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A VIDA DOS BRUXOS MAYFAIR / Anne Rice
A VIDA DOS BRUXOS MAYFAIR / Anne Rice

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A VIDA DOS BRUXOS MAYFAIR

 

Nevara o dia inteiro. Enquanto a noite caía, muito fechada e rápida, ele estava em pé junto à janela observando as figuras minúsculas lá embaixo no Central Park. Um perfeito círculo de luz formava-se na neve abaixo de cada poste. Patinadores moviam-se no lago congelado, embora ele não pudesse discerni-los em detalhe. E automóveis seguiam lerdos pelas ruas escuras.

À sua direita e à esquerda, apinhavam-se os arranha-céus da cidade. Nada, porém, se interpunha entre ele e o parque, quer dizer, a não ser a selva de prédios mais baixos, as coberturas com jardins, com enormes equipamentos negros e volumosos e às vezes até com telhados em cumeeira.

Ele adorava essa vista. Sempre se surpreendia quando outros a consideravam fora do comum, quando um operário que vinha fazer algum conserto no escritório dizia espontaneamente que nunca havia visto Nova York assim antes. Pena que não houvesse torres de mármore para todos; que não houvesse nenhum conjunto de torres, às quais todos tivessem acesso para olhar a paisagem de alturas variadas.

Anote isso: Construir um conjunto de torres que não tenham nenhuma função a não ser a de servirem de parques no céu para as pessoas. Usar todos os mármores lindos de que tanto gosta. Talvez fizesse isso neste ano. Era muito provável que ele o fizesse. E as bibliotecas. Queria instalar mais delas, e isso representaria algumas viagens. Mas ele faria tudo isso, sim, e em breve. Afinal de contas, os parques já estavam quase prontos, e escolinhas haviam sido abertas em sete cidades. Haviam inaugurado carrosséis em vinte lugares diferentes. É verdade que os bichos eram de material sintético, mas cada um era uma reprodução meticulosa e indestrutível de alguma famosa obra-prima européia, talhada à mão. As pessoas adoravam os carrosséis. Mas já era hora de uma enxurrada de novos planos. O inverno o apanhara sonhan­do...

No último século, ele havia concretizado uma centena de idéias semelhantes. E as pequenas vitórias deste ano tinham seu encanto reconfortante. Neste mesmo prédio ele havia instalado um carrossel antigo, com todos os velhos leões, cavalos, originais que haviam proporcionado a forma para as réplicas. O museu de automóveis antigos agora ocupava todo um andar do sótão. O público acorria em multidão para ver os Fords bigode, os Stutz Bearcats, os MG-TDs, com suas rodas de raios de arame.

E é claro que havia os museus de bonecas, em grandes ambientes bem iluminados em dois andares acima do saguão: a vitrina da empresa, repleta de bonecas que ele trouxera de todas as partes do mundo. E o museu particular, aberto apenas ocasionalmente, que incluía as bonecas pelas quais ele próprio sentia afeto.

De quando em quando ele descia sorrateiro para ir ver as pessoas, para caminhar no meio do público, jamais sem ser percebido, mas pelo menos sem ser reconhecido.

Uma criatura com dois metros e dez de altura não tem como evitar os olhares. Isso sempre havia sido um fato. Mas nos últimos duzentos anos algo bastante divertido acontecera. Os seres humanos estavam mais altos! E agora, milagre dos milagres, mesmo com a sua altura, ele não sobressaía tanto assim. As pessoas lhe lançavam um segundo olhar, é verdade, mas elas não mais ficavam assustadas com ele.

Na realidade, com pouca freqüência, entrava no prédio algum ser humano que era mais alto do que ele. É claro que seu pessoal o avisava. Consideravam ser uma das suas pequenas esquisitices a de querer ser informado dessas pessoas. Achavam engraçado. Ele não se importava. Gostava de ver as pessoas sorrirem.

— Sr. Ash, tem um altão aqui embaixo. Câmera cinco.

Ele se voltava para o painel de pequenas telas luminosas e rapidamente avistava o indivíduo. Só humano. Ele geralmente sabia com certeza de imediato. Raríssimas vezes, ele não tinha certeza. E descia no elevador silencioso e veloz para caminhar por perto da pessoa tempo suficiente para se certificar, por uma quantidade de detalhes, de que aquele era apenas um homem.

Outros sonhos: pequenas construções de brinquedo para crianças, feitas primorosamente com plásticos da era espacial, com uma profusão de detalhes elaborados. Ele via pequenas catedrais, castelos, palácios, réplicas perfeitas dos tesouros arquitetônicos maiores, produzidas num piscar de olhos e "eficaz em custos", nos termos usados pela diretoria. Haveria diversos tamanhos, desde casinhas para bonecas até casas nas quais as próprias crianças pudessem entrar. E cavalos de carrossel à venda, feitos de resina de madeira, que praticamente qualquer um teria condições de comprar. Centenas poderiam ser doadas a escolas, hospitais, outras instituições semelhantes. E então vinha a obsessão atual: bonecas verdadeiramente lindas para crianças pobres, bonecas que não quebravam e podiam ser limpas com facilidade. Mas nisso ele vinha trabalhando praticamente desde o início do século.

Durante os cinco últimos anos, ele havia produzido bonecas cada vez mais baratas, bonecas superiores às que as precediam, bonecas de novos materiais químicos, bonecas que eram duráveis e adoráveis. Mesmo assim, elas ainda eram caras demais para as crianças pobres. Neste ano, ele ia tentar algo totalmente diferente... Tinha planos na prancheta... um par de protótipos promissores. Talvez...

Sentiu um calor reconfortante atravessá-lo enquanto pensava nesses numerosos projetos, pois eles lhe tomariam séculos. Há muito tempo, em épocas remotas, como se dizia, ele havia sonhado com monumentos. Enormes círculos de pedra para que todos vissem, uma dança de gigantes no capim alto da planície. Mesmo torres de dimensões modestas o obcecaram por décadas. E houve uma época em que as inscrições de belos livros haviam sugado toda a sua energia por séculos.

No entanto, nesses brinquedos do mundo moderno, essas bonecas, essas pequenas imagens de pessoas, não realmente crianças, pois as bonecas nunca chegam a se parecer com crianças, ele havia encontrado uma obsessão estranha e desafiadora.

Os monumentos eram para aqueles que viajavam para vê-los. As bonecas e brinquedos que ele aperfeiçoava e fabricava chegavam a todos os países do mundo. Na realidade, as máquinas haviam colocado todos os tipos de objetos novos e belos à disposição das pessoas de todas as nações: os ricos, os pobres, aqueles necessitados de consolo, sustento e abrigo, aqueles mantidos em sanatórios e asilos de onde nunca poderiam sair.

Sua empresa havia sido sua redenção. Mesmo suas idéias mais arrojadas e ousadas haviam sido aplicadas à produção com sucesso. No fundo, ele não conseguia compreender por que outros fabricantes de brinquedos faziam tão poucas inovações, por que bonecas idênticas com expressões desenxabidas cobriam as prateleiras das lojas, por que a facilidade da fabricação não havia resultado numa abundância de originalidade e criatividade. Ao contrário dos seus sisudos colegas, a cada vitória sua, ele se dispunha a correr riscos maiores.

Não o deixava feliz expulsar outros do mercado. Não, a concorrência ainda era algo que ele somente conseguia captar no nível intelectual. Sua crença secreta era a de que o número de compradores em potencial no mundo atual era ilimitado. Havia espaço para qualquer pessoa comercializar um produto de valor. E, dentro destas paredes, dentro desta altíssima e perigosa torre de aço e vidro, ele saboreava seus triunfos num estado de pura felicidade que não podia compartilhar com mais ninguém.

Com mais ninguém. Só com as bonecas. As bonecas que ficavam nas prateleiras de vidro encostadas nas paredes de mármore colorido; as bonecas que ficavam em pedestais nos cantos; as bonecas que se agrupavam sobre sua ampla mesa de trabalho de madeira. Sua Bru, sua princesa, sua beldade francesa, com cem anos de idade. Ela era sua testemunha mais duradoura. Não se passava um dia em que ele não descesse ao segundo andar do prédio para visitar a Bru: uma impecável belezinha de biscuit, de noventa centímetros de altura, com seus cachos de mohair intactos; seu rosto pintado, uma obra-prima; seu torso e pernas de madeira tão perfeitos agora quanto na época em que a empresa francesa a fabricara para o mercado de Paris há mais de cem anos.

Esse havia sido seu fascínio, o de ser um objeto para o deleite de centenas de crianças. Nela fora atingido um apogeu do artesanal aliado à produção em massa. Mesmo seus trajes fabricados em seda representavam essa realização específica. Não para um só, mas para muitos.

Houve anos em que ele, vagueando pelo mundo, a levava consigo, tirando-a da mala às vezes só para encarar seus olhos de vidro, só para lhe transmitir seus pensamentos, suas emoções, seus sonhos. A noite, em quartos solitários e miseráveis, ele havia visto a luz refletida nos seus olhos sempre observadores. E agora ela estava abrigada por trás do vidro, e a cada ano milhares a viam, bem como a todas as outras antigas bonecas Bru agrupadas ao seu redor. Às vezes ele sentia vontade de trazê-la em segredo cá para cima, de colocá-la numa estante no quarto. Quem iria se importar? Quem ousaria dizer uma palavra que fosse? O dinheiro cerca a pessoa de um silêncio abençoado, pensou ele. Os outros pensam antes de falar. Acham que precisam. Ele poderia voltar a conversar com a boneca se quisesse. No museu, ficava em silêncio quando se encontravam, com o vidro da vitrina a separá-los. Ela esperava paciente que fosse resgatada, a humilde inspiração do seu império.

É claro que essa empresa, esse seu empreendimento, como era chamado com tanta freqüência nos jornais e revistas, baseava-se no desenvolvimento de um modelo mecânico e industrial que existia agora há apenas trezentos anos. E se a guerra o destruísse? Mas as bonecas e os brinquedos lhe davam uma felicidade tão perfeita que ele imaginava que nunca mais ficaria sem eles. Mesmo que a guerra reduzisse o mundo a destroços, ele faria pequenas figuras de madeira ou barro e as pintaria com as próprias mãos.

Às vezes ele se imaginava desse jeito, sozinho em meio às ruínas. Via Nova York como ela poderia ter aparecido num filme de ficção científica, morta, muda e cheia de colunas derrubadas, frontões quebrados e vidro estilhaçado. Ele se via sentado numa escadaria arruinada de pedra, fazendo uma boneca com pauzinhos e a amarrando com pedaços de pano que tirava, com respeito e em silêncio, do vestido de seda de uma mulher morta.

Mas quem poderia ter imaginado que esse tipo de objeto viria a cair nas suas graças? Que, vagueando cem anos atrás por uma rua de Paris no inverno, ele se voltaria e olharia para a vitrina de uma loja, para os olhos de vidro da sua Bru, e se apaixonaria perdidamente?

É claro que seu povo sempre fora conhecido por sua capacidade de brincar, amar, sentir prazer. Talvez não fosse nem um pouco surpreendente. Embora o estudo de um povo, quando se é um dos seus únicos sobreviventes, fosse uma situação delicada, em especial para aqueles que não conseguiam apreciar a terminologia ou a filosofia médica, cuja memória era boa mas estava longe de ser extraordinária, cujo sentido do passado era com freqüência deliberadamente abandonado por uma imersão "infantil" no presente e um medo generalizado de pensar em termos de milênios, eras ou seja lá como for que as pessoas quisessem denominar os enormes períodos de tempo que ele testemunhara, nos quais vivera, lutando por resistir e dos quais afinal se esquecera alegremente nesse imenso empreendimento adequado aos seus talentos especiais e pouco numerosos.

Mesmo assim, ele realmente estudava seu próprio povo, fazendo e registrando anotações meticulosas sobre si mesmo. E não era competente na previsão do futuro, ou era o que achava.

Um zumbido baixo chegou aos seus ouvidos. Ele sabia que vinha das serpentinas por baixo do piso de mármore, a aquecer delicadamente o aposento à sua volta. Ele imaginava poder sentir o calor a lhe atravessar os sapatos. Nesta torre nunca fazia frio demais nem um calor sufocante. As serpentinas cuidavam de tudo. Se ao menos um conforto desses estivesse ao alcance de todo o mundo lá fora. Se ao menos todos pudessem conhecer a abundância de alimentos, a calefação no inverno. Sua empresa mandava milhões de dólares em auxílio aos que viviam nos desertos e nas selvas do outro lado dos oceanos, mas ele nunca tinha certeza de quem recebia o quê, quem se beneficiava.

Nos primeiros dias do cinema, e mais tarde da televisão, ele imaginara que as guerras terminariam. A fome acabaria. As pessoas não iam tolerar ver aquilo na tela à sua frente. Que idéia boba! Agora parecia haver mais guerra e mais fome do que nunca antes. Em cada continente, uma tribo contra a outra. Milhões morrendo de inanição. Tanto a se fazer. Por que tomar decisões tão cuidadosas? Por que não fazer tudo?

Recomeçara a nevar, com flocos tão minúsculos que ele mal os via. Eles pareciam derreter ao atingir as ruas escuras lá embaixo. Só que essas ruas estavam uns sessenta andares abaixo. Ele não sabia ao certo. A neve meio derretida se acumulava nas sarjetas e nos telhados próximos. Dentro de pouco tempo, talvez tudo estivesse branco e limpo novamente; e, nesta sala aquecida e fechada, seria possível imaginar a cidade inteira morta e acabada, como se em conseqüência de uma peste que não atacasse os prédios mas matasse os seres de sangue quente que neles viviam, como cupins em paredes de madeira.

O céu estava negro. Esse era o único detalhe que não lhe agradava na neve. Perdia-se o céu para tê-la. E ele amava tanto os céus da cidade de Nova York, os belos céus panorâmicos que as pessoas nas ruas na realidade nunca viam.

— Torres, construir torres para eles — disse ele. — Criar um grande museu bem alto no céu, com terraços ao redor. Trazê-los cá para cima em elevadores envidraçados, para o alto para que vejam...

Torres para o prazer em meio a todas essas torres que os homens haviam construído para o comércio e o lucro.

Ocorreu-lhe de repente uma idéia, uma velha idéia, na verdade, que costumava lhe ocorrer e que o levava a meditar e talvez até a conjeturar. Os primeiros textos escritos no mundo inteiro haviam sido listas comerciais de mercadorias compradas e vendidas. Era isso o que estava nas tábulas cuneiformes de Jericó, inventários... O mesmo era válido para Micenas.

Ninguém considerava importante, naqueles tempos, registrar suas próprias idéias ou pensamentos. Já os prédios eram totalmente diferentes. Os mais majestosos eram casas de culto: templos ou imensos zigurates de tijolo de barro, revestidos de calcário, que os homens escalavam para fazer sacrifícios aos deuses. O círculo de pedras na planície de Salisbury.

Agora, sete mil anos depois, os prédios mais imponentes eram comerciais. Eram identificados com os nomes de bancos, de grandes corporações ou de imensas empresas privadas, como a sua própria. Da sua janela, ele via esses nomes acesos em letras brilhantes e toscas, em meio ao céu nevoento, em meio à escuridão que não era realmente escura.

Quanto aos templos e locais de culto, eles eram lembranças do passado ou quase nada. Em algum ponto lá embaixo ele conseguiria vislumbrar os campanários da catedral de São Patrício, se tentasse. Mas ela agora era um santuário do passado mais do que um centro vibrante de espírito religioso comunitário, e dava uma impressão antiquada, na sua tentativa de alcançar os céus entre os prédios de vidro, altos e indiferentes, que a cercavam. Só era majestosa quando vista da rua.

Os escribas de Jericó teriam compreendido essa transformação, pensou ele. Por outro lado, talvez não. Ele próprio mal a compreendia; e no entanto, as implicações pareciam gigantescas e mais fantásticas do que percebiam os seres humanos. Esse comércio, essa infindável multiplicidade de objetos belos e úteis, poderia em última análise salvar o mundo, se ao menos... A obsolescência planejada, a destruição em massa dos produtos do ano anterior, a pressa para tornar antigos ou descabidos os projetos dos outros, tudo isso resultava de uma trágica falta de visão. Somente as implicações mais limitadas da teoria do mercado eram responsáveis por isso. A verdadeira revolução vinha não do ciclo de criação e destruição, mas de uma imensa expansão criativa e sem limites. Velhas dicotomias teriam de cair. Na sua querida Bru, e nas suas peças montadas em fábricas, nas calculadoras de bolso carregadas hoje por milhões de pessoas nas ruas, no toque leve e bonito das canetas esferográficas, nas Bíblias de cinco dólares e nos brinquedos, belos brinquedos vendidos nas prateleiras de cada loja por centavos, estava a salvação.

Pareceu-lhe que conseguiria abranger o assunto mentalmente, que conseguiria penetrar nele, criar teorias enxutas, de fácil explicação, se ao menos...

— Sr. Ash. — Era uma voz baixa que o interrompia. Nada mais do que isso era necessário. Ele havia treinado todos eles. Não façam o menor ruído com a porta. Falem baixo. Eu os ouvirei.

E essa voz vinha de Remmick, que era delicado por natureza, um inglês (com um pouco de sangue celta, embora Remmick não soubesse disso), um criado que havia sido indispensável nesta última década, apesar de que logo chegaria a hora em que Remmick deveria ser dispensado, por motivos de segurança.

— Sr. Ash, a senhorita chegou.

— Obrigado, Remmick — disse essas palavras com uma voz ainda mais suave do que a do criado. No vidro escuro da janela, se ele quisesse, poderia ver a imagem de Remmick: um homem atraente, com olhos azuis pequenos e muito brilhantes. Eram muito juntos, esses olhos. Mas o rosto não era feio, e apresentava sempre uma expressão de devoção tão tranqüila e sem dramaticidade que ele aprendera a gostar dela, a gostar do próprio Remmick.

Havia uma infinidade de bonecas no mundo com os olhos juntos demais. Em especial, as bonecas francesas feitas há muitos anos por Jumeau, Schmitt and Sons, Huret, Petit e Demontier; com rostos de lua cheia e cintilantes olhos de vidro próximos demais dos pequenos narizes de porcelana, com bocas tão pequenas que, à primeira vista, pareciam ser minúsculos botões ou ferrões de abelhas. Todos adoravam essas bonecas. As rinhas dos ferrões.

Quando uma pessoa ama bonecas e as estuda, passa a amar também todos os tipos de pessoas, porque vê a qualidade nas suas expressões, com que cuidados suas feições foram esculpidas, cada peça projetada para criar o triunfo deste ou daquele rosto notável. Ele às vezes caminhava por Manhattan, vendo deliberadamente cada rosto como foi feito, sem nenhum nariz, orelha ou ruga estar ali por acaso.

— Ela está tomando chá, senhor. Estava com muito frio quando chegou.

— Não mandamos um carro ir buscá-la, Remmick?

— Mandamos, senhor, mas mesmo assim ela estava com frio. Lá fora está muito frio, senhor.

— Mas o ambiente está aquecido no museu, sem dúvida. Você a levou para lá, certo?

— Ela subiu direto, senhor. O senhor compreende. Ela está muito ansiosa.

Ele se voltou, dando um relance de um sorriso animado (ou era isso o que esperava) para Remmick e acenou para que ele fosse embora com o mínimo gesto que o homem pudesse ver. Foi até as portas do escritório ao lado, atravessando o piso de mármore de Carrara, e olhou o aposento seguinte àquele, também revestido em mármore reluzente como todas as suas salas, onde a moça estava sentada sozinha junto à escrivaninha. Ele via seu perfil. Via que estava ansiosa. Via que ela queria o chá, mas também não queria. Ela não sabia o que fazer com as mãos.

— Senhor, seu cabelo. Posso? — Remmick tocou-lhe o braço.

— É preciso?

— Sim, senhor. Realmente devíamos. — Remmick apresentou sua pequena escova macia, do tipo que os homens usam porque não poderiam ser vistos a usar o mesmo tipo de escova que as mulheres. Ele esticou o braço e a fez passar com firmeza e rapidez pelos cabelos, cabelos que deveriam ser cortados e aparados, dissera Remmick, cabelos que caíam em desalinho e desafio sobre o colarinho.

Remmick afastou-se, equilibrando o corpo nas plantas dos pés.

— Agora está esplêndido, senhor Ash — disse, erguendo as sobrancelhas. — Muito embora esteja um pouquinho comprido.

Ele abafou uma pequena risada.

— Você receia que eu a assuste, não é? — perguntou, em tom provocante, afetuoso. — No fundo você não se importa mesmo com o que ela ache.

— Senhor, eu me importo sempre com a sua aparência, pelo senhor mesmo.

— É claro que se importa — respondeu ele, baixinho. — Eu gosto de você por isso.

Encaminhou-se na direção da moça e, à medida que ia se aproximando, foi fazendo uma quantidade adequada e educada de ruídos. Ela voltou a cabeça devagar; ergueu os olhos; viu-o, e houve o choque inevitável.

Ele estendeu os braços ao chegar perto.

Ela se levantou, radiante, e segurou suas mãos. Um toque firme, caloroso. Ela olhou para suas mãos, para os dedos, as palmas.

— Eu a deixo surpresa, senhorita Paget? — perguntou ele, apresentando-lhe seu sorriso mais gentil. — Meu cabelo foi penteado para sua aprovação. Estou assim tão feio?

— Senhor Ash, sua aparência é fabulosa — respondeu ela, rapidamente. Tinha uma voz brusca em estilo californiano. — Eu não esperava que... eu não esperava que fosse tão alto. É claro que todos disseram que era...

— E eu lhe pareço amável, senhorita Paget? Dizem isso de mim também. — Ele falava devagar. Com freqüência os americanos não conseguiam entender seu "sotaque britânico".

— Ah, sim, senhor Ash — disse ela. — Muito amável. E o seu cabelo é tão bonito e comprido. Adoro seu cabelo, senhor Ash.

Isso foi realmente muito gratificante, muito divertido. Ele esperava que Remmick estivesse ouvindo. Mas o dinheiro faz com que as pessoas ocultem sua opinião sobre o que se fez; faz com que elas procurem o lado bom nas suas opções, no seu estilo. O dinheiro faz surgir não o que há de subserviente nas pessoas, mas o que há de mais ponderado. Pelo menos às vezes...

Era óbvio que ela estava dizendo a verdade. Seus olhos se deleitavam nele, e ele estava adorando. Deu-lhe um pequeno aperto nas mãos e depois as soltou.

Enquanto dava a volta à mesa de trabalho, ela se sentou novamente, com os olhos ainda fixos nele. Seu próprio rosto era estreito e muito marcado para alguém tão jovem. Seus olhos eram de um violeta azulado. Ela era bela ao seu modo: com cabelos de um louro acinzentado, despenteados porém graciosos, e roupas velhas perfeitamente amarrotadas.

É, não as jogue fora, não as deixe ficar no cabide do bazar de roupas usadas, reinvente-as com nada mais do que alguns pontos e um ferro. O destino dos objetos manufaturados está na sua durabilidade e na mudança de contexto: seda amarrotada sob iluminação fluorescente, trapos elegantes com botões de plástico em cores jamais encontradas nas camadas geológicas, com meias de náilon tão forte que poderiam ter sido trançadas de modo a criar uma corda de resistência incalculável, se ao menos as pessoas não as arrancassem e as jogassem no lixo. Tantas coisas a fazer, tantos jeitos de ver... Se ele dispusesse do conteúdo de cada lata de lixo de Manhattan, poderia fazer mais um bilhão só com o que ali encontrasse.

— Admiro seu trabalho, senhorita Paget. E um prazer conhecê-la finalmente. — Ele indicou o tampo da mesa. Estava coberto de grandes fotografias coloridas das suas bonecas.

Seria possível que ela não as tivesse percebido? O prazer parecia dominá-la. Seu rosto enrubescia. Talvez ela até estivesse um pouquinho apaixonada pelo seu estilo e pelas suas maneiras. Disso ele não tinha certeza. Ele costumava deixar as pessoas apaixonadas, às vezes sem se esforçar por isso.

— Sr. Ash, este é um dos dias mais importantes da minha vida. — Ela disse essas palavras como se estivesse tentando se conscientizar disso, e depois ficou aturdida em silêncio, talvez por ter considerado que fora longe demais ao dizer o que realmente importava.

Ele deixou que seu sorriso se iluminasse e baixou ligeiramente a cabeça, como era seu costume, uma característica que as pessoas notavam, de tal modo que, por um instante, ele deu a impressão de estar olhando para ela de baixo para cima, embora fosse muito mais alto do que ela.

— Eu quero suas bonecas, senhorita Paget. Todas elas. Agradou-me muito tudo o que fez. Seu trabalho foi excelente com todos os novos materiais. Suas bonecas não são parecidas com as de mais ninguém. É isso o que eu quero.

Ela sorria a contragosto. Esse era sempre um momento emocionante, para os outros e para ele. Ele adorava fazê-la feliz!

— Meus advogados lhe apresentaram tudo? A senhorita está a par dos termos?

— Sim, Sr. Ash. Compreendi tudo. Aceito sua oferta, sem restrições. Esse é o meu sonho.

Esta última palavra ela proferiu com uma ênfase delicada. E dessa vez não hesitou, nem corou.

— Senhorita Paget, está precisando de alguém para negociar em seu nome! — ralhou ele. — Mas, se eu já enganei alguém, não me lembro; e francamente gostaria de que me lembrassem para que eu pudesse corrigir o que tivesse feito.

— Estou nas suas mãos, Sr. Ash. — Seus olhos estavam mais brilhantes mas não se enchiam de lágrimas. — As condições são generosas. Os materiais são deslumbrantes. Os métodos... — Ela abanou levemente a cabeça. — Bem, na realidade não entendo bem os métodos de produção em massa, mas conheço suas bonecas. Estive passeando pelas lojas, só olhando tudo o que é comercializado pela Ashlar. Sei que vai ser simplesmente fantástico.

Como tantos outros, ela havia feito suas bonecas na cozinha e depois numa oficina na garagem, queimando o barro num forno que ela mal tinha condições de possuir. Percorrera mercados de pulgas à procura dos tecidos. Buscara inspiração em personagens de filmes e romances. Suas obras eram "exclusivas" ou de "produção limitada", o tipo de produto apreciado nas galerias e lojas de bonecas sofisticadas. Ela ganhara prêmios, tanto importantes quanto insignificantes.

No entanto, suas matrizes poderiam ser usadas para algo totalmente diferente: meio milhão de belas cópias de uma boneca, e de mais uma e mais outra, feitas de um vinil trabalhado com tanto esmero a ponto de ficar tão bonito quanto a porcelana, com olhos pintados com tanto brilho quanto se fossem realmente de vidro.

— Mas e os nomes, senhorita Paget? Por que se recusa a escolher os nomes para as bonecas?

— Para mim, as bonecas nunca tiveram nomes, Sr. Ash. E os nomes que escolheu são ótimos.

— Sabe que logo estará rica, senhorita Paget.

— É o que me dizem — respondeu ela, de repente parecendo vulnerável, frágil na verdade.

— Mas terá de cumprir seus compromissos conosco. Terá de aprovar cada passo. No fundo, não levará muito tempo...

— Vou adorar o trabalho, Sr. Ash. Quero fazer...

— Quero ver tudo o que faça, imediatamente. Pode nos ligar.

— Está bem.

— Mas não tenha certeza de que irá apreciar o processo aqui. Como já observou, a manufatura não é igual ao artesanato ou à criação. Bem, ela é. Mas é raro que as pessoas a considerem dessa forma. Os artistas nem sempre encaram a produção em massa como um aliado.

Ele não teve de explicar seu antigo argumento, de que não ligava para as peças exclusivas ou de produção limitada; de que se importava apenas com as bonecas que pudessem pertencer a todos. E ele pegaria essas suas matrizes e produziria bonecas ano após ano, variando-as apenas quando lhe parecesse haver uma razão para isso.

Agora todos sabiam dessa sua característica: de que ele não tinha nenhum interesse por idéias ou valores elitistas.

— Alguma dúvida sobre nossos contratos, senhorita Paget? Não hesite em apresentar essas dúvidas diretamente a mim.

— Sr. Ash, já assinei os contratos! — Ela deu mais uma risadinha, nitidamente jovem e despreocupada.

— Isso me alegra, senhorita Paget. Prepare-se para ser famosa. — Ele ergueu as mãos e as cruzou sobre a mesa. Naturalmente ela estava olhando para elas. Estava assombrada com seu enorme tamanho.

— Sr. Ash, sei que é um homem ocupado. Nossa reunião é de quinze minutos.

Ele anuiu como se quisesse dizer, isso não tem importância, prossiga.

— Deixe-me fazer uma pergunta. Por que gosta das minhas bonecas? Quer dizer, na realidade, Sr. Ash...

— É claro que há uma resposta banal — disse ele, após pensar um pouco — que é perfeitamente verdadeira. O fato de suas bonecas serem originais, como a senhorita disse. Mas o que me agrada é que suas bonecas estão todas rindo abertamente. Os olhos estão espremidos. O rosto está em movimento. Os dentes brilham. Quase dá para se ouvir o riso.

— Esse foi o risco, Sr. Ash. — De repente, ela própria riu, e por um átimo pareceu tão feliz quanto suas criações.

— Eu sei, senhorita Paget. Será que agora vai querer me fazer algumas crianças tristes?

— Não sei se posso.

— Faça o que quiser. Tem meu apoio. Mas não faça crianças tristes. Muitos outros artistas são bons nisso.

Ele começou a se levantar, lentamente, o sinal da despedida, e não se surpreendeu quando ela se apressou a ficar em pé.

— Obrigada, Sr. Ash — disse ela novamente, estendendo a mão para a dele, aquela sua mão enorme, de dedos longos. — Não tenho palavras para...

— Não precisa.

Ele deixou que ela segurasse sua mão. Às vezes, as pessoas não queriam tocar nele uma segunda vez. Às vezes, sabiam que ele não era humano. Sem nunca, aparentemente, sentir repulsa pelo seu rosto, as pessoas costumavam sentir repulsa pelos seus grandes pés e mãos. Ou, no fundo do seu inconsciente, elas percebessem que seu pescoço era um pouquinho longo demais; suas orelhas, estreitas demais. Os humanos são treinados para o reconhecimento da sua própria espécie, tribo, clã, família. Uma grande parte do cérebro humano é organizada em torno do mero reconhecimento e lembrança de tipos de rostos.

Mas ela não sentia repulsa. Era apenas jovem, dominada pelas emoções e ansiosa quanto a transições simples.

— E por sinal, Sr. Ash, se não se importa que eu diga, as mechas brancas no seu cabelo lhe caem muito bem. Espero que nunca as tinja. Os cabelos grisalhos sempre caem bem num homem jovem.

— Ora, o que a fez dizer isso, senhorita Paget?

Ela corou mais uma vez, mas depois se entregou ao riso.

— Não sei — confessou. — É só que o cabelo está tão branco, e o senhor tão jovem. Não esperava que fosse tão jovem. É isso o que é tão surpreendente... — Ela se interrompeu, insegura. Era melhor que ele a liberasse antes que ela mergulhasse veloz nos seus próprios defeitos imaginados.

— Obrigado, senhorita Paget. Foi muito gentil. Gostei da nossa conversa. — Um reforço da confiança, direto e memorável. — Espero vê-la novamente em breve. Espero que fique satisfeita.

Remmick entrara para providenciar o desaparecimento da jovem. Ela disse mais algumas palavras apressadas, agradecimentos, confissões de inspiração e determinação de agradar o mundo inteiro. Palavras com esse doce sentido. Ele lhe deu um último sorriso discreto quando ela saiu e as portas de bronze se fecharam às suas costas.

É claro que quando chegasse em casa, ela desencavaria revistas. Faria contas nos dedos, talvez até com uma calculadora. Perceberia que ele não podia ser jovem, não pelas contas de qualquer ser humano. Concluiria que ele passava dos quarenta e que lutava bravamente contra os cinqüenta. Nisso não havia perigo.

Mas de que forma ele trataria esse problema, com o passar do tempo, pois o passar do tempo sempre foi seu problema? Esta era uma vida que amava, mas ele teria de fazer alguns ajustes. Ai, ele não conseguia pensar em nada tão horrível neste momento. E se os cabelos brancos começassem a se multiplicar? Isso ajudaria, certo? Mas o que eles realmente significariam, esses cabelos brancos? O que revelariam? Ele estava satisfeito demais para pensar nisso. Contente demais para abrigar medos terríveis.

Mais uma vez, ele se voltou para a janela, e para a neve que caía. Via o Central Park com tanta nitidez desse escritório quanto dos outros. Levou a mão ao vidro. Muito frio.

O lago de patinação estava deserto agora. A neve cobria o parque e o telhado logo abaixo da janela. E ele percebeu mais uma visão curiosa que sempre lhe provocava uma risadinha.

Era a piscina no alto do Parker Meridien Hotel. A neve caía firme sobre o telhado de vidro transparente enquanto, abaixo dela, um homem nadava de um lado para o outro na água verde profusamente iluminada, isso uns cinqüenta andares acima do nível da rua.

— Ora, isso é que é dinheiro e poder — refletiu ele, em silêncio, com seus botões. — Nadar no céu em meio a uma tempestade. — Construir piscinas no céu, mais um projeto que valia a pena.

— Sr. Ash — disse Remmick.

— Sim, meu querido — disse ele, distraído, observando as longas braçadas do nadador e vendo, agora com clareza, que se tratava de um homem idoso e muito magro. Uma criatura dessas teria sido vítima de inanição em tempos passados. Mas este era um indivíduo em boa forma física, dava para se ver, um empresário, talvez, preso por circunstâncias econômicas no rigoroso inverno de Nova York, a nadar de um lado para o outro numa água deliciosamente aquecida e perfeitamente higienizada.

— Telefone para o senhor — disse Remmick.

— Creio que não, Remmick. Estou cansado. É a neve. Ela me dá vontade de me enrodilhar na cama e ir dormir. Quero ir dormir agora, Remmick. Quero um pouco de chocolate quente e depois dormir e dormir.

— Sr. Ash, o homem disse que o senhor iria querer falar com ele, que eu devia lhe dizer...

— Todos eles dizem isso, Remmick.

— Samuel, senhor. Ele falou para eu lhe dizer esse nome.

— Samuel!

Ele se voltou da janela e olhou para o criado, para seu rosto plácido. Não havia julgamento ou opinião na sua expressão. Só devoção e uma aceitação muda.

— Ele disse que eu viesse diretamente ao senhor, que era esse o costume quando ele ligava. Arrisquei-me a que ele...

— Agiu bem. Agora pode me deixar sozinho um pouco. Sentou-se na sua cadeira à mesa.

Quando as portas se fecharam, ele tirou o fone do gancho e apertou o pequeno botão vermelho.

— Samuel! — sussurrou.

— Ashlar — veio a resposta, clara como se o amigo estivesse realmente falando ao seu ouvido. — Você me deixou esperando quinze minutos. Como ficou importante!

— Samuel, onde você está? Em Nova York?

— Claro que não — foi a resposta. — Estou em Donnelaith, Ash. Estou na estalagem.

— Telefones no vale — foi um murmúrio baixo. Aquela voz vinha da Escócia longínqua, do vale.

— É, meu velho, telefones no vale, e outras coisas também. Um Taltos veio aqui, Ash. Eu o vi. Um Taltos perfeito.

— Espere aí. Parece que você disse...

— Eu disse mesmo. Não fique muito nervoso com isso, Ash. Ele morreu. Era um bebê, metia os pés pelas mãos. É uma longa história. Há um cigano envolvido no caso, um cigano muito inteligente chamado Yuri, da Talamasca. O cigano estaria morto neste instante se não fosse por mim.

— Você tem certeza de que o Taltos morreu?

— O cigano me contou. Ash, a Talamasca está passando por tempos sinistros. Algo de trágico aconteceu com a Ordem. Eles matarão esse cigano em breve, talvez, mas ele está determinado a voltar à casa-matriz. Você deve vir o mais rápido possível.

— Samuel, eu o encontro em Edimburgo amanhã.

— Não, Londres. Vá direto para Londres. Prometi ao cigano. Mas venha rápido, Ash. Se os irmãos em Londres o avistarem, ele morre.

— Samuel, essa história não pode estar certa. A Talamasca não faria coisas dessa natureza a ninguém, muito menos à sua própria gente. Você tem certeza de que esse cigano está dizendo a verdade?

— Ash, o caso está relacionado a esse Taltos. Você vai vir agora?

—Vou.

— Não vai me deixar na mão?

— Não.

— Então, há mais uma coisa que preciso lhe dizer imediatamente. Você verá nos jornais em Londres assim que aterrissar. Estiveram escavando em Donnelaith, nas ruínas da Catedral.

— Disso eu sei, Samuel. Nós dois já conversamos sobre isso.

— Ash, eles descobriram o túmulo de Santo Ashlar. Encontraram o nome inscrito na lápide. Você vai ver nos jornais, Ashlar. Há estudiosos aqui vindos de Edimburgo. Ash, há bruxas envolvidas nessa história. Mas o cigano lhe contará tudo. Tem gente me observando. Preciso desligar.

— Samuel, sempre há gente o observando, espere...

— E o seu cabelo, Ash. Eu o vi numa revista. Você está com mechas grisalhas no cabelo? Não se incomode.

— É, meu cabelo está mesmo ficando branco. Mas muito devagar. Sob outros aspectos, eu não envelheci. Não há outros choques para você, à exceção do cabelo.

— Você vai viver até o fim do mundo, Ash, e vai ser você quem o fará desmoronar.

— Não!

— Claridge's em Londres. Vamos partir agora mesmo. Aquele é um hotel em que se pode fazer um belo fogo de carvalho na lareira e dormir num grande quarto aconchegante cheio de chintz e veludo verde-garrafa. Estarei lá à sua espera. E Ash, pague o hotel, por favor. Estou aqui embrenhado no vale há dois anos.

Samuel desligou.

— Irritante — sussurrou ele, pousando o fone no gancho.

Durante longos minutos, ficou olhando para as portas de bronze.

Não piscou nem focalizou a visão quando as portas se abriram. Mal discerniu a figura pouco nítida que entrou na sala. Não estava pensando. Apenas repetia as palavras Taltos e Talamasca mentalmente.

Quando ergueu os olhos, viu somente Remmick servindo chocolate de um pequeno e pesado bule de prata numa bonita xícara de porcelana. O vapor subia na direção do rosto paciente e ligeiramente cansado de Remmick. Cabelo grisalho, ora aquilo é que era cabelo grisalho, cobrindo a cabeça inteira. Eu não tenho tanto cabelo grisalho assim.

Na realidade, ele só tinha as duas mechas que saíam das têmporas para trás, e um pouco de branco nas suíças, como se chamavam. E, sim, um mínimo toque de branco nos pêlos escuros do seu peito. Temeroso, ele olhou para o pulso. Havia pêlos brancos ali também, mesclados nos pêlos escuros que cobriam seus braços há tantos anos.

Taltos! Talamasca. O mundo desmoronará...

— Foi acertado, senhor, o telefonema? — perguntou Remmick, naquele maravilhoso murmúrio quase inaudível que seu patrão adorava. Muita gente o teria chamado de resmungo. E agora vamos até a Inglaterra, vamos voltar a estar com aquelas pessoas agradáveis e delicadas... A Inglaterra, terra do frio rigoroso, vista da costa da terra perdida, um mistério de florestas de inverno e montanhas com o topo coberto de neve.

— É, de fato foi acertado, Remmick. Sempre venha falar comigo diretamente quando se tratar de Samuel. Tenho de viajar para Londres agora mesmo.

— Então, preciso me apressar, senhor. La Guardia esteve fechado o dia inteiro. Vai ser muito difícil...

— Apresse-se, então, por favor. Não diga mais nada.

Ele ficou bebericando o chocolate. Nada lhe parecia mais delicioso, mais doce ou melhor, a não ser talvez o leite puro e fresco.

— Outro Taltos — sussurrou ele, em voz alta. Pousou a xícara na mesa. — Tempos sinistros na Talamasca. — Ele não sabia ao certo se acreditava nisso.

Remmick havia desaparecido. As portas estavam fechadas, com o lindo bronze reluzindo como se estivesse quente. Uma faixa de luz atravessava o piso de mármore, proveniente da lâmpada embutida no teto, muito parecida com o luar sobre o mar.

— Outro Taltos, e era homem.

Eram tantos os pensamentos que passavam velozes pela sua cabeça; era tamanha a explosão de emoções! Por um instante, acreditou que se entregaria às lágrimas. Mas não. Era raiva o que sentia, raiva por mais uma vez ter sido atingido pelas notícias, por seu coração estar disparado, pelo fato de estar fazendo um vôo transatlântico para descobrir mais alguma coisa sobre outro Taltos que já estava morto, um macho.

E a Talamasca, quer dizer que eles haviam entrado em tempos sinistros, afinal? Bem, não seria isso inevitável? E o que ele devia fazer a respeito? Deveria ser atraído para o meio disso tudo mais uma vez? Há séculos, ele havia batido às suas portas. Mas quem entre eles sabia disso agora?

Seus membros ele conhecia de rosto e de nome, só porque os temia o bastante para não querer perdê-los de vista. Ao longo dos anos, eles nunca pararam de vir ao vale... Alguém sabia alguma coisa, mas nada mudava realmente.

Por que achava que lhes devia algum tipo de intromissão protetora agora? Porque eles um dia abriram suas portas, porque escutaram, porque lhe imploraram que ficasse, porque não riram da sua história, porque lhe prometeram que a manteriam em segredo. E à sua própria semelhança, a Talamasca era velha. Velha como as árvores nas imensas florestas.

Há quanto tempo havia sido? Antes da casa-matriz de Londres, muito antes, quando o velho palazzo em Roma ainda era iluminado com velas. Nenhum registro, prometeram-lhe eles. Nenhum registro, em troca de tudo que ele havia contado... que deveria permanecer impessoal, anônimo, fonte de lendas e fatos, fragmentos de conhecimento de eras passadas. Exausto, ele havia dormido sob aquele teto. Eles o haviam consolado. No entanto, em última análise, eram homens comuns, talvez dotados de um interesse extraordinário, mas homens comuns, de vida curta, assombrados por ele, estudiosos, alquimistas, colecionadores.

Fosse o caso qual fosse, não era bom que eles passassem por tempos sinistros, para usar os termos de Samuel; não, com tudo o que sabiam e mantinham nos seus arquivos. Nada bom. E por alguma estranha razão ele se enternecia com esse cigano no vale. E sua curiosidade ardia com a intensidade de sempre, no que dizia respeito aos Taltos, às bruxas.

Meu Deus, só de pensar nas bruxas.

Quando Remmick voltou, trazia o casaco forrado de peles no braço.

— Está frio o bastante para ele, senhor — disse, pondo o casaco sobre os ombros do patrão. — E o senhor já parece estar enregelado.

— Não é nada, Remmick. Não desça comigo. Há algo que precisa fazer. Envie dinheiro para o Claridge's em Londres. Para um homem chamado Samuel. A gerência não terá dificuldades para identificá-lo. Ele é um anão, corcunda, de cabelos ruivos e com o rosto muito enrugado. Você deve organizar tudo de modo a que esse homenzinho tenha à disposição o que quiser. Ah, e ele tem um acompanhante. Um cigano. Não faço a menor idéia do que isso quer dizer.

— Está bem, senhor. O sobrenome?

— Não sei qual é, Remmick — respondeu, erguendo-se para sair e puxando a pelerine forrada de peles mais para perto do pescoço. — Conheço Samuel há tanto tempo.

Ele já estava no elevador quando percebeu que esta última afirmação era absurda. Ultimamente andava dizendo muitas coisas descabidas. No outro dia, Remmick dissera o quanto amava o mármore em todos esses aposentos e ele respondera que era verdade, que ele adorava o mármore desde a primeira vez que o vira. E isso lhe parecera absurdo.

O vento uivava no poço do elevador enquanto a cabine descia numa velocidade espantosa. Era um som que se ouvia somente no inverno, e um som que assustava Remmick, embora ele próprio o apreciasse ou o considerasse no mínimo divertido.

Quando chegou à garagem subterrânea, o automóvel estava à espera, dele emanando uma grande onda de ruído e de fumaça branca. Suas malas estavam sendo postas no carro. Ali estava seu piloto noturno, Jacob, e o co-piloto anônimo, bem como o jovem e pálido motorista cor de palha que estava sempre de plantão a esta hora, aquele que raramente falava.

— O senhor tem certeza de que quer fazer a viagem ainda hoje? — perguntou Jacob.

— Ninguém está voando? — perguntou ele, parando com as sobrancelhas erguidas e a mão na porta. Vinha um ar aquecido de dentro do carro.

— Não, há pessoas voando.

— Então, nós vamos voar, Jacob. Se estiver com medo, não precisa vir.

— Onde o senhor for, eu vou.

— Obrigado, Jacob. Uma vez você me garantiu que voamos bem acima das intempéries agora e com muito mais segurança do que um jato comercial.

— É, eu disse isso, sim, não disse?

Sentou-se no banco de couro negro e estendeu as pernas compridas, de modo a pousar os pés no banco da frente, feito que nenhum homem de altura normal teria conseguido naquela limusine extremamente longa. O motorista estava confortavelmente isolado por trás do vidro interno; e os outros seguiam no carro atrás do seu. Seus guarda-costas iam no automóvel à frente.

A grande limusine subiu rápida pela rampa, passando pelo meio-fio com uma velocidade perigosa porém excitante e depois saindo pela boca escancarada da garagem para a fascinante tempestade branca. Graças a Deus os mendigos haviam sido resgatados das ruas. Mas ele se esquecera de perguntar pelos mendigos. Sem dúvida, alguns deles haviam sido trazidos para seu saguão, sendo-lhes ali oferecido algo quente para beber e camas de lona para dormir.

Atravessaram a Quinta Avenida e seguiram velozes na direção do rio. A tempestade era uma torrente silenciosa de flocos minúsculos e lindos. Eles se derretiam ao atingir as janelas escuras e as calçadas molhadas. Caíam entre os prédios sombrios e anônimos como num profundo desfiladeiro nas montanhas.

 

Taltos.

Por um instante, a alegria desapareceu do seu mundo: a alegria das suas realizações e dos seus sonhos. Na sua imaginação, ele viu a jovem bonita, a criadora de bonecas da Califórnia, no seu vestido de seda violeta amarrotada. Em pensamento viu-a morta sobre uma cama, com sangue à sua volta, escurecendo-lhe o vestido.

É claro que isso não aconteceria. Ele nunca mais permitira que acontecesse. Há tanto tempo que mal se lembrava de como era a sensação de envolver com os braços um corpo macio de mulher; mal se lembrava do gosto do leite de um seio de mãe.

No entanto, ele pensava na cama, no sangue, na moça morta e fria, com as pálpebras ficando azuladas, assim como a carne por baixo das suas unhas e, afinal, até mesmo seu rosto. Imaginava tudo isso porque, se não o fizesse, imaginaria muitas outras coisas. A ferroada dessas imagens o mantinha sob disciplina. Ela o mantinha sob controle.

— Ai, que diferença faz? Macho. E morto.

Só agora ele se dava conta de que logo iria ver Samuel! Ele e Samuel estariam juntos. Agora isso era algo que o inundava de felicidade, ou o inundaria se ele permitisse. E ele se tornara mestre na capacidade de permitir que ondas de felicidade ocorressem quando quisessem.

Não via Samuel há uns cinco anos, ou seriam mais? Precisava pensar. É claro que se falavam por telefone. À medida que os telefones e o telégrafo foram se aperfeiçoando, eles conversavam com maior freqüência. Mas ele não chegava a realmente se encontrar com Samuel.

Naquela época, havia apenas um pouco de branco no seu cabelo. Meu Deus, estava aumentando assim tão depressa? Mas é claro que Samuel havia percebido os poucos fios brancos e havia feito algum comentário a respeito. E Ash respondera que aquilo ia passar.

Por um instante, o véu se ergueu, o enorme escudo de proteção que o protegia com tanta freqüência de uma dor insuportável.

Viu o vale, a fumaça que subia. Ouviu o terrível retinir das espadas, viu as figuras que corriam na direção da floresta. A fumaça subia das antigas torres circulares e das rodas d'água... Impossível que aquilo pudesse ter acontecido!

As armas mudaram; as normas mudaram. Mas os massacres, sob todos os outros aspectos, continuavam os mesmos. Ele vivia neste continente agora há uns setenta e cinco anos, sempre retornando a ele um mês ou dois após ter saído, por muitos motivos, não sendo insignificante entre eles o de não querer estar perto das chamas, da fumaça, da agonia e da terrível destruição da guerra.

A lembrança do vale não o deixava. Outras lembranças estavam associadas: de campos verdejantes, flores silvestres, centenas e mais centenas de minúsculas flores azuis do campo. Ele seguia pelo rio numa pequena embarcação de madeira, e os soldados estavam parados nas altas ameias. Ah, que criaturas eram essas que empilhavam pedra sobre pedra para criar enormes montanhas para si mesmas! E afinal o que eram os seus próprios monumentos, os enormes blocos de pedra que centenas arrastavam pela planície para formar o círculo?

A caverna, ele a via também de novo, como se uma dúzia de fotografias nítidas fossem de repente embaralhadas diante dos seus olhos e num momento ele estivesse correndo pelo penhasco abaixo, escorregando e quase caindo, e no outro Samuel estivesse ali, falando com ele.

"Vamos sair daqui, Ash. Por que você vem aqui? O que há aqui para se ver ou para se aprender?"

Ele via os Taltos de cabelos brancos.

"Os sábios, os bons, os compreensivos" era como eram chamados. Não se dizia "os velhos". Essa nunca teria sido uma palavra que eles teriam usado naquela época, quando as fontes da ilha eram mornas e os frutos caíam das árvores. Mesmo quando chegaram ao vale, jamais diziam a palavra "velho", mas todos sabiam que eles haviam vivido mais do que os outros. Aqueles que tinham cabelos brancos sabiam as histórias mais longas...

"Suba agora e ouça a história."

Na ilha, podia-se escolher qual daqueles de cabelos brancos se queria ouvir, porque eles próprios não se dispunham a escolher, e você ficava ali sentado ouvindo o escolhido cantar, falar ou dizer versos, contando as coisas mais profundas das quais se lembrasse. Havia uma mulher de cabelos brancos que cantava com uma voz doce e aguda, com os olhos sempre fixos no mar. E ele adorava ouvi-la.

E ele se perguntava quantas décadas se passariam até que seu próprio cabelo estivesse completamente branco.

Ora, poderia ser muito em breve, ao que ele soubesse. O próprio tempo não significava nada naquela época. E as fêmeas de cabelos brancos eram tão poucas, porque o parto fazia com que murchassem cedo. Ninguém falava nisso também, mas todos sabiam.

Os machos de cabelos brancos eram vigorosos, amorosos, tremendos glutões e dispostos a fazer previsões. Mas a fêmea de cabelos brancos era frágil. Era isso o que o parto lhe fizera.

Terrível lembrar dessas coisas, tão de repente, com tanta clareza. Será que talvez não existisse algum segredo mágico para os cabelos brancos? Será que eles faziam com que as pessoas se lembrassem desde o início? Não, não se tratava disso. Era só que em todos aqueles anos de nunca saber quanto tempo, ele havia imaginado que acolheria a morte com um abraço, e agora já não tinha esse mesmo sentimento.

Seu carro atravessara o rio e seguia veloz na direção do aeroporto. Ele era grande, pesado e se agarrava ao asfalto escorregadio. Mantinha-se firme contra o vento forte.

E lá vinham as lembranças. Ele já era velho quando os cavaleiros se abateram sobre a planície. Era velho quando viu os romanos nas ameias da Muralha de Antonino, quando olhava lá de cima, da porta de Columba, para os altos penhascos de lona.

Guerra. Por que nunca lhe saíam da lembrança, mas ficavam ali à espera em sua glória plena, ao lado das doces recordações daqueles que ele havia amado, da dança no vale, da música? Os cavaleiros que se abatiam sobre os prados, uma massa escura que se espalhava como se fosse tinta sobre um quadro pacífico, e depois o ronco surdo que lhes chegava aos ouvidos e a visão do vapor que se erguia dos seus cavalos em nuvens infindas.

Acordou sobressaltado.

O pequeno telefone tocava para ele. Ele o segurou firme e o tirou do gancho negro.

— Sr. Ash?

— Sim, Remmick?

— Achei que o senhor ia querer saber. No Claridge's, conhecem seu amigo Samuel. Reservaram para ele a suíte de costume, segundo andar, de canto, com lareira. Estão à sua espera. E, Sr. Ash, eles também não sabem o sobrenome dele. Parece que ele não o usa.

— Obrigado, Remmick. Reze um pouco por mim. O tempo está muito instável e perigoso, acho.

Ele desligou antes que Remmick pudesse começar as advertências de costume. Jamais devia ter dito uma coisa dessas, pensou.

Mas a notícia era realmente espantosa: o fato de eles conhecerem Samuel no Claridge's. Imaginem só eles terem se acostumado a Samuel. Da última vez em que vira Samuel, seu cabelo ruivo estava desgrenhado e grudado de tão sujo, seu rosto apresentava rugas tão fundas que os olhos já não eram mais totalmente visíveis, mas cintilavam de vez em quando com alguma luz eventual, como fragmentos de âmbar na pele mole e sarapintada. Naquela época, Samuel usava trapos e carregava sua pistola no cinto, exatamente como um pequeno pirata. E as pessoas costumavam se desviar do seu caminho nas ruas.

"Todos têm medo de mim. Não posso ficar aqui. Olhe só para eles. Têm mais medo agora do que antigamente."

E agora estavam familiarizados com ele no Claridge's! Será que ele estava mandando fazer seus ternos em Savile Row? Será que seus imundos sapatos de couro não tinham buracos? Será que ele havia desistido do revólver?

O carro parou, e ele teve de fazer força para abrir a porta, com o motorista se apressando para ajudá-lo, enquanto a neve investia contra ele com o vento.

Mesmo assim, a neve era tão bonita e tão limpa antes de atingir o chão. Ficou em pé, sentindo uma rigidez momentânea nos membros, e então ergueu a mão para impedir que os flocos úmidos e macios lhe batessem nos olhos.

— Na verdade, não está tão mau assim, senhor — disse Jacob. — Podemos estar fora daqui em menos de uma hora. O senhor deveria embarcar imediatamente, se quiser.

— Claro, Jacob, obrigado — disse ele. E parou. A neve caía em todo o seu casaco escuro. Ele a sentia derretendo no cabelo. Mesmo assim, enfiou a mão no bolso e tateou à procura do pequeno brinquedo, o cavalinho de balanço, e estava ali.

— Isso é para o seu filho, Jacob. Prometi para ele.

— Sr. Ash, lembrar-se de uma coisa assim numa noite como esta!

— Tolice, Jacob. Aposto que seu filho se lembra.

Era embaraçosamente insignificante, esse brinquedinho de madeira. Ele agora desejava que fosse algo infinitamente melhor. Tomaria nota disso: algo melhor para o filho de Jacob.

A grandes passadas, ele ia rápido demais para que o motorista o alcançasse. Além do mais, era alto demais para o guarda-chuva. Tratava-se apenas de um gesto, o homem se apressando ao seu lado, com o guarda-chuva na mão, para que ele o apanhasse se quisesse, o que nunca fazia.

Embarcou no avião a jato, fechado, aquecido e sempre assustador.

— Temos sua música, Sr. Ash.

Ele conhecia essa moça, mas não conseguia se lembrar do seu nome. Era uma das melhores das secretárias noturnas. Estivera com ele na sua última viagem ao Brasil. Era sua intenção lembrar-se dela. Que pena não ter seu nome bem na ponta da língua.

— Evie, não é? — perguntou, sorrindo, pedindo perdão com um pequeno franzir do cenho.

— Não, senhor, Leslie — respondeu ela, perdoando-o instantaneamente.

Se ela fosse uma boneca, teria sido de biscuit, sem a menor dúvida, com o rosto discretamente pintado com um suave corado cor-de-rosa nas bochechas e nos lábios, os olhos deliberadamente pequenos, mas escuros e bem focalizados. Ela aguardava, tímida.

Quando ele tomou assento na grande poltrona de couro feita especialmente para ele, mais comprida do que as outras, ela pôs na sua mão o programa impresso.

Havia as opções de costume: Beethoven, Brahms, Shostakovich. Ah, aqui estava a composição que ele havia pedido, o Requiem de Verdi. Mas ele não poderia ouvi-la agora. Se ele se entregasse àquelas cordas e vozes sombrias, as lembranças cairiam sobre ele.

Recostou a cabeça, ignorando o espetáculo do inverno do lado de fora da janelinha.

— Durma, seu idiota — disse ele, sem movimentar os lábios.

Mas sabia que não dormiria. Iria pensar sem parar em Samuel e nas coisas que Samuel dissera, até que se vissem novamente. Ele se lembraria do cheiro da casa da Talamasca e de como os estudiosos dali se pareciam com clérigos, bem como de uma mão humana com uma pena de escrever a formar em grandes letras rebuscadas: "Anônimo. Lendas da terra perdida. De Stonehenge."

— Só quer silêncio, senhor? — perguntou a jovem Leslie.

— Não, Shostakovich, a Quinta Sinfonia. Ela vai me fazer chorar, mas você deve me ignorar. Estou com fome. Quero queijo e leite.

— Está bem, senhor, tudo está pronto. — Ela começou a recitar os nomes dos queijos, aqueles sofisticados queijos de nata que mandavam trazer para ele da França, da Itália e Deus sabe de onde mais. Ele fez que sim, aceitando, à espera da onda de música, a qualidade divinamente penetrante desse sistema eletrônico envolvente, que faria com que ele se esquecesse da neve lá fora e do fato de que logo estariam sobre o grande oceano, aproximando-se em velocidade uniforme da Inglaterra, da planície, de Donnelaith e da mágoa.

 

DEPOIS DO PRIMEIRO DIA, Rowan não falou mais. Ela passava o tempo à sombra do carvalho, numa cadeira branca de vime, com os pés apoiados numa almofada ou às vezes apenas pousados na grama. Seus olhos, fixos no céu, movendo-se como se houvesse uma procissão de nuvens lá em cima, e não aquele límpido azul de primavera, com traços de felpa branca que eram soprados em silêncio de um lado para o outro.

Ela olhava para o muro, para as flores ou para os teixos. Jamais olhava para o chão.

Talvez tivesse se esquecido de que a cova dupla estava exatamente abaixo dos seus pés. A grama a estava cobrindo, rápida e exuberante, como sempre ocorre na primavera na Louisiana. Houve chuvas abundantes para ajudá-la, e às vezes a maravilha do sol e da chuva ao mesmo tempo.

Ela fazia suas refeições, consumindo aproximadamente de um quarto à metade do que lhe ofereciam. Ou era o que Michael dizia. Ela não parecia estar com fome. Mas estava pálida, imóvel, e as suas mãos, quando ela as movimentava, costumavam tremer.

Toda a família veio vê-la. Os grupos chegavam pelo gramado, ficando um pouco distantes como se temessem feri-la. Eles a cumprimentavam; perguntavam pela sua saúde. Diziam-lhe que estava linda. E era verdade. Depois desistiam e iam embora.

Mona observava tudo isso.

A noite, Rowan dormia, dizia Michael, como se estivesse exausta, como tivesse estado trabalhando arduamente. Ela tomava banho sozinha, embora isso o apavorasse. Mas ela sempre trancava a porta do banheiro; e, se ele tentasse ficar ali dentro, ela ficava apenas sentada na cadeira, com o olhar perdido, sem fazer nada. Era preciso que ele saísse para que ela se levantasse. E então ele ouvia o trinco girar.

Ela prestava atenção quando as pessoas falavam, pelo menos no início. E ocasionalmente, quando Michael lhe implorava que falasse, ela segurava sua mão com carinho, como se quisesse consolá-lo, ou pedir-lhe que fosse paciente. Isso era triste de se ver.

Michael era o único que ela tocava ou reconhecia, embora com freqüência esse pequeno gesto fosse feito sem nenhuma alteração na sua expressão remota ou sequer um movimento nos seus olhos cinzentos.

Seu cabelo estava ganhando corpo novamente. Ele estava até um pouco amarelo em decorrência de ela ficar sentada ao sol. Quando estava em coma, ele ficara da cor de madeira encharcada, daquele tipo que se vê nas margens lamacentas de rios. Agora ele dava a impressão de estar vivo, embora, se não falhasse a Mona a memória, o cabelo em si fosse morto, não é verdade? Já estava morto quando a pessoa o escovava, o enrolava, fazia qualquer coisa com ele.

Todos os dias pela manhã Rowan acordava sozinha. Descia devagar pela escada, segurando na balaustrada à esquerda e se apoiando na bengala com a mão direita, para colocá-la com firmeza a cada passo. Ela não parecia se importar se Michael a ajudasse. Se Mona a segurasse pelo braço, isso não fazia diferença.

De vez em quando, Rowan parava junto à penteadeira antes de descer e passava um pouco de batom.

Mona sempre percebia. Às vezes Mona estava esperando por Rowan no corredor, e via Rowan fazer isso. Era muito significativo.

Michael sempre fazia um comentário sobre isso também. Rowan usava camisolas e négligés, dependendo do tempo. Tia Bea não parava de comprá-los, e Michael costumava lavá-los porque Rowan só usava roupas novas depois de lavadas, ou era isso o que ele lembrava. Ele as estendia na cama para ela.

Não, não se tratava de nenhum estupor catatônico, calculava Mona. E os médicos confirmaram, embora não soubessem dizer o que havia de errado com ela. A única vez em que um deles, um idiota segundo Michael, enfiou um alfinete na mão dela, Rowan recolheu a mão em silêncio, cobrindo-a com a outra. E Michael ficou furioso. Mas Rowan não olhou para o médico, nem disse uma palavra sequer.

— Eu gostaria de ter estado aqui nessa hora — disse Mona.

É claro que Mona sabia que ele estava dizendo a verdade. Deixem que os médicos especulem e enfiem alfinetes nas pessoas. Talvez quando voltassem para o hospital, enfiassem alfinetes numa boneca de Rowan: a acupuntura do vodu. Mona não teria ficado surpresa.

 

Afinal o que Rowan sentia? Do que ela se lembrava? Ninguém tinha certeza. Eles só tinham a palavra de Michael de que ela acordara do coma perfeitamente consciente, de que falara com ele durante horas depois de acordar, de que ela sabia de tudo que havia acontecido, de que no coma ela ouvia e compreendia. Algo de terrível no dia em que despertou, um outro. E os dois enterrados juntos à sombra do carvalho.

— Eu não devia nunca ter permitido — dissera Michael a Mona umas cem vezes. — O cheiro que saía daquela cova, a visão do que restava... Eu devia ter me encarregado de tudo.

E como era o outro, quem o carregara cá para baixo e o que Rowan teria dito: Mona havia repetido demais essas perguntas a Michael.

— Eu lavei a lama das mãos dela — dissera Michael a Aaron e Mona.

— Ela não parava de olhar para a lama. Acho que uma médica não ia querer ter as mãos imundas. Pense só, quantas vezes um cirurgião lava as mãos. Ela me perguntou como eu estava; ela queria... — E nessa parte ele ficou com a voz embargada nas duas vezes em que contou a história.

— Ela queria tomar meu pulso. Estava preocupada comigo.

Deus, como eu queria ter visto o que enterraram! Como eu queria que ela tivesse falado comigo!

Era estranhíssimo: ser agora rica, designada para herdeira aos treze anos, ter um motorista e um carro (tradução para o público: vistosa limusine negra alongada, com CD, toca-fitas, TV em cores e muito espaço para gelo e Diet Coke), e dinheiro na carteira o tempo todo, tipo notas de vinte dólares, nada menos do que isso, montanhas de roupas novas e gente reformando a casa velha na esquina de St. Charles e Amelia, que a abordavam com amostras de "seda crua" ou "revestimentos de paredes" pintados à mão, quando ela passava.

E querer isso, querer saber, querer participar, querer compreender os segredos desse homem e dessa mulher, dessa casa que um dia seria sua. Um fantasma está morto debaixo da árvore. Uma lenda jaz sob as chuvas de primavera. E nos seus braços, uma outra. Era como dar as costas ao brilho forte e seguro do ouro para apanhar de algum pequeno esconderijo sinistras quinquilharias de poder inestimável. Ah, é magia. Nem mesmo a morte da sua mãe havia perturbado Mona tanto assim.

Mona conversava com Rowan. Muito.

Entrava na propriedade com sua própria chave, sendo a herdeira e tudo o mais. E porque Michael disse que podia. E Michael, não mais olhando para ela com desejo, praticamente a adotara.

Ela seguia para trás, para o jardim dos fundos, atravessava o gramado, desviando-se da cova quando se lembrava, e às vezes não se lembrava, para ir se sentar à mesa de vime e dar bom-dia para Rowan. E depois falava sem parar.

Falava a Rowan sobre o andamento da Clínica Mayfair, que o local já havia sido escolhido, que haviam optado por um enorme sistema geotérmico para a calefação e a refrigeração, que as plantas estavam sendo desenhadas.

— Seu sonho está se realizando — disse ela a Rowan. — A família Mayfair conhece essa cidade melhor do que ninguém. Não precisamos de estudos de viabilidade e coisas semelhantes. Vamos fazer com que o hospital se concretize como você queria.

Nenhuma reação por parte de Rowan. Será que ela ainda se interessava pelo imenso complexo médico que revolucionaria o relacionamento entre pacientes e suas famílias, no qual equipes de profissionais atenderiam mesmo os pacientes anônimos?

— Encontrei suas anotações — disse Mona. — Quer dizer, elas não estavam trancadas. Não pareciam pessoais.

Nenhuma resposta. Os gigantescos galhos do carvalho mexeram-se só um pouco. As folhas das bananeiras estremeceram de encontro ao muro de tijolos.

— Eu mesma estive do lado de fora do Sanatório Touro, perguntando às pessoas o que elas queriam num hospital ideal, sabe? Conversei horas com as pessoas.

Nada.

— Minha tia Evelyn está no Touro — disse Mona, baixinho. — Ela teve um derrame. Deviam trazê-la para casa, mas acho que ela não percebe a diferença. — Mona começaria a chorar se falasse na Velha Evelyn. Começaria a chorar se falasse em Yuri. E não falava. Não dizia que Yuri já não lhe escrevia nem telefonava há três semanas. Não dizia que ela, Mona, estava apaixonada, e por um homem misterioso, moreno, encantador, de maneiras britânicas, que tinha mais do dobro da sua idade.

Isso ela explicara a Rowan alguns dias atrás: como Yuri viera de Londres para ajudar Aaron Lightner. Explicara que Yuri era cigano e compreendia as coisas que Mona compreendia. Chegou a descrever como os dois se encontraram no quarto de Mona na noite anterior à viagem de Yuri.

— Eu passo o tempo todo preocupada com ele — dissera ela. Rowan não lhe dirigira o olhar.

E o que ela podia dizer agora? Que ontem à noite ela teve algum sonho terrível com Yuri, do qual não conseguia se lembrar.

— É claro que ele é um homem adulto — disse ela. — Quer dizer, já passou dos trinta e tudo o mais, e sabe se cuidar, mas só imaginar que alguém da Talamasca poderia feri-lo. — Ai, pare com isso!

Talvez tudo isso estivesse errado. Era fácil demais despejar todas essas palavras numa pessoa que não podia ou não queria responder.

Mas Mona podia jurar que havia em Rowan um vago reconhecimento de que Mona estava ali. Talvez fosse só o fato de Rowan não aparentar estar irritada ou trancada.

Mona não percebia nenhum desagrado.

Seus olhos esquadrinhavam o rosto de Rowan. A expressão de Rowan era tão séria. Tinha de haver uma mente ali dentro; simplesmente tinha de haver. Ora, ela parecia estar vinte milhões de vezes melhor do que durante o coma. E vejam só, ela abotoou o négligé. Michael jurava que não fazia esse tipo de coisa para ela. Ela abotoara três botões. Ontem havia sido só um.

Mas Mona sabia que o desespero pode encher uma cabeça tão completamente que tentar ler seus pensamentos é como tentar ler o que está por trás de uma fumaça densa. Seria desespero o que se havia abatido sobre Rowan?

Mary Jane Mayfair viera neste último fim de semana, a caipira louca de Fontevrault. Andarilha, aventureira, vidente e gênio, se se acreditasse no que dizia, e meio velha meio menina alegre, à idade provecta dos dezenove anos e meio. Uma bruxa poderosa, temível, assim ela se descrevia.

— Rowan está perfeitamente bem — declarara Mary Jane depois de olhar e examinar Rowan com os olhos semicerrados, empurrando então seu chapéu de vaqueiro para trás de modo a que cobrisse sua nuca. — É, animem-se. Ela está demorando um pouco, mas sabe o que está acontecendo.

— Quem é afinal esse caso de hospício? — perguntara Mona, embora sentisse no fundo uma compaixão desenfreada pela menina, não importava que ela fosse seis anos mais velha. Essa era um nobre selvagem, trajando uma saia de brim da Wal-Mart, que não lhe passava da metade da coxa, e uma blusa branca e barata que estava apertada demais para seus seios generosos, além de lhe faltar um botão crucial. Graves privações, e se saindo muito bem.

É claro que Mona sabia quem Mary Jane era. Mary Jane Mayfair vivia de fato nas ruínas da fazenda de Fontevrault, na região do Bayou. Essa era a terra lendária dos caçadores clandestinos que matavam lindas garças de pescoço branco só pela carne, de crocodilos que podiam virar seu barco e comer seu filho, e de uns parentes malucos que nunca chegaram a Nova Orleans e à escada de madeira do famoso posto avançado de Fontevrault nessa cidade, também conhecida como a casa da esquina de St. Charles e Amelia.

Mona estava na realidade morrendo de vontade de conhecer esse lugar, Fontevrault, que ainda estava em pé com suas seis colunas no andar superior e seis colunas no inferior, muito embora o inferior estivesse inundado por um metro d'água. Vinha em segundo lugar conhecer a lendária Mary Jane, a prima que só recentemente voltara de "longe", que amarrava seu barco ao balaústre do pé da escada e que atravessava remando uma poça estagnada de lodo traiçoeiro para chegar à picape que a levava à cidade para as compras.

Todo mundo falava de Mary Jane Mayfair. E, como Mona estava com treze anos e era agora a herdeira, a única pessoa vinculada ao legado que se dispunha a falar com as pessoas e a reconhecer sua presença, todos achavam que Mona consideraria de interesse especial falar de uma prima adolescente caipira que era "brilhante", "paranormal" e que andava por aí como Mona, sozinha.

Dezenove anos e meio. Até Mona bater os olhos nessa brilhante peça, ela não considerava ninguém dessa idade um verdadeiro adolescente.

Mary Jane era praticamente a descoberta mais interessante que haviam feito desde que começaram a amealhar todo mundo para exames genéticos da família Mayfair inteira. Era previsível que isso fosse acontecer, a descoberta de uma herança do passado como Mary Jane. Mona queria saber o que mais poderia sair se arrastando de dentro dos pântanos em breve.

Mas imaginem só uma sede de fazenda inundada, no majestoso estilo da Renascença grega, afundando aos poucos na lentilha d'água, com pedaços de reboco caindo ruidosos nas águas espessas. Imaginem peixes nadando entre os balaústres da escadaria.

— E se a casa ruir em cima dela? — perguntara Bea. — A casa está dentro d'água. Ela não pode ficar lá. Precisamos trazer essa menina para Nova Orleans.

— É água de pântano, Bea — dissera Celia. — Pântano, está lembrada? Não se trata de um lago ou da Corrente do Golfo. E além do mais, se essa criança não tem juízo suficiente para sair de lá e levar a velha para algum local seguro...

A velha.

Mona tinha tudo isso bem fresco na memória nesse último fim de semana quando Mary Jane entrou no pátio dos fundos e se enfiou no pequeno agrupamento que cercava a silenciosa Rowan, como se fosse um piquenique.

— Eu sabia de vocês todos — declarara Mary Jane. As palavras eram dirigidas também a Michael, que estava parado junto à cadeira de Rowan como se posasse para um elegante retrato de família. E como os olhos de Michael se fixaram nela.

— Às vezes eu venho até aqui para olhar vocês — disse Mary Jane. — Verdade. Eu vim no dia do casamento. Sabe, quando você se casou com ela? — Ela apontou para Michael e depois para Rowan. — Fiquei ali parada, do outro lado da rua, a olhar a sua festa?

Suas frases sempre subiam no final, mesmo que não fossem perguntas, como se ela estivesse sempre pedindo um sinal ou uma palavra de anuência.

— Você deveria ter entrado — disse Michael, gentil, atento a cada sílaba que a menina pronunciava. O problema de Michael era que ele realmente tinha um fraco pela beleza pubescente. Seu encontro com Mona não havia sido nenhuma aberração da natureza ou obra de feitiçaria. E Mary Jane Mayfair era uma avezinha do pântano suculenta como nunca se viu. Ela até usava o cabelo louro brilhante em trancas no alto da cabeça, e imundos sapatos tipo boneca de verniz branco, como uma criancinha. O fato de sua pele ser escura, meio morena e possivelmente bronzeada, fazia com que a menina tivesse a aparência de um palomino humano.

— O que os exames disseram a seu respeito? — perguntara Mona. — É isso o que você está fazendo aqui, não é? Você foi examinada?

— Não sei — disse o gênio, a poderosíssima bruxa dos pântanos. — Eles estão tão confusos por lá. Milagre se acertarem alguma coisa. Primeiro me chamaram de Florence Mayfair e depois de Ducky Mayfair. Até eu chegar e dizer, "Olhe, meu nome é Mary Jane Mayfair, olhe aí, bem ali, no formulário diante do seu nariz".

— Bem, isso não é muito promissor — resmungou Celia.

— Mas disseram que eu estava bem, que fosse para casa e que eles me avisariam se alguma coisa estivesse errada comigo. Olhe, eu calculo que tenho genes de bruxa saindo pelo ladrão. Imagino que vou ultrapassar o limite da tabela, sabe? E, cara, nunca vi tantos parentes como naquele prédio.

— O prédio é nosso — disse Mona.

— E todos eles eu reconheci à primeira vista, cada indivíduo. Não me enganei nenhuma vez. Tinha só um infiel lá, um pária, sabe, ou não, era um tipo mestiço, era isso o que ele era. Vocês já notaram que tem todos esses tipos de Mayfair? Quer dizer, todo um grupo que não tem queixo, uma espécie de narizinho bonito que se curva só um pouquinho aqui e olhos inclinados nas pontas. Depois, todo um monte que se parece com você — isso ela disse para Michael. — É, iguaizinhos a você, irlandeses de verdade, com sobrancelhas cerradas, cabelos crespos e olhos grandes e malucos de irlandês.

— Mas querida — protestara Michael, em vão. — Eu não sou Mayfair.

— ... e os outros de cabelos ruivos como os dela, só que ela é a mais bonita que eu já vi. Você deve ser Mona. Você tem o brilho e a luz de alguém que acabou de herdar toneladas de dinheiro.

— Mary Jane, amorzinho — disse Celia, incapaz de acrescentar algum conselho inteligente ou alguma pergunta sem sentido.

— Bem, como é essa história de ser tão rica assim? — perguntou Mary Jane, com os olhos enormes e palpitantes fixos em Mona. — Estou querendo saber, bem aqui no fundo. — Ela bateu com o punho fechado na sua blusinha barata e arreganhada, apertando de novo os olhos e se curvando para a frente de tal modo que o abismo entre seus seios ficou perfeitamente visível até para alguém baixo como Mona. — Não se preocupe, sei que não devia fazer esse tipo de pergunta. Vim até aqui para ver Rowan, sabe, porque Paige e Beatrice mandaram que eu viesse.

— Por que fizeram isso? — perguntou Mona.

— Fique quieta, querida — disse Beatrice. — Mary Jane é uma Mayfair legítima. Mary Jane, meu amor, você devia trazer sua avó para cá imediatamente. Estou falando sério, menina. Queremos que vocês venham. Temos toda uma lista de endereços, tanto temporários quanto fixos.

— Sei o que ela está querendo dizer — comentou Celia. Ela estava sentada ao lado de Rowan, e era a única com coragem suficiente para enxugar o rosto de Rowan de vez em quando, com um lenço branco. — Sobre os parentes que não têm queixo. Ela está falando de Polly. Polly tem um implante. Ela não nasceu com aquele queixo.

— Bem, se ela tem um implante — declarou Beatrice — ela tem um queixo visível, certo?

— É, mas ela tem os olhos oblíquos e o nariz pontudo — disse Mary Jane.

— Isso mesmo — concordou Celia.

— Vocês têm medo dos genes a mais? — Mary Jane atirava sua voz como um laço para captar a atenção de todos. — Você, Mona, tem medo?

— Não sei — disse Mona, que de fato não tinha.

— É claro que não se trata de nada que tenha a mais remota probabilidade de acontecer! — disse Bea. — Os genes. É claro que é pura teoria. Precisamos ficar falando nisso? — Beatrice lançou um olhar significativo na direção de Rowan.

Rowan olhava, como sempre, para o muro, talvez para o sol nos tijolos, quem poderia saber ao certo? Mary Jane já se lançava adiante.

— Eu acho que nada desse tipo vai acontecer de novo na família. Acho que o momento para esse tipo de feitiçaria passou, e que mais toda uma era de feitiçaria...

— Meu amor, nós realmente não levamos muito a sério toda essa história de feitiçaria — disse Bea.

— Você conhece a história da família? — perguntou Celia em tom grave.

— Se eu conheço? Sei de coisas sobre a família que vocês não sabem. Sei coisas que minha avó me contou, que ela ouviu do Velho Tobias. Sei coisas que estão escritas nas paredes daquela casa, ainda. Quando eu era pequena, sentei no colo da Velha Evelyn. A Velha Evelyn me contou todo tipo de coisas que eu me lembro. Só uma tarde, foi o que foi preciso.

— Mas o arquivo sobre a nossa família, o dossiê da Talamasca... — Insistia Celia. — Eles lhe deram para ler na clínica?

— Ah, sim, Bea e Paige me entregaram esse material — disse Mary Jane. — Olhe aqui. — Ela apontou para o band-aid no joelho. — Foi aqui que me picaram! Tiraram sangue suficiente para fazer um sacrifício ao demônio. Eu compreendo toda a situação. Alguns de nós têm toda uma cadeia de genes a mais. Se dois parentes próximos, os dois com a dose dupla de espiral dupla, procriarem, fuque-fuque, tem-se um Taltos. Pode ser! Pode ser! Afinal de contas, pensem bem, quantos primos se casaram e isso nunca aconteceu? Quantos fizeram sexo, até... Olhem, vocês têm razão, nós não deveríamos conversar sobre esse assunto diante dela.

Michael deu um sorrisinho exausto de gratidão.

Mary Jane mais uma vez olhou com atenção para Rowan. Mary Jane fez uma grande bola com a goma de mascar, chupou-a para dentro da boca e fez com que explodisse.

Mona riu.

— Eis um belo truque — disse ela. — Nunca consegui fazer isso.

— Ah, bem, talvez seja uma bênção — disse Bea.

— Mas você leu mesmo o arquivo — insistiu Celia. — É muito importante que você saiba tudo.

— Ah, li, sim, palavra por palavra — confessou Mary Jane — mesmo as que tive de procurar no dicionário. — Ela deu um tapa na própria coxa esbelta e bronzeada, e riu aos gritos. — Vocês vivem falando em me dar coisas. Podem me ajudar a me instruir. Acho que é a única coisa que me seria útil. Sabem, o pior que me aconteceu foi mamãe me tirar da escola. É claro que na época eu não queria mesmo ir para a escola. Eu me divertia muito mais na biblioteca pública, mas...

— Acho que você tem razão quanto aos genes a mais — disse Mona. E quanto a precisar de instrução.

Muitos, muitos membros da família tinham os cromossomos a mais, que podiam gerar monstros, mas nenhum havia jamais nascido no clã, não importa qual fosse a consangüinidade, até esta época terrível.

E o que dizer do fantasma que esse monstro havia sido durante tanto tempo, um espectro a enlouquecer moças, mantendo a casa de First Street sob uma nuvem de espinhos e trevas? Havia algo de poético nesses corpos estranhos jazendo bem aqui, debaixo do carvalho, debaixo da própria grama na qual Mary Jane pisava com sua saia curta de brim, seu curativo no pequeno joelho, com as mãos nos quadris delicados, com seu imundo sapatinho de fivela de verniz branco virado para um lado e besuntado com lama fresca, e com sua meia suja meio escorregada para dentro do sapato.

Talvez as bruxas do Bayou sejam simplesmente idiotas, pensou Mona. Podem pisar na cova de monstros sem saber. É claro que nenhuma das outras bruxas da família sabia. Só a mulher que não queria falar e Michael, aquele pedaço de sedução e músculos celtas, parado ao lado de Rowan.

— Você e eu somos primas em segundo grau — disse Mary Jane a Mona, reformulando sua abordagem. — Isso não é demais? Você ainda não era nascida quando eu vim até a casa da Velha Evelyn e tomei sorvete caseiro.

— Não me lembro de a Velha Evelyn ter feito sorvete caseiro.

— Querida, ela fazia o melhor sorvete caseiro que eu já experimentei. Minha mãe me trouxe a Nova Orleans para...

— Você se enganou de pessoa — disse Mona. De repente, essa garota era uma impostora. Talvez nem mesmo fosse uma Mayfair. Não, a sorte não seria tanta. E havia alguma coisa nos seus olhos que faziam com que Mona se lembrasse da Velha Evelyn.

— Não, não me enganei de pessoa — insistia Mary Jane. — Mas na verdade nós não viemos por causa do sorvete. Deixe-me ver suas mãos. Elas são normais.

— E daí?

— Mona, seja gentil, querida — disse Beatrice. — É que sua prima fala sem rodeios.

— Pois bem, está vendo essas mãos? Eu tinha seis dedos quando era pequena, nas duas mãos. O sexto não era um dedo de verdade? Sabe? Era só um bem pequeno. E foi por isso que minha mãe me trouxe para ver a Velha Evelyn, porque a própria Velha Evelyn tinha um dedo assim.

— E você acha que eu não sei disso? — perguntou Mona. — Cresci com a Velha Evelyn.

— Sei que cresceu. Sei tudo a seu respeito. Fique fria, querida. Não estou querendo ser grosseira. É só que sou uma Mayfair, igual a você, e aposto meus genes contra os seus a qualquer hora.

— Quem lhe contou tudo a meu respeito? — perguntou Mona.

— Mona — disse Michael, baixinho.

— Como pode ser que nunca nos tenhamos encontrado antes? — prosseguiu Mona. — Sou uma Mayfair de Fontevrault. Sua prima em segundo grau, como você acabou de dizer. E como é que você fala como se viesse do Mississippi quando diz que viveu todo esse tempo na Califórnia?

— Ora, escute bem, tem uma história por trás disso — disse Mary Jane. — Passei um tempo no Mississippi também, pode acreditar. Em Parchman Farm não poderia ter sido pior. — Era impossível derrubar a paciência dessa menina. Ela deu de ombros. — Vocês têm chá gelado?

— Claro que temos, querida. Desculpe. — Lá se foi Beatrice apanhar o chá. Celia abanou a cabeça de vergonha. Até Mona se sentiu negligente, e Michael rapidamente pediu desculpas.

— Não, eu mesma apanho. É só falar onde está — exclamou Mary Jane.

No entanto, Bea já havia desaparecido, o que era bastante conveniente. Mary Jane voltou a estourar a goma de mascar e depois fez uma série de pequenos estouros no lado da boca.

— Incrível — disse Mona.

— Como eu disse, tem uma história que explica tudo. Eu poderia lhe contar algumas coisas terríveis sobre o meu tempo na Flórida. É, estive por lá e um tempinho no Alabama, também. Tive de me esforçar para conseguir voltar para cá.

— Não diga — disse Mona.

— Mona, não seja sarcástica.

— Eu já vi você antes — prosseguiu Mary Jane como se absolutamente nada tivesse acontecido. — Eu me lembro de você quando você e Gifford Mayfair vieram até Los Angeles para ir ao Havaí. Aquela foi a primeira vez em que fui a um aeroporto. Você estava dormindo bem ali junto à mesa, deitada sobre duas cadeiras, debaixo do casaco de Gifford, e Gifford Mayfair nos pagou uma refeição fantástica???

Não vá descrevê-la, pensou Mona. Mas Mona tinha de fato uma vaga lembrança daquela viagem e de acordar com torcicolo no aeroporto de Los Angeles, conhecido pela interessante sigla de LAX, e de Gifford dizendo a Alicia que deviam trazer "Mary Jane" de volta um dia desses.

Só uma coisa. Mona não tinha nenhuma lembrança de nenhuma outra menininha por lá. Quer dizer que essa era Mary Jane. E agora ela estava de volta. Gifford devia estar fazendo milagres de lá do céu.

Bea voltara com o chá gelado.

— Aqui, meu amorzinho, com muito limão e açúcar, como você gosta, não é? Pronto, querida.

— Não me lembro de ver você no casamento de Michael e Rowan — disse Mona.

— É porque eu não entrei — disse Mary Jane, apanhando o chá gelado das mãos de Bea assim que ele chegou à órbita mais próxima, bebendo, ruidosa, metade do copo e limpando o chá do queixo com as costas da mão. Esmalte descascado, mas que tom maravilhoso de extremosa roxa.

— Eu lhe disse que viesse — disse Bea. — Telefonei. Deixei recado três vezes para você na mercearia.

— Eu sei, tia Beatrice, não tem ninguém que possa dizer que você não deu o melhor de si para fazer com que fôssemos ao casamento. Mas, tia Beatrice, eu não tinha sapatos! Eu não tinha um vestido? Eu não tinha um chapéu? Está vendo esses sapatos? Eu achei esses sapatos. São os primeiros sapatos que não são tênis que eu uso nos últimos dez anos. Além do mais, deu para eu ver tudo perfeito do outro lado da rua. E ouvir a música. Aquela foi uma música boa, a do seu casamento, Michael Curry. Você tem certeza de não ser um Mayfair? Você me parece ser um. Eu poderia apontar, digamos, sete traços diferentes da sua aparência que são da família Mayfair.

— Obrigado, querida. Não sou um Mayfair.

— Ah, você é de coração — disse Celia.

— Bem, é claro que sim — respondeu Michael, sem tirar os olhos da moça nem um instante, não importa quem estivesse falando com ele. E o que os homens vêem quando olham para tanto charme como esse?

— Você sabe que, quando éramos pequenas — prosseguia Mary Jane — não tínhamos nada por lá, só um lampião de querosene, um resfriador com gelo dentro e uma quantidade de telas contra mosquitos penduradas na varanda inteira, e vovó costumava acender o lampião e...

— Vocês não tinham eletricidade? — perguntou Michael. — Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo poderia ter sido?

— Michael, você nunca esteve na região do Bayou — disse Celia. E Bea fez um sinal com a cabeça, de quem sabe do assunto.

— Michael Curry, nós éramos posseiros, era isso o que éramos — disse Mary Jane. — Estávamos só nos escondendo em Fontevrault. Tia Beatrice poderia lhe contar. A polícia vinha nos expulsar periodicamente. Nós arrumávamos nossas coisas, eles nos levavam para Napoleonville e depois nós voltávamos. Eles desistiam de nós e nos deixavam em paz algum tempo até algum intrometido passar por ali de barco, algum guarda-florestal, alguém desse tipo que nos denunciava. Nós tínhamos abelhas, sabe, na varanda para ter mel? Podíamos pescar direto na escada dos fundos? Tínhamos na época árvores frutíferas em toda a volta do desembarcadouro, antes que a glicínia as atacasse como uma jibóia gigante, sabe, e amoras-pretas? Puxa, eu costumava catar tudo o que quisesse bem ali na bifurcação da estrada. Tínhamos de tudo. Além do mais, agora eu tenho eletricidade! Eu mesma puxei a instalação da estrada, e fiz o mesmo com a televisão a cabo.

— Você fez isso mesmo? — perguntou Mona.

— Meu amor, isso é contra a lei — atalhou Bea.

— Fiz, sim. Minha vida é interessante demais para eu começar a contar mentiras. Além disso, tenho mais coragem do que imaginação. Sempre fui assim. — Ela bebeu o chá gelado, sorvendo o líquido ruidosamente e derramando um pouco mais. — Meu Deus, como está bom. Está tão doce. Isso é adoçante artificial, não é?

— Receio que sim — disse Bea, olhando para ela com uma combinação de horror e embaraço. E imaginar que ela dissera "açúcar". E Bea detestava quem era desmazelado para comer e beber.

— Agora, imaginem só — disse Mary Jane, passando as costas da mão pela boca e depois limpando a mão na saia de brim. — Estou provando uma coisa que é cinqüenta vezes mais doce do que qualquer outra coisa que qualquer um jamais provou na terra até esta época exata. É por isso que comprei ações da indústria de adoçantes.

— Você comprou o quê? — perguntou Mona.

— Isso mesmo. Tenho meu próprio corretor, querida, só que a maior parte do tempo sou eu mesma quem escolhe. Ele opera em Baton Rouge. Tenho vinte e cinco mil dólares enfiados no mercado de ações. E, quando eu ficar rica, vou drenar e reerguer Fontevrault. Vou pôr tudo de volta no devido lugar, cada tábua e cada prego! Espere e verá. Você está olhando para uma futura executiva das quinhentas empresas mais bem-sucedidas da revista Fortune.

Talvez houvesse alguma coisa nessa biruta, pensou Mona.

— Como você conseguiu vinte e cinco mil dólares?

— Você podia morrer, mexendo com eletricidade — disse Celia.

— Cada centavo do total ganhei no caminho de volta. E isso demorou um ano, e não me pergunte como foi. Algumas coisas me ajudaram, é verdade. Mas, no fundo, isso agora é uma história.

— Você poderia ser eletrocutada — disse Celia. — Instalando sua própria eletricidade.

— Querida, você não está depondo — disse Bea, ansiosa.

— Olhe, Mary Jane — disse Michael. — Se você precisar de alguma coisa desse gênero, eu vou até lá e faço a instalação para você. Estou falando sério. Você só me diz quando, e eu vou até lá.

Vinte e cinco mil dólares?

Os olhos de Mona foram na direção de Rowan. Rowan franzia ligeiramente o cenho para as flores, como se as flores estivessem conversando com ela numa língua silenciosa e secreta.

Seguiu-se uma vivida descrição de Mary Jane subindo em casuarinas, sabendo exatamente que fios tocar e não tocar, furtando botas e luvas de trabalho. Talvez essa moça fosse mesmo algum tipo de gênio.

— Que outras ações você comprou? — perguntou Mona.

— Na sua idade, o que você está ligando para a Bolsa de Valores? — perguntou Mary Jane, com uma ignorância tagarela.

— Deus do céu, Mary Jane — disse Mona, procurando soar o máximo possível como Beatrice. — Sempre tive uma enorme obsessão pelo mercado de ações. Os negócios são para mim uma arte. Todo mundo sabe disso a meu respeito. Tenho planos de um dia administrar meu próprio fundo mútuo. Suponho que você saiba o que é, fundo mútuo?

— Bem, é claro que sei — disse Mary Jane, rindo de si mesma de um jeito totalmente agradável e condescendente.

— Nas últimas semanas, acabei de completar minha própria carteira — disse Mona e depois se calou, sentindo-se tola por ter sido fisgada com tanta facilidade por alguém que talvez nem estivesse prestando atenção ao que dizia. A zombaria da Mayfair & Mayfair era uma coisa, e não duraria muito tempo. Mas vinda dessa menina seria bem diferente.

A garota, no entanto, agora olhava realmente para ela e parava de sondar suas reações, enquanto lançava pequenos olhares de esguelha em meio às suas palavras apressadas.

— É mesmo? Bem, deixe-me perguntar-lhe uma coisa agora. O que você acha desse canal de compras na televisão? Acho que isso vai fazer um sucesso daqueles. Sabe? Pus dez mil nesse canal. Você sabe o que aconteceu?

— As ações dobraram de valor nos quatro últimos meses — disse Mona.

— Isso mesmo. Agora, como você soube disso? Bem, você é uma criança estranha, é ou não é? E eu achava que você era uma daquelas meninas burguesas, com aquela fita no cabelo, sabe, que você sempre usava, e estudando no Sagrado Coração, sabe? Eu calculava que você nem ia me dirigir a palavra.

Uma dorzinha tomou conta de Mona nesse instante, dor e pena por essa menina, por qualquer pessoa que se sentisse alijada desse jeito, humilhada a esse ponto. Mona jamais na sua vida sofrerá de falta de confiança em si mesma. E essa garota era interessante, fazendo tudo isso sozinha, com muito menos recursos do que Mona.

— Parem por aí, queridas, não vamos ficar falando de Wall Street — disse Beatrice. — Mary Jane, como está a vovó? Você não nos disse uma palavra sobre ela. Já são quatro horas e você vai ter de ir embora logo se for querer voltar até lá dirigindo...

— Ah, a vovó está bem, tia Beatrice — disse Mary Jane, mas olhava direto para Mona. — Agora, você sabe o que aconteceu com vovó depois que mamãe veio e me levou embora para Los Angeles? Eu tinha seis anos naquela época, sabe? Você já ouviu essa história?

— Já — disse Mona.

Todos conheciam a história. Beatrice ainda se sentia embaraçada a respeito dela. Celia olhava espantada para a garota como se ela fosse um mosquito gigante. Só Michael parecia não ter sido informado.

O que havia acontecido era o seguinte: a avó de Mary Jane, Dolly Jean Mayfair, havia sido jogada no asilo paroquial depois que sua filha foi embora com Mary Jane, aos seis anos de idade. Supunha-se que Dolly Jean tivesse morrido no ano anterior, tendo sido enterrada no jazigo da família. E o enterro havia sido um grande evento, só porque, quando alguém ligou para Nova Orleans, todos os parentes foram até Napoleonville, para bater no peito de dor e remorso por terem deixado essa velhinha, a pobre Dolly Jean, morrer num asilo paroquial. A maioria dos parentes nunca ouvira falar nela.

Na realidade, nenhum deles conhecera realmente Dolly Jean. Ou pelo menos não a conheceram como senhora de idade. Lauren e Celia a haviam visto muitas vezes quando eram meninas, é claro.

A Velha Evelyn conhecia Dolly Jean, mas a Velha Evelyn jamais saíra de Amelia Street para ir a um velório no interior, e ninguém chegou a pensar em lhe fazer alguma pergunta sobre o fato.

Bem, quando Mary Jane chegou à cidade um ano atrás e soube da história da morte e do enterro da avó, ela zombou daquilo tudo, até mesmo rindo diante de Bea.

— Ora, ela não morreu — dissera Mary Jane. — Ela me apareceu num sonho e disse, "Mary Jane, venha me buscar. Quero voltar para casa". Agora vou até Napoleonville e vocês precisam me dizer onde fica o tal asilo paroquial.

Só por causa de Michael, ela agora repetia a história inteira, e a expressão de espanto no rosto de Michael estava ficando espontaneamente cômica.

— Como é possível que Dolly Jean não lhe dissesse no sonho onde ficava o asilo? — perguntou Mona.

Beatrice lançou um olhar de censura na sua direção.

— Bem, ela não me disse, e essa é a verdade. Acho que você tem razão, também. Eu tenho toda uma teoria sobre aparições e sobre os motivos pelos quais elas ficam tão confusas.

— Nós todos temos — disse Mona.

— Mona, modere o tom — disse Michael.

Exatamente como se eu agora fosse filha dele, pensou Mona, indignada. E ele ainda não tirou os olhos de Mary Jane. Mas as palavras foram ditas com carinho.

— Querida, o que aconteceu? — insistiu Michael.

— Bem, uma velhinha daquelas — prosseguiu Mary Jane — nem sempre sabe onde está, mesmo num sonho, mas ela sabia de onde ela era! Foi exatamente isso o que aconteceu. Entrei pela porta do asilo de velhos, e lá bem no meio do salão de recreação, ou sei lá qual era o nome da sala, estava minha avó, e ela olhou direto para mim e depois de todos esses anos disse, "Por onde andou, Mary Jane? Leve-me para casa, chère, estou cansada de esperar."

Haviam enterrado a pessoa errada do asilo de velhos.

A verdadeira vovó Dolly Jean Mayfair estava viva e recebia todos os meses um cheque de aposentadoria em nome de outra pessoa, sem nunca pôr os olhos nele. Uma tremenda inquisição foi levada a cabo para provar isso, e então vovó Mayfair e Mary Jane Mayfair voltaram para morar nas ruínas da sede da fazenda. Uma equipe de parentes forneceu-lhes as necessidades básicas, e Mary Jane ficou parada ali fora atirando com sua pistola em garrafas de refrigerante e dizendo que tudo ia dar certo, que as duas podiam cuidar de si mesmas. Ela possuía alguns dólares que conseguira juntar na vida; era um pouco fanática por fazer as coisas ao seu próprio modo, não, muitíssimo obrigada.

— Quer dizer que deixaram a velhinha morar com você nessa casa inundada? — perguntou Michael, com tanta inocência.

— Querido, depois do que fizeram com ela naquele asilo de velhos lá naquele fim de mundo, que a confundiram com alguma outra mulher e puseram seu nome numa lápide e tudo o mais, o que você acha que eles podem vir me dizer sobre ela vir morar comigo? E o primo Ryan? O primo Ryan, da Mayfair & Mayfair? Sabe? Ele foi até lá e quase destruiu a cidade!

— É — disse Michael. — Aposto que sim.

— Foi tudo culpa nossa — disse Celia. — Devíamos ter mantido contato com esse pessoal.

— Você tem certeza de que não cresceu no Mississippi e quem sabe até mesmo no Texas? — perguntou Mona. — Sua voz parece um amálgama de todo o sul.

— O que é um amálgama? Viu, é aí que você leva vantagem. Você é instruída. Eu me instruí sozinha. A diferença entre nós é enorme. Tem certas palavras que eu não tenho coragem de pronunciar e não sei ler os símbolos no dicionário.

— Você quer ir para a escola, Mary Jane? — Michael estava ficando mais envolvido a cada instante que passava, com seus olhos azuis de uma inocência inebriante fazendo uma inspeção dos pés à cabeça a cada quatro segundos e meio. Ele era esperto demais para se deter nos seios e nos quadris da garota, ou mesmo na sua cabecinha redonda, não que ela fosse pequena de tamanho, só gostosa de se ver. Era essa a impressão final que ela dava: ignorante, biruta, brilhante, bagunçada e de algum modo deliciosa.

— Quero, sim, senhor — disse Mary Jane. — Quando eu for rica, vou ter um professor particular como a nossa Mona tem agora que é a herdeira indicada e tudo o mais, sabe? Algum cara realmente esperto que me diga o nome de todas as árvores pelas quais se passa, quem era o presidente dez anos depois da Guerra de Secessão, quantos índios ainda há no país e o que é afinal a Teoria da Relatividade de Einstein.

— Quantos anos você tem? — perguntou Michael.

— Dezenove e meio, cara — declarou Mary Jane, mordendo o lábio inferior com seus dentes brancos e brilhantes, erguendo uma sobrancelha e piscando.

— Essa história sobre a sua avó, você está falando sério? Isso aconteceu mesmo? Você apanhou sua avó e...

— Meu querido, tudo isso aconteceu — disse Celia — exatamente como a menina contou. Acho que devíamos entrar. Acho que estamos perturbando Rowan.

— Não sei, não — disse Michael. — Talvez ela esteja prestando atenção. Não quero sair daqui. Mary Jane, você tem condições de cuidar dessa senhora sozinha?

Beatrice e Celia de imediato aparentaram ansiedade. Se Gifford ainda estivesse viva, ela também teria aparentado ansiedade. "Deixar aquela velha abandonada tão longe!" costumava Celia dizer ultimamente.

E elas haviam prometido a Gifford, ou não? Que se encarregariam do assunto? Mona estava lembrada disso. Gifford estava num dos seus estados irremediáveis de preocupação com os parentes de todos os cantos, e Celia dissera que iam pegar o carro e verificar o que estava acontecendo com a velha.

— É, Sr. Curry, tudo isso aconteceu, e eu levei vovó para casa comigo, e sabe que a varanda de dormir no andar de cima estava exatamente do jeito que a deixamos? Puxa, depois de treze anos, o rádio estava lá, as telas contra mosquitos e a geladeirinha.

— Nos pântanos? — perguntou Mona. — Espere aí.

— Foi isso mesmo, querida, exatamente isso.

— É verdade — admitiu Beatrice, desanimada. — É claro que lhes demos roupas novas para a casa, coisas novas. Queríamos instalar as duas num hotel, numa casa ou...

— Bem, isso é claro — disse Celia. — Receei que essa história chegasse aos jornais. Meu amor, sua avó está lá sozinha neste exato momento?

— Não, senhora, ela está com Benjy. Benjy é daqueles caçadores que montam armadilhas e moram lá para aqueles lados, gente maluca de verdade, sabe??? Daquele tipo que vive naqueles barracos feitos de pedaços de lata, com janelas de refugo de obra e até mesmo de papelão? Eu pago abaixo do salário mínimo para ele cuidar da vovó e atender os telefones, mas não desconto nada.

— E daí? — disse Mona. — Ele é autônomo.

— Você é sem dúvida esperta — disse Mary Jane. — Acha que eu não sei disso? Eu estava mesmo era me segurando para não contar mais um detalhe bem naquele ponto, sabe??? Que Benjy, que Deus o proteja, já descobriu um jeito de ganhar dinheiro fácil no French Quarter aqui na cidade, sabe?? Oferecendo só o que Deus lhe deu.

— Ai, meu Deus — exclamou Celia. Michael riu.

— Qual é a idade de Benjy? — perguntou.

— Vai fazer doze no mês de setembro — disse Mary Jane. — Ele é legal. O grande sonho dele é ser traficante em Nova York, e o meu grande sonho para ele é que ele vá para Tulane e se forme em medicina.

— Mas o que você quis dizer com atender os telefones? — perguntou Mona. — Quantos telefones você tem? Afinal o que é que você está fazendo naquele fim de mundo?

— Bem, precisei morrer num dinheiro para esses telefones, era uma necessidade absoluta. E ligo para meu corretor, é claro. Para quem mais iria ligar? E tem também a linha para vovó poder conversar com minha mãe no México, sabe, minha mãe nunca mais vai sair daquele hospital no México.

— Que hospital no México? — perguntou Beatrice, totalmente perplexa. — Mary Jane, há duas semanas você me contou como sua mãe morreu na Califórnia.

— Eu estava tentando ser gentil, sabe, poupar a todo mundo a dor e a preocupação.

— Mas, e o enterro? — perguntou Michael, com toda probabilidade chegando perto o suficiente para dar uma olhadinha pelo decote da apertada blusa de poliéster barato de Mary Jane. — A velhinha. Quem foi enterrado, afinal?

— Querido, essa é a pior parte. Ninguém nunca descobriu! — disse Mary Jane. — Não se preocupe com a minha mãe, tia Bea, ela acha que já está no plano astral. Talvez ela já esteja no plano astral, ao que eu saiba. Além do mais, os rins dela não valem mais nada.

— Ora, essa não é a verdade exata a respeito da mulher enterrada — disse Celia. — Acreditam...

— Acreditam? — perguntou Michael.

Talvez os seios grandes sejam um indício de poder, pensou Mona enquanto olhava a garota quase se dobrar de tanto rir apontando para Michael.

— Vejam, toda essa história da mulher enterrada no túmulo errado é muito triste — disse Beatrice. — Mas, Mary Jane, você tem de me dizer como entrar em contato com sua mãe.

— Ei, você não tem seis dedos — disse Mona.

— Agora não, queridinha — respondeu Mary Jane. — Minha mãe fez com que algum médico em Los Angeles o extirpasse. Era isso o que eu ia lhe contar. Fizeram a mesma operação em...

— Chega dessa conversa, por favor — disse Celia. — Estou tão preocupada com Rowan!

— Ai, eu não sabia — disse Mary Jane. — Quer dizer...

— Fizeram a mesma operação em quem? — perguntou Mona.

— Aí está uma outra coisa. Quando é que se usa "em quem" e "com quem"?

— Acho que você ainda não atingiu esse estágio — retrucou Mona. — Há um monte de outras coisas básicas...

— Basta, senhoras e senhores — determinou Beatrice. — Mary Jane, vou ligar para sua mãe.

— Você vai se arrepender tanto, tia Bea. Sabe que tipo de médico cortou meu sexto dedo em Los Angeles? Era um curandeiro, um macumbeiro do Haiti, e ele fez o que foi preciso na mesa da cozinha.

— Mas será que não podem desenterrar a mulher errada e descobrir de uma vez quem ela era? — perguntou Michael.

— Bem, eles têm uma suspeita bem forte, mas... — começou Célia.

— E qual é? — perguntou Michael.

— Ah, é alguma coisa relacionada a pagamentos de aposentadoria — esclareceu Beatrice. — E nada disso é da nossa conta. Michael, por favor, esqueça essa mulher morta.

Como Rowan conseguia ignorar tudo aquilo? E aqui estava ele, chamando Mary Jane pelo nome de batismo, só faltando comer Mary Jane com os olhos. Se isso não fosse suficiente para acordar Rowan, nem um ciclone seria.

— Pois bem, Michael Curry, descobri que vinham chamando a velha falecida de Dolly Jean algum tempo antes da morte. Será que ninguém naquele lugar tinha um mínimo de bom senso? É o que eu queria saber. Acho que numa noite qualquer eles simplesmente começaram a pôr vovó na cama errada, e sabe-se lá, a velhinha na cama de vovó morreu, e pronto. Enterraram alguma pobre desconhecida no jazigo da família Mayfair.

A essa altura, Mary Jane olhou de relance para Rowan.

— Ela está ouvindo! — exclamou Mary Jane. — Está sim, juro por Deus. Ela está prestando atenção.

Se fosse verdade, ninguém pôde ver ou perceber. Rowan permanecia indiferente aos olhares que se voltaram na sua direção. Michael enrubesceu como se tivesse sido atingido pelo arroubo de Mary Jane. E Celia examinou Rowan, com um ar duvidoso, severo.

— Não tem nada de errado com ela — declarou Mary Jane. — Ela vai sair dessa com a maior facilidade, vocês vão ver. Gente parecida com ela fala quando quer. Eu posso ficar assim.

Mona sentiu vontade de perguntar por que Mary Jane não começava naquele mesmo instante.

Mas na realidade, ela queria acreditar que Mary Jane tinha razão. Essa garota devia ser uma bruxa poderosa, afinal de contas, calculou Mona. E se não fosse, ainda conseguiria chegar lá, de um modo ou de outro.

— Não se preocupem nem um pouco com vovó — disse ela quando se preparava para sair. — Ela deu um sorriso, e um tapa na coxa bronzeada. — Vou lhes contar uma coisa: pode ser que tenha sido melhor assim.

— Deus do céu, como? — perguntou Bea.

— Bem, eles disseram, sabe, que em todos aqueles anos naquele asilo ela nunca falou grande coisa. Era como se só conversasse com seus botões e agisse como se tivesse gente por ali que não estava, e tudo o mais. E agora??? Ela sabe quem ela é, sabiam??? Ela conversa comigo e assiste às novelas, nunca perde seus programas favoritos. Acho que foi toda aquela comoção bem como tudo o mais, voltar para Fontevrault e encontrar tudo lá no sótão? Vocês sabiam que ela conseguiu subir a escadaria?? Ouçam, ela está bem, não se preocupem com ela. Vou comprar queijo e bolachas de graham para ela quando chegar em casa. E nós duas vamos assistir ao show de sábado à noite, ou ao canal de música country. Disso ela também gosta, sabe? Ela chega a acompanhar cantando essas músicas. Não se incomodem. Ela está fantástica.

— É, querida, mas no fundo...

Mona chegou mesmo a gostar da garota por uns cinco minutos, uma criança que conseguia cuidar de uma velha nessas condições, fazendo com que as coisas se ajeitassem com band-aids e fios desencapados.

Mona veio acompanhá-la até a frente e ficou olhando quando ela entrou com um salto na picape, que tinha molas aparecendo no banco do passageiro, e saiu num ronco forte em meio a uma nuvem de fumaça azul.

— Temos de tomar conta dela — declarou Bea. — Precisamos nos sentar e conversar sobre a situação de Mary Jane, logo, logo.

Certo, concordou Mona. A situação de Mary Jane era um bom rótulo para o caso.

E, embora essa garota não tivesse demonstrado nenhum poder notável naqueles momentos, nela havia um quê de emocionante.

Mary Jane era cheia de garra, e havia algo de irresistível na idéia de cumulá-la de vantagens e dinheiro da família Mayfair, na tentativa de aprimorá-la. Por que ela não poderia vir estudar com esse professor particular que ia liberar Mona para sempre da chateação da escola convencional? Beatrice mal conseguira se conter para comprar roupas para Mary Jane antes que ela deixasse a cidade e sem dúvida vinha mandando para a menina as mais requintadas roupas usadas uma única vez.

E havia mais um pequeno motivo secreto pelo qual Mona gostava de Mary Jane, um motivo que ninguém mais ia compreender. Mary Jane estava usando um chapéu de vaqueiro. Ele era pequeno e de palha, e ela o deixara cair nos ombros preso pelas alças, mas ele permaneceu no lugar uns dois minutos quando ela apareceu pela primeira vez. E ela voltou a ajeitá-lo no lugar antes de puxar com firmeza a alavanca de mudanças daquela velha picape, e ir embora, acenando para todos.

Um chapéu de vaqueiro. O sonho de Mona sempre havia sido o de usar um chapéu de vaqueiro, especialmente quando ficasse realmente rica e no comando das coisas, a voar pelo mundo no seu avião particular. Mona durante anos havia se imaginado como um magnata com chapéu de vaqueiro, a entrar em fábricas e bancos, e... bem, Mary Jane Mayfair tinha lá seu chapéu de vaqueiro. E com as tranças presas no alto da cabeça e a saia justa e lisa de brim, havia algo de coerente nela. Apesar de tudo, ela apresentava um estilo deliberado e bem-sucedido. Mesmo seu esmalte roxo lascado e descascado fazia parte do todo, conferindo-lhe uma espécie de simplicidade sedutora.

Bem, não seria difícil verificar tudo isso, não é?

— E aqueles olhos, Mona — dizia Beatrice enquanto elas voltavam para o jardim. — A menina é adorável! Você olhou para ela? Não sei como eu pude um dia... E a mãe, a mãe, aquela sempre foi louca. Ninguém deveria ter permitido que ela fugisse com o bebê. Mas havia tanto rancor entre nós e aqueles parentes de Fontevrault.

— Bea, você não vai poder cuidar de todos eles, da mesma forma que Gifford não conseguiu — disse Mona em tom tranqüilizador. Mas é claro que cuidariam. E se Celia e Beatrice não o fizessem, bem, Mona o faria. Essa havia sido uma das revelações mais penetrantes dessa tarde, a de que Mona agora fazia parte da equipe; a de que não ia deixar que aquela garota não realizasse seus sonhos, não enquanto seu corpinho de treze anos tivesse vida.

— Ela é um doce de criatura, ao seu próprio modo — admitiu Celia.

— É, e aquele band-aid no joelho — murmurou Michael, baixinho, sem pensar. — Que garota. Acredito no que ela disse sobre Rowan.

— Eu também — disse Beatrice. — Só...

— Só o quê? — perguntou Michael, em desespero.

— E se ela nunca mais resolver voltar a falar!

— Beatrice, que vergonha — disse Celia, lançando um olhar penetrante na direção de Michael.

— Você acha aquele band-aid sexy, Michael? — perguntou Mona.

— Bem, quer dizer, acho sim. Acho que tudo naquela garota era sexy. E que diferença isso faz? — Ele parecia perfeitamente sincero e francamente exausto. Queria voltar a estar a sós com Rowan. Ele estava sentado com ela, lendo um livro sozinho, quando elas todas chegaram juntas.

Por um período, depois dessa tarde, Mona poderia ter jurado que Rowan esteve diferente, que seus olhos se concentravam de quando em quando, e que às vezes estavam mais abertos, como se ela estivesse fazendo uma pergunta a si mesma. Talvez o grande jorro de palavras por parte de Mary Jane tivesse feito bem a Rowan. Talvez devessem convidar Mary Jane outra vez, ou quem sabe ela mesma não voltasse? Mona descobriu estar na realidade desejando que isso acontecesse, ou pode ser que pedisse ao novo motorista que ligasse a limusine monstruosa, enchesse os bolsos de couro com gelo e bebidas e seguisse lá para aquela casa inundada. Dava para se fazer isso quando se tinha o próprio carro. Ora, Mona ainda não estava acostumada a nada disso.

Há dois ou três dias Rowan parecia melhor, revelando aquele pequeno franzir de cenho cada vez mais, o que era, afinal de contas, uma expressão facial.

Mas agora? Nessa tarde ensolarada, pegajosa, solitária e tranqüila?

Mona achava que Rowan regredira. Nem mesmo o calor parecia atingi-la. Estava ali sentada naquele ar úmido, e as gotas de suor apareciam na sua testa, sem nenhuma Celia por perto para enxugá-las, mas Rowan não as enxugava sozinha.

— Por favor, Rowan, fale conosco — dizia Mona, agora, com sua voz franca, quase atrevida, de menina. — Não quero ser designada para o legado! Nem quero ser a herdeira se você não der sua aprovação! — Ela se apoiou no cotovelo, com os cabelos ruivos formando um véu entre seu rosto e os portões de ferro que davam para o jardim da frente. Tinha uma impressão de maior intimidade. — Vamos, Rowan. Você sabe o que Mary Jane Mayfair disse. Você está aí dentro. Vamos. Mary Jane disse que você está nos ouvindo.

Mona estendeu a mão para o alto para ajeitar a fita do cabelo, para que a cabeça parasse de coçar. Não havia fita nenhuma. Ela não usava o laço desde o dia em que a mãe morrera. Estava com uma pequena travessa enfeitada com pérolas, que apertava demais uma porção do cabelo. Droga. Ela abriu a travessa e deixou o cabelo solto.

— Olhe, Rowan, se você quiser que eu vá, dê um sinal. Você sabe. Basta que faça alguma coisa estranha. E eu saio daqui no mesmo instante.

Rowan estava olhando para o muro de tijolos. Olhava fixamente para a lantana, a cerca viva extremamente crescida com pequenas flores marrons e laranja. Ou talvez estivesse olhando para os tijolos.

Mona deu um suspiro, uma atitude petulante e mimada, realmente. Mas também ela já havia tentado de tudo menos um acesso de raiva. Talvez fosse isso o que alguém devesse fazer!

Só que não pode ser eu, pensou, entristecida.

Ela se levantou, foi até o muro, arrancou dois galhinhos da lantana e os trouxe de volta, depositando-os diante de Rowan como uma oferenda a uma deusa que fica sentada à sombra de um carvalho, ouvindo as preces das pessoas.

— Amo você, Rowan — disse ela. — Preciso de você.

Por um instante, seus olhos se turvaram. O verde causticante do jardim pareceu se mesclar num imenso véu. Sua cabeça latejava um pouco. Ela sentiu um aperto na garganta e depois um alívio que era pior do que chorar, algum reconhecimento vago e terrível de todas as coisas apavorantes que haviam acontecido.

Essa mulher estava ferida, talvez sem possibilidade de recuperação. E ela, Mona, era a herdeira que agora tinha condições de procriar e que deveria procurar dar à luz uma criança para que a imensa fortuna da família Mayfair pudesse ser transmitida. Essa mulher, o que ela faria agora? Ela não podia mais ser médica, isso era quase certo. Parecia não se importar com ninguém e com nada.

E de repente Mona se sentiu mais constrangida, mal-amada e rejeitada do que nunca se sentira em toda a sua vida. Ela deveria sair dali. Era uma vergonha que tivesse ficado tantos dias junto a essa mesa, implorando perdão por ter um dia desejado Michael; implorando perdão por ser jovem, rica e capaz de um dia ter filhos, por ter sobrevivido quando sua mãe Alicia, e sua tia Gifford, duas mulheres que ela amava, odiava e de quem precisava, haviam morrido.

Egocêntrica! E daí?

— Não foi a sério com Michael — disse ela, em voz alta a Rowan. — Não, não entre nessa de novo!

Nenhuma alteração. Os olhos cinzentos de Rowan estavam focalizados, não perdidos em devaneios. Suas mãos estavam no colo, unidas da forma mais natural. A aliança do casamento era tão fina e discreta que fazia com que suas mãos lembrassem as de uma freira.

Mona teve vontade de tentar segurar uma das suas mãos, mas não ousou. Uma coisa era falar meia hora seguida, mas ela não conseguia tocar em Rowan. Não conseguia forçar um contato físico. Não tinha coragem nem de erguer a mão de Rowan e pôr nela o galhinho de lantana. Isso era algo íntimo demais para fazer com ela nesse silêncio.

— Bem, eu não toco em você, sabe? Não pego na sua mão, nem a apalpo ou tento descobrir alguma coisa a partir dela. Eu não toco em você nem lhe dou um beijo porque, se eu estivesse desse jeito, acho que detestaria que alguma pirralha ruiva e sardenta chegasse e fizesse isso comigo.

Cabelos ruivos, sardas, o que isso tinha a ver com aquilo tudo, a não ser a função de dizer, É, eu dormi mesmo com o seu marido, mas você é a misteriosa, a poderosa, a mulher, aquela que ele ama e sempre amou. Eu não fui nada. Fui só uma criança que o atraiu para a cama. E naquela noite nem fui tão cuidadosa quanto deveria ter sido. Na realidade, não tive o menor cuidado. Mas não se preocupe, nunca fui o que as pessoas poderiam chamar de regular. Ele olhou para mim do mesmo jeito que olhou para aquela outra garota, Mary Jane. Desejo, só isso. Desejo e nada mais. E minha menstruação acabará por vir, como sempre vem, e meu médico vai me passar mais um sermão.

Mona juntou os pequenos raminhos de lantana ali em cima da mesa, perto da xícara de porcelana e se afastou.

Pela primeira vez, quando olhou para as nuvens passando acima das chaminés da casa principal, ela percebeu que o dia estava lindo.

Michael estava na cozinha, fazendo os sucos ou "preparando a mistura", como todos vieram a chamá-la: suco de mamão, coco, grapefruit, laranja. Havia uma grande quantidade de papa e polpa indefinível por todos os lados.

Ocorreu a Mona, embora ela procurasse não ter consciência disso, que ele estava mais saudável e bonito a cada dia que passava. Ele estivera fazendo ginástica lá em cima. Os médicos o incentivavam. Ele devia ter ganho para mais de sete quilos desde que Rowan acordara e saíra da cama.

— Ela gosta disso, sim — dizia ele agora, como se estivessem discutindo a vitamina todo esse tempo. — Sei que gosta. Bea disse alguma coisa no sentido de que o sabor é ácido demais. Não temos nenhum indício de que ela ache ácido demais. — Ele deu de ombros. — Eu não sei.

— Acho — disse Mona — que ela parou de falar por minha causa.

Mona o estava encarando, e então vieram as lágrimas, aquosas e assustadoras. Ela não queria se entregar. Não queria fazer esse tipo de exigência ou de revelação. Mas estava aflita. Afinal o que podia querer de Rowan? Mal conhecia Rowan. Era como se precisasse receber atenções maternas da herdeira do legado que havia perdido a capacidade de dar continuidade à linhagem.

— Não, querida — disse ele, com o mais delicado, mais tranqüilizador dos sorrisos.

— Michael, é porque eu falei com ela a nosso respeito. Não era o que eu pretendia. Foi na manhã do primeiro dia em que falei com ela. Todo esse tempo, tive medo de contar para você. Eu achava que ela estava só quieta. Eu não... eu não... Ela nunca mais falou depois disso, Michael. É verdade, não é? Foi depois que eu cheguei.

— Minha criança, não se torture — disse ele, limpando um pouco do grude do balcão. Ele estava paciente, reconfortante, mas cansado demais para tudo isso, e Mona sentiu vergonha. — Ela parou de falar no dia anterior, Mona. Eu já lhe disse isso. Preste atenção. — Ele deu mais um sorrisinho, zombando de si mesmo. — Eu só não percebi na hora, que ela havia parado de falar. — Ele mexeu o suco mais uma vez. — Bem, agora vem a grande decisão. Com ovo ou sem ovo.

— Ovo! Não se pode pôr ovo num suco de frutas.

— Claro que se pode. Querida, você nunca morou no norte da Califórnia, certo? Essa é uma especialidade de primeira da alimentação natural. E ela precisa da proteína. Mas o ovo cru pode transmitir a salmonela. É o velho problema. A família está dividida ao meio quanto ao assunto do ovo cru. Eu deveria ter perguntado a opinião de Mary Jane no domingo.

— Mary Jane! — Mona abanou a cabeça. — A família que vá para o inferno.

— Disso eu não sei nada — respondeu Michael. — Beatrice acha que os ovos crus são perigosos, e ela tem sua razão. Por outro lado, quando eu estava estudando e jogando futebol, eu costumava jogar um ovo no milkshake todos os dias de manhã. Já Celia diz...

— Deus me livre — disse Mona, imitando Celia com perfeição. — O que a tia Celia sabe de ovos crus?

Ela estava tão cheia de ouvir a família discutir as ínfimas preferências e aversões de Rowan, o exame de sangue de Rowan, a cor da pele de Rowan que, se acabasse se descobrindo envolvida em mais uma conversa cansativa, fútil e sem sentido, começaria a berrar para poder sair dela.

Talvez fosse o caso de ela ter sido muito bombardeada, desde o dia em que lhe disseram que ela era a herdeira: gente demais dando conselhos, ou perguntando por ela como se ela é que estivesse inválida. Ela escrevia manchetes cômicas no computador:

GAROTA NOCAUTEADA POR UM MONTE DE DINHEIRO. Ou então, CRIANÇA DESAMPARADA HERDA BILHÕES, ATORMENTANDO ADVOGADOS

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Nããão, hoje em dia ninguém se "atormentaria" numa manchete. Mas ela gostava do termo.

Mona estava se sentindo tão péssima que de repente, ali parada na cozinha, as lágrimas começaram a transbordar dos seus olhos, como transbordariam dos de um bebê, e seus ombros começaram a tremer.

— Olhe, meu amor, ela parou de falar no dia anterior, eu já lhe disse.

Posso lhe dizer as últimas palavras ditas por ela. Estávamos sentados aqui mesmo, à mesa da cozinha. Ela estava bebendo café. Disse que estava morrendo de vontade de beber uma xícara de café de Nova Orleans. E eu lhe preparei um bule inteiro. Já se passavam cerca de vinte e duas horas desde o momento em que ela acordara, e ela não havia dormido mais. Talvez tenha sido esse o problema. Nós não parávamos de conversar. Ela precisava descansar e disse, "Michael, quero ir lá fora. Não, Michael, não saia daqui. Quero ficar sozinha um pouco".

— Você tem certeza de que isso foi a última coisa que ela disse?

— Absoluta. Tive vontade de ligar para todo mundo, avisar que ela estava bem. Pode ser que eu a tenha assustado! Fui eu, com essa minha sugestão. E depois disso, eu só a levava de um lado para o outro e ela não dizia nada. E é assim que tem sido desde aquela hora.

Ele apanhou o que parecia ser um ovo cru. Quebrou-o de repente na beira do liquidificador de plástico e abriu as duas metades da casca para deixar cair a gema e a clara viscosa.

— Acho que você não a magoou de modo algum, Mona. Realmente, duvido que a tenha magoado. Preferia que você não lhe houvesse contado. Se você quer saber, eu me sentiria melhor sem você lhe contar que eu cometi estupro no sofá da sala de estar com sua prima menor de idade. — Ele deu de ombros. — As mulheres agem assim, sabia? Depois elas contam. — Ele lhe lançou um belo olhar de reprovação, com o sol refletindo nos seus olhos. — Nós não podemos contar, mas elas podem. A questão é que eu duvido que ela tenha chegado a ouvir você. Acho que... ela não liga a mínima. — Sua voz foi sumindo.

O copo estava espumante e com uma apresentação ligeiramente repulsiva.

— Perdoe-me, Michael.

— Querida, não...

— Não, estou querendo dizer que estou bem. Ela não está bem, mas eu estou. Você quer que eu leve esse troço para ela? Está espesso, Michael. Estou dizendo que está grosso demais. Deve estar totalmente repugnante!

Mona olhou para a espuma, de uma cor absurda.

— Tenho de bater no liquidificador. — Ele pôs a tampa quadrada de borracha no copo e apertou o botão. Veio, então, o som horrendo das lâminas a girar enquanto o líquido pulava ali dentro.

Talvez fosse melhor se não se soubesse da inclusão do ovo.

— Bem, desta vez pus muito suco de brócolis.

— Meu Deus, não é de admirar que ela não queira tomar uma coisa dessas. Suco de brócolis! Você está querendo matá-la?

— Ora, ela vai beber. Sempre bebe. Ela bebe qualquer coisa que eu ponha diante dela. Estou só pensando no que eu pus aí dentro. Agora ouça o que vou dizer. Se ela não estava escutando quando você fez sua confissão, não tenho certeza se foi uma surpresa. Todo o tempo em que esteve em coma, ela estava ouvindo. Ela me disse. Ouvia coisas que as pessoas diziam quando eu não estava por perto. É claro que ninguém sabia de mim, de você e da nossa pequena atividade criminosa, sabe?

— Michael, pelo amor de Deus, se existe um crime de estupro de menores neste estado, você teria de contratar um advogado para pesquisá-lo, sem a menor dúvida. É provável que a maioridade entre primos fique nos dez anos, e talvez até exista uma lei especial baixando essa idade para oito no caso da família Mayfair.

— Não tente se enganar, querida — disse ele, abanando a cabeça em óbvio sinal de censura. — Mas o que eu estava dizendo é que ela ouviu as coisas que dissemos um ao outro quando estávamos sentados junto à cama. Estamos falando de bruxas, Mona. — Ele se ensimesmou, com o olhar perdido, quase taciturno, extremamente belo, musculoso e sensível.

— Sabe, Mona, não foi nada que ninguém disse. — Ele ergueu os olhos para ela. Estava triste agora, de uma tristeza muito real, do jeito que surge quando um homem da sua idade se entristece, e Mona se descobriu um pouco assustada. — Mona, foi algo que lhe aconteceu. Talvez... tenha sido a última coisa que aconteceu.

Mona concordou. Ela procurou visualizar a cena mais uma vez, da forma que ele havia relatado tão sucintamente. A arma, o tiro, o corpo que caiu. O terrível segredo do leite.

— Você não contou a ninguém, contou? — disse ele, sério, num sussurro. Deus que a ajudasse se ela tivesse contado, pensou Mona. Ela teria morrido naquele instante, pelo jeito que ele estava olhando para ela.

— Não, e não vou contar nunca — disse ela. — Sei quando falar e quando não falar, mas...

— Ela não quis que eu tocasse no corpo — disse ele, abanando a cabeça. — Insistiu em trazê-lo cá para baixo sozinha, e ela própria mal conseguia andar. Enquanto eu viver, não vou nunca tirar essa imagem da minha cabeça, jamais. Todo o resto, eu não sei. Posso superar, mas alguma coisa no fato de a mãe arrastar o corpo da filha...

— Você achou que era isso, que era a filha dela?

Ele não respondeu. Só continuou com o olhar perdido, e aos poucos a mágoa e o tormento foram abandonando seu rosto. Ele mordeu o lábio um instante e depois quase sorriu.

— Nunca conte essa parte a ninguém — murmurou ele. — Nunca, nunca, nunca. Ninguém precisa saber. Mas um dia, quem sabe, ela pode querer falar nisso. Talvez tenha sido isso, mais do que qualquer outra coisa, o que fez com que ela silenciasse.

— Não precisa nunca se preocupar com a possibilidade de eu falar, Michael. Eu não sou criança.

— Eu sei, querida, acredite em mim, eu sei — disse ele, com uma ínfima centelha de bom humor.

E em seguida, eleja estava perdido de novo, esquecido de Mona, deles dois e do enorme copo de líquido espesso, com os olhos no vazio. Por um segundo pareceu-lhe estar desistindo de toda esperança, como se estivesse em desespero total, fora do alcance de qualquer um, talvez até mesmo de Rowan.

— Michael, pelo amor de Deus, ela vai ficar boa. Se for isso, ela vai melhorar.

Ele não respondeu de imediato, mas depois como que sussurrou as palavras.

— Ela fica sentada naquele lugar, não em cima da cova, mas exatamente ao lado — disse ele. Sua voz estava embargada.

Ele ia chorar, e Mona não seria capaz de suportar. Ela quis do fundo do coração ir até ele e abraçá-lo. Mas teria feito isso por si mesma, não por ele.

Percebeu de repente que ele estava sorrindo, para tranqüilizá-la, é claro, e que agora dava de ombros, com um ar sereno.

— A sua vida vai ser repleta de coisas boas, pois os demônios foram mortos, e você herdará o Éden. — Seu sorriso cresceu, demonstrando uma bondade genuína. — E ela e eu levaremos para o túmulo a culpa pelo que fizemos, pelo que não fizemos, pelo que tínhamos de fazer ou deixamos de fazer um pelo outro.

Ele suspirou e se debruçou sobre os braços cruzados em cima do tampo do armário. Voltou os olhos para o sol, para o pátio cheio de movimentos suaves, cheio de folhas verdes e farfalhantes, cheio da primavera.

A crise parecia ter chegado a um fim natural.

E ele agora voltava ao seu antigo eu, calmo porém invicto.

Afinal, ficou em pé, ereto, apanhou o copo e o limpou com um velho guardanapo de pano.

— Ah, aí está uma coisa boa de se ser rico.

— O quê?

— Ter guardanapos de linho, sempre que se queira. E lenços de linho. Celia e Bea sempre estão com lenços de linho. Meu pai se recusava a usar lenços de papel. Huumm. Eu não pensava nisso há muito tempo.

Ele piscou o olho para ela. Ela não pôde deixar de sorrir. Que pateta. Mas quem mais podia sair ileso de uma piscada como aquela para ela? Ninguém.

— Você não teve notícias de Yuri, teve? — perguntou ele.

— Eu lhe teria contado — disse ela, em tom lúgubre, desanimada. Era uma agonia ouvir o nome de Yuri.

— Você contou a Aaron que não teve notícias dele?

— Umas cem vezes, e três hoje de manhã. Aaron também não teve nenhuma notícia. E está preocupado. Mas não vai voltar para a Europa, não importa o que aconteça. Vai viver o resto dos seus dias aqui conosco. Ele disse para eu me lembrar de que Yuri tem uma inteligência incrível, como todos os investigadores da Talamasca.

— Você acredita mesmo que alguma coisa aconteceu?

— Não sei — disse ela, desanimada. — Talvez ele tenha simplesmente se esquecido de mim. — Era uma possibilidade horrível demais para ser cogitada. Não poderia ter sido assim. Mas era preciso encarar as coisas de frente, não era? E Yuri era um homem viajado.

Michael olhou para a vitamina. Talvez ele tivesse juízo suficiente para ver que aquilo era absolutamente impossível de se beber. Em vez disso, ele apanhou uma colher e começou a mexer a mistura.

— Sabe, Michael, essa vitamina bem podia forçá-la a sair do transe, só com o choque. Quer dizer, quando ela a estiver tomando, exatamente nesse instante, quando metade do conteúdo do copo estiver deslizando pela garganta abaixo, basta lhe dizer com clareza quais foram os ingredientes.

Ele abafou um risinho, um fabuloso som do fundo do peito. Apanhou a jarra da mistura e encheu com ela um copo exageradamente grande.

— Vamos, venha cá fora comigo. Venha vê-la.

Mona hesitou.

— Michael, não quero que ela nos veja juntos, sabe, lado a lado.

— Use um pouco da sua feitiçaria, querida. Ela sabe que eu sou seu escravo até o dia em que eu morrer.

Sua expressão mudou novamente, muito devagar. Ele a olhava com calma, quase com frieza. E mais uma vez abateu-se sobre Mona uma sensação de como Michael estava consternado.

— É, consternado — disse ele, e havia algo de quase cruel no seu sorriso. Ele não disse mais nada. Apanhou o copo e saiu pela porta.

— Vamos conversar com aquela senhora — disse ele para trás. — Vamos ler juntos seus pensamentos. Você sabe, duas cabeças e tudo o mais. Talvez nós devêssemos fazer sexo de novo, Mona, na grama, sabe? Você e eu, e talvez ela acordasse.

Mona ficou escandalizada. Ele estava falando sério? Não, não era essa a questão. A questão era saber como ele pôde dizer uma coisa dessas.

Ela não lhe respondeu, mas sabia o que ele estava sentindo. Ou pelo menos imaginava saber. Em algum nível, ela sabia que não tinha realmente condições de saber, que as coisas afetavam um homem da sua idade de modo diferente do que apareciam para uma menina. Ela sabia isso, apesar de tanta gente já lhe haver dito algo mais ou menos semelhante. Era uma questão não de humildade, mas de lógica.

Ela o acompanhou pelas lajes, ao longo da piscina e depois passando pelos portões dos fundos. Seus jeans estavam tão justos que ela mal conseguia suportar. Seu caminhar natural era arrogante e atraente. Isso é bom. Fique com esses pensamentos excitantes! De jeito nenhum! E sua camisa esporte também não era exatamente larga. Mona adorava o jeito com que ela se movimentava sobre os ombros e as costas.

Não dá para parar. Ela preferia que ele não tivesse feito aquela piadinha amarga. Fazer sexo na grama! Uma terrível inquietação a dominava. Os homens sempre se queixavam de como a visão de mulheres sensuais os excitava. Bem, com ela, eram tanto as palavras quanto as imagens. Aqueles jeans apertados, e as imagens nítidas que invadiram sua mente depois do que ele dissera.

Rowan estava sentada à mesa, como estava quando Mona a deixou. A lantana ainda estava ali, com os raminhos um pouco espalhados, como se o vento houvesse mexido neles com um dedo para depois deixá-los em paz.

Rowan estava ligeiramente carrancuda, como se estivesse avaliando alguma coisa mentalmente. Agora, esse era sempre um bom sinal, pensou Mona, mas ela estaria incensando as esperanças de Michael se tocasse no assunto. Rowan parecia não perceber que eles estavam ali. Ainda olhava para as flores distantes junto ao muro.

Michael inclinou-se para lhe dar um beijo no rosto. Ele pôs o copo na mesa. Não houve nenhuma mudança em Rowan, a não ser pela brisa que soprou alguns fios do seu cabelo. Ele então estendeu a mão, ergueu a mão direita de Rowan e pôs seus dedos em volta do copo.

— Beba, querida — disse ele. Usou o mesmo tom que havia usado com Mona, brusco e afetuoso. Querida, querida, querida significa Mona, Rowan ou Mary Jane; ou talvez qualquer ser feminino.

Será que "querida" teria sido adequado para a criatura morta, enterrada na cova com o pai? Meu Deus, ai se ela pudesse ter posto os olhos neles por um segundo que fosse! É, e todas as mulheres da família Mayfair que o haviam visto durante suas incursões curtas e violentas pagaram com a vida. À exceção de Rowan...

Uau! Rowan estava erguendo o copo. Mona ficou olhando, fascinada e temerosa, enquanto ela bebia sem tirar os olhos jamais das flores distantes. Ela piscava devagar e com naturalidade enquanto engolia, mas só isso. E o cenho continuava franzido. Discreto. Pensativo.

Michael a observava, parado, com as mãos nos bolsos, e então fez algo surpreendente. Falou sobre Rowan com Mona, como se Rowan não pudesse ouvir. Essa foi a primeira vez.

— Quando o médico falou com ela, quando ele lhe disse que ela devia fazer uns exames, ela simplesmente se levantou e foi embora. Era como uma pessoa num banco de parque numa cidade grande. Dava para se imaginar que alguém viera se sentar ao seu lado, talvez com um excesso de proximidade. Era esse o tipo de isolamento dela, totalmente só.

Ele apanhou o copo. Estava mais repugnante do que nunca. Mas, para dizer a verdade, Rowan dava a impressão de que beberia qualquer coisa que ele pusesse na sua mão.

Não houve absolutamente nenhum registro no seu rosto.

— É claro que eu poderia levá-la até o hospital para os exames. Ela poderia concordar. Ela fez tudo o mais que eu quis que fizesse.

— Por que não a leva então? — perguntou Mona.

— Porque, quando ela se levanta de manhã, ela veste a camisola e o robe. Eu preparo roupas de verdade para ela. Ela não toca nas roupas. Essa é a minha pista. Ela quer estar de camisola e robe. Quer ficar em casa.

De repente, ele ficou irritado. Seu rosto corou, e seus lábios se torceram de um jeito franco que não escondia nada.

— Os exames também não vão ajudá-la, seja como for — prosseguiu ele. — Todas essas vitaminas, é esse o tratamento. Os exames só nos diriam detalhes. Talvez agora isso não seja da nossa conta. A vitamina é o que a ajuda.

Sua voz estava ficando embargada. Ele estava cada vez mais irritado enquanto olhava para Rowan. Parou de falar.

Curvou-se de repente e pôs o copo na mesa, espalmando as mãos de cada lado. Estava procurando encarar Rowan nos olhos. Aproximou-se do seu rosto, mas não houve nenhuma mudança nela.

— Rowan, por favor — sussurrou ele. — Volte!

— Michael, não faça isso!

— Por que não, Mona? Rowan, estou precisando de você agora. Eu preciso de você! — Ele bateu forte na mesa com as duas mãos. Rowan encolheu-se mas não apresentou nenhuma outra alteração. — Rowan! —gritou ele. Estendeu as mãos para ela como se fosse segurá-la pelos ombros e sacudi-la, mas não fez nada.

Ele apanhou o copo com brutalidade, virou-se e foi embora.

Mona estava paralisada, à espera, escandalizada demais para falar. Mas aquilo era como tudo o que ele fazia. Havia sido de bom coração. Havia sido grosseiro, porém, e meio terrível de se ver.

Mona não se afastou por enquanto. Lentamente ela se sentou na cadeira do outro lado da mesa, em frente a Rowan, o mesmo lugar que ocupava todos os dias.

Muito devagar, Mona foi se acalmando. Não tinha certeza dos motivos pelos quais permanecia ali, a não ser por lhe parecer uma atitude leal. Talvez ela não quisesse dar a impressão de ser aliada de Michael. Nesses últimos dias, a culpa pairava sobre ela o tempo todo.

Rowan estava linda, se se parasse de pensar no fato de ela não estar falando. Seu cabelo estava crescendo, quase lhe chegando aos ombros. Linda e ausente. Perdida.

— Bem, você sabe? É provável que eu continue vindo aqui até você me dar algum sinal. Sei que isso não me absolve ou torna aceitável que eu seja o tormento de uma pessoa emudecida, em estado de choque. Mas, quando alguém fica em silêncio dessa maneira, os outros são forçados a agir, a fazer opções, a decidir. Quer dizer, as pessoas não podem simplesmente deixá-la sozinha. Não é possível. No fundo, não é gentil.

Ela esvaziou os pulmões e se sentiu perfeitamente relaxada.

— Sou nova demais para saber certas coisas. Quer dizer, não vou ficar aqui sentada e lhe dizer que compreendo o que aconteceu com você. Isso seria muito idiota. — Ela olhou para Rowan. Os olhos de Rowan pareciam verdes, agora, como se captassem o tom do viçoso gramado de primavera.

— Mas eu... bem... eu me importo com o que está acontecendo com todo mundo, quer dizer, quase todo mundo. Eu sei coisas. Sei mais do que qualquer um à exceção de Michael e Aaron. Você se lembra de Aaron?

Essa foi uma pergunta boba. É claro que Rowan se lembrava de Aaron, se é que ela se lembrava de alguma coisa.

— Bem, o que eu pretendia dizer era sobre esse cara, o Yuri. Já lhe falei nele. Acho que você nunca o viu. Na verdade, tenho certeza de que não viu mesmo. Bem, ele sumiu, sumiu completamente, no pé em que as coisas andam, e eu estou preocupada. Aaron, também, está preocupado. É como se tudo estivesse paralisado agora, com você aqui sentada no jardim desse jeito, e a verdade é que as coisas nunca chegam a parar...

Ela se interrompeu. Essa abordagem era pior do que a outra. Não havia meios de se saber se essa mulher estava sofrendo. Mona suspirou, procurando calar-se sobre esse assunto. Descansou os cotovelos na mesa. Começou a erguer os olhos bem devagar. Poderia ter jurado que Rowan estivera olhando para ela e que só agora acabava de desviar o olhar.

— Rowan, a história não acabou — sussurrou novamente. E então afastou o olhar, através dos portões de ferro, para além da piscina, até o meio do gramado da frente. A extremosa estava começando a florir. Ela não passava de gravetos quando Yuri foi embora.

Ele e ela ficaram parados por ali, cochichando um com o outro e ele lhe dissera que, não importava o que acontecesse na Europa, ele voltaria ali para ela.

Rowan estava mesmo olhando para ela. Rowan a estava encarando nos olhos.

Ela ficou perplexa demais para poder falar ou se mexer. E estava com pavor de fazer qualquer coisa, com pavor de que Rowan desviasse o olhar. Ela queria acreditar que isso era bom, que isso era uma confirmação e uma redenção. Ela havia captado a atenção de Rowan, mesmo que tivesse sido uma pirralha incorrigível.

Aos poucos, a expressão preocupada de Rowan começou a se desvanecer enquanto Mona olhava para ela. E o rosto de Rowan ficou eloqüente e de urna tristeza inconfundível.

— O que houve, Rowan? — murmurou Mona.

Rowan emitiu um barulhinho, como se estivesse pigarreando.

— Não é Yuri — sussurrou Rowan. E então seu cenho se cerrou, seus olhos se anuviaram, mas ela não voltou à atitude distante.

— O que foi, Rowan? — perguntou Mona. — Rowan, o que você disse sobre Yuri?

A impressão exata era a de que Rowan imaginava ainda estar falando com Mona e não sabia que não estava emitindo palavra alguma.

— Rowan — Mona sussurrou. — Fale comigo. Rowan... — Mona parou de falar. De repente, não teve coragem de abrir o coração.

Os olhos de Rowan estavam fixos nela. Rowan ergueu a mão direita e passou os dedos pelos cabelos de um louro acinzentado claro. Uma atitude natural, normal, mas os olhos não estavam normais. Eles estavam em meio a algum esforço violento...

Um ruído distraiu a atenção de Mona: homens falando, Michael e mais alguém. E depois o som súbito e alarmante de uma mulher chorando ou rindo. Por um segundo, Mona não pôde discernir qual das duas opções.

Ela se voltou e olhou espantada pelos portões, para o outro lado da piscina ofuscante. Sua tia Beatrice vinha na sua direção, quase correndo ao longo da borda de lajes da piscina, com uma das mãos na boca e a outra estendida para a frente como se ela estivesse a ponto de cair com o rosto no chão. Era ela quem estava chorando, e era decididamente um choro. O cabelo de Bea estava se soltando do seu coque invariavelmente perfeito na nuca. O vestido de seda estava molhado e manchado.

Michael e um homem num ameaçador traje escuro à paisana a acompanhavam rapidamente, falando enquanto andavam.

Fortes soluços vinham de Beatrice. Os saltos dos seus sapatos afundaram na grama macia, mas ela prosseguia.

— Bea, o que houve? — disse Mona, pondo-se de pé. Rowan fez o mesmo. Rowan olhava espantada para a figura que se aproximava. E enquanto Beatrice atravessava rapidamente o gramado, torcendo o tornozelo e se endireitando de imediato, era para Rowan que ela estendia os braços.

— Eles conseguiram, Rowan — disse Bea, ofegante. — Eles o mataram. O carro subiu pelo meio-fio. Eles o mataram. Eu vi com meus próprios olhos!

Mona procurou apoiar Beatrice, e de repente sua tia a abraçava com o braço esquerdo e quase a esmagava com beijos, enquanto a outra mão ainda tateava em busca de Rowan, que se apressou a segurá-la, apertando-a com as duas mãos.

— Bea, quem eles mataram, quem? — gritou Mona. — Você não está falando de Aaron?

— Estou — respondeu Bea, anuindo nervosa, com a cabeça. A voz, agora rouca e quase inaudível. Ela continuou com o mesmo movimento da cabeça quando Rowan e Mona a cercaram. — Aaron. Eles o mataram. Eu vi. O carro subiu pelo meio-fio na St. Charles Avenue. Eu lhe disse que o traria aqui de carro. Mas ele recusou. Queria vir a pé. O carro o atingiu de propósito. Eu vi. Passou três vezes por cima dele!

Quando também Michael a abraçou, Bea perdeu o equilíbrio como se fosse desmaiar, e se deixou cair ao chão. Michael levantou-a e a segurou. E ela, chorando, afundou o rosto no seu peito. Os cabelos de Bea caíam nos seus olhos, e suas mãos ainda tateavam, trêmulas, como pássaros que não podem pousar.

O homem nos trajes ameaçadores era um policial. Mona viu o revólver e o coldre de ombro. Um americano de origem chinesa, com uma expressão terna e emocionada.

— Lamento muito — disse ele, com um nítido sotaque de Nova Orleans. Mona jamais ouvira um sotaque daqueles num rosto tão chinês.

— Eles o mataram? — perguntou Mona, num sussurro, olhando do policial para Michael, que agora acalmava Bea lentamente com beijos e com a mão delicada a afagar seu cabelo. Em toda a sua vida, Mona jamais vira Bea chorar daquele jeito, e por um instante dois pensamentos entraram em conflito no seu íntimo: Yuri já devia estar morto; e Aaron havia sido assassinado, o que significava que talvez todos eles estivessem correndo perigo. E isso era terrível, indescritivelmente terrível, acima de tudo para Bea.

Rowan falou calmamente com o policial, embora sua voz estivesse rouca e parecesse fraca em meio à confusão, ao alvoroço das emoções.

— Quero ver o corpo — disse Rowan. — Pode me levar até ele? Sou médica. Preciso vê-lo. Só demoro um instante para me vestir.

Havia tempo para que Michael ficasse perplexo? Para que Mona ficasse de queixo caído? Ah, mas fazia sentido, não fazia? Aquela horrorosa da Mary Jane dissera que ela estava escutando, que falaria quando estivesse pronta.

E graças a Deus ela não havia permanecido imóvel, sentada, muda, num momento como esse! Graças a Deus ela não pôde ou não precisou disso, e agora estava com eles.

Não importava o quanto ela parecesse frágil, e o quanto sua voz estivesse rouca e pouco natural. Seus olhos estavam claros quando ela olhou para Mona, ignorando a resposta solícita do policial de que talvez fosse melhor ela não ver o corpo, tendo o acidente sido o que foi.

— Bea precisa de Michael — disse Rowan. Ela estendeu a mão e segurou o pulso de Mona. Sua mão estava fria e firme. — Eu preciso de você agora. Quer vir comigo?

— Quero — disse Mona. — Quero, sim.

 

ELE PROMETERA AO HOMENZINHO que entraria no hotel instantes depois.

— Você entra comigo — dissera Samuel — e todos irão vê-lo. Agora, não tire os óculos escuros.

Yuri concordara. Ele não se importava de ficar sentado no carro por enquanto, observando as pessoas que passavam pelas elegantes portas da frente do Claridge's. Nada lhe parecia tão reconfortante, desde que deixara o vale de Donnelaith, quanto a cidade de Londres.

Mesmo a longa viagem na direção sul, com Samuel, atravessando o túnel da noite escura em rodovias que poderiam ser de qualquer parte do mundo, o deixara perturbado.

Quanto ao vale, ele estava nítido na sua lembrança e perfeitamente horripilante. O que o fizera pensar que era prudente ir até lá sozinho, procurar nas próprias raízes algum conhecimento sobre os Pequenos e os Taltos? É claro que ele havia encontrado exatamente o que procurava. E, ao mesmo tempo, recebido uma bala de calibre 38 no ombro.

A bala havia sido um choque aterrador. Ele nunca havia sido ferido dessa forma antes. Mas a revelação verdadeiramente perturbadora haviam sido os Pequenos.

Confortavelmente sentado no assento traseiro do Rolls-Royce, ele mais uma vez teve uma lembrança sofrida daquela visão: a noite com suas nuvens pesadas e velozes e sua lua obsessiva, o caminho da montanha totalmente coberto de mato, e o som sinistro dos tambores e das trompas subindo pelos penhascos.

Só quando ele viu os Pequenos no círculo, percebeu que estavam cantando. Só então ele ouviu seus cânticos de barítono, com palavras totalmente irreconhecíveis para ele.

Ele não tinha certeza de acreditar neles até aquele momento...

