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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Casa Forte / Danielle Stel
Casa Forte / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Casa Forte

 

          

 

Quem dormiria aqui antes de eu chegar?

Quem viveria neste quarto?

Como é que ele seria?

Seria o mesmo? Haveria uma rapariga ou duas, um rapaz pequeno, uma mansão cheia de brinquedos, de alegrias, de sonhos...

Ou não passaria de um lugar solitário, com camas vazias e salas silenciosas?

Teria sido sempre triste e a ansiar por ser amada?

Teria havido nela uma rapariga que dançava e cantava, uma campainha que anunciava as refeições, e será que estiveram todos aqui onde eu agora me encontro?

Será que sei o seu nome?  a fachada...? Foi sempre esta a doce mansão, onde havia risos, onde havia choros?

Teria havido nela um cão, um gato, um cavalo, um rato?

Quem esteve aqui?

Quem conhece esta mansão?

Conhecem-me?

Conheço-os a eles?

E cantaram um réquiem?

Sinto-os aqui, conheço as suas lágrimas, eu também os amei.

A mansão era nova, era deles, era diferente, mas, agora, volta a ser a mesma de sempre, tal como o foi e será e continuará a ser.

E agora ela pertence-me.

 

O sol descia lentamente sobre as colinas que emolduram o luxuriante e verde esplendor do vale de Napa. Jeremiah contemplava os raios alaranjados que cruzavam o céu e a bruma violácea que se lhes seguiu, mas o espírito encontrava-se a quilômetros dali. Era um homem alto, espadaúdo, desempenado, de braços fortes e sorriso dócil. Aos quarenta e três anos, a sua cabeleira aparecia já salpicada de muitos cabelos brancos, embora as mãos ainda mantivessem a mesma força de quando trabalhava nas minas enquanto jovem e de quando comprara a primeira delas no vale de Napa, em 1860. Lançara-se por sua conta e risco e fora o primeiro a descobrir mercúrio ali. Com os seus dezessete anos, era então apenas um miúdo, mas durante anos não pensou em mais nada para além da exploração mineira, tal como já acontecera anteriormente com o pai. Este viera do Este, em 1850, e conseguira transformar em realidade a esperança de encontrar ouro no Oeste. Seis meses depois de chegar, com os bolsos a abarrotar de ouro, mandou vir a mulher e o filho. Mas Jeremiah chegou sozinho. A mãe morrera na viagem. Nos dez anos seguintes, pai e filho trabalharam juntos na extração de ouro, depois de prata quando o ouro começou a escassear. Entretanto, quando tinha dezenove anos, o pai faleceu, deixando-lhe uma fortuna muito maior do que aquela com que Jeremiah alguma vez sonhara. Richard Thurston fora um homem extremamente poupado, e Jeremiah viu-se, de repente, mais rico do que qualquer outro homem no estado da Califórnia.

Porém, para ele, nada se alterou. Não deixou de trabalhar nas minas lado a lado com os mineiros, continuou a comprar jazidas e terras, edificando e ampliando o seu império. Os seus homens diziam que tinha um dom especial, que tudo em que tocava crescia e prosperava, como as minas de mercúrio que começara a explorar em Napa quando as de prata começaram a baixar de rendimento. Fez a transição com astúcia e rapidez, antes que os outros se dessem conta do que estava a fazer. Mas era a terra o que ele mais adorava, a rica terra castanha que costumava deixar correr por entre os dedos e depois apertava carinhosamente na mão. Gostava do seu calor, da sua textura, de tudo o que ela representava, enquanto contemplava as colinas, as árvores, o vale bem ordenado, o luxuriante tapete de erva verdejante que se estendia diante de si. Também comprara vinhedos, dos quais obtinha um vinho maravilhoso. Adorava tudo o que a terra produzia, as maçãs, as nozes, as uvas, o minério. Aquele vale significava para ele mais do que qualquer outra coisa ou qualquer outra pessoa. Passara trinta e cinco dos seus quarenta e três anos ali, sempre rodeado das mesmas colinas de suaves ondulações, e nesse lugar desejava ser enterrado quando morresse. Era ali que ele pertencia, o único sítio do mundo onde queria estar. Andou por muito lado, mas era ali, no vale de Napa, que se sentia bem, a contemplar o pôr do Sol e as suas colmas

Todavia, enquanto observava o céu a adquirir uma tonalidade aveludada de um cinzento-purpúreo, o seu espírito encontrava-se muito longe dali. No dia anterior, recebera de Atlanta um pedido de mil frascos de mercúrio, o preço oferecido era interessante, mas havia algo que o intrigava. Pressentia qualquer coisa de estranho naquela operação, mas não conseguia descortinar o quê. Não vislumbrava nada de incorreto no negócio, e até ia pedir informações ao seu banco sobre o consórcio. A causa da preocupação residia na carta que recebera, no estilo do homem que a escrevera. Dava mostras de certa prepotência e arrogância. Orville Beauchamp encabeçava o grupo, e a sua prosa era cheia de floreados, porém havia como que um sexto sentido em Jeremiah que o deixava de pé atrás relativamente a ele.

- Jeremiah.

Sorriu ao ouvir a voz familiar de Hannah. Há quase vinte anos que ela se encontrava ao seu serviço, desde que o marido morrera, pouco depois de a gripe ter ceifado a vida da sua própria noiva. Um dia, aparecera-lhe na mina, vestida com as suas roupas negras de viúva e, golpeando o chão com o chapéu de chuva, olhou-o, indignada.

- A casa está um asco, Jeremiah Thurston.

Este olhou-a, espantado, perguntando-se quem diabo seria aquela mulher, e acabou por descobrir que era tia de um homem que trabalhara para ele, coisa que ela agora queria fazer. Em 1852, o pai de Jeremiah construíra uma cabana num recanto da propriedade, e Jeremiah, que vivera nela com ele, aí permaneceu após a morte do seu progenitor. Mas continuou a adquirir terras muito mais extensas, anexando-as às que o pai já comprara no vale de Napa. Aos vinte e cinco anos, começou a pensar que chegara a altura de casar. Queria ter filhos, encontrar alguém à sua espera quando voltasse para casa à noite, alguém com quem pudesse partilhar a sua boa sorte. Ainda não começara a gastar o dinheiro que tinha, e gostava da idéia de alguém que esbanjasse um pouco. Uma rapariga bonita, de olhar doce e mãos delicadas, um rosto que pudesse amar, um corpo que o aquecesse à noite... e acabou por encontrá-la através de amigos. Pediu-a em casamento dois meses depois de a ter conhecido e começou a construir uma mansão para ela. Ergueu-a no centro das suas terras, com umas vistas que se perdiam no horizonte, debaixo de quatro enormes árvores cujas copas se encontravam para formar um enorme e belo arco natural que daria frescura à casa no Verão. Foi praticamente um palácio que ele construiu, pelo menos era o que as gentes locais achavam. Tinha dois pisos, com dois amplos salões no rés-do-chão, uma sala de jantar com painéis de madeira, uma cozinha espaçosa com uma chaminé suficientemente grande para Jeremiah caber nela de pé. No primeiro andar, havia uma sala de estar acolhedora, uma suíte enorme e um solário, no segundo andar, seis quartos para a numerosa família que esperava ter. Não seria preciso ampliar a casa quando os filhos nascessem. Jennie ficou encantada com a mansão... as janelas altas com vitrais, o piano de cauda em que ela tocaria para ele todas as noites.

Todavia, Jennie nunca o pôde fazer. Foi apanhada pela epidemia de gripe que atingiu o vale no Outono de 1868, e morreu ao fim de três dias. A sorte deixava de sorrir a Jeremiah pela primeira vez na vida. Chorou-a como uma mãe que acabara de perder uma filha. Jennie, que então só tinha dezessete anos, teria sido a esposa perfeita para ele. Durante algum tempo, vagueou pela casa como uma alma penada, até que, desesperado, fechou-a e voltou para a cabana onde vivera até então; mas não encontrou nela a comodidade de outrora.

Assim, em 1869, instalou-se definitivamente na mansão que sonhara compartilhar com Jennie... Jennie... mas não conseguia entrar nos aposentos que lhe destinara, nem suportava imaginar o que teria sido viver com ela ali. A princípio, visitou com freqüência os pais da rapariga, mas não conseguia suportar o fato de ver a sua própria dor refletida nos olhos deles, nem a avidez com que a irmã mais velha de Jennie, bastante menos atraente, o olhava. Acabou por fechar os aposentos que não usava, e raras vezes subia aos andares superiores. Começou a habituar-se a fazer a sua vida caseira no rés-do-chão. Os dois únicos aposentos que ocupava remodelou-os de modo a parecerem-se com o interior da sua velha cabana. Transformou um dos salões em quarto de dormir e nunca mais se preocupou em mobiliar os outros aposentos. Ninguém mais voltara a tocar no piano desde o dia em que os dedos de Jennie haviam percorrido o seu teclado, quando o instrumento chegara. Também abriu a espaçosa cozinha, onde às vezes comia com alguns dos seus homens quando o iam visitar. Gostava de comer com eles e de saber que se sentiam bem na sua companhia. Não tinha nada de altivo. Não se esquecia do lugar donde viera: uma casa do Este, fria e pequena, onde todos tiritavam de frio durante o Inverno, perguntando-se se haveria comida suficiente no dia seguinte. Acabaram por deixá-la para seguir os trilhos das caravanas até ao Oeste, para lá das montanhas Rochosas, até aos rios, à lama, às minas. Também tinha presente que, se conseguira reunir uma fortuna, fora graças ao trabalho árduo dele e de seu pai. Era algo que Jeremiah nunca esqueceria.. como nunca esqueceria Jennie. Como nunca esqueceria um amigo. A despeito do passar dos anos, nunca mais sentira a tentação de voltar a casar. Por mais atraente que uma rapariga fosse, nunca a achava tão doce como Jennie, nem tão alegre. Durante anos, recordara as suas gargalhadas, as suas exclamações de alegria quando lhe mostrava o progresso das obras de construção da mansão. Dera-lhe um imenso prazer construí-la para ela, como um monumento ao seu mútuo amor. Mas deixara de ter significado depois da morte de Jennie. Permitiu que a tinta estalasse e que a umidade tomasse conta dos aposentos não utilizados. Usou todos os pratos, tachos e panelas até não restar nenhum limpo. Dizia-se até que o salão onde dormia parecia mais um estábulo do que um quarto de dormir. Até chegar Hannah. Fora ela que limpara e arrumara tudo

- Olha só para esta casa, rapaz! - ralhou ela, como se não acreditasse naquilo que via, quando chegaram a casa vindos da mina Jeremiah ainda não sabia o que fazer com Hannah, mas esta estava determinada a vir trabalhar para ele. Não fazia nada desde que o marido morrera, e estava plenamente convencida de que Jeremiah precisava dela, e foi o que lhe disse à sua maneira. - Quem és tu? Um porco.

Jeremiah riu-se ao ver a cara de indignação que a mulher fez. Há quase vinte anos que ninguém cuidava dele, por isso, aos vinte e seis anos, agradava-lhe ter, de repente, Hannah. A mulher pôs mãos à obra no dia seguinte e, quando ele regressou a casa à noite, encontrou os aposentos que utilizava limpos e arrumados. Num esforço de refazer o seu ninho, encheu de papelada o chão da sala, deixou cair cinza de charuto no tapete e até entornou inadvertidamente um copo de vinho. Na manhã seguinte, para desespero de Hannah, voltou a sentir-se mais em casa.

- Se não te emendas, rapaz, prendo-te no fundo da mina E tira-me já esse maldito charuto da boca, estás a deixar cair cinza no fato! - Hannah tirou-lhe o charuto dos lábios e meteu-o no copo de vinho da noite anterior, enquanto Jeremiah soltava um suspiro, mas ele vinha mesmo a calhar para si. Proporcionava-lhe um inesgotável suprimento de cinza, desordem e sujidade, mantendo-a continuamente ocupada. Sentia-se necessitada e apreciada pela primeira vez desde há muitos anos. Por alturas do Natal desse primeiro ano, eram já um par inseparável. Hannah ia trabalhar todos os dias, e recusava-se a ter um dia de folga. - Estás louco? Já imaginaste o rebuliço em que eu encontraria esta casa depois de dois dias sem cá vir. Não, não me verás fora desta casa por um dia, por uma hora que seja, estás a ouvir.

Era dura com Jeremiah, mas este encontrava sempre comida quente quando chegava a casa, os lençóis imaculados na cama, tudo no seu lugar. Mesmo os aposentos que não eram usados gozavam de uma limpeza perfeita, e quando ele trazia uma dúzia de homens da mina para falar de um novo plano de expansão, ou apenas para provar o vinho dos seus vinhedos, Hannah nunca se queixava, por maiores que fossem as bebedeiras ou por mais rudes que eles se mostrassem. Com o tempo, e apesar de a picar de quando em vez por causa da sua devoção por ele, Jeremiah chegou a adorá-la como nunca adorara ninguém... exceto Jennie, naturalmente... Hannah era suficientemente sensata para nunca lhe fazer quaisquer perguntas acerca dela. Mas quando Jeremiah chegou aos trinta anos, começou a incitá-lo a encontrar esposa.

- Já sou muito velho, Hannah, e, além disso, ninguém cozinha tão bem como tu.

Ao que ela replicou com vivacidade: - Que disparate!

Ela insistia em que Jeremiah precisava de uma esposa, uma mulher que o amasse e lhe desse filhos, mas ele não fazia caso. Era como se essa possibilidade o assustasse, como se temesse que o fato de voltar a amar alguém pudesse ser a causa da sua morte, como acontecera com Jennie. Não queria pensar nisso, nem alimentava esperanças vãs. A ferida provocada pela morte de Jennie já não lhe doía tanto. Os anos haviam-se encarregado de a cicatrizar. Sentia-se bem tal como estava.

- E quando morreres, Jeremiah? - insistia a velhota. - A quem vais deixar isto tudo?

- A ti, Hannah, a quem mais poderia ser? - gracejava ele, ao que ela replicava, abanando a cabeça:

- Precisas de uma esposa... e filhos...

Jeremiah, porém, discordava. Não sentia qualquer desejo por nada para além daquilo que já tinha. Estava satisfeito com o que possuía: as minas mais importantes do estado, terras que amava, vinhedos que eram o seu encanto, uma mulher com quem dormia todos os sábados à noite... e Hannah, que lhe mantinha a casa limpa e arrumada. Gostava dos homens que trabalhavam para si, tinha amigos em São Francisco que via de vez em quando e, quando queria mudar de ambiente, viajava para o Este, ou para a Europa, ainda que não com tanta freqüência. Não precisava absolutamente de nada mais, e muito menos de uma esposa. Bastava-lhe Mary Ellen para lhe satisfazer as necessidades, pelo menos uma vez por semana. Sorria ao pensar nela. No dia seguinte, iria vê-la depois de sair das minas... como fazia sempre... Deixaria o trabalho ao meio-dia, depois de fechar o cofre. Não havia quase ninguém ali aos sábados, o que lhe permitia cavalgar até Calistoga, até à pequena casa. Anos antes, entrava com todas as cautelas para não ser visto, mas as suas visitas já não eram segredo para ninguém e, por outro lado, há já muito tempo que ela não ligava ao que as pessoas pudessem dizer. Ele próprio lhe dissera que elas não tinham nada a ver com isso, embora as coisas não fossem assim tão simples. Então, instalar-se-ia comodamente diante da lareira a admirar os cabelos acobreados de Mary, ou sentar-se-ia na cadeira de balouço, no quintal, a olhar para a copa do enorme ulmeiro, ocultos pela cerca; então, ele pegar-lhe-ia na mão e...

- Jeremiah! - A voz de Hannah interrompeu-lhe o sonho. O Sol desaparecera atrás da colina e, de repente, sentiu-se uma brisa fria no ar. - Maldito rapaz! Não me ouves a chamar?

Jeremiah esboçou um sorriso. Ela tratava-o como se ele tivesse cinco anos e não quarenta e três.

- Desculpa... Estava a pensar noutra coisa... - Na realidade, noutra pessoa. Fitou o rosto enrugado de Hannah com um brilhozinho nos olhos.

- O teu mal é que nunca pensas em nada... não ouves... não escutas...

- Talvez esteja a ficar surdo. Já pensaste nessa hipótese? Já estou com certa idade.

- Talvez seja isso.

O brilhozinho que se vislumbrava no olhar de Jeremiah só encontrou fogo nos de Hannah. Era uma velhota mal-humorada, mas ele gostava dela tal como era. Há anos que o fazia andar na linha, mas ele aceitava isso como a coisa mais natural do mundo. Afinal de contas, isso fazia parte do encanto de Hannah, e de uma espécie de jogo que ambos conheciam muito bem. Mas, nesse dia, estava de semblante carregado.

- Há problemas nas minas do Harte. Sabias? - disse ela, fitando-o do alpendre.

Jeremiah franziu o sobrolho, antecipando a resposta:

- Não. Que aconteceu? Fogo?

O fogo era o que mais temiam. Trabalhavam tão perto dele que podia haver uma explosão no momento em que menos se esperava, com altos custos materiais e em vidas humanas. Jeremiah nem se atrevia a pensar nisso. Mas Hannah abanou a cabeça.

- Não se sabe ao certo. Crêem que se trata de gripe, mas pode ser outra coisa. Está a espalhar-se com a rapidez do fogo. - Não gostava de lhe falar daquelas coisas, nem de despertar nele a recordação de Jennie, ainda que a sua morte tivesse sido há já muito tempo. A voz tomou um tom mais doce ao acrescentar: - O John Harte perdeu hoje a esposa... e a filhinha... e dizem que o filho também está muito mal, é capaz de não passar desta noite...

Havia uma expressão de dor no rosto de Jeremiah quando se voltou para acender um cigarro. Ficou em silêncio por instantes, de olhar fixo na noite, depois voltou-se novamente para a velhota.

- Fecharam a mina - prosseguiu Hannah.

As minas de Harte eram as segundas maiores do vale, as segundas depois das de Jeremiah.

- Sinto muito o que aconteceu à esposa e à rapariga disse Jeremiah com voz pesarosa.

- Além disso, esta semana perderam sete homens. Dizem que outros trinta já apanharam essa maldita coisa.

Era algo semelhante à epidemia do ano em que Jennie morrera. Não podia fazer-se nada. Absolutamente nada. Jeremiah fizera companhia ao pai de Jennie quando esta morrera. Sentaram-se na sala de estar, em silêncio, olhando-se com expressão de desespero, enquanto no andar de cima o espírito de Jennie abandonava o seu corpo sem que eles pudessem fazer o que quer que fosse para o evitar. Ao recordar esses momentos, Jeremiah teve a sensação de que o coração se afundava no peito como uma pedra pesada, e nem sequer conseguia imaginar o que seria a dor de perder um filho.

Não morria de amores por John Harte, mas admirava-o muito. Harte lutara muitíssimo para pôr de pé uma mina de categoria, o que não era fácil com as minas dos Thurston mesmo por baixo do nariz. O seu início de atividade fora muito mais duro do que o de Jeremiah. Abrira a mina quatro anos antes, quando tinha vinte e dois anos, e conduzira os seus homens para lá do imaginável. Nem sempre primava pela simpatia. Jeremiah sabia de homens que o haviam deixado para vir trabalhar consigo e que o acusavam de ser irascível, desbocado e de ter punhos rápidos.

Mas tinha um coração de ouro. Era um homem decente e honrado, e Jeremiah admirava-o. Fora visitá-lo uma ou duas vezes, e rapidamente se apercebera de alguns erros que o jovem ia cometer, mas Harte não quis dar ouvidos a nenhum dos conselhos de Jeremiah. Não queria nada que viesse dele. Desejava triunfar por si só, e consegui-lo-ia com o tempo Mas, agora, Jeremiah sentia pena dele, lamentava a crueldade com que o destino o tratara, assentando-lhe um golpe ainda mais atroz do que o que ele sofrera outrora. Olhou para Hannah sem saber exatamente o que fazer. Ele e John Harte nunca haviam sido amigos íntimos. Harte preferia ver Jeremiah como um rival e manter-se a boa distância dele, atitude que Jeremiah respeitava

- Não tenhas ilusões, Thurston, não sou teu amigo, nem quero ser. Só quero que as minhas minas mandem as tuas para o inferno. Lutarei honradamente, com limpeza, mas, se puder, far-te-ei fechar as portas dentro de um ou dois anos, e toda a gente de aqui a Nova Iorque será minha cliente.

Jeremiah sorrira ao ouvir aquela fanfarronice. Na realidade, havia lugar para os dois, mas John Harte recusava-se a ver as coisas dessa maneira. Mostrava-se amável quando se encontravam, mas não cedia nem um centímetro. Já tivera dois incêndios e uma séria inundação, e Jeremiah deixou-se levar pelo impulso de lhe oferecer a compra de todas as suas propriedades, em resposta, John Harte ameaçou partir-lhe a cara se não desaparecesse das suas terras antes de ele contar até dez. Mas aquele incidente não tinha nada a ver com o que acontecia agora. Jeremiah decidiu rapidamente o que devia fazer e dirigiu-se em passada larga até ao cavalo. Hannah sabia bem qual a intenção. Jeremiah era assim. Todos tinham lugar no seu coração, inclusive John Harte, por mais impulsivo ou desbocado que ele fosse.

- Não me esperes para o jantar. - Aquelas palavras pronunciadas enquanto Jeremiah montava o cavalo eram desnecessárias. Hannah permaneceria ali, se tivesse que esperá-lo toda a noite. - Vai para casa descansar.

- Cuida dos teus assuntos, Jeremiah Thurston! - De repente, ocorreu-lhe um pensamento: - Espera um pouco! Em casa de John Harte estariam demasiado transtornados para pensarem em preparar algo para comer. Correu para a cozinha, embrulhou um bocado de frango frito num guardanapo e meteu-o, juntamente com um pouco de fruta e uma fatia de bolo, num alforje, que entregou ao sorridente Jeremiah.

- Se é alguma coisa que cozinhaste, de certeza que os vais matar a todos.

Hannah esboçou um sorriso.

- Come isso, e não te aproximes de nenhum deles. E, sobretudo, não bebas nem comas nada do que te oferecerem.

- Sim, mamã! - E, com estas palavras, deu meia volta com o cavalo e desapareceu na noite aveludada, absorto nos seus pensamentos.

Levou apenas vinte minutos a chegar ao complexo que circundava as minas de Harte, e ficou surpreendido ao ver o muito que havia crescido desde a última vez que ali estivera. Não se podia negar que John Harte estava a prosperar, mas era evidente que naquele momento algo de anormal se passava. Havia um estranho silêncio e não se avistava ninguém a andar de casa para casa; viam-se luzes acesas em todas as cabanas, especialmente nas situadas no cume da colina. Toda a casa principal parecia arder de tanta luz. Diante da porta, havia uma fila de homens que esperavam o momento de apresentar as suas condolências a John Harte. Jeremiah desmontou, prendeu o cavalo a uma árvore que se encontrava perto do grupo silencioso e, com o alforje que Hannah lhe dera ao ombro, dirigiu-se para o fim da fila. Reconheceram-no de imediato, e um murmúrio passou de boca em boca.

- ...Thurston ...Thurston

Enquanto cumprimentava os homens que conhecia, John Harte apareceu no alpendre. Tinha o rosto desfigurado pela dor, e quase se conseguiu ouvir a onda de compaixão que percorreu os homens que o aguardavam. Olhou-os fixamente e fez um ligeiro gesto de cumprimento com a cabeça à medida que o seu olhar se cruzava com o de cada um deles. Viu Jeremiah no fim da fila e deteve-se a observá-lo, enquanto este se aproximava e lhe estendia a mão, dizendo-lhe, com o olhar, o quanto sentia a sua dor. Os outros afastaram-se para os deixarem a sós.

- Sinto muito o que aconteceu à tua mulher, John... Eu... eu também perdi uma pessoa muito querida há muito tempo... a epidemia de sessenta e oito...

As palavras saíram confusas, mas John Harte compreendeu perfeitamente o que Jeremiah sentia. Olhou-o com os olhos marejados de lágrimas. Era um homem bem-parecido e quase tão alto como Jeremiah. Tinha cabelos negros e lustrosos, uns olhos escuros como o carvão e umas mãos grandes e delicadas. Nalguns aspectos, os dois homens eram muito parecidos, apesar da diferença de quase vinte anos que os separava.

- Obrigado por teres vindo - disse John Harte com uma profunda voz dilacerada pela dor. Duas lágrimas correram pelas faces do jovem, e Jeremiah, ao vê-las, sentiu despertar no seu coração o eco da sua antiga dor.

- Posso fazer alguma coisa por ti? - Lembrou-se da comida que trouxera. Talvez fosse bem recebida por alguém da casa.

John Harte olhou-o fixamente.

- Hoje perdi sete homens, a Matilda... a Jane... - A voz embargou-se-lhe. - E quanto ao Barnaby... Não conseguiu acabar a frase ao mencionar o filho. Levantou novamente os olhos para Jeremiah. - O médico disse que ele não passaria desta noite. E outros três homens perderam as esposas... cinco filhos... Não deverias ter vindo. - De repente, deu-se conta do risco de contágio que Jeremiah corria e ficou comovido.

- Eu também já passei por uma situação semelhante, por isso queria ver se podia fazer algo por ti. - Jeremiah reparou que o jovem tinha um ar cadavérico, mas atribuiu-o à dor e não à temida gripe. - Acho que não te faria mal um gole. - E tirou uma garrafa de prata do alforje e estendeu-a a John.

Este hesitou por instantes, pegou nela e fez um gesto com a cabeça em direção da porta.

- Queres entrar? - John Harte receava que a sua visita estivesse apreensiva, e tinha razões para isso, mas Jeremiah fez um gesto de assentimento com a cabeça.

- Claro que sim. Trouxe-te qualquer coisa para comer. Não sei se te apetece.

John fitou-o, surpreendido e emocionado, recordando a última vez que Jeremiah lhe oferecera ajuda. Nessa ocasião, quase o expulsara da casa para fora. Não queria ajuda da parte dele, mas aquilo era diferente. Era um desastre que não tinha nada a ver com fogo ou inundação nas minas. Deixou-se cair no sofá de veludo verde da sala de estar, deu um prolongado gole e devolveu a garrafa a Jeremiah com um olhar amargurado.

- Não acredito que tenham morrido... ontem à noite... - Apesar dos esforços para conter as lágrimas, Harte começou a soluçar. - Ontem à noite... a Jane desceu as escadas a correr para me dar um beijo de boas-noites, apesar de estar com febre, e, esta manhã, a Matilda disse... - Não conseguiu conter as lágrimas por mais tempo. Jeremiah agarrou-o pelos ombros com ambas as mãos e manteve-o assim até se acalmar. Era a única coisa que poderia fazer por ele naquele momento. Harte levantou os olhos para Jeremiah, e os olhos deste também estavam úmidos. - Como é que vou conseguir continuar a minha vida sem eles. Como? A Mattie... e a minha pequenina... e se o Barnaby... morrerei, Thurston. Não conseguirei viver sem eles.

Jeremiah rezou em silêncio para que ele não perdesse também o filho, embora soubesse que este tinha poucas hipóteses de sobreviver. Enquanto esperava diante da casa, ouvira dizer que a salvação do rapaz era quase impossível. Fixou então o seu olhar no de John Harte.

- Mas ainda és jovem, John, tens toda uma vida pela frente. Ainda que neste momento as minhas palavras possam parecer horríveis, quero dizer-te que ainda podes voltar a casar e a ter filhos. Isto é a pior coisa que te aconteceu até agora, mas vais conseguir dar a volta à situação e seguir em frente... Tens de o fazer... e consegui-lo-ás. - Estendeu-lhe novamente a garrafa, e John bebeu outro gole, ao mesmo tempo que abanava a cabeça e as lágrimas lhe corriam pelas faces.

Pouco menos de uma hora depois apareceu o médico. John pôs-se em pé de um pulo

- O Barnaby?

- Ele quer vê-lo

O médico não se atreveu a dizer mais nada, mas o seu olhar cruzou-se com o de Jeremiah enquanto John corria pelas escadas acima para junto do filho, e, como resposta à pergunta que vislumbrou no olhar de Thurston, limitou-se a abanar a cabeça. Jeremiah, que ficara sentado no rés-do-chão, ao ouvir o lancinante grito de dor que o pai soltou no quarto do piso superior, apercebeu-se de imediato de que o rapaz morrera. John deixara-se cair de joelhos com o rapaz nos braços, chorando a família que perdera em apenas dois dias. Em passo decidido, Jeremiah subiu as escadas e abriu cuidadosamente a porta do quarto. Arrancou o rapaz dos braços do pai, estendeu-o na cama e fechou-lhe os olhos. Depois, trouxe John Harte, que não cessava de repetir entre soluços o nome do filho, para fora do quarto Quase à força, fez com que Harte bebesse mais alguns goles de álcool e ficou com ele até à manhã seguinte, até chegarem o irmão e vários outros amigos. Então, Jeremiah, profundamente amargurado, voltou para casa. John tinha exatamente a mesma idade que Jeremiah quando Jennie morrera. Perguntou-se se aquela desgraça afetaria John Harte da mesma maneira que o havia afetado a si, mas presumia, pelo pouco que sabia de Harte, que este superaria aquela adversidade

Com ar pesaroso, desmontou diante da mansão, quando o sol da manhã já ia alto. Contemplou as colinas que tanto amava, questionando-se sobre o cruel destino que jogava com tanta facilidade com a vida e a morte sobre a rapidez com que desaparecem as melhores dádivas da vida. Quando entrou, teve a impressão de ouvir as sonoras gargalhadas de Jennie, mas só viu Hannah a dormir, sentada numa cadeira da cozinha. Não lhe disse nada e encaminhou-se para o salão que nunca usava. Sentou-se ao piano que há muito comprara para a sua encantadora menina de olhos risonhos e caracóis dourados a dançar de um lado para o outro Tentou imaginar como teria sido a sua vida se tivesse podido casar-se com ela, quantos filhos teriam tido. Era a primeira vez, desde há muito tempo, que permitia que o espírito se lançasse em semelhantes especulações. Pensou na esposa e nos filhos que John Harte perdera, e concluiu que o melhor que podia fazer era voltar a casar-se. Era o que Harte precisava, uma nova esposa que lhe preenchesse o coração, e novos filhos que substituíssem os dois que haviam perdido.

Precisamente o que Jeremiah não fizera. Vivera sozinho os últimos dezoito anos, e já era demasiado tarde para refazer a vida. Não faria nada para alterar a situação. Não desejava fazê-lo. Mas enquanto fitava as teclas do piano, amarelecidas pelo tempo, que ainda ninguém tocara, perguntou-se se não deveria ter feito o que esperava que John Harte fizesse. Deveria ter-se casado com outra mulher? Ter uma dúzia de filhos para encher a casa vazia? Talvez sim, mas nenhuma outra mulher conseguira conquistar o seu coração, nenhuma de que gostasse o suficiente para se casar. Não, nunca teria filhos. Sentiu a angústia trespassar-lhe o coração... Um filho teria sido uma coisa maravilhosa... uma filha... Então, de repente, lembrou-se dos dois filhos que John Harte perdera e sentiu um aperto dentro de si. Não. Não conseguiria suportar outra perda. Perdera Jennie. Já lhe bastava. Estava melhor assim... ou não.

- Que aconteceu?

Assustou-se ao ouvir a voz de Hannah. Levantou o olhar das teclas que estava a acariciar e viu a mulher, de pé, no meio da sala vazia. Estava cansado e deprimido. Fora uma noite longa e triste.

- O miúdo do Harte morreu. - Jeremiah quase estremeceu ao recordar o momento em que fechara os olhos do rapaz e trouxera John Harte para fora do quarto. Hannah abanou a cabeça e começou a chorar. Jeremiah levantou-se, aproximou-se lentamente dela, pôs-lhe um braço sobre os ombros e conduziu-a para fora da sala. Não tinha mais nada para dizer. - Vai para casa e dorme.

Hannah levantou os olhos para ele e fungou, ao mesmo tempo que limpava as lágrimas das faces.

- Deverias fazer o mesmo. - Mas conhecia-o demasiado bem. - É o que também irás fazer, não é verdade?

- Tenho algumas coisas para resolver nas minas.

- Hoje é sábado

- Os papéis que estão em cima da minha secretária não sabem isso. - Sorriu com ar cansado. Não conseguiria adormecer. A visão de Barnaby Harte e do amargurado pai não lhe sairiam da cabeça. - Não demorarei muito

Hannah também já conhecia muito bem aquela frase. Era sábado. Ele costumava ir a Calistoga aos sábados, visitar Mary Ellen Browne. Mas Hannah via que nesse dia Jeremiah não estava de humor para isso

Jeremiah pegou na cafeteira de cima do fogão, encheu uma xícara de café e olhou para a velha amiga. Depois daquela noite terrível, mil pensamentos lhe passaram pela cabeça

- Disse-lhe que deveria voltar a casar-se e a ter mais filhos. Fiz mal em dizer-lhe isso.

Hannah abanou a cabeça.

- É precisamente o que deverias ter feito há dezoito anos

- Já pensei nisso. - Olhou para as colinas através da janela. Nunca deixara pôr cortinas em lado nenhum para poder admirar o vale que tanto adorava, além disso, não havia vivalma em vários quilômetros em redor

- Ainda não é tarde. - Na voz de Hannah havia um profundo tom de tristeza. Sentia pena de Jeremiah. Tivesse ou não consciência disso, era um homem solitário, e ela esperava que John Harte não optasse pela mesma solução. Hannah nunca tivera filhos, mais por culpa do destino do que por uma questão de opção. - Ainda és suficientemente jovem para te casares, Jeremiah

Este riu-se ao ouvi-la

- Já sou demasiado velho para isso. - Franziu o sobrolho e fitou-a. Estavam ambos a pensar na mesma coisa. - Nunca consegui imaginar-me casado com a Mary Ellen, e não há outra mulher. Há muitos anos que não há.

Hannah já sabia que a única relação feminina de Jeremiah era Mary Ellen, mas compreendia que ele, depois da noite que passara, precisava de desabafar com ela. Por alguma coisa era sua amiga.

- Por que razão é que nunca quiseste casar com ela?

Era algo que Hannah sempre se interrogara, embora achasse que sabia o motivo E não se enganava muito.

- Não é a rapariga adequada para isso, Hannah. E não digo isto depreciativamente. Ao princípio, foi ela quem não se mostrou inclinada a casar-se comigo, embora ultimamente me pareça disposta a isso. Queria ser livre... - Sorriu. - É uma mulher independente, e queria cuidar dos seus próprios filhos. Creio que tinha medo que as pessoas dissessem que se casava comigo por causa daquilo que eu tinha, ou que tentava aproveitar-se de mim. - Soltou um suspiro. - Em vez disso, chamavam-lhe pega. Mas o engraçado é que ela pouco se importava com isso. Sabia que era uma mulher decente e que eu era o único homem da sua vida, por isso estava-se nas tintas para o que as pessoas diziam. Uma vez, perguntei-lhe se queria casar comigo... - Hannah ficou espantada e esboçou um sorriso. - Mas não aceitou. Foi quando aquelas malditas mulheres de Calistoga a fustigaram com as maledicências. Sempre acreditei que foi a própria mãe quem armou aquela confusão toda para que eu me decidisse a pedir a mão dela, o que conseguiu, mas a Mary Ellen mandou-me para o diabo. Não queria ver-se obrigada a casar-se por culpa de um bando de coscuvilheiras. Além disso, acho que, na altura, ainda estava meio apaixonada pelo bêbado do marido. Há mais de dois anos que a abandonara, mas ela ainda alimentava esperanças de que ele voltasse. Apercebia-me pelo seu modo de falar. - Esboçou novo sorriso. - E ainda bem que não voltou. A Mary Ellen foi uma bênção para mim.

E ele também o fora para ela. Mobiliara-lhe a casa e ajudava-a a suprir as necessidades dos filhos, apesar dos seus protestos. Há quase sete anos que mantinham aquele tipo de relação, e há mais de dois que o seu marido morrera. Já estavam habituados àquela rotina. Ele ia a Calistoga todos os sábados à noite e ficava com ela até domingo à tarde. Os filhos de Mary Ellen permaneciam em casa da mãe quando ele lá estava. Os seus contatos eram menos clandestinos do que noutros tempos. Não havia motivo para continuar a esconder-se dos vizinhos, toda a gente sabia que ela era a namorada de Thurston. «A pega do Thurston», como lhe chamavam ao princípio, mas já ninguém se atrevia a chamar-lhe isso. Jeremiah tratara do assunto pessoalmente com uma ou duas das pessoas mais impertinentes. Mas ele também sabia que Mary Ellen pertencia a um tipo feminino mais sujeito a críticas. Era do gênero de rapariga que as mulheres não gostam e de que têm ciúmes: uma ruiva atraente, de pernas compridas e peitos volumosos. Usava grandes decotes e não tinha problemas em levantar o vestido um pouco acima do tornozelo ao descer do passeio, para gáudio de um qualquer cowboy que fosse a passar. Fora essa beleza que atraíra Jeremiah ao princípio. Mas viera também a descobrir que ela era uma pessoa bondosa, digna e extremamente carente. Adorava os filhos e não havia quase nada que ela não fizesse por eles. Há dois anos que o marido a abandonara, e trabalhara como empregada de mesa, bailarina e criada de quarto num hotel anexo à estância termal, contudo, não deixara de exercer essas atividades depois da chegada de Jeremiah. Dizia que não queria nada dele. Ele tentara tirá-la várias vezes da sua cabeça, mas a ternura e o carinho que Mary Ellen lhe demonstrava impediam-no. Ela preenchia-lhe o vazio que existia no seu coração, e cada vez se sentia mais atraído para a sua cama. Ao princípio, ia a Calistoga várias vezes por semana, mas era muito complicado com os filhos de Mary Ellen em casa; por isso, ao fim do primeiro ano, resolveram ver-se só aos fins-de-semana. Custava a acreditar que se haviam passado seis anos desde então. Mary Ellen tinha já trinta e dois anos e continuava a ser uma mulher atraente, mas Jeremiah ainda não conseguia imaginar-se casado com ela. Quando se conheceram, Mary Ellen mostrava-se demasiado mundana e extremamente desinibida, porém, ele adorava a sua sinceridade, a sua espontaneidade e a sua coragem. Nunca se deixou abater por aquilo que as pessoas lhe diziam do seu envolvimento com Jeremiah, embora este soubesse que por vezes fora uma situação difícil para ela.

- Casar-te-ias com ela agora?

Jeremiah não achou a pergunta de Hannah despropositada, mas naquele momento, ao fim de sete anos, não conseguia imaginar-se a casar com Mary Ellen.

- Não sei. - Olhou para a velhota e suspirou. - Não achas que já sou demasiado velho para essas coisas?

Era uma pergunta retórica, mas Hannah foi lesta a responder:

- Não, não acho E penso que deverias refletir sobre isso antes que seja demasiado tarde, Jeremiah Thurston. - Mas ela própria não achava que Mary Ellen fosse a solução, por muito que gostasse da rapariga. Há muitos anos que a conhecia, e sempre a achara atrevida e, às vezes, uma completa idiota. Fora das primeiras a chamar-lhe isso por causa do romance com Jeremiah. Mas era uma rapariga de bom coração e era impossível não se gostar dela. Contudo, já tinha trinta e dois anos, e ele precisava de uma esposa mais nova que lhe desse filhos. Mary Ellen já tinha três e quase morrera ao dar à luz o terceiro. Só se estivesse louca é que se exporia a ter outro, e ela sabia disso. - Gostaria de ver uma criança nesta casa antes de morrer, Jeremiah.

Ele esboçou um sorriso triste ao pensar nos dois filhos de Harte recém-falecidos

- Eu também gostaria, minha amiga, mas acho que nenhum de nós dois chegará a ver isso. - Fora a primeira vez que dissera semelhante coisa a alguém.

- Não sejas teimoso. Ainda estás a tempo. Se procurasses, haverias de encontrar a rapariga certa.

Aquelas palavras fizeram com que Jeremiah se lembrasse novamente de Jennie, e abanou a cabeça, tanto para expulsar essa lembrança da sua mente como para refutar as palavras de Hannah.

- Sou demasiado velho para uma rapariga jovem. Tenho já quase quarenta e quatro anos.

- Sim, mas dás a impressão de ter já noventa. - Hannah soltou um suspiro de enfado e passou a mão pela barba hirsuta de Jeremiah.

- Pois há dias em que me sinto como se os tivesse, e esse deve ser também o meu aspecto. Às vezes, fico surpreendido por a Mary Ellen não se aferrolhar dentro de casa quando me vê chegar.

- Era isso que ela te deveria ter feito anos atrás, Jeremiah. Já sabes o que penso desse assunto. - Ele sabia, mas Hannah nunca tinha medo de repetir as suas opiniões. - Vocês comportaram-se como um par de loucos quando começaram o romance, e os dois pagaram um elevado preço por isso.

Era a primeira vez que Hannah lhe dizia aquilo com tanta clareza, o que deixou Jeremiah surpreendido.

- Os dois?

- Foi uma pena ela não ter apanhado o comboio daquela vez, pois perdeste a oportunidade de casar com alguém que te pudesse dar filhos. Também podes casar com ela se for essa a tua intenção.

Jeremiah esboçou um sorriso benevolente.

- Vou contar-lhe o que me disseste.

Sob o olhar de Jeremiah, Hannah aclarou a garganta e pegou no xale que deixara nas costas de uma cadeira da cozinha. Entretanto, ele ia fazer a barba e tomar um banho antes de ir à mina, e precisava de outra xícara de café bem forte. A noite que passara com John Harte, até terem chegado os seus parentes para o consolar, fora longuíssima.

- A propósito, o John ficou-te grato pela comida que mandaste, Hannah. Obriguei-o a comer esta manhã.

- Não pregou olho toda a noite?

Jeremiah abanou a cabeça.

- Como é que ele teria conseguido?

- Estou certa de que tu também não.

- Não há problema. Durmo logo à noite.

Hannah esboçou um sorriso malicioso e virou-se quando ia a sair a porta.

- A Mary Ellen é que não vai gostar muito disso, pois não?

Jeremiah soltou uma gargalhada e a velhota fechou a porta atrás de si.

 

Jeremiah gostava do estranho silêncio que havia nas minas aos sábados. Sentia-se uma profunda quietude, não se ouviam vozes, nem sirenas, nem o barulho dos fornos Naquela manhã de Março, depois de desmontar, Jeremiah prendeu Big Joe no lugar do costume e dirigiu-se em grandes passadas para o seu escritório, só viu dois vigilantes a beber café. Os papéis por que viera aguardavam-no contratos de encomenda de mercúrio e os planos de outras quatro cabanas para alojar os homens que trabalhavam para si. As Minas Thurston tinham já o aspecto de um pequeno povoado: sete casas para os homens solitários e, mais à frente, cabanas para os que haviam trazido as famílias. Jeremiah admirava o seu desejo de viver juntos apesar da dureza daquele tipo de vida. Há já muito tempo que lhes dera permissão para isso, e os homens estavam-lhe imensamente gratos. Agora examinava os planos dos novos alojamentos. O povoado continuava a crescer ao ritmo da produção das minas. Estava satisfeito com os contratos que tinha diante de si, especialmente um de Orville Beauchamp, de Atlanta, para novecentos frascos de mercúrio, que renderia uns cinqüenta mil dólares. Beauchamp forneceria, por sua vez, a maior parte do Sul. A julgar pela forma como estava redigido o contrato, tratava-se de um homem de negócios muito inteligente. Representava um grupo de sete homens e, aparentemente, era o seu porta-voz. O negócio era suficientemente importante para que Jeremiah viajasse na semana seguinte para Atlanta a fim de se reunir com o consórcio e selar o acordo.

Ao meio-dia, Jeremiah deu uma olhada ao relógio de bolso, levantou-se e espreguiçou-se. Ainda não acabara o trabalho, mas passara tão mal a noite que agora se sentia esgotado e ansioso por ver Mary Ellen. Precisava do carinho e do conforto dela. A desgraça que se abatera sobre John Harte não lhe saía da cabeça. A angústia que sentia era imensa, mas, à medida que a manhã ia avançando, os seus pensamentos começaram a centrar-se em Mary Ellen. Pouco passava do meio-dia quando deixou as minas e se dirigiu para o sítio onde deixara Big Joe.

- Bom dia, Mister Thurston! saudou um dos vigilantes

Quando já ia a subir a colina, Jeremiah vislumbrou, ao longe, um grupo de crianças a brincar atrás das cabanas familiares que construíra para os mineiros. Trouxeram-lhe à memória a epidemia de gripe nas minas de Harte, e rezou para que ela nunca os apanhasse.

- Bom dia, Tom

Embora fossem já uns quinhentos os homens que agora trabalhavam para si em três minas, Jeremiah ainda conhecia muitos deles pelo nome. Passava a maior parte do tempo na primeira mina, a Mina Thurston, mas visitava periodicamente as outras, que eram dirigidas por encarregados extremamente competentes. E, ao mais ligeiro indício de qualquer problema, Jeremiah dirigia-se para o local, onde, por vezes, permanecia vários dias, caso se tratasse de um acidente ou as minas ficassem inundadas de água, como acontecia todos os Invernos

- Parece que já chegou a Primavera

- É o que parece- Jeremiah sorriu.

Chovera sem parar durante dois meses, e as inundações nas minas haviam sido devastadoras. Perderam onze homens numa mina, sete noutra e três naquela Mas agora já não havia rasto de tanta inclemência invernal. O Sol brilhava esplendorosamente, e Jeremiah sentiu-o bater nas costas enquanto conduzia o velho Joe pelo Silverado Trail até Calistoga. Esporeou um pouco o velho cavalo, e este lançou-se a todo o galope pelos últimos dez quilômetros do caminho, enquanto Jeremiah, com o vento a fustigar-lhe a barba e o cabelo, só pensava em Mary Ellen

Ao passar pela rua principal de Calistoga, Jeremiah viu vários grupos de mulheres a passear de sombrinhas abertas. Era fácil distinguir as que haviam vindo de São Francisco para visitar as fontes termais de água quente: os seus elegantes vestidos contrastavam com os das locais, muito mais simples; além disso, distinguiam-se pela proeminência dos seus bustos, pelas ostentosas plumas dos chapéus e pela qualidade das sedas, facilmente perceptíveis na pequena e sonolenta Calistoga. Jeremiah sorria sempre ao vê-las, e elas não ficavam indiferentes ao vê-lo passar montado no seu garanhão branco, cuja cor contrastava com a negrura do cabelo do cavaleiro. Quando estava de bom humor, tirava o chapéu e fazia-lhes uma vênia de cortesia, os olhos sempre a transbordar de malícia. Nesse dia, havia num dos grupos de passeantes uma mulher particularmente atraente, de cabelos ruivos, com um vestido de seda verde, a mesma cor das árvores das montanhas, mas isso só lhe trouxe à memória o motivo que o trouxera a Calistoga, pelo que esporeou o cavalo para aumentar um pouco mais o seu ritmo. Pouco depois, chegou à casinha bem arranjada de Mary Ellen, situada na Rua Três, a zona menos elegante da cidade

Aí, o cheiro a enxofre da estância termal era mais forte, mas há muito tempo que tanto ela como Jeremiah estavam habituados. Não era na estância termal, nem no enxofre, nem sequer nas suas minas que ele pensava quando prendeu Big Joe atrás da casa e subiu a correr as escadas traseiras da mesma. Sabia que ela estaria à sua espera, e abriu a porta sem qualquer cerimônia e com o coração a palpitar. Fossem quais fossem os seus sentimentos relativamente àquela mulher, uma coisa era certa ela ainda exercia sobre ele o mesmo poder mágico que o fascinara quando se conheceram. A sua presença provocava-lhe uma irreprimível onda de luxúria que poucas mulheres haviam conseguido provocar. Porém, quando se encontrava longe dela não sentia a sua falta. Foi precisamente por isso que nunca considerara a sério a possibilidade de alterar a situação. Mas quando estava junto dela quando a pressentia no quarto ao lado, como naquele momento, todo o seu ser ardia de desejo.

- Mary Ellen.

Jeremiah abriu a porta da pequena sala onde ela o esperava, às vezes, ao sábado à tarde. Costumava ir deixar os filhos a casa da mãe de manhã e depois regressava para tomar banho, arranjar o cabelo e vestir umas roupas vistosas para o receber. Os seus encontros, por terem lugar só uma vez por semana, ou ainda com menor freqüência quando havia algum problema nas minas ou ele tinha de partir de viagem, estavam rodeados de uma atmosfera de lua-de-mel. Mary Ellen detestava vê-lo partir. Passava os dias e as noites à espera do fim-de-semana. Era surpreendente o modo como, com o passar dos anos, se fora tornando cada vez mais dependente dele. Mas estava certa de que Jeremiah não se apercebera disso. A intensa atração física que exercia sobre ele não o deixava dar-se conta da diminuição da sua independência. Ele gostava de ir vê-la a Calistoga. Sentia-se bem naquela casinha humilde. Não era pois de estranhar que nunca a tivesse convidado para a sua casa de Santa Helena. Na realidade, Mary Ellen só vira a casa uma vez. «De certeza que não é casado?», perguntava-lhe, amiúde, a mãe, ao princípio, mas toda a gente sabia que Jeremiah Thurston nunca se casara, «e, provavelmente, nunca se casará», resmungava a mulher, ao fim dos primeiros anos da ligação amorosa da filha. Mas agora já não resmungava. Depois de tantas noites de sábado, que poderia opor? Já nem dizia nada quando Mary Ellen lhe levava os filhos. A neta mais velha, de catorze anos, tinha quase a mesma idade que Mary Ellen quando se casara. O rapaz tinha doze, e a mais nova das raparigas, nove. Era a que nutria uma adoração especial por Jeremiah Mas eles sabiam o suficiente para falarem o menos possível sobre o assunto à avó.

- Mary Ellen? - voltou a chamar Jeremiah.

Surpreendido por ela não estar à sua espera no rés-do-chão, como era costume, subiu lentamente as escadas que davam para o piso superior, onde havia três quartos: um para ela, outro para as raparigas e o terceiro para o rapaz. As três divisões juntas tinham menos área do que qualquer uma da mansão de Jeremiah. Mas ele deixara de ter problemas de consciência com isso há já muito tempo. Mary Ellen sentia uma espécie de orgulho por viver pelos seus próprios meios, e era feliz naquela casa. Gostava de viver nela. Provavelmente mais do que teria gostado de residir na dele. A de Mary Ellen era mais acolhedora, pelo menos era o que ele achava. A sua nunca passara de uma casa enorme e desabitada. Eram tão poucos os aposentos que ocupava. A mansão fora construída para ser cheia de filhos, gargalhadas e barulho, mas, em vez disso, encontrava-se em silêncio há quase vinte anos. Muito diferente era o que acontecia na casinha de Mary Ellen, onde se vislumbravam sinais de desgaste e dedadas nas paredes outrora cor-de-rosa que já faziam parte da decoração.

Os passos de Jeremiah soaram com firmeza pelas escadas acima. Ao bater à porta do quarto de Mary Ellen, teve a impressão de que o ar cheirava a rosas. Ouviu, então, um murmúrio familiar. Sim, era ela. Por instantes, ainda acreditara que, pela primeira vez em sete anos, ela não estaria em casa. Mas estava. E como ele a desejava! Bateu suavemente na porta. Sentia-se um jovem inseguro. Ela provocava nele essa sensação. Ficava sempre um pouco tenso quando a vinha visitar.

- Mary Ellen? - Desta vez a voz foi suave e carinhosa, quase uma carícia.

- Entra... estou no... - Ela ia a acrescentar «meu quarto», mas não precisou de proferir as palavras quando ele entrou e pareceu encher o quarto com os seus ombros largos. Ao ver Jeremiah, Mary Ellen teve a sensação de que o sangue deixara de circular nas veias. A pele era tão aveludada como as pétalas das rosas brancas que havia ao lado da cama, e os cabelos acobreados brilhavam à luz do sol que entrava pelas janelas. Estava prestes a deixar cair um vestido de renda sobre um espartilho, também de renda, que se cingia ao corpo graças a um entrecruzado de fitas cor-de-rosa. Umas fitas da mesma cor apertavam as calças nos joelhos. Ao ver-se observada por Jeremiah, ficou corada que nem uma rapariguinha e voltou a cabeça para o lado, continuando a debater-se com o vestido, que se recusava a baixar dos ombros. Costumava estar pronta quando ele chegava, mas nesse dia demorara mais tempo do que esperara a cortar as rosas para pôr no quarto. - Estou quase... só falta... Oh, meu Deus... Não consigo!

Era toda inocência enquanto se debatia com o emaranhado de rendas. Jeremiah avançou para ela a fim de a ajudar a puxar o vestido para baixo, mas, mal começou, o seu gesto mudou subitamente de direção, e o vestido subiu por onde baixara, roçando os sedosos cabelos acobreados e indo parar em cima da cama. Puxou-a, então, para si e os lábios de ambos juntaram-se num ardente beijo. Era incrível a avidez com que vinha ter com ela todas as semanas. Parecia desejoso de absorver a suavidade da sua pele e o aroma a rosas dos seus cabelos. Tudo cheirava a rosas nela. Mary Ellen conseguia que ele se esquecesse de que ela tinha outra vida. Os filhos, as tarefas e os contratempos deixavam de existir quando se via envolta nos braços do seu amado, semana após semana, ano após ano, de olhos fixos naqueles que amava e que nunca haviam compreendido a intensidade do amor que ela sentia por ele. Mas Mary Ellen conhecia Jeremiah tão bem como ele a si próprio. Ele só queria a sua solidão, a sua liberdade, os seus vinhedos e as suas minas. Não o atraía a vida quotidiana sempre com a mesma mulher e três filhos de quem não era o pai. Estava demasiado ocupado para se entregar àquelas coisas, demasiado preso ao império que criara e que ainda continuava a construir. Mary Ellen respeitava-o por aquilo que ele era, e amava-o o suficiente para não lhe perguntar por que razão não se entregava totalmente a ela. Em vez disso, Mary Ellen só recebia de Jeremiah aquilo que ele lhe dava: uma noite por semana, numa espécie de abandono que nunca teriam partilhado se tivessem uma vida matrimonial diária, o que só avivava a sua paixão. Ela perguntava-se às vezes se as coisas teriam sido diferentes se pudesse ter tido um filho de Jeremiah, mas não valia a pena estar a pensar nisso. O médico dissera-lhe que outro parto poder-lhe-ia ser fatal e, por outro lado, ele, ainda que sempre se mostrasse carinhoso com os filhos dela quando os via, não parecia desejar ser pai. Mas não era neles que pensava quando chegou. O seu espírito estava ocupado pelo que via naquele momento, algo que parecia inundar os seus sentidos: aquela pele a cheirar a rosas, delicada como um pergaminho; aqueles olhos verdes como esmeraldas que incendiavam os seus enquanto a deitava delicadamente na cama e começava a desapertar o espartilho cor-de-rosa. Sob os dedos experientes de Jeremiah, a peça soltou-se do corpo de Mary Ellen com surpreendente facilidade, e as calças deslizaram, pouco depois, ao longo das graciosas pernas, deixando-a radiantemente nua diante dele. Ali estava o verdadeiro motivo da sua visita... devorá-la com os olhos, com a língua e com as mãos até a deixar a arfar, sem fôlego, debaixo dele, desejando ardentemente ser possuída. E naquele dia desejava-a ainda mais do que de costume; precisava de saciar-se, de inspirar profundamente o embriagante aroma dos seus cabelos e da sua pele. Queria esquecer a noiva desaparecida e a angustiante noite que passara com John Harte. E só Mary Ellen o poderia ajudar. Ela sentia que ele tivera uma semana difícil, embora não soubesse por que, e, como sempre, tentou dar-lhe algo mais de si mesma para preencher o vazio que, instintivamente, notava nele. Não era uma mulher capaz de traduzir facilmente as impressões em palavras, mas tinha dele um conhecimento muito profundo, quase animalesco.

Sonolenta e saciada, entre os braços de Jeremiah, Mary Ellen levantou os olhos para ele e acariciou-lhe a barba.

- Sentes-te bem?

Jeremiah sorriu ao ver como ela o conhecia tão bem.

- Agora, estou... graças a ti... és maravilhosa comigo... - Mary Ellen ficou deleitada com as palavras do amante e contente por ver que ele compreendia o que ela tentava dar-lhe.

- Houve algum problema?

Jeremiah hesitou durante um longo instante. O que sentira na noite anterior parecia estar estranhamente entrelaçado com sentimentos em relação a Jennie, apesar do tempo que transcorrera desde a sua morte. Era estranho que aqueles sentimentos tivessem ressurgido agora, mas o certo era que não passavam de reminiscências de dezoito anos atrás.

- Tive uma noite péssima. Estive com o John Harte... - Mary Ellen ficou surpreendida e, apoiando-se no cotovelo, endireitou-se um pouco para lhe dizer:

- Pensei que não falavam um com o outro.

- Fui a casa dele ontem à noite. Perdeu a esposa e a filha... - Hesitou e cerrou os olhos ao recordar a carinha de Barnaby após o seu último suspiro... - e o filho, depois de eu chegar... - Inesperadamente, deslizou-lhe uma lágrima pela face. Mary Ellen tocou-lhe delicadamente e estreitou Jeremiah entre os braços. Era tão corpulento, tão forte e tão másculo, e, no entanto, sabia mostrar-se tão sensível e carinhoso. Amou-o ainda mais por aquela lágrima, e por aquelas que se seguiram ao sentir-se abraçado por ela. - Era tão jovem... - E desatou a soluçar pela criança cujos olhos fechara horas antes, apertando Mary Ellen ainda mais contra si, embaraçado com as emoções que não conseguia conter por mais tempo. Era como uma torrente que vinha do mais profundo do seu ser. - Pobre rapaz... perdeu os três num só dia... - A torrente começou a reduzir-se. Sentou-se na cama e olhou para Mary Ellen.

- Foi um gesto simpático da tua parte teres ido a casa dele, Jeremiah, não eras obrigado a fazê-lo.

- Eu sabia bem o que ele sentia.

Mary Ellen sabia de Jennie através das suas conversas com Hannah. A velhota conhecia Mary Ellen desde pequena, e encontravam-se frequentemente no mercado de Calistoga. Porém, Jeremiah nunca lhe falara de Jennie.

- A mim também já me aconteceu algo parecido acrescentou Jeremiah.

- Eu sei. - A voz de Mary Ellen soou com uma suavidade semelhante à das pétalas das rosas que tinha ao lado da cama.

- Já imaginava. - Jeremiah sorriu e passou-lhe a mão pela cara. - Desculpa... Ficou embaraçado, mas muito mais tranqüilo. Ela ajudara-o com o seu carinho. - Pobre rapaz, vai passar um mau bocado!

- Ele conseguirá superá-lo.

Jeremiah fez um gesto afirmativo com a cabeça e fitou-a.

- Conhece-o?

Mary Ellen abanou a cabeça.

- Já o vi na cidade, mas nunca falamos. Disseram-me que é teimoso que nem uma mula e duro. Os homens como ele geralmente não vergam, aconteça o que lhes acontecer.

- Não acho que seja assim tão duro. Mas é muito jovem, muito forte e sabe o que quer. - Jeremiah sorriu. - Não gostaria de trabalhar para ele, mas admiro aquilo que conseguiu.

Mary Ellen encolheu os ombros. Não sentia grande interesse por John Harte. Estava mais interessada em Jeremiah Thurston.

- Admiro-te - disse ela, sorrindo e aproximando-se mais dele.

- Não sei por quê. Também sou uma mula velha.

- Mas és a minha mula, que eu amo muito.

Mary Ellen gostava de dizer aquelas coisas, tanto para se tranqüilizar a si própria como para as transmitir ao seu amado.

Jeremiah nunca fora realmente seu, e tinha consciência disso, mas permitia-se imaginar isso uma vez por semana, e ficava satisfeita com essa ilusão. Na realidade, não tinha outra opção. Certa vez, Jeremiah pedira-a em casamento, mas ela recusara, e agora já passara a ocasião. Contentava-se em vê-la uma vez por semana. Agora que Jake já morrera e, portanto, nunca mais voltaria, ter-se-ia casado de bom grado com Jeremiah, mas sabia que ele nunca mais voltaria a propor-lhe casamento. Era algo que já não fazia parte dos planos dele, e há muito tempo que ela perdera essa esperança. Fora estúpida ao não insistir nisso desde o início. Mas nessa altura temia que Jake voltasse... esse maldito bêbado...

- Em que estás a pensar? - perguntou-lhe Jeremiah, que estivera a observar o seu rosto. - Estás com ar zangado.

Mary Ellen riu-se da perspicácia dele. Jeremiah sempre fora assim.

- Em nada de importante.

- Estás zangada comigo?

Mary Ellen apressou-se a abanar a cabeça e a esboçar um sorriso. Raramente tivera motivos para se zangar com ele. Jake fora uma história diferente. Mas agora estava morto, depois de lhe ter estragado quinze anos da sua vida, cinco deles à espera que voltasse. Viera a saber que vivia com outra mulher no Ohio. Descobrira isso depois da sua morte, quando a rapariga com quem ele vivera viera vê-la. Tivera, inclusive, dois filhos dela. Mary Ellen sentiu-se uma idiota. Mantivera sempre secreta a sua relação com Jeremiah pensando que o marido regressaria... o marido... que ironia!...

- Nunca estou zangada contigo, tonto. Nunca me deste motivos para isso. - E era verdade. Jeremiah era um homem encantador e fora sempre bom para ela. Era generoso, delicado e ponderado, mas mantinha uma certa distância entre os dois, não lhe dando qualquer esperança para o futuro. Além daquele dia, havia sete anos de sábados atrás deles. Mas aquela situação não irritava Mary Ellen, só a entristecia de vez em quando. Passava toda a semana à espera dele.

- Vou partir de viagem em breve. - Jeremiah costumava dar-lhe a notícia com antecedência. Fazia parte do seu modo de ser: generoso, delicado e ponderado.

- Para onde desta vez?

- Para o Sul. Para Atlanta. - Ia frequentemente a Nova Iorque, e no ano anterior fora a Charleston, na Carolina do Sul. Mas nunca a convidava para o acompanhar. Negócios eram negócios. E dessa vez não seria diferente das outras. - Serão só os dias necessários de ir, fazer o negócio e voltar. Talvez duas semanas no total. - Fez-lhe uma carícia no pescoço com o nariz e beijou-a. - Vais ter saudades minhas?

- Que te parece. - A voz era abafada pelo desejo. - E voltaram a desaparecer para baixo dos lençóis.

- Acho que é uma loucura ir para não sei onde... - E voltou a provar-lhe isso mesmo, apertando-a nos seus braços, enquanto ela, contorcendo-se de prazer, soltava estridentes gritos de deleite que teriam sido ouvidos por toda a vizinhança se ele não tivesse tido o bom senso de fechar as janelas. Jeremiah conhecia-a bem. Era, pois, impossível que não tirassem o máximo proveito das noites de sábado.

Na manhã seguinte, enquanto ela fazia salsichas com ovos, um pequeno bife e pão de milho no velho forno da cozinha, Jeremiah sentia-se um homem novo. No Inverno anterior, oferecera-se para lhe comprar um forno novo, mas ela achara que não era necessário. A ambição não fazia parte do seu caráter, para desgosto de sua mãe. Esta recordava frequentemente à filha que Jeremiah era um dos homens mais ricos do estado e que ela era a rapariga mais tola que conhecia Mas Mary Ellen desprezava tais considerações. Tinha tudo o que queria... pelo menos, uma vez por semana, o que era melhor que todos os dias com um homem inferior. Não tinha de que se queixar. Era livre de fazer o que muito bem lhe apetecesse. Jeremiah nunca lhe perguntava o que fazia no resto do tempo. Há anos que, por sua livre vontade, não mantinha qualquer contato com nenhum outro homem. Se algum se tivesse acercado dela com propósitos sérios, não teria sido obrigada a repeli-lo. Jeremiah tinha o cuidado de não lhe exigir nada.

- Quando partes para o Este? - perguntou Mary Ellen, enquanto comia o pão de milho e observava o rosto de Jeremiah. Este tinha uns maravilhosos olhos azuis que quando a fitavam lhe derretiam a alma.

- Dentro de poucos dias. - Jeremiah sorriu, sentindo-se restaurado. Dormira bem, não antes de fazer amor durante várias horas. - Quando regressar, aviso-te.

- Vê lá se não encontras a rapariga dos teus sonhos em Atlanta.

- Porque faria eu uma coisa dessas? - Pegou na xícara de café e riu-se. - Depois da noite que passamos, como podes dizer tal coisa?

Mary Ellen esboçou um sorriso de prazer.

- Nunca se sabe.

- Não sejas tonta. - Jeremiah inclinou-se, beijando-lhe a ponta do nariz e, quando Mary Ellen fez o mesmo para receber o beijo, ficou excitado ao olhar para o seu decote. Ela trazia um roupão de cetim cor-de-rosa que ele lhe comprara na sua última viagem à Europa para visitar os vinhedos franceses. Jeremiah deslizou então a mão até aos seios da mulher, que receberam calorosamente os seus dedos. Sentiu um tremor por todo o corpo. Não conseguindo resistir por mais tempo, pousou a xícara, contornou a mesa e aproximou-se dela. - Ias a dizer alguma coisa, Mary Ellen. - A voz soou como um sussurro rouco. Jeremiah tomou-a nos braços e dirigiu-se para a escada com a sua irresistível carga.

- Ia a dizer... que não queria que fosses... - Jeremiah afogou as palavras dela nos seus lábios e, pouco depois, depositou-a novamente em cima da cama. Abriu-lhe o roupão, deixando à vista a sua pele desnudada. Era difícil ver onde terminava o cetim do roupão e começava a seda da sua pele. Puxou-a contra si e possuiu-a de novo. E reataram a batalha amorosa, que durou até ao anoitecer, altura em que ele, finalmente, voltou para casa, cansado, feliz e saciado. Mary Ellen Browne deixara-o em paz consigo próprio e com o mundo. Quando largou o cavalo no estábulo de Santa Helena, só se recordava da angústia que passara na noite anterior. Quando entrou em casa, praticamente nem força tinha para se despir. Ao fazê-lo, ainda conseguiu sentir o aroma a rosas do perfume de Mary Ellen, e adormeceu de sorriso nos lábios e o pensamento nela

 

- Vê lá se te portas bem enquanto estiveres fora! - Hannah olhou-o com ar furioso, de dedo em riste, como se estivesse a falar com um miúdo.

Jeremiah riu-se.

- Pareces a Mary Ellen.

- Talvez te conheçamos demasiado bem.

- Está bem, está bem, portar-me-ei como deve ser! - disse, dando um beliscão na bochecha da velhota. Parecia cansado. Tivera uma semana difícil, e ela sabia-o bem. Fora ao funeral da esposa e dos dois filhos de John Harte. E existiam já alguns casos da terrível gripe nas Minas Thurston, mas ninguém morrera até ao momento, e Jeremiah exigia que todos fossem vistos pelo médico ao primeiro sintoma. Teria gostado de suspender a viagem para o Este, mas não podia fazê-lo. Orville Beauchamp insistira, em resposta ao telegrama que Thurston lhe enviara, em que, se queria fechar o negócio, deveria ir pessoalmente quanto antes. E Jeremiah esteve quase a mandá-lo para o diabo e ceder o negócio a John Harte, mas este não se encontrava em condições de falar de negócios, e muito menos de viajar, por isso Jeremiah resolveu seguir em frente e apanhar o comboio para Atlanta. Contudo, não esperava grande coisa daquela viagem. Apesar das boas condições que o negócio oferecia, continuava a haver no homem da Geórgia algo que o preocupava.

Antes de partir, pespegou um beijo na testa de Hannah, percorreu com o olhar a acolhedora cozinha, pegou na mala de couro com uma mão, na pasta preta com a outra, e, de charuto apertado entre os dentes e os olhos semicerrados por causa do fumo, saiu. Levava um enorme chapéu preto descaído sobre os olhos, que lhe dava um certo ar diabólico. Encaminhou-se apressadamente para a carruagem que o aguardava, atirou a bagagem para cima dela, sentou-se ao lado do rapaz que conduzia os cavalos e tirou-lhe as rédeas das mãos.

- Bom dia, senhor.

- Bom dia, rapaz.

Jeremiah exalou uma espessa nuvem de fumo. Depois, deu uma pancadinha com o chicote nos cavalos e a carruagem arrancou, avançando numa marcha suave pela estrada principal. Jeremiah conduzia sem trocar qualquer palavra com o rapaz, absorto no negócio que devia fechar em Atlanta Mas o rapaz observava-o absolutamente fascinado: os olhos semicerrados, o sobrolho franzido pela concentração, o elegante chapéu, os ombros largos, as enormes mãos e as roupas imaculadamente limpas. O rapaz achava aquele homem demasiado limpo para ser mineiro, apesar de dizerem que trabalhava nas minas. Era difícil imaginar aquela criatura poderosa e enorme a comprimir-se para entrar numa mina. Aos olhos do rapaz, parecia ainda mais corpulento do que na realidade era.

Quando estavam a meio caminho de Napa, Jeremiah voltou-se para o rapaz e, sorrindo, perguntou-lhe:

- Quantos anos tens, rapaz?

- Catorze. - Estava impressionado pela simples presença de Jeremiah, e gostava do cheiro forte e másculo do charuto. - Bem... faço-os em maio.

- Que tal vai o trabalho nas minas?

- Bem, senhor. - A voz tremeu-lhe ligeiramente, mas Jeremiah não estava a pô-lo à prova, estava apenas a recordar-se da sua própria vida quando tinha catorze anos

- Também trabalhava nas minas quando tinha a tua idade. É um trabalho muito duro para um rapaz... Na realidade, para qualquer pessoa. Gostas?

O rapaz fez uma longa pausa, depois resolveu ser sincero. Confiava no ar bondoso do homenzarrão do charuto

- Não, senhor, não gosto. É um trabalho muito sujo. Penso fazer qualquer coisa muito diferente quando for grande.

- O quê, por exemplo? - Jeremiah ficou intrigado, tanto com o próprio rapaz como com a sua sinceridade

- Uma coisa mais limpa. Trabalhar num banco, por exemplo. O meu pai diz que é um trabalho para os fracotes, mas eu acho que gostaria. Dou-me bem com os números. Faço somas de cabeça com maior rapidez do que outras pessoas no papel.

- A sério? - Jeremiah tentou manter um ar sério, mas os seus olhos mostravam que as explicações do rapaz o divertiam. Havia uma força no jovem que o enternecia. - Gostarias de me ajudar aos sábados de manhã.

- Ajudá-lo? - O rapaz ficou atônito. - Oh, sim, senhor

- Vou ao escritório todos os sábados de manhã e saio de lá por volta do meio-dia, porque são as horas mais calmas da semana. Podes ajudar-me com os números. Não sou tão rápido a fazer as somas como tu. - Jeremiah riu-se. Os olhos negros do rapaz pareceram, de repente, moedas de vinte e cinco cêntimos. - Que te parece.

- Fantástico! Fantástico! - O rapaz pôs-se praticamente aos pulos no assento, mas moderou, de imediato, as expressões de alegria para parecer mais crescido, o que também divertiu Jeremiah

Gostava do rapaz. Na realidade, gostava da maioria das crianças, e elas também gostavam dele. Enquanto conduzia a carruagem em direção a Napa, deu consigo a pensar nos filhos de Mary Ellen. Eram simpáticos. A mãe soubera educá-los bem. Aquela mulher carregava um pesado fardo, mas nunca permitira que ele a ajudasse E ele não ajudara, sobretudo no que dizia respeito aos filhos. Só os via em esporádicos piqueniques ao domingo à tarde. Nunca estava presente quando se encontravam doentes, nem quando causavam problemas na escola, nem quando ela tinha de os repreender, de lhes dar um açoite ou de lhes pegar ao colo. Só os via nas suas melhores horas de domingo, e mesmo assim com pouca freqüência. Perguntou-se se a deveria ter ajudado mais no que respeitava aos filhos, mas isso era algo que ela não parecia esperar dele. Não esperava mais do que o que já tinha o corpo de Jeremiah enleado no seu ao longo de horas de intenso prazer, duas vezes por semana, na casinha de Calistoga. Então, de repente, como se achasse que o rapaz lhe conseguia ler os pensamentos, Jeremiah fitou-o com ar preocupado.

- Gostas de raparigas, rapaz? - Não sabia o nome do rapaz, mas não quis perguntar-lhe. Não precisava de o fazer, sabia de quem era filho. O pai era um dos seus melhores mineiros, um homem que tinha mais nove filhos, a maioria dos quais raparigas. O rapaz era um dos três irmãos que trabalhavam nas minas, precisamente o mais novo deles.

O rapaz encolheu os ombros como resposta à pergunta que Jeremiah lhe fizera sobre as raparigas.

- A maioria delas é parva. Tenho sete irmãs, e quase todas são completamente estúpidas.

Jeremiah riu-se com a resposta.

- Nem todas as mulheres são estúpidas. Acredita, rapaz, são muito poucas as que o são. Muito poucas! - Soltou uma sonora gargalhada e deu uma puxada forte no charuto. Certamente, Hannah não tinha nada de estúpida, nem Mary Ellen, nem a maioria das outras mulheres que conhecia. De fato, quase todas dissimulavam a sua inteligência. Era algo que gostava de ver nas mulheres, fingir desamparo e simplicidade quando, na realidade, por baixo dessa máscara, havia uma mente mais afiada do que uma navalha. Dava-lhe gozo entrar nesse jogo. Então, de repente, deu-se conta de que talvez estivesse aí a razão de nunca ter querido casar com Mary Ellen. Ela não se entregava a esse jogo. Era direta e sincera no amor, e diabolicamente sensual, mas não havia qualquer mistério nela. Ele sabia exatamente o que ela lhe podia dar, e até que ponto ia a sua inteligência, mas mais nada... Não havia nela nada para adivinhar, nada para descobrir, nem a mais leve discussão, e isso sempre fora algo que o intrigara. Pelo menos nos últimos anos, ele parecia preferir um pouco mais de complexidade do que a que tivera noutros tempos, e interrogou-se se isso não seria um sinal de velhice. O pensamento divertiu-o. Olhou novamente para o rapaz com um sorriso de entendido. - Não há nada mais bonito do que uma mulher bonita, rapaz - e riu-se de novo -, exceto, talvez, uma colina verdejante, salpicada de flores silvestres. - Nesse momento, tinha uma diante de si, e sentiu o coração destroçado ao passarem por ela. Detestava deixar aquelas terras para ir para o Este. Até regressar, faltaria algo à sua vida, à sua alma. - Gostas do campo?

O rapaz não se mostrou impressionado, sem saber o que Jeremiah queria dizer com aquilo, e resolveu jogar pelo seguro. Já fora suficientemente descarado para uma só manhã, e agora não queria deitar a perder o que o homem lhe prometera para as manhãs de sábado.

- Sim.

Jeremiah, pela vacuidade de expressão daquele monossílabo, percebeu que o rapaz não entendera nada do que ele queria dizer:... o campo... a terra... ainda se recordava da emoção que sentia com a idade do rapaz quando apanhava um punhado de terra e a apertava na mão... «É tua, rapaz, tua... toda tua... cuida bem dela...» A voz do pai ainda lhe ecoava nos ouvidos. Começara com uma coisa tão pequena, que fora ampliando e melhorando com o tempo, e agora possuía uma vasta extensão de terras no vale que amava. Esse amor tinha de nascer conosco e de desenvolver-se dentro de nós, não era algo que pudesse adquirir-se com a idade. Fascinava-o o fato de nem todos os homens o terem, mas, mais tarde, chegou à conclusão de que era um amor que muito poucos sentiam. E era algo de que as mulheres careciam em absoluto. Não compreendiam aquela paixão por um «monte de imundície», como uma delas lhe disse um dia. Nem elas, nem o rapaz que naquele momento viajava a seu lado, mas Jeremiah não se importava. Um dia, o rapaz iria trabalhar para um banco, e seria feliz a lidar com papéis e somas o resto da vida. Não havia nada de mau nisso. Mas se Jeremiah tivesse podido seguir plenamente os seus desejos, teria cultivado a terra a vida inteira, vagueado pelos vinhedos, trabalhado nas minas, para à noite chegar a casa completamente exausto, mas satisfeito até ao mais profundo do seu ser. Esse aspecto econômico das coisas interessava-o menos do que a beleza natural e o trabalho manual exigido para as conservar.

Pouco faltava para o meio-dia quando chegaram a Napa, depois de deixar para trás os seus subúrbios e as cuidadas casas das ruas Pine e Coombs com os seus relvados bem tratados. Viam-se também belas mansões cercadas de frondosas árvores que não eram muito diferentes das que Jeremiah possuía em santa Helena. A diferença era que a mansão de Jeremiah dava a impressão de não ser estimada nem usada. Era a casa de um solteirão, o que se refletia no seu aspecto exterior, apesar dos esforços de Hannah. Era o lugar onde Jeremiah vivia e dormia, mas as suas minas e as suas terras significavam mais para ele. E isso era visível. A influência de Hannah só se fazia sentir na acolhedora cozinha e na horta. Em Napa, por outro lado as casas eram governadas por dedicadas matronas, que tinham o cuidado de manter as cortinas de renda das janelas sempre limpas, os jardins repletos de flores e os pisos superiores das casas cheios de crianças. As casas eram muito bonitas e Jeremiah gostava de as contemplar quando passava diante delas. Conhecia muita gente ali, e também era conhecido, mas levava uma vida mais rural do que os habitantes de Napa, e o centro da sua vida residira sempre nos negócios e não na vida social, muito mais importante em Napa.

Antes de embarcar, passou pelo Banco de Napa, situado na Rua Um, para levantar o dinheiro necessário para a viagem para Atlanta. Deixou o rapaz no exterior, na carruagem, e apareceu, pouco depois, a olhar para o relógio de bolso com uma expressão satisfeita. Teriam de se apressar para apanhar o barco para São Francisco. O rapaz teve o prazer especial de acelerar o trote dos cavalos, enquanto Jeremiah dava uma vista de olhos a alguns papéis. Chegaram a tempo, e Jeremiah saltou da carruagem e pegou na bagagem. Ficou alguns instantes a sorrir para o rapaz.

- Vemo-nos no primeiro sábado depois do meu regresso. Vem às nove da manhã. - De repente, lembrou-se do nome do rapaz: - Danny. Até então, Dan. E cuida de ti durante a minha ausência.

Jeremiah não conseguiu evitar a recordação de Barnaby Harte, morto pela gripe, e sentiu um nó na garganta, enquanto o rapaz, sorridente, lhe dizia adeus com a mão. Subiu então para o barco a vapor que o levaria para São Francisco. Reservara um pequeno camarote, como sempre fazia nas viagens para a cidade. Sentou-se rapidamente e tirou um molho de folhas da pasta. Teria muito trabalho para fazer nas cinco horas de viagem. O Zinfandel era um barco muito bonito, e Danny contemplava, fascinado, a roda de pás a afastar-se do cais.

À hora do jantar, Jeremiah saiu do camarote e sentou-se a uma mesa. Uma mulher que viajava com quatro filhos e uma ama fitou-o várias vezes desde o outro extremo da sala, mas ele só deu por isso quando a jovem senhora, embaraçada por não ter conseguido chamar a atenção daquele gigante bem-parecido, saiu da sala e o olhou com ar altivo. Pouco depois, Jeremiah estava na coberta, a fumar um charuto e a olhar para as luzes de São Francisco, enquanto o Zinfandel atracava. Pensava mais que de costume em Mary Ellen, sentia-se surpreendentemente só, Depois de desembarcar, dirigiu-se para o Hotel Palace na carruagem do mesmo. Aí esperava-o a suíte do costume. De tempos a tempos, visitava uma casa de má reputação cuja patroa não lhe desagradava, mas agora não se sentia inclinado a fazê-lo. Em vez disso, ficou no quarto a contemplar a cidade e a pensar noutros tempos. A noite passada com John Harte deixara-lhe uma sensação de melancolia de que não conseguia libertar-se, inclusive ali, num lugar que se encontrava a anos-luz de Napa, das suas belezas e angústias.

O próprio hotel só tinha onze anos e oferecia todas as comodidades possíveis. Incapaz de dormir, Jeremiah desceu e deu uma volta pelo vestíbulo. Estava cheio de gente vestida com roupas caras, de mulheres que exibiam jóias resplandecentes, de casais que regressavam de jantares e festas. Havia um esplendoroso ambiente de festa. Jeremiah foi então dar um passeio pela Market Street, voltando depois para o hotel a fim de se deitar. Iria ter um dia cheio de compromissos antes de partir para Atlanta na noite seguinte. Não o atraía muito a longa clausura no comboio. As viagens de comboio sempre o haviam aborrecido. Já na cama, antes de adormecer, perguntou-se por que razão nunca se lembrara de trazer Mary Ellen, mas achou a idéia totalmente absurda. Ela não pertencia àquela parte da sua vida nem nenhuma outra mulher, não havia lugar para ninguém na sua vida de negócios nem na sua vida privada ou será que havia. Adormeceu antes de encontrar a resposta e, na manhã seguinte, já esquecera por completo a pergunta. Tinha apenas uma vaga sensação de mal-estar quando tocou a campainha para lhe servirem o pequeno-almoço. Este chegou, meia hora depois, numa enorme bandeja de prata, juntamente com o casaco, que pedira para engomar na noite anterior, e os sapatos, engraxados na perfeição. Não havia a menor dúvida de que o Palace era um dos melhores hotéis do país, e Jeremiah sabia não existia nenhum outro em Atlanta que se lhe pudesse comparar, coisa que não o preocupava minimamente. O que temia eram os seis intermináveis dias de comboio até à Geórgia.

Como não havia compartimentos privados disponíveis, reservara uma carruagem para seu uso particular. Num extremo, havia um pequeno bar. Também tinha à sua disposição uma zona com uma secretária onde podia trabalhar com o comboio em andamento, e uma cama facilmente dissimulável. Sempre que viajava de comboio sentia-se como um animal enjaulado. E a comida que serviam nas estações não era grande coisa. A única vantagem daquela viagem residia na oportunidade de trabalhar, pois não teria ninguém com quem falar durante os seis dias de travessia do país.

No segundo dia de viagem, quando se apeou na estação de Elko, Nevada, sentia-se já desesperadamente cansado. Entrou no restaurante para tomar uma refeição breve e previsivelmente indigesta, composta de alimentos fritos, como todas as refeições que lhe haviam servido, e apercebeu-se da presença de uma mulher surpreendentemente atraente. Não parecia ter mais de trinta e cinco anos, era pequena e esbelta, e tinha cabelos negros como os seus. Os olhos eram enormes, quase violáceos; a pele, delicada e cremosa. Jeremiah reparou que vestia com elegância. O vestido de veludo só poderia ter vindo de Paris. Deu consigo a fitá-la durante a refeição, e não conseguiu resistir à tentação de lhe falar quando saíram do restaurante ao mesmo tempo, em passo apressado, para não perderem o comboio. Jeremiah manteve a porta aberta para que ela saísse, e ela esboçou um sorriso e corou, o que ele achou realmente encantador

- É uma viagem cansativa, não acha? - disse ele, enquanto acelerava o passo em direção ao comboio

- Eu diria terrível - respondeu ela, e riu-se.

Jeremiah reparou, pelo sotaque, que era de origem britânica. Trazia um anel na mão esquerda com uma safira enorme e deslumbrante, mas não vislumbrou nenhum anel de noivado. Ficou intrigado, o suficiente para, nessa tarde, percorrer o comboio à sua procura. Encontrou-a na carruagem-salão, a ler um livro e a beber uma xícara de chá. Ela levantou os olhos para ele com ar surpreso e Jeremiah sorriu-lhe, sentindo subitamente uma certa timidez. Não sabia o que dizer-lhe, mas não conseguira tirá-la da cabeça durante toda a tarde, coisa rara nele. Havia nela um estranho magnetismo. De repente, a mulher fez-lhe sinal para se sentar num assento vazio em frente dela.

- Não se quer sentar?

- Não se importa?

- De modo nenhum.

Jeremiah sentou-se diante dela e apresentaram-se. Ela chamava-se Amélia Goodheart, e ele não tardou a saber que há mais de cinco anos que ficara viúva e que ia para Sul visitar uma filha e o segundo neto recentemente nascido. O primeiro nascera em São Francisco semanas antes. Amélia Goodheart vivia em Nova Iorque.

- A sua família está muito dispersa. - Jeremiah sorriu, fez uma pausa para apreciar o sorriso dela e admirar os seus olhos fascinantes.

- Demasiado dispersa para o meu gosto. As minhas duas filhas mais velhas casaram-se o ano passado. Os outros três ainda vivem comigo.

Amélia Goodheart tinha quarenta anos e era uma das mulheres mais bonitas que ele alguma vez conhecera. Jeremiah não conseguia desviar o olhar dela. Entretanto, chegou a hora de jantar, sem que ele fizesse menção de se levantar. Então, de repente, convidou-a para jantar quando parassem na estação seguinte. Desceram do comboio, de braço dado, e Jeremiah sentiu um tremor dentro de si enquanto caminhavam lado a lado. Era o tipo de mulher que se desejava proteger de todos os perigos e, ao mesmo tempo, exibir: «Olhem, ela é minha!» Era inimaginável que conseguisse sobreviver sozinha sequer uma hora. No entanto, era divertida e afetuosa, e demonstrava grande perspicácia. Enquanto falavam, Jeremiah sentia-se um adolescente disposto a cair aos seus pés. Estava cegamente apaixonado por ela. Depois de jantar, convidou-a a tomar uma xícara de chá na sua carruagem particular. Uma vez aí, Amélia falou do marido com afeto. Confessou a Jeremiah que dependera totalmente dele e que agora tentava a todo o custo conseguir desembaraçar-se sozinha no mundo; exemplo disso era aquela viagem para visitar as duas filhas mais velhas. Era óbvio que era a primeira aventura sozinha, que lhe estava a dar grande gozo, e perguntava-se por que razão não começara a fazer isso há mais tempo. Mesmo as menores inconveniências pareciam não a perturbar. Era a mulher perfeita, e Jeremiah, enquanto a fitava, cada vez se convencia mais de que ela era a mulher mais bela que alguma vez vira na vida

Pela primeira vez desde há muitos anos, uma mulher conseguira expulsar Mary Ellen Browne da sua mente. E tão diferentes que eram. Uma, simples, fiel, calejada pelo tempo e forte, a outra, mais delicada, mais complexa, mais elegante, mais equilibrada e, à sua maneira, talvez mais forte do que Mary Ellen. Sentia-se atraído pelas duas, mas, naquele momento, era Amélia que merecia a sua atenção. Ela referiu que só trouxera uma criada consigo, pois uma prima mais velha do que ela adoecera depois de se ter oferecido para a acompanhar, o que não impedira Amélia de fazer a viagem na mesma. Queria ver as suas meninas, «e de nada me serviria a companhia de outra mulher. A prima Margaret dificilmente conseguiria cuidar de mim»

Amélia riu-se do pensamento, o que provocou um sorriso em Jeremiah. Havia algo vulnerável naqueles olhos violetas, e, de repente, ele sentiu um forte desejo de a estreitar nos seus braços, mas não se atreveu a fazê-lo. Em vez disso, falaram da Europa e de Napa, dos vinhos que ele produzia, dos filhos dela, da infância dele e das suas ocupações atuais. Jeremiah não se teria importado de ficar ali sentado a falar com ela toda a noite, porém, quando já passava da meia-noite, viu-a reprimir um bocejo. Embora tivessem passado quase oito horas juntos, ele detestou o momento em que teve de a acompanhar à sua carruagem

- Não precisa de nada?

Amélia sorriu perante a expressão de preocupação de Jeremiah

- Creio que não. - E, com um sorriso ainda mais afetuoso, acrescentou - Muitíssimo obrigada pelas horas maravilhosas que me proporcionou.

Amélia deu-lhe um aperto de mão e Jeremiah voltou a notar o seu perfume. Já o sentira na sua carruagem e voltou a notá-lo quando regressou. Era um perfume exótico, fresco, profundamente sensual. A carruagem ficara tão impregnada daquele aroma, que Jeremiah teve a sensação de que Amélia continuava ali consigo. Era o que ele mais desejava desfrutar da sua presença numa viagem interminável.

Para Jeremiah, aquela noite pareceu-lhe uma eternidade. Passou-a a pensar na elegante mulher que conhecera e que dormia noutro lugar daquele comboio. Há muito tempo que não sentia aquela atração por uma mulher. Desceu, ansioso, na primeira estação em que o comboio parou, esperando vê-la caminhar pelo cais, a apanhar o ar fresco da manhã, mas só viu algumas criadas a passear os cachorros das suas patroas e um ou dois homens solitários a desentorpecer as pernas. De Amélia, nem rasto. Voltou para a sua carruagem particular, desiludido como uma criança. Finalmente, ao meio-dia, percorreu todo o comboio e descobriu-a a ler um livro e a tomar uma xícara de chá.

- Até que enfim que a encontro! - exclamou Jeremiah, como se tivesse encontrado uma criança perdida. Amélia levantou os olhos e esboçou um largo sorriso.

- Estive perdida

Jeremiah sorriu, completamente apaixonado por aqueles olhos que o fitavam.

- Para mim, esteve. Andei à sua procura durante toda a manhã.

- Mas eu estava aqui

Jeremiah mostrava-se impaciente por passar mais algum tempo na sua companhia, pelo que, sem rodeios, voltou a convidá-la para a sua carruagem particular. Ela aceitou sem hesitar, mas enquanto a conduzia pelo corredor do comboio, Jeremiah perguntou-se se não estaria a criar uma situação embaraçosa a Amélia. Afinal de contas, ele era um homem solteiro, e nunca se sabia quem é que poderia estar no comboio. Raramente tinha preocupações desse tipo, mas não queria prejudicar Amélia de modo nenhum.

- Não seja tonto, Jeremiah, já não sou nenhuma miúda pequena. - E fez um gesto com a mão elegante como que para afugentar os escrúpulos.

Jeremiah reparou na bela esmeralda que ela ostentava na mão. Ficou espantado com o fato de não ter medo de usar jóias no comboio, mas Amélia não parecia estar minimamente preocupada com isso. Na sua mente, cheia de coisas agradáveis, não tinha cabimento o receio de mexericos ou de ser roubada, nem tão-pouco muitos outros medos que afligiam as outras mulheres. Depois de dois dias juntos, Jeremiah nutria por ela uma admiração imensa. Quase lamentava não a ter conhecido anos antes, e foi isso mesmo que lhe disse. Amélia, ao ouvir as palavras, ficou visivelmente emocionada e acariciou-lhe o rosto com o olhar.

- Que palavras bonitas...!

- Digo e mantenho. Nunca conheci ninguém como você... Tem mais personalidade do que qualquer outra pessoa que conheço, Amélia. - Jeremiah olhou-a com ar terno. - O seu marido foi um homem cheio de sorte.

- Eu é que tive muita sorte. - A voz era tão suave como uma brisa de verão.

Jeremiah estendeu-lhe a mão. Sentaram-se em silêncio, de olhos fixos um no outro, enquanto a paisagem campestre deslizava perante eles. O resto do mundo deixara de existir.

- Nunca quis voltar a casar?

Amélia abanou a cabeça e esboçou um sorriso afável.

- Na realidade, não. Estou contente tal como estou. Bastam-me os filhos para me fazerem feliz e me manterem ocupada... a minha casa... os meus amigos...

- Deveria haver mais do que isso.

Trocaram outro longo olhar, e Jeremiah voltou a tocar-lhe ternamente nos dedos. Tinha umas mãos extremamente delicadas. Não era de estranhar que o marido lhe tivesse oferecido aqueles magníficos anéis. Combinavam bastante bem com ela, tal como as roupas caras e elegantes que usava. E, enquanto a fitava, Jeremiah interrogou-se como teria sido a sua vida se tivesse casado com uma mulher como aquela. Era estranho imaginá-la em Napa... e ele a voltar para casa depois de trabalhar todo o dia nas minas.

- Em que está a pensar? - Os olhos daquele homem fascinavam-na. Havia neles um mundo desconhecido.

- Em Napa... nas minhas minas... em como seria a minha vida consigo lá...

Amélia pareceu surpreendida ao ouvir as palavras; depois, sorriu.

- Suponho que seria uma vida muito interessante. Certamente muito diferente da de Nova Iorque. Na realidade, não conseguia sequer imaginá-la. Há índios no local onde vive?

Jeremiah riu-se.

- Sim, há alguns. Não da forma como os imagina. Mas agora são pessoas normais, muito dóceis.

- Já não ululam nem atiram machados de guerra? - Jeremiah abanou a cabeça e riu-se de novo da ironia de Amélia.

- Lamento, mas não.

- Que decepção, Jeremiah.

- Temos outras maneiras de nos divertirmos.

- Quais?

Jeremiah lembrou-se, de repente, das noites de sábado que passava em Calistoga, mas fez um esforço para pensar noutras coisas.

- São Francisco fica a apenas sete ou oito horas do lugar onde vivo.

- Passa muito tempo lá? - Jeremiah abanou a cabeça.

- Para dizer a verdade, não. Levanto-me às cinco da manhã, tomo o pequeno-almoço, saio para a mina e volto para casa ao anoitecer. Às vezes, muito mais tarde. Também trabalho ao sábado de manhã... - Hesitou por instantes... - e ao domingo. Já estou impaciente para voltar para as minas.

- Deve ser uma vida muito solitária, amigo. - A expressão de tristeza de Amélia tocou o coração de Jeremiah. - Que diferença é que poderia fazer àquela mulher o fato de ele trabalhar demasiado ou de estar só? - Por que razão é que nunca se casou, Jeremiah? - Parecia desolada.

- Se calhar, por estar sempre muito ocupado. De qualquer forma, já estive quase a dar o nó, há perto de vinte anos.

Jeremiah esboçou um sorriso de aparente despreocupação.

- Deve ser o meu destino.

- Não diga disparates! Ninguém devia envelhecer sozinho. - Mas era o que também lhe sucederia, a menos que voltasse a casar-se.

- As pessoas casam-se unicamente para não ficarem sozinhas quando envelhecerem?

- Claro que não. Casam-se para terem companhia, amizade, amor... alguém com quem rir, falar, partilhar as alegrias e as tristezas, alguém que possam acariciar, amar, que lhes dê proteção, alguém com quem possam sair para contemplar as primeiras neves... - Enquanto falava, Amélia pensava no olhar da filha, extremamente apaixonada pelo marido e pelo filho recém-nascido. E, levantando os olhos para Jeremiah, acrescentou: - Não creio que saiba do que estou a falar, já perdeu muita coisa da vida. Os meus filhos são a maior alegria da minha vida. E para si nunca é demasiado tarde. Não seja tonto, Jeremiah! Deve haver um milhar de mulheres à sua espera, escolha uma, case-se com ela e tenha um montão de filhos antes que seja tarde. Não se prive dessas coisas...

Jeremiah ficou surpreendido com a veemência daquelas palavras. Havia algo no tom de voz de Amélia que lhe tocava o coração.

- Está a dizer-me para pensar duas vezes na vida que tenho levado. - Jeremiah sorriu e recostou-se no assento de veludo verde-escuro. - Talvez tenha de me salvar de mim mesmo casando-se comigo na primeira cidade em que paremos. Que acha que diriam as suas filhas?

Amélia riu-se, mas tinha um olhar terno quando respondeu.

- Diriam que eu enlouquecera, e, desta vez, teriam razão.

- Acha que sim? - O olhar de Jeremiah cravou-se no dela.

- Acho.

- Acha que seria uma loucura... você e eu...?

Amélia sentiu um estranho calafrio percorrer-lhe a espinha. Havia um ar sério no olhar de Jeremiah, e ela não queria brincar com os sentimentos dele. Não passavam de dois estranhos num comboio, mas Amélia sabia que aquele homem não lhe era indiferente. Porém, ainda lhe restava algum bom senso. Tinha uma vida para viver, uma casa em Nova Iorque, três filhos em casa para cuidar, duas filhas adultas e dois genros.

- Jeremiah, não brinque com uma coisa séria como essa. - A voz era tão suave como a seda e tão doce como um beijo na face de uma criança. - Gosto muito de si. Quero ser sua amiga, mesmo depois de deixarmos o comboio.

- Também eu. Case comigo! - Jeremiah nunca dissera uma loucura daquelas, e estava prestes a cometer a maior insensatez da sua vida, mas sentia-se consciente disso.

- Não posso. - Amélia deu-se conta de estar subitamente a empalidecer, depois corou, para voltar à sensação de palidez.

- Porque não?

Jeremiah falava muito a sério, o que piorou a situação. Amélia estava a começar a ficar assustada com o modo como ele a olhava.

- Por amor de Deus, Jeremiah, tenho três filhos para criar. - Era uma desculpa sem pés nem cabeça, mas também a única que lhe ocorrera.

- E daí. Poderíamos levá-los para Santa Helena. Não seríamos os únicos a criar os filhos aí. É um lugar respeitável, apesar dos índios. - Sorriu. - Construiremos uma escola especial para eles.

- Jeremiah! Pare! - Amélia levantou-se de um pulo. - Pare de dizer essas loucuras. Gosto de si, é um dos homens mais interessantes e decentes que conheci. Mas ainda mal nos conhecemos. Sou uma estranha para si, tal como você o é para mim. Não sabe se bebo, se sou meio louca, se jogo, se sou uma farsante, se bato nos filhos.. se assassinei o meu marido. - Um leve sorriso iluminou-lhe o olhar, e Jeremiah estendeu-lhe a mão, que ela tomou e beijou. - Belo homem, seja gentil comigo, não me provoque desta maneira. Na próxima primavera, faço quarenta e um anos, Jeremiah. Já sou demasiado velha para estes jogos. Casei-me com aquele que havia de ser meu marido quando tinha dezessete anos, e fomos felizes durante dezoito, mas já não sou uma rapariga nova, é difícil voltar a ter filhos... Agora sou avó. Não me estou a ver a fugir consigo para a Califórnia. Gostaria de o fazer. Era capaz de ser divertido, mas, dentro de alguns dias, você estará em Atlanta, e eu em Savannah, com o meu segundo neto. Devemos comportar-nos com sensatez se não quisermos que um de nós fique magoado, e creia que não quero que esse alguém seja você. Sabe o que desejo para si? Uma rapariga nova, uma dúzia de filhos, e um amor semelhante àquele que vivi durante vinte anos. Eu tive o meu, mas você não, e espero que o encontre muito em breve. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, e virou a cara.

Jeremiah aproximou-se e, sem dizer palavra, envolveu-a nos braços, apertou-a contra si e os seus lábios procuraram os dela. Amélia não o repeliu. Pelo contrário, beijou-o com um fervor e uma paixão que se vira obrigada a reprimir durante muitos anos. E ele fez o mesmo. Quando se voltaram a sentar, estavam quase sem alento.

- Você está louco, Jeremiah! - disse Amélia com pouca convicção, e ele sorriu-lhe

- Não. Posso ser muitas coisas, mas isso não. - E fixou novamente os seus olhos nos dela. - Você é a mulher mais espetacular que conheci. Espero que tenha consciência disso. Não se trata de uma ilusão momentânea, nem tão-pouco de um capricho. Em quarenta e três anos, só pedi a duas mulheres para se casarem comigo. E, se você quisesse, casaria consigo na próxima cidade em que o comboio parasse. E quer que lhe diga uma coisa? Seríamos felizes o resto das nossas vidas. Estou tão seguro disso como de estar aqui sentado.

O engraçado é que ela suspeitava de que Jeremiah tinha razão.

- Poderíamos sê-lo, mas também poderíamos não o ser. De qualquer modo, acho que o mais sensato é não o tentarmos

- Por quê?

- Talvez não seja tão corajosa como você. Preferia tê-lo só como amigo.

Para ele, depois do beijo que acabava de receber, não estava seguro de que era aquilo que Amélia queria. Para quebrar a tensão que começava a criar-se entre eles, Jeremiah levantou-se e dirigiu-se a um armário em madeira de nogueira, onde pusera uma dúzia de garrafas do seu melhor vinho.

- Quer tomar uma bebida? - Trouxe algumas garrafas do meu vinho

- Com muito gosto

Jeremiah desarrolhou a garrafa e encheu dois copos de vinho tinto, cheirou-o, pareceu satisfeito e deu o primeiro a Amélia.

- Aqui ninguém a verá a beber

Ela não o teria feito em nenhum outro lugar do comboio. O certo é que, desde o primeiro gole, ficou surpreendida com a finura daquele vinho e sentiu-se reconfortada ao bebê-lo. Aquele homem voltou a deixá-la impressionada. Enquanto pousava o copo em cima da mesa, olhou para ele com uma certa tristeza.

- Quem me dera não gostar tanto de si.

- Quem me dera que gostasse mais de mim.

E desataram os dois a rir. Apearam-se na estação seguinte e partilharam um jantar rápido. Antes de voltarem para o comboio, compraram um enorme cesto de fruta. Jeremiah ainda tinha queijo que sobrara do dia anterior. Comeram-no com fruta e beberam vinho pela noite dentro, enquanto discutiam a condição da espécie humana. A pouco e pouco, começaram a ficar ébrios e a rir de tudo o que diziam. Ambos sabiam que haviam encontrado um amigo para toda a vida. Amélia era a mulher mais atraente e inteligente que Jeremiah alguma vez conhecera. Durante os dias seguintes, ele absorveu todas as palavras de Amélia e partilhou todo o seu vinho com ela. Tomaram todas as refeições juntos, jogaram às cartas, riram, contaram anedotas e partilharam confidências que nenhum deles fizera antes a ninguém. Quando chegaram a Atlanta, Jeremiah sabia que estava mais do que ligeiramente apaixonado por Amélia. De fato, estava louco por ela e, ao mesmo tempo, sabia que Amélia nunca acederia a casar-se com ele. Jeremiah julgava saber o motivo. Nas profundezas da sua alma, ela ainda não conseguira libertar-se da memória do marido, e talvez nunca viesse a conseguir. Continuava a repetir insistentemente que Jeremiah precisava de uma rapariga nova e dos seus próprios filhos. Ele falou-lhe de John Harte e dos dois filhos falecidos, e confessou que não estava seguro de querer correr esse risco.

- Não conseguiria suportar a morte de um filho. Há muito tempo, perdi a mulher que amava, e isso foi suficiente - disse Jeremiah, a altas horas de uma noite, a meio da segunda garrafa de vinho.

- Não se pode viver com semelhante apreensão - retorquiu Amélia. Às vezes, na vida, temos de arriscar um pouco, sabe isso muito bem...

- Sem o seu coração, não... - Jeremiah fechou os olhos quando o rosto de Barnaby Harte apareceu de novo na sua mente. Não conseguiria suportar.

Amélia agarrou-lhe o braço.

- Tem de superar esse receio. Não perca a oportunidade. Ainda tem toda uma vida à sua frente... Aproveite... bolas! Não deixe passar a ocasião. Faça o que lhe digo. Procure a rapariga certa, vá atrás dela se for necessário, mas consiga o que deseja... o que precisa... o que merece...

- E o que é que preciso e mereço? - Nem sequer estava seguro do que queria.

- Uma rapariga com fogo... com paixão... com amor nas veias, uma rapariga tão cheia de vida que quase tenha de lançar-lhe o laço e prendê-la para a capturar.

Jeremiah riu-se.

- Parece que está a falar de si. É isso que eu deveria fazer consigo?

- Será melhor que não o faça, Jeremiah Thurston. Você sabe bem a que tipo de mulher é que estou a referir-me: uma pequena bola de fogo que o encha de calor, felicidade e alegria.

- Vai ser uma carga de trabalhos para mim. - Mas teve de admitir que, de certa forma, a idéia não lhe desagradava. - E onde é que posso encontrar uma rapariga dessas?

- Em qualquer lugar. Procure-a sem descanso, se necessário for. Ou talvez ela lhe venha a cair nos braços quando menos esperar.

- Até agora, ainda não o fez; pelo menos, até esta viagem. - Jeremiah olhou-a com ar malicioso e ela riu-se. Estivera prestes a deixar-se apaixonar por aquele homem. Mas não podia fazê-lo. Havia ainda muita coisa que ela queria fazer sozinha, e ele merecia algo melhor.

- Não se esqueça do que lhe disse! - insistiu, nos últimos momentos da viagem.

O comboio já estava a entrar na estação de Atlanta. Jeremiah já fizera as malas. Encontravam-se de pé na carruagem particular de Jeremiah, que dera as instruções necessárias para a deixarem à disposição de Amélia e da criada. A viagem até Savannah levar-lhes-ia só mais umas horas, mas não era nisso que Amélia estava a matutar. Só pensava nele, e ele nela.

- Por que diabo é que não quer casar comigo? - Jeremiah olhou-a ternamente, com um misto de paixão e desconsolo. - É uma tonta.

- Sei que sou. - Os olhos de Amélia encheram-se subitamente de lágrimas. - Mas quero algo melhor para si.

- Você é o melhor que existe.

Amélia abanou a cabeça, e as lágrimas deslizaram pelas faces enquanto esboçava um sorriso.

- Amo-o, meu querido amigo.

Amélia envolveu-o nos seus braços e ele puxou-a para si num abraço que durou até o comboio parar. Então, Jeremiah afastou-a um pouco de si para voltar a mirá-la.

- Também a amo. Cuide de si, minha querida. Irei vê-la a Nova Iorque muito em breve.

Amélia fez um gesto afirmativo com a cabeça e disse-lhe adeus com a mão quando desceu do comboio; Jeremiah fez o mesmo quando o comboio se pôs em marcha. Pensou então no destino que a trouxera até ele e que agora os separava. Nunca tivera uma mulher como ela na vida... e provavelmente não voltaria a ter... e o mais surpreendente era que ter-se-ia casado, sem pensar duas vezes, com aquela desconhecida. Era estranho. Apaixonara-se por Amélia em questão de dias, momentos... horas... e, com Mary Ellen Browne, tinha-se contentado com toda uma vida de domingos. A caminho do hotel, enquanto apreciava as vistas da cidade, Jeremiah pensou que aquilo era algo que merecia uma profunda reflexão.

 

A Casa Kimball erguia-se com esplêndida elegância sobre o horizonte de Atlanta. Um enxame de homens precipitou-se sobre Jeremiah para aligeirá-lo da bagagem e conduzi-lo até ao suntuoso vestíbulo, onde deambulava um exército de criados. A decoração era mais própria de um grande salão de baile do que de um vestíbulo de hotel. Comparativamente, fazia empalidecer a grandiosidade do Hotel Palace de São Francisco, mas Jeremiah continuava a preferir as comodidades, mais familiares, do Palace. Para ele, era o melhor hotel do mundo. Mas a Kimball ficava num excelente segundo lugar. Jeremiah recuperou a pasta na sua suíte, deu uma olhadela pelos aposentos, tomou uma bebida e, pouco depois, ouviu bater à porta E apareceu um criado de Mr. Beauchamp. Negro e impressionantemente alto, envergava uma luxuosa libré. Entregou-lhe um envelope de cor creme, fechado com um enorme selo dourado.

- Da parte de Mistress Beauchamp.

- Obrigado

Depois de abrir apressadamente o envelope, retirou o cartão e ficou a saber que o convidavam para jantar às oito dessa noite Horário francês, pensou, enquanto agradecia ao criado e lhe pedia que dissesse aos Beauchamp que podiam contar com ele. Fazendo uma pequena vênia, o homem, resplandecente na sua libré, desapareceu. Jeremiah vagueou pelos aposentos a pensar na noite que o esperava. O quarto estava maravilhosamente decorado com tecidos finos e antiguidades francesas, mas Jeremiah sentia um vazio à sua volta. Ouviu bater à porta. Era uma criada negra que trazia, numa bandeja de prata, um julepo (1) e um prato de bolachas acabadas de sair do forno. Geralmente, depois de uma longa viagem de comboio, era o que mais lhe teria apetecido, mas agora só conseguia pensar em Amélia. Dentro de poucas horas, ela estaria a chegar a Savannah, onde andaria atarefada a ajudar a filha.

 (1) Bebida à base de uísque com açúcar, gelo e menta (N do T)

 

Mas a única coisa que Jeremiah queria agora era voltar a estreitá-la nos braços. Perturbado por esse desejo, bebeu um longo gole de julepo e foi até à varanda contemplar a cidade. Crescera muito nos vinte anos que haviam decorrido desde a guerra civil e, em muitos aspectos, era uma cidade em expansão. Todavia, uma boa parte dela tinha a mesma aparência de antes da guerra, e Jeremiah sabia que os sulistas ainda estavam ressentidos por terem sido absorvidos pela União. Gostavam dos seus antigos costumes e continuavam amargurados por terem perdido a guerra. Por instantes, ficou curioso em saber como seriam os Beauchamp e os amigos. Sabia que eles tinham muito dinheiro, mas suspeitava que Beauchamp era um novo-rico exibicionista. Era fácil deduzir isso pela libré carregada de incrustações em ouro que o criado envergava e pelo enorme selo dourado do convite.

Jeremiah tomou banho e tentou dormir uma sesta antes de sair para o jantar, mas, quando se deitou na enorme cama de dossel, não conseguiu fazer outra coisa além de pensar na deslumbrante mulher de cabelos negros e enormes olhos escuros, quase tão escuros como as miçangas cor de azeviche que adornavam o seu vestido na noite em que se tinham conhecido. Porque seria que se recordava de todos os pormenores das suas roupas. Nunca tal lhe acontecera Mas a elegância, a beleza e a sensualidade que ela irradiava despertavam nele um desejo incontrolável de a ter perto de si. Sentiu um nó na garganta, que tentou desfazer com outro gole de julepo, mas nada parecia conseguir afugentar Amélia da sua cabeça, o que o fez perguntar-se como poderia falar de negócios com a cabeça cheia dela. O jantar dessa noite, porém, era simplesmente um ato de cortesia. Sabia que as conversações sobre o negócio só teriam lugar no dia seguinte. Os sulistas eram demasiado corretos para misturar os negócios com o prazer. Nessa noite, os Beauchamp limitar-se-iam a oferecer um jantar tranqüilo em sua casa, para mostrar ao incivilizado homem do Oeste um pouco da hospitalidade do Sul. Enquanto vestia a jaqueta, sorriu para a sua própria imagem refletida no espelho, de fato branco vestido. Contrastava vivamente com a pele bronzeada e os cabelos negros, como os de Amélia.. Amélia... Amélia... Amélia... Quem lhe dera nunca ter saído do comboio! Desceu para o vestíbulo e dirigiu-se à carruagem que Orville Beauchamp lhe enviara.

O criado foi lesto a saltar para o chão e a abrir-lhe a porta; depois voltou a saltar para o lado do cocheiro, enquanto uma infinidade de damas elegantes com deslumbrantes vestidos de noite, acompanhadas de cavalheiros impecavelmente trajados, passavam junto deles a caminho de jantares, concertos e outros acontecimentos sociais que constituíam a vida noturna de Atlanta.

A carruagem disparou pela esplendorosa Peachtree Street abaixo, entrando na zona residencial da cidade, em direção à casa dos Beauchamp, cuja suntuosidade estava quase à altura das demais ao seu redor. Era uma casa relativamente nova, construída, obviamente, depois da guerra. Não era excessivamente extravagante, mas podia dizer-se que era bonita. De repente, Jeremiah lamentou que Amélia não estivesse ali com ele a partilhar a noite. Depois, teriam regressado ao hotel e passado um bom bocado a comentar as vestimentas e os pontos fracos dos convidados, a rir e a beber um pouco mais do vinho que ele trouxera de Napa. E era em Amélia que ele pensava quando cumprimentou Elizabeth Beauchamp, a outrora bela mas agora apagada esposa de Orville Beauchamp. Era uma loura bastante pálida, de pele branca como o vidro leitoso e olhos que pareciam chorar de desespero. Elizabeth Beauchamp transmitia uma imagem de extrema fragilidade, dando a impressão de se poder finar a todo o momento, mas também não parecia muito preocupada com essa eventualidade. Com a sua voz triste e queixosa, falava constantemente dos tempos anteriores à guerra e da sua vida na plantação «do papá». Orville parecia não ouvir nada do que ela dizia, embora, de vez em quando, a repreendesse, dizendo-lhe:

- Basta, Lizabeth! Aos nossos convidados não lhes interessa a tua vida na plantação do teu pai. Tudo isso já passou.

Estas palavras pareciam fustigá-la como um chicote, fazendo-a mergulhar silenciosamente nas suas próprias reminiscências. Orville era de uma linhagem completamente distinta, menos aristocrática do que a da esposa. De feições mais rudes, Beauchamp fechava constantemente os olhos como se estivesse a pensar em algo importante. E era evidente que a única coisa importante para Orville eram os negócios. Tinha cabelos tão escuros como os de Jeremiah e a tez morena. Explicou que os seus avós eram do Sul de França, e que tinham vindo para Nova Orleães antes de se mudarem para a Geórgia. E não escondeu que não possuíam nada quando chegaram, tal como o seu pai trinta anos depois. Foi Orville quem fez a primeira fortuna da família, quem tirou partido da industrialização do Sul durante e depois da guerra. Construíra um pequeno império, que ainda não era tão grande como desejava, mas seria um dia, especialmente com a ajuda de Hubert, o seu filho, que tinha o mesmo nome do avô de Orville.

No entanto, Jeremiah teve a impressão de que Hubert não era tão esperto como o pai. Tinha a mesma voz queixosa da mãe e parecia muito mais interessado em gastar o dinheiro do pai do que em fazer o necessário para o ganhar. Falou dos cavalos de corrida que comprara no Kentucky e do bordel de que mais gostava em Nova Orleães. Em suma, foi uma noite entediante para Jeremiah. Também estavam presentes dois outros membros do consórcio com que ia negociar. Eram homens de mais idade, com opiniões fortes e esposas desinteressantes, as quais passaram a maior parte da noite a cochichar umas com as outras. Jeremiah reparou que praticamente não dirigiam a palavra a Elizabeth Beauchamp, que parecia ignorá-las por completo. Era fácil de ver que ela as considerava de um nível muito mais baixo que o seu, dadas as suas raízes aristocráticas na plantação «do papá».

Outra coisa que não passou despercebida a Jeremiah foi a singular obsessão da família Beauchamp pela fortuna dos outros, por quanto dinheiro tinha fulano ou beltrano e como o haviam conseguido. Elizabeth perdera tudo com a guerra. O pai suicidara-se depois da destruição da sua plantação, e a mãe morrera, pouco tempo depois, com o desgosto. Talvez mais pela fortuna que perdera do que pelo desaparecimento do marido, pensou Jeremiah.

Os Beauchamp também tinham uma filha que, segundo Orville, era uma «jóia perfeita», mas, a julgar pelo que vira, Jeremiah punha sérias dúvidas. Nessa noite, fora a um baile... - com todos os rapazes de Atlanta atrás de si, com toda a certeza - disse o orgulhoso papá, antes de acrescentar: - E têm razão para isso... O vestido custou-me uma fortuna.

Jeremiah esboçou um sorriso amarelo ao ouvir tais palavras, cansado da obsessão que aquela gente tinha por dinheiro, e, à medida que a monotonia grassava à sua volta maior era o desejo de estar com Amélia em Savannah. Que diferença de ambiente teria encontrado aí, e riu-se dos seus pensamentos. Não era propriamente a mudança de atmosfera que o atraía, mas a oportunidade de estar perto de Amélia, de inalar o seu sensual perfume, de beijar os seus lábios e de passar horas a olhar para ela. O mero fato de pensar nela animou os seus lábios com um sorriso, que Elizabeth Beauchamp julgou ser dirigido a si. A mulher deu umas débeis palmadinhas na mão antes de se levantar e conduzir as senhoras para a outra sala, enquanto os homens fumavam charutos e bebiam conhaque. Só então é que veio à baila o negócio que o trouxera a Atlanta, o que foi um alívio depois daquela noite incrivelmente fastidiosa.

Jeremiah ganhou novo alento quando os primeiros convidados saíram pouco depois das onze, aproveitando para se despedir, com o pretexto de que estava exausto da longa viagem e queria voltar para o hotel a fim de descansar antes de começar as negociações na manhã seguinte. A carruagem de Beauchamp levou-o de novo até ao hotel, e, meia hora depois, encontrava-se na varanda da sua suíte a contemplar a cidade. Pensou novamente nas horas que partilhara com Amélia e pareceram-lhe quase um sonho. Os Beauchamp estavam já esquecidos. Só pensava nela.

- Boa noite, amorzinho - sussurrou, enquanto voltava para o quarto, a pensar de novo nas palavras de Amélia «.. Case-se, Jeremiah... tenha filhos!» Mas não eram filhos que desejava ter naquele momento. Só a queria ter a ela. «Amo-o!», dissera-lhe Amélia. «Amo-o.» Palavras fortes de uma mulher forte. O espírito e o coração pareciam transbordar dela quando, pouco depois, se deitou, sentindo-se desesperadamente só na elegante cama de dossel.

 

As negociações com o consórcio de Orville Beauchamp chegaram a bom termo e, ao fim de uma semana após a chegada de Jeremiah a Atlanta, o negócio foi fechado. Jeremiah comprometia-se a enviar-lhes novecentos frascos de mercúrio para serem distribuídos entre eles; destinavam-se à fabricação de munições e armas de fogo de pequeno calibre, assim como para a indústria mineira de todo o Sul. Jeremiah ganharia um pouco mais de cinqüenta mil dólares no negócio. Ficou extremamente satisfeito com os termos do contrato, que também satisfizeram Orville Beauchamp, o qual cobraria uma comissão por ter conseguido o negócio. Na realidade, ele fizera vários subcontratos relativos à revenda do seu quinhão de mercúrio. Ao contrário dos outros, este não se destinava a ser usado nas suas fábricas. Orville era mais um intermediário e um negociante de cavalos, e interessavam-lhe os negócios rápidos e chorudos. Fechado o contrato, Beauchamp estendeu a mão a Jeremiah.

- Acho que deveríamos celebrar logo à noite, caro amigo.

Desde o instante em que as negociações se iniciaram, cessara a vida social entre eles. Jeremiah jantara todas as noites no hotel. Os Beauchamp não o haviam voltado a convidar para jantar, mas agora existia motivo para celebração. Os sete sulistas e as respectivas esposas, assim como Jeremiah, foram convidados para jantar em sua casa.

- A Lizabeth terá imenso prazer nisso - insistiu Orville, radiante de satisfação.

Todavia, Jeremiah não conseguia imaginar Elizabeth Beauchamp a sentir prazer com a presença de quinze parceiros de negócios ao jantar. Mas o problema era de Orville, não dele. Depois daquela longa semana, Jeremiah sentia-se cansado e ansioso por voltar para casa. Só tinha comboio daí a três dias, pelo que ficou retido em Atlanta durante aquele fim-de-semana, sem nada para fazer, para grande contrariedade sua. Esperava com ansiedade o momento do regresso a casa.

Por uma ou duas vezes, esteve tentado a ir passar uns dias a Savannah, mas não quis embaraçar Amélia. Ela estava de visita à filha, e a súbita aparição de um estranho teria sido difícil de explicar. Não tinha, pois, outro remédio senão ficar por Atlanta. Esperava, pelo menos, não ter de encontrar-se com Orville Beauchamp com muita freqüência. Aquela semana, ainda que muito proveitosa, fora bastante cansativa para si. A carruagem foi buscá-lo de novo às oito, e desta vez pediram-lhe para usar fato de cerimônia. Pelos vistos, Beauchamp gostava de fazer as coisas em grande. No entanto, Jeremiah teve de reconhecer que tudo na casa estava com um aspecto magnífico. Havia centenas de velas acesas nos candelabros espalhados pelas paredes e enormes ramos de flores por toda a parte, orquídeas, azaléias, jasmins e outras flores de intenso perfume que Jeremiah nunca vira. Essas fragrâncias davam um toque ainda mais exótico ao ambiente E, enquanto as velas cintilavam, os convidados iam chegando, cobertos de sedas, cetins e jóias

- Está com um ótimo aspecto, Mistress Beauchamp - saudou Jeremiah. Mas apercebeu-se, de imediato, de que acabara de dizer uma inconveniência. «Ter bom aspecto» não era propriamente a máxima aspiração de Elizabeth Beauchamp. Parecia aceitar a saúde débil e a palidez de bom grado.

- Obrigada, Mister Thurston - respondeu, arrastando as palavras e dirigindo o olhar para os próximos convidados

Jeremiah desviou-se para o lado e começou a falar com um dos homens com quem estivera a negociar durante toda a semana. Pouco depois, Hubert juntou-se-lhes, desejoso de lhes contar os seus planos relativamente a um cavalo que queria ver no Tennessee. Jeremiah vagueou sem destino pela sala, conversou com os homens, foi apresentado às respectivas esposas e, finalmente, a uma jovem e bonita loura que Hubert convidara. Tinha certas parecenças com a mãe do rapaz, embora numa versão mais viva, sã e bonita. Pelos olhares que lhe lançava, enquanto se dirigiam para a sala de jantar, Orville parecia achá-la particularmente atraente. Quando estavam prestes a sentar-se à mesa, Beauchamp reparou que o número de convidados era ímpar, e gritou para a esposa.

- Onde está a Camille.

Elizabeth ficou algo nervosa, e Hubert riu-se antes de responder ao pai.

- Se calhar ficou para trás com algum dos seus galanteadores!

Nem a gargalhada nem o comentário haviam sido um modelo de amabilidade fraterna. A mãe repreendeu-o de imediato.

- Hubert! - E, virando-se para o marido, acrescentou: - Quando desci, estava lá em cima, a vestir-se.

Orville franziu o sobrolho e disse algumas palavras em voz baixa à esposa. Estava visivelmente irritado com o comentário de Hubert. Camille era a menina dos seus olhos, o que não era segredo para aqueles que o conheciam.

- Lizabeth, diz-lhe que estamos prontos para o jantar.

- Não creio que já tenha acabado de se vestir...

Elizabeth detestava confrontações com a filha. Não gostava de lhe dar ordens, ainda que fosse só transmitir-lhas. Camille fazia sempre o que lhe apetecia, e aquela noite não era exceção.

- Diz-lhe que estamos à espera dela. - Os convidados aproveitaram a oportunidade para tomar outro julepo. Elizabeth Beauchamp desapareceu pelas escadas acima e voltou alguns minutos depois um pouco mais tranqüila. Cochichou algo ao marido. Este fez um gesto afirmativo com a cabeça, parecendo satisfeito com a resposta. Nada daquilo impressionou Jeremiah, que, enquanto vagueava por entre os convidados, ia apanhando fragmentos de conversas. Finalmente, atravessou as belas portas envidraçadas abertas para o jardim e ficou, por instantes, a respirar o balsâmico ar primaveril, antes de voltar para a sala de jantar.

Dessa vez, porém, ao passar pela ombreira da porta, parou, fascinado pelo que viu: uma delicada jovem de cabelos negros e uma pele tão branca que fazia lembrar a rainha das neves. Os olhos eram azuis como o céu de verão, e trazia um vestido de tafetá azul-pálido e um colar de pedras preciosas também azuis, que mais não faziam do que realçar a cor dos olhos. Jeremiah nunca vira uma criatura tão deslumbrante como aquela. O mais surpreendente era o fato de ela ser uma perfeita combinação de certas características dos seus pais: os cabelos escuros do pai, os olhos azuis e a pele leitosa da mãe. Era prodigioso que de duas pessoas perfeitamente normais tivesse nascido aquela pequena deusa, aquela visão que agora vagueava entre os convidados, quase dançando ao andar, distribuindo beijos, gargalhadas e olhares provocantes. Enquanto a contemplava com indisfarçável admiração, Jeremiah sentiu, de repente, o palpitar do coração. Ela tirava a respiração a qualquer pessoa. Tinha imensas parecenças com Amélia, os mesmos cabelos escuros, a pele cremosa. Era capaz de ser a rapariga que Amélia fora noutros tempos, mas, agora, Jeremiah estava concentrado em Camille, que passava, toda empertigada, entre os convidados, fazendo-os rir, lançando olhares provocantes aos homens e às mulheres e acabando por, com ar de enlevo, enlaçar o seu braço no do pai.

- Continuas a mesma menina travessa de sempre! - ouviu Jeremiah dizer a uma mulher, com alguma malícia, mas era fácil de ver que o qualificativo não destoava do comportamento da rapariga. E também não era difícil perceber que punha os nervos da mãe em franja e que era objeto do ódio do irmão Mas, fosse como fosse, Jeremiah estava divertido a vê-la cabriolar, presumindo que ela sempre fora assim brincalhona desde o momento em que começara a andar. Era igualmente óbvio que o pai a adorava

- Mister Thurston! - Orville Beauchamp pronunciou o nome como se fosse entregar-lhe um prêmio. - Permite que lhe apresente a minha filha, Mister Thurston. - E sorriu. - Camille, apresento-te Mister Thurston, da Califórnia

- Muito prazer, Miss Beauchamp - disse Jeremiah, beijando-lhe graciosamente a mão e observando o brilho dos seus olhos. - Era uma rapariga travessa, mas tinha um raro encanto, como o de um duende traquinas ou de uma fada algo maliciosa. Jeremiah nunca vira uma criatura tão devastadoramente adorável como ela. Perguntou-se que idade é que teria, e chegou à conclusão de que não devia ter mais de dezessete anos. De fato, completara-os em dezembro, e desde então a sua vida era um constante torvelinho de festas e bailes. A tutora fora despedida no início do ano, fato que a deixara encantada. - Boa noite, Mister Thurston! - Camille fez uma reverência, oferecendo a Jeremiah um fascinante vislumbre dos seus jovens e firmes seios, sem que ignorasse o que estava a fazer. Havia muito poucas coisas que Camille fazia sem planejar de antemão. Era inteligente e sagaz, sempre consciente dos efeitos que produzia ao seu redor.

O jantar foi anunciado imediatamente após a aparição de Camille, e Jeremiah ofereceu o braço a Elizabeth Beauchamp com a impressão de que a sua vida acabara de dar uma volta completa. E teve a agradável surpresa de ficar sentado entre Camille e outra dama. Esta estava enredada numa interminável conversa com o seu companheiro da direita, e Jeremiah ficou apenas com Camille Beauchamp para conversar. Achou-a tão inteligente, divertida e provocante como supusera, mas ficou surpreendido ao descobrir que tinha outras qualidades. Parecia possuir uma extraordinária compreensão das questões práticas e um excelente instinto para o negócio. Fez uma série de perguntas inteligentes sobre o mais recente negócio de Jeremiah, e este ficou espantado com a quantidade de coisas que Camille sabia dos negócios do pai. E com a quantidade de coisas que Orville lhe contara. Esse era um tema que Jeremiah certamente nunca teria abordado com uma filha, se a tivesse.

