progredir muito, muito. - Aquelas palavras foram tudo para ela, e ela mal podia acreditar que as estivesse ouvindo de Faye Thayer.

- Eu antes te detestava, sabe? - Era uma coisa terrível, dizer aquilo, e ela estava com lágrimas nos olhos. - Eu tinha tanta inveja de você e daqueles malditos Oscars na salinha...

- Eles não significam nada, Val. - A voz de Faye estava suave, mas Valerie sacudiu a cabeça. - Vocês cinco, pessoas maravilhosas, são os meus Oscars.

- Eu antes dizia que eles não importavam, mas importam, sim. Mostram como você trabalhou com afinco, e como você é competente. E você é maravilhosa, mãe... é mesmo a maior. - As duas tinham chorado, abraçadas, e Val ainda estava comovida com essa recordação. Afinal fizera as pazes com a mãe. Levara muito tempo, mas fizera. E esperava que Anne também fizesse, um dia. Os fantasmas nunca largariam os olhos da irmã até que isso acontecesse e foi o que ela disse a George. Ela lhe contava tudo. Ele se tornara mais que apenas seu amante, era o seu melhor amigo.

- Sabe, eu tenho certa inveja do seu cunhado. - Ele disse isso quando eles estavam sentados diante da lareira, naquela noite, e Val olhou para ele espantada.

- Do Bill? Por quê? Você tem tudo o que ele tem, e mais ainda. Depois - disse ela, rindo -, você me tem, o que mais você pode desejar?

- Claro. - Ele sorriu para ela, mas em seus olhos havia uma expressão de anseio que ela nunca vira. Ele era um homem sossegado, com valores de que ela gostava, idéias fáceis de se respeitar, e um mo do de vida equilibrado, e tudo isso era bem raro num ídolo de Hollywood, coisa que ele era. - Tenho inveja do filho dele.

- O bebê? - Ela ficou sobressaltada com as palavras dele. Filhos eram uma coisa em que ela raramente pensava. Pensava em tê-los um dia, mas muito, muito mais tarde.

Sua carreira era importante pa ra ela, ela trabalhara muito por isso, e estava começando a empolgante escalada para o alto. Não estava nada disposta a largá-la ainda, ao contrário de Faye, quase com a idade dela. Faye tinha 25 anos quando se aposentou, Val estava com quase 23. - Você queria mesmo ter um bebê agora, George? - Também ele estava no auge da carreira dele. Teria sido difícil para ambos, se bem que essa idéia lhe agradasse, mais tarde.

- Talvez não já, mas um dia, breve.

- Breve, quando? - Ela se pôs de bruços, apoiou o rosto nas mãos e olhou para ele, preocupada.

- Que tal na semana que vem? - Ele estava implicando com ela, e se riu da preocupação nos olhos dela - Não sei, daqui a um ou dois anos. Mas é uma coisa que eu queria repetir, um dia. - Dan era um bom menino, e Val também gostava dele.

- Eu não me importaria.

- Bom. - Ele pareceu ficar satisfeito e pouco depois, diante do fogo, ele tirou as roupas dela, devagar, e disse alguma coisa sobre praticar, enquanto a possuía.

 

- Como está se sentindo, amor? - Bill olhou para ela, solicito, e ela se riu.

- Como é que você se sentiria, se estivesse igual a mim? Uma merda. Não consigo me mexer, nem respirar. Se me deito, o bebê me estrangula, se me sento, fico com cãibras.

Já era o dia 9 de fevereiro, e faltavam cinco dias para a data marcada e, a despeito das suas queixas, ela parecia estar gostando da coisa. Queria tanto aquele filho que nem se importava de estar tão grande ou desconfortável. Só queria carregá-lo ao colo e ver o rostinho dele. Ainda achava que ia ser um menino, mas Bill em segredo esperava que fosse menina. Dizia que estava mais acostumado com elas.

- Quer sair para comer alguma coisa? - Ela riu e sacudiu a cabeça. Nada lhe cabia mais, nem mesmo os sapatos, e ela só tinha três vestidos feios que pudesse usar.