Eles davam voltas em círculo, deformados, corcundas, erguendo seus joelhos curtos, balançando de um lado para o outro, irrompendo ritmadamente em cantoria, alguns bebendo em canecas, outros em garrafas. Usavam cartucheiras nos ombros. Atiravam com suas pistolas para a grande noite cheia de ventos com a hilaridade tumultuosa dos selvagens. As armas não provocavam estrondo. Elas se detonavam em explosões contidas, como bombinhas. Piores, muito piores, eram os tambores, a terrível batida dos tambores, e as raras gaitas que guinchavam e lutavam com sua triste melodia.

Quando a bala o atingiu, ele achou que ela viera de um deles: talvez de uma sentinela. Estava errado.

Passaram-se três semanas antes que ele saísse do vale.

Agora, o Claridge's. Agora a chance de telefonar para Nova Orleans, de falar com Aaron, de falar com Mona, de explicar por que ficara em silêncio tanto tempo.

Quanto ao risco de Londres, quanto à proximidade da casa-matriz da Talamasca e daqueles que estavam tentando matá-lo, ele se sentia infinitamente mais seguro aqui do que se sentia no vale apenas momentos antes de ser derrubado de rosto no chão pela bala.

Hora de subir. De conhecer esse misterioso amigo de Samuel, que já havia chegado e que não havia sido descrito ou explicado a Yuri. Hora de fazer o que o homenzinho queria porque o homenzinho salvara a vida de Yuri, tratara dele até que recuperasse a saúde e queria que ele conhecesse esse amigo, que tinha, em todo esse drama, algum significado importantíssimo.

Yuri saltou do carro, com o simpático porteiro inglês vindo imediatamente ajudá-lo.

Seu ombro doeu. Uma dor aguda. Quando ele ia aprender a não usar o braço direito! Era de enlouquecer!

O ar frio agrediu-o com violência, porém momentânea. Ele entrou direto no saguão do hotel, tão amplo, tão agradavelmente aquecido. Subiu pela grande escada em curva à sua direita.

Os acordes suaves de um quarteto de cordas vinham do bar próximo. O ar estava parado em toda a sua volta. O hotel o tranqüilizava e fazia com que se sentisse seguro. Também fazia com que se sentisse feliz.

Incrível que todos esses ingleses bem-educados, o porteiro, os carregadores, o senhor simpático que vinha descendo pela mesma escada, não demonstrassem de forma visível notar seu suéter sujo ou suas calças pretas imundas. Eram educados demais, pensou.

Seguiu pelo segundo andar até chegar à porta da suíte de canto, que o homenzinho descrevera para ele, e, ao encontrar a porta aberta, entrou num hall pequeno e acolhedor, muito parecido com o de uma casa elegante, que dava para um salão maior, antiquado porém luxuoso, como o homenzinho dissera que seria.

O homenzinho estava de joelhos, empilhando lenha na lareira. Ele havia tirado o paletó de tweed, e a camisa branca estava extremamente esticada sobre sua corcunda e seus braços atrofiados.

— Pronto, pronto, entre, Yuri — disse ele, sem sequer erguer os olhos.

Yuri chegou ao portal. O outro homem estava lá.

E esse homem tinha uma aparência tão estranha quanto a do homenzinho, só que em termos totalmente diferentes. Ele era exageradamente alto, embora sua altura não fosse impossível. Tinha a pele branca e pálida, e o cabelo escuro, com uma apresentação bastante natural. Os cabelos eram longos, soltos e destoavam do belo terno de lã preta, do reflexo opaco da caríssima camisa branca que usava e da sua gravata vermelho-escura. Sua aparência era decididamente romântica. Mas o que isso significava? Yuri não tinha certeza. No entanto, era essa a palavra que lhe ocorria. O homem não parecia ser decididamente atlético. Não era um daqueles gigantes nervosos dos esportes que dão o melhor de si nas Olimpíadas ou em ruidosas quadras de basquete. Em vez disso, ele parecia romântico.

Yuri encarou sem nenhuma dificuldade o olhar do homem. Não havia nada de ameaçador nessa figura extraordinária e bastante formal. Na verdade, seu rosto era liso e jovem, de uma beleza quase feminina para um homem, com seus cílios longos e densos e os lábios cheios, de um formato delicadamente andrógino, e não era intimidante. Só o branco no seu cabelo lhe conferia um ar de autoridade, que estava claro que ele não impunha normalmente. Seus olhos eram da cor da avelã e bem grandes, e olhavam para Yuri, intrigados. Era realmente uma figura impressionante, a não ser pelas mãos. As mãos eram um pouco grandes demais, e havia alguma anormalidade nos dedos, embora Yuri não tivesse certeza de qual ela era. Finas como aranhas, talvez fosse essa a síntese da questão.

— Você é o cigano — disse o homem, com uma voz grave, agradável, que era quase ligeiramente sensual e muito diferente do cáustico barítono do anão.

— Entre, sente-se — disse o anão, com impaciência. Agora o fogo estava aceso e ele o atiçava com os foles. — Mandei que trouxessem algo para comer, mas quero que entre no quarto quando chegarem. Não quero que você seja visto.

— Obrigado — disse Yuri, baixinho. Ele percebeu que havia se esquecido de tirar os óculos escuros. Como o aposento de repente lhe pareceu claro, mesmo sua mobília de veludo verde-escuro e suas antiquadas cortinas floridas. Um quarto simpático, com a marca de pessoas nele.

Claridge's. Ele conhecia os hotéis do mundo, mas nunca se hospedara no Claridge's. Em Londres, nunca se hospedara em outro lugar, a não ser na casa-matriz, para onde ele agora não podia ir.

— Você está ferido, meu amigo me contou — disse o homem alto, aproximando-se e olhando para ele de uma forma tão gentil que sua altura não despertava nenhum medo instintivo. As mãos de aranha estavam erguidas e estendidas, como se, para ver o rosto de Yuri, o homem precisasse emoldurá-lo.

— Estou bem. Foi uma bala, mas seu amigo a extraiu. Eu estaria morto se não fosse pelo seu amigo.

— Foi o que ele me disse. Você sabe quem eu sou?

— Não, não sei.

— Você sabe o que é um Taltos? É isso o que eu sou.

Yuri não disse nada. Ele não suspeitara dessa possibilidade tanto quanto não imaginara que os Pequenos realmente existissem. Taltos significava Lasher: assassino, monstro, ameaça. Ele estava chocado demais para falar. Apenas ficou olhando para o rosto do homem, pensando que o homem parecia ser nada mais nada menos do que um ser humano gigantesco, a não ser pelas mãos.

— Pelo amor de Deus, Ash — disse o anão. — Tenha alguma astúcia, pelo menos uma vez na vida. — Ele deu uma escovada nas calças. O fogo estava esplêndido e vigoroso. Ele tomou assento numa poltrona macia e amorfa que parecia extremamente confortável. Seus pés não tocavam o chão.

Era impossível interpretar seu rosto profundamente enrugado. Será que ele estava assim tão irritado? As pregas na pele destruíam toda e qualquer expressão. Na realidade, a voz sozinha transmitia tudo no caso desse homenzinho, que apenas ocasionalmente mostrava os olhos brilhantes e abertos enquanto falava. Seu cabelo ruivo era o chavão apropriado para sua impaciência e seu temperamento. Ele tamborilava com os dedos curtos nos braços de pano da poltrona.

Yuri caminhou até o sofá e ocupou, rígido, um lugar bem na extremidade, consciente de que o homem alto havia ido até o consolo da lareira e olhava para o fogo ali embaixo. Yuri não queria ficar olhando com grosseria para a criatura.

— Um Taltos — disse Yuri. Sua voz apresentava uma calma aceitável. — Um Taltos? Por que você quis falar comigo? Por que quis me ajudar? Quem é você e por que veio aqui?

— Você viu o outro? — perguntou o homem alto, voltando-se e encarando Yuri com olhos que eram quase tímidos na sua franqueza, mas não exatamente. Esse homem teria sido lindo de arrasar se não fossem as mãos. As juntas pareciam nós.

— Não, nunca o vi — disse Yuri.

— Mas tem certeza de que ele morreu?

— Tenho, tenho certeza — disse Yuri. O gigante e o anão. Ele não ia rir daquilo, mas era horrivelmente divertido. As anormalidades dessa criatura a tornavam agradáveis de se ver. E as anormalidades do homenzinho o tornavam perigoso e perverso. E tudo não passava de um ato da natureza, não era? Era algo fora do âmbito dos acidentes nos quais Yuri acreditava.

— Esse Taltos tinha uma parceira? — perguntou o homem alto. — Quer dizer, outro Taltos, uma fêmea?

— Não, sua parceira era uma mulher chamada Rowan Mayfair. Falei ao seu amigo sobre ela. Ela foi a mãe dele, e sua amante. Ela é o que chamamos de bruxa na Talamasca.

— Certo — disse o homenzinho. — E o que nós também chamaríamos de bruxa. Há muitas bruxas poderosas nesta história, Ashlar. Toda uma família de bruxas. Você tem de deixar o rapaz contar sua história.

— Ashlar, esse é o seu nome completo? — perguntou Yuri. Havia sido um choque.

Por horas a fio, antes de deixar Nova Orleans, ele ouvira Aaron resumir a história de Lasher, o espírito do vale. Santo Ashlar, esse nome havia sido repetido inúmeras vezes. Santo Ashlar.

— É — disse o homem alto. — Mas Ash é a versão monossilábica, que eu prefiro imensamente. Não quero ser indelicado, mas prefiro tanto o nome Ash que com freqüência não respondo quando me chamam pelo outro. — Isso foi dito com firmeza e cortesia.

O anão riu.

— Eu o chamo pelo nome completo para fazer com que se fortaleça e preste atenção.

O homem alto ignorou essas palavras. Ele aqueceu as mãos junto ao fogo. Com os dedos espalmados, elas pareciam doentes.

— Você está sentindo dor, não está? — disse o homem, afastando-se da lareira.

— Estou. Por favor me perdoe por deixar transparecer. O ferimento é no meu ombro, numa localização tal que qualquer movimento ínfimo provoca uma fisgada. Permite que eu me recoste no sofá e procure permanecer na mesma posição, aparentando preguiça? Minha cabeça está a mil. Você quer me dizer quem você é?

— Isso eu já fiz, certo? — perguntou o homem alto. — Fale você. O que lhe aconteceu?

— Yuri — atalhou o anão, com uma impaciência bastante bem-humorada —, eu lhe disse que esse era o meu amigo e confidente mais antigo neste mundo. Eu lhe disse que ele conhecia a Talamasca. Que ele sabe mais sobre a organização do que qualquer outro ser vivo. Por favor, confie nele. Conte-lhe o que ele quer saber.

— Eu confio em você — disse Yuri. — Mas com que finalidade vou lhe falar das minhas atividades ou das minhas aventuras? O que você irá fazer com esse conhecimento?

— Ajudá-lo, é claro — disse o homem alto, sem pressa, com um delicado sinal de anuência. — Samuel diz que os homens da Talamasca estão tentando matá-lo. Para mim é difícil aceitar esse fato. Ao meu próprio modo, sempre tive admiração pela Ordem da Talamasca. Eu me protejo dela, como me protejo de qualquer coisa que possa me restringir sob qualquer aspecto. Mas os homens da Talamasca raramente foram meus inimigos... pelo menos não por muito tempo. Quem tentou feri-lo? Você tem certeza de que essas pessoas de más intenções vieram de dentro da própria Ordem?

— Não, não tenho certeza — disse Yuri. — O que aconteceu foi mais ou menos o seguinte. Quando eu era um menino órfão, a Talamasca me acolheu. Aaron Lightner foi o responsável. Samuel sabe quem ele é.

— E eu também — disse o homem alto.

— Toda a minha vida adulta, servi à Ordem, na maioria das vezes viajando, com certa freqüência realizando tarefas que eu mesmo não compreendia plenamente. Sem que eu tivesse consciência disso, parece que meus votos pressupunham uma lealdade a Aaron Lightner. Quando ele foi para Nova Orleans para investigar uma família de bruxos, não sei bem como as coisas deram errado. Essa era a família Mayfair, essa família de bruxos. Li a história deles nos antigos registros da Ordem antes que esses registros me fossem vedados. Foi de Rowan Mayfair que o Taltos nasceu.

— Quem ou o que foi o pai? — perguntou o homem alto.

— Foi um homem.

— Um mortal? Você tem certeza disso?

— Sem sombra de dúvida. Mas houve mais a se considerar. Essa família era assombrada há muitíssimas gerações por um espírito, tanto mau quanto bom. Esse espírito apoderou-se do feto no ventre de Rowan Mayfair, tomou possessão dele e auxiliou esse parto extraordinário. O Taltos, que nasceu adulto dessa mulher, possuía por inteiro a alma do espírito que assombrava a família. Na família, essa criatura era chamada de Lasher. Nunca soube de nenhum outro nome para ele. Agora, essa criatura está morta, como eu lhe disse.

O homem alto estava francamente perplexo. Ele abanou levemente a cabeça, compreensivo. Caminhou até a poltrona mais próxima e se sentou, voltando-se delicadamente na direção de Yuri, e cruzando as longas pernas e os tornozelos, exatamente como Yuri fizera. Estava sentado muito ereto, como se nunca se envergonhasse da sua altura ou se sentisse constrangido por ela.

— De dois bruxos! — disse o homem alto, num sussurro.

— Com certeza absoluta — disse Yuri.

— Você fala em certeza absoluta — disse o homem alto. — Que significado isso pode ter?

— Há provas genéticas, em quantidade abundante. A Talamasca dispõe dessas provas. A família de bruxos possui um conjunto excedente de genes dentro das suas várias linhagens. Genes dos Taltos, que sob circunstâncias normais, nunca são acionados pela natureza, mas que nesse caso, fosse por bruxaria, fosse por possessão, de fato cumpriram sua função de trazer o Taltos a este mundo.

O homem alto sorriu. Isso surpreendeu Yuri, porque o sorriso iluminou o rosto com expressividade, afeto e puro prazer.

— Você fala como todos os homens da Talamasca — disse o homem alto. — Você fala como um padre em Roma. Fala como se não tivesse nascido nesta época em que estamos.

— Bem, recebi minha formação nos seus documentos em latim — disse Yuri. — Sua história dessa criatura, Lasher, remonta ao século XVII. Eu a li por inteiro, da mesma forma que a história dessa família, sua ascensão à sua enorme fortuna e poder, suas atividades secretas com esse espírito, Lasher. E é claro que li centenas de arquivos semelhantes.

— Leu mesmo?

— Não histórias dos Taltos — disse Yuri — se é isso o que quer saber. Jamais ouvi essa palavra até vir para Nova Orleans, até dois membros da nossa Ordem serem mortos ali, quando procuravam libertar esse Taltos, Lasher, do homem que o matou. Mas não posso contar a história.

— Por quê? Eu quero saber quem o matou.

— Quando eu o conhecer melhor, quando você me apresentar suas confissões como eu apresentei as minhas.

— O que posso confessar? Sou Ashlar. Sou um Taltos. Há séculos não vejo um único membro da minha própria espécie. Ah, houve outros. Eu soube da sua existência, corri atrás deles e, em alguns casos, quase os encontrei. Preste atenção, eu disse quase. Mas nunca em séculos toquei alguém da minha própria carne, como os seres humanos gostam de dizer. Nunca em todo esse tempo.

— Você é velhíssimo, é isso o que está me dizendo. A duração da nossa vida não é nada em comparação com a sua.

— Bem, parece que não é mesmo — disse o Taltos. — Devo ser velho. Agora tenho esses cabelos brancos, como você está vendo. Mas como vou poder saber qual é a minha idade, como será minha velhice e quanto tempo ela levará em anos humanos? Quando eu vivia feliz entre os meus, era jovem demais para aprender o que precisaria saber para essa viagem longa e solitária. E Deus não me proporcionou uma memória sobrenatural. Como um homem comum, eu me lembro de algumas coisas com uma clareza obsessiva; outras totalmente apagadas.

— A Talamasca sabe de você? — perguntou Yuri. — É de importância crucial que me diga. A Talamasca foi a minha vocação.

— Esclareça de que forma isso se modificou.

— Como eu lhe dizia, Aaron Lightner foi para Nova Orleans. Aaron é um especialista em bruxos. Nós estudamos os bruxos.

— Isso já sabemos — disse o anão. — Passe adiante.

— Cale-se, Samuel, saiba se comportar — disse o homem alto, em tom sério, com a voz baixa.

— Não seja imbecil, Ash. Esse cigano está se apaixonando por você! O Taltos ficou escandalizado e indignado. A raiva dominou-o de uma forma total e bela. E de repente ele abanou a cabeça e cruzou os braços, como se soubesse lidar com esse tipo de raiva.

Quanto a Yuri, mais uma vez ele estava perplexo. Parecia que agora o mundo ia ser assim: revelações e choques abomináveis. Ele ficou pasmo e magoado porque até certo ponto se afeiçoara a esse ser muito além dos termos pelos quais se afeiçoara ao homenzinho, que eram em geral mais intelectuais.

Ele desviou o olhar, humilhado. Não tinha tempo agora para contar a história da sua própria vida, de como caíra tão plenamente sob o domínio de Aaron Lightner, bem como da força e do poder que os homens fortes muitas vezes exerciam sobre ele. Ele queria dizer que isso não era erótico. Mas era erótico, na medida em que tudo e qualquer coisa são.

O Taltos mantinha um olhar frio, fixo no homenzinho.

Yuri retomou sua história.

— Aaron Lightner foi ajudar as bruxas Mayfair nas suas intermináveis batalhas com o espírito Lasher. Aaron Lightner nunca soube de onde esse espírito vinha, ou o que ele realmente era. Que uma bruxa o havia invocado em Donnelaith no ano de 1665, isso se sabia, mas não muita coisa além disso.

— Depois que o ser se tornou carne, depois que ele provocou a morte de uma grande quantidade de bruxas, só depois de tudo isso Aaron Lightner viu o ser e ouviu dos seus próprios lábios que ele era o Taltos, que havia vivido num corpo antes, no tempo do rei Henrique, tendo encontrado a morte em Donnelaith, o vale que assombrava, até a bruxa invocá-lo.

— Esses dados não estão em nenhum arquivo da Talamasca de meu conhecimento. Mal se passaram três semanas desde que a criatura foi eliminada. Mas esses dados podem estar em arquivos secretos do conhecimento de alguém. Uma vez que a Talamasca soube que Lasher havia reencarnado, ou sei lá qual é o verbo que deveríamos usar, eles procuraram cercá-lo e removê-lo, para suas próprias finalidades. Enquanto isso, podem ter tirado algumas vidas, com frieza e determinação. Eu não sei. Sei que Aaron não fazia parte dos seus planos e se sentia traído por eles. É por isso que estou lhe perguntando se eles sabem da sua existência. Você faz parte do conhecimento da Talamasca? Porque, se faz, é de algum conhecimento altamente secreto.

— Sim e não — disse o homem alto. — Você não diz mentiras nunca, certo?

— Ash, procure não dizer coisas estranhas — resmungou o anão. Ele também se recostara, deixando suas pernas curtas e atarracadas esticadas com perfeição. Ele havia trançado os dedos sobre o colete de tweed, e sua camisa estava aberta no colarinho. Um resquício de luz refulgiu nos seus olhos semicerrados.

— Eu estava só fazendo um comentário, Samuel. Tenha paciência. — O homem alto deu um suspiro. — Procure você também não dizer coisas estranhas. — Ele pareceu um pouco irritado, e então seus olhos se voltaram para Yuri.

— Deixe-me responder à sua pergunta, Yuri. — Seu jeito de falar era afetuoso e descontraído. — Os homens da Talamasca de hoje talvez não saibam nada de mim. Seria necessário um gênio para descobrir as histórias sobre nós que estão relatadas nos arquivos da Talamasca, se é que tais documentos ainda existem. Eu jamais compreendi plenamente o status ou a importância desse conhecimento, os arquivos da Ordem, como são agora chamados. Li um manuscrito uma vez, há séculos, e ri muito das palavras que ele continha. Mas naquela época, toda linguagem escrita me parecia ingênua e comovente. Uma certa parte ainda me parece.

Para Yuri, essa era uma questão fascinante. É claro que o anão estava certo: ele estava caindo sob a influência desse ser. Ele havia perdido sua saudável relutância em confiar, mas era nisso que se resumia esse tipo de amor, não era? O ato de se despojar de uma forma tão completa dos habituais sentimentos de alienação e desconfiança que a aceitação subseqüente era orgástica em termos intelectuais.

— Que tipo de linguagem não faz com que ria? — perguntou Yuri.

— A gíria moderna — disse o homem alto. — O realismo na ficção e o jornalismo repleto de coloquialismos. É uma linguagem à qual falta qualquer resquício de ingenuidade. Ela perdeu toda a formalidade e, em vez disso, atém-se a uma intensa compressão. Quando as pessoas escrevem agora, é às vezes como o guincho de um apito, em comparação com as canções que costumavam cantar.

Yuri riu.

— Acho que você tem razão — disse ele. — Mas isso não ocorre com os arquivos da Talamasca.

— Não. Como eu estava explicando, eles são melodiosos e divertidos.

— Mas a verdade é que há documentos e documentos. Quer dizer que você acha que atualmente eles não sabem da sua existência.

— Tenho quase certeza de que não sabem de mim. E, à medida que você vai contando sua história, fica muito claro que eles não têm como saber de mim. Mas prossiga. O que aconteceu a esse Taltos?

— Eles tentaram levá-lo embora e morreram na tentativa. O homem que matou o Taltos matou esse pessoal da Talamasca. Antes de morrerem, porém, quando esses homens estavam procurando como que manter sob sua custódia o Taltos, eles afirmaram que tinham um Taltos do sexo feminino, que há séculos vinham tentando unir o macho à fêmea. Eles indicaram que esse era o objetivo declarado da Ordem. O objetivo clandestino e oculto, eu deveria dizer. Isso foi uma desmoralização para Aaron.

— Dá para ver por que motivo.

Yuri prosseguiu.

— O Taltos, Lasher, não demonstrou surpresa com tudo isso. Ele parecia ter imaginado. Mesmo na sua encarnação anterior, a Talamasca procurara tirá-lo de Donnelaith, talvez para uni-lo à fêmea. Mas ele não confiou neles, e não os acompanhou. Naquela época, ele era padre. Acreditavam que fosse santo.

— Santo Ashlar — disse o anão com mais seriedade, a voz parecendo sair não das rugas do seu rosto, mas do seu tórax troncudo. — Santo Ashlar, que sempre retorna.

O homem alto abaixou ligeiramente a cabeça, com seus profundos olhos cor de avelã passando lentamente de um lado para o outro do tapete, quase como se estivesse lendo o belo desenho oriental. Levantou os olhos na direção de Yuri, ainda cabisbaixo, de modo que as sobrancelhas escuras os sombreassem.

— Santo Ashlar — disse ele, com a voz triste.

— Você é esse homem?

— Não sou santo nenhum, Yuri. Você se importa de eu chamá-lo pelo nome? Não vamos falar de santos, por favor...

— Ah, pode me chamar de Yuri, sim. E eu vou chamá-lo de Ash? Mas a questão é saber se você é esse mesmo indivíduo. Esse que eles chamavam de santo? Você fala de séculos! E nós estamos aqui sentados nesta sala de estar, com o fogo crepitando e o garçom chamando à porta com nossa refeição. Você precisa me dizer. Eu não vou poder me proteger dos meus próprios irmãos da Talamasca, se você não me disser e não me ajudar a compreender o que está acontecendo.

Samuel deslizou para descer da poltrona e seguiu na direção do pequeno hall.

— Entre no quarto, por favor, Yuri. Desapareça agora. — Ele passou com ares de superioridade por Yuri.

Yuri levantou-se, com uma forte dor no ombro por um instante, e entrou no quarto, fechando a porta atrás de si. Encontrou-se num ambiente silencioso e sombreado, com cortinas leves e soltas filtrando a luz amena da manhã. Apanhou o telefone. Teclou rapidamente o acesso à discagem direta seguido do código internacional para os Estados Unidos.

Depois hesitou, sentindo-se totalmente incapaz de contar as mentiras protetoras que teria de contar a Mona, ansioso por falar com Aaron e lhe dizer o que sabia, e receando um pouco ser momentaneamente impedido de falar com qualquer pessoa.

Algumas vezes na viagem desde a Escócia até Londres, ele se encontrara em telefones públicos, passando pelo mesmo dilema, quando o anão lhe ordenava que entrasse no carro imediatamente.

O que dizer ao seu amorzinho? O quanto contar a Aaron nos poucos instantes que poderia ter para falar com ele?

Apressado, teclou o código da área de Nova Orleans e o número da casa da família Mayfair na esquina de St. Charles com Amelia, e esperou, de repente um pouco preocupado com a possibilidade de agora ser exatamente o meio da noite na América, e depois percebendo subitamente que de fato era.

Que erro grosseiro e terrível, sob qualquer circunstância. Alguém atendia. Era uma voz conhecida, mas que ele não conseguia identificar.

— Estou ligando da Inglaterra. Lamento muito. Estou tentando falar com Mona Mayfair. Espero não ter acordado a casa inteira.

— Yuri? — perguntou a mulher.

— Sim — confessou ele, sem a surpresa óbvia pelo fato de a mulher ter reconhecido sua voz.

— Yuri, Aaron Lightner morreu — disse a mulher. — Aqui quem está falando é Celia, prima de Beatrice. Prima de Mona. Prima de todo mundo. Aaron foi morto.

Houve um longo silêncio durante o qual Yuri não fez nada. Ele não pensou em nada, não visualizou nada, nem tirou nenhuma conclusão apressada. Seu corpo estava preso de um medo gélido e terrível, medo das implicações daquelas palavras, de que ele jamais voltaria a ver Aaron, de que nunca mais se falariam, de que ele e Aaron... de que Aaron se fora para sempre.

Quando ele procurou mover os lábios, teve dificuldade. Fez alguma coisa tola e sem sentido com a mão, beliscando o fio do telefone.

— Perdoe-me, Yuri. Estivemos tão preocupados com você. Mona esteve tão preocupada. Onde você está agora? Você pode ligar para Michael Curry? Eu posso lhe passar o número de lá.

— Eu estou bem — disse Yuri, baixinho. — Eu tenho o número.

— É lá que Mona está agora, Yuri. Lá na outra casa. Eles vão querer saber onde você está, como você está e como entrar em contato imediato com você.

— Mas Aaron... — disse ele, em tom de súplica, incapaz de falar mais. Sua voz lhe parecia ínfima, mal escapando do peso das tremendas emoções que chegavam a anuviar sua visão e prejudicar seu equilíbrio, todo o seu sentido de quem ele era. — Aaron...

— Ele foi atropelado, de propósito, por um homem num carro. Estava vindo do Pontchartrain Hotel, onde acabara de deixar Beatrice com Mary Jane Mayfair. Eles iam hospedar Mary Jane lá. Beatrice estava prestes a entrar no saguão do hotel quando ouviu o barulho. Ela e Mary Jane testemunharam o que ocorreu. Aaron foi atropelado pelo carro diversas vezes.

— Então foi mesmo assassinato — disse Yuri.

— Sem a menor dúvida. Prenderam o homem. Um vagabundo. Ele foi contratado mas não conhecia a identidade do homem que o contratou. Recebeu cinco mil dólares em dinheiro para matar Aaron. Estava tentando há uma semana. Já havia gasto metade do valor.

Yuri queria desligar o telefone. Parecia totalmente impossível continuar. Ele passou a língua pelo lábio superior e, com firmeza, se forçou a falar.

— Celia, por favor, diga a Mona Mayfair o seguinte para mim, e a Michael Curry também. Que eu estou na Inglaterra, que estou em segurança. Logo entrarei em contato. Estou tendo o máximo de cuidado. Meus pêsames a Beatrice Mayfair. Meu amor... a todos.

— Eu dou o recado.

Ele pôs o fone em cima da mesa. Se ela disse mais alguma coisa, ele não ouviu. O aparelho agora estava mudo. E as delicadas cores pastel do quarto o embalaram por um instante. A luz linda e suave se refletia no espelho inteiro. Todas as fragrâncias do quarto eram de limpeza.

A alienação, uma falta de confiança na felicidade ou nos outros. Roma. A chegada de Aaron. Aaron erradicado da sua vida, não do passado, mas totalmente do presente e do futuro.

Ele não soube quanto tempo ficou ali parado.

Começou a lhe parecer que já estava plantado junto à penteadeira há muito, muito tempo. Ele sabia que Ash, o homem alto, havia entrado no quarto, mas não para afastar Yuri do telefone.

E alguma dor terrível e profunda em Yuri foi tocada de repente, talvez desastrosamente, pela voz afetuosa e solidária desse homem.

— Por que você está chorando, Yuri?

Palavras ditas com a pureza de uma criança.

— Aaron Lightner morreu — respondeu Yuri. — Eu nunca liguei para lhe contar que haviam tentado me matar. Eu deveria ter contado. Eu deveria tê-lo avisado...

Foi a voz ligeiramente abrasiva de Samuel que chegou a ele, vindo da porta.

— Ele sabia, Yuri. Ele sabia. Você me contou como ele o alertou para que não voltasse para cá, como eles disseram que voltariam para pegá-lo a qualquer instante.

— Ah, mas eu...

— Não se apegue a isso com culpa, meu jovem amigo — disse Ash.

Yuri sentiu as grandes mãos, de aranha, segurarem seus ombros com ternura.

— Aaron... Aaron era meu pai — disse Yuri, sem alterar o tom da voz. — Aaron era meu irmão. Aaron era meu amigo. — No seu íntimo, a dor e a culpa fervilhavam, e o terror cruel e apavorante da morte se tornou insuportável. Não lhe parecia possível que esse homem tivesse desaparecido, que tivesse sumido para sempre da vida, mas isso ia começar a parecer cada vez mais possível, depois real e afinal categórico.

Yuri bem poderia ter voltado a ser um menino, na aldeia da sua mãe na Iugoslávia, parado junto ao seu corpo morto na cama. Aquela havia sido a última vez que experimentara uma dor como essa. Ele não conseguia suportá-la. Cerrou os dentes, receando que acabasse gritando ou rugindo, numa demonstração de fraqueza.

— A Talamasca o matou — disse Yuri. — Quem mais teria feito uma coisa dessas? Lasher, o Taltos, está morto. Ele é que não foi. A culpa de todos os assassinatos foi da Talamasca. O Taltos matou as mulheres, mas não matou os homens. Foi a Talamasca.

— Foi Aaron quem matou o Taltos? — perguntou Ash. — Era ele o pai?

— Não, mas ele amava uma mulher de lá, e agora talvez a vida dela também tenha sido destruída.

Ele queria se trancar no banheiro. Não tinha nenhuma visão nítida do que queria fazer. Sentar-se no piso de mármore, talvez, com os joelhos recolhidos e chorar.

Mas nenhum desses dois estranhos indivíduos quis ouvir falar nisso. Preocupados e alarmados, eles o levaram de volta para a sala de estar da suíte e fizeram com que se sentasse no sofá, com o homem alto tendo o maior cuidado para não machucar seu ombro, e o homenzinho se apressando para preparar chá quente. E lhe trazer bolos e biscoitos num prato. Uma refeição leve, mas particularmente convidativa.

Pareceu a Yuri que o fogo estava queimando rápido demais. Seu pulso estava acelerado. Na realidade, ele sentiu que estava suando intensamente. Tirou o suéter pesado, puxando-o pelo pescoço e provocando uma forte dor no ombro antes de perceber o que estava fazendo e antes de perceber que não estava usando nada por baixo e que agora estava sentado aqui, com o peito nu e o suéter nas mãos. Ele se recostou e abraçou o suéter, constrangido de estar assim tão exposto.

Ouviu um barulhinho. O anão lhe trazia uma camisa branca, ainda envolta na cartolina da lavanderia. Yuri pegou-a, abriu-a, desabotoou-a e a vestiu. Era absurdamente grande para ele. Devia pertencer a Ash. Mas ele arregaçou as mangas, abotoou alguns dos botões e se sentiu grato por estar novamente encoberto. Ela era confortável, como um enorme paletó de pijama. O suéter jazia no tapete. Dava para Yuri ver o capim, os gravetos e restos do solo nele.

— E eu me achava tão nobre por não telefonar para ele, por não preocupá-lo, deixando que o ferimento curasse e eu recuperasse a saúde antes de me apresentar para confirmar que tudo estava bem.

— Por que a Talamasca ia querer matar Aaron Lightner? — perguntou Ash. Ele havia voltado para sua poltrona e estava sentado com as mãos unidas entre os joelhos. Também dessa vez, ele estava bem ereto, improvável e muito bonito.

Deus meu, era como se um golpe tivesse deixado Yuri inconsciente, e agora ele estivesse vendo tudo isso de novo pela primeira vez. Observou a pulseira simples e preta no pulso de Ash, e o próprio relógio de ouro, com mostrador digital. Viu o corcunda de cabelos vermelhos parado junto à janela, que ele abrira um pouco agora que a lareira estava decididamente exuberante. Sentiu a lâmina gélida do vento atravessar cortante a sala. Viu o fogo se arquear e sibilar.

— Yuri, por quê?

— Não sei responder. Eu de algum modo esperava que estivéssemos enganados, que eles não tivessem sido tão desastrados nisso tudo, que não tivessem matado homens inocentes. Que era uma mentira fantasiosa ou coisa semelhante, essa história de eles terem a fêmea que sempre quiseram ter. Eu não podia conceber um objetivo de tanto mau gosto. Ai, eu não pretendia ofendê-lo...

— ... claro que não.

— Quer dizer, eu sempre considerara seus propósitos tão elevados, toda a sua evolução tão admiravelmente pura: uma Ordem de estudiosos que registram e estudam mas que nunca interferem em termos egoístas naquilo que observam; estudiosos do sobrenatural. Acho que me fizeram de tolo! Eles mataram Aaron porque ele sabia de tudo isso. E é por isso que precisam me matar. Eles precisam deixar que a Ordem volte lentamente às suas rotinas, sem que seja perturbada por nada disso. Eles devem estar em alerta na casa-matriz. Devem estar ansiosos para me impedir de entrar lá a qualquer custo. Os telefones devem estar grampeados. Eu não poderia ligar para lá, para Amsterdã ou para Roma, se quisesse. Eles interceptariam qualquer fax que eu enviasse. Eles não vão relaxar a guarda, ou parar de me procurar, até que eu morra.

— E então quem vai sobrar para ir persegui-los? Para contar aos outros? Para revelar aos irmãos e irmãs o terrível segredo de que essa Ordem é perversa... de que as velhas máximas da Igreja Católica talvez tenham sempre sido verdadeiras. O que é sobrenatural e não é de Deus é o mal. Descobrir o Taltos macho! Reuni-lo à fêmea...

Ele ergueu os olhos. O rosto de Ash estava triste. Samuel, encostado na janela fechada, apesar de todas as dobras de carne no seu rosto, também aparentava tristeza e preocupação. Acalme-se, pensou ele, dê importância ao que diz. Não se entregue à histeria.

— Você fala de séculos, Ash, como outros falam de anos — prosseguiu ele. — Portanto, a fêmea dentro da Talamasca poderia estar viva há séculos. Esse poderia ter sido o propósito desde sempre. A partir de tempos obscuros, uma teia tão maléfica e tão perversa que os homens e mulheres modernos não conseguem sequer concebê-la! É simples demais, todos esses homens e mulheres imbecis em alerta para descobrir um único ser, um Taltos, uma criatura que pode procriar com tanta velocidade e sucesso que sua espécie rapidamente dominaria o mundo. Eu me pergunto o que dá tanta segurança a esses Anciãos invisíveis, anônimos e misteriosos da Ordem, o que lhes dá a certeza de que eles próprios não estão sendo...

Ele parou de falar. A idéia nunca lhe havia ocorrido. É claro. Ele alguma vez estivera numa sala com um ser consciente que não fosse humano? Agora estava, e quem poderia dizer quantas espécies semelhantes habitavam nosso mundinho confortável, passando-se por humanos enquanto cumpriam sua própria programação sob todos os aspectos? Taltos. Vampiros. O anão idoso, com sua própria noção de tempo, seus próprios rancores e histórias.

Como os dois estavam quietos. Será que houvera uma decisão tácita de deixá-lo delirar?

— Sabem o que eu gostaria de fazer? — perguntou Yuri.

— O quê? — perguntou Ash.

— Ir até a casa-matriz de Amsterdã para matá-los, os Anciãos. Mas a questão é essa mesma. Acho que não vou conseguir encontrá-los. Acho que eles não ficam em Amsterdã, ou que jamais ficaram lá. Não sei quem ou o quê eles são. Samuel, quero o carro agora. Preciso ir para casa aquiem Londres. Preciso ver meus irmãos e irmãs.

— Não — disse Samuel. — Eles o matarão.

— Eles não podem estar todos envolvidos. Essa é a minha última esperança. Estamos todos sendo enganados por alguns. Agora, por favor, quero levar o carro até a casa-matriz fora de Londres. Quero entrar lá rapidamente, antes que alguém se dê conta, agarrar os irmãos e irmãs e fazer com que prestem atenção. Olhe, preciso fazer isso! Preciso avisá-los. Puxa, Aaron morreu!

Ele parou. Percebeu que os estivera assustando, esses dois amigos estranhos. O homenzinho cruzou os braços de novo, de um modo grotesco, porque eles eram tão curtos e seu tórax tão grande. As pregas de carne da sua testa haviam caído formando uma carranca de preocupação. Ash apenas o observava, sem cerrar o cenho, mas visivelmente preocupado.

— Que diferença faz para vocês dois? — disse Yuri, de repente. — Você salvou a minha vida quando atiraram em mim nas montanhas. Mas ninguém lhe pediu que fizesse isso. Por quê? O que sou eu para vocês?

Samuel emitiu um barulhinho como que para dizer que a pergunta não merecia resposta. Ash, no entanto, respondeu com ternura na voz.

— Talvez nós também sejamos ciganos, Yuri.

Yuri não respondeu, mas ele não acreditava nos sentimentos que esse homem estava descrevendo. Ele não acreditava em nada, a não ser no fato de Aaron estar morto. Visualizou Mona, sua bruxinha ruiva. Ele a viu, com seu rostinho notável e seu grande véu de cabelos vermelhos. Ele viu seus olhos. Mas não conseguia sentir nada por ela. Desejava do fundo do coração que ela estivesse ali.

— Nada, eu não tenho nada — sussurrou ele.

— Yuri — disse Ash. — Por favor, ouça o que vou lhe dizer. A Talamasca não foi fundada para encontrar o Taltos. Dou-lhe minha palavra de que pode acreditar nisso. E embora eu não saiba nada a respeito dos Anciãos da atualidade, eu os conheci no passado. E não, Yuri, eles não eram Taltos naquela época, e eu não acredito que sejam Taltos agora. O que eles seriam, Yuri? Fêmeas da nossa espécie?

A voz prosseguiu tranqüila e ainda terna, mas profundamente vigorosa.

— Uma Taltos fêmea é tão impetuosa e infantil quanto um macho — disse Ash. — Uma fêmea teria ido imediatamente atrás dessa criatura, desse Lasher. Teria sido impossível impedir uma fêmea, que vivesse apenas entre fêmeas, de agir assim. Para que mandar homens mortais para capturar uma presa dessas e um inimigo semelhante? Ah, eu sei que para você não pareço ameaçador, mas você poderia ficar muito surpreso com as minhas histórias. Tranqüilize-se: seus irmãos e irmãs não são enganados pela própria Ordem. Mas creio que você descobriu a verdade nas suas reflexões. Não foram os Anciãos que subverteram o propósito declarado da Talamasca, para poderem capturar essa criatura, Lasher. Foi alguma panelinha de membros que descobriu os segredos da antiga espécie.

Ash parou de falar. Era como se o ar de repente ficasse desprovido de música. Ash ainda contemplava Yuri com olhos pacientes, simples.

— Você tem de estar certo — disse Yuri, baixinho. — Não posso suportar a idéia se você não estiver.

— Está ao nosso alcance descobrir a verdade — disse Ash. —Nós três juntos. E francamente, embora eu tenha gostado de você no momento em que o conheci e o ajudasse por ser você meu semelhante e porque meu coração se afeiçoou a você, devo ajudá-lo por um outro motivo. Eu me lembro de quando não existia a Talamasca. Lembro-me de quando a Ordem era apenas um homem. Lembro-me de quando suas catacumbas encerravam uma biblioteca que não era maior do que esta sala. Lembro-me de quando ela passou a ter dois membros, depois três, mais tarde cinco e então dez. Lembro-me de todas essas coisas e daqueles que se reuniram para fundar a Ordem. Eu os conheci e os amei. E é claro que meu próprio segredo, minha própria história, estão ocultos em algum lugar desses arquivos; registros que estão sendo traduzidos para línguas modernas e armazenados por meio eletrônico.

— O que ele está dizendo — interrompeu Samuel, com aspereza, mas lentamente apesar de toda a sua irritação — é que nós não queremos que a Talamasca seja deturpada. Não queremos que sua natureza se altere. A Talamasca sabe demais sobre nós para que se tolere uma possibilidade dessas. A Ordem sabe demais sobre uma infinidade de assuntos. Para mim, não se trata no fundo de uma questão de lealdade. É uma questão de se viver em paz.

— Já eu falo de lealdade — disse Ash. — Falo de amor e gratidão. Falo de muitas coisas.

— É, agora compreendo — disse Yuri. Ele estava sentindo o avanço do cansaço: o término inevitável do tumulto emocional, o salvamento inevitável, a necessidade pesada, derrotada, de um pouco de sono.

— Se eles soubessem da minha existência — disse Ash em voz baixa — esse pequeno grupo viria me procurar, tão certo quanto foram procurar essa criatura, Lasher. — Ele fez um pequeno gesto de aceitação. — Os seres humanos fizeram isso antes. Qualquer grande biblioteca de segredos é perigosa. Qualquer tesouro de segredos pode ser roubado.

Yuri começara a chorar. Não fazia o menor ruído. As lágrimas não se derramavam. Seus olhos encheram-se de água. Ele ficou olhando para a xícara de chá. Não o bebera, e agora ele estava frio. Apanhou o guardanapo de linho, abriu-o e enxugou os olhos com ele. Era áspero demais, mas ele não estava ligando. Sentia vontade de comer os doces no prato, mas não queria comê-los. Após uma morte, não lhe parecia correto comê-los.

— Não quero ser o anjo da guarda da Talamasca — prosseguiu Ash. — Eu jamais quis isso. Mas houve no passado ocasiões em que a Ordem foi ameaçada. Se eu puder impedir, não verei a Ordem ferida ou destruída.

— Yuri — disse Samuel. — Há muitos motivos pelos quais um pequeno bando de renegados da Talamasca poderia tentar armar uma cilada para esse Lasher. Imagine que bela presa ele não seria. Eles talvez sejam seres humanos desejosos de capturar um Taltos por nenhum motivo elevado. Eles não são homens da ciência, da magia ou da religião. Não são nem mesmo estudiosos. Mas talvez quisessem possuir essa criatura rara e indescritível. Talvez a quisessem para contemplá-la, conversar com ela, examiná-la, conhecê-la e fazer com que procriasse sob cuidadosa vigilância, é claro, inevitavelmente.

— Eles talvez a quisessem para cortá-la em pedaços — disse Ash. — É lamentável, mas talvez a quisessem para lhe enfiar agulhas e ver se ela berraria.

— É, faz mesmo sentido — disse Yuri. — Uma conspiração de fora. Renegados ou forasteiros. Estou cansado. Preciso dormir numa cama. Não sei por que disse coisas tão terríveis a vocês dois.

— Eu sei — disse o anão. — Seu amigo morreu. Eu não estava lá para salvar a ele.

— O homem que tentou matar você — disse Ash. — Você o matou?

— Não, quem o matou fui eu — respondeu Samuel. — Na realidade, não foi premeditado. Ou eu o derrubava do penhasco, ou deixava que ele desse mais um tiro no cigano. Devo confessar que fiz isso por puro prazer, já que eu e o cigano ainda não havíamos trocado uma palavra. Aqui estava esse homem mirando sua arma em outro homem. O corpo do falecido está lá no vale. Quer encontrá-lo? Há uma boa chance de que os Pequenos o tenham deixado onde ele caiu.

— Ah, quer dizer que foi assim — disse Ash.

Yuri não disse nada. Tinha uma vaga noção de que devia ter procurado esse corpo. Deveria tê-lo examinado, tomado seus documentos de identidade. Mas no fundo isso não teria sido viável, considerando-se seu ferimento e a topografia aterradora. Parecia haver algo de justo no fato de o corpo ter ficado perdido para sempre na mata de Donnelaith, e de os Pequenos o terem deixado apodrecer.

Os Pequenos.

No instante em que ele caíra, seus olhos estavam cravados no espetáculo daqueles homenzinhos, lá embaixo no pequeno bolsão de grama abaixo dele, dançando como se fossem uma quantidade de anões modernos e deformados. A luz dos archotes havia sido a última coisa que viu antes de cair inconsciente.

Quando abriu os olhos e viu Samuel, seu salvador, com a pistola e a cartucheira, e um rosto tão velho e desfigurado que parecia um emaranhado de raízes de árvores, pensou que eles haviam vindo matá-lo. Mas eu os vi. Gostaria de poder contar a Aaron. Os Pequenos, eu os vi...

— Trata-se de um grupo de fora da Talamasca — disse Ash, despertando-o abruptamente desse encantamento inoportuno, trazendo-o de volta para esse pequeno círculo. — Não de dentro.

Taltos, pensou Yuri, e agora eu vi o Taltos. Estou numa sala com essa criatura que é o Taltos.

Se a honra da Ordem tivesse permanecido imaculada, se a dor no seu ombro não o relembrasse a cada instante da violência traiçoeira e vil que envolvera sua vida, como seria importante ter visto o Taltos. Mas a verdade é que era esse o preço dessas visões, não era? Elas sempre tinham seu preço, disse-lhe Aaron um dia. E agora ele nunca mais poderia conversar sobre isso com Aaron.

Samuel falou em seguida, num tom levemente cáustico.

— Como você sabe que não se trata de um grupo de dentro da Talamasca?

Ele agora não apresentava a menor semelhança com a aparência daquela noite em que usava calções e gibão esfarrapados. Sentado junto ao fogo, ele parecia ser um sapo horrendo enquanto contava suas balas, enchia os espaços vazios no cinto e bebia o uísque, sem deixar de oferecê-lo insistentemente a Yuri. Esse foi o dia em que Yuri bebeu mais na sua vida. Mas era medicinal, não era?

"Anão", dissera Yuri. E o homenzinho respondera que ele podia chamá-lo assim se quisesse. Que já havia sido chamado por nomes piores. Mas que seu nome era Samuel.

"Em que língua estão cantando?" Quando vão parar com essa cantoria, com os tambores!

"Na nossa língua. Fique quieto agora. Contar é difícil para mim."

Agora o homenzinho estava confortavelmente acomodado numa poltrona civilizada, envolto em trajes civilizados, olhando ansioso para o gigante magro e fantástico, Ash, que demorava a responder.

— É — disse Yuri, mais para se desligar das lembranças do que para qualquer outra coisa. — O que o faz pensar que se trata de um grupo de fora? — Esqueça-se do frio, da escuridão e dos tambores; da dor enfurecedora da bala.

— É desastrado demais — disse Ash. — A bala de uma arma. O carro que sobe pelo meio-fio e atinge Aaron Lightner. Há muitos modos fáceis de se matar gente sem que os outros sequer percebam. Os especialistas sempre sabem disso. Eles aprenderam ao estudar bruxas, bruxos e outros príncipes de maleficia. Não. Eles não entrariam no vale perseguindo um homem como se ele fosse caça. Não é possível.

— Ash, o revólver é agora a arma do vale — disse Samuel, zombeteiro. — Por que magos não usariam armas de fogo se os Pequenos as usam?

— O revólver é o brinquedo do vale, Samuel — respondeu Ash, calmamente. — E você sabe disso. Os homens da Talamasca não são monstros caçados e espionados, que precisam se afastar do mundo para a mata e que, quando avistados, provocam o medo no coração dos homens. — Ele prosseguiu com seu raciocínio. — Não foi de dentro do círculo de Anciãos da Talamasca que essa ameaça surgiu. Trata-se da pior amolação imaginável: algum pequeno grupo de gente de fora, que por acaso teve acesso a certas informações e optou por acreditar nelas. Livros, discos de computador. Quem sabe? Talvez esses segredos tenham sido vendidos por empregados...

— Então devemos parecer crianças aos olhos deles — disse Yuri. — Como monges e freiras, informatizando todos os nossos registros, nossos arquivos, armazenando antigos segredos em bancos de dados.

— Quem foi o bruxo que gerou o Taltos? Quem o matou? — perguntou Ash, de repente. — Você garantiu que me contaria se eu lhe contasse o que sei. O que mais posso lhe passar? Fui mais do que acessível. Quem é esse bruxo que pode gerar um Taltos?

— O nome dele é Michael Curry — disse Yuri. — E é provável que procurem matá-lo também.

— Não, isso não lhes seria útil, certo? — disse Ash. — Pelo contrário, vão se esforçar por repetir a fecundação. A bruxa Rowan...

— Ela não pode mais ter filhos — disse Yuri. — Mas há outras, toda uma família. Existe uma que é tão poderosa que até mesmo...

Yuri sentiu um peso na cabeça. Ergueu a mão direita e a levou até a testa, decepcionado por sua mão estar tão quente. Inclinar-se para a frente fazia com que se sentisse mal. Procurou recostar-se bem devagar, tentando não esticar ou atingir o ombro, e então fechou os olhos. Enfiou a mão no bolso da calça, tirou sua carteira e a abriu.

Tirou de um canto da carteira a pequena fotografia de escola de Mona, com um colorido muito vivido. Sua querida, com o sorriso, os dentes brancos e uniformes, a grande cabeleira vermelha bela e selvagem. Bruxinha, bruxa amada, mas bruxa sem sombra de dúvida.

Yuri enxugou os olhos novamente e os lábios. Sua mão tremia tanto que o lindo rosto de Mona estava fora de foco.

Ele viu os dedos longos e magros de Ash tocarem a borda da fotografia. O Taltos estava em pé debruçado sobre ele, com um braço comprido para trás apoiado no encosto do sofá, enquanto com a outra mão firmava o retrato e o examinava em silêncio.

— Da mesma linhagem da mãe? — perguntou Ash, baixinho.

De repente, Yuri agarrou a fotografia e a apertou junto ao peito. Caiu para a frente, sentindo-se mal mais uma vez, com a dor no ombro a paralisá-lo de imediato.

Ash afastou-se com gentileza e foi até a lareira. O fogo estava algo mais brando. Ash ficou parado com as mãos no consolo da lareira. Suas costas estavam muito retas; seu porte quase militar; sua cabeleira escura e cheia formando cachos junto ao colarinho, encobrindo totalmente o pescoço. De onde estava, Yuri não via nenhum cabelo branco, só os cachos escuros, entre o negro e o castanho.

— Quer dizer que eles tentarão apanhá-la — disse Ash, ainda de costas, erguendo a voz de acordo com a necessidade. — Ou eles tentam apanhá-la, ou alguma outra bruxa da família.

— É — disse Yuri. Ele estava atordoado e no entanto enfurecido. Como podia ter imaginado que não a amava? Como Mona podia ter ficado tão distante dele tão de repente? — Eles vão tentar apanhá-la. Ai, meu Deus, mas nós lhes demos uma vantagem — disse ele, só então percebendo isso e percebendo plenamente. — Deus do céu, nós lhes entregamos tudo de bandeja. Computadores! Dados! Foi exatamente o que aconteceu com a Ordem!

Ele ficou em pé. O ombro latejava. Ele não estava ligando. Ainda segurava firme o retrato, encoberto pela mão, encostado na camisa.

— Como assim, entregaram de bandeja? — perguntou Ash, voltando-se, com a luz do fogo iluminando-lhe o rosto de baixo para cima de tal modo que seus olhos pareceram tão verdes quanto os de Mona, e sua gravata dava a impressão de uma forte mancha de sangue.

— Os exames genéticos! — disse Yuri. — A família inteira está se submetendo a exames para nunca mais se formarem casais de bruxos que possam gerar o Taltos. Vocês não percebem? Há dados sendo compilados, genéticos, genealógicos, médicos. Estará nesses dados quem é um bruxo poderoso e quem não é. Meu Deus, eles saberão quem selecionar. Saberão mais do que o Taltos inexperiente! Nesse conhecimento terão uma arma de que ele nunca dispôs. Ai, ele tentou fecundar tantas delas, E as matou. Cada uma morreu sem lhe dar o que ele queria, uma filha. Mas...

— Posso ver novamente a foto da jovem bruxa de cabelos ruivos? — perguntou Ash, com timidez.

— Não — disse Yuri. — Não pode.

O sangue pulsava no seu rosto. Ele sentiu algo molhado no ombro. Havia rasgado o ferimento. Estava com febre.

— Não pode, não — repetiu, encarando Ash.

Ash não disse palavra.

— Por favor, não me peça isso — disse Yuri. — Preciso de você. Preciso muito que você me ajude, mas não me peça para ver seu rosto. Agora não.

Os dois se entreolharam. E então Ash concordou.

— Está certo. É claro que não vou pedir para vê-lo. Mas amar uma bruxa tanto assim é muito perigoso. Você sabe disso, não sabe?

Yuri não respondeu. Por um átimo ele teve consciência de tudo, de que Aaron estava morto, de que Mona poderia em breve correr riscos, que quase todos os que ele um dia amara ou a quem queria bem lhe haviam sido tomados, quase todos, que lhe restava uma remota esperança de felicidade, satisfação ou alegria, que ele estava muito fraco, cansado e ferido para continuar a pensar, que precisava ir se deitar na cama no quarto ao lado, cama para a qual ele não ousara olhar nem de relance já que era a primeira que via em todo esse tempo desde que a bala o atingira e quase o matara. Ele se deu conta de que nunca, nunca, deveria ter mostrado o retrato de Mona a esse ser que estava ali de pé olhando para ele com uma ternura enganosa e uma paciência aparentemente sublime. Soube que ele, Yuri, poderia cair morto de repente ali mesmo.

— Vamos, Yuri — disse Samuel, com uma delicadeza rude, vindo na sua direção com sua costumeira postura de superioridade. A mão grosseira e deformada estava estendida para segurar a de Yuri. — Agora quero que vá dormir, Yuri. Durma agora. Estaremos aqui com uma refeição quente para você quando acordar.

Ele se deixou ser levado na direção da porta. No entanto, algo fez com que parasse, com que oferecesse resistência ao homenzinho que era mais forte do que qualquer adulto normal que Yuri um dia conhecera. Yuri descobriu-se olhando para trás, para o homem alto junto à lareira.

Entrou então no quarto e, para sua própria surpresa, caiu atordoado na cama. O homenzinho tirou-lhe os sapatos.

— Desculpe — disse Yuri.

— Não se preocupe — disse o homenzinho. — Quer que eu o cubra?

— Não, aqui não faz frio, e eu estou em segurança.

Ele ouviu a porta se fechar, mas não abriu os olhos. Já estava se afastando dali, para longe de tudo; e, num relance de realidade em sonho que o atingiu e o despertou com um choque. ele viu Mona sentada na beira da cama, a lhe dizer que se aproximasse. Os pêlos entre as suas pernas eram vermelhos, mas mais escuros do que a sua cabeleira.

Ele abriu os olhos. Por um instante, só percebeu uma escuridão próxima, uma ausência da luz que deveria estar ali. E então, aos poucos, notou que Ash estava em pé ao seu lado, olhando para ele. Com repulsa e medo instintivo, Yuri permaneceu imóvel, com os olhos fixos na lã do longo casaco de Ash.

— Não vou roubar a fotografia enquanto você está dormindo — disse Ash, num sussurro. — Não se preocupe. Vim lhe dizer que preciso ir para o norte hoje, para visitar o vale. Estarei de volta amanhã e preciso encontrá-lo aqui quando voltar.

— Eu não fui muito inteligente, fui? — perguntou Yuri. — De lhe mostrar o retrato dela. Fui um idiota.

Ele ainda estava com os olhos fixos na lã escura. E então, bem acima do seu rosto, viu os dedos brancos da mão direita de Ash. Voltou-se bem devagar e olhou para o alto. Horrorizou-o a proximidade do grande rosto do homem, mas ele não disse nada. Apenas contemplou os olhos que se fixavam nele com uma curiosidade cristalina e olhou então para a boca voluptuosa.

— Acho que agora estou ficando louco — disse Yuri.

— Não, não está — respondeu Ash. — Mas precisa começar a ser esperto de agora em diante. Durma. Não tenha medo de mim. E permaneça aqui, em segurança, com Samuel até que eu volte.

 

O NECROTÉRIO ERA ACANHADO, imundo, composto de pequenas salas com um revestimento velho de azulejos e cerâmica branca nas paredes e pisos e com encanamentos enferrujados e mesas metálicas que rangiam.

Só em Nova Orleans, pensou ela, poderia ser assim. Só aqui eles deixariam uma menina de treze anos se aproximar do corpo, vê-lo e começar a chorar.

— Saia daqui, Mona — disse ela. — Deixe-me examinar Aaron.

Suas pernas tremiam, suas mãos ainda mais. Era como na velha piada. A pessoa está ali sentada, paralitica e se contorcendo; alguém lhe pergunta o que ela faz na vida, e ela responde, "Sou ne... ne... neuro-cirurgiao!"

Ela se apoiou na mão esquerda e ergueu o lençol ensangüentado. O carro não havia atingido o rosto. Era Aaron.

Esse não era o lugar adequado para lhe render homenagem, para relembrar suas múltiplas gentilezas e vãos esforços no sentido de ajudá-la. Uma imagem talvez surgisse luminosa para ocultar a sujeira, o fedor, a ignomínia do corpo anteriormente cheio de dignidade, jogado de qualquer jeito na mesa imunda.

Aaron Lightner no velório da sua mãe. Aaron Lightner a pegá-la pelo braço para ajudá-la a atravessar a multidão de perfeitos desconhecidos que eram seus parentes e se aproximar do caixão da mãe. Aaron, sabendo que era exatamente aquilo o que ela queria fazer e precisava fazer: contemplar o corpo delicadamente maquilado e perfumado de Deirdre Mayfair.

Nenhum cosmético havia tocado nesse homem que jazia aqui fora do alcance da distinção e em profunda indiferença, com sua cabeleira branca lustrosa como sempre, emblema da sabedoria lado a lado com uma vitalidade extraordinária. Seus olhos claros estavam abertos, porém inconfundivelmente mortos. A boca se relaxara talvez no seu formato mais agradável e familiar, prova de uma vida vivida com uma proporção surpreendentemente pequena de rancor, raiva ou humor sinistro.

Ela pôs a mão na sua testa e depois movimentou a cabeça só um pouco para um lado e depois de volta à posição. Calculou que a hora da morte havia sido menos de duas horas antes.

O tórax havia sido esmagado. A camisa e o paletó estavam empapados de sangue. Sem dúvida, os pulmões entraram em colapso instantaneamente, e mesmo antes disso era possível que o coração tivesse sofrido uma ruptura.

Tocou delicadamente os seus lábios, afastando-os como se fosse uma amante a provocá-lo, preparando-se para beijá-lo, pensou. Os olhos de Rowan estavam úmidos, e a sensação de tristeza ficou de repente tão profunda que lhe voltaram cheiros do velório de Deirdre, a presença envolvente de flores brancas e perfumadas. A boca estava cheia de sangue.

Ela examinou os olhos, que não retribuíram seu olhar. Eu o conheço, eu o amo! Debruçou-se ainda mais perto. É, ele morrera instantaneamente. Morrera do coração, não do cérebro. Ela fechou delicadamente as suas pálpebras e deixou os dedos pousados ali.

Quem faria uma autópsia decente nessa masmorra? Vejam só as manchas na parede. Sintam o cheiro das gavetas.

Ela puxou um pouco mais o lençol e depois o afastou com força, desajeitada ou impaciente, não sabia dizer qual. A perna esquerda estava esmagada. Era óbvio que a parte inferior e o pé haviam sido separados e postos de volta na calça de lã. A mão direita tinha apenas três dedos. Os outros dois haviam sido decepados brutal e completamente. Será que alguém havia recolhido os dedos?

Houve um chiado. Era o detetive chinês que entrava na sala, a terra na sola do seu sapato provocava aquele ruído detestável em contato com o piso.

— Tudo bem aí, doutora?

— Tudo bem — disse ela. — Estou quase terminando. — Ela deu a volta até o outro lado. Pôs a mão na cabeça de Aaron e no seu pescoço, e ficou ali parada, calada, pensando, escutando, sentindo.

Havia sido o acidente de automóvel, simples e selvagem. Se ele havia sofrido, nenhuma imagem do sofrimento pairava agora junto a ele. Se ele havia lutado para não morrer, isso também permaneceria uma incógnita para sempre. Beatrice vira sua tentativa de se desviar do carro, ou era isso o que ela achava. Mary Jane relatara que ele tentou sair da frente. Simplesmente não conseguiu.

Afinal, ela recuou. Precisava lavar as mãos, mas onde? Foi até a pia, abriu a torneira antiqüíssima e deixou que a água jorrasse sobre seus dedos. Fechou então a torneira e enfiou as mãos nos bolsos do casaco de algodão. Passou pelo policial para voltar para a pequena ante-sala diante das gavetas de corpos não procurados.

Michael estava ali, com o cigarro na mão, o colarinho aberto, aparentando estar totalmente devastado Dela dor e pelo peso do consolo.

— Você quer vê-lo? — perguntou ela. Sua garganta ainda doía, mas isso não tinha absolutamente a menor importância. — Não há nada de errado com o rosto dele. Não olhe para mais nada.

— Acho que não quero — disse Michael. — Nunca estive antes numa situação dessas. Se você diz que ele está morto, que o carro o atingiu e que não há nada que eu possa descobrir, não quero vê-lo.

— Eu compreendo.

— Esse cheiro está me fazendo mal. Mona já enjoou.

— Houve uma época em que eu estava acostumada com ele — disse ela.

Ele se aproximou dela, segurando-lhe a nuca na sua mão grande e áspera, e depois a beijando, desajeitado, de um modo totalmente diferente do jeito terno e cheio de remorsos dos seus beijos durante todas aquelas semanas de silêncio. Ele estremeceu de corpo inteiro, e ela entreabriu os lábios e retribuiu o beijo, esmagando-o com um abraço, ou pelo menos procurando fazê-lo.

— Preciso sair daqui — disse ele.

Ela recuou um passo apenas e olhou de relance para a outra sala, para o monte ensangüentado. O policial chinês havia rearrumado o lençol, talvez por respeito, ou por normas de procedimento.

Michael olhava fixamente para as gavetas ao longo da parede em frente. Os corpos ali dentro geravam aquele cheiro abominável. Ela olhou. Uma gaveta estava parcialmente aberta, talvez por não poder ser fechada, e ela viu a comprovação de que havia dois corpos nela, a cabeça marrom de um olhando para cima, e os pés rosados e embolorados do outro deitado direto em cima do primeiro. Havia um bolor verde também norosto. Mas o horrível não era o bolor; era o empilhamento. Cadáveres não procurados, tão íntimos ao seu próprio modo quanto amantes.

— Eu não posso... — disse Michael.

— Eu sei, vamos — respondeu ela.

Quando entraram no carro, Mona já havia parado de chorar. Ela estava sentada olhando pela janela, tão imersa nos seus pensamentos que impossibilitava qualquer conversa, qualquer distração. De vez em quando ela se voltava e olhava de relance para Rowan. Rowan encarava esse olhar e sentia sua força e seu afeto. Nas três semanas em que ouvira essa criança abrir seu coração, uma bela dose de poesia que para Rowan muitas vezes não passava de simples som naquele seu estado sonambúlico, Rowan viera a amar Mona por inteiro.

Herdeira, a que dará à luz a criança que transmitirá o legado. Criança com um ventre ali dentro, e as paixões de uma mulher experiente. Criança que segurara Michael nos seus braços, que na sua exuberância e ignorância não havia absolutamente temido pelo seu coração prejudicado, ou receado que ele pudesse morrer no auge da paixão. Ele não morrera. Conseguira sair da vida de inválido e se preparar para a volta da esposa! E agora a culpa estava nos ombros de Mona, uma culpa por demais inebriante, a confundir todas as doses poderosas que Mona tivera de engolir.

Ninguém falava à medida que o carro avançava.

Rowan estava sentada junto a Michael, encostada nele toda enrodilhada, resistindo à vontade de dormir, de afundar de novo, de voltar a se perder em pensamentos que fluíam com toda a uniformidade e impassibilidade de um rio, pensamentos como aqueles que a encobriam delicadamente há semanas, pensamentos através dos quais fatos e palavras surgiam com tanta lentidão e tanta suavidade que mal parecia que eles a haviam atingido. Vozes que falavam com ela por cima do ruído amortecedor da água corrente.

Ela sabia o que pretendia fazer. Ia ser mais um golpe terrível, terrível, para Michael.

Encontraram a casa fervilhando. Novamente cercada por seguranças. Isso não era surpresa para nenhum deles. E Rowan não exigiu nenhuma explicação. Ninguém sabia quem havia contratado o homem para atropelar Aaron Lightner.

Celia chegara e se encarregara de Bea, deixando-a "chorar à vontade" no quarto de hóspedes regularmente usado por Aaron no segundo andar. Ryan Mayfair estava de plantão, o homem sempre pronto para o tribunal ou a igreja, no seu terno e gravata, falando com cautela sobre o que a família devia fazer agora.

É claro que todos olhavam para Rowan. Ela havia visto esses rostos junto à sua cama. Ela os havia visto passar diante dela durante suas longas horas no jardim.

Não se sentia à vontade no vestido que Mona a ajudara a escolher porque não se lembrava de tê-lo visto antes. Mas isso realmente não importava tanto quanto comer. Ela estava com uma fome voraz, e haviam servido um grande bufê ao estilo Mayfair na sala de jantar.

Michael encheu um prato para ela antes que os outros pudessem fazê-lo. Ela se sentou à cabeceira da mesa de jantar e comeu, enquanto observava os outros que se moviam aqui e ali em pequenos grupos.

Sedenta, bebeu um copo de água gelada. Eles a estavam deixando em paz, por respeito ou por impotência. O que poderiam lhe dizer? Em sua maioria, eles sabiam muito pouco do que de fato ocorrera. Jamais compreenderiam seu seqüestro, como o chamavam, seu cativeiro e as agressões que sofrerá. Como era boa aquela gente. Eles realmente se importavam, mas agora não havia nada que pudessem fazer, a não ser deixá-la em paz.

Mona estava parada ao seu lado. Mona inclinou-se e beijou seu rosto, fazendo isso muito devagar, para que a qualquer instante Rowan pudesse impedi-la. Rowan não o fez. Pelo contrário, ela segurou o pulso de Mona, puxou-a para perto e retribuiu o beijo, adorando a suavidade da sua pele de bebê, pensando só por um instante como Michael devia ter apreciado essa pele, para ver, tocar e penetrar.

— Vou subir para dar uma dormida — disse Mona. — Estou lá em cima se precisar de mim.

— E preciso mesmo — disse Rowan, mas numa voz bem baixa de tal forma que Michael não percebesse. Michael estava à sua direita, devorando um prato de comida acompanhado de uma lata de cerveja gelada.

— É, está bem — disse Mona. — Vou estar só deitada. — Havia uma expressão de pavor no seu rosto, exaustão, tristeza e pavor.

— Agora, precisamos uma da outra — disse Rowan, pronunciando as palavras o mais baixo possível. Os olhos da menina a contemplavam fixamente, e as duas ficaram apenas olhando uma para a outra.

Mona fez que sim e saiu, sem sequer uma despedida rápida para Michael.

O constrangimento de quem sente culpa, pensou Rowan.

Alguém na sala da frente deu uma súbita risada. Parecia que, não importava o que acontecesse, a família Mayfair sempre ria. Quando ela estava à morte no andar de cima, e Michael chorava junto ao leito, havia pessoas rindo na casa. Ela se lembrava de ter pensado nisso, pensado nos dois sons com distanciamento, sem alarme, sem reação. Em devaneio. A verdade é que o riso sempre parece mais perfeito do que o choro. O riso jorra numa cascata violenta e tem sua melodia sem esforço. O choro é com freqüência combatido, abafado, meio estrangulado ou, quando a pessoa se entrega a ele, é com humilhação.

Michael limpou o prato de rosbife, arroz e molho. Bebeu o final da cerveja. Alguém veio rápido pôr mais uma lata junto ao seu prato, e ele a apanhou e bebeu metade dela de imediato.

— Isso é bom para o seu coração? — murmurou ela. Ele não respondeu.

Ela olhou para o prato. Também havia terminado. Decididamente gulosa.

Arroz e molho. Típico de Nova Orleans. Ocorreu-lhe que ela deveria lhe dizer que durante todas aquelas semanas ela havia adorado o fato de ele lhe dar comida com as suas próprias mãos. Mas de que valia dizer uma coisa dessas para ele?

Que ele a amasse era um milagre tão grande quanto qualquer outra coisa que lhe houvesse acontecido, qualquer coisa que houvesse acontecido nesta casa com qualquer um. E, quando se prestava atenção ao que importava, refletiu, tudo havia acontecido nesta casa. Ela se sentia enraizada aqui, vinculada de uma forma que nunca sentira com relação a nenhum outro lugar, nem mesmo no Sweet Christine, a navegar corajosa pela Golden Gate. Sentia a firme certeza de que esse era o seu lar, nunca deixaria de ser e, com os olhos fixos no prato, lembrou-se do dia em que Michael e ela haviam percorrido a casa juntos, abrindo a despensa para encontrar toda essa porcelana antiga, essa porcelana preciosa e as pratarias.

E, no entanto, tudo isso poderia perecer, poderia ser arrancado das suas mãos e das de todos os outros, por uma tempestade de vento quente, vento da boca do inferno. O que lhe dissera sua nova amiga, Mona Mayfair, apenas horas atrás? "Rowan, a história não acabou."

Não, não acabou. E Aaron? Será que eles teriam ligado para a casa-matriz para informar os seus amigos mais antigos do que lhe acontecera, ou será que ele acabaria sendo enterrado entre amigos recentes e parentes por afinidade?

As lâmpadas brilhavam forte sobre o consolo da lareira.

Lá fora, porém, ainda não estava escuro. Através dos louros-cereja, ela via que o céu estava da lendária cor de púrpura. Os murais emitiam suas cores tranqüilizantes ao crepúsculo na sala, e nos carvalhos magníficos, carvalhos que podiam lhe dar conforto quando nenhum ser humano conseguia, as cigarras começavam a cantar. E o ar agradável da primavera entrava pela sala à vontade, por janelas que estavam abertas por toda parte: aqui, no salão e talvez nos fundos, voltadas para a grande piscina fora de uso, janelas que se abriam para as covas do jardim, onde jaziam dois corpos, os corpos dos seus dois únicos filhos.

Michael acabou de beber a segunda cerveja, espremeu a lata como de costume e depois a pousou sobre a mesa com cuidado, como se a grande mesa exigisse essa etiqueta. Ele não olhou para ela. Tinha os olhos fixos nos louros que roçavam as pequenas colunas da varanda, roçavam as vidraças das janelas de cima. Talvez ele estivesse admirando o céu purpúreo. Talvez estivesse prestando atenção à comoção dos estorninhos que a essa hora arremetiam em grandes bandos para devorar as cigarras. Era só a morte, aquela dança, as cigarras enxameando de arvore em árvore, e os bandos de pássaros cruzando o céu crepuscular. Era simplesmente a morte. Só uma espécie devorando a outra.

"É só isso no fundo, minha querida", dissera ela no dia em que despertara, com a camisola coberta de lama, as mãos cobertas de lama, os pés descalços na lama molhada ao lado da cova recente. "No fundo, é só isso, Emaleth. Uma questão de sobrevivência, minha filha."

Parte dela queria voltar para as covas e o jardim, para a mesa de ferro à sombra da árvore, à danse macabre das criaturas aladas lá em cima, fazendo com que a admirável noite violácea pulsasse com cantos incidentais e maravilhosos. Parte dela não ousava fazer isso. Se ela saísse daqui e voltasse para aquela mesa, poderia abrir os olhos e descobrir que uma noite havia passado, talvez mais... Algo de feio e desastroso como a morte de Aaron a apanharia novamente de surpresa para lhe dizer, "Acorde, eles precisam de você. Você sabe o que deve fazer". Será que Aaron teria estado ali por um átimo de segundo, desencarnado e misericordioso, a sussurrar no seu ouvido? Não, não havia sido nada tão claro ou pessoal.

Ela olhou para o marido. O homem descansado na cadeira, esmagando a triste lata de cerveja até transformá-la num objeto redondo e quase chato, com o olhar ainda pousado nas janelas.

Ele era tanto maravilhoso quanto temível, para ela indescritivelmente atraente. E a verdade medonha e vergonhosa era que seu amargor e seu sofrimento o deixavam ainda mais bonito. Era como uma pátina fantástica. Ele não parecia agora tão inocente, tão diferente do homem que realmente era no íntimo. Não, seu íntimo havia se infiltrado pela beleza da pele, mudando totalmente sua textura. Ele emprestara uma leve ferocidade ao seu rosto, bem como muitas sombras delicadas e inconstantes.

Cores entristecidas. Ele lhe dissera algo uma vez sobre cores entristecidas, nos tempos luminosos de recém-casados, antes que soubessem que seu filho não era humano. Ele dissera que na época vitoriana, quando pintavam as casas, usavam-se cores "entristecidas". Isso significava um certo escurecimento das cores; cores abrandadas, sombrias, complexas. As casas vitorianas em todos os Estados Unidos haviam sido pintadas dessa forma. Era isso o que dissera. E ele adorava tudo aquilo, aqueles vermelhos acastanhados, verdes puxados para o oliva e tons azulados de cinza. Mas aqui era preciso criar um outro termo para esse crepúsculo cinzento, para o verde profundamente sombrio, os tons da escuridão que pairavam em torno da casa lilás com suas venezianas pintadas de cor clara.

Ela agora estava pensando se ele não estaria "entristecido". Era isso o que lhe havia ocorrido? Ou será que ela teria de encontrar uma outra palavra para a expressão mais sinistra porém mais audaciosa nos seus olhos, para a forma pela qual seu rosto revelava agora tão pouco à primeira vista, e no entanto não ficava, nem por um instante, feio ou cruel.

Ele se voltou para ela, com os olhos mudando de direção e a atingindo como faróis. Clique. Azuis, e o sorriso quase ali. Faça isso de novo, pensou ela quando ele desviou o olhar. Dê um olhar desses para mim. Volte para mim esses olhos grandes, azuis e realmente deslumbrantes por um momento. Seria uma vantagem ter olhos daqueles?

Ela estendeu a mão e tocou a sombra de barba no seu rosto, no seu queixo. Sentiu-a no pescoço e depois tocou seus finos cabelos negros e todo o cabelo grisalho mais novo e mais grosso, enfiando os dedos nas mechas.

Ele manteve o olhar fixo à frente como se estivesse chocado e então, com muito cuidado, quase sem mexer com a cabeça, voltou os olhos para olhar para ela.

Ela recolheu a mão, levantando-se ao mesmo tempo, e ele se levantou junto com ela.

Havia quase um espasmo na mão de Michael quando ele lhe segurou o braço. Quando ele afastou a cadeira para não atrapalhar o caminho, ela deixou seu corpo roçar no dele.

Subiram as escadas em silêncio.

O quarto estava como estivera todo esse tempo, muito sereno e exageradamente aquecido, talvez, com a cama nunca feita, mas só arrumada para dormir de tal modo que ela pudesse a qualquer momento voltar para ela.

Ela fechou a porta e a trancou por dentro. Ele já estava tirando o paletó. Ela abriu a blusa, puxando-a de dentro da saia com uma das mãos para tirá-la e a deixar cair ao chão.

— A operação que fizeram — disse ele. — Achei que talvez...

— Não, eu estou curada. É o que quero fazer.

Ele se aproximou e a beijou no rosto, virando-lhe a cabeça enquanto a beijava. Ela sentia a aspereza ardente da barba, a aspereza das mãos que puxavam seu cabelo com um pouco de força enquanto levavam sua cabeça para trás. Ela estendeu as mãos e começou a puxar a sua camisa.

— Tire essa camisa — disse ela.

Quando ela abriu o zíper, a saia caiu aos seus pés. Como estava magra. Mas ela não estava ligando para si mesma, nem queria se ver. Queria vê-lo. Ele agora estava nu, e duro. Ela estendeu a mão, agarrou os pêlos negros e crespos no seu peito e lhe beliscou os mamilos.

— Ai, foi com força demais — murmurou ele. Ele a puxou para si, forçando-lhe os seios contra os pêlos. A mão de Rowan subiu-lhe entre as pernas, sentindo-o duro e pronto.

Ela o puxava enquanto subia na cama, atravessando-a de joelhos e depois se deixando cair no lençol fresco de algodão para sentir seu peso descer desajeitado sobre ela. Meu Deus, esse homenzarrão a esmagá-la de novo, esse emaranhado de pêlos entre nós, esse cheiro bom do corpo e de perfumes finos, esse divino sexo que pulsa e arranha.

— Vem, rápido — disse ela. — Na segunda vez, a gente vai devagar. Vem me inundar.

Mas ele não precisava ser atiçado.

— Vem fundo! — murmurou ela entre dentes.

O pau a penetrou, com seu tamanho a chocando, machucando, ferindo. A dor era maravilhosa, delicada, perfeita. Ela o apertou o melhor que pôde, com seus músculos fracos, doloridos e sem obedecer ao seu comando, traída pelo próprio corpo machucado.

Não importava. Ele a invadia com violência, e ela gozou, sem dar sinal com gritos ou suspiros. Estava ali sem pensar, corada, com os braços abertos que depois o abraçaram com toda a força, abraçaram a própria dor, enquanto ele continuava a penetrá-la e depois se exauria em grandes movimentos espasmódicos que pareciam elevá-lo de cima dela e depois abandoná-lo para que ele caísse nos seus braços, suado, conhecido e amado. Amado com desespero. Michael.

Ele rolou para o lado. Não conseguiria repetir a dose tão cedo. Era de se esperar. Seu rosto estava úmido, com o cabelo colado à testa. Ela ficou deitada imóvel no ar refrescante do quarto, descoberta, a observar o lento movimento das pás do ventilador junto ao teto.

O movimento era tão lento. Talvez ele a estivesse hipnotizando. Acalme-se, disse ela ao próprio corpo, ao ventre, ao eu interior. Ela como que sonhou, temerosa, revivendo os momentos nos braços de Lasher e, felizmente, considerou-os insuficientes. Um deus selvagem e lascivo, é, ele poderia ter parecido ser isso. Mas este aqui era um homem, um homem brutal com um coração imenso e amoroso. Era tão divina essa sua crueza, esse seu jeito rude, tão perfeitamente deslumbrante, contundente e simples.

Ele saiu da cama. Rowan tinha certeza de que ele dormiria, e ela própria sabia que não conseguiria dormir.

Mas ele já estava de pé e se vestia, apanhando roupas limpas nos cabides do closet do banheiro. Estava de costas para ela e, quando se voltou, a luz do banheiro lhe iluminou o rosto.

— Por que você fez aquilo? Por que foi embora com ele? — Sua voz era um rugido.

— Pssssiuuu! — Ela se sentou na cama e levou o dedo aos lábios. — Não traga todos para cá. Não faça com que venham. Odeie-me se quiser...

— Odiar você? Meu Deus, como você pode me dizer uma coisa dessas? Entra dia, sai dia, sempre lhe digo que a amo! — Ele veio na direção dela e pôs as mãos com firmeza no pé da cama. Olhou ameaçador para ela, horrivelmente lindo na sua fúria. — Como pôde me deixar daquele jeito? — Ele sussurrou o grito. — Como!

Deu a volta pelo lado e de repente agarrou-a pelos braços nus, com os dedos machucando sua pele de uma forma insuportável.

— Não faça isso! — gritou ela, esforçando-se para manter a voz baixa, sabendo como soava feia, como estava cheia de pânico. — Não bata em mim, estou lhe avisando. — Era isso o que ele fazia, o que fazia o tempo todo sem parar. — Eu o mato se bater em mim.

Ela conseguiu se soltar e rolou para o lado, caindo da cama e seguindo rápido para o banheiro, onde o piso de mármore frio gelou seus pés descalços.

Matá-lo! Droga, se você não se controlar, é o que vai fazer. Com todo o seu poder, vai matar Michael!

Quantas vezes ela experimentara com Lasher, cuspindo nele, com o ódio mesquinho, matá-lo, matá-lo, matá-lo, e ele só ria. Bem, esse homem aqui morreria se ela atacasse com sua fúria invisível. Ele morreria tanto quanto os outros que ela havia matado: os assassinatos imundos e espantosos que haviam caracterizado sua vida, trazendo-a a esta casa, a este momento.

Pavor. O silêncio, a mudez do quarto. Ela se voltou devagar, olhou pela porta e o viu parado ao lado da cama, só a observá-la.

— Eu deveria ter medo de você — disse ele. — Mas não tenho. Só tenho medo de uma coisa. Que você não me ame.

— Ai, mas eu amo. Sempre amei. Sempre.

Seus ombros encurvaram-se por um instante, só por um instante, e então ele lhe virou as costas. Estava tão magoado, mas nunca mais teria a aparência vulnerável de antes. Nunca mais teria aquela docilidade pura.

Havia uma poltrona junto à janela que dava para a sacada, e ele pareceu encontrá-la às cegas e optar por ela desanimado ao se sentar, ainda de costas para ela.

E eu estou a ponto de magoá-lo mais uma vez, pensou ela.

Ela quis ir até ele, conversar com ele, abraçá-lo novamente. Conversar do jeito que conversaram naquele primeiro dia em que ela despertara e enterrara sua filha única, a única filha que um dia teria, à sombra do carvalho. Queria começar agora com o entusiasmo afetuoso que sentira naquela hora, o amor por inteiro, irrefletido, precipitado e sem a menor cautela.

No entanto, isso agora parecia estar tão fora do seu alcance quanto a fala havia estado logo em seguida.

Ela ergueu as mãos e as passou com força pelo cabelo. Depois, mecanicamente, procurou as torneiras do chuveiro.

Com a água jorrando, pôde pensar, talvez com clareza, pela primeira vez. O barulho era agradável, e a água quente, deliciosa.

Parecia haver uma quantidade impossível de vestidos entre os quais escolher. Era absolutamente desnorteante que houvesse tantos nos closets. Ela afinal encontrou um par de calças de lã macia, calças velhas que haviam sido suas há séculos em San Francisco, e as vestiu, pondo por cima um suéter de algodão largo e enganosamente pesado.

Estava bastante fresco agora para uma noite de primavera. E era gostoso estar novamente usando as roupas de que gostava. Perguntava-se quem poderia ter comprado todos aqueles vestidos bonitinhos.

Escovou os cabelos e fechou os olhos, pensando, "Você vai perdê-lo, com razão, se não conversar com ele agora, se não explicar mais uma vez, se não lutar contra seu próprio medo instintivo das palavras e for até ele".

Ela largou a escova. Ele estava parado junto ao portal. Ela não havia fechado a porta esse tempo todo e, quando olhou para ele, a expressão de tranqüila aceitação no seu rosto foi para ela um grande alívio. Quase chorou. Mas isso teria sido de um egoísmo ridículo.

— Amo você, Michael. Isso eu poderia gritar aos quatro ventos. Nunca deixei de amá-lo. Foi vaidade e foi onipotência. E o silêncio, o silêncio foi a impossibilidade de uma alma se curar e se fortalecer, ou talvez apenas o retiro necessário que a alma procurou, como se fosse um organismo egoísta.

Ele ouvia atento, com um leve franzir do cenho, com o rosto calmo mas jamais inocente como costumava ser antes. Os olhos eram enormes e brilhantes, mas duros e sombreados de tristeza.

— Rowan, não sei como pude tê-la machucado agora mesmo. Realmente não sei. Simplesmente não sei...

— Michael, não...

— Não, deixe-me falar. Sei o que aconteceu com você. Sei o que ele fez. Eu sei. E não sei como pude ter posto a culpa em você, ter-me zangado com você, tê-la machucado desse jeito, não sei!

— Michael, eu sei. Não fale assim. Não fale, ou vai me fazer chorar.

— Rowan, eu o destruí — disse ele. Ele baixara a voz a um sussurro, como tantas pessoas fazem ao falar da morte. — Eu o destruí, e isso não basta! Eu... eu...

— Não, não diga mais nada. Perdoe-me, Michael, perdoe-me para o seu bem e para o meu bem. Perdoe-me. — Ela se inclinou para a frente e o beijou, tirando-lhe o fôlego deliberadamente para que ele se calasse. E dessa vez, quando ele a envolveu nos braços, foi com a antiga delicadeza, com o velho carinho afetuoso, a enorme doçura protetora que fazia com que ela se sentisse segura, segura como quando eles fizeram amor pela primeira vez.

Devia existir alguma coisa mais adorável do que cair nos seus braços desse jeito, mais adorável do que estar simplesmente perto dele. Agora, no entanto, ela não conseguia imaginar o que seria. Certamente não a violência da paixão. Era óbvio que essa também existia, para ser apreciada repetidamente, mas aqui havia algo que ela jamais conhecera com outro ser humano na terra!

Afinal, ele se afastou, segurando-lhe as duas mãos, a beijá-las, e depois dando seu belo sorriso de menino, exatamente aquele que ela imaginara ter certeza de que nunca mais veria. Ele piscou então e falou, com a voz embargada.

— Você ainda me ama de verdade, querida?

— Amo — disse ela. — Parece que aprendi a amá-lo um dia, e que vai ter de ser para sempre. Venha comigo, vamos lá para fora, para a sombra do carvalho. Quero ficar um pouco perto deles, não sei por quê. Você e eu, só nós dois sabemos que eles estão ali juntos.

Eles desceram sorrateiros pela escada dos fundos, passando pela cozinha. O segurança junto à piscina fez apenas um cumprimento com a cabeça. Estava escuro no quintal quando eles encontraram a mesa de ferro. Ela se jogou contra ele, e ele a amparou. É só por enquanto, e depois você vai me odiar de novo, pensou ela.

É, vai me desprezar. Ela beijou seu cabelo, seu rosto, esfregou a testa de um lado para o outro na barba áspera. Sentia seus suspiros discretos e receptivos, densos, profundos, de dentro do peito.

Você vai me desprezar, pensou ela. Mas quem mais pode ir atrás dos homens que mataram Aaron?

 

O AVIÃO ATERRISSOU no aeroporto de Edimburgo às onze da noite. Ash estava cochilando, com o rosto encostado na janela. Ele viu os faróis dos automóveis que se aproximavam cada vez mais, os dois pretos, os dois alemães: sedãs que levariam a ele e a seu pequeno séquito pelas estradas estreitas até Donnelaith. Não se tratava mais de uma trilha que se precisasse vencer a cavalo. Ash ficava feliz com isso, não porque não gostasse dessas viagens pelas montanhas perigosas, mas porque queria chegar ao próprio vale com a maior rapidez possível.

A vida moderna tornou a todos impacientes, pensou ele em silêncio. Quantas vezes na sua vida longuíssima ele não partira com destino a Donnelaith, determinado a visitar o local das suas perdas mais trágicas e a reexaminar mais uma vez seu destino? Houve épocas em que levara anos para chegar à Inglaterra e depois seguir para o norte, para as montanhas da Escócia. Em outras ocasiões, havia sido questão de meses.

Agora, a viagem era algo que se completava em horas. E isso o alegrava. Pois ir até lá nunca havia sido a parte difícil ou catártica. A própria visita, sim.

Ele se levantou agora quando essa jovem hesitante, Leslie, que viera com ele dos Estados Unidos, lhe trouxe o casaco, um cobertor dobrado e também um travesseiro.

— Está com sono, minha querida? — perguntou ele, com uma censura delicada. Os criados na América costumavam desconcertá-lo. Faziam coisas estranhíssimas. Ele não teria ficado surpreso se ela tivesse trocado de roupa e vestido uma camisola.

— São para o senhor, Sr. Ash. A viagem é de quase duas horas. Achei que o senhor poderia querer.

Ele sorriu enquanto passava por ela. Como deveriam ser para ela, perguntou-se, essas viagens noturnas a locais distantes? A Escócia deveria ser como qualquer outro lugar para onde ele a havia arrastado, a ela ou a seus outros auxiliares. Ninguém podia adivinhar o que isso significava para ele.

Quando ele pôs o pé na escada metálica, o vento o tomou de surpresa. Aqui fazia ainda mais frio do que em Londres. Na realidade, sua viagem o levara de um cinturão de frio intenso a outro e a mais outro. E, com uma ansiedade infantil e tristeza superficial, ele sentiu saudades do calor do hotel em Londres. Pensou no cigano a dormir tão lindo no travesseiro, magro e moreno, com uma boca cruel e sobrancelhas e cílios muito negros que se curvavam para cima, como os de uma criança.

Ele cobriu os olhos com as costas da mão e se apressou a descer a escada e entrar no carro.

Por que as crianças tinham cílios tão grandes? Por que elas os perdiam mais tarde? Será que precisavam dessa proteção adicional? E como seria com o Taltos? Ele não conseguia se lembrar de nada que tivesse conhecido, intrinsecamente, como infância. Sem dúvida, existia um período semelhante para o Taltos.

— Conhecimento perdido... — Essas palavras lhe haviam sido ditas tantas vezes. Ele não se lembrava de alguma época em que não as conhecesse.

Isso era no fundo uma agonia, essa sua volta, essa recusa a dar um passo adiante sem uma amarga consulta a sua alma plena.

Alma. Você não tem alma, ou foi o que lhe disseram.

Através da vidraça escura, ele viu a jovem Leslie entrar no assento do passageiro à sua frente. Ficou aliviado por ter o compartimento traseiro só para si, pelo fato de terem encontrado dois automóveis para levá-lo e a sua pequena comitiva até o norte. Teria sido insuportável estar agora sentado ao lado de um ser humano, ouvir tagarelice humana, sentir o cheiro de uma mulher robusta, tão jovem e tão doce.

Escócia. Sinta o cheiro das florestas. O cheiro do mar no vento.

O automóvel saiu sem solavancos. Motorista experiente. Ele ficava grato. Não poderia ter sido jogado de um lado para o outro dali até Donnelaith. Por um átimo, viu o reflexo ofuscante dos faróis atrás dele, os guarda-costas a acompanhá-lo, como sempre.

Abateu-se sobre ele uma terrível premonição. Por que se expor a essa tortura? Por que ir a Donnelaith? Por que escalar a montanha e visitar esses santuários do passado mais uma vez? Ele fechou os olhos e viu por um segundo a brilhante cabeleira vermelha da bruxinha que Yuri amava como se fosse um menino de tão tolo. Viu seus olhos verdes e duros a encará-lo dali da fotografia, desmentindo seus cabelos de menininha com a fita de cor vibrante. Yuri, você é um bobo.

O automóvel ganhou velocidade.

Ele não conseguia ver nada, pelo vidro profundamente escurecido. Era lamentável. Decididamente irritante. Nos Estados Unidos, os seus próprios carros não tinham janelas escurecidas. A privacidade jamais havia sido uma preocupação para ele. Já ver o mundo nas suas cores naturais, isso era algo de que ele precisava, como precisava do ar e da água.

Ah, mas talvez ele pudesse dormir um pouco, sem sonhar. Surpreendeu-o uma voz: a da moça, vindo pelo alto-falante do teto.

— Sr. Ash, liguei para a estalagem. Estão preparados para sua chegada. Quer parar por algum motivo agora?

— Não, quero apenas chegar lá, Leslie. Acomode-se com o cobertor e o travesseiro. A viagem é longa.

Ele fechou os olhos, mas o sonho não veio. Essa seria uma dessas viagens em que ele sentiria cada minuto e cada irregularidade na estrada.

Então, por que não voltar a pensar no cigano? No seu rosto magro, moreno, no brilho dos seus dentes mordendo o lábio, tão brancos e perfeitos, dentes de homens modernos. Um cigano rico, talvez. Uma bruxa rica, isso lhe ficara claro durante a conversa. Com a imaginação ele estendeu a mão para o botão da sua blusa branca na fotografia. Abriu-a para ver seus seios. Deu-lhes bicos rosados e tocou as veias azuis por baixo da pele, que tinham de estar lá. Suspirou, deu um assobio baixo por entre os dentes e voltou a cabeça para o lado.

O desejo era tão doloroso que ele se forçou a combatê-lo, a deixar que passasse. Viu, então, o cigano mais uma vez. Viu seu longo braço moreno jogado sobre o travesseiro. Sentiu novamente o cheiro dos bosques e do vale que estava impregnado no cigano.

— Yuri — murmurou ele na sua fantasia, e virou o rapaz de lado para beijá-lo na boca.

Essa também era uma tremenda fornalha. Sentou-se mais para a frente, com os cotovelos nos joelhos e o rosto nas mãos.

— Música, Ash — disse ele, baixinho. E, recostando-se novamente, com a cabeça encostada na janela, os olhos dilatados, lutando para ver através do horrível vidro escurecido, ele começou a cantar para si mesmo com uma voz fraquinha, num ínfimo falsete, uma canção que ninguém compreenderia a não ser Samuel, e era possível que nem Samuel a conhecesse ao certo.

 

Eram duas da madrugada quando ele disse ao motorista que parasse. Não podia continuar. Do lado de fora do vidro escurecido, estava o mundo inteiro que ele viera ver aqui. Não podia esperar mais.

— Estamos quase chegando, senhor.

— Eu sei. Vocês encontrarão a cidadezinha apenas alguns quilômetros adiante. Devem ir direto para lá. Acomodem-se na estalagem e esperem por mim. Agora, chamem os seguranças no carro atrás do nosso. Digam-lhes que os acompanhem. Eu preciso ficar aqui sozinho agora.

Não esperou pelos inevitáveis protestos ou argumentações.

Saiu do carro, batendo a porta antes que o motorista pudesse vir ajudá-lo e, com um pequeno aceno simpático, cruzou rapidamente a borda da estrada e penetrou na floresta fria e densa.

O vento agora não estava forte. A lua, emaranhada nas nuvens, lançava uma luz intermitente e diáfana. Descobriu-se envolto pelas fragrâncias dos pinheiros, da terra fria e dura aos seus pés, das corajosas folhas do primeiro capim da primavera, esmagadas pelos seus sapatos, do suave perfume de flores novas.

As cascas das árvores pareciam agradáveis aos seus dedos.

Por muito tempo, ele prosseguiu no escuro, às vezes tropeçando, às vezes agarrando-se ao grosso tronco de uma árvore para se equilibrar. Não parava para recuperar o fôlego. Conhecia essa subida. Conhecia as estrelas lá em cima, muito embora as nuvens procurassem escondê-las.

Na realidade, o céu estrelado provocava nele uma emoção estranha, dolorida. Quando afinal parou, foi num cimo alto. Suas pernas compridas doíam um pouco, como as pernas talvez devessem doer. Mas neste lugar sagrado, neste lugar que significava mais para ele do que qualquer outro pedaço de terra do planeta, ele se lembrou de uma época em que seus membros não teriam doído, em que ele poderia ter subido correndo a encosta a passos largos.

Não importava. O que era uma dorzinha? Ela lhe proporcionava uma idéia da dor dos outros. E os humanos sofriam dores tão terríveis. Pense só no cigano dormindo na cama quentinha, sonhando com a sua bruxa. E a dor era dor, fosse física fosse mental. Nem o mais sábio dos homens, das mulheres ou dos Taltos jamais saberia o que era pior, a dor do coração ou a dor da carne.

Voltou-se, afinal, e procurou um terreno ainda mais alto, subindo firme a encosta mesmo quando ela parecia impossível de tão íngreme, muitas vezes procurando se agarrar a galhos e a rochas firmes para ajudar na escalada.

O vento ganhou força mas não muita. Suas mãos e seus pés estavam frios, mas não era um frio que ele não pudesse suportar. Na realidade, o frio sempre fora revigorante para ele.

E de fato, graças a Remmick, ele estava com seu casaco de gola de pele; graças a si mesmo, estava usando roupas quentes de lã; graças a Deus, talvez, a dor nas suas pernas não estava pior, apenas um pouco mais irritante.

O chão esboroou-se um pouco, mas as árvores eram como uma alta balaustrada que o protegia, permitindo que prosseguisse rapidamente.

Finalmente, ele se voltou e encontrou o caminho que sabia estar ali, que subia serpenteando entre duas encostas suaves onde as árvores eram antigas, intactas, talvez poupadas por todos os intrusos há séculos.

A trilha descia para um pequeno vale coberto de pedras pontiagudas que lhe machucaram os pés e fizeram com que perdesse o equilíbrio mais de uma vez. E então voltou a subir, calculando a encosta totalmente impossível, a não ser pelo fato de já ter subido por ali antes e saber que sua vontade superaria a evidência dos seus sentidos.

Acabou por emergir numa pequena clareira, com os olhos fixos no pico altíssimo e distante. As árvores estavam tão próximas que lhe era difícil agora encontrar a trilha ou qualquer lugar onde pudesse pisar. Prosseguiu, esmagando os arbustos mais baixos à medida que andava. E, quando se voltou para a direita, viu lá embaixo ao longe, para além de uma imensa e profunda fissura, as águas do braço de mar, brilhando à luz pálida da lua, e ainda mais distantes as ruínas altas e esqueléticas de uma catedral.

Perdeu o fôlego. Não sabia que haviam avançado tanto na reconstrução. Ao fixar os olhos no desenho lá embaixo, distinguiu todo o projeto em forma de cruz da igreja, ou foi o que lhe pareceu, e uma quantidade de tendas e prédios atarracados, bem como algumas luzes trêmulas que não eram mais do que pontas de alfinetes. Descansou encostado na rocha, abrigado em segurança, como que espionando esse mundo, sem nenhum perigo de tropeçar e cair.

Ele sabia o que era isso, cair sem parar, procurar se segurar, gritar e ser incapaz de impedir a queda, com o corpo indefeso ganhando peso e velocidade a cada metro acidentado do terreno dali para baixo.

Seu casaco estava rasgado. Os sapatos, molhados com a neve.

Por um instante, todos os cheiros dessa terra o envolveram e o dominaram de tal forma que ele sentiu um prazer erótico atravessá-lo, tomar seu sexo e transmitir ondas de puro prazer por toda a sua pele.

Fechou os olhos e deixou que o vento suave e inofensivo lhe afagasse o rosto, lhe esfriasse os dedos.

Está perto, muito perto. Tudo o que tem a fazer é prosseguir subindo e dar a volta diante do penedo cinzento que pode ver, agora que a lua está descoberta. Num momento, as nuvens podem voltar a encobrir a luz, mas não será menos fácil para você.

Um som distante chegou-lhe aos ouvidos. Por um momento, pensou que talvez o estivesse imaginando. Mas lá estava ele, o batuque baixo dos tambores e o guincho agudo e monótono das gaitas, sinistro e sem nenhum ritmo ou melodia que ele pudesse discernir, que provocou nele um súbito pânico e depois uma ansiedade surda, latejante. O barulho ficou mais intenso, ou melhor, ele se permitiu ouvi-lo com maior fidelidade. O vento cresceu e depois sumiu. Os tambores vinham fortes das encostas lá embaixo, com as gaitas a guinchar, e mais uma vez ele procurou discernir a melodia. Não encontrando nenhuma, ele trincou os dentes e apertou a base da palma da mão contra o ouvido direito para finalmente impedir a entrada do som.

A gruta. Siga em frente. Suba e entre nela. Vire as costas aos tambores. O que representam os tambores para você? Se eles soubessem que você está aqui, será que tocariam uma canção de verdade para atraí-lo? Será que eles ainda conhecem as canções?

Ele prosseguiu a subida e, dando a volta ao penedo, sentiu com as duas mãos a superfície fria da pedra. Uns seis metros adiante, talvez mais, ficava a entrada da gruta, coberta de mato, talvez oculta de qualquer outro alpinista. Mas ele conhecia as formações aleatórias das pedras acima dela. Subiu um pouco mais, com um passo pesado e íngreme após o outro. O vento assobiava aqui entre os pinheiros. Ele empurrou o mato cerrado, deixando que os pequenos ramos lhe arranhassem as mãos e o rosto. Não se importava. Afinal, penetrou na própria escuridão. E se jogou contra a parede, com a respiração pesada e os olhos fechados mais uma vez.

Nenhum som chegava a ele de lá das profundezas. Só o vento cantava como antes, ocultando misericordiosamente os tambores distantes se é que, de fato, eles ainda estavam fazendo sua algazarra feia e medonha.

— Estou aqui — sussurrou ele. E o silêncio recuou de um salto, recolhendo-se talvez para as próprias profundezas da gruta. No entanto, não houve resposta. Ele ousaria pronunciar o nome dela?

Deu um passo tímido e mais outro. Prosseguiu, com as duas mãos sobre as paredes próximas, com o cabelo roçando no teto acima, até a passagem se ampliar e o próprio eco dos seus passos lhe dizer que o teto acima dele estava agora numa nova altura. Ele nada via.

Por um instante, o medo o atingiu. Talvez ele estivesse vindo de olhos fechados; não sabia. Talvez tivesse deixado que suas mãos e ouvidos o guiassem. E agora, ao abrir os olhos, ao procurar atrair luz para eles, ele via somente as trevas. Sentiu tanto medo que poderia ter caído. Uma sensação profunda lhe dizia que não estava só. Mas ele se recusava a correr. Ele se recusava a sair apressado como algum passarinho assustado, constrangido, humilhado, talvez até mesmo se ferindo com a pressa.

Ficou firme. A escuridão não apresentava nenhuma variação. O som delicado da sua respiração parecia estar saindo para todo o sempre.

— Estou aqui — murmurou. — Voltei. — As palavras escoavam dele para o nada. — Ah, por favor, mais uma vez, por caridade... — sussurrou.

O silêncio foi a resposta.

Mesmo com esse frio, ele suava. Sentia o suor nas costas por baixo da camisa e em torno da cintura, sob o cinto de couro que lhe apertava as calças de lã. Sentiu a umidade como algo sujo e gorduroso na sua testa.

— Por que eu vim? — perguntou, e dessa vez sua voz estava fraca e distante. Em seguida, ele a levantou o máximo que pôde. — Foi na esperança de que você me tomasse pela mão mais uma vez, como fez antes, e me consolasse! — As palavras infladas, ao desaparecer, deixaram-no abalado.

O que se concentrava nesse lugar não era nenhuma aparição terna, mas as lembranças do vale que nunca poderiam abandoná-lo. A guerra, a fumaça. Ele ouvia os gritos! Ele ouvia a voz dela em meio às próprias chamas.

"... maldito Ashlar!" O calor e a raiva atingiram sua alma como haviam atingido seus tímpanos. Sentiu por um instante o velho pavor, e a antiga convicção.

"... que o mundo desmorone ao seu redor antes que o seu sofrimento termine."

Silêncio.

Ele precisava voltar. Precisava encontrar agora a passagem mais estreita. Cairia se ficasse ali, incapaz de vez, incapaz de fazer qualquer coisa a não ser se lembrar. Em pânico, deu meia-volta e seguiu apressado, até sentir as paredes de pedra, ásperas a se fecharem sobre ele.

Quando afinal viu as estrelas, soltou um suspiro tão profundo que as lágrimas ameaçaram cair. Ficou imóvel, com a mão sobre o coração, e o som dos tambores aumentou, talvez porque o vento tivesse parado novamente e não houvesse nada para impedir sua aproximação. Começara uma cadência, rápida e alegre, que depois voltou a ser lenta, como os tambores que acompanham uma execução.

— Não, afastem-se de mim! — murmurou ele. Precisava escapar desse lugar. De algum modo, sua fama e sua fortuna tinham de ajudá-lo agora a fugir. Não podia ficar sem recursos no alto desse pico, deparando-se com o horror dos tambores, com as gaitas que agora tocavam uma melodia nítida e ameaçadora. Como podia ter sido tão imbecil a ponto de vir? E a gruta vivia e respirava logo atrás do seu ombro.

Socorro! Onde estavam aqueles que obedeciam a cada ordem sua? Havia sido tolo de se separar deles e subir sozinho até esse lugar terrível. A dor que sentia era tão aguda que ele emitiu um ruído, como o de uma criança chorando.

Lá se foi montanha abaixo. Não se importava de tropeçar, de seu casaco se rasgar, de algum galho aqui ou ali prender seu cabelo. Ele o soltava e ia em frente, com as pedras sob seus pés a machucá-lo mas não o impedindo de prosseguir.

Os tambores estavam mais altos. Ele devia passar bem perto. Devia ouvir essas gaitas e sua música pulsante e anasalada, tanto feia quanto irresistível. Não, não preste atenção. Tape os ouvidos. Ele continuava descendo e, apesar de ter as mãos grudadas à cabeça, ainda ouvia as gaitas bem como a cadência antiga e sinistra, lenta e monótona, a bater de repente como se viesse do interior do seu cérebro, como se emanasse dos seus próprios ossos, como se ele estivesse imerso nela.

Deitou a correr, caindo uma vez e rasgando o tecido fino das suas calças. E outra vez tombou para a frente, machucando as mãos nas pedras e nos arbustos quebrados. Prosseguia, no entanto, até que de repente os tambores o cercaram. As gaitas o cercaram. A música penetrante o amarrou como se com voltas de corda, e ele girava sem parar, incapaz de fugir. Quando abriu os olhos, viu através da floresta fechada a luz dos archotes.

Eles não sabiam que ele estava ali. Não haviam captado seu cheiro nem nenhum ruído seu. Talvez o vento estivesse a seu favor, e continuasse com ele agora. Segurou-se no tronco de dois pequenos pinheiros como se eles fossem as grades de uma prisão, e baixou os olhos até o espaço pequeno e escuro em que eles brincavam, dançando no seu círculo pequeno e ridículo. Como eram desajeitados. Como eram horrendos aos seus olhos.

Os tambores e as gaitas faziam um alarido detestável. Ele não conseguia se mexer. Só conseguia ficar observando enquanto eles saltavam, giravam e balançavam de um lado para o outro. Uma pequena criatura, com longos cabelos grisalhos e desgrenhados, entrou na roda e ergueu os braços pequenos e deformados, gritando mais alto do que o barulho da música, na língua antiqüíssima.

— Ó deuses, tende piedade. Tende piedade de vossos filhos perdidos.

Olhe, veja, disse ele com seus botões, embora a música não lhe permitisse articular essas sílabas nem mesmo na imaginação. Olhe, veja, não se entregue à música. Veja os trapos que eles usam agora, as cartucheiras nos seus ombros. Veja as pistolas nas suas mãos, e agora, agora eles sacam suas armas para atirar, e chamas diminutas explodem dos canos! A noite ecoa com as armas! Os archotes quase se apagam com o vento, e depois renascem como flores horripilantes.

Ele sentia o cheiro de carne queimando, mas isso não era real. Era só sua recordação. Ele ouvia berros.

— Maldito seja, Ashlar!

E hinos, ah, sim, hinos e cânticos na nova língua, no idioma dos romanos, e aquele fedor, aquele mau cheiro de carne apodrecida!

Um grito forte e agudo cortou o alarido. A música cessou. Apenas um tambor emitiu talvez mais duas notas surdas.

Ele percebeu que o grito havia sido seu e que eles o ouviram. Corra, mas por que correr? Para quê? Para onde? Você não precisa mais correr. Você não pertence mais a este lugar! Ninguém pode fazer com que pertença.

Ficou observando em frio silêncio, com o coração acelerado, quando a pequena roda de homens se fechou, com os archotes ardendo muito próximos uns dos outros, e o pequeno grupo veio lentamente na sua direção.

— Taltos! — Eles o haviam farejado! O grupo espalhou-se com gritos descontrolados e depois se refez voltando a ser um só corpo.

— Taltos! — exclamou uma voz áspera. Os archotes aproximavam-se cada vez mais.

Agora, ele podia ver seus rostos com nitidez enquanto eles se posicionavam à sua volta, olhando atentos para cima, segurando os archotes no alto, com as chamas criando sombras feias nos seus olhos, nas suas faces e nas suas bocas. E o cheiro, o cheiro da carne queimada, vinha dos archotes!

— Meu Deus, o que andaram fazendo! — exclamou ele, sibilando e cerrando os punhos. — Vocês as mergulharam na gordura de uma criança pagã?

Veio uma risadaria estridente e descontrolada, mais outra e afinal toda uma muralha de barulho que subia ao seu redor a cercá-lo. Ele girava para um lado e para o outro.

— Desprezíveis! —disse ele, sibilando mais uma vez, tão furioso que não estava se importando nem um pouco com a sua própria dignidade, ou com as inevitáveis contorções do seu rosto.

— Taltos — disse um que se aproximou mais. — Taltos.

Olhe para eles. Veja o que são. Ele retesou ainda mais os punhos, preparado para rechaçá-los, para espancá-los, erguê-los e atirá-los para a direita e para a esquerda, se necessário.

— É, Aiken Drumm! — exclamou, reconhecendo o velho, com a barba grisalha caindo até o chão como um musgo sujo. — E Robin e Rogart, eu os estou vendo.

— É, Ashlar!

— É, Fyne e Urgart. Eu o estou vendo, Rannoch! — E só então ele percebeu. Não restava nenhuma mulher entre eles! Todos os rostos que o encaravam eram de homens, homens que ele sempre conhecera, e não havia nenhuma megera, nenhuma megera a berrar com os braços estendidos. Não havia mais nenhuma mulher entre eles!

Começou a rir. Seria isso verdade mesmo? Sim, era! Ele avançou, tateando, forçando-os a recuar. Urgart brandiu o archote perto dele, para atingi-lo ou para iluminá-lo melhor.

— Aaaaaah, Urgart! — gritou ele e estendeu a mão, ignorando o fogo, como se quisesse agarrar o homenzinho pelo pescoço e erguê-lo do chão.

Com gritos guturais, eles se espalharam, enlouquecidos, na escuridão. Homens, somente homens. Homens, e não mais do que catorze, no máximo. Só homens. Ora, por que cargas d'água Samuel não lhe contara?

Ele foi caindo lentamente de joelhos. Riu. E se deixou tombar de lado sobre o chão da floresta, para poder olhar para cima e ver, através dos ramos rendados dos pinheiros, as estrelas maravilhosamente salpicadas acima do algodão das nuvens, e a lua a navegar delicada na direção norte.

Mas ele devia ter sabido. Devia ter calculado. Devia ter concluído da última vez que viera, e as mulheres eram velhas e enfermas, jogavam pedras nele e se aproximavam às pressas para berrar no seu ouvido. Sentira o cheiro da morte em tudo à sua volta. Ele o sentia agora, mas não era o cheiro de sangue das mulheres. Era o cheiro seco e ácido dos homens.

Virou-se e repousou o rosto direto na terra. Seus olhos fecharam-se novamente. Ele os ouvia correndo à sua volta.

— Onde está Samuel? — perguntou um deles.

— Diga a Samuel que volte.

— Por que veio aqui? Está livre da maldição?

— Não me falem da maldição! — exclamou. Sentou-se, rompido o encantamento. — Não me dirijam a palavra, sua corja! — E dessa vez ele conseguiu agarrar, não um homenzinho, mas seu archote. E, segurando a chama bem perto, sentiu o cheiro inconfundível de gordura humana queimando. Jogou o archote fora, enojado.

— Que vão para o inferno, peste maldita!

Um deles lhe beliscou a perna. Uma pedra atingiu seu rosto, mas o corte não foi fundo. Varas foram atiradas na sua direção.

— Onde está Samuel?

— Foi Samuel quem o mandou para cá?

E em seguida a risada forte de Aiken Drumm, superando a voz de todos.

— Nós tínhamos um cigano delicioso para o jantar, se tínhamos, até Samuel levá-lo para Ashlar!

— Onde está o nosso cigano? — berrou Urgart.

Risos. Gritos e berros de deboche; gargalhadas e maldições em seguida.

— Que o demônio o leve para casa em pedacinhos! — gritou Urgart. Os tambores haviam recomeçado. Eram tocados com os punhos fechados, e uma série tresloucada de notas saiu das gaitas.

— E vocês, todos vocês, que vão para o inferno — gritou Ash. — Por que não os mando para lá agora mesmo?

Ele se voltou e correu de novo, a princípio sem certeza da direção. Mas a subida havia sido constante, e essa foi sua melhor orientação. E, nos rangidos dos sapatos, nos estalidos do mato e no ar que passava rápido por ele, ele estava a salvo dos tambores, das gaitas, das zombarias.

Logo, logo, ele já não ouvia sua música ou suas vozes. Afinal, soube que estava só.

 

Ofegante, com uma dor no peito, com as pernas e os pés doendo, ele caminhou devagar até que, depois de muito tempo, chegou à estrada e pisou no asfalto como se tivesse saído de um sonho e agora estivesse no mundo conhecido, por mais vazio, frio e silencioso que fosse. As estrelas enchiam todos os quadrantes do firmamento. A lua afastou seu véu e depois voltou a baixá-lo, enquanto a brisa suave fazia com que os pinheiros tremulassem de uma forma quase imperceptível, e o vento descia com força como se quisesse instigá-lo a prosseguir.

Quando chegou à estalagem, Leslie, sua pequena auxiliar, estava acordada à sua espera. Com um gritinho de espanto, ela o cumprimentou e rapidamente apanhou o casaco rasgado. Ela segurava sua mão enquanto os dois subiam pela escada.

— Ai, aqui está tão agradável, um calor tão bom.

— Está, senhor, e o seu leite. — Lá estava o copo alto junto à cama. Ele o bebeu. Ela estava desabotoando sua camisa.

— Obrigado, minha querida, minha pequena — disse ele.

— Durma, Sr. Ash.

Ele caiu pesadamente sobre a cama e sentiu o grande edredom de plumas que o cobria, o travesseiro fofo sob seu rosto, a cama inteira terna e macia ao atraí-lo, girá-lo na primeira volta do sono e puxá-lo para baixo.

O vale, meu vale, o loch, meu loch, minha terra.

Traidor do seu próprio povo.

 

Pela manhã, tomou um desjejum rápido no quarto enquanto sua equipe se preparava para um retorno imediato. Não, ele não ia descer para ver a Catedral dessa vez, disse ele. E sim, ele havia lido os artigos nos jornais. Santo Ashlar, é, eleja conhecia essa história também. E a jovem Leslie estava tão intrigada.

— Quer dizer, senhor, que não foi por esse motivo que viemos aqui? Não foi para ver o túmulo do santo?

Ele apenas deu de ombros.

— Um dia voltaremos, minha cara.

Quem sabe numa outra vez eles não dariam aquele pequeno passeio?

Antes do meio-dia, já estava aterrissando em Londres.

 

Samuel o esperava ao lado do carro. Estava decentemente trajado no seu terno de tweed, com uma camisa branca, nova e engomada, e gravata. Parecia um cavalheiro minúsculo. Até mesmo seu cabelo ruivo estava penteado adequadamente, e seu rosto apresentava a aparência respeitável de um buldogue inglês.

— Você deixou o cigano sozinho?

— Ele foi embora enquanto eu dormia — confessou Samuel. — Eu não o ouvi sair. Ele sumiu por completo. Não deixou nenhuma mensagem.

Ash pensou por algum tempo.

— É provável que não faça diferença — disse ele. — Por que você não me contou que não havia mais mulheres?

— Pateta. Eu não teria permitido que você fosse se houvesse ainda alguma mulher. Você devia saber disso. Você não pensa. Não conta os anos. Não raciocina. Fica brincando com seus brinquedos, com seu dinheiro e com todos os seus belos objetos, e se esquece. Você se esquece, e é por isso que é feliz.

O carro os levou do aeroporto para a cidade.

— Vai voltar para casa, para seu playground nos céus? — perguntou Samuel.

— Não. Você sabe que não. Preciso encontrar o cigano — disse ele. — Preciso descobrir o segredo na Talamasca.

— E a bruxa?

— É claro. — Ash sorriu e se voltou para Samuel. — Preciso encontrar a bruxa, também, talvez. Pelo menos para tocar seus cabelos ruivos, beijar sua pele branca, me inebriar com seu perfume.

— E...?

— Como posso saber, homenzinho?

— Ah, você sabe. Você sabe que sabe.

— Deixe-me, então, em paz. Pois se for para ser, meus dias afinal estarão contados.

 

ERAM OITO HORAS quando Mona abriu os olhos. Ouviu o relógio bater as horas, devagar, em tons profundos, sonoros. Mas foi um outro ruído o que a acordou, o toque estridente de um telefone. Devia estar vindo da biblioteca, calculou ela, e estava muito longe dali e tocando há muito tempo para que ela fosse atender. Virou-se, aconchegando-se no grande sofá de veludo com suas numerosas almofadas soltas e olhou através das janelas para o jardim, que estava imerso no sol da manhã.

Na realidade, o sol entrava pelas janelas, tornando o assoalho lindo e cor de âmbar bem diante da varanda lateral.

O telefone havia parado. Sem dúvida, algum dos novos criados por aqui o atendeu: Cullen, o novo motorista, ou Yancy, o jovem caseiro, que diziam estar de pé já às seis da manhã. Ou quem sabe, até mesmo a velha Eugenia, que encarava Mona com ar tão solene agora, cada vez que seus caminhos se cruzavam.

Mona adormecera aqui ontem à noite, no seu vestido novo de seda, exatamente no sofá do pecado que ela e Michael haviam cometido juntos. E, embora ela se esforçasse ao máximo para sonhar com Yuri, Yuri, que havia ligado e deixado um recado com Celia dizendo que de fato estava bem e que em breve entraria em contato com todos eles, ela se descobrira pensando em Michael, pensando naquelas três transas, em como haviam sido, muito proibidas e talvez a melhor experiência erótica que ela já tivera na vida.

Não que Yuri não tivesse sido maravilhoso, o amante dos seus sonhos. Mas eles dois foram tão cuidadosos um com o outro. Haviam feito amor, sim, mas da maneira mais segura que se possa imaginar. E isso deixara Mona querendo ter sido mais espontânea naquela última noite, quanto aos seus costumeiros desejos desenfreados.

Desenfreada. Ela realmente adorava essa palavra. Combinava com ela. "Você está desenfreada." Era esse o tipo de coisa que Lily ou Celia lhe diriam. E ela lhes respondia, "Agradeço o elogio, mas compreendo aonde quer chegar."

Meu Deus, se ao menos ela tivesse falado pessoalmente com Yuri. Celia lhe dissera que ligasse para a casa de First Street. Por que ele não havia ligado? Ela nunca saberia. Até mesmo o tio Ryan ficara irritado.

— Precisamos falar com esse homem. Precisamos conversar a respeito de Aaron.

E essa era a parte realmente triste, o fato de ter sido Celia quem contara a Yuri, e talvez ninguém mais no mundo, a não ser Mona, soubesse o que Aaron representava para Yuri. Mona, em quem ele confiara, preferindo falar a fazer amor na única noite que conseguiram roubar para si. Onde ele estaria agora? Como estaria? Naquelas poucas horas de troca apaixonada, ele se revelara intensamente emotivo, com os olhos negros cintilando enquanto lhe contava numa linguagem despojada, naquele inglês lindo daqueles para quem ele é uma segunda língua, os acontecimentos principais da sua vida trágica mas de um sucesso surpreendente.

— Simplesmente não se pode dizer uma coisa dessas a um cigano, que seu amigo mais velho foi atropelado por algum louco.

Foi então que lhe ocorreu. O telefone estivera tocando. Talvez tivesse sido Yuri, e ninguém na casa tivesse conseguido encontrá-la. Ninguém chegara a vê-la entrar ali na noite anterior e se jogar no sofá.

É claro que ela estava totalmente fascinada por Rowan, e estivera assim desde o primeiro instante na tarde de ontem quando Rowan se pôs de pé e começou a falar. Por que Rowan lhe pedira que ficasse aqui? O que Rowan tinha a lhe dizer, sozinha e em particular? O que Rowan estaria realmente pretendendo?

Rowan estava bem, disso não tinha dúvida. Ao longo de toda a tarde e da noite, Mona a observara ganhar forças.

Rowan não revelara nenhum sinal de cair de volta no silêncio que a havia confinado durante três semanas. Pelo contrário, assumira facilmente o comando da casa, descendo sozinha ontem à noite, depois que Michael havia adormecido, para consolar Beatrice e convencê-la a subir para dormir no antigo quarto de Aaron. Beatrice relutara em se submeter às "coisas de Aaron", só para acabar confessando que se enrodilhar na cama de Aaron, aqui no quarto de hóspedes, era exatamente o que queria fazer.

— Ela vai sentir o cheiro de Aaron em toda a sua volta — dissera Rowan a Ryan, quase distraída. — E se sentirá segura.

Essa não era uma observação normal, pensara Mona, mas sem dúvida havia esse truque de procurar a cama do parceiro depois de uma morte, e as pessoas comentavam que essa cura para a dor era muito boa. Ryan estava tão preocupado com Bea, tão preocupado com todos. Mas na presença de Rowan, ele mostrava aquele ar de um general, todo seriedade e competência, diante do comandante-em-chefe.

Rowan levou Ryan para a biblioteca e, por duas horas, com a porta aberta para qualquer um que quisesse ficar ali parado ou escutar, eles conversaram sobre tudo, desde os planos da Clínica Mayfair até vários detalhes sobre a casa. Rowan queria ver a ficha médica de Michael. É, ele parecia tão forte agora quanto no dia em que ela o conhecera. Mas precisava ver os dados, e Michael, sem querer brigar, a encaminhara a Ryan.

— E o que dizer da sua própria recuperação? Eles querem que você se apresente para fazer exames, sabe? — dizia Ryan na hora em que Mona entrou para um boa-noite final.

Yuri deixara seu recado em Amelia Street pouco antes da meia-noite, e Mona sentira uma dose suficiente de ódio, amor, paixão, remorso, ansiedade e um nervosismo excruciante para acabar ficando exausta.

— Não tenho tempo para esses exames — dizia Rowan. — Há coisas muito mais importantes. Por exemplo, o que foi encontrado em Houston quando abriram o quarto em que Lasher me mantinha prisioneira?

A essa altura, Rowan parou por ter visto Mona.

Levantou-se como se fosse cumprimentar algum adulto importante. Seus olhos estavam brilhantes agora, e não tão frios quanto sérios, uma distinção realmente crucial.

— Não pretendo perturbar vocês — disse Mona. — Não quero ir para casa em Amelia — prosseguiu, sonolenta. — Eu estava pensando se poderia ficar por aqui...

— Eu gostaria que ficasse — disse Rowan, sem hesitação. — Já a deixei esperando horas.

— Deixou e não deixou — disse Mona, que preferia ter ficado aqui a ficar na sua própria casa.

— É imperdoável — disse Rowan. — Será que podemos conversar amanhã de manhã?

— Claro — disse Mona, exausta, dando de ombros. Ela está falando comigo como se eu fosse uma mulher adulta, pensou Mona, o que é mais do que qualquer um por aqui costuma fazer.

— Você é uma mulher, Mona Mayfair — disse Rowan, com um sorriso repentino, profundamente pessoal. Voltou a se sentar imediatamente e retomou sua conversa com Ryan.

— Devia haver papéis lá, no meu quarto em Houston, resmas de garatujas. Era o que ele escrevia; genealogias que fizera antes de sua memória se deteriorar...

Puxa, pensou Mona, afastando-se o mais devagar que pôde, ela está conversando justamente com Ryan sobre Lasher, e Ryan ainda não consegue pronunciar esse nome. E agora Ryan tem de lidar com provas concretas do que ainda não se dispõe a aceitar. Papéis, genealogias, coisas escritas pelo monstro que matou sua mulher, Gifford.

No entanto, o que Mona percebeu num lampejo foi que ela não ia necessariamente ser excluída de tudo isso. Rowan acabara de voltar a falar com ela como se ela, Mona, fosse importante. Tudo estava mudado. E se Mona perguntasse a Rowan amanhã ou depois o que estava nesses papéis, nessas garatujas de Lasher, Rowan poderia até lhe dizer.

Incrível ter visto o sorriso de Rowan, ter visto o esfacelamento da máscara do poder frio, ter visto os olhos cinzentos se encresparem e cintilarem por um instante, ter ouvido a voz grave de chocolate assumir aquela dose a mais de carinho que um sorriso lhe confere: espantoso.

Mona afinal se apressara a desaparecer. Saia enquanto está na frente. Além do mais, você está com muito sono para poder ficar escutando às escondidas.

A última coisa que ela ouvira foi a voz constrangida de Ryan afirmando que tudo proveniente de Houston havia sido examinado e catalogado.

Mona ainda conseguia se lembrar de quando todas essas coisas haviam chegado à Mayfair & Mayfair. Ela ainda se lembrava daquele cheiro dele que vinha das caixas. Eventualmente, ela ainda captava aquele cheiro na sala de estar, mas agora ele quase não existia mais.

Ela se jogara no sofá da sala de estar, cansada demais para pensar naquilo tudo agora.

Todos os outros já haviam saído àquela altura. Lily dormia no andar superior, perto de Beatrice. A tia Vivian de Michael havia se mudado de volta para seu próprio apartamento em St. Charles Avenue.

A sala de estar estava vazia, com a brisa entrando pelas janelas que davam para a varanda lateral. Lá fora um segurança andava de um lado para o outro, Mona calculara, não preciso fechar essas janelas. E se jogou de bruços no sofá, pensando em Yuri, depois em Michael e, enfiando o rosto no veludo, adormeceu profundamente.

Diziam que, quando se ficava mais velho, não se conseguia dormir desse jeito. Bem, Mona estava pronta para isso. Esse tipo de sono atordoado sempre fazia com que se sentisse frustrada, como se ela se tivesse desligado do universo por um período de tempo que ela própria não podia controlar.

Às quatro, porém, ela acordara, sem certeza do motivo.

As janelas que iam até o chão ainda estavam abertas, e o segurança estava lá fora fumando um cigarro.

Sonolenta, ficou ouvindo os sons da noite, os gritos dos pássaros nas árvores escuras, o ronco distante do trem ao longo da beira-rio, o som da água espirrando num chafariz ou numa piscina.

Ela devia ter ficado ouvindo uma meia hora antes que o ruído da água começasse a atormentá-la. Não havia chafariz nenhum. Alguém nadava na piscina.

Em parte na esperança de ver algum fantasma delicioso, a pobre Stella, por exemplo, ou só Deus sabe que outra aparição, Mona saiu sorrateira e descalça, e cruzou o gramado. O segurança não estava em nenhum lugar visível, mas isso não significava grande coisa numa propriedade daquele tamanho.

Alguém estivera nadando com constância, de um lado para o outro da piscina.

Através dos arbustos de gardênia, Mona viu que era Rowan, nua e se movimentando com uma velocidade incrível, volta após volta. Rowan respirava com regularidade, com a cabeça para o lado, do jeito que nadadores profissionais respiram, ou do jeito de médicas atléticas que querem trabalhar o corpo e condicioná-lo; talvez mesmo curá-lo e trazê-lo de volta à sua plena forma.

Não era hora para perturbá-la, pensou Mona, ainda sonolenta, ansiando por voltar para o sofá, na realidade com tanta preguiça que poderia ter se jogado na grama fresca. No entanto, algo naquela cena a transtornara. Talvez a nudez de Rowan, ou o fato de nadar tão rápido e com tanta constância. Ou talvez ainda a possibilidade de o segurança estar por ali, espiando em meio aos arbustos neste exato momento, o que não agradava a Mona.

Fosse como fosse, Rowan tinha pleno conhecimento dos seguranças na propriedade. Ela passara uma hora com Ryan falando só sobre esse tema.

Mona voltou para dormir.

Agora, no instante em que acordava, era em Rowan que pensava, mesmo antes de invocar o rosto de Yuri, ou de sentir sua culpa rotineira e religiosa quanto a Michael; ou de se fazer lembrar de imediato, mais ou menos como se desse um forte beliscão no braço, de que Gifford e sua mãe estavam mortas.

Ficou olhando para o sol que banhava o piso e a poltrona de damasco dourado, mais próxima da janela. Talvez fosse essa a pura verdade. As luzes como que se apagaram para Mona quando Alicia e Gifford morreram, disso não havia dúvida. E agora, só porque essa mulher sentia interesse por ela, essa mulher misteriosa que significava tanto para ela por inúmeras razões, as luzes brilhavam novamente.

A morte de Aaron havia sido terrível, mas ela podia lidar com isso. Na realidade, o que sentia mais do que qualquer outra coisa era o mesmo entusiasmo egoísta que experimentara ontem diante da primeira expressão de interesse de Rowan, diante do seu primeiro olhar confidencial e respeitoso.

Talvez ela queira me perguntar se eu quero ir para um colégio interno, pensou Mona. Sapatos altos ali no chão. Ela não podia calçá-los de novo. Mas era gostoso caminhar no assoalho nu de First Street. Agora ele estava sempre encerado, com os novos criados. Yancy, o caseiro, polia o assoalho horas a fio. Até mesmo a velha Eugenia vinha trabalhando mais e resmungando menos.

Mona levantou-se, alisou o vestido de seda que talvez estivesse perdido agora, ela não sabia ao certo. Andou até a janela que dava para o jardim e se deixou inundar pelo sol, um calor agradável e fresco, com o ar cheio da umidade e dos perfumes do jardim: todas as coisas que geralmente ela considerava normais, mas que, na casa de First Street, pareciam duplamente maravilhosas, valendo um momento de meditação antes do mergulho de cabeça no dia pela frente.

Proteínas, carboidratos complexos, vitamina C. Ela estava faminta. Na noite passada houve o costumeiro bufê exagerado, com toda a família ali para proteger Beatrice com abraços, mas Mona se esquecera de comer.

— Não é de surpreender que você tenha acordado no meio da noite, sua idiota. — Quando ela deixava de comer, tinha invariavelmente dor de cabeça. E agora, de repente, voltou a pensar em Rowan, a nadar sozinha, e essa idéia voltou a perturbá-la: a nudez, o estranho descaso pela hora e pela presença dos seguranças. Ora, sua imbecil, ela é da Califórnia. Eles fazem esse tipo de coisa por lá o tempo todo.

Ela se espreguiçou, deixou as pernas bem abertas, tocou os dedos dos pés com as mãos e depois se inclinou para trás, balançando o cabelo de um lado para o outro, até ele ficar solto e arejado de novo. Saiu, então, da sala e seguiu pelo longo corredor, atravessando a sala de jantar e entrando na cozinha.

Ovos, suco de laranja, a mistura de Michael. Talvez houvesse um bom estoque.

Surpreendeu-a o aroma de café fresco. Pegou imediatamente uma caneca de louça preta do armário e ergueu o bule. Muito forte, expresso, o tipo de café de Michael, o que Michael apreciava em San Francisco. Mas ela percebeu que não era isso absolutamente o que queria. Estava louca por alguma coisa bem refrescante. Suco de laranja. Michael sempre tinha garrafas de suco, já misturadas, na geladeira. Ela encheu a xícara com suco de laranja e tampou com cuidado a jarra para impedir que todas as vitaminas morressem no ar.

Percebeu de repente que não estava sozinha.

Rowan estava sentada à mesa da cozinha, a observá-la. Rowan estava fumando um cigarro que agora batia num belo pires de porcelana com flores nas bordas. Usava um costume preto de seda, com brincos de pérolas e um pequeno colar de pérolas no pescoço. Era um desses costumes com o paletó longo e curvilíneo, de abotoamento duplo, sem blusa ou camisa por baixo, só a carne nua num decote discreto.

— Não vi você — confessou Mona. Rowan baixou a cabeça.

— Você sabe quem comprou essas roupas para mim? — A voz tinha o mesmo tom suave de chocolate da noite anterior, depois que toda a rouquidão passara.

— Provavelmente a mesma pessoa que comprou este vestido para mim — disse Mona. — Beatrice. Meus armários estão lotados de coisas compradas por Beatrice. E tudo de seda.

— O mesmo acontece com os meus — disse Rowan, e lá veio novamente aquele sorriso luminoso.

O cabelo de Rowan estava escovado para trás, mas natural sob todos os outros aspectos, caindo solto logo acima da gola. Os cílios estavam muito escuro e nítidos, e ela estava usando um batom claro de um rosa arroxeado que delineava perfeitamente sua boca de lábios bem-feitos.

— Você está mesmo bem, não é?  — perguntou Mona.

— Sente-se aqui, por favor — disse Rowan. Ela fez um gesto para a cadeira na outra extremidade da mesa.

Mona obedeceu.

Uma fragrância caríssima emanava de Rowan, lembrando cítricos e chuva.

O traje de seda negra era realmente fantástico. Nos dias anteriores ao casamento, ninguém jamais vira Rowan usando algo tão decididamente sensual. Bea tinha uma mania de se intrometer nos armários das pessoas e verificar seu manequim, não só pelas etiquetas, mas com uma fita métrica, para depois vesti-las do jeito que ela, Beatrice, achava que essas pessoas deviam vestir.

Bem, com Rowan, ela havia acertado.

E eu destruí esse vestido azul, pensou Mona. Simplesmente não estou pronta para esse tipo de coisa. Ou para os saltos altos que havia jogado de qualquer jeito no chão da sala de estar.

Rowan baixou a cabeça enquanto apagava o cigarro. Uma grande mecha de cabelo louro-acinzentado caiu para frente logo abaixo do malar. Seu rosto estava magro e tremendamente dramático. Era como se a enfermidade e a dor lhe houvessem conferido exatamente aquela aparência descarnada pela qual as modelos e as atrizes iniciantes passam fome até morrer.

Com esse tipo de beleza, Mona não podia competir. Com ela, eram os cabelos ruivos e as curvas; e seria sempre assim. Se você não gostasse, então não gostaria de Mona.

Rowan deu um risinho.

— Há quanto tempo você vem fazendo isso? — perguntou Mona, tomando um bom gole de café. Ele estava na temperatura exata. Delicioso. Em dois minutos estaria frio demais. — Quer dizer, lendo meus pensamentos. Não é o tempo todo, é?

Rowan foi apanhada de surpresa, mas pareceu achar ligeiramente divertido.

— Não, não é absolutamente o tempo todo. Eu diria que acontece em lampejos quando você está como que preocupada com alguma outra coisa, como que mergulhando nos seus próprios pensamentos. É como se de repente alguém riscasse um fósforo.

— É, gostei da idéia. Sei do que você está falando. — Mona bebeu uma boa parte do suco de laranja, pensando em como estava gostoso, como estava gelado. Por um instante, sua cabeça doeu com o frio. Ela procurava não olhar para Rowan com adoração. Isso era como estar apaixonada por uma professora, algo que nunca havia acontecido a Mona.

— Quando você olha para mim, Mona, eu não consigo ler nada. Talvez sejam seus olhos verdes que me ofuscam. Não se esqueça deles quando estiver fazendo seus cálculos. Pele perfeita, uma cabeleira ruiva de morrer, comprida e absurdamente densa, e enormes olhos verdes. Depois, vêm a boca e o corpo. Não, eu acho que sua visão de si mesma está ligeiramente prejudicada neste exato momento. Talvez seja só porque você está mais interessada em outras coisas: na herança, no que aconteceu a Aaron, em quando Yuri vai voltar.

Palavras inteligentes ocorreram a Mona e desapareceram instantaneamente. Nunca na sua vida ela se demorara diante de um espelho mais do que o necessário. Ela ainda não olhara num espelho nessa manhã.

— Olhe, não tenho muito tempo — disse Rowan, unindo as mãos sobre a mesa. — Preciso ser direta com você.

— Claro, por favor.

— Compreendo perfeitamente o fato de você ser a herdeira. Não há rancor entre nós. Você é a melhor opção concebível. Isso eu mesma soube ao meu modo instintivo assim que me dei conta do que havia sido feito. Mas Ryan me esclareceu tudo. Os exames e o perfil são perfeitos. Você é a filha bem-dotada. Tem a inteligência, a estabilidade, a resistência. Tem a saúde perfeita. Ah, os cromossomos a mais estão aí, sim, mas estão aí há séculos nos homens e mulheres da família Mayfair. Não há nenhum motivo para se imaginar que algo semelhante ao que aconteceu no Natal volte jamais a acontecer.

— É, é isso o que eu calculo — disse Mona. — Além do mais, não preciso me casar com ninguém que tenha a cadeia adicional, certo? Não estou apaixonada por um membro da família. Ah, sei que isso deve mudar, é o que está pensando, mas quero dizer que no momento presente não tenho nenhuma síndrome do namoradinho de infância com alguém carregado dos genes fatais.

Rowan pensou nisso e concordou, baixando a cabeça. Olhou para a xícara de café, ergueu-a e tomou o último gole, pondo a xícara um pouco para o lado.

— Não tenho nenhum ressentimento contra você pelo que aconteceu com Michael. Você tem de entender isso também.

— É difícil de acreditar. Porque eu acho que o que fiz foi tão errado.

— Irrefletido, talvez, mas não errado. Além do mais, acho que entendo exatamente o que aconteceu. Michael não fala no assunto. Também não estou me referindo à sedução. Estou falando do efeito.

— Se eu o curei, então acabo não indo para o inferno — disse Mona. Ela apertou os lábios num sorriso triste. Havia mais do que um traço de culpa e de ódio a si mesma na sua voz e no rosto, e ela sabia. Mas estava sentindo tanto alívio agora, que não conseguia pôr isso em palavras.

— Você o curou, e talvez fosse isso mesmo que devesse fazer. Um dia poderemos conversar sobre os sonhos que tinha e sobre a Victrola que se materializou na sala de estar.

— Então Michael lhe contou.

— Não, foi você quem me contou. Todas as vezes em que pensou no acontecido, ali fora, lembrando-se da valsa da Traviata e do fantasma de Julien a lhe dizer que fosse em frente. Mas isso não é importante para mim. Só é importante que você não se preocupe mais com a possibilidade de eu detestar você. Você tem de ser forte para ser a herdeira, especialmente do jeito que as coisas estão agora. Você não pode se preocupar com as coisas erradas.

— É, você tem razão. No fundo, você não me considera culpada. Sei que não.

— Você poderia ter sabido antes — disse Rowan. — Você é mais forte do que eu, sabe? Ler os pensamentos e as emoções das pessoas, é quase uma brincadeira. Eu sempre odiei isso quando era criança. Ficava assustada. E isso assusta muitas crianças dotadas. Mas com o tempo aprendi a usar o dom de um jeito mais sutil, quase subconsciente. Espere um pouquinho depois que alguém lhe falar, especialmente se as palavras forem confusas. Espere um átimo e saberá o que a pessoa está sentindo.

— Você tem razão. É assim mesmo. Eu já experimentei.

— E vai ficando melhor e mais forte. Eu imaginaria que, sabendo o que você sabe a respeito de tudo, seria mais fácil para você. Esperavam que eu fosse repulsivamente normal, uma aluna excelente com uma paixão pela ciência, crescendo com todos os luxos de uma filha única numa família rica. Já você sabe o que é.

Ela fez uma pausa. Tirou um cigarro do maço queestava em cima da mesa.

— Você não se importa?

— Não, nem um pouco — respondeu Mona. — Gosto do cheiro dos cigarros, sempre gostei.

Mas ela se conteve. Voltou a enfiar o cigarro no maço. Largou o isqueiro ao lado.

Olhou, então, para Mona, e seu rosto assumiu de repente uma rigidez momentânea, como se ela tivesse mergulhado fundo nos seus pensamentos, esquecendo-se de ocultar seu eu interior mais forte.

O olhar era tão frio e de uma ferocidade tão tranqüila que fez com que ela parecesse desprovida de sexo aos olhos de Mona. Poderia ser um homem a olhar para ela, essa pessoa de olhos cinzentos, com as sobrancelhas escuras e retas e o cabelo louro e sedoso. Poderia ter sido um anjo. Sem dúvida, era uma bela mulher. Mona estava por demais curiosa e emocionada com tudo isso para deixar que seus olhos fossem forçados a se afastar.

Quase de imediato a expressão abrandou-se, talvez deliberadamente.

— Vou à Europa — disse Rowan. — Vou sair daqui a pouco.

— Por quê? Para onde você vai? — Mona quis saber. — Michael sabe?

— Não — disse ela. — E quando ele descobrir, ficará magoado mais uma vez.

— Rowan, espere aí, você não pode fazer isso com ele. Por que vai viajar?

— Porque preciso. Sou a única pessoa que pode destrinchar esse pequeno mistério sobre a Talamasca. Sou a única pessoa que tem como descobrir por que Aaron morreu daquele jeito.

— Mas, Michael, você tem de levar Michael junto; você tem de permitir que ele ajude. Você o abandona outra vez, Rowan, e vai ser preciso mais do que uma menina sedutora de treze anos de idade para salvar seu ego e o que restar da sua masculinidade.

Rowan prestou atenção a essas palavras, pensativa.

Mona no mesmo instante se arrependeu do que disse, mas imediatamente achou que não havia usado uma imagem forte o suficiente.

— Vai doer — disse Rowan.

— Ora, você está querendo se iludir — disse Mona. — Talvez ele não esteja esperando por você aqui quando você voltar.

— Olhe, o que você faria se fosse eu? — perguntou Rowan.

Mona levou um segundo para absorver a pergunta. Tomou mais um grande gole do suco de laranja e afastou o copo para um lado.

— Você está realmente me fazendo essa pergunta?

— Não há mais ninguém a quem eu preferiria fazê-la.

— Leve-o junto para a Europa. Por que não? Qual é a finalidade de ele ficar aqui?

— Há certas coisas — disse ela. — Michael é o único que compreende o tipo de perigo direcionado contra esta família. E há também a questão da própria segurança dele, mas nesse caso eu não sei avaliar até que ponto ela é crítica.

— A segurança dele? Se os caras da Talamasca quiserem atingi-lo, eles sabem onde encontrá-lo se ele simplesmente ficar aqui nesta casa. Além do mais, Rowan, o que dizer da sua própria segurança? Você sabe mais sobre tudo isso do que qualquer um à exceção de Michael. Você não precisa dele ao seu lado? Você realmente se sente preparada para ir lá sozinha?

— Eu não estaria sozinha. Estaria com Yuri.

— Yuri?

— Ele ligou novamente hoje cedo, há poucos minutos.

— Por que você não me disse?

— Estou dizendo agora — respondeu Rowan, sem se alterar. — Ele tinha só alguns minutos para falar. Estava num telefone público em Londres. Eu o convenci a ir me esperar em Gatwick. Só disponho de poucas horas antes da viagem.

— Você deveria ter me chamado, Rowan, deveria ter...

— Acalme-se, Mona. O objetivo da ligação de Yuri era o de avisá-la para que ficasse junto da família e sob vigilância. É isso o que é importante agora. Ele acha que há pessoas que podem tentar seqüestrá-la, Mona. Ele estava falando muito sério. Não quis dar maiores explicações. Disse coisas sobre os exames genéticos, sobre pessoas tendo acesso a esses dados, descobrindo que você era a bruxa mais poderosa do clã.

— É, bem, é provável que eu seja mesmo. Isso eu descobri há muito tempo, mas, Rowan, se eles estão atrás de bruxas, porque não estão atrás de você?

— Porque nunca mais vou poder dar à luz, Mona. Mas você pode. Yuri acha que eles querem Michael também. Michael gerou Lasher. Essas pessoas perversas, sejam elas quem forem, tentarão reunir vocês dois. Creio que Yuri está enganado.

— Por quê?

— Acasalar dois bruxos? Esperar que os genes adicionais gerem um Taltos? Isso agora é tão improvável quanto sempre foi. Você poderia dizer que o acasalamento de dois bruxos é o caminho mais longo para se conseguir o resultado. De acordo com os nossos dados, a única tentativa com sucesso demorou trezentos anos. Houve interferência e propósito nesse único sucesso. Eu lhe dei meu auxílio num momento crucial. Talvez nada tivesse acontecido sem essa minha ajuda.

—E Yuri acredita que eles vão nos forçar, a Michael e a mim, a fazer isso?

Todo esse tempo, os olhos cinzentos de Rowan estavam fixos nela, examinando-a, avaliando sua reação a cada palavra.

— Eu não concordo com ele — disse Rowan. — Creio que os bandidos mataram Aaron como queima de arquivo. Foi por isso que também tentaram matar Yuri. É por isso que podem estar providenciando algum tipo de morte acidental para mim. Por outro lado...

— Então, você corre perigo! E o que houve com Yuri? Quando aconteceu? Onde?

— Meu argumento é simples — disse Rowan. — Nós não conhecemos os limites do perigo para qualquer um que esteja envolvido de qualquer forma. Não podemos saber, porque não conhecemos de fato os motivos dos assassinos. A teoria de Yuri, de que eles não desistirão enquanto não criarem um Taltos, é obviamente a mais pessimista e a mais abrangente. E é por ela que vamos nos pautar. Você e Michael têm de ser protegidos. E no fundo Michael é o único membro da família que sabe por quê. É imperioso que você permaneça dentro da casa.

— Quer dizer que você vai nos deixar aqui sozinhos? Bem acomodados no aconchego do seu próprio lar? Rowan, quero lhe dizer uma coisa que exige muita coragem.

— Você não deveria ter nenhum problema para isso — respondeu Rowan, com simplicidade.

— Você está subestimando Michael. Você o está menosprezando sob todos os aspectos. Ele não vai concordar com isso. E, se você o abandonar sem lhe dizer nada, não é provável que ele fique por aqui desempenhando o papel que lhe foi designado. Se ele ficar, o que você acha que o homem ali dentro vai querer? E se ele realmente quiser dormir comigo, o que você acha que eu sou? Rowan, você está organizando tudo isso como se nós fôssemos peões num tabuleiro de xadrez. Rowan, nós não somos.

Rowan não respondeu. Depois de um breve silêncio, ela deu um sorriso.

— Sabe, Mona, eu gostaria de poder levá-la comigo. Seria bom se você viesse.

— Eu vou! Leve a mim e a Michael! Nós três deveríamos ir juntos.

— A família não toleraria uma traição dessas da minha parte — disse Rowan. — E eu própria não poderia agir assim.

— Isso é loucura, Rowan. Por que estamos conversando? Por que você está me fazendo perguntas do tipo do que eu acho sobre o que está acontecendo?

— Há muitas razões, Mona, pelas quais você deve ficar aqui comMichael.

— E se nós dois nos enfiarmos na cama juntos?

— Isso é decisão sua.

— Maravilha, você arrasa com o homem e espera que eu o console, mas que não...

Distraída, Rowan, tirou um cigarro do maço e depois parou, exatamente como da vez anterior, deu um pequeno suspiro e o empurrou de volta para dentro do maço.

— Não me incomoda que você fume — disse Mona. — Eu mesma não fumo, graças à minha inteligência superior, mas...

— Você vai se importar logo, logo.

— O que você está querendo dizer?

— Você não sabe?

Mona estava pasma. Não respondeu.

— Você está dizendo... Ai, meu Deus, eu devia ter imaginado.

Ela se recostou na cadeira. Mesmo assim, já havia se enganado tantas vezes. Estava sempre ao telefone com a ginecologista. "Acho que desta vez aconteceu."

— Não se trata de nenhum engano — disse Rowan. — A criança é de Yuri?

— Não — respondeu Mona. — Impossível que seja. Sir Galahad foi muito cuidadoso. Quer dizer, é simplesmente impossível.

— É de Michael.

— É. Mas você tem certeza de que estou grávida? Quer dizer, isso foi só há um mês, e...

— Tenho certeza — respondeu Rowan. — A bruxa e a médica sabem a mesma coisa.

— Quer dizer que esse poderia ser o Taltos — disse Mona.

— Você quer um motivo para se livrar dele?

— Não, de jeito nenhum. Não há nada neste mundo que faça com que eu me livre dele.

— Está segura disso?

— Até que ponto preciso estar segura? Rowan, esta é uma família católica. Nós não nos livramos de bebês. Além do mais, eu não me livraria desse bebê não importa quem fosse o pai. E se for Michael, aí está mais uma razão para todos se sentirem felizes, porque Michael faz parte da família! Você no fundo não nos conhece assim tão bem, Rowan. Você ainda não está compreendendo, nem mesmo agora. Se for um bebê de Michael... quer dizer, se esse bebê existir realmente...

— Termine, por favor.

— Por que você não termina para mim?

— Não, eu gostaria de ouvir as suas palavras, se não se importar.

— Se ele for de Michael, então Michael será o pai da nova geração que herdará esta casa.

— Certo.

— E se o bebê for uma menina, eu poderia designá-la herdeira de tudo, e... você e Michael poderiam ser os padrinhos. E nós poderíamos todos juntos levá-la à pia batismal. Poderíamos ficar em pé ali, e Michael teria um filho. E eu teria um pai que eu queria para o bebê que todos irão amar e em quem todos irão confiar.