- Foi o seu pai que lhe ensinou tudo isso? - Jeremiah estava perplexo. O mais lógico e natural teria sido que Orville ensinasse aquelas coisas a Hubert, embora o rapaz não mostrasse a ânsia de aprender da irmã.

- Algumas coisas. - Camille pareceu gostar do elogio que Jeremiah dirigia à amplitude dos seus conhecimentos. - Outras, limitei-me a escutar. - Sorriu, com um ar de falsa inocência, o que divertiu Jeremiah.

- Fez mais do que escutar, senhorita. Soube discernir os diferentes aspectos dos assuntos e chegar a conclusões muito interessantes.

Camille dissera algumas coisas que Jeremiah considerava exemplos surpreendentes de uma espantosa agudeza de espírito, e ele geralmente não gostava de falar de negócios com mulheres, especialmente com as muito jovens. Muitas delas teriam dissimulado o riso e ficado de olhos esbugalhados se ele tivesse tentado abordar só uma décima parte das idéias que trocou com Camille.

- Gosto de tudo o que se relaciona com o trabalho dos homens. - Camille afirmou isto como sendo a coisa mais natural do mundo, como se tivesse dito que gostava de chocolate quente ao pequeno-almoço.

- Por quê? - perguntou Jeremiah, intrigado. - Quase todas as mulheres acham esse assunto aborrecido.

- Pois eu não acho. Gosto. - Olhou-o nos olhos. - Gosto de saber como é que as pessoas fazem dinheiro.

A resposta foi tão chocante que Jeremiah ficou, por instantes, sem palavras.

- O que a faz pensar assim, Camille?

O que haveria atrás daqueles olhos azuis e daqueles caracóis negros? Certamente nenhum dos pensamentos próprios de uma rapariga de dezessete anos. Os pontos de vista de Camille desconcertavam-no, mas tinham para ele o atrativo de algo novo e original. Não havia nela qualquer fingimento, não escondia nada atrás do leque de renda. Dizia o que pensava, por mais chocante que fosse.

- Eu acho que o dinheiro é muito importante, Mister Thurston - declarou ela, arrastando encantadoramente as palavras. - E torna as pessoas importantes. Quando deixam de o ter, deixam de ser importantes.

- Isso nem sempre acontece.

- Ai acontece, acontece. - Camille proferiu o seu veredicto de forma brusca. - Olhe o pai da minha mãe. A partir do momento em que perdeu o dinheiro e a plantação, nunca mais foi ninguém, e ele sabia-o bem, por isso matou-se, Mister Thurston. Agora olhe para o meu pai. Tem dinheiro e é importante, mas, se tivesse mais dinheiro, seria ainda mais importante. - Então, fixando-o olhos nos olhos, acrescentou. - O senhor é um homem muito importante. É o que o meu pai diz. E deve ter uma carrada de dinheiro. - Disse isto como se ele tivesse barris cheios de dinheiro no alpendre e na cave, imagem que fez rir Jeremiah, deixando-o entre o embaraçado e o divertido.

- Tenho mais terras do que dinheiro.

- Vai dar ao mesmo. Nalguns sítios é a terra, noutros, o castelo... são coisas diferentes em lugares diferentes, mas significam sempre o mesmo.

Jeremiah sabia do que Camille estava a falar, e perguntou-se se ela também tinha consciência disso. Era quase aterrador se fosse esse o caso. Como é que ela podia saber tanto de negócios, dinheiro e poder?

- Julgo que está a falar de poder. Está a referir-se ao tipo de poder que as pessoas alcançam quando são importantes ou têm êxito.

Era uma questão difícil de entender para um jovem de dezessete anos, especialmente para uma rapariga. Camille pareceu pensativa por instantes, depois fez um gesto afirmativo com a cabeça

-Acho que tem razão, é isso que quero dizer. Gosto do poder. Gosto daquilo que ele provoca nas pessoas, na sua forma de comportamento, na sua forma de pensar. - Olhou para a mãe e depois de novo para Jeremiah. - Detesto pessoas fracas. Acho que o meu avô devia ser um homem fraco, para se matar daquela maneira.

- Foi uma época terrível para o Sul - observou Jeremiah em voz baixa, para que o seu anfitrião não os ouvisse. - Foi uma mudança tremenda para muita gente, e houve quem não conseguisse sobreviver a ela.

- O meu pai sobreviveu. - Camille olhou-o com orgulho. - Foi precisamente nessa altura que ele fez toda a sua fortuna. - Era algo que muitos teriam evitado referir e, muito menos, falar com jactância disso. Então, com a mesma rapidez com que trouxera à baila o tema proibido, assim o abandonou, e voltou-se para Jeremiah com aqueles olhos azul-celestes e um sorriso que teria derretido o coração de um homem de ferro. - Como é a Califórnia?

Com um estilo que contrastava com o dela, Jeremiah começou a falar-lhe do vale de Napa. Camille escutou-o educadamente por instantes, mas depressa mostrou o seu aborrecimento. Não era uma apaixonada pelo campo. Interessava-lhe mais o que ele lhe contara de São Francisco. Ela falou, então, de uma recente viagem a Nova Iorque, que achara absolutamente fascinante, e referiu que o pai lhe prometera que a levaria à Europa se não estivesse casada aos dezoito anos. Orvil ainda tinha um primo afastado em França, mas o que Camille queria realmente ver era Paris. Enquanto ela tagarelava sem parar, Jeremiah, totalmente absorto na sua delicada beleza, deixou de prestar atenção ao que ela dizia. E vieram-lhe à memória as palavras de Amélia no comboio: «... Procure uma rapariga nova... case-se... tenha filhos.» Era uma dessas raparigas que põem a cabeça à roda dos homens maduros. Mas não viera a Atlanta à procura de esposa, mas sim em negócios. Tinha uma vida normal e sã à sua espera no vale de Napa, quinhentos mineiros em três minas, uma governanta, uma mansão e Mary Ellen... De repente, como numa visão, quase conseguiu ver Camille a dançar no meio de tudo aquilo. Foi como que um delírio momentâneo, que acabou por dominar, obrigando o espírito a voltar para a realidade do jantar, embora com grande esforço.

Conversaram durante todo o jantar e, quando um pequeno grupo de músicos começou a tocar no grande salão, Jeremiah, delicadamente, convidou Elizabeth Beauchamp para dançar, mas ela disse-lhe que nunca dançava e que talvez preferisse dançar com a filha. Camille encontrava-se junto deles naquele momento, e Jeremiah não teve alternativa senão oferecer-lhe o braço, apesar de se sentir algo ridículo a dançar com uma rapariga daquela idade. Ridículo, mas ao mesmo tempo encantado, e embaraçado por verificar que sentia uma atração quase sufocante por ela. Teve de lutar contra a força do seu encanto enquanto rodopiavam pela sala, fascinado pelas duas pálidas safiras que eram os seus olhos.

- Gosta tanto de dançar como de ouvir falar de negócios?

- Oh, sim! - respondeu com um sorriso. - Adoro dançar.

Era como se a conversa anterior nunca tivesse tido lugar, como se a sua única preocupação houvesse sido sempre o baile. Jeremiah teve de fazer um esforço para não desatar a rir e chamar-lhe sirigaita, o que sem dúvida alguma era.

- É um dançarino maravilhoso, Mister Thurston. - Era uma aptidão inata nele, de que se orgulhava, mas não conseguiu conter o riso perante um elogio tão exagerado. Enquanto rodopiavam pela sala, nos braços um do outro, Jeremiah pensou que há muitos anos que não se sentia tão feliz, mas não sabia por quê. Estava quase aterrado ao dar-se conta da atração que sentia por ela.

- Obrigado, Miss Beauchamp.

Camille viu um brilhozinho nos olhos de Jeremiah e também riu, fazendo os possíveis para parecer sensual e travessa ao mesmo tempo, o que obrigou o homem a reprimir de novo os seus instintos. De repente, tudo o resto foi esquecido... Amélia, Mary Ellen... Só conseguia pensar na deslumbrante criatura que tinha entre os braços. O final do baile foi quase um alívio para ele. Quando terminou a última valsa, deu-se conta do calor que fazia na sala, do fulgor cintilante das velas, do intenso odor das flores... e do brilho no olhar da rapariga quando esta levantou novamente os olhos para ele. Tinha um ar tão delicado que lhe fazia lembrar uma daquelas bonitas flores do Sul que se encontravam nos enormes ramos que decoravam o salão. Jeremiah teve vontade de elogiar a sua beleza, mas não se atreveu a fazê-lo. Afinal de contas, Camille não passava de uma rapariga de dezessete anos, e ele tinha mais do dobro da idade dela. Martirizado por aqueles pensamentos, conduziu-a até junto da mãe. Pouco depois, despediu-se de todos eles. Ao dar as boas-noites à rapariga, segurou-lhe a mão por instantes, enquanto os olhos dela se cravavam nos dele, e as suas palavras, extremamente doces, penetravam até ao fundo da sua alma e estimulavam algo mais primitivo dentro dele.

- Voltaremos a encontrar-nos antes de partir? - Havia alguma tristeza na voz de Camille.

Jeremiah sorriu. Era a única coisa que lhe ficava daquela viagem: ser o objeto da paixonite de uma rapariga de dezessete anos e ficar enredado no seu feitiço. Se era esse o caso, pensou, o melhor que tinha a fazer era regressar quanto antes para a Califórnia.

- Na realidade, não sei. Deixo Atlanta dentro de dias.

- Que vai fazer entretanto? - perguntou Camille, abrindo os olhos, com a curiosidade própria de uma criança. - O papá disse-me que já fecharam o negócio.

- Pois já. Mas só há comboio para São Francisco na próxima segunda-feira.

- Oh, que bom! - A jovem bateu palmas com alegria e fitou-o com um grande sorriso nos lábios. - Então, terá tempo para brincar.

Jeremiah soltou uma gargalhada e deu-lhe um beijo na cara

- Boa noite, pequena. Já não tenho idade para brincar. Sou demasiado velho.

E, sobretudo, demasiado velho para brincar com ela. Não disse mais nada. Só voltou a dar a mão à sua anfitriã antes de subir para a carruagem. Na viagem de regresso ao hotel, deixou os pensamentos vaguear por aquela noite e, especialmente, pela sedutora Camille. Era uma menina extravagante, mas, com aqueles enormes olhos azuis e a sua astúcia, conseguia sempre tudo o que queria, disso não havia qualquer dúvida. Era fácil de perceber por que razão o pai a adorava tanto, apesar de ela também ser uma rapariga endiabrada. Fosse como fosse, o certo é que, enquanto pensava nela, Jeremiah sentiu uma estranha pontada de desejo, que o deixou um pouco aturdido, ao imaginar-se novamente a dançar a valsa com ela entre os seus braços. Naturalmente, desejar uma rapariga como Camille tinha qualquer coisa de imoral. Fez, então, um esforço para a afastar da sua mente e tentou substituí-la pela visão de Amélia, depois, de Mary Ellen, mas nenhuma delas conseguiu apagar Camille do seu pensamento. Finalmente, recostou-se no assento, desalentado. Naquele instante, só sabia uma coisa, se a tivesse ali ao seu lado, menina ou não, estreitá-la-ia entre os seus braços. Havia nela algo de tão exótico, tão sedutor e sensual, que quase o fazia perder a razão. Por motivos que não conseguia compreender, Jeremiah sentiu-se assustado E, de repente, ficou ansioso por deixar Atlanta e voltar para a Califórnia Porque, se ficasse era impossível prever o que poderia acontecer.

 

O dia seguinte amanheceu quente e resplandecente de sol, e o ar cheirava a Primavera. Jeremiah levantou-se lentamente da cama, vestiu o roupão e foi até à varanda. Estava determinado a atacar uma pilha de papéis que espalhara propositadamente em cima da secretária, mas, mais uma vez, os seus pensamentos saltaram para a bela ninfa que conhecera na noite anterior, o que o deixou furioso consigo mesmo. E o pior de tudo era que teria de esperar mais dois dias e meio em Atlanta pelo comboio para a Califórnia.

Jeremiah premiu o botão de chamada do quarto, e, pouco depois, apareceu um criado para levar o seu pedido para o pequeno-almoço. Meia hora depois, chegou um tabuleiro cheio de salsichas com ovos, bolachas, mel, sumo de laranja, café e um cesto de fruta fresca, mas, ao olhar para tudo aquilo, não sentiu qualquer apetite, só o desejo de voltar a ver Camille lhe povoava o espírito. Desesperado, deu um murro na mesa, ao mesmo tempo que soou outra pancada na porta. Surpreendido, foi abri-la e deparou-se-lhe o criado dos Beauchamp.

- Sim? - Jeremiah estava desconcertado e embaraçado com o murro que dera na mesa, embora o criado não o tivesse ouvido.

- Um bilhete para o senhor.

O criado sorriu e entregou a Jeremiah um envelope com o seu nome escrito com uma letra delicada e cheia de floreados. Depois de alguns instantes de hesitação, Jeremiah pegou no envelope. O seu portador ficou à espera da resposta, tal como lhe haviam dito

«Está um dia magnífico para passear no parque», rezava o bilhete numa letra quase infantil. «Não quer juntar-se a nós esta tarde. Almoçamos em casa, depois vamos todos até ao parque. Estará em segurança», acrescentou Camille provocadoramente, «e talvez também possa ficar para jantar.»

Tal como tivera ocasião de comprovar na noite anterior, a rapariga não tinha nada de tímida. Jeremiah não sabia o que fazer. O simples pensamento de voltar a vê-la atormentava-o, mas não sabia se Orville Beauchamp gostaria de ver o seu parceiro de negócios a passear pelo parque com a sua filha de dezessete anos E aparecer à sua porta de casa à hora das refeições. Achava um abuso. No entanto, queria vê-la. Não conseguiu reler o bilhete sem perder a serenidade. Finalmente, voltou-se, atirou-o para cima da mesa e pegou numa pena e numa folha de papel. Não sabia o que havia de dizer a uma rapariga de dezessete anos. Não estava habituado a cortejar raparigas de tão tenra idade, porém, Camille Beauchamp não tinha nada de infantil. Era, em quase tudo, uma mulher jovem, bonita e tentadora. Se puder contar com a complacência de sua mãe, Miss Beauchamp», escreveu, adoraria almoçar e passear pelo parque com a sua família e os seus amigos». não queria escrever nada que pudesse sugerir um encontro clandestino ou sequer um encontro solitário. Entretanto, continuo seu obediente servo, Jeremiah Thurston.

Tanto Camille como Jeremiah só perceberam o verdadeiro significado das palavras quando se voltaram a encontrar. Jeremiah sentiu o coração bater com tal força que parecia que lhe ia sair do peito. A rapariga trazia um vestido simples de renda branca, e os brilhantes cabelos negros, presos apenas por uma fita de cetim azul, dançavam em longos e graciosos caracóis sobre as costas. Enquanto passeavam pelo parque antes do almoço, Camille parecia, mais do que nunca, uma menina pretensiosa e, ao mesmo tempo, uma jovem mulher extremamente bela.

- Fico tão contente por ter decidido vir, Mister Thurston. Ter que ficar num hotel sem fazer nada deve ser tremendamente aborrecido.

- Se é.

Jeremiah escolhia as palavras com cautela. Camille não era uma pessoa aborrecida. Porém, provocava-lhe uma sensação de perigo. A sua beleza era em si perigosa. Pela primeira vez na vida, sentia-se capaz das loucuras mais desenfreadas. Apetecia-lhe agarrá-la pela cintura, puxá-la para os seus braços, atirar a sombrinha para o chão e passar-lhe os dedos pelos cabelos. Virou a cara para o lado, para lutar contra os seus próprios desejos e quebrar o feitiço. E perguntou-se se a sua recente contenção perante Amélia não o fazia desejar Camille com maior intensidade.

- Não se sente bem? - A rapariga dera-se conta da sua dolorosa expressão e, com ar preocupado, pousou a mão delicada sobre o braço de Jeremiah. - Faz um calor tão terrível aqui, no Sul. Talvez não esteja acostumado...

Ao ouvir aquelas palavras de inquietação, Jeremiah voltou-se para Camille. Como era inocente! Sentiu-se quase desfalecer de desejo por ela. Nunca pensara que os seus sentimentos fossem tão fortes. Todavia, ela não passava de uma menina. Mas, de cada vez que dizia isso a si próprio, não ficava plenamente convencido. Na realidade, ela tinha mais de mulher do que de menina. O próprio Orville Beauchamp sabia isso...

- De modo nenhum, estou ótimo. Está-se tão bem aqui, no seu jardim. - Jeremiah fingiu admirar os canteiros de flores para não a encarar. De súbito, soltou uma gargalhada. Era absurdo que um homem da sua idade estivesse tão apaixonado por uma rapariga, por mais encantadora que ela fosse. Então, voltando-se de novo para Camille, resolveu contar-lhe como se sentia, com a esperança de aliviar o seu obsessivo desejo.

- Sabe uma coisa, Miss Beauchamp? - A menina dá-me a volta à cabeça.

A franqueza das suas palavras deixaram-no um pouco mais aliviado. Os seus sentimentos não eram sórdidos, mas doces. E Camille riu-se, deleitada.

- A sério? Também já é crescidinho... - Foi a resposta adequada para a situação. Riram-se, e Jeremiah deu-lhe o braço e dirigiram-se, de braço dado, até casa, para almoçar. Falaram do tempo e das festas a que Camille fora recentemente. Ela queixou-se de que os jovens de Atlanta eram uns imbecis. - Eles não são... - Levantou os olhos para ele e franziu o sobrolho, esforçando-se por encontrar a palavra apropriada. - Não são... importantes, como você ou o papá.

- Um dia, podem chegar a ser muito mais importantes do que nós.

- Sim - concordou Camille, admitindo que Jeremiah podia ter razão, - mas, entretanto, são uns maçadores... uns chatos.

- Que desconsideração, cara Miss Beauchamp.

Sem saber exatamente por que, aquela rapariga divertia-o. Mesmo quando se mostrava insuportável e mimada, achava-a encantadora e divertida.

- As pessoas amáveis também me aborrecem. - Camille piscou o olho a Jeremiah, e este não conseguiu conter o riso.

- A minha mãe é sempre amável. - Revirou os olhos e deu uma risadinha, meneando o dedo na direção da progenitora.

- Devia ter vergonha. A amabilidade é uma das virtudes mais encantadoras numa dama.

- Então, não sei muito bem se quero ser uma dama quando crescer, Mister Thurston.

- Que barbaridade!

Há muitos anos que Jeremiah não passava um bocado tão divertido como aquele. Quando, na mesa preparada para o almoço, se sentou ao lado de Camille, Orville Beauchamp pareceu particularmente deleitado ao ver Thurston tão divertido com a filha. Não mostrara a menor estranheza por voltar a ver Jeremiah entre eles, pois Camille explicara-lhe rapidamente que convidara Mister Thurston para almoçar e dar um passeio pelo parque. Tudo o que a rapariga fazia parecia ter a aprovação do pai. Só a mãe se mostrava em constante estado de nervosismo, sempre com medo de um aziago golpe do destino. Em vivo contraste com a felicidade e a alegria de que dava mostras a sua filha, exibia o ar mais melancólico que Jeremiah alguma vez vislumbrara numa mulher. Camille aparentava sempre um ar descontraído. Mas quando não estava, não o dissimulava, como sua mãe sabia muito bem.

- A minha filha está a portar-se bem, Mister Thurston? - perguntou Beauchamp do outro lado da mesa

- Sem dúvida alguma, Mister Beauchamp. Estou encantado.

Camille também parecia estar encantada, a julgar pelo brilho no olhar quando levantou os olhos para Jeremiah. A rapariga manteve então uma postura mais recatada até final do almoço. Só quando passeavam no parque é que voltou a embaraçar Jeremiah.

- Você não acha que eu tenha idade suficiente para ser levada a sério, pois não? - Camille olhou-o nos olhos e ficou à espera de uma resposta, mas Jeremiah fingiu um ar de despreocupação.

- Que quer dizer com isso, Camille?

- Sabe muito bem ao que me refiro.

- Levo-a muito a sério, é uma rapariga excepcional.

- Mas acha-me uma criança. - Parecia irritada. Porém, não teria motivo para estar se tivesse podido ouvir a rapidez com que o sangue lhe corria nas veias.

- É uma criança encantadora, Camille. - O sorriso de Jeremiah era cálido, mas não tanto como o fogo que se vislumbrava no olhar de Camille, que o fitava, furiosa.

- Não sou uma criança. Tenho dezessete anos - declarou a rapariga, como se quisesse dizer noventa e três, mas Jeremiah não se riu.

- Eu tenho quarenta e três. Podia ser seu pai, Camille. Não há nada de mal em ser-se menina. Em breve, deixará de o ser, e então quererá que as pessoas a vejam como quando era jovem.

- Mas não sou uma criança. E você não é meu pai.

- Oxalá fosse. - Jeremiah falava num tom apaziguador, mas o fogo no olhar de Camille não decrescia.

- Você não desejava ser meu pai. É mentira. Lembro-me muito bem de como me olhava enquanto dançávamos ontem à noite. Mas hoje não pára de dizer que sou filha do Orville Beauchamp, que não passo de uma criança. Pois bem, não tenho nada de criança, sou muito mais mulher do que pensa.

Ato contínuo, encostou o seu corpo ao de Jeremiah e beijou-o nos lábios. Este ficou tão surpreendido que quase deu um passo atrás, mas sentiu que, se tinha de mover-se para algum lado era precisamente na direção de Camille e, sem pensar, deixou que o desejo tomasse conta da situação: estreitou-a entre os braços e beijou-a com toda a paixão que sentia por ela. Quando os seus lábios se separaram, Jeremiah ficou horrorizado com o que fizera. Nem sequer se recordava que fora ela quem o beijara primeiro.

- Camille... Miss Beauchamp... peço imensa desculpa...

- Não seja tonto... fui eu que o beijei... - Camille parecia não ter perdido o sangue-frio, e demonstrava que conservava o domínio sobre si mesma, dando-lhe o braço e dizendo-lhe, ao ver que os outros se haviam distanciado: - É melhor continuarmos a andar para que não se apercebam de que...

Jeremiah aceitou, sem dizer palavra, o braço que Camille lhe oferecia e, pouco depois, desatou a rir. Nunca lhe acontecera uma coisa daquelas. Camille era a rapariga mais terrível que conhecera

- Como é que se atreveu a fazer tal coisa.

- Ficou chocado? - Camille parecia um pouco preocupada, mas dominava nela uma clara expressão de felicidade

Jeremiah teve vontade de parar de novo para a sacudir até ela gritar e depois abraçá-la contra si e teve de fazer um verdadeiro esforço para continuar a escutá-la

- É a primeira vez que faço semelhante coisa, sabe.

- Espero bem que não. As pessoas podem começar a falar

Jeremiah riu-se. Nunca imaginara ser beijado por uma rapariga de dezessete anos e, muito menos corresponder ao beijo. Enquanto pensava que tudo aquilo era um sonho, Camille fitou-o com os olhos cheios de curiosidade

- Vai dizer-lhes.

- Que acha que aconteceria se eu cometesse semelhante indiscrição. De certeza que a acorrentariam à cama durante uma semana ou um ano e o seu pai encher-me-ia de alcatrão e penas e correria comigo da cidade ao pontapé.

A rapariga riu-se, evidentemente divertida perante tal perspectiva.

- De qualquer forma, não acho que as coisas cheguem tão longe. Não é essa a minha maneira habitual de ir-me embora de uma cidade.

- Então não se vá embora. - Os olhos de Camille eram quase suplicantes

- Lamento, mas tenho mesmo de ir. Os meus negócios na Califórnia estão à minha espera

Camille não pôs qualquer objeção às palavras de Jeremiah, mas os seus olhos ficaram tristes.

- Quem me dera que não tivesse de se ir embora. Não há ninguém como você aqui.

- Estou certo de que há. Deve estar sempre rodeada de jovens janotas.

- Já lhe disse, são todos uns estúpidos e uns chatos insistiu Camille, mal-humorada. Nunca conheci ninguém como você, sabe?

- Bonitas palavras, Camille. - Jeremiah poderia ter dito a mesma coisa, mas não quis dar-lhe esperanças. - Espero que um dia nos voltemos a ver.

- Está só a fazer-se simpático.

De repente, pareceu que ia rebentar num pranto. Pararam de novo, e ela, levantando os olhos para ele, disse:

- Detesto isto aqui.

- Detesta Atlanta? - perguntou Jeremiah, surpreendido. - Por quê?

Camille olhou para lá das árvores do parque. Sabia muito bem o que estava a dizer. Sabia que a sua vida era muito diferente da que a mãe levara quando era nova. Não ouvira dizer outra coisa durante toda a vida.

- Seria diferente se vivêssemos em Charleston ou Savannah, mas... Atlanta é diferente. Aqui, tudo é feio e novo. As pessoas daqui não são tão gentis como as de outras partes do Sul, e quando lá vamos, elas não nos tratam com mais simpatia. A minha mãe... conhece a diferença, não pára de nos falar nisso. É como se o meu pai não fosse suficientemente bom para ela, e acha que eu sou como ele. Fez uma careta. E com o Hubert ainda é pior.

Jeremiah riu-se.

- Detesto viver aqui. Toda a gente pensa assim. Aceitam a mamã... mas falam pela calada do papá, do Hubert e de mim... Não fazem isso no Norte. Estou farta disto tudo. Por muito dinheiro que os meus pais tenham, não param de falar de mim, de quem foi o meu avô, donde vem a fortuna.. A mamã não tem um chavo, mas acham que é tão rica como nos velhos tempos... Já viu coisa mais estúpida?

Os olhos de Camille chamejavam quando fitou Jeremiah. Ele sabia exatamente o que a rapariga queria dizer, mas era um assunto difícil de discutir com ela. O que o surpreendia era que Camille o tivesse trazido à baila de forma tão cândida, era uma rapariga assombrosa. Nada lhe estava proibido, nem sequer os beijos e os abraços dele.

- Daqui a poucos anos, Camille, ninguém se preocupará com isso. A aceitação vem com o tempo, e talvez a... - gaguejou... - fortuna do seu pai... seja ainda demasiado recente. Mas, com o tempo, acabarão por esquecer. Quando os seus filhos andarem por aí, só se lembrarão de quem foi o seu avô e de como andou bem vestida nos últimos vinte anos. - Jeremiah, porém, não acreditava nisso, tão-pouco ela. O Sul era diferente.

- Não me importo. Um dia, sairei daqui, irei para o Norte.

- As coisas não são assim tão diferentes. Em Chicago e em Nova Iorque, e inclusive em São Francisco, algumas vezes, as pessoas são esnobes, embora aí seja um pouco diferente porque há muitos forasteiros.

- É pior no Sul. Sei que é. - Camille não estava totalmente enganada. Os olhos de ambos voltaram a encontrar-se enquanto ela observava o rosto de Jeremiah. - Quem me dera viver na Califórnia consigo.

Jeremiah sentiu um choque ao ouvir aquilo e, de repente, perguntou-se se iria ser objeto de outra investida, coisa que não lhe desgostaria de todo. - Camille, porte-se bem! - Pela primeira vez, pareceu algo severo, mas ela também gostou daquela faceta de Jeremiah. - Por que razão é que ainda não se casou? Tem alguma mulher na Califórnia? - As coisas estavam a piorar. Nada detinha aquela rapariga»

- Que quer dizer com isso? - Jeremiah virou a cara para o lado com certo ar de enfado.

- Uma amante. O meu pai tem uma em Nova Orleães. Toda a gente sabe. Não sabia? - Jeremiah ficou boquiaberto e olhou-a fixamente nos olhos. - Essas coisas não se dizem, Camille.

- Mas é verdade. A minha mãe também sabe. - Então perguntou: - E você não tem nenhuma?

- Não. - Jeremiah afastou Mary Ellen da cabeça. Afinal de contas, ela não era uma amante, e aquela criança não tinha o direito de saber nada disso. Nem de qualquer outra coisa sua. Era demasiado descarada. Que sabe dessas coisas? Sabia demasiado para uma rapariga de dezessete anos. De repente, Jeremiah mostrou o seu desagrado quando começaram a fazer o caminho de volta. Mas a maneira como ela lhe pôs a mão sobre o braço voltou a avivar a paixão. - É uma atrevida, sabia? Uma megera. Se fosse minha filha, ou minha esposa, dava-lhe uns açoites todos os dias.

- Não daria, não. - Camille riu melodiosamente, adivinhando-lhe os pensamentos. - Amar-nos-íamos com tal fervor que nem sequer pensaria em semelhante barbaridade.

- Que a faz estar tão segura disso. Punha-a mas era a esfregar o chão, a arrancar ervas daninhas e a trabalhar nas minas... - Ao dizer isto, Jeremiah estava a ceder novamente ao jogo da rapariga. Mas como não fazê-lo? Havia nela algo completamente irresistível.

- Não, não me poria a fazer essas coisas. Teríamos uma criada.

- Nem pensar. Tratá-la-ia como uma índia.

Era óbvio que Camille não acreditava numa única palavra do que ele dizia. Ao abandonarem o parque, Jeremiah deu consigo demasiado próximo dela, submerso no seu delicado perfume, no ruge-ruge das sedas, no calor do braço delicado, na graciosidade do pescoço... das orelhinhas.. e viu-se de novo inundado por nova onda de desejo. De repente, afastou-se dela. Que raio estava aquela rapariga a fazer-lhe? Quando levantou de novo os olhos para ele, havia algo de diabólico no olhar de Camille.

- Gosto muito de si, sabe? - disse Camille. A tarde estava no fim e o aveludado do céu era tão suave como a sua pele.

- Também gosto de si, Camille.

Jeremiah vislumbrou, com espanto, uma lágrima ao canto do olho da rapariga.

- Voltaremos a ver-nos?

- Espero que sim. Um dia.

A partir daquele instante, falaram muito pouco. Regressaram a casa, de braço dado, e Jeremiah experimentou uma sensação de perda quando se despediu de Camille e voltou Para o hotel. Durante toda a noite, às voltas na cama, só a custo a conseguiu tirar da cabeça. E mais perturbado ficou quando, no dia seguinte, recebeu um bilhete de Orville Beauchamp a convidá-lo para jantar. Quando viu Camille, deu-se conta das desesperantes saudades que sentira desde a noite anterior, o que era uma situação ridícula para ele. Mas os seus olhos acariciaram o rosto da rapariga, e ela pareceu aliviada por voltar a vê-lo, como se tivesse temido nunca mais o encontrar. E mal tiraram os olhos um do outro durante todo o jantar. Orville também deu por isso, e o filho parecia divertido. Quando, finalmente, Orville e Jeremiah se encontraram a sós à hora dos charutos e do conhaque, Orville Beauchamp olhou diretamente para ele. Falou sem preâmbulos, e Jeremiah sentiu como que um murro no peito ao ouvir o som do nome dela.

- Thurston, a Camille é tudo para mim. - Jeremiah corou, como se fosse um jovem.

- Compreendo-o perfeitamente. É uma rapariga encantadora. - Oh, Deus! Que fizera? Teria Orville sabido que a beijara? Sentiu-se como um miúdo travesso que está prestes a receber uma dura reprimenda, mas não podia negar que era merecida. E ficou nervosamente à espera.

- O que me interessa saber é até que ponto é que a acha encantadora - disse Beauchamp, de olhos fixos nos de Thurston.

A franqueza de Orville quase deixou Thurston sem palavras. Na realidade, ele merecia o que estava a acontecer. Não tinha o direito de namoricar uma rapariga tão nova. Todavia, surpreendentemente, Orville não parecia preocupado, o que não obstava a que Jeremiah tivesse de encontrar uma resposta adequada.

- Não sei se percebo o que quer dizer.

- Suponho que ouviu bem. Até que ponto é que se sente atraído pela minha filha?

- Oh, meu Deus... Ela é muito atraente... Mas apresento as minhas desculpas se, de algum modo, ofendi involuntariamente o senhor ou Mistress Beauchamp... eu... realmente, não há desculpa para...

- Deixe-me falar! Os homens parecem moscas tontas àvolta dela. Novos, velhos, todos ficam meio loucos quando ela os fita com os seus olhos azuis, e a Camille, não tenha a menor dúvida disso, Thurston, tem plena consciência do seu poder. Não me queixo de nenhuma afronta. Só quero fazer-lhe uma pergunta direta de homem para homem. Mas talvez seja melhor explicar-me primeiro. Ela é o ser que mais amo nesta vida Se tivesse de abdicar de tudo, dos negócios, do dinheiro, da casa, da mulher, para poder salvar alguém... esse alguém seria Camille. Na realidade, ela é a única pessoa que me preocupa. - Reconsiderou as palavras e acrescentou: - Bem, quase a única pessoa - Sorriu, e o seu semblante ficou mais sereno. - E quero tirá-la do Sul. Não é o sítio adequado para uma rapariga tão inteligente. Aqui, são todos uma cambada de mentecaptos, muito bem-educados. Bajuladores, mas sem dinheiro, e os que o têm, como eu, não pertencem ao tipo de homem que desejo para Camille. São broncos e rudes, pouco refinados, e mais de metade deles não possuem a inteligência dela, É uma rapariga notável em muitos aspectos, eu diria que excepcional, por isso não se encaixa aqui. Os homens como o avô são débeis, choramingas e pobres, os outros valem muito pouco. Thurston, não há aqui ninguém suficientemente bom para ela. Nem em Atlanta, nem em Charleston, nem em Savannah, nem em Richmond, nem em nenhum lugar do Sul. Estava a pensar em levá-la a Paris no próximo ano para a apresentar à aristocracia. - Jeremiah duvidava que Beauchamp conseguisse aquilo que queria, mas às vezes eram surpreendentes os milagres que o dinheiro possibilitava. - De fato, há muito tempo que ando a prometer-lhe a viagem. Porém, quando você entrou na nossa casa a semana passada... tive uma idéia extraordinária.

Jeremiah sentiu todo o seu corpo gelar. Toda a sua vida estava prestes a dar uma volta. Tinha esse pressentimento.

- Você é o homem perfeito para ela E a Camille parece ter um fraquinho por si.

Jeremiah pensou logo no beijo com que ela o atacara no dia anterior, e que não o repugnara em absoluto.

- Você é um bom homem. Ouvi toda a gente dizer, e eu próprio gosto muito de si. Sempre confiei mais no instinto do que em qualquer outra coisa, e, desta vez, o instinto diz-me que você daria um bom marido para ela. Não é qualquer pessoa que tem mão na Camille.

Jeremiah riu-se, era uma idéia irresistível, e ficou de olhos fixos no seu anfitrião.

- Bem, que me diz? Estaria interessado em casar com a minha filha?

Era a pergunta mais direta que alguma vez lhe haviam feito, como se lhe quisessem vender gado, terras ou uma casa, e mesmo assim tinha o insano desejo de dizer que sim. Jeremiah teve de inspirar fundo e pousar o copo antes de responder a Orville e romper o silêncio que se instalara entre eles.

- Não sei por onde começar, e não estou certo do que devo dizer-lhe, Beauchamp. A Camille é uma rapariga excepcional, não há a menor dúvida a esse respeito. E sinto-me profundamente lisonjeado por tudo aquilo que acaba de dizer. É fácil de ver o grande carinho que tem pela sua filha, e a Camille é plenamente merecedora dos sentimentos que nutre por ela. - Jeremiah sentiu novamente o coração a palpitar. Na realidade, não deixara de o fazer desde o momento em que a vira pela primeira vez, mas o que dissesse agora poderia afetar o resto da sua vida. Era importante que pesasse as palavras com mais cuidado com que pesava as pepitas de ouro. - No entanto, devo lembrar-lhe que tenho quase o triplo da idade dela

- Não será tanto. - Orville Beauchamp não pareceu muito preocupado.

- Tenho quarenta e três anos. E ela, dezessete. Julgo que a ela não lhe agradará esta diferença de idades. Além disso, vivo a quatro mil quilômetros daqui, num lugar muito menos sofisticado que este. Disse que pensava apresentá-la à aristocracia de França... Sou um simples mineiro... levo uma vida pacata, numa casa vazia, a quinze quilômetros da cidade mais próxima. Não é uma vida muito atraente para uma jovem.

- Se fosse esse o único obstáculo, só teria de mudar-se para a cidade. Para São Francisco. Não há razão que o impeça de dirigir as suas minas daí. Já devem estar organizadas. Caso contrário, não poderia encontrar-se aqui neste momento.!

Jeremiah teve de reconhecer que era verdade. Poderia construir uma casa na cidade e, com o tempo, ela ir-se-ia acostumando à vida do campo. Orville esboçou um sorriso. - Talvez a mudança lhe fizesse bem. Às vezes, penso que a vida que leva aqui é demasiado frívola, embora tenha de confessar que sou, em parte, responsável por isso. Não quero que se aborreça, por isso não paramos de a levar a festas e bailes. Mas o seu estilo de vida, Mister Thurston, poderia fazer-lhe um grande bem. - O pai de Camille franziu o sobrolho. - Mas não é essa a questão. A verdadeira questão é conseguirá chegar a amá-la?

Jeremiah Thurston soltou um suspiro, como se fosse o último.

- Nunca imaginei que tivesse de pronunciar-me sobre isso, mas creio que é muito possível que a ame já. Para dizer a verdade, não compreendo o que sinto por ela, e tenho-me debatido com isso desde a primeira vez que a vi, quanto mais não seja por respeito em relação a si. Ela não passa de uma rapariga, e eu talvez seja demasiado velho para ela. Como já lhe disse, levo uma vida simples e pacata, e há muito que deixei de ter esse tipo de sonhos. - Todavia, as horas que passara com Amélia no comboio haviam encontrado um profundo eco na sua alma e, antes disso, vira morrer o filho de John Harte nos seus braços. Pela primeira vez desde há vinte anos, queria ter o que nunca possuíra, uma esposa a quem amar e o seu próprio filho, algo muito diferente da convivência com Hannah ou das noites de sábado com Mary Ellen Browne E, de repente, aparecera-lhe Camille, como uma visão de sonho, a personificação de tudo o que nunca tivera nem pensara vir a ter. - A semana passada aconteceu-me uma coisa insólita, - foi a única coisa que conseguiu dizer, - e preciso de mais algum tempo para refletir. - Havia uma grande confusão de sentimentos na sua cabeça. Primeiro, Amélia, agora, aquilo.

Orville Beauchamp não pareceu descontente

- Sim, ela ainda é demasiado jovem. E não quero que comente nada disto com ela.

Jeremiah ficou surpreendido

- Também não tinha a menor intenção de o fazer. Preciso de tempo para refletir. Quero ver o que acontece quando voltar para a minha vida diária, para a casa vazia, para as minas. - Suspirou perante aquela perspectiva e pensou, pela primeira vez, que era um homem desesperadamente solitário.

De repente, teve a sensação de que precisaria dela lá. Nunca lhe acontecera aquilo com nenhuma mulher... à exceção de Jennie... - Não sei muito bem o que sinto pela Camille. Neste preciso momento, apetecia-me pedir-lhe a mão dela... - A voz era profunda e rouca por causa da emoção... - mas quero ter a certeza de que a nossa união seria a coisa mais acertada para os dois. Que idade é que ela tem agora? - Naquele momento, só conseguia pensar nos olhos de Camille, nos seus braços... nos seus lábios..

- Dezessete.

- Se dentro de seis meses os meus sentimentos relativamente à Camille se mantiverem, virei pedir a sua mão. Com sua licença, virei a Atlanta e pedirei a sua filha em casamento. Então, voltarei seis meses depois e levá-la-ei comigo.

- Por que esperar tanto? Porque não a leva daqui a seis meses, se for essa a sua decisão?

- Se ela aceitar casar comigo, quero construir-lhe uma casa decente na cidade. É o mínimo que posso fazer por ela. Esteja descansado, Beauchamp: se me casar com a sua filha, dar-lhe-ei a melhor vida possível. - Os olhos de Jeremiah pareciam corroborar as suas palavras, e Beauchamp fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Não tenho a mínima dúvida. É por isso que lhe falei assim. E mantenho o que disse. Casar-se consigo será a melhor coisa que lhe poderá acontecer.

- Assim espero.

Os olhos de Jeremiah exibiam um brilho estranho. Tinha a sensação de ter feito o negócio mais importante da sua vida. Os novecentos frascos de mercúrio acordados poucos dias antes não significavam nada para si. Mas Camille... era um sonho tornado realidade. Estava convicto de que voltaria daí a seis meses. Quando, finalmente, saiu com Orville do seu isolamento na sala de jantar, Jeremiah olhou para Camille com outros olhos.

- Que lhe disse o meu pai? - sussurrou ela. - Viram-nos a beijar?

Todavia, a rapariga não parecia muito preocupada com semelhante possibilidade. Jeremiah achou graça à sua atitude Agora, era ele que tinha vontade de a tomar nos braços e de a beijar nos lábios.

-Sim - respondeu ele em voz baixa, provocando-a. - Vão mandá-la para um convento, onde ficará à guarda das freiras até cumprir os vinte e cinco anos.

- Não é possível! - Soltou uma sonora gargalhada e gritou-lhe. - O meu pai nunca faria tal coisa! Ficaria roídinho de saudades!

Aquelas palavras fizeram com que Jeremiah pensasse no sacrifício que Beauchamp faria se ele se casasse com a filha e a levasse consigo, mas o homem tinha razão, era melhor para Camille. Na realidade, ela nunca seria aceite no Sul, fato que não ignorava. O sangue dos Beauchamp corria-lhe nas veias, e nunca lhe iriam perdoar isso. O irmão parecia não se importar, mas era evidente que aquele estado de coisas preocupava Camille. Até a mãe se comportava como se algo cheirasse mal na casa, e falava de Savannah como de uma terra perdida para sempre, apesar de lá ir várias vezes por ano. Vivia no exílio.

- Na realidade - explicou Jeremiah, sentindo-se estranhamente descontraído depois de ter acabado de decidir o seu destino, estivemos a falar de outro negócio. - Talvez tenha de voltar a Atlanta para fechar o contrato dentro de seis meses.

Camille pareceu intrigada.

- Mais mercúrio? - perguntou, surpresa. - Pensei que o consórcio tinha o suficiente para um ano.

Jeremiah estava cada vez mais espantado com aquilo que ela sabia e, sobretudo, com a sua perspicácia.

- É algo mais complicado do que isso Explico-lhe noutro dia. - Olhou para o relógio. - Está a fazer-se tarde. Tenho de voltar para o hotel para ver se já me fizeram as malas. Vou-me embora amanhã, pequena.

De repente, teve a estranha sensação de que ela já lhe pertencia, mas não o demonstrou. Virou-se e disse algo à mãe, mas esta não pareceu prestar-lhe muita atenção. Afastou-se deles, deixando-os sós de novo.

Camille fitou-o com os seus grandes olhos cheios de tristeza.

- Se tiver tempo, talvez lhe escreva antes de cá voltar.

- Adoraria. - Mas Jeremiah precisava de tempo para refletir.

A rapariga lançou-lhe então um estranho olhar, como se soubesse...

- O papá disse-me que este ano me levaria a França; talvez não esteja cá quando você vier...

No entanto, Jeremiah sabia que estaria. A não ser que Beauchamp a vendesse, entretanto, a algum conde ou duque. A simples idéia provocou-lhe um sentimento de revolta. Camille não era um objeto que se pudesse vender daquele modo, nem sequer a ele. Era uma mulher, um ser humano... uma criança... De repente, mais do que nunca, desejou dispor de tempo para pensar se Camille poderia ser ou não feliz com ele. Queria voltar a contemplar as colinas da janela do quarto onde dormia, e tentar imaginá-la aí consigo.

- A Califórnia é tão longe... - A voz de Camille era débil e triste, e Jeremiah pegou-lhe na mão e apertou-a.

- Voltarei. - Foi tanto uma promessa para Camille como para si próprio, pois naquele instante não sabia o que fazer. A sua vida nunca voltaria a ser a mesma, mas desejava mudá-la por completo. Baixou os olhos para a rapariga que tinha diante de si e proferiu as palavras que ela desejava ouvir: - Amo-a, Camille... nunca se esqueça disso... - Beijou-lhe delicadamente os dedos, depois, a face. Ato contínuo, deu um firme aperto de mão a Orville Beauchamp, enquanto trocavam um olhar cúmplice, e saiu, não deixando ninguém indiferente, começando por ele próprio.

 

O barco chegou a Napa às primeiras horas da manhã de sábado, e Jeremiah desembarcou com a intenção de alugar uma carruagem que o conduzisse até Santa Helena. Telegrafara para as minas a dizer que estaria de volta segunda-feira de manhã. Dispunha, pois, de todo o fim-de-semana para pôr em ordem a papelada e a correspondência, e dar uma volta pelos vinhedos. Já no cais, olhou ao seu redor e inspirou profundamente o ar que lhe era tão familiar. Ao longe, as colinas pareciam ainda mais verdes do que três semanas antes, quando deixara Napa. Então, viu o rapaz que o conduzira até à estação e a quem prometera trabalho para as manhãs de sábado: o pequeno Danny Richfield.

- Olá, Mister Thurston! - gritou o rapaz, agitando o braço, do alto do assento da carruagem.

Jeremiah avançou para ele, esboçando um sorriso. Era bom encontrar alguém conhecido, ainda que tratando-se de um rapaz que mal conhecia. Quando chegou próximo do moço, deu-se conta de que pouco mais novo era que Camille. Era uma sensação estranha. Enquanto sorria para Danny, atirou as malas para cima da carruagem.

- Que fazes aqui?

- O meu pai disse-me que o senhor chegava hoje, e então perguntei-lhe se me deixava vir buscá-lo de carruagem.

Jeremiah sentou-se de um pulo ao lado do rapaz e, enquanto se dirigiam para casa, pôs-se a par das últimas novidades. Durante as duas horas e meia que durou a viagem, não parou de olhar ao seu redor com ar de felicidade. A paixão pelo vale de Napa era cada vez maior.

- Está feliz por ter voltado, não está?

- Estou, muito. - Jeremiah esboçou um sorriso de felicidade. - Não há no mundo outro lugar como este vale. Não tenhas a mínima ilusão a esse respeito. Talvez um dia cedas à tentação de vaguear pelo mundo, mas de uma coisa podes ter a certeza: nunca encontrarás um lugar de que gostes mais do que este.

Todavia, o rapaz não pareceu muito convencido com aquelas palavras. Havia lugares muito mais bonitos e interessantes no mundo, e ele sabia bem. Além disso, queria ser banqueiro quando fosse grande. Qual seria o gozo de ser banqueiro no vale de Napa? No mínimo, queria ir para São Francisco... ou para Saint Louis... Chicago... Nova Iorque... Boston.

- Divertiu-se.

- Diverti.

Enquanto olhava para o rapaz, voltou a recordar-se de Camille. Como estaria? Onde se encontraria naquele instante? Gostaria daquele lugar? Perguntas parecidas com estas não paravam de lhe matraquear o espírito durante a longa viagem de regresso, sobretudo agora que estava de volta ao vale de Napa. De repente, tentou ver tudo através dos olhos de Camille, imaginando a sua reação quando a trouxesse ali.

Quando a carruagem se deteve diante de sua casa, Jeremiah manteve-se sentado durante um longo instante e olhou à sua volta. Que pensaria Camille de tudo aquilo?, interrogou-se. Não era fácil imaginá-la naquele lugar. E eram tantas as coisas que há muitos anos não fazia... como plantar canteiros de flores, pôr cortinas, coisas em que Hannah deixara de insistir desde há muito tempo e que agora, de repente, significavam muito para si. Mas estava a precipitar-se. Viera para casa para ver o que sentia por ela, não para refazer todo o seu mundo com o fim de o adaptar às necessidades de Camille. Ou seria aquilo que queria fazer na realidade? Parecia já ter tomado uma decisão definitiva, mas havia algo que ainda tinha de resolver. E sabia muito bem o quê. Agradeceu ao rapaz por o ter conduzido até ali, e entrou silenciosamente em casa. Jeremiah não ignorava em que dia da semana se encontrava. Queria ir até às minas para ver como é que as coisas iam, mas depois daquilo... tinha de ser justo para com.. quem? Com Camille?, interrogou-se... ou para com Mary Ellen Browne?... Quando estava a chegar à conclusão de que tinha a cabeça demasiado cheia, viu Hannah, que o observava com a habitual cara de poucos amigos.

- Bem, não pareces com muito má cara. - Não houve da parte de Hannah abraços nem exclamações de boas-vindas, mas Jeremiah sorriu-lhe.

- Apanhaste-me de surpresa. Que tal te tens dado desde a minha ausência?

- Não muito mal. E tu, rapaz?

Jeremiah riu-se. Para ela, continuava a ser um rapaz, e provavelmente continuaria sempre a sê-lo.

- Sabe bem sentir-me em casa de novo. - E assim era na realidade. O vale onde vivia significava mais para ele do que qualquer outro lugar do mundo. Mesmo tendo a sensação de que faltava alguém ali ao seu lado. Mas talvez fosse por pouco tempo. Levantou os olhos e Hannah continuava de olhar fixo nele.

- Que se passa, rapaz? Estás cá com uma cara de caso! - Conhecia-o melhor do que ninguém, o suficiente para ver que lhe acontecera algo enquanto estivera fora. - Portaste-te mal lá para o Sul?

- Um pouco. - Os olhos de Jeremiah sorriram.

- Que queres dizer com «um pouco»?

Era difícil de explicar, e Jeremiah não sabia por onde começar.

- Bem, vejamos. Fechei um negócio muito importante. - Estava a tentar contornar o assunto, mas Hannah não gostava de rodeios.

- Estou-me nas tintas para isso, tu sabes bem o que quero dizer. Que mais fizeste?

- Conheci uma senhorita encantadora. - Jeremiah decidiu acabar com a curiosidade de Hannah. Os olhos da velhota brilharam.

- Tinha assim tanto encanto, Jeremiah? Tiveste de pagar-lhe ou foi à borla?

Jeremiah soltou uma gargalhada e a velhota sorriu.

- Fizeste-me uma pergunta muito grosseira e imprópria de uma dama.

-Não sou nenhuma dama. Vá lá, desembucha! - Jeremiah sorriu.

- Não, não tive de pagar-lhe. Tem dezessete anos e é filha do homem com quem fiz o negócio de que te falei.

- Agora andas atrás de crianças, Jeremiah? Não achas que uma rapariga de dezessete anos é um pouco nova para ti?

Jeremiah franziu o sobrolho. Hannah tinha razão, e era

precisamente disso que ele tinha medo Sem querer, ela pusera o dedo na ferida E tentou varrer Camille do seu espírito.

- Sim, receio que seja. Foi o que lhes disse, a ela e ao pai, antes de me vir embora.

De repente, manifestou-se alguma amargura no rosto de Jeremiah, e Hannah agarrou-o pelo braço, impedindo-o de sair da sala.

- Não, não vás já a fugir como uma vaca ferida, tonto. Não estou à espera que andes atrás de uma cadela velha como eu. Talvez dezessete anos não sejam assim tão poucos anos como isso. Diz-me como ela é? - Hannah tivera a súbita intuição de que podia tratar-se de uma coisa séria. - Vá lá, Jeremiah. Fala-me dessa rapariga que conheceste. Gostas muito dela, não gostas, rapaz. - O olhar cruzou-se com o dele e, de repente, a velhota quase ficou sem alento. Nunca vira tanto amor nos olhos de um homem. No entanto, ele mal a conhecia. - Pelo que vejo, Jeremiah estás apaixonado, não estás? - O tom de voz era suave.

Jeremiah fez um ligeiro gesto afirmativo com a cabeça

- É provável que esteja, querida amiga. Não sei. Preciso de pensar. Nem sequer sei se ela seria feliz aqui. Está habituada a um tipo de vida muito diferente no Sul.

- Pois eu acho que seria uma rapariga cheia de sorte se resolvesses trazê-la para cá - ripostou Hannah bruscamente.

Jeremiah sorriu

- Eu é que seria um homem cheio de sorte. É uma rapariga muito especial, mais inteligente do que muitos homens, e mais bonita do que qualquer outra mulher. Não se pode pedir mais.

- É boa rapariga?

Era uma pergunta inesperada e provocou uma estranha agitação na alma de Jeremiah. Boa rapariga. Não a conhecia o suficiente para saber. Jennie era boa, decente, carinhosa, encantadora, amável, Mary Ellen era uma mulher decente e Camille Era boa, inteligente, divertida, deliciosa, sensual, apaixonada, atraente.

- Creio que sim.

Por que razão é que haveria de não ser? Tinha dezessete anos Mas Hannah arranjara-lhe um novo motivo de preocupação, e ficaram de olhos fixos um no outro.

- Que vais fazer com a Mary Ellen, rapaz?

-Ainda não sei. Não pensei noutra coisa enquanto vinha para cá no comboio.

- Já tomaste alguma decisão? Dá-me a impressão que sim.

- Ainda não sei. Do que preciso, mais do que qualquer outra coisa, é de tempo... tempo para mim... para tomar uma decisão...

O que significava manter-se afastado de toda a gente. Sabia o que tinha de fazer com Mary Ellen, mas amedrontava-o o simples pensamento de comunicar-lhe a sua decisão. Lembrou-se das palavras que ela proferira naquela última tarde de sábado... «Vê lá se não encontras a rapariga dos teus sonhos em Atlanta.» «Não sejas tonta», ripostara-lhe ele... «Não sejas tonta...» Todavia, fora o que fizera... Como conseguira fazer uma coisa daquelas ao fim de tantos anos? E agora ia pensar em dar uma volta completa à sua vida como nunca fizera por ninguém, nem sequer por Mary Ellen Browne. A única coisa que lhe dera fora uma noite por semana, e agora queria oferecer toda a sua vida àquela rapariga travessa... No entanto, sentia algo por ela que nunca sentira por ninguém. Era uma paixão que lhe abrasava a alma. Teria calcorreado quilômetros sem fim para ela, tê-la-ia trazido ao colo através do deserto, teria arrancado o coração para lho oferecer. De repente, viu Hannah de olhos fixos nele.

- Estás com um ar cansado.

- Sim, acho que estou.

Jeremiah sorriu. Era uma espécie de cansaço, um estado de insanidade mental por que nunca passara. E que se pode fazer num caso como este?

- Vai atrás dela, se gostas assim tanto da rapariga, mas primeiro tens de fazer outra coisa.

Ambos sabiam do que se tratava, e ele temia fazê-lo. Mary Ellen fora muito boa para ele, e não queria feri-la depois de tantos anos, mas nada o deteria. Não tinha alternativa. Voltou-se e olhou para o vale. Que lugar maravilhoso! Era difícil imaginar que alguém pudesse sentir-se infeliz naquele lugar, mas, naturalmente, podia haver quem não o visse com os mesmos olhos. Voltou-se, então, para Hannah.

- Viste o John Harte? - Hannah abanou a cabeça.

- Ouvi dizer que não quer ver ninguém. Trancou-se em casa e esteve bêbedo durante mais de uma semana, e agora trabalha nas minas lado a lado com os seus homens. Perdeu quase metade deles durante a epidemia. - O semblante de Hannah tomou um ar triste. - Nós perdemos dois, mas não houve mais desgraças enquanto estiveste fora. Disse-lhe quem eram os homens com uma expressão desolada. Porque não havia modo de evitar calamidades como aquela? Que injusta era, por vezes, a vida. - Dizem que o John Harte se comporta agora como um louco. Trabalha noite e dia, grita com toda a gente e embebeda-se mal sai das minas. Acho que vai andar assim mais algum tempo.

Jeremiah lembrou-se de novo da sua falecida noiva e, de repente, temeu pela vida de Camille. E se a rapariga adoecesse durante a sua ausência? E se a encontrasse morta quando regressasse a Atlanta? Sentiu-se inundado por uma súbita onda de terror. Hannah vislumbrou-o no seu rosto e abanou a cabeça.

- Estás mesmo apanhado, rapaz

- Eu sei. - Mal conseguia falar depois do pavor que sentira momentos antes.

- Espero que ela te mereça, pois vai ficar com um homem bom. - A velhota suspirou. - E receio que a Mary Ellen Browne esteja prestes a perder o melhor homem que alguma vez conheceu.

- Não... - Jeremiah voltou-se de novo. - Não continues... Bolas!

Talvez fosse um erro acabar a relação com ela agora, mas seria ainda pior não lhe dizer nada e casar-se com Camille... Não, aquilo não seria justo para Mary Ellen. Soltou um profundo suspiro e levantou-se. Queria tomar banho e mudar de roupa antes de ir para a mina. Depois, teria de enfrentar Mary Ellen. Há poucas semanas, lamentara ter de deixá-la para partir de viagem, e agora ia dizer-lhe adeus. Que estranha era a vida! Olhou para a velha governanta e sorriu.

- Pode ser que o que acontecer seja para o bem de todos.

- Assim o espero. Sobretudo, para o teu.

Jeremiah sorriu e saiu da sala Meia hora depois, encontrava-se no dorso do seu cavalo a caminho da mina.

 

Nessa noite, quando Jeremiah prendeu o cavalo à árvore que se erguia atrás da casa de Mary Ellen, não havia qualquer sinal das crianças. Deu a volta à casa, encaminhou-se para a porta principal e bateu. Mary Ellen abriu a porta quase de imediato. Envergava um bonito vestido de algodão cor-de-rosa e os cabelos acobreados brilhavam. E, antes que Jeremiah pudesse dizer sequer uma palavra, deitou-lhe os braços à volta do pescoço e beijou-o com ardor. Por instantes, ele hesitou, mas depois sentiu-se vencido pela habitual torrente de paixão e puxou Mary Ellen para si, sentindo, uma vez mais, o prazer do seu corpo nos seus braços. Porém, ao lembrar-se do intuito da sua visita, afastou-se dela e tentou evitar o seu olhar enquanto se dirigiam para a sala de estar.

- Como tens passado, Mary Ellen?

- Com muitas saudades tuas.

Enquanto se sentavam na pequena sala, os olhos de Mary Ellen, que refletiam a felicidade de ver Jeremiah de novo, procuraram os dele. Raramente se encontravam ali, o que deixou Mary Ellen pouco à vontade, com a sensação de que ele era outra pessoa. Havia sempre um certo torpor quando regressava de uma viagem, mas ela sabia que, uma vez na cama, os seus sentimentos voltavam a ser como sempre haviam sido.

- Sinto-me tão feliz por teres voltado!

Ao ouvir aquelas palavras, Jeremiah sentiu um aperto no coração. Era uma mescla de dor, pena e culpa. Mary Ellen olhava-o com ar implorante, e Jeremiah sentiu o estômago a revoltear-se. De repente, a visão de Camille voltou à sua mente, e ouviu de novo a voz de Amélia... «case-se»... e tinha razão. Mas pelo preço de abandonar Mary Ellen...

- Também me sinto feliz por estar de volta. - Não lhe ocorreu mais nada. - Como estão os miúdos?

- Ótimos. - Sorriu, quase envergonhada. - Levei-os para casa da minha mãe para o caso de vires. Ouvi dizer que chegavas hoje.

Jeremiah sentia-se um estúpido. Que podia dizer? Há uma rapariga de dezessete anos em Atlanta...

- Estás com ar cansado. Queres comer alguma coisa? - Não disse a frase «antes de irmos para a cama», mas poderia tê-lo feito.

Jeremiah ouviu as palavras com toda a clareza e abanou a cabeça.

- Não, não... estou bem... e tu, como é que tens passado?

- Bem. - Sem dizer mais nada, Mary Ellen deslizou a mão para dentro da camisa de Jeremiah e beijou-o carinhosamente no pescoço. - Tive muitas saudades tuas.

- Também tive saudades tuas. - Jeremiah estreitou-a entre os seus braços e apertou-a contra si, como que para a aliviar da dor que estava prestes a infligir-lhe; de repente, pensou que talvez fosse melhor não lhe dizer nada. Que necessidade tinha ele de o fazer? Todavia, fá-lo-ia. E ele sabia-o. E ela também parecia saber. - Mary Ellen... disse pausadamente. Temos de falar.

- Não, agora não, Jeremiah. - Parecia assustada, e Jeremiah sentiu o coração bater com mais força.

- Sim, temos de falar... Eu... eu tenho de dizer-te uma coisa...

- Por quê? - Os olhos de Mary Ellen estavam arregalados e tristes. Ela sabia o que se avizinhava. Estava certa disso. - Neste momento, não preciso de saber nada. Basta-me que estejas aqui comigo.

- Sim, mas...

Mary Ellen olhou para ele, aterrorizada. Seria algo mais do que a confissão de um deslize que cometera durante a viagem? De repente, teve a sensação de que ele ia mudar a sua vida por completo.

- Jeremiah... - Pressentira isso mesmo antes da sua partida. Sempre receara que esse momento chegasse. - Que aconteceu? Talvez precisasse de saber.

- Não sei bem...

Aquela incerteza ainda era pior. Era fácil de ver o estado de confusão em que Jeremiah se encontrava.

- Há outra mulher? - As palavras eram tensas, o semblante triste.

Ao olhar para ela, Jeremiah sentiu como que uma facada no coração. Como é que ia conseguir dizer-lhe?

- Creio que sim, Mary Ellen. Não sei ao certo. - Procurou desesperadamente não pensar mais em Camille, mas as imagens da rapariga não desapareceram do seu espírito. - Não tenho a certeza. Nas últimas três semanas, a minha vida deu uma volta completa.

- Oh... - Mary Ellen recostou-se no pequeno sofá, fingindo estar calma. - Quem é?

- É muito jovem. Demasiado. - As palavras não podiam ser mais contundentes. - Pouco mais do que uma criança. E nem sequer sei o que sinto por ela... - As palavras foram perdendo a intensidade, e Mary Ellen ganhou novo alento. Inclinou-se para Jeremiah e pôs a mão em cima da dele.

- Que importa isso? Não tens de me contar uma coisa dessas. - Afinal de contas, talvez tudo continuasse na mesma, mas Jeremiah abanou a cabeça.

- Mas eu acho que devo contar-te. A coisa pode ter grandes conseqüências. Disse ao pai que precisava de seis meses para refletir. Depois... talvez volte a Atlanta...

- Para por lá ficares? - Mary Ellen pareceu chocada. Não compreendia, mas Jeremiah abanou a cabeça de novo.

- Não. Só podia dizer a verdade. Vou buscá-la. - Mary Ellen ficou aturdida como se tivesse levado uma bofetada.

- Vais casar-te com ela?

- Talvez.

Ficaram um longo instante sem dizer palavra, sentados lado a lado, como que paralisados. Mary Ellen fitou-o, então, com uma expressão de tristeza no olhar.

- Jeremiah, por que razão é que nunca nos casamos?

- Porque não era o momento certo para nenhum dos dois, suponho. - Eram palavras sensatas ditas com brandura. - Na realidade, não sei. Sentíamo-nos bem tal como estávamos. - Recostou-se no sofá com um suspiro de cansaço. De repente, deu a sensação de estar esgotado. - Talvez não seja um homem feito para o matrimônio. Essa é uma das coisas em que preciso de pensar muito bem.

- São os filhos? É isso que queres?

- Talvez. Há muito tempo que deixei de pensar nisso, mas ultimamente... - Olhou-a com um ar triste. Mary Ellen... - não sei...

- Porque não tentamos de novo?

Jeremiah ficou tão comovido que sentiu uma pontada de dor no peito quando pôs a sua mão sobre a de Mary Ellen.

- Como poderias cometer semelhante loucura? Disseste-me que da última vez estiveste às portas da morte.

- Talvez desta vez fosse diferente. - Mas havia pouca convicção no olhar.

- Estás com mais idade agora, e já tens três filhos maravilhosos.

- Mas não são teus. - A voz de Mary Ellen soou como uma carícia. - Eu estaria disposta a tentar, Jeremiah... estaria disposta...

- Sei que estarias. - Então, ao não saber que mais lhe dizer, silenciou-a com um beijo, e apertou o corpo dela contra o seu até ficarem ambos sem alento. Foi Jeremiah quem, finalmente, quebrou o silêncio. - Mary Ellen... não...

- Porque não? - Os olhos estavam marejados de lágrimas... - Por que diabo não?... Amo-te, não sabes isso? - A voz de Mary Ellen tinha um tom tão apaixonado que o deixou de coração destroçado.

Jeremiah também a amava, nutrindo por ela uma amizade e uma compaixão que já durava há sete anos. Mas nunca quisera casar-se nem viver com ela... tal como desejava fazê-lo com Camille. Enleou-a nos seus braços e deixou-a chorar.

- Mary Ellen, por favor...

- Por favor, o quê? Por favor, adeus? Foi para isso que vieste aqui, não foi?

Com os olhos também inundados de lágrimas, Jeremiah fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Mas é uma loucura. Nem sequer conheces essa rapariga... essa... criança!... E a única coisa que queres é pensar nela nos próximos seis meses. Se precisas de meio ano para matutar no assunto, não deves estar bem certo do que vais fazer.

Mary Ellen lutava pela sua vida, mas sentia que era uma luta inglória. Jeremiah levantou-se, olhou para o rosto destroçado da mulher, que começara a soluçar, e tomou-a novamente nos braços. Nada mais havia para lhe dizer. Subiu lentamente as escadas, deitou-a em cima da cama e passou-lhe a mão pelos cabelos, procurando acalmá-la como se ela fosse uma criança.

- Mary Ellen, não fiques assim... Vais conseguir superar tudo isto...

No entanto, ela mantinha um olhar desconsolado. Para ela, nada voltaria a ser como antes. As noites de sábado vazias estendiam-se à sua frente como um longo caminho solitário. E que diriam as pessoas? Que Jeremiah a deixara? Nem queria imaginar as palavras da mãe... «Eu bem te tinha dito que isso acabaria assim, como se fosses uma pega...» E era precisamente aquilo que ela se sentia: a pega das noites de sábado de Jeremiah Thurston. Todos aqueles anos de orgulho, e agora ele abandonava-a. Deveria tê-lo agarrado anos antes, disse para consigo, mas sabia que dificilmente se teria decidido a fazê-lo. Ambos viviam muito bem com as coisas tal como estavam.

Jeremiah sentou-se ao lado da cama, na única cadeira que havia no quarto. Não conseguiu reprimir um soluço. Finalmente, ela fitou-o com os seus enormes e tristes olhos verdes.

- Nunca imaginei que isto pudesse acabar assim.

- Nem eu. Não precisava de to dizer hoje, mas não teria sido justo contigo. Não queria fazê-lo daqui a seis meses. Além disso, ainda tenho de pensar.

-E... - Soltou um pequeno soluço... - como é que ela é?

- Para te dizer a verdade, não sei. É muito jovem e inteligente. - E, mentindo piedosamente, acrescentou: - Mas não é tão bonita como tu.

Mary Ellen sorriu. Jeremiah fora sempre amável com ela.

- Não sei se hei-de acreditar.

- Mas é verdade. És uma mulher muito bonita. E certamente haverá outros homens. Mereces algo mais do que as noites de sábado, Mary Ellen. Há muito tempo que isso me preocupa. Foi egoísmo da minha parte.

- Não me importava.

Jeremiah suspeitava que sim, mas ela nunca quisera forçá-lo a nada. Então, lentamente, dos olhos de Mary Ellen recomeçaram a brotar lágrimas. A dor de a ver chorar foi tanta que Jeremiah beijou-lhe as pálpebras e secou-lhe as lágrimas com os lábios. Mary Ellen estendeu então os braços para Jeremiah e puxou-o para si, mas, desta vez, ele não conseguiu resistir-lhe. Apertou-a contra si e, num instante, ressurgiu o desejo que sempre sentira por ela. Nessa noite, quando Jeremiah adormeceu com a cabeça junto à dela, nos lábios de Mary Ellen havia um sorriso. Ao apagar a luz, deu-lhe um beijo na face.

 

- Jeremiah!

Na manhã seguinte, quando Mary Ellen acordou, ele fora-se embora, o que a fez dar um pulo da cama, de olhos espavoridos.

- Jeremiah!

Desceu as escadas a correr, arrastando o roupão de cetim cor-de-rosa pelos degraus. A sua atraente figura fez com que Jeremiah se virasse para a observar desde a porta da cozinha.

- Bom dia, Mary Ellen. Estava a pôr duas canecas cheias de café em cima da mesa. Fiz café para estar pronto para beber quando te levantasses.

Ela assentiu com a cabeça e voltou a sentir-se amedrontada. Na noite anterior, ficara convencida de que ele mudara de idéias, mas agora já não estava tão segura disso. A voz era branda e assustada.

- Vamos à igreja?

Às vezes era o que faziam. Mas agora já nada era como antes. Jeremiah fez um ligeiro gesto afirmativo com a cabeça, bebeu um gole de café e pousou a caneca.

- Vamos. - Fez uma embaraçosa pausa. - Depois, vou para casa. - Ambos sabiam que seria a última vez, mas Mary Ellen ainda não desistira da luta.

- Jeremiah... - Mary Ellen soltou um profundo suspiro e pousou a caneca. - Não tens de mudar nada. Compreendo. Foi honesto da tua parte teres-me falado... da rapariga...

Quase se engasgava a dizer a palavra, mas não queria perder o seu homem.

- Era a única coisa que podia fazer. - Jeremiah parecia mais insensível. Sabia que ia causar-lhe uma grande dor, mas não podia fazer outra coisa. Sentia-se com mais força do que na noite anterior, o que aumentou os receios de Mary Ellen. - Tenho um grande carinho por ti. Não podia estar a mentir-te acerca daquilo que me ia na cabeça.

- Mas ainda não estás seguro do que vais fazer. - As palavras saíram como um lamento; o rosto estava tenso.

- Queres esperar até que esteja? Dormir comigo até à minha noite de núpcias? É isso que queres? - Levantou-se e, erguendo a voz, acrescentou: - Permite-me, por amor de Deus, que faça as coisas com honestidade. Não piores ainda mais a situação.

- E se acabares por não casar com ela? - Era uma objeção patética, e Jeremiah abanou a cabeça.

- Não sei. Não me perguntes. Se não casar com ela, queres-me de volta? - Virou-lhe as costas e Mary Ellen ficou de olhos fixos nelas. - Depois de tudo isto, só poderás odiar-me.

- Nunca poderei odiar-te. Tens sido extremamente honesto comigo ao longo de todos estes anos.

Aquelas palavras pioraram ainda mais o ânimo de Jeremiah, e quando se voltou de novo para ela, tinha os olhos úmidos. De repente, avançou para ela e abraçou-a.

- Perdoa-me, Mary Ellen. Não queria que a nossa relação terminasse assim. Nunca pensei que isto pudesse acontecer.

- Nem eu.

Mary Ellen sorriu, com os olhos marejados de lágrimas, quando ele a estreitou nos braços. Nessa manhã, não foram à igreja. Em vez disso, voltaram para a cama e fizeram amor até à tarde, altura em que, finalmente, colocou a sela em cima de Big Joe, montou e ficou a olhar para Mary Ellen, que se encontrava debaixo do alpendre, com o seu roupão cor-de-rosa.

- Cuida de ti, minha querida...

As lágrimas corriam lentamente pelas faces de Mary Ellen.

- Volta!... Estarei aqui à tua espera!... - Sem conseguir articular mais nenhuma palavra, Mary Ellen levantou uma mão.

Jeremiah lançou-lhe um último olhar e partiu para casa, sem ela, sem Camille, sem ninguém. Só. Como sempre estivera.

 

Nesse ano, no vale de Napa, o verão foi farto e quente. Os frascos de mercúrio foram enviados para o Sul tal como ficara acordado na Primavera, as minas prosperaram, as uvas amadureceram, e Jeremiah sentia-se cada vez mais inquieto. Mais do que uma vez, teve a tentação de ir ver Mary Ellen a Calistoga, mas, apesar de estar a passar as noites de sábado mais solitárias da sua vida, não chegou a fazê-lo. Em vez disso, foi várias vezes a São Francisco visitar o seu bordel preferido. Mas persistia nele uma dor que ninguém parecia conseguir mitigar. Hannah observava, preocupada, as suas idas e vindas, e a súbita expressão de alívio que mostrava o seu rosto sempre que, ao ir recolher o correio, encontrava uma carta de Camille.

Camille enviara uma série de cartas a Jeremiah desde que ele regressara. Eram cartas divertidas sobre as suas amizades, os bailes a que ia e as festas que os seus pais davam, sobre várias viagens a Savannah, Charleston e Nova Orleães, e sobre uma rapariga desesperadamente feia que Hubert conhecera e que perseguia sem descanso porque o pai possuía os melhores estábulos do Sul. As cartas eram divertidas e demonstravam uma extrema percepção das coisas. Jeremiah deleitava-se a ler as piruetas que Camille fazia com a pena, deixando sempre algumas insinuações no final... como que para o seduzir... dar-lhe esperanças... para o trazer de volta a Atlanta. Ainda não havia qualquer evidência de verdadeira paixão, e chegou a dizer-lhe que ele teria de a conquistar de novo quando voltasse. Ao chegar o mês de Agosto, Jeremiah não conseguiu agüentar mais e reservou lugar no comboio. Só se haviam passado quatro meses desde que a vira, mas agora já sabia o que queria, e Hannah também o sabia quando Jeremiah deixou Santa Helena. A velhota sentiu pena de Mary Ellen, que há vários meses passava por grande sofrimento, mas também estava contente com a perspectiva de ver Jeremiah trazer uma mulher jovem para casa, que, em breve, ganharia vida com os gritos dos seus filhos e as gargalhadas da sua esposa.

Jeremiah telegrafara a Orville Beauchamp a avisá-lo da sua chegada, mas pedindo-lhe, ao mesmo tempo, que nada dissesse a Camille. Queria fazer-lhe uma surpresa para ver a sua reação. Quatro meses significavam muito tempo na vida de uma rapariga da sua idade, pelo que podia ter mudado de idéias. Durante a longa viagem para o Sul, Jeremiah não conseguiu fazer outra coisa senão pensar naquele encontro iminente; e desta vez não havia nenhuma Amélia no comboio. Praticamente não falou com ninguém, e encontrava-se nervoso e cansado quando chegou a Atlanta e viu a carruagem de Beauchamp à sua espera a fim de o levar para o hotel.

Instalou-se numa esplêndida suíte e enviou um bilhete aos Beauchamp, que lhe responderam de imediato. Pediam-lhe o prazer da sua companhia ao jantar, e Orville Beauchamp assegurava-lhe de que ainda não dissera nada a Camille sobre a sua chegada. Jeremiah começou, então, a imaginar a surpresa dela ao vê-lo de novo. Todavia, a alegria foi obscurecida de imediato por uma sombra de medo Quando nessa noite, às oito horas, subiu para a carruagem de Beauchamp, tinha as mãos úmidas. Ao ver de novo a casa da sua amada, sentiu o coração bater mais forte.

Conduziram-no à sala de visitas, faustosamente decorada, na parte da frente da mansão, e, de imediato, apareceu o próprio Orville Beauchamp para lhe dar um forte aperto de mãos. Quando recebera o telegrama da costa oeste, percebera logo que a viagem de Jeremiah significava boas notícias

- Como tem passado? Que alegria voltar a vê-lo por aqui, homem!

Parecia verdadeiramente emocionado, e Jeremiah esperava que a filha se mostrasse igualmente encantada com a sua vinda.

- Muito bem.

- Só esperávamos vê-lo daqui a dois meses. Havia uma pergunta nos olhos do pai de Camille.

Jeremiah sorriu

- Não conseguia estar afastado dela mais dois meses, Mister Beauchamp - declarou Jeremiah com voz suave.

O rosto do pequeno homem moreno iluminou-se de satisfação.

- Sempre pensei que tomasse essa decisão... Não esperava outra coisa de si...

- Como está a Camille? Ainda não sabe que estou aqui?

- Não. - Mas veio na altura certa. A Lizabeth encontra-se na Carolina do Sul a visitar uns amigos, o Hubert também foi para fora, para comprar um maldito cavalo. Como tal, eu e a Camille encontramo-nos sozinhos e, por outro lado, a vida social da cidade é quase inexistente. Foram todos passar o verão fora. Mas, este ano, ela tem andado um bocado nervosa – sorriu - sempre ansiosa à espera do correio e fala de você a todos os amigos e amigas. - Não lhe disse que a rapariga se referia a ele como «o homem mais rico do Oeste e grande amigo do papá». Não precisava de saber isso; só que ela falava dele aos amigos.

- Talvez mude de opinião quando me vir de novo. - Era a preocupação que o atormentara durante toda a viagem. Afinal de contas, ela era uma rapariga muito jovem, e ele, um homem bastante mais velho. Talvez agora o achasse demasiado velho para ela.

- Porque faria ela isso? - Beauchamp pareceu surpreendido.

- É normal nas raparigas, como sabe. - Jeremiah sorriu, mas Beauchamp riu-se.

- Não, a Camille, não. Esta garota sabe o que quer desde que nasceu. É teimosa que nem uma mula. - Voltou a rir-se, orgulhoso da sua única filha. - Talvez não devesse dizer-lhe, mas estou certo de que você saberá domá-la bem. É boa rapariga, Thurston, será uma ótima esposa. - Semicerrou os olhos quando olhou para Jeremiah. - Ainda mantém a intenção de casar-se com ela? - Não conseguia imaginar que aquele homem viesse de tão longe até Atlanta para outra coisa. E tinha razão.

Jeremiah falou então pausadamente.

- Sim, não tenho outro propósito. E suponho que o senhor também não terá mudado de idéias.

- Pelo contrário. Acho que farão um casal perfeito. - Orville levantou o copo para brindar a Jeremiah, que recebeu o gesto com um sorriso. Agora só faltava convencer Camille.

Dez minutos depois, a rapariga entrou na sala, abrindo a porta de supetão, e pela mansão flutuou uma visão envolta em seda amarela. Colares de topázios combinados com pérolas dançavam no seu pescoço, e nos seus cabelos soltos numa cascata de caracóis escuros, detrás da orelha, havia uma rosa perfeita também amarela. Deslizou pela sala, de olhos fixos no pai, depois lançou um olhar indiferente ao amigo dele. Fazia um calor terrível, e passara horas no quarto. Mas ao dar-se conta de quem era o homem que estava a falar com o pai, parou, tomou fôlego e, de repente, desatou a correr para ele e atirou-se-lhe para os braços, enterrando a cabeça no seu peito Quando se afastou de Jeremiah, havia lágrimas nos seus olhos e um enorme sorriso. A sua expressão, que a fazia mais bonita que nunca, bastou para que o coração de Jeremiah voasse até ela e a ela ficasse unido para sempre. Nunca sentira nada semelhante por outro ser humano, e ficou sem alento ao contemplá-la

- Voltou!

Foi um espontâneo grito de alegria de Camille que fez rir o pai. Era algo digno de ser visto com agrado: o corpulento homem e a delicada rapariga, tão apaixonados que a diferença de idades não importava absolutamente nada. A única coisa que interessava naquele momento era a felicidade que os olhos dela irradiavam e a estima que havia nos dele. A paixão era desenfreada.

- Claro que voltei, pequena. Disse-lhe que o faria!

- Sim, mas não tão cedo!

Camille dançava à volta de Jeremiah, batendo as palmas, e a rosa que tinha no cabelo caiu aos pés dele. A rapariga apanhou-a e, fazendo uma reverência, deu-lha com um gesto discreto. Jeremiah riu-se. Era um riso nascido do êxtase e do alívio que sentia E pôde ver nos olhos da jovem que ela ainda gostava dele.

- A mesma provocadora de sempre, Camille. Se acha que vim demasiado cedo, posso voltar para casa. - Enfiou a mão dela na sua sem desviar os olhos dos da rapariga.

- Não se atreva a fazê-lo. Não permitirei que se vá embora de novo. Se o fizer, irei a França com o papá e caso com um duque ou um príncipe.

- É uma ameaça encantadora! - Mas não deu mostras de preocupação. - Mais dia, menos dia, terei de partir.

Quando?

A pergunta foi mais um lamento de pavor, e Orville sorriu. Tinha a impressão de que fariam um casal perfeito. Não havia a menor dúvida de que Thurston amava a sua filha e de que ela estava apaixonada por ele. Do mesmo modo que Thurston estava encantado por poder desfrutar do afeto de uma rapariga, Camille sentia-se lisonjeada perante as atenções de um homem muito mais velho. Mas havia algo mais, algo que ardia entre eles, algo demasiado quente para se tocar.

- Não falemos já da minha partida, pequena. Só cheguei hoje.

- Por que razão é que não nos avisou da sua chegada? - perguntou, fazendo beicinho, no preciso momento em que o jantar foi anunciado e se dirigiram para a sala de jantar.

- Mas avisei. - Jeremiah sorriu para Beauchamp, o que fez com que ela desse uma pancadinha de repreensão no braço do pai com o leque.

- Foste indecente, papá! Não me disseste nem uma palavra!

- Achei que seria mais divertido se a visita de Mister Thurston te apanhasse de surpresa. - E não se enganara.

Camille sorriu para os dois.

- Quanto tempo ficará entre nós, Jeremiah? - perguntou Camille com ar imperial, gozando o seu poder. Sabia muito bem que Thurston era um homem muito importante, por aquilo que o pai lhe dissera vezes sem conta, e atravessara o país de um extremo ao outro só para a ver. Ela também não se cansara de dizer aos seus amigos que se tratava de um homem importante. Era algo que significava muito para si.

Jeremiah organizara as coisas nas minas de modo a permanecer um mês fora. Era o tempo máximo de ausência que se poderia conceder, o que lhe permitiria passar mais de duas semanas com Camille; de qualquer modo, mesmo que ela desse O sim, teria de regressar a Santa Helena para organizar as coisas. Haveria muito que fazer. Já tinha um plano. Hannah ficara nervosa que nem uma gata quando ele partiu e fê-lo prometer que lhe escreveria a dar-lhe a conhecer a resposta de Camille. Mas os seus pensamentos não se centravam em Hannah naquele momento, mas na bela rapariga que tinha ao seu lado. Estava ainda mais bonita do que na primavera, e parecia mais mulher. Fez-lhe inúmeras perguntas sobre as minas e queixou-se de que, nas suas cartas, nunca lhe dava muitas novidades.

- Não escrevi a muitas raparigas ao longo da minha vida. - Jeremiah sorriu-lhe.

Pouco depois, Orville enxotou-a da sala. O mordomo serviu-lhes conhaque e charutos, e Beauchamp olhou para o futuro genro.

- Pensa declarar-se esta noite?

- Com sua permissão, sim.

- Já sabe que a tem.

Jeremiah soltou um pequeno suspiro enquanto acendia o charuto.

- Gostaria de saber o que significo para ela.

- Ainda tem dúvidas?

- Algumas. A Camille podia ter levado a coisa para a brincadeira, sem ter a menor idéia de que estou disposto a pedir-lhe a mão. Poderia ser um fato aterrador para uma rapariga da sua idade.

- Para a Camille, não. - Beauchamp insistiu na mesma tecla, como se a filha fosse diferente das outras raparigas, mas Jeremiah não estava tão certo de que ela ia aceitar a sua proposta de casamento. - Gostaria de anunciar o noivado de imediato?

- Sim. Antes de regressar. E começaria a pôr em prática os meus planos quando voltar para a Califórnia.

- E que planos são esses? - Beauchamp fitou-o, interessado, curioso por saber o que Jeremiah tinha em mente para a sua filha.

- Mais ou menos, os que me sugeriu antes. - Jeremiah foi cauteloso. Afinal de contas, Camille ainda não o aceitara, o que não impedia que não tivesse já pensado maduramente no assunto. Beauchamp tinha razão. Camille acabaria por acostumar-se a passar umas temporadas em Napa, o que a ele lhe daria ocasião de ir ver as minas de vez em quando. Construiria para ela uma casa em São Francisco, onde residiriam pelo menos durante os meses de Inverno, como era moda. Explicou os seus planos a Beauchamp, que se mostrou agradado.

- E quando a casa estiver construída, aproximadamente dentro de cinco ou seis meses, voltarei para o casamento e depois levo-a para a Califórnia. Que lhe parece?

- Perfeito. Em dezembro, ela terá dezoito anos. Só faltam quatro meses... Acha que a casa poderá estar acabada nessa altura?

- É um prazo bastante curto, mas talvez sim. Eu estava a pensar em fevereiro ou março, mas... - Jeremiah sorriu; parecia um miúdo. - Também gostaria que o casamento fosse em dezembro. - Agora, sem Mary Ellen, sentia-se muito só. - Farei todos os possíveis para que esteja tudo pronto nessa altura. - Então, de repente, levantou-se e, visivelmente nervoso, começou a andar aos círculos pela sala.

- Não se preocupe com isso, homem. - Beauchamp sorriu. Pensou, então, que chegara a altura de Jeremiah falar com Camille. Levantou-se para se ir embora e deixar que fosse o próprio Jeremiah a ir ao encontro dela no jardim. Estava sentada no seu balanço preferido.

- Vocês os dois já estão a falar há séculos. Beberam demais? - foram as primeiras palavras da rapariga.

Jeremiah riu-se.

- Não muito.

- Acho uma estupidez as mulheres terem de sair da sala para os homens poderem falar. De que falaram?

- De nada importante. De negócios, das minas, um pouco de tudo.

- E de nada mais?

Camille era uma rapariga inteligente, e não desviou os olhos de Jeremiah enquanto imprimia um ligeiro movimento de vaivém ao balanço.

De olhos fixos nos dela, Jeremiah retorquiu numa voz suave e profunda:

- Falamos de ti. - Sentiu o coração bater mais depressa. O balanço parou.

- Que disseram? - A voz da rapariga soou como um suspiro no aromático ar do Sul.

- Que queria casar contigo.

Mantiveram-se alguns instantes em silêncio. Então, Camille, fitou-o com os seus enormes olhos acriançados.

- A sério? - Ela sorriu-lhe e Jeremiah sentiu o coração a derreter-se. - Estás a troçar de mim.

Com voz séria e profunda, Jeremiah esclareceu:

- Não, Camille, não estou a troçar de ti. Desta vez, vim a Atlanta para te ver e te pedir em casamento.

A rapariga soltou um profundo suspiro e, de repente, como certa vez há algum tempo atrás, os seus lábios colaram-se aos de Jeremiah, que, desta vez, correspondeu ao beijo até a deixar sem alento. Depois, tomando-a carinhosamente nos braços, disse-lhe com voz terna:

- Amo-te, Camille, e quero levar-te comigo para a Califórnia.

- Agora? - Camille pareceu espantada e Jeremiah sorriu.

- Agora, não. Daqui a alguns meses, quando tiveres dezoito anos e eu tiver acabado de construir uma casa para ti. - Estava de pé diante dela. Tocou-a carinhosamente na face com uma mão e ajoelhou-se a seus pés, aproximando a cara dela da sua. - Amo-te, Camille... do fundo do coração... mais do que aquilo que algum dia possas imaginar. - Os olhares encontraram-se e ficaram fixos um no outro. De repente, a voz de Jeremiah fez estremecer a rapariga. - Queres casar comigo?

Camille, que ficara sem palavras, assentiu com a cabeça. Há muito que esperava aquele momento, mas sempre lhe parecera um sonho distante. Então, atirou os braços à volta do pescoço de Jeremiah.

- Como será a casa?

Jeremiah, que não esperava tal pergunta naquele instante, deixou-se rir.

- Como tu quiseres, meu amor. Mas ainda não me respondeste. Pelo menos, com palavras claras e concretas. Queres casar comigo, Camille?

- Sim! - gritou, encantada, puxando Jeremiah para si, mas afastou-o, de imediato, com ar preocupado. - Terei de ter filhos se for tua mulher?

Jeremiah ficou estupefato perante as inesperadas palavras. A pergunta embaraçara-o. Era um assunto que ela tinha de discutir com a mãe, não com ele. E deu-se conta, uma vez mais, de que Camille ainda era extremamente jovem, apesar de às vezes parecer uma mulherzinha.

- Acho que poderemos ter um ou dois filhos. - Jeremiah quase sentiu pena da rapariga. Ela própria ainda era uma criança. - Importar-te-ias muito? - Era uma das coisas que ele mais desejava. Nos últimos quatro meses, não pensara noutra coisa: nos filhos que teriam. Mas, agora, semelhante perspectiva parecia desanimá-la.

- Uma amiga da minha mãe morreu ao dar à luz o ano passado.

Era um fato chocante, e Jeremiah sentia-se cada vez mais incomodado. Decididamente, não estava disposto a falar daquele assunto com ela.

- Isso nunca acontece a mulheres jovens, Camille. - Mas ele sabia que acontecia. - Não deverias preocupar-te com isso. As coisas acontecem naturalmente entre marido e mulher...

Ela interrompeu-o, pouco impressionada com a argumentação.

- A minha mãe diz que é o preço que as mulheres pagam pelo pecado original. Embora não ache justo que sejam só as mulheres a pagar. Não quero engordar, nem...

- Camille! - Jeremiah sentiu-se angustiado por aquilo que acabara de ouvir. - Querida... por favor... Não quero que te preocupes com nada.

Jeremiah tomou-a de novo nos braços, o que a fez esquecer aquilo que a mãe dissera, e a conversa passou para a casa que iria construir-lhe, para o casamento que teria lugar quando ela completasse os dezoito anos... para o anúncio do noivado logo que a mãe regressasse... para a festa que o pai daria... para temas muito mais importantes, pelo menos para Camille, que o da maternidade. À noite, quando foi para a cama, a rapariga estava tão excitada que não conseguiu pregar olho. Depois da conversa com Jeremiah, foi com ele anunciar a boa nova ao pai. Este deu um aperto de mão a Jeremiah, beijou a filha na face e, quando se foi deitar nessa noite, estava encantado. A filha ia ser uma mulher muito rica e muito feliz, o que o deixava imensamente satisfeito. E ainda mais radiante estava pelo fato de ter posto a idéia na cabeça de Thurston na primavera anterior.

E a única coisa em que Jeremiah conseguiu pensar naquela noite foi na pequena e deliciosa beldade de cabelos escuros que em breve jazeria nos seus braços. E não via a hora de isso acontecer. Estivera só durante aqueles últimos meses e não voltara a ver Mary Ellen. Também não recebera notícias de Amélia, embora lhe tivesse escrito um ou dois meses antes para Nova Iorque a contar-lhe o que se passava com Camille. Mas agora tinha muito em que pensar... na noiva... e na espetacular mansão que iria construir-lhe. Quanto à questão de ela não querer filhos, não estava preocupado. Era natural que uma jovem tivesse receios relativamente a isso. A mãe aconselhá-la-ia, certamente, antes da noite de núpcias, e o problema resolver-se-ia por si mesmo. Daí a um ano, ou talvez antes, a sua esposa estaria a dar à luz, disse para consigo, quase vencido pelo sono. Nessa noite, adormeceu com um grande sorriso nos lábios e viu-se, em sonhos, na companhia de Camille, a contemplar os filhos a brincar nos prados verdejantes de Napa...

 

Elizabeth Beauchamp regressou de pronto a Atlanta mal recebeu a carta de Orville a dar-lhe a novidade. Hubert fez o mesmo, embora tivesse sido um pouco mais difícil de localizar. A família reuniu-se imediatamente, e enviaram-se convites a todos os amigos de Atlanta solicitando a sua presença na festa de noivado. E embora muitos deles se encontrassem ainda fora da cidade, foram mais de duzentos os que apareceram no dia da festa, na qual Camille, que envergava um vestido de organdi branco enfeitado com pequenas pérolas, estava deslumbrante como nunca. Parecia uma princesa de um conto de fadas, com a sua pele cremosa e os seus cabelos negros, ao lado de Jeremiah, exibindo um sorriso radioso nos lábios e um anel de noivado com um diamante de doze quilates no dedo.

- Meu Deus, é quase tão grande como um ovo! - gritara a mãe ao ver a pedra do anel. Camille, irradiando felicidade, pusera-se a dançar pela sala, enquanto o pai ria. - És uma desmiolada acrescentou a mãe, também a rir. E vais ser tão rica, Camille! - Lançou um olhar de reprovação a Orville, que preferiu não lhe responder desta vez. Estava demasiado absorto a contemplar a filha.

- Eu sei. E o Jeremiah vai construir-me uma mansão maravilhosa, com tudo o que há de mais moderno e tudo o que quero! - Parecia uma menina de nove anos e a mãe franziu o sobrolho.

- Que rapariga mais mimada que vais ser, Camille!

- Eu sei. - A única nuvem que lhe ensombrou o rosto foi a perspectiva de ter um filho, mas talvez fosse um pequeno preço a pagar. Falaria disso com a mãe, e perguntar-lhe-ia se poderia fazer algo para evitar durante algum tempo o seu motivo de preocupação. Ouvira falar dessa questão a algumas mulheres, mas, de momento, não queria tocar nesse assunto. Ainda faltava bastante tempo para a noite de núpcias. - Tens consciência da sorte que tens?

- Tenho.

Camille saiu precipitadamente da sala quando a criada lhe disse que Jeremiah se encontrava no piso inferior

As duas semanas que Jeremiah passou em Atlanta foram quase um sonho: festas, piqueniques, presentes, anúncios e beijos roubados, com as mãos ao redor da esbelta cintura de Camille. Não via o momento de a levar para sua casa, e foi de coração destroçado que se despediu dela. desta vez Não conseguia esperar mais tempo para a levar consigo Mas, antes, tinha muito que fazer: comprar um terreno e construir uma mansão para a futura esposa. Passou toda a viagem de volta a delinear exatamente o que tinha em mente, e dessa vez, antes de voltar para Napa, passou três dias em São Francisco a ver lotes de terreno de grandes dimensões, depois foi a vários arquitetos para que eles começassem a desenhar o projeto. No dia antes de regressar a casa, encontrou exatamente aquilo que queria para ela. O lote era enorme, quase a mesma área de um quarteirão de casas, na orla sul de Nob Hill, com vista sobre toda a cidade. Semicerrou os olhos e sentiu que encontrara o lugar desejado. A mansão seria ainda mais imponente do que as residências dos Huntington, dos Croker, dos Mark Hopkins ou dos Tobins. E quando ao fim dessa manhã foi ao ateliê do arquiteto e descreveu aquilo que desejava, não conseguiu conter o riso quando o homem lhe disse que só daí a dois anos é que teria exatamente aquilo que queria

- Nem pensar, meu amigo. - O arquiteto pareceu desconcertado quando Jeremiah sorriu e acrescentou: - Eu pensava em algo menos de dois anos.

- Um?

O homem empalideceu e Jeremiah abriu ainda mais o sorriso. Não conhecia Jeremiah Thurston... nem Camille Beauchamp, sobretudo quando se tratava de conseguir aquilo a que se haviam proposto. Jeremiah imaginava-a tão exigente como ele, quando crescesse um pouco mais, e se habituasse a ser Mistress Thurston, e não estava muito longe da verdade

- Estava a pensar em quatro meses, talvez cinco. - O homem ficou quase sem fala e Jeremiah riu-se.

- Não está a falar a sério, pois não?

- Estou a falar muito a sério

Quase sem acabar de pronunciar aquelas palavras, Jeremiah sentou-se à secretária do arquiteto e passou um cheque de uma soma fabulosa. Eram os melhores arquitetos da cidade e haviam sido altamente recomendados pelos seus banqueiros. Entregou o cheque ao arquiteto e disse-lhe que lhe entregaria outro igual quando a obra terminasse, dentro de quatro, cinco meses no máximo. Era uma soma irrecusável, que ajudava a ultrapassar o problema do tempo. Com aquela importância de dinheiro, poderiam contratar um exército de trabalhadores para erguer a mansão dentro do prazo exigido, no lote de Nob Hill, que, horas mais tarde, Jeremiah comprou, passando um cheque. Era um homem com quem era fácil negociar. E quando, ao entardecer, apanhou o barco que o conduziria a Napa, sentia-se plenamente satisfeito com o dia de negócios que tivera atrás de si. O próprio arquiteto iria a Napa daí a uma semana para mostrar o projeto a Jeremiah e, com um pouco de sorte, as obras iniciar-se-iam dentro de dias. Jeremiah não queria perder nem um segundo, desejava que a casa estivesse terminada quando trouxesse a esposa do Este. Já decidira passar a lua-de-mel em Nova Iorque, logo a seguir ao casamento, que se celebraria no mês de Dezembro, e depois levaria Camille para a casa de Napa e para a magnífica mansão de São Francisco. Viveriam na cidade durante os meses de Inverno e, ao primeiro indício de Primavera, mudar-se-iam para Napa até ao fim do Verão. Jeremiah pensou que seria uma vida perfeita, como perfeito era o projeto que o arquiteto lhe apresentou na semana seguinte. O homem tomara plena consciência da importância do projeto de Jeremiah: um homem de quarenta e tal anos, que se ia casar, pela primeira vez, com uma rapariga de dezessete que lhe inflamara o coração, os sonhos e a alma. Seria uma casa digna de uma princesa, onde poderiam criar os filhos, e que resistiria a uma dúzia de gerações. Seria um verdadeiro palácio, com uma cúpula de vitrais a adornar a parte central da casa, por cima do salão principal, e quatro pequenos torreões em cada esquina. Haveria colunas na parte da frente, e a fachada sobressairia pela sua imponência. O edifício estaria rodeado de extensos e bem cuidados jardins separados do exterior por uma sebe alta e um requintado portão, por onde entrariam e sairiam as carruagens. Parecia mais uma mansão rural do que uma habitação citadina. Jeremiah estava entusiasmadíssimo, e sobretudo encantado com a cúpula de vitrais, que projetariam no interior da casa raios de luz de cores vivas que dariam a impressão de luz solar, inclusive nos dias cinzentos. Era um presente especial para Camille, a quem queria dar uma vida repleta de sol. O projeto da casa estava perfeito em todos os pormenores. Nela se combinavam harmoniosamente os estilos rococó e vitoriano de um modo que agradava à vista e satisfazia a alma de Jeremiah. Quando o arquiteto saiu para tomar o barco para a cidade, Jeremiah recostou-se na cadeira, com um largo sorriso nos lábios. Estava desejoso de que Camille visse a casa. Imaginava-a já a passear pelos jardins elegantes, ou a vaguear pela esplêndida suíte que acabava de discutir com o arquiteto, composta por um amplo quarto de dormir, um toucador, um quarto de vestir e uma sala de estar para ela, e um estúdio com paredes apaineladas para Jeremiah. No mesmo piso, haveria um quarto para as crianças, além de outra sala de estar e um quarto para a ama. No piso superior, seis amplos e arejados quartos para os filhos. Quem é que sabia quantos filhos é que iriam ter? O salão do rés-do-chão era o maior que o arquiteto alguma vez desenhara, e haveria outro mais pequeno, além de uma enorme biblioteca apainelada, uma sala de jantar e um salão de baile. As cozinhas seriam as mais modernas alguma vez construídas em São Francisco, os alojamentos da criadagem destacar-se-iam pela sua comodidade, e os estábulos deixariam Hubert roído de inveja. A casa teria absolutamente tudo quanto se poderia desejar, e ostentaria salas apaineladas e belos candelabros, escadarias amplas e magníficos tapetes. O arquiteto assegurara a Jeremiah que o seu pessoal começaria de imediato a procurar todos aqueles tesouros e que os marceneiros e os carpinteiros poriam mãos à obra imediatamente para terem tudo terminado ainda antes de a casa estar totalmente construída. E, a partir daquele momento, Jeremiah iria à cidade uma vez por semana a fim de vigiar pessoalmente o andamento da obra. Era um projeto gigantesco para todos os que tomavam parte na sua realização, e Jeremiah perguntava-se constantemente se a obra estaria pronta a tempo, enquanto choviam as cartas de Camille a falar-lhe dos preparativos para o casamento. O tecido para o vestido de noiva, feito em Paris, fora comprado em Nova Orleães. Não lhe queria dar mais pormenores sobre o vestido, mas mal via a hora de o vestir. Andava tão excitada com o enxoval como ele com a casa, sobre a qual ele pouco lhe contava. Só lhe dissera que teriam uma casa em São Francisco, não lhe queria dizer que estava a construir a maior e mais bonita casa que alguma vez se vira na cidade, e que todos os dias se formavam multidões de estupefatos mirones diante da obra, enquanto enormes equipes de homens trabalhavam sem descanso para acabar a obra dentro do prazo estabelecido. Enviara, inclusive, alguns mineiros para os ajudar, e aos fins-de-semana oferecia esplêndidas gratificações aos que estavam dispostos a não interromper as suas tarefas.

Ao mesmo tempo, Jeremiah fazia os possíveis para restaurar a casa de Santa Helena. Nunca se dera conta do desleixo em que ela caíra ao longo de dezenove anos; de repente, apercebeu-se de como estava vazia. Fez, então, compras colossais, tanto em Napa como em São Francisco, e pediu a Hannah que lhe fizesse cortinas para todas as salas. Se ia levar Camille para Napa, tudo tinha de estar bonito. Era uma jovem e precisava de um ambiente alegre e agradável à sua volta. Mandou plantar novos jardins em torno da casa, ao mesmo tempo que alguns dos seus homens pintavam as paredes. No final de Outubro, a casa parecia quase nova, e ele próprio ficou surpreendido com a sua beleza. Só Hannah parecia aborrecida com aquelas mudanças e não desperdiçava nenhuma ocasião para lhe mostrar o seu descontentamento, mas acabou por cair num silêncio absoluto. Finalmente, já não conseguindo suportar a situação, Jeremiah obrigou-a a sentar-se, serviu duas xícaras de café e acendeu um charuto, apesar dos inevitáveis protestos.

- Muito bem, velhota, vamos lá falar. Sei que não gostas das alterações que fiz, e há dois meses que ando a pôr todo o pessoal num virote, mas agora está tudo com um aspecto estupendo, e estou certo de que Camille achará o mesmo. Vais adorá-la, é uma rapariga encantadora. - Sorriu ao pensar na carta que recebera dela nessa manhã. - Além disso, há não sei quanto tempo que me andas a chatear por não me casar. Pois bem, fiz-te a vontade. Então, por que razão é que estás zangada comigo? - Hannah negara-se várias vezes a ir à cidade ver o início da obra. - Não podes ter ciúmes de uma rapariga de dezessete anos. Há espaço para ambas na minha vida. Eu já lhe falei em ti e está ansiosa por te conhecer. - Sentia-se preocupado, a velhota fizera-o passar um mau bocado, sobretudo nas últimas semanas. - Que se passa contigo? Não andas bem, ou só estás zangada comigo por construir uma casa fora de Napa?

A velhota sorriu, havia alguma verdade nas palavras dele.

- Disse-te que não precisavas de outra casa. Vais estragar essa rapariga com mimos antes de vir para cá.

- Tens razão. Vai ser a menina mimada de um velho.

- É uma rapariga cheia de sorte.

Eram as primeiras palavras amáveis que Hannah lhe dirigia no decurso de um mês, e Jeremiah escutou-as com alívio. Estivera muito preocupado com ela, e também com a possibilidade de ela ser tão desagradável com Camille como estava a ser com ele, coisa que teria desconcertado a sua pequena e frágil esposa, recém-chegada do Sul, que merecia tudo menos uma recepção fria.

- Eu é que sou um homem cheio de sorte, Hannah. - O olhar cruzou-se com o da velhota, que pôde verificar a felicidade que os seus olhos irradiavam. Era incrível a mudança que a sua vida levara nos últimos anos... incrível... mas havia algo mais. Aquela expressão de felicidade pareceu obscurecer o semblante de Hannah. - Que se passa?

A velhota não teve outro remédio que confessar-lhe a verdade, apesar do que prometera. De repente, os olhos ficaram marejados de lágrimas.

- Não sei como dizer-te, Jeremiah.

- Que se passa? - Um calafrio percorreu-lhe todo o corpo ao recordar o terror que sentira quando lhe haviam comunicado que Jennie estava a morrer por causa da gripe. Agora, sob o olhar de Hannah, teve a mesma sensação de desfalecimento.

- Trata-se da Mary Ellen.

Jeremiah sentiu o coração parar, como que pressentindo algo de funesto.

- Está doente?

Hannah abanou lentamente a cabeça.

- Ela vai ter um filho... um filho teu...

Jeremiah sentiu-se como se lhe tivessem dado um soco e o tivessem deixado sem fôlego.

- Oh, não... mas ela não podia... não estava...

- Eu própria lhe disse que estava louca quando a vi em Calistoga. Os nascimentos dos dois últimos filhos quase lhe custaram a vida, e agora já não é uma rapariguinha nova. Fez-me jurar que não te diria.

Jeremiah assentiu com a cabeça, com ar pesaroso, tentando recordar... Devia ter sido em abril, talvez no último dia em que se encontraram. E teve a estranha sensação de que ela quisera que isso acontecesse. Nessa ocasião, Mary Ellen dissera-lhe que, se ele queria ter um filho, ela lho daria. Estava louca. Anos antes, o médico informara-a de que morreria se voltasse a ter outro filho. Por que razão é que fazia isto agora?... Precisamente agora! Sem dizer mais nada, deu um murro no tampo da mesa, enquanto Hannah o fitava. Depois, levantou-se e dirigiu-se a passos largos para a porta.

- Que vais fazer?

- Vou falar com ela, já que não posso fazer mais nada. É uma tola, e tu, uma ainda maior, se achaste que eu ia ficar de braços cruzados.

Jeremiah estava farto da teimosia e do orgulho estúpido daquela mulher. Fora sua amante durante sete anos e o mínimo que podia fazer agora era ajudá-la. Mas nada mais. O fato de estar grávida não podia influir nos seus planos de casamento. Não queria alterá-los de modo nenhum.

Saiu, selou Big Joe e partiu para Calistoga impelido pela força da sua alma enfurecida. Deteve o cavalo diante da casa, no meio de uma nuvem de pó que surpreendeu os filhos de Mary Ellen, que ficaram de olhos esbugalhados a vê-lo entrar de rompante em casa. O mais velho ainda lhe gritou. - A mamã não está.

Com ar carrancudo, Jeremiah assomou novamente à porta da casa que tão bem conhecia. Verificara que não havia ninguém em casa.

- Onde é que ela está?

- A trabalhar na estância termal. Não virá para casa tão cedo.

Teria esperado, mas não estava com disposição para isso. Subiu novamente para cima de Big Joe e dirigiu-se para a rua principal, onde se encontrava a estância termal. Maldita mulher! Provavelmente, toda a cidade sabia que ia ter um filho. Repreendia-se a si mesmo, a cada passo do caminho, por ter ido para a cama com Mary Ellen naquela noite. Não era esse o seu propósito, mas ela estava de coração de tal modo destroçado que não conseguira resistir-lhe. Mas fora uma estupidez... e que estupidez!... E não parava de perguntar-se se Camille chegaria a descobrir algum dia que ele tinha aquele filho ilegítimo. Era isso que o apoquentava quando prendeu o cavalo em frente da estância termal, mas, na realidade, a sua principal preocupação naquele momento era Mary Ellen.

Encontrou-a na parte de dentro de um balcão, a fazer marcações, o corpo escondido atrás de uma secretária. Pelo menos, não era um trabalho pesado para uma mulher que esperava um bebê. Ela sobressaltou-se ao vê-lo, e deu a impressão de se ir afastar, mas Jeremiah agarrou-a pelo braço a tempo.

- Quero que saias daqui comigo agora mesmo. - Os olhos de Jeremiah flamejavam de preocupação e raiva, e irritava-o a satisfação que sentia ao vê-la de novo. Estava mais bonita que nunca, talvez devido ao fato de estar um pouco assustada.

- Jeremiah... pára... eu... por favor... - Temia fazer uma cena e não queria que ele visse a sua figura. Não podia imaginar que Hannah já lhe contara tudo. Estava com um ar tão aflito que um dos empregados se aproximou, pronto para a defender.

- Precisas de ajuda, Mary Ellen? - O homem preparava os punhos, mas ela declinou a oferta e implorou com os olhos a Jeremiah para sair.

- Por favor... é melhor para ti... não quero...

- Não me interessa aquilo que queres. Se for necessário, levo-te de rastos daqui para fora. Levanta-te e sai para a rua comigo, se não queres que seja eu a fazê-lo.

Mary Ellen corou e olhou, desesperada, à sua volta; pegou no xale que estava nas costas da cadeira, envolveu-se nele e seguiu Jeremiah para o exterior. O homem que se oferecera para a defender prometeu substituí-la durante a sua ausência, e ela prometeu-lhe que não se demoraria.

- Jeremiah... por favor...

Thurston puxou-a pelo braço até ao outro lado da rua, onde havia um banco debaixo de umas árvores.

- Não quero...

Sentou-a quase à força no banco e voltou-se para ela.

- Não me interessa o que queres. Por que razão não me disseste?

- Dizer-te o quê? - Mary Ellen empalideceu. - Não sei ao que te referes. - Mas a sua palidez e a expressão de terror revelavam que mentia.

- Sabes muito bem ao que me refiro. - Os olhos de Jeremiah fixaram-se no ventre da mulher e tirou-lhe delicadamente o xale. O que viu era irrefutável. Estava grávida de seis meses. - Por que raio não me disseste?

Mary Ellen começou a choramingar e passou pelos olhos um lenço de renda que ele lhe oferecera há muito tempo, o que deixou Jeremiah ainda pior.

- A Hannah disse-te... Prometeu-me que não... - Começou a soluçar, e ele envolveu-a nos seus braços, à vista de toda a gente. Nunca sentira vergonha de Mary Ellen. Simplesmente, não a quisera como esposa, e não mudara de opinião a esse respeito, embora tivesse de reconhecer que as coisas se haviam complicado com aquela gravidez.

- Mary Ellen, que fizeste, tonta?

- Já que não pude ter-te, quis ter um filho teu... quis...

Os soluços impediram-na de continuar.

- É tão perigoso para ti. E tu sabias. - Perguntou a si próprio se Mary Ellen imaginaria que ele se casaria com ela quando descobrisse o seu estado. Mas ela, como que adivinhando o seu pensamento, apressou-se a negá-lo. Explicou que só queria ter um filho seu e que não queria mais nada dele. Mas aquilo também o pôs em ebulição. - Nunca mais quero ouvir esse disparate, Mary Ellen. Já ouvi muitas tolices tuas durante anos, e não o deveria ter feito. Vais deixar de trabalhar agora mesmo. O orgulho que vá para o inferno! Cuidarei economicamente de ti e da criança, já que não posso fazê-lo de outra maneira. É o mínimo que posso fazer por ti. Se não gostas, azar! É algo que quero fazer pelo meu filho. Percebido?

Mary Ellen quase tremeu perante a ferocidade daquelas palavras.

- Tenho outros três filhos para sustentar, Jeremiah - disse ela com uma ponta de orgulho. - E nunca lhes faltei com nada.

- Não quero ouvir nem mais uma palavra a esse respeito. - Olhou-a com uma expressão pensativa. Era um problema que não podia resolver-se só com um pouco de dinheiro. - Já foste ao médico?

Mary Ellen fez um gesto afirmativo com a cabeça, ao mesmo tempo que os seus olhos procuravam os dele. Era óbvio que ainda o amava, mas ele fingiu não perceber. Agora tinha de pensar em Camille. Daí a dois meses, estariam casados... antes de Mary Ellen dar à luz. A vida, por vezes, era injusta. As coisas poderiam ter sido diferentes se Mary Ellen tivesse concebido o seu filho há mais tempo.

- E que te disse ele?

- Que tudo irá correr bem. - A voz era meiga, e Jeremiah sentiu uma dor forte no peito, tantos eram os remorsos.

- Oxalá seja como dizes.

- É verdade. Sobrevivi aos outros três, não sobrevivi?

- Sim, mas eras mais nova. Isto foi uma loucura.

- Não foi nada. - Havia um ligeiro ar de desafio no rosto de Mary Ellen. Era óbvio que não lamentava nada, o que deixou Jeremiah ainda mais irritado.

- Que diabo te deu para fazeres isto. - Era algo que ele nunca entenderia. Era uma loucura, por mil razões distintas.

- É a única coisa tua que me resta, Jeremiah... - Aquelas palavras, ditas com uma suavidade e uma tristeza infinitas, deixaram Jeremiah com o coração completamente destroçado. - Deixaste-me e nunca mais voltarás para mim, tenho consciência disso. Vais casar-te com essa rapariga, não vais?

Jeremiah assentiu com a cabeça e franziu o sobrolho, o que pareceu aumentar a determinação dela

- Como vês, tive razão em fazê-lo.

- Puseste a tua vida em perigo.

- Posso fazer o que bem me apetecer com a minha vida. - Levantou-se.

Jeremiah achou-a mais bonita que nunca. Era orgulhosa e corajosa, e fizera apenas aquilo que queria... Camille teria feito a mesma coisa... mas esta tinha mais sangue na guelra e estilo do que Mary Ellen. Agora, depois de ter visto de novo Mary Ellen, não lamentava a escolha que fizera, mas a decisão que ela tomara. Iria dificultar a vida para os dois, inclusive para a criança. Mais cedo ou mais tarde, Camille descobriria e também os seus filhos legítimos acabariam por saber. Napa era um condado demasiado pequeno que não permitia tais imprudências sem o risco de se ser descoberto. Além disso, não queria magoar a esposa. Que aconteceria se, um mês depois do casamento, ela soubesse do nascimento de um filho bastardo dele? Sentiu-se desconsolado só de pensar na dor que isso causaria à rapariga.

- Quem me dera que não tivesses feito nada disto, Mary Ellen.

- Lamento que te sintas assim, Jeremiah. - Levantou os olhos para ele, e Jeremiah teve vontade de a beijar. - Sempre pensei que quisesses ter um filho.

- Sim, mas não assim. Há melhores maneiras de o conseguir.

- Para mim, não, Jeremiah. Já não. Que sejas muito feliz com a tua esposa. - Mas ele sabia que aqueles desejos não eram sinceros. Mary Ellen tivera conhecimento de que ele estava a restaurar a casa de Napa e que começara a construir um verdadeiro palácio na cidade. Toda a gente num raio de cento e sessenta quilômetros sabia da casa que ele estava a construir para Camille.

- Que vais fazer agora? - Nesse momento, Jeremiah não pensava em Camille nem na casa que estava a construir para ela.

- A mesma coisa que tenho feito até agora. Tenho o emprego na estância termal, é uma ocupação decente. Não me canso muito e, quando o bebê nascer, as raparigas poderão cuidar dele quando eu for trabalhar.

- Devias ficar em casa com os teus filhos - disse Jeremiah, num tom de desaprovação, o que não era normal nele. Nunca lhe dissera nada parecido, mas agora um dos filhos seria seu, o que alterava as circunstâncias. - Farei o que for preciso, Mary Ellen. - No dia seguinte, iria ao seu banco em Napa e daria as instruções necessárias. Haveria forma de resolver a situação. Deveria ter feito algo por ela anos antes, mas ainda não era tarde para o fazer.

- Não quero que faças nada por mim, Jeremiah.

- Não estou a pedir-te a opinião, tal como também não me pediste a opinião para engravidar. Agora sou eu que tomo as decisões.

No seu íntimo, Mary Ellen estava decepcionada com o fato de ele não se mostrar emocionado com a perspectiva do nascimento do filho, mas o espírito de Jeremiah estava cheio de outras coisas... e de outros bebês que não o dela, e ela tinha consciência disso. De certo modo, cometera um erro, que também não ignorava, mas negava-se obstinadamente a lamentá-lo, como confessara a Hannah uma série de vezes. Era aquilo que ela desejara.

- Quero que deixes de trabalhar na estância termal. Jeremiah fitou-a com um ar quase paternal.

- Não posso.

- Ou dizes-lhes tu, ou digo-lhes eu. A tua vida vai mudar a partir deste momento. Entendido? Vais ficar em casa com os teus filhos e o meu, a poupar o que te resta de saúde e lucidez. Se morreres ao dar à luz, que vai ser das outras crianças? Já pensaste nisso? - Os olhos de Mary Ellen alagaram-se de lágrimas, e Jeremiah lamentou a veemência com que falara. - Desculpa... eu não... É uma situação difícil para os dois. Tornemos as coisas mais fáceis, tanto para mim, como para ti. De acordo?

Mary Ellen olhou-o fixamente e fez um lento gesto de concordância com a cabeça. Tinha vontade de lhe dizer que ainda o amava, mas a ocasião não era propícia e, além disso, tinha de voltar para o trabalho dentro de alguns minutos e estava a ficar mal disposta. Possivelmente devido ao fato de trazer o espartilho extremamente apertado para dissimular o seu estado. Se deixasse de trabalhar, não teria de andar com o corpo apertado daquela maneira...

- Talvez durante algum tempo. - De repente, sentiu-se muito cansada. - Só até ter o bebê.

- Não. - Jeremiah deu-lhe uma palmadinha no braço. - Deixa-me fazer as coisas à minha maneira. - Mandaria o seu banqueiro falar-lhe. Ela opor-se-ia, mas convencê-la-ia, e assim Mary Ellen receberia todos os meses uma soma de dinheiro suficiente para atender à manutenção dela e dos quatro filhos durante o tempo necessário. Era o mínimo que podia fazer por ela. Não ia casar com ela, e ambos tinham consciência disso. Era um sonho impossível. Em vez disso, ia construir um palácio para a rapariga de Atlanta.

Jeremiah levantou-se e acompanhou-a até ao lugar onde se encontrava o seu jovem companheiro de trabalho. Por instantes, perguntou-se se não haveria algo mais no seu protecionismo do que podia pensar-se à primeira vista. Mas fosse ou não fosse esse o caso, Jeremiah não queria saber. Não tinha a mínima dúvida de que a criança era sua, confiava em Mary Ellen e sabia que ela não tivera outro homem. Se havia alguém agora, ela tinha todo o direito a certas comodidades. No fim de contas, ele já tinha Camille.

- Deixas de trabalhar?

Mary Ellen assentiu com a cabeça e os seus olhos buscaram os dele.

- Virás ver-me alguma vez?

Aquelas palavras deixaram Jeremiah de coração destroçado, mas havia algo no seu íntimo que lhe dizia para não o fazer.

- Não sei. Não acho que deva, para nosso bem.

- Nem para veres o bebê?

Os olhos de Mary Ellen ficaram de novo alagados de lágrimas, e Jeremiah sentiu-se o maior patife ao cimo da Terra.

- Sim, virei ver-te nessa altura. Entretanto, se precisares de alguma coisa, quero que me mandes dizer. - Não tinha medo que Mary Ellen se aproveitasse dele. Nunca o fizera; inclusive agora, sabendo que ele em breve estaria nos braços de outra mulher, comportava-se de forma bastante nobre. - Parto... - Hesitou, subitamente embaraçado. - Parto... depois do dia um de dezembro.

O casamento iria ter lugar em Atlanta, no dia 24 de dezembro, mas, antes disso, haveria duas semanas de festas, e Jeremiah prometera a Camille que estaria lá nessa altura. E agora aquela mulher de Calistoga ia ter um filho. Como era estranha a vida! Enquanto voltava para casa no dorso do cavalo, não conseguiu deixar de pensar nisso e nas voltas que a sua vida dera nos últimos seis meses E, mais estranho ainda, era possível que, no ano seguinte, tivesse dois filhos. Um sorriso assomou-lhe aos lábios ao pensar nisso, enquanto prendia Big Joe no estábulo. Dois filhos, um de Mary Ellen e um de Camille e também lhe pareceu estranho, à luz do que estava a acontecer, o fato de haver uma carta de Amélia Goodheart à sua espera em cima da mesa da cozinha. Era a primeira vez que tinha notícias dela desde o dia em que a deixara no comboio para que continuasse a sua viagem para Savannah. Escrevia-lhe para lhe dizer que recebera a sua carta e que ficava contente com aquilo que ele lhe contara da rapariga de Atlanta. Reconhecia, seguramente com um sorriso nos lábios, que estava um pouco ciumenta, mas acrescentava que era a coisa mais acertada que Jeremiah podia fazer, e que esperava conhecê-la se algum dia fossem a Nova Iorque. Também lhe comunicava que a sua filha de São Francisco esperava outro bebê, e que iria vê-la no ano seguinte. Aquela carta reconfortou Jeremiah, que, enquanto Hannah lhe aquecia o jantar que guardara para ele, deu consigo a pensar nas três mulheres e nas diferenças que havia entre elas. O certo era que, por mais estranha que a vida parecesse, e apesar das mulheres grávidas e das aventuras em comboios transcontinentais, ele, dentro de nove semanas, estaria casado com a delicada rapariguinha de pele cremosa, cabelos negros, lábios sensuais e olhar travesso. Sentado na silenciosa cozinha, estremeceu só de pensar na rapariga com quem ia casar em Atlanta

 

Quando, a 2 de Dezembro, Jeremiah partiu para Atlanta, a construção da casa de Nob Hill estava tão adiantada que nem ele próprio acreditava. Voltaria a São Francisco por volta do dia 15 de Janeiro, e não tinha a menor dúvida de que a casa estaria terminada nessa altura. Na parede exterior da casa, já haviam posto uma pequena placa de metal na qual, em letras cuidadosamente gravadas, se lia: MANSÃO THURSTON. E Camille não sabia praticamente nada dela. Jeremiah mantivera todas as suas características em segredo, mas estava certo de que ela gostaria. Os torreões já se erguiam no seu lugar. As árvores e os jardins encontravam-se plantados. Os painéis de madeira e os candelabros estavam já prontos. O chão seria de mármore do Colorado. Haveria instalações e comodidades modernas pouco correntes, e tanto as madeiras como os cristais e os tecidos eram da melhor qualidade que se podia encontrar. A casa parecia quase um museu. Jeremiah sorriu de satisfação quando lhe deu uma última olhadela antes de apanhar o comboio para Atlanta. Seriam precisos muitos filhos para a encher.

Desta vez, a viagem para Atlanta parecia interminável. Estava ansioso por chegar. Levava consigo o mais bonito colar de pérolas da Tiffany’s, de Nova Iorque, além de uns brincos de pérolas e diamantes a condizer, e uma bela pulseira. Haviam-lhe enviado os desenhos das peças, as quais chegaram mesmo a tempo de as levar para Atlanta. Não se esquecera de comprar um bonito broche com um rubi para Mrs. Beauchamp e um espetacular anel com uma safira para oferecer a Camille quando chegassem a Nova Iorque para a lua-de-mel. Também escrevera a Amélia, expressando-lhe o desejo de poder vê-la e de a apresentar a Camille quando se encontrassem naquela cidade. Amélia começara, finalmente, a escrever-lhe e Jeremiah achava a correspondência com ela quase tão agradável como a viagem que haviam partilhado no comboio. No fim de contas, seguira o conselho de Amélia, e estava tão orgulhoso da sua futura esposa que mal conseguia esperar o momento de a apresentar a toda a gente que conhecia.

Continuou a pensar em Amélia e na viagem que haviam feito juntos para o Este. Há quase um ano que não a via, mas ainda se recordava da sua assombrosa e elegante beleza. Parecia-se vagamente com Camille, mas a sua prometida era a que ocupava o primeiro lugar no seu espírito: os graciosos braços, o rosto encantador, os dedos compridos, os delicados tornozelos, os cabelos sedosos; não via a hora de a abraçar de novo, de lhe beijar os lábios e de a ouvir rir.

Desta vez, Camille estava à sua espera na estação de Atlanta, queixando-se das quatro horas que o comboio trazia de atraso; mas a espera não lhe arrefeceu o ânimo e lançou-se nos braços de Jeremiah com um grito de alegria, beijou-o e desatou a rir. Envergava uma capa de veludo verde-escuro forrada em pele de arminho com um capuz e um regalo a condizer. Por baixo, trazia um vestido de tafetá verde, que fazia parte do enxoval, mas não conseguira resistir à tentação de o pôr para o ir esperar à estação. Na carruagem, a caminho da casa dos Beauchamp, Jeremiah teve de se esforçar por não esmagar Camille entre os seus braços. Ao chegar, cumprimentou toda a família e, depois de beber uma taça de champanhe, foi instalar-se no hotel, onde residiria durante as duas semanas que faltavam para o casamento.

As duas semanas seguintes seriam uma incessante série de festas, bailes, jantares, almoços... No dia anterior ao casamento, os Beauchamp ofereceriam um jantar especial para as amigas mais íntimas de Camille, uma espécie de despedida antes da sua partida de Atlanta. Houve chorosas felicitações e emocionadas despedidas. Jeremiah achava que nunca vira tantas mulheres bonitas numa só sala, mas a mais bonita era, de longe, a sua futura esposa. Nesses dias, Camille evoluiu pelos salões de baile até de madrugada, sem nunca dar ares de cansaço, sempre animada e disposta a recomeçar tudo na manhã seguinte.

Um dia, Jeremiah disse, a rir, ao futuro sogro:

- Começo a preocupar-me com a eventualidade de não conseguir acompanhar o mesmo ritmo de vida da Camille. Já me esquecera do que significa ser jovem.

- Esse ritmo rejuvenescê-lo-á, Thurston.

- Assim espero.

No entanto, Jeremiah não estava preocupado. Nunca fora tão feliz como agora, e só esperava ansiosamente o momento de partir com Camille para Nova Iorque e depois regressar a São Francisco, onde lhe mostraria a mansão que construíra para ela. Tinha de acreditar que tudo correra bem durante a sua ausência. Ainda que houvesse algum retoque final por terminar, o aspecto geral da mansão seria espetacular. Ao chegar, falara dela a Orville, e este mostrara-se encantado com o que Jeremiah fizera por Camille. Era um verdadeiro tributo à sua filha, que estava deleitada com as valiosas prendas do seu prometido, tal como Mrs. Beauchamp... «É um autêntico cavalheiro... de extrema amabilidade...» Ela dava cada vez mais a impressão de ser uma relíquia do velho Sul, ao contrário da filha, que proclamava sem a menor discrição o quanto gostava das fabulosas prendas que Jeremiah lhe oferecera, exibindo-as para todas as suas amigas, sem se esquecer de repetir vezes sem conta que «é de doze quilates». Também não se cansava de mostrar a toda a gente o colar oriental, uma extraordinária peça de joalharia, com pérolas que iam até vinte e oito milímetros de diâmetro.

- Deve ter-lhe custado uma fortuna - acrescentou, a determinada altura, o que lhe valeu a imediata repreensão da mãe, perante o olhar divertido do pai e o mutismo de Jeremiah. Este estava a começar a acostumar-se à maneira de ser dos Beauchamp, e sabia que Camille, no fundo, era diferente do pai.

