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A TORRE NEGRA 3 / Stephen King
A TORRE NEGRA 3 / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TORRE NEGRA

 

Parte III

NESTA NÉVOA DE VERDE E DOURADO - VES’ KA GAN

 

A SRA. TASSENBAUM DIRIGE PARA O SUL

O fato de sua quase absurda velocidade de reflexo jamais ocorreu a Jake Chambers. Só sabia que, quando ele cambaleou para fora do Devar-Toi, voltando à América, sua camisa — projetando-se numa curva de gravidez pelo contorno de Oi — estava saindo da calça jeans. O trapalhão, que nunca tinha muita sorte quando se tratava de passar entre os mundos (da última vez fora quase esmagado por um táxi), se soltou. Talvez qualquer outra pessoa no mundo tivesse sido incapaz de evitar que o animal caísse (o que, aliás, muito provavelmente não teria de modo algum machucado Oi), mas Jake não era qualquer outra pessoa. Ka o queria com tal intensidade que contornara a própria morte para colocá-lo ao lado de Roland. Agora suas mãos saltaram com uma velocidade tão grande que, por um momento, não foram mais que um borrão vazio. Quando reapareceram, uma delas se enroscava atrás do pescoço peludo de Oi e a outra num pêlo mais curto, na traseira do lombo comprido. Jake pousou o amigo na calçada. Oi olhou-o lá de baixo e deu um curto latido que parecia expressar não uma idéia única, mas duas: obrigado e não faça isso de novo.

— Vamos — disse Roland. — Temos de correr.

Jake seguiu-o em direção ao mercado, Oi se encaixando na posição habitual junto ao calcanhar esquerdo do garoto. Na porta havia uma tabuleta pendurada numa pequena ventosa de borracha. A tabuleta dizia: ESTAMOS ABERTOS, VENHA NOS VISITAR, exatamente como em 1977. Afixado na vitrine à esquerda da porta havia isto:

 

VENHAM TODOS À

CEIA-FEIJOADA À MODA DE BOSTON DA

PRIMEIRA IGREJA CONGREGACIONAL

sábado 19 de junho de 1999 no

cruzamento da rota 7 com a estrada Klatt

CASA PAROQUIAL (Fundos)

17-19:30 horas

NA PRIMEIRA CONGO

“ESTAMOS SEMPRE FELIZES EM VÊ-LO, VIZINHO”

 

Jake pensou: A ceia-feijoada vai começar mais ou menos daqui a uma hora. Já devem estar esticando as toalhas nas mesas e colocando os talheres e pratos.

A mensagem ao público afixada à direita da porta era mais inquietante:

 

Primeiro Templo dos Aparecidos de Lovell-Stoneham

Por que VOCÊ não vem ao Culto?

Serviços dominicais: 10:00 horas

Serviços das quintas-feiras: 07:00 horas

NOITE JOVEM TODA A QUARTA-FEIRA!!! 19-21 horas!

Jogos! Música! Escritura!

*** E ***

NOTÍCIAS DOS APARECIDOS!

Ei, Rapaziada!

“QUEM NÃO FOR NÃO SABE O QUE PERDE!!!”

“Procuramos o Portal para o Céu — Não Quer Procurar Conosco?”

 

De repente Jake estava se lembrando de Harrigan, o pastor de rua na esquina da Segunda Avenida com a rua 46 e se perguntando para qual dessas duas igrejas ele poderia se sentir atraído. Talvez a cabeça tivesse dito a Primeira Congo, mas o coração...

— Depressa, Jake — Roland repetiu e houve um tilintar quando o pistoleiro abriu a porta. Cheiros bons pairavam no ar, lembrando a Jake (como haviam lembrado a Eddie) o Took’s na rua Alta de Calla: café e balas de hortelã, tabaco e salame, azeite de oliva, o aroma forte da salmoura, do açúcar, dos temperos e de muita coisa boa.

Ele seguiu Roland para dentro do mercado, consciente de que, afinal, tinha trazido pelo menos duas coisas: a pistola automática Coyote estava enfiada no cinto da calça jeans e a saca de Orizas ainda pendia do ombro, do lado esquerdo (para que a meia dúzia de pratos restantes pudesse estar facilmente ao alcance da mão direita).

 

Wendell “Chip” McAvoy estava no balcão de frios, pesando uma considerável porção de peru fatiado curado no mel para a sra. Tassenbaum. Até o sino da porta tilintar, virando mais uma vez a vida de Chip de cabeça para baixo (virou tartaruga, costumavam dizer os antigos quando o carro entrava capotando no acostamento), eles estavam falando sobre a crescente presença de jet skis no lago Keywadin... ou melhor, a sra. Tassenbaum estava falando nisso.

Chip considerava a sra. T. uma veranista mais ou menos típica: rica como um Creso (ou pelo menos o marido era, com um daqueles novos negócios ponto com), tagarela como um papagaio bêbado de uísque e maluca como Howard Hughes depois de uma dose de morfina. Ela podia se dar ao luxo de um iate com cabine (e duas dúzias de jet skis para rebocá-lo, se fosse essa sua fantasia), mas vinha ao mercado naquela extremidade do lago num surrado e velho barco a remo, que ficava amarrado no mesmo lugar onde John Cullum costumava amarrar o seu, pelo menos até Aquele Dia (depois que os anos refinaram a história, proporcionando um grau de pureza ainda maior, dando o brilho de uma peça de mobília de teca freqüentemente polida, Chip passara a transmitir cada vez mais um status de letra maiúscula com sua voz, falando d’Aquele Dia com os mesmos tons reverentes que o reverendo Conveigh usava quando se referia a Nosso Senhor). La Tassenbaum era falante, intrometida, bonitona (mais ou menos... ele supôs... se você não se importava com a maquiagem e o laquê no cabelo), cheia das verdinhas e republicana. Naquelas circunstâncias, Chip McAvoy achara perfeitamente justificado introduzir o polegar na ponta da balança... um truque que aprendera do pai, que o instruíra do quase-dever de trapacear pessoas de fora se eles podiam pagar mais, mas de nunca trapacear gente de sua terra natal, nem mesmo se fossem ricos como aquele escritor, King, de Lovell. Por quê? Porque a notícia de qualquer trapaça corria e daí, a freguesia dos veranistas seria a única fonte de renda, e tente depender disto no mês de fevereiro, quando os bancos de neve nas margens da rota 7 chegavam a 3 metros de altura. Não era fevereiro, mas sem dúvida a sra. Tassenbaum — uma Filha de Abraão, ele tinha certeza — não era daqueles lados. Não, a sra. Tassenbaum e seu marido ponto com, rico como um Creso, voltariam à Nova York judia assim que vissem a primeira folha colorida cair. Era por isso que Chip se sentia perfeitamente à vontade em transformar, graças à ponta do polegar na balança, seis dólares de peru em sete dólares e oitenta cents. Nem lhe custava concordar com a sra. Tassenbaum quando mudou de assunto e começou a dizer como Bill Clinton era um homem terrível, embora Chip tivesse votado duas vezes em Bubba e fosse capaz de votar nele uma terceira vez se a constituição permitisse que Clinton concorresse a outro mandato. Bubba era esperto, capaz de persuadir os cabeça-de-toalha a fazer o que ele queria. Além disso não tinha se esquecido inteiramente do trabalhador e, por Lorde Harry, conseguia mais bucetas que um assento de vaso sanitário.

— E agora Gore espera simplesmente... pegar uma carona! — disse a sra. Tassenbaum revirando a bolsa atrás do talão de cheques (o peru na balança ganhou magicamente outros 50 gramas, mas Chip achou prudente ficar por aí). — Diz ele que inventou a internet! Hum! Não foi bem assim! Na realidade, conheço o homem que realmente inventou a internet! — Ela ergueu os olhos e concedeu a Chip um sorrisinho travesso (agora o polegar de Chip estava bem longe dos pratos da balança; ele tinha um instinto para perceber quando a coisa deixava de ser segura, o diabo que não tinha). A freguesa baixou a voz para um confidencial isto-fica-entre-nós. — Não é de admirar, venho dormindo na mesma cama que ele há quase vinte anos!

Chip deu uma risada sincera, tirou o peru fatiado da balança e colocou-o numa folha de papel branco. Ficou satisfeito em deixar para trás o tema dos jet skis, até porque estava comprando um na Viking Motors (“Brinquedo para o Garoto”) de Oxford.

— Sei o que quer dizer! Esse tal de Gore é muito matreiro! — A sra. Tassenbaum estava abanando entusiasticamente a cabeça e Chip decidiu investir um pouco mais. Mal não ia fazer, por Cristo. — O cabelo dele, por exemplo... como se pode confiar num homem que põe todo aquele gel no...

Foi nesse momento que o sino tilintou sobre a porta. Chip ergueu os olhos. Viu. E ficou imóvel. Uma verdadeira torrente de água havia passado sob a ponte desde Aquele Dia, mas Wendell “Chip” McAvoy reconheceu o homem que havia causado toda a confusão no momento em que ele passou pela porta. A pessoa simplesmente nunca se esquece de certos rostos. E afinal ele não sabia, nas profundezas mais secretas do coração, que o homem com os terríveis olhos azuis ainda não havia terminado seu trabalho e ia voltar?

Para procurá-lo?

Essa idéia rompeu sua paralisia. Chip se virou e correu. Não deu mais que três passos pelo lado de dentro do balcão quando um tiro espocou no mercado, alto como trovão — o lugar estava maior e mais chique que em 1977, graças a Deus e à insistência do pai de Chip numa extravagante apólice de seguro. A sra. Tassenbaum deu um grito estridente. Três ou quatro pessoas que caminhavam pelos corredores se viraram com expressões de assombro e uma delas perdeu os sentidos, caindo no chão. Chip teve tempo de registrar que era Rhoda Beemer, filha mais velha de uma das duas mulheres que tinham sido mortas ali n’Aquele Dia. De repente ele teve impressão de que o tempo se voltara sobre si mesmo e que era a própria Ruth desmaiando com uma lata de creme de milho escorregando na mão agora relaxada. Ouviu uma bala passar zumbindo rente à sua cabeça, como abelha furiosa, e parou de imediato, mãos no alto.

— Não atire, senhor! — ele se ouviu berrar com a voz fina, trêmula de um homem velho. — Tire o que quiser da caixa, mas não me mate!

— Vire — disse a voz do homem que fizera o mundo de Chip virar tartaruga n’Aquele Dia, o homem que quase acabara com ele (passara duas semanas no hospital de Bridgton, pelo amor de Jesus!) e que tinha agora reaparecido como um velho monstro saindo do armário de alguma criança. — Os outros no chão, mas você, que é o dono da coisa, se vira. Se vira e me olha.

“Me olha com atenção.”

 

O homem oscilou de um lado para o outro e, por um momento, Roland achou que ele fosse desmaiar em vez de se virar. Talvez alguma parte do cérebro dele, orientada para a sobrevivência, sugerisse que desmaiar era um modo mais provável de fazê-lo morrer, pois o dono do mercado conseguiu se manter de pé e acabar se virando para encarar o pistoleiro. A roupa de Chip era estranhamente similar à que usava da última vez que Roland estivera lá; podia ser a mesma gravata preta e o mesmo avental de açougueiro, amarrado bem acima do diafragma. O cabelo continuava penteado para trás no crânio, só que agora era todo branco em vez de grisalho-prateado. Roland recordou o modo como o sangue tinha corrido para trás do lado esquerdo da têmpora do dono do mercado quando uma bala — pelo que o pistoleiro sabia, uma bala atirada pelo próprio Andolini — o raspara. Agora havia ali um nó cinza de tecido cicatrizado. Roland achou que o homem penteava o cabelo de um modo que em vez de esconder essa marca a tornava visível. Ou ele tivera uma sorte absurda naquele dia ou fora salvo por ka. Roland achava mais provável que tivesse sido o ka.

A julgar pelo aflito ar de reconhecimento nos olhos do dono do mercado, ele também pensava assim.

— Você tem um cartomóbile, um trucamóbile ou um tack-see (téc-si)? — Roland perguntou, mantendo o cano do revólver contra a cintura do dono do mercado.

Jake deu um passo à frente, emparelhando com Roland.

— Que coisa você dirige? — ele perguntou ao dono do mercado. — É o que ele quer saber.

— Caminhão! — o homem conseguiu dizer. — International Harvester! Está aí fora no estacionamento! — Pôs a mão sob o avental tão subitamente que Roland ficou a um triz de baleá-lo. O homem (graças a Deus para ele) não pareceu reparar. Todos os fregueses do mercado estavam agora deitados de bruços no chão, incluindo a mulher que estivera no balcão. Roland podia sentir o cheiro da carne que ela estava em vias de comprar e seu estômago roncou. Estava cansado, faminto, arrasado pela dor e tinha coisas demais em que pensar, um número absurdo delas. Sua mente parecia no limite. Jake teria dito que ele precisava “dar uma desligada”, mas ele não via qualquer possibilidade de desligadas no futuro imediato deles.

O dono do mercado estava oferecendo um molho de chaves. Seus dedos tremiam e as chaves tilintavam. O sol do final de tarde entrando de lado pelas vitrines caiu sobre elas, fazendo ricochetear complicados reflexos para os olhos do pistoleiro. Primeiro o homem de avental branco tinha tirado uma das mãos de vista sem pedir permissão (e nada devagar); agora aquilo, segurando um molho de objetos metálicos cheios de reflexos, como se quisesse cegar o adversário. Era como se estivesse tentando ser morto. Mas também fora desse jeito no dia da emboscada, não é? O dono do mercado (na época de pés mais velozes e sem aquela corcunda de velho nas costas) havia seguido a ele e a Eddie, passando de um ponto a outro como um gato que não pára de seguir os pés do dono, aparentemente indiferente às balas que voavam ao seu redor (assim como parecera indiferente à que raspara pelo lado de sua cabeça). Nessa altura, Roland recordara, ele havia falado sobre o filho, quase como um homem conversando num salão de barbeiro enquanto espera a vez de se sentar sob as tesouras. Um ka-mai, em suma, e gente assim estava com freqüência protegida contra qualquer mal. Pelo menos até que o ka se cansasse de suas palhaçadas e resolvesse tirá-los da face da Terra com um tapa.

— Pegue o caminhão, pegue e vá embora! — estava dizendo o dono do mercado. — É seu! Estou dando para você! É verdade!

— Se não parar de jogar o maldito reflexo dessas chaves nos meus olhos, sai, o que vou pegar é seu último sopro de vida — disse Roland. Havia outro relógio atrás do balcão. Ele já havia reparado como aquele mundo era cheio de relógios, como se as pessoas que morassem ali achassem que tendo muitos poderiam engaiolar o tempo. Dez para as quatro, o que significava que já estavam há nove minutos do lado-América. O tempo estava correndo, correndo. Em algum lugar por perto, Stephen King estava quase certamente em seu passeio vespertino, sob extremo perigo, embora não soubesse disso. Ou será que já acontecera? Eles — pelo menos, Roland — tinham sempre presumido que a morte do escritor iria atingi-los em cheio, como outro feixemoto, mas talvez não. Talvez o impacto da morte dele fosse mais gradual.

— Estamos muito longe da Via do Casco da Tartaruga? — Roland perguntou asperamente ao dono do mercado.

O idoso sai se limitava a encará-lo, olhos arregalados e vidrados de terror. Nunca em sua vida Roland tivera tanta vontade de atirar num homem... ou pelo menos dar-lhe um golpe com a coronha do revólver. O sujeito parecia estúpido como um bode com a pata presa numa fenda de rocha.

Então a mulher deitada na frente do balcão de frios falou. Estava de cabeça erguida para Roland e Jake, as mãos entrelaçadas atrás das costas.

— Fica em Lovell, senhor. A uns oito quilômetros daqui.

Um olhar nos olhos dela (grandes e castanhos, com temor mas não em pânico) e Roland concluiu que a mulher, não o dono do mercado, era a pessoa de quem precisava. A menos, é claro, que...

Ele se virou para Jake.

—É capaz de dirigir o caminhão por oito quilômetros?

Roland viu o garoto querendo dizer que sim, mas logo percebendo que não podia arriscar o fracasso tentando fazer uma coisa que, menino de cidade, nunca tinha feito na vida.

— Não — disse Jake. — Acho que não. E você?

Roland vira Eddie dirigindo o carro de John Cullum. A coisa não parecia assim tão difícil... mas havia seu quadril a considerar. Rosa tinha lhe dito que uma torção no quadril piorava rápido — como um incêndio tocado por ventos fortes, Rosa dissera — e agora ele sabia o que Rosa pretendera dizer. No caminho para Calla Bryn Sturgis, a dor no quadril não fora mais que uma eventual pontada. Agora era como se a junta tivesse sido injetada com chumbo incandescente e daí envolvida por fileiras de arame farpado. A dor se irradiava, descia por toda a perna até o tornozelo direito. Ele observara como Eddie manipulava os pedais, alternando entre aquele que fazia o carro avançar e aquele que o fazia diminuir a marcha, sempre usando o pé direito. O que significava que as articulações do quadril direito estariam sempre rolando na junta.

Não achava que fosse capaz de fazer aquilo. Não com algum grau de segurança.

— Acho que não — disse ele. Tirou as chaves do dono do mercado e olhou para a mulher deitada na frente do balcão. — Fique de pé, sai.

A sra. Tassenbaum fez o que lhe era mandado e quando ficou de pé Roland entregou-lhe as chaves. Continuo encontrando pessoas habilidosas aqui, ele pensou. Se esta se mostrar tão habilidosa quanto Cullum, tudo ainda pode ficar muito bem.

— Você vai levar a mim e ao meu jovem amigo a Lovell — disse Roland.

— A Via do Casco da Tartaruga —- disse ela.

— Você diz a verdade, eu digo obrigado.

— Você vai me matar depois de chegar aonde está querendo ir?

— Não, a não ser que você demore demais — disse Roland.

Ela pensou no assunto e abanou a cabeça.

— Então eu não faço isso. Vamos.

— Boa sorte, sra. Tassenbaum — o homem disse em voz baixa quando ela começou a avançar para a porta.

— Se eu não voltar — disse ela —, não se esqueça de uma coisa: foi meu marido quem inventou a internet... ele e seus amigos, em parte na CalTech e em parte em suas próprias garagens. Não Albert Gore!

O estômago de Roland tornou a roncar. Ele se estendeu pelo balcão (o dono do mercado se encolhendo como se Roland fosse portador da peste vermelha), viu o peru fatiado que a mulher ia levar e dobrou três fatias na boca. Passou o resto a Jake, que comeu duas fatias e depois olhou para Oi, que erguia a cabeça para a carne com grande interesse.

— Vou dar sua parte quando entrarmos no caminhão — Jake prometeu.

— Hão — disse Oi; depois, com muito mais ênfase: — Parte!

— Sagrado e solene Jesus! — disse o dono mercado.

 

O sotaque do norte do dono do mercado podia ser divertido, mas seu caminhão não era. Para começar, caixa de marcha manual. Irene Tassenbaum de Manhattan não dirigia um carro de câmbio manual desde seus tempos como Irene Cantora de Staten Island. Era também um modelo de alavanca e com esses ela não tivera nenhuma experiência.

Jake estava sentado a seu lado com os pés colocados em volta da dita alavanca e Oi (ainda mastigando o peru) em seu colo. Roland arriara no banco do carona, tentando não rosnar com a dor na perna. Irene esqueceu de colocar o veículo em ponto morto quando virou a chave. O I-H deu um pulo para a frente e morreu. Felizmente a picape estava rodando pelas estradas do Maine ocidental desde o meio dos anos 1960 e foi o pulo tranqüilo de uma égua idosa em vez do coice alucinado de um potro; senão Chip McAvoy teria mais uma vez perdido pelo menos uma das vidraças de sua fachada. Oi se debateu no colo de Jake para manter o equilíbrio e, depois de borrifar uma boca cheia de peru, soltou uma palavra que aprendera de Eddie.

Irene se virou para o trapalhão com olhos arregalados, sobressaltados.

— Essa criatura disse mesmo porra, meu jovem?

— Deixa pra lá — Jake respondeu. Sua voz estava trêmula. Os ponteiros do relógio Cabeça de Javali na vitrine marcavam agora cinco minutos para as quatro. Como Roland, o garoto nunca sentira o tempo como algo tão fora de controle. — Use o pedal da embreagem e nos tire daqui!

Felizmente, o esquema de câmbio fora gravado no alto da alavanca de marcha e ainda era meio visível. A sra. Tassenbaum pisou na embreagem com o tênis, arranhou a marcha fazendo um barulho infernal e finalmente conseguiu engatar a ré. A picape recuou para a rota 7 numa série de arrancos, depois tornou a morrer no meio da linha branca divisória. Ela virou a ignição, percebendo, um pouco tarde demais para impedir outra série de saltos espasmódicos, que se esquecera de novo de pisar na embreagem. Roland e Jake estavam agora se apoiando nervosamente no empoeirado painel metálico, onde um adesivo desbotado proclamava AMÉRICA! AME-A OU DEIXE-A!, em vermelho, branco e azul. A série de solavancos acabou sendo uma boa coisa, pois nesse momento um caminhão carregado de toras de madeira — Roland achou impossível não pensar naquele que batera da última vez que tinham estado ali — surgiu na crista da subida ao norte do mercado. Se a picape não tivesse voltado aos solavancos para o estacionamento do mercado (amassando o pára-lama de um carro estacionado quando parou), teria sido atingida pelo meio. E muito provavelmente estariam mortos. O caminhão de madeira deu uma guinada, buzina tocando, rodas traseiras levantando poeira.

A criatura no colo do garoto — que parecia à sra. Tassenbaum uma estranha mistura de cão e quati — tornou a latir.

Porra. Ela tinha quase certeza.

O dono do mercado e os fregueses estavam enfileirados do outro lado do vidro e, de repente, ela percebeu como devia se sentir um peixe num aquário.

— Senhora, sabe ou não dirigir esta coisa? — o garoto gritou. Ele levava uma espécie de bolsa sobre o ombro. Ela achou parecida com as sacolas daqueles meninos-jornaleiros, só que era de couro, não de lona. Aparentemente carregava pratos.

— Sei dirigir esta coisa, rapaz, não se preocupe. — Estava aterrorizada e, no entanto, ao mesmo tempo... será que estava gostando daquilo? Ela quase achou que estava. Nos últimos 18 anos fora pouco mais que um ornamento do grande David Tassenbaum, uma personagem coadjuvante de sua vida cada vez mais famosa, a senhora que dizia “experimente um destes” enquanto oferecia uma bandeja de hors d’oeuvres nas festas. Agora, de repente, estava no centro de alguma coisa e desconfiava que fosse algo de fato muito importante.

— Respire fundo — disse o homem com o rosto áspero e queimado de sol. Os brilhantes olhos azuis se cravaram nos dela e quando o fizeram foi difícil pensar em qualquer outra coisa. Além disso, a sensação foi agradável. Se isto for hipnose, ela pensou, deviam ensiná-la nas escolas públicas. — Prenda o ar, depois solte. E nos leve, pelo bem de seu pai!

Ela inspirou profundamente de acordo com a instrução e de repente odia pareceu mais claro — quase brilhante. E ela ouvia vozes cantando baixo. Vozes incríveis. Estaria o rádio do caminhão ligado, sintonizado em algum programa de ópera? Não dava tempo para verificar. Mas era bonito, fosse o que fosse. Tão tranqüilamente como respirar fundo.

A sra. Tassenbaum pisou na embreagem e ligou o motor de novo. Desta vez encontrou a marcha a ré na primeira tentativa e recuou quase suavemente para a estrada. Num primeiro esforço para avançar, engrenou a segunda em vez da primeira e o motor quase morreu quando ela soltou a embreagem, mas então o motor pareceu ficar com pena dela. Com um assobio de pistões soltos e uma acelerada pancada seca embaixo do capo, começou a rodar para a frente, na direção da divisa Stoneham-Lovell.

— Sabe onde fica a Via do Casco da Tartaruga? — Roland perguntou. Na frente deles, junto a uma placa dizendo ÁREA DE CAMPING MILHÃO DE DÓLARES, uma minivan azul e velha entrou de repente na estrada.

— Sim — disse ela.

— Tem certeza? — A última coisa que o pistoleiro queria era perder um tempo precioso catando a estrada vicinal onde King morava.

— Sim. Temos amigos que moram lá. Os Beckhardt.

Por um instante a mente de Roland apenas tateou, sabendo que ouvira o nome mas sem saber onde. Então sacou. Beckhardt era o nome do dono do chalé onde ele e Eddie tiveram sua palestra final com John Cullum. Roland sentiu uma nova pontada de dor no coração lembrando-se de como Eddie estava naquela tarde trovejante, ainda tão forte e cheio de vida.

— Tudo bem — disse ele. — Acredito em você.

Tassenbaum o olhou acima do garoto sentado no meio.

— O senhor está com uma pressa infernal... como o coelho branco em Alice no País das Maravilhas. Que encontro tão importante o deixa com tanto medo de chegar atrasado?

Roland balançou a cabeça.

— Não importa, apenas dirija. — Olhou para o relógio no mostra-dor, mas ele não funcionava, tinha parado há muito tempo com os ponteiros marcando (é claro) 9:19. — Talvez ainda não seja tarde demais.

À frente, ignorada, a van azul começou a se afastar. De repente cruzou a linha divisória da rota 7 para a pista em sentido sul e a sra. Tassenbaum quase cometeu um bon mot — algum comentário sobre quem começa a beber antes das cinco —, mas então a van azul voltou à pista sentido norte e passou pela próxima subida, dirigindo-se para a cidade de Lovell.

A sra. Tassenbaum não ligou para aquilo. Tinha coisa mais importantes em que pensar. Por exemplo...

— Se não quiserem, vocês não têm de responder ao que vou perguntar — disse ela —, mas admito que estou curiosa: vocês são aparecidos, rapazes?

 

Bryan Smith passou as últimas duas noites — juntamente com seus rottweilers, gêmeos idênticos de ninhada que ele batizou de Bala e Pistola — no Camping Milhão de Dólares, logo depois da divisa Lovell-Stoneham. Um lugar bonito, junto ao rio (os habitantes locais chamam de ponte Milhão de Dólares a precaria estrutura de madeira sobre a água, o que Bryan entende como piada e, por Deus, muito engraçada). Além disso, as pessoas — tipos hippie em geral vindos das áreas rurais de Sweden, Harrison e Waterford — às vezes aparecem ali com drogas para vender. Bryan gosta de ficar doidão, gosta de ficar chapado, que bom conseguir isso, e ele está chapado naquela tarde de sábado... não muito, não do modo como gostaria de estar, mas o suficiente para bater uma larica. No Center Lovell Store tem aquelas barras Mars. Nada melhor que aquilo para a larica.

Ele sai do camping e pega a rota 7 sem se preocupar muito em olhar. E diz: “Uau, esqueci de novo!” Mas não há tráfego. Mais tarde — especialmente após o Quatro de Julho e até o Dia do Trabalho — haverá bastante tráfego, mesmo ali nos cantões, e ele provavelmente ficará mais perto de casa. Sabe que não é lá muito bom motorista; mais uma multa por excesso de velocidade ou uma batidinha e provavelmente vai ficar com a carteira de motorista suspensa por seis meses. De novo.

Nenhum problema desta vez, contudo; nada vindo a não ser uma velha picape, e o cara está quase um quilômetro atrás.

“Venha comer minha poeira, caubói!”, ele diz com uma risadinha. Não sabe por que diz caubói quando as palavras em sua mente eram filho-da-puta, como em venha comer minha poeira, filho-da-puta, mas a coisa soa bem. E parece certa. Ele vê que passou para a pista da contramão e corrige o curso. “De volta para a estrada!”, grita e acaba soltando outro risinho estridente. De volta para a estrada é uma boa e ele sempre a usa com as garotas. Outra boa é quando se joga o volante de um lado para o outro, fazendo o carro começar a guinar, e você diz: Ah, cara, exagerei no xarope pra tosse! Conhece um monte de tiradas como esta, um dia chegou a pensar em escrever um livro chamado As Mais Loucas Piadas de Estrada, seria mesmo um fenômeno, Bryan Smith escrevendo um livro como o tal de King que mora em Lovell!

Liga o rádio (a van guinando para o acostamento da esquerda, junto à pista de contramão, levantando um rastilho de poeira, mas sem chegar a cair na vala) e pega Steely Dan cantando “Hey Nineteen”. Boa! Sim senhor, uma tremenda! Dirige um pouco mais rápido em resposta à música. Olha pelo retrovisor e vê seus cachorros, Bala e Pistola, a encará-lo por cima do banco traseiro, olhos brilhantes. Por um momento Bryan acha que estão olhando para ele, talvez pensando que cara incrível ele é; depois se pergunta como pode ser tão burro. Há um isopor atrás do banco do motorista com meio quilo de carne moída fresca. Pretende cozinhá-la mais tarde numa fogueira, quando voltarem ao Milhão de Dólares. Sim, e com mais duas barras Mars de sobremessa, pelo velho Jesus cabeludo! Barras Mars são uma coisa tremenda!

— Ei, garotos, não mexam neste isopor! — diz Bryan Smith falando com os cachorros que pode ver no retrovisor. Desta vez a minivan dá um arranco em vez de uma guinada, cruzando a linha branca e escalando uma subida cega a 80 quilômetros por hora. Felizmente (ou infelizmente, dependendo do ponto de vista) não vem nada pelo outro lado; nada põe um paradeiro ao avanço de Bryan Smith para o norte.

— Não mexam nessa carne moída, é o meu jantar. — Ele diz jatá, como John Cullum diria, mas no retrovisor, a cara que olha para trás e vê os olhos brilhantes dos cachorros é a cara de Sheemie Ruiz. Quase exatamente a dele.

Sheemie poderia ser o gêmeo idêntico de ninhada de Bryan Smith.

 

Irene Tassenbaum estava dirigindo o caminhão com mais segurança agora, modelo de marcha manual ou não. Já quase lamentava que tivesse de virar à direita 400 metros à frente, até porque com isso teria de usar novamente a embreagem, desta vez para reduzir. Mas era lá que ficava a Via do Casco da Tartaruga e era para lá que aqueles rapazes queriam ir.

Aparecidos! Foi o que disseram e ela acreditava nisso, mas quem mais acreditaria? Chip McAvoy talvez e certamente o reverendo Peterson daquele maluco Templo dos Aparecidos lá em Stoneham Corners, mas quem mais? Seu marido, por exemplo? Negativo. Nunca. David Tassenbaum só aceitava como real o que estava gravado em microchip. Ela se perguntava — não pela primeira vez — se uma pessoa de 47 anos estaria velha demais para pensar em divórcio.

Reduziu para a segunda sem arranhar demais as marchas, mas logo, ao sair da rodovia, teve de engrenar a primeira quando a velha picape começou a engasgar e dar estouros no escapamento. Achou que um de seus passageiros faria algum tipo de comentário espirituoso (talvez o cachorro mutante do garoto resolvesse dizer novamente porra), mas tudo que o homem no banco do carona disse foi:

— Isto aqui está meio diferente.

— Esteve aqui há muito tempo? — Irene Tassenbaum perguntou. Ela pensou em engrenar de novo a segunda, mas achou melhor deixar as coisas no ponto em que estavam. “Se não quebrou, não tente consertar”, David gostava de dizer.

— Já foi há algum tempo — o homem admitiu. Ela continuava tentando observá-lo pelo canto do olho. Havia alguma coisa estranha e exótica nele... especialmente nos olhos. Era como se tivessem visto coisas com as quais ela jamais sonhara.

Pare com isso, disse a si mesma. Ele é provavelmente um caubói falso vindo de Portsmouth, em New Hampsbire.

Mas não acreditava muito nisso. O garoto também era esquisito — ele e seu exótico cachorro mestiço —, embora não pudesse se comparar ao homem de rosto gasto e estranhos olhos azuis.

— Eddie disse que a rua dá a volta — falou o garoto. — Talvez da última vez vocês tenham entrado pela outra ponta.

O homem refletiu um instante e assentiu.

— A outra ponta ficaria em Bridgton? — ele perguntou à mulher.

— Fica, sim.

O homem de estranhos olhos azuis abanou a cabeça.

— Vamos para a casa do escritor.

— Cara Ri — ela disse de imediato. — É uma bela casa. Já vi do lago, mas não sei qual seria a entrada...

— É o acesso 19 — disse o homem. Naquele momento estavam passando pela entrada 27. A partir daquela ponta da Via do Casco da Tartaruga, os números começariam a diminuir.

— O que querem dele, se posso ter a coragem de perguntar?

Foi o garoto que respondeu.

— Queremos salvar sua vida.