— Eu sabia que você faria uma descrição mais cheia de vida do que a minha — disse Rowan, baixinho, com um pouco de tristeza. — Essa aí superou minhas expectativas. Você tem razão. Ainda há coisas nesta família que eu preciso aprender.

— Acrescente a igreja de Santo Afonso, onde Stella, Antha e Deirdre foram batizadas. E acho... acho que também batizaram você lá.

— Isso nunca me contaram.

— Parece que eu ouvi alguma coisa nesse sentido. Parece algo que eles fariam.

— Não há a mínima chance de você resolver se livrar do bebê.

— Você deve estar brincando! Eu quero o bebê. Eu ia querer qualquer filho meu, estou falando sério. Olhe, vou ser tão rica que poderei comprar qualquer coisa neste mundo, mas na existência não há o que substitua meu próprio filho. Só posso fazer com que isso aconteça de um jeito. Ai, se você conhecesse mais a família, se você não tivesse passado a vida lá na Califórnia, você compreenderia que isso nem chega a estar em cogitação, a menos que, é claro... Mas mesmo nesse caso...

— Mesmo nesse caso?

— Vamos nos preocupar com isso quando acontecer. Deve haver alguma indicação, todo tipo de sinal, se ele for anormal.

— Talvez sim. Talvez não. Quando eu estava grávida de Lasher, não houve nenhum sinal até chegar a hora.

Mona quis responder, dizer alguma coisa, mas estava por demais mergulhada nos seus próprios pensamentos. Seu próprio filho. Seu próprio filho, e ninguém, ninguém mesmo, ia mais mandar na sua vida. Seu próprio filho, e ela teria passado a ser adulta, independentemente da idade. Seu próprio filho. De repente, ela não tinha mais pensamentos, mas via objetos. Via um berço. Via um bebê, um pequeno bebê vivo, de verdade, e se via segurando o colar da esmeralda e pondo o colar no pescoço do bebê.

— E Yuri? — perguntou Rowan. — Será que ele vai entender isso? Mona queria dizer que sim. A verdade era que não sabia. Pensou em Yuri, de uma forma rápida, como que completa. Ele estava sentado na beira da cama naquela última noite e dizia para ela que há todos os tipos de razões importantes pelas quais uma pessoa deve se casar entre sua própria gente. Ela não queria pensar que tinha treze anos de idade e era inconstante. De repente percebeu que o fato de Yuri ser compreensivo com relação ao bebê era a menor das suas preocupações, a mais ínfima.

Ora, ela nem havia descoberto como tentaram matar Yuri. Ela nem havia perguntado se ele estava ferido.

— Houve uma tentativa de matá-lo a tiros — disse Rowan. — E essa tentativa fracassou. Infelizmente o assassino foi morto pela pessoa que o impediu de atingir seu objetivo. E o corpo não vai ser tão fácil de encontrar. Seja como for, não vamos tentar encontrar o corpo. Temos um outro plano.

— Ouça, Rowan, seja qual for o plano, você tem de contar a Michael tudo isso. Você não pode simplesmente ir embora.

— Eu sei.

— Por que você não tem medo de que esses bandidos matem vocês dois, você e Yuri?

— Tenho algumas armas de meu uso exclusivo. Yuri conhece a casa-matriz por inteiro. Creio que posso entrar lá. Posso procurar um dos membros muito velhos, um dos mais confiáveis e venerados. Preciso talvez de uns quinze minutos com essa pessoa para saber se o mal é gerado pela Ordem coletivamente, ou por um pequeno grupo.

— Não pode ser uma única pessoa, Rowan. Muita gente morreu.

— Você tem razão, e três dos seus soldados morreram também. Mas poderia ser um grupo muito pequeno dentro da Ordem, ou de estranhos que tenham alguma ligação com ela.

— Você acha que vai descobrir os próprios bandidos?

— Acho.

— Use-me como isca!

— E a criança dentro de você também? Se Michael for o pai...

— Ele é.

— Nesse caso, eles poderiam querer a criança mais do que querer você. Olhe, não quero fazer especulações. Não quero pensar em bruxas como alguma rara mercadoria para aqueles que sabem como usá-las. Não quero pensar nas mulheres da família sendo vítimas de uma nova espécie de cientista louco. Estou cheia de ciência louca. Estou cheia de monstros. Só quero que isso termine. Mas você não pode ir. Nem Michael. Vocês têm de ficar aqui.

Rowan afastou um pouco a seda negra da manga do paletó e olhou para um pequeno relógio de ouro. Mona jamais a havia visto com esse relógio. Provavelmente Beatrice o havia comprado também. Ele era delicado, o tipo de relógio que as mulheres usavam quando Beatrice era criança.

— Vou subir para falar com meu marido — disse Rowan.

— Graças a Deus. Eu vou com você.

— Não, por favor.

— Desculpe, mas eu vou.

— Com que finalidade?

— Para me certificar de que você vai lhe dizer tudo o que deveria dizer.

— Está bem. Então vamos juntas. Talvez você esteja um passo à minha frente. Você vai lhe dar o motivo para cooperar. Mas deixe-me lhe perguntar mais uma vez, Jezabel. Você tem certeza de que a criança é dele?

— Foi Michael. Posso lhe dizer quando é provável que tenha acontecido. Foi depois do enterro de Gifford. Eu me aproveitei mais uma vez dele. Não pensei em precauções da mesma forma que da primeira vez. Gifford estava morta e eu estava possuída pelo demônio, juro. Foi logo depois disso que alguém tentou entrar pela janela da biblioteca e eu senti aquele cheiro.

Rowan não disse nada.

— Era o homem, não era? Ele veio atrás de mim depois de ter estado com a minha mãe. Deve ter sido assim. Quando ele tentou entrar, o ruído me acordou. E então eu fui vê-la, e ela já estava morta.

— E o cheiro estava forte?

— Muito. Às vezes eu ainda o sinto aqui na sala de estar e lá em cima no quarto. Você não sente?

Rowan não respondeu.

— Quero que você faça uma coisa só porque eu estou pedindo — disse Rowan.

— E o que é?

— Não diga nada a Michael sobre o bebê antes que os exames habituais sejam realizados. Deve existir alguém em quem você confie, alguém que pode ser como uma mãe? Deve haver alguém assim.

— Não se preocupe, Rowan. Tenho minha ginecologista secreta. Estou com treze anos.

— É claro. Olhe, não importa o que aconteça, estarei de volta antes que você tenha de contar a qualquer pessoa.

— É, espero que sim. Isso não seria o máximo, se você pudesse terminar tudo tão rápido? Mas, e se você não voltar nunca, e Michael e eu nunca soubermos o que aconteceu com você ou com Yuri?

Rowan pareceu considerar essa hipótese e depois apenas deu de ombros.

— Eu volto. Mais um aviso, se não se importa.

— Pode mandar.

— Se você falar com Michael sobre o bebê e depois resolver se livrar dele, isso vai ser a morte para Michael. Duas vezes antes prometeram-lhe um filho e isso não se concretizou. Se houver alguma dúvida, por menor que seja, não fale com ele enquanto não a tiver resolvido.

— Mal posso esperar para lhe contar. Posso marcar para que a minha médica me veja hoje à tarde. Vou dizer que estou tendo um colapso nervoso e que já estou indo para lá. Ela está acostumada a esse tipo de coisa comigo. Quando os exames chegarem, nada vai me impedir de contar para ele. E nada, nada mesmo, vai impedir um filho meu de nascer.

Ela estava a ponto de se levantar quando se deu conta do que acabara de dizer, e de que Rowan nunca mais enfrentaria esse dilema em particular. Rowan, no entanto, não pareceu nem um pouco ofendida pelas suas palavras, nem magoada sem dúvida. Sua expressão estava muito tranqüila. Ela olhava para os cigarros.

— Dá para você dar o fora daqui para eu poder fumar em paz? — perguntou Rowan, com um sorriso. — Depois, nós acordamos Michael. Ainda tenho uma hora e meia para pegar o avião.

— Rowan, eu... eu ainda me arrependo de ter feito amor com ele. Só não lamento pela criança.

— Nem eu — disse Rowan. — Se ele sair dessa com seu próprio filho, e com uma mãe que deixará que ele ame esse filho, bem, talvez ele descubra um jeito de perdoar tudo com o passar dos anos. Lembre-se só de uma coisa, Jezabel. Você fica com a esmeralda e com o bebê. Mas Michael ainda é meu.

— Saquei — disse Mona. — Gosto de você de verdade, Rowan. Gosto mesmo de você. Isso além de amar você porque é minha prima e nós somos da família Mayfair. Se eu não estivesse esperando, eu faria você me levar junto, para o seu bem, o de Yuri e o de todo mundo.

— E como você faria com que eu a levasse, Mona?

— Como você disse mesmo? Minhas armas de uso exclusivo.

Elas se entreolharam, e então Rowan fez que sim e sorriu.

 

A COLINA ESTAVA LAMACENTA, e fazia frio, mas Marklin nunca havia feito essa subida escorregadia, fosse no inverno fosse no verão, sem adorar aquilo tudo: ficar parado em Wearyall Hill ao lado do Espinheiro Santo e contemplar a cidadezinha pitoresca e antiquada de Glastonbury. A paisagem ao redor era sempre verde, mesmo no inverno, mas agora ela apresentava a cor nova e intensa da primavera.

Marklin estava com vinte e três anos. Era muito claro, com cabelos louros, olhos de um azul claro e pele fina e clara que sofria facilmente com o frio. Ele usava uma capa de chuva com forro de lã, um par de luvas de couro e, na cabeça, um pequeno gorro de lã que se ajustava bem e que o mantinha mais aquecido do que se poderia esperar de uma peça tão pequena de vestuário.

Tinha dezoito anos quando Stuart os trouxe ali. Ele e Tommy eram os dois estudantes dedicados, apaixonados por Oxford, apaixonados por Stuart e ansiosos por qualquer palavra que saísse da boca de Stuart.

Durante todo o tempo que passaram em Oxford, eles honraram esse local com visitas regulares. Costumavam ocupar quartos pequenos e aconchegantes no George and Pilgrims Hotel e caminhar juntos pela High Street, examinando as livrarias e as lojas que vendiam cristais e o Tarô, murmurando um para o outro sobre sua pesquisa secreta, sua aguçada abordagem científica de assuntos que outros consideravam meramente mitológicos. Os fiéis do local, chamados variadamente de hippies de outrora ou de fanáticos da Nova Era, ou ainda os boêmios e artistas que sempre procuram o encanto e a tranqüilidade de um lugar desses, não os atraíam.

Eles eram a favor de decodificar o passado, rapidamente, com todos os instrumentos à sua disposição. E Stuart, seu professor em línguas antigas, era seu sacerdote, seu vínculo mágico com o santuário: a biblioteca e os arquivos da Talamasca.

No ano anterior, após a descoberta de Tessa, havia sido no penhasco de Glastonbury que Stuart lhes dissera: "Em vocês dois, encontrei tudo o que sempre procurei num estudioso, num aluno, num noviço. Vocês são os primeiros a quem eu realmente desejo passar tudo o que sei."

Isso havia parecido uma suprema honra para Marklin, algo mais importante do que qualquer reconhecimento que tivesse recebido em Eton, Oxford ou em qualquer parte deste mundo para onde seus estudos o houvessem carregado dali em diante.

Aquele havia sido um momento ainda mais importante do que o de ser aceito na Ordem. E agora, em retrospectiva, ele sabia que aquela aceitação havia tido algum significado só porque ela representava tudo para Stuart, que vivera toda a sua vida como membro da Talamasca, e que logo morreria, como dizia com tanta freqüência, dentro dos seus muros.

Stuart estava agora com oitenta e sete anos e talvez fosse um dos homens mais velhos em atividade na Talamasca, se é que se podia chamar o ensino de línguas uma atividade da Talamasca, pois ele era mais a paixão especial da aposentadoria de Stuart. A conversa sobre a morte não era nem romântica, nem melodramática. E na verdade nada alterava a atitude prática de Stuart com relação ao que estava por vir.

"Um homem da minha idade que ainda está lúcido? Se ele não for corajoso diante da morte, se não sentir curiosidade e ansiedade para ver o que acontece, bem, então ele desperdiçou a vida. É um completo idiota."

Mesmo a descoberta de Tessa não contaminara Stuart com nenhum desespero de último instante no sentido de prolongar o tempo que lhe restava. Sua devoção a Tessa, sua crença nela, não incluía nada de tão mesquinho. Marklin temia a morte de Stuart muito mais do que o próprio Stuart. E Marklin sabia agora que havia calculado mal sua força junto a Stuart, e que precisava seduzi-lo de volta ao momento da dedicação mútua. Perder Stuart para a morte era inevitável. Perder Stuart antes dessa hora era inimaginável.

"Vocês estão pisando no solo consagrado de Glastonbury", dissera Stuart naquele dia em que tudo começou. "Quem está enterrado nesse pico rochoso? O próprio Artur, ou apenas os celtas anônimos que nos deixaram suas moedas, suas armas, suas embarcações nas quais eles cruzavam os mares que outrora fizeram desta ilha a ilha de Avalon? Nunca saberemos. Mas há segredos que podemos desvendar, e as implicações desses segredos são tão amplas, tão revolucionárias e tão inauditas que valem nossa lealdade à Ordem, valem qualquer sacrifício que devamos fazer. Se não for assim, então estamos mentindo."

O fato de Stuart agora ameaçar abandonar Tommy e Marklin, de se ter voltado contra eles na sua fúria e repulsa, era algo que Marklin poderia ter evitado. Não teria sido necessário revelar todas as partes do plano a Stuart. E Marklin percebia agora que sua recusa a assumir ele próprio a plena liderança causara a cisão. Stuart tinha Tessa... Stuart deixara claros os seus desejos. Mas nunca deveriam ter contado a Stuart o que realmente acontecera. Esse havia sido o seu erro. E Marklin só poderia culpar sua própria imaturidade, a questão de ele amar tanto Stuart ao ponto de sentir uma compulsão no sentido de lhe contar tudo.

Ele atrairia Stuart de volta. Stuart concordara em vir hoje. Ele sem dúvida já estava ali, visitando o Poço do Cálice, como sempre fazia antes de vir até Wearyall Hill e conduzi-los até lá em cima ao próprio pico. Marklin sabia o quanto Stuart o amava. Esse rompimento de relações seria anulado com um apelo da alma, com poesia e com um fervor cheio de honestidade.

Que sua própria vida seria longa, que esta seria apenas a primeira das suas aventuras sinistras, Marklin não tinha a menor dúvida disso. Seriam dele as chaves que abririam o tabernáculo, o mapa do tesouro, a fórmula da poção mágica. Tinha certeza absoluta disso. Mas se esse seu primeiro plano terminasse em fracasso, seria um desastre moral. É claro que ele prosseguiria, mas sua juventude havia sido uma série ininterrupta de sucessos, e esse esforço também deveria ter sucesso para que sua ascensão não perdesse o ímpeto.

Tenho de vencer. Preciso sempre vencer. Não devo nunca tentar algo que não possa realizar com pleno sucesso. Esse sempre havia sido o lema pessoal de Marklin. Nunca havia deixado de cumpri-lo.

Quanto a Tommy, Tommy era fiel aos votos feitos pelos três, fiel ao conceito e à pessoa de Tessa. Não havia nenhuma preocupação relativa a Tommy. Profundamente envolvido nas suas pesquisas no computador, nas suas planilhas e cronologias precisas, Tommy não apresentava nenhum risco de dissidência pelos exatos motivos que o tornavam valioso. Ele não era dos que vêem o esquema total das coisas, ou dos que questionam sua legitimidade.

Num sentido muito básico, Tommy nunca mudava.

Tommy era agora o mesmo garoto que Marklin viera a amar na infância: colecionador, confrontador de textos, um arquivo ambulante, apreciador e investigador. Tommy sem Marklin nunca havia existido, ao que Marklin soubesse. Os dois se conheceram aos doze anos de idade, num colégio interno nos Estados Unidos. O quarto de Tommy era cheio de fósseis, mapas, ossos de animais, equipamento de computação do tipo mais secreto e uma ampla coleção de ficção científica em brochura.

Marklin muitas vezes imaginava que, aos olhos de Tommy, ele devia ter parecido ser um dos personagens daqueles romances fantásticos (o próprio Marklin detestava ficção) e que Tommy havia passado de observador a ator de destaque num drama de ficção científica, ao conhecer Marklin. Nem por um momento sequer, a lealdade de Tommy esteve sob questionamento. Na realidade, durante os anos em que Marklin quisera sua liberdade, Tommy sempre ficava perto demais, sempre à mão, sempre à disposição de Marklin. Marklin inventava tarefas para o amigo, simplesmente para se proporcionar espaço para respirar. Tommy nunca se sentira infeliz.

Marklin estava sentindo frio, mas não se importava.

Glastonbury nunca seria nada para ele além de um lugar sagrado, embora ele literalmente não acreditasse em quase nada que estivesse associado ao local.

A cada vez que vinha a Wearyall Hill, com a devoção particular de um monge, costumava imaginar o nobre José de Arimatéia plantando seu cajado exatamente naquele ponto. Não lhe importava que o atual Espinheiro Santo tivesse crescido de um rebento da árvore antiga, agora desaparecida, tanto quanto não lhe importava nenhum outro detalhe específico. Em lugares desse tipo ele sentia uma emoção peculiar aos seus objetivos, como que uma renovação religiosa que o fortalecia e o mandava de volta ao mundo mais impiedoso do que nunca.

Ser implacável. Era isso o que era necessário agora, e Stuart deixara de perceber isso.

É, as coisas tinham dado pavorosamente errado, sem a menor dúvida. Homens haviam sido sacrificados, cuja inocência e substância certamente exigiam uma justiça maior. Mas essa culpa não cabia inteiramente a Marklin. E a lição a ser aprendida era que, em última análise, nada disso fazia diferença.

Chegou a minha hora de instruir meu mestre, pensou Marklin.

A quilômetros da casa-matriz, neste espaço aberto, nosso encontro explicado sem nenhum risco pelos nossos próprios costumes de tantos anos, vamos nos reunir novamente como um só. Nada foi perdido. Stuart deve receber permissão moral para aprender com o que aconteceu.

Tommy havia chegado.

Tommy era sempre o segundo. Marklin observou o antigo carro esporte de Tommy reduzir a velocidade ao seguir pela High Street. Ficou olhando quando ele encontrou uma vaga, quando Tommy fechou a porta sem trancar, como sempre, e começou a subir a colina.

E se Stuart não aparecesse? E se ele não estivesse em nenhum lugar por perto? E se ele tivesse de fato abandonado seus seguidores? Impossível.

Stuart estava junto ao poço. Ele bebia daquela água ao chegar, e voltava a beber dela antes de ir embora. Suas peregrinações a esse lugar eram tão rígidas quanto as de um druida antigo ou de um monge cristão. De santuário em santuário, viajava Stuart.

Tais hábitos do seu mestre haviam sempre despertado uma ternura em Marklin, tanto quanto as palavras de Stuart. Stuart os "consagrara" a uma vida misteriosa de penetração da "mística e do mito, com a finalidade de apreender o horror e a beleza no seu cerne".

Parecia poesia tolerável tanto naquela época quanto agora. Só era preciso relembrar Stuart. Era preciso convencer Stuart com metáforas e sentimentos elevados.

Tommy havia quase chegado à árvore. Ele deu os últimos passos com cuidado, pois era fácil perder o equilíbrio na lama escorregadia e cair. Isso acontecera a Marklin uma vez, há anos, quando eles haviam começado suas peregrinações. O que resultará numa noite no George and Pilgrims Hotel enquanto suas roupas eram bem lavadas.

A queda não havia sido negativa. Foi uma noite maravilhosa. Stuart ficara com ele. Passaram a noite a conversar, muito embora Marklin estivesse confinado a um robe e chinelos emprestados e a um quarto pequeno e simpático; e os dois ansiassem em vão por escalar o penhasco à meia-noite e entrar em comunhão com o espírito do rei adormecido.

É claro que Marklin jamais por um instante que fosse acreditara que o rei Artur jazia aos pés do penhasco de Glastonbury. Se houvesse acreditado nisso, teria apanhado uma pá e começado a cavar.

Stuart já em idade avançada chegara à convicção de que o mito só era interessante quando havia uma verdade por trás dele, e de que era possível descobrir essa verdade, bem como comprovação física da mesma.

Os estudiosos, pensava Marklin, eles sofrem de um defeito inevitável. Para eles, as palavras e os atos se transformam na mesma coisa. Era isso o que estava na própria base da confusão atual. Stuart, aos oitenta e sete anos de idade, fizera talvez sua primeira incursão pela realidade adentro.

A realidade e o sangue estavam entrelaçados.

Tommy afinal tomou seu lugar ao lado de Marklin. Soprou os dedos gelados e depois enfiou a mão nos bolsos para pegar as luvas: uma atitude clássica em Tommy, a de ter subido o morro sem elas, a de ter se esquecido de que as luvas sequer estavam ali até ver as luvas de couro de Marklin, as que ele mesmo dera a Marklin muito tempo atrás.

— E o Stuart? — perguntou Tommy. — É, luvas. — Ele olhou para Marklin, com olhos enormes atrás dos óculos redondos, grossos, sem aro, e o cabelo ruivo cortado curto de tal modo que ele bem poderia ter sido um advogado ou um banqueiro. — Luvas, isso mesmo. Onde é que ele está?

Marklin estava a ponto de dizer que Stuart não viera quando de fato viu Stuart que iniciava a última etapa da subida depois de deixar o carro, que trouxera pelo Wearyall Hill acima até onde era permitido. Pouco característico de Stuart ter agido assim.

Sob outros aspectos, porém, Stuart não parecia mudado. Alto, magro no conhecido sobretudo, com o cachecol de caxemira em volta do pescoço e ondulando ao vento atrás dele, e o rosto macilento dando a impressão de ter sido entalhado em madeira. Seu cabelo grisalho lembrava, como sempre, a crista de um gaio. Parecia que nos últimos dez anos ele não mudara em absolutamente nada.

Ele olhava direto para Marklin enquanto se aproximava. E Marklin percebeu que ele próprio estava tremendo. Tommy afastou-se um passo. Stuart parou a uns dois metros deles, com os punhos cerrados, o rosto magro angustiado ao enfrentar os dois rapazes.

— Vocês mataram Aaron! — exclamou. — Vocês, vocês dois. Vocês mataram Aaron. Como, em nome de Deus, puderam fazer uma coisa dessas?

Marklin estava perplexo, com toda a sua autoconfiança e todos os seus planos abandonando-o de repente. Procurou parar o tremor nas mãos. Sabia que, se falasse, sua voz sairia frágil, sem nenhuma autoridade. Não podia suportar que Stuart estivesse irritado ou decepcionado sob nenhum aspecto.

— Meu Deus, o que vocês fizeram, vocês dois! — vociferou ele. — E o que eu fiz que dei início a esse plano? Deus do céu, a culpa é minha!

Marklin engoliu em seco, mas permaneceu em silêncio.

— Você, Tommy, como poderia ter participado disso tudo? — prosseguiu Stuart. — E Mark. Mark, você, o próprio autor de tudo isso.

— Stuart, você precisa me ouvir! — protestou Marklin antes que pudesse se conter.

— Ouvir você? — Stuart aproximou-se, com as mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo. — Ouvir você, é o que eu deveria fazer? Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, meu jovem e brilhante amigo, minha esperança maior, mais ousada! O que irá impedi-lo de me matar, como fez com Aaron e com Yuri Stefano?

— Stuart, foi por você que eu agi assim — insistiu Marklin. — Se ao menos você quisesse me ouvir, entenderia. Essas não passam de flores das sementes que você plantou quando começamos isso juntos. Aaron tinha de ser silenciado. Foi por pura sorte que ele não se apresentou de volta, que não voltou em pessoa para a casa-matriz, Stuart! Ele poderia ter feito isso qualquer dia desses, e Yuri Stefano também teria vindo. Sua visita a Donnelaith foi um acaso feliz. Ele poderia ter ido direto do aeroporto para casa.

— Você está falando de circunstâncias, de detalhes! — rebateu Stuart, dando mais um passo na sua direção.

Tommy estava calado, aparentemente inabalado, com os cabelos ruivos desgrenhados pelo vento, espremendo os olhos por trás dos óculos. Ele observava Stuart com firmeza, com o ombro muito próximo do braço de Marklin.

Stuart estava fora de si.

— Você fala de conveniência, mas não fala da vida e da morte, meu aluno — insistiu. — Como pôde fazer isso? Como pôde dar um fim à vida de Aaron? — E nesse ponto faltou-lhe a voz, e a dor se manifestou, monstruosa como a raiva. — Eu o destruiria, Mark, se eu pudesse. Mas eu não sei fazer esse tipo de coisa, e talvez seja por isso que eu tivesse imaginado que você não faria! Mas você me surpreendeu, Mark.

— Stuart, era algo que valia qualquer sacrifício. O que é o sacrifício se não for um sacrifício moral?

Isso horrorizou Stuart, mas o que mais Marklin podia fazer a não ser mergulhar fundo? Tommy realmente devia dizer alguma coisa, pensou, mas ele sabia que, quando Tommy falasse, defenderia com firmeza sua posição.

— Acabei com aqueles que poderiam impedir nosso avanço — disse Mark. — Só isso, Stuart. Você chora por Aaron porque o conhecia.

— Não seja idiota — disse Stuart, com rancor. — Choro pelo derramamento de sangue inocente. Choro pela estupidez monstruosa! É, foi isso o que aconteceu. Você acha que a morte de um homem desses permanecerá sem vingança dentro da Ordem? Você acha que conhece a Talamasca. Acha que, com sua mente jovem e astuta, poderia avaliar a Ordem em questão de alguns anos. Mas tudo o que fez foi aprender suas fraquezas organizacionais. Você poderia viver a vida inteira na Talamasca e não conhecer a Talamasca. Aaron era meu irmão! Foi meu irmão que você matou! Você me traiu, Mark. Você traiu a Tommy. Você traiu a si mesmo! Você traiu a Tessa.

— Não — disse Mark. — O que está dizendo não é a verdade, e você sabe. Olhe para mim, Stuart. Olhe nos meus olhos. Você deixou a meu encargo a tarefa de trazer Lasher para cá. Você me encarregou de sair da biblioteca e planejar tudo. A mim e a Tommy também. Você acha que isso poderia ter sido orquestrado sem nós?

— Você se esquece de um ponto crucial, não é, Mark? — perguntou Stuart. — Você fracassou. Não conseguiu resgatar o Taltos e trazê-lo para cá! Seus soldados foram tolos, e o mesmo deve ser dito do general.

— Stuart, seja paciente conosco — disse Tommy. Era seu costumeiro tom prático. — Eu soube, no primeiro dia em que falamos, que isso não poderia ser realizado sem que alguém pagasse com a própria vida.

— Você nunca me disse essas palavras, Tommy.

— Permita-me relembrá-lo — disse Tommy, com a mesma atitude neutra — de que você determinou que nós deixássemos Aaron e Yuri incapacitados para interferir e que destruíssemos todas as provas de que o próprio Taltos havia nascido na família Mayfair. Ora, como isso poderia ter sido feito a não ser do modo que fizemos? Stuart, não temos nada do que nos envergonhar nos nossos atos. O que buscamos torna essas coisas totalmente insignificantes.

Marklin procurou desesperadamente ocultar seu suspiro de alívio.

Stuart olhou de Tommy para Marklin e de volta para Tommy. Voltou-se, então, para a paisagem desbotada de suaves colinas verdes e ondulantes e depois para o pico rochoso de Glastonbury. Deu-lhes as costas para encarar o penhasco e baixou a cabeça como se estivesse em comunhão com alguma divindade pessoal.

Marklin aproximou-se e, muito hesitante, pôs as mãos nos ombros de Stuart. Ele agora era muito mais alto do que Stuart, e Stuart, na velhice, perdera parte da sua altura anterior. Marklin aproximou-se do seu ouvido.

— Stuart, a sorte foi lançada quando nos livramos do cientista. Não havia mais como voltar atrás. E o médico...

— Não — disse Stuart, abanando a cabeça com uma ênfase dramática. Seus olhos estavam semicerrados e fixos no penhasco. — Essas mortes poderiam ter sido atribuídas ao próprio Taltos, vocês não compreendem? Era essa a beleza do plano. O Taltos compensava as mortes dos dois homens que só poderiam ter usado indevidamente a revelação que lhes foi feita!

— Stuart — disse Mark, muito consciente de que Stuart não havia procurado se libertar do seu discreto abraço. — Você precisa compreender que Aaron se tornou nosso inimigo no instante em que se tornou inimigo oficial da Talamasca.

— Inimigo? Aaron nunca foi inimigo da Talamasca! Sua excomunhão forjada partiu-lhe o coração.

— Stuart — argumentou Marklin. — Agora, em retrospectiva, vejo que a excomunhão foi um erro, mas foi nosso único erro.

— Não havia escolha na questão da excomunhão — disse Tommy, inabalável. — Ou agíamos daquela forma, ou nos arriscávamos a ser descobertos a cada instante. Fiz o que eu tinha de fazer, e fiz de um jeito perfeitamente convincente. Eu não teria tido condições de manter uma correspondência forjada entre Aaron e os Anciãos. Isso teria sido demais.

— Admito que foi um erro — disse Marklin. — Só a lealdade à Ordem poderia ter mantido Aaron calado quanto às diversas coisas que ele havia visto e chegado a suspeitar. Se cometemos um erro, Stuart, nós três o cometemos juntos. Não deveríamos ter alijado Aaron e Yuri Stefano. Deveríamos ter reforçado nossa influência, ter sido mais competentes.

— A trama já era por demais complexa em si — disse Stuart. — Estou lhes avisando, a vocês dois. Tommy, venha cá. Estou avisando! Não ataquem a família Mavfair. O que fizeram já basta. Destruíram um homem melhor do que qualquer outro que eu jamais conheci, e fizeram isso por uma vantagem tão ínfima que os céus se vingarão de vocês. Mas, por nada do que nos resta agora, não ataquem a família!

— Acho que já atacamos — disse Tommy, com sua habitual voz prática. — Aaron Lightner acabava de se casar com Beatrice Mayfair. Além disso, ele se tornara tão amigo de Michael Curry e, na realidade, de todo o clã, que o casamento praticamente não era necessário para consolidar o relacionamento. No entanto, o casamento se realizou e, para a família Mayfair, o casamento é um vínculo sagrado, como sabemos. Aaron tornou-se um deles.

— Tomara que você esteja errado — disse Stuart. — Peça aos céus que esteja enganado. Incorra na ira das bruxas Mayfair, e o próprio Deus não poderá ajudá-lo.

— Stuart, vamos examinar o que precisa ser feito agora — disse Marklin. — Vamos descer daqui e ir até o hotel.

— Nunca. Onde outros possam nos ouvir? Nunca.

— Stuart, leve-nos a Tessa. Vamos discutir tudo isso lá — insistiu Marklin.

Era o momento crucial. Marklin sabia. Ele agora desejava não ter pronunciado o nome de Tessa, por enquanto não. Desejava não ter chegado a esse clímax.

Stuart observava os dois com a mesma determinação para a censura e a repulsa. Tommy mantinha-se firme, com as mãos enluvadas unidas à sua frente. A gola dura do seu casaco estava em pé, a lhe esconder a boca, dessa forma não revelando nada a um exame minucioso a não ser seu olhar neutro, imperturbável.

O próprio Marklin estava à beira das lágrimas, ou era isso o que imaginava. Na realidade, Marklin nunca havia chorado uma vez sequer na sua vida, de que se lembrasse.

— Talvez essa não seja a hora de vê-la — disse Marklin, apressando-se a reparar o erro.

— Talvez vocês nunca devessem vê-la de novo — disse Stuart, com a voz contida pela primeira vez, os olhos abertos, a especular.

— Você não está falando sério — disse Mark.

— Se eu os levar a Tessa, o que irá impedi-los de se livrarem de mim?

— Ah, Stuart, você está nos magoando. Como pode nos fazer uma pergunta dessas? Não somos pessoas sem princípios. Somos simplesmente dedicados a um objetivo comum. Aaron tinha de morrer. Yuri também. Yuri na realidade nunca pertenceu à Ordem. Yuri foi embora tão rápido e com tanta facilidade!

— É, e nenhum de vocês jamais foi membro, certo? — perguntou Stuart. Sua atitude estava mudando, ficando mais rígida.

— Nós somos devotados a você, e sempre fomos — disse Marklin. — Stuart, estamos perdendo nosso tempo precioso. Guarde Tessa para si se quiser. Não abalará minha crença nela, nem a de Tommy. E nós prosseguiremos na direção do nosso objetivo. Não podemos agir de outro modo.

— E qual é o objetivo agora? — perguntou Stuart. — Lasher desapareceu como se nunca houvesse existido! Ou vocês duvidam da palavra de um homem que seguiu Yuri obstinadamente cruzando terras e mares só para afinal matá-lo a tiros?

— Lasher já não existe mais — disse Tommy. — Acho que todos nós estamos de acordo quanto a isso. O que Lanzing viu não poderia ser interpretado de nenhuma outra forma. Mas Tessa está nas nossas mãos, tão real quanto no dia em que você a descobriu.

Stuart abanou a cabeça.

— Tessa é real, e está sozinha como sempre esteve. E a união não se realizará; e meus olhos se fecharão sem que eu jamais presencie o milagre.

— Stuart, ainda é possível — disse Marklin. — A família, as bruxas Mayfair.

— É — gritou Stuart, com a voz descontrolada. — Ataquem a família, e eles os destruirão. Já se esqueceram da primeira advertência que lhes fiz. As bruxas Mayfair conquistam aqueles que desejam atingi-las. Sempre agiram assim! Se não como indivíduos, conquistam como família!

Eles ficaram calados por um instante.

— Os destruirão, Stuart? — perguntou Tommy. — Por que não a nós três, Stuart?

Stuart estava em desespero. Seu cabelo branco, soprado de um lado para o outro pelo vento, lembrava o cabelo despenteado de um bêbado. Ele baixou os olhos para a terra abaixo dos seus pés, com o nariz aquilino brilhando como se não fosse nada agora além de cartilagem polida. Uma águia de homem, verdade, mas não um homem idoso, isso nunca.

Marklin temia por ele no vento. Os olhos de Stuart estavam vermelhos e lacrimejantes. Marklin podia ver o mapa de veias azuis que se espalhava a partir das têmporas. Stuart tremia por inteiro.

— É, você tem razão, Tommy — disse Stuart. — A família Mayfair destruirá a nós todos. Por que não fariam isso? — Ele ergueu os olhos, direto para Marklin. — E qual é a maior perda para mim? A de Aaron? A do próprio casamento de um Taltos macho com uma fêmea? A da cadeia de lembranças que esperávamos descobrir elo por elo até suas origens mais remotas? Ou será que é a de vocês agora estarem condenados vocês dois, pelo que fizeram? E eu os perdi. Que a família Mayfair venha destruir a nós três, sim. Será a justiça.

— Não, não quero essa justiça — disse Tommy. — Stuart, você não pode se virar contra nós.

— Não, isso você não pode fazer — disse Marklin. — Não pode invocar uma derrota para nós. As bruxas podem gerar o Taltos novamente.

— Daqui a trezentos anos? — perguntou Stuart. — Ou amanhã?

— Escute-me, senhor, eu lhe imploro — disse Marklin. — O espírito de Lasher possuía o conhecimento do que havia sido e do que poderia ser. E o que aconteceu aos genes de Rowan Mayfair e Michael Curry ocorreu sob a vigilância consciente do espírito, para realizar seu objetivo.

— Mas nós agora temos esse conhecimento, do que um Taltos é, e talvez tenha sido, e do que pode gerar um. E Stuart, as bruxas também têm! Pela primeira vez, as bruxas conhecem a finalidade da espiral em dupla hélice. E seu conhecimento é tão poderoso quanto o de Lasher.

Stuart não teve resposta para essas palavras. Estava claro que ele não havia pensado nessa hipótese. Ficou olhando muito tempo para Marklin.

— Você acredita nisso? — perguntou, então.

— Talvez sua consciência seja ainda mais poderosa — disse Tommy. — O auxílio telecinético que pode ser proporcionado pelas próprias bruxas na hora do nascimento não pode ser subestimado.

— O cientista de sempre — disse Marklin, com um sorriso de triunfo. A maré estava mudando. Ele sentia; ele via isso nos olhos de Stuart.

— E devemos nos lembrar de que o espírito era abobalhado e desastrado — disse Tommy. — As bruxas estão a anos-luz disso, mesmo quando são mais ingênuas e incompetentes.

— Isso aí é adivinhação sua, Tommy.

— Stuart — argumentou Marklin. — Já fomos longe demais!

— Em outras palavras, nossas realizações até aqui não foram de modo algum insignificantes. Verificamos a encarnação do Taltos e, se pudéssemos pôr as mãos em quaisquer anotações feitas por Aaron antes de morrer, poderíamos constatar o que todos suspeitamos, de que não se tratou de uma encarnação, mas de uma reencarnação.

— Sei o que fizemos — disse Stuart. — De certo e de errado. Você não precisa fazer nenhum resumo para mim, Tommy.

— É só para esclarecer — disse Tommy. — E nós temos bruxas que conhecem não só os velhos segredos em termos abstratos, mas que acreditam no próprio milagre físico. Seria impossível dispor de oportunidades mais interessantes.

— Stuart, volte a confiar em nós — disse Marklin.

Stuart olhou para Tommy e depois para Marklin. Marklin viu a velha centelha, o amor.

— Stuart — prosseguiu ele —, as mortes já aconteceram. Essa parte está terminada. Nossos outros auxiliares inocentes podem ser dispensados sem que jamais venham a apreender o plano em sua magnitude.

— E Lanzing? Ele deve saber de tudo.

— Ele era um mercenário, Stuart — respondeu Marklin. — Ele nunca entendeu o que viu. Além do mais, ele também morreu.

— Nós não o matamos, Stuart — disse Tommy, num tom quase despreocupado. — Encontraram parte dos seus restos aos pés do rochedo de Donnelaith. Sua arma havia atirado duas vezes.

— Parte dos seus restos? — perguntou Stuart. Tommy deu de ombros.

— Disseram que ele havia sido devorado por animais selvagens.

— Nesse caso, não se pode ter certeza de que ele matou Yuri.

— Yuri nunca voltou ao hotel — disse Tommy. — Seus pertences ainda não foram procurados por ninguém. Yuri morreu, Stuart. As duas balas foram para Yuri. Como Lanzing caiu, ou por quê, ou ainda se algum animal o atacou, são coisas que não temos como saber. Mas, no que nos diz respeito, Yuri Stefano está desaparecido.

— Você não vê, Stuart? — disse Marklin. — A não ser pela perda do Taltos, tudo funcionou perfeitamente. E agora podemos recuar e concentrar a atenção nas bruxas Mayfair. Não precisamos de mais nada da Ordem. Se algum dia descobrirem a interceptação, ninguém jamais conseguirá associá-la a nós.

— Vocês não temem os Anciãos, certo?

— Não há motivos para temer os Anciãos — disse Tommy. — A interceptação continua a funcionar perfeitamente. Sempre funcionou.

— Stuart, nós aprendemos com os nossos erros — disse Marklin. — Mas talvez certas coisas tenham acontecido com uma finalidade. Não estou falando em termos sentimentais. Mas olhe para o quadro como um todo. Todas as pessoas certas morreram.

— Não me falem com tanta insensibilidade dos seus próprios métodos, nenhum de vocês dois. E o Superior Geral?

Tommy deu de ombros.

— Marcus não sabe de nada. Só que muito em breve vai poder se aposentar com uma pequena fortuna. Ele jamais conseguirá armar o quebra-cabeça depois disso. Ninguém será capaz. Essa é a beleza do plano todo.

— Precisamos de mais algumas semanas no máximo — disse Marklin. — Só para nos protegermos.

— Não tenho tanta certeza assim — disse Tommy. — Pode ser interessante eliminar as interceptações agora. Sabemos tudo o que a Talamasca sabe sobre a família Mayfair.

— Não seja tão apressado, tão confiante! — disse Stuart. — O que acontecerá quando suas comunicações forjadas forem afinal descobertas?

— Você deve estar querendo dizer nossas comunicações forjadas — disse Tommy. — Na pior das hipóteses, haverá um pouco de confusão, talvez até mesmo uma investigação. Mas ninguém poderia associar as cartas ou a própria interceptação a nós. É por isso que é tão importante que continuemos sendo noviços leais, que não façamos nada agora que desperte suspeitas.

Tommy olhou de relance para Marklin. Estava funcionando. A atitude de Stuart havia mudado. Stuart estava voltando a dar as ordens... quase.

— Isso tudo é eletrônico — disse Tommy. — Não há provas concretas de nada em parte alguma, a não ser algumas pilhas de papel no meu apartamento em Regent's Park. Só você, Mark e eu sabemos onde esses papéis estão.

— Stuart, estamos precisando da sua orientação agora! — disse Marklin. — Ainda vamos entrar na fase mais emocionante.

— Silêncio — disse Stuart. — Deixem-me olhar para vocês dois. Deixem-me fazer uma avaliação.

— Por favor, Stuart — disse Marklin. — Faça essa avaliação e nos considere jovens e corajosos, sim, jovens e tolos, talvez, mas corajosos e dedicados.

— O que Mark quer dizer é que a nossa posição atual é melhor do que poderíamos ter chegado a esperar — disse Tommy. — Lanzing matou Yuri e depois caiu, sofrendo ferimentos fatais. Stolov e Norgan morreram. Nunca foram mais do que um estorvo, e sabiam demais. Os homens contratados para matar os outros não nos conhecem. E nós estamos aqui, onde começamos, em Glastonbury.

— E Tessa está nas nossas mãos, sem que ninguém tenha conhecimento disso a não ser nós três.

— Eloqüência — disse Stuart, quase num sussurro. — É isso o que vocês estão me dando, eloqüência.

— A poesia é a verdade, Stuart — disse Marklin. — Ela é a mais alta verdade, e a eloqüência é sua característica.

Houve uma pausa. Marklin precisava fazer Stuart descer desse morro. Protetor, ele pôs o braço em volta de Stuart e, para grande alívio seu, Stuart permitiu isso.

— Vamos descer, Stuart — disse Marklin. — Vamos jantar agora. Estamos com frio. Estamos com fome.

— Se tivéssemos a oportunidade de começar de novo, agiríamos melhor — disse Tommy. — Não precisávamos ter tirado aquelas vidas. Poderia ter sido um desafio maior, sabe? O de atingir nosso objetivo sem realmente ferir ninguém.

Stuart parecia mergulhado em pensamentos, só relanceando o olhar distraído para Tommy. O vento voltou a aumentar, cortante, e Marklin estremeceu. Se ele estava sentindo todo esse frio, o que não estaria sentindo Stuart? Precisavam descer até o hotel. Precisavam sentar-se à mesa juntos.

— Sabe, Stuart, nós não somos nós mesmos — disse Marklin, olhando para a cidadezinha lá embaixo, e consciente de que os outros dois tinham o olhar fixo nele. — Quando estamos reunidos, formamos uma pessoa que nenhum de nós conhece bem o suficiente, talvez, uma quarta entidade à qual deveríamos dar um nome, porque esse ser é maior do que a reunião das nossas identidades. Talvez devamos aprender a controlá-lo melhor. Mas destruí-lo agora? Não, isso não podemos fazer, Stuart. Se o fizermos, estaremos todos nos traindo uns aos outros. É uma dura verdade a ser encarada, mas a morte de Aaron não significa nada.

Jogara sua cartada final. Dissera o melhor e o pior que tinha a dizer, aqui nesse vento frio, e sem de fato premeditar, apenas com seu instinto a guiá-lo. Afinal, ele olhou para o mestre e para o amigo, e viu que os dois estavam impressionados com as suas palavras, talvez ainda mais impressionados do que ele poderia ter esperado.

— É, foi essa quarta entidade, como você a chama, que matou meu amigo — disse Stuart, tranqüilo. — Você tem razão a esse respeito. E nós sabemos que o poder, o futuro, dessa quarta entidade é inimaginável.

— Exatamente — disse Tommy, num sussurro neutro.

— Mas a morte de Aaron é uma coisa terrível, terrível! Nenhum de vocês dois jamais volte a falar a esse respeito comigo; e nunca, nunca a tratem com leviandade seja com quem for.

— De acordo — disse Tommy.

— Meu amigo inocente — disse Stuart — que procurou apenas ajudar a família Mayfair.

— Ninguém na Talamasca é realmente inocente — atalhou Tommy. Stuart pareceu assombrado, a princípio enfurecido e depois intrigado por essa simples afirmação.

— O que está querendo dizer com isso?

— Quero dizer que não se pode esperar possuir conhecimento que não mude a pessoa. Uma vez que se saiba, já se está agindo com base nesse conhecimento, quer se oculte o conhecimento daqueles que também desejariam mudar, quer se transmita o conhecimento a eles. Aaron sabia disso. A Talamasca é maléfica por natureza. É esse o preço que ela paga por suas bibliotecas, catálogos e dados informatizados. Exatamente como Deus, não se poderia dizer, que sabe que algumas das suas criaturas irão sofrer enquanto outras triunfarão, mas que não diz às suas criaturas o que sabe? A Talamasca é ainda mais maléfica do que o Ser Supremo, mas a Talamasca não cria nada.

Tão acertado, pensou Marklin, embora não pudesse ter dito uma coisa dessas em voz alta para Stuart, por medo da resposta que Stuart daria.

— Talvez você tenha razão — disse Stuart, entre dentes. Ele parecia derrotado, ou desesperado por algum ponto de vista tolerável.

— É um sacerdócio estéril — disse Tommy, com a voz mais uma vez desprovida de qualquer sentimento. Ele deu um empurrão nos óculos pesados com um dos dedos. — Os altares são áridos; as imagens ficam guardadas. Os estudiosos estudam pelo prazer de estudar.

— Não diga mais nada.

— Deixe-me falar de nós, então — prosseguiu Tommy. — Que nós não somos áridos, que veremos a realização da união sagrada e que ouviremos as vozes da lembrança.

— É — disse Marklin, incapaz de adotar uma voz tão fria. — É, nós somos os verdadeiros sacerdotes agora! Verdadeiros intermediários entre a terra e as forças do desconhecido. Possuímos as palavras e o poder.

Voltou a cair um silêncio.

Será que Marklin conseguiria um dia tirá-los daquele morro? Ele saíra vitorioso. Estavam juntos novamente, e ele ansiava pelo calor do George and Pilgrims. Ansiava pelo sabor da sopa quente e da cerveja forte, além da luz do fogo. Ansiava por celebrar. Estava novamente emocionadíssimo.

— E Tessa? — perguntou Tommy. — Como vão as coisas com Tessa?

— Na mesma — disse Stuart.

— Ela sabe que o Taltos macho morreu?

— Ela nunca soube que ele estava vivo — respondeu Stuart.

— Ah.

— Vamos, mestre — disse Marklin. — Vamos descer agora até o hotel. Vamos jantar juntos.

— É — concordou Tommy. — Nós todos estamos sentindo frio demais para continuar a falar.

Começaram a descida, tanto Tommy quanto Marklin apoiando Stuart na lama escorregadia. Quando chegaram ao automóvel de Stuart, preferiram ir de carro a fazer a longa caminhada.

— Tudo isso está muito bem — disse Stuart, entregando as chaves do carro a Marklin. — Mas eu quero visitar o Poço do Cálice como sempre, antes de irmos embora.

— Para quê? — perguntou Marklin, dando às suas palavras um tom tranqüilo, respeitoso e aparentemente expressivo do amor que sentia por Stuart. — Vai lavar as mãos no Poço do Cálice para limpá-las do sangue? A própria água de lá já é sangrenta, mestre.

Stuart deu um risinho amargo.

— É, mas aquele é o sangue de Cristo, não é?

— É o sangue da condenação — disse Marklin. — Depois do jantar, vamos até o poço, pouco antes que escureça. Eu lhe prometo.

Desceram o morro juntos, de carro.

 

MICHAEL DISSE A CLEM que queria sair pelo portão da frente. Ele traria as malas para fora. Eram só duas, a de Rowan e a dele. Não se tratava de nenhuma viagem de férias que exigisse grandes malas e bolsas de acessórios.

Ele olhou para o diário antes de fechá-lo. Havia ali uma longa explicitação da sua filosofia, escrita na noite da terça-feira de Carnaval, antes que ele pudesse sequer imaginar que seria despertado mais tarde por uma melodia lamentosa num gramofone ou pela visão de Mona dançando como uma ninfa na sua camisola branca. Com o laço na cabeça, fresca e perfumada como pão quente, leite fresco, morangos.

Não, não posso pensar mais em Mona neste momento. Vou aguardar o telefonema em Londres.

Além do mais, havia a passagem que ele queria ler:

 

E acho que acredito, em última análise, que é possível se atingir uma

paz de espírito diante dos piores horrores e das maiores perdas. Ela

pode ser atingida através da crença na mudança, na vontade e no

acaso; e através da crença em nós mesmos, que iremos com maior

freqüência agir com correção diante da adversidade.

 

Seis semanas haviam se passado desde aquela noite quando, enfermo e magoado, ele pusera por escrito esses sentimentos. Ele era um prisioneiro dessa casa naquela época, e continuara sendo até este exato momento.

Fechou o diário. Guardou-o na capa de couro, enfiou-o debaixo do braço e apanhou as malas. Desceu pela escada, um pouco nervoso por não ter nenhuma das mãos livre para se apoiar no corrimão, e dizendo a si mesmo que não ia ter agora nenhuma crise de tontura ou qualquer outra forma de fraqueza.

E se estivesse enganado a esse respeito, bem, então morreria em atividade.

Rowan estava parada na varanda da frente conversando com Ryan, eMona estava lá, com lágrimas nos olhos, que se erguiam para ele com umadevoção renovada. Ela parecia tão deliciosa usando seda quanto em qualquer outro tecido. E, quando ele olhou para ela agora, viu o que Rowan havia visto, viu como um dia ele havia sido o primeiro a ver o mesmo em Rowan: o novo volume dos seios, a coloração mais forte no rosto e um brilho nos olhos de Mona, bem como um ritmo ligeiramente diferente nos seus movimentos mais discretos.

Meu filho.

Ele acreditaria quando ela lhe desse a confirmação. Ele se preocuparia com genes e monstros quando precisasse fazê-lo. Sonharia com um filho ou uma filha nos seus braços quando houvesse uma verdadeira chance de isso acontecer.

Clem apanhou rapidamente as malas e as levou para fora do portão. Michael apreciava esse novo motorista muito mais do que o último. Gostava do seu bom humor e do seu jeito prático. Ele lembrava Michael de músicos que conhecera.

A mala do carro foi fechada. Ryan beijou Rowan nos dois lados do rosto. Só então, Michael ouviu a voz de Ryan.

— ... algo mais que você possa me contar.

— Só que esta situação não deverá se prolongar. Mas nem por um instante considere seguro dispensar os guardas. E não deixe Mona sair sozinha sob nenhuma hipótese.

— Acorrentem-me às paredes — disse Mona, dando de ombros. — Teriam feito isso com Ofélia se ela não se tivesse afogado no córrego.

— Quem? — perguntou Ryan. — Mona, até agora aceitei tudo isso muito bem, levando-se em conta que você tem treze anos de idade e...

— Fique frio, Ryan. Ninguém está aceitando tudo isso melhor do que eu mesma.

Ela deu um sorriso amarelo. Ryan estava desnorteado, com os olhos fixos nela.

Esse era o momento, calculou Michael. Ele não poderia suportar uma longa despedida ao estilo Mayfair. E Ryan já estava suficientemente confuso.

— Ryan, entro em contato com você assim que for possível — disse ele. — Vamos visitar o pessoal do Aaron. Descobrir o que pudermos. E voltar para casa.

— Agora, vocês podem me dizer exatamente para onde estão indo?

— Não, não podemos — respondeu Rowan. Ela já estava de costas, praticamente saindo pelo portão.

De repente, Mona desceu ruidosa a escada atrás dela.

— Ei, Rowan! —disse Mona, enlaçando-a pelo pescoço e a beijando.

Por um instante, Michael ficou apavorado, com receio de que Rowan não retribuísse, que ficasse parada como uma estátua à sombra dos carvalhos, sem reconhecer esse abraço súbito e desesperado e sem procurar se desvencilhar dele. No entanto, o que aconteceu foi totalmente diferente. Rowan deu um abraço apertado em Mona, beijando-a no rosto, depois afagando seu cabelo e até pousando a mão na testa de Mona.

— Vai dar tudo certo — disse Rowan. — Mas faça tudo o que eu lhe disse.

Ryan acompanhou Michael que descia a escada da frente.

— Não sei o que dizer a não ser boa sorte — disse Ryan. — Preferia que vocês me falassem mais sobre isso tudo, sobre o que realmente vão fazer.

— Diga a Bea que tivemos de ir — respondeu Michael. — Eu não diria aos outros nada além do necessário.

Ryan fez que sim, obviamente cheio de suspeitas e preocupação, mas basicamente sem ter o que fazer.

Rowan já estava dentro do carro. Michael entrou ao seu lado. Os segundos iam passando deslizantes, sob os galhos baixos das árvores, e Mona e Ryan formavam um pequeno quadro, juntos em pé no portão, a acenar. A cabeleira de Mona como uma explosão estelar e Ryan, nitidamente perplexo como sempre e cheio de incertezas.

— Parece que ele está condenado a administrar tudo para uma panelinha que nunca vai lhe dizer o que está realmente acontecendo.

— Nós tentamos um dia — disse Michael. — Você precisava estar lá. Ele não quer saber. E vai fazer exatamente o que você mandou. E Mona? Será que vai? Não faço a menor idéia. Mas ele, sim.

— Você ainda está zangado.

— Não. Deixei de ficar zangado no instante em que você cedeu.

Mas essa não era a verdade. Ele ainda estava profundamente magoado pelo fato de ela ter planejado viajar sem ele, pelo fato de Rowan não tê-lo considerado como um companheiro para essa viagem, mas como algum tipo de guardião da casa, e do bebê na barriga de Mona.

Bem, mágoa não era raiva, era?

Ela se voltou. Olhava direto para a frente, e ele teve a impressão de que talvez assim fosse seguro olhar para ela. Ainda estava muito magra, exageradamente magra, mas seu rosto nunca lhe parecera tão lindo. O costume negro que usava, as pérolas, os saltos altos, tudo isso lhe conferia um encanto ilusoriamente perverso. Mas ela não precisava dessas coisas. Sua beleza residia na sua pureza, nos ossos do seu rosto, nas sobrancelhas retas e escuras que determinavam sua expressão com tanta nitidez e na boca macia e larga que ele agora queria beijar, com um brutal desejo masculino de despertá-la, de abrir-lhe os lábios, de fazer com que elase derretesse toda nos seus braços mais uma vez, de possuí-la.

Essa era a única forma que um dia teria de possuí-la.

Ela ergueu a mão e apertou o botão acionador do painel de couro que os isolaria do motorista. Voltou-se, então, para Michael.

— Eu estava errada — disse ela, sem rancor e sem implorar perdão. — Você amava Aaron. Você me ama. E ama também a Mona. Eu estava errada.

— Você não precisa entrar nessa — respondeu ele. Era-lhe difícil encará-la nos olhos, mas ele estava decidido a fazer isso, a se acalmar interiormente, a parar de se sentir magoado, enfurecido ou fosse lá o que estivesse sentindo no momento.

— Mas uma coisa você precisa entender — disse ela. — Não pretendo ser gentil e respeitar a lei com essa gente que matou Aaron. Não pretendo dar explicações a ninguém sobre o que eu fizer, nem mesmo a você, Michael.

Ele riu. Encarou seus olhos grandes, cinzentos e frios. Perguntou-se se era isso o que os pacientes viam quando erguiam os olhos imediatamente antes de a anestesia começar a funcionar.

— Eu sei disso, querida. Quando chegarmos lá, quando nos encontrarmos com Yuri, eu quero saber o que ele sabe, e só isso. Quero estar lá com vocês dois. Não estou alegando ter as suas capacidades ou a sua coragem. Mas quero estar lá.

Ela fez que sim.

— Quem sabe, Rowan? Talvez você descubra uma finalidade para mim. — Manifestara-se a raiva. Era tarde demais para recolhê-la de volta. Ele sabia que seu rosto estava vermelho. Desviou o olhar.

Quando ela falou dessa vez, foi com uma voz secreta que nunca a ouvira usar a não ser com ele, e nos últimos meses ela havia adquirido uma nova profundidade de sentimento.

— Michael, eu amo você. Mas sei que é um bom homem. Já não sou mais uma boa mulher.

— Rowan, você não está falando sério.

— Ah, estou, sim. Eu desci ao inferno, Michael.

— E voltou — disse ele, voltando a olhar para ela, no esforço de abafar os sentimentos que estavam a ponto de explodir de dentro dele.

— Você voltou a ser Rowan e está aqui; e há coisas pelas quais viver além da vingança.

Era isso, não era? Ele não havia conseguido despertá-la do seu sono acordada. Foi a morte de Aaron que realizou o milagre, trazendo-a de volta a todos eles.

Se ele não pensasse em alguma outra coisa logo, ia perder a paciência novamente. Tão intensa era sua mágoa, tão descontrolada.

— Michael, eu amo você. Eu o amo muito. E sei o que você sofreu. Não pense que eu não sei, Michael.

Ele concordou. Esse crédito ele podia lhe dar, mas talvez estivesse mentindo para si mesmo e para ela.

— Mas não imagine saber como é ser a pessoa que eu sou. Eu estava presente no nascimento, eu fui a mãe. Seria possível se dizer que eu fui a causa, o instrumento crucial. E paguei por isso. Paguei e paguei. E agora não sou mais a mesma. Amo você como sempre amei. Meu amor por você nunca foi questionado. Mas não sou a mesma e não posso ser a mesma, e eu sabia disso quando estava sentada lá fora no jardim, sem poder responder às suas perguntas, sem poder olhar para você ou abraçá-lo. Eu sabia. E mesmo assim eu o amava, e o amo agora. Você consegue acompanhar o que eu estou dizendo?

Mais uma vez, ele fez que sim.

— Você tem vontade de me ferir, e eu sei que você tem — disse ela.

— Não, não de ferir você. Isso não. Não de machucar você, só... só... de lhe arrancar essa sainha de seda, talvez, e rasgar esse blazer que está tão perfeitamente pintado no seu corpo e fazer com que você saiba que eu estou aqui. Que eu sou Michael! Isso é vergonhoso, não é? É repugnante, não é? Que eu queira possuí-la da única forma que eu posso, porque você me excluiu, você me deixou, você...

Ele parou. Isso já lhe havia acontecido antes, que às vezes em meio a uma fúria crescente, ele percebia a futilidade daquilo que estava fazendo ou dizendo. Via o vazio da própria raiva e percebia, num relance de total praticidade que não podia continuar desse jeito. Que, se continuasse, não conseguiria nada a não ser sua própria desgraça.

Ficou imóvel e sentiu que a raiva o deixava. Sentiu que seu corpo se relaxava e estava quase cansado. Recostou-se no banco do carro. E então voltou a olhar para ela.

Ela não havia desviado os olhos. Não aparentava medo nem tristeza. Ele se perguntou se, no fundo do seu coração, ela não estaria entediada, desejando que ele estivesse em casa em segurança enquanto ela planejava os próximos passos que iria dar.

Elimine esses pensamentos, homem, porque, se não eliminar, não poderá mais amá-la, nunca mais.

E ele a amava. De repente, não havia a menor dúvida. Ele amava sua força; amava sua frieza. Era assim que havia sido em Tiburon, quando eles fizeram amor sob o teto de madeira aparente, quando eles conversaram sem parar, sem a mínima intuição possível de que, durante a vida inteira, os dois haviam se movido na direção um do outro.

Ele estendeu a mão e tocou seu rosto, muito consciente de que sua expressão não havia mudado, de que ela parecia estar no comando como sempre estivera.

— Eu amo você de verdade! — sussurrou ele.

— Eu sei.

Ele deu um riso contido.

— Você sabe? — perguntou ele. Sentiu que estava sorrindo, e isso lhe pareceu bom. Riu em silêncio e abanou a cabeça. — Você sabe!

— Sei — disse ela com um pequeno gesto de concordância. — Sinto medo por você, sempre senti. Não que você não seja forte, que não seja capaz, que não seja tudo o que deveria ser. Tenho medo porque existe em mim um poder que você não possui; e nesses outros, esses nossos inimigos que assassinaram Aaron, há um poder proveniente de uma total falta de escrúpulos. — Ela espanou um pouquinho de poeira da saia justa e curta. Quando suspirou, o ruído suave pareceu encher o carro, da mesma forma que o seu perfume.

Ela baixou a cabeça, num pequeno movimento que fez com que o cabelo caísse sedoso e como que comprido junto ao rosto. E, quando ela ergueu os olhos, as sobrancelhas pareceram especialmente longas e os olhos, bonitos e misteriosos.

— Pode chamá-lo de poder de bruxa, se quiser. Talvez seja tão simples assim. Talvez esteja nos genes. Talvez seja uma capacidade física de fazer coisas que os normais não conseguem fazer.

— Então, eu tenho esse poder — disse ele.

— Não. Você tem a espiral em dupla hélice, talvez por coincidência.

— Coincidência uma ova! Ele me escolheu para você, Rowan. Lasher fez isso. Há anos, quando eu era menino e parava no portão da sua casa, ele me escolheu. Por que você acha que ele fez isso? Não porque chegou a imaginar que eu seria um bom homem e destruiria sua carne conquistada com tanta dificuldade, não. Não foi por isso. Foi o bruxo em mim, Rowan. Nós dois descendemos da mesma raiz celta. Você sabe que sim. E eu sou filho de operário; por isso não conheço a minha história. Mas ela remonta aos mesmos primórdios que a sua. O poder existe. Ele apareceu nas minhas mãos quando eu lia o passado e o futuro ao tocar as pessoas. Ele apareceu quando eu ouvi a música tocada por um fantasma especialmente para me levar até Mona.

Ela franziu ligeiramente o cenho e seus olhos se contraíram por um átimo de segundo, voltando, então, ao seu tamanho grande, cheios de conjecturas.

— Não usei esse poder para derrotar Lasher. Estava assustado demais, com medo de usá-lo. Usei minha força de homem, e as ferramentas simples, como Julien me dissera que eu usaria. Mas o poder existe. Tem de existir. E se for isso o necessário para que você me ame, quer dizer para me amar de verdade, eu posso mergulhar no fundo de mim para descobrir exatamente o que esse poder tem condições de fazer. Essa sempre foi uma opção minha.

— Meu Michael inocente — disse Rowan, mas com o tom de uma pergunta em vez de uma declaração.

Ele abanou a cabeça. Inclinou-se para a frente e a beijou. Talvez não fosse a melhor coisa a fazer, mas não pôde se controlar. Segurou-a pelos ombros, forçou-a para trás contra o banco do automóvel e lhe cobriu a boca com a sua. Sentiu sua reação instantânea; o jeito com que seu corpo se sintonizava de imediato com o desejo, os braços que lhe subiam pelas costas, a boca que retribuía seu beijo, as costas que se arqueavam como se ela quisesse se comprimir inteira de encontro a ele.

Quando ele a soltou, foi só porque era preciso.

O automóvel seguia veloz pela rodovia. O aeroporto surgia enorme, lá adiante. E não havia tempo agora para o desejo que ele sentia, para a consumação da raiva, da mágoa e do amor, de que ele precisava com tanto desespero.

Dessa vez, foi ela quem se estendeu até ele, segurou sua cabeça com as duas mãos e o beijou.

— Michael, meu amor. Meu único amor.

— Estou ao seu lado, querida. E nunca tente mudar isso. O que tivermos de fazer, por Aaron, por Mona, pelo bebê, pela família, por seja lá quem for, faremos juntos.

 

Foi só quando já estavam sobrevoando o Atlântico que ele tentou dormir. Haviam comido como glutões, bebido um pouco além da conta e conversado durante uma hora a respeito de Aaron. Agora a cabine estava em silêncio e às escuras; e os dois estavam bem agasalhados debaixo de uma meia dúzia de cobertores.

Precisavam dormir, calculou ele. Aaron os teria aconselhado a dormir, não teria?

Aterrissariam em Londres após oito horas, e lá seria bem cedo de manhã, embora para seus corpos fosse noite. E lá estaria Yuri, ansioso por saber e com todo o direito de saber como Aaron havia morrido. Dor. Tristeza. O inevitável.

Ele estava quase cochilando, sem saber ao certo se estava entrando direto num pesadelo ou em alguma coisa vibrante e sem sentido como um mau desenho animado, quando sentiu que ela tocava seu braço.

Ele deixou a cabeça rolar na poltrona de couro quando voltou o rosto para ela. Ela estava recostada ao seu lado, com uma das mãos segurando a dele.

— Se nós virmos o fim disso tudo, Michael, se você não recuar diante do que eu fizer, se eu não o excluir...

— Sim...

— Nesse caso, nada jamais ficará entre nós. Ninguém, nunca. E qualquer coisa que você possa ter tido com uma garotinha estará acabada.

— Não quero saber de garotinhas. E nunca quis. Não sonhei com outras mulheres enquanto você esteve longe. Amo Mona ao meu modo, e sempre vou amar, mas isso faz parte do que nós somos, todos nós. Eu a amo e quero a criança. Quero tanto esse filho que nem quero falar sobre isso. É cedo demais. Estou desesperado demais. Mas só desejo você, e isso vale desde o dia em que estive com você pela primeira vez.

Ela fechou os olhos, com a mão ainda quente a lhe apertar o braço e depois a afastou com muita naturalidade, como se tivesse caído no sono. O rosto parecia sereno e totalmente perfeito.

— Você sabe que eu já tirei a vida — disse ele, num sussurro. Mas não sabia ao certo se ela ainda estava acordada. — Tirei a vida três vezes, e saí desses atos sem remorso. Isso muda qualquer um.

Nenhuma resposta dos lábios de Rowan.

— Posso fazer isso de novo, se for necessário.

Seus lábios se mexeram.

— Sei que você pode — disse ela, baixinho, sem abrir os olhos, ainda recostada como se estivesse num sono profundo. — Mas veja bem, eu vou fazê-lo quer seja necessário quer não. Fui mortalmente atingida.

Ela se aproximou e o beijou novamente.

— Nós não vamos agüentar até Londres — disse ele.

— Estamos sozinhos em toda a primeira classe — disse ela, erguendo as sobrancelhas e o beijando de novo. — Uma vez eu estava viajando de avião quando um certo tipo de amor se manifestou para mim. Pode-se dizer que foi o primeiro beijo de Lasher. Era algo elétrico, selvagem. Mas eu quero os seus braços, Michael. Quero o seu pau. Quero o seu corpo! Não posso esperar até Londres. Vamos.

Chega de palavras, pensou ele. Graças a Deus ela havia aberto o blazer, ou ele poderia ter arrancado os botões no conhecido estilo romântico.

 

NÃO ESTAVA TÃO MUDADO ASSIM. Ficava no seu bosque ou parque, sem portões trancados ou cães a protegê-lo, um imponente solar com belas janelas em arco e inumeráveis chaminés, suntuosamente grandes e suntuosamente bem cuidadas. Dava para imaginar os velhos tempos, olhando-se para ele. Sua brutalidade e sua escuridão, seu fogo específico: tudo isso respirava fundo e sibilava na noite vazia.

Só os automóveis ao longo do caminho de cascalho, os automóveis estacionados nas garagens abertas em longas fileiras, denunciavam a era atual. Até mesmo os fios e cabos eram subterrâneos.

Ele caminhou por entre as árvores, aproximou-se dos alicerces e depois seguiu ao longo das pedras, à procura das portas de que se lembrava. Não estava usando terno nem sobretudo agora, mas apenas roupas simples, calças compridas de operário de veludo cotelê marrom e um grosso suéter de lã, o preferido dos marinheiros.

A casa pareceu crescer imensa à medida que ele se aproximava. Salpicadas por toda ela, luzes fracas e solitárias, mas mesmo assim luzes. Estudiosos nas suas celas.

Por uma série de pequenas janelas gradeadas, ele viu uma cozinha no porão. Duas cozinheiras vestidas de branco estavam pondo o pão sovado para descansar. E a farinha branca cobria suas mãos e a madeira clara do balcão. Subia desse aposento o aroma de café, fresco e delicioso. Havia uma porta... uma porta para entregas e coisas semelhantes. Ele prosseguiu, saindo da proveitosa iluminação das janelas, a tatear a parede de pedra com as mãos até chegar a uma porta, embora ela não tivesse sido usada recentemente e aparentasse não permitir passagem.

Valia a pena tentar. E ele viera equipado. Talvez ela não estivesse provida de alarmes como qualquer porta dele próprio estaria. Na realidade, ela aparentava estar negligenciada e esquecida. Ao examiná-la, viu que ela não tinha nenhum tipo de fechadura, mas somente velhas dobradiças, muito enferrujadas, e uma simples aldrava.

Para seu espanto, ela se abriu a um toque seu e deu um rangido preguiçoso que o surpreendeu e o amedrontou. Havia uma passagem de pedra e uma pequena escada que subia. Pegadas recentes na escada. Um bafo de ar morno e ligeiramente viciado, o ar de dentro de casa no inverno.

Ele entrou e fechou. Uma luz vinha do alto da escada para iluminar um cartaz escrito com esmero, com os dizeres, NÃO DEIXE ESTA PORTA ABERTA.

Obediente, ele se certificou de que ela estava fechada. Voltou-se, então, subiu pela escada e chegou a um corredor amplo, com lambris escuros.

Era esse o corredor que se lembrava. Seguiu por ele, sem procurar abafar o ruído dos seus tênis ou se esconder nas sombras. Aqui ficava a biblioteca acadêmica das suas lembranças; não aquele arquivo secreto de registros valiosíssimos, que se esfarelavam, mas a sala de leitura diária, com longas mesas de carvalho e poltronas confortáveis; com pilhas de revistas de todas as partes do mundo e uma lareira apagada, ainda morna sob seus pés, com algumas brasas espalhadas ainda luzindo em meio a achas carbonizadas e cinzas.

Ele havia imaginado que o lugar estaria vazio mas, ao inspecioná-lo melhor, viu um velho cochilando numa poltrona, um indivíduo atarracado, careca, com pequenos óculos na ponta do nariz e um roupão elegante sobre a camisa e as calças.

Não seria conveniente começar aqui. Seria fácil demais acionar um alarme. Ele saiu dali recuando, com cuidado para não fazer barulho agora e sentindo com sorte por não ter acordado o homem. Seguiu, então, para uma grande escadaria.

Os quartos de dormir começavam no terceiro andar antigamente. Seria o mesmo agora? Subiu direto. Era sem dúvida provável.

Quando chegou ao final do corredor do terceiro andar, dobrou para outro pequeno corredor e vislumbrou luz por debaixo de uma porta. Resolveu que começaria por ali.

Sem bater, ele girou a maçaneta e entrou num quarto pequeno porém elegante. A única ocupante era uma mulher de cabelos grisalhos, que ergueu os olhos da mesa com um espanto óbvio mas sem medo.

Era exatamente isso o que ele havia esperado. Aproximou-se da mesa.

Havia ali um livro aberto sob a sua mão direita, ela estivera sublinhando palavras nele.

Era Boécio. De topicis differetiis. E ela havia sublinhado a frase, ¨O silogismo é um discurso no qual, depois que certos pontos foram estabelecidos e aceitos, um outro ponto diferente dos que foram aceitos deve resultar a partir dos pontos aceitos¨. Ele riu.

— Desculpe — disse ele à mulher.

Ela olhava para ele e não havia nenhum movimento desde que ele entrara.

— É verdade, mas é engraçado, não é? Eu havia esquecido.

 — Quem é você? — perguntou ela.

A rouquidão da sua voz, talvez a manifestação da idade, deixou-o espantado. Seus cabelos grisalhos eram pesados e ela os usava num coque antiquado atrás da cabeça em vez do corte curto e assexuado da moda atual.

 — Estou sendo grosseiro, eu sei. Sempre sei quando estou sendo grosseiro, e peço que me perdoe.

 — Quem é você? — voltou ela a perguntar, usando quase exatamente o mesmo tom de voz de antes, mas inserindo uma pausa após cada palavra para dar ênfase.

— O que eu sou? Essa é a pergunta mais importante. Sabe o que eu sou?

— Não — disse ela. — E eu deveria saber?

— Não sei. Olhe para as minhas mãos. Veja como são longas e magras.

— Delicadas — disse ela, com a mesma voz rouca, com os olhos passando rapidamente para as mãos e depois voltando para o rosto. — Por que entrou aqui?

— Meus métodos são os de uma criança. Essa é a minha única forma de agir.

 — E daí?

— Você sabia que Aaron Lightner faleceu?

Ela o encarou por um instante e depois se recostou na cadeira, com a mão direita soltando o marcador verde. Desviou o olhar. Era uma terrível revelação para ela.

  — Quem lhe disse? — perguntou ela. — Será que todos sabem?

— Aparentemente não.

— Eu sabia que ele não voltaria — disse ela, apertando os lábios de tal forma que as rugas fundas acima da sua boca ficaram muito nítidas e escuras por um instante. — Por que veio aqui para me dizer isso?

— Para ver o que você diria. Para saber se você teve ou não teve alguma coisa a ver com sua morte.

— O quê?

— Você ouviu o que eu disse, não ouviu?

— Com sua morte? — Ela se levantou lentamente da cadeira e lhe lançou um olhar cruel, especialmente agora que percebia como era alto. Olhou para aporta, na realidade parecia pronta a ir naquela direção, mas ele levantou a mão com delicadeza, pedindo-lhe que tivesse paciência.

Ela avaliou esse gesto.

— Você está dizendo que Aaron Lightner foi morto por alguém? — perguntou ela. Suas sobrancelhas ficaram pesadas, enrugadas, acima da armação prateada dos óculos.

— É. Assassinado. Atropelado criminosamente por um carro. Morto.

A mulher fechou os olhos desta vez, como se, na impossibilidade de sair, ela se permitisse nutrir os sentimentos adequados. Ficou olhando direto para a frente, sem expressão, aparentemente sem considerar que ele estava parado ali, e depois ergueu os olhos.

— As bruxas Mayfair — disse num sussurro rouco e profundo. — Meu Deus, por que ele foi até lá?

— Acho que não foram elas — disse ele.

— Quem então?

— Alguém daqui, da Ordem.

— Não está querendo dizer isso! Não sabe o que está dizendo. Nenhum de nós faria uma coisa dessas.

— A verdade é que eu sei muito bem o que estou dizendo. Yuri, o cigano, disse que foi um de vocês, e Yuri não mentiria numa questão dessas. Yuri não mente, ao que eu saiba, ele não mente nunca.

— Yuri. Você esteve com Yuri? Sabe onde ele está?

— Você não sabe?

— Não. Ele foi embora numa noite. É só isso o que todos sabem. Onde ele está?

— Está em segurança, embora só por acaso. Os mesmos vilões que mataram Aaron também tentaram matá-lo. Tinham de acabar com ele.

— Por quê?

— Você desconhece tudo isso? — Ele estava satisfeito.

— Claro! Espere. Onde está indo?

— Estou saindo, para ir procurar os assassinos. Ensine-me o caminho até o superior geral. Antigamente eu o conhecia, mas as coisas mudam. Preciso vê-lo.

Ela não esperou que ele pedisse pela segunda vez. Passou correndo por ele e acenou para que a acompanhasse. Seus saltos grossos batiam barulhentos no piso encerado enquanto ela seguia, decidida, pelo corredor, com a cabeça grisalha baixa, e as mãos balançando com naturalidade.

Pareceu que não paravam de andar, até que chegaram à extremidade oposta do corredor principal. Portas duplas. Ele se lembrava delas. Só que antigamente elas não eram limpas e lustradas até brilhar, mas cobertas por camadas de tinta a óleo velha.

Ela bateu na porta com força. Poderia acordar a casa inteira. Mas ele não conhecia nenhum outro jeito de fazer o que queria.

Quando a porta se abriu, ela entrou e depois se voltou de forma bem marcante para revelar ao homem que estava ali dentro que não estava sozinha.

O homem olhou para fora cheio de desconfiança. Quando viu Ash, seu rosto transformou-se, passando do espanto para o choque e para um sigilo imediato.

— Você sabe o que eu sou, não sabe? — disse Ash, baixinho.

Ele entrou rapidamente no aposento e fechou as portas atrás de si. Era um gabinete amplo com um quarto anexo. Havia uma certa confusão, abajures espalhados com lâmpadas fracas, lareira vazia.

A mulher o olhava com a mesma expressão feroz. O homem recuara como se quisesse se livrar de algum perigo.

— É, você sabe — disse Ash. — E você sabe que mataram Aaron Lightner.

O homem não se surpreendeu, só demonstrou estar profundamente alarmado. Ele era grande e corpulento, mas gozava de boa saúde, e dava a impressão de um general indignado que sabe estar correndo perigo. Ele sequer tentou fingir surpresa. A mulher percebeu.

— Eu não sabia que iam fazer isso. Disseram que você estava morto, que havia sido destruído.

— Eu?

O homem recuou mais. Estava agora apavorado.

— Não fui eu quem deu a ordem para matar Aaron. Nem sei qual foi o objetivo dessa ordem, ou por que motivo queriam você aqui. Não sei de praticamente nada.

— O que isso tudo significa, Anton? — perguntou a mulher. — Quem é essa pessoa?

— Pessoa. Pessoa. Que palavra mais imprópria — disse o homem chamado Anton. — Você está olhando para uma coisa que...

— Diga-me qual foi a sua participação na história — disse Ash.

— Nenhuma! Eu sou o superior geral aqui. Mandaram-me para cá para que eu me encarregasse de que os desejos dos Anciãos fossem concretizados.

— Independentemente da natureza desses desejos?

— Quem é você para me questionar?

— Você deu ordens aos seus homens no sentido de que lhe trouxessem o Taltos?

— Dei, mas foi isso o que os Anciãos me mandaram fazer! Do que está me acusando? O que eu fiz para que você viesse aqui, a exigir respostas de mim? Os Anciãos escolheram os homens, eu não. — O homem respirou fundo, examinando Ash o tempo todo, examinando os pequenos detalhes do seu corpo. — Você não se dá conta da minha situação? Se Aaron Lightner sofreu algum mal, você não percebe que esse era o desejo dos Anciãos?

— Você aceita isso. Será que alguém mais aceita?

— Ninguém mais sabe, e ninguém deve saber — disse o homem, indignado.

A mulher abafou um grito. Talvez tivesse esperanças de que Aaron não estivesse morto, afinal de contas. Agora ela sabia.

— Tenho de informar os Anciãos da sua presença aqui — disse o homem. — Preciso anunciar o seu aparecimento imediatamente.

— Como vai fazer isso?

O homem indicou o equipamento de fax em cima da mesa. O gabinete era amplo. Ash mal percebera isso. A máquina de fax era cheia de luzes brilhantes e bandejas para papel. A mesa tinha muitas gavetas. Era provável que uma delas escondesse uma arma.

— Devo notificá-los imediatamente — disse o homem. — Você terá de me dar licença.

— Acho que não — disse Ash. — Você é corrupto. Você não tem nada de bom. Isso eu posso ver. Você enviou homens da Ordem para praticar o mal.

— Recebi ordens dos Anciãos.

— Ordens? Ou pagamento?

O homem emudeceu. Olhou, em pânico, para a mulher.

— Ligue pedindo ajuda — disse ele. Voltou-se então para Ash. — Eu disse que eles tinham de trazê-lo para cá. O que aconteceu não foi minha culpa. Os Anciãos disseram que eu devia vir para cá para fazer o que tinha de ser feito, a qualquer preço.

Mais uma vez, a mulher ficou visivelmente chocada.

— Anton — disse ela, baixinho, sem se mexer para apanhar o telefone.

— Vou lhe dar uma última chance de me dizer alguma coisa que me impeça de matá-lo — disse Ash. Era uma mentira. Ele percebeu isso assim que as palavras lhe saíram da boca; mas, por outro lado, talvez o homem dissesse alguma coisa.

— Que audácia! — disse o homem. — Basta que eu erga minha voz, e virão em meu auxílio.

— Então, pode gritar! — disse Ash. — Essas paredes são grossas, mas você deveria tentar.

— Vera, chame pedindo socorro! — gritou ele.

— Quanto eles lhe pagaram? — perguntou Ash.

— Você não sabe de nada a respeito disso.

— Ah, mas eu sei. Você sabe o que eu sou, mas sabe pouquíssimo além disso. Sua consciência está decrépita e inútil. E você está com medo de mim. Além disso, está mentindo. É, está mentindo. Com toda a probabilidade, deve ter sido fácil corrompê-lo. Ofereceram-lhe promoção e dinheiro, e assim você cooperou com algo que sabia ser maléfico.

Ele olhou para a mulher que estava evidentemente horrorizada.

— Isso já aconteceu antes na sua Ordem — disse-lhe.

— Ponha-se daqui para fora! — disse o homem. Gritou por socorro, com a voz parecendo muito forte no aposento fechado. Voltou a gritar, mais alto.

— Pretendo matá-lo — disse Ash.

— Espere — exclamou a mulher com as mãos estendidas. — As coisas não podem ser feitas desse modo. Não há necessidade. Se algum mal proposital atingiu Aaron, devemos convocar o conselho imediatamente. Nesta época do ano a casa está cheia de membros antigos. Convoque o conselho agora. Eu o acompanharei.

— Pode convocá-lo quando eu me for. Você é inocente. Não pretendo matá-la. Mas você, Anton, sua cooperação foi necessária para o que ocorreu. Você foi comprado. Por que não admite esse fato para mim? Quem o subornou? Suas ordens não vinham dos Anciãos.

— Vinham, sim.

O homem tentou escapar. Ash esticou-se, agarrando o homem com facilidade graças ao extraordinário comprimento dos seus braços, e fechou os dedos em volta da garganta, talvez com mais força do que um ser humano poderia ter feito. Ele começou a lhe tirar a vida com a máxima rapidez possível, esperando que sua força fosse suficiente para quebrar o pescoço do homem, mas não era.

A mulher se afastara. Ela apanhou o telefone e agora falava nervosíssima. O rosto do homem estava vermelho; os olhos, esbugalhados. Quando ele perdeu a consciência, Ash apertou com maior força ainda até ter certeza de que o homem estava morto e não se levantaria do chão, ofegante, como às vezes acontecia. Ele deixou o homem cair.

A mulher largou o fone.

— Diga-me o que aconteceu! — gritou ela. Era quase um berro. — Diga-me o que aconteceu a Aaron! Quem é você?

Ash ouvia gente correndo no corredor.

— Depressa, preciso do número através do qual eu possa entrar em contato com os Anciãos.

— Isso eu não posso lhe dar — disse ela. — Esse número é de nosso conhecimento exclusivo.

— Minha senhora, não seja tola. Acabei de matar esse homem. Faça o que lhe peço.

Ela não se mexeu.

— Faça isso por Aaron e por Yuri Stefano.

Ela olhou para a mesa, levando a mão à boca e depois apanhou uma caneta, escreveu algo rapidamente num pedaço de papel branco e o empurrou na sua direção.

Batiam nas portas duplas.

Olhou para a mulher. Não havia tempo para mais nenhuma conversa.

Ele se voltou e abriu as portas, para encarar um grande grupo de homens e mulheres que acabava de parar ali, para se arrumar ao seu redor e olhar para ele.

Aqui estavam alguns que eram velhos, outros bem jovens, cinco mulheres, quatro homens e um rapaz muito alto, mas ainda quase imberbe. O velho da biblioteca estava entre eles.

Ele fechou as portas atrás de si, esperando retardar a mulher.

— Vocês, qualquer um de vocês, sabem quem eu sou? — perguntou Ash. Ele olhava rapidamente de um rosto para o outro, com os olhos passando velozes repetidamente até ele ter certeza de ter gravado as feições de cada pessoa. — Vocês sabem o que eu sou? Respondam-me, por favor, se souberem.

Nenhum deles lhe deu nada a não ser uma expressão intrigada. Ele ouvia a mulher chorando dentro do gabinete, um soluçar denso, pesado, bastante parecido com a sua fala, tornado áspero pela idade.

Agora o alarme estava se espalhando pelo grupo. Mais um rapaz chegava.

— Precisamos entrar aí — disse uma das mulheres. — Precisamos ver o que aconteceu aí dentro.

— Mas vocês me conhecem? Você! — Ash agora falava com o recém-chegado. — Você sabe o que eu sou e por que motivo eu poderia ter vindo aqui?

Nenhum deles sabia. Nenhum deles sabia de nada. E, no entanto, eles eram gente da Ordem, todos estudiosos. Não havia nenhum criado entre eles. Homens e mulheres no apogeu da vida.

A mulher no gabinete atrás dele começou a mexer nas maçanetas das portas e depois as abriu com violência. Ash deu um passo para o lado.

— Aaron Lightner morreu! — gritou ela. — Aaron foi assassinado.

Houve arquejos, gritos contidos de consternação e surpresa. Mas em toda a sua volta, havia inocência. O velho da biblioteca pareceu ferido de morte pela notícia. Inocente.

Era hora de sair dali.

Ash abriu caminho em meio ao grupo pouco compacto, com rapidez e decisão, e correu para a escada, descendo de dois em dois degraus antes que qualquer um o seguisse. A mulher berrou para que o detivessem, para que não o deixassem escapar. Mas ele dispunha de uma boa vantagem, e suas pernas eram muito mais longas do que as deles.

Ele chegou à saída lateral antes que seus perseguidores alcançassem o topo da pequena escada.

Saiu pela noite afora, a caminhar rápido pela grama molhada. E depois, olhando de relance para trás, começou a correr. Correu até atingir a cerca de ferro, que pulou com facilidade, e então andou até o carro. Fez um gesto apressado para que o motorista abrisse a porta para ele e saísse dali imediatamente.

Sentou-se relaxado enquanto o carro adquiria velocidade cada vez maior na rodovia desimpedida.

Leu os números de fax escritos pela mulher num pedaço de papel. Era um número fora da Inglaterra e, se a memória não lhe falhava, era de Amsterdã.

Soltou o telefone preso ao seu lado na porta do automóvel e digitou o número da telefonista internacional.

É, Amsterdã.

Gravou o número de cor, ou pelo menos tentou, e dobrou o papel para enfiá-lo no bolso.

 

Quando chegou de volta ao hotel, ele anotou o número de fax, pediu o jantar, tomou banho imediatamente e ficou olhando, paciente, enquanto os garçons do hotel serviam uma grande refeição para ele numa mesa com toalha de linho. Seus auxiliares, incluindo-se a jovem e bonita Leslie, estavam por ali ansiosos.

— Quero que procure para mim outro local de residência assim que amanheça — disse a Leslie. — Um hotel tão bom quanto este, mas algo muito mais espaçoso. Preciso de um gabinete com algumas linhas telefônicas. Venha me buscar só quando tudo estiver acertado.

A jovem Leslie pareceu cheia de alegria de receber tal missão e autoridade, e lá se foi ela com os outros a reboque. Ele dispensou os garçons e começou a consumir a refeição de massa suntuosa em molho branco, muito leite gelado e carne de lagosta, que ele não apreciava, mas que era, mesmo assim, branca.

Deitou-se, depois, no sofá, ouvindo em silêncio o crepitar do fogo e talvez esperando por uma chuvinha delicada.

Também esperava que Yuri voltasse. O que não era provável. Mas ele insistira em que ficassem no Claridge's para a eventualidade de Yuri voltar a confiar neles.

Afinal, Samuel chegou, tão bêbado que cambaleava. O paletó de tweed, jogado sobre o ombro e a camisa branca, amarrotada. Só agora Ash percebia que a camisa era sob medida, da mesma forma que o terno, Para servir no corpo grotesco de Samuel.

Samuel deitou-se junto ao fogo, desajeitado como uma baleia. Ash levantou-se, apanhou algumas almofadas macias do sofá e as colocou sob a cabeça de Samuel. O anão abriu os olhos, mais do que o normal, aparentemente. Seu hálito recendia a bebida. Sua respiração vinha resfolegante, mas nada disso repelia Ash, que sempre adorara Samuel.

Pelo contrário, ele poderia ter debatido com qualquer pessoa no mundo que Samuel tinha uma beleza entalhada, de rocha, mas de que isso adiantaria?

— Você encontrou Yuri? — perguntou Samuel.

— Não — disse Ash, que permaneceu apoiado num dos joelhos de modo a poder falar com Samuel quase num sussurro. — Não o procurei, Samuel. Onde é que eu ia começar em Londres inteira?

— É verdade, não há fim nem começo — disse Samuel, com um profundo suspiro de frustração. — Olhei por todos os lugares onde estive. De bar em bar em bar. Receio que ele tente voltar. Vão procurar matá-lo.

— Ele agora tem muitos aliados — disse Ash. — E um dos seus inimigos morreu. A Ordem inteira foi avisada. Isso deve ser bom para Yuri. Eu matei o superior geral.

— Em nome de Deus, por que foi fazer isso? — Samuel forçou-se a se apoiar no cotovelo e lutou para chegar a uma posição ereta, mas Ash afinal precisou ajudá-lo.

Samuel ficou ali sentado, com os joelhos dobrados, olhando carrancudo para Ash.

— Bem, fiz isso porque o homem era corrupto e mentiroso. Não pode existir corrupção na Talamasca que não seja perigosa. E ele sabia o que eu era. Ele acreditou que eu fosse Lasher. Usou o nome dos Anciãos como motivo para o que fez quando ameacei tirar-lhe a vida. Nenhum membro leal teria mencionado os Anciãos para alguém de fora, ou dito coisas que fossem tão defensivas e óbvias.

— E você o matou.

— Com as minhas mãos, como sempre faço. Foi rápido. Ele não sofreu muito, e eu vi muitos outros. Nenhum deles sabia o que eu era. Por isso, o que se pode dizer? A sujeira está perto do topo, talvez esteja no próprio topo, e não penetrou de modo algum nas fileiras. Se penetrou, foi de alguma forma confusa. Eles não reconhecem um Taltos ao vê-lo, mesmo quando têm ampla oportunidade de estudar o espécime.

— Espécime — repetiu Samuel. — Quero voltar para o vale.

— Você não quer me ajudar para que o vale permaneça sendo um local seguro onde seus amiguinhos repugnantes possam dançar, tocar suas gaitas e matar humanos confiantes para derreter a gordura dos seus ossos em tachos?

— Você tem uma língua cruel.

— Tenho? Talvez tenha mesmo.

— O que vamos fazer agora?

— Não sei qual será o próximo passo. Se Yuri não tiver voltado antes de amanhecer, creio que devemos sair daqui.

— Mas eu gosto do Claridge's — resmungou Samuel. Ele se deixou cair, e seus olhos se fecharam no instante em que ele atingiu a almofada.

— Samuel, refresque minha memória — disse Ash.

— A respeito do quê?

— O que é um silogismo?

Samuel riu.

— Refrescar sua memória? Você nunca soube o que era um silogismo. O que sabe de filosofia?

— Sei demais — disse Ash, procurando relembrar sozinho. Todos os homens são animais. Os animais são selvagens. Portanto, todos os homens são selvagens.

Ele entrou no quarto e foi se deitar na cama.

Por um instante, viu novamente a bruxa de belos cabelos, a amada de Yuri. Imaginou que seus seios nus faziam uma pressão delicada no seu rosto, e que sua cabeleira cobria os dois como um grande manto.

Adormeceu, então, profundamente. Sonhou que estava passeando pelo museu de bonecas no seu prédio. O piso de mármore acabava de ser encerado. Ele via todas as inúmeras cores e como as cores se alteravam dependendo da cor que estava imediatamente próxima a elas. Todas as bonecas nas vitrinas de vidro começaram a cantar: as modernas, as antigas, as grotescas, as lindas. As francesas dançavam e balançavam seus pequenos vestidos em forma de campânula, com seus rostinhos redondos cheios de alegria; e as estupendas bonecas Bru, suas rainhas, suas rainhas mais queridas, cantavam num soprano agudo, com seus olhos de vidro pesado cintilando à luz fluorescente. Ele nunca ouvira uma música daquelas. Estava tão feliz.

Faça bonecas que cantem, pensou ele nesse sonho. Bonecas que realmente cantem, não como as antigas que eram brinquedos mecânicos imperfeitos, mas bonecas com vozes eletrônicas que cantem para sempre. E quando o mundo terminar, as bonecas ainda cantarão em meio às ruínas.

 

— NÃO HÁ NENHUMA DÚVIDA — disse a Dra. Salter, pondo a pasta de papel pardo na beirada da mesa. — Mas não aconteceu há seis semanas.

— Por que está dizendo isso? — perguntou Mona. Ela detestava aquela salinha de exames porque ali não havia janelas. Dava-lhe a impressão de que ia se sufocar.

— Porque você já está com uns três meses, só por isso. — A médica aproximou-se da mesa. — Olhe, quer sentir o bebê? Dê-me sua mão.

Mona deixou que ela levantasse seu pulso e posicionasse a mão na sua barriga.

— Aperte bem. Está sentindo? É o bebê. Por que você acha que está usando essa roupa solta? Você não agüenta nada apertado na cintura, não é verdade?

— Olhe, uma tia minha comprou essas roupas para mim. Elas estavam ali penduradas, ou melhor, ela estava ali pendurada. — O que era mesmo, droga, ah, claro, linho, preto para enterros, ou para ficar elegante com lindos sapatos de amarrar, de salto alto, em preto e branco. — A gravidez não pode estar tão adiantada assim. Simplesmente não é possível.

— Vá para casa e verifique seus registros no computador, Mona. Você está com três meses.

Mona se sentou e pulou da cama, alisando a saia preta e calçando rapidamente os sapatos elegantes. Não precisava amarrar ou desamarrar. Apesar de que tia Gifford teria dado berros se a tivesse visto enfiando o pé daquele jeito num sapato caro.

— Preciso ir. Estão me esperando num enterro.

— Não o daquele pobre homem que se casou com sua prima, o que foi morto pelo carro?

— É, esse mesmo. Ouça, Annelle, será que podemos fazer um daqueles exames em que se vê o feto?

— Claro, e ele vai confirmar exatamente o que estou lhe dizendo, que você já está com umas doze semanas. Agora preste atenção, você tem de tomar todos os suplementos que eu receitei. Um corpo de treze anos não está pronto para ter um bebê.

— Está bem, quero marcar uma hora para o exame em que se vê o bebê. — Mona começou a se dirigir para a porta e já estava com a mão na maçaneta quando parou. — Pensando bem, prefiro não fazer esse exame.

— Qual é o problema?

— Não sei. Vamos deixá-lo em paz um pouco. Os exames podem assustar, não é?

— Meu Deus, você está ficando branca.

— Não estou não. Só estou quase desmaiando como as mulheres nos filmes.

Ela saiu, passando pelo pequeno consultório atapetado e pela porta, embora a médica a estivesse chamando. A porta fechou-se pesadamente, e ela atravessou apressada o saguão envidraçado.

O carro estava esperando junto ao meio-fio. Ryan estava parado ao lado, de braços cruzados. Trajado em azul-escuro para o enterro, ele apresentava quase a mesma aparência de sempre, só que seus olhos estavam lacrimejantes e ele, evidentemente, cansado. Abriu a porta para ela.

— Bem, o que disse a Dra. Salter? — perguntou ele, voltando-se para olhar para ela dos pés à cabeça, e com atenção.

Ela realmente desejava que todos parassem de olhar para ela.

— Estou grávida mesmo — disse Mona. — Está tudo bem. Vamos sair daqui.

— Já vamos. Você está triste? Talvez esteja começando a se dar conta de tudo isso.

— Claro que não estou triste. Por que haveria de estar? Estou pensando em Aaron. Alguém ligou? Michael ou Rowan?

— Não, ainda não. É provável que estejam dormindo agora. O que está havendo, Mona?

— Ryan, fique frio, está bem? As pessoas não param de me perguntar oque está havendo. Não está havendo nada. É que as coisas estão acontecendo... com uma velocidade terrível.

— Você está com uma expressão muito atípica — disse Ryan. — Você parece assustada.

— Não, só estou me perguntando como vai ser. Meu próprio filho. Você falou com todo mundo, não falou? Nada de sermões ou repreensões.

— Não foi preciso, Mona. Você é a herdeira indicada. Ninguém vai lhe dizer nada. Se houvesse a probabilidade de alguém dizer, esse alguém seria eu, mas eu não consigo me forçar a fazer as preleções necessárias, a fazer os habituais avisos e advertências.

— Melhor assim — disse ela.

— Já perdemos tantas vidas, e esta aí é novinha em folha. Eu a encaro como uma chama e estou sempre querendo pôr minhas mãos à sua volta para protegê-la.

— Você não está regulando bem, Ryan. Está cansado de verdade. Precisa descansar um pouco.

— Você quer me contar agora?

— Contar o quê?

— A identidade do pai, Mona. Você planeja nos contar, nãoé? Foi seuprimo David?

— Não, não foi David. Pode esquecer David.

— Yuri?

— O que é isso? Um jogo de adivinhações? Eu sei quem é o pai, se é isso o que quer saber, mas não quero falar nisso agora. E a identidade do pai pode ser confirmada assim que o bebê nascer.

— Antes também.

— Não quero ninguém enfiando agulhas no meu bebê! Não quero nenhum tipo de ameaça contra ele. Já lhe disse que sei quem é o pai. Vou lhe contar quando... quando eu achar que chegou a hora.

— É Michael Curry, não é?

Ela se virou e olhou furiosa para ele. Tarde demais agora para rebater a pergunta. Ele já vira a resposta no seu rosto. E parecia tão exausto, tão desprovido da sua fibra habitual. Era como um homem submetido a medicamentos fortes, um pouco perplexo e mais franco do que de costume. Era bom que estivessem na limusine, e que ele não estivesse dirigindo. Entraria direto numa cerca.

— Gifford me contou — disse ele, falando devagar, no mesmo estilo dopado. Olhou pela janela. Passavam lentamente por St. Charles Avenue, pelo seu trecho mais bonito de mansões mais novas e árvores antiqüíssimas.

— Gifford, de volta? Gifford lhe contou? Ryan, você está se sentindo bem? — O que aconteceria com esta família se Ryan ficasse maluco? Ela já tinha preocupações suficientes sem mais essa. — Ryan, responda.

— Foi um sonho que tive ontem à noite — disse ele, afinal voltando-se para ela. — Gifford disse que o pai era Michael Curry.

— Gifford estava alegre ou triste?

— Alegre ou triste. — Ele refletiu. — Na verdade, não me lembro.

— Ah, mas isso é uma maravilha. Mesmo agora que ela morreu, ninguém presta atenção ao que ela diz. Ela aparece num sonho, e você nem presta atenção.

Isso o surpreendeu, mas só um pouco. Ele não se ofendeu, ao que ela pudesse notar. Quando olhou para ela, seus olhos estavam distantes e muito tranqüilos.

— Foi um lindo sonho, um bom sonho. Nós estávamos juntos.

— E como é que ela estava? — Havia algo de errado com ele. Estou sozinha, pensou ela. Aaron foi assassinado. Bea precisa do nosso carinho. Rowan e Michael ainda não ligaram. Nós todos estamos apavorados. E agora Ryan está divagando. E talvez, talvez seja melhor assim.

— Como estava Gifford? — perguntou ela novamente.

— Bonita como sempre. Ela sempre me pareceu a mesma, sabe? Aos vinte e cinco, aos trinta e cinco e mesmo aos quinze. Ela era a minha Gifford.

— O que ela estava fazendo?

— Por que você quer saber?

— Eu acredito em sonhos. Ryan, por favor, conte para mim. Procure se lembrar. Gifford estava fazendo alguma coisa?

Ele encolheu os ombros e deu um sorrisinho.

— Ela estava cavando um buraco, na verdade. Acho que era à sombra de uma árvore. Creio que era o carvalho de Deirdre. É, era ali mesmo, e a terra formava montes altos em toda a sua volta.

Por um instante, Mona não respondeu. Estava tão abalada que não confiava na própria voz.

Ele voltou a devanear, olhando pela janela, como que esquecido de que estavam conversando.

Ela sentiu uma dor na cabeça, muito intensa, nas duas têmporas. Talvez o movimento do automóvel a estivesse enjoando. Isso acontecia quando se estava grávida, mesmo que o bebê fosse normal.

— Tio Ryan, não posso ir ao enterro de Aaron — disse ela, de repente. — O carro está me provocando enjôos. Eu quero ir mas não posso. Preciso ir para casa. Sei que parece uma tolice, egoísmo meu, mas...

— Vou levá-la direto para casa — disse ele, cavalheiresco. Ele estendeu a mão e apertou a tecla de comunicação interna. — Clem, leve Mona para First Street. — Ele desligou o microfone. — Você realmente quis dizer First Street, não é?

— É, claro que sim — disse Mona. Ela prometera a Rowan e Michael que se mudaria para lá imediatamente, e já se mudara. Além do mais, a casa era mais seu lar do que a de Amelia Street, sem a presença da mãe e com o pai agora bêbado de cair, só se levantando eventualmente à noite para procurar suas garrafas, seus cigarros ou sua falecida mulher.

— Vou chamar Shelby para ficar com você — disse Ryan. — Se Beatrice não precisasse de mim, eu mesmo ficaria.

Estava muito preocupado. A situação estava totalmente diferente. Ele estava decidido a paparicá-la, como costumava fazer quando ela era bem pequena e Gifford a vestia como uma boneca. Ela devia ter sabido que ele reagiria assim. Ele adorava bebês. Adorava crianças. Todos eles adoravam.

E para eles eu não sou mais uma criança, de forma nenhuma.

— Não, não preciso de Shelby. Quer dizer, quero ficar sozinha. Sozinha lá na casa, só com Eugenia. Vou me sentir bem. Vou tirar um cochilo. Lá em cima há um belo quarto para se tirar um cochilo. Nunca estive sozinha por lá. Quero pensar e como que sentir as coisas. Além do mais, as cercas estão sendo vigiadas por uma força equivalente à Legião Estrangeira. Ninguém vai conseguir entrar nela.

— Você não se importa de ficar na própria casa sozinha?

Era óbvio que ele não estava pensando em intrusos, mas em velhas histórias, histórias que no passado sempre a deixaram encantada. Agora elas pareciam remotas, românticas.

— Não, por que deveria me importar? — respondeu ela, impaciente.

— Mona, você é uma menina e tanto — disse ele, sorrindo de uma forma que ela raramente o havia visto sorrir. Talvez fossem necessárias a exaustão e a dor para conduzi-lo ao ponto em que algo tão espontâneo pudesse acontecer. — Você não tem medo do bebê e não tem medo da casa.

— Ryan, eu nunca tive medo da casa. Nunca. Quanto ao bebê, ele agora está me provocando náuseas. Vou vomitar.

— Mas você tem medo de alguma coisa, Mona — disse ele, com franqueza.

Ela precisava responder à altura. Não podia continuar desse jeito, com todas essas perguntas. Ela se voltou para ele e pôs a mão direita no joelho de Ryan.

— Tio Ryan, estou com treze anos. Preciso pensar, só isso. Não há nada de errado comigo, e eu desconheço o significado de "assustado" ou "apavorado", a não ser pelo que li dessas palavras no dicionário, certo? Preocupe-se com Bea. Preocupe-se com quem matou Aaron. Isso é algo com que se preocupar.

— Está bem, Mona querida — disse ele, com mais um sorriso.

— Você sente falta de Gifford.

— Você achava que eu não ia sentir? — Ele voltou a olhar pela janela, sem esperar uma resposta. — Agora, Aaron está com Gifford, não é?

Mona abanou a cabeça. Ele estava mal mesmo. Pierce e Shelby precisavam saber o quanto o pai precisava deles.

Acabavam de virar a esquina de First Street.

— Você tem de me contar no instante em que Rowan e Michael ligarem — disse Mona. Ela apanhou a bolsa e se preparou para saltar do carro. — E... dê um beijo em Beatrice por mim... e... em Aaron.

— Eu dou — disse ele. — Tem certeza de que pode ficar aqui sozinha? E se Eugenia não estiver em casa?

— Seria bom demais para ser verdade — disse ela, já de costas. Dois guardas uniformizados estavam ao portão, e um deles acabava de destrancá-lo para ela. Ela o cumprimentou com a cabeça ao passar.

Quando chegou à porta da frente, enfiou a chave na fechadura e em segundos estava dentro de casa. A porta fechou-se como sempre com um ruído grave, abafado, pesado, e Mona se apoiou na porta com os olhos fechados.

Doze semanas, isso era decididamente impossível! Esse bebê havia começado quando ela dormiu com Michael pela segunda vez. Ela sabia! Tinha tanta certeza disso quanto de qualquer outra coisa. Além do mais, simplesmente não houve ninguém entre o Natal e o Carnaval! Não, a hipótese de doze semanas estava fora de cogitação!

Crise! Pense.

Ela se encaminhou para a biblioteca. Haviam trazido seu computador na noite passada, e ela já o instalara, criando uma pequena estação de trabalho à direita da grande escrivaninha de mogno. Ela se jogou agora na cadeira e acionou o sistema imediatamente.

Abriu depressa um arquivo: /WS/MONA/SECRETO/Pediátrico.

"Perguntas que precisam ser feitas", escreveu. "Qual foi o ritmo de progresso da gravidez de Rowan? Houve sinais de desenvolvimento acelerado? Ela sentiu enjôos fora do normal? Ninguém sabe essas respostas porque ninguém sabia naquela época que Rowan estava grávida. Será que Rowan aparentava estar grávida? Rowan ainda devia saber a cronologia dos acontecimentos. Rowan pode esclarecer tudo e erradicar esses medos irracionais. E é claro que houve a segunda gravidez, aquela da qual ninguém mais tem conhecimento, a não ser Rowan, Michael e eu. Você ousa fazer perguntas a Rowan sobre essa segunda..."

Medos irracionais. Ela parou. Recostou-se na cadeira e pousou a mão na barriga. Não fez pressão para sentir o caroço endurecido que a Dra. Salter a deixara sentir. Apenas abriu os dedos e segurou a barriga frouxamente, percebendo que ela já estava maior do que jamais fora.

— Meu bebê — sussurrou ela, fechando os olhos. — Julien, ajude-me, por favor.

Mas não sentiu a chegada de nenhuma resposta. Tudo aquilo fazia parte do passado.

Queria tanto conversar com a Velha Evelyn, mas a Velha Evelyn ainda estava se recuperando do derrame. Estava cercada de enfermeiras e equipamentos no seu quarto em Amelia Street. Era provável que nem soubesse que a haviam trazido do hospital para casa. Seria muito irritante sentar lá entregando seu coração à Velha Evelyn para depois descobrir que a Velha Evelyn não podia entender nada do que ela dizia.

Ninguém, não há ninguém. Gifford!

Foi até a janela, a mesma que havia sido aberta naquele dia, de modo tão misterioso, talvez por Lasher, ela nunca saberia. Espiou pelas venezianas verdes de madeira. Seguranças na esquina. Um guarda do outro lado da rua.

Saiu da biblioteca, andando devagar, entrando num ritmo quase arrastado, embora não soubesse por que motivo, a não ser pelo fato de estar olhando para tudo por que passava. E, quando pisou ali fora no jardim, ele lhe pareceu de um verde glorioso, denso à sua volta, com as azaléias da primavera quase prontas para florir, os lírios alaranjados carregados de botões e as extremosas cheias de minúsculas folhas novas, que as tornavam enormes e cheias.

Todos os espaços nus do inverno estavam ocupados. O calor havia liberado tudo, e até o ar dava um suspiro de alívio.

Ela parou junto ao portão dos fundos do jardim, a olhar para o carvalho de Deirdre, para a mesa à qual Rowan se sentava e para a grama nova e verde que crescia ali, mais viçosa e de um verde mais forte do que a grama ao redor.

— Gifford? — sussurrou ela. — Tia Gifford. — Mas ela sabia que não queria que um fantasma a atendesse.

Na realidade, estava com medo de uma revelação, uma visão, um dilema horrível. Voltou a pôr a mão na barriga e a deixou simplesmente parada ali, morna e firme.

— Os fantasmas sumiram — disse ela, dando-se conta de estar falando com o bebê tanto quanto consigo mesma. — Essa parte acabou. Não vamos mais precisar dessas coisas, você e eu. Não, nunca. Eles foram matar o dragão. E, uma vez morto o dragão, o futuro é nosso, meu e seu, e você nunca vai sequer precisar saber tudo que aconteceu antes, não antes de crescer e ser esperto. Gostaria de saber qual é o seu sexo. Gostaria de saber qual é a cor do seu cabelo, quer dizer, se é que você tem cabelo. Eu deveria dar-lhe um nome. É, um nome.

Ela interrompeu esse breve monólogo.

Teve a sensação de que alguém falara com ela, alguém muito próximo sussurrara alguma coisa, apenas um pequeno fragmento de uma frase, agora perdido, e ela não conseguia mais captá-lo. Chegou mesmo a se virar, assustada de repente. Mas é claro que não havia ninguém perto dela. Os seguranças estavam na periferia. Eram essas as suas instruções, a menos que ouvissem soar o alarme dentro da casa.

Encostou-se no pilar de ferro do portão. Seus olhos passearam mais uma vez pela grama e subiram até os galhos grossos e negros do carvalho. A folhagem nova explodia em ramos de um verde brilhante. As folhas velhas pareciam escuras, empoeiradas e talvez prontas para secar e cair. Os carvalhos de Nova Orleans nunca ficavam verdadeiramente mortos, graças a Deus. Mas na primavera eles renasciam.

Ela se voltou e olhou para a direita, na direção da frente da propriedade. Relance de uma camisa azul do outro lado da cerca da frente. Tudo estava mais quieto do que ela jamais havia visto. Era possível que até mesmo Eugenia tivesse ido ao enterro de Aaron. Ela esperava que sim.

— Sem fantasmas, sem espíritos — disse ela. — Sem sussurros da tia Gifford. — Será que ela realmente queria ouvir algum? De repente, pela primeira vez na vida, não tinha assim tanta certeza. Toda a perspectiva de espíritos e fantasmas a confundia.

Deve ser o bebê, pensou, e uma daquelas misteriosas alterações mentais que se abatem sobre a pessoa, mesmo tão no início da gravidez, levando-a a uma existência sedentária e sem questionamentos. Agora, os espíritos não eram o mais importante. O bebê era tudo. Ela havia lido bastante sobre essas mudanças físicas e mentais na noite anterior nos seus novos livros sobre a gravidez, e tinha muito mais a ler.

A brisa atravessou sorrateira os arbustos, como sempre fazia, agarrando pequenos botões, folhas e pétalas soltas aqui e ali, para derramá-los sobre as lajes arroxeadas e depois desaparecer completamente. Subia do chão um calor preguiçoso.

Ela deu meia-volta e voltou para dentro da casa vazia, atravessando-a até a biblioteca.

Sentou-se diante do computador e começou a escrever.

"Você não seria humana se não tivesse essas dúvidas e suspeitas. Como pode não se perguntar se o bebê é normal, considerando-se as circunstâncias? Sem dúvida, esse medo tem alguma origem hormonal, e é um mecanismo de sobrevivência. Mas você não é uma incubadora desprovida de consciência. Seu cérebro, embora inundado por novos produtos químicos e novas combinações de produtos químicos, ainda é o seu cérebro. Examine os fatos.

"Lasher conduziu o desastre anterior desde o início. Sem a intervenção de Lasher, Rowan poderia ter tido um bebê perfeitamente saudável e lindo..."

Ela estancou. O que aquilo significava, a intervenção de Lasher?

O telefone tocou, assustando-a, até mesmo a ferindo um pouco. Ela estendeu a mão, apressada, sem querer ouvi-lo tocar de novo.

— Aqui é Mona, vá falando — disse ela. Houve uma risada na outra ponta da linha.

— Menina, que bela maneira de atender o telefone.

— Michael! Graças a Deus. Eu estou grávida mesmo. A Dra. Salter diz que não há absolutamente nenhuma dúvida. — Ela o ouviu suspirar.

— Nós amamos você, querida — disse ele.

— Onde vocês estão?

— Num hotel terrivelmente caro, numa suíte decorada em estilo francês, cheia de cadeiras de cerejeira, paradas nas pontas dos pés. Yuri está bem, e Rowan está examinando o ferimento a bala que ele tem. Está infeccionado. Eu quero que você espere mais um pouco para falar com Yuri. Ele está nervosíssimo e falando um pouco pelos cotovelos, mas no geral está bem.

— Claro, entendi. Eu não quero falar com ele agora sobre o bebê.

— Não, isso não seria nem um pouco conveniente.

— Dê-me seu número aí.

Ele lhe deu o número.

— Querida, você está bem?

E lá vamos nós de novo. Até mesmo ele sabe que você está preocupada. E ele sabe por que motivo você poderia se preocupar. Mas não diga nada! Não, nem uma palavra. Trancou-se alguma coisa dentro dela, de repente com medo de Michael, a própria pessoa com quem ela tanto queria falar, a própria pessoa, além de Rowan, em quem ela achava que podia confiar.

Aja com cuidado.

— Sim, estou bem, Michael. O gabinete de Ryan tem seu telefone?

— Nós não vamos desaparecer, meu amor.

Percebeu que tinha os olhos fixos na tela, nas perguntas que relacionara com tanta lógica e inteligência.

Qual foi o ritmo de progresso da gravidez de Rowan? Houve sinais de desenvolvimento acelerado?

Michael saberia essas respostas. Não, não se abra.

— Vou desligar, querida. Ligo mais tarde. Nós todos amamos você.

— Até logo, Michael.

Ela desligou o telefone.

Ficou sentada algum tempo e depois começou a digitar com velocidade.

"É cedo demais para fazer perguntas idiotas sobre este bebê, cedo demais para nutrir medos que podem afetar sua saúde e sua paz de espírito, cedo demais para preocupar Rowan e Michael, que têm a mente ocupada com coisas muito mais importantes..."

Ela parou.

Ouvira um sussurro ali perto! Era como se alguém estivesse exatamente ao seu lado. Olhou ao redor, levantou-se e foi até o outro lado do aposento, olhando para trás para se certificar do que já sabia. Não havia ninguém ali, nenhum fantasma diáfano, nem mesmo sombras. Sua luminária fluorescente de mesa se encarregara disso.

Guardas lá fora em Chestnut? Talvez. Mas como poderia ouvir seus sussurros através de quarenta e cinco centímetros de tijolos maciços?

Os minutos foram passando.

Ela estaria com medo de se mexer? Isso é loucura, Mona Mayfair. Quem você acha que seja? Gifford, ou a sua própria mãe? Oncle Julien de volta? Será que ele não merece descansar agora? Talvez essa maldita casa fosse simplesmente assombrada, e sempre tivesse sido, por todos os tipos de espíritos, como o fantasma da criada dos quartos de 1859 ou o de um cocheiro que caiu tragicamente do telhado para a morte em 1872. Podia ser. A família não anotava tudo que acontecia. Ela começou a rir.

Fantasmas proletários na casa Mayfair em First Street? Fantasmas que não eram parentes de sangue? Uau, que escândalo! Nada disso, não havia mesmo nenhum fantasma aqui.

Olhou para a moldura dourada do espelho, o mármore marrom-escuro do consolo da lareira, as prateleiras de livros velhos em deterioração. Abateu-se sobre ela uma calma, como que agradável e boa. Gostava desse lugar acima de todos, pensou, e não havia nenhum gramofone etéreo tocando, nem rostos no espelho. Esse é o seu lugar. Você está em segurança. Está em casa.

— É, você e eu, minha criança — disse ela, falando mais uma vez com o bebê. — Agora esta é a sua casa, com Michael e com Rowan. E eu lhe prometo que vou arrumar um nome interessante.

Voltou a se sentar e começou a digitar na mesma velocidade de antes.

"Nervos à flor da pele. Imaginando coisas. Comer proteína, vitamina C para os nervos e para o estado de saúde geral. Ouço vozes que cochicham no meu ouvido, parece... parece, não tenho certeza, mas parece alguém cantando ou mesmo cantarolando! Meio irritante. Poderia ser um fantasma ou deficiência de vitamina B.

"O enterro de Aaron está transcorrendo neste momento. Isso sem dúvida contribui para o nervosismo generalizado."

 

— VOCÊ TEM CERTEZA DE QUE ERA UM TALTOS? — perguntou Rowan. Ela havia guardado as ataduras e o anti-séptico e lavado as mãos. Estava parada à porta do banheiro da suíte, olhando para Yuri, que caminhava de um lado para o outro, uma figura sombria, desengonçada e imprevisível em contraste com as cuidadosas franjas das sedas e a abundância de ouropel no aposento.

— Meu Deus, você não acredita em mim. Era um Taltos.

— Poderia ter sido um humano com algum motivo para enganá-lo — disse ela. — A altura em si não significa necessariamente...

— Não, não, não — disse Yuri, no mesmo tom enlouquecido e maníaco em que vinha falando desde que o encontraram no aeroporto. — Ele não era humano. Era... era lindo e medonho. Suas articulações eram enormes, e os dedos eram tão compridos... O rosto poderia ter sido humano, sem dúvida. Um homem muito, muito bonito, sim. Só que era Ashlar, Rowan, o próprio. Michael, conte-lhe a história. Santo Ashlar, da igreja mais antiga de Donnelaith. Conte-lhe. Ah, se ao menos eu estivesse com as anotações de Aaron. Sei que ele as fez. Ele escreveu a história inteira. Muito embora tivéssemos sido excomungados da Ordem, ele não teria deixado de anotar tudo.

— Ele fez essas anotações, sim, meu filho, e elas estão conosco — disse Michael. — E eu também contei a Rowan tudo o que sei.

Michael já havia explicado esse ponto duas vezes, se Rowan não estava enganada. As intermináveis repetições e rodeios do dia a deixaram exausta. Ela estava tendo sérios problemas com a mudança do fuso horário. Toda a sua constituição havia sofrido um envelhecimento e um enfraquecimento, constatava ela agora, se é que algum dia houvera alguma esperança real de que não fosse assim. Graças a Deus, ela havia dormido no avião.

Michael recostou-se no braço do elegante sofá francês, com os pés calçados com meias cruzados sobre as almofadas douradas. Ele havia tirado o paletó, e seu tórax, no suéter de gola alta, parecia possante, como se alojasse um coração que bateria triunfante por mais cinqüenta anos. Ele lançou um olhar cúmplice, de solidariedade, para Rowan.

Graças a Deus você está aqui, pensou ela. Graças a Deus. A voz e a atitude tranqüila de Michael eram mais do que reconfortantes. Ela não conseguia se imaginar aqui sem ele.

Outro Taltos. Mais um deles! Meu Deus, quantos segredos esse mundo abriga? Que monstros estão sob camuflagem em meio às suas florestas, suas grandes cidades, seus desertos, seus mares? A mente de Rowan lhe pregava peças. Ela não conseguia visualizar Lasher com nitidez. A imagem ficava toda fora de proporção. Sua força parecia sobrenatural. Isso não era exato. Essas criaturas não eram todo-poderosas. Procurou expulsar essas lembranças desagradáveis, dos dedos de Lasher a machucar seus braços, do dorso da sua mão a atingi-la com tanta força que ela caía inconsciente. Sentia aquele instante de desligamento e o instante do despertar, quando, atordoada, ela se descobria procurando engatinhar para se proteger debaixo da cama. No entanto, precisava sair dessa, precisava se concentrar e fazer com que Yuri se concentrasse.

— Yuri — disse ela, no seu tom autoritário mais suave e comedido. — Descreva esses Pequenos mais uma vez. Você tem certeza...

— Os Pequenos são uma raça selvagem — disse Yuri, com as palavras saindo atropeladamente, enquanto ele girava, com as mãos estendidas, como se segurasse uma bola de cristal na qual estivesse vendo as imagens de tudo o que descrevia. — Eles estão condenados, disse Samuel. Já não há mais mulheres entre eles. Não têm mais futuro. Vão se extinguir, a menos que uma Taltos surja entre eles, a menos que alguma fêmea da sua própria espécie seja encontrada em algum canto remoto da Europa ou das Ilhas Britânicas. E isso acontece. Prestem bem atenção, isso acontece. Samuel me contou. Ou uma bruxa, vocês não entendem? Uma bruxa? As feiticeiras daquela região nunca se aproximam do vale. Os turistas e arqueólogos chegam e saem em grupos e à luz do dia.

Já haviam passado por isso, mas Rowan começava a perceber que, cada vez que contava a história, Yuri acrescentava alguma coisa, somava algum detalhe novo e possivelmente importante.

— É claro que Samuel me contou tudo isso quando achava que eu fosse morrer naquela caverna. Quando a febre cedeu, ele ficou tão surpreso quanto eu. E depois Ash. Ash não tem absolutamente nenhuma duplicidade. Não se pode imaginar a candura ou a simplicidade desse ser. Homem, eu quero dizer homem. Por que não homem, desde que vocês se lembrem de que ele é um Taltos? Nenhum ser humano poderia ser tão franco, a não ser que fosse um idiota. E Ash não é idiota.

— Quer dizer que ele não estava mentindo quando disse que queria ajudá-lo — concluiu Rowan, observando-o atentamente.

— Não, ele não estava mentindo. E ele quer proteger a Talamasca. Por que motivo, não sei dizer. Tem a ver com o passado e talvez com os arquivos e os segredos, apesar de ninguém saber agora ao certo o que realmente está naqueles arquivos. Ai, se eu ao menos tivesse certeza de que os Anciãos não fazem parte disso. Mas uma bruxa, vocês não percebem? Uma bruxa com o poder de Mona é simplesmente valiosa demais para Ashlar e Samuel. Eu nunca, nunca deveria ter mencionado Mona para eles. Ah, fui tolo de lhes contar tudo sobre a família. Mas sabem, esse Samuel, ele me salvou a vida.

— Mas esse Taltos disse que não tinha parceira? — perguntou Michael. — Se é que "parceira" é o termo acertado?

— Isso estava evidente. Ele veio aqui porque Samuel lhe disse que um Taltos (Lasher, com você, Rowan!) havia aparecido em Donnelaith. Ash veio imediatamente de algum lugar distante. Não sei de onde. Ash é rico. Tem guarda-costas, auxiliares. Viaja num pequeno cortejo, ao que me disse Samuel. Na realidade, Samuel fala demais para seu próprio bem.

— Mas ele não mencionou um Taltos do sexo feminino?

— Não. Os dois me deram a nítida impressão de não saberem da existência de um Taltos do sexo feminino! Rowan, você não percebe? Os Pequenos estão morrendo, e o Taltos está praticamente extinto. Meu Deus, Ash poderia ser o único sobrevivente, agora que Lasher morreu. Imagine só! Você compreende o que Mona representa para esses dois?

— Está bem, você quer saber a minha opinião? — perguntou Michael. Ele estendeu a mão para apanhar o bule de café na bandeja ao seu lado e encheu sua xícara, segurando-a como uma caneca sem o pires. — Já fizemos tudo o que podemos quanto a Ashlar e Samuel. — Ele olhava para Rowan enquanto falava. — Há uns dez por cento de chance, quem sabe, de conseguirmos encontrá-los no Claridge's mesmo...

— Não, vocês não devem se aproximar deles — disse Yuri. — Vocês não podem nem deixar que eles saibam que estão aqui. Ainda mais você.

— É, eu compreendo — disse Michael, com um gesto de aquiescência — mas...

— Não, você não compreende, ou então não acredita em mim. Michael, essas criaturas sabem distinguir um bruxo ao vê-lo, seja homem, seja mulher. Eles sabem. Eles não precisam de exames médicos modernos para saber que você dispõe dos cromossomos que são tão valiosos para eles. Eles o reconhecem, talvez pelo faro, e sem dúvida pela visão.

Michael encolheu um pouco os ombros, como se quisesse dizer que ia manter sua opinião, mas sem insistir nela agora.

— Está bem, então eu não vou agora ao Claridge's. Mas é muito difícil não ir até lá, Yuri. Quer dizer, você afirma que Ash e Samuel estão a apenas cinco minutos deste hotel?

— Puxa, espero que tenham ido embora. E espero que não tenham ido para Nova Orleans. Por que eu fui contar para eles? Por que eu não fui mais esperto? Por que fui tão tolo na minha gratidão e no meu medo?

— Pare de se culpar por isso — disse Rowan.

— Nós quadruplicamos o número de seguranças em Nova Orleans — disse Michael. Sua postura relaxada não havia mudado. — Vamos abandonar o assunto de Ashlar e Samuel um pouco e voltar a Talamasca. Agora, estamos fazendo uma lista dos membros mais antigos em Londres, aqueles em quem se pode confiar ou que sem dúvida devem ter percebido algo de errado.

Yuri suspirou. Estava muito perto de uma pequena poltrona de cetim junto à janela, revestida com o mesmo moiré vibrante das cortinas, de tal modo que parecia praticamente invisível. Ele se deixou cair na beira dessa poltrona, escondendo a boca com as mãos. Soltou a respiração lentamente. Seu cabelo estava desgrenhado.

— Está bem — disse Yuri. — A Talamasca, meu refúgio, minha vida. Ah, a Talamasca. — Ele agora contava nos dedos da mão direita. — Tínhamos Milling, que está acamado. Não há como entrar em contato com ele. Não quero ligar para ele e deixá-lo agitado. Depois, tínhamos...

— Joan Cross — disse Michael, apanhando o bloco amarelo de cima da mesinha de centro. — É, Joan Cross, setenta e cinco anos, inválida. Cadeira de rodas. Recusou a indicação para superiora geral em virtude da artrite degenerativa.

— Nem o próprio demônio poderia corromper Joan Cross — disse Yuri, com as palavras se atropelando cada vez mais. — Mas Joan é muito voltada para si mesma. Ela passa o tempo todo nos arquivos. Ela não perceberia se os outros membros estivessem correndo nus de um lado para o outro.

— Então, o próximo é Timothy Hollingshed — disse Michael, lendo o que estava escrito no bloco.

— É, Timothy, se eu ao menos o conhecesse melhor. Não, quem devemos escolher é Stuart Gordon. Eu mencionei Stuart Gordon? Eu disse o nome de Stuart Gordon antes, não disse?

— Não, não disse, mas não tem problema nenhum dizer agora — respondeu Rowan. — Por que Stuart Gordon?

— Ele está com oitenta e sete anos e ainda leciona, pelo menos dentro da própria Ordem. O amigo mais íntimo de Stuart Gordon era Aaron! Stuart Gordon pode saber tudo sobre as bruxas Mayfair. Ora, é praticamente certo que ele saiba! Lembro-me de que ele um dia me disse de passagem, acho que foi no ano passado, que Aaron havia passado tempo demais com essa família. Juro pela minha alma que nada poderia corromper Stuart Gordon. Ele é o homem em quem deveríamos confiar.

— Ou pelo menos de quem deveríamos extrair informações — disse Rowan, entre dentes.

— Você tem mais um nome aqui — disse Michael. — Antoinette Campbell.

— Ela é mais jovem, muito mais nova. Mas, se Antoinette for corrupta, Deus também é. Só que Stuart... Se há alguém nesta lista que possa ser um Ancião, e nunca sabemos quem eles são, seria Stuart Gordon, compreende? Ele é o nosso homem.

— Vamos guardar os outros nomes. Não deveríamos entrar em contato com mais de uma dessas pessoas de cada vez.

— E o que você perde se telefonar agora para Stuart? — perguntou Michael.

— Eles ficam sabendo que ele está vivo — disse Rowan. — Mas talvez isso seja inevitável. — Ela observava Yuri. Como ele poderia conseguir ter uma conversa crucial ao telefone com quem quer que fosse, nesse estado? Na verdade, ele recomeçara a suar forte. Tremia. Ela arranjara roupas limpas para ele, mas elas já estavam encharcadas com a transpiração.

— É, é inevitável. Mas, se eles não souberem onde eu estou, não haverá perigo nenhum. Posso descobrir mais coisas com Stuart em cinco minutos do que com qualquer outra pessoa que eu possa imaginar, mesmo meu velho amigo Baron, de Amsterdã. Deixem-me ligar agora.

— Mas não podemos nos esquecer de que ele pode estar a par da conspiração. Pode ser a Ordem inteira. Podem ser todos os Anciãos.

— Ele preferiria morrer a prejudicar a Talamasca. Ele tem dois noviços brilhantes que talvez até nos ajudassem. Tommy Monohan, que é uma espécie de gênio da informática. Ele poderia ser de grande auxílio na investigação da corrupção. E o outro, o louro bonito, de nome estranho. Marklin,é isso. Marklin George. Mas Stuart deve avaliar a situação.

— E nós não vamos confiar em Stuart antes de termos certeza de podermos confiar.

— Mas como vamos ter certeza? — perguntou Yuri, dirigindo-se a Rowan.

— Sempre há um jeito de se saber — disse Rowan. — Você não vai ligar para ele daqui. E quando ligar, quero que diga certas coisas. Você não pode se abrir com esse homem, compreende? Por mais que confie nele.

— Diga-me o que falar — pediu Yuri. — Mas vocês se dão conta de que Stuart pode não falar comigo. Ninguém tem permissão para conversar comigo. Estou excomungado, lembram-se? A menos, é claro, que eu apele a ele na qualidade de amigo de Aaron. Esse é o segredo com Stuart! Ele sentia tanto amor por Aaron!

— Perfeito, o telefonema é um passo crucial — disse Michael. — Temos de dá-lo. Agora, a casa-matriz. Você tem condição de desenhar uma planta da casa, ou de me dar as informações para que eu possa desenhar a planta e você a aprove? O que acha?

— Claro, é uma idéia excelente — disse Rowan. — Faça uma planta. Mostre-nos a localização dos arquivos, dos subterrâneos, das saídas, de tudo.

Yuri estava novamente em pé, como se alguém o houvesse empurrado para a frente. Ele olhava ao redor.

— Onde está o papel? O lápis?

Michael apanhou o telefone e pediu a recepção.

— Vamos conseguir lápis e papel — disse Rowan. Ela segurou as mãos de Yuri. Estavam úmidas e ainda tremiam. Seus olhos negros estavam ansiosos, correndo de um objeto para outro. Ele não queria encará-la. — Fique tranqüilo — disse ela, apertando suas mãos com firmeza, pensando Acalme-se e se aproximando, até ele ser forçado a olhar nos seus olhos.

— Eu sou racional, Rowan. Acredite em mim. Só estou... só estou temendo por Mona. Cometi um terrível erro. Mas também, com que freqüência a gente vê esse tipo de criatura? Nunca pus os olhos em Lasher, nem por um instante. Eu não estava presente quando ele contou sua história a Michael e Aaron. Eu nunca o vi! Mas vi esses dois, e não em alguma nuvem ou névoa! Eles estavam comigo como vocês estão. Eles estavam entre quatro paredes!

— Eu sei — disse ela. — Mas não é culpa sua, toda essa história de você lhes ter falado da família. Você tem de superar isso. Pense na Ordem. O que mais você pode nos contar? E o superior geral?

— Há algo de errado nele. Nele eu não confio. É novo demais. Ai, se você tivesse visto essa criatura, Ash, não teria acreditado nos próprios olhos.

— Por que não, Yuri? — perguntou ela.

— Ah, sim. É claro. Você viu o outro. Você conheceu o outro.

— Conheci. Em todos os sentidos. O que lhe dá certeza de que esse era mais velho, de que ele não estava procurando confundi-lo com aquelas afirmações banais que fez?

— O cabelo. Duas faixas brancas no cabelo. Isso indica idade. Dava para eu ver.

— Faixas brancas — disse ela. Essa informação era nova. Quantas outras coisas Yuri não poderia transmitir se eles continuassem a interrogá-lo? Ela ergueu as duas mãos para a cabeça, como que para perguntar onde ficavam as duas faixas de cabelo branco.

— Não, aqui, nas têmporas, o padrão de envelhecimento dos humanos. Essas faixas deixaram Samuel alarmado assim que ele as viu. O rosto? O rosto é de um homem de trinta anos. Rowan, a duração da vida desses seres é desconhecida. Samuel descreveu Lasher como um recém-nascido.

— É o que ele era — respondeu Rowan. Percebeu, de repente, que Michael a observava. Ele se pusera de pé e estava parado perto da porta, com os braços cruzados.

Ela se voltou para encará-lo. Eliminou da sua mente todo e qualquer pensamento sobre Lasher.

— Não há ninguém que possa nos ajudar nesse caso, será que há? — disse Michael. Estava falando exclusivamente com ela.

— Ninguém — disse Rowan. — Você não sabia disso o tempo todo?

Ele não respondeu, mas ela sabia no que ele estava pensando. Era como se quisesse que ela soubesse. Estava pensando que Yuri estava entrando em colapso. Yuri agora precisava ser protegido. E eles haviam contado mais com Yuri no que dizia respeito a opiniões, orientação, ajuda.

A campainha tocou. Michael procurou no bolso e tirou algumas notas de libra enquanto se dirigia para a porta.

Como é extraordinário, pensou ela, que ele se lembre desse tipo de coisa, que ele mantenha tudo funcionando. Mas ela precisava se controlar. Os dedos de Lasher doendo no seu braço. Seu corpo inteiro de repente sofreu uma convulsão e ela estendeu a mão para o lugar em que ele tantas vezes a machucara. Siga seu próprio conselho, doutora. Acalme-se.

— Agora, Yuri, você precisa se sentar e desenhar as plantas — disse Michael, com o papel e os lápis.

— E se Stuart não souber que Aaron está morto? — perguntou Yuri. — Não quero ser quem vai lhe dar a notícia. Meu Deus, eles devem saber. Eles sabem, não sabem, Rowan?

— Preste atenção — disse Rowan, com delicadeza. — Já lhe expliquei isso antes. O gabinete de Ryan não ligou para a Talamasca. Insisti com eles para que esperassem. A excomunhão foi minha desculpa. Eu queria ganhar tempo. Agora podemos nos aproveitar do desconhecimento deles. Temos de planejar esse telefonema.

— No outro cômodo, há uma mesa de bom tamanho — disse Michael. — Essa mesinha Luís XV vai se desmanchar se tentarmos usá-la.

Ela sorriu. Ele dizia que adorava a mobília francesa, mas tudo nesta sala parecia estar se pavoneando. As molduras douradas pareciam estar piscando de alto a baixo dos lambris das paredes como se fossem feitas de lâmpadas de néon. Aposentos de hotel, ela estivera em tantos deles. Tudo em que podia pensar quando chegava era onde ficam as portas, os telefones, será que o banheiro tinha uma janela para uma possível fuga. Outro relance da mão de Lasher a se fechar no seu braço. Ela se encolheu assustada. Michael a observava.

Yuri tinha o olhar perdido. Ele não a viu fechar os olhos e depois lutar para recuperar o fôlego.

— Eles sabem — disse Yuri. — Os que se encarregam de recortes de jornais para eles terão visto a notícia nos jornais de Nova Orleans. Mayfair. Eles terão visto a notícia, e terão mandado por fax cópias dos recortes. Eles sabem tudo. Absolutamente tudo. Toda a minha vida está nos seus arquivos.

— Mais razão ainda para pôr mãos à obra já.

Rowan estava imóvel. Ele acabou, está morto, não pode machucá-la. Você viu seus restos. Você os viu cobertos de terra quando pôs Emaleth ao seu lado. Você viu. Ela havia cruzado os braços e estava esfregando os cotovelos. Michael falava com ela, mas ela não captara as palavras.

Ela olhou para Michael.

— Preciso ver esse Taltos. Se ele existe, preciso vê-lo.

— É perigoso demais — afirmou Yuri.

— Não é, não. Tenho um pequeno plano. Ele tem suas limitações, mas é um plano. Você disse que Stuart Gordon era amigo de Aaron?

— Disse, eles trabalharam juntos anos a fio. Você quer estender nossa confiança a Stuart? Você quer acreditar que Ash nos contou a verdade?

— Você disse que Aaron nunca havia ouvido o termo "Taltos" até Lasher pronunciá-lo?

— Exato — disse Michael.

— Vocês não podem entrar em contato com aqueles dois, não podem! — disse Yuri, nervosíssimo.

— Michael, o desenho pode esperar. Preciso ligar para o Claridge's.

— Não! — gritou Yuri.

— Não sou boba — disse Rowan, com um sorriso discreto. — Qual foi o nome usado para registro dessas pessoas de tamanho disparatado?

— Não sei.

— Basta descrevê-las — disse Michael. — Mencione o nome Samuel. Yuri disse que todos o conheciam, que o tratavam como se ele fosse um pequeno e alegre Papai Noel. Quanto mais rápido dermos esse telefonema, melhor. Eles podem já ter ido embora.

— Aaron nunca soube o que era um Taltos. Ele nunca leu nada, nem ouviu nada...

— É verdade — disse Yuri. — Rowan, o que você está planejando?

— Tudo bem. Eu ligo primeiro — disse Rowan. — Depois você liga. Devemos ir agora.

— Você não quer me dizer o que pretende fazer? — perguntou Michael.

— Vamos ver se conseguimos entrar em contato com esses dois. Tudo vai desmoronar se não pudermos encontrá-los, e estaremos de volta ao ponto de partida. Vamos.

— Eu não preciso desenhar as plantas? — perguntou Yuri. — Vocês disseram alguma coisa sobre desenhos.

— Agora não, pegue seu paletó, vamos — disse Michael. Mas Yuri parecia tão desamparado e confuso quanto havia estado a manhã inteira. Michael apanhou o paletó de cima da poltrona e o colocou nos ombros de Yuri. Olhou para Rowan.

O coração de Rowan batia forte. Taltos. Tenho de dar esse telefonema.

 

MARKLIN JAMAIS HAVIA VISTO a casa em tal alvoroço. Esse era um teste ao seu talento para disfarçar ao máximo. A sala do conselho estava apinhada de membros, mas a sessão ainda não havia sido aberta. Ninguém prestou atenção a ele enquanto ele passava pelo corredor. O barulho era ensurdecedor sob as abóbadas de madeira. No entanto, essa comoção era uma bênção. Ninguém parecia se importar com um noviço e suas reações, com o que ele fazia ou onde ia.

Nem o haviam despertado para informá-lo do que estava ocorrendo. Ele dera com tudo isso no instante em que afinal abriu a porta e descobriu alguns membros "patrulhando" o corredor. Ele e Tommy mal haviam trocado algumas palavras.

A essa altura, porém, Tommy teria chegado a Regent's Park e desligado a interceptação do fax. Todas as provas materiais dos comunicados falsos estavam sendo destruídas.

E onde estava Stuart? Não estava na biblioteca, nos salões, na capela orando pelo seu querido Aaron, nem tampouco na sala do conselho.

Stuart não podia fraquejar sob essa pressão! E, se ele tivesse saído, teria sido para estar com Tessa... Mas não, ele não teria fugido. Stuart estava novamente com eles. Stuart era seu líder, e eram os três contra o mundo.

O grande relógio do corredor marcava 11:00 da manhã, com a face da lua de bronze sorridente acima dos algarismos floreados. Em meio ao barulho, as badaladas estavam quase inaudíveis. Quando teriam início as deliberações formais?

Ele ousava subir até o quarto de Stuart? Mas será que isso não seria natural para ele? Stuart era seu orientador dentro da Ordem. Essa não seria a atitude correta a tomar? E se Stuart estivesse novamente em pânico, em desintegração, a questionar tudo? E se Stuart se voltasse novamente contra ele, como fizera em Wearyall Hill? E agora ele não dispunha de Tommy para ajudá-lo a trazer Stuart de volta?

Alguma coisa acabava de acontecer. Ele ouvia algo na sala do conselho. Deu alguns passos até se encontrar na porta voltada para o norte. Membros da Ordem estavam tomando seus lugares em volta de uma imensa mesa de carvalho. E lá estava Stuart, Stuart, a olhar direto para ele: um pássaro de bico afilado, com olhinhos redondos e azuis, usando o costumeiro traje lúgubre, quase sacerdotal.

Meu Deus, Stuart estava parado ao lado da cadeira vazia do superior geral. Estava com a mão no encosto da cadeira. Todos olhavam para Stuart. Haviam designado Stuart para assumir o comando! É claro!

Marklin procurou encobrir seu sorriso imprudente e inevitável com uma tosse abafada, levando a mão fechada à boca. Perfeito demais, pensou ele. É como se as forças que dominam o mundo estivessem a nosso favor. Afinal de contas, poderia ter sido Elvera ou Joan Cross. Poderia ter sido o velho Whitfield. Mas foi Stuart! Brilhante! O mais velho amigo de Aaron.

— Entrem, todos. Sentem-se, por favor — disse Stuart. Estava extremamente nervoso. Isso dava para Marklin perceber. — Vocês devem me perdoar — disse Stuart, forçando um sorriso educado que decerto não era necessário e que dificilmente se adequava à situação. Deus do céu, ele não vai conseguir se sair dessa! — Ainda não estou perfeitamente recuperado do choque. Mas vocês sabem que fui indicado para assumir o comando. Estamos, neste exato momento, aguardando o comunicado dos Anciãos.

— Eles sem dúvida responderam, Stuart — disse Elvera. Cercada de amigos, ela havia sido a estrela ao longo de toda a manhã, testemunha do assassinato de Anton Marcus, a única que conversara com o homem misterioso que entrara no prédio e fizera perguntas estranhas a todos que encontrara, para depois, com frieza e determinação, estrangular Marcus até a morte.

— Não houve ainda resposta, Elvera — disse Stuart, paciente. — Sentem-se aí, todos vocês aí. Já é hora de começarmos essa reunião.

Afinal, a sala ficou em silêncio. A mesa gigantesca estava cercada de rostos curiosos. Dora Fairchild estivera chorando e deixava transparecer isso mesmo. O mesmo com Manfield Cotter. E o mesmo com outros que Marklin nem conhecia. Todos amigos de Aaron Lightner, ou adoradores, para ser mais exato.

Ninguém aqui chegara realmente a conhecer Marcus. É claro que sua morte horrorizava a todos. Mas a dor por ele não era o caso.

— Stuart, a família Mayfair respondeu? — Surgiu uma pergunta. — Temos mais alguma informação sobre o que aconteceu com Aaron?

— Tenham paciência, vocês todos. Divulgarei a informação assim que ela for recebida. O que sabemos agora é que algo de terrivelmente errado aconteceu nesta casa. Intrusos entraram e saíram. Talvez tenham ocorrido outras falhas na segurança. Nós não sabemos se todos esses acontecimentos estão relacionados entre si.

— Stuart — disse Elvera, com a voz muito aguda. — Esse homem me perguntou se eu sabia que Aaron havia morrido! Ele entrou no meu quarto e começou a falar em Aaron!

— É claro que estão relacionados — afirmou Joan Cross. Joan estava numa cadeira de rodas há um ano. Sua aparência não poderia ser mais frágil; até seu cabelo branco e curto estava raleando. Mas sua voz era impaciente e dominadora, como sempre havia sido. — Stuart, nossa primeira prioridade é a de determinar a identidade desse assassino. Temos a afirmação das autoridades de que é impossível identificar as impressões digitais. Mas nós sabemos que esse homem pode ter vindo da família Mayfair. As autoridades não sabem.

— É... tudo relacionado de alguma forma, não é isso o que parece? — Stuart estava de fato gaguejando. — Mas não temos nenhuma outra indicação. Foi isso o que eu quis dizer. — De repente, seus olhos fundos fixaram-se em Marklin, que estava sentado quase na extremidade oposta da mesa, olhando calmamente para ele.

— Senhores, para ser franco — disse Stuart, desviando o olhar para examinar os rostos ao seu redor — sinto-me completamente inadequado para assumir o posto de Anton. Creio... creio que deveria passar o cetro para Joan, se a assembléia aqui reunida estiver de acordo. Não posso continuar!

Stuart, como pôde fazer uma coisa dessas! Marklin olhava fixamente para a mesa, procurando ocultar sua decepção, exatamente como momentos antes havia tentado ocultar seu sorriso de triunfo. Você está no comando, pensou ele com azedume, mas não consegue lidar com isso. Está abdicando do poder quando você é necessário para bloquear o próprio comunicado que vai acelerar as coisas. Você é um idiota.

— Não tenho alternativa! — disse Stuart, em voz alta, como se estivesse falando apenas com seu noviço. — Senhores, estou... estou abalado demais pela morte de Aaron para ser útil.

Frase interessante, frase sábia, pensou Marklin. Stuart sempre lhes ensinara que, se tivessem um segredo que desejassem ocultar dos paranormais ao seu redor, bastava pensar em algo próximo à verdade.

Stuart estava de pé. Estava passando a cadeira a Joan Cross. Houve exclamações de aprovação vindas de todos os lados. Até mesmo Elvera estava de acordo. O jovem Crawford, um dos alunos de Joan, estava manobrando a cadeira de rodas para posicioná-la à cabeceira da mesa. Stuart  recuara e estava encostado na parede. Stuart ia tentar fugir!

Não sem mim, pensou Marklin, mas como poderia sair agora? Stuart não ia escapar dele; não ia ter a oportunidade de fugir para o esconderijo secreto onde mantinha Tessa. Não, isso não ia acontecer.

Mais uma vez, houve um alvoroço. Um dos velhos estava reivindicando que, numa emergência dessas, os Anciãos presentes deveriam se identificar. Outra pessoa mandou que o velho se calasse e que não mencionasse mais uma sugestão dessas.

Stuart desapareceu! Rapidamente, Marklin deixou, sorrateiro, o seu lugar e se apressou a sair pelo portal norte. Ele viu Stuart léguas à sua frente, ao que lhe parecia, indo na direção do gabinete do superior geral. Marklin não ousou gritar seu nome. Havia dois membros mais jovens com Stuart: Ansling e Perry, os dois secretários auxiliares. Eles haviam sido uma ameaça para a operação desde o início, embora nenhum dos dois tivesse capacidade para perceber que alguma coisa estava errada.

De repente, o trio sumiu, entrando pelas portas duplas, que se fecharam. Marklin estava sozinho no saguão vazio.

Um martelo soou na sala do conselho, ou algo parecido. Marklin ficou parado olhando para as portas. Sob que pretexto poderia entrar? Para oferecer ajuda, apresentar seus pêsames? Todos sabiam que ele era devotado a Stuart. Meu Deus, o que ele deveria fazer sob circunstâncias normais, se ele não estivesse... Não pense nisso, jamais se detenha nitidamente nesses pensamentos, não aqui, não entre essas paredes.

Olhou de relance para o relógio de pulso. O que eles estavam fazendo? Se Stuart havia renunciado ao cargo, por que ele estaria naquele gabinete, afinal? Talvez estivesse chegando um fax dos Anciãos. Tommy havia tido tempo para desativar a interceptação. Ou talvez Tommy houvesse escrito o comunicado que poderia estar chegando.

Finalmente, ele não conseguiu mais suportar a espera. Avançou, bateu às portas e as abriu sem esperar pela permissão.

Os dois rapazes estavam sozinhos no gabinete, Perry, sentado à mesa de trabalho de Marcus, falando ao telefone, e Ansling o rondando, na óbvia tentativa de acompanhar o telefonema. O fax estava em silêncio. As portas que davam para o quarto de Anton estavam fechadas.

— Onde está Stuart? — perguntou Marklin em voz alta e direta, embora os dois rapazes fizessem gestos para que permanecessem em silêncio.

— Onde você está agora, Yuri? — disse Perry, ao telefone.

Yuri!

— Você não deveria estar aqui — disse Ansling. — Todos deveriam estar na sala do conselho!

— Certo, certo... — disse Perry, com óbvia indulgência para com o homem no outro lado da linha.

— Onde está Stuart? — perguntou Marklin.

— Não sei lhe dizer.

— Você vai me dizer — insistiu Marklin.

— Quem está ao telefone é Yuri Stefano — disse Ansling, demonstrando hesitar em revelar isso, enquanto olhava ansioso de Perry para Marklin. — Stuart foi se encontrar com ele. Ele disse a Stuart que fosse só.

— Fosse para onde? De que modo ele foi embora?

— Bem, ele desceu pela escada privativa do superior geral, imagino — disse Ansling. — Como eu poderia saber?

— Calem a boca, vocês dois! — disse Perry. — Ai, meu Deus, ele desligou! — Ele bateu com o fone no gancho. — Marklin, saia daqui.

— Não fale comigo nesse tom, seu idiota — respondeu Marklin, furioso. — Stuart é meu orientador. Que escada privativa?

Ele passou direto pelos dois, ignorando suas vozes indignadas e imperiosas, atravessando o quarto e vendo, então, o recorte perfeito de uma porta nos lambris, a própria porta sem qualquer indicação estava entreaberta apenas alguns centímetros. Ele a empurrou. Era ali a escada. Porcaria!

— Onde ele foi se encontrar com Yuri? — gritou ele a Ansling, que só agora entrava no quarto.