O casamento teve lugar na véspera de Natal, às seis da tarde, na Catedral de São Lucas, situada na esquina da North Pryor Street e a Houston Street. A cerimônia foi presidida pelo Reverendo Charles Beckwith, primo do bispo, na presença de várias centenas de amigos que também assistiriam à recepção que se realizaria no hotel onde Jeremiah estava hospedado. Não foi difícil ao casal escolher o momento oportuno para fugir para a suíte onde a bagagem de Camille já se encontrava. Passariam a noite aí e, no dia seguinte, almoçariam com os pais dela antes de apanharem o comboio que os levaria até Nova Iorque, ao fim da tarde Quando Camille e Jeremiah chegaram ao quarto, estavam mais mortos que vivos. Fora um dia esgotante, como o haviam sido as duas semanas anteriores, cheias de animação e festas, e ainda tinham um almoço de Natal pela frente. Jeremiah teve a sensação de que nunca fora a tantas festas em toda a vida E agora, ao contemplar a sua encantadora esposa, que se deixara cair no sofá de veludo cor-de-rosa, o magnífico vestido de noiva de renda cor de marfim espalhado à sua volta como uma tenda caída, reconheceu, uma vez mais, o muito que Camille significava para si. Levara mais de meia vida a encontrá-la, e não se arrependia de nada. Valera a pena a espera, os desgostos por que passara, os desapontamentos, os anos de solidão inclusive a dor que causara a Mary Ellen. Por nada deste mundo teria deixado de casar com Camille. Adorava-a em todos os aspectos, e sabia que seria a esposa perfeita para si, graças à sua inteligência, à sua paixão, ao seu temperamento provocador Mas, naquele momento, esparramada em cima do sofá, não se mostrava particularmente apaixonada, os olhos subitamente vítreos do cansaço. Haviam sido duas semanas de constantes celebrações, e Jeremiah temera, mais de uma vez, que as festas fossem excessivas e acabassem por deixar Camille adoentada. Todavia, agora não parecia estar doente, só estava com um ar extremamente cansado

- Estás bem, meu amor? - Jeremiah ajoelhou-se ao lado dela, tomou-lhe a mão e beijou-lhe a palma, enquanto ela lhe sorria.

- Acho que nem consigo mexer-me. Estou exausta

- Não me surpreende. Queres que chame a criada. - Os olhares cruzaram-se e Jeremiah gostou do que viu

Ultimamente, só parecera interessada em falar no caríssimo vestido de noiva que o pai lhe oferecera, ou no enorme diamante com que Jeremiah a obsequiara. Mas o que refletiam neste instante os olhos dela tocou-lhe fundo no coração. Viu neles amor, alegria e confiança. Só o fato de ter sido criada sob a influência do pai é que fizera dela uma pessoa que dava tanta importância ao dinheiro que as pessoas gastavam. Mas ele sabia que, ao fim de um ou dois meses no vale de Napa, o espírito de Camille estaria preenchido com prazeres mais simples: as uvas dos seus vinhedos, as flores plantadas por Hannah, os filhos que teriam... e embora a mansão na cidade fosse um verdadeiro palácio, o que havia de mais valioso nela fora o carinho com que havia sido construída. Era um monumento ao seu mútuo amor, e era precisamente isso o que Jeremiah ia dizer a Camille quando lhe mostrasse a casa. Pela primeira vez na vida, sentia-se completamente satisfeito, e agora, ao olhar para a delicada esposa, tranquilamente deitada, envolta no vestido de noiva, sentiu que o coração lhe ia rebentar de felicidade.

- Bem, Mistress Thurston... que tal te soa o novo apelido?

Jeremiah beijou-a no pulso, e algo se agitou no íntimo de Camille, a julgar pelo voluptuoso olhar que dirigiu ao marido. Estava demasiado cansada para se mexer, mas não para o ter perto de si. Nunca se cansava de o ter junto a si, e só de vê-lo ficava a arder de desejo. Nunca sentira isso por nenhum outro homem, sobretudo por nenhum da idade de Jeremiah Thurston. Sempre tivera o pressentimento de que se casaria com um jovem deslumbrante, talvez um francês de Nova Orleães, ou um dos condes franceses de que o pai falava... ou um banqueiro rico de Nova Iorque, de olhar ambicioso... Jeremiah, porém, era mais elegante do que qualquer das imagens que conjecturara. Além disso, havia nele um certo ar másculo que lhe agradara e que agora a assustava um pouco. Achava-o extremamente atraente e, apesar do que lhe dissera a prima, não acreditava que aquilo que ele lhe ia fazer fosse desagradável. Nos olhos de Jeremiah vislumbrava-se agora a mesma expressão de desejo com que a fitara desde o primeiro momento, mas Camille gostava de o provocar e de lhe fazer perder a cabeça, e foi o que voltou a fazer, beijando-lhe o pescoço, depois uma orelha e, finalmente, os lábios, momento em que sentiu toda a tensão que o invadia.

Depois, sem dizer palavra, Jeremiah começou a desapertar-lhe os pequeninos botões das mangas, ao mesmo tempo que beijava a fina pele cremosa que ia pondo a descoberto. Então, depois de tirar o pesado colar de pérolas que lhe oferecera, começou a desapertar a infinidade de pequeninos botões forrados de cetim que fechavam o vestido à frente, pondo à vista umas bragas, também em cetim, cingidas ao corpo, que esculpiam perfeitamente as suas formas. Finalmente, desapertou-lhe o espartilho. Jeremiah parecia ser um autêntico perito naquela matéria, pelo que demorou muito pouco tempo a libertar aquele corpo jovem e arrebatador das roupas que o envolviam. E Camille ficou diante dele sem temores, sem adornos, sem outro esplendor que o do seu corpo desnudado. Só lhe restavam as meias de seda, que Jeremiah tirou uma após outra. Então, despiu-se com incrível rapidez, e ficou maravilhado com o à-vontade, a candura, a coragem de Camille... e cobriu-a de beijos, de carícias, dando-lhe mais prazer do que aquele que ela alguma vez se atrevera a imaginar... A prima estava equivocada... muito equivocada... só pensara nela por breves instantes enquanto gemia... Era precisamente como sonhara... e mesmo quando ele a depositou ternamente em cima da cama e lhe abriu as pernas, penetrando-a primeiro com a língua, depois com os dedos, para mergulhar, finalmente, dentro dela e libertando todo o desejo acumulado desde há muito... Camille gemeu de prazer... Jeremiah levou-a a uma espécie de agonia que ela nunca sonhara; e ela conduziu-o ao cume do prazer de uma maneira tão pura e encantadora que quando, finalmente, descansou a cabeça sobre o peito de Camille, exausto, quase chorou entre os seus braços.

Jeremiah olhou-a com ar sonolento, e ficou feliz por vê-la ronronante de prazer ao seu lado. A temida dor fora breve, e ele fora tão hábil que ela praticamente não se dera conta de nada.

- Agora já és minha - sussurrou-lhe ao ouvido.

Camille sorriu-lhe, parecendo mais mulher do que uma hora antes, e foi ela que, desta vez, estendeu os braços para ele. Quando Jeremiah a possuiu de novo, ela voltou a gemer de prazer. Finalmente, exausta, adormeceu profundamente entre os braços dele. Poucas horas depois, quando acordou, estava desejosa por fazer amor de novo... e desta vez foi Jeremiah que gemeu, à sua mercê, totalmente vergado ao seu encanto. Havia nela uma espécie de magia que ele nunca imaginara. Nessa manhã, depois de fazerem amor, teve a noção da escolha acertada que fizera e da grande sorte que tivera. Quase teve de a tirar de rastos da cama para chegarem a horas ao almoço oferecido pelos pais de Camille. Esta não parou de o provocar com as suas picardias, tentando seduzi-lo a fazer amor de novo, ato a que se entregaram com arrebatado fervor mal entraram no comboio. Praticamente não saíram para tomar ar durante toda a viagem até Nova Iorque. Ao chegarem à Grand Central Station, Jeremiah ainda não estava em si, mas, quando entraram na carruagem que os havia de levar ao Hotel Cambridge, onde costumava ficar hospedado, parecia o homem mais feliz do mundo. Havia momentos em que tinha a sensação de morrer de prazer nos braços da sua amada, o que pouco lhe teria importado. Que melhor maneira de deixar este mundo que a fazer apaixonadamente amor com a sua doce Camille. Era, indubitavelmente, a mulher dos seus sonhos. Jeremiah alcançara, finalmente, a plenitude de vida que há muito ansiava.

 

Jeremiah e Camille chegaram a Nova Iorque no dia a seguir ao Natal. Um manto de neve cobria a cidade. Camille saltou do comboio, a bater palmas, deliciada com aquilo que via. Os olhos brilhavam no meio do ar frio, assomando por entre as peles de zibelina que Jeremiah lhe oferecera no Natal e que condiziam com o regalo. Ao descer do comboio, com a pequenina mão enluvada metida na de Jeremiah e sob o olhar deleitado deste, parecia uma princesa russa. Adorava todas as prendas bonitas que ele lhe oferecera e não deixava de pensar na sorte que tivera ao poder deixar Atlanta. Aos seus olhos, Jeremiah valia quase tanto como um dos duques ou príncipes que o pai lhe prometera durante tanto tempo. Naquele momento, estava ansiosa por ver a casa do vale de Napa, que, segundo supunha, ainda era maior do que uma plantação.

Dirigiram-se para o Hotel Cambridge, na Rua 33. No vestíbulo, Walmsby, o recepcionista, apressou-se a afastar a imprensa. Jeremiah gostava do cômodo isolamento que sempre encontrara ali, das deslumbrantes suítes, e Walmsby tinha sempre uma história divertida para lhe contar. Camille entrou na suíte como se há anos já se hospedasse em hotéis com ele, o que fez com que Jeremiah se risse. Pegou-lhe ao colo e atirou-a para cima da cama com todas as suas jóias e peles de zibelina.

- És uma descaradona, Camille Thurston.

Camille, ainda surpreendida de ouvir-se chamar com aquele apelido, não negou a acusação do marido, que não se atrevera a repreendê-la pela frieza com que tratara o seu velho amigo recepcionista. O pobre Walmsby ficou aturdido quando lhe estendeu a mão e ela a ignorou.

- Que falta de tato - disse Camille, alto e bom som, ao passar por ele. - Quem julga ele que é.

- É meu amigo - sussurrou-lhe Jeremiah

Todavia, quando se viu a sós com ele na suíte, Camille beijou-o com tanta avidez que ele esqueceu tudo o que se passara com Walmsby. Enquanto se estavam a vestir para o jantar, Jeremiah sorriu ao pensar, uma vez mais, na casa que construíra para ela em São Francisco. Mal via a hora de lha mostrar. Praticamente nunca mais lhe falara dela desde que chegara a Atlanta, e sempre que ela fazia perguntas sobre o seu novo lar, ele evitava o assunto dizendo-lhe que era uma casa aceitável, mas que talvez ela quisesse fazer algumas alterações depois.

De momento, porém, Camille estava muito mais interessada por aquilo que ambos iam fazer em Nova Iorque. Foram ao teatro várias vezes, uma à ópera, jantaram no Delmomco’s na primeira noite e no Brunswick na segunda, onde Jeremiah pediu uma deliciosa refeição dedicada à caça. Era um lugar muito freqüentado pela alta sociedade da capital e muitos dos seus clientes eram britânicos. Na terceira noite, Jeremiah aceitou um convite de Amélia. Estava ansioso por apresentar-lhe Camille e, ao mesmo tempo, encantava-o a perspectiva de voltar a ver Amélia. A correspondência que haviam mantido servira para converter a paixão em amizade. O convite de Amélia fora tão sincero e afetuoso que Jeremiah o aceitara com muito gosto, mas, quando se encontrava a caminho da casa dela na companhia da esposa, começou a duvidar da oportunidade daquele encontro. Camille estava a comportar-se como uma menina mimada e displicente, e mostrara-se arrogante para com a criada do hotel enquanto se vestia, o que estava a começar a irritar Jeremiah

Para a visita a casa de Amélia, na Quinta Avenida, Camille levava uma capa de veludo negro e uma profusão de peles de zibelina. O enorme diamante do anel cintilava na sua mão esquerda, e a safira que acabava de lhe dar, na direita. E, por baixo da capa de veludo de Paris, levava um vestido de veludo branco com pequenos enfeites de arminho nos ombros e no debrum. Era uma soberba criação que custara a seu pai, pelo que dissera a Jeremiah, mais do que o resgate de um rei

- Pareces uma rainha - dissera-lhe ele, antes de sair do hotel, tomando-lhe a pequenina mão enluvada e dispondo-se a descrever-lhe Amélia. - É uma mulher muito especial, inteligente. digna... bonita... - Pensou no inofensivo namorico no comboio para Atlanta e sentiu-se invadir por um intenso calor. Era uma mulher encantadora, e estava convencido de que gostaria de Camille quando a conhecesse.

No entanto, Camille mostrou-se arisca desde o instante em que entrou em casa de Amélia. Parecia ofendida pela boa educação, o bom gosto, a elegância e os modos requintados daquela mulher. E o pior que havia em Camille veio à tona, para grande embaraço de Jeremiah.

Amélia tinha uma graciosidade tão invulgar e um encanto tão sedutor que todos os que a viam sentiam vontade de a abraçar. Jeremiah esquecera-se, entretanto, de como era bela, com o seu brilho translúcido e refulgente de diamante, os olhos cintilantes, as feições delicadas, o modo de andar, a discreta elegância das finas jóias, os encantadores vestidos feitos em Paris. Nunca a vira no seu máximo esplendor, a vaguear pelos salões da esplêndida casa que lhe deixara Bernard Goodheart, a não ser no comboio para Atlanta, no entanto, essa amizade nascera aí, uma amizade que nunca morreria. Havia criados de libré por toda a parte, e a luz das velas cintilava nos mais belos candelabros que Jeremiah alguma vez vira, sobre o chão de mármore com desenhos de flores que se estendiam de um extremo ao outro do vestíbulo. A decoração de todas as salas era indiscutivelmente francesa, à exceção da sala de jantar e da biblioteca, que eram de impecável estilo inglês. Toda a casa tinha a beleza de um museu, e nela cintilava aquela pérola de mulher. Camille sentia-se visivelmente devorada pelo ciúme perante a graciosidade da dona da casa. Dava a sensação de não conseguir suportar nada do que Amélia fazia. Era como se todas as palavras, sorrisos ou movimentos daquela mulher a ofendessem.

- Camille, porta-te bem! - sussurrou-lhe Jeremiah, quando Amélia, depois de jantar, saiu da sala para escolher outra garrafa de champanhe. - O que se passa contigo esta noite, Camille. Não te sentes bem.

- Ela é uma pega! - ripostou Camille com expressão teatral. - Está a tentar seduzir-te por todos os meios! Estás cego se não vês isso.

O sotaque sulista de Camille parecia mais acentuado que nunca, o que, juntamente com o ataque de possessiva devoção para com ele, teria enternecido Jeremiah se ela não tivesse sido tão rude com a sua amiga. À medida que a noite avançava, Camille ia ficando cada vez mais insuportável, não parando de fazer observações mordazes em resposta a quase tudo quanto Amélia dizia. Ainda assim, Amélia tratou-a com a decidida calma de uma mãe extremamente hábil, de uma mulher acostumada a lidar com crianças difíceis Mas Camille já não era uma criança, e Jeremiah não conseguiu conter a sua fúria na viagem de regresso ao Cambridge.

- Como pudeste comportar-te daquela maneira. Foi uma vergonha E uma mortificação para mim.

Jeremiah repreendeu-a como a uma criança que se portara mal, e sentiu vontade de lhe dar uns açoites ao vê-la saltar da carruagem de forma intempestiva e fechar, pouco depois, a porta da suíte com um estrondo capaz de acordar todos os hóspedes.

- Que se passa, Camille.

Nessa noite, comportara-se como uma louca, e há alguns dias que era irascível para várias pessoas. Jeremiah nunca a vira agir daquela maneira, mas também era certo que conhecia muito pouco dela. Perguntou-se se aquilo seria algum aspecto do modo de ser dela que lhe passara por alto, mas, fosse como fosse, estava decidido a corrigi-lo.

- Comporto-me da forma que me der na real gana, Jeremiah! - gritou-lhe Camille, o que o deixou chocado.

- Não comportas, não! E vais enviar as tuas desculpas à minha amiga Mistress Goodheart. Vais escrever-lhe uma carta hoje mesmo e farei com que lha entreguem de manhã.

- Deves estar louco, Jeremiah Thurston. Nunca farei tal coisa!

Jeremiah agarrou-a por um braço e, com um gesto brusco, obrigou-a a sentar-se numa cadeira.

- Acho que não entendeste bem o que eu disse, Camille Espero que escrevas uma carta de desculpa a Amélia.

- Por quê? É tua amante?

- O quê? - Olhou-a como se ela tivesse endoidecido. Amélia era demasiado respeitável para ser a amante de quem quer que fosse. E ele estivera prestes a pedi-la em casamento. No entanto, para não piorar a situação, não focou esse fato a Camille. - Foste grosseira, e agora és minha esposa. Já não és a menina mimada que fazia tudo o que lhe apetecia. Percebido?

Camille empertigou-se e, de olhos fixos no marido, ripostou:

- Sou Mistress Thurston, de São Francisco, e o meu marido é um dos homens mais ricos do estado da Califórnia... do país... - Olhou para Jeremiah com uma expressão que o horrorizou. - E posso fazer tudo o que me apetecer. Percebido?

Jeremiah estava determinado a deter a transformação que se operava diante dos seus olhos.

- Esse comportamento, Camille, só atrairá sobre ti o desprezo e o ódio onde quer que vás. E aconselho-te a ficares mais humilde antes de chegares à Califórnia. Vivo numa casa simples no vale de Napa, cuido dos meus vinhedos e sou mineiro. Isso é tudo o que sou. E tu és a minha esposa. E se achas que isso te dá o direito de ser rude com os nossos amigos, os nossos vizinhos, ou com as pessoas que trabalham para nós, estás completamente enganada.

De repente, Camille riu-se e agarrou numa mancheia de peles de zibelina. Agora tinha o que queria. Amava o marido, mas também o que ele tinha e o que ele representava. E que ela agora também representava. Já ninguém olharia para ela por aquilo que o pai era. Já que a sua aristocrática mãe não conseguira apagar totalmente o passado humilde do pai, ela lograra isso amplamente. Libertara-se daqueles laços sociais casando-se com o homem mais rico do estado da Califórnia. E ninguém voltaria a olhá-la com desprezo. Agora tinha a posição que a riqueza lhe conferia, e uma opulência de que nunca desfrutara e que nunca sonhara em Atlanta. Onde quer que fosse, ouvia as pessoas a cochichar, e sabia o que elas diziam. O pai já lho havia dito. Jeremiah era um dos homens mais poderosos e importantes do país.

- Não me digas que não passas de um simples mineiro, Jeremiah Thurston. O trabalho nas minas é uma imundície... e ambos o sabemos muito bem. Tu és algo mais do que isso, e eu também. - Custava a crer que só tivesse dezoito anos. Parecia muito mais velha.

- E que aconteceria se o trabalho nas minas acabasse, se perdêssemos tudo quanto temos? Que sucederia então? Quem serias tu se condicionas a tua importância a tudo isso? Ninguém.

- Mas tu não vais perder nada.

- Camille, quando eu, em criança, vivia com os meus pais em Nova Iorque, só tínhamos o suficiente para comer, mas a sorte quis que o meu pai encontrasse ouro na Califórnia. Era o sonho de toda a gente nessa altura, e julgo que ainda continua a ser. Também tive sorte, mas nada mais do que isso. Sorte. Boa fortuna. Trabalho árduo. Mas tudo isso pode ir-se com a mesma facilidade com que veio. Casei-me com uma encantadora menina de Atlanta, e amo-a muito... Agora não te convertas numa pessoa diferente pelo simples fato de te teres casado comigo. Não seria justo. Nem para mim, e muito menos para ti. Não tens nenhuma necessidade de adotar essa atitude.

- Por que não? É a atitude que as pessoas sempre tiveram comigo, inclusive a minha mãe. - Os olhos inundaram-se de lágrimas ao fazer aquela confissão; havia um certo ar de criança rebelde nas suas palavras. - Sempre me tratou como se eu fosse um ser inferior, porque eu também era um pedaço do meu pai... como se ele fosse ralé... bem, mas casou-se com ele, e embora ele fosse ralé, prosperou, o suficiente para, depois do suicídio do pai, lhe permitir ter um nível de riqueza de acordo com a sua linhagem. Mas as pessoas sempre olharam para mim e para o Hubert com desprezo. O Hubert está-se borrifando para isso, mas eu não, não estou disposta a que continuem a rebaixar-me, Jeremiah. E a Amélia, com a sua aristocracia, a sua opulência, faz parte dessa corja. Conheço-os muito bem. Vi esse tipo de pessoas por todo o Sul, são encantadoras, mas, quando menos esperamos, passam-nos a perna.

Jeremiah ficou perplexo. Que ataque imerecido a Amélia! Contudo, compreendia algum do ressentimento de Camille. Nunca se apercebera daquele aspecto da sua vida e, ao conhecê-lo, sentiu compaixão, imaginando as muitas humilhações que a rapariga teria sofrido ao longo da vida. Agora compreendia o que Orville lhe dera a entender quando lhe dissera que queria tirar a filha do Sul. Tinha muita importância para ela, e não menos para Orville.

- Mas a Amélia não te disse nada de ofensivo, querida.

- Vontade não lhe teria faltado.

Havia lágrimas a correr pelas faces de Camille, e Jeremiah estreitou-a entre os braços

- Nunca permitirei que façam tal coisa contigo, meu amor. Ninguém voltará a humilhar-te. E ficou contente por lhe ter construído a mansão em São Francisco. Talvez lhe desse a autoconfiança que lhe parecia faltar. - Prometo, ninguém te tratará mal na Califórnia. E também sei que a Amélia nunca o teria feito. Devias ter-lhe dado uma oportunidade.  Apertou-a contra o peito como se faz a uma criança assustada. - Talvez da próxima vez.

Depois, conduziu-a para a cama e fez o possível por consolá-la. Quando a manhã chegou, ela não escreveu a carta, mas ele não quis transtorná-la com nova insistência. Em vez disso, enviou a Amélia um enorme ramo de biases brancos, flor quase inexistente no inverno. Sabia que ela gostaria, e que compreenderia.

Jeremiah e Camille passaram o resto da sua estada na cidade a comprar valiosas bagatelas pinturas para a nova casa, um colar de pérolas negras e outro de diamantes e esmeraldas do qual ela nunca se separava, e baús e baús de tecidos, penas e rendas para o caso de não encontrar aquilo de que gosto na Califórnia justificou-se ela.

- Por amor de Deus, não estamos em África, estamos na Califórnia.

Contudo, Jeremiah mostrava-se divertido a vê-la comprar tudo e mais alguma coisa, sem fazer qualquer reparo aos seus caprichos. Quando entraram na carruagem privada que os levaria à Califórnia, estava meio cheia com os baús e caixas que continham todos os tesouros de Camille.

- Não achas que já compramos o suficiente, meu amor? - perguntou Jeremiah, divertido, enquanto acendia um charuto e o comboio saía da Grand Central Station. Antes de deixar Nova Iorque, conseguiu falar mais uma vez com Amélia e insistiu para que ela não ficasse ofendida com o comportamento de Camille.

- É muito jovem, Jeremiah, dá-lhe a oportunidade de se acostumar a ser tua esposa.

Era precisamente o que ele tencionava fazer. Durante a viagem para a Califórnia, passaram a maior parte do tempo a fazer amor. Ela entregava-se com maravilhosa desenvoltura, coisa que dificilmente se poderia esperar de uma rapariga oriunda da educação puritana do Sul. Nunca fora tão feliz na sua vida, tanto mais que ela estava a adaptar-se rapidamente aos hábitos amorosos de que Jeremiah mais gostava. Era uma amante extraordinariamente exótica.

Finalmente, quando chegaram, Jeremiah mal conseguia conter o seu entusiasmo. Estava mortinho por lhe mostrar a mansão... a mansão deles... a Mansão Thurston... em todo o seu esplendor. Porém, continuava a esconder-lhe a verdade para que a sua surpresa fosse maior.

- Não é muito grande, mas dá para nós os dois e para o primeiro bebê. - Para os primeiros dez bebês, pensou para si próprio, e riu-se. - Já verás quando ta mostrar!

Jeremiah ajudou-a a descer do comboio em que haviam viajado durante sete dias, e conduziu-a para a carruagem que os fora buscar. Era novinha em folha, castanha, com adornos negros, e puxada por quatro cavalos também negros. Comprara-a especialmente para Camille pouco antes de partir para Atlanta.

- Que bonita carruagem! - exclamou, visivelmente impressionada e a bater as palmas, enquanto ele a ajudava a subir para o veículo. Havia uma segunda carruagem para a bagagem; em ambas brilhavam uns arabescos com as suas iniciais: J.A.T., Jeremiah Arbuckle Thurston.

- A casa é muito longe daqui? - Camille olhou à sua volta, ansiosa, e Jeremiah riu-se.

- Bastante, pequena. Estavas receosa de que eu tivesse construído a casa aqui? - perguntou Jeremiah, sentando-se de um salto ao seu lado para se dirigirem para o Norte de São Francisco.

Pelo caminho, foi-lhe indicando os pontos mais importantes da cidade: o Hotel Palace, onde tantas vezes ficara alojado antes de construir a mansão, a Igreja de S. Patrício e a da Paternidade, Union Square, a Casa da Moeda e, ao longe, Twin Peaks. Quando, finalmente, começaram a subir Nob Hill, mostrou-lhe a casa dos Mark Hopkins, a residência dos Tobin e as mansões dos Crocker e dos Huntington Colton. Camille ficou particularmente impressionada com as casas dos Crocker e dos Flood. Eram inclusive mais bonitas do que qualquer uma das que vira em Atlanta e Savannah.

- Isto é mais bonito do que Nova Iorque! - exclamou Camille, batendo as palmas. São Francisco não era uma cidade assim tão má. Nunca imaginara que gostasse tanto, e a ansiedade de ver a casa era cada vez maior. Mas Jeremiah alertara-a para o fato de a casa não ser muito grande. Naquele instante, entravam num pequeno parque, depois de ultrapassarem dois enormes portões. Os cavalos aceleraram o trote ao percorrer um verdadeiro labirinto por entre árvores e sebes. - A casa é aqui dentro? - perguntou, confusa. De momento, só via árvores e mais árvores. Talvez Jeremiah tivesse querido dar um passeio antes de a levar até à casa. Então, de súbito, surgiu diante dela a maior casa do que vira até aí. Era um espetacular edifício com quatro torreões e uma espécie de cúpula no cimo. - De quem é esta casa? - perguntou, fascinada. Nunca vira uma casa tão grande como aquela. - Parece um hotel, ou um museu.

- Nem uma coisa nem outra - respondeu Jeremiah com ar sério, enquanto a carruagem parava. Camille não conhecia Jeremiah suficientemente bem para perceber a malícia que os seus olhos refletiam. - Provavelmente, a maior casa da cidade. Queria que a visses antes de irmos para a nossa.

- De quem é, Jeremiah? - perguntou Camille quase a medo. A casa era maior do que algumas das igrejas que acabava de ver na cidade. - Deve pertencer a gente muito rica - acrescentou, e ele riu-se.

- Gostavas de a ver por dentro?

- Achas que podemos? - Sentia curiosidade, mas estava hesitante. - Não estou devidamente vestida para fazer uma visita. - Trazia um vestido de tweed, uma capa de pele e um dos bonitos chapéus que Jeremiah lhe comprara em Nova Iorque.

- Eu acho que estás apresentável. Afinal de contas, estamos em São Francisco, não em Nova Iorque. Aliás, estás elegantíssima.

E antes que ela pudesse acrescentar o que quer que fosse, Jeremiah conduziu-a até à porta principal e fez soar a enorme aldraba de bronze da porta. Quase de imediato, um criado de libré abriu a porta e ficou de olhos fixos em Jeremiah. Todos haviam sido prevenidos da sua chegada, e avisados para não fazerem caso do comportamento do patrão, por mais estranho que lhes pudesse parecer. Jeremiah entrou sem dizer palavra e puxou Camille para junto de si. Detiveram-se debaixo da enorme cúpula de vitrais, o que deixou Camille quase sem alento. Era a coisa mais bonita que vira em toda a sua vida. Fascinada, não conseguia desviar a vista daquele jogo de cores e formas que se projetavam sobre o chão de mármore.

- Oh, Jeremiah... é lindo... - Camille não conseguia desviar os seus enormes olhos daquela maravilha.

Jeremiah baixou o olhar para ela com um sorriso de felicidade estampado no rosto. O seu desejo concretizara-se

- Queres ver o resto?

- Não seria melhor mandarmos avisar os donos da nossa presença? - Camille parecia preocupada. Não era possível que as pessoas de São Francisco fossem tão informais. Em todo o caso, aquilo era muito diferente do Sul. Apesar de não viverem num palácio como aquele, os seus pais teriam ficado horrorizados se encontrassem alguém a passear-se pela casa, ainda que se tratasse de pessoas amigas. Não conhecia ninguém que o tivesse feito. Pensou, com íntima satisfação, que a casa de Amélia, em Nova Iorque, não era tão grande. Fossem quem fossem os proprietários daquela mansão, tinham-na superado, e em muito. - Jeremiah...

Perante a indiferença dos criados, Jeremiah e Camille subiram lentamente a imponente escadaria.

- Tens de ver o piso de cima, Camille. É a suíte mais bonita que alguma vez viste.

- Mas... Jeremiah... por favor...

Era uma situação horrível. Que diriam os donos da casa quando os vissem? Mas, antes que ela pudesse continuar a Protestar, Jeremiah puxou-a para dentro do que parecia ser o quarto de dormir principal, todo ele estofado com seda cor-de-rosa. Nunca vira nada parecido. Havia duas pinturas francesas de cada lado da cama, e outra sobre a consola da lareira, em frente. Dali, Jeremiah conduziu-a a um pequeno toucador francês, com as paredes cobertas de papel pintado à mão procedente de Paris, a um quarto de vestir cheio de espelhos, à maior casa de banho de mármore rosa que alguma vez vira, e, mais à frente, outra de mármore verde-escuro, presumivelmente para o dono da casa. Passaram por um gabinete com paredes de painéis de madeira e foram dar de novo ao quarto de dormir. Por mais inconveniente que fosse aquela intromissão numa casa alheia, Camille estava tão fascinada perante tanta beleza que quase não lhe importava a indiscrição que estavam a cometer. Era como pôr-se a comer bombons de chocolate e só conseguir parar depois de ter devorado a caixa inteira, e isso, antes que o dono voltasse a entrar em casa. Era como estar a ter um sonho e um pesadelo ao mesmo tempo. Extasiada, olhou de novo para Jeremiah e perguntou.

- Quem vive aqui? - O nome daquelas pessoas, provavelmente, não lhe diria nada, mas estava certa de que nunca mais iria esquecer Tal como não iria esquecer-se daquela casa, das salas imponentes, dos tecidos caríssimos, dos tesouros espalhados por todo o lado. - Quem são? Como é que enriqueceram? - Fez a última pergunta numa voz tão baixa que Jeremiah mal conseguiu ouvir.

- Com as minas - sussurrou ele.

- Deve haver boas minas por aqui - murmurou Camille, e Jeremiah sorriu.

- Algumas.

- Como se chamam?

- Thurston - sussurrou-lhe ao ouvido.

Camille fez um ligeiro movimento de incredulidade com a cabeça e olhou de novo para ele.

- Thurston. São teus parentes.

- Mais ou menos. - Continuavam a falar em voz baixa. - É a casa da minha esposa.

- Da tua quê? - Camille ficou horrorizada. Que brincadeira era aquela. Teria desatado a chorar se não fosse o medo que sentia. Ele tinha outra esposa. Teria sido objeto de um jogo cruel.

Jeremiah, entendendo tudo o que estava a passar pela mente de Camille, segurou-a pelos ombros e fê-la dar uma lenta meia volta de modo a ficar virada para um dos enormes espelhos. E apontou para a sua imagem refletida, com um sorriso nos lábios.

- Aquela esposa, minha tonta. Não a conheces? - Então, com uma expressão de espanto total, Camille voltou-se para ele.

- Que queres dizer? É esta a tua casa?

- A nossa casa, querida. - Puxou-a para si e abraçou-a, sentindo todo o prazer que o invadia. - Construí-a para ti. É possível que ainda haja algumas arestas por limar, mas disso trataremos nós.

Camille não tardou a libertar-se dos braços do marido, soltou um grito de espanto e desatou às gargalhadas.

- Enrolaste-me! Levaste-me à certa, Jeremiah Thurston! Ao ver a tranqüilidade com que te passeavas por uma casa alheia, pensei que tinhas enlouquecido de vez!

- Mas também estavas mortinha por fazê-lo! - retorquiu ele em tom de provocação.

- É a casa mais bonita do mundo, e não quero deixá-la sem acabar de ver...

- Então mostro-te o resto, mas nunca terás de deixá-la, querida! É tua, toda tua!

Então, os criados atreveram-se a sorrir e um verdadeiro exército apareceu para conhecer a nova patroa. Jeremiah contratara toda aquela criadagem pouco antes de partir para Atlanta. Agora praticamente não se lembrava de ninguém. Era tudo novo para os dois. Jeremiah mostrou-lhe as cozinhas e as despensas, o quarto de brinquedos e os quartos das crianças no piso de cima, a vista de quase todas as janelas e a discreta placa no portão principal onde se podia ler MANSÃO THURSTON. Mostrou-lhe tudo o que havia para ver e, no final da visita, Camille deixou-se cair sobre a enorme cama de dossel, com um franco sorriso nos lábios e os olhos fixos nele. Nunca vi uma casa assim tão bonita. Em lado nenhum.

- E é toda tua, minha querida, goza-a!

- Oh, é o que estou já a fazer! - Já se imaginava a dar festas deslumbrantes, e não via a hora de ver o salão de baile cheio de convidados. - Verás quando escrever ao papá!

Era o melhor elogio que Jeremiah podia receber. Aos olhos de Camille, o pai era como um Deus, mas Jeremiah estava a adquirir rapidamente a mesma importância. Desta vez, conseguira impressioná-la. Nem sequer o enorme diamante que lhe oferecera a impressionara tanto. Depois, sorrindo para o marido, exclamou: Deve ter-te custado uma fortuna! Deves ser mais rico do que aquilo que o papá pensava! Perspectiva que não pareceu deprimi-la.

Jeremiah ficou emocionado perante o entusiasmo de Camille pela casa, foi vago a responder às suas perguntas sobre o custo das coisas e ficou decepcionado com a reação dela ao levá-la para Napa. Depois da elegância e das modernas maravilhas da casa de Nob Hill, ela só mostrou indiferença pela casa que ele restaurara em Santa Helena. Desgostava-lhe a distância a que estavam da cidade mais próxima, se é que se lhe podia chamar cidade, e lamentava o muito tempo que era necessário para chegar a São Francisco. A viagem, de carruagem e de barco a vapor, durou um dia inteiro e, ao chegar a Napa, achou a casa deprimente. Ouvira dizer que ele a construíra para um amor que morrera, o que,também a aborreceu. Queria voltar para a grandiosidade da Mansão Thurston e exibir as roupas novas. Já! E o fato de Jeremiah ter ali vivido durante os últimos vinte anos não a interessava minimamente; não encontrava no vale a magia de que ele lhe falara; só parecia interessada nas minas e no dinheiro que ele conseguia tirar delas. Todos os dias, Camille fazia-lhe um milhar de perguntas, mas eram tão interesseiras e indiscretas que Jeremiah se limitava a dar-lhe respostas vagas. Embaraçava-o falar de dinheiro e, além disso, depois da sua longa ausência das minas, havia tanto trabalho que mal tinha tempo para a esposa. Jeremiah teve que ficar um mês em Napa para pôr as coisas em ordem; Camille detestou cada segundo que aí passou.

Jeremiah pensou num elaborado sistema que lhe permitiria viver a maior parte do tempo em São Francisco, como prometera ao sogro, mas as comunicações entre a Mansão Thurston e as minas teriam de ser perfeitas. Já prometera a Camille que, nesse ano, viveriam em São Francisco desde janeiro até junho, e que, depois, mudar-se-iam para Napa para passarem aí o verão. Era um compromisso que queria cumprir, mas havia outros problemas que também requeriam solução.

Para começar, Hannah e Camille não estavam a dar-se nada bem e, ao regressar a casa, à noite, ao fim do segundo dia nas minas, Jeremiah perguntou-se qual das duas mulheres iria encontrar à sua espera. Era praticamente impossível que ambas conseguissem sobreviver ao confronto.

Camille achava que Hannah, além de ser desmazelada e atrevida, mostrava demasiada familiaridade, e atrevera-se até a tratá-la por «menina» em vez de «Mistress Thurston». E, pior ainda, chegara a chamar-lhe fedelha e menina mimada, e Hannah queixara-se a Jeremiah, completamente descontrolada, que a pequena megera lhe atirara algo à cabeça. E susteve na mão o corpo de delito como prova. Ao que parecia, o projétil fora uma pequena caixa de chapéus e, por sorte, a velha governanta conseguira esquivar-se.

- Ela já tem uma certa idade, não acho que seja justo despedi-la. - Camille exigira-lhe que a despedisse na manhã seguinte. - Não posso fazê-lo. - Jeremiah não conseguia pensar em nada pior.

- Então, despeço-a eu.

Nunca parecera tão decidida nem tão sulista. De repente, Jeremiah deu-se conta de que tinha de tomar uma decisão antes que perdesse o controlo da situação.

- Não, não vais fazer nada disso. A Hannah fica. Tens de te habituar a ela, Camille. Já faz parte do meu estilo de vida em Napa.

- Isso era antes de teres casado comigo.

- Pois era. E não posso mudar tudo da noite para o dia. Restaurei esta casa só para ti. Antes, estava um chiqueiro. Contrato mais criados se precisares, mas a Hannah fica.

- E se me for embora para São Francisco? - Camille olhou-o com ar arrogante, e Jeremiah fê-la sentar ao seu colo, sem mais cerimônias.

- Volto a trazer-te para aqui e dou-te uma sova. - Camille sorriu e Jeremiah beijou-a. - Assim está melhor, essa é a mulher que amo, sorridente e doce, e não a lançadora de caixas de chapéus a velhotas.

- Chamou-me megera! - Camille ficou novamente irada, mas não perdeu o seu encanto, e Jeremiah sentiu um forte desejo de possuí-la.

- Se lhe atiraste a caixa, não admira que te tenha chamado megera. Deves portar-te como deve ser, Camille. Por aqui, só há pessoas boas. São simples, e sei que te aborrecem, mas, se fores boa com elas, guardar-te-ão fidelidade toda a vida. - Naquele instante, lembrou-se de Mary Ellen e dos muitos anos de lealdade para com ele, e perguntou-se se já teria tido o bebê

Camille retomou o seu ar petulante, levantou-se e pôs-se a andar pelo quarto.

- Prefiro ir para a cidade. Quero dar um grande baile. - Parecia uma criança birrenta, que queria que o dia de aniversário fosse naquele mesmo instante, desse por onde desse.

- Tudo a seu tempo, pequena. Tem um pouco de paciência. Antes disso, tenho de terminar o trabalho que ainda me falta fazer. Suponho que não gostarias de viver na cidade sem mim, pois não?

Camille abanou a cabeça sem demasiada convicção, e Jeremiah beijou-a de novo, fazendo esquecer qualquer outra coisa que não fossem os seus lábios, e, pouco depois, tinha-a a seu lado na cama, e não voltaram a lembrar-se de Hannah Até à manhã seguinte, altura em que Camille tentou ressuscitar o problema, mas Jeremiah não permitiu. Disse-lhe para ir dar um longo passeio higiênico, que ele regressaria a casa por volta da hora do almoço. Aquela perspectiva não a acalmou muito, mas não tinha alternativa. Jeremiah deixou-a sozinha com Hannah, que lhe dirigiu apenas duas palavras durante toda a manhã. Quando ele voltou, encontrou-a incrivelmente conversadora, fez-lhe muitas perguntas sobre a mina e o trabalho, e ele contou-lhe as bisbilhotices que corriam pela cidade sobre pessoas que Camille não conhecia Mas, ao fim de pouco tempo, as palavras do esposo começaram a aborrecê-la. Na realidade, todo o vale de Napa a aborrecia. O que ela queria era voltar para São Francisco, e tornou a dizer-lhe isso mesmo depois do almoço, quando Jeremiah se preparava para selar Big Joe a fim de voltar para a mina. Desta vez, ele abanou a cabeça e falou-lhe com toda a franqueza

- Ficaremos aqui até ao fim do mês. Vai-te acostumando à idéia, Camille. Este é o outro lado da nossa vida. As coisas não se podem resumir à Mansão Thurston. Também temos de fazer vida aqui. Sou mineiro. Já te tinha dito.

- Não és nada mineiro. És o homem mais rico da Califórnia. Vamos voltar para São Francisco e viver de acordo com a nossa posição.

Aquelas palavras preocuparam Jeremiah, que tentou repetidas vezes trazê-la à razão, mas sem qualquer êxito.

- Sempre esperei que gostasses do vale de Napa, Camille. Isto é muito importante para mim.

-Pois eu acho-o feio, aborrecido e estúpido. E detesto essa maldita velha, tal como ela a mim.

- Então, lê um livro. No sábado, levo-te à biblioteca de Napa. - Isso significava perder o trabalho matinal dos sábados com Danny, mas naquele momento Camille era mais importante. Jeremiah queria que ela se adaptasse à forma de vida rural de Napa. Não podia viver sempre em São Francisco, e era lógico que a quisesse ter sempre ao seu lado.

No entanto, o imprevisto aconteceu, e Jeremiah não passou a manhã de sábado nem com Camille nem com Danny. Na sexta-feira à tarde, houve uma inundação numa das minas, coisa que acontecia todos os Invernos e, apesar da luta encarniçada para salvar as vidas em perigo, perderam-se catorze homens e resgataram-se outros trinta. Jeremiah não abandonou nem por instantes as equipes de salvamento, que, no fundo da mina, trabalharam sem descanso para retirar os homens enclausurados nas galerias inundadas, os quais, agarrados às paredes como morcegos e já mal conseguindo respirar, aguardavam o momento do resgate. Foram horas terríveis de constante tensão, como Hannah contou a Camille quando soube da notícia e do motivo de Jeremiah não ter voltado para casa. Ela sabia que ele não regressaria até que se encontrasse o ultimo dos homens, vivo ou morto, e até ter ido ver as viúvas. Só então voltaria para junto da esposa. Camille ficou abatida quando ouviu a notícia, e quando Jeremiah, montado no dorso de Big Joe, ao meio-dia do dia seguinte, regressou a casa, em passo lento, ela compreendeu, pelo seu semblante carregado, o drama que acabara de viver.

- Perdemos catorze homens - foram as primeiras palavras que dirigiu à esposa, e Camille, ao imaginar a dor das viúvas, sentiu os olhos alagarem-se de lágrimas.

- Sinto muito. - Os olhos estavam marejados de lágrimas, tanto por ele como pelas mulheres que haviam ficado viúvas.

Entre as vítimas, contava-se o pai de Danny, perda que Jeremiah lamentou de modo especial. Dissera isso mesmo ao rapaz, por entre soluços, enquanto o abraçava. E seria um dos que ajudaria a transportar o caixão no funeral, na segunda-feira seguinte. Era difícil explicar essas coisas a Camille. Embora fossem realidades da vida do marido, a sua juventude e a sua inexperiência não lhe permitiam compreendê-las cabalmente. Para ela, a única realidade era a beleza da mansão que ele lhe construíra. Mas havia muitíssimas outras coisas no mundo. E tinha de começar a conhecê-las.

Hannah correu a preparar um banho quente para Jeremiah, e Camille apressou-se a ir buscar uma tigela de caldo que Hannah fizera, não mostrando ter jeito para nenhuma das coisas, nem se sentindo inclinada a aprender a fazê-las. Enquanto Camille enchia uma tigela de caldo, Hannah encontrava-se com ele na casa de banho, no primeiro piso. Olhou-o fixamente durante um longo instante e depois abanou a cabeça.

- Sei que não é o momento mais oportuno para te dizer... - Vacilou durante uma fração de segundo. - A Mary Ellen está em trabalho de parto há dois dias. Soube ontem de manhã, mas não tive ocasião de falar contigo. E esta manhã, pelo que disseram no mercado, continua em trabalho de parto. - Ambos sabiam o que aquilo significava. Mary Ellen podia morrer. Um sem-número de mulheres havia morrido durante o trabalho de parto. - Não sei se estás disposto a fazer alguma coisa por ela. - Não havia qualquer tom de reprovação na voz. Era uma simples constatação dos fatos. - Mas achei que devia dizer-te.

- Obrigado, Hannah. - Jeremiah baixou a voz ao ver entrar a esposa com a tigela de caldo, e olharam um para o outro.

Camille sentiu imediatamente que Hannah estivera a contar um segredo a Jeremiah, algo sobre ela, suposição que era infundada.

- Que estava ela a contar-te? - perguntou Camille, logo que a velhota saiu.

- Bisbilhotices. Um dos meus homens precisa de ajuda. Vou vê-lo depois de tomar banho.

- Mas precisas de descansar. - Camille pareceu desconcertada. Jeremiah estava tão cansado que sentia os músculos dormentes. Trabalhara toda a noite, meio submerso em lama gelada, e podia dar os esforços por bem empregues, pois contribuíra para o salvamento de trinta homens.

- Descansarei mais tarde, Camille. Podes trazer-me um pouco mais de caldo? E uma xícara de café?

Ela foi buscar o que Jeremiah lhe pedira e, ao voltar, encontrou-o sentado na banheira. Esvaziou os dois recipientes e levantou-se. Conservava ainda o corpo vigoroso e maciço da juventude. Os anos de trabalho nas minas desde muito jovem haviam-no mantido em perfeitas condições físicas. Camille contemplou com admiração um corpo que, apesar dos seus quarenta e quatro anos, conservava toda a sua beleza.

- És belo, Jeremiah. - Este sorriu.

- Também tu, pequena. - Mas o pensamento de Jeremiah estava noutro sítio. Vestiu-se rapidamente e preparou-se para sair. Camille dirigiu-lhe um olhar de inquietude.

- Porque vais precisamente agora?

- É necessário. Não me demorarei.

- Aonde vais? - Era a primeira vez que ela o interrogava daquela maneira, e perguntou-se por que razão ela o faria.

- A Calistoga. - Jeremiah olhou para Camille sem vacilar, mas interiormente estremeceu. Ia assistir ao nascimento do filho, ou à morte de Mary Ellen, se é que isso não tinha já acontecido.

- Posso ir contigo?

- Não. Desta vez, não, Camille.

- Mas quero ir - insistiu, de novo com o seu ar petulante; Jeremiah afastou-a delicadamente para o lado.

- Não posso perder mais tempo. Falaremos disso quando voltar.

E antes que Camille pudesse acrescentar uma palavra sequer, Jeremiah já galopava, a considerável velocidade, no dorso de Big Joe, através das colinas, ansioso por saber o que iria encontrar no final do caminho.

 

O grande cavalo branco, esporeado por Jeremiah, avançava pesadamente pelo vale acima. Thurston só conseguia pensar nos homens que perdera na noite anterior, e uma ou duas vezes ainda cabeceou com sono, mas Big Joe parecia saber para onde iam. A casinha branca estava silenciosa quando Jeremiah prendeu o cavalo a uma árvore e contornou a casa até à porta principal, bateu e entrou. Não ouviu nada, o que o fez pensar que talvez Mary Ellen tivesse ido dar à luz a casa da mãe. Mas não tardou a ouvir um terrível gemido procedente do piso de cima. Parou, perguntando-se se ela estaria sozinha, depois subiu as escadas com suaves passadas, sem saber o que devia fazer, ou por que razão viera. Só sabia que devia estar ali. Tratava-se do nascimento do seu filho e, quiçá, da morte de Mary Ellen.

Deteve-se à porta do quarto durante um longo instante até que os gemidos deixaram de se ouvir. Então, escutou um débil soluço e um homem a falar baixinho. Era uma situação tão embaraçosa que Jeremiah sentiu um cansaço imenso por todo o corpo. Achava que a sua presença ali era uma insensatez, mas, mesmo assim, bateu. Caso necessário, poderia alegar que só ia à procura do médico. Foi o próprio médico que lhe abriu a porta, de mangas arregaçadas, os olhos sonolentos, e a camisa cheia de manchas de sangue, o que não parecia importar-lhe.

Desculpe... queria saber se... - A sua torpeza era evidente. Sentia remorsos por ter deixado que aquela mulher tivesse o seu filho quase sem a ajuda de ninguém. Olhou para o médico e perguntou-lhe sem preâmbulos. - Como é que ela está? Não se apresentou, mas não era necessário fazê-lo.

O médico sabia quem ele era. No condado, todos conheciam Jeremiah Thurston. O homem fechou a porta suavemente e saiu para o corredor para falar com Jeremiah.

- Não está muito bem. Encontra-se em trabalho de parto desde quarta-feira à noite, e não há maneira de fazer sair a criança. Ela tem feito um esforço incrível, mas receio que esteja a chegar ao fim das suas forças.

Jeremiah moveu a cabeça com ar preocupado, sem se atrever a perguntar se Mary Ellen podia morrer. Já sabia a resposta.

- Quer entrar? - No olhar do médico não se vislumbrava qualquer tipo de crítica implícita. Talvez aquela visita pudesse ser importante para a mulher. A presença daquele homem não lhe faria qualquer mal. Além disso, estava a sofrer há tanto tempo que certamente pouco lhe importava quem pudesse vir vê-la. E o filho era dele.

Jeremiah hesitou. Nunca se imaginara a assistir a um parto, mas o médico mostrou-se compreensivo.

- Acha que ela se importa?

O médico olhou para Jeremiah.

- É provável que nem sequer se dê conta de quem você é. Tem pouca consciência de tudo o que a rodeia. - Fez uma ligeira pausa e fitou Jeremiah. - Acha que consegue? É a primeira vez que assiste a um parto?

Jeremiah abanou a cabeça.

- Só gado.

O ancião fez um ligeiro movimento de anuência com a cabeça. Sem acrescentar palavra, abriu a porta e entrou no quarto seguido de Jeremiah. Lá dentro, respirava-se um ar pesado e doce, uma mescla de cheiro a suor, a água de rosas e a lençóis úmidos, e não havia qualquer janela aberta. Mary Ellen jazia na cama, coberta com dois cobertores e, da cintura para baixo, rodeada de lençóis manchados de sangue. Dava a impressão de que alguém a assassinara no leito. Naquele instante, o seu enorme ventre fazia uma ligeira pausa depois de três dias de denodados esforços. As pernas estavam suspensas como as de uma boneca de trapos e todo o corpo tremia. Então, enquanto Jeremiah a fitava, angustiado e consumido pelo sentimento de culpa, Mary Ellen viu-se abalada por aquilo que parecia uma convulsão. Seguiu-se um grito agudo que, a pouco e pouco, se converteu num grito horrendo, ao mesmo tempo que se contorcia na cama, revirava os olhos e esbracejava freneticamente. Mary Ellen deixou escapar umas palavras incoerentes, e o médico acercou-se rapidamente dela. Era fácil de ver que estava quase inconsciente. Outro grito tremendo foi o prelúdio de um intenso fluxo de sangue entre as pernas. O médico enfiou as mãos no útero, mas retirou-as com ar de frustração e secou-as numa toalha que estava empapada de sangue Profundamente comovido, Jeremiah acercou-se da cama e olhou para o torturado rosto de Mary Ellen. Se não soubesse quem era, não a teria reconhecido.

O médico falou-lhe em voz baixa, sabendo que Mary Ellen não podia ouvi-lo. Naquele instante, parecia dormitar entre duas contrações.

- Perdeu muito sangue. Houve algo que se desprendeu. Vê-se pela hemorragia que acaba de ter, mas não consigo detê-la, e a criança deu mal a volta. Tem o ombro na posição de saída. Desse modo, por maior que seja a pressão, não conseguiremos nada. - Havia alguma mágoa nas palavras do médico ao responder à muda pergunta de Jeremiah. - Podemos perder os dois. - Olhou para a mulher prostrada em cima da cama. - Ela, de certeza, se não conseguirmos tirar o bebê o mais depressa possível. Já poucas forças lhe restam.

- E o bebê? - Afinal de contas, tratava-se do seu filho, mas, ainda assim, só Mary Ellen o preocupava. Era como se nunca a tivesse deixado, como se Camille nunca tivesse existido.

- Se conseguisse que o bebê desse a volta, talvez fosse capaz de tirá-lo, mas não posso fazer isso sozinho. - Fitou Jeremiah. - É capaz de segurá-la?

Jeremiah assentiu com a cabeça, receoso de lhe provocar mais dor. Mary Ellen voltara a acordar e começava a gemer de novo com o início de outra contração. Ao levantar os olhos, teve a impressão de ver Jeremiah, mas era óbvio que pensava que estava a sonhar.

- Vai tudo correr bem - disse-lhe ele, sorrindo e fazendo-lhe uma festa no rosto, enquanto se ajoelhava no chão, ao lado dela. - Estou aqui. Não vai haver problema. - Mas nem por um instante acreditou naquilo que estava a dizer, e já vira muitas mortes nas últimas vinte e quatro horas. Não queria assistir a outra morte, mas receava que era isso mesmo que iria acontecer ao vê-la contorcer-se com dores, ao mesmo tempo que saía mais sangue de dentro dela.

- Não agüento... não agüento mais...

Mary Ellen arquejava. Instintivamente, Jeremiah tomou-a pelos ombros, abraçou-a e, de repente, sentiu todo o peso da sua cabeça sobre o braço. Desmaiara. Estava extremamente pálida. O médico tomou-lhe o pulso e olhou para Jeremiah.

- Vou tentar dar a volta ao bebê e tirá-lo logo que possível. Segure-a. Não a deixe mexer-se.

Jeremiah seguiu as instruções e não parou de lhe falar baixinho, mas os gritos de Mary Ellen eram tão agudos que ela não conseguia ouvi-lo. Acabou por desmaiar de novo, antes que o médico conseguisse aquilo que queria. Com a fronte banhada em suor, Jeremiah olhou para o relógio e ficou espantado ao verificar que já estava ali há quatro horas.

- Ela não agüentará muito mais, doutor.

- Eu sei. - O médico fez um ligeiro gesto afirmativo com a cabeça e preparou um aparelho de aspecto sinistro que iria utilizar para tirar o bebê logo que ele desse a volta.

Então, de repente, Mary Ellen teve nova contração e acordou, desta vez de olhos esbugalhados, enquanto Jeremiah a mantinha imóvel contra a cama e o médico enfiava os braços o mais fundo que podia no interior da mulher tentando agarrar o bebê. Jeremiah sabia que nunca esqueceria os gritos que estava a ouvir. Foram necessárias quatro tentativas com as mãos para que o bebê ficasse numa posição satisfatória, e cinco com o estranho aparelho enfiado entre as pernas de Mary Ellen, que não parava de gritar entre os braços de Jeremiah. Eram gritos lancinantes que não tinham nada de humano. O médico deixou escapar um furioso grunhido, e Jeremiah, com a fronte ainda ensopada em suor, notou uma mudança no corpo de Mary Ellen. A mulher, extremamente pálida, afundou-se entre os seus braços. A respiração era tão débil e irregular que Jeremiah temeu que ela não estivesse a respirar. Mas, ao voltar-se para o médico, viu o que acontecera. O bebê saíra finalmente e jazia morto entre as pernas de Mary Ellen que continuava a esvair-se em sangue. A cena não podia ser mais dolorosa. O médico cortou o cordão umbilical, envolveu a criança num lençol e tentou estancar o sangue que continuava a sair abundantemente das entranhas de Mary Ellen. Jeremiah experimentou um doloroso sentimento de derrota ao verificar que o seu primeiro filho nascera morto, mas, naquele instante, só podia pensar na mãe, cuja vida vacilava perante a impotência dos dois homens que a assistiam. O médico fez várias tentativas desesperadas, depois cobriu Mary Ellen e, acercando-se da cabeceira da cama, deu uma palmadinha no ombro de Jeremiah.

-Lamento o que aconteceu ao bebê.

- Também eu. - Jeremiah sentiu a voz embargada. Eram demasiadas desgraças que presenciara naquelas duas últimas noites, e continuava a temer pela vida de Mary Ellen. - Acha que ela se salvará? - Olhou para o médico com um ar suplicante. Este não podia assegurar-lhe nada.

- Não posso fazer nada mais por ela. Ficarei aqui, mas não posso prometer-lhe nada.

Jeremiah não se afastou nem por um instante da cabeceira da cama. Já a noite ia adiantada quando Mary Ellen voltou a agitar-se na cama, gemendo suavemente e abanando a cabeça de um lado para o outro; no entanto, só abriu os olhos de manhã.

- Mary Ellen... - murmurou Jeremiah. O médico dormia a um canto. - Mary Ellen...

Ela voltou-se para ele, confusa.

- És mesmo tu? Pensei que fosse um sonho... - Então, olhou para ele e fez-lhe a pergunta que ele mais temia.

- Jeremiah... o bebê?... - Mas apercebeu-se instintivamente do que acontecera, e voltou a cara para o outro lado com os olhos inundados de lágrimas. Jeremiah pegou-lhe na mão e acariciou-lhe o cabelo.

- Salvamos-te, Mary Ellen...

Havia lágrimas nos olhos de Jeremiah. Temera tanto que ela morresse. Teve vontade de lhe dizer o quanto lamentava o que acontecera ao bebê, mas tinha um nó na garganta do tamanho de um punho que não o deixava dizer o que quer que fosse.

- O que era? - Mary Ellen olhou para ele de novo e reparou que ele ainda chorava.

- Um rapaz.

Mary Ellen abanou ligeiramente a cabeça, fechou os olhos e, quando voltou a acordar, o médico expressou a sua satisfação pelas melhoras observadas na paciente e acrescentou que ir-se-ia embora, mas que voltaria da parte da tarde para ver como estava a evoluir o seu estado. Já no corredor, disse a Jeremiah que, se Mary Ellen não perdesse mais sangue, conseguiria salvar-se, e que ele, pessoalmente, acreditava na sua sobrevivência.

- É uma mulher de armas. Mas já lhe havia dito há anos atrás que não voltasse a pensar em ter filhos. Foi uma insensatez... - Encolheu os ombros, - ... ou, talvez, um acidente. - Então, olhou para Jeremiah. - Se tiver de ir já para casa, a minha mulher ficará com ela. - Não queria meter-se em assuntos alheios, mas já lhe chegara aos ouvidos que Jeremiah tinha uma esposa jovem em Santa Helena.

- Agradecia-lhe imenso. Não me deitei esta noite por causa das inundações nas minhas minas.

O médico fez um gesto de compreensão com a cabeça; tinha respeito por aquele homem. Ele fora de uma grande ajuda durante aquela longa noite com Mary Ellen. E, estendendo a mão para Jeremiah, declarou:

- Sinto muito o que aconteceu ao bebê.

- Graças a Deus, conseguiu salvá-la.

O médico sorriu, sensibilizado com aquelas palavras. Aquele homem não era o único homem do vale que tinha esposa e amante, e filhos de ambas. E, apesar de tudo, parecia ser um homem honesto

- A minha mulher estará aqui dentro em pouco. - E, quando o médico saiu, Jeremiah despediu-se de Mary Ellen.

- Voltarei amanhã. Descansa e faz o que o médico te disser. - Então, teve outra idéia. - Vou pedir à Hannah que venha para cá quanto antes. Pode ficar contigo o tempo que for necessário.

Mary Ellen esboçou um tênue sorriso e segurou por instantes a mão quente de Jeremiah.

- Obrigada por teres vindo, Jeremiah... Sem ti, teria morrido. - Ela estivera às portas da morte, mas ele não lhe disse.

- Agora, sê uma menina bonita!

Mary Ellen fechou os olhos e adormeceu de novo ainda antes de ele sair do quarto. A caminho de Santa Helena, montado no Big Joe, Jeremiah sentiu um tremendo esgotamento em todas as fibras do seu corpo. Quando desmontou em frente da casa, Hannah veio ao seu encontro. A mulher, com olhar expectante, queria falar com ele antes que Camille saísse também, e Jeremiah, pela mesma razão, apressou-se a dizer em voz baixa

- A Mary Ellen está bem, mas o bebê nasceu morto - E, soltando um profundo suspiro, acrescentou - Estivemos quase a perdê-la. Disse-lhe que irias hoje mesmo vê-la e que ficarias a cuidar dela o tempo que for necessário. - Por instantes, pensou que talvez tivesse tomado demasiada liberdade ao oferecer os préstimos de Hannah, mas a velhota fez um resoluto gesto de concordância com a cabeça.

- Fizeste bem. Vou já buscar as minhas coisas. - Então, com um olhar perscrutador, perguntou: - Como é que ela está?

Jeremiah abanou a cabeça, deixando que o seu rosto refletisse toda a angústia passada naquelas últimas horas.

- Foi horrível, Hannah, a pior coisa que presenciei. Não sei por que razão é que as mulheres querem ter filhos. - Encontrava-se profundamente impressionado por tudo aquilo que vira, e não sabia se conseguiria tirar todas aquelas imagens da cabeça tão cedo.

- Algumas não querem. - Olhou propositadamente por cima do ombro. Depois, para animá-lo, acrescentou. - Mas nem sempre é assim, filho. A Mary Ellen sabia que ia passar um mau bocado. O último parto foi quase igual a este. O médico já a avisara. - Havia um ligeiro tom de reprovação na sua voz. - Estiveste todo esse tempo com ela?

Jeremiah fez um gesto afirmativo com a cabeça

- És um bom homem, Jeremiah Thurston - afirmou ela, olhando-o com renovado respeito.

Naquele instante, Camille apareceu no alpendre com um ar exasperado.

Onde estiveste toda a noite, Jeremiah? - perguntou, sem se importar que Hannah pudesse ouvi-la.

- Com um dos meus homens que ficou ferido na mina. - Com aquelas palavras estavam explicadas as manchas de sangue que havia numa das mangas e a barba por fazer. Passara duas noites inteiras sem dormir, e naquele instante encontrava-se completamente esgotado. - Desculpa não ter vindo para casa, meu amor.

Camille fitou-o com ar severo e, perante a surpresa de Hannah, deu meia volta e entrou novamente em casa, fechando a porta com estrondo.

- Não há nada como uma esposa compreensiva - observou a velhota num tom mordaz. Deu umas palmadinhas no braço de Jeremiah e subiu a escada para ir buscar as suas coisas. - Vou já, Jeremiah. Não te preocupes com nada. E descansa. Deixei um pouco de sopa e guisado no fogão para ti.

- Obrigado, Hannah.

Jeremiah dirigiu-se lentamente até à cozinha e encheu uma tigela de sopa antes de subir em busca da esposa, que se encontrava no quarto.

- Onde é que estiveste? - insistiu Camille ao vê-lo.

- Já te disse onde estive. - Jeremiah não tinha vontade de falar. Nessa noite, vira morrer o seu primeiro filho, e a vida da sua amante de sete anos estivera por um triz.

- Não acredito em ti, Jeremiah.

Camille estava bela e imaculada no seu vestido vaporoso cor-de-rosa; Jeremiah, pelo contrário, sentia-se exausto e imundo.

- Não tens muito por onde escolher, Camille. Já te disse que estive com um dos meus homens.

- Por quê?

- Porque esteve às portas da morte, foi essa a única razão - respondeu Jeremiah com certa brusquidão, enquanto se sentava com a tigela de sopa junto da lareira. Mas Camille, que andava nervosamente de um lado para o outro do quarto, não se deu por vencida.

- Podias ter-me avisado que não vinhas para casa.

- Desculpa. - Jeremiah olhou-a diretamente nos olhos. - Não podia mandar ninguém.

A resposta pareceu satisfazê-la, mas Jeremiah ficou intrigado com o fato de ela suspeitar que ele mentia. Era extremamente perspicaz, mas não lhe podia contar o que se passara. Sem dizer mais nada, Jeremiah continuou a comer a sopa, sentindo um novo respeito pela astúcia e a intuição da sua esposa.

- Suponho que agora vais para a cama. - Camille pareceu menos irritada, enquanto se sentava perto dele, numa cadeira de balanço.

- Gostaria de ir à igreja depois de tomar banho.

- À igreja? - A pergunta saiu-lhe quase num grito. Detestava igrejas, nunca gostara. A mãe apreciava aquelas coisas, mas ela era diferente. - Nunca vais!

- Vou de vez em quando. - Se não estivesse tão esgotado, teria achado graça à reação de Camille. - E acabamos de perder catorze homens nas minas. - Além do seu único filho. - Não és obrigada a ir se não quiseres, mas ficar-te-ia bem se fosses.

Camille fitou-o com ar aborrecido.

- Quando é que voltamos para a cidade?

- Logo que possamos. - Levantou-se e dirigiu-se para ela. - Farei o que puder para voltarmos para São Francisco o mais breve possível. Prometo, pequena!

Aquelas palavras pareceram apaziguá-la, o suficiente para mudar de vestido e o acompanhar à igreja uma hora depois. Quando regressaram, Jeremiah deitou-se e dormiu o sono dos justos até à hora do jantar, altura em que se levantou para comer outra tigela de sopa e voltou a cair no sono até à manhã seguinte, quando teve de se levantar para assistir ao funeral dos homens que haviam morrido na mina, na sexta-feira Mas, desta vez, Camille não o acompanhou. Ficou em casa e, quando ele regressou, fez ouvir as suas queixas pela ausência de Hannah. Jeremiah explicou-lhe que ela fora cuidar de uma amiga que estava enferma.

- Por que razão é que ela não me disse? - perguntou Camille, furiosa. - Sou a dona desta casa. Agora trabalha para mim.

Jeremiah não gostou daquela maneira de falar, mas não quis aumentar a sua irritação.

- Só me disse domingo de manhã, quando cheguei a casa

- E deixaste-a ir? - Camille estava lívida.

- Deixei. Tinha a certeza de que compreenderias a situação. - Tentou pôr um ponto final no assunto quanto antes. - Voltará dentro de dias.

No entanto, Hannah só voltou quase uma semana depois, e informou Jeremiah que Mary Ellen ainda se encontrava muito debilitada, mas que já conseguia pôr-se de pé, fato que o encheu de satisfação. Dias antes, enviara-lhe um bilhete em que lhe asseverava que a morte do seu filho não mudara nada. Não lhe tiraria a pensão que ela recebia desde há vários meses. Dera já informações ao banco para que fosse vitalícia. Além disso, esperava que ela não voltasse a trabalhar. Podia ficar em casa a tomar conta dos filhos e a recompor-se. Mary Ellen ainda pensou em enviar-lhe um bilhete a agradecer, mas não se atreveu a fazê-lo, com medo de que caísse nas mãos de Camille. Foi, pois, Hannah que o fez em seu nome.

- Tens a certeza de que está fora de perigo, Hannah?

- Ainda se encontra muito debilitada, mas já vai tendo mais forças.

- Provavelmente graças aos teus petiscos. - Jeremiah esboçou um sorriso de agradecimento e preveniu-a de que Camille ficara aborrecida com a sua ausência.

- Ela cozinhou alguma coisa para ti?

- Cá nos arranjamos. De qualquer modo, dentro de dias voltaremos para São Francisco. - Perspectiva que não agradou a Hannah.

- Isto será uma solidão, Jeremiah.

- Eu sei. Mas, de vez em quando, virei dar uma vista de olhos às minas.

- Vai ser duro para ti.

Aquela situação, porém, não era justa para a esposa. Não lhe construíra um palácio na cidade para a condenar à vida no campo, que ela detestava.

- Vai tudo correr bem. Viremos passar aqui os meses de verão, provavelmente desde Junho até setembro ou outubro. - Embora ele preferisse de março até novembro. - Se, entretanto, precisares de alguma coisa, manda-me dizer logo.

- Está bem, Jeremiah.

- Como? - Uma vozinha abespinhada atrás deles apanhou-os de surpresa, e Jeremiah interrogou-se sobre o que Camille teria ouvido da conversa deles antes de darem pela sua presença. - Ouvi-te dizer «Jeremiah», Hannah? - Ficaram ambos perplexos.

- Sim, foi isso que eu disse - respondeu Hannah, como se não tivesse percebido onde é que Camille queria chegar

- Agradeço que quando te dirigires ao meu marido o trates por Mister Thurston. De agora em diante, já não será o teu «rapaz» ou o teu «amigo». É meu marido e tu, a sua criada. E o nome dele, recordo-te mais uma vez, é Mister Thurston.

Nunca se mostrara tão sulista nem tão impertinente. Jeremiah ficou furioso. Não lhe disse nada diante de Hannah, mas seguiu a esposa pelas escadas acima e fechou a porta do quarto com estrondo.

- O que se passa, Camille? Como pudeste ser tão grosseira com uma velhota que sempre se distinguiu pela sua fidelidade? - A mesma velhota que ajudara a sua amante a recompor-se do frustrado nascimento do seu filho, mas Camille não sabia nada disso, apesar de estar preparada para qualquer surpresa. Raramente o vira irritado. - Não tolerarei. Quero que tenhas isso bem presente.

- Não tolerarás o quê? Eu só quero que os nossos criados nos respeitem, e essa velha comporta-se como se fosse tua mãe. Mas o que é fato é que não é. Não passa de uma velha horrenda, descarada e linguareira, e juro-te que a açoito se volto a apanhá-la a chamar-te Jeremiah.

Este só teve vontade de a tomar pelos ombros e dar-lhe um abanão. Em vez disso, agarrou-a pelo braço e disse-lhe.

-Açoitá-la? Não estamos no Sul, Camille, e os tempos da escravidão já passaram. Se ousares pôr-lhe a mão em cima, ou voltares a ser grosseira com ela, serei eu que te dou uns açoites. Fixa bem o que te estou a dizer. Agora vais descer e pedir-lhe desculpa.

- Como? - gritou Camille como se não pudesse crer no que acabava de ouvir.

- A Hannah trabalha para mim há mais de vinte anos, é honesta e fiel, e não vou permitir que uma menina mimada de Atlanta a maltrate. Acho melhor que vás pedir-lhe desculpa imediatamente! Caso contrário, levas uns valentes açoites. - Jeremiah falava a sério, mas estava já mais calmo, ao contrário da esposa, cujos olhos ardiam de fúria.

- Como te atreves, Jeremiah Thurston? Como podes atrever-te? Jamais pedirei desculpa a essa ordinária...

Jeremiah não conseguiu agüentar mais. Levantou a mão e deu-lhe uma bofetada. Camille ficou sem respiração e foi a cambalear até à lareira, a cuja consola se apoiou para não perder o equilíbrio.

- Se o meu pai estivesse aqui, açoitar-te-ia até te arrancar a pele toda. - Falava em voz baixa e num tom rancoroso, e Jeremiah sentiu que as coisas tinham ido longe de mais.

- Chega, Camille! Foste grosseira com uma fiel servidora, e não tolerarei que continues a fazê-lo. Basta de ameaças e de falar de açoites! Comporta-te como deve ser daqui para a frente, e isto não volta a acontecer.

- Comportar-me como deve ser? Agora não me comporto bem! Maldito sejas, Jeremiah Thurston! Maldito, maldito, maldito!

Camille saiu intempestivamente do quarto e fechou a porta com violência. Só voltou a dirigir-lhe a palavra quando regressaram a São Francisco. Durante a viagem, manteve um distanciamento e uma amabilidade glacial; porém, ao transpor de novo a porta da imponente mansão de Nob Hill, recuperou o entusiasmo e, esquecendo tudo num instante, pôs os braços à volta do pescoço do marido. Sentia-se tão feliz por ter regressado que já se esquecera da zanga que haviam tido. Jeremiah riu-se, pegou-lhe ao colo, levou-a para o quarto e fizeram amor.

- Bem, sobreviveste ao mês em Napa, meu amor. - Jeremiah sentia-se ainda decepcionado com o desprezo que ela votava ao vale que ele tanto amava. - Agora só nos falta ter o nosso primeiro filho.

A dor da perda do filho de Mary Ellen ainda não o abandonara, o que o fazia desejar outro, desta vez de Camille. Dava graças a Deus pela juventude e a saúde que ela exibia, e albergava a esperança de que nunca teria de passar por uma prova tão terrível como a de Mary Ellen. Há quase dois meses que estavam casados e ansiava vê-la grávida.

- A minha mãe diz que, às vezes, requer certo tempo, Jeremiah. Não penses tanto no assunto.

Todavia, ele mostrava-se cada vez mais impaciente E falar no tema deixava-a pouco à vontade. Camille ainda não queria ter filhos. Tinha dezoito anos, e possuíam uma magnífica mansão onde desejava dar muitas festas. Causava-lhe verdadeiro horror a perspectiva de engordar, sentir-se mal e ficar em casa para acabar por morrer ao dar à luz.

E durante os meses de primavera, enquanto Camille fazia a sua entrada na alta sociedade de São Francisco, Jeremiah não conseguiu o seu desejo. Mas ela sentia-se mais feliz do que nunca. Conseguira o status que tanto almejara e não paravam de dar festas, bailes e jantares, e de ir à ópera e a concertos. Em maio, ofereceu um maravilhoso piquenique nos vastos jardins, e não tardou em ser conhecida como a mais deslumbrante anfitriã da cidade. Os bailes que dava no salão rivalizavam com os de Versalhes. Camille vivia num constante êxtase. Jeremiah, nem por isso. Ia vezes sem conta a Napa e, amiúde, chegava completamente esgotado. Ela censurava-o quando adormecia num dos seus suntuosos jantares, e insistia para que saíssem todas as noites quando Jeremiah se encontrava na cidade. Caso o marido não a acompanhasse, saía sem ele. Aqueles meses foram um verdadeiro torvelinho social. Não foi, pois, de estranhar que Camille se pusesse quase de luto quando ele lhe recordou que iriam mudar-se para Napa no dia um de Junho.

- Mas eu queria dar um baile de verão, Jeremiah contrapôs, num tom lastimoso. Porque não vamos em julho.

- Não podemos. Tenho de passar algum tempo nas minas, Camille Caso contrário, em breve não teremos com que pagar todas as tuas festas.

Naturalmente, Jeremiah não falava a sério. Ainda era o homem mais rico da Califórnia e podiam viver sem a menor preocupação econômica. Todavia, desejava passar mais tempo nas minas e, no Verão, gostava de estar junto dos seus vinhedos. Além disso, já vivera tempo suficiente na cidade. Já lá se encontrava desde fevereiro. Jeremiah estava disposto a mudar-se de novo para o seu vale quanto antes. Fora o que dissera a Hannah, na semana anterior, quando passara a noite em Napa.

- Já há bebê a caminho, Jeremiah? - perguntara-lhe Hannah. Acedera a chamar-lhe Mister Thurston ao pé de Camille, mas, quando estivessem a sós, continuaria a chamar-lhe Jeremiah e nunca abdicaria disso.

- Ainda não. Também ele se sentia desiludido a esse respeito e esperava que, quando conseguisse tirar Camille da cidade e das suas festas constantes, ela engravidasse. Devia voltar a provar a vida do campo, disse para si mesmo, mas Hannah franziu os lábios em gesto de desaprovação.

- Bem, pelo menos sabemos que não é por tua culpa. - Então, franziu o sobrolho. - Talvez ela não possa ter filhos.

- Duvido. Só se passaram cinco meses e meio, Hannah. Dá-lhe tempo. - Jeremiah esboçou um largo sorriso.  - Quando voltar a respirar os bons ares de Santa Helena, engravidará num mês. - Ao lembrar-se de Mary Ellen, ficou de semblante carregado. - Como é que ela está? - Não voltara a vê-la desde a noite em que o bebê morrera. De qualquer forma, não desejava fazê-lo. Não era muito conveniente tendo em conta a intuição de Camille.

- Está bem. Levou um tempinho a recompor-se, mas creio que já se pode dizer que está ótima de saúde. - Hannah resolveu contar-lhe também o resto. Ao fim e ao cabo, ele tinha o direito de saber tendo em conta a forma honesta como se comportara com ela. Ninguém o podia acusar do contrário. No banco, Jacob Stone falara a toda a gente da generosidade de Jeremiah. - Ela anda com um homem que trabalha na estância termal. Tem bom aspecto e é trabalhador. - Hannah encolheu os ombros. - Bem, não me parece que esteja louca por ele.

- Espero que seja bom homem disse Jeremiah, calmamente. - e mudou de assunto. Não tardariam a transferir-se para Napa, e Hannah iria ter muito que fazer em casa até essa altura.

No entanto, quando Camille chegou a Santa Helena, com a sua volumosa bagagem, só encontrou defeitos naquilo que Hannah fizera. E assim continuou, até que, um dia, a velhota, frustrada perante o constante desapreço da jovem esposa de Jeremiah, virou-se para ela e deu-lhe a entender que, em vez de casar com ela, Jeremiah deveria ter casado com a mulher com quem costumava encontrar-se em Calistoga antes de a conhecer, o que enfureceu ainda mais Camille. A partir daí, tentou por todos os meios descobrir quem era essa mulher, mas nem Jeremiah nem Hannah que, cheia de remorsos por causa da sua indiscrição, não voltara a soltar a língua lhe diriam o que quer que fosse a esse respeito e tão-pouco lhe confirmariam se o que Hannah lhe dissera era verdade E quanto mais rebuscava, menos era o que descobria. Até que um dia, por brincadeira, foi até à estância termal de Calistoga ver umas amigas que aí se encontravam a fazer banhos de lama. Haviam combinado encontrar-se no hotel e, enquanto as esperava, reparou num homem com o uniforme branco da estância que passeava com uma atraente ruiva vestida de verde. Havia algo nela que reteve a atenção de Camille. Segurava uma sombrinha indolentemente apoiada sobre o ombro. Conversava, com ar divertido, com o seu companheiro. De repente, algo ao longe pareceu chamar-lhe a atenção e, instintivamente, o olhar deteve-se em Camille, que a observava com especial interesse. Os olhos das duas mulheres encontraram-se, e Mary Ellen pressentiu de imediato quem era aquela jovem forasteira. Era tal e qual como lha tinham descrito Hannah e outros amigos que a haviam visto. Camille teve o mesmo pressentimento, como se lhe tivessem segredado a identidade da mulher ou tivessem posto um letreiro na cabeça de Mary Ellen. Fez menção de se levantar mas voltou a sentar-se, as faces rubras e a respiração suspensa, enquanto Mary Ellen, de braço dado com o amigo, acelerou o passo e desapareceu Durante o resto do dia, foi uma verdadeira obsessão para Camille. Era a mulher mais bonita que vira no vale de Napa, e só podia ser o seu instinto dizia-lhe a pessoa a quem Hannah se referira inadvertidamente E com aquelas viagens de Jeremiah, de um lado para o outro, durante o Inverno e a primavera, quem poderia assegurar-lhe de que as suas relações não tinham continuado? Não pensou noutra coisa durante a viagem de regresso a casa E nessa noite, quando Jeremiah voltou do escritório da mina, atirou-se a ele com uma fúria que o surpreendeu e alarmou.

- Não me enganaste nem por um minuto, Jeremiah Thurston! - Aquelas palavras apanharam-no de surpresa e, ao princípio, ainda pensou que ela estivesse na brincadeira, mas viu logo que não. - Todas aquelas viagens que fizeste para aqui durante o inverno sei muito bem ao que vinhas. És tal e qual o meu pai com a amante de Nova Orleães. - Jeremiah ficou quase sem alento. Não olhara para outra mulher desde que se casara com Camille, e foi isso mesmo que tentou explicar-lhe. - Não acredito em ti, Jeremiah. E a ruiva de Calistoga? - Oh, meu Deus, Mary Ellen Jeremiah ficou lívido. Quem lhe teria contado? Teriam também falado do bebê? Ao ver a expressão de pavor estampada no rosto do marido, Camille sentou-se e olhou-o com um ar de gélida satisfação. - Vejo, pela tua cara, que sabes a quem me refiro.

- Camille por favor, não houve mais nenhuma mulher desde que nos casamos, meu amor. Absolutamente ninguém. Nunca te faria tal coisa. Tenho demasiado respeito por ti e pelo nosso casamento

- Quem é ela.

Jeremiah poderia ter negado a verdade, mas não se atreveu a fazê-lo. Camille nunca mais teria acreditado nele.

- Uma conhecida minha. - O rosto refletia a franqueza com que falava.

- Ainda a vês.

A pergunta enfureceu-o, o que o seu semblante também deixou transparecer. Não estava habituado a ser interrogado por uma rapariga de dezoito anos.

- Não, não a vejo, e considero muito impertinente a tua pergunta. Falar desses assuntos é impróprio de uma dama, Camille. - Resolveu rematar o assunto com um golpe de mestre. - O teu pai não aprovaria a tua conduta.

Camille corou ao pensar na expressão de horror que o pai faria quando tivesse conhecimento de que ela sabia que o marido tinha uma amante e, pior ainda, fizera perguntas sobre ela.

- Tenho o direito de saber. - O rosto de Camille ruborescera por completo. Fora demasiado longe, e tinha consciência disso.

- Nem todos os homens estariam de acordo contigo a esse respeito, mas eu, por acaso, até estou. E permite-me que te assegure, antes de acabar com este assunto desagradável, de que nada tens a temer de mim, Camille Sou-te completamente fiel. Tenho sido desde o dia em que casamos, e quero assim continuar até ao dia da minha morte. - Estas palavras bastam-te para dissipar as tuas preocupações, Camille.

Jeremiah falou-lhe como um pai austero e desgostoso, e Camille ficou embaraçada. Só voltou a tocar no assunto à noite, quando já estavam deitados

- É muito bonita, Jeremiah

- Quem? - Jeremiah estava já meio adormecido.

- Essa mulher a ruiva de Calistoga

Jeremiah sentou-se bruscamente na cama e olhou-a com indignação.

- Não quero tornar a falar no assunto

- Desculpa

A voz de Camille voltou a tomar um tom suave. Jeremiah deitou-se de novo e fechou os olhos, enquanto ela lhe punha uma das suas mãozinhas no ombro, gesto que atiçou o desejo que o invadia. Para ele, as horas que passara na cama com Camille durante os seis meses que levavam de matrimônio haviam sido um contínuo êxtase, e sabia que ela também se sentia feliz nesse aspecto. A única coisa que o decepcionava era o fato de Camille continuar sem engravidar Mas, certo dia de finais de agosto, Hannah lançou nova luz sobre o problema, ao pequeno-almoço, antes de Jeremiah sair para as minas e enquanto Camille dormia no piso de cima.

- Tenho de falar contigo, Jeremiah disse a velhota com voz de mãe-galinha irritada. - Ele levantou os olhos do prato de ovos com salsichas e olhou-a com ar surpreendido.

- Passa-se alguma coisa.

Depende da forma como encares as coisas. - Hannah olhou de relance para o piso de cima. - Já se levantou.

- Não. - Jeremiah abanou a cabeça e franziu o sobrolho. Teria havido outra discussão entre as duas mulheres. Não morriam de amores uma pela outra e ele não iria promover qualquer reconciliação entre elas. Seria uma empresa condenada ao fracasso. - O que se passa, Hannah?

A velhota trancou a porta da cozinha por dentro algo que nunca fizera, aproximou-se de Jeremiah, meteu a mão no bolso do avental e tirou uma argola de ouro parecida às usadas para suster as cortinas nos varões, mas mais polida e excepcionalmente bem feita.

- Encontrei isto, Jeremiah.

- O que é isso? - O mistério não pareceu despertar-lhe qualquer interesse, e não estava para brincadeiras àquela hora da manhã.

- Não sabes o que é isto? - Parecia surpreendida. Nunca vira um ornato igual àquele, mas já vira versões mais simples. Mas Jeremiah abanou a cabeça, algo desconcertado e aborrecido, e ela sentou-se diante dele. - É um anel.

- Estou a ver.

- Sim... um anel... - De repente, ficou sem saber como explicar-lhe, mas sabia que devia fazê-lo. - As mulheres usam estes artefatos para... para... - Hannah corou, mas prosseguiu, para bem dele: - ...para não terem filhos, Jeremiah...

Jeremiah tardou alguns instantes a assimilar o sentido daquela revelação, e o seu impacto fez-lhe crer que toda a casa desabara sobre o seu peito.

A voz tremia-lhe quando pegou no maldito objeto. Talvez a velhota tivesse inventado tudo para prejudicar Camille. Era impróprio dela, mas tudo era possível entre duas mulheres que se detestavam, e Camille já a quisera pôr na rua mais de uma vez.

- Onde é que o arranjaste? - Jeremiah levantou-se, como se o nervosismo não lhe permitisse continuar sentado por mais tempo.

- Encontrei-o na casa de banho dela.

- E como é que sabes que é aquilo que dizes?

- Já te disse... não é a primeira vez que os vejo... - E, corando de novo, acrescentou: - Dizem que são extremamente eficazes, Jeremiah. Desde que sejam aplicados com cuidado. O anel estava embrulhado num lenço; apanhei-o para o lavar, e... caiu ao chão... - De repente, receou que ele estivesse furioso, mas conhecia-o bem e sabia que isso não aconteceria. - Desculpa, mas achei que tinhas o direito de saber.

Jeremiah fitou-a, incapaz até de a tranqüilizar, tal era a fúria que o assaltava contra Camille, para além da dor e da decepção que sentia.

- Não quero que fales em nada disto a Camille. Certo? - A voz ainda era áspera, e Hannah fez um gesto afirmativo com a cabeça.

Então, Jeremiah avançou em grandes passadas até à porta, abriu-a e foi selar Big Joe. Pouco depois, encontrava-se a caminho das minas, a galope, com o maldito objeto no bolso.

 

A revelação que Hannah lhe fizera naquela manhã deixou Jeremiah transtornado durante todo o dia, e nem por um instante conseguiu concentrar-se no trabalho. Finalmente, a meio da tarde, a mágoa era tanta que resolveu procurar o médico de Calistoga que assistira Mary Ellen no parto. Mostrou-lhe o anel e pediu que lhe explicasse para que servia. Quando o velhote o fez, Jeremiah quase estremeceu.

- Eu próprio lhe dei um. Ela não lhe disse? - O médico pareceu surpreendido, e Jeremiah, desconcertado.

- À minha esposa?

Agora foi a vez de o médico ficar com um ar desconcertado. Não acreditava que Jeremiah e Mary Ellen estivessem casados, mas quem podia adivinhar os segredos de um homem rico como ele? A gente da sua classe não tinha de prestar contas a ninguém.

- Não sabia que se casara com ela... - disse o médico com voz arrastada.

Jeremiah percebeu então o mal-entendido.

- Não... Encontrei-o na casa de banho da minha esposa.

- Está grávida?

- Não.

A pouco e pouco, o velho médico rural foi percebendo o que se passava.

- Compreendo... e o senhor tem estado à espera que ela engravide.

Jeremiah fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Bem, é pouco provável que consiga enquanto usar isto. Estes dispositivos são quase infalíveis. - Encolheu os ombros e prosseguiu: - Nalguns casos, o seu uso está plenamente justificado, como no de Mary Ellen. Não tinha outro remédio. Era preferível dar um tiro na cabeça que tentar ter outro filho, disse-lhe eu tantas vezes.

Jeremiah ficou pensativo. Aquele problema já não era seu, mas não disse ao velhote. Só estava interessado em Camille.

- A sua esposa não lhe disse que andava a usar isto? - Perguntou o médico, intrigado.

Instalou-se um longo silêncio enquanto o médico ordenava as idéias e Jeremiah peneirava os pensamentos.

- Não foi uma atitude muito bonita da parte dela - acrescentou o médico.

Jeremiah abanou a cabeça e levantou-se.

- Pois não.

Jeremiah deu um aperto de mãos ao velhote e partiu para Santa Helena. Quando chegou, encontrou Camille sentada no quarto, de camisa de noite e a abanicar-se. E, sem qualquer rodeio, Jeremiah atirou-lhe o anel para o colo. Camille olhou para ele, sem saber muito bem o que era, e na esperança de se tratar de uma nova jóia. Mas quando fixou a sua atenção, encolheu-se como se estivesse com medo de uma serpente. Estava lívida. Há dias que o procurava e receava tê-lo perdido. Era um dos anéis que trouxera de Atlanta. Fora o médico da prima que lho arranjara.

- Onde é que o encontraste?

Jeremiah olhou para Camille e, pela primeira vez, não se vislumbrou qualquer ternura no seu olhar.

- Vamos lá pôr tudo em pratos limpos. Onde é que o arranjaste, Camille? E por que razão é que eu não sabia nada dele?

Era óbvio que Jeremiah sabia o que era e que lhe pertencia. De nada lhe serviria negá-lo, e ela bem o sabia.

- Desculpa... eu... - Com os olhos marejados de lágrimas, Camille desviou a cara para o lado.

Jeremiah quis manter o ar severo, mas não conseguiu. Ajoelhou-se ao lado dela e obrigou-a a olhar para ele.

- Por que razão fizeste uma coisa destas? Cheguei a pensar que havia algum impedimento físico... que não nos permitia...

Camille abanou a cabeça, os olhos inundados de lágrimas, e escondeu a cara entre as mãos.

- ... Ainda não quero ter filhos... Não quero ficar gorda e... e a Lucy Anne diz que dói muito... - O que aconteceu com Mary Ellen veio de repente à memória de Jeremiah, mas tentou afastar esse pensamento da cabeça. - Não posso. Não posso...

Jeremiah sentia que se encontrava perante uma menina que também era mulher e sua esposa. E estava a envelhecer. Não podia esperar cinco ou dez anos, e foi isso mesmo que lhe disse numa voz terna. Mas também a repreendeu por ter-se protegido dele em segredo.

- Não pude evitar, Jeremiah... estava assustada... e sabia que ficarias furioso...

- E fiquei. Mas também fiquei magoado. Quero que sejas sempre franca comigo.

- Tentarei. - Mas não lhe disse rotundamente que seria.

- Bem, tens mais algum destes dispositivos?

Camille começou por abanar a cabeça, mas, quase de imediato, com ar envergonhado, assentiu com a cabeça.

- Onde?

Camille conduziu Jeremiah até à casa de banho, e aí mostrou-lhe uma caixa cuidadosamente escondida, donde ele tirou os dois anéis que lá se encontravam.

- Que vais fazer com eles, Jeremiah? - Camille estava em pânico, mas ele mostrou-se inflexível. Apertou os três anéis nas suas mãos enormes até inutilizá-los e, depois, antes de os atirar para o cesto dos papéis, partiu-os em pedaços, enquanto Camille irrompia em soluços. - Não podes fazer isso!... Não podes!... Não podes! - E começou a bater-lhe no peito com os punhos.

Jeremiah estreitou-a entre os seus braços; depois, como se de um bebê se tratasse, levou-a para a cama, deitou-a e foi dar um passeio pelo jardim, deixando-a entregue aos seus próprios pensamentos. Ainda se sentia atraiçoado por aquilo que ela lhe fizera. Nessa noite, deitaram-se sem trocar qualquer palavra. Jeremiah ainda estava magoado com a descoberta do pérfido anel, e Camille, depois de apagar a luz, manteve-se do seu lado da cama. Era algo insólito, pois era ela que quase sempre se aproximava dele. Até então, o anel dera-lhe plena liberdade para se entregar a Jeremiah na cama, mas, naquele momento, extraordinariamente assustada, só pensava em mantê-lo à distância. Porém, naquela noite, foi Jeremiah quem tomou a iniciativa estendendo os braços para a esposa, enquanto ela, a tremer, tentava rechaçá-lo.

- Não... não... Jeremiah... não...

No entanto, dessa vez, ele mostrou-se implacável, em parte enfurecido por aquilo que ela lhe fizera, e em parte pelo direito que tinha sobre ela. Abriu-lhe as pernas à força e possuiu-a. Nessa noite, Camille não gemeu de prazer. Só chorou. Quando parou de chorar, Jeremiah possuiu-a de novo E voltou a possuí-la na manhã seguinte.

 

Em setembro, Camille e Jeremiah voltaram para a cidade, tal como ele prometera, e ela começou a sua habitual ronda de festas. Mas, uma manhã, na segunda semana do mesmo mês, Jeremiah encontrou-a sentada no toucador. Tinha a escova de cabelo na mão e exibia um ar de profundo desalento.

- Passa-se alguma coisa?

- Não...

O seu desânimo, porém, era evidente. Ao fim de uma ou duas semanas, Jeremiah começou a suspeitar do motivo do seu descoroçoamento. E ficou mais do que eufórico quando Camille, finalmente, lhe disse que achava que estava grávida. Desejara tanto ouvir aquelas palavras dos lábios da esposa! Nessa tarde, quando chegou à Mansão Thurston, Jeremiah trazia um bonito estojo de couro com uma jóia dentro. Mas mesmo isso não conseguiu despertar o mínimo interesse nos olhos de Camille. Sentia-se extremamente deprimida. E, durante os dois meses seguintes, foi a pouquíssimas festas e não deu nenhuma. Não fora assim que planejara passar a temporada em São Francisco.

Em outubro, quando Amélia chegou à cidade para visitar a filha, Jeremiah apressou-se a comunicar-lhe a notícia. Ela ficou encantada e disse que a filha esperava o terceiro filho para a primavera seguinte, coisa que Camille, segundo disse a Jeremiah mais tarde, achava repugnante. A rapariga teria três filhos em três anos, algo que estava muito longe dos cálculos de Camille. Chorava os sagrados anéis que ele destruíra. Se a bruxa velha não tivesse dado com a língua nos dentes, não estaria no estado em que se encontrava, disse a Jeremiah certa vez.

- É assim que vês as coisas?

Jeremiah sentia-se muito feliz perante a perspectiva de ter um filho, mas entristecia-o ver que Camille não comungava da mesma felicidade. Esperava que quando ela visse o bebê encarasse as coisas de outra forma. Era fácil compreender que, no seu estado, as idéias não pudessem ser demasiado otimistas.

Era inegável que Camille não estava a ter uma gravidez descansada. Passava a vida a vomitar e com enjôos e, inclusive, desmaiara em várias ocasiões em que saíra com o marido. Perante tais circunstâncias, Jeremiah não quis voltar a levá-la à ópera, apesar dos seus protestos. Além disso, nenhum dos vestidos lhe servia, e detestava fazer os ajustamentos necessários. Invejava as mulheres que diziam que a barriga só se notava ao sétimo ou oitavo mês de gravidez. Camille, devido à sua baixa estatura, não tinha tal sorte. Quando, por alturas do Natal, Jeremiah a obsequiou com uma pequena festa de aniversário era já evidente que estava grávida. Ofereceu-lhe uma capa de peles de zibelina para esconder a barriga e um bonito relógio com diamantes em toda a volta.

- E quando tudo isto passar, minha querida, vamos a Nova Iorque e compramos montes de roupas bonitas. Depois, fazemos uma visita a Atlanta.

Camille não via a hora de essa altura chegar. O estado de gravidez era ainda pior do que aquilo que imaginara. Não suportava a gordura, os enjôos eram um verdadeiro martírio, e odiava Jeremiah por ter sido ele que a pusera naquela situação. Em fevereiro, quando ele lhe anunciou que a levaria para Napa a fim de passar aí o resto da gravidez, ficou ainda mais furiosa.

- Mas o parto está previsto só para maio! - protestou com os olhos inundados de lágrimas. - E quero ter o bebê em São Francisco.

Jeremiah abanou ligeiramente a cabeça. Não era isso que planejara para ela. Queria que a esposa levasse uma vida tranqüila no campo, que se esquecesse, durante algum tempo, dos almoços, dos chás e dos bailes, que não se cansasse e que deixasse de se queixar do seu mal-estar e de desmaiar em público. Certamente que os pais de Camille concordariam. Chegara um momento da vida dela em que o importante era descansar, respirar ar puro e preocupar-se o menos possível. Mas Camille achava que Jeremiah fizera aqueles planos só para a atormentar.

- Odeio-te! - gritou-lhe ela, e bateu com a porta da sala de estar com toda a força.

Camille mostrou-se irritadiça e rebelde desde o próprio dia em que engravidara, o que fez com que Jeremiah se tivesse interrogado se as coisas teriam sido diferentes entre eles se ele lhe houvesse permitido continuar a usar os anéis. Mas ele queria ter filhos, e não era assim tão jovem que se permitisse esperar mais tempo. Estava certo de que fizera o que devia, mas não podia dizer que gozava da simpatia da sua mulher quando a levou para Santa Helena, a meio do período de chuvas invernais. As colinas já estavam a ficar verdejantes, mas era deprimente para Camille ter de permanecer fechada em casa durante as tardes chuvosas, sem poder falar com mais ninguém a não ser Hannah, que continuava a odiar.

Num esforço para a distrair o mais que podia, Jeremiah vinha mais cedo das minas, contava-lhe coisas do seu trabalho e dos seus homens, e comprava-lhe bugigangas para a alegrar um pouco. Mas Camille sentia-se desanimada, triste e aborrecida, e de pouco lhe servia o consolo do médico de Napa que a achava bem de saúde. Jeremiah escolhera-o para assistir ao parto porque lhe fora muito recomendado, mas Camille dizia que o achava pouco simpático e cheirava a álcool. Por volta do oitavo mês de gravidez, Camille quase não parava de chorar e de insistir para que Jeremiah a levasse para Atlanta.

- Logo que nasça o bebê, meu amor. Prometo! Ficas a descansar aqui durante o verão, e em setembro iremos para Nova Iorque e Atlanta.

- Setembro! - exclamou Camille, furibunda. - Nunca me disseste que teria de ficar aqui todo o verão. - Por entre soluços, olhou-o como se o quisesse matar.

- Mas já o ano passado o passamos aqui, Camille. O verão em São Francisco é horrível, e precisarás de descanso depois de o bebê nascer.

- Não ficarei aqui. Já cá passei o inverno. Detesto isto tudo. - Atirou um vaso ao chão, que se partiu em cacos, e saiu. - Hannah apareceu de imediato para o ajudar a apanhar os cacos.

- Acho que isso de ter um filho não é muito do seu agrado - observou secamente a velhota

Camille mostrara-se insuportável desde o dia em que chegaram, e em abril já quase tinha dado com Jeremiah e Hannah em doidos. O tempo melhorara e estava uma primavera maravilhosa, mas Camille não parecia dar-se conta de nada. Não fazia mais do que vaguear intempestivamente pela casa a maldizer o seu estado. Nem sequer quando viu o quarto do bebê pronto pareceu mostrar o menor prazer. Bordou umas quantas camisinhas e comprou o tecido para as cortinas, mas Hannah fez o resto, tricotando e cosendo sem descanso, e, inclusive, preparando um bonito berço para o bebê. Todas as noites, Jeremiah sentia um prazer especial em entrar no encantador quarto e tocar nas botinhas e nas camisinhas, comprovando, maravilhado, que não faltava nada. Mas, à medida que se aproximava o dia previsto para o nascimento, pensava cada vez mais no que acontecera a Mary Ellen. Causava-lhe um terror imenso a possibilidade de este filho também nascer morto, e Camille, por sua vez, torturava-o fazendo tudo o que ele lhe pedia para não fazer, como caminhar sozinha pelo riacho ou andar num velho balanço que estava preso a um ramo de uma árvore, atrás da casa. Três semanas antes de acabar o tempo, Camille deixou Hannah horrorizada ao selar uma mula que Jeremiah retirara tempos atrás das minas e percorrer os vinhedos circundantes montada nela, porque estava aborrecida e cansada de andar a pé. Hannah ficou tão transtornada que contou a Jeremiah mal este voltou para casa. Ele lançou-se pela escada acima para repreender Camille, mas concluiu de imediato que não valia a pena. Jazia em cima da cama com uma estranha palidez no rosto. Jeremiah aproximou-se e inclinou-se para a beijar, mas ela encolheu-se e cerrou os dentes.

- Estás bem, meu amor? - Jeremiah ficou, subitamente, preocupado. Camille estava com mau aspecto e a testa encontrava-se coberta por uma fina película de suor.

- Estou ótima. - Mas não parecia.

Camille insistiu em jantar à mesa, mas, sob os olhares de Hannah e de Jeremiah, mal comeu. Jeremiah aconselhou-a a subir para descansar. Desta vez não se opôs aos desejos do esposo, parecendo agradar-lhe a idéia. Mas, de repente, quando se encontrava a meio das escadas, parou e deixou-se cair sobre os joelhos, ao mesmo tempo que soltava um leve gemido. Num ápice, Jeremiah pôs-se de joelhos ao lado dela e tomou-a delicadamente nos braços. Hannah correu atrás dele.

- Ela está em trabalho de parto, Jeremiah. Apercebi-me esta tarde. Mas, quando lhe perguntei se sentia dores, disse-me que não. Foi de andar naquela mula velha.

- Oh, cala-te... - disse Camille bruscamente para Hannah, mas não com o seu habitual estado de espírito, e Jeremiah suspeitou que Hannah tivesse razão. Deitou Camille em cima da cama e ficou a observá-la. Estava com ar cadavérico e apertava as mãos uma na outra. Tinha uma expressão estranha, nunca vista antes, como se tivesse dores e não quisesse admitir. Então, como que querendo provar aos dois que não fingia, tentou descer da cama, mas logo que os pés tocaram o solo, os joelhos dobraram-se e soltou um grito de dor, ao mesmo tempo que estendia desesperadamente os braços tentando agarrar-se a Jeremiah, que lhe pegou ao colo e a deitou novamente na cama. Ato contínuo, voltou-se para Hannah.

- Vai chamar o Danny. Ele disse-me que iria buscar o médico a Napa.

Jeremiah deu-se conta de que escolhera um médico que vivia demasiado longe. Por mais competente que fosse, de pouco lhe serviria se não chegasse a tempo. De qualquer forma, nunca lhe passara pela cabeça que precisaria dele com tanta urgência. Hannah saiu apressadamente, e voltou ao cabo de meia hora com a notícia de que Danny já saíra para Napa. Aquilo significava que o médico demoraria cinco a seis horas a chegar. Entretanto, a velhota foi até à cozinha arranjar panos limpos, pôr água a ferver e fazer café para si e Jeremiah. Não sentia qualquer pena de Camille; era jovem e, por mais doloroso que fosse o seu estado, sobreviveria. Havia um clima de excitação no ar. O filho por que ele ansiava há tanto tempo estava prestes a nascer. Jeremiah olhou para Camille com um sorriso terno nos lábios, e ela agarrou-se-lhe ao braço.

- Não me deixes, Jeremiah... - Arquejava, e o rosto franzia-se ao ritmo das contrações. - Não me deixes com a Hannah... Ela odeia-me... - E desatou a chorar. Era evidente que tinha medo. A cena era diferente da de Mary Ellen no seu leito de dor. Ela passara três vezes por aquela prova e, além disso, era bastante mais velha do que a sua jovem esposa. Naquele instante, enquanto se contorcia com dores a cada contração, Camille parecia mais menina que nunca. - Oh, Pára-me as dores!... Jeremiah!... Não consigo!...

Ele sentia muita pena dela, mas não podia fazer nada. Pôs-lhe panos molhados na cabeça, mas Camille atirou com eles e agarrou-se ao braço dele. Há quatro horas que Danny partira para Napa, e Jeremiah rogava a Deus que o médico chegasse depressa. Recordou então com horror que o parto de Mary Ellen durara três dias. Mas aquilo não podia acontecer a Camille. Ele não o permitiria. Não parava de olhar para o relógio. Camille continuava com uma mão agarrada ao seu braço, enquanto mantinha a outra aferrada à cabeceira da cama. Gritava de cada vez que as dores voltavam. Finalmente, Hannah apareceu com mais café para ele, mas Camille nem pareceu dar pela sua presença.

- Queres que fique com ela? - sussurrou a velhota. - Não devias estar aqui. - Lançou um olhar reprovador a Jeremiah, mas ele prometera à esposa que não sairia do seu lado até chegar o médico. Além disso, desejava permanecer ali. Era um alívio saber o que se estava a passar. Daria em maluco se tivesse que ficar à espera à porta do quarto. Todavia, quando Danny voltou, três horas depois, Jeremiah estava tenso e exausto.

- O médico está em São Francisco. - O rapaz mostrava um ar desgostoso. Entretanto, Camille, agarrada às mãos de Hannah, gritava que não podia suportar mais as dores. - A esposa do doutor disse que o bebê ainda não completou o tempo.

- Eu sei - replicou Jeremiah. - E que diabo está ele a fazer em São Francisco?

O rapaz encolheu os ombros.

- A minha mãe mandou-me à procura do médico de Santa Helena, mas encontra-se em Napa a assistir a um parto.

- Por amor de Deus! Não há ninguém que possa vir? - Lembrou-se então do médico de Calistoga e mandou Danny buscá-lo, o que significava outra hora de espera. De repente, ao ouvir os gritos de Camille, precipitou-se pelas escadas acima. Era um horrendo som gutural de dor, como o lamento de um animal ferido. Abriu a porta de rompante e olhou para Hannah com olhos angustiados.

- O médico? - sussurrou a velhota com olhar preocupado.

- Não vem. Mandei o miúdo procurar o de Calistoga. Deus queira que esteja em casa.

Hannah assentiu com a cabeça, enquanto Camille começava a gritar de novo, rasgando a camisa de noite e revolvendo-se sobre a cama, no ar quente do quarto. Debaixo daquela tensão, estavam os três banhados em suor.

- Jeremiah, acho que há qualquer coisa que não está a correr bem. Com as dores que está a sentir, o bebê já devia estar a sair. Já espreitei, mas não vi nada.

Jeremiah franziu os lábios e olhou para a esposa, que se contorcia em cima da cama. Ninguém podia ajudá-la, pelo menos, de momento. Não lhe restava, pois, outro remédio senão agir por sua conta e risco. Entre as contrações seguintes, tentou abrir-lhe as pernas, mas Camille rechaçou-o com todas as suas forças. Todavia, ela esqueceu-se da presença de Jeremiah logo que começou a contração seguinte, o que permitiu a este dar uma boa olhadela, na esperança de vislumbrar a cabeça do bebê. Mas o que viu deixou-o sem alento: onde deveria estar a cabeça a pressionar, encontrava-se uma mãozinha. O bebê estava mal colocado, como o de Mary Ellen, e poderia já estar morto, ou pouco faltaria para isso, se Jeremiah não fizesse algo. Lembrou-se do que vira fazer ao médico de Calistoga, e pediu a Hannah que seguisse as suas instruções à risca. A velhota susteve firmemente Camille contra a cama enquanto a rapariga gritava como se estivesse a morrer. Jeremiah sabia que ia pôr em perigo a vida da esposa, mas via-se obrigado a tentar salvar o seu filho. Lentamente, enquanto empurrava o bebê para o interior e procurava a cabeça, pôs o corpinho na posição correta. Finalmente, sentiu a cabeça avançar para si. A cama estava banhada de sangue e Camille quase não tinha forças para gritar. Mas fê-lo, e o bebê saiu lentamente de entre as suas pernas para as mãos do pai, desatando imediatamente a chorar. Vinha com o cordão umbilical enrolado, o que não permitiu que Jeremiah visse de imediato se tinha um filho ou uma filha, mas não tardou a ver com clareza, por entre as lágrimas que lhe inundavam os olhos, o sexo do bebê.

- É uma rapariga! - gritou para Camille, ao mesmo tempo que ela levantava debilmente a cabeça e rompia a chorar, mais por causa do horror do que acabara de passar do que por ternura pela filha. Não parou de gemer enquanto Hannah a tentava limpar, e recusou-se a pegar no bebê. E quando, pouco depois, chegou o médico, este disse a Jeremiah que fizera um excelente trabalho e deu a Camille umas gotas que a puseram a dormir. Entretanto, Hannah começara a cantarolar uma canção de embalar para a criança.

- Suponho que já se desfez dos anéis disse o médico a Jeremiah - com um sorriso irônico. O orgulhoso pai desatou a rir enquanto agradecia ao médico e lhe punha uma moeda de ouro na mão. Pensara dá-la ao médico de Napa, mas, ao pensar no parto de Mary Ellen e naquele, optou por dá-la àquele médico. Fora graças à experiência adquirida quando do parto de Mary Ellen que Jeremiah conseguira pôr o bebê na posição correta. O médico referiu que Jeremiah salvara a vida da filha, embora o tivesse feito à custa do sofrimento da mãe. Porém, não podia ter feito outra coisa atendendo às circunstâncias. Foi isso mesmo que tentou explicar à esposa, enquanto a tranqüilizava, quando ela acordou. Ainda estava meio histérica por causa do que se passara, e continuava a não querer pegar na criança. Jeremiah enfiou-lhe um anel com uma enorme esmeralda no dedo, anel que guardara para aquela ocasião. E mostrou-lhe o colar, os brincos e o broche que condiziam com o anel, mas ela não deu a menor importância às jóias. A única coisa que desejava era que Jeremiah lhe prometesse que nunca mais teria de voltar a passar por aquele sofrimento. A soluçar, disse-lhe que tivera a pior experiência da sua vida, e que só passara por ela porque ele a violara. Jeremiah ficou triste perante aquela reação da parte dela, mas também sabia que dentro de dias o estado de espírito da esposa seria melhor. Hannah não estava tão segura disso, era a primeira vez que via uma mãe recusar-se a pegar na filha. Esta tinha já quatro dias quando Camille, finalmente, lhe pegou. Jeremiah viu-se obrigado a ir à cidade à procura de uma ama-de-leite, porque Camille se recusava a amamentá-la.

- Que nome é que lhe vamos dar, meu amor?

- Não sei. - Camille proferiu as palavras num tom de indiferença. Nada do que ele dizia parecia animá-la. Negou-se a participar na escolha do nome e não quis voltar a pegar na criança ao colo. Sentindo pena da pequenina, Jeremiah andava quase constantemente com ela nos braços. Não se importava minimamente com o fato de não ser um rapaz, era sua filha, carne da sua carne, o filho por que tanto ansiara. Deu-se então conta do verdadeiro significado das palavras de Amélia quando lhe dissera que precisava de casar-se e ter filhos. Não parava de olhar com adoração para aquele pequenino ser, de mãozinhas delicadas e finos traços, pensando que era a experiência mais importante da sua vida. Não conseguia dizer com qual dos dois é que a filha tinha mais parecenças. Antes de ela fazer uma semana, Jeremiah pensou em chamar-lhe Sabrina, nome a que Camille não pareceu opor-se. Batizaram-na em Santa Helena com o nome de Sabrina Lydia Thurston. Era a primeira saída de Camille. Pôs o anel com a esmeralda e um vestido verde de verão. Ainda se sentia muito debilitada, e estava furiosa por a maioria dos vestidos não lhe servir. Hannah, para consolá-la, disse-lhe que era muito cedo para recuperar a antiga silhueta, mas Camille ordenou-lhe que saísse do quarto e que levasse a bebê consigo.

Durante a maior parte daquele verão, a tensão que se vivia em casa era de cortar à faca. Na casa de Santa Helena, Camille parecia uma leoa enjaulada, e as visões que Jeremiah tivera da esposa a cantarolar canções de embalar à filha ficavam muito longe da realidade. Nervosa e inquieta, Camille limitava-se a contar as semanas que faltavam para voltar para a vida da cidade. Jeremiah prometera-lhe uma viagem a Nova Iorque e a Atlanta, mas quando, em Julho, a mãe de Camille adoeceu, o pai escreveu a dizer que era melhor esperarem até ao Natal e, como era agora habitual nela, Camille teve um acesso de fúria, atirando com um candeeiro ao chão, antes de sair da sala e bater com a porta. Odiava tudo e todos: a casa, o campo, as pessoas, Hannah, a filha, e até Jeremiah não escapava aos seus acessos de mau humor. Foi um alívio para toda a gente quando fizeram as malas em setembro e Camille partiu, finalmente, para a cidade, de que tinha tantas saudades. Sentia-se como se a tivessem libertado de um cárcere.

- Sete meses! - disse ela, exalando um profundo suspiro, quando se encontrou no vestíbulo da casa de São Francisco. - Sete meses!

- Tivemos imensas saudades tuas! - disseram-lhe as amigas.

- Foram os piores momentos da minha vida! - asseverou-lhes. - Um pesadelo!

E, sem que Jeremiah soubesse, foi a um médico arranjar mais anéis, umas lavagens especiais e uma boa quantidade de casca de olmo, que também era um contraceptivo eficaz. Estava firmemente resolvida a não deixar de tomar aquelas precauções, dissesse Jeremiah aquilo que dissesse. De qualquer modo, desde o nascimento de Sabrina que não voltara a ter relações sexuais com Jeremiah, e não tinha qualquer vontade de as voltar a ter. Não queria correr o menor risco. A menina tinha agora quatro meses. Era uma criança encantadora, de suaves caracóis e enormes olhos azuis como os de Camille e de Jeremiah, e umas rechonchudas mãozinhas a querer agarrar tudo. Mas Camille raras vezes ia vê-la. Além disso, resolvera não usar o bonito quarto que fora preparado para a filha no mesmo andar que os aposentos dela, e mandara instalar a bebê no terceiro piso.

- Faz demasiado barulho - explicara a Jeremiah, que ficou decepcionado por não poder ter a menina perto dos aposentos deles. Mas não se acanhava em ir vê-la. Adorava a filha e não fazia segredo disso. A única pessoa que parecia não gostar dela era Camille. Escusava-se a falar do assunto quando Jeremiah lhe dizia alguma coisa. Porém, quando Sabrina fez seis meses, Jeremiah começou a ficar seriamente preocupado. Camille nunca tivera um gesto de ternura para com a menina; quando esta fosse mais velha, aperceber-se-ia. Não era natural que uma mãe mostrasse tão pouco, ou nenhum, carinho por uma filha. As únicas coisas que atraíam o interesse de Camille era a companhia das suas amizades, as festas que davam ou as pequenas reuniões que organizava na Mansão Thurston quando Jeremiah ia a Napa. Ele dissera-lhe que não gostava das amigas dela, por isso Camille só se encontrava com elas quando ele estava ausente. Desde que ficara grávida de Sabrina que os seus sentimentos para com o marido haviam esfriado. Às vezes, Jeremiah perguntava-se se Camille lhe perdoaria algum dia, mas duvidava.

- Dá tempo ao tempo - disse-lhe Amélia quando ele lhe confessou a sua preocupação durante a visita que ela lhes fez. A mulher pegou em Sabrina ao colo e brincou e riu com ela, perante o espanto de Jeremiah, que não podia acreditar que houvesse tanta diferença entre aquelas duas mulheres. - Talvez não goste de bebês de poucos meses. - Amélia vislumbrou um brilhozinho no olhar de Jeremiah. - Eu já vou em três netos.

O terceiro, finalmente um rapaz, acabava de nascer, enchendo de alegria a casa da filha de São Francisco, mas Amélia ainda arranjou tempo para visitar Jeremiah e Camille, embora esta não se encontrasse em casa desta vez, como em muitíssimas outras. Parecia não dispor de tempo para passar junto do marido e da filha. Só podia dizer-se que se encontrava realmente em casa quando dava uma festa ou um baile, e Jeremiah começava a estar farto daquela situação. Ela adorava o protagonismo que adquirira como Mrs. Thurston, assim como as comodidades e o brilho próprios de semelhante condição, mas detestava os deveres privados inerentes a ela. E Jeremiah começava a cansar-se de não dormir com a esposa. Desde que voltara de Napa, ela dormia sozinha no quarto de vestir, sob o pretexto de que ainda não se encontrava completamente recuperada. Mas nunca estava doente quando se tratava de ir a festas. Jeremiah não se atreveu a contar tudo isto a Amélia, mas ela percebeu o que se passava através das meias palavras do amigo, e sentiu pena dele quando lhe deu o beijo de despedida. Aquele homem merecia algo melhor... Ela teria sido feliz se se tivesse entregue nos braços dele, se as coisas tivessem seguido outro rumo. Mas ela achara-se demasiado velha para Jeremiah, e sentia-se feliz por ele ter Sabrina. Em novembro, Jeremiah decidiu pôr fim à situação. Camille disse-lhe que, por alturas do Natal, queria dar uma grandiosa festa para seiscentas ou setecentas pessoas.

- Será o maior baile que alguma vez se deu em São Francisco acrescentou alegremente.

Jeremiah abanou a cabeça. - Não.

- Porque não? - O olhar foi tomando um ar cada vez mais furioso. Era Mrs. Thurston, e queria fazer tudo o que estivesse à altura da sua posição social.

- Vamos passar o Natal em Napa.

A mãe de Camille ainda não melhorara e o pai achava que não precisavam de ir para Atlanta. Camille não parecia preocupada com a mãe. A aversão que sentia por ela não era nenhum segredo. Mas teria gostado de ir até Atlanta para se exibir como grande dama e inferiorizá-los com a sua opulência.

- Em Napa? - gritou. - Passar o Natal em Napa? Só por cima do meu cadáver.

Algumas pessoas teriam achado graça à tirada de Camille, mas Jeremiah não se encontrava entre essas pessoas.

- Tenho de estar perto das minas. Voltaram a inundar-se...

Recentemente, John Harte perdera vinte e dois dos cento e seis homens que trabalhavam para ele, e Jeremiah fora ajudá-lo. Harte, que estava, por fim, a ficar mais afável, mostrara-se imensamente agradecido.

Camille interrompeu-o.

- Se queres ir para Napa, vai sozinho. Eu fico cá.

- No Natal? - Jeremiah ficou escandalizado. - Quero os três juntos nessa quadra.

- Quem? Tu, eu e a Hannah? Não contes comigo, Jeremiah.

- Eu referia-me à nossa filha. - Frustrado, agarrou Camille pelo braço com um furioso gesto pouco habitual nele. - Ou, por acaso, esqueceste que temos uma?

- É uma observação estúpida. Vejo-a todos os dias.

- Quando? Ao cruzares-te casualmente com ela quando a ama a traz do jardim?

- Não sou ama-de-leite, Jeremiah - respondeu ela com um olhar arrogante. Foi a gota de água que fez transbordar o copo.

- Nem mãe. Nem esposa. O que és tu exatamente? - Camille respondeu-lhe dando-lhe uma bofetada. Jeremiah ficou de olhos fixos nela. Nenhum dos dois se moveu. Era o princípio do fim do casamento, e ambos o sabiam.

Camille foi a primeira a falar, mas não para pedir desculpa ao marido. Nunca lhe perdoaria tê-la obrigado a conceber Sabrina, mas havia algo mais. Ao princípio, Camille partilhara o entusiasmo de Jeremiah pela sua vida de negócios, mas não tardou a descobrir que nas minas de Napa não havia lugar para ela. Era um mundo exclusivamente masculino de que Jeremiah nem sequer lhe falava. Por outro lado, Camille desejava a presença do esposo no seu constante torvelinho de festas, prazer que ele não pudera dar-lhe durante muito tempo, dado a vida social não o atrair e estar já farto daquela vã exibição ao lado dela. Na realidade, Camille não tinha nada do que queria, à exceção da grandiosidade da Mansão Thurston e de tudo o que ela significava para si.

- Não vou para Napa, Jeremiah. Se quiseres passar o Natal lá, vais passá-lo sozinho. - Fartara-se daquele lugar para toda a vida e, além disso, lembrava-lhe os piores momentos da sua existência.

- Não, não irei sozinho. - Esboçou um sorriso triste. - Irei com a minha filha.

E assim fez. No dia 18 de dezembro, partiu para Napa na companhia de Sabrina e da ama. As boas-vindas que Hannah lhes deu em Santa Helena não podiam ter sido mais calorosas. A velhota só comentou a ausência de Camille dois dias depois, e, quando o fez, Jeremiah deixou bem claro que não queria falar mais do assunto. Estava magoado com o comportamento da esposa, mas maior teria sido o seu sofrimento se tivesse sabido o resto. Ela atrevera-se a pôr em prática os seus planos e a dar o baile que ameaçara dar. Enviara os convites sem o conhecimento do marido, que soube da festa pelo jornal, dois dias depois da sua realização. Jeremiah supôs, e não se enganou, que Camille lhe deitara as culpas de tudo para cima das costas E em vez de passar o Natal com o marido e a filha, preferira fazê-lo rodeada de amigos, da elite da sociedade, dos novos-ricos e dos pretensiosos. Jeremiah não se teria sentido bem no meio daquela gente, mas Camille estava extasiada a fazer o papel da grande dama da Mansão Thurston com a idade de vinte anos, tentando esquecer que em Atlanta ninguém a tomara por aristocrata, ou que fora obrigada a ter uma criança que não queria, ou que vivera no vale de Napa, que ela tanto detestava. Sabia que, se alguma vez Jeremiah a obrigasse a ter outro filho, se mataria antes de o ter. Segundo ela, Jeremiah merecia todo o seu desprezo por ter maltratado o seu corpo com uma gravidez forçada. No seu espírito, a gravidez era o pior pesadelo que se podia ter, e o parto, uma indescritível tortura. Cada vez que via o marido, recordava os dolorosos momentos porque passara. Sabrina, por seu turno, era um monumento vivo a nove meses de inferno. Chegou à conclusão de que o mais fácil para ela era evitar Jeremiah. E assim fez, fechando o coração a tudo o que sentira por ele e a tudo o que pudesse vir a sentir pela filha.

 

Jeremiah não voltou de Napa logo após o Natal, como Camille supusera. Num bilhete que lhe enviou, informou-a de que só regressaria em meados do mês seguinte, mas acrescentava que adoraria vê-la em Napa. A simples leitura daquelas palavras provocou a indignação de Camille. Não tinha a menor intenção de ir até Napa e perder todos os bailes e festas da cidade. Era com grande à-vontade que explicava a ausência do marido aos amigos, continuando a assistir a todas as festas na cidade, inclusive uma dada por um casal de que Jeremiah não gostava. Tratava-se de um casal de novos-ricos que chegara do Este no ano anterior, e era conhecido pela falta de decoro que reinava nas suas festas. Com Jeremiah na cidade, ela nunca tivera autorização para ir, por isso aproveitou a oportunidade para assistir ao baile que deram na véspera de Ano Novo, e ficou agradavelmente surpreendida com as pessoas que conheceu. Havia um grupo muito divertido, muito mais alegre do que a gente com quem ela e Jeremiah geralmente se davam, em especial, um homem que acabava de chegar a São Francisco um conde francês chamado Thibaut du Pré, que parecia a encarnação de tudo o que havia de decadente, europeu e aristocrático. Era exatamente o que Camille imaginara encontrar em Paris se o seu pai a tivesse levado até lá. Era alto, elegante, louro, tinha olhos verdes e pele clara, ombros largos e ancas estreitas. Possuía um sotaque delicioso e um notável dom da palavra. Passou quase toda a noite da passagem de ano a beijar o pescoço de Camille, o que não surpreendeu nenhum dos presentes. Falava o inglês tão bem como o francês. Segundo ele, tinha um palácio no Norte de França e outro em Veneza, mas era extremamente vago nos pormenores que dava sobre os mesmos. Dirigiu-se para Camille quando a festa começou e não saiu de ao pé dela durante quase toda a noite. Referiu que ouvira dizer que ela tinha uma casa magnífica e expressou o seu desejo de vê-la, só para a comparar com a sua, naturalmente. Os Norte-Americanos tinham idéias muito diferentes das dos Europeus no que concerne à arquitetura Thibaut, não parava de insistir no seu interesse em visitar a Mansão Thurston, enquanto rodopiavam pelo salão, o braço à volta da cintura de Camille e os olhos cravados nos dela .Era um homem bem-parecido e com muito charme, de maneiras francas e despreocupadas. Camille não viu nada de mal em mostrar-lhe a casa no dia seguinte até ao momento em que ele a puxou para si e a beijou no toucador enquanto ela lhe mostrava o papel de parede francês do aposento.

Porém, quando Thibaut a acariciou e o corpo dela começou a arder sob os dedos do francês, Camille deu-se conta do muito tempo que transcorrera desde a última vez que sentira a carícia de um homem E, de repente, experimentou um arrebate de paixão pelo conde francês, que tocava o seu corpo como uma harpa, e que a conduziu a um estado de delírio tal que esteve quase a pedir-lhe que a possuísse Mas, recuperando a razão, rogou-lhe que parasse, ao que ele respondeu afogando as suas palavras em beijos, convencido de que Camille compreendera as suas intenções quando ele lhe pedira para ver a casa Thibaut apercebera-se, na noite anterior, de que o marido da jovem se encontrava fora e de que era costume isso acontecer. Mas ela libertou-se dele com um repelão e quase lhe ordenou que descesse. Thibaut estava encantado com os olhos ardentes, os lábios apetecíveis e os cabelos negros de Camille. Durante as semanas seguintes, inundou-a de presentes, bugigangas, ramos de flores, convidou-a várias vezes para almoçar, levou-a a passear de carruagem. Entretanto, Jeremiah continuava em Napa. Camille não parava de dizer que o comportamento de Thibaut era uma afronta, mas dizia-o com um delicioso sotaque sulista, e ele respondia-lhe em francês. Em poucos dias, Thibaut proporcionara-lhe mais momentos divertidos do que aqueles que tivera nos últimos meses. Jeremiah era demasiado circunspecto, e ela estava farta de ouvi-lo falar das inundações nas minas. Era esse o motivo por que ainda não regressara de Napa. Dessa vez, haviam morrido mais quatro homens. Thibaut não lhe falava de coisas tão prosaicas. Dizia-lhe que ela era a mulher mais bonita que alguma vez conhecera e expressava-lhe a sua admiração por ter tido a coragem de pôr uma filha no mundo E Camille confessava-lhe o horror que sentira durante toda a gravidez, até que o fervor das palavras do francês acabaram por conquistar-lhe o coração.

- Acho uma crueldade pedir a uma mulher para ter filhos. Uma barbaridade! - exclamou Thibaut, com aparente indignação. - Nunca pediria tal coisa à minha amada. - Olhou-a com ar sério e ela corou.

- Não voltarei a fazê-lo - confessou ela. - Preferiria morrer

Então, ele regalou-lhe os ouvidos afirmando que nunca gostara de crianças.

- Que seres mais horríveis! E que mal cheiram. - Camille riu-se, e Thibaut voltou a cobrir os lábios da jovem com os seus. E, sem saber como, Camille deu consigo a fazer amor com ele no divã do quarto de vestir. E voltaram a fazê-lo depois de terem partilhado quase uma garrafa de champanhe das adegas de Jeremiah. Camille deu graças a Deus por trazer um daqueles anéis. Colocara-o depois da noite de Ano Novo, só para ver se se ajustava e não o tirara, para o caso de Jeremiah regressar. Mas aquilo não tivera nada a ver com Jeremiah. Agora tinha só a ver com Thibaut du Pré.

Antes de Jeremiah voltar, desfrutaram de seis semanas de relações clandestinas. Du Pré ia à Mansão Thurston, e ela, ao hotel dele, o que Camille sabia muito bem ser impróprio da sua condição, mas era menos perigoso do que deixá-lo entrar em casa a altas horas da noite. Por entre risadinhas, costumavam subir as escadas em bicos dos pés para se esconderem nos aposentos de Camille, beber champanhe e fazer amor até de madrugada. Com ele, Camille voltou a sentir a paixão que conhecera antes do nascimento de Sabrina, mas achava-o mais arrebatado do que o marido. Era alto, magro e exótico, falava-lhe em francês, era perverso e erótico, e só tinha trinta e dois anos, contudo, a maior parte das vezes, parecia ser mais jovem do que ela com os seus vinte anos. Thibaut queria folguedo a toda a hora e fazer amor de manhã à noite, e não desejava que ela tivesse filhos. Camille estava encantada com o seu anel, e Thibaut falou-lhe de métodos mais exóticos que tinham em França. E começou a propor-lhe que fosse com ele para a Europa

- Podias vir comigo para o Sul de França... e podíamos visitar os meus amigos... festas que duram a noite inteira... - E quase lhe chamuscou os ouvidos ao contar-lhe as coisas que eles gostavam de fazer.