 

Roland reconheceu de imediato a descida acentuada, embora da última vez que a vira o ar estivesse muito escuro, tempestuoso, e grande parte de sua atenção tivesse se concentrado no brilhante taheen voador. Agora não havia sinal de taheen nem de qualquer outra exótica forma de vida selvagem. A certa altura, durante os últimos anos, o telhado da casa fora forrado de cobre em vez das telhas tradicionais e a área de bosque ao fundo se transformara num gramado, mas a estradinha de acesso era a mesma, com uma placa dizendo CARA RI à esquerda e outra, à direita, exibindo o número 19 em grandes algarismos. Mais além ficava o lago, com cintilações azuis na tarde muito clara.

Do gramado veio o barulho de um pequeno motor trabalhando duro. Roland olhou para Jake e ficou desanimado pelo rosto pálido e os olhos arregalados, assustados.

— O que é? Qual é o problema?

— Ele não está aqui, Roland. Nem ele, nem ninguém da família. Só o homem cortando a grama.

— Absurdo, como pode... — começou a sra. Tassenbaum.

— Eu sei! — Jake gritou para ela. — Eu sei, senhora!

Roland estava olhando para Jake com um franco e horrorizado tipo de fascínio... mas em seu atual estado, o garoto não compreendeu o olhar ou nem o percebeu.

Por que está mentindo, Jake?, o pistoleiro pensou. E então, na esteira disso: Ele não está.

— E se já aconteceu? — Jake perguntou, e sim, estava preocupado com King, mas Roland achou que isso não era tudo que o estava preocupando. — E se ele já morreu e a família não está aqui porque a polícia os chamou e...

— Ainda não aconteceu — disse Roland, mas não tinha certeza de mais nada. O que você sabe, Jake, e por que não quer me contar?

Não havia tempo para se perguntar sobre isso agora.

 

O homem de olhos azuis falava com calma com o garoto, mas não parecia calmo a Irene Tassenbaum; de modo algum. E as vozes cantantes que ela ouviu pela primeira vez na frente do mercado de East Stoneham tinham se alterado. A melodia continuava doce, mas será que agora não havia também uma nota de desespero? Ela achava que sim. Um elevado tom de súplica que fazia suas têmporas latejarem.

— Como pode saber disso? — o garoto chamado Jake gritou para o homem... seu pai, ela presumia. — Como pode ter toda a porra dessa certeza?

Em vez de responder à pergunta do garoto, o sujeito chamado Roland olhou para ela. A sra. Tassenbaum sentiu um arrepio irrompendo na pele dos braços e das costas.

— Dirija, sai, por favor faça isso.

Ela olhou em dúvida para o acentuado aclive da estradinha de acesso a Cara Ri.

— Se eu fizer isso, talvez não consiga subir novamente com esta caçamba de parafusos soltos.

— Vai ter de subir — disse Roland.

 

Roland supôs que o homem cortando a grama fosse um lacaio de King ou seja lá o que for que passasse por isto naquele mundo. Tinha cabelo branco sob o chapéu de palha, mas estava em boa forma, o porte reto, como quem ia passando os anos sem grande esforço. Quando a picape começou a descer o íngreme acesso para a casa, o homem fez uma pausa com o braço apoiado no cabo do cortador de grama. Quando a porta do carona se abriu e o pistoleiro saltou, ele usou um botão para desligar a máquina. Também tirou o chapéu — sem estar exatamente consciente do que estava fazendo, Roland pensou. Então seus olhos registraram a arma que pendia do quadril de Roland e se arregalaram até fazerem desaparecer os pés de galinha que tinham em volta.

— Como vai, senhor — ele disse cauteloso. Está pensando que sou um aparecido, Roland pensou. Como ela.

E de certa forma eram aparecidos, ele e Jake; afinal por acaso chegaram a um tempo e lugar onde tais coisas eram comuns. E onde o tempo estava disparando. Roland falou antes que o homem pudesse continuar.

— Onde eles estão? Onde está ele? Stephen King? Fale, homem, eme digaa verdade!

O chapéu escorregou dos dedos em repouso do velho e caiu ao lado de seus pés na grama recentemente aparada. Os olhos nublados encararam os de Roland, fascinados: o passarinho olhando a cobra.

— A família tá na outra margem do lago, na casa que eles têm d’outro lado — disse. — A que era dos Schindler. Tá havendo uma espécie de festa, tá. O Steve disse que ia pra lá de carro, dispois da caminhada. — E ele indicou a ponta de um pequeno carro preto estacionado ao lado do acesso, aparecendo na quina da casa.

— Onde ele está andando? Diga a esta senhora o que sabe!

O velho olhou brevemente por cima do ombro de Roland, depois voltou a encarar o pistoleiro.

— Seria mais fácil eu mesmo levar vocês lá.

Roland pensou no assunto, mas brevemente. Mais fácil para começar, sim. Talvez mais complicado mais adiante, depois que King fosse salvo ou perdido de vez. Porque a mulher tinha sido encontrada no caminho do ka. Por menor que pudesse ser o seu papel na coisa, fora encontrada antes dele no Caminho do Feixe. No fundo tudo era simples assim. Quanto ao tamanho do papel que ia desempenhar, era melhor não tentar avaliar essas coisas antes da hora. Não tinham ele e Eddie acreditado que John Cullum, com quem esbarraram naquele mesmo mercado de beira de estrada cerca de três rodas ao norte, teria apenas um papel muito secundário na história? Mas Cullum acabou se mostrando muito mais importante na coisa.

Tudo isto cruzou em menos de um segundo a consciência de Roland, informações (sacados, Eddie teria dito) entregues numa espécie de brilhante taquigrafia mental.

— Não — disse ele, sacudindo um polegar pelo ombro. — Diga a ela. Agora.

 

O garoto — Jake — tinha caído para trás contra as costas do banco com as mãos estendidas ao lado do corpo. O curioso cachorro olhava ansioso para o rosto do garoto, mas o garoto não o via. Seus olhos estavam fechados e Irene Tassenbaum chegou a pensar que ele tivesse desmaiado.

— Filho?... Jake?

— Eu o tenho — disse o garoto sem abrir os olhos. — Não Stephen King... não consigo tocá-lo... mas o outro. Preciso retardá-lo. Como posso retardá-lo?

A sra. Tassenbaum ouvira bastante o marido trabalhando (mantendo longos diálogos murmurados consigo mesmo) para reconhecer uma auto-indagação quando ouvisse uma. Além disso, não fazia idéia de quem o rapaz estava falando, mas sabia que não era de Stephen King. O que deixava, em termos globais, uns seis bilhões de outras possibilidades.

Não obstante, ela respondeu sim, porque sabia o que sempre podia retardar a ela.

— Pena que ele não precise ir ao banheiro — disse.

 

Os morangos ainda não saíram no Maine, a estação ainda está muito no início, mas há framboesas. Justine Anderson (de Baybrook, Nova York) e elvira Toothaker (sua amiga de Lovell) estão caminhando pelo acostamento da rota 7 (que Elvira ainda chama de “Velha Estrada de Fryeburg”). Com seus baldes de plástico, vão colhendo os frutos dos arbustos que se estendem por cerca de um quilômetro ao lado de um velho murinho de pedra. Garrett McKeen construíra aquele muro cem anos atrás e é com o bisneto de Garrett que Roland Deschain de Gilead está falando naquele exato momento. Ka é uma roda, você não sabe?

As duas mulheres têm desfrutado sua hora de caminhada, não porque alguma delas morra de amores por framboesas (Justine reconhece que nem vai comê-las; as sementes ficam presas nos dentes) mas porque isso lhes dera uma oportunidade de conversar sobre as respectivas famílias e rir um pouco dos anos em que a amizade das duas era recente e era, provavelmente, a coisa mais importante em suas vidas. Tinham se encontrado no Vassar College (há mil anos, parece) e, no penúltimo ano, carregaram a guirlanda de margaridas no dia da formatura. É sobre isso que estão falando quando a minivan azul (uma Dodge Caravan 1985, Justine reconhece a marca e o modelo porque o filho mais velho teve uma exatamente igual quando sua tribo começou a aumentar) aparece na curva perto de Melder’s German Restauram e Brathaus. Anda por toda a estrada, costurando de um lado para o outro, primeiro fazendo a poeira borrifar do acostamento da esquerda, depois investindo vertiginosamente pelo asfalto e borrifando mais poeira, agora do acostamento da direita. Da segunda vez que faz isto — agora rolando na direção delas e numa velocidade consideravelmente diabólica —, Justine pensa que a van pode realmente acabar no valão e capotar (“virar tartaruga”, costumavam dizer nos anos 1940, quando ela e Elvira estavam no Vassar), mas o motorista puxa a traseira do carro para a estrada pouco antes que isso possa acontecer.

— Cuidado, essa pessoa está bêbada ou drogada! — diz Justine, alarmada. Puxa Elvira para trás, mas vêem o caminho bloqueado pelo velho muro com sua fileira de pés de framboesa. Os espinhos se agarram em suas calças (graças a deus nenhuma de nós estava de bermuda, Justine pensará mais tarde... quando tiver tempo para pensar) e arrancam pequenas pontinhas de tecido.

Justine está pensando se não devia pôr um braço em volta do ombro da amiga jogando ambas para o outro lado daquele muro da altura das coxas — dar uma cambalhota para trás, como na aula de educação física tantos anos atrás. Antes que tenha tempo de se decidir a fazê-lo, a van azul está junto delas, e no momento que as ultrapassa, está mais ou menos na pista, sem oferecer perigo.

Justine vê a van passar com um ruído abafado de rock. Ela sente o coração martelando com força no peito e o gosto metálico de alguma coisa que o corpo despejou — adrenalina seria a hipótese mais plausível — diretamente na língua. Na metade da subida, a pequena van azul guina mais uma vez sobre a faixa central. O motorista corrige o desvio... ou melhor, substitui a guinada por outra. Novamente, porém, a van azul acaba voltando para o acostamento da direita, borrifando por mais 50 metros uma poeira amarelada.

— Deus, espero que Stephen King veja este babaca — diz Elvira. Cruzaram com o escritor um quilômetro mais ou menos atrás e o saudaram. Provavelmente todos na cidade já o viram alguma vez em seu passeio vespertino.

Como se o motorista da van azul tivesse ouvido Elvira Toothaker chamá-lo de babaca, as luzes do freio da van se acendem. O veículo vai guinando de repente pelo acostamento e pára. Quando a porta se abre, as duas senhoras ouvem um estrondo mais alto de rock. Ouvem também o motorista — um homem —gritando com alguém (Elvira e Justine sentem pena de quem estiver condenado a viajar com tal sujeito numa tarde tão bonita de junho).

— Deixem isso em paz! — ele grita. — Não é de vocês, estão ouvindo? — E então o motorista estende a mão para dentro da van, pega uma bengala e se apóia nela para pular o muro de pedra e mergulhar nos arbustos. O motor da van continua roncando na beira do acostamento, a porta aberta. A van deixa escapar uma descarga azulada por uma ponta, rock pela outra.

— O que ele está fazendo? —Justine pergunta, um tanto nervosa.

— Dando uma mijada seria o meu palpite — responde a amiga. — Mas se o sr. King lá atrás tiver sorte, talvez esteja fazendo o número dois. Isto poderia dar a King tempo de sair da rota 7 e voltar a Via do Casco da Tartaruga.

De repente Justine não tem mais vontade de colher framboesas. Quer voltar para casa e tomar uma xícara de chá forte.

O homem sai mancando rapidamente do meio dos arbustos e se apóia de novo na bengala para transpor o muro de pedra.

— Acho que ele não teve vontade de fazer o número dois — diz Elvira e, quando o mau motorista volta a subir na van azul, as duas caminhantes quase idosas olham uma para a outra e explodem em risadinhas.

 

Roland viu o velho dando instruções à mulher — algo sobre usar a estrada de Warrington para cortar caminho — e então Jake abriu os olhos. Roland achou o garoto extremamente cansado.

— Consegui fazê-lo parar para dar uma mijada — disse Jake. — Agora ele está mexendo em alguma coisa atrás do banco. Não sei o que é, mas não vai mantê-lo ocupado por muito tempo. Roland, isso é ruim. Estamos tremendamente atrasados. Temos que ir!

Roland olhou para a mulher, esperando que a decisão de não substituí-la ao volante tivesse sido acertada.

— Sabe para onde tem de ir? Está compreendendo?

— Sim — disse ela. — Tenho de subir a Warrington até a rota 7. Às vezes jantamos na Warrington. Conheço a estrada.

— Não posso garantir que cruzem com ele, seguindo esse caminho — disse o jardineiro —, mas parece provável. — Ele se curvou para pegar o chapéu e começou a limpá-lo das pontas da grama recém-cortada. Faz isto com golpes longos e lentos, como um homem pego num sonho. — Ié, me parece provável. — E então, ainda como um homem que sonha acordado, enfiou o chapéu debaixo do braço, ergueu um punho para a testa e curvou uma perna para o estranho com o grande revólver na cinta. Por que não faria isso?

O estranho estava cercado de luz branca.

 

Quando Roland tornou a subir na cabine do pequeno caminhão do dono do mercado — uma tarefa dificultada pela dor no quadril direito, que aumentava rapidamente —, sua mão desceu pela perna de Jake e ele de repente ficou sabendo o que Jake estava ocultando e por quê. O garoto tinha medo que o pistoleiro perdesse o foco se viesse a saber. Não era ka-shume o que o garoto tinha sentido ou Roland teria sentido também. Como poderia haver ka-shume entre eles, com o tet já quebrado? Seu poder especial — alguma coisa maior que todos eles, talvez derivada do próprio Feixe — sumira. Agora eram apenas três amigos (quatro, contando o trapalhão) unidos por um mesmo objetivo. E podiam salvar King. Jake sabia disso. Podiam salvar o escritor e assim avançar mais um passo para salvar a Torre. Mas um deles ia morrer ao fazê-lo. Jake também sabia disso.

 

Um velho ditado — que lhe fora ensinado pelo pai — ocorreu então a Roland: Se o ka disser assim, que seja assim. Sim; tudo bem; que fosse assim.

Durante os longos anos que passara no rastro do homem de preto, o pistoleiro teria jurado que nada no universo seria capaz de fazer com que renunciasse à Torre; não matara literalmente a própria mãe nessa busca, logo no início de sua terrível trajetória? Mas naqueles anos não tinha amigos nem filhos, e (não gostava de admitir, mas era verdade) não tinha coração. Fora enfeitiçado por um frio romance que confundira com amor. Agora tinha um filho, lhe fora dada uma segunda chance e ele havia mudado. Saber que um deles teria de morrer para salvar o escritor — saber que sua irmandade tinha de ser outra vez reduzida, e tão breve — não ia fazê-lo desistir. Mas queria se certificar que, desta vez, seria Roland de Gilead, não Jake de Nova York, o objeto do sacrifício.

O garoto percebera que seu segredo já fora violado? Não dava tempo para se preocupar com isso agora.

Roland bateu a porta do trucamóbile e olhou para a mulher.

— Você se chama Irene? — ele perguntou.

Ela assentiu.

— Dirija, Irene. Faça isso como se o Senhor Supremo do Casco Fendido estivesse na sua cola com estupro na mente, faça, eu peço! Pegue a estrada de Warrington. Se não o virmos ali, pegue a rota 7. Vamos lá?

— Vamos, porra! — disse a sra. Tassenbaum empurrando a alavanca de câmbio para a primeira com verdadeira autoridade.

O motor berrou, mas a picape começou a rolar para trás. Como se de tão apavorada pelo que vinha à frente preferisse acabar dentro do lago. Então Irene se lembrou de soltar a embreagem e o velho International Harvester deu um salto à frente, enfrentando o íngreme aclive da entradinha e deixando para trás um rastro de fumaça azulada e borracha queimada.

O bisneto de Garrett McKeen viu, com o queixo caído, a partida do grupo. Não sabia muito bem o que acabara de acontecer, mas teve certeza de que muita coisa dependeria do que viesse a acontecer a seguir.

Talvez tudo.

 

Uma necessidade tão grande de mijar era estranha, porque mijar fora a última coisa que Bryan Smith tinha feito antes de deixar o Camping Milhão de Dólares. E depois que conseguira transpor a porra do muro de pedra, não conseguira fazer mais que algumas gotas, embora isso tivesse lhe dado, pouco antes, a sensação de uma bexiga querendo estourar. Bryan espera que não vá ter problemas de próstata; problemas com a velha próstata é a última coisa de que precisa. Já tem um número bastante grande de coisas com que se preocupar, pelo velho Jesus cabeludo!

Ah, bem, já que parou ele bem que podia tentar arrumar o isopor atrás do banco — os cachorros não param de olhá-lo com as línguas de fora. Ele tenta encaixá-lo embaixo do banco, mas não consegue — o espaço não é suficiente. O que acaba fazendo é apenas apontar um dedo sujo para os rotties e dizer para não mexerem na geladeira nem na carne que está lá dentro, é dele, vai ser o seu jantar. Desta vez pensa até em acrescentar uma promessa de que, mais tarde, vai misturar um pouco da carne na Purina deles, se ficarem bonzinhos. Isso é um pensamento razoavelmente profundo para Bryan Smith, mas o simples expediente de passar o isopor para a frente e pousá-lo no banco vazio do carona não chega a lhe ocorrer.

— Não mexam aqui! — ele torna a repetir, pulando de novo para trás do volante. Bate a porta, dá uma rápida olhada pelo retrovisor, vê duas senhoras idosas lá atrás (não reparou antes nelas porque não estava exatamente olhando para a estrada quando passou pelas duas), dá-lhes um adeus que elas não enxergam pelo vidro traseiro sujo da Caravan e retorna à rota 7. Agora o rádio está tocando “Gangsta Dream 19” com Owt-Ray-Juss e Bryan aumenta o som (mais uma vez dançando pela faixa central e passando para a contramão — é o tipo de pessoa que simplesmente não consegue mexer com o rádio sem olhar para os botões). Rap é tudo de bom! E metal também! O que falta para completar o dia é ouvir uma música do Ozzy... “Crazy Train” seria bom.

E aquelas barras Mars.

 

A sra. Tassenbaum saltou bruscamente da entrada de Cara Ri e entrou em segunda na Via do Casco da Tartaruga, o motor do velho caminhãozinho picape rateando muito (se houvesse um marcador de giros no painel, o ponteiro teria sem a menor dúvida atingido o vermelho), algumas ferramentas lá atrás sambando loucamente na caçamba enferrujada.

Roland tinha somente um pouquinho do toque — praticamente nada em comparação a Jake —, mas conhecera Stephen King e conseguira fazê-lo mergulhar no sono falso da hipnose. Isso era um poderoso vínculo já estabelecido entre os dois e assim ele não ficou de todo espantado quando conseguiu tocar a mente que Jake não fora capaz de alcançar. Provavelmente o mérito disso não era diminuído pelo fato de King estar pensando neles.

Ele freqüentemente faz isso em suas caminhadas, Roland pensou. Quando está sozinho, ouve a Canção da Tartaruga e percebe que tem um trabalho a fazer. Um trabalho de que está se esquivando. Bem, meu amigo, isto acaba hoje.

Se, é claro, conseguissem salvá-lo.

Ele se inclinou pela frente de Jake e fitou a mulher.

— Não pode fazer esta coisa amaldiçoada pelos deuses andar mais depressa?

— Posso — disse ela. — Creio que posso. — E então, para Jake: — Consegue de fato ler as mentes, filho, ou é só um jogo que você e seu amigo fazem?

— Não posso ler mentes, exatamente, posso tocá-las — disse Jake.

— Espero como diabo que isto seja verdade — disse ela —, porque a Via do Casco da Tartaruga tem muitas subidas e descidas e em certos pontos só há uma pista. Se sentir algo vindo pelo outro lado terá de me avisar.

— Aviso.

— Excelente — disse Irene Tassenbaum, mostrando os dentes num sorriso. Realmente não havia mais qualquer dúvida: aquela era a melhor coisa que havia lhe acontecido. A coisa mais vibrante. Agora, além de ouvir as vozes cantantes, podia ver rostos nas folhas das árvores às margens da estrada, como se houvesse uma multidão a vigiá-los. Podia sentir uma tremenda força tomando vulto ao redor e, de repente, se viu possuída por uma noção vertiginosa: se pisasse fundo no acelerador da velha e enferrujada picape de Chip McAvoy, poderia ir mais rápido que a velocidade da luz. Abastecida pela energia que sentia à sua volta, talvez pudesse ir além do próprio tempo.

Bem, vamos tirar isso a limpo, ela pensou levando o I-H para o meio da Via do Casco da Tartaruga, pisando com força na embreagem e empurrando a alavanca de câmbio para a terceira. O velho caminhãozinho não começou a ir mais rápido que a velocidade da luz, como também não foi além do tempo, mas o ponteiro do velocímetro subiu para os 80 quilômetros... e passou daí. O veículo chegou à crista de uma subida e, quando começou a descer pelo outro lado, pairou um instante no ar.

Pelo menos alguém estava feliz; a exaltação fazia Irene Tassenbaum gritar.

 

Stephen King tem duas caminhadas, a curta e a longa. A curta o leva pelo cruzamento da estrada de Warrington com a rota 7 e depois de volta à casa, Cara Ri, pelo mesmo caminho. Tem 5 quilômetros. A longa caminhada (que por acaso é também o nome de um livro que um dia, antes de o mundo seguir adiante, ele escreveu com o nome de Bachman,* o leva para depois do cruzamento da Warrington, desce pela rota 7 até a Slab City Road e volta pela rota 7 até Berry Hill, contornando a estrada de Warrington. Este trajeto, que o leva para casa pela ponta norte da Via do Casco da Tartaruga, tem pouco mais de 6 quilômetros. É o caminho que pretende fazer hoje, mas quando chega ao cruzamento da 7 com a estrada de Warrington ele pára, pensando na possibilidade de voltar pelo caminho curto. Sabe que é meio perigoso caminhar pelo acostamento da rodovia pública, embora não haja tráfego pesado na rota 7, mesmo no verão; só há realmente movimento naquela estrada na época do Festival de Fryeburg, que só começa na primeira semana de outubro. De qualquer modo a maioria dos ângulos de visão são bons. Geralmente é possível avistar algum barbeiro (ou bêbado) quando ele ainda está a uns 400 metros de distância, o que dá à pessoa tempo mais que suficiente para se afastar. Há somente uma subida cega, a que vem logo depois do cruzamento com a Warrington. Ela oferece, no entanto, um exercício aeróbico, que faz o velho coração realmente saltar. E afinal, não é para isso que está fazendo todas aquelas caminhadas idiotas? Para promover o que os especialistas dos programas de TV chamam de “saúde coronária”? Parou de beber, parou de se drogar, quase parou de fumar, faz exercícios. O que mais é preciso?

Mesmo assim uma voz lhe sussurra. Saia da estrada principal, ela diz. Vá tomando o caminho de casa. Ficará com uma hora de sobra antes de ter de sair para se encontrar com o resto do pessoal na festa do outro lado do lago. Pode trabalhar um pouco. Talvez começar a próxima história da Torre Negra; você sabe como ela vem entrando em sua cabeça.

E, vem mesmo, mas ele já está trabalhando em uma história e gosta muito dela. Voltar à história da Torre significa mergulhar em águas profundas. Talvez se afogar nelas. Contudo, ele de repente percebe, parado ali no cruzamento, que se voltar mais cedo vai começar. Não conseguirá evitar. Terá de dar atenção ao que às vezes concebe como Ves’-Ka Gan, a Canção da Tartaruga (e às vezes como Canção de Susannah). Vai deixar para lá a história atual, dará as costas à segurança de terra firme e mergulhará de novo naquela água escura. Já fez isto quatro vezes, mas agora terá de nadar até o outro lado.

Nadar ou se afogar.

— Não — diz ele. Fala em voz alta e por que não? Não há ninguém ali para ouvi-lo. Distingue, porém, debilmente, o barulho em surdina de um veículo que se aproxima (ou são dois?, um pela rota 7 e outro pela estrada de Warrington?), mas isso é tudo.

— Não — ele torna a dizer. — Vou continuar caminhando e depois vou à festa. Hoje não escrevo mais. Principalmente não aquilo.

E assim, deixando o cruzamento para trás, começa a fazer a subida íngreme com seu curto ângulo de visão. Avança em direção ao som do Dodge Caravan que se aproxima, que é também o som de sua morte próxima. O ka do mundo racional quer vê-lo morto; o do Primal quer vê-lo vivo, cantando sua canção. Assim é que, naquela tarde ensolarada no oeste do Maine, a força irresistível corre para o objeto imóvel e, pela primeira vez desde o recuo do Primal, todos os mundos e toda a existência voltam-se para a Torre Negra que permanece na extremidade de Can’-Ka No Rey, o que significa dizer os Campos Vermelhos do Nada. Mesmo o Rei Rubro pára com seus gritos irados. Pois é a Torre Negra que vai decidir.

— A resolução exige um sacrifício — diz King, e embora só os passarinhos escutem aquilo e ele nem tenha idéia do que está falando, não está preocupado. Vive sempre cochichando consigo mesmo; é como se houvesse uma Caverna de Vozes em sua cabeça, cheia de imitadores brilhantes (mas não necessariamente inteligentes)

Caminha, sacudindo os braços junto às coxas metidas na calça jeans, inconsciente de que seu coração está

(não está)

em suas poucas batidas finais, que sua mente está

(não está)

pensando seus últimos pensamentos, que suas vozes estão

(não estão)

fazendo seus últimos pronunciamentos de oráculo.

— Ves’-Ka Gan — ele diz, divertido pelo som... mas também atraído por ele. Já prometeu a si mesmo que não vai sufocar suas fantasias sobre a Torre Negra com palavras impronunciáveis em alguma linguagem inventada (para não dizer fodida) — mesmo porque seu editor, Chuck Verrill, de Nova York, cortará a maioria delas se ele o fizer —, mas mesmo assim sua mente parece estar se enchendo de tais palavras e frases; ka, ka-tet, sai, soh, can-toi (esta pelo menos vem de outro livro seu, Desespero), taheen. Será que Cirith Ungol, de Tolkien, e Nyarlathotep, o Grande Violinista Cego de H. P. Lovecraft, ficariam muito atrás?

Ele ri e começa a cantar uma música que uma de suas vozes lhe trouxe. Aposta que vai usá-la no próximo livro do pistoleiro, quando finalmente conceder de novo voz à Tartaruga.

— Commala-venha-venha — ele canta enquanto caminha —, há um rapaz com um revólver. O rapaz perdeu seu bem quando ela o pegou sem vintém.

O rapaz é o Eddie Dean? Ou o Jake Chambers?

— Eddie — ele diz em voz alta. — Eddie é o atirador com o bem. — Está tão imerso em pensamentos que demora a ver a capota do Dodge Caravan azul que aparece no curto horizonte à sua frente, e não percebe que o veículo não vem absolutamente pela pista, mas pelo acostamento onde ele está andando. E também não ouve o barulho da picape que se aproxima pelas suas costas.

 

Apesar da batida hip-hop da música, Bryan ouve mexer a tampa do isopor e, ao olhar pelo retrovisor, fica aflito e ultrajado ao ver que o Bala, sempre o mais afoito dos dois rotties, saltara do bagageiro na traseira da van para a área dos bancos. Com as pernas traseiras em cima do banco sujo, sacode feliz o rabinho e tem o nariz enterrado no isopor de Bryan.

Neste ponto qualquer motorista razoável encostaria na margem da estrada, desligaria o motor e cuidaria do genioso animal. Bryan Smith, contudo, nunca consegue muitos pontos em termos de sensatez quando está atrás do volante e tem o prontuário para prová-lo. Em vez de encostar, ele se contorce para a direita, dirigindo com a mão esquerda e empurrando inutilmente a cabeça chata do rottweiler com a mão direita.

— Largue isso! — grita para o Bala enquanto a minivan resvala para o acostamento da direita e sobe nele. — Não ouviu o que eu disse, Bala? Está maluco? Largue isso! — Na realidade ele consegue afastar a cabeça do cachorro por um momento, mas não há pêlo onde os dedos possam se agarrar e o Bala, embora não seja um gênio, tem inteligência suficiente para saber que dispõe pelo menos de mais uma chance para agarrar a coisa que está no papel branco, acoisa que irradia aquele cheiro vermelho e arrebatador. Mergulha sob a mão de Bryan e a mandíbula se apodera da embalagem do hambúrguer.

— Solte isso! — Bryan grita. — Solte agora... JÁ!

Afim de ganhar o equilíbrio necessário para se contorcer ainda mais no banco do motorista, Bryan pressiona firmemente os dois pés para baixo. Um deles, infelizmente, está sobre o acelerador. A van dá um salto de velocidade a caminho do alto da subida. Neste momento, nervoso e indignado, Bryan já esqueceu completamente onde está (rota 7) e o que devia estar fazendo (dirigindo uma van). Tudo que agora lhe importa é tirar a embalagem de carne da boca do Bala.

— Dê isso! — ele grita, puxando. O rabo se sacode mais furiosamente que nunca (para o cachorro agora é tanto um jogo quanto um rango); o Bala puxa de volta. Há o barulho do papel de açougue sendo rasgado. A van já está completamente fora da estrada. Na frente há um bosque de velhos pinheiros iluminado pela suave luz da tarde: uma névoa de verde e dourado. Bryan só pensa na carne. Não quer comer hambúrguer com baba de cachorro, podem ter certeza que não.

— Dê isso! — ele diz, não vendo o homem no caminho de sua van, não vendo o caminhão que se aproxima bem por trás do homem, não vendo a porta do carona do caminhão sendo aberta nem o tipo magricela de caubói que salta, um revólver com um grande cabo amarelo escorregando do coldre em sua cintura quando ele cai no chão; o mundo de Bryan Smith se resume a um cachorro mau e a uma embalagem de carne. Na luta pela carne, rosas de sangue vão florescendo, como tatuagens, no papel de açougue.

 

— Lá está ele! — o garoto chamado Jake gritou, mas Irene Tassenbaum não precisava que ninguém o dissesse. Stephen King usava uma calça jeans, uma camisa esporte de cambraia e um boné de beisebol. Estava bem depois do ponto onde a estrada de Warrington cruzava com a rota 7, na altura de um quarto da subida.

Irene meteu o pé na embreagem, engrenou uma segunda como um piloto de NASCAR de olho na bandeira xadrez, e virou bruscamente para a esquerda, girando o volante com ambas as mãos. A picape de Chip McAvoy balançou, mas não tombou. Ela viu o sol faiscar sobre metal quando um veículo vindo pelo outro lado atingiu o alto da ladeira que King subia. Ouviu o homem sentado junto à porta gritar:

— Encosta atrás dele!

Ela fez o que lhe mandava, embora pudesse ver que o veículo que se aproximava estava fora da estrada e a qualquer momento poderia bater neles pelo lado. Para não mencionar a possibilidade de Stephen King ficar imprensado num sanduíche metálico entre os dois veículos.

A porta se escancarou e o homem chamado Roland meio rolou, meio pulou da picape.

Depois disso, as coisas aconteceram muito, muito depressa.

 

VES’-KA GAN

O que aconteceu foi letalmente simples: Roland foi traído pelo quadril ruim. Caiu de joelhos com um grito onde se misturava raiva, dor e aflição. Então a luz do sol foi bloqueada em seus olhos quando Jake saltou por cima dele sem o menor gesto de hesitação. Da cabine da picape, Oi latia freneticamente:

— Ake-Ake! Ake-Ake!

— Jake, não! — Roland gritou, vendo tudo com terrível clareza. O garoto agarrou o escritor pela cintura quando o veículo azul (nem um caminhão nem carro, mas uma espécie de mistura dos dois) caiu sobre eles com um ronco de música dissonante. Jake afastou King para a esquerda, usando o corpo como escudo para protegê-lo. E foi Jake que o veículo atingiu. Atrás do pistoleiro, agora de joelhos com as mãos ensangüentadas enterradas na terra, a mulher do mercado gritou.

— JAKE, NÃO! — Roland tornou a berrar, mas era tarde. O garoto que considerava como um filho desapareceu sob o veículo azul. O pistoleiro viu uma pequena mão erguida (jamais se esqueceria dela), que logo também desapareceu. King, atingido primeiro por Jake e depois pelo peso da van atrás de Jake, foi atirado na beira do pequeno agrupamento de árvores, a 3 metros do ponto de impacto. Caiu do lado direito, batendo com a cabeça numa pedra suficientemente dura para fazer o boné voar de sua cabeça. Então rolou para o outro lado, tentando talvez se levantar. Ou talvez não querendo tentar absolutamente nada; seus olhos eram zeros chocados.

O motorista puxou o volante do veículo, que passou rapidamente pela esquerda de Roland, passando a centímetros dele, mas se limitando a jogar poeira em seu rosto sem atropelá-lo. Já então andava mais devagar, o motorista pisando no freio, agora que era tarde demais. A lateral da van foi arrastando a carroceria da picape, sem causar danos maiores. Aquilo diminuiu ainda mais a marcha da van, mas antes de parar completamente, a van atingiu de novo King, que já estava caído no chão. Roland ouviu o estalo de um osso quebrando. Que foi seguido pelo grito de dor do escritor. E agora Roland soube com certeza de onde vinha a dor em seu próprio quadril, não é claro? Nunca fora uma torção no quadril.