— Saia dessa passagem — disse Perry. — Saia imediatamente deste quarto. O quarto do superior geral não é o seu lugar.

— Qual é o problema com você, Marklin? — perguntou Ansling. — A última coisa que precisamos agora é de insubordinação. Volte para a sala do conselho imediatamente.

— Eu lhes fiz uma pergunta. Quero saber onde foi meu orientador.

— Ele não nos disse. E, se você tivesse calado a boca e ficado fora disso tudo, eu mesmo poderia ter extraído essa informação de Yuri Stefano.

Marklin olhou enfurecido para os dois rapazes irados e assustados. Idiotas, pensou, idiotas. Tomara que culpem a vocês e aos seus semelhantes subservientes e lamurientos por tudo. Tomara que sejam expulsos. Ele se voltou e desceu pela escada secreta.

Um corredor longo e estreito dava a volta no canto antes de chegar a uma pequena porta. Ela dava direto para o parque, como ele sabia que daria. Nunca havia sequer percebido essa porta! Havia tantas delas. Algumas pedras esparsas atravessavam o gramado, levando na direção aproximada da garagem.

Ele começou a correr, mas sabia ser inútil. Quando chegou aos carros, o encarregado já estava de pé.

— Pediram que todos ficassem na casa, senhor, até que termine a reunião.

— Stuart Gordon. Ele levou um carro oficial?

— Não, senhor. Foi com o dele mesmo. Mas as ordens que me deu foram que ninguém mais deveria sair sem permissão expressa, foi isso o que ele disse, senhor.

— Isso eu já sabia! — respondeu Marklin, furioso. Foi direto para seu próprio Rolls-Royce e bateu a porta na cara do encarregado, que o acompanhara. Já estava a mais de cinqüenta antes de chegar aos portões.

Na auto-estrada, acelerou veloz até cem, cento e vinte, cento e quarenta. Mas Stuart havia saído muito antes. E ele nem podia saber se Stuart chegara a tomar a auto-estrada ou não. Se Stuart havia ido ao encontro de Yuri ou de Tessa. Ele estava indo atrás de nada e de ninguém!

— Tommy, preciso de você — disse ele, em voz alta. Apanhou o telefone do automóvel e, com o polegar, digitou o número do esconderijo secreto em Regents' Park.

Não houve resposta.

Tommy poderia já ter desligado tudo. Ah, por que não haviam planejado um encontro em Londres? Sem dúvida, Tommy perceberia o erro. Sem dúvida, Tommy ficaria lá à sua espera.

O guincho estridente de uma buzina o assustou. Ele desligou o telefone com violência. Precisava prestar atenção ao que estava fazendo. Pisou fundo no acelerador e passou o caminhão à sua frente, levando o Rolls à sua velocidade máxima.

 

ERA UM APARTAMENTO EM BELGRAVIA, não muito distante do Palácio de Buckingham, e primorosamente equipado com tudo de que precisava. Cercava-o mobília em estilo georgiano, com muito mármore branco novo e bonito e tons pastel de pêssego, limão e gelo. Uma equipe de funcionários qualificados havia sido contratada para cumprir suas ordens, homens e mulheres de aparência estritamente eficiente, que puseram mãos à obra de imediato para preparar para ele o fax, o computador, os telefones.

Ele se certificou de que Samuel, quase inconsciente, fosse acomodado na cama de modo adequado, no maior dos quartos, e então tomou posse do gabinete, sentando-se à mesa para ler os jornais rapidamente e absorver o que pudesse da história do assassinato fora de Londres, do homem que havia sido estrangulado por um intruso misterioso com mãos muito grandes.

Os artigos não faziam nenhuma menção à sua altura. Estranho. Teria a Talamasca decidido manter esse dado em segredo? E se fosse esse o caso, por quê?

"Sem dúvida, Yuri leu isso", pensou. "Se é que Yuri está em atividade normal." Mas também, como podia saber se Yuri estava ou não?

Já estavam chegando mensagens de Nova York.

É, era dessas coisas que ele precisava cuidar. Realmente, não podia fingir nem por um dia que a empresa pudesse funcionar sem ele.

A jovem Leslie, que aparentemente não dormia nunca, parecia radiante enquanto o atendia, recebendo mais algumas páginas de um auxiliar e as pondo num lado da mesa.

— As linhas estão ligadas, senhor. Mais alguma coisa?

— Querida, encarregue-se de que um enorme assado seja preparado na cozinha para Samuel. Ele vai estar morrendo de fome quando abrir os olhos.

Já estava digitando o número do telefone direto de Remmick em Nova York enquanto continuava a falar com ela.

— Certifique-se de que meu carro e o motorista estejam prontos para mim a qualquer hora que eu precise deles. Encha as geladeiras com leite fresco e compre alguns queijos para mim, queijos moles de nata. O melhor que você puder encontrar em Camembert e Brie. Mas deve mandar que tudo isso seja entregue a domicílio. Preciso de você aqui. Informe imediatamente se o Claridge's ligar com algum recado e, se não tiver notícias deles, ligue para lá exatamente de hora em hora, compreendeu?

— Sim, Sr. Ash! — disse ela, solícita, e começou imediatamente a escrever tudo num caderno que segurava a cinco centímetros dos olhos.

Num piscar de olhos, havia desaparecido.

Mas ele a veria a se apressar de um lado para o outro com uma energia assombrosa cada vez que erguesse os olhos.

Eram três da tarde quando ela veio até a mesa, com todo o entusiasmo de uma adolescente.

— Claridge's. Querem falar pessoalmente com o senhor. Linha dois.

— Com licença — disse ele, satisfeito ao ver que ela recuava de imediato.

Ele atendeu a linha acesa.

— Aqui é Ashlar. Estão me ligando do Claridge's?

— Não. Aqui é Rowan Mayfair. Consegui seu telefone com o Claridge's há uns cinco minutos. Disseram que o senhor saiu hoje pela manhã. Yuri está comigo. Ele está com medo do senhor, mas eu preciso lhe falar. Preciso vê-lo. O senhor reconhece meu nome?

— Claro que sim, Rowan Mayfair — disse ele, baixinho. — Quer me dizer onde posso encontrá-la, por favor? Yuri está bem?

— Primeiro, quero que me diga por que está disposto a vir me ver. Exatamente o que o senhor deseja?

— A Talamasca está cheia de traições. Ontem à noite, assassinei o superior geral. — Nenhuma reação por parte dela. — O homem fazia parte da conspiração. Essa conspiração está relacionada à família Mayfair. Quero restaurar a ordem na Talamasca para que ela continue sendo a Talamasca, e também porque no passado jurei que sempre cuidaria de proteger a Talamasca. Rowan Mayfair, você sabe que Yuri está correndo perigo? Que essa conspiração é uma ameaça à vida dele?

Silêncio na outra ponta da linha.

— A ligação não caiu, caiu? — perguntou ele.

— Não. Eu estava só pensando no som da sua voz.

— O Taltos que você gerou não viveu além da tenra infância. Sua alma não estava em paz antes de ele nascer. Você não pode pensar em mim nesses termos, Rowan Mayfair, mesmo que minha voz faça com que se lembre dele.

— Como matou o superior geral?

— Eu o estrangulei. Impus-lhe o mínimo possível de sofrimento. O que fiz tinha um objetivo. Eu queria expor a conspiração à Ordem inteira, para que tanto os inocentes quanto os culpados soubessem. No entanto, não creio que o problema envolva a Ordem como um todo. Só alguns. — Silêncio. — Permita que eu vá ao seu encontro. Irei sozinho se preferir. Podemos nos encontrar num lugar movimentado. Talvez você saiba que esse telefone é de Belgravia. Diga-me onde está.

— Yuri vai se encontrar com um membro da Talamasca neste exato momento. Não posso deixá-lo sozinho.

— Precisa me dizer onde esse encontro vai se realizar. — Ele rapidamente se levantou e acenou para a porta. O auxiliar de gabinete surgiu imediatamente. — Preciso do motorista! Agora! — sussurrou. Ele voltou a apanhar o telefone. — Rowan Mayfair, esse encontro pode ser perigoso para Yuri. Poderia ser um erro muito, muito grave.

— Mas o homem vem sozinho — disse Rowan. — E nós o veremos antes que ele nos veja. Seu nome é Stuart Gordon. Esse nome lhe diz alguma coisa?

— Já ouvi esse nome. O homem é muito velho. É só isso que posso lhe dizer.

Silêncio.

— Sabe mais alguma coisa a respeito dele? Qualquer coisa que torne provável que ele saiba da sua existência?

— Não, nada. Stuart Gordon e outros membros da Talamasca de quando em quando chegam a viajar até o vale de Donnelaith. Mas nunca me viram lá. Nem em nenhum outro lugar. Nunca puseram os olhos em mim.

— Donnelaith? Tem certeza de que era Gordon?

— Tenho. Tenho certeza absoluta. Gordon costumava ir lá com freqüência. Os Pequenos me contaram. Os Pequenos roubam objetos dos estudiosos durante a noite. Apanham suas mochilas ou qualquer coisa em que possam pôr as mãos por um instante. Conheço o nome de Stuart Gordon. Os Pequenos cuidam para não matar os estudiosos da Talamasca. Cria problemas matá-los. Tampouco matam gente da zona rural. Mas matam outras pessoas que vagueiam por lá com binóculos e fuzis. Eles me informam quem chega ao vale.

Silêncio.

— Por favor, confie em mim — disse Ash. — Esse homem que matei, Anton Marcus, era corrupto e sem escrúpulos. Nunca ajo dessa forma por impulso. Por favor, aceite minha palavra de que não represento perigo para você, Rowan Mayfair. Preciso conversar com você. Se não quiser permitir que eu vá...

— Sabe encontrar a esquina de Brook Street e Spelling?

— Sei onde fica. É onde está agora?

— É, mais ou menos. Vá até a livraria. É a única livraria da esquina. Eu o verei quando chegar aqui e irei ao seu encontro. Ah, e venha rápido. Stuart Gordon deve estar aqui a qualquer momento.

Ela desligou.

Ele desceu correndo os dois lances de escada, com Leslie atrás, fazendo todas as perguntas de praxe. Ele queria os seguranças? Ela deveria acompanhá-lo?

— Não, querida, fique por aqui — disse ele. — Brook e Spelling, logo acima do Claridge's — disse ele ao motorista. — Não me acompanhe, Leslie. — Ele entrou na traseira do carro.

Não sabia se devia levar o carro até o exato local do encontro. Sem dúvida, Rowan o veria e gravaria sua placa, se é que isso chegava a ser necessário com uma limusine Rolls-Royce alongada. Mas por que se preocupar? O que ele podia ter a temer de Rowan Mayfair? Que vantagem ela teria se o ferisse?

Ash tinha a impressão de estar deixando escapar alguma coisa, alguma coisa de extrema importância, alguma probabilidade que só se faria conhecida a ele com reflexão e tempo. Mas essa forma de pensar fazia sua cabeça doer. Estava ansioso demais para ver essa bruxa. Seguiria seu instinto de criança.

A limusine foi abrindo caminho aos solavancos em meio ao tráfego conturbado de Londres, chegando ao seu destino, duas movimentadas ruas comerciais, em menos de doze minutos.

— Por favor, fique por aqui, por perto — disse ele ao motorista. — Não tire os olhos de mim e venha a mim se eu o chamar. Entendeu?

— Entendi, Sr. Ash.

Lojas elegantes dominavam a esquina de Brook e Spelling. Ash saltou, esticou as pernas por um instante, caminhou devagar até o meio-fio da esquina e esquadrinhou a multidão, ignorando os inevitáveis palermas e as poucas pessoas que lhe faziam comentários bem-humorados em voz alta sobre a sua altura.

Lá estava a livraria, em diagonal ao local onde se encontrava. Muito bonita, com caixilhos de madeira encerada e ferragens de latão. Estava aberta, mas não havia ninguém do lado de fora.

Ele atravessou o cruzamento com audácia, caminhando contra o tráfego, deixando dois ou três motoristas furiosos, mas chegou ao outro lado ileso, naturalmente.

Havia uma pequena multidão dentro da livraria. Nenhuma das pessoas era bruxa. Mas ela dissera que o veria e que se encontraria com ele aqui.

Deu meia-volta. Seu motorista estava mantendo a posição, apesar do trânsito ao seu redor, com toda a arrogância de um chofer à direção de uma limusine monstruosa. Isso era bom.

Rapidamente, Ash examinou as lojas na Brook à sua esquerda e depois, olhando para o outro lado, percorreu a Spelling, detendo-se em cada loja e transeunte.

Diante da vitrina abarrotada de uma loja de artigos de vestuário, estavam um homem e uma mulher. Michael Curry e Rowan Mayfair. Tinha de ser.

Seu coração praticamente parou de bater.

Bruxos. Os dois.

Os dois estavam olhando para ele e tinham olhos de bruxos. Deles emanava aquele brilho suavíssimo que os bruxos sempre apresentavam aos seus olhos.

Ficou maravilhado. O que era que produzia esse brilho? Quando ele os tocasse, se chegasse a fazer isso, eles se revelariam mais quentes do que outros seres humanos. E, se ele grudasse o ouvido às suas cabeças, ouviria um som grave, orgânico, que não detectava em outros mamíferos ou em pessoas que não fossem bruxas. Embora ocasionalmente, com pouquíssima freqüência, ele tivesse ouvido esse murmúrio baixo e sussurrante, vindo do corpo de um cão vivo.

Meu Deus do céu, que bruxos! Fazia tanto tempo que ele não via bruxos com esse poder, e jamais vira bruxos com mais do que isso. Não se mexeu. Apenas olhava para eles e procurava se liberar dos seus olhos fixos. Não era nada fácil. Ele se perguntava se eles sabiam disso. Não deixou transparecer nada.

O homem, Michael Curry, era celta até a alma. Poderia ter vindo da Irlanda, e não dos Estados Unidos. Nele não havia nada que não fosse irlandês, desde os cabelos crespos e negros, os olhos azuis deslumbrantes, a jaqueta de caça de lã, que ele estava usando por estar na moda, é claro, e as calças de flanela macia. Era um homem grande, um homem forte.

Pai do Taltos, e seu assassino! Lembrou-se disso com um choque surdo. Pai... assassino.

E a mulher?

Muito magra e extremamente bela, embora num estilo totalmente moderno. O cabelo era simples, apesar de lustroso e atraente, emoldurando o rosto fino. Suas roupas também eram sedutoras, calculadamente diminutas, na realidade de um erotismo quase extravagante. Seus olhos eram muito mais assustadores do que os do homem.

Na verdade, ela possuía olhos de homem. Era como se essa parte do seu rosto tivesse sido retirada de um ser humano do sexo masculino e aplicada ali, acima da boca macia, larga, feminina. No entanto, era comum ele ver essa seriedade, essa agressividade, na mulher moderna. Só que essa, bem, essa era bruxa.

Os dois estavam fascinados.

Não falavam um com o outro, nem se mexiam. Mas estavam juntos uma figura parcialmente encobrindo a outra. O vento não trazia seu cheiro até Ash. Estava soprando na outra direção, o que queria dizer, em termos estritos, que eles deveriam estar sentindo o seu.

A mulher de repente rompeu o silêncio, mas apenas com um pequeno movimento dos lábios. Murmurara alguma coisa para seu companheiro. Mas ele permaneceu calado, estudando Ash, como antes.

Ash relaxou por inteiro. Deixou que as mãos pendessem naturalmente ao lado do corpo, o que raramente fazia, em virtude do comprimento dos seus braços. Mas eles precisavam ver que ele não estava escondendo nada. Voltou a atravessar Brook Street, muito devagar, dando-lhes tempo para fugir se quisessem, embora pedisse a Deus que não fugissem.

Foi se aproximando lentamente deles na Spelling. Eles não saíram do lugar. De repente, um pedestre deu-lhe um encontrão acidental, deixando cair na calçada com estrondo todo um saco de papel de pequenas compras. O saco estourou. As compras ficaram espalhadas.

"Justo numa hora dessas", pensou ele, mas sorriu rapidamente e se abaixou apoiado num joelho para começar a apanhar tudo para o pobre indivíduo.

— Peço que me perdoe — disse ele.

Era uma mulher idosa, que agora dava uma risada alegre e lhe dizia que ele era alto demais para se abaixar e fazer esse tipo de coisa.

— Não me incomodo nem um pouco. Foi minha culpa — disse ele, dando de ombros. Estava perto o suficiente dos bruxos para que eles talvez o ouvissem, mas não podia demonstrar medo.

A mulher trazia uma grande bolsa de lona no braço. Afinal, ele recolheu todos os pequenos pacotes e os depositou na bolsa de lona. E lá se foi ela, acenando para ele enquanto ele acenava com cordialidade e respeito para ela.

Os bruxos não haviam se mexido. Ele sabia. Dava para sentir que eles o observavam. Sentia o mesmo poder que provocava o brilho na sua visão, talvez a mesma energia. Ele não sabia. Agora não havia mais de seis metros entre eles.

Ele virou a cabeça e olhou para eles. Estava de costas para o trânsito, e os via nitidamente diante da vitrina de vidro laminado, cheia de vestidos. Como os dois pareciam temíveis. A luz que emanava de Rowan havia se tornado um fulgor muito leve aos seus olhos, e agora ele sentia seu cheiro: sem sangue. Uma bruxa que não podia parir. O cheiro do homem era forte, e o rosto era mais terrível, cheio de suspeita e talvez mesmo de ira.

Dava-lhe calafrios, o jeito com que olhavam para ele. Mas nem todos podem amar a gente, pensou, com um sorriso discreto. Nem mesmo todos os bruxos podem amar a gente. Isso é pedir demais. O importante era que eles não haviam fugido.

Mais uma vez, ele começou a andar na direção deles. No entanto, Rowan Mayfair o assustou. Ela fez um gesto, apontando com um dedo, e com a mão junto ao seio, para que ele olhasse para o outro lado da rua.

Talvez seja uma cilada. Eles pretendem me matar, pensou. A idéia o divertiu, mas só um pouco. Ele olhou para onde ela indicara. Viu um café do outro lado. E o cigano acabava de sair dali, com um homem idoso ao seu lado. Yuri parecia doente, pior do que nunca, e seus jeans e camisa eram leves demais para o frio que fazia.

Yuri viu Ash imediatamente. Ele desimpediu a entrada movimentada. Ficou olhando enlouquecido para Ash, ou foi o que pareceu. Pobre coitado, está ficando louco, pensou Ash, de verdade. O homem de idade falava atentamente com Yuri, e não parecia perceber que Yuri estava olhando para longe.

Esse homem de idade. Tinha de ser Stuart Gordon! Usava os trajes discretos e antiquados da Talamasca, sapatos sociais de bico reforçado e lapelas muito estreitas, além do colete combinando com o paletó. Quase afetado. É, era Gordon, sem dúvida, ou outro membro da Talamasca. Não podia haver engano.

Como Gordon argumentava com Yuri, como parecia aflito. E Yuri não estava a trinta centímetros do homem. Este podia a qualquer momento matar Yuri com qualquer um dentre meia dúzia de métodos secretos.

Ash começou a atravessar a rua, desviando-se de um automóvel e forçando outro a parar ruidosamente.

De repente, Stuart Gordon percebeu que Yuri estava sendo distraído. Stuart Gordon ficou irritado. Queria ver o que estava distraindo Yuri. Virou-se exatamente quando Ash se abatia sobre ele, tendo chegado ao meio-fio e estendido a mão para segurar o braço de Stuart.

O reconhecimento foi incontestável. Ele sabe o que eu sou, pensou Ash, e seu coração se compadeceu um pouco do homem. Esse homem, esse amigo de Aaron Lightner, era culpado. É, sem sombra de dúvida o homem o conhecia e erguia os olhos para o seu rosto com uma mescla de horror e de reconhecimento profundo e secreto.

— Você me conhece — disse Ash.

— Você matou nosso superior geral — disse o homem, mas a isso ele se agarrar em desespero. A confusão e o reconhecimento iam muito além de qualquer coisa que houvesse acontecido apenas na noite passada. Gordon entrou em pânico e começou a arranhar os dedos de Ash. — Yuri, faça com que ele pare. Faça com que pare.

— Mentiroso — disse Ash. — Olhe para mim. Você sabe muito bem quem eu sou. Você sabe da minha existência. Sei que sabe, não minta para mim, homem cheio de culpa.

Eles haviam se tornado um espetáculo. Havia gente saindo da calçada para a rua para se desviar deles. Outros paravam para observar.

— Tire suas mãos de cima de mim! — disse Stuart Gordon, furioso, com os dentes cerrados e o rosto enrubescido.

— Exatamente como o outro — disse Ash. — Você matou seu amigo Aaron Lightner? E Yuri? Você mandou o homem que lhe deu um tiro no vale?

— Só sei o que me contaram sobre isso hoje pela manhã! — protestou Stuart Gordon. — Você deve me soltar.

— Devo? — disse Ash. — Vou matá-lo.

Os bruxos estavam ao seu lado. Com um relance à sua direita, viu Rowan Mayfair junto ao seu braço. Michael Curry estava logo ao seu lado, com os olhos cheios de maldade, como antes.

A visão dos bruxos despertou novo pavor em Gordon.

Segurando Gordon com firmeza, Ash olhou para a esquina e ergueu rapidamente a mão esquerda para o motorista. O homem estava fora do carro e estivera apreciando os acontecimentos. Ele entrou imediatamente, assumiu a direção e logo o carro fazia a volta para descer pela rua.

— Yuri! Você não vai deixar que ele faça isso comigo, vai? — reclamou Gordon. Uma indignação desesperada, brilhante, falsa.

— Você matou Aaron? — perguntou Yuri. Esteja estava praticamente fora de si, e Rowan Mayfair fez um movimento para contê-lo quando ele investiu contra Gordon. Gordon começou a se contorcer numa fúria corajosa, voltando a arranhar os dedos de Ash.

O longo Rolls-Royce parou ao lado de Ash. O motorista desceu imediatamente.

— Posso ajudá-lo, Sr. Ash?

— Sr. Ash — disse Gordon, apavorado, interrompendo sua luta em vão. — Que espécie de nome é "Sr. Ash"?

— Um policial está vindo para cá, senhor — avisou o motorista. — Diga o que quer que eu faça.

— Vamos sair daqui, por favor — disse Rowan Mayfair.

— É, todos nós, vamos. — Ash voltou-se e arrastou Stuart, que cambaleava, para fora da calçada.

Assim que a porta traseira do carro estava aberta, Ash jogou Gordon, indefeso, no banco de trás. Sentou-se ao seu lado, forçando-o para o canto oposto. Michael Curry havia entrado na frente, ao lado do motorista, e agora Rowan entrava passando por Ash, com a pele a queimá-lo quando tocou na sua perna, e se sentava no banco retrátil enquanto Yuri se jogava ao seu lado. O carro deu uma guinada e partiu.

— Para onde devo levá-lo, senhor? — perguntou o motorista. O painel de vidro estava descendo. Agora ele desaparecia na parte traseira do banco dianteiro, e Michael Curry se voltou e olhava por cima de Yuri bem nos olhos de Ash.

Esses bruxos, esses olhos, pensou Ash, em desespero.

— Basta que saia daqui — disse Ash ao motorista.

Gordon estendeu a mão para a maçaneta da porta.

— Tranque as portas — disse Ash, mas não esperou pelo conhecido estalido eletrônico. Grudou sua mão direita ao braço direito de Gordon.

— Solte-me, seu filho da mãe! — ordenou Gordon, num tom grave e retumbante de autoridade.

— Você quer me dizer a verdade agora? — perguntou Ash. — Vou matá-lo como matei seu capanga Marcus. O que pode me dizer que me impeça de agir assim?

— Como ousa, como pode... — começou Stuart novamente.

— Pare de mentir — disse Rowan Mayfair. — Você é culpado e não fez tudo isso sozinho. Olhe para mim.

— Não vou olhar! — disse Gordon. — As bruxas Mayfair — prosseguiu ele, cheio de rancor, quase cuspindo as palavras. — E essa coisa, essa criatura que vocês invocaram dos pântanos, esse Lasher. Ele é seu vingador?

O homem estava sofrendo intensamente. Seu rosto estava branco com o choque. Mas ele estava longe de ser derrotado.

— Está bem — disse Ash, sereno. — Vou matá-lo, e os bruxos não têm como me impedir. Não imagine que eles possam fazê-lo.

— Não, você não vai me matar! — disse Gordon, voltando-se de tal modo que pudesse ver tanto Ash quanto Rowan Mayfair, com a cabeça encostada no canto estofado do automóvel.

— E por que motivo? — perguntou Ash, com delicadeza.

— Porque eu tenho a fêmea! — sussurrou Gordon.

Silêncio.

Só os sons do trânsito à sua volta, enquanto o carro seguia em frente veloz e agressivo.

Ash olhou para Rowan Mayfair. Depois para Michael, que olhava para trás, de lá do banco dianteiro. E finalmente para Yuri, bem em frente a ele, Yuri, que parecia incapaz de pensar ou de falar. Ash deixou que seus olhos voltassem a Gordon.

— A fêmea sempre esteve comigo — disse Gordon, numa voz baixa, compungida, porém sardônica. — Fiz tudo isso por Tessa. Fiz isso para levar o macho a Tessa. Era esse o meu propósito. Agora, quero que me libertem, ou nenhum de vocês ira jamais pôr os olhos em Tessa. Muito menos você, Lasher, Sr. Ash ou quem quer que seja. Não importa que nome você use! Ou será que eu estou tragicamente enganado e você realmente possui um harém só seu?

Ash abriu os dedos, esticou-os, deixando que assustassem Gordon, e depois os recolheu, pousando a mão no próprio colo.

Os olhos de Gordon estavam vermelhos e lacrimosos. Ainda rígido de indignação, ele tirou do bolso um enorme lenço amarfanhado e assoou o nariz, que tinha a frágil aparência de um bico de ave.

— Não — disse Ash, tranqüilo. — Acho que vou matá-lo agora.

— Não! Você nunca verá Tessa! — rebateu Gordon.

Ash debruçou-se sobre ele, bem de perto.

— Então, leve-me a ela, por favor, imediatamente, ou eu o estrangulo agora mesmo.

Gordon calou-se, mas só por um instante.

— Diga ao seu motorista que vá para o sul. Que saia de Londres na direção de Brighton. Não vamos até Brighton, mas por enquanto isso basta. Fica a uma hora e meia daqui.

— Então, temos tempo para conversar, não é? — perguntou a bruxa, Rowan. Sua voz era grave, quase rouca. Ela ofuscava a visão de Ash, refulgindo levemente no escuro do carro. Seus seios eram pequenos mas de belo formato sob as lapelas de seda do paletó decotado. — Conte-me como pôde fazer uma coisa dessas — disse ela a Gordon. — Matar Aaron. Você mesmo é um homem como Aaron.

— Eu não o matei — disse Gordon, amargurado. — Não queria que isso acontecesse. Foi um ato idiota e perverso. E aconteceu antes que eu pudesse impedi-lo. O mesmo com Yuri e o tiro. Não tive nada a ver com isso. Yuri, no café, quando lhe disse que estava preocupado com os riscos à sua vida, eu estava falando sério. Há certas coisas que simplesmente estão fora do meu controle.

— Quero que conte tudo agora — disse Michael Curry. Ele olhava para Ash enquanto falava. — Realmente não temos condições de conter esse nosso amigo aqui. E se tivéssemos, não o conteríamos.

— Não vou lhes contar nada — disse Gordon.

— Isso é tolice — opinou Rowan.

— Não, não é — respondeu Gordon. — É o único movimento que me resta. Eu lhes conto o que sei antes que vocês tenham acesso a Tessa e, quando vocês estiverem com ela, vão se livrar de mim na mesma hora.

— É provável que eu aja dessa forma, de qualquer maneira — disse Ash. — Você está comprando algumas horas de vida.

— Não tão rápido assim. Há muitas coisas que posso lhe revelar. Você não faz a menor idéia. Vai precisar de muito mais do que algumas horas.

Ash não respondeu.

Os ombros de Gordon relaxaram. Ele respirou fundo, encarando seus captores, um a um, novamente, antes de voltar a Ash. Ash havia se afastado até também ele estar no canto. Não queria a proximidade desse humano, desse humano nervosinho e perverso que ele sabia que acabaria matando.

Olhou para os seus dois bruxos. Rowan Mayfair estava sentada com a mão no joelho, quase igual a Ash, e agora erguia os dedos num gesto circular, talvez a lhe pedir que tivesse paciência.

O estalido de um isqueiro acendendo assustou Ash.

— Importa-se se eu fumar, Sr. Ash, neste seu carro elegante? — perguntou Michael Curry, do banco dianteiro. Sua cabeça já estava inclinada sobre o cigarro e a chama minúscula.

— Por favor, fique à vontade — disse Ash, com um sorriso cordial. Para seu espanto, Michael retribuiu com um sorriso. — Temos uísque no carro. Água e gelo. Alguém aceita um drinque?

— Eu aceito — disse Michael Curry, com um pequeno suspiro, soprando a fumaça do cigarro. — Mas em nome da boa conduta, esperarei até depois das seis.

E esse bruxo pode gerar o Taltos, pensou Ash, examinando o perfil de Michael Curry e suas feições ligeiramente toscas mas de proporções fascinantes. Sua voz tinha um vigor que sem dúvida atingia muitas coisas, pensou Ash. Olhe como ele observa os prédios por onde passamos. Nada lhe escapa.

Rowan Mayfair continuava a olhar exclusivamente para Ash.

Haviam acabado de sair da cidade.

— Esse é o caminho — disse Gordon, com a voz embargada. — Siga em frente até eu avisar.

O velho olhou ao longe como se estivesse verificando a posição geográfica, mas em seguida sua testa bateu com força na janela, e ele começou a chorar.

Ninguém falou. Ash apenas olhava para os bruxos. Pensou, então, na fotografia da bruxa ruiva e, quando deixou que seus olhos vagassem até Yuri, que estava sentado bem à sua frente, ao lado de Rowan, viu que os olhos de Yuri estavam fechados. Ele estava encolhido, encostado na lateral do carro, com a cabeça voltada para fora, e também derramava lágrimas, sem emitir praticamente nenhum som.

Ash inclinou-se para a frente para pousar a mão tranqüilizadora no joelho de Yuri.

 

ERA, TALVEZ, UMA DA TARDE quando Mona acordou no quarto da frente no andar superior, com os olhos voltados para os carvalhos do lado de fora da janela. Os galhos estavam cobertos de samambaias, verdes mais uma vez graças às recentes chuvas de primavera.

— Telefone para você — disse Eugenia.

Mona quase disse, Meu Deus, que bom que tem alguém por aqui. Mas ela não gostava de admitir para ninguém que havia sentido medo de fantasmas naquela casa famosa e que seus sonhos a estavam deixando profundamente perturbada.

Eugenia olhou de soslaio para a enorme e ondulante camisa branca de algodão que Mona estava usando. Qual era o problema? Era roupa para usar em casa, não era? Nos catálogos de compras, elas eram chamadas de Camisas de Poeta.

— Não devia estar dormindo com essa roupa bonita! — reclamou Eugenia. — E olhe só essas mangas lindas, tão amarrotadas. E essa renda, essa renda delicada!

Se ao menos ela pudesse dizer Suma daqui.

Eugenia, ela foi feita para ser amarrotada.

Na mão de Eugenia, havia um copo alto de leite, espumante e convidativo. E na outra mão, uma maçã num pequeno prato branco.

— Quem mandou isso? — perguntou Mona. — A Rainha Má?

É claro que Eugenia não sabia do que ela estava falando, mas isso não fazia diferença. Eugenia apontou novamente para o telefone. Mona estava a ponto de tirar o fone do gancho quando seu pensamento, desviando-se de volta para o sonho, descobriu que o sonho desaparecera. Como um véu que é arrancado, ele não deixou nada além de uma leve lembrança de textura e cor. E a certeza estranhíssima de que ela deveria chamar sua filha de Morrigan, nome que ela jamais havia ouvido antes.

— E se você for menino? — perguntou. Ela apanhou o fone.

Era Ryan. O enterro estava terminado, e a família Mayfair estava chegando à casa de Bea. Lily ia ficar lá alguns dias, da mesma forma que Shelby e tia Vivian. Cecilia estava na cidade alta, cuidando da Velha Evelyn, e tudo estava bem.

— Você poderia oferecer um pouco da tradicional hospitalidade de First Street a Mary Jane Mayfair por enquanto? — perguntou Ryan. — Só posso levá-la a Fontevrault amanhã. Além do mais, seria bom se você começasse a conhecê-la. E é claro que ela está apaixonada pela esquina de First e Chestnut e quer lhe fazer mil perguntas.

— Pode trazê-la — disse Mona. O leite estava tão bom! Era simplesmente o leite mais gelado que ela havia provado na vida, o que eliminava aquele sabor repugnante, que ela nunca apreciara. — Será um prazer ter sua companhia — prosseguiu. — Essa casa é assombrada, você tem razão.

Imediatamente, ela desejou não ter admitido esse fato, o de que ela, Mona Mayfair, fora assustada por fantasmas na grande mansão.

Ryan, no entanto, já enveredava pela trilha do dever e da organização e simplesmente continuou a explicar que Vovó Mayfair, lá em Fontevrault, estava aos cuidados do menino de Napoleonville, e que essa era uma boa oportunidade para convencer Mary Jane a sair daquela ruína e se mudar para a cidade.

— Essa menina precisa da família. Mas ela não precisa de nem mais um pouco de dor e aflição neste exato momento. Sua primeira visita de verdade transformou-se, por motivos óbvios, num desastre. Ela está em estado de choque devido ao acidente. Você sabe que ela presenciou o acidente todo. Quero tirá-la daqui...

— Bem, é claro, mas ela vai se sentir mais íntima de todos depois — disse Mona, encolhendo os ombros. Ela deu uma grande mordida, ruidosa e molhada, na maçã. Meu Deus, como estava com fome. — Ryan, você já ouviu o nome Morrigan?

— Acho que não.

— Nunca houve uma Morrigan Mayfair?

— Não que eu me lembre. É um antigo nome inglês, não é?

— Huumm. Você acha bonito?

— Mas e se for menino, Mona?

— Não é. Eu sei — disse ela. E depois se conteve. Como poderia afinal saber? Era o sonho, não era? E também podia ser o que desejaria que fosse realidade, o desejo de ter uma menina e de criá-la livre e forte, do jeito que as meninas quase nunca são criadas.

Ryan prometeu estar lá em dez minutos.

Mona sentou-se recostada nos travesseiros, olhando mais uma vez para as samambaias e os fragmentos de céu azul para além delas. A casa estava em silêncio à sua volta, tendo Eugenia desaparecido. Ela cruzou aspernas nuas, com a camisa facilmente encobrindo seus joelhos com a larga barra de renda. As mangas estavam horrivelmente amarrotadas, era verdade, mas e daí? Eram mansas dignas de um pirata. Quem poderia manter uma coisa daquelas em perfeito estado? Os piratas? Os piratas deviam andar por aí amarrotados. E Beatrice havia comprado uma tal quantidade dessas camisas! Mona imaginava que esse tipo de roupa devia ser considerado "juvenil". Bem, a camisa era bonita. Tinha até botões de pérola. Fazia com que ela se sentisse uma... uma pequena mamãe!

Ela riu. Puxa, essa maçã estava gostosa.

Mary Jane Mayfair. De certo modo, essa era a única pessoa na família que Mona talvez pudesse sentir entusiasmo em ver. Por outro lado, e se Mary Jane começasse a dizer todo tipo de coisa amalucada, típica de uma bruxa? E se ela começasse a disparar opiniões irresponsáveis? Mona não seria capaz de lidar com a situação.

Deu mais uma mordida na maçã. Isso vai ajudar nas carências vitamínicas, mas ela precisava tomar os suplementos que Annelle Salter lhe receitara. Bebeu o resto do leite num gole único e enorme.

— E Ofélia? — perguntou em voz alta. Seria certo dar a uma filha o nome da pobre louca, que se matou depois de ser rejeitada por Hamlet? Provavelmente não. Ofélia é meu nome secreto, pensou. E você vai se chamar Morrigan.

Inundou-a uma imensa sensação de bem-estar. Morrigan. Ela fechou os olhos e sentiu o cheiro do mar, ouviu as ondas que batiam com estrondo nos rochedos.

 

Acordou abruptamente com um ruído. Estivera dormindo e não sabia há quanto tempo. Ryan estava em pé ao lado da cama, e Mary Jane Mayfair estava com ele.

— Ah, desculpem — disse Mona, balançando as pernas para o lado da cama e dando a volta para cumprimentar os dois. Ryan já estava recuando para sair do quarto.

— Suponho que você saiba que Michael e Rowan estão em Londres. Michael disse que ligaria para você — declarou Ryan, e seguiu para descer a escada.

Cá estava Mary Jane.

Que diferença da tarde em que chegara jorrando diagnósticos para cima de Rowan. No entanto, era preciso que se lembrasse, pensou Mona, que aqueles diagnósticos estavam certos.

Os cabelos louros de Mary Jane caíam soltos e esplêndidos, como linho, sobre seus ombros, e seus seios volumosos pareciam empurrar a blusa justa do seu vestido branco de renda. Havia um pouco de lama, provavelmente do cemitério, nos sapatos altos de cor bege. Sua cintura era a mítica cintura fina da sulista.

— Ei, Mona, espero que isso não a atrapalhe, minha presença aqui — disse ela, agarrando imediatamente a mão direita de Mona e a sacudindo vigorosamente. Seus olhos azuis cintilavam enquanto ela olhava para Mona da sua aparentemente imensa altura de um metro e setenta, já de salto alto. — Olhe, posso me mandar daqui a qualquer hora que você queira. Pegar carona não é novidade para mim, isso eu posso lhe dizer. Chego a Fontevrault perfeitamente. Ei, olhe só, nós duas estamos usando renda branca, e você não está com a bata mais linda? Puxa, ela é simplesmente maravilhosa. Você está parecendo um sino branco de renda com cabelo vermelho. Olhe, será que posso ir ali fora na varanda da frente?

— Claro que pode. Estou feliz por você estar aqui — disse Mona. Sua mão estava pegajosa da maçã, mas Mary Jane não havia percebido.

Mary Jane vinha passando por ela.

— Você tem de empurrar essa janela para cima e sair abaixando a cabeça um pouco. Mas isso aqui não é bem um vestido. É um tipo de camisão ou coisa semelhante. — Ela gostava do caimento do tecido à sua volta. E adorava o jeito com que a saia de Mary Jane ia se alargando a partir daquela cinturinha.

Bem, essa não é uma hora adequada para ficar pensando em cinturas, certo?

Saiu atrás de Mary Jane. Ar puro. A brisa do rio.

— Depois, posso lhe mostrar meu computador e minhas opções para a bolsa de valores. Tenho um fundo mútuo que venho administrando há seis meses, e ele está rendendo milhões. Pena que eu não pude de fato comprar nenhuma das ações que escolhi.

— Estou ouvindo, querida — disse Mary Jane. Ela pôs as mãos na grade da varanda e olhou para a rua lá embaixo. — É uma senhora mansão. É, sem dúvida.

— Tio Ryan salienta que ela não é uma mansão, mas, na realidade, uma residência urbana — disse Mona.

— Bem, então ela é uma senhora residência urbana.

— É, e de uma senhora cidade.

Mary Jane riu, dobrando o corpo inteiro para trás, e depois se virou para olhar para Mona, que mal acabava de pisar na varanda.

De repente, examinou Mona dos pés à cabeça, como se alguma coisa tivesse causado alguma impressão nela, e depois ficou paralisada, encarando Mona nos olhos.

— O que houve? — perguntou Mona.

— Você está grávida.

— Ora, você só está dizendo isso por causa dessa camisa, bata ou sei lá o quê.

— Não, você está grávida.

— Bem, estou. Estou, sim. — O jeito de falar caipira dessa menina era contagioso. Mona pigarreou. — Quer dizer, todo mundo sabe. Ninguém lhe contou? Vai ser menina.

— Você acha? — Alguma coisa estava deixando Mary Jane sem jeito. Seria de se esperar que ela fosse gostar de se abater sobre Mona fazendo todos os tipos de previsões sobre o bebê. Não é isso o que se diz que as bruxas fazem?

— Você já recebeu os resultados do exame? — perguntou Mona. — Já sabe sobre a espiral em dupla hélice? — Era lindo aqui no alto das árvores. Dava-lhe vontade de descer para o jardim.

Mary Jane de fato a estava examinando com olhos semicerrados. Em seguida, seu rosto relaxou um pouco, com a pele bronzeada sem uma única imperfeição e, sobre os ombros, os cabelos louros, cheios porém lisos.

— É, eu tenho mesmo os genes — disse Mary Jane. — Você também tem, não é? — Mona fez que sim.

— Eles lhe disseram mais alguma coisa?

— Que provavelmente não faria diferença, que eu teria filhos saudáveis. Que todo mundo sempre tinha na família, a não ser por um incidente do qual ninguém se dispõe a falar.

— Huummm — disse Mona. — Ainda estou com fome. Vamos descer.

— É, vamos. Com a fome que estou, podia comer um boi!

Mary Jane parecia bastante normal quando as duas estavam chegando à cozinha. Falava sem parar de cada quadro e cada peça da mobília que via. Parecia que nunca estivera dentro da casa antes.

— Que grosseria inominável não a termos convidado a entrar — disse Mona. — Todos estavam preocupados com Rowan naquela tarde.

— Eu não espero convites elegantes de ninguém — disse Mary Jane. — Mas esta casa é linda! Olhe só essas pinturas nas paredes!

Mona não pôde deixar de sentir orgulho por Michael tê-la restaurado. E ocorreu-lhe de repente, como lhe ocorrera mais de cinqüenta milhões de vezes nessa última semana, que a casa um dia seria sua. Parecia que já era. Mas ela não deveria abusar disso, já que Rowan estava bem de novo.

Será que Rowan um dia estaria bem de verdade? Voltou-lhe à memória um relance, Rowan naquele costume elegante de seda negra, ali sentada, olhando para ela, com as sobrancelhas retas e escuras e os olhos grandes, duros, cinzentos, como pedras polidas.

Que Michael era o pai do bebê, que era ela quem estava grávida, que esse fato a vinculava a eles dois — de repente tudo isso a atingiu.

Mary Jane segurou uma das cortinas da sala de jantar.

— Renda — disse ela, baixinho. — Renda finíssima, não é? Tudo aqui é o melhor que se pode encontrar.

— Bem, acho que é isso mesmo.

— E você, também — disse Mary Jane. — Parece algum tipo de princesa, toda vestida de renda. Puxa, nós duas estamos usando renda. Estou adorando.

— Obrigada — disse Mona, um pouco perturbada. — Mas por que uma pessoa tão bonita quanto você ia notar alguém como eu?

— Não seja boba — disse Mary Jane, passando majestosa por ela para entrar na cozinha, com um gracioso menear de quadris e os saltos altos a bater no chão com importância. — Você é maravilhosa. Eu sou bonita. Sei que sou. Mas gosto de apreciar outras garotas bonitas. Sempre gostei.

Sentaram-se juntas à mesa de tampo de vidro. Mary Jane examinou os pratos que Eugenia estava pondo diante delas, segurando o seu contra a luz.

— Puxa, isso é porcelana verdadeira — disse ela. — Temos algumas peças em Fontevrault.

— Verdade? Vocês ainda têm esse tipo de coisa por lá?

— Querida, você ficaria pasma com o que temos no sótão. Puxa, temos prata, porcelana, cortinas velhas e caixas de retratos. Você precisava ver aquilo tudo. Aquele sótão é bem seco e quente também. Bem isolado lá no alto. Barbara Ann vivia lá. Sabe quem ela era?

— Sei, mãe da Velha Evelyn. E minha tataravó.

— Minha também — declarou Mary Jane, triunfal. — Não é incrível?

— É, sem dúvida. Faz parte de toda essa experiência de se pertencer à família. E você devia ver as árvores genealógicas em que tudo fica entrecruzado. Por exemplo, se eu me casasse com Pierce, com quem compartilho não só uma tataravó, mas também um bisavô, que ainda aparecesse... Puxa, é a coisa mais difícil de se acompanhar. Chega uma época na vida de cada membro da família em que a pessoa passa um ano inteiro a desenhar árvores genealógicas por toda a parte, só na tentativa de esclarecer quem está sentado ao seu lado no piquenique da família, sabe do que estou falando?

Mary Jane concordou, com um movimento de cabeça, as sobrancelhas erguidas, os lábios formando um sorriso. Estava usando um batom de um violeta esfumaçado, lindo de morrer. Meu Deus, eu agora sou mulher, pensou Mona. Posso usar toda essa droga, se quiser.

— Ora, todas as minhas coisas você pode pegar emprestado, se quiser — disse Mary Jane. — Tenho uma frasqueira, sabe??? Cheia de cosméticos que tia Bea comprou para mim. E todos eles da Saks Fifth Avenue e da Bergdorf Goodman de Nova York.

— Bem, é muita delicadeza sua. — Lê pensamentos. Cuidado.

Eugenia havia tirado vitela da geladeira, pequenos cortes macios para escalopinhos, que Michael havia separado para Rowan. Ela agora os fritava, como Michael lhe ensinara, com cogumelos fatiados e cebolas, tudo já preparado em saquinhos plásticos.

— Puxa, que cheirinho delicioso, não é? — disse Mary Jane. — Eu não pretendia ler seus pensamentos. Só que isso acontece.

— Não ligo para isso, não tem importância. Desde que nós duas saibamos que há muita possibilidade de erro; que é fácil um engano de interpretação.

— Ah, sem a menor dúvida — disse Mary Jane.

Olhou, então, mais uma vez para Mona, como havia olhado no andar superior. Estavam sentadas uma diante da outra, exatamente como Rowan e Mona antes, só que Mona estava agora no lugar de Rowan, e Mary Jane no de Mona. Mary Jane olhava para um garfo de prata e, de repente, ficou imóvel, forçou os olhos e olhou para Mona.

— O que houve? — perguntou Mona. — Você está me olhando como se houvesse algum problema.

— Todo mundo fica simplesmente olhando para a gente quando se está grávida. Sempre fazem isso. Assim que sabem.

— Isso eu sei — disse Mona. — Mas tem alguma diferença no jeito que você está me olhando. Outras pessoas estão me dando olhares amorosos, lânguidos, olhares de ratificação, mas você...

— O que é ratificação?

— Aprovação — disse Mona.

— Preciso me instruir — disse Mary Jane, balançando a cabeça. Ela pôs o garfo sobre a mesa. — Qual é esse faqueiro?

— Sir Christopher — respondeu Mona.

— Você acha que é tarde demais para eu um dia conseguir ser uma pessoa realmente instruída?

— Não — disse Mona. — Você é inteligente demais para permitir que um começo tardio a desestimule. Além disso, você já é instruída. Só que recebeu uma formação diferente. Eu nunca estive nos lugares em que você esteve. Nunca tive a responsabilidade.

— Bem, eu mesma nem sempre quis tê-la. Sabia que eu matei um homem? Eu o empurrei de uma escada de incêndio em San Francisco, e ele caiu num beco quatro andares abaixo, fraturando a cabeça.

— Por que você fez isso?

— Ele estava querendo me machucar. Ele me aplicou heroína e começou a bater em mim e dizer que ele e eu íamos ser amantes. Era um maldito gigolô. Eu o empurrei da escada de incêndio.

— E alguém a perseguiu?

— Não — disse Mary Jane, abanando a cabeça. — Nunca contei essa história para mais ninguém da família.

— Eu também não vou contar. Mas esse tipo de força não é raro na família. Quantas meninas você acha que esse gigolô tinha posto nas ruas? É assim que se diz, não é?

Eugenia as servia e as ignorava. A vitela estava com ótima aparência, bem-passada e suculenta, com um leve molho de vinho. Mary Jane baixou a cabeça, concordando.

— Um monte de meninas, umas idiotas.

Eugenia serviu uma salada fria de batatas e ervilhas, mais uma criação de Michael Curry, temperada com azeite e alho. Eugenia pôs uma boa colherada no prato de Mary Jane.

— Será que tem mais leite? — perguntou Mona. — O que você vai beber, Mary Jane?

— Coca-Cola, por favor, Eugenia, se não se importa, mas eu mesma posso me levantar para apanhar na geladeira.

Eugenia ficou indignada com a sugestão, especialmente por ter partido de uma prima desconhecida que era evidentemente uma perfeita caipira. Ela trouxe a lata e o copo com gelo.

— Coma, Mona Mayfair! — disse Eugenia. Ela serviu o leite da caixa. — Ande, vamos!

A carne parecia horrível a Mona. Ela não conseguia entender por quê. Adorava esse tipo de comida. Assim que o prato foi posto diante dela, porém, ela começou a sentir repugnância. Talvez fosse só a costumeira crise de enjôo, pensou. E isso prova que estou na época certa. Annelle dissera que o enjôo começaria por volta da sexta semana. Quer dizer, antes de declarar que o bebê era um monstro de três meses.

Mona baixou a cabeça. Pequenos fiapos daquele último sonho vinham agora dominá-la, com muita tenacidade e cheios de associações que simplesmente se afastavam dela a jato assim que ela tentava captá-las, segurá-las e desvendar o próprio sonho.

Ela se recostou e tomou o leite devagar.

— Pode deixar a caixa — disse a Eugenia, que a rondava, solene e enrugada, olhando furiosa para ela e para seu prato intocado.

— Ela vai comer o que precisar comer, não é? — perguntou Mary Jane, solícita. Boazinha. Ela já estava devorando sua vitela e atacando ruidosamente cada pedacinho de cogumelo e cebola que conseguia encontrar com o garfo.

Afinal, Eugenia foi se afastando.

— Ei, quer isso? — perguntou Mona. — Pode ficar para você. Eu nem toquei nele — disse ela, empurrando o prato na direção de Mary Jane.

— Tem certeza que não quer?

— Está me embrulhando o estômago. — Ela se serviu mais um copo de leite. — Bem, eu nunca fui grande fã de leite, sabe? Talvez porque a geladeira lá em casa nunca o mantivesse gelado. Mas isso está mudando. Tudo está mudando.

— Ah, sim, e como? — perguntou Mary Jane, com os olhos bem abertos. Ela bebeu a Coca inteira sem parar para respirar. — Posso me levantar para apanhar mais uma?

— Claro — respondeu Mona.

Ela ficou olhando Mary Jane ir saltitante até a geladeira. Seu vestido era rodado apenas o suficiente para fazer pensar no de uma menininha. Suas pernas tinham músculos bem torneados, graças aos saltos altos, embora também tivessem parecido bem torneadas no outro dia, quando ela estava usando sapatos sem salto.

Ela se jogou de novo na cadeira e começou a devorar a oferenda de Mona.

Eugenia enfiou a cabeça pela porta que dava para a despensa.

— Mona Mayfair, você não comeu nada. Você vive de batata frita e comida que não alimenta!

— Suma daqui! — disse Mona com firmeza. Eugenia desapareceu.

— Mas ela só está tentando ser maternal, esse tipo de coisa — protestou Mary Jane. — Por que gritou com ela?

— Não quero que ninguém venha dar uma de maternal para cima de mim. Além do mais, ela não é maternal. Ela é uma praga. Ela acha... acha que eu não sou uma boa pessoa. É uma história comprida demais para explicar. Ela está sempre ralhando comigo.

— É, bem, quando o pai do bebê tem a idade de Michael Curry, sabe, as pessoas ou põem a culpa em você ou nele.

— Como você sabia disso?

Mary Jane parou de comer e olhou para Mona.

— Bem, ele é o pai, não é? Eu como que imaginei que você gostava dele no primeiro dia que vim aqui. Não pretendia deixar você zangada. Achei que estivesse feliz com a idéia. Não paro de sentir essa vibração de que você está realmente feliz por ele ser o pai.

— Não tenho certeza.

— Ah, é ele — disse Mary Jane. Ela fisgou o último pedaço de vitela com o garfo, levantou-o, enfiou-o na boca e o mastigou com prazer. Suas bochechas lisas e bronzeadas trabalhavam furiosamente sem a menor linha, ruga ou deformação. Era uma bela garota. — Eu sei — declarou, assim que havia engolido um naco de carne mastigada de tamanho suficiente para ficar preso na sua traquéia e sufocá-la até a morte.

— Olhe — disse Mona. — Essa é uma coisa que ainda não contei a ninguém e...

— Todo mundo sabe — disse Mary Jane. — Bea sabe. Foi Bea quem me contou. Você sabe o que vai salvar Bea? Aquela mulher vai superar a dor da perda de Aaron por um simples motivo. Ela nunca pára de se preocupar com todos os outros. Ela está preocupada de verdade com você e Michael Curry, porque ele tem os genes, como todo mundo sabe, e ele é marido de Rowan. Mas ela diz que aquele cigano por quem você se apaixonou simplesmente não combina com você. Que a mulher certa para ele é de outro tipo, alguém rebelde, sem lar, sem família, como ele mesmo.

— Ela disse tudo isso?

Mary Jane fez que sim. De repente, ela percebeu o prato de pão que Eugenia havia preparado para elas, fatias de pão branco.

Mona não considerava esse tipo de pão próprio para consumo. Ela só comia pão francês, pãezinhos ou qualquer pão preparado corretamente para acompanhar uma refeição. Pão fatiado! Pão branco fatiado!

Mary Jane apanhou a fatia de cima, amassou-a e começou a limpar com ela o molho da vitela.

— É, ela disse tudo isso — prosseguiu Mary Jane. — Contou a tia Viv, a Polly e a Anne Marie. Parecia não estar sabendo que eu estava ouvindo. Mas o que eu quero dizer é que isso vai salvá-la, o fato de ter a mente tão ocupada com a família, como ter de ir a Fontevrault para me fazer sair de lá.

— Como podem todos eles saber disso a respeito de Michael e de mim?

Mary Jane deu de ombros.

— Você me pergunta? Querida, esta é uma família de bruxos, você devia saber disso melhor do que eu. Uma infinidade de meios com os quais eles poderiam ter descoberto. Mas, pensando bem, a Velha Evelyn deu com a língua nos dentes com Viv, se não estou enganada. Alguma história de você e Michael estarem aqui sozinhos?

— É — disse Mona com um suspiro. — Grande coisa. Não preciso contar para eles. Melhor assim. — Mas se eles começarem a ser cruéis com Michael, se começarem a tratá-lo de algum jeito diferente, se começarem...

— Ora, acho que você não precisa se preocupar com isso. Como eu disse, quando se trata de um homem e uma menina da sua idade, vão culpar um ou outro, e acho que estão culpando você. Quer dizer, não de algum jeito perverso, não, eles só dizem coisas do tipo, "O que Mona quer Mona consegue", e "Coitado do Michael". E sabe, coisas como, "Bem, se ele se levantou daquela cama e se sentiu melhor, pode ser que Mona tenha o dom da cura".

— Maravilha — disse Mona. — No fundo, é exatamente assim que eu mesma encaro a situação.

— Sabe, você é muito forte — disse Mary Jane.

O molho da vitela acabou. Mary Jane comeu a fatia seguinte pura Fechou os olhos com um sorriso deliberado de satisfação. Seus cílios estavam todos esfumaçados num leve tom de violeta, bem parecido com o do batom, na verdade, porém muito sutil, lindo e charmoso. Seu rosto era praticamente perfeito.

— Agora eu sei com quem você se parece! — exclamou Mona. — Você é parecida com a Velha Evelyn, quer dizer, nos retratos dela de mocinha.

— Bem, isso faz sentido, não faz? Já que nós duas somos descendentes de Barbara Ann.

Mona serviu o restante do leite no seu copo. Ainda estava deliciosamente gelado. Talvez ela e o bebê pudessem sobreviver só de leite, ela não tinha certeza.

— O que você quis dizer com muito forte? — perguntou Mona. — O que quis dizer com isso?

— Quero dizer que você não se ofende com facilidade. A maior parte do tempo, se eu falar desse jeito, sabe, com total franqueza, sem segredos, num verdadeiro esforço para conhecer melhor alguém??? Sabe??? A pessoa fica ofendida.

— Não é de se admirar — disse Mona. — Mas você não me ofende.

Mary Jane olhava faminta para a última fatia de pão branco, fina e abandonada.

— Pode ficar com ela — disse Mona.

— Tem certeza?

— Absoluta.

Mary Jane apanhou a fatia, partiu-a ao meio e começou a fazer uma bola com o miolo macio.

— Cara, adoro pão desse jeito. Quando eu era pequena??? Sabe??? Costumava pegar um pão inteiro e fazer bolinhas com ele.

— E a casca?

— Fazia bolinhas com ela também — disse Mary Jane, abanando a cabeça num enlevo nostálgico. — Bolinhas com tudo.

— Uau — disse Mona, em tom neutro. — Sabe de uma coisa, você é realmente a combinação mais provocante do mundano com o misterioso, com a qual já me deparei.

— Lá vai você se exibir — disse Mary Jane. — Mas eu sei que sua intenção não é má. Você só quer me provocar, não é? Sabia que, se mundano começasse com b, eu saberia seu significado?

— Verdade? Por quê?

— Porque cheguei à letra b nos meus estudos de vocabulário — disse Mary Jane. — Venho trabalhando no sentido de me instruir de alguns modos diferentes. Gostaria de saber o que acha deles. Veja só o que eu faço. Arranjo um dicionário de letras bem grandes??? Sabe??? Do tipo para velhinhas com vista cansada??? Recorto as palavras da letra b, o que já me familiariza com elas de cara, sabe? Recorto cada uma com a definição e depois jogo todas as bolinhas de papel... epa, lá vamos nós de novo — riu ela. — Bolas, mais bolas.

— Deu para eu perceber — disse Mona. — Nós, menininhas, simplesmente somos todas obcecadas por elas, não somos?

Mary Jane decididamente uivou de tanto rir.

— Isso está saindo melhor do que eu esperava — disse Mona. — As meninas da escola apreciam meu humor, mas quase ninguém da família ri das minhas piadas.

— As suas piadas são bem engraçadas — disse Mary Jane. — Isso porque você é um gênio. Imagino que haja dois tipos, os providos de senso de humor e os desprovidos.

— Mas e todas aquelas palavras da letra b, recortadas e enroladas em bolinhas?

— Bem, eu ponho as bolinhas num chapéu, sabe??? Igual a nomes num sorteio.

— Entendi.

— E então eu tiro uma de cada vez. Se for alguma palavra que ninguém usa, sabe, como batráquio?? Eu simplesmente jogo fora. Mas, se for uma palavra boa, como beatitude, "estado de suprema felicidade"???? Bem, eu decoro a palavra na mesma hora.

— Huumm, parece um método bem razoável. Imagino que seja mais provável você decorar as palavras que aprecie.

— Ah, é verdade, mas no fundo eu me lembro de quase tudo, sabe?? Espertinha como eu sou? — Mary Jane jogou na boca a bolinha de miolo e começou a pulverizar a casca vazia.

— Até mesmo o significado de batráquio? — perguntou Mona.

— "Anfíbio saltador desprovido de cauda" — respondeu Mary Jane. Ela mordiscou a bola de casca.

— Ei, escute, Mary Jane, tem muito pão nesta casa. Você pode comer quanto quiser. Ali, uma fôrma bem em cima do balcão. Vou apanhar para você.

— Fique sentada! Você está grávida. Eu apanho! — protestou Mary Jane. Levantou-se de um salto, estendeu a mão para o pão, segurou-o pela embalagem plástica e o deixou cair sobre a mesa.

— E manteiga? Você não quer manteiga? Está bem aqui.

— Não, eu me condicionei a comer pão sem manteiga para economizar, e não quero voltar para a manteiga, porque vou começar a sentir falta dela e o pão não vai parecer tão gostoso. — Ela arrancou uma fatia de dentro do plástico e a amassou ao meio.

— A questão é que eu vou me esquecer de batráquio se não usar a palavra, mas beatitude eu vou usar e nunca me esquecer.

— Entendi. Por que você estava me olhando daquele jeito?

Mary Jane não respondeu. Lambeu os lábios, soltou alguns fragmentos de pão macio e os comeu.

— Esse tempo todo, você se lembrava de que estávamos falando disso, não é?

— É.

— O que você acha do seu bebê? — perguntou Mary Jane, e dessa vez ela parecia preocupada e como que protetora, ou pelo menos sensível aos sentimentos de Mona.

— Poderia haver alguma coisa errada com ele.

— É — concordou Mary Jane. — É isso o que eu imagino.

— Ele não vai ser alguma espécie de gigante — disse Mona rapidamente, apesar de, a cada palavra, achar mais difícil prosseguir. — Não se trata de nenhum monstro ou coisa semelhante. Mas talvez alguma coisa tenha dado errado nele; os genes fazem alguma combinação e... alguma coisa pode sair errado.

Ela respirou fundo. Essa podia ser a pior dor mental que ela jamais sentira. Toda a sua vida ela tivera preocupações: com a mãe, com o pai, com a Velha Evelyn, com as pessoas que amava. E conhecera muita dor, especialmente nos últimos tempos. Mas essa preocupação com o bebê era totalmente diferente. Despertava nela um medo tão intenso que era uma agonia. Ela percebeu que havia posto a mão na barriga de novo.

— Morrigan — sussurrou. Algo se mexeu dentro dela, e ela olhou para baixo apenas movendo os olhos, em vez da cabeça.

— O que houve? — perguntou Mary Jane.

— Estou me preocupando demais. Não é normal pensar que há algo de errado com o bebê da gente?

— É, é normal — respondeu Mary Jane. — Mas esta família tem muita gente com a espiral em dupla hélice, e ninguém teve bebês horríveis e deformados, certo? Quer dizer, você sabe, qual é a estatística de todos esses cruzamentos de espirais em dupla hélice?

Mona não respondeu. Estava pensando. Que diferença faz? Se este bebê não for saudável, se este bebê... Percebeu que estava olhando para  as plantas lá fora. Ainda era o início da tarde. Pensou em Aaron na cripta semelhante a uma gaveta no mausoléu, jazendo um nível acima de Gifford. Bonecos de cera de gente, cheios de líquidos. Não era Aaron. Não era Gifford. Por que Gifford estaria cavando um buraco num sonho?

Ocorreu-lhe uma idéia louca, perigosa e sacrílega, mas no fundo não tão surpreendente. Michael não estava lá. Rowan não estava lá. Naquela noite ela podia sair até o jardim sozinha, quando ninguém estivesse acordado na propriedade, e podia desenterrar os restos daqueles dois que jaziam à sombra do carvalho. Poderia ver com os próprios olhos o que estava ali.

O único problema era que ela sentia pavor de fazer isso. Ao longo dos anos, vira uma quantidade de cenas em filmes de terror nas quais as pessoas faziam esse tipo de coisa, iam passeando até o cemitério para desenterrar um vampiro, ou iam lá à meia-noite só para descobrir quem estava em qual túmulo. Ela jamais acreditara nessas cenas, especialmente se a pessoa agia assim sozinha. Era simplesmente por demais assustador. Para desenterrar um corpo, era preciso ter muito mais coragem do que Mona tinha.

Ela olhou para Mary Jane. Mary Jane parecia ter terminado seu banquete de pão e estava só ali sentada, de braços cruzados, olhando com firmeza para Mona, de um jeito que era ligeiramente perturbador, já que os olhos de Mary Jane haviam assumido aquele brilho sonhador que os olhos apresentam quando a mente está divagando, um olhar que não era vazio, mas concentrado, de uma forma ilusoriamente séria.

— Mary Jane?

Ela esperava ver a outra ter um sobressalto, como que acordar e imediatamente revelar aquilo em que estava pensando. Mas nada disso aconteceu. Mary Jane simplesmente continuou a olhar para ela, exatamente do mesmo jeito.

— O que é, Mona? — perguntou, sem a menor alteração no rosto.

Mona levantou-se. Foi na direção de Mary Jane e parou bem ao lado da prima, olhando para ela, enquanto Mary Jane continuava a encará-la com aqueles mesmos olhos grandes e assustadores.

— Toque aqui neste bebê, pode tocar, não fique com vergonha. Diga-me o que está sentindo.

Mary Jane desviou o olhar para a barriga de Mona e começou a estender a mão muito devagar, como se fosse fazer o que Mona lhe pedia. De repente, ela recolheu a mão com violência. Levantou-se da cadeira, afastando-se de Mona. Parecia preocupada.

— Acho que não devíamos fazer isso. Não vamos fazer nenhuma bruxaria com esse bebê. Você e eu somos bruxinhas. Você sabe, nós somos mesmo. E se a bruxaria puder, sabe, ter algum efeito sobre ele???

Mona suspirou. De repente não tinha mais vontade de falar nisso; a sensação de medo era dolorosa demais, extenuante demais, e já bastava.

A única pessoa no mundo que poderia responder às suas perguntas era Rowan, e Mona teria de fazer essas perguntas, mais cedo ou mais tarde, porque já sentia o bebê agora, e isso era totalmente impossível realmente, sentir um bebê mexendo desse jeito, mesmo esse movimento ínfimo, quando o bebê estava com apenas seis, dez ou mesmo doze semanas de vida.

— Mary Jane, preciso ficar sozinha agora. Não quero ser grosseira. É só que o bebê está me deixando preocupada. Essa é a pura verdade.

— Você é tão carinhosa de me dar explicações. Vá em frente. Vou subir, está bem? Ryan??? Ele pôs minha mala no quarto de tia Viv, sabe??? Vou ficar lá.

— Pode usar meu computador se quiser — disse Mona. Ela deu as costas a Mary Jane e voltou a olhar para o jardim. — Ele está na biblioteca. Há uma quantidade de programas disponíveis. Ele entra direto no WordStar, mas é simples passar para o Windows ou para o Lotus 1-2-3.

— É, isso eu sei fazer. Cabeça fria, Mona. Me chame, se precisar de mim.

— Chamo, sim. Eu... — Ela deu meia-volta. — Eu estou gostando de verdade de ter você aqui, Mary Jane. Ninguém sabe quando Rowan ou Michael estarão de volta.

E se eles nunca mais voltassem? O medo crescia, abrangendo todas as coisas aleatórias que lhe ocorriam. Bobagem. Eles iam voltar. Mas é claro que eles haviam partido à procura de pessoas que podiam muito bem querer feri-los...

— Querida, vamos, não se preocupe — disse Mary Jane.

— É — disse Mona, abrindo a porta.

Saiu a vaguear pela calçada de lajes e na direção do jardim dos fundos. Ainda estava cedo, e o sol alto brilhava sobre o gramado embaixo do carvalho, como na realidade continuaria brilhando até bem tarde. A hora melhor, mais quentinha no jardim dos fundos.

Ela caminhou pela grama. Tinha de ser aqui que eles estavam enterrados. Michael trouxera mais terra para o lugar, e aqui crescia a grama mais nova e mais tenra.

Ajoelhou-se e se esticou de bruços na terra, sem ligar para o fato de que a terra estava sujando sua linda camisa branca. Tinha tantas dessas. Era isso o que queria dizer ser rico, e ela já sentia os efeitos: ter tanto de tudo, e não ter de usar sapatos furados. Ela enfiou o rosto na grama e na terra fresca, e sua manga direita franzida era como um grande pára-quedas caído dos céus ao seu lado. Fechou os olhos.

Morrigan, Morrigan, Morrigan... As embarcações cruzavam o mar, com archotes acesos. Mas os rochedos pareciam tão perigosos. Morrigan, Morrigan, Morrigan... É, era esse o sonho! A fuga da ilha para a costa norte. Os rochedos eram o perigo, assim como os monstros das profundezas que viviam nos braços de mar.

Ela ouviu o barulho de alguém cavando. Estava bem acordada com os olhos fixos além da grama nos distantes lírios alaranjados, nas azaléias.

Ninguém estava cavando. Imaginação. É você quem quer desenterrá-los, sua bruxinha, disse a si mesma. Tinha de admitir que era divertido brincar de bruxa com Mary Jane Mayfair. É, foi bom ela ter vindo. Pode comer mais pão.

Seus olhos foram se fechando. Aconteceu uma coisa linda. O sol bateu nas suas pálpebras, como se algum grande galho ou nuvem tivesse acabado de liberá-lo, e a luz tornou a escuridão um laranja brilhante. E ela sentiu o calor a inundar todo o seu corpo. Dentro dela, dentro da barriga que ainda lhe permitia dormir de bruços, a criatura se mexeu mais uma vez. Meu bebê.

Alguém estava cantando novamente a canção de ninar. Puxa, aquela devia ser a canção de ninar mais antiga do mundo. Aquilo era inglês antigo, ou seria latim?

Preste atenção, disse Mona. Quero ensiná-la a usar o computador antes dos quatro anos de idade, e quero que tenha em mente que não existe nada que possa impedi-la de ser aquilo que você um dia queira ser, está me ouvindo?

O bebê ria sem parar. Dava saltos mortais, esticava seus pequenos bracinhos e perninhas e ria a mais não poder. Parecia um minúsculo "anfíbio saltador, desprovido de cauda". Mona também não conseguia parar de rir.

— É isso o que você é! — dizia ela ao bebê.

E então veio a voz de Mary Jane, agora em puro sonho, e num certo plano Mona sabia, sabia, sim, porque Mary Jane estava toda vestida como a Velha Evelyn, em trajes de senhora de idade, um vestido de gabardine e sapatos de amarrar, é, era positivamente um sonho. E a voz de Mary Jane dizia:

— É mais do que isso, querida. É melhor você tomar sua decisão rapidinho.

 

— OLHE, ESQUEÇA O QUE FEZ, ESSA FUGA — disse Tommy. Estavam voltando para a casa-matriz, por insistência de Tommy. — Temos de nos comportar como se não tivéssemos culpa de nada. Todas as provas desapareceram; a interceptação está destruída. Eles não vão conseguir associar nenhum telefone a qualquer outro. Mas nós temos de voltar para lá e temos de nos comportar como se nada tivesse acontecido. Precisamos demonstrar consideração pela morte de Marcus, só isso.

— Vou alegar que estava preocupadíssimo com Stuart — disse Marklin.

— É, é exatamente isso o que você deve dizer. Você estava preocupado com Stuart. Stuart estava sofrendo de uma terrível tensão.

— Talvez nem tenham percebido, quer dizer, pode ser que os mais velhos nem tenham se dado conta de que eu cheguei a sair.

— E, sem encontrar Stuart, você agora voltou para casa. Percebeu? Você voltou para casa.

— E depois?

— Isso depende deles — disse Tommy. — Não importa o que aconteça, devemos permanecer lá para não despertar suspeitas. Nossa atitude é simplesmente a de perguntar: "O que aconteceu? Será que ninguém sabe explicar?"

Marklin concordou.

— Mas onde está Stuart? — perguntou. Arriscou um olhar de relance na direção de Tommy. Tommy estava tão calmo quanto estivera em Glastonbury, quando Marklin teria caído de joelhos diante de Stuart para lhe implorar que voltasse.

— Ele foi se encontrar com Yuri, só isso. Stuart não está sob suspeita, Mark. Você é que pode estar sob suspeita em decorrência do seu modo de fugir. Agora, fique firme, meu velho, temos de representar muito bem.

— Por quanto tempo?

— Como eu poderia saber? — perguntou Tommy, com a mesma voz calma. — Pelo menos até dispormos de alguma razão natural para voltar a sair. Voltamos então para meu apartamento em Regent's Park e tomamos uma decisão. A brincadeira terminou? O que temos a perder se permanecermos na Ordem? O que temos a ganhar?

— Mas quem foi que matou Anton?

Tommy abanou a cabeça. Agora estava observando a estrada como se Marklin precisasse de um co-piloto. E Marklin não tinha tanta certeza assim de não estar precisando. Se não conhecesse o trajeto de cor, não tinha certeza de que teria conseguido cobri-lo.

— Não sei se devíamos voltar para lá — disse Marklin.

— Bobagem. Eles não fazem a menor idéia do que realmente aconteceu.

— Como você sabe? — perguntou Marklin. — Meu Deus, Yuri pode ter contado! Tommy, quer fazer o favor de usar a cabeça? Talvez não seja saudável ficar tão calmo diante de tudo isso. Stuart foi se encontrar com Yuri, e o próprio Yuri pode estar na casa-matriz agora.

— Você não acha que Stuart teria o bom senso de dizer a Yuri que se mantivesse afastado? Que havia algum tipo de conspiração, cuja extensão Stuart desconhecia?

— Acho que você teria o bom senso de dizer isso, e talvez eu tivesse, mas não tenho certeza quanto a Stuart.

— E daí, se Yuri estiver lá? Eles sabem da conspiração, mas não sabem de nós! Stuart não falaria a Yuri a nosso respeito, não importa o que acontecesse. É você quem não está pensando. O que Yuri tem a dizer? Ele vai fornecer dados adicionais sobre o que aconteceu em Nova Orleans; e, se isso ficar registrado... Sabe, acho que vou me arrepender de ter destruído a interceptação.

— Eu não me arrependo! — disse Marklin. Estava ficando irritado com a atitude calculista de Tommy, com seu otimismo absurdo.

— Você está com medo de não conseguir levar isso a cabo? — perguntou Tommy. — Está com medo de não resistir, igualzinho a Stuart? Mas, Marklin, você tem de compreender que Stuart esteve na Talamasca a vida inteira. O que é a Talamasca para você ou para mim? — Tommy deu um risinho indiferente. — Cara, eles realmente se enganaram conosco, não é verdade, irmão?

— Não, não se enganaram — respondeu Marklin. — Stuart sabia exatamente o que estava fazendo, que nós teríamos a coragem de executar planos que ele jamais conseguiria realizar. Stuart não se enganou. O erro foi alguém ter assassinado Anton Marcus.

— E nenhum de nós ter ficado por ali tempo suficiente para descobrir algo sobre essa pessoa, esse crime, esse acidente fortuito. Você tem consciência de que foi acidental, não tem?

— Claro que tenho. Estamos livres de Marcus. Acabou-se. Mas o que aconteceu no instante do assassinato? Elvera conversou com o assassino. O assassino disse coisas a respeito de Aaron.

— Não seria simplesmente fantástico se o intruso fosse alguém da família Mayfair? Um bruxo do mais alto calibre? Vou lhe dizer, queroler todo o dossiê das Bruxas Mayfair de cabo a rabo. Quero saber tudo sobre essa gente! Estive pensando. Deve haver algum meio de reivindicar na justiça os papéis de Aaron. Você conhece Aaron. Ele registrava tudo por escrito. Deve ter deixado caixas de documentos. Elas devem estar em Nova Orleans.

— Você está se adiantando demais, Tommy. Yuri pode estar lá, Stuart pode ter perdido o controle. Eles podem saber de tudo.

— Tenho sérias dúvidas — disse Tommy, com um ar de quem quer meditar sobre coisas mais importantes. — Marklin, a entrada!

Marklin quase havia passado direto e, quando desviou a direção, entrou na frente de outro carro, que cedeu passagem. Marklin seguiu adiante, acelerado. Dentro de segundos, estava longe da rodovia, percorrendo a estrada secundária. Relaxou, só então percebendo que havia se preparado tanto para um acidente que seu maxilar doía da tensão dos dentes cerrados.

Tommy olhava com raiva para ele.

— Veja se me esquece! — disse Marklin, de repente, sentindo o calor atrás dos olhos que sempre significava que ele estava totalmente furioso, e não havia percebido isso perfeitamente. — Não sou eu o problema aqui, Tommy. São eles! Agora relaxe. Vamos agir com naturalidade. Nós dois sabemos o que fazer.

Tommy virou a cabeça lentamente enquanto passavam pelos portões da frente do parque.

— Todo mundo da Ordem deve estar aqui. Nunca vi tantos carros — comentou Marklin.

— Estaremos com sorte se não tiverem requisitado nossos aposentos para algum octogenário cego e surdo de Roma ou de Amsterdã — disse Tommy.

— Espero que tenham feito isso. É uma perfeita desculpa para entregar tudo à velha guarda e dar o fora, cheios de consideração.

Marklin parou o carro a alguns metros do encarregado do estacionamento, que estava ocupado encaminhando o automóvel à sua frente para uma vaga muito distante, do outro lado da cerca-viva. Em todos esses anos, Marklin jamais havia visto carros estacionados em fileiras cerradas do outro lado da cerca. Saltou e atirou as chaves para o encarregado.

— Quer por favor estacionar para mim, Harry? — disse ele, separando algumas notas de libra, suborno suficiente para superar todas as objeções a essa violação dos costumes. Dirigiu-se, então, para as portas da frente da casa.

— Por que cargas d'água foi fazer isso? — perguntou Tommy, alcançando-o. — Procure seguir as normas, por favor. Não chame atenção para si mesmo. Não diga nada. Não faça nada que possa atrair atenção para você, estamos de acordo?

— Você mesmo está nervoso demais — disse Marklin, irritado.

As portas da frente estavam abertas. O saguão estava apinhado de homens e mulheres; o ar, denso com a fumaça de charutos e o ambiente, decididamente ensurdecedor com as vozes das pessoas. A impressão era a de um velório concorrido ou de um intervalo no teatro.

Marklin parou. Todos os instintos lhe diziam que não entrasse. E a vida inteira ele havia acreditado nos seus instintos, tanto quanto na sua inteligência.

— Vamos, homem — disse Tommy, entre dentes, insistindo para que Marklin avançasse.

— Olá, como vão — disse um senhor de expressão animada, que se voltou para cumprimentá-los. — E quem são vocês?

— Noviços — disse Marklin. — Tommy Monohan e Marklin George. Estão permitindo a entrada de noviços?

— Claro, claro — disse o homem, abrindo caminho. A multidão acotovelava-se às suas costas. Alguns rostos voltaram-se na sua direção e se afastaram, indiferentes. Uma mulher estava cochichando no ouvido de um homem do outro lado do portal e, quando seus olhos encontraram os de Marklin, ela emitiu uma pequena exclamação de surpresa e tristeza.

— Tudo isso está errado — disse Marklin, baixinho.

— É claro que todos deveriam estar aqui — disse o homem jovial. — Todos os jovens deveriam estar presentes. Quando acontece uma coisa dessas, todos são chamados de volta para casa.

— Eu me pergunto por que motivo — disse Tommy. — Ninguém gostava de Anton.

— Cale-se — disse Marklin. — É incrível, não é, como as pessoas, por exemplo você e eu, reagem sob pressão?

— Não, infelizmente, não é nem um pouco incrível.

Eles foram abrindo caminho em meio à multidão. Rostos estranhos à direita e à esquerda. Por toda a parte, gente bebendo vinho e cerveja. Ele ouvia francês, italiano, e até alguns falando holandês.

Lá estava Joan Cross, sentada, no primeiro dos salões cerimoniais, cercada por rostos desconhecidos para Marklin, mas todos eles mergulhadosem conversas sérias.

Nem sombra de Stuart.

— Está vendo? — disse Tommy, sussurrando junto ao seu ouvido. — Eles estão agindo da forma natural depois que alguém morre. Reúnem-se, conversam, como se fosse uma festa. Agora é isso o que temos de fazer. O que for natural. Está me entendendo?

Marklin fez que sim, mas não estava gostando daquilo, nem um pouco. Olhou para trás de relance, procurando encontrar a porta, mas parecia que a porta havia sido fechada e, fosse como fosse, a multidão impedia sua visão. Não estava vendo nada. Na realidade, ocorreu-lhe ser estranha a presença de tantos rostos estranhos, e ele quis dizer algo a Tommy, mas Tommy havia se afastado.

Tommy estava batendo papo com Elvera, concordando com movimentos de cabeça enquanto Elvera lhe explicava alguma coisa. Ela estava tão deselegante quanto sempre, com o cabelo grisalho preso num coque junto à nuca e os óculos sem aro mais ou menos no meio do nariz. Enzo estava ao seu lado, aquele italiano de aparência pouco confiável. Onde estaria seu irmão gêmeo?

Que horrível passar a vida inteira neste lugar, pensou. Ele ousaria perguntar por Stuart? Sem dúvida, não ousava perguntar por Yuri, embora estivesse claro que ele sabia. Ansling e Perry lhe haviam falado do telefonema de Yuri. Meu Deus, o que ele devia fazer? E onde estariam Ansling e Perry?

Galton Penn, um dos outros noviços, vinha abrindo caminho na direção de Marklin.

— Ei, você, Mark. O que acha disso tudo?

— Bem, não sei se as pessoas estão falando nisso aqui — disse Marklin. — Mas a verdade é que não prestei atenção.

— Vamos falar agora, cara, antes que proíbam qualquer menção ao assunto. Você conhece a Ordem. Eles não têm a menor pista de quem matou Marcus. Nem uma pista. Sabe o que todos nós estamos pensando? Que há alguma coisa que eles não querem que nós saibamos.

— Tipo o quê?

— Que se trata de alguma entidade sobrenatural, o que mais? Elvera viu alguma coisa que a deixou horrorizada. Algo de mau aconteceu. Sabe, Mark, lamento muito por Marcus e tudo o mais, mas esse foi o acontecimento mais emocionante desde que fui aceito.

— É, sei o que você quer dizer — respondeu Mark. — Você não viu Stuart, viu?

— Não, não vi mesmo. Desde hoje de manhã, quando ele se recusou a assumir o comando. Você estava aqui na hora?

— Não, quer dizer, estava, sim — respondeu Mark. — Eu estava me perguntando se ele saiu ou sei lá o quê.

Galton abanou a cabeça.

— Está com fome? Eu estou. Vamos comer alguma coisa.

Ia ser difícil, muito difícil. Mas, se as únicas pessoas que falassem com ele fossem imbecis alegres como Galton, ele ia se sair muito bem, muito bem mesmo.

 

ESTAVAM NA ESTRADA HÁ MAIS DE UMA HORA, e estava quase escurecendo, com o céu coalhado de nuvens prateadas e uma atmosfera entorpecida caindo sobre as grandes extensões de colinas ondulantes e lavouras de um verde vivo, primorosamente recortadas como se a paisagem estivesse coberta por uma enorme colcha de retalhos.

Fizeram uma parada para reabastecer num pequeno vilarejo de uma única rua com algumas casas de enxaimel em preto e branco e um pequeno cemitério coberto de mato. O bar era mais do que convidativo. Tinha até o famoso alvo e uns dois homens a jogar dardos; e o cheiro da cerveja era maravilhoso.

No entanto, essa não era exatamente a hora adequada para parar para tomar um drinque, pensou Michael.

Ele saltou do carro, acendeu mais um cigarro e ficou olhando com um fascínio mudo a delicada formalidade com que Ash conduzia seu prisioneiro até o interior do bar e, inevitavelmente, na direção do banheiro.

Do outro lado da rua, Yuri estava numa cabine telefônica, falando rapidamente, aparentemente tendo conseguido entrar em contato com a casa-matriz; e Rowan estava ao seu lado, de braços cruzados, olhando para o céu ou para alguma coisa nele, Michael não sabia dizer ao certo. Yuri estava novamente perturbado, torcendo a mão direita enquanto segurava o fone com a esquerda, sem parar de balançar a. cabeça. Estava óbvio que Rowan prestava atenção ao que ele dizia.

Michael recostou-se na parede de reboco, e tragou. Ele sempre ficava surpreso de como é cansativo simplesmente andar de carro.

Mesmo essa viagem, com seu suspense angustiante, não era diferente, em última análise, e agora que a escuridão havia encoberto a linda paisagem rural, ele calculava que sentiria mais sono, sem se importar com o que pudesse estar por vir.

Quando Ash e seu prisioneiro saíram do bar, Gordon parecia desesperado e cheio de rancor. Mas era óbvio que ele não havia conseguido pedir ajuda, ou não havia ousado tentar.

Yuri desligou o telefone. Foi a sua vez de desaparecer pelo bar adentro. Ele ainda estava ansioso, se não enlouquecido. Rowan estivera a observá-lo atentamente durante a viagem, quer dizer, quando não estava com os olhos pregados em Ash.

Michael ficou olhando para Ash enquanto ele devolvia Gordon ao assento traseiro. Michael não tentou disfarçar o fato de estar olhando. Isso pareceu desnecessariamente trabalhoso. A questão a respeito do homem alto era a seguinte: ele não parecia, sob nenhum aspecto, horrendo, como Yuri havia afirmado. A beleza estava lá, sim, mas a hediondez? Michael não conseguia vê-la. Via apenas uma compleição graciosa e movimentos leves e eficientes que indicavam tanto força quanto vigilância. Os reflexos do homem eram espantosos. Ele havia provado isso quando Stuart Gordon voltou a estender a mão para a maçaneta da porta quando estavam parados num cruzamento uma meia hora atrás.

Os cabelos negros e macios do homem infelizmente faziam com que Michael se lembrasse de Lasher: sedosos demais, finos demais, com volume demais, ele não sabia bem ao certo. As faixas brancas acrescentavam uma espécie de distinção à figura como um todo. O rosto tinha ossos grandes demais para parecer feminino em qualquer sentido convencional, mas era delicado, com o longo nariz compensado talvez pelo fato de os olhos serem tão grandes e tão separados. A pele era a de um adulto, não fina como a de um bebê. Mas a real atração do homem estava mesclada com sua voz e seus olhos. A voz poderia convencer uma pessoa de qualquer coisa, pensou Michael, e os olhos também eram extremamente persuasivos.

Tanto uma quanto os outros quase chegavam a ser de uma simplicidade infantil, mas não eram essencialmente simples. O efeito? O homem parecia uma espécie de ser angelical, infinitamente sábio, paciente e, no entanto, indubitavelmente determinado a assassinar Stuart Gordon, exatamente como dissera que faria.

É claro que Michael não estava fazendo nenhuma suposição quanto à idade da criatura. Era muito difícil deixar de considerá-lo humano, só diferente, inexplicavelmente estranho. É claro que Michael sabia que ele não era. Sabia disso a partir de centenas de pequenos detalhes: o tamanho das articulações dos dedos, o jeito estranho com que ele abria os olhos de  vez em quando de modo a aparentar assombro e, talvez acima de tudo, aabsoluta perfeição da sua boca e dos dentes. A boca era macia como a deum bebê, impossível para um homem com aquela pele, realmente, ou pelo menos altamente improvável, e os dentes eram tão brancos quanto algum tipo de anúncio cintilante que tivesse sido descaradamente retocado.

Michael não acreditou em nenhum momento que essa criatura fosse antiga ou que ele fosse o famoso Santo Ashlar das lendas de Donnelaith, o antigo rei que se converteu ao cristianismo nos últimos dias do império romano na Grã-Bretanha e permitiu que sua esposa, Janet, fosse queimada viva.

No entanto, ele havia acreditado nessa história sinistra quando Julien a contou. E esse era um dos muitos Ashlars, sem a menor dúvida um dos poderosos Taltos do vale, um ser da mesma espécie daquele quê Michael matara.

Esses fatos não eram questionados por nenhuma parte da sua mente.

Ele já vivenciara muita coisa para duvidar. Era só que não conseguia acreditar que o homem alto e bonito fosse o velho Santo Ashlar em pessoa. Talvez ele simplesmente não quisesse que isso fosse verdade por motivos muito razoáveis que faziam sentido dentro daquelas estruturas elaboradas que ele agora aceitava plenamente.

É, você agora está convivendo com todo um conjunto de realidades totalmente novas, pensou. Talvez seja por isso que esteja aceitando tudo com calma. Você viu um fantasma; prestou atenção ao que ele dizia; você sabe que ele estava lá. Ele lhe disse coisas que você jamais poderia ter imaginado ou criado. E você viu Lasher e ouviu seu longo apelo por compaixão; e aquilo também foi algo totalmente inimaginável para você, algo repleto de novas informações e detalhes estranhos de que você ainda se lembra com perplexidade, agora que terminou a aflição que você sentia enquanto ele contava e que Lasher está enterrado debaixo da árvore.

Ah, sim, não se esqueça do enterro do corpo, de deixar a cabeça cair na cova ao seu lado, e depois encontrar a esmeralda, apanhá-la e segurá-la no escuro enquanto o corpo decapitado jazia ali na terra molhada, pronto para ser coberto.

Talvez a gente possa se acostumar a qualquer coisa, calculou. E se perguntou se não teria sido isso o que havia acontecido com Stuart Gordon. Não tinha nenhuma dúvida quanto a Stuart Gordon ser culpado, horrível e indesculpavelmente culpado de tudo. Yuri não tinha a menor dúvida. Mas como o homem chegara a trair seus valores?

Michael tinha de admitir que ele próprio sempre fora suscetível a exatamente esse tipo celta de mistério e incerteza. Seu próprio amor pelo Natal tinha suas raízes talvez em algum anseio irracional por rituais criados naquelas ilhas. E os minúsculos enfeites de Natal que colecionara com tanto carinho ao longo dos anos eram sob certo aspecto simbólicos dos antigos deuses celtas e de um culto encoberto como segredos pagãos.

Seu amor pelas casas que restaurava às vezes o levara tão perto dessa atmosfera de antigos segredos, de velhos projetos e de um conhecimento latente a ser revelado, quanto se poderia chegar um dia nos Estados Unidos.

Michael percebeu que compreendia Stuart Gordon, em termos. E muito em breve a figura de Tessa explicaria, com muita clareza, os sacrifícios e os terríveis erros de Gordon.

Fosse como fosse, Michael havia passado por tanta coisa que sua calma agora era apenas inevitável.

É, você passou por essas coisas e foi usado e esmagado por elas. Agora está aqui parado, junto ao bar do vilarejo, nesta pequena aldeia pitoresca, com sua rua de pedra de leve subida, e pensa em tudo isso sem emoção: que está com algo que não é humano, mas que é tão inteligente quanto qualquer ser humano, e que em breve vai encontrar uma fêmea da sua espécie, acontecimento de tamanha importância que ninguém realmente deseja mencioná-lo, talvez só por respeito ao homem que deve morrer.

É difícil viajar uma hora num carro com um homem que deveria morrer.

Michael terminou o cigarro. Yuri acabava de sair do bar. Estavam prontos para seguir em frente.

— Conseguiu falar com a casa-matriz? — perguntou Michael, logo.

— Consegui, e falei com mais de uma pessoa. Dei quatro telefonemas e entrei em contato com quatro indivíduos. Se esses quatro, meus amigos mais antigos e mais íntimos, fizerem parte da conspiração, eu perco as esperanças.

Michael apertou de leve o ombro magro de Yuri e o acompanhou até o carro.

Ocorreu-lhe mais uma idéia, de que ele agora não ia pensar em Rowan e nas suas reações ao Taltos mais do que havia pensado durante todo o caminho até aqui, quando uma possessividade profunda e instintiva quase o fizera exigir que parassem o carro, que Yuri viesse para a frente para que ele pudesse se sentar ao lado da mulher.

Não, ele não ia se entregar a isso. Não tinha meios neste mundo de saber o que Rowan estava pensando ou sentindo enquanto olhava para essa criatura estranha. Podia ser bruxo, sim, por perfil genético e talvez por alguma herança peculiar sobre a qual nada sabia. Mas não lia o pensamento. E, desde os primeiros instantes do seu encontro com Ashlar, estava consciente da probabilidade de Rowan não ter a saúde prejudicada se fizesse amor com essa estranha criatura porque, agora que ela não podia mais ter filhos, também não sofreria as terríveis hemorragias que haviam acabado com as vítimas de Lasher uma a uma.

Quanto a Ash, se ele sentia desejo por Rowan, estava mantendo isso em segredo, como um cavalheiro. Mas a questão era que a criatura estava viajando na direção de uma fêmea da sua espécie, que talvez fosse a última fêmea Taltos no mundo.

E havia ainda a consideração imediata, não é verdade, pensou ele enquanto se sentava no banco do passageiro e fechava a porta com firmeza. Você vai ficar olhando e deixar esse homem gigantesco assassinar Stuart Gordon? Você sabe muito bem que não pode agir assim Não pode ficar olhando enquanto outra pessoa é assassinada. É impossível. A única vez que teve essa atitude, tudo aconteceu tão de repente com o estampido do revólver, que você mal teve tempo de respirar.

É claro que você mesmo matou três pessoas. E esse filho da mãe desnorteado, esse louco que alega ter uma deusa em cativeiro, foi quem matou Aaron.

Estavam deixando o pequeno vilarejo, que praticamente desaparecera nas sombras que se fechavam. Como era suave, controlável, domesticada, essa paisagem. Em qualquer outra ocasião, ele teria pedido que parassem para ele poder dar uma caminhada ao longo da estrada.

Quando se voltou, ficou surpreso ao descobrir que Rowan estava a observá-lo. Que ela estava sentada de lado e que dobrara a perna sobre o assento bem atrás dele, aparentemente para poder olhar para ele. É claro que suas pernas seminuas estavam magníficas, mas e daí? Ela havia puxado a saia para baixo, como devia. Não passava de um relance da moda de coxa coberta de náilon.

Ele estendeu o braço pelo velho estofamento de couro e pôs a mão esquerda no ombro dela, movimento que ela permitiu, olhando para ele em silêncio com aqueles olhos cinzentos, imensos e misteriosos, e lhe dando algo muito mais íntimo do que um sorriso.

Ele a evitara todo o tempo que passaram na aldeia e agora se perguntava por que agira assim. Por quê? Num impulso, resolveu fazer algo vulgar e grosseiro.

Debruçou-se, esticando-se para abrigar a nuca de Rowan numa das mãos, e lhe deu um beijo rápido, voltando a se acomodar. Ela poderia tê-lo evitado, mas não o fez. E quando sua boca tocou em Michael, ele sentiu uma dorzinha aguda por dentro, que agora começava a se difundir e a aumentar de intensidade. Amo você! Meu Deus, dê-lhe mais uma chance!

E mal essa recomendação passou pela sua mente, ele reconheceu que não estava absolutamente falando com ela. Estava falando consigo mesmo a respeito dela.

Ele se recostou, olhando pelo pára-brisa, vendo o céu escuro se adensar e perder o que restava do seu brilho de porcelana. Inclinou a cabeça para um lado e fechou os olhos.

Nada havia que pudesse impedir Rowan de se apaixonar loucamente por essa criatura que não extrairia dela nenhum bebê monstruoso, nada a não ser seus votos nupciais e sua vontade.

E Michael percebeu que não estava seguro quanto a nada disso. Talvez nunca mais voltasse a se sentir seguro a esse respeito.

Dentro de vinte minutos, a luz havia desaparecido. Os faróis abriam caminho na escuridão, e essa poderia ter sido qualquer estrada, em qualquer canto do mundo.

Afinal, Gordon falou. A próxima estrada à direita, e à esquerda logo na primeira.

O carro fez a curva para entrar na floresta de árvores altas e escuras, aparentemente uma mistura de faias e carvalhos, com algumas árvores frutíferas leves que ele não conseguia discernir. As flores apareciam rosadas aqui e ali, iluminadas pelos faróis.

A segunda estrada não era pavimentada. O bosque ficou mais fechado. Talvez fosse o que restava de alguma floresta antiqüíssima, o tipo de vegetação imponente, infestada de druidas, que outrora cobria toda a Inglaterra e a Escócia, possivelmente toda a Europa, o tipo de floresta que Júlio César havia erradicado com uma convicção impiedosa para que os deuses dos seus inimigos fugissem ou perecessem.

A lua brilhava. Michael via agora uma pequena ponte à medida que iam avançando, depois, mais uma curva e eles estavam seguindo ao longo das margens de um lago pequeno e tranqüilo. Ao longe, do outro lado da água, havia uma torre, talvez um castelo normando. Era uma visão tão romântica que sem dúvida os poetas do último século ficaram loucos por esse lugar, pensou Michael. Talvez até o tivessem construído, e ele fosse uma dessas lindas imitações que existiam por toda a parte, da mesma forma que a recente paixão pelo gótico transformou a arquitetura e o estilo no mundo inteiro.

No entanto, à medida que se aproximavam, quando deram a volta e chegaram perto da torre, Michael a viu com maior clareza. E percebeu que se tratava de uma torre normanda arredondada, bem grande, com talvez três andares até as ameias. As janelas estavam iluminadas. A parte inferior da edificação estava encoberta por árvores.

É, era exatamente isso o que ela era, uma torre normanda. Ele havia visto muitas nos seus tempos de estudante, quando perambulava pelas estradas turísticas de toda a Inglaterra. Talvez em algum passeio dominical no verão, do qual ele não mais se lembrava, tivesse visto essa mesma.

Não parecia ser possível. O lago, a árvore imensa à esquerda, tudo isso era praticamente perfeito. Agora ele via os alicerces de uma estrutura maior, que se afastavam aleatoriamente em montes e pedaços esfarelados, desgastados pelo vento e pela chuva, sem dúvida, e tornados ainda mais obscuros por moitas de hera silvestre.

Passaram por um denso bosque de carvalhos jovens, perdendo totalmente a visão do prédio, e foram sair surpreendentemente perto dele. Michael viu dois carros estacionados diante dele, bem como duas lâmpadas elétricas de cada lado de uma porta enorme.

Tudo muito civilizado, pensou, habitável. Mas como sua conservação havia sido maravilhosa, sem ser prejudicada por nenhum acréscimo moderno visível. A hera subia pelas pedras arredondadas e rejuntadas até acima do arco simples do portal.

Ninguém falava.

O motorista finalmente parou o carro, numa pequena clareira de cascalho.

Michael desceu imediatamente e olhou ao redor. Via um jardim inglês viçoso e exuberante que se espalhava na direção do lago e da floresta, canteiros de flores que mal começavam a se abrir. Ele conhecia suas formas indefinidas, mas elas estavam fechadas com a escuridão, e quem sabia o esplendor que cobriria tudo aquilo quando o sol nascesse?

Será que ainda estariam ali quando o sol nascesse?

Um enorme lariço estava entre eles e a torre, árvore que era sem dúvida uma das mais velhas que Michael jamais vira.

Ele foi na direção do tronco venerável, dando-se conta de estar se afastando da mulher. Mas não podia agir de outra forma.

E, quando finalmente parou à sombra da copa imensa da árvore, ergueu os olhos para a fachada da torre e viu uma figura solitária na terceira janela. Cabeça e ombros pequenos. Uma mulher, com o cabelo solto ou coberto por um véu, ele não sabia dizer ao certo.

Por um átimo, foi dominado por tudo aquilo: as nuvens brancas, oníricas, a lua cheia, a própria torre em toda a sua grandiosidade tosca.

Embora ele ouvisse o rangido da chegada dos outros, não saiu do caminho, nem se mexeu de modo algum. Queria ficar ali, ver aquilo tudo: o lago sereno à sua direita, com a água entrecortada e emoldurada pelas fruteiras delicadas com suas flores pálidas, trêmulas. Nespereira, com toda probabilidade, exatamente a árvore que floria em toda Berkeley, Califórnia, na primavera, às vezes conferindo à própria iluminação das ruas pequenas um tom rosado.

Ele queria se lembrar de tudo isso. Queria nunca se esquecer. Talvez por ainda estar enfraquecido pela diferença de fusos horários; talvez por estar previsivelmente enlouquecendo, como Yuri. Ele não sabia. Mas essa, essa era uma imagem que falava de toda a aventura, dos seus horrores e revelações: a torre alta e a promessa de uma princesa dentro dela.

O motorista havia desligado os faróis. Os outros já passavam por ele. Rowan parou ao seu lado. Ele olhou mais uma vez para o outro lado do lago e depois para a silhueta enorme de Ash, que caminhava à sua frente. A mão de Ash ainda grudada a Stuart Gordon, e Stuart Gordon, andando como se logo fosse desmaiar: um homem idoso, de cabelos grisalhos, com os tendões do pescoço parecendo lamentavelmente vulneráveis quando ele entrou no círculo de luz do portal.

É, esse era o momento perfeito, pensou. E foi atingido, como se alguém lhe desse um soco com uma luva de boxe, pelo fato de que uma Taltos fêmea morava nessa torre, como Rapunzel, e de que Ash ia matar esse homem que estava conduzindo até a porta.

Talvez a lembrança desse momento, dessas imagens, dessa noite fria e delicada, talvez fosse só isso o que restaria da experiência. Era uma possibilidade muito verdadeira.

Ash tirou a chave das mãos de Stuart Gordon com um gesto firme, porém lento, e a enfiou numa grande fechadura de ferro. A porta abriu-se com eficiência moderna, e todos entraram num saguão inferior, provido de aquecimento elétrico e repleto de mobília grande e confortável, volumosas peças em estilo renascentista, com pernas bulbosas porém primorosamente entalhadas, garras no lugar dos pés, e tecidos de tapeçaria, gastos mas ainda muito bonitos e autênticos.

Havia quadros medievais nas paredes, muitos com o brilho forte e imperecível da verdadeira têmpera de ovo. Uma armadura em pé, toda empoeirada. E outros tesouros amontoados aqui e ali num luxo descuidado. Esse era o refúgio de um homem poético, um homem apaixonado pelo passado da Inglaterra e talvez fatalmente alienado do presente.

À esquerda, vinha uma escadaria que acompanhava a curva da parede. Caía uma luz do andar de cima e, ao que fosse dado a Michael saber, do andar superior àquele.

Ash soltou Stuart Gordon. Foi até o pé da escada. Pôs as mãos no pilar tosco e começou a subir.

Rowan foi imediatamente atrás dele.

Stuart Gordon parecia não perceber que estava livre.

— Não a machuque — gritou ele, de repente, com rancor, como se fosse a única frase na qual pudesse pensar. — Não toque nela sem sua permissão! — Implorou. A voz, emitida pelo rosto velho e esquelético, parecia abrigar suas últimas reservas de força masculina. — Você que ataque meu tesouro!

Ash parou, olhou pensativo para Gordon e retomou a subida.

Todos o acompanharam, finalmente até mesmo Gordon, que passou com grosseria por Michael e empurrou Yuri para abrir caminho. Alcançou Ash no alto da escada e desapareceu do campo visual de Michael.

Quando afinal chegaram ao topo, encontraram-se em outro aposento amplo tão simples quanto o do andar inferior. Suas paredes eram as paredes da torre, a não ser por dois pequenos cômodos, primorosamente construídos em madeira antiga, os dois fechados por tetos, talvez banheiros ou closets, Michael não sabia dizer. Eles pareciam se fundir com a pedra por trás deles. A sala enorme tinha uma quantidade de sofás macios e velhas poltronas afundadas, abajures de pé espalhados, com cúpulas de papel vegetal criando ilhas nítidas em meio à escuridão, mas o centro era fantasticamente vazio. E um único lustre de ferro de verdade, uma circunferência de velas que se derretiam, revelava abaixo de si um grande círculo de chão encerado.

Michael levou um momento para perceber que o aposento continha mais uma figura parcialmente encoberta. Yuri já estava olhando para essa figura.

Do outro lado do círculo, na extremidade diametralmente oposta por assim dizer, uma mulher muito alta estava sentada num banco parecendo estar trabalhando num tear. Um pequeno abajur recurvado iluminava suas mãos, mas não seu rosto. Um pouco de tapeçaria estava à mostra, e Michael viu que o trabalho era muito elaborado e cheio de cores discretas.

Ash estava paralisado, com os olhos fixos nela. A mulher retribuía o olhar. Era a mulher de cabelos longos que Michael vira à janela.

Os outros não fizeram o menor movimento. Gordon correu até ela.

— Tessa — disse ele. — Tessa, estou aqui, minha querida. — A voz estava falando num reino só seu, esquecida dos outros.

A mulher ergueu-se, parecendo agigantar-se diante da frágil figura de Gordon, quando ele a abraçou. Ela deu um suspiro terno, suave, com as mãos subindo para tocar com carinho os ombros magros de Gordon. Apesar da sua altura, sua compleição era tão delicada que ela parecia ser a mais fraca dos dois. Abraçado a ela, ele a trouxe até o círculo de iluminação mais forte.

Havia algo de sinistro na expressão de Rowan. Yuri estava fascinado. O rosto de Ash nada revelava. Ele apenas olhava enquanto a mulher ia se aproximando cada vez mais e agora parava abaixo do lustre, com a luz refulgindo no alto da sua cabeça e da sua testa.

Talvez em virtude do seu sexo, a altura da mulher parecesse verdadeiramente monstruosa.

Seu rosto era perfeitamente redondo, sem mácula, bem-parecido com o de Ash, mas não tão longo ou com definição tão profunda. Sua boca era pequena e macia, e os olhos, embora grandes, eram tímidos e desprovidos de qualquer vivacidade extraordinária. Olhos azuis, porem, doces. E, como os de Ash, orlados de cílios longos e abundantes. Uma grande cabeleira branca crescia da sua testa, caindo à sua volta como que  por mágica. Parecia macia e imóvel; talvez mais uma nuvem do que um cabeleira. E os cabelos tão finos que a luz fazia com que parecessem transparentes.

Ela usava um vestido violáceo, com um belo trabalho em casa de abelha logo abaixo do busto. As mangas eram lindíssimas e antiquadas, franzidas logo acima do cotovelo e novamente bufantes até os punhos bem ajustados aos pulsos.

Ocorreram a Michael vagas lembranças de Rapunzel, ou com mais exatidão de cada fragmento de romance de aventuras que ele um dia havia lido, um mundo de rainhas encantadas e príncipes de poder inquestionável. Quando a mulher se aproximou de Ash, Michael não pôde deixar de ver que sua pele era tão clara a ponto de ser quase branca. Ela parecia um cisne em forma de princesa, com as bochechas firmes, a boca a reluzir ligeiramente e os cílios muito nítidos em volta dos olhos de um azul intenso.

Ela franziu o cenho, o que formou uma única ruga na sua testa, e deu a impressão de um bebê a ponto de cair na choradeira.

— Taltos — sussurrou ela. Mas isso foi dito sem o menor alarme. Na realidade, ela parecia quase triste.

Yuri deixou escapar um grito abafado, leve, ínfimo.

Gordon estava transtornado de espanto, como se nada o houvesse preparado de fato para a realização desse encontro. Por um instante, ele pareceu quase jovem, com os olhos inebriados de amor e enlevo.

— É essa a sua fêmea? — perguntou Ash, baixinho. Ele a contemplava, até mesmo com um leve sorriso, mas não fazia menção de cumprimentá-la ou de tocar na mão que ela estendia. Voltou a falar, lentamente.

— É essa a fêmea pela qual você assassinou Aaron Lightner, pela qual você tentou matar Yuri, a fêmea à qual você queria trazer o Taltos macho a qualquer preço?

— Do que você está falando! — disse Gordon, numa voz assustada. — Você ouse feri-la, com palavras ou atos, e eu o mato.

— Creio que não — respondeu Ash. — Minha querida — disse à mulher. — Você me compreende?

— Compreendo — disse ela, delicada, com uma voz ínfima e cristalina. Ela deu de ombros e lançou as mãos para o alto, quase do mesmo jeito de um santo em êxtase. — Taltos — disse ela, e abanou a cabeça com tristeza, voltando a franzir o cenho com uma dor quase de sonho.

Será que a pobre Emaleth havia sido tão bela e tão feminina?

Com um choque, Michael viu o rosto de Emaleth destruído quando as balas o atingiram; viu o corpo cair para trás! Seria por isso que Rowan estava chorando? Ou estaria ela apenas cansada a devanear, com os olhos ligeiramente lacrimosos, enquanto observava Ash olhar para baixo, para a mulher, e a mulher a olhar para cima. O que isso significava para ela?

— Linda Tessa — disse Ash, erguendo levemente as sobrancelhas.

— Qual é o problema? — perguntou Gordon. — Há algo de errado com vocês dois. Digam qual é o problema. — Ele se aproximou, mas parou, obviamente sem querer entrar entre os dois. Sua voz agora estava grave e cheia de dor. Tinha semelhança com a de um orador, ou de alguém que soubesse influenciar seus ouvintes. — Ai, Deus do céu, isso não é o que eu imaginei. Esse encontro aqui neste lugar, cercado por quem não pode realmente captar o significado.

No entanto, ele estava dominado demais pela emoção para haver qualquer artificialidade no que dizia ou fazia. Seus gestos não eram mais histéricos. Eram trágicos.

Ash estava imóvel como sempre, sorrindo para Tessa com determinação e aprovando com prazer quando sua boquinha se abriu e se alargou, e as bochechas se inflaram com seu próprio sorriso.

— Você é muito linda — sussurrou Ash, erguendo então a mão aos lábios para beijar os dedos e delicadamente levar o beijo até o rosto de Tessa.

Ela suspirou, esticando seu longo pescoço e deixando os cabelos caírem pelas costas abaixo. Ela então estendeu as mãos para ele, e ele a abraçou. Ele a beijou, mas não havia paixão nesse beijo. Michael estava vendo.

Gordon interpôs-se entre eles, segurando a cintura de Tessa com a mão esquerda para puxá-la sem violência.

— Aqui não, eu lhes peço. Por favor, não como se fosse em qualquer bordel.

Ele soltou Tessa e se aproximou de Ash, com as mãos unidas como se estivesse orando, a olhar para cima sem medo agora, enredado em algo mais crucial para ele do que sua própria sobrevivência.

— Qual é o lugar para o casamento dos Taltos? — perguntou ele, reverente, com a voz suave, a implorar. — Qual é o local mais sagrado da Inglaterra, onde a linha de São Miguel passa pelo topo do morro e a torre em ruínas da antiga igreja de São Miguel ainda permanece como sentinela?

Ash encarou-o quase com tristeza, controlado, apenas ouvindo enquanto a voz apaixonada prosseguia.

— Permita que eu leve vocês dois até lá. Permita que eu veja o casamento dos Taltos no penhasco de Glastonbury! — Ele baixou a voz, e as palavras foram saindo neutras, quase lentas. — Se eu presenciar isso, se eu vir o milagre do nascimento ali no monte sagrado, no local em que o próprio Cristo chegou à Inglaterra, onde velhos deuses caíram e novos deuses subiram, onde se derramou sangue em defesa do que é sagrado, se eu vir isso. O nascimento da cria. plenamente crescida, procurando abraçar os pais, o próprio símbolo da vida, então não importa se vou continuar vivo ou morrer.

Suas mãos haviam subido como se nelas estivesse contido o conceito sagrado, e sua voz perdera toda a histeria. Seus olhos até estavam límpidos e quase meigos.

Yuri observava com óbvias suspeitas.

Ash era a imagem da paciência, mas pela primeira vez Michael via uma emoção mais profunda e mais sombria por trás dos olhos de Ash e até mesmo do seu sorriso.

— Então — disse Gordon — eu terei visto aquilo que nasci para ver. Terei presenciado o milagre que os poetas cantaram e com o qual os velhos sonham. Um milagre mais estupendo do que qualquer outro de que tomei conhecimento desde o tempo em que meus olhos aprenderam a ler, meus ouvidos ouviram as histórias que me eram contadas e minha língua soube formar as palavras que expressariam as tendências mais fortes do meu coração.

— Conceda-me esses últimos momentos preciosos, o tempo de ir até lá. Não fica longe. No máximo a um quarto de hora daqui, apenas alguns minutos para todos nós. E no penhasco de Glastonbury, eu a entregarei a você, como um pai entregaria a filha, meu tesouro, minha amada Tessa, para que façam o que vocês dois desejam.

Ele parou, olhando para Ash, desesperadamente imóvel, profundamente entristecido, como se, por trás dessas palavras, estivesse alguma aceitação total da sua própria morte.

Não prestou nenhuma atenção ao desdém evidente, embora mudo, de Yuri.

Michael estava maravilhado com a transformação no velho, a pura convicção.

— Glastonbury — sussurrou Stuart. — Eu lhe imploro. Aqui não. — E afinal ele abanou a cabeça. — Aqui não — repetiu e se calou.

O rosto de Ash não se alterou. E então, com muita delicadeza, como se estivesse revelando um terrível segredo a um coração frágil, a alguém por quem sentisse compaixão, ele falou.

— Não é possível nenhuma união. Não é possível nenhuma prole. — Ele se demorava com as palavras. — Ela está velha, seu lindo tesouro. Está estéril. Sua fonte secou.

— Velha! — Stuart estava desnorteado, incrédulo. — Velha! — murmurou. — Ora, você está maluco. Como pode dizer uma coisa dessas? — Ele se voltou, desamparado, para Tessa, que o observava sem dor ou decepção.

— Você ficou louco — repetiu Stuart, levantando a voz. — Olhe para ela! — exclamou. — Olhe para seu rosto, suas formas. Ela é magnífica. Eu o reuni a uma parceira de tal beleza que você deveria cair de joelhos e me agradecer! — De repente, ele foi atingido pela realidade, ainda sem acreditar mas sendo arrasado lentamente.

— O rosto dela talvez esteja assim no dia em que ela morrer — disse Ash, com sua brandura característica. — Eu nunca vi o rosto de um Taltos que fosse diferente. Mas o cabelo é branco, totalmente branco, sem um único fio vivo nele. Ela não exala cheiro nenhum. Pergunte a ela. Ela foi usada pelos humanos inúmeras vezes. Ou talvez esteja por aí há ainda mais tempo do que eu. O útero está morto dentro dela. A fonte secou.

Gordon não protestou mais. Ele havia levado as mãos à boca espalmando-as para conter sua dor.

A mulher pareceu um pouco intrigada, mas só vagamente perturbada. Ela deu um passo à frente e passou o braço longo e esguio bem de leve ao redor de Gordon, que tremia. Dirigiu, então, suas palavras nitidamente a Ash.

— Você me julga pelo que os homens fizeram comigo, por terem me usado em cada aldeia e cidade em que entrei, pelo fato de ao longo dos anos eles terem feito com que o sangue brotasse de mim tantas vezes até não haver mais nada?

— Não, eu não a julgo — disse Ash, com sinceridade e grande preocupação. — Eu não a julgo, Tessa. Não mesmo.

— Ah! — Mais uma vez, ela sorriu, um sorriso vibrante, quase brilhante, como se essa fosse uma razão para se sentir extremamente feliz.

De repente ela olhou para Michael e para a figura sombria de Rowan perto da escada. Sua expressão era animada e carinhosa.

— Aqui estou a salvo desses horrores — disse ela. — Sou amada em castidade por Stuart. Este é meu refúgio. — Ela estendeu as mãos para Ash. — Você não quer ficar comigo, conversar comigo? — Ela o puxou até o centro do aposento. — Não quer dançar comigo? Ouço música quando olho nos seus olhos. — Ela puxou Ash mais para perto, dizendo com uma emoção verdadeira e profunda: — Estou tão feliz por você ter vindo.

Só agora ela olhava para Gordon, que se afastara de mansinho, com a testa vincada, os dedos ainda tapando a boca, recuando passo a passo até encontrar uma cadeira de madeira antiga e pesada. Ele se deixou cair nela, encostou a cabeça nas tábuas duras que compunham seu espaldare se voltou, exausto, para um lado. Estava desanimado. Parecia que sua própria vida o estava abandonando.

— Dance comigo — disse Tessa. — Todos vocês, não querem dançar? — Ela abriu os braços, jogou a cabeça para trás e sacudiu o cabelo, que de fato era semelhante aos cabelos brancos e sem vida dos muito idosos.

Ela girou sem parar até sua saia violeta longa e farta se inflar à sua volta formando uma campânula. Dançava na ponta dos pés pequenos, calçados com pantufas.

Michael não conseguia tirar os olhos dela, dos sutis movimentos ondulantes com os quais ela formava um grande círculo, começando com o pé direito e depois trazendo o outro para bem perto dele, como se fosse uma dança ritual.

Quanto a Gordon, era doloroso demais só olhar para ele, e essa decepção parecia muito mais importante para ele do que a própria vida. Na realidade, era como se o golpe fatal já tivesse sido desferido.

Também Ash tinha os olhos fixos, com enlevo, em Tessa: talvez comovido, certamente preocupado e porventura até mesmo infeliz.

— Você está mentindo — disse Stuart. Mas era um murmúrio desesperado, desconexo. — Você está dizendo uma mentira terrível e abominável.

Ash não se deu ao trabalho de responder. Sorriu e fez que sim para Tessa.

— Stuart, minha música. Por favor, toque a minha música. Toque a minha música para... para Ash! — Ela fez uma grande mesura para Ash, com um sorriso, e ele também se inclinou e estendeu as mãos para segurar as dela.

A figura na cadeira estava incapaz de qualquer movimento e, mais uma vez, num sussurro, disse que não era verdade, mas ele próprio não acreditava nessa negação.

Tessa começara a cantarolar, voltando a girar.

— Toque a música, Stuart. Toque.

— Vou tocar para você — disse Michael, baixinho. Ele se voltou, procurando alguma fonte possível, esperando sem esperanças que não se tratasse de um instrumento, uma harpa, um violino, algo que exigisse um intérprete. Porque, se fosse, ele não estaria à altura das circunstâncias.

Ele próprio estava desconsolado, com uma tristeza insuportável, incapaz de sentir o enorme alívio que deveria estar sentindo. E, por um instante, seus olhos passaram por Rowan. Ela também parecia imersa em tristeza, envolta por ela, com as mãos unidas, o corpo muito ereto encostado na balaustrada da escada, com os olhos acompanhando a figura dançante que começava a cantarolar uma melodia bem definida, algo que Michael conhecia e apreciava.

Michael descobriu o equipamento, modernos componentes estereofônicos, projetados para ter uma aparência quase misticamente técnica, com centenas de minúsculos mostradores digitais, botões e fios que saíam sinuosos em todas as direções para alto-falantes suspensos a distâncias aleatórias ao longo da parede.

Ele se abaixou, na tentativa de ler o nome da fita dentro do aparelho.

— É a que ela quer — disse Stuart, ainda com os olhos fixos mulher. — Basta ligar. Ela toca essa fita o tempo todo. É a sua música.

— Dance conosco — disse Tessa. — Não tem vontade de dançar conosco? — Ela foi na direção de Ash, e dessa vez ele não pôde resistir. Segurou suas mãos, e depois a abraçou como um homem enlaçaria uma mulher para uma valsa, na posição moderna, íntima.

Michael apertou o botão.

A música começou baixa, com a vibração das cordas do baixo tangidas lentamente, a sair pelos numerosos alto-falantes. Depois vieram as trompas, suaves e brilhantes, acima dos tons bruxuleantes de um cravo, descendo na mesma linha melódica de notas e então assumindo a liderança, de tal modo que as cordas as seguiam.

De imediato, Ash conduziu sua parceira com passos largos e graciosos, a girar delicadamente.

Era o Cânone de Pachelbel, Michael logo percebeu, tocado como nunca havia ouvido antes, numa interpretação magistral, com todos os metais talvez imaginados pelo compositor.

Será que teria existido uma peça musical mais queixosa? Mais abertamente entregue ao romance? A música crescia, transcendendo os limites do barroco, com as trompas, cordas, cravo, entoando agora suas melodias superpostas com uma opulência devastadora, de tal modo que a música parecia ao mesmo tempo atemporal e emanada totalmente do coração.

Ela arrebatava o casal, com suas cabeças que se inclinavam ligeiramente e seus passos amplos, graciosos, lentos e em perfeita harmonia com os instrumentos. Agora Ash sorria, tão franco e pleno quanto Tessa. E à medida que o ritmo se acelerou, que as trompas começaram a trinar suas notas delicadamente, sob perfeito controle, à medida que todas as vozes foram se mesclando, magníficas, nas passagens mais jubilosas da composição, mais rápido eles dançavam, com Ash conduzindo Tessa quase como numa brincadeira a dar voltas cada vez mais ousadas. Suas saias enfunavam-se à vontade, seus pezinhos giravam com perfeita elegância, com os calcanhares a estalar de leve na madeira, e seu sorriso era ainda mais radiante.

Agora mais um som estava se mesclando à dança, pois o Cânone quando tocado dessa forma era decerto uma dança, e aos poucos Michael percebeu que era o som do canto de Ash. Não havia palavras, só um lindo cantarolar de boca aberta, ao qual Tessa logo acrescentou o seu próprio; e suas vozes impecáveis se ergueram acima das trompas sombrias e resplandecentes, acompanhando os crescendos sem nenhum esforço. E agora, ao girar ainda mais rápido, com as costas muito retas, eles quase riam no que parecia pura felicidade.

Os olhos de Rowan ficaram cheios de lágrimas enquanto ela os observava: o homem alto e majestoso e a fada-rainha ágil e graciosa. O mesmo acontecera com os olhos do velho, que se agarrava ao braço da cadeira como se estivesse muito próximo do limite das suas forças.

Yuri aparentava estar dilacerado por dentro, como se finalmente fosse perder o controle. No entanto, permaneceu imóvel, encostado na parede, apenas observando.

Os olhos de Ash estavam agora alegres, porém cheios de adoração, enquanto ele balançava a cabeça e oscilava com maior liberdade, movimentando-se com uma rapidez ainda maior.

Os dois não paravam de dançar, girando ao longo do perímetro da ilha de luz, entrando nas sombras e delas saindo, a cantar um para o outro. O rosto de Tessa estava enlevado como o de uma menininha a quem foi concedido seu maior desejo.

Pareceu a Michael que eles deveriam se retirar, Rowan, Yuri e ele, para deixá-los voltados para sua união delicada e comovente. Talvez fosse esse o único abraço que eles jamais experimentariam, um com o outro. E eles agora pareciam estar esquecidos dos seus observadores e do que ainda estava por vir.

No entanto, não podia sair dali. Ninguém fazia menção de sair, e a dança continuou até que o ritmo se abrandou, que os instrumentos passaram a tocar com mais suavidade, a avisá-los de que logo deveriam se despedir, e as frases sobrepostas do cânone unindo-se numa única voz final e cheia, para depois relaxar, recuar, com a trompa emitindo uma última nota queixosa, e depois o silêncio.

O casal parou no exato centro do piso, com a luz a se derramar sobre seus rostos e seus cabelos tremeluzentes.

Michael descansava encostado nas pedras, sem conseguir se mover, só a observá-los.

Uma música como essa podia magoar uma pessoa. Ela devolvia ao ouvinte sua decepção e seu vazio. Ela dizia: A vida pode ser assim. Lembre-se disso.

Silêncio.

Ash levantou as mãos da fada, olhando com cuidado para elas neste ínterim. Beijou, então, as palmas que estavam voltadas para cima e a soltou. Ela ficou parada, a encará-lo, como que apaixonada, talvez não porele, talvez pela música, pela dança, pela luz, por tudo.

Ele a levou de volta ao tear, insistindo com delicadeza para que voltasse a se sentar no banco, e virou sua cabeça de modo a que seus olhos caíssem na tarefa anterior. Quando ela voltou a atenção para a tapeçaria, pareceu se esquecer da presença dele. Os dedos estenderam se para os fios e começaram a trabalhar imediatamente.

Ash recuou, tomando o cuidado de não fazer ruído, e então se voltou e olhou para Stuart.

Não vinha do idoso nenhum apelo ou queixa. Caído para um lado da cadeira, com os olhos passando sem urgência de Ash para Tessa e depois novamente para Ash.

Talvez tivesse chegado o momento terrível. Michael não sabia. Mas sem dúvida, alguma história, alguma longa explicação, alguma narrativa desesperada o impediria. Gordon precisava tentar. Alguém precisava tentar. Algo tinha de acontecer para salvar esse ser humano aflito. Simplesmente por ele ser isso, algo tinha de impedir sua execução iminente.

— Quero o nome dos outros — disse Ash, no seu habitual estilo ameno. — Quero saber quem eram seus cúmplices, tanto dentro quanto fora da Ordem.

Stuart demorou-se a responder. Não se mexeu, nem desviou os olhos de Ash.

— Não — disse finalmente. — Esses nomes eu nunca vou lhe dar. Parecia a resposta mais definitiva que Michael jamais ouvira. E o homem, na sua dor, aparentava estar fora do alcance de qualquer forma de persuasão.

Ash começou a andar calmamente na direção de Gordon.

— Espere — disse Michael. — Por favor, Ash, espere.

Ash parou, olhando educadamente para Michael.

— O que foi, Michael? — perguntou, como se não tivesse a menor condição de imaginar.

— Ash, deixe que ele nos conte o que sabe — disse Michael. — Que ele nos dê sua versão da história!

 

TUDO ESTAVA MUDADO. Tudo era mais fácil. Ela estava deitada nos braços de Morrigan, e Morrigan nos seus, e...

Já era noite quando abriu os olhos.

Que sonho magnífico. Era como se Gifford, Alicia e a Velha Evelyn tivessem estado com ela, e não existisse nem morte nem sofrimento. Como se estivessem juntas, até mesmo dançando, é, dançando numa roda.

Ela se sentia tão bem! Deixe que o sonho se vá. A sensação permanecia com ela. O céu estava do tom violeta de Michael.

E cá estava Mary Jane em pé debruçada sobre ela, bonita que só ela, com os cabelos louros como o linho.

— Você é Alice no País das Maravilhas — disse Mona. — É o que você é. Eu devia lhe dar o apelido de Alice.

Vai ser perfeito, eu prometo.

— Preparei o jantar — disse Mary Jane. — Mandei Eugenia tirar a noite de folga, espero que não se importe. Quando vi aquela despensa, fiquei louca.

— Claro que não me importo — respondeu Mona. — Ajude-me a me levantar. Isso é que é prima.

Ela se levantou, renovada, sentindo-se tão leve e solta, como o bebê que dava cambalhotas dentro dela, o bebê de longos cabelos ruivos a boiar no líquido, como uma minúscula boneca de borracha com ínfimos joelhinhos ossudos...

— Fiz inhame, arroz, ostras assadas com queijo e frango grelhado com manteiga e estragão.

— Onde você aprendeu a cozinhar desse jeito? — perguntou Mona. Parou, então, e jogou os braços para enlaçar Mary Jane. — Não existe ninguém como nós, não é verdade? Quer dizer, você reconhece seu sangue, não é?

Mary Jane sorriu, radiante.

— É, é simplesmente maravilhoso. Eu te amo, Mona Mayfair.

— Puxa, fico tão feliz de ouvir isso — disse Mona.

Elas haviam chegado às portas da cozinha, e Mona deu uma espiada lá dentro.

— Meu Deus, você realmente fez um jantar e tanto.

— Pode crer — disse Mary Jane, orgulhosa, mais uma vez exibindo seus perfeitos dentes brancos. — Com seis anos de idade, eu já sabia cozinhar. Naquela época, minha mãe estava morando com um cozinheiro. Sabe? E mais tarde fui trabalhar num restaurante elegante em Jackson, Mississippi. Jackson é a capital, lembra? Esse era um lugar freqüentado por senadores. E eu disse para eles, se quisessem que eu trabalhasse lá, que me deixassem ficar olhando enquanto o cozinheiro preparava as coisas; que me deixassem aprender o que pudesse. O que você quer beber?

— Leite, estou louca por leite — disse Mona. — Não entre correndo ainda não. Olhe, esta é a hora mágica do entardecer. É a hora preferida de Michael.

Se ao menos ela conseguisse se lembrar de quem estivera com ela no sonho. Só restava a sensação de amor, de um amor perfeitamente reconfortante.

Por um momento, sentiu uma violenta preocupação por Michael e Rowan. Como seria possível que eles resolvessem o mistério do assassinato de Aaron? Mas era provável que eles juntos conseguissem derrotar qualquer um, quer dizer, se realmente trabalhassem em conjunto. E Yuri, bem, o destino de Yuri nunca havia sido mesmo o de se envolver com o dela.

Todos compreenderiam quando chegasse a hora.

As flores começavam a refulgir. Era como se o jardim estivesse cantando. Ela se encostou no batente da porta, cantarolando com as flores, cantarolando como se a canção estivesse sendo transmitida ao seu consciente por alguma parte remota da sua memória, onde as coisas belas e delicadas nunca eram esquecidas, mas apenas ficavam armazenadas em segurança. Ela sentia um certo perfume no ar. Ah, era o das oliveiras!

— Querida, vamos comer agora — disse Mary Jane.

— Está bem, está bem! — disse Mona, com um suspiro, jogando os braços para cima e se despedindo da noite antes de entrar.

Foi entrando na cozinha, como se estivesse num transe delicioso, e se sentou à mesa suntuosa que Mary Jane havia preparado para elas. Mary Jane tirara dos armários a porcelana Royal Antoinette, o aparelho mais delicado de todos, com as extremidades acaneladas e douradas nos pratos e pires. Garota esperta, que menina mais esperta e maravilhosa. Como era imprevisível o fato de ter encontrado a melhor das porcelana só por instinto. Essa prima abria toda uma gama de possibilidades, mas até que ponto ela de fato gostaria de aventuras? E quanta ingenuidade da parte de Ryan de trazê-la para cá e de deixar as duas sozinhas!

— Nunca vi porcelana igual a essa — disse Mary Jane, tagarelando feliz. — É exatinho como se fosse de um pano duro e engomado. Como fazem isso? — Mary Jane acabava de voltar, com uma caixa de leite e outra de chocolate em pó.

— Não ponha esse veneno no meu leite, por favor — disse Mona, enquanto pegava a caixa e a abria para encher o copo.

— Quer dizer, como eles conseguem fazer louça que não seja lisa. Não consigo imaginar, a menos que a porcelana seja macia como massa de pão antes de ser assada, mas mesmo nesse caso...

— Não faço a menor idéia — disse Mona. — Mas sempre adorei esse desenho. Ele não fica bem na sala de jantar. Os murais reduzem seu impacto. Mas fica absolutamente esplêndido nessa mesa da cozinha. E quanto requinte o seu de ter encontrado o jogo americano de renda guipura. Estou de novo morrendo de fome, e nós mal acabamos de almoçar. Isso está uma glória. Vamos nos fartar.

— Primeiro, não é verdade que mal acabamos de almoçar — disse Mary Jane. — Depois, você não comeu nada. Eu estava morrendo de medo que você se importasse de eu mexer nessas coisas. Mas depois pensei que, se você se importasse, eu simplesmente guardava tudo de novo no lugar em que encontrei.

— Minha querida, por enquanto essa casa é nossa — disse Mona, triunfal.

Meu Deus, o leite estava tão bom. Ela o derramara na mesa, mas ele estava bom, tão bom.

Beba mais.

— É, estou bebendo — disse ela.

— E você precisa dizer! — exclamou Mary Jane, sentando-se ao lado de Mona. Todas as travessas estavam repletas de pratos bonitos e deliciosos.

Mona pôs no seu prato um monte de arroz fumegante. Esqueça o molho. Estava fantástico. Ela começou a comer, sem esperar que Mary Jane se servisse, já que Mary Jane estava muito ocupada sujando seu próprio leite com colheradas e mais colheradas de chocolate em pó.

— Espero que não se incomode. Simplesmente adoro chocolate. Não consigo viver muito tempo sem chocolate. Teve uma época que eu fazia sanduíche de chocolate, sabia? Você sabe fazer? Você põe duas barras de Hershey em pão branco, com fatias de banana e açúcar também. E vou lhe contar, é uma delícia.

— Ah, eu entendo. Talvez eu achasse a mesma coisa se não estivesse grávida. Uma vez, devorei uma caixa inteira de bombons de cereja. — Mona comia uma garfada de arroz após a outra. Nenhum chocolate podia se comparar a isso. Os bombons de cereja não passavam agora de uma idéia. E de repente a coisa mais engraçada. O pão branco. Ele também parecia gostoso. — Sabe, acho que estou precisando de carboidratos complexos. É o que o meu bebê está me dizendo.

Rindo, ou seria cantando?

Nenhum problema. Tudo isso era tão simples, tão natural. Ela se sentia em harmonia com o mundo inteiro, e não seria difícil fazer com que Michael e Rowan também estivessem em harmonia. Ela se recostou. Uma visão a dominava, uma visão do céu salpicado com todas as estrelas visíveis. O céu formava uma abóbada lá em cima, negra, pura e fria, e as pessoas cantavam. As estrelas eram magníficas, simplesmente magníficas.

— Que música é essa que você está cantarolando? — perguntou Mary Jane.

— Psssiiiuuu, está ouvindo isso?

Ryan acabava de entrar. Ela estava ouvindo sua voz na sala de jantar. Conversava com Eugenia. Como era maravilhoso ver Ryan. Mas ele não ia levar Mary Jane daqui de jeito nenhum.

Assim que ele pisou na cozinha, Mona sentiu pena dele por sua expressão de cansaço. Ainda estava usando seu sombrio terno de enterro. Devia usar seersucker, como os outros homens faziam nesta época do ano. Ela adorava os homens nos ternos de seersucker no verão. E adorava os velhos que ainda usavam chapéus de palha.

— Ryan, junte-se a nós — disse Mona, mastigando um enorme bocado de arroz. — Mary Jane preparou um banquete.

— Basta que se sente aqui — disse Mary Jane, pondo-se de pé de um salto — e eu lhe sirvo um prato, primo Ryan.

— Não, querida, não posso — disse ele, sendo excessivamente gentil com Mary Jane porque ela era a prima caipira. — Estou com pressa. Mas, muito obrigado.

— Ryan está sempre com pressa — disse Mona. — Ryan, antes de ir embora, dê uma voltinha ali fora. Está simplesmente lindo. Olhe para o céu; ouça os pássaros. E, se não sentiu o perfume das oliveiras, está na hora de sentir.

— Mona, você está se entupindo de arroz. Será que a sua gravidez vai ser desse tipo?

Ela procurou não ter uma crise de riso.

— Ryan, sente-se, tome um copo de vinho. E Eugenia, onde está? Eugenia! Será que temos vinho?

— Não estou querendo vinho nenhum, Mona, obrigado. — Com um gesto, ele dispensou Eugenia, que apareceu por um instante à porta iluminada, disforme, irada, cheia de censuras, e depois foi embora.

Ryan parecia tão bonito apesar da sua irritação óbvia, um homem que havia sido todo polido com uma enorme flanela. Ela começou a rir de novo. Hora para mais um gole de leite, não, tome o copo inteiro. Arroz eleite. Não era de se admirar que as pessoas do Texas consumissem os dois juntos.

— Primo Ryan, não vai demorar um segundo — disse Mary Jane. — Deixe que eu lhe prepare um prato.

— Não, Mary Jane, obrigado. Mona, eu tenho algo a lhe dizer.

— Bem agora, no meio do jantar? Está bem, pode falar. Não pode ser tão ruim assim. — Mona serviu um pouco mais de leite da caixa, derramando um pouco na mesa de vidro. — Depois de tudo o que aconteceu? Sabe de uma coisa, o problema desta família é o conservadorismo arraigado. Gostaria de saber se isso é uma redundância. O que você acha?

— Miss Piggy — disse Ryan, com austeridade. — Estou falando com você.

Mona começou a rir histericamente. Mary Jane também.

— Acho que arrumei um emprego de cozinheira — disse Mary Jane. — E tudo o que fiz nesse arroz foi juntar um pouco de manteiga e alho.

— Foi a manteiga! — declarou Mona, apontando para Mary Jane. — Onde está a manteiga? É esse o segredo. Jogue manteiga em tudo. — Ela apanhou uma fatia de pão branco que em circunstâncias normais lhe causaria repugnância e escavou um bola de manteiga morna do tablete que derretia lentamente no pires.

Ryan estava olhando para seu relógio, sinal infalível de que não permaneceria naquele lugar mais do que quatro minutos. E, graças a Deus, ele não dissera uma palavra sequer sobre levar Mary Jane embora.

— O que é, rapaz? — perguntou Mona. — Pode falar. Eu agüento.

— Não sei se agüenta, não — disse ele em voz baixa.

Isso provocou em Mona mais uma crise de riso. Ou talvez tivesse sido a expressão neutra no rosto de Ryan. Mary Jane não conseguia parar de dar risinhos. Ela estava em pé, ao lado de Ryan, com a mão encobrindo a boca.

— Mona, já estou indo embora, mas há algumas caixas de documentos no quarto principal. São coisas que Rowan pediu, escritos encontrados no seu último quarto em Houston. — Ele lançou um olhar significativo na direção de Mary Jane, como se quisesse dizer, "Ela não deve ter conhecimento de nada disso."

— Ah, sei, escritos — respondeu Mona. — Ouvi vocês dois falando nisso ontem à noite. Sabe, ouvi uma história interessante, Ryan, de que, quando Daphne Du Maurier, você sabe quem ela era?

— Sei, Mona.

— Bem, quando ela estava escrevendo Rebecca, tudo começou como uma experiência para ver quanto tempo conseguiria avançar sem dar o nome à narradora em primeira pessoa. Foi Michael quem me contou isso. É verdade. E você sabe que, no final do livro, a experiência já não tinha importância. Mas ninguém nunca fica sabendo o nome da segunda esposa de Maxim de Winter no romance, ou no cinema. Você viu o filme?

— Aonde você quer chegar?

— Bem, você é igualzinho, Ryan. Você vai ser enterrado sem nunca ter pronunciado o nome de Lasher. — Mais uma vez, ela caiu na risada.

Mary Jane ria sem parar como se soubesse de tudo.

Não há nada mais engraçado do que alguém rindo de uma piada, a não ser uma pessoa que nem mesmo abre um sorriso e continua olhando para a gente com um ar de indignação.

— Não toque nas caixas — disse Ryan em tom solene. — Elas pertencem a Rowan! Mas há algo que eu devo lhe dizer, sobre Michael, algo que descobri numa árvore genealógica nesses documentos. Mary Jane, faça o favor de se sentar e continuar sua refeição.

Mary Jane sentou-se.

— Está bem, árvores genealógicas — disse Mona. — Puxa, talvez Lasher soubesse de coisas que nós desconhecemos. Mary Jane, a genealogia não é um interesse especial nesta família; é uma obsessão permanente. Ryan, seus quatro minutos estão quase terminando.

— Que quatro minutos?

Ela estava rindo de novo. Ele precisava ir embora. Mona ia passar mal de tanto rir.

— Já sei o que você vai dizer — declarou Mary Jane, saltando mais uma vez da cadeira para se pôr de pé como se, para uma conversa realmente séria, ela só pudesse estar em pé. — Você vai dizer que Michael Curry é um Mayfair. Eu sabia!

Toda a vitalidade fugiu do rosto de Ryan.

Mona acabou com o quarto copo de leite. Também seu arroz terminara e, apanhando a tigela, ela a inclinou um pouco para deixar cair mais uma pequena montanha de grãos de arroz macio e fumegante no seu prato.

— Ryan, pare de me olhar assim. Qual é o problema com Michael? Mary Jane tem razão? Mary Jane disse que Michael era um Mayfair na primeira vez que o viu.

— Ele é — insistiu Mary Jane. — Eu vi a semelhança logo de cara. E sabem com quem ele parece? Parece com aquele cantor de ópera.

— Que cantor de ópera? — perguntou Ryan.

— É, que cantor de ópera? Perguntou Ryan.

— Tyrone MacNamara, aquele, Beatrice tem retratos dele, sabia? Aquelas estampas na parede da casa dela??? O pai de Julien??? Bem, Ryan, ele deve ser seu bisavô. No laboratório de genealogia, vi uma quantidade de primos com essa aparência, irlandeses como eles só, vocês nunca perceberam? Claro que não, mas a verdade é que todos vocês têm sangue irlandês, sangue francês...

— E sangue holandês — disse Ryan, com uma voz contida, constrangida, tensa. Ele olhou para Mona e depois para Mary Jane. — Preciso ir.

— Espere um instante. Era só isso? — perguntou Mona. Ela engoliu o bocado de arroz e tomou mais um gole de leite. — Era isso o que você veio me contar? Que Michael é um Mayfair?

— Nesses documentos — disse Ryan — há uma menção que parece dizer respeito a Michael explicitamente.

— Droga, você não está falando sério — disse Mona.

— Vocês são todos tão maravilhosamente consangüíneos! — exclamou Mary Jane. — É como uma família real. E aqui está sentada a própria czarina!

— Receio que você tenha razão — disse Ryan. — Mona, você tomou algum remédio?

— Claro que não. Eu ia fazer uma coisa dessas com a minha filha?

— Bem, agora só me resta ir embora. Por favor, tentem se comportar. Lembrem-se de que a casa está cercada de seguranças. Não quero que saiam. E por favor não atormentem Eugenia!

— Ora, não vá embora. Você é o melhor da festa. O que quer dizer com "atormentar Eugenia"?

— Mona, quando você tiver recuperado a razão, poderia fazer o favor de me telefonar? E se essa criança for menino? Sem dúvida você não vai querer arriscar-lhe a vida com um desses exames para descobrir o sexo do bebê.

— Não é menino, seu bobo — contestou Mona. — É menina, e eu já lhe dei o nome de Morrigan. Eu ligo. Está bem? Está bem.

E lá se foi ele, apressado, no seu próprio estilo especial de se apressar. Parecido com o de freiras ou médicos se apressando. Com um mínimo de ruído ou alvoroço.

— Não ponha a mão naqueles papéis — gritou ele da despensa.

Mona relaxou, respirou fundo. Aquele era o último adulto programado para vir ver como as duas estavam, ao que ela soubesse. E que estória era essa sobre Michael?

— Meu Deus, você acha que é verdade? Ei, Mary Jane, quando terminarmos, vamos subir para dar uma olhada nesses papéis.

— Puxa, Mona, eu não sei não. Ele disse que pertenciam a Rowan, não foi exatamente isso o que ele disse? "Não ponha a mão naqueles papéis." Mona, pegue um pouco de molho branco. Você não querfrango? Esse é o melhor frango que eu já preparei.

— Molho branco! Você não me disse que era molho branco. Morrigan não quer carne. Não gosta de carne. Olhe, eu tenho direito de dar uma olhada nesses papéis. Se ele escreveu coisas, se ele deixou algopor escrito...

— Quem é ele?

— Lasher. Você sabe quem ele é. Não me diga que sua vovó não lhe contou.

— Ela me contou direitinho. Você acredita nele?

— Se acredito nele, boneca? Ele quase me atacou. Eu quase me tornei um dado estatístico como tia Gifford, minha mãe e todas aquelas outras pobres mulheres da família que morreram. Claro que acredito nele, pois ele não está... — Ela se flagrou apontando para o jardim, na direção da árvore. Não, não conte a Mary Jane. Mona havia jurado a Michael nunca contar a ninguém, enterrado ali fora, e a outra, a inocente, Emaleth, a que tinha de morrer, apesar de nunca ter feito nada a ninguém.

Não com você, Morrigan, não se preocupe, minha menina!

— É uma longa história. Não temos tempo para ela.

— Eu sei quem é Lasher — respondeu Mary Jane. — Sei o que aconteceu. Vovó me contou. Os outros não se abriram direto dizendo que ele estava matando as mulheres. Só mandaram que Vovó e eu viéssemos para Nova Orleans e ficássemos com todas as outras. Bem, você sabe? Nós não viemos, e nada nos aconteceu!

Ela deu de ombros e abanou a cabeça.

— Esse poderia ter sido um erro terrível — disse Mona. O molho branco estava maravilhoso com o arroz. Por que todos esses alimentos brancos, Morrigan?

As árvores eram cheias de maçãs, e sua polpa era branca. Os tubérculos e as raízes que tirávamos da terra eram brancos, e aquilo era o paraíso. Ah, mas olhe para as estrelas. Será que esse mundo imaculado era realmente imaculado, ou será que as ameaças rotineiras da natureza eram tão terríveis que tudo o mais estava tão podre naquela época quanto está agora? Quando se vive com medo, que diferença faz...

— O que houve, Mona? Ei, saia dessa.

— Ah, no fundo, não foi nada. Só um relance de um sonho que tive ali fora no jardim. Eu estava tendo uma senhora conversa com alguém. Sabe, Mary Jane, as pessoas precisam aprender para entender umas às outras. Como neste momento, você e eu, nós estamos nos ensinando mutuamente a compreender a outra. Entendeu o que eu quero dizer?

Ah, claro, perfeitamente. E aí você pode apanhar o telefone e ligar ara mim em Fontevrault e dizer "Mary Jane, estou precisando de você!" e eu simplesmente saio correndo, entro na picape, dou a partida e venho ficar com você.

— É, isso mesmo, exatamente isso. Sabe, eu queria de verdade que você soubesse tudo sobre mim, e eu saberia tudo sobre você. Foi o sonho mais feliz que eu já tive. Era um sonho tão... tão feliz. Nós todos estávamos dançando. Uma fogueira daquele tamanho normalmente me assustaria. Mas no sonho eu era livre, perfeitamente livre. Não me importava com nada. Precisamos de mais uma maçã. Os invasores não inventaram a morte. Essa idéia é ridícula, mas pode-se entender por que todos imaginaram que eles a inventaram... quer dizer, mais ou menos, tudo depende da perspectiva e, quando não se tem um conceito firme do tempo, quando não se percebe a importância básica do tempo; e é claro que os povos caçadores-coletores tinham essa noção, assim como os povos agrícolas, mas talvez aqueles povos de paraísos tropicais jamais desenvolvessem esse tipo de relação porque, para eles, não havia nenhum ciclo. O ponteiro estava sempre apontando para o paraíso. Sabe o que estou querendo dizer?

— O que você pode estar querendo dizer?

— Bem, preste atenção, Mary Jane! E você vai saber! Era assim no sonho. Os invasores haviam inventado a morte. Não, agora estou vendo, o que eles inventaram foi o ato de matar. Que é uma coisa diferente.

— Ali está uma fruteira cheia de maçãs. Quer que eu pegue uma para você?

— Mais tarde. Agora quero subir até o quarto de Rowan.

— Bem, você vai me deixar acabar de comer? — implorou Mary Jane. — Não suba sem mim. Para falar a verdade, nem sei se temos algum direito de ir lá em cima.

— Rowan não se importará. Michael talvez se importasse. Mas sabe de uma coisa??? — disse Mona, imitando Mary Jane. — Não faz diferença???

Mary Jane quase caiu da cadeira de tanto rir.

— Você é impossível. Vamos. O frango é sempre melhor frio mesmo.

E a carne do mar era branca, a carne dos camarões e dos peixes, das ostras e dos mexilhões. Alvíssima. Os ovos das gaivotas eram lindos, por serem todos brancos por fora; e quando se quebrava um deles, um grande olho dourado ficava olhando para você, boiando num líquido cristalino.

— Mona?

Ela estava imóvel no portal da despensa. Fechou os olhos. Sentiu que Mary Jane a segurava.

— Não — disse com um suspiro. — Sumiu de novo. — Sua mão foi até a barriga. Ela abriu os dedos sobre o monte arredondado, sentindo os ínfimos movimentos lá dentro. Morrigan linda. Com o cabelo tão ruivo quanto o meu. O seu cabelo é tão ruivo assim, mamãe?

— Você não me vê?

Com os olhos de Mary Jane, eu a vejo.

Ei, Mona, vou arrumar uma cadeira para você!

— Não, não, eu estou bem. — Ela abriu os olhos. Uma deliciosa onda de energia a atravessou. Ela esticou os braços e correu, atravessando a despensa, a sala de jantar, para seguir pelo longo corredor e depois subir a escada.

— Ande, vamos! — gritava.

Era tão gostoso correr. Essa era uma das coisas da sua infância de que sentia falta. E nem mesmo sabia disso. Simplesmente correr, correr o tempo todo pela St. Charles Avenue, com a maior velocidade possível e os braços bem abertos. Subir escadas correndo de dois em dois degraus. Dar a volta ao quarteirão, correndo, só para ver se era possível completar o percurso sem parar, sem desmaiar, sem ter de vomitar.

Mary Jane vinha atrás dela, a passos pesados.

A porta do quarto estava fechada. Típico de Ryan. Provavelmente trancada.

Mas não. Quando Mona a abriu, o quarto estava escuro. Ela encontrou o interruptor da luz e o lustre lá no alto se acendeu, derramando uma luz forte sobre a cama macia, a penteadeira, as caixas.

— Que cheiro é esse? — perguntou Mary Jane.

— Você está sentindo o cheiro, não está?

— Claro que estou.

— É o cheiro de Lasher — sussurrou Mona.

— Está falando sério?

— Estou — disse Mona. Havia uma pilha de caixas de papelão marrom. — Como lhe parece, esse cheiro?

— Huummmm, é bom. Como se lhe desse vontade de butterscotch, chocolate ou canela. Ou algo parecido. Ufa. De onde é que ele vem? Mas sabe de uma coisa?

— O quê? — perguntou Mona, dando a volta à pilha de caixas.

— Morreu gente neste quarto.

— Sem brincadeira. Mary Jane, qualquer um poderia ter-lhe contado isso.

— Do que você está falando? De Mary Beth Mayfair, Deirdre e tudo o mais? Eu soube disso tudo quando Rowan estava aqui doente, Beatrice ligou para ver se conseguia que vovó e eu viéssemos para Nova Orleans. Vovó me contou. Mas aqui morreu alguma outra pessoa, alguém que tinha o cheiro como o dele. Você está sentindo? Os três cheiros. Um é o cheiro dele. O outro é o do outro. E o terceiro é o cheiro da própria morte.

Mona estava muito parada, tentando captar o cheiro, mas para ela as fragrâncias deveriam estar misturadas. Com uma dor aguda, quase intensa, ela pensou no que Michael lhe descrevera, a garota magra que não era uma garota, não era humana. Emaleth. A bala explodiu nos seus ouvidos. Ela tapou as orelhas.

— O que houve, Mona Mayfair?