E, melhor ainda, ensinou-a a fazê-las; à medida que os dias iam passando, Camille tinha a sensação de ter descoberto uma nova droga, e já não conseguia viver sem ele. Era como se estivesse viciada nele; noite e dia, ansiava pelas suas carícias, o contato do seu corpo, precisava que ele lhe preenchesse a alma. Ao deixar a cama em que haviam dormido juntos, Camille despegava quase dolorosamente a sua carne da de Thibaut. Precisava do corpo do amante sobre o seu, das suas mãos, dos seus lábios, da sua língua... Havia um embriagante perfume em tudo quanto Thibaut fazia. Ela nunca se sentia saciada. Começou a ficar desesperada com a perspectiva do regresso de Jeremiah.

Quando o marido chegou, quase apanhou Thibaut a sair. Camille só teve tempo de esconder uma garrafa de champanhe vazia que ficara debaixo da cama no toucador, quando Jeremiah foi ver Sabrina. Camille tinha os cabelos em desalinho e sentia-se leviana, manchada e confusa. Ao deparar-se-lhe Jeremiah, começou a chorar, e ele interpretou essa reação como de alegria por o ver. Mas ela chorava porque estava desesperadamente confusa. E, por instantes, Camille, ao pegar na filha ao colo coisa que não fazia há seis meses, teve um vislumbre do que a vida poderia ter sido para eles os dois e Sabrina. De repente, lamentou não ter ido para Napa com Jeremiah. Aí, ter-se-ia sentido segura, não teria corrido o perigo de andar à deriva. Entrara no Jardim do Éden e já não se recordava do caminho de regresso a casa, se é que queria encontrá-lo. Nessa noite, deitou-se ao lado de Jeremiah, completamente imóvel, torturada pelos seus pensamentos. Quando, finalmente, ele lhe pôs uma mão na anca, sentiu-se estremecer. O mais terrível da situação era que já não desejava Jeremiah. Só ansiava pelo momento de voltar para o lado de Thibaut, na manhã seguinte. Encontraram-se, em segredo, no quarto do hotel onde ele estava hospedado. Nessa tarde, ao voltar para casa, Camille teve a sensação de que Thibaut se apoderara da sua mente e da sua alma, de uma maneira quase demoníaca. Não conseguia imaginar o que seu pai teria dito se tivesse tido conhecimento daquela relação e, pela primeira vez na vida, sentiu-se irremediavelmente desinteressada da opinião do pai, de Jeremiah, ou de quem quer que fosse.

Jeremiah planeava passar alguns meses em São Francisco, e Camille sabia que, no final desse período, estaria meio louca com toda a confusão que ia na sua cabeça. Já não sabia que dizer a Jeremiah à noite, e resolvera mudar-se para o quarto de vestir. Agora, nunca tinha tempo para ir ver Sabrina e, quando saía com Jeremiah, não parava de olhar ao seu redor em busca do conde, que a devorava, ao longe, com o olhar. Uma vez, atreveu-se a acariciar-lhe o peito quando Camille se roçou por ele ao entrar num restaurante, contato que a fez estremecer de desejo. Jeremiah achava que ela se tornara frígida e, por instantes, Camille sentiu-se invadida por um intenso sentimento de culpa.

Thibaut continuava a insistir para que ela fosse para França com ele.

- Não posso! Não entendes? - Os olhos selvagens e a língua serpenteante do francês punham-na louca. - Estou casada! Tenho uma filha! - E havia outras objeções: o seu estilo de vida, a sua segurança, a Mansão Thurston. Ali, era alguém importante. Não podia abandonar tudo de um momento para o outro.

- Tens um marido que te aborrece de uma maneira atroz, e estás-te nas tintas para a tua filha. O que te detém então, meu amor? Não queres ser minha condessa no meu palácio em França?

- Quero... quero... - respondeu ela entre soluços. Thibaut estava a levá-la à loucura.

Camille sentia uma grande confusão na cabeça. Não sabia o que havia de fazer. Ao fim de um ou dois meses, Jeremiah dera-se conta da sua crescente palidez, mas estava convencido de que isso se devia ao fato de ainda não ter recuperado totalmente do nascimento de Sabrina. E continuava a evitá-lo todos os dias. Tinha outras coisas para fazer. Tinha de encontrar-se com Thibaut no quarto do hotel... onde ele lhe falava dos seus palácios... do pai... dos amigos... todos marqueses, condes, príncipes e duques. As descrições que Thibaut lhe fazia dos bailes que os seus amigos davam nos palácios de toda a França deixavam-na fascinada. Parecia o sonho que o pai lhe prometera antes de Jeremiah aparecer. Agora, poderia ser condessa, se quisesse. A única coisa que teria que fazer era cortar os laços que a uniam à sua vida atual. Thibaut não parava de lhe sussurrar isso entre as coxas, e Camille sentia-se enlouquecer.

- Não agüento mais! - exclamou Camille um dia. - Estou demasiado confusa.

Thibaut, porém, não deu importância às suas palavras. Tal como ela, estava viciado na carne da sua amante, e queria cada vez mais dela, desejava-a só para si, e não afrouxaria o seu empenho até ela ceder. Queria levá-la consigo para França, juntamente com uma boa parte da fortuna que ela demonstrava possuir.

Cada dia que passava, Jeremiah via-a afastar-se dele gradualmente, sem se aperceber do rumo que ela estava a imprimir à sua vida. Um dia, em abril, um amigo contou-lhe o que vira Camille a sair do Hotel Palace na companhia de um homem alto e louro, beijando-se antes de ele chamar uma carruagem para ela. Ao ouvir as palavras do amigo, Jeremiah ficou de coração destroçado; alimentou ainda a esperança de que ele estivesse enganado, mas, com o passar dos dias, começou a admitir a veracidade daquelas palavras. Cada vez que falava com ela, notava algo distante nos seus olhos. Além disso, insistia para saírem todas as noites. Parecia aliviada quando Jeremiah ia visitar as minas. E nunca mais voltara a dormir com ele.

Jeremiah ia ficando cada vez mais deprimido à medida que a primavera se aproximava do fim. Temia o que iria acontecer quando, em junho, a tentasse levar de novo para Napa. Não queria confrontá-la com a situação com medo de piorar o estado das coisas, mas o destino encarregou-se de desencadear todo o processo. Um dia, à tarde, saía Jeremiah do clube do seu banqueiro, depois de ter falado com ele de vários assuntos, quando uma carruagem passou lentamente diante dele e, no seu interior, vislumbrou Camille abraçada a um homem louro. Teve a sensação de que o mundo desabara à sua volta. E confrontou-a com a situação, nessa noite, calmamente, no quarto de vestir.

- Não sei como é que tudo isto começou, Camille. - Conseguiu conter as lágrimas. - Nem quero saber. Há algum tempo, viram-te com esse homem. Quis crer que não era verdade, mas agora tenho a certeza. - Era a custo que continha as lágrimas. Amava-a tanto... e perguntou-se se a perderia para o homem que a estava a beijar na carruagem. Não lhe importava o que fizera desde que não reincidisse. Ainda podiam salvar o que lhes restava, se Camille estivesse disposta a isso. Dependia mais dela do que dele. Jeremiah queria esquecer tudo e continuar ao lado daquela que era sua esposa. Mas não se dava conta do estado de confusão em que se encontrava o espírito de Camille.

- E como sabes que era eu? - Olhou-o, compungida, sem o habitual ar agressivo. Ambos sabiam, sem sombra de dúvida, que fora ela.

- De nada adiantará falar sobre o assunto. Só quero que pares com tudo. - A voz de Jeremiah era tão suave como o amor que sentia por ela. - E já, Camille! Gostava que fôssemos para Napa na próxima semana, com a Sabrina. E talvez consigamos recompor as nossas vidas. - Os olhos transbordavam de lágrimas.

Camille cerrou os olhos. Se ele se tivesse oferecido para a afogar, ela teria ficado menos alterada do que com aquele convite para ir para Napa na semana seguinte. Não conseguia suportar o pensamento de tal possibilidade, e não queria abandonar Thibaut. Ainda não era a altura certa. Precisava dele. Jeremiah apenas conseguiu articular um sussurro, mas era do fundo do coração:

- Por favor...

Camille abriu novamente os olhos.

- Veremos...

Aquilo que Jeremiah lhe propunha era como uma mão agarrada à garganta. Nessa mesma noite, escapuliu-se de novo até à rua só para trocar um beijo e algumas palavras com o amante. Jeremiah pensava que ela estivesse no rés-do-chão, a falar com a cozinheira, e nunca soube a verdade. Entretanto, Camille encontrava-se para lá dos jardins, respondendo com sussurros às súplicas que Thibaut lhe fazia para ir ter com ele ao hotel. Aquele homem era extremamente decadente, sem a mínima consciência das coisas, e estava disposto a fazer todos os possíveis para a levar consigo. Afinal de contas, por que não? Era bonita, sensual, quase tão debochada como ele, uma perita na arte do amor, embora tivesse apenas vinte anos. Além disso, toda a gente lhe dissera que era muito rica, e Thibaut precisava disso. Só o que Jeremiah lhe oferecera, a julgar pelas jóias e peles que ostentava, valia uma fortuna. No dia seguinte, Camille foi ter com Thibaut ao quarto do hotel e, entre soluços, disse-lhe que a sua aventura chegara ao fim, que pensara maduramente sobre o assunto e que não queria deixar tudo o que tinha por ele.

- Fiz alguma coisa de mal? - perguntou-lhe Thibaut, surpreendido e sem se preocupar com a imoralidade da situação. As mulheres dos outros homens haviam sido sempre algo com que jogara durante muitos anos. Constituíam uma boa diversão, e aquela era a melhor que conhecera. E não tinha intenção de deixá-la escapar. Aquela não. Era demasiado saborosa, demasiado doce. E já era sua. Pressentia-o.

- Eu é que fiz mal - explicou ela. - Não consegui controlar-me, mas agora tenho de parar. O meu marido sabe tudo. - Camille temia que Thibaut se sobressaltasse, mas este só se mostrou preocupado.

- Ele bateu-te, mon amour?

- Não, de modo nenhum. Mas quer que vá para Napa com ele na semana que vem... - Era tal a angústia que Camille sentia perante tal perspectiva que quase não conseguia articular as palavras. - Ficaremos por lá quase uns quatro meses e... - Continuou a falar entre soluços. - Quando voltarmos, já terás partido.

- Eu não poderia ir também para Napa? Ficava num hotel próximo...

Era uma idéia atrevida, mas Camille não fez qualquer comentário. Desejava aquele homem tão desesperadamente...

- Não, lá não é possível.

Thibaut abanou a cabeça, esfregou os olhos e olhou fixamente para Camille.

- Então, vens comigo. Tens de optar. Agora. Esta semana. - Exibia um ar decidido. - Iremos para França. É hora de partir. Para começar, poderemos passar o verão no meu palácio do Sul... - Se o pai permitisse. - Depois, vamos para Veneza, talvez por ocasião dos bailes de verão... - Aquilo já era mais certo. - Finalmente, no outono, regressamos a Paris.

Camille sentia-se muito mais atraída por tudo aquilo do que por Santa Helena, mas sabia que não tinha o direito de desfrutá-lo. Era a esposa de Jeremiah e tinha a sua vida estabelecida na Califórnia, onde, ao fim e ao cabo, nem tudo eram desvantagens.

- Não posso ir. Teve de fazer um verdadeiro esforço para pronunciar as palavras.

- Porque não? Serias a minha condessa, ma chérie. Pensa bem nisso!

Camille assim fez, e sentiu o coração partir-se em dois. O pai sempre lhe prometera um conde ou um duque.

- E o meu marido? E a minha filha?

- Pouco te interessam. Sei-o tão bem como tu.

- Não é verdade... - Mas era. A vida com que Thibaut lhe acenava era muito mais atraente e estava mais de acordo com o modo de ser de ambos. Camille não queria mais filhos, não queria ser uma esposa respeitável... A única coisa de que gostava em Jeremiah era a Mansão Thurston, e Thibaut oferecia-lhe dois palácios... Então, horrorizada, rebelou-se contra os seus próprios pensamentos. Continuava envolta num mar de dúvidas. Sentia-se como se a estivessem a cortar ao meio. - Não sei que fazer. - Sentou-se a soluçar.

Thibaut ofereceu-lhe uma taça de champanhe.

- Tens de escolher, meu amor. Mas escolhe bem. Quando estiveres a apodrecer em Napa durante o resto da tua vida, lamentarás a oportunidade que perdeste... E quando ele te voltar a violar e te engravidar de novo...

Camille estremeceu só de pensar naquela possibilidade.

- Pensa bem! Eu nunca te pedirei tal coisa.

Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, Jeremiah voltaria a tentar. Queria um filho. Mas não era justo deixá-lo só por isso... Ao fim e ao cabo, era sua esposa... Bebeu o champanhe e começou a chorar. Thibaut tomou-a nos braços e voltou a fazer amor com ela. Nessa noite, quando chegou a casa, Camille foi ao quarto da filha e ficou a vê-la brincar. Já tinha um ano, dizia umas quantas palavras e começara a andar, mas Camille não fazia parte da vida da filha. Por opção sua. Agora apetecia-lhe tomar a sua carinha entre as mãos e chorar. Não sabia que fazer. Nessa noite, quando Jeremiah lhe recordou que partiriam dentro de cinco dias, achou que ia enlouquecer. No dia seguinte, foi ter novamente com Thibaut ao quarto do hotel. Mas desta vez foi ele quem decidiu por ela. Pôs-lhe no peito um enorme broche de diamantes que, segundo disse, era uma herança de família e, antes de fazer amor meia dúzia de vezes, declarou solenemente o compromisso que existia entre os dois. Camille voltou para casa derrotada. Sabia que, por mais amável e carinhoso que Jeremiah se mostrasse, não poderia voltar para Napa com ele, não poderia dar-lhe outro filho e não poderia sequer entregar-se à filha que já tinham. Não fora feita para aquilo. Thibaut já lho demonstrara, não com o broche de diamantes, mas com as suas palavras. Sim, iria para Paris com ele. Agora, seria condessa. Talvez fosse aquele o seu verdadeiro destino.

Jeremiah escutou-a com perplexa incredulidade e, quando ela acabou o que tinha a dizer, foi ao quarto de Sabrina e, passando em bicos dos pés pela ama, deteve-se diante da cama da filha a contemplá-la. Era inconcebível que a mãe a fosse abandonar, e mais doloroso ainda pensar que ela o ia deixar. A agonia que sentia era difícil de expressar por palavras. A dor não era menor do que a que Camille ao dar à luz a filha. Recordou-se de John Harte quando, anos antes, perdera a esposa e os filhos. Agora compreendia o que o pobre homem sentira. Também se perguntou se seria aquilo o que Mary Ellen sentira quando a deixara. Talvez estivesse a pagar os seus erros passados. Chorou com a cabeça apoiada nas mãos antes de deixar a criança adormecida, para voltar para a solidão do quarto.

Camille levou dois dias a fazer as malas, instalou-se um ambiente fúnebre na casa à medida que o rumor se ia espalhando. Jeremiah não dissera nada a ninguém. Horas antes da partida de Camille, Jeremiah agarrou-a por ambos os braços e puxou-a para si, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces

- Não podes fazer isto, Camille. Estás louca. Quando acordares, perguntar-te-ás como pudeste cometer tal loucura. Não penses em mim... pensa na Sabrina... Não podes abandoná-la agora. Arrepender-te-ás durante toda a vida. E para quê? Para viveres com um mentecapto num palácio? Já tens tudo isto. - Jeremiah apontou para a Mansão Thurston, mas Camille, também a chorar, abanou a cabeça.

- Não sou a mulher ideal para estar aqui... nem para ser tua esposa... - Foi interrompida por um soluço. - Não sou suficientemente boa para ti. - Era a primeira frase amável que saía da sua boca desde há muitos dias.

Jeremiah abraçou-a com força.

- É claro que és.. Amo-te... não vás... Oh, meu Deus, por favor, não vás!...

Camille abanou a cabeça, e desatou a correr pelos jardins com o vaporoso vestido a ondear atrás dela: uma visão de seda branca e azul e de esvoaçantes cabelos negros. Jeremiah ficou, de olhar atônito, a observá-la. Thibaut esperava-a numa carruagem, diante do portão principal. Nessa mesma noite, um cocheiro veio buscar as suas coisas. Jeremiah encontrou um bilhete junto às jóias: «Para a Sabrina... um dia...» E outro no quarto de vestir: «Adeus!» Ela não imaginara que Thibaut ficaria tão furioso ao saber que ela não levara as jóias.

Nessa noite, Jeremiah vagueou por toda a casa como um moribundo. Não conseguia acreditar que Camille tivesse partido. Fora uma verdadeira loucura. Ela mudaria de idéias e voltaria. Provavelmente, mandar-lhe-ia um telegrama de Nova Iorque. Com a esperança de que voltasse, Jeremiah adiou a sua partida para Napa para daí a três semanas. Mas ela não regressou nem deu o menor sinal de vida. Nunca mais a viu, só em sonhos. Jeremiah escreveu ao sogro a contar o sucedido. Orville respondeu-lhe, dizendo que Camille merecia o maior desprezo, e que para eles estava morta a partir daquele momento, tal como o deveria estar para o marido. Não era uma maneira muito amável de pensar nela, mas não havia qualquer alternativa. Nem sequer lhe escreveu uma só vez. Desapareceu na bruma da noite com um estranho que a levou para França.

Orville reprovava o comportamento da filha, mas era, em parte, responsável por aquilo que Camille fizera. Ensinara-a a querer demasiado, a interessar-se só pelas coisas materiais. Enchera-lhe a cabeça com sonhos de príncipes e duques. Porém, mudara de idéias ao ver em Jeremiah um homem bom e um excelente partido para a sua filha. Fizera o que devia. Camille fora demasiado longe, e o pai nunca iria perdoar-lhe. Ela escreveu-lhe, mas Orville respondeu-lhe que ela morrera para ele. Não herdaria nada dele nem da mãe, que se encontrava demasiado doente para manter qualquer tipo de contato com ela. Só restava Hubert. Mas este, além de ser extremamente egoísta, nunca sentira grande interesse por Camille.

Na Califórnia, Jeremiah disse a toda a gente que Camille morrera por causa da epidemia de gripe. Ela fora suficientemente inteligente para não dizer nada a ninguém quando partiu. Ninguém parecia saber que eles haviam partido. Thibaut du Pré deixou uma conta colossal por pagar no Hotel Palace e não confidenciou a ninguém os seus propósitos para o futuro, nem que levava Camille Thurston consigo. Pura e simplesmente, desapareceram. Durante mais de uma semana, Jeremiah pôs a correr o boato de que a sua esposa se encontrava extremamente doente. Perante a surpresa da criadagem, mandou pôr um fumo negro no batente da porta principal. Depois de mandar publicar uma pequena notícia no jornal e de fechar a casa quase hermeticamente, Jeremiah partiu para Napa. Todos acreditaram que a sua esposa morrera por causa da gripe. Explicou que o corpo fora enviado para Atlanta a fim de ser enterrado no jazigo da família e mandou celebrar um pequeno serviço fúnebre em Santa Helena, ao qual assistiu muito pouca gente. Lá quase ninguém a conhecia, e os que haviam tido algum contato com Camille não morriam de amores por ela. Hannah assistiu à cerimônia, vestida de negro e estranhamente hirta, assim como alguns homens que trabalhavam com Jeremiah nas minas, por respeito por ele Jeremiah ficou sensibilizado ao ver que John Harte também viera. Este nunca esquecera a atitude de Jeremiah quando a esposa e os filhos morreram. Não tornara a casar, e ainda o horrorizava ter de voltar, à noite, para a casa vazia da colina. No final do serviço religioso, apertou a mão de Jeremiah num gesto de sentidas condolências.

- Dê graças a Deus por ter ainda a sua filha

- E dou. - Os olhos de Jeremiah encontraram os dele.

John Harte tinha vinte e nove anos, mas o seu aspecto e a sensatez que demonstrava eram próprios de um homem de mais idade. Era muita a responsabilidade com que tinha de arcar, mas desembaraçava-se bastante bem. Talvez fosse essa uma das causas do afeto que Jeremiah sentia por ele. Depois de se despedir de Harte, visivelmente emocionado, com outro aperto de mãos, regressou a casa, para junto de Sabrina, que agora não tinha mãe. Ainda não conseguia compreender o que Camille fizera, nem por que. Por que razão fugira com o francês? Uma coisa estava certa no espírito de Jeremiah: não haveria divórcio. Não queria que ninguém soubesse que Camille não morrera. Perpetuaria o mito da sua morte enquanto vivesse, especialmente para a filha. Camille Beauchamp Thurston morrera para toda a gente. Só Jeremiah e Hannah sabiam a verdade. Todos os criados foram despedidos e a Mansão Thurston, encerrada de vez. Talvez Jeremiah a vendesse algum dia, ou, quiçá, ficasse com ela para Sabrina; mas ele nunca mais viveria nela. Ainda havia roupas de Camille nos roupeiros: as que ela não quisera levar. Retirara as roupas caras e os vestidos de noite, além das bonitas peles. Retirou quase tudo, exceto o velho e o usado, que era muito pouco. Enchera os baús quando partira e, se algum dia voltasse, encontrar-se-ia ainda casada com ele. Sabrina cresceria convencida de que a mãe morrera por causa da gripe, tal como muitas outras pessoas naqueles tempos, e não teria ocasião de descobrir nada que negasse aquela história, nenhum rasto que conduzisse à verdade. Nenhuma carta, nenhuma explicação, nenhum divórcio. Não haveria tal coisa. Camille Beauchamp Thurston morrera para todos Que descanse em paz!

 

A carruagem parou diante das minas pouco antes da hora de almoço, e uma esbelta rapariga desceu de um pulo. Os sedosos cabelos negros apanhados por uma fita de cetim azul, a saia de linho azul-pálido e a blusa à marinheiro davam-lhe um ar ainda mais jovem do que o que correspondia aos seus treze anos. Enquanto atravessava a correr o recinto mineiro, acenava com a mão para o homem que naquele momento saía do escritório. Encadeado pelo sol, Jeremiah deteve-se, por instantes, para distinguir melhor a rapariga que corria para ele, e abanou a cabeça. Mas fê-lo com um sorriso nos lábios. Na semana anterior, dissera-lhe para não vir que nem uma louca em nenhum dos melhores cavalos, pelo que, desta vez, trouxera a carruagem, mas com ela às rédeas. Jeremiah não sabia se havia de rir, se havia de zangar-se, mas geralmente era uma decisão fácil de tomar. Sabrina não era uma menina como as outras, nunca o fora, e o fato de viver sozinha com ele criara certas peculiaridades nela. Adorava o cheiro dos charutos do pai, conhecia todos os seus caprichos e necessidades e procurava satisfazê-los constantemente; além disso, montava os cavalos tão bem como ele e conhecia pelo nome os homens das três minas. Chegara, inclusive, a saber mais sobre vinicultura do que o próprio pai. E nada disso desagradava a Jeremiah. Estava orgulhoso da sua única filha, mais do que ela imaginava, mas Sabrina tinha perfeita consciência daquilo que o pai sentia por si. Este nunca lhe batera. Ensinara-lhe tudo o que sabia e levava-a a todo o lado consigo. Em pequena, saíra muito poucas vezes de Santa Helena, mas Jeremiah estava constantemente junto dela, a ler-lhe histórias antes de adormecer, a fazer-lhe companhia quando estava doente, a embalá-la quando estava triste e, muitas vezes, a cuidar dela pessoalmente em vez de pedir a Hannah ou às criadas que tinha ao seu serviço.

- Isso não é natural, Jeremiah! - dissera-lhe Hannah, mais de uma vez, nos primeiros anos. - É uma menina, pouco mais do que um bebê. Deixa que eu e as outras mulheres cuidemos dela. - Mas ele não conseguia fazê-lo, não suportava a idéia de estar longe dela durante muito tempo. - Já tens bastante trabalho em ir para as minas todos os dias.

Jeremiah não tardou a levá-la consigo para as minas. Pegava nuns quantos brinquedos, numa camisola quente, num cobertor e, às vezes, numa almofada, e punha-a a brincar num canto do escritório, ou deitava-a em cima do cobertor junto da lareira quando ficava com sono à tarde. Algumas pessoas achavam chocante, mas para a maioria era algo comovedor. Nem os homens de coração mais empedernido com que lidava conseguiam resistir ao encanto daquela carinha rosada, meio oculta pelo cobertor, e daqueles caracóis negros espalhados sobre a almofada. Acordava sempre com um sorriso nos lábios e um pequeno bocejo, e a primeira coisa que fazia era ir a correr dar um beijo ao pai. Era um amorzinho que surpreendia alguns e fazia inveja a outros. Na realidade, além de um indubitável amor filial e paterno, havia uma instintiva compreensão das suas mútuas necessidades e maneiras de ser. Durante os treze anos que levava de vida, Sabrina nunca causara o menor desgosto ao pai. De fato, só lhe havia dado prazer, felicidade e afeto E, naquele ambiente de transbordante amor, a rapariga não sentia a menor dor pela falta da mãe. Jeremiah dissera-lhe apenas que a mãe morrera quando ela era ainda bebê

- Era bonita?

Jeremiah sentiu um aperto no coração.

- Sim, muito. Como tu - respondeu o pai com um sorriso.

Na realidade, Sabrina parecia-se mais com ele do que com a mãe. Tinha as feições de Jeremiah, e tudo indicava que seria tão alta como ele. Se herdara algo da mãe, fora o seu gosto por travessuras. De vez em quando, pregava partidas ao pai mas tudo acabava em bem. Sabrina nunca mostrara qualquer sinal do comportamento de menina mimada e caprichosa da mãe. Durante aqueles anos, ninguém lhe dera alguma vez a entender que a mãe não morrera, mas abandonara o esposo e a filha. Não havia nenhuma razão para lhe dizerem. Só a confundiriam e a magoariam, como Jeremiah dissera a Hannah há muito tempo. Durante treze anos, só houvera alegria na vida de Sabrina. Levava uma existência tranqüila e feliz, e ia para todo o lado com o pai adorado. Quando atingiu a idade de começar a estudar, Jeremiah arranjou-lhe uma tutora. Sabrina prestava às lições uma paciente atenção, mais ou menos fingida, depois saía a correr até à mina, para junto do pai, e passava o resto do dia atrás dele. Era ali que aprendia o que queria saber

- Quero trabalhar para ti um dia, papá

- Não sejas tonta. - Mas, intimamente, era esse o seu desejo. Sabrina era como uma filha e um filho ao mesmo tempo, e tinha queda para os negócios. Mas nunca poderia trabalhar nas minas. Ninguém compreenderia essa situação.

- Permitiste que o Dan Richfield trabalhasse para ti quando ainda era rapaz. Foi ele próprio que mo disse. - Mas ele agora tinha vinte e nove anos e era pai de cinco filhos. Que distantes estavam aquelas manhãs de sábado em que Dan começara a trabalhar para Jeremiah!

- Aquilo era diferente, Sabrina. Tratava-se de um rapaz. Tu és uma jovem senhora.

- Não sou, não! - Nalguns raros momentos de petulância, as reações de Sabrina faziam lembrar o caráter da mãe. Jeremiah virou a cara para não ver as semelhanças. - Não me voltes as costas, papá! Sei tanto de minas como qualquer um dos teus homens!

Jeremiah sentou-se e, com um terno sorriso nos lábios, pegou na mão da rapariga.

- Isso é verdade, meu amor, mas é preciso algo mais. É necessária a mão de um homem, a força de um homem, a determinação de um homem. Coisas que tu nunca poderás ter. - Deu-lhe uma palmadinha na cara. - A ti, só te falta encontrar um marido janota.

- Não preciso de nenhum marido! - Já aos dez anos lhe custava admitir a possibilidade de algum dia ter de casar-se e não se podia dizer que aos treze tivesse mudado de atitude. - Quero viver sempre contigo!

De certo modo, Jeremiah gostava de a ouvir falar assim. Contava já cinqüenta e oito anos, mas mantinha ainda a vitalidade e o vigor e tinha sempre a mente cheia de novas idéias sobre o modo de dirigir as minas e os vinhedos. Mas a dor que Camille lhe provocara cobrara o seu tributo. Há muitos anos que não se sentia um homem jovem. Sentia-se velho e cansado. Havia nele uma parte que nunca voltaria a abrir-se, como nunca voltaria a abrir a mansão da cidade. Recebera numerosas ofertas de compra ao longo dos anos. Inclusive de um homem que queria transformar a casa num hotel Mas nunca mostrou qualquer vontade de a vender. Nunca voltara a pôr os pés nela e, provavelmente, nunca mais voltaria. Teria sido demasiado doloroso ver de novo os aposentos que mandara construir, a casa que ele esperara encher com meia dúzia de filhos. O mais provável era que a deixasse a Sabrina, se ela se casasse. Em vez de ser para os seus filhos, seria para ela. Parecia ser o destino adequado para a casa construída com tanta ilusão e carinho

- Papá! - gritou Sabrina quando, depois de prender o cavalo da carruagem, se dirigiu a correr para o pai. Sabia mais de minas, cavalos e carruagens do que a maior parte dos rapazes. Todavia, a sua feminilidade permanecera intacta, como se séculos de distinta tradição sulista se tivessem embrenhado nela. Era feminina dos pés à cabeça, mas possuía uma doçura e uma afetuosidade que a mãe nunca tivera. - Vim o mais depressa que pude. - Correu, sem alento, para ele, enquanto os caracóis dançavam sobre os ombros, ao mesmo tempo que ria e abanava a cabeça, num falso desespero

- Estou a ver, Sabrina. Quando te sugeri que passasses por cá esta tarde depois de estudares, não quis dizer que roubasses a minha melhor carruagem para o fazeres.

A rapariga pareceu arrepender-se de imediato e olhou por cima do ombro.

- Achas mesmo que procedi mal, papá? Conduzi com muito cuidado.

- Sei que sim. Não foi isso que me preocupou. É o espetáculo que dás a conduzir uma carruagem destas. A Hannah vai-nos dar uma boa reprimenda. Se fizesses isso em São Francisco, expulsar-te-iam da cidade com a acusação de «acelera» e de comportamento impróprio de uma donzela. - O tom de falsa repreensão levou Sabrina a encolher os ombros com ar de indiferença.

- Mas seria uma estupidez. Conduzo melhor do que tu, papá.

Desta vez, Jeremiah franziu o sobrolho, fingindo-se escandalizado.

- Talvez tenhas razão, mas sabes que não estou em plena forma.

- Eu sei, eu sei. - Sabrina corou ligeiramente. - Só queria dizer que...

- Deixa lá. Da próxima vez, traz o teu alazão. Não chamarás tanto a atenção.

- Mas disseste-me para não me lançar a galope por essas colinas, que viesse de carruagem, como uma dama.

Jeremiah inclinou-se para ela e sussurrou-lhe ao ouvido:

- As damas não conduzem carruagens.

Sabrina riu-se. Dera-lhe um prazer imenso conduzir a carruagem. A verdade era que havia muito pouca coisa com que se divertir em Santa Helena. Não conhecia crianças da sua idade, não tinha irmãos nem primos, e passava a maior parte do tempo com o pai. Por isso, entretinha-se a pregar partidas ou a vaguear pelas minas. De vez em quando, Jeremiah levava-a até São Francisco. Hospedavam-se sempre no Hotel Palace, e Sabrina ficava em aposentos contíguos aos do pai. Quando era mais pequena, levava também Hannah, mas agora a pobre mulher, tolhida pela artrite, não fazia nada por ocultar o fato de detestar ir para a cidade. E Sabrina já tinha idade suficiente para ir sozinha com o pai.

Passaram muitas vezes pela Mansão Thurston e, uma vez, Jeremiah chegou a abrir o portão e a dar uma volta com a filha pelos jardins, mas nunca a levou dentro de casa. Sabrina suspeitava por que. A morte da esposa fora extremamente dolorosa para ele. Todavia, sempre sentira curiosidade por ver o interior da casa. Interrogara Hannah acerca da casa, mas ficou decepcionada ao saber que a velhota nunca estivera no interior da mansão. Também insistira para que Hannah lhe contasse como era a mãe, mas a informação que obteve foi tão escassa que deduziu de imediato que as relações entre as duas mulheres não haviam sido muito cordiais. Não sabia por que, mas nunca se atreveu a perguntar ao pai. Eram tais a tristeza e a desolação que se vislumbravam nos olhos dele sempre que ouvia o nome de Camille, que preferia não amargurá-lo mais com a sua curiosidade. Havia, pois, mistérios e vazios na vida de Sabrina: uma casa em cujo interior nunca estivera, uma mãe que nunca conhecera. e um pai que a adorava.

- Já acabaste o trabalho, papá? - perguntou Sabrina, enquanto se dirigiam, de braço dado, para a carruagem. Jeremiah consentira, finalmente, que ela pegasse nas rédeas, com o cavalo dele preso atrás da carruagem e encolheu os ombros para aquilo que as pessoas pudessem pensar quando os vissem.

- Sim, já acabei, minha pequena sirigaita. És uma rapariga surpreendente - disse Jeremiah, enquanto tomava o lugar ao lado da filha. - Se nos virem, pensarão que sou louco por te permitir esta insensatez.

- Não te preocupes, papá - replicou ela, dando uma palmadinha maternal no braço do pai. - Sou boa condutora.

- E muito descarada, pelo que vejo. - Mas era evidente o carinho com que a olhava.

Pouco depois, Sabrina retomou as perguntas sobre o trabalho do pai. Tinha um motivo para isso, e ele sabia qual era.

- Sim, já resolvi todos os assuntos que tinha pendentes. E sei por que razão estás a perguntar-me isso. Sim, amanhã iremos para São Francisco. Isso alegra-te?

- Muito, papá! - Sabrina olhou-o com um sorriso de satisfação, desviando o olhar da estrada, na altura em que entrava numa curva apertada. A carruagem esteve quase a virar-se. Jeremiah procurou desesperadamente tirar-lhe as rédeas das mãos, mas ela resolveu o problema com incrível rapidez e destreza. Terminada a hábil manobra, voltou a sorrir para o pai, enquanto este desatava a rir.

- Estou a ver que, de um modo ou de outro, qualquer dia vais ser a causa da minha morte.

Acabava de mencionar algo de que Sabrina não queria ouvir falar, nem a brincar. Ao ver o semblante carregado da filha, Jeremiah arrependeu-se de ter falado daquela maneira.

- Não se brinca com essas coisas, papá. És a única pessoa que tenho no mundo.

Sabrina fazia-lhe sentir remorsos sempre que tocava no assunto. Optou, pois, por desanuviar a situação.

- Então, tenta não me matar a conduzir dessa maneira.

- Sabes que raramente cometo um erro com as rédeas na mão. - E, ao dizer isto, fez outra curva, desta vez com precisão cirúrgica. - Esta já foi melhor - acrescentou, radiante de satisfação.

- Sabrina Thurston, és um monstro.

A rapariga fez-lhe uma vênia.

- Como o meu pai.

Sabrina perguntava-se, de vez em quando, se não se pareceria mais com a mãe... Como é que ela seria?... Com quem se parecia?... Porque morrera tão jovem?... Tinha um milhar de perguntas sem resposta sobre a mãe. Não havia nem um só retrato dela em toda a casa, nem uma miniatura, nem um esboço, nada. O pai só lhe dissera que morrera da gripe quando ela tinha apenas um ano Ponto final. Fim da história. Dissera-lhe também que a amara muito, que se haviam casado na véspera de Natal, em Atlanta, na Geórgia, no ano de 1886, e que ela, Sabrina, nascera um ano e meio depois, em maio de 1888, um ano antes da morte da mãe. Explicou-lhe que mandara construir a Mansão Thurston antes de casar com Camille, e que, naquele momento, uns quinze anos depois, sabia que ainda era a maior casa de São Francisco. Mas era uma relíquia, um túmulo, um lugar em que ela entraria «um dia», mas não com ele. Não era, pois, de estranhar que aquela espécie de mistério despertasse a curiosidade de Sabrina, sobretudo quando passeavam de carruagem por São Francisco. E chegou a sentir-se tão intrigada que forjou um plano e resolveu pô-lo em prática da próxima vez que fosse à cidade com o pai.

- Vamos a São Francisco amanhã, papá?

- Sim, minha pequena vilã, vamos. Mas vou ter reuniões no Nevada Bank durante todo o dia. Por isso terás de arranjar forma de passar o tempo. Disse à Hannah que achava que não devias vir comigo desta vez. - Sabrina ia a fazer qualquer objeção antes de o pai acabar a frase, mas ele pediu-lhe silêncio com a mão. - Já sabia qual seria a tua reação, por isso disse-lhe que, para a minha paz e tranqüilidade, iríamos juntos para a cidade. Na semana que vem, terás de falar com a tua tutora, Sabrina. Não quero que percas lições por andares comigo por aí. - Por instantes, pareceu severo, mas não se sentia muito preocupado. A rapariga era uma excelente estudante, e ambos sabiam que aprendia mais ao lado dele. Nesse dia, naturalmente, teria podido levá-la consigo ao banco, mas achou que um dia inteiro de reuniões teria sido demasiado para ela. - Leva alguns livros. Podes estudar um pouco no hotel, depois iremos dar uma volta quando chegar. Estreou uma nova peça de teatro que talvez gostes de ver. Escrevi ao secretário do presidente do banco a pedir-lhe que nos arranjasse bilhetes.

Sabrina bateu as palmas e voltou a tomar as rédeas, no preciso momento em que entravam no caminho de acesso à casa, para se deterem, pouco depois, diante da porta principal.

- Acho estupendo, papá. - E ela sabia exatamente o que faria quando ele estivesse nas suas reuniões. - E, como vês, não te podes queixar. Trouxe-te para casa são e salvo.

Jeremiah franziu o sobrolho e deu uma puxada no charuto.

- Sim, mas agradeço-te que da próxima vez que penses usar a minha melhor carruagem tenhas a amabilidade de me pedir.

Sabrina saltou com ligeireza para o chão, com um sorriso nos lábios, aspirando com agrado o cheiro acre do charuto.

- Sim, chefe! - Ao dizer isto, pulou para dentro de casa e cumprimentou Hannah com um grito e deu-lhe a notícia de que iriam para a cidade no dia seguinte.

- Já sei, já sei... - disse a velhota, tomando-lhe a cabeça entre as mãos. - E fala um pouco mais baixo. Meu Deus, estás aos gritos. O teu pai não precisa de mandar telegramas aos clientes. Bastaria que te assomasses à janela e lhes gritasses as mensagens para Filadélfia.

- Obrigada, Hannah. - Sabrina fez uma vênia à velhota, beijou-a na face e correu para o quarto a fim de lavar as mãos antes de jantar. - Andava sempre imaculadamente limpa e bem vestida, sem que ninguém tivesse de lhe dizer nada. Havia algo nela de Camille Beauchamp.

- Vais ver os pretendentes que ela terá daqui a uns anos - disse Hannah, enquanto a via desaparecer pelas escadas acima.

Jeremiah sorriu para a velhota e pendurou o casaco.

- Ela diz que vai viver sempre comigo e trabalhar nas minas para mim.

- Não é uma perspectiva própria de uma dama.

- Foi o que eu lhe disse. - Jeremiah soltou um suspiro e seguiu Hannah até à cozinha. Continuava a gostar de conversar com ela. Eram amigos há mais de trinta anos e, de certo modo, era a sua melhor amiga, e ele, o melhor amigo dela. Além disso, a velhota adorava Sabrina. - E a verdade é que se mostra excepcionalmente expedita em relação às minas. É pena não ser um rapaz! - Não era a primeira vez que dizia tal coisa.

- Talvez se case com um jovem a quem possas ensinar tudo o que sabes. Então, poderás deixar tudo aos teus netos.

- Talvez.

Jeremiah ainda não estava preparado para pensar naquelas coisas. E ainda faltavam muitos anos para Sabrina se casar. Mas, por outro lado, ele já não era jovem, e no ano anterior tivera um problema de coração. Nesse dia, Sabrina ficou aterrorizada ao encontrá-lo inconsciente no quarto de vestir, mas recuperara bem. Ambos tentaram esquecer o sucedido. O médico, porém, recomendara-lhe que reduzisse o ritmo de trabalho, conselho que Jeremiah recebeu com um sorriso. Para ele poder reduzir o ritmo de trabalho, teria de haver alguém que o mantivesse.

- Estás a ficar velho, Jeremiah. Deverias começar a pensar no teu futuro... - Fez um gesto com a cabeça na direção das escadas que conduziam ao quarto de Sabrina. E riu dela. - Ainda estás apegado àquela casa da cidade, não estás?

Jeremiah esboçou um sorriso triste.

- Estou. E sei que achas que estou louco, como sempre achaste. Mas construí a mansão com amor, e com amor a darei a Sabrina. Se quiser, que a venda. Não quero que ela um dia chegue ao pé de mim e me diga: «Porque não a guardaste para mim, papá?»

- Para que quererá ela em São Francisco uma casa maior do que dez estábulos?

- Nunca se sabe. Já sou feliz aqui. Mas talvez ela queira viver na cidade quando for maior. Assim, poderá escolher.

Jeremiah ficou em silêncio e ambos pensaram em Camille. Nunca merecera o carinho que ele lhe dispensara, e nunca mais tivera notícias dela, nem uma palavra, nem um sinal, nem uma carta. De qualquer modo, continuava legalmente casado com ela. O pai de Camille escrevera algumas vezes a Jeremiah. Ela vivera durante algum tempo em Veneza, depois mudara-se para Paris, sempre na companhia do homem com quem fugira, chamando-se condessa a si mesma e fingindo ser sua esposa. Não tinham dinheiro, e a França atravessava um inverno muito frio, o que levou a que Orville Beauchamp quebrasse a decisão de não querer voltar a saber dela e fosse vê-la. A esposa morrera e Hubert casara-se com uma rapariga do Kentucky. Jeremiah, por seu turno, decidira não deixá-lo ver Sabrina. Queria evitar a possibilidade de o sogro dar à filha uma versão diferente daquela que ele próprio lhe contara, durante anos. Orville Beauchamp não tinha mais ninguém na vida. Encontrava-se completamente só. Foi a Paris ver a filha, que vivia em condições precárias numa casa dos subúrbios da cidade, onde lhe nascera um filho morto. Mas quando tentou trazê-la consigo para os Estados Unidos, ela recusou-se a acompanhá-lo. O pai descreveu-a como «enlouquecida por uma paixão que não conseguiu compreender. Apegou-se ao desprezível amante e negou-se a abandoná-lo». Jeremiah leu também nas entrelinhas que Camille começara a beber, e que, provavelmente, abusava do absinto. Mas, fossem quais fossem os problemas dela, ele já não tinha nada a ver com isso. Orville Beauchamp morreu uns anos depois, mas Camille nunca regressou. Desde então, Jeremiah não voltou a saber nada dela, fato que, de certo modo, o deixara mais aliviado. Não queria que nenhum contato com Camille manchasse a vida de Sabrina. Não queria que ela soubesse que a mãe não morrera de gripe, tal como ele lhe contara. Para Jeremiah e Sabrina, a porta estava fechada, e nunca mais se voltaria a abrir para Camille.

Não voltara a haver ninguém como ela na vida de Jeremiah, ninguém por quem se tivesse preocupado tanto, ou que tivesse provocado nele uma paixão tão forte, à exceção, naturalmente, de Sabrina. Ela era agora o amor da sua vida, a sua razão de viver. E quando precisava de satisfazer outras necessidades, sabia onde se dirigir. Havia um bordel em São Francisco onde costumava ir, quando Sabrina não se encontrava com ele, e uma professora em Santa Helena com quem jantava de vez em quando. Mary Ellen casara-se há muito e mudara-se para Santa Rosa. Quanto a Amélia Goodheart, Jeremiah e Sabrina ficavam encantados de a ver sempre que ia a São Francisco visitar a filha. Sabrina adorava-a.

Embora estivesse já bem entrada nos cinqüenta, Amélia ainda era a mulher mais deslumbrante que Sabrina alguma vez vira. Continuava a ir a São Francisco uma vez por ano visitar a filha e os netos. Tinha já seis netos, e uma vez levara-os até Santa Helena. Sabrina adorava-a mais do que a qualquer outra mulher que conhecera. A simpatia, a ternura, a inteligência e a elegância que exibia fascinavam Sabrina. Os vestidos e as jóias que costumava trazer deixavam Sabrina sem respiração.

- É a mulher mais bonita do mundo, não è, papá? - perguntou, fascinada, certa vez.

O pai sorriu. Ele pensava o mesmo, e às vezes lamentava não ter insistido mais em casar-se com ela quando a conhecera no comboio, a caminho de Atlanta. Talvez tivesse sido uma loucura, mas, tendo em conta a forma como as coisas se haviam desenrolado depois, não teria sido uma loucura tão grande como a de ter casado com Camille Beauchamp. De fato, anos depois de a esposa o ter abandonado, Jeremiah, no decurso de uma viagem que fez a Nova Iorque com Sabrina, voltou a pedir a Amélia que casasse consigo, mas ela voltou a recusar com toda a amabilidade.

- Como poderia eu aceitar, Jeremiah? Já sou muito velha... - Tinha, então, cinqüenta anos. - Já estou acostumada a esta situação, a minha vida está aqui, em Nova Iorque... a minha casa...

Para ela, Jeremiah teria voltado a abrir a Mansão Thurston, e foi isso mesmo que ele lhe disse, mas Amélia mostrou-se firme na sua resolução de não voltar a casar, atitude que ele acabou por achar correta. Ambos tinham as suas vidas próprias, os seus filhos, os seus lares. Era demasiado tarde para reunir tudo debaixo do mesmo teto e, além disso, Amélia nunca teria sido feliz a viver fora de Nova Iorque. Era o centro da sua existência. Mas continuavam a ver-se quando das suas vindas anuais a São Francisco, e uma ou duas vezes por ano quando Jeremiah ia a Nova Iorque em negócios. De fato, sem que Sabrina soubesse, a última vez que lá fora ficara em casa dela.

- Na nossa idade, Jeremiah, que mal há nisso? Quem nos pode criticar? Só se podem admirar da paixão que ainda temos um pelo outro - disse ela, rindo como uma rapariga, e não podes engravidar-me. - Foram duas semanas maravilhosas em casa de Amélia, as mais felizes de que ele se lembrava e, antes de partir, ofereceu-lhe um belo broche de safiras e diamantes com uma inscrição atrás que fez com que Amélia desatasse a rir: «Para Amélia, com amor, J.T.». - Que dirão os meus filhos e os meus netos quando dividirem as jóias?

- Dirão que foste uma mulher apaixonada

- O que não deixa de ser um elogio.

Amélia acompanhou-o à estação, e desta vez foi ela quem ficou no cais, a agitar um enorme regalo de pele de zibelina enquanto o comboio se punha em marcha. Envergava um magnífico casaco vermelho adornado com peles de zibelina que condizia com o chapéu. Jeremiah nunca conhecera uma mulher tão bela. Se nesse dia a voltasse a encontrar no comboio, ter-se-ia apaixonado por ela como da primeira vez, quando ainda não conhecia Camille.

- Se ainda tivesse forças... - lamentara-se Jeremiah, pouco antes de partir, mas ambos sabiam que elas ainda não lhe faltavam. Demonstrara-o, noite após noite, durante a sua estada em Nova Iorque, e regressou a São Francisco com ar renovado e com um extraordinário bom humor.

- De que estás a sorrir, Jeremiah? - perguntou Hannah, enquanto ele tomava um café e ela preparava o jantar. - Aposto cinco cêntimos em como é essa mulher de Nova Iorque.

- E ganharias - disse ele, sorrindo.

Pensava muitas vezes em Amélia e, antes das suas visitas, ainda sentia o entusiasmo de um colegial. Mas ela não tinha de voltar a São Francisco nos seis meses seguintes, e ele não precisava de ir a Nova Iorque antes de três ou quatro. Seria, pois, uma longa espera até ele a ver de novo.

- É uma mulher muito fina e bonita - comentou a velhota.

Hannah não só a aceitava como também tinha um grande carinho por ela. Amélia ganhara o seu coração quando, certa vez, arregaçara as mangas e a ajudara a cozinhar para Jeremiah, Sabrina e os seis netos. Na realidade, fez a maior parte do jantar, e saiu-se muito melhor do que aquilo que Hannah esperava. Os diamantes a cintilar enquanto trabalhava, as mãos rápidas e hábeis, com um avental por cima do seu elegante vestido de Nova Iorque.

- E nem sequer se importou quando salpicou o vestido de molho de carne - acrescentou Hannah. Amélia ganhara a sua admiração para sempre.

- Ela é mais do que isso, Hannah. É uma mulher muito especial.

- Devias casar com ela, Jeremiah. - Hannah lançou-lhe um olhar de censura.

Jeremiah encolheu os ombros

- Talvez. Mas já é demasiado tarde. Temos as nossas vidas, os nossos filhos. Sentimo-nos bem como estamos.

Hannah fez um gesto de concordância com a cabeça. Jeremiah tinha razão. O tempo das loucuras já passara. Agora era a vez de Sabrina, e ela só esperava que a rapariga soubesse escolher mais acertadamente do que o pai.

- Sempre vais para a cidade amanhã. - Jeremiah assentiu com a cabeça.

- Só por dois dias.

- Vê lá se a Sabrina não faz nenhuma travessura enquanto estás a trabalhar. - Hannah continuava a achar que a rapariga devia ficar em Santa Helena.

- Já lhe disse isso. Mas sabes como é a Sabrina. - Não estranharia vê-la conduzir uma carruagem pela Market Street abaixo, a brandir o chicote, de sorriso de orelha a orelha, e a acenar-lhe. A imagem fê-lo rir enquanto ia lavar as mãos antes de jantar

 

Jeremiah e Sabrina partiram para a cidade às primeiras horas da manhã do dia seguinte. Apanharam o comboio para Napa, como de costume, e embarcaram aí no habitual barco a vapor que Sabrina tanto gostava. Nesse dia, como noutros dias semelhantes, gracejou, riu e divertiu o pai até chegarem à cidade, o que aconteceu ao cair da noite. A viagem era mais rápida do que anos antes, e chegaram a tempo de jantar, ainda que um pouco tarde, no Hotel Palace. Jeremiah observava a filha enquanto comia. Quando fosse maior, seria uma rapariga muito bonita. Já com os seus treze anos era quase tão alta como a maioria das mulheres que havia na sala e, inclusive, mais alta do que algumas delas. Todavia, tinha ainda um ar infantil, exceto quando franzia o sobrolho e começava a falar de negócios com ele. Alguém que os tivesse ouvido sem ver quem era a companheira de Jeremiah, teria pensado que ele conversava com uma sócia. Nesse momento, estava preocupada com o míldio que parecia começar a atacar as vides dos vinhedos. Jeremiah achava graça ao ar sério com que ela expunha as suas teorias, mas os vinhedos nunca haviam sido a sua preocupação principal. Dedicava mais atenção às minas, e Sabrina repreendeu-o por isso.

- Os vinhedos são tão importantes para nós como as minas, papá. Um dia darão tanto dinheiro como as minas, anota o que te estou a dizer.

No mês anterior, dissera o mesmo a Dan Richfield, e este rira-se das suas palavras. De fato, havia vinhedos no vale que começavam a dar bom dinheiro, mas não era nada que se comparasse com o lucro que se poderia obter nas minas. Toda a gente sabia disso, e Jeremiah recordou-lho naquele momento, mas ela insistiu. - Daqui a alguns anos, talvez isso possa acontecer. Olha para os excelentes vinhos que se produzem em França. Todas as nossas vides vêm de lá.

- Veja lá se não me transforma num bebedolas, minha cara senhora. Esse teu interesse pelos vinhedos traz água no bico - gracejou Jeremiah, mas ela não achou graça e fitou o pai com todo o ar sério dos seus treze anos.

- Também devias importar-te mais com eles.

- Uma vez que estás tão interessada, deixo-os a teu cargo.

O interesse de Sabrina pelos vinhedos era mais natural nela, pela sua condição de mulher, do que o que as minas lhe teriam podido despertar, embora Jeremiah soubesse que a rapariga teria podido opinar com o mesmo acerto sobre elas. Era indubitável que Sabrina mostrava queda para os negócios

Jeremiah teve ocasião de recordar isso mesmo, no dia seguinte, enquanto tomavam o pequeno-almoço no quarto, antes de sair para as reuniões com o presidente do Nevada Bank Sabrina passou todo o tempo a fazer-lhe perguntas sobre o negócio que ele ia fazer. Era óbvio que gostaria de acompanhar o pai. Todavia, Jeremiah reparou que ela não falava tão acaloradamente daquelas coisas como das outras vezes.

- Que vais fazer hoje, pequena?

- Não sei. - Sabrina olhou para a janela com ar pensativo, de modo a que o pai não pudesse ver-lhe os olhos. Ele conhecia-a demasiado bem para suspeitar que estava a magicar qualquer coisa. - Trouxe alguns livros. Acho que vou passar o dia a ler.

Jeremiah fitou-a por instantes, depois olhou para o relógio.

- Se tivesse mais tempo para pensar no que me disseste, provavelmente ficaria preocupado, minha menina. Ou não te sentes bem ou estás a mentir-me. Mas tens sorte. Estou atrasado e tenho de me ir embora.

Sabrina esboçou um sorriso carinhoso e beijou-o na face

- Até logo, papá!

- Porta-te bem! - Deu-lhe uma palmadinha no ombro e apertou-o suavemente. - E não te metas em sarilhos, Sabrina Thurston

- Papá - exclamou ela, surpreendida, enquanto o acompanhava até à porta. - Já sabes que eu nunca me meto em problemas!

- Ah! - respondeu Jeremiah, saindo porta fora. Sabrina deu uma volta completa sobre os calcanhares. Tinha diante de si todo um dia de liberdade, e sabia exatamente o que ia fazer. Trouxera uma pequena soma de dinheiro de Napa, o pai dava-lhe sempre dinheiro suficiente para o almoço e para qualquer outra necessidade que tivesse durante a sua ausência. Meteu o porta-moedas no bolso da saia cinzenta, trocou a blusa cor-de-rosa que trazia por uma blusa à marinheiro de algodão e calçou um par de botas velhas. Meia hora depois, estava comodamente sentada numa carruagem a caminho de Nob Hill. Dera a direção ao cocheiro e, quando chegaram, depois de pagar ao homem, desceu de um pulo da carruagem e deteve-se, quase sem alento e o coração palpitante, diante do portão principal. Profundamente emocionada, não conseguia acreditar no que estava a ver. Esperara por aquele momento durante meses e meses, já para não dizer anos. Ainda não sabia o que faria depois de saltar o portão. Na realidade, não tinha qualquer intenção de entrar na casa. Bastar-lhe-ia dar um passeio pelos jardins. Contudo, sentia-se irresistivelmente atraída pela casa que o pai mandara construir para a mãe

Rodeada de um parque frondoso, a Mansão Thurston encontrava-se mergulhada num profundo silêncio. Sabrina contemplou-a durante um longo instante, depois, concentrando toda a sua força nas mãos, começou a subir pelo portão acima, por um sítio donde não podia ser vista graças à proteção de uma árvore enorme. Enquanto subia, não parava de rezar para que nenhum transeunte ou vizinho a surpreendesse e a denunciasse a um polícia. Mas tinha muita prática de subir às árvores, de modo que, pouco depois, descia pelo portão abaixo, sentindo o coração a bater ainda mais depressa do que antes. Deixou-se cair quando os pés estavam a poucos centímetros do chão e permaneceu, por instantes, imóvel, satisfeita por ter conseguido o que tanto desejava. Encontrava-se no interior do recinto sagrado da Mansão Thurston, e embrenhou-se rapidamente nos jardins para não ser vista da rua. As árvores e os arbustos eram tão frondosos que teve a sensação de avançar através de uma selva e, logo que chegou ao caminho de acesso à casa, ficou completamente oculta do exterior E continuou a avançar, como se a casa a atraísse como um ímã.

Era impossível não pensar na mãe. Como devia amá-la o seu pai para lhe construir aquela mansão, e que feliz devia ela ter sido ali. Sabrina não conseguiu evitar perguntar-se o que sentira a mãe quando vira a casa pela primeira vez. Sabia que o pai a construíra para lhe fazer uma surpresa. Não conseguia imaginar algo tão encantador. Entristecia-a ver os batentes tão baços, quase irreconhecíveis, as janelas hermeticamente fechadas, e os degraus da entrada com ervas tão crescidas que lhe chegavam à cintura. A mansão, desabitada há doze anos, provocou-lhe uma profunda sensação de tristeza. Todavia, apetecia-lhe encostar o nariz a uma janela para espreitar para o interior e ver as salas e os quartos onde o pai e a mãe haviam vivido juntos, onde tinham dançado, por onde haviam deambulado. Encontrar-se naquele lugar era como ter ido ver a mãe. Tinha a sensação de que o simples fato de estar ali lhe permitia captar algo da sua personalidade. O pai fora sempre parco em palavras, e Hannah ficava com ar taciturno de todas as vezes que o assunto vinha à baila, e, de repente, Sabrina sentiu um desejo desesperado de absorver todas as migalhas de informação, por mais pequenas que fossem, sobre como fora Camille Beauchamp Thurston.

Lentamente, sem saber por que, Sabrina, de olhos postos nas persianas, deu uma volta completa à roda da casa abrindo caminho por entre as ervas. Ainda eram visíveis os canteiros. Nos jardins que havia por trás da casa, erguia-se uma bela estátua italiana de uma mulher com um bebê ao colo. Perto dela, havia um banco de mármore. Sabrina sentou-se nele, perguntando-se se os seus pais também haviam ali estado, de mãos dadas, ou se a mãe se sentara ali, consigo ao colo, nos dias soalheiros Naquele local, Sabrina intuía melhor a personalidade da mãe do que em Napa. Em Santa Helena, a casa parecia estar mais de acordo com o modo de ser do pai. Sabrina sabia que o pai, antes de se casar com a mãe, vivera muitos anos nela Mas ali tudo era diferente. Tratava-se de um palácio de amor construído para a sua mãe, pensou Sabrina, enquanto vagueava em torno da casa Sentia-se algo decepcionada. Sem saber por que, esperara ver ali algo mais significativo. Embora continuasse emocionada pelo simples fato de se encontrar dentro da propriedade, estava desapontada por nem sequer dar uma espreitadela por uma janela. Então, justamente quando ia voltar para a estátua da mãe com o bebê ao colo, reparou que uma das persianas estava partida. Tinha uma enorme greta, e uma das lâminas de madeira que a formavam estava solta. Era exatamente a oportunidade por que ansiava. Abriu caminho até à janela e encostou a cara ao vidro Mas a janela dava para um corredor escuro e não conseguiu ver nada. Fez então um esforço para acabar de arrancar a lâmina de madeira. Nem sequer sabia por que razão é que estava a fazer aquilo, mas deu-se conta de que conseguia abrir as duas persianas por completo. Então, instintivamente, fez pressão contra a janela e, para seu grande espanto, ela cedeu, abrindo-se com um forte rangido. Ficou perplexa. Mas só por instantes. Sem hesitar, subiu para o parapeito e saltou para o interior, fechando a janela atrás de si. O corredor não desvendava mais nada que aquilo que vira quando espreitara através do vidro. Encontrava-se, finalmente, no interior da casa com que sonhara toda a vida, a casa sobre a qual tantas perguntas fizera. A Mansão Thurston. Sim, encontrava-se dentro dela.

Não sabia se dirigir-se para a direita ou para a esquerda. Quando os olhos se acostumaram à semi-obscuridade, percebeu que se encontrava numa espécie de despensa. Estava tudo limpo e bem cuidado, mas muito escuro com as janelas fechadas. Sabia que ninguém entrara na casa nos últimos doze anos, mas estava tão bem fechada que, surpreendentemente, via-se muito pouco pó nela. Por instantes, Sabrina receara que a casa tivesse o aspecto de uma casa assombrada, mas só parecia vazia e deserta. Todavia, fosse como fosse, voltar para trás era uma questão que não se punha. Esperara demasiado tempo por aquele momento.

Avançou cautelosamente até ao final do corredor, girou a maçaneta e abriu a porta. Ficou quase sem respiração. O que viu por cima dela pareciam as portas do Céu. Acabava de entrar no grande salão principal, e sobre a sua cabeça encontrava-se a espetacular cúpula de vitrais que Jeremiah projetara e mandara construir para Camille. As suas tonalidades, que eram as do arco-íris, projetavam-se a seus pés como uma miríade de brilhantes manchas de cor, formando caprichosos e artísticos desenhos no solo. Depois de contemplar aquela maravilha, subiu a escadaria principal e entrou nos quartos. Encontrou o que fora o seu quarto quando era bebê, mas completamente vazio. Haviam levado tudo para Napa. No quarto principal, porém, sentou-se numa cadeira e olhou ao seu redor, como se pudesse sentir, com toda a sua intensidade, a dor que o pai experimentara doze anos antes. O quarto era como devia ter sido sua mãe: feminina e encantadora. As sedas cor-de-rosa estavam desbotadas ao fim de todos aqueles anos, mas o quarto ainda dava a impressão de ser um interminável canteiro de flores num dia de primavera. Um peculiar perfume, ainda que misturado com um cheiro a bafio, emanava das sedas. Sabrina ficou estupefata quando entrou no quarto de vestir da mãe e começou a abrir os armários. Jeremiah não deitara nada fora antes de abandonar a casa. Camille deixara vários pares de delicados sapatinhos de criança, além de sapatos de veludo vermelho que calçara para ir com Jeremiah à ópera, uma velha capa de peles e uma infinidade de vestidos. Sabrina tirou alguns deles, passando a mão pelos tecidos caros e cheirando o perfume que ela agora reconhecia. Os seus olhos não tardaram a inundar-se de lágrimas. Era como se tivesse ido visitar a mãe que nunca tivera e descobrir que ela se fora para sempre. Nesse instante, rodeada daquelas bonitas sedas cor-de-rosa, teve plena consciência do motivo que a levara ali: descobrir a mulher que fora sua mãe, alguma peça do puzzle, algum fragmento daquilo que ela fora. À medida que ia crescendo, era maior a ansiedade por encontrar algum vestígio que a levasse a conhecer melhor a mãe. Agora, vagueava, com ar estupefato, pela mansão onde os pais tinham vivido, a mansão para onde viera com quatro meses de idade e que deixara, para nunca mais voltar, quando tinha um ano, depois da morte da mãe

Também entrou no escritório do pai. Enquanto se sentava à secretária e dava uma volta na cadeira giratória, perguntou-se como era possível que ele não sentisse falta das coisas que deixara ali. Havia belas gravuras nas paredes e interessantes adornos em cima da secretária; no piso inferior, podia ver-se fila atrás de fila de valiosos objetos de cristal, porcelana e Prata. Jeremiah limitara-se a fechar a mansão e a partir para Napa, para nunca mais voltar. Ele dissera muitas vezes à filha que, um dia, aquela mansão seria sua, mas ela sempre a imaginara como uma casa com alguns móveis velhos cobertos de pó. Dava a impressão de que os seus ocupantes a haviam deixado precipitadamente e que depois nunca mais tinham voltado para buscar as suas coisas. Havia, inclusive, alguns livros em cima da mesinha-de-cabeceira da mãe, e um montão de lenços de renda nas gavetas. Como Sabrina estava a comprovar, o pai não deitara nada fora antes de partir. Sentia uma vontade enorme de abrir as janelas para deixar entrar o sol, mas não se atrevia a fazê-lo. De certo modo, tinha a impressão de se ter intrometido num mundo privado, na dor íntima de outra pessoa, e entendia agora por que razão o pai nunca mais quisera voltar àquele lugar. Para ele, teria sido como visitar o túmulo da esposa, e havia já demasiado tempo que abandonara tudo aquilo para conseguir voltar agora. Ah, teria sido obrigado a ver de novo os seus vestidos, sentir a sua presença, sentir o seu perfume; teria recordado as tristezas e as alegrias partilhadas com ela, assim como a profunda dor que devia ter sentido com a sua morte. Sabrina estava segura disso. Enquanto deitava um último olhar aos aposentos do pai, não conseguiu conter as lágrimas. Depois, desceu, com ar solene, a escadaria que dava para o piso inferior. A visita à mansão permitira-lhe intuir a delicadeza e a beleza da mãe, mas também despertara nela uma maior ternura pelo pai. Como em Napa, não existia ali nenhum retrato de Camille, mas havia algo muito mais importante, o cenário que rodeara a sua vida e a forma como vivera. Quando se deteve no salão principal para voltar a admirar a cúpula de vitrais, Sabrina sabia que, anos atrás, a mãe estivera naquele mesmo sítio, e talvez até com o mesmo ar fascinado. Tocara nas mesmas maçanetas das portas em que ela tocara e olhara pelas mesmas janelas porque ela olhara. Era como uma viagem ao passado, em que Sabrina sentia as mãos daqueles que ali haviam estado antes a tocar nas suas. Eram fantasmas benevolentes, mas não deixavam de fazer sentir a sua forte presença. Sabrina sentiu-se mais aliviada quando abriu de novo a janela, saltou para o exterior e fechou as persianas. Viera a um lugar que não lhe pertencia, mas estava feliz por ter vindo.

Voltou a percorrer o mesmo caminho por entre os jardins frondosos mas descuidados, fê-lo com lentidão, ainda absorta no que acabara de ver. Virou-se uma ou duas vezes para contemplar a mansão. Era um edifício magnífico. Lamentava não a ter podido ver antes, com os jardins bem cuidados e a mãe a passar de carruagem por entre eles. Que emoção pensar que ela também estivera ali, que tudo aquilo fizera parte da sua vida! Um dia, a Mansão Thurston seria sua, mas nunca voltaria a ser como era... a bela rapariga de Atlanta já lá não estaria, nem o homem que tanto a amara. Nada seria como antes. Aquele pensamento entristeceu-a, enquanto trepava pelo portão acima e se deixava cair do outro lado do mesmo. Só então se deu conta do seu aspecto horroroso. Rasgara a saia, a blusa à marinheiro estava imunda, tinha os cabelos desgrenhados e as mãos sujas, e o braço exibia um enorme arranhão. Todavia, não lamentava nada, e voltou apressadamente para o Hotel Palace. A caminhada era curta; precisava de respirar um pouco de ar puro, depois do longo dia passado na casa bafienta. Tinha a sensação de ter descoberto muita coisa, mas, ao mesmo tempo, estava feliz por ter visto tudo aquilo. Quando chegou ao hotel, dirigiu-se aos seus aposentos para tomar um banho antes que o pai voltasse das suas reuniões.

Jeremiah levou-a a jantar ao Delmonico’s, onde Sabrina, que não almoçara, devorou o bife que pedira. Todavia, apesar do seu visível apetite, mostrou-se estranhamente taciturna.

- Passa-se alguma coisa?

- Não - respondeu Sabrina com um vago sorriso. Não ousou olhar diretamente para o pai com receio de desatar a chorar. Só pensava na tristeza daquela casa vazia e em todas as coisas de sua mãe que vira e tocara, e que, depois, voltara a colocar cuidadosamente no seu lugar. Que grande amor ele tivera por ela. De repente, surgiu-lhe a visão de um homem desesperado que fugia para Napa com o seu rebento, um homem de coração dilacerado, incapaz de suportar a perda da sua jovem esposa.

- O que te preocupa, Sabrina?

Jeremiah conhecia-a demasiado bem, mas ela limitou-se a abanar a cabeça e a esboçar um sorriso forçado, tentando afastar da sua mente os melancólicos pensamentos que a invadiam. Mas não foi ela mesma durante toda a noite. Já no hotel, antes de se deitar, bateu suavemente à porta do quarto do pai e entrou logo que ele lhe deu permissão para o fazer.

- Boa noite, minha querida. - Beijou-a na face, mas depressa viu os olhos agitados. Estes tinham-no preocupado durante toda a noite. Convidou-a a sentar-se, coisa que ela fez com prazer. Fora ali fazer uma confissão. Nunca mentira ao pai, e não o iria fazer agora. Resolvera tirar aquele peso da consciência. - O que se passa, Sabrina?

- Tenho uma coisa para te contar, papá. Nesse momento, ali sentada, de camisa de dormir e robe, com os pés rosados a sobressair por debaixo do debrum de renda, não parecia ter mais de cinco anos. - Hoje fiz uma coisa, papá. - Não disse «maldade» porque não achava que fosse, mas sabia que era algo que iria aborrecê-lo. Provavelmente, ele nunca descobriria, mas confiavam um no outro há demasiado tempo para começar a mentir-lhe agora. Nesse aspecto, era muito diferente da mãe.

- De que se trata, pequena! A voz era meiga. - Fosse como fosse, tratava-se de algo que a deixara extremamente transtornada. Estava ansioso por saber o que era.

- Fui. - Engoliu em seco, quase arrependida por ter vindo, mas não podia hesitar. - Fui.. à Mansão Thurston - disse Sabrina num sussurro quase inaudível.

Jeremiah imaginou-a, pasmada, a olhar para os imponentes portões. Esboçou um sorriso meigo perante a confissão da filha e acariciou-lhe os cabelos sedosos apanhados em duas tranças.

- Isso não é nenhum pecado, pequena. Já foi uma bela mansão

- E ainda o é.

Jeremiah esboçou um sorriso triste

- Abandonada ao desleixo. Mas, um dia, antes de a dar a ti e ao teu futuro esposo, farei com que a deixem como nova.

- Não está tão mal como isso. - Sabrina parecia estranhamente segura do que estava a dizer.

Jeremiah fitou-a, intrigado

- Lá dentro, deve estar tudo bafiento e desbotado. Há doze anos que ninguém põe lá os pés. Deve estar um palmo de pó por todo o lado.

Sabrina abanou a cabeça, os olhos pregados no rosto do pai. Jeremiah ficou com ar estarrecido.

- Espreitaste lá para dentro? - Depois, algo sobressaltado, acrescentou: - Os portões estavam abertos... - Teria de lá ir nesse caso. Não queria curiosos nos jardins, nem, pior ainda, que alguém assaltasse a casa. Ainda lá tinha muitas coisas de valor. Mandava inspecionar de vez em quando o recinto da mansão e, miraculosamente, nunca houvera o menor problema. Sabrina soltou um profundo suspiro de alívio.

- Trepei pelo portão, papá.

Fora por isso que estivera com um ar tão taciturno. Felizmente, confessara a travessura.

Jeremiah lançou-lhe um olhar severo e disse-lhe.

- Isso é uma coisa imprópria de uma jovem senhora, Sabrina

Eu sei, papá. Então, contou-lhe o resto da aventura. As persianas de uma janela estavam partidas.. Jeremiah empalideceu, e a voz de Sabrina transformou-se quase num sussurro. Então, empurrei a janela... e vi tudo.. Os olhos ficaram transbordantes de lágrimas. Oh... papá., que casa mais bonita!... e como deves ter amado a mamã para lha ofereceres!.. Pôs-se a soluçar e escondeu a cara entre as mãos.

Jeremiah abraçou-a. Ainda não recuperara da surpresa.

- Mas... por quê? Por que razão é que lá foste, Sabrina? - A voz era suave e emocionada. Que poderia tê-la atraído àquele lugar? Não conseguia compreender. Era impossível que se lembrasse de lá viver, por isso, não se tratava de voltar a algo familiar, o seu ato não era mais do que uma simples travessura. Queria que ela lho explicasse. - Diz-me... sem nenhum temor, Sabrina. Tiveste a coragem de me dizer que estiveste lá, e fico contente por o teres feito. - Deu-lhe um beijo na face e pegou-lhe na mão. Jeremiah estava surpreendido por não se ter zangado com a filha, mas ficou desconcertado.

- Não sei, papá. Sempre desejei visitá-la, ver onde vocês viveram... saber como era a mamã. Pensei que talvez houvesse um retrato de.. - Deteve-se, com receio de magoá-lo, mas ele compreendeu e terminou a frase por ela.

- Da tua mãe. - Entristecia-o que Sabrina se preocupasse tanto com ela. Camille não merecia. Mas nunca lho poderia dizer. - Minha filha... - Enleou-a nos seus braços para acalmar os seus soluços. - Não devias ter ido.

- Oh, papá, mas... é tão bonita... aquela cúpula... - Sabrina olhou-o, extasiada, e sorriu. Há muito tempo que Jeremiah não pensava naquela cúpula. A filha tinha razão. Era extraordinária. De certo modo, estava contente por ela a ter visto.

- No seu tempo, foi uma bonita mansão. - Então, Sabrina disse algo que o surpreendeu.

- Quem me dera que ainda vivêssemos lá.

- Não gostas de Santa Helena, pequena? - Jeremiah baixou os olhos para ela, perguntando-se se, tal como a mãe, não gostava de Napa, mas Sabrina sempre lá vivera.

- Claro que gosto... mas a Mansão Thurston é... é tão bonita. Deve ser chique viver lá. - O modo como articulou as palavras fez rir Jeremiah, e Sabrina sorriu por entre as lágrimas.

- Quando fores mais velha, podes lá viver. Já uma vez te disse. - Agora era diferente, ela já sabia como era a mansão. Mas as palavras de Jeremiah não a alegraram.

- Já sabes que não me quero casar, papá. - Jeremiah teve então uma idéia

- Talvez tenha que te lá levar por qualquer outra razão.

- Estás a falar a sério, papá? Quando? - Os olhos esbugalharam-se à luz da lareira.

- Podíamos dar um baile quando completares os dezoito anos. Viveste no campo durante toda a vida, e não te fará nenhum mal continuares lá a viver durante mais alguns anos. Talvez isso refreie a tua tendência para as diabruras, minha menina. Mas quando tiveres dezoito anos, deves conhecer as pessoas adequadas de São Francisco.

- Por quê? - Parecia surpreendida.

- Porque é muito possível que um dia queiras alargar um pouco os teus horizontes. - Jeremiah não voltou a falar em casamento. Sabrina ainda era muito jovem para se preocupar com isso, mas achava que, daí a uns anos, dar um baile na mansão de São Francisco seria uma boa idéia. Nunca pensara nisso, mas gostava da idéia. Pensou então que nessa altura Sabrina teria a mesma idade que Camille quando se conheceram, embora desta vez o papel de pai orgulhoso fosse dele. - Talvez seja uma boa idéia. Poderíamos vir para São Francisco então e abrir a Mansão Thurston para ti. Que te parece? - Sabrina ficou atônita. - Um baile para ela? Abrir a casa que vira...

- Poderíamos dar a festa no nosso salão de baile.

A rapariga vira-o nessa manhã, e cerrou os olhos, tentando imaginar os seus pais a dançar naquele lugar: o pai, catorze anos mais novo, com a delicada beleza sulista nos braços.

- Como era a mamã? - Já esquecera o baile e pensava de novo na mãe.

Jeremiah baixou os olhos para ela e soltou um suspiro. Na realidade, teria preferido que a filha não tivesse ido à mansão naquele dia. E estava curioso por saber o que ela descobrira e até que ponto procurara vestígios do passado de Camille, dele e dela própria.

- Era muito bonita, Sabrina. - Resolveu contar-lhe uma pequena parte da verdade. - E muito mimada. As raparigas do Sul eram assim. O pai queria que ela tivesse tudo.

- Ele viu a mansão? - Jeremiah abanou a cabeça.

- Os pais dela nunca cá vieram. A mãe adoeceu logo a seguir ao nosso casamento e morreu pouco depois da... morte da tua.

- Mas estou certa de que teriam adorado a mansão. - Sabrina olhou para o pai com adoração infantil. - A mamã também.

- Suponho que sim. - De repente, lembrou-se da intensa vida social de Camille. Adorava dar festas. Recordou também o baile que a proibira de dar, e as festas a que devia ter ido com Thibaut du Pré, enquanto ele se encontrava em Napa. - Adorava sair.

- Não é de estranhar. Com os vestidos tão bonitos que tinha!

Jeremiah franziu o sobrolho.

- Como é que sabes?

Sabrina pareceu momentaneamente embaraçada.

- Hoje tive ocasião de ver as roupas dela, papá. Estavam todas lá. - Naturalmente, não estavam todas lá, mas Sabrina não podia saber isso, e ele também não lhe contaria.

Jeremiah soltou novo suspiro. - Talvez devesse ter feito algo com tudo aquilo quando... quando ela morreu... - Sabrina reparara que o pai pronunciava sempre aquelas palavras com dificuldade, como se lhe trouxessem recordações terrivelmente dolorosas. Jeremiah olhou para a filha. - Não deverias ter lá ido

- Desculpa, papá. Só que... andava curiosa há muito tempo

- Mas por quê? Temos uma boa vida em Santa Helena

- Eu sei. - Fez um gesto de concordância com a cabeça, mas os pensamentos voltaram para a bonita mansão, e quando olhou de novo para o pai fê-lo com os olhos cheios de esperança. - Vais mesmo dar uma festa em minha honra? Podemos ficar algum tempo na casa?

- Já te disse que é esse o meu desejo. - Jeremiah sorriu e puxou-lhe ternamente uma das tranças. - Se isso te faz feliz, princesa, então é uma promessa. Quando fizeres os dezoito anos.

- Adorarei. - Os olhos de Sabrina brilharam à tênue luz.

- Então, é uma promessa. - Ambos sabiam que ele era homem de palavra.

No dia seguinte, Jeremiah não voltou a dizer nada à filha sobre as suas deambulações pela mansão, mas falou com o seu amigo do Nevada Bank e deu-lhe instruções para que mandasse alguns homens reparar as persianas partidas e, se necessário, tapar todas as janelas com tábuas. Quando se encontravam já de regresso a Napa, só exigiu uma promessa a Sabrina

- Não quero que voltes a lá entrar, pequena. Entendido?

- Sim, papá. - Sabrina estava surpreendida por o pai não ter ficado mais zangado. - Não posso ir visitar a casa contigo um dia.

Jeremiah abanou a cabeça.

- Não tenho nenhum motivo para lá voltar, Sabrina. - Então, com um sorriso, acrescentou: - Até ao dia do baile dos teus dezoito anos. Fiz uma promessa, e sabes que a cumprirei. Então, iremos lá e passaremos algum tempo em São Francisco. Mas, entretanto, evita saltar vedações e de forçar janelas para vasculhar armários velhos e roupas de outras pessoas.

Sabrina corou ao ouvir aquelas palavras. Na realidade, aquilo era o que mais preocupara Jeremiah: que Sabrina tivesse desejado ter um vislumbre de Camille, ainda que mediante as roupas dos armários. Perguntou-se se aquela era a única razão que a levara à casa, pensamento que o deixou profundamente abalado. Tanto que a voz soou com aspereza quando acrescentou: Podias ter caído e aleijado, e ninguém teria sabido onde te encontrar. Foi uma insensatez. Jeremiah franziu o sobrolho e olhou para a janela do comboio. Sabrina só voltou a falar quando o comboio parou na estação de Santa Helena.

 

- Bem, Hannah, toma conta da casa enquanto estamos fora.

A velhota, a coxear e com cara de poucos amigos, desceu os degraus do alpendre com eles. A carruagem estava carregada com o que se poderia considerar todos os pertences de ambos, mas, na realidade, só se tratava dos novos vestidos de Sabrina. Jeremiah sorriu para a velha governanta. Quisera que ela os acompanhasse, mas ela insistiu que o seu desejo era ficar Aos oitenta e três anos de idade, tinha direito a fazer o que lhe desse na real gana. Hannah achava que aquela viagem era uma loucura.

- Afinal de contas, são só dois meses.

Era uma promessa que fizera a Sabrina anos antes. Nem sequer sabia se Sabrina queria que ele a cumprisse. Mas ficou surpreendido quando, meses antes, puxou o assunto e ela ficou encantada. Prometera-lhe abrir a Mansão Thurston para ela e dar um baile por motivo dos seus dezoito anos. «Talvez haja nela algo da mãe», dissera-lhe Amélia em tom de brincadeira, a última vez que viera à cidade. Mas Amélia também achou que era uma excelente idéia, e só lamentava não se encontrar em São Francisco por altura da festa. Nesse ano, estivera já duas vezes na cidade; uma, para assistir ao casamento da sua neta mais velha com um dos Floods, a outra, para estar ao lado da filha quando o seu genro morreu. Além disso, por estar ainda oficialmente de luto, a sua presença no baile seria malvista. Todavia, dera a Jeremiah todos os conselhos necessários a respeito da festa.

Acompanhara-o, inclusive, no dia em que ele abriu a mansão. E reparou no calafrio que Jeremiah sentiu ao entrar nela ao fim de tantos anos. Nessa ocasião, Amélia virou-se para ele e, num gesto de ternura, fez-lhe uma festa no braço.

- É melhor não dares a festa aqui. O Fairmount deve estar acabado nessa altura. Podias dar o baile lá.

Amélia interrogara-se muitas vezes sobre a razão por que ele não vendera a casa. Sabia as más recordações que tinha para ele, e não compreendia a sua obstinação por conservá-la para Sabrina.

- Quero dar o baile aqui - declarou Jeremiah com uma tensão no maxilar que não passou despercebida a Amélia.

Depois, percorreram a casa na companhia de uma numerosa equipe de criados. Havia um sem-número de coisas para fazer reparar, limpar, polir, pintar. Todavia, e surpreendentemente, a mansão não estava em muito mau estado. Mas o pior momento para Jeremiah foi ao entrar na suíte principal. Amélia sentiu imensa pena dele, e viu-o tão abatido que o aconselhou a dormir noutro quarto, idéia que ele agradeceu. Amélia manteve-se também a seu lado quando ele abriu o armário do quarto de vestir de Camille. Ia a sugerir-lhe que deitasse tudo fora, mas ele disse aos criados para porem tudo em caixas na cave.

- Por que razão é que queres guardar essas coisas. Nem ela as quis levar.

Enquanto desciam as escadas, Amélia parecia desconcertada. Preparar a mansão para o baile ia ser um trabalho titânico, mas ela achava o projeto fascinante

- A Sabrina pode querer as coisas da mãe um dia. - Cinco anos antes, quando Sabrina tinha treze anos, contara a Amélia a sua diabrura como saltara o portão e como entrara na mansão por uma janela das traseiras. - Dei-me conta então que, para ela, existia um grande vazio no tocante ao conhecimento que tinha da Camille, porque nunca a conheceu e eu muito pouca coisa lhe digo acerca dela. Tenho a impressão de que a Sabrina está convencida de que se trata de um tema tabu. Deve pensar que ainda estou de luto pela morte da mãe.

Jeremiah suspirou e sorriu para Amélia. Há vinte anos que se conheciam, mas ficava encantado por a ver como no primeiro dia. Mostrava-se sempre afetuosa, vibrante e cheia de vida. Era um verdadeiro prazer estar a seu lado. Aos sessenta, era ainda uma mulher muito bela, o que ele nunca se esqueceria de dizer sempre que a via.

- Que mentiras mais horríveis, Jeremiah! E que prazer tenho em que as digas, - proferiu Amélia a rir, e ele replicou com um beijo.

Amélia oferecera a Sabrina um bonito colar de pérolas e expressara a sua pena por não poder estar presente na festa.

- Nós também sentiremos muito a tua falta, tia Amélia, - Sabrina dera-lhe um beijo de agradecimento e prometera-lhe que usaria o colar de pérolas no dia do baile.

Amélia ajudara-a a escolher um elegante vestido de cetim branco adornado com artísticos bordados de pérolas. Era um vestido deslumbrante. Aconselhara-a também na escolha de outros três para usar por ocasião de outras festas a que fosse com o pai. Sabrina estava particularmente encantada com um deles. Era o vestido mais sofisticado que jamais usara na vida. O seu desenho fora objeto de longas conversas entre ela e Amélia. Era de um fino tecido dourado, e que, fazendo contraste com os seus cabelos negros e a sua pele cremosa, lhe assentava maravilhosamente. Escolheram um modelo não excessivamente comprido e, quando o vestido chegou a Santa Helena, Sabrina, entusiasmada com ele, resolveu mostrá-lo ao pai só quando o estreasse. Pensava usá-lo no dia em que fossem à ópera. A Metropolitan Opera Company de Nova Iorque viria a São Francisco, e Jeremiah levá-la-ia a ver Carmen, interpretada por Fremstadt e Caruso. A rapariga estava tão entusiasmada com a perspectiva da sua primeira noite de ópera como com aquilo que iria usar.

O vestido encontrava-se num dos baús que a carruagem transportava através dos jardins da Mansão Thurston. Por instantes, Sabrina recordou o dia em que entrara naquele recinto, depois de saltar o portão. Agora, dirigia-se para a mansão, em grande estilo, na nova carruagem do pai. Durante a última meia hora, haviam estado a falar do míldio que atacava as vides há vários anos, mas, de repente, só conseguiu pensar na maravilhosa mansão que tinha diante de si. Parou no salão principal, debaixo da magnífica cúpula, e recordou de novo a primeira vez que, clandestinamente, se detivera a admirá-la Mas, agora, não havia nada de clandestino. A mansão tinha um aspecto imaculado e havia flores por todo o lado, as peças de prata e bronze brilhavam; e, quando Sabrina se virou para ele, Jeremiah teve a sensação de que uma faca lhe trespassava o coração. Ela estava extremamente parecida com a mãe. Recordou a primeira vez que levara Camille ali, e a alegria que esta tivera ao saber que a mansão lhes pertencia. Jeremiah dera ordens para que a suíte principal ficasse à disposição de Sabrina. Não queria voltar a dormir ali e, além disso, as suaves sedas em tom rosa do quarto tornavam-no adequado para a filha. A idade de Sabrina era a mesma que a mãe tinha quando viera viver para ali, com a única diferença de que a filha não era uma mulher casada, mas uma rapariga solteira, muito diferente de Camille Beauchamp.

- Está tudo tão bonito, papá.

Sabrina não sabia para onde olhar primeiro. Jeremiah e Amélia haviam feito um trabalho surpreendente ao mandar pôr tecidos e cortinados novos E no salão de baile, recém-pintado, tudo tinha um novo brilho. Faltavam ainda três semanas para a festa. Sabrina estava impaciente, mas, entretanto, havia ainda muita coisa para fazer Iriam à ópera daí a dois dias, e estavam convidados para jantar, na semana seguinte, em casa dos Crockers, dos Floods e dos Tobins. Com o fim de poder apresentar a filha à alta sociedade de São Francisco, Jeremiah renovara várias amizades descuradas há anos. Queria dar o máximo brilho aos dois meses que Sabrina passaria na cidade, depois iriam passar o verão a Santa Helena. E, em outubro, Jeremiah voltaria a trazê-la para a cidade, onde permaneceriam até ao Natal. Não seria uma vida muito diferente da que começara a levar com Camille, mas, ao contrário da mãe, Sabrina mostrava-se agradecida por cada momento de prazer que a cidade lhe oferecia, e não punha o mínimo obstáculo a voltar para Santa Helena. Demonstrava um ativo interesse pelas minas e estava desolada com o desastre que se abatera sobre os vinhedos. Mostrava-se intrigada com o fato de o míldio ter afetado principalmente as vides de procedência européia, e tinha uma teoria segundo a qual as cepas norte-americanas sobreviveriam e resistiriam à calamidade. O pai, com toda a franqueza, admitia que ela dominava melhor o tema que ele. Durante anos, os vinhedos haviam sido a sua paixão, mas também estava atenta ao que se passava nas minas. Jeremiah costumava dizer, em tom de brincadeira, que quando morresse, ela conseguiria dar conta do recado sozinha.

- Não digas essas coisas horríveis, papá. - Sabrina não gostava de pensar na morte do pai. Aos sessenta e três anos, Jeremiah gozava ainda de boa saúde, embora, de vez em quando, o coração desse algumas preocupações. Mas Sabrina e Hannah cuidavam bem dele e o médico dizia que viveria, pelo menos, mais vinte anos. - Não terás outro remédio que viver todo esse tempo se quiseres ver-me casada e com uma dúzia de filhos. - Ainda adorava brincar com ele, mas o certo era que sabia muito dos negócios do pai. Passara muitas horas ao lado dele, a observar o que ele fazia e a escutar atentamente o que ele lhe explicava e, além disso, era uma rapariga com uma inteligência fora do comum. No entanto, naquela ocasião Jeremiah não queria que a filha pensasse em nada disso. Só desejava que ela se divertisse e que desfrutasse ao máximo da sua «primeira temporada». Era um momento importante para ela, e Jeremiah queria que tudo saísse na perfeição.

Havia enormes jarrões cheios de flores no seu quarto, e, no dia seguinte, já se sentia em casa. Ao acordar, pensou que a mãe dormira ali noutros tempos, olhara para o mesmo teto e para as mesmas janelas, e usara a mesma banheira. Isso deu-lhe uma sensação de intimidade com a mãe que jamais experimentara noutro lugar. Nos últimos meses, estivera na mansão várias vezes, a discutir com o pai as alterações que iriam ser feitas e o que eles precisavam, em termos de comodidades mais adequadas aos novos tempos, para viver ali. Muitas coisas haviam mudado desde que Jeremiah construíra a mansão, vinte anos atrás, e, embora fosse ainda uma das maiores casas da cidade, já não era a mais moderna Mas era, indubitavelmente, confortável.

Sabrina preparava-se para se vestir para ir com o pai à ópera. O vestido dourado, que condizia com uns sapatos do mesmo tecido metálico confeccionados expressamente para ela, esperava-a estendido em cima da cama. Levaria o colar de pérolas que Amélia lhe oferecera antes de partir e os brincos de pérolas e diamantes que o pai lhe oferecera no Natal. Penteou-se cuidadosamente depois do banho, pôs um pouco de rouge e pó-de-arroz na cara e passou baton nos lábios. Tudo isso fez-lhe realçar a sua beleza natural. Depois, pôs o delicado vestido, com a ajuda de uma das novas criadas. Por instantes, Sabrina teve a sensação de que a mãe a estava a observar, e perguntou-se se ela aprovaria o seu aspecto. Naturalmente, a pergunta ficaria sem resposta, mas foi óbvia a opinião de seu pai sobre ela quando desceu lentamente a escadaria principal, sob a cúpula de vitrais. Jeremiah contemplava-a, mudo de surpresa e com os olhos banhados de lágrimas.

- Onde é que arranjaste esse vestido, pequena? - Sabrina sorriu ao ouvir as carinhosas palavras do pai, pois não tinha nada de «pequena». Crescera até uma altura que, se podia ser algo excessiva para uma mulher, tão-pouco era exagerada. Parara de crescer na altura certa. Tinha um gracioso pescoço e uns braços longos e delgados, que o seu elegante vestido deixava bem à vista.

- Meu Deus, pareces uma deusa!

Ela correspondeu ao galanteio com um sorriso que refletiu todo o carinho, todo o amor que sentia por ele.

- Ainda bem que gostas. A Amélia ajudou-me a escolher o tecido e o modelo quando cá esteve. Mandei-o fazer especialmente para esta noite, papá.

E quando chegou à ópera acompanhada pelo pai, não se arrependeu. Como pôde comprovar, os tecidos metálicos e as lantejoulas de múltiplas cores eram o último grito da moda. O vestido de Sabrina destacava-se entre os mais bonitos, sobretudo pela sua delicada elegância. As mulheres de São Francisco haviam posto as suas melhores jóias, os mais suntuosos vestidos e as mais finas plumas para a ocasião. Na realidade, as representações de ópera tinham começado no dia anterior, mas o grande acontecimento social era essa noite com Carmen, interpretada por Caruso, depois do qual haveria bailes no Palace, no St Francis e no Delmomco’s. Os Thurston haviam decidido encontrar-se no St Francis com um grupo de amigos, mas, de momento, a Sabrina bastava-lhe o prazer de poder contemplar os luxuosos e sofisticados vestidos das outras mulheres. Tão diferente da vida calma que levavam em Santa Helena. De repente, pressentiu que aqueles dois meses iam ser excepcionais, e bendisse o momento em que o pai decidira voltar para São Francisco.

Quando, horas depois, saíram da ópera, Sabrina pressionou levemente o braço do pai. Jeremiah baixou os olhos para ela para ver se havia algum problema, mas só viu o radioso sorriso da filha que, naquele momento, parecia uma princesa de um conto de fadas.

- Obrigada, papá

- Por quê? - perguntou Jeremiah, antes de subir para a carruagem.

- Por tudo isto. Sei que não querias abrir a mansão nem voltar a viver nela. Fizeste-o por mim, e estou a adorar.

- Fico feliz por saber.

E o curioso é que estava feliz de verdade. Era emocionante voltar a encontrar-se num mundo cujos aspectos agradáveis quase esquecera. E seria maravilhoso apresentar a sua única filha à sociedade. Era graciosa, inteligente, meiga, equilibrada e encantadora. Jeremiah não encontrava mais palavras para descrever a beleza que ela exibia. Enquanto Sabrina olhava, fascinada, pela janela da carruagem que os conduzia ao Hotel St Francis. Jeremiah sentiu-se invadir por uma vaga de felicidade. O baile foi esplêndido. Toda a nata da sociedade se encontrava lá, inclusive o próprio Caruso, em certo momento A multidão que ia de um baile para outro e depois para festas mais pequenas dava à cidade um ar de festa. A ópera fora um grande acontecimento social. Sabrina ficou contente pelo fato de o seu baile se realizar só daí a três semanas. Assim, todos teriam tempo para se acalmar e preparar para novas emoções. Teria sido impossível competir com o brilho da noite de Carmen.

Eram três da manhã quando chegaram a casa, e Sabrina mal conseguiu dissimular um bocejo quando subia com o pai a imponente escadaria da Mansão Thurston.

- Que noite espetacular, papá! - Jeremiah concordou e Sabrina gracejou. - Se a Hannah nos visse chegar às três da manhã! - E desataram a rir, imaginando o sobrolho franzido da velhota e a reprimenda que ela lhes daria. Para ela, teria sido o cúmulo da devassidão e da indecência. - E teria dito que sou tal e qual a minha mãe. É o que me diz sempre que faço qualquer coisa de que não gosta. Elas deviam detestar-se. - Sabrina riu entre dentes e Jeremiah sorriu. Agora tinha graça, mas não tivera na altura. Quase nada do que Camille fizera tivera graça.

- Detestavam-se mesmo. A primeira vez que levei a tua mãe para Napa, envolveram-se em tremendas discussões.

Então, pela primeira vez desde a vinte anos, Jeremiah lembrou-se do «anel» que Hannah descobrira. Graças a Deus que o encontrara, caso contrário, Sabrina não teria existido. Mas isso era algo que, como tantas outras coisas, não podia contar à filha, e estava grato por Hannah também não o ter feito. Era uma mulher fiel e honesta, e uma excelente amiga há muitos, muitos anos.

Pai e filha deram um beijo de boas-noites à porta da suíte principal, ocupada agora por Sabrina. A rapariga, depois de entrar, dirigiu-se para a janela a fim de admirar os jardins bem cuidados. Como eram diferentes há cinco anos, quando saltara o portão! Era uma autêntica selva, pensou, com um sorriso a bailar-lhe nos lábios E imaginou a mãe, naquele mesmo local. Quantas vezes se teria detido a olhar por aquelas mesmas janelas, a altas horas da noite, ao chegar de um baile ou de uma festa. Sentia a casa ganhar vida, a mesma de há quase vinte anos. Considerava acertada a sua presença nela, e o mesmo pensava da decisão do pai de voltar a dar vida à mansão. Parecera-lhe tão triste quando, cinco anos antes, a vira pela primeira vez. Sorriu para a sua imagem refletida no espelho enquanto tirava o colar de pérolas que Amélia lhe ofereceu e, depois, o vestido dourado que exibira com tanto prazer. Quando desviou o olhar do espelho e o dirigiu para o relógio laqueado que havia por cima da mesinha-de-cabeceira deu-se conta de que eram quase quatro da manhã. Sentiu um ligeiro tremor ao pensar que nunca estivera levantada até tão tarde, pelo menos a divertir-se. Só se recordava de uma noite em que, por causa de uma inundação na mina, o pai só regressara de manhã E esta fora a noite mais divertida da sua vida. Nunca mais chegava o dia do baile, pensou, enquanto se deitava e apagava a luz. Esteve a tentar dormir durante quase uma hora, mas não conseguiu. Sentia-se demasiado excitada por tudo quanto vira e pelas festas em que estivera. Perguntou-se se o pai também estaria acordado. Finalmente levantou-se e foi até ao quarto de vestir. Resolvera só voltar para a cama ao nascer do sol. Não queria perder nada que se passava à sua volta. Sentia-se rejuvenescida. Entretanto, apeteceu-lhe um copo de leite quente. Vestiu o robe de cetim branco, calçou os chinelos, saiu do quarto e começou a descer a escadaria, mas, a meio, teve a estranha sensação de estar tudo a abanar, como se se encontrasse num transatlântico sacudido por forte ondulação. Era como se a casa andasse para cima e para baixo. Aquela situação manteve-se durante uns intermináveis segundos, até que Sabrina percebeu o que estava a acontecer. Era um terremoto. Acabou de descer as escadas com toda a rapidez de que foi capaz e correu para a porta principal. Nesse instante, a cúpula de vitrais estilhaçou-se violentamente e uma chuva de vidrinhos abateu-se sobre o salão principal. Sabrina, que se refugiara na ombreira da porta, a tremer, sem saber o que fazer, livrara-se de ter morrido completamente dilacerada. O pai falara-lhe muitas vezes dos terremotos de 1865 e 1868, mas só se lembrava que o melhor era refugiar-se na ombreira de uma porta aberta. Permaneceu aí durante alguns instantes, a tremer, sentindo o ar fresco de abril, enquanto a mansão era sacudida por novo abalo, mas desta vez de mais curta duração. No interior da casa, parecia estar tudo retorcido. Mesinhas de pernas para o ar, vidros partidos, a prataria espalhada pelo chão. Ao olhar para o entulho que a rodeava, Sabrina reparou que tinha um corte num braço, provocado por um pedaço de vidro caído da janela que se encontrava ao seu lado. Uma mancha escura de sangue espalhava-se pela manga da camisa de noite. Naquele instante, abriu-se uma porta no piso superior e ouviu a voz do pai a chamá-la no meio da escuridão. Já a procurara no quarto e não a encontrara.

- Sabrina! Sabrina! Estás aí?

Ao vê-la na ombreira da porta, Jeremiah correu pelas escadas abaixo e foi até junto dela. Os criados começavam a sair dos quartos do último piso. Duas das mulheres pareciam histéricas, as outras choravam, e até os homens estavam assustados. Entretanto, sentiu-se novo abalo e todos se sentiram invadir por uma crescente onda de pânico. Começaram a ouvir-se ruídos vindos do exterior: pessoas aos gritos e fortes estrépitos, como se partes das casas estivessem a desmoronar-se nas ruas. Sabrina verificou mais tarde que muitas das chaminés em tijolo se haviam desmoronado. Quando, ao fim de uma hora, se atreveu a sair em companhia do pai, depois de ele lhe ter ligado o braço, depararam-se-lhe inúmeros cadáveres entre os escombros. Era a primeira vez que tomava contato com a morte. Ficou profundamente abalada. A rua encontrava-se cheia de gente. O tremor de terra provocara enormes danos nos edifícios e havia pessoas feridas por todo o lado. Mas tornou-se evidente, a meio da manhã, que o maior problema da cidade era a quantidade de incêndios que o terremoto originara, com a agravante de se ter rompido a maioria das condutas de água, de modo que os bombeiros não tinham água para combater o fogo. Além disso, os sistemas de alarme haviam deixado de funcionar, e o próprio chefe dos bombeiros morrera sob os escombros de um quartel. Havia um ambiente geral de pânico, mas toda a gente alimentava a esperança de que todos os incêndios fossem rapidamente circunscritos. O pior de todos ardia a sul da Market Street, a seguir ao Hotel Palace. Este tinha uma fonte de água própria e podia fazer frente a quaisquer fogos que o ameaçassem. Mas as colunas de fumo negro que começaram a cobrir a cidade, naquela tarde de quarta-feira, encheram de terror toda a cidade de São Francisco. O governador Schmitz pediu ajuda ao general Funston, chefe da guarnição, de modo que, ao anoitecer, o exército já estava a fazer tudo quanto podia. Foi estabelecido o recolher obrigatório desde o pôr ao nascer do Sol e a proibição de se cozinhar no interior das habitações.

Em Nob Hill, Jeremiah e Sabrina haviam aberto os portões de par em par, permitindo que toda a gente se albergasse nos seus jardins e confeccionasse as refeições num espaço devidamente reservado para esse efeito. Jeremiah fazia parte do Comitê dos Cinqüenta, que, com sede no antigo Palácio da Justiça em Kearny e com a colaboração de Washington, se propusera organizar a cidade para fazer frente à calamidade. No dia seguinte, o comitê teve de abandonar a sua sede e mudou-se para Portsmouth Square, e desta vez Sabrina insistiu em acompanhar o pai.

- Ficas aqui!

- Não fico, não! - replicou, olhando-o com determinação. - Vou contigo. Quero estar contigo, papá.

E foi tanta a insistência que Jeremiah cedeu. Havia outras mulheres no comitê e, juntamente com os homens, estavam a fazer tudo o que podiam para ajudar a cidade moribunda. Era um dos momentos mais horríveis da história de São Francisco. Jeremiah mal conseguia acreditar no que via ao seu redor. Nesse mesmo dia, disseram-lhe que todas as mansões de um lado da Van Ness Street haviam sido dinamitadas com a intenção de salvar a parte oeste da cidade. Nem quis acreditar. E, como se aquilo ainda fosse pouco, o Comitê dos Cinqüenta teve de deixar Portsmouth Square e instalar o seu quartel-general no Hotel Fairmont, que, nessa altura, estava quase terminado. Permaneceu aí até que o fogo alcançou Nob Hill. Os seus membros saíram do edifício no preciso momento em que as chamas, que avançavam com violência em direção à mansão dos Flood, os cercava e começava a devorar as entranhas do edifício. Então, Jeremiah albergou o comitê na Mansão Thurston, onde se reuniu algumas vezes antes de ter de abandonar Nob Hill por completo. A própria colina parecia estar em chamas. O fogo escolhia caprichosamente as suas vítimas, destruindo algumas casas por completo e deixando outras intactas. Quando o Comitê dos Cinqüenta abandonou a casa no final do terceiro dia, a Mansão Thurston ainda estava intacta. Os jardins encontravam-se carbonizados, e as árvores da parte da frente da propriedade estavam todas tombadas, mas as chamas mal tocaram na fachada. Todos os estragos produzidos no interior do edifício haviam sido provocados exclusivamente pelo terremoto. Quando Sabrina se deteve à porta da mansão e olhou para o seu interior, ficou incrédula com tanta destruição em apenas três dias. Era como um pesadelo que se recusava a terminar. Ao olhar para o sítio anteriormente ocupado pela cúpula, só viu o céu negro coberto de fumo. Pareceu surpreendida por verificar que já caíra a noite. Nem sequer sabia em que dia é que se encontrava. Só sabia que a catástrofe durara vários dias e que as ruas haviam estado cheias de mortos e de gritos de moribundos. Ligara centenas de braços, pernas e cabeças, conduzira uma infinidade de crianças perdidas aos seus refúgios, ajudara muitas mães a procurar os filhos, e agora, completamente esgotada, deixou-se cair, com um suspiro de alívio, na imponente escadaria da Mansão Thurston. Os criados haviam abandonado a casa para prestar auxílio a quem dele precisasse ou para ir em busca de familiares ou amigos. Sabia que o pai se encontrava no piso superior. Observara um grande cansaço nele durante aqueles dias trágicos. Levantou-se para ir ver como é que ele estava. Talvez precisasse de um conhaque. Se tivesse fome, iria buscar-lhe algo para comer nas cozinhas coletivas de Russian Hill. Já não era um jovem, e fora tremendo o esforço despendido nos últimos dias.

- Papá! - gritou Sabrina, enquanto subia as escadas. - As pernas mal conseguiam sustê-la, tal era o cansaço. Ainda se ouviam gritos no exterior, o que indiciava que os incêndios em Nob Hill ainda não haviam sido extintos. E perguntou-se se alguma vez seriam. - Papá!...

Sabrina encontrou-o prostrado numa cadeira, na sua sala de estar privada. Encontrava-se de costas para ela, mas conseguiu comprovar que se encontrava tão cansado como supusera. Não o via assim desde a última inundação nas minas. Foi até ele em bicos dos pés e inclinou-se para lhe dar um beijo na testa.

- Olá, papá! - Soltou um profundo suspiro, sentou-se a seus pés e esticou o braço para lhe pegar na mão. Quantas coisas haviam sofrido naquela noite e, de certo modo, de quantos perigos haviam escapado. Nenhum dos dois sofrera ferimentos graves e a mansão, salvo alguns estragos, mantinha-se de pé. Ouvira dizer que o candeeiro da ópera caíra, e nem queria imaginar o que teria acontecido se o terremoto os tivesse apanhado aí na noite anterior. - Queres comer alguma coisa, papá? - perguntou, de olhos fixos no rosto dele. De repente, ficou paralisada de terror. O pai parecia olhá-la, mas não havia vida no seu olhar. Sabrina pôs-se instantaneamente de joelhos e deu-lhe umas palmadas na cara. - Papá! Papá! Fala comigo! - Mas a Jeremiah já não lhe restava nenhuma palavra por dizer, nem voz, nem vida... Depois da reunião do Comitê dos Cinqüenta no Hotel Fairmont, trouxera os outros membros até à mansão e, quando estes se foram embora, subira para os seus aposentos. - Papá! - gritou, no meio do silêncio da enorme mansão vazia. Começou a abaná-lo, mas o corpo de Jeremiah deslizou lentamente para o chão, onde ficou, rígido e imóvel. Sabrina apertou-o contra si. Os soluços começaram a tomar conta dela, da mesma forma que o fogo tomara conta da cidade. Calmamente, no mais completo silêncio, ele entrara no quarto, sentara-se... e morrera, aos sessenta e três anos, deixando órfã Sabrina, totalmente entregue a si própria, duas semanas e meia antes de ela fazer dezoito anos.

A rapariga ficou até altas horas da noite sentada no chão, junto a ele, paralisada pelo terror. Os incêndios continuavam a avançar furiosamente por Nob Hill, destruindo tudo ao redor da mansão, poupando-a miraculosamente. Mas Sabrina não pensava abandonar o pai. Manteve-se sentada no chão, a chorar, sem soltar a mão dele, mesmo quando as chamas se aproximaram perigosamente da porta principal. Por sorte, mudaram repentinamente de direção, e a aurora encontrou-a ainda ali, agarrada à mão do homem que fora seu pai. Quase todos os incêndios da cidade haviam sido dominados, e o terremoto terminara. Mas, para Sabrina, a vida, sem ele, não voltaria a ser como antes.

 

Sabrina levou o corpo do pai no barco a vapor até Napa, donde seguiu em cortejo fúnebre até Santa Helena. A carruagem das minas aguardava-os no porto, juntamente com um grupo de mineiros de semblante carregado, vestidos com os seus fatos domingueiros. Só quando a carruagem se encontrava perto da mansão de Jeremiah é que Sabrina viu os restantes mineiros quinhentos no total alinhados, de ambos os lados do caminho, em profundo silêncio, à espera do homem que tanto admiravam e para quem tão duramente haviam trabalhado. Durante anos, lutara por eles, desenterrara-os da lama quando das inundações, arriscara a vida para roubá-los às chamas nos piores incêndios, chorara quando morriam... e agora eram esses homens que choravam por ele. Muitos não conseguiam conter o choro no momento em que tiravam os chapéus e a carruagem passava vagarosamente diante deles. Hannah aguardava-o no alpendre da casa com o rosto banhado em lágrimas e os olhos cegos pela mágoa. Oito homens transportaram, então, o caixão até ao quarto onde Jeremiah dormira durante os dezoito anos anteriores ao casamento.

Sabrina aproximou-se de Hannah, sem dizer palavra, e estreitou-a nos braços, enquanto a velhota soluçava no seu ombro. Depois, saiu por instantes para apertar a mão a alguns dos homens e agradecer-lhes a sua presença. Eles pouco tinham para dizer, não encontravam palavras para exprimir aquilo que sentiam. Permaneceram ainda alguns instantes no mesmo lugar e acabaram por se ir embora em grandes e silenciosos grupos. Os seus corações seriam enterrados juntamente com o homem que merecera o seu respeito e a sua estima. Para eles, jamais haveria outro patrão como aquele.

Sabrina entrou novamente em casa, e sentiu um nó na garganta ao deparar-se-lhe o caixão de mogno que haviam depositado no antigo quarto de Jeremiah. Nesse instante, puseram, cuidadosamente, sobre o féretro uma coroa de flores silvestres que Hannah fizera com as suas próprias mãos. Não conseguindo suportar por mais tempo a mágoa que lhe ia na alma, Sabrina virou-se e mergulhou a cabeça entre as mãos Com grande surpresa, sentiu então dois braços fortes que a abraçavam. Levantou a cabeça e viu Dan Richfield. Era o encarregado-geral das minas há já alguns anos e fora um homem de valor incalculável para Jeremiah.

- Estamos profundamente consternados, Sabrina. E queremos que saibas que estamos dispostos a fazer o que quer que seja por ti.

Via-se nos olhos do homem que estivera a chorar, mas nem sequer tentava dissimular esse fato. Voltou a abraçá-la, e assim ficaram, mas, pouco depois, Sabrina libertou-se dos braços dele e aproximou-se da janela, onde se deteve a olhar para o vale que Jeremiah tanto amara. Dava a impressão de que falava sozinha. Por instantes, só o suave odor das flores silvestres depositadas sobre o caixão e os soluços de Hannah oriundos da cozinha dominavam o ambiente.

- Nunca deveríamos ter ido para São Francisco, Dan. - Dan olhou para a bela silhueta de Sabrina, de costas para ele.

- Não te tortures, Sabrina. Ele queria levar-te para a cidade.

- Eu não deveria ter deixado - disse ela, virando-se para o homem que fora quase um filho para o seu pai.

Dan tinha então trinta e quatro anos e trabalhava para as minas dos Thurston há vinte e três. Devia tudo o que era e que tinha a Jeremiah. Sem ele, Dan não teria feito outro trabalho na vida que o de pá e picareta. Mas, graças a Jeremiah, dirigia as maiores minas do estado e era responsável por quinhentos homens, desempenhando bem o seu cargo, como Jeremiah confidenciara muitas vezes à filha.

- O lugar dele era aqui, tal como o meu - disse Sabrina, consumida pelo remorso. - Não deveria tê-lo deixado levar-me para a cidade. Se não o tivesse feito, ainda estaria vivo. - Os soluços impediram-na de prosseguir. Dan apressou-se a consolá-la, apertando-a contra si, mas Sabrina teve a sensação de que lhe faltava o ar. Sabia que Dan não tinha más intenções, mas apertava-a com demasiada força. Talvez esse afogo se devesse simplesmente à dor que a oprimia. - Oh, meu Deus! Que vou fazer sem ele?

- Tens tempo de pensar nisso. Porque não vais descansar um pouco? - Há dois dias que Sabrina não dormia. O seu rosto mostrava os efeitos do desgosto que sentia, e os seus olhos pareciam dois insondáveis poços de dor. - Devias ir deitar-te. Pede à Hannah que te leve alguma coisa para comer.

Sabrina abanou a cabeça e limpou as lágrimas com a mão.

- É ela quem deve receber esses cuidados de mim. Sou muito mais nova do que ela e não estou tão abatida.

- Tens de cuidar de ti. - Fez uma pausa e fitou-a demoradamente. Queria perguntar várias coisas a Sabrina, mas tinha de esperar. Era muito cedo. O cadáver do pai ainda se encontrava ali. - Queres que eu te acompanhe? - A voz era meiga, mas Sabrina abanou a cabeça com um sorriso amargurado. Mal conseguia falar. A angústia era muita. Não conseguia imaginar a vida sem o pai.

- Estou bem, Dan. Porque não vais para casa?

Dan tinha uma esposa e filhos em que pensar, e era muito pouco o que podia fazer ali. Já estava tudo tratado para o funeral de Jeremiah no dia seguinte. Sabrina queria uma cerimônia breve. Ele próprio quereria uma cerimônia simples, sem a menor ostentação. Jeremiah ter-se-ia emocionado se tivesse podido ver os homens que se haviam alinhado de ambos os lados do caminho à sua espera, e que, nessa noite, desfilaram, um a um, diante do pesado caixão de mogno, de cabeça baixa e os olhos banhados de lágrimas. Sabrina desceu uma infinidade de vezes para lhes apertar a mão e expressar-lhes o seu agradecimento. Entretanto, Hannah preparara uma enorme cafeteira de café e tabuleiros de sanduíches para os obsequiar. Sabia que viriam todos, e ficou feliz por ver que nenhum faltara. Nunca haviam conhecido um homem tão bom como Jeremiah Thurston, e deviam-lhe a homenagem que estavam a render-lhe.

Nessa mesma noite, pouco depois das nove, um homem, de fato escuro e gravata, subiu as escadas da entrada principal. Tinha os cabelos grisalhos, os olhos negros e um rosto de traços bem marcados. Pareceu hesitar antes de entrar. Hannah reconheceu-o pelo seu ar enérgico, e foi imediatamente avisar Sabrina.

- O John Harte está cá.

Embora sendo o eterno rival de Jeremiah, nunca houvera inimizade entre eles. John Harte era extremamente reservado, era o seu modo de ser, e nunca perdera de vista o fato de que se encontrava em constante competição com as minas dos Thurston, mas tão-pouco esquecera as amabilidades que Jeremiah tivera para com ele. Os dois homens haviam-se encontrado raras vezes, mas, quando isso acontecia, olhavam-se com respeito, e sempre que havia um desastre numa das minas, o outro aparecia pessoalmente ou mandava os seus homens oferecer ajuda. John Harte nunca mostrara qualquer animosidade para com Jeremiah. Na realidade, admirava-o mais do que aquilo que se pensava E sentia sinceramente a sua morte. Poucas vezes vira Sabrina ao longo dos anos, mas ela sabia quem era e avançou para ele ao vê-lo Com o vestido negro, dava a impressão de ser mais alta e magra, e, sobretudo, ter mais de dezoito anos. Trazia os cabelos apanhados atrás num carrapito, os olhos pareciam enormes na sua cara pálida, e, quando estendeu a mão ao recém-chegado, parecia mais uma mulher adulta do que uma rapariga.

- Vim apresentar-lhe os meus sinceros pêsames, Miss Thurston. - A voz era profunda e suave, e os olhos fitaram-na durante um longo instante. A filha se não tivesse morrido, seria pouco mais velha do que Sabrina. Tinha três anos quando morrera, e nascera dois anos antes de Sabrina. Harte não voltara a casar, mas toda a gente sabia que tinha uma amante há dez anos. Vivia com ele na mina, e era uma índia da tribo dos Mayakmas, uma mulher de aspecto exótico. Uma vez, alguém chamara a atenção de Sabrina para ela. Tinha uns vinte e seis anos e dois filhos, mas nenhum de Harte. Este não fazia tenções de ter mais filhos nem de casar. Pusera um ponto final definitivo naquela parte da sua vida. Ao olhar para ele, Sabrina vislumbrou nos seus olhos indícios daquela antiga dor. Harte tinha a impressão de ter a filha diante de si. Falou em sussurro, de olhos postos no caixão onde Jeremiah jazia. Essa contemplação só lhe trouxe dolorosas recordações do passado, e ao voltar a falar fê-lo com um nó na garganta. Jeremiah estava comigo quando o meu filho morreu. Olhou para Sabrina, perguntando-se se o pai lhe falara disso alguma vez.

- Eu sei... ele contou-me... - Ficou muito impressionado. Naquele momento, a voz de Sabrina era suave como a brisa. John Harte fixou os seus olhos nos dela e gostou do que viu. Era uma rapariga forte, inteligente e sem pretensões, com uns olhos que pareciam devorar tudo o que viam. Estava curioso por saber a idade dela, mas sabia que não podia ter mais de dezoito anos. Jeremiah não estava casado quando Mathilda e os filhos tinham morrido, e isso acontecera há vinte anos, na primavera.

- Nunca esqueci o seu gesto naquela ocasião, quando me prestou o seu apoio e a sua companhia - murmurou. Nunca chegamos a conhecer-nos muito bem, mas eu admirava-o. E os seus homens adoravam-no. As pessoas deste vale só têm coisas boas a dizer do Jeremiah Thurston.

Aquelas palavras deixaram Sabrina de coração destroçado, e os olhos encheram-se de lágrimas. Virou-se e limpou-as com os dedos delgados.

- Desculpe... Não devia...

- Não tem de desculpar-se... - Sabrina sorriu e soltou um suspiro. Era inacreditável que o pai estivesse morto. Como é que podia estar? Adorava-o tanto... Teve de reprimir um soluço ao lembrar-se de que não estava sozinha. Levantou os olhos para John Harte. Era quase tão alto como o pai, e os cabelos tão escuros como os que o seu progenitor chegara a ter, embora a cabeleira grisalha também lhe ficasse bem. Apesar dos seus quarenta e seis anos, era um homem bem-parecido, tal como Jeremiah fora até ao fim... fim... fim... não conseguia suportar aquelas palavras. - Quer tomar café, Mister Harte? A Hannah tem-no na cozinha - disse, apontando para a porta.

- Não, devo deixá-la descansar. Sei que chegou hoje mesmo de São Francisco. Foi tão terrível como dizem?

- Pior ainda. Há destroços por todo o lado, edifícios destruídos pelo fogo... - Por instantes, a voz embargou-se. - Foi horrível. E o meu pai... - Fez um esforço para prosseguir, sob o olhar consternado de John Harte - ...fazia parte do Comitê dos Cinqüenta, para salvar a cidade... Foi demasiado para ele... o coração, sabe como é... - Sabrina não sabia por que razão é que lhe estava a contar tudo aquilo.

Embora mal conhecesse o homem, tinha de desabafar com alguém.

- Desculpe...

Harte segurou-a pelos ombros com as suas fortes mãos de mineiro.

- Tem de descansar. Conheço a dor por que está a passar. Eu também vivi horas semelhantes. Andei de um lado para o outro, a dizer disparates, sem descansar, até dar quase em maluco. Descanse, Miss Thurston. Continuar mais tempo sem descansar só pode piorar mais as coisas. Poupe as forças para amanhã. Vai precisar.

Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça, as lágrimas a correrem descontroladas pelas faces. Já não conseguia estancar aquela torrente. Ele tinha razão. Estava esgotada e meio histérica de dor. Não conseguia acreditar que o pai morrera, mas, os olhos de John Harte, viu neles algo de tranqüilizador. Era um homem muito afetuoso, apesar do que se dizia da sua altivez e orgulho, e do seu lado um pouco libertino, vivendo com a amante índia. Talvez por isso o seu pai não tivera muitos contatos com ele. Sabrina supunha, com razão, que aquela relação não era do agrado de seu pai.

- Lamento, Mister Harte, mas acho que tem razão. - Foram uns dias terríveis. E iria precisar de forças para o funeral, no dia seguinte.

- Há alguma coisa que eu possa fazer por si amanhã?

- Não, obrigada. O nosso encarregado leva-me na carruagem.

- É um bom homem. Conheço bem o Dan Richfield.

- O meu pai dizia que não teria sido ninguém sem ele. O Dan trabalha para ele desde os onze anos.

John Harte esboçou um sorriso triste. Muita coisa iria mudar na vida de Sabrina a partir daquele momento, e queria falar-lhe disso, mas não era oportuno fazê-lo agora. Já trocara impressões com Dan a esse respeito, e haviam acordado que ele esperaria uma ou duas semanas. Sabrina encontrava-se ainda demasiado abalada para pensar nas minas, e Richfield podia dirigi-las entretanto.

- Se houver alguma coisa que possa fazer por si, Miss Thurston, já sabe...

- Obrigada, Mister Harte.

Ele deu-lhe novo aperto de mãos e partiu no seu cavalo negro para a mina, para junto da sua exótica amante índia.

Depois de Harte partir, Sabrina deu consigo a interrogar-se sobre ele e a sua amante. Só se recordava de a ter visto, por acaso, uma vez. Era uma rapariga de cabelos muito negros e de delicada cara morena. Nesse dia de inverno, levava um casaco de peles brancas. Sabrina ficara intrigada ao ver que o pai aumentara a velocidade da carruagem em que seguiam e cumprimentara John Harte com um gesto muito sutil, ignorando completamente a índia. Sabrina ainda se lembrava das perguntas que fizera ao pai...

- Quem é ela, papá?

- Ninguém.. uma índia qualquer..

- Mas é bonita... -Sabrina ficara fascinada com ela, como se soubesse que aquela aliança era clandestina e censurável, o que, na realidade, era. Só que John Harte não fizera qualquer segredo dela há mais de nove anos. Não devia explicações a ninguém e tinha o direito de fazer o que muito bem lhe apetecesse. Fora o que ele sempre fizera. Não era homem de meias palavras, nem de esconder uma índia das vistas alheias. Ela era sua mulher, e ele, um homem livre. Que se danassem os intrometidos! - Era tão bonita, papá..

- Não reparei.

- Não é verdade Vi-te olhar para ela

- Sabrina! - Jeremiah fingiu ter-se irritado, mas Sabrina conhecia-o demasiado bem.

- Ai, olhaste, olhaste. Vi claramente. É uma rapariga muito bonita. Que há de mal nisso.

- Duas coisas, minha filha, para te pôr perante os fatos sem rodeios: não estão casados e ela não é branca. Por isso, devemos fingir que ela não existe ou que, se o admitirmos, consideramo-la como algo indigno de ser olhado. Mas a verdade é que ela é uma rapariga muito bonita, e o Harte está encantado com ela. Como tal, melhor para ele. Não tenho nada a ver com quem é que ele dorme.

- Convidá-los-ias cá para casa? - Sabrina estava intrigada. Ele nunca os convidara. Mas John Harte e o pai nunca haviam sido amigos íntimos.

- Não, não convidaria. - Jeremiah não parecia irritado, mas o tom de voz era firme.

- Por que não? - Sabrina não compreendia.

- Por ti, pequena. Não seria correto. Se eu vivesse sozinho, talvez os convidasse, porque sempre tive grande estima por ele. É um bom homem e tem uma boa mina, não tão boa como a nossa, claro - disse Jeremiah, com um largo sorriso nos lábios, - mas é boa.

- Achas que ela é inteligente? - Sabrina continuava fascinada pela rapariga índia.

- Não faço a menor idéia. - Riu-se da inocência da filha, deu-lhe uma palmadinha na bochecha e esboçou um sorriso terno. - Não creio que ele a ame por causa disso, Sabrina. Nem todas as mulheres são inteligentes. Nem todas são obrigadas a sê-lo.

- Mas, pelo menos, deviam tentar sê-lo, não achas? - A seriedade com que Sabrina encarava as questões deixava Jeremiah profundamente enternecido.

- Sim, acho que deviam tentar.

Ao fim e ao cabo, havia algo de Camille nela. Esta fora tão inteligente e mostrara-se sempre tão interessada pelas coisas dos homens, sobretudo pelos negócios. Teria gostado de saber mais sobre a mina, se Jeremiah lho tivesse permitido Mas este nunca achara correto que a esposa se imiscuísse nos seus negócios. Por outro lado, com Sabrina, era diferente. Ensinara-lhe tudo e mostrara-lhe tudo o que fazia, quase como se de um filho se tratasse, e estava orgulhoso do que ela sabia sobre os vinhedos, as minas e os negócios que ele fazia com o Este. Parecia perceber tudo, e não passava um dia sem que partilhasse algo novo com ela. Sem Camille, se não fosse Sabrina, ter-se-ia sentido muito só. Sabrina fora sua companheira durante dezoito anos, e agora... era ela quem estava só... recordando o passado... ouvindo a voz do pai nos seus ouvidos. Nessa noite, deitada sobre a cama, Sabrina ainda não acreditava que ele tivesse morrido. Como podia ter acontecido uma coisa daquelas? Mas acontecera.

E teve ocasião de confirmar isso mesmo, no dia seguinte, quando o féretro foi transportado até à sepultura e aí depositado, quando cada um dos quinhentos e seis mineiros e dos cento e três amigos deitou um pouco de terra por sobre o caixão. Até Mary Ellen se encontrava ali, atrás da multidão, a chorar baixinho. Finalmente, depois de olhar demoradamente para o caixão, Sabrina cerrou por instantes os olhos alagados em lágrimas e, enquanto apertava a mão de Dan Richfield, atirou um punhado de terra sobre a urna. Depois, abandonou o lugar, por entre os olhares respeitosos dos presentes. Enquanto subia lentamente as escadas da entrada da casa, teve a sensação de que o mundo chegara ao fim. Sentia o corpo todo dormente. Dan Richfield não tirava os olhos dela. A esposa não assistira ao funeral, encontrava-se novamente grávida. Sabrina raramente a via. Era uma mulher pálida e pouco atraente cuja única missão no mundo era a de dar ao marido um filho todos os anos. Sabrina nunca tivera a impressão de que aquela mulher gostasse de Dan. Vivia com ela e não paravam de aumentar a descendência, mas não se podia dizer que houvesse entre eles algo que se pudesse chamar carinho. Sabrina olhou para ele quando chegaram a casa.

- Ainda não acredito que ele tenha morrido, Dan. Parece que, de um momento para o outro, ouvirei os seus passos no alpendre e pelas escadas acima... Continuo a pensar que ouvirei o cavalo dele... - Olhou para Dan com os olhos já secos, mas vazios de expressão. - Custa-me habituar-me à idéia de que nunca mais voltarei a vê-lo.

- Continuarás a vê-lo. Com os olhos da mente. Era uma parte tão importante de nós que nunca estará morto.

Foram palavras muito bonitas, e o primeiro reflexo de Sabrina foi estender o braço e tocar-lhe na mão, ao mesmo tempo que esboçava um sorriso triste.

- Obrigada, Dan. Por tudo.

- Não fiz nada de especial. Um destes dias, teremos de falar. Agora, não é o momento adequado para o fazer. - Era ainda muito cedo, e ela tinha consciência disso. As palavras de Dan surpreenderam-na.

- Aconteceu alguma coisa na mina? Quero dizer, passou-se algo de especial durante esta semana? Só pensei em mim desde... - Não conseguiu terminar a frase, mas Dan percebeu o que ela queria dizer.

- Não, claro que não. Não aconteceu nada de mal, só que terás de fazer algumas alterações, e terás de me dizer o que pretendes.