Ficou de pé com dificuldade, só perifericamente consciente de que sua dor passara inteiramente. Contemplou o corpo de Stephen King, contorcido de uma forma não natural. Estava sob a roda esquerda dianteira do veículo azul e ele pensou: Bom!, com irrefletida selvageria. Bom! Se alguém tem de morrer aqui, que seja você! Para o inferno com o umbigo do Gan, para o inferno com histórias que saem dele, para o inferno com a Torre. Que seja você e não o meu garoto!

O trapalhão passou correndo por Roland em direção ao lugar onde Jake estava caído de costas. Estava atrás da van e a descarga azulada soprava nos olhos abertos do garoto. Oi não hesitou; abocanhou a sacola dos Orizas que continuava pendurada no ombro de Jake e usou-a para puxar o rapaz da van, centímetro por centímetro, as pernas curtas e fortes levantando nuvens de poeira. O sangue escorria dos ouvidos e dos cantos da boca de Jake. Os saltos das botas de cano curto deixavam uma dupla fileira de marcas no chão, onde se misturava terra e ressecadas agulhas de pinheiro.

Roland cambaleou para Jake e caiu de joelhos ao lado dele. Seu primeiro pensamento foi que, afinal, estava tudo bem com Jake. As pernas do garoto estavam direitas, graças a todos os deuses, e a marca que corria pela ponte do nariz, descendo por uma face sem barba era óleo salpicado de poeira, não sangue como Roland tinha achado de início. Havia sangue saindo das orelhas, sim, e da boca também, mas o corrimento da boca podia vir de um corte na parte interna das bochechas ou...

— Vá ver o escritor — disse Jake. Sua voz era calma, de forma alguma contraída por alguma dor. Falava como se, após um dia de viagem, estivessem sentados em volta de uma pequena fogueira à espera do que Eddie chamava “o bufê”... ou, se estivesse particularmente bem-humorado (como freqüentemente estava), o “suflê”.

— O escritor pode esperar — disse Roland secamente, pensando: Ganhei um milagre. Feito pela combinação do corpo ainda não de todo desenvolvido de um garoto e da maciez da terra que cedeu sob ele quando o trucomóbile daquele filho-da-puta o atropelou.

— Não — disse Jake. — Não pode. — E quando ele se moveu, tentando se sentar, a camisa foi repuxada um pouquinho contra a metade superior do corpo e Roland viu a terrível concavidade no peito do garoto. Sangue se derramava da boca e, quando tentou falar de novo, Jake começou a tossir. O coração de Roland se contorceu como um trapo dentro do peito e, por um momento, foi de admirar como conseguia continuar batendo diante daquilo.

Oi deixou escapar um gemido alto com o nome de Jake dito numa espécie de uivo, que fez um arrepio correr pelos braços de Roland.

— Não tente falar — disse Roland. — Alguma coisa pode ter se rompido dentro de você. Uma costela, talvez duas.

Jake virou a cabeça para o lado. Cuspiu um punhado de sangue (umas gotas escorreram pelo rosto como tabaco mascado) e agarrou o pulso de Roland. O aperto foi firme e cada uma das palavras que disse, assim como a voz, foi bastante clara.

— Tudo se rompeu. Morrer é assim... Eu sei porque já passei por isso antes. — O que veio em seguida foi o que Roland estivera pensando pouco antes de saírem de Cara Ri: — Se o ka quiser assim, que assim seja. Cuide do homem que viemos salvar!

Foi impossível negar o tom imperativo nos olhos e na voz do garoto. Agora estava feito, o Ka dos 19 levara o jogo até o fim. Exceto, talvez, no caso de King. O homem que tinham vindo salvar. Que parcela do destino deles havia brotado das pontas de seus dedos velozes, manchados de nicotina? Tudo? Alguma coisa? Aquilo?

Qualquer que fosse a resposta, Roland podia tê-lo matado com as próprias mãos enquanto ele se achava preso sob o veículo que o atropelara e dane-se que King não estivesse guiando a van; se estivesse fazendo o que ka queria que fizesse, jamais estaria lá quando aquele louco passou e o peito de Jake não teria aquele horrível aspecto afundado. Era demais, vindo logo após Eddie ter sido repentinamente morto. E no entanto...

— Não se mexa — disse Roland, se levantando. — Oi, não deixe que ele se mexa.

— Não vou me mexer. — Cada palavra ainda clara, ainda segura. Mas agora Roland pôde ver o sangue também escurecendo a parte de baixo da camisa de Jake e a braguilha de sua calça jeans, brotando ali como rosas. Já uma vez ele morrera e voltara. Mas não naquele mundo. Naquele mundo, a morte era sempre para valer.

Roland se virou para onde o escritor estava caído.

 

Quando Bryan Smith tentou sair de trás do volante de sua van, Irene Tassenbaum empurrou-o rudemente de volta. Seus cães, talvez sentindo o cheiro de sangue, de Oi ou de ambos, latiam e pulavam freneticamente. Agora o rádio martelava alguma nova e extremamente diabólica canção heavy metal. Ela achou que sua cabeça ia rachar, não devido ao choque do que acabara de acontecer mas como simples reação à algazarra. Viu o revólver do homem jogado no chão e o apanhou. A pequena parte de sua mente ainda capaz de pensamento coerente ficou espantada com o peso da coisa. Mesmo assim, ela o apontou para o homem, passou o braço pela frente dele e apertou o botão que desligava o rádio. Com o cessar do furioso estrépito das guitarras, ela pôde ouvir passarinhos assim como dois cães latindo e um terceiro... bem, um terceiro animal, fosse lá o que fosse, uivando.

— Dê uma ré para soltar o cara que atropelou — disse ela. — Devagar. Se atropelar de novo o garoto quando fizer isso, juro que vou fazer o lixo dessa sua cabeça explodir.

Bryan Smith encarou-a com olhos vermelhos, confusos.

— Que garoto? — ele perguntou.

 

Quando a roda da frente da van se afastou vagarosamente do escritor, Roland viu que a parte de baixo do corpo dele estava torcida de forma não-natural para a direita e uma protuberância saltava da perna de sua calça daquele lado. O osso da coxa, certamente. Além disso, a testa fora quebrada pela pedra contra a qual havia batido e o lado direito do rosto estava ensopado de sangue. Parecia pior que Jake, muito pior, mas uma simples olhada bastou para dizer ao pistoleiro que, se o coração de King fosse forte e o choque não o matasse, ele provavelmente sobreviveria. De novo via Jake agarrando o homem pela cintura, protegendo-o como um escudo, expondo seu próprio corpo, bem menor, ao impacto.

— Você de novo — disse King em voz baixa.

— Está lembrado de mim.

— Sim. Agora estou. — King lambeu os lábios. — Sede.

Roland não tinha nada para beber e não teria lhe dado mais do que o suficiente para molhar os lábios, mesmo que tivesse. O líquido pode induzir vômitos num homem ferido e o vômito podia levar ao sufocamento.

— Lamento — disse ele.

— Não, você não lamenta. — Tornou a lamber os lábios. — Jake?

— Ali no chão. Você o conhece?

— Eu o escrevi. — King tentava sorrir. — Onde está aquele outro que também andava com você? Onde está Eddie?

— Morreu — disse Roland. — No Devar-Toi.

King franziu a testa.

— Devar...? Não conheço isso.

— Não. É por causa disso que estamos aqui. Porque tivemos de vir aqui. Um de meus amigos está morto, outro pode estar morrendo agora e o tet está partido. Tudo porque um homem preguiçoso, medroso, parou de fazer o trabalho que o ka tinha lhe destinado.

Nenhum tráfego na estrada. Exceto pelos cachorros latindo, o trapalhão uivando e os pássaros piando, o mundo estava em silêncio. Era como se estivessem congelados no tempo. Talvez estejamos mesmo, Roland pensou. Já vira o suficiente para acreditar nessa possibilidade. Qualquer coisa podia ser possível.

— Perdi o Feixe — disse King caído sobre o tapete de sementes de pinheiro na beirada do bosque. A luz de verão fluía incipiente ao seu redor, aquela névoa verde e dourada.

Roland estendeu a mão sob King e ajudou-o a sentar-se. O escritor gritou de dor quando a bola inchada do quadril direito raspou nos restos dilacerados, imprensados de seu encaixe, mas não disse nada em protesto. Roland apontou para o céu. Nuvens gordas e brancas de tempo bom — los ángeles, os vaqueiros de Mejis costumavam chamá-las — pairavam imóveis no azul, exceto as que estavam diretamente sobre eles. Aquelas corriam pelo céu, como se sopradas por um vento estreito.

— Ali! — Roland murmurou furioso no ouvido arranhado e entupido de terra do escritor. — Bem em cima de ti! Por toda a tua volta! Será que não sentes? Será que não vês?

— Sim — disse King. — Vejo agora.

— É, e sempre esteve lá. Você não o perdeu; virou os olhos covardes para o lado. Meu amigo teve de salvá-lo para você tornar a ver isso.

A mão de Roland remexeu no cinturão e puxou um cartucho. A princípio os dedos não conseguiam fazer o velho e habilidoso truque, tremiam demais. Ele só foi capaz de aquietá-los lembrando a si mesmo que, quanto mais tempo levasse para fazer aquilo, maior a chance de que fossem interrompidos ou que Jake morresse enquanto ele estava ocupado com aquele miserável projeto de homem.

Ao erguer os olhos, viu a mulher apontando o revólver dele para o motorista da van. Essa era boa. Ela era boa. Por que Gan não tinha entregue a história da Torre para alguém como ela? Pelo menos o instinto que o levara a trazê-la fora preciso. Até a infernal algazarra dos cachorros e do trapalhão havia serenado. Oi agora lambia a sujeira e o óleo do rosto de Jake, enquanto na van, Bala e Pistola devoravam a carne moída desta vez sem interferência do dono.

Roland se virou para King e a bala fez sua dança antiga e segura pelas costas de seus dedos. King mergulhou no sono quase de imediato, como a maioria das pessoas que já foram hipnotizadas antes. Seus olho continuavam abertos, mas agora pareciam olhar através do pistoleiro, para além dele.

O coração de Roland bradava para que terminasse aquilo o mais depressa possível, mas sua cabeça sabia que não era bem assim. Não pode errar. A não ser que pretenda tornar sem sentido o sacrifício de Jake.

A mulher olhava para ele assim como o motorista da van, através da porta aberta do veículo. Sai Tassenbaum estava resistindo, Roland percebeu, mas Bryan Smith seguira King para a terra do sono. Isto não chegou exatamente a surpreender o pistoleiro. Se o homem tivesse a menor noção do que fizera ali, sem dúvida aproveitaria toda e qualquer oportunidade de fuga. Mesmo que fosse temporária.

O pistoleiro voltou a prestar atenção no homem que era, ele supunha, seu biógrafo. Começou exatamente como começara antes. Dias atrás em sua própria vida. Cerca de duas décadas atrás na vida do escritor.

— Stephen King, você me conhece?

— Pistoleiro? Eu o conheço muito bem.

— Quando me encontrou pela última vez?

— Quando morávamos em Bridgton. Quando meu tet era jovem. Quando eu estava apenas aprendendo a escrever. — Uma pausa e então King entrou com o que, na opinião de Roland, seria, para ele, o modo mais eficiente de definir o tempo, um modo que variava de uma pessoa para outra. — Foi quando eu ainda bebia.

— Você dorme profundamente agora?

— Profundamente.

— Está além da dor?

— Além, sim. Eu lhe agradeço.

O zé-trapalhão tornou a uivar. Roland olhou para o lado com um medo terrível do que aquilo pudesse significar. A mulher tinha se aproximado de Jake e estava ajoelhada ao lado dele. Roland ficou aliviado quando viu Jake pôr um braço em volta do pescoço dela e puxar sua cabeça para lhe falar alguma coisa no ouvido. Se tinha forças suficientes para fazer aquilo...

Pare! Você viu como o corpo está alterado por baixo da camisa. Não pode se dar ao luxo de perder tempo com esperanças.

Aqui havia um paradoxo cruel: porque gostava muito de Jake tinha de deixar sua morte próxima aos cuidados de Oi e de uma mulher que haviam conhecido menos de uma hora atrás.

Não importava. Seu assunto agora era com King. Mesmo que Jake pudesse passar à clareira enquanto estava de costas para ele... Se o ka quiser assim, que assim seja.

Roland procurou reunir toda a sua força de vontade e concentração. Levou o seu foco ao ponto de arder e novamente encarou o escritor.

— Você é o Gan? — perguntou de repente, sem saber por que aquela pergunta havia lhe ocorrido... mas sabendo que era a pergunta certa.

— Não — disse King de imediato. O sangue que saía do corte na cabeça escorria para sua boca e ele o cuspiu, mas sem uma só piscada. — Antigamente eu achava que era, mas era só efeito do porre. E do orgulho, eu acho. Nenhum escritor é o Gan... nenhum pintor, nenhum escultor, nenhum compositor de música. Nós somos kas-ka Gan. Não ka-Gan mas kas-ka Gan. Está compreendendo? Você está... está percebendo?

— Sim — disse Roland. Os profetas do Gan ou os cantores do Gan: significava uma coisa ou outra, ou as duas ao mesmo tempo. E agora ele sabia por que havia feito a pergunta. — E a canção que você canta é Ves’-Ka Gan. Não é?

— Ah, sim! — King respondeu e sorriu. — A Canção da Tartaruga. É bonita demais para mim, que não consigo cantar afinado!

— Eu não me importo — disse Roland. Ele pensava tão intensa e claramente quanto sua cabeça atordoada pudesse permitir. — E agora você foi ferido.

— Estou paralisado?

— Não sei. — Nem me importo. — O que sei é que vai sobreviver e quando puder escrever de novo vai abrir os ouvidos à Canção da Tartaruga, Ves’-Ka Gan, como fez antes. Paralisado ou não. E desta vez você vai cantar até a canção acabar.

— Tudo bem.

— Você vai...

— E Urs-Ka Gan, a Canção do Urso — King o interrompeu. Depois balançou a cabeça, embora aquilo, a despeito do estado hipnótico em que estava, claramente lhe provocasse dor. — Urs-AKa Gan.

O Choro do Urso? O Grito do Urso? Roland não sabia qual das duas opções. Teria de torcer para que também não tivesse importância, para que fosse apenas uma elocubração de escritor.

Um carro puxando um trailer passou pela cena do acidente sem diminuir a marcha, depois duas grandes motocicletas passaram em disparada no outro sentido. E um pensamento estranhamento persuasivo ocorreu a Roland: o tempo não havia parado, mas eles estavam, naquele momento, desbotados. Era desse modo que estavam sendo protegidos pelo Feixe, que não se encontrava mais sob ataque e, assim, se tornara capaz de ajudar, pelo menos um pouco.

 

Diga de novo a ele. Não pode haver incompreensão. Nem fraqueza, como ele fraquejou antes.

Ele se curvou até o rosto ficar diante do rosto de King, os narizes quase se tocando.

— Desta vez você vai cantar até a canção estar pronta, vai escrever até a história estar no fim. Está entendendo bem?

— “E viveram felizes para sempre” — disse King num tom de devaneio. — Gostaria de poder escrever isso.

— Eu também gostaria que pudesse. — Era sua vontade, mais que tudo no mundo. A despeito de sua dor, ainda não havia lágrimas; Roland sentia os olhos como pedras quentes na cabeça. Talvez as lágrimas viessem mais tarde, quando a verdade do que acontecera ali tivesse a possibilidade de ser um pouco elaborada.

— Em algum momento vou escrever isto, pistoleiro. Não importa o jeito da história quando as páginas ficarem ralas. — A própria voz de King ia se tornando rala. Roland achou que logo ele ia perder os sentidos. — Sinto muito pelo que aconteceu a seus amigos, sinto mesmo.

— Obrigado — disse Roland, ainda reprimindo o impulso de pôr as mãos no pescoço do escritor e sufocá-lo até a morte. Ele começou a ficar de pé, mas King disse uma coisa que o fez parar.

— Prestou atenção à canção dela, como eu mandei que fizesse? A Canção de Susannah?

— Eu... sim.

Agora King fez força para se apoiar num cotovelo e, embora estivesse ostensivamente perdendo suas forças, a voz foi seca e forte.

— Ela precisa de você. E você precisa dela. Agora me deixe em paz. Guarde sua raiva para aqueles que a merecem mais que eu. Assim como não inventei o Gan, ou o mundo, também não inventei o seu ka e nós dois sabemos disso. Esqueça as suas bobagens... a sua dor... e faça o mesmo que me pede para fazer... — A voz de King se elevou a um áspero grito; a mão saltou e agarrou o pulso de Roland com surpreendente energia. — Termine o trabalho!

A princípio nada saiu quando Roland tentou responder. Ele teve de limpar a garganta e começar de novo.

— Durma, sai... durma e esqueça todo mundo aqui, menos o homem que o atropelou.

Os olhos de King se fecharam.

— Esquecer todo mundo aqui, exceto o homem que me atropelou — ele repetiu.

— Estava fazendo sua caminhada e este homem o atropelou.

— Caminhando... e este homem me atropelou.

— Ninguém mais esteve aqui. Nem eu, nem Jake, nem a mulher.

— Ninguém mais — King concordou. — Só eu e ele. Será que ele vai dizer o mesmo?

— Vai. Logo você estará dormindo profundamente. Poderá sentir dor mais tarde, mas agora não sente nenhuma.

— Nenhuma dor agora. Dormir profundamente. — A forma contorcida do corpo de King relaxou sobre as sementes de pinheiro.

— Mas antes de dormir me escute mais uma vez — disse Roland.

— Estou ouvindo.

— Uma mulher pode o abord... espere. Você tem fantasias de amor com homens?

— Está perguntando se eu sou gay? Talvez um homossexual latente? — King parecia fatigado, mas se divertia.

— Não sei — Roland fez uma pausa. — Acho que sim.

— A resposta é não -— disse King. — Às vezes tenho sonhos de amor com mulheres. Um pouco menos agora que estou mais velho... e provavelmente menos ainda por um tempo, agora. A porra desse sujeito realmente acabou comigo.

Nem de perto da forma como ele acabou comigo, Roland pensou amargamente, mas não disse.

— Se só pensa em amor com mulheres, é uma mulher que pode procurá-lo.

— Acha que sim? — King parecia ligeiramente interessado.

— Sim. Se ela vier, será linda. Pode lhe falar da tranqüilidade e do prazer da clareira. Pode se chamar Morphia, Filha do Sono, ou Selena, Filha da Lua. Pode lhe oferecer o braço e prometer levá-lo para lá. Tem de recusar.

— Tenho de recusar.

— Mesmo se ficar tentado por seus olhos e seios.

— Mesmo assim — King concordou.

— Por que vai recusar, sai?

— Porque a Canção não está completa.

Por fim Roland se deu por satisfeito. A sra. Tassenbaum estava se ajoelhando ao lado de Jake. O pistoleiro a ignorou e ao garoto e se aproximou do homem curvado atrás do volante da carruagem a motor que fizera todo aquele estrago. Os olhos do homem estavam arregalados, vidrados, a boca frouxa. Um filete de cuspe pingava do queixo com pontinhas de barba.

— Está me ouvindo, sai?

O homem abanou temerosamente a cabeça. Atrás dele, os dois cães tinham caído em silêncio. Quatro olhos brilhantes contemplavam o pistoleiro por entre os assentos.

— Qual é seu nome?

— Bryan, às suas ordens... Bryan Smith.

Não, isso não o agradava de modo algum. Lá estava mais uma pessoa que gostaria de estrangular. Outro carro passou na estrada e, desta vez, quem estava ao volante tocou a buzina. Fosse qual fosse a proteção que tivessem, ela havia começado a ficar rarefeita.

— Sai Smith, você atropelou um homem com seu carro, trucamóbile ou seja lá como chame esta coisa.

Bryan Smith começou a tremer de cima a baixo.

— Nunca tive sequer uma multa por estacionamento proibido — ele gemeu — e tive de atropelar justamente o homem mais famoso deste estado! Meus cachorros começaram a brigar e...

— Suas mentiras não me irritam — disse Roland —, mas o medo que está por trás delas sim. Cale sua boca!

Bryan Smith fez o que lhe era mandado. A cor se escoava devagar de seu rosto, sem parar.

— Você estava sozinho quando o atropelou — disse Roland. — Não havia mais ninguém aqui além de você e o contador de histórias. Está compreendendo?

— Eu estava sozinho. O senhor é um aparecido?

— Não importa o que sou. Você foi até o homem e viu que ele ainda estava vivo.

— Ainda vivo, bom — disse Smith. — Eu não queria machucar ninguém, tenha certeza!

— Ele falou com você. Foi assim que sabia que ele estava vivo.

— Sim! — Smith sorriu. Depois franziu a testa. — O que ele disse?

— Você não lembra. Estava nervoso, assustado.

— Assustado e nervoso. Nervoso e assustado. Sim eu estava.

— Pegue o volante. Quando começar a dirigir, vai acordar pouco a pouco. E quando chegar a uma casa ou a alguma loja, vai parar e dizer que há um homem ferido na estrada. Um homem que precisa de socorro. Repita o que eu disse, e de forma correta.

— Dirigir — disse ele. As mãos acariciaram o volante como se o homem estivesse ansioso para partir. Roland achou que estava. — Acordar, pouco a pouco. Quando vir uma casa ou uma loja, digo a eles que Stephen King está ferido na margem da estrada e precisa de socorro. Sei que ainda está vivo porque falou comigo. Foi um acidente. — Fez uma pausa. — Não foi culpa minha. Ele estava andando na estrada. — Uma pausa. — Acho que foi assim.

Me importa sobre quem cairá a culpa de toda aquela confusão?, Roland se perguntou. Na realidade não. Fosse lá como fosse, King continuaria a escrever. E Roland quase esperava que ele pudesse levar a culpa, pois no fundo a verdade era essa; antes de mais nada porque não era para ele estar ali.

— Vá agora — disse a Bryan Smith. — Não quero mais ver sua cara.

Smith deu partida na van com um ar de alívio profundo. Roland nem se preocupou em observá-lo partir. Aproximou-se da sra. Tassenbaum e caiu de joelhos ao lado dela. Oi estava sentado junto à cabeça de Jake, agora em silêncio, sabendo que seus uivos não podiam mais ser ouvidos por aquele por quem ele chorava. O que o pistoleiro mais temia tinha acontecido. Enquanto estava conversando com dois homens de que não gostava, o garoto que amava mais que todos os outros — mais do que amara qualquer outra pessoa na vida, incluindo Susan Delgado — tinha passado além dele pela segunda vez. Jake havia morrido.

 

— Ele falou com você — Roland disse pegando Jake nos braços e começando a balançá-lo carinhosamente de um lado para o outro. Os Orizas tilintavam na sacola. Ele já podia sentir o corpo de Jake ficando frio.

— Sim — ela respondeu.

— O que ele disse?

— Mandou que eu voltasse para buscar você “depois que o assunto aqui estiver resolvido”. Foram as palavras exatas dele. E ele disse: “Diga ao meu pai que eu o amo.”

Roland deixou escapar um ruído, abafado e angustiado, produzido no fundo da garganta. Estava se lembrando do que se passara em Fedic, depois de atravessarem a porta. Salve, pai, Jake tinha dito. Também daquela vez Roland o pegara nos braços. Só que, naquela ocasião, havia sentido o coração do garoto bater. Daria qualquer coisa para senti-lo bater de novo.

— Houve mais — ela disse —, mas será que agora temos tempo para isto? Afinal, posso lhe contar tudo mais tarde.

Roland entendeu de imediato aonde ela queria chegar. A história que tanto Bryan Smith quanto Stephen King conheciam era bastante simples. Nela não havia lugar para um homem magricela, curtido pelas viagens, carregando um grande revólver, nem para uma mulher de cabelo grisalho; certamente também não para um garoto morto com uma sacola de pratos de pontas afiadas presa no ombro e uma pistola automática na cintura da calça.

A única dúvida era saber se a mulher voltaria. Irene não era a primeira pessoa que Roland induzia a fazer coisas que normalmente ela não faria. Sabia que, assim que se afastasse dele, Irene poderia começar a ver aquela situação sob outro ângulo. Pedir-lhe uma promessa (Jura que vai voltar para mim, sai? Jura pelo coração inerte deste menino?) não garantia nada. Ela podia jurar cada palavra aqui e mudar de idéia logo que passasse pela primeira subida.

Contudo, Roland tivera a oportunidade de pegar o dono do mercado, que era o dono da picape, e não o fez. Nem concordara em trocá-la pelo velho que estava aparando a grama na casa do escritor.

— Conte mais tarde — disse ele. — Por enquanto, saia depressa daqui. Se por alguma razão você sentir que não pode voltar para cá, não vou culpá-la por isso.

— Para onde você iria sozinho? — ela perguntou. — Para onde conseguiria ir sozinho? Seu mundo não é este. É?

Roland ignorou a pergunta.

— Se ainda houver pessoas aqui quando voltar pela primeira vez — disse ele —, oficiais de polícia, guardas da vigília, costas azuis, sei lá, passe direto sem parar. Volte depois de meia hora. Se eles ainda estiverem aqui, passe de novo sem parar. Continue fazendo isso até irem embora.

— Não vão achar estranho vendo alguém circular de um lado para o outro?

— Não sei — disse ele. — Acha que vão?

Ela pensou, depois quase sorriu.

— É, provavelmente não. Não os tiras desta parte do mundo.

Roland abanou a cabeça, aceitando a avaliação.

— Quando achar que é seguro, pare. Você não vai me ver, mas eu verei você. Vou esperar até ficar escuro. Se até lá você não estiver aqui, vou embora.

— Volto para encontrá-lo, mas não estarei dirigindo esta miserável imitação de automóvel — disse. — Estarei dirigindo um Mercedes-Benz S600. — Disse isto com um certo orgulho.

Roland não fazia idéia do que era um mercedisbends, mas balançou a cabeça como se soubesse.

— Vá — disse ele. — Conversamos mais tarde, depois que você voltar.

Se você voltar, pensou.

— Acho que pode querer ficar com isto — disse ela, colocando o revólver dele no coldre.

— Obrigado-sai.

— De nada.

Roland viu-a caminhar até o velho caminhão (achando que, de certa forma, e apesar das palavras de desprezo, ela começara a gostar do veículo). Quando ela se acomodou atrás do volante foi que Roland percebeu que precisava de uma coisa, algo que talvez estivesse no caminhão.

— Ei!

A sra. Tassenbaum colocara a mão na chave da ignição. Agora tirou a mão e encarou-o com ar indagador. Roland pousou suavemente o corpo de Jake na terra onde ele logo seria enterrado (fora esse pensamento que o fizera chamar) e ficou de pé. Estremeceu um pouco e pôs a mão no quadril, mas isso era apenas hábito. Não havia dor.

— Que foi? — ela perguntou quando ele chegou perto. — Se eu não partir agora...

Não importaria absolutamente se ela fosse ou não.

— Sim, eu sei.

Ele deu uma olhada na caçamba da picape. No meio de ferramentas espalhadas para todo lado havia uma forma quadrada sob uma lona azul. As pontas da lona tinham sido dobradas por baixo do objeto, para que não voasse. Quando Roland puxou a lona viu oito ou dez caixas feitas de um papel grosso que Eddie chamava de “papelão”. Tinham sido juntadas, fazendo a forma quadrada. As figuras impressas no papelão lhe disseram que eram caixas de cerveja. Também não teria a menor importância se fossem caixas de poderosos explosivos.

O que ele queria era a lona.

Afastou-se do caminhão com a lona nos braços.

— Agora pode ir — disse ele.

A sra. Tassenbaum tornou a pegar a chave da ignição, mas não a girou de imediato.

— Senhor — disse ela —, sinto muito pela perda que sofreu. Tinha que lhe dizer isto. Imagino o que esse menino significava para você.

Roland Deschain inclinou a cabeça e não disse nada.

Irene Tassenbaum olhou-o por mais um instante, procurou se lembrar que às vezes as palavras eram coisas inúteis, ligou o motor e bateu a porta. Ele a viu pegar a estrada (já aprendera a usar a embreagem de forma suave e segura), fazendo uma curva apertada para voltar para o norte, para East Stoneham.

Sinto muito pela perda que sofreu.

E então ele estava sozinho com aquela perda. Sozinho com Jake. Por um instante, imóvel junto ao pequeno aglomerado de árvores na margem da estrada, Roland ficou observando duas das três pessoas que tinham sido atraídas para aquele lugar: um homem, inconsciente, e um garoto morto. Os olhos de Roland estavam secos e quentes, palpitando nas órbitas e, por um momento, ele teve certeza de que tinha perdido de novo a capacidade de chorar. A idéia o deixou horrorizado. Se fosse incapaz de derramar lágrimas depois de tudo aquilo — depois do que recuperara e de novo perdera — de que valia tanto sacrifício? Por isso foi um imenso alívio quando as lágrimas finalmente vieram. Elas se derramaram de seus olhos, tranqüilizando o quase insano clarão azul deles. Escorreram pelas faces sujas. Roland chorou quase silenciosamente, mas houve um único soluço, ouvido por Oi. O trapalhão ergueu o focinho para o corredor de nuvens em rápido deslocamento e uivou uma única vez para elas. Depois Oi também ficou em silêncio.

 

Roland carregou Jake para dentro do bosque, com Oi seguindo em seu calcanhar. Que o trapalhão também estivesse chorando já não deixava Roland espantado; não era a primeira vez que o via chorar. E o tempo em que acreditava que as demonstrações de inteligência (e solidariedade) de Oi não passavam de imitação das atitudes dos outros era há muito coisa do passado. A parte mais essencial do que passou pela cabeça de Roland naquela curta caminhada foi uma prece pelos mortos, uma prece que ouvira Cuthbert rezar na última campanha que tinham feito juntos, a que havia terminado na Colina de Jerico. Duvidava que Jake precisasse de uma prece para fazê-lo seguir adiante, mas o pistoleiro precisava manter a mente ocupada, porque naquele momento ela parecia um tanto débil; se avançasse demais na direção errada certamente entraria em colapso. Talvez mais tarde pudesse se dar ao luxo da histeria — ou mesmo da irina, a loucura que purifica — mas não naquele momento. Não ia desmoronar. Ou a morte do garoto não teria servido para nada.

O enevoado clarão verde e dourado, que só existe em florestas (e florestas antigas, como aquela onde o urso Shardik fazia as suas incursões), ficou mais intenso. Caía pelas árvores em raios empoeirados, e o ponto onde Roland finalmente parou lembrava antes uma igreja que uma clareira. Afastara-se uns duzentos passos da estrada, andando para o oeste. Ali ele pousou Jake no solo e olhou em volta. Viu duas latas de cerveja enferrujadas e algumas cápsulas de munição vazias, provavelmente deixadas por caçadores. Atirou-as longe para limpar o local. Então se virou para Jake, enxugando as lágrimas para poder vê-lo o mais claramente possível. O rosto do garoto estava limpo como a clareira. Oi providenciara aquilo, mas um dos olhos de Jake continuava aberto, deixando o garoto com o ar desagradável e perverso de quem estivesse dando uma piscadela. Roland baixou a pálpebra com um dedo e, quando ela tornou a se erguer (como a persiana defeituosa de uma janela), Roland lambeu a ponta do polegar e fez novamente a pálpebra se abaixar. Desta vez ela ficou fechada.

Havia sangue e sujeira na camisa de Jake. Roland tirou-a, depois tirou sua própria camisa e vestiu-a em Jake, movendo-o como se ele fosse uma boneca. A camisa chegou quase aos joelhos de Jake, mas Roland não tentou enfiá-la por dentro da calça, cujas manchas de sangue ela cobria.

Oi observava tudo isto, as lágrimas fazendo brilhar os olhos cercados de dourado.

Roland esperava que o solo fosse bastante macio embaixo da grossa camada de sementes de pinheiro, e realmente era. Já começara a cavar com vontade o túmulo de Jake quando ouviu o barulho de um motor na margem da estrada. Outras carruagens a motor haviam passado desde que carregara Jake para o bosque, mas ele reconheceu o ruído dissonante daquela. O homem do veículo azul tinha voltado. Roland tivera sérias dúvidas de que o fizesse.

— Fique aqui — ele murmurou para o trapalhão. — Tome conta de seu dono. — Mas era errado dizer isso e ele corrigiu: — Fique aqui e tome conta de seu amigo.

O normal teria sido Oi repetir a ordem (migo!, seria mais ou menos isso o que conseguiria dizer) no mesmo tom de voz baixo, mas desta vez ele não disse nada. Roland contemplou-o se deitando ao lado da cabeça de Jake, pegando no ar uma mosca que tentava pousar no nariz do garoto. Roland abanou a cabeça satisfeito e começou a voltar pelo mesmo caminho que viera.