Ela deixara de comprar vestidos no Giorgio's porque nunca queria sair, e agora também não estava com vontade. Sentia-se muito desconfortável para ir a qualquer lugar.

Só o que queria era andar pela casa descalça, com as roupas mais largas que tinha, de preferência uma camisola. E naquela noite, depois de tomarem uma sopa e um suflezinho, que era só o que cabia nela, foram dar uma volta por perto de casa, mas mesmo isso foi demais para ela. Ela bufou e arfou e teve de se sentar numa pedra junto à casa de alguém. Ele chegou a pensar que teria de ir pegar o carro para ir buscá-la, mas ela insistiu em dizer que conseguiria chegar em casa. Estava tão vulnerável e imensa que ele sentiu uma pena tremenda dela, mas ela pareceu aceitar aquilo como coisa normal, e no dia seguinte até se levantou e preparou o café da manhã para ele, antes de ele sair para o trabalho. Parecia estar cheia de energia e falou alguma coisa de limpar o quarto do bebê de novo, coisa que ele achou desnecessário, mas ela parecia obstinada nisso e, quando ele saiu, ela estava passando o aspirador pelo chão, o que o deixou meio preocupado, tanto que resolveu voltar em casa antes do almoço. Quando chegou, a encontrou deitada à cama, sossegada, com o cronômetro dele na mão, anotando as contrações, enquanto fazia a respiração de Lamaze que aprendera dessa vez. Olhou para ele meio aflita e ele foi logo para o lado dela. - Está na hora?

Ela olhou para ele, tranqüila.

- Eu queria ter certeza, antes de chamar você do escritório, ou do almoço no Polo Lounge.

Ele pareceu nervoso e pegou o cronômetro da mão dela. - Não devia ter passado o aspirador no quarto do bebê. Mas ela riu, apenas.

- Vou ter de ter esse bebê em alguma hora, sabia? - E a data era dali a quatro dias. Ele desmarcou o almoço que tinha combinado, chamou o médico e depois disse a sua secretária que não voltaria ao escritório naquele dia. Mas, por mais que tentasse, não conseguiu fazer com que ela fosse logo para a casa de saúde. Até o médico disse que podiam esperar um pouco, mas Bill tinha medo de esperarem demais em casa.

Ela se lembrava bem demais de sua experiência anterior, quando o bebê levara dias para nascer. Não havia motivo para pressa, agora, e a respiração a estava ajudando a controlar a dor. Bill lhe preparou uma sopa e ficou sentado no quarto com ela, com calma, e de vez em quando ela se levantava e andava um pouco. Então, às quatro horas, ela olhou para ele, meio aflita. Não conseguia mais ficar de pé, nem falar entre as dores. Sabia que estava na hora de ir e ele foi depressa para o quarto de vestir dela para pegar sua mala, e voltou logo. Quando ela trocou de roupa, as águas romperam pelo chão de mármore branco do banheiro e, de repente, as dores começaram a vir fortes e depressa e a respiração quase não ajudava. Bill parecia que ia entrar em pânico e ela procurou tranqüilizá-lo, enquanto ele a ajudava a vestir-se, ao mesmo tempo. Mas agora as dores estavam fortes e rápidas demais.

- Eu te disse que não devíamos esperar tanto tempo. - Ele estava apavorado. E se ela tivesse o bebê ali mesmo? E se o bebê morresse.

- Está tudo bem. - Ela tentou sorrir para ele e ele lhe beijou os cabelos. Afinal, ele conseguiu lhe pôr o vestido e ele a carregou e a levou descalça mesmo para o carro. - Preciso calçar sapatos. - Ela quase riu, mas as dores estavam fortes demais. Ela o agarrou e ele correu para pegar as sandálias que ela agora usava sempre, e foi para o Hospital Cedars Sinai com o pé na tábua, mal parando nos sinais. O Rolls nunca fora usado como ambulância, mas ele agora estava desesperado. A cada pontada de dor, ela soltava gritinhos agudos e disse que estava sentindo a cabeça. Ele deixou as portas do carro abertas quando a levou para dentro, às pressas, e uma enfermeira saiu para trancar o carro para ele, enquanto Anne tentava respirar, ofegante. Ele procurava ajudar e eles pediram que o médico dela descesse. Não havia tempo de levá-la para a maternidade, e Anne agora estava quase chorando, quando a puseram na maca do pronto-socorro.