— Meu Deus, onde foi que aconteceu? — perguntou Mona, ainda com as mãos tapando as orelhas e com os olhos fechados com força. Ela os abriu, então, só para olhar para Mary Jane, ali parada junto ao abajur, uma figura sombria, de olhos grandes e de um azul brilhante.

Mary Jane olhou ao redor, principalmente movendo os olhos, embora chegasse a virar a cabeça um pouco, e depois começou a andar em volta da cama. Sua cabeça parecia muito redonda e pequena sob os cabelos macios, achatados. Ela foi até o outro lado da cama e parou. Sua voz estava muito grave quando falou.

— Bem aqui. Alguém morreu exatamente aqui. Alguém que cheirava como ele, mas que não era ele.

Veio um berro aos ouvidos de Mona, tão alto, tão violento que era dez vezes mais terrível do que o tiro imaginado. Ela apertou a barriga. Pare com isso, Morrigan. Pare. Eu lhe prometo...

— Puxa, Mona, você vai passar mal?

— Não, de jeito nenhum! — Mona estremeceu de corpo inteiro. Ela começou a cantarolar uma pequena canção, nem mesmo se perguntando qual era, só algo bonito, talvez algo inventado por ela.

Ela se virou e olhou para a pilha de caixas irresistíveis.

— Está nas caixas também — disse Mona. — Dá para você sentir o cheiro bem forte aqui? É dele. Sabe, eu jamais consegui que qualquer outro membro da família admitisse sentir esse cheiro.

— Bem, ele está simplesmente por toda parte — disse Mary Jane. Ela estavaparada ao lado de Mona, irritantemente mais alta e com seios mais pontudos. — Está também mais forte nessas caixas, você tem razão. Mas olhe todas as caixas estão lacradas com fita crepe.

— É, e identificadas com pincel atômico preto por Ryan. E o que é bem conveniente é que essa aqui diz, "Escritos, Anônimos". — Ela deu risinho discreto, nada tão estouvado quanto antes. — Coitado do Ryan. "Escritos, Anônimos". Parece um grupo de apoio psicológico para livros que não conhecem seus autores.

Mary Jane riu.

Mona adorou e começou a dar risinhos espremidos. Ela deu a volta às caixas e se ajoelhou com cuidado para não sacudir o bebê. O bebê ainda chorava. Dava saltos mortais sem parar. Era o cheiro, não era? Tanto quanto todas aquelas bobagens que havia falado, imaginado visualizado. Ela cantarolou para o bebê... e depois cantou baixinho.

— "Tragam flores das mais belas, tragam flores das mais raras do jardim e do bosque, da colina e do vale!" — Era o hino mais alegre e terno que ela conhecia, hino que Gifford lhe ensinara a cantar, o hino das Festas de Maio. — "Nosso coração se agiganta; nossa voz feliz conta a história da rosa mais linda do vale!"

— Puxa, Mona Mayfair, você tem uma senhora voz.

— Todos os membros da família têm uma senhora voz, Mary Jane. Mas na realidade eu não tenho. Não como a da minha mãe, ou de Gifford. Você precisava tê-las ouvido. Eram sopranos verdadeiras. Minha voz é grave.

Ela cantarolou a melodia agora sem a letra, imaginando as florestas, a terra verdejante e as flores.

— "O, Maria, nós hoje te coroamos com flores, rainha dos anjos, rainha do mês de maio. Ó, Maria, nós hoje te coroamos com flores..."

Ela balançou de joelhos, com a mão na barriga e o bebê acompanhava delicadamente o ritmo da música, agora com os cabelos vermelhos a envolvê-lo todo, dando uma impressão magnífica dentro do líquido no útero, como se fosse uma tinta laranja que tivesse caído na água, espalhando-se, assim sem peso, translúcida, linda. Uns dedinhos e uns pezinhos tão pequenos. De que cor são os seus olhos, Morrigan?

Não consigo ver meus olhos, mamãe. Só vejo o que você vê, mamãe.

— Ei, acorde. Estou com medo de você cair.

— Ah, claro. Foi bom você ter me chamado de volta, Mary Jane. Fez bem em me trazer de volta, mas peço a Deus e a Sempre Abençoada Virgem Maria que esse bebê tenha olhos verdes como os meus. O que você acha?

— Não poderiam ter uma cor melhor! — exclamou Mary Jane.

Mona pôs as mãos na caixa de papelão que tinha diante de si. Essa era a certa. Estava impregnada com o cheiro dele. Teria ele escrito essas páginas com o próprio sangue? E imaginar que seu corpo estava lá embaixo. Eu devia desenterrar esse corpo. Quer dizer, agora tudo esta mudado. Rowan e Michael vão ter de aceitar esse fato. Ou aceitam, oueu simplesmente não vou lhes contar, quer dizer, o que está acontecendo é algo de totalmente novo, e diz respeito a mim.

Que corpos nós vamos desenterrar? — perguntou Mary Jane, com o cenho franzido.

— Ai, pare de ler meus pensamentos! Seja bruxa, mas não seja desagradável. Ajude-me com essa caixa.

Mona arrancou a fita com as unhas e afastou com dificuldade o papelão.

— Mona, não sei, não. Isso aí pertence a uma outra pessoa.

— É mesmo — disse Mona. — Mas essa outra pessoa faz parte da minha tradição, essa outra pessoa tem seu próprio ramo nesta árvore. E desde as raízes sobe pelo tronco esse fluido poderoso, nossa força vital. E ele fazia parte disso, pode-se dizer que ele vivia nisso. É, antigo, duradouro e permanente, mais ou menos como as árvores. Mary Jane, você sabia que as árvores são os seres vivos mais antigos sobre a terra?

— É, isso eu sabia. Tem árvores lá em Fontevrault que são tão grandes??? Quer dizer, tem uns ciprestes lá com os joelhos saindo fora d'água?

— Psssiuuu — disse Mona. Ela havia afastado toda a embalagem parda. O material estava embalado como se tivesse de proteger a porcelana Marie Antoinette daqui até a Islândia. E viu a primeira página de uma pilha solta coberta por um plástico fino e atada com um elástico forte. Garranchos, mesmo, garranchos finos e longos, com eles, tês e ipsilones grandes e compridos, e vogais pequenas que em alguns casos não passavam de pingos. Mas ela conseguia ler.

Fez uma garra com a mão e rasgou o plástico.

— Mona Mayfair!

— Coragem, menina! O que estou fazendo tem um objetivo. Você quer ser minha aliada e confidente, ou quer, neste exato momento, me abandonar? A TV a cabo nesta casa pega todos os canais. Você pode ir para o seu quarto ver televisão, se não quer ficar comigo. Ou pode ir nadar lá fora, apanhar flores, ou cavar para encontrar corpos debaixo da árvore...

— Quero ser sua aliada e sua confidente.

— Ponha sua mão aqui, então, priminha. Está sentindo alguma coisa?

— Uau!

— Foi ele quem escreveu. Você está vendo a caligrafia de um ser declaradamente não-humano! Olhe!

Mary Jane estava ajoelhada ao seu lado. Tocava o papel com as pontas dos dedos. Seus ombros estavam encurvados, o cabelo de palha caía de ambos os lados do rosto, espetacular como uma peruca. As sobrancelhas brancas refletiam a luz em contraste com a testa bronzeada, e praticamente dava para se ver cada pêlo. No que ela estaria pensando? O que estaria sentindo, vendo? Qual era o significado daquela expressão nos seus olhos? Essa garota não é idiota, isso eu posso garantir, ela não é idiota. O problema é que...

— Estou com tanto sono — disse Mona, de repente, tendo essa percepção assim que a expressou. Ela levou a mão à testa. — Eu me pergunto se Ofélia adormeceu antes de se afogar.

— Ofélia? Você está falando da Ofélia de Hamlet?

— Ah, você sabe do que estou falando. Isso é fantástico. Sabe, Mary Jane, eu adoro você.

Ficou olhando para Mary Jane. E, essa era a Prima por Excelência a Prima que se tornaria uma Grande Amiga, a Prima que tinha condições de saber tudo que Mona sabia. E ninguém, ninguém mesmo sabia tudo que Mona sabia.

— Mas estou com um sono... — Ela se deixou cair ao chão, esticando as pernas e depois os braços até ficar totalmente deitada, olhando para o lustre bonito e brilhante lá no alto. — Mary Jane, você examinaria essa caixa para mim? Se eu conheço o primo Ryan, e realmente conheço, a árvore genealógica está marcada.

— É — disse Mary Jane.

Como era reconfortante que ela tivesse parado de contestar.

— Não, não estou mais contestando. Calculo que já chegamos a este ponto. E já que se trata dos escritos de um ser declaradamente não-humano, e já que chegamos até aqui... bem, a questão é que eu posso guardar tudo de volta quando a gente terminar.

— Isso mesmo — disse Mona, encostando a bochecha no chão fresco. O cheiro era muito forte nas tábuas do assoalho! — E já que — disse ela, imitando Mary Jane, mas sem maldade, sem absolutamente nenhuma maldade — já que esse conhecimento é precioso, temos de obtê-lo onde for possível.

Uau, uma coisa incrível estava acontecendo. Ela fechara os olhos e o hino estava se cantando sozinho. Tudo o que tinha a fazer era prestar atenção. Ela não estava emitindo essas palavras, essas notas. A melodia simplesmente se desdobrava, como se ela estivesse numa daquelas experiências em que aplicam um choque numa parte do cérebro e de repente a pessoa começa a ter visões ou a sentir o cheiro do córrego no morro atrás da sua casa quando ela era criança!

— É isso o que nós duas precisamos ter em mente, que a bruxaria e uma ciência imensa — disse ela, sonolenta, sem dificuldade para falar apesar do belo hino, já que este prosseguia sozinho agora. — Que ela é alquimia, química e ciência cerebral, e que esses aspectos se unem paracriar magia, magia pura e linda. Não perdemos nossa magia na era daciência. Descobrimos todo um novo conjunto de segredos. Nós vamos vencer.

— Vencer?

Ó Maria, nós te coroamos hoje com flores, rainha dos anjos, rainha , mês de maio, ó Maria, nós te coroamos...

Mary Jane, você está lendo as folhas?

— Bem, olhe só, ele tem uma pasta inteira com cópias xerox. "Inventário em andamento: Páginas pertinentes, genealogia incompleta".

Mona rolou para ficar novamente deitada de costas. Por um instante, não sabia onde estavam. No quarto de Rowan. Havia prismas minúsculos nos enfeites de cristal lá em cima. O lustre que Mary Beth havia pendurado ali, aquele que veio da França, ou teria sido Julien? Julien, onde será que você está? Julien, como você foi deixar isso acontecer comigo?

No entanto, os fantasmas não respondem a menos que queiram responder, a menos que tenham seus próprios motivos.

— Bem, estou lendo aqui essa genealogia incompleta.

— Você a encontrou?

— Encontrei, o original e a cópia xerox. Tudo aqui está em duplicata. Original e xerox. Assim em pequenos maços. O que ele marcou com um círculo é Michael Curry, certo, e depois toda uma história de Julien ter dormido com uma moça irlandesa, e essa moça ter deixado o bebê no Orfanato de Santa Margarida e ter se tornado irmã de caridade, a irmã Bridget Marie. E a menina, a que ficou no orfanato, ter se casado com um bombeiro chamado Curry, e ele ter tido um filho, e depois mais alguma coisa, Michael! Bem aqui!

Mona ria sem parar.

— Oncle Julien era um leão — disse ela. — Você sabia o que os leões machos fazem quando chegam a um novo bando? Matam todos os filhotes, para que as fêmeas entrem no cio imediatamente e eles possam gerar tantos filhotes quantos for possível. É a sobrevivência dos genes. Oncle Julien sabia disso. Ele estava só aprimorando a raça.

— É, bem, pelo que eu soube, ele era bem exigente quanto a quem conseguiria sobreviver. Vovó me disse que ele matou nosso tata-tataravô.

— Não sei se você acertou o número de "tatas". O que mais está aí nesses papéis?

— Bem, amorzinho, para lhe dizer a verdade, eu não teria conseguido descobrir isso se alguém não tivesse assinalado. Aqui tem todo tipo coisa. Sabe o que isso parece? Parece o que as pessoas escrevem quando estão drogadas e acham que estão sendo brilhantes. E no dia seguinte, vejam e pasmem! Elas olham para os blocos e vêem que escreveram linhas pontudas e irregulares, sabe como??? Como as linhas de um eletrocardiograma.

— Não me diga que você já foi enfermeira?

— Fui, por algum tempo, mas isso foi numa comunidade maluca que eles nos forçavam a fazer um enema todos os dias para nos livrarmos das impurezas nos nossos sistemas.

Mona começou a rir de novo, um belo riso sonolento.

— Acho que nem uma comunidade dos Doze Apóstolos ia conseguir que eu fizesse isso.

Esse lustre era mesmo espetacular. Era simplesmente indesculpável que ela tivesse vivido todo esse tempo sem se deitar no chão para olhar para um deles lá em cima. O hino ainda continuava, só que agora milagre dos milagres, ele estava sendo tocado em algum instrumento talvez como uma harpa, e cada nota se fundia com a nota seguinte. Ela quase conseguia não sentir o chão sob seu corpo quando se concentrava na música e nas luzes lá em cima.

— Você não ficou na tal comunidade, certo? — perguntou, preguiçosa. — Parece horrível.

— Claro que não fiquei. Fiz minha mãe sair. Disse para ela, olhe aqui, você sai comigo, ou eu vou embora daqui sozinha. E, como eu devia estar com uns doze anos naquela época, ela não estava querendo que isso acontecesse. Olhe só, aqui está o nome de Michael Curry de novo. Ele fez um círculo em volta.

— Lasher? Ou Ryan?

— Nessa você me pegou. Essa aqui é a cópia, não sei dizer. Não. Agora estou vendo. O círculo foi feito na cópia. Deve ter sido Ryan, e aqui diz alguma coisa sobre "waerloga". Bem, você sabe??? É provável que isso signifique "feiticeiro".

— Você tem razão — disse Mona. — Isso é inglês antigo. Numa ocasião ou outra procurei a derivação de cada palavra que dissesse respeito às bruxas e à bruxaria.

— É, eu também. Feiticeiro, certíssimo. Ou quer dizer ainda, não me diga, quer dizer alguém que sabe a verdade o tempo todo, não é?

— E imaginar que foi Oncle Julien quem quis que eu fizesse isso, esse é que é o enigma. Mas também um fantasma conhece seus próprios assuntos, e talvez Oncle Julien não soubesse de nada disso. Os morto não sabem de tudo. As pessoas más sabem, estejam vivas ou mortas, o pelo menos sabem o suficiente para nos enredar numa teia da qual n conseguimos escapar. Mas Julien não sabia que Michael era seu desce dente. Sei que não sabia. Ele não teria me mandado vir.

— Vir para onde, Mona?

— Para esta casa, na noite da terça-feira de Carnaval, para dormir com Michael, para fazer esse filho que só Michael e eu poderíamos ter feito. Ou que talvez você também pudesse ter feito com Michael, porque você sente o cheiro que vem dessas caixas, esse cheiro dele.

— É, talvez eu pudesse, Mona. Nunca se sabe.

— Certo, querida, nunca se sabe. Mas eu cheguei primeiro. Apanhei Michael enquanto a porta estava aberta, antes de Rowan voltar para casa. Simplesmente me enfiei por onde pude, e pronto! Esse bebê, esse bebezinho maravilhoso!

Mona se virou e ergueu a cabeça, pousando o queixo nas mãos, com os cotovelos no tapete.

— Mary Jane, você precisa saber de tudo.

— É, preciso — disse Mary Jane. — Quero saber. Estou assim meio preocupada com você.

— Comigo? Não se preocupe. Eu não poderia estar melhor. Estou morrendo de vontade de tomar mais leite, mas fora isso, estou bem. Olhe, ainda consigo ficar deitada de bruços. Bem, na verdade, não consigo mais. — Ela se sentou. — É, não foi assim tão confortável. Acho que vou ter de deixar isso para lá por algum tempo, sabe, essa história de deitar de bruços.

As sobrancelhas de Mary Jane haviam se unido numa expressão muito séria. Ela estava tão bonitinha! Não era de se admirar que os homens gostassem de parecer proteger as mulheres. Será que Mona era engraçadinha desse mesmo jeito?

— Bruxinhas! — disse Mona, sibilando e fazendo os dedos tremularem junto ao cabelo.

— É, bruxinhas — disse Mary Jane, rindo. — Quer dizer que foi o fantasma de Oncle Julien que a mandou vir aqui para dormir com Michael, e Rowan ainda estava desaparecida.

— Exatamente, ainda desaparecida. E Oncle Julien exerceu mais do que sua autoridade nisso, posso lhe garantir. O fato é que eu receio que ele tenha ido para o céu e tenha nos deixado à nossa própria sorte. Mas na realidade, até que é bom. Eu não ia querer ter de explicar isso para ele.

— Por que não?

— É uma nova fase, Mary Jane. Pode-se dizer que se trata de bruxaria nanossa geração. Não tem nada a ver com Julien, Michael ou Rowan, e com o seu jeito de resolver as situações. É algo totalmente diferente.

— É, estou vendo.

— Está mesmo?

— Estou. Você está realmente com sono. Vou apanhar um pouco de leite.

— Ah, isso seria divino.

— Você trate de se deitar, e vá dormir, querida. Seus olhos estão péssimos. Está conseguindo me ver?

— Claro que estou. Mas você tem razão. Vou dormir aqui mesmo. E, Mary Jane, pode se aproveitar da situação.

— Ora, você é criança demais para isso, Mona.

— Não, sua tonta, não foi isso o que eu quis dizer — respondeu Mona rindo. — Além do mais, se eu não sou criança demais para os homens, também não sou criança demais para as garotas. Para ser franca, tenho uma curiosidade por fazer amor com uma garota, ou talvez com uma mulher, uma mulher linda, como Rowan. Mas o que estava querendo dizer era que as caixas estão abertas. Aproveite-se desse fato e leia o que for possível.

— É, pode ser que eu faça isso. No fundo, não consigo decifrar a caligrafia dele, mas posso ler o que Rowan escreveu. E tem material dela aqui.

— É, pode ler. Se você quiser me ajudar, precisa ler. E lá embaixo na biblioteca, Mary Jane, está o arquivo sobre as Bruxas Mayfair. Sei que você disse que o leu, mas será que leu mesmo?

— Sabe, Mona? Não tenho certeza se realmente li.

Mona virou-se de lado e fechou os olhos.

E quanto a você, Morrigan, vamos voltar, bem para longe. Não quero saber dessas tolices de invasores e soldados romanos. Quero voltar mais ainda, para a planície. Conte para mim como tudo começou. Quem é esse de cabelos escuros que todos adoram?

— Boa noite, Mary Jane.

— Espere aí, antes de sair voando, querida, quem você diria que é seu parente de maior confiança?

Mona riu. Estava quase se esquecendo da pergunta e de repente acordou, sobressaltada.

— Ah, é você, Mary Jane.

— Não são Rowan e Michael?

— Claro que não. Eles agora devem ser encarados como o inimigo. Mas há certas coisas que eu preciso perguntar a Rowan, que preciso saber dela, mas ela não tem de saber o que está acontecendo comigo. Preciso calcular um objetivo para as minhas perguntas. Quanto a Gifford e Alicia, elas morreram. A Velha Evelyn está doente demais, e Ryan é muito obtuso. Jenn e Shelby são inocentes demais. E Pierce e Clancy simplesmente não têm jeito. E para que eu ia destruir a vida normal paraeles dois? Você algum dia deu grande valor à vida normal?

— Nunca.

— Acho que só posso contar com você, então, Mary Jane. Até logo, Mary Jane.

— O que você está querendo dizer é que não quer que eu ligue para Rowan e Michael em Londres para pedir conselho.

— Deus me livre! Não! — Seis círculos estavam formados, e a dança ia começar. Ela não queria perder aquilo. — Você não pode ligar para eles, Mary Jane. Não pode, de jeito nenhum. Prometa que não vai ligar. Além do mais, já é mais de meia-noite em Londres, e nós não sabemos o que eles estão fazendo. Que Deus os ajude. Que Deus ajude Yuri.

Mona estava mesmo indo à deriva. Ofélia, com as flores no cabelo, seguindo direto pelo córrego abaixo. Os ramos das árvores desciam para afagar seu rosto, para tocar a água. Não, ela estava dançando no círculo, e aquele de cabelos escuros estava parado bem no centro. Ele procurava lhes dizer alguma coisa, mas todos riam sem parar. Eles o amavam, mas sabiam que ele tinha esse costume de falar e falar, com preocupações tão tolas...

— Bem, eu estou preocupada com você, Mona. Eu devia lhe dizer...

A voz de Mary Jane estava tão distante. Flores, buquês de flores. Isso explica tudo, por que sonhei com jardins a vida inteira, e sempre desenhei jardins com lápis de cor. Por que você sempre desenha jardins, Mona, perguntava a irmã Louise. Adoro jardins; e o jardim de First Street estava tão acabado antes de fazerem a limpeza e o modificarem. E agora, todo podado e bem cuidado, ele abriga o pior dos segredos.

Não, mãe, não...

Não, as flores, o círculo, você que o diga! Esse sonho ia ser tão bom quanto o último.

— Mona?

— Deixa eu ir, Mary Jane.

Mona mal a ouvia. Além do mais, não fazia nenhuma diferença o que ela dissesse.

E isso era bom, também, porque foi o seguinte o que saiu da boca de Mary Jane já tão distante, tão longe... antes que Mona e Morrigan começassem a cantar.

—... sabe, Mona Mayfair? Detesto dizer isso, mas esse bebê cresceu desde que você foi dormir lá fora junto à árvore!

 

— ACHO QUE DEVÍAMOS SAIR AGORA — disse Marklin. Ele estava deitado na cama de Tommy, com as mãos unidas atrás da cabeça, examinando repetidamente os nós na madeira do dossel da cama.

Tommy estava sentado à escrivaninha, com os pés cruzados sobre o canapé de couro preto. Esse quarto era maior do que o de Marklin, com as janelas voltadas para o sul, mas ele nunca se ressentira disso. Gostava do próprio quarto. Bem, Marklin agora estava pronto para sair dali. Arrumara tudo de importante numa única mala e a escondera debaixo da própria cama.

— Diga que é premonição. Não quero ficar aqui — insistiu. - Não há nenhum motivo para ficarmos aqui.

— Você está sendo fatalista e um pouco bobo — disse Tommy.

— Olhe, você limpou os computadores. Os aposentos de Stuart são absolutamente impenetráveis, a menos que você queira correr o risco de arrombar as portas, e não me agrada ficar sob toque de recolher.

— O toque de recolher é para todos, se permite que eu refresque sua memória. E, se fôssemos querer sair agora, não chegaríamos à porta sem enfrentar um monte de perguntas. Além do mais, cair fora antes do serviço em memória dos falecidos seria um desrespeito gritante.

— Tommy, não vou conseguir suportar alguma cerimônia tenebrosa nas primeiras horas da madrugada, com uma quantidade de discursos ridículos sobre Anton e Aaron. Quero ir agora. Costumes, rituais. Esse pessoal é um bando de tolos, Tommy. É tarde demais para qualquer coisa a não ser a franqueza. Há escadas nos fundos; há escadas laterais. Sou a favor de sairmos daqui imediatamente. Tenho coisas em mente. Tenho trabalho a fazer.

— Eu quero fazer o que eles nos pediram que fizéssemos — disseTommy —, e é o que pretendo fazer. Respeitar o toque de recolher queeles nos pediram que respeitássemos. E descer quando soar o sino. Agora, por favor, Marklin, se você não tem nada de profundo ou útil a dizer, fique calado, está bem?

— Por que eu deveria ficar calado? Por que você quer ficar aqui?

— Certo, se você precisa saber, nós podemos ter uma chance durante a cerimônia, ou seja lá o que for, de descobrir onde Stuart está mantendo Tessa.

— Como poderíamos descobrir isso?

— Stuart não é rico, Marklin. É provável que ele tenha uma casa em algum canto, um lugar que nós nunca vimos, alguma mansão ancestral ou coisa semelhante. Agora, se soubermos jogar direito, podemos fazer algumas perguntas a respeito disso, é claro que por pura preocupação comStuart. Você tem alguma idéia melhor?

— Tommy, acho que Stuart não ia esconder Tessa num lugar conhecido como residência sua. Ele talvez seja covarde, até mesmo um louco melodramático, mas estúpido ele não é. Nós não vamos encontrar Stuart. E não vamos encontrar Tessa.

— Então, o que vamos fazer? — perguntou Tommy. — Abandonar tudo? Com o que já sabemos?

— Não. Nós saímos daqui. Voltamos para Regent's Park. E começamos a pensar. Pensamos em alguma coisa muito mais importante para nós agora do que qualquer coisa que a Talamasca possa oferecer.

— Que é...

— Pensamos, Tommy, nas bruxas Mayfair. Reexaminamos o último fax de Aaron para os Anciãos. E estudamos o Arquivo. Vamos estudá-lo meticulosamente à procura de qualquer pista que indique quem no clã é mais útil para as nossas finalidades.

— Você está indo rápido demais — contestou Tommy. — O que pretende fazer? Seqüestrar um casal de americanos?

— Não podemos debater esse assunto aqui. Não podemos fazer nenhum plano. Olhe, vou esperar até o início da maldita cerimônia, mas depois vou embora. Vou dar o fora na primeira oportunidade. Você pode vir depois se quiser.

— Não seja idiota — disse Tommy. — Não estou com meu carro. Tenho de ir com você. E se Stuart estiver presente à cerimônia? Já pensou nisso?

— Stuart não vai voltar para cá. Ele tem juízo. Agora, ouça, Tommy. Esta é a minha decisão final. Vou ficar para o início da cerimônia. Prestarei minhas homenagens, baterei papo com alguns dos membros, esse tipo de coisa. E depois, caio fora! E me mando para meu encontro com as bruxas Mayfair. Que se danem Stuart e Tessa!

— Está bem. Eu o acompanho.

— Assim é melhor. Uma decisão inteligente. Esse é o seu lado prático, Tommy.

— Vá dormir um pouco, então. Eles não disseram quando iam nos chamar. E é você quem vai dirigir.

 

O APOSENTO MAIS ALTO DA TORRE. Yuri estava sentado à mesa redonda olhando para a xícara fumegante de chá chinês que tinha diante de si.

O próprio condenado preparara o chá. Yuri não queria tocar nele.

Toda a sua vida na Talamasca, ele conhecera Stuart Gordon. Jantara inúmeras vezes com Gordon e Aaron. Haviam perambulado juntos pelos jardins; haviam visitado juntos os retiros em Roma. Aaron conversava com Gordon com tanta espontaneidade. As bruxas Mayfair para lá; as bruxas Mayfair para cá. E agora era Gordon.

Ele o traiu.

Por que Ash não o matava logo? O que o homem poderia oferecer que não estaria contaminado, deturpado por essa loucura? Era praticamente uma certeza a de que seus auxiliares haviam sido Marklin George e Tommy Monohan. Mas a Ordem descobriria a verdade quanto a esse ponto. Yuri conseguira entrar em contato com a casa-matriz ao ligar da cabine pública na aldeia, e o mero som da voz de Elvera o levara a lágrimas. Elvera era fiel. Elvera era boa. Yuri soube.que o grande abismo que se formara entre ele e a Talamasca já começava a se fechar. Se Ash estivesse certo quanto ao fato de a conspiração ter sido restrita, o que na realidade parecia ser o caso, de os Anciãos não estarem envolvidos, então Yuri devia ter paciência. Ele precisava ouvir Stuart Gordon com atenção. Porque Yuri tinha de levar de volta para a Talamasca tudo que chegasse ao seu conhecimento nesta noite.

Paciência. Era assim que Aaron ia querer que fosse. Aaron ia querer que a história fosse conhecida e registrada para que outros soubessem dela. E Michael e Rowan, eles não tinham direito a saber os fatos? E ainda havia Ash, o misterioso Ash. Ash revelara a traição de Gordon. Se Ash não tivesse aparecido em Spelling Street, Yuri teria aceitado a simulação de inocência por parte de Gordon e as poucas mentiras boba que Gordon lhe contara enquanto estavam sentados no café.

O que estava passando pela mente de Ash? Ele era irresistível, exatamente como Yuri lhes dissera. Agora eles sabiam. Estavam vendo com seus próprios olhos o rosto extraordinário, os olhos calmos, amorosos. Mas eles não podiam se esquecer de que ele era uma ameaça aMona, a qualquer membro da família Mayfair.

Yuri esforçou-se para parar de pensar nisso. Neste momento, eles precisavam demais de Ash. Ash de algum modo havia se tornado o comandante desta missão. O que aconteceria se Ash se retirasse e os deixasse com Gordon? Eles não poderiam matar Gordon. Não poderiam nem assustá-lo. Pelo menos era o que Yuri imaginava. Era impossível avaliar o quanto Rowan e Michael detestavam Gordon. Eram impenetráveis. Bruxos. Agora ele percebia.

Ash estava sentado no outro lado do círculo, com as mãos monstruosas unidas na beirada da madeira velha, sem acabamento, a observar Gordon, que estava à sua direita. Ele realmente odiava Gordon, e Yuri via isso através de algo no rosto de Ash, talvez a ausência de compaixão. A ausência da ternura que Ash demonstrava por todos, absolutamente todos os outros.

Rowan Mayfair e Michael Curry estavam sentados de cada lado de Yuri, graças a Deus. Ele não poderia ter suportado a proximidade de Gordon. Michael era quem estava irado, cheio de suspeitas. Rowan estava fascinada por Ash. Yuri sabia que seria assim. Mas Michael não estava fascinado por ninguém por enquanto.

Yuri não conseguia tocar na xícara. Ela bem poderia estar cheia da urina do homem.

— Embrenhada nas selvas da Índia — disse Stuart, bebericando seu chá, no qual ele derramara uma boa dose de uísque. — Não sei onde. Não conheço a Índia. Só sei que os nativos diziam que ela sempre estivera por lá, perambulando de povoado em povoado, que ela chegara até eles antes da guerra, que falava inglês e não envelhecia, e que as mulheres do povoado começaram a sentir medo dela.

A garrafa de uísque estava no meio da mesa. Michael Curry queria beber, mas talvez ele também não tivesse condições de tocar no que Gordon lhes oferecia. Rowan Mayfair estava sentada, de braços cruzados. Michael Curry tinha os cotovelos sobre a mesa. Estava mais perto deStuart, num esforço óbvio para compreendê-lo.

— Acho que uma fotografia foi sua desgraça. Alguém havia tirado um retrato de todos os habitantes da aldeia, juntos. Alguma criatura intrépida com um tripé e uma máquina fotográfica com disparador. E ela estava na fotografia. Foi um dos rapazes quem descobriu a foto entre os pertences da sua avó quando esta morreu. Um jovem instruído. De quem euhavia sido professor em Oxford.

— E ele tinha conhecimento da Talamasca?

— Tinha. Eu não falava muito da Ordem com meus alunos, a não ser comaqueles que me davam a impressão de poder querer...

— Como aqueles dois rapazes — disse Yuri.

Ele observou a luz saltar nos olhos de Stuart, como se o abajur ali próximo tivesse saltado, não Stuart.

— É, bem, aqueles rapazes.

— Que rapazes? — perguntou Rowan.

— Marklin George e Tommy Monohan — disse Yuri.

O rosto de Stuart estava rígido. Ele ergueu a caneca de chá com as duas mãos e tomou um grande gole. O uísque tinha um cheiro de remédio, enjoativo.

— Foram eles que o ajudaram nisso tudo? — perguntou Yuri. — O gênio do computador e o estudioso de latim?

— A responsabilidade é minha — disse Stuart, sem olhar para Yuri. Não estava olhando para nenhum deles. — Vocês querem ouvir o que eu tenho a dizer, ou não?

— Eles o ajudaram — disse Yuri.

— Não tenho nada a declarar quanto aos meus cúmplices — disse Gordon, olhando agora para Yuri, com frieza, e voltando então o olhar para o espaço vazio, ou para as sombras ao longo das paredes.

— Foram os dois rapazes — disse Yuri, embora Michael estivesse fazendo um gesto para que ele se contivesse. — E o que dizer de Joan Cross, Elvera Fleming ou Timothy Hollingshed?

Stuart fez um gesto de repulsa e impaciência à menção desses nomes, mal percebendo como esse gesto poderia ser interpretado com relação aos rapazes.

— Joan Cross não tem uma veia romântica no corpo — disse Stuart, de repente. — Timothy Hollingshed sempre foi superestimado simplesmente por sua origem aristocrática. Elvera Fleming é uma velha idiota! Não me faça mais esse tipo de pergunta. Não serei forçado a falar dos meus cúmplices. Não serei forçado a traí-los. Podem ter certeza de que esse segredo morrerá comigo.

— Quer dizer que esse amigo — disse Ash, com a expressão paciente mas surpreendentemente fria — esse rapaz da Índia lhe escreveu, Sr. Gordon.

— Na realidade, ele me telefonou. Disse que tinha um mistério paramim. Disse que poderia mandá-la para a Inglaterra desde que eu assumisse a responsabilidade assim que ela chegasse. Disse que ela realmente não tinha condições de se cuidar sozinha. Parecia louca numa hora, e na outra, não. Ninguém conseguia analisá-la. Ela falava de épocas desconhecidas para as pessoas ao seu redor. E, quando ele tinha feito investigações, com o objetivo de mandá-la de volta para casa, haviadescoberto que ela era uma figura lendária naquela região da Índia. Tenho tudo registrado. Tenho nossas cartas. Elas estão todas aqui. Há cópias também na casa-matriz. Mas os originais estão aqui. Tudo o que prezo está nesta torre.

— Você sabia o que ela era quando a viu?

— Não. Foi extraordinário. Descobri-me encantado por ela. Algum instinto egoísta dominava meus atos. Eu a trouxe para cá. Não queria levá-la para a casa-matriz. Era estranhíssimo. Eu não saberia dizer a ninguém o que eu estava fazendo ou por que motivo agia assim, a não ser pelo fato óbvio de eu estar tão encantado com ela. Eu havia herdado recentemente esta torre, do irmão da minha mãe, um antiquário que havia sido o conselheiro da minha família. Pareceu-me o local perfeito.

— Na primeira semana, eu mal saí daqui. Nunca estivera na companhia de um pessoa como Tessa. Nela havia uma alegria e uma simplicidade que me proporcionavam uma felicidade inexprimível.

— É, tenho certeza disso — comentou Ash, em voz baixa, com um sorriso quase imperceptível. — Por favor, prossiga com sua história.

— Apaixonei-me por ela. — Ele parou de falar, com as sobrancelhas erguidas, como se surpreso com suas próprias palavras. Parecia nervoso com essa revelação. — Eu me apaixonei perdidamente por ela.

— E a manteve aqui? — perguntou Yuri.

— Claro, ela está aqui desde então. Nunca sai. Ela tem medo das pessoas. É só quando eu passo um bom tempo aqui que ela se dispõe a falar. Nessas ocasiões, ela conta suas histórias assombrosas.

"Ela raramente apresenta coerência ou eu deveria dizer que raramente segue uma ordem cronológica. Os relatos curtos quase sempre fazem sentido. Tenho centenas de gravações da sua fala, listas de palavras em inglês antigo e em latim usadas por ela.

"Vejam bem, o que ficou claro para mim quase de imediato foi que ela estava falando de duas vidas distintas, uma muito longa que ela estava vivendo agora e outra, que havia vivido antes."

— Duas vidas? Você está simplesmente falando de reencarnação?

— Depois de muito tempo, ela explicou — prosseguiu Gordon. Ele agora estava envolvido no relato com tanta paixão que parecia estar esquecido do perigo que corria. — Ela disse que toda a sua espécie tinha duas vidas, às vezes mais. Que se nascia sabendo tudo que se precisava saber para sobreviver, mas que aos poucos voltava à sua memória uma vida anterior, e fragmentos de outras. E era a lembrança dessa vida anterior que impedia a criatura de enlouquecer entre os humanos.

— Você já havia percebido a essa altura — disse Rowan — que ela não era humana. Ela teria me enganado.

— Não. Não havia percebido nada. Eu imaginava que ela fosse humana. É claro que tinha características estranhas: a pele translúcida, a altura tremenda e as mãos extraordinárias. Mas eu não pensava, 'Não, essa criatura não é humana'.

"Foi ela quem disse que não era. Declarou isso mais de uma vez Se povo vivia antes dos humanos. Viveram durante milênios em paz em ilhas dos mares do norte. Essas ilhas eram aquecidas por fontes vulcânicas que vinham das profundezas, por gêiseres de vapor e lagos plácidos.

"E isso ela sabia, não por ter ela própria vivido naquela época, mas porque outros que conhecera na sua primeira vida se lembravam de uma vida anterior nesse paraíso. E era assim que seu povo conhecia sua história, pela lembrança inevitável e sempre individual de vidas passadas.

"Vocês não percebem? Era incrível, a idéia de que todos chegariam a este mundo com algumas lembranças nítidas e de valor histórico! Isso queria dizer que a espécie sabia mais sobre si mesma do que os seres humanos jamais poderiam chegar a saber. Eles tinham das eras remotas um conhecimento, por assim dizer, de primeira mão!"

— E, se Tessa fosse fecundada por outro indivíduo da sua própria espécie — disse Rowan — teríamos um filho que poderia se lembrar de uma vida anterior, e talvez mais outra criança, com mais uma vida relembrada.

— Exato! O encadeamento da memória seria restabelecido, e quem sabe até onde poderíamos voltar, já que cada um, ao se lembrar de alguma existência passada, também se lembraria das histórias daqueles que havia conhecido e amado naquela época, pessoas que se lembravam de ter vivido ainda antes!

Ash ouvia tudo isso, sem tecer comentários ou sem qualquer alteração perceptível na emoção. Nada disso parecia surpreendê-lo ou ofendê-lo. Yuri quase sorriu. Era a mesma simplicidade que havia observado em Ash no Claridge's, quando se falaram pela primeira vez.

— Alguma outra pessoa poderia ter rejeitado as alegações de Tessa — disse Gordon. — Mas eu reconheci as palavras em gaélico que ela usava, os fragmentos de inglês antigo, o latim. E, quando ela escreveu o texto rúnico, eu consegui ler! Eu sabia que ela estava dizendo a verdade.

— E isso você manteve em segredo — comentou Rowan, em tom neutro, como se estivesse apenas querendo abafar a irritante emotividade de Gordon para voltar ao que interessava.

— Mantive! Quase contei a Aaron. Quanto mais Tessa falava, mais discorria sobre as regiões montanhosas da Escócia, sobre antigos costumes e rituais celtas, até mesmo sobre santos celtas e sobre a Igreja celta.

"Vocês devem saber que nossa Igreja na Inglaterra era na época celta ou britânica ou não importa como queiram chamá-la, fundada pelos próprios apóstolos, que vieram de Jerusalém até Glastonbury. Não tínhamos nenhum vínculo com Roma. Foram o papa Gregório e seu homem de confiança, Santo Agostinho, que forçaram a entrada da Igreja romana na Grã-Bretanha."

— É, mas o fato é que você não contou a Aaron? — perguntou Ash, erguendo a voz apenas ligeiramente. — Você estava dizendo...?

— Aaron já havia partido para os Estados Unidos. Ia para lá para mais uma vez entrar em contato com as bruxas Mayfair e para se dedicar a outros temas relacionados à investigação da paranormalidade. Não era a hora para questionar Aaron quanto às suas pesquisas antigas. E além do mais, é claro que eu havia agido mal. Eu havia me apossado de uma mulher confiada a mim enquanto membro da Ordem, e eu a guardara para mim, quase como prisioneira. Evidentemente, nunca houve nada que impedisse Tessa de sair, nada a não ser seu próprio medo. Mas eu havia enfurnado essa mulher. E não comunicara nada à Ordem sobre isso.

— Mas como você fez a associação? — perguntou Ash. — Entre Tessa e as bruxas Mayfair?

— Ora, não foi nem um pouco difícil. Uma coisa veio atrás da outra. Como eu disse, a fala de Tessa era cheia de referências a arcaicos costumes da Escócia. Ela falava repetidamente nos círculos de pedras construídos pelo seu povo e mais tarde usados pelos cristãos para rituais absurdos que os padres nunca puderam erradicar.

"Vocês conhecem nossa mitologia, sem dúvida todos vocês, alguns de vocês. Os antigos mitos da Grã-Bretanha são cheios de gigantes míticos. Nossas lendas dizem que os gigantes construíram os círculos, e o mesmo dizia Tessa. Nossos gigantes permaneceram por muito tempo depois da sua era nos lugares remotos e sombrios, nas grutas junto ao mar, nas cavernas das montanhas. Bem, os gigantes de Tessa, perseguidos na terra, quase eliminados, também sobreviveram em locais secretos! E, quando eles ousavam aparecer entre seres humanos, despertavam tanto a adoração quanto o medo. Ela dizia que o mesmo valia para os Pequenos, cujas origens haviam sido esquecidas. Eles eram reverenciados por um lado, e temidos por outro. E, com freqüência, os primeiros cristãos da Escócia costumavam dançar e cantar dentro do círculo de Pedras, conscientes de que os gigantes faziam assim, de que na realidade haviam construído os círculos com esse objetivo. E, com sua música, eles atraíam os gigantes dos seus esconderijos, para que os gigantes viessem dançar junto com eles, ocasião em que esses cristãos abatiam os gigantes para satisfazer os padres, mas não antes de usá-los para satisfazer antigos deuses."

— O que você quer dizer "usá-los"? — perguntou Rowan.

Os olhos de Gordon ficaram ligeiramente vidrados, e sua voz baixou para um tom suave, quase agradável, como se a mera menção desse fatos não pudesse deixar de evocar uma sensação de assombro.

— Bruxaria, é disso que estamos falando. Bruxaria remota, sangrenta, na qual a superstição, sob o jugo do cristianismo, se voltava para o passado pagão em busca da magia, para fazer maleficia, para ganhar poder ou apenas para testemunhar um rito secreto e sinistro que os emocionava como os atos criminosos sempre emocionaram a humanidade. Eu ansiava por corroborar as histórias de Tessa.

"Sem confiar em ninguém, dirigi-me aos próprios subterrâneos da casa-matriz, aos lugares onde estavam armazenados os materiais mais antigos não estudados do folclore britânico. Eram manuscritos considerados "fantasiosos" e "descabidos" pelos estudiosos, como Aaron, que haviam passado anos traduzindo documentos antigos. Esse material não existia no nosso catálogo moderno nem nos nossos bancos de dados. Era preciso tocar com as próprias mãos as páginas que se desfaziam.

"Ai, o que encontrei! In-quartos esfarelados e livros em pergaminho primorosamente ilustrados, obras dos monges irlandeses, dos beneditinos e dos cistercienses, que se queixavam da louca superstição da gente comum, e cheios de histórias desses gigantes e desses Pequenos. De como o povo continuava a acreditar neles, a atraí-los e usá-los de diversas maneiras.

"E bem ali, misturadas a essas condenações vociferantes, havia histórias de santos gigantes! De cavaleiros e reis gigantes!

"Aqui, em Glastonbury, a uma pequena distância do local onde nos encontramos, foi desenterrado no passado um gigante de mais de dois metros de altura, que se declarou ser o rei Artur. Quem era ele a não ser um dos gigantes de Tessa, eu lhes pergunto? Esse tipo de criatura foi encontrado em toda a Grã-Bretanha.

"Ai, milhares de vezes tive a tentação de ligar para Aaron. Como Aaron teria adorado essas histórias, especialmente as que vinham direto das montanhas da Escócia e dos seus vales e lochs assombrados.

"Mas havia uma única pessoa neste mundo em quem eu podia confiar. E ela era Tessa.

"E quando eu trazia para casa minhas histórias cuidadosamente desenterradas, Tessa reconhecia esses rituais, esses modelos, na realidade até os nomes de santos e reis. É claro que Tessa não usava termo sofisticados. Tudo lhe ocorria em fragmentos: como sua gente se havia tornado vítima de sacrifícios e conseguia escapar à tortura e à morte somente atingindo o poder e conquistando influência sobre os cristão, ou se embrenhando cada vez mais nas imensas florestas que ainda cobriam as montanhas naquela época, enfurnando-se nas grutas e nos vales secretos onde se esforçavam para viver em paz."

— E isso você nunca disse a Aaron — comentou Yuri.

Gordon ignorou essas palavras e prosseguiu.

— E então, com a voz cheia de dor, Tessa me confessou ter uma vez passado por sofrimentos horríveis nas mãos de camponeses cristãos, que a prenderam e a forçaram a receber todos os homens de todas as aldeias próximas. A esperança era a de que ela desse à luz outro gigante igual a ela, um gigante que saltaria do seu ventre, falando, sabendo e atingindo a maturidade em questão de horas, uma criatura que os aldeões poderiam então ter matado diante dos olhos da própria mãe!

"Isso havia se transformado numa religião para eles, vocês não percebem? Apanhem o Taltos, façam com que procrie, sacrifiquem o novo ser. E o Natal, essa época de antigos rituais pagãos, tornou-se seu período preferido para esse divertimento sagrado. Desse horrendo cativeiro, Tessa havia afinal escapado, não tendo jamais dado à luz a criatura destinada ao sacrifício e apenas sofrendo uma hemorragia provocada pelo sêmen de cada ser humano."

Ele parou, com o cenho cerrado. Sua expressão se entristeceu, e ele olhou para Ash.

— Foi isso o que prejudicou minha Tessa? Foi isso o que fez sua fonte secar? — Não era tanto uma pergunta quanto uma confirmação do que havia sido revelado anteriormente. Só que Ash, parecendo não sentir necessidade de nenhuma confirmação, não falou.

Gordon estremeceu.

— Ela falou de coisas horríveis! — disse ele. — Comentou que os machos eram atraídos para os círculos e que lhes eram oferecidas as virgens das aldeias. No entanto, se não nascesse um gigante de uma virrgem dessas, a morte sem dúvida resultaria. E quando um número suficiente de virgens houvesse morrido de modo a fazer com que o povo duvidasse do poder do gigante em questão, ele era então sacrificado numa fogueira. Na realidade, ele era sempre queimado, qualquer que fosse o resultado, quer tivesse gerado a vítima para o sacrifício quer não, já que os machos eram extremamente temidos.

— Quer dizer que eles não temiam as mulheres — disse Rowan. — Porque as mulheres não provocavam a morte dos humanos que dormissem com elas.

— Exato — disse Gordon. — No entanto... — Ele ergueu o dedo com um sorrisinho de prazer. — No entanto, eventualmente acontecia, sim! Que o macho ou a fêmea gigante gerasse por assim dizer o filho mágico da sua própria raça. E lá estaria o gigante recém-nascido para que todos o admirassem.

"Nenhuma época era mais propícia para uma união dessas do que o Natal, o dia 25 de dezembro, a festa do antigo deus solar! Dizia-se, então, quando nascia um gigante, que os céus mais uma vez haviam copulado com a terra, e dessa união resultara uma grande magia, como a queocorrera na Criação do Universo. E só depois de grandes banquetes e de se cantarem as canções natalinas, o sacrifício era realizado em nome de Cristo. De quando em quando, um gigante macho ou fêmea gerava uma prole numerosa, o Taltos procriava com o Taltos, e as fogueiras de imolação enchiam os vales, com a fumaça subindo aos céus, propiciando uma primavera precoce, ventos de calor e boas chuvas para aumentar as colheitas."

Gordon parou de falar, voltando-se entusiasmado para Ash.

— Você precisa saber tudo isso. Você mesmo pode nos fornecer elos para o encadeamento das lembranças. Sem dúvida, você também viveu uma vida anterior. Poderia nos contar coisas que nenhum ser humano jamais descobriria de nenhuma outra maneira. Você poderia fazer relatos de grande clareza e vigor por ser forte, não tolo como minha pobre Tessa! Você pode nos presentear com isso.

Ash nada respondeu. Mas sua expressão ficou mais sombria, e Gordon pareceu não perceber.

É um idiota, pensou Yuri. Talvez seja isso o que grandes esquemas de violência sempre exijam, um idiota romântico.

Gordon voltou-se para os outros, até mesmo para Yuri, a quem apelava agora.

— Vocês não compreendem? Sem dúvida, vocês agora compreendem o que essas possibilidades significavam para mim.

— O que eu sei é que você não contou a Aaron. E também não contou aos Anciãos, ou contou? Os Anciãos nunca tiveram conhecimento disso. Seus irmãos e irmãs nunca souberam!

— Já lhe disse. Não podia confiar minhas descobertas a ninguém e, para ser franco, não queria confiar. Elas eram minhas. Além do mais, o que nossos amados Anciãos teriam dito, se é que "dito" chega a ser um termo apropriado para suas intermináveis comunicações mudas? Euteria recebido um fax com instruções para levar Tessa imediatamente para a casa-matriz e... Não, essa descoberta era minha de direito. Euhavia encontrado Tessa.

— Não, você está mentindo para si mesmo e para todo mundo — disse Yuri. — Tudo o que você é provém da Talamasca.

— Essa é uma idéia desprezível! Será que nunca dei nada à Talamasca? Além do mais, nunca foi minha intenção ferir nossos próprios membros! Os médicos envolvidos, sim, concordei com sua eliminação; embora eu insista que jamais teria feito uma sugestão dessas.

— Vocês mataram mesmo o Dr. Samuel Larkin? — perguntou Rowan, com sua voz grave, desprovida de expressão, sondando, mas sem querer alarmá-lo.

— Larkin, Larkin... Ora, não sei. Fico confuso. Veja bem, meus auxiliares tinham idéias bem diferentes das minhas quanto ao que era necessário para manter todo o assunto em segredo. Pode-se dizer que concordei com os aspectos mais audaciosos do plano. Na realidade, não consigo imaginar o simples ato de matar outro ser humano.

Ele lançou um olhar furioso para Ash, cheio de condenação.

— E seus auxiliares, os nomes deles? — perguntou Michael. Seu tom não era diferente do de Rowan, neutro, totalmente pragmático. — Os homens em Nova Orleans, Norgan e Stolov, você compartilhou esses segredos com eles?

— Não, claro que não — declarou Gordon. — Eles não eram realmente membros da Ordem, como aqui nosso Yuri era membro. Eram apenas investigadores para nós, mensageiros, esse tipo de coisa. Mas àquela altura... talvez já estivesse tudo fora de controle. Não sei dizer. Só sei que meus amigos, meus confidentes, acreditavam poder controlar esses homens com segredos e dinheiro. É essa a natureza essencial da corrupção: segredos e dinheiro. Mas vamos deixar tudo isso de lado. O que nos interessa aqui é a descoberta em si. É isso que é puro e nos redime de tudo.

— Não redime de nada! — protestou Yuri. — Para vantagens pessoais, você se apropriou do conhecimento! Como um traidor qualquer, saqueando os arquivos para obter ganhos pessoais.

— Nada poderia estar mais distante da verdade — contestou Gordon.

— Yuri, deixe que ele prossiga — disse Michael, com tranqüilidade.

Gordon acalmou-se com uma determinação notável, voltando a apelar a Yuri de uma forma que o enfureceu.

— Como você pode pensar que meus objetivos fossem de uma natureza outra a não ser espiritual? — perguntou Gordon. — Eu, que cresci a beira do penhasco de Glastonbury, que devotei toda a minha vida ao conhecimento esotérico, apenas pela luz que ele lança sobre nossas almas?

— Talvez tenha sido por vantagens espirituais — disse Yuri. — Mas foi por alguma vantagem, e em benefício próprio. Esse é o seu crime.

— Você está me deixando impaciente — disse Gordon. — Talvez devesse ser expulso desta sala. Talvez eu não devesse dizer mais nada...

— Conte sua história — ordenou Ash, com calma. — Estou perdendo a paciência.

Gordon parou, com os olhos fixos na mesa, uma sobrancelha erguida, como se quisesse dizer que não precisava aceitar esse ultimato. Olhou, então, com frieza para Ash.

— Como você fez a associação entre tudo isso e as bruxas Mayfair — perguntou Rowan.

— Percebi o vínculo de imediato. Estava relacionado ao círculo de pedras. Eu sempre tive conhecimento da história original de Suzanne a primeira Mayfair, a bruxa das montanhas escocesas que invocou um demônio no círculo de pedras. E eu havia lido a descrição que Petyr van Abel fez daquele fantasma, de como a aparição o perseguira, o provocara e demonstrara uma vontade muitíssimo mais forte do que a de qualquer assombração humana.

— O relato de Petyr van Abel foi o primeiro documento sobre as bruxas Mayfair traduzido por Aaron. E era a mim, naturalmente, que ele recorria com muitas perguntas sobre o latim antigo. Naquela época Aaron sempre recorria a mim quando precisava de ajuda.

— Que desgraça para ele — comentou Yuri.

— É claro que me ocorreu essa possibilidade. E se esse Lasher fosse a alma de outra espécie de ser, procurando reencarnar? Como isso se encaixava bem com o mistério! E Aaron acabava de escrever lá dos Estados Unidos que a família Mayfair enfrentava sua hora mais sinistra quando o fantasma que queria se tornar carne ameaçava fazer sua passagem.

"Seria essa a alma de um gigante procurando sua segunda vida? Afinal, minhas descobertas se tornaram por demais importantes. Eu precisava compartilhá-las. Eu precisava envolver aqueles em quem confiava."

— Mas não Stolov e Norgan.

—Não! Meus amigos... meus amigos eram de uma natureza completamente diferente. Mas vocês estão me confundindo. Stolov e Norgan não estavam envolvidos naquela época. Não. Deixem-me continuar.

— Mas eles pertenciam à Talamasca, esses amigos — comentou Rowan.

— Não lhes direi nada a respeito deles a não ser que eles eram... eles eram jovens em quem eu confiava.

— Você trouxe esses amigos aqui, até esta torre?

— Na verdade, não — respondeu Stuart. — Não sou tão tolo assim. Revelei Tessa a eles, mas num local por mim escolhido para essa finalidade, nas ruínas da abadia de Glastonbury, no próprio lugar em queo gigante de dois metros e dez de altura havia sido desenterrado, só para ser mais tarde enterrado novamente.

"Foi uma decisão sentimental, essa de levá-la até lá para se postardiante do túmulo de alguém da sua própria espécie. E ali eu permiti que ela fosse cultuada por aqueles com quem eu contava para me ajudar no meu trabalho. Eles não faziam a menor idéia de que sua residência permanente ficava a menos de dois quilômetros dali. Era minha intenção que eles nunca soubessem.

"Mas eram dedicados e cheios de iniciativa. Eles sugeriram os primeiros exames científicos. Ajudaram-me a obter com uma seringa a primeira amostra de sangue de Tessa, que foi enviada a diversos laboratórios para análise sem identificação. Foi quando tivemos a primeira prova concreta de que Tessa não era humana! Enzimas, cromossomos, tudo isso estava além do meu alcance. Mas eles compreendiam."

— Eram médicos? — perguntou Rowan.

— Não. Eram só rapazes muito brilhantes. — Uma sombra passou pelo seu rosto, e ele olhou para Yuri com ódio.

É, seus discípulos, pensou Yuri. Mas não disse nada. Se fizesse outra interrupção, seria para matar Gordon.

— Tudo era tão diferente àquela altura! Não havia nenhum plano de matar ninguém. Mas a verdade é que muitas outras coisas acabariam acontecendo.

— Prossiga — disse Michael.

— Meu próximo passo era óbvio! Voltar para os subterrâneos, para todo o folclore abandonado, e pesquisar somente aqueles santos de altura excessiva. E com que eu me deparei, foi com uma pilha de estudos hagiográficos, manuscritos que escaparam da destruição durante a horrenda repressão aos mosteiros comandada por Henrique VIII, jogados ali nos nossos arquivos com milhares de outros textos semelhantes.

"E... em meio a esses tesouros havia uma caixa identificada por algum secretário ou arquivista morto há muito tempo: 'Vidas dos Santos Escoceses'. E o subtítulo rabiscado às pressas: 'Gigantes'!

"Por acaso, logo encontrei uma cópia mais recente de uma obra antiga, de autoria de um monge de Lindisfarne, que escreveu no século VIII, contando a história de Santo Ashlar, um santo de tanto poder e magia que havia aparecido entre os habitantes das montanhas escocesas em duas épocas diferentes e separadas, tendo sido devolvido à terra por Deus, como o profeta Isaías, e que estava destinado, segundo as lendas, avoltar inúmeras vezes."

Yuri olhou para Ash, mas Ash não disse nada. Yuri não conseguia nem mesmo se lembrar se Gordon chegara a compreender o nome de Ash. Mas Gordon já estava com os olhos fixos em Ash, e fez uma Pergunta rápida.

— Não teria sido esse personagem que inspirou o seu nome? Seria possível que você mesmo tivesse conhecimento desse santo, através das suas recordações ou das que ouviu de outros, supondo-se que você tenha conhecido outros semelhantes seus? — Os olhos de Gordon faiscavam.

Ash não respondeu. Dessa vez, o silêncio era de pedra. Alguma coisa voltava a mudar no rosto de Ash. Seria puro ódio o que sentia por Gordon?

Gordon imediatamente retomou seu relato, com os ombro encurvados e mexendo os dedos com ansiedade.

— Fui dominado pelo entusiasmo quando li que Santo Ashlar havia sido um ser gigantesco, talvez com uns dois metros e dez de altura, que Santo Ashlar viera de uma raça pagã que ele próprio havia ajudado a exterminar...

— Prossiga — disse Ash, baixinho. — Como fez a ligação dessa história com as bruxas Mayfair? Como aconteceu de homens morrerem em conseqüência disso?

— Está bem — disse Gordon, paciente. — Mas talvez você conceda a este homem que vai morrer um único pedido.

— Talvez não — respondeu Ash. — Mas qual é o pedido?

— Você vai me dizer se essas histórias são de fato do seu conhecimento ou não, se você próprio tem lembranças desses tempos remotos?

Ash fez um gesto para que Gordon continuasse.

— Ah, meu amigo, você é cruel — disse Gordon.

Ash estava ficando profundamente irritado. Isso estava evidente. Sua cabeleira densa e negra e sua boca macia, quase inocente, deixavam sua expressão ainda mais ameaçadora. Ele era como um anjo concentrando sua raiva. Não reagiu às palavras de Gordon.

— Você contou essas histórias para Tessa? — perguntou Rowan.

— Contei — disse Gordon, afinal desgrudando seu olhar de Ash para se voltar para ela. Um pequeno sorriso de falsidade passou por sua boca enquanto ele prosseguia, como se quisesse dizer, Agora, vamos responder à pergunta da bela senhora na primeira fila.

— Revelei de fato a história a Tessa. Durante a ceia, como sempre, eu lhe falei das minhas leituras. E a história precisamente desse santo, ela conhecia! Ashlar, um indivíduo da sua própria espécie, um grande líder, rei entre eles, que se havia convertido ao cristianismo, traindo sua própria gente. Eu me sentia vitorioso. Agora eu tinha esse nome para pesquisar pela história afora.

"E na manhã seguinte eu estava de volta aos arquivos, trabalhando com afinco. E então, então... aconteceu minha descoberta mais importante, aquela pela qual outros estudiosos da Talamasca dariam o céu e a terra, se chegassem a ter conhecimento dela."

Ele fez uma pausa, relanceando o olhar de um rosto para o outro, chegando afinal até mesmo a Yuri, com um sorriso cheio de orgulho.

— Tratava-se de um livro, um códice de velino, como eu nunca havia visto na minha longa carreira intelectual! E nunca sonhara ver "Santo Ashlar", a inscrição que se encontrava na tampa da caixa de madeira que continha. "Santo Ashlar". Esse era o nome do santo que saltou das sombras e da poeira enquanto eu percorria as prateleiras com minha lanterna.

Mais uma pausa.

— E abaixo daquele nome — disse Gordon, mais uma vez olhando de um para o outro para dar ainda mais ênfase. — Abaixo, em escrita rúnica, estavam as palavras, "História dos Taltos na Grã-Bretanha!" e em latim, "Gigantes sobre a terra!" Como Tessa viria a confirmar para mim naquela mesma noite, com um simples movimento de cabeça, eu havia descoberto a própria palavra crucial.

"Taltos! 'É isso o que somos', disse ela.

"Deixei imediatamente a torre. Voltei de carro para a casa-matriz. Desci até os subterrâneos. Outros registros eu sempre havia examinado dentro da casa, nas bibliotecas ou no lugar de minha preferência. Quando foi que esse tipo de interesse intelectual chegou a atrair a atenção de alguém? Mas esse livro eu precisava possuir."

Ele se ergueu, apoiando as articulações dos dedos sobre a mesa. Olhou para Ash como se Ash fosse tentar impedi-lo. A expressão de Ash era sombria, e alguma mudança imperceptível a deixara perfeitamente fria.

Gordon recuou, virou as costas e foi direto até um grande armário de madeira entalhada encostado na parede, para dele tirar uma grande caixa retangular.

Ash o observava com calma, sem prever uma tentativa de fuga, ou confiante na sua capacidade de apanhar Gordon se este começasse a correr para a escada.

E agora Ash olhava fixo para a caixa que Gordon punha diante deles. Parecia que alguma coisa estava se avolumando em Ash, algo que poderia explodir.

Meu Deus, o documento é autêntico, pensou Yuri.

— Vejam — disse Gordon, com os dedos pousados na madeira lustrada como se em algum objeto sacro. — Santo Ashlar — disse ele. E mais uma vez traduziu o restante.

— E o que vocês acham que está nesta caixa, vocês todos? Qual é o seu palpite?

— Por favor, Gordon, prossiga — disse Michael, lançando um olhar significativo na direção de Ash.

— Prosseguirei! — declarou Gordon, num sussurro, e depois, ao abrir a caixa, retirou um livro enorme com capas de couro rígido e o depôs diante se si, enquanto afastava a caixa para um lado.

Logo abriu a capa e revelou a página de rosto no velino, primorosamente ilustrada em carmim, ouro e azul-rei. Miniaturas minúsculas estavam salpicadas no texto em latim. Ele virou a página com cuidado. Yuri viu mais textos com linda caligrafia e mais ilustrações delicadíssimas, cuja beleza só poderia ser examinada por alguém que dispusesse de uma lente.

— Olhem, pois vocês nunca viram na sua vida um documento desses. Ele foi escrito pelo próprio santo.

"Esta é a história dos Taltos desde suas origens remotas. A história de uma raça exterminada. E sua própria confissão de que ele próprio, o sacerdote, o milagreiro, o santo, se preferirem, não é humano, mas pertence à raça perdida dos gigantes. Ele apela ao próprio São Columba, o grande missionário dos pictos, abade e fundador do mosteiro celta em lona, para que este aceite que os Taltos não são monstros, mas seres com alma imortal, criaturas feitas por Deus, que podem compartilhar da graça de Cristo. É magnífico demais.

De repente, Ash ficou em pé e tirou o livro de Gordon, arrancando-o das próprias mãos do condenado.

Gordon estava paralisado junto à sua cadeira, com Ash ao seu lado, muito mais alto do que ele.

Os outros puseram-se de pé em silêncio. Quando um homem fica furioso a esse ponto, deve-se respeitar essa fúria ou pelo menos reconhecê-la, pensou Yuri. Permaneceram em pé, olhando mudos para ele, enquanto ele olhava feroz para Gordon, como se fosse matá-lo agora.

Era terrível contemplar o rosto brando de Ash desfigurado pelo ódio. É essa a aparência dos anjos, pensou Yuri, quando eles chegam com suas espadas flamejantes.

Gordon aos poucos estava passando da indignação para o pavor declarado.

Quando Ash afinal começou a falar, foi num sussurro discreto, a voz da sua delicadeza anterior, no entanto alta o suficiente para que todos o ouvissem.

— Como você ousou se apossar desta obra? — A voz elevou-se com a raiva. — Você é ladrão além de assassino! Como ousou!

— E você gostaria de tirá-lo de mim? — perguntou Gordon, com os olhos em brasa. Ele lançava seu ódio contra o de Ash. — Você ia quere tirá-lo de mim, como vai tirar minha própria vida? Quem é você parafazer isso? Você sabe o que eu sei sobre o seu povo?

— Eu o escrevi! — afirmou Ashlar, com o rosto agora vermelho de raiva. — Ele é meu, este livro! — sussurrou, como se não ousasse falar alto. — Escrevi cada palavra! Pintei cada ilustração. Foi para Columba que o fiz, sim! E é meu! — Ele recuou, agarrando o livro junto ao peito. Tremeu e piscou os olhos por um instante, para então voltar a falar com voz delicada. — E toda a sua conversa, da sua pesquisa, das vidas relembradas, de... encadeamentos de lembranças!

O silêncio vibrava com sua raiva.

— Você é um impostor — disse Gordon, abanando a cabeça.

Ninguém abriu a boca.

Gordon permaneceu firme, com o rosto quase cômico na sua insolência.

— Taltos, sim. Santo Ashlar, nunca! Sua idade estaria fora de qualquer cogitação!

Ninguém falou. Ninguém se mexeu. Os olhos de Rowan esquadrinhavam a expressão de Ash. Michael tudo observava, aparentemente, como Yuri.

Ash deu um longo suspiro. Baixou a cabeça levemente, ainda segurando com firmeza o livro. Seus dedos relaxaram-se infimamente ao redor das bordas.

— E qual você calcula que seja a idade daquela criatura patética que está sentada junto ao tear aqui embaixo? — perguntou ele, com tristeza.

— Mas era da vida relembrada que ela falava, e de outras vidas relembradas relacionadas a ela na sua...

— Ora, pare com isso, seu velho idiota! — implorou Ash, baixinho. Sua respiração estava entrecortada, e então o fogo começou a se dissipar do seu rosto.

— E isso você ocultou de Aaron Lightner — disse ele. — Isso você ocultou dos maiores estudiosos da sua Ordem, para que você e seus jovens amigos pudessem tecer uma trama imunda para roubar o Taltos! Vocês não são melhores do que os camponeses da Escócia, aqueles selvagens ignorantes e brutais que atraíam o Taltos para o círculo para matá-lo. Era a Caça Sagrada novamente.

— Não, nunca para matar! — gritou Gordon. — Nunca para matar. Só para ver a cópula! Para reunir Tessa e Lasher no penhasco de Glastonbury! — Ele começou a chorar, engasgando, ofegante, com a voz estrangulada enquanto prosseguia. — Ver a raça surgir novamente no monte sagrado onde o próprio Cristo esteve para propagar a religião que mudou o mundo! Não era para matar, nunca para matar, mas para trazer volta à vida! Foram esses bruxos que mataram. Esses aqui, que destruíram o Taltos como se ele não fosse nada além de um aborto da natureza! Que o destruíram, frios e impiedosos, sem se importar com o que ele era ou com o que poderia vir a ser! Foram eles, não eu!

Ash abanou a cabeça e segurou o livro ainda com mais força.

— Não, foi você — disse Ash. — Se ao menos você tivesse contado essa história a Aaron Lightner, se ao menos você lhe houvesse transmitidoesse conhecimento valiosíssimo!

— Aaron jamais teria cooperado! — gritou Gordon. — Eu nunca teria podido criar um plano desses. Estávamos velhos demais, nós dois. Mas aqueles que tinham a juventude, a coragem, a visão, esses procuraram reunir os Taltos com segurança!

Ash suspirou mais uma vez. Ele esperava, controlando sua respiração. Depois, voltou a olhar para Gordon.

— Como soube do Taltos Mayfair? — perguntou. — Qual foi a ligação definitiva? Quero saber. E responda agora ou eu lhe arranco a cabeça dos ombros e a levo até o colo da sua amada Tessa. O rosto consternado de Tessa será a última coisa que verá antes que seu cérebro falhe e morra.

— Aaron — respondeu Gordon. — Foi o próprio Aaron. — Ele tremia, talvez a um passo de um desmaio. Recuou, correndo os olhos da direita para a esquerda. Fixou-os no armário de onde havia retirado o livro.

— Os relatórios que ele mandava dos Estados Unidos — disse Gordon, aproximando-se cada vez mais do armário. — O Conselho foi convocado. A informação era de importância crítica. Um filho monstruoso havia nascido da bruxa Mayfair, Rowan. Isso acontecera na véspera de Natal. Um filho que, em questão de horas talvez, já havia atingido o tamanho de um homem. A descrição desse ser foi transmitida para membros da Ordem em todos os cantos do mundo. Era um Taltos, eu sabia! E só eu sabia.

— Seu calhorda — sussurrou Michael. — Calhorda e mesquinho.

— Você me chama disso? Você, que destruiu Lasher? Que matou o mistério como se ele fosse um criminoso reles a ser despachado por você para o inferno numa arruaça de bar?

— Você e os outros — disse Rowan, rapidamente. — Vocês fizeram isso sozinhos?

— Já lhe disse que sim. — Ele deu mais um passo na direção do armário. — Olhe, não vou revelar quem eram os outros, já lhe disse.

— Quer dizer que os Anciãos não tiveram participação nisso — prosseguiu Rowan.

— As excomunhões foram forjadas — respondeu Gordon. — Criamos um sistema de interceptação. Eu não fiz isso. Nem compreendo direito. Mas ele foi criado, e nós deixávamos passar somente aquelas cartas originadas pelos Anciãos ou destinadas a eles que não estivessem relacionadas a este caso. Substituíamos as comunicações originais pelas nossas próprias nas correspondências entre Aaron ou Yuri e os Anciãos. Não foi difícil. Os Anciãos, com sua queda para o segredo e a simplicidade, haviam se colocado numa posição extremamente vulnerável a esse tipo de intervenção.

— Obrigada por nos revelar isso — disse Rowan, solene. — Talvez Aaron tivesse suas suspeitas.

Yuri mal conseguia tolerar a gentileza com a qual ela se dirigia ao vilão, confortando-o quando ele deveria ter sido estrangulado ali mesmo. E então Rowan prosseguiu.

— O que mais podemos extrair dele? — disse, olhando para Ash. — Acho que terminamos.

Gordon compreendeu o que estava acontecendo. Ela estava dando a Ash a permissão para matá-lo. Yuri ficou olhando enquanto Ash, lentamente, punha o livro precioso sobre a mesa e se voltava para encarar Gordon, com as mãos livres agora para executar a sentença que ele próprio havia imposto.

— Vocês não sabem de nada — declarou Gordon, de repente. — As palavras de Tessa, sua história, as fitas que gravei. Só eu sei onde se encontram.

Ash apenas olhava para ele fixamente. Franzia os olhos, e suas sobrancelhas estavam unidas numa carranca feroz.

Gordon voltou-se, olhando para a direita e para a esquerda.

— Pronto! — gritou. — Tenho mais uma coisa importante que me disponho a lhes mostrar.

Voltou a correr até o armário e, quando deu meia-volta, estava com uma arma nas duas mãos, apontando-a para Ash, depois para Yuri e afinal para Rowan e Michael.

— Com isso aqui, vocês podem morrer — disse Gordon. — Bruxos, Taltos, vocês todos! Uma bala dessas que lhes atravesse o coração, e vocês estarão mortos como qualquer ser mortal.

— Não dá para você atirar em todos nós — disse Yuri, movendo-se ao longo da beirada da mesa.

— Não ouse fazer isso, ou eu mato você! — berrou Gordon.

Foi Ash quem fez o movimento rápido para cobrir a distância que o separava de Gordon. Mas Gordon já se voltava para encará-lo de novo, com a arma engatilhada. Ash não parou, mas a arma também não atirou.

Com uma careta, Gordon levou a arma até junto do peito, encurvando derepente os ombros, abrindo e fechando a outra mão.

— Deus do céu! — disse ele, num arquejo. A arma caiu ao chão, ruidosa sobre o assoalho nu.

— Você — disse ele, furioso para Rowan. — Sua bruxa, sua bruxa Mayfair! — gritou. — Eu sabia que seria você. Eu disse a eles. Eu sabia... — Quase dobrado ao meio, ele fechou os olhos e caiu encostado no armário. Parecia que ia cair para a frente, mas apenas escorregou até o chão. Com a mão direita, ele procurava em vão apoio nas tábuas do assoalho, como se quisesse se levantar. Depois, seu corpo ficou totalmente flácido, e suas pálpebras foram se fechando até deixarem os olhos semicerrados, conferindo-lhes a aparência opaca da morte.

Ficou ali deitado, apenas com o ar mais fortuito e espalhafatoso de algo que acabou.

Rowan estava parada como antes, sem um único sinal exterior de que poderia ter provocado aquilo. No entanto, havia sido ela, Yuri sabia; e ele podia ver que Michael também sabia. Percebia isso no jeito com o qual Michael olhava para ela: sem condenação, mas com um assombro tranqüilo. E então um suspiro veio de Michael. Ele tirou o lenço do bolso e secou o rosto com ele.

Deu as costas ao morto, abanando a cabeça e se afastou, para as sombras, perto da janela.

Rowan ficou ali simplesmente parada, agora de braços cruzados, com os olhos fixos nos de Gordon.

Talvez, pensou Yuri, ela veja a coisas que nós não vemos. Ela perceba coisas que nós não percebemos.

Na verdade, porém, não fazia diferença. O filho da mãe estava morto. E, pela primeira vez, Yuri pôde respirar. Ele pôde externar um longo suspiro de alívio, totalmente diferente do sussurro entristecido que acabara de ouvir de Michael.

Ele morreu, Aaron. Morreu. E os Anciãos nunca fizeram parte disso. E eles vão descobrir, decerto irão descobrir quais foram seus ajudantes, se é que foram esses noviços jovens e arrogantes.

Para Yuri, era inevitável a conclusão de que esses rapazes, Marklin George e Tommy Monohan, eram culpados. Na realidade, todo o plano parecia ser obra de jovens, precipitados e cruéis, cheios de desperdício. E talvez ele realmente tivesse estado fora do alcance da imaginação do velho.

Ninguém se mexeu. Ninguém falou. Estavam todos parados ali, prestando, talvez, algum tipo de homenagem secreta ao morto. Yuri queria sentir alívio, mas não sentia nenhum.

Ash foi então até Rowan, com muita determinação e formalidade. Tocou seus braços de leve com os dedos longos e se inclinou para beijá-la nas duas faces. Ela ergueu os olhos para encará-lo, como se tivesse estado sonhando. Sua expressão era a mais infeliz que Yuri jamais vira.

Ash recuou e se voltou para Yuri. Ficou aguardando, sem falar. Todos estavam à espera. O que havia a ser dito? O que deveria acontecer agora?

Yuri procurou planejar, mas era totalmente impossível.

— Você vai agora voltar para casa, para a Ordem? — perguntou.

— Vou — disse Yuri, confirmando rapidamente com a cabeça. — Vou voltar para casa, para a Ordem! — sussurrou. — Já os alertei sobre tudo isso. Liguei para lá da aldeia.

— Eu vi — disse Ash.

— Falei com Elvera e com Joan Cross. Não tenho dúvidas de que foram George e Monohan que o ajudaram, mas eles descobrirão.

— E Tessa — disse Ash, com um leve suspiro. — Vocês podem dar abrigo a Tessa?

— Você permitiria? — perguntou Yuri. — É claro que nós a aceitaríamos. Nós lhe daríamos abrigo e atenção para sempre. Mas você deixaria que isso acontecesse?

— Que outro lugar é seguro para ela? — perguntou Ash, agora francamente triste e exausto. — Ela não tem muito tempo de vida. Sua pele está tão fina quanto as páginas de velino do meu livro. É provável que morra muito em breve. Mas quando, não faço a menor idéia. Não sei quanto tempo qualquer um de nós ainda tem de vida. Era tão freqüente que morrêssemos pela violência. Nos primeiros tempos, acreditávamos que essa era a única forma de morte. A morte natural, nós não sabíamos o que ela...

Ele interrompeu o que estava dizendo, com o cenho carregado, as sobrancelhas escuras formando uma bela curva abaixo da testa e ao longo da aresta que emoldurava seus olhos imensos.

—Mas vocês fiquem com ela — prosseguiu ele. — E sejam bons para ela.

— Ash — disse Rowan, baixinho. — Você está lhes entregando uma prova incontestável da existência dos Taltos! Por que faria uma coisa dessas?

— Isso é o melhor que poderia acontecer — disse Michael. Sua veemência apanhou Yuri de surpresa. — Faça isso, em consideração a Aaron. Leve-a até os Anciãos. Você se esforçou ao máximo para desvendar toda essa conspiração. Dê a eles essa informação preciosa!

— E se estivermos errados... — disse Rowan. — Se não tiver sido um mero punhado de homens... — Ela hesitou, olhando para o corpo pequeno e desamparado de Gordon. — Nesse caso, o que eles terão nas mãos?

— Nada — disse Ash, baixinho. — Uma criatura que logo morrerá e voltará a ser uma lenda, não importa quantos exames científicos sejam feitos com a sua delicada paciência, não importa quantas fotografias ou quantas gravações sejam feitas. Leve-a para lá, Yuri, eu lhe peço. Leve-a ao conhecimento do Conselho. Leve-a ao conhecimento de todos. Desrua o segredo usado com tanta crueldade por Gordon e seus amigos.

— E Samuel? — perguntou Yuri. — Samuel salvou minha vida. O que Samuel vai fazer quando descobrir que eles estão de posse dela?

Ash refletiu, com as sobrancelhas erguendo-se graciosas, a expressão amenizada pela reflexão, muito parecida com sua aparência quando Yuri o viu pela primeira vez, a fisionomia de um homem grande e afetuoso, talvez mais humano do que os humanos, ele nunca saberia.

De repente, ocorreu-lhe uma idéia tão agradável, de que aquele que vive para sempre vai se tornando cada vez mais compassivo. Mas não era verdade. Esse ser havia tirado a vida, e teria matado Gordon se Rowan não tivesse de algum modo forçado o coração de Gordon a uma parada fatal. Esse ser poderia mover céus e terra para chegar a Mona. Mona, a bruxa que poderia gerar outro Taltos.

Como, em nome de Deus, ele iria proteger Mona?

De repente, tudo estava muito confuso, muito avassalador. É claro que ele levaria Tessa consigo. Ligaria agora para eles e lhes imploraria que viessem. Eles viriam, e ele se sentiria novamente em casa. Mais uma vez ele conversaria com os Anciãos, e eles seriam seus guardiães e seus amigos. Eles o ajudariam a saber o que fazer. Eles tirariam dos seus ombros o peso das decisões.

— E eu protejo Mona — disse Rowan, com tranqüilidade.

Ele se assustou. A bruxa poderosa estivera lendo seus pensamentos. Até que ponto ela conseguia ler seus corações e suas almas? Até que ponto o Taltos conseguiria seduzi-la e enganá-la?

— Não sou inimigo de Mona Mayfair — disse Ash, parecendo entrar com facilidade no assunto. — Quanto a esse ponto, você esteve errado desde o início. Eu não poria em risco a vida de uma criança. Eu não forçaria nenhuma mulher a me aceitar. Você já tem o suficiente com que se preocupar. Deixe Mona Mayfair com esses dois bruxos que a amam e que cuidarão dela. Deixe a família a cargo deles. É isso o que os Anciãos vão lhe dizer, sem dúvida, quando você entrar em contato com eles. Que a família cure a família. Que a Ordem se purifique.

Yuri queria responder. Mas não sabia o que dizer. Quero tanto que isso seja verdade?

De repente, Ash veio na sua direção e cobriu o rosto de Yuri com beijos delicados. Yuri ergueu os olhos, dominado pelo amor, e, grudando a mão à nuca do outro, levou seus lábios à boca de Ash.

Foi um beijo firme e casto.

Em algum ponto no fundo da sua mente estavam as palavras descuidadas de Samuel, de que ele havia se apaixonado por Ash. Não estava ligando. Esse era o ponto principal da confiança. A confiança da tanto alívio, uma sensação tão agradável de se estar vinculado. E é assim que se fica indefeso e se pode ser destruído.

— Vou levar o corpo agora — disse Ash. — Vou deixá-lo em algum lugar onde não seja provável que as pessoas o encontrem.

— Não — disse Yuri, olhando direto par os olhos grandes e calmos de Ash. — Já falei com a casa-matriz, como disse. Quando vocês estiverem a alguns quilômetros daqui, liguem para lá. Pronto, vou pegar onúmero para vocês. Digam que eles venham para cá. Nós nos encarregaremos do corpo de Stuart Gordon, como de tudo o mais.

Ele se afastou de Ash e parou aos pés do corpo encolhido. Como Gordon parecia insignificante na morte, Gordon, o intelectual admirado por todos, o amigo de Aaron, o mentor dos rapazes. Yuri abaixou-se e, sem mexer em mais nada no corpo, enfiou a mão no bolso interno do paletó de Gordon e encontrou ali o inevitável maço de cartõezinhos brancos.

— Aqui está, esse é o telefone da casa-matriz — disse ele a Ash enquanto se endireitava e punha um único cartão na mão de Ash. Ele voltou a olhar para o corpo. — Não há nada que associe ninguém a esse homem morto. — E percebendo de repente a maravilhosa verdade, ele quase riu.

— Como é fantástico! Ele simplesmente morreu, sem haver no seu corpo nenhuma marca de violência. É, liguem para esse telefone, e eles virão. Virão para levar a nós todos para casa.

Ele se voltou e olhou para Rowan e Michael.

— Logo entro em contato com vocês.

O rosto de Rowan estava triste, impenetrável. Michael estava obviamente ansioso.

— E se não nos contatar — disse Michael — saberemos que nos enganamos.

Yuri sorriu e abanou a cabeça.

— Agora eu compreendo. Entendo como poderia acontecer. Percebo os pontos fracos, o encanto. — Ele olhou para a sala da torre ao seu redor. Parte dele detestava tanto o lugar; outra parte o considerava um santuário dedicado a um romantismo fatal; ainda outra parte não podia suportar a idéia de esperar pelo resgate. Mas na realidade, ele estava cansado demais para pensar em qualquer outra coisa, ou para agir de qualquer outro modo.

— Vou falar com Tessa — disse Rowan. — Vou lhe explicar que Stuart está muito mal e que você vai ficar com ela até chegar alguma ajuda.

— Ah, isso seria muita generosidade sua — disse Yuri. E então, pela primeira vez, ele sentiu como estava exausto. Sentou-se na cadeira junto àmesa.

Seus olhos caíram sobre o livro ou códice, como Stuart o chamara com tanta propriedade ou com tanto pedantismo, ele não tinha certeza quanto a isso.

Viu os longos dedos de Ash que se fechavam de cada lado do liv para apanhá-lo. E então Ash o segurou de encontro ao peito.

— Como posso encontrá-lo? — perguntou Yuri.

— Não pode — respondeu Ash. — Mas nos próximos dias, prometo que entro em contato com você.

— Por favor não se esqueça da promessa — disse Yuri, exausto.

— Preciso lhe dar um aviso — disse Ash, em voz baixa, ponderada segurando o livro como se ele fosse algum tipo de escudo sagrado. —Nos meses e anos que virão, você poderá ver meu rosto num lugar ou noutro na rotina normal da sua vida, quando por acaso apanhar um jornal ou uma revista. Jamais tente se aproximar de mim. Jamais tente telefonar para mim. Sou protegido por meios que você sequer pode imaginar. Você não conseguirá me encontrar. Diga o mesmo à sua Ordem. Eu nunca admitirei para nenhum deles as coisas que lhe disse. E, pelo amor de Deus, diga-lhes que não vão ao vale. Os Pequenos estão em extinção mas, até que acabem, podem ser extremamente perigosos. Avise a todos: mantenham-se afastados do vale.

— Você está dizendo, então, que eu posso lhes contar o que vi.

— Pode e terá de contar. Precisará ser totalmente franco com eles. Do contrário, não poderá voltar para casa.

Yuri ergueu o olhar até Rowan e depois Michael. Os dois se aproximaram, ficando um de cada lado. Ele sentiu a mão de Rowan tocar seu rosto quando ela lhe deu um beijo. Sentiu a mão de Michael no seu braço.

Não disse nada. Não tinha condições. Não tinha mais palavras. Talvez nem tivesse mais lágrimas.

No entanto, o júbilo que sentia era tão distante das suas expectativas. Era tão maravilhoso que ele ansiava por lhes contar, para que eles soubessem. A Ordem viria buscá-lo. A traição desastrosa estava encerrada. Eles viriam, seus irmãos e irmãs; e ele poderia desnudar os horrores e mistérios que havia visto.

Não olhou quando o deixaram. Ouviu-os descer a escadaria circular. Ouviu o ruído distante da porta da frente. Ouviu também vozes abafadas logo abaixo dele.

Levantou-se lentamente e desceu a escada até o segundo andar.

Ao lado do tear, nas sombras, Tessa estava parada como uma árvore nova, com as mãos unidas e a cabeça baixa, enquanto Rowan falavabaixo demais para Yuri ouvir. Rowan, então, deu à mulher os beijos de despedida e se encaminhou rapidamente para a escada.

— Adeus, Yuri — disse ela, com delicadeza, ao passar por ele e se voltar com a mão no corrimão. — Yuri, conte-lhes tudo. Certifique-se de que o arquivo sobre as bruxas Mayfair seja encerrado, exatamente como deveria ser.

— Tudo? — perguntou Yuri.

— Por que não? — retrucou ela com um sorriso estranho. E depois foi embora.

Ele rapidamente olhou para Tessa. Durante aqueles breves momentos havia se esquecido de Tessa. E a tendência era que Tessa ficasse aflita quando visse Stuart. Meu Deus, como iria impedi-la de ir lá em cima?

Mas Tessa estava novamente no tear, ou na tela de tapeçaria, talvez fosse isso, e trabalhava a cantarolar baixinho, ou apenas fazia da sua respiração normal uma pequena canção.

Aproximou-se dela, temendo perturbá-la.

— Eu sei — disse ela, agora, erguendo os olhos para ele, com um sorriso terno e alegre no rosto redondo e radiante. — Stuart morreu e talvez tenha ido para o céu.

— Ela lhe contou?

— Contou.

Yuri olhou pela janela. Não sabia o que estava realmente vendo na escuridão. Seria a água cintilante do lago? Não soube dizer.

Foi quando viu os faróis inconfundíveis de um carro que se afastava. Através dos bolsões escuros da floresta, os faróis lampejaram e depois o carro desapareceu.

Por um instante, ele se sentiu abandonado e horrivelmente exposto. Mas eles dariam o telefonema para ele. É claro que dariam. Era provável que estivessem telefonando neste exato momento. Dessa forma, não haveria nenhum registro no telefone daqui que associasse quem deveria vir àqueles com quem ele e a mulher iriam embora.

De repente, ele se sentiu tão cansado. Onde ficava a cama neste lugar? Teve vontade de perguntar mas não perguntou. Ficou apenas a observá-la no seu trabalho, a ouvi-la cantarolar. E quando afinal ela ergueu os olhos, deu mais um sorriso.

— Ah, eu sabia que isso ia acontecer — disse ela. — Eu soube todas as vezes que olhei para ele. Com a sua espécie, a morte nunca deixa de vir. Mais cedo ou mais tarde, vocês todos ficam fracos, definham e morrem. Levei anos para me dar conta disso, para perceber que ninguém escapava dela. E Stuart, coitadinho, estava tão fraco. Eu sabia que a morte viria buscá-lo a qualquer instante.

Yuri não disse nada. Sentia uma forte aversão por ela, tão forte que elerecorria a todo o seu ser para disfarçá-la, para que ela não sentisse alguma frieza, para que não ficasse magoada. Pensou vagamente na sua Mona. Viu-a cheia de vida humana, perfumada, afetuosa e sempre surpreendente. Perguntou-se se os Taltos viam o ser humano desse jeito. Mais toscos? Mais selvagens? Seríamos nós, para eles, animais grosseiros? Animais talvez de um encanto volátil e perigoso? Como os tigres e os leões são para nós?

Mona. Na imaginação, ele segurou uma mecha do seu cabelo. Viu-a voltar-se para olhar para ele, olhos verdes, sorridente, as palavras saindo rápidas com um encanto e uma vulgaridade americana adorável.

Ele teve mais certeza do que nunca de que não voltaria a ver Mona.

Sabia que era isso o que estava destinado para ela, que sua família a envolvesse, que alguém da sua própria natureza, de dentro do próprio clã, fosse inevitavelmente o seu amor.

— Vamos ficar aqui sem subir — disse Tessa agora, num sussurro confidencial. — Que Stuart fique morto sozinho. Está certo, não acha? Depois que as pessoas morrem, acho que não se importam com o que se faça.

Yuri fez um lento movimento de cabeça para concordar com ela e voltou a olhar para a noite cheia de segredos, do outro lado da vidraça.

 

ESTAVA PARADA NA COZINHA ESCURA, deliciosamente saciada. Acabara com todo o leite, até a última gota, com o requeijão cremoso, com o queijo cottage e também com a manteiga. Era isso o que se chamava de limpa-trilhos. Epa, esqueci uma coisa, fatias finas de queijo fundido amarelo, droga, cheio de corantes e produtos químicos. Uuuggh, eca. Ela as mastigou, engoliu, muito obrigada.

— Sabe, querida, se você tivesse se revelado uma idiota... — disse ela.

Isso nunca foi uma possibilidade, mãe. Eu sou você e sou Michael. E de uma forma muito verdadeira, sou todo mundo que esteve falando com você desde o início. E sou Mary Jane.

Ela caiu na risada, ali sozinha, na cozinha escura, encostada na geladeira. E sorvete! Puxa, eu quase ia me esquecendo!

— Bem, querida, você teve sorte — disse ela. — Não poderia ter tirado cartas melhores. E eu devo supor que você não deixou passar uma única sílaba...

Sorvete de creme, Häagen-Dazs! Aos montes!

— Mona Mayfair!

Quem estaria chamando? Eugenia? Não quero falar com ela. Não quero que ela me perturbe ou perturbe Mary Jane.

Mary Jane ainda estava na biblioteca, com os papéis que havia retirado discretamente da escrivaninha de Michael, ou teria sido da de Rowan, agora que Rowan estava novamente em circulação? Não fazia diferença, era todo tipo de documentos médicos e de natureza legal, bem como papéis relacionados a coisas que haviam acontecido há apenas três semanas. Mary Jane, uma vez apresentada aos diversos arquivos e histórias, havia se revelado insaciável. A história da família era agora seu sorvete, por assim dizer.

— Ora, a questão é saber se dividimos este sorvete com Mary Jane, como uma boa prima, ou se o devoramos.

Vamos devorá-lo.

Já era hora de contar a Mary Jane! Havia chegado a hora. Quando Mlona passou pela porta só alguns minutos atrás, antes da última investida na cozinha, Mary Jane estava resmungando coisas sobre aqueles médicos mortos, que Deus os tenha, o Dr. Larkin e o outro lá da Califórnia, e sobre os dados químicos das autópsias das mulheres mortas. O principal era lembrar de pôr tudo aquilo de volta para que nem Michael nem Rowan ficassem indevidamente alarmados. Afinal de contas, tudo isso não estava sendo feito ao acaso. Havia um objetivo. Mary Jane era aquela de quem Mona precisaria depender totalmente!

— Mona Mayfair! — Era Eugenia chamando, que amolação. — Mona Mayfair, é Rowan Mayfair no telefone, chamando de lá da Inglaterra!

Rabugenta. O que ela estava precisando era de uma colher de sopa para esse sorvete, mesmo que já tivesse quase terminado o primeiro tijolo. Havia mais um a ser consumido.

Ora, de quem eram esses pezinhos que vinham fazendo um barulhinho no escuro, alguém que atravessava correndo a sala de jantar? Morrigan estalava sua pequena língua no mesmo ritmo dos passos.

— Puxa, é a minha prima querida, Mary Jane Mayfair.

— Psssiuuu. — Mary Jane levou um dedo aos lábios. — Ela está à sua procura. Está com Rowan ao telefone. Rowan quer falar com você e mandou que a acordássemos.

— Atenda a ligação na biblioteca e pegue o recado. Não posso me arriscar a falar com ela. Você tem de enganá-la. Diga-lhe que estamos bem, que eu estou tomando um banho de banheira, ou coisa semelhante, e peça notícias de todos. Tipo como vai o Yuri, o Michael e se ela está bem.

— Entendi. — E lá se foram os pezinhos tão pequenos, batendo bem de leve no assoalho

Mona raspou o restante do sorvete e jogou a embalagem na pia. Que cozinha bagunçada! Toda a minha vida, sempre fui tão organizada. E olhem agora, o dinheiro me corrompeu. Ela abriu o tijolo seguinte.

Mais uma vez, chegaram os pés mágicos. Mary Jane, adentrando a despensa e chegando veloz à quina da porta, com seu cabelo louro da cor do milho, suas pernas magras, longas e bronzeadas, sua cintura ínfima e suas saias de renda branca a balançar como sinos.

— Mona! — disse, baixinho.

— Oi! — respondeu Mona, num sussurro. Ora, bolas. Tomou mais uma grande colherada de sorvete.

— É, mas Rowan disse ter notícias importantíssimas para nós — declarou Mary Jane, obviamente consciente da importância dessa mensagem. — Que ela nos contaria tudo quando se encontrasse conosco, mas que neste exato momento tinha uma coisa que ela precisava fazer O mesmo valia para Michael. Yuri está bem.

— Você foi esplêndida. E os guardas aí fora?

— Ela disse que devíamos mantê-los, que não mudássemos nada. Disse que já havia falado com Ryan a esse respeito. Disse para você ficar emcasa, em repouso, e para você fazer tudo o que seu médico mandar.

— Mulher prática, inteligente. Huumm... — Bem, esse segundo tijolo já estava vazio. Já chega. Ela começou a tremer com o corpo inteiro. Que friiiiio! Por que não havia se livrado daqueles seguranças?

Mary Jane estendeu as mãos e esfregou os braços de Mona.

— Você está bem, querida? — E então os olhos de Mary Jane desceram até a barriga de Mona, e seu rosto ficou branco de medo. Ela baixou a mão direita, com vontade de tocar a barriga de Mona, mas não teve coragem.

— Preste atenção, está na hora de eu lhe contar tudo — disse Mona. — De lhe dar uma escolha imediata. Eu pretendia guiá-la passo a passo, mas não é justo e não é necessário. Posso fazer o que tenho de fazer mesmo que você não queira me ajudar, e talvez fosse melhor para você se não me ajudasse. Ou nós vamos agora e você me ajuda, ou eu vou sozinha.

— Vai para onde?

— É exatamente isso aí. Vamos nos mandar daqui, agora. Os seguranças não importam. Você sabe dirigir, não sabe?

Ela passou por Mary Jane e entrou na despensa. Abriu o armário das chaves. Procurou o emblema da Lincoln. A limusine era uma Lincoln, não era? Quando Ryan a comprou para ela, ele lhe dissera que ela nunca deveria entrar numa limusine que não fosse preta e que não fosse Lincoln. Efetivamente, ali estavam as chaves! Michael estava com as dele e com as da Mercedes de Rowan, mas as chaves da limusine estavam bem ali, onde Clem devia deixá-las.

— Bem, é claro que sei dirigir, mas que carro vamos levar?

— O meu. A limusine. Só que não vamos levar o motorista junto. Está pronta? Estamos contando com a possibilidade de o motorista estar dormindo lá nos fundos. Agora, o que vamos precisar?

— Você devia me contar tudo e me dar a chance de escolher.

Mona parou. As duas estavam na sombra. A casa estava toda escura à sua volta, com a luz entrando do jardim, vindo da grande área de iluminação azul que era a piscina. Os olhos de Mary Jane estavam enormes e redondos, fazendo com que seu nariz parecesse muito pequeno e a pele do rosto muito lisa. Cachos de cabelo moviam-se por trás dos seus ombros, mas na maior parte eram como barbas de milho. A luz batia entre seus seios.

— Por que você não conta para mim? — disse Mona.

— Está bem. Você vai ter a criança, não importa o que ela seja.

— Acertou.

— Você não vai deixar Rowan e Michael matarem a criança,não importa o que ela seja.

— Acertou!

— E o melhor lugar para nós irmos é onde ninguémconsiga nos encontrar.

— Acertou!

— Só que o único lugar que eu conheço é Fontevrault. E, se nós desamarrarmos todos os botes no embarcadouro, o único jeito de alguém chegar a entrar na nossa bacia é trazendo seu próprio barco, se é que eles sequer vão pensar em ir para aqueles lados.

— Ai, Mary Jane, você é um gênio! Acertou de novo! Mamãe, eu amo você, mamãe.

E eu amo você também, minha pequena Morrigan. Confie em mim. Confie em Mary Jane.

— Ei, preste atenção! Ouça, vou apanhar uns travesseiros, cobertores, esse tipo de coisa. Você tem dinheiro vivo?

— Montes de notas de vinte dólares na gaveta junto à cama.

— Você vai se sentar aqui. Entre aqui comigo e se sente. — Mary Jane atravessou a cozinha conduzindo Mona até a mesa. — Abaixe a cabeça aí.

— Mary Jane, não fique alucinada, por favor, não importa que aparência a criança tenha.

— Você descanse aí até eu voltar.

E lá se foram os saltos altos a correr ruidosos pela casa afora.

A música recomeçou, tão bonita e terna, a canção das flores e do vale.

Pare, Morrigan.

Converse comigo, mãe, e Oncle Julien trouxe você até aqui para dormir com meu pai, mas ele não sabia o que ia acontecer. Mas você entende, mãe, você disse que entendia, que a dupla espiral não estava nesse caso aliada a nenhum mal antiqüíssimo, mas era meramente uma expressão de um potencial genético em você e no pai, que sempre estivera ali...

Mona procurou responder. Mas não era necessário. A voz prosseguia sem parar, monótona, suave e muito rápida.

Ei, mais devagar. Você parece um mangangá quando fala assim.

... uma responsabilidade imensa, de sobreviver e de dar à luz, bem como de me amar. Mãe, não se esqueça de me amar. Eu preciso de você, do seu amor, acima de tudo, pois sem ele eu posso, na minha fragilidade perder a própria vontade de viver...

Estavam todos reunidos no círculo de pedra, trêmulos, chorando. O alto de cabelos pretos havia chegado e procurava tranqüilizá-los. Eles se aproximaram da fogueira.

"Mas por quê? Por que querem nos matar?"

E Ashlar respondeu:

"É assim que eles são. São guerreiros. Matam aqueles que não são do seu clã. É tão importante para eles quanto comer, beber ou fazer amor são para nós. Eles se deleitam com a morte."

— Olhe — disse ela, em voz alta. A porta da cozinha acabava de bater. Não faça barulho, Mary Jane! Não vá atrair Eugenia aqui para baixo. Mas devíamos ter uma atitude mais científica quanto a isso. Eu deveria estar passando tudo isso para o computador, datilografando tudo à medida que fosse tendo a visão, mas é quase impossível registrar alguma coisa com precisão quando se está mergulhada num transe. Quando chegarmos a Fontevrault, teremos o computador de Mary Jane. Mary Jane, a bênção de Deus.

Mary Jane estava de volta, desta vez fechando a porta da cozinha em silêncio, graças aos céus.

— É isso o que os outros têm de compreender — disse Mona. — Que esta criança não vem do inferno, mas de Deus. Era possível se dizer que Lasher era do inferno, sabe, falando em termos metafísicos ou metafóricos, quer dizer, religiosos ou poéticos. Mas, quando uma criatura nasce assim de dois seres humanos, ambos possuindo um genoma misterioso, ela vem de Deus. De quem mais a não ser Deus? Emaleth foi filha do estupro, mas esta criança não. Bem, pelo menos não foi a mãe que foi forçada ao ato.

— Pssiiiu, vamos cair fora. Eu disse aos guardas que vi alguém estranho lá na frente e que ia levar você até sua casa para apanhar umas roupas e depois ir ao médico. Vamos!

— Mary Jane, você é um gênio. — Mas, quando ela se levantou, o mundo pareceu dançar. — Santo Deus!

— Estou segurando você. Agora apóie-se em mim. Está sentindo dor?

— Bem, não mais do que qualquer pessoa com uma explosão atômica dentro do útero. Vamos embora!

Elas desceram sorrateiras pelo caminho, Mary Jane ajudando a firmar Mona quando necessário, mas ela estava se saindo muito bem, segurando-se no portão e na cerca. Logo estavam na garagem aberta. E láestava a limusine enorme e elegante. E Mary Jane, que Deus a abençoasse, já havia deixado o motor ligado e a porta aberta. Aqui vamos nós.

— Morrigan, pare de cantar! Preciso pensar, ensinar a Mary Jane como se abre o portão. É preciso apertar esse aparelhinho mágico.

— Eu sei! Entre!

O ronco do motor. O rangido enferrujado do portão correndo no trilho.

— Sabe, Mona, preciso lhe fazer uma pergunta. Preciso mesmo. E se essa coisa não puder nascer sem que você morra?

— Psiu! Cale-se, prima! Rowan não morreu, certo? E ela deu à luz um e depois a outra! Não vou morrer. Morrigan não vai deixar.

Não, mãe, eu amo você. Preciso de você, mãe. Não fale em morte. Quando você fala na morte, eu sinto o cheiro da morte.

— Quietinha. Mary Jane, Fontevrault é o melhor lugar? Tem certeza? Já examinamos todas as possibilidades, talvez um motel em algum canto?

— Ouça, vovó está lá, e nós podemos ter plena confiança nela. O menino que está lá com ela vai se mandar assim que eu lhe der uma dessas notas de vinte dólares.

— Mas ele não pode deixar o barco no embarcadouro, para que alguma outra pessoa...

— Não, ele não vai fazer isso, querida. Não seja boba. Ele vai levar o bote até a casa onde mora! Ele não chega lá pelo embarcadouro. Mora mais acima, perto da cidade. Agora, você relaxe e descanse. Temos muita coisa em Fontevrault. Temos o sótão, todo seco e quentinho.

— Ah, isso seria maravilhoso.

— E, quando o sol nasce pela manhã, ele entra por todas as janelas do sótão...

Mary Jane pisou no freio. Já estavam na Jackson Avenue.

— Desculpe, querida, esse carro é tão possante.

— Você está tendo algum problema? Meu Deus, eu nunca sentei aqui na frente antes, com todo esse comprimento lá para trás. É esquisito, como pilotar um avião.

— Não, não estou tendo problemas! — Mary Jane fez a curva para entrar na St. Charles. — A não ser por esses motoristas lerdos e bêbados de Nova Orleans. Já é meia-noite, sabia? Mas, na verdade, é moleza dirigir este carro, especialmente quando já se dirigiu uma carreta de dezoito rodas, o que eu já fiz.

— E onde foi que fez isso, Mary Jane?

— No Arizona, querida. Foi preciso. Tive de roubar o caminhão, mas essa é uma outra história.

Morrigan a chamava, cantando novamente, mas naquela voz rápida, cantarolada. Talvez estivesse cantando para si mesma.

Mal posso esperar para ver você, para abraçar você! Amo você mais pelo que você é! Ah, Morrigan, isso é o destino. Isso supera tudo, todo esse universo de bercinhos, chocalhos e pais felizes. Bem, ele acabará ficando feliz, quando compreender que os termos agora mudaram por completo...

O mundo girava. O vento frio se abatia sobre a planície. Estavam dançando apesar do vento, esforçando-se desesperadamente para se manterem aquecidos. Por que o calor os abandonara? Onde ficava sua terra natal? Ashlar dizia, "Agora esta é a nossa terra natal. Precisamos conhecer o frio tanto quanto conhecemos o calor."

Não deixe que eles me matem, mamãe.

Morrigan estava apertada, enchendo a bolha de líquido, com os cabelos caindo em volta e abaixo do corpo e os joelhos pressionando os olhos.

— Querida, o que a faz imaginar que alguém iria feri-la?

Penso nisso porque você pensa, mamãe. Sei o que você sabe.

— Você está falando com esse bebê?

— Estou, e ela me responde.

Seus olhos estavam se fechando quando chegaram à auto-estrada.

— Querida, você agora deve dormir. Estamos voando, meu amor. Este carro faz cento e quarenta por hora, e a gente nem sente.

— Não vá levar uma multa.

— Ora, você acha que uma bruxa como eu não sabe lidar com um policial? Eles nunca acabam de escrever a multa!

Mona riu. As coisas não poderiam ter se resolvido de melhor forma. Realmente, não podiam.

E o melhor ainda estava por vir.

 

O DOBRE DO SINO...

Ele não estava sonhando de verdade. Estava planejando. No entanto quando planejava no limiar do sono, Marklin via imagens nítidas, vislumbrava possibilidades que não percebia de nenhuma outra forma.

Eles iriam para os Estados Unidos. Levariam consigo todo e qualquer fragmento de informação valiosa que haviam acumulado. Stuart e Tessa que fossem para o inferno. Stuart os abandonara. Stuart os decepcionara pela última vez. Levariam consigo a lembrança de Stuart, da crença e da convicção de Stuart, da sua reverência pelo mistério. Mas seria só isso o que um dia precisariam de Stuart.

Montariam um pequeno apartamento em Nova Orleans e começariam sua vigilância sistemática das bruxas Mayfair. Isso poderia levar anos. Mas eles dois tinham dinheiro. Marklin tinha dinheiro de verdade, e Tommy tinha aquela fortuna irreal que se expressa em multimilhões. Tommy havia pago por tudo até agora. Mas Marklin tinha como se sustentar, sem problemas. E as famílias poderiam ficar digerindo alguma desculpa sobre umas férias informais. Talvez eles até se matriculassem em alguns cursos da universidade próxima. Não importava.

Quando tivessem seus olhos voltados para a família Mayfair, a diversão recomeçaria.

O sino, meu Deus, o sino...

As bruxas Mayfair. Ele gostaria de estar agora em Regent's Park, com o arquivo inteiro. Todas aquelas fotografias, os últimos relatórios de Aaron, ainda em cópias datilografadas. Michael Curry. Ler as abundantes anotações de Aaron sobre Michael Curry. Esse era o homem que podia gerar o monstro. Esse era o homem que Lasher escolhera na infância. Os relatórios de Aaron, precipitados, nervosos, finalmente cheios de preocupação, haviam sido cristalinos quanto a esse ponto.

Seria possível para um homem comum aprender os poderes de um bruxo? Ah, se ao menos fosse questão de um mero pacto diabólico! E se uma transfusão de sangue de bruxa pudesse lhe conferir capacidade telepáticas? Pura bobagem, com toda probabilidade. Mas imagine poder daqueles dois: Rowan Mayfair, médica e bruxa; Michael Curry, pai da bela criatura.

Quem o havia chamado de bela criatura? Teria sido Stuart? Onde foi que Stuart se meteu? Stuart, você que se dane. Você fugiu como um bicho assustado. Você nos deixou, Stuart, sem sequer um telefonema, uma despedida apressada, uma pista de quando e onde poderíamos nos encontrar.

Vamos prosseguir sem Stuart. E, falando em Aaron, como seria possível obter seus papéis dessa sua nova mulher nos Estados Unidos?

Bem, tudo dependia de um ponto. Eles precisavam sair daqui com uma reputação ilibada. Precisavam solicitar uma licença, sem despertar a menor suspeita.

Com um sobressalto, ele abriu os olhos. Precisava dar o fora dali. Não queria perder mais um minuto sequer. Mas havia o sino. Devia ser o sinal para a cerimônia. Ouçam só seu dobre, um som terrível, enervante.

— Acorde, Tommy.

Tommy estava jogado na poltrona junto à mesa, roncando, com um quase nada de baba no queixo. Seus óculos pesados de aros de tartaruga haviam escorregado até a ponta do nariz arredondado.

— Tommy, é o sino.

Marklin sentou-se, alisou o melhor que pôde as roupas e saiu da cama.

Sacudiu Tommy pelo ombro.

Por um instante, Tommy mostrou aquele ar perplexo, irritado, de quem acaba de ser acordado, e em seguida voltou o bom senso.

— É, o sino — disse calmamente, passando as mãos pelo cabelo ruivo e rebelde. — Afinal, o sino.

Lavaram o rosto um de cada vez. Marklin apanhou um pedaço de lenço de papel, besuntou-o com a pasta de dente de Tommy e limpou os dentes com a mão. Precisava fazer a barba, mas não tinham tempo para isso. Iriam até Regent's Park, apanhariam tudo e partiriam para os Estados Unidos no primeiro vôo que saísse.

— Licença, uma ova — disse ele, agora. — Sou a favor de ir embora, de simplesmente partir. Não quero voltar para meu próprio quarto para fazer as malas. Por mim, nós devíamos cair fora de imediato. A cerimônia que se dane.

— Não seja tão bobo — sussurrou Tommy. — Vamos dizer o que temos de dizer. E vamos descobrir o que pudermos descobrir. E depois vamos embora, na hora adequada e menos propensa a chamar atenção.

Droga!

Uma batida à porta.

— Já vamos! — disse Tommy, erguendo um pouco as sobrancelhas. Ele ajeitou o paletó de tweed. Sua roupa estava amarfanhada, e ele parecia estar sentindo calor.

O próprio blazer de lã de Marklin estava muito amarrotado. E ele havia perdido a gravata. Bem, a camisa estava perfeita com o suéter. Teria de servir, não é? Talvez a gravata tivesse ficado no carro. Ele a arrancara quando saíra dirigindo da primeira vez. Não devia nunca, nunca, ter voltado.

— Três minutos — disse a voz, do outro lado da porta. Um dos velhos. A casa ia estar transbordando de velhos.

— Sabe — disse Marklin —, nada disso era suportável nem mesmo quando eu me considerava um noviço dedicado. Agora estou achando simplesmente afrontoso. Ser acordado às quatro da manhã... Meu Deus, já são cinco... para uma cerimônia fúnebre. É tão idiota quanto esses druidas dos nossos tempos, vestidos de lençóis, que fazem maluquices em Stonehenge no solstício de verão, ou sei lá quando é que vão lá. Posso deixar que você diga as palavras adequadas por nós dois. Posso esperar no carro.

— Nem pensar — disse Tommy. Ele deu vários golpes com o pente no cabelo seco. Em vão.

Saíram juntos do quarto; Tommy, parando para trancar a porta. O corredor estava previsivelmente frio.

— Bem, você pode fazer isso se quiser, Tommy, mas eu não volto mais a este andar. Eles podem ficar com o que deixei no meu quarto.

— Isso seria uma perfeita estupidez. Você deve fazer as malas como se estivéssemos viajando por motivos normais. Por que não?

— Não posso ficar aqui, está me ouvindo?

— E se você tiver esquecido alguma coisa no seu quarto, alguma coisa que revele a sujeira dessa história toda?

— Não esqueci. Sei que não esqueci.

Os corredores e a escada estavam vazios. Era possível que eles fossem os últimos noviços a ouvir o sino.

Um leve murmúrio de vozes subia do primeiro andar. Quando chegaram ao pé da escada, Marklin percebeu que era pior do que poderia ter imaginado.

Olhe só as velas por toda parte. Todos, absolutamente todos, vestidos em negro! Todas as lâmpadas elétricas desligadas. Uma rajada repugnante de ar morno os cercou. As duas lareiras estavam acesas. Deus do céu! Eles haviam coberto cada janela da casa com crepe.

— Ah, mas isso é demais! — sussurrou Tommy. — Porque ninguém nos disse que nos vestíssemos à altura?

— É decididamente asqueroso — disse Marklin. — Olhe, vou agüentar cinco minutos.

— Não seja idiota — replicou Tommy. — Onde estão os outros noviços? Estou vendo velhos, por toda parte, velhos.

Devia haver uns cem deles, em pequenos grupos ou simplesmente sozinhos, encostados nos lambris escuros das paredes. Cabelos grisalhos por todos os lados. Bem, sem dúvida os membros mais jovens deviam estar por aqui em algum canto.

— Vamos — disse Tommy, beliscando o braço de Marklin e o empurrando para dentro do saguão.

Uma enorme ceia estava servida na mesa de banquetes.

— Meu Deus, é um tremendo banquete — comentou Marklin. Ele sentia enjôo só de olhar: cordeiro assado, carne assada, tigelas de batatas fumegantes, pilhas de pratos brilhantes e talheres de prata. — É, eles estão comendo. Estão comendo, mesmo! — sussurrou ele para Tommy.

Toda uma fila de homens e mulheres de idade avançada estava enchendo seus pratos lentamente e em silêncio. Joan Cross estava ali na sua cadeira de rodas. Joan estivera chorando. E lá estava o terrível Timothy Hollingshed, trazendo no rosto seus inúmeros títulos, como sempre, filho da mãe mais arrogante, sem um centavo de seu.

Elvera passava pelos presentes com um jarro de vinho tinto. Os copos estavam no aparador. Agora, isso aí é algo que me interessa, pensou Marklin. Esse vinho me interessa.

Ocorreu-lhe de repente a idéia de estar livre daquilo tudo, de estar num avião voando para os Estados Unidos, despreocupado, sem sapatos, com a aeromoça cumulando-o de bebidas e comidas deliciosas. Apenas uma questão de horas.

O sino ainda dobrava. Quanto tempo aquilo ia durar? Alguns homens perto dele estavam falando italiano, todos mais para baixos. Havia os velhos britânicos, resmungões, os amigos de Aaron, a maioria agora aposentada. E havia uma mulher jovem. Bem, pelo menos, ela parecia jovem. Cabelos pretos e olhos excessivamente maquiados. E, quando se prestava atenção, dava para ver que se tratava de membros antigos, mas não exclusivamente a classe decrépita. Lá estava Bryan Holloway, de Amsterdã. E ali, aqueles dois gêmeos anêmicos e de olhos esbugalhados que tinham Roma como base.

Na realidade, ninguém estava olhando para ninguém, embora as pessoas estivessem de fato conversando. A atmosfera estava mesmo solene, porém sociável. De todos os cantos, vinham sussurros delicados de que Aaron isso e Aaron aquilo... sempre gostei de Aaron, eu adorava Aaron. Parecia que eles haviam se esquecido inteiramente de Marcus; e era o que deveriam fazer mesmo, pensou Marklin, se soubessem como Marcus havia se vendido barato.

— Aceitem um pouco de vinho, senhores — disse Elvera, baixinho. Ela fez um gesto para as fileiras e mais fileiras de copos de cristal. Copos antigos com pé. Todo o luxo de antigamente. Olhe só esses garfos de prata com sua decoração pesada. Olhe só esses pratos antigos, tirados talvez de algum depósito subterrâneo, para serem carregados de doces e bolos glaceados.

— Não, obrigado — disse Tommy, lacônico. — Não consigo comer com um prato e um copo nas mãos.

Alguém riu em meio ao ronco suave de murmúrios e sussurros. Uma outra voz elevou-se acima das outras. Joan Cross estava sentada solitária, no meio do grupo, apoiando a testa na mão.

— Mas estamos em luto por quem? — perguntou Marklin, num sussurro. — Por Marcus ou por Aaron? — Ele precisava dizer alguma coisa. As velas produziam um clarão irritante, apesar de toda a escuridão trêmula que o envolvia. Piscou os olhos. Sempre havia gostado desse cheiro de cera pura, mas agora estava forte demais, absurdo.

Blake e Talmage estavam tendo uma conversa bastante acalorada no canto. Hollingshed juntou-se a eles. Ao que Marklin soubesse, eles estavam com quase sessenta anos. Onde estavam os outros noviços? Nenhum outro noviço. Nem mesmo Ansling e Perry, aqueles monstrinhos burocráticos. O que o seu instinto lhe diz? Há algo de errado, de muito errado.

Marklin foi atrás de Elvera, segurando rapidamente seu cotovelo.

— Nós devíamos estar aqui?

— Deviam, claro que deviam.

— Não estamos vestidos de acordo.

— Não importa. Pronto, tome alguma coisa. — Dessa vez, ela pôs o copo na mão dele. Ele deixou o prato na beira da mesa comprida. Provavelmente uma violação da etiqueta. Nenhuma outra pessoa havia feito isso. E meu Deus, que banquete. Havia uma enorme cabeça de javali, com a maçã na boca; e o leitão cercado de frutas na fumegante travessa de prata. A combinação das fragrâncias da carne era deliciosa. Isso ele era forçado a admitir. Estava começando a sentir fome! Que absurdo.

Elvera não estava mais ali, mas Nathan Harberson estava muito próximo dele, olhando para ele do alto do seu conservadorismo arrogante.

— A Ordem sempre age assim? — perguntou Marklin. — Dá um banquete quando alguém morre?

—Nós temos nossos rituais — disse Nathan Harberson, com uma voz quase triste. — Somos uma ordem muito antiga. Levamos a sério nossos votos.

— É, muito a sério — confirmou um dos gêmeos de olhos esbugalhados de Roma. Esse era Enzo, não era? Ou seria Rodolpho? Marklin não se lembrava. Os olhos faziam com que se pensasse em peixes, grandes demais para qualquer expressão, indicadores apenas de alguma doença, e imaginar que ela havia atingido os dois. E, quando os gêmeos sorriam, como estavam sorrindo agora, sua aparência era horrenda. Seus rostos eram magros, enrugados. Mas parece que havia alguma diferença crucial entre eles. Qual era? Marklin não conseguia se lembrar.

— Há certos princípios básicos — disse Nathan Harberson, com sua suave voz de barítono um pouco mais alta, um pouco mais confiante, talvez.

— E certas coisas — disse Enzo, o gêmeo — são para nós inquestionáveis.

Timothy Hollingshed havia se aproximado e olhava para Marklin do alto do seu nariz aquilino, como sempre fazia. Sua cabeleira era branca e densa, como a de Aaron havia sido. Marklin não gostava da sua aparência. Era como se olhar para uma versão cruel de Aaron, muito mais alta, de uma elegância mais pomposa. Meu Deus, olhe só para os anéis do cara. Decididamente vulgares, e cada um deles devia ter sua própria história, repleta de relatos de combates, traições e vinganças. Quando vamos poder sair daqui? Quando tudo isso vai terminar?

— É, nós consideramos algumas coisas sagradas — dizia Timothy agora — exatamente como se fôssemos uma pequena nação.

— É, não se trata meramente de uma questão de tradição — disse Elvera, de volta.

— Não mesmo — concordou um homem alto, de cabelos escuros, com olhos de um negro intenso e o rosto bronzeado. — É questão de um profundo compromisso moral, de lealdade.

— E de reverência — acrescentou Enzo. — Não se esqueçam da reverência.

— E de consenso — disse Elvera, olhando direto para ele. Mas a verdade é que todos eles estavam olhando para ele. — Consenso quanto ao que tem valor e a como deve ser protegido a qualquer preço.

Mais gente se apinhava na sala, apenas membros antigos. Um previsível aumento no bate-papo despreocupado. Alguém ria novamente. Será que as pessoas não tinham o bom senso de não rir?

Há algo de totalmente errado com isso, com o fato de sermos os únicos noviços, pensou Marklin. E onde estava Tommy? De repente, tomado de pânico, ele percebeu que havia perdido Tommy de vista. Não, lá estava ele, comendo uvas da mesa como algum plutocrata romano. Deveria ter a compostura de não agir assim.

Marklin deu um cumprimento de cabeça, rápido e constrangido, aos que o cercavam e abriu caminho através da multidão cerrada de homens emulheres até quase tropeçar no pé de alguém e finalmente parar ao lado de Tommy.

— Qual é o problema com você? — perguntou Tommy, olhando para o teto. — Pelo amor de Deus, relaxe. Estaremos num avião dentro de algumas horas. Em seguida, estaremos em...

— Psiu, não diga nada — recomendou Marklin, consciente de quesua voz já não era mais normal, já não estava mais sob seu controle. Se algum dia na sua vida ele havia sentido tanta apreensão, não se lembrava mais.

Pela primeira vez, ele viu que o crepe havia sido pendurado por toda parte ao longo das paredes. Os dois relógios do grande saguão estavam cobertos! E os espelhos? Os espelhos estavam encobertos de negro. Ele considerava esses detalhes perfeitamente amedrontadores. Jamais vira adereços fúnebres tão antiquados. Quando morria alguém na sua família, ele costumava ser cremado. Mais tarde alguém ligava para você e lhe dava a notícia. Foi exatamente isso o que aconteceu com seus pais. Ele estava na escola, deitado na cama, lendo Ian Fleming, quando veio o telefonema. Ele só baixou a cabeça, demonstrando ter entendido, e continuou a ler. E agora você herdou tudo, absolutamente tudo.

De repente, ele ficou totalmente enjoado com as velas. Via os candelabros por toda parte, de prata tão cara. Alguns deles até apresentavam pedras preciosas incrustadas. Meu Deus, quanto dinheiro essa Ordem tinha enfurnado nos seus subterrâneos e cofres? Uma pequena nação de verdade. Mas tudo isso era culpa de tolos como Stuart, que há muito tempo havia deixado em testamento toda a sua fortuna para a Ordem e que decerto havia alterado aquele testamento, considerando-se tudo o que havia acontecido, é claro.

Tudo. Tessa. O plano. Onde estava Stuart agora, com Tessa?

A conversa foi ficando cada vez mais alta. Ouvia-se o tilintar dos copos. Elvera voltou e lhe serviu mais vinho.

— Beba, Mark — disse ela.

— Comporte-se, Mark — sussurrou Tommy, desagradavelmente perto do seu rosto.

Marklin deu meia-volta. Essa não era a sua religião. Essa não era a sua tradição, ficar parado comendo e bebendo, trajando luto, de madrugada!

— Já vou indo! — anunciou ele, de repente. Sua voz pareceu sair da boca como uma explosão, e ecoou por toda a sala.

Todos os outros estavam em silêncio.

Por um segundo, naquela quietude reverberante, ele quase deixou escapar um berro. A vontade de berrar pareceu-lhe mais pura do que jamais havia sido na infância. Um berro de pânico, de pavor. Não sabia dizer qual.

Tommy beliscou seu braço e apontou.

As portas duplas que davam para o refeitório haviam sido abertas. Ah, quer dizer que aquele era o motivo do silêncio. Meu Deus, será que eles teriam trazido para casa os restos de Aaron?

As velas, o crepe, exatamente o mesmo ambiente no salão do refeitório, mais uma caverna sinistra. Ele estava determinado a não entrar ali, mas antes que pudesse agir de acordo com essa decisão, a multidão fez com que se movesse devagar e solenemente na direção da passagem aberta. Ele e Tommy estavam praticamente sendo carregados.

Não quero ver mais nada, quero ir embora daqui...

A pressão da multidão relaxou quando eles passaram pelas portas. Homens e mulheres estavam se enfileirando em volta da longa mesa. Um corpo jazia na mesa! Meu Deus, não o de Aaron! Não posso olhar para Aaron. E eles sabem que você não pode olhar para ele, não sabem? Estão esperando que você entre em pânico, e que as chagas de Aaron sangrem!

Horrível, idiota. Ele agarrou mais uma vez o braço de Tommy e ouviu sua censura.

— Por favor, acalme-se!

Estavam afinal chegando à beira da mesa antiga e enorme. Tratava-se de um homem num paletó de lã empoeirado, com lama nos sapatos. Olhe só, lama. Não era nenhum corpo devidamente preparado para um velório.

— Isso é ridículo — disse Tommy, entre dentes.

— Que tipo de velório é esse? — Marklin ouviu sua voz exclamar. Ele se debruçou lentamente para poder ver o rosto do cadáver, que estava virado para o outro lado. Stuart. Stuart Gordon, jazendo morto nesta mesa. O rosto incrivelmente magro de Stuart, com seu nariz de bico de pássaro e seus olhos azuis, sem vida. Meu Deus, nem lhe haviam fechado os olhos! Será que todos estavam loucos?

Recuou, desajeitado, dando um encontrão em Tommy, sentindo seu calcanhar pisar no dedo de Tommy e depois a rápida retirada do pé de Tommy. Todo raciocínio pareceu estar fora do seu alcance. Um pavor dominou-o totalmente. Stuart morreu, Stuart morreu, Stuart morreu.

Tommy olhava fixamente para o corpo. Será que ele sabia que era Stuart?

— O que isso quer dizer? — perguntou Tommy, com a voz baixa e cheia de ódio. — O que aconteceu a Stuart... — Mas as palavras demonstravam pouca convicção. Sua voz, sempre de um mesmo tom, estava agora fraca com o choque.

Os outros se acotovelavam à sua volta, empurrando-os de encontro à mesa. A mão esquerda de Stuart, inerte, estava bem junto a eles.

— Pelo amor de Deus — disse Tommy, irritado. — Alguém feche os olhos dele.

Os membros cercavam a mesa, de uma extremidade à outra, umafalange de pranteadores enlutados. Será que estavam ali para prantear? Até mesmo Joan Cross estava lá, à cabeceira da mesa, com os braços pousados nos braços da cadeira de rodas e os olhos injetados fixos neles!

Ninguém falou. Ninguém se mexeu. O primeiro estágio do silêncio havia sido a ausência da fala. Este era o segundo estágio, a ausência de movimento, com os membros da Ordem tão imóveis que não se ouvia sequer a respiração de um deles que fosse.

— O que aconteceu com ele? — perguntou Tommy.

Ainda assim, ninguém respondeu. Marklin não conseguia fixar o olhar em nada. Não tirava os olhos do pequeno crânio morto, com sua rala coberta de cabelos brancos. Você se suicidou, seu idiota, seu idiota maluco? Foi o que fez? Diante da primeira chance de ser descoberto?

E de repente, muito de repente, ele percebeu que todos os outros não estavam olhando para Stuart. Estavam olhando para Tommy e para ele.

Sentiu uma dor no peito como se alguém tivesse começado a pressionar seu esterno com mãos incrivelmente fortes.

Ele se voltou, examinando em desespero os rostos à sua volta: Enzo, Harberson, Elvera e os outros, a olhar para ele com expressões hostis. A própria Elvera, a encará-lo nos olhos. E bem ao seu lado, Timothy Hollingshed, que o fitava com frieza.

Só Tommy não estava olhando para ele. Tommy tinha o olhar fixo do outro lado da mesa. E, quando Marklin olhou para ver o que o distraía, o que o deixara esquecido do perfeito horror disso tudo, viu que Yuri Stefano, adequadamente trajado de negro fúnebre, estava parado a poucos metros dali.

Yuri! Yuri estava aqui e estivera o tempo todo! Teria Yuri assassinado Stuart? Por quê, em nome de Deus, Stuart não havia sido esperto. Por que não havia sabido deter Yuri? O ponto principal do sistema de interceptação, dos comunicados forjados, dependia de Yuri nunca, nunca mais, ser capaz de ter acesso à casa-matriz. E aquele idiota do Lansing foi deixar Yuri escapar do vale.

— Não — disse Elvera. — A bala atingiu o alvo. Mas não foi fatal. E ele voltou para casa.

— Vocês foram cúmplices de Gordon — disse Hollingshed, com desdém. — Vocês dois. E agora só vocês sobraram.

— Cúmplices — disse Yuri, lá do outro lado da mesa. — Seus discípulos brilhantes, seus gênios!

— Não — disse Marklin — Não é verdade! Quem nos está acusando?

— Stuart os acusou — disse Harberson. — Os papéis espalhados em toda a sua torre os acusaram; seu diário os acusou; sua poesia os acusou; Tessa os acusou.

Tessa!

— Como vocês ousaram entrar na casa dele? — vociferou Tommy, rubro de raiva enquanto olhava furioso ao seu redor.

— Vocês não estão com Tessa. Não acredito em vocês! — berrou Marklin. — E Tessa onde está? Foi tudo por Tessa! — E então, percebendo seu terrível erro, teve plena consciência do que já sabia.

Ai, por que não havia seguido seu instinto? O instinto lhe dissera que fosse embora, e agora o instinto lhe dizia, sem a menor dúvida, É tarde demais.

— Sou cidadão britânico — disse Tommy, entre dentes. — Não vou ser detido aqui por nenhum tipo de tribunal clandestino

Imediatamente, a multidão foi se movendo de modo a empurrá-los devagar da cabeceira da mesa, na direção dos pés. Mãos seguravam os braços de Marklin. Aquele abominável Hollingshed o dominava. Ele ouviu Tommy protestar mais uma vez, para que o soltassem, mas isso era agora inteiramente impossível. Estavam sendo forçados a sair para o corredor e a seguir por ele, com o ruído abafado dos pés nas tábuas enceradas ecoando sob as abóbadas de madeira. Era uma turba que o havia apanhado, uma turba da qual ele não tinha a menor condição de escapar.

Com um ruído metálico e estridente, as portas do velho elevador foram abertas. Marklin foi empurrado ali para dentro e se voltou, nervosíssimo, dominado por uma claustrofobia que mais uma vez lhe dava a vontade de berrar.

Mas as portas já estavam se fechando. Ele e Tommy estavam em pé, apertados um contra o outro, cercados por Harberson, Enzo, Elvera, o homem alto de cabelos escuros, Hollingshed e alguns outros homens fortes.

O elevador descia, barulhento e desconjuntado. Até os subterrâneos.

— O que vocês vão fazer conosco? — perguntou Marklin, de repente.

— Eu insisto em ser levado de volta ao andar principal — disse Tommy, em tom superior. — Insisto em ser liberado imediatamente.

— Há determinados crimes que consideramos inomináveis — disse Elvera, baixinho, com os olhos agora fixos em Tommy, graças a Deus. — Certos fatos que, enquanto Ordem, não temos a possibilidade de perdoar ou esquecer.

— O que quer dizer o quê, é o que eu gostaria de saber! — protestou Tommy.

O elevador antigo e pesado parou com um solavanco arrasador. Dali saíram para o corredor, com as mãos machucando os braços de Marklin.

Estavam sendo levados por algum caminho desconhecido nos porões, seguindo por um corredor sustentado por toscas vigas de madeira, muito semelhante a uma galeria numa mina. O cheiro da terra os envolvia. Todos os outros estavam ao lado deles ou atrás deles agora. Viram, então, ao final do corredor duas grandes portas de madeira embutidas sob um arco baixo e fechadas com tranca.

— Vocês acham que podem me prender aqui contra a minha vontade? — perguntou Tommy. — Sou cidadão britânico.

— Vocês mataram Aaron Lightner — disse Harberson.

— Vocês mataram outros em nosso nome — disse Enzo. E lá estava o irmão ao seu lado, repetindo num eco enlouquecedor as mesmíssimas palavras.

— Vocês nos enlamearam aos olhos dos outros — acusou Hollingshed. — Vocês cometeram crimes inomináveis usando nosso nome!

— Eu não confesso nada — disse Tommy.

— Não exigimos que vocês confessem — atalhou Elvera.

— Não exigimos nada de vocês — acrescentou Enzo.

— Aaron morreu acreditando nas suas mentiras! — queixou-se Hollingshed.

— Que se dane, não vou tolerar uma coisa dessas! — rugiu Tommy.

Já Marklin não conseguia se forçar a se sentir indignado, ultrajado, o que quer que fosse que deveria estar sentindo, pelo fato de estar sendo detido, de estar sendo forçado na direção das portas.

— Esperem um instante, esperem por favor. Não! Esperem — gaguejou ele, implorando. — Stuart cometeu suicídio? O que aconteceu com Stuart? Se Stuart estivesse aqui, ele nos isentaria de culpa. Vocês não podem estar pensando que alguém da idade de Stuart...

— Guarde suas mentiras para Deus — disse Elvera, baixinho.  — Durante toda a noite, examinamos as provas. Conversamos com sua deusa de cabelos brancos. Aliviem a sua alma do peso da verdade se quiserem, mas não venham nos incomodar com mentiras.

As figuras cerraram fileiras, de modo a pressioná-los. Eles estavam se aproximando cada vez mais da tal câmara, aposento ou calabouço, talvez. Marklin não tinha como saber.

— Parem! — gritou ele, de repente. — Pelo amor de Deus! Parem! Ha coisas que vocês desconhecem sobre Tessa, coisas que simplesmente não compreendem.

— Não sirva de instrumento para essa gente, seu imbecil! — rosno Tommy. — Você acha que meu pai não vai começar a fazer perguntas? Não sou órfão! Minha família é imensa. Você acha...

Um braço forte agarrou Marklin pela cintura. O outro apertava firme seu pescoço. As portas abriam para dentro. Com o canto do olho, ele viu Tommy a se debater, com o joelho dobrado e o pé chutando os homens que estavam atrás dele.

Um rajada enregelante subiu das portas abertas. Escuridão. Não posso ser trancado na escuridão. Não posso!

E, afinal, ele berrou. Não conseguia mais conter-se. Berrou. O grito terrível começou antes de ele ser empurrado para a frente, antes que sentisse ter tropeçado na soleira, antes de perceber que estava mergulhando na escuridão, no nada, que Tommy estava caindo com ele, a amaldiçoá-los, ameaçá-los, ou era isso o que parecia. Era inteiramente impossível saber. Seu próprio berro reverberava alto demais nas paredes de pedra.

Ele bateu no chão. A escuridão estava tanto fora quanto dentro dele. Em seguida, a consciência da dor nos seus membros. Jazia em meio a coisas duras, pontudas, cortantes. Meu Deus! E, quando se sentou, sua mão tocou em objetos que se esfarelavam, que se partiam e exalavam um cheiro estranho de cinza.

Apertou os olhos com o único feixe de luz que caía sobre ele e, olhando para cima, percebeu com horror que vinha da porta através da qual havia caído, que passava acima das cabeças e ombros das silhuetas negras que enchiam o portal.

— Não, vocês não podem fazer isso! — berrou, avançando de qualquer jeito na escuridão e depois, sem bússola ou marcos de qualquer natureza, pondo-se de pé.

Não conseguia ver seus rostos escurecidos. Não conseguia nem mesmo discernir o formato das suas cabeças. Havia caído alguns metros, muitos, talvez mesmo nove metros. Não sabia ao certo.

— Parem, não podem nos manter aqui; não podem nos deixar aqui! — gritou, elevando as mãos para implorar. Mas as figuras haviam recuado da abertura iluminada. E, com horror, ele ouviu um som familiar. Era o rangido das dobradiças, enquanto a luz desaparecia e as portas eram fechadas.

— Tommy, Tommy, onde é que você está? — gritou, em desespero. O eco o assustou. O eco estava trancado ali com ele. Não tinha para onde ira não ser se voltar contra ele, contra seus ouvidos. Ele estendeu a mão, tateando o chão, a tocar nessas coisas quebradas, delicadas, esfarelentas. E de repente sentiu algo úmido e quente!

— Tommy! — exclamou, aliviado. Estava tocando nos lábios de Tommy, no seu nariz, nos seus olhos. — Tommy!

E então, num átimo de segundo, talvez com a duração mais longa do que a da sua vida inteira, ele compreendeu tudo. Tommy estava morto.

Havia morrido na queda. E eles não haviam se importado com possibilidade de isso acontecer. E nunca voltariam para buscar Marklin jamais. Se a lei, com sua assistência e suas sanções tivesse sido uma possibilidade, eles jamais os teriam jogado de tamanha altura. E agora Tommy estava morto. Ele estava sozinho nesse lugar, no escuro, ao lado do corpo do amigo, agarrando-se a ele agora; enquanto as outras coisas, as coisas ao redor das quais seus dedos se enrolavam, eram ossos.

— Não, vocês não podem fazer isso, não podem considerar a hipótese de fazer uma coisa dessas! — Sua voz subia novamente num berro. — Tirem-me daqui! Soltem-me! — Lá voltava o eco, como se esses gritos fossem serpentinas que subiam e depois caíam de volta sobre ele. — Soltem-me! — Seus gritos pararam de ter palavras. Baixaram de tom e ficaram mais cheios de agonia. E seu som terrível lhe proporcionava um estranho consolo. E ele sabia que aquele era exatamente o último consolo que chegaria a experimentar.

Afinal, ficou deitado, imóvel. Ao lado de Tommy, com os dedos segurando firme o braço de Tommy. Talvez Tommy não estivesse morto. Tommy acordaria e eles dariam juntos uma busca neste lugar. Talvez fosse isso o que devessem estar fazendo. Havia uma saída, e os outros pretendiam que ele a encontrasse. Queriam que ele atravessasse o vale da morte para encontrá-la, mas não tinham intenção de matá-lo, não seus irmãos e irmãs na Ordem, não Elvera, querida Elvera, nem Harberson, Enzo ou seu antigo mestre Clermont. Não, eles eram incapazes de uma coisa dessas!

Afinal, ele se virou e conseguiu se ajoelhar, mas, quando tentou ficar em pé, seu tornozelo esquerdo resvalou com uma fisgada de dor.

— Bem, eu posso engatinhar, droga! — sussurrou. — Eu posso engatinhar! — repetiu aos berros. E engatinhou, afastando os ossos do caminho, os detritos, a poeira de pedra ou de osso, ou fosse lá o que fosse. Não pense. Não pense em ratos, também. Não pense!

De repente, sua cabeça foi atingida, ou foi o que lhe pareceu, por uma parede.

Dentro de sessenta segundos, ele havia percorrido aquela parede, mais outra, mais outra e afinal mais outra. O cômodo não era mais do que um poço, de tão pequeno.

Bem, parece que não preciso me preocupar com uma forma de sair, não enquanto eu não me sentir melhor, não puder ficar em pé e procura algum tipo de abertura, alguma coisa diferente de uma passagem, talvez uma janela. Afinal de contas, o ar é fresco, ar fresco.

Basta que descanse um pouco, pensou ele, aconchegando-se a Tommy mais uma vez, com a testa encostada no braço de Tommy. Descanse e pense no que fazer. É algo absolutamente fora de cogitação você possa morrer desse jeito, você, jovem assim, morrer dessa forma, nesse calabouço, atirado aqui por um bando de padres e freiras velhos e perversos... é impossível... É, descanse, por enquanto não enfrente a questão como um todo. Descanse...

Ele divagava. Que tolice de Tommy a de se isolar totalmente da sua madrasta, de lhe ter dito que não queria mais nenhum contato. Ora, iam se passar seis meses, até mesmo um ano... Não, o banco iria procurá-los, o banco de Tommy, seu banco, quando ele não sacasse seu cheque trimestral, e quando isso ia acontecer? Não, essa não podia ser sua decisão final, a de enterrá-los vivos nesse lugar horrendo!

Voltou à realidade, assustado por um ruído estranho.

O ruído veio novamente e voltou a se repetir. Ele sabia de que era aquele barulho, mas não conseguia identificá-lo. Droga, na escuridão total, ele não conseguia identificar nem mesmo a direção. Precisava ouvir com atenção. Na realidade, era uma série de sons. Procure visualizá-la, procure visualizar. De repente, ele a visualizou.

Tijolos sendo postos no lugar, e reboco passado por cima deles. Tijolos e reboco, lá em cima, ao longe.

— Mas isso é absurdo, absolutamente absurdo. E medieval, é totalmente revoltante. Tommy, acorde, Tommy! — Ele teria berrado novamente, mas era humilhante demais que aqueles cretinos lá em cima o ouvissem, que o ouvissem vociferar enquanto isolavam com uma parede a maldita porta.

Bem baixinho, ele chorou no ombro de Tommy. Não, isso era temporário: uma estratégia para fazer com que se sentissem desgraçados e contritos antes de entregá-los às mãos das autoridades. Eles não pretendiam que os presos permanecessem aqui, que morressem aqui. Era algum tipo de punição ritual, com o único intuito de amedrontá-lo. Mas é claro que a parte lastimável havia sido a morte de Tommy! Mesmo assim, ele se dispunha a declarar que aquilo havia sido acidente. Quando chegassem, ele teria uma atitude de total cooperação. A questão era sair! Era isso o que ele quis fazer o tempo todo, dar o fora!

Não posso morrer assim. É inimaginável que eu acabe morrendo assim. É impossível. Toda a minha vida perdida, meus sonhos arrancados de mim, a glória que apenas vislumbrei com Stuart e com Tessa...

Em algum lugar bem no fundo da sua mente, ele sabia que havia falhas tremendas no seu raciocínio, falhas fatais, mas ele prosseguiu com a imaginação do futuro, com a chegada dos outros a lhe dizer que só pretendiam assustá-lo, que havia sido um acidente, a morte de Tommy, quenão imaginavam que a queda fosse tão perigosa, tolice deles, assassinos vingativos, idiotas e mentirosos. A questão era estar pronto, estar calmo, dormir talvez, dormir, ouvindo os sons dos tijolos e do reboco. Não, esses ruídos pararam. A porta está vedada, talvez, mas isso não importa. Tem de haver outros meios para se entrar nesse calabouço e outros meios para se sair. Mais tarde, ele os encontraria.

Por enquanto, melhor ficar grudado a Tommy, só ficar aconchegado a ele e esperar que o pânico inicial terminasse e ele pudesse pensar no que fazer depois.

Ah, que bobagem a sua de ter se esquecido do isqueiro de Tommy. Tommy nunca fumava, da mesma forma que ele, mas Tommy sempre trazia consigo aquele isqueiro elegante, que ele acendia para garotas bonitas que estivessem levando cigarros aos lábios.

Apalpou os bolsos de Tommy, nos das calças, não; nos do paletó, sim. Segurou o pequeno isqueiro de ouro. Tomara que tenha fluido, ou uma carga de butano, ou sei lá o quê que faça com que acenda.

Sentou-se devagar, machucando a palma da mão esquerda em alguma coisa áspera. Acendeu o isqueiro. A pequena chama tremeluziu e depois se alongou. A iluminação cresceu ao seu redor, revelando a pequena câmara, que fora escavada bem fundo na terra.

E os objetos pontudos, os que se esfarelavam, eram ossos, ossos humanos. Ao seu lado, havia um crânio, com as órbitas fixas nele. E mais adiante, outro. Ah, meu Deus! Ossos tão velhos que alguns deles haviam se transformado em cinzas, ossos! E o rosto morto de Tommy, o rosto assustado, com o sangue vermelho já secando no canto da sua boca e no seu pescoço, onde havia escorrido para dentro do colarinho. E diante dele, ao lado dele e atrás dele, ossos!

Largou o isqueiro, com as mãos indo tontas para a cabeça, os olhos fechados e a boca se abrindo num berro descontrolado e ensurdecedor. Não havia mais nada além do grito e da escuridão, o grito que se esvaziava de dentro dele, levando todo o seu medo e o seu horror para os céus. E no fundo da alma ele sabia que ficaria bem, ficaria perfeitamente bem se ao menos não parasse de berrar, mas deixasse o berro jorrar, cada vez mais alto, para sempre, sem cessar.

 

É RARO QUE UM AVIÃO consiga isolar a gente de fato. Mesmo neste avião, estofado com tanto luxo, com suas poltronas fundas e sua mesa ampla, sabe-se que se está num avião. Sabe-se que se está a trinta e oito mil pés acima do Atlântico, e dá para se sentir os ínfimos solavancos à medida que o avião vence o vento, da mesma forma que uma grande embarcação singra os mares.

Eles estavam sentados nas três poltronas agrupadas em volta da mesa. Nas três pontas de um invisível triângulo eqüilátero. Uma poltrona havia sido projetada exclusivamente para Ash, isso era óbvio. E ele estava parado junto a essa poltrona quando fez um gesto para que Rowan e Michael ocupassem as outras duas.

Outras poltronas, ao longo das paredes cheias de janelas da cabine, estavam vazias, grandes mãos enluvadas, voltadas para cima, esperando para abrigá-lo com segurança e firmeza. Uma era maior do que as outras. Para Ash, sem dúvida.

As cores eram caramelo, ouro. Tudo aerodinâmico e quase perfeito. A jovem norte-americana que havia servido os drinques, perfeita. A música, durante o curto período que foi tocada, Vivaldi, perfeita.

Samuel, o homenzinho espantoso, dormia numa cabine na parte traseira, enrodilhado na cama, segurando firme a garrafa que trouxera do apartamento em Belgravia e exigindo um buldogue que os criados de Ash haviam deixado de providenciar para ele.

— Você disse, Ash, que eu podia ter qualquer coisa que quisesse. Ouvi quando você lhes disse isso. Pois bem, eu quis um buldogue! E quero um buldogue agora.

Rowan relaxou na poltrona, com os braços cruzados.

Ela não sabia há quanto tempo estava sem dormir. Precisaria dormir antes que chegassem a Nova York. Neste exato momento, estava estranhamente eletrizada, olhando para os dois homens à sua frente. Michael, que fumava seu pequeno resto de cigarro, segurando-o com dois dedos, com a brasa vermelha da ponta acesa voltada para dentro da mão.

E Ash, em mais um daqueles casacos de seda longos e folgados, com abotoamento duplo, elegantíssimo, com as mangas arregaçadas descuidadamente, punhos brancos com abotoaduras de ouro e pedras preciosas que a faziam pensar em opalas, embora ela percebesse que não era assim uma grande conhecedora de pedras preciosas ou semipreciosas, ou de qualquer coisa dessa natureza. Opalas. Os olhos dele tinham uma certa opalescência, ou era isso o que havia pensado algumas vezes. Suas calças eram folgadas, como as de pijamas, mas isso também estava na última moda. Desrespeitoso, ele havia posto o pé na beirada do couro, couro que era dele. E no seu pulso direito, ele usava uma fina pulseira de ouro, sem qualquer utilidade óbvia, uma estreita faixa de metal que cintilava e lhe parecia extremamente atraente, embora ela não conseguisse explicar por quê...

Ele ergueu a mão, correu os dedos pelo cabelo escuro, deixando que o dedo mínimo percorresse a faixa grisalha, como se não quisesse se esquecer dela, deixá-la de lado, mas quisesse reuni-la às outras ondas escuras. Isso devolveu vida ao seu rosto, apenas esse pequeno movimento e seu jeito de examinar o ambiente e deter os olhos nela.

Ela própria mal havia notado o que tirara apressada da mala. Alguma roupa vermelha, macia, larga e curta, que mal lhe tocava os joelhos. Michael pusera as pérolas no seu pescoço, um colar pequeno e elegante. Foi uma surpresa. Estava tão atordoada naquela hora.

Os criados de Ash haviam arrumado toda a bagagem restante.

— Eu não sabia se o senhor queria ou não queria que comprássemos um buldogue para Samuel — repetira algumas vezes a jovem Leslie, muito aflita por ter contrariado o patrão.

— Não tem importância — dissera Ash, ouvindo-a afinal, talvez pela primeira vez. — Em Nova York, compramos buldogues para Samuel. Ele pode manter os buldogues no jardim na cobertura. Você sabia, Leslie, que há cachorros morando nas coberturas de Nova York que nunca, jamais, estiveram nas ruas lá embaixo?

Rowan perguntou-se o que Leslie devia achar que ele era. O que todos eles pensam que ele é? Será para ele uma vantagem ter essa fortuna estonteante? Ou ter essa beleza estonteante?

— Mas eu queria um buldogue para hoje à noite — queixara-se o homenzinho até desmaiar de novo. — E quero agora.

À primeira vista, o homenzinho havia deixado Rowan apavorada. O que era aquilo, genes de bruxos? Conhecimento de bruxos? Ou teria sido o seu lado médico que se horrorizou com as pregas de carne que iamcobrindo lentamente seu rosto inteiro? Ele parecia um grande pedaço derocha, colorido e provido de vida. E se o bisturi de um cirurgiãoremovesse essas pregas, revelando olhos, uma boca cheia e bem-feita, os ossos sob as faces, o queixo? O que aconteceria com sua vida?

— Bruxos Mayfair — dissera ele ao vê-los, Rowan e Michael.

— Será que todos nesta parte do mundo nos conhecem? — perguntara Michael, com mau humor. — E será que a nossa reputação sempre chega antes de nós? Quando eu voltar para casa, pretendo estudar a fundo abruxaria, estudá-la a sério.

— Ótima idéia — disse Ash. — Com os seus poderes, pode fazer muitas coisas.

Michael riu. Os dois se gostavam. Dava para ela ver. Eles tinham em comum certas atitudes. Yuri era tão nervoso, tão fragilizado, tão novo.

Durante o longo caminho de volta do sinistro confronto na torre de Stuart Gordon, Michael lhes contara a longa história narrada por Lasher, de uma vida vivida no século XVI, e falara sobre o estranho relato de Lasher de lembranças anteriores, da sua sensação de ter vivido ainda antes daquela época. Nada havia de distanciamento clínico na sua fala, mas sim um derramamento espontâneo da história que só ele e Aaron conheciam. Ele já a havia contado a Rowan, sim, e ela se lembrava dela mais como uma série de imagens e catástrofes do que de palavras.

Ouvi-la de novo na limusine negra, que voava na direção de Londres, era ver tudo novamente e com detalhes mais minuciosos. Lasher padre, Lasher santo, Lasher mártir, e depois, cem anos mais tarde, o início da vida de Lasher como espírito da bruxa, a voz invisível na escuridão, um vento forte a açoitar os trigais e a arrancar as folhas das árvores.

— A voz do vale — dissera o homenzinho em Londres, esticando o polegar para apontar para Michael.

Seria? ela se perguntava. Ela conhecia o vale. Nunca se esqueceria de lá, de ser prisioneira de Lasher, de ser arrastada pelas ruínas do castelo acima. Nunca se esqueceria dos momentos em que Lasher havia "recuperado a memória", em que a nova carne se apossara da sua mente e a afastara de todo e qualquer conhecimento real que um fantasma pudesse ter.