 

Quando Roland voltou a se aproximar, Bryan Smith já saltara de sua carruagem a motor e estava sentado na mureta de pedra com a bengala pousada no colo (Roland não tinha idéia se a bengala era usada por afetação ou se Bryan realmente precisava dela, e também não se importava com isso). King havia recuperado um certo vestígio de consciência e os dois conversavam.

— Por favor me diga que só dei um mau jeito — disse o escritor numa voz fraca, preocupada.

— Negativo! Aposto que a perna está quebrada em seis, talvez sete lugares. — Agora que tivera tempo de se acalmar e talvez inventar uma história, Smith parecia não apenas calmo, mas quase contente.

— Tente me animar, por que não faz isto? — disse King. O lado visível de sua cara estava muito pálido, mas o sangue tinha quase parado de correr do corte na testa. — Tem um cigarro?

— Negativo — disse Smith naquele mesmo tom estranhamente jovial. — Larguei deles.

Mesmo não sendo particularmente forte no toque, Roland o possuía em grau suficiente para perceber que aquilo não era verdade. Mas Smith só tinha três cigarros e não queria compartilhá-los com aquele homem, que podia comprar cigarros em número suficiente para encher toda a sua van. Além disso, Smith pensou...

— Além disso, quem acabou de sofrer um acidente não deve fumar — disse Smith num tom virtuoso.

King abanou a cabeça.

— Bem, está mesmo difícil de respirar — disse.

— Provavelmente também quebrou uma ou duas costelas. Meu nome é Bryan Smith. Fui eu quem o atropelou. Desculpe. — Estendeu a mão e... por incrível que pareça... King apertou.

— Nunca tinha me acontecido uma coisa dessas — disse Smith. — Nunca tive sequer uma multa por estacionamento proibido.

Tenha ou não reconhecido isso como pura mentira, King preferiu não fazer comentários; tinha outra coisa em mente.

— Sr. Smith... Bryan... Havia mais alguém aqui?

No meio das árvores, Roland ficou imóvel.

Smith parecia realmente estar meditando. Pôs a mão no bolso, pegou uma barra Mars e começou a tirar o papel. Então sacudiu a cabeça numa negativa.

— Só eu e você. Fui até o mercado e liguei para o 911 pedindo socorro. Disseram que havia alguém bem perto daqui. Disseram que iam chegar logo. Não se preocupe.

— Você me conhece.

— Deus, claro! — Bryan Smith deu uma risadinha. Mordeu o doce e falou mastigando. — Reconheci você de imediato. Vi todos os seus filmes. Meu favorito foi aquele sobre o são-bernardo. Como era mesmo o nome do cachorro?

— Cujo — disse King. Era uma palavra que Roland conhecia, uma palavra que Susan Delgado costumava usar quando os dois estavam sozinhos. Em Mejis, cujo significava “meu querido”.

— É! Esse foi grande! Assustava como o diabo! Fiquei feliz pelo garotinho ter sobrevivido!

— No livro ele morreu. — Então King fechou os olhos e virou a cabeça, esperando.

Smith deu outra mordida na barra de chocolate Mars, desta vez gigantesca.

— Gostei também daquele programa que fizeram, sobre o palhaço! Muito legal!

King não deu resposta. Seus olhos continuaram fechados, mas Roland achou que o subir e descer do peito do escritor parecia mais profundo e mais firme. Isso era bom.

Então um caminhão se aproximou fazendo muito barulho, deu uma guinada e começou a se dirigir para a van de Smith. A nova carruagem a motor era aproximadamente do tamanho de uma carreta funerária, mas alarajanda em vez de preta e equipada com luzes que piscavam. Roland não ficou triste de vê-la manobrar sobre as marcas das rodas da picape do dono do mercado, antes de parar.

Ele quase esperou que um robô saísse da carruagem, mas quem saiu foi um homem, que se virou de novo para o interior da carruagem e pegou uma maleta preta de médico. Vendo que tudo estava correndo como devia, Roland voltou para onde deixara Jake estendido. Já se movia com toda a sua velha e inconsciente leveza: não fez estalar um só graveto, não fez esvoaçar um só passarinho.

 

Você ficaria espantado, após tudo que vimos juntos e todos os segredos que ficamos conhecendo, se soubesse que às 5hl5 daquela tarde a sra. Tassenbaum parou o velho caminhãozinho de Chip McAvoy na entrada de uma casa que já visitamos? Provavelmente não, porque o ka é uma roda e tudo que sabe fazer é rodar. Em 1977, quando estivemos aqui pela última vez, tanto a casa quanto o abrigo de barcos na beirada do lago Keywadin eram brancos com arremates verdes. Os Tassenbaum, que compraram a propriedade em 1994, trocaram a pintura por um tom creme bastante agradável (nada de faixa verde; para o modo de pensar de Irene Tassenbaum, um arremate é para gente que não consegue tomar uma decisão). Eles também colocaram uma placa dizendo CHALÉ PÔR-DO-SOL num poste na frente do acesso e no conceito dos correios norte-americanos, o nome passara a fazer parte do endereço, embora para os habitantes locais aquela casa na ponta sul do lago Keywadin sempre será a velha casa de John Cullum.

Ela estacionou a picape ao lado de seu Mercedes-Benz vermelho-escuro e entrou, revendo mentalmente como explicaria a David o fato de estar com a picape do dono do mercado local, mas o Chalé Pôr-do-Sol tinha aquele som peculiar do silêncio que só os lugares vazios têm; ela o captou de imediato. Tivera de voltar a muitos lugares vazios (apartamentos no início, casas cada vez maiores à medida que o tempo foi passando) durante sua vida. Não porque David estivesse na rua bebendo ou acompanhado de mulheres, benza Deus! Não, ele e seus amigos geralmente haviam se reunido na garagem de um ou de outro, na oficina de algum porão, tomando vinho barato e cerveja com desconto do supermercado, criando a internet e todo o software necessário para lhe dar suporte e tornar viável sua utilização. Os lucros, embora a maioria deles nem contasse com isso, tinham sido apenas um efeito colateral. O silêncio que as esposas tantas vezes encontravam ao chegar em casa era outro efeito colateral. Após algum tempo, todo aquele silêncio murmurante era irritante, dava raiva, mas não naquele dia. Naquele dia a sra. Tassenbaum ficou deliciada pela casa ser apenas dela.

Vai dormir com Marshal Dillon, se ele quiser?

Não era uma coisa em que tivesse de pensar para responder. A resposta era sim, dormiria com ele se ele quisesse: de lado, ao contrário, estilo-cachorrinho ou trepada papai e mamãe se isto fosse a preferência dele. Ele não ia querer — mesmo se não estivesse chorando seu jovem

(sai? filho?)

amigo, não ia querer dormir com ela, ela com suas rugas, com o cabelo ficando grisalho nas raízes, com o pneu na barriga que a roupa de grife não conseguia esconder de todo. A simples idéia era absurda.

Mas sim. Se ele quisesse, ela o faria.

Deu uma olhada na geladeira e, sob um dos ímãs presos na porta (SOMOS POSITRONICS, CONSTRUINDO O FUTURO CIRCUITO POR CIRCUITO,dizia este ímã), havia um breve bilhete:

 

Ree...

Você queria que eu relaxasse, então estou relaxando (porra!). Isto é, fui pescar com Sonny Emerson, no outro lado do lago, ié, ié. Voltaremos às nove, a não ser que os insetos incomodem demais. Se eu levar um badejo, você limpa & cozinha?

D.

PS: Está acontecendo alguma coisa no mercado, coisa braba porque vieram três carros de polícia. APARECIDOS, quem sabe????      Se souber de alguma coisa, me conte.

 

Ela havia dito que ia ao mercado naquela tarde... ovos e leite que, obviamente, não comprara... e ele havia abanado a cabeça. Sim querida, sim querida. Mas no bilhete não havia qualquer vestígio de preocupação, nem sugestão de que se lembrava do que ela tinha dito. Bem, o que ela esperava afinal? Quando se tratava de David, info entrava pelo ouvido A, info saía pelo ouvido B. Bem-vinda ao Mundo Genius.

Virou o bilhete, puxou uma caneta de uma xícara cheia delas, hesitou e escreveu:

 

David,

Algo aconteceu e tenho de ficar um tempo fora. Pelo menos dois dias, quem sabe uns três ou quatro. Por favor não se preocupe comigo e não chame ninguém. ESPECIALMENTE NÃO A POLÍCIA. É coisa tipo gato vira-lata.

 

Ele ia entender isso? Achava que sim, se ele se lembrasse de como tinham se conhecido. Na Sociedade de Proteção aos Animais de Santa Mônica, fora lá, entre as pilhas de canis enfileirados nos fundos: o amor florescendo enquanto os vira-latas latiam. Por Deus, ela achava que parecia uma coisa de James Joyce. Ele havia levado para lá um cachorro vira-lata que encontrara numa rua suburbana perto do apartamento onde estava morando com meia dúzia de amigos cabeça. Ela estivera procurando um gatinho para animar o que era uma vida essencialmente sem amigos. Na época ele possuía todo o seu cabelo. Quanto a Irene, ela achava as mulheres que pintavam os seus um tanto engraçadas. O tempo era um ladrão e uma das primeiras coisas que levava era o senso de humor.

Ela hesitou, mas logo acrescentou

 

Te amo,

Ree

 

Isso ainda era verdade? Bem, agora já estava escrito. Riscar o que se escrevia à tinta nunca era bom. Usou o mesmo ímã para deixar o bilhete na porta da geladeira.

Tirou as chaves do Mercedes da cesta perto da porta, depois se lembrou do barco a remo, ainda amarrado na pequena ponta de doca atrás do mercado. Ali não haveria problema. Mas então ela se lembrou de outra coisa, algo que o garoto lhe dissera. Ele não sabe nada de dinheiro.

Foi até a despensa, onde eles sempre guardavam um rolo fino de notas de cinqüenta (havia lugares ali na roça onde ela seria capaz de jurar que as pessoas nem sequer tinham ouvido falar do MasterCard) e pegou três. Começou a se afastar da despensa, abanou os ombros, voltou e pegou também as outras três notas. Por que não? Naquele dia estava vivendo perigosamente.

Antes de sair parou de novo para dar uma olhada no bilhete. E então, por absolutamente nenhuma razão que pudesse entender, pegou o ímã da Positronics, substituindo-o por um que era um pedaço de laranja. E partiu.

Pouco importava o futuro. Por enquanto já tinha o bastante para fazê-la se ocupar do presente.

 

A carreta de emergência se fora, levando o escritor para o hospital ou enfermaria mais próximos, Roland presumiu. Os oficiais de polícia chegaram bem no momento em que a carreta partia, e passaram talvez meia hora conversando com Bryan Smith. De onde estava, logo depois do início da primeira subida, o pistoleiro pôde ouvir a palestra. As perguntas dos costas azuis eram claras e tranqüilas, as respostas de Smith pouco mais que balbuciação. Roland não viu razão para parar de trabalhar. Se os azuis viessem e o encontrassem ali, saberia lidar com eles. Só iria incapacitá-los, a não ser que tornassem isso impossível; os deuses sabiam que já houvera matança suficiente. Mas enterraria seu morto, de um modo ou de outro.

Enterraria seu morto.

A doce luminosidade verde e dourada da clareira ficou mais intensa. Os mosquitos o descobriram, mas ele não parou o que estava fazendo para matá-los, meramente deixou-os se satisfazerem e depois ir embora, pesados com a carga de sangue. Ouviu motores dando a partida quando acabava de cavar o túmulo com a mão, o roncar suave dos dois carros e o som mais irregular da van-móbile de Smith. Só tinha ouvido as vozes de dois policiais, o que significava que, a não ser que houvesse um terceiro costa azul sem nada para dizer, estavam deixando Smith ir embora dirigindo. Roland achou aquilo meio estranho, mas — como a questão de saber se King ia ou não ficar paralítico — não era uma coisa que pudesse interessa-lo ou preocupá-lo. O que importava era aquilo; tudo que importava era cuidar do que era seu.

Fez três viagens para pegar pedras, pois um túmulo cavado à mão tem necessariamente de ser raso e os animais, mesmo num mundo domesticado como aquele, estão sempre com fome. Empilhou as pedras na frente do buraco, uma cicatriz forrada com terra tão pura que lembrava um tecido preto de cetim. Oi continuava deitado ao lado da cabeça de Jake, observando, sem se manifestar, a movimentação do pistoleiro. Oi sempre fora diferente dos outros de sua espécie do jeito que eram desde que o mundo seguira adiante; Roland chegara a especular que fora a extraordinária loquacidade de Oi que fizera os outros de seu tet expeli-lo, e sem dúvida não de uma forma gentil. Quando se depararam com aquele sujeitinho, não muito longe da cidade de River Crossing, ele estava magro como alguém à beira de morrer de fome e tinha marcas de mordida não de todo cicatrizadas do lado do lombo. O trapalhão amara Jake desde o princípio: “Isso era claro para qualquer habitante da Terra”, Cort talvez dissesse (ou mesmo o próprio pai de Roland). E foi com Jake que o trapalhão mais havia falado. Roland achava que agora, com o menino morto, Oi podia cair num silêncio quase completo e este pensamento foi outro modo de definir a profundidade da perda.

Lembrou-se do garoto parado diante dos habitantes de Calla Bryn Sturgis sob a luz das tochas, o rosto jovem, bonito, como se ele fosse viver para sempre. Sou Jake Chambers, filho de Elmer, da Linhagem do Eld, do ka-tet dos Noventa e Nove, ele havia dito e oh, ié, agora lá estava Jake nos Noventa e Nove, com seu túmulo todo cavado, limpo, à espera dele.

Roland começou novamente a chorar. Pôs as mãos no rosto e, ajoelhado, oscilava de um lado para o outro cheirando o doce aroma das sementes dos pinheiros. Queria que tivesse desistido antes que o ka, aquele velho e paciente demônio, mostrasse o verdadeiro preço de sua missão. Teria dado qualquer coisa para alterar o que tinha acontecido, qualquer coisa para fechar aquele buraco apenas com terra, mas estava no mundo onde o tempo corria apenas num sentido.

 

Quando recuperou o autocontrole, envolveu cuidadosamente Jake na lona azul, formando uma espécie de capuz em volta do rosto imóvel e pálido. Fecharia esse rosto para sempre antes de encher a cova de terra, mas não antes disso.

— Oi? — ele perguntou. — Não quer dizer adeus?

Oi olhou para Roland e, por um momento, o pistoleiro não teve certeza se ele havia compreendido. Então o trapalhão esticou o pescoço e sua língua acariciou pela última vez a face do garoto.

— Eu... Ake — disse Oi: Adeus, Jake ou Ake, dava no mesmo.

O pistoleiro levantou o garoto (como era leve aquele garoto que pulara do alto do celeiro com Benny Slightman e enfrentara os vampiros com Père Callahan, como era curiosamente leve; como se o peso que fora ganhando com a idade tivesse partido com sua vida) e pousou-o no buraco. Um pouco de terra se derramou sobre uma das faces e Roland a limpou. Feito isso, fechou novamente os olhos e meditou. Então, por fim — mas de modo hesitante —, ele começou. Sabia que qualquer tradução para a linguagem daquele lugar seria pobre, mas fez o melhor que pôde. Se o espírito de Jake ainda estivesse por perto, era aquela linguagem que ele ia entender.

— O tempo voa, os sinos tocam finados, a vida passa, ouça então minha prece.

“O nascimento é apenas o começo da morte, ouça então minha prece.

“A morte é muda, ouça então minha fala.”

As palavras se dissipavam na névoa de verde e dourado. Roland deixou as primeiras partirem e passou às outras. Agora falava mais depressa.

— Este é Jake, que serviu a seu ka e a seu tet. A verdade seja dita.

“Possa o olhar de perdão de S’mana sarar seu coração. O favor seja feito.

“Possam os braços do Gan se erguerem da escuridão desta terra. O favor seja feito.

“Para cercá-lo, Gan, com luz.

“Para preenchê-lo, Chloe, com energia.

“Se estiver sedento, dêem-lhe água na clareira.

“Se estiver faminto, dêem-lhe comida na clareira.

“Possa sua vida nesta terra e a dor de sua partida serem como um sonho para sua alma que revive, e que seus olhos caiam sobre toda visão amável; que encontre os amigos que tinha perdido e que todos, cujos nomes sejam ditos por ele, respondam ao seu chamado.

“Este é Jake, que viveu bem, amou os seus e morreu como queria o ka.

“Todo homem deve uma morte. Este é Jake. Dêem-lhe a paz.”

Ficou mais um pouco ajoelhado com as mãos entrelaçadas perto dos joelhos, achando que, até aquele momento, ainda não tinha compreendido a verdadeira força do pesar, nem a dor do arrependimento.

Não posso suportar soltá-lo.

Mas de novo aquele cruel paradoxo: se não continuasse, o sacrifício teria sido em vão.

Roland abriu os olhos e disse:

— Adeus, Jake. Eu amo você, meu caro.

Então ele fechou o capuz azul em volta do rosto do garoto para protegê-lo da chuva de terra que ia começar.

 

Quando o túmulo foi coberto e as pedras colocadas sobre ele, Roland, pelo simples fato de não ter mais nada a fazer, voltou à clareira perto da margem da estrada e investigou o que os vários rastros diziam. Quando essa inútil tarefa terminou, sentou-se num tronco caído. Oi ficara ao lado do túmulo e Roland achava que ainda ficaria ali por algum tempo. Chamaria o trapalhão quando a sra. Tassenbaum retornasse, mas sabia que talvez Oi não atendesse a seu chamado; se assim fosse, isso indicaria que Oi decidira se juntar a seu amigo na clareira. O trapalhão simplesmente ficaria de vigília no túmulo de Jake até a fome (ou algum predador) acabar com ele. A idéia só serviu para aumentar a dor de Roland, mas ele aceitaria a decisão de Oi.

Dez minutos depois o trapalhão saiu do bosque e sentou-se ao lado da bota esquerda de Roland.

— Bom garoto — disse Roland, alisando a cabeça do trapalhão. Oi decidira viver. Era uma coisinha pequena, mas boa.

Dez minutos depois disso, um carro vermelho-escuro se aproximou quase em silêncio do lugar onde King fora atropelado e Jake morrera. Encostou. Roland abriu a porta do carona e entrou, ainda estremecendo por causa de uma dor que não estava mais lá. Oi pulou para o meio de seus pés sem ser convidado, deitou-se com o nariz contra a perna e pareceu adormecer.

— Cuidou do seu menino? — perguntou a sra. Tassenbaum, dando a partida.

— Sim. Obrigado-sai.

— Acho que não podemos pôr nenhuma lápide ali — disse ela —, mas depois posso plantar alguma coisa. Acha que ele teria alguma preferência?

Roland levantou a cabeça e, pela primeira vez desde a morte de Jake, sorriu:

— Sim — disse ele. — Uma rosa.

 

Rodaram quase vinte minutos sem falar. Na entrada da cidadezinha de Bridgton, ela parou numa loja de conveniência e encheu o tanque. MOBIL, uma marca que Roland já conhecia de andanças anteriores. Quando ela entrou na loja para pagar a gasolina, Roland ergueu os olhos e viu los ángeles correndo clara e vigorosamente pelo céu. O Caminho do Feixe de Luz, e já mais forte, a não ser que fosse apenas sua imaginação. Mas tanto fazia. Se o Feixe já não estivesse mais forte, logo ia estar. Tinham conseguido salvá-lo, embora isso não estivesse trazendo alegria a Roland.

A sra. Tassenbaum saiu da lojinha segurando uma camiseta com a estampa de um carro de bois — um verdadeiro carro de bois — e palavras escritas num círculo. Ele pôde entender EXPOSIÇÃO, mas só isso. Perguntou o que as palavras queriam dizer.

— EXPOSIÇÃO COMEMORATIVA DE BRIDGTON, 27 A 30 DE JULHO DE 1999 — disse ela. — Não importa realmente o que está escrito desde que cubra seu peito. Em algum momento vamos querer parar e temos um ditado por aqui: “Sem camisa, sem sapato, sem serviço.” Ainda que estejam surradas e rotas, acho que suas botas não vão impedi-lo de entrar na maioria dos lugares. Mas de topless? Hum-hum, sem chance, mane! Mais adiante lhe compro uma camisa melhor... uma camisa de gola... e também uma calça decente. Esse jeans está tão sujo que fica em pé sozinho. — Ela entrou num breve (mas furioso) debate interior, depois soltou: — Você tem, em termos muito gerais, dois bilhões de cicatrizes. E só nas partes que posso ver.

Roland não respondeu.

— Tem dinheiro? — ele perguntou.

— Peguei trezentos dólares quando fui em casa pegar o carro e já tinha trinta ou quarenta comigo. Tenho também cartões de crédito, mas seu falecido amigo me disse para usar dinheiro vivo sempre que pudesse. E que o acompanhasse até você estar em condições de seguir sozinho. Ele disse que pode haver gente à sua procura. Uns tais de “homens baixos.”

Roland abanou a cabeça. Sim, devia haver homens baixos por ali e depois de tudo que ele e seu ka-tet haviam feito para atrapalhar os planos do Mestre deles, estariam duas vezes mais dispostos a conseguir sua cabeça. De preferência para vê-la fumando na ponta de um pau. E também a cabeça de sai Tassenbaum, se a descobrissem.

— O que mais Jake lhe contou? — Roland perguntou.

— Que tenho de levá-lo para a cidade de Nova York, se quisesse ir para lá. Disse que lá existe uma porta que pode deixá-lo num lugar chamado Faydeg.

— E falou mais?

— Sim. Disse que havia outro lugar onde talvez você quisesse ir antes de usar a porta. — Ela arriscou uma tímida olhadela de lado para ele. — Há?

Roland pensou, depois abanou afirmativamente a cabeça.

— Também falou com o cachorro. Era como se estivesse dando... ordens... instruções... ao cachorro. — Olhou-o com ar de dúvida. — Isto seria possível?

Roland achava que sim. À mulher, Jake só poderia fazer pedidos. Quanto a Oi... bem, isso podia explicar por que o trapalhão não ficara ao lado do túmulo, por mais que tivesse vontade.

Seguiram algum tempo em silêncio. A estrada desembocava numa rodovia bastante movimentada com carros e caminhões correndo em alta velocidade por muitas pistas. Ela teve de parar junto a uma cabine de pedágio e dar dinheiro para continuar. O atendente era um robô com uma cesta no lugar do braço. Roland achou que pudesse dormir, mas viu o rosto de Jake quando fechou os olhos. Depois o de Eddie, com o inútil curativo lhe cobrindo a testa. Se é isto que vejo quando fecho os olhos, ele pensou, como serão os meus sonhos?

Tornou a abrir os olhos e observou Irene descendo uma rampa suave, de bom asfalto, entrando sem pausa no pesado fluxo de tráfego. Inclinou o corpo e olhou para cima através da janela. Lá estavam as nuvens, los ángeles, viajando sobre eles, na mesma direção. Continuavam no Caminho do Feixe.

 

— Senhor? Roland?

Achou que ele estava cochilando de olhos abertos. Roland se virou do banco do carona com as mãos no colo, a mão boa dobrada sobre a mutilada, escondendo-a. Ela achou que nunca vira ninguém tão pouco adequado a um Mercedes-Benz. Ou a qualquer automóvel. Também achou que nunca vira um homem que parecesse tão cansado.

Mas acho que não está esgotado. Acho que não está nem perto de esgotado, mesmo que pense que está.

— O animal... Oi?

— Oi, sim. — O trapalhão ergueu os olhos ao som de seu nome, mas não o repetiu, como ainda no dia anterior o teria feito.

— Esse bicho é um cachorro? Não chega exatamente a ser, não é?

— Ele, não esse bicho. E não, não é um cachorro.

Irene Tassenbaum abriu a boca, depois tornou a fechá-la. O que era difícil, pois o silêncio ao lado de outra pessoa não lhe parecia natural. E estava com um homem que julgava atraente, apesar da dor que ele sentia e da exaustão (talvez, até certo ponto, por causa dessas coisas). Um garoto agonizante lhe pedira para levar aquele homem a Nova York e aos lugares aonde ele precisava ir quando chegassem lá. O garoto dissera que a noção que o amigo tinha de Nova York era ainda pior que a noção que tinha do dinheiro e ela acreditou que fosse verdade. Mas também acreditava que aquele homem fosse perigoso. Teve vontade de fazer mais perguntas, mas e se ele de fato respondesse a elas? Irene entendeu que, quanto menos soubesse, melhores seriam, depois que ele partisse, suas chances de retornar à vida que tivera até as 15 para as quatro daquela tarde. Retornar como se retorna por um trevo à estrada principal. Aquilo seria o melhor.

Ela ligou o rádio e encontrou uma estação tocando “Amazing Grace”. Quanto tornou a olhar para seu estranho acompanhante, viu como ele observava o céu cada vez mais escuro e chorava. Então olhou por acaso para baixo e viu algo muito mais estranho, algo que mexeu com seu coração de um jeito que não sentira nos últimos 15 anos, desde a perda de seu primeiro e único esforço de ter um filho.

O animal, o não-cachorro, Oi... também estava chorando.

 

Saiu da 95 logo depois da divisa com Massachusetts e pegou dois quartos vizinhos numa espelunca chamada Pousada Brisa Marinha. Não havia trazido os óculos que usava para dirigir, chamados por ela de “rabo de inseto” (por causa de: “quando estou usando essa coisa consigo enxergar pelo rabo de um inseto”), e seja como for ela não gostava de dirigir à noite. Rabo de inseto ou não, dirigir à noite fritava seus nervos, o que podia lhe trazer uma enxaqueca. Com enxaqueca não teria utilidade para nenhum deles e seu Imitrex estava guardado no agora inacessível armário de banheiro em East Stoneham.

— Além disso — comentou com Roland —, se esta Tet Corporation que está procurando fica num prédio comercial, não vai conseguir entrar lá antes de segunda-feira. — Provavelmente não era bem assim; Roland parecia o tipo de homem capaz de entrar nos lugares quando bem entendesse. Não seria possível detê-lo. Achou que isso era outro elemento da atração que exercia sobre um certo tipo de mulher.

Seja como for, ele não fez objeções ao motel. Não, Roland não ia sair para jantar com ela e então ela encontrou o menos pior fast-food das proximidades e trouxe um jantar tardio do KFC. Comeram no quarto de Roland. Irene arranjou um prato para Oi por contra própria. Oi só comeu um pedaço da galinha, que segurou cuidadosamente com as patas; depois entrou no banheiro e pareceu adormecer no tapete diante da banheira.

— Por que chamam isto aqui de Brisa Marinha? — Roland perguntou. Ao contrário de Oi, estava comendo de tudo, mas sem nenhum sinal de prazer. Comia como um homem cumprindo uma tarefa. — Não sinto o menor cheiro do oceano.

— Bem, deve ser possível quando o vento estiver na direção certa e soprando um furacão — disse ela. — É o que chamamos de licença poética, Roland.

Ele abanou a cabeça, mostrando uma inesperada (ao menos para ela) compreensão.

— Mentiras bonitas — disse.

— É, suponho que sim.

Irene ligou a televisão achando que ia diverti-lo, mas ficou chocada com sua reação (embora tenha dito a si mesma que só achou engraçado). Quando Roland lhe disse que não podia enxergá-la, ela não soube muito bem como interpretar a coisa; seu primeiro pensamento foi que se tratava de alguma espécie de crítica oblíqua e terrivelmente intelectual acerca da própria mídia. Depois achou que ele podia estar falando (de forma igualmente oblíqua) de sua dor, seu estado de luto. Só quando Roland disse a ela que sim, conseguia ouvir as vozes, mas só enxergava linhas que faziam seus olhos lacrimejarem foi que ela percebeu que o homem estava falando a verdade literal: não conseguia ver as imagens na tela. Nem a reprise de Roseanne, nem o comercial da Ab-Flex, nem a cabeça falante do telejornal local. Ela quis ver toda a reportagem sobre Stephen King (levado pelo helicóptero de resgate ao Hospital Central Geral do Maine, em Lewiston, onde uma cirurgia realizada no início da noite parecia ter salvo sua perna direita; estado regular, ainda que com novas cirurgias pela frente, provavelmente um longo e incerto caminho para a recuperação), mas depois desligou a TV.

Irene juntou o lixo — por alguma razão havia sempre muito lixo após uma refeição do KFC —, deu a Roland um hesitante boa-noite (que ele retribuiu de modo distraído, tipo não-estou-realmente-aqui, que a deixou nervosa e triste) e foi para seu próprio quarto vizinho. Ali viu uma hora de um filme antigo onde Yul Brynner fazia o papel de um robô-caubói defeituoso antes de desligá-lo e ir escovar os dentes no banheiro. Então ela percebeu que tinha — é claro, querrida! — esquecido sua escova de dentes. Fez o melhor que pôde usando o dedo e se estendeu na cama de sutiã e calcinha (tampouco trouxera a camisola de dormir). Passou uma hora assim, antes de perceber que estava procurando sons vindos do outro lado da parede fina como papel e, em particular, um som: o estampido do revólver que Roland sem dúvida não se esquecera de levar do carro para o quarto do motel. O tiro indicando que dera fim à sua angústia do modo mais direto possível.

Quando não pôde mais suportar o silêncio vindo do outro lado da parede, Irene se levantou, tornou a se vestir e saiu para ver as estrelas. Lá, encontrou Roland, sentado no meio-fio, com o não-cachorro do lado. Teve vontade de perguntar como tinha conseguido sair do quarto sem ela dar conta (as paredes eram tão finas e ficara ouvindo com tanta atenção!), mas não perguntou. Em compensação, perguntou o que estava fazendo lá fora e sentiu-se despreparada tanto para a resposta quanto para a expressão absolutamente franca do rosto que se virou para o dela. Estava esperando uma patina de civilização — um aceno para as amenidades —, mas não houve nenhuma. A honestidade dele era aterradora.

— Estou com medo de dormir — disse. — Estou com medo que meus amigos mortos voltem e que vê-los possa me matar.

Ela o olhou atentamente na mistura de luz: a que caía de seu quarto e o horrível e impiedoso clarão de Halloween que vinha das lâmpadas de sódio do estacionamento. Seu coração batia com força suficiente para sacudir todo o peito, mas quando ela falou a voz parecia bastante calma.

— Ajudaria se eu me deitasse com você?

Ele pensou nisto e abanou a cabeça.

— Acho que sim.

Irene pegou a mão dele e foram para o quarto que alugara para Roland. Ele tirou as roupas sem o menor constrangimento e ela contemplou, impressionada, assustada, as cicatrizes que marcavam e recortavam a parte de cima de seu corpo: o franzido vermelho de um corte de faca num dos bíceps, a cicatriz leitosa de uma queimadura no outro, o xadrez esbranquiçado de talhos e, sobre as omoplatas, três covinhas profundas que só podiam ser velhos buracos de balas. E, naturalmente, havia os dedos perdidos na mão direita. Ficou curiosa, mas sentiu que jamais se atreveria a perguntar sobre isso.

Irene tirou suas roupas de cima, hesitou, mas tirou também o sutiã. Os seios caíram e num deles havia a cicatriz denteada não de um ferimento de bala, mas de uma lumpectomia. E daí? Nunca fora uma modelo da Victoria’s Secret, mesmo quando moça. E mesmo quando moça jamais cometera o erro de se considerar um conjunto de tetas e bunda ligado a um sistema de manutenção da vida. Nem deixara outras pessoas — incluindo o marido — cometerem este erro.

Irene, no entanto, não tirou a calcinha. Se tivesse se depilado, talvez a tivesse tirado. Se soubesse, ao acordar naquela manhã, que ia se deitar no quarto de um hotel barato com um homem desconhecido enquanto um animal esquisito tirava uma soneca no tapete do banheiro. Claro que teria trazido uma escova de dentes e um tubo de Crest, também.

Quando ele pôs os braços à sua volta, ela arfou e ficou tensa, mas depois relaxou. Só que muito devagar. O quadril de Roland fez pressão contra seu traseiro e ela sentiu o considerável peso de seu pênis, mas parecia que o que ele queria era apenas conforto; seu pau estava mole.

Ele agarrou seu seio esquerdo e passou o polegar pela cavidade da cicatriz deixada pela lumpectomia.

— O que é isto? — perguntou.

— Bem — disse ela (agora a voz não estava mais calma) —, segundo o meu médico, em mais cinco anos teria virado um câncer. Então cortaram antes que pudesse dar uma... bem, não sei exatamente... a metástase vem depois, se chegar a acontecer.

— Cortaram antes que pudesse florescer? — ele perguntou.

— Sim. Certo. Bom. — O mamilo estava agora duro como rocha e certamente ele devia sentir isso. Oh, aquilo era tão estranho!

— Por que seu coração está batendo com tanta força? — ele perguntou. — Eu a assusto?

— Eu... sim.