- Estou sentindo a cabeça ... ah, Deus... Bill... - A pressão era insuportável, e parecia que uma bola de boliche a estivesse dilacerando, enquanto ela olhava para ele, em desespero. Ele fazia uma careta cada vez que havia uma contração. Ele não tinha visto o nascimento de sua primeira filha, não se usava isso naquele tempo e ele não sabia se estava preparado para isso agora. Tinha horror de ver Anne numa tal agonia, mas a enfermeira disse que era tarde para lhe dar alguma coisa. Ela lhe contara como tinha sido terrível para ela, da outra vez, e ele não queria que fosse assim de novo, mas ela estava meio sentada e a enfermeira disse a ele para segurar os ombros dela, enquanto ela gemia terrivelmente.

- Agora pode fazer força, Anne - disse a enfermeira, como se elas fossem amigas havia anos. - Vá... faça toda a força que puder. - O rosto de Anne ficou vermelho.

Ele sentiu que ela fazia toda a força que podia e ela estava chorando quando parou.

- Dói demais... não posso... não posso... ah, Deus... Bill. As dores!... E de repente ela estava fazendo força de novo e lá estava o médico, de touca, luvas e bata.

Ele pegou logo um instrumento e ajudou Anne a dilatar para sair a cabeça, que surgiu triunfalmente no impulso seguinte. O bebê nasceu no pronto-socorro, os pais assistindo. Tinha um ar espantado e Bill achou que ele a princípio parecia azul, mas dali a segundos estava bem rosado e gritou, zangado, enquanto Anne chorava e ria ao mesmo tempo, e Bill lhe beijava o rosto e as mãos e lhe dizia como ela era maravilhosa. - Ele é tão lindo!... Ele é tão lindo!... - Era só o que ela conseguia dizer, vezes e mais vezes, olhando do bebê para Bill. Um momento depois, ela estava carregando o filho ao colo, embrulhado numa manta do pronto-socorro, grande demais para ele. Ela não tinha visto o primeiro filho que tivera e não se fartava de olhar para aquele. Insistiu em dizer que ele se parecia com Bill e pouco depois, Bill andando orgulhoso ao lado dela, eles a levaram para cima, para um quarto particular na maternidade.

- E da próxima vez, queira vir logo, para eu não ter de fazer o parto na porta da frente. - O médico se fez de severo e todos riram. Bill estava imensamente aliviado.

Tudo parecera muito doloroso e ele estivera muito assustado por ela. Agora, lá estava ela, sorrindo, com o bebê ao colo. Nem queria entregá-lo para o levarem ao berçário para um banho, mas a enfermeira a convenceu e pouco depois foi feita a higiene nela também. Então, ela e Bill ligaram para Gail, que chorou ao ouvir a notícia.

Anne queria que ela fosse a madrinha, só para confundir um pouco mais as coisas. Ele quis que ela dormisse um pouco, mas ela estava eufórica demais. O bebê que tanto desejara afinal nascera e ela sentiu no coração um calor pelo qual ansiara durante anos. Mal podia esperar que o trouxessem de volta do berçário e chamou a enfermeira, que o levou, com um sorriso, muito rosado e limpinho, e o colocou ao seio de Anne, mostrando-lhe o que fazer. Bill ficava olhando, com os olhos cheios de lágrimas.

Ele nunca tinha visto nada tão lindo e sabia que se lembraria daquilo o resto da vida.

Naquela noite, Anne ligou para Valerie, Jason, Van, Lionel, e, por fim, aos pais, embora hesitasse em fazê-lo, e todos ficaram empolgados por ela. Iam lhe dar o nome de Maximilian, e chamá-lo de Max Stein. Faye ficou muito feliz por Anne. Sabia bem demais o quanto ela desejava aquele filho. E quando foi ver Anne no dia seguinte, chegou hesitante, com um imenso urso de pelúcia para Max e uma liseuse para Anne. Parecia com uma que ela mesma usara na casa de saúde quando Lionel nascera.