Dan supusera que a direção das minas ficaria nas suas mãos, a não ser que Sabrina as vendesse, e precavera-se falando com John Harte acerca dessa eventualidade. Sucedesse o que sucedesse, continuaria à frente das Minas Thurston, quer John Harte as comprasse ou não. Se Sabrina resolvesse não as vender, manteria a sua posição, mas, pessoalmente, achava que ela as devia vender. Seria melhor para si. Jeremiah fizera sempre sentir a sua forte presença na mina, não era uma mera figura ornamental. Dirigira o seu império sozinho, e Dan trabalhara sempre muito perto dele. E estava preparado para dirigi-las por Sabrina. Tinha a experiência necessária e aprendera com o melhor, tal como ela. Dan reparou que Sabrina o olhava fixamente.

- A que alterações te referes, Dan? - perguntou ela com voz suave e certa dureza no olhar. Dan observara aquela combinação no pai da rapariga, e não conseguiu evitar um sorriso.

- Quando pões essa cara, pareces o teu pai. - Sabrina esboçou um sorriso, mas os olhos não o acompanharam, só os lábios. - Só queria dizer que, mais cedo ou mais tarde, teremos de falar do que tencionas fazer, se as vais manter ou vender.

Sabrina pareceu surpreendida. E, endireitando-se na cadeira, ripostou.

- Que diabo é que te fez acreditar que penso vender as minas? Claro que fico com elas.

- Tudo bem, tudo bem. - Enquanto tentava acalmá-la, viu algo que não gostou nos olhos da rapariga. - Compreendo muito bem como te sentes, mas é muito cedo para se tomarem decisões.

Sabrina não gostou do que, indubitavelmente, escondiam aquelas palavras e, de repente, franziu o sobrolho e fitou-o, olhos nos olhos.

- O que é que tinhas exatamente em mente, Dan? Que eu venderia as minas?... A ti, por exemplo?

Dan apressou-se a menear negativamente a cabeça.

- Nem pensar! Nunca me permitiria tal coisa. Sabes bem.

- Fizeste alguma combinação com alguém? - O olhar de Sabrina era implacável e penetrante. Dan voltou a abanar a cabeça.

- Não, de maneira nenhuma. Por amor de Deus, o teu pai acaba de nos deixar há apenas dois dias! Como poderia...?

- Isso não tem nada a ver com o fulcro da questão. Os abutres movem-se às vezes muito rapidamente. Só quero ter a certeza de que não és um deles. - Parecia estranhamente decidida ao disparar-lhe aquelas palavras e, quando se levantou e começou a andar pelo quarto, ninguém diria que só tinha dezoito anos. - Quero que fiques ciente de uma coisa: não vou vender as minas do meu pai. Nunca! Percebido? E eu própria as dirigirei, tal como ele fez. - Dan olhava-a, pasmado, como se fosse desfalecer a qualquer instante, mas o semblante de Sabrina não se alterou. - Começarei na segunda-feira e farei um exame geral da situação, mas a verdade é que já estou preparada para isto há alguns anos. Era como se soubesse que eu as iria dirigir um dia. - E ficou em silêncio, no meio do quarto, com as mãos nas ancas. Dan olhou-a como se estivesse diante de uma demente.

- Estás no teu perfeito juízo? Acabaste de fazer dezoito anos, ainda és uma criança... na realidade, uma menina... e vais dirigir as Minas Thurston? São as minas mais importantes deste estado, e o teu pai sempre desejou que continuassem a sê-lo. Serás o alvo de risota de todos os clientes e, em menos de um ano, terás destruído tudo o que ele construiu. Não estás boa da cabeça, Sabrina! Vende-as, por amor de Deus! Troca-as por bom dinheiro, põe-o no banco, arranja um marido e dedica-te a ter filhos. Mas, por amor de Deus, não te enganes a ti mesma acreditando que consegues dirigir as minas do teu pai, porque não conseguirás. Levei vinte e três anos a aprender aquilo que sei. Pelo menos, permite-me que as dirija por ti.

Sabrina sabia que aquele era o propósito de Dan desde o princípio. Embora precisasse da sua ajuda, não cederia às suas pretensões.

- Não posso vendê-las, Dan. Preciso da tua ajuda. Mas tenho de as dirigir pessoalmente. Foi para isso que nasci. - Dan olhou-a com uma expressão que Sabrina nunca vira no rosto do homem, uma expressão de ira nascida do ciúme e do despeito perante um plano frustrado. Perdida a compostura, levantou-se e, meneando o punho junto ao rosto de Sabrina, ripostou:

- Tu só nasceste para abrir as pernas ao homem com quem te casares, e nada mais! Percebeste?

Os olhos de Sabrina semicerraram-se de indignação. Pareciam duas balas prestes a fulminá-lo.

- Nunca mais voltes a falar-me desta maneira! Agora, sai da minha casa, e esquecerei o que acabas de dizer. Encontramo-nos no escritório, na segunda-feira. - E ficou a olhá-lo fixamente, enquanto um tremor de cólera lhe percorria o corpo. Não ignorava que ele se encontrava ressentido, mas tivera de o pôr no seu lugar. Não podia permitir que ninguém a tentasse dominar. E, sem hesitações, disparou. - E se voltas a faltar-me ao respeito, terás de procurar trabalho noutra mina, Dan.

Dan lançou-lhe um olhar furibundo e dirigiu-se em passada larga para a entrada principal.

- Talvez seja o melhor para mim. E para ti também. - E fechou a porta com estrondo.

Pela primeira vez na vida, Sabrina resolveu beber algo que não água. Serviu um conhaque e bebeu-o de um trago. Não sabia qual seria o resultado, mas sentiu-se muito melhor. Subiu então até ao quarto e sentou-se. Agora já sabia o que teria de enfrentar... «Tu só nasceste para abrir as pernas ao homem com quem te casares».. Seria isso que todos pensavam? Que imaginaria toda aquela gente? Dan... John Harte... os homens que agora trabalhavam para ela... Começava a fazer uma idéia do difícil que iria ser a sua tarefa.

Às seis da manhã, montou no seu cavalo e foi até à mina. Queria dispor de algum tempo antes de falar com os homens. Leu tudo o que se encontrava em cima da secretária do pai, mas estava tão ao corrente de tudo que quase não descobriu nada que já não soubesse. A única surpresa foi uma carta por abrir escrita por uma rapariga de «uma casa» do Bairro Chinês de São Francisco. Agradecia a Jeremiah o generoso presente que ele lhe oferecera na última vez que lá estivera, mas Sabrina não ficou chocada. O pai tinha o direito de fazer tudo aquilo que lhe apetecesse. E deixara-lhe tudo em ordem nas minas. No dia anterior, o seu advogado lera-lhe o testamento. Era um documento muito simples. Jeremiah deixava todos os seus bens à sua única filha, Sabrina Lydia Thurston: os investimentos, os bens imobiliários, as casas, as terras e as minas. Referia especificamente que nenhuma outra pessoa podia herdar as suas propriedades ou fortuna. Deixava tudo a ela, e a veemência com que o pai expressara a sua última vontade deixou Sabrina algo perplexa. Quem mais poderia querer herdar algo dele? Ela era tudo o que ele tinha. Deixara igualmente duas boas somas em dinheiro a Hannah e a Dan, o que lhes proporcionou grande satisfação. Sabrina esperava que Dan estivesse mais calmo, de forma a comportar-se corretamente com ela. Precisava da sua ajuda. Imaginava a surpresa com que os mineiros receberiam a notícia de que desejava ocupar o lugar do pai. Sabrina sabia que tinha capacidade para isso. O muito que o pai lhe ensinara em dezoito anos dava-lhe plena confiança no êxito do seu propósito. Mas, agora, tinha de convencer toda a gente disso. Sabia que, para os homens, trabalhar para uma mulher podia parecer-lhes estranho, sobretudo tratando-se de uma mulher tão jovem como ela.

Não ignorava as contrariedades com que teria de se defrontar. Mas a reação por parte dos mineiros não podia ser pior. Fez soar a sirena da mina para chamá-los para o seu escritório. Três toques teriam significado que surgira uma emergência na mina. Quatro, um incêndio. Cinco, uma inundação. Seis, uma morte. Mas só deu um, e esperou tranquilamente a chegada dos homens no alpendre do escritório. Esperou um bom bocado e repetiu o toque. Finalmente, começaram a chegar em grupos, a cavaquear entre eles, com as picaretas e demais ferramentas. Àquela hora da manhã, estavam já sujos da cabeça aos pés, com aspecto daquilo que realmente eram: mineiros, com uma profissão extremamente árdua. Eram mais de quinhentos os homens que se concentraram diante do escritório para escutar Sabrina. Aquela gente, que agora trabalhava para ela, não oferecia um aspecto muito tranqüilizador, teve de reconhecer, ao mesmo tempo que sentia um calafrio percorrer-lhe a espinha. Nesse instante, o império era seu... as Minas Thurston...

- Bom dia a todos. - Estavam agora às suas ordens.

Trabalhavam para si, e ela estaria ao seu lado em tudo o que fosse necessário. Pareceu-lhe sentir uma onda de calor procedente daquela multidão. Faria tudo o que pudesse por aquela gente. Nunca os abandonaria. Era isso que ela queria dizer-lhes naquele momento. - Tenho algumas coisas para vos dizer. - Usava o mesmo megafone que o seu pai costumava usar em ocasiões semelhantes. Os homens apinharam-se à sua volta para a ouvir melhor. Dan Richfield observava-a do seu lugar. Sabia como eles reagiriam. Não engoliriam aquilo que Sabrina pensava dizer-lhes, pelo menos, assim esperava. Contava com eles para a realização dos seus planos. Primeiramente, quero agradecer a todos a presença, na semana passada, quando da minha chegada com o meu falecido pai. Teria significado muitíssimo para ele. - Fez uma pausa, tentando conter as lágrimas. - Vocês eram tudo para ele. E ele faria tudo por vós. - Os homens concordaram com a cabeça.  - Agora vou dizer-vos uma coisa que talvez vos surpreenda. - Reparou que havia uma expressão de angústia nos rostos daqueles que se encontravam mais perto e, instantaneamente, adivinhou o que estavam a pensar.

- Vai vender as minas, não é? - Sabrina abanou a cabeça.

- Não, não vou vendê-las. - Estas palavras pareceram tranquilizá-los. Gostavam do seu trabalho e eram felizes nas Minas Thurston. Iria tudo correr bem. Richfield manteria a sua posição. A maioria deles assim esperava. Nos últimos dias, não se falara noutra coisa nos bares. Houve, inclusive, algumas apostas. E agora todos ansiavam ouvir o que Sabrina tinha para lhes dizer. - As minas vão continuar exatamente como estão, cavalheiros. Nada irá mudar. Cuidarei para que assim seja. Prometo. - As suas palavras foram acolhidas com vivas, aplausos e olhares de adoração. Sabrina levantou uma mão e sorriu. As coisas estavam a correr melhor do que imaginara. - Vou dirigir as minas pessoalmente, da mesma forma que o meu pai o fez. Com a ajuda do Dan Richfield, que também ajudou o meu pai a dirigi-las. Manterei a mesma política que ele...

Já não a escutavam. Começaram a gritar e a mofar dela.

- A menina a dirigir as minas? Pessoalmente? Está a tomar-nos por idiotas?

- Trabalhar às ordens de uma mulher?... Deve estar chalada!... Ela não passa de uma miúda!...

A gritaria transformou-se numa barafunda que afogou a confiança que alguém pudesse ter ainda nas palavras de Sabrina, que fazia todos os esforços para evitar um tumulto.

- Escutem-me, por favor!... O meu pai ensinou-me tudo aquilo que sabia... - Riram-se a bandeiras despregadas. Só alguns continuavam a escutar em silêncio, mais por incredulidade do que por respeito. - Prometo-vos...

Sabrina fez soar a sirena para impor o silêncio, mas o pandemônio era total, ao qual se juntara Dan Richfield. Desesperada, observou-os em silêncio durante alguns instantes e, depois de quinze minutos e tentativas frustradas para fazer ouvir-se, desistiu e retirou-se para o escritório. Sentou-se à secretária do pai, com os olhos inundados de lágrimas. «Não cederei! Jamais me darei por vencida!... Malditos sejam!...», sussurrou para si mesma. Estava resolvida a não se deixar derrotar por eles, nem que fossem todos trabalhar para outro lado.

Foi exatamente o que a maior parte deles fez no dia seguinte. Atiraram as picaretas e as ferramentas para dentro do escritório através das janelas. Sabrina encontrou um monte de escombros à volta da secretária, juntamente com uma folha de papel com os nomes dos desertores e que começava com as seguintes palavras: «Despedimo-nos. Não estamos para trabalhar para uma rapariga.» Desertaram trezentos e vinte e dois, ficando cento e oitenta e quatro para o trabalho em três minas, o que afetava gravemente a produção. Só restava o pessoal necessário para o funcionamento adequado de uma mina. As outras duas teriam de ser fechadas temporariamente. Se não houvesse outro remédio, era o que faria. Não se deixaria vencer. Havia outros mineiros que precisavam de trabalho e, com o tempo, acabariam por ver que ela sabia dirigir uma mina. Eles voltariam, mas, se não o fizessem, outros tomariam os seus lugares. De qualquer modo, era uma situação terrível. Pediu a cinco homens que se ocupassem da confusão que reinava no escritório, e teve de passar o resto do dia a atender uma fila interminável de mineiros que queriam receber antes de se irem embora. Era uma maneira horrível de começar, mas nunca se daria por vencida. Não era desse gênero, era filha de Jeremiah Thurston. Este, nas mesmas circunstâncias, também não teria abandonado o barco, e ficaria espantadíssimo se visse a filha a fazê-lo. Dan também sabia isso. Às seis da tarde, entrou no escritório de Sabrina e, cruzando os braços com expressão de descontentamento, afirmou:

- É uma sorte o teu pai não estar vivo para ver o que fizeste.

- Se ele estivesse vivo, estaria orgulhoso de mim. - Pelo menos, assim esperava. Era uma questão discutível. Se ele ainda fosse vivo, aquilo não estaria a acontecer. - Estou a fazer o melhor que posso, Dan.

- E não te saíste muito mal. Sempre pensei que demorasses mais tempo a rebentar com isto tudo. Só levaste dois dias. E que vais fazer agora com cento e oitenta e quatro homens?

- De momento, fechar duas das minas. Em breve, outros homens farão fila aí fora a pedir-nos trabalho - declarou, num tom algo nervoso, mas decidido. Era uma rapariga corajosa e, além disso, tinha toda a razão. O pai ter-se-ia orgulhado dela.

- Parabéns, miúda. Conseguiste transformar a maior mina do Oeste num circo. E fazes idéia de quem ficou a trabalhar para ti? Alguns velhos que o teu pai mantinha por mera caridade, mas ele podia dar-se a esse luxo, tinha centenas de outros que trabalhavam a dobrar; alguns miúdos que sabem tanto disto como tu, e uns quantos covardes que não podem permitir-se arriscar e meter-se à aventura porque têm demasiados filhos para alimentar...

Sabrina lançou-lhe um olhar fulminante.

- E tu estás incluído entre os últimos, não é, Dan? - Tocara-lhe no ponto fraco. - Por que razão ficaste? Talvez seja a altura de esclarecermos isso.

Dan corou e olhou-a com ar furioso.

- Estou em dívida para com o teu pai.

- Bem, julgo que podes considerá-la paga. Trabalhaste vinte e três anos para ele. É mais do que suficiente para pagar uma dívida. Concedo-te a liberdade, como Lincoln fez com os escravos. Queres ir? Podes sair agora mesmo por essa porta para nunca mais voltares. - Fez uma pausa, e o escritório ficou mergulhado no mais profundo silêncio. - Mas, se ficares, espero que permaneças do meu lado, que me ajudes a levar por diante tudo isto e a reabrir as outras duas minas. Não gostaria de ter de lutar também contigo.

Dan percebeu imediatamente o que Sabrina queria. Não havia nenhuma razão para contemporizar com ela. A rapariga nunca o deixaria dirigir as minas. Isso era claro. Era estúpida, e tão teimosa e ávida de poder como o pai. Pelo menos, era assim que ele agora a via. O sucedido durante aqueles dois últimos dias abrira-lhe os olhos. Há mais de vinte anos que se mantinha ali para um dia poder ficar à frente daquelas minas e, em dois dias, ela destruíra os seus planos por completo. Sabrina tinha de as vender. John Harte deixá-lo-ia dirigi-las. Foi o que lhe prometera, com a condição de o ajudar a fechar negócio com ela. Chegara, pois, o momento de tentar isso mesmo.

- Vende as minas ao John Harte, Sabrina. Eles nunca te permitirão que as dirijas pessoalmente. Perderás tudo quanto tens.

- Não, nem as venderei, nem perderei nada. O meu pai ensinou-me mais do que aquilo que pensas. E lamento que as coisas tenham tomado este rumo. Pensei que tu e eu pudéssemos trabalhar juntos, tal como trabalhaste para o meu pai.

- E porque achas que o fiz, minha tonta? Por amor a ele? Com os diabos, sempre pensei que um dia ficaria à frente de tudo isto, e não tu. - Não ia estar com papas na língua. Não tolerava a obstinação da rapariga. Se se tratasse de um filho de Thurston, o caso mudaria de figura. Mas aquela miúda...? E, ao fim e ao cabo, quem era ela? A filha de uma pega que abandonara Jeremiah, há dezessete anos. Diziam que ela morrera, mas ele nunca acreditara nisso. Ouvira rumores acerca de um amante que ela tinha na cidade; nessa altura, porém, Dan era criança e não se interessava por mexericos desse gênero. Lançou um olhar irado a Sabrina, os olhos transbordantes de ódio.

- Lamento que penses dessa maneira, Dan

- És louca. Vende as minas ao John Harte.

- Já me disseste isso, e sabes que não as vou vender a ninguém. Dirigi-las-ei pessoalmente, nem que tenha de ir para as galerias. Trabalharei até cair para o lado, mas vou ficar com aquilo que o meu pai criou. Serei tão justa e boa como ele, e as Minas Thurston continuarão a laborar dentro de cem anos, se ainda houver mercúrio. Não vou permitir agora que alguém como tu me assuste, nem vou vender nada ao John Harte, nem vou deixar-me abater porque um bando de idiotas me abandonou. Faz o que muito bem te apetecer, mas eu fico aqui.

Era exatamente como o pai, e Dan sentiu o desejo súbito de a esbofetear. Propusera-se tratá-la com calma, convencê-la delicadamente a vender as minas, mas ela tirara-lhe o tapete debaixo dos pés. Tomara as rédeas de tudo, cortara-lhe os tomates em público, mostrara a toda a gente que Dan Richfield não passava de um simples empregado a soldo. Todavia, ele não se resignaria tão facilmente à sua sorte. De súbito, cedendo a um irreprimível impulso, estendeu o braço e agarrou Sabrina pelos cabelos. Completamente descontrolado, sacudiu-a até ouvir-lhe os dentes a ranger, mas Sabrina não soltou qualquer grito. Então, enrolando os cabelos da rapariga na sua mão forte, obrigou-a a ajoelhar-se a seus pés.

- Sua putéfia. Sua rameira! Nunca mandarás aqui! - Com isto, agarrou-a pela garganta e, de repente, teve a percepção do que desejava fazer. Puxou de um golpe a blusa pelo colarinho e rasgou-a, ficando o corpo de Sabrina apenas coberto pelo espartilho, a saia, as meias, as bragas e as botas. Sabrina nunca desviou os olhos de cima dele. Dan olhava-a com ar malicioso, acariciando-lhe os seios com uma mão, enquanto a mantinha imobilizada com a outra, que ainda agarrava os longos cabelos escuros.

- Solta-me, Dan! - conseguiu dizer finalmente a rapariga, com uma voz muito mais calma do que aquilo que realmente sentia. Estava horrorizada com os propósitos que adivinhava naquele homem. E não havia ali ninguém que a pudesse ajudar. Eram as únicas pessoas que se encontravam na mina. Já não havia nenhum mineiro ali, e o vigilante noturno estaria demasiado longe para ouvir os seus gritos, além disso, não queria que ninguém a visse naqueles propósitos. Ela tinha de conquistar a confiança dos mineiros, mas, se eles a vissem a ser violada por Dan, estaria tudo acabado para ela.

- Se continuares a abusar de mim, vais passar o resto da vida na cadeia. E se me matares, enforcam-te.

- Vais contar a toda a gente que abusei de ti, querida Sabrina? - Dan olhava-a com ar alucinado. E já adivinhara os pensamentos de Sabrina. Se ele a violasse, como é que ela poderia denunciá-lo? Todos lhe perderiam o respeito, a culpa seria dela... e só Deus sabia quem é que voltaria a tentar... O que era uma perspectiva aterradora para a rapariga. De repente, fazendo apelo a todas as suas forças, conseguiu soltar-se de Dan, correu na direção da secretária e abriu uma gaveta. Sabia o que o pai guardava ali, e Dan também. Lutaram ambos pela posse da pequena pistola, que acabou por cair ao chão. Então, ficaram ambos paralisados, como se tivessem dado conta do que acontecera. Dan olhou-a com súbito horror, e ela levantou os olhos para ele, envergonhada e repugnada. Dan estivera prestes a violá-la, precisamente o homem que ainda uma semana antes era amigo dela e do pai.

- Quero que te vás agora mesmo daqui e nunca mais voltes. Estás despedido.

Por instantes, Dan pareceu aturdido, como se até então não tivesse tido plena consciência daquilo que fizera. Sem dizer palavra, dirigiu-se para a porta. Ainda teve vontade de a ajudar a vestir a camisa, mas não se atreveu a fazê-lo. Aquela rapariga acabava de destruir o sonho que alimentara durante duas décadas. Porém, isso não era desculpa. Dan não compreendia o que fizera, nem por que.

- Desculpa, Sabrina Estou... - Olhou-a com ar desesperado, envergonhado com o seu ato. Todavia, a pretensão de Sabrina de dirigir as minas pessoalmente era uma barbaridade. Nisso, ele tinha razão. Tens de as vender. Isto voltará a acontecer. Se não comigo, com outro qualquer. E é possível que esse outro não se detenha a tempo como eu.

Sabrina virou-se para Dan, indiferente ao aspecto que apresentava: os cabelos desgrenhados, os ombros nus.

- Nunca venderei as minas, Dan. Nunca E podes dizer isso ao teu amigo John Harte.

- Diz-lhe tu. Estou certo de que não te faltarão ocasiões.

- Não tenho que dar satisfações a ninguém. E vou contratar os homens que puder.

Sabrina desconfiava que Dan iria trabalhar para John Harte. Mas pouco lhe importava. Nunca mais queria voltar a ver Dan Richfield. Era um homem mau. O seu pai tê-lo-ia morto por aquilo que ele estivera prestes a fazer. Graças a Deus, detivera-se a tempo. Dan olhou-a uma última vez. Estava incrivelmente bonita com os sedosos cabelos caídos sobre o rosto e os enormes olhos, cheios de tristeza. Que difícil fora a sua entrada na idade adulta!

Depois de Dan ter partido, Sabrina vestiu a blusa rasgada, voltou a depositar a pistola na gaveta da secretária, deu uma pequena arrumação na sala, apagou as luzes e abandonou a mina. Sentir no rosto o ar frio da noite foi um verdadeiro alívio para ela, embora não pudesse evitar que um calafrio lhe percorresse todo o corpo. Quase fora violada por um homem que conhecera durante toda a vida. Nem sequer tinha forças para andar até ao sítio onde deixara o cavalo; como tal, teve de se sentar quase meia hora no alpendre. Quando, finalmente, subiu a custo para a sela e partiu rumo a casa, com o vento a bater-lhe nos cabelos, deixou escapar um soluço. Pela primeira vez, estava zangada com o pai. Como é que ele podia deixá-la só no mundo? Queria sair dali o mais rapidamente possível e ir para muito longe, mas a sua fiel montada levou-a para casa. Sabrina conduziu então o cavalo para o estábulo, onde desmontou e se deteve por instantes com o rosto apoiado no dorso do cavalo, perguntando-se como era possível que o pai a tivesse abandonado precisamente quando ela mais precisava.

- O Dan Richfield tem razão. - Sabrina deu um pulo ao ouvir a voz familiar. Hannah vira-a entrar no estábulo e viera ter com ela. Estás louca varrida.

- Obrigada. - Sabrina virou a cara para que Hannah não visse as lágrimas. - Já tivera a sua dose para um dia.

- O teu pai nunca mostrou intenções de seres tu a dirigir as minas.

- Então, deveria ter deixado outra opção. Uma vez que não deixou, eu sou tudo o que tenho.

Hannah olhou-a fixamente. Não estava para ouvir mais disparates.

- Tens o Dan.

- Já não.

- Foi-se embora? - Hannah pareceu surpreendida.

- Despedi-o. - Sabrina não contou que estivera prestes a ser violada. O casaco que envergava tapava a blusa rasgada.

- Então ainda estás mais louca do que aquilo que eu pensava.

- Toma atenção ao que te vou dizer, Hannah. - Sabrina depositou a sela no sítio do costume, e virou-se para a mulher que tratava dela desde que nascera. - Tu cuidas da casa, eu cuido das minas. As coisas não pareciam ir mal quando tu e o papá repartiam o trabalho dessa maneira. Porque não tentamos fazer o mesmo?

- Porque ele não era uma rapariga de dezoito anos. Meu Deus, que pensarão as pessoas quando te virem tentar dirigir as minas pessoalmente?

- Nem sei, nem me importa. E podes ter a certeza de que não lhes perguntarei. - Com estas palavras, apagou a luz do estábulo e dirigiu-se para casa em passo decidido.

No dia seguinte, quando Sabrina voltou ao escritório, havia um estranho ruído nas minas. A perda de trezentos e vinte e dois homens estava a fazer-se sentir. A meio da manhã, fez soar a sirena e anunciou que as duas minas mais pequenas iriam fechar. Redistribuiu os homens na rede de galerias mais importante da mina maior e disse-lhes exatamente o que esperava deles. Havia na sua voz uma energia que ninguém notara antes e que agora não passou despercebida aos mineiros. Um deles referiu isso ao regressarem ao trabalho, mas os outros encolheram os ombros. Tal como os homens que ainda tratavam dos vinhedos do pai, não se sentiam minimamente interessados pelo que ia na cabeça de Sabrina, desde que ela continuasse a pagar-lhes os salários a tempo e horas. Tinham ficado por essa razão. Não o haviam feito por amor a ela nem por devoção para com o velho. Consideravam que não deviam nada à nova patroa, precisavam do trabalho e eram bem pagos. A maioria não sentia a menor preocupação pela mudança de direção, embora, ao saberem que Dan Richfield também se fora embora, começassem a ficar preocupados

- Achas que ela sabe o que está a fazer.

- Saberá assinar um cheque?

- Suponho que sim. - Os homens sorriram entre dentes

- Então, fico. Paga melhor do que o John Harte, pelo menos, o pai pagava.

Na realidade, não houvera qualquer referência a nenhuma redução dos salários. Muito pelo contrário, Sabrina pensava aumentá-los na semana seguinte. O pai planejara o aumento para a primavera, mas, com menos dois terços do pessoal, tinha possibilidades de o fazer já. Agora, devia concentrar esforços na contratação de mais homens. Nessa tarde, encontrava-se a fazer alguns cálculos com esse fim, quando a porta do escritório se abriu. Levantou a cabeça e viu entrar John Harte em passada larga. Quando se deteve diante da secretária, Sabrina olhou-o fixamente. Não se moveu nem esboçou o menor sorriso.

 

- A não ser que deseje comprar mercúrio, Mister Harte, está a perder o seu tempo e a fazer-me perder o meu.

- Essa é uma das coisas que gosto em si - afirmou ele, sem se amedrontar. - Tem uma maneira afetuosa de receber as pessoas. Reparei nisso a primeira vez que nos encontramos.

Sabrina sorriu e, recostando-se na cadeira, fez-lhe sinal para se sentar.

- Desculpe. Têm sido uns dias muito complicados. Sente-se, por favor.

- Obrigado. - Ao fazê-lo, puxou um charuto do bolso da jaqueta. De repente, Sabrina lembrou-se da rapariga índia. Perguntou-se se ainda viveria com Harte, embora isso pouco lhe importasse. A jovem e bela índia não lhe saía da cabeça. Havia nela algo de tão delicado e sensual, que era estranho relacioná-la com aquele homem rude e cheio de rugas. - Ouvi dizer que teve uma semana muito interessante. Importa-se que fume? - Não lhe ocorrera perguntar logo. Era-lhe difícil encará-la como uma mulher. A rapariga vivia num mundo de homens e Harte esperava que ela se comportasse como um deles, apesar de ser uma rapariga muito bonita. Fosse como fosse, Sabrina metera-se numa tremenda embrulhada, e ele queria ajudá-la a sair dela.

- À vontade. Sim, têm sido dias muito interessantes.

- Disseram-me que saíram dois terços dos seus homens. - Ele não ia estar com rodeios com ela. Sabrina esboçou um sorriso cansado.

- Parece que sim. Imagino que boa parte deles esteja a trabalhar para o senhor. - Embora ele tivesse uma mina muito mais pequena.

- Alguns. Não precisava deles todos. Fiquei com os necessários. São boa gente.

- Do meu ponto de vista, não. - Sabrina dirigiu a Harte um olhar de desafio, e ele admirou a sua ousadia.

- Escolheu um cavalo muito difícil de domar, Miss Thurston.

- Sei disso. Mas pertencia a meu pai e agora é meu. E asseguro-lhe de que o dominarei antes que ele me mate primeiro, Mister Harte.

- Acha que vale a pena. - O olhar do homem era amável, mas agora não queria amabilidades de ninguém. Prosseguiria com a sua luta sem nenhum Dan Richfield, sem nenhum John Harte, sem ninguém. Estava completamente só. E lograria atingir os seus propósitos, por pouco ortodoxa que parecesse a sua postura.

- Para mim, sim, Mister Harte. Não vou render-me por nada deste mundo.

- Então, julgo que tem razão - sussurrou ele, com um sorriso malicioso.

- Sobre quê.

- Sobre o fato de eu estar a perder o meu tempo. - Harte pousou o charuto e inclinou-se para ela. Queria fazer-lhe ver as coisas do seu ponto de vista. Não queria roubar-lhe nada, mas sim fazê-la entrar na razão. O que ela estava a fazer era um erro. O próprio pai não teria aprovado, e ele estava preparado para lhe dizer isso mesmo. - Miss Thurston, é uma rapariga inteligente, honesta e encantadora, e julgo não me enganar se disser que era a menina dos olhos do seu pai

Sabrina franziu o sobrolho

- Está a perder o seu tempo

- Escute-me! - Desta vez as palavras foram duras. - Sabe muito bem o que quero. Quero comprar as minas. As três E pagarei uma bonita soma por elas. Se recusar, sobreviverei na mesma. O que tenho chega-me, e estou a fazer uma fortuna fabulosa. Por isso, estou-me nas tintas. Só não gosto de ver esbanjar recursos. Pouco lucro tirará da mina que manteve aberta, já fechou as outras duas, mas, mais importante do que isso, está a desgastar-se a si própria. Ainda é muito jovem. Olhou à sua volta, para a lúgubre sala. Que raio está a fazer aqui dentro? É isto que quer fazer na vida? Você não é um homem, é uma rapariga. Que quer provar? - Harte recostou-se na cadeira e abanou a cabeça. - Não tive a sorte de conhecer muito bem o seu pai, mas, pelo pouco que sei dele, posso dizer-lhe que isto não é nada do que ele queria para si. Ninguém no seu juízo perfeito o quereria. É uma vida solitária, desagradável, suja, cansativa, a partir pedra, a desenterrar as vítimas de aluimentos, a lutar contra fogos e inundações, a manter os bêbedos na linha. Como raio é que pensa dar conta do recado, se nem sequer já tem o Dan Richfield consigo? - Harte parecia sinceramente preocupado com Sabrina, mas esta estava desconfiada. Desconfiava de toda a gente.

- Como é que sabe? - Dan só fora despedido na noite anterior.

Harte preferiu ser franco com ela.

- Contratei-o hoje. É um bom homem. - Sabrina esboçou um sorriso de troça.

- Pelo menos, não tentará pôr a mão no senhor. - Instantaneamente, instalou-se um silêncio entre eles, e o olhar de Harte incendiou-se.

- Ousou fazer isso?

Depois de alguma hesitação, Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça. Já não havia qualquer razão para o proteger, e sabia que John Harte não tentaria fazer a mesma coisa. Não era esse gênero de homem e, além disso, tinha a rapariga índia. John Harte abanou a cabeça e passou a mão pelo rosto antes de olhar de novo para ela.

- Se você fosse minha filha, matava-o.

Sabrina esboçou um sorriso de agradecimento, mas depois lembrou-se de quem tinha diante de si.

- Mas não sou, e o meu pai morreu. E parece que o senhor tem um novo encarregado-geral, Mister Harte. - Sabrina sabia falar com dureza quando era necessário. Pôs-se de pé e levantou a mão. Já ouvira o suficiente. - Obrigada pelo voto de confiança e pelo interesse que demonstra pelas minhas minas. Esteja descansado que eu aviso-o se resolver vendê-las.

- Não siga sozinha nesta empresa. - Harte fixou-a, olhos nos olhos. Estava a ser sincero. - Destroçar-lhe-á o coração e devorará toda a sua vida.

Sabrina perguntou-se se não seria isso que estava a acontecer com ele. Harte falava com alguma tristeza na voz. Mas esse problema não era seu e já tinha problemas que lhe chegassem.

- Aconselho-o a não voltar a procurar-me, Mister Harte. Não temos qualquer negócio a tratar. - Não queria ser grosseira com ele, mas não queria voltar a vê-lo de novo nas suas minas. Ainda se recordava da visita de apresentação de pêsames a semana anterior... Só passara uma semana? Nem queria acreditar. - As minhas minas não estão à venda, e não estarão por muitos e longos anos.

- Assim está a renunciar por completo ao matrimônio e a uma família. - Harte voltara à ofensiva, e Sabrina estava desejosa de o ver dali para fora.

- Esse problema não é seu - replicou Sabrina com olhar severo.

- Não conseguirá conciliar ambas as coisas.

- Farei o que me der na real gana! - ripostou Sabrina, ao mesmo tempo que contornava a secretária. E agora, saia-me daqui para fora, Harte!

- Muito bem, minha jovem senhora. - Fez-lhe uma reverência com o chapéu e encaminhou-se, em passo lento, para a porta.

John Harte não podia deixar de reconhecer a coragem de Sabrina, mas continuava a achar que ela estava a cometer um erro tremendo. Lamentava o fato de ela não querer vender-lhe as minas. Teria gostado de incorporar as Minas Thurston nas suas. Mas o que mais o preocupava era o que a rapariga dissera de Dan... «Pelo menos, não tentará pôr a mão no senhor»... Tentara violá-la? Estupor... Teria de prevenir Lua da Primavera. Não queria vê-lo em nenhum momento perto dela. A atitude de Dan... «pôr a mão» em Sabrina Thurston... deixara-o profundamente enojado. Por mais insensata e teimosa que a rapariga fosse ao pretender dirigir pessoalmente as minas do pai, fora uma canalhice ter querido aproveitar-se dela. Nessa tarde, quando voltou ao escritório, Harte mostrou-se inesperadamente brusco com o novo empregado, para surpresa deste, que não sabia o que podia ter feito para provocar a cólera do novo patrão. Dan sentia-se injustiçado, e enfureceu-se só de pensar em Sabrina. Se não fosse ela, estaria à frente das Minas Thurston

John Harte teve vontade de lhe dizer para nunca mais se aproximar de Sabrina, mas não o fez porque não queria dizer-lhe que sabia tudo o que sucedera. Assim, só preveniu Lua da Primavera, que desatou a rir.

- Não tenho medo dele, John Harte. - Tratava-o sempre dessa maneira, o que o fazia sorrir, mas não desta vez

- Toma atenção ao que te vou dizer. A mulher é feia e tem um ar anêmico, e tem um montão de filhos... É muito possível que procure um pedacinho mais tenro, como tu, por exemplo. Não sei nada desse homem. A única coisa que sei é que trabalhou duramente nas Minas Thurston nos últimos vinte e três anos. Mas, seja como for, não quero que ele te faça mal. Percebido. Afasta-te dele, Lua da Primavera

- Não tenho o menor medo. - Sorriu e, com um simples gesto, deixou cair da manga um afiado punhal e voltou a escondê-lo com tanta rapidez que John Harte mal conseguiu ver o brilho da lâmina.

- Às vezes, esqueço-me da tua astúcia, minha querida. - Beijou-a no pescoço e voltou para o trabalho. A sua mente foi então invadida pela recordação daquela rapariga que, sendo praticamente uma criança, se empenhara em dirigir pessoalmente as minas do pai, com um grupo de homens que não passava de uma sombra daquilo que fora. Lamentava não poder ajudá-la. Mas o seu plano não era esse. Já falara desse assunto com Dan mais de uma vez. Esperaria o tempo necessário, até que Sabrina fracassasse, e então comprar-lhe-ia as minas. Tanto ele como Dan sabiam que esse momento não demoraria muito, por mais que a rapariga achasse que sabia dirigir as minas do pai. Não passava de uma criança.

Duas semanas depois, Sabrina completou os dezoito anos. Dera já aos seus trabalhadores o aumento prometido, mas estes raramente lhe dirigiam a palavra. As duas minas mais pequenas estavam fechadas, como tal, tentava tirar o máximo proveito da principal. Além disso, promovera um dos novos homens a encarregado-geral, em substituição de Dan. Ele não lhe mostrava mais afeto do que os outros, mas estava satisfeito com o salário, e a Sabrina bastava-lhe isso. Tão-pouco lhe desagradava a promessa de novos aumentos que Sabrina lhe fizera se conseguisse recrutar os mineiros necessários para a reabertura da mina número dois. Conseguiu isso em novembro desse mesmo ano, mas a reabertura coincidiu com uma inundação e a morte de cinco dos novos mineiros. Sabrina não se afastou nem por um segundo do lugar do sinistro. Suportou a pé firme a persistente chuva e ajudou a resgatá-los de dentro das galerias inundadas. Foi ela que se ajoelhou ao lado das vítimas para lhes fechar os olhos, foi ela que, no dorso do seu cavalo, encharcada até aos ossos e completamente esgotada, levou a triste notícia às esposas, foi ela que os ajudou a enterrar, tal como o pai fizera tantas vezes, e foi ela que abriu a terceira mina na primavera. Levara um ano a recompor-se do golpe de perder mais trezentos homens, mas, agora, as três minas funcionavam sem problemas de pessoal e com uma excelente produção. Dan Richfield ficava furioso cada vez que pensava nisso.

- Tens de dar a mão à palmatória, Dan. É tão dura como o pai, e duas vezes mais esperta. - John Harte nem queria acreditar no que Sabrina conseguira.

- Essa puta de merda - limitou-se a dizer Dan, enquanto saía do escritório, batendo violentamente com a porta, perante o olhar atônito de Harte. Não se podia negar que aquele homem aprendera muito durante os vinte e três anos de trabalho nas Minas Thurston, mas não havia nele nada que fosse decente nem agradável. Harte não compreendia como é que Thurston o tivera tanto tempo ao seu serviço. Talvez nessa altura não fosse tão desagradável e malcriado. Vivera obstinado por um objetivo, que agora estava fora de questão. Aqueles pensamentos estimularam em John Harte o desejo de fazer uma segunda visita a Sabrina.

Um dia, entrou novamente no escritório de Sabrina, para surpresa desta. Durante o último ano, nem sequer voltara a pensar em Harte. Estava orgulhosa em relação ao trabalho por si desenvolvido nas minas do pai. Sabia que os homens não morriam de amores por ela, e provavelmente isso nunca iria acontecer, mas trabalhavam com afinco, merecendo inteiramente aquilo que ganhavam.

- Veio cumprimentar-me ou pedir-me trabalho, Mister Harte. - perguntou Sabrina, com os olhos a sorrir

- Nenhuma das duas coisas. Eu sou ainda mais atrevido. Ao contrário de si. - Ele admirava-a mais do que Sabrina imaginava, e reparou que a rapariga estava satisfeita consigo mesma. Tinha o direito de estar. A guerra ainda não acabara para Sabrina, mas ganhara a primeira batalha. Era certo que as minas voltavam a trabalhar a todo o vapor, mas a possibilidade de conseguir mantê-las ao mesmo ritmo durante muito tempo era outra questão. Harte duvidava disso, tal como Dan. Talvez fosse um erro ir visitá-la de novo tão cedo. Poderia ter esperado até que as coisas começassem a dar para o torto, mas preferira assim. Tinha previsto para aquele ano um plano de expansão que não lhe permitia esperar mais tempo. O projeto compreendia a compra de uma das minas de Sabrina, talvez duas. - Vamos diretos ao que interessa. Venda-me a mais pequena das suas minas.

Sabrina mirou-o como uma serpente pronta a morder a presa.

- Não. Nem uma nem nenhuma. - Por outro lado esboçou um sorriso cauteloso, ficaria encantada se me vendesse as suas, Mister Harte. - Acabava de fazer dezenove anos e parecia mais mulher. Fora um ano de longa e árdua luta, uma luta que tinha de prosseguir, e ninguém lhe iria dar tréguas. - Gostaria de comprar as suas, Mister Harte. Já considerou essa hipótese?

Harte sorriu perante tamanho desplante.

- Receio que não.

Então estamos empatados.

- É uma menina muito teimosa. Era assim quando o seu pai era vivo?

- Suponho que sim. - Sabrina sorriu, pensando na situação em que se encontrava um ano antes, parecendo-lhe que transcorrera toda uma vida. Talvez não tivesse muitas razões para ser. Lutara durante aquele tempo pela sua sobrevivência, sem o apoio de ninguém. E, como se fosse pouco, todas as noites, ao voltar para casa, tinha de escutar as repreensões de Hannah. Quase temia regressar a casa ao fim do dia, mas não tinha coração para, ao fim de todos aqueles anos, despedi-la. Por isso, ficava até altas horas da noite na mina, situação que a levara a perder muito peso. Até John Harte reparara, embora, naturalmente, nada lhe dissesse a esse respeito. Só sentia pena dela. Sabrina seria muito mais sensata se lhe vendesse as minas.

- Lamento que não reconsidere este ano.

- Já lhe disse. Nunca. As Minas Thurston só estarão à venda depois de eu morrer, não antes, Mister Harte. Sei que, para muitos, essa seria a melhor solução.

Sabrina expressara-se talvez com excessiva dureza, mas não falava por falar. Não tinha nenhum amigo ali. Alguns haviam começado a respeitá-la, mas ainda eram muito poucos. Voltava a ter mais de quinhentos homens às suas ordens, mas só um punhado deles se preocupava com a sua vida ou a sua morte. Eram os que haviam trabalhado ao lado dela quando da inundação ou os que a tinham visto interessar-se pessoalmente, no fundo das minas, por todos os aspectos do seu trabalho Mas não sentiam verdadeiro afeto por Sabrina, como o que haviam tido por Jeremiah só um ou dois anos antes. Olhava para John Harte com poucas ilusões. Crescera. E pagara um elevado preço por isso. Harte continuava a ter pena da situação de Sabrina. Estendeu a mão à rapariga e esta apertou-a, mas no olhar de Sabrina não se vislumbrava qualquer indício de afeto por ele. Eram demasiados os que a haviam ofendido no ano anterior, demasiados os que haviam tentado fazer-lhe mal, a começar por Dan. Também Harte não estava muito satisfeito com o comportamento do seu encarregado. A esposa de Dan morrera ao dar à luz no ano anterior e, desde então, ele ia para a pândega todas as noites, deixando os filhos com fome, sujos e mal vestidos. John Harte prevenira, mais uma vez, Lua da Primavera para ter cuidado com ele, mas ela respondera-lhe com um sorriso de confiança e fazendo reluzir o punhal.

- Lamento que pense dessa maneira - disse Harte, e hesitou antes de sair. - Não posso deixar de pensar que você viveria muito melhor sem esta carga. - Mas, para Sabrina, a frase pareceu outra suave tentativa de a convencer a desfazer-se das minas. Harte captou o olhar impaciente que Sabrina dirigiu para a porta e rematou. - Compreendo

Sabrina perguntou-se se ele realmente compreendera, mas desconfiava que não. Ele nunca conseguiria imaginar como ela lutara desesperadamente para chegar à satisfatória situação atual. Nunca abandonaria as minas. Nunca.

Os vinhedos prosperavam do mesmo modo. No ano anterior, juntara-se à cooperativa de vinicultores, e estava determinada a ajudá-los a melhorar a qualidade dos seus vinhos, apesar de, também ali, ser apenas tolerada. Mas já se habituara a isso. Habituara-se a ser mal acolhida em todo o lado, a que lhe dirigissem a palavra o menos possível, a que a evitassem, a ser a primeira a receber a fúria dos demais proprietários. Mas também sabia responder-lhes quando era necessário. O seu temperamento fortalecera-se bastante durante aquele último ano em que andara em constante stress, e John Harte acabava de observá-lo no seu rosto, verificando que ainda estava mais bonita do que no ano anterior. Havia algo nela que o fazia desejar estreitá-la entre os seus braços. Mas teria sido um ato carente de sentido. Era uma mulher que não queria ajuda de ninguém. Propusera-se escalar sozinha a montanha do êxito e, qualquer dia, ficaria sentada a meio da encosta, sem forças para prosseguir. Harte não podia alegrar-se com a situação de Sabrina, talvez porque, de certo modo, escolhera o mesmo caminho que ele próprio e que o pai. Nem ele nem Jeremiah tinham voltado a casar. Haviam decidido viver só para as suas minas. Harte, com Lua da primavera a seu lado, Jeremiah, com a filha, mas esta não contava com ninguém. Aquele pensamento consternou Harte, enquanto cavalgava em direção à mina. Sabrina não voltou a pensar nele, tinha muito que fazer. Raramente deixava vaguear a mente. A vida era uma luta constante de sobrevivência, e não fora por acidente que reabrira as duas minas inativas. Conseguira-o trabalhando duramente sem parar, durante meses e meses de suor.

E agora continuava a trabalhar quase com a mesma intensidade para fazer prosperar o negócio. Acabava de acordar a venda de setecentos frascos de mercúrio para uma firma do Este, e prometera uma gratificação extra aos homens quando fizesse o despacho da encomenda. Sabia como o pai dirigira as minas, a sua forma de lidar com o pessoal não tinha segredos para ela, de modo que, de acordo com a filosofia que ele sempre seguira, repartia os lucros com os seus homens quando tinha de lhes exigir um esforço suplementar E se, por acaso, não gostavam dela, consideravam-na, pelo menos, uma mulher justa. Não esperavam nada mais de Sabrina, nem esta esperava receber mais do que dava, ainda que nem sempre as coisas se passassem assim. Era agora muito mais exigente. Se algum homem lhe faltava ao respeito, em menos de uma hora estava na rua. Agora, podia permitir-se ser mais dura com eles, o que aumentava o respeito que tinham por ela.

- Continua a mesma putéfia e ranhosa de sempre - vociferou Dan Richfield, certa noite, num bar, perante alguns mineiros de Sabrina, precisamente no momento em que entrava John Harte, o qual se postou ao fundo do bar. - Ela pensa que lá por andar de calças já tem uma pica entre as pernas.

Os homens riram-se, mas as suas gargalhadas foram interrompidas pela voz serena de John Harte

- Era disso que andavas à procura quando tentaste violá-la o ano passado?

Instalou-se um súbito silêncio e Dan empalideceu, surpreendido por ver o patrão e, sobretudo, por descobrir que Harte sabia o que ele estivera prestes a fazer.

- Que quer dizer com isso?

- Não acho bem que fales nesses termos da Sabrina Thurston. Trabalha tão duramente como todos nós. E esses homens ainda estão ao seu serviço, se não me engano.

Um ou dois deles pareceram envergonhados. John Harte não era amigo de Sabrina, mas tinha toda a razão. Trabalhava que se fartava, isso ninguém podia negar. Pouco a pouco, os mineiros foram saindo, mas Dan Richfield ficou, os olhos a chispar, os punhos cerrados prontos a bater, mas não se atreveu a tanto. Em vez disso, bebeu o uísque, ao mesmo tempo que lançava um olhar fulminante a John. Mas era em Sabrina que ele queria pôr as mãos. Ela destruíra-lhe todos os seus sonhos. Além disso, agora que era viúvo, uma rapariga como ela vinha mesmo a calhar. Durante vários dias, esses pensamentos não lhe saíram da cabeça. Estava curioso por saber o que ela contara a John. Finalmente, na segunda-feira seguinte, à noite, depois de ter bebido no mesmo bar, resolveu aproximar-se das Minas Thurston. Ao passar diante do escritório, viu no exterior o cavalo de Sabrina. Eram nove da noite, e deduziu que a rapariga se encontrava no escritório. Deteve-se então, prendeu o cavalo, subiu as escadas do alpendre e ficou surpreendido por vê-la ali. Observou-a através da janela. Estava sentada à secretária, com a cabeça inclinada sobre o tampo e os cabelos negros puxados para trás. Escrevia com uma velocidade incrível. Costumava ficar ali até perto da meia-noite, pelo que ainda era cedo para ela. Dan sorriu entre dentes. Não tinha plena consciência, mas parecia estar disposto a terminar o que deixara por fazer no ano anterior, quando ela o despedira. Quando se dispunha a entrar, uma tábua do alpendre rangeu. Então, Sabrina, sem levantar a cabeça, abriu a gaveta da secretária e empunhou a pequena pistola antes de Dan chegar à porta. O primeiro disparo atravessou o vidro da janela e roçou o braço do surpreendido intruso, que ficou como que paralisado de olhos fixos em Sabrina.

- Se passas dessa porta, és um homem morto! - gritou a rapariga.

Dan compreendeu que ela não estava a brincar. Sabrina não parecia surpreendida nem assustada. Estava preparada para tudo, e não tinha medo dele. Levantou-se e manteve a pistola apontada à cabeça de Dan, que, sem dizer palavra, deu meia volta e se foi embora. Depois, Sabrina saiu para o alpendre e fez soar a campainha para chamar os vigilantes. Só tinham a missão de vigiar as minas. Não precisava deles onde trabalhava. Mas mandou-os fazer uma batida nas imediações para se assegurar de que Dan já não se encontrava por ali.

No dia seguinte, enviou uma nota de advertência a Harte, sugerindo-lhe que procurasse controlar melhor os seus homens. Dizia-lhe igualmente que, se voltasse a encontrar algum deles no recinto das minas, consideraria que ele o enviara para a assustar e a obrigar a vender, e matá-lo-ia de imediato. Informava também Harte de que, daquela vez, permitira que Dan se fosse embora, são e salvo, mas que não tornaria a fazê-lo. Harte não gostou de saber que Dan voltara a tentar molestá-la. Nesse mesmo dia, repreendeu Richfield, que escutou a advertência do patrão com os dentes cerrados e sem dizer uma só palavra. Quando ficou sozinho, Harte não conseguiu evitar um sorriso. Sabrina não era muito diferente de Lua da Primavera, sempre tão segura de si mesma e tão confiante na eficácia do punhal. Pelos vistos, Sabrina também confiava plenamente na pistola, e sabia como manejá-la. Harte só lamentava que tivesse sido obrigada a utilizá-la, mas ela vivia num mundo de homens. Nesse ano, John Harte não voltou a fazer-lhe nova oferta de compra das minas.

 

- Bem, rapariga, já tens vinte e um anos. Que pensas fazer agora? - Hannah olhou para Sabrina por cima do bolo de aniversário que ela própria fizera e teve vontade de chorar quando viu o rosto da rapariga. Sabrina era já uma mulher feita, muito bonita, mas dura que nem uma rocha. Dirigia pessoalmente um complexo mineiro em que trabalhavam quase seiscentos homens, seguindo as pisadas do pai, mas para quê? Já era bastante rica, mas agora levava uma vida solitária. Trabalhava sempre até à meia-noite, não parava de dar ordens aos seus homens e despedia de imediato aqueles que não as cumpriam. Mas estava a perder a sua amabilidade inata e Hannah suspeitava de que aquele tipo de vida começava a destruí-la. Amélia dissera-lhe o mesmo quando a viera visitar o ano anterior, mas ao ver que os seus conselhos não a fariam mudar de idéias, pediu a Hannah que não insistisse nas suas advertências e lhe desse tempo. «Acabará por se cansar e talvez então se apaixone por alguém», dissera Amélia a Hannah. Mas apaixonar-se por quem? Pelo cavalo? Na realidade, estava apaixonada, mas pelo trabalho. Quando não se encontrava nas minas a matar-se a trabalhar, enfrentava outras batalhas com os homens da cooperativa de vinicultores.

- Não consigo compreender como pudeste chegar a isto. - Hannah olhou-a com ar desesperado. - Nem mesmo o teu pai gostava tanto das minas como tu. Mostrava-se mais interessado em ti.

- Por isso estou em dívida para com ele. - Era a mesma resposta de sempre. Hannah abanou a cabeça e serviu-lhe uma fatia de bolo de chocolate. Há vinte e um anos que lhe fazia aquele bolo por ocasião do seu aniversário. Sabrina sorriu para a sua velha amiga. - Tu és muito boa para mim, Hannah.

- E tu deverias sê-lo contigo mesma. O teu pai nunca trabalhou tão duramente como tu. Pelo menos, sabia que ao chegar a casa te encontraria. Por que razão é que não vendes as malditas minas e te casas?

Sabrina desatou a rir. Com quem poderia casar-se? Com um dos mineiros? Com o novo encarregado-geral? Com o banqueiro da cidade? Nenhum deles lhe interessava, e tinha demasiadas coisas para fazer.

- Talvez me pareça mais com o papá do que aquilo que julgas. - Sorriu. Dissera a mesma coisa a Amélia. Afinal de contas, só se casou aos quarenta e quatro anos.

- Não podes esperar tanto tempo - resmungou a velhota.

- Porque não?

- Não queres ter filhos?

Sabrina encolheu os ombros... Filhos... que idéia esquisita... Naquele momento, só pensava nos setecentos frascos de mercúrio que tinha de enviar para o Este dentro de duas semanas... e nos duzentos e cinqüenta frascos para o Sul.. na papelada com que tinha de se ocupar... nos homens que tinha de despedir e pôr na ordem... nas inundações que podiam surgir a qualquer momento... ou nos incêndios que era preciso prevenir... Bebês? Como é que eles podiam ter lugar naquele esquema de vida? Não, não podiam, e provavelmente nunca teriam. Não conseguia imaginar-se com um filho. Nunca. Tinha muitas outras coisas em mente. Logo que acabou de comer o bolo, subiu para o quarto a fim de fazer a mala. Já dissera a Hannah que ia passar uns dias a São Francisco.

- Sozinha? - Era sempre a mesma pergunta.

- Quem é que achas que deveria acompanhar-me? - perguntou Sabrina, com um sorriso nos lábios. - Meia dúzia de mineiros a servirem de damas de companhia?

- És uma descarada.

- Já sei. - Ouvira aquele comentário muitas vezes. Levo-te comigo.

- Sabes bem que costumo enjoar nesse maldito barco.

- Então, terei de ir sozinha. - Fato que em nada a incomodava. As viagens até São Francisco proporcionavam-lhe sempre tempo para pensar, e era uma rara oportunidade de visitar a Mansão Thurston. Ainda lhe causava angústia entrar no quarto onde o pai falecera, mas a casa era muito bonita e lamentava que não estivesse habitada. Aí não teria qualquer criado. Como noutras ocasiões, abriria ela própria a casa e atenderia as suas próprias necessidades durante os poucos dias que a ocuparia. - Agora, Hannah, todos me têm por um bicho do mato. Mas, dentro de alguns anos, todos me aceitarão. Serei aquela velha que dirige pessoalmente as suas minas há vários anos. E ninguém estranhará que viaje sozinha, que apanhe um barco ou que vá à cidade sem uma criada. Poderei fazer aquilo que me der na real gana. - Riu-se e, por instantes, sentiu-se uma rapariguinha como qualquer outra. - Não vejo a hora de isso acontecer.

- Não faltará muito. - Hannah olhou para Sabrina com ar pesaroso. Não era aquilo que queria para a menina que criara. Não tarda que sejas velha, e terás desperdiçado os melhores anos da tua vida.

No entanto, para Sabrina, não eram anos desperdiçados. Sentia-se satisfeita com aquilo que fizera até então. Só dos outros é que raramente recebia o aplauso ou a reprovação. Achavam-na autoritária, independente e caprichosa, mas também já se acostumara a isso. Andava com a cabeça mais erguida do que nunca, e a língua mais afiada do que em qualquer outro momento da vida. Era tão rápida a replicar como a sacar da pistola de prata da gaveta da secretária. No fundo, sabia que trabalhara bem, e sentia-se satisfeita com aquilo que fizera. E, no seu íntimo, achava que o pai teria pensado o mesmo. Talvez não fosse aquilo que ele desejara para ela, mas teria olhado com respeito para tudo quanto a filha conseguira naqueles três longos anos. A própria Sabrina estava surpreendida com tudo o que alcançara, mas trabalhara muito para que tal acontecesse. Era nisso que pensava enquanto descia as escadas com uma maleta numa mão e a capa sobre o braço.

- Regressarei dentro de três dias. - Beijou Hannah na face e voltou a agradecer-lhe o bolo de aniversário. Hannah olhou para Sabrina com os olhos marejados de lágrimas, enquanto a rapariga punha o carro a trabalhar. Sabrina nunca saberia o que estava a perder. Por maiores que fossem a sua energia e a sua independência, havia um vazio na sua vida do tamanho dos estábulos. E Hannah lamentava que as coisas se desenrolassem assim. Aquela não era vida para ela, nem o fora durante os três últimos anos.

Sabrina conduziu o automóvel até Napa e deixou-o nos estábulos próximos do cais, como geralmente fazia. Fora uma das primeiras pessoas de Napa a ter carro, o que, como tudo o que fazia, foi objeto de comentários durante vários meses Mas ela não se importava, aquele meio de transporte proporcionava-lhe grande comodidade. Quase todos os dias ia ainda no seu velho cavalo até às minas, mas adorava usar o carro quando se dirigia a sítios mais afastados, sobretudo, quando ia a Napa apanhar o barco a vapor para a cidade. Poupava-lhe muito tempo. Dessa vez, depois de embarcar, passou quatro horas no camarote a ler os papéis que levara consigo. Queria falar com o seu banco sobre algumas terras que tencionava comprar, e sabia que antes de conseguir o seu propósito teria de escutar o habitual conselho de que seria melhor que vendesse os vinhedos e as minas ou que colocasse um homem experiente à frente de ambos os negócios. Esses que assim a aconselhavam nunca tinham entendido que havia muito poucos homens que conseguissem fazer aquilo que ela fazia. Mas já estava habituada a esse conselho. Sabrina limitava-se a sorrir e mudava de imediato o rumo da conversa para o negócio que tinha em vista. Eles ficavam sempre surpreendidos com a solidez das suas idéias. «Quem é que a aconselhou», perguntavam-lhe quase sempre. «Foi idéia do seu encarregado-geral?» Era inútil explicar-lhes que se tratava de uma idéia própria, o que estava para além da compreensão deles E sabia que no dia seguinte sucederia o mesmo de sempre. Mas passaria por cima de tudo isso e conseguiria aquilo que queria. Tinham aprendido a confiar nela ao longo de três anos, tal como os seus homens, embora raramente percebessem o que ela fazia e por que E aprendera tudo com Jeremiah

Fechou a maleta ao sentir o barco a atracar contra o cais. Desta vez, não saíra do camarote durante toda a viagem. Depois do fausto almoço de aniversário que Hannah lhe oferecera, não sentira necessidade de comer nada e tivera demasiado trabalho em que se embrenhar. Agora estava ansiosa por tomar um banho quente relaxante na Mansão Thurston. A água do depósito levaria algum tempo a aquecer, mas isso dar-lhe-ia tempo para se certificar de que, na casa, estava tudo em ordem. Há vários meses que não ia à cidade, e era sempre a única pessoa que entrava na casa, embora o banco estivesse autorizado a passar uma vistoria de vez em quando, tendo para esse efeito um jogo de chaves que ela lhes dera.

Depois de saltar da carruagem, Sabrina meteu a chave na fechadura. Primeiro, teve de abrir o enorme portão, depois a carruagem conduziu-a até à porta da mansão. Estava tudo às escuras. Ao entrar andou às apalpadelas até acender a luz. Quando o fez, levou a maleta para dentro e fechou a porta. Sentia-se cansada. Deteve-se por instantes a olhar à sua volta. De repente, sentiu os olhos ficarem inundados de lágrimas, algo que não acontecia há muito tempo. Tinha vinte e um anos e não partilhava a vida com ninguém, e aquela era a casa em que o pai morrera... Sentia-se mais triste do que das outras vezes, e mais só, e cada vez com mais saudades do pai. Quase lamentava ter vindo. Mais tarde, sentada na banheira da suíte, rememorou os três últimos anos, pensou nos momentos difíceis, nas pessoas que tinham sido injustas para com ela, que lhe haviam desejado mal e magoado; até Hannah fora muitas vezes grosseira e rezingona com ela. Ninguém compreendia o sentido do dever ou o afã que a impelia a continuar a dirigir as minas pessoalmente. Em vez disso, todos queriam vê-la fracassar ou tirar-lhe o fruto do seu trabalho. Pelo menos, John Harte nunca mais tentara comprar-lhe as minas, o que não deixava de ser um alívio. Perguntou-se se Dan Richfield ainda trabalharia para ele. Imaginava que sim, mas nunca mais fora importuná-la às minas, apesar de já ter decorrido muito tempo desde a noite em que Sabrina se vira obrigada a disparar contra ele. Aquele pensamento fê-la olhar para a sanita de mármore cor-de-rosa onde pousara a pistola de prata. Nunca a tinha muito longe dela e deixava-a sempre em cima da mesinha-de-cabeceira enquanto dormia. Podia escondê-la debaixo da almofada, mas o gatilho era demasiado rápido, como Dan Richfield tivera ocasião de comprovar. Na realidade, levava uma vida de constante tensão, mas já estava habituada. Por outro lado, se bem que não totalmente, sempre que ia a São Francisco esquecia todas as precauções. São Francisco era tão cosmopolita, tão urbana... Ali, quase ninguém sabia quem ela era. Não havia coscuvilhices e ninguém parava, de dedo apontado para ela, como faziam em Napa, em Calistoga e em Santa Helena. «Olha, é a mulher que está à frente das minas!... É a filha do Thurston... Está tolinha de todo.. É teimosa que nem um burro...» Para aquela gente, havia mil maneiras distintas de a descrever, e Sabrina ouvira-as todas. Mas ali, em São Francisco, ninguém se preocupava com ninguém. Podia, inclusive, ter a ilusão de ser outra pessoa, passeando pela Market Street ou pela Union Square, ou comprando uma rosa para pôr na lapela ou um ramalhete de violetas brancas para adornar o cabelo. Ali, não tinha de temer o que os seus homens diriam se a vissem assim nas minas. Podia, inclusive, fingir que era uma rapariga como outra qualquer. E foi o que fez ao voltar do banco. Veio em passo de passeio, comprou um ramo de fragrantes flores para pôr num vaso no seu quarto e, com um gesto instintivo, enquanto caminhava para casa, tirou os ganchos do cabelo e deixou que a longa cabeleira negra flutuasse ao sabor da brisa estival. Um sorriso iluminava-lhe o rosto. Viver ali era muito mais fácil, pensou com os seus botões, e ainda adorava a Mansão Thurston, apesar da tragédia que aí tivera lugar. Enquanto subia Nob Hill, mais feliz do que nunca, um automóvel parou subitamente à sua frente. O condutor ficou a olhar para ela, perplexo, depois, desatou a rir.

- Meu Deus, Miss Thurston. Nunca a teria reconhecido. É mesmo você? - Era John Harte que se encontrava ao volante da viatura. Também parecia estar a gozar alguns momentos de descontração

- Sim, sou eu. Roubou esse carro, Mister Harte?

- -Roubei. Quer uma boleia?

Encontravam-se ambos em terreno neutro. Sabrina olhou-o com um sorriso de felicidade estampado no rosto e resolveu aceitar a boleia. Se Harte voltasse a insistir em comprar-lhe as minas, tinha sempre a hipótese de sair do carro e continuar o percurso a pé. Ao fim e ao cabo, ele não ia raptá-la. Além disso, quem é que depois pagaria o resgate?

- Claro. - Estava divertida a olhar para o automóvel que John Harte comprara. Era o mesmo modelo T que ela tinha há dois anos, com a única diferença de que aquele era mais recente e melhor nalguns aspectos. Os construtores acrescentavam-lhe uma série de novos acessórios todos os anos. - Gosta do seu carro novo?

- Acho que estou apaixonado por ele. - Harte olhou para o pára-brisas antes de fixar a rapariga. - É bonito, não é?

Sabrina riu-se, incapaz de resistir à tentação de acabar com toda aquela bazófia.

- É quase tão bonito como o meu. - Sabrina sorriu ao ver a cara de surpresa de Harte, que acabou por soltar uma gargalhada.

- Tem um igual a este? - Sabrina riu-se.

- Sim. Quase nunca o utilizo em Santa Helena. O meu velho ruão é mais adequado. - Finalmente, vendera o cavalo preferido do pai. Nunca o montava e ele envelhecera. - Mas vou de carro quando tenho de me deslocar a um sítio mais afastado.

Harte olhava-a como se acabasse de vê-la pela primeira vez.

- Você é realmente uma rapariga muito peculiar. É pena que, de certo modo, sejamos inimigos. Caso contrário, seríamos bons amigos.

- Se perdesse a mania de querer comprar as minas sempre que nos encontramos, talvez pudéssemos sê-lo. - Perguntou-se então se a amante de Harte poria alguma objeção, mas não podia dizer-lhe uma coisa daquelas.

-Continua então empenhada em não vender nada, não é? - Harte sorriu. Já não parecia tão preocupado com aquela questão.

Sabrina abanou a cabeça.

- Já lhe disse. As Minas Thurston só serão postas à venda depois da minha morte.

- E que me diz dos vinhedos? - Harte falava mais por curiosidade do que por outra coisa. Estava encantado com o brilho que havia no olhar de Sabrina e com os cabelos soltos. De repente, sentiu o odor das flores que ornamentavam os cabelos da rapariga. Era muito bonita, e ele nunca se dera conta disso. Mas também era um osso duro de roer para qualquer homem. Harte tivera ocasião de comprovar isso mesmo. Seria um sério inconveniente para ela durante muitos anos. Imaginou o que poderia fazer aquela rapariga quando não estava a trabalhar nas minas. Observou-a com interesse enquanto ela lhe respondia.

- Os vinhedos também irão para a sepultura comigo.

- Ao que parece, não a preocupa não ter herdeiros a quem os deixar.

Sabrina encolheu os ombros e olhou para ele.

- Não se pode ter tudo na vida. Eu tenho as minas, as uvas, a terra. O meu pai adorava tudo isso. Sentir-me-ia indigna dele se me visse livre de alguma dessas coisas. Era o que ele mais adorava neste mundo. Vender qualquer uma dessas coisas seria como vender parte dele.

Era, pois, aquela a razão das suas muitas negativas. Se tivesse sabido disso antes, não teria perdido tanto tempo com as suas propostas de compra.

- Você devia ter uma grande devoção pelo seu pai. - Sabrina sorriu para Harte enquanto chegavam a Nob Hill

- Sim, sempre a tive E ele sempre foi muito bom comigo É, pois, justo que eu dê seguimento àquilo que ele começou.

Os olhos de Harte estavam fixos nos de Sabrina

Mas que penosa carga deve ter sido para si algumas vezes.

Sabrina fez um gesto de concordância com a cabeça, sentindo uma súbita necessidade de ser sincera com ele. Tinha que o dizer a alguém.

- Sim, às vezes é. - Soltou um suspiro e olhou para o amplo espaço que a rodeava. - Mas também há a compensação do sentimento de vitória que se experimenta ao sobreviver a tantas dificuldades e ao ver que se realizou um bom trabalho. Para dizer a verdade, aquele primeiro ano foi terrível. - A voz ficou algo embargada ao recordar-se disso. - Quando todos aqueles homens se foram embora e tive de despedir o Dan Richfield. - Encolheu os ombros e olhou para Harte. - Mas isso aconteceu há já três anos, e agora está tudo a correr bem. - Esboçou novo sorriso. - Por isso, não se iluda com a possibilidade de comprar-me o que quer que seja.

- Talvez volte a tentar um dia, Miss Thurston. É a natureza da besta.

Riram-se, e ela indicou-lhe o caminho da Mansão Thurston.

- Se quiser ouvir um novo não da minha boca. Já estou a habituar-me.

- Ótimo. É ali.

Sabrina apontou para o portão que ela tinha sempre fechado à chave, saiu do carro e foi abri-lo. Era esquisito encontrá-lo daquela maneira. Ali, o ambiente era menos tenso. Naquele momento, não eram rivais. Eram apenas dois seres normais que não tinham razão para se odiar. Ela trazia flores no cabelo e ele estava deleitado com o carro novo. Não eram as pessoas que costumavam ser. Sabrina olhava-o com ar despreocupado.

- Porque não me deixa levá-la até à porta de casa, Miss Thurston? - Harte estava a dar mostras de uma grande cortesia, elemento que nunca fizera parte das suas relações. Durante os últimos três anos, haviam sido arquiadversários, e agora o acaso reunira-os num sítio pouco adequado para se zangarem ou para pensarem nas minas. Napa encontrava-se muito longe dali, e Sabrina, com os seus vinte e um anos, sentia uma renovada alegria de viver.

- Muito bem. Já que insiste, Mister Harte. - Sabrina permitiu que ele a deixasse diante da porta principal. Então, voltou-se para ele com um sorriso e disse-lhe: - Se prometer não falar nas minhas minas nem fazer-me qualquer tipo de oferta, terei muito gosto em convidá-lo para uma xícara de chá ou um porto. Mas primeiro tem de prometer o que lhe pedi! - disse Sabrina, provocando-o.

Harte fez a promessa com toda a solenidade, o que provocou o riso de ambos. Sabrina entrou, seguida de Harte, que não estava preparado para ver o que surgiu diante dos seus olhos. Era a mansão mais esplêndida que vira em toda a sua vida, e nos seus quarenta e nove anos de vida já vira umas quantas; todavia, a Mansão Thurston era espetacular. Como todos os que a viam pela primeira vez, ficou extasiado debaixo da cúpula. Há três anos, Sabrina mandara recolocar os vitrais e reparar todos os estragos provocados pelo terremoto. Mudara, inclusive, a porta da entrada principal, que fora chamuscada pelo fogo antes de o vento, miraculosamente, ter mudado de direção.

- Deus meu, como consegue viver tão longe disto? - Sabrina sorriu. Haviam acordado não falar das minas, e não queria ser ela a quebrar esse pacto.

- Tenho outro peixe para fritar. - Harte riu-se da resposta.

- Lá isso é verdade. Mas se eu fosse dono desta casa, abandonaria tudo só para viver aqui.

Sabrina olhou-o com falsa consternação. Estava com um bom humor pouco comum nela.

- Está a tentar quebrar a promessa e fazer-me uma oferta, Mister Harte?

- Não. Mas nunca vi nada tão maravilhoso como esta casa. Quando é que foi construída?

Harte recordava-se vagamente de ter ouvido falar dela, mas nunca a vira, pelo que Sabrina lhe contou a sua história em traços gerais.

- O meu pai mandou-a construir em mil oitocentos e oitenta e seis, dois anos antes de eu nascer. - De repente, John Harte olhou-a com uma expressão de surpresa. - Disse alguma coisa de mal?

Ele abanou a cabeça.

- Não... só fiquei surpreendido de a ouvir dizer isso... Sabe o que é para um homem da minha idade dar-se conta de que a sua arqui-rival não tem mais de vinte e um anos? Tem vinte e um, não tem?

Sabrina sorriu.

- Desde ontem.

- Feliz aniversário, então - desejou Harte, com voz tão suave que parecia pressagiar o fim das hostilidades entre os dois.

- Obrigada.

Sabrina conduziu-o à sala de estar, onde se sentaram para tomar um xerez. A rapariga não tinha nada mais forte para lhe oferecer, mas Harte pareceu satisfeito com a bebida. Na realidade, estava radiante. Como há muitos anos não estava, tal como ela.

- Como é que celebrou o seu aniversário? - Harte olhou-a com crescente interesse. Aquela rapariga possuía tanta energia, tantas qualidades latentes, e uma profundidade interior que ele nunca divisara, mas que via agora com enorme clareza.

- De forma muito simples. Vim para a cidade. - Encolheu os ombros. - Não estava à espera que os mineiros me fizessem um bolo de aniversário, pois não? - Sabrina riu-se, mas Harte sentiu pena dela. De fato, aquela rapariga não tinha ninguém, exceto os homens que trabalhavam às suas ordens, e ele sabia o ressentimento que ainda lhe guardavam, e que sempre guardariam. Teria de morrer heroicamente num incêndio na mina para que eles a vissem com outros olhos. Menos que isso não seria suficiente.

John Harte observava-a em silêncio.

- É muito nova para carregar todo este peso às costas, Miss Thurston. Não sente às vezes vontade de abandonar tudo e fugir?

Sabrina olhou-o com ar sério.

- Sim. Isso sucede quando venho até aqui. Imagino que o mesmo aconteça consigo às vezes.

Harte fez um gesto afirmativo com a cabeça e sorriu. A sua vida fora muito mais longa e preenchida que a dela. Era injusto que Sabrina estivesse tão apegada às minas, atendendo à ingratidão dos seus homens. Harte continuava a saber tudo pelos comentários dos seus próprios mineiros e dos que ela despedia ou que se negara a admitir. Mas eles iam sempre às Minas Thurston primeiro porque ela pagava melhor. Como eles não gostavam de trabalhar para ela, Sabrina não tinha outro remédio senão pagar-lhes bem. Não se tratava de nada pessoal, mas sentiam-se feridos na sua dignidade pelo fato de trabalharem para uma mulher, e ainda para mais tão jovem. Harte voltou a sentir o desejo de a proteger. Ali estava Sabrina, na sua enorme e bela mansão. Tinha a casa na cidade, os vinhedos... tinha tudo e, no entanto, não tinha nada. A sua pequena índia, Lua da Primavera, tinha muito mais: paz, respeito, segurança e, quanto mais não fosse, tinha-o a ele.

- Quem diria agora que somos concorrentes? Sabrina sorriu e encolheu os ombros.

- Suponho que na vida deve ser tudo assim. Tudo tão casual, tão inesperado e estranho. Como o nosso encontro de hoje. E esboçou novo sorriso.

- Pois eu, à primeira vista, não a reconheci com os cabelos assim.

Sabrina riu-se.

- Também posso andar assim nas minas, mas já imaginou o que diriam os mineiros. - Soltou uma sonora gargalhada, à qual se juntou Harte. Havia momentos em que Sabrina parecia mais uma menina do que uma mulher. Mostrava-se maravilhosamente despreocupada, despretensiosa e realista, o que deixou Harte surpreendido, sabendo ele de quem se tratava. Havia uma série de facetas diferentes na sua personalidade, como se dentro dela coabitassem doze pessoas diferentes; no entanto, parecia ser uma pessoa simples e sincera. Era algo confuso e, ao mesmo tempo, delicioso, e que Harte achava encantador.

- Sabe uma coisa? Gosto de si assim - declarou Harte, sorrindo. E, instintivamente, estendeu a mão e tocou-lhe nos cabelos. Em Napa, nunca se atreveria a uma coisa dessas, mas, ali, Sabrina era uma rapariga diferente. E, além disso, não havia nenhum mal. Por instantes, esquecera-se por completo de Lua da Primavera

- Obrigada. - Sabrina corou ao articular a palavra.

A mão de Harte deslizou então dos cabelos para a face da rapariga, mas esta afastou, de imediato, a cabeça para trás. Não estava acostumada a que ninguém se aproximasse tanto dela, pelo menos, desde que o pai morrera, e aquele gesto perturbara-a. Levantou-se para voltar a encher o copo ao seu convidado, e os olhos deste seguiram-na Quando se sentou de novo, Harte disse-lhe numa voz meiga:

- Não queria assustá-la.

- Não, não se passa nada. É que eu... bem, não importa.. - Sabrina sentou-se e olhou-o com ar sério. - É difícil ser duas pessoas ao mesmo tempo. Tive de me tornar insensível para poder dirigir adequadamente as minas... Julgo que com isso me esqueci de quem era... que era uma simples criança.

Naquele momento, de fato, pouco mais era do que uma criança, e Harte notara isso mesmo; mas notara outra coisa o ar demasiado confiante e despreocupado que ela exibia. Harte tinha a vaga sensação de que não havia mais ninguém na casa.

Não vislumbrou o menor indício de criadagem. Por um lado, era tão cautelosa, por outro, confiara nele, coisa que não devia ter feito. Harte franziu o sobrolho e, com ar paternal, perguntou-lhe:

- Vai ficar sozinha na casa, Miss Thurston?

Sabrina sorriu. Sempre ficara, desde que o pai morrera.

- Não tenho medo. Gosto de vir para aqui sozinha. - Era uma rapariga estranha e solitária, mas Harte achava que era demasiada temeridade ficar sozinha na casa.

- Você não está no campo. É muito perigoso

- Sei defender-me. - Sabrina sorriu, mas Harte não estava tão confiante.

- Eu não arriscaria tanto. E se não tiver a pistola à mão quando precisar? - Lembrou-se do que ouvira acerca do disparo com que se defendera de Dan.

- Nunca está muito longe de mim, Mister Harte.

- Pelo menos, sempre dá uma certa tranqüilidade. - Harte sorriu e Sabrina soltou uma gargalhada.

- Desculpe. Não queria dizer...

- Porque não? - perguntou Harte, com ar sério. Nem em mim deveria ter confiado.

Sabrina olhou-o, imperturbável.

- Já nos zangamos muitas vezes, mas posso dizer que nunca foi incorreto comigo, Mister Harte. Ainda se lembrava da visita de pêsames que ele lhe fizera quando da morte do pai e da extrema delicadeza que mostrara então. - Julgo que ainda sei avaliar as pessoas com quem lido.

- Não devia ser tão confiante. Por que razão não traz a sua governanta consigo quando vem para São Francisco?

- Ela enjoa no barco. - Sorriu - o certo é que não temo nada. Se estou segura nas minas a trabalhar todas as noites sozinha até quase à meia-noite, que pode acontecer-me aqui.

Harte pareceu ficar algo preocupado.

- Os seus homens sabem que fica no escritório até tão tarde?

Sabrina encolheu os ombros.

- Alguns. Sempre trabalhei até tarde, como o meu pai. Há sempre muito trabalho e não quero que ele se acumule.

Harte fazia o mesmo, mas para Sabrina era mais perigoso. Não era de estranhar que Dan a tivesse ido importunar. Felizmente, não repetira a façanha, pelo menos, Harte achava que não, e não queria fazer essa pergunta à rapariga

- Acho que devia ter mais cuidado. Leve o trabalho para casa.

Sabrina sorriu, sensibilizada com a preocupação de Harte pela sua segurança. Além de Hannah, que não parava de lhe dizer o mesmo, ninguém se inquietava por ela, e foi isso mesmo que lhe disse.

- Embora me sinta segura, agradeço a sua preocupação por mim.

- Tudo seria mais fácil para si se um dia acedesse a vender-me as minas. - Uma chispa de cólera surgiu no olhar de Sabrina, e Harte levantou a mão. - Não foi uma oferta. Foi um comentário. Tudo seria mais fácil, e sabe bem que sim. Mas facilidades não parece ser aquilo que lhe interessa. - Levantou-se e fez uma reverência, tentando acalmar a ira de Sabrina. Dobro-me aos seus desejos.

Sabrina riu-se e, com alguma malícia, declarou:

- Lamento que não o tenha feito antes, Mister Harte

- Vá lá, vá lá, Miss Thurston. Tive de fazer uma tentativa. Mas agora, desisto. -Mas Sabrina, porém, ainda não sabia se havia de confiar nele. - Talvez assim possamos ser amigos.

- Teria muito gosto

Sabrina sorriu para Harte, que a fitou com ar sério. Este era, pois, o homem cujo filho morrera nos braços de seu pai, recordou-se a rapariga. Não era apenas um mineiro ambicioso que tentava comprar-lhe as minas. O seu pai sempre o tivera em boa conta, e era muito possível que Harte o merecesse. Sabrina não sabia muito bem que tipo de sentimentos é que tinha por ele. De momento, só um grande respeito. Era inteligente e conduzia os seus negócios com acerto e honestidade.

- Gostaria de ser seu amigo, Miss Thurston

Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça e olhou-o com ar triste. Nunca tivera um amigo, para além das raparigas com quem fora à escola em Santa Helena. Mas já todas estavam casadas e tinham filhos e, além disso, não ousavam dirigir-lhe a palavra. Estavam escandalizadas pelo fato de ela dirigir as minas do pai. Precisava de um amigo, de alguém com quem pudesse conversar. Perguntou-se o que pensaria a rapariga índia se a visse chegar, de vez em quando, às minas de Harte para falar com ele. Sabrina ponderava esta situação, enquanto ele a fitava. Então, olhou-o com ar cauteloso.

- Eu também gostaria, Mister Harte. Mas pergunto-me se será possível quando nos encontrarmos de novo nas nossas respectivas minas.

- Poderíamos tentar um dia. Eu irei visitá-la. Concorda? - Sabrina não podia pedir opinião a ninguém. Não tinha mãe, nem pai, nem tia, nem dama de companhia. E Harte estava a perguntar-lhe uma coisa que ela não compreendia. Também ele não sabia se compreendia. Mas, ao vê-la naquela rua de São Francisco, ficara sem respiração. Há duas horas que conversavam como duas pessoas que se encontravam pela primeira vez. Harte estava de tal modo impressionado com ela que não a queria perder, fosse qual fosse a personalidade que adotasse quando voltasse para as minas. Sabia que a rapariga que tinha diante de si ficaria escondida dentro dela, e ele não queria esquecer a visão que, nessa noite, desfrutara dela. Sabrina não dissera nada de especial durante a conversa, mas o seu modo de olhar tocara fundo no coração de Harte. Havia nela algo de Matilda, mas esta não era tão bonita nem tão inteligente como Sabrina. Impressionava-o o fato de aquela rapariga, aos vinte e um anos, dirigir uma das maiores minas do país. A personalidade multifacetada da jovem deixara-o fascinado, mas, com muita pena sua, teve de se ir embora. Depois de fechar a porta, Sabrina ouviu arrancar o automóvel e sentiu uma agitação na alma que nunca sentira até então. No outro dia, enquanto descansava no jardim, ainda via o olhar de Harte e escutava as suas palavras num estado de verdadeiro êxtase. Nessa noite, ia apanhar o barco a vapor para Napa, e achou ridícula aquela fixação em Harte. Vira-o dezenas de vezes, inclusive em pequena, durante três anos detestara-o, e de repente... não conseguia tirá-lo da cabeça. Havia nele uma sutil energia, uma força, um ardor que lhe infundia segurança. E agora dava-se conta de que não era a primeira vez que experimentava aquela sensação, mas estivera extremamente ocupada e demasiado irritada com ele para lhe prestar atenção. No entanto, era ridículo estar sempre a pensar em Harte. Este não lhe saiu da cabeça durante toda a tarde, durante a viagem de barco para o Norte, enquanto se dirigia para casa no automóvel e enquanto conduzia, no dia seguinte, a caminho das minas. Harte também não conseguira deixar de pensar em Sabrina. Mas, quando chegou à mina, Dan deu-lhe uma desagradável notícia, a mesma que ela descobriu ao entrar no escritório e ao olhar para o quadro negro que se encontrava por cima da secretária. Houvera uma explosão no fundo da mina. A galeria não sofrera grandes danos, mas haviam perecido mais de trinta homens. Trinta e um, mais exatamente, como referiu, com ar pesaroso, a Harte, no dia seguinte, quando este foi visitá-la.

- Pelo menos, podiam ter-me enviado um telegrama. Não me disseram absolutamente nada. E, entretanto, lá andava eu, feita tonta, com flores no cabelo. - Tinha os olhos vermelhos e estava furiosa consigo mesma.

- Você tem direito a algo mais do que isto na vida. Eles vão para casa ao fim do dia. Têm mulher e filhos, e embebedam-se quando lhes dá na real gana. E que diabo faz você entretanto. - Harte estava revoltado por ela ser tão severa com ela própria.

- Sou responsável por todos eles - gritou-lhe Sabrina. Harte agarrou-a pelo braço.

- Também é responsável por si, Sabrina! - Era a primeira vez que a chamava pelo primeiro nome, e a rapariga não desgostou de ouvir o seu nome nos lábios de Harte. Tem de ser mais dona de si mesma do que deste montão de porcaria. Percebe, sua cabeça dura.

Sabrina sorriu. Algo estranho lhes acontecera durante as poucas horas passadas na Mansão Thurston. Ao fim de vários anos, haviam-se tornado amigos.

Os olhos dela voltaram a entristecer-se.

- O que percebo é que trinta e um dos meus homens morreram. E eu não estava cá.

- A sua presença teria alterado alguma coisa?

- Teria podido alterar a atitude dos outros relativamente a mim. - Mas sabia que não era verdade. Nada mudaria a idéia que tinham dela, e, em vez de lho dizer, Harte limitou-se a abanar a cabeça.

- Já lhes deu mais do que aquilo que eles merecem. Deu-lhes três anos da sua vida, muito mais do que se pode exigir a uma pessoa que está na sua situação. Por amor de Deus! Fiz a mesma coisa, mas sei que nunca irão agradecer-me. Quando eu morrer... tanto se lhes dá. - Sabrina sabia que não era verdade. Não se esquecera das filas de homens em posição de respeito quando ela chegara com o corpo do pai.

A rapariga falou com uma voz triste e suave.

- Eles lembram-se.

Os olhos de Harte encontraram os dela e assim se mantiveram durante alguns instantes.

- Nessa altura, é demasiado tarde. Quem é que se importará com isso? O seu pai estava-se nas tintas para isso. - Recordou. - Isso não significava nada para ele. Sabe qual era a coisa com que ele se preocupava mais no mundo? Com você. Deveria refletir nisso. Você era tudo para ele. - Harte sentiu um nó na garganta. Do mesmo modo que os meus filhos significavam tudo para mim.

Sabrina olhou para ele com ar compadecido.

- Foi por isso que não voltou a casar-se? Por causa deles?

Harte não o negou. Queria ser honesto com ela. Gostava demasiado dela para não o ser.

- Foi. - Sabia que Sabrina devia ter ouvido falar de Lua da Primavera, mas não queria discutir esse assunto com ela. Era uma questão de moral, e ele respeitava-a. - Fiz o possível para não me preocupar muito com a minha viuvez. Só procurei ter uma vida descansada. Não teria conseguido passar pela tragédia de perder alguém amado. - Os olhos umedeceram-se ao recordar o triste acontecimento. Há vinte e três anos que Matilda, Jane e Barnaby haviam morrido.

- Creio que o mesmo aconteceu com o meu pai depois da morte da primeira noiva. É o que a Hannah diz. Esteve dezoito anos para se casar.

- E eu parece-me que nem sequer chegarei a fazê-lo. - Harte olhou-a com ar sério. - Mas, pelo menos, tive o prazer de criar uma família. Você não a tem, nem a terá, se continuar aqui fechada.

Sabrina olhou-o, irritada

- Está a tentar falar-me das minas outra vez?

- Não, de modo nenhum, bolas! Mas estou a tentar dizer-lhe algo que é muito importante para si, pelo menos, deveria ser. Não dê a esta gente a única coisa que tem, Sabrina. Nunca lha devolverão. Dê-a a alguém que mereça... - Sentiu de novo um nó na garganta, sem saber muito bem por que. - Dê-a a alguém que ame... Encontre alguém que ame. Vá gozar a sua bela mansão de São Francisco, viva a sua vida. Não era isto que o seu pai quereria para si. Não é justo

Sabrina sentiu-se sensibilizada, tanto pelo olhar sincero daquele homem como por aquilo que ele lhe acabava de dizer. Fez um ligeiro gesto afirmativo com a cabeça, depois, foi ver os seus homens com o eco das palavras de Harte a ressoar nos ouvidos.

 

Um dos piores incêndios da história da indústria mineira foi o das Minas Harte, em agosto de 1909. Os danos provocados pelo fogo durante os cinco dias em que aquele inferno devorou tudo quanto apanhou pela frente eram indescritíveis. Muitos homens foram retirados do sinistro gravemente queimados, e não houve maneira de salvar muitos outros. A temperatura no interior das galerias era tão elevada que as equipes de salvamento se viam obrigadas a recuar de cada vez que tentavam chegar até aos mineiros aprisionados. Durante cinco dias, John Harte fez tudo o que pôde para os resgatar. Recebeu graves queimaduras nas mãos e nas costas, mas conseguiu salvar mais de vinte pessoalmente. Ao fim do segundo dia, Sabrina Thurston apareceu. Trabalhou ao lado dos homens de Harte, juntamente com as equipes de salvamento de outras cidades e os médicos que havia nas redondezas, e de Lua da Primavera, que aplicava ungüentos e emplastros nas queimaduras. Foram cinco dias intermináveis e angustiantes e quando, finalmente, as chamas se extinguiram, estavam todos esgotados devido às longas horas que haviam passado sem dormir. As equipes de salvamento começaram então a preparar-se para abandonar o local. O último dos feridos fora resgatado, e já não havia qualquer morto no interior da mina sinistrada. Sabrina sentou-se num tronco meio carbonizado, com a cara toda mascarrada e uma mão com queimaduras de alguma gravidade que fizera ao ajudar a apagar as chamas das costas de um mineiro, e olhou com ar exausto para John Harte quando ele se aproximou. Tinha os olhos tão vermelhos que mal conseguiu distinguir o sorriso que bailava no rosto enegrecido de Harte.

- Jamais poderei agradecer-lhe o que fez.

- Você faria a mesma coisa por mim, John, não faria?

Ele assentiu com a cabeça. Ambos sabiam que o teria feito. Sabrina mandara centenas dos seus homens em auxílio. Não houvera o menor protesto da parte deles. Nos momentos de aflição, estavam sempre dispostos a ajudar os seus irmãos, e responderam de imediato ao apelo de Sabrina. Haviam aparecido aos magotes, e agora, juntamente com os outros, preparavam-se para partir.

- Os seus homens foram maravilhosos.

Lua da Primavera também fora maravilhosa. Era uma boa conhecedora da natureza humana. Observara a atitude de Sabrina enquanto ia de um ferido para outro, e não escapara à sua argúcia que algo estava a nascer entre a jovem e John, algo que nem eles próprios compreendiam ainda. Mas a índia tivera ocasião de ver, mais de uma vez, como eles se olhavam, com uma ternura que Lua da Primavera atribuía aos primeiros rebentos do amor, e teve o pressentimento de que não tardariam a crescer. E não era em Lua da Primavera que John pensava naquele momento. Virou-se para Sabrina com ar preocupado.

- Vá para casa descansar, pequena. Passarei por lá mais tarde. Quero ver se essa mão está melhor. - Harte olhou de novo para a mão.

Sabrina esboçou um sorriso cansado. Aquele homem parecia inesgotável. Há cinco dias que não tinha um momento de descanso. Sabrina fora uma vez a casa tomar banho e mudar as roupas impregnadas de fuligem, cinza e fumo. Ainda se notava um cheiro a queimado nas roupas, na pele e nos cabelos, pelo que ansiava chegar a casa para tomar um banho. A perspectiva de se estender entre os lençóis lavados da cama era irresistível. Mal conseguia manter-se acordada no dorso do cavalo. Todavia, não parou de pensar em Harte durante todo o caminho. Era um homem extraordinário. Tinha quarenta e nove anos, mas era também um dos homens mais bem-parecidos que ela alguma vez vira. Quando, naquela tarde, se meteu na cama, quase a arrastar-se, sentiu uma inexplicável inveja de Lua da Primavera. Ainda estava a sonhar com ele ao anoitecer, quando Hannah bateu com força à porta do quarto. Sabrina sentou-se na cama, o rosto quase oculto pelos cabelos desgrenhados, e olhou com os olhos semicerrados para a velha governanta.

- O fogo reacendeu-se? - Estivera a sonhar com o fogo, John Harte, Lua da Primavera e todos os homens feridos, mas Hannah abanou a cabeça. Também parecia cansada. Tivera de cozinhar para os homens durante vários dias seguidos e praticamente não pregara olho.

- O John Harte está lá em baixo. Disse que veio ver como está a tua mão. Disse-lhe que estavas a dormir, então, pediu-me que viesse dar uma olhadela. - Observou a mão da rapariga e pareceu-lhe que estava com bom aspecto. Achava engraçado o fato de aquele homem se preocupar tanto por causa de uma queimadura tão pequena. A que ela fizera na cozinha era muito mais séria. De repente, começou a questionar-se das razões da vinda de John Harte. Não o tinha em muito boa conta. Há anos que vivia com a rapariga índia. E não ia começar agora a arrastar a asa a Sabrina... Não, provavelmente era mais outro dos seus truques para a fazer vender-lhe as minas. - Queres que lhe diga que estás bem?

Sabrina abanou a cabeça, saltou da cama e, depois de vestir o robe que tinha em cima de uma cadeira, desceu as escadas a correr e dirigiu-se para a sala principal, onde Harte se encontrava. Estava com ar esgotado, mas o rosto iluminou-se ao vê-la chegar.

- Sente-se bem, Sabrina?

- Estou ótima. Quer beber alguma coisa?

Harte começou por abanar a cabeça, mas mudou de idéias.

- Talvez não me fizesse mal um trago de algo forte para me reanimar o espinhaço.

A expressão fez sorrir Sabrina, que encheu um copo de uísque e ofereceu-lho.

- Em vez de andar por aí a tentar «reanimar o espinhaço», devia ir dormir.

- Tenho muito que fazer. - Era a canção de sempre, que ambos conheciam muito bem.

- E quem lhe valerá se cair do cavalo num recanto qualquer?

Harte esboçou um largo sorriso.

- Parece que está a querer-me dar as mesmas lições de moral que lhe dou a si.

- Ai, pois estou... - Sabrina sorriu. De repente, pensou nos homens que haviam morrido. Era o maior desastre a que ela alguma vez assistira, mas haviam salvo um bom número de mineiros. - Quem me dera ter salvo muitos mais, John - disse, levantando o olhar para ele, mas Harte abanou a cabeça.

- Foi impossível, Sabrina. Tentamos, todos... - Mas as condições em que a operação de salvamento decorrera haviam sido insuportáveis para qualquer ser humano e, além disso, os gases e o fumo acumulados nas galerias tinha provocado rapidamente várias mortes. As explosões eram incríveis.

- Tivemos a sorte de não perdermos mais homens. Dou graças a Deus por isso.

Sabrina sentia muita pena de Harte. Então, de repente, teve uma idéia divertida e virou-se para ele.

- John, já teve o seu quinhão de problemas. Porque não me vende as minas? - perguntou Sabrina para o provocar. Era exatamente o tipo de coisa que ele lhe teria dito um ano antes.

- Tenho uma idéia melhor - respondeu, com um sorriso estranho. - Porque não se casa comigo?

O coração de Sabrina parou. Ele só podia estar a brincar. Ela sabia disso, mas era uma sensação estranha ouvi-lo articular aquelas palavras... e, antes que ela pudesse responder, Harte beijou-a suavemente nos lábios. Era o primeiro beijo que recebia de um homem e, quando ele a estreitou entre os braços, Sabrina sentiu todo o corpo a derreter-se. Quando Harte a soltou, teve a sensação de que transcorrera uma eternidade. Olhou para ele, pasmada e, antes que tivesse tempo de reagir, Harte voltou a beijá-la. Ela empurrou-o então suavemente e, depois de recuperar o alento, fitou-o durante alguns instantes.

- O fumo não o terá afetado?

- É possível. - Harte riu-se e voltou a beijá-la Desta vez, quase a levantou no ar, fazendo com que o robe subisse e pusesse à mostra os bonitos tornozelos e os graciosos pés de Sabrina.

- Que está a fazer, John Harte? - Aquilo teria realmente acontecido? Tinha uma amante índia com quem vivia, e agora estava a fazer-lhe uma proposta de casamento. Só podia estar a brincar; mas o olhar que ele exibia dizia que falara a sério. Então, como de costume, Sabrina foi direta à questão.

- E Lua da Primavera?

Harte pareceu vacilar ligeiramente, mas os seus olhos não se apartaram dos de Sabrina. Há dias que pensava nisso. Lua da Primavera conhecia muito bem o homem com quem vivia.

- É uma questão sobre a qual teria preferido não ter de falar. Mas tem o direito de saber a verdade. Esta primavera, depois do nosso encontro em São Francisco e de eu começar a visitá-la, pedi à Lua da Primavera que se mudasse para outro lado. Agora, vive sozinha perto das minas, e voltará para junto do seu povo no Dakota do Sul, no final deste mês. Eu estava à espera que ela partisse para lhe fazer este pedido de casamento mas, depois de partilhar consigo estes últimos cinco dias, já não conseguia agüentar mais. Só desejava tomá-la entre os meus braços e afastá-la de todos os perigos E esta noite bem, não consigo viver sem você. - Os olhos umedeceram-se, e Sabrina perguntou-se se seria por causa do fumo. - Nunca pensei voltar a fazer uma coisa destas. Nunca quis voltar a abrir o coração depois da morte da Matilda. - Olhou-a e, por instantes, interpôs-se entre eles a lembrança da esposa e dos filhos perdidos, mas continuou a falar com voz suave. - Aquilo aconteceu há vinte e três anos, Sabrina, não posso fechar o coração por causa deles, e a Lua da Primavera foi muito boa para mim ao longo destes últimos anos, mas a vida não se pode resumir a isso. - Exatamente o que Jeremiah descobrira, também há vinte e três anos, quando conhecera Camille e abandonara Mary Ellen Browne. Sabrina ainda não respondera a John. Fitava-o, incrédula. - A Lua da Primavera é muito compreensiva.

Nessa tarde, antes de ir pedir Sabrina em casamento, tivera uma conversa triste e franca com Lua da Primavera. Enalteceu os anos que partilhara com ela e quis que fosse a primeira a saber da novidade. Choraram os dois, mas Harte sabia que o que sentia por Sabrina era amor verdadeiro, e Lua da Primavera tinha também plena consciência disso. Adorava-o o suficiente para lhe desejar o melhor para ele e para não lutar contra o destino.

- Por que razão é que quer casar comigo? - Sabrina continuava com um ar de espanto estampado no rosto. De repente, pensou nas minas. Precisamente agora que a mina de Harte ficara meio destruída, mas afastou a idéia da cabeça. - Não sei que dizer... Como é possível que eu... E se...

Harte imaginou todas as perguntas que fervilhavam naquele momento na cabeça da rapariga e, suavemente, puxou-a para si.

- Eu posso encarregar-me da direção das suas minas, ou, se fosse esse o seu desejo, pode continuar a dirigi-las pessoalmente. Não quero interpor-me no seu caminho, nem desejo tirar-lhe nada. As Minas Thurston serão suas até à morte, tal como me disse mais de uma vez. Nunca mais voltarei a tentar alterar essa situação. O que quero é algo muito mais importante do que as suas minas, Sabrina. - Baixou os olhos para ela e voltou a abraçá-la. Ainda cheiravam a fumo, mas nenhum dos dois se importou com esse pormenor. - É a ti que eu quero, meu amor. Só isso, até ao fim da vida. Talvez seja demasiado velho para ti, e sei que mereces algo melhor. Só posso dizer-te que tudo o que tenho é teu, Sabrina Thurston. As minhas terras, as minhas minas, a minha alma... a minha vida...

Harte olhou-a fixamente, e os olhos de Sabrina inundaram-se de lágrimas. E então foi ela quem o beijou. A barba sabia a fumo, mas isso não tinha a menor importância. Desatou a rir e, mal conseguindo articular as palavras, disse:

- Sempre te tive por meu inimigo... e agora... é o que vês...

Harte devolveu-lhe o beijo e estreitou-a de novo entre os braços, no preciso momento em que Hannah entrava na sala com uma bandeja com chá e bolachas na mão. E lançou um olhar furioso a John Harte e Sabrina.

- Agradeço que, nesta casa, se comportem como deve ser, Sabrina. - E, de dedo em riste, acrescentou. - Não me importo que dirijas uma mina sozinha e que mandes em quinhentos homens, mas, nesta casa, terás de te comportar como uma dama, e com um pouco de dignidade.

- Muito bem, minha senhora. Deverei seguir essas normas mesmo depois de casada? - Sabrina fitou angelicalmente a velha ama, mas Hannah não deu o braço a torcer.

- Quando estiveres casada, poderás fazer o que te dê na gana, mas entretanto... - De repente, fez uma pausa e olhou-os com ar surpreendido. - O quê?

Harte, radiante de felicidade, fez um gesto afirmativo com a cabeça, o que levou a velhota a soltar um grito prolongado e estridente, enquanto Sabrina a rodeava com os braços e ele as abraçava às duas. Então, de repente, Hannah recuou e fitou Harte.

E a rapariga índia? - Harte corou e riu-se

- Estou encantado com tanta discrição à minha volta.

- Deixe-se de brincadeiras. Se pensa que a vai manter por perto depois de se ter casado com a minha menina.

Sabrina, emocionada por Hannah a ter tratado por menina, riu-se e respondeu por John.

- Parte para o Dakota do Sul a semana que vem.

- Não tão depressa como seria desejável. Para mim, dez anos é muito tempo. - E de novo com as mãos nas ancas, sorriu. - Nunca pensei assistir a este dia. Perdi a esperança quando começaste a dirigir aquela maldita mina.

- Agora, também vais dirigir a minha. - Sabrina riu-se, e Hannah soltou novo grito.

- Não fará semelhante coisa! Ficará em casa comigo a criar os vossos filhos, John Harte. Não quero ouvir falar mais de minas por estes lados!

- Que dizes a isso? - sussurrou ele à futura esposa. Esta sorriu e respondeu-lhe no mesmo tom:

- Veremos. Talvez seja melhor que as dirijas tu. - Essas palavras eram uma incrível mudança de atitude por parte de Sabrina. Nem ela própria acreditava no que acabava de dizer. Disporia de mais tempo para cuidar dos vinhedos. Mas, na realidade, a idéia de Hannah era a que mais gostava: ficar em casa a criar os filhos. Que idéia perturbadora! - John leu no olhar de Sabrina o que ela estava a pensar e inclinou-se para a beijar nos lábios.

- Tudo a seu tempo, meu amor Tudo a seu tempo.

 

John não tinha ninguém a quem pudesse fazer o pedido de casamento. Depois de ele sair, Sabrina e Hannah falaram durante horas, quase como duas irmãs, e a velhota interrompeu várias vezes a conversa com abraços e soluços. Jeremiah teria adorado vê-las assim.

- Eu já tinha perdido todas as esperanças de que isto pudesse acontecer... Nunca pensei assistir a este dia.

- Também eu não - respondeu Sabrina, com um sorriso de felicidade. Todavia, ainda sentiu um arrepio de medo percorrer-lhe a espinha. Esperava estar a fazer aquilo que devia. Estava certa de que sim, mas era um enorme passo, e tinha de resolver tantas coisas relativamente às minas... Havia, naturalmente, a possibilidade de fundir as duas companhias, mas Sabrina não queria fazê-lo. Queria manter todos os seus negócios separados dos de John Harte. Casaria com ele, mas não misturaria os seus bens com os do marido. Por outro lado, se ele dirigisse as minas por ela, como ele dissera que poderia fazer, Sabrina ficaria com muito mais tempo para se dedicar aos vinhedos, coisa a que aspirava há muito tempo.

- Não achas que podias ficar em casa a costurar? - gracejou John, um dia, quando se encontravam sentados no alpendre. Estivera à espera que Sabrina chegasse no dorso do seu velho cavalo.

- Onde é que vamos viver? - Sabrina estivera a pensar no assunto. Não lhe agradava muito a perspectiva de ter de viver na casa onde haviam morrido a esposa e os filhos de John e onde ele vivera durante mais de dez anos com Lua da Primavera. A índia partiria para o Dakota do Sul daí a alguns dias, e Sabrina teve o cuidado de não abordar esse assunto. Não queria ser indelicada com ele. Todavia, ainda não haviam resolvido onde é que iriam viver, e ela não sabia se John gostaria de viver na casa da mulher com quem casava. - E se ficássemos a viver aqui?

John, depois de refletir durante alguns instantes, enquanto passava a mão pela barba, respondeu:

- Já sou demasiado velho para ir viver na casa de outro homem, Sabrina. A tua casa sempre me pareceria a casa do teu pai.

Sabrina concordou com a cabeça. Compreendia as suas razões, mas era um assunto de difícil resolução. John olhou-a, então, com o sorriso infantil. Apesar de ter mais vinte e oito anos que Sabrina, esta achava-o muito mais novo.

- E se fôssemos viver na Mansão Thurston? Seria estupendo, não achas? - Naquele instante, John parecia um miúdo travesso. Sabrina riu-se. A casa era sua, mas ninguém vivia nela há muito tempo. Seria como ir viver para um terreno neutro..

- Seria estupendo. E as minas? - Já para não falar dos vinhedos.

- Acho que poderíamos conciliar as coisas. Ao fim e ao cabo, não teríamos de viver sempre na cidade. Mas será uma boa mudança para os dois. - esboçou um sorriso malicioso, - logo que tenha as tuas minas de novo organizadas. Só Deus sabe as asneiras que cometeste.

Sabrina simulou que lhe ia dar uma bofetada, e ele riu-se. John já vira alguns dos livros de contas da rapariga e ficara surpreendido com a forma impecável como ela dirigia o negócio. Perguntou-se como é que Sabrina conseguira aprender tanta coisa. Havia, inclusive, alguns pormenores que ele podia aprender com ela, apesar de depois de vinte e sete anos a dirigir as suas próprias minas o pudesse fazer quase de olhos fechados. Ficara deveras impressionado com ela.

- Efetivamente, não és uma gestora medíocre, pequena. - Inclinou-se para a frente, beijou-a na face, tomou uma mão na sua, e Sabrina encostou-se a ele, ao ar da noite. Ela nunca imaginara que pudesse apaixonar-se por aquele homem. De repente, ali estava ele, e ela tinha a sensação de que nascera para ele.

Mais tarde, depois do jantar, Sabrina trouxe à baila a questão de Dan.

- Já pensei nisso. - John franziu o sobrolho. - Não posso negar o fato de que esse homem é bom naquilo que faz. Mas não o quero perto de ti. - Olhou-a com ar infeliz.

- É muito importante para ti, John?

- Muito menos importante do que tu, meu amor. – Baixou os olhos para ela, maravilhado com a intensidade dos sentimentos que Sabrina despertara nele. Acontecera tudo de forma tão inesperada, ao fim de tantos anos. E tanta certeza que ele tivera de que nunca mais sentiria o que estava a sentir... - Vou despedi-lo.

-Tens a certeza de que é isso mesmo que queres fazer?

- Tenho. - A voz era firme. - Não sou obrigado a dar-lhe satisfações. E também não está ao meu serviço assim há tanto tempo. - Havia três anos que abandonara as Minas Thurston, e trabalhara afincadamente para John desde então, mas este não podia mantê-lo por mais tempo. - Comunico-lhe a dispensa na semana que vem.

Sabrina franziu o sobrolho e olhou para John.

- Vai ser um rude golpe para ele.

- Deveria ter pensado nisso há muito tempo, quando te fez passar aquele mau bocado.

Sabrina riu-se.

- O engraçado é que tudo começou quando o Dan tentou convencer-me a vender-te as minas. E agora, em vez disso, vou casar-me contigo. - O que ambos sabiam não era a mesma coisa. - O que o Dan sempre desejou foi ficar à frente das minas, sem o meu pai ou eu por perto.

- Eu também não lhe dei tanta liberdade de ação como ele queria. Não sou esse tipo de homem. Já estou à frente da mina há muito tempo.

Sabrina compreendia-o perfeitamente. Pensava o mesmo relativamente às minas apesar de só há três anos cuidar delas. Gostava de fazer tudo sozinha e à sua maneira, e não lhe seria fácil passar as rédeas para as mãos de John Mas confiava nele, e sabia que, com o tempo, a sua confiança iria aumentar. Já haviam acordado que, durante os seis primeiros meses, Sabrina trabalharia em part-time. Mostraria a John os métodos que utilizava e apresentá-lo-ia aos seus homens. Não ia abandonar tudo de repente. Não podia fazê-lo. Entretanto, John começaria a alternar o seu trabalho entre as Minas Thurston e as suas. Sabia que o plano daria resultado.

- E quando as coisas estiverem encaminhadas, queres ficar na Mansão Thurston?

Sabrina não compreendia como é que teriam tempo para deixar Napa, mas John dizia com insistência que poderiam fazê-lo. E quando ele a beijou nessa noite, ao despedir-se dela no alpendre, estava segura de que John era capaz de conseguir tudo.

Os estragos provocados pelo fogo nas Minas Harte levaram várias semanas a reparar. Todos os homens tiveram de fazer horas suplementares, e até Lua da Primavera resolveu ficar mais umas semanas. Durante esse período, a índia comportou-se com a maior discrição, pareceu aceitar o seu destino, convencida de que a sua relação com John Harte chegara ao fim. Quando se cruzavam, nunca dizia nada a Sabrina, nem esta dava a menor mostra de hostilidade. Havia uma espécie de fascínio entre elas, e ambas faziam o possível por se ignorar. Mas a questão ficou definitivamente resolvida quando, um dia, John tirou Sabrina do sítio onde estava a prestar ajuda. Causava-lhe uma extraordinária intranqüilidade vê-las constantemente perto uma da outra.

- Quero que te mantenhas longe dela - disse John em tom de repreensão.

Sabrina, algo tímida, respondeu:

- É muito bonita. Sempre tive esta opinião. Julgo que o meu pai também achava o mesmo.

John sobressaltou-se ao ouvir aquelas palavras.

- Disse-te alguma coisa?

Sabrina deixou-se rir e abanou a cabeça.

- Não. Uma vez, tentei perguntar-lhe, mas não quis falar disso. Disse que era um assunto que não iria discutir comigo.

- Fez o que devia. - John corou até à raiz dos cabelos e olhou para ela. Então, disse algo que não devia dizer. Não queria falar de Lua da Primavera, muito menos com Sabrina. - És muito mais bonita do que ela, pequena.

- Como podes dizer semelhante coisa? Parecia chocada. É a mulher mais bonita que alguma vez vi.

John abanou a cabeça e aproximou-se dela.

- Não, meu amor, tu é que és.

Sabrina era, inclusive, mais bonita do que a primeira esposa de John. Aqueles cabelos negros e os enormes olhos azuis deixavam John completamente deslumbrado. Um ao lado do outro, ele, com os seus ombros largos, os cabelos ainda escuros, os olhos cintilantes e a barba proeminente, ela, com a sua beleza sem artifícios, formavam um casal simpático. John mal podia esperar pelo dia do casamento. Haviam começado a comunicar o compromisso aos amigos, e Hannah espalhara a notícia por toda a cidade. Quando, finalmente, o assunto chegou aos ouvidos dos mineiros, aos dele primeiro e aos dela depois, não se falou de outra coisa nas minas, sobretudo nas Minas Thurston, onde se interrogavam sobre as conseqüências que teria para eles aquele enlace matrimonial. Mas houve também outro homem que se perguntou o mesmo quando tomou conhecimento da novidade. E não tardou a saber o que lhe reservava o destino. Teve um verdadeiro ataque de fúria quando Harte lhe comunicou que não podia continuar ao seu serviço. Este não lhe disse por que razão o despedia, mas para Dan Richfield não havia qualquer dúvida sobre o motivo do sua demissão. Outra jogada de Sabrina. Mas desta vez ela iria ter o que merecia. John Harte concedera-lhe duas semanas para se organizar e fazer as malas, e Dan sabia que teria de deixar a cidade, porque, nas redondezas, não havia outras minas a não ser as de Harte e as de Sabrina. Há muito tempo que as minas de prata de Napa haviam ficado esgotadas, e não havia ali nenhuma mina que não estivesse controlada por Sabrina ou John. Dan não sabia para onde ir. Já fizera trinta e sete anos, e nenhum dos filhos tinha idade suficiente para se fazer à vida. Não queria levá-los consigo, de modo que pensava deixá-los em Santa Helena em casa de amigos. Mas não era nos filhos que pensava agora, enquanto andava de bar em bar e contava aos outros mineiros o que, segundo ele, se rumorejava:

- Ela já dormia com ele há algum tempo e não estranharia que formassem um trio com a índia do Harte. Reparem que ela ainda não se foi embora. - Ao fim de uma semana, todas as minas buliam de comentários sobre as indecências que Dan espalhara.

Um dia, ao ver sair Dan da mina, John Harte agarrou-o pelos colarinhos da camisa.

- Tens andado a falar da minha futura esposa? - Sabrina ainda estava atulhada de trabalho, mais do que de costume, porque ia casar-se dentro de dois meses e queria deixar tudo preparado para passar as rédeas a John. Isso contribuiu para que, durante aqueles dias, se vissem muito pouco. Dan Richfield, que tresandava a uísque, não pareceu assustar-se perante o gesto de Harte, um homem muito mais forte e corpulento que ele.

- Não é nada que não saiba já, Mister Harte. Ela sempre me tratou muito mal.

- Não foi isso que ouvi.

- Ou que quis acreditar.

Dan Richfield estava a ser insolente. Por instantes, John Harte ficou sem saber o que fazer. Então, com um gesto brusco, mandou-o embora.

- Desaparece daqui para fora, Dan. Recordo-te que só tens mais dois dias.

- Vou-me embora nessa altura.

John ficou satisfeito por tê-lo demitido. Nunca se dera conta de que ele bebia demasiado.

- Para onde é que vais?

- Para o Texas. Tenho lá um amigo que é dono de um rancho e alguns poços de petróleo. Far-me-á bem sair destas minas asquerosas. - Olhou por sobre o ombro para a mina onde trabalhara durante mais de três anos.

- Levas os miúdos? - Richfield encolheu os ombros, e John olhou-o com ar duro. - Bem, vê lá se desapareces daqui o mais depressa possível. - Não nutria qualquer amizade por aquele homem. Era evidente o ódio que Dan tinha por Sabrina, e John queria vê-lo bem longe dali. Agora, tinha muito que fazer, pelo que deixou de pensar em Dan para ir tratar da papelada que o esperava em cima da secretária e que ainda lhe iria roubar muito tempo.

E o mesmo fez Sabrina nessa tarde, nas Minas Thurston, até quase às sete da noite. Então, em pânico, olhou para o relógio. Prometera a John que iria jantar com ele. Ainda achava estranho a volta que a sua vida dera. Agora, havia sempre alguém à sua espera ao fim do dia, alguém a quem confiar os seus problemas, alguém com quem partilhar os seus êxitos; um homem que era meigo com ela quando estava cansada, que lhe acariciava o pescoço, que a beijava, e que lhe contava, por sua vez, as incidências do seu dia. Não compreendia por que razão é que resistira durante tanto tempo àquela nova forma de vida. Nunca acreditara que chegasse a casar-se algum dia, e evitara John porque pensava que ele só andava atrás das suas minas. Mas, agora, já não tinha de temer nada a esse respeito. O plano que ele lhe apresentara sobre a maneira de conduzir os negócios de ambos parecia-lhe perfeito. Ele dirigiria as Minas Thurston, mas estas continuariam a pertencer-lhe. John nem sequer lhe sugerira a fusão das duas companhias. Conhecia bastante bem o apego que Sabrina tinha pelas minas. Talvez um dia ela mudasse de opinião, mas, entretanto, respeitava as suas opiniões, fossem elas quais fossem. A ele, apenas Sabrina lhe interessava, e esta sabia-o bem. Ao saltar para a sela, Sabrina só tinha John no pensamento. Galopou a toda a velocidade através da noite, tomando os atalhos que conhecia. Passou, veloz, diante da sua própria casa e, em pouco menos que nada, chegou às minas do seu amado Mas, precisamente quando acabava de deixar para trás o poço principal, o cavalo perdeu uma ferradura.

- Bolas. - Já ia um pouco atrasada e, agora, para piorar a situação, tinha de desmontar, pois não podia continuar com o cavalo a coxear. Ainda pensou deixá-lo preso a uma árvore, mas receava que alguém pudesse roubá-lo, de modo que optou pela solução de andar com ele o resto do caminho até chegar a casa de John e prendê-lo. Para regressar, ele poderia levá-la no seu elegante automóvel ou emprestar-lhe um cavalo. Adorava andar de carro ao lado dele. Gostava de tudo o que aquela futura vida partilhada lhe oferecia.

- Precisas de carona? - Sabrina estremeceu ao ouvir uma voz procedente de detrás de uma árvore. Pouco depois, apareceu Dan Richfield, ligeiramente bêbado e o olhar lascivo e trocista. Ou queres que te leve o cavalo às costas.

Era um comentário atrevido, mas Sabrina fingiu não perceber. Não queria dar-lhe confiança. Sabia que ele se ia embora dentro de um ou dois dias, e até agora tinha-o evitado com sucesso. Não fazia sentido enfrentá-lo naquele momento

- Olá, Dan

- Não me venhas agora com finuras, sua pega. - Pelo menos, não fingia ter mudado de opinião acerca dela. Sabrina fitou-o e puxou o cavalo, tentando continuar o seu caminho, mas ele seguiu-a. Reparou que ele não tinha nem cavalo nem carro. Provavelmente, estivera sentado, atrás de uma árvore, a beber.

- Porque não segues o teu caminho, Dan? Já não temos nada para dizer um ao outro. - Sabrina dificilmente conseguia acreditar que conhecia aquele homem desde sempre. Era incrível que se tivesse tornado tão malvado e desleal. Ainda bem que o pai não vivera o suficiente para assistir àquilo em que ele se transformara. Queria mantê-lo à distância, e procurava não voltar-lhe as costas nem por um instante.

- Voltei a perder o emprego por tua culpa, sua cabra!

- Não perdeste nada por minha culpa.

Sabrina já não era a rapariguinha ingênua de outros tempos. A voz era dura, como muitas vezes acontecia quando falava com os mineiros. Aprendera a lição há muito tempo, na altura em que grande parte deles a abandonara. Agora, nunca os tratava como amigos. Eram mineiros que trabalhavam para ela, nada mais. Pagava-lhes bem e assumia todas as suas responsabilidades para com eles. Era uma forma de atuar que não estava em consonância com os seus bons sentimentos. Mas só John conhecia aquela sua faceta. Dan ignorava-a. Só a conhecera enquanto criança. Mas já era uma mulher. Precisamente a mulher que se voltou para ele para lhe dizer sem rodeios:

- Tu és o único culpado de tudo aquilo que perdeste. E perderás muito mais se não deixares de beber dessa maneira.

- Deixa-te de tretas! Não é por isso que o Harte me vai pôr na rua. E tu sabe-lo tão bem como eu. - Tropeçou, o que assustou Sabrina e o cavalo.

A rapariga puxou o freio do cavalo para continuar o seu caminho, mas Dan levantou-se e continuou a segui-la com ar obstinado. Sabrina estava a aproximar-se da primeira das cabanas, mas ninguém pareceu tê-los visto, e ainda faltava um bom bocado para chegar a casa de John. Ansiava que este aparecesse de repente e a livrasse de Dan, mas nem ele nem ninguém o fez, e Dan continuou a persegui-la quase sem alento.

- O Harte vai pôr-me daqui para fora por culpa tua!

- Não tenho nada a ver com isso.

Sabrina continuou a avançar, mas Dan alcançou-a e agarrou-a pelo braço com tal força que quase a deitou ao chão.

- Tens muito que ver. Sei que tens andado enrolada com ele e a puta índia... Não consigo imaginar como é que... Os três...

Sabrina ficou horrorizada e boquiaberta ao ouvir aquelas palavras. Intimamente, era ainda muito jovem.

- Como te atreves a dizer essas coisas? Que nojo! - Mas Dan apenas se riu e prosseguiu:

- Que vai ele oferecer-te como presente de casamento, sua pega? A Lua da Primavera?

- Pára de me insultares dessa maneira. - A voz de Sabrina tremeu ao subir de tom. - E não fales dele nesses termos! Tiveste uma sorte danada pelo fato de o John Harte te ter aceite depois de eu te ter despedido! - Os olhos da rapariga chispavam. Dan parecia deliciado com a situação. Há três anos que esperava aquela oportunidade.

- Tu não me despediste. Eu é que saí por minha vontade, com mais trezentos homens.

- Eles talvez tenham saído por sua vontade, mas tu, por aquilo que me lembro, comportaste-te como um miserável. Não precisava de lho recordar. - Dan olhava-a sem a menor ponta de remorso. - Porque não te vais embora e me deixas em paz? Isto não faz qualquer sentido, Dan. - Não queria continuar a discutir com ele. Aquelas recordações estavam a deixá-la amargurada; Dan, porém, mostrava-se determinado a não se ir embora.

- Por quê? Estás com medo. - Parecia divertido com a situação. Avançou para ela e barrou-lhe o caminho. Sabrina quase caiu para o lado ao sentir o bafo a uísque que ele exalava.

- Não tenho motivo para estar com medo

Sabrina optara por dar a impressão de manter a calma, coisa pouco fácil, dado que se encontrava numa parte muito escura e solitária do caminho que ia dar a casa de John. Não se via vivalma e, de repente, começou a ficar ligeiramente aflita. Era uma das poucas vezes que não trazia a pistola consigo. Saíra à pressa do escritório e deixara-a na secretária.

- Ai, não? Como é possível que não estejas com medo, sua pega? Ou é isto que queres?

Dan agarrou no cinturão como se fizesse tenções de o tirar. E, naquele instante, Sabrina ouviu um leve restolhar entre as árvores. Perguntou-se se seria um animal. O cavalo também se agitou a seu lado. Mas a rapariga continuou sem desviar os olhos dos de Dan.

- Não me impressionas, Dan. E se não sais da minha frente, passo por cima de ti. - E sorriu. Lembrava-se muito bem da noite em que o afugentara com um disparo, e estava certa de que ele não se esquecera disso. Desta vez, não trazia a pistola, mas ele não podia saber. - Meteu a mão no bolso da saia como se tivesse aí a arma e se preparasse para a empunhar. - O olhar de Dan dirigiu-se para a saia.

- Não me assustas. Não tens coragem de disparar de tão perto, pois não, pequena? Claro que não!

E, soltando uma gargalhada, agarrou, de súbito, o braço de Sabrina e tirou-lhe a mão do bolso. Ao comprovar que ela não tinha qualquer arma, empurrou-a violentamente contra uma árvore. Dan encostou a cara à da rapariga, que, com o constante roçagar do corpo dele sobre a sua saia, sentiu, de súbito, nos ouvidos, as palpitações do coração. Tentou dar uma joelhada nas virilhas do homem, mas este, antecipando-se, agarrou-a pela blusa e deitou-a ao chão. De imediato, pôs-se em cima dela. Enquanto com uma mão lhe rasgava a blusa e lhe apalpava os seios, com a outra tentava levantar-lhe a saia. Sabrina soltou um grito agudo, mas ele pregou-lhe uma bofetada com tanta força que a pôs a sangrar do nariz. A rapariga fulminou-o com o olhar ao sentir a mão do homem entre as pernas e tentou libertar-se rodando sobre si mesma. Mas ele voltou a imobilizá-la.

- Eu já devia ter feito isto há muitos anos, minha grande puta. Fodeste-me tudo aquilo que eu podia ter tido, agora vou eu foder-te... Trabalhei anos a fio para o cabrão do teu pai, desde puto, e que ganhei em troca?... Sua, sua puta, puseste-te a fazer aquilo que eu sempre quis fazer.

Sabrina voltou a gritar quando Dan lhe rasgou a saia de alto a baixo e deixou à vista as bragas que Hannah lhe fizera. A rapariga continuava a revolver-se na terra, sem deixar de gritar, mas ninguém a ouvia, e não conseguia sair de debaixo de Dan. Era incrível que, já perto do complexo mineiro, estivesse prestes a ser violada por um louco completamente bêbedo sem que ninguém a pudesse ajudar.

Dan rasgara-lhe já por completo a blusa e conseguira tirar-lhe o espartilho. Os seios jovens e firmes de Sabrina, de mamilos rígidos por causa do ar frio da noite e do medo, foram novamente apalpados, enquanto ela tentava defender-se às joelhadas Mas, desta vez, ele agarrou-a pelos cabelos e pressionou-lhe violentamente o rosto contra o solo. Rasgou-lhe então as bragas ao meio, deixando uma abertura mais do que suficiente para ele, e começou a tirar de novo o cinturão. De repente, porém, ficou imóvel, como se não estivesse certo de ser aquilo o que queria fazer. Olhou fixamente para Sabrina, soltou-lhe os cabelos e tirou a mão do cinturão, sempre com os olhos cravados nos da rapariga. Esta observou-o com olhar incrédulo, sem conseguir compreender o que lhe acontecera. Mas, ao vê-lo cair lentamente de cabeça para o chão e ficar com a cara virada para baixo, Sabrina percebeu por que razão é que ele perdera tão de repente o interesse nela. Tinha um punhal de aspecto assustador, com uma lâmina comprida e larga e o punho de marfim delicadamente cinzelado, cravado nas costas. Atrás dele, de pé, encontrava-se Lua da Primavera, que olhava para Sabrina em silêncio

- Oh!... - exclamou Sabrina, cobrindo os seios com as mãos e levantando-se a custo. Dan estava morto. Verificou isso mesmo pelo olhar que ele exibia. Ficou imóvel diante da índia, seminua, com as roupas rasgadas, um pé descalço, o rosto banhado em lágrimas, as gotas de sangue que lhe saíam do nariz a cair sobre o peito desnudado. Lua da Primavera fez-lhe sinal para a seguir. Não se aproximara demasiado da trêmula rapariga, nem lhe tocara. Os soluços não deixavam falar Sabrina, mas Lua da Primavera sabia o que devia fazer. Apanhou a saia rasgada do chão e deu-a à rapariga para que se cobrisse com ela, tomou, então, as rédeas do cavalo e fez-lhe novamente o mesmo sinal.

- Venha. Está muito frio aqui. Eu levo-a a casa do John. - Sabrina seguiu-a aos tropeções, perguntando-se o que aconteceria a Dan no sítio onde ficara, o que poderiam fazer. Começava a dar-se conta do que estivera prestes a acontecer-lhe, do que Lua da Primavera fizera e da boa estrela que pusera a índia no seu caminho. Sabrina compreendeu, então, que o ruído que ouvira atrás de uma árvore fora produzido por ela e não por um animal. O único animal ali fora Dan. Depois de percorrerem um bom trecho do caminho, Lua da Primavera parou num lugar escuro e, virando-se para Sabrina, que tremia da cabeça aos pés, disse-lhe:

- Não saia daqui. Vou buscar o John Harte. - Mas Sabrina, ainda assustada pelo que acabava de passar, pôs-se a tremer com maior intensidade que antes.