— Não tenha medo — disse ele. — A matança acabou. — Uma longa pausa na escuridão. Podiam ouvir o barulho abafado dos carros na estrada. — Ao menos por enquanto — ele acrescentou.

— Oh — disse ela numa voz muito baixa. — Bom.

A mão dele em seu seio. A respiração dele no pescoço. Após um tempo interminável, que podia ter sido de uma hora ou de apenas cinco minutos, a respiração de Roland ficou mais profunda e Irene percebeu que ele tinha dormido. Ela ficou ao mesmo tempo satisfeita e frustrada. Alguns minutos mais tarde, Irene também dormiu e foi o melhor sono que tivera em anos. Se Roland teve pesadelos com os amigos mortos não perturbou-a com isso. Quando ela acordou eram oito horas da manhã e Roland estava de pé à janela, nu, olhando através de uma abertura que fizera com um dedo nas cortinas.

— Você dormiu? — ela perguntou.

— Um pouco. Vamos continuar?

 

Podiam ter chegado a Manhattan por volta das três da tarde e o trajeto para o centro num domingo seria muito mais fácil que na hora do rush de uma manhã de segunda, mas hotéis em Nova York eram caros e a simples estadia de duas noites já exigiria a utilização de um cartão de crédito. Ficaram então no Motel 6 em Harwich, Connecticut. Ela pegou apenas um quarto e, naquela noite, eles transaram. Não exatamente porque ele quisesse, ela intuiu, mas porque Roland entendeu que era o que ela queria. Talvez o que precisava.

Foi extraordinário, embora ela não pudesse dizer precisamente como; apesar de sentir todas aquelas cicatrizes nas mãos — algumas ásperas, algumas suaves —, teve a impressão de estar transando com seu sonho. E naquela noite ela realmente sonhou. Sonhou com um campo cheio de rosas e uma enorme Torre feita de ardósia preta em sua extremidade. A meio caminho do topo, luzes vermelhas brilhavam... só que ela desconfiava que não se tratava exatamente de lâmpadas, mas de olhos.

Olhos terríveis.

Ouvia muitas vozes cantando, milhares delas, e compreendeu que algumas eram as vozes dos amigos perdidos dele. Acordou com lágrimas no rosto e uma sensação de perda, embora ele ainda estivesse a seu lado. Depois daquele dia não o veria mais. O que sem dúvida era melhor. Ainda assim, daria qualquer coisa para transar novamente com ele, embora percebesse que não fora realmente com ela que Roland havia transado; mesmo quando a penetrou, os pensamentos dele estavam distantes, com aquelas vozes.

Com aquelas vozes perdidas.

 

OUTRA VEZ NOVA YORK

(ROLAND MOSTRA A IDENTIDADE)

Na manhã de segunda-feira, 21 de junho do ano de 1999, o sol brilhou sobre a cidade de Nova York exatamente como se Jake Chambers não estivesse morto num mundo e Eddie Dean em outro; como se Stephen King não estivesse num centro de tratamento intensivo no Hospital Lewiston, só recuperando algum lampejo de consciência por breves períodos; como se Susannah Dean não estivesse sozinha com sua dor a bordo de um trem que corria por uma linha férrea antiga, perigosa, atravessando as escuras extensões de Trovoada em direção à cidade fantasma de Fedic. Algumas pessoas tinham resolvido acompanhá-la pelo menos até aquele ponto da jornada, mas ela havia pedido que a deixassem sozinha e seu desejo fora atendido. Susannah sabia que ia se sentir melhor se chorasse, mas até aquele momento não fora capaz de fazê-lo (algumas lágrimas ao acaso, como insignificantes gotas de chuva no deserto, fora o seu melhor resultado), embora tivesse a terrível sensação de que as coisas estavam piores do que imaginava.

Porra, esqueça essa “sensação”, Detta rosnou num tom de desprezo de seu esconderijo bem lá no fundo enquanto Susannah contemplava as escuras e rochosas terras devastadas ou, aqui e ali, as ruínas de cidadezinhas e povoados que tinham sido abandonados quando o mundo seguiu adiante. Você está tendo uma intuição genuína, menina! A única dúvida que tu num pode responder é se é o comprido alto e feio ou o Jovem Senhor Doçura quem está agora se encontrando com teu homem na clareira.

— Por favor não — ela murmurou. — Por favor nenhum dos dois, Deus, eu não suportaria outra morte.

Mas Deus continuou surdo à sua súplica, Jake continuava morto, a Torre Negra continuava de pé na extremidade de Can’-Ka No Rey, atirando sua sombra sobre um milhão de rosas gritantes e, em Nova York, o sol quente de verão brilhava igualmente sobre os justos e os injustos.

Podem dizer aleluia?

Obrigado-sai.

Agora alguém vai me gritar um grande amém ao velho Deus-bomba!

 

A sra. Tassenbaum deixou o carro no Sir Speedy-Park da rua 63 (a placa na calçada mostrava um cavaleiro de armadura atrás do volante de um Cadillac, a lança despontando garbosa da janela do motorista), onde ela e David alugaram duas vagas por uma taxa anual. O casal tinha um apartamento nas proximidades e Irene perguntou se Roland não queria ir até lá para tomar um banho... mesmo que o estado dele não fosse dos piores, ela reconhecia. Havia lhe comprado uma nova calça jeans e uma camisa branca de manga comprida, que ele enrolara até os cotovelos. Também lhe comprara um pente e um tubo de gel para o cabelo, um gel tão viscoso que sua constituição molecular estaria provavelmente mais próxima do SuperBonder que do Gumex. Penteando com força para trás as ondas revoltas do cabelo salpicado de prata dele, ela revelara as feições econômicas e bonitas do pistoleiro, os traços angulares do interessante produto híbrido que ele constituía. Irene pensou numa mistura de quaker com índio cherokee. A sacola de Orizas estava mais uma vez pendurada no ombro dele. O revólver, coldre envolto no cinturão de balas, estava dentro da sacola, também. Roland a protegia de olhares indiscretos com a camiseta da Exposição Comemorativa.

Roland sacudiu a cabeça numa negativa.

— Agradeço a oferta, mas prefiro fazer logo o que deve ser feito e depois voltar para o meu lugar. — Deu uma olhada triste nas multidões que seguiam rápido pelas calçadas. — Se é que ainda tenho lugar.

— Poderia ficar alguns dias no apartamento e descansar — disse ela. — Eu ficaria com você. — E treparia até cair, se você quisesse, ela pensou e não pôde deixar de sorrir. — Tudo bem, sei que não vai querer, mas precisa saber que a oferta vai continuar de pé.

Ele abanou a cabeça.

— Obrigado, mas há uma mulher que precisa que eu volte para perto dela logo que possível. — Roland sentiu isso como se fosse uma mentira, uma mentira grotesca. Com base em tudo que havia acontecido, parte dele achava que Susannah Dean precisava que Roland de Gilead voltasse para sua vida quase tanto quanto um neném precisa de veneno de rato na mamadeira. Irene Tassenbaum, no entanto, aceitou a coisa. E parte dela não deixava de estar ansiosa para voltar ao marido. Ligara para ele na noite anterior (usando um telefone público a um quilômetro e meio do hotel, só por segurança) e ao que parecia conseguira finalmente de novo conquistar a atenção de David Seymour Tassenbaum. Em comparação com seu encontro com Roland, a atenção de David era sem a menor dúvida um prêmio de consolação, mas sempre era melhor que nada, pelo amor de Deus! Roland Deschain logo desapareceria de sua vida, deixando-a para que retomasse sozinha o caminho de volta para o norte da Nova Inglaterra e tentar explicar, da melhor maneira possível, o que havia acontecido. Parte dela chorava a perda iminente, mas o fato é que vivera, nas últimas quarenta horas, aventuras suficientes para serem recordadas pelo resto de sua vida, certo? Fora as coisas que teria para pensar. Antes de mais nada, o mundo parecia bem mais ralo do que teria sido capaz de imaginar. E a realidade era mais ampla.

— Tudo bem — disse ela. — É para a esquina da Segunda Avenida com a rua 46 que quer ir primeiro, correto?

— Sim.

Susannah não tivera oportunidade de falar muita coisa sobre suas aventuras depois de Mia ter seqüestrado o corpo compartilhado pelas duas, mas o pistoleiro sabia que havia um prédio alto (aquilo que Eddie, Jake e Susannah chamavam de arranha-céu) na área do antigo terreno baldio e a Tet Corporation tinha de estar funcionando lá.

— Vamos precisar de um tak-ci?

— Será que você e seu amigo peludo podem andar dezessete quadras curtas e duas ou três compridas? Você decide, mas eu não me importaria de esticar as pernas.

Roland não imaginava o quanto uma quadra comprida era comprida nem o quanto curta uma quadra curta poderia ser, mas estava mais do que disposto a descobrir, pois aquela dor intensa no quadril direito era coisa do passado. Essa dor agora era de Stephen King, juntamente com a dor das costelas quebradas e aquela no lado direito da cabeça fraturada. Roland não lhe invejava essas dores, mas pelo menos elas haviam voltado a seu legítimo dono.

— Vamos — disse ele.

 

Quinze minutos depois, tentando impedir que o queixo se desconjuntasse e caísse até o peito, Roland estava na frente da grande estrutura escura que furava o céu de verão. Não era a Torre Negra, pelo menos não a sua Torre Negra (mas certamente ele não ficaria espantado se soubesse que era exatamente assim que algumas pessoas que trabalhavam naquele arranha-céu — às vezes leitores das aventuras de Roland — chamavam o Hammarskjöld Plaza 2). Contudo, ele não tinha dúvida de que aquele prédio era o representante da Torre no Mundo-chave, assim como a rosa representava um campo cheio delas; o campo que ele vira em tantos sonhos.

Podia ouvir as vozes cantantes, mesmo sobre o movimento e o zumbido do tráfego. A mulher teve de chamá-lo três vezes e inclusive puxar uma de suas mangas para chamar sua atenção. Quando ele — relutante — se virou para Irene, viu que não era a torre do outro lado da rua que ela contemplava (crescera a apenas uma hora de Manhattan e edifícios altos eram coisa batida em seu repertório), mas o minijardim do lado da rua onde estavam. Sua expressão estava deliciada.

— Não é um lugarzinho bonito? Devo ter estado uma centena de vezes nesta esquina e até agora nunca tinha reparado nele. Está vendo a fonte? E a escultura da tartaruga?

Roland estava vendo. E embora Susannah não tivesse contado esta parte de sua história, Roland sentiu que ela estivera lá — juntamente com Mia, filha de ninguém — e se sentara no banco que ficava ao lado do casco molhado da tartaruga. Quase podia enxergá-la ali.

— Eu gostaria de entrar — ela disse timidamente. — Podemos? Dá tempo?

— Sim — disse ele, atravessando com Irene o pequeno portão de ferro.

 

O minijardim era tranqüilo, mas não silencioso de todo.

— Não está ouvindo pessoas cantando? — a sra. Tassenbaum perguntou numa voz que praticamente não passava de um suspiro. — Um coro de algum lugar?

— Pode apostar seu último dólar que sim — Roland respondeu, mas se arrependeu de imediato. Aprendera a frase de Eddie e sentiu-se mal em dizê-la. Ele caminhou para a tartaruga e pôs um joelho no chão para examiná-la mais detidamente. Havia uma pequena lasca no bico, um buraco que lembrava um dente perdido. Nas costas havia um arranhão na forma de ponto de interrogação e letras cor-de-rosa desbotadas.

— O que diz aí? — ela perguntou. — Algo sobre uma tartaruga, mas é tudo que posso perceber.

— “Veja a TARTARUGA de enorme dimensão!” — Ele sequer tinha precisado ler.

— O que isso quer dizer?

Roland se levantou.

— É muito complicado para explicar. Você gostaria de esperar por mim enquanto eu entro ali? — Ele abanava a cabeça na direção da torre com as janelas de vidro escuro brilhando no sol.

— Vá — disse ela —, eu espero. Vou ficar sentada nesse banco aí no sol e esperar você voltar. Vai ser... revigorante. Isso parece loucura?

— Não — disse ele. — Se alguém que não pareça digno de confiança lhe dirigir a palavra, Irene... acho improvável, porque este é um lugar seguro, mas é certamente possível... concentre-se o máximo que puder e me chame.

Os olhos dela se arregalaram.

— Está me falando de percepção extra-sensorial?

Ele não conhecia a expressão percepção extra-sensorial, mas captou o sentido e abanou afirmativamente a cabeça.

— Você ia ouvir o chamado? Você ia me ouvir?

Ele não podia dizer com certeza que sim. Se o prédio estivesse equipado com abafadores, como os bonés bloqueadores de pensamento que os can-toi usavam, seria impossível.

— Pode ser. E como já disse, é improvável haver algum problema. Este lugar é seguro.

Ela olhou para a tartaruga, o casco brilhando sob o borrifo da fonte.

— É, não é? — Irene começou a sorrir, mas parou. — Vai voltar, não vai? Não vai me descartar sem pelos menos... — Irene abanou um ombro. O gesto a fez parecer muito jovem. — Sem pelo menos dizer adeus?

— Jamais na vida. E o negócio que tenho a tratar lá na torre não deve demorar muito tempo. — Na realidade não se tratava exatamente de negócio... a não ser, é claro, que quem estivesse comandando a Tet Corporation tivesse alguma coisa para tratar com ele. — Temos outro lugar para ir, e é lá que Oi e eu vamos nos despedir de você.

— Tudo bem — disse ela, sentando-se no banco com o trapalhão a seus pés. A ponta do banco estava úmida e ela usava uma calça nova (comprada na mesma loja de conveniência onde conseguira uma calça e uma camisa nova para Roland), mas isto não a incomodava. A calça logo secaria num dia como aquele, ensolarado e quente, e ela sentiu que queria ficar perto da escultura da tartaruga. Para observar seus olhos negros minúsculos, intemporais, e ouvir aquelas vozes doces. Achou que seria muito repousante. Esta não era uma palavra que costumasse relacionar com Nova York, mas tratava-se de um lugar muito não-Nova York, com sua atmosfera de silêncio e paz. Talvez, quem sabe, pudesse levar David até lá e, sentados naquele banco, talvez ele pudesse ouvi-la contar a história de seus três dias de desaparecimento sem achar que ficara insana. Ou insana demais.

Roland se afastou, movendo-se com leveza — como um homem capaz de andar dias e semanas sem sequer diminuir o passo. Eu não gostaria de tê-lo no meu rastro, ela pensou e estremeceu um pouco com a idéia.

Roland atingiu o portão de ferro que levava à calçada e se virou mais uma vez para ela. Falou por meio de uma suave cantiga:

 

“Veja a TARTARUGA de enorme dimensão!

Em seu casco sustenta a terra,

Seu pensamento é lento mas sempre generoso:

Sustenta a todos nós em sua mente.

Em suas costas carrega a verdade,

Onde o amor é casado com dever.

Ama a terra e ama o mar,

Ama até uma criança como eu.”

 

Então ele se afastou, movendo-se rápido e lépido, sem olhar de novo para trás. Sentada no banco, ela o viu parar na esquina, esperar ao lado dos outros a luz verde do sinal, depois atravessar a rua com a multidão, a bolsa de couro pendurada no ombro batendo levemente no quadril. Ela o viu subir os degraus do Hammarskjöld Plaza 2 e desaparecer lá dentro. Então Irene se recostou, fechou os olhos e prestou atenção às vozes que cantavam. A certa altura, percebeu que pelo menos duas das palavras que elas cantavam eram as que formavam seu nome.

 

Roland achou que grandes multidões de folken estavam fluindo para o prédio, mas era a percepção de um homem que passara os últimos anos de sua missão em locais quase completamente desertos. Se tivesse chegado às 15 para as nove, quando as pessoas ainda estavam chegando, em vez de às 15 para as onze, teria ficado atordoado com o fluxo de gente. Agora a maioria dos que trabalhavam ali estavam instalados em suas salas e cubículos, produzindo papéis e bytes de informação.

As janelas do saguão eram de vidro claro e tinham a altura de pelo menos dois andares, talvez três. Conseqüentemente o saguão estava cheio de luz e, quando ele entrou ali, dissipou-se o pesar que o dominava desde que se ajoelhara ao lado de Eddie na rua da Vila Aprazível. Ali as vozes cantantes estavam mais altas, não como um simples coro, mas como um grande coral. E, ele percebeu, não era o único que conseguia ouvi-las. Na rua as pessoas avançavam de cabeça baixa e ares de concentração alheia nos rostos, como se estivessem deliberadamente ignorando a delicada e transitória beleza do dia que lhes fora concedido; ali eram incapazes de não sentir pelo menos um pouco daquilo com que o pistoleiro estava tão finamente sintonizado e que bebia como água no deserto.

Como se estivesse sonhando, ele passou pelo piso de mármore rosa ouvindo o eco das batidas dos saltos de suas botas, ouvindo o choque abafado dos Orizas em alvoroço na bolsa. Pensou: Quem trabalha aqui gostaria de morar aqui. Pode não ter exata consciência disso, mas gostaria. Quem trabalha aqui fica arranjando desculpas para trabalhar até tarde. E vai viver uma vida longa e produtiva.

No centro do salão alto, cheio de ecos, o dispendioso piso de mármore dava lugar a um quadrado de simples terra preta. Era cercado por cordas de um veludo cor de vinho, mas Roland sabia que as cordas não precisavam estar ali. Ninguém violaria aquele pequeno jardim, nem mesmo um can-toi suicida, desesperado para eternizar o próprio nome. Era solo sagrado. Nele havia três palmeiras anãs e plantas que Roland não via desde que saíra de Gilead: espatifilum, achava que era assim que se chamavam lá; possivelmente não teriam o mesmo nome naquele mundo. Havia também outras plantas, mas só uma importava.

No meio do canteiro, sozinha, estava a rosa.

Não fora replantada; Roland percebeu de imediato. Não. Continuava no mesmo lugar onde estivera em 1977, quando a área não passava de um terreno baldio, cheio de lixo, cheio de tijolos quebrados, escondido atrás de uma placa que anunciava o lançamento dos luxuosos condomínios da Baía da Tartaruga, uma realização da Mills Empreendimentos Imobiliários e da Sombra Incorporações. Aquele prédio, com toda a sua centena de andares, fora construído em vez do condomínio e em volta da rosa. Qualquer negócio que pudesse ser fechado ali se tornava secundário ante aquele aspecto da coisa.

O Hammarskjöld Plaza 2 era um santuário.

 

Com o tapinha no ombro, Roland se virou tão bruscamente que atraiu olhares de alarme. Ele próprio ficou assustado. Por muitos anos (talvez desde seus primeiros anos de adolescente) ninguém conseguira ser suficientemente furtivo para se colocar ao alcance de seu ombro sem ser ouvido. E com aquele piso de mármore, ele certamente devia ter...

A jovem (e extremamente bela) mulher que se aproximara ficou sem dúvida espantada pelo vigor de sua reação, mas as mãos que ele estendeu para segurá-la só abraçaram o ar e logo uma à outra, fazendo um abafado som de palma que ecoou até o teto, um teto pelo menos da altura do que havia no Berço de Lud. Os olhos verdes da mulher eram grandes, atentos. Roland seria capaz de jurar que neles não havia má intenção, mas sem dúvida estranhava ter sido surpreendido daquela maneira e ter tateado no ar...

Baixou a cabeça para os pés da mulher e teve pelo menos uma parte da resposta. Ela estava usando um tipo de sapato que jamais vira, algo com solas de espuma espessa e uma cobertura de lona. Sapatos que se deslocariam com a suavidade de mocassins, mesmo numa superfície dura. Quanto à mulher em si...

Uma estranha e dupla certeza ocorreu-lhe enquanto a contemplava: primeiro, que havia “visto o barco em que ela vinha”, como as marcas de família eram às vezes expressas em Calla Bryn Sturgis; segundo, que uma sociedade de pistoleiros estava se desenvolvendo naquele mundo, naquele Mundo-chave especial, e ele acabara de ser abordado por um deles.

E que melhor lugar para um tal encontro que sob as vistas da rosa?

— Vejo seu pai em seu rosto, mas não consigo me lembrar do nome dele — disse Roland em voz baixa. — Diga-me quem ele era, se me faz o favor.

A mulher sorriu e Roland quase recordou o nome que estava procurando. Depois ele escapou, como freqüentemente essas coisas ocorrem: a memória pode ser bastante retraída.

— Você não chegou a conhecê-lo... embora eu entenda por que teve essa impressão. Vou lhe dizer mais tarde, se quiser, mas agora vou levá-lo lá para cima, sr. Deschain. Há uma pessoa que quer... — Por um momento ela pareceu inibida, como se alguém a tivesse instruído a usar uma certa palavra para que rissem dela. Covinhas se formaram nos lados da boca e os olhos verdes se contraíram encantadoramente nos cantos; era como se ela estivesse pensando: se quiseram brincar comigo, vou deixar que se divirtam —... uma pessoa que quer palestrar com você — a mulher concluiu.

— Está bem — disse ele.

A mulher tocou de leve no ombro dele para mantê-lo mais um pouco ali.

— Pediram que eu me certificasse de que leria a mensagem no Jardim do Feixe — disse ela. — Pode fazer isso?

A resposta de Roland foi seca, mas não deixou de ter um certo tom de desculpas:

— Farei se puder — disse ele —, mas costumo ter problemas com sua língua escrita, mesmo que ela pareça sair com naturalidade da minha boca quando estou deste lado.

— Acho que conseguirá ler isto — disse ela. — Pelo menos tente. — E tocou novamente o ombro dele, virando-o suavemente para o quadrado de terra no chão do saguão (não terra que tivesse sido trazida em carrinhos de mão por um grupo de jardineiros especiais, ele sabia, mas a verdadeira terra daquele lugar, solo que podia ter sido revirado, mas que não sofrerá outra alteração).

A princípio seu sucesso com a pequena placa de metal no canteiro não superou o que tivera com a maioria das inscrições nas vitrines das lojas ou com as palavras nas capas das “re-fichas”. Ia dizer isto a ela, pedir àquela mulher cuja fisionomia lhe era um tanto familiar que lesse para ele, quando as letras se alteraram, transformando-se nas Grandes Letras de Gilead. Ele foi então capaz de ler o que estava marcado ali, e com facilidade. Quando acabou, as letras voltaram à forma anterior.

— Um ótimo truque — disse. — A inscrição responde ao vocabulário do leitor?

Ela sorriu (os lábios estavam cobertos por uma coisa rosada que lembrava cobertura de doce) e abanou a cabeça.

— Sim. Se você fosse judeu, teria visto a mensagem em hebraico. Se fosse russo teria visto no alfabeto cirílico.

— É verdade?

— É.

O saguão tinha recuperado seu ritmo normal... mesmo que, Roland percebia, o ritmo daquele lugar jamais fosse como o dos outros prédios comerciais. Quem vivia em Trovoada sofreria a vida inteira de pequenos males como furúnculos, eczemas, dores de cabeça e dor de ouvido; no fim acabavam morrendo (provavelmente ainda jovens) de um grande e doloroso tumor, provavelmente um daqueles cânceres que devastam rapidamente e atingem os nervos como fogo rasteiro enquanto fazem suas refeições. Ali estava simplesmente o oposto: saúde e harmonia, boa vontade e generosidade. Aquele folken não ouvia exatamente a rosa cantando, mas não era preciso. Eram afortunados e, em certo nível de consciência, cada um sabia disso... o que era a maior de todas as venturas. Ele os via chegar e passar às caixas de subida que chamavam eleva-torres. Moviam-se com vigor, sacudindo seus sacos e pacotes, tralhas e mochilas, e ninguém cruzava o saguão numa linha perfeitamente reta. Alguns iam até o que a mulher havia chamado Jardim do Feixe, mas mesmo quem não fazia isso desviava ao menos brevemente seus passos naquela direção, como se atraído por um poderoso ímã. E se alguém tentasse machucar a rosa? Havia um segurança sentado numa pequena mesa ao lado dos elevadores, Roland reparou, mas era um homem gordo e velho. E não havia problema. Se alguém fizesse algum movimento ameaçador, todos que estivessem naquele saguão ouviriam um grito de alarme dentro da cabeça, tão penetrante e imperativo quanto aqueles assobios que só os cachorros podem ouvir. E todos haveriam de convergir sobre o pretenso assassino da rosa. Agiriam prontamente, sem a menor preocupação com a própria segurança. A rosa fora capaz de se proteger sozinha quando crescia entre o lixo e o mato do terreno baldio (ou pelo menos conseguira atrair quem a protegesse) e isso não havia mudado.

— Sr. Deschain? Está pronto para subir agora?

— Claro — disse ele. — Pronto para segui-la.

 

Caiu a ficha da familiaridade do rosto da mulher quando atingiram o eleva-torre. Talvez tenha sido o fato de vê-la de perfil, algo do formato do rosto. Lembrou-se de Eddie lhe falando da conversa que tivera com Calvin Tower depois que Jack Andolini e George Biondi deixaram o Restaurante da Mente de Manhattan. Tower tinha falado da família de seu amigo mais antigo. Eles gostam de se gabar de poderem ter o mais exclusivo papel timbrado de Nova York, talvez dos Estados Unidos. Ele simplesmente diz “DEEPNEAU”.

— Será filha de sai Aaron Deepneau? — ele perguntou. — Certamente não, é muito nova. Talvez sua neta?

O sorriso dela se extinguiu.

— Aaron nunca teve filhos, sr. Deschain. Sou neta de seu irmão mais velho, mas meus pais e meu avô morreram jovens. Foi principalmente Airy quem me criou.

— Você o chamava assim? Airy?* — Roland estava fascinado.

— Quando criança sim, e meio que pegou. — Ela estendeu a mão, o sorriso voltando. — Nancy Deepneau. E estou realmente encantada em conhecê-lo. Um pouco assustada, mas encantada.

Roland apertou a mão dela, mas foi um gesto superficial, pouco mais que um toque. Então, com um sentimento consideravelmente maior (pois aquele era o ritual que tinham lhe ensinado na infância, aquele que compreendia), encostou o punho na testa e fez a perna recuar.

— Longos dias e belas noites, Nancy Deepneau.

O sorriso dela ficou bem mais largo e alegre.

— E possa você recebê-los em dobro, Roland de Gilead! E possa você recebê-los em dobro.

O eleva-torre chegou e os dois entraram. Foi para o andar 99 que subiram.

 

A porta se abriu num grande vestíbulo redondo. O carpete do chão tinha um tom rosado meio fosco, que combinava exatamente com a tonalidade da rosa. Na frente do eleva-torre havia uma porta de vidro com os dizeres TET CORPORATION. Atrás dela Roland viu outro vestíbulo, menor, onde havia uma mulher sentada numa mesa, aparentemente falando sozinha. A direita da porta havia dois homens de terno. Estavam conversando, mãos nos bolsos, aparentemente relaxados, mas Roland percebeu que absolutamente não estavam. E estavam armados. Os paletós dos ternos tinham bom caimento, mas quem sabe procurar por uma arma normalmente a descobre, se ela estiver lá. Talvez aqueles dois sujeitos permanecessem alertas uma hora, talvez duas naquele vestíbulo (mesmo homens experientes dificilmente conseguiam ficar totalmente alertas por muito mais tempo), simulando a pequena rotina do estamos-só-conversando cada vez que o eleva-torre chegava, prontos a entrar de imediato em ação se sentissem o cheiro de alguma coisa errada. Roland aprovou aquilo.

Contudo, ele não ficou muito tempo olhando para os seguranças. Depois de conseguir identificá-los corretamente, deixou o olhar ir para onde pretendia ir desde o momento em que as portas do eleva-torre tinham se aberto. Havia uma grande imagem em preto-e-branco na parede à sua esquerda. Era uma fotografia (ele já acreditara que a palavra fosse fotogrofila) com cerca de um metro e meio de altura e um de largura. Não tinha moldura e estava tão habilmente adaptada à curvatura da parede que parecia uma janela para alguma realidade artificialmente imóvel. Mostrava três homens de calças jeans e camisas abertas no peito. Estavam sentados no alto de uma cerca, as botas enfiadas sob a viga mais baixa. Quantas vezes, Roland se perguntou, já vira caubóis ou pastorillas sentados justamente assim observando animais sendo marcados, laçados, castrados ou vendo outros peões domarem cavalos selvagens? Quantas vezes ele próprio não se sentara daquela maneira, às vezes com um ou mais companheiros de seu antigo tet — Cuthbert, Alain, Jamie DeCurry — sentados do seu lado, como John Cullum e Aaron Deepneau sentavam-se ao lado do homem negro com os óculos de aro dourado e o minúsculo bigode branco? A lembrança lhe causou uma certa dor e não foi uma simples dor de cabeça; o estômago se apertou, o coração se acelerou. Os três da imagem tinham sido flagrados rindo de alguma coisa e o resultado transmitia uma espécie de perfeição atemporal. Era um dos raros momentos em que as pessoas estão satisfeitas de ser o que são e estarem onde estão.

— Os pais fundadores — disse Nancy, parecendo ao mesmo tempo estar triste e se divertindo. — Esta foto foi tirada num retiro executivo em 1986. Taos, Novo México. Três rapazes da cidade entre pastagens, o que me diz disso. E não parecem estar se divertindo como nunca?

— Você diz a verdade — Roland respondeu.

— Conhece os três?

Roland abanou a cabeça. Ele os conhecia, sem dúvida, embora nunca tivesse se encontrado pessoalmente com Moses Carver, o homem do meio, sócio de Dan Holmes, padrinho de Odetta Holmes. Na foto ele parecia um robusto e saudável sujeito de 70 anos, mas sem dúvida em 1986 já devia andar bem mais próximo dos 80. Talvez aí pelos 85. Naturalmente, Roland lembrou-se a si mesmo, ele tinha seu truque na manga: a coisa incrível que acabara de ver no saguão daquele prédio. Evidentemente a rosa não era uma fonte de juventude, assim como a tartaruga no minijardim não era a verdadeira Maturin; mas não teria ela certos poderes benéficos? Roland achava que sim. Certos poderes de cura? Roland achava que sim. Seria possível acreditar que os nove anos a mais de vida que Aaron Deepneau conseguira entre 1977 e a batida daquela foto em 1986 deviam-se apenas a pílulas regeneradoras do Primal e aos tratamentos médicos do Povo Antigo? Não, senhor. Aqueles três homens (Carver, Cullum e Deepneau), quando velhos, tinham se juntado quase magicamente para lutar pela rosa. O pistoleiro achava que a história deles daria por si mesma um livro, muito provavelmente um ótimo e empolgante livro. O que Roland imaginava era a simplicidade em si: a rosa havia revelado sua gratidão.

— Quando eles morreram? — Roland perguntou a Nancy Deepneau.

— John Cullum foi primeiro, em 1989 — disse ela. — Vítima de um tiro. Resistiu 12 horas no hospital, o tempo suficiente para todos lhe dizerem adeus. Estava em Nova York para a reunião anual da diretoria. Segundo a polícia, fora um assalto mal-executado. Acreditamos que tenha sido morto por um agente da Sombra ou da North Central Positronics. Provavelmente um can-toi. Já tinham ocorrido algumas tentativas fracassadas.

— Sombra e Positronics dão no mesmo — disse Roland. — São instrumentos do Rei Rubro neste mundo.

— Nós sabemos — disse ela apontando para o homem do lado esquerdo da foto, aquele com o qual tanto se parecia. — Tio Aaron viveu até 1992. Quando você o encontrou... em 1977?

— Sim — disse Roland.

— Em 1977 ninguém acreditaria que pudesse viver tanto tempo.

— O folken do mal também o matou?

— Não, o câncer voltou, só isso. Morreu em sua cama. Eu estava lá. A última coisa que ele disse foi: “Diga a Roland que fizemos o melhor que pudemos.” E estou lhe dizendo agora.

— Obrigado-sai. — Ele ouviu a rouquidão na própria voz e preferiu que Nancy encarasse aquilo como aspereza. Muitos tinham feito o melhor que puderam por ele, não era verdade? Realmente muitos, começando por Susan Delgado, tantos anos atrás.

— Você está bem? — ela perguntou numa voz baixa, solidária.

— Sim — disse ele. — Ótimo. E Moses Carver? Quando ele se foi? Ela ergueu as sobrancelhas, depois riu.

— O que...

— Veja por si mesmo!

Ela apontou para as portas de vidro. Vindo lá de dentro, aproximando-se deles, passando pela mulher ocupada na sua mesa, aparentemente falando sozinha, Roland viu um homem enrugado, com cabelos fofos esvoaçando e sobrancelhas brancas do mesmo jeito. Tinha a pele escura, mas a mulher em cujo braço ele se apoiava era ainda mais escura. Um sujeito alto — talvez com mais de um metro e noventa se fosse descontada a curvatura da espinha —, mas a mulher era ainda mais alta, com pelo menos dois metros. O rosto dela não era bonito, mas os traços eram de uma nobreza quase feroz. A face de um guerreiro.