- Você está linda, amor.

- Obrigada, mãe. - Mas havia sempre um abismo entre elas, que nada podia transpor. Era uma falha irremediável e Bill também sentiu aquilo, quando voltou de casa, aonde fora para fazer com que tudo estivesse como Anne queria. Ela ia para casa no dia seguinte. E então levaram Max ao quarto, todos soltaram muitas exclamações e Faye concordou em que ele se parecia com Bill. Val e George também compareceram e as enfermeiras só faltaram desmaiar. Mas dessa vez não queriam só o autógrafo de George, também queriam o de Val. O filme fora um grande sucesso e havia cartazes de Val por toda a cidade. Agora todos a conheciam. E Faye sorriu, sentada no quarto de hospital, vendo as duas conversando. Val estava rindo de alguma coisa que Anne tinha dito e esta estava contando à irmã como era ter um filho, enquanto Bill e George contemplavam o pequeno Max, maravilhados.

No dia seguinte, Bill os levou para casa, orgulhoso, e Max foi instalado em seu quartinho. Ele parecia feliz e satisfeito, mamava muito e Bill tirou uns dias de folga só para poder estar com eles.

- Sabe - disse Anne, feliz, olhando para Bill poucos dias depois de voltarem para casa -, eu faria isso de novo. - Ele olhou para ela e gemeu. Não tinha certeza se ele agüentaria. Ainda estava impressionado com a dor terrível que ela suportara, mesmo por pouco tempo. Não lhe parecera tão rápido assim e não era uma coisa que ele quisesse que ela aturasse de novo.

- Você está falando sério? - Ele parecia estar chocado.

- Estou. - Ela olhou para o bebê, bem aninhado em seu seio, e sorriu para Bill. - Faria mesmo, você sabe. - Ele se deu conta de que era o preço a pagar por ter uma esposa de vinte anos, e se debruçou e beijou primeiro Anne e depois Max.

- Você é quem manda.

Ela sorriu e seus olhos agora estavam diferentes. Não era o que ela pensara. O sofrimento do passado não se extinguira por completo, e ela sabia que nunca se extinguiria.

Mas agora havia outra pessoa, outra pessoa que ela podia amar. Ela nunca saberia onde estava o outro bebê, como é que ele era, quem ele seria quando crescesse, a não ser que ele a procurasse. Ele saíra da vida dela, irremediavelmente perdido, mas ela agora podia seguir em frente. O sofrimento, afinal, estava mais apagado, não era mais agudo. Ela agora tinha o Max... e Bill... e mesmo que nunca tivessem outro filho, pensou ela... ela estava feliz por tê-los. Eram o suficiente.

 

Na noite dos Prêmios da Academia, Anne virou-se para Bill com uma expressão preocupada, perguntando se ela estava gorda. Ela estava com um vestido azul-claro e dourado, com safiras e brilhantes nas mãos, orelhas e no pescoço, e ele achou que ela nunca estivera mais bela. Não estava tão magra quanto antes e perdera aquele ar surrado. Parecia em paz, contente e tudo nela reluzia.

- Você está mais bonita do que qualquer artista de cinema. - Ele a ajudou a vestir um agasalho de vison branco e eles foram depressa para o carro. Não se queriam atrasar. Tinham prometido passar em casa de Faye e Ward para levá-los. Valerie ia separadamente, com George, e Lionel dissera que se encontraria lá com eles. E, uma vez reunidos no Music Center, onde seriam distribuídos os prêmios, eles formavam positivamente um grupo de destaque, os homens de smoking, as mulheres de vestidos coloridos, todas vagamente parecidas, não nas roupas, mas no encanto. Valerie estava com um deslumbrante vestido verde-esmeralda, os cabelos para cima, e esmeraldas, que Anne lhe emprestara, nas orelhas. Faye estava esplendorosa num vestido reluzente de Norell. Formavam um grupo e tanto. E em Nova York, Vanessa estava enroscada, de jeans, assistindo pela televisão com Jason, desejando estar lá.