- Não me deixe aqui... Não posso... Não... Por favor... - Os olhos da índia eram jovens e selvagens. Então, estendeu a mão para Sabrina.

- Ele está ali. - A índia apontou para uma casa a poucos metros de distância, mas não queria que nenhum dos homens visse a rapariga. Tencionava trazer John até ali, até junto de Sabrina, depois desapareceria para sempre. Lua da Primavera possuía, entre outras qualidades, a da discrição.

- Se alguém se aproximar de si, grite. Aqui está segura. - O rosto era tão doce, e a voz tão meiga.

Sabrina só queria que os braços bronzeados de John a abraçassem e a acarinhassem. Então, de repente, lembrou-se das coisas que Dan Richfield afirmara e perguntou-se se mais alguém pensaria aquilo. Começou a chorar de novo. Já não era uma mulher. Agora, não passava de uma menina assustada, e não queria que John a visse naquele estado. Deixou-se cair de joelhos no chão, envolta na saia e sem deixar de soluçar. Lua da Primavera ajoelhou-se a seu lado.

- Agora, está segura. Com ele, estará sempre. - Eram palavras fortes. Sabrina olhou para a índia. Sabia que aquilo que ela dizia era verdade. Lembrou-se, então, de tudo aquilo a que Lua da Primavera se dispunha a abdicar. Parecia impossível que deixasse John de forma tão resignada. - Seja sempre boa com ele.

Sabrina fitou-a com os seus enormes olhos e, entre soluços, murmurou:

- Serei. Prometo. - A voz embargou-se-lhe. Fora a noite mais terrível da sua vida, à exceção, talvez, daquela em que morrera o seu pai. - Sim, serei boa com ele... Lamento... que tenha de partir...

Lua da Primavera levantou uma mão.

- Chegou a minha hora. Nunca fui esposa dele. Só sua amiga. Você é que irá casar com ele. O John precisa muito de si, pequena. - Era a mesma coisa que John lhe chamava. - Você dará uma boa esposa. Agora, vou buscá-lo.

E antes que Sabrina a pudesse deter, já desaparecera. Pouco depois, ouviu um ruído de passos. Meia dúzia de pessoas corriam na sua direção.

- Parem! Parem, todos! - Sabrina reconheceu a voz de John seguida do sussurro de várias vozes.

- Onde?... Muito bem, já podem ir-se embora... Oh, meu Deus..

Ouviu-se um novo ruído de passos e, de imediato, apareceu John. Sabrina continuava de joelhos, envolta na saia e a tremer. John trazia um cobertor, que Lua da Primavera lhe dera antes de indicar o sítio onde Dan Richfield se encontrava aos homens, que o foram de imediato procurar.

- Oh, meu Deus... - A voz de John soou com extrema doçura no ar da noite. Sabrina baixou os olhos. Não conseguia olhar para ele.

- Não... não... por favor... não... - queria pedir-lhe que não olhasse para ela, mas não foi capaz de articular as palavras adequadas. Só conseguia soluçar agarrada às pernas do homem; e, de repente, teve plena consciência do que estivera prestes a acontecer. Enquanto as lágrimas lavavam o sangue das faces, John envolveu-a no cobertor como se fosse uma criança pequena e pegou-lhe ao colo, aconchegando-a a si como fizera com a sua filha há muitos anos. Levou-a de imediato para casa, onde a depositou no sofá de couro da sala de estar. Observou as contusões no rosto de Sabrina e o olhar amargurado que ela exibia. Nesse instante, sentiu que se Lua da Primavera não tivesse morto Dan Richfield, ele próprio o teria feito. Mas a índia assegurara-lhe peremptoriamente que a rapariga não chegara a ser violada, e John deu graças a Deus por isso. Mas se o punhal não tivesse atingido o seu alvo ou tivesse levado um pouco mais a cravar-se na carne... Estremeceu só de pensar nisso, e ajoelhou-se no chão ao lado de Sabrina.

- Pequena, como pude permitir que te acontecesse uma coisa destas? Nunca mais irás sozinha a parte nenhuma. Prometo. Vou mandar sempre um guarda-costas para onde quer que vás. Eu serei o teu guarda-costas... Isto nunca mais voltará a acontecer-te... - Mas a principal razão de aquilo não voltar a acontecer era o fato de Dan Richfield já estar morto. Ao que parecia, o punhal atravessara-lhe o coração e Dan tivera morte instantânea. Lua da Primavera demonstrara a sua indiscutível destreza no manejo do punhal.

- Se não tivesse sido ela... - disse Sabrina, recobrando o alento. Começou a tomar o chá com uísque que John a obrigou a tomar, sem querer pensar na sua figura escondida debaixo do cobertor que ele lhe trouxera. Lua da Primavera fora buscar as roupas da rapariga e dera-as a John antes de desaparecer de novo. John fitava-a, sentindo-se como se tivesse estado prestes a perder o que mais queria no mundo. - E se Dan a tivesse assassinado? Era um pensamento difícil de suportar. Havia lágrimas nos seus olhos quando lhe disse: - Nunca permitirei que volte a acontecer nada semelhante. Nunca. Compreendes? Nunca mais voltarei a perder-te de vista...

Sabrina estendeu a mão trêmula e estreitou a dele na sua.

- A culpa não foi tua, foi minha. - Sabrina recomeçava a recompor-se, mas ainda não estava em condições de se levantar, os joelhos ainda demasiado trêmulos. - Tratou-se de contas antigas que o Dan tinha comigo. Poderia ter acontecido em qualquer lugar. O que me surpreende é que ele não tenha voltado a procurar-me no escritório. Tinha-me um ódio de morte, só isso... E sabes bem que o mesmo esteve prestes a acontecer noutra ocasião... Foi uma sorte não ter acontecido desta vez, como o foi o fato de a Lua da Primavera aparecer esta noite. - Lançou então um olhar inquisitivo a John. - Sabia que, pouco antes, alguns dos homens tinham vindo falar-lhe à porta de casa. - Está morto?

John anuiu com a cabeça.

- Está. O punhal atravessou-lhe o coração.

- E a ela, que lhe vai acontecer? - Sabia muito bem que o peso da justiça podia cair sobre a rapariga. Lua da Primavera matara para a defender. Mas tratava-se de uma índia e a justiça podia não fazer caso disso. No entanto, John já previra essa eventualidade.

Esta noite, partirá de comboio para o Dakota do Sul. E o corpo dele será encontrado amanhã... Tinha muito poucos amigos... - As palavras de John eram convincentes, e estava certa de que ele não iria ter complicações com a justiça. Confiariam na palavra de John. E, entretanto, o punhal já teria desaparecido. - Não tens nada que te preocupar. - Sabrina nunca o vira tão tranqüilo e seguro de si mesmo, o que a fez sentir-se mais protegida do que em qualquer outro momento da sua vida. - E ela também não tem nada a temer. Estão ambas seguras. Além disso, esse tipo teve exatamente o que merecia. Só lamento ter-lhe concedido tanta confiança.

- Foi o que aconteceu comigo. - Mil recordações passaram como um torvelinho pela mente de Sabrina, seguidos da hedionda imagem de Dan a rasgar-lhe as roupas. Não conseguiu evitar um nó na garganta e cerrou os olhos, mas John estreitou-a nos braços.

- Vou levar-te a casa.

Sem lhe tirar o cobertor que a envolvia, levou-a cuidadosamente até ao automóvel e conduziu-a a casa. Então, tomou-a de novo nos braços e levou-a até ao quarto. Hannah, que a aguardava, apertou os lábios e abriu os olhos de espanto ao vê-los entrar.

- Que lhe aconteceu? - Mostrava uma enorme preocupação.

- Está ótima. - John explicou-lhe o sucedido e a velhota ficou horrorizada.

- Esse filho da puta... Espero bem que o enforquem. - John não lhe dissera que ele já estava morto. Não tardaria a chegar-lhe a notícia. - Graças a Deus, alguém o deteve a tempo. Você tem bons homens.

- E bons amigos.

Havia outras mulheres que não se importariam que Sabrina tivesse sido violada. Lua da Primavera sabia que perdera o homem que amara durante anos, mas protegera a sua noiva como se de uma filha se tratasse, e ele estava-lhe imensamente grato. Dar-lhe-ia um bom presente e iria pô-la no comboio nessa mesma noite. Isso significava conduzir até ao amanhecer, mas era importante levá-la da cidade quanto antes, para a eventualidade de alguém dar com a língua nos dentes. Olhou para Hannah e deu-lhe uma pancadinha no braço.

- Cuide bem da minha menina. - Os vinte e oito anos que mediavam entre ambos faziam com que John a considerasse quase como uma menina; no entanto, também sabia que Sabrina era uma pessoa enérgica, forte e capaz. Não tardaria a recuperar do mau momento passado, e ele cuidaria da sua segurança durante o resto da vida. Era o que lhe prometera, e o que prometera a si mesmo.

E foi o que voltou a prometer, dois meses depois, no dia do casamento, enquanto Sabrina, diante do altar da igreja de Santa Helena, o olhava com expressão de imensa felicidade. Grande parte dos oitocentos mineiros que haviam vindo assistir à cerimônia apinhava-se no interior do templo, mais parecendo sardinhas em lata; outros, que não haviam conseguido entrar, tiveram de contentar-se em presenciar a cerimônia através das janelas. Até os que haviam abandonado Sabrina anos antes se encontravam ali, se não por amor a ela, por amor a John. Hannah chorou durante toda a cerimônia. E tanto os olhos de Sabrina como os de John se inundaram de lágrimas mais de uma vez.

Após a cerimônia religiosa, teve lugar um enorme banquete ao ar livre no recinto das Minas Thurston. Não teriam cabido em nenhum outro local, tendo em conta que todos iam acompanhados das esposas e filhos, pois Sabrina quisera convidar toda a gente.

- Uma pessoa só se casa uma vez - dissera Sabrina a John, a sorrir, enquanto faziam os seus planos, embora soubesse que semelhante afirmação não era válida para ele. Mas custava-lhe a acreditar que John tivesse sido casado com alguém anteriormente. Não chegara a conhecer a sua esposa, pois Matilda morrera mais de dois anos antes de ela nascer. Era estranho imaginar John casado e com dois filhos. Era quase como se ele fosse um homem diferente. Conseguia imaginá-lo melhor na companhia de Lua da Primavera, já que os vira várias vezes juntos ao longo dos anos, mas essas imagens haviam-se esfumado quase por completo da sua memória. Era como se John não tivesse pertencido a mais ninguém que não ela. E quando nessa noite apanharam o barco a vapor que os conduziria a São Francisco, ele disse-lhe, com um sorriso nos lábios:

- Que fiz para merecer uma menina como tu a meu lado, Sabrina Harte?

Sabrina gostou do som do seu novo apelido. E com um sorriso transbordante de felicidade, respondeu:

- Eu é que sou uma rapariga cheia de sorte, John Harte.

- -Isso é o que tu dizes.

John oferecera-lhe uma viagem para qualquer lugar do mundo que ela quisesse, mas Sabrina surpreendera-o ao dizer-lhe que a única coisa que queria era passar algum tempo na Mansão Thurston. E foi justamente o que planejaram fazer. John conseguira deixar tudo organizado nas minas de modo a poder passar um mês em São Francisco. Permaneceriam aí até às férias de Natal, e depois regressariam a Napa para voltar a tomar as rédeas dos negócios. Mas não era precisamente em negócios que pensavam quando chegaram à Mansão Thurston bastante depois da meia-noite. Sabrina pedira ao seu banqueiro que contratasse alguns criados para aquele período, e, ao entrarem em casa, encontraram-na resplandecente de luz. Na suíte principal, esperava-os a enorme cama com dossel ao lado do crepitante lume da lareira. Havia velas acesas e enormes jarrões de flores por todo o lado. Para Sabrina, a casa estava mais bonita do que nunca. Ao olhar para a cama que fora de sua mãe há muitos anos e depois dela, deu-se conta de que iria ser o leito da sua noite de núpcias. Então, com um olhar tímido, virou-se para John.

- Bem-vindo a casa! - disse Sabrina, numa voz sussurrante.

John tomou-lhe a mão e conduziu-a até ao piso inferior. Aí, beberam champanhe diante da lareira da sala de estar. Finalmente, John, ao ver que ela dissimulava um bocejo, levou-a ao colo até ao quarto e depositou-a em cima da cama. Sabrina já lhe mostrara a parte que lhe correspondia da suíte principal. Ele, depois de desaparecer por instantes nos seus aposentos, onde as malas já haviam sido desfeitas, apareceu de roupão vestido e com um sorriso meigo nos lábios. Envolta no seu robe de cetim rosa-pálido, parecia uma princesa de conto de fadas, e quando o deixou cair dos ombros, ao lado da cama, os cabelos pareciam puro ébano sobre a sedosa pele cor de marfim. Então, num ápice, John apagou as velas, e o quarto ficou iluminado pelo cálido resplendor do lume da lareira.

- Não te parece estranho estares aqui comigo? - perguntou John, enquanto se metiam na cama.

- Um pouco. Estou tão habituada a estar aqui sozinha... - Mas não era só isso. Nunca mantivera qualquer relação com homem algum, o único que beijara fora John, e o único que se aproximara dela para além deste fora, naturalmente, Dan. E agora, de repente, era a esposa de John na sua noite de núpcias. Toda a seriedade, toda a energia e habilidade que demonstrara na direção das minas de nada lhe serviam naquele momento. Era delicada e vulnerável, e estava bastante assustada perante aquilo que a esperava. Então, deu-se conta de que nunca falara com ninguém daquelas coisas, a não ser com a governanta, mas esta talvez também não lhe dissesse grande coisa. John abraçou-a, como se de uma criança se tratasse, mas aquilo que sentia por ela não tinha nada de amor paternal.

- Sabrina... - Não sabia como começar a perguntar-lhe o que queria saber. Lua da Primavera mostrara-se muito experiente nos seus primeiros contatos com ele. E houvera outras mulheres antes, mas nenhuma delas tão jovem... Matilda, naturalmente, era virgem quando se casara com ele... mas ambos tinham dezoito anos... e agora encontrava-se ao lado daquela rapariga... daquela rapariga... e ela era sua. Olhou-a com ar terno. - Ninguém falou contigo?

Sabrina esboçou um sorriso doce e ficou ligeiramente corada.

- Creio que sei o que... - Confiava plenamente em John, e sabia que continuaria a confiar durante toda a vida, que era o que deveria ter feito anos atrás.

- Mas... ninguém te explicou?

Sabrina abanou a cabeça, e ele beijou-lhe os lábios, as faces, os olhos, e de novo os lábios. Tinha de se controlar. A rapariga fizera nascer nele algo que nunca conhecera. - Sabrina, amo-te tanto - sussurrou-lhe John, entre os cabelos, e ela arqueou o corpo em direção ao dele.

- Então, é só isso que preciso saber.

E com a máxima delicadeza, John tomou uma mão de Sabrina e beijou a palma, depois o braço, a cintura, até chegar aos seios aveludados, possuindo-a então. Na manhã seguinte, continuavam enlaçados na cama da suíte principal da Mansão Thurston. Ele ensinara-lhe tudo quanto precisava saber sobre a arte do amor.

 

Regressaram a Santa Helena no dia de Ano Novo. Nessa altura, já sabiam onde viveriam. O mais simples seria mudarem-se para a casa que Jeremiah construíra para a sua primeira noiva, a que morrera antes de se casar. Os quartos do terceiro piso serviriam muito bem para quando chegassem os filhos; sobretudo, tendo em conta que Sabrina dizia insistentemente que queria ter, pelo menos, dois ou três filhos. John soltou um cômico grunhido e riu-se:

- Na minha idade? As pessoas pensariam que eram meus netos! Já não tenho pedalada para isso.

Sabrina olhou-o com ar cúmplice e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Mas, ontem à noite, não tiveste qualquer problema em acompanhar a pedalada.

- Isso agora não vem ao caso. - John olhou-a, embevecido. Aquela rapariga era um sonho que se tornara em realidade.

- Nem queria acreditar que era eu própria.

Passavam a maior parte do tempo a rir e a falar dos muitos interesses que partilhavam. Sabrina mostrou-lhe tudo o que dizia respeito às Minas Thurston e apresentou-o aos seus homens. Reuniam-se três dias por semana no escritório dela, e nos restantes dias era ela que ia reunir-se com ele na mina. John tinha um excelente encarregado-geral nas Minas Harte, e só queria tomar a direção das minas de Sabrina. Também tinha previsto um encarregado para as Minas Thurston, o que lhe permitiria dedicar-se apenas às tarefas de supervisão de ambos os negócios.

- Assim, poderemos passar a maior parte do tempo na cidade.

Ambos pareciam gostar da idéia. Sabrina não sentia um interesse especial pela vida social que poderiam levar em São Francisco. Atraíam-na mais as coisas de índole cultural. Durante a lua-de-mel, além de terem desfrutado do esplendor da magnificente mansão que o pai de Sabrina construíra, haviam ido à ópera, ao ballet e ao teatro.

- Fico sempre triste quando penso no que aconteceu ao meu pai. Construiu-a para a minha mãe e esta morreu ao fim de dois anos e meio. A casa ficou vazia. Foi uma verdadeira desgraça.

John concordou com a cabeça, pensando no passado distante.

- O Jeremiah prestou-me uma grande ajuda quando a Matilda e os meus filhos morreram. - Aquelas recordações já não o deixavam tão amargurado. Passara já muito tempo E, além disso, agora tinha Sabrina e, possivelmente, voltaria a ter filhos. Era o grande desejo de ambos. - Fiquei tristíssimo quando soube que a esposa morrera, mas, depois disso, não quis ver ninguém. Fui visitá-lo uma vez e despachou-me. Fora um rude golpe para ele, e compreendi. - Sorriu e abanou a cabeça, pensando na sua própria juventude. - Nessa altura, eu não sentia uma grande simpatia por ele E o teu pai era um homem impecável. Simpático, inteligente e extremamente modesto - E ensinara essas mesmas virtudes à filha, mas John já vislumbrara isso nela antes de se casar. - Eu estava tão determinado a rivalizar com as minas dele, que me mantive totalmente distanciado do teu pai. Foi uma pena. Teria podido aprender muito com ele

- De qualquer modo, julgo que ele gostava de ti. - Sorriu, - És espantosamente parecido com ele

Sabrina já se apercebera daquela semelhança antes de se casar com John, mas, agora, tinha ocasião de o comprovar ao receber constantes mostras da sua paciência, do seu afeto e da sua ternura, qualidades aliadas a um espírito perspicaz. Ambos passavam bons momentos a visitar as minas um do outro. Além disso, Sabrina tentava ensinar ao marido o que sabia de vinicultura, mas ele não dispunha de tempo suficiente para isso. Gostava de provar os vinhos de Sabrina, mas cada vez havia menos garrafas. Caíra uma forte geada nos vinhedos e perdera mais de metade das cepas, embora outros vinicultores tivessem perdido mais. «Sorte maldita!», costumava ela exclamar, decepcionada, mas tinham muitas outras coisas para fazer, adequar a casa de Napa ao novo residente, mudar a orgânica das minas e abrir a Mansão Thurston e manter lá uns quantos criados para poderem lá ir quando lhe apetecesse.

Além disso, tinham de acostumar-se aos costumes um do outro, coisa que conseguiram muito facilmente, para grande surpresa de ambos. A única decepção, partilhada pelos dois, era o fato de, no verão seguinte, ainda não se encontrar nenhum bebê a caminho, apesar da freqüência e da intensidade com que faziam amor. Hannah chegou a questioná-la certo dia.

- Não andas a usar nada, pois não?

- Que queres dizer?

Sabrina pareceu algo confusa. Apesar do casamento com John, mantinha a mesma inocência, e só sabia aquilo que ele lhe ensinara. Não havia nem houvera ninguém que a pudesse instruir sobre aquelas questões. Talvez Amélia o tivesse podido fazer, mas há dois anos que Sabrina não a via, embora lhes tivesse enviado uma valiosa prenda de casamento. Naturalmente, Sabrina não fazia a mínima idéia do que Hannah estava a falar.

- Não estás a evitar a chegada dos bebês, pois não?

- É possível? - Sabrina pareceu surpreendida. Hannah franziu o sobrolho e concluiu que a ignorância da rapariga naquele aspecto era total, o que a deixou mais aliviada. Era uma rapariga decente, muito diferente da mãe. Ainda se recordava dos anéis de ouro que encontrara certo dia. - Não sabia... Pode-se...? - Sempre suspeitara que algumas mulheres o faziam... como as mulheres cuja profissão as expunha constantemente a isso, ou... - Que fazem elas? - Estava intrigada com aquilo que estava prestes a saber, embora não fizesse tenções de evitar a gravidez. Pelo contrário, tanto ela como John ansiavam por um filho.

- Algumas usam casca de olmo, como as mulheres daqui, mas há métodos mais requintados.

Sabrina fez uma careta de repulsa que provocou o riso de Hannah.

- As que têm possibilidades usam anéis de ouro. - Hannah fez uma pausa, perguntando-se se não estaria a falar demais, mas, caramba!, Sabrina já era uma mulher adulta. - Como a tua mãe.

- A minha mãe fez isso? Quando? - Perguntou Sabrina, surpreendida

- Antes de te ter. O teu pai pensava que ela tinha tanto desejo de ter um filho como ele, mas ele era muito mais velho do que ela. - A diferença de idades entre Sabrina e John era ainda maior. - Ela dizia-lhe que não sabia o que é que podia estar a correr mal. Estavam casados há mais de um ano quando os descobri na casa de banho... os malditos anéis... e entreguei-os ao teu pai. - Esboçou um sorriso malicioso. - Depois daquilo, apareceste num ápice. Já estava com enjôos quando voltaram para a cidade.

Aquela revelação deixou Sabrina preocupada. Tanto pela indiscrição que Hannah cometera contra a sua mãe, como pelo fato de esta ter tentado evitar ter filhos. De repente, o coração começou a bater mais depressa.

- E que disse o meu pai?

- Ficou que nem uma fera, mas nunca mais voltou a falar do assunto. Mostrou-se satisfeito logo que soube que vinhas a caminho. - Hannah parecia orgulhosa do que fizera e, por instantes, Sabrina, ao pensar na pobre mãe apanhada no seu ato pérfido, odiou a velhota por ter posto a sua progenitora em cheque. Não fora justo. Deveria ter permitido que a mãe tivesse sido mãe quando muito bem quisesse. Todavia, considerando que ela morrera pouco depois disso, talvez o destino tivesse escolhido bem... mas, vinte e três anos depois, a filha tinha pena dela. Sabrina fizera os vinte e dois nessa primavera.

- Que fez a minha mãe?

- Ficou abatida... irritou-se... - Hannah sabia que Camille nunca perdoara ao esposo, mas não referiu isso a Sabrina. - Era uma miúda meio amalucada, mas o teu pai casou-se com ela apesar de tudo. Ele tinha o direito de exigir que a sua esposa lhe desse filhos. Malditos anéis de ouro... O teu pai deitou-os fora e a tua mãe chorou que nem uma criança...

Sabrina ficou de coração destroçado... pobre rapariga... - à noite, contou tudo a John.

- Foi uma brutalidade por parte do meu pai. E acho que a Hannah agiu muito mal ao imiscuir-se no assunto. Não devia ter contado ao meu pai. Bastaria tê-la advertido e ela depois que se entendesse com o meu pai.

- Talvez andasse a enganá-lo.

- É o que a Hannah quis insinuar, mas não me atrevo sequer a pensar. De vez em quando, a Hannah diz coisas desagradáveis da minha mãe. Deve ter havido uma espécie de ciúmes entre elas. Quando a minha mãe chegou, há dezoito anos que a Hannah trabalhava para o meu pai. Julgo que isso teve uma certa influência.

- Fosse como fosse, ainda bem que ela encontrou esses anéis. - John sorriu e perguntou: O que a levou a contar-te isso?

Sabrina corou e sorriu-lhe.

- Perguntou-me se eu estava a usar alguma coisa para evitar... Nem sequer sabia que isso se podia fazer. - Parecia menos embaraçada. Não havia nada que ela não lhe pudesse contar. Era o seu melhor amigo. - Nunca me falaste disso.

- Pensei que fosse uma questão que não te interessasse.

John pareceu surpreendido por ela se mostrar tão curiosa em relação àquele assunto.

- Não, mas é interessante saber estas coisas. - John riu-se e deu-lhe um beliscão na bochecha.

- Minha inocentinha. Há mais alguma coisa que queiras saber?

- Há. - O semblante de Sabrina entristeceu-se por instantes. Mas receio que não tenhas a resposta, meu amor.

Sabia, naturalmente, que ele tivera dois filhos com a anterior esposa, por isso o problema não era dele. - Gostava de saber por que motivo é que ainda não engravidei?

- Só o tempo o dirá. Tens de ter paciência, meu amor. Só estamos casados há nove meses.

Sabrina olhou-o com ar triste.

- Nesta altura, já devia ter um bebê nos braços. - John sorriu.

- Bem, mas tens-me a mim. Não te basta de momento?

- Para sempre, meu amor.

John puxou-a para si e abraçou-a. Os seus lábios encontraram-se e Sabrina esqueceu tudo quanto Hannah lhe contara naquela tarde. Só voltaria a pensar nisso uma ou duas vezes durante os seis meses seguintes, mas o que esperava ainda tardava.

Ao chegar o mês de julho, quando levavam dezoito meses de casados e ela acabava de fazer vinte e três anos, Sabrina sentiu-se mal um dia, praticamente logo que se levantou. O calor era muito forte, e na tarde anterior estivera a trabalhar com John nas minas. Tiveram uma discussão - coisa rara entre eles - sobre a conveniência ou inconveniência de fundirem as minas Harte e Thurston. O conseqüente nervosismo e a alta temperatura quase não a haviam deixado dormir durante toda a noite.

- Sentes-te bem? - perguntou-lhe John quando ela se levantou da cama.

- Mais ou menos.

Ainda havia um clima frio entre eles que vinha da noite anterior. Então, Sabrina voltou-se para ele, mas antes de poder articular mais qualquer palavra, caiu redonda no chão. John saltou de imediato da cama e foi dar com ela inconsciente.

- Sabrina... Sabrina... querida... - Estava horrorizado. O espectro da temida gripe sempre o perseguira. Mandou chamar o médico imediatamente, mas o homem não descobriu nela nenhum sintoma preocupante.

- Provavelmente, está cansada. Talvez ande a trabalhar demasiado.

Nessa noite, John fez um sermão à esposa. Estava na altura de deixar o novo encarregado-geral sozinho. Ele próprio o supervisionaria, ela poderia entreter-se com os vinhedos, embora nos tempos que corriam não fosse uma tarefa muito divertida. A geada continuava a fazer estragos. Mas Sabrina parecia não lhe dar ouvidos. Estava sonolenta e não tardou a adormecer na cadeira de balanço. John levou-a ao colo para o quarto sem a acordar. Estava preocupado com o seu aspecto, e ainda mais ficou, no dia seguinte, quando Sabrina desmaiou de novo. Mas, desta vez, levou-a diretamente para Napa e reservou um camarote no primeiro barco a vapor com destino a São Francisco. Na manhã seguinte, Sabrina encontrava-se já no hospital e a ser observada por uma equipe de médicos, enquanto John passeava, impaciente, pelos corredores.

- Então? - perguntou ele ao primeiro homem que saiu da sala. O médico sorriu.

- Eu diria que para março, embora um dos meus colegas acredite que seja em fevereiro.

John ficou desconcertado, mas o sorriso enigmático que o médico esboçou pô-lo na pista do que estava a acontecer.

- Quer dizer que...

- Isso mesmo. Está grávida, meu amigo.

Os gritos de alegria do futuro pai deviam ouvir-se no outro extremo da cidade. Nesse mesmo dia, John comprou a Sabrina um anel com um enorme diamante e ofereceu-lho nessa noite quando voltaram para a Mansão Thurston. Haviam resolvido ter a criança ali, perto dos melhores médicos da cidade. Os médicos haviam-lhe dito que podiam ir para Napa até Dezembro. Ainda tinham muito tempo. O casal, delirante, passou a noite a falar do acontecimento, dos nomes para menino... para rapariga... da decoração do quarto do bebê e, de tempos a tempos, Sabrina abraçava John.

- Sou a mulher mais feliz do mundo! - Ele sorriu.

- Casada com o homem mais feliz do mundo.

No dia seguinte, quando chegaram a Napa, Hannah recebeu-os extasiada. Agora, Sabrina fazia exatamente aquilo que lhe diziam. Manteve-se afastada das minas quase todos os dias e deixou de andar a cavalo. Passou longas tardes de descanso na cama, à espera de John. E, ao chegar o outono, quando o bebê começou a dar as primeiras mostras da sua existência, ele apoiava a cabeça no ventre da esposa, esperando sentir os movimentos do bebê, mas ainda era muito cedo. Sabrina começou a senti-lo ao cair das primeiras folhas, precisamente uns dias antes de um dos seus homens bater ruidosamente à porta.

- Há fogo na mina!

Aquelas palavras, que romperam inesperadamente o silêncio da noite, foram ouvidas primeiro por Sabrina, que teve a suficiente presença de espírito para assomar à janela e perguntar:

-Em qual?

- Na sua!

Sabrina e John começaram a vestir-se apressadamente, mas ele pôs-lhe uma mão firme no braço.

- Tu ficas aqui, Sabrina. Não quero que faças nenhum disparate. Eu encarregar-me-ei de tudo.

- Tenho de ir. - Nunca ficara em casa em casos semelhantes. Poderia cuidar dos feridos ou, pelo menos, fazer ato de presença. Mas John foi firme.

- Não! Fica aqui! - E, sem lhe dizer mais nada, deu-lhe um beijo e deixou-a em casa, onde ela andou freneticamente de um lado para o outro durante seis horas. Na manhã seguinte, viu o céu cheio de fumo e, como ainda não tinha notícias do sucedido, não conseguiu agüentar mais tempo e meteu-se no automóvel. Dirigiu-se, então, a grande velocidade para as minas, enquanto Hannah lhe gritava do alpendre.

- Vais-te matar! Pensa no bebê!

Sabrina, porém, só pensava em John. Queria certificar-se de que ele estava bem. Além disso, as minas eram suas e não queria descartar a sua responsabilidade. Quando chegou, depararam-se-lhe por todo o lado os efeitos da destruição, mas não se via vivalma. Finalmente, apareceu o encarregado-geral e disse-lhe que o marido se encontrava numa das galerias a resgatar homens com uma equipe de salvamento que descera há mais de uma hora. Sabrina pôs-se, então, a olhar para o poço, com ar impaciente, à espera que saísse alguém, quando se ouviu uma explosão. Incapaz de agüentar mais tempo, precipitou-se para dentro da mina e viu que eles haviam ficado presos numa galeria. Saiu em busca de ajuda, os pulmões cheios de fumo, e uma dúzia de homens entraram de imediato na mina para os resgatar. Quando viu sair John, deixou-se cair de joelhos, dando graças a Deus, vencida pelo fumo. Levaram-na para o escritório, onde trabalhara durante mais de três anos, e o médico veio observá-la de imediato. Pareceu recuperada ao fim de alguns instantes, e John repreendeu-a. Pediu, então, a um homem que a levasse a casa. Nessa noite, quando chegou a casa, sujo e a tresandar a fumo, encontrou Hannah no alpendre. A velhota exibia um ar taciturno e, com os olhos banhados de lágrimas, deu-lhe a notícia. John precipitou-se pelas escadas acima e encontrou Sabrina na cama, desfeita em lágrimas, com ar pálido e de coração destroçado. Perdera o bebê uma hora antes.

- E sei que nunca mais poderei ter outro...

Ao vê-la completamente desesperada, John apertou-a contra si, enchendo-a de fuligem, mas nenhum dos dois se importou e, por instantes, as lágrimas dele misturaram-se com as dela.

- O médico disse-te isso? - Sabrina abanou a cabeça e soluçou. - Então, não penses nisso, meu amor. Teremos outro. - Olhou-a carinhosamente. E, da próxima vez, farás aquilo que te disser.

John não quis insistir nas suas observações. Sabrina já se sentia suficientemente culpada para que lhe recordassem a imprudência que cometera. Contudo, ao fim de dois meses voltou a ser a mesma de sempre, a rir das coisas que ele lhe dizia, perdendo o constante ar angustiado que a perseguia como uma dor torturante de que não conseguia escapar. Foi um Natal difícil para ambos, mas, em janeiro, John levou-a para Nova Iorque. Viram Amélia várias vezes e, de regresso, passaram por Chicago para visitar alguns amigos dele. Aquela viagem fez com que Sabrina recuperasse a felicidade que parecia ter perdido, o que deixou o marido muito mais aliviado. Todavia, estava preocupado com o fato de ela estar a demorar a engravidar outra vez. Só ao fim de dois anos a viu no mesmo estado: pálida, com ar doentio sem estar efetivamente doente. Há já algum tempo que haviam deixado de falar no assunto. Sabrina abandonara todas as esperanças. Há quatro anos que estavam casados, e foi precisamente no dia do aniversário do casamento que John reparou que havia algo anormal nela. Quando lhe ofereceu uma taça de champanhe, Sabrina ficou, subitamente, lívida e recusou-a.

- Deve ser de alguma coisa que comi... - Sabrina olhou para John e saiu precipitadamente da sala.

No dia seguinte, quando John opinou que o problema dela não tinha nada a ver com a comida, ela desatou a chorar e saiu da sala, fechando a porta com violência atrás de si. Nessa noite, quando regressou das minas, encontrou-a adormecida em cima da cama. Aqueles sintomas não lhe eram estranhos. Já a vira assim antes, mas não se lembrava quando. Então, daí a dias, percebeu, finalmente, o que se passava. E, quando todas as dúvidas se dissiparam da sua cabeça, disse-lhe que achava que ela estava grávida.

- Acho que estás enganado. - Sabrina tentou despachá-lo, continuando a ler os relatórios das minas que ele lhe trouxera. Ultimamente, andava estranhamente preocupada, apesar de John estar a dar bem conta de tudo e de as minas irem de vento em popa.

- Não creio. - John estava satisfeito consigo próprio e com ela. Estava certo de que havia boas razões para estar.

- Mas sinto-me muito bem. - Sabrina olhou-o, irritada, e saiu porta fora. Só nessa noite, quando se deitavam, é que ele voltou a tocar no assunto.

- Não tenhas medo, pequena. Porque não tiramos as dúvidas? Vou contigo.

Ela abanou a cabeça e os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas.

- Não quero saber.

- Por que não? - John estreitou-a nos braços. Já sabia qual seria a resposta dela.

- Não quero voltar a alimentar ilusões. Que aconteceria se...? - balbuciou Sabrina, não conseguindo conter as lágrimas. - Oh, John...

- Vá lá, pequena. Temos de tirar as dúvidas. Desta vez, tudo correrá bem. - E esboçou um sorriso tranqüilizador

No dia seguinte, John levou-a ao hospital e viu confirmada a sua opinião sobre o estado de Sabrina. Escutaram, extasiados, a previsão do médico: o bebê nasceria em julho. Nem queriam acreditar na sua boa sorte. Desta vez, John quase não a deixou sair da cama, e Sabrina mostrou-se extremamente cooperante. Não queria voltar a correr nenhum risco, e ele tratava-a com todos os mimos. Voltaram para Napa em Janeiro, mas, em abril, mudaram-se para São Francisco para passar aí os últimos três meses. John queria-a perto dos médicos, e na Mansão Thurston ela tinha todas as comodidades, enquanto ele ia várias vezes por semana às minas. Comprou-lhe um Duesenberg e contratou um motorista para a conduzir pela cidade. Não queria que ela conduzisse. Sabrina seguia avidamente as notícias que chegavam da Europa, e ambos se perguntavam se a guerra não estaria prestes a rebentar. A situação parecia tensa, mas John acreditava que tudo voltaria à normalidade.

- E se a coisa piorar? - perguntou Sabrina, certa manhã de junho, olhando para o marido por cima do jornal.

Ele sorriu. Nessa altura, ela tinha o aspecto de um balão, e John adorava pôr a mão na barriga para sentir os pontapés do bebê. Seria um bebê vigoroso. Há trinta e dois anos, o seu filho Barnaby também era assim. Ainda se lembrava bastante bem- Mas sentia-se ainda mais exultante com este filho. Naquele momento, era impossível concentrar-se nas questões de política internacional que a esposa tentava abordar.

- E se estalar uma guerra?

- Não estalará. Pelo menos, para nós. Além disso - acrescentou, sorrindo, - se chegássemos a entrar nela, descobririas as vantagens de estares casada com um velho, meu amor. Já não tenho de me preocupar com essas coisas. Não me mobilizariam.

- Ótimo. Sorriu. Quero-te sempre aqui, comigo e com o nosso filho.

- Que te faz pensar que é um rapaz? - John tinha o mesmo pressentimento, que coincidia com o desejo de ambos, pelo menos, no que dizia respeito ao primeiro filho. Depois, prefeririam uma rapariga, se houvesse uma segunda oportunidade para isso. Apesar dos receios de Sabrina, a gravidez decorreu sem sobressaltos. Ainda era jovem. Acabava de completar vinte e seis anos, e apesar de se considerar velha, a sua idade permitiria um parto fácil. Pelo menos, era o que John esperava. Este queria que ela tivesse o bebê no hospital, mas Sabrina insistia em ter o bebê em casa. John ainda estava indeciso relativamente a essa questão. Olhou-a nos olhos e, com um sorriso nos lábios, repetiu a pergunta: - Por que um rapaz?

- Os pés grandes - respondeu Sabrina, apontando para a protuberância que sobressaía do grande balão em que o abdômen se transformara. - Às vezes, pergunto-me se ele terá a paciência suficiente para permanecer aqui dentro até ao fim do tempo. Está demonstrando uma impaciência incrível.

Todavia, quando a data prevista chegou e o vinte e um de julho passou sem novidade alguma, ficou provado que as suas previsões estavam erradas. Sabrina começou a impacientar-se.

- Porque será que está a atrasar-se tanto? - perguntou, uma noite, quando passeava com o marido pelos jardins da Mansão Thurston. - Já está com seis dias de atraso.

- -Talvez seja uma rapariga. As mulheres nunca chegam a horas a lado nenhum - gracejou John, dando-lhe uma palmadinha na mão com que ela se agarrava ao seu braço. Pouco depois, reparou que, naquela noite, o passo de Sabrina era mais lento e pesado do que de costume, e enquanto subiam lentamente a escada, pareceu mais ofegante do que nos outros dias. A preocupação de John aumentava à medida que a barriga de Sabrina crescia. «E se o bebê for demasiado grande», perguntara ao médico na semana anterior. «Então, fazemos-lhe uma cesariana, É uma operação muito simples hoje em dia». John esperava que a cesariana não fosse necessária, ainda que, segundo parecia, o bebê fosse enorme em comparação com a pequenez da futura mãe. Era estreita de ancas, o que fazia temer grandes dificuldades na hora do parto. Trinta e dois anos antes, Matilda passara um mau bocado, apesar de ser uma robusta e sã camponesa. Sabrina era muito mais frágil, mas ele já era mais velho e estava mais informado do que se passava à sua volta. O profundo amor que sentia pela esposa aos cinqüenta e quatro anos fazia-o ver motivos de preocupação em tudo.

- Queres que te vá buscar qualquer coisa para beber? - perguntou John a Sabrina, já a noite ia avançada, ao reparar que ela se contorcia na cama enquanto lia um livro. Estivera inquieta durante todo o dia. Fazia um calor terrível e o céu estava todo estrelado.

- Estou a ficar farta, meu amor - sussurrou Sabrina, com um sorriso nos lábios, apontando para o enorme balão que ocupava o lugar do que fora a sua cintura fina.

John tocou-lhe suavemente com a palma da mão e sentiu um vigoroso pontapé.

- Pelo menos, esta noite está em boa forma.

- É pena que não possa dizer o mesmo de mim. Doem-me as costas, doem-me as pernas, não consigo estar sentada nem deitada, custa-me a respirar.

John recordou ter ouvido algo parecido há muito tempo atrás, mas isso não impedia que agora, enquanto esfregava as costas a Sabrina pouco antes de apagar a luz, ela se sentisse tão angustiada como a primeira vez que passara por aquela experiência. Sabia que, naquela época, eram poucos os homens que partilhavam a cama com a esposa até tal ponto, mas não queria estar longe dela, e Sabrina dizia que não se importava de dormir com ele.

- Achas que as pessoas ficariam chocadas se nos vissem neste momento? - John tinha o braço à volta dela e Sabrina, a cabeça apoiada no peito dele, numa posição confortável.

- Que vissem. Sou feliz assim. E tu?

- Também.

Sabrina esboçou um sorriso e apagou a luz. Ao olhar para a janela, viu o céu todo estrelado. Estava uma noite magnífica... a do dia vinte e sete de julho de 1914. Mal adormeceu, de lado, virada para John, sentiu um forte pontapé na barriga, seguido de uma longa e dolorosa guinada. Abriu os olhos e olhou para John, que dormia profundamente e já ressonava. E aninhou-se ao lado dele. As costas doíam-lhe mais do que antes e, quando tentou mudar de posição, sentiu outra guinada. Uma hora depois, voltou a sentir as contrações que já não tinha há meses. Quando se sentou para conter a respiração, sentiu um súbito derrame entre as pernas e a cama ficou encharcada num instante. John acordou, acendeu a luz e, olhando-a com ar sonolento, perguntou:

- Entornaste alguma coisa? - Mas enquanto Sabrina abanava a cabeça, corada até à raiz dos cabelos, John deu-se conta do que acontecera e puxou-a suavemente para si. - Não te preocupes. Desta vez, vai tudo correr bem. - Levantou-se e voltou, pouco depois, com um monte de toalhas, chamou a criada e vestiu o roupão de seda azul. - Vou mandar a Mary mudar a cama. Entretanto, é melhor sentares-te aqui. Ajudou-a a sentar-se numa cadeira próxima e viu a sua cara de sofrimento quando voltaram as contrações. - Que sentes, amor?

Sabrina voltou a corar. Sentia-se mais segura ao lado de John do que de qualquer outra pessoa, inclusive o médico.

- Parecem cãibras. É normal? - Matilda nunca descrevera o que estava a sentir com tanto pormenor. Lembrou-se do bebê que Sabrina perdera, mas era demasiado tarde para que isso voltasse a acontecer.

- Não sei. Não tenho a certeza. O médico disse para o chamarmos quando as dores começassem.

- Achas que já chegou o momento?

Olhou para a cama encharcada e sorriu para a esposa.

- Eu diria que sim, mas não te preocupes. Pensa que dentro de horas, terás um bebê nos braços. - Era uma maravilhosa perspectiva que animou Sabrina.

Mary entrou para mudar as roupas da cama, e John foi chamar o médico. O médico ia mandar duas enfermeiras especialmente contratadas para a assistir. Além disso, recomendou a John que a mantivesse calma e deitada na cama, e não lhe desse nada de comer. Mas, ao fim de alguns minutos, ao entrar no quarto com uma xícara de chá na mão, encontrou-a sentada numa cadeira, com as mãos sobre a enorme barriga e os dentes cerrados.

- O médico está a caminho, querida. Agora tens de te deitar.

Agradeceu a Deus ir-se deitar, e mais agradecida ficou por ir ter o bebê em casa. Não quisera ir para o hospital porque, para ela, significava muito ter o bebê na Mansão Thurston. John acedera, mas estava preparado para a mandar para o hospital se fosse necessário. Quando, em menos de uma hora, as duas enfermeiras chegaram, disseram que tudo iria correr bem. Depois, fizeram sair John do quarto, o que deixou Sabrina a chorar.

- Não podes ficar? - Tinha plena confiança nele e queria-o ter a seu lado. Ao fim e ao cabo, era a sua casa, mas as duas enfermeiras não lhe deram ouvidos.

- Acho melhor não ficar.

John olhou-a carinhosamente antes de se retirar. Sabrina tinha o rosto coberto de suor e os olhos ligeiramente vítreos; o intervalo entre as contrações parecia ser cada vez menor. Saiu do quarto no momento em que Sabrina começava a gritar, e ficou à porta, a andar nervosamente de um lado para o outro. Pouco a pouco, os gritos foram deixando de se ouvir, mas voltaram a ouvir-se uma hora depois. Então, John, já impaciente, bateu à porta e a enfermeira mais velha repreendeu-o.

- Ela não deve ouvir barulho! - advertiu, com ar severo.

- Porque não? Ela não tem nenhum problema com os ouvidos.

Entretanto, Sabrina soltou outro grito, e ele, não conseguindo aguentar-se mais, irrompeu pelo quarto adentro e deu com ela deitada na cama com a enorme barriga à mostra, mas não se mostrou chocado. Acercou-se da cama e, antes que chegasse a contração seguinte, pegou-lhe na mão e falou-lhe com todo o carinho que sentia. As enfermeiras não sabiam que fazer, e o médico, que chegava naquele instante, ficou surpreendido por ver John no quarto com a sua paciente.

- Bem, que temos aqui? - O homem tentou dissimular a surpresa pela presença de John no quarto. Era evidente que queria ver aquele inoportuno marido dali para fora, mas Sabrina parecia estar colada a ele. Nem sequer se mostrava preocupada com o fato de só estar coberta por um fino lençol. Este saía frequentemente de cima dela quando estava a ter as contrações, mas ela não parecia dar por isso. Arquejava desesperadamente de cada vez que tal acontecia. Então, de repente, fez um movimento brusco para a frente e tentou sentar-se, contorcendo o rosto num esgar horrível. As enfermeiras empurraram-na de imediato contra os lençóis. O médico aproximou-se, puxou o lençol para trás e examinou as partes mais íntimas de Sabrina, enquanto ela chamava por John e soltava urros horríveis. De repente, o rosto de John Harte ficou coberto de suor. Tinha vontade de estreitar a esposa nos braços, mas não podia fazer nada. Sabrina continuava a contorcer-se em cima da cama. O médico fez-lhe então sinal de que queria falar com ele fora do quarto. Sabrina sentiu-se tomada de pânico ao ver que eles se iam embora, mas só depois de mais outra contração é que John se juntou ao médico no corredor e quis saber como é que o parto estava a correr.

O médico falou numa voz branda.

- Está tudo a correr bem, Mister Harte, mas tem de sair de ao pé dela. É um espetáculo demasiado penoso para um marido. Não posso permitir a sua presença, tanto por si como por ela. Tem de nos deixar trabalhar à vontade.

- Trabalhar? - John Harte olhou para o médico com ar irritado. - Mas é a minha esposa que está a fazer todo o trabalho! Além disso, ela prefere ter-me ao pé dela. Sou a única família que tem. Sou o melhor amigo... e ela é tudo para mim. Já estive em muitas herdades e sei como é que os bezerros e potros nascem.

O médico pareceu chocado.

- Trata-se da sua esposa, Mister Harte.

- Eu sei, doutor Snowe. E não quero que ela corra o menor perigo.

- Então, deixe-a nas nossas mãos. Creio que foi por isso que requisitou os nossos serviços.

John hesitou, sem saber o que fazer. Estava decidido a permanecer junto de Sabrina se fosse esse o seu desejo, mas retirar-se-ia se a sua presença a embaraçasse. John não se importava minimamente com o que as pessoas pudessem dizer, já era demasiado velho para se preocupar com esse tipo de coisas. Que se danasse o Dr. Snowe! Assim, olhando-o nos olhos, disse-lhe:

- Se ela me chamar, entrarei. Estou em minha casa, essa mulher é minha esposa e o meu filho está prestes a nascer.

O médico pareceu contrariado, mas limitou-se a franzir os lábios.

- Muito bem.

- Vai tudo correr bem?

- Eu diria que sim, mas creio que o nascimento é capaz ainda de demorar um pouco. A sua esposa tem de controlar as forças. Pode ser uma noite muito longa. - Olhou para o exterior e, ao ver o sol sobre o horizonte, retificou: - Bem... um dia longo. Não creio que o bebê nasça antes da hora do jantar. Deu uma olhadela ao relógio de bolso e sentiu-se alguma agitação no quarto

- Como é que sabe?

- Porque tenho experiência destas coisas. E já vi nascer muitos bebês. - «E você não», foram as palavras que ficaram por dizer.

- Mas ela parece que está quase..

- Não creio.

Quando o médico voltou a desaparecer no interior do quarto, John teve vontade de bater com a cabeça na parede. Durante as cinco horas seguintes, enquanto percorria a casa toda sem parar, teve a sensação de que ia dar em maluco. Acabou por tomar dois conhaques e um uísque, e teve vontade de dar um a Sabrina, mas isso teria provocado grande confusão. Finalmente, às duas da tarde, esgotado e desesperado, sentou-se na escada, debaixo da cúpula de vitrais, sem deixar de pensar em Sabrina. Entretanto, as enfermeiras haviam entrado e saído várias vezes do quarto, e o médico só o fizera uma vez para informá-lo de que estava tudo a correr bem, mas que o parto ainda se encontrava um pouco demorado. Finalmente, às quatro da tarde, John ouviu Sabrina dizer algo num tom agudo e soltar um grito lancinante de seguida. Como que movido por uma mola, correu para a porta do quarto e deteve-se aí. Escutou um gemido horrível e um grito abafado. Tinha vontade de bater à porta e chamar por Sabrina, mas não o fez com receio de assustá-la. Voltou a ouvir a voz da esposa, mas desta vez não foi um grito abafado. Sem conseguir suportar aquele martírio por mais tempo, entrou sorrateiramente no quarto. Ao princípio, ninguém o viu. As persianas estavam corridas e as cortinas não deixavam entrar a claridade do exterior. Havia uma luz brilhante em cima da mesinha-de-cabeceira e outra aos pés da cama, em cima de outra mesa. Sabrina jazia no leito, no meio de um calor sufocante. Tinha as pernas abertas e um lençol por cima. O rosto estava inundado de suor e os cabelos eram um verdadeiro emaranhado. De repente, sentiu nova contração e, revirando os olhos e agarrando-se desesperadamente ao lençol, soltou um grito agonizante. O médico levantou o lençol, e John pôde ver a aparição de uma cabecinha redonda. Ficou boquiaberto. Teve vontade de animá-la enquanto ela continuava a fazer força para expulsar o bebê. O sangue saía a jorros de uma ferida aberta entre as pernas, mas John nem sequer pensava nisso. O seu único pensamento era na cabecinha e na milagrosa mulher que a empurrava para fora. Sabrina voltou a gritar, e as enfermeiras incitaram-na a continuar a fazer força, enquanto o médico fazia girar o bebê sob o olhar choroso do pai. E, de repente, ali estava ele... um rapaz perfeito. Apesar de estar ensangüentado e molhado, Sabrina tomou-o nos braços, ao mesmo tempo que John, sem conseguir conter as lágrimas, os abraçava aos dois. O médico ficou surpreendido, mas, ao olhar para eles, sossegou. Havia sido um dos partos mais singulares que realizara. John e Sabrina talvez não fossem tão insensatos como pensara. O bebê fora concebido com amor, e agora nascia nos seus corações e nas suas mãos, enquanto ambos o beijavam carinhosamente. Eram cinco e catorze do dia 28 de Julho de 1914. Acabava de estalar a guerra na Europa.

 

Jonathan Thurston Harte foi batizado na velha Igreja de Santa Maria, na Califórnia Street, quando tinha seis meses de idade, em janeiro de 1915, quando a Europa se encontrava em plena guerra. Os pais ofereceram uma pequena recepção aos amigos na Mansão Thurston. Os Crockers, os Floods, os Tobins e os Devines estiveram presentes. Foi um grupo pequeno mas seleto que ergueu as taças e brindou por ele com champanhe. Nessa noite, o pai e a mãe repetiram o brinde na intimidade do quarto onde ele nascera.

- Que sorte temos tido, pequena!

- Sim, muitíssima

Sabrina possuía já tudo o que desejava na vida um marido que amava e um filho que adorava, as minas prosseguiam de vento em popa, embora ela continuasse a recusar fundi-las com as do marido, com o argumento de que elas tinham a sua própria identidade.

- Toda a gente sabe que estamos casados e que sou eu que as dirijo. Qual seria a diferença.

- Para mim, faria diferença. - Ela pertencia a John, mas as suas minas, não, e, por uma razão remota que ela própria não conseguia explicar, queria mantê-las assim, embora ele estivesse à frente delas e a realizar um trabalho excelente. Não tinha a menor queixa e, na realidade, com a chegada do pequeno Jon, perdera grande parte do interesse nas minas. Até as contínuas geadas nos vinhedos não lhe pareciam uma tragédia. Nada conseguia preocupá-la. Só pensava em coisas agradáveis, e não parava de dizer que Jon era parecido com John. Tinha os cabelos negros e os olhos cor de violeta, mas, de fato, não se parecia com nenhum dos dois. Hannah, pelo contrário, sabia muito bem com quem é que ele era parecido. Era a mesmíssima imagem de Camille, mas nunca quis dizê-lo a nenhum dos dois.

Permaneceram em Napa durante boa parte da primavera, e celebraram o vigésimo sétimo aniversário de Sabrina indo ao Grange Dance. Esse verão foi o mais maravilhoso de que ela se lembrava. John completara cinqüenta e cinco anos, e a única nota triste daqueles dias fora a chegada de uma carta com a notícia de que Lua da Primavera morrera num acidente, ao cair de uma ponte. Batera com a cabeça nas pedras e tivera morte imediata. A carta fora remetida pelo irmão e escrita por um qualquer conhecido seu que sabia escrever. Dizia que John devia saber da ocorrência, fato que deixou este comovido. Fora muito boa para ele. Quando Sabrina soube, também ficou triste. Seis anos antes, Lua da Primavera salvara-lhe a vida e evitara que perdesse a virgindade. Custava a acreditar que já se haviam passado seis anos. Pareciam ter passado a voar. Sabrina já não conseguia imaginar a vida sem John Harte. Era como se tivesse estado sempre a seu lado. As suas previsões haviam-se concretizado. No mesmo dia do nascimento de Jonathan, estalara a guerra na Europa, mas não havia indícios de que os Estados Unidos iriam entrar nela. Até mesmo depois de Jonathan completar os dois anos, não havia motivos para que os Estados Unidos viessem a envolver-se, pelo menos, era isso que os políticos diziam, mas Sabrina não era da mesma opinião.

- Como é possível que não entremos nela, John? Os aliados estão a morrer aos milhares. Achas que não acabaremos por lhes dar uma ajuda? O problema é que, se o fizermos, dirão que somos loucos e, se não o fizermos, ter-nos-ão pelas criaturas mais insensíveis que há ao cimo da Terra. Não sei qual será a melhor opção.

- Preocupas-te demasiado com a política. É o que sucede às mulheres que estão acostumadas a trabalhar. Quando param, não sabem o que fazer com elas próprias. - John adorava gracejar com o seu espírito inquieto.

Mas o certo era que o pequeno Jon lhe dava muito que fazer, tanto que, embora desejasse ardentemente ir até Nova Iorque, decidiu não acompanhar John. Este tinha negócios em perspectiva para os dois em Detroit e alguns investimentos para tratar em Nova Iorque.

- Poderíamos regressar pelo Sul, se quisesses. - John tentava convencê-la porque detestava viajar sozinho. Adorava a sua companhia, e passavam a maior parte do tempo juntos.

- Quanto tempo estaríamos fora?

John pensou durante alguns instantes

- Provavelmente, três semanas. Talvez quatro. Perderiam duas semanas só em ir e vir de um extremo ao outro do país. Sabrina abanou a cabeça.

- Não é possível. Achas que poderíamos levar o Jon? - John abanou a cabeça.

- Imaginas o que seria a nossa viagem com ele no comboio durante duas semanas.

Sabrina soltou um gemido e desataram a rir.

- Sim, imagino. Só não consigo imaginar quando é que voltaria a recuperar a minha sanidade mental. - Jon tinha dois anos e mexia em tudo o que via. Era uma criança sã e muito viva. Ainda assim, Sabrina tinha pena de não ter engravidado outra vez. Tentara desde que ele nascera, mas não conseguira. Todavia, essa possibilidade parecia-lhe menos importante à medida que passava o tempo e o pequeno ia crescendo. Por uma razão qualquer, que o médico desconhecia, tinha certa dificuldade em engravidar. Mas ambos eram felizes com o seu filho único. - Detesto ter de separar-me de ti durante tanto tempo, querido.

- Também eu. - Não parecia satisfeito. - De certeza que não queres deixar o Jon aqui com a Hannah?

- Não, não é possível. É demasiado traquinas para a pobre velhota - E não havia mais ninguém na Mansão Thurston a quem pudessem confiar tranquilamente o filho. - Desta vez, não posso acompanhar-te.

- Tudo bem.

John continuou a fazer os preparativos para a viagem e, a nove de setembro, Sabrina acompanhou-o à estação na companhia do pequeno Jon; deram-lhe um beijo de despedida e ele disse-lhes adeus com a mão da carruagem privada que reservara para a viagem. John dirigiu-se para o Este, enquanto Jon e Sabrina voltavam para a Mansão Thurston para esperarem aí pelo seu regresso. Tinha alguns negócios a tratar no banco e queria comprar cortinas, estofos e tapetes novos Isso iria mantê-la ocupada durante a ausência do marido, mas, desde o momento em que ele partira que se sentia terrivelmente só. Vagueou pela enorme casa, ansiosa por receber notícias, e ainda mais ansiosa pelo regresso dele, mas ainda faltavam várias semanas para que John regressasse. No dia seguinte, depois de brincar um bocado com o pequeno Jon, foi comprar tecidos que precisava para a decoração da casa. Ao sair de uma loja, perguntou-se onde é que John se encontraria naquele momento. Então, ao passar por um ardina, lançou o olhar para o título do jornal que ele exibia: DESCARRILAMENTO NA CENTRAL PACIFIC LINE. CENTENAS DE MORTOS. Perplexa, abriu caminho por entre a multidão para ver o que o jornal dizia, arrancou-o praticamente da mão do rapaz e deu-lhe um dólar. Sentia o corpo todo a tremer. Não havia nomes, nem lista de vítimas, mas era o comboio em que viajava o marido. O descarrilamento ocorrera em Echo Canyon, a este de Ogden, no Utah. Num estado de total aturdimento, Sabrina começou a andar e deu consigo no banco, sem saber como lá chegara. Parou no vestíbulo, paralisada de medo, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, até que alguém a reconheceu.

- Mistress Harte... em que posso ser-lhe útil?... - Conduziram-na até ao escritório do diretor, e Sabrina, sem dizer palavra e com o terror estampado no rosto, mostrou-lhe o jornal.

- John, o meu marido, partiu nesse comboio ontem. Há algum modo de saber... - Não se atreveu a terminar a frase. Era possível que John tivesse saído ileso, como também era possível que se encontrasse entre as vítimas. Nesse caso, partiria imediatamente para o lugar onde ele se encontrasse. Jonathan teria de ficar com alguém até ela regressar. Tratava-se de um caso de força maior. Então, olhou com ar suplicante para o diretor do banco. - Não consegue saber?

O homem fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Telegrafaremos para a nossa sucursal de Ogden para que nos consiga essa informação.

O comboio ficara detido aí, pois os sérios danos que sofrera não lhe permitiam prosseguir viagem. Nessa tarde, sairia outro comboio de São Francisco para recolher os sobreviventes do sinistro.

- E se contatássemos a companhia de caminho-de-ferro? Eles devem ter uma lista das vítimas.

O diretor fez novo sinal afirmativo com a cabeça.

- Faremos tudo o que pudermos, Mistress Harte. Onde poderei encontrá-la.

Aguardarei por notícias em minha casa. Ou prefere que fique aqui?

- Não Mandarei um dos meus homens levá-la a casa e, logo que saiba mais qualquer coisa, comunicar-lhe-ei de imediato.

O homem mostrava-se extremamente abalado. Os Harte eram os seus melhores clientes, como o fora antes Jeremiah Thurston, e só esperava que Mr. Harte tivesse saído ileso do descarrilamento. Ajudou Sabrina a entrar no automóvel do vice-diretor, disse ao motorista que a conduzisse a casa e voltou para o escritório a fim de dar várias ordens urgentes. Telegrafou para a Central Pacific com pedido de resposta imediata, mandou um mensageiro ao chefe da linha de caminho-de-ferro, e aguardou no banco por notícias. E não foram boas notícias que chegaram. John Harte constava da lista de vítimas. Morrera numa das seis carruagens que descarrilaram e caíram numa ravina de várias centenas de metros de profundidade. Só poucas horas antes o seu cadáver fora resgatado do canyon, não se sabendo, ao princípio, qual era a sua identidade. Mas agora já se sabia de quem se tratava, e a sucursal do banco enviou também as suas mais sentidas condolências para a família enlutada. Ao fim da tarde, o diretor do banco, extremamente nervoso, dirigiu-se à Mansão Thurston, atravessou os portões e bateu à porta. Uma criada abriu a porta, e ele pediu para ver Mrs Harte, se possível. Sabrina veio logo, mal lhe disseram quem era, deixando Jon com uma das criadas. No seu semblante vislumbrava-se alguma esperança. Seguramente já sabiam que John andava a ajudar toda a gente. Estava tão acostumado aos desastres que ocorriam nas minas desde há vários anos, que se comportava maravilhosamente em ocasiões como aquela. Do alto da grande escadaria, Sabrina olhou para baixo, com um sorriso nervoso nos lábios, mas a expressão do rosto do banqueiro deixou-a especada no sítio onde se encontrava.

- John?... - sussurrou Sabrina sob a grande cúpula. – Ele... ele está bem, não está? - Desceu mais uns degraus e parou de novo quando o homem avançou para ela para lhe dar a mão, enquanto abanava a cabeça. - Ele não está?...

O banqueiro quisera dizer-lhe de outro modo; pelo menos, quando estivesse sentada, para que não desmaiasse nos seus braços. Por nada deste mundo queria ser ele a dar-lhe a notícia, mas não tinha alternativa. A tarefa coubera-lhe a ele, e olhou para ela com um ar angustiado. Tais coisas não deveriam acontecer a pessoas como aquelas, que se amavam tanto, que levavam umas vidas tão honestas e que, ao fim de tanto tempo, haviam descoberto que se amavam.

- Sinto muito, Mistress Harte. Acabamos de receber a notícia... - disse, suspirando profundamente. Não iria ser fácil para ela. - Morreu no descarrilamento. Recuperaram o corpo... - Custava-lhe dizer aquilo, mas agora já não podia voltar atrás - ...do fundo de uma ravina, precisamente esta tarde.

Sabrina deixou escapar um gemido gutural, como o que exalara no momento de dar à luz Jon, mas muito pior do que aquele, e não anunciava a chegada de um novo ser. John deixara de existir. Levantou os olhos para o diretor do banco; neles havia mais dor do que a que ele tivera ocasião de ver alguma vez na vida. Não sabia que mais dizer-lhe, e assim ficaram, imóveis, na grande escadaria da Mansão Thurston, debaixo da cúpula mandada construir pelo pai de Sabrina e reconstruída por ela depois da sua destruição, em 1906. Mas nenhum dos dois a via agora. Só viam os olhos um do outro. Os dela encheram-se de lágrimas. Sabrina acompanhou-o, então, até à porta. Não gritou, não chorou, não desmaiou, nem deu o menor sinal de histerismo. Limitou-se a conduzir o homem até à porta principal, com ar de quem sentia que o mundo chegara ao fim. E, para Sabrina, chegara.

 

Não havia nenhum modo de explicar ao pequeno Jon Harte, de dois anos, que o pai morrera. Mal falava, e não existia qualquer maneira de o fazer compreender. Mas ninguém o ignorou; e, quando o corpo de John voltou para a cidade, realizou-se um serviço religioso na velha Igreja de Santa Maria, e o funeral em Napa, onde foi sepultado. Sabrina sentia-se como se tivesse morrido ao lado de John. Mandara abrir o caixão quando o corpo chegou, e ficou sentada, na biblioteca da Mansão Thurston, a olhar para ele, para as feridas e o pescoço partido, tirando-lhe com suavidade a areia que ainda havia no rosto, à espera que despertasse de um momento para o outro, para lhe dizer que tudo não passava de um pesadelo. Mas John Harte não se mexeu. A sua vida com ele chegara ao fim. Estavam casados há sete anos, e não conseguia imaginar como seria a sua vida dali para a frente. Nada na sua existência a deixara tão destroçada como aquela desgraça. Passava horas sentada no alpendre, de olhar perdido no espaço, depois, aparecia Hannah e, dando-lhe uma palmadinha no braço, recordava-lhe alguma tarefa que tinha de realizar ou que Jonathan reclamava a sua presença. Era como se a morte de John lhe tivesse esvaziado a cabeça. Não sentia nada, não via nada, não dizia nada a ninguém, e praticamente não fazia uma carícia ao filho. Já lhe tinham dito várias vezes que havia muitas coisas que precisavam da sua atenção em ambas as minas, mas não conseguia decidir-se a ir a nenhuma delas, nem às suas nem às dele. Por outro lado, ainda não compreendia por que razão é que se opusera tão obstinadamente à fusão de ambas as minas. Por que tanta teimosia? Já não se lembrava, nem mostrava o menor desejo de continuar a cuidar dos negócios.

- Mistress Harte, tem de vir - rogara-lhe o encarregado-geral uma meia dúzia de vezes, ao passar pela casa de Santa Helena. Ela dizia-lhe que sim com a cabeça, mas não ia no dia seguinte, nem no outro a seguir, nem em nenhum dos outros dias. E assim se passou um mês. Finalmente, já desesperados, os encarregados das minas foram ter com ela e, desta vez, ela sabia que não podia continuar a demitir-se das suas responsabilidades. Meteu-se no automóvel de John e, juntamente com eles, dirigiu-se primeiro às suas próprias minas. Ao entrar no escritório em que trabalhara durante tantos anos, teve a impressão de que retrocedera no tempo. Lembrou-se do primeiro dia em que ali fora depois da morte do pai, da enérgica alocução que dirigira aos seus homens através do megafone, do abandono da maior parte deles... da cena horrível com Dan... De repente, sentiu-se ainda mais só do que naqueles tempos, como se a dor fosse de ontem e não de uma década atrás. Olhou para os dois homens e desfez-se num mar de lágrimas. O encarregado, algo embaraçado, tomou-a nos braços.

- Mistress Harte... sei a dor que sente por voltar aqui... mas...

- Não, não. - Abanou a cabeça, olhando-o com ar desesperado. - Não compreende. Não consigo voltar a pegar nisto... não consigo... Já não tenho a força de outrora... - O homem não compreendeu. Então, suspirou e tentou recuperar o domínio sobre si mesma. Finalmente, sentou-se na cadeira que fora ocupada tantas vezes por John quando trabalhava ali. - Não estou em condições de voltar a dirigir as minas. Agora tenho um filho em quem pensar.

Os dois encarregados sabiam que ela já o conseguira fazer, o que fora uma verdadeira proeza, e que realizara um trabalho excelente, mas agora nenhum dos dois acreditava que ela voltasse a repetir a façanha.

- Não pretendemos que faça tal coisa, Mistress Harte. - Sabrina pareceu surpreendida e, por sua vez, aliviada, ao ouvir aquelas palavras. Então, deu-se conta de que aquilo era uma das coisas que mais temera no mês anterior: ter de enfrentar, completamente só, o lugar e o ambiente em que John trabalhara com tanto afinco. As minas estariam mais vazias sem ele. Não conseguiu suportar a idéia e levantou-se, tinha um nó na garganta.

- Quero que continuem a dirigir as minas da mesma forma que as têm dirigido até agora. Reunir-me-ei convosco regularmente para saber como é que as coisas estão a ir. E... - Acrescentou, para surpresa de ambos: - Quero fundir todas as nossas minas. Sabia que deveria ter feito isso em vida de John, e sentia-se culpada por se ter oposto aos seus desejos durante tanto tempo, como se não tivesse confiança nele. - Ao fim e ao cabo, toda a gente sabe que as duas funcionam como uma. Quero que se chamem Minas Thurston-Harte.

- Fique descansada.

Todos sabiam que o processo de legalização daquele projeto levaria algum tempo, por isso iam pô-lo já em marcha. Sabrina mostrou, então, um ligeiro indício da mulher que fora ao fazer uma série de anotações em duas folhas de memorando e entregou uma a cada um dos homens.

- Além disto, quero as minas dirigidas como até agora. Continuem tudo o que o meu marido fez. Que nada mude em nenhuma das minas.

Durante os meses seguintes, porém, Sabrina descobriu que havia problemas em ambas as minas, especialmente na dele. Os lucros das Minas Harte haviam baixado muito durante os últimos anos, mas John nunca se queixara disso, e demonstrara uma grande honestidade ao não cobrir nunca os seus prejuízos com os lucros das Minas Thurston. Sabrina tinha mais uma razão para estar agradecida ao seu defunto esposo, e sentiu uma mágoa imensa ao pensar nos apuros por que ele passara sozinho, sem nunca lhe dizer nada. Mas as preocupações sobre o que acontecera nas Minas Harte ficaram radicalmente alteradas quando, em 1917, os Estados Unidos entraram na Grande Guerra. De repente, a conseqüente necessidade de armas e munições originou uma enorme procura de cinábrio, isto é, sulfureto de mercúrio, e os lucros de ambas as minas aumentaram vertiginosamente. Nessa altura, já eram conhecidas como Minas Thurston-Harte, e Sabrina começou a fazer dinheiro a rodos, coisa a que não deu muita importância. A sua única preocupação, além de não ter superado ainda a dor pela perda do homem que tanto amara, era o seu filho Jon. Então, como que querendo encontrar uma parte perdida do esposo, começou a trabalhar de novo nas minas vários dias por semana. Isso afastaria da sua mente os pensamentos angustiantes que ainda a atormentavam, e mantê-la-ia ocupada durante as horas em que Jon estivesse na escola. Mas o aumento crescente dos pedidos que as minas iam recebendo obrigou-a a passar cada vez mais tempo nelas, ao ponto de começar a trabalhar com a mesma intensidade de outros tempos. Tinha de ficar no escritório até altas horas da noite e, muitas vezes, quando regressava a casa ao fim do dia, excessivamente cansada para pensar em comer ou fazer qualquer outra coisa, era já demasiado tarde para ver o filho.

Agora, raras vezes ia a São Francisco. A Mansão Thurston voltava a estar fechada. De vez em quando, ia lá passar uns dias, com Jon, desembaraçando-se sozinha como fizera depois da morte do pai. Passaram aí um Natal, mas a lembrança das horas felizes vividas com John e da noite em que nascera o seu filho foi de mais para Sabrina. Sabia como o seu pai sentira a morte da mãe, o que a ajudava a compreender a sua própria dor, tendo em conta que ela vivera muito mais tempo com John do que Jeremiah com Camille. Não conseguindo agüentar mais, voltou novamente para Napa para se sumir nas minas durante todo o dia

E, com o tempo, foi-se dando conta de que Jon detestava essa sua forma de viver

- Não fazes mais do que trabalhar nessas malditas minas e nunca estás ao pé de mim!

Sabrina sabia que Jon não gostava da constante atenção que dispensava aos negócios. Mas encontravam-se em 1926, e as minas passavam novamente por alguns problemas, desta vez as duas. Havia menos procura de cinábrio, e tivera de despedir muitos homens e encerrar várias galerias. Por outro lado, havia sete anos que a chamada «lei seca» estava em vigor, o que transformara os seus vinhedos em algo inútil. Tudo isso motivou que, pela primeira vez na vida, começasse a preocupar-se com a sua situação econômica, sobretudo tendo em vista que não queria privar Jon de nada. O rapaz só tinha doze anos e tencionava dar-lhe tudo o que ela tivera Em certos aspectos, era uma criança difícil. Não só se mostrava ressentido pelo duro trabalho, próprio de um homem, a que a mãe se entregava durante longas horas, mas também pelo fato de o pai ter morrido. Parecia culpar a mãe por isso

- A culpa não é minha, Jon! - dissera-lhe Sabrina, milhares de vezes, mas o problema era que, de certo modo, se sentia culpada pela morte de John, como se a sua obrigação devesse ter sido a de o acompanhar e morrer com ele. Todavia, se ela também tivesse morrido, que seria feito de Jon?

- Todos os meus amigos acham que és esquisita. Trabalhas muito mais do que os pais deles.

- Não posso evitar. Sou responsável por ti, meu filho, e vivemos tempos muito difíceis.

Em 1928, com o coração completamente destroçado, Sabrina vendeu a mina de John e investiu tudo o que recebeu da venda na bolsa de valores imobiliários, esperando que um dia as ações pudessem render uma fortuna para Jon. Mas aquele sonho transformou-se num pesadelo horrível no dia 29 de outubro de 1929, a tristemente célebre «Terça-Feira Negra». Perdeu tudo o que ganhara com a venda da mina de John. Sentia-se culpada do mau emprego que dera àquele dinheiro. Três anos depois, teve de enfrentar a necessidade de mandar John para a universidade. Enquanto não dormia a pensar na sua péssima situação econômica que o filho ainda desconhecia, Jon não parava de falar em ingressar em Princeton ou Harvard, em viajar para a Europa e no carro que queria que a mãe lhe comprasse antes de entrar para a universidade. Sem se dar conta do momento difícil por que ela estava a passar, não deixava de lhe fazer constantes exigências. Sempre fora um rapaz exigente e Sabrina permitira-lhe que o fosse dando-lhe tudo quanto podia, como se com isso conseguisse minorar o remorso que sentia pela morte de John, quando o seu filho só tinha dois anos, e pelo fato de trabalhar tão arduamente, privando-o da sua presença. Mas satisfazer todas as vontades de Jon não fez com que John voltasse à vida, só tornou a existência de Sabrina terrivelmente difícil no momento de escolher a universidade para o filho e, pior ainda, quando este foi aceite em Harvard, Princeton e Yale.

- Bem - disse Sabrina, contendo a respiração e tentando aparentar tranqüilidade. Ao longo dos dois anos e meio, desde que começara a Depressão, aprendera a dissimular aquele tipo de situações. - Para onde queres ir?

Como poderia ela pagar as propinas? Entretanto, as minas não lhe rendiam praticamente nada. Restava-lhe o recurso de vender a casa de Santa Helena. Haviam-se mudado para São Francisco quando Jon começara a preparar-se para a entrada na universidade, e obrigara Hannah a acompanhá-los, praticamente contra sua vontade, mas a velhota já regressara para a casa de Napa. Ali era mais feliz, e Sabrina lamentava ter de deixá-la sem o seu alojamento preferido, mas não lhe restava outra opção. Teria de vender a casa de Napa para poder mandar Jon para a universidade quando chegasse o outono.

- Talvez para Harvard, mamã - disse-lhe Jon, tão satisfeito consigo próprio que a fez sorrir.

- Estás satisfeito contigo próprio, não estás? - Fosse como fosse, Jon era bom rapaz, e, se era mimado, a culpa era só dela. Sabrina tinha consciência disso. - Na realidade, também estou satisfeita contigo. Até agora, as tuas notas têm sido excelentes. Mereces entrar numa dessas universidades. Achas que Harvard é a mais adequada para ti?

- Acho que sim. - Jon franziu o sobrolho. Quase se decidira por Yale, mas achava New Haven tão triste como Santa Helena. Queria mais atividade. Toda a gente dizia que Boston era uma cidade fabulosa, e Cambridge não era mais do que um prolongamento dela. Estava tão interessado pela vida social como pelas oportunidades que lhe oferecia o ambiente universitário, coisa que não era surpreendente ou despropositado num rapaz de dezoito anos. Despropositado fora o pedido que fizera à mãe antes de acabar a escola secundária nesse ano. Tinha quase dezoito anos, e Sabrina quarenta e quatro, mas, no modo de ver de Jon, a mãe poderia ter mais de um século. Muitas vezes, Sabrina parecia ausente, distraída, por razões que não partilhava com ele.

- Não te importas que compre um carro e o mande para o Este no comboio, pois não, mamã? Em Cambridge, vou precisar dele a toda a hora - afirmou Jon, com um sorriso angelical. Não lhe passava pela cabeça que a mãe dissesse não a algum dos seus caprichos. Sabrina raramente o fazia, mesmo que tivesse de se privar de alguma coisa. Mas, desta vez, nem sequer podia pensar em comprar outro carro. Ainda não vendera a casa de Santa Helena e começava a ficar desesperada. As propinas para o ano seguinte tinham de ser pagas em princípios de julho e, se não vendesse a casa de Napa, não fazia idéia de como poderia resolver o problema. - Creio que o melhor seria um pequeno Model A com assento suplementar. É o carro ideal, e se estiver muito frio... - Sabrina levantou uma mão e esboçou um olhar de pânico que Jon nunca vislumbrara nos seus olhos. Ele só pensava nele. A mãe, pelo contrário, só estava preocupada com as suas reservas de dinheiro que eram cada vez mais escassas. Mas agora eram praticamente estranhos. Sabrina tolerara-lhe demasiadas coisas.

- Não creio que neste momento seja uma boa idéia comprar um carro, Jon.

- Porque não? - Olhou-a, surpreendido. - Preciso de um carro.

Havia algo dentro dela que não lhe permitia contar a verdade. Provavelmente, o orgulho.

- Ao princípio, podes passar muito bem sem um carro, Jon. Por amor de Deus, só vais fazer os dezoito em julho, e não creio que todos os teus colegas cheguem à universidade ao volante de um Model A novinho em folha. - O tom seco com que ela lhe disse tudo isto deixou Jon horrorizado.

- Aposto que a maioria deles aparecerá com um carro de uma marca qualquer. Meu Deus, como é que queres que eu lá apareça?

- No primeiro período, poderias ir de bicicleta - disse Sabrina, engolindo em seco, ou a pé. Falaremos do carro no próximo ano.

Talvez então as coisas estivessem a correr melhor nas minas, embora ela não vislumbrasse a perspectiva de as coisas mudarem. No tocante aos vinhedos, há treze anos que estavam abandonados. Já perdera a esperança de os renovar, e estava a pensar vender os terrenos. A única coisa que sabia que nunca venderia seria a Mansão Thurston, e também decidira desfazer-se do menor número de terrenos possível. Sabia o que aquelas propriedades haviam significado para o pai quando construíra o seu império; como tal, queria manter o maior número possível para, um dia, deixar a Jon.

- Não compreendo a tua maneira de pensar - disse o rapaz, andando de um lado para o outro, visivelmente indignado. - Já me imaginaste em cima de uma bicicleta? Todos se ririam de mim!

- Isso é ridículo. - Sabrina sentia-se tentada a dizer-lhe qual era exatamente a sua situação econômica, mas sabia que nunca o faria. Não queria assustá-lo, e era demasiado orgulhosa. - Jon, metade da população do país encontra-se sem trabalho. As pessoas poupam o máximo que podem. Ninguém ficará chocado por querermos fazer algumas economias. Chocadas ficariam se te vissem chegar num carro novinho em folha. A depressão econômica faz-se sentir por todo o lado. Suponho que não queres parecer um patego emproado do Oeste.

- Tu é que estás a ser ridícula. Que nos importa essa maldita depressão? Não nos afetou, pois não? Por que preocuparmo-nos com isso?

Sabrina compreendeu que se equivocara ao oferecer-lhe uma imagem tão cor-de-rosa da vida. De certo modo, isso tornara-o irrealista e insensível. Ela era a única responsável por Jon não compreender os apuros por que a mãe estava a passar. Como poderia ele dar-se conta disso. Ela nunca lhe explicara nada E continuava sem querer dizer-lhe nada sobre a situação difícil em que se encontrava. Ocultara durante demasiado tempo os seus problemas para os revelar agora.

- Não deves ceder a atitudes irresponsáveis, Jon. Temos de ter cuidado.

Jon interrompeu-a

- Não estou a cometer nenhum ato irresponsável, bolas! A única coisa que quero é um carro.

Jon ainda estava amuado quando, no dia da sua partida para a universidade, a mãe o acompanhou até ao comboio para Boston. E, como noutras ocasiões semelhantes desde que John morrera, Sabrina sentiu um nó na garganta ao ver o filho subir para o comboio. Tivera vontade de o acompanhar, mas havia demasiado que fazer nas minas. Entretanto, conseguira vender a casa de Napa na altura certa. O dinheiro chegaria para pagar os estudos e a estada de Jon em Harvard, e só rezava para que as coisas melhorassem a tempo de poder continuar a permitir-se aqueles gastos. A venda da casa de Napa destroçara-lhe o coração. Fora propriedade da família de Jeremiah durante sessenta anos, e era a casa que ele construíra para a noiva que morrera de gripe, e para onde levara Camille depois de se casar com ela, além de ser a casa onde Sabrina nascera. Jonathan não considerou que tivessem perdido grande coisa com isso, pois achava Napa um lugar aborrecido. Entretanto, Hannah morrera dois anos antes, o que evitou que a velhota visse a casa que tanto amava passar para outras mãos. Hannah nunca tivera grande inclinação pela Mansão Thurston. Preferia a casa de Santa Helena, onde agora viviam estranhos, mas Sabrina tinha, pelo menos, o consolo de que Jon não se importava com isso. Queria dar-lhe a melhor educação possível, com ou sem depressão econômica. Por isso, ficou furiosa quando viu as primeiras notas. Estava com negativas a tudo e, segundo parecia, ia raramente às aulas, o que fez com que o repreendesse seriamente quando ele lhe telefonou no Dia de Ação de Graças. Amélia convidara-o para ir a Nova Iorque, mas ele preferira ficar em Cambridge com os amigos.

Amélia tinha então oitenta e seis anos, e embora Sabrina ainda a achasse uma pessoa elegante e extraordinária, Jonathan não conseguia suportá-la.

- É tão velha, mamã.

E era-o, inegavelmente, mas havia nela algo mais do que velhice. Sabrina lamentava que Jon fosse demasiado jovem para ver isso. Sentia alguma amargura pelo fato de ele não a apreciar, mas não valia a pena discutir com ele. Agora tinha, isso sim, de o repreender por causa das notas.

- Se não levares os estudos mais a sério, ver-me-ei obrigada a anular-te a matrícula. - O que teria sido um alívio para ela, mas a intenção era mais a de o assustar. Ele ainda lhe deveria querer falar do Model A, mas, depois do sucedido, não acreditava que o fizesse. - É melhor que comeces a ir às aulas. Caso contrário, terás de voltar e ir trabalhar para as minas comigo. - Para ele, aquilo era pior do que a morte. Detestava tudo o que estivesse relacionado com as minas, exceto o dinheiro que lhe proporcionavam e que lhe permitiam ter as coisas que o faziam sentir seguro e importante, como o carro que queria a toda a força ter. Contudo, desta vez, não podia ajudá-lo. Queria o carro para ser igual aos colegas. Afinal de contas, não tinha pai. Mas durante mais quanto tempo é que ela seria obrigada a sentir-se culpada por isso? Esse sentimento acompanhara-a durante anos, mas não fora capaz de lhe trazer o marido de volta. Espero que leves os estudos mais a sério e que as próximas notas sejam melhores. Veria as notas quando Jon viesse passar as férias de Natal em casa. A viagem implicaria um importante gasto, mas Sabrina não queria ficar sozinha no Natal e perder a oportunidade de ver o filho.

Não havia nada mais na sua vida a não ser Jonathan e a deprimente realidade de não conseguir agüentar as minas durante muito mais tempo. Se recebesse uma proposta de venda para os terrenos dos vinhedos, sabia que os venderia, embora não parecesse haver ninguém interessado neles. Eram inúteis. Durante algum tempo, dedicara-se à produção de ameixas, nozes, maçãs e uvas de mesa, mas não obtivera o menor lucro. Sempre tivera o sonho de produzir vinhos requintados, sonho esse que nunca se materializara, e perguntava-se se conseguiria tirar uma só gota de vinho das cepas.

Em dezembro de 1932, quando voltou a ver Jon, ficou surpreendida ao comprovar que durante os últimos meses passados em Harvard se transformara num homem. Parecia já uma pessoa adulta e demonstrava uma surpreendente maturidade ao falar. Todos os seus gostos eram os de um adulto, inclusive o que sentia por raparigas. Sabrina reparou que, quando saía com os amigos, voltava quase sempre de madrugada, mas ainda havia nele atitudes que não haviam mudado. Continuava à espera que a mãe lhe satisfizesse todos os seus caprichos e necessidades, e a única coisa que ele pagava eram as suas meninas

Conseguira melhorar as notas, o que tranqüilizara Sabrina, mas esta sabia que Jon voltaria a insistir naquilo que tanto temia. Só dois dias depois de ter chegado a casa, começou a importuná-la com a sua obsessão, e não o fez antes porque ela estivera ocupada até então.

- Bem, mamã... então, o carro?

- Tens as chaves lá em baixo, querido - Sabrina sorriu. - Nunca se opusera a que Jon conduzisse o carro, mas ficou surpreendida ao ver a cara dele.

- Não me refiro a esse carro, mas sim ao novo. - Sabrina ficou sem pinga de sangue. Acabara de verificar novamente as cifras do rendimento das minas, e eram desesperantes. Só uma boa guerra a poderia tirar daquele buraco. Sentia-se culpada por ter aqueles pensamentos, mas, na realidade, era o que aquele maldito país precisava naquele momento. Ninguém esperaria que uma mulher pensasse daquela maneira, mas ela sabia muito bem quais eram as molas da economia. Entretanto, começava a preocupá-la seriamente a possibilidade de ter de fechar as minas. Não conseguia suportar os gastos que acarretavam. Ainda vivia do dinheiro que recebera da venda da casa de Napa, e precisava do resto para pagar os estudos de Jon no ano seguinte. Agora, não necessitava de quase nada para ela. Vendera tudo o que considerava supérfluo, exceto o carro, e não mantinha nenhum criado na Mansão Thurston. Só conservara os terrenos dos vinhedos e, de momento, as minas que o pai lhe deixara. Perdera o resto na depressão de 1929.

- Não acho que precises de um carro neste momento. Não podia sequer pensar naquele gasto.

- Por que não? - Jon olhou-a furiosamente, com todo o vigor dos seus dezoito anos, e certo de que já era um homem.

- Temos de falar nisso agora? Não podemos esperar?

- Por quê? Vais a correr para o trabalho, como é teu hábito?

Na realidade, tinha de ir a Santa Helena tratar de alguns assuntos. O encarregado-geral continuava a dirigir quase tudo por conta dela, mas Sabrina passava ali muitas horas a tentar pôr as coisas nos eixos. Não queria deixar aquela responsabilidade nas mãos de ninguém. Não foi, pois, de estranhar que olhasse para Jon com a tristeza estampada no rosto.

- Não sei por que me dizes isso, Jon. Sempre estive aqui quando precisaste de mim.

- Quando? Enquanto eu dormia? Quando estavas demasiado cansada para falar ao voltar para casa?

Sabrina estava chocada com as coisas que Jon lhe dizia. Durante o resto das férias, continuou a aborrecê-la com o tema do carro, mas sem proveito. Finalmente, quando partiu de novo para o Este, Sabrina estava cansada dos contínuos ataques que ele lhe fizera e sentia-se mais culpada que nunca por não poder dar a Jon o que este lhe pedia. Como vingança, o filho escreveu-lhe a dizer que só voltaria para casa em julho. Um dos «homens» que conhecera na universidade convidara-o a ir a Atlanta, mas não referia o nome do rapaz nem dava qualquer pormenor sobre a família. Era a sua maneira de a castigar, pensou Sabrina, por não lhe ter comprado o brinquedo que queria.

Nesse verão, Jon voltou para casa em meados de julho, mas nesse ano não tinham sítio para onde ir. Já não possuíam a casa de Napa. Só lhes restava a Mansão Thurston. Sabrina falou-lhe na hipótese de irem até ao lago Tahoe, mas Jon ficou de tal modo furioso ao ver que ela ainda não estava disposta a comprar-lhe o Model A, que foi para o lago sozinho com os amigos. Ao fim e ao cabo, o rapaz tinha já dezenove anos, e Sabrina não podia andar atrás dele para todo o lado, mas desgostava-a o fato de ele desaparecer daquele modo do seu lado, deixando-a sozinha na Mansão Thurston.

Não por muito tempo, porém. Nesse Inverno, a situação piorou para Sabrina. As minas haviam deixado de render o suficiente para atender aos seus próprios gastos e aos de Jon. Na realidade, as minas começavam a ficar em situação deficitária, o que obrigou a que só uma galeria se mantivesse em funcionamento. Como resultado disso, a Jonathan, ao voltar à Mansão Thurston, no Natal, depararam-se-lhe quatro desconhecidos a viver lá. A mãe começara a alugar quartos, e, quando Jon se deu conta do que ela fizera, ficou fora de si

- Meu Deus, estás louca? Que pensarão as pessoas? - Sabrina compreendia a revolta de Jon, mas, nesse ano, a sua situação econômica chegara a ser desesperada, e não lhe ocorrera outra coisa para a aliviar um pouco. Pusera os vinhedos à venda, mas ainda não encontrara comprador. Naquele momento, o dinheiro que entrava nos seus cofres era muito pouco. Finalmente, chegara a hora de explicar tudo ao filho.

- Não pude fazer outra coisa, Jon. As minas estão praticamente paradas. Tinha de valer-me de algum meio para conseguir dinheiro. Tu sabes muito bem disso. Atualmente, os teus gastos são muito superiores aos meus.

A vida de Jon em Cambridge, na companhia dos seus novos e elegantes amigos, era uma festa contínua. Sabrina nunca se queixara disso, mas aquele era o preço que tinham que pagar.

- Já te deste conta de que agora não posso trazer nenhum dos meus amigos aqui? Meu Deus! Parece um bordel.

Sabrina não agüentou mais.

- Suponho, pelo dinheiro que andaste a estourar lá pelo Este, que visitaste muitos.

- Não me venhas agora com sermões! - gritou-lhe Jon, certa vez, a altas horas da noite. - Por acaso, não te transformaste na madame da casa de putas que é agora a Mansão Thurston?

Sabrina deu-lhe uma bofetada. Doeu-lhe ter de fazê-lo, mas as coisas entre os dois estavam impossíveis. Por isso, sentiu-se, até certo ponto, aliviada quando, no verão seguinte, Jon lhe disse que não viria passar nenhum dia em casa. Iria de novo para Atlanta veranear com os «amigos». A Sabrina desagradava-lhe ter de passar tanto tempo sem ver o filho, mas supunha que ele se encontraria entre gente decente. Bem vistas as coisas, era a melhor solução para ambos, pois ela também não teria conseguido suportar as impertinências do rapaz por causa do carro. Finalmente, e se bem que isso lhe cortasse o coração, decidiu vender as minas. Naquele momento, estavam quase esgotadas, pelo que teve de as vender pelo simples valor do terreno. Isso permitiu-lhe continuar a pagar os estudos do filho, embora dessa vez apenas durante um ano. Além disso, prescindira dos hóspedes, de modo que, quando Jon veio passar o Natal em casa, já não existia aquele motivo de desavenças entre eles. Dessa vez, a sua estada foi mais tranqüila, e não falou no carro. Tinha outros propósitos em mente, que ainda eram um problema maior para a sua mãe. Em junho, queria ir para a Europa com um grupo de amigos, e Sabrina não fazia a mínima idéia de como é que ele iria pagar aquelas férias. À exceção das jóias, não lhe restava mais nada para vender, mas estava a reservá-las para poder pagar o último ano de universidade de Jon. No entanto, aquela viagem parecia tão importante para o rapaz. Com um suspiro de cansaço, Sabrina sentou-se, uma noite, a conversar com ele

- Com quem irias.

Há muito tempo que Jon não ia a parte nenhuma com ela, mas tinha quase vinte e um anos e não era compreensível esperar isso dele Mas, às vezes, o fato de não saber com quem é que ele passava o tempo na escola deixava-a nervosa. Só esperava que se tratasse de gente respeitável, e não tinha razões para pensar o contrário. Havia tantas coisas que não sabia a respeito dele. Coisas que o pai teria querido saber a todo o custo. Sabrina, porém, não estava segura de qual era o seu lugar e não queria intrometer-se na vida do filho. Além disso, ele não se mostrava interessado em falar com ela. Aqueles anos foram muito difíceis para os dois. Jon queria tudo, e quando lhe apetecia. As relações que mantinha agora com ela baseavam-se em pedidos e necessidades. Há muito que expressões de amor entre mãe e filho haviam deixado de existir. Sabrina tinha saudades da criança que trepava para o seu colo para a abraçar. Era precisamente nisso que ela pensava enquanto o observava, sentada, na biblioteca.

- Bem, posso ir?

- Para onde? - Sabrina estava tão cansada e absorta que perdera o fio à conversa. Só lhe restava a casa em que viviam, os terrenos dos vinhedos e as jóias que haviam pertencido a Camille, mas nada daquilo dava rendimento algum nem oferecia uma perspectiva de tempos melhores. Durante aqueles últimos meses, Sabrina estivera a pensar na possibilidade de conseguir um emprego, mas não fazia idéia de qual poderia ser. Por outro lado, havia sociedades imobiliárias que queriam comprar-lhe os terrenos ocupados pelos jardins da Mansão Thurston, a fim de construir casas neles. Aquilo poderia ser a solução para os seus problemas financeiros, mas ainda não estava decidida a vendê-los. Ainda não se sentia assim tão senil, só tinha quarenta e seis anos

- Para a Europa, mamã.

- Mas ainda não me disseste com quem.

- Que importância é que isso tem? Nem sequer conheces os nomes.

- Por que não? - Talvez Amélia soubesse de quem se tratava. Ela tinha uma memória fantástica e, ao que parecia, conhecia toda a gente da costa este que era ou que tivesse sido alguém. - Por que motivo não me dizes os nomes dos teus amigos, Jon?

- Porque já não sou um menino de dez anos - resmungou, dando um salto da cadeira como que impelido por uma mola. - Deixas-me ir ou não? Já estou farto desta brincadeira.

- A que brincadeira te referes? - A voz de Sabrina era tranqüila e pausada, como fora sempre, e não revelava nada da dor e da tensão em que vivera nos últimos anos. Só quem soubesse ler-lhe o olhar se aperceberia da mágoa que lhe ia no coração e na alma. Amélia havia-se dado conta disso na última vez em que se encontraram e sentira imensa pena dela. Desde a morte de John Harte, dezoito anos antes, não houvera nenhum outro homem na vida de Sabrina, mas também era certo que, desde então, não conhecera nenhum outro que lhe chegasse aos calcanhares, e não o conheceria nunca. Levantou os olhos para Jon. Não se parecia com nenhum dos dois. Nem com ela nem com o pai. Faltava-lhe a disciplina, a paixão pelo trabalho árduo. Pelo contrário, gostava de divertir-se e procurava sempre a forma mais fácil de conseguir as coisas. Aquela tendência preocupava, por vezes, Sabrina. Tinha de conseguir as coisas por si mesmo, e talvez agora fosse a altura certa. Era precisamente nisso que Sabrina pensava, enquanto Jon andava nervosamente de um lado para o outro da sala.

- Jonathan, se tens tanta vontade de ir para a Europa, por que razão não arranjas um emprego em Cambridge por uns tempos?

Jon lançou-lhe um olhar entre o perplexo e o irado.

- E por que motivo não arranjas esse emprego, em vez de andares a lamentar-te que és pobre a toda a hora?

- É isso que faço? - Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Jon magoara-a profundamente. Procurara sempre não o massacrar com as suas queixas, mas ele sabia sempre quais eram os seus pontos fracos para a magoar. Sabrina levantou-se, cansada. Fora um dia longo para si, extremamente longo, e talvez ele tivesse razão. Talvez fosse ela quem devesse pôr-se a trabalhar. Naturalmente, não era a primeira vez que pensava naquela possibilidade. - Lamento que fales dessa maneira. E talvez tenhas razão. Talvez devamos ambos trabalhar. São tempos difíceis para toda a gente, Jon.

- Pois na universidade não é isso que acontece. Lá todos têm o que querem, exceto eu.

Outra vez o carro. Sabrina enviara-lhe tudo o que ele pedira e, como ambos sabiam, dispunha de uma generosa soma em dinheiro para atender aos seus gastos. Mas não tinha carro e agora havia uma viagem para a Europa. Não lhe restava outro remédio senão fazer algo para conseguir uma fonte de rendimento.

- Verei o que posso fazer

Logo que Jon partiu para a universidade, Sabrina começou a matutar na maneira de arranjar dinheiro. Era praticamente impossível procurar um emprego naquela altura. Encontravam-se em 1935, e há anos que a economia estava empobrecida. Além disso, não sabia escrever à máquina, não tinha experiência de ditado, não tinha os conhecimentos necessários para secretaria, e os postos de direção de minas de mercúrio não caíam das árvores. Deixou-se rir para evitar chorar de desespero. De qualquer modo, era a única coisa que sabia fazer. Entretanto, em março, recebeu uma carta de Amélia, escrita com mão trêmula, em que lhe dizia que um amigo seu ia visitar a Califórnia para comprar terras. Tratava-se de um homem chamado Vernay... De Vernay, mais exatamente. Sabrina sorriu perante aquele preciosismo de Amélia. Os vinhedos de Vernay produziam os vinhos mais requintados de França, e o homem, aproveitando o fim da lei seca, queria trazer algumas das suas cepas para os Estados Unidos. Amélia pedia desculpa por aborrecer Sabrina com tudo aquilo, mas, como sabia dos conhecimentos dela naquela área, gostava de saber se ela poderia aconselhá-lo.

Sabrina não se importava de fazer aquele favor à amiga, mas, de repente, lembrou-se de que ele poderia interessar-se pela compra dos seus vinhedos. Nesse momento, de nada lhe serviam. Além de estarem abandonados, não se encontrava em condições de voltar a dedicar-se à exploração vinícola. Por outro lado, a lei seca durara demasiado tempo. Catorze anos haviam sido mais do que suficientes para fazê-la desistir do seu sonho de um dia produzir o seu próprio vinho. Fora uma idéia um tanto ou quanto louca, e até John estava sempre a gracejar com ela por causa dos vinhos, embora estivesse pronto a reconhecer que eram bons. Chegara a ser uma perita na matéria, mas já esquecera grande parte dos seus conhecimentos. Só sabia de minas de mercúrio, e quem é que poderia interessar-se pelos seus serviços? Ninguém, como ela bem sabia. Não lhe restava outro consolo que o de pensar nos velhos tempos... quando dirigia pessoalmente as Minas Thurston... quando a maioria dos homens a abandonara... quando voltara a erguer o negócio. Então, teve vontade de dar uma reprimenda a si própria. Ainda era muito jovem para pensar só no passado. Naquela primavera, faria quarenta e sete anos e, coisa extraordinária, apesar de tudo por que passara, sabia que aparentava muito menos idade. Todavia, sentia o peso de cada ano que passava. Era nisso que Sabrina pensava um dia, enquanto se encontrava no jardim a aparar as sebes com uma enorme tesoura. Ao olhar para a rua, apercebeu-se da presença de um homem de cabelos grisalhos que lhe fazia sinal com a mão do outro lado do portão. Devia ser para entregar alguma encomenda, pensou, e acercou-se dele, levando a mão enluvada à testa para proteger os olhos do sol. O homem estava impecavelmente vestido, o que não se poderia dizer dela. Tinha um aspecto horrível. Envergava umas roupas velhas do filho, mas arregaçara as calças e pusera uma jaqueta por cima. O cabelo estava apanhado num carrapito, donde escapavam longas madeixas. Olhou para o homem de cabelos grisalhos e fato de bom corte e perguntou-se que estaria ele ali a fazer. Talvez se tivesse perdido, pensou, ao abrir o portão.

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou Sabrina, com um sorriso.

O homem pareceu surpreendido, mas correspondeu à pergunta com um sorriso entre o amável e o divertido. Quando falou, Sabrina reparou que o fazia com sotaque francês.

- Mistress Harte?

Sabrina assentiu com a cabeça e ele sorriu.

- Sou André de Vernay, amigo de Mistress Goodheart, de Nova Iorque. Creio que ela lhe escreveu.

Por instantes, Sabrina não se lembrou de nada, mas não tardou a recordar a carta que Amélia lhe escrevera umas semanas antes, e olhou-o nos olhos, que eram quase da mesma cor que os seus.

- Entre, por favor. Segurou o portão, e o homem entrou, observando os extensos jardins que rodeavam a casa.

- Já mal me lembrava... foi há várias semanas...

- Saí de França mais tarde do que o previsto. - Era extraordinariamente cortês e tinha um aspecto elegantíssimo. Sabrina conduziu-o até à casa, enquanto ele se desculpava por não ter mandado avisá-la da sua chegada. E não conseguiu evitar a pergunta: - É a senhora que faz todos esses trabalhos de jardinagem? - Pareceu surpreendido.

Sabrina sorriu.

- Faço tudo. - Havia um certo orgulho naquelas palavras, mas era bem melhor quando não tinha de o fazer. - Acho que me faz bem. E riu-se. - Fortalece o caráter. - Fingiu contrair os músculos do braço e ele riu-se. - E também os bicípites. Não consigo viver sem ambas as coisas. - Atirou com a jaqueta para cima de uma cadeira, olhou para as calças ridículas que trazia e voltou a rir. - Bem, pensando bem, talvez tivesse sido boa idéia ter-me avisado. - Ele também se riu. - Toma uma xícara de chá?

- Sim. Não... isto é... - Os olhos pareciam arder ao olhá-la. Dava a sensação de que viajara para tão longe só para falar com ela, o que divertia Sabrina. Parecia que a cabeça lhe ia rebentar de um momento para o outro se não lhe dissesse quanto antes aquilo que tinha em mente. Enquanto ela preparava o chá, Vernay sentou-se numa cadeira da cozinha. - O que desejo, madame, é que me aconselhe. Madame Goodheart disse-me que a senhora conhece a zona melhor do que ninguém. Refiro-me à área de Napa. - Dava a impressão de estar a referir-se a uma parte de França, o que fez sorrir Sabrina.

- Creio que sim.

- Quero criar aí os melhores vinhos franceses. - Sabrina serviu-lhe o chá e sentou-se diante dele para servir o seu.

- Foi o que eu quis fazer há muito tempo.

- E o que a levou a mudar de idéias?

Vernay parecia preocupado. Sabrina fitou-o, em silêncio, perguntando-se por que motivo é que Amélia o mandara ter com ela. Era um homem surpreendente. Bem-parecido, alto, aristocrático e inteligente, dava a sensação, enquanto tomava o chá na cozinha, que estava ali por um motivo especial, por uma qualquer razão que Sabrina ainda não vislumbrara e que tentava adivinhar enquanto ele falava.

- Não mudei de idéias, Monsieur de Vernay, as circunstâncias é que me levaram a fazer outras coisas. Há vários anos, o míldio deu-nos cabo das cepas. Depois, com a lei seca, foi impossível sequer pensar, durante catorze anos, na vinicultura. Entretanto, os vinhedos ficaram em completo desleixo, e agora... não sei... creio que já é demasiado tarde. Mas desejo-lhe sorte. A Amélia diz que quer comprar terras. Seria uma boa ocasião para lhe vender as minhas. - Vernay deu imediato sinal de interesse e pousou a xícara em cima da mesa, mas Sabrina abanou a cabeça. - Não lhe faria uma coisa dessas. Está tudo tão desprezado que só com dinamite conseguiria limpar o terreno. Durante muitos anos, os meus interesses em Napa resumiram-se exclusivamente à exploração mineira. Os vinhedos sofreram com isso. Nunca tive tempo de fazer aquilo que realmente queria. Consegui alguns bons vinhos, mas não passei daí.

- E agora? - Vernay era extremamente dinâmico, e esperava que os outros também o fossem.

Sabrina sorriu e encolheu os ombros.

- Já vendi as minas. Fazem parte do passado.

- Que tipo de minas? Ficou intrigado. - Amélia falara-lhe de Sabrina, mas não o suficiente. Descrevera-a até num tom algo misterioso. «É uma rapariga fabulosa e sabe tudo o que se possa imaginar sobre o vale. Fale com ela, André. Não a deixe escapar.» Aquela recomendação parecera-lhe algo estranha, mas agora, diante dela, compreendia, até certo ponto, as palavras de Amélia, pois Sabrina mostrava-se bem mais esquiva, como se estivesse a esconder-se de toda a gente. - Que tipo de minas tinha, Mistress Harte? - insistiu.

- De mercúrio.

- Cinábrio - disse ele, sorrindo. - Sei muito pouco disso. Tinha alguém à frente delas? - Nos últimos tempos, assim fora, mas Sabrina desatou a rir e abanou a cabeça. Naquele momento, a expressão do seu rosto fê-la parecer muito mais jovem. Apesar do seu desalinho e do improvisado atavio de jardineira, era uma mulher bonita cuja idade era difícil de precisar. Sabrina pensava o mesmo a respeito dele.

- Por algum tempo, dirigi-as eu mesma. Durante um pouco mais de três anos, depois da morte do meu pai. - André de Vernay ficou impressionado. Não era tarefa fácil para uma mulher. Amélia tinha razão. Sabrina era uma mulher fabulosa, e devia ter sido também uma rapariga fabulosa. Sentia-o. - Depois, foi o meu marido quem ficou à frente das minas. A voz tomou um súbito tom de tristeza. - As coisas mantiveram-se assim até ele morrer. Então, voltei a tomar as rédeas das minas, tanto das minhas como das dele, para acabar por as vender há poucos anos.

- Deve ter saudades do trabalho.

Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça, admitindo esse fato sem rodeios.

- Tenho.

Vernay tomou outro gole de chá e, esboçando um sorriso, perguntou:

- Quando poderei ver as suas terras, Mistress Harte? - Esta riu-se e abanou a cabeça.

- Oh, não, não lhe faria uma coisa dessas. Mas terei muito gosto em indicar-lhe as pessoas com quem poderá falar para comprar boas terras para vinhedos. Deve haver muitas à venda. - O semblante de Sabrina tomou um ar mais sóbrio. - As pessoas por estes lados estão a atravessar muitos problemas econômicos.

- Isso é assim em todo o lado, Mistress Harte. - As coisas não estavam melhor em França. Só na Alemanha, sob o regime de Hitler, a economia parecia dar mostras de melhorias, mas só Deus sabia o que esse louco viria a fazer. André não confiava nele, assim como a maioria das pessoas, embora os Norte-Americanos achassem que ele não representava qualquer ameaça. Vernay não partilhava dessa opinião. - Mas há muitos anos que tenho esta idéia na cabeça. E no meu modo de ver, este é o momento oportuno para a pôr em prática. Acabo de vender os vinhedos que possuía em França, e quero estabelecer-me aqui.

- Por quê? - Sabrina não conseguiu evitar a pergunta ao ouvir falar de planos tão arriscados.

- Não me fio no que está a acontecer na Europa neste momento. Vejo o Hitler como uma ameaça efetiva, embora muito poucas pessoas concordem comigo. Creio que estamos a precipitar-nos para uma nova guerra, e prefiro estar aqui.

- E se não houver nenhuma guerra? Regressa ao seu país?

- Talvez sim, talvez não. Tenho um filho e gostaria que ele também viesse para cá.

- Onde está agora?

- A esquiar na Suíça. - Riu. - Ah, a vida difícil da juventude!

Sabrina também se riu.

- Que idade tem?

- Vinte e quatro. Trabalha comigo nos vinhedos há dois anos. Estudou na Sorbonne; depois, voltou para trabalhar comigo. Chama-se Antoine.

- Sabrina notou o orgulho com que falava do filho e observou:

- Tem muita sorte. O meu filho faz vinte e um anos este ano, está a estudar numa universidade do Este, e duvido que queira voltar a viver em São Francisco. Parece ter-se apaixonado por aquela parte do país.

- Isso passará. Ao Antoine, ao princípio, acontecia-lhe a mesma coisa com Paris, e agora não pára de me dizer que Paris é um lugar horroroso e que é muito mais feliz em Bordéus. É tão provinciano que nem sequer quis vir comigo para Nova Iorque. Todos têm as suas idéias, mas, no final - esboçou um sorriso malicioso, - acabam por recuperar a humanidade perdida. O meu pai sempre disse que adora os filhos... depois de fazerem os trinta e cinco anos. Só temos de esperar mais uns aninhos.

Sabrina riu-se e serviu-lhe outra xícara de chá. Então, de repente, ocorreu-lhe uma idéia, e olhou para o relógio da cozinha. Vernay reparou no gesto e perguntou com súbita preocupação:

- Não estou a maçá-la, Madame Harte?

- Trate-me por Sabrina, por favor. Não, não me está a maçar, de forma alguma. Só estava a pensar que talvez pudéssemos ir agora até Napa no meu carro. Gostaria de mostrar-lhe pessoalmente algumas das terras mais interessantes. Como está a sua agenda para hoje? - Vernay ficou sensibilizado.

- Adoraria, mas tenho a impressão de que, por minha culpa, deixará coisas por fazer.

- Só deixarei de cortar a sebe. Além disso, há já muito tempo que não vou a Napa. Será um prazer para mim fazer a viagem na sua companhia. - Era o mínimo que podia fazer pela antiga amiga de seu pai. Amélia fora sempre tão boa para ela, durante tantos anos. - A propósito, como está a Amélia?

Sabrina pousou as xícaras no lava-louça, e André acompanhou-a até ao salão principal.

- Muito bem. Cada vez mais velha e caduca, naturalmente, mas, considerando que já fez os oitenta e nove, o estado das suas faculdades é notável. A mente tem a agudeza de uma lâmina afiadíssima. - Riu-se. - Adoro discutir com ela. Nunca ganho, mas é um desafio que sempre me deu muito gozo. Temos idéias políticas muito diferentes. - Sorriu para Sabrina... Corou, e ela sorriu.

- Creio que o meu pai sempre teve um fraquinho por ela. E ela foi sempre amorosa para mim. Em muitos aspectos, foi como uma mãe. A minha morreu quando eu tinha um ano.

Sabrina desculpou-se e foi mudar de roupa. Quando voltou, trazia um bonito vestido saia-casaco de tweed cinzento e azul e sapatos rasos. Os cabelos estavam puxados para trás. Vernay ficou impressionado pela natural elegância de Sabrina. O seu aspecto era muito diferente do que oferecia uns minutos antes, o que reavivou de novo na mente de Vernay a expressão «rapariga fabulosa». Amélia tinha razão. Sempre tivera. Em tudo... exceto em política, pensou ele, enquanto seguia Sabrina para o exterior da casa. A garagem estava oculta por árvores e sebes que se erguiam perto do portão por onde ele entrara. Sabrina tirou de dentro dela um Fora azul com seis anos, abriu a porta a Vernay e partiram. Já a caminho do Norte, Sabrina virou-se para o seu acompanhante e disse, por entre um sorriso:

- E eu que estava a pensar acabar de cortar as sebes hoje. - Mas o certo era que se sentia encantada por ir para Napa com ele.

 

Chegaram a Santa Helena duas horas e meia depois de terem saído de São Francisco, e Sabrina, ao voltar a respirar o fresco ar do vale e ao ter de novo diante dos seus olhos as verdes colinas, sentiu uma emoção como há muito não sentia. Não voltara a Napa desde que vendera a casa e as minas, mas agora dava-se conta do grande quinhão que aquelas paragens ocupavam no seu coração e da enorme paz de espírito que lhe proporcionavam Ao reparar que André de Vernay a observava, virou-se para ele, exalando um suspiro e com um sorriso nos lábios. Ela não precisava de dizer nada, ele compreendia perfeitamente o estado de ânimo de Sabrina.

- Compreendo como se sente. É o mesmo que sinto por Bordéus e o Médoc.

Aquele vale significava muito para ela. Durante muito tempo, fora parte integrante da sua vida. Com verdadeiro entusiasmo, ia indicando a André os pontos mais importantes. Oakville Rutherford, alguns dos vinhedos surgidos ultimamente. Indicou-lhe as colinas onde se situavam as suas antigas minas e, depois de deixar para trás o Silverado Trail, parou o carro e apontou para uma grande extensão de terreno. A quantidade de mato que o cobria evidenciava que não se cortava ou plantava nada desde há vários anos. Um poste com o letreiro «VENDE-SE» encontrava-se derrubado. Sabrina não tentara desfazer-se daquelas terras nem sabia que destino dar-lhes. Noutros tempos, sonhara que obteria delas excelentes colheitas de uvas. Virou-se, deteve o olhar nos olhos azuis de André e encolheu os ombros num gesto de desculpa.

- Isto aqui já foi muito bonito. - Depois, definiu-lhe os diferentes vinhos que obtivera, falou-lhe do míldio e do modo como a lei seca acabara de vez com os vinhedos. - Acho que nunca mais cultivarei nada aqui. Tinha uns oitocentos hectares ali e uns vinhedos mais à frente. - André falava pouco. Entraram nos terrenos, afastando os ramos que lhes impediam o caminho, enquanto ele ia fazendo uma idéia do que Sabrina possuía e comprovava a qualidade da terra agachando-se de vez em quando para apanhar punhados dela e a examinar. Por fim, olhou com ar sério para Sabrina e, com acentuado sotaque francês que a fez sorrir, disse:

- Tem aqui uma mina de ouro, Mistress Harte. - Estava a falar a sério.

Sabrina abanou a cabeça

- Pode tê-lo sido durante algum tempo, mas não agora. Como tudo o resto, perdeu valor. - Estava a pensar nas minas que tivera que fechar e nos vinhedos, outrora tão bem cuidados. Aquilo era uma espada de dois gumes. Aquele regresso ao lugar que ela e o pai tanto haviam amado enchia-a de agradáveis recordações, mas fazia-lhe ver que nada do que ali houvera existia já; o seu pai... John., até mesmo Jon quase desaparecera. Sabrina sentiu gravitar sobre ela todo o peso da juventude perdida. De repente, lamentou ter voltado ali. De que lhe serviria chorar sobre o passado? - Eu devia vender tudo isto num destes dias. Nunca cá venho, e as terras não me rendem nada.

- Eu poderia comprá-las - disse Vernay, mantendo a porta do carro aberta para que ela entrasse, - mas seria como roubar um filho. Julgo que ainda não se deu conta da excelente terra que tem aqui. - Era um solo tão rico como o do Médoc. Instintivamente, sabia que podia produzir maravilhas ali. - Sim, quero comprar terras aqui, Sabrina... - Semicerrou os olhos ao olhar para as colinas. Aquilo não era Bordéus, mas um lugar bonito, e podia ser feliz nele. Se conseguisse trazer Antoine e uns quantos dos seus melhores homens, poderia fazer coisas maravilhosas, mas primeiro tinha de saber com que terras poderia contar.

- Está a falar a sério. - Pelo olhar dele, Sabrina via que sim. Afinal de contas, oferecera-se para o ajudar. André não estava a pressioná-la para que lhe vendesse as terras. Além disso, conhecia todos os proprietários das redondezas. Levou-o à melhor agência de compra e venda de propriedades agrícolas, o que permitiu a André saber que havia uns mil e quinhentos hectares à venda junto às terras de Sabrina. O preço era baixo, e havia muito trabalho para fazer, mas André estava ansioso por vê-las antes de escurecer. Sabrina levou-o no carro.

Já as vira quando da primeira visita, mas então desconheciam qual a área que estava à venda. André percorreu os terrenos, examinou tudo meticulosamente, apalpou a terra, partiu várias vides secas, tocou numa infinidade de folhas e inspirou o ar como se quisesse saturar-se dele. Sabrina observava-o da estrada. Divertia-a a total entrega com que André fazia todas as coisas, a sua prudência e a sua seriedade. Todavia, quando voltaram a falar, havia uma certa malícia no olhar de André, mas não quando discutiram sobre cepas, sobre a sua remite, ou sobre aquelas terras, quando regressavam à agência. Estava imensamente satisfeito, e era visível um contagiante entusiasmo no seu olhar.

- Que diria, Sabrina, se lhe pedisse que me vendesse as suas terras?

- Em vez das que vimos? - Pareceu surpreendida.

- Além das que acabamos de ver. E ainda tenho uma idéia melhor. Podíamos ser sócios. Eu cultivaria as suas terras ao mesmo tempo que as minhas. Ficaríamos assim com uns magníficos vinhedos.

Por instantes, os olhos de Sabrina dançaram. Era o que sempre quisera fazer. Mas agora?

- Está a falar a sério.

- Claro que sim.

Voltaram ao escritório do corretor imobiliário, e André, num abrir e fechar de olhos, negociou o preço e fechou o negócio, para alívio do homem. A família iria comer bem com a comissão que ele receberia, e tinha quatro filhos para alimentar.

André virou-se para Sabrina.

- Que me diz?

Fez-se uma interminável pausa, durante a qual ambos contiveram a respiração. Sabrina sentiu uma emoção que não sentia desde há muito tempo. O entusiasmo pelos negócios, pelo trabalho, pelo patrimônio, pelas compras e as vendas. Solenemente, abanou a cabeça.

- Não lhe vendo as minhas terras, André. - Instintivamente, ele esperara aquela resposta.

- Permite-me, então, que cultive os seus vinhedos e que sejamos sócios? - Juntos, seriam donos de uns três mil hectares, uma propriedade enorme. Sabrina fez, então, um gesto de concordância com a cabeça, enquanto os olhos brilhavam tanto como os dele.

- De acordo

Selaram o contrato com um aperto de mãos, perante a curiosidade e olhar satisfeito do corretor, que tinha a sensação de que acabava de se fazer história, e não estava longe da verdade. Pouco depois, André passou-lhe um cheque como sinal da compra que acabava de realizar. E só então se lembrou de que precisava de uma casa.

Nem sequer pensara nisso. Olhou para Sabrina, algo desconcertado. Necessitava de alojamento para si e para o filho, decente, mas não muito grande. Para começar, poderia alugar uma pequena casa. Ia deixar o pequeno e elegante castelo que possuía em França, no Médoc Mas o seu desejo era deixar tudo. Havia algo dentro de si que lhe dizia que a Europa caminhava para o abismo E aquele era um novo país, um novo mundo, uma nova oportunidade. Era algo muito mais excitante do que ficar comodamente sentado na sua torre de marfim. Antoine também ficaria entusiasmado com tudo aquilo. De regresso, já passava um pouco das oito horas, pararam numa estação de serviço para tomar uma refeição ligeira. Devoraram com incrível apetite um par de hambúrgueres e beberam cerveja. Entretanto, Sabrina contou-lhe como era o vale de Napa noutros tempos.

- Nasci aqui, em Santa Helena, na casa do meu pai.

- Ainda a conserva?

-Vendi-a. - Olhou para André com ar franco, não tinha nada a esconder. - Vendi-a para conseguir pagar os estudos do meu filho. Quando, em mil novecentos e vinte e nove, a bolsa deu o estouro, o rapaz tinha quinze anos, e três anos depois mandei-o para uma universidade do Este. Estava em vias de perder as minas, perdi todas as ações que tinha na bolsa e já não precisava da casa de Napa. Há anos que vivemos na cidade. - Não se sentia muito orgulhosa de admitir os seus problemas perante ele, mas André era um homem muito compreensivo. A partir do momento em que haviam firmado, com um aperto de mãos, o acordo de cultivar juntos as suas terras, Sabrina sentira-se ligada a ele de um modo muito peculiar. Era como se se tivessem tornado amigos de um momento para o outro. Naturalmente, a recomendação de Amélia não fora alheia à confiança que André inspirara a Sabrina. - Ainda tenho de pagar os estudos do meu filho durante mais um ano. Então, quando acabar o curso - acrescentou, com um pequeno suspiro de alívio, - terei, pelo menos, a satisfação de ter-lhe dado tudo quanto pude.

- E você? Que lhe dá o seu filho?

Sabrina esteve quase a dizer «amor», mas não estava certa de que fosse isso. Supunha que Jonathan lhe dava algo: a sensação de não se sentir tão só quando ele vinha a casa, de que, nalgum lugar do mundo, havia alguém que a amava, ainda que o rapaz nunca o tivesse manifestado. Estava mais interessado no que a mãe lhe poderia dar.

- Não sei ao certo, André. Não sei bem o que os filhos nos dão, a não ser a alegria de saber que são nossos.

- Ah! - exclamou, meneando a cabeça num gesto muito francês. - Dê-lhe mais uns anos.

Sabrina riu-se ao pensar nalgumas das discussões que tivera com o filho.

- Oxalá tenha razão. E, quanto aos terrenos, que planos tem para eles? - Sabrina estava fascinada com a determinação que ele exibia sempre que falava deles. André estava decidido a deixar Bordéus e a mudar-se para ali. - Acha mesmo que as coisas vão assim tão mal em França, André?

- Cada vez pior. Estou absolutamente certo disso. Discuti essa questão com a Amélia a última vez que nos encontramos em Nova Iorque. Disse que os franceses são demasiado inteligentes para se deixarem vencer pelas circunstâncias, mas creio que, desta vez, está enganada. Politicamente, estamos debilitados, economicamente, não somos muito fortes e, além disso, temos aquele louco do Hitler a leste que não pára de nos agitar a bandeira nazi. Sinceramente, creio que chegou o momento de partir, pelo menos, durante uns tempos.

Sabrina perguntou-se se ele não estaria tomado de pânico. Talvez se devesse à idade. André dissera-lhe que tinha cinqüenta e cinco anos, e ela sabia que John se tornara mais conservador naquele momento da vida, e que começara a preocupar-se com a política como nunca o fizera. De repente, principiara a ver perigos por todo o lado, coisa que Sabrina também notara no pai naquela idade, sem que os seus receios viessem a confirmar-se. Não fez, pois, muito caso das apreensões de André, que a estava a olhar com ar pensativo. Depois de tomar o último gole de café, observou:

- É possível, Sabrina, que pense que não me encontro no meu perfeito juízo, mas não consigo deixar de pensar naquelas terras. Nas suas e nas minhas. São adequadíssimas para o que quero levar a cabo. Por outro lado, disse-me que noutros tempos também esteve muito interessada nos vinhedos. Por que razão, em vez de mos arrendar, não se converte num sócio ativo e começa o negócio comigo?

- Esses tempos já fazem parte do passado. Já não sou uma mulher de negócios, André. - Precisamente por sê-lo, pagara um elevado preço, a ira do filho.

- Não sei por que, mas não consigo pensar neste negócio sem a incluir nele. Parece-lhe uma loucura assim tão grande?

- Um pouco - afirmou Sabrina, enquanto a empregada voltava a encher-lhes as xícaras de café. André costumava bebê-lo em grandes quantidades e, com um grande tato, deixou entender que o de França era muito melhor, uma insinuação que fez rir Sabrina, mas estava curiosa por ouvir os projetos dele.

- Em que está a pensar, André?

Soltou um leve suspiro e voltou a pousar a xícara de café em cima da mesa.

- Gostaria de comprar a superfície necessária desses terrenos para que possamos considerar-nos sócios em igualdade de condições? Fifty-fifty em tudo.

Sabrina deixou escapar uma gargalhada ao ouvir aquele termo americano.

- Comprar, eu? André, vejo que ainda não se deu conta da minha situação. Mal tenho para manter o meu filho na universidade. Só me resta a casa de São Francisco e aquela selva que acabou de ver em Napa. Como poderia eu comprar esses terrenos em sociedade consigo? - Envolvia a compra de uns quatrocentos hectares, gasto que não podia permitir-se em absoluto.

André pareceu desiludido, mas ainda não se dava por vencido.

- Não sabia... só pensei... - Havia algo de francês nos olhos azuis, que encantava Sabrina. André era um homem bem-parecido, e a sua beleza e a sua agilidade faziam-no parecer mais jovem do que realmente era. Passava bem por um homem com menos vinte anos. - Então, não tem outros recursos? - Era uma pergunta excessivamente direta, mas feita sem más intenções. André estava ansioso por chegar a um acordo com Sabrina. Além da excelente impressão que tinha dela pelas extraordinárias coisas que Amélia lhe contara sobre o acerto e a habilidade com que dirigira as minas durante vários anos, acreditava que ela seria capaz de encontrar o meio de comprar os vinhedos conjuntamente com ele. E também estava convencido de que sabia mais de vinicultura do que lhe fizera crer.

- Há muitos anos que não presto atenção a essas coisas, André. Quando era jovem, acreditava que poderia produzir aqui vinhos tão bons como os franceses, mas há quantos anos é que isso foi? Quinze? Vinte e cinco? A minha experiência vinícola ser-lhe-ia de muito pouca utilidade. - Estava surpreendida com o fato de André ter chegado a propor-lhe a formação de uma sociedade, mas tinha de admitir que a idéia a intrigava. Todavia, sentia maior interesse por aquela proposta do que pelo simples arrendamento dos vinhedos. - Não nego que gostaria de colaborar consigo, mas deveria vender as terras que possuo em vez de comprar mais. - Suspirou ao pensar na situação. Ainda tinha de fazer frente às despesas de manutenção de Jonathan em Harvard durante mais um ano. Deveria efetuar o pagamento daí a meses e, para satisfazê-lo, só contava com o dinheiro que pudesse fazer da venda das terras de Napa, dos terrenos ocupados pelos jardins que circundavam a Mansão Thurston e das jóias da mãe, que nunca usava. Refletiu, por instantes, sobre o assunto, e voltou a fazê-lo nessa noite quando já estava na cama. André voltaria sozinho a Napa no dia seguinte para ver mais pormenorizadamente o terreno que comprara na véspera e falar com os proprietários sobre o negócio. Além disso, aproveitaria a viagem para ver se podia encontrar alojamento.

Ao pensar em André, Sabrina deu-se conta de que gostava cada vez mais dele, e desejava que ele tivesse o maior dos êxitos com os seus vinhos. Não podia deixar de admirar uma pessoa que, com a sua idade, abandonava o país de origem e todas as comodidades para começar de novo a onze ou doze mil quilômetros de distância. Era preciso algo mais do que espírito de aventura para levar a cabo uma empresa como aquela, e ela admirava-o. Quase tanto como André a admirava a ela. Ele sentia que Sabrina era dona de uma extraordinária força interior, em conformidade com aquilo que Amélia insinuara antes de se conhecerem. Carregava um pesado fardo. Não era difícil adivinhá-lo, ainda que o único indício disso fosse o que ela lhe dissera quando lhe propusera a compra das terras a meias E ainda estava a pensar na idéia de André, lamentando não poder comprar a parte do terreno que lhe correspondia, quando, na manhã seguinte, se sentou, de repente, na cama. Se vendesse os jardins que circundavam a Mansão Thurston, conseguiria arranjar o suficiente para pagar o último ano de estudos de Jon e ainda lhe sobraria dinheiro para outras coisas. Pensou na possibilidade de o pôr a render ou fazer um ou dois investimentos, mas a verdade era que não havia melhor investimento do que a compra de terras. O pai sempre lhe dissera isso, e, se se juntasse a André na compra dos vinhedos, não lhe restaria um único cêntimo, mas se, como parecia, ele sabia o que estava a fazer, os lucros não se fariam esperar. Tal decisão, dada a situação econômica do país, não deixava de implicar um tremendo risco, mas o coração dizia-lhe que não podiam fracassar. O sangue começara a correr-lhe nas veias com o mesmo ímpeto de outros tempos, quando conduzira as minas a um apogeu nunca antes alcançado. Além disso, era isso que desejara desde o primeiro momento. Já em menina, gostava mais dos vinhedos do que das minas. Pensou nisso durante todo o dia, perguntando-se se André teria comprado mais terrenos. Entretanto, fez duas ou três chamadas para oferecer a venda dos jardins e, quando André lhe telefonou nessa noite, estava tão entusiasmada que ele mal percebia o que ela dizia.