A face de um pistoleiro.

 

Se a espinha de Moses Carver estivesse reta, ele e Roland teriam se encarado olho a olho. Curvado, Carver precisava olhar um pouco para cima, o que fazia empinando a cabeça como um pássaro. Parecia incapaz de realmente virar o pescoço; a artrite o fixara no lugar. Seus olhos eram castanhos, os brancos tão turvos que ficava difícil dizer onde acabavam as pupilas, mas estavam cheios de riso jovial atrás dos óculos de aro dourado. Ainda conservava o bigodinho branco.

— Roland de Gilead! — disse ele. — Como desejei conhecer o senhor! Acho que foi isso que me manteve vivo tanto tempo depois da morte de John e Aaron. Me solte um minuto, Marian, solte! Tenho de fazer uma coisa!

Marian Carver soltou-o e olhou para Roland. Ele não ouviu a voz dela na cabeça nem precisava; o que ela queria lhe dizer estava bem visível no olhar: Pegue-o se ele cair, sai.

Mas o homem que Susannah havia chamado de papai Mose não caiu. Conseguiu apertar um pouco o punho frouxo e artrítico, e levou-o à testa. Depois curvou o joelho direito, jogando todo o seu peso na trêmula perna direita.

— Salve, último pistoleiro, Roland Deschain de Gilead, filho de Steven e verdadeiro descendente de Arthur Eld. Eu, o último daquilo que foi chamado entre nós de Ka-Tet da Rosa, o saúdo.

Roland pôs seu próprio punho na testa e fez mais do que curvar uma perna; pôs um joelho no chão.

— Salve, papai Mose, padrinho de Susannah, dinh do Ka-Tet da Rosa, eu o saúdo de todo o coração!

— Obrigado — disse o velho e riu como uma criança. — É ótimo nos encontrarmos na Casa da Rosa! Que durante a construção foi apontada como o Túmulo da Rosa! Ah! Diga-me que nunca fomos uma coisa dessas! Fomos?

— Não, era mentira.

— Fale mais! — o velho gritou e deixou de novo escapar aquele riso jovial que mandava tudo para o inferno. — Mas estou me esquecendo das boas maneiras, pela admiração que sinto, pistoleiro. Vê este belo pedaço de mulher do meu lado? Seria natural que você dissesse que é minha neta, pois eu já tinha 70 anos quando ela nasceu, em 1969. Mas a verdade... — Mas a fartade... foi o que entrou no ouvido de Roland — ... é que às vezes as melhores coisas da vida acontecem tarde e ter filhos... — fiuusss —... é em minha opinião uma delas. O que é um modo bastante rodeado de dizer: esta é minha filha, Marian Odetta Carver, presidente da Tet Corporation desde que me afastei em 1997, quando fiz noventa e oito anos. E será que alguns grãfinos não iriam congelar as bolas deles, Roland, se soubessem que este negócio, cujo valor atual gira em torno de uns 10 bilhões de dólares, é dirigido por uma negra? — Seu sotaque, cada vez mais acentuado à medida que cresciam o júbilo e a agitação, converteu as últimas palavras em uns tes pilhões de doles e digido pruma ni-gra?

— Chega, pai — disse a mulher alta ao lado dele. A voz era gentil mas não admitiria contradição. — Se não parar, o monitor que usa no coração vai dar o alarme e este homem não tem muito tempo.

— Ela me administra como uma ferrovia! — o velho gritou num tom indignado. Ao mesmo tempo virou ligeiramente a cabeça e, com o olho que a filha não podia ver, presenteou Roland com uma piscadela de astúcia e de bom humor.

Como se ela não conhecesse todos os seus truques, meu velho, Roland pensou, achando aquilo engraçado a despeito da dor que tinha no peito. Como se ela não estivesse por dentro de tudo já faz muitos anos... ora viva!

Marian Carver interveio:

— Só poderemos palestrar rapidamente com você, Roland, mas primeiro preciso ver uma coisa.

— Não temos a menor necessidade disto! — disse o velho, a voz falhando de irritação. — A menor necessidade e você sabe que não! Será que criei uma jumenta?

— Muito provavelmente ele tem razão — disse Marian —, mas é sempre mais seguro...

— Não se desculpe — disse o pistoleiro. — Siga as suas normas, claro. O que deseja verificar? O que pode garantir que eu sou quem digo que sou e fazê-la realmente acreditar nisso?

— Sua arma — disse ela.

Roland tirou a camiseta da exposição comemorativa da sacola de couro e pegou o coldre. Depois de desenrolar o cinturão de balas, puxou o revólver com o cabo de sândalo. Ouviu Marian Carver inalar de maneira repetitiva, atemorizada, e preferiu ignorá-lo. Reparou que os dois guardas cujos ternos caíam bem tinham se aproximado, olhos arregalados.

— Vocês a vêem! — Moses Carver gritou. — Sim, cada um de vocês presentes aqui! Agradeçam a Deus! E um dia digam aos netos que viram Excalibur, a Espada de Arthur, pois isto aqui é a mesma coisa!

Roland estendeu para Marian o revólver de seu pai. Sabia que ela precisaria pegá-lo para de fato confirmar quem ele era, sabia que ela precisava fazer isto antes de introduzi-lo nas entranhas da Tet Corporation (onde a pessoa errada poderia provocar danos terríveis), mas por um momento ela foi incapaz de assumir o que era de sua responsabilidade. Então ela se recompôs e pegou o revólver, os olhos se abrindo ainda mais ao sentir-lhe o peso. Tomando cuidado para manter todos os dedos longe do gatilho, ela pôs o cano na altura dos olhos e observou um fragmento do ornamento que havia junto à boca da arma:

— Vai me dizer o que isto significa, sr. Deschain? — ela perguntou.

— Vou — disse ele —, se me chamar de Roland.

— Se quer assim, vou tentar.

— Esta é a marca de Arthur — disse ele, traçando a figura com o dedo. — A única marca que existe na porta de sua tumba é essa. Sua marca como dinh e que significa BRANCO.

O velho estendeu as mãos trêmulas, silencioso mas imperativo.

— Está carregada? — ele perguntou a Roland e então, antes que o outro pudesse responder: — É claro que está.

— Dê a ele — disse Roland.

Marian pareceu em dúvida, os dois guardas ainda mais. Papai Mose, no entanto, continuava com as mãos estendidas para o fazedor de viúvas e Roland abanava a cabeça. Então a mulher entregou relutantemente o revólver ao pai. O velho pegou-o, segurou-o com as duas mãos e fez uma coisa que ao mesmo tempo ferveu e gelou o coração do pistoleiro: ele beijou o cano com os lábios velhos, franzidos.

— Qual é o sabor que tem? — Roland perguntou, sinceramente curioso.

— Sabe aos anos, pistoleiro — disse Moses Carver. — Assim como eu. — E com isso estendeu de novo o revólver para a mulher, primeiro a coronha.

Ela o devolveu a Roland, parecendo contente por se ver livre daquele peso ameaçador, homicida, e Roland encaixou-o mais uma vez no cinturão de balas.

— Vamos entrar — disse ela. — E embora nosso tempo seja curto, vamos torná-lo tão agradável quanto sua dor permita.

— Amém! — disse o velho Moses, batendo no ombro de Roland. — Ela ainda está viva, minha Odetta... Aquela que você chama de Susannah. É isso. Achei que ficaria satisfeito em saber.

Roland estava satisfeito e agradeceu abanando a cabeça.

— Vamos agora, Roland — disse Marian Carver. — Venha comigo e seja bem-vindo à nossa casa, que é também sua. Sabemos que, muito provavelmente, jamais voltará a visitá-la.

 

A sala de Marian Carver ficava na esquina noroeste do 99ºandar. Ali as paredes eram inteiramente de vidro, sem uma única escora ou esquadria, e a vista tirou o fôlego do pistoleiro. Parar naquele canto e olhar para fora era como estar suspenso no ar sobre um horizonte mais fabuloso do que qualquer mente poderia imaginar. Contudo era uma paisagem que já tinha visto antes. Reconheceu a ponte suspensa assim como alguns dos grandes edifícios por aquele lado. Não podia deixar de reconhecer a ponte, pois quase tinham morrido ao atravessá-la em outro mundo. Jake acabara sendo seqüestrado de lá por Gasher e levado para o Homem do Tiquetaque. Lá estava a Cidade de Lud como ela devia ter sido em seus primórdios.

— Chamam de Nova York? — ele perguntou. — É isso, não é?

— Sim — disse Nancy Deepneau.

— E aquela ponte ali que sobe e desce?

— É a ponte George Washington — disse Marian Carver. — Ou simplesmente GWB, se você for nascido aqui.

Então, lá embaixo, estava não apenas a ponte que os havia conduzido a Lud mas aquela ao lado da qual Père Callahan caminhara ao deixar Nova York para dar início a seus dias de perambulação. Uma lembrança que Roland guardava, e muito bem, da história dele.

— Não vão querer beber alguma coisa? — Nancy perguntou.

Ele começou a dizer que não, mas tomou consciência de como sua cabeça estava mexida e mudou de idéia. Alguma coisa sim, mas só se servisse para aguçar as percepções que precisavam ser aguçadas.

— Um pouco de chá, se tiver — disse ele. — Chá quente e forte com açúcar ou mel. Pode ser?

— Pode — disse Marian, apertando um botão em sua mesa. Falou com alguém que Roland não pôde ver e de imediato a existência da mulher na saleta externa (aquela que parecia falar sozinha) fez mais sentido.

Depois de pedir o chá quente com sanduíches (que para Roland seriam sempre imaginados como popquins), Marian se inclinou para a frente e capturou o olhar do pistoleiro.

— Acho ótimo estarmos nos encontrando em Nova York, Roland, acho mesmo, mas nosso tempo aqui... não é vital. E desconfio que você sabe por quê.

O pistoleiro pensou no assunto, depois abanou a cabeça. Um pouco cautelosamente, mas no correr do tempo sua natureza fora desenvolvendo um certo grau de cautela. Em certas pessoas — Alain Johns fora uma delas, Jamie DeCurry outra — o senso de cautela era inato, mas este nunca fora o caso de Roland, cuja tendência era atirar primeiro e perguntar depois.

— Nancy o mandou ler a placa no Jardim do Feixe — disse Marian.

— Será que...

— Jardim do Feixe, digam Senhor! — Moses Carver interveio. Ao passar pelo corredor em direção à sala da filha, ele tirara uma bengala de um suporte que imitava um pé de elefante e agora, em busca de ênfase, batia com ela no dispendioso carpete. Marian suportava pacientemente aquilo. — Digam Deus-bomba!

— A recente amizade de meu pai com o reverendo Harrigan, que faz ponto lá embaixo, não foi exatamente o melhor momento da minha vida — disse Marian com um suspiro —, mas não importa. Você leu a placa, Roland?

Ele abanou a cabeça. Nancy Deepneau tinha usado uma palavra diferente (mensagem ou sigul), mas ele compreendia que dava no mesmo.

— As letras se transformaram em Grandes Letras. Pude ler muito bem.

— E o que ela dizia?

— DOADA PELA TET CORPORATION, EM HONRA DE EDWARD CANTOR DEAN E JOHN “JAKE” CHAMBERS. — Ele fez uma pausa. — Depois a placa dizia: “Cam-cam-mal, Pria-toi, Gan delah”, que se poderia traduzir como O BRANCO SOBRE O VERMELHO, ASSIM DESEJA O GAN PARA SEMPRE.

— E para nós — disse Marian — a placa diz: O BEM SOBRE OMAL,ESTA É A VONTADE DE DEUS.

— Deus seja louvado! — disse Moses Carver batendo com a bengala. — Possa o Primal se erguer!

Houve uma leve batida na porta e a mulher da saleta entrou com uma bandeja de prata. Roland ficou fascinado ao ver um pequeno troço preto suspenso na frente de seus lábios e uma estreita cinta preta desaparecendo em seu cabelo. Alguma espécie de instrumento para conversa a distância, sem dúvida. Nancy Deepneau e Marian Carver ajudaram-na a pousar xícaras de chá e café, tigelas de açúcar e mel, uma jarrinha de creme de leite. Havia também um prato de sanduíches. O estômago de Roland roncou. Pensou nos amigos enterrados — não mais popquins para eles — e também em Irene Tassenbaum, sentada no pequeno jardim do outro lado da rua, pacientemente à espera dele. Qualquer um desses dois pensamentos devia ter sido suficiente para liquidar seu apetite, mas o estômago tornou a fazer o barulho desobediente. Certas partes da pessoa não tinham consciência, um fato que ele achou que sabia desde criança. Assim, serviu-se de um popquim, mergulhou uma colher cheia de açúcar no chá e acrescentou uma boa quantidade de mel. Queria resolver tudo ali o mais depressa possível e voltar para Irene, mas enquanto isso...

— Que o alimento lhe faça bem — disse Moses Carver soprando sua xícara de café. — Pelos dentes, pelas gengivas, pelas tripas, lá vai descendo! Hehehe!

— Eu e papai temos uma casa em Montauk Point — disse Marian, pondo creme em seu café — e estivemos lá no último final de semana. Por volta das cinco e 15 da tarde de sábado, recebi uma chamada de um dos seguranças daqui. A Associação Hammarskjöld Plaza os emprega, mas a Tet Corporation lhes paga um bônus para que possamos ficar a par... de certas coisas de interesse, digamos... assim que elas ocorram. Andamos observando aquela placa do saguão com extraordinário interesse à medida que se aproximava o 19 de junho, Roland. Você ficaria surpreso em saber que até mais ou menos as 15 para as cinco daquele dia ela dizia: DOADA PELA TET CORPORATION EM HONRA DA FAMÍLIA DO FEIXE E EM MEMÓRIA DE GILEAD?

Roland pensou, sorveu o chá (que estava quente, era forte e gostoso), balançou a cabeça.

— Não.

Ela se inclinou para a frente, olhos brilhando.

— E por que não ficaria surpreso?

— Porque até sábado à tarde, entre quatro e cinco horas, nada estava seguro. Mesmo com os Sapadores detidos, as coisas só ficaram seguras depois que Stephen King foi salvo. — Deu uma olhada em volta. — Sabem dosSapadores?

Marian abanou afirmativamente a cabeça.

— Não dos detalhes — disse —, mas sabemos que o Feixe que estavam tentando destruir está agora livre deles e que ainda não tinha sido danificado a ponto de não poder mais ser regenerado. — Ela hesitou, mas logo acrescentou: — E sabemos de sua perda. De suas duas perdas. Sentimos muito, Roland.

— Aqueles rapazes estão em segurança nos braços de Jesus — disse o pai de Marian. — E mesmo que não estejam, estão juntos na clareira.

Roland, que queria acreditar naquilo, abanou a cabeça e agradeceu. Depois tornou a se virar para Marian.

— A coisa com o escritor foi por um triz. Ficou ferido, gravemente ferido. Jake morreu para salvá-lo. Pôs o corpo entre King e a van-móbile que acabou levando sua vida.

— King vai ficar bom — disse Nancy. — E vai voltar a escrever. Soubemos por uma fonte muito confiável.

— Quem?

Marian se inclinou para a frente.

— Você vai saber — disse ela. — O que interessa, Roland, é que acreditamos nisso, temos certeza disso e a segurança de King já assegurada, pelos próximos anos, significa que seu trabalho se cumpriu: Ves’-Ka Gan.

Roland abanou a cabeça. A canção ia continuar.

— Mas ainda temos bastante trabalho pela frente — Marian continuou. — Calculamos ainda uns trinta anos de trabalho, mas...

— Mas é nosso trabalho, não seu — disse Nancy.

— Foi o que ouviram da mesma “fonte confiável”? — Roland perguntou sorvendo o chá. Mesmo quente como estava, ele já pusera metade do conteúdo da enorme xícara no estômago.

— Sim. Seu empenho em derrotar as forças do Rei Rubro deu bom resultado. O próprio Rei Rubro...

— Aquilo nunca foi a missão desse homem e você sabe disso! — disse o homem centenário sentado ao lado da bela negra, mais uma vez batendo com a bengala no chão em busca de ênfase. — Sua missão é...

— Já chega, papai! — Agora a voz dela fora suficientemente áspera para fazer o velho piscar.

— Naum, deixe-o falar — disse Roland e os três se viraram para ele, surpresos (e um pouco assustados) com o tom áspero da intervenção. — Deixe-o falar, pois ele diz a verdade. Se vamos descascar a coisa, vamos fazê-lo bem. Para mim, os Feixes nunca foram mais do que meios para atingir um fim. Se eles quebrassem, a Torre teria caído. Se a Torre caísse, eu jamais teria chegado até ela, e subido até o topo.

— Está dizendo que se importou mais com a Torre Negra em si que com a continuação da existência do universo? — Nancy Deepneau disse. Falava num tom me-deixe-ter-certeza-de-que-foi-exatamente-isto-que-ouvi e encarou Roland com um misto de admiração e desprezo. — A continuação da existência de todos os universos!

— A Torre Negra é a própria existência — disse Roland —, e nos últimos anos tenho sacrificado muitos amigos para alcançá-la, incluindo um menino que me chamava de pai. Sacrifiquei minha própria alma na barganha, minha senhora-sai, e peço que vire sua boca imprudente para outro lugar. Por favor faça isto logo e faça com atenção.

O tom foi educado mas terrivelmente frio. Toda a cor sumiu da face de Nancy Deepneau e a xícara de chá tremeu tanto em sua mão que Roland estendeu o braço e pegou a xícara, para que o chá não derramasse e a queimasse.

— Não me leve a mal — disse ele. — Entenda o que eu digo, pois jamais voltaremos a nos falar. O que está feito está feito em ambos os mundos, para o bem e para o mal, pelo ka e contra ele. Há, no entanto, mais. Mais coisas além de todos os mundos que você conhece e mais coisas atrás deles do que você seria capaz de imaginar. Meu tempo é curto, por isso vamos continuar.

— Disse-o bem, senhor! — resmungou Moses Carver, batendo outra vez com a bengala.

— Se o ofendi, peço realmente que me desculpe — disse Nancy.

Roland não respondeu, pois sabia que ela não tinha a menor intenção de se desculpar — estava apenas com medo dele. Foi um desconfortável momento de silêncio que Marian Carver finalmente quebrou.

— Não temos nenhum Sapador aqui, Roland, mas no rancho em Taos empregamos uma dúzia de telepatas e precognitivos. O que fazem juntos é às vezes incerto, mas é sempre maior que a soma das partes. Conhece o termo “mente boa”?

O pistoleiro abanou afirmativamente a cabeça.

— Põem em prática uma versão da coisa — disse ela —, embora eu tenha certeza de que não tão extensa ou poderosa quanto a que os Sapadores eram capazes de produzir em Trovoada.

— Porque eram centenas de pessoas — o velho resmungou. — E estavam melhor alimentados.

— Também porque os servos do Rei estavam sempre mais do que dispostos a seqüestrar quem fosse particularmente poderoso — disse Nancy —, eles tinham sempre o que chamávamos “a melhor escolha da ninhada”. Os nossos, no entanto, sempre nos serviram muito bem.

— De quem foi a idéia de pôr essa gente trabalhando para você? — Roland perguntou.

— Por mais estranho que possa lhe parecer, parceiro — disse Moses —, ela partiu de Cal Tower. Se bem que ele não era de contribuir muito... Estava sempre ocupado colecionando seus livros e se arrastando, sujeitinho ganancioso, pretensioso, era isso que ele era, um filho-da-puta que era...

A filha atirou-lhe um olhar de advertência. Roland teve de lutar para manter uma expressão séria. Moses Carver podia ter cem anos de idade, mas conseguira resumir Calvin Tower numa única expressão.

— De qualquer modo, ele havia lido sobre a possibilidade de pôr telepatas em ação numa série de livros de ficção científica. Conhece ficção científica?

Roland balançou a cabeça numa negativa.

— Bem, não importa — disse Moses Carver. — A maioria da coisa é besteira, mas de vez em quando aparece uma idéia legal. Agora preste atenção no que estou dizendo. Vai entender melhor, sabendo do que Tower e seu amigo, sr. Dean, conversaram há 22 anos, quando o sr. Dean conseguiu salvar o Tower de dois bandidos branquelos.

— Pai! — disse Marian num tom de advertência. — Pare agora com essa conversa negra! Você é velho, mas não burro!

Ele se virou; os olhos velhos e turvos brilharam com alegria maliciosa; tornou a se voltar para Roland e repetiu a piscadela furtiva.

— Dois branquelos, bandidos comedores de espaguete!

— Sim, Eddie me falou nisso — disse Roland.

O sotaque sulista desapareceu da voz de Carver; suas palavras ficaram mais enfáticas.

— Então sabe que falaram de um livro chamado The Hogan, A Oca, de Benjamin Slightman. O título foi mal impresso, assim como o nome do escritor, o que era exatamente o tipo de coisa que enchia o saco do velho gordinho.

— Sim — disse Roland. O título original mal impresso era The Dogan, O Dogan, uma palavra que passara a ter grande significado para Roland e seu tet.

— Bem, após a visita de seu amigo, Cal Tower ficou novamente muito interessado naquele sujeito e descobriu que ele havia escrito outros quatro livros sob o nome de Daniel Holmes. Era tão branco quanto o lençol de um membro da Ku Klux Klan, aquele Slightman, mas o nome que escolheu para assinar seus outros livros foi o nome do pai de Odetta. E aposto que isso não lhe causa o menor espanto, não é?

— Não — disse Roland. Fora apenas outro leve clique, o botão com a combinação do ka girando.

— E todos os livros que ele escreveu sob o nome de Holmes eram histórias de ficção científica, com o governo contratando telepatas e precognitivos para descobrir coisas. E foi aí que nós pegamos a idéia. — Olhou para Roland e deu uma triunfante batida com a bengala. — Há mais para contar, muito mais, mas acho que você não tem tempo. No fim chegamos sempre a isso, não é? Tempo. E neste mundo ele corre num único sentido. — Ele pareceu melancólico. — Daria muita coisa, pistoleiro, para ver de novo minha afilhada, mas acho que isto não está nas cartas, não é? A não ser que nos encontremos na clareira.

— Acho que diz a verdade — disse Roland —, mas darei notícias a ela, direi como ainda está cheio de energia e chama...

— Diga de Deus, diga de Deus-bomba! — o velho aparteou e bateu com a bengala. — Repita isso, irmão! E diga isso a ela!

— Vou dizer. — Roland tomou o último gole do chá, pousou a xícara na mesa de Marian Carver e se levantou apoiando o quadril direito com a mão. Levaria muito tempo para se acostumar à ausência de dor ali, muito provavelmente mais tempo do que tinha. — E agora tenho de me despedir. Há um lugar não longe daqui aonde preciso ir.

— Sabemos onde é — disse Marian. — Haverá alguém para acompanhá-lo quando chegar lá. O lugar tem sido mantido seguro para você. Se a porta que procura ainda existir e ainda funcionar, vai passar por ela.

Roland fez uma ligeira mesura.

— Obrigado- sai.

— Mas fique mais um pouco, se não se importar. Temos presentes para você, Roland. Não é suficiente para recompensá-lo por tudo que fez... não importa que seu objetivo principal pudesse ser outro... mas coisas que, ainda assim, pode querer. Um é uma notícia de nosso pessoal de mente boa em Taos. Outro vem de... — Ela pensou um pouco. —... pesquisadores mais normais, gente que trabalha para nós aqui neste prédio. Eles se autodenominaram Calvins, mas não devido a algum viés religioso calvinista. Acho que é uma pequena homenagem ao sr. Calvin Tower, que morreu há nove anos de um ataque cardíaco em sua nova livraria. Ou talvez seja apenas uma piada.

— De mau gosto, se for — Moses Carver resmungou.

— E há dois presentes... nossos. De Nancy, meu, de meu pai e de alguém que se foi. Pode se sentar um pouco mais?

E embora ansioso para partir, Roland fez o que lhe pediam. Pela primeira vez desde a morte de Jake, uma verdadeira emoção, e uma emoção diferente da dor, brotara em sua mente.

Curiosidade.

 

— Primeiro as notícias das pessoas no Novo México — disse Marian quando Roland voltou a sentar. — Tentaram acompanhá-lo o mais que puderam e embora o que vissem do lado-Trovoada estivesse sempre no mínimo nebuloso, eles acreditam que Eddie contou alguma coisa a Jake Chambers... talvez algo de importância... pouco antes de morrer. Provavelmente enquanto estava caído no chão, antes de... não sei...

— Antes de começar a entrar na escuridão? — Roland sugeriu.

— Sim — Nancy Deepneau concordou. — Achamos que sim. O que quer dizer, eles acham que aconteceu assim. Nossa versão dos Sapadores.

Marian fez uma expressão dura, sugerindo ser uma senhora que não gostava de ser interrompida. Depois voltou sua atenção para Roland.

— Ver as coisas que acontecem de nosso lado é mais fácil para nossa gente e muitos não têm a menor dúvida... mesmo que não o afirmem diretamente... de que Jake passou a mensagem adiante antes que ele próprio morresse. — Fez uma pausa. — Esta mulher com quem está viajando, a sra. Tannenbaum...

— Tassenbaum — Roland corrigiu. Fez isso sem pensar, porque sua mente estava ocupada com outra coisa. Furiosamente ocupada.

— Tassenbaum — Marian concordou. — Sem a menor dúvida ela disse a você algo do que Jake lhe contou antes de partir, mas ainda pode haver mais. Não algo que esteja se negando a revelar, mas algo que não reconheceu como importante. Você por favor peça que reveja mais uma vez o que ouviu de Jake antes de vocês se separarem?

— Vou pedir — disse Roland e sem dúvida o faria, mas não acreditava que Jake tivesse passado a mensagem de Eddie para a sra. Tassenbaum. Não, não para ela. De repente percebeu que quase se esquecera de Oi desde que Irene tinha estacionado o carro, mas Oi estava com eles, é claro; estaria agora deitado nos pés de Irene, que estava sentada no pequeno jardim do outro lado da rua, tomando um pouco de sol e à sua espera.

— Tudo bem — disse ela. — Isso é bom. Vamos continuar. Marian abriu a grande gaveta do centro de sua escrivaninha. Tirou de lá um envelope acolchoado e uma pequena caixa de madeira. O envelope ela passou a Nancy Deepneau. A caixa ela colocou na sua frente na escrivaninha.

— E agora é a vez de Nancy — disse ela. — Só peço que seja breve, Nancy, porque este homem parece muito ansioso para ir embora.

— Fale — disse Moses batendo com a bengala.

Nancy olhou para ele, depois para Roland... ou pelo menos em sua direção. Um tom vermelho estava aflorando em seu rosto e ela parecia perturbada.

— Stephen King... — disse ela. Então limpou a garganta e disse de novo. A partir daí, no entanto, parecia não saber como continuar. O vermelho queimava ainda mais sob a pele.

— Respire fundo — disse Roland — e segure o ar.

Ela fez o que ele dizia.

— Agora deixe sair.

Fez isto também.

— Agora me diga o que queria me dizer, Nancy, sobrinha de Aaron.

— Stephen King já escreveu quase quarenta livros — disse ela, e embora o vermelho continuasse nas bochechas (Roland achou que não demoraria a descobrir o que toda aquela cor significava), a voz estava mais calma. — Num número incrível deles, inclusive já nos primeiros, há algum tipo de referência à Torre Negra. É como se ela estivesse sempre presente em sua cabeça, desde o início.

— O que você diz é verdade — concordou Roland entrelaçando as mãos —, eu digo obrigado.

Isto pareceu acalmá-la ainda mais.

— Daí os Calvins — disse ela. — Três homens e duas mulheres de vocação acadêmica que não fazem nada das oito da manhã às quatro da tarde além de ler os livros de Stephen King.

— Não se limitam a ler — disse Marian. — Eles cruzam as referências por cenário, personagens, temas, à medida que eles vão se sucedendo, até mesmo pela menção de produtos de marcas conhecidas.

— Parte do trabalho deles é procurar referências a pessoas que vivem ou viveram no Mundo-chave — disse Nancy. — Em outras palavras, pessoas reais. E referências à Torre Negra, é claro. — Ela lhe passou o envelope acolchoado e Roland sentiu, lá dentro, o contorno do que seria certamente um livro. — Se King algum dia escreveu um livro-chave, Roland... fora, é claro, a própria série da Torre Negra... achamos que só pode ser este.

A aba do envelope estava fechada por um clipe. Roland olhou de lado tanto para Marian quanto para Nancy. Elas abanaram as cabeças. O pistoleiro tirou o clipe e puxou um volume extremamente grosso com uma capa vermelha e branca. Nela não havia nenhuma ilustração, só o nome de Stephen King e uma única palavra.

Vermelho pelo Rei, Branco por Artbur Eld, ele pensou. O Branco sobre o Vermelho, assim quer o Gan para sempre.

Ou talvez fosse apenas uma coincidência.

— O que significa esta palavra? — Roland perguntou, batendo com o dedo no título.

— Insônia — disse Nancy. — Isso quer dizer...

— Sei o que quer dizer — disse Roland. — Por que me dão o livro?

— Porque a história gira em torno da Torre Negra — disse Nancy — e porque existe nela um personagem chamado Ed Deepneau. Que por acaso é o vilão da obra.

O vilão da obra, Roland pensou. Não admira que fique vermelha.

— Você tem alguém com esse nome em sua família? — ele perguntou a Nancy.

— Existia — disse ela. — Em Bangor, a cidade de que fala King quando escreve sobre Derry, como faz neste livro. O verdadeiro Ed Deepneau morreu em 1947, ano em que King nasceu. Era um contador, tão inofensivo quanto leite e biscoitos. O que aparece em Insônia, no entanto, é um lunático que cai sob a influência do Rei Rubro. Tenta transformar um avião numa bomba e atirá-la contra um edifício, matando milhares de pessoas.

— Rezem para que jamais aconteça — disse sombriamente o velho Moses, contemplando o horizonte de Nova York. — Deus sabe que não é impossível.

— Na história o plano fracassa — disse Nancy. — Embora algumas pessoas sejam mortas, o personagem principal do livro, um velho chamado Ralph Roberts, consegue impedir que pelo menos o pior aconteça.

Roland olhava atentamente para a sobrinha-neta de Aaron Deepneau.

— O Rei Rubro é mencionado aqui? — ele perguntou. — Pelo seu nome?

— Sim — disse ela. — O Ed Deepneau de Bangor... o verdadeiro Ed Deepneau... era primo de meu pai, de quarto ou quinto grau. Os Calvins poderiam lhe mostrar sua árvore genealógica se você quisesse, mas nela realmente não há uma conexão direta para o ramo do tio Aaron. Achamos que King pode ter usado o nome no livro como meio de atrair sua atenção... ou a nossa... sem sequer perceber o que estava fazendo.

— Uma mensagem de sua inframente — o pistoleiro ponderou.

— Do subconsciente dele, sim! — Nancy se iluminou. — Sim, é exatamente o que achamos!

Não era exatamente o que Roland estava pensando. O pistoleiro estava se lembrando de como hipnotizara King no ano de 1977; como mandara que King prestasse atenção na Ves’-Ka Gan, a Canção da Tartaruga. Teria a inframente de King, a parte dele que nunca deixaria de tentar obedecer ao comando hipnótico, colocado naquele livro parte da Canção da Tartaruga? Um livro que os Servos do Rei poderiam ter negligenciado porque não estava incluído no “Ciclo da Torre Negra”? Roland achou que podia ser e que o nome Deepneau podia de fato ser um sigul. Mas...

— Não posso ler isto — disse ele. — Uma palavra aqui e outra ali, talvez, mas só.

— Você não pode, mas minha menina sim — disse Moses Carver. — Minha menina Odetta, que você chama Susannah.

Roland abanou devagar a cabeça. E embora já tivesse começado a ter dúvidas, a mente produziu uma brilhante imagem dos dois sentados junto de uma fogueira — uma fogueira grande, pois a noite estava fria — com Oi no meio. Nas rochas sobre eles o vento fazia soar amargos lamentos de inverno, mas eles não ligavam, pois as barrigas estavam cheias, os corpos quentes, vestidos com as peles de animais que eles próprios haviam matado. E tinham uma história para diverti-los.

A história de insônia de Stephen King.

— Ela vai ler isto para você na trilha — disse Moses. — Em sua última trilha, diga Deus!

Sim, Roland pensou. Uma última história a ouvir, uma última trilha a seguir. A que leva a Can’-Ka No Rey e à Torre Negra. Ou pelo menos seria bom pensar assim.

— Na história — disse Nancy —, o Rei Rubro está usando Ed Deepneau para matar uma determinada criança, um garoto chamado Patrick Danville. Pouco antes do ataque, enquanto Patrick e sua mãe estão esperando uma mulher que vai fazer um discurso, o garoto faz um desenho, um desenho que mostra você, Roland, e o Rei Rubro, sendo que o Rei Rubro parece estar aprisionado no topo da Torre Negra.