- Você nem imagina como é empolgante, Jase. - Os olhos dela se iluminaram, ao ver as pessoas que ela conhecia, e vezes e mais vezes quando a câmara focalizava o rosto de Val. E naquele ano ele também sentiu aquilo. Antes, nunca dera importância aos Prêmios da Academia, e antes de Vanessa entrar em sua vida, nem se dera ao trabalho de assistir. Mas agora, estavam dispostos a passar a noite sentados ali Assistiram às premiações maçantes, efeitos especiais, prêmios por humanidade, efeitos de som, roteiros, canções.

Clint Eastwood era o apresentador nessa parte, pois Charlton Heston se atrasara devido a um pneu furado. Naquele ano, o prêmio de melhor diretor coube a um amigo de Faye, e, embora George fosse indicado, não ganhou o prêmio, e nem o filme deles. Mas aí Faye foi apresentada para entregar o prêmio seguinte.

- Melhor Atriz - disse ela, especificando-o, dizendo os nomes que tinham sido indicados pela Academia. E enquanto Van e Jason assistiam, viam cada rosto tenso, e afinal um composto na tela de todos eles: Val sentada imóvel, agarrando a mão de George, enquanto ambos pareciam prender a respiração, e Faye olhava para ela

- A vencedora é... Valerie Thayer, com Miracle.

Os gritos na água-furtada de Soho poderiam ser ouvidos até em L.A., enquanto Vanessa dançava, pasma com a notícia. Ela gritou e chorou e Jason batia na cama, jogava todas as pipocas da tigela ao chão. Em Hollywood, Valerie também estava gritando. Ela correu para o palco, olhando para George por cima do ombro, e mil câmaras a fotografaram enquanto ela olhava para ele, lhe soprava um beijo e depois ia ter com a mãe no palco. O Oscar lhe foi entregue, e as lágrimas escorriam pela face de Faye, que não se envergonhava delas. Ela se aproximou do microfone por um instante e disse:

- Vocês nunca saberão como essa garota merece esse prêmio. Ela teve a diretora mais malvada da cidade. - E então, como todos rissem, ela recuou e abraçou Val, e Valerie chorou muito e agradeceu a todos por tudo quanto tinham feito por ela, e então, chorando mais ainda, tentou agradecer a Faye.

- Há muito tempo, ela me deu a vida e agora ela me deu ainda... - ela mal podia continuar -, ...mais que isso. Ela me ensinou a trabalhar com afinco... a fazer o máximo... ela me deu a maior oportunidade da minha vida. Obrigada, mãe. - Toda a platéia sorriu por entre as lágrimas enquanto ela levantava o Oscar cobiçado - ...e ao papai por acreditar em mim... e Lionel e Vanessa e Anne por me suportarem todos esses anos... - ela estava engasgada mas obrigou-se a continuar - ...e Greg... nós te amamos também... - Então, em triunfo, ela saiu do palco e voou para os braços de George. Era o último prêmio e todos saíram para comemorar, depois disso.

Ela ligou para Vanessa e Jason assim que pôde e todos falaram com eles, embora ninguém dissesse coisa com coisa. Todos a estavam abraçando, gritando, beijando George, apertando Val, abraçando Ward e Faye. Até mesmo Anne estava fora de si de alegria. Depois, no Chasen's, Lionel levou seu novo amigo. Era uma pessoa com quem George já contracenara há alguns anos atrás e de quem ele gostara e se encaixou ao grupo com facilidade. Era mais ou menos da idade de George e ele e Lionel pareciam se conhecer bem. Faye se deu conta de que era aquele homem o responsável pela expressão nos olhos de Lionel, naquele momento. Desde a morte de John, era a primeira vez que ela via aquela expressão, e estava contente por ele. E estava contente por todos eles... Val, claro... Anne com o seu bebê... Li... Van... estavam todos bem. E naquela noite ela deixou Ward espantado com uma sugestão que ele não ouvia dela, havia alguns anos.