- Poderei fazê-lo consigo, André!

O corretor acreditava que, no dia seguinte, haveria uma oferta de compra dos jardins da Mansão Thurston. Há anos que duas companhias imobiliárias esperavam por aquela ocasião, e estavam dispostas a pagar um bom preço. O que significava que teria de viver com obras à sua volta, e nunca mais voltaria a gozar do isolamento que tivera até então, mas não se importava. Desde que pudesse entrar no negócio com André... Este mal percebia o que ela dizia e estava confuso.

- Quê?... O quê?... que disse?... Mais devagar, mais devagar... - André ficara contagiado com o entusiasmo de Sabrina, certo de que algo maravilhoso acontecera, mas não fazia a menor idéia do quê.

- Desculpe, não estou a explicar-me bem. Primeiro que tudo, como é que correram as coisas hoje?

- Muito bem. Maravilhosamente. - Também parecia entusiasmado. - E tive esta idéia: compro as terras, vendo-lhe quatrocentos hectares e paga-me quando puder. Pode fazê-lo dentro de cinco anos, se quiser. Nessa altura, o vinho ter-nos-á enriquecido aos dois. - André riu-se e Sabrina esboçou um largo sorriso.

- Não precisa de fazer isso. Tive uma idéia. - Ia a explicar-lha, mas pensou que mais valia fazer outra coisa. - Tive uma idéia excelente. Não quer vir tomar um conhaque? Gostaria de falar consigo sobre o assunto.

- Ah!... - André mostrava-se intrigado, e o conhaque era uma ótima idéia. - Não acha que já é muito tarde? Já passa das dez.

Sabrina estava impaciente por lhe comunicar os seus planos. Não podia esperar até ao dia seguinte. Parecera uma criança excitada durante toda a tarde, e André acedeu a sair do hotel e a apanhar um táxi. Cinco minutos depois, estava já a bater à porta principal. Sabrina voou pelas escadas abaixo para lha abrir. Tinha já o conhaque à espera dele na biblioteca, junto à lareira. Sabrina subiu apressadamente as escadas, seguida do recém-chegado, que, a rir, lhe perguntou:

- Que diabo se passa hoje consigo, Sabrina?

Ao ouvir o seu nome com sotaque francês, não conseguiu conter o riso. Serviu-lhe prontamente o conhaque e convidou-o a sentar-se.

- Tive uma idéia... sobre as terras de Napa.

O brilho no olhar de Sabrina provocou uma tremenda curiosidade em André, que se interrogou se seria por isso que ela o chamara. Talvez ela fosse fazer um milagre.

- Sabrina, acabe com esse mistério todo! - sussurrou. Sabrina olhou para André. O seu instinto feminino dizia-lhe que a sua vida estava prestes a dar uma volta, como já acontecera noutras ocasiões... como quando o pai morrera e ela tivera de tomar as rédeas das minas... como quando casara com John... como quando Jonathan nascera... E agora, de repente, a sua vida voltaria a dar uma volta importante. Teve plena consciência disso quando os seus olhos se cruzaram. Sempre acreditara que os seus dias de poder haviam terminado para sempre, mas agora sabia que estavam a começar de novo. Queria fazer sociedade com André. Era o seu maior desejo. E o seu outro instinto, o comercial, permitia-lhe ver algo pouco comum naquele homem. André de Vernay entrara na sua vida. E agora ela caminharia a seu lado. Podia confiar plenamente nele. A longa amizade de André com Amélia era garantia mais do que suficiente.

- Quero comprar os terrenos consigo.

Os olhares de ambos encontraram-se e detiveram-se por instantes.

- Pode fazê-lo? Eu pensava que...

- Estive toda a noite a pensar nisso, e hoje fiz alguns telefonemas. Bastará que venda os jardins que circundam a Mansão Thurston. Também preciso do dinheiro para pagar opróximo ano de estudos do meu filho em Harvard. - Estava a ser franca com ele. Se iam ser sócios, não lhe ia esconder nada, e nunca o faria. - Mas se receber um bom preço por eles, e creio que isso é possível, poderei comprar a minha parte dos terrenos. Seríamos sócios com partes iguais logo desde o início. - Os olhos brilhavam. André fitava-a, como se também se tivesse dado conta de que ia iniciar-se algo muito importante para os dois. Sabrina semicerrou os olhos. Olhou para ele, com o mesmo estado de espírito de quando decidira dirigir pessoalmente as minas. - Agora vejo tudo de forma muito clara.

- Também eu. - André fitou-a durante um longo instante, depois ergueu o copo. - Ao nosso êxito, madamme Harte. - Havia uma seriedade no seu olhar que ela raras vezes observara nele, e ergueu o copo.

Depois, o semblante de Sabrina voltou a mostrar preocupação. Não ignorava que tinha muito trabalho pela frente, mas estava disposta a não virar a cara à luta.

- Quem cultivará os vinhedos? Vai mandar vir gente de França?

- Vou trazer três homens e o meu filho. Ao princípio, nós os cinco faremos tudo o que seja necessário, e contrataremos mão-de-obra local quando precisarmos. Porque suponho que a minha amiga não se vai oferecer para apanhar uvas, pois não? - Tomou-lhe a mão e, olhando-a nos olhos, sorriu. - Está decidida a levar tudo isto para a frente?

- Nunca falei tão a sério. Sinto-me como se tivesse renascido. - As águas estagnadas da sua vida haviam começado a fluir de novo, e naquele instante deu-se conta das saudades que tinha de trabalhar, de dirigir as minas, de construir algo. A única coisa que fizera nos últimos anos fora ver tudo aquilo que conseguira com o esforço do seu trabalho desaparecer. E agora, de repente, graças a André, voltava à atividade. - Se isto der resultado, ficarei com uma enorme dívida para consigo, André.

- Ah, non, - protestou, abanando a cabeça. - Eu é que ficarei em dívida para consigo por toda a vida se comprarmos as terras. - E, cerrando os olhos, viu aparecer na sua mente a realização dos seus sonhos. - Teremos um enorme êxito... estou plenamente convencido disso... os nossos vinhos serão os melhores do mundo, inclusive de França... e talvez cheguemos a fazer um ou dois champanhes... - Sabrina tinha vontade de chorar. As palavras que ouvira enchiam-na de felicidade. Aquilo era precisamente o que desejava há vários anos, e agora ele estava a oferecer-lhe essa oportunidade. Amélia enviara-o como um mensageiro do destino que tivera a missão de a fazer reviver. Os três dias seguintes foram de autêntico frenesi para ambos. Falaram com os bancos, chegaram a acordo quanto aos terrenos que seria pertença de cada um deles, voltaram a inspecioná-los, puseram-se de novo em contato com os vendedores dos vinhedos e, finalmente, com as duas companhias imobiliárias interessadas na compra dos jardins da Mansão Thurston. E, milagrosamente, ao fim de uma semana, ambos os negócios estavam fechados. Vendera tudo o que tinha em Nob Hill, exceto a Mansão Thurston e um pequeno jardim situado atrás da casa E, em Napa, entre os terrenos comprados por ambos e os que Sabrina já possuía, já eram proprietários de quase seis mil hectares de vinhedos, mas, legalmente, pertencia metade a cada um. Os seus advogados andaram numa roda-viva durante vários dias, os banqueiros de Sabrina haviam querido comprovar a solvência de André, enviando telegramas para todo o lado, e Sabrina telefonara umas duas vezes a Amélia a agradecer-lhe tudo o que ela fizera. Foi a semana mais frenética da vida de Sabrina. E, quando, no final da semana, acompanhou o seu amigo à estação, antes de ele subir para o comboio com destino a Nova Iorque, despediram-se com um aperto de mãos e, desta vez, com um beijo que André lhe deu em ambas as faces.

- Somos um par de loucos, não acha? - Sabrina sentia-se de novo uma rapariguinha. Ele, por seu turno, ainda estava mais atraente depois das várias tardes que passara com Sabrina a passear pela propriedade, sob o sol de Napa. Mas, de tão entusiasmada que andava com tudo o que já haviam conseguido, ainda não prestara atenção a esse pormenor, e tinha ainda de encontrar uma casa para André e Antoine com, quiçá, um anexo para os três trabalhadores que viriam de França. - Quando volta, André?

Ele prometera telefonar-lhe de Nova Iorque e mandar-lhe um telegrama de Bordéus. Tinha muito que fazer ali, mas esperava poder regressar dentro de um mês.

- Dentro de quatro semanas. Cinco semanas, no máximo.

- Suponho que nessa altura já terei encontrado uma casa apropriada. Na pior das hipóteses, podem ficar na Mansão Thurston.

- Não me desagradaria. - E riu-se ao pensar nos seus trabalhadores do Médoc a vaguear pela elegante mansão de Nob Hill. - Transformamo-la numa quinta.

- Não vejo nenhum inconveniente em alojá-los em minha casa. - Enquanto o comboio se punha em marcha, Sabrina desejou boa sorte a André e fez-lhe adeus com a mão. Por instantes, sentiu um aperto no coração ao recordar-se do comboio que, dezenove anos antes, não chegara a Detroit.

Porém, a vida não podia voltar a ser tão cruel, e dessa vez não foi. Ao fim de cinco semanas, Sabrina encontrava-se de novo na estação para receber André, Antoine e os três homens. Havia alugado uma pequena casa de campo para eles, no terreno adjacente ao que eles haviam comprado. A seu tempo, André e Antoine poderiam mandar construir uma casa, mas de momento não era necessário. Dirigiram-se, então, para o vale de Napa. Antoine e os homens ficaram entusiasmados ao ver o que André e Sabrina haviam comprado. Ela ficou surpreendida perante o encanto de Antoine. Era um rapaz alto e magro, bem-posto, com os olhos azuis do pai e uma espessa melena ruiva. As suas maneiras eram as de um homem cortês e ponderado. Apesar de não se expressar bem em inglês, conseguia dizer a Sabrina tudo o que queria. Passaram a tarde do segundo dia a examinar os vinhedos e a falar como velhos amigos. André era muito diferente do filho, mas o que mais a surpreendeu em Antoine foi o seu bom caráter. Parecia querer ajudar toda a gente, relaxava o ambiente quando ficava tenso, o que acontecia muitas vezes dado o temperamento francês daqueles homens; parecia gostar da companhia do pai e mostrava-se cada vez mais amável e brincalhão com Sabrina. Esta estava curiosa por saber como se entenderia com Jon. Só queria que se dessem o melhor possível.

Jon regressou em junho, seis semanas depois da chegada de André e Antoine. Encontravam-se há alguns dias na Mansão Thurston pois tinham de se reunir com o banqueiro de Sabrina a fim de conseguir os empréstimos de que precisavam. A barafunda no exterior da casa era insuportável. Os operários preparavam o terreno para os edifícios projetados. O pequeno jardim com que Sabrina ficara nas traseiras da casa não tinha qualquer serventia. Voavam pedaços de cimento por todo o lado, o pó caía sobre eles em densas nuvens e as árvores eram arrancadas por potentes gruas. Sabrina assistia, com grande mágoa, a toda aquela destruição, e tentava não pensar no assunto. Entristecia-a ver tantas mudanças à sua volta, mas não havia fuga possível. Pelo menos, ficava-lhe o consolo de saber que estava a fazer algo apaixonante com André e Antoine. Conseguira pagar o último ano de estudo de Jon, e dava graças a Deus por o ter conseguido. Mas agora era muito pouco o que lhe restava. Queria entregar-se de corpo e alma, com André, aos vinhedos. Ia a Napa várias vezes por semana para observar, com satisfação, o curso dos trabalhos. E ele ia a São Francisco uma vez por semana e ficava alojado na suíte dos convidados da Mansão Thurston. E era aí que se encontrava na companhia de Antoine quando Jon chegou, que os fitou com ar hostil enquanto deixava a bagagem no vestíbulo.

- Mais hóspedes, querida mamã?

Sabrina teve vontade de lhe dar um par de açoites pelo tom insolente das suas palavras, mas contentou-se em lançar-lhe um olhar indignado.

- Não podes chamar-lhes isso, Jon. Apresento-te o André e o Antoine de Vernay. Não sei se te lembras do que te escrevi sobre o investimento que realizamos nos vinhedos de Napa.

- Tudo isso me parece um tremendo disparate

Jon era o oposto do filho de André, que a acolhera tão carinhosamente. Mas era evidente que, para Jon, aqueles intrusos representavam uma ameaça. A mãe voltava a embrenhar-se nos negócios, o que lhe trouxe à memória os tempos da sua juventude em que detestava vê-la trabalhar. Antoine estendeu-lhe a mão, que Jon apertou com indiferença. Tinha outras coisas em que pensar agora que estava na cidade. Na semana seguinte, chegariam dois amigos seus de Harvard, e iria para o lago Tahoe, e depois para La Jolla com amigos. Não era propriamente o Verão que planejara. Teria preferido ir para a Europa com o seu amigo Dewey Smith, mas, como a mãe insistira para que viesse a casa, iria vingar-se obrigando-a a prometer-lhe que o deixaria ir para a Europa no ano seguinte, quando acabasse o curso. Achava que merecia a viagem que quase todos os seus colegas faziam todos os anos. Por que motivo tinha de passar o verão em casa? Queria ir à Normandie quando fosse lançado à água. Considerava que, ao fim e ao cabo, merecia aquele prêmio. Não era todos os dias que se acabava um curso em Harvard. Mas não disse nada à mãe sobre os seus planos. Tinha muito tempo para a tentar convencer, e o que mais necessitava naquele momento era de um carro, para quando chegassem os seus amigos.

- Podes usar o meu quando eu estiver na cidade. Eu ando de carro elétrico.

André escutava-os enquanto fazia alguns telefonemas na biblioteca. Surpreendia-o a paciência que Sabrina tinha com o rapaz, mas era o seu único filho, e isso explicava tudo. O pai de Jon morrera quando este só tinha dois anos, e Sabrina dissera-lhe que sempre se sentira culpada por nunca lhe ter dado a devida assistência, pois passava horas intermináveis nas minas.

- Mas fê-lo por ele. Tive o mesmo problema com o Antoine quando a Eugenie morreu, mas ele teve de compreender. Eu era um homem. E você tinha uma enorme responsabilidade sobre os ombros. É provável que ele já tenha compreendido isso.

- Só compreende o que lhe interessa. - Sabrina sorriu para o seu sócio e amigo. Conhecia bem o filho, e, embora lhe causasse problemas às vezes, também sabia que, em parte, a culpa era dela, por tê-lo mimado tanto. Nesse instante, preocupava-a que a aborrecesse com o carro na presença de André.

- Por amor de Deus, mamã, não podemos comprar outro carro?

- Já sabes que, de momento, não nos podemos permitir tal luxo. - Sabrina tentou manter a voz baixa, mas ele não fez o mesmo.

- Por que diabo não podemos fazê-lo. Compras uma série de coisas, terras em Napa, vinhedos, e sabe lá Deus que mais.

Jon mostrava-se extremamente injusto. Há anos que a mãe não comprava nada para ela própria. Os vestidos, embora de bom corte, estavam fora de moda. André reparara nisso, e tinha plena consciência dos sacrifícios que aquela mulher fizera. E já quase não lhe restava nada do dinheiro da venda dos jardins da Mansão Thurston. Gastara-o todo na compra dos vinhedos e no pagamento dos estudos de Jon. Não dispunha de dinheiro para luxos, nem sequer para ela mesma, mas Jon parecia decidido a não aceitar a realidade da situação e continuava a pressioná-la.

- Jon, estás a ser injusto. Usa o meu carro, por amor de Deus.

Guardava o automóvel numa garagem que havia do outro lado da rua e que alugara a uns amigos. A sua fora deitada abaixo juntamente com a parte da propriedade que vendera às sociedades imobiliárias.

- E como é que queres que vivamos com toda esta barulheira? - gritou Jon.

Só à noite, quando os trabalhos pararam, é que Sabrina se deu verdadeiramente conta do barulho das obras. Depois de ouvir toda aquela barafunda durante um mês seguido, já se acostumara a ela. Contudo, segundo lhe haviam dito, aquela situação ainda duraria um ano.

- Lamento, Jon, mas isto é só durante algum tempo, além disso, estás quase sempre fora. - E esboçou um sorriso terno. - No próximo ano, quando voltares à universidade, já terão terminado.

Jon soltou um sonoro suspiro de enfado.

- Espero bem que sim. Agora, quanto ao carro, posso levá-lo esta tarde.

- Sim, claro

Jon queria sair com uma rapariga. Era amiga de um amigo e estudante do segundo ano na universidade feminina de Mills.

- Queres jantar conosco esta noite. - Estava acostumada a fazê-lo muitas vezes com Antoine e André, e queria que Jon os conhecesse melhor, mas este já tinha outros planos e levantou-se abanando a cabeça.

- Desculpa, não posso. - E, olhando para o amigo da mãe, que estava a falar ao telefone, acrescentou, supondo que ele não conseguiria ouvir. - Trata-se de um novo amor?

A inesperada pergunta fez com que Sabrina corasse, mas, pelo trejeito que deu à boca, foi visível que ficou pouco à vontade.

- Só é meu sócio. Mas gostaria que o conhecesses melhor, assim como o filho.

Jonathan encolheu os ombros. Eram, seguramente, um par de pategos franceses que não mereciam a sua atenção. Deduziu isso pelo interesse que mostravam nas terras, pelo fato de virem de Bordéus e pela simplicidade como trajavam. Naturalmente, ignorava que eram de linhagem nobre, e eles não haviam falado no castelo que acabavam de vender. Jon, porém, tinha outras preocupações, sobretudo agora que o carro da mãe estava à sua disposição. Ao fim de meia hora, já se fora embora, e só voltaria a altas horas da noite. Na manhã seguinte, pouco depois do amanhecer, Sabrina deixou a casa na companhia de Antoine e André e dirigiu-se para o vale de Napa, donde só regressou à noite, sendo ela própria a conduzir. Agora fazia-o continuamente, pois as idas e vindas entre a Mansão Thurston e os vinhedos eram constantes. Todavia, ainda havia muito que fazer.

- Como é possível que tenhas cometido tamanha loucura? - perguntou-lhe Jon, quando se encontraram nessa noite.

Sabrina apercebeu-se do ar acusador no olhar de Jon. Dava a impressão de que estava a recriminá-la por ter feito um mau investimento ou por passar tanto tempo fora, como quando dirigia as minas. Mas ele fizera já vinte e um anos e passava a maior parte do tempo na universidade, a quase cinco mil quilômetros de distância. E Sabrina tinha o direito de dedicar-se a algo que a entusiasmasse, como a exploração dos vinhedos. Era o que sempre quisera fazer na vida, e só tinha quarenta e sete anos. Não desejava ficar a um canto, à espera da morte, pelo simples fato de o filho ter atingido a maioridade. Aquilo era o melhor que lhe poderia ter acontecido, mas Jon via isso como uma ameaça, e não dissimulava a sua aversão por todos aqueles planos sempre que o assunto vinha à baila, como se lhe estivessem a tirar qualquer coisa.

- Vai tudo correr bem. Prometo-te. Vamos ter os melhores vinhos dos Estados Unidos.

Jon limitou-se a encolher os ombros.

- E então? De qualquer modo, prefiro beber um uísque. - Sabrina soltou um suspiro de exasperação. Às vezes, o filho era insuportável.

- Felizmente, nem todos pensam como tu.

Jon olhou-a com um ar de total indiferença e disse:

- A propósito, na próxima semana chegam uns amigos meus à cidade.

Sabrina franziu o sobrolho.

- Mas vais a Tahoe, não vais?

- Vou. Pensei que talvez pudessem passar por aqui só para te cumprimentar.

Era a primeira vez que Jon fazia a sua mãe uma sugestão daquela natureza, o que a fez suspeitar que se trataria de uma rapariga. Sabrina esboçou um sorriso tímido.

- É algum amigo especial para ti?

- É. - Mas, ao imaginar o que a mãe estava a pensar, abanou a cabeça. - Não, não é nada disso é só amizade. Não te preocupes, depois verás.

Sabrina teve a impressão de ver uma sombra de culpa nos olhos do filho, mas não tinha a certeza.

- Como se chama? perguntou-lhe, quando Jon já estava a sair de casa.

- Du Pré.

Sabrina ficou sem saber se se tratava de uma mulher ou de um homem, e esqueceu-se de lhe perguntar antes de ele partir para Tahoe, na semana seguinte.

 

Depois de Jon ter ido para o lago Tahoe com os amigos, Sabrina passou a maior parte do tempo em Napa, na companhia de André, Antoine e os trabalhadores franceses. Tinham muito trabalho pela frente. Havia muito mato para limpar, e nos seus próprios terrenos muitas vides para arrancar, outras para podar e ainda teriam de plantar as novas cepas que André trouxera de França. Só daí a um ano é que ele se consideraria satisfeito com o estado dos vinhedos, mas estavam todos preparados para isso. O projeto encontrava-se em andamento. Já tinham escolhido uma marca para os vinhos que produziriam. O vinho corrente levaria o nome de Harte-Vernay, e os de maior qualidade, o de Chateau de Vernay. Sabrina estava encantada com tudo. Regressou a São Francisco, depois de passar uma semana debaixo do sol tórrido de Napa, com a pele escura como o alcatrão e os olhos transformados em dois pedaços de resplandecente céu azul. Trazia as sandálias que André lhe trouxera de França, e calças. Começara a abrir o correio na Mansão Thurston, quando tocou o telefone do escritório e uma voz desconhecida de mulher lhe comunicou que queria falar com ela.

«Deve ser a amiga do Jon», pensou Sabrina. Estava curiosa por saber quem era, mas naquele momento sentia maior preocupação pela pilha de faturas que tinha na mão. A lista de coisas que havia para pagar era interminável, o que denotava que Jon não se privara de nada nas últimas semanas... três restaurantes... o clube... o alfaiate preferido...

- Sou a condessa Du Pré. - O Jon sugeriu-me que lhe telefonasse...

Sabrina franziu o sobrolho, mas lembrou-se, de imediato, do nome. Du Pré... Todavia, Jon não lhe dissera que se tratava de uma condessa. Talvez fosse a mãe de uma rapariga por quem Jon sentisse especial predileção. Sabrina afastou o bocal para soltar um suspiro de enfado. Não estava com disposição para falar com ninguém, e muito menos com uma mulher que se anunciava daquela maneira. O tom de voz era americano, teria jurado que do Sul, mas o seu nome era francês, tal como o sotaque. Era pena André e Antoine não se encontrarem na cidade. Mas prometera a Jon que atenderia a sua amiga.

- Suponho que o Jonathan lhe disse que eu telefonaria.

De fato, disse. Sabrina tentava ser amável com a desconhecida sem afastar o olhar do montão de faturas que tinha à sua frente.

- É um rapaz encantador.

- Obrigada. Vem visitar São Francisco? - Sabrina continuava a ignorar por que razão aquela mulher lhe telefonara, e não sabia o que dizer-lhe.

- Já estou na cidade.

- É pena que o Jon não esteja em São Francisco. Está nas montanhas com uns amigos.

- É ótimo para ele. Talvez tenha ocasião de o ver quando regressar.

- Sim... - Sabrina endureceu um pouco o tom de voz, mas tinha de cumprir o que prometera a Jon. - Posso convidá-la para um chá um dia desta semana? - Com a quantidade de coisas que tinha para fazer, a última que desejava era receber visitas, mas não lhe restava alternativa.

- Seria uma honra para mim. Adoraria conhecê-la, Mistress Harte. - Pareceu fazer uma pausa ao pronunciar o apelido de Sabrina, e esta pensou que quanto mais depressa recebesse aquela estranha, mais depressa se veria livre dela.

- Esta tarde?

- Com muito gosto.

- Também a receberei com muito gosto - mentiu Sabrina. - A minha morada é...

As suas palavras foram interrompidas por um suave risinho.

- Oh, não é necessário... O Jon deu-ma há muito tempo. - Sabrina não conseguiu descortinar se a desconhecida era velha ou jovem, se era uma grande dama ou uma namorada, ou simplesmente uma mulher que conhecera por acaso. Era uma situação absurda. Quando André lhe telefonou, mais tarde, e lhe pediu que fosse ao banco fazer-lhe um recado, teve de dizer-lhe que não podia ir.

- Que aborrecimento! O Jon pediu-me que recebesse uma amiga dele que está de passagem pela cidade, e vi-me obrigada a convidá-la a tomar chá. - Deu uma olhadela ao relógio. O serviço de chá estava preparado. Sabrina envergava um vestido de flanela cinzento com gola em veludo e um colar de pérolas que o pai lhe oferecera quando ainda era muito jovem. - Já devia ter chegado há dez minutos e, pela conversa dela, parece que não vai deixar-me tempo livre para ir a lado nenhum. Peço imensa desculpa, André.

- Não se preocupe. Isto pode esperar.

André imaginou-a tal como a havia visto no dia anterior: a abrir caminho por entre a selva em que se transformara o seu antigo vinhedo, com os cabelos desgrenhados, o rosto bronzeado e os olhos de um azul quase mediterrânico. Ao pensar que se preparava para tomar chá com uma convidada, não conseguiu conter o riso. Sabrina fez uma careta.

- Não sei o que quer essa mulher, mas o Jon pediu-me que a recebesse, e estou a cumprir o meu dever. Mas preferia estar aí com vocês. Como vão as coisas?

- Ótimas. - Mas antes de ele poder dizer o que quer que fosse, a campainha tocou.

- Bolas! Aí está ela. Tenho de desligar. Telefone-me se surgir algo de especial.

- Assim farei. A propósito, quando volta para aqui? - Sabrina queria ir trabalhar com eles, aproveitando a circunstância de Jon só voltar daí a uma semana.

- Amanhã à noite. Posso ficar na casa de campo convosco? - Era a única mulher do grupo, mas conseguia adaptar-se facilmente às incomodidades da vida rústica que levava em Napa. À noite, oferecera-se até para ajudar a fazer o jantar, embora não tivesse muito jeito para cozinhar. - Tenho de reconhecer, sei dirigir melhor uma mina do que cozinhar. - Sorriu ao lembrar-se do dia em que deixara queimar os ovos do pequeno-almoço. A partir daquele dia, eram eles que cozinhavam por Sabrina, mas, em compensação, ela fazia a parte de homem do trabalho, coisa nada estranha para ela. André admirava-a por isso. Na realidade, admirava-a por muitos aspectos.

- Claro que poderá cá ficar. Temos de construir quanto antes outra casa com melhores condições. - O plano consistia em construir uma casa simples para os trabalhadores, e outra mais elegante para ele e Antoine, numa das colinas, mas não seria para já. Tinham outras prioridades. - Então, até amanhã à noite, Sabrina. Conduza com cuidado.

- Obrigada.

Sabrina desligou o telefone e desceu as escadas a correr para abrir a porta principal. Diante de si encontrava-se uma mulher de olhar inquiridor. Trazia um vestido de lã preta bastante cingido ao corpo. Os cabelos eram negros como o carvão, dando a impressão de serem pintados, mas tinha uma cara bonita, e os olhos, que pareciam estar a examinar Sabrina centímetro a centímetro, eram de um azul brilhante. Entrou e levantou os olhos para a cúpula como se soubesse que a encontraria aí.

- Boa tarde... - Vejo que o Jon lhe falou da cúpula.

- Não. - Olhou para Sabrina e sorriu. Esta teve a estranha sensação de já ter visto aquela mulher antes, mas não se lembrava onde. - Não se lembra de mim, pois não? - Os olhos nunca se afastaram dos de Sabrina, que abanou ligeiramente a cabeça. - Não é possível que se recorde. - Sabrina voltou a notar o sotaque sulista. - Pensei que talvez visse alguma fotografia minha. Um calafrio percorreu a espinha de Sabrina ao ouvir dizer com voz sussurrante. - Chamo-me Camille du Pré... Camille Beauchamp... - Sabrina sentiu uma vaga de terror quando a mulher continuou a dizer no mesmo tom: - E também Camille Thurston, ainda que por pouco tempo...

- Não podia ser. - Sabrina ficou pregada ao solo com os olhos fixos nela. Era uma brincadeira. Tinha de ser. A sua mãe morrera. Sabrina deu um passo atrás como se tivesse recebido uma bofetada.

- Acho melhor que saia... - Sabrina sentia-se como se alguém estivesse a tentar sufocá-la. A voz era tensa. Não conseguia mexer-se do mesmo sítio, enquanto Camille continuava a observá-la, sem se dar conta da enormidade do golpe que acabara de desferir. Era como se a tivesse visto surgir do mundo dos mortos. Sabrina nunca vira nenhuma fotografia da mãe, graças ao cuidado de seu pai, mas, agora, percebia a quem Jon saía. Era a imagem da avó... os cabelos... o rosto... os olhos... a boca... os lábios... Sabrina sentiu uma vontade irresistível de gritar, mas, em vez de o fazer, deu outro passo atrás. - É uma brincadeira muito cruel... A minha mãe morreu há muito tempo... - Estava quase sem alento, mas havia algo que a não deixava pôr aquela mulher na rua, algo que a fascinava; sempre se perguntara como era a sua mãe, e agora... Seria possível?... Sentira tanta necessidade de uma mãe em pequena... e, de repente, aparecia aquela mulher... - Quem podia ser? - Sabrina deixou-se cair pesadamente numa poltrona sem tirar os olhos da recém-chegada. Camille Beauchamp Thurston du Pré fazia o mesmo. Estava satisfeita com o efeito que provocara.

- Não morri, Sabrina - disse a mulher, numa voz firme. - O Jon contou-me que foi isso que o teu pai te disse. Não foi justo da parte dele.

- Que deveria ele ter-me dito? - Sabrina não conseguia desviar os olhos dela. Era praticamente impossível compreender o que acontecera. A sua mãe saíra da sepultura para se atravessar na sua vida. Agora, ali estava, em carne e osso, dando mostras de grande tranqüilidade. Não compreendo.

Camille comportava-se como se aquela cena fosse a coisa mais natural do mundo. Passeou-se por debaixo da cúpula, explicando-lhe o que acontecera. Sabrina continuava sem acreditar no que via.

- Há muito tempo, o teu pai e eu desentendemo-nos.

Esboçou um sorriso apologético, como que a tentar seduzi-la, mas Sabrina estava demasiado chocada para bajulações.

- Nunca fui feliz nesta casa. - A recordação de Napa quase a fez estremecer. - E muito menos na outra. Napa nunca foi o meu lugar ideal para viver. - Tratava-se de uma versão deformada da realidade de cinco décadas atrás. - Então, fui para Atlanta, para a minha casa, porque a minha mãe estava doente. - Sabrina olhou, incrédula. Era a primeira vez que ouvia aquela história, e ficou atônita. Por que motivo lhe mentira o pai? - Antes de me ir embora, tivemos uma discussão terrível sobre a conveniência de ir para minha casa. E, enquanto me encontrava aí, escreveu-me a dizer que nunca mais voltasse. Foi então que descobri que ele tinha uma amante aqui, em São Francisco. - Sabrina esbugalhou os olhos de espanto. Seria verdade? - Não permitiu que eu regressasse a casa, nem que voltasse a ver-te... - Começou a chorar. - A minha única filha... Estava tão desconsolada que fui para França. - Ainda a fungar, voltou a cabeça para o lado, enquanto Sabrina a observava, pasmada. Se a mulher estava a mentir-lhe, então era uma verdadeira mestra nisso. Teria convencido qualquer pessoa da autenticidade da sua dor. - Levei anos a recuperar desse choque. A minha mãe morreu... Permaneci em França durante mais de trinta anos. E, desde então, tenho andado sem rumo certo... - Na realidade, fora para casa do seu irmão Hubert logo que Thibaut du Pré morrera, e aí vivera desde então, levando uma vida muito mais cômoda do que a que lhe permitira Du Pré. Até que o destino lhe pusera Jonathan no seu caminho.

O nome Beauchamp não significara nada para Jon. Sabia que tivera uma avó com aquele apelido, mas há muito tempo que morrera ou, pelo menos, assim pensava. Mas quando, durante umas férias no primeiro ano de estudos em Harvard, foi a Atlanta com o neto de Hubert, descobriu a sua avó aí e, durante dois anos, falaram várias vezes sobre a possibilidade de ela ir para a Califórnia com ele. Ao princípio, pensou que a mãe ficaria encantada, mas depois, instintivamente, chegou à conclusão de que não seria assim. Todavia, havia algo dentro dele que o impelia a fazer a surpresa a sua mãe, algo por que lutara durante tanto tempo: pôr Camille em contato com Sabrina. Ao fim e ao cabo, pouco lhe importava que a mãe fosse apanhada de surpresa. Naquele momento, estava aborrecido com ela. Achava que era cada vez mais exigente e menos compreensiva com ele. Nem sequer lhe comprara o carro por que há tanto tempo ansiava. Não devia nada à mãe, pelo menos, era essa a sua convicção. Finalmente, dissera a Camille que chegara o momento oportuno. «A minha mãe merece esse sobressalto», pensou Jon, recordando os tempos em que ela o deixava sozinho para ir trabalhar nas malditas minas. Jon não ignorava qual era o verdadeiro propósito de Camille, que consistia em ir viver para a Mansão Thurston. Ao fim e ao cabo, a casa era sua, e não de Sabrina Harte, mas não referiu tal coisa à filha. Esperaria alguns dias para fazê-lo.

Por outro lado, Camille prometera um carro ao neto. Mas, naquele momento, tinha outras coisas em que pensar. Sabrina fitava-a, desconfiada.

- Por que razão é que o meu pai me mentiria?

- Terias gostado de saber a verdade, que o teu pai expulsara a tua mãe de casa? Ele só te queria para ele, a ti e àquela bruxa que te criou. - Jon informara-a daquele fato como de tantos outros. A odiada Hannah vivera muito tempo com Sabrina, mas já não existia. - E não permitia que eu me imiscuísse nos seus assuntos. Tinha uma amante em Calistoga, sabias? - Aquelas palavras fizeram Sabrina pensar. Há muito tempo, ouvira histórias sobre o seu pai e uma tal Mary Ellen Browne, mas sempre supusera que aquela relação tivera lugar antes de se casar com Camille. Dizia-se até que tinham um filho, mas Sabrina nunca dera muito crédito a esses mexericos. E tinha outra mulher em Nova Iorque. Aquilo soou ligeiramente a verdade, mas Sabrina pôs de lado a idéia, pois nunca acreditara que o pai tivesse tido um caso com Amélia... talvez nos últimos anos de vida, mas não antes. A relação entre eles sempre lhe parecera tão pura... e terna... Sabrina olhou para Camille num estado de verdadeira confusão.

- Não sei que pensar. Por que razão não apareceu há mais tempo? Por que só agora?

- Porque não consegui encontrar-te antes.

- Nunca fui para lado nenhum. Vivo na mesma casa que ele construiu para si. - Aquelas palavras encerravam um tom de acusação, mas Camille pareceu não notar. - Poderia ter-me encontrado há muito mais tempo.

- Nem sequer sabia se eras viva. E, além disso, sabia que o Jeremiah continuava a viver contigo e não me teria deixado ver-te.

Sabrina esboçou um sorriso cínico.

- Tenho quarenta e sete anos. Poderia ter vindo ver-me quando muito bem entendesse, estivesse o meu pai vivo ou não. - Naquele momento, Jeremiah, se fosse vivo, teria noventa e dois, e não representaria qualquer ameaça para quem quer que fosse, e muito menos para aquela cínica que tinha diante de si. E agora, Sabrina já não conseguia sentir nada por ela, além de desconfiar de tudo o que ela dizia. E por que razão é que Jon conduzira Camille até ela sem a avisar? Aquela atitude do filho desconcertava-a. Porque não a prevenira da verdadeira natureza daquela visita? Odiava-a assim tanto? Ou seria aquela a idéia que Jon tinha de uma brincadeira? Por que razão é que só apareceu agora? Queria dissipar todas as dúvidas e pôr tudo em pratos limpos.

- Sabrina, minha querida, és a minha única filha. - A voz pareceu embargar-se-lhe.

- Isso já faz parte do passado. Já não sou uma criança.

Com a mais ingênua das expressões, Camille disse:

- É que não tenho para onde ir.

- Onde é que viveu até agora?

- Em casa do meu irmão, mas ele morreu há pouco, e não tive outro remédio senão ir viver com o meu sobrinho, que é o pai do amigo do nosso Jonathan. - Aquele «nosso» crispou os nervos de Sabrina. - Mas o ambiente aí não me é muito favorável. De fato, fiquei sem casa desde que o meu marido morreu... isto é... o meu amigo... - Camille corou. Dissimulou como pôde o deslize, mas Sabrina não o deixou passar em claro.

- Voltou a casar-se, Madame du Pré? - Enfatizou o apelido e ficou à espera que Camille se explicasse. Tinha a sensação de que a partir desse momento só iria ouvir coisas desagradáveis dos lábios daquela mulher.

Todavia, Camille conseguiu desconcertá-la de novo.

- Deves compreender, minha filha... que o teu pai e eu nunca chegamos a divorciar-nos. Era sua esposa quando morreu, e continuo a sê-lo agora. - Jonathan assegurara-lhe de que, embora não tivesse conhecido Jeremiah, sabia que este não voltara a casar-se. O seu avô morrera oito anos antes de ele nascer. - Legalmente acrescentou, com ar malicioso, sou a dona desta casa.

- Como? - Sabrina pôs-se em pé de um pulo, como se tivesse recebido uma descarga elétrica.

- Pois sou. Estivemos casados até ao fim, e ele construiu esta casa para mim, sabes?

- Por amor de Deus, como pode dizer uma coisa dessas? - Sabrina sentiu vontade de a estrangular. Depois de tudo o que sofrera, aquela mulher queria tirar-lhe a única coisa que lhe restava. Onde estava quando eu precisava de si? Quando tinha cinco anos, dez ou doze?... Onde estava quando o meu pai morreu?... Quando tive de ocupar o lugar dele à frente das minas?... Quando... Sentiu um nó na garganta e teve de fazer uma ligeira pausa. - Como se atreve a voltar nesta altura? Passei uma infinidade de noites sem dormir, curiosa por saber como fora a minha mãe, a chorar ao pensar que morrera, e ainda consigo lembrar-me da dor que o meu pai sentiu... e agora aparece-me aqui a dizer que foi cuidar da sua mãe e que ele não a deixou voltar. Pois bem, não acredito numa única palavra daquilo que me acabou de contar, está a ouvir? Numa única palavra sequer! E esta casa não é sua. Pertence-me a mim, e um dia pertencerá ao Jonathan. O meu pai deixou-ma em testamento, e eu deixá-la-ei ao meu filho quando morrer. Nada disto é seu. - Chorava e tremia de indignação, enquanto Camille a observava. - Entendido? Esta casa é minha, não é sua. Maldita seja! E não denigra a memória de meu pai. Há quase trinta anos, morreu nesta casa, uma casa que sempre foi um lugar sagrado para ele... E tem razão, construiu-a para si, mas, por uma qualquer razão que desconheço, você desapareceu. É demasiado tarde para voltar com essas pretensões.

Camille estivera ausente durante quase cinqüenta anos e voltara de repente. Todavia, mostrava-se estranhamente tranqüila. Não viera desprevenida, embora ficasse espantada com a veemência de Sabrina.

-Não percebes que não podes obrigar-me a sair? - retorquiu Camille, olhando com falsa doçura para a mulher que agora se atrevia a chamar de filha. Sabrina estava furiosa.

- Não posso?! Isso é o que vamos ver! - Deu um passo para ela. - Chamo a Polícia se não sair daqui imediatamente.

- Muito bem, então mostrar-lhes-ei esta certidão de casamento e outros documentos que trago comigo. Quer gostes, quer não gostes, sou a viúva do Jeremiah Thurston, e o Jonathan e eu vamos impugnar o testamento. Depois disso, serás tu que terás de pedir-me se podes ficar aqui, e não o contrário, como agora.

- Não pode estar a falar a sério.

- Podes ter a certeza que estou. Se te atreveres a pôr-me a mão em cima, eu é que chamarei a Polícia.

- E que tenciona fazer? Viver aqui durante os próximos cinqüenta anos.

Camille não permitiu que o sarcasmo a preocupasse. Estava habituada a levar a sua avante em situações mais difíceis E, além disso, planejara longamente tudo aquilo com Jonathan. Este hesitara durante muito tempo, mas acabara por ceder. Camille sabia que ele acabaria por ceder aos seus desejos, por isso, esperara pacientemente até àquele momento. Sabrina não iria ver-se livre dela com muita facilidade.

- Viverei aqui o tempo que me apetecer.

Todavia, tinha outro plano de que nem sequer falara a Jonathan Ficaria na Mansão Thurston durante uns meses, os suficientes para dar a sensação de que se apossara da casa e pôr Sabrina à beira do desespero. Então, talvez conseguisse chegar a um acordo com a filha que lhe permitisse voltar vitoriosamente, e com dignidade, para o Sul, com o dinheiro suficiente para comprar uma casa. Não tinha o mínimo desejo de ficar a viver definitivamente no Sul, mas, de momento, era a melhor solução para ela. Sabia muito bem quais eram os seus direitos. Tanto quanto sabia, Jeremiah nunca apresentara nenhuma ação de divórcio. Quando morrera, ainda estavam legalmente casados. Contudo, se ela impugnasse agora o testamento, a querela poderia levar muito tempo a resolver-se Mais do que estava disposta a esperar.

- Não pode mudar-se para aqui sem mais nem menos. - Sabrina olhava-a, horrorizada. - Não permitirei. - Mas enquanto Sabrina falava, Camille foi até à porta e fez sinal a alguém que esperava no exterior. Um moço de fretes carregou, então, meia dúzia de malas para o interior da casa. E ainda ficaram dois baús enormes à espera. Sabrina correu para o homem. - Leve essa porcaria daqui para fora! - gritou. Referia-se à bagagem e a Camille. E, apontando para a porta, levantou de novo a voz. - E já! - Era o tom que empregara noutros tempos nas minas, mas desta vez não surtiu efeito. Pelos vistos, tinha mais medo de Camille do que dela. - Ouviste, rapaz?

- Não posso... Sinto muito, madame.

O moço de fretes tremia que nem varas verdes enquanto Camille o conduzia, com ar impassível, pelas escadas acima.

Camille ainda se recordava de tudo: a suíte principal, a biblioteca, o toucador... e mandou o moço deixar as malas no quarto de vestir, enquanto Sabrina tentava arrastá-las daí para fora; Camille olhou-a com desprezo, como se ela fosse uma criança.

- Não vale a pena. Vou ficar aqui. Sou tua mãe, gostes ou não.

E era aquela a mãe com que Sabrina sonhara durante tanto tempo e por quem nutrira tanta ternura. De repente, os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas de raiva e sentiu-se como uma criança desamparada. Não acreditava que aquilo estivesse a acontecer. Não era de estranhar que o pai a tivesse impedido de voltar para casa. Era uma bruxa, uma monstruosidade, mas como iria ver-se livre dela? Entrou na biblioteca, telefonou a André e explicou-lhe a situação aflitiva em que se encontrava.

- Estará louca?

- Não sei - disse Sabrina, a soluçar. - Nunca vi semelhante coisa. Instalou-se aqui em casa como se só tivesse saído dela para dar um passeio. - Assoou-se ruidosamente. André lamentava não se encontrar ali para a consolar. - E o meu pai nunca me disse nada... - Voltou a soluçar. - Não compreendo... sempre me disse que ela morrera quando eu tinha um ano...

- Talvez tenha fugido. Isso acabará por se saber. Alguém tem de saber a verdade. - Ambos pensaram ao mesmo tempo na mesma pessoa, mas foi André que disse o nome primeiro. - A Amélia. Telefone-lhe para Nova Iorque! Ela contar-lhe-á tudo. Entretanto, ponha-a na rua.

- Como? De rastos? Ela já pôs a bagagem no meu quarto de vestir.

- Então, tranque-a no quarto. Ela não pode espezinhá-la dessa maneira, não acha? - André também parecia nervoso, e Sabrina sentia-se em ânsias por telefonar para Amélia de imediato. Queria saber o que acontecera entre o pai e aquela mulher que dizia ter estado casada com ele. - Quer que eu vá já para aí? - perguntou André, oferecendo-lhe os seus préstimos antes de desligar. Com a Bay Bridge, a viagem era agora mais fácil e mais curta, mas, mesmo que não fosse, teria ido na mesma. Antoine poderia tomar conta das coisas durante a sua ausência.

- -Não faça nada ainda. Voltarei a telefonar-lhe. Primeiro, quero falar com a Amélia, depois, com o meu advogado.

Contudo, não foi possível. Amélia, segundo disse a governanta, tinha uma terrível dor de garganta, e era-lhe impossível falar ao telefone. Mas Sabrina também não a queria apavorar dando-lhe conta do desespero em que se encontrava. Quanto ao advogado, gozava alguns dias de férias. «Só voltará daqui a um mês», disse a secretária com indiferença. Sabrina voltou a enfrentar Camille num estado de autêntica histeria.

- Madame du Pré... condessa... seja lá quem for, não pode ficar aqui. Se quer reclamar algum direito sobre os bens do meu pai, e se essa reclamação tiver base legal, então, poderemos falar disso com o meu advogado quando ele regressar, dentro de um mês. Entretanto, terá de ficar num hotel.

Camille olhou por sobre o ombro para Sabrina, enquanto pendurava a roupa. Já pusera um monte de vestidos da filha em cima de um cadeirão. Sabrina teve um desejo enorme de a estrangular. Pegou nas suas roupas, empurrou Camille para o lado, e atirou furiosamente as roupas da mãe para o chão. E, a plenos pulmões, gritou:

- Fora daqui! Estou na minha casa e não na sua! - Camille, porém, sem perder a calma, olhou-a como se enfrentasse uma criança birrenta.

- Sei que é difícil para ti depois de tantos anos sem nos vermos. Mas tens de te controlar. O Jon espera encontrar-nos felizes quando voltar. Ele adora-nos, e precisa de um lugar onde reine a paz.

- Não acredito no que estou a ouvir. - Sabrina fitou-a com ar irado. Era uma das raras vezes na sua vida em que se encontrava completamente desamparada. Havia poucas coisas que não conseguira resolver até então, e aquela era uma delas. - Tem de sair daqui!

- Mas, por quê? Que diferença é que isso te pode fazer? A mansão é enorme. Há espaço mais do que suficiente para todos nós. - Camille reparou no olhar assassino que Sabrina lhe dirigia. Então, com ar de quem estava a fazer um grande favor, acrescentou: - Muito bem... Alojar-me-ei no quarto de hóspedes, e nem darás pela minha presença, minha querida. - Esboçou um sorriso divertido, pegou nas suas coisas, e o moço de fretes, de que Sabrina já nem se lembrava, agarrou novamente nas malas e nos baús e, em passo apressado, levou tudo para o novo destino. Camille tinha uma memória excelente. Conduziu o moço até à porta correta e, pouco depois, ele saiu.

Quando André telefonou a Sabrina, no final dessa tarde, ainda notou o mesmo tom histérico na voz da amiga.

- Que lhe disse a Amélia?

- Não pôde falar comigo. Tem febre e uma terrível dor de cabeça.

- Oh, meu Deus... Já pôs essa mulher na rua? Pode ser uma impostora. Estive a pensar nisso depois de ter falado consigo. - Mas Sabrina limitou-se a abanar a cabeça, em silêncio.

- Não creio que seja, André. Conhece esta casa na perfeição, ao fim de tantos anos.

- Talvez alguém a tenha instigado. Algum trabalhador que tenha despedido...

Havia, no entanto, ainda outra razão que fazia crer a Sabrina que se tratava efetivamente de Camille Beauchamp: a extraordinária parecença com Jon. Disse isso a André, e este escutou-a com evidente preocupação.

- Porque acha que ela voltou?

- Ela não fez qualquer segredo disso. - Os olhos de Sabrina inundaram-se novamente de lágrimas. - Quer a mansão, André.

- A Mansão Thurston? - perguntou, horrorizado. Embora conhecesse Sabrina ainda há pouco tempo, sabia o que a mansão significava para ela. - Isso é um absurdo!

- Espero que os tribunais sejam da mesma opinião. E o meu advogado estará fora da cidade até ao próximo mês. Que posso fazer entretanto? É mais teimosa do que uma mula, e instalou-se no quarto de hóspedes como se eu estivesse à espera dela. Como pode ela fazer-me tal coisa?

- Aparentemente, é fácil. Qual é o papel do Jon em tudo isso?

Ela própria não sabia, e não queria acusar falsamente o filho.

Mas, a julgar pelo pouco que ouvira de Camille, suspeitava que havia algo de hediondo em todo o assunto.

- Ainda não sei. - Era evidente que não queria dizer mais nada sobre o assunto naquela altura.

- Posso fazer alguma coisa por si, Sabrina?

- Pode. - Sabrina esboçou um sorriso amargurado. - Ponha-ma na rua. Faça-a desaparecer. Faça com que ela nunca mais apareça.

- Quem me dera poder.

Instalou-se um breve silêncio entre ambos.

- Sonhei tantos anos com ela, curiosa por saber como é que ela seria... Um dia, cheguei a entrar secretamente nesta casa, quando tinha doze ou treze anos, e encontrei algumas coisas dela... e agora, aparece, de repente, como uma mulher do mais vil e diabólico que se possa imaginar... Quem me dera nunca a ter visto, André, se ela for exatamente quem diz ser.

- Espero bem que não seja. - Ou talvez fosse quem dizia e poderiam chegar a um acordo. Embora isso fosse extremamente difícil. De qualquer forma, era demasiado tarde para isso. Ela aparecera e não arredava pé da mansão, e agora Sabrina tinha de a pôr na rua. Sabrina passou toda a noite sem pregar olho, no quarto, a pensar no que estava a acontecer, com o desejo de irromper pelo quarto dos hóspedes adentro e arrancá-la da cama... Em vez disso, encontraram-se na cozinha, na manhã seguinte, à hora do pequeno-almoço. Contudo, Sabrina teve de reconhecer que, considerando a idade, Camille ainda era bonita, e que, cinqüenta anos antes, quando o seu pai se casara com ela, ainda devia ser muito mais. Cinqüenta anos.. ou quarenta e nove. Sabrina, sentada diante dela, observou-a, por instantes, em silêncio, perguntando-se qual teria sido o problema que a levara a sair de casa e a nunca mais voltar. Quem seria Du Pré? Talvez a chave do problema estivesse aí. Mas não disse nada a Camille. Baixou os olhos para a mesa e bebeu o chá. Não conseguia acreditar que aquilo estivesse a acontecer. Como quando morrera John, tinha a sensação de que o mundo ficara de pernas para o ar. Entretanto, Camille parecia flutuar alegremente pela cozinha, como se se sentisse feliz por ter voltado finalmente para casa. Sabrina fitou-a de novo, sem perder o ar de assombro. Camille sentou-se diante da filha, e ambas as mulheres ficaram de olhos fixos uma na outra. Depois de se terem visto pela última vez, quarenta e seis anos antes, quando Sabrina tinha um ano, as circunstâncias, ou talvez a ambição, voltavam a juntar mãe e filha. Como teria sido o comportamento de sua mãe naqueles tempos remotos, perguntou-se Sabrina. Lembrou-se, então, daquilo que Hannah lhe contara há muito tempo atrás sobre uns anéis que Camille usara como contraceptivo... que a velhota descobrira... e que o pai ficara furioso... e Sabrina viera logo a seguir. De súbito, sentiu uma vontade incontrolável de lhe perguntar se ela e o pai haviam desejado o seu nascimento, mas já imaginava a resposta e, além disso, que importava agora esse pormenor? Fizera quarenta e sete anos e tinha um filho já crescido, o pai adorara-a e a mãe estava... morta, pensou Sabrina, em silêncio. Mas a mãe não morrera. Desaparecera.

- Por que razão é que o deixou? - perguntou Sabrina, quase involuntariamente. - Conte-me a verdade.

- Já te disse - respondeu Camille, evitando o olhar da filha. - A minha mãe estava muito doente. Morreu, pouco tempo depois. - Não parecia agradar-lhe falar do assunto com Sabrina.

- Quando a sua mãe morreu, estava com ela?

- Nessa altura, encontrava-me em França. - Por que mentir-lhe? Que importância é que isso tinha? O que interessava é que voltara para a mansão. Continuava a ser a esposa de Jeremiah Thurston, e Sabrina estava aterrorizada. Jon tinha razão: Camille era mais dura do que Sabrina. O forte fora tomado, praticamente sem luta. Camille estava orgulhosa de si mesma. As coisas haviam-lhe saído melhor do que imaginara, e quando Jon voltasse tudo seria ainda mais fácil. Um aliado seria sempre uma grande ajuda. E ele prometera-lhe o seu incondicional apoio.

- Viveu muito tempo em França?

- Trinta e quatro anos.

- É muito tempo. Voltou a casar-se? - Sabrina tentava fazê-la cair na armadilha, mas Camille, com um sorriso, respondeu:

- Não. Não voltei a casar-me, embora use um apelido diferente.

- Suponho que também não seja condessa de nascimento... e esse «Du Pré»?...

Camille fixou o seu olhar no de Sabrina.

- Era o meu patrono em França.

- Sim, claro. Então, era a amante dele. - Sabrina esboçou um sorriso cândido. - Pergunto-me até que ponto é que esse fato pode prejudicar as suas pretensões. Além disso, trinta e quatro anos é muito tempo.

- Durante o qual estive casada com o Jeremiah Thurston, e continuo a estar. Por mais que tentes, não podes alterar esse fato, Sabrina.

- Continuo a pensar no interessante que seria a sua vida com o seu... patrono... - Sabrina sublinhou a palavra com a intenção de a fazer corar, mas não o conseguiu.- E agora, aparece a querer apossar-se desta casa. Não teve má idéia. Já fez os seus planos para o Dia de Ação de Graças? Ou pensa decorá-la de novo? Não perca tempo. - Sabrina falava num tom malicioso que não era normal nela.

Pouco antes do meio-dia, chegou André. Camille descia a escadaria principal e sorriu-lhe. Era um homem muito atraente, e ficou encantada ao descobrir que era francês, mas o seu interesse por ele decaiu quando percebeu de que estava do lado de Sabrina e que faria tudo o que pudesse para a expulsar da casa. Tentou falar com ele de França. Segundo parecia, passara quase toda a sua vida numa pequena cidade do Sul, mas também residira em Paris. Camille deu a entender que vivera aí faustosamente, mas André percebeu que mentia e, com ar de enfado, virou-lhe as costas. Queria falar com Sabrina a sós.

- Já guardou a sete chaves a prata e as jóias? Pode ser uma ladra vulgar com muita astúcia...

Sabrina riu-se.

- As únicas jóias que tenho são as dela. Pelo menos, a maior parte. A julgar pela desfaçatez com que age, não tardará a exigir-me que lhas devolva.

- Mas, pelo amor de Deus, não lhas dê. Continuo a achar que devia chamar a Polícia. - Não gostava do aspecto daquela mulher. Mas quando telefonou para a Polícia e tentou explicar a situação, eles disseram-lhe para não se meter em assuntos familiares. Um telefonema para um advogado que conheciam foi igualmente desencorajador. Disse que teria de levar o assunto a tribunal e que, uma vez que já se encontrava instalada em casa, seria praticamente impossível pô-la na rua até à leitura da sentença, a não ser que eles a pusessem à força fora de casa. Nesse caso, ela teria direito a pôr-lhes uma ação em tribunal.

- Ontem, não deviam tê-la deixado entrar - -disse André.

- Está louco? Como é que eu poderia saber? Irrompeu pela casa dentro como uma divisão de tanques russos e a primeira coisa que fez foi tirar as minhas roupas do roupeiro e atirá-las para cima de um cadeirão. Ainda tive a sorte de ela aceitar mudar-se para a suíte de hóspedes, se não, seria eu quem teria de dormir lá.

- Como? - André tentou conservar a calma, mas era impossível. - Está a dormir no meu quarto! Ponha-a de lá para fora! - A indignação do francês fez rir Sabrina, mas os seus olhos estavam de novo inundados de lágrimas.

- Não compreendo, André. - Fora um choque tremendo. - Por que razão é que o meu pai não me disse nada?

- Só Deus sabe o que se teria passado entre eles. A julgar pelo aspecto e os modos dessa mulher, trata-se de uma pessoa sem escrúpulos, e não acredito em nada do que ela lhe contou. É pena a Amélia não poder falar ao telefone.

A impaciência de André era tanta que, mesmo correndo o risco de parecer descortês, insistiu para que Sabrina voltasse a telefonar a Amélia, e desta vez teve a sorte de a chamarem ao telefone. Tinha uma rouquidão tremenda e queixava-se de dor de garganta, mas, pelo menos, conseguiu pô-la ao corrente de tudo, contando-lhe a aventura de Camille com Du Pré, que a levara a abandonar o esposo e a filha.

- Lamento que ela tenha voltado para te atormentar dessa maneira. Ela já então era uma rapariga extremamente egoísta e com muito mau coração; pelos vistos, não melhorou com a idade.

Sabrina esboçou um sorriso amargo ao ouvir as palavras da amiga.

- Não creio que em nova fosse melhor do que agora. - Então, pensou no que Amélia lhe contara sobre a fuga de Camille. - O meu pai deve ter ficado de coração destroçado.

Agora compreendia melhor a relutância de ele falar dela. Nunca recuperara do choque.

- Sim, ficou muito magoado. Mas tinha-te a ti. - Amélia sorriu, recordando aqueles tempos. - Eras a alegria da sua vida. Creio que com o passar dos anos quase chegou a esquecê-la. O Jeremiah prosseguiu a sua vida. Mas os primeiros anos... foram muito duros.

Sabrina resolveu fazer-lhe uma pergunta.

- É verdade que o meu pai tinha uma amante e que essa foi a razão de ela o ter abandonado?

- De modo nenhum! - Amélia pareceu ficar ofendida.

- O Jeremiah sempre foi fiel à Camille. Isso posso eu garantir-te. De fato, andou um bocado preocupado por demorares tanto tempo a vir ao mundo. Não queria contar-lhe a perfídia com os anéis contraceptivos e, embora se lembrasse muito bem desse assunto, não quis referi-lo a Sabrina. Segundo parece, para grande desgosto do teu pai, a Camille teve algo a ver com esse atraso, mas não vale a pena falar disso agora, minha querida. Não permitas que tudo isto te preocupe. Tens mas é que a pôr no olho da rua.

- Quem me dera! Segundo parece, temos de levar o caso a tribunal.

- É uma autêntica desgraça que te caiu em cima, minha pobre menina. - Aos quarenta e sete anos, Sabrina já não era uma menina, mas as palavras de Amélia tocaram-na profundamente. - Essa mulher merecia levar um tiro. O Jeremiah deveria ter feito isso há muito tempo. Agora não terias tantos problemas.

- Talvez. - Sabrina sorriu, grata por ter alguém com quem desabafar. - Depois, conto-lhe como é que isto tudo acabou.

- Não te esqueças. A propósito, como está o André? Ouvi dizer que vocês os dois estão a reconstruir o mundo e o vão encher de bêbados.

- Um dia destes. Sabrina riu-se da descrição que a amiga fazia dos seus planos. - E você, como vai?

- Muito bem. Só esta dor de garganta não me larga. Não penso morrer por agora, não tenhas medo.

- Ótimo. Precisamos de si.

- Mas não precisam dela. E nunca precisaram. Por isso, ponham-na a andar quanto antes.

- Amém. - Sabrina agradeceu-lhe e desligou o telefone. Voltou-se, então, para André. Não poderiam fazer nada até levarem o caso a tribunal. Entretanto, Camille continuava a dar voltas pela casa com um vestido de seda branco e brincos com uns diamantes que Sabrina suspeitava não serem verdadeiros. Sabrina olhou para André, desesperada. - Que vou eu fazer?

A perspectiva de viver com ela até que os tribunais resolvessem o caso quase dava com ela em doida. Nada melhorou quando Jon chegou, no dia seguinte. Cumprimentou Camille como uma avó há muito esperada. Sabrina foi, então, até ao quarto dele e fechou a porta atrás de si. Encontrou-o sentado na cama. O rapaz não parecia ter muita vontade de falar, mas Sabrina não lhe deu hipótese de escolha.

- Quero falar contigo, Jon.

- Sobre o quê? - Ele sabia muito bem do que ela lhe queria falar, mas dava-lhe gozo pensar na fúria em que ela devia estar. Que diabo! Porque não? A mãe nunca lhe dera aquilo que ele mais desejava: a viagem para a Europa e o carro que lhe pedia há três anos. Não fazia mais do que lamentar-se da sua pobreza e de andar de um lado para o outro da casa a gemer. Pois bem, agora a avó tirar-lhe-ia a Mansão Thurston das mãos, e assim poderia ir viver para Napa com o agricultor francês com quem andava tão atarefada a plantar vides. E ele e a avó poderiam viver esplendorosamente na Mansão Thurston. E Camille prometera-lhe comprar um carro logo que as coisas estivessem a seu gosto. Iria ver cumpridos os seus desejos, e estava impaciente de os ver transformados em realidade. Com carro próprio, o seu último ano de estudos ia ser muito divertido... partindo do princípio de que ele e Camille conseguiriam a tempo o que haviam planeado. Depois, a viagem para a Europa, o prêmio pela licenciatura, como a avó também lhe prometera... Em seguida, iria para Nova Iorque, onde encontraria um bom emprego, razão por que pouco lhe importava quem iria ficar a viver na casa. Provavelmente, nunca mais voltaria a residir nela, a não ser por curtos períodos de tempo. Considerava que São Francisco era uma patética cidade provinciana. Depois de ter passado três anos em Cambridge, estava preparado para viver em Nova Iorque, embora não desgostasse de outros lugares... Boston... Atlanta... Filadélfia... Washington...

- Quero que me dês uma explicação.

Os agradáveis pensamentos de Jon viram-se interrompidos pelo olhar fulminante da mãe. Sabrina quase tremia de raiva. Não conseguia evitar. Mas já não podia fazer-lhe nada. A avó encontrava-se já em casa, e conseguira introduzir-se nela pelos seus próprios meios. Ao princípio, quisera que Jon a deixasse entrar numa altura em que Sabrina se encontrasse fora, mas ele recusara-se a ir tão longe. Então, Camille resolvera agir por sua conta e risco. Jon sabia que ela conseguiria. Ainda era mais dura do que Sabrina, mas parecia ter muito mais em comum com o neto. Como Sabrina receava, pensavam da mesma maneira, e era precisamente sobre isso que queria falar também com Jon.

- Que papel desempenhaste nisto tudo? - O olhar era fulminante.

- Que queres dizer?

- Não te faças desentendido. A tua avó disse-me que te conhece há três anos. Por que razão nunca me disseste?

- Pensei que ficarias chateada. - E desviou o olhar. Sabrina, sem conseguir conter-se, deu-lhe uma bofetada.

- Não me mintas!

Jon levantou os olhos para ela, desconcertado. A mãe nunca o olhara daquela maneira. O olhar doeu-lhe mais do que a bofetada, mas ela nunca se sentira tão atraiçoada; quanto mais pensava nisso, mais crescia a sua indignação.

- Bolas, que te interessa quem é que eu conheço! Tenho de te contar tudo o que faço?

- Ela é a minha mãe, Jon, e tu conheceste-a há três anos. Por que razão é que a ajudaste a cometer esta infâmia?

- Não a ajudei a fazer nada. - Encolheu os ombros. - E bem vistas as coisas, talvez tenha tanto direito a possuir esta casa como tu. Disse que quando o avô morreu estava casada com ele.

-Não podias ter-me avisado? - O rapaz não respondeu. Isso fez com que Sabrina lhe gritasse: - Não podias? Sabes o que é o pior de tudo isto, Jon? O que me fizeste. Ela nunca foi uma mãe para mim, mas tu és meu filho, e não só permitiste que acontecesse esta atrocidade, como também a ajudaste a cometê-la. Não tens vergonha?

O rapaz lançou-lhe um olhar hostil, e algo começou a morrer dentro de Sabrina ao ouvi-lo responder:

- Não sinto nada.

- Então, dás-me pena.

- Não preciso nada de ti - disse Jon, enquanto a mãe saía do quarto.

Sabrina não conseguia suportar o que estava a ver no filho. Era extremamente parecido com Camille. Durante anos, não conseguira achar-lhe parecenças com ninguém. Era muito diferente do avô, do pai, dela própria, mas agora sabia donde lhe vinham os genes. Era exatamente igual a Camille, e tão infame como ela. Depois de tudo o que fizera pelo filho, recebia como prêmio a sua infidelidade. Alguma vez, nalgum lugar, algo devia ter-se entortado nele, algo que jamais voltara a endireitar-se; e agora era já demasiado tarde para corrigir o mal. Sobretudo se Camille continuasse ali a estimular-lhe os seus piores instintos. Durante os dias seguintes, viu-os a colaborar e a conspirar, a cochichar coisas ao ouvido e a sair juntos. Sabrina sentia-se completamente abandonada pelo filho. Avó e neto haviam-se conluiado contra ela. Tinha muitas coisas que fazer, mas o estado de espírito em que se encontrava não lhe permitia concentrar-se em nada. E, por outro lado, não se atrevia a deixar a casa para ir a Napa ver André e o andamento dos trabalhos. Temia que, se saísse da mansão, lhe fizessem algo pior, como roubar-lhe tudo o que pudessem ou, quiçá, mudar as fechaduras das portas para que ela não pudesse voltar a entrar em casa.

- Não pode ficar aí, aterrada, durante os próximos meses. - André estava preocupado com ela.

- Acha que isto ainda vai levar assim tanto tempo?

- Talvez. Sabe o que disse o advogado.

- Acho que dou em doida antes disso.

- Não endoideça antes de cá vir ajudar-me a tomar umas decisões relativas aos vinhedos. - Então, teve uma idéia. - Sabe uma coisa? Vou mandar o Antoine dar uma espreitadela às coisas aí em casa enquanto você estiver aqui. E quando você regressar a casa, ele poderá voltar para Napa.

Era um plano bem estudado e funcionou. Aquilo foi exatamente o que fizeram durante os dois meses seguintes. Entretanto, o advogado de Sabrina regressou e tomou conta do caso, embora dissesse que era muito pouco o que podiam fazer de momento O assunto, naturalmente, teria de resolver-se em tribunal, o que poderia levar outros dois meses. Chegou o momento de Jon ter de voltar para a universidade e, quando isso aconteceu, a frieza que existia entre mãe e filho continuava igual. O rapaz foi jantar fora com Camille na noite anterior à sua partida, e Sabrina fez o mesmo na companhia de André e Antoine. O deplorável estado das relações entre Jon e a mãe era praticamente irreparável, ao ponto de Sabrina ter a sensação de ter perdido o filho E, em certo sentido, assim acontecia. De momento, era a única coisa que Camille conseguira. Prometera a Lua ao rapaz para quando conseguissem expulsar Sabrina da casa. Jon parecia guardar rancor à mãe e, inclusive, manter desejos de vingança contra ela, pela morte do pai e pela decisão de Sabrina dirigir pessoalmente as minas. Ele nunca lhe perdoaria essas coisas, e fá-la-ia pagar pelo resto da vida. Um dia, falou disso a André enquanto passeavam pelos vinhedos.

- Devo ter falhado com ele. Se o pai não tivesse morrido, eu não teria voltado a trabalhar. Eu não trabalhava a tempo inteiro, mas suponho que ele queria mais do que aquilo que eu podia dar-lhe.

- Talvez seja um eterno insatisfeito. Não se pode fazer nada para compensar esse tipo de pessoas.

- Gostaria de resgatá-lo das mãos de Camille. Ainda não viu aquilo que ela é, mas tenho a certeza de que isso acontecerá. Então, sofrerá uma grande desilusão.

André achava que o rapaz merecia sofrer essa desilusão pela sua perfídia. Não prestava como pessoa. André não gostava do rapaz, mas nunca diria a Sabrina. Era o seu único filho e, apesar da dor que lhe ia na alma, continuava a amá-lo. Era seu filho. Antoine também a tentava confortar. Consciente daquilo por que Sabrina estava a passar, mostrava-se extremamente amável e atencioso com ela. De vez em quando, trazia-lhe flores, cestos de fruta e outros pequenos presentes. Aquelas atenções significavam muito para ela, e sempre que as recebia contava a André, elogiando o caráter do filho. O homem ficava orgulhoso, e Sabrina invejava a amizade existente entre pai e filho. Esperava que, daí a alguns anos, quando Jon tivesse a mesma idade que Antoine, estivesse mais maduro e se aproximasse mais dela. Todavia, algo lhe dizia que aqueles sonhos não chegariam a transformar-se em realidade. Sempre que se sentia invadida por semelhantes pensamentos, orientava a sua mente para os vinhedos que estava a criar com André e para a ação que tinha em tribunal contra Camille. Sabia que a data da audiência estava próxima, o que não parecia apoquentá-la. Continuava a jogar bem as suas cartas. Quando faltava apenas uma semana para a audiência, bateu à porta da suíte de Sabrina. Era dia nove de dezembro e deviam comparecer perante o tribunal no dia dezesseis do mesmo mês,

- Sim?

Sabrina tinha o robe vestido e os pés descalços. Ainda não acreditava no que Camille lhe fizera. Há mais de cinco meses que aquela mulher residia na mansão. A vida de Sabrina era um interminável pesadelo do qual parecia nunca mais acordar. Camille andava sempre por perto, deambulando pela mansão como se fosse a dona. Muitas vezes punha os seus vestidos baratos e as peles velhas e ia pavonear-se pela cidade. De vez em quando, desaparecia um objeto valioso da casa, e Camille garantia que nada tinha a ver com isso, mas Sabrina sabia que não era verdade. Todavia, não podia evitar aqueles furtos, pois era-lhe impossível vigiá-la continuamente. Além disso, tal como confidenciara a André há algum tempo, Camille tentara reclamar as suas jóias, mas Sabrina não lhe dera ouvidos. Por uma ironia do destino, tinha de tolerar a presença daquela mulher em sua casa, mas era a única coisa que lhe permitia. E quando começaram a chegar faturas de Camille e Jon, negou-se a pagá-las. Ambos pareciam tentar tudo o que podiam para a arruinar, o que teriam conseguido se Sabrina tivesse pago a montanha de faturas referentes a coisas que compravam em seu nome. Deixou que as faturas se acumulassem e depois enviou-as por correio para Jon, que se encontrava na universidade. Já tinha vinte e um anos e, tal como Sabrina lhe dissera, se ele queria viver daquela maneira, teria de tomar a responsabilidade de todos os gastos. Mas a avó asseverara-lhe que ela própria se responsabilizaria por tudo logo que pusesse Sabrina fora da mansão, e, na sua opinião, já não faltava muito para isso. E também deixou que as faturas de Jon se acumulassem. Havia centenas delas, todas por pagar, em cima da secretária de Jon. Iria dá-las à avó quando voltasse a vê-la, tal como fazia com a mãe, noutros tempos, quando regressava a casa. Esses dias, porém, já faziam parte do passado, como a mãe lhe dizia constantemente. Graças a Deus, não tinha de a escutar com muita freqüência, pois encontrava-se a quase cinco mil quilômetros de distância. Mas Camille e Sabrina encontravam-se a apenas um metro de distância uma da outra quando esta última abriu a porta do quarto

- Que quer?

- Pensei que talvez pudéssemos falar.

Quando tinha um plano em mente, Camille costumava expressar-se num tom marcadamente sulista. E o que mais repugnava a Sabrina era a hipótese de continuar a pensar naquela voz durante o resto da sua vida... e a preocupação de poder parecer-se em algo a Camille ou comportar-se como ela... um simples gesto em comum teria sido repugnante O que não podia evitar era que Jon se parecesse tanto com a avó. Todavia, nada disso se manifestava agora no seu olhar.

- Falar? De quê? Não tenho nada para lhe dizer.

- Não preferias falar em vez de ir para os tribunais?

- Não necessariamente - respondeu Sabrina num tom frio. Cada vez estava mais convencida de que iria desmascará-la. O seu advogado dissera-lhe que quanto mais refletia sobre o caso, mais longe estavam as possibilidades de Camille ganhar. O testamento de Jeremiah excluía-a sem mencionar o seu nome. «quaisquer pessoas com quem possa ter casado.» Sabrina recordava-se que aquela cláusula lhe parecera estranha quando da leitura do testamento, mas estava tão transtornada nessa altura que não procurara esclarecer o assunto. Tinha todas as probabilidades de ganhar, mas a questão tinha de ser esgrimida em tribunal, por melhores que fossem as perspectivas. A não ser, claro, que Camille desistisse, coisa muito pouco provável depois de ter-se agarrado durante tanto tempo ao que considerava seu. - Não me importa ir para os tribunais. - Camille olhou-a com um sorriso nos lábios.

- Não quero tirar-te a mansão, minha filha.

Sabrina teve vontade de a esbofetear e de lhe bater com a cabeça no chão. Era possível que depois de a ter torturado quase seis meses, invadindo a sua vida e fazendo os possíveis por lhe roubar o filho, dissesse que não queria tirar-lhe a mansão? E atrevera-se a chamar-lhe «filha».

- Estou quase com cinqüenta anos, e não sou sua filha. Nunca o fui. Não tenho nada a ver consigo. Mete-me nojo. E, se dependesse de mim, punha-a a pontapé na rua agora mesmo.

- Partirei esta semana... - A voz era um insidioso sussurro - ...se me pagares o preço da minha renúncia.

Sem dizer palavra, Sabrina fechou-lhe a porta na cara.

Para André, era torturante ter de assistir ao sofrimento de Sabrina sem poder fazer nada. A dezesseis de dezembro, assistiu ao julgamento na companhia dela e, pela primeira vez, Camille estava com ar pálido e assustado. Fora longe demais, e deu-se conta disso quando tentou lisonjear o juiz, que ficou chocado tanto com a sua versão dos fatos como com o seu descaramento de se instalar na Mansão Thurston, atormentando Sabrina durante tanto tempo, depois de a ter abandonado quando ainda era criança. Amélia fizera um depoimento em Nova Iorque. Apesar da sua idade, tinha uma memória excelente, e descrevera com perfeita coerência os acontecimentos relacionados com o caso que haviam tido lugar uns quarenta e seis anos antes. Camille quase estremeceu ao olhar ao seu redor, na sala de audiências. Estava só, e comportara-se como uma louca. Nunca imaginara que as coisas chegassem tão longe. Sempre pensara que Sabrina lhe daria dinheiro para se livrar dela, e agora falava-se que tinha de pagar uma indenização à filha por perdas e danos e uma renda relativa aos seis meses de ocupação ilícita da mansão. Também vieram à baila as elevadas faturas, tanto dela como de Jon, que havia por pagar. E, quando tudo terminou, teve de dar graças a Deus por ter recebido apenas uma forte reprimenda do juiz. Este ameaçara mandá-la para a cadeia, e deu-lhe exatamente uma hora para, sob a vigilância de um ajudante do xerife, fazer as malas e sair da Mansão Thurston.

Sabrina nem queria acreditar que o pesadelo chegara ao fim. E, enquanto Camille descia a escadaria principal pela última vez, observou-a sob a suntuosa cúpula de vitrais. Não havia ódio nos olhos de Sabrina. Não havia absolutamente nada. Perdera demasiado durante aqueles últimos seis meses para sentir algo por Camille naquele momento. Perdera a paz de espírito e, pior ainda, o seu filho.

- Pensei que, depois de tudo terminado, poderíamos ser amigas - disse Camille com voz nervosa e hesitante. Brincara com o fogo e queimara-se E agora tinha de voltar para Atlanta com o rabo entre as pernas. Ver-se-ia obrigada a viver de novo com o jovem Hubert. Nunca pensara que voltasse a precisar dele, mas enganara-se

Falando com voz suficientemente forte e clara, de modo que o ajudante do xerife também pudesse ouvir, Sabrina disse para Camille.

- Não quero vê-la nem ouvi-la nunca mais. E, se voltar a importunar-me, chamarei a Polícia e comunicarei ao tribunal. Entendido? - Camille fez um mudo gesto afirmativo com a cabeça. - E mantenha-se afastada do meu filho.

Sabrina perdera aquela batalha. Pôde comprová-lo, no dia seguinte, quando, depois de ter recuperado a lucidez e tranqüilidade, telefonou a Jon e este lhe respondeu que não iria passar o Natal em casa. Estava a pensar apanhar o comboio para o Oeste no dia dezoito. Ia para Atlanta. O tom de voz era acusador.

- Ontem, falei com a avó. Disse que subornaste o juiz. Sabrina ficou perplexa. E, pela primeira vez desde que o juiz ordenara a Camille que abandonasse a mansão, os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas. Seria possível que Jon nunca viesse a compreendê-la e que continuasse a odiá-la até ao fim da vida, e que fosse tão parecido com a avó.

- Jon, não fiz tal coisa. - Esforçou-se por conservar a calma. - Nem sequer creio que o tivesse podido fazer. O juiz era um homem honesto, e viu bem o tipo de pessoa que ela é.

- Ela é apenas uma velhota à procura de um lugar onde possa viver. Sabe Deus para onde é que irá agora.

- Onde é que estava antes?

- Em casa de um sobrinho, a viver da caridade das pessoas. Agora, não terá outro remédio senão voltar para lá.

- Esse é um problema dela.

- E tu estás-te nas tintas.

- Pois estou. Lembra-te de que ela tentou tirar-me esta mansão, Jon!

Porém, o filho negou-se a compreendê-la. E não parou de lhe chamar pega.

Nessa noite, Sabrina pôde, finalmente, descansar na cama, sozinha na casa que, novamente, voltava a ser sua. Mas tinha a perfeita consciência de que, depois de tudo, não ganhara. Camille Beauchamp Thurston é que ganhara: roubara-lhe Jon.

 

Esse Natal, sem Jon, teria sido desoladoramente solitário para Sabrina se não tivesse contado com a companhia de Antoine e André. Não a deixaram ficar sozinha. Apareceram na Mansão Thurston com um abeto e ponche de ovo que Antoine preparara, e brincaram com ela, fazendo os possíveis para a animar. Depois, foram à missa do galo e entoaram cânticos de Natal, enquanto as lágrimas corriam pelas faces de Sabrina. Os três formavam um grupo alegre e Sabrina estava-lhes grata por isso. Sem os dois homens, teria ficado sozinha em casa, a chorar e a pensar no sofrimento que Camille lhe fizera passar, mas, com os dois franceses ao seu lado, foi-lhe impossível ter um só instante de depressão. No dia de Natal, o seu estado de espírito melhorara muito, e Antoine regressou a Napa para voltar a reunir-se aos seus Mas André ficou com Sabrina para poderem ir juntos ao banco no dia seguinte. Embora estivesse tudo a correr bem, queriam pedir outro empréstimo para comprar o equipamento de que necessitavam. André mostrava grande habilidade e acerto na forma de conduzir as coisas. Nessa altura, já haviam limpo os terrenos.

- Até a minha selva me parece agora maravilhosa - gracejou Sabrina. - Já nem a reconhecia.

- Espere até provar o nosso vinho.

- André levara uma garrafa de Moet & Chandon. Quando Antoine saiu, sentaram-se ambos a contemplar em silêncio a árvore de Natal. André voltou-se, então, para Sabrina com o olhar transbordante de admiração. Sofrera imenso nesse ano. Mas, como Amélia lhe dissera há muito tempo, era uma mulher de uma fibra incrível. Extraordinária. Amável e afetuosa, mas mais forte do que qualquer outra mulher que conhecera. Talvez até mais do que Amélia. Esta era como Sabrina desejaria que fosse a sua mãe. Mas já não podia iludir-se. Sabia exatamente como era a mãe. Uma cadela, uma pega, que tentara despojá-la desonestamente de tudo o que tinha. Inclusive, antes de abandonar a mansão, roubara-lhe um pequeno quadro, escondendo-o numa das malas. Sabrina sentiu uma enorme sensação de alívio ao ver-se livre dela.

- Foi um ano impressionante, não acha? - perguntou Sabrina, com os olhos fixos na árvore.

- Se foi! - André riu-se dos termos que ela utilizou e da sua expressão de surpresa, mas Sabrina sorriu.

- Para mim, foi bom e foi mau. Você e Antoine foram os melhores presentes que eu podia ter. - André oferecera-lhe uma bonita camisola de caxemira vermelha e um chapéu a condizer. Sabrina comprara-lhe um casaco e um par de luvas. - Não foi mau de todo.

- Claro que não.

Porém, ambos sabiam que ela estava triste por causa de Jon. Embora Sabrina falasse pouco dele, era-lhe impossível esconder a tristeza que lhe ia na alma. Sendo algo demasiado penoso para fazer disso objeto de conversa naquele momento, optou por dissimular a sua dor gracejando com André.

No dia seguinte, depois da reunião no banco, partiram juntos para Napa, onde Sabrina passou o resto da semana. Já não tinha medo de deixar a Mansão Thurston sem vigilância. Mandara mudar as fechaduras no mesmo dia em que Camille partira, e nem sequer Jon tinha ainda as novas chaves. Sabrina dispunha agora dos seus próprios aposentos na casa de campo que André alugara oito meses antes. Ele e Antoine estavam já a planejar a construção da sua outra casa, mas, de momento, alojavam-se todos na única que tinham, o que não desagradava a Sabrina. Os homens demonstravam-lhe grande afeto, e ela começava já a arranhar o francês com eles.

Depois do dia de Ano Novo, André levou-a de novo para a Mansão Thurston. Atravessaram a Bay Bridge, subiram a Broadway Street, cortaram, então, para sul, para a Califórnia Street, depois, à direita, para a Taylor Street, chegando, finalmente, a Nob Hill. André estacionou o carro em frente da Mansão Thurston e levou as malas para dentro. Queria ficar um ou dois dias na cidade a trabalhar com Sabrina. Antoine podia tomar conta das coisas em Napa. Nessa noite, passaram várias horas na biblioteca a tratar de papelada. Partilhavam a responsabilidade do negócio e, de certo modo, aquela tarefa trouxe à lembrança de Sabrina os velhos tempos nas minas, depois da morte do pai. Ao referir isso a André, este disse-lhe:

- Deve ter sido uma época muito difícil para si.

- Se foi! - Sorriu. - Mas aprendi muito.

- Já me dei conta disso. Mas não se pode dizer que tenha sido uma maneira agradável de aprender.

- Talvez não estivesse destinada a aprender as coisas da maneira mais fácil.

Sabrina voltou a pensar em Camille e Jon e na decepção que lhe haviam causado. André mirou-a nos olhos e fez-lhe uma pergunta inesperada, sobre algo em que andava a matutar há muito tempo. Há já dez meses que eram bons amigos, mas nunca haviam falado de certas coisas. Sabrina raramente falava de John Harte, e eram poucas as vezes que André lhe falava da esposa. Ela morrera quando Antoine tinha apenas cinco anos, e este vivera sem companhia feminina durante muito tempo. Nos seus últimos tempos em França, apaixonara-se por uma mulher, mas agora tudo terminara. Numa carta recente, ficara a saber que ela se inclinara para outro homem. Mas a notícia não o deixou de coração destroçado. Já temia isso quando, ao deixar a França, ela não o quisera acompanhar até à América. Agora interessava-lhe muito mais a vida de Sabrina, e já tinha à-vontade suficiente para perguntar.

- Como era o seu marido? - Sabrina sorriu para o amigo.

- Maravilhoso. - E deixou escapar uma gargalhada. - Para dizer a verdade, ao princípio, não nutríamos muita simpatia um pelo outro. Ele andava sempre a tentar convencer-me a vender-lhe as minas. Era o dono de outra mina rival. - André riu-se ao imaginar as faíscas que isso devia ter provocado. - Mas acabamos... - Esboçou um sorriso nostálgico. - Acabamos por chegar a acordo. - O rosto retomou o ar sério. - Mas nunca permiti que fundíssemos as nossas minas, nem sequer nos últimos anos. Mas depois tive pena de não o fazer. Passou um mau bocado. E para quê? Depois da sua morte, acabei por as fundir. Foi uma estupidez não o ter feito antes.

- Por que razão não o fez?

- Julgo que queria provar-lhe algo: que era independente e não uma parte do meu marido. Ele fez-me a vontade e manteve as coisas como eu queria, mesmo sabendo que daquela maneira tudo ficava mais complicado. Tinha muita paciência. - Fitou André nos olhos. - O que então aprendi com ele permitiu-me ser agora uma melhor sócia sua.

- É uma mulher maravilhosa - disse ele, sorrindo, e depois fez uma careta. - Exceto a cozinhar e a falar francês!

- Como pode dizer uma coisa dessas? - Pôs-se a rir. - Na semana passada, fiz um omelete.

Era uma da manhã, e não se fartavam de rir, na biblioteca, apesar do cansaço que sentiam, unidos num ambiente de perfeita harmonia.

- E viu a indisposição que nos arranjou? - André adorava provocá-la, e puxou-lhe uma das tranças. Aos seus olhos, ela parecia muito mais jovem do que era. Quem não a conhecesse bem dar-lhe-ia menos uma dúzia de anos. - Parece uma índia. - Aquelas palavras fizeram com que Sabrina se recordasse de Lua da Primavera. E falou do fascínio que a rapariga índia lhe despertava e contou-lhe que ela a salvara de ter sido violada por Dan. - Não levou uma vida muito aborrecida. Não acha que o negócio dos vinhedos é demasiado calmo para si?

- É a melhor coisa a que posso dedicar-me neste momento. Julgo que não conseguiria voltar a suportar a intranqüilidade e os problemas daqueles tempos. Um dia, mais de trezentos homens despediram-se das minhas minas. Não queria voltar a passar por tudo isso.

- E não voltará. A partir de agora, a sua vida não poderá ser mais tranqüila. Prometo. - Sabrina esboçou um sorriso triste ao pensar que aquela paz era bem merecida.

- Oxalá a sua promessa se possa estender a todos nós - disse ela, pensando em Jon. - E você, André? Que mais pode desejar da vida que termos êxito com os vinhos? - Deu-lhe um beliscão na orelha e André voltou a puxar-lhe a trança.

- A coisa não é tão fácil para mim, ma vieille... Que mais desejo da vida? - O semblante tomou um ar sério. Tinha uma boa resposta para aquela pergunta, mas não se atreveu a expressá-la. - Não sei. Suponho que tenho tudo o que desejo. Aqui, só me falta uma coisa. - Aquelas palavras surpreenderam Sabrina. Parecia tão satisfeito.

- O que lhe falta?

- Companhia. Preciso de alguém com quem compartilhar a vida, além do Antoine, porque sei que não vou tê-lo sempre a meu lado. O natural é que um dia vá para o seu próprio lugar. Não sente também essa necessidade? - Há muito tempo que André estava só, há quase um ano. Sabrina já levava muito tempo de solidão, mas já se acostumara a ela. Desde John, não houvera outro homem na sua vida. Já referira isso a André noutra ocasião. Este achou notável, mas não o surpreendeu. Agora, conheciam-se bastante bem, e teria sabido se havia alguém na vida de Sabrina. - Como conseguiu ficar só durante tanto tempo? - Aquele fato impressionara-o. Dois anos depois da morte da sua esposa, tivera uma aventura séria, seguida de outras menos sérias e duradouras. Estava acostumado a ter uma mulher na sua vida, e agora era essa falta que sentia. - É possível que não ache a sua solidão insuportável? - perguntou André, intrigado.

Sabrina deixou-se rir.

- Não. A solidão, às vezes, é agradável. Também há momentos de desamparo, não o nego, mas basta não nos deixarmos arrastar e pormo-nos a pensar noutra coisa. É como ser freira - gracejou.

- Que desperdício. - André olhou-a com o seu ar tipicamente francês e riram-se. - Não estou a brincar. Você é uma mulher encantadora, Sabrina, e ainda é jovem.

- Eu não diria tanto, meu amigo. Faço quarenta e oito em maio. Não sou propriamente uma rapariguinha.

- Está na primavera da vida.

- Agora já sei que está louco, André.

- De modo nenhum!

A mulher com quem estivera envolvido em França era mais velha e muito menos bonita do que ela. Sabrina teria sido um presente requintado para qualquer homem. Era uma mulher muito especial e André tinha consciência disso. Nunca se teria aproximado dela apenas para se divertir. Sabrina significava muito mais para ele. Eram duas da manhã quando se separaram, e encontraram-se de novo ao pequeno-almoço, bem vestidos, com o aspecto de homem e mulher de negócios. Mas, desde a conversa mantida na noite anterior, sentiam-se mais unidos, Sabrina, mais à vontade para lhe falar de John, e ele de algumas das suas amizades femininas. Era como se estivessem a sondar-se. Inesperadamente, André disse-lhe que resolvera não regressar a Napa na quinta-feira, como previra e, em vez disso, convidou-a para jantar fora.

- Há algo para celebrar? - perguntou Sabrina, surpreendida. Estava fatigada. Fora uma semana muito longa, e ainda perdurava o cansaço do julgamento, que tivera lugar no mês anterior. Ficara praticamente de rastos, e pouco saíra desde então. Talvez lhe fizesse bem, pensou.

- Por acaso não podemos ir jantar fora pelo simples prazer de o fazer?

- Tem razão, André. - A idéia agradara-lhe. Retirou-se, então, para os seus aposentos, para se vestir. Quando, pouco depois, voltaram a encontrar-se ao fundo das escadas, sob a cúpula, Sabrina exibia um vestido negro que André nunca lhe vira.

- Está muito elegante, madame - gracejou André, enquanto a Sabrina não passou despercebida a beleza do francês. Haviam-se acostumado tanto um ao outro dentro de um trato simplesmente amistoso, que Sabrina poucas vezes reparava na beleza de André, mas, nessa noite, sentia-se extremamente feminina e atraente.

André levou-a no seu carro até ao restaurante e tomaram um aperitivo no bar. Pouco depois das oito, sentaram-se à mesa. Passaram um bom bocado. Ele, a contar coisas da sua vida em França; ela, a falar-lhe de pormenores da sua vida nas minas, assim como de si mesma. Depois, regressaram à Mansão Thurston. Mas, nessa noite, ela convidou-o para a sua sala de estar privada. Habitualmente, reuniam-se na biblioteca, mas aquela sala era mais confortável e mais íntima. Sabrina pôs lenha na lareira e acendeu-a antes de André ir buscar algo para beber. André encheu dois cálices de conhaque e beberam-no diante da lareira, com os olhos fixos no brilho das brasas. De repente, Sabrina voltou-se para ele.

- Obrigada por esta noite maravilhosa, André... obrigada por tudo. Você tem sido muito bom comigo. E esta saída fez-me muito bem.

André ficou sensibilizado com o que ouvira e, esticando o braço, acariciou-lhe a mão com os dedos.

- Faria qualquer coisa por si, Sabrina. Espero que saiba.

- Já fez.

Então, como se ambos tivessem estado à espera disso, André inclinou-se e beijou-a nos lábios. Nenhum dos dois pareceu surpreendido. Acharam o fato natural... e assim continuaram, sentados lado a lado, de mãos dadas, a beijarem-se, junto à lareira. Então, ao fim de alguns instantes, esboçou um sorriso terno.

- Parecemos um par de miúdos.

- E não somos? - E sorriu

- Não sei.

André apagou com um beijo as palavras de Sabrina, e esta sentiu surgir de dentro de si um desejo por aquele homem que até então não sabia existir no seu intimo. Tomou-a nos braços e, de imediato, deitaram-se no chão, diante da lareira André sentiu o seu corpo aquecer e as mãos começaram a percorrer a pele de Sabrina, que ficou surpreendida consigo própria por não se opor ao comportamento do amigo. Era como se ambos já estivessem à espera do que estava a acontecer. André esboçou, então, um sorriso confiante.

- Acha que devo continuar? - sussurrou-lhe André ao ouvido. Não queria fazer nada de que ambos se arrependessem mais tarde. Aquela mulher significava demasiado para ele, tanto como amiga como ser humano.

- Não sei - respondeu Sabrina, com um sorriso. - Que estamos a fazer aqui?

- Acho que estou apaixonado por si.

Sabrina não ficou surpreendida ao ouvir aquelas palavras. Deu-se conta de que estava apaixonada por André há já muito tempo, talvez desde o dia em que se tinham conhecido. Haviam construído algo de muito belo juntos, com os seus corações e as suas mãos, com grande empenho, e ele trouxera-a de novo à vida. O que estava agora a acontecer mais não era do que a continuação de tudo isso. Sabrina encolheu-se, então, entre os braços de André, que a levou para a cama, onde fizeram amor como se fosse algo natural entre eles. Finalmente, caíram nos braços um do outro, sonolentos, enquanto André lhe acariciava os cabelos sedosos com as pontas dos dedos e adormecia com os lábios colados aos dela.

Quando acordaram, no dia seguinte, André ficou aliviado ao ver que não havia qualquer ponta de arrependimento nos olhos de Sabrina. Beijou-a, então, nos olhos, nos lábios e na ponta do nariz, enquanto ela não parava de rir... e voltaram a fazer amor. Era quase como uma lua-de-mel. Sabrina não conseguia imaginar como tudo acontecera com tanta facilidade. Há quase vinte anos que não fazia amor com nenhum homem e, todavia, ali estava, radiante de felicidade, ao lado de André, que se mostrava louco por ela. De repente, inundou-a com o seu amor.

- O que é que nos aconteceu? - perguntou ela, com olhar sonolento, depois de ter voltado a fazer amor. Era sábado e, portanto, não tinham de ir a lado nenhum. Estavam sós e apaixonados.

- Deve ter sido de alguma coisa que comemos ontem à noite...

- Talvez o champanhe... temos de fazer o nosso como esse.

Então, com um sorriso nos lábios, adormeceu de novo. Acordou ao meio-dia, precisamente no momento em que ele entrava no quarto com uma bandeja cheia de comida.

- Isto é para que conserves as forças, meu amor - disse André. E bem precisou delas quando, mal acabaram o pequeno-almoço, ele a atacou de novo.

- Meu Deus, André! - Riu, feliz e satisfeita. - És sempre assim?

- Não - respondeu ele, com ar sério, enquanto voltava a encostar-se a ela. Estava insaciável. Era como se tivesse libertado todas as energias acumuladas de um ano. - Operaste em mim algo de maravilhoso.

- Posso devolver-te o cumprimento?

Dormiram e fizeram amor durante toda a tarde. Finalmente, às seis horas, levantaram-se, tomaram banho e vestiram-se para sair. Desta vez, iam ao Bal Tabaria na Columbus Avenue. Realmente era como uma lua-de-mel.

- Como é que isto nos aconteceu? - perguntou Sabrina, sorrindo por cima das sobremesas e de uma garrafa de champanhe.

- Não sei. - André fitou-a com ar sério. - Seja como for, merecemos, meu amor. Este ano trabalhamos muito.

- Que bela recompensa!

André pensou o mesmo quando, nessa noite, voltaram a fazer amor. Desta vez, havia lume na lareira do quarto de Sabrina. Era o quarto onde nascera Jon há quase vinte e dois anos, mas agora não pensava nisso. Pensava em André, em cujos braços dormiu profundamente até pouco depois do amanhecer. Olharam, então, um para o outro, para voltarem a adormecer de seguida, e fizeram novamente amor das duas vezes seguintes que acordaram. Então, André olhou-a com ar pensativo. Já havia pensado nisso no dia anterior, mas esquecera-se.

- Seria uma grosseria da minha parte se te perguntasse se tomas precauções para não engravidar, meu amor? - André deu-se conta de que durante aqueles dois dias não tomara nenhuma precaução. - Todavia, Sabrina não se mostrou preocupada.

- A próxima vez que correr o perigo de ficar grávida já terei oitenta anos. Não engravido com facilidade. Levei dois anos de cada vez que engravidei antes. Sou a mulher menos perigosa neste aspecto. E, agora, na minha idade, talvez me custe mais.

- Pelo menos, fico mais descansado. Mas tens a certeza de que é assim como dizes?

- Estou a falar a sério. De momento, não posso engravidar. Ainda não estava na menopausa, mas, no ano anterior, já tivera alguns sinais de que estava próxima.

- Não podes ter a certeza disso.

- Farei qualquer coisa na semana que vem. Entretanto...

André deixou de se preocupar e, ao chegar a noite de domingo, sentiam-se tão felizes que resolveram passar outra noite na Mansão Thurston antes de voltarem para Napa. Nenhum dos dois estava ansioso por acabar com aquela súbita lua-de-mel. Em dois dias, as suas vidas tinham dado uma volta completa, e nenhum deles lamentava o que haviam feito. Esse fato acrescentara uma nova dimensão à sua existência. No dia seguinte, quando regressaram a Napa, Sabrina, com os seus longos cabelos sobre as costas, os olhos tão brilhantes como os de uma rapariguinha, desatou a rir. Envergava a camisola de caxemira vermelha que ele lhe oferecera e calças de flanela cinzentas.

- Que faremos agora em Napa? Os homens vão ficar surpreendidos. - Ao fim e ao cabo, eles não tinham nada com isso. E, quanto a Antoine, Sabrina achava que ele não devia saber, pelo menos de momento.

- Parece que tenho de construir a minha casa quanto antes. Amanhã mesmo telefono ao arquiteto!

E riram-se. Nessa noite, André foi em bicos dos pés até ao quarto de Sabrina, e regressou do mesmo modo para o seu quarto ao amanhecer, com um sorriso de felicidade estampado no rosto. Tinha cinqüenta e cinco anos, e nunca fora tão feliz na vida como agora.

 

Durante as duas semanas seguintes, não pararam de andar em bicos dos pés de um quarto para o outro, e foram à cidade, pelo menos, uma vez por semana. Sabrina passava a maior parte do tempo na companhia de André e Antoine. André e Sabrina olhavam-se agora de maneira muito diferente. Havia um código secreto só entendido pelos dois, embora Sabrina já tivesse apanhado uma vez Antoine a olhar para eles e a voltar-se rapidamente para não dar a sensação de estar a meter-se em assuntos que não eram contas do seu rosário. Mais tarde, pareceu-lhe também que o rapaz os observava de sorriso nos lábios.

- Achas que ele sabe? - perguntou Sabrina, certa noite, enquanto sussurravam na cama dela, na casa de campo de Napa. André já fora falar com o arquiteto. A construção da nova casa teria início nessa Primavera. Portanto, teriam de continuar em bicos dos pés de um quarto para o outro durante mais algum tempo, até a casa ficar pronta.

- Não sei - respondeu André, enquanto lhe acariciava a cara ao luar. Nunca amara nenhuma mulher como Sabrina, e esta sentia por ele algo que nunca sentira por ninguém, nem mesmo por John. Então era muito mais nova e o seu amor não era tão profundo como agora. - Estou convencido de que, se ele soubesse, ficaria contente. Ontem estive quase a dizer-lhe.

Sabrina assentiu com a cabeça. Não se imaginava a dizer a mesma coisa a Jon. Ele já a acusara de ter relações íntimas com André há muito tempo atrás, e não queria dar-lhe razão, embora não tivesse havido outro homem na sua vida desde a morte de John. Mas sabia que ele não entenderia. Há um mês que não tinha notícias dele, nem de Camille, que regressara a Atlanta, mas Sabrina nem queria ouvir falar dela. E centrou de novo o seu pensamento em Antoine.

- Achas mesmo que ele não ficaria aborrecido? - Era tão diferente de Jon, e ela gostava tanto dele.

André sorriu.

- Por que razão é que iria ficar aborrecido? Pelo contrário, ficaria encantado.

Sabrina também presumia que sim. Nesses dias, mostrava-se extraordinariamente amável com os dois, e ajudava-os nos terrenos quando trabalhavam juntos, coisa que Sabrina via com agrado. E foi precisamente quando se encontrava acompanhada de Antoine nos vinhedos, algumas semanas depois, que, após passar um dia inteiro ao sol, cambaleou e caiu nos braços do rapaz, quase desfalecida. Este apressou-se a fazer uma compressa fria com o lenço e a água de um cantil que trazia consigo.

- Devia andar com um chapéu. - Antoine repreendeu-a como se fosse uma menina. Na realidade, Sabrina encontrava-se muito mal. Tudo parecia bambolear à sua volta e sentia um peso no estômago, mas conseguiu controlar-se e voltar para casa, em passo lento, pouco depois.

- Antoine... não diga nada disso ao seu pai... por favor.

Sabrina olhou-o com ar suplicante, mas ele franziu o sobrolho.

- Por que razão? Eu acho que ele deve saber, não acha?

Então, de repente, temeu pela vida dela. A mãe morrera de cancro quando ele tinha cinco anos. Ainda a recordava, do mesmo modo que não se esquecera da tristeza do pai. Olhou para Sabrina com olhos preocupados. - Não conto ao meu pai, se me prometer ir ao médico imediatamente.

Sabrina pareceu hesitar, mas Antoine insistiu, pegando-lhe num braço, impulsionado por aquelas remotas recordações, e, com olhar severo, disse-lhe:

- Estou a falar a sério, Sabrina. Caso contrário, digo-lhe já.

- Eu estou bem, eu estou bem. Isto foi do sol.

Mas Antoine não achava que ela estivesse bem, e reparou que, nos dias seguintes, comeu muito pouco. Voltou a perguntar-lhe se pensava ir ao médico, e ela ia dar-lhe uma desculpa qualquer, mas ele não iria permitir.

- Estou bem.

- Isso é que não está. - Antoine quase lhe gritara, mas aquela discussão nada tinha a ver com as que costumava ter com Jon. Era óbvio que ele estava preocupado com ela, o que a deixou extremamente sensibilizada. A preocupação do rapaz confirmou-se quando, pouco depois, por volta do meio-dia, Sabrina esteve prestes a sofrer novo desmaio. Antoine quase a levou de rastos para casa. Felizmente, André encontrava-se no escritório do arquiteto.

- Bem, telefona você ou telefono eu ao médico.

- Por amor de Deus... - Sabrina ficou algo desconcertada, mas Antoine estava disposto a levar a sua avante. Colocou-se junto ao telefone e olhou-a com ar ameaçador. Sabrina acabou por desatar a rir. - Ainda bem que não é meu filho, Antoine. Não teria a mínima chance contra si. - Mas Sabrina estava apenas a provocá-lo. Lançou-lhe um olhar de agradecimento e encaminhou-se para o telefone. Era bom saber que o rapaz se preocupava tanto com ela, além do pai. Telefonou ao médico e marcou a consulta para o dia seguinte. - E sabe o que o médico me vai dizer?

- Sei. - Antoine parecia intransigente. - Que trabalha demasiado. Deveria seguir o exemplo do meu pai. Também trabalha muito, mas dorme a sesta todos os dias. - Era um hábito que André trouxera de França La sieste, graças à qual se mantinha jovem e são.

- Não tenho paciência para isso

- Mas deveria dormir. - Antoine ficou satisfeito por ela ir ao médico. Pelo menos, já conseguira que ela fizesse qualquer coisa. - Quer que a leve à cidade amanhã?

- Não, não é preciso. Tenho outras coisas para fazer. - Sabrina não queria dar demasiada importância ao fato, para que André não ficasse curioso por saber o que se passava.

- Depois conta-me o que o médico lhe disser?- Sabrina voltou a ver a mesma expressão de medo nos olhos de Antoine. Parecia um miúdo. Sabrina aproximou-se dele e olhou-o nos olhos. Era muito mais alto do que ela. E, com ar protetor, asseverou-lhe:

- Não será nada de mal, Antoine. Estou de perfeita saúde e garanto-lhe que me sinto ótima. Suponho que tudo se deveu aos nervos que apanhei com o aparecimento da minha mãe, o julgamento e... - Ambos sabiam que ia acrescentar Jonathan à lista. - Julgo que tudo isso me esgotou, e agora estou a pagar as conseqüências.

- Fiquei tão triste com tudo aquilo que lhe fizeram. - Antoine fitava-a como se ela fosse sua mãe.

- Também eu. Mas, pelo menos, serviu para aclarar a situação de uma vez por todas. - Sabrina continuava a sentir que perdera o filho. Vira uma faceta dele que nunca mais esqueceria. - E agora, quero que deixe de se preocupar comigo. Prometo que lhe digo tudo o que o médico disser.

Todavia, no dia seguinte, no consultório do médico, viu que não poderia cumprir a promessa feita a Antoine. Sentada, de olhar fixo no médico, com a incredulidade estampada no rosto.

- Não pode ser... é impossível... a última vez levou... Pensei que agora... - Estava de olhos pregados no médico. Era inacreditável.

- É verdade, Sabrina. O teste não mente. Pelo menos, quando dá positivo. E deu. Você está grávida, minha querida.

- Mas não é possível. O ano passado, entrei na menopausa. Nunca mais tive o período desde aí... - Contou pelos dedos e olhou para o médico com cara de espanto. - Oh, não... - O médico tinha razão. Estava grávida de dois meses. Na realidade, não associara aquele fato a André. A felicidade que sentira nesses dias contribuíra para que não se preocupasse com o que pudesse vir a acontecer. - Nunca pensei... meu Deus, se não tivesse quase desmaiado o outro dia nos terrenos... Talvez tivesse demorado vários meses a inteirar-se do seu estado. - E, no entanto, continuava a não acreditar que fosse verdade. - É que das outras vezes demorei dois anos a engravidar, e pensava que...

O médico esticou o braço e deu-lhe umas palmadinhas na mão.

- Às vezes, as coisas mudam, minha querida. Além disso, tanto quanto sei, o problema estava no John.

- Oh, meu Deus...

O médico viu-a tão desesperada que lhe ocorreu um pensamento terrível.

- Sabe quem é o pai, não sabe?

- Claro que sim! - exclamou Sabrina, ainda mais surpreendida do que antes. - Mas não faço idéia de como é que ele vai encarar isto... Somos sócios e amigos, mas... na nossa idade... não fazíamos tenções de... nós... - Os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas, que rolaram pelas faces. Como o destino era cruel! Porque não conhecera André quinze anos antes? Então, talvez... - E agora, que vou eu fazer? - Desatou a chorar, depois assoou-se ao lenço que o médico lhe dera. Então, olhando para o homem com olhos suplicantes, perguntou: - Pode fazer alguma coisa para interromper a gravidez? - Era uma pergunta atrevida, pois ambos sabiam que aquilo que ela propunha era ilegal. Mas o certo era que Sabrina não sabia como solucionar o problema. Aquele médico era o único que conhecia, além de um velhote de Santa Helena a que fora anos antes.

- Não posso fazer isso, Sabrina. Sabe bem que não.

- Tenho quarenta e oito anos. Não está a pensar que vou dar à luz esta criança, pois não? Nem sequer estou casada com o pai.

- Ama-o? - Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça e assoou-se novamente. - Então, porque não casa com ele e tem a criança?

- Não posso fazer isso. Ambos temos filhos crescidos. Seríamos alvo de chacota. Ele tem cinqüenta e cinco anos. Eu, quarenta e oito. Por amor de Deus, nesta altura, já poderia ser avó!

- E então? Não seria a primeira mulher a dar à luz já com uma certa idade. Há dois anos, tive uma paciente que contava já cinqüenta e dois anos. Passara-se o mesmo que consigo, com a diferença de que estava casada. E, por acaso, ela e a filha deram entrada ao mesmo tempo na maternidade para darem à luz. Não será a primeira, Sabrina.

- Mas sentir-me-ia uma tolinha. E não quero obrigar o meu amigo a casar-se comigo... - Sorriu sem deixar de chorar. - Na minha idade, seria tão ridículo pretender que um homem se casasse comigo por causa de uma gravidez. - Olhou para o velho médico e começou a chorar. Então, com ar patético, acrescentou: - Desculpe, tenho a cabeça num caos.

- É compreensível. É um grande choque para qualquer pessoa. E tenho de reconhecer que, nas suas circunstâncias, a situação não é fácil. Trata-se de um bom homem, pelo menos. Seria feliz com ele.

- Claro que sim. - Mas nunca haviam falado de casamento, e André não tinha motivo nenhum para casar com ela. De momento, estavam bem conforme estavam. - Mas, perdoe-me que insista... um filho na nossa idade... - Pensou em Jon, e no bebê que perdera, e que, segundo lhe disseram, era uma menina. Nessa altura, já não era propriamente uma jovenzinha... mas aos quarenta e oito anos... era inconcebível... - Olhou novamente para o médico. Sabia o que tinha de fazer, embora ignorasse onde devia dirigir-se. Não consegue ajudar-me a encontrar alguém que me faça abortar? Não posso manter esta gravidez. Não é justo.

- Não pode arvorar-se em juiz nessa questão. - O médico franziu o sobrolho. - Pelo simples fato de ter acontecido, talvez seja justo. E talvez um dia descubra que foi a maior bênção que Deus lhe concedeu. - E levantou-se para indicar que a visita terminara. - Agora, quero vê-la de novo daqui a três semanas, Sabrina. E descontraia-se o máximo possível. Não há razão para que na sua idade não se possa dar à luz uma criança sã, mas terá de ter mais cuidado do que o que teve há vinte anos atrás.

- Vinte anos... que situação mais ridícula. - De repente, sentiu-se irritada com o médico, com ela própria e com André por a ter metido naquele imbróglio. - Por amor de Deus... Grávida aos quarenta e oito anos. - De fato, só os faria em maio, e nessa altura já estaria de quatro meses. - Que desastre!

Deixou o consultório do médico e dirigiu-se para casa com a cabeça cheia de tudo o que ele lhe dissera... sobre o bebê... e sobre André... que seria a maior bênção que Deus lhes poderia dar... mas negou-se a reconhecê-lo. Tinha de encontrar alguém que a ajudasse a abortar, e com a maior rapidez possível. Sabia que se adiasse a «operação» por mais algumas semanas poderia ser muito perigoso para si. E não fazia a mínima idéia a quem se dirigir. Como é que se encontrava uma pessoa que fizesse abortos? Nunca pensara que alguma vez viesse a precisar disso, e tentou puxar pela cabeça, mas, ao fazê-lo, recordou-se do bebê que perdera. Lembrou-se da sua dor e da de John. Como podia agora pensar em matar o seu bebê só porque as coisas não haviam saído da maneira que queria? Mas tinha alguma alternativa? Deitou-se na cama a pensar no assunto. Pouco depois, tocou o telefone. Era Antoine.

- Que disse o médico? - Estivera preocupado durante todo o dia. O pai fora comprar algumas coisas que precisava para o trabalho, e aproveitou a ocasião para telefonar a Sabrina antes que André voltasse.

- Não é nada. Estou ótima. É só cansaço. - Mas a voz estava algo tensa, inclusive para os seus próprios ouvidos, e Antoine não ficou convencido.

- Tem a certeza de que foi isso que ele lhe disse?

- Juro. - Mentiu. Que outra coisa poderia fazer? - Regressarei amanhã ou depois de amanhã.

- Pensei que regressava esta noite.

Antoine voltava a mostrar-se preocupado, como se fosse seu filho, e a emoção que Sabrina sentiu inundou-lhe os olhos de lágrimas. Tinha de fazer os possíveis por não deixar transparecer isso na voz. Ultimamente, tudo a fazia chorar.

- É que lembrei-me que ainda tenho de fazer algumas coisas na cidade. Tudo bem por aí, Antoine?

- Sim, muito bem. - Contou-lhe o que haviam feito durante todo o dia. - Tem a certeza de que não há nenhum problema consigo? - Pareceu um pouco mais aliviado. Não era o temido cancro.

- Positivo. - «Positivo» era precisamente a palavra adequada, e Sabrina esboçou um sorriso malicioso. Entretanto, André voltou e Antoine desligou.

- Como vão as coisas por aí, m’amie? - Às vezes, tratava-a assim, exceto quando estavam sozinhos, à noite. - Então, tratava-a por chérie ou mon amour.

- Encontrei tanto correio que tive de atrasar um pouco o meu regresso para poder atendê-lo. Talvez alguém mo possa mandar quando ficar em Napa mais dias do que de costume.

- Boa idéia. - Só ouvir a voz de André foi para Sabrina um alívio. Sentia uma vontade incrível de lhe contar o que o médico lhe dissera, mas não podia fazê-lo. Não queria pressioná-lo de modo algum. Era melhor não lhe dizer nada. Trataria de tudo sozinha, e ele nunca saberia. - Quando é que regressas? - Havia uma impaciência na sua voz que a fez sorrir. Amava-o, talvez mais do que nunca, e voltou a sentir pena daquilo não ter acontecido há quinze anos atrás. Nessa altura, provavelmente, ter-lhe-ia contado, ter-se-ia casado com ele e teria deixado viver a criança. Mas agora era impossível.

- Tentarei ir amanhã ou depois de amanhã. - Era o que estava a dizer ao Antoine. - Encontrei toneladas de correio.

- Não podes trazê-lo para aqui? - Não era costume demorar-se na cidade. - Há algum problema, Sabrina?

André conhecia-a demasiado bem; depois de um ano como sócios e de dois meses a partilharem a mesma cama, conhecia-a na perfeição, até ao ponto mais recôndito da sua alma. De certo modo, nunca conhecera ninguém tão bem como ela, apesar do curto tempo de amizade que levavam. O segredo estava em que eram duas almas gêmeas em todos os aspectos.

- Não, não, está tudo bem. - Mentiu-lhe, tal como fizera com Antoine. - É sério. - Teve de reprimir as lágrimas de novo.

- Soubeste alguma coisa do Jon?

- Não. Nada. Deve andar atarefado na universidade. É o último ano... - Estava sempre a arranjar-lhe desculpas.

André não queria fazer a pergunta, mas havia algo de estranho na voz de Sabrina.

- E da Camille?

- Não, graças a Deus. - Sorriu. Apesar de ainda há poucas horas se terem visto, já sentia imensas saudades dele. Tinha a sensação de que, naquele instante, precisava mais dele que nunca, mas não podia deixar transparecer nada.

- Bem, regressa o mais depressa possível. - André ter-se-ia oferecido para a acompanhar, mas naquele momento tinha demasiado trabalho. - Estou mortinho de saudades, chérie - sussurrou, enquanto as lágrimas rolavam pelo rosto de Sabrina, que fazia um verdadeiro esforço para dar um tom normal à voz.

- Também eu.

Sabrina ficou acordada durante quase toda a noite, alternando entre as lágrimas e uma férrea determinação. Na manhã seguinte, pegou na lista telefônica e escolheu o nome de um médico de uma zona pouco atrativa da cidade. Quando, por volta do meio-dia, chegou, de táxi, ao lugar indicado na lista telefônica, havia dois bêbedos a dormir na rua. Entrou cautelosamente no edifício, que tresandava a urina e a couves, e subiu por uns degraus que rangiam imenso. Respirou de alívio ao ver que a sala de espera estava irrepreensível, e, quando uma velha enfermeira a conduziu para dentro do consultório, viu um homem baixo, calvo e imaculadamente limpo, com um casaco branco vestido. Sabrina não sabia se se sentia aliviada ou decepcionada. Respirou fundo antes de falar, enquanto ele esboçava um sorriso tranqüilizador

- Doutor... eu... eu peço desculpa de antemão se o que vou pedir-lhe é uma afronta para o senhor.. - De olhos umedecidos, olhou para o médico. - Vim ter com o senhor porque estou desesperada..

O médico fitou-a, perguntando-se o que viria a seguir. Durante os quarenta anos que levava naquele consultório, já vira de tudo.

- Sim. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.

- Preciso de abortar. Escolhi o seu nome na lista telefônica. Não sei a quem me dirigir, aonde ir... - Sabrina, com os olhos inundados de lágrimas, temia que o homem se levantasse de um pulo e lhe apontasse a porta da rua. Em vez disso, fitou-a compassivamente, enquanto parecia matutar nas palavras que ia dizer.

- Sinto muito. Sinto muito que ache que não pode ter essa criança, Mistress Smith. - Ao fazer a marcação, havia-o feito com o nome de Joan Smith e, enquanto o médico continuava a falar, recordou por que razão é que o médico a tratava assim. - Tem a certeza de que não há maneira de continuar com a gravidez?

O médico ainda não se negara a nada, o que, lentamente, fez renascer as esperanças de Sabrina. Afinal, talvez tivesse vindo parar ao lugar certo.

- Tenho quarenta e oito anos. Sou viúva e tenho um filho adulto que está a acabar o último ano da universidade. - Aquelas razões pareciam-lhe suficientes, mas não o foram para o médico.

- E o pai da criança?

- É meu sócio. Somos bons amigos. - Corou. - Como é óbvio. É sete anos mais velho do que eu, e o filho é mais velho do que o meu. Não fazemos tenções de casar... é impossível.

- Já lhe disse?

Sabrina hesitou e abanou a cabeça.

- Só ontem é que soube que estava grávida. Mas não quero pressioná-lo. Só quero fazer o aborto e voltar para casa.

- Vivem em lugares diferentes?

- Parte do tempo. - Foi intencionalmente vaga. Não queria que o médico soubesse quem era. Apesar de se esconder sob o nome de «Mrs. Smith», o médico teria conseguido deduzir qual era a sua verdadeira identidade, e ele não precisava de saber.

- Não acha que ele merece que a senhora lhe dê, pelo menos, uma satisfação? - Sabrina abanou a cabeça, e o médico olhou-a com olhos compreensivos. Não era a primeira vez que lhe solicitavam aquele tipo de ajuda, e sabia que não seria a última. - Acho que não está a agir bem, Mistress Smith. Ele também tem o direito de saber. E a sua idade não me parece um impedimento assim tão importante. Já houve mais mulheres com a sua idade a darem à luz. Pressupõe um risco ligeiramente maior, mas não se trata da sua primeira gravidez, o que reduz de modo considerável esse risco. Julgo que deveria seguir o meu conselho sem mais delongas. De quantos meses julga que está?

- Dois meses. - Sabia que não podia ser mais do que isso, porque apenas há pouco mais de oito semanas é que dormiam juntos. Na noite anterior, calculara cuidadosamente o tempo de gravidez.

O médico assentiu com a cabeça.

- Não lhe resta muito tempo para fazer o que quer que seja.

- Então, vai ajudar-me?

O homem hesitou. Não fazia abortos, embora os tivesse feito há muito tempo atrás, mas uma rapariga estivera às portas da morte, e ele jurara a si mesmo que deixaria aquela prática para sempre. Além disso, algo lhe dizia que seria um erro satisfazer os desejos daquela mulher.

- Não posso, Mistress Smith.

- Então, por quê... por quê... pensei que ao ouvir-me que...

- Prefiro convencê-la a ter a criança.

- Mas não quero tê-la! - Levantou-se de um pulo, desatando num pranto. - Se não mo quer fazer, faço-o eu mesma.

Por instantes, o médico pensou que ela seria mesmo capaz de fazer aquilo que dizia, o que o assustou.

- Não posso ajudá-la. Pelo seu bem, e pelo meu.

Ele poderia perder a licença e nunca mais poder exercer. Arriscava-se, inclusive, a ir parar à cadeia. Mas havia outra possibilidade. Já dera o nome de um indivíduo a uma mulher, e ela ficara satisfeita com o trabalho. Puxou, então, de um bloco e de uma caneta e, numa folha em branco, em que não figurava o seu nome, escrevinhou um nome e um número de telefone, e entregou-a a Sabrina.

- Telefone para este homem.

- Acha que ele me faz o aborto? - Os olhos de Sabrina fitavam-no com ar ansioso.

O médico, de semblante carregado, fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Sem dúvida. Vive no Bairro Chinês. Era um grande cirurgião, mas foi apanhado nessas práticas. Já lhe mandei uma pessoa... - Olhou, com ar triste, para Sabrina, repetiu-lhe o que pensava. - Todavia, continuo a pensar que deveria ter essa criança. Se fosse pobre, ou estivesse doente... ou tivesse sido violada... ou fosse viciada em morfina... mas parece-me ser uma mulher decente, como o será, muito provavelmente o seu amigo. Poderia dar a essa criança um lar cheio de amor. - Reparara na boa qualidade da lã do vestido que Sabrina envergava. Era velho, mas devia ter sido caro. Talvez a sua situação econômica não fosse boa, mas uma mulher como aquela tinha de encontrar um modo de não cometer aquela barbaridade. - Pense bem, Mistress Smith. Talvez não volte a ter uma oportunidade como esta. E é muito possível que algum dia lamente não ter tido essa criança. Pense bem nisso. Pense bem antes de telefonar a esse médico. - E apontou para a folha de papel que Sabrina tinha na mão trêmula. Depois do fato consumado já não poderá voltar atrás, e ainda que um dia volte a ter outra criança, lamentará sempre não ter permitido o nascimento desta.

As palavras do médico recordaram a Sabrina a criança que perdera. Nem sequer Jon conseguira preencher esse vazio. Era um sonho que se desvanecera para sempre, e o mesmo sucederia agora... mas ela não podia permitir-se ter aqueles pensamentos. Não tinha alternativa. Levantou-se e abanou a cabeça.

- Obrigada por me ajudar. - Sentia-se aliviada. Pelo menos, agora sabia aonde se dirigir.

- Pense bem no assunto.

As palavras do médico ecoaram na cabeça de Sabrina ao sair. Quando chegou a casa, sentou-se à secretária e aí ficou largo tempo. Sentia-se indisposta e tremia violentamente. Finalmente, decidiu-se a telefonar. Teve de marcar três vezes o número antes de dar com o correto. Uma mulher com sotaque respondeu do outro lado da linha.

- Queria marcar uma consulta.

- Quem lhe deu o nome do doutor? - A voz era desconfiada, e Sabrina, toda a tremer, ganhou alento e disse o nome do médico a que acabara de ir. Instalou-se um longo silêncio, como se a outra pessoa estivesse a controlar a chamada. Então, a mulher respondeu-lhe: - Na próxima semana.

- Quando? - Nova pausa.

- Quarta-feira ao fim da tarde. - Sabrina achou estranho, mas não se tratava de uma consulta normal. - Às seis. Dirija-se à porta das traseiras. Bata duas vezes, faça uma pausa e volte a bater outras duas vezes. E traga quinhentos dólares em dinheiro. - A voz da mulher era áspera como as suas palavras, e Sabrina quase ficou sem alento, não pela quantia que lhe pediam, mas pela imagem que tudo aquilo sugeria.

- Ele faz-mo?

De nada servia fingir naquela altura. Ambas sabiam o que Sabrina queria dele. Talvez não se dedicasse a outra coisa. Mas por que à noite? Mas não lhe fazia diferença nenhuma. Perguntou-se quanto tempo é que duraria a intervenção.

- Sim. Mas se se sentir mal depois, não volte a telefonar-nos. Ele não poderá ajudá-la.

Ficara tudo esclarecido. Sabrina perguntou-se, então, a quem é que se poderia dirigir em caso de emergência. Talvez ao médico que lhe dera o nome do que a faria abortar. Ou talvez ao seu, ou... As perguntas revolteavam dentro da sua cabeça como morcegos e, quando desligou o telefone, teve vontade de vomitar, e vomitou mesmo. Sentia-se extremamente mal. De joelhos no chão da casa de banho, não fazia mais do que pensar na consulta que tinha marcada quarta-feira, ao fim da tarde: às seis. Ainda faltavam seis dias, e estava apavorada. Mas já não podia voltar atrás.

No dia seguinte, voltou para Napa, no seu carro, e fingiu que estava tudo bem consigo. Falou pelos cotovelos, trabalhou com afinco, como era seu hábito, e até se ofereceu para cozinhar, o que motivou algumas piadas da parte dos homens. Estes estavam habituados a cozinhar para ela, mas, quando lhe serviram a comida, não comeu quase nada, nem naquela noite, nem no dia seguinte. Apanhou Antoine a olhar para ela uma ou duas vezes, mas não voltou a perguntar-lhe mais nada sobre o médico. Entretanto, André parecia não ter dado conta de nada. Fizeram amor quase todas as noites, exceto na terça-feira, quando Sabrina se voltou de costas para o seu amigo e fingiu dormir. Quando acordou, pouco antes do alvorecer, André foi dar com Sabrina sentada à porta de casa, de olhos fixos nos campos e nas colinas, absorta em pensamentos. Foi em bicos dos pés até junto dela e sentou-se a seu lado. Ela voltou-se para ele com um sorriso nos lábios

- Que fazes já levantado, André?

- Ia perguntar-te a mesma coisa, m’amie. - Eram amigos, mas não naquilo que ocupava a mente de Sabrina naquele momento. Deu uma olhadela para o relógio da cozinha. Eram seis e cinco. Daí a doze horas estaria no Bairro Chinês, a pagar quinhentos dólares para matar o seu filho. Aquele pensamento fê-la vacilar e sentiu-se mal disposta.

- Que se passa. - André sentou-se ao lado dela, tomou-lhe a mão e beijou-lhe os dedos. - Sei que não tens andado bem ultimamente, mas não te disse nada pois preferi que fosses tu a tomar a iniciativa de me contar o que se passa. - O aspecto de Sabrina era pior do que o que tivera durante toda a semana. Estava quase verde. - Que se passa, meu amor? É aquela mulher a atormentar-te de novo? - Receava que Camille a estivesse a apoquentar.

Sabrina abanou a cabeça, sem saber o que dizer, enquanto tentava conter as lágrimas. Não queria mentir-lhe, mas não podia dizer-lhe o que se passava.

- Às vezes, André, há coisas que só a própria pessoa pode resolver. E esta é uma delas.

Era a primeira vez que se negava a responder a uma das perguntas de André. Este olhou-a com ar compreensivo, mas não contente com a explicação de Sabrina.

- Não consigo imaginar nada que eu não consiga compreender, m’amie. Além disso, já sabes que estou sempre disposto a ajudar-te em tudo, seja o que for. Tem a ver com o Jon? - Sabrina negou com a cabeça. - Problemas econômicos? - Sabrina repetiu o mesmo gesto.

- É uma coisa que só eu posso resolver. - Então, com um suspiro e endireitando as costas, acrescentou: - Tenho de ficar na cidade durante uns dias.

André perguntou, então, com voz temerosa:

 Trata-se de algo relacionado conosco? Se é isso, diz-me. - Amava-a tanto. Precisava de saber. Era já demasiado velho para sofrer novo desgosto amoroso. Estás arrependida de... Mas Sabrina tranquilizou-o rapidamente com um beijo, enquanto esboçava um sorriso terno e lhe acariciava o rosto.

- Nunca. Nem pensar. É algo exclusivamente meu.

- Não há nada que seja exclusivamente nosso, que não possamos partilhar.