Michael nunca estivera por lá. Talvez um dia eles fossem juntos conhecer o lugar.

Ash dissera a Samuel que dormisse enquanto se dirigiam para o aeroporto. O homenzinho havia bebido mais meio litro de uísque, com muitos resmungos, gemidos e eventuais arrotos, e já estava entorpecido quando o carregaram para dentro do avião.

Agora estavam sobrevoando o Ártico.

Ela abriu e fechou os olhos. A cabine tremeluzia.

— Eu jamais faria mal a essa criança, Mona — disse Ash, de repente, assustando Rowan, despertando-a mais plenamente. Ele observava Michael com os olhos tranqüilos.

Michael deu uma última tragada no finalzinho do cigarro e esmagou no grande cinzeiro de vidro, de tal forma que ele se transformou numa minhoca pequena e horrenda. Seus dedos pareciam enormes, poderosos, salpicados de pêlos escuros.

— Sei que não faria — disse Michael. — Mas não consigo compreender tudo. Como eu poderia entender? Yuri estava tão apavorado.

— Foi culpa minha. Estupidez. É sobre isso que precisamos conversar, nós três. Há outros motivos também.

— Mas por que confiar em nós? — perguntou Michael. — Por que sequer ser gentil conosco? Você é um homem ocupado, algum tipo de bilionário, obviamente.

— Ah, bem, então temos esse ponto em comum, não é? — disse Ash, com veemência.

Rowan sorriu.

Era um fascinante estudo de contrastes: o homem de voz grave, com os olhos azuis faiscantes e as sobrancelhas escuras, quase cerradas; e o outro alto, tão sedutoramente esguio, com graciosos movimentos do pulso que quase a deixavam tonta. Dois tipos primorosos de masculinidade, ambos embalados em proporções perfeitas e numa personalidade feroz. E os dois, como costuma acontecer com homens grandes, pareciam se regalar numa enorme segurança e paz interior.

Ela olhou para o teto. Exausta como estava, as coisas lhe pareciam deturpadas. Seus olhos estavam secos, e ela teria de dormir logo, simplesmente era o que tinha de fazer, mas agora não podia. Agora não.

Ash voltou a falar.

— Vocês têm algo a contar que ninguém pode ouvir, a não ser eu — disse Ash. — E eu quero ouvir sua história. E eu tenho algo a contar que só contarei a vocês. Será o caso de vocês não quererem as minhas confidências? De vocês não quererem a minha amizade ou um dia, quem sabe, o meu amor?

Michael refletiu sobre isso.

— Acho que quero tudo isso, já que você pergunta — disse Michael, dando de ombros discretamente e rindo. — Já que você quer saber.

— Saquei — disse Ash, baixinho. Michael riu novamente, só o ruído grave da vibração.

— Mas você sabe que eu matei Lasher, não sabe? Yuri lhe contou. Você tem isso contra mim, o fato de eu ter matado um dos seus?

— Ele não era um dos meus — disse Ash, com um sorriso gentil. A luz refulgia na mecha grisalha que saía da sua têmpora esquerda. Um homem dos seus trinta anos, talvez, com elegantes mechas grisalhas, uma espécie de menino prodígio no mundo empresarial, era o que deveria parecer, precocemente rico, precocemente grisalho. Com séculos de idade e uma paciência infinita.

De repente, ela sentiu uma pequena e agradável sensação de orgulho, por ter matado Gordon. Por não ter sido ele.

Ela o matara. Foi a primeira vez em toda a sua triste vida em que havia apreciado o uso do poder, condenando um homem à morte com a sua vontade, destruindo os tecidos nas suas entranhas e confirmando o que sempre suspeitara. Que, se ela realmente quisesse agir assim, se realmente cooperasse com ele, em vez de combater esse poder, ele funcionaria com uma velocidade espantosa.

— Quero lhes contar histórias — disse Ash. — Quero que vocês as conheçam. A história do que aconteceu e a de como chegamos ao vale. Agora não. Estamos todos cansados demais, sem dúvida. Mas quero lhes contar tudo.

— É — respondeu Michael. — E eu quero saber. — Ele estava enfiando a mão no bolso, puxando o maço meio para fora e soltando dele o cigarro. — É claro que quero saber tudo a seu respeito. Quero examinar o livro, se você ainda pretende nos permitir isso, ver o livro.

— Tudo isso é possível — disse Ash, com um gesto despreocupado, uma das mãos pousada no joelho. — Vocês são uma verdadeira tribo de bruxos. Somos parecidos, você e eu. Ah, na verdade não é terrivelmente complicado. Aprendi a conviver com uma profunda solidão. Esqueço-me dela por anos e anos a fio. E então vem à tona esse desejo de ser posto em contexto por uma outra pessoa. O desejo de ser conhecido, compreendido, avaliado moralmente por uma cabeça sofisticada. Essa sempre foi a atração da Talamasca, desde o início, a de que eu podia ir até lá e fazer confidencias aos estudiosos, a de poder conversar até altas horas da noite. Ela atraiu muitos outros seres não-humanos, misteriosos. Não sou o único.

— Bem, isso é o que todos nós precisamos, não é? — perguntou Michael, olhando de relance para Rowan. Passou-se mais um desses momentos secretos, mudos, como um beijo invisível.

Ela baixou a cabeça, concordando.

— É — admitiu Ash. — Os seres humanos raramente sobrevivem sem esse tipo de intercâmbio, de comunicação. O amor. E nossa raça era uma raça tão amorosa. Nós demoramos tanto tempo para conseguir entender aagressão. Sempre parecemos crianças quando os humanos nos conhecem, mas não somos crianças. É um tipo diferente de mansidão. Há uma teimosia nela, um desejo de satisfação imediata e de que as coisas se mantenham simples — Ele se calou. E então fez uma pergunta muito franca. — Narealidade, o que os perturba? Por que vocês dois hesitaram quando eu os convidei a vir comigo até Nova York? O que lhes passou pela cabeça?

— Ter matado Lasher — respondeu Michael. — Era para mim nada mais nada menos do que uma questão de sobrevivência. Houve uma testemunha, um homem presente que poderia entender e perdoar, se é que uma testemunha clemente é necessária. E esse homem morreu.

— Aaron.

— É, ele queria levar Lasher, mas entendeu por que eu não permiti. E aqueles dois outros, bem, no caso deles acho que se poderia dizer que foi legítima defesa...

— E você sofre por causa dessas mortes — disse Ash, com delicadeza.

— Com Lasher, foi um assassinato deliberado — disse Michael, como se estivesse conversando consigo mesmo. — A criatura havia ferido minha mulher; havia roubado meu filho de algum modo. Embora o que aquele filho teria sido, quem poderia dizer? São tantas as perguntas, tantas as possibilidades. E ele havia atacado as mulheres. Ele as matara no seu esforço de procriar. Ele não tinha condições de conviver conosco, da mesma forma que alguma peste ou algum inseto. Era inimaginável a coexistência. E além disso ainda havia, para usar a sua palavra, o contexto, a forma pela qual ele se apresentava desde o início, como um fantasma, a forma pela qual ele... me usara desde o início.

— É claro que eu o compreendo — disse Ash. — Se eu estivesse no seu lugar, também o teria matado.

— Teria mesmo? — perguntou Michael. — Ou será que você não o teria poupado por ser ele um dos pouquíssimos que restam da sua espécie neste mundo? Você teria de ter sentido isso, uma lealdade à espécie.

— Não — disse Ashlar. — Creio que você não me entendeu, quer dizer, em termos essenciais. Passei a vida provando a mim mesmo que sou praticamente humano. Procure se lembrar. Ao próprio papa Gregório, eu defendi a idéia de que tínhamos alma. Não me sinto amigo de uma alma errante, ansiosa de poder, uma alma idosa que se apossou de um corpo novo. Essa atitude não desperta em mim esse tipo de lealdade.

Michael baixou a cabeça como se dissesse Estou entendendo.

— Ter falado com Lasher, ter conversado sobre suas recordações, isso poderia ter provocado dúvidas consideráveis em mim. Mas não, eu não teria sentido lealdade para com ele. O único ponto no qual os cristãos e os romanos nunca acreditaram era o de que um assassinato é um assassinato, quer a vítima seja um ser humano, quer seja um da nossa espécie. Mas eu acredito nisso. Vivi demais para nutrir crenças tolas de que os humanos não são dignos de compaixão, de que eles são "outros"• Nós todos estamos ligados. Tudo está vinculado. Como e por quê, eu não saberia lhe dizer. Mas é verdade. E Lasher havia matado para atingir seus objetivos. Se unicamente esse crime pudesse ser erradicado para sempre, somente esse... — Ele deu de ombros, e o sorriso voltou, talvez um pouco amargo, ou apenas terno e triste. — Sempre pensei, sonhei, imaginei que talvez, se chegássemos a voltar, se tivéssemos novamente nossa chance neste mundo, poderíamos acabar com esse único crime.

— Agora você não pensa mais assim — disse Michael, com um sorriso.

— Não, mas existem motivos para não pensar nessas possibilidades. Vocês vão entender quando nos sentarmos para conversar na minha residência em Nova York.

— Eu odiava Lasher — disse Michael. — Ele era perverso e tinha hábitos perversos. Ele ria de nós. Talvez um erro fatal. Não tenho certeza absoluta. Eu também acreditava que outras pessoas queriam que eu o matasse, tanto pessoas vivas quanto mortas. Você acredita no destino?

— Não sei.

— Como assim, não sabe?

— Há séculos alguém me disse que ser o único sobrevivente do meu povo era meu destino. E isso aconteceu. Mas será que esse foi realmente meu destino? Eu era esperto. Sobrevivi a invernos, batalhas e inúmeras adversidades. Por isso, permaneci vivo. Destino ou sobrevivência? Não sei. Mas, qualquer que fosse o caso, essa criatura era um inimigo seu. Por que você agora precisa do meu perdão pelo que fez?

— Não é realmente essa a preocupação — disse Rowan. Falou antes que Michael pudesse responder. Continuava enrodilhada na poltrona, com a cabeça de lado encostada no couro. Via os dois sem dificuldade, e os dois estavam olhando para ela. — Pelo menos, eu acho que não é essa a preocupação de Michael.

Ele não a interrompeu.

— O que o preocupa é algo que eu fiz, que ele próprio não pôde fazer — prosseguiu ela.

Ash esperava, exatamente como Michael esperava.

— Eu matei mais um Taltos, uma fêmea — disse Rowan.

— Uma fêmea? — perguntou Ash, baixinho. — Uma fêmea Taltos de verdade?

— É, uma fêmea de verdade, minha própria filha com Lasher. Eu a matei. Dei-lhe um tiro. Matei-a assim que percebi o que ela era, quem ela era e que ela estava ali, comigo. Eu a matei. Senti tanto medo dela quanto senti dele.

Ash parecia fascinado, mas nem um pouco perturbado.

— Eu temia um encontro do macho com a fêmea — continuou Rowan. — Temia as previsões cruéis que ele havia feito e o futuro sinistro descrito por ele. Temia, também, que em algum lugar, entre as mulheres da família, ele pudesse ter gerado um macho. E que o macho a encontraria, e os dois procriariam. Essa teria sido a vitória de Lasher Apesar de tudo o que sofri, que Michael sofreu, além de todas as bruxas Mayfair, desde o início, que ocorresse esse... esse encontro, essa vitória dos Taltos.

Ash inclinou a cabeça, concordando com ela.

— Minha filha veio me procurar por amor — disse Rowan.

— Claro — sussurrou Ash, obviamente ansioso para que ela prosseguisse.

— Dei um tiro na minha própria filha. Atirei na minha própria menina solitária e indefesa. E ela me havia curado. Ela chegou a mim com seu leite e, ao me dar esse leite, conseguiu me curar do trauma do parto.

"É isso o que me preocupa e o que preocupa Michael, que você soubesse desse fato, que você o descobrisse; que você, que quer ser nosso amigo, ficasse horrorizado ao descobrir que uma fêmea poderia ter estado ao seu alcance se eu não tivesse acabado com ela."

Ash inclinou-se para a frente na poltrona, pousando os cotovelos nos joelhos, com um dedo dobrado abaixo do seu lábio inferior, pressionando sua maciez. As sobrancelhas estavam erguidas, unindo-se apenas ligeiramente enquanto ele contemplava o rosto de Rowan.

— O que você teria feito? — perguntou Rowan. — Se você a tivesse descoberto, a minha Emaleth?

— Esse era o seu nome! — sussurrou Ash, perplexo.

— O nome que o pai lhe deu. O pai insistia em me forçar, apesar de os abortos estarem me matando. E afinal, por algum motivo, esse bebê, Emaleth, foi forte o suficiente para nascer.

Ash suspirou. Ele voltou a se recostar, descansando o braço na beirada do braço de couro da poltrona. E ele a examinava, mas não parecia devastado nem irritado. Na verdade, porém, como se poderia saber?

Por um átimo de segundo, pareceu loucura ter-lhe contado, ter contado tudo aqui, logo aqui, no seu próprio avião, voando em silêncio pelos céus afora. Mas a verdade era que isso parecia simplesmente inevitável, algo que precisava ser feito, se se quisesse algum progresso, se se quisesse algum resultado do fato de terem se conhecido, se o amor de fato já estava surgindo entre eles a partir do que já haviam testemunhado e ouvido.

— Será que você ia desejá-la para si? — perguntou Rowan. — Será que você não teria talvez movido céus e terra para ter acesso a ela, para salvá-la, para levá-la embora em segurança e gerar a tribo de novo?

Michael temia por ela, isso ela via nos seus olhos. E ela percebeu, enquanto olhava para eles dois, que não estava realmente dizendo tudo isso só por eles. Estava falando para si mesma, a mãe que havia matado a filha, que havia puxado o gatilho. De repente ela se retraiu, com os olhos bem fechados, estremeceu, erguendo os ombros, e depois se recostou na poltrona, com a cabeça para um lado. Estava ouvindo o corpo bater no chão, havia visto a destruição do rosto antes disso, havia provado o leite, o leite espesso e doce, quase como uma calda leitosa, que lhe fez tanto bem.

— Rowan — disse Ash, com delicadeza. — Rowan, Rowan, não passe de novo por esse sofrimento por minha causa.

— Mas você teria movido céus e terra para chegar a ela — disse Rowan. — Foi por isso que veio até a Inglaterra quando Samuel o chamou, quando ele lhe contou a história de Yuri. Você veio porque um Taltos havia sido visto em Donnelaith. — Ash concordou, inclinando a cabeça bem devagar.

— Não sei responder à sua pergunta. Não conheço a resposta. É, eu teria vindo, sim. Mas tentar levá-la embora? Não sei.

— Ora, vamos, como você poderia não querer isso?

— Você quer dizer como eu poderia não querer recriar a tribo?

— Isso mesmo.

Ele abanou a cabeça e baixou os olhos, pensativo, voltando a curvar o dedo abaixo do lábio, com o cotovelo no braço da poltrona.

— Como vocês são bruxos estranhos, vocês dois — murmurou.

— Como assim? — perguntou Michael.

Ash pôs-se de pé subitamente, com a cabeça quase tocando o teto da cabine. Ele esticou as pernas e lhes virou as costas, dando alguns passos, cabisbaixo, antes de se voltar para eles.

— Ouçam, não podemos responder à perguntas uns dos outros dessa forma. Mas o que eu posso lhe dizer é que me alegro com o fato de a fêmea estar morta. Fico feliz por ela estar morta! — Ele sacudiu a cabeça e pousou a mão no encosto inclinado da poltrona. Tinha o olhar distante. Os cabelos caíam sobre seus olhos, bastante desgrenhados agora, de tal modo que ele parecia extremamente desolado, dramático e talvez com algo de mágico. — Deus me livre. Sinto um alívio. Um alívio por vocês me contarem no mesmo instante que ela existiu e que não existe mais.

— Acho que estou começando a compreender — disse Michael, concordando com a cabeça.

— Será que está?

— Não podemos compartilhar a terra, podemos? Essas duas tribos aparentemente tão semelhantes  e tão profundamente diferentes?

— Não, não podemos compartilhá-la — disse Ash, sacudindo a cabeça enfaticamente. — Que raça consegue viver com qualquer outra? Que religião com qualquer outra? A guerra está por toda a parte; e as guerras são tribais, não importa o que os homens digam que elas sejam! Elas são tribais e são guerras de extermínio, quer se trate dos árabes contra os curdos, dos turcos contra os europeus, ou dos russos combatendo os povos orientais. Isso nunca vai parar. As pessoas sonham com um final, mas ele não pode acontecer, enquanto houver gente. É claro que, se meu povo voltasse e se os humanos fossem exterminados da terra bem, nesse caso, meu povo poderia viver em paz. Mas na realidade não é isso o que pensam de si mesmas todas as tribos?

— Não precisa haver luta — disse Michael, abanando a cabeça. — É concebível que todas as tribos parem de lutar entre si.

— Concebível, sim, mas não possível.

— Uma espécie não precisa dominar a outra — insistiu Michael. — Uma espécie nem precisa saber da existência da outra.

— Você está querendo dizer que deveríamos viver em segredo? Você sabe com que rapidez a nossa população se duplica, se triplica e se quadruplica? Você conhece a nossa força? Você não pode saber como era. Você nunca viu o Taltos que nasce sabendo. Nunca o viu atingir sua altura total naqueles primeiros minutos, horas, dias ou seja lá o tempo que leve. Você nunca viu.

— Eu vi — disse Rowan. — Vi duas vezes.

— E o que você tem a dizer? De que adiantaria eu querer uma fêmea? De que adiantaria eu chorar pela Emaleth que você perdeu e procurar uma substituta para ela? De que adiantaria eu perturbar a inocência de Mona com a semente que poderia gerar o Taltos ou provocar sua morte?

— Posso lhe dizer uma coisa — disse Rowan, respirando fundo. — No instante em que atirei em Emaleth, naquele instante não havia nenhuma dúvida na minha cabeça quanto ao fato de ela ser uma ameaça para a minha espécie e de que ela teria de morrer.

Ash sorriu, fazendo que sim.

— E você tinha razão.

Todos ficaram em silêncio. E então Michael falou.

— Você agora sabe nosso segredo mais terrível — disse ele.

— É, você sabe — repetiu Rowan, baixinho.

— E eu me pergunto se nós sabemos o seu — acrescentou Michael.

— Vocês saberão — disse Ash. — Agora devíamos dormir, todos nos. Meus olhos estão doendo. E a empresa espera com uma centena depequenas tarefas que só eu posso executar. Vocês durmam agora, e em Nova York eu lhes conto tudo. Assim, vocês conhecerão todos os meus segredos, dos piores aos mais ínfimos.

 

— MONA, ACORDE.

Ela ouviu o pântano antes de realmente vê-lo. Ouviu o coaxar das rãs-touro e as aves noturnas, bem como o som da água em toda a sua volta, espessa, imóvel e no entanto ainda em movimento em algum lugar, talvez num cano enferrujado ou batendo na lateral de um bote, ela não sabia. Estavam paradas. Aqui devia ser o embarcadouro.

O sonho havia sido o mais estranho até então. Ela precisava passar num exame no qual quem passasse dominaria o mundo. Por isso, Mona tinha de responder a todas as perguntas. As perguntas eram de todas as áreas, ciências, matemática, história, o computador que ela tanto amava, títulos e ações, o significado da vida; e essa havia sido a parte mais difícil porque ela se sentia tão viva que não conseguia começar a defender a vida. Sabe, é que a gente simplesmente sabe que é magnífico estar vivo. Será que ela teria conseguido os cem por cento? Será que ia dominar o mundo?

— Acorde, Mona! — sussurrou Mary Jane.

Não dava para Mary Jane ver que os olhos de Mona estavam abertos. Mona olhava pelo vidro da janela para o pântano, para as árvores inclinadas, esfarrapadas, doentias e cobertas de musgo, para as trepadeiras enroladas como cordas nos ciprestes enormes e antigos. Lá fora, ao luar, ela via trechos de água através da cortina imóvel de lentilha d'água, via os joelhos dos ciprestes, inúmeros espinhos perigosos saindo de toda a volta dos troncos grossos das velhas árvores. E criaturas negras, pequenas criaturas negras, a voar noite adentro. Poderiam ser baratas, mas melhor não pensar nisso!

Doíam-lhe as costas. Quando ela tentou se sentar mais para a frente, sentiu-se pesada e toda dolorida. Quis mais leite. Haviam parado duas vezes para que ela bebesse leite, e agora queria mais. Tinham litros e mais litros no isopor, melhor chegar até a casa. Depois, beber.

— Vamos, querida, você sai e fica me esperando aqui mesmo. E eu vou esconder esse carro onde não seja provável que alguém o veja.

— Esconder o carro, esse carro enorme?

Mary Jane abriu a porta e a ajudou a sair. Deu, então, um passo atrás, obviamente horrorizada mais uma vez e procurando não demonstrar. A luzdo interior do carro iluminava o rosto de Mary Jane.

— Meu Deus, Mona Mayfair, e se você morrer?

Mona agarrou o pulso de Mary Jane ao se levantar, plantando firme os pés na terra macia com uma densa camada de conchas dragadas, de um branco reluzente. Lá seguia o molhe pela escuridão adentro.

— Pare de dizer isso, Mary Jane, mas vou lhe dar algo em que pensar para a eventualidade de isso acontecer. — Ela tentou apanhar a bolsa de compras do chão, mas não conseguiu se curvar tanto.

Mary Jane acabava de acender o lampião. Ela se voltou, e a luziluminou seus olhos por baixo, dando-lhe uma aparência espectral. Também iluminou o barraco mal conservado, atrás dela, alguns metros do molhe em péssimo estado e as madeixas de musgo suspensas dos galhos aparentemente mortos, acima da sua cabeça.

Puxa, eram tantas as criaturas que voavam no escuro.

— Mona Mayfair, seu rosto está que é pele e osso! Juro por Deus que estou vendo seus dentes por trás da pele em volta da boca.

— Ora, pare com isso, você está ficando maluca. É a luz. Você mesma está parecendo um fantasma! — Ai, ai, ela estava se sentindo péssima. Fraca e cheia de dores. Até os pés doíam.

— E você não ia acreditar na cor da sua pele, meu Deus. Parece que alguém a mergulhou numa banheira de leite de magnésia.

— Eu estou bem. Só não consigo apanhar essa bolsa.

— Eu apanho. Você descanse aqui, encostada nessa árvore, foi essa a árvore de que lhe falei, o cipreste, o mais velho desta região. Está vendo, este aqui era o lago, o laguinho???? Sabe??? Onde a família remava??? Pronto, fique com o lampião. A alça não esquenta.

— Parece perigoso. Nos filmes de faroeste, tem sempre alguém jogando um lampião igual a esse num celeiro onde o herói caiu numa cilada dos bandidos. O lampião quebra e incendeia o celeiro todas as vezes. Não gosto disso.

— Bem, por aqui ninguém vai fazer uma coisa dessas — gritou Mary Jane, já de costas enquanto tirava uma bolsa de compras após a outra, largando-as em cima das conchas. — E além do mais, não temos nenhum feno. E se tivéssemos, ele estaria encharcado.

Os faróis do carro embrenhavam-se no pântano, penetrando na infinita floresta de troncos, grossos e finos, do palmito silvestre e da bananeira dentada. A água respirava, suspirava e voltava a escorrer, apesar de todo o seu fedor de estagnação e da sua imobilidade.

— Meu Deus, este lugar é uma selva — sussurrou Mona, mas sob um certo aspecto ela o estava adorando. Apreciava até o frescor do ar ali, lânguido e suave, sem se mover com brisa alguma, mas mesmo assim renovado, talvez pela água.

Mary Jane deixou cair o isopor pesado.

— Não, olhe só, vire-se de lado e, quando eu entrar no carro e virar direção para sair de ré, você olhe para o lugar que o farol iluminar e vai ver Fontevrault!

A porta bateu; os pneus revolveram o cascalho.

O enorme automóvel recuou para a direita, e os faróis passaram nelas árvores esguias e espectrais. E ora vejam só, ela viu a casa iluminada, enorme e adernando horrivelmente, com as janelas do sótão faiscando e piscando enquanto o carro fazia a volta.

A noite escureceu. Mas o que ela havia visto permanecia, uma volumosa massa escura contra o céu, impossível de se acreditar. A casa estava caindo.

Ela quase berrou, embora não soubesse ao certo por que motivo. Não podiam estar indo para aquela casa, não para uma casa inclinada daquele jeito, uma casa aleijada. Uma casa debaixo d'água era uma coisa; mas uma casa daquele jeito? No entanto, enquanto o carro se afastava, com uma pequena explosão saudável de fumaça branca, ela viu que havia luzes naquela ruína impossível. Pela bandeira no centro da varanda do andar superior ela via luzes bem longe ao fundo. E, quando desapareceu o último ruído do automóvel, por um instante ela acreditou ter ouvido algo parecido com o som de um rádio.

O lampião iluminava bem, mas essa escuridão era típica do campo, um breu. Nada a não ser o lampião e aquela luz mortiça como um carvão em brasa dentro da mansão prestes a desmoronar.

Meu Deus, Mary Jane não percebeu que essa droga de casa acabou de desabar enquanto ela esteve ausente! Temos de tirar vovó daí, supondo-se que vovó não tenha sido jogada nesse caldo sem a menor cerimônia! E que caldo, que lodo! O cheiro de lodo se espalhava por todo lugar, sim, mas, quando ergueu os olhos, o céu era daquele rosa luminoso que ele consegue ter nas noites da Louisiana, e as árvores que desapareciam esticavam em vão seus raminhos para manter um vínculo umas com as outras enquanto o musgo parecia translúcido, véus e mais véus de musgo. Os pássaros, ouça os gritos dos pássaros. Os ramos mais altos eram finos e totalmente cobertos com teias, teias prateadas. Seriam aranhas ou bichos-da-seda?

— Eu chego a ver o encanto deste lugar — disse ela. — Se ao menos aquela casa não estivesse a ponto de cair.

Mamãe.

Estou aqui, Morrigan.

Houve um som na estrada atrás dela. Meu Deus, Mary Jane vinha correndo na sua direção, sozinha no escuro. O mínimo que podia fazer era se virar e segurar o lampião bem no alto. Estava agora sentindo uma dor quase insuportável nas costas, e não ia levantar nada nem tentar alcançar nada, só continuaria segurando esse lampião terrivelmente pesado.

Quer dizer que essa teoria da evolução deveria ter uma explicação para absolutamente todas as espécies no planeta neste momento? Quer dizer, será que não existe alguma teoria secundária, talvez de um desenvolvimento espontâneo?

Ela sacudiu o corpo inteiro para despertar. Além do mais, não sabia a resposta para essa pergunta. A verdade era que a evolução nunca lhe parecera lógica. A ciência chegou a um ponto no qual, mais uma vez diversos tipos de opiniões, outrora condenadas por serem metafísicas, são agora perfeitamente possíveis.

Mary Jane saiu direto da escuridão, correndo como uma menininha, segurando os sapatos de salto alto com os dedos da mão direita. Quando ela chegou junto a Mona, parou, dobrou-se ao meio, recuperou o fôlego e então olhou para Mona.

— Meu Deus, Mona Mayfair — disse ela, ofegante e ansiosa, com o rosto bonito reluzindo com uma fina camada de suor. — Tenho de levá-la para aquela casa imediatamente.

— Suas meias estão destruídas.

— Bem, espero que estejam mesmo. Eu as odeio. — Ela apanhou o isopor e começou a correr até o molhe. — Vamos, Mona, depressa. Não vá me acabar morrendo logo aqui.

— Quer parar com isso? O bebê pode ouvir.

Houve um ruído forte na água. Mary Jane havia conseguido pôr o isopor no barco. Quer dizer que havia realmente um barco. Mona procurou atravessar rapidamente o piso irregular, de tábuas que rangiam, mas cada passo era excruciante. E então, de repente, ela sentiu o que tinha de ser a dor de verdade. Como um chicote que se enrolasse nas suas costas e na sua cintura, ou no que lhe restava da cintura. Ela parou, trincando os dentes com força para não gritar.

Mary Jane já voltava correndo para o barco com o segundo carregamento.

— Eu quero ajudar — disse Mona, mal conseguindo pronunciar a última palavra. Foi lentamente até a beira do molhe, considerando-se feliz por estar usando chinelos sem salto, embora não conseguisse se lembrar de ter pensado em calçá-los. Viu então o bote largo e raso enquanto Mary Jane descarregava nele a última bolsa de compras e todos os travesseiros e cobertores embolados.

— Agora me passe esse lampião e fique aí mesmo até eu trazer o barco de ré.

— Mary Jane, acho que eu, bem, estou com medo da água. Quer dizer, estou me sentindo muito pesadona, Mary Jane. Não sei se deveria embarcar.

Outra fisgada de dor. Mamãe, eu amo você. Estou com medo.

Pois não tenha medo. Cale a boca! — disse Mona.

— O que você disse? — perguntou Mary Jane.

Mary Jane saltou no grande bote de metal, apanhou a longa vara que estava de algum modo presa ao seu lado e veio recuando o barco com empurrões rápidos. O lampião estava lá bem na frente, como se houvesse um banquinho ou algum apoio especial para ele. Toda a bagagem estava atrás de Mary Jane.

— Vamos, querida. Basta que entre no barco, com um passo rápido, é, isso mesmo. Os dois pés.

— Ai, meu Deus, vamos nos afogar.

— Ora, meu amor, que bobagem. A água aqui não chega a um metro e oitenta de fundo! Podemos ficar imundas, mas não vamos nos afogar.

— Eu poderia me afogar tranqüilamente em um metro e oitenta de água — disse Mona. — E a casa, Mary Jane. Olhe só a casa.

— O que há com a casa?

Graças a Deus o mundo parou de balançar e girar. Era provável que Mona estivesse machucando a mão de Mary Jane. E agora Mary Jane tinha de soltar sua mão. Pronto, calma! Mary Jane segurava a vara com as duas mãos, e elas estavam se afastando do molhe.

— Mas, Mary Jane, olhe, Mary Jane — disse Mona.

— É, é ela mesma, querida. Não são mais de quinze metros. Basta que fique parada, bem parada. Esse bote é grande e estável. Não há nada que o faça virar. Você pode se ajoelhar se quiser, ou mesmo se sentar, mas a essa altura eu não recomendo.

— A casa, Mary Jane, a casa, ela está caindo para um lado.

— Querida, ela está assim há cinqüenta anos.

— Eu sabia que você ia dizer isso. Mas e se ela afundar, Mary Jane! Meu Deus, não consigo suportar ficar olhando para ela! É horrível, alguma coisa daquele tamanho inclinada desse jeito. É como...

Mais uma fisgada de dor, pequena, cruel e funda, apesar da rapidez.

— Bem, pare de olhar para ela! — disse Mary Jane. — Você não vai acreditar, mas eu mesma, com uma bússola e um pedaço de vidro cheguei a medir o ângulo da inclinação, e ele é menor que cinco graus, É só que todas aquelas colunas criam aquelas linhas verticais e dão a impressão de que ela está a ponto de desmoronar.

Ela suspendeu a vara, e o barco de fundo chato continuou a seguir em frente com sua própria velocidade. A noite fantástica ia se fechando ao redor delas, frondosa e macia. Trepadeiras escorriam dos galhos de uma árvore retorcida que também dava a impressão de que ia cair.

Mary Jane mergulhou a vara mais uma vez e empurrou com força fazendo com que o barco seguisse veloz para a sombra imensa que se avolumava diante delas.

— Ai, meu Deus, aquilo ali é a porta da frente?

— Bem, ela está solta das dobradiças agora, se é isso o que você quer dizer, mas é para lá que estamos indo. Querida, vou levá-la direto até a escada interna. Vamos atracar o barco exatamente ali, como sempre.

Haviam chegado à varanda da frente. Mona cobriu a boca com as mãos, querendo cobrir os olhos, mas sabendo que cairia se o fizesse. Ficou olhando fixamente para cima, para as trepadeiras exuberantes emaranhadas acima das suas cabeças. Para onde quer que olhasse, via espinhos. Deviam ter sido rosas um dia, e talvez voltassem a ser. E lá, olhe só, flores luzindo no escuro, eram glicínias. Ela adorava glicínias.

Por que essas colunas enormes não caem simplesmente? E ela já havia visto alguma vez colunas tão largas? Puxa, quando olhava todos aqueles esboços, nunca havia imaginado que a casa fosse nessa escala, é, essa grandiosidade típica do neoclássico. Mas a verdade era que ela não conhecia de fato ninguém que tivesse morado ali, pelo menos ninguém de quem pudesse se lembrar.

A moldura do teto da varanda estava toda estragada, e havia ali em cima um buraco imenso e horrendo que poderia abrigar uma jibóia gigante ou, quem sabe, um ninho cheio de baratas. Talvez as rãs comessem as baratas. As rãs coaxavam sem parar, um som agradável, muito forte e alto em comparação com o ruído mais delicado das cigarras de jardim.

— Mary Jane, aqui não tem barata, tem?

— Barata! Querida, aqui tem várias cobras venenosas e crocodilos agora, em grande quantidade. Os gatos comem as baratas.

Entraram deslizando pela porta da frente, e de repente o saguão surgiu amplo, enorme, impregnado do cheiro do reboco empapado, da cola do papel de parede descascado e da própria madeira, talvez. Ai, eram muitos os cheiros da podridão, do pântano, de criaturas vivas e da água ondulante que lançava sua luz espectral sobre as paredes e o teto, tantas ondulações de luz que daria para uma pessoa se entorpecer.

De repente, ela visualizou Ofélia sendo levada pelo córrego, com flores no cabelo.

Mas olhe só. Pelas portas enormes, dava para se ver um salão destruído e, no lugar em que a luz dançava na parede, os restos encharcados de uma cortina, tão escura agora com toda a água que havia absorvido que não se via mais a cor. Do teto caíam guirlandas soltas de papel de parede.

O pequeno barco atingiu a escada com um solavanco. Mona estendeu a mão e agarrou o corrimão, na certeza de que ele balançaria e cairia, mas isso não aconteceu. O que era bom também, porque mais uma dor a cingiu pelo meio, com uma fisgada profunda nas costas. Ela precisou prender a respiração.

— Mary Jane, temos de nos apressar.

— E você vem me dizer isso? Mona Mayfair, estou apavorada.

— Pois não fique. Tenha coragem. Morrigan precisa de você.

— Morrigan!

A luz do lampião estremeceu e foi subindo para iluminar o teto do segundo andar. O papel de parede era cheio de pequenos buquês, agora desbotados de tal modo que só restava a silhueta branca do buquê, a reluzir no escuro. Apareciam buracos enormes no reboco, mas ela não via nada através deles.

— As paredes são de tijolo. Não precisa se preocupar. Todas as paredes, internas e externas, de tijolo, como em First Street. — Mary Jane estava amarrando o barco. Parecia que elas haviam parado num degrau. Agora estavam firmes. Mona continuava agarrada à balaustrada com tanto medo de saltar do barco quanto de ficar nele.

— Vá subindo. Eu levo a tranqueira. Suba e siga direto para os fundos para cumprimentar vovó. Não se preocupe com os sapatos. Tenho muitos sapatos secos. Vou levar tudo lá para cima.

Com cuidado e gemendo um pouco, Mona estendeu as mãos para se segurar no corrimão com elas e saltou do barco, subindo desajeitada até sentir o piso firme aos seus pés e apenas degraus secos à sua frente.

Se não estivesse inclinada, teria dado uma impressão de perfeita segurança, pensou. E de repente ela estava ali parada, com uma das mãos no corrimão e a outra no reboco macio e esponjoso à sua esquerda. Olhando para cima, ela sentiu a casa ao seu redor, sentiu sua podridão, sua força, sua recusa obstinada a ruir na água que a devorava.

Era uma construção sólida e resistente, cedendo muito devagar, talvez parada nesse ponto para sempre. Mas, quando ela pensava no lodo, não sabia por que motivo não eram sugadas para o fundo agora mesmo, como bandidos em fuga numa areia movediça cinematográfica.

— Vá subindo — disse Mary Jane, que já havia descarregado uma bolsa de compras no degrau adiante de Mona. Com ela, era tudo rápido. Ela realmente estava se mexendo.

Mona começou a subir. É, quando chegou ao topo da escada, a casa erafirme e surpreendentemente seca, seca como se o sol da primavera tivesse sido extremamente quente, e o calor tivesse ficado preso ali, descorando as madeiras, olhe, é mesmo, descorando-as como se fossem tábuas carregadas pelas águas.

Chegou, afinal, ao segundo andar, calculando que o ângulo deveria ser inferior a cinco graus, o que já era suficiente para enlouquecer qualquer um. Apertou os olhos para ver melhor o final do corredor. Mais uma porta bonita e imponente, com bandeira e vitrais laterais, e lâmpadas elétricas presas a um ziguezague de fios suspensos do teto. Tela para mosquiteiro. Seria isso? Em enorme quantidade, e a luz elétrica, suave e uniforme, que a atravessava.

Ela deu alguns passos, ainda grudada à parede, que de fato agora lhe parecia firme e seca, e ouviu um risinho que vinha do final do corredor. E, quando Mary Jane subiu com o lampião na mão e o pôs no chão ao lado da bolsa no topo da escada, Mona viu uma criança parada no portal distante.

Era um menino, de pele muito escura, com grandes olhos negros, cabelos pretos e macios e um rosto como o de um santo hindu, que a espiava.

— Ei, Benjy, venha me ajudar com tudo isso aqui. Venha me ajudar! — gritou Mary Jane.

O menino veio andando e não era tão pequeno quando foi se aproximando. Ele talvez tivesse a mesma altura de Mona, o que não é grande coisa, já que Mona ainda não havia passado de l,55m e podia nunca vir a ultrapassar essa altura.

Ele era uma dessas belas crianças com uma enorme e misteriosa mistura de sangues: africano, ameríndio, espanhol, francês, provavelmente Mayfair. Mona sentiu vontade de tocar nele, de tocar seu rosto e ver se a pele daria a mesma impressão ao tato que dava ao olhar, como um couro curtido finíssimo. Ocorreu-lhe algo que Mary Jane dissera, a respeito de ele se vender no centro da cidade; e, num pequeno relance de secreta iluminação, ela viu quartos com papel de parede arroxeado, abajures com franjas, cavalheiros decadentes como Oncle Julien, usando ternos brancos, e para cúmulo ela mesma, na cama de latão, com esse menino adorável!

Loucura. A dor fez com que parasse novamente. Poderia ter caído ali mesmo. Mas com perfeita determinação, ela levantou um pé após o outro. Lá estavam os gatos, isso mesmo, meu Deus, gatos de bruxas, grandes, peludos, de longas caudas e olhos de demônio. Deviam ser uns cinco, a disparar ao longo das paredes.

O belo menino de cabelos negros e reluzentes passou por ela carregando duas bolsas de compras e seguiu pelo corredor. Até que tudo estava limpo ali, como se ele tivesse varrido e passado pano úmido.

Os sapatos de Mona estavam encharcados. Ela estava a ponto de cair.

— É você, Mary Jane? Benjy, é a minha menina? Mary Jane!

— Já vou, vovó, já vou. O que a senhora está fazendo, vovó?

Mary Jane passou correndo por Mona, segurando desajeitada o isopor, com os cotovelos muito abertos e os cabelos longos e finos a balançar.

— Oi, vovó! — Ela desapareceu na curva do corredor. — O que está fazendo aí?

— Comendo bolacha integral e queijo. Quer um pouco?

— Não, agora não. Me dê um beijo. A televisão quebrou?

— Não, querida. Só enjoei dela. Benjy esteve escrevendo minhas canções enquanto eu canto. Benjy.

— Ouça, vovó. Tenho de ir. Mona Mayfair está aqui comigo. Preciso levá-la para o sótão onde está bem quente e seco.

— Ah, sim, por favor — sussurrou Mona. Ela se encostou na parede que parecia inclinada para trás. Puxa, dava praticamente para se deitar numa parede inclinada como essa. Seus pés latejaram, e a dor voltou.

Mamãe, estou chegando.

Calma, querida, temos mais um lance de escadas pela frente.

— Você me traga Mona Mayfair aqui, traga Mona aqui.

— Não, vovó, agora não! — Mary Jane saiu voando do quarto, com a saia branca e rodada atingindo o batente da porta e os braços estendidos para Mona.

— Vá subindo, querida. Bem em frente. Agora dê a volta.

Houve um farfalhar e um estrondo. E bem na hora em que Mary Jane fazia Mona girar e apontava para o pé do próximo lance de escada, Mona viu uma mulherzinha ínfima, que saía precipitada do quarto dos fundos, com os cabelos grisalhos presos em longas tranças frouxas com fitas nas pontas. Seu rosto era como pano amarfanhado, com espantosos olhos negros, enrugados com aparente bom humor.

— Preciso me apressar — disse Mona, movendo-se com a máxima velocidade possível ao longo da balaustrada. — Estou ficando enjoada com a inclinação da casa.

— Você está enjoada com o bebê!

— Você vá na frente e acenda a luz — gritou a velha, grudando sua mãozinha surpreendentemente forte e seca no braço de Mona. — Por que não me disse que essa menina estava grávida? Meu Deus, é a filha de Alicia, a que quase morreu quando lhe tiraram o sexto dedo.

— O quê? De mim, é o que está dizendo? — Mona voltou-se para encarar o rostinho enrugado de boca pequena e retesada enquanto a velha fazia que sim.

— Quer dizer que eu tinha seis dedos? — perguntou Mona.

— Claro, meu amor. E você quase foi para o céu quando lhe deram a anestesia. Ninguém nunca lhe contou essa história? Da enfermeira que lhe deu a injeção duas vezes? Do seu coração que quase parou e de com Evelyn chegou e a salvou?

Benjy passou rápido por elas, subindo a escada, com os pés descalços fazendo um ruído empoeirado na madeira nua.

— Não, ninguém nunca me contou! Ai, meu Deus, seis dedos!

— Será que você não vê? Isso vai ajudar! — contestou Mary Jane Agora estavam prontas para subir, e parecia que eram uns cem degraus até a luz lá em cima e a silhueta magra de Benjy, que, depois de acender a luz, vinha agora descendo lânguida e lentamente, apesar de Mary Jane estar berrando com ele.

Vovó havia parado aos pés da escada. Sua camisola branca tocava o piso sujo. Os olhos negros avaliavam, julgavam Mona. Uma Mayfair, sem dúvida, pensou Mona.

— Apanhe os cobertores, os travesseiros, tudo — disse Mary Jane. — Depressa. E o leite, Benjy, apanhe o leite.

— Bem, espere aí um pouquinho — gritou vovó. — Essa menina não parece ter tempo para passar a noite aí no sótão. Ela devia estar indo para o hospital neste exato minuto. Onde está a picape? Sua picape está no embarcadouro?

— Não se preocupe com isso. Ela vai ter o bebê aqui — respondeu Mary Jane.

— Mary Jane — esbravejou a vovó. — Porcaria! Não posso subir essa escada por causa da minha bacia.

— Basta que volte para a cama, vovó. Faça com que Benjy corra com as coisas. Benjy, não vou lhe pagar nada!!!!

As duas continuaram pela escada do sótão, com o ar ficando mais quente à medida que subiam.

Era um espaço enorme.

O mesmo ziguezague de fios elétricos que havia visto embaixo. E olhe só os baús de viagem e os guarda-roupas enfiados em cada frontão. Em todos à exceção de um, que continha a cama bem ao fundo e ao seu lado um lampião de querosene.

A cama era imensa, construída com aqueles pilares escuros e lisos que eles usavam tanto no meio rural, já sem o dossel, só com o mosquiteiro esticado sobre o topo da estrutura, véus e mais véus. A tela de mosquiteiro fechava a entrada do frontão. Mary Jane levantou-a enquanto Mona se jogava no mais macio dos colchões.

Ah, tudo estava seco! Estava, sim! O edredom de plumas, fofo ao seu redor. Travesseiros e mais travesseiros. E o lampião de querosene, embora estivesse perigosamente próximo, fazia com que pensasse numa pequena tenda.

— Benjy! Vá apanhar o isopor agora.

— Chère, acabei de levar o isopor para a varanda dos fundos — disse o menino, ou teria dito algo semelhante, num sotaque típico dos descendentes de franceses. Não falava nem um pouco parecido com a velha. Ela fala praticamente como qualquer um de nós, pensou Mona, talvez um pouco diferente...

— Bem, pois vá apanhá-lo — insistiu Mary Jane.

O mosquiteiro captava toda a luz dourada e fazia dessa cama grande e macia um lugar lindo e solitário. Um belo lugar para morrer, talvez melhor do que o córrego com flores.

A dor voltou, mas dessa vez ela se sentia tão mais confortável. O que se devia fazer mesmo? Ela havia lido a respeito. Prenda a respiração, ou algo semelhante? Não conseguia se lembrar. Aí estava um assunto que não havia pesquisado meticulosamente. Meu Deus, e estava a ponto de acontecer.

Ela agarrou a mão de Mary Jane. Mary Jane estava deitada ao seu lado, olhando para seu rosto, enxugando sua testa agora com alguma coisa branca e macia, mais macia do que um lenço.

— Fale, querida, eu estou aqui. Sua barriga está cada vez maior. Mona, ele simplesmente não...

— Ele vai nascer — sussurrou Mona. — O bebê é meu. Ele vai nascer, mas, se eu morrer, vocês precisam fazer uma coisa por mim, você e Morrigan juntas.

— O quê!

— Façam um esquife de flores para mim...

— Fazer o quê?

— Cale a boca, estou falando de uma coisa realmente importante.

— Mary Jane! — berrou vovó dos pés da escada. — Você desça aqui e ajude Benjy a me levar aí para cima agora, menina!

— Façam uma jangada, uma jangada, toda cheia de flores, sabe? — prosseguiu Mona. — Glicínias, rosas, todas essas plantas que crescem aí fora, íris do pântano...

— Já sei, já sei, e depois?

— Só quero que façam a coisa frágil, frágil de verdade, para quê, enquanto eu for me afastando dentro dela, ela vá se desintegrando devagar na corrente, e eu afunde na água... como Ofélia.

— Está bem, como você quiser. Mona, agora eu estou apavorada. Estou com medo de verdade.

— Então, seja bruxa, porque agora não há como mudar a decisão de ninguém, certo?

Alguma coisa se partiu! Exatamente como se tivessem aberto um furo. Meu Deus, será que ela estava morta ali dentro?

Não, mãe, mas estou chegando. Por favor, prepare-se para segurar a minha mão. Eu preciso de você.

Mary Jane havia se encolhido sobre os joelhos, com as mãos espalmadas de cada lado do rosto.

— Pelo amor de Deus!

— Ajude o bebê, Mary Jane! Ajude! — gritou Mona.

Mary Jane fechou os olhos com força e pôs as mãos na montanha da barriga de Mona. A dor deixava Mona cega. Ela procurava enxergar, ver a luz na tela do mosquiteiro, ver os olhos espremidos de Mary Jane, sentir suas mãos e ouvir seus sussurros, mas não conseguia. Estava caindo. Caía do alto das árvores do pântano, com as mãos esticadas para cima, tentando agarrar os galhos.

— Vovó, venha ajudar! — gritou Mary Jane.

E lá veio o tamborilar dos passos rápidos da velha!

— Benjy, fora! — gritou a velha. — Volte lá para baixo, está me ouvindo?

Descendo cada vez mais fundo nos pântanos, com a dor apertando ainda mais. Deus do céu, não surpreende que as mulheres odeiem isso! Sem brincadeira. Isso é horrível. Deus me livre!

— Meu Senhor, Jesus Cristo, Mary Jane — exclamou vovó. — É um bebê que anda!

— Vovó, me ajude. Segure a mão dela. Segure. Vovó, você sabe o que ela é?

— É um bebê que anda, minha filha. Ouvi falar neles a vida inteira, mas nunca vi um sequer. Meu Deus, menina. Quando eu era criança e Ida Bell Mayfair deu à luz um bebê que anda lá no meio do pantanal, diziam que ele era mais alto do que a mãe assim que saiu andando e que Grandpère Tobias foi até lá e o picou em pedaços a machadadas enquanto a mãe berrava ali deitada na cama! Você nunca ouviu falar dos bebês que andam, menina? Em São Domingos, eles eram queimados.

— Não, não o meu bebê! — gritou Mona. Ela tateava às cegas, procurando abrir os olhos. Meu Deus, a dor. E de repente uma mão pequena e escorregadia segurou a dela. Não morra, mamãe.

— Ai, Ave Maria, cheia de graça — disse vovó, e Mary Jane começou a mesma oração, só que uma frase atrasada, como se fosse um cânone. — Bendita sois entre as mulheres, e bendito é...

— Olhe para mim, mamãe! — O sussurro vinha de bem junto do seu ouvido. — Olhe para mim! Mamãe, eu preciso de você. Eu preciso. Ajude-me. Faça com que eu cresça, cresça, cresça muito.

— Cresça! — exclamaram as mulheres, mas suas vozes soavam distantes. — Cresça! Ave Maria, cheia de graça, ajude-a a crescer.

Mas ela já estava caindo para sempre por entre as árvores, e de repente alguém agarrou suas duas mãos, sim, e ela olhou para cima em meio à luz verde e cintilante e viu seu próprio rosto ali! Seu próprio rosto, pálido, com as mesmas sardas, os mesmos olhos verdes e a cabeleira ruiva caindo em desalinho. Seria ela mesma, estendendo a mão para impedir a própria queda, para salvá-la? Aquele era o seu próprio sorriso?

— Não, mamãe, sou eu. — As duas mãos seguraram as suas. — Olhe para mim. É Morrigan.

Ela abriu os olhos devagar. Arfou procurando respirar, respirar apesar do peso, procurando erguer a cabeça, alcançar esses lindos cabelos ruivos, levantar-se o suficiente para... só segurar esse rosto, segurá-lo e lhe dar um beijo.

 

NEVAVA QUANDO ELA ACORDOU. Estava usando uma camisola comprida de algodão que lhe deram, algo bem grosso para os invernos de Nova York, e o quarto era muito branco e silencioso. Michael dormia profundamente no seu travesseiro.

Ash trabalhava no andar inferior, no escritório, ou foi isso o que lhe disse que ia fazer. Ou talvez tivesse terminado suas obrigações e também tivesse ido dormir.

Ela não ouvia nada nesse quarto de mármore, nas alturas quietas e nevosas de Nova York. Parou junto à janela, olhando para o céu cinzento lá fora e para os flocos de neve que se tornavam visíveis, surgindo pequenos e nítidos só para cair pesadamente sobre os telhados à sua volta, sobre o peitoril da janela e mesmo em rajadas suaves e graciosas contra a vidraça.

Dormira seis horas. Isso bastava.

Vestiu-se com o menor ruído possível, tirando da mala um vestido preto simples, mais um traje novo e caríssimo escolhido por outra mulher e talvez mais extravagante do que qualquer coisa que ela pudesse ter comprado para si mesma. Pérolas e mais pérolas. Sapatos amarrados no peito do pé, mas com os saltos perigosamente altos. Meias pretas. Um toque de maquiagem.

E em seguida saiu andando pelos corredores silenciosos. Aperte o botão com a letra M, disseram-lhe, e verá as bonecas.

Bonecas. O que ela sabia de bonecas? Na infância, haviam sido sua paixão secreta, paixão que sempre tivera vergonha de confessar a Ellie e Graham ou até mesmo às suas amigas. No Natal, pedia estojos de química, uma raquete nova de tênis ou novos equipamentos de som para seu quarto.

O vento uivava no poço do elevador, como se fosse numa chaminé. Ela gostava do som.

As portas do elevador se abriram, revelando uma cabine com lambris de madeira e espelhos rebuscados, que ela mal se lembrava de ter visto pela manhã, quando haviam chegado pouco antes do amanhecer. Haviam partido ao amanhecer. Haviam chegado ao amanhecer. Seis horas lhes haviam sido devolvidas. Já era noite para seu corpo, e ela se sentia alerta, pronta para a noite.

Lá foi ela descendo, num silêncio mecânico, ouvindo os uivos, pensando em como eram perfeitamente fantasmagóricos e se perguntando se Ash também gostava deles.

Devia ter havido bonecas no início, bonecas de que não se lembrava. Não é verdade que todo mundo compra bonecas para as meninas? Talvez não. Talvez sua amorosa mãe adotiva soubesse da existência das bonecas das bruxas no baú no sótão, feitas com ossos e cabelos de verdade. Talvez ela soubesse que havia uma boneca para cada bruxa Mayfair do passado. Quem sabe as bonecas não causavam aflição a Ellie? E há pessoas que, independentemente de criação, preferências ou fé religiosa, simplesmente têm medo de bonecas.

Ela teria medo de bonecas?

As portas se abriram. O olhar de Rowan caiu sobre vitrinas de vidro, ferragens de latão, os mesmos pisos de mármore antigo e brilhante. Uma placa de latão na parede dizia com simplicidade: COLEÇÃO PARTICULAR.

Ela saiu, deixando a porta se fechar às suas costas, e percebeu que estava num salão amplo e profusamente iluminado.

Bonecas. Para onde se voltasse, via seus espantados olhos de vidro, seus rostos perfeitos, suas bocas entreabertas com uma expressão franca e enternecedora de pasmo.

Numa enorme vitrina, bem diante de onde estava, havia uma boneca de quase um metro de altura, feita de biscuit, com longas tranças de mohair e um vestido de seda desbotada de corte impecável. Era uma bela francesa do ano de 1888, fabricada por Casimir Bru, dizia o cartãozinho aos seus pés, talvez o maior criador de bonecas do mundo.

Quer se gostasse dela, quer não, a boneca era surpreendente. Os olhos azuis eram profundos, amendoados e cheios de luz. As mãos de porcelana, de um rosa pálido, eram tão bem-feitas que pareciam prestes a se mover. Mas era o rosto da boneca, naturalmente, era a sua expressão oque tanto cativou Rowan. As sobrancelhas primorosamente pintadas eram apenas um pouquinho diferentes, o que dava movimento ao seu olhar. Ela parecia curiosa, inocente e pensativa.

Não se podia duvidar de que fosse incomparável no gênero. E não importava se tivesse querido bonecas ou não na infância, Rowan sentia agora um desejo de tocar essa boneca, de apalpar suas bochechas redondas e bem rosadas, de talvez beijar seus lábios ligeiramente entreabertos, de tocar com a ponta do dedo os seios de formato sutil, tão eróticos sob o corpete apertado. Era óbvio que seus cabelos dourados estavam raleados com a idade. E seus elegantes sapatinhos de couro estavam gastos e rachados. Mas o efeito permanecia eterno, irresistível, "alegre para sempre". Rowan teve vontade de abrir a vitrina e segurar a boneca no colo.

Rowan viu-se embalando a boneca, como se fosse um recém-nascido, e cantando para ela, muito embora não se tratasse de nenhum bebê. Era apenas uma menininha. Usava nas orelhas modeladas com perfeição pequenas contas azuis. No pescoço, um colar bonito, talvez de mulher. Na realidade, considerando-se todos os aspectos, não se tratava absolutamente de uma criança, mas de uma mulherzinha sensual, com um frescor extraordinário, talvez uma coquete esperta e perigosa.

Uma ficha esclarecia suas características especiais, suas dimensões o fato de estar usando seus trajes originais, de estar perfeita, de ter sido a primeira boneca adquirida por Ash Templeton. E mais nenhuma identificação de Ash Templeton era dada ou parecia se fazer necessária.

A primeira boneca. E ele lhe dissera rapidamente, ao lhe falar do museu, que a havia visto quando ela era nova na vitrina de uma loja em Paris.

Não surpreendia que ela tivesse seduzido seu olhar e seu coração. Não surpreendia que ele a tivesse carregado consigo ao longo de um século. Não surpreendia que ele tivesse criado essa enorme empresa como uma espécie de tributo à boneca, para levar, nas suas próprias palavras, "sua graça e beleza em novas formas a todos".

Não havia nisso nada de trivial, mas sim algo de um mistério delicioso. Perplexa, sim, irônica, pensativa, uma boneca com seus próprios planos.

Ao ver isso, compreendo tudo, pensou ela.

Seguiu em frente, em meio às outras peças em exposição. Viu outras pérolas dos franceses, a obra de Jumeau e Steiner e de outros cujos nomes ela não conseguiria nunca lembrar, e centenas e mais centenas de menininhas francesas de rosto redondo de lua cheia, minúsculas boquinhas vermelhas e os mesmos olhos amendoados.

— Ah, como vocês são inocentes — sussurrou ela. E ali estavam as bonecas com trajes de época, com suas anquinhas e seus chapéus primorosos.

Poderia passar horas vagando por ali. Havia muito mais a ver do que imaginara. E o silêncio era tão sedutor, a vista da neve incessante lá fora.

Mas ela não estava só.

Através de diversas barreiras de vidro, viu que Ash a acompanhava e a observava, talvez já há algum tempo. O vidro deformava ligeiramente sua expressão. Ela ficou feliz quando ele se movimentou.

Ele veio na sua direção, não fazendo absolutamente nenhum som no mármore, e ela viu que ele trazia nas mãos a linda boneca Bru.

— Pronto, pode abraçá-la  — disse ele.

— Ela é frágil — disse Rowan, baixinho.

— É uma boneca — respondeu ele.

Só segurar sua cabeça na palma da mão esquerda despertou em Rowan um sentimento fortíssimo. Ouviu-se um barulhinho delicado dos seus brincos, tilintando no pescoço de porcelana. Sua cabeleira era macia, apesar de frágil, e a costura da peruca estava visível em muitos pontos.

Ah, mas ela adorava aqueles dedinhos. Adorava as meias de renda e as anáguas de seda, muito velhas, muito desbotadas, prestes a se rasgar ao menor toque.

Ash estava muito imóvel, olhando para ela, com o rosto descansado, de uma beleza quase irritante, o cabelo grisalho escovado de modo a reluzir, as mãos unidas com as pontas dos dedos abaixo dos seus lábios. Hoje seu terno era de seda branca, muito folgado, moderno, provavelmente italiano, ela sinceramente não sabia. A camisa era de seda negra e a gravata branca. Bem como uma visão decorativa de um gangster, um homem misterioso, alto e esguio, com enormes abotoaduras de ouro e sapatos sociais ridiculamente bonitos em branco e preto.

— Que sensação lhe provoca a boneca? — perguntou, inocente, como se realmente quisesse saber.

— Ela tem valor — disse ela, baixinho, com medo de que sua voz saísse mais alta do que a dele. Ela passou a boneca para as mãos dele.

— Valor — repetiu ele. Virou a boneca, olhou para ela e fez alguns gestos muito rápidos e naturais de arrumá-la, de ajeitar seu cabelo, de acertar os babados do seu vestido. Ele a ergueu então, deu-lhe um beijo carinhoso e a abaixou lentamente, contemplando-a novamente. — Valor — disse ele e olhou para Rowan. — Mas o que ela a faz sentir?

— Tristeza — disse Rowan, dando meia-volta, com a mão na vitrina ao seu lado e os olhos na boneca alemã, infinitamente mais natural, sentada ali dentro numa pequena cadeira de madeira. MEIN LIEBLING dizia a ficha. Era muito menos decorativa e exagerada. Não era a criatura sedutora da imaginação de qualquer um, e no entanto era radiante, e tão perfeita quanto a Bru, cada uma no seu gênero.

— Tristeza? — perguntou ele.

— Tristeza por uma feminilidade que perdi ou que nunca tive. Não lamento nada, mas a sensação é de tristeza, tristeza por algo com que eu talvez tenha sonhado quando era menina, não sei. — Voltou, então, a olhar para ele. — Não posso mais ter filhos. Meus filhos foram monstros aos meus olhos. E meus filhos estão enterrados juntos, à sombra de uma árvore.

Ele inclinou a cabeça, concordando com ela. Sua expressão demonstrava com eloqüência sua solidariedade, e ele não disse palavra.

Havia outras coisas que ela queria dizer: que não imaginara existir tamanha beleza ou esmero no reino das bonecas, que não imaginara que pudesse ser tão interessante olhar para elas, ou que elas fossem tão diferentes umas das outras, que seu encanto fosse tão óbvio e simples.

No entanto, por trás desses pensamentos, nas profundezas do ponto mais gélido do seu coração, estava pensando que a beleza delas era uma beleza triste, embora ela desconhecesse o motivo, e que a dele também era.

De repente, teve a impressão de que, se ele quisesse beijá-la agora, se fosse esse o seu desejo, ela cederia sem dificuldade, que seu amor por Michael não a impediria de ceder, e ela esperava ansiosa que nenhum pensamento dessa natureza passasse pela cabeça de Ash.

Na verdade, não ia dar tempo para isso. Cruzou os braços e passou por ele, entrando numa área ainda inexplorada, onde dominavam as bonecas alemãs. Aqui havia crianças sorridentes e amuadas, menininhas sem graça em vestidos de algodão. Mas ela agora não estava vendo as peças em exibição. Não conseguia parar de pensar que ele estava logo atrás dela, a observá-la. Ela sentia essa observação, ouvia o leve som da sua respiração.

Finalmente, ela olhou para trás. Seus olhos a surpreenderam. Estavam excessivamente carregados de emoção, por demais tomados de um conflito óbvio e de pouquíssimo esforço, se é que algum, no sentido de esconder isso dela.

Se você fizer isso. Rowan, pensou ela, perderá Michael para sempre. E ela baixou os olhos devagar e se afastou com passos lentos e delicados.

— Este é um lugar mágico — disse ela, sem olhar para trás. — Mas estou tão ansiosa por nossa conversa, por ouvir sua história, que poderia apreciá-lo melhor em outra hora.

— É claro, e Michael já está acordado. Michael deve estar quase terminando o café da manhã. Por que não vamos lá para cima? Estou pronto para a agonia. Estou pronto para o estranho prazer de relatar a história toda.

Ela ficou olhando enquanto ele colocava a grande boneca francesa de volta na sua vitrina. Mais uma vez seus dedos magros fizeram gestos rápidos, apressados, para lhe ajeitar a cabeleira e as saias. Ele depois beijou os próprios dedos e mandou esse beijo para a boneca. Fechou, então, a vidraça e girou a pequena chave dourada, que guardou em seguida.

— Vocês são meus amigos — disse ele, voltando-se para encarar Rowan. Ele estendeu o braço passando por Rowan e apertou o botão que os levaria à torre. — Acho que estou amando vocês. O que é perigoso.

— Não quero que seja perigoso — disse ela. — Estou fascinada demais por você para querer que nosso conhecimento um do outro magoe ou decepcione. Mas quero que me diga, quanto ao atual estado de coisas, você ama a nós dois?

— Amo, sim, ou estaria lhe implorando de joelhos que me deixasse fazer amor com você. — Sua voz baixou para um sussurro. — Eu a seguiria até o fim do mundo.

Ela se voltou para o outro lado, entrando no elevador, com o rosto esfogueado e a mente desnorteada por um instante. Viu um relance magnífico das bonecas na sua elegância antes que as portas se fechassem.

— Desculpe-me por ter dito isso — sussurrou ele, com timidez. — Foi uma atitude desleal, contar e negar. Não foi certo.

— Eu o perdôo — murmurou ela, baixando a cabeça em sinal de anuência. — Estou... estou muito lisonjeada. Será que essa não é a palavra certa?

— Não, "intrigada" é a palavra que procura. Ou "fascinada", mas na realidade não está lisonjeada. E você o ama com tanta entrega que eu sinto o fogo da paixão quando estou com vocês. Eu quero isso. Quero que a sua luz brilhe sobre mim. Eu jamais deveria ter dito aquelas palavras.

Ela não respondeu. Se tivesse pensado numa resposta, poderia tê-la dado, mas nada de fato lhe ocorreu. A não ser que ela não conseguia imaginar ser separada de Ash neste exato momento, e imaginava que o mesmo acontecia com Michael. Sob certo aspecto, Michael parecia precisar mais de Ash do que ela própria, embora Michael e ela não tivessem tido realmente um instante para tocar nesse assunto.

Quando as portas se abriram, ela se encontrou numa ampla sala de estar, com o piso em mármores cor-de-rosa e creme, com o mesmo tipo de mobiliário de couro grande e aconchegante que havia no avião. Essas poltronas eram mais macias, maiores e, no entanto, surpreendentemente semelhantes, como se projetadas para o conforto.

E mais uma vez eles se reuniram em volta de uma mesa, só que dessa vez ela era muito baixa e havia sido arrumada com uma dúzia ou mais de pequenas porções de queijos, castanhas, frutas e pães que eles poderiam comer à medida que as horas fossem passando.

Um copo alto de água gelada era tudo o que Rowan precisava agora.

Michael, usando seus óculos de aro de tartaruga e um paletó esportivo de tweed já gasto, estava sentado, debruçado sobre o New York Times do dia.

Só quando os outros dois já estavam sentados foi que ele desviou a atenção do jornal, dobrou-o e o pôs de lado.

Ela não queria que ele tirasse os óculos. Eles lhe pareciam extremamente sedutores. E de repente ocorreu-lhe a idéia, que a fez sorrir, de que gostava muito de ter esses dois homens ali, um de cada lado.

Fantasias indefinidas de um ménage à trois passaram velozes pela sua mente, mas, ao que ela soubesse, esse tipo de relação nunca dava certo de verdade. E ela não conseguia imaginar Michael nem tolerando a situação, nem participando dela da forma que fosse. No fundo, era mais agradável pensar nas coisas exatamente como eram.

Você tem mais uma chance com Michael, pensou ela. Sabe que tem, não importa o que ele possa estar pensando. Não jogue fora o único amor que realmente teve significado para você. Seja madura o suficiente, tenha suficiente paciência para tipos de amor, para suas estações, acalme sua alma para que, quando a felicidade voltar, se é que um dia ela volta, você saiba.

Michael guardara os óculos. Recostara-se descansando um tornozelo no joelho da outra perna.

Ash também estava à vontade na sua poltrona.

Nós somos o triângulo, pensou ela, e eu sou a única pessoa por aqui com os joelhos nus e os pés recatados para um lado, como se tivesse algo a ocultar.

Isso a fez rir. O aroma do café a distraiu. Ela percebeu que o bule e a xícara estavam bem diante dela, ao seu alcance.

No entanto, Ash esticou-se para servi-la antes que ela o fizesse, e colocou a xícara na sua mão. Ele estava à sua direita, mais perto dela do que havia estado no avião. Todos estavam mais próximos. E ali estava novamente o triângulo eqüilátero.

— Deixem-me simplesmente falar com vocês — disse Ash. De repente. Ele voltara a unir os dedos em forma de oração, empurrando-os contra o lábio inferior. As extremidades internas das suas sobrancelhas se uniram levemente e depois o cenho se desanuviou e a voz prosseguiu, com um toque de tristeza. — É difícil para mim, muito difícil, mas é o que quero fazer.

— Eu me dou conta disso — disse Michael. — Mas por que você tem esse desejo? Ora, é claro que eu estou morrendo de vontade de ouvir sua história, mas por que para você valeria a pena contá-la?

Ash pensou um pouco, e Rowan mal podia suportar ver os ínfimos sinais de tensão nas suas mãos e no seu rosto.

— Porque quero que vocês gostem de mim — disse Ash, baixinho.

Mais uma vez, ela ficou perplexa, e só um pouco triste.

Michael, porém, apenas sorriu com sua franqueza habitual.

— Então, conte-nos tudo, Ash. Vá falando.

Ash riu de imediato. E depois todos se calaram, mas era um silêncio agradável.

E ele começou.

 

TODOS OS TALTOS NASCEM SABENDO COISAS: fatos históricos, lendas inteiras, certas canções, a necessidade de certos rituais, a língua da mãe, as línguas faladas ao redor dela, os conhecimentos básicos da mãe e provavelmente também seus conhecimentos mais sofisticados.

Na realidade, esses talentos fundamentais são parecidos com um veio de ouro não mapeado numa montanha. Nenhum Taltos sabe quanto poderá extrair dessa memória residual. Com esforço, podem ser descobertos aspectos espantosos dentro da nossa própria mente. Alguns Taltos chegam a encontrar seu caminho de volta até Donnelaith, embora ninguém saiba por que motivo. Alguns são atraídos pela região mais distante da costa norte de Unst, a ilha situada mais ao norte na Grã-Bretanha, para ficar olhando por sobre Burrafirth no farol de Muckle Flugga, à procura da terra perdida onde nascemos.

A explicação para isso está na química do cérebro. É provável que ela seja decepcionante de tão simples, mas nós não chegaremos a compreendê-la enquanto não soubermos exatamente por que o salmão volta ao rio onde nasceu, para procriar, ou por que uma certa espécie de borboleta sabe como encontrar o caminho até uma minúscula área da floresta quando chega a hora de se reproduzir.

Somos dotados de uma audição superior. Ruídos altos nos ferem. A música chega a nos paralisar. Temos de ter extremo cuidado com a música. Conhecemos outro Taltos instantaneamente pelo faro ou pela visão. Conhecemos bruxos quando os vemos. E a presença de bruxos é sempre avassaladora. Um bruxo é aquele ser humano que, para o Taltos, não pode ser ignorado.

Mas voltarei a falar mais nesses pontos á medida que a história for prosseguindo. Quero dizer agora, no entanto, que ao meu ver não temos duas vidas, como imaginava Stuart Gordon, embora essa possa ter sido uma crença enganosa repetida com freqüência entre os humanos durante algum tempo. Quando exploramos nossas lembranças raciais mais remotas, quando avançamos corajosos pelo passado adentro, logo nos damos conta de que essas não podem ser as lembranças de uma alma individual.

Seu Lasher era uma alma que havia vivido antes, sim. Uma alma sem descanso que se recusava a aceitar a morte e que fez uma trágica e desastrada volta à vida, pela qual outros pagaram o preço.

Na época do rei Henrique e da rainha Ana, o Taltos não passava de uma lenda da Escócia. Lasher não sabia explorar as lembranças com as quais nasceu. Sua mãe era apenas humana, e ele decidiu tornar-se humano, á semelhança de muitos Taltos.

Quero dizer que, para mim, a vida de verdade começou quando ainda éramos um povo na terra perdida, e a Grã-Bretanha era a terra do inverno. Nós sabíamos da existência da terra do inverno, mas nunca íamos até lá porque sempre fazia calor na nossa ilha. Minhas lembranças primordiais eram todas daquela terra. Elas eram repletas de sol e inconseqüentes. E desbotaram sob o peso dos acontecimentos desde então, sob o puro peso da minha longa vida e das minhas reflexões.

A terra perdida ficava no mar ao norte, dentro do alcance visual da costa de Unst, embora muito indefinida, como já mencionei, num lugar em que a Corrente do Golfo daquela época parecia deixar os mares bastante temperados quando atingiam nosso litoral.

Mas agora, quando me lembro dela, acredito que a terra abrigada em que de fato nos desenvolvemos era nada mais do que a cratera gigantesca de um imenso vulcão, com quilômetros de largura, que se apresentava como um vale fértil cercado de penhascos belos porém ameaçadores, um vale tropical com inúmeros gêiseres e fontes mornas que borbulhavam da terra para criar pequenos córregos e, finalmente, enormes lagoas, lindas e cristalinas. O ar era sempre úmido, as árvores que cresciam em volta dos nossos pequenos lagos e riachos, imensas, as samambaias, também gigantescas, e os frutos de todos os tipos e cores, mangas, peras, melões de todos os tamanhos, sempre abundantes. Os penhascos, enfeitados com trepadeiras de uvas e frutinhas silvestres, e os pastos, sempre verdes e abundantes.

A melhor fruta era a pêra, que é quase branca. Os melhores frutos do mar eram a ostra, o mexilhão, a lapa, e esses também eram brancos. Havia fruta-pão, que era branca ao ser aberta. Havia leite das cabras, se se conseguisse pegá-las, mas esse leite não era tão bom quanto o leite da sua mãe ou das outras mulheres que permitiam que aqueles que amavam consumissem seu leite.

Era raríssimo que os ventos penetrassem no vale, isolado como era do litoral, a não ser por duas ou três passagens. A costa era perigosa, pois embora a água fosse mais aquecida do que no litoral da Grã-Bretanha, ela ainda assim era fria, com ventos violentos que podiam carregar uma pessoa. Na verdade, se um Taltos quisesse morrer, o que chegava a acontecer, ao que me disseram, esse Taltos saía e entrava pelo mar adentro.

Embora eu nunca possa vir a saber, imagino que nossa terra fosse uma ilha, muito grande, porém uma ilha. Era costume de alguns daqueles de cabeça muito branca dar uma caminhada ao redor dela, seguindo pelas praias, e me disseram que esse passeio levava muitos e muitos dias.

O fogo nós sempre havíamos conhecido, porque havia locais no alto das montanhas em que o fogo saía direto da terra. A própria terra quente, lava derretida, escorria num filete ínfimo de alguns desses lugares até o mar.

Nós sempre soubemos como obter fogo, mantê-Io aceso, alimentá-lo e fazer com que durasse. Usávamos o fogo para iluminar as longas noites do inverno, embora não tivéssemos um nome para essa estação, e não fizesse frio. Usávamos o fogo eventualmente para preparar grandes banquetes, mas na maior parte do tempo isso não era necessário. Às vezes usávamos fogo no círculo quando estava ocorrendo um nascimento. Dançávamos em volta do fogo e às vezes brincávamos com ele. Eu nunca presenciei sequer um incidente em que um de nós fosse ferido pelo fogo.

Até onde os ventos da terra conseguem carregar sementes, pássaros, ramos, galhos, árvores desenterradas, eu não faço idéia, mas aquilo que gostava do calor vicejava nessa terra, e foi ali que nós começamos.

De quando em quando, algum de nós falava de ter visitado as ilhas da Grã-Bretanha, conhecidas atualmente como Shetlands ou Órcades, ou até mesmo chegado ao litoral da Escócia. As ilhas do inverno, era como nós as chamávamos, ou em termos mais literais, as ilhas do frio penetrante. Essa era sempre uma história empolgante. Às vezes um Taltos era carregado de um barco pelas ondas e conseguia de algum modo nadar até a terra do inverno, para lá fazer uma jangada que o trouxesse de volta à sua terra.

Havia Taltos que saiam ao mar com o propósito de procurar aventuras em embarcações de troncos escavados e, se não morressem afogados, costumavam voltar para casa, quase mortos de frio, e nunca mais viajavam até a terra do inverno.

Todos sabiam que havia naquela terra feras cobertas de pêlo, que matariam uma pessoa se pudessem. E assim tínhamos uma enorme quantidade de lendas, idéias, noções enganosas e canções sobre as neves do inverno, os ursos das florestas e o gelo que flutuava em blocos imensos nos braços de mar.

Muito raramente, acontecia de um Taltos cometer um crime. Ele ou ela procriaria sem permissão e geraria um novo Taltos que, por um motivo ou outro, não era bem-vindo. Ou alguém feriria outro deliberadamente, e esse outro morreria. Era muito raro. Só ouvi falar nisso. Nunca vi ocorrer. Mas esses proscritos eram levados até a Grã-Bretanha nas embarcações maiores e lá deixados para morrer.

Por sinal, nós não conhecíamos o verdadeiro ciclo das estações, pois para nós até mesmo o verão da Escócia era de um frio mortal. Calculávamos o tempo apenas pela lua e, ao que eu me lembre, não dispúnhamos do conceito de ano.

É claro que havia uma lenda que se ouve por todo o planeta sobre um tempo anterior à lua.

E essa era a época lendária antes do tempo, ou era o que imaginávamos, mas ninguém realmente se lembrava dela.

Não sei lhes dizer quanto tempo vivi naquela terra antes que ela fosse destruída. Eu conheci naquela terra o cheiro forte do Taltos, mas ele era natural como o ar. Só mais tarde ele se tornou distinto, a marcar, a diferença entre Taltos e humanos.

Lembro-me do meu Primeiro Dia, como todos os faltos. Eu nasci, minha mãe me amava, passei horas com meu pai e minha mãe a conversar e depois subi aos altos rochedos pouco abaixo da borda da cratera, onde ficavam sentados os de cabelos brancos, que falavam sem parar. Mamei na minha mãe por anos a fio. Sabia-se que o leite secaria se a mulher não permitisse que outros tomassem dos seus seios e que não voltaria enquanto ela não tivesse outro filho. As mulheres não queriam que o leite secasse nunca e adoravam que os homens mamassem nelas. Isso lhes dava um prazer divino, essa estimulação, e era um costume normal o de deitar com uma mulher e deixar que o ato de chupar, a estimulação, de uma forma ou de outra, fosse toda a amplitude do amor. É claro que o sêmen do Taltos era branco, como o sêmen dos seres humanos.

Naturalmente, as mulheres mamavam nas mulheres e provocavam os homens por seus mamilos não darem leite. Mas a verdade era que se acreditava que o nosso sêmen era como o leite, não tão delicioso, mas ao seu próprio modo bom e nutritivo.

Uma das brincadeiras consistia em machos encontrarem uma fêmea que estivesse só, caírem sobre ela e sugarem seu leite até que outros ouvissem seus protestos e viessem nos afastar dali. Mas ninguém teria pensado em fazer mais um Taltos com aquela mulher! E se ela realmente não quisesse que tomássemos seu leite, bem, dentro de um tempo razoável, nós parávamos.

De vez em quando as mulheres também se juntavam em gangues para atacar outras mulheres. E a beleza tinha muito a ver com a atração daquelas que eram procuradas para esse tipo de prazer. A personalidade estava sempre envolvida. Tínhamos personalidades distintas, embora todo mundo quase sempre vivesse de bom humor.

Havia costumes. Mas não me lembro de leis.

A morte ocorria a um Taltos por acidente. E, como os Taltos são brincalhões por natureza, na realidade fisicamente agitados e inconseqüentes, muitos Taltos estavam sempre morrendo de acidentes, por terem escorregado de um penhasco, terem se engasgado com um caroço de pêssego ou por terem sido mordidos por algum roedor do mato, ataque este que provocava uma hemorragia que não se podia estancar. Era raríssimo que um Taltos quebrasse um osso quando jovem. Mas assim que a pele começasse a perder sua maciez de bebê e surgissem talvez alguns cabelos brancos na cabeça, bem, nessa idade, ele poderia morrer de uma queda dos penhascos. E era durante esse período, creio eu, que a maioria dos Taltos morria. Éramos um povo com gente de cabelos brancos, louros, ruivos e negros. Não tínhamos muitas pessoas com cabelos mistos, e é claro que, em números, os jovens suplantavam de longe os velhos.

Eventualmente abatia-se sobre o vale uma peste que reduzia drasticamente nossa população, e as histórias da peste eram as mais tristes que chegavam a ser contadas.

No entanto, eu ainda não sei o que era essa peste. As que matam os humanos parecem não nos matar.

Eu me "lembrava" da peste e de cuidar dos enfermos. Nasci sabendo obter fogo e trazê-lo com segurança para o vale. Sabia também fazer fogo, para não ter de sair para buscá-lo, embora conseguir fogo de alguém fosse a maneira mais fácil. Nasci sabendo preparar mexilhões e lapas no fogo. Sabia também fazer uma pasta preta para pintura, com as cinzas da fogueira.

Voltando, porém, ao tema da morte, não havia assassinato. Não era crença generalizada a de que um Taltos tivesse o poder de matar outro Taltos. Na verdade, se você chegasse a brigar e empurrasse alguém de cima de um penhasco, e essa pessoa caísse e morresse, ainda se tratava de um "acidente". Você não havia feito aquilo realmente, embora os outros pudessem condená-lo por sua imprudência assombrosa, e pudessem até mesmo mandá-lo embora.

Era certo que os de cabelos brancos que gostavam de contar histórias estavam vivos há mais tempo do que todos, mas ninguém os considerava velhos. E se eles fossem se deitar uma noite e não acordassem pela manhã, supunha-se que eles tivessem morrido de um golpe de algum acidente que não havia sido observado. Os de cabelos brancos costumavam ter a pele muito fina, tão fina que quase dava para se ver o sangue circulando debaixo dela, e era freqüente que tivessem perdido seu cheiro. Afora isso, no entanto, não conhecíamos a idade sob nenhum aspecto.

Ser velho consistia simplesmente em saber as histórias melhores e mais longas, ter histórias a contar sobre Taltos que não mais existiam.

As histórias eram contadas em versos brancos, eram entoadas como canções ou às vezes simplesmente se derramavam numa enxurrada, com uma abundância de imagens, ritmos, fragmentos de melodias e muito riso. Contar, contar era prazeroso. Contar era magnífico. Contar era o lado espiritual da vida.

O lado material da vida?Não tenho certeza se isso existia, no sentido rigoroso da expressão. Não havia a noção de propriedade, a não ser talvez a de instrumentos musicais ou de pigmentos para pintura, mas até mesmo esses eram compartilhados com bastante liberalidade. Tudo era tranqüilo.

De quando em quando, o mar trazia uma baleia à praia. E, quando a carne apodrecia, nós costumávamos tirar os ossos e fazer objetos com eles, mas para nós eles eram brinquedos. Cavar na areia era uma diversão. Cavar em volta de rochas soltas para vê-las cair morro abaixo era uma diversão. Até entalhar pequenas formas e círculos no osso com uma pedra afiada ou com outro osso, tudo era brincadeira.

Mas contar histórias, ah, isso exigia um talento respeitável e uma verdadeira memória. Não apenas a lembrança do que estava na nossa própria cabeça, mas a lembrança do que outras pessoas haviam lembrado e contado também.

Vocês vêem aonde quero chegar. Nossas premissas quanto à vida e à morte estavam baseadas nessas condições e noções especiais. A obediência era natural ao Taltos. Ser agradável parecia ser natural. Raramente surgia um rebelde ou um visionário, até o sangue humano se misturar ao nosso.

Havia pouquíssimas mulheres de cabelos brancos, talvez uma para cada vinte homens. E essas mulheres eram muito requisitadas, pois sua fonte estava seca, como a de Tessa, e elas não procriavam quando se entregavam aos homens.

Geralmente, porém, os partos matavam as mulheres, embora nunca fizéssemos essa afirmação na época. Eles as enfraqueciam e, se uma mulher não tivesse morrido no seu quarto ou quinto parto, quase sempre ela adormecia depois e morria. Muitas mulheres não tinham absolutamente nenhuma vontade de ter filhos, ou o faziam apenas uma vez.

O nascimento sempre se seguia ao acasalamento verdadeiro de um par de Taltos puros. Foi só mais tarde, quando nos misturamos aos humanos, que as mulheres ficaram esgotadas, como Tessa, pelas repetidas hemorragias. Mas os Taltos que descendem de origens humanas apresentam muitos traços que lhes são exclusivos e que detalharei na hora adequada. E quem sabe se Tessa teve filhos? É perfeitamente possível, como vocês sabem.

Em geral, ter filhos era algo que a mulher realmente queria. Mas não durante um longo período após seu nascimento. Os homens queriam o tempo todo, porque lhes dava prazer. Mas ninguém que pensava em sexo ignorava o fato de que uma criança nasceria, da mesma altura da própria mãe, ou mais alta, e assim ninguém pensava em fazer amor só pelo prazer.

Só pelo prazer era mulher fazendo amor com mulher de diversas formas, e homem com homem; ou um homem podia encontrar uma bela de cabelos brancos que agora estava livre para o prazer. Ou ainda um macho podia ser abordado por diversas virgens, todas ansiosas por terem um filho dele. Um prazer era encontrar eventualmente a mulher que podia ter seis ou sete filhos sem danos à sua saúde. Ou a jovem que, por motivos desconhecidos de todos, não tinha nenhuma possibilidade de ser fecundada. Mamar nos seios das mulheres era um prazer indescritível. Reunir-se em grupos para fazer isso era esplêndido, já que a mulher que oferecia os seios costumava entrar num êxtase sensual. Na realidade, as mulheres podiam extrair um prazer total dessa forma, satisfazendo-se praticamente sem mais nenhum contato.

Não me lembro de estupros. Não me lembro de execuções. Não me lembro de rancores que durassem muito.

Lembro-me de debates, discussões e muita conversa; e até mesmo de brigas por causa de parceiros, mas sempre no reino das palavras ou das canções.

Não me lembro de crueldade ou de irritabilidade. Não me lembro de criaturas mal-educadas. Ou seja, todos nasciam com alguma idéia de delicadeza, bondade, do valor da felicidade, bem como com um grande amor pelo prazer e um desejo de que outros compartilhassem desse prazer, de que o prazer da tribo estivesse garantido.

Os homens costumavam se apaixonar perdidamente pelas mulheres, e vice-versa. Falavam, então, dias e noites seguidas. E afinal era tomada a decisão de procriar. Ou os argumentos impediam que o ato chegasse a se realizar.

Nasciam mais mulheres do que homens. Ou era o que se dizia. Mas ninguém contava realmente. Na minha opinião, nasciam mais mulheres, e elas morriam com muito maior facilidade. E eu creio que esse é um motivo para que os homens fossem tão ternos com as mulheres, por saberem que elas eram mais propensas a morrer. As mulheres passavam adiante a força do seu corpo. As mulheres simples eram apreciadas porque estavam alegres o tempo todo, felizes por estarem vivas e sem medo de ter filhos. Resumindo, as mulheres eram mais infantis, embora os homens também fossem simplórios.

As mortes por acidente eram invariavelmente seguidas de um acasalamento oficial, com a substituição do morto. E as épocas de peste criavam oportunidade para o sexo descontrolado e orgástico, à medida que a tribo procurava repovoar a terra.

Não havia escassez. A terra nunca teve excesso de população. As pessoas jamais brigavam por frutos, ovos ou animais leiteiros. Havia de tudo em abundância. O lugar era lindo, quente, e havia muitas coisas agradáveis a fazer.

Era o paraíso, o Éden, era a idade de ouro da qual falam todos os povos, uma era anterior à fúria dos deuses, uma época antes que Adão comesse a maçã fatal, um tempo de felicidade e abundância. A única diferença é que eu me lembro dela. Eu estava lá.

Não me lembro de nenhuma noção de lei.

Lembro-me de rituais, danças, canções, a formação dos círculos, e cada roda se movimentando em sentido diferente da roda imediatamente interior. Lembro-me de homens e mulheres que sabiam tocar flautas e tambores, assim como harpas de corda que eram pequenas e às vezes feitas de conchas. Lembro-me de um grupo nosso carregando archotes ao longo dos penhascos mais traiçoeiros, só para ver se conseguíamos seguir sem cair.

Lembro-me da pintura, de que os que gostavam de pintar costumavam pintar nos penhascos e nas cavernas que cercavam o vale. Às vezes dávamos um passeio de um dia inteiro para ver todas as cavernas.

Era condenável que alguém pintasse demais em qualquer ocasião. Cada artista misturava suas próprias cores da terra, do seu sangue, do sangue de algum pobre carneiro ou cabra montesa que tivesse morrido bem como de outras fontes naturais.

De tempos em tempos, eu me lembro de que a tribo inteira se reunia para formar uma infinidade de círculos. É concebível que toda a população estivesse reunida nessas ocasiões. Ninguém sabia.

Em outras ocasiões, nós nos juntávamos em pequenas rodas isoladas e fazíamos o encadeamento da memória como o conhecíamos, não como Stuart Gordon o descreveu para vocês.

Um de nós faria o desafio, "Quem se lembra de muito tempo atrás?" E alguém se apresentaria, contando uma história de gente de cabelos brancos já morta há muito, de quem ele ouvira falar quando era recém-nascido. Essas histórias ele agora relatava, apresentando-as como as mais velhas, até alguém erguer a voz e contar histórias que podia determinar serem anteriores àquelas.

Outros apresentavam, então, suas lembranças mais remotas. As pessoas contestavam as histórias dos outros, acrescentavam detalhes ou as ampliavam. Muitas seqüências de eventos costumavam ser estruturadas e descritas em sua totalidade.

Isso era fascinante: uma seqüência, um longo período de acontecimentos unidos pela visão ou pela atitude de um homem. Era extraordinário. Essa talvez fosse a nossa maior realização mental, afora a dança e a música pura.

Essas seqüências nunca eram terrivelmente repletas de acontecimentos. O que nos interessava era o humor, um pequeno desvio da norma e naturalmente coisas belas. Adorávamos o que era belo. Se uma mulher nascesse com os cabelos vermelhos, considerávamos magnífico.

Se um homem fosse mais alto do que os outros, isso era magnífico. Se uma mulher tivesse o dom de tocar a harpa, isso era magnífico. Acidentes terríveis eram lembrados muito sucintamente. Havia histórias de visionários, os que diziam ouvir vozes e conhecer o futuro, mas isso era pouco freqüente. Havia histórias sobre a vida inteira de um músico ou de um artista; de uma mulher de cabelos ruivos ou de um construtor de barcos que arriscara a vida ao navegar até a Grã-Bretanha e voltara para casa para contar a história. Havia histórias de belos homens e mulheres que nunca haviam copulado, e eles eram muito festejados e requisitados, embora perdessem seu encanto assim que copulassem.

As competições de lembranças eram realizadas com maior freqüência nos dias longos, ou seja, naqueles dias em que mal se tem três horas de escuridão. Agora, nós tínhamos algum sentido de estação com base na luz e na escuridão, mas ele nunca adquirira uma importância especial porque quase nada mudava nas nossas vidas entre os longos dias do verão e os mais curtos do inverno. Portanto, não pensávamos em termos de estações. Não registrávamos o claro e o escuro. Brincávamos mais nos dias mais longos, mas, fora isso, não notávamos grande coisa. Para nós, nos dias mais escuros fazia tanto calor quanto nos dias mais longos. Tudo crescia em profusão. Nossos gêiseres nunca deixavam de nos aquecer.

No entanto, esse encadeamento de lembranças, esse ritual de contar e recontar histórias, ele agora é importante para mim por aquilo em que se transformou mais tarde. Depois que migramos para a terra do frio penetrante, essa era a forma de nos conhecer e de saber quem nós havíamos sido. Isso teve importância crucial quando lutamos para sobreviver nas montanhas da Escócia. Nós, que não tínhamos absolutamente nenhum tipo de escrita, preservávamos todo o nosso conhecimento dessa maneira.

Mas e daí? Na terra perdida? Parecia um passatempo. Uma enorme brincadeira.

Aquilo de mais sério que acontecia era o nascimento. Não a morte, que era freqüente, aleatória e em geral considerada triste e sem significado, mas, sim, o nascimento de uma nova pessoa.

Qualquer um que não levasse isso a sério era considerado um tolo.

Para que a cópula ocorresse, os responsáveis pela mulher tinham de dar o consentimento e os homens precisavam concordar em dar permissão para aquele homem em especial.

Era sempre de conhecimento geral que os filhos se pareciam com os pais, que cresciam imediatamente, que possuíam traços de um ou do outro, ou de ambos. E por isso os homens argumentavam com violência contra o desejo de um macho de físico fraco no sentido de procriar, embora todos tivessem o direito, segundo os costumes, de fazê-lo pelo menos uma vez.

Quanto à mulher, a questão era saber se ela compreendia como podia ser difícil dar à luz essa criança. Ela sentiria dor, seu corpo ficaria extremamente enfraquecido, depois ela talvez tivesse uma hemorragia. Ela poderia até morrer quando a criança saísse dela, ou mais tarde.

Considerava-se também que certas combinações físicas eram melhores do que outras. Na realidade, essa era a causa daquilo que poderíamos chamar de disputas. Elas nunca eram sangrentas, mas podiam ser muito barulhentas, com os Taltos acabando por gritar, com alguns batendo os pés, e assim por diante. O Taltos adorava gritar mais alto do que o outro, ou arengar contra o outro numa língua que era um forte zumbido até o outro ficar exausto e não conseguir mais pensar.

E era muito, muito raro, que houvesse um macho ou uma fêmea de escol, considerados tão perfeitos de corpo, de rosto tão lindo, tão altos, tão bem proporcionados, que o sexo com ele ou com ela para produzir uma bela prole era uma honra imensa. E isso levava a jogos e competições. Na realidade, havia todo um universo desse gênero.

Esses são, porém, os únicos aspectos dolorosos ou difíceis de que me lembro, e não vou discorrer sobre eles agora. Talvez porque a única ocasião em que eu conhecia o desespero fosse nesses jogos. Além disso, perdemos esses rituais quando migramos para a terra do frio penetrante. A partir dessa época, tínhamos muitas tristezas verdadeiras a enfrentar.

Quando o casal afinal obtinha permissão — lembro-me de uma vez em que tive de implorar permissão a vinte pessoas diferentes e precisei argumentar e esperar por dias a fio — a tribo se reunia, formando o círculo, e depois outro e mais outro, muito afastados, até as pessoas acharem que já não era interessante por estarem longe demais para ver.

Começavam os tambores e a dança. Se fosse à noite, surgiam archotes. E o casal se abraçava e brincava carinhosamente um com o outro pelo máximo de tempo possível até o momento final ter de acontecer. Era um banquete vagaroso. Demorar uma hora era adorável; duas horas, era sublime. Muitas não agüentavam mais de meia hora. Fosse como fosse, quando chegava o clímax, ele também dominava o casal por um tempo espantoso. Quanto tempo? Não sei. Mais, creio eu, do que os humanos ou os Taltos nascidos de humanos poderiam suportar. Talvez uma hora, talvez mais.

Quando afinal o casal se separava um do outro, era porque o novo Taltos estava a ponto de nascer. A mãe inchava, sofrendo muita dor. O pai então ajudava a tirar a criatura longa e desconjuntada de dentro da mãe. Ele a aquecia com suas próprias mãos e a levava ao seio da mãe.

Todos se aproximavam para ver o milagre, pois a criança, que começava como um ser de talvez sessenta a noventa centímetros de altura, muito esguio e delicado, e propenso a se machucar se não fosse manuseado com cuidado, logo passava a crescer e a se alongar. E durante os quinze minutos seguintes ou menos, era freqüente que ela atingisse sua altura plena e majestosa. Sua cabeleira se derramava, seus dedos se esticavam e os ossos tenros do seu corpo, tão flexível e forte, formavam sua grande estrutura. A cabeça crescia até ficar três vezes maior do que a do instante do nascimento.

A mãe jazia como morta, depois, dormindo o sono superficial das mães. Mas o rebento ficava deitado com ela, conversando com ela, e a mãe às vezes nunca se entregava realmente aos sonhos, mas falava e cantava para o bebê, embora estivesse sempre grogue e com freqüência bem-humorada. Ela extraía do bebê suas primeiras lembranças para que ele nunca se esquecesse.

Porque nós nos esquecemos.

Temos grande propensão a esquecer. E contar é guardar na memória, ou gravar. Contar é lutar contra a terrível solidão do esquecimento, sua terrível ignorância, a tristeza. Ou era o que pensávamos.

Esse rebento, fosse macho fosse fêmea, e com maior freqüência era fêmea, despertava enorme alegria. Ele significava mais para nós do que o nascimento de um único ser. Ele afirmava que a vida da tribo estava saudável; que a vida da tribo prosseguiria.

É claro que nós nunca duvidamos de que fosse assim, mas sempre houve lendas de que certas épocas haviam sido negativas, de que houve ocasiões em que as mulheres copulavam e lhes nasciam filhos raquíticos ou nada; e a tribo se reduzira a pouquíssimos. Enfermidades de quando em quando esterilizavam as mulheres, e às vezes também os homens.

O filho era muito amado e bem cuidado pelos seus pais, apesar de que, se se tratasse de uma menina, ela poderia ser levada após algum tempo para um lugar onde só viviam mulheres. Em geral, o filho era o vínculo do amor entre o homem e a mulher. Eles não procuravam se amar de nenhuma forma diferente ou particular. Sendo o nascimento de uma criança o que era, nós não dispúnhamos de nenhum conceito de casamento, monogamia ou de ficar com uma única mulher. Peio contrário, isso nos parecia frustrante, perigoso e tolo.

Às vezes acontecia. Tenho certeza de que sim. Um homem e uma mulher se amavam tanto que não podiam ser separados. Mas eu mesmo não me lembro de uma ocorrência dessas. Nada impedia ninguém de ver qualquer homem ou mulher. E o amor e a amizade não eram românticos. Eram puros.

Há muitos outros aspectos dessa vida que eu poderia descrever: os diversos tipos de canções que cantávamos, a natureza das discussões, pois elas apresentavam estruturas próprias, os tipos de raciocínio lógico que eram correntes entre nós, que vocês provavelmente considerariam ridículos, e os tipos de erros e asneiras terríveis que os jovens Taltos cometiam inevitavelmente. Havia pequenos mamíferos, muito parecidos com macacos, na ilha, mas nós nunca pensamos em caçá-los, cozinhá-los e comê-los. Uma idéia dessas teria sido de uma grosseria intolerável.

Eu poderia também descrever os tipos de habitações que construíamos, pois eram muitos; e os escassos ornamentos que usávamos. Nós não gostávamos de roupas, não precisávamos delas, nem queríamos manter algo tão sujo grudado à nossa pele. Eu poderia descrever nossos barcos e como eles eram péssimos, além de milhares de outras coisas.

Em certas ocasiões, alguns de nós se esgueiravam até o lugar onde as mulheres viviam, só para vê-las nos braços umas das outras, fazendo amor. Depois elas nos descobriam e insistiam para que fôssemos embora. Havia lugares nos penhascos, grutas, cavernas, pequenas alcovas próximas a fontes borbulhantes, que se haviam tornado verdadeiros santuários para fazer amor, tanto para homens com homens quanto para mulheres com mulheres.

Nunca houve tédio nesse paraíso. Havia coisas demais a fazer. Podia-se brincar horas a fio na praia, até mesmo nadar, caso se tivesse coragem. Podiam-se colher ovos e frutos, dançar e cantar. Os pintores e os músicos eram os mais atarefados, creio eu, e havia ainda os construtores de barcos e os de choupanas.

Havia muito espaço para a inteligência. Eu era considerado muito inteligente. Eu discernia padrões ordenados em coisas que os outros não percebiam, que certos moluscos nas lagoas aquecidas cresciam mais rápido quando o sol batia nessas lagoas, que alguns cogumelos vicejavam mais nos dias escuros, e eu gostava de inventar sistemas, como elevadores simples feitos de trepadeiras e cestas de gravetos, com os quais podíamos descer as frutas do alto das árvores.

No entanto, por mais que as pessoas me admirassem por isso, elas também riam de mim. Imaginava-se que no fundo não era necessário fazer esse tipo de coisa.

A rotina era algo de que não se ouvia falar. Cada dia amanhecia com suas infinitas possibilidades. Ninguém duvidava da perfeita virtude do prazer.

A dor era o mal.

É por isso que o nascimento despertava tanta reverência e tanta cautela em todos nós, pois ele envolvia dor para a mulher. E compreendam que a Taltos fêmea não era escrava do homem. Com freqüência, ela era tão forte quanto ele, com os braços tão longos e com a mesma agilidade. Os hormônios nela produziam uma química totalmente diferente.

E o nascimento, que envolvia tanto o prazer quanto a dor, era o mistério mais importante das nossas vidas. Na realidade, era o único mistério digno de nota das nossas vidas.

Vocês agora sabem o que eu queria que soubessem. Nosso mundo era de harmonia e verdadeira felicidade. Era um mundo com um enorme mistério e muitas coisas pequenas e fantásticas.

Era o paraíso, e nunca nasceu um Taltos, não importa quanto sangue humano corresse nas suas veias, não importa de que linhagem degenerada, que não se lembrasse da terra perdida e da era da harmonia. Nem um único que fosse.

Com toda a probabilidade. Lasher se lembrava dela. Com toda a probabilidade, Emaleth se lembrava dela.

A história do paraíso está no nosso sangue. Nós o vemos; nós ouvimos o canto dos seus pássaros; e sentimos o calor da fonte vulcânica. Conhecemos o sabor das frutas; ouvimos as canções; podemos elevar nossas vozes e criar o canto. E por isso nós sabemos, sabemos aquilo em que os humanos apenas acreditam, que o paraíso pode voltar.

Antes de passarmos ao cataclismo e à terra do inverno, deixem-me acrescentar mais uma coisa.

Creio de fato que havia entre nós alguns perversos, que praticavam a violência. Creio que havia. Talvez houvesse aqueles que matavam e aqueles que eram mortos. Tenho certeza de que deve ter sido assim. Tinha de ser. Mas ninguém queria falar a respeito! Esse tipo de coisa era deixado de fora das histórias! Por isso não tínhamos nenhuma história de incidentes sangrentos, estupros, conquistas de um grupo de homens por outro. E predominava um grande horror à violência.

Como a justiça era feita, eu não sei. Não tínhamos líderes no sentido estrito, mas tínhamos grupos de sábios, pessoas que se reuniam secretamente e que formavam uma elite informal, por assim dizer, a quem podíamos apelar.

Outro motivo para eu acreditar que a violência devesse ter acontecido estava no fato de termos conceitos definidos do Deus Bom e da Encarnação do Mal. É claro que o Deus Bom era ele ou ela (essa divindade não era dividida) que nos dera a terra, nosso sustento e nossos prazeres; enquanto a Encarnação do Mal havia criado a terrível terra do frio penetrante. A Encarnação do Mal se deleitava com acidentes que matavam Taltos; e de quando em quando a Encarnação do Mal entrava num Taltos, mas isso era realmente raro!

Se havia mitos e lendas relacionados a essa vaga religião, eu nunca soube deles. Nossos cultos nunca foram de sacrifícios sangrentos ou de aplacar a cólera de um deus. Festejávamos o Deus Bom em canções versos, e sempre nas danças de roda. Quando dançávamos, quando fazíamos a criança, estávamos próximos ao Deus Bom.

Muitas dessas canções me ocorrem o tempo todo. De vez em quando, desço no início da noite e caminho pelas ruas de Nova York, solitário em meio à multidão. Canto todas essas canções de que me lembro e a sensação da terra perdida me volta, o som dos tambores e das flautas, bem como a visão de homens e mulheres dançando no círculo. Você pode agir assim em Nova York. Ninguém presta a mínima atenção. É realmente divertido para mim.

Às vezes, outros em Nova York que estão cantando para si mesmos, resmungando em voz alta, ou tagarelando, aproximam-se de mim, batem papo comigo ou cantam para mim e depois vão embora. Em outras palavras, sou aceito pelos malucos de Nova York. E, embora estejamos inteiramente sós, temos uns aos outros por alguns instantes. O mundo crepuscular da cidade.

Depois eu saio de carro e distribuo casacos e cachecóis de lã àqueles que não os possuem. Às vezes mando Remmick, meu criado, fazer isso. Às vezes deixamos que o pessoal da rua entre para dormir no saguão; nós os alimentamos e os acomodamos. Mas acontece de um brigar com outro, até mesmo esfaquear o outro, e todos têm de sair, de volta para a nevasca.

É, mas isso me lembra mais um perigo oculto na nossa vida na terra perdida. Como eu poderia ter me esquecido? Sempre havia aqueles Taltos que se enredavam na música e não conseguiam sair dela. Eles podiam ser apanhados pela música dos outros, de tal forma que os outros tinham de ser forçados a parar sua música para libertá-los. Eles podiam ficar presos na sua própria música e de fato cantar até cair mortos. Podiam dançar até morrer.

Era freqüente que eu caísse em grandes transes de canto, dança e criação de rimas, mas eu sempre despertava, fosse porque a música alcançasse seu fim cerimonial, fosse porque eu talvez me cansasse, fosse por perder o ritmo. Não importa o motivo, jamais corri o risco de morrer. Muitos eram como eu. Mas sempre houve mortes desse gênero.

Todos tinham a impressão de que o Taltos que morresse dançando ou cantando havia ido para o Deus Bom.

Mas ninguém falava muito sobre isso. A morte simplesmente não era um assunto adequado para o Taltos. Tudo o que fosse desagradável era esquecido. Esse era um dos nossos ideais básicos.

Eu já estava vivo há muito tempo quando da época do cataclismo. Mas não sei como medir. Digamos que fossem uns vinte ou trinta anos.

O cataclismo foi puramente obra da natureza. Mais tarde, os seres humanos contavam histórias de que soldados romanos ou de que os pictos nos expulsaram da nossa ilha. Não aconteceu absolutamente nada parecido. Na terra perdida, nunca pusemos os olhos em seres humanos. Não conhecíamos nenhum outro povo. Só conhecíamos a nós mesmos.

Uma enorme convulsão da terra fez com que nossa ilha tremesse e começasse a se partir. Tudo começou com roncos indefinidos, e nuvens de fumaça a encobrir o céu. Os gêiseres começaram a queimar nossa gente. As lagoas ficaram tão quentes que não se podia beber nelas. A terra tremia e soltava gemidos tanto de dia quanto à noite.

Muitos Taltos morreram. Os peixes nas lagoas morreram, e os pássaros fugiram para os penhascos. Homens e mulheres corriam em todas as direções à procura de um lugar em que não houvesse turbulência, mas não o encontravam e alguns voltavam correndo.

Afinal, após inúmeras mortes, toda a tribo construiu jangadas, botes, canoas, o que conseguissem fabricar, para fazer a viagem até a terra do frio penetrante. Não havia escolha para nós. Nossa terra ficava mais agitada e traiçoeira a cada dia.

Não sei quantos permaneceram na ilha. Não sei quantos escaparam. O dia inteiro e a noite toda, as pessoas faziam embarcações e as lançavam ao mar. Os sábios ajudavam os inexperientes — no fundo, era assim que distinguíamos os velhos dos jovens — e por volta do décimo dia, como eu calcularia agora, parti com duas das minhas filhas, dois homens que eu amava e uma mulher.

E foi na realidade já na terra do inverno, na tarde em que vi minha terra natal afundar no mar, foi nessa tarde que a história do meu povo de fato teve início.

Foi então que começaram suas provações e aflições, seu verdadeiro sofrimento, e sua primeira noção de valor e de sacrifício. Ali teve inicio tudo o que o ser humano considera sagrado, que só pode advir da dificuldade, do esforço e da crescente idealização da felicidade e da perfeição que só brotam na mente quando se perdeu totalmente o paraíso.

Foi de um alto penhasco que vi o enorme cataclismo chegar ao fim. Foi daquela altitude que vi a terra se partir em pedaços e afundar no mar. Foi de lá que vi as figuras mínimas dos Taltos que se afogavam no mar. Foi de lá que vi as ondas gigantescas lamberem os pés dos penhascos, invadirem os vales ocultos e inundarem as florestas.

A Encarnação do Mal havia triunfado, disseram os que estavam comigo. E pela primeira vez as canções que entoávamos e as histórias que recitávamos se tornaram um verdadeiro lamento.

Deve ter sido no final do verão que fugimos para a terra do frio penetrante. Fazia frio mesmo. A água que batia nas praias era fria o suficiente para deixar inconsciente um Taltos. Descobrimos de imediato que ela nunca teria uma temperatura agradável.

No entanto, o pleno rigor do inverno foi algo que realmente não havíamos imaginado. A maioria dos Taltos que escaparam da terra perdida morreu no primeiro inverno. Alguns que restaram procriavam furiosamente para restabelecer a tribo. E, como não fazíamos a menor idéia de que o inverno fosse voltar, muitos outros morreram no inverno seguinte, também.

É provável que tenhamos aprendido o ciclo das estações já pelo terceiro ou quarto ano.

Aqueles primeiros anos foram, porém, tempos de superstição galopante, conversas intermináveis e debates sobre o motivo pelo qual havíamos sido expulsos da terra perdida, porque a neve e o vento vinham nos matar e se o Deus Bom se havia voltado contra nós ou não.

Minha tendência para a observação e para o lado prático me levou ao posto de líder inconteste. No entanto, a tribo inteira estava aprendendo rapidamente coisas como o calor das carcaças de ursos e outros grandes animais mortos, bem como o calor agradável das suas peles felpudas. Era óbvio que os buracos eram mais quentes do que as cavernas e, com os chifres de um antílope morto, podíamos cavar fundas casas subterrâneas para nós e improvisar um telhado de pedras e troncos de árvores.

Sabíamos fazer fogo e logo adquirimos grande habilidade nisso, já que não encontrávamos fogo à toa, saindo simplesmente por uma fenda na rocha. Taltos diferentes em épocas diferentes criaram tipos semelhantes de rodas; e carrinhos toscos logo foram construídos para transportar nosso alimento e aqueles que estavam doentes.

Aos poucos, aqueles que haviam sobrevivido a todos os invernos na terra do frio penetrante começaram a aprender conhecimentos valiosos que precisavam ser ensinados aos mais jovens. Pela primeira vez, era importante prestar atenção. A amamentação se transformara num meio de sobrevivência. Todas as mulheres davam à luz pelo menos uma vez para compensar o apavorante índice de mortes.

Se a vida não tivesse sido tão dura, talvez esse pudesse ter sido considerado um tempo de imenso prazer criativo. Eu poderia fornecer uma lista das várias descobertas que fizemos então.

Basta dizer que nos dedicávamos à caça, à pesca e à coleta em termos muito primitivos, embora não comêssemos a carne de animais a menos que estivéssemos realmente mortos de fome, e que progredíamos aleatoriamente de uma forma completamente diversa da dos seres humanos.

Nossos cérebros avantajados, nossa capacidade verbal aprimorada, a estranha combinação de instinto e inteligência em nós, tudo isso nos tornava ao mesmo tempo mais espertos e mais desajeitados, mais perspicazes e mais bobos sob muitos aspectos.

É claro que surgiram disputas entre nós, em conseqüência da escassez de alimentos ou de questões de opinião, se devíamos ir numa direção ou em outra em busca de caça. Grupos se separavam do grupo principal para seguir seu próprio caminho.

A essa altura, eu já estava acostumado a ser o líder e francamente não confiava em mais ninguém para essa posição. Eu era conhecido simplesmente pelo meu nome, Ashlar já que entre nós não havia necessidade de títulos, e exercia tremenda influência sobre os outros, vivendo com o pavor de que eles se perdessem, de que fossem devorados por animais selvagens ou de que brigassem entre si com tristes conseqüências. Combates, brigas, essas ocorrências eram agora diárias.

No entanto, a cada inverno que passava, nós nos capacitávamos cada vez mais. E, à medida que fomos acompanhando a caça no sentido sul ou que seguimos nessa direção por puro instinto ou por acaso, não sei ao certo, chegamos a terras mais quentes, com um verão bem mais prolongado, e começou nossa reverência pelas estações do ano, ou nossa confiança nelas.

Começamos a montar cavalos selvagens por prazer. Era uma grande diversão para nós. Mas não acreditávamos que os cavalos pudessem ser domesticados. Tivemos sucesso ao usar bois para puxar nossas carroças, que, no início, naturalmente, nós mesmos puxávamos.

De tudo isso, surgiu nosso período religioso mais intenso. Eu invocava o Deus Bom cada vez que o caos se abatia sobre nós, e lutava para devolver a ordem às nossas vidas. Houve épocas em que as execuções se realizavam duas vezes por ano.

Eu poderia escrever ou falar tanto a respeito daqueles séculos. No entanto, num sentido muito verdadeiro, eles constituem um tempo inigualável, inserido entre a terra perdida e a chegada dos seres humanos, e grande parte do que foi deduzido, suposto, aprendido, gravado na memória, como que desmoronou quando os humanos chegaram.

Basta dizer que nos tornamos um povo altamente desenvolvido, que cultuava o Deus Bom principalmente com banquetes e danças, como sempre havíamos feito. Ainda fazíamos as competições de lembranças e ainda cumpríamos nossas rígidas normas de conduta, embora agora os homens ao nascerem "se lembrassem" de ser violentos, de lutar, de competir e vencer. E as mulheres nascessem lembrando-se do medo.

E certos acontecimentos estranhos haviam lido um impacto inacreditável sobre nós, muito maior do que nenhum de nós percebeu na época.

Outros homens e mulheres estavam em ação na Grã-Bretanha. Ouvimos falar deles por outros Taltos: eles eram odiosos e cruéis como animais. Os Taltos os haviam abatido em legítima defesa. Mas esse povo estranho, que não era Taltos, deixara potes feitos de terra quebradiça, pintados com bonitas ilustrações e armas feitas de pedras mágicas. Também deixara curiosas criaturinhas, como macacos, apesar de desprovidas de pêlos e indefesas, que poderiam ser sua prole.

Isso deixou claro que eles eram animais, pois, ao nosso ver, só os animais tinham filhotes indefesos. E nem mesmo os filhotes das feras eram tão indefesos quanto essas criaturinhas.

Os Taltos, porém, se compadeceram deles. Eles os alimentavam com leite e os mantinham. Finalmente, depois de ter ouvido tanto falar deles, nós compramos cerca de cinco dessas pequenas criaturas, que a essa altura já não choravam o tempo todo e na realidade já sabiam andar.

Essas criaturas não viviam muito tempo. Talvez trinta e cinco anos, digamos, mas durante esse período elas sofriam mudanças drásticas. Deixavam de ser coisinhas cor-de-rosa que esperneavam para se tornar seres altos e fortes, só para envelhecer murchos e encarquilhados. Meramente animais, era a nossa conjectura. E creio que não tratávamos esses primatas primitivos nem um pouco melhor do que eles poderiam ter tratado cachorros.

Suas mentes não eram ágeis. Eles não compreendiam nossa fala muito rápida. Na realidade, foi uma grande descoberta a de que eles nos compreendiam se falássemos devagar, mas aparentemente eles não tinham suas próprias palavras.

O fato era que eles nasciam sem inteligência, ao nosso ver, com menos conhecimento inato do que a ave ou a raposa. E, embora adquirissem maior capacidade para o raciocínio, sempre permaneciam bem fracos, pequenos e cobertos de pêlos horrendos.

Quando um macho da nossa espécie copulava com uma fêmea da deles, a fêmea sangrava e morria. Os homens faziam com que as nossas fêmeas sangrassem. Além do mais, eles eram grosseiros e desajeitados.

Ao longo dos séculos, nós nos deparamos com essas criaturas mais de uma vez ou as compramos de outros Taltos, mas nunca as vimos em qualquer tipo de força organizada própria. Supúnhamos que fossem inofensivas. Na realidade, nem tínhamos um nome para elas. Elas não nos ensinavam nada e nos faziam chorar de frustração quando não conseguiam aprender nada conosco.

Pensávamos como era triste que esses grandes animais se parecessem tanto com os Taltos, até andassem eretos e não tivessem cauda, mas que não tivessem inteligência.

Enquanto isso, nossas leis haviam se tornado muito rígidas. A execução era a punição suprema para a desobediência. Ela havia se transformado num ritual, embora nunca festivo, no qual o Taltos criminoso era rapidamente eliminado com golpes fortes e propositados no crânio.

Ora, o crânio de um Taltos continua elástico muito depois de os outros ossos do seu corpo estarem duros. No entanto, o crânio pode ser esmagado com facilidade, quando se sabe fazê-lo, e infelizmente nós havíamos aprendido.

No entanto, a morte ainda nos horrorizava. O assassinato era um crime muito raro. A pena de morte era para aqueles que ameaçavam a comunidade como um todo. O nascimento ainda era a nossa principal cerimônia sacra. E, quando encontrávamos bons lugares para nos instalar, o que representava uma defesa da permanência, freqüentemente escolhíamos locais para nossa dança circular religiosa, e dispúnhamos pedras para assinalar esses locais, às vezes pedras muito grandes mesmo, das quais nos orgulhávamos.

Ah, os círculos de pedras! Embora nunca tivéssemos pensado nisso desse ponto de vista, nós nos tornamos por toda a parte o povo dos círculos de pedra.

Quando éramos forçados a ir para um novo território, fosse pela fome, fosse porque estivesse vindo na nossa direção outro bando de Taltos, de quem nenhum de nós gostasse e perto de quem ninguém quisesse viver, habituamo-nos a construir um novo círculo imediatamente. Na verdade, o diâmetro do nosso circulo e o peso das pedras passou a ser um título de posse de uma certa área; e a visão de um círculo muito grande construído por outros era um sinal para nós de que essa terra lhes pertencia e de que devíamos seguir adiante.

Será que havia alguém tolo o suficiente para ignorar um círculo sagrado? Bem, tal pessoa não teria paz e sossego enquanto não levantasse acampamento. É claro que era a escassez que muitas vezes impunha essas normas. Uma enorme planície tinha condições de sustentar pouquíssimos caçadores, na realidade. Bons locais às margens de lagos, rios e no litoral eram melhores, mas nenhum lugar era o paraíso, nenhum lugar era a fonte inesgotável de calor e fartura que a terra perdida havia sido.

Reivindicações de proteção sagrada destinavam-se a afastar invasores e posseiros. E eu me lembro de ter eu mesmo entalhado uma figura do Deus Bom, como eu imaginava Deus, tanto com seios quanto com um pênis, numa imensa pedra num dos nossos círculos, um apelo a outros Taltos no sentido de que respeitassem nosso circulo sagrado e, portanto, nossa terra.

Quando havia uma verdadeira batalha, resultante de conflitos de personalidades e mal-entendidos, bem como da extrema ganância por um pedaço específico da terra, os invasores costumavam derrubar as pedras dos que viviam no lugar e construir um novo círculo só seu.

Ser expulso de um lugar era extenuante, mas num novo lar o desejo de construir um círculo maior, mais imponente, ardia feroz. Jurávamos encontrar pedras tão grandes que ninguém conseguiria, ou sequer tentaria, jamais tirá-las do lugar.

Nossos círculos falavam da nossa ambição e da nossa simplicidade: da alegria da dança e da nossa disposição de lutar e morrer pelo território da tribo.

Nossos valores essenciais, embora inalterados desde os tempos da terra perdida, haviam se cristalizado de certo modo em torno de alguns rituais. Era compulsório que todos assistissem ao nascimento de um novo Taltos. Era lei que nenhuma mulher podia dar à luz mais de uma vez. Era lei que a reverência e a sensualidade presidisse esses nascimentos. Na realidade, uma grande euforia sexual era muitas vezes mantida.

O novo Taltos era visto como um presságio. Se não fosse perfeito de membros e forma física, lindo de se contemplar e de bom tamanho, um medo terrível dominava o povo. O recém-nascido perfeito era a bênção do Deus Bom, como antes, mas vejam só, nossas crenças estavam se aprofundando e, à medida que tirávamos as conclusões erradas de acontecimentos meramente naturais, também foi se aprofundando nossa obsessão pelos grandes círculos, nossa fé em que desagradariam o Deus Bom e em que seriam moralmente essenciais para a tribo.

Chegou afinal o ano em que nos instalamos na planície.

Isso foi no sul da Grã-Bretanha, no local hoje conhecido como Salisbury, onde o clima era lindo para nós e o melhor que jamais havíamos encontrado. A época? Antes da chegada dos seres humanos.

A essa altura, já sabíamos que o inverno estaria sempre conosco. Não acreditávamos ser possível escapar ao inverno em nenhuma parte do mundo. Se refletirem sobre isso, verão que é uma suposição lógica. Ai de nós! Os verões eram mais longos e agradáveis nessa parte da Grã-Bretanha, e isso eu agora descobria em primeira mão. As florestas eram densas e cheias de cervos, e o mar não ficava longe.

Manadas de antílopes selvagens vagueavam pela planície.

Decidimos que ali construiríamos nosso lar definitivo.

A idéia de nos mudarmos o tempo todo, de evitar discussões ou de ir á procura de fontes de suprimento já há muito perdera sua graça. Até certo ponto, nós nos tornáramos um povo de assentamentos. Entre todos os nossos grupos, estava em andamento a busca de um local para refúgio permanente, de um local permanente onde pudéssemos entoar nossos cantos sagrados, realizar nossas sagradas competições de lembranças, a dança sagrada e, naturalmente, o ritual do nascimento.

Havíamos nos ofendido profundamente com nossa última invasão e só havíamos partido após discussões intermináveis (os Taltos sempre tentam usar primeiro as palavras), um pouco de trancos e empurrões e afinal uma quantidade de ultimatos, como por exemplo, "Está bem, se vocês querem mesmo superpovoar esse bosque, então nós vamos embora!"

Nós nos considerávamos extremamente superiores às outras tribos por uma série de razões. Certamente por termos tantos que haviam vivido na terra perdida e muitos, ainda muitos com cabelos brancos. Éramos, sob muitos aspectos, o grupo de organização mais clara, e tínhamos a maior quantidade de costumes. Agora, alguns de nós tinham cavalos e conseguiam montá-los. Nossa caravana era composta de muitas carroças. E possuíamos boas manadas e rebanhos de carneiros, cabras e de uma espécie de gado selvagem que não existe mais.

Outros riam de nós, especialmente por andarmos a cavalo, dos quais caiamos repetidas vezes, mas em geral outros Taltos nos respeitavam e vinham correndo procurar nossa ajuda em tempos difíceis.

Pois bem, na planície de Salisbury, com a determinação de que ela nos pertenceria para sempre, decidimos construir o maior círculo de pedras jamais visto no mundo.

A essa altura, também, sabíamos que a própria construção do círculo unia a tribo, favorecia a organização, afastava as intrigas e tornava as danças cada vez mais jubilosas, à medida que se acrescentava uma pedra à outra e que o círculo ficava mais impressionante de se ver.

Essa enorme empreitada, a construção do maior círculo do mundo, caracterizou alguns séculos da nossa existência e nos fez progredir rapidamente em termos de inventividade e organização. A busca de blocos de arenito, os meios de transportar as pedras enormes, de prepará-las e de fincá-las para afinal pôr no devido lugar as lajes, tudo isso nos consumia e passou a ser uma justificativa para a própria vida.

O conceito de prazer e brincadeiras agora estava praticamente desaparecido entre nós. Éramos sobreviventes do frio penetrante. A dança havia sido santificada. Tudo havia sido santificado. E, no entanto essa foi uma época esplêndida e emocionante.

Aqueles que queriam compartilhar da nossa vida vinham juntar-se a nós, e nós atingimos uma tal população que podíamos resistir a invasões. De fato, a primeira pedra monstruosa do nosso grande projeto proporcionou tamanha inspiração que outros Taltos vieram em adoração, para juntar-se ao nosso círculo ou só observar, em vez de roubar parte da planície.

A construção do círculo tornou-se o pano de fundo diante do qual nosso desenvolvimento ocorreu.

Durante esses séculos, nossa vida atingiu seu apogeu. Construímos nossos acampamentos por toda a planície, a uma distância confortável do nosso grande círculo e reunimos nossos animais em pequenos cercados. Plantamos abrunheiros-bravos e sabugueiros em volta dos acampamentos, e eles se tornaram fortalezas.

Providenciamos meios para o enterro organizado dos mortos, chegando a construir túmulos subterrâneos durante esse período. Na realidade, todas as conseqüências do povoamento permanente se manifestaram. Nós não começamos a trabalhar com a cerâmica, mas comprávamos uma boa quantidade dela de outros Taltos que alegavam tê-la adquirido da gente peluda e de vida curta que chegava ao litoral em barcos feitos de peles de animais.

Logo, tribos de toda a Grã-Bretanha vinham fazer a roda-viva da dança em meio aos nossos pilares de pedra.

Os círculos tornaram-se imensas procissões espiraladas. Considerava-se boa sorte dar à luz dentro do nosso círculo. E disso nos adveio muito comércio e prosperidade.

Enquanto isso, outros grandes círculos estavam sendo construídos na nossa terra. Círculos vastos, maravilhosos, mas nenhum absolutamente nenhum, que se comparasse ao nosso. Na realidade, em algum ponto dessa era fantástica e produtiva, tornou-se de conhecimento geral que o nosso era de fato o circulo dos círculos. As pessoas não procuravam competir com ele, mas apenas vê-lo, dançar nele, unir-se à procissão que ia e vinha pelos diversos portais formados pelos pilares e pelas lajes de pedra.

Viajar até outro círculo, dançar com a tribo de lá, tornou-se um acontecimento rotineiro. Nessas reuniões, aprendíamos muito uns sobre os outros, e celebrávamos enormes encadeamentos de lembranças, trocando histórias, reforçando os detalhes das histórias preferidas e corrigindo as lendas da terra perdida.

Costumávamos ir em bandos ver o círculo do que hoje se chama Avebury ou ver outros círculos mais ao sul, próximos ao penhasco de Glastonbury, tão amado por Stuart Gordon. Íamos até o norte para cultuar em outros.

O tempo todo, porém, o nosso era o mais magnífico. E, quando Ashlar e sua gente chegavam em visita ao círculo de outra tribo, isso era considerado uma grande honra. Pediam-nos conselhos, imploravam-nos que ficássemos e nos davam belos presentes.

É claro que você sabe que nosso círculo é hoje Stonehenge. Porque ele e muitos outros dos nossos círculos sagrados estão em pé até os tempos atuais. Mas deixe-me explicar o que pode ser óbvio apenas para os estudiosos de Stonehenge. Nós não construímos tudo que está lá agora, nem o que se acredita que esteve lá em dada época.

Nós só construímos dois círculos de arenito, rochas extraídas de outras regiões, incluindo-se a distante área de Marlborough Downs, mas principalmente de Amesbury, que fica muito perto de Stonehenge. O círculo interior tinha dez pilares, e o exterior, trinta. E a colocação das lajes sobre esses pilares foi questão de muito debate. Desde o inicio, optamos pelas lajes, mas essa idéia nunca me agradou muito. Eu havia sonhado com um círculo de pedras que imitasse uma roda de homens e mulheres. Cada pedra deveria ter aproximadamente o dobro da altura de um Taltos e ter a largura semelhante à altura de um Taltos. Essa era a minha idéia.

No entanto, para outros membros da tribo, as lajes davam a impressão de abrigo, fazendo com que se lembrassem do imenso cone vulcânico que um dia havia protegido o vale tropical da terra perdida.

Foram povos posteriores que construíram o círculo de pedras azuis e muitas outras formações de Stonehenge. Em certa época, todo o nosso adorado templo ao ar livre foi encoberto por algum tipo de construção de madeira por tribos de humanos selvagens. E eu nem quero pensar nos rituais sangrentos ali praticados. Mas isso não era obra nossa.

Quanto aos emblemas entalhados no arenito, só usávamos um, sobre uma pedra central que já há muito desapareceu. Era um símbolo do Deus Bom, com seios e falo, entalhado em profundidade e ao alcance de um Taltos, para que ele ou ela pudesse tateá-lo mesmo no escuro.

Mais tarde, os seres humanos fizeram outros entalhes no arenito, exatamente da mesma forma que se apropriaram de Stonehenge para outros usos.

Posso lhe dizer, porém, que ninguém, fosse Taltos, humano, fosse de outra espécie, ninguém jamais se deparou com nosso grande círculo sem de algum modo respeitá-lo ou chegar a sentir a presença do sagrado nele. Muito antes de estar terminado, ele se tornou um local de inspiração, e é isso desde então.

Nesse monumento, tem-se a essência do nosso povo. Ele é o único monumento importante que nós chegamos a construir.

No entanto, para compreender plenamente o que éramos, lembrem-se de que mantivemos nossos valores. Deplorávamos a morte e não a festejávamos. Não fazíamos nenhum sacrifício de sangue. Não considerávamos a guerra algo glorioso, mas, sim, caótico e desagradável. E a alta expressão da nossa arte era o canto e os círculos de danças reunidos dentro e em torno de Stonehenge.

No seu apogeu, nossos festivais de nascimentos e festivais de lembranças ou de música incluíam milhares de Taltos, vindos de toda parte. Era impossível chegar a contar os círculos formados, ou medir o mais largo deles. É impossível dizer por quantos dias e horas esses rituais se prolongavam.

Imaginem, se quiserem, a vasta planície de neve, o céu de um azul límpido, a fumaça a subir dos acampamentos e das choças construídas próximo ao círculo de pedras, para fornecer calor, alimentos e bebidas. Imaginem os Taltos, homens e mulheres, da minha altura, com os cabelos compridos, muitas vezes até a cintura ou mesmo até os tornozelos, usando couros e peles habilidosamente costurados e botas altas de couro, e de mãos dadas para formar essas configurações simples e belas enquanto as vozes se erguiam a cantar.

Folhas de hera, visgo, azevinho, o que permanecesse verde no inverno, usávamos no cabelo e trazíamos conosco para cobrir o chão. Os galhos do pinheiro ou de qualquer árvore que não perdesse suas folhas.

E no verão trazíamos grande quantidade de flores. Na realidade, havia missões que não paravam noite e dia de ir até os bosques a fim de encontrar flores e ramagens novas.

Só o canto e a música já eram esplêndidos. Era difícil para uma pessoa conseguir se afastar dos círculos. De fato, algumas pessoas nunca saiam por sua própria vontade, e pequenas fogueiras eram armadas dentro dos limites entre as rodas de dançarinos, para proporcionar calor. Havia quem dançasse, cantasse e ficasse abraçado aos outros até cair desmaiado ou morto.

No início, não tínhamos ninguém encarregado do ritual, mas isso mudou. Fui chamado a vir ao centro para tocar as cordas da harpa e começar a dança. E, depois que eu havia passado muitas horas ali, vinha outro para ficar no meu lugar, e depois outro e mais outro. Cada novo cantor ou músico fazia uma música que os outros imitavam, levando a canção da roda menor para a maior, como ondulações num lago em que se jogou uma pedra.

Às vezes, muitas fogueiras de grande tamanho eram construídas com antecedência, uma no centro e as outras em diversos pontos, para que os dançarinos passassem com freqüência por elas ao seguir seu caminho circular.

O nascimento de um Taltos no nosso círculo era para o recém nascido um acontecimento inigualado nem mesmo na terra perdida. Pois lá os círculos eram voluntários, espontâneos e pequenos. Mas aqui a nova criatura abria seus olhos e se deparava com uma enorme tribo da sua própria gente, ouvia um coro como o dos anjos e ficava ali dentro do círculo, sendo amamentado, afagado e consolado durante os primeiros dias e noites da vida.

É claro que estávamos mudando. À medida que nosso conhecimento inato mudava, nós mudávamos. Ou seja, aquilo que aprendíamos alterava a formação genética do recém-nascido.

Os que nasceram na época dos círculos tinham um sentido mais forte do sagrado do que os mais velhos e, francamente, não apresentavam tendência a arroubos de humor, ironia ou suspeitas, como nós. Os que nasceram nos tempos dos círculos eram mais agressivos e podiam matar quando precisassem, sem ter de ceder às lágrimas.

Se naquela época você me tivesse perguntado, eu teria respondido que nossa espécie dominaria o mundo para sempre. Se você tivesse dito: "Ah, mas vão vir homens que assassinarão por prazer, que vão estuprar, queimar e devastar simplesmente porque é isso o que fazem na vida", eu não teria acreditado. Eu teria respondido: "Ora, mas nós vamos ponderar com eles, vamos contar nossas histórias e lembranças e lhes pedir que nos contem as deles. Eles começarão a cantar e a dançar e deixarão de lutar ou de querer o que não deveriam ter".

Quando os seres humanos se abateram sobre nós, é claro que nós supusemos que eles seriam pessoas pequenas, peludas, bobas, da natureza amável dos mercadores resmungões e simpáticos que às vezes chegavam à nossa costa em barcos de peles, para nos vender mercadorias e depois ir embora.

Ouvíamos falar de ataques e massacres, mas não conseguíamos acreditar nisso. Afinal de contas, por que alguém iria fazer uma coisa dessas?

E então ficamos perplexos ao descobrir que os seres humanos que estavam chegando à Grã-Bretanha tinham a pele lisa como a nossa, que sua pedra mágica havia sido trabalhada de modo a formar escudos, capacetes e espadas, que eles haviam trazido consigo seus próprios cavalos treinados às centenas, e que montados eles nos atacavam, queimando nossas habitações, perfurando nosso corpo com lanças ou nos decapitando.

Eles roubavam nossas mulheres e as violentavam até que elas morressem da hemorragia. Seqüestravam nossos homens e procuravam escravizá-los, riam deles e os ridicularizavam, e em alguns casos chegavam a enlouquecê-los.

A princípio, esses ataques-surpresa eram muito pouco freqüentes. Os guerreiros chegavam por mar e caíam sobre nós à noite, vindo das florestas. Nós imaginávamos que cada ataque seria o último.

Muitas vezes, nós os repelíamos. Não éramos, por natureza, ferozes como eles, de modo algum, mas sabíamos nos defender. E círculos imensos eram convocados para debater suas armas de metal e estudar como poderíamos fazer as nossas próprias. Na realidade, nós aprisionamos uma quantidade desses seres humanos, todos invasores, para tentar extrair o conhecimento deles. Descobrimos que, quando dormíamos com suas mulheres, de propósito ou não, elas morriam. E os homens tinham um ódio profundo e arraigado da nossa delicadeza. Eles nos chamavam de "bobos do círculo" ou de "gente tola das pedras".

A ilusão de que poderíamos nos defender dessa gente se desfez quase no decorrer de uma estação. Só mais tarde soubemos que havíamos sido salvos de uma aniquilação anterior por um fato muito simples: não tínhamos muita coisa que essa gente quisesse. Principalmente, eles queriam nossas mulheres para o prazer e alguns dos presentes mais belos que os peregrinos haviam trazido ao santuário do círculo.

No entanto, outras tribos de Taltos afluíam até a planície. Elas haviam sido expulsas das suas terras ao longo do litoral pelos invasores humanos, que despertavam nelas apenas um medo mortal. Suas montarias davam a esses seres humanos um fanático sentido de poder. Os humanos gostavam dessas invasões. O massacre era para eles um esporte.

Nós fortificamos nossos acampamentos para o inverno. Aqueles que vieram se juntar a nós substituíram muitos dos guerreiros que havíamos perdido.

E então veio a neve. Tínhamos alimentos em abundância e tínhamos a paz. Talvez os invasores não gostassem da neve. Nós não sabíamos. Éramos tantos de nós ali reunidos, e havíamos recolhido dos mortos tantas lanças e espadas que nos sentíamos em segurança.

Já era hora de convocar o círculo para os nascimentos do inverno, o que era de extrema importância, já que tantos haviam sido mortos no ano anterior. Nós não só precisávamos criar novos Taltos para nossas aldeias. Precisávamos fazer mais para mandar para outras aldeias em que os habitantes houvessem sido dizimados pelo fogo.

Muitos vieram de muito longe para o círculo de nascimentos de inverno, e ouvimos cada vez mais histórias de chacinas e desgraças.

No entanto, éramos muito numerosos. E essa era a nossa hora sagrada.

Formamos os círculos, acendemos as fogueiras. Estava na hora de declarar ao Deus Bom que acreditávamos que o verão voltaria, de fazer com que os nascimentos acontecessem agora como afirmação dessa nossa fé e como uma afirmação de que o Deus Bom queria que sobrevivêssemos.

Talvez tivéssemos tido dois dias de cantos, danças e nascimentos, de banquetes e bebidas, quando as tribos dos humanos se abateram sobre a planície.

Ouvimos o estrondo enorme dos cavalos antes de vê-los. Era um ronco como o som do desmoronamento da terra perdida. Vinham cavaleiros de todos os lados para nos atacar. As enormes pedras dos círculos ficaram salpicadas com o nosso sangue.

Muitos Taltos, inebriados com a música ou com as atividades eróticas, sequer chegaram a opor resistência. Aqueles de nós que correram para os acampamentos lutaram com afinco.

No entanto, quando a fumaça se desfez, quando os cavaleiros não estavam mais ali, quando nossas mulheres haviam sido levadas às centenas nas nossas próprias carroças, quando toda construção havia sido arrasada, nós éramos apenas um punhado, e estávamos fartos da guerra.

Na realidade, os horrores que havíamos visto jamais queríamos presenciar outra vez. Os recém-nascidos da nossa tribo haviam sido lodos eliminados, até não restar nenhum. Inexperientes, haviam caído nas garras da morte nos primeiros dias de vida. Restavam-nos poucas mulheres, e algumas delas já haviam procriado em excesso no passado.

Antes do segundo pôr-do-sol após o massacre, nossos patrulheiros voltaram para nos dizer o que temíamos ser verdade: os guerreiros haviam instalado seus acampamentos na floresta. Estavam construindo habitações permanentes. Na realidade, havia rumores de que suas aldeias já salpicavam a paisagem ao sul.

Tínhamos de fugir para o norte.

Tínhamos de voltar para os vales ocultos das montanhas da Escócia, ou locais inacessíveis demais para esses invasores cruéis. Nossa viagem foi longa, durou o restante do inverno, período no qual o nascimento e a morte passaram a ser ocorrências diárias. E mais de uma vez, fomos atacados por pequenos bandos de humanos. E mais de uma vez, espionamos seus povoados e aprendemos sobre suas vidas.

Massacramos mais do que um bando de inimigos. Por duas vezes, atacamos de surpresa fortalezas nas planícies para libertar nossos homens e mulheres, cujo canto ouvíamos de grande distância.

E quando afinal descobrimos o alto vale de Donnelaith, já era primavera, a neve estava derretendo, a floresta exuberante estava novamente verde, o braço de mar já não estava mais congelado, e logo nos descobrimos num esconderijo acessível ao mundo exterior apenas por um rio sinuoso cujo percurso era tão cheio de voltas que o próprio braço de mar não era visível do mar. Na realidade, a grande enseada pela qual o viajante marítimo entra no braço de mar dá a impressão a qualquer um de ser uma gruta.

Compreendam, o braço de mar em épocas posteriores tornou-se um porto. A essa altura, os homens já haviam feito muito para abri-lo para o mar.

Mas, naqueles tempos remotos, nós nos descobrimos escondidos e em segurança, afinal.

Tínhamos conosco muitos Taltos resgatados. E as histórias que eles contavam! Os seres humanos haviam descoberto o milagre da procriação conosco! Estavam encantados com seu aspecto mágico. Haviam torturado homens e mulheres Taltos impiedosamente, procurando forçá-los ao ato, para depois berrarem deliciados e com um medo emocionante quando surgia o novo Taltos. Algumas dessas mulheres haviam sido atormentadas até morrerem. Mas muitas da nossa espécie haviam resistido, recusando-se a ser violadas dessa forma. Algumas haviam encontrado meios de tirar a própria vida. Muitas haviam sido mortas por lutarem, por atacarem qualquer ser humano que se aproximasse delas, e afinal por não pararem de tentar a fuga.

Quando os humanos descobriram que os recém-nascidos podiam procriar imediatamente, eles os forçavam a isso; e os recém-nascidos, confusos e apavorados, não sabiam fazer outra coisa a não ser obedecer. Os humanos conheciam o poder da música sobre os Taltos e como usá-lo. Os humanos consideravam os Taltos sentimentais e covardes, embora eu agora não saiba quais eram as palavras para isso naquela época.

Em suma, um ódio profundo surgiu entre nós e os guerreiros. É claro que nós os considerávamos animais, animais que sabiam falar e fazer coisas, perfeitos horrores, na realidade, aberrações que poderiam destruir toda a beleza da vida. E eles nos consideravam monstros divertidos e relativamente inofensivos! Pois logo ficou aparente que o mundo lá fora eslava cheio de gente da altura deles ou mesmo menor, que procriava e vivia como eles, não cheio de gente como nós.

Das nossas incursões, havíamos recolhido muitos objetos que essas pessoas traziam de toda parte. Os escravos repetiam histórias de grandes reinos cercados de muralhas, de palácios em desertos de areia e na selva, de tribos em guerra e de grandes ajuntamentos de pessoas em fortalezas de tal tamanho que não se podia imaginar. E essas fortalezas tinham nomes.

Todas essas pessoas, ao que soubéssemos, procriavam à maneira humana. Todos tinham bebês pequeninos e indefesos. Todos os criavam meio selvagens e meio inteligentes. Todos eram agressivos, gostavam de guerrear, gostavam de matar. Na realidade, para mim estava perfeitamente óbvio que os mais agressivos entre eles eram os sobreviventes, e que eles haviam ao longo dos séculos feito uma seleção, extirpando qualquer um que não fosse agressivo. Portanto, eles haviam tido influência em fazer de si mesmos o que eram.

Nossos primeiros dias no vale de Donnelaith — e permitam-me dizer aqui que fomos nós que lhe demos esse nome — foram dias de intensa reflexão e debate, da construção do melhor círculo que podíamos construir, bem como de consagração e oração.

Celebramos o nascimento de numerosos Taltos, que educamos vigorosamente para as provações que estavam por vir. Enterramos muitos que morreram de velhos ferimentos, algumas mulheres que morreram de parto, como sempre acontecia, e outros que, tendo sido expulsos da planície de Salisbury, simplesmente não queriam mais viver.

Foi o tempo de pior sofrimento para meu povo, até mesmo pior do que o próprio massacre havia sido. Vi Taltos fortes, de cabelos brancos, grandes cantores, se entregarem totalmente à música para cair afinal, sem fôlego, no capim alto.

Finalmente, quando foi indicado um novo conselho, de recém-nascidos e de Taltos mais experientes, dos de cabelos brancos e daqueles que queriam fazer alguma coisa com relação a tudo isso, chegamos a uma posição muito lógica.

Vocês podem adivinhar qual ela era?

Nós nos demos conta de que os humanos tinham de ser aniquilados. Se não o fossem, seu procedimento agressivo destruiria tudo que nos havia sido dado pelo Deus Bom. Eles estavam extinguindo a vida com sua cavalaria, seus archotes e suas espadas. Tínhamos de acabar com eles.

Quanto à perspectiva de que eles existiam em grande número espalhados por todas as terras distantes, bem, nós procriávamos muito mais depressa do que eles, não era verdade? Podíamos substituir nossos mortos com muita rapidez. Eles levavam anos para repor um guerreiro morto. Nós certamente conseguiríamos sobrepujá-los em termos numéricos quando os enfrentássemos, se ao menos... se ao menos conseguíssemos suportar a luta.

Dentro de uma semana, após discussões intermináveis, concluímos que não tínhamos como suportar a luta. Alguns de nós conseguiriam. Estávamos tão indignados e cheios de ódio e ironia agora que poderíamos nos abater sobre eles e os cortar em pedaços. Mas em geral, os Taltos simplesmente não sabiam matar desse jeito. Eles não poderiam igualar o perverso desejo dos humanos pela matança. E nós sabíamos disso. Os humanos acabariam vencendo por pura mesquinhez e crueldade.

É claro que, desde aquela época, e possivelmente milhares de vezes antes dela, um povo foi exterminado por lhe faltar agressividade; por não conseguir igualar a crueldade de outra tribo, de outro clã, de outra nação ou raça.

A única diferença verdadeira no nosso caso era que nós sabíamos. Enquanto os incas foram exterminados em plena ignorância pelos espanhóis, nós compreendíamos muito mais do que estava envolvido na questão.

É claro que tínhamos certeza da nossa superioridade com relação aos humanos. Ficávamos perplexos com o fato de eles não apreciarem nossos cantos e nossas historias. Acreditávamos que eles não soubessem o que estavam fazendo quando nos arrasavam.

E, percebendo que de fato não poderíamos nos equiparar a eles em combates, supusemos que pudéssemos ponderar com eles, que pudéssemos ensinar alguma coisa, que pudéssemos mostrar-lhes como a vida era muito mais agradável e aprazível quando não se matava.

Naturalmente, apenas começávamos a compreendê-los.

Antes do final daquele ano, já nos aventurávamos a sair do vale para capturar alguns prisioneiros humanos. E com eles aprendemos que as coisas eram muito mais inauspiciosas do que imaginávamos. O ato de matar era a própria base da sua religião. Era seu ato sagrado!

Para seus deuses, eles matavam, sacrificando centenas de indivíduos da sua própria espécie nesses rituais. Na realidade, a morte era o próprio foco da sua vida!

Fomos dominados pelo horror.

Decidimos que a vida para nós existiria apenas dentro do vale. Quanto a outras tribos de Taltos, temíamos que o pior lhes houvesse acontecido. Em nossas curtas incursões para encontrar escravos humanos, havíamos visto mais de uma aldeia incendiada, mais de um campo de ossos vigorosos a se desintegrar, sendo espalhados pelo vento do inverno.

À medida que os anos foram passando, permanecemos em segurança no vale, aventurando-nos a sair somente com o máximo cuidado. Nossos patrulheiros afastavam-se tanto quanto ousavam.

Ao final de uma década, sabíamos que não restava mais nenhum povoado de Taltos na nossa parte da Grã-Bretanha. Todos os antigos círculos agora estavam abandonados! E também chegamos a saber dos prisioneiros que fazíamos, o que não era nada fácil, que agora estávamos sendo caçados e que éramos alvo de grande procura para sacrifícios aos deuses humanos.

Na realidade, os massacres haviam se tornado coisa do passado. Os Taltos eram caçados estritamente para serem capturados, apenas sendo mortos se se recusavam a procriar.

Haviam descoberto que o sêmen do Taltos provocava a morte das humanas e, por esse motivo, os machos eram mantidos em intolerável servidão, carregados de correntes metálicas.

Durante o século seguinte, os invasores conquistaram a terra!

Muitos dos patrulheiros que saíam à procura de outros Taltos para trazê-los para o vale, simplesmente não voltavam nunca mais. Mas sempre havia os jovens que queriam ir, que precisavam ver a vida do outro lado das montanhas, que tinham de descer ao braço de mar e navegar até o mar.

À medida que as lembranças eram transmitidas através do sangue, nossos Taltos jovens passaram a ser cada vez mais belicosos. Eles queriam matar um humano! Ou era o que pensavam.

Aqueles aventureiros que chegavam a voltar, e freqüentemente com pelo menos um par de prisioneiros humanos, confirmavam nossos piores temores. De uma extremidade da Grã-Bretanha à outra, o Taltos estava em extinção. Na realidade, na maioria dos lugares, eles não passavam de uma lenda. Certas cidades, pois os novos povoados não eram menos do que isso, pagavam uma fortuna por um Taltos, mas os homens já não os caçavam mais, e alguns nem acreditavam que jamais houvessem existido feras tão estranhas.

Os que eram apanhados eram selvagens.

Selvagens?, perguntamos. Em nome de Deus, o que é um Taltos selvagem?

Bem, logo soubemos.

Em numerosos povoados, quando chegava a hora do sacrifício aos deuses, as mulheres escolhidas, muitas vezes fanaticamente ansiosas, eram levadas a abraçar o Taltos prisioneiro, a despertar seu desejo e em seguida a morrer por seu sêmen. Dezenas de mulheres morriam dessa forma, exatamente como os homens eram afogados em caldeirões, decapitados ou queimados em horrendas gaiolas de vime, para os deuses das tribos humanas.

No entanto, ao longo dos anos, algumas dessas mulheres não morreram. Algumas delas deixaram vivas o altar sagrado. E algumas delas, em questão de semanas, chegaram a dar à luz!

Um Taltos nascia dos seus corpos, uma semente aleatória da nossa espécie. Esse Taltos invariavelmente matava sua mãe humana, sem que fosse essa sua intenção, é claro, mas devido ao fato de ela não sobreviver ao nascimento de uma criatura dessas. No entanto, isso nem sempre acontecia. E, se a mãe vivesse o suficiente para amamentar o rebento com o leite que tinha em abundância, esse Taltos cresceria, dentro do costumeiro período de três horas, até atingir seu tamanho pleno.

Em algumas aldeias, isso era considerado um grande presságio de boa sorte. Em outras, um desastre. Os seres humanos não conseguiam concordar. No entanto, o objetivo agora era o de obter um casal de Taltos filhos de humanos e fazer com que eles gerassem mais Taltos; o de manter um estoque deles em cativeiro para fazê-los dançar, cantar e dar á luz.

Taltos selvagens.

Havia um outro meio pelo qual um Taltos selvagem podia nascer. Eventualmente um macho humano fazia com que um fosse gerado no corpo de uma mulher Taltos! Essa pobre prisioneira, que era mantida cativa para o prazer, a princípio não imaginava que houvesse concebido. Dentro de semanas, nascia-lhe um filho, que alcançava sua altura total como ela sabia que ele alcançaria, só para ser levado para longe dela e preso, ou para lhe darem algum fim medonho.

E quem eram os mortais que podiam procriar com os Taltos dessa forma? O que os caracterizava? Bem no início, não fazíamos idéia. Não percebíamos nenhum sinal visível. Mas com o passar do tempo, à medida que a mestiçagem ocorria cada vez mais, tornou-se claro para nós que um certo tipo de ser humano tinha maior tendência do que outros, fosse para conceber, fosse para fecundar, e que esse era um humano de altos dons espirituais, um humano que soubesse ler o coração dos outros, prever o futuro ou promover curas através das mãos. Esses humanos, aos nossos olhos, passaram a ser perfeitamente detectáveis e afinal inconfundíveis.

Isso, no entanto, levou séculos para se desenvolver. O sangue era passado de um lado para o outro.

Taltos selvagens escapavam dos seus cativeiros. Mulheres humanas monstruosamente barrigudas com o Taltos fugiam para o vale na esperança de encontrar abrigo. É claro que nós as aceitávamos.

Aprendemos muito com essas mães humanas.