- Que tal nos aposentarmos, um dia desses, garoto?

- Isso, de novo? - Ele riu. - Acho que já sei. Cada vez que você não ganha um Prêmio da Academia, você quer se aposentar. É isso, meu amor? - Ela achou graça dessa idéia e sacudiu a cabeça. Estava tão feliz por Val que não tinha inveja de nada. A filha merecera tudo.

- Quem me dera que fosse assim tão simples. - Ela se sentou à cama e tirou o colar de pérolas. Era o primeiro presente que Ward lhe dera na vida e as únicas jóias que ela não vendera quando perde ram a fortuna, anos atrás. E lhe era muito caro, assim como ele, como fora a sua vida juntos. Mas ela agora estava pronta para uma mudança. Já sabia disso, havia muito tempo. - É só que eu acho que fiz tudo que queria fazer. Profissionalmente, em todo caso.

- Isso é terrível. - Ele pareceu ficar preocupado. - Como você pode dizer uma coisa dessas, na sua idade?

Ela se riu e ainda era tão danada de bonita que ele por vezes ficava pasmo.

- Acontece que estou com 52 anos, já fiz 56 filmes, tive cinco filhos e um neto. - Ela se recusava a contar o outro, ele se fora para longe de todos eles, e isso havia mais de cinco anos. - Tenho um ma rido que adoro, fiz muitos amigos. Resumindo: é isso aí, pessoal. Acho que agora quero ir brincar. Todos os nossos filhos estão bem, parecem felizes, fizemos o que pudemos. É aí que se escreve "The End" na tela, meu bem. - Ela sorriu para ele e, pela primeira vez na vida ele achou que ela estava falando sério.

- O que você faria se se aposentasse?

- Não sei... passaria um ano no Sul da França, talvez. Ia me divertir em algum lugar. Não temos nada programado. - Ela não gostara de nada do que tinha visto, ultimamente, e talvez fosse isso que ela estivesse esperando, o Prêmio da Academia, para Val, para ela poder se retirar. Havia certa doçura em terminar assim, com o filme que começara a carreira de Val em grande estilo, como um legado que ela podia deixar para a filha, uma dádiva especial.

- Você poderia escrever as minhas memórias - disse Ward, implicando.

- Faça isso você. Não quero nem escrever as minhas...

- Pois devia. - Eles certamente tinham tido uma vida cheia. Ele olhou para ela, com calma. Fora uma noite comprida e empolgante e ela podia não estar falando sério, se bem que ele achasse que sim. - Por que não pensamos um pouco nisso, para ver se você ainda tem a mesma opinião daqui a um ou dois meses. Faço o que quiser. - Ele estava com quase 56 anos e não se importaria de se divertir no Sul da França. Aliás, aquela idéia lhe parecia bem boa, era quase como nos velhos tempos, e eles podiam se dar a esse luxo, de novo, se bem que não gastassem mais dinheiro como antes. Ninguém fazia mais isso. - Vamos pensar a respeito.

E quando conversaram de novo, resolveram partir em junho. Resolveram passar um ano primeiro, para ver que tal era. Alugaram uma casa no Sul da França por quatro meses, e depois disso alugaram um apartamento em Paris por seis. E Faye fez questão de estar com cada um dos filhos antes de partirem. Suas suspeitas sobre Lionel estavam certas, aquele novo homem em sua vida era uma pessoa de quem ele gostava muito. Parecia ser um bom parceiro para ele e eles viviam juntos, tranqüilamente, em Beverly Hills. Era o homem que Faye conhecera na noite dos Prêmios da Academia e Faye gostou muito dele.

Valerie estava muito ocupada preparando-se para um novo papel e ela e George estavam falando em se casar naquele ano, depois que George acabasse o seu novo filme.

E Faye a fez prometer que iriam à França na lua-de-mel. Val dizia que não iam fazer muita onda e iam fugir para se casar discretamente, mas iriam à França para a lua-de-mel depois, e provavelmente levariam Danny também. A visita a Anne foi mais difícil, Faye sempre achava tão difícil conversar com ela, mas foi vê-la uma tarde e a encontrou feliz, tomando conta do pequenino Max. Faye achou que ela não estava muito bem e se perguntou por que e Anne confessou que estava grávida de novo, o que espantou Faye. - Não é muito cedo?