- Desta vez, não. - Com ar triste, Sabrina abanou a cabeça.

- Não estarás doente?

Sabrina voltou a abanar a cabeça.

- Não. Estou aborrecida, mas isto passa. Volto no sábado.

Sabrina concedera-se três dias para se recompor, e esperava que fosse suficiente. Três dias de amarga dor e pranto pela morte do seu bebê... por quinhentos dólares...

- Por que razão ficas lá tanto tempo?

- Porque vou deixar crescer a barba e rapar o cabelo - gracejou Sabrina, enquanto o céu ia ficando cinzento, depois cor de púrpura, à medida que o sol se ia elevando no firmamento.

- Porque não me contas o que se passa?

- Porque trata-se de uma dessas ocasiões em que uma mulher tem de cuidar de si mesma sozinha.

- Por quê? Não existe nada que eu não possa partilhar contigo.

Sabrina concordou com a cabeça. Pensava o mesmo. Mas desta vez não podia ser... embora tivesse de fazer um verdadeiro esforço para esquecer as palavras dos dois médicos... Ele tinha o direito de saber... devia dizer-lhe.. dar-lhe uma oportunidade...

- André, deixa-me tratar deste assunto sozinha. No sábado, já estarei de volta e já tudo terá passado.

De qualquer modo, Sabrina perguntava-se se conseguiria manter aquela atitude por muito tempo. Receava que ele suspeitasse que havia algum problema. Tentara, com grande esforço, mostrar boa cara, mas ele conhecia-a demasiado bem. Naquele instante, desceram dois trabalhadores franceses, e Sabrina subiu para o quarto a fim de se vestir. Havia um pequeno problema numa das máquinas, e chegara a peça nova. Antoine precisava da ajuda de André e, antes de voltarem a falar, Sabrina estava pronta para partir para a cidade. Eram duas horas. Se saísse naquele instante, teria tempo suficiente para passar pela Mansão Thurston, tomar banho, mudar de roupa e ir para o Bairro Chinês. Deu um beijo de despedidas a André e a Antoine, fingindo uma enorme jovialidade, que não convenceu nenhum dos dois, e entrou no carro.

- Até sábado... portem-se bem..

- Telefono-te logo à noite - gritou-lhe André, mas não pareceu satisfeito. Fora um dia horrível, e Sabrina não dava qualquer ajuda. Estava extremamente preocupado, e o seu olhar denotava isso mesmo, o que deixou Sabrina revoltada consigo mesma.

- Não te preocupes. Eu telefono-te.

Esperava falar com André quando chegasse à mansão. Não fazia a mínima idéia de quanto tempo poderia durar a intervenção, de como se sentiria e de como voltaria para casa. Resolvera fazer a viagem no seu próprio carro, e voltaria do Bairro Chinês da mesma maneira.

Sabrina partiu, então, deixando pai e filho preocupados.

- Passa-se alguma coisa - disse André, quase entre dentes.

- Acho que está doente.

André voltou-se para o filho como que movido por uma mola.

- Que te leva a dizer isso?

- Há mais de uma semana, nos vinhedos, esteve prestes a desmaiar nos meus braços.

- Porque não me disseste logo? - retorquiu, com aspereza. Todavia, era um alívio ter alguém com quem poder falar dela. Há dias que ambos andavam preocupados, e continuarem a fingir que não estavam só piorava a situação.

- Fez-me prometer que não te dizia nada. Disse-lhe que tinha de ir ao médico, caso contrário, eu mesmo a levaria.

- Já não foi mau, e depois...?

- Quando voltou, disse que o médico a encontrara de perfeita saúde. - Mas Antoine não ficara convencido e, por fim, resolvera falar claro, por mais que as suas palavras doessem; e as lágrimas assomaram-lhe aos olhos. Embora já fosse adulto, ainda havia nele algo de criança. Tinha o queixo a tremer quando se voltou para André. - Não creio que se encontre tão bem como diz, papá... já a ouvi vomitar... e, o outro dia, quase voltou a desmaiar.

- Merde. - André empalideceu. - E, apertando os punhos, perguntou a Antoine: - Sabes onde é que ela vai agora?

Antoine abanou a cabeça.

- Talvez a fazer análises? Ou à consulta... não sei. Só me disse que estava tudo bem.

- Mentirosa. Vê-se que não está. Há mais de uma semana que está doente e não me disse nada. - Então, com olhar resoluto, fez o que achava ser sua obrigação. Deixou cair a ferramenta que tinha na mão e, em passo largo, dirigiu-se para o carro.

- Ou vas-tu? - Antoine correu atrás dele, mas já sabia qual era o seu destino.

- Vou atrás dela. - André pôs o carro a trabalhar. Ainda tinha as mãos sujas de terra, mas pouco lhe interessava isso agora. Só lhe interessava a mulher que amava e, naquele momento, ia atrás dela.

Antoine despediu-se do pai agitando uma mão e sentiu-se aliviado quando o carro desapareceu ao longe. Sabrina só lhe levava vinte minutos de avanço, mas tinha fé no seu velhote. Sabia que iria até ao fundo da questão e obrigaria Sabrina a fazer o que fosse melhor para ela.

André carregou no acelerador durante todo o caminho. Teve de abrandar a marcha por instantes por causa de um pequeno engarrafamento de tráfego, depois, acelerou ao longo da Bay Bridge, dando graças por esta se encontrar aberta naquele momento. Pouco depois, entrou a toda a velocidade em Nob Hill, e divisou o carro de Sabrina, estacionado defronte da Mansão Thurston. Uma onda de alívio e gratidão invadiu-o então. A sua amada estava ali, encontrara-a. Finalmente, iria esclarecer todas as suas dúvidas. Mas, logo que entrou na rua que conduzia à mansão, viu-a sair, vestida com ar sombrio: a cabeça coberta com uma écharpe, um casaco velho que ele nunca lhe vira vestido e sapatos rasos. Com ar apressado, correu para o carro. Movido pelo instinto, André resolveu segui-la. Fez marcha atrás para não ser visto e iniciou a perseguição quando Sabrina pôs o carro em andamento. Virou para a Jackson Street e dirigiu-se para Este. André, que a seguia a uma distância segura, ficou surpreendido quando a viu parar no Bairro Chinês. Aquilo não fazia nenhum sentido, e era já hora de jantar. Por instantes, sentiu uma pontada no coração quando se interrogou se não haveria outro homem envolvido na história. Mas não parecia estar vestida para uma situação dessas. Depois de estacionar o carro, Sabrina atravessou apressadamente a rua, para se deter diante de uma porta em muito mau estado. Bateu, hesitou por instantes, voltou a bater, e a porta abriu-se. Houve uma breve troca de palavras e depois entregou um sobrescrito a alguém que se encontrava atrás da porta. Do sítio onde estava, André conseguia ver que Sabrina exibia um ar cadavérico, o que podia indiciar que se encontrava perante algum perigo, que lhe ia acontecer algo pouco agradável. Talvez a estivessem a ameaçar ou a chantagear. André quase pulou do carro, deixando-o estacionado numa passadeira de peões e correndo para a porta onde ela desaparecera. Não lhe importava os riscos que podia correr. Sabrina já passara muito na vida, e, se agora tentassem fazer-lhe mal, mataria os culpados. Bateu à porta, uma, duas vezes, mas ninguém respondeu. Então, começou aos murros à porta e a comprovar a sua solidez para ver se conseguia arrombá-la. Lamentava não ter trazido Antoine. Mas, enquanto teve aquele pensamento, a porta entreabriu-se.

- Obrigado - disse André, surpreendendo a mulher que aparecera da parte de dentro da porta e dando-lhe com esta na cara ao entrar de rompante. Deparou-se-lhe, então, um vestíbulo lúgubre, ao fundo do qual se viam umas escadas estreitas. A mulher quase pulou para cima dele.

- Não pode entrar aqui.

- A minha esposa acabou agora mesmo de entrar - mentiu. - Está à minha espera. - Ao olhar para a mulher, que trazia um roupão imundo vestido e sapatilhas, voltou a perguntar-se que teria ido fazer Sabrina àquele lugar. A menos que a sua intuição estivesse certa: - estavam a chantageá-la.

- Mistress Harte! Onde está?

- Não sei... não está cá ninguém... está enganado... - Sem perder mais tempo, empurrou a mulher contra a parede.

- Onde está a minha esposa? Diga-me já! - berrou para a mulher, e os olhos desta voaram para o cimo das escadas, mas não tão rápidos como os pés de André pelos degraus acima. A mulher seguiu-o aos gritos. Tentou evitar que o intruso abrisse a primeira porta do segundo piso, mas isso só tornou as coisas mais fáceis para ele. Depois de a abrir com um empurrão, entrou de rompante numa sala não maior do que uma cela, que tinha uma mesa comprida cheia de caruncho no centro. Ao lado, havia um tabuleiro de instrumentos cirúrgicos. Sabrina, meio despida, encontrava-se a um canto da sala. De repente, apareceu um homem alto, de aspecto andrajoso. Empunhava uma pistola. Sabrina e a mulher gritaram. André ficou cravado ao solo, mas olhou para Sabrina quando o médico lhe apontou a arma.

- Estás bem? - Sabrina assentiu com a cabeça. André voltou-se, então, para o homem que empunhava a arma. - Por que razão está ela aqui? Mas, instintivamente, já sabia a resposta.

- Ela veio por sua livre e espontânea vontade. É polícia? - retorquiu o médico, sem deixar de apontar a arma a André. Sabrina conteve a respiração.

- Não. - A voz de André tomou um tom estranhamente calmo. - Esta mulher é minha esposa e não precisa de si para nada. Cometeu um erro. Pode ficar com o dinheiro, mas vou levá-la para casa. - Parecia que estava a falar com uma criança. Percebera que o homem estava bêbedo. Só de pensar no que ele poderia ter feito a Sabrina, ficou todo arrepiado. Mas não podia pensar nisso agora. Então, voltou-se para Sabrina: - Veste-te! - ordenou, num tom ainda mais áspero do que aquele com que falava com o homem. Já sabia qual era o motivo da vinda dela ali. Vira um lugar daqueles em Paris, quando, aos vinte e um anos, lá levara uma rapariga por quem se apaixonara. Ela sobrevivera, mas ele jurara que nenhuma mulher que ele amasse passaria por aquilo, e assim foi. Pelo canto do olho, viu que Sabrina já se vestira. Fez-lhe sinal para a porta e olhou novamente para o homem. - Não sei o seu nome, nem quero saber. Nunca diremos a ninguém que estivemos aqui.

André empurrou Sabrina para a porta. O médico, depois de um momento de hesitação, baixou a arma e deixou-a passar, mas ficou a olhar para André. Admirou a coragem dele e teve vontade de os ajudar.

- Se quiser, faço-o num instante. Entretanto, pode esperar aí fora.

André sentiu-se enojado, mas disfarçou. Agradeceu ao médico e, agarrando Sabrina pelo braço, conduziu-a pelas escadas abaixo sem dizer palavra. Abriu a porta da rua por onde haviam entrado e empurrou a sua amiga para fora. Reinava o silêncio no interior do edifício. André respirou fundo e, sem dizer nada, conduziu Sabrina até ao lugar onde estacionara precipitadamente o carro dez minutos antes. Não fora mais do que isso, e se tivesse chegado cinco minutos depois... ou dez... Sentiu um arrepio na espinha... não olhou para ela enquanto a arrastava até ao carro, abriu a porta do veículo e empurrou-a com alguma rudeza para o interior do mesmo.

- André... - disse Sabrina, com voz trêmula. - Eu tenho o meu carro... eu posso...

André virou-se para ela, lívido de raiva.

- Não me digas nada! - gritou-lhe com voz tensa. Sabrina estava demasiado assustada, inclusive para chorar.

Sem dizer palavra, conduziu-a até à Mansão Thurston e estacionou o carro diante da casa. Sabrina tentou abrir a porta, mas as mãos tremiam-lhe de tal maneira que não conseguiu. André arrebatou-lhe as chaves da mão, abriu a porta e entrou. Esperou que ela também o fizesse e fechou a porta. Então, gritou-lhe:

- Meu Deus! Que diabo estavas tu lá a fazer? - Nenhuma palavra conseguiria exprimir o que lhe ia na alma. - Sabes que podias ter morrido em cima daquela mesa imunda? Sabes que ele estava bêbedo? Sabias...? Escuta... - Agarrou-a pelos ombros com ambas as mãos e sacudiu-a violentamente.

- Larga-me! - Empurrou-o, chorosa. - Que alternativa é que eu tinha? Que querias que fizesse? Que o fizesse sozinha? Pensei nisso! Não sei como...

Deixou-se cair de joelhos, a cabeça baixa, destroçada por todo o impacto do que estivera prestes a fazer. E agora ele sabia. Sabrina levantou, então, a cabeça. Estava lavada em lágrimas. Queria falar, mas os soluços impediam-na. Então, André puxou-a para si, estreitou-a nos braços, também com os olhos cheios de lágrimas, e afagou-lhe os cabelos.

- Como pudeste fazer semelhante coisa? Porque não me disseste? Então era isso... - André fitou-a, magoado por ela não ter confiado nele. - Porque não me disseste? Há quanto tempo é que sabias?

André puxou-a para um cadeirão e fê-la sentar-se ao seu colo como se fosse uma menina. Sabrina dava a impressão de ir desmaiar nos braços de André, mas este não se sentia muito melhor do que ela.

- Descobri a semana passada - disse Sabrina, com voz cansada e vacilante. André sentiu todo o seu corpo estremecer. De repente, Sabrina perguntou-se se, caso ele não tivesse aparecido, ainda estaria viva... Agora dava-se conta do erro que cometera... - Pensei que... devia solucionar o problema sozinha... não queria que te sentisses pressionado...

As lágrimas rolaram lentamente pelo rosto de André.

- Também é meu filho. Não achas que eu também tinha o direito de saber?

Sabrina fez um gesto de concordância com a cabeça, horrorizada, a voz embargada:

- Perdoa-me. Eu. - Não conseguiu prosseguir, vencida pelas lágrimas, e André envolveu-a de novo num abraço. - Só que já tenho demasiada idade., não somos casados.. não quis que te sentisses...

André afastou-a e olhou-a nos olhos.

- Por que razão é que achas que estou a construir a casa? Para o Antoine? Para que é que achas que a mandei fazer?

Sabrina fitou-o, desconcertada.

- Mas nunca me disseste.. - André revirou os olhos.

- Nunca pensei que fosses tão tonta. Claro que quero casar contigo. Talvez este ano. Pensei que soubesses.

- Como poderia eu saber? - balbuciou. - Nunca me disseste nada.

- Merde, alors. - Fitou-a, incrédulo. - És a mulher mais inteligente que conheço, e, às vezes, a mais tola. - Sabrina sorriu por entre as lágrimas, e André beijou-lhe os olhos. Então, o semblante deste tomou, de novo, um ar sério. Nenhum dos dois queria pensar no que sucedera uma hora antes. Fora a experiência mais horrível da vida de Sabrina, e talvez até de André. Estivera em risco de se perder uma vida, uma vida que ambos desejavam. Ela nunca teria sido a mesma, tanto mental como fisicamente. André arrepiou-se só de pensar nisso. - Bem, agora diz-me uma coisa. Querias mesmo livrar-te do bebê? - Era um problema que tinha de ser encarado. Ela devia estar desesperada para o querer fazer e suportar aquele pesadelo.

Todavia, para assombro de André, Sabrina negou com a cabeça.

- Não, mas quis fazê-lo por ti...

Era verdade. Nem sequer a sua idade parecia importar-lhe tanto como uma semana antes. Sabrina pensara muito no problema e chegara à conclusão de que deveria livrar-se do bebê por ele, para não lhe complicar a vida, para não dar a impressão de que queria obrigá-lo a casar-se com ela...

- Farias isso por mim? - Pareceu horrorizado, e sentiu as mãos de novo a tremer. - Podias ter morrido. Sabias? Já para não falar no nosso filho, que também o terias morto.

- Não digas isso. - Sabrina fechou os olhos. Ao fazê-lo, as lágrimas que os inundavam correram pelas faces. - Só pensei que... - André interrompeu-a. Não eram necessárias mais reprimendas nem justificações.

- Erraste. Queres ter o nosso filho?

- Pelo modo como fez a pergunta, quem é que não teria querido? - Sabrina fez um gesto afirmativo com a cabeça, de olhos fixos nele. - Quero. Não achas que é ridículo na minha idade? - Sabrina esboçou um tímido sorriso e André riu-se.

- Ainda sou mais velho do que tu e não me sinto ridículo. Na realidade - beijou-a no pescoço, - ainda me sinto jovem e forte. - Sabrina sorriu e beijaram-se.

- Queres o bebê, André?

- Claro que sim. Todavia, tenho de perguntar-te por que estavas tão segura de que era impossível engravidares... Lembro-me de que disseste que não havia nenhuma hipótese de isso acontecer... - gracejou André. O pesadelo do Bairro Chinês começava a dissipar-se.

- Errei. - E esboçou um largo sorriso. Exibia um ar quase vitorioso.

- Aparentemente. Aposto que ficaste espantada. É bem feito.

Sabrina revirou os olhos.

- Nunca saberás quanto.

As recordações fizeram-nos recuperar o ar sério. Quando André voltou a falar, fê-lo com ar severo.

- Aconteça o que acontecer nesta vida, Sabrina, por mais desagradável, horroroso, sórdido ou triste que seja, quero saber. Não tens de me esconder nada. Nada. Percebido?

- Sim. Desculpa... - Sabrina começou a chorar de novo e André apertou-a contra si. - Estive quase a... - Recomeçou a tremer e André embalou-a como um bebê.

- Não penses mais nisso. Tivemos sorte. Cheguei a tempo de poder seguir-te. - Sabrina parecia atônita. - Sem saber por que, meti-me no carro pouco depois de partires. Tive o pressentimento de que algo de estranho estava a passar-se. E não me enganei. Mas já acabou tudo. - E esboçou um sorriso radioso. - Vamos ter um bebê, meu amor. Não te sentes orgulhosa?

- Sim, e também um pouco ridícula. Sinto-me a avó do meu futuro filho.

- Mas não és.

- Como é que achas que o Jon e o Antoine vão encarar o fato?

André suspeitava que Jon iria aceitar mal; quanto a Antoine, talvez aceitasse melhor. Não estava bem seguro da reação dos rapazes. Mas tudo isso não tinha qualquer importância para ele. Só Sabrina e o seu futuro filho lhe interessavam.

- Se não aceitarem bem, tanto pior para eles. Trata-se da nossa vida e do nosso filho. Eles já são adultos e donos das suas vidas. Quando quiserem ter filhos, não nos pedirão opinião sobre a oportunidade de os pôr no mundo, como tal, também não lhes pediremos opinião.

Sabrina riu-se da simplicidade com que André encarava a questão.

- Ora, nem mais. Bem, assim fica tudo resolvido.

- De modo nenhum. - E riu-se. - Estás a esquecer-te de um pequeno pormenor. Não achas que devíamos fazer ao nosso bebê o favor de o legitimar? Sabrina, meu amor, queres casar comigo?

- Estás a falar a sério?

André voltou a rir e, apontando para o ventre ainda plano da sua amada, perguntou?

- E isto é algo sério?

- Claro. - riu-se. Ainda tinha os olhos vermelhos das lágrimas, mas parecia muito mais feliz. - Muito sério.

- Então, também estou a falar a sério. Que me dizes? - Sabrina atirou os braços à volta do pescoço de André.

- Sim, sim, sim... sim!...

André beijou-a com ardor na boca, levou-a ao colo pelas escadas acima, até à cama, e depositou-a carinhosamente no lado onde ela dormia. Sabrina tivera Jon naquela cama, mas ambos sabiam que, desta vez, não seria assim. A sua idade não lhe permitiria ter o filho em casa e André queria que fossem tomadas todas as precauções necessárias. Contudo, o pensamento que agora predominava nas suas mentes não era o nascimento mas o casamento.

- Quando queres casar, meu amor? - André sorriu e cruzou os braços. Sabrina achou-o mais encantador que nunca.

- Não sei... Talvez devamos esperar para quando o Jon vier passar as férias da primavera. Gostaria que ele cá estivesse.

Ao ouvir isto, André soltou uma gargalhada e apontou para a barriga da sua amada.

- Não estás a esquecer-te de nada? - Sabrina também se riu.

- Bem... és capaz de ter razão... Talvez não devamos esperar tanto.

- Quando é que nasce?

- O médico disse que em outubro.

Só faltavam sete meses. Ainda podiam fingir que nascera prematuramente. Na idade de Sabrina, era possível que um bebê nascesse dois meses antes do tempo normal... mas não antes que isso...

- Que tal este sábado?

Sabrina recostou-se nas almofadas e sorriu. Era a mulher mais bonita que alguma vez conhecera.

- Acho ótimo... mas... tens a certeza de que é o que queres fazer?

- Tenho querido fazê-lo desde o dia em que nos conhecemos... Só tenho pena de não nos termos conhecido há vinte anos atrás. - Sabrina também pensara o mesmo. Haviam perdido tanto tempo, mas talvez estivesse escrito que as coisas tinham de acontecer daquela maneira. - Como vês, o próximo sábado já não é assim tão breve como isso.

Sabrina, radiante de felicidade, perguntou:

- Telefonamos ao Antoine e dizemos-lhe?

- Telefono-lhe mais logo e explico-lhe tudo. Mas, primeiro, quero que descanses. O dia que passaste não foi precisamente o ideal para uma futura mamã. De hoje em diante, vou cuidar de ti. Percebido? - Olhou de relance para o relógio. Já passava das oito. - Vou preparar-te qualquer coisa para comeres. Agora, terás de comer por dois.

Inclinou-se e beijou-a mais uma vez. Depois, desceu as escadas a correr, foi até à cozinha e fez um dos omeletes de que ela tanto gostava, à la française. Mas, naquela noite, Sabrina não comeu nem por um. Entre o cansaço devido ao que haviam passado e o bebê que começava a crescer no seu útero, adormecera profundamente.

 

Na quinta-feira à tarde, Sabrina e André regressaram a Napa no carro deste e deixaram o dela em São Francisco. André pusera-o, ao princípio do dia, numa garagem que alugaram defronte da Mansão Thurston Antoine viu-os chegar quando voltava dos vinhedos. Estava um dia soalheiro. Sabrina, com um ar de incontida felicidade, parecia uma rapariga. Era difícil de acreditar que fosse a mesma mulher que saíra de casa no dia anterior. Antoine já percebera um notável alívio na voz do pai quando falara com ele ao telefone, na noite anterior. André não lhe explicara nada, mas Antoine tivera a sensação, confirmada agora, de que tudo terminara em bem. Nessa noite, serviu uma taça de champanhe ao filho e dispôs-se a dar-lhe a notícia

- Temos de dizer-te uma coisa.

Antoine sorriu ao vê-los tão divertidos. Pareciam duas crianças. Imaginava o que lhe iam dizer, ou, pelo menos, parte. De momento, ainda não lhe diriam nada sobre o bebê.

- Posso adivinhar. - gracejou. - Vejamos. - Enquanto Sabrina dava risadinhas como uma miúda pequena, André esboçou um largo sorriso.

- Bem, não puxes mais pelo caco. A Sabrina e eu casamo-nos no sábado.

- Tão depressa?

Foi a única coisa que o surpreendeu. Pensava que lhe iam dizer que estavam noivos. Então, desconfiou que algo mais se passava. Olhou para Sabrina com cautela, mas não conseguiu vislumbrar nenhum sinal delator Talvez ainda fosse muito cedo, pensou, mas, se fosse verdade, ficaria feliz por eles. Nunca lhe passara aquela idéia pela cabeça quando ela andava com ar doente. Agora, radiante de felicidade, beijou-os nas faces. André pediu-lhe que fosse o padrinho, e no sábado, na pequena igreja da povoação, lá estava Antoine ao lado de André, enquanto Sabrina avançava, sozinha, em direção ao altar. Só os trabalhadores assistiam à cerimônia. Quando o sacerdote pronunciou as palavras solenes, Sabrina não conseguiu evitar que as lágrimas lhe rolassem pelas faces. Depois de declarados marido e mulher, partilharam um suntuoso almoço preparado pelos próprios trabalhadores e uma caixa de champanhe, embora Sabrina só tivesse bebido uma taça. Na primeira oportunidade, Antoine abraçou calorosamente a recém-casada.

- Sinto-me muito feliz. Por si e pelo papá. O velho teve muita sorte.

- Eu é que tive uma grande sorte. Tenho-vos aos dois...

Quem lhe dera que Jonathan se tivesse mostrado tão carinhoso quando recebeu a notícia. Sabrina telefonou para a residência de estudantes para lha dar, e obteve como resposta, depois de um longo silêncio do outro lado da linha, umas palavras geladas.

- Qual foi a pressa?

- Pensamos... Querido, tenho imensa pena que não tenhas podido estar aqui... - Sabrina já esquecera a mágoa que ele e Camille lhe haviam causado.

- Eu não tenho pena nenhuma. Como é possível que tenhas querido casar com esse campônio?

- Não devias dizer uma coisa dessas. - As palavras do filho magoaram-na. Era precisamente esse o seu objetivo.

- De qualquer modo, felicidades!

- Obrigada. Queres cá vir passar a Páscoa, querido? Ter-lhe-ia pago a viagem.

- Não, obrigado. Vou para Nova Iorque com uns amigos. Mas, se quiseres, podes mandar-me para paris, em junho.

- Não é a mesma coisa, não achas? Pensava que gostarias de vir ver-nos a todos.

- Prefiro ver a França. Quando nos formarmos, alguns de nós pensamos fazer aí a nossa viagem de fim de curso. Que te parece? - Arrumara a questão do casamento e já estava a pensar só nele.

- Discutimos isso noutra ocasião.

- Por que não agora? Se for com eles, tenho de fazer os preparativos.

- Não gosto de ser pressionada. Falaremos disso mais tarde.

- Por amor de Deus!...

- Quando te formares, terás de começar a trabalhar. Não tinhas pensado nisso?

Se ele a pressionava, ela faria o mesmo. Tinha o mesmo direito, embora raramente o fizesse. Mas ficara furiosa com o comentário que ele fizera sobre André... um campônio de França... Quem pensava ele que era?

- Tenho a certeza de que o pai do Johnson me vai dar um emprego em Nova Iorque. - Sabrina sentiu um aperto no coração, mas já esperava algo parecido. - Alugaremos uma casa entre cinco.

- Isso será muito caro. Achas que terás condições econômicas para isso?

- Porque não? Tu tens a Mansão Thurston.

- Sim, mas não pago aluguel. - Embora, se Jon e Camille tivessem levado a sua avante, talvez estivesse a pagar. - A propósito, como está a tua encantadora avó?

- Está ótima. Recebi uma carta dela a semana passada. - Sabrina não disse nada. Limitou-se a suspirar. Não gostava que estivesse em contato com Jon nem da afinidade que este parecia ter com ela.

- Bem, vemo-nos no dia da tua formatura. - Esperava que Camille não estivesse lá nesse dia. Não queria voltar a vê-la, mas era possível que assistisse à cerimônia pelo fato de ser tia-avó de um rapaz que também se formava naquele dia. Sabrina não perguntou nada ao filho a esse respeito, mas ele insistiu com as perguntas sobre a viagem a França. - Vou pensar nisso e depois digo-te o que decidi.

Jon temia que ela fosse consultar André e que este a aconselhasse a dizer que não.

- Decide já!

- E se eu disser que não?

- Nesse caso, arranjarei outro meio de fazer a viagem.

- Talvez seja o melhor que tens a fazer. - Sabrina falava com voz tranqüila. Reconhecia todos os erros que cometera com Jon e não queria cometê-los de novo na educação do novo filho. Sentia o coração reconfortado só de pensar nisso... Estava à espera de bebê... outro filho... perguntou-se se seria menino ou menina... com quem se pareceria... Aqueles pensamentos fizeram-na sorrir.

- Bolas, mamã! Preciso de fazer esta viagem!

- Tu não precisas de a fazer. Tu queres fazê-la, o que é muito diferente.

Ao ouvir isto, Jon desligou o telefone sem se despedir da mãe, sem voltar a felicitá-la e sem mandar cumprimentos para André. E só voltou a telefonar um mês depois, para a pressionar de novo sobre a viagem. Desta vez, Sabrina consultara André e este dera-lhe a sua opinião sincera, apesar de saber que não iria ser do agrado de Jon.

- Queres saber o que penso disso? - Até então, abstivera-se de se pronunciar sobre aquela questão delicada. Considerava que o modo de ela lidar com o filho era da sua incumbência.

- Claro. Ele quer dar-me a sensação de que lhe devo essa viagem, mas não creio que uma prenda dessas seja boa para ele. Por outro lado, acaba o curso em Harvard e, claro, seria um prêmio maravilhoso... - Olhou para André sem saber o que fazer.

- Creio que é uma prenda demasiado bonita. Penso que, se queria fazer a viagem, deveria ter começado a poupar há muito tempo. Nunca pensou no que te custa satisfazer-lhe os caprichos. Acha que o teu dever é esse. É um modo perigoso de um homem pensar e, mais cedo ou mais tarde, terá um choque doloroso com a realidade. Não podes estar sempre a dar-lhe dinheiro. Quando sair da universidade, tem de aprender a sustentar-se sozinho.

- Concordo. - Pouco a pouco, a sua atitude fora endurecendo perante as constantes exigências de Jon. A sua má-criação levara-o longe de mais. - E a viagem?

- Eu dir-lhe-ia que não. - Sabrina suspirou.

- Penso o mesmo, mas temo dizer-lho.

André fez um gesto de compreensão com a cabeça. Sabia o mau bocado que Jon fizera a mãe passar e tinha imensa pena dela. Era um egoísta, um rapaz de mau caráter e sem sentimentos. E isso não se devia apenas ao fato de ter sido muito mimado. Havia algo mais. Parecia-se demasiado com a avó, e já devia ter nascido assim.

Era muito diferente de Antoine, que se mostrava extremamente simpático com Sabrina. Tinha quase vinte e seis anos e namorava com uma rapariga da cidade. Cada vez que olhava para Sabrina, pensava que as suas suspeitas não haviam sido infundadas, mas nenhum dos dois lhe dissera nada e ele não se atrevia a perguntar. Finalmente, num dia de Maio, olhou para Sabrina e sorriu.

- Posso perguntar-lhe uma coisa?

- Claro.

Sabrina sorriu-lhe. Gostava dele como se fosse seu próprio filho e, em muitos aspectos, era mais carinhoso do que Jon. A explosão provocada pela recusa de Sabrina em custear a viagem para a Europa abrira uma enorme brecha entre mãe e filho. Estivera um mês sem falar com ele, embora mantivesse o propósito de ir a Cambridge, em Junho, assistir à cerimônia de formatura de Jon.

- Sei que a pergunta talvez seja atrevida... - Antoine corou, realçando o tom bronzeado da sua pele. Era um homem de beleza esplendorosa. Perguntou-se qual seria o grau de relacionamento que mantinha com a rapariga com quem saía e se seria ela o motivo do que agora lhe queria perguntar, mas tratava-se de algo muito diferente. - Vai... vou ter um irmão ou uma irmã?

Antoine não conseguia agüentar aquela incerteza por mais tempo. Sabrina corou e, sorrindo, fez um gesto afirmativo com a cabeça. Ele reagiu levantando-a com os seus fortes braços e dando-lhe um beijo na face.

- Quando? - perguntou.

- Pensou dizer-lhe o que ela e André haviam acordado dizer a toda a gente, mas considerou que era melhor contar-lhe a verdade. Ao fim e ao cabo, fora o primeiro a saber, quando ela desmaiara nos seus braços nos vinhedos. Não era parvo e acabaria por saber. A única coisa que ela e André queriam era que ninguém mais soubesse.

- Em outubro - respondeu, sorrindo. - Mas, oficialmente, é dois meses mais tarde.

Antoine esboçou um largo sorriso, grato pela sinceridade de Sabrina.

- Também me parecia, mas não me atrevia a perguntar.- Ele sabia que o pai teria acabado por casar com ela. - O Jon sabe?

- Ainda não. Dizemos-lhe no mês que vem, quando formos para o Este.

- O papá está radiante, asseguro-lhe. - Desde que voltaram de São Francisco, uns dias antes do casamento, não tem parado de se pavonear por aí como um miúdo vaidoso

Não perguntou a Sabrina o que acontecera naquele dia na cidade, mas sabia que desde então tudo mudara para melhor. Era como se agora cada um dos dois tivesse plena consciência do que significava para o outro. E Antoine invejava-os por isso. Gostaria de encontrar uma rapariga que amasse tanto como o pai amava Sabrina, mas não conseguira até ao momento. A rapariga com quem saía era divertida e gostava dela, mas sabia que a relação não iria durar muito tempo. Não era muito inteligente. Nunca se ria das mesmas coisas que ele, o que era muito importante para Antoine.

- Sinto-me muito feliz por vocês os dois e... espero que seja uma menina.

E Sabrina, enquanto caminhavam, de mãos dadas, até casa, sussurrou-lhe:

- Também eu.

O seu estado já começava a notar-se quando andava de calças. A outra casa deveria estar acabada dentro de dois meses. Sabrina queria mudar-se para lá antes da chegada do bebê, embora o fosse ter em São Francisco. André insistia muito nisso. Queria que lhe dispensassem todos os cuidados possíveis, mas, até ao momento, não tivera qualquer problema com a gravidez. Nem sequer a viagem para o Este foi motivo de preocupação. Por outro lado, quando se encontrou com o filho, instalou-se uma atmosfera tensa entre os dois. Jon ignorou André e olhou para a mãe com ar hostil.

- Deves estar encantada com a notícia.

- Que notícia? - Sabrina ficou algo confusa.

- Escrevi-te a semana passada.

- Não recebi carta nenhuma. Deve ter chegado depois de termos partido.

Havia lágrimas nos olhos de Jon quando falou. Sabrina ficou atônita.

- A avó foi atropelada por um autocarro, a semana passada. Teve morte imediata.

Sabrina precisou de alguns instantes para perceber que se tratava de Camille. Então, fitou o filho, surpreendida com a mágoa que ele parecia sentir. Ela não sentiu nada, apenas um certo alívio.

- Sinto muito, Jon.

- Não sentes nada. Tu odiava-la.

Voltava a comportar-se como um garoto. André observava-o do sítio onde se sentara, junto da janela do quarto da residência onde Jon se encontrava alojado. Sabrina estava sentada na cama e o seu nervosismo era evidente. Aumentara de peso e já não conseguia usar as antigas roupas. Tivera de comprar vestidos mais folgados, como o de seda azul que usava naquele momento. Era da mesma cor que os seus olhos e André achava-a ainda mais bonita do que de costume.

- Não a odiava, Jon. Eu mal a conhecia. E o que cheguei a ver dela não me agradou mesmo nada. Terás de reconhecer que, comigo, não se comportou como uma mulher decente. Tentou pôr-me fora da minha própria casa, depois de me abandonar quando ainda era uma criança pequena e de ter permanecido quarenta e seis anos fora da minha vida

Jon encolheu os ombros. Era uma acusação difícil de negar. De repente, olhou para a mãe com ar de surpresa.

- Estás mais gorda. A vida de casada deve estar a fazer-te bem. - Era uma observação desprovida de tato e Sabrina riu-se.

- Sim, está a fazer-me bem, mas não é essa a causa do meu aumento de peso. - Tinha de dizer-lhe algum dia, e tão bom era aquele como qualquer outro. - Sei que vais ficar surpreendido. E, para dizer a verdade, também nos surpreendeu a nós. - Ganhou fôlego e prosseguiu: - Vamos ter um bebê no Natal, Jon.

- Vocês.. O quê? - Pôs-se em pé de um pulo e olhou-os com ar horrorizado. – Não... não é possível.

- É verdade. Vou ter um filho. - Sabrina continuou sentada tranquilamente. Olhou para André e depois pousou os olhos no filho. - Compreendo que seja um choque para ti, mas..

- Como pudeste ter cometido tamanha estupidez? Meu Deus... - Todos se rirão de mim! Tu já tens cinqüenta anos e sabe Deus quantos anos é que ele tem...

Apesar de Jon não se mostrar amável, Sabrina não conseguiu evitar um sorriso. Estava tão furioso que voltava a parecer um garoto. Exibia uma reação muito diferente da de Antoine, que fora a correr comprar o primeiro urso de pelúcia ao bebê. «E não se esqueça de lhe dizer que fui eu quem lho dei!» Não parava de dizer que ia ser uma menina, coisa que pouco importava a Jon, que não parava de andar de um lado para o outro, completamente fora de si.

- Estas coisas acontecem - disse André, tentando acalmá-lo. Lamentava o comportamento de Jon com a mãe, embora não lhe causasse a menor surpresa. Era um rapaz imaturo e extremamente mal-educado, que parecia andar sempre de machado em riste para a mãe.

- Acabarás por te habituar. Como nós. E como o Antoine. E ele é ainda mais velho do que tu. Quatro anos, para ser mais exata.

- Que diabo é que esse patego sabe? A única coisa que sabe fazer é plantar vides. Já sou um homem, por amor de Deus!

André levantou-se de um pulo, dominando a cólera com dificuldade.

- O Antoine é o meu filho. E agora é teu meio-irmão. Como tal, agradeço-te que fales dele com respeito, Jonathan.

Por instantes, os dois homens trocaram furiosos olhares. Jon desviou, então, o seu. Não era parvo e André não era para brincadeiras. Voltou-se, então, para Sabrina e fez-lhe sinal que estava na hora de se retirarem. Jon tinha planos para essa noite. No dia seguinte assistiriam à cerimônia de formatura e depois jantariam com ele e com um amigo. De seguida, André e Sabrina partiriam com ele para Nova Iorque. Jon embarcaria no Normandie três dias depois. André conseguira arranjar o dinheiro, que não era pouco, para pagar a viagem, fato que deixou Sabrina impressionada. De caminho, ela e André queriam ir visitar Amélia.

- Até amanhã, Jon.

Sabrina aproximou-se com a intenção de lhe dar um beijo, mas ele evitou-a. Quando André e a esposa saíram do quarto, Jon encontrava-se de costas voltadas para eles.

- Tenho pena que ele não tenha aceite bem a minha gravidez disse Sabrina para André, enquanto tomavam um táxi para voltar para o hotel.

- Esperavas outra coisa? Ainda é muito jovem. E deu-lhe umas palmadinhas na mão. Quatro anos significam muito nesta idade. O Antoine já é um homem. O Jon, nem pouco mais ou menos. Mas lá chegará. Talvez ache que o nascimento do nosso bebê seja uma ameaça para ele, em termos do que um dia herdará de ti... a mansão... as terras de Napa...

Sabrina ainda não pensara nisso, mas agora assentiu com a cabeça, perguntando-se se aquilo seria o que Jon pensava sobre o assunto.

- Talvez tenhas razão. Que estranho aquilo que aconteceu à Camille, não achas?

- Não se perdeu grande coisa. Era uma mulher tão ambiciosa, malvada e inútil. Devia ter morrido anos antes, como pretendia o teu pai.

André nunca perdoara a Camille aquilo que ela fizera à sua esposa. Durante todos aqueles meses, torturara Sabrina, enquanto ela esperava, impotente, a oportunidade de se defender perante os tribunais.

- É estranho. Não senti nada pela morte dela. O Jon, sim, ficou muito afetado.

- Não me admiro. Já se conheciam há quatro anos e, aparentemente, tinham muito em comum. - Para desgosto de Sabrina.

No dia seguinte, teve lugar a cerimônia de formatura, que decorreu sem o menor problema, e Sabrina chorou na altura em que Jon recebeu o diploma. Por pior que se tivesse portado com ela, sentia-se orgulhosa dele e do resultado de uns estudos que a haviam obrigado a vender as minas, a casa de Napa, os jardins em redor da Mansão Thurston... Ambos haviam conseguido o seu propósito. Tinham mais do que motivos para estarem orgulhosos e para celebrarem; como tal, jantaram juntos nessa noite. Jon embriagou-se, mas Sabrina e André mostraram-se compreensivos. Nessa noite, foi mais amável do que era habitual; muito mais amável do que no comboio para Nova Iorque. Tinha vergonha de ser visto com ela.

- Meu Deus, que pensarão as pessoas? - sussurrou a Sabrina, e esta, com um sorriso nos lábios, respondeu-lhe em voz baixa

- Diz-lhes que como mais do que a conta.

Depois, fizeram perguntas a Jon sobre as suas perspectivas de encontrar emprego. Segundo ele, começaria a trabalhar em setembro, quando voltasse, para o pai de um amigo seu. O nome do amigo era William Blake e quando foram despedir-se de Jon a bordo do navio, este apresentou-o a Sabrina Bill ia acompanhado de uma rapariga deslumbrante. Disseram-lhe que era irmã de Bill e que tinha dezoito anos. A rapariga não tirava os olhos de Jon. Evidentemente, estava mais do que apaixonada por ele. Ela mesma se apresentou a todos, quando soube quem eram.

- Olá, sou a Arden Blake. - Apertou a mão a Sabrina e a André, olhou despercebidamente para o folgado vestido vermelho que Sabrina trazia e pôs-se a tecer elogios a Jon, enquanto este parecia olhá-la com indiferença. - E o papá acha que ele vai fazer coisas extraordinárias. É por isso que vai mandá-lo para a Europa com o Bill, como uma espécie de bônus antes de começar a trabalhar.

Sabrina ficou furiosa ao ouvir aquilo, mas não o deixou transparecer. Jon dissera-lhe que conseguira o dinheiro com o seu próprio esforço, não que iria viajar em primeira classe no Normandie, já para não falar nos hotéis onde ficaria instalado. Sabrina sabia que o velho William Blake era o banqueiro mais importante de Nova Iorque. Fizera alguns negócios com ele antes de vender a mina de John, relacionados com uns investimentos que este realizara. Olhou para o filho com vontade de o estrangular, mas era demasiado tarde para discussões. Em vez disso, continuou a falar com Arden sobre futilidades, recordando-se, com assombro, que dirigia as minas do pai com a mesma idade. Era incrível pensar que aquela rapariga, com a sua doçura e o seu ar de inocência, estivesse tão entusiasmada por Jon

- A mamã, o papá e eu também iremos para a Europa no mês que vem e encontrar-nos-emos todos no Sul de França. A rapariga quase se desvanecia de ilusão ao pensar naquela perspectiva, o que fez sorrir Sabrina.

- Veja lá se o Jon se porta bem - disse em tom de aviso à bela loura de olhos verdes. - Não me fio no meu filho.

- A mamã diz que é o rapaz mais estupendo que conhece. Será o meu acompanhante na minha festa de dezembro.

Quando se ouviu o toque para que os visitantes abandonassem o navio, Sabrina viu Jon beijar Arden nos lábios e, depois, mais três raparigas. No grupo de estudantes que faziam a viagem, todos colegas de turma de Jon, havia quatro raparigas. Sabrina estava preocupada ao pensar nas complicações que podiam derivar daquele fato. Mas o que mais a inquietava era saber que não era Jon que pagava a viagem. Para cobrir aqueles gastos, teria de enviar um cheque com uma quantia elevada ao velho William Blake. Não podia permitir que Jon desfrutasse de umas férias tão caras como convidado de outra pessoa. Só Deus sabia que história dramática ele teria contado aos Blakes.

- Falamos disso quando regressares. - Olhou-o com ar sério e entregou-lhe um sobrescrito que era a prenda de fim de curso que pensara dar-lhe. Sentira-se tão orgulhosa pelo fato de o filho ter conseguido pagar a viagem com os seus próprios recursos, que resolvera oferecer-lhe mil dólares. De qualquer modo, ofereceu-lhos, com a sensação de que era mais uma despesa a juntar a tantas outras. - Sê bom com a Arden Blake - sussurrou-lhe. - É uma doçura. - Mas teve a desagradável sensação de que Jon iria aproveitar-se dela

- Ela é o meu passaporte para o êxito - afirmou, em voz baixa, e piscou o olho.

Sabrina sentiu náuseas ao ouvir aquelas palavras. Mais tarde, viu como a rapariga dizia adeus a Jon, agitando freneticamente a mão, sob o olhar da mãe. Teve vontade de prevenir Arden sobre o caráter do filho, mas como podia fazer semelhante coisa? Naquele momento, Jon encontrava-se na coberta do navio, defronte do seu luxuoso camarote, a sorrir para toda a gente. Sabrina achou-o mais bonito do que nunca. Era um homem alto e magro, de cabelos negros e olhar penetrante; tinha olhos azuis iguais aos de Camille e um rosto que faria morrer qualquer mulher. Pouco depois, quando o navio já se encontrava longe do cais, Sabrina voltou-se para André e, depois de exalar um suspiro, contou-lhe o que Jon dissera sobre Arden Blake. Também lhe explicou como é que ele financiara a viagem.

- Pelo menos, sabes que ele nunca morrerá de fome. É muito inteligente.

- É muito inteligente para o que lhe convém.

Às vezes, gostava que o Antoine fosse um pouco assim. A sua carência de sentido prático é incrível. Só pensa em princípios, ideais e intelectualices.

Sabrina esboçou um sorriso terno. André fizera a descrição perfeita do filho, mas Antoine era um rapaz atilado. Era inteligente, mas desprezava o lado prático da vida. Preferia ler filosofia a comer. Tinha mais tendência a perseguir idéias vagas e abstratas do que a conquistar as de caráter prático. De certo modo, era um sonhador, mas um sonhador brilhante.

- É um moço encantador, André. Devias estar orgulhoso dele.

- Já sabes que estou. - Ajudou-a a entrar no táxi e, quando se sentaram, olhou para a pequena protuberância e sorriu. - E como está o nosso amiguinho? - Sabrina sentira-o mover-se pela primeira vez, umas semanas antes, e agora parecia fazê-lo muito mais. - Anda aos saltinhos?

- Creio que vai ser bailarina. Faz muitas piruetas. - Era mais mexido do que Jonathan ou o bebê que perdera.

- Ou futebolista. - André sorriu.

Nessa tarde, foram visitar a sua velha amiga, que ficou encantada por vê-los. Ela achava que as suas preocupações a respeito da excessiva idade de ambos para ter um filho constituíam um disparate.

- Se eu pudesse, teria um! - Amélia tinha noventa anos e Sabrina ficou surpreendida ao ver o seu aspecto frágil. - Gozem todos os momentos de felicidade que ele vos proporcionar... É a melhor de todas as dádivas.

André e Sabrina olharam para Amélia, sabiam que ela tinha razão. A sua experiência, depois de ter vivido noventa anos de bem-estar econômico e de verdadeira riqueza intelectual e afetiva, era quase infinita em muitas coisas. Era um exemplo para toda a gente... em claro contraste com Camille. Sabrina falou um pouco dela com Amélia, depois tiveram de sair quando a enfermeira entrou no quarto. Era a hora da sesta.

Amélia já dava mostras de cansaço. Despediu-se de ambos com um beijo e, ao fazê-lo, olhou Sabrina nos olhos.

- És igual ao teu pai. Era um homem maravilhoso. Não herdaste nada da tua mãe. - Mas Jon herdara, o que Sabrina lamentava amargamente. Mas, naquele momento, não disse nada a esse respeito. - Dai graças ao Céu por essa criança. Não sei por que, mas tenho o pressentimento de que será uma menina. Pôs a mão na barriga de Sabrina e beijou-a de novo.

No dia seguinte, voltaram a apanhar o comboio para regressar a casa e Sabrina dispôs-se a passar o verão em Napa. Em agosto, ficou terminada a nova casa, para onde se mudaram de imediato. Mas, em Setembro, transferiram-se para a Mansão Thurston, para que Sabrina pudesse ficar perto do hospital. Quando Jon voltou da sua viagem à Europa, telefonaram-lhe. Disse que passara umas férias maravilhosas e referiu-se algumas vezes a Arden Blake. Já começara a trabalhar no seu novo emprego, que, na sua maneira de ver, era quase como um jogo, graças a Mr. Blake. Sabrina enviara a este um cheque para cobrir os gastos da viagem de Jon. Depois de ter devolvido o cheque uma ou duas vezes, foi finalmente aceite pelo banqueiro, que disse a Sabrina que, tal como toda a sua família, gostava muito de Jon, e este também parecia gostar dele.

- Vou passar as férias com eles em Palm Beach - grasnou Jon, para decepção de Sabrina.

- Pensei que virias a casa. Nessa altura, o bebê já terá nascido...

Mas Jon não estava interessado nisso.

- Não terei tempo de ir vê-los. Só disporei de duas semanas. Talvez o faça no próximo verão. Os Blakes vão alugar uma casa em Malibu e, provavelmente, passarei algum tempo com eles.

- Não tens de trabalhar?

- Trabalho o mesmo que o Bill. E tenho as mesmas férias que ele. É essa a combinação.

- Isso é extremamente cômodo.

- Por que não? Trabalho o mesmo que ele.

- Mas ele não estará em posição de vantagem?

- Talvez, e talvez também seja esse o meu caso. - Jon mostrava-se extremamente confiante. - A Arden está louca por mim e Mister Blake acha que sou o máximo.

- Parece que tiveste uma grande sorte ao encontrar esse emprego. Sem sombra de dúvida. - E quando Sabrina tentou discutir a forma como ele conseguira o dinheiro para a viagem, Jon ripostou de imediato.

- Não tinhas nada que a ter pago. Mister Blake disse que a pagava.

- Não podia permitir uma coisa dessas. E tu também não, Jon.

- Oh, por amor de Deus, mamã! Se vais fazer um discurso moralista, vou ter de desligar.

- Devias pensar no que fazes, Jon. Particularmente, no que se refere à Arden Blake. Não te aproveites dessa rapariga. É uma criança doce e ainda cheia de inocência.

- Por amor de Deus! Já tem dezoito anos!...

- Sabes bem o que quero dizer. - Jon sabia-o bem, mas recusava-se a admitir.

- Não te preocupes. Não vou violar ninguém.

- Há muitas maneiras de fazê-lo.

Sabrina continuava preocupada com ele, embora parecesse feliz em Nova Iorque, a julgar pelos postais que lhe mandava de tempos a tempos. Chegou Outubro, e Sabrina perdeu o interesse em tudo menos nela. O bebê estava cada vez maior e a futura mãe sentia-se cada vez mais desconfortável. Mal conseguia subir as escadas da Mansão Thurston, e quando o grande dia chegou sem que nada sucedesse, Sabrina e André começaram a dar grandes passeios a pé.

- Ela deve sentir-se bem lá dentro - sussurrou Sabrina. - Ou me engano muito ou não sairá tão cedo. - Olhou com ar triste para André e este riu-se. Mal podia andar. Tinha de sentar-se ao fim de alguns passos. Sentia-se uma velha de cem anos com cento e cinqüenta quilos, mas não perdera o sentido de humor.

- Que farás se for menino? Não paras de tratar o bebê por «ela».

- Já nascerá acostumado, pobrezinho.

Contudo, três dias depois do final do tempo, Sabrina acordou André do seu sono profundo, às quatro da madrugada, com o rosto iluminado por um radioso sorriso.

- Chegou a hora, meu amor.

- Como é que sabes? - Ainda estava meio adormecido e esperava que a coisa se prolongasse até ao dia seguinte. Ou pelo menos, até à manhã seguinte.

- Confia em mim. Eu sei.

- De acordo.

André virou-se penosamente, mas acabou de despertar por completo num ápice ao ver Sabrina dobrar-se, de repente, sobre si mesma. Saltou da cama, rodeou-a com os braços e, depois, conduziu-a cuidadosamente até um cadeirão, enquanto ela o olhava com o pânico estampado no rosto.

- Acho que esperei demasiado... - Arquejava ligeiramente e estava com um ar abatido. - Não queria acordar-te... Primeiro, não tinha a certeza... oh... - Agarrou-se ao braço do marido, que se sentiu subitamente aterrorizado.

- Oh, meu Deus... já telefonaste ao médico?

- Não... é melhor... oh, André... oh, meu Deus... telefona...

- O que se passa? - Com ar de pânico, conduziu-a de novo até à cama e pegou no telefone. - Que queres que lhe diga?

Sabrina deixou escapar um gemido e torceu-se na cama.

- Diz-lhe que já sinto a cabecinha... - continuou a gemer enquanto ele marcava o número. De repente, soltou um grito agudo.

André nunca se encontrara em semelhante situação. Quando Antoine nascera, esperara na sala do hospital durante várias horas até tudo ter terminado. Não chegara a ver a mulher em trabalho de parto.

O médico atendeu e André explicou-lhe o que Sabrina dissera.

- Sente uma forte pressão para baixo?

André tentou perguntar a Sabrina, mas esta não o ouvia. Agarrava-se desesperadamente ao seu braço e tinha o rosto crispado pela dor. Os acontecimentos haviam-se sucedido tão rapidamente que o desconcerto de André era absoluto.

- Sabrina, escuta-me... O doutor quer saber se... Sabrina... por favor...

O médico que os ouvia no outro extremo da linha, gritou, então, para André:

- Telefone para a Polícia! Vou já para aí.

- Para a Polícia? - André pareceu horrorizado, mas não tinha tempo de pensar nem de telefonar a quem quer que fosse. Sabrina rastejava, literalmente, pela cama e não parava de soluçar.

- Oh, meu Deus... oh, André... por favor...

- Que posso fazer?

- Ajuda-me... por favor...

- Querida...

André tinha os olhos inundados de lágrimas. Nunca se sentira tão desesperado. Fora mais fácil arrancá-la das garras do médico que se dispunha a fazê-la abortar sete meses antes. Aquilo só lhe exigira um pouco de sangue-frio e alguma coragem. Isto requeria conhecimentos especiais, de que ele não fazia a menor idéia. Mas quando Sabrina se voltou para ele com ar desamparado, contorcendo-se com dores, esqueceu-se, de repente, de tudo o que não sabia e, instintivamente, estendeu os braços para ela, agarrou-lhe as mãos e falou-lhe com voz meiga. Já sabia que não a levaria para o hospital. Sabrina acordara demasiado tarde e os acontecimentos haviam-se precipitado. Depois de se ter despido completamente, jazia só coberta por um lençol, tal como acontecera muitos anos antes, de modo que a situação não lhe era estranha. Era como se se tivesse esquecido de tudo e, de repente, se lembrasse perfeitamente desses instantes, como se fosse um sonho distante. Olhou para André e, pela primeira vez numa hora, quase lhe sorriu. Tinha o rosto com olheiras e coberto de suor. De repente, fez pressão com todas as suas forças, enquanto ele lhe segurava os ombros. Quando as dores abrandaram, levantou os olhos para ele e sorriu.

- Eu disse-te... eu queria... que o bebê... nascesse... nesta casa... - - Ao dizer estas palavras, fez força de novo e André segurou-lhe, uma vez mais, os ombros, de modo que tinha a mesma perspectiva que ela e não sabia o que estava a passar-se. Não conseguia ver nada e a única coisa que sentia era a tremenda tensão do corpo da esposa de cada vez que fazia força. Então, lentamente, Sabrina começou a gritar, num estado de profunda agonia, enquanto todo o corpo ficava em tensão; desta vez quase se sentou. - Oh, André... oh, meu Deus... oh, não... André...

Tomou-a entre os braços e, com os olhos cheios de lágrimas, acariciou-a. Sabrina soltou um grito agudo e depois outro, apoiando-se em André de cada vez que as dores aumentavam. De repente, ele sentiu que o ritmo das contrações estava a aumentar. Ele sabia... ele sabia... era como se sentisse o mesmo que ela.

- Vamos... continua... continua, querida... Sim, tu consegues...

- Não consigo!... - Sabrina gritava de dor.

André tinha vontade de tirar o bebê com as próprias mãos para acabar com o sofrimento de Sabrina.

- Tu consegues!

- Oh, meu Deus... oh, não... André...

Sabrina torceu-se de novo na cama, atirou violentamente o lençol para trás, agarrou-se à cama e fez força até não conseguir respirar, nem mexer-se, nem gritar... Subitamente, vislumbrou-se uma cabecinha redonda... e então quem gritou foi André.

- Oh, meu Deus... Sabrina!

André não conseguia acreditar no que via. A cabeça estava voltada para eles, como se já soubesse o que tinha de fazer. Ele passou, então, para o outro lado da cama e agarrou a cabecinha com extremo cuidado, enquanto Sabrina voltava a fazer força, deixando os pequenos ombros livres. E a criança chorou pela primeira vez na vida, enquanto André a ajudava a sair suavemente do útero da mãe. Sabrina tanto chorava como ria e, ao fim de alguns instantes, depois de um pequeno esforço final, André tinha o bebê nas mãos. Olhou para o novo ser como se se encontrasse perante um milagre. E, mostrando o bebê à mãe, exclamou:

- É uma rapariga! - André não conseguiu conter as lágrimas. Nunca vira nada tão bonito como a bebê que segurava nas mãos, nem como a mulher, que tanto amava. Foi até à cabeceira da cama, susteve os ombros de Sabrina para a ajudar a superar os tremores que ela sentia, voltou a cobri-la com o lençol e pôs-lhe o bebê nos braços. - Oh, é tão bonita!... Bonita como tu...

- Amo-te tanto... - O cordão umbilical ainda unia mãe e filha, e Sabrina sentia-se como se tivesse acabado de escalar o Evereste. Olhou para André com renovado amor e este beijou a mãe e depois a filha.

- És uma mulher extraordinária.

Era uma experiência que nunca esqueceriam. André, ao olhá-la, sabia que nunca a amaria tanto como naquele momento. Nunca vira imagem mais terna e bela do que Sabrina com a filha nos braços.

Então, lentamente, e ainda a tremer, sorriu para o marido com uma expressão de profunda alegria.

- Não foi assim tão mau para uma velha como eu, pois não, André?

Ele estava completamente apaixonado por ela e pela filha. Fora a coisa mais maravilhosa a que alguma vez assistira. E quando o médico chegou numa ambulância, dez minutos depois de o bebê ter nascido, André recebeu-o com um largo sorriso nos lábios.

- Boa noite, meus senhores.

Estava com um ar tão feliz e orgulhoso que o médico e a enfermeira que o acompanhava deram-se conta de que haviam chegado demasiado tarde. O médico precipitou-se, então, pelas escadas acima e encontrou Sabrina a embalar a filha.

- É uma rapariga! exclamou ela, radiante, e o pai e o médico riram-se.

Então, este fechou a porta, olhou para a mãe e para a filha, cortou o cordão umbilical e certificou-se do bom estado físico de Sabrina. Depois, algo estupefato, disse:

-Tenho de reconhecer que... Não esperava que as coisas corressem com tanta facilidade.

- Nem eu - proferiu ela, a rir. E, pegando na mão de André, disse-lhe, com um olhar de gratidão: - Não teria conseguido sem a tua ajuda.

Ele ficou surpreendido com aquele elogio imerecido.

- Limitei-me a assistir. Tu é que fizeste tudo. - Sabrina olhou para o bebê, que nesse momento dormia tranquilamente a seu lado.

- Foi ela que fez tudo sozinha. - Era um milagre ter a filha a seu lado.

O médico voltou a examinar a mãe. Ficou satisfeito. Por outro lado, a pequenina não podia estar melhor. Pesaria uns três quilos e meio, ou talvez mais. Tanto a mãe como a filha estavam ótimas.

- Eu devia levá-la para o hospital para descansar. O nascimento, porém, fora tão normal que não havia necessidade disso. - O que acha?

Sabrina não se mostrou muito agradada com a idéia.

- Prefiro ficar aqui

- Foi o que pensei. - O médico não se mostrou surpreendido.

- Bem... permito que fique em casa, mas avisem-me se surgir algum problema, algo anormal ou uma inesperada subida de temperatura. - E, agitando um dedo para Sabrina, acrescentou: - E, desta vez, não espere tanto para dar o alarme!

- Eu pensava que podia esperar mais. Não queria acordar toda a gente a meio da noite

Os dois homens riram-se. Acabara por acordar e de uma forma muito mais dramática. Naquele momento, eram só cinco e um quarto e ainda estava escuro. Dominique Amélie de Vernay acabava de fazer a sua entrada no mundo. Só se decidiram por «Dominique» depois de considerarem muitos outros nomes, mas há muito que estavam de acordo quanto ao segundo nome.

Quando o médico partiu na ambulância, André levou uma xícara de chá à esposa. A criada, que esperara pacientemente no rés-do-chão pelo nascimento da bebê, subiu para a lavar, devolvendo-a à mãe rapidamente. Depois, mudou a roupa da cama e lavou Sabrina. Quando estava de novo deitada a beber o chá e com Dominique ao peito, André, enquanto o céu empalidecia e o Sol fazia a sua ascensão no firmamento, contemplou-as com ar incrédulo. Subitamente, riu-se e disse:

- Bem, o que vamos fazer hoje, meu amor? - Olharam um para o outro, perplexos, e desataram a rir.

A espera fora longa, mas o desenlace não podia ter sido mais rápido e feliz. Sabrina estava a deixar-se vencer pelo sono, mas, antes de adormecer, recordou o lugar horroroso do Bairro Chinês... e viu André a falar serenamente com o homem que empunhava a pistola... a fuga de ambos pelas escadas abaixo... e agora, como que por milagre, encontrava-se na sua cama com uma bebê adormecida a seu lado e com o marido junto a ela.

Quando Sabrina acordou, telefonaram a Antoine. Ia a sair para os vinhedos e atendeu o telefone com ar distraído. André foi direito à questão.

- É uma menina!

- Já? - Antoine ficou emocionado. - Meu Deus, que maravilha!

- Chama-se Dominique, é muito bonita e tem duas horas e... - Olhou para o relógio. - E catorze minutos.

Antoine, radiante de felicidade, mal conseguia articular as palavras com alguma coerência.

- Oh, meu Deus... papá... C’est formidable!... Como está a Sabrina?... Está no hospital?

André riu-se do desconcerto do seu primogênito.

- As respostas a tudo isso são sim, muito bem e não. Sim, está. formidable, está ótima, e não se encontra no hospital. A bebê nasceu em casa. - Sabrina não parava de sorrir enquanto André explicava tudo ao filho. Nunca esqueceria como ele a ajudara e animara. Para Sabrina, tinha muita importância que André tivesse partilhado aqueles momentos com ele.

- Como? - Antoine ficou pasmado. - Em casa? Mas pensei que...

- Também eu. Mas a Sabrina pregou-me a partida. Não quis interromper o meu sono e avisou-me demasiado tarde. E... voilà, Mademoiselle Dominique chegou uns vinte minutos depois de eu acordar. E o médico chegou dez minutos depois disso.

- É incrível!

Com os olhos inundados de lágrimas, André tinha a sensação de estar a sonhar.

- Sim, monfils, é incrível. Foi a coisa mais bonita que vi em toda a minha vida.

André só desejava uma coisa a Antoine: uma mulher que lhe tivesse tanto amor como aquele que ele tinha por Sabrina e o nascimento de um filho partilhado com a esposa Ao fim e ao cabo, estava feliz por tudo ter ocorrido na sua presença. O parto fora muito mais difícil e muito mais fácil do que ele pensara. Fora o trabalho mais duro, mais doloroso, mais aterrador e mais bonito de quantos realizara na sua vida., e Dominique nascera quase por si mesma. Fosse como fosse, não se podia negar que, desta vez, Sabrina tinha tido muita sorte. Quando Antoine nascera, a mãe estivera em trabalho de parto durante dois dias.

- Tu fazes isso muito bem, sabes? - gracejou André, nessa tarde, enquanto estavam deitados lado a lado. Sabrina estava a comer e Dominique dormia profundamente no berço que fora de Jon, ornado com organdi branco e laços de cetim da mesma cor. Temos de repetir um dia destes.

Sabrina olhou, atônita.

- Olha lá... o parto não foi assim tão fácil... - Estava muito cansada e dorida, mas não surgira nenhum daqueles sinais de perigo indicados pelo médico. Não tenho muita vontade de voltar a tentar.

Ambos sabiam que, na sua idade, seria pouco provável que voltasse a ter outra oportunidade como aquela, mas davam graças a Deus pela dádiva recebida.

Ficaram algo desgostosos por Jon ter ido almoçar quando lhe telefonaram. Sabrina falou com a secretária que o filho partilhava com o jovem Bill Blake e Jon telefonou-lhe, mais tarde, para casa. Parecia um pouco embriagado e, ao princípio, não se mostrou muito interessado em saber qual a razão do telefonema. Todavia, quando ouviu a notícia, instalou-se tal silêncio fúnebre do outro lado da linha, que Sabrina pensou que a ligação caíra.

- Jon?.. Jon?... Jon?... Jon?... Oh, bolas... André, acho que... - E, então, Jon voltou a ouvir-se.

- Não acredito que tenhas levado a gravidez até ao fim. - Há quatro meses que não se viam. - Ao princípio, ainda pensei que não irias levar essa loucura até ao fim. Tinhas essa idéia fixa. - E soltou uma gargalhada de bebedolas que enojou Sabrina.

- Chama-se Dominique e é pequenina... e muito bonita. Espero que possas vê-la em breve...

Jon dera-se conta de uma coisa e, depois de contar pelos dedos, perguntou:

- Ouve lá... não esperavas a bebê só para dezembro, mamã? Suponho que só te casaste em abril, uma coisa dessas... - Jon não tinha nada de parvo.

- É verdade. Mas a menina chegou dois meses antes do previsto.

- Não me digas que o francês se aproveitou de ti antes do casamento? Não admira que tenham ficado surpreendidos, como me disseste em junho. Só podiam ter ficado! - Jon ria a bandeiras despregadas e Sabrina só tinha vontade de o estrangular.

- Bem, Jon, vê lá se vens ver a tua irmãzinha.

- Claro, mamã. Oh... e os meus parabéns aos dois... - Mas a voz não podia ser mais falsa.

Que diferente aquela conversa telefônica da que mantivera com Antoine, pensou ela ao desligar. Antoine recebera a notícia com uma alegria e uma emoção que o puseram à beira das lágrimas; Jon mostrara-se cínico, ofensivo e insinuara que o bebê fora concebido antes do casamento. Sabrina olhou para André com os olhos marejados de lágrimas e a alma dilacerada pela decepção.

- Não foi nada amável. Parecia uma menina pequena.

André deu-lhe umas palmadinhas na mão e beijou-a na face.

- Está com ciúmes. Foi filho único durante muito tempo. - Sabrina procurava sempre arranjar desculpas para o filho, mas estava cada vez menos de acordo com ele.

- Também o Antoine foi. O Jon é uma pessoa egoísta e de mau caráter, e espero que um dia tenha o que merece. Não se pode tratar as pessoas da maneira que ele o faz, sem se pagar o devido preço. - E, ao dizer isto, recordou-se de Arden Blake e desejou ardentemente que não viesse a sofrer às mãos de Jon.

Só voltaram a vê-lo no ano seguinte. Apareceu quando Dominique já tinha oito meses. Não lhe dedicou a menor atenção quando entrou na Mansão Thurston. Olhou à sua volta como se fosse o dono da casa. A mãe observou-o com certa surpresa. Estava ainda mais bonito do que no ano anterior, quando se formara. Com vinte e três anos fazia-os daí a um mês, era um jovem alto e magro, extremamente charmoso. Havia nele algo de tão sofisticado que quase parecia decadente. Sabrina enleou-o nos braços e, com um sorriso nos lábios, olhou-o nos olhos. Não o voltara a ver desde o dia em que, um ano antes, se despedira dele no Normandie, e estava muito contente em vê-lo de novo. Sabrina tinha a pequenina ao colo, que se riu ao ver Jon, mas este não lhe ligou a mínima importância

- Bom, que tal achas Miss Dominique? - Sabrina olhou para o filho com ar orgulhoso.

- Quem? Ah, essa...

Sabrina não gostou de tanta indelicadeza e repreendeu-o.

- Ouve, Jon, agradeço-te que não venhas com esses ares de homem importante e altivo. Lembro-me de quando tinhas esta idade, e não foi há muito tempo.

Jon sorriu e pareceu mais afável.

- Está bem... está bem... é muito bonita. Mas não são as raparigas dessa idade aquelas de que gosto mais.

- E de que idade é que gostas mais? - perguntou-lhe Sabrina, em tom de provocação, enquanto subiam as escadas e se dirigiam ao quarto dele. Nada mudara. Tinha sempre o quarto pronto para o receber, por pouco freqüentes que fossem as suas visitas.

- Oh, entre os vinte e um e os vinte e cinco.

- Suponho que isso deixa a Arden Blake fora das tuas preferências. - Ela não se esquecera do comentário que Jon fizera acerca do fato de Arden ser o seu passaporte para o êxito, o que a irritara. - Neste momento, não deve ter mais de dezenove anos.

- Boa memória, mamã. Dezenove anos, precisamente. Mas fiz uma exceção especial para ela.

- Pobre rapariga. - Sabrina revirou os olhos.

- Não te preocupes com isso A propósito, ela e o Bill regressam de Malibu na próxima semana. Podem cá ficar?

- Se se portarem bem, sim. Poderão, inclusive, ir conosco para Napa, se tu e o Bill não se importarem de partilhar o mesmo quarto. Podereis ocupar os dois quartos de hóspedes que aí temos. Adoraria que viessem - disse Sabrina, com um sorriso de felicidade. Era bom voltar a estar com ele, apesar das suas impertinências.

- Suponho que já não vives na mesma lixeira.

- Jon!

- Bem, era o que era.

- Foi um alojamento temporário, enquanto o André construía a casa nova. Há também um chalé para o Antoine.

- Ainda anda por aí? - perguntou ele, com ar de enfado.

- Dirige os vinhedos com o André. A propriedade não tem nada de pequena e as coisas começam a avançar de forma satisfatória. O André não conseguia tratar de tudo sem ele. - Sabrina lembrou-se de Jon lhe ter chamado «campônio francês», mas, desta vez, não dissera nada depreciativo.

- Talvez passemos uns dias lá, se tivermos tempo. Eles preferem passar a maior parte do tempo aqui, em São Francisco.

- Há muito que ver na cidade. Mas talvez também gostem de Napa.

Quando os irmãos Blake chegaram, mostraram-se encantados com o vale de Napa. Jon estava visivelmente aborrecido, mas Bill ficou maravilhado com a extensão dos vinhedos. Disse que o pai, noutros tempos, realizara importantes investimentos em vinhos, em França, e fizera uma fortuna com eles.

- Eu sei disse André, sorrindo. O vosso pai e eu saímo-nos bastante bem naquele negócio.

Bill ficou entusiasmado ao dar-se conta de quem era André. Voltou-se para Jon e explicou-lhe que André e o pai haviam-se conhecido há muitos anos. André recordou-se, então, que o velho Bill Blake não assistira, no ano anterior, à cerimônia de formatura de Jon, nem estivera a despedir-se dele e de Bill quando embarcaram para a Europa.

- A próxima vez que for a Nova Iorque, irei visitá-lo. Dá-lhe cumprimentos da minha parte.

- Assim farei.

Depois daquela conversa, Jon pareceu mostrar maior interesse por André, embora ignorasse Antoine por completo. Sabrina e Arden haviam ido dar um longo passeio com Dominique, levando a menina num carrinho que Sabrina descobrira numa loja de antiguidades. Percorreram, durante horas, os caminhos que ela conhecia desde pequena. Quando regressaram, encontraram os quatro homens deitados à volta da piscina. Arden cumprimentou André e Antoine, que ainda não tivera ocasião de conhecer. Sabrina reparou que os olhos de Antoine quase lhe saíam das órbitas quando apertou a mão da rapariga. Já não tirou os olhos dela o resto da tarde e, nessa noite, ficaram a falar durante horas, enquanto Bill e Jon foram jogar pool à cidade. Estavam habituados a deixar Arden em casa e nunca nenhum deles se preocupava com esse fato Antes de sair, Bill perguntou a Antoine se queria acompanhá-los, mas ele respondera que tinha coisas que fazer em casa, o que pareceu esquecer assim que eles partiram.

Nessa noite, depois de pôr a bebê no berço, Sabrina sorriu ao contar o sucedido a André. Nesse momento, Antoine e Arden estavam sentados no alpendre e falavam animadamente

- O Antoine está pelo beicinho. Não reparaste.

- Reparei - respondeu André, pensativo. - Achas que o Jon não vai gostar. Ele parece ter um leve fraquinho por ela.

- Não sei se o terá. - Sabrina sentou-se na cama. - O ano passado, disse uma coisa de que não gostei nada. Referiu-se a ela chamando-lhe o seu «passaporte para o êxito», e sempre tive a esperança de que não estivesse a falar a sério. - O fato de se casar com a Arden asseguraria a Jon um cargo permanente no banco do Bill Blake, mas não gostaria que o meu filho se aproveitasse dela dessa maneira. Não que Jon desse ouvidos àquilo que a mãe lhe dizia, e Sabrina também não tinha quaisquer ilusões a esse respeito. André não deu grande importância ao comentário da esposa.

- Não creio que dissesse com má intenção. Provavelmente uma gracinha que lhe saiu na altura.

- Oxalá que sim. De qualquer modo, o Jon não parece muito interessado nela. Demonstrava-o o fato de não ter tido a menor dúvida em deixá-la sozinha para ir jogar pool.

- O mesmo não posso dizer do Antoine - afirmou André, sorrindo.

Antoine acabara de romper com a rapariga da cidade e há alguns meses que dava a impressão de se sentir solitário, coisa que não se devia sentir naquela noite na companhia de Arden Blake. Os dois brincaram interminavelmente com a bebê, embalando-a, rindo e pegando-lhe ao colo. Ao contrário de Jon, Antoine parecia encantado com Dominique.

No dia seguinte, Arden levou a pequenina para a piscina e brincou com ela. Quando Antoine regressou depois de uma reunião na cidade com alguns distribuidores importantes, vestiu os calções de banho e juntou-se a Arden na piscina. Falaram e riram, brincaram com Dominique e, finalmente, entregaram-na a Sabrina, continuando a falar sem descanso, sob o olhar desta. Enquanto brincavam com a bebê, pareciam um casalinho recém-casado. E já tinham idade suficiente para isso. Havia algo de tranqüilo e de caloroso que emanava deles. Era como se tivessem saído do mesmo molde; até o louro dos cabelos tinha o mesmo tom. Pareciam o par ideal, embora nenhum dos dois se apercebesse disso. Ao contrário de Jon, que, depois de mergulhar na piscina, emergiu entre Arden e Antoine. Nessa noite, Jon e Bill levaram a rapariga ao cinema, mas não convidaram Antoine. Sabrina encontrou-o sentado no alpendre, perdido nos seus pensamentos, com um cigarro nos lábios e um copo de vinho da sua própria colheita na mão.

- Não te ocorre outra coisa melhor do que beber essa coisa? - gracejou Sabrina, sentando-se na cadeira de balanço que havia a seu lado. - Sentes-te mesmo bem, meu querido?

Sabrina estava sempre preocupada com ele. Era tão calado que nunca se sabia o que lhe ia na cabeça. Nunca queria aborrecer os outros e assumia demasiadas responsabilidades. Mas, precisamente por isso, era um maravilhoso chefe de operações para André e uma excelente ajuda para os dois.

- Estou bem. - Ainda conservava o mesmo sotaque francês do dia da chegada. Ça vá.

- É bonita, não é? - Ambos sabiam de quem falavam: Arden Blake.

- Mais do que isso - sussurrou. - É uma rapariga diferente das da sua idade. É muito compreensiva e tem grande profundidade de sentimentos. Sabia que o ano passado trabalhou durante seis meses com um missionário, no Peru? Disse ao pai que, se ele não a deixasse ir, sairia de casa. O homem teve de ceder. Fala fluentemente o espanhol e o francês. E sabe-se lá quantas coisas mais fervilham naquela adorável cabecinha loura. Suspeito que muitas mais do que o Jon imagina.

- Não acho que ele esteja interessado nela. - Sabrina continuava a achar que não, mas Antoine apercebera-se melhor da situação.

- Ele só está à espera da ocasião adequada. Neste momento, ele só quer brincar com ela, e a Arden é ainda muito jovem. - Antoine fitou-a com uma expressão de experiência e sabedoria que ela nunca vislumbrara nele e que naquele momento lhe provocou uma profunda tristeza. - Ele vai casar com ela um dia. A Arden ainda não sabe nada, mas estou seguro disso. Quer conservá-la em gelo até então, e se alguém se aproximar de mais... - Ambos pensaram na reação de Jon ao levar a rapariga consigo nessa noite, apesar de nem ele nem Bill terem o menor interesse em que ela os acompanhasse. Mas Antoine aproximara-se demasiado. - Sei que tenho razão.

Sabrina mostrou-se franca com ele.

- Se ele se casar com ela, será por razões obscuras, Antoine.

- Sei disso. - Esboçou um sorriso triste. - E estranho quando vimos o futuro dessa maneira. Às vezes, é tão fácil prever o que as outras pessoas farão. Podemos ter o desejo de as deter, mas não conseguimos.

- Neste caso, conseguirias, Antoine. - De repente, desejou que ele conseguisse o que queria obter da vida, doesse a quem doesse. Antoine não devia absolutamente nada a Jon e este nunca mostrara o menor apreço por ele. Sem saber exatamente por que, não queria que Jon conquistasse Arden Blake. Não por ele, mas pela rapariga. Sabia que a sua união seria um tremendo erro. - Vai atrás dela, se é esse o teu desejo.

- É demasiado jovem. - Suspirou, depois sorriu. - Além disso, está louca por ele. Ao que parece, desde os quinze anos. Não é fácil lutar contra isso. Talvez se dê conta da realidade dentro de alguns anos, mas não agora.

- Dará, com o tempo. - O Jon não se mostra muito afetuoso com ela.

- Isso só piora as coisas. As raparigas dessa idade têm algo de masoquistas. - Antoine exibia uma lucidez impressionante para a sua idade.

- Porque não passas algum tempo com ela?

- Já passei, hoje. E não creio que fique muito tempo por cá.

Então, Sabrina teve uma idéia e apresentou-a a André nessa noite.

- Não achas que deverias mandar o Antoine a Nova Iorque tratar do plano de vendas que discutimos?

André fitou-a.

- Por quê? Pensei que tínhamos combinado ir este outono.

- Porque não o deixas ir?

- Não queres ir?

- Podemos ir noutra altura.

André olhou-a, algo desconcertado, e esboçou um sorriso malicioso.

- Estás outra vez grávida?

- Não, só pensei que a viagem lhe faria bem.

- Aí há gato. Tu não me enganas. Que tens na manga, minha bruxinha?

André atraiu-a para si, mas ela pôs-se rígida.

- Pára. Estou a falar a sério.

- Eu sei. Mas de quê?

- Está bem, está bem... - E pô-lo ao corrente do interesse de Antoine por Arden Blake.

- Porque não o deixas tratar da sua vida sozinho? Tem vinte e sete anos e já sabe tomar conta de si próprio. Se quiser ir a Nova Iorque, pode pagar do seu bolso. - Recebia um excelente salário, mas aquele não era o fulcro da questão.

- Então, não irá. É demasiado cavalheiro para se interpor entre o Jon e a rapariga.

- Talvez ele tenha razão. Porque não há-de manter-se à margem do assunto? - André parecia preocupado, mas ela não estava disposta a ceder.

- É a rapariga ideal para o Antoine.

- Então deixa-o fazer as coisas à maneira dele.

- Caramba, és impossível!

Todavia, o que Sabrina acabava de dizer-lhe não caiu em saco roto. No dia seguinte, André, como que por acaso, falou com Antoine sobre Arden, e não disse nada quando ele desapareceu durante toda a tarde para voltar tostado pelo sol e com a alegria estampada no rosto, depois de um piquenique perto de um nacho que haviam descoberto Antoine deu-lhe a provar alguns dos vinhos. Provavelmente, beijara-a uma ou duas vezes e, nessa noite, enquanto Bill e Jon saíram atrás de umas coristas de que haviam ouvido falar, levou-a a dar um passeio tranqüilo E quando Arden deixou Napa na companhia de Bill, para voltarem para Malibu, disse que esperava voltar a ver Antoine. Jon só ficou mais alguns dias e depois foi reunir-se a eles. Mais tarde, Jon e Bill apanharam o comboio de regresso a Nova Iorque em Los Angeles Então, Antoine descobriu que tinha um assunto a tratar em Malibu e foi ter com Arden antes que ela partisse com a mãe. Mas disse muito pouco sobre aquela viagem a Sabrina e a André

- Bem, vais mandá-lo para Nova Iorque?

Sabrina, que vivia a situação como se fosse o próprio Antoine, observou um sorriso misterioso nos lábios do marido.

- Sim, mas só porque ele me pediu. Quer um pretexto para ir vê-la a Nova Iorque, embora não me tenha apresentado as coisas dessa maneira.

Entretanto, Jon telefonou de Nova Iorque. Parecia novamente interessado em Arden. Disse que a havia levado a uma série de sítios, a festas, ao teatro. Sabrina sabia que o filho andava a brincar com a rapariga. Antoine tinha razão. Queria conservá-la em gelo, guardá-la para ele, e Arden ainda era muito jovem para se aperceber disso. De qualquer modo, Antoine foi vê-la a Nova Iorque e voltou deprimido da viagem

- O que se passou? Ele disse-te alguma coisa? - perguntou Sabrina a André logo que pai e filho tiveram a primeira conversa

- Sim, que a rapariga está apaixonada pelo Jon.

- Não é possível. Parecia louca pelo Antoine quando cá esteve.

- O Jon tem andado a paparicá-la e a Arden até pensa que poderão ficar noivos. Disse ao Antoine que não seria justo não contar-lhe a verdade. E, desta vez, nem sequer o beijou. Agora não te atrevas a dizer-lhe que te contei isto.

- Claro que não. - Sabrina parecia tão deprimida como Antoine. - Merda. Esse rapaz é maquiavélico.

- Não digas essas coisas do teu filho. E aconselho-te a que te mantenhas à margem do assunto. O problema é entre eles os três. Se o Antoine a quer tanto, lutará por ela. Se o Jon andar a fingir, acabará por desistir. E se a Arden sabe o que quer, escolherá aquele de que mais gostar. O melhor que podes fazer é deixá-los em paz.

- É que não consigo agüentar esta incerteza.

Os dois acabaram por rir. Mas ela sabia que André tinha razão.

Passaram alguns meses sem que Antoine voltasse a falar em Arden. E Sabrina não viu chegar nenhuma carta dela, embora ele pudesse tê-las recebido enquanto ela se encontrava na cidade. E quando, no Natal, falaram com Jon ao telefone, Sabrina só teve vontade de lhe torcer o pescoço.

- Como está a Arden, querido?

- Quem?

- A Arden Blake. - «A rapariga que te apressaste a separar do Antoine», pensou, mas conteve-se. - A irmã do teu amigo Bill.

- Oh... claro. Está boa. Agora, ando com uma rapariga que se chama Christine.

- Donde é?

- Creio que de Manchester. - Riu-se. - É modelo aqui, em Nova Iorque. É inglesa, loura, muito alta... e muito sexy. Moreno como era, tinha um fraquinho por louras.

- É boa moça? - perguntou Sabrina, fazendo rir André, que se encontrava junto ao telefone para cumprimentar Jon. - Deixa lá. - Ficou encantada por saber que o filho deixara Arden e pensou que aquela informação podia ser útil a Antoine. - Não tens visto a Arden?

- Uma vez por outra. Vê-la-ei esta semana quando for passar uns dias com eles em Palm Beach.

- E quando é que cá vens?

- Provavelmente no próximo verão. Talvez leve a Christine. - Sabrina ficou entusiasmada. As notícias não podiam ser mais prometedoras para Antoine.

- Ótimo. Dá-lhe cumprimentos meus.

André estava desconcertado quando Sabrina desligou.

- De que lado estás?

- Que achas? - retorquiu ela, sorrindo.

Esperava que Antoine conseguisse, desta vez, aquilo que tanto desejava. Raramente o conseguia, ao contrário de Jon, que alcançava tudo a que se propunha. Já era altura de aprender a lutar por aquilo que queria e Sabrina sabia que, no fundo, ele não se importaria. Não queria que ele ficasse magoado, mas também não queria que ele magoasse outra pessoa e sabia que ele magoaria Arden Blake, perante essa oportunidade. No dia seguinte, comunicou a Antoine que Jon andava a sair com outra rapariga.

- Ótimo. - Pareceu não dar grande importância ao fato.

- Antoine! - Sabrina procurava dizer-lhe, com a maior delicadeza, que Arden estava livre e que tinha de aproveitar os ventos de feição. - Já não se encontra com a Arden.

- Isso também é ótimo. - Sorriu, embora sem o menor sinal de alegria no rosto.

- Ela já não te interessa? - «Estes miúdos!» Não percebia nenhum deles. Olhou, surpreendida, para Antoine e beijou-o na face.

 

- Continua a interessar-me e muito, querida mãe. - Agora, chamava-lhe quase sempre «mãe». - Mas é demasiado jovem e ainda não tem as idéias bem organizadas. E não quero meter-me no meio deles.

- Por que não?

Antoine respondeu-lhe com a maior franqueza.

- Porque sairia magoado da aventura.

- E depois? - Sabrina estava surpreendida. - A vida é assim. Pelo menos, luta por aquilo que queres. - Quase se enfureceu com Antoine, mas este pareceu não fazer caso.

- Não estou em condições de ganhar esta batalha. Acredite. Sei que não. A Arden é cega aos defeitos do Jon. - Olhou para Sabrina com ar resignado, mas ela não pareceu ligar. Sabia muito bem quem Jon era, melhor do que ninguém. - Quanto mais eu andasse atrás dela, mais ela iria atrás do Jon. - Tinha razão, mas Sabrina não conseguia suportar a idéia.

- Como pode ela ser tão tonta?

- Muito tonta. É da juventude. Irá crescer.

- E depois?

Antoine encolheu os ombros e disse, em tom filosófico:

- Acabará por se casar com o Jon. A vida tem destas coisas.

- E não te importas?

- Claro que me importo. Mas não posso fazer nada para o impedir. Vi com os meus olhos quando estive em Nova Iorque. Foi por isso que andei tão deprimido durante semanas. Mas não há nada que eu possa fazer. Seria uma luta inglória. O Jon é um rapaz insidioso e convincente, e ela acredita em tudo o que ele diz, pelo menos, superficialmente. Todavia, creio que, no fundo, tem tremendos receios e suspeitas sobre ele. O Jon mente-lhe constantemente sobre as outras raparigas e a Arden finge a si mesma que acredita naquilo que ele lhe diz. De qualquer modo, há uma parte dela que nunca ficará convencida. Não está suficientemente madura para confiar nos seus instintos e deixar de dar ouvidos a vozes enganosas. Um dia fá-lo-á. - Olhou com ar triste para Sabrina. - Provavelmente, muito tempo depois de se ter casado e de ter tido dois filhos. A vida, às vezes, era assim.

- E tu? - Essa era a sua principal preocupação. Se Arden era assim tão tonta, então tinha o que merecia. E Jon sabia cuidar de si. Mas Antoine... - Como é que isto vai acabar para ti?

- Com uma pequena cicatriz - respondeu, sorrindo, - e com uma valiosa lição para recordar. Além disso, tenho outras preocupações. Temos de cuidar do negócio e quero ir à Europa esta primavera.

Porém, quando o fez, ainda voltou mais deprimido. Estava absolutamente seguro de que a guerra iria estalar. Hitler mostrava-se demasiado poderoso e a inquietação reinava por todo o lado. Depois do seu regresso, Antoine e o pai falaram disso durante semanas e, pela primeira vez, André sentiu medo.

- Sabes o que mais me preocupa? - confessou à esposa, uma noite. - O que possa acontecer ao Antoine. É suficientemente jovem para se alistar, convencido da nobreza do seu gesto, por patriotismo, por todas essas porcarias, e ir entregar-se à morte... - Estremeceu só de pensar.

- Achas que o faria?

- Não tenho a menor dúvida. Disse-me mais de uma vez.

- Oh, meu Deus, não... - Sabrina pensou em Jon. Não o imaginava na guerra. Mas, quando falou com Antoine, todos os seus temores se confirmaram.

- A França continua a ser o meu país... sempre o será... por mais tempo que viva aqui. Se atacarem o meu país, irei defendê-lo. Tão simples quanto isso.

Todavia, a situação era mais complicada e aquela ameaça pairava sobre Sabrina e André sempre que ouviam as notícias. Ela só desejava que Antoine fosse atrás de Arden Blake. Talvez, se se casasse com ela, refreasse os desejos de ir defender a pátria. E o que ele dizia sobre a precariedade da paz começava a confirmar-se. Era praticamente impossível evitar a guerra. André e Sabrina só desejavam que não rebentasse tão cedo e que Antoine mudasse de idéias. Talvez conseguissem convencê-lo de que a sua presença era imprescindível para o bom andamento do negócio. Mas ela suspeitava que ele iria de qualquer maneira e André pensava o mesmo.

E, com o propósito de lhe tirar aquelas idéias da cabeça, André deu uma suntuosa festa na Mansão Thurston para celebrar o qüinquagésimo aniversário de Sabrina. Assistiram quatrocentos convidados. Pessoas que adorava, pessoas que gozavam do seu apreço, algumas que mal conhecia, mas foi uma noite encantadora. Nem sequer faltou a presença de Dominique. A ama trouxe-a para o salão e a pequenina deu uns passinhos com o seu vestido de organdi cor-de-rosa, os caracóis louros apanhados por uma fita de cetim da mesma cor, o sorriso angelical e os enormes olhos azuis. Era a alegria da vida dos pais. Gostavam cada vez mais dela. E Antoine estava tão louco por ela como eles. Também trouxe uma rapariga muito bonita à festa. Uma jovem inglesa que estava a estudar em São Francisco há um ano. Era estudante de Medicina e parecia muito séria, mas faltava-lhe o fervor, o espírito e a ingenuidade de Arden Blake. Sabrina não conseguiu deixar de perguntar-se o que seria feito dela. Jon não voltara a aparecer por ali, mas falara nela nesse Verão, quando voltara à Mansão Thurston. Referira apenas que voltara a sair com ela e também com Christine, e que, além disso, havia uma francesa, outra modelo, e uma fabulosa judia alemã que acabara de conhecer. Esta saíra da Alemanha antes que as coisas aquecessem demasiado. Jon tivera uma acalorada discussão com Antoine sobre política, na noite antes de partir. Jon insistia na idéia de que Hitler fora providencial para a economia alemã e que, provavelmente, faria muito bem ao resto da Europa, se todas as nações se soubessem comportar adequadamente, o que enfureceu de tal modo Antoine que partiu dois copos e uma xícara. A disputa chegou a angustiar Sabrina, que tentou entrar na sala de estar ao ouvir os gritos, mas André impediu-a.

- Deixa-os sozinhos. Faz-lhes bem. Já são crescidos.

- Devem ter bebido demasiado. Matam-se um ao outro.

- Não chegarão a esse ponto.

Finalmente, Antoine saíra a bufar da sala, e Jon, pouco depois, deitara-se no sofá. E, milagrosamente, no dia seguinte, despediram-se como grandes amigos, com uma cordialidade jamais vista. Antoine chegara a dizer que lhe telefonaria para o banco quando voltasse a Nova Iorque, coisa que ele nunca sugerira. Sabrina ficou pasmada e disse a André que tinha razão.

- Os homens são realmente muito estranhos. - Ainda estava atônita quando voltaram da estação, depois de se terem despedido de Jon. - Cheguei a pensar que iriam matar-se.

- Sim, mas nunca o farão.

A partir de então, o verão deixou-lhes poucos momentos de descanso. As uvas cresciam admiravelmente e, ao chegar o outono, Antoine e André encontravam-se constantemente ocupados na supervisão das vindimas. Pouco depois, Dominique fez dois anos. Então, chegou o Natal e Jon passou-o de novo em Palm Beach com os Blakes. Antoine nunca mais falara de Arden. Entretanto, chegou a primavera, depois, o verão, e Jon telefonou em julho, dizendo que iria vê-los dentro de um mês. Tinha intenção de chegar por volta do dia dezoito de Agosto. Falou tartamudeando e com muitos rodeios, e Sabrina só soube por que quando o viu descer do comboio. Vinha acompanhado da rapariga loura mais bonita que alguma vez vira. E quando a rapariga se dirigiu a eles, recebeu outra surpresa. A loura era Arden Blake, feita uma mulher. Já tinha vinte e um anos e há dois que Sabrina não a via. Que diferença entre ela e a Arden que conhecera. Agora, estava lindíssima, com um penteado sofisticado, maquiada na perfeição e o corpo mais esbelto que antes, mais na linha das preferências de Jon. Formavam um par verdadeiramente deslumbrante. E Arden continuava tão doce como antes.

- Que tal achas a minha surpresa? - perguntou Jon, olhando para Arden, e depois para a mãe, mal acabaram de jantar nessa noite, na Mansão Thurston.

Antoine também estava presente. Sabrina, mais de uma vez, surpreendeu-o a olhar fixamente para Arden, mas mostrava-se muito reservado. O jantar não estaria a ser muito agradável para ele.

- Acho uma ótima surpresa. Há muito que não víamos a Arden.

Sabrina olhou-a carinhosamente e ela corou, contrastando com o audaz vestido negro, que mostrava o início do peito. Isso não fez mais do que aumentar a inquietação de Antoine, embora Jon não desse por nada. Sabrina esperava que ele não fosse dormir com ela.

- Bem, mamã, ainda temos outra surpresa para ti disse Jon, sorrindo entre dentes. Arden olhou-o como se tivesse perdido o alento e Sabrina teve a sensação de que o coração deixara de bater. Adivinhando o que o filho ia dizer, olhou de relance para Antoine, com o desesperado desejo de o proteger. Jon notou o olhar, mas prosseguiu: - Vamo-nos casar no próximo mês de junho. Estamos noivos.

Sabrina olhou instintivamente para a mão esquerda de Arden, onde viu brilhar um bonito anel de safiras e diamantes.

- Posso contar com a tua aprovação.

Durante um longo instante, Sabrina ficou em silêncio, sem saber o que dizer. E foi André quem ocupou o vazio.

- Claro que sim. Estamos encantados com a vossa decisão.

Arden teria vinte e dois anos quando se casasse com Jon e este vinte e seis. Antoine perdera definitivamente a batalha. Mas nada se notou no seu rosto quando brindou por eles, depois de ter ido buscar uma garrafa do melhor champanhe da sua safra.

- Felicito-vos aos dois e desejo-vos uma longa vida e um amor eterno...

- À saúde! - exclamou André, secundando o brinde do filho, enquanto Sabrina tentava sair da surpresa inicial. Mas a noite foi extraordinariamente tensa, e só ficou mais aliviada quando todos se retiraram para os respectivos quartos e pôde ficar a sós com André para lhe dizer o que pensava de tudo aquilo.

O Antoine tinha razão.

Ocorrera exatamente aquilo que ele previra, mas também previra o divórcio do casal ao fim de cinco anos e Sabrina achou que era possível que também nisso ele não se enganasse. Por mais apaixonados que eles se mostrassem um pelo outro, Sabrina sabia instintivamente que aquelas aparências não coincidiam com a realidade. E foi isso mesmo que disse a André.

- O Jon não a ama. Eu sei. Vi nos seus olhos.

- Sabrina... - André olhou-a com firmeza. - Não podes fazer nada. A coisa mais sensata que poderás fazer é unir-te a eles na sua felicidade. Se estiverem a cometer um erro, deixa-os descobrir por eles. Só se casam daqui a dez meses. É para isso que servem os noivados. Podia revestir uma estrada desde aqui até ao Sião só com os anéis de noivado devolvidos.

- Espero que a Arden abra os olhos e junte o seu anel a esses outros que dizes.

Desejou isso ainda com mais ardor quando, dias depois, chegou aos seus ouvidos o rumor de que Jon saíra na noite anterior com duas coristas. Todavia, não lhe fez qualquer referência a esse fato. Jon dissera apenas que ia sair com velhos amigos e deixara Arden em casa. Mas Sabrina não podia aprovar aquele comportamento. Jon continuava a ser o mesmo de sempre. Tal como Antoine e os seus sentimentos para com a noiva de Jon. Ainda havia um fulgor no seu olhar de cada vez que a fixava, e Arden parecia perceber. Às vezes, os seus olhos encontravam-se e assim ficavam até Arden voltar a cara para o lado. Mas o verdadeiro choque teve lugar a três de Setembro, o dia antes de o par regressar a Nova Iorque, quando Antoine trouxe a notícia. Tivera uma reunião de negócios na cidade e, a caminho de casa, ouvira a rádio. As suas previsões estavam, mais uma vez, corretas. A Europa entrava em guerra. Quando chegou à Mansão Thurston, encontrou Sabrina estupefata. Também ouvira a notícia.

- Antoine... - Não conseguiu dizer mais nada e as lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces.

Pouco depois, chegou André, de semblante carregado.

- Ouviram as notícias?

Ambos assentiram com a cabeça, temendo o pior. Mas André surpreendeu-os.

- Por favor, não vás! - André falou com voz temerosa e entrecortada. Ficara aterrorizado ao ouvir a notícia e correra para casa para rogar ao filho que não se alistasse. Não podia deixá-lo ir para a guerra... Ainda era um miúdo... O seu filho primogênito... Quando Antoine, movido pela emoção, o abraçou, os olhos de André inundaram-se de lágrimas. Naquele momento, Arden descia lentamente as escadas e Antoine olhou para ela por cima do ombro do pai. Sabrina nunca soube se ela falou para a rapariga ou para todos eles.

- Tenho de ir. Tenho de ir... Não podia ficar aqui sabendo o que se está a passar.

- Porque não? Este também é o teu país - replicou Sabrina.

- Sim, mas o país onde nasci, a minha pátria, está do outro lado do oceano.

- Nós também somos a tua pátria - disse André e, pela primeira vez, Sabrina observou sintomas de velhice no esposo. - Monfils... - As lágrimas correram-lhe pelas faces e Sabrina reparou que Arden também chorava. Não desviava o olhar de Antoine, que se aproximou, lhe tocou no rosto e disse:

- Um dia, voltaremos a ver-nos, Arden. - Soltou um profundo suspiro e voltou-se para os restantes. - Telefonei para o consulado há poucos minutos. Trataram de tudo para eu apanhar um comboio esta noite. Irá diretamente para Nova Iorque, depois embarcarei para França. A esta hora, muitos terão já feito o mesmo. - Olhou para o pai. - Não tenho alternativa, papá. - Era uma questão de respeito por si mesmo. Educara-o demasiado bem, com demasiada integridade demasiado orgulho. Antoine nunca conseguiria ficar escondido, enquanto precisavam dele a dez mil quilômetros dali.

A partir daquele momento, tudo pareceu um pesadelo. À noite, depois de Antoine ter feito a mala, levaram-no à estação. Antes, falara durante duas horas com o pai sobre assuntos do negócio que abandonava e desculpara-se constantemente por isso, mas não podia esperar nem mais um dia. Até Jon achou o seu procedimento exagerado.

- Por que diabo não esperas até amanhã e vais conosco para Nova Iorque num comboio decente? Que perdes?

- Tempo. Precisam de mim agora. Não depois de me atulhar de comida durante quatro dias e de jogar às cartas na carruagem-salão. O meu país está em guerra.

Jon olhou-o ironicamente.

- Que esperem. Não vão suspender a guerra porque tu chegas uma semana depois.

No entanto, Antoine não estava para graças, nem os seus acompanhantes, às duas da madrugada, quando o viram subir para o comboio com outros rapazes que também se dirigiam para este. Só se ouvia falar francês no cais, no meio de um mar de rostos carregados, de um rio de lágrimas. Então, de repente, enquanto se despediam, Antoine viu-se com Arden nos braços. Beijou-a na face e fitou-a por instantes.

- Sois sage, mon amie. - Que podia traduzir-se por «sê boa» ou «sê sensata». Eram duas alternativas interessantes e, em breve, teria de optar por uma. Arden pareceu desconsolada quando o viu partir e chamou-o pelo nome quando o comboio se pôs em marcha. Jon pegou-lhe no braço e puxou-a para o carro. André soluçava, abraçado a Sabrina. Haviam deixado Dominique em casa. Aquela despedida teria sido demasiado pesada para a pequena e, além disso, não teria compreendido o que se estava a passar.

- Nunca pensei que ele fosse... Nem sequer nestas últimas horas, quando não parava de falar no assunto...

André mostrava-se inconsolável. Passou a noite a chorar nos braços de Sabrina. No dia seguinte, quando Jon e Arden partiram, foi outro tipo de agonia. Era como se a família tivesse ficado destroçada de um dia para o outro. Quando Sabrina beijou Arden, as duas desataram a chorar sem que ninguém soubesse por quê. Ambas choravam por Antoine, mas não podiam dizê-lo. Então, Sabrina voltou a beijar Jon.

- Cuidem de vocês... voltem o mais breve possível...

André não viera despedir-se deles ao comboio. Teria sido demasiado para ele. Nessa noite, quando se dirigiram para Napa, foi Sabrina que conduziu o carro. André não proferiu uma única palavra durante toda a viagem.

Antoine telefonou-lhes antes de embarcar para a Europa. E só voltaram a ter notícias dele quatro meses depois, em janeiro. Estava são e salvo, e encontrava-se em Londres, temporariamente destacado na RAF, e mostrava extrema admiração por De Gaulle Na sua carta, quase só falava dele Sabrina ia a correr todos os dias até à caixa do correio, com Dominique agarrada às saias. E quando havia uma carta de Antoine, voltava ainda mais depressa e entregava a carta a André. Enquanto tivessem notícias de Antoine, tudo estaria bem Mas pareciam viver em constante sobressalto. Nem sequer o enlace de Jon com Arden atenuou aquele contínuo temor. Foi uma cerimônia magnífica e teve lugar em Nova Iorque. André e Sabrina assistiram a ela. Bill Blake foi o padrinho e Dominique ajudou a segurar o véu da noiva. Havia doze damas de honra e quinhentos convidados na Catedral de São Patrício, no primeiro sábado de junho, mas Sabrina esteve absorta em pensamentos durante quase toda a cerimônia. Não parava de pensar em Antoine e de perguntar-se como e onde ele estaria naquele momento. Parecia que já tinha partido há um século, mas, ao fim de três meses, escreveu a dizer que vinha de licença. Sabrina sentou-se a chorar. Partira há treze meses e continuava vivo. Encontrava-se no Norte de África com De Gaulle, mas teria oportunidade de ir aos Estados Unidos. Só poderia passar uns dias com eles e, com um pouco de sorte, estaria em casa por ocasião do quarto aniversário de Dominique.

E assim foi. A alegria foi geral E desta vez, quando partiu, a despedida não foi tão dolorosa. Até André não estava tão deprimido. Foi como se, depois da sua partida, a sua aura se tivesse mantido no ar. Falaram interminavelmente sobre a marcha do negócio vinícola, Antoine andara com Dominique ao colo praticamente desde o momento da chegada até ao do regresso, e contara-lhe muitas coisas da guerra, e especialmente de De Gaulle, por quem tinha um profundo respeito.

- Os Norte-Americanos também entrarão na guerra muito em breve. - Estava absolutamente certo disso.

- Não é o que o Roosevelt - diz observou Sabrina.

- Pois mente. Ele está a preparar-se para a guerra. Lembre-se do que lhe digo.

Sabrina sorriu.

- Ainda continuas com as tuas previsões, Antoine?

- Nem todas se concretizam, mas sei que, desta vez, não me engano.

Antoine também perguntou por Arden e Jon, mas Sabrina não vislumbrou a menor emoção no seu rosto. Estava demasiado absorto na guerra, em De Gaulle e tudo o resto. Sabrina contou-lhe como fora bonita a cerimônia do casamento. Disse-lhe ainda que não pudera ver Amélia em Nova Iorque. Morrera alguns meses depois do nascimento de Dominique, com a idade de noventa e um anos. Desfrutara de uma vida longa, plena e feliz, e a sua hora chegara. Sabrina sentia imensas saudades dela.

Antoine tinha intenção de ir visitar Arden e Jon antes de voltar a embarcar em Nova Iorque, mas não teve tempo. Encurtaram-lhe a licença, e teve que partir três dias antes do previsto, na obscuridade da noite, num navio de transporte de tropas. Só teve tempo de lhes telefonar. Atendeu Arden, pois Jon não se encontrava em casa.

- Está num jantar de negócios com o Bill. Ficará com pena de não ter falado contigo. - Arden teve vontade de lhe dizer que teria gostado muito de vê-lo, mas estava casada e tinha de ter cuidado com o que lhe dizia. - Cuida de ti. Como estão a Sabrina e o André?

- Ótimos, mas atarefados. Foi bom vê-los. E a Dominique está enorme. - Riu-se, imaginando o rosto de Arden. - Esta fechou os olhos e sorriu, dando graças a Deus por ele ainda estar vivo. Pensava muitas vezes nele. Mas era feliz com Jon. Estava convencida de que fizera a escolha acertada. Há quatro meses que estavam casados. Esperava engravidar em breve.

- Devias ter visto a Dominique no casamento. Estava adorável. - Mas Antoine ainda sentia uma mágoa enorme ao pensar no enlace. Além disso, tinha de desligar. Havia muitos soldados à espera de usar os telefones que haviam sido instalados no cais, perto do navio.

- -Dá cumprimentos meus ao Jon.

- Eu dou... Tem cuidado...

Arden ficou longo tempo de olhos fixos no telefone depois de ter desligado. Tinha vontade de esperar por Jon, mas, como era costume quando saía com o irmão, nunca chegava a casa antes das três da madrugada.

No dia seguinte, disse-lhe que Antoine telefonara, mas, vítima de uma horrorosa dor de cabeça, Jon não pareceu dar grande importância à notícia.

- Só um louco se metia numa coisa daquelas. Graças a Deus que este país não entra naquelas loucuras.

- A França não tinha alternativa - declarou Arden, com ar irritado.

- Talvez, mas este país tem. Nós somos mais inteligentes do que os franceses.

E, no ano seguinte, expressou em Napa o mesmo ponto de vista, com total desaprovação de Sabrina.

- Não te iludas, Jon. Acho que o Roosevelt só nos está a atirar areia para os olhos. Entraremos em guerra dentro de um ano, se não tiver terminado antes.

- Uma ova é que entraremos. - Jon bebera demasiado vinho. Era a visita anual do jovem casal a Napa. Arden andara deprimida nos últimos dois meses. Perdera um bebê em junho, e comportava-se como se aquilo tivesse sido o fim do mundo. Não era mais do que um bebê, por amor de Deus!... Bolas! Nem sequer chegava a isso.

Mas Arden desatou a chorar, inconsolável, e Sabrina sabia muito bem o que ela sentia. Recordou a dor quando da perda do primeiro filho, assim como o tempo que demorara a engravidar antes e depois do aborto.

- Vais superar isso... Olha para mim!.. Tive o Jon.. e aí tens a Dominique. - Trocaram um sorriso, enquanto viam a pequenina a brincar com um cachorro no relvado. Tinha quase cinco anos e, para os pais, era a criança mais encantadora do mundo. - Terás outro. Às vezes, ao princípio, é um pouco difícil. Porque não arranjas qualquer coisa que te mantenha ocupada?

Arden encolheu os ombros com os olhos inundados de lágrimas. Só queria voltar a engravidar, mas Jon nunca se encontrava em casa e, quando isso acontecia, estava bêbedo ou cansado. Mostrava-se pouco cooperante, mas Arden não quis dizer isso a Sabrina.

- Há que dar tempo ao tempo. Eu demorei dois anos a voltar a engravidar e estou certa de que não terás de esperar tanto.

Arden sorriu, pouco convencida. Continuava a ter a impressão de que aquilo era o fim do mundo. Jon deixou-a em Napa durante todo o tempo que durou a visita. Entretanto, não parava de ir a São Francisco para ver antigos amigos seus, coisa que Sabrina não acreditava em absoluto.

- Ele deixa-te sozinha em casa muitas vezes? - perguntou à nora, um dia.

Arden hesitou antes de responder, depois acabou por fazer um gesto afirmativo com a cabeça. Nesse ano, embora tivesse perdido muito peso, ainda estava mais bonita do que das outras vezes. Ela era, efetivamente, muito mais atraente do que as modelos que Jon perseguia sem descanso.

- Sai muito com o Bill. Há uns meses, o meu pai advertiu o meu irmão precisamente sobre isso. Ele achava que, se o Bill não o desencaminhasse, o Jon portar-se-ia melhor. - Olhou com ar resignado para a sogra, mas Sabrina fez-lhe sinal para continuar. - Mas são amigos há muito tempo. Não há quem os separe. Nem sequer por uma noite. Creio que não sairia tanto se o Bill casasse. Mas o meu irmão diz que nunca se casará. - Sorriu. - E, por este caminho, cumprirá o que diz.

- A diferença é que o Jon já é casado. Ninguém lhe recordou isso? - perguntou Sabrina a André nessa noite, não conseguindo manter a indignação. Mas ele não quis intrometer-se naquele assunto.

- Já é adulto, Sabrina. É um homem casado. E não admitiria que eu o chamasse à atenção, como se fosse um miúdo. Acho que não devo dizer-lhe nada.

- Então, digo-lhe eu.

- É contigo.

E quando o fez, Jon mandou-a para o inferno.

- Já anda outra vez com as choraminguices? Que chata! O irmão tem razão. É uma miúda extremamente mimada. - Jon estava mal disposto, mais como conseqüência da horrível ressaca do que por aquilo que a mãe lhe dissera.

- A Arden é uma moça carinhosa, decente e encantadora, e é tua esposa.

- Obrigado, já me dera conta disso.

- A sério? A que horas vieste esta noite?

- Que é isto? A Inquisição? Que tens a ver com isso?

- Gosto dela. Só isso. E és meu filho. E sei do que és capaz para ir atrás de umas saias Por amor de Deus, Jon, és um homem casado. Comporta-te como um bom marido. Estiveste quase a ser pai há uns meses atrás..

Ele interrompeu-a.

- A idéia não foi minha. A culpa foi dela.

- Não querias o bebê, Jon? - A voz de Sabrina era agora mais suave, mas triste Perguntou-se se a previsão de Antoine estaria certa. As coisas pareciam não correr bem naquele casamento.

- Não, por agora, não quero nenhum. Desejo tanto ter um filho como ter um cavalo coxo. Por amor de Deus, tenho vinte e sete anos, ainda temos muito tempo para isso. - Jon tinha alguma razão, mas Arden ansiava por um filho. Então, Sabrina não conseguiu evitar fazer-lhe uma pergunta que não lhe saía da cabeça.

- És feliz com ela, Jon?

Jon olhou, com ar desconfiado, para a mãe.

- Ela pediu-te que me perguntasses isso?

- Não. Por quê?

- Porque isso é uma coisa que ela quer saber. Não pára de fazer perguntas estúpidas como essa. Diabos... Não sei. Estou casado com ela, não estou? Que mais quer ela?

- Talvez algo mais do que aquilo que lhe dás O casamento não é uma simples cerimônia. Requer carinho, compreensão, paciência e tempo. Quantas horas diárias passas com ela?

Jon encolheu os ombros.

- Não muitas. Tenho muitas coisas que fazer.

- Como passar o tempo com outras mulheres? - Jon olhou-a com ar de desafio.

- Talvez. E depois? Não lhe faz mal nenhum. Ainda chega para ela. Engravidei-a, não engravidei?

As atitudes de Jon indignavam-na.

- Por que razão é que te casaste com ela?

- Já te disse há muito tempo. - Jon olhou-a nos olhos sem pestanejar. - Foi o meu passaporte para o êxito. Enquanto estiver casado com a Arden, tenho emprego para a vida inteira.

Sabrina esteve prestes a gritar ao escutar aquelas palavras.

- Estás a falar a sério?

Jon encolheu os ombros e virou a cara para o lado.

- É boa miúda. E sei que sempre esteve louca por mim.

- Que sentes por ela?

- A mesma coisa que sinto por qualquer outra rapariga, às vezes mais, outras vezes menos.

- Só isso?

Sabrina olhou-o fixamente, perguntando-se quem era aquele homem repugnante, egoísta e sem sentimentos que há muito carregara no seu ventre? Quem era ele?... Era Camille, disse uma voz dentro de si... mas também lhe corria o sangue materno nas veias... porém, não tinha coração.

- Acho que cometeste um erro terrível - observou Sabrina, numa voz firme. - Essa rapariga merece muito mais do que isso.

- A Arden é feliz assim.

- Não, não é. Sente-se triste e solitária e, provavelmente, sabe que te preocupas menos com ela do que com os sapatos que calças.

Jon baixou a cabeça, depois olhou de novo para a mãe. Pouco mais podia dizer.

- Que queres que faça? Que finja? Ela sabia como eu era quando casou comigo.

- Foi uma tonta. E agora está a pagar um preço alto por isso.

- A vida é assim, mamã.

Jon fez uma careta e levantou-se. Sabrina reparou, uma vez mais, como ele estava bonito. Mas aquilo não bastava Pelo contrário, fê-la ter ainda mais pena de Arden. No dia em que partiram, quando se encontravam já na estação, Sabrina abraçou-a durante um longo instante

- Se precisares, telefona-me... - Olhou-a nos olhos. - Estou sempre aqui, pronta para te ajudar e receber.

Insistira para que Jon e Arden fossem passar o Natal com eles, mas ele queria ir para Palm Beach. Era mais divertido e, além disso, aí teria Bill como companheiro de farra. São Francisco começava a aborrecê-lo. Para ele, era uma cidade demasiado provinciana que não tinha comparação com Boston, Paris, Palm Beach ou Nova Iorque. Mas Arden sentia-se mais feliz em Napa, na companhia de Sabrina, André e Dominique.

- Veremos

Arden manteve-se agarrada a Sabrina até ao último momento e, quando o comboio se pôs em andamento, os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas. Durante semanas, Sabrina sentiu um peso de toneladas no peito, sempre que se recordava do que o filho lhe dissera André reconheceu com horror a verdade que as angustiadas palavras da esposa encerravam.

- O Antoine tinha razão.

- Sempre achei que sim. Ele deveria ter lutado por ela.

- Talvez também tivesse razão em não o fazer. Sabia que não podia ganhar A Arden estava louca pelo Jon.

- Enganou-se redondamente. Ele destroçou-lhe a vida

Era horrível que uma mãe tivesse de falar daquela maneira, mas Sabrina dizia o que sentia. Só espero que não engravide outra vez. É só disso que precisa Assim, se algum dia se der perfeita conta da realidade, estará livre para refazer a vida.

Também era horrível para uma mãe desejar que a nora se divorciasse do filho, mas era o que pensava. Todavia, não disse nada a Antoine quando ele voltou a casa a gozar nova licença. Desta vez, ainda que por pouco, não chegou a tempo de celebrar com eles o aniversário de Dominique. Apareceu em finais de novembro e ficou uma semana. E precisamente no dia do seu regresso, quando se encontravam a caminho da estação com o rádio do carro ligado, ouviram a notícia da catástrofe de Pearl Harbor.

- Oh, meu Deus! - Sabrina parou o carro e olhou fixamente para Antoine. Estavam sozinhos. André decidira não voltar a assistir às partidas do filho. - Meu Deus... Antoine... Que quer isso dizer? - Mas ela sabia muito bem o que significava: a guerra... e, para ela... Jon... Antoine olhou-a com ar triste.

- Sinto muito, maman...

Com os olhos marejados de lágrimas, Sabrina pôs de novo o carro em andamento. Não queria que Antoine perdesse o comboio, embora fosse o que mais desejava na vida. O que se passaria a partir daquele momento? O mundo inteiro estava em guerra e ela e André tinham dois filhos com que se preocupar: um, com De Gaulle, no Norte de África; e só Deus sabia para onde mandariam Jon. Soube-o ao fim de uns dias. Alistara-se com Bill Blake na euforia da bebedeira que apanharam no dia em que ouviram a notícia. Agora, Jon estava louco de raiva. Bill seria destacado para perto de Fort Dix; Jon, para São Francisco. Depois, embarcariam para o seu destino definitivo. Jon iria trazer Arden consigo e esta poderia ficar com André e Sabrina na Mansão Thurston, enquanto ele ficaria destacado na base de São Francisco.

- Pelo menos, este ano passaremos o Natal juntos disse Sabrina.

Mas aquela perspectiva não agradava a Jon. Estava de péssimo humor quando chegou, irritado com tudo e com a sensação de estar só, sem a companhia de Bill. E era a esposa que pagava as suas desventuras... ao ponto de, na véspera de Natal, Arden sair da mesa em que estavam a celebrar a consoada, lavada em lágrimas, quando Jon atirou o guardanapo ao chão.

- Esta mulher dá-me vômitos! - Mas não por muito tempo. Quatro dias depois, recebeu a guia de marcha e embarcou para a Europa.

Sabrina, Arden, André e Dominique foram despedir-se ao porto. Havia uma multidão imensa por todo o lado... Choros, soluços, lenços e bandeiras a agitarem-se... no cais, uma banda a tocar... Tudo parecia irreal, a fingir. Mas a realidade fez-se sentir duramente quando chegou o momento da despedida e todos o beijaram. Sabrina agarrou-o, então, pelo braço.

- Adoro-te, Jon. - Há muito tempo que não lhe dizia tal coisa, pois Jon não era uma pessoa de fácil trato; mas, apesar de tudo, quis que ele soubesse o que ela sentia por ele.

- Também te adoro, mamã. - Os olhos umedeceram-se-lhe; depois olhou para a esposa com o seu irresistível sorriso ao canto da boca. - Cuida de ti, miúda! Escrevo-te de vez em quando.

Arden, lavada em lágrimas, sorriu e abraçou Jon com força. Era incrível que ele tivesse de partir. Mas, pouco depois, o navio zarpou. Arden pôs-se a soluçar convulsivamente. Sabrina rodeou-lhe o ombro com o braço e apertou-a contra si. André, com Dominique nos braços, pensava no filho, que, naquele momento, se encontrava tão longe. Eram tempos terríveis para toda a gente e só pedia a Deus que os dois rapazes voltassem sãos e salvos.

- Anda, vamos para casa.

Arden decidira ficar algum tempo com Sabrina e André. Quando chegaram à Mansão Thurston, a casa parecia um túmulo. Pensaram que o melhor era irem para Napa quanto antes e assim fizeram nessa mesma tarde Apesar de tudo, a vida aí era mais fácil de suportar. Ajudavam a isso a tranqüilidade, a verdura dos campos, o céu azul. Aí, era difícil imaginar o caos em que o mundo mergulhara.

E foi então que chegou o telegrama, cinco semanas depois da partida de Jon. Um dia, um homem de uniforme bateu à porta principal e entregou-o a André. Enquanto o abria para Sabrina, sentiu o coração parar, mas as lágrimas turvaram-lhe os olhos antes de conseguir ler o nome escrito no papel... Era o de Jonathan Thurston Harte... «Lamentamos informar que o seu filho morreu. » Sabrina gritou como um animal ferido, o mesmo grito que soltara quando ele nascera, vinte e sete anos antes. Deixara o mundo do mesmo modo que entrara nele: através do coração da mãe. Ela procurou, então, refúgio nos braços de André. Entretanto, apareceu Arden, em estado de choque, e Sabrina foi logo ter com ela; ficaram os três abraçados até altas horas da noite. Até Dominique chorou Compreendera o que se passava. O irmão morrera. E nunca mais voltaria.

- Qual foi? - perguntou com insistência a André, confusa.

- Foi o Jon, querida... o teu irmão Jon. - André apertou-a contra si, aconchegando-a no seu colo, sentindo-se injustificadamente culpado de que se tratasse de Jon e não de Antoine, mas também aliviado por não ter sido o seu primogênito. Aquele sentimento dominou-o de tal modo que, no dia seguinte, não conseguiu encarar Sabrina durante todo o dia. Mas ela notou. Conhecia-o demasiado bem.

- Não reajas assim. - O rosto estava praticamente irreconhecível por causa do sofrimento e das lágrimas. - Não foste tu que escolheste, foi Deus.

E, ao ouvir aquelas palavras, André lançou-se nos seus braços a soluçar e a pedir a Deus que não voltasse a escolher mais ninguém naquela casa. Não teria conseguido suportar a morte de Antoine. Pensou que talvez Deus tivesse levado Jon porque sabia que Sabrina era mais forte do que ele. De qualquer modo, fosse como fosse, nada daquilo fazia sentido. Ao longo dos anos, Deus não parara de dar e tirar, mas os homens jamais conseguirão compreender os seus insondáveis desígnios.

 

- Que fazes hoje? - perguntou Sabrina, olhando sobre o ombro para a nora, que brincava com Dominique

Arden resolvera ficar ali indefinidamente, sem saber por quê. Não voltara a casa desde a última vez que entrara na Mansão Thurston na companhia do marido. Corria o mês de junho de 1942 e Antoine vinha de licença em julho. Meses antes, fora atingido no braço esquerdo, mas o ferimento não era grave. Aquele percalço proporcionou-lhe a oportunidade de ser destacado para o quartel-general de De Gaulle, para grande alívio da família.

- Queres ir a São Francisco comigo ou ficas aqui? - Arden pensou por instantes e, sorrindo, respondeu à mulher que tanto adorava:

- Vou consigo. Que vai lá fazer?

- Tenho umas coisas para fazer na casa...

Não queria perturbar o espírito de Arden com nada. Já estava refeita do choque Depois da morte de Jon, descobriram que estava novamente grávida, mas desta vez perdeu o bebê quase de imediato. «Já estava escrito para ser assim», disse-lhe Sabrina. Mas não eram palavras fáceis de ouvir nem de dizer. Teria gostado de conhecer o filho de Jon... o seu único neto... mas já era demasiado tarde para continuar a chorar e todos estavam a recuperar lentamente do choque que haviam sofrido. O sol continuava a nascer todos os dias, as colinas mantinham a sua verdura e as uvas não podiam estar mais bonitas. Tudo começava a voltar à normalidade. Ao fim de certo tempo, a vida já não parecia tão dolorosa. Durante muito tempo, Sabrina sentira-se como se andasse aos tropeções, mas André ajudara-a a recuperar o ânimo. Além disso, tinha Dominique e Arden, que lhe alegravam o coração e a quem podia dar o seu amor.

- Há notícias do Antoine: -perguntou Arden, enquanto se dirigiam para a cidade. Levava Dominique ao colo. A criança adormecera. Adorava andar de carro com elas e adorava a tia Arden, como ela lhe chamava.

- Pouca coisa. Encontra-se bem. Conta umas coisas engraçadas de De Gaulle. - Sabrina franziu o sobrolho. Mas disse que vem na data prevista.

Arden olhou para os campos que iam deixando para trás, depois olhou para a pequenina adormecida ao seu colo.

- É um homem muito especial. - Era a primeira vez que Arden falava de Antoine desde a morte de Jon, e Sabrina perguntou-se se a rapariga não falava nele por possíveis sentimentos de culpa. Jon portara-se muito mal com ela, não podia negar-se. Não teria sido de estranhar que Arden tivesse desejado a sua morte uma ou duas vezes. Isso ter-lhe-ia tornado ainda mais duro o desaparecimento do marido... Há muito tempo, estive quase a apaixonar-me pelo Antoine.

Sabrina sorriu.

- Já sabia. - Depois, passando para um terreno mais delicado, acrescentou: - E creio que ele também esteve apaixonado por ti.

Arden fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Eu sei. Mas andava tão louca pelo Jon...

- O Antoine sabia disso. Disse que te casarias com o Jon muito antes de o fazeres.

- Disse isso? - Pareceu surpreendida. - Como é que ele sabia?

Sabrina riu-se.

- Tu disseste-lhe. O Antoine é um homem muito especial.

As duas mulheres trocaram um sorriso enquanto atravessavam a nova ponte da cidade. Sabrina gostava da Golden Gate. Era uma ponte de linhas majestosas, muito mais elegante do que a Bay Bridge. Recordou os tempos dos vapores fluviais e dos comboios... Como o tempo passava!... Custava-lhe a crer que já tinha cinqüenta e quatro anos. Não se sentia assim tão velha. Porque é que a vida era tão curta? Porque não podia dispor de mais tempo?... Esses pensamentos recordaram-lhe Jon. Era o motivo que a levara naquele dia até à cidade. Fora ver a instalação da placa.

Num dos lados da casa, havia um pequeno fórnice que o pai de Sabrina mandara construir. Dissera à filha o destino que devia dar-se àquela concavidade do muro e Sabrina cumpriu os seus desejos começando por ele depois, John Harte e agora, Jon todos os que haviam vivido na Mansão Thurston, para que ninguém nunca os esquecesse para que estivessem todos juntos.

Os homens aguardavam a chegada de Sabrina, que mostrou a pequena placa de bronze a Arden. Depois, foram dar uma volta pelo jardim, que havia sido tão grande e que agora era tão pequeno. Sabrina deu uma olhadela às plantas e às flores, enquanto os homens instalavam a placa Agora havia três. Jeremiah Arbuckle Thurston, John Williamson Harte e Jonathan Thurston Harte. Causava tristeza ver os seus nomes ali, com as datas que haviam limitado as suas vidas.

- Para que fez isso? Arden olhou-a com ar triste.

- Para que ninguém os esqueça.

- Eu nunca esquecerei. - Os homens haviam partido. - Para mim, fará sempre parte desta casa.

Sabrina sorriu-lhe, fez-lhe uma festa na face, depois olhou para as placas que exibiam os nomes dos homens que amara.

- Para mim, também eles fazem parte da Mansão Thurston o meu pai, o John, o Jonathan. - Aqueles nomes trouxeram os respectivos rostos à sua mente. Parecia que tinham voltado à vida. Sabrina olhou, então, para Arden. - O meu nome também estará aqui um dia. O do André, o teu, o do Antoine. A única pessoa da família que desaparecera sem deixar rasto fora Camille. Não havia nenhuma placa com o seu nome. Preferira abdicar, e o seu nome fora apagado da memória de todos. - O passado é uma coisa importante. É-o para mim e tem-no sido para esta casa pelos motivos que foi construída. - Pensou, então, no pai Que a amou e a conservou. - Mas o presente também é importante. Essa parte pertence-te a ti. - Atreveu-se a dizer as palavras que traduziam a sua maior esperança. - Talvez o Antoine, talvez tu, irão viver aqui um dia. - Fez uma pausa e olhou para Dominique, que andava a saltitar dentro dos canteiros de flores. De repente, a pequenina parou, como se soubesse que a mãe estava a falar dela. - E o futuro pertence-lhe. A Mansão Thurston será dela, um dia... Espero que signifique tanto para ela como tem significado para nós. Nasceu nesta casa. - Sabrina sorriu ao recordar o nascimento da menina, com André a seu lado. - O meu pai morreu nesta casa. - Voltou-se para ela, para as salas que tanto amava e tão bem conhecia. Então, sorriu de novo para Dominique. - Era o legado que lhe deixava, ou deixaria um dia, das pessoas que por ela haviam passado, deixando a sua marca, o seu coração e o seu amor.

 

                                                                                            Danielle Stel

 

 

                      

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