Enquanto nossos filhos nasciam em horas, os delas levavam de uma quinzena a um mês, dependendo da hipótese de a mãe saber ou não da existência da criança. Na realidade, se a mãe soubesse e se dirigisse à criança, acalmasse seus temores e cantasse para ela, o crescimento seria imensamente acelerado. Taltos híbridos nasciam sabendo coisas que seus ancestrais humanos sabiam! Em outras palavras, nossas leis de herança genética abrangiam o conhecimento adquirido da espécie humana.

É claro que naquela época não dispúnhamos de termos adequados para debater esse assunto. Sabíamos apenas que um híbrido podia saber cantar canções humanas em línguas humanas, ou podia fazer botas de couro, primorosas, como nunca havíamos visto antes.

Dessa forma, todo tipo de conhecimento humano foi transmitido ao nosso povo.

No entanto, aqueles selvagens, nascidos no cativeiro, sempre eram cheios também de recordações dos Taltos e sentiam ódio dos seus tiranos humanos. Eles fugiam em busca da liberdade assim que podiam. Fugiam para os bosques e para o norte, possivelmente para a terra perdida. Soubemos mais tarde que alguns infelizes voltavam ao lar na imensa planície e, ao não encontrar nenhum refúgio por lá, sobreviviam penosamente na floresta próxima ou eram capturados e mortos.

Alguns desses Taltos selvagens inevitavelmente procriavam entre si. Encontravam-se como fugitivos; ou mesmo eram acasalados em cativeiro. Sempre podiam procriar com um prisioneiro Taltos puro, dando à luz da forma pura, imediatamente. E assim uma raça frágil de Taltos permanecia nas matas da Grã-Bretanha, uma desesperada minoria de proscritos, em incessante procura por seus antepassados e pelo paraíso das suas lembranças, além de trazer nas veias o sangue humano.

Uma grande quantidade de sangue humano entrou no Taltos selvagem durante esses séculos. E os Taltos selvagens desenvolveram crenças e hábitos próprios. Eles viviam nas copas verdes das árvores, muitas vezes se tingindo inteiramente de verde para camuflagem, criando a tintura a partir de vários pigmentos naturais e se vestindo, quando possível, de hera e folhas.

E foram eles, ou era isso que se alegava, que de algum modo criaram os Pequenos.

Na realidade, os Pequenos podem ter sempre vivido nas sombras e em esconderijos. Sem dúvida, nós os havíamos vislumbrado nos tempos remotos e, durante o tempo da nossa conquista da Grã-Bretanha, eles se mantiveram totalmente afastados de nós. Não passavam de um tipo de monstro nas nossas lendas. Praticamente não lhes dávamos mais atenção do que aos seres humanos peludos.

Agora, porém, chegavam ao nosso conhecimento histórias de que eles teriam começado com o acasalamento do Taltos com o ser humano — de que, quando a concepção ocorria mas o desenvolvimento era falho, nascia um anão corcunda, em lugar do Taltos forte e gracioso.

Seria isso verdade? Ou será que eles não provinham da mesma raiz que nós? Não teríamos sido primos em alguma época anterior à da terra perdida, quando talvez tivéssemos vivido em comunhão em algum paraíso mais remoto? Na época antes da lua? Teria sido essa a época da nossa separação, de uma tribo da outra?

Não sabíamos. No entanto, na época dos híbridos, e de experiências dessa natureza, do Taltos selvagem procurando descobrir o que podia e o que não podia fazer, ou quem conseguia procriar com quem, soubemos que esses horríveis monstrinhos, esses pequenos estranhos, maliciosos e travessos, podiam procriar conosco. Na verdade, se eles conseguissem seduzir um de nós a copular com eles, fosse homem fosse mulher, o rebento com extrema freqüência era um Taltos.

Uma raça compatível? Uma experiência evolutiva intimamente ligada a nós?

Mais uma vez, nunca viríamos a saber.

A lenda espalhou-se, porém, e os Pequenos nos perseguiam com tanta crueldade quanto os seres humanos. Eles instalavam armadilhas para nós; procuravam nos atrair com sua música; não se aproximavam em bando de guerreiros; eram dissimulados e procuravam nos hipnotizar com encantamentos que lançavam com os poderes das suas mentes, Eles queriam fazer o Taltos. Sonhavam em se tornar uma raça de gigantes, como nos chamavam. E, quando eles apanhavam nossas mulheres, copulavam com elas até que elas morressem. E, quando apanhavam nossos homens, eram tão cruéis quanto os humanos com eles para fazer com que procriassem.

Ao longo dos séculos, a mitologia foi se ampliando. Os Pequenos haviam sido um dia como nós, altos e belos. Um dia. eles haviam tido nossos privilégios. Mas os demônios haviam feito deles o que eram, proscritos, haviam feito com que sofressem. Eles viviam tanto quanto nós. Sua prole de monstrinhos nascia tão veloz e proporcionalmente desenvolvida quanto a nossa.

Nós, porém, os temíamos. Nós os odiávamos. Não queríamos ser usados por eles. E chegamos a acreditar nas histórias de que nossos filhos poderiam ser como eles, se não lhes fosse dado leite, se não fossem amados.

E a verdade, qualquer que ela fosse, se é que alguém a conhecia, ficou enterrada no folclore.

No vale, os Pequenos ainda persistem. Há poucos indivíduos nascidos na Grã-Bretanha que não tenham ouvido falar deles. São chamados por inúmeros nomes, jogados no mesmo saco com outras criaturas do mito: as fadas, o Sluagh, os Ganfers, os duendes, os elfos.

Eles agora estão em extinção em Donnelaith, por uma quantidade de motivos. Mas ainda vivem em outros lugares escuros, secretos. Eles seqüestram mulheres humanas de quando em quando para procriar, mas não têm mais sucesso com humanas do que nós. Anseiam por um bruxo ou uma bruxa — um ser mortal com o sentido a mais, o tipo que, com um deles, costuma conceber ou gerar um Taltos. E, quando encontram essas criaturas, podem ser impiedosos.

Nunca acreditem que eles não lhes farão mal no vale, ou em outras ravinas, bosques e vales remotos. Eles o fariam. E os matariam e queimariam a gordura dos seus corpos em archotes pelo puro prazer de fazer isso.

Esta, porém, não é a história deles.

Uma história diferente a respeito deles pode ser contada por Samuel, quem sabe? Se é que ele um dia pudesse ser estimulado a contá-la. Mas a verdade é que Samuel tem uma história toda sua sobre suas viagens que o afastaram dos Pequenos, e essa seria uma aventura melhor, creio eu, do que a história deles.

Permitam-me voltar aos Taltos selvagens agora, aos híbridos que possuíam genes humanos. Reunindo-se em bandos fora do vale, sempre que possível, eles trocavam recordações, histórias e formaram seus próprios pequenos povoados.

Periodicamente nós saíamos a procurá-los e os trazíamos para casa. Eles procriavam conosco; eles nos davam filhos; nós lhes dávamos conselhos e conhecimento.

E o que era surpreendente era que eles nunca ficavam! Voltavam ao vale de vez em quando para descansar, mas precisavam retornar ao mundo selvagem no qual atiravam setas nos humanos e saíam correndo pelas florestas, às risadas, acreditando ser as próprias criaturas mágicas, procuradas para o sacrifício, que os humanos acreditavam que eles fossem.

E naturalmente a grande tragédia do seu desejo de vaguear é que inevitavelmente eles levavam o segredo do vale ao mundo dos humanos.

Simplórios, é isso o que somos num sentido verdadeiro. Simplórios, por não termos visto que uma coisa dessas teria de acontecer. Que um desses selvagens, quando afinal fosse capturado, contaria histórias do nosso vale, às vezes para ameaçar seus inimigos com a perspectiva de vingança por parte de uma nação secreta, por pura ingenuidade; ou ainda que a história, tendo sido contada a outro Taltos selvagem que jamais nos vira, fosse passada adiante por ele.

Vocês compreendem o que aconteceu? A lenda do vale, do povo alto que dava à luz crianças que podiam caminhar e falar no instante do nascimento, começou a se espalhar. O conhecimento do nosso povo era corrente por toda a Grã-Bretanha. Encaixamo-nos na lenda com os Pequenos. E com outras criaturas estranhas que os humanos raramente viam, mas que teriam dado qualquer coisa para capturar.

E assim a vida que havíamos construído em Donnelaith, uma vida de grandes torres de pedra ou brochs, das quais esperávamos um dia poder nos defender com sucesso de invasões, uma vida de velhos rituais meticulosamente conservados e executados, de lembranças prezadas e dos nossos valores, da nossa fé no amor e no nascimento, considerados sagrados acima de tudo, essa vida corria um risco mortal por parte daqueles que gostavam de caçar monstros por qualquer motivo, por parte daqueles que só queriam "ver com seus próprios olhos".

Ocorreu mais um fato novo. Como disse anteriormente, sempre havia os que nasciam no vale e queriam sair. Inculcávamos profundamente neles que deviam se lembrar do caminho de volta para casa. Deviam olhar para as estrelas e nunca se esquecer dos diversos desenhos que os guiariam de volta. E isso passou a fazer parte do conhecimento inato com muita rapidez porque o cultivamos propositadamente, e esse cultivo funcionou. Na realidade, ele funcionou com uma eficácia surpreendente, abrindo para nós todos os tipos de novas possibilidades. Podíamos inserir na programação do conhecimento inato todo tipo de ensinamento prático. Púnhamos isso à prova fazendo perguntas ao recém-nascido. Era simplesmente espantoso. Eles conheciam o mapa da Grã-Bretanha como nós o conhecíamos e o conservávamos (altamente incorreto). Sabiam fazer armas. Conheciam a importância do segredo, o medo dos seres humanos e o ódio a eles, bem como as formas de evitá-los ou vencê-los. Eles conheciam a Arte da Língua.

Agora, a Arte da Língua, como a chamávamos, era algo em que jamais havíamos pensado até a chegada dos humanos. Mas ela consistia essencialmente em falar e argumentar com as pessoas, o que fazíamos entre nós o tempo todo. Ora, entre nós, nós falamos basicamente com uma velocidade muito, muito maior do que os humanos, às vezes. Nem sempre. Só de vez em quando. Aos humanos, parece um assovio, um cantarolar ou mesmo um zumbido. Mas sabemos falar no ritmo humano, e havíamos aprendido a falar com os humanos no nível deles, ou seja, a confundi-los e enredá-los no raciocínio, a deixá-los fascinados e a influenciá-los até certo ponto.

Era óbvio que a Arte da Língua não nos estava salvando da extinção.

No entanto, ela podia salvar um Taltos solitário descoberto por um par de humanos numa floresta, ou um homem Taltos aprisionado por um pequeno clã humano sem nenhum vínculo com o povo guerreiro que havia invadido nossa terra.

Qualquer um que se arriscasse a sair do vale devia conhecer a Arte da Língua, de falar lentamente com os humanos, no nível deles, e de fazê-lo de modo convincente. E era inevitável que alguns dos que saiam resolvessem se estabelecer lá fora.

Eles construíam suas brochs, ou seja, nosso estilo de torre, de pedra nua sem argamassa, e moravam em locais inóspitos e isolados, fingindo ser humanos para a gente nova que por acaso passasse por sua moradia.

Era uma espécie de existência de clã que se desenvolvia em termos defensivos e em pontos espalhados.

Era, porém, inevitável que esses Taltos revelassem sua natureza aos humanos, que os humanos guerreassem contra eles ou que alguém soubesse do nascimento mágico do Taltos e que os comentários a nosso respeito e a respeito do vale voltassem a circular entre humanos hostis.

Eu mesmo, tendo sempre sido criativo, progressista e tendo sempre me recusado a desistir — nem mesmo quando toda a terra perdida estava explodindo, eu desisti — praticamente acreditava que a nossa era uma causa perdida. Naquele momento, podíamos defender o vale, o que era verdade, quando forasteiros por acaso invadiam nosso espaço, mas no fundo estávamos encurralados!

No entanto, a questão dos que se passavam por humanos, dos que viviam entre os humanos, fingindo ser uma antiga tribo ou clã, isso me fascinava. E me levou a pensar... E se nós nos dispuséssemos a isso? E se, em vez de impedir o acesso de seres humanos, nós lentamente permitíssemos sua entrada no vale, levando-os a acreditar que nós éramos também uma tribo humana, e vivêssemos em meio a eles, mantendo nossos rituais de nascimento em segredo?

Enquanto isso, enormes mudanças no mundo exterior exerciam tremendo fascínio sobre nós. Queríamos conversar com viajantes, queríamos aprender.

E assim, finalmente, maquinamos um perigoso estratagema...

 

— YURI STEFANO FALANDO. QUE DESEJA?

— O que eu desejo! Meu Deus, que bom ouvir a sua voz — disse Michael. — Nós nos separamos há menos de quarenta e oito horas, mas o Oceano Atlântico está agora entre nós!

— Michael. Graças a Deus, você ligou. Eu não sabia onde encontrá-lo. Vocês ainda estão com Ash, não estão?

— Estamos e vamos ficar mais uns dois dias, creio eu. Vou lhe contar tudo, mas como vão as coisas com você?

— Está acabado, Michael. Tudo terminou. Todo o mal desapareceu, e a Talamasca voltou a ser ela mesma. Hoje pela manhã recebi minha primeira mensagem dos Anciãos. Estamos tomando sérias medidas no sentido de que esse tipo de interceptação nunca mais volte a ocorrer. Já tenho o trabalho talhado para mim, escrever meus relatórios. O novo superior geral recomendou que eu descanse, mas isso é impossível.

— Mas você tem de descansar parte do tempo, Yuri. Sabe que é preciso. Todos nós precisamos.

— Eu durmo quatro horas. Então eu me levanto. Penso no que aconteceu. Escrevo. Fico escrevendo talvez quatro, cinco horas. Volto, então, a dormir. Às refeições, eles vêm me apanhar. Fazem com que eu desça. É bom. É bom estar de volta com eles. Mas e você, Michael?

— Yuri, eu amo esse homem. Meu amor por Ash é como o que senti por Aaron. Estive ouvindo sua história durante horas. É claro que o que ele nos conta não é nenhum segredo, mas ele não quer que nós gravemos nenhuma parte. Diz que devemos levar conosco apenas aquilo de que nos lembrarmos naturalmente. Yuri, não creio que esse homem venha jamais a nos ferir ou a ferir alguém ligado a nós. Tenho certeza disso. Sabe? É uma dessas situações. Deposito minha confiança nele. E se ele vier realmente a nos prejudicar, por qualquer motivo, bem, que seja o que tiver de ser.

— Compreendo. E Rowan? Como está?

— Acho que ela também o ama. Sei que sim. Mas até que ponto e de que modo, bem, isso é com ela. Eu nunca poderia falar por Rowan. Como eu disse, vamos ficar aqui mais uns dois dias, talvez mais, e depois temos de voltar para o sul. Estamos um pouco preocupados com Mona.

— Por quê?

— Não é nada de terrível. Ela fugiu com a prima. Mary Jane Mayfair. Uma garota que você não teve o prazer de conhecer. E as duas são um pouco jovens demais para andarem soltas por aí sem orientação dos pais.

— Michael, eu escrevi uma carta para Mona. Tinha de escrever. Sabe, antes de deixar Nova Orleans, prometi meu coração a Mona. Mas Mona é criança demais para um compromisso desses. E agora que estou em casa, de volta à Ordem, percebo mais do que nunca como não sou adequado para namorar Mona. Enviei essa carta para o endereço de Amelia Street, mas receio que Mona, pelo menos por algum tempo, fique com raiva de mim.

— Yuri, Mona está com a cabeça ocupada por outras coisas agora. Essa sua decisão é provavelmente a melhor que você podia ter tomado. Nós nos esquecemos de que Mona tem treze anos. Todos se esquecem. E sem dúvida Mona também se esquece. Mas você agiu certo. Além do mais, ela pode entrar em contato com você se quiser, não pode?

— Claro. Estou aqui. Estou a salvo. Estou em casa.

— E Tessa?

— Bem, eles a levaram embora, Michael. A Talamasca é assim. Tenho certeza de que foi isso o que aconteceu com ela. Ela foi cercada por um grupo muito obsequioso de companheiros e convidada a acompanhá-los, provavelmente até Amsterdã. Dei-lhe um beijo de despedida antes que se fosse. Houve alguma menção de um belo lugar para ela onde poderia descansar e onde todas as suas lembranças e histórias seriam registradas. Ninguém parece ser capaz de calcular sua idade. Ninguém sabe se o que Ash disse é real, que ela morrerá em breve.

— Mas ela está feliz, e a Talamasca está cuidando dela.

Está, sem a menor dúvida. É claro que, se algum dia ela quiser ir embora, ela poderá ir embora. É o nosso estilo. Mas eu acho que Tessa não pensa nesses termos. Creio que ela vagueou anos a fio, ninguém sabe quantos, de um protetor para outro. Por sinal, ela não se entristeceu muito por Gordon. Diz que não gosta de se prender a coisas desagradáveis.

Michael riu.

— Eu entendo. Pode acreditar em mim. Olhe, agora preciso ir. Vamos cear juntos, e depois Ash prosseguirá com sua história. É lindo aqui onde estamos. Neva e faz frio, mas está lindo. Tudo que cerca Ash reflete sua personalidade. É sempre assim. Os prédios que escolhemos para nós mesmos, eles são sempre reflexos de nós. Este lugar aqui é cheio de mármore colorido, quadros e... e de objetos que são do interesse de Ash. Imagino que eu não deva falar muito sobre isso. Ele quer preservar sua privacidade, quer ser deixado em paz depois que nos formos.

— Sei. Compreendo. Ouça. Michael, quando você vir Mona, deve lhe dizer algo por mim... que... você deve lhe dizer que eu...

— Ela vai compreender, Yuri. A cabeça de Mona está ocupada com outras coisas agora. Ê uma época emocionante para ela. A família quer que ela largue o Sagrado Coração, para começar a estudar com professores particulares. O QI dela é extraordinário, como ela sempre disse que era. E ela é a herdeira do legado Mayfair. Creio que, durante os próximos anos, Mona vai passar muito tempo com Rowan e comigo, estudando, viajando, adquirindo aquele tipo de formação ideal para uma mulher de... como eu poderia dizer, de grandes esperanças. Vou desligar agora. Ligo para você de novo de Nova Orleans.

— Ligue, sim, por favor. Amo vocês dois. Amo... vocês três. Você diz isso a eles por mim, a Ash e Rowan?

— Digo. Por sinal, aqueles cúmplices, os ajudantes de Gordon?

— Está tudo acabado. Eles se foram e nunca mais poderão prejudicar a Ordem. Volto a falar com você em breve, Michael.

— Até a próxima, Yuri.

 

TODOS SEMPRE LHE DIZIAM que os Mayfair de Fontevrault eram malucos. "É por isso que o procuram, Dr. Jack." Não tem um que não seja maluco, dizia o povo da cidadezinha, nem os parentes ricos de Nova Orleans.

Mas será que ele precisava ir conferir com os próprios olhos numa tarde dessas, quando estava escuro como se já fosse noite, e metade das ruas da cidade estavam inundadas?

E a idéia de trazer um bebê recém-nascido numa tempestade dessas, todo embrulhado em pequenas mantas fedidas, deitado num caixa de isopor, nada mais, nada menos! E Mary Jane Mayfair esperando que ele preenchesse a certidão de nascimento bem ali no consultório.

Ele exigira ver a mãe!

É claro que, se ele tivesse imaginado que ela ia sair dirigindo essa limusine desse jeito pelas estradas de cascalho, bem no meio da tempestade, e que ele acabaria tendo de segurar o bebê no colo, teria insistido em acompanhá-la na sua picape.

Quando ela apontou para a limusine, ele imaginou que a moça tivesse motorista. E o automóvel era novo ainda por cima, no mínimo com uns sete metros e meio de comprimento, com teto solar e vidros fumes, equipamento de CD e um maldito telefone. E essa rainha amazona adolescente ao volante, com seu vestido sujo de renda branca lama salpicada nas pernas nuas e nas sandálias.

— E você quer me dizer — gritou ele, mais alto do que o barulho da chuva — que, com um carro desses, você não pôde trazer a mãe deste bebê ao hospital?

O bebê parecia razoavelmente bem, graças a Deus, talvez prematuro de um mês, calculou, e subnutrido, naturalmente! Mas afora isso, estava bem e dormia agora, bem no fundo do isopor, com todas aquelas mantas malcheirosas, enquanto ele segurava a caixa no colo. Ora, essas mantas de fato cheiravam a uísque.

— Deus do céu, Mary Jane Mayfair, vá mais devagar! — disse ele afinal. Os galhos faziam enorme barulho na capota do carro. Ele se encolheu quando os ramos de folhas úmidas bateram direto no pára-brisas. Mal conseguia agüentar aquilo, o jeito dela passar direto pelos sulcos! — Você vai acordar o bebê.

— O bebê está bem, doutor — disse Mary Jane, deixando que a saia subisse pelas coxas acima até as calcinhas. Essa era uma garota formidável, ninguém precisava lhe dizer isso. A princípio ele teve certeza de que o bebe era dela e que ela ia inventar alguma cascata de que ele havia sido deixado junto à porta da sua casa. Mas nada disso, havia uma mãe embrenhada naqueles pântanos, graças a Deus. Isso ele ia incluir nas suas memórias.

— Estamos quase chegando — exclamou Mary Jane. Amassando uma moita de bambu à sua esquerda e passando direto por cima. — Agora, o senhor precisa levar o bebê no barco, está bem, doutor?

— Que barco! — gritou ele. Mas ele sabia muito bem de que barco se tratava. Todo mundo lhe falara dessa casa antiga, de que ele devia dar um passeio até o embarcadouro de Fontevrault só para vê-la. Mal se podia acreditar que ainda estivesse em pé, do jeito que a ala oeste havia afundado. E imaginar que esse clã insistia em morar ali! Mary Jane Mayfair vinha esvaziando a filial local da Wal-Mart há uns seis meses, para reformar a casa para si mesma e para a avó. Todo mundo sabia disso quando Mary Jane vinha à cidade com seus shorts brancos e suas camisetas.

Era uma garota bonita, apesar de tudo, isso ele não podia deixar de admitir, mesmo com aquele chapéu de vaqueiro. Seus seios eram os mais altos e pontudos que ele já havia visto, e a boca era da cor de chicle de bola.

— Ei, você não deu uísque a esse bebe para ele ficar quieto, deu? — perguntou ele. O neném estava simplesmente roncando, com uma grande bolha nos seus pequenos lábios rosados. Pobre criança, crescer num lugar desses. E ela nem o deixara examinar o bebê, alegando que vovó já havia feito tudo isso! Vovó, uma ova!

A limusine parou. A chuva era torrencial. Ele mal discernia o que parecia ser uma casa lá adiante e o enorme leque de folhas de um palmito verde. Mas havia lâmpadas elétricas acesas lá em cima, graças a Deus. Alguém lhe dissera que não havia eletricidade por aqui.

— Vou dar a volta com o guarda-chuva para apanhá-lo — disse ela, batendo a porta ao sair antes que ele pudesse dizer que deveriam esperar até que a chuva amainasse. E então sua porta se abriu com violência e ele não teve escolha a não ser apanhar o isopor como se fosse um moisés.

— Pronto, cubra com a toalha, neném vai se molhar! — disse Mary Jane. — Agora corra para o barco.

— Muito obrigado mas prefiro ir andando. Se você fizer o favor de mostrar o caminho, senhorita Mayfair!

— Não deixe que ele caia.

— Faça-me o favor! Fiz partos em Picayune no Mississippi durante trinta e oito anos antes de vir me enfurnar neste fim de mundo.

E qual foi o motivo exato pelo qual vim para cá?, pensou ele com seus botões, como já havia pensado milhares de vezes, especialmente quando sua nova mulherzinha, Eileen, nascida e criada em Napoleonville, não estava por perto para lembrá-lo.

Deus do céu, era um barco enorme e pesado de alumínio e não tinha motor! Mas lá estava a casa, ali mesmo, toda ela da cor de madeira descorada, com as glicínias cor de púrpura totalmente enroladas nos capitéis das colunas do andar superior e procurando alcançar a balaustrada. Pelo menos, o emaranhado das árvores era tão denso nessa parte da selva que por um instante ele quase se sentiu seco. Um túnel verde se estendia até o pórtico cambaio. Luzes no andar superior, isso era um alívio. Se fosse preciso que visse por onde andava ali com um lampião de querosene, ele teria enlouquecido. Talvez já estivesse enlouquecendo, ao atravessar esse trecho de lodo com essa garota maluca, e a casa a ponto de desmoronar a qualquer instante.

"É isso o que vai acontecer", dissera Eileen. "Um dia de manhã, a gente passa por lá, e não tem mais casa nenhuma, o troço todo terá afundado no pântano, de armas e bagagens, preste atenção ao que eu digo. É um crime, alguém viver daquele jeito."

Carregando a caixa de isopor e seu conteúdo pequeno e mudo numa das mãos, ele conseguiu entrar no barco raso, tendo a emoção de descobrir que ele estava com cerca de cinco centímetros de água no fundo.

— Essa coisa vai afundar. Você devia tê-lo esvaziado. — Os sapatos encheram-se até o tornozelo de imediato. Por que havia concordado em vir até ali? E Eileen teria de saber tudo até os mínimos detalhes.

— Não vai afundar nessa chuvinha de nada — disse Mary Jane Mayfair, empurrando a vara comprida. — Agora, por favor, fique firme e não deixe o bebê se molhar.

Essa menina era insuportável. Na terra de onde ele vinha, ninguém falava com um médico desse jeito! O bebê devia estar muito bem debaixo daquelas toalhas, e fazendo xixi como qualquer recém-nascido.

Ora vejam só, eles estavam passando direto pela varanda da frente dessa ruína e entrando pela porta aberta.

— Meu Deus, isso é como uma gruta! — protestou ele. — Como é possível que uma mulher dê à luz num lugar desses? Quer dar uma olhada naquilo ali? Há livros ali na prateleira mais alta da estante, logo acima da água.

— É que não tinha ninguém aqui quando a água entrou — disse Mary Jane, esforçando-se para empurrar a vara.

Dava para ele ouvir o barulho da vara atingindo as tábuas do assoalho abaixo deles.

— E imagino que um monte de coisas ainda esteja boiando pelo salão. Além do mais, Mona Mayfair não ganhou o bebê aqui embaixo. Foi lá em cima. As mulheres não costumam ter seus bebês na sala da frente, mesmo que ela não esteja debaixo d'água.

O bote colidiu com a escada, balançando violentamente para a esquerda, de tal modo que ele precisou agarrar a balaustrada úmida e lodosa. Ele saltou do barco, batendo imediatamente com os dois pés para ter certeza de que a escada não ia afundar com seu peso.

Do andar superior vinha uma luz agradável, e ele estava ouvindo, além do chiado e do ronco da chuva, mais um som, muito rápido, como que estalidos. Ele conhecia esse som. E com ele, uma voz de mulher cantarolava. Bonito.

— Por que essa escadaria simplesmente não sai boiando dessa parede? — perguntou ele. Iniciou a subida, com a caixa de isopor começando a dar a impressão de um saco de pedras. — Por que essa casa não desmorona por inteiro?

— Bem, de certo modo, imagino que esteja desmoronando, sim, só que vai levar uns duzentos anos, entende??? — Ela subiu, ruidosa, a escada à frente dele, cortando-lhe o caminho ao chegar ao segundo andar, onde se voltou para ele. — Venha comigo. Temos de subir até o sótão.

Mas de onde estavam vindo aqueles estalidos? Ele também ouvia alguém cantarolando. Mas ela não lhe deu a menor chance de olhar á sua volta, fazendo com que se apressasse até a escada do sótão.

Foi então que ele viu vovó Mayfair bem no alto, na sua camisola de flanela florida, acenando para ele com sua mãozinha.

— Ei, Dr. Jack. Como vai o meu rapagão? Ande, venha me dar um beijo. Estou mesmo feliz em vê-lo.

— Eu também estou feliz em vê-la, vovó — disse ele, começando a subir, embora Mary Jane mais uma vez passasse por ele com um safanão e com a firme advertência de que ele deveria segurar bem o bebê. Mais quatro degraus e ele largaria essa trouxa com prazer. Por sinal, como é que ele foi acabar carregando o bebe, mesmo?

Afinal, chegou ao ar quente e seco do sótão, com a velhinha parada nas pontas dos pés para lhe dar um beijo nas faces. Ele gostava de verdade da vovó Mayfair, isso tinha de admitir.

— Como vai, vovó? Anda tomando seus comprimidos? — perguntou ele.

Assim que ele largou a caixa de isopor. Mary Jane a apanhou e saiu correndo com ela. Não era tão mau assim, esse sótão. Provido de lâmpadas elétricas e com roupas limpas presas em cordas por prendedores de madeira. Muita mobília confortável espalhada, e não tinha muito cheiro de mofo. Pelo contrário, cheirava a flores.

— Que estalido é esse que eu estou ouvindo lá embaixo no segundo andar? — perguntou ele, quando vovó Mayfair lhe deu o braço.

— Basta que entre aqui, Dr. Jack, e faça o que tem de fazer. Depois, preencha a certidão de nascimento. Não queremos ter nenhum problema com o registro desse bebê. Será que eu algum dia lhe contei os problemas que tive quando só registrei Yancy Mayfair dois meses depois de ele nascer? Não dá para se acreditar no trabalho que tive na prefeitura e eles me dizendo que...

— E a senhora fez o parto desse pirralhinho, hein, vovó? — perguntou ele, dando-lhe tapinhas na mão. Suas enfermeiras já lhe haviam avisado da primeira vez em que ela apareceu que o melhor era não esperar que ela terminasse suas histórias, porque ela simplesmente não terminava. Ela estava no seu consultório no segundo dia da abertura, alegando que nenhum dos outros médicos da cidade ia jamais voltar a pôr as mãos nela. Ora, essa era uma história e tanto!

— Fui eu, sim, doutor!

— A mamãe está logo ali — disse Mary Jane, indicando a água-furtada na lateral do sótão, toda coberta de tecido para mosquiteiro não-alvejado, como se fosse uma tenda pontuda, e lá no final o distante retângulo luminoso da janela atingida pela chuva torrencial.

Quase era bonito, o jeito do lugar. Havia uma lamparina acesa ali dentro, ele sentia o cheiro, e via o brilho amarelado no vidro esfumaçado. A cama era grande, com montes de acolchoados e colchas. De repente, ele ficou triste ao pensar na sua própria avó há tantos e tantos anos, e em camas desse tipo, tão sobrecarregadas de acolchoados que não se conseguia mexer os dedos dos pés. E como era quentinho ali dentro nas manhãs frias em Carriere, no Mississippi.

Ele ergueu os véus longos e finos e abaixou a cabeça só um pouquinho ao entrar pela parte mais alta da água-furtada. O assoalho de cipreste estava nu aqui. Era limpo e de um marrom-escuro avermelhado. Não havia nenhuma infiltração por ali, embora a janela chuvosa lançasse um jorro de luz ondulante sobre tudo.

A menina de cabelos ruivos estava bem acomodada na cama, meio dormindo, com os olhos fundos e as olheiras apavorantemente escuras. Seus lábios se abriam quando ela inspirava com esforço evidente.

— Essa mocinha deveria estar num hospital.

— Ela está exausta, doutor. O senhor também estaria — disse Mary Jane, com sua língua afiada. — Por que o senhor não termina o que tem de fazer, para que ela possa descansar de uma vez?

Pelo menos a cama eslava limpa, mais limpa do que o Moisés improvisado. A garota eslava deitada em meio a lençóis limpos e usava uma bela camisa branca, enfeitada com renda antiga e pequenos botões de pérola. Seus cabelos eram praticamente os mais vermelhos que ele já havia visto: compridos, cheios e escovados de modo a se espalhar sobre o travesseiro. O do bebê poderia ser ruivo daquele jeito algum dia, mas agora era um pouco mais pálido.

E, falando do bebê, ele afinal estava emitindo algum som naquele seu bercinho de isopor, graças a Deus. O médico estava começando a se preocupar com ele. Vovó Mayfair pegou-o no colo, e o médico viu, pelo jeito com o qual ela o segurou, que a criança estava em boas mãos, embora quem ia querer pensar numa mulher daquela idade se encarregando de tudo? Olhe só para essa menina na cama. Ela nem tinha a idade de Mary Jane.

Ele se aproximou mais, ajoelhou-se com esforço, já que não havia mais nada a fazer, e pôs a mão na testa da mamãe. Ela abriu lentamente os olhos e o surpreendeu com seu verde intenso. Ela mesma era uma criança. Nunca deveria ter tido um filho!

— Você está bem, querida?

— Estou, doutor — respondeu ela, numa voz límpida e forte. — O senhor por favor quer preencher os papéis para o meu bebê?

— Você sabe muito bem que deveria...

— Doutor, a criança já nasceu — disse ela. Não era das redondezas. — Não estou sangrando mais. Não vou sair para lugar nenhum. Para ser franca, estou bem, melhor do que esperava estar.

A cor da carne debaixo das unhas era bem rosada. Seu pulso era normal. Os seios estavam imensos. E havia uma grande jarra de leite, pela metade, junto à cama. Bem, isso era bom para ela.

Garota inteligente, segura e bem instruída, pensou ele. Não do meio rural.

— Quero que vocês duas nos deixem a sós agora — disse ele a Mary Jane e à velha, que adejavam junto aos seus ombros, como dois anjos gigantes, com o bebê gemendo só um pouquinho, como se tivesse acabado de descobrir mais uma vez que estava vivo e não tivesse certeza de gostar disso ou não. — Vão para outro lugar para eu poder examinar essa criança e me certificar de que ela não está com hemorragia.

— Doutor, eu cuidei da menina — disse vovó, com delicadeza. — Agora, o senhor acha que eu ia deixar que ela ficasse deitada ai se ela estivesse com hemorragia? — Mesmo assim ela se afastou, balançando o bebê nos braços com bastante vigor, pareceu ao médico, para um recém-nascido.

Ele teve certeza de que a mãezinha também fosse criar problemas, mas ela não criou.

Nada a fazer a não ser segurar esse lampião nas próprias mãos, se ele quisesse se certificar de que tudo estava correndo bem. Esse exame dificilmente poderia ser considerado meticuloso.

Ela se sentou encostada nos travesseiros, com os cabelos ruivos em desalinho em volta do rosto branco, e deixou que ele afastasse a espessa camada de cobertas. Tudo bem limpo, isso ele devia creditar a elas. A mãe estava limpíssima, como se tivesse mergulhado numa banheira, se uma coisa dessas fosse possível, e as outras haviam disposto uma camada de toalhas brancas embaixo dela. Agora não havia praticamente nenhuma secreção. Mas ela era a mãe, sim. Muito machucada pelo parto.A camisola branca estava imaculada.

Por que cargas d'água elas não limpavam a criancinha desse jeito, pelo amor de Deus? Três mulheres, e elas não tinham vontade de brincar de boneca o suficiente para trocar as mantas daquele bebê!

— Agora pode se deitar, querida — disse ele à mãe. — O bebê não a rasgou, isso eu estou vendo, mas teria sido bem mais fácil se isso tivesse acontecido. Da próxima vez, o que acha de experimentar o hospital?

— Claro, por que não? — disse ela, com a voz sonolenta, e depois deu uma risadinha. — Vai dar tudo certo. — Muito bem comportada. Ela nunca mais voltaria a ser criança, pensou ele, embora fosse tão pequena. E espere só até essa história começar a circular, embora ele não estivesse disposto a contar uma palavra dessa história a Eileen.

— Eu lhe disse que ela estava bem. não disse? — perguntou a vovó, afastando o mosquiteiro agora, com o bebê chorando um pouquinho junto ao seu ombro. A mãe nem olhou para o bebê.

Era provável que estivesse farta da criança por enquanto, pensou ele. Era provável que estivesse descansando enquanto podia.

— Está bem, está bem — disse ele, ajeitando as cobertas de novo. — Mas, se ela começar a sangrar, se começar a ter febre, vocês tratem de pô-la naquela limusine e levá-la para Napoleonville! Vão direto para o hospital!

— Claro. Dr. Jack. Foi bom o senhor poder vir — disse Mary Jane. Ela segurou sua mão e o levou da pequena tenda, afastando-o da cama.

— Obrigada, doutor — disse, baixinho, a menina de cabelos ruivos. — O senhor vai anotar tudo, por favor? A data do nascimento e tudo o mais, e deixar que elas assinem como testemunhas?

— Tenho uma mesa de madeira para o senhor escrever bem aqui — disse Mary Jane. Ela apontou para uma pequena mesa improvisada com duas tábuas de pinho dispostas sobre duas pilhas de velhos engradados de Coca-Cola de madeira. Fazia muito tempo que ele não via engradados daquele tipo, do tipo que costumavam usar para aquelas garrafinhas que custavam cinco centavos. Calculou que um dia desses ela poderia vendê-los num mercado de pulgas a algum colecionador. Muitas coisas por ali que ela poderia vender. Deu uma olhada no velho candelabro a gás na parede logo acima da sua cabeça.

Era de arrasar com as costas debruçar-se desse jeito para escrever, mas não valia a pena queixar-se. Ele apanhou a caneta. Mary Jane estendeu a mão e inclinou a lâmpada nua na sua direção.

Do andar de baixo, vinham aqueles estalidos. E depois um zumbido rouco. Ele conhecia esses ruídos.

— Que barulho é esse? — perguntou. — Agora, vejamos, o nome da mãe, por favor.

— Mona Mayfair.

— Nome do pai?

— Michael Curry.

— Casal legitimamente constituído?

— Não. Pule essa parte, por favor.

Ele abanou a cabeça.

— Nascido ontem à noite, você disse?

— Duas e dez da manhã de hoje. Parto feito por DoIIy Jean Mayfair e Mary Jane Mayfair. Fontevrault. Sabe como se escreve?

Ele fez que sim.

— Nome do bebê?

— Morrigan Mayfair.

— Morrigan, nunca ouvi falar no nome Morrigan. É nome de santa, Morrigan?

— Soletre para ele, Mary Jane — disse a mãe, com a voz muito baixa, de dentro da tenda. — Com dois erres, doutor.

— Eu sei como se escreve, querida — disse ele, soletrando o nome para que ela desse sua aprovação.

— Bem, ainda não sei o peso...

— Três quilos e novecentos — disse a vovó, que estava andando de um lado para o outro com o bebê junto ao ombro, dando-lhe tapinhas nas costas. — Eu o pesei na balança da cozinha. Altura, normal!

Ele abanou a cabeça mais uma vez. Preencheu rapidamente o que faltava, fez uma cópia apressada no segundo formulário. De que adiantava dizer qualquer coisa a mais?

Um cintilar de relâmpago iluminou todas as águas-furtadas, voltadas para o norte e para o sul, para o leste e para o oeste, e deixou o amplo aposento numa escuridão aconchegante, cheia de sombras. A chuva batia suave no telhado.

— Pois bem, vou lhes deixar essa cópia — disse ele, pondo a certidão na mão de Mary Jane. — E vou levar esta outra para enviá-la pelo correio do meu consultório para o registro. Em duas semanas, vocês terão o registro oficial do bebê. Agora, você deveria tentar amamentar esse neném um pouco. Você ainda não tem leite, mas o que tem é o colostro e isso...

— Eu já falei tudo isso para ela. Dr. Jack — disse a Vovó. — Ela vai amamentar assim que o senhor sair. E só uma menininha tímida.

— Vamos, doutor — disse Mary Jane. — Vou levá-lo de volta.

— Droga, eu preferia que existisse algum outro meio de voltar daqui para casa — disse ele.

— Bem, se eu tivesse uma vassoura, iríamos voando agora, não é? — perguntou Mary Jane, fazendo um gesto para que ele a seguisse enquanto começava sua marcha de pernas finas na direção da escada, com as sandálias estalando no piso.

A mãe riu baixinho, uma risadinha de menina. Por um instante, ela pareceu perfeitamente normal, com um pouco de cor rosada nas bochechas. Aqueles seios estavam a ponto de explodir. Ele esperava que o bebê não fosse enjoado e tivesse bom apetite. Quando se analisava bem, era impossível dizer qual das duas moças era a mais bonita.

Ele levantou o mosquiteiro e voltou a se aproximar da cama. A água saía ainda dos seus sapatos, olhe só isso, mas o que ele podia fazer? Ela também escorria no seu corpo por baixo da camisa.

— Você está se sentindo bem, não é, querida?

— Estou — disse ela. Estava com a jarra de leite nos braços. Estivera bebendo dela em grandes goles. Bem, por que não? Mas a verdade mesmo é que ela não precisava do leite. Lançou-lhe um belo sorriso de escolar, talvez o mais lindo sorriso que ele já houvesse visto, mostrando uma fileira de dentes brancos e um salpicado de sardas no nariz. É, pequena, mas a ruiva mais bonita em que ele jamais pusera os olhos.

— Vamos, doutor. — Mary Jane estava decididamente gritando com ele. — Mona precisa descansar, e esse bebê vai começar a berrar. Até logo, Morrigan, até logo, Mona, até logo, vovó.

E Mary Jane já o estava arrastando pelo sótão afora, só parando para pôr na cabeça o chapéu de vaqueiro, que aparentemente havia tirado quando entraram. Escorria água da sua aba.

— Quietinha, agora, quietinha — disse vovó ao bebê. — Mary Jane, você trate de se apressar. Esse bebê está ficando nervoso.

Ele estava a ponto de dizer que deveriam pôr o bebê nos braços da mãe, mas Mary Jane o teria empurrado pela escada abaixo se ele não tivesse saído. Ela praticamente o estava perseguindo, cutucando-lhe as costas com os seios. Seios, seios, seios. Graças a Deus, sua especialidade era a geriatria. Nunca teria podido agüentar tudo isso, mães adolescentes em camisas transparentes, moças lhe falando pelos bicos dos seios, revoltante, era isso o que era.

— Doutor, vou lhe pagar quinhentos dólares por esta visita — disse ela junto ao seu ouvido, tocando-o com seus lábios de goma de mascar. — Porque eu sei o que significa sair numa tarde dessas, e o senhor é uma pessoa tão simpática, agradável...

— É, e quando é que eu vou ver esse dinheiro, Mary Jane Mayfair? — perguntou ele, chegando a um ponto de irritação que lhe permitia afinal dizer o que pensava. Garotas da sua idade. E exatamente o que era provável que ela fizesse se ele desse meia-volta e resolvesse roubar uma apalpadela daquilo que estava dentro do vestido de renda que ela tão generosamente amassava contra ele? Deveria lhe cobrar um novo par de sapatos, pensou ele. Olhe só para esses sapatos. E ela poderia conseguir que aqueles seus parentes ricos de Nova Orleans pagassem a conta.

Ora, espere aí um instante. Se aquela menina lá em cima pertencia ao lado rico da família, vindo aqui para...

— Ora, não se preocupe com nada — exclamou Mary Jane. — O senhor não entregou a encomenda, só assinou o recibo.

— Do que você está falando?

— E agora temos de entrar de novo no barco!

Ela se apressou até o topo da escada inferior, e ele veio atrás, com seu barulho de sapatos molhados. Bem, até que a casa não parecia assim tão inclinada uma vez que se estivesse dentro dela. pensou ele. Os estalidos, lá vinham eles de novo. Acho que alguém pode se acostumar a uma casa inclinada, mas a simples idéia de morar num lugar parcialmente inundado era uma perfeita...

Veio um relâmpago, luminoso como o meio-dia, e o saguão ganhou vida, papel de parede, tetos, bandeiras sobre as portas e o velho lustre com fios mortos saindo de duas tomadas,

Era isso o que era! Um computador. Ele a viu no átimo de segundo da luz branca, no quarto dos fundos, uma mulher muito alta debruçada sobre a máquina, com os dedos voando pelo teclado, os cabelos vermelhos como os da mamãe lá em cima na cama e duas vezes mais longos. Dela vinha uma música enquanto trabalhava, como se estivesse resmungando em voz alta o que quer que estivesse compondo no teclado.

A escuridão fechou-se sobre ela, sua tela luminosa e uma luminária direcional que gerava uma ilha de luz amarela nos seus dedos velozes.

Estalidos intermináveis!

E então veio o trovão com o estrondo mais forte que ele já havia ouvido, a fazer vibrar cada pedaço de vidro que restava na casa. As mãos de Mary Jane correram para tampar as orelhas. A jovem alta ao computador deu um berro e pulou da cadeira. As luzes da casa apagaram-se completamente, lançando a todos eles nas trevas da tarde opaca e profunda que bem poderia ser o anoitecer.

Aquela coisa alta e linda estava morrendo de tanto berrar. Era mais alta do que ele.

— Pssiuu, psssiuuu, Morrigan, pare com isso! — gritou Mary Jane, correndo na direção dela. — Foi só o relâmpago que desligou a energia! Ela já vai voltar.

— Mas ele se apagou, ele está morto! — queixou-se a moça e, então, voltando-se, ela baixou os olhos e viu o Dr. Jack. E por um instante ele acreditou estar perdendo a razão. Lá no alto do pescoço dessa moça estava a cabeça da mãe, as mesmas sardas, o cabelo vermelho, os dentes brancos, os olhos verdes, credo! Como se alguém tivesse acabado de arrancá-la da mãe para fixá-la no pescoço dessa criatura, e vejam só o tamanho desse varapau! Elas não podiam ser gêmeas, essas duas. Ele próprio tinha um metro e setenta e cinco, e esse bambu vestido tinha no mínimo trinta centímetros a mais do que isso. Ela não estava usando nada a não ser uma grande camisa branca, exatamente como a mãe, e suas pernas brancas e macias pareciam não ter fim. Deviam ser irmãs.

Tinham de ser.

— Uau! — disse ela, fixando o olhar nele e se encaminhando para ele, com os pés descalços na madeira nua, embora Mary Jane procurasse detê-la.

— Agora, você trate de voltar para lá e se sentar — disse Mary Jane. — A luz estará de volta num segundo.

— Um homem — disse a moça alta, que era na realidade uma menina, nem um pouco mais velha do que a mãezinha sobre a cama, ou do que a própria Mary Jane. Estava parada bem diante do médico, cerrando para ele as sobrancelhas vermelhas, com os olhos verdes, maiores do que os da pequena lá em cima, ornados de cílios grandes e curvos. — O senhor é um homem, não é?

— Eu já lhe disse que esse é o médico — atalhou Mary Jane — que veio fazer a certidão de nascimento do bebê. Agora. Dr. Jack, esta é Morrigan, tia do bebê. E Morrigan, esse é o Dr. Jack. Vá se sentar agora, Morrigan! Deixe o doutor cumprir sua missão. Vamos, doutor.

— Não precisa fazer tanto teatro, Mary Jane — protestou o varapau, com um enorme sorriso. Ela esfregou as mãos brancas, longas e sedosas uma na outra. Sua voz parecia exatamente a da mãezinha no andar superior. A mesma voz bem-educada. — O senhor precisa me perdoar, doutor... Meus modos ainda não são o que deveriam ser. Ainda estou meio áspera em todas as arestas, no esforço de adquirir um pouco mais de conhecimento, talvez, do que o que Deus jamais pretendeu para alguém da minha espécie, mas a verdade é que temos tantos problemas diferentes a resolver, por exemplo, agora que temos a certidão de nascimento, já temos isso, certo, Mary Jane? Era isso o que você eslava tentando esclarecer para mim quando eu a interrompi com tanta grosseria, não era? E o batismo do bebê? Pois, se não me falha a memória, o legado deixa bem clara a questão de que o bebê seja balizado na igreja católica. Na realidade, o que me parece é que em alguns desses documentos aos quais acabei de ter acesso, o batismo é no fundo um ponto mais importante do que o registro oficial.

— Do que é que você está falando? — perguntou o Dr. Jack. — E pelo amor de Deus, você foi vacinada com uma agulha de vitrola?

Ela deu uma bonita gargalhada, batendo palmas muito alto, com os cabelos ruivos caindo em cachos e se abrindo nos ombros enquanto ela sacudia a cabeça.

— Doutor, do que é que o senhor está falando? Qual é a sua idade? É um homem de bom tamanho, não é? Deixe-me ver, calculo que tenha uns sessenta e sete anos, estou certa? Posso ver seus óculos?

Ela os arrancou do nariz dele antes que ele pudesse protestar, e começou a examinar-lhe o rosto através das lentes. Ele estava estupefato. Tinha também sessenta e oito anos. Ela se tornou um borrão perfumado diante dos seus olhos nus.

— Puxa, mas isso é demais, verdade, olhe só — disse ela. E pôs rapidamente os óculos de volta no nariz dele com uma mira perfeita, revelando-se novamente em detalhes, com suas bochechinhas gorduchas e a boca, como um arco de cupido, perfeito como ele nunca havia visto. — É, eles fazem tudo ficar só um pouquinho maior, não é? E pensar que essa é apenas uma das invenções mais corriqueiras com as quais eu tenho a probabilidade de me deparar nas primeiras horas da minha vida. Óculos, não é esse o nome? Óculos, forno de microondas, brincos de pressão, telefone, monitor para computador NEC MultiSync 5D. A mim me parece que mais tarde, numa hora de reflexão sobre tudo o que ocorreu, a pessoa deveria ser capaz de discernir uma certa poesia na lista desses objetos encontrados em primeiro lugar, especialmente se estivermos certos ao supor que nada na vida é meramente aleatório, que as coisas, a partir de diferentes pontos de vista, só têm a aparência de ser aleatórias e que em última análise, á medida que sintonizamos melhor nossos instrumentos de observação, chegamos a entender que até mesmo as invenções descobertas em dois andares de uma casa abandonada e esmolambada juntam-se de modo a formar uma afirmativa sobre seus ocupantes que é muito mais profunda do que qualquer pessoa poderia imaginar a princípio. O que o senhor acha?

Agora foi a vez de o médico dar uma gargalhada. Ele bateu com a mão na coxa.

— Querida, não sei o que acho disso tudo, mas sem dúvida gosto do seu jeito de dizê-lo. Qual é mesmo o seu nome? Foi você quem inspirou o nome do bebé? Morrigan, não me diga que também é uma Mayfair.

— Mas é claro que sou, decididamente, Morrigan Mayfair! — disse ela, jogando os braços para cima como uma animadora de torcida.

Houve um bruxuleio, depois um leve chiado, e logo chegou a luz. E o computador no quarto atrás deles começou a fazer seus ruídos de início de atividade.

— Opa, lá vamos nós! — disse ela, com os cabelos ruivos balançando sobre os ombros. — Retomar nossa conexão com a Mayfair & Mayfair até o momento em que a Mãe Natureza resolva ser necessário nos humilhar a todos, por melhores que sejam nossos equipamentos, nossa configuração, nossos programas e nossa instalação. Em outras palavras, até sermos atingidos por mais um relâmpago!

Ela se precipitou para a cadeira diante da mesa, ocupou seu lugar diante do monitor e voltou a digitar, como se estivesse totalmente esquecida de que ele estava por ali.

— Mary Jane, ande com isso, o bebê está com fome! — gritou a vovó lá de cima.

Mary Jane puxou-o pela manga.

— Ora, espere um minuto — disse ele. Mas havia perdido a garota espantosa, total e absolutamente, percebia agora, da mesma forma que percebia que ela estava completamente nua por baixo da camisa branca e que o foco da luminária direcional estava iluminando seu busto, seu ventre reto, suas coxas nuas. Tampouco parecia estar usando calcinhas. E aqueles pés compridos e descalços, que pés grandes! Não seria arriscado ficar descalça escrevendo num computador em meio a uma tempestade de relâmpagos? A cabeleira ruiva caía em cascata até o assento da cadeira.

— Mary Jane, você tem de chegar com esse bebê antes das cinco! — gritou a vovó lá de cima.

— Já vou. Já estou indo. Dr. Jack, vamos!

— Até logo, Dr. Jack! — exclamou a altona, acenando de repente com a mão direita, que ficava na extremidade de um braço espantosamente longo, sem ao menos tirar os olhos do computador.

Mary Jane passou correndo por ele e pulou para dentro do barco.

— O senhor vem ou não vem? Eu estou de saída, tenho coisas a fazer. O senhor não quer ficar preso aqui, certo?

— Chegar aonde com esse bebê antes das cinco? — perguntou o médico, recuperando o raciocínio e se lembrando do que a velha acabara de dizer. — Você não vai sair de novo com esse bebê para batizá-lo!

— Ande depressa, Mary Jane!

— Levantar ferros! — berrou Mary Jane, forçando a vara contra a escada.

— Espere aí! — O médico deu um pulo, fazendo respingar a água do fundo do barco enquanto este batia na balaustrada e depois na parede. — Está bem, está bem. Só vá mais devagar, por favor. Leve-me até o embarcadouro sem me jogar no fundo do pântano, está bem?

Estalidos do teclado.

A chuva havia amainado um pouco, Deus seja louvado. E um pouquinho de sol chegava mesmo a atravessar as nuvens pesadas e cinzentas, apenas o suficiente para fazer brilhar as gotículas.

— Pronto, doutor, pegue isso aqui — disse Mary Jane, quando ele entrou no carro. Era um envelope bem gordo, cheio de notas, e ele viu, pelo jeito que ela passava o polegar por elas, que eram notas novas de vinte dólares. Calculou aproximadamente uns mil dólares. Ela bateu a porta e correu para o outro lado.

— Ora, Mary Jane, isso é dinheiro demais — disse ele, mas estava pensando em Weed-Eater, cortador de grama, tesoura elétrica para podar arbustos e ainda um aparelho de TV em cores Sony. E não havia nenhum motivo neste mundo para declarar isso à receita federal.

— Ah, não diga nada. Fique com ele! —disse ela. — Só por sair num dia desses, já fez por merecer. — E lá se foi, a saia subindo por entre as coxas. Mas ela não chegava aos pés daquela belezinha flamejante do andar de cima. E como seria pôr as mãos numa coisinha daquelas, só por uns cinco minutos, tão novinha, tão macia, fresca e linda, com aquelas pernas longuíssimas. Acalme-se, seu velho idiota, ainda vai provocar um ataque do coração com isso.

Mary Jane pôs o carro em ré, com as rodas girando no cascalho úmido da estrada, e depois fez uma perigosa curva de 180 graus para seguir em frente sobre a buraqueira conhecida.

Ele voltou a olhar para a casa mais uma vez, o grande volume de colunas e madeiras em processo de apodrecimento, que assomava sobre os ciprestes, com o lodo de lentilha d'água lambendo suas janelas parcialmente imersas, e depois para a estrada à sua frente. Cara, ele estava feliz de ir embora dali.

E quando ele chegasse em casa e sua mulherzinha Eileen lhe perguntasse tudo o que ele havia visto em Fontevrault, do que ele iria lhe falar? Não das três moças mais bonitas que ele já havia visto debaixo de um mesmo teto, sem a menor dúvida. Tampouco falaria desse maço de notas de vinte dólares no seu bolso.

 

INVENTAMOS UMA IDENTIDADE HUMANA para nosso povo. "Tornamo-nos" uma antiga tribo chamada de pictos, altos porque vínhamos dos países setentrionais, nos quais os homens são altos, e ansiávamos por viver em paz com aqueles que não nos perturbassem.

É claro que tivemos de tratar disso aos poucos. Deixamos que a notícia se espalhasse antes de sairmos. A princípio, houve um período de espera, durante o qual nenhum desconhecido recebia permissão de entrar no vale. Mais tarde, eventuais viajantes podiam passar, e deles recolhemos conhecimentos valiosos. Afinal, começamos a sair, declarando-nos pictos e oferecendo uma amizade esclarecida àqueles com os quais nos deparássemos.

Com o passar do tempo, apesar da lenda dos Taltos, que sempre foi corrente, e que ganhava novo ímpeto cada vez que algum pobre Taltos era capturado, tivemos sucesso com esse nosso ardil. E nossa segurança aumentou, não por meio de construções fortificadas, mas através da nossa lenta integração aos seres humanos.

Éramos o clã soberbo e recluso de Donnelaith, mas outros recebiam hospitalidade nas nossas torres. Não falávamos muito dos nossos deuses. Não estimulávamos perguntas sobre nossos costumes íntimos ou sobre nossos filhos.

No entanto, vivíamos como nobres. Guardávamos os conceitos de honra e de orgulho pela pátria.

Começou a funcionar maravilhosamente. E, finalmente com as portas do vale abertas, novos conhecimentos pela primeira vez nos chegavam diretamente trazidos por desconhecidos. Aprendemos rapidamente a costurar, a tecer, e a arte da tecelagem revelou-se uma cilada para os Taltos, com sua atitude obsessiva. Homens, mulheres, todos nós costumávamos tecer. Passávamos dias e noites tecendo. Não conseguíamos parar.

A única solução era largar aquilo, voltar a atenção para alguma outra técnica nova e dominá-la. Trabalhar com metais. Aprendemos. E, embora nunca chegássemos a forjar mais do que algumas moedas e a fabricar pontas para setas, mesmo assim ficamos por algum tempo fascinados por esse trabalho.

A escrita também havia vindo até nós. Outros povos chegaram às praias da Grã-Bretanha e, ao contrário dos guerreiros selvagens que destruíram nosso mundo na planície, essas pessoas escreviam coisas na pedra, em tabuinhas e em pele de carneiro especialmente trabalhada por eles de modos a ter longa durabilidade e ser linda de se ver e de se tocar.

A escrita nessas pedras, nessas tabuinhas e nesses rolos de pergaminho era em grego e em latim! E nós a aprendemos com nossos escravos assim que se fez a primeira ligação entre o símbolo e a palavra. Depois, aprendemos com os viajantes estudiosos que vinham até o vale.

Na realidade, tornou-se uma obsessão para muitos de nós. Especialmente para mim, e nós líamos e escrevíamos incessantemente, traduzindo para a palavra escrita nossa própria língua, que é muito mais antiga do que qualquer outra na Grã-Bretanha. Criamos uma escrita chamada Ogham, e nela gravamos nossos textos secretos. Pode-se ver essa escrita em muitas pedras no norte da Escócia, mas hoje em dia ninguém consegue decifrá-la.

Nossa cultura, o nome que adotamos, o dos pictos, nossa arte e nossa literatura permanecem nos tempos modernos um mistério total. Vocês logo entenderão o motivo para isso, para o desaparecimento da cultura dos pictos.

Em termos práticos, às vezes eu me pergunto o que aconteceu com aqueles dicionários que elaborei com tantas minúcias, trabalhando meses a fio sem parar a não ser para cair desmaiado para algumas horas de sono ou para pedir que me trouxessem alimento.

Eles estavam enterrados nos subterrâneos ou casas de terra que construímos abaixo do nível do vale, o perfeito esconderijo caso os humanos um dia voltassem a se abater sobre nós. Ali também estavam ocultos muitos dos manuscritos em grego e em latim, nos quais estudei naqueles tempos remotos.

Outra grande armadilha para nós, algo que podia nos deixar em transe, era a matemática. E alguns dos livros que nos chegaram às mãos tratavam de teoremas de geometria que nos punham a falar dias a fio, desenhando triângulos na lama.

A questão é que essa época foi emocionante para nós. O disfarce nos proporcionava um perfeito acesso a novas descobertas. E embora tivéssemos todo o tempo para vigiar e punir os Taltos jovens e bobos para que não confiassem nos estranhos ou se apaixonassem por seus homens e mulheres, em geral aprendemos muito sobre os romanos que haviam penetrado na Grã-Bretanha, e nos demos conta de que esses romanos haviam derrotado os bárbaros celtas que haviam infligido tantas atrocidades sobre nós.

Na verdade, esses romanos não acreditavam nas superstições locais sobre os Taltos. Falavam de um mundo civilizado, amplo e cheio de grandes cidades.

No entanto, nós também temíamos os romanos. Pois, embora fizessem construções maravilhosas, iguais às quais nós nunca havíamos visto nada, eles eram mais hábeis na guerra do que os outros. Ouvimos muitas histórias sobre suas vitórias. Eles de fato haviam refinado a arte da guerra, tornando-a ainda mais eficaz na destruição de vidas. Nós nos mantínhamos no vale distante. Não queríamos nunca enfrentá-los no campo de batalha.

Um número cada vez maior de mercadores trazia seus livros até nós, seus rolos de velino, e eu lia com avidez seus filósofos, seus dramaturgos, seus poetas, seus satiristas e seus retóricos.

É claro que nenhum de nós tinha condições de captar o verdadeiro estilo da vida romana, sua atmosfera, para usar o termo moderno, sua alma nacional, seu caráter. No entanto, estávamos aprendendo. Agora sabíamos que nem todos os homens eram bárbaros. Na realidade, era exatamente esse o termo que os romanos aplicavam às tribos que enchiam a Grã-Bretanha, vindo de todos os lados, tribos estas que eles vinham conquistar em nome de um poderoso império.

Os romanos, por sinal, jamais alcançaram nosso vale, embora fizessem campanha na ilha por duzentos anos. O romano Tácito escreveu a história da primeira campanha de Agrícola, que chegou à Escócia. No século seguinte, a muralha de Antonino foi construída, uma obra assombrosa para as tribos bárbaras que ofereciam resistência a Roma, e bem próximo dela, ao longo de quase oitenta quilômetros, a Via Militar, uma grande estrada pela qual não passavam apenas soldados, mas mercadores que traziam por mar todo tipo de produto e provas fascinantes de outras civilizações.

Afinal, o próprio imperador romano, Sétimo Severo, veio à Grã-Bretanha para derrotar as tribos escocesas, mas nem mesmo ele penetrou nos nossos redutos.

Por muitos anos depois dessa ocasião, os romanos permaneceram ali proporcionando estranhos despojos para nossa pequena nação.

Na época em que eles se retiraram daquelas terras, cedendo-as afinal aos bárbaros, nós já não éramos realmente um povo oculto. Centenas de seres humanos haviam se instalado no nosso vale, honrando-nos como senhores, construindo suas pequenas torres em volta das nossas maiores e nos considerando uma família de dirigentes misteriosa, importante, mas perfeitamente humana.

Nem sempre foi fácil manter esse disfarce. Mas em nenhum outro lugar a vida daquela época era mais adequada a ele. Outros clãs estavam brotando em fortalezas remotas. Nós não éramos um país de cidades, mas de pequenas propriedades feudais. Embora nossa altura e nossa recusa ao casamento com pessoas de fora fossem consideradas estranhas, sob todos os outros aspectos éramos perfeitamente aceitáveis.

É claro que o segredo estava em nunca, jamais, permitir que forasteiros vissem o ritual do nascimento. E nisso os Pequenos, necessitando da nossa proteção de tempos em tempos, tomaram-se nossas sentinelas.

Quando resolvíamos formar o círculo entre as pedras, todos os clãs inferiores de Donnelaith eram avisados de que nossos sacerdotes somente realizavam nossos ritos de família em total privacidade.

E, à medida que fomos ficando mais audaciosos, permitimos que outros comparecessem, mas que ficassem nos círculos exteriores, mais distantes. Eles nunca puderam ver o que os sacerdotes estavam fazendo no centro da multidão. Eles nunca viram o nascimento. Imaginavam que se tratasse de alguma vaga adoração ao céu, ao sol, ao vento, à lua e às estrelas. E por isso nos chamavam de família de magos.

É claro que tudo isso dependia de uma considerável cooperação pacífica com aqueles que moravam no vale, e essa situação manteve-se estável por séculos.

Em suma, nós passávamos por humanos, no meio dos humanos. E outros Taltos compartilharam do nosso disfarce, declarando-se pictos também, aprendendo nossa escrita e a levando para suas fortalezas junto com nossos estilos de construção e de ornamentação. Todos os Taltos que realmente queriam sobreviver viviam dessa maneira, enganando os seres humanos.

Só os Taltos selvagens continuavam a aparecer de relance nas florestas, arriscando-se a tudo. Mas até mesmo eles conheciam a escrita Ogham e nossos numerosos símbolos.

Por exemplo, se um Taltos solitário morasse numa floresta, ele poderia entalhar numa árvore um símbolo para que outros Taltos soubessem que ele estava ali, um símbolo sem significado para os seres humanos. Um Taltos que visse outro numa estalagem podia se aproximar dele e lhe oferecer algum presente, que era de fato um broche ou alfinete com nossos emblemas.

Um bom exemplo disso é o broche de bronze com um rosto humano, descoberto muitos séculos depois por povos modernos em Sutherland. Quando escrevem sobre esse broche, os seres humanos não percebem que se trata de um bebê Taltos saindo do útero, com a cabeça enorme, os braços pequenos ainda dobrados, apesar de prontos para se abrirem e crescerem, como as asas de uma borboleta nova.

Outros símbolos que esculpíamos na rocha, junto à entrada de cavernas ou nas nossas pedras sagradas, representavam idéias fantasiosas dos animais da terra perdida de abundância tropical. Outros tinham significados meramente pessoais. Imagens nossas como guerreiros ferozes eram enganosas, e eram elaboradas com talento de modo a nos mostrar realmente como um povo que se reúne em paz, ou era isso o que imaginávamos.

A arte dos pictos é a denominação comum dada a tudo isso. E essa tribo tornou-se o grande mistério da Grã-Bretanha.

Qual era nosso pior medo? A pior ameaça, por assim dizer? Tempo suficiente havia passado para que não mais temêssemos seres humanos que de fato soubessem algo a nosso respeito. No entanto, os Pequenos sabiam, e eles ansiavam por procriar conosco. E, embora precisassem de nós para sua proteção, eles eventualmente ainda nos traziam problemas.

As verdadeiras ameaças à nossa paz vinham, porém, dos bruxos. Os bruxos, esses seres humanos especiais que sentiam nosso cheiro e podiam de algum modo procriar conosco, ou que descendiam de quem havia copulado conosco. Pois os bruxos, que naturalmente sempre foram muito raros, transmitiam, de mãe para filha e de pai para filho, as lendas da nossa gente e a idéia linda e louca de que, se conseguissem um dia procriar conosco, produziriam monstros de bom tamanho e belos que nunca morreriam. E outras suposições fantasiosas inevitavelmente surgiram em torno dessa idéia: a de que, se bebessem o sangue do Taltos, os bruxos poderiam se tornar imortais. A de que, se nos matassem, com as palavras e as maldições adequadas, poderiam assumir nosso poder.

E o aspecto mais apavorante disso tudo, a única parte verdadeira, real, era que os bruxos costumavam saber dizer à primeira vista que nós não éramos meros seres humanos altos, mas Taltos de verdade.

Nós os mantínhamos fora do vale. E, quando viajávamos por aí, esforçávamo-nos ao máximo para evitar a bruxa do povoado ou o feiticeiro que morava no bosque. Mas é claro que eles também tinham razões para nos temer, pois nós também os reconhecíamos infalivelmente à primeira vista e, sendo muito espertos e muito ricos, podíamos causar muitos problemas para eles.

Mesmo assim, quando um bruxo estava por perto, corria-se perigo. E tudo que se precisava para piorar a situação era que um bruxo inteligente ou ambicioso se determinasse a encontrar os verdadeiros Taltos das regiões montanhosas da Escócia entre os clãs de homens altos que habitavam a região.

E de quando em quando surgia a pior ameaça, uma bruxa com encantamentos poderosos, capaz de fascinar os Taltos de modo a tirá-los de dentro das suas habitações, de envolvê-los com música e feitiços e atraí-los aos seus rituais.

Eventualmente ouvia-se falar de um Taltos encontrado em outra região. Ouvia-se falar de nascimentos híbridos. Rumores de bruxas, Pequenos e magia.

Em geral, estávamos seguros nas nossas fortalezas.

Agora o vale de Donnelailh era conhecido do mundo. E. enquanto as outras tribos viviam em refregas umas com as outras, nosso vale era deixado em paz, não porque as pessoas temessem que aqui vivessem monstros, mas apenas porque ele era a praça forte de nobres respeitáveis.

Naqueles anos, a vida foi bela, mas era uma vida com uma mentira no seu cerne. E muitos Taltos jovens não conseguiam suportar isso. Lá saíam eles pelo mundo e nunca voltavam. E às vezes Taltos híbridos chegavam a nós sem ter nenhuma idéia do que ou de quem os havia feito.

Ao longo do tempo, paulatinamente, aconteceu algo bastante irrefletido. Alguns de nós chegaram a se casar com seres humanos.

Aconteceria da seguinte forma. Um dos nossos homens talvez saísse numa longa peregrinação e se deparasse com uma bruxa solitária num bosque sombrio, por quem ele se apaixonava, uma bruxa que podia conceber seus filhos sem problemas. Ele amaria essa bruxa; e ela a ele. E, sendo uma pobre criatura esfarrapada, ela entregaria seu destino nas mãos dele. Ele a traria para casa. Em algum ponto no futuro distante, ela poderia ter mais um filho antes de morrer. E alguns desses híbridos se casavam com outros híbridos.

Outras vezes, uma bela Taltos fêmea se apaixonava por um humano e largava tudo por ele. Eles poderiam ficar juntos anos a fio antes que ela concebesse, e então nascia um híbrido, o que unia ainda mais a pequena família, pois o pai via sua semelhança no filho e esperava sua lealdade, e é claro que se tratava de um Taltos.

Pois foi assim que o sangue humano aumentou em nós. E foi assim que nosso sangue entrou no clã humano de Donnelaith, que acabou por sobreviver a nós.

Permitam-me o silêncio quanto à tristeza que costumávamos sentir, as emoções que demonstrávamos nos nossos rituais secretos. Prefiro não tentar descrever nossas longas conversas, em que refletíamos sobre o significado deste mundo e os motivos pelos quais éramos forçados a viver entre os humanos. Vocês agora são párias. Vocês sabem disso. E, se Deus foi piedoso e vocês não sabem, bem, vocês ainda podem imaginar.

O que resta do vale nos dias de hoje?

Onde estão as inúmeras torres e rodas-d'água que construímos? Onde estão nossas pedras com sua escrita curiosa e suas estranhas figuras serpenteantes? O que restou dos governantes pictos daquela época, que ficavam tão altos montados a cavalo, e tanto impressionaram os romanos com seu estilo delicado?

Como vocês sabem, o que resta de Donnelaith hoje é o seguinte: uma estalagem antiquada, um castelo em ruínas, uma escavação imensa que aos poucos está revelando uma catedral gigantesca, histórias de feitiçaria e maldição, de condes que tiveram mortes prematuras e de uma estranha família, que através da Europa chegou à América, levando consigo uma linhagem funesta no sangue, um potencial para gerar bebês ou monstros, uma herança sinistra que se evidencia pelo brilho dos dons de bruxos, uma família seduzida, em decorrência desse sangue e desses dons, por Lasher, um espírito astucioso e implacável de algum dos nossos.

Como os pictos foram destruídos? Por que eles caíram exatamente como o povo da terra perdida e o povo da planície? O que lhes aconteceu?

Não foram os celtas, os anglos ou os escoceses que nos dominaram. Não foram os saxões, os irlandeses ou as tribos germânicas que invadiram a ilha. Esses estavam ocupados demais destruindo-se entre si.

Pelo contrário, nós fomos destruídos por homens tão suaves quanto nós mesmos, com normas tão rígidas quanto as nossas, e sonhos tão lindos quanto os nossos. O líder que seguiam, o deus que adoravam, o salvador em quem acreditavam era o Senhor Jesus Cristo. Ele foi a nossa desgraça.

Foi o próprio Cristo que pôs fim a quinhentos anos de prosperidade. Foram seus mansos monges irlandeses que provocaram nossa derrocada.

Vocês conseguem ver como isso poderia acontecer?

Vocês percebem como nós éramos vulneráveis, nós, que no isolamento das nossas torres de pedras brincávamos de tecer e de escrever como criancinhas, que passávamos o dia inteiro cantarolando ou cantando por puro prazer? Nós, que acreditávamos no amor e no Deus Bom, e nos recusávamos a considerar a morte sacrossanta?

Qual era a pura mensagem dos primeiros cristãos? Tanto dos monges romanos quanto dos celtas que chegaram ao nosso litoral para pregar a nova religião? Qual é a pura mensagem, mesmo hoje em dia, daqueles cultos que se consagram novamente a Cristo e aos seus ensinamentos?

O amor, exatamente aquilo em que nós acreditávamos!

O perdão, exatamente aquilo que considerávamos prático. A humildade, a virtude que, mesmo com nosso orgulho, acreditávamos ser mais nobre do que a onipotência dominante entre os que guerreavam interminavelmente. A bondade de coração, a gentileza, a alegria dos justos: nossos antigos valores. E o que os cristãos condenavam? A carne, exatamente o que sempre havia sido nossa derrota! Os pecados da carne, que haviam feito com que parecêssemos monstros aos olhos dos humanos, com a cópula em imensos círculos cerimoniais e a geração de crias de tamanho adulto.

Ah, nós estávamos prontos para aquilo tudo! Ah, aquela religião era talhada para nós.

E o segredo, o segredo sublime, era que no seu âmago o cristianismo não só abarcava tudo isso, mas conseguia de algum modo tornar sagrada a morte e ao mesmo tempo reparar essa consagração.

Acompanhem meu raciocínio. A morte de Cristo não se deu em combate. Não foi a morte do guerreiro com a espada na mão. Foi um sacrifício humilde, uma execução que não poderia ser vingada, uma rendição total por parte do Deus Homem no sentido de salvar seus filhos humanos! Mas foi uma morte, e foi tudo!

Ah, era magnífico! Nenhuma outra religião poderia ter tido sequer uma chance conosco. Nós detestávamos panteões de deuses bárbaros. Ríamos dos deuses dos gregos e dos romanos. Os deuses da Suméria ou da índia, nós também teríamos considerado igualmente estranhos e repulsivos. Mas esse Cristo, ai, meu Deus, ele era o ideal de todo Taltos!

E, embora não houvesse nascido adulto do ventre da sua mãe, mesmo assim ele havia nascido de uma virgem, o que era um milagre equivalente. Na realidade, o nascimento de Cristo era tão importante quanto sua submissão ao crucifixo! Era o nosso estilo. Era o triunfo do nosso estilo! Era o Deus ao qual podíamos nos entregar sem reservas!

Para terminar, permitam-me acrescentar a pièce de resistance. Esses cristãos, também, haviam sido um dia caçados, perseguidos e ameaçados de extermínio. Diocleciano, o imperador romano, os havia submetido a esses tormentos. E refugiados vinham procurar abrigo no nosso vale. Foi o que lhes oferecemos.

E os cristãos conquistaram nossos corações. Quando falávamos com eles, acreditávamos ser possível que o mundo estivesse se transformando. Acreditávamos que estava nascendo uma nova era, e que nossa grandeza e nosso restabelecimento agora eram pelo menos concebíveis.

A sedução final foi simples.

Um monge solitário chegou ao vale à procura de refúgio. Fora perseguido até ali por pagãos errantes e maltrapilhos, e nos implorou abrigo. É claro que nunca o negaríamos a uma pessoa daquelas, e eu o acolhi na minha própria torre, nos meus próprios aposentos, para interrogá-lo sobre o mundo lá fora, já que não me arriscava a sair há algum tempo.

Estávamos em meados do sexto século depois de Cristo, embora eu não o soubesse. Se vocês quiserem ter uma idéia da nossa aparência na época, imaginem homens e mulheres usando túnicas longas e bem simples, com acabamento em pele, bordadas em ouro e pedras preciosas. Imaginem os homens com os cabelos cortados acima dos ombros. Seus cintos são grossos, e as espadas estão sempre à mão. As mulheres cobrem os cabelos com véus de seda presos por tiaras simples de ouro. Imaginem nossas torres muito nuas, embora aquecidas e aconchegantes, cheias de peles e poltronas, bem como de lareiras acesas para nos fornecer calor. Imaginem que somos altos, naturalmente, todos nós altos.

E me imaginem na minha torre a sós com esse pequeno monge louro,com suas vestes marrons, aceitando ansioso o bom vinho que lhe ofereço.

Ele trazia consigo um embrulho enorme que estava determinado a proteger, disse ele, e a primeira coisa que me pediu foi que eu lhe desse uma guarda para acompanhá-lo de volta à ilha de Iona em segurança.

A princípio, eram três na sua comitiva, mas bandidos haviam assassinado os outros dois, e agora ele estava desgraçadamente só, dependendo da boa vontade dos outros, e precisando fazer chegar sua carga preciosa a lona, ou perder algo mais valioso do que sua própria vida.

Prometi me encarregar de que ele chegasse a lona em segurança. Ele então se apresentou como Irmão Ninian, nome inspirado por um santo anterior, o Bispo Ninian, que havia convertido muitos pagãos na sua capela ou mosteiro, ou sei lá o que, em Whittern. Esse bispo já havia convertido alguns Taltos selvagens.

O jovem Ninian, um celta irlandês muito bonito e agradável, abriu então sua trouxa inestimável, revelando seu conteúdo.

Ora, eu havia visto muitos livros na minha vida, rolos romanos e o códice, que era agora o formato popular. Eu sabia latim. Sabia grego. Já havia até mesmo visto alguns livros muito pequenos chamados cathachs que os cristãos usavam como talismãs quando iam para a batalha. Eu me sentira intrigado com os poucos fragmentos de escritos cristãos que já vira, mas não estava de modo algum preparado para o tesouro que Ninian me revelou.

Era um magnífico missal que ele trazia, um enorme relato ilustrado e ornamentado dos Quatro Evangelhos. Sua capa era decorada com ouro e pedras preciosas. Era encadernado em seda, e suas páginas eram pintadas com ilustrações minúsculas e espetaculares.

Lancei-me imediatamente sobre esse livro e praticamente o devorei. Comecei a ler o latim em voz alta e, embora houvesse algumas irregularidades nele, no todo compreendi o texto, e comecei a acompanhar a história como alguém em possessão, naturalmente nada de extraordinário para um Taltos. Era parecido com cantar.

No entanto, à medida que virava as páginas de velino, eu ficava maravilhado não só com a história que estava sendo contada, mas também com os desenhos incríveis de animais fantasiosos e de pequenas figuras. Era uma arte que eu realmente apreciava, por ter exercido minha própria forma da mesma.

Na realidade, era muito parecida com a arte daquele tempo passado nas ilhas. Eras posteriores iriam considerá-la tosca, mas depois viriam a amar sua complexidade e sua engenhosidade.

Agora, para compreender o impacto dos próprios evangelhos, é preciso que vocês se lembrem de como eles eram diferentes de qualquer literatura anterior a eles. Não incluam a Tora dos hebreus, porque eu não a conhecia, mas os evangelhos são diferentes até mesmo dela.

Eles eram diferentes de tudo! Para começar, eles tratavam de um indivíduo, Jesus, e de como ele havia ensinado o amor e a paz para ser acossado, perseguido, torturado e crucificado. Uma história desconcertante! Não pude deixar de me perguntar o que os gregos e os romanos pensariam a respeito dela. E o homem havia sido uma pessoa humilde, com a mais tênue das ligações com antigos reis, isso era óbvio. Ao contrário de qualquer deus de quem eu havia ouvido falar, esse Jesus dissera aos seus seguidores todo tipo de coisa que eles haviam sido então encarregados de escrever e ensinar a todas as nações.

Nascer novamente em espírito era a essência da religião. Ser simples, humilde, manso, amoroso, estava no seu âmago.

Agora, afastem-se um pouco para ter uma visão geral. Não era apenas esse deus que era assombroso, ou sua história que era assombrosa. Toda a questão do relacionamento da história com a escrita era assombrosa.

Como vocês sabem a partir desta narrativa, o único ponto que tínhamos em comum com nossos vizinhos bárbaros era a desconfiança da escrita. Para nós a memória era sagrada, e nós acreditávamos que a escrita não fazia bem à memória. Nós sabíamos ler e escrever. Mas ainda desconfiávamos dela. E aqui estava esse deus humilde que fazia citações do livro sagrado dos hebreus, que se vinculava às suas inúmeras profecias quanto a um messias, e depois encarregava seus seguidores de escrever a seu respeito.

No entanto, muito antes de eu terminar o último evangelho, andando de um lado para o outro, lendo em voz alta, com o grande livro nos braços e os dedos dobrados no alto das páginas, eu já amava Jesus pelas coisas estranhas que dizia, pelo seu jeito de se contradizer, por sua paciência com aqueles que o mataram. Quanto à sua ressurreição, minha primeira conclusão foi a de que ele vivia tanto quanto nós, os Taltos. E que havia enganado seus seguidores porque eles eram meros humanos.

Nós precisávamos recorrer a esses truques o tempo todo. Assumir identidades diferentes quando falávamos com vizinhos humanos, para que eles se confundissem e não percebessem que vivíamos durante séculos.

Mas logo me dei conta, através dos cuidadosos ensinamentos de Ninian — e ele era um monge cheio de alegria e arrebatamento — de que Cristo de fato ressuscitara dos mortos. E realmente subira aos céus.

Numa espécie de relance místico, tive a visão do todo: esse deus do amor, martirizado pelo amor, e a natureza radical da sua mensagem. De uma forma irracional, a história me dominou por ser tão perfeitamente inacreditável. Na realidade, toda a combinação de elementos era desajeitada e ridícula.

E ainda outro fato, todos os cristãos acreditavam que o mundo logo terminaria. E aparentemente — isso eu fui concluindo aos poucos nas minhas conversas com Ninian — eles sempre haviam acreditado nisso! Mas a preparação para esse fim do mundo também era a essência da religião. E o fato de o mundo ainda não ter acabado não desestimulava ninguém.

Ninian falava com fervor da expansão da Igreja desde a época de Cristo, uns quinhentos anos antes, de como José de Arimatéia, seu querido amigo, e Maria Madalena, que lhe havia banhado os pés para secá-los com seus próprios cabelos, haviam vindo até a região ao sul da Inglaterra para ali fundar uma igreja num monte sagrado em Somerset. O cálice da última ceia de Cristo havia sido trazido àquele local, e na verdade uma grande fonte jorrava vermelho-sangue o ano inteiro devido à presença mágica do sangue de Cristo ali derramado. E o cajado de José, tendo sido enfiado no chão em Wearyall Hill, havia brotado resultando num pilriteiro que jamais parava de florir.

Senti vontade de ir até lá imediatamente, ver o lugar sagrado onde os próprios discípulos do Nosso Senhor haviam pisado na nossa ilha.

— Ah, mas por favor, meu generoso Ashlar — exclamou Ninian. — Você prometeu me levar para casa, para meu mosteiro em lona.

Lá o abade, o padre Columba, estava à sua espera. Muitos livros semelhantes a esse estavam sendo feitos em mosteiros em todo o mundo, e esse exemplar era importantíssimo para ser estudado em lona.

Eu precisava conhecer esse Columba. Ele me parecia tão estranho quanto Jesus Cristo! Talvez vocês conheçam a história. Michael, é provável que você a conheça.

Foi assim que Ninian descreveu Columba. Columba nasceu de uma família rica e poderia com o tempo ter se tornado Rei de Tara. Em vez disso, ele se tornou padre e fundou muitos mosteiros cristãos. Foi então que entrou em desavença com Finnian, outro homem santo, sobre a questão de saber se ele, Columba, tinha o direito de fazer uma copia do Saltério de São Jerônimo, outro livro santo, que Finnian trouxera para a Irlanda. Uma briga pela posse de um livro? Pelo direito de fazer uma cópia?

A desavença levou a golpes físicos. Três mil homens morreram em conseqüência dessa disputa, e Columba foi considerado culpado. Ele aceitou esse julgamento e lá se foi para lona, bem próximo do nosso litoral, para converter a nós, os pictos, ao cristianismo. Era seu plano salvar três mil almas pagãs para compensar o número exato de homens que haviam morrido devido à sua briga.

Esqueci-me de quem ficou com a cópia do Saltério.

No entanto, Columba estava agora em Iona e dali mandava missionários por toda parte. Belos livros como esse estavam sendo feitos nessas missões cristãs, e todos eram convidados a entrar para a nova fé. Na realidade, a igreja de Cristo era a salvação para todos!

E logo ficou claro que, embora Columba e muitos monges e padres missionários tivessem sido, como ele, reis ou pessoas de linhagem real, a norma nos mosteiros era extraordinariamente severa, exigindo constante mortificação da carne e total dedicação.

Por exemplo, se um monge derramasse leite enquanto ajudava a servir as refeições da comunidade, ele deveria entrar na capela durante o canto dos Salmos e se prostrar de bruços, até que doze deles tivessem terminado. Os monges eram surrados quando quebravam seus votos de silêncio. No entanto, nada conseguia impedir que os ricos e os poderosos da terra acorressem em rebanho aos mosteiros.

Eu estava perplexo. Como um padre que acreditava em Cristo podia entrar numa guerra na qual três mil morreram? Por que os filhos de reis se submetiam a ser açoitados por ofensas comuns? Mas a verdade era que havia um potencial simples ali, uma lógica cativante.

Parti com Ninian e dois dos meus filhos recentes para ir até lona. É claro que mantivemos nosso disfarce como seres humanos. O próprio Ninian acreditava que éramos seres humanos.

No entanto, quando cheguei a lona, fiquei ainda mais encantado com o próprio mosteiro e com a personalidade de Columba.

Era uma ilha magnífica, verde e cheia de florestas, com vistas esplêndidas dos seus penhascos, onde a amplidão e a clareza do mar traziam uma paz imediata à alma.

Na realidade, abateu-se sobre mim uma calma fantástica. Era como se eu houvesse encontrado de novo a terra perdida, só que agora os temas dominantes eram a austeridade e a penitência. No entanto, ali havia harmonia, a fé na perfeita virtude da existência.

Ora, o mosteiro era celta, e nem um pouco parecido com os mosteiros beneditinos que mais tarde cobriram a Europa. Ele era composto de um grande cercado circular, o valo, como era chamado, que sugeria uma fortaleza, e os monges viviam em choças simples e pequenas, algumas com não mais do que três metros de largura interior. A própria igreja não era imponente, mas uma humilde estrutura de madeira.

Nunca, porém, um complexo de construções esteve mais harmonizado com seu ambiente natural. Era um lugar para se prestar atenção em silêncio aos pássaros, para caminhar, pensar, orar, conversar com Columba, um homem encantador, amável e verdadeiramente simpático. Esse homem tinha sangue da realeza. Eu há muito era rei. A nossa região era a do norte da Irlanda e da Escócia. Nós nos conhecíamos. E alguma coisa em mim também tocou esse santo: a sinceridade dos Taltos, nosso jeito bobo de ir direto ao assunto, a facilidade para demonstrar entusiasmo.

Columba logo me convenceu de que a austera vida monacal e a mortificação da carne eram o segredo do amor que o cristianismo exigia do homem. Esse amor não era sensual. Esse amor era de uma exaltação espiritual que não encontrava expressão por meio do corpo.

Ele ansiava por converter toda a minha tribo, ou todo o meu clã. Ansiava por me ver ordenado sacerdote entre o meu povo.

— Mas o senhor não sabe do que está falando — protestei. E então, sob a proteção do sigilo da confissão, ou seja, do segredo eterno, contei-lhe a história da minha longa vida, do nosso modo secreto e milagroso de dar à luz, de como aparentemente muitos de nós pareciam ser capazes de viver uma vida perene de juventude eterna, a menos que um acidente, desastre ou alguma peste específica nos destruísse.

Algumas coisas eu não contei. Não lhe disse que eu um dia havia sido o líder das grandes danças em círculo em Stonehenge.

No entanto, falei sobre tudo o mais, até mesmo sobre a terra perdida e sobre como vivemos no nosso vale durante tantos séculos, passando do isolamento ao disfarce como seres humanos.

Tudo isso ele ouviu com enorme fascínio. E então me disse algo espantoso.

— Você tem como provar essas coisas?

Percebi que não podia. O único meio de um Taltos poder provar que é um Taltos consiste em copular e gerar um filho.

— Não — disse eu. — Mas repare bem em nós. Olhe para a nossa altura.

Isso ele descartou. Havia homens altos no mundo.

— As pessoas conhecem seu clã há anos. Você é o rei Ashlar de Donnelaith, e elas sabem que você é um bom governante. Se você acredita nessas coisas a respeito de si mesmo, é porque o demônio as enfiou na sua imaginação. Esqueça tudo isso. Dedique-se a fazer o que Deus quer que você faça.

— Pergunte a Ninian. A tribo inteira é dessa altura.

Mas ele havia ouvido falar nisso, nos pictos muito altos habitantes das regiões montanhosas da Escócia. Parecia que minha estratégia funcionava mesmo!

— Ashlar, não tenho nenhuma dúvida quanto à sua bondade. Mais uma vez eu lhe peço que ignore essas ilusões por serem originadas pelo demônio.

Concordei, afinal, por um motivo. Concluí que não fazia diferença se ele acreditasse em mim ou não, com relação ao meu passado. O que importava era que ele havia reconhecido em mim uma alma.

Michael, você sabe que esse foi um ponto de grande importância na história de Lasher, o de que, vivendo no tempo de Henrique VIII, ele queria acreditar que possuía alma; o de não querer aceitar que não podia ser um sacerdote de Deus como qualquer ser humano.

Conheço esse terrível dilema. Todos os excluídos ao seu próprio modo o conhecem. Quer estejamos falando de legitimidade, de alma, de cidadania, quer se esteja falando de fraternidade, é tudo o mesmo. Ansiamos por sermos vistos como verdadeiros indivíduos, de valor interior inerentemente igual ao de qualquer outro.

Por isso eu também ansiava, e cometi o tremendo erro de aceitar o conselho de Columba. Eu me esqueci do que sabia ser a verdade.

Ali, em lona, fui aceito pela fé cristã. Fui batizado, assim como meus filhos. Outro batismo deveria se seguir, mas para mim e meus filhos ele era apenas uma cerimônia. Naquela ilha, distante das névoas das montanhas escocesas, tornamo-nos Taltos cristãos.

Passei muitos dias no mosteiro. Li todos os livros que havia ali. Fiquei encantado com as ilustrações e logo comecei a copiá-las. Com permissão oficial, é claro. Copiei um saltério, depois um evangelho, surpreendendo os monges com meu comportamento obsessivo típico do Taltos. Eu desenhava estranhos animais em cores brilhantes o dia inteiro. Fazia com que os padres rissem às vezes com fragmentos de poesia que eu copiava. Eles se deleitavam com minha competência em grego e em latim.

Que comunidade jamais havia sido mais parecida com a dos Taltos?Monges crianças, era o que eles pareciam, renunciando totalmente ao conceito de sofisticação da idade adulta para servir ao abade como seu senhor e, portanto, servir ao próprio Senhor, o Cristo Crucificado que morrera por eles.

Foram dias felizes, muito felizes.

Aos poucos, comecei a perceber o que muitos príncipes pagãos chegaram a ver no cristianismo: a absoluta redenção de tudo! Todo o meu sofrimento fazia sentido, tendo em vista as dores do mundo e a missão de Cristo de nos salvar do pecado. Todos os desastres que eu havia presenciado não haviam feito outra coisa senão aperfeiçoar minha alma e prepará-la para esse momento. Minha monstruosidade, na realidade a monstruosidade de todos os Taltos, seria aceita por essa Igreja, sem dúvida, pois todos eram bem-vindos a ela, independentemente de raça. Era uma fé totalmente aberta, e nós podíamos nos submeter, como qualquer ser humano, ao batismo da água e do espírito, aos votos de pobreza, castidade, obediência.

As normas rígidas, que forçavam até os leigos à pureza e à repressão, nos ajudariam a controlar nosso terrível impulso de procriar, nossas tremendas fraquezas pela dança e pela música. E a música não iríamos perder. Dentro das restrições da vida monacal, que àquela altura era para mim sinônimo de vida cristã, nós entoaríamos nossos cânticos mais alegres e belos!

Em suma, se essa Igreja nos aceitasse, se ela nos abraçasse, todos os nossos sofrimentos passados e futuros teriam um significado. Nossa natureza verdadeiramente amorosa poderia florescer. Já não seria mais necessário nenhum disfarce. A Igreja não permitiria que os antigos rituais nos fossem impostos. E aqueles que temiam os nascimentos agora, como eu temia, pela minha idade, experiência e por ter visto tantos jovens mortos, poderiam se consagrar a Deus em castidade.

Era perfeito!

Em seguida, com uma pequena escolta de monges, voltei para o vale de Donnelaith e reuni todo o meu povo. Devemos jurar fidelidade a Cristo, disse-lhes eu e expliquei os motivos em longos discursos ondulantes, não rápidos demais para que meus companheiros humanos pudessem entender, falando apaixonadamente da paz e da harmonia que nos seriam restauradas.

Falei também na crença cristã no fim do mundo. Muito em breve todo esse horror terá terminado! Falei, então, do paraíso, que eu imaginava ser parecido com a terra perdida, só que ninguém ia querer fazer amor. Todos ficariam cantando com os coros dos anjos.

Agora todos nós devemos confessar nossos pecados e nos preparar para sermos batizados. Durante um milênio, eu havia sido o líder, e todos deviam me seguir. Que orientação melhor eu poderia darão meu povo?

Recuei ao final do meu discurso. Os monges estavam dominados pela emoção. Assim como as centenas de Taltos reunidos no vale ao meu redor.

Começaram imediatamente as discussões acaloradas pelas quais éramos conhecidos, tudo na Arte da Língua dos humanos. Os debates intermináveis, os relatos de pequenas histórias, a associação de um fato a outro, a inserção de lembranças onde parecesse pertinente e por trás disso tudo o grande tema: nós podíamos abraçar Cristo. Ele era o Deus Bom! Era o nosso Deus. As almas dos outros estavam tão abertas para Cristo quanto a minha.

Uma grande quantidade imediatamente declarou sua fé. Outros passaram a tarde, o entardecer e a noite examinando os livros que eu trouxera comigo, contestando até certo ponto as coisas que haviam ouvido, e houve alguns sussurros preocupados com o fato de ser contrário à nossa natureza ser castos, que isso era absolutamente contrário a ela, e que nós jamais conseguiríamos conviver com o casamento.

Enquanto isso, fui procurar os seres humanos de Donnelaith para pregar para eles essa importante conversão, e os monges me acompanharam. Mandamos reunir todos os clãs do vale.

E no nosso imenso campo de reuniões, em meio às pedras, centenas declararam seu desejo de vir a Cristo e, na realidade, alguns dos humanos confessaram já estar convertidos, segredo que haviam mantido para sua própria proteção.

Fiquei muito surpreso com isso, especialmente quando descobri que algumas famílias já eram cristãs há três gerações. "Como vocês parecidos conosco", pensei. "Mas nem sabem disso."

Naquele instante, pareceu-me que todos estavam prestes a se converter. Em massa, imploramos aos padres que começassem os batismos e as bênçãos.

No entanto, uma das mulheres importantes da nossa tribo, Janet, como agora a chamávamos, um nome muito popular na época, ergueu a voz para se declarar contra mim.

Janet também havia nascido na terra perdida, que ela agora mencionou com toda a franqueza diante de seres humanos. É claro que eles não sabiam do que ela estava falando. Mas nós sabíamos. E ela me lembrou o fato de ela também ainda não ter cabelos grisalhos. Em outras palavras, nós éramos sábios e jovens, nós dois, a combinação perfeita.

Eu havia tido um filho com Janet, e realmente a amava. Passara muitas e muitas noites brincando na sua cama, naturalmente sem ousar consumar o ato, mas mamando nos seus seios pequenos e arredondados, e trocando todo tipo de carícias engenhosas que nos proporcionavam um prazer intenso.

Eu amava Janet. Mas nunca houve a menor dúvida na minha cabeça quanto ao fato de Janet defender suas opiniões com ferocidade.

Agora ela se adiantava e condenava a nova religião como um monte de mentiras. Ela salientou todos os seus pontos fracos em termos de lógica e de coerência. Ela riu da religião. Contou-nos muitas histórias que faziam com que os cristãos parecessem fanfarrões e idiotas. A história do Evangelho ela classificou de ininteligível.

A tribo ficou imediatamente dividida. A discussão era tão alta que eu nem podia dizer quantos estavam a favor de Janet ou contra ela. Seguiram-se violentas disputas verbais. Mais uma vez, retomamos nossa maratona de debates, que nenhum ser humano conseguia observar sem se dar conta das nossas diferenças.

Os monges recolheram-se para nosso círculo sagrado. Ali eles consagraram a terra a Cristo e oraram por nós. Ainda não compreendiam plenamente como nós éramos diferentes, mas sabiam que não éramos como as outras pessoas.

Afinal, ocorreu um grande cisma. Um terço dos Taltos se recusava peremptoriamente à conversão e ameaçava lutar contra os outros se nós tentássemos transformar o vale num abrigo para o cristianismo. Alguns demonstraram um imenso medo do cristianismo e das lutas que ele provocaria. Outros simplesmente não gostavam da idéia e preferiam continuar com nossos costumes, não viver em austeridade e penitência.

A maioria queria se converter, e nós não queríamos renunciar às nossas casas, ou seja, não queríamos sair do vale para viver em outro lugar. Para mim, essa possibilidade era impensável. Eu era o líder ali.

E, como muitos reis pagãos, eu esperava que o meu povo me seguisse incondicionalmente nessa minha conversão.

As batalhas verbais evoluíram para encontrões e empurrões, bem como ameaças, e dentro de uma hora percebi que todo o futuro do vale estava correndo perigo.

Mas o fim do mundo estava chegando. Cristo sabia disso e viera nos preparar. Os inimigos da igreja de Cristo eram inimigos de Cristo!

Escaramuças sangrentas estavam acontecendo nos prados do vale. Brotaram incêndios.

Lançaram-se acusações. Seres humanos que sempre nos pareceram leais de repente se voltaram contra os Taltos e os acusaram de uma perversão desgraçada, de não terem casamentos legais, de não terem filhos que se vissem, e de serem magos cruéis.

Outros declararam que há muito suspeitavam de coisas nocivas dos Taltos. e que agora era a hora de esclarecer tudo. Onde mantínhamos nossos filhos? Por que ninguém nunca via crianças entre nós?

Alguns indivíduos atormentados, lá com seus próprios motivos, gritaram a verdade. Uma mulher humana que dera à luz dois Taltos indicou seu marido Taltos e disse a todo mundo o que ele era. E que, se nós quiséssemos dormir com mulheres humanas, em breve acabaríamos com elas.

Os fanáticos nervosíssimos, entre os quais eu era o mais eloqüente, declararam que essas coisas não faziam mais diferença. Nós, os Taltos, havíamos sido acolhidos na igreja por Cristo e pelo padre Columba. Nós renunciaríamos aos nossos antigos hábitos licenciosos e viveríamos como Cristo queria que vivêssemos.

Seguiu-se mais confusão. Desferiram-se golpes. Berros ressoavam.

Agora eu via como três mil pessoas podiam morrer numa discussão sobre o direito de copiar um livro! Agora eu percebia tudo.

Mas era tarde demais. A batalha já havia começado. Todos correram para suas torres para se armar e defender suas posições. Homens armados saíam aos montes pelas portas, a atacar seus vizinhos.

O horror da guerra, o horror do qual eu procurara me esconder todos esses anos em Donnelaith, agora se abatia sobre nós. E ele decorria da minha conversão.

Eu estava parado, ali, desnorteado, com a espada na mão, mal sabendo como agir. Os monges vieram, porém, a mim.

— Ashlar, leve-os a Cristo — disseram eles, e eu me tornei como muitos reis fanáticos antes de mim. Liderei meus seguidores contra seus irmãos e irmãs.

Entretanto, o verdadeiro horror ainda estava por vir.

Quando a batalha terminou, os cristãos ainda estavam em maioria, e eu vi, embora não registrasse isso com clareza naquele momento, que a maior parte deles era de humanos. A maioria da elite dos Taltos, que jamais fora muito numerosa mesmo, graças ao nosso rígido controle, havia sido exterminada. E só restava um bando de cinqüenta de nós, os mais velhos, os mais sábios, sob certos aspectos os mais dedicados, e nós todos ainda estávamos convictos da nossa conversão.

No entanto, o que haveríamos de fazer com os poucos humanos e Taltos que não se haviam aliado a nós, que não haviam sido mortos só porque a matança havia terminado antes que todos morressem? Agora recolhidos do campo de batalha, feridos, mancos, esses rebeldes, com Janet como líder, amaldiçoavam a nós. Eles não queriam ser expulsos do vale, declararam, preferiam morrer onde estavam, fazendo oposição a nós.

— Você, Ashlar, olhe só o que fez — protestou Janet. — Contemple por toda a parte os corpos dos seus irmãos e irmãs, homens e mulheres que viveram desde o tempo antes dos círculos! Você provocou sua morte!

Mal Janet havia lançado sobre mim essa terrível acusação, os fanáticos humanos convertidos começaram a fazer perguntas.

— Como vocês podem ter vivido desde o tempo antes dos círculos? O que vocês são, se não são humanos?

Afinal, um dos mais audaciosos desses homens, um que era cristão em segredo há anos, aproximou-se de mim e abriu minha túnica com sua espada. E eu, perplexo como os Taltos costumam ficar com a violência, me descobri parado, nu, no meio do círculo.

Percebi o motivo. Eles queriam ver o que nós éramos, se nossos corpos altos eram o mesmo corpo dos homens. Bem, que vejam, anunciei. Dei um passo para fora da túnica jogada ao chão. Pus minhas mãos sobre os testículos à moda antiga, para fazer um juramento, ou seja, dar testemunho, e jurei que serviria a Cristo tão bem quanto qualquer humano.

Mas a maré havia mudado. Os outros Taltos cristãos estavam perdendo a coragem. A visão do massacre havia sido assustadora para eles. Eles começaram a chorar, a se esquecer da Arte da Língua e a usar aquela fala rápida e aguda da nossa gente, que logo apavorou os humanos.

Ergui minha voz, exigindo silêncio e exigindo lealdade. Se é que fazia alguma diferença, eu havia vestido novamente minha túnica rasgada. E eu caminhava de um lado para o outro no círculo, irado, usando a Arte da Língua da melhor maneira que jamais usara.

O que Cristo nos diria a respeito do que havíamos feito? Qual era o crime nesse caso, o de sermos uma tribo estranha? Ou o de termos matado nossa própria gente nessa altercação? Eu chorava, com grandes gestos, e puxava meus cabelos. E os outros choravam comigo.

Já os monges estavam cheios de medo agora, e os humanos cristãos também estavam cheios de medo. O que haviam suspeitado a vida inteira no vale estava quase lhes sendo revelado. Mais uma vez, voavam perguntas. Nossos filhos, onde estavam?

Afinal, outro Taltos macho, a quem eu muito amava, deu um passo à frente e declarou que a partir daquele momento, em nome de Cristo e da Virgem, ele renunciaria ao sexo. Outros Taltos prestaram o mesmo voto, tanto homens quanto mulheres.

— Não faz diferença agora o que nós tenhamos sido no passado — declararam as mulheres Taltos. — Pois, nós nos tornaremos Noivas de Cristo e fundaremos nosso próprio mosteiro aqui, no espírito de lona.

Ecoaram gritos fortes, de alegria e aprovação; e aqueles humanos que sempre nos amaram, que me amavam como seu rei. cerraram fileiras rapidamente à nossa volta.

No entanto, o perigo ainda pairava no ar. A qualquer instante as espadas sangrentas podiam voltar a se enfrentar, e eu sabia disso.

— Vamos, todos vocês, entreguem-se a Cristo — conclamei, vendo nesse voto de castidade por parte do Taltos nossa única chance de sobrevivência.

Janet gritou para que eu parasse com esse plano funesto e antinatural. E então, numa enorme torrente de palavras, às vezes rápida demais e às vezes lenta demais, ela falou dos nossos costumes, da nossa prole, dos nossos ritos sensuais, da nossa longa história, de tudo que eu agora estava preparado para sacrificar.

Foi o erro fatal.

Imediatamente os humanos convertidos se abateram sobre ela e ataram seus pés e mãos, enquanto os que procuravam defendê-la eram abatidos. Alguns dos Taltos convertidos procuraram fugir, e esses logo foram exterminados. Teve início, assim, mais uma batalha cruel, na qual cabanas e choças foram incendiadas e as pessoas corriam de um lado para o outro em pânico, pedindo a Deus aos gritos que nos ajudasse. O lema era matar todos os monstros.

Um dos monges declarou tratar-se do fim do mundo. Alguns Taltos também. Estes caíram de joelhos. Os humanos, vendo os Taltos nessa postura submissa, logo mataram todos os que não conheciam, os que temiam ou não apreciavam, poupando apenas aqueles poucos que eram amados por todos.

Só eu e um punhado restamos: aqueles que haviam sido mais atuantes na liderança da tribo e que tinham personalidades magnéticas. Nós nos defendemos dos poucos que tiveram energia para nos atacar, dominando outros com meros olhares ferozes ou condenações vociferantes.

E afinal, quando a comoção havia chegado ao auge, e homens caiam sob o peso das espadas enquanto outros choravam e gritavam sobre os mortos, só restavam cinco de nós, Taltos dedicados a Cristo, e todos os outros que não queriam aceitar Cristo, à exceção de Janet, estavam exterminados.

Os monges pediram ordem.

— Fale com seu povo, Ashlar. Fale, ou tudo estará perdido. Não haverá mais nenhuma Donnelaith, e você sabe disso.

— É, fale — recomendaram os outros Taltos — mas não diga nada que possa assustar alguém. Use a cabeça, Ashlar.

Eu chorava tanto que essa missão parecia totalmente fora do meu alcance. Para qualquer lado que eu olhasse, eu via os mortos, centenas nascidos desde a época do círculo nas planícies, mortos e acabados agora, tendo entrado na eternidade, e talvez caído nas chamas do inferno sem a misericórdia de Cristo.

Caí de joelhos. Chorei até não ter mais lágrimas. E, quando parei, o vale estava imóvel.

— Você é nosso rei — disseram os seres humanos. — Diga-nos que não é nenhum demônio, Ashlar, e nós acreditaremos.

Os outros Taltos comigo estavam com um medo desesperado. Seu destino agora dependia do meu. No entanto, eles eram os mais conhecidos da população humana e os mais respeitados. Nós tínhamos uma chance, quer dizer, se eu não me desesperasse e selasse o destino para todos nós.

Mas o que restava do meu povo? O quê? E o que eu havia trazido para dentro do meu vale?

— Ashlar, Deus põe à prova aqueles que Ele ama — disseram eles, aproximando-se. E estavam sendo sinceros. Seus olhos também estavam cheios de tristeza. — Deus põe à prova aqueles que ele quer tornar santos. — E sem se importar com o que outros pudessem pensar da nossa monstruosidade, da nossa vida de pecado, eles puseram seus braços ao meu redor, e se mantiveram firmes contra o resto, arriscando sua própria segurança.

E então falou Janet, mantida presa pelos seus captores.

— Ashlar, você traiu seu povo. Você trouxe a morte para sua gente em nome de um deus estrangeiro. Você destruiu o clã de Donnelaith, que vivia neste vale desde tempos imemoriais.

— Calem a bruxa! — exclamou alguém.

— Vamos queimá-la — disse outro. E mais outro, e ainda outro.

E mesmo enquanto ela continuava a falar, havia sussurros e aqueles que iam preparar a fogueira no circulo de pedras.

Tudo isso eu vi com o canto dos olhos, e ela também. E mesmo assim manteve sua coragem.

— Eu o amaldiçôo, Ashlar. Maldito seja aos olhos do Deus Bom.

Eu não conseguia falar, e no entanto sabia que precisava falar. Precisava falar para me salvar, salvar os monges, os meus seguidores. Precisava falar se quisesse impedir a morte de Janet.

Haviam arrastado lenha até a fogueira. Estavam jogando carvão do alto. Alguns humanos, alguns dos quais sempre haviam temido Janet e qualquer mulher Taltos que não pudessem possuir, trouxeram archotes.

— Fale — sussurrou Ninian ao meu lado. — Por Cristo, Ashlar.

Fechei os olhos, orei, fiz o sinal-da-cruz e então apelei a todos para que me ouvissem.

— Vejo diante de mim um cálice — declarei, falando com delicadeza, mas alto o suficiente para que todos ouvissem. — Vejo o Cálice do sangue de Cristo que José de Arimatéia trouxe para a Inglaterra. Vejo o sangue de Cristo derramado no Poço. Vejo a água que se torna vermelha, e conheço seu significado.

— O sangue de Cristo é o nosso sacramento e nosso alimento. Ele substituirá para sempre o leite maldito que procurávamos nas mulheres, movidos pelo desejo. Ele será nosso novo sustento e a parte que nos cabe.

— E nessa horrível matança de hoje, que Cristo receba nosso primeiro ato de sacrifício pessoal. Pois detestamos a carnificina. Nós a abominamos, como sempre. E só agimos assim contra os inimigos de Cristo, para que Seu reino venha à terra, para que Ele impere para sempre.

Era a Arte da Língua na sua melhor expressão, e tudo foi dito com eloqüência e lágrimas, deixando toda a multidão de humanos e Taltos felizes, a louvar Cristo, a lançar suas espadas ao chão, a arrancar seus adereços, suas pulseiras, seus anéis, e a se declarar nascidos para uma nova vida.

E, no exato instante em que essas palavras me saíam dos lábios, eu soube que eram mentiras. Essa religião era enganosa, e o corpo e o sangue de Cristo podiam matar tanto quanto qualquer veneno.

Nós, porém, estávamos salvos, nós que estávamos ali expostos como monstros. A turba não queria mais a nossa morte. Estávamos a salvo, todos, à exceção de Janet.

Eles agora a arrastaram para a fogueira e, embora eu protestasse, chorasse e implorasse, os padres disseram que não, que Janet devia morrer, para que sua morte servisse de lição para todos que quisessem se recusar a aceitar Cristo.

O fogo foi ateado.

Joguei-me ao chão. Eu não podia suportar aquilo. Depois, de um salto, corri para as chamas que aumentavam lentamente, só para ser puxado para trás e imobilizado contra a minha vontade.

— Ashlar, seu povo precisa de você!

— Ashlar, dê o exemplo!

Janet fixou os olhos em mim. As chamas lambiam seu vestido cor-de-rosa e seus longos cabelos louros. Ela piscou para limpar dos olhos a fumaça que subia e gritou para mim.

— Maldito seja, Ashlar, maldito para sempre. Que a morte o evite para sempre. Que você vagueie, sem amor e sem filhos, sem o seu povo, até que nosso nascimento milagroso seja seu único sonho nesse isolamento. Eu o amaldiçôo, Ashlar. Que o mundo desmorone ao seu redor antes que o seu sofrimento termine.

As chamas subiram, encobrindo-lhe o rosto bonito, e um ronco surdo veio das achas que queimavam rapidamente. Em seguida, ouviu-se sua voz novamente, mais alta, cheia de agonia e de coragem.

— Maldita seja Donnelaith! Maldita sua gente para sempre! Maldito seja o clã de Donnelaith. Maldito o povo de Ashlar.

Alguma coisa se contorceu em meio às chamas. Eu não sabia se era Janet na sua agonia final ou se era alguma ilusão provocada pelo bruxuleio de luz e sombra.

Eu estava caído de joelhos. Não conseguia deter as lágrimas e não conseguia desviar o olhar. Era como se eu tivesse de acompanhá-la o máximo que pudesse na sua dor. E orei a Cristo.

Ela não sabe o que diz. Leve-a para o paraíso. Por suas gentilezas aos outros, por sua bondade para com sua gente, leve-a para o paraíso.

As chamas saltaram na direção dos céus e então logo começaram a se extinguir, revelando o poste, a pilha em brasa de madeira, carne e ossos queimados, que havia sido essa graciosa criatura, mais velha e mais sábia do que eu.

O vale estava imóvel. Não restava nada do meu povo a não ser cinco machos que haviam jurado cumprir o celibato cristão.

Vidas que haviam existido durante séculos haviam sido apagadas. Membros arrancados, cabeças decepadas e corpos mutilados por toda parte.

Os cristãos humanos choravam. Nós chorávamos.

Ela havia rogado uma praga contra Donnelaith. Uma praga. Mas, Janet, minha querida, implorei, o que mais pode nos acontecer!

E caí ao chão.

Naquele instante eu não queria mais saber da vida. Não queria mais sofrimento e morte, ou mesmo as melhores intenções que acabavam em desgraças abomináveis.

Os monges, porém, vieram a mim, erguendo-me para que eu ficasse em pé. Meus seguidores me chamavam. Eu devia vir, diziam eles, para ver um milagre que ocorrera diante da torre destruída e incendiada que havia sido um dia o lar de Janet e dos seus mais chegados.

Arrastado até lá, atordoado, incapaz de falar, fui sabendo aos poucos que uma velha fonte, há muito seca, voltara à vida, com a água cristalina jorrando novamente da terra e abrindo caminho no antigo leito seco, entre montículos e raízes, até uma enorme moita de flores do campo.

Um milagre!

Um milagre. Refleti. Será que eu deveria salientar o fato de que aquele córrego havia surgido e desaparecido algumas vezes no século? Que as flores já estavam ali ontem e no dia anterior porque a terra já se umedecera, anunciando a pequena fonte que agora, afinal, voltava à superfície?

Ou será que eu deveria dizer: "Um milagre"?

— Um sinal de Deus — disse eu.

— Ajoelhem-se todos — exclamou Ninian. — Banhem-se nesta água benta. Purifiquem-se do sangue daqueles que não quiseram aceitar a graça de Deus e que agora caíram na perdição eterna.

Janet ardendo no inferno para sempre, a pira que nunca se extinguirá, a voz que me amaldiçoará ainda aos gritos...

Estremeci e quase desmaiei de novo, mas me ajoelhei.

No fundo da minha alma, eu sabia que essa nova fé deveria me arrebatar, deveria consumir minha vida inteira, ou eu estaria perdido para sempre!

Eu não tinha mais esperanças, não tinha mais sonhos. Não tinha mais palavras nem sede de mais nada! Era preciso que essa fé me salvasse, ou eu morreria naquele exato lugar, por minha pura vontade, nunca mais falando, agindo ou me nutrindo até que a morte caísse sobre mim.

Senti a água fria jogada no meu rosto. Senti que ela escorria para dentro das minhas vestes. Os outros haviam se aproximado. Eles também estavam se banhando. Os monges haviam começado a cantar os salmos celestiais que eu havia ouvido em Iona. Meu povo, os humanos de Donnelaith, tristes e em lágrimas, ansiosos pela mesma redenção solene, acompanharam a música, no estilo antiquado de cantar os versos logo após os monges, até que as vozes por toda parte subissem em louvor a Deus.

Todos fomos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Daí em diante, o clã de Donnelaith foi cristão. Totalmente humano, à exceção de cinco Taltos.

Antes do amanhecer do dia seguinte, mais alguns Taltos foram descobertos, na sua maioria mulheres muito jovens que estavam protegendo dois machos quase recém-nascidos na sua casa, de onde haviam presenciado toda a tragédia, incluindo-se a execução de Janet. Eram seis ao todo.

Os humanos cristãos os trouxeram a mim. Eles se recusavam a falar, fosse para aceitar Cristo, fosse para recusá-lo, mas olhavam para mim apavorados. O que deveríamos fazer?

— Deixem que vão embora, se quiserem. Deixem que fujam do vale.

Ninguém estava em condições de suportar mais sangue ou morte. E sua juventude, simplicidade e inocência formavam um escudo ao seu redor. Assim que os novos convertidos recuaram, esses Taltos fugiram, sem nada a não ser a roupa do corpo, embrenhando-se na floresta.

Nos dias que se seguiram, nós cinco, os machos que restavam, conseguimos conquistar a boa vontade do povo. No fervor da sua nova religião, eles nos louvavam por termos trazido o Cristo até eles, e nos respeitavam pelos nossos votos de abstinência sexual. Os monges nos preparavam, com aulas noite e dia, para o recebimento das ordens sacerdotais. Nós estudávamos atentamente os livros sacros. Orávamos constantemente.

Deram início às obras da igreja, um robusto prédio em estilo romano, feito de pedra sem argamassa, com janelas em arco arredondado e uma longa nave.

E eu mesmo conduzi a procissão que passou pelo velho circulo, onde apagamos todo e qualquer símbolo dos tempos passados e esculpimos nas rochas novos símbolos, do Livro dos Evangelhos.

Esses eram o peixe, que representava Cristo; a pomba, que representava o apóstolo João; o leão, para Marcos; o boi, para Lucas, e o homem, para Mateus. E, numa espécie de furor típico dos Taltos, entalhamos outras cenas bíblicas nas pedras mais planas. Passamos então ao cemitério, colocando cruzes nos túmulos antigos, no estilo das cruzes do livro, muito elaboradas e ornamentadas.

Foi um breve intervalo no qual ressurgiu algo do velho fervor que um dia dominara a todos nós na planície de Salisbury. Só que agora éramos apenas cinco, não uma tribo inteira, cinco que haviam renunciado à sua própria natureza para agradar a Deus e aos humanos cristãos, cinco a quem havia sido atribuído o papel de santos para que não fossem massacrados.

No entanto, um terror sinistro se escondia dentro de mim e dos outros. Quanto tempo duraria essa trégua incômoda? Será que o pecado mais ínfimo não nos derrubaria do nosso pedestal?

Mesmo pedindo a Deus que me ajudasse, que me perdoasse por todos os meus erros, que me vinculasse a Ele como um bom padre, eu sabia que nós cinco não podíamos permanecer em Donnelaith muito mais.

E eu próprio não conseguia suportar a pressão! Mesmo durante minhas orações, e durante o canto dos salmos com os monges, eu ouvia a maldição de Janet nos meus ouvidos, eu via meu povo coberto de sangue. Cristo, dê-me fé, eu implorava, mas no fundo do meu coração eu não acreditava que a única saída para minha espécie envolvesse tanta renúncia e castidade. Como poderia ser assim? Será que Deus pretendia que fôssemos extintos?

Esse não era um sacrifício de si mesmo, era uma forma de negação total. Por Cristo, nós havíamos nos tornado ninguém!

Mesmo assim, ardia em mim o amor por Cristo. Ardia com desespero. E uma noção pessoal muito intensa do meu Salvador surgiu em mim como sempre surgiu nos cristãos. Noite após noite, nas minhas meditações, eu visualizava o Cálice de Cristo, o monte sagrado no qual o cajado de José vicejava, o sangue na água do Poço do Cálice. Fiz um voto de ir em peregrinação até Glastonbury.

Soubemos de inquietação fora do vale. Os homens haviam ouvido falar da Santa Batalha de Donnelaith, como o fato viera a ser conhecido. Ouviram falar de padres altos e abstinentes com estranhos poderes. Monges haviam escrito a outros monges, transmitindo a história.

Ressurgiram as lendas dos Taltos. Outros que viviam como pictos em pequenas comunidades agora precisavam fugir das suas casas já que seus vizinhos pagãos os provocavam e ameaçavam enquanto os cristãos vinham implorar que renunciassem aos seus costumes perversos e se tornassem "santos padres".

Taltos selvagens eram encontrados nas florestas. Houve rumores de que o nascimento mágico teria sido presenciado numa cidadezinha ou em outra. E as bruxas estavam à espreita, vangloriando-se de que podiam fazer com que nos revelássemos e com que ficássemos indefesos.

Outros Taltos, ricamente trajados e armados até os dentes, agora com sua verdadeira natureza exposta, chegavam ao vale cercados de extrema segurança e me amaldiçoavam pelo que eu havia feito.

Suas mulheres, com lindos vestidos e guardas de todos os lados, falavam da praga de Janet, tendo ouvido rumores dela sem dúvida de algum Taltos que fugira de Donnelaith, e exigiam que eu repelisse a maldição para todos e ouvisse suas opiniões.

Eu me recusava. Nada dizia.

E então, para meu horror, esses Taltos repetiam a maldição inteira para mim, pois na verdade já a conheciam.

— Maldito seja, Ashlar, maldito para sempre. Que a morte o evite para sempre. Que você vagueie, sem amor e sem filhos, sem o seu povo, até que nosso nascimento milagroso seja seu único sonho nesse isolamento... Que o mundo desmorone ao seu redor antes que o seu sofrimento termine.

Aquilo havia se tornado para eles um poema que sabiam recitar, e eles cuspiram aos meus pés quando terminaram.

— Ashlar, como você pôde se esquecer da terra perdida? — perguntavam as mulheres. — Como pôde se esquecer do círculo da planície de Salisbury?

Esses raros bravos caminhavam em meio às ruínas das velhas torres. Os humanos cristãos os encaravam com frieza e medo, e suspiravam com alívio quando eles afinal se despediam do vale.

Ao longo dos meses que se seguiram, alguns Taltos vieram que haviam aceitado Cristo e queriam se tornar padres. Nós os acolhemos.

Por todo o norte da Grã-Bretanha, o tempo de tranqüilidade para meu povo estava terminado.

A raça dos pictos desaparecia rapidamente. Aqueles que conheciam a escrita Ogham escreviam maldições terríveis contra mim, ou gravavam em muros e pedras suas novas crenças cristãs com fervor.

Um Taltos revelado podia se salvar tornando-se padre ou monge, transformação que não só apaziguava a população como também a deixava deliciada. As aldeias queriam ter um padre Taltos. Cristãos de outras tribos imploravam para que um Taltos abstinente viesse dizer a missa especial para eles. No entanto, qualquer Taltos que não entrasse nesse jogo, que não renunciasse aos seus costumes pagãos, que não reivindicasse a proteção de Deus, era um alvo fácil para qualquer um.

Enquanto isso, numa cerimônia magnífica, cinco de nós, e mais quatro que haviam chegado mais tarde, foram ordenados. Duas mulheres Taltos que haviam chegado ao vale tornaram-se freiras na nossa comunidade, dedicando-se a cuidar dos fracos e dos enfermos. Fui nomeado abade dos monges de Donnelaith, com autoridade sobre o vale e mesmo sobre as comunidades vizinhas.

Nossa fama crescia.

Houve ocasiões em que precisamos nos proteger por trás de barricadas dentro do mosteiro para escapar de peregrinos que vinham "ver o que era um Taltos" e para nos tocar com as mãos. Espalhou-se a história de que podíamos "curar" e "fazer milagres".

Dia após dia, eu insistia com meu rebanho para que fossem até a fonte sagrada e abençoassem os peregrinos que tivessem ido até lá para beber a água benta.

A torre de Janet havia sido demolida. As pedras da sua moradia e todo o metal que pôde ser fundido dos seus pratos, das suas poucas pulseiras e anéis, foram utilizados na construção da nova igreja. E, junto ao córrego santificado, foi erguida uma cruz com inscrições em latim para lembrar o sacrifício de Janet e o milagre subseqüente.

Eu mal podia olhar para aquilo. Isso é caridade? Isso é amor? No entanto, estava mais do que claro que, para os inimigos de Cristo, a justiça podia ser tão severa quanto Deus resolvesse torná-la.

Mas será que tudo isso fazia parte dos planos de Deus?

Meu povo exterminado, nossos remanescentes transformados em animais sagrados? Apelei aos nossos monges de lona no sentido de que desestimulassem todas essas crendices!

— Não somos uma ordem mágica! — protestei. — Essas pessoas estão a um passo de declarar que temos poderes mágicos!

Para meu puro horror, porém, os monges disseram que se tratava da vontade de Deus.

— Você não compreende, Ashlar? — disse Ninian. — Foi para isso que Deus preservou sua gente, para esse sacerdócio especial.

Mas tudo que eu havia vislumbrado havia caído por terra. Os Taltos não haviam sido redimidos. Eles não haviam encontrado um meio de viver na terra em paz com os homens.

A igreja começou a ganhar fama. A comunidade cristã tomou-se enorme. E eu temia os caprichos daqueles que nos idolatravam.

Afinal, reservei todos os dias uma hora ou duas, período em que trancava minha porta e em que ninguém poderia falar comigo. E, na privacidade da minha cela, comecei um grande livro ilustrado, usando toda a técnica adquirida com meu mestre em lona.

Ele deveria ser feito no estilo dos Quatro Evangelhos. Perfeito, com letras douradas em cada página e ilustrações minúsculas: a história do meu povo.

Meu livro.

Foi o livro que Stuart Gordon encontrou nas criptas da Talamasca.

Para o padre Columba eu escrevi cada palavra, derramando ali meus melhores dons para a poesia, para a música, para a oração, enquanto eu descrevia a terra perdida, nossas migrações até a planície ao sul, a construção do nosso magnífico Stonehenge. Em latim, contei tudo o que sabia das nossas lutas no mundo dos homens, de como eu havia sofrido e aprendido a sobreviver e como, afinal, minha tribo e meu clã haviam chegado a esse ponto: cinco padres em meio a um oceano de humanos, adorados por poderes que não possuíamos, exilados sem nome, sem nação, sem um deus que fosse nosso, esforçando-nos para implorar a salvação do deus de um povo que nos temia.

"Leia aqui minhas palavras, padre", escrevi eu. "O senhor, que não quis ouvi-las quando eu procurei pronunciá-las. Veja-as aqui inscritas na língua de Jerônimo, de Agostinho, do papa Gregório. E saiba que digo a verdade e anseio por entrar na igreja de Deus como o que verdadeiramente sou. Pois de que outro modo poderia eu um dia entrar no Reino dos Céus?"

Finalmente, completei minha tarefa.

Recostei-me na cadeira, com o olhar fixo na capa em que eu próprio incrustara pedras preciosas, na encadernação que eu mesmo criara com seda, nas letras que eu mesmo escrevera.

Mandei imediatamente que chamassem o padre Ninian e pus o livro diante dele. Fiquei ali sentado, imóvel, enquanto Ninian examinava a obra.

Eu estava orgulhoso demais do que havia feito. Tinha certeza demais agora de que nossa história encontraria algum contexto redentor nas vastas bibliotecas da doutrina e da história cristãs. "Não importa o que mais aconteça", pensei, "eu disse a verdade. Contei como era a vida pela qual Janet preferiu morrer."

Nada poderia ter me preparado para a expressão no rosto de Ninian ao fechar o volume.

Ele ficou calado por algum tempo, e depois começou a rir sem parar.

— Ashlar, você está louco de esperar que eu leve isso ao padre Columba!

Eu estava perplexo.

— Para isso, devotei todo meu esforço — disse eu, em voz contida.

— Ashlar, este é o mais belo livro do gênero que eu já vi. As ilustrações são de perfeita execução: o texto, escrito em latim impecável, repleto de centenas de frases comoventes. É inconcebível que um homem pudesse ter criado uma obra semelhante em menos de três a quatro anos, na solidão do escritório do convento de lona, e imaginar que você fez isso aqui dentro do período de um ano é nada menos do que um milagre.

— É ?

— Mas o conteúdo, Ashlar! Isso é uma blasfêmia. No latim das Escrituras, e no estilo de um missal, você escreveu loucos versos pagãos e histórias cheias de luxúria e monstruosidade! Ashlar, esta é a forma adequada para os Evangelhos do Senhor e para os saltérios! O que deu em você para escrever essas frívolas histórias de magia nesse estilo?

— Foi para que o padre Columba visse essas palavras e se desse conta da sua veracidade! — protestei.

No entanto, eu já havia compreendido seu ponto de vista. Minha defesa nada significava.

Vendo então como eu estava arrasado, ele se recostou, cruzou as mãos e olhou para mim.

— Desde o primeiro dia em que entrei na sua casa, eu soube da sua simplicidade e bondade. Só você poderia ter cometido um erro tão tolo. Deixe isso para lá. Deixe toda a sua história para lá de uma vez por todas. Dedique seu talento extraordinário aos temas adequados.

Meditei sobre o assunto um dia e uma noite.

Embalei meu livro com cuidado e o entreguei novamente a Ninian.

— Sou seu abade aqui em Donnelaith por designação solene. Pois bem, esta é a última ordem que receberá de mim. Leve este livro ao padre Columba, como lhe disse. Transmita-lhe a informação de que decidi partir em peregrinação. Não sei quanto tempo ficarei afastado, nem para onde vou. Como você pode ver por este livro, minha vida já durou muitas vidas humanas. Posso nunca mais ver o padre Columba, ou mesmo a você, mas preciso ir. Preciso conhecer o mundo. E se eu um dia retornarei a este lugar ou ao Nosso Senhor, só Ele sabe.

Ninian procurou protestar. Mas eu estava irredutível. Ele sabia que de qualquer maneira precisaria voltar para lona em breve. Por isso cedeu à minha pressão, avisando-me de que eu não tinha permissão de Columba para partir, mas consciente de que eu não eslava me importando com isso.

Ele, afinal, viajou com o livro e uma forte guarda de cinco humanos.

Nunca mais voltei a ver o livro até Stuart Gordon o colocar sobre a mesa na sua torre em Somerset.

Não sei se ele chegou um dia a lona.

Suspeito de que tenha chegado e que possa ter permanecido em lona por muitos anos, até que todos os que sabiam o que ele era ou conheciam quem o havia escrito ou o motivo pelo qual ele estava lá já tivessem desaparecido há muito tempo.

Eu nunca viria a saber se o padre Columba o leu ou não. Na mesma noite em que Ninian seguiu seu caminho, eu decidi deixar Donnelaith para sempre.

Reuni os Taltos padres na igreja e pedi que trancassem as portas. Os humanos poderiam pensar o que quisessem, e de fato minha atitude os deixou naturalmente inquietos e cheios de suspeitas.

Disse aos meus padres que estava indo embora.

Disse-lhes que estava com medo.

— Não sei se agi certo. Creio que sim, mas não sei — disse eu. — E temo os humanos que nos cercam. Receio que, a qualquer momento, eles se voltem contra nós. Se houver uma tempestade, se uma peste se espalhar pela terra, se uma doença terrível atingir as crianças das famílias mais poderosas, qualquer uma dessas desgraças poderia desencadearuma rebelião contra nós.

— Essa não é a nossa gente! E eu fui louco de acreditar que pudéssemos viver em paz com eles.

"Cada um de vocês faça o que quiser, mas meu conselho a vocês como Ashlar, seu líder desde a época em que deixamos a terra perdida, é o de que saiam daqui. Procurem a absolvição em algum mosteiro distante, onde sua natureza não seja conhecida, e peçam permissão para cumprir seus votos em paz naquele lugar. Mas abandonem este vale.

"Eu mesmo vou partir em peregrinação. Primeiro até Glastonbury, ao poço em cuja água José de Arimatéia derramou o sangue do Cristo. Lá vou orar pedindo orientação. Sigo, então, para Roma e depois, talvez, não sei, para Constantinopla a fim de ver os ícones sagrados de lá, que supostamente conteriam o próprio rosto de Cristo por efeito de magia. Sigo, depois, até Jerusalém para ver o monte onde Cristo morreu por nós. Estou, portanto, renunciando aos meus votos de obediência ao padre Columba."

Houve grande clamor e muito choro, mas eu me mantive firme. Era uma forma bastante característica dos Taltos para pôr um ponto final às coisas.

— Se eu estiver errado, que Cristo me traga de volta ao rebanho. Que Ele me perdoe. Ou... que eu vá para o inferno — disse eu, dando de ombros. — Estou indo embora.

E fui me preparar para a viagem...

 

Antes dessa despedida dos meus seguidores, eu já havia retirado da minha torre todos os meus pertences pessoais, incluindo-se aí meus livros, meus escritos, as cartas que recebi do padre Columba e tudo que tinha alguma importância para mim, e havia escondido tudo em dois dos subterrâneos que construíra séculos antes. Depois apanhei o último dos meus belos trajes, por ter me desfeito de tudo o mais para adquirir paramentos e para a construção da igreja, e me vesti com uma túnica verde de lã, longa, pesada, com acabamento em pele negra, cingindo-a com o último cinturão que me restava, de fino couro e ouro, prendi minha espada de folha larga com sua bainha ornada com pedras preciosas, pus na cabeça um velho capuz de pele e um elmo de bronze antiqüíssimo. E assim, trajado como um nobre, talvez um nobre sem dinheiro, saí a cavalo, com meus pertences num pequeno saco, para deixar o vale.

Não se tratava de nada tão elaborado e pesado quanto minha indumentária de majestade, nem tão humilde quanto as vestes de um padre. Apenas roupas adequadas para uma viagem.

Cavalguei talvez uma hora pela floresta, seguindo por velhas trilhas conhecidas apenas por quem já havia caçado por ali.

Fui subindo ao longo das encostas densamente cobertas pela mata na direção de uma passagem secreta que levava para a estrada principal.

Era o final da tarde, mas eu sabia que chegaria à estrada antes do anoitecer. Seria noite de lua cheia e eu pretendia viajar até me sentir cansado demais para prosseguir.

Estava escuro nessa mata fechada, tão escuro que eu calculo que as pessoas de hoje em dia não consigam realmente imaginar. Essa era uma época anterior à destruição das grandes florestas da Grã-Bretanha, e as árvores aqui eram grossas e antigas.

Era nossa crença que essas árvores eram os únicos seres vivos mais antigos do que nós no mundo inteiro, pois nada que tivéssemos visto vivia tanto quanto as árvores ou os Taltos. Nós amávamos a floresta e nunca a temíamos.

No entanto, não fazia muito tempo que eu estava naquela floresta escuríssima quando ouvi as vozes dos Pequenos.

Ouvi seus assobios, sussurros e risadas.

Naquela época, Samuel ainda não havia nascido. Portanto, não estava ali. Mas Aiken Drumm e outros ainda vivos estavam entre os que gritavam, "Ashlar, o bobo dos cristãos, você traiu sua gente". Ou então, "Ashlar, venha conosco, faça uma nova raça de gigantes, e dominaremos o mundo", e outras coisas dessa ordem. Aiken Drumm eu sempre detestei. Ele era muito jovem naquela época, e seu rosto não era tão deformado que não desse para ver seus olhos. E quando ele vinha correndo pelos arbustos, sacudindo o punho para mim, seu rosto estava cheio de malevolência.

— Ashlar, você agora abandona o vale depois de destruir tudo! Que a maldição de Janet caia sobre você!

Afinal, eles todos recuaram e se afastaram por um motivo simples. Eu estava me aproximando de uma caverna na encosta da montanha da qual eu simplesmente me havia esquecido.

Sem sequer pensar, eu havia escolhido o caminho que tribos antigas usavam para vir fazer seus cultos. Na época em que os Taltos viviam na planície de Salisbury, essas tribos haviam enchido essa gruta com crânios, e povos posteriores a reverenciavam como um local de cultos secretos.

Em séculos recentes, os camponeses juravam que havia uma porta aberta no interior dessa gruta pela qual se podiam ouvir as vozes do inferno ou os cânticos do paraíso.

Haviam sido vistos espíritos no bosque próximo, e às vezes bruxas enfrentavam nossa ira para chegar até ali. Embora houvesse época em que cavalgávamos morro acima em bandos temíveis para expulsá-las, nos últimos duzentos anos não havíamos nos importado muito com elas.

Eu mesmo só subira por ali umas duas vezes na minha vida inteira, mas não tinha absolutamente nenhum medo da caverna. E, quando vi que os Pequenos estavam com medo, senti alívio por me livrar deles.

No entanto, à medida que meu cavalo seguia pela trilha, aproximando-se cada vez mais da caverna, vi luzes bruxuleantes a dançar na escuridão total. Descobri que havia uma tosca moradia na encosta do morro, talvez feita de uma caverna encoberta com pedras, que deixavam lugar apenas a uma porta e uma janela, além de um buraco mais ao alto pelo qual saía a fumaça.

A luz tremeluzia pelas fendas e gretas na parede tosca.

E lá, alguns metros acima, estava o caminho para a grande gruta, uma boca escancarada totalmente escondida agora por pinheiros, carvalhos e teixos.

Quis passar ao largo da pequena casa assim que a vi. Qualquer pessoa que se dispusesse a viver na proximidade daquela gruta tinha de representar perigo.

A caverna em si me deixava ligeiramente intrigado. Por crer em Cristo, apesar de ter desobedecido ao meu superior, eu não temia os deuses pagãos. Não acreditava neles. Mas estava indo embora de casa. Podia nunca mais voltar. E me perguntei se não deveria visitar a caverna, talvez até mesmo descansar ali um pouco, escondido e protegido dos Pequenos.

 

— AGORA QUERO OUE VOCÊS DUAS ME OUÇAM — disse ela, sem tirar os olhos da estrada. — É aqui que passo a assumir o comando. Estive pensando nisso desde que nasci, e sei exatamente o que precisamos fazer. Vovó está dormindo ai atrás?

— Como um anjo — disse Mary Jane, do assento retrátil, onde estava deitada de lado, para poder ver Morrigan à direção.

— O que você quer dizer com isso de assumir o comando? —perguntou Mona.

— Exatamente o que eu disse — respondeu Morrigan, com as duas mãos no alto do volante, segurando-o sem tensão já que estavam indo a cento e quarenta por hora há algum tempo, e era óbvio que nenhum policial ia pará-las. — Fiquei prestando atenção enquanto vocês falam sem parar, e vi que vocês estão presas a aspectos que são totalmente irrelevantes, meras tecnicalidades morais.

Os cabelos de Morrigan estavam embaraçados e caíam sobre seus ombros e braços. Um vermelho mais vivo, ao que Mona pudesse avaliar, mas na mesma linha do seu próprio. E a semelhança extraordinária entre seus rostos era suficiente para deixar Mona totalmente perturbada se ela se permitisse ficar olhando muito tempo para Morrigan. Quanto à voz, bem, o maior perigo era óbvio, Morrigan podia fingir ser Mona ao telefone. Havia feito isso sem problemas quando tio Ryan finalmente ligou para Fontevrault. Que conversa mais hilariante! Ryan perguntara a "Mona" com muito tato se ela estava tomando anfetaminas e lhe relembrou delicadamente que qualquer medicação que tomasse poderia afetar o bebê. Mas a questão era que tio Ryan não chegou a imaginar que a pessoa cheia de perguntas e de fala veloz no outro lado da linha não fosse Mona.

Elas estavam todas com roupas de domingo de Páscoa, como dissera Mary Jane antes. Até Morrigan, para quem haviam comprado um enxoval nas lojas da moda em Napoleonville. O chemisier de algodão branco teria chegado aos tornozelos de Mona ou até mesmo de Mary Jane. Em Morrigan, chegava até os joelhos. A cintura estava bem apertada e o decote simples em vê, símbolo do bom senso conservador, no seu busto bastante bem desenvolvido passava a ser um decote vertiginoso. Era a velha história. Ponha um vestido simples e sem graça numa menina de beleza resplandecente, e ele atrai mais olhares do que algo folheado a ouro ou do que zibelina. Os sapatos não haviam sido problema, depois que elas concluíram que seu tamanho era 42. Um número a mais, e ela teria precisado usar sapatos masculinos. Por sorte, estava com saltos altos e finos e havia dançado em volta do carro durante uns quinze minutos, até que Mona e Mary Jane a seguraram com firmeza e lhe disseram que se calasse, que não se mexesse e  que entrasse no carro. Foi então que ela pediu para dirigir. Bem, não era a primeira vez...

Vovó, no melhor terninho de malha de algodão da Wal-Mart, dormia debaixo do seu cobertor térmico azul-claro. O céu estava azul, as nuvens de um branco esplêndido. Mona não estava mais se sentindo mal, graças a Deus, só fraca. Uma fraqueza desanimada.

Agora estavam a meia hora de Nova Orleans.

— Que tipo de tecnicalidade moral? — perguntou Mary Jane. — É uma questão de segurança, você sabe, e o que você quer dizer com "assumir o comando"?

— Bem, estou falando de algo inevitável — respondeu Morrigan. — Mas deixem que eu transmita a idéia aos poucos.

Mona riu.

— Ah, está vendo? Mamãe é esperta o suficiente para saber, é claro, para ver o futuro como uma bruxa veria, imagino eu. Mas você, Mary Jane, insiste em ser uma mistura de tia cheia de reprovações e de advogada do diabo.

— Você tem certeza de que sabe o significado de todas essas palavras?

— Minha cara, já absorvi todo o conteúdo de dois dicionários. Sei todas as palavras que minha mãe sabia antes de eu nascer, e um grande número das que meu pai sabia. De que outra maneira eu poderia saber o que é uma chave de boca e o motivo pelo qual a mala deste carro contém um conjunto completo delas?

"'Agora, voltando à crise atual, para onde vamos? Para que casa? E toda essa bobagem?"

Imediatamente ela respondeu a suas próprias perguntas.

— Bem, na minha opinião, para que casa nós vamos não é assim tão importante. Amélia Street seria uma péssima idéia, simplesmente porque está repleta de gente, como vocês já descreveram algumas vezes. E, embora ela seja a casa de mamãe num certo sentido, na realidade ela pertence à Velha Evelyn. Fontevrault fica muito longe. Não vamos voltar, não importa o que aconteça! Um apartamento é um esconderijo que eu, na minha ansiedade e expectativa, não consigo tolerar! Não vou escolher nenhuma moradia pequena e impessoal obtida por meio de imposturas. Não posso viver numa caixa. First Street de fato pertence a Michael e Rowan, é verdade, mas Michael é meu pai! O que precisamos está em First Street. Preciso do computador de Mona, dos seus registros, dos papéis que Lasher deixou escritos, de quaisquer anotações que meu pai possa ter feito no seu exemplar do famoso arquivo da Talamasca, tudo que está atualmente naquela casa e a que Mona tem livre acesso. Bem, não os escritos de Lasher, mas, mais uma vez, isso é um detalhe. Eu reivindico os direitos da raça de se apossar dessas anotações. E não tenho o menor escrúpulo quanto a ler o diário de Michael, se eu o encontrar. Agora, não comecem a berrar, vocês duas!

— Bem, para começar, vamos mais devagar! — gritou Mary Jane. — Além do mais, eu tenho uma estranha sensação nos ossos pelo jeito que você pronuncia essas palavras: assumir o comando.

— Na minha presença, cada uma de vocês fez com que a outra se lembrasse muitas vezes de que a questão principal é a sobrevivência — retrucou Morrigan. — Eu preciso desse conhecimento, diários, arquivos, registros, para sobreviver. E First Street está vazia agora, isso nós sabemos. E podemos nos preparar em paz para receber Michael e Rowan de volta. Por isso, aqui e agora estou tomando a decisão de que é para lá que nós vamos, pelo menos até que Michael e Rowan estejam de volta e que nós os tenhamos posto a par da situação. Se meu pai nessa hora quiser me banir da casa, procuraremos uma residência adequada. Ou colocamos em operação o plano de mamãe de obter fundos para a total restauração de Fontevrauli. Agora, vocês gravaram tudo isso na memória?

— Há armas naquela casa — disse Mary Jane. — Ela já lhe disse isso. Armas no andar de cima, armas no andar de baixo. Essas pessoas vão ficar apavoradas com você. A casa é deles. Eles vão começar a berrar! Você não compreende? Eles acham que os Taltos são nocivos, perversos! Que querem dominar o mundo!

— Eu sou uma Mayfair! — protestou Morrigan. — Sou filha do meu pai e da minha mãe. Para o inferno com as armas. Eles não vão apontar uma arma para mim. Isso é perfeitamente absurdo, e vocês estão se esquecendo de que eles não estão esperando me ver por lá e estarão totalmente despreparados quando vocês os revistarem à procura de armas, como se fosse possível que eles estivessem portando armas. Além do mais, vocês estarão lá, as duas, para me proteger, falar por mim e emitir terríveis avisos no sentido de que eles não devem me ferir. E por favor, lembrem-se por mais de cinco minutos seguidos de que eu tenho uma língua na boca, com a qual posso me proteger, de que nada nesta situação é análogo a qualquer coisa que tenha acontecido antes, e de que é melhor que nos instalemos lá, onde eu posso examinar tudo que preciso examinar, incluindo-se a famosa Victrola e o quintal. Lá vão vocês de novo. Parem de gritar, as duas!

— Só não vá desenterrar corpos! — exclamou Mona.

— Isso, deixe aqueles corpos debaixo da árvore! — ordenou Mary Jane.

— Perfeitamente, é o que farei. Já lhes disse. Nada de desenterrar cadáveres. Péssima idéia. Morrigan pede desculpas. Morrigan não vai fazer isso. Morrigan prometeu a Mona e a Mary Jane. Não temos tempo para corpos! Além do mais, o que esses corpos representam para mim? — Morrigan abanou a cabeça, fazendo com que sua cabeleira ruiva caísse em cachos, e depois a sacudiu num movimento curto, vigoroso e determinado. — Sou filha de Michael Curry e Mona Mayfair. E é isso que importa, não é?

— Nós estamos apavoradas, só isso! — explicou Mary Jane. — Agora, se você der meia-volta agora mesmo e voltarmos para Fontevrault...

— Não, Não, sem as bombas adequadas, os andaimes, os macacos e a madeira para endireitar aquela casa. Claro que vou ter um vínculo sentimental com ela minha vida inteira, mas a esta altura simplesmente não posso ficar lá! Estou morrendo de vontade de ver o mundo, será que vocês duas não entendem? O mundo não é a Wal-Mart e Napoleonviile, mais as últimas edições da Time, Newsweek c The New Yorker. Não posso ficar esperando muito mais. Além disso, ao que nós saibamos, eles agora estão em casa, Rowan e Michael, e eu sou a favor de uma apresentação imediata. Sem dúvida eles deixarão os registros à minha disposição, mesmo que no fundo do seu coração tenham optado pelo extermínio.

— Eles não estão em casa — disse Mona. — Ryan falou em mais dois dias.

— Pois bem, então, por que vocês duas estão com tanto medo?

— Eu não sei — exclamou Mona.

— Então é para First Street que vamos, e não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre o assunto. Deve haver um quarto de hóspedes não? Vou ficar nele. E quero que todas essas altercações parem. Nós, então, poderemos obter uma casa segura para nós, sem pressa. Além do mais, eu quero ver essa casa. Quero ver a casa que as bruxas construíram. Será que nenhuma de vocês duas compreende o grau no qual meu ser e meu destino estão vinculados a essa casa, essa casa destinada a perpetuar a linhagem com a espiral em dupla hélice? Ora, se retirarmos a maior parte do sentimento que prejudica a clareza, fica perfeitamente óbvio que Stella, Antha e Deirdre morreram para que eu tivesse vida. E os sonhos literais e pretensiosos desse espírito do mal, esse Lasher, resultaram numa encarnação que ele nunca pôde prever, mas que agora é o meu destino. Sou obstinada pela vida, sou obstinada por firmar posição!

— Está bem — disse Mona. — Mas você tem de se comportar, não pode falar com os seguranças e não pode voltar a atender o telefone.

— É, o jeito que você sai agarrando o telefone quando ele toca — disse Mary Jane —, absolutamente qualquer telefone, é simplesmente coisa de louco.

Morrigan deu de ombros.

— O que vocês não percebem é que cada dia representa para mim uma enorme série de realizações. Não sou a garota de dois dias atrás! — Ela se encolheu de repente e deu um pequeno gemido.

— O que foi? O que houve? — perguntou Mona.

— As lembranças, o jeito com que chegam. Mãe, ligue o gravador, por favor. Sabe, é a coisa mais estranha, o jeito com que algumas se desfazem e outras não. E é como se fossem lembranças de muitas pessoas, pessoas como eu, quer dizer. Eu vejo Ashlar pelos olhos de todos... O vale é o mesmo vale do arquivo da Talamasca, eu sei. Donnelaith. Estou ouvindo Ashlar dizer esse nome.

— Fale alto para que eu possa ouvir — disse Mary Jane.

— São as pedras novamente. Ainda não estamos no vale. Estamos perto do rio. E os homens estão arrastando pedras para cima das toras que rolam. Posso lhes dizer que não há acidentes neste mundo. A natureza é suficientemente aleatória e abundante para que as coisas aconteçam quase que inevitavelmente. Isso pode não fazer sentido a principio, mas o que estou querendo dizer é o seguinte: que, de dentro de toda a confusão e dor de bruxos resistentes e desafiadores, surgiu o momento em que esta família deverá se tomar uma família de humanos e Taltos. Abatem-se sobre mim sentimentos estranhíssimos. Preciso ir até lá, ver o lugar. E o vale. O círculo é menor, mas é nosso também. Ashlar consagrou os dois círculos, e as estrelas lá em cima estão na disposição do inverno. Ashlar quer que as florestas sombrias nos protejam, que fiquem entre nós e o mundo hostil. Estou cansada. Com sono.

— Não largue a direção — disse Mary Jane. — Descreva esse homem, Ashlar, mais uma vez. Ele é sempre o mesmo, quer dizer, nos dois círculos e nas duas épocas?

— Acho que vou chorar. Não paro de ouvir a música. Precisamos dançar quando chegarmos lá.

— Lá onde?

— First Street, qualquer lugar. O vale. A planície. Precisamos dançar em círculo. Vou lhes mostrar. Vou cantar as canções. Sabem de uma coisa? Algo de terrível aconteceu mais de uma vez ao meu povo! Morte e sofrimento tornaram-se a norma. Só os muito hábeis conseguem evitá-los. Os muito hábeis vêem os seres humanos como são. O resto de nós não enxerga.

— Ele é o único que tem nome?

— Não, é só a pessoa cujo nome é conhecido por todos, todos. Como um ímã atraindo as emoções de todos. Não quero...