Anne sorriu para ela. Como se esqueciam depressa.

- Li e Greg só tinham dez meses de diferença. - Aí, de repente, Faye sorriu. Era verdade. A gente quer que eles sejam diferentes, mais felizes, melhores, mais seguros e sempre sábios, e em vez disso, eles faziam a metade das coisas que a gente fazia e de que se esquecia... A arte de Val... A paixão de Anne por uma família grande... os outros tinham tomado caminhos diferentes, mas também levaram pedaços dos pais consigo. Greg teria sido igualzinho a Ward, quando jovem, se tivesse vivido... e ali estava Anne, repetindo a história, também.

- Você tem razão. - Os olhos das duas se encontraram, de um modo diferente. Era como se Anne agora a estivesse enfrentando, como se tivesse de ser feito, antes de Faye partir. Talvez nunca mais tivessem a mesma oportunidade. Nunca se sabe. - Anne... eu... - ela não sabia por onde começar. Havia vinte anos a desvendar... ou talvez cinco... toda uma vida em que nunca alcançara uma filha que ela amava e ela não queria perdê-la agora. - Cometi muitos erros com você. Não creio que isso seja segredo para nenhuma de nós, não é?

Anne olhou para ela com franqueza, o filho ao colo, e agora não havia raiva em seus olhos.

- Acho que nunca tornei as coisas fáceis para você... Nunca entendi você.

- Nem eu a você. O meu maior erro foi que eu nunca tinha tempo. Se ao menos você tivesse nascido um ou dois anos antes... - Mas quem é que poderia mudar tudo isso?

Já fazia parte da história. Além de tudo quanto lhe acontecera... o Haight... a gravidez... o filho a que ela renunciara... Seus olhos se encontraram de novo e Faye resolveu dizer o que estava pensando. Estendeu a mão a Anne e segurou a mão que não estava segurando Max. - Sinto muito pelo outro bebê, Anne... eu estava errada... na ocasião, pensei mesmo que estava fazendo o que era certo... - Os olhos das duas mulheres se encheram de lágrimas, Max ali ao colo de Anne. - Eu estava errada.

Anne sacudiu a cabeça e as lágrimas saltaram-lhe às faces.

- Não creio que estivesse... acho que eu não tinha mesmo opção, então... eu só tinha catorze anos...

- Mas você nunca se refez disso. - Faye agora sabia disso.

- Eu aceitei. No momento, era o certo. Às vezes, isso é o melhor que se pode fazer. - E dizendo isso, ela puxou a mãe e a abraçou, junto com Max. Era como dizer "Eu te perdôo pelo que você fez" mas, mais importante, ela se perdoara a si mesma. E agora podia continuar. Acompanhou a mãe até o carro, depois, tornou a estender a mão. - Vou sentir falta de você, mãe.

- E eu também vou ter saudades de você. - Ela teria saudades de todos eles, mas esperava que todos fossem à França, um dia. Afinal, um dia nenhum deles fizera parte de sua vida. E agora ela teria de deixar que se fossem. No final, eles a tinham aceito e ela os aceitava. A todos.

Na ida à França, ela e Ward pararam em Nova York para verem Jason e Van, felizes em sua água-furtada, ele escrevendo a sua peça, ela trabalhando numa editora e escrevendo o seu livro de noite. Não se falava em casamento ali, mas também não se falava em qualquer dos dois ir a parte alguma. Quando Faye e Ward estavam no avião a caminho da França, ela sorriu para ele.

- Eles são um barato, não são?