Roland deu um pulo na cadeira.

— No topo? Aprisionado no topo?

— Calma — disse Marian. — Tenha calma, Roland. Os Calvins estão há anos analisando a obra de King, cada palavra e cada referência. Tudo que produzem é encaminhado às pessoas de mente boa no Novo México. Embora esses dois grupos jamais tenham se encontrado, seria perfeitamente correto dizer que eles trabalham em conjunto.

— O que não quer dizer que estejam sempre de acordo — disse Nancy.

— Certamente não estão! — Marian falou no tom exasperado de quem tinha de servir de árbitro num número não insignificante de disputas. — Mas uma coisa em que estão de acordo é que as referências de King à Torre Negra são quase sempre camufladas e às vezes não significam absolutamente nada.

Roland assentiu.

— Fala nisso porque sua inframente não pára de pensar na coisa, mas às vezes ele cai num palavreado sem sentido.

— Sim — disse Nancy.

— Só que, obviamente, vocês não teriam me dado o livro se achassem que tudo nele é pista falsa.

— De fato não achamos — disse Nancy. — Mas isto não significa que o Rei Rubro esteja necessariamente aprisionado no topo da Torre. Embora eu admita que possa estar.

Roland pensou em sua crença de que o Rei Rubro estaria trancado fora da Torre, numa espécie de sacada. Seria uma verdadeira intuição ou apenas algo em que queria acreditar?

— De qualquer modo, achamos que devia ficar de olho para este tal de Patrick Danville — disse Marian. — Há consenso de que se trata de uma pessoa real, mas ainda não conseguimos achar qualquer traço dele aqui. Talvez possa achá-lo em Trovoada.

— Ou além — interveio Moses.

Marian abanava a cabeça.

— Segundo a história que King conta em Insônia... como você vai ver... Patrick Danville morre jovem. Mas talvez isto não seja verdade. Está compreendendo?

— Não tenho certeza.

— Quando você encontrar Patrick Danville... ou quando ele encontrar você... talvez ele seja ainda a criança descrita neste livro — disse Nancy — ou talvez seja velho como tio Mose.

— Má sorte dele se for esta segunda hipótese! — disse o velho dando uma risadinha.

Roland ergueu o livro, contemplou a capa vermelha e branca, passou o dedo nas letras ligeiramente em relevo formando uma palavra que ele não era capaz de ler.

— Certamente é apenas uma história, não é?

— Desde a primavera de 1970, quando Stephen King datilografou a linha o homem de preto fugia pelo deserto e o pistoleiro ia atrás — disse Marian Carver —, muito pouco do que ele escreveu foi “apenas uma história”. Talvez ele não acreditasse na coisa; nós acreditamos.

Mas talvez, depois de anos lidando com o Rei Rubro, vocês tenham pegado a mania de ver tudo pelo lado da sombra, ora me façam o favor, Roland pensou. E perguntou em voz alta:

— Se não são histórias, o que são?

Foi Moses Carver quem respondeu.

— Achamos que podem ser mensagens em garrafas... — No seu modo de falar esta palavra (quase garfas), Roland sentiu um comovente eco de Susannah. De repente quis vê-la e saber que ela estava bem. O desejo foi tão forte que lhe deixou um gosto amargo na língua. —... esse grande mar.

— Perdi o que falou — disse o pistoleiro. — Estava distraído.

— Eu disse que acreditamos que Stephen King atirou suas garrafas no grande mar. Naquele que chamamos de Primal. Com a esperança de que as garrafas chegassem até você e que as mensagens lá dentro possibilitassem que você e minha Odetta atingissem seu objetivo.

— O que nos traz a nossos últimos presentes — disse Marian. — Nossos verdadeiros presentes. Eis o primeiro... — Entregou-lhe a caixa.

Havia uma dobradiça. Roland pousou a mão esquerda na tampa com a intenção de puxá-la para trás. De repente parou e estudou seus interlocutores. Estavam olhando para ele com esperança e um interesse ansioso, expressões que o deixavam nervoso. Uma idéia maluca (mas surpreendentemente sedutora) lhe ocorreu: que aqueles eram os verdadeiros agentes do Rei Rubro e que, quando abrisse a caixa, a última coisa que ia ver seria um pomo de ouro engatilhado, completando a contagem dos últimos cliques para o zero vermelho. E que o último som que ia ouvir antes do mundo explodir à sua volta seria o riso louco deles e um grito de salve o Rei Vermelho! Não era impossível, mas havia um ponto em que a pessoa tinha de confiar em alguma coisa, porque a alternativa era a loucura. Se o ka quiser assim que seja assim, ele pensou e abriu a caixa.

 

Lá dentro, pousado em veludo azul-escuro (que eles podiam ou não saber que era a cor da Corte Real de Gilead), havia um relógio no meio de uma corrente enrolada. Gravados na tampa de ouro havia três objetos: uma chave, uma rosa e — entre e ligeiramente acima delas — uma torre com diminutas janelas marchando ao redor de sua circunferência numa espiral ascendente.

Roland ficou espantado ao sentir que seus olhos novamente se enchiam de lágrimas. Quando voltou a olhar para os outros — duas jovens e um velho, cérebros e vísceras da Tet Corporation —, viu, a princípio, seis pessoas em vez de três. Piscou duas vezes para se livrar dos sósias.

— Abra a tampa e dê uma olhada por dentro — disse Moses Carver. — E não é preciso esconder as lágrimas em nossa presença, filho de Steven, pois não somos as máquinas pelas quais gostariam de nos substituir, se pudessem.

Roland viu que o velho falava a verdade, pois corriam lágrimas pela pele curtida e escura do rosto dele. Nancy Deepneau também chorava abertamente. E embora Marian Carver sem dúvida tivesse orgulho de ser feita de substância mais dura, seus olhos tinham um brilho suspeito.

Ele apertou o pino que havia no alto do relógio e a tampa pulou. Lá dentro, ponteiros finamente ornamentados marcavam a hora e os minutos, e com absoluta precisão, ele não tinha dúvidas. Mais abaixo, num pequeno círculo, um ponteiro menor corria pelos segundos. Gravado por trás da tampa havia isto:

 

Para a Mão de ROLAND DESCHAIN

Das Mãos de

MOSES ISAAC CARVER

MARIAN ODETTA CARVER

NANCY REBECCA DEEPNEAU

Com Nossa Gratidão

 

O Branco sobre o Vermelho, esta é a vontade eterna de DEUS

 

— Obrigado-sai — disse Roland com uma voz áspera e trêmula. — Agradeço como meus amigos agradeceriam, se estivessem aqui para falar.

— Eles sempre falam em nossos corações, Roland — disse Marian. — E em sua face conseguimos vê-los muito bem.

Moses Carver estava sorrindo.

— Em nosso mundo, Roland, dar um relógio de ouro a um homem tem um significado todo especial.

— E qual seria? — Roland perguntou. Levantava o relógio até o ouvido (sem dúvida o mais primoroso relógio que já tivera na vida) e prestava atenção na delicada e precisa batida de sua máquina.

— Que seu trabalho já se completou e chegou o tempo de ir pescar ou brincar com os netos — disse Nancy Deepneau. — Mas lhe demos o relógio por outro motivo. Para que marque as horas daqui até seu objetivo e informe quando você estiver perto dele.

— Como pode fazer isso?

— Temos um sujeito de mente excepcionalmente boa no Novo México — disse Marian. — Seu nome é Fred Towne. Vê muita coisa e raramente ou nunca se engana. Este relógio é um Patek Philippe, Roland. Custa 19 mil dólares e os fabricantes garantem total ressarcimento do preço se ele um dia adiantar ou atrasar. Não precisa de corda, pois funciona com uma bateria... não fabricada pela North Central Positronics ou qualquer subsidiária dela, posso lhe assegurar. Uma bateria capaz de durar cem anos. Apesar disso, segundo Fred, quando você se aproximar da Torre Negra o relógio pode parar.

— Ou começar a andar para trás — disse Nancy. — Preste atenção nele.

— Creio que vai ficar atento, não é? — disse Moses Carver.

— Ié — Roland concordou e pôs cuidadosamente o relógio num bolso (após outra olhada demorada nos relevos sobre a tampa dourada) e a caixa em outro. — Vou vigiar muito bem este relógio.

— E também deve ficar atento a outra coisa — disse Marian. — Mordred.

Roland esperou.

— Temos razões para crer que ele assassinou o homem que você chamava de Walter. — Ela fez uma pausa. — E vejo que isso não o espanta. Posso saber por quê?

— Por fim Walter saiu dos meus sonhos, exatamente como a dor saiu de minha perna e de minha cabeça — disse Roland. — A última vez que Walter visitou meus sonhos foi em Calla Bryn Sturgis, na noite do Feixemoto. — Não iria contar-lhes como aqueles sonhos tinham sido terríveis, sonhos onde vagava, perdido, sozinho, pelo corredor úmido de um castelo com teias de aranhas cobrindo seu rosto; onde havia o passo sinistro de algo que vinha da escuridão e se aproximava por trás dele (talvez por cima dele) e onde, pouco antes de acordar, surgiam brilhantes olhos vermelhos e o murmúrio de uma voz não-humana: Pai.

Olhavam-no com ar severo. Por fim Marian disse:

— Cuidado com ele, Roland. Fred Towne, o sujeito que mencionei, diz que Mordred está sempre com fome. Diz que é fome literal. Fred é um homem corajoso, mas está com medo de seu... seu inimigo.

De meu filho, por que não diz logo?, Roland pensou, mas achava que sabia. Ela se reprimia preocupada com seus sentimentos.

Moses Carver se levantou e pôs a bengala ao lado da escrivaninha da filha.

— Tenho mais uma coisa para você — disse ele —, uma coisa que na realidade sempre lhe pertenceu. Deve transportá-la e só largá-la quando chegar aonde está indo.

Roland estava verdadeiramente perplexo e ficou ainda mais perplexo quando o velho começou a desabotoar devagar a frente da camisa. Marian fez um gesto para ajudá-lo, mas ele a repeliu bruscamente. Debaixo da camisa havia uma daquelas camisolas interiores sem manga, aquilo que o pistoleiro chama de slinkum. Embaixo havia uma forma que Roland reconheceu de imediato e seu coração pareceu parar no peito. Por um momento ele foi devolvido a um pequeno chalé na frente do lago — o chalé de Beckhardt, com Eddie a seu lado — e ouviu suas próprias palavras: Ponha a cruz da titia em volta do pescoço e quando se encontrar com sai Carver mostre a ele. Pode ser bem útil para convencê-lo de que você fala a verdade. Mas primeiro...

A cruz estava agora numa corrente com belos anéis dourados. Moses Carver tirou a corrente debaixo do slinkum, contemplou a cruz por um instante, ergueu os olhos para Roland com um pequeno sorriso nos lábios e baixou-os de novo para a cruz. Soprou nela. Bem fraca, fazendo o pêlo se erguer nos braços do pistoleiro, veio a voz de Susannah:

— Enterramos Pimsey debaixo da macieira...

Então a voz se foi. Por um momento não houve mais nada e Carver, agora franzindo a testa, tomou fôlego para soprar de novo. Não foi preciso. Antes que ele o fizesse, o arrastado sotaque ianque de John Cullum brotou, aparentemente não da própria cruz, mas do ar logo acima dela.

— Fizemos tudo que pudemos, parceiro... paaarr-ceiro... e espero que tenhamos feito bem. Eu sempre soube que isto só era meu por empréstimo e aqui está, de volta a quem pertence. Você sabe onde deve acabar, eu... — Então as palavras, que tinham começado a se enfraquecer desde aqui está ficaram inaudíveis mesmo para os ouvidos aguçados de Roland. Mas ele já ouvira bastante. Pegou a cruz de tia Talitha, que prometera depositar diante da Torre Negra, e de novo pendurou-a no pescoço. Voltara para ele e, afinal, por que não? O ka não era uma roda?

— Eu lhe agradeço, sai Carver — disse ele. — Por mim, por meu ka-tet que foi e em nome da mulher que me deu esta cruz.

— Não me agradeça — disse Moses Carver. — Agradeça a Johnny Cullum. Ele me deu quando estava morrendo. Aquele homem tinha uma couraça muito forte.

— Eu... — Roland começou e, por um momento, não conseguia dizer mais nada. Seu coração estava transbordando. — Agradeço a todos vocês — disse por fim. Curvou a cabeça com a palma do punho direito contra a testa e os olhos fechados.

Quando tornou a abri-los, Moses Carver estendia seus braços velhos e finos.

— Agora temos de seguir nosso caminho e você tem de seguir o seu — disse ele. — Ponha os braços à minha volta, Roland, me dê um beijo de adeus e pense em minha garota quando o fizer, pois gostaria de lhe dizer adeus se puder.

Roland fez o que lhe pediam e em outro mundo, enquanto cochilava a bordo de um trem com destino a Fedic, Susannah pôs a mão no rosto, pois lhe pareceu que papai Mose se aproximara dela, pusera um braço à sua volta e deixara seu adeus, boa sorte, boa viagem.

 

Quando Roland saiu do eleva-torre e pisou no saguão, não ficou surpreso ao ver uma mulher usando um pulôver cinza-esverdeado e uma calça comprida cor de musgo. Ela estava parada na frente do canteiro, ao lado de um folken de ar sobriamente respeitoso. Um animal que não era exatamente um cachorro estava sentado ao lado de seu sapato esquerdo. Roland se aproximou dela e tocou seu cotovelo. Irene Tassenbaum se virou para ele, olhos cheios de admiração.

— Está ouvindo? — perguntou. — É como a canção que escutamos em Lovell, só que cem vezes mais doce.

— Estou ouvindo — disse Roland curvando para pegar Oi. Encarou os brilhantes olhos orlados de dourado do trapalhão enquanto as vozes cantavam. — Amigo de Jake — disse —, que mensagem ele passou?

Oi tentou, mas o máximo que conseguiu foi soltar algo que soava como dândi-ô, uma palavra que Roland se lembrava de ter ouvido numa velha canção de bar, onde rimava com Adelina diz que é fã de gandhi-ô.

Roland encostou a testa na cabeça de Oi e fechou os olhos. Sentiu o cheiro quente da respiração do trapalhão. E mais: um forte aroma em seu pêlo que era o feno onde Jake e Benny Slightman tinham se revezado, saltando, não há tanto tempo assim. Em sua mente, misturada com o doce cântico daquelas vozes, ouviu a voz de Jake Chambers pela última vez:

Conte a ele que Eddie disse: “Cuidado com o Dandelo.” Não esqueça!

E Oi não esquecera.

 

Lá fora, quando desciam os degraus do Hammarskjöld Plaza 2, uma voz reverente os chamou:

— Senhor? Madame?

Era um homem de terno preto e um boné preto macio. Estava parado ao lado do carro mais comprido e preto que Roland já vira. Olhar para ele deixava o pistoleiro nervoso.

— Quem nos mandou uma carreta funerária? — ele perguntou.

Irene Tassenbaum sorriu. A rosa a revigorara — a fizera vibrar, a deixara muito feliz —, mas ela estava cansada. E ansiosa para entrar em contato com David, que a estas alturas provavelmente já estaria alucinado de preocupação.

— Não é um carro fúnebre — disse ela. — É uma limusine. Um carro para pessoas especiais... ou pessoas que acham que são especiais. — Então, para o motorista: — Enquanto estamos andando, será que alguém na sua central me conseguiria algumas informações sobre vôos?

— É claro, senhora. Posso saber que empresa aérea prefere e qual é seu destino?

— Meu destino é Portland, no Maine. Minha companhia preferida é a Rubberband Airlines, se tiver vôo hoje à tarde.

As janelas da limusine eram de vidro escuro, o interior sombrio mas rodeado de luzes coloridas. Oi pulou para um dos assentos e ficou observando com interesse a cidade rolando lá fora. Roland ficou um pouco espantado ao ver que havia um bar muito bem sortido num dos lados do comprido compartimento de passageiros. Pensou numa cerveja, mas achou que mesmo uma bebida tão leve seria suficiente para turvar seu discernimento. Irene não tinha esse tipo de preocupação. Serviu-se de uma bebida numa garrafinha que parecia uísque. Depois passou a garrafa a ele.

— Possa sua estrada levar sempre para cima e o vento estar sempre às suas costas, meu valente rapaz — disse ela.

— Belos votos — disse Roland abanando a cabeça. — Obrigado-sai.

— Estes foram os três dias mais impressionantes da minha vida. Eu é que tenho de agradecer a você, sai. Por ter me escolhido. — Também por ter trepado comigo, ela pensou mas não acrescentou. Ela e Dave de vez em quando ainda se divertiam na cama, mas não como na noite anterior. Jamais fora assim. E se Roland não andasse distraído? Muito provavelmente ela teria implodido por dentro, como aquelas bombinhas chamadas de Gato Preto.

Roland abanava a cabeça e via passarem as ruas da cidade — uma versão de Lud, mas ainda uma cidade jovem, cheia de vida.

— E o seu carro? — ele perguntou.

— Se o quisermos antes de voltarmos a Nova York, podemos mandar alguém dirigi-lo até o Maine. Provavelmente o Beamer* de David vai dar. É uma das vantagens de ser rica... Por que está me olhando assim?

— Vocês têm um cartomóbile chamado Beamer?

— É gíria — disse ela. — Na realidade é um BMW. Sigla de Bavarian Motor Works.

— Ah. — Roland tentou fazer uma cara de quem compreendia.

— Roland, posso lhe fazer uma pergunta?

Ele girou a mão mandando-a seguir.

— Quando salvamos o escritor, salvamos também o mundo? De certa forma foi isso, não foi?

— Sim — disse ele.

— Como é possível que um escritor que nem mesmo é muito bom... e sei o que estou dizendo, li quatro ou cinco livros dele... acaba encarregado do destino do mundo? Ou de todo o universo?

— Se ele não é muito bom, por que você não parou no primeiro livro?

A sra. Tassenbaum sorriu.

— Touché. Dá para se ler, concedo-lhe isto... Sabe contar uma história, mas tem um mau ouvido para a linguagem. Respondi à sua pergunta, agora responda à minha. Deus sabe que certos escritores acham que o mundo inteiro depende do que eles dizem. Penso em Norman Mailer, assim como em Shirley Hazzard e John Updike. Mas parece que no caso de que estamos tratando o mundo realmente depende da coisa. Como isso aconteceu?

Roland deu de ombros.

— Ele ouve as vozes certas e canta as canções certas. O que significa dizer, ka.

Foi a vez de Irene Tassenbaum se virar e fazer uma cara de que compreendia.

 

A limusine parou na frente de um prédio com um toldo verde na frente. Outro homem, com outro terno de bom caimento, estava parado ao lado da porta. Os degraus que subiam da calçada estavam cercados com fita amarela. Havia palavras na fita que Roland não conseguia ler.

— Diz CENA DE CRIME, NÃO ENTRE — a sra. Tassenbaum disse a ele. — A fita parece já estar há algum tempo aí. Acho que normalmente tiram a fita quando acabam de fotografar, passar as escovas e coisas assim. Você deve ter amigos poderosos.

Roland tinha certeza que a fita de fato já estava há algum tempo lá; três semanas, um pouco mais um pouco menos. Foi quando Jake e Père Callahan entraram no Dixie Pig, certos de que iam morrer, mas mesmo assim tocando em frente. Ele viu que havia um resto de bebida no copo de Irene e tomou-o de um gole, fazendo uma careta ante o gosto quente do álcool, mas apreciando a quentura quando ele desceu.

— Melhor? — ela perguntou.

— Sim, obrigado. — Instalou com mais firmeza a saca dos Orizas no ombro e saltou com Oi em seus calcanhares. Irene parou para falar com o motorista, que parecia ter conseguido marcar a viagem que ela lhe pedira. Roland mergulhou sob a fita e por um instante ficou imóvel, ouvindo as buzinas e a batida da cidade naquele belo dia de junho, saboreando sua vitalidade de adolescente. Jamais veria outra cidade, pelo menos disso tinha quase certeza. O que talvez fosse ótimo. Desconfiava que após ter visto Nova York, todas as outras cidades estariam a um degrau abaixo.

O segurança — obviamente alguém que trabalhava para a Tet Corporation e não algum guarda da cidade — aproximou-se na calçada.

— Se quer entrar aí, senhor, há uma coisa que deve me mostrar.

Roland tirou mais uma vez o cinturão da bolsa, mais uma vez desenrolou-o do coldre, mais uma vez puxou o revólver de seu pai. Desta vez não se ofereceu para passar a arma, nem o cavalheiro com quem falava quis pegá-la. Limitou-se a observar o relevo, em particular o que havia na ponta do cano. Depois abanou respeitosamente a cabeça e deu um passo atrás.

— Vou destrancar a porta. Assim que tiver entrado, estará por sua conta e risco. Compreende isso, certo?

Roland, que passara a maior parte da vida por sua conta e risco, abanou afirmativamente a cabeça.

Irene segurou seu cotovelo antes que ele pudesse dar o primeiro passo, virou-o e pôs os braços em volta de seu pescoço. Ela também havia comprado um par de sapatos de salto e só precisou inclinar ligeiramente a cabeça para trás para olhar nos olhos dele.

— Cuide-se, caubói. — Ela o beijou rapidamente na boca (o beijo de uma amiga) e se ajoelhou para alisar Oi. — E cuide também do pequeno caubói.

— Vou fazer o que puder — disse Roland. — Não vai se esquecer da promessa com relação ao túmulo de Jake?

— Uma rosa — disse ela. — Vou lembrar.

— Obrigado. — Roland a contemplou mais um instante, consultou os movimentos de seus próprios instintos interiores (a intuição) e chegou a uma decisão. Da saca dos Orizas, pegou o envelope que continha o livro grosso... aquele que, afinal, Susannah jamais leria para ele ouvir. Pôs o envelope nas mãos de Irene.

Ela o olhou franzindo a testa.

— O que tem aqui? Parece um livro.

— É. De Stephen King. Insônia é o nome. Já leu este?

Ela esboçou um sorriso.

— Não, ainda não. Você já?

— Não. E não vou ler. Me parece truqueiro.

— Não compreendo.

— Parece... ralo. — Estava pensando na Garganta do Parafuso, em Mejis.

Ela ergueu o envelope.

— Parece extremamente grosso. Sem dúvida um livro de Stephen King. Ele vende aos metros, a América compra aos quilos.

Roland só balançava a cabeça.

— Não importa — continuou Irene. — Estou sendo espirituosa porque não sou muito boa para adeuses, nunca fui. Quer que eu fique com isto, certo?

— Sim.

— OK. Talvez quando o Grande Steve sair do hospital, eu vá lhe pedir um autógrafo. Pelo modo como entrei na coisa ele me deve um autógrafo.

— Ou um beijo — disse Roland, e pegou mais um, para ele. Sem o livro nas mãos, sentia-se um tanto mais leve. Mais livre. Mais seguro. Puxou-a bem para seus braços e apertou-a. Irene Tassenbaum devolveu a força dele com a dela.

Então Roland soltou-a, bateu levemente com o punho na testa e voltou para a porta do Dixie Pig. Abriu-a e deslizou para o interior sem sequer olhar para trás. Esse, ele descobrira, era sempre o modo mais fácil.

 

O cavalete cromado, que estava do lado de fora na noite em que Jake e Père Callahan tinham chegado lá, havia sido guardado na entrada. Roland tropeçou nele, mas seus reflexos estavam rápidos como nunca e ele conseguiu agarrar o cavalete antes de ele cair. Leu devagar os dizeres no alto, dizendo as palavras em voz alta e captando o sentido de apenas uma: FECHADO. As tochas elétricas alaranjadas, que antes iluminavam o salão de jantar, estavam apagadas, mas as luzes de emergência, movidas a bateria, estavam acesas, enchendo a área atrás da entrada e o bar de um clarão mortiço. A esquerda havia um arco e, atrás dele, outra sala de jantar. Não havia luzes de emergência ali; aquela parte do Dixie Pig era escura como uma caverna. A luminosidade da sala de jantar principal parecia avançar até pouco mais de um metro — apenas o suficiente para iluminar a ponta de uma mesa comprida — e depois se extinguia. A tapeçaria de que Jake tinha falado desaparecera. Talvez estivesse na sala de provas da delegacia mais próxima ou podia já ter encontrado a loja de algum colecionador de coisas estranhas. Roland podia sentir o aroma fraco de carne carbonizada, Um cheiro vago, desagradável.

Na sala de jantar principal, havia duas ou três mesas viradas. Roland viu manchas no tapete vermelho, algumas muito escuras, quase certamente de sangue, e um coágulo amarelado que era... outra coisa.

Jogue isso fora! Brinquedo asqueroso do Deus-cordeiro, jogue isso fora se tiver coragem!

E a voz do Père, ecoando vagamente nos ouvidos de Roland, destemida: Não sei se vale a pena apostar minha fé diante de uma coisa como você, sai.

O Père. Outro dos que tinha deixado para trás.

Roland se lembrou brevemente da tartaruga de marfim que fora escondida no forro da bolsa que tinham encontrado no terreno baldio, mas não perdeu tempo procurando por ela. Se estivesse ali, Roland achou que teria ouvido sua voz chamando no silêncio. Não, quem tinha se apropriado da tapeçaria do jantar dos cavaleiros vampiros tinha também muito provavelmente pegado a sköldpadda, sem saber do que se tratava, achando apenas que era uma coisa estranha, encantadora, inteiramente exótica. Pena. Ela podia ter sido útil.

O pistoleiro seguiu adiante, avançando por um caminho sinuoso por entre as mesas com Oi trotando em seus calcanhares.

 

Parou na cozinha pelo tempo suficiente para se perguntar o que os guardas de Nova York teriam achado daquilo. Seria capaz de apostar que nunca tinham visto uma cozinha como aquela, não naquela cidade de máquinas asseadas e luzes elétricas sempre brilhando. Era uma cozinha em que Hax, o cozinheiro de que tanto se lembrava dos tempos de sua juventude (e sob cujos pés sem vida ele e seu melhor amigo tinham um dia jogado pão para os pássaros), teria se sentido em casa. Os bicos do fogão estavam apagados há semanas, mas o cheiro da carne que fora assada ali — parte dela da variedade conhecida como porco de colo — era forte e nauseante. Havia outros sinais de problemas, sem dúvida (uma panela, com uma espuma solidificada caída nos ladrilhos verdes do chão e sangue queimado até ficar preto, em cima de um dos fogões), e Roland pôde imaginar Jake lutando para abrir caminho pela cozinha. Mas não em pânico; não, não ele. Jake havia parado para perguntar ao auxiliar de cozinha qual o caminho a seguir.

Qual é seu nome, guri?

Jochabim, esse sou eu, filho de Hossa.

Jake contara a eles esta parte da história, mas agora o que fala com Roland não era memória. Eram as vozes dos mortos. Já ouvira essas vozes antes e não se enganava a seu respeito.

 

Oi tomou a frente, como fizera da primeira vez que estivera lá. Ainda conseguia sentir o cheiro de Ake, fraco e pesaroso. Ake agora tinha seguido em frente, mas não chegaria assim tão longe; ele era bom, Ake era bom, Ake ia esperar e quando a hora chegasse — quando a tarefa que Jake lhe dera estivesse completa —, Oi ia alcançá-lo e acompanhá-lo como antes. Seu nariz era poderoso e ele encontraria o cheiro mais fresco do que esse quando chegasse a hora de procurá-lo. Ake o salvara da morte, o que não tinha importância. Ake o salvara da solidão e da vergonha depois de Oi ter sido expulso pelo tet de sua espécie, e isso tinha importância.

Enquanto isso, havia aquela tarefa a ser cumprida. Ele conduziu o homem chamado Olan até a despensa. A porta secreta da escada estivera fechada, mas o homem Olan foi apalpando com paciência pelas prateleiras cheias de latas e caixas até achar a maçaneta que a abria. Tudo estava como antes, a escada comprida, descendo sempre, mal iluminada por lâmpadas no teto, o cheiro úmido e dominado por mofo. Podia sentir o cheiro dos ratos que disparavam nas paredes; ratos e outras coisas, também, como aqueles insetos que ele matara da primeira vez que estivera lá com Ake. Fora uma boa matança e sem dúvida gostaria de mais, se mais fosse oferecido. Oi queria que os insetos aparecessem de novo para desafiá-lo, mas evidentemente eles não vieram. Estavam com medo e tinham razão de estar com medo, pois a espécie deles sempre fora inimiga da dele.

Começou a descer a escada com o homem Olan seguindo atrás.

 

Passaram pelo quiosque deserto com suas placas amareladas pelo tempo (LEMBRANÇAS DE NOVA YORK, ÚLTIMA CHANCE, VISITE O 11 DE SETEMBRO DE 2001) e, 15 minutos mais tarde — Roland checou no novo relógio para ter certeza do tempo —, chegaram a um lugar onde havia uma boa quantidade de vidro quebrado no chão de um corredor empoeirado. Roland pegou Oi no colo para ele não cortar as patas. Em ambas as paredes via os estilhaços de uma série de aberturas de vidro. Quando olhou por uma delas, viu um complicado maquinário. Jake fora quase capturado ali. Tinham lhe preparado uma espécie de armadilha mental, mas de novo Jake fora suficientemente esperto e corajoso para superá-la. Sobreviveu a tudo, exceto a um homem burro e descuidado demais para cumprir a simples tarefa de dirigir sua carroça numa estrada vazia, Roland pensou amargamente. E o homem que o levou para lá, esse homem também. Então Oi latiu e ele percebeu que, em sua raiva por Bryan Smith (e dele próprio), estava apertando demais a pobre coisinha.

— Mil perdões, Oi! — disse ele, colocando-o no chão.

Oi trotou para a frente sem dar nenhuma resposta e não muito depois Roland chegou aos corpos espalhados dos meliantes que tinham caçado o seu garoto das saídas do Dixie Pig. Também ali, no pó que cobria o piso daquele antigo corredor, estava o rastro que ele e Eddie haviam deixado. De novo Roland ouviu uma voz fantasmagórica, desta vez a do homem que liderara a perseguição.

Conheço seu nome por sua face e sua face por sua boca. É igual à boca de sua mãe, que chupava John Farson com tanto prazer.

Roland virou o corpo com o bico da bota (um humo chamado Flaherty, em cuja cabeça o pai pusera um medo de dragões, tivesse o pistoleiro sabido ou se importado... que não era o caso). Ele deu uma olhada na cara do morto, onde já crescia um torrão de mofo. Ao lado de Flaherty estava o taheen com cabeça de furão cuja proclamação final fora: Malditos sejam no caminho do ka! E atrás dos corpos amontoados desses dois e de seus companheiros ficava a porta que o tiraria para sempre do Mundo-chave.

Presumindo que ainda funcionasse.

Oi trotou em frente e sentou-se diante da porta, de olho em Roland. O trapalhão estava ofegante, mas o velho sorriso amigável e diabólico se fora. Roland alcançou a porta e encostou as mãos na textura densa da madeira reutilizada. Sentiu, lá no fundo, uma vibração surda, nervosa. A porta ainda funcionava, mas talvez não continuasse funcionando por muito tempo.

Roland fechou os olhos e se lembrou da mãe se curvando sobre ele em seu pequeno leito (não sabia quanto tempo depois de ter sido promovido do berço, mas certamente não muito tempo), seu rosto uma colcha de retalhos das cores que vinham das janelas do quarto — Gabrielle Deschain, que mais tarde morreria daquelas mãos que acariciava tão suave e carinhosamente; filha de Candor, o Alto, esposa de Steven, mãe de Roland, cantando para ele dormir e sonhar com aquelas terras que só as crianças conhecem.

 

Bebê amado, bebê cabeça,

Bebê me traga aqui suas frutas.

Chussit, chissit, chassit!

Traga o bastante para encher a cesta!

 

Tão longe eu viajei, ele pensou com as mãos apoiadas na porta de madeira reutilizada. Tão longe viajei e tantos feri ao longo do caminho, feri ou matei, e o que posso ter salvado foi salvo por acaso e nunca poderá salvar minha alma, se eu tiver uma. Contudo, há pelo menos isto: cheguei à parte final da última trilha e não terei de percorrê-la sozinho se Susannah vier comigo. Talvez ainda haja o bastante para encher minha cesta.

— Chassit — disse Roland e abriu os olhos quando a porta se abriu. Viu Oi saltar ligeiro por ela. Ouviu o grito estridente do vazio entre os mundos e também atravessou, batendo com força a porta atrás de si e, de novo, sem olhar para trás.

 

FEDIC (DUAS VISTAS)

Olhe como aqui é brilhante!