— Acalme-se — disse Mona. — Quando chegarmos, você poderá escrever tudo isso de novo. Poderá ter paz e tranqüilidade, dois dias inteiros antes que eles cheguem.

— E quem é que eu serei a essa altura?

— Eu sei quem você é — respondeu Mona. — Eu sabia quem você era quando você estava dentro de mim. Você é Michael e eu, e mais alguma coisa, algo de poderoso e fantástico, além de ser parte de todos os outros bruxos também.

— Fale, querida — disse Mary Jane. — Fale-nos dele e de todos fazendo as pequenas bonecas de calcário. Quero ouvir mais sobre essa história de enterrar as bonecas junto à base das pedras. Você se lembra do que disse?

— Acho que me lembro. Eram bonecas com seios e pênis.

— Bem, isso você nunca mencionou antes.

— Eram bonecas sagradas. Mas devia haver um objetivo nisso, uma redenção para essa dor, eu... eu quero que as lembranças me liberem, mas não antes de eu extrair tudo o que tiver valor nelas. Mary Jane, meu amor, você poderia apanhar aí um lenço de papel e enxugar meus olhos? Estou dizendo isso para que fique registrado. Prestem atenção. Isso é fluxo de consciência. Estamos levando a pedra comprida para a planície. Todos vamos dançar e cantar á sua volta por muito tempo antes que comecemos a construir os andaimes com toras, por meio dos quais faremos com que a pedra fique em pé. Todos estiveram esculpindo bonecas. Não se pode dizer qual é a diferença. Cada boneca de algum modo é parecida com todas as outras. Estou com sono. Estou com fome também. Quero dançar. Ashlar está convocando a atenção de todos.

— Mais quinze minutos e estaremos entrando pelo portão dos fundos — disse Mary Jane. — Por isso, mantenha abertos esses olhinhos chorosos.

— Não diga uma palavra aos seguranças — recomendou Mona. — Eu me encarrego deles. Do que mais você se lembra? Estão trazendo a pedra para a planície. Qual é o nome da planície? Diga na língua deles.

— Ashlar a chama simplesmente de "terra plana'', de "terra segura" ou de "pradaria". Para pronunciar a palavra corretamente, eu teria de dizê-la muito rápido. Para vocês ela soaria como um assobio. Mas todos conhecem essas pedras. Sei que todos as conhecem. Meu pai as conhece e as viu. Meu Deus, vocês imaginam que exista outro dos meus em algum lugar no mundo inteiro? Vocês não acham que deve existir? Outro dos meus além daqueles que estão enterrados debaixo da árvore? Eu não posso ser a única viva.

— Acalme-se, meu amor — disse Mary Jane. — Você vai ter muito tempo para descobrir.

— Nós somos sua família — disse Mona. — Lembre-se disso. Não importa o que mais você seja, você é Morrigan Mayfair, designada por mim para ser a herdeira do legado. E nós temos sua certidão de nascimento, sua certidão de batismo e quinze fotografias Polaroid com minha palavra solene numa etiqueta colada no verso de cada uma.

— Não sei bem por que isso parece ser insuficiente — disse Morrigan, agora chorando, fazendo biquinho como um bebê e com as lágrimas a forçando a piscar. — Parece desesperadamente forjado, talvez irrelevante em termos legais. — O automóvel seguia adiante, na sua própria faixa, mas elas haviam chegado a Metairie. O tráfego estava ficando pesado. — Talvez seja necessário um vídeo. O que você acha, mãe? Mas nada vai acabar sendo o bastante, sem amor, não é? Por que estamos sequer falando do aspecto legal?

— Porque ele é importante.

— Mas, mãe, se eles não amarem...

— Morrigan, faremos um vídeo em First Street, assim que chegarmos lá. E você terá seu amor, ouça o que lhe digo. Vou consegui-lo para você. Não vou deixar nada dar errado desta vez.

— O que a faz pensar assim, considerando-se todas as suas reservas, temores e desejos de me esconder de olhos curiosos?

— Eu amo você. É por isso que penso assim.

As lágrimas brotavam dos olhos de Morrigan como se caíssem de uma calha de chuva. Mona mal conseguia agüentar.

— Eles nem precisarão usar uma arma, se não me amarem — disse Morrigan.

Uma dor indescritível, minha filha, isso.

— Uma ova — disse Mona, procurando parecer muito calma, muito controlada, muito mulher. — Nosso amor é suficiente, e você sabe disso! Se você tiver de esquecê-los, vai esquecê-los. Nós bastamos. Você não ouse dizer que não bastamos, que não somos o suficiente por enquanto, está me ouvindo? — Ela olhava fixamente para essa gazela graciosa, que chorava e dirigia ao mesmo tempo, ultrapassando todos os retardatários do caminho. Esta é a minha filha. A minha sempre foi uma ambição monstruosa, inteligência monstruosa, coragem monstruosa. E agora uma filha monstruosa. Mas qual é mesmo a sua natureza? Além de brilhante, impulsiva, amorosa, cheia de entusiasmo, hipersensível a mágoas e desfeitas e dada a crises de fantasia e de enlevo? O que ela vai fazer? O que representa lembrar-se de fatos remotos? Significa que a pessoa possui esses fatos e sabe deles? O que pode resultar disso? Sabe, no fundo eu não me importo, pensou. Quer dizer, agora não, não quando tudo está começando. Não quando tudo é tão emocionante.

Ela imaginou sua menina alta atingida, viu o corpo se encolher, suas próprias mãos estendidas para protegê-la, levando a cabeça aos seus seios. Não ousem fazer-lhe mal.

Tudo era tão diferente agora.

— Está bem, está bem — aparteou Mary Jane. — Deixe que eu dirijo. O trânsito aqui está realmente ficando pesado.

— Você enlouqueceu, Mary Jane — exclamou Morrigan, ajeitando-se para a frente no banco e apertando o acelerador para ultrapassar o carro que a ameaçava pela esquerda. Ela ergueu o queixo e limpou as lágrimas com as costas da mão. — Vou levar este carro de volta para casa.Eu não perderia isso por nada!

 

PERGUNTEI-ME COMO SERIA o interior da caverna. As vozes do inferno eu não tinha nenhum desejo de ouvir, mas e os cânticos do paraíso?

Refleti um pouco e decidi passar direto. Tinha pela frente uma longa viagem. Era cedo demais para descansar. Eu queria me afastar dali.

Estava a ponto de partir e dar a volta por essa parte da encosta, quando uma voz me chamou.

Era uma voz de mulher, muito suave e parecia não ter um ponto de origem.

— Ashlar, estive esperando por você.

Voltei-me, olhando para um lado e para o outro. A escuridão era amedrontadora. Os Pequenos, pensei, uma das suas mulheres, decidida a me seduzir. Mais uma vez, firmei o propósito de seguir meu caminho, mas o chamado se repetiu, suave como um beijo.

— Ashlar, rei de Donnelaith, estou à sua espera.

Olhei para o pequeno casebre, com suas luzes tremeluzindo na escuridão, e ali vi uma mulher parada. Seus cabelos eram vermelhos, e a pele muito pálida. Era humana e bruxa. E tinha o leve cheiro das bruxas, o que podia significar, ou não, que ela teria sangue dos Taltos no seu.

Eu deveria ter seguido em frente. Eu sabia. As bruxas sempre representam problemas. Mas essa mulher era muito linda e, com as sombras, meus olhos me iludiam de tal forma que ela lembrava até certo ponto nossa falecida Janet.

Quando ela veio se aproximando de mim, vi que tinha os olhos verdes e severos de Janet e seu nariz reto, assim como uma boca que parecia ter sido esculpida no mármore. Tinha os mesmos seios pequenos e muito redondos, e um pescoço longo e gracioso. Some-se a isso seus lindos cabelos ruivos, o que sempre foi uma sedução e um prazer para os Taltos.

— O que você quer de mim? — perguntei.

— Venha se deitar comigo. Entre na minha casa. Eu o estou convidando.

— Você está louca. Sabe o que eu sou. Se você se deitar comigo, morre.

— Não. Eu não. — E ela riu, como tantas bruxas antes dela. — Eu terei o gigante com você.

Abanei a cabeça.

— Vá embora, e fique grata por eu não ser tentado com facilidade. Você é linda. Outro Taltos poderia se aproveitar. Quem a protegeria?

— Venha — disse ela. — Entre na minha casa- — Ela se aproximou. E, aos fracos raios de luz que atravessavam os galhos, àquela luz longa e muito dourada do final do dia, vi seus dentes brancos e lindos, vi seus seios por baixo da fina blusa de renda e acima do cinto de couro muito apertado.

Bem, não havia mal nenhum se eu só me deitasse com ela, se eu só levasse meus lábios aos seus seios, pensei. Mas a verdade era que ela era bruxa. Por que eu me permitia sequer pensar nisso?

— Ashlar — disse ela. — Todos nós conhecemos sua história. Sabemos que você é o rei que traiu sua gente. Você não quer perguntar aos espíritos da caverna como poderia ser perdoado?

— Perdoado? Só Cristo pode perdoar meus pecados, filha. Vou embora.

— Que poder tem Cristo para mudar a maldição que Janet lançou contra você?

— Não me provoque mais — disse eu. Eu a desejava. E quanto mais irritado ficava, menos me importava com ela.

— Entre comigo. Venha beber a infusão que está ali junto ao fogo, depois entre na caverna e verá os espíritos que tudo sabem, rei Ashlar.

Ela se acercou do cavalo e pôs a mão na minha, e eu senti o desejo aumentar dentro de mim. Tinha os olhos penetrantes das bruxas, e a alma de Janet parecia estar olhando por eles.

Eu ainda não me decidira quando ela já me ajudava a desmontar do cavalo e passamos a caminhar juntos pelo mato fechado de samambaias e sabugueiros.

O casebre era um lugar fétido e apavorante! Não tinha janelas. Acima do fogo, uma chaleira estava pendurada num longo espeto. Mas a cama estava limpa e arrumada com lençóis bordados com primor.

— Digna de um rei — disse ela.

Olhei à minha volta e vi um portal aberto e escuro em frente àquele pelo qual havíamos entrado.

— Essa é a entrada secreta da caverna — disse ela. Beijou minha mão de repente e me puxou para a cama. Foi até a chaleira e encheu uma caneca tosca de barro com o caldo.

— Beba, Majestade. E os espíritos da caverna irão vê-lo e ouvi-lo.

Ou eu irei vê-los e ouvi-los, pensei, pois só Deus sabe o que ela pôs na bebida: ervas e óleos que enlouqueciam as bruxas e as deixavam capazes de dançar como Taltos ao luar. Eu conhecia seus ardis.

— Beba, é doce — disse ela.

— Eu sei. Sinto o cheiro do mel.

E enquanto eu estava olhando para a caneca, resolvido a não beber uma gota sequer, vi que ela sorria. E quando retribuí seu sorriso, percebi que estava erguendo a caneca e que de repente bebia um grande gole. Fechei meus olhos.

— E se? — sussurrei. — E se houver mesmo magia na bebida? — Isso me divertia ligeiramente e eu já sonhava.

— Agora deite-se comigo — disse ela.

— Para o seu bem, não, respondi, mas ela já estava tirando minha espada e eu permiti. Levantando-me apenas o suficiente para passar a tranca na porta, caí de novo na cama e a empurrei para debaixo de mim. Soltei seus seios de dentro da blusa e achei que ia chorar só de vê-los. Ah, o leite dos Taltos, como eu o queria. Ela não era mãe, essa bruxa, não teria leite nenhum, nem dos Taltos nem dos humanos. Mas os seios, os seios deliciosos, como eu queria sugá-los, morder os bicos e puxá-los, lambê-los com a minha língua.

Bem, isso não lhe fará mal nenhum, pensei, e quando ela estiver úmida e cheia de desejo, vou colocar meus dedos entre seus secretos lábios peludos e fazer com que estremeça.

Comecei imediatamente a chupá-la. Comecei a beijá-la e a me aconchegar nela. Sua pele era firme e jovem, e cheirava a juventude. E eu adorava o som dos seus suspiros delicados, a sensação da pele branca do seu ventre no meu rosto e a visão dos seus pêlos, quando lhe tirei a saia, e descobri que eram vermelhos, como os cabelos, flamejantes e levemente crespos.

— Bruxa linda, linda — sussurrei.

— Quero que me possua, rei Ashlar — disse ela.

Chupei seus seios com força, deixando que meu pau sofresse, pensando que, não, eu não queria matá-la. Ela é louca, mas não merece morrer por isso. No entanto, ela o puxou para o meio das suas pernas, apertou-lhe a ponta de encontro aos seus pêlos e, de repente, como muitos homens já fizeram, resolvi que, se ela queria assim, eu faria o que ela estava me pedindo.

Penetrei-a com violência, com tão pouco cuidado quanto eu teria tido com uma Taltos, dominando-a e adorando. Ela ficou corada, chorava e chamava por espíritos cujos nomes eu desconhecia.

Tudo terminou imediatamente. Sonolenta, ela olhou para mim do travesseiro, com um sorriso de triunfo nos lábios.

— Beba — disse ela. — E entre na caverna. — E fechou os olhos para dormir.

Acabei com o resto da bebida. Por que não? Eu já havia chegado a esse ponto. E se houvesse alguma coisa naquela escuridão remota, um último segredo que minha própria terra de Donnelaith tivesse para me dar? Deus sabia que o futuro me reservava provações, dor e prováveis decepções.

Saí da cama, voltei a pôr minha espada no lugar, afivelando tudo corretamente para estar pronto caso enfrentasse qualquer problema, e depois, pegando um tosco bolo de cera com um pavio que ela mantinha à mão. Acendi o pavio e entrei na caverna por esse portal secreto.

Fui subindo sem parar na escuridão, tateando ao longo da parede de terra e, afinal, cheguei a um local fresco e aberto. Dali, muito ao longe, eu via um pouco de luz que se infiltrava, vindo do mundo lá fora. Eu estava acima da entrada principal da caverna.

Continuei subindo. A luz ia à minha frente. Com um sobressalto, parei. Eu via crânios que me fitavam. Fileiras e mais fileiras de crânios! Alguns deles tão velhos que não eram mais do que pó.

Esse havia sido um cemitério, raciocinei, daquela gente que guarda apenas a cabeça dos mortos e acredita que os espíritos falarão através dessas cabeças, se receberem o tratamento adequado.

Disse a mim mesmo que não me assustasse sem motivo. Ao mesmo tempo, eu me sentia curiosamente enfraquecido.

— Foi a bebida que você tomou — murmurei. — Sente-se e descanse.

Foi o que fiz, encostando-me na parede à minha esquerda, a olhar para o grande compartimento, com suas inúmeras máscaras da morte a sorrir para mim.

A vela improvisada rolou da minha mão, mas não se apagou. Ela foi parar na terra. E, quando tentei alcançá-la, não consegui.

Depois, lentamente, ergui os olhos e vi minha falecida Janet.

Ela vinha na minha direção passando muito lentamente pela câmara dos crânios, como se não fosse real, mas uma figura num sonho.

— Só que eu estou acordado — disse eu em voz alta.

Vi que ela fazia que sim e sorria. Ela parou diante da luz fraca da vela.

Estava usando a mesma túnica cor-de-rosa que usava no dia em que fora queimada, e vi, então, com horror, que a seda havia sido parcialmente consumida pelo fogo, e que sua pele branca aparecia pelos rasgos irregulares no tecido. E seus longos cabelos louros estavam chamuscados e enegrecidos nas pontas; e cinzas manchavam seu rosto, suas mãos e seus pés descalços. No entanto, ela estava ali, viva, perto de mim.

— O que houve, Janet? O que quer me dizer agora?

— Ah, mas o que é que você me diz, meu amado rei? Eu o acompanhei do enorme circulo nas terras do sul até Donnelaith, e você me destruiu.

— Não me amaldiçoe, belo espírito. — Eu me pus de joelhos. — Dê-me aquilo que ajude a nós todos! Eu procurei o caminho do amor. E ele nos levou à desgraça.

Houve uma alteração na sua expressão, um ar de perplexidade e depois de percepção.

Ela perdeu seu sorriso simples e, tomando da minha mão, disse as seguintes palavras, como se elas fossem nosso segredo.

— Deseja encontrar outro paraíso, meu senhor? Deseja construir outro monumento como o que deixou na planície para todo o sempre? Ou preferiria descobrir uma dança tão simples e tão cheia de graça que todos os povos do mundo pudessem dançá-la?

— A dança, Janet, eu preferiria. E o nosso seria um imenso circulo vivo.

— E deseja criar uma música tão melodiosa que nenhum homem ou mulher de qualquer espécie possa jamais resistir a ela?

— Desejo — respondi. — E nós cantaríamos para sempre.

Seu rosto iluminou-se e os lábios se entreabriram. Com uma leve expressão de espanto, ela voltou a falar.

— Então, fique com a maldição que lhe dou.

Comecei a chorar.

Ela fez um gesto para que me calasse, mas com paciência. Em seguida, recitou este poema ou canção na voz suave e rápida dos Taltos.

 

Sua busca está condenada; é longa a estrada,

O inverno está apenas começando.

Hão de desaparecer no mito esses tempos de dor,

E as lembranças perderão seu significado

Mas, quando afinal os seus braços você vir,

Estendidos em audacioso perdão,

Não recue diante do que a terra faria

Quando a cultivam os ventos e a chuva.

A semente brota; abrem-se as folhas,

Os galhos produzem flores,

Que um dia as urtigas tentaram matar,

E homens fortes procuraram pisar.

A dança, o círculo e a música

Serão a chave do paraíso,

Como costumes, um dia desdenhados pelos poderosos,

Acabam sendo sua bênção final.

 A caverna foi escurecendo; a pequena vela estava apagando. E, com um leve aceno de despedida, ela sorriu e desapareceu completamente.

Parecia que suas palavras estavam gravadas na minha mente como que entalhadas nas pedras chatas do círculo. E eu as vi e decorei para todo o sempre, mesmo enquanto se desfazia a última reverberação da sua voz.

A caverna estava escura. Dei um grito e tateei em vão pela vela. Mas, pondo-me rapidamente de pé, vi que meu farol era o fogo que ardia no pequeno casebre lá embaixo ao final do túnel pelo qual eu havia subido.

Enxuguei meus olhos, dominado pelo amor a Janet e por uma terrível confusão de dor e ternura, e me apressei a entrar no quarto pequeno e aquecido. Vi, então, a bruxa de cabelos vermelhos ali, no travesseiro.

Por um instante, era Janet! E não esse espírito delicado que acabava de me fitar com olhos amorosos e versos falados que me prometiam algum perdão.

Era a queimada, a mulher sofrendo moribunda, com os cabelos cheios de pequenas chamas, os ossos em combustão. Em agonia, ela arqueou as costas e tentou me alcançar. E, quando dei um grito e estendi a mão para arrancá-las das labaredas, era a bruxa de novo, a mulher de cabelos vermelhos que me levara para sua cama e me dera sua poção.

Morta, lívida, muda para sempre na morte, com o sangue a manchar suas saias franzidas. Seu pequeno casebre, um túmulo; sua lareira, uma luz de vigília.

Fiz o sinal-da-cruz.

Saí correndo dali.

No entanto, não consegui encontrar meu cavalo em parte alguma da floresta escura. E, dentro de instantes, ouvi as risadas dos Pequenos.

Eu estava desnorteado, apavorado pela visão, dizendo orações e maldições. Voltei-me, feroz, contra eles, desafiando-os a se apresentarem, a lutar; e num átimo eu estava cercado. Com minha espada, derrubei dois e pus os outros em fuga, mas não antes que eles tivessem rasgado e arrancado de mim minha túnica verde, meu cinturão de couro e roubado meus poucos pertences. Meu cavalo, também, eles haviam levado.

Um vagabundo, sem nada que me restasse a não ser uma espada, não os persegui.

Segui para a estrada principal por instinto e pelas estrelas, o que um Taltos sempre sabe fazer e, quando a lua nasceu, eu estava caminhando para o sul, para longe da minha terra.

Não voltei o olhar na direção de Donnelaith.

Segui, sim, para a terra do verão, como era chamada, para Glastonbury, e fiquei parado no monte sagrado onde José plantou o pilriteiro. Lavei minhas mãos no Poço do Cálice. Bebi da sua água. Atravessei a Europa para encontrar o papa Gregório nas ruínas de Roma. Segui para Bizâncio e afinal para a Terra Santa.

No entanto, muito antes que minha jornada me levasse sequer ao palácio do papa Gregório, em meio às ruínas esquálidas dos famosos monumentos pagãos de Roma, minha busca no fundo já havia mudado. Eu não era mais um padre. Era um andarilho, um pesquisador, um estudioso.

Eu poderia lhes contar milhares de histórias dessa época, incluindo-se a história de como finalmente vim a conhecer os Pais da Talamasca. Mas não posso dizer que conheço sua história. Sei deles o que vocês sabem, e o que foi confirmado agora que Gordon e seus cúmplices foram descobertos.

Na Europa, eu via Taltos de vez em quando, tanto mulheres quanto homens, imaginei que sempre os veria. Que seria sempre simples, mais cedo ou mais tarde, encontrar alguém da minha espécie e conversar a noite inteira, junto a uma lareira amiga, sobre a terra perdida, a planície, as coisas das quais todos nós nos lembrávamos.

Há mais uma pequena informação que desejo lhes transmitir.

No ano de 1228, retornei afinal a Donnelaith. Fazia muito tempo que não punha os olhos num único Taltos. Começava a sentir um certo medo por isso, e o poema e a maldição de Janet não me saíam da cabeça.

Cheguei como um escocês solitário que perambulava pelo país, ansioso por falar com os bardos das montanhas sobre suas velhas histórias e lendas.

Partiu-me o coração ver que a velha igreja saxônia havia desaparecido e que no seu lugar estava agora uma enorme catedral, junto à entrada de uma grande cidade voltada para o comércio.

Eu havia esperado encontrar a velha igreja. Mas quem poderia não ficar impressionado com essa estrutura monumental e com o castelo enorme e ameaçador dos Condes de Donnelaith que ficava de sentinela sobre todo o vale?

Curvando as costas e puxando bem alto meu capuz para disfarçar minha altura, inclinei-me sobre minha bengala enquanto descia para agradecer por minha torre ainda estar de pé no fundo do vale, ao lado de muitas das torres de pedra construídas pelo meu povo.

Chorei lágrimas de gratidão mais uma vez quando descobri o círculo de pedras, afastado das muralhas, de pé como sempre em meio ao capim alto, símbolos imperecíveis dos dançarinos que outrora ali se reuniam.

O grande choque veio, porém, quando entrei na catedral e, mergulhando a mão na pia de água, ergui os olhos para ver o vitral colorido de Santo Ashlar.

Lá estava minha própria imagem no vidro, em vestes sacerdotais, com os cabelos longos e soltos, como eu costumava usar naquele tempo, a contemplar aqui embaixo meu verdadeiro eu, com olhos escuros tão parecidos com os meus que me assustaram. Atordoado, li a oração inscrita em latim.

 

Santo Ashlar, amado de Cristo

e da Santa Virgem Maria,

Que voltará novamente.

 

Cure os enfermos

Console os aflitos

Amenize as dores

Dos que devem morrer

 

Salve-nos

Da escuridão eterna

Expulse os demônios do vale.

Seja nosso guia

Até a Luz.

 

Por muito tempo, fui dominado pelas lágrimas. Eu não podia compreender como isso podia ter acontecido. Ainda me lembrando de me fingir de aleijado, fui até o altar-mor para fazer minhas orações e depois segui para a taberna.

Ali paguei ao bardo para que cantasse todas as velhas canções que conhecia, e nenhuma delas me era familiar. A língua dos pictos havia desaparecido. Ninguém sabia ler as inscrições nas cruzes no cemitério da igreja.

Mas esse santo, o que o homem poderia me contar a seu respeito, perguntei.

Seria eu realmente escocês, perguntou o bardo.

Será que eu nunca havia ouvido falar do grande rei pagão, Ashlar, rei dos pictos, que havia convertido esse vale inteiro ao cristianismo?

Será que eu nunca havia ouvido falar da fonte mágica através da qual ele realizava seus milagres? Bastava descer o morro para vê-la.

Ashlar, o Grande, havia construído a primeira igreja cristã naquele mesmo lugar, no ano de 586, e depois partiu para Roma na sua primeira peregrinação, sendo assassinado por bandoleiros antes que sequer tivesse deixado o vale.

Dentro do túmulo do santo estavam suas relíquias, o que restara do seu manto ensangüentado, seu cinto de couro, seu crucifixo e uma carta escrita ao próprio santo por nada menos do que São Columba. No escritório da catedral, eu poderia ver um saltério que o próprio Ashlar havia escrito no estilo do famoso mosteiro de lona.

— Ah, agora compreendo tudo — disse eu. — Mas qual é o significado dessa estranha oração e das palavras "que voltará novamente"?

— Ah, bem, aí temos uma história. Vá à Missa amanhã de manhã e olhe bem para o padre que a estiver celebrando. Verá um rapaz de enorme altura, quase tão alto quanto o senhor. E homens assim não são tão raros por aqui. Só que esse é Ashlar que voltou, dizem, e contam uma história fantástica do seu nascimento, de como ele já saiu da mãe falando e cantando, pronto para servir a Deus, tendo visões do Grande Santo e da Santa Batalha de Donnelaith, bem como da bruxa pagã Janet, queimada no fogo enquanto o lugarejo se convertia contra a vontade dela.

— E isso é verdade? — perguntei, mudo de assombro.

Como poderia ser? Um Taltos selvagem, nascido de humanos que não faziam a menor idéia de que carregavam essa semente no sangue? Não, não poderia ter acontecido. Que tipo de humano poderia gerar o Taltos? Ele devia ser um híbrido, fecundado por algum gigante misterioso que havia surgido na noite e copulado com uma mulher amaldiçoada pelos dons de feiticeira, deixando-a com o rebento monstruoso.

— Já aconteceu três vezes na nossa história — disse o bardo. — Às vezes a mulher nem sabe que está grávida; outras vezes está no terceiro ou quarto mês. Ninguém sabe quando a criatura ali dentro vai começar a crescer e se tornar a imagem do santo, de volta para seu povo.

— E quem eram os pais dessas crianças?

— Homens íntegros do clã de Donnelaith, é quem eles eram, pois Santo Ashlar foi o fundador da família. Mas o senhor sabe que são tantas as histórias estranhas nesses bosques. Cada clã tem seu segredo. Não devemos falar nisso aqui, mas de vez em quando nasce uma criança gigante dessas que não sabe nada do santo. Vi com meus próprios olhos um desses, que era uns trinta centímetros mais alto do que o pai instantes depois de deixar a mãe para que ela morresse junto à lareira. Estava nervosíssimo, chorando de medo, sem estar possuído por nenhuma visão de Deus, mas a se lamentar pelo círculo pagão de pedras! Pobre coitado. Chamaram-no de bruxo, de monstro. E o senhor sabe o que fazem com essas criaturas?

— Eles as queimam.

— É — foi a resposta. — É uma coisa terrível de se ver. Especialmente se a pobre criatura for uma mulher. Pois nesse caso ela é considerada filha do demônio, sem julgamento, pois é impossível que seja Ashlar. Mas assim são as montanhas escocesas, e os nossos costumes sempre foram muito misteriosos.

— Você mesmo algum dia pôs os olhos na criatura do sexo feminino? — perguntei.

— Não. Nunca. Mas há quem diga que conheceu alguém que viu uma. Há rumores entre os feiticeiros e aqueles que não largam os costumes pagãos. As pessoas sonham com a possibilidade de unir o macho e a fêmea. Mas não deveríamos estar falando dessas coisas. Nós toleramos as bruxas porque de vez em quando elas podem curar. Mas ninguém acredita nas histórias delas, ou as considera adequadas para ouvidos de cristãos.

— Ah, é, eu posso imaginar muito bem — disse-lhe eu e lhe agradeci.

Não esperei até a missa da manhã para ver o padre alto e estranho.

Captei seu cheiro assim que me aproximei da casa paroquial. E, quando ele veio até a porta, tendo sentido o meu cheiro, ficamos ali parados, olhando um para o outro. Estiquei-me para revelar minha altura real, e é claro que ele nada fizera para disfarçar a sua. Ficamos simplesmente ali. um encarando o outro.

Nele eu vi a velha candura, os olhos quase tímidos, os lábios macios e a pele tão nova e imaculada como a de um bebê. Teria ele realmente nascido de dois seres humanos, dois bruxos poderosos, talvez? Será que ele acreditava no próprio destino?

Nascido lembrando, sim; nascido sabendo, sim. E graças a Deus para ele por se lembrar da época certa: da batalha certa e do local certo. E agora ele seguia a velha profissão que nos haviam designado centenas de anos atrás.

Ele veio na minha direção. Queria falar. Talvez não pudesse acreditar nos próprios olhos, no fato de estar olhando para alguém exatamente igual a ele.

— Padre — perguntei em latim, para que fosse mais provável que ele respondesse —, foi realmente de um pai humano e de uma mãe humana que o senhor nasceu?

— De que outra forma seria? — perguntou ele, nitidamente horrorizado. — Se quiser, vá procurar meus próprios pais. Pergunte a eles. — Ele estava pálido e trêmulo.

— Padre, onde existe uma semelhante sua, do sexo feminino?

— Não existe uma coisa dessas! — protestou ele. Mas agora ele mal podia se controlar para não fugir de mim. — Irmão, de onde você vem? Entre, procure o perdão de Deus para os seus pecados, quaisquer que eles sejam.

— O senhor nunca viu uma mulher da sua espécie?

Ele abanou a cabeça.

— Irmão, sou o escolhido de Deus — explicou. — O escolhido de Santo Ashlar. — Ele baixou a cabeça, com humildade, e eu vi seu rosto corar, pois era óbvio que ele cometera o pecado do orgulho ao anunciar esse fato.

— Adeus, então — disse eu. E o deixei.

Saí da cidade e fui novamente até as pedras. Cantei uma velha canção, deixando meu corpo balançar de um lado para o outro ao vento, e depois segui para a floresta.

O amanhecer estava apenas surgindo atrás de mim quando escalei os montes cobertos de florestas para encontrar a velha gruta. Era um lugar desolado, escuro como havia sido quinhentos anos antes, agora sem nenhum sinal do casebre da bruxa.

Naquele início de claridade, fria e severa como a véspera do inverno, ouvi uma voz que me chamava.

— Ashlar!

Voltei-me e olhei para a mata escura.

— Ashlar, o maldito, eu o estou vendo!

— É você, Aiken Drumm — exclamei. E então ouvi sua risada perversa. Ah, os Pequenos estavam aqui, vestidos de verde para poderem se confundir melhor com as folhas e as samambaias. Vi suas carinhas cruéis.

— Não há nenhuma mulher alta para você por aqui, Ashlar — gritou Aiken Drumm. — Nem haverá jamais. Nenhum homem da sua espécie, mas um padre chorão, nascido de bruxos, que cai de joelhos ao ouvir nossas gaitas. Ande! Venha! Tome uma noivinha, um pedacinho de carne enrugada, e veja o que consegue gerar! E agradeça pelo que Deus lhe der!

Eles haviam começado a bater nos tambores. Eu ouvia o gemido da sua música, dissonante, horrenda e no entanto estranhamente familiar. Depois, vieram as gaitas. Eram as velhas canções que cantávamos, as canções que lhes havíamos ensinado!

— Quem sabe, Ashlar, o maldito, se sua filha com uma de nós nesta manhã não sairá fêmea? Venha conosco. Temos muitas mulherezinhas para diverti-lo. Imagine, uma filha. Sua Majestade Real! E mais uma vez o povo alto dominaria os montes!

Voltei-me e saí correndo pelas árvores, sem parar até ter vencido a passagem e estar mais uma vez na estrada principal.

É claro que Aiken Drumm dizia a verdade. Eu não havia encontrado nenhuma fêmea da minha espécie em toda a Escócia. E era isso o que eu havia vindo procurar.

E o que eu procuraria por mais um milênio.

Eu não acreditava então, naquela fria manhã, que jamais voltaria a pôr os olhos numa Taltos fêmea jovem ou fértil. Ah, quantas vezes nos primeiros séculos eu havia visto minhas semelhantes e me afastado delas. Cauteloso, reservado, eu não queria ter gerado um jovem Taltos para sofrer a confusão deste mundo estranho, nem por todas as caricias deliciosas da nossa terra perdida.

E agora onde estavam elas, essas queridinhas perfumadas?

As velhas, as de cabelos brancos, de hálito fresco, as sem perfume, essas eu havia visto inúmeras vezes e voltaria a vê-las, criaturas perdidas e desesperadas, ou imersas em sonhos de feiticeiras, elas só me deram beijos castos.

Uma vez, em ruas escuras de cidade, captei o perfume penetrante, só para ficar enlouquecido, totalmente incapaz de encontrar as dobras macias de carne quente e secreta de onde o cheiro emanava.

Muitas bruxas humanas eu atraí para a cama, às vezes avisando-as dos perigos do meu abraço, e às vezes não, quando eu acreditava que fossem fortes e capazes de parir minha prole.

Por todo o mundo viajei, com todos os meios, para descobrir a misteriosa mulher eterna de altura notável, com lembranças remotas, que recebe com doces sorrisos os homens que a procuram e que nunca tem filhos.

Ou ela é humana, ou não está absolutamente lá.

Eu chegava tarde demais, no lugar errado ou a peste havia levado a beldade muitos anos antes. A guerra devastou aquela aldeia. Ou ninguém ouviu falar nessa história.

Seria sempre assim?

Há uma abundância de histórias de gigantes na terra: os altos, os belos, os talentosos.

Certamente eles não desapareceram todos! O que aconteceu com aqueles que fugiram do vale? Será que não nascem Taltos fêmeas selvagens no mundo de pais humanos?

Sem dúvida em algum lugar, nas profundas florestas da Escócia, nas selvas do Peru, ou nos desertos nevados da Rússia, deve haver uma família de Taltos, um clã, na sua torre aconchegante e bem defendida. O homem e a mulher tem seus livros, suas lembranças compartilhadas, seus jogos, sua cama, na qual podem beijar e brincar, embora o ato sexual deva, como sempre, ser abordado com reverência.

Meu povo não pode estar extinto.

O mundo é imenso. O mundo não tem fim. Eu decerto não sou o último. Sem dúvida, não foi esse o significado das terríveis palavras de Janet, de que eu deveria vagar através dos tempos, para sempre sem companheira.

Agora vocês conhecem minha história.

Eu poderia contar muitas coisas. Poderia falar das minhas viagens por muitas terras, dos anos que passei em diversas ocupações. Poderia falar dos poucos Taltos machos que conheci ao longo dos anos, das histórias que ouvi sobre o nosso povo perdido que outrora havia vivido nesta ou naquela aldeia fictícia.

A história que se conta é a história que se prefere contar.

E essa é a história que compartilhamos. Rowan e Michael.

Vocês agora sabem como o clã de Donnelaith surgiu. Sabem como o sangue dos Taltos entrou no sangue dos humanos. Conhecem a história da primeira mulher queimada no lindo vale. E o triste relato do lugar ao qual os Taltos trouxeram tanta desgraça, não uma vez, mas repetidamente, se todas as nossas histórias forem história.

Janet, Lasher, Suzanne, seus descendentes, e até mesmo Emaleth.

E agora você percebe, Rowan, que, quando apontou a arma, quando a ergueu e deu os tiros que destruíram aquela criança, a menina que lhe dera seu leite, não foi nenhum ato mesquinho do qual você precise se envergonhar. Foi o destino.

Você nos salvou a nós dois. Talvez tenha salvado a todos nós. Você me poupou do dilema mais terrível que eu jamais poderia experimentar, e que eu talvez não esteja destinado a conhecer.

Seja qual for o caso, não chore por Emaleth. Não chore por uma raça de gente estranha, de olhos doces, já há muito expulsa da terra por uma espécie mais forte. É isso o que acontece na terra, e nós dois pertencemos a ela.

Que outras criaturas estranhas, anônimas, vivem nas cidades e nas selvas do nosso planeta? Já vislumbrei muita coisa. Já ouvi muitas histórias. A chuva e os ventos cultivam a terra, para usar as palavras de Janet. O que mais irá brotar de algum jardim oculto?

Será que agora nós poderíamos viver juntos. Taltos e humanos, no mesmo mundo? Como isso poderia ser possível? Este é um mundo em que as raças humanas guerreiam sem parar, em que as pessoas de uma fé ainda exterminam as pessoas de outra. Guerras religiosas grassam desde o Sri Lanka à Bósnia, desde Jerusalém até cidades e cidadezinhas americanas onde os cristãos ainda, em nome de Jesus Cristo, provocam a morte dos seus inimigos, da sua própria gente e até mesmo de criancinhas.

Tribo, raça, clã, família.

Bem no fundo de nós estão as sementes do ódio ao que é diferente. Não precisamos que nos ensinem essas coisas. Precisamos que nos ensinem a não ceder a elas! Elas estão no nosso sangue; mas na nossa cabeça está a caridade e o amor para superá-las.

E como meu povo pacífico se sairia hoje em dia, se chegasse a voltar, tão bobo agora quanto era naquela época, incapaz de enfrentar a ferocidade do homem, e no entanto apavorando mesmo os humanos mais inocentes com seu franco erotismo? Será que escolheríamos ilhas tropicais nas quais poderíamos realizar nossos jogos sensuais, dançar e cair em transes de canto e dança?

Ou será que o nosso mundo não seria o de passatempos eletrônicos, computadores, filmes, jogos de realidade virtual, de sublimes enigmas matemáticos? Estudos adequados às nossas mentes, com seu amor ao detalhe e sua incapacidade de manter estados irracionais como o da ira ou o do ódio? Será que nos apaixonaríamos pela física quântica do mesmo jeito que outrora nos apaixonamos pela tecelagem? Imagino nossa gente, acordada noite e dia, a acompanhar as trajetórias de partículas através de campos magnéticos em monitores de computador! Quem sabe os progressos que não faríamos, tendo esses brinquedos com que nos ocupar?

Meu cérebro tem o dobro do tamanho do cérebro humano. Eu não envelheço por nenhum calendário conhecido. Minha capacidade para aprender a ciência e a medicina modernas não pode ser imaginada.

E se surgisse entre nós apenas um macho ou uma fêmea com ambição, um Lasher, se me permitem, que quisesse restaurar a supremacia da raça, o que aconteceria? Dentro do período de uma noite, um par de Taltos poderia gerar um batalhão de adultos, prontos para invadir as cidadelas do poder humano, prontos para destruir as armas que os humanos sabem usar com eficácia tão maior, prontos para tomar os alimentos, os líquidos, os recursos deste mundo abundante, para negá-los aos menos mansos, aos menos gentis, aos menos pacientes, em retribuição pelos séculos de domínio sangrento.

É claro que não quero saber dessas coisas.

Não passei meus séculos estudando o mundo físico. Ou o uso do poder. No entanto, quando resolvo alcançar alguma vitória só minha, essa empresa que vocês estão vendo, o mundo recua diante de mim como se seus obstáculos fossem de papel. Meu império, meu mundo, é feito de brinquedos e dinheiro. Mas como teria sido muito mais fácil fazê-lo de medicamentos para acalmar o macho humano, para diluir a testosterona nas suas veias e fazer calar seus gritos de guerra para sempre.

E imaginem, se quiserem, um Taltos com uma devoção verdadeira. Não um sonhador que passou seus curtos anos de vida em terras nebulosas, nutrido com poesia pagã, mas um visionário que, fiel aos princípios do Cristo, decidisse que a violência deveria ser aniquilada, que a paz na terra valeria qualquer sacrifício.

Imaginem as legiões de recém-nascidos que se dedicariam a essa causa, os exércitos criados para pregar o amor em cada aldeia e exterminar, literalmente, todos aqueles que falassem contra o amor.

Afinal, o que eu sou? Um depósito de genes que poderiam fazer o mundo desmoronar? E o que vocês são, meus bruxos Mayfair? Vocês vieram trazendo esses genes pelos séculos afora para que finalmente pudéssemos pôr um fim ao Reino de Cristo com nossos filhos e filhas?

A Bíblia dá um nome a isso, não dá? A besta, o demônio, o anticristo.

Quem tem coragem para uma glória dessas? Poetas velhos e idiotas que ainda vivem em torres e sonham com rituais no penhasco de Glastonbury para renovar o mundo.

E mesmo para aquele velhote maluco, aquele bobo decrépito, o assassinato não era o primeiro requisito para sua idéia?

Eu derramei sangue. Ele agora está nas minhas mãos em nome da vingança, um modo patético de curar uma ferida, mas um modo ao qual recorremos repetidamente na nossa aflição. A Talamasca está inteira novamente. Não valeu o preço, mas está acabado. E nossos segredos estão em segurança por enquanto.

Nós somos amigos, vocês e eu, espero. E nunca prejudicaremos um ao outro. Posso estender minhas mãos no escuro. Vocês podem pedir minha ajuda, e eu responderei.

Mas, e se algo de novo pudesse acontecer? Algo inteiramente novo? Acho que visualizo, acho que imagino... Mas depois ele me escapa.

Não sei a resposta.

Sei que nunca incomodarei sua bruxa de cabelos vermelhos, Mona. Nunca perturbarei nenhuma das suas poderosas bruxas. Muitos séculos passaram desde que o desejo ou a esperança me iludiram a cair nessa aventura.

Estou só. E, se fui amaldiçoado, já me esqueci.

Gosto do meu império de objetos pequenos e lindos. Gosto dos brinquedos que ofereço ao mundo. As bonecas de mil faces são minhas filhas.

Em termos reduzidos, elas são minha dança, meu círculo, minha canção. Símbolos da eterna diversão; obra talvez dos céus.

 

E O SONHO SE REPETE. Ela sai da cama, desce a escada. ¨Emaleth!¨ A pá está debaixo da árvore. Quem ia se incomodar em tirá-la dali?

Ela cava e cava. E lá está sua menina, com os longos cabelos lisos e os grandes olhos azuis.

— Mãe!

— Venha, minha querida.

Estão juntas dentro da cova. Rowan a abraça e a embala.

— Ai, lamento tanto ter matado você.

— Está bem, mãe querida.

— Era uma guerra — diz Michael. — E numa guerra as pessoas morrem e depois...

Ela acordou, ofegante.

O quarto estava em silêncio além do leve zumbido do aquecimento que saía de pequenos respiradores ao longo do piso. Michael dormia ao seu lado, com as articulações dos dedos tocando-lhe o quadril enquanto ela estava ali sentada, com as mãos tapando a boca, a olhar para ele.

Não, não o acorde. Não o faça passar pela aflição mais uma vez. Mas ela sabia.

Quando a conversa estava terminada, quando eles haviam jantado e dado um longo passeio pelas ruas cobertas de neve, quando haviam conversado até o amanhecer, tomado o café da manhã, conversado mais um pouco e jurado amizade eterna, ela soube. Não deveria nunca, nunca, ter matado a filha. Não havia nenhum motivo para isso.

Como aquela criatura de olhos de corça, que tanto a tranqüilizara, com aquela voz delicada, com o leite derramando dos seus seios, huuummmmm, o gosto do leite, como aquela criatura trêmula poderia ter feito mal a alguém?

Que lógica fez com que ela apontasse a arma? Que lógica havia feito com que ela puxasse o gatilho? Filha do estupro, filha da aberração, filha do pesadelo. Mas ainda assim uma criança...

Ela saiu da cama, procurando os chinelos no escuro, e estendendo a mão para pegar na cadeira um longo négligé branco, mais uma daquelas peças estranhas que enchiam sua mala, cheias do perfume de outra mulher.

Eu a matei, eu a matei, aquela coisinha terna e confiante, cheia de conhecimento de terras remotas, de vales, ravinas, planícies e quem saberia que outros mistérios? Seu consolo na escuridão, quando ela estava amarrada à cama. Minha Emaleth.

Uma janela branca e pálida parecia suspensa na escuridão na outra extremidade do corredor, um grande retângulo do brilhante céu noturno, com luz se derramando sobre o longo caminho de mármore colorido.

Na direção daquela luz, ela se encaminhou, com o négligê se inflando, os pés produzindo um levíssimo ruído no piso, a mão estendida para o botão do elevador.

Leve-me para baixo, lá embaixo, para as bonecas. Tire-me daqui. Se eu olhar por aquela janela, vou pular. Vou abrir a vidraça, olhar para aquelas luzes infinitas da maior cidade do mundo, subir na janela, estender os braços e cair na escuridão gelada.

Para baixo, para baixo, com você, minha filha.

Todas as imagens do seu relato passaram pela sua cabeça, a sonoridade da sua voz, a delicadeza do seu olhar enquanto ele falava. E gora ela é só lixo debaixo das raízes do carvalho, algo eliminado deste mundo sem um pingo de tinta num papel, sem que se cantasse um hino.

As portas se fecharam. O vento ressoava no poço, aquele zunido leve, como o vento nas montanhas, talvez; e à medida que a cabine descia, um uivo como se ela estivesse numa enorme chaminé. Ela queria se encolher e cair ao chão, queria ficar inerte sem vontade, sem propósito, sem garra; só afundar na escuridão.

Nenhuma palavra a mais a dizer. Nenhum pensamento a mais. Nada mais a saber ou a aprender. Eu deveria ter segurado sua mão. Eu deveria tê-la abraçado. Teria sido tão fácil ficar com ela, terna, junto aos meus seios, minha querida, minha Emaleth.

E todos aqueles sonhos que a fizeram sair pela porta afora com ele, de células dentro de células, iguais às quais nenhum ser humano jamais havia visto; de segredos colhidos de cada camada e fibra, extraída delicadamente de mãos disponíveis, braços disponíveis, lábios pressionados de boa vontade em vidro esterilizado, gotas de sangue dadas com a careta mais ínfima, de secreções, mapas, esquemas e radiografias feitas sem nenhuma dor, tudo para contar uma outra história, um novo milagre, um novo começo. Tudo isso, com ela, teria sido possível! Uma coisinha feminina e preguiçosa, que jamais teria ferido um mortal, tão fácil de controlar, tão disposta a receber cuidados.

As portas se abriram. As bonecas estão esperando. A luz dourada da cidade entra por uma centena de janelas altas. Ela é captada e suspensa em quadrados e retângulos de vidro reluzente, e as bonecas, as bonecas esperam e vigiam com as mãos erguidas. Boquinhas para sempre prontas para um cumprimento. Dedinhos pairando no silêncio.

Sem fazer ruído, ela caminhou entre as bonecas, corredores e mais corredores de bonecas, olhos como buracos negros no espaço, ou como botões cintilantes num lampejo. As bonecas são tranqüilas; são pacientes; prestam atenção.

Voltamos à Bru, a rainha das bonecas, a grande e fria rainha de biscuit, com seus olhos amendoados e suas bochechas tão redondas e rosadas, as sobrancelhas presas para sempre nessa expressão irônica, procurando em vão entender o quê? O infindável desfile de todos esses seres móveis que olham para ela?

Ganhe vida. Viva só por um instante. Seja minha. Tenha calor. Viva.

Saia de debaixo da árvore no escuro e caminhe de novo com se a morte fosse uma parte da história que você pudesse ter apagado, como se aqueles momentos fatais pudessem ser omitidos para sempre. Nenhum tropeço nesta selva. Nenhum passo em falso.

Segurá-la nos meus braços.

Suas mãos estavam espalmadas no vidro frio da vitrina. Sua testa, encostada no vidro. A luz fazia dois quartos crescentes nos seus olhos. As longas tranças de mohair caíam pesadas e sem relevo sobre a seda do vestido, como se estivessem molhadas com a umidade da terra, talvez a umidade da cova.

Onde estava a chave? Será que ele a levava numa corrente no pescoço? Ela não conseguia se lembrar. Ansiava por abrir a porta, pegar a boneca nos braços. Dar-lhe um abraço apertado por um instante.

O que acontece quando a dor é tão enlouquecedora assim? Quando a dor apaga todos os outros pensamentos, sentimentos, esperanças, sonhos, assombro?

Afinal chega a exaustão. O corpo diz que volte a dormir, que se deite agora para o descanso, não para a aflição. Nada mudou. As bonecas olham fixamente como as bonecas sempre olharão. E a terra devora o que está enterrado como sempre devorou. Mas uma espécie de cansaço domina a alma, e até parece possível, apenas possível, esperar para chorar, esperar para sofrer, esperar para morrer e jazer com eles, ver tudo acabado, porque só então toda a culpa se vai, se desfaz, quando se está tão morto quanto eles.

 

Ele estava lá. Estava parado diante da vidraça. Não se podia confundi-lo com mais ninguém. Não há mais ninguém com essa altura. E, mesmo que não fosse por isso, ela agora conhecia esse rosto muito bem, a linha do seu perfil.

Ele a ouvira no escuro, voltando pelo corredor. Mas não se mexeu. Estava só encostado ali na moldura da janela, olhando a luz aumentar lá fora, olhando a escuridão empalidecer e se tornar leite, e as estrelas se dissolverem como derretidas nele.

O que ele estava pensando? Que ela saíra para ir procurá-lo?

Sentia-se destroçada por dentro, fraca. Incapaz de calcular o que fazer, precisando talvez ir até lá, parar ao lado dele e olhar para a escuridão esfumaçada de telhados e prédios matinais, luzes cintilando em ruas enevoadas e a fumaça subindo espiralada de uma centena de chaminés e tubos de exaustão.

Foi o que fez. Ficou parada ao seu lado.

— Agora, nós nos amamos, não é? — perguntou ele.

Seu rosto estava triste. Isso a feriu. Um ferimento novo que a atingia bem no meio da velha dor, algo de imediato que poderia criar lágrimas onde antes só havia algo trevoso e vazio como o horror.

— É verdade, nós nos amamos — disse ela. — Do fundo do coração.

— E nós sempre teremos esse amor, não é?

— Sempre. Enquanto estivermos vivos. Somos amigos e sempre seremos. E nada, nada jamais destruirá as promessas entre nós.

— E eu saberei que vocês existem, só isso.

— E quando não quiser mais ficar sozinho, venha. Venha ficar conosco.

Ele se voltou pela primeira vez, como se realmente não tivesse querido olhar para ela antes. O céu empalidecia tão rápido, e o ambiente se enchia de luz e se abria em amplitude. Seu rosto estava exausto e só infimamente menos do que perfeito.

Um beijo, um beijo casto e mudo, e nada mais, só um toque de dedos.

E então ela se foi, sonolenta, dolorida, feliz por estar o dia se derramando sobre a cama macia. Agora posso dormir, chegou o dia afinal, agora posso dormir, caindo debaixo das cobertas, ao lado de Michael novamente.

 

ESTAVA FRIO DEMAIS PARA SAIR, mas o inverno não queria soltar suas garras de Nova York. E se o homenzinho queria um encontro na Trattoria, que fosse assim.

Ash não se incomodava com a caminhada. Não queria ficar sozinho nos seus solitários aposentos na torre, e tinha quase certeza de que Samuel já eslava a caminho e não poderia ser convencido a voltar.

Ele apreciava a multidão na Sétima Avenida, apressada no crepúsculo adiantado, com as vistosas vitrinas cheias de artigos orientais profusamente coloridos: porcelanas, relógios elaborados, estátuas de bronze e tapetes de lã e de seda. Todos os presentes vendidos nesta parte do centro. Casais apressavam-se para jantar a fim de chegarem antes do início do espetáculo no Carnegie Hall, de um jovem violinista que estava fazendo furor no mundo inteiro. As filas para comprar entradas eram longas. As butiques da moda ainda não estavam fechadas. E, embora a neve caísse em flocos minúsculos, ela não conseguiria cobrir o asfalto ou as calçadas devido ao pisoteio contínuo dos humanos.

Não, não é uma hora má para se caminhar. É uma hora má para se tentar esquecer que se acabou de abraçar amigos, Michael e Rowan, pela última vez até que se recebam notícias deles.

É claro que eles não sabem que essa é a regra do jogo, o gesto que seu coração e seu orgulho exigiriam, mas é mais do que provável que eles não se surpreendessem. No total, haviam passado quatro dias com ele. E ele tinha tão pouca certeza do seu amor agora quanto no primeiro instante em que pusera os olhos neles em Londres.

Não, ele não queria ficar só. O único problema era que deveria ter se vestido para o anonimato e o vento cortante, o que não fizera. As pessoas olhavam espantadas para um homem com dois metros e dez de altura, com cabelos escuros e ondulados, que usava um blazer de seda roxa num tempo daqueles. E a echarpe era amarela. Que loucura a dele de ter posto essas roupas decididamente feitas para recintos privados e depois ter saído para a rua vestido dessa maneira.

Só que ele havia se trocado antes que Remmick lhe desse a notícia. Samuel fizera as malas e fora embora. Samuel iria encontrá-lo na Trattoria. Samuel deixara o buldogue, para que fosse seu cão de Nova York, se Ash não se importasse. (Por que Ash havia de se importar com um cachorro que babava e roncava? Mas a verdade é que Remmick e a jovem Leslie sem dúvida seriam os que teriam de agüentar o rojão. A jovem Leslie estava agora feliz por estar estabelecida permanentemente nos escritórios e aposentos da torre.) Samuel arranjaria outro cachorro para a Inglaterra.

A Trattoria já estava lotada. Isso dava para ver pelas janelas. Fregueses acotovelando-se ao longo do seu bar sinuoso e nas incontáveis mesinhas.

Mas lá estava Samuel, como prometido, fumando um pequeno cigarro molhado (ele assassinava os cigarros, da mesma forma que Michael), bebendo uísque de um copinho pesado, à sua espera.

Ash deu uma batidinha na janela.

O homenzinho examinou-o da cabeça aos pés e fez um gesto de desaprovação. Ele próprio estava bem vestido, no seu novo estilo, tweed com colete, camisa nova, sapatos engraxados para luzir como espelhos. Havia até mesmo um par de luvas de couro marrom, como duas mãos fantasmagóricas, jogadas e amassadas, em cima da mesa.

Era impossível conhecer os sentimentos que se ocultavam por trás das dobras e rugas da carne de Samuel, mas a elegância e estilo da figura como um todo sugeriam algo diferente do melodrama embriagado, lacrimejante e queixoso das últimas quarenta e oito horas.

O fato de Michael ter considerado Samuel tão divertido foi uma benção. Na realidade, uma noite os dois haviam competido para ver quem bebia mais sem ficar tonto, contando piadas, enquanto Rowan e Ash apenas sorriam com indulgência, ficando afinal com a terrível tensão de saber que, se fossem para a cama, haveria mais perdas do que ganhos, a menos que Ash pensasse em si mesmo, e somente em si mesmo.

Não fazia parte da natureza de Ash.

"Também não faz parte da minha natureza ficar sozinho", pensou ele. Havia uma valise de couro ao lado do copo de Samuel. De partida.

Ash abriu caminho com delicadeza entre os que entravam e saiam, fazendo um pequeno gesto e apontando o dedo para Samuel de modo a que o porteiro preocupado soubesse que ele estava sendo esperado.

O frio desapareceu de imediato e, com o ruído alto das vozes, das panelas, dos pratos e de pés que se arrastavam, veio o ar morno como um líquido que se derramasse sobre ele. Era inevitável que cabeças se voltassem, mas o maravilhoso de qualquer aglomeração num restaurante em Nova York era que os parceiros às mesas tinham o dobro da animação de qualquer outro lugar e sempre se concentravam com seriedade total no outro. Todos os encontros pareciam cruciais; os pratos, devorados às pressas; os rostos deixando transparecer a paixão, se não pelo parceiro, pelo menos, sem dúvida, pela agitação cada vez maior da noite.

Eles decerto viram o homem alto no paletó escandaloso de seda roxa ocupar a cadeira em frente ao menor homem do lugar, um carinha atarracado, com roupas de inverno. Mas isso eles viram com o canto dos olhos, ou com um movimento de pescoço rápido o suficiente para danificar a medula espinhal, e sem perder nada da sua própria conversa. A mesa ficava bem diante do vidro frontal. Mas a verdade é que as pessoas nas ruas eram ainda mais capacitadas para a observação discreta do que os que se encontravam na agradável zona de segurança do restaurante.

— Vá em frente e diga logo — disse Ash, baixinho. — Você está indo embora. Vai voltar para a Inglaterra.

— Você sabia que eu ia voltar. Não tenho vontade de ficar por aqui. Sempre acho que vai ser maravilhoso, mas depois me canso, e preciso voltar para casa. Tenho de voltar ao vale antes que aqueles doidos da Talamasca comecem a invadi-lo.

— Eles não farão uma coisa dessas — retrucou Ash. - Eu esperava que você ficasse mais um pouco. — Ele ficava assombrado com o controle que conseguia exercer sobre a sua própria voz. — Que conversássemos sobre o que aconteceu...

— Você chorou quando se despediu dos seus amigos humanos, não chorou?

— Ora, por que está me perguntando isso? Você está decidido a que nos separemos com palavras de irritação?

— Por que confiou neles, nos dois bruxos? Pronto, o garçom está falando com você. Coma alguma coisa.

Ash apontou para alguma coisa no cardápio, a massa comum que sempre pedia em lugares semelhantes, e esperou que o homem desaparecesse antes de retomar a conversa.

— Se você não tivesse bebido tanto, Samuel, se não tivesse visto tudo através de uma névoa cansativa, saberia a resposta para essa pergunta.

— Bruxos Mayfair. Sei o que eles são. Yuri me contou tudo sobre eles. Yuri falou delirando grande parte do tempo. Ash, não seja bobo outra vez. Não espere que essas pessoas o amem.

— Suas palavras não fazem sentido — disse Ash. — Nunca fizeram. Elas são só uma espécie de ruído que me acostumei a ouvir quando estou na sua presença.

O garçom trouxe a água mineral, o leite, os copos.

— Você está aborrecido, Ash — disse Samuel, pedindo com um gesto mais um copo de uísque, e era uísque puro. Ash sabia pelo cheiro. — E não é minha culpa. — Samuel recostou-se na cadeira. — Olhe, meu amigo, só estou querendo lhe dar um aviso. Deixe-me dizer de outra forma, se prefere assim. Não vá amar aqueles dois.

— Sabe, se você insistir nesse sermão, eu posso simplesmente perder minha paciência.

O homenzinho riu direto. Foi uma risada surda, prolongada, mas as dobras sobre seus olhos até revelaram sua súbita perplexidade.

— Ora, isso até poderia me segurarem Nova York por mais uma hora ou duas, se eu acreditasse que realmente ia ver algo dessa natureza.

Ash não respondeu. Era terrivelmente importante não dizer nada que não fosse sincero, não agora, não a Samuel, nem a ninguém. Ele havia acreditado nisso a vida inteira, mas de quando em quando algo lhe refrescava brutalmente a memória. Depois de um momento, falou.

— E a quem eu deveria amar? — Palavras ditas com um levíssimo tom de censura. — Ficarei feliz quando você tiver ido. Quer dizer, ficarei feliz quando essa conversa desagradável terminar.

— Ash, você nunca deveria ter ficado tão íntimo deles. Nunca devia ter lhes contado tudo que contou. E alem do mais o cigano, deixar que ele simplesmente voltasse para a Talamasca.

— Yuri? E o que você queria que eu fizesse? Como eu poderia impedir Yuri de voltar para a Talamasca?

— Você poderia tê-lo atraído para Nova York; tê-lo posto para trabalhar para você de alguma forma. Ele era um homem com a vida destruída; mas você o mandou para casa para escrever volumes e mais volumes sobre o que aconteceu. Puxa, ele poderia ter sido seu companheiro.

— Isso não era o certo para ele. Ele precisava voltar para casa.

— É claro que era certo. E ele era a pessoa certa para você: um pária, um cigano, filho de uma prostituta.

— Por favor, procure não ser ofensivo e vulgar ao máximo no que diz. Você me assusta. Olhe, a opção foi de Yuri. Se ele não tivesse querido voltar, teria dito. Sua vida era a Ordem. Ele precisava voltar, pelo menos para sarar todas as feridas. E depois disso? Ele não teria se sentido feliz no meu mundo. As bonecas são pura magia para quem as ama e as compreende. Para os outros, elas são menos do que brinquedos. Yuri é um homem de distinções espirituais grosseiras, não sutis.

— Isso soa bem, mas é uma estupidez. — Ele observou enquanto o garçom punha a nova bebida diante dele. — O seu mundo está cheio de coisas que Yuri poderia ter feito. Você poderia ter-lhe dado liberdade para construir mais parques, plantar mais árvores, todos esses seus planos grandiosos. O que você estava dizendo aos seus bruxos, que ia construir parques no céu para que todos pudessem ver o que você vê dos seus aposentos de mármore? Você poderia ter mantido aquele rapaz ocupado pelo resto da vida, e ainda teria sua empresa...

— Preferia que você parasse. Isso não aconteceu. Simplesmente não aconteceu.

— Mas o que aconteceu é que você quer a amizade daqueles bruxos, um homem e uma mulher casados, cercados por um grande clã, pessoas que estão a priori comprometidas com um estilo de vida em família que é nitidamente humano...

— O que eu posso fazer para que você pare?

— Nada. Beba o leite. Sei que você quer. Está com vergonha de beber diante de mim, com medo de que eu diga alguma coisa do tipo "Ashlar, beba seu leite!"

— O que você agora disse, muito embora eu não tenha tocado no leite, percebeu?

— Ah, é essa a questão. Você ama aqueles dois, os bruxos. E, aos meus olhos, o dever deles agora consiste em esquecer tudo isso, esse pesadelo dos Taltos. o vale e assassinos idiotas que se infiltraram na Talamasca. É essencial para a sanidade daquele homem e daquela mulher que eles vão para casa e construam a vida que a família Mayfair espera que construam. E eu detesto quando você ama quem vai lhe virar as costas; e aqueles dois têm de agir assim.

Ash não respondeu.

— Eles estão cercados por centenas de pessoas para as quais vão precisar transformar essa parte das suas vidas numa mentira — continuou Samuel a advertir. — Vão querer se esquecer de que você existe. Não vão querer que o fabuloso reino do seu dia-a-dia seja ofuscado pela sua presença.

— Compreendo.

— Não me agrada quando você sofre.

— É mesmo?

— É, sim! Gosto de abrir revistas e jornais e ler sobre seus pequenos triunfos empresariais; e ver seu rosto sorridente acima de listas fúteis dos dez bilionários mais excêntricos do mundo, ou dos solteirões mais cobiçados de Nova York. E agora eu sei que você vai ficar desolado querendo saber se aqueles bruxos são realmente seus amigos, se você pode ligar para eles quando o coração doer, se você pode contar com eles para aquele conhecimento de si mesmo que todo ser exige...

— Fique, Samuel, por favor.

Isso silenciou o sermão. O homenzinho suspirou. Tomou parte da nova bebida, cerca de metade, e lambeu seu lábio inferior extremamente deformado com uma língua espantosamente rosada.

— Ora, Ash, eu não quero ficar.

— Eu fui quando você me chamou, Samuel.

— E agora se arrepende disso?

— Não penso dessa forma. Além do mais, como poderia me arrepender?

— Esqueça tudo, Ash. Sério, esqueça. Esqueça que um Taltos veio ao vale. Esqueça que conhece esses bruxos. Esqueça que precisa que alguém o ame como você é. Isso é impossível. Tenho medo. Tenho medo do que você vai fazer agora. O modelo é bem conhecido.

— Que modelo é esse? — perguntou Ash. baixinho.

— Você destruirá tudo isso, a empresa, a corporação, a Brinquedos Sem Limites ou a Bonecas Para Milhões, como quer que a chame. Vai mergulhar na apatia. Simplesmente vai largar tudo de lado. Vai sair e se afastar, e as coisas que você fez e construiu irão lentamente se desfazer sem a sua presença. Você já agiu assim antes. E então se sentirá perdido, exatamente como eu estou perdido, e em alguma fria noite de inverno, e eu não sei por que motivo você sempre escolhe a época mais fria do inverno, você virá ao vale mais uma vez à minha procura.

— Isso é mais importante para mim, Samuel. É importante por muitas razões.

— Parques, árvores, jardins, crianças — cantarolou o homenzinho.

Ash não respondeu.

— Pense em todos que dependem de você, Ash — disse Samuel, continuando o sermão para a mesma congregação. — Pense em todas essas pessoas que fazem, vendem, compram e amam as coisas que você fabrica. Isso pode substituir a sanidade mental, creio eu, o fato de se terem outros seres vivos, providos de intelecto e sentimento, dependentes de nós. Você acha que estou certo?

— Isso não substitui a sanidade, Samuel. Substitui a felicidade.

— Certo, então, está bem. Mas não vá esperar que seus bruxos venham até você, e pelo amor de Deus nunca vá procurá-los no seu próprio território. Você verá o medo nos seus olhos se eles algum dia o virem em pé  no seu jardim.

— Você tem tanta certeza disso tudo.

— É, tenho certeza, Ash, você lhes contou tudo. Por que fez isso? Talvez se você não tivesse contado, eles não o temessem.

— Você não sabe o que está dizendo.

— E Yuri e a Talamasca, como vão atormentá-lo agora!

— Não vão.

— Mas aqueles bruxos, eles não são seus amigos.

— É o que você não pára de dizer.

— Sei que não são. Sei que sua curiosidade e assombro logo irão se transformar em medo. Ash, é um velho clichê, eles são só humanos.

Ash baixou a cabeça e desviou o olhar, pela janela para a neve que soprava lá fora, para os ombros encurvados contra o vento.

— Ashlar, eu sei, porque sou um pária. E você é um pária. E olhe lá fora as multidões de humanos que passam na rua, e pense como cada um condena tantos outros como párias, como "diferentes", como não humanos. Nós somos monstros, meu amigo. É isso o que seremos sempre. É a vez deles. Só o fato de estarmos vivos já basta para preocupar. — Ele tomou o resto da bebida.

— E por isso você volta para casa, para os amigos no vale.

— Eu os odeio, e você sabe disso. Mas não teremos o vale por muito tempo. Volto por motivos sentimentais. Ora, não é só a Talamasca e o fato de dezesseis estudiosos bem educados chegarem com gravadores, implorando que eu recite tudo o que sei durante o almoço na estalagem. São todos aqueles arqueólogos escavando a Catedral de Santo Ashlar. O mundo moderno descobriu o lugar. E por quê? Por causa dos seus malditos bruxos.

— Você não pode pôr a culpa disso em mim, nem neles, e você sabe.

— Vamos acabar tendo de encontrar algum lugar mais remoto, alguma outra maldição ou lenda para nos proteger. Mas eles não são meus amigos. Não pense que sejam. Eles não pensam.

Ash apenas fez que sim.

A comida havia chegado: uma grande salada para o homenzinho, a massa para Ash. O vinho estava sendo servido nos copos. Cheirava como se algo tivesse dado totalmente errado.

— Estou bêbado demais para comer — disse Samuel.

— Eu compreendo se você for — disse Ash, baixinho. — Quer dizer, se você se sente na obrigação de ir, talvez devesse ir.

Ficaram ali sentados em silêncio por um instante. E então o homenzinho ergueu o garfo e começou a devorar a salada, empurrando grandes porções boca adentro, enquanto pedacinhos caiam no prato apesar dos seus esforços mais diligentes. Ruidosamente, ele limpou cada último vestígio de azeitona, queijo e alface do prato e bebeu um grande gole de água mineral.

— Agora posso beber mais um pouco — disse ele.

Ash emitiu um som que teria sido uma risada se ele não estivesse tão triste.

Samuel escorregou da cadeira e se pôs de pé. Apanhou a valise de couro. Veio até Ash e enganchou o braço no seu pescoço. Ash beijou-lhe rapidamente a bochecha, sentindo uma leve repulsa pela textura coriácea da pele, mas determinado a ocultá-la a qualquer preço.

— Você volta logo? — perguntou Ash.

Não. Mas nós nos veremos — disse Samuel. — Cuide bem do meu cão. Ele se magoa com muita facilidade.

— Vou me lembrar disso.

— E mergulhe fundo no trabalho!

— Alguma coisa mais?

— Eu amo você.

E com isso Samuel foi abrindo caminho, cambaleando, em meio à multidão daqueles que estavam sentados e dos que se levantavam para sair e de todas aquelas costas e cotovelos que o atrapalhavam. Saiu pela porta da frente e seguiu ao longo da vidraça. A neve já estava se prendendo no seu cabelo e nas sobrancelhas densas, e começava a deixar manchas escuras de umidade nos seus ombros.

Ele ergueu a mão em despedida e saiu do campo visual. E a multidão voltou a ser a multidão.

Ash ergueu o copo de leite e bebeu devagar todo o seu conteúdo. Pôs então algumas notas debaixo do prato, olhou para a comida como se estivesse se despedindo dela e saiu também, enfrentando o vento da Sétima Avenida.

Quando chegou ao seu quarto lá no alto acima das ruas, Remmick estava à sua espera.

— O senhor está frio, gelado.

— Estou? — murmurou Ash. Deixou pacientemente que Remmick levasse o blazer de seda e a echarpe escandalosa. Vestiu o robe curto de lã com forro de cetim e, pegando a toalha que Remmick lhe oferecia, secou a umidade do seu cabelo e do seu rosto.

— Sente-se, senhor. Deixe-me tirar seus sapatos molhados.

— Como queira. — A poltrona era tão macia que ele não conseguia imaginar sair dela mais tarde para ir para a cama. E todos os quartos estão vazios. Rowan e Michael se foram. Hoje à noite não vamos caminhar pelo centro, em conversa animada.

— Seus amigos chegaram bem em Nova Orleans, senhor — disse Remmick, tirando-lhe as meias molhadas e rapidamente calçando meias limpas e secas, com tanta destreza que seus dedos mal roçavam na pele de Ash. — O telefonema foi logo depois de o senhor ter saído para jantar. O avião já está de volta. Deve estar aterrissando em vinte minutos.

Ash baixou a cabeça em sinal de entendimento. Os chinelos de couro eram forrados com pele. Ele não sabia se eram velhos ou novos. Não se lembrava. De repente, todos os pequenos detalhes pareciam lhe escapar. Sua cabeça estava horripilantemente vazia e imóvel. E ele sentia a solidão e o sossego dos aposentos plenamente.

Remmick movia-se às portas do closet como uma aparição.

Nós contratamos os que são discretos, pensou Ash, e depois eles não conseguem nos consolar. Aquilo que toleramos não pode nos salvar.

— Onde está a jovem Leslie, Remmick? Está por aqui?

— Está, senhor, aparentemente com um milhão de perguntas. Mas o senhor parece tão cansado.

— Mande-a entrar. Preciso trabalhar. Preciso ocupar minha cabeça com alguma coisa.

Ele seguiu pelo corredor e entrou no primeiro dos escritórios, o escritório particular, aquele no qual os papéis estavam empilhados aleatoriamente, em que uma gaveta de arquivo estava aberta, aquele que ninguém tinha a permissão de limpar, aquele que era insuportavelmente bagunçado.

Leslie apareceu dentro de segundos, com a expressão transbordando de animação, dedicação, devoção e energia inesgotável.

— Sr. Ash, a semana que vem é a da Exposição Internacional de Bonecas, e uma mulher do Japão acabou de ligar. Disse que o senhor queria decididamente ver o trabalho dela, que o senhor mesmo lhe disse isso da última vez cm que esteve em Tóquio. E houve uns vinte compromissos que o senhor deixou de cumprir enquanto esteve fora. Tenho a lista completa...

— Sente-se, então, e vamos acabar chegando lá.

Ele assumiu sua posição à mesa de trabalho, observando que o relógio marcava 18:45 e decidido a não olhar para ele, nem mesmo de relance, enquanto não tivesse certeza de já ter passado da meia-noite.

— Leslie, deixe isso tudo de lado. Tenho algumas idéias. Quero que você as numere. A ordem não é importante. O que é importante é que você me entregue a lista inteira todos os dias, sem falta, com anotações sobre o progresso feito com relação a cada uma dessas idéias, e uma grande marca de "nenhum progresso" naquelas que eu permitir que permaneçam inativas.

— Certo, senhor.

— Bonecas que cantam. Aperfeiçoar primeiro um quarteto, quatro bonecas que cantem em harmonia.

— Ah, essa é uma idéia maravilhosa, Sr. Ash.

— Os protótipos devem refletir alguma preocupação com custos razoáveis, mas esse não é o ponto mais importante. As bonecas devem emitir um som de qualidade e continuar cantando mesmo que sejam atiradas ao chão.

— Certo... "atiradas ao chão".

— E um museu na torre. Quero uma lista das vinte e cinco melhores coberturas disponíveis nesta região da cidade, preço de compra, aluguel todos os detalhes pertinentes. Quero um museu no céu para que as pessoas possam sair e apreciar a vista a partir de uma galeria envidraçada...

— E o que o museu conterá, senhor? Bonecas?

— Bonecas sobre um tema determinado. Exatamente a mesma tarefa será dada a dois mil artistas fabricantes de bonecas. Apresente sua interpretação com três figuras relacionadas da Família da Humanidade. Não, quatro figuras. Uma pode ser uma criança. É, a descrição será exata. Vou precisar ser lembrado... Por enquanto, procure o melhor prédio.

— Certo, senhor, compreendi — disse ela, escrevendo no bloco com a caneta de ponta fina.

— E quanto às bonecas que cantam, todos devem ser informados de que com o tempo será formado um coro completo. Seria concebível que uma criança ou um colecionador de bonecas, ao longo de anos, adquirisse o coro inteiro, ou o coral, o nome que for melhor, sabe, está me entendendo?

— Sim, senhor...

— E não quero ver nenhum projeto mecânico. É eletrônica, circuitos integrados, a última palavra, e deve haver... deve haver algum meio para que a voz de uma boneca exerça alguma influência sobre a voz de outra. Mas esses são detalhes. Vá anotando.

— Materiais, senhor? Porcelana?

— Não, porcelana, não. Nunca. Não quero que quebrem. Lembre-se, elas não deveriam quebrar nunca.

— Perdão, senhor.

— E eu desenharei os rostos. Preciso de fotografias, fotos de todos os cantos do mundo. Quero ver o trabalho de todos. Se houver uma velhinha numa aldeia nos Pireneus fazendo bonecas, quero ver fotos. E na Índia, por que não temos bonecas da Índia? Você sabe quantas vezes já fiz essa pergunta? Porque ninguém responde? Escreva um memorando para os vice-presidentes, para o pessoal de marketing, ponha no quadro de avisos! Índia. Quem são os artesãos que fazem bonecas na Índia? Acho que vou até a Índia, sim. Arranje tempo para eu ir. Eu vou descobrir quem está fazendo bonecas lá, se ninguém mais tem o bom senso...

A neve começava a cair pesada lá fora, muito branca junto ao vidro.

Todo o resto estava novamente nas trevas. Ínfimos sons aleatórios chegavam das ruas lá embaixo, ou seria dos canos, a neve caindo no telhado, ou simplesmente o vidro e o aço do prédio respirando tão inevitavelmente quanto a madeira respira, o prédio, apesar das suas dezenas de andares, oscilando tão de leve com o vento, como uma árvore gigantesca na floresta?

E ele não parava de falar, observando a mãozinha feroz que movimentava a caneta de ponta fina. Falou das réplicas de monumentos, da pequena versão em plástico da Catedral de Chartres, na qual as crianças poderiam entrar. A importância da escala, das proporções. E se houvesse um parque com um enorme círculo de pedras?

— Ah, sim, uma missão especial, algo que eu quero que você faça amanhã talvez, ou depois de amanhã. No mais tardar. Faça o seguinte. Você deve descer ao Museu Particular...

— Sim?

— A Bru, você conhece a Bru, a grande boneca francesa? Minha princesa.

— A Bru, senhor, claro que sim, aquela boneca.

— Bru Jne 14; noventa e um centímetros de altura; peruca, sapatos, vestido, combinação, etc, tudo original. Peça número um em exibição.

— Sim, senhor, conheço perfeitamente.

— Ela deverá ser embalada por você e por mais ninguém, com a assistência adequada, deve ser feito o seguro correto, encarregue-se disso pessoalmente, e depois deve ser enviada... enviada para... — Mas para quem? Seria presunção mandá-la diretamente para a criança que ainda não nasceu?Não, ela deveria ir para Rowan Mayfair, não é? Claro que deveria. E para Michael, alguma lembrança, do mesmo valor no seu próprio estilo, algo primorosamente trabalhado em madeira, um dos brinquedos muito antigos, o cavaleiro montado no seu cavalo, é, todo de madeira, aquele, com a pintura original ainda grudada...

Mas não, esse não era o presente certo, não para Michael. Havia um presente, uma lembrança preciosa, algo tão maravilhoso quanto a Bru, algo que ele queria pôr nas mãos de Michael.

Ele se levantou da mesa, pedindo à jovem Leslie que se mantivesse sentada, e atravessou a espaçosa área de estar para seguir pelo corredor até seu quarto.

Ele o havia colocado debaixo da cama, o simples sinal para Remmick de que se tratava de algo precioso e que não deveria ser tocado nem pelo criado mais cheio de boas intenções. Ele se ajoelhou, tateou à procurado objeto e o arrastou para fora, com a luz refulgindo maravilhosa sobre a capa de pedras preciosas.

O momento do passado remoto estava bem ali, a dor, a humilhação, Ninian rindo dele, dizendo-lhe que terrível blasfêmia ele havia cometido, ao relatar sua história no estilo sagrado com linguagem sagrada.

Por algum tempo, ele ficou sentado ali, de pernas cruzadas, com o ombro encostado na lateral da cama. Estava segurando o livro. É, para Michael. Michael, o garoto que gostava de livros. Michael. Michael talvez jamais conseguisse lê-lo. Não importava. Michael o guardaria, e era como se ele o estivesse dando também a Rowan. Ela compreenderia isso.

Quando voltou ao escritório íntimo, trazia o livro envolto numa grande toalha branca.

— Este livro, para Michael Curry, e a Bru para Rowan Mayfair.

— A Bru, senhor, a princesa?

— É. Exatamente essa. A embalagem é de tremenda importância. Posso querer que você leve esses presentes lá pessoalmente. A leve possibilidade de que a Bru venha a se quebrar é inimaginável. Nenhum dos dois presentes deve se extraviar. Agora, vamos passar a outros assuntos. Mande buscar comida se sentir fome. Tenho aqui um memorando dizendo que a Prima Ballerina está em falta no mundo inteiro. Diga-me que é mentira.

— Não é.

— Vou passar aditar. Este é o primeiro de sete faxes relativos à Prima Ballerina...

E lá seguiram eles pela lista. E quando ele afinal olhou de novo para o relógio, com qualquer intenção séria, já passava muito da meia-noite. Na realidade, já era uma da manhã. A neve ainda caía. O rosto da pequena Leslie estava da cor do papel. Ele estava cansado o suficiente para ir dormir.

Jogou-se na cama vazia, ampla e macia, com a leve consciência de que a jovem Leslie ainda estava por ali, fazendo perguntas que ele não mais ouvia tão bem. Convidativa.

— Boa noite, querida — disse ele.

Remmick abriu a janela só um pouquinho, como havia sido instruído a fazer, e o vento criava um uivo feroz que apagava todos os outros sons, todo o tempo, qualquer ruído concebível que pudesse subir pelas margens estreitas entre os prédios sombrios e enlutados. Um pouco de ar gelado tocou seu rosto, tornando ainda mais delicioso o calor das cobertas pesadas.

Não sonhe com bruxas; não pense nos seus cabelos vermelhos; não pense em Rowan nos seus braços. Não pense em Michael, com o livro nas mãos, valorizando-o como ninguém jamais o valorizou, à exceção daqueles irmãos perversos que traíram Lightner. Não pense em vocês três sentados juntos ao redor da lareira deles. Não volte ao vale, não agora, nem por muito tempo; não caminhe em meio aos círculos de pedra; não visite cavernas: não sucumba à tentação de beldades mortais que podem morrer a um toque seu... Não telefone para eles. Não peça para ouvir uma frieza, um afastamento, uma evasiva nas suas vozes.

E quando a porta se fechou, eleja estava cochilando.

A Bru. A rua em Paris; a mulher na loja; a boneca na sua caixa; os grandes olhos de vidro olhando para ele. A súbita idéia abaixo de um poste de rua de se ter chegado a um ponto na história no qual o dinheiro tornava possível todo tipo de milagre, de que a busca do dinheiro, mesmo que por parte de um único indivíduo, podia ter enormes repercussões espirituais para milhares... Que num universo de indústria e produção em massa, a conquista da fortuna podia ser perfeitamente criativa.

Numa loja na Quinta Avenida a alguns passos da sua porta, ele havia parado para olhar O Livro de Kells, a perfeita reprodução que qualquer um agora podia possuir, folhear e amar, o livro precioso que levara tantos à criação em lona.

"Para o homem que ama os livros" é o que ele ia escrever no cartão para Michael. Ele via Michael a sorrir para ele, com as mãos nos bolsos, exatamente do mesmo jeito que Samuel enfiava as mãos nos bolsos. Michael dormindo no chão, e Samuel de pé, acima dele, dizendo, embriagado, "Por que Deus não me fez assim?" Era triste demais para se rir. E a estranha declaração que Michael havia feito, quando estavam parados perto da cerca em Washington Square, todos sentindo tanto frio. Por que as pessoas fazem esse tipo de coisa? Ficar ao ar livre quando neva? E Michael dissera. "Sempre acreditei no que era normal. Eu achava que ser pobre era anormal. Achava que, quando se podia escolher o que se queria, isso era normal." A neve, o trânsito, os ladrões noturnos do Village, os olhos de Michael quando ele olhava para Rowan. E ela distante, calada, as palavras para ela tão mais difíceis do que para ele.

Isso não é um sonho. Isso é preocupação, é voltar atrás, procurar reviver tudo e segurar com firmeza. Como será quando eles se deitam? Será que o rosto dela é uma escultura de gelo? Será que ele é o sátiro dos bosques? Bruxo tocando bruxa; bruxo sobre bruxa...

Será que a Bru presenciará esse tipo de coisa de uma prateleira de mármore?

"Algo no seu jeito de segurá-la." Era tudo o que escreveria no cartão para Rowan. E lá estaria a Bru de olhos azuis olhando para cima do meio do papel fino. Que o papel fino seja da cor dos seus olhos, lembre-se de falar.

E seria a decisão de Rowan e de Michael a de guardarem ou não esses presentes por perto, como ele guardara, década após década, como ídolos aos quais se fazem orações, ou passá-los para o bebê de Michael e Mona. E talvez os grandes olhos azuis de vidro da belíssima Bru Jne 14 contemplariam aquela criancinha, e será que veriam nela o sangue das bruxas, como ele poderia ver se um dia, se um dia ousasse ir até lá, algum tempo depois da chegada do bebê a este mundo, como se diz, se ele ousasse espionar todos eles, A Família da Espécie das bruxas, a partir do célebre jardim onde um dia o fantasma de Lasher andava e onde seus restos estavam enterrados, a partir desse jardim que poderia estar escondendo outra aparição, ou não? A espiar por uma pequena e despercebida janela de inverno.

 

PIERCE HAVIA IDO APANHÁ-LOS NO ABROPORTO, educado demais para perguntar quem seria o proprietário do avião ou onde eles teriam estado, e ansioso demais para levá-los ao canteiro de obras do novo centro médico.

Fazia tanto calor a ponto de ser sufocante, pensou Michael. Meu estilo de cidade. Tão feliz por estar de volta e, no entanto, com uma insegurança tão completa quanto a tudo: se a grama vai continuar a crescer, se Rowan vai voltar a ser amorosa e confiante nos seus braços, se ele conseguiria se manter à distância daquele homem alto de Nova York, com quem havia conhecido a amizade mais extraordinária,

E o passado? O passado não tinha mais graça e nunca mais teria. Mas seria algo herdado com sua carga, suas maldições, seus segredos.

Tire os olhos dos corpos dos mortos. Esqueça-se do velho desmoronando até o chão. E Aaron, para onde foi Aaron? Será que seu espírito ascendeu para a luz? Estaria tudo afinal esclarecido e esquecido? Esquecer é uma tamanha bênção para nós.

Saltaram na beirada do enorme retângulo de terra revirada. Cartazes diziam CLÍNICA MÉDICA MAYFAIR, com dezenas de nomes e datas. E mais alguma coisa pequena demais para ser vista pelos seus olhos em processo de envelhecimento. Ele se perguntou se eles deixariam de ser tão azuis quando ele realmente não conseguisse mais enxergar. Isso acontecia? Ou será que ele ainda teria esse último direito à fama mesmo quando não pudesse ver as garotas a lhe lançar uma segunda olhada, ou Rowan derretendo-se levemente, com os lábios curvados nas extremidades?

Ele procurou se concentrar no canteiro de obras, conscientizar-se do que sua cabeça lhe dizia, que o progresso havia sido espantoso, que cerca de cem homens estavam trabalhando aqui nesses quatro prédios, que a Clínica Mayfair de fato começara.

E havia lágrimas nos olhos de Rowan? É, a dama tranqüila de cabelos curtos e do terno de corte elegante em tecido macio estava chorando em silêncio. Ele chegou mais perto. Que história era essa de distância, todo esse respeito pela privacidade do outro, pelos sentimentos do outro? Ele a apertou num abraço e, encontrando a parte mais macia do seu pescoço, deu-lhe beijos ali, até sentir que ela se encostava nele, inclinando-se ligeiramente, e um tremor delicioso passava pelas suas mãos quando ela segurou seu rosto.

— Vocês prosseguiram com isso, vocês todos. Eu nunca poderia ter esperado uma coisa dessas. — Seus olhos passaram para Pierce, o tímido Pierce, que agora corava com esses elogios.

— É um sonho que você nos deu, Rowan. E agora é nosso sonho também. E como todos os nossos sonhos estão se realizando, já que você está aqui, conosco, novamente, bem, esse também vai se realizar.

— Puxa, esse é um discurso de advogado, com ritmo e com a força exata — disse Michael. Estava ficando com ciúme do garoto? As mulheres pareciam babar quando punham os olhos em Pierce Mayfair. Se Mona ao menos percebesse, visse talvez que esse era o homem para ela, especialmente agora que, em conseqüência da morte de Gifford, seu filho havia se afastado da noiva, Clancy. Cada vez mais Pierce vinha se sentar a alguma distância de Mona e ficava olhando. E, quem sabe não estava surgindo algum interesse em Mona...

Michael estendeu a mão para o rosto de Rowan.

— Dê-me um beijo.

— Isso é exibicionismo vulgar — disse ela, baixinho. — E você sabe que é. Todos aqueles operários estão nos olhando.

Espero que estejam.

— Vamos para casa — murmurou ela.

— Pierce, como está Mona, você tem notícias recentes? — perguntou Michael. Eles entraram no carro. Ele havia se esquecido de como era andar em automóveis normais, morar em casas normais, ter sonhos normais. A voz de Ash cantava para ele quando dormia. Ele ouvia o sussurro melodioso nos seus ouvidos ainda agora. E será que eles um dia veriam Ash novamente? Ou Ash não iria desaparecer por trás de todas aquelas portas de bronze, deixando-os de fora, protegido pela sua empresa, pelos seus bilhões, lembrando-se deles apenas talvez com bilhetes eventuais, muito embora eles pudessem telefonar, vir a Nova York, apertar sua campainha nas altas horas da noite. '"Eu preciso de você!"

Ah, Mona, é... Bem, ela anda meio estranha — disse Pierce. — Quando papai fala com ela, ela dá a impressão de estar drogada. Mas ela está bem. Anda muito com Mary Jane. E ontem uma equipe começou a trabalhar em Fontevrault.

— Ah, bom saber disso — disse Michael. — Quer dizer que vão recuperar a casa.

— Bem, tinha de ser feito, evidentemente, já que nem Mary Jane nem Dolly Jean tolerarão que a casa seja demolida. Ah, eu acho que Dolly Jean está com elas também. Agora, DolIy Jean parece uma maçã murcha, mas dizem que é muito esperta.

— Alegro-me por ela estar lá — disse Michael. — Gosto de velhos. — Rowan riu baixinho, encostando a cabeça no seu ombro. — Pode ser que chamemos tia Viv para vir ficar conosco. E como vai Bea? O que anda acontecendo com Bea?

— Bem, nesse caso — disse Pierce, inclinando um pouco a cabeça — quem operou o milagre foi a Velha Evelyn, simplesmente por vir do hospital para casa e precisar de cuidados. Adivinhem quem saiu correndo para a casa de Amélia Street para lhe dar ovos quentes, fazê-la falar e fazer com que aperte firme com as duas mãos? Papai diz que é o perfeito antídoto para a dor. Eu me pergunto se o espírito de mamãe não está por lá.

— Agora todas as notícias são boas — disse Rowan, com um sorriso desanimado, a voz grave como sempre. — E as meninas vão estar na casa, e o silêncio terá de esperar; e os espíritos terão de se enfurnar nas paredes.

— Você acha que eles ainda estão lá? — perguntou Pierce, com uma inocência comovente.

Deus abençoe os Mayfair que nunca viram e que no fundo não acreditam.

— Não, filho — disse Michael. — É só uma casa grande e linda. E ela está à nossa espera e à espera de... novas gerações ainda por vir.

— De membros da família que ainda não nasceram — murmurou Rowan.

Eles acabavam de entrar em St. Charles Avenue, o corredor paradisíaco de tanto verde, os carvalhos em ofuscante folhagem de primavera, o sol ameno, o trânsito lento, vislumbres de uma bela casa após a outra. Minha cidade, minha terra, tudo certo, a mão de Rowan na minha.

Ah , é Amélia Street, olhe — disse ele.

Como estava vistosa a casa dos Mayfair no estilo de San Francisco, com sua nova pintura de cor pêssego, com venezianas verdes e acabamentos brancos. E nada de ervas daninhas. Ele quase quis parar, para ver Evelyn e Bea, mas sabia que tinha de ver Mona primeiro. Precisava ver a mãe e a filha numa só pessoa. E precisava estar com sua mulher, conversando em voz baixa no grande quarto do andar de cima, sobre tudo que havia acontecido, as histórias que ouviram, as coisas estranhas que viram e que poderiam não contar a ninguém nunca... a não ser á Mona.

E amanhã ele iria ao mausoléu onde Aaron estava enterrado e seguiria o costume irlandês de simplesmente conversar com Aaron, em voz alta, como se Aaron estivesse respondendo. E se alguém não gostasse, bem, eles que fossem embora, não é? Toda a sua família sempre fizera isso. Seu pai, indo ao cemitério de São José para conversar com o avô e a avó sempre que tinha vontade. E tio Shamus, quando estava muito doente, dizendo à mulher: "Você ainda pode falar comigo quando eu me for. A única diferença é que eu não vou responder".

Mais uma vez, a luz mudou, escureceu, e as árvores se expandiram, ocupando o lugar do céu e o partindo em ínfimos fragmentos brilhantes. O Garden District, First Street. E milagre dos milagres, a casa na esquina de Chestnut, em meio às suas bananeiras, samambaias e azaléias em flor, à sua espera.

— Pierce, você precisa entrar.

— Não, estão esperando por mim no centro. Vocês descansem. Liguem quando precisarem de nós. — Ele já havia saído para oferecer uma ajuda cavalheiresca quando Rowan saltou do carro. E então sua chave abriu o portão, e ele se despediu com um aceno.

Um guarda uniformizado caminhava ao longo da cerca lateral e desapareceu discretamente no final da casa.

Refez-se o silencio, o carro foi embora em luz e sombra, sem ruído, distante, o cair da tarde lustroso, quente e sem a menor resistência. O perfume da oliveira permeando o quintal inteiro. E à noite ele sentiria o cheiro do jasmim, novamente.

Ash dissera que a fragrância era o detonador mais forte da memória, um meio de transporte até mundos esquecidos. E ele estava tão certo. E o que acontecia com alguém de quem fossem retiradas todas as fragrâncias de que necessitava para respirar?

Ele abriu a porta da frente para sua mulher e sentiu um impulso repentino de cruzar a soleira, levando-a no colo. Por que não?

Ela deu um gritinho espontâneo de prazer, agarrando seu pescoço enquanto ele a levantava.

O ponto principal em gestos dessa natureza consistia em não deixar cair a dama em questão.

— E agora, minha querida, estamos em casa — rosnou ele junto ao seu pescoço macio mais uma vez, forçando-lhe a cabeça para trás enquanto ele a beijava debaixo do queixo. — E o perfume da oliveira dá lugar à cera onipresente de Eugenia, ao cheiro de madeira antiga, e ao cheiro de algo embolorado, caro e delicioso de se respirar.

— Amém — disse ela.

Quando ele ia deixá-la no chão, ela se agarrou a ele por um instante. Ah, isso era bom! E seu coração bombardeado e envelhecido não começara a bater forte. Ela ouviria, não? Com seu ouvido de médica? Não, ele estava ali saudável e tranqüilo, abraçado a ela, cheirando seus cabelos limpos e macios e olhando para o saguão encerado, através do enorme portal branco, para os murais distantes na sala de jantar, ainda iluminados pelo sol da tarde. Em casa. Aqui. Agora, como nunca, nunca foi para nenhum de nós dois

Ela afinal se descolou dele, pondo os pés no chão. Sua testa franziu se infimamente.

— Ah, não foi nada. Só que certas lembranças demoram para desaparecer, sabe? Mas aí eu penso em Ash, e isso é algo a se contemplar em vez de todas as coisas tristes.

Ele quis responder, quis dizer alguma coisa sobre seu próprio amor por Ash e mais outra coisa, algo que era quase uma tortura. Seria melhor deixar para lá, é o que outros aconselhariam se ele um dia pedisse um conselho. Mas não podia. Olhou nos olhos de Rowan, abrindo muito os seus próprios, talvez o suficiente para parecer irritado, quando não era isso absolutamente o que pretendia.

— Rowan, meu amor. Eu sei que você poderia ter ficado com ele. Sei que fez uma escolha.

— Você é o homem para mim — disse ela, com um suspiro levemente explosivo. — Meu homem, Michael.

Seria bom carregá-la escada acima, mas ele jamais conseguiria. Não todos os vinte e nove degraus, e onde estavam as mocinhas, e vovó, a ressuscitada? Não, elas não podiam se trancar agora, a menos que por um acaso da sorte a tribo inteira tivesse saído para jantar cedo.

Fechando os olhos, ele a beijou novamente. Ninguém poderia impedi-lo de fazer isso pelo menos umas doze vezes. O beijo. E quando ele ergueu os olhos de novo, viu a linda aparição de cabelos vermelhos no final do saguão, duas na realidade, uma muito, muito alta, e aquela sapeca da Mary Jane, com tranças louras no alto da cabeça mais uma vez, três dos pescoços mais extraordinários do universo, meninas assim são cisnes. Mas quem era essa nova beldade, incrivelmente alta, e que parecia, ora, ela era exatamente igual a Mona!

Rowan voltou-se, olhando espantada para os fundos do saguão.

As Três Graças, elas eram, encostadas na porta da sala de jantar, e o rosto de Mona parecia ocupar dois lugares diferentes. Não se tratava de semelhança, mas de reprodução exata. E porque elas estavam assim tão paradas, todas elas nos seus vestidos de algodão, apenas olhando fixamente como se de dentro de um quadro?

Ele ouviu Rowan arfar. Viu Mona começar a correr, atravessando o piso encerado para vir na sua direção.

—Não, vocês não podem fazer nada. Não podem. Vocês precisam ouvir.

— Meu Deus — disse Rowan, encostando-se nele com todo o peso, o corpo trêmulo.

— Ela é minha filha — disse Mona. — Minha e de Michael, e vocês não vão lhe fazer mal.

De repente, ele se deu conta, como costuma acontecer, num desencadear de estágios diferentes, todos caindo com estrondo, de modo a lhe tirar o fôlego. O bebê é essa moça. A espiral dupla produziu isso. Ela é um Taltos com tanta certeza quanto a de que Ash é um Taltos, tanto quanto aqueles dois debaixo da árvore são Taltos. Rowan vai desmaiar. Ela vai cair. E a dor no meu peito está me matando.

Ele procurou agarrar o pilar do pé da escada.

— Digam-me agora que nenhum de vocês dois vai atacá-la.

— Atacá-la? Como eu poderia fazer uma coisa dessas? — perguntou Michael.

E então Rowan começou a chorar, debulhando-se desesperadamente nas mãos entrelaçadas.

— Ai, meu Deus.

A menina alta dava um passo vacilante após o outro. E agora será que viria aquela voz indefesa, a voz de criança que ele ouvira da outra antes do tiro? Estava tonto. O sol estava se pondo, como se na hora marcada; a casa voltava à sua escuridão natural.

— Michael, sente-se, sente ai no degrau — disse Mona.

— Meu Deus, ele está passando mal — constatou Mary Jane.

E Rowan, começando a agir, envolveu-lhe o pescoço com seus dedos longos e úmidos.

— Bem, eu sei que esse deve ser um choque terrível para vocês dois — disse a altona. — E mamãe e Mary Jane estão preocupadas há dias, mas eu mesma estou aliviada de afinal ver vocês dois e de forçar uma decisão quanto à possibilidade de eu permanecer sob este teto, como se diz, como sua filha tanto quanto de Mona. Como vocês podem ver, ela pôs a esmeralda no meu pescoço, mas eu me submeto ao que vocês decidirem.

Rowan estava perplexa. Ele também. Teria sido a voz de Mona, só que parecia mais velha e um pouco menos forte, como se já moderada pela experiência do mundo.

Ele ergueu os olhos para vê-la ali em pé, com um exagero de cachos de um vermelho vivo,  seios de mulher, longas pernas curvilíneas, e os olhos, olhos como um fogo verde.

— Pai — sussurrou ela, caindo de joelhos. Estendeu os dedos longos e segurou seu rosto.

Ele fechou os olhos.

— Rowan — disse ela. — Por favor, goste de mim, e talvez ele também goste.

Rowan chorava, com os dedos apertando o pescoço de Michael. O coração estava batendo forte nos ouvidos, forte como se estivesse crescendo cada vez mais.

— Meu nome é Morrigan.

— Ela é minha, minha filha — disse Mona. — E sua, Michael.

— E acho que já é hora de vocês deixarem que eu fale — disse Morrigan. — Que eu tire dos seus ombros o peso dessa decisão.

— Querida, vá mais devagar — disse Michael. Ele piscou os olhos lentamente, procurando desanuviar a visão.

Mas alguma coisa havia perturbado essa longa ninfa. Algo fez com que ela recolhesse as mãos e começasse a cheirar os dedos. Seus olhos faiscavam de Rowan para ele. Ela se levantou, aproximando-se de Rowan, antes que Rowan pudesse pensar em se afastar, farejando o rosto de Rowan e depois recuando.

— Que cheiro é esse? — perguntou. — É o cheiro do quê? Eu conheço esse cheiro!

— Preste atenção — disse Rowan. — Nós vamos conversar. Foi isso o que você disse. Agora venha. — Ela foi adiante, deixando-o para morrer do coração ali totalmente só, e pôs os braços na cintura da menina, com a menina olhando de cima para ela, com olhos comicamente assustados.

— O cheiro está em você toda.

— O que você acha que é? — perguntou Mona. — O que poderia ser?

— Um macho — murmurou a menina. — Esses dois estiveram com ele.

— Não, ele morreu — disse Mona. — Você está captando o cheiro de novo do assoalho, das paredes.

— Não, não. Esse macho está vivo. — De repente ela agarrou Rowan pelos ombros. Mona e Mary Jane correram para seu lado, procurando afastar seus braços com delicadeza. Michael já estava em pé. Meu Deus, a criatura tinha a altura dele. O rosto de Mona, mas não era Mona, não era Mona de jeito algum.

— O cheiro está me deixando louca. Vocês esconderam de mim esse segredo? Por quê?

— Dê-lhes tempo para explicar — implorou Mona. — Morrigan, pare com isso. Ouça o que estou dizendo. — E então ela estava com as mãos da menina nas suas, segurando-as com força. E Mary Jane estava nas pontas dos pés.

— Agora, você tem de se acalmar, e deixar que eles nos contem a novidade.

— Vocês não compreendem — disse Morrigan, com a voz subitamente embargada e as lágrimas se avolumando nos enormes olhos verdes, enquanto voltava a olhar para Michael, para Rowan. — Existe um macho, vocês não entendem? Existe um macho da minha espécie! Mãe. você sente o cheiro. Mãe, diga a verdade! — Era um berro. — Mãe, por favor, não estou agüentando! — E seus soluços vieram como algo caindo escada abaixo, seu rosto tenso de dor, seu corpo alto e anguloso oscilando e se curvando delicadamente enquanto ela deixava as outras duas abraçá-la e impedir que caísse.

— Vamos levá-la agora — disse Mary Jane.

— Só não façam nada, vocês têm de jurar — suplicou Mona.

— E nós nos reuniremos, conversaremos e...

— Digam para mim — sussurrou a menina arrasada. — Digam-me onde ele está.

Rowan empurrou Michael na direção do elevador, abrindo a velha porta de madeira.

— Entre.

E a última imagem que ele viu, ao se encostar na parede dos fundos do elevador, foram aqueles bonitos vestidos de algodão, enquanto as três subiam a escada juntas, correndo.

 

Ele estava deitado na cama.

— Agora, não pense nisso agora. Não pense — disse Rowan.

O pano molhado dava a impressão exata do que era, um pano molhado. Ele não estava gostando.

— Não vou morrer — disse ele, baixinho. E que esforço, essas palavras. Seria a derrota mais uma vez? Seria uma derrota enorme e medonha, e os andaimes de sustentação do mundo normal, cedendo ao peso, e a previsão do futuro mais uma vez nas cores da morte e da Quaresma? Ou seria algo que eles podiam abraçar e conter, algo que eles podiam de algum modo aceitar sem destruir a mente?

O que vamos fazer? — sussurrou ela.

Você está me fazendo essa pergunta, você? O que vamos fazer? — Ele rolou de lado. A dor era um pouco menor. Seu corpo inteiro suava, e ele detestava a sensação, o cheiro inevitável. E onde estavam elas, as três belezinhas? — Eu não sei o que vamos fazer.

Ela estava sentada imóvel na beirada da cama, com os ombros ligeiramente encurvados, e o cabelo caindo até a bochecha. Os olhos, distantes.

— Será que ele vai saber o que fazer? — perguntou Michael.

A cabeça de Rowan virou como se tivesse sofrido um puxão forte com um barbante.

— Ele? Você não pode contar para ele. Você não pode esperar que ele saiba de uma coisa dessas e não... e não perca o controle exatamente como a menina. Você quer que isso aconteça? Quer que ele venha aqui? Nada nem ninguém conseguirá ficar entre eles dois.

— E o que acontece, então? — perguntou Michael, procurando fazer com que sua voz soasse forte, firme, quando a coisa mais firme que ele conseguia era fazer perguntas.

— O que acontece? Eu não sei. Não sei tanto quanto você! Meu Deus, existem dois deles, e estão vivos, e eles não são... não são...

— O quê?

— Não são algo de perverso que surgiu com subterfúgios; alguma coisa mentirosa e enganosa que nutriu alienação, loucura. Eles não são assim.

— Continue a falar, Rowan. Continue a dizer essas coisas. Não são algo de perverso.

— Perverso não, só uma outra forma de natural. — Ela desviou o olhar, com a voz baixando muito, e a mão calorosa pousada no braço de Michael.

Se ao menos ele não estivesse tão cansado. E Mona, há quanto tempo Mona estava sozinha com essa criatura, essa coisa recém-nascida, essa garça de menina, com seu longo pescoço e as feições de Mona no seu rosto? E Mary Jane, as duas bruxas juntas.

E o tempo todo eles se dedicaram tanto às suas tarefas, salvar Yuri, descobrir os traidores, consolar Ash, o ser alto que não era inimigo de ninguém, que nunca havia sido e que nunca viria a ser.

— O que nós podemos fazer? — sussurrou ela. — Que direito nós temos de fazer alguma coisa?

Elevoltou a cabeça, procurando vê-la com nitidez. Sentou-se lentamente na cama, sentindo a fisgada por baixo das costelas, agora fraca, sem importância. Perguntou-se meio distraído quanto tempo uma pessoa podia agüentar com um coração que falhava com tanta rapidez, com tanta facilidade. Facilidade, uma ova. Havia sido preciso Morrigan, certo? Sua filha. Morrigan. Sua filha a chorar em algum canto da casa com sua mãe-criança, Mona.

— Rowan, e se essa for realmente a vitória de Lasher? E se esse tiver sido seu plano o tempo todo?

— Como podemos saber? — disse ela, baixinho. Seus dedos estavam agora junto aos lábios, o verdadeiro sinal de que ela estava passando por sofrimento mental e que procurava imaginar um meio de sair dele. — Eu não posso matar outra vez! — disse ela, em voz tão baixa que foi como um suspiro.

— Não, não... isso não. Eu não quis dizer isso. Não posso fazer uma coisa dessas! Eu...

— Eu sei. Você não matou Emaleth. Fui eu.

— Não é nisso que temos de pensar agora. O que temos de ponderar é se lidamos com esse fato sozinhos. Tentamos lidar? Procuramos reunir outros?

— Como se ela fosse um organismo invasor — murmurou Rowan, com os olhos muito abertos — e as outras células viessem cercá-la, contê-la.

— Podem fazer isso sem lhe causar mal algum. — Ele estava tão cansado, quase com náuseas. Num minuto, iria vomitar. Mas não podia deixá-la agora. Recusava-se a passar mal de forma tão vergonhosa. — Rowan, a família, em primeiro lugar a família, toda a família.

— Gente assustada. Não. Não Pierce, Ryan, Bea e Lauren...

— Sozinhos não, Rowan. Não podemos tomar as decisões certas sozinhos; e as meninas, elas estão em puro enlevo, estão trilhando os caminhos sombrios da magia e da transformação. Ela pertence às meninas.

— Eu sei. — Rowan suspirou. — Do mesmo jeito que ele um dia me pertenceu, o espírito que me procurava, cheio de mentiras. Ai, eu queria, numa atitude horrível e covarde...

— O quê?

Ela abanou a cabeça.

Houve um ruído junto à porta. Ela se abriu alguns centímetros e acabou de se abrir. Mona estava ali, com o rosto levemente manchado de lágrimas também, e os olhos cheios de cansaço.

— Vocês não vão atacá-la.

Não — disse Michael. — Quando foi que aconteceu?

Há poucos dias. Ouçam. Vocês precisam vir. Nós temos de conversar. Ela não tem como fugir. Não tem como sobreviver no mundo lá fora sozinha. Ela acha que pode, mas não pode. Não estou lhes pedindo que lhe digam se realmente existe um macho em algum lugar. Basta que venham e aceitem minha filha. Que ouçam com atenção.

É o que faremos — disse Rowan.

Mona concordou.

Você não está bem, precisa repousar — disse Rowan.

Foi o parto, mas já estou bem. Ela precisa do leite o tempo todo.

— Então não vai fugir.

— Talvez não — disse Mona. — Vocês percebem, vocês dois?

— Que você a ama? — perguntou Rowan. — Percebo, sim.

Mona baixou a cabeça lentamente.

— Desçam, daqui a uma hora. Acho que a essa hora ela já estará bem. Compramos um monte de vestidos bonitos para ela. Ela os adora. E insiste que nós também nos arrumemos. Talvez eu escove seu cabelo para trás e ponha uma fita como costumava fazer com o meu. Ela é esperta. É muito esperta e vê...

Vê o quê?

Mona hesitou. E então deu sua resposta, em voz baixa e sem convicção.

— Ela vê o futuro.

A porta se fechou.

Michael percebeu que estava olhando para as pálidas vidraças retangulares da janela. A luz estava sumindo veloz, tão rápido o crepúsculo da primavera. As cigarras haviam começado lá fora. Será que ela ouvia tudo isso? Será que o som a consolava? Onde estava ela agora, essa sua filha?

Ele tateou para ligar o abajur.

— Não, não ligue — pediu Rowan. Ela era agora uma silhueta; uma linha de luz brilhante definia seu perfil. O quarto se fechou e depois se ampliou na escuridão. — Quero pensar. Quero pensar em voz alta no escuro.

— Certo, compreendo — disse ele.

Ela se voltou e bem devagar, com movimentos de extrema eficácia, pôs travesseiros atrás dele para que ele pudesse se recostar; e ele, detestando-se por isso, deixou que ela o fizesse. Ele descansou, respirando fundo para levar ar aos pulmões. A janela estava branca e embaçada. E, quando as árvores se mexiam, era como se a própria escuridão lá de fora estivesse procurando espiar aqui dentro. Era como se as árvores estivessem prestando atenção.

Rowan começou a falar.

— Eu me digo que nós todos corremos o risco do horror. Qualquer criança pode ser um monstro, um propiciador da morte. O que você faria se se tratasse de um bebê, uma coisinha cor-de-rosa, como os bebês deveriam ser, e uma bruxa viesse, pusesse as mãos nele e dissesse: "Ele vai crescer para guerrear. Vai crescer para fabricar bombas. Vai crescer para sacrificar as vidas de milhares, de milhões." Você o sufocaria? Quer dizer, se acreditasse mesmo. Ou diria não?

— Eu estou pensando — disse Michael. — Estou pensando em coisas que fazem um certo sentido: que ela é recém-nascida, que deve obedecer, que aqueles que a cercam devem ser mestres. E, à medida que os anos forem passando, que ela for amadurecendo, então...

— E se Ash morrer sem saber? — perguntou Rowan. — Você se lembra das palavras dele? Como era, Michael? "A dança, o círculo, e a música..." Ou você acredita na predição na caverna? Se realmente acreditar, e eu não sei se eu acredito ou não, mas se você acreditar, qual é o próximo passo? Vamos passar as nossas vidas mantendo-os afastados?

O quarto estava totalmente às escuras. Pálidas faixas de luz atravessavam hesitantes o teto. A mobília, a lareira, as próprias paredes haviam desaparecido. E as árvores lá fora ainda mantinham sua cor, seus detalhes, porque as luzes da rua as iluminavam.

O céu era a luz residual, da cor da pele rosada, como às vezes acontece.

— Vamos descer — disse ele. — E vamos ouvir com atenção. Depois, talvez, convoquemos a família inteira! Digamos a todos que venham, venham como vieram quando você estava deitada nesta cama, quando achamos que você fosse morrer, todos eles. Precisamos deles. De Lauren, Paige, Ryan, é, Ryan, Pierce e da Velha Evelyn.

— Quem sabe? — disse ela. — Sabe o que vai acontecer? Eles vão olhar para ela, na sua inegável juventude e inocência, e vão olhar para nós, perguntando-se se é verdade, se é isso mesmo, e implorando que nós optemos por uma atitude.

Ele saiu de mansinho da cama, receando a náusea, abrindo caminho facilmente no escuro de coluna a coluna e em seguida até o banheiro estreito de mármore branco. Ocorreu-lhe uma lembrança: da primeira vez que entraram nesta parte da casa, ele e a Rowan com quem queria se casar. E havia pequenos fragmentos de uma imagem quebrada ali, nos ladrilhos brancos que agora apareciam com o banho suave e incolor da luz. A cabeça da Virgem com seu véu, quebrada no pescoço de qualquer maneira; uma pequena mão de gesso. O que havia sido aquilo, um presságio?

Meu Deus, se Ash a encontrasse, ela o encontrasse! Meu Deus, mas essa decisão cabia a eles, não é?

— Está fora da nossa competência — murmurou Rowan no escuro.

Ele se debruçou sobre a pia, abriu a torneira, lavou o rosto com a água fria. Por algum tempo, ela correu quase morna pelos canos, e depois veio de dentro da terra, fria de verdade. Ele afinal se secou, pelo menos dessa vez dando pancadinhas suaves, e largou a toalha. Tirou o paletó, a camisa dura e amarrotada, com o cheiro do suor agora impregnado. Secou-se e apanhou na prateleira a lata de aerossol recomendada para eliminar o cheiro. Perguntou-se se Ash poderia ter feito isso, eliminado o cheiro totalmente de modo a que ninguém o captasse a partir dos beijos de despedida que ele dera neles dois.

E nos tempos antigos, será que a fêmea humana podia captar o cheiro do macho humano que vinha atravessando a floresta? Porque perdemos esse dom? Porque o cheiro não é mais o aviso do perigo. O cheiro não é mais um indicador confiável de nenhuma ameaça. Para Aaron, o assassino contratado e o desconhecido eram um e o mesmo. O que o cheiro tinha a ver com duas toneladas de metal esmagando Aaron contra uma parede?

Ele vestiu uma camisa limpa e um agasalho leve por cima. Encobrir tudo.

— Vamos descer agora? — Ele desligou a luz e esquadrinhou a escuridão. Pensou ver o contorno da sua cabeça baixa. Imaginou ver um lampejo do seu casaco da cor de vinho escuro, e depois viu mesmo a luz branca da blusa quando ela se voltou. Tão sulista seu jeito de se vestir, tão perfeito.

— Vamos — disse ela, na voz grave e autoritária que fazia com que ele pensasse em butterscotch e em dormir com ela. — Quero conversar com ela.

A biblioteca. Já estavam lá reunidas.

Quando passou pela porta, ele viu que a própria Morrigan estava ocupando a escrivaninha, majestosa em renda vitoriana branca, com gola alta, punhos enfeitados e um camafeu na garganta, uma abundante saia de tafetá aparecendo por trás do mogno. Gêmea de Mona. E Mona, em renda mais suave, mais descuidada, enroscada na grande poltrona, como estivera ali no dia em que ele apelara a Ryan e Pierce para que o ajudassem a encontrar Rowan. Mona, ela própria precisando de uma mã,. e sem dúvida de um pai.

Mary Jane compunha o outro canto, um perfeito retrato em cor-de-rosa. Nossas bruxas gostam dos tons pastel, pensou ele. E vovó. Ele não havia percebido que ela estava ali, no canto do sofá, até ver seu rosto minúsculo e enrugado, seus olhinhos negros e brincalhões e nos lábios um sorriso pregueado.

— Cá estão eles! — disse ela, com grande habilidade, estendendo os braços para ele. — E você, um Mayfair também, descendente de Julien, imaginem só. Eu teria sabido. — Ele se inclinou para beijá-la, para sentir o cheiro do talco subindo do robe acolchoado, prerrogativa dos muito velhos, a de andar perpetuamente vestidos para dormir. — Venha aqui, Rowan Mayfair. Deixe-me lhe falar da sua mãe. Sua mãe chorou quando renunciou a você. Todos sabiam. Ela chorou e virou o rosto para o outro lado quando tiraram você dos seus braços, e nunca mais ela foi a mesma, nunca mais.

Rowan apertou as mãozinhas secas e também se abaixou para receber o beijo.

— Dolly Jean, você estava presente quando Morrigan nasceu? — Rowan lançou um olhar na direção de Morrigan. Ainda não tinha coragem suficiente para dar uma boa olhada na menina.

— Claro que estava — disse Dolly Jean. — Eu sabia que ia ser um bebê que anda antes mesmo que ela pusesse um pé para fora do útero. Eu sabia! E lembrem-se, não importa o que digam, não importa o que pensem, essa menina é uma Mayfair. Se temos a capacidade de engolir Julien e seu estilo assassino, temos de aceitar uma coisinha selvagem, de pescoço comprido e rosto de Alice-no-país-das-maravilhas! Vocês prestem atenção agora. Talvez essa seja uma voz que vocês nunca ouviram antes.

Ele sorriu. Bem, era muito bom que ela estivesse ali, que ela encarasse tudo aquilo sem hesitação, e sua atitude fez com que ele sentisse vontade de apanhar o telefone e começar a dar os telefonemas que reuniriam todos os parentes, Em vez disso, ele apenas se sentou diante da escrivaninha. E Rowan ocupou o lugar ao seu lado.

Todos olhavam para a encantadora criatura ruiva que de repente encostou a cabeça no espaldar alto e enroscou suas mãos longas e brancas nos braços da cadeira, com os seios como que empurrando a renda engomada e a cintura tão frágil que ele teve vontade de protegê-la com as mãos.

— Sou sua filha, Michael.

— Diga-me mais, Morrigan. Diga-me o que o futuro reserva. Diga-me o que você quer de nós e o que deveríamos esperar de você.

— Ah, estou tão feliz por ouvi-lo dizer essas palavras. Vocês estão ouvindo? — Ela olhou de um lado para o outro e depois para Rowan. — Porque estive dizendo a elas que isso ia fatalmente acontecer. Eu tenho de prever. Tenho de falar. Tenho de declarar.

— Então, vá em frente, querida — disse ele. E de súbito ele não podia mais vê-la como algo monstruoso. Só podia vê-la como um ser vivo, humano, terno e frágil como todos os outros no aposento, até ele mesmo, o que poderia matar os outros desarmado, se quisesse. E Rowan, que podia matar qualquer humano com a força da mente. Mas não essa criatura.

— Quero professores — disse ela. — Não o confinamento de uma escola, mas professores particulares, com mamãe e Mary Jane. Quero ser instruída. Quero aprender tudo neste mundo. Quero a solidão e a proteção na qual eu possa fazer isso, com garantias de que não serei excluída, de que faço parte da família, de que um dia... — Ela parou nesse ponto como se um interruptor tivesse sido desligado. — Um dia, serei a herdeira como minha mãe planejou para mim. E depois de mim, outra da sua linhagem que talvez seja humana... se vocês... se o macho... se o cheiro...

— Vamos, Morrigan — disse Mary Jane.

— Não pare de falar — disse a mãe diminuta.

— Quero essas coisas que seriam pedidas por uma criança especial, de inteligência cáustica e sede insaciável, mas racional e amável, é, sem dúvida, uma criança que é possível amar, educar e, portanto, controlar.

— É isso o que você quer? — perguntou Michael. — Você quer pais.

— É, os mais velhos que me contem suas histórias, como era nosso costume antigamente.

— É — disse Rowan, com firmeza. — E nesse caso você vai aceitar nossa proteção, o que significa aceitar nossa autoridade e nossa orientação, já que você é uma menina recém-nascida.

— Isso.

— E que nós cuidaremos de você.

— Isso mesmo! — Ela se ergueu ligeiramente na cadeira e parou, segurando os dois lados da escrivaninha, os braços como ossos longos e esguios que deveriam ter sido apoios para asas. — É. Eu sou uma Mayfair. Digam isso comigo. Faço parte da família. E um dia, talvez um dia, com um humano, eu possa conceber, e outros como eu nascerão, do sangue de bruxos, como eu nasci, que eu tenho esse direito a existir, a ser feliz, a saber, a florescer... Meu Deus, vocês ainda estão com esse cheiro. Não consigo suportar esse cheiro. Vocês têm de me dizer a verdade.

— E se dissermos? — perguntou Rowan. — E se dissermos que você deve ficar aqui, que você é jovem demais e inocente demais para um encontro com esse macho, que nós vamos designar uma época para esse encontro...

— E se nós prometermos contar a ele? — sugeriu Michael. — E você pode saber onde ele está, mas só se prometer...

— Eu juro — gritou ela. — Juro qualquer coisa.

— É tão forte assim? — sussurrou Mona.

— Mãe, eles estão me assustando.

— Você os tem na palma da mão — disse a pequenina Mona, aninhada na poltrona de couro, o rosto devastado, a pele lívida. — Eles não podem fazer mal a alguém que se explica tão bem. Você é tão humana quanto eles, será que não entende? Eles entendem. Vamos. Continue.

— Dêem-me meu lugar — disse ela, com os olhos muito abertos e parecendo se incendiar, como quando havia chorado. — Deixem-me ser o que eu sou. Deixem-me procriar se eu quiser. Deixem-me fazer parte da família.

— Você não pode procurá-lo. Não pode procriar — disse Rowan. — Por enquanto não. Não antes que sua mente seja capaz de tomar essa decisão.

— Vocês me deixam louca! — gritou ela, recuando.

— Morrigan, pare com isso — disse Mona.

— Fique fria, está bem? — disse Mary Jane, pondo-se de pé e se aproximando cautelosa por trás da escrivaninha até conseguir pôr as mãos nos ombros de Morrigan.

— Fale das suas lembranças — disse Mona. — Como nós gravamos tudo. E as coisas que você quer ver.

Ela estava tentando retomar o fio, evitar uma crise de lágrimas ou de gritos, ele não sabia qual.

— Ir a Donnelaith — disse Morrigan. com a voz trêmula. — Descobrir a planície.

— Você se lembra dessas coisas?

— Lembro, e de todos nós juntos no circulo. Eu me lembro. Eu me lembro. Eu estendo as mãos para segurar as deles. Socorro! — Sua voz subiu novamente. Mas ela havia tapado a boca com a mão, e quando chorou agora foi um choro abafado.

Michael levantou-se e deu a volta, tirando Mary Jane delicadamente do caminho.

— Você tem o meu amor — disse ele no seu ouvido. — Está me escutando? Você o tem. Tem meu amor e a autoridade que o acompanha.

— Ah, graças a Deus. — Ela encostou a cabeça nele, exatamente como Rowan fazia de vez em quando, e começou a chorar.

Ele afagou seus cabelos macios, mais macios, mais sedosos do que os de Mona. Pensou na breve união no sofá, no chão da biblioteca, e nessa coisa frágil e imprevisível.

— Eu o conheço — disse ela, baixinho, esfregando a testa no seu peito. — Conheço seu cheiro também e as coisas que você viu. Conheço o cheiro do vento em Liberty Street, a aparência que a casa tinha quando você entrou nela pela primeira vez e como você a modificou. Conheço tipos diferentes de madeira e ferramentas diversas. Sei como é esfregar óleo de tungue na superfície da madeira por muito, muito tempo. Conheço o som do pano na madeira. E sei de quando você se afogou, quando você sentiu tanto frio, você se aqueceu, viu fantasmas de bruxos. Esses são do pior tipo, do mais forte, à exceção talvez do fantasma de um Taltos. Bruxos e Taltos, você deve ter alguns de nós aí dentro, esperando para sair, para renascer, para criar uma raça novamente. Ah, os mortos tudo sabem. Não sei por que motivo eles não falam. Por que ele não vem a mim, ou qualquer um deles? Eles simplesmente dançam nas minhas lembranças e dizem aquelas coisas que tinham importância para eles naquela época. Pai, pai, eu amo você.

— Eu amo você também — sussurrou ele, com a mão segurando firme a cabeça da menina. Ele sentiu que tremia.

— E sabe de uma coisa? — disse ela, erguendo os olhos para ele, com lágrimas escorrendo e deixando manchas no rosto branco. — Você sabe, pai, que um dia eu vou assumir o comando total.

— E por que isso? — perguntou ele, com calma, mantendo rígido controle sobre a voz, sobre a expressão no rosto.

— Porque tem de ser — respondeu ela no mesmo sussurro sincero e veemente. — Eu aprendo tão rápido. Sou tão forte. Já sei tanto. E quando eles saírem do meu ventre, e eles sairão, como eu vim da mãe e de você, eles terão essa força, esse conhecimento, lembranças dos dois lados, do humano e do Taltos. Nós aprendemos a ambição com vocês. E os humanos fugirão de nós quando souberem. Eles fugirão, e o mundo... o mundo irá desmoronar. Você não acha que vai ser assim, pai?

Ele tremia por dentro. Ouvia a voz de Ash. Olhou para Rowan, cujo rosto permanecia imóvel, impassível.

— Viver juntos, essa foi nossa promessa solene — disse ele. Ele se debruçou, e seus lábios mal roçaram a testa de Morrigan. Cheiro de pele de bebê, fresca e doce. — Esses são os sonhos dos jovens, governar, dominar a todos. E os tiranos da história foram aqueles que nunca cresceram. Mas você vai crescer. Você vai dispor de todo o conhecimento que todos nós pudermos lhe dar.

— Cara, isso sem dúvida vai ser demais — disse Mary Jane, cruzando os braços.

Ele a encarou furioso, extremamente chocado com suas palavras e com a risadinha que ela deu enquanto abanava a cabeça. Ele olhou para Rowan, cujos olhos mais uma vez estavam avermelhados e tristes, enquanto voltava a cabeça lentamente para o lado, fitando a filha estranha e depois Mona. E só no rosto de Mona ele viu não o assombro ou o choque, mas o medo, um medo controlado e calculado.

— A família Mayfair é agora a minha espécie também — prosseguiu Morrigan, baixinho. — Uma família de bebês que andam, será que você não vê? E aqueles com o poder deveriam ser unidos. Precisamos pesquisar arquivos de dados. Todos aqueles com a espiral dupla deveriam procriar pelo menos uma vez; até que a proporção numérica esteja equilibrada, no mínimo, no mínimo, e então estaremos lado a lado... Mãe, agora preciso trabalhar. Preciso entrar novamente no computador da família.

— Fique fria — disse Mary Jane.

— O que você acha? O que está sentindo? — perguntou Morrigan, olhando direto para Rowan.

— Você precisa aprender nossos costumes, e talvez você um dia descubra que eles são seus costumes também. No nosso mundo, não se faz ninguém procriar. As proporções numéricas não são nosso ponto forte. Mas você vai entender. Nós lhe ensinaremos, e você nos ensinará.

— E vocês não me farão mal.

— Não podemos. Não faríamos — disse Rowan. — Não queremos.

— E o macho? Esse macho que deixou o cheiro em vocês. Ele também está sozinho?

Rowan hesitou e depois fez que sim.

Morrigan olhou para os olhos de Michael.

— Totalmente só, como eu?

— Mais do que você — disse Michael. — Você tem a nós, a sua família.

Ela se pôs de pé, com os cabelos soltos esvoaçando, fez algumas piruetas rápidas enquanto atravessava o aposento, com as saias de tafetá farfalhando, refletindo a luz em lampejos rápidos, graciosos.

— Eu posso esperar. Posso esperar por ele. Posso esperar. Só quero que contem a ele, por favor. Deixo isso nas suas mãos, nas mãos da tribo. Venha, Dolly Jean, venha, Mona. Está na hora de dançar. Mary Jane, você quer? Rowan e Michael, estou com vontade de dançar.

Ela ergueu os braços, começou a girar, com a cabeça jogada para trás, os cabelos longos, caídos bem baixo. Cantarolava uma música, algo suave, algo que Michael sabia já ter ouvido antes, algo talvez que Tessa houvesse cantado, Tessa, enfurnada para morrer sem jamais ver essa menina? Ou Ash, será que ele não a teria cantarolado? Ash, que jamais os perdoaria se eles escondessem dele esse segredo, o andarilho cansado do mundo.

Ela foi se ajoelhar ao lado de Rowan. As duas moças ficaram tensas, mas Mona fez um gesto para que Mary Jane aguardasse.

Rowan não fez nada. Estava segurando seus joelhos com as mãos entrelaçadas. Não se mexeu quando a figura ágil e silenciosa se aproximou, quando Morrigan farejou seu rosto, seu pescoço, seu cabelo. Depois, Rowan se voltou bem devagar e a encarou de frente.

Não humana, não, meu bom Deus, nem um pouco. O que ela é? Calma e controlada, Rowan não deu nenhum sinal de que pudesse estar pensando exatamente a mesma coisa. Mas sem dúvida ela pressentia algo como o perigo.

— Eu posso esperar — disse Morrigan. baixinho. — Escrevam em pedra, o nome dele — onde ele está. Entalhem isso no tronco do carvalho fúnebre. Escrevam em algum lugar. Escondam de mim,. mas guardem-no, guardem-no até chegar a hora. Eu posso esperar.

Ela então se afastou e, fazendo as mesmas piruetas, saiu do aposento, cantarolando consigo mesma, com o som ficando cada vez mais agudo até se tornar semelhante a um assobio.

Ficaram sentados em silêncio.

— Ah — exclamou Dolly Jean, de repente. Ela havia adormecido e agora estava acordada. — Bem, o que aconteceu?

— Eu não sei — respondeu Rowan.

Ela olhou para Mona, e Mona olhou para ela, e uma comunicação muda passou entre elas.

— Bem, é melhor eu ir vigiá-la — disse Mary Jane, saindo ás pressas da biblioteca. — Antes que ela vá e mergulhe na piscina de novo toda vestida, ou se deite na grama lá atrás tentando sentir o cheiro dos dois corpos.

Mona suspirou.

— Então, o que a mãe tem a dizer ao pai? — perguntou Michael.

Mona pensou por algum tempo.

— Observem. Observem e aguardem. — Ela olhou para Rowan. — Agora sei por que você fez o que fez.

— Sabe? — murmurou Rowan.

— Sei, sei, sim — disse Mona. Ela se levantou lentamente. Estava saindo dali quando de repente se voltou. — Eu não quis dizer... Não quis dizer que seria correto fazer mal a ela.

— Nós sabemos que isso não é correto — disse Michael. — E ela é minha filha também, está lembrada?

Mona olhou para ele, dilacerada, indefesa, como se houvesse milhares de coisas que ela quisesse dizer, perguntar, explicar. E então apenas abanou a cabeça e, voltando-lhes as costas, seguiu em silêncio na direção da porta. No último instante, olhou para trás, com o rosto numa radiante explosão de luz, de sentimento. A menininha com corpo de mulher por baixo do vestido enfeitado. E meu pecado fez isso, meu pecado desencadeou essa coisa, como se direto do coração e da mente da própria Mona, pensou ele.

— Eu também sinto esse cheiro — disse Mona. — Um macho vivo. Será que vocês não têm como tirá-lo? Esfregando com sabonete. Então, talvez, talvez ela se acalme, ela pare de pensar nisso e falar nisso, e fique bem. No meio da noite, ela pode entrar no quarto de vocês. Vocês podem acordar, com ela debruçada sobre vocês. Ela não lhes fará mal. De certo modo, vocês é que dão as cartas.

— Como assim? — perguntou Michael.

— Se ela não fizer tudo o que vocês quiserem, vocês nunca lhe falarão do macho. É simples.

— É, é um meio de controle — concordou Rowan.

— Há outros meios. Ela sofre tanto.

— Você está cansada, querida — disse Michael. — Deveria descansar.

— Ah, nós descansaremos nos braços uma da outra. É só quando a gente acorda e a vê farejando roupas. Não se assustem. Pode dar uma impressão terrível.

— É — disse Rowan. — Nós estaremos preparados.

— Mas quem é ele? — perguntou Mona.

Rowan voltou-se, como se quisesse se certificar de ter ouvido certo essa pergunta.

Dolly Jean, com a cabeça baixa, deu um ronco súbito e surpreendente.

— Quem é o macho? — insistiu Mona, com os olhos de repente a meio pau, exausta e levemente atormentada.

— E se eu lhe disser — disse Rowan — você terá de guardar esse segredo. Vamos ser fortes a esse respeito. Confie em nós.

— Mãe! — chamou Morrigan. Começara uma valsa, Richard Strauss, violinos, um daqueles discos adoráveis e amenos que você pode ouvir pelo resto da vida. Ele teve vontade de vê-las dançando, mas de certo modo não quis.

— Os seguranças sabem que ela não deve sair? — perguntou Michael.

— Bem, na realidade não — disse Mona. — Sabe? Seria muito mais fácil se vocês os dispensassem. Ela... ela os perturba. Posso controlá-la melhor se eles não estiverem aí. Ela não vai fugir, não da própria mãe.

— É — disse Rowan. — Vamos dispensá-los.

Michael não tinha tanta certeza. Mas depois concordou.

— Nós estamos nisso... juntos.

A voz de Morrigan chamou novamente. A música aumentou. Mona voltou-se lentamente e os deixou.

 

Tarde da noite, ele ainda as ouvia rindo, e a música de vez em quando, ou seria um sonho com a torre de Stuart Gordon? Depois, o leve batuque das teclas do computador, aquele riso e o suave ruído dos seus pés correndo escada acima. E o som das suas vozes em coro, jovens, agudas e meigas, cantando aquela música.

Para que tentar dormir? Mas na mesma hora ele já adormecia, cansado demais, necessitado demais de descanso e fuga, sedento demais pela simplicidade de lençóis de algodão e do corpo quente de Rowan junto ao seu. Ore, ore por ela. Ore por Mona. Ore por elas...

— Pai Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso nome. Venha a nós o Vosso reino...

Seus olhos abriram-se com espanto.

— Venha a nós o Vosso reino. Não. — A súbita sensação de aflição era enorme demais, embora impalpável. Ele estava cansado demais. — Venha a nós o Vosso reino. — Ele não conseguia destrinchar o problema. Virou-se e enfiou o rosto no espaço quente entre o ombro e o pescoço de Rowan.

— Eu amo você — murmurou ela, uma oração vinda das profundezas do sono; talvez mais reconfortante do que a oração dele havia sido.

 

A LÍMPIDA MONOTONIA DA NEVE, de reuniões sem fim, de telefonemas, das folhas de faxes cheias de estatísticas, resumos, da vida de negócios que ele próprio criara, em busca do ouro e de sonhos.

Ao meio-dia, ele baixou a cabeça sobre a mesa. Havia cinco dias completos que Michael e Rowan foram para casa; e eles não lhe haviam telefonado, nem sequer escrito uma nota. E agora ele se perguntava se seus presentes de algum modo os teriam entristecido ou não tivessem sido adequados. Ou quem sabe eles não o estariam apagando da memória, como ele próprio tentava apagar a lembrança de Tessa, de Gordon morto no chão, de Yuri gaguejando e torcendo as mãos, do inverno frio do vale e dos sarcasmos de Aiken Drumm?

O que procuramos? Do que precisamos? Como podemos saber o que nos fará felizes? Seria simples apanhar o telefone, ligar para Rowan ou Michael, para perguntar se estavam bem, se estavam recuperados da viagem.

E se suas vozes soassem frágeis e indiferentes, e ele ficasse com o aparelho na mão e a linha caída depois de despedidas descuidadas? Não, isso teria sido pior do que nada.

Ou para ser mais exato, não era isso o que ele queria.

Basta ir até lá. Basta vê-los. Sem erguer a cabeça, ele apertou o botão. Preparem o avião. Sair voando da cidade do frio implacável para a terra perdida do amor. Basta olhar para eles, ver a casa com suas luzes aconchegantes, ver através das janelas que eles descreveram com tanto amor, e ir embora sem um ruído, sem implorar que seus olhos encontrassem os dele. Só olhar para eles.

Haverá nisso algum consolo.

Outrora, as moradias eram pequenas e fechadas, sem janelas, fortificadas. E não se podiam ver os seres lá dentro. Mas agora era diferente. Podia-se contemplar uma vida perfeita como se se estivesse examinando um quadro. O vidro transparente era o suficiente para deixar alguém de fora e demarcar o terreno secreto do amor de cada um. Só que os deuses eram generosos, e se podia dar uma espiada lá dentro. Podíamos ver aqueles de quem sentíamos saudades.

Será o suficiente. Faça isso. E eles nunca saberiam. Ele não os assustaria.

O carro estava pronto. Remmick já mandara descer a bagagem.

— Deve ser bom estar indo para o sul, senhor.

— É, para a terra do verão.

— É isso o que significa Somerset, na Inglaterra, senhor.

— É, eu sei. Logo estarei de volta. Mantenha meus aposentos aquecidos. Ligue-me imediatamente se... Bem, não hesite se acontecer alguma coisa.

 

Um crepúsculo eloqüente, uma cidade ainda tão cheia de árvores que as criaturas do ar cantavam a música do cair da tarde. Ele desceu do carro a alguns quarteirões da casa. Conhecia o caminho. Havia verificado no mapa, e agora passava pelas cercas de grade de ferro e pelas trepadeiras rosadas de jasmim-de-veneza. As janelas já estavam cheias de luz, embora o céu se estendesse radiante e caloroso em todas as direções. Ouça o canto das cigarras, e aqueles serão estorninhos que mergulham em vôo como se fosse para dar um beijo, quando é simplesmente para devorar alguma coisa?

Ele andava cada vez mais rápido, assombrando-se com o calçamento irregular, as lajes soltas, os tijolos cobertos de musgo, tantas coisas lindas para tocar e ver. E afinal chegou à esquina.

Ali estava a casa onde havia nascido um Taltos. Imponente para os dias de hoje, com suas paredes emboçadas de modo a parecerem de pedra, e chaminés que subiam altas até as nuvens.

Seu coração batia rápido demais. Seus bruxos.

Não perturbar. Não implorar. Só ver. Perdoem-me por caminhar ao longo da cerca, sob os galhos inclinados dessas árvores floridas; por, de repente nesta rua deserta, eu pular a cerca e cair de leve nos arbustos úmidos.

Nenhum segurança por perto. Será que isso significa que vocês confiam em mim? Que eu nunca viria, sorrateiro, sem convite, sem ser esperado? Não vim roubar. Vim apenas dar o que qualquer um pode dar. Uma olhada de longe. Não se tira nada daqueles que observamos.

Cuidado. Mantenha-se perto da cerca-viva e das árvores altas de folhas lustrosas que dançam com o vento. Ah, o céu é como o céu úmido e macio da Inglaterra, tão próximo, tão cheio de cor!

E essa, seria essa a extremosa, à sombra da qual seu Lasher ficava, assustando um menino pequeno, acenando para que Michael chegasse ao portão? Michael, um bruxo criança que um fantasma pôde detectar, passando no mundo real através de zonas de encantamento.

Ele deixou que os dedos tocassem a casca resinosa. A grama afundava sob seus pés. A fragrância das flores e das plantas, de seres vivos e do solo que respira, estava por toda a parte. Um lugar paradisíaco.

Lentamente ele se voltou e olhou para a casa. Para os alpendres de ferro trabalhado empilhados uns sobre os outros. E aquele havia sido o quarto de Julien, lá em cima, onde as trepadeiras tateavam desesperadas com suas gavinhas no vazio. E ali, por trás daquele biombo, a sala de estar.

Onde vocês estão? Será que eu ouso me aproximar um pouco mais? Mas ser descoberto agora seria tão trágico, quando a noite cai com essa roupagem violeta, as flores refulgem nos canteiros e mais uma vez as cigarras zunem.

Acenderam-se luzes na casa. Por trás de cortinas de renda. Iluminando pinturas nas paredes. Seria assim tão simples que, envolto na escuridão, ele pudesse se acercar das janelas?

Os murais de Riverbend, não era isso o que Michael havia descrito? E será que eles estariam se reunindo tão cedo para sua refeição? Ele caminhou pela grama com a maior leveza possível. Pareceria ser um ladrão? Roseiras o protegiam dos que estavam por trás do vidro.

Tantos. Mulheres jovens e velhas, e homens de terno, e vozes erguidas em controvérsia. Esse não era o meu sonho. Não era essa a minha expectativa. No entanto, com os olhos grudados no portal, ele não conseguia se afastar. Basta que me dê um vislumbre dos meus bruxos.

E lá estava Michael, como a resposta direta à sua prece, gesticulando com o que parecia ser uma pequena fúria, com outros que apontavam com o dedo e falavam. E então, todos ao mesmo tempo se sentaram, e os criados começaram a se movimentar com agilidade pela sala. Ele sentia o cheiro da sopa, da carne. Comida estranha.

Ah, sua Rowan, entrando na sala e insistindo em algum ponto enquanto olhava para os outros, enquanto argumentava, enquanto fazia com que os homens voltassem aos seus lugares. Um guardanapo branco havia caído ao chão. Os murais resplandeciam com perfeitos céus de verão. Se ao menos ele conseguisse ter chegado mais perto.

No entanto, ele podia ver com nitidez tanto a ela quanto a ele, e ouvir o ruído das colheres nos pratos. O cheiro de carne, de humanos, cheiro de...?

Tinha de estar enganado! Mas o cheiro era tão forte, antigo e tirânico que o dominou, e o momento simplesmente fugiu ao seu controle. O cheiro da fêmea!

E exatamente quando ele estava dizendo a si mesmo mais uma vez, Não pode ser, quando ele estava procurando a pequena bruxa de cabelos vermelhos, entrou na sala a Taltos.

Ele fechou os olhos. Escutou o coração. Sentiu seu cheiro que emanava das paredes de tijolo, que escapava por fendas e fissuras em volta do vidro, que se filtrava só Deus sabe de onde, para mexer com o órgão entre as suas pernas, para fazer com que recuasse, ofegante, querendo fugir, e absolutamente imóvel.

Fêmea. Taltos. Ali. E seus cabelos ruivos como chamas abaixo do lustre, e os braços abertos enquanto falava, veloz, ansiosa. Ele ouvia as notas agudas manifestas na sua voz. Ai, e a expressão no seu rosto, no seu rosto de recém-nascida. Os braços, tão delicados no vestido transparente de point d 'esprit. E o sexo,. bem lá no fundo, pulsando com o cheiro, uma flor que se abria sozinha e na escuridão. O cheiro a lhe penetrar o cérebro.

Meu Deus, e eles guardaram dele esse segredo! Rowan! Michael!

Ela está ali, e eles não lhe contaram e queriam que ele nunca soubesse. Seus amigos, seus bruxos!

Com frieza, tremulo, enlouquecido pelo cheiro e entorpecido, ele os observava através da vidraça. A humanidade, não a sua espécie, a excluí-lo; e a linda princesa ali parada. E ela estaria protestando? Estaria reclamando? Havia lágrimas nos seus olhos? Ah, que criatura linda, esplêndida.

Ele saiu de detrás dos arbustos, não por determinação mas por pura permissão. Parou atrás do estreito pilar de madeira e agora ouvia seus gritos queixosos.

— Estava na boneca, o mesmo cheiro! Vocês jogaram fora o papel da embalagem, mas eu senti o cheiro na boneca. Estou sentindo o cheiro nesta casa! — Ela gemia, cheia de tristeza.

Ah, uma recém-nascida.

E que conselho severo era esse que não atendia sua súplica? Michael fez um gesto pedindo calma. Rowan baixou a cabeça. Um dos outros homens levantou-se.

— Vou quebrar a boneca se vocês não me contarem! — berrou ela.

— Não, isso você não vai fazer — gritou Rowan, e agora foi ela quem correu para a menina. — Não vai. Não vai. Michael, pegue a Bru. Não deixe que ela faça isso.

— Morrigan, Morrigan...

E ela. chorando tão baixinho, c o perfume aumentando e bailando no ar.

E eu amei vocês, pensou Ash. E eu pensei por algum tempo que poderia ser dos seus. Angústia. Ele chorou. Samuel estava tão certo. E ali, por trás daquelas vidraças...

— Eu choro, ou eu vou embora? — murmurou ele. — Ou quebro esse vidro? Faço com que se confrontem com seu próprio silêncio mentiroso, por não terem me contado isso? Por não terem me contado!

— Ah, nós choramos como crianças!

E ele chorava como ela chorava. Será que eles não compreendiam? Ela havia captado seu cheiro naqueles presentes, meu Deus. Que agonia para ela, pobre recém-nascida!

Ela ergueu a cabeça. Os homens ao seu redor não conseguiam fazer com que se sentasse. O que havia atraído seu olhar?O que a fez olhar para a janela? Ela não podia vê-lo para lá do brilho ofuscante da luz.

Ele deu um passo atrás na grama. O cheiro, é, capte o cheiro, minha querida, minha preciosa mulher recém-nascida. E, fechando os olhos, ele recuou cambaleante.

Ela já estava grudada no próprio vidro. Suas mãos espalmadas nas vidraças. Ela sabia que ele estava ali! Ela o havia farejado.

O que eram profecias, planos, o que era a razão, quando por uma eternidade ele havia visto alguém da sua espécie só em sonhos, ou velha, murcha e irracional como Tessa, enquanto ela era jovem e ardente, e estava à sua procura.

Ele ouviu o vidro se quebrar. Ouviu seu grito e ficou olhando num silêncio atordoado, paralisado, enquanto ela corria para ele.

— Ashlar! — gritou ela com aquela voz alta c aguda, e então suas palavras vieram na velocidade que só ele podia ouvir, cantando coisas do círculo, das lembranças, dele.

Rowan chegara à beirada do alpendre. Michael estava ali.

Mas isso já era passado, e com ele todas as obrigações.

Ela vinha pela grama molhada.

Voou para os seus braços, envolvendo-o com os cabelos vermelhos. Caíam dela minúsculos fragmentos de vidro brilhante. Ele a abraçou, seus seios, seus seios quentes, pulsantes. Deixou sua mão subir por baixo das saias para tocar no calor do seu sexo, a prega viva, úmida e excitada para ele, enquanto ela gemia e lambia suas lágrimas.

— Ashlar, Ashlar!

— Você sabe meu nome! — murmurou ele, beijando-a com violência. Como conseguia não lhe arrancar as roupas ali mesmo?

Ela não era ninguém de quem ele se lembrasse ou que tivesse conhecido. Não era Janet que havia morrido no fogo. Não precisava ser. Era ela mesma, da sua espécie, seu amor suplicante, carente.

E olhe como estavam parados, a observá-lo, seus bruxos. Outros vieram ao alpendre, todos bruxos! Olhe só para eles! Sem levantar um dedo para se interpor entre eles, para separá-lo da fêmea preciosa que fugira para os seus braços. O rosto de Michael,. especulativo; e o de Rowan, o que era? O que ele via na luz? Seria resignação?

Quis pedir desculpas. Preciso levá-la. Vocês sabem disso. Perdoem-me. Não vim para levá-la embora. Não vim julgar e depois seqüestrar. Não vim descobrir e depois refrear o meu amor.

Ela o consumia com seus beijos; e os seios, seus seios macios e cheios. Mas quem chegava agora, correndo pelas lajes, era a bruxa de cabelos vermelhos, Mona?

— Morrigan?

— Estou indo embora, mãe, já vou. — Ela cantou essas palavras tão rápido, como os outros poderiam entender? Mas era o suficiente para ele. Ele a ergueu e, exatamente quando começava a correr, viu a mão de Michael num aceno de despedida, o gesto simples e forte que dá permissão para que se vá e deseja feliz viagem, e viu sua linda Rowan concordar com a cabeça. A bruxinha Mona só berrava!

Ele correu com sua belezinha pela escuridão. Seus membros longos e leves não eram nada para ele enquanto corria, atravessando o trecho escuro de grama, seguindo pelo caminho de pedra, cruzando mais um jardim sombrio e perfumado. Úmido e denso como as florestas de antigamente.

— É você, é você. Ai, e o cheiro nos presentes me deixava louca.

Ele a pôs no alto do muro, pulou-o e a apanhou de novo na rua deserta e escura. Mal conseguia agüentar isso. Segurando uma grande mancheia de cabelos, ele puxou sua cabeça para trás, com os lábios descendo pelo seu pescoço.

— Ashlar, aqui não! — exclamou ela, embora estivesse doce e submissa nos seus braços. — No vale, Ashlar, no vale, no círculo em Donnelaith. Ele ainda está lá. Eu sei. Eu o vejo.

Está bem, está bem. Ele não sabia como ia resistir, nas longas horas do vôo transatlântico, aninhado com ela no escuro. Mas ele não podia machucar seus seios macios, não podia ferir sua pele frágil, reluzente. Correu, segurando sua mão, e fazendo com que ela o acompanhasse com grandes passos juvenis.

É, o vale.

— Minha querida — disse ele, baixinho. Olhou mais uma vez de relance para a casa, tão alta, sombria e sólida, como se cheia de segredos, de bruxos, de magia. Onde a Bru tudo vê. Onde o livro permanece. — Minha noiva — disse ele, esmagando-a contra o peito. — Minha noivinha.

Seus pés batiam ruidosos nas pedras, e então ele a pegou no colo novamente, correndo mais assim do que os dois correndo juntos.

A voz de Janet na caverna voltou a ele. Poesia antiga, misturada com medo e com remorso, crânios a reluzir nas trevas.

E as lembranças não são mais o estimulo, não são mais o pensamento, não são mais a mente procurando ordenar todo aquele enorme peso das nossas vidas, fracassos, erros, momentos de perda indescritível, humilhação, das nossas longas vidas. Não, as lembranças eram algo tão suave e natural quanto as árvores escuras elevando-se acima das suas cabeças, quanto o céu violáceo nesse admirável final de luz, no ronronar de bosque da noite que os envolvia.

Dentro do carro, ele a deitou no colo, abriu seu vestido, agarrou seus cabelos e os esfregou nos lábios, nos olhos. Ela cantarolava; ela chorava.

— O vale — disse ela, baixinho, com o rosto corado, os olhos úmidos.

— Antes que amanheça aqui, já será manhã lá, e nós estaremos entre aquelas pedras — disse ele. — Nós nos deitaremos na grama, e o sol nascerá sobre nós, inseparáveis.

— Eu sabia, eu sabia — disse ela no seu ouvido. Sua boca prendeu-Ihe o seio, sugando o doce néctar da carne pura, gemendo enquanto se aconchegava a ela.

E o carro discreto saiu veloz da escuridão sombreada, deixando para trás a esquina lúgubre e sua casa majestosa, com os grandes galhos frondosos segurando as trevas como fruto maduro sob o céu violáceo, o carro, um projétil tendo como alvo o coração verde do mundo, levando-os ali dentro, os dois, o macho e a fêmea, juntos.

 

                                                                                            Anne Rice

 

 

                      

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