- E você também. - Como sempre, ele parecia se orgulhar dela. Havia trinta anos que se orgulhava dela... desde o dia em que se conheceram em Guadalcanal... se ele então soubesse o que sabia agora... que vida cheia ele vivera com ela. Ele disse isso e ela lhe lembrou que ainda não tinha acabado e ele a beijou, tomando o champanha que a comissária de bordo lhes dera, enquanto uma mulher olhava para ela e cochichava para o homem que estava com ela... "Ela é igualzinha a uma grande estrela de cinema que eu adorava há trinta anos." o homem sorriu para ela. Para ela, todo mundo se parecia com alguém. E Ward e Faye continuaram a conversar calmamente, planejando o ano na França, que aos poucos se transformou em dez anos.

Eles nunca entenderam como é que o tempo passou tão depressa. Os filhos apareciam e se iam. Valerie casou-se com George e por fim tiveram uma filha, uma menina chamada Faye, pela avó. Anne teve mais quatro e todos implicavam com ela dizendo que devia ter sido preguiçosa como a mãe e ter tido gêmeos. Vanessa publicou três livros e Jason continuava trabalhando em suas peças, ele passara a Off Broadway, depois de Off Off Broadway, e Faye ficou impressionada ao ver como suas produções eram boas, quando viram uma delas em Nova York. Valerie ganhara de novo um Prêmio da Academia e George, afinal, também ganhara um.

Todos estavam se dando bem, e depois de onze anos no exterior, aos 64 anos, Faye morreu dormindo, tranqüilamente. Eles estavam em Cap Ferrat para passar o outono, numa linda vila que tinham comprado lá, que um dia pretendiam deixar para os filhos. Seria um lugar perfeito aonde fossem, todos eles.

E então ela voltou para casa, para eles, Ward parecendo aturdido. Ele estava com 67 anos e ela fora toda a sua vida desde os 25 anos... eram 42 anos... Ele a levou para casa, para Hollywood, o lugar que ela amara, que ela conquistara tantas vezes, como atriz, diretora, mulher... mulher dele... ele se lembrou daqueles anos de desespero em que perdera tudo, em que ela os juntara a todos, tão valentemente, e começara uma nova carreira, rebocando a todos, quando ela o ajudara a se pôr de pé de novo... e se lembrou dos anos antes... e dos anos bem depois, enquanto faziam filmes e mais filmes para a MGM... e a grande chance que ela dera a Val... a coisa de que ele não podia mais se lembrar eram os anos sem ela. Isso não era possível. Não podia ser verdade... não era verdade... e no entanto era verdade agora.

Ele agora estava só, ela se fora. Anne e Bill foram recebê-lo no aeroporto e felizmente tinham deixado as crianças em casa. Eles viram o caixão ser baixado do corpo do avião, enquanto o vento despenteava os cabelos de Anne, e ao lusco-fusco ela se parecia tanto com Faye. Ela estava com 31 anos, e a mãe se fora... Ela levantou os olhos para Ward e segurou a mão dele, calada. Ela e Bill tinham conversado a respeito na véspera e podiam pelo menos lhe oferecer alguma coisa. Tinham construído uma casa de hóspedes atrás de sua casa em Beverly Hills e seria bom se ele fosse morar lá. Ward e Faye, havia muito, já tinham vendido a casa velha de Beverly Hills. Não moravam lá havia anos. E Anne olhou para ele, enquanto Bill olhava para eles.

- Venha, papai, vamos para casa.

Pela primeira vez, de repente ele parecia velho. Não podia acreditar que ela tivesse partido. E Anne queria que ele repousasse. Havia muita coisa a fazer e o enterro seria dali a dois dias, na igreja onde eles se tinham casado, e depois em Forest Lawn. E, naturalmente, todos estariam presentes... todo mundo que já fora alguém... todo mundo menos Faye Thayer.. mas sua família estaria lá. Todos. E Ward... era difícil imaginar um mundo sem ela. Ele não o imaginava de todo, e as lágrimas lhe escorriam pela face, quando eles seguiram pela noite, Faye no carro fúnebre atrás... ele a imaginava por toda parte, era só fechar os olhos... ela ainda estava ali com ele, como estaria com todos eles... sempre, para toda a eternidade. Os seus filmes perdurariam... as recordações... o amor e acima de tudo a família, cada um tocado por ela, parte dela, assim como ela fora parte deles.

 

                                                                                            Danielle Stell

 

 

                      

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