Quando estivemos antes ali, Fedic era sem sombra e sem brilho. Havia uma razão para isso; não era a verdadeira Fedic, mas uma espécie de substituto todash, um lugar que Mia conhecia bem, de que se lembrava bem (assim como se lembrava do torreão do castelo, onde ia com freqüência antes que certas circunstâncias — na pessoa de Walter das Sombras — lhe dessem um corpo físico) e que assim podia recriar. Hoje, no entanto, a aldeia deserta é quase brilhante demais para se olhar (sem dúvida poderemos vê-la melhor quando nossos olhos tiverem se adaptado, deixando para trás a escuridão de Trovoada e a passagem sob o Dixie Pig). Cada sombra é nítida; como se tivesse sido cortada de feltro preto e estendida sobre o lajedo. O céu é de um azul muito vivo, sem nuvens. O ar é frio. O vento que geme em volta dos beirais dos prédios vazios e através das ameias do Castelo Discórdia é outonal e um tanto contido. Na estação de Fedic há uma locomotiva atômica — que era chamada maria-a-jato pelo Povo Antigo — com as palavras ESPÍRITO DE TOPEKA escritas dos dois lados da proa em forma de bala. As pequenas janelas da cabine de comando ficaram quase completamente opacas por obra de séculos de areia do deserto sendo atirada no vidro, mas isso pouco importa; o Espírito de Topeka já fez sua última viagem e, mesmo quando de fato corria com regularidade, nenhum simples humo guiara seu curso. Atrás da locomotiva há apenas três vagões. Havia uma dúzia quando ela saiu da Estação Trovoada em sua última viagem e havia uma dúzia quando atingiu os limites desta cidade fantasma, mas...

Ah, bem, essa é a história que Susannah tem para contar e a ouviremos contar ao homem que ela chamava de dinh quando havia um ka-tet para ele guiar. E aqui está a própria Susannah, sentada onde já a encontramos antes, na frente do Gin-Puppie Saloon. Amarrado no parapeito está seu corcel cromado, que Eddie apelidou de Cruzador Trike de Suzie. Ela sente frio e não tem sequer um suéter para enfiar no corpo, mas o coração lhe diz que a espera está quase terminada. E como ela deseja que seu coração esteja certo, pois aquele lugar é assombrado. Para Susannah, o gemido do vento é muito parecido com os gritos desnorteados das crianças que eram levadas para lá, onde teriam as mentes assassinadas e ganhariam um corpo roont.

Ao lado de um enferrujado galpão Quonset no alto da rua (a Estação Experimental Arco 16, se já esqueceram) estão os cinzentos cavalos cyborgs. Mais alguns desmoronaram desde a última vez que visitamos o lugar; outros sacodem sem parar as cabeças de um lado para o outro, como tentando avistar os cavaleiros que chegariam para desamarrá-los. Mas isso nunca vai acontecer, pois os Sapadores foram libertados para perambular como quisessem e não há mais a necessidade de crianças para alimentar suas talentosas cabeças.

E agora, olhe você mesmo! Lá vem o que a senhora está esperando desde o início deste longo dia, e do dia anterior, e do dia antes do dia anterior, quando Ted Brautigan, Dinky Earnshaw e alguns outros (não Sheemie, que foi para a clareira no fim do caminho, lamentemos) lhe deram adeus. A porta do Dogan se abre e um homem sai. A primeira coisa que ela vê é que o homem não está mais mancando. Depois repara em sua nova calça jeans e na camisa nova. Trajes legais, embora o deixem tão mal equipado quanto ela para aquele tempo frio. O recém-chegado segura um animal peludo com as orelhas empinadas. Até aí tudo bem, mas o garoto que devia estar segurando o animal está ausente. Nenhum garoto e o coração dela se enche de dor. Não, porém, de surpresa porque ela tinha sabido, exatamente como aquele homem (aquele homem cauteloso) teria sabido se fosse ela quem tivesse passado do caminho.

Susannah desliza do lugar onde está sentada usando as mãos e os cotos das pernas; faz-se descer da calçada de tábuas para o meio da rua. Então ergue a mão e a agita sobre a cabeça.

— Roland! — gritou. — Ei, pistoleiro! Estou aqui!

Ele a vê e também acena. Depois se abaixa e põe o animal no chão. Oi corre para ela a todo vapor, cabeça baixa, orelhas achatadas contra o crânio. Corre com a velocidade e a graça atarracada, mas saltadora, de uma fuinha numa crosta de neve. Quando ainda está a 2 metros dela (pelo menos 2), ele pula, sombra voando por um momento sobre a terra batida da rua. Ela o agarra como um deep receiver* recebendo um passe desesperado. A força do movimento de Oi tira o fôlego de Susannah e a derruba numa nuvem de pó, mas o primeiro ar que ela consegue absorver volta como riso. Susannah ainda está rindo quando Oi pára com as patinhas curtas da frente em seu peito e as patinhas curtas de trás em sua barriga, orelhas em pé, cauda enroscada se abanando. Lambe as bochechas dela, o nariz, os olhos.

— Pare com isso! — ela grita. — Pare com isso, meu bem, antes que você me mate!

Susannah ouve o que diz, tão levianamente dito, e pára de rir. Oi sai de cima dela, senta, estica o focinho para a vazia cobertura azul do céu e solta um uivo muito longo que diz a Susannah tudo que ela ia precisar saber se já não soubesse. Pois Oi tem meios mais eloqüentes de falar do que suas poucas palavras.

Ela se senta, sacode nuvens de poeira da blusa e uma sombra a atinge. Ergue a cabeça, mas a princípio não consegue ver a face de Roland. A cabeça dele está bem na frente do sol, o que forma um halo à sua volta. Seus traços estão perdidos na escuridão.

Mas ele está estendendo as mãos.

Parte dela não quer pegá-las e você não sabe por quê? Parte dela gostaria de terminar tudo ali e mandá-lo sozinho para as Terras Áridas. Pouco importa o que Eddie quisesse. Pouco importa o que Jake sem a menor dúvida também queria. Aquela forma escura com o sol cintilando em volta da cabeça a tem arrancado de uma vida extremamente confortável (oh, sim, ela tinha seus fantasmas — e pelo menos um demônio de coração mau —, mas quem não tem?). Ele a tem apresentado primeiro ao amor, depois à dor, depois ao horror e à perda. O negócio, em outras palavras, foi correndo morro abaixo. E a mão dele, funestamente talentosa, que provocou sua dor, a mão daquele poeirento cavaleiro andante que saiu do mundo antigo com suas botas antigas e um antigo instrumento de morte de cada lado da cintura. Estes são pensamentos melodramáticos, imagens clichê, e a velha Odetta, freguesa do Faminto e uma gata legal de qualquer ponto de vista, sem a menor dúvida os teria achado muito engraçados. Mas ela tem mudado, ele a mudou e ela reconhece que se alguém tem direito a pensamentos melodramáticos e imagens clichê, esse alguém é Susannah, filha de Dan.

Parte dela queria repeli-lo, não para arruinar sua missão ou arrasar com seu ânimo (só a morte faria essas coisas), mas para retirar o brilho que ainda resta nos seus olhos e puni-lo pela sua implacável crueldade não-intencional. Mas ka é a roda à qual todos nós estamos amarrados e quando a roda gira temos de forçosamente girar com ela, primeiro com as cabeças erguidas para o céu, depois girando de novo para o inferno, onde os miolos dentro das cabeças parecem ferver. E então, em vez de repeli-lo...

 

Em vez de repeli-lo, como parte dela queria fazer, Susannah pegou as mãos de Roland. Ele a ergueu, não colocando-a sobre os pés (que ela não tinha, embora tivesse andado algum tempo com um par que lhe fora emprestado), mas para seus braços. E quando Roland tentou beijar sua face, ela virou-a para que os lábios dele encontrassem os seus. Que ele compreenda que isto não é coisa para se fazer pela metade, ela pensou, soltando o ar dos pulmões para dentro e tomando-o de volta dele, alterado. Que compreenda que se estou nisso, estou nisso até o fim. Que Deus me ajude, estou nisso com ele até o fim.

 

Havia roupas na Chapelaria e Costumes de Senhoras de Fedic, mas elas se desmancharam ao toque de suas mãos — as traças e os anos nada tinham deixado de aproveitável. No Fedic Hotel (QUARTOS SILENCIOSOS, BOASCAMAS), Roland encontrou um armário com alguns cobertores que poderiam servir pelo menos contra o frio da tarde. Embrulharam-se neles — a brisa mal conseguia tornar suportável o cheiro de mofo — e Susannah perguntou sobre Jake, para sentir de novo aquela dor imediata e tentar tirá-la do caminho.

— De novo o escritor — disse num tom amargo, enxugando as lágrimas, quando Roland terminou de contar. — Maldito homem.

— Minha perna falhou e o... e Jake não hesitou. — Roland quase dissera o garoto, como se acostumara a ver o filho de Elmer enquanto se acercavam ao Walter. Dada uma segunda chance, Roland prometera a si mesmo que jamais faria isso de novo.

— Não, é claro que não — ela disse, sorrindo. — Ele nunca faria isso. Tinha um poço de coragem, nosso Jake. Você cuidou dele? Fez tudo certo? Gostaria de ouvir essa parte.

Então Roland contou, não deixando de incluir a promessa que Irene Tassenbaum fizera de plantar a rosa. Ela abanou a cabeça.

— Gostaria que pudéssemos ter feito o mesmo por seu amigo Sheemie — disse ela. — Sheemie morreu no trem. Sinto muito, Roland.

Roland abanou a cabeça. Queria um pouco de tabaco, mas é claro que não tinha mais nenhum. Estava de novo com seus dois revólveres e ainda havia sete pratos Orizas de sobra. Fora isso, os estoques se resumiam a pouco mais que nada.

— Ele teve de novo de usar seus poderes psíquicos enquanto estavam vindo para cá, não é? Desconfio que sim. Eu sabia que mais uma dessas poderia acabar com ele. Sai Brautigan também sabia. E Dinky.

— Mas não foi isso, Roland. Foi o pé.

O pistoleiro fitou-a sem compreender.

— Ele cortou o pé num caco de vidro durante a luta pela tomada do Céu Azul e o ar e a sujeira daquele lugar eram veneno! — Foi Detta quem vomitou as últimas palavras, o sotaque tão forte que o pistoleiro mal conseguiu entender: — Vêno! O maldito pé inchou... dedos cuma salsicha... depois bochecha e pescoço só roxo, como contusão... teve febre... — Ela respirou fundo, apertando mais à sua volta os dois cobertores que havia apanhado. — Entrou em delírio, mas no fim a cabeça ficou clara. Falou de você e de Susan Delgado. Falou com tamanho amor e tamanho remorso... — Ela fez uma pausa, depois explodiu: — Vamos chegar lá, Roland, vamos, e se ela não valer nada, essa sua Torre, faremos com que passe a valer!

— Vamos — disse ele. — Encontraremos a Torre Negra, nada vai conseguir resistir a nós e antes de entrar diremos seus nomes. De todos que perdemos.

— Sua lista vai ser mais comprida que a minha — disse ela —, mas a minha também não será curta.

Roland não respondeu, mas o robô camelô, talvez despertado de um longo sono pelo barulho das vozes, sim.

— Moças, moças, moças! — gritou do outro lado das portas de vaivém do Festa Bar e Grill. — Algumas humas, algumas cyber, mas quem se importa, tudo igual, quem se importa, elas dão, você conta, as meninas contam, você conta... — Houve uma pausa e então o robô gritou uma palavra final: — ...SATISFAÇÃO!... — e caiu em silêncio.

— Pelos deuses, mas este lugar é triste — disse Roland. — Vamos passar a noite e depois não o veremos mais.

— Pelo menos tem sol, o que é um alívio depois de Trovoada, mas está frio demais!

Ele balançou a cabeça, depois perguntou pelos outros.

— Seguiram adiante — disse ela —, mas por um instante achei que nenhum de nós conseguiria chegar a parte alguma, que acabaríamos todos no fundo daquela fenda ali.

Ela apontou para a ponta da rua principal de Fedic, a que ficava mais distante do muro do castelo.

— Há monitores de TV que ainda funcionam em alguns dos vagões de trem e quando chegamos à cidade tivemos uma bela vista da ponte rompida. Podíamos ver as cabeceiras se projetando sobre o fosso mas o vazio no meio devia ter uns 100 metros. Talvez mais. Também podíamos ver os cavaletes do trem. Que pareciam intactos. O trem já estava diminuindo a marcha, mas não o bastante para que algum de nós pudesse saltar. E já não daria tempo. Além disso, o pulo teria provavelmente matado quem tentasse. Estávamos seguindo, oh, digamos, a uns 80 quilômetros por hora. E assim que chegamos aos cavaletes, a porra da coisa começou a estalar e a gemer. Ou a crocitar e grasnar, se você já leu James Thurber,* o que acho que ainda não fez. O trem estava tocando música. Como Blaine, está lembrado?

— Sim.

— Mas sobre ela podíamos ouvir os cavaletes da ponte se preparando para ceder. Então tudo começou a balançar de um lado para o outro. Uma voz, muito calma e tranqüilizadora, dizia: “Estamos experimentando pequenos problemas de ordem técnica, por favor permaneçam sentados.” Dinky segurava aquela mocinha russa, Dani. Ted pegou minhas mãos e falou: “Quero lhe dizer, senhora, que foi um prazer conhecê-la.” Houve um solavanco tão forte que por pouco não me atirou do banco... teria conseguido, se Ted não tivesse me agarrado... e eu pensei: “É, acabamos aqui e por favor, Deus, me deixe morrer antes que o que possa haver lá embaixo ponha os dentes em mim.” Então, por um segundo ou dois estávamos indo para trás. Para trás, Roland! Pude ver todo o vagão... estávamos no primeiro atrás da locomotiva... se inclinando para cima. Havia o som de metal rasgando. Aí o velho e bom Espírito de Topeka deu uma arrancada explosiva, extremamente veloz. Diga o que quiser do Povo Antigo, sei que fizeram um monte de coisas erradas, mas eles sem dúvida construíram máquinas que tinham algum tutano.

“A próxima coisa que soube foi que estávamos entrando calmamente na estação. E então ouvimos aquela mesma voz tranqüilizadora, desta vez nos mandando olhar em volta das poltronas para termos certeza de que não estávamos esquecendo nossa tralha... nossas bagagens, você sabe. Como se estivéssemos na porra de um vôo da TWA aterrissando em Idlewild!* Só quando saltamos e pisamos na plataforma vimos que os últimos nove vagões do trem tinham sumido. Graças a Deus estavam todos vazios. — Ela atirou um olhar duro (mas assustado) para a extremidade da rua. — Espero que o que houver lá embaixo, seja o que for, sufoque com eles.”

Então Susannah se animou.

— Há uma coisa boa... A uma velocidade próxima dos 500 quilômetros por hora, que é o que aquela voz veja-como-somos-felizes disse que o Espírito de Topeka estava fazendo, devemos ter deixado o Mestre Garoto-Aranha no chinelo.

— Eu não contaria com isso — disse Roland.

Ela virou os olhos com ar cansado.

— Não me diga!

— Pois é o que digo. Mas vamos todos tratar de Mordred quando for a hora e acho que a hora não é hoje.

— Bom.

— Esteve de novo sob o Dogan? Imagino que sim.

Os olhos de Susannah se arregalaram.

— Não é incrível? Faz a Grand Central Station parecer uma estação de trem de cidade caipira. Quanto tempo levou para encontrar o caminho para cima?

— Se tivesse sido apenas eu, acho que ainda estaria vagando por aí — Roland admitiu. — Oi encontrou o caminho. Presumo que estivesse seguindo seu cheiro.

Susannah refletiu um pouco.

— Talvez estivesse. O de Jake, mais provavelmente. Não passou por uma galeria larga com uma placa na parede dizendo SÓ PASSE LARANJA, PASSE AZUL NÃO ACEITO?

Roland abanou afirmativamente a cabeça, mas os dizeres desbotados na parede tinham pouco significado para ele. Ele identificara a passagem que os Lobos usavam no começo de suas incursões ao ver dois cavalos cinzentos (já bem lá dentro, imóveis) e uma daquelas máscaras de dentes arreganhados caída no chão. Também tinha visto um mocassim de que se lembrava bastante bem, pois era feito de um pedaço de borracha. Um mocassim de Ted ou Dinky, ele concluiu; Sheemie Ruiz fora sem dúvida enterrado com o dele.

— Então — disse Roland —, vocês saltaram do trem... Quantos eram?

— Cinco, já então sem o Sheemie — disse ela. — Eu, Ted, Dinky, Dani Rostov e Fred Worthington... Está lembrado de Fred?

Roland assentiu. O homem no terno de banqueiro.

— Fiz com eles uma excursão turística pelo Dogan — disse ela. — Na medida do possível. Mostrei as camas onde roubavam os cérebros das crianças e o leito onde Mia acabou dando à luz o seu monstro. Mostrei a porta de sentido único entre Fedic e o Dixie Pig que ainda funciona em Nova York e o apartamento de Nigel.

“Ted e seus amigos ficaram realmente impressionados pela rotunda onde estão todas as portas, especialmente aquela que vai para a Dallas de 1963, onde o presidente Kennedy foi morto. Encontramos outra porta dois andares abaixo, já no nível onde fica a maioria das galerias. Ela vai dar no Ford’s Theater, onde o presidente Lincoln foi assassinado em 1865. Há inclusive um cartaz da peça a que ele estava assistindo quando Booth o baleou. Nosso Primo Americano, ela se chamava. Que tipo de pessoa ia querer ver coisas como essa?”

Roland achou que muitas pessoas, sem dúvida, mas talvez fosse melhor não responder.

— E tudo muito velho — disse ela. — E muito quente. E porra, muito assustador, se quer saber a verdade. A maioria das máquinas está parada e por toda parte há poças de água, de óleo e só Deus sabe do que mais. Algumas das poças irradiam um certo brilho e Dinky achou que pudesse ser radiação. Não gosto de imaginar o que já pode estar crescendo nos meus ossos nem quando meu cabelo vai começar a cair. Havia portas onde podíamos ouvir aqueles terríveis sinos... aqueles que põem seus dentes a tremer.

— Sinos de todash.

— É. E coisas atrás de alguns deles. Coisas esquivas. Foi você ou Mia que me disse que existem monstros na escuridão todash?

— Pode ter sido eu — disse ele. Os deuses sabiam que havia.

— Também há coisas naquela fenda além da cidade. Isso foi Mia quem me disse. “Monstros que iludem, trapaceiam, multiplicam e tramam fugas”, disse ela. A certa altura, Ted, Dinky, Dani e Fred se deram as mãos. Formaram o que Ted denominou “a pequena mente boa”. Pude sentir a coisa, embora eu não estivesse no círculo, e fiquei feliz em senti-la, porque aquele é um lugar velho e fantasmagórico. — Ela se agarrou ainda mais nos cobertores. — Não tenho a menor vontade de voltar para lá.

— Mas acredita que vamos ter de voltar.

— Há uma galeria que corre profundamente sob o castelo e sai do outro lado, na Discórdia. Ted a encontrou com seus amigos ao receber pensamentos antigos, o que Ted chamou de pensamentos fantasmas. Fred tinha um pedaço de giz no bolso e deixou o lugar marcado para mim. Mesmo assim não vai ser fácil achá-lo, porque lá embaixo é como naquele labirinto de uma velha história grega por onde circula um minotauro, mas acho que no fim vamos encontrá-lo...

Roland se curvou para alisar o pêlo áspero de Oi.

— Vamos descobri-lo. Este rapaz vai pôr o seu faro para trabalhar. Não vai, Oi?

Oi se virou para ele com seus olhos cercados de dourado mas não disse nada.

— Seja como for — ela continuou —, Ted e os outros tocaram as mentes das coisas que vivem naquela fenda fora da cidade. Não pretendiam fazer isso, mas fizeram. Aquelas coisas não estão a favor do Rei Rubro nem contra ele, são apenas a favor de si mesmas, mas pensam. E fazem telepatia. Sabiam que estávamos lá e assim que o contato foi feito ficaram satisfeitas em palestrar. Ted e seus amigos disseram que elas estavam há muito, muito tempo escavando um caminho para as catacumbas sob a Estação Experimental e agora estavam quase rompendo as últimas defesas. Assim que o conseguirem, vão ficar livres para vagar por onde bem quiserem.

Por alguns segundos Roland refletiu em silêncio. Balançava-se da frente para trás sobre os calços comidos das botas. Esperava estar bem longe com Susannah quando aquele final de tarefa acontecesse... mas talvez acontecesse antes de Mordred chegar lá e o metade aranha teria de enfrentar as criaturas, se quisesse seguir adiante. O Bebê Mordred contra os antigos monstros vindos de sob a terra... Era uma bela imagem!

Ele fez sinal para Susannah continuar.

— Também ouvimos sinos todash saindo de algumas galerias. Não apenas vindo de trás de certas portas, mas vindo também de entradas que não tinham portas para bloqueá-los! Entende o que isto significa?

Roland entendia. Se pegassem a galeria errada (se por exemplo Ted e seus amigos tivessem marcado a giz a galeria errada), ele, Susannah e Oi provavelmente iam desaparecer para sempre em vez de sair do outro lado do Castelo Discórdia.

— Eles não queriam me deixar lá embaixo... Me levaram de volta até a enfermaria antes de seguirem seu caminho, o que me deixou bastante contente. Eu não tinha a menor vontade de achar o caminho sozinha, mas acho que teria conseguido.

Roland pôs um braço em volta dela e lhe deu um abraço.

— A idéia deles era usar a porta que os Lobos usavam?

— Hã-hã, a que fica no final do corredor do PASSE LARANJA. Eles vão sair onde os Lobos saíam, encontrarão o caminho para o rio Whye e vão atravessá-lo para Calla Bryn Sturgis. O folken de Calla irá recebê-los, não é?

— Sim.

— E depois de ouvirem a história toda, será que não vão... não vão linchá-los ou algo do gênero?

— Tenho certeza que não. Henchick vai perceber que estão dizendo a verdade e os defenderá, mesmo se ninguém mais o fizer.

— Estão esperando utilizar a Gruta do Portal para voltar ao lado-América. — Ela suspirou. — Espero que a coisa dê certo para eles, mas tenho minhas dúvidas.

Roland também tinha. Mas os quatro eram poderosos e ele ficara impressionado com o homem de extraordinária determinação e habilidade que era Ted. A seu jeito, o povo manni também era poderoso, e eram grandes viajantes entre os mundos. Ele achou que, mais cedo ou mais tarde, Ted e seus amigos provavelmente conseguiriam voltar para a América. Pensou em dizer a Susannah que aquilo ia acontecer se fosse o desejo de ka, depois pensou melhor. Ka não era exatamente a palavra preferida de Susannah naquele momento e ele não podia censurá-la por isso.

— Agora me escute muito bem e se concentre, Susannah. A palavra Dandelo significa alguma coisa para você?

Oi ergueu a cabeça, olhos brilhantes. Susannah pensou.

— Parece vagamente familiar — disse ela —, mas é o máximo que poderia dizer. Por que a pergunta?

Roland lhe disse no que acreditava: que enquanto Eddie jazia no leito, fora agraciado por alguma espécie de visão de alguma coisa... ou de um lugar... ou de uma pessoa. Algo chamado Dandelo. Eddie passara isto a Jake, Jake passara a Oi e Oi passara a coisa a Roland.

Susannah franzia a testa com ar de dúvida.

— Talvez a mensagem já tenha circulado demais. Quando éramos crianças tínhamos uma brincadeira chamada telefone sem fio. A primeira criança pensava em alguma coisa, uma palavra ou uma frase, e a sussurrava para a criança vizinha. Você só podia ouvir a coisa uma vez, não se permitiam repetições. A próxima criança passava adiante o que achava que tinha ouvido e assim outra e outra. Quando a coisa chegava ao último da fila, era algo inteiramente diferente e todos davam uma boa gargalhada. Mas se isto aqui for a palavra errada, não teremos razão nenhuma para rir.

— Bem — disse Roland —, vamos nos manter vigilantes e esperar que eu tenha ouvido direito. E talvez não tenha significado algum. — Mas ele não acreditava realmente nisso.

— O que vamos usar como roupa, se ficar mais frio do que está? — ela perguntou.

— Nós mesmos faremos o que precisarmos. Sei como. Aliás, esta é outra coisa com a qual não precisamos nos preocupar hoje. O que nós temos que fazer é achar algo para comer. Se for necessário, quem sabe podemos encontrar a despensa de Nigel...

— Só quero voltar para aquele lugar embaixo do Dogan quando for realmente preciso — disse Susannah. — Tem de haver uma cozinha perto da enfermaria; eles têm de ter dado alguma coisa para aqueles pobres garotos comerem.

Roland pensou um pouco e abanou a cabeça. Era uma boa idéia.

— Vamos fazer isso agora — disse ela. — Também não quero estar no último andar daquele lugar depois que escurecer.

 

Na Via do Casco da Tartaruga, no ano de 2002, mês de agosto, Stephen King volta de um sonho acordado com Fedic. Ele digita: “Também não quero estar no último andar daquele lugar depois que escurecer.” As palavras aparecem na tela. É o fim do que ele chama de subcapítulo, o que nem sempre significa que a tarefa do dia tenha sido cumprida. Cumprir a tarefa do dia depende do que ele ouve. Ou, mais exatamente, do que não ouve. O que escuta é Ves’-Ka Gan, a Canção da Tartaruga. Agora a música, que é fraca em certos dias e em outros tão alta que quase o ensurdece, parece ter cessado. Voltará amanhã. Pelo menos sempre volta.

Ele aperta Ctrl junto com S e o computador faz um pequeno rumor, indicando que o material escrito naquele dia foi salvo. Então ele se levanta, estremecendo com a dor no quadril, e caminha para a janela do escritório. Dá uma olhada no acesso da garagem, subindo num ângulo bastante íngreme para a estrada onde agora ele raramente caminha (e na estrada principal, na rota 7, nunca). O quadril dói muito naquela manhã e os grandes músculos da coxa estão em fogo. Ele esfrega o quadril com ar ausente e continua olhando para fora.

Roland, seu puto, você me devolveu a dor, ele pensa. A dor desce por sua perna direita como corda incandescente, não vamos dizer Deus, não vamos dizer Deus-bomba? No final a dor ficou mesmo com ele. Já se passaram três anos desde o acidente que quase roubou sua vida e a dor ainda está lá. É menor agora, o corpo humano tem um incrível mecanismo de cura por dentro (um formidável lance de ajuste, ele pensa e sorri), mas às vezes a coisa ainda dói. Não pensa muito nisso quando está escrevendo, escrever é um tipo benigno de todash, mas as juntas ficam sempre duras depois de algumas horas em sua mesa.

Pensa em Jake. Lamenta como o diabo que Jake tenha morrido e acha que, quando aquele último volume for publicado, os leitores vão ficar simplesmente furiosos. E por que não? Alguns conhecem Jake Chambers há vinte anos, quase duas vezes mais tempo do que o garoto realmente viveu. Ora, vão ficar furiosos, tudo bem, e quando ele lhes escrever de volta, dizendo que lamenta tanto quanto eles, que ficou tão surpreso quanto eles, será que vão lhe dar crédito? Nem vendo em fotografia, como seu avô costumava dizer. Pensa em Angústia — Annie Wilkes chamando Paul Sheldon de pirralho cabeça de porra por tentar se livrar da tola e pirada Misery Chastain. Annie gritando que Paul era o escritor e o escritor é Deus para seus personagens, não precisa matar nenhum deles se não quiser.

Mas ele não é Deus. Pelo menos não neste caso. Sabe muito bem que Jake Chambers não estava ali no dia de seu acidente, nem Roland Deschain tampouco — a idéia é risível, eles são de faz-de-conta, pelo amor de Cristo —, mas ele também sabe que, a certa altura, a canção que ouve ao se sentar naquela fabulosa máquina de escrever Macintosh tornou-se a canção fúnebre de Jake e ignorar isso teria sido perder completamente o contato com Ves’-Ka Gan, coisa que não deve fazer. Não se estiver disposto a acabar a história. Aquela canção é o único fio que ele tem, o rastro de miolinhos de pão que precisa seguir se quiser algum dia sair da atordoante floresta de trama que ele tem plantado...

Tem certeza que foi você quem plantou?

Bem... não. De fato não tem. Então chame os homens de jaleco branco.

E tem certeza absoluta de que Jake não esteve lá naquele dia? Afinal, o que exatamente você consegue se lembrar do maldito acidente?

Não muita coisa. Lembra-se de ver a capota da van de Bryan Smith aparecer no horizonte e perceber que ela não estava na estrada, onde devia estar, mas no acostamento. Depois disso se lembra de Smith sentado numa mureta de pedra, olhando lá de cima para ele e dizendo que suas pernas estavam quebradas em pelo menos seis, talvez sete pontos diferentes. Mas entre essas duas recordações — a da aproximação da van e a do resultado imediato — o filme de sua memória teve o negativo queimado.

Ou quase queimado.

Às vezes, no entanto, durante a noite, quando acorda de sonhos de que não consegue se lembrar muito bem...

Às vezes há... bem...

— Às vezes há vozes — diz ele. — Por que simplesmente não confessa?

E então, rindo.

— Acho que foi o que acabei de fazer.

Ouve o estalar de unhas de pés se aproximando pelo hall e Marlowe enfia o nariz comprido no escritório. É um welsh corgi, um cãozinho galés com pernas curtas e orelhas grandes, agora um velhote com suas dores e achaques, para não falar no olho perdido para o câncer no ano anterior. O veterinário disse que provavelmente ele não ia sobreviver ao tumor, mas sobreviveu. Bom garoto. Garoto durão. E quando tira o focinho do ângulo agora necessariamente baixo de sua visão e olha para o escritor, o welsh corgi está usando o velho sorriso amigo. Como vão as coisas, rapaz?, aquela expressão parece dizer. Conseguindo palavras legais no dia de hoje? Muitas?

— Estou indo bem — ele diz a Marlowe. — Passe pra dentro. E você como vai?

Marlowe (conhecido às vezes como Focinhão) abana a cauda artrítica em resposta.

“Você de novo.” Foi o que eu disse a ele. E ele perguntou: “Você se lembra de mim?” Ou talvez não tenha sido uma pergunta: “Você se lembra de mim.” Disse a ele que tinha sede. Ele disse que não tinha nada para beber, disse que lamentava e o chamei de mentiroso. E tinha razão de chamá-lo de mentiroso porque ele não lamentava coisa nenhuma. Se importava tanto quanto uma ponta de prego se eu estava com sede. Jake estava morto e ele tentava jogar essa coisa em mim, o filho de uma puta tentava jogar essa culpa em mim...

— Mas nada disso realmente aconteceu — diz King, vendo Marlowe gingar de volta à cozinha, onde visitará de novo sua comida antes de entrar num daqueles cochilos cada vez mais longos. Fora os dois, a casa está deserta e, em tais circunstâncias, não é raro King falar sozinho. — Quero dizer, você sabe disso, não é? Que nada daquilo realmente aconteceu?

Ele supõe que sabe, mas foi tão estranho Jake ter morrido daquela maneira. Jake estava em todas as suas anotações, e aqui nenhuma surpresa, pois Jake devia permanecer na ativa até o verdadeiro fim. Na realidade, todos eles deviam. É claro que nenhuma história, exceto as ruins, as que já nascem sem fôlego, nunca está inteiramente sob o controle do escritor, mas é absurdo ver como aquela ficou tão fora de controle. Realmente ele se sente antes vendo algo acontecer — ou ouvindo alguma canção — do que escrevendo uma maldita história inventada.

Decide preparar um sanduíche com manteiga de amendoim e geléia para o almoço e esquecer toda a porra daquela coisa até amanhã. De noite vai ver o novo filme de Clint Eastwood, Dívida de Sangue, e está satisfeito pelo fato de poder ir aonde quiser, fazer o que quiser. Amanhã voltará à sua mesa de trabalho e algo do filme poderá escapulir para dentro do livro... Certamente o próprio Roland tinha muito de Clint Eastwood, o Homem sem Nome de Sérgio Leone.

E... por falar de livros...

Na mesinha de centro da sala há um livro que chegou via FedEx, naquela manhã mesmo, de seu escritório em Bangor: Robert Browning, Obra Poética Completa. Contém, é claro, “Childe Roland à Torre Negra Chegou”, o poema narrativo que se encontra na raiz da longa (e penosa) história de King. Uma idéia de repente lhe ocorre e traz a seu rosto uma expressão que quase explode numa franca gargalhada. Como se lesse seus sentimentos (e possivelmente os lia; King sempre suspeitara que cachorros são emigrados relativamente recentes daquele grande país, sei-exatamente-como-se-sente, da Empática), o sorriso amigo de Marlowe parece se ampliar.

— Um lugar para o poema, meu velho — diz King, atirando o livro de volta à mesinha de centro. É um livro grande, que aterrissa com um forte baque. — Um lugar e um lugar apenas. — Então ele afunda mais na cadeira e fecha os olhos. Vou somente sentar aqui por um minuto ou dois, ele pensa, sabendo que está se iludindo, sabendo que é quase certo que vai cochilar. E ele o faz.

 

